Aubrey e Maturin se encontram em Malta à espera de embarcar, enquanto os serviços secretos franceses os vigiam. Entram em contato com uma mulher, cujo marido está preso, que atua como agente secreto. Maturin fica enamorado por ela e descobre que as cartas que ela recebe de seu marido são falsificações.
XXXXX
CAPÍTULO 1
Um suave vento soprava do nordeste depois de uma noite de chuva, e a luz que iluminava o céu de Malta tinha uma qualidade especial que fazia ressaltar as linhas dos nobres edifícios, destacando todos os atributos das pedras. Era um prazer respirar o ar, e a cidade de Valletta estava muito animada, como se todos nela estivessem enamorados ou de repente tivessem ouvido boas notícias.
Isto se notava particularmente em um grupo de oficiais da marinha sentados no caramanchão do hotel Searle. Olhavam para o passeio Upper Baracca, sob cujos arcos caminhavam muito devagar para um lado e para o outro uma multidão de soldados, marinheiros e civis debaixo da brilhante luz do sol, tão brilhante que fazia parecer alegres as negras capas com capuzes das mulheres maltesas, e resplandecer como flores esplendorosas os uniformes dos oficiais. Apesar de que os uniformes que mais se viam na multidão eram os de cor escarlata e dourado da Armada britânica, era uma multidão cosmopolita, na qual estavam representados muitos dos países que faziam a guerra à Napoleão, e também se viam nela, por exemplo, os uniformes de cor rosa claro dos croatas de Kresimir e os de colorido azul com galões prateados dos hussardos napolitanos, que faziam um agradável contraste. Para lá do passeio e muito mais abaixo ficava o grande porto, hoje com as águas de cor safira, nas quais formavam veios brancos as velas de inumeráveis barcos pequenos que iam e vinham de Valletta para os grandes cabos fortificados que ficavam do outro lado, Sant'Angelo e Isola, e dos barcos de guerra, os transportes e os vendedores, e tudo isto constituia um espetáculo que deleitava a qualquer homem do mar.
Todos esses cavalheiros eram capitães sem barcos. Os que estavam em sua posição ficavam geralmente silenciosos e tristes, e muito mais na atualidade, já que a prolongada guerra parecia estar chegando ao seu clímax, a concorrência era mais dura que antes, e para receber distinções e nomeações que valessem a pena, para não falar de conseguir butins e promoções, era preciso estar ao comando de um barco. Alguns haviam ficado sem barco, ou porque suas embarcações haviam afundado, como no caso da antiqüíssima Aeolus, que estava sob o comando de Edward Long, ou porque a promoção havia provocado que ficassem em terra, ou devido a um maldito conselho de guerra. Contudo, a maioria deles somente se separavam temporariamente de seus barcos, os quais estavam sendo repararados porque estavam estragados por ter passado anos fazendo o bloqueio a Toulon em todas as condições climatológicas possíveis. Mas os estaleiros estavam abarrotados, as reparações costumavam ser grandes e complicadas e sempre eram muito lentas, e os capitães tinham que permanecer ali enquanto transcorria o precioso tempo que podiam passar no mar, e maldiziam constantemente o atraso. Ainda que alguns dos mais ricos haviam mandado buscar suas mulheres, que, sem dúvida, eram um consolo para eles, a maioria dos capitães ficavam condenados ao triste celibato ou ao solaz local que pudessem encontrar. O capitão Aubrey era um destes, porque apesar de ter capturado uma presa valiosa no mar Jônico, o Almirantado ainda não decidira se era uma presa legal, e seus negócios na Inglaterra iam tão mal que lhe haviam causado problemas legais de todo tipo. Por outro lado, como o alojamento em Malta encarecera e ele, por ser mais velho agora, já não se atrevia a desembolsar grandes somas que mesmo não possuía, vivia como um solteiro, com as poucas coisas com que um capitão de navio podia viver com decoro, de modo que subia três vãos de escada até seu quarto no hotel Searle e a ópera era seu único entretenimento. Em realidade, era o mais desafortunado de todos os capitães cujos barcos estavam nmãos dos homens que deviam repará-los, já que havia tido que mandar nada menos que duas embarcações ao estaleiro, assim que tinha que tratar com dois grupos diferentes de empregados corruptos e incompetentes, artesãos lentos e estúpidos e comerciantes velhacos. Uma das embarcações era o Worcester, um desconjuntado navio de linha de setenta e quatro canhões que quase se despedaçara na longa e inútil perseguição da esquadra francesa em um temporal, e a outra era a Surprise, uma pequena fragata que navegava com facilidade e que lhe fora designada temporariamente, enquanto o Worcester era reparado, para que fosse ao mar Jônico para realizar uma missão na qual atacara duas embarcações turcas, a Torgud e o Kitabi, e sustentara com elas um encarniçado combate ao final do qual a Torgud afundara, o Kitabi fora apresado e a Surprise ficara cheia de buracos na linha d’água. O Worcester, esse barco mal desenhado e mal construído, esse caixão flutuante, seria mais útil se fosse feito em pedaços e vendido como lenha, mas era ao seu casco sem valor ao que os empregados do estaleiro atendiam, pois isso lhes produzia benefícios, enquanto a Surprise fora esquecida porque faltavam umas curvas{1} para a coxia, a coluna do gurupés e a serviola de estibordo e placas de cobre para cobrir vinte jardas quadradas. Enquanto isso, os marinheiros que integravam a tripulação da Surprise, excelentes marinheiros selecionados, não só eram cada vez mais preguiçosos, viciosos e dissolutos, senão que se embebedavam e adoeciam mais, e os melhores e inclusive os suboficiais, eram levados pelos superiores de Jack que não tinham escrúpulos. Ademais, o magnífico primeiro oficial havia deixado a fragata. O capitão Aubrey deveria ser o mais triste daquele grupo de homens tristes; contudo, estava muito animado, falava em voz muito alta e inclusive cantava com entusiasmo, com tanto entusiasmo que seu amigo íntimo, o cirurgião da Surprise, Stephen Maturin, fora para um lugar do caramanchão mais tranqüilo, levando consigo um antigo companheiro de tripulação, o professor Graham, um filósofo que viajava com permissão da universidade escocesa onde trabalhava, um homem que dominava a língua turca e era uma autoridade em assuntos orientais. O entusiasmo do capitão Aubrey devia-se em parte ao efeito daquele bonito dia em uma pessoa alegre por natureza, em parte pela contagiosa alegria de seu companheiros, e em parte, principalmente, por que ao final da mesa estava sentado Thomas Pullings, que até pouco tempo era seu primeiro tenente e agora era o capitão de menos antiguidade da Armada, o homem que ocupava o lugar mais baixo na lista dos que tinham direito a ser designados com o nome de capitão, ainda que só fosse por cortesia. A promoção custara ao senhor Pullings algumas pintas de sangue e uma terrível ferida (um turco lhe havia desferido um golpe e lhe cortara grande parte da testa e do nariz), mas suportaria com gosto uma dor dez vezes mais intensa e ter ficado mais desfigurado para conseguir as dragonas douradas, para as quais lançava olhares e tocava constantemente, sorrindo dissimuladamente. Jack Aubrey havia tentado que lhe dessem essa promoção durante muitos anos, e perdera a esperança de conseguir, já que Pullings, ainda que fosse um experimentado marinheiro e um homem simpático e valente, não tinha privilégios por sua origem. Inclusive na última ocasião, Aubrey não confiava em que seu relatório produzisse o efeito desejado, pois o Almirantado, sempre resistente a dar promoções, poderia dar a desculpa de que o capitão da Torgud era um rebelde e não o capitão de um barco que pertencia a um país hostil. Contudo, a nomeação havia sido enviada imediatamente no Calliope, e o capitão Pullings a recebera há tão pouco tempo que sua alegria ainda estava mesclada com o assombro; falava muito pouco e respondia sem pensar, algumas vezes sorria, outras ria sem razão aparente.
O doutor Maturin também sentia afeto por Thomas Pullings. Assim como o capitão Aubrey, navegara com ele quando era guarda-marinha, ajudante de oficial de derrota e tenente. Estimava-o muito e lhe costurara a ferida da testa e do nariz com mais cuidado do que costumava ter e havia passado a noite sentado junto de sua maca durante o período em que havia tido febre. Mas o doutor Maturin não havia podido conseguir o peixe de São Pedro. Era sexta-feira e havia esperado com aflição o peixe de São Pedro que haviam prometido dar-lhe nesse mesmo dia; contudo, o gregal soprara com tanta força durante a terça-feira, a quarta-feira e a quinta-feira que os barcos pesqueiros não haviam podido sair do porto, e posto que em Searle não estavam acostumados a ver oficiais da marinha católicos (era raro encontrar-lhes na Armada, já que quando chegavam ao grau de tenente lhes exigiam declarar que não reconheciam a autoridade do Papa), não haviam incluído na refeição nem um pedaço de pescado em salmoura, ele havia tido que comer umas horríveis verduras cozidas ao estilo inglês, muito cozidas e sem sabor de nada. Maturin não era ambicioso nem tinha muito mau humor, mas esta decepção se somava a uma série de desgostos e molestias que havia tido e, ademais, chegava quando fazia dois dias que havia deixado de fumar.
- Pode-se dizer que Duns Scotus tem a mesma relação com Aquino que Kant com Leibniz - disse Graham, continuando a conversa que mantinham antes.
- Ovi isso amiúde em Ballinasloe - disse Maturin. - Mas não aguento a Immanuel Kant. Desde que descobri que faz caso desse ladrão do Rousseau, não lhe aguento. O fato de que um filósofo dê crédito ao que diz esse tipo extravagante filho de um bandido suiço demostra que tem dois defeitos: ligeiraza e credulidade. As lágrimas abundantes e tão bem calculadas, as confissões falsas, o entusiasmo, as paisagens ideais… - disse, aproximando a mão de sua tabaqueira e logo afastando-a com decepção. - Quanto detesto o entusiasmo e as paisagens ideais!
- David Hume achava o mesmo que o senhor - disse Graham, - quero dizer, tinha a mesma opinião sobre monsieur Rousseau. Achava que ele era simplesmente um crackit gaberlunzie.
- Mas Rousseau pelo menos não fazia ruído - disse Maturin, olhando com raiva para o outro lado do caramanchão, onde estavam seus amigos. - Jean Jacques Rousseau era um homem insensível, um apóstata, um fornicador e um embusteiro, mas não berrava como um touro quando ficava alegre. Olhe como gritam para essas jovens! Que vergonha!
As jovens, que a cada noite dançavam ou cantavam em coro no palco e amiúde iam de excursão com os oficiais mais jovens para as ilhas Gozo e Camino, onde comiam em algum de seus pequenos bosques, não pareciam icomodadas. Todas lhes responderam algo e lhes cumprimentaram com a mão, e uma delas inclusive subiu a escada, sentou-se no braço da cadeira do capitão Pellew, bebeu de seu copo de vinho e disse que todos deveriam ir ver a ópera no sábado porque ela ia cantar a parte do jardineiro recruta. Nesse momento o capitão Aubrey fez um comentário jocoso, que Maturin não pôde ouvir, mas as gargalhadas que o seguiram provavelmente se ouviram em Sant'Angelo.
- Jesus, María e José! - exclamou Maturin. - Na Irlanda, quando um grupo de amigos brincam não se ouve mais que um burburinho, e acho que o mesmo ocorre na Escócia.
Graham não achava, mas tinha uma atitude benévola por Maturin e se limitou a dizer: "Heuch: ablins".
- Alguns de meus melhores amigos são ingleses - continuou Maturin, - e inclusive os mais respeitáveis têm essa horrível tendência de fazer um ruído confuso quando estão alegres. Isso carece de importância em seu país, onde a dieta embota a sensibilidade, mas em outros, não, em outros é percebido como uma amostra de arrogância e causa mais indignação que muitas faltas piores. Os espanhóis são desprezíveis, são colonialistas, rapaces e cruéis assassinos, mas nunca se lhes ouve rir. Sua arrogância é um tipo de arrogância comum, universal, e sua presença não causa tanta indignação como a dos ingleses. Tomemos como exemplo o caso desta ilha: faz mais ou menos dez anos que a marinha resgatou sua população da espantosa tirania francesa e encheu o lugar de riquezas em vez de carregar seus barcos até o tope com os tesouros das igrejas e os levar, mas agora difunde o descontente entre a população, e acredito que o riso tem algo a ver com isso. Ainda que bem sabe Deus que também tem algo a ver com a arrogância corrente. Quer dar uma lhada nisto?
Graham pegou o papel, sustentou diante dele com o braço estirado, e leu: "O governador civil nomeado pelo Rei lamenta que algumas pessoas débeis e irrefletidas, enganadas por falsos argumentos, tenham se convertido em instrumentos de alguns revoltosos. Que as convenceram a subscrever uma petição de mudanças na atual forma de governo destas ilhas que será apresentada ao Rei".
- Nota-se nele o estilo polido de sir Hildebrand - disse Maturin. - Ebenezer Graham, já que o senhor goza de sua confiança, não poderia aconselhá-lo que esquecesse seu orgulho e sua justificada indignação por um momento e refletisse sobre a enorme importância da benevolência dos malteses? Não poderia persuadi-lo a que se dirigisse a eles com cortesia e em sua própia língua ou, ao menos, em italiano? Não poderia…? Que foi, garoto? - perguntou a um menino que conseguira atravessar a cerca, pusera-se ao seu lado e, sorrindo timidamente, esperava o momento oportuno para dizer-lhe que sua irmã, de apenas quinze anos de idade, era amável com os cavalheiros ingleses, que seus honorários eram moderados e que a plena satisfação estava garantida.
A interrupção não fora longa, mas impediu Maturin de seguir falando com fluidez, e quando o menino se foi, Graham disse:
- E posto que o senhor goza da confiança do capitão Aubrey, não poderia aconselhá-lo que evitasse a companhia do senhor Holden em vez de saudar-lhe dessa maneira em público?
O senhor Holden fora expulso da Armada por usar seu barco para proteger a um grupo de gregos que fugiam por causa de alguns atos de repressão cometidos pelos turcos e agora representava um pequeno, incipiente e ineficaz Comitê para a Independência da Grécia, e como o governo inglês tinha que manter boas relações com o Sultão, não era uma pessoa grata para as autoridades de Malta.
Mas era muito tarde para dar esse conselho, pois Holden já estava sentado na mesa de seu velho companheiro de tripulação e com uma mão sustentava em alto um copo de vinho e com a outra assinalava um conjunto de esplêndidos diamantes que estavam no chapéu de Jack Aubrey.
- Que… que é isso? - perguntou.
- É um chelengk - disse Jack com orgulho. Não é verdade que estou elegante?
- Dá-lhe voltas outra vez. Dá-lhe voltas para que ele o veja - disseram seus amigos.
O capitão Aubrey pôs seu chapéu de dois bicos com um ribete dourado, seu melhor chapéu, sobre a mesa. O magnífico broche (formado por duas fileiras de pequenos diamantes unidos, cada uma delas de umas quatro ou cinco polegadas de comprimento e coroada por um diamante de considerável tamanho) ficava montado sobre uma base redonda salpicada de pequenos diamantes; Jack deu várias voltas em sentido anti-horário, e quando colocava o chapéu outra vez, a base redonda começou a girar com um suave zumbido e os ramos começaram a estremecer como se tivessem vida própia. O capitão ficou ali sentado, rodeado de luzes que pareciam brotar de fogos artificiais, cujas cores ficavam mais vivas à luz do sol.
- Onde… onde o conseguiu? - perguntou Holden, olhando para os outros, como se não devesse se dirigir ao capitão Aubrey enquanto o resplandecente broche estremecia.
Os outros perguntaram admirados se Holden não o sabia e disseram que o sultão da Turquia lhe havia presenteado por ter capturado a Torgud, que estava sob o comando de um capitão rebelde, e também o barco que a acompanhava. Logo perguntaram para Holden em que lugar estivera que não havia ouvido falar da batalha entre a Surprise e o Torgud, a batalha mais importante dos últimos tempos.
- Conhecia a Torgud, claro - disse Holden. - Tinha canhões muito potentes e estava sob o comando do bei Mustafá, um cruel assassino. Diga-me, Jack, como entabulou o combate com ela?
- Então, entrávamos no canal de Corfú, sabe? - disse Jack, - com vento enquadrado do sudeste, um vento que permitia desdobrar as joanetes. E os barcos se encontravam assim…
O caramanchão estava agora mais tranqüilo, e o doutor Maturin estava sentado com as pernas cruzadas e as calças desabotoadas na parte do joelho. Nesse momento sentiu algo movendo-se por sua panturrilha, algo que parecia um inseto, e instintivamente levantou a mão, mas devido aos anos dedicados ao estudo das ciências naturais, que aumentaram seu interesse por conhecer todas as criaturas e seu desejo de proteger desde uma abelha a uma inocente mariposinha noturna, atrasou o golpe. No passado, amiúde havia pago caro por seus conhecimentos, e agora voltou a pagar caro. Apenas havia reconhecido o grande tábano maltês, um tabano com doze pintas, quando o inseto cravou profundamente a probóscide em sua carne. Então golpeou o animal, esmagando-o, e se ficou ali sentado olhando em silêncio como o sangue se espalhava por sua meia de seda branca, com os lábios franzidos por causa da raiva.
- O senhor dizia que havia se liberado do tabaco - disse Graham, - mas, não lhe parece que a decisão de deixar de fumar lhe priva da liberdade? Não lhe parece que suprime o direito de escolher, que é a verdadeira essência da liberdade? Não lhe parece que um homem sensato deveria ser livre de escolher entre fumar ou não fumar, conforme as circunstâncias? Somos animais sociais, mas passar privações voluntariamente, como os ascetas, em um momento inoportuno, nos causa irritação e pode fazer-nos esquecer nossa responsabilidade social e, portanto, chegar a romper os vínculos que nos unem ao resto da sociedade.
- Acredito que diz isto com boa vontade - disse Maturin. - Mas permita-me dizer-lhe que me admira que o diga. Estranho que um homem tão inteligente como o senhor pense que algo tão complexo como é o estado de ânimo só tenha uma causa. É possível que a única causa de meu mau humor seja não fumar? Não, não. Em psicologia, como em história, os fenômenos têm múltiplas causas. Ainda que eu fume um pequeno charuto, ou parte de um pequeno charuto, para comprazer-lhe, verá que a diferença, se houver, será mínima. As mudanças de humor têm motivos obscuros, e às vezes fico surpreso ao encontrar-me com o que surge deles, com os pensamentos e as atitudes que surgem em minha mente completamente formados.
Isso era verdade. Nem o peixe de São Pedro nem a ânsia de fumar eram razões suficientes para justificar o mau humor de Maturin, que há dias aparecia a cada manhã quando se levantava. Enquanto meditava sobre o assunto, ocorreu-lhe que pelo menos uma das muitas razões era que estava faminto de prazer sexual e que recentemente haviam excitado seu desejo. "O touro se torna ressabiado quando está encerrado", disse para si, aspirando profundamente a agradável fumaça. Mas ainda não havia encontrado a explicação completa, de nenhuma maneira. Então passou para a parte do jardim onde dava o sol, para a parte onde não havia vento, para não encher de fumaça o professor Graham, e ali, pestanejando por causa da intensidade da luz, remoeu o assunto na cabeça.
O lugar para onde tunham ido podia ser visto da torre da sede da Ordem de Malta, um edifício alto, sóbrio, com um incongruente relógio na parte superior da fachada. O quarto mais alto, uma habitação lúgubre e desmobiliada, não havia sido ocupada desde que os cavalheiros haviam partido, tinha o solo coberto por uma poeira suave e cinzenta e pelos excrementos dos morcegos que se ouviam voar entre as escuras vigas do teto e retumbava com o grave som com qual o relógio marcava os segundos. Era a habitação mais escura e incômoda; contudo, dela os espiões podiam ver bem o passeio, o hotel Searle e seu jardim, ainda que, obviamente, não seu caramanchão.
- Aí está um deles - disse um dos espiões. - Acaba de entrar aonde dá o sol.
- Esse homem que está fumando um charuto? - perguntou o outro. - O cirurgião naval?
- É um cirurgião naval, e muito inteligente, conforme dizem, mas também um agente secreto. Seu nome é Stephen Maturin. Seu pai é irlandês e sua mãe é espanhola, e poderia passar por um homem de ambas as nacionalidades ou por francês. Nos causou muito estrago: por sua causa muitos de nossos homens morreram. Estava a bordo do Ocean quando seu primo foi envenenado.
- Eu o eliminarei esta noite.
- Não fará semelhante coisa - disse o primeiro homem secamente.
Falava italiano com um marcado sotaque do sul, porém, na realidade, era um espião francês, um dos espiões franceses mais importantes na região mediterrânea, e os malteses que estavam com ele baixaram a cabeça obedientemente. Lesueur era o sobrenome do francês, e parecia uma versão antiga do doutor Maturin, a quem olhava agora atentamente através de um telescópio de bolso: um homem de baixa estatura, magro, encurvado, de pele amarelada, habitualmente com uma expressão austera, reservada e pedante, que raras vezes atraía a atenção dos outros, mas que se a atraía, demonstrava imediatamente que tinha domínio de si mesmo e uma grande inteligência. Mas Lesueur, ademais, controlava grandes somas e vestia como um próspero comerciante.
- Não, não, Giuseppe - disse em tom mais amável. - Admiro sua determinação e sei que maneja muito bem a faca, mas isto não é Nápoles nem Roma. Sua repentina e inexplicável desaparición levantaria uma agitação e, obviamente, seríamos relacionados com ela, e é fundamental que não suspeitem de nossa presença aqui. De toda forma, obteríamos pouca informação de um cadáver, enquanto que poderíamos obter muita do doutor Maturin vivo. Eu encarreguei à senhora Fielding que o vigie, e você e Luigi o vigiarão quando ele se reunir com outras pessoas.
- Quem é a senhora Fielding?
- Uma dama que trabalha para nós. Ela reporta-se a mim ou a Carlos.
Poderia ter acrescentado que Laura Fielding é napolitana e está casada com um tenente da Armada real, um jovem que fora capturado pelos franceses quando participava de uma operação que tinha como objetivo sacar um barco de um de seus portos e que agora estava encerrado na prisão de Bitche, uma prisão de castigo, por ter fugido de Verdún. Como matara a um dos gendarmes que o perseguia, era provável que no julgamento fosse condenado à morte. Mas o julgamento havia sido adiado uma e outra vez, e a senhora Fielding fora informada de maneira indireta de que podia ser adiado indefinidamente se cooperasse com uma pessoa que estava interessada nos movimentos do transporte marítimo. Apresentaram-lhe o caso como algo relacionado com os seguros internacionais e com grandes companhias venezianas e genovesas cujos correspondentes franceses tinham o apoio do Governo. Nenhuma pessoa que estivesse familiarizada com os negócios teria dado crédito a essa história, mas o homem que lhe contara era um orador convincente e lhe deu uma carta autêntica do senhor Fielding dirigida para sua esposa e escrita há menos de três semanas antes, uma carta na qual dizia que aproveitava essa excepcional oportunidade para enviar seu amor à sua "queridíssima Laura" e dizer-lhe que o julgamento havia sido adiado de novo, que na prisão o tratavam com menos severidade e que era possível que não mantivessem todas as acusações que lhe haviam feito.
A senhora Fielding tinha uma posição adequada para conseguir informação porque era bem recebida em todos os lugares e, ademais, porque, para ganhar um pouco de dinheiro que complementasse suas modestas rendas, dava aulas de italiano às esposas e às filhas dos oficiais e às vezes aos própios oficiais, o que lhe permitia informar-se de fragmentos de notícias, em ocasiões sobre assuntos confidenciais, que não tinham sentido sozinhos, mas que unidos permitiam fazer-se uma idéia da situação. Apesar de sua pobreza, também dava festas nas quais tocava música e nas quais oferecia aos seus convidados limonada procedente da prolífica árvore de seu própio jardim e bolachas de Nápoles, ainda que só uma para cada um. Lesueur pensava que ela tinha ainda mais valor devido a isso, pois como tocava muito bem o piano e o bandolim e cantava muito bem, reunia todos os marinheiros e militares que eram músicos amadores e que tinham mais talento em uma atmosfera distendida e sem receios; contudo, até agora não aproveitara todo seu potencial, porque preferia que se acostumasse à idéia de que o bem-estar de seu marido dependia de sua diligência. Lesueur não causaria nenhum estrago se houvesse dito tudo isto a Giuseppe, mas era um homem tão circunspecto como seu gesto e gostava de reservar para si a informação, toda a informação. Contudo, tinha que agadar um pouco a Giuseppe e tinha que dar-lhe certa informação sobre a situação atual, já que o maltês estivera ausente por muito tempo.
- Dá aulas de italiano - disse Lesueur de má vontade e fez uma pausa. - Vê aquele homem que está ao fundo do lado esquerdo do caramanchão?
- O capitão manco com a peruca curta?
- Não. Do outro lado da mesa.
- O capitão de navio gordo e loiro que tem uma coisa brilhante no chapéu?
- Exatamente. Ele gosta muito de ópera.
- Aquele homem de cara vermelha que parece um boi? O senhor me surpreende. Eu pensaria que ele gosta de cerveja e de bolos. Olhe como ele ri. Com certeza o ouvem em Ricasoli. Provavelmente está bêbado. Os ingleses sempre estão bêbados. Não sabem o que é a decência.
- Talvez. De toda maneira, ele gosta muito de ópera. E de passagem lhe direi que não deve permitir que seu desgosto perturbe seu julgamento e o faça subestimar o inimigo: esse homem com a cara vermelha que parece um boi é o capitão Aubrey, e ainda que agora não lhe pareça muito astuto, foi o homem que negociou com o bei Sciahan, destruiu Mustafá e nos expulsou de Marga. Nenhum néscio poderia ter feito uma dessas coisas, e muito menos as três. Mas o que eu ia dizer era que, como ele terá que passar algum tempo aqui e por gostar de ópera, decidiu tomar aulas de italiano para poder entender o que dizem nela.
Giuseppe ia fazer um comentário sobre a simplicidade dessa idéia, mas ao ver o olhar de Lesueur, fechou a boca.
- Seu primeiro professor foi o velho Ambrogio - continuou, - mas assim que Carlos se informou disso mandou que as pessoas adequadas dissessemr a Ambrogio que fingisse que estava doente e que recomendasse a senhora Fielding. Não me interrompa, por favor - disse, levantando a mão quando Giuseppe voltou a abrir a boca. - Ela já está doze minutos atrasada e quero dizer tudo o que tenho a dizer antes que ela chegue. O importante é isto: como Aubrey e Maturin sempre navegaram juntos e são amigos íntimos, se pomos essa mulher em contato com Aubrey também a pomos em contato com Maturin. Ela é jovem, atraente, muito inteligente e tem boa reputação, pois não teve nenhum amante, quer dizer, não teve nenhum desde que se casou. Nestas circunstâncias, não duvido que chegará a ter relações com ela, assim que espero receber informações muito valiosas.
Enquanto Lesueur dizia estas palavras, Maturin se moveu em seu assento e olhou para a torre da casa do boticário. Para os dois homens que est;avam dentro pareceu que seus estranhos olhos claros podiam ver-lhes através dâs barras dos postigos e deram um passo para trás.
- Parece um asqueroso crocodilo - sussurrou Giuseppe.
A inquietação de Stephen Maturin aumentara pela sensação de que era observado, ainda que isto não havia chegado ao nível da consciência. Sua inteligência ainda não havia captado o que seu instinto havia percebido, e ainda que seus olhos olhassem na direção correta, sua mente considerava a torre uma guarida de morcegos. Sabia que a parte inferior era usada por um comerciante como armazém desde que os cavalheiros haviam partido e estava quase certo de que a superior não fora usada desde então; portanto, poucos lugares podiam ser mais adequados para os morcegos. Clusius descrevera boa parte da flora da ilha e Pozzo di Borgo, das aves, porém, lamentavelmente, não haviam prestado atenção aos morcegos malteses.
Apesar do doutor Maturin ter interesse nos morcegos, e também em tudo o relacionado com as ciências naturais, somente a parte superficial de sua mente se ocupava deles. O reconfortante charuto havia eliminado parte de seu mau humor, mas ainda estava muito incômodo. Como Lesueur dissera, era um agente secreto além de ser um cirurgião naval, e ao regressar a Malta depois de ter estado em Jônia se encontrara em uma inquietante situação que agora era ainda mais inquietante. Muita informação confidencial fora divulgada, até tal extremo que um vinhateiro siciliano que ele conhecia pudera lhe dar informação precisa sobre o 73º Regimento, dissera que ele zarparia de Gibraltar na semana seguinte com destino a Citera e Santa Maura. Porém, ademais, alguns planos importantes haviam sido revelados, ao menos em parte, e poderiam chegar a conhecer-se em Toulon e Paris.
Desgraçadamente, houvera falta de autoridade. Em Valletta, o popular governador, um oficial de marinha que lutara com os malteses contra os franceses, um homem que simpatizava com os malteses, falava sua língua e conhecia bem os seus líderes, fora substituído, inexplicavelmente, por um militar estúpido e arrogante que se referia aos malteses em público como "nativos papistas a quem mostraria quem mandava". Os franceses não podiam pedir nada melhor. Haviam reforçado as redes de espionagem que já tinham na ilha com dinheiro e homens, recrutando grande número de descontentes.
Sem dúvida, tivera mais importância ainda o intervalo entre a morte do almirante sir John Thornton e a nomeação de um novo comandante geral. Sir John dirigira muito bem o serviço secreto naval e havia sido um hábil diplomata, um bom estrategista e um excelente marinheiro; contudo, suas relações com a maior parte das pessoas que integravam sua improvisada organização não eram de caráter oficial senão pessoal, e a organização havia se desintegrado nas mãos do segundo ao comando da esquadra, seu incompetente sucessor temporal, o contra-almirante Harte. Muitos homens influentes e muitos funcionários que desempenhavam cargos importantes em governos de um lado a outro do Mediterrâneo faziam confidências a sir John ou ao seu secretário, mas não tinham nada que dizer a um mal-humorado, indiscreto, e ignorante substituto temporal. O própio Maturin, que cooperava com o serviço secreto voluntariamente, impulsionado nada mais que por um profundo ódio da tirania napoleônica, havia decidido não desempenhar mais que o cargo de cirurgião naval enquanto Harte estivesse ao comando da esquadra.
Mas esse intervalo chegara ao seu fim. Agora o respeitável sir Francis Ives, o novo comandante geral, estava com o grosso da esquadra fazendo o bloqueio a Toulon, onde os franceses tinham vinte e um navios de linha e sete fragatas e havia muita atividade, e ao mesmo tempo tratava de desenredar os fios de seu comando, que controlavam os assuntos táticos, políticos e o complementar, mas necessária, serviço secreto. Ao mesmo tempo, o Almirantado havia enviado um funcionário para que resolvesse os problemas que havia em Malta, nada menos que o vice-secretário interino, o senhor Andrew Wray. Tinha fama de ser brilhante, e, certamente, fez um excelente trabalho no Ministério da Fazenda, sob as ordens de seu primo lorde Pelham. Não restava dúvida de que era um funcionário competente. E Maturin não tinha a menor dúvida de que, além de lutar com os franceses, necessitaria usar toda sua inteligência para superar o ódio do Exército e a obstrução e os ciúmes de outros serviços secretos britânicos que haviam penetrado na ilha. Havia ali misteriosos cavalheiros de vários departamentos, que davam maus conselhos, atrapalhavam-se uns aos outros e causavam confusão, e quando Stephen Maturin analisava sua situação, só o que lhe consolava era pensar que provavelmente a dos franceses era pior, pois sabia muito bem que nos governos autoritários proliferavam os espiões e os delatores. Havia indícios de que os membros de pelo menos três ministérios franceses trabalhavam em Malta, cada grupo sem saber que os outros estavam presentes, e de que todos estavam vigiados por um homem de um quarto ministério. O aparente objetivo da visita do senhor Wray era acabar com a corrupção no estaleiro, e Maturin achava que ele teria mais êxito nisto que na contra-espionagem. A espionagem requeria a especialização em assuntos relacionados com ela, e esta era o primeiro cotato direto de Wray com este departamento, que Stephen soubesse; em troca, como a corrupção era universal, ou seja, que se achava em toda a sociedade, e como Wray em sua juventude havia vivido delicadamente em uma casa luxuosa só com o soldo de funcionário (poucas centenas de libras por ano), sem nenhuma renda de propriedades privadas, era provável que a conhecesse bem. Maturin conhecera a Wray há alguns anos, quando Jack Aubrey estava em terra e tinha uma extraordinária quantidade de dinheiro, pois acabava de conseguir um importante butim na operação que realizara em Mauricio. Haviam se encontrado em um clube de jogo de Portsmouth onde Jack estava jogando com alguns conhecidos e se limitaram a cumprimentar-se com uma inclinação de cabeça e a dizer "Como está o senhor?". Maturin não deu importância à apresentação, e nunca teria se recordado de Wray se não fosse porque alguns dias mais tarde, quando estava em Londres, Jack acusara Wray e aos seus companheiros de fazer trapaças no jogo de cartas, ainda que em termos bastante ambíguos para manter a dignidade. Mas Wray não lhe exigira uma satisfação da forma bárbara que era normal em casos como esse. Ainda que Stephen não sabia de primeira mão o que havia passado, pensava que possivelmente Wray entendera que as acusações de Jack eram dirigidas a outro jogador; contudo, havia indícios de que no Almirantado teve uma atitude hostil com ele durante algum tempo, pois lhe haviam denegado barcos, haviam dado boas nomeações para homens com menos méritos de guerra, não haviam promovido os subordinados de Jack, e Stephen suspeitara que Wray estava se vingando dessa maneira. Mas isso também poderia ser o resultado de outras causas; poderia ser, por exemplo, consequência dos ministros não gostarem do general Aubrey, o pai de Jack, um eterno parlamentário membro do partido radical que era um tormento para eles, e esta explicação se apoiava no fato de que a reputação de Wray não havia sofrido menosprezo. Geralmente, um homem que não se batia em semelhantes circunstâncias era desprezado por todos; contudo, quando Aubrey e Maturin regressaram de uma missão que tiveram que realizar para lá das Índias Orientais pouco depois do desagradável incidente, Stephen achou que todos davam por serto que houve um duelo ou que Wray deu explicações a Jack, e que Wray era recebido em todas partes. Stephen o vira várias vezes em Londres. E se a reputação de Wray não havia sofrido menosprezo, não tinha motivos para se vingar. De toda maneira, seu modo de vida havia mudado por completo desde aqueles dias. Havia feito um bom matrimônio, do ponto de vista material, porque, apesar de Fanny Harte ter pouca beleza e menos afeto que dar-lhe (ela era contra o matrimônio desde o início, porque estava enamorada de William Babbington, capitão da Armada real), sua fortuna lhe permitia levar uma vida deleitada, como ele gostava, sem necessidade de valer-se de outros recursos, e tinha a possibilidade de conseguir uma maior riqueza, que esperava com ânsia, quando o contra-almirante Harte morresse, já que Harte herdara uma grande soma de um parente seu que era prestamista na rua Lombard e Fanny era sua única filha. Por Além disso, devido a Jack Aubrey ter conseguido uma importante vitória no mar Jônico, que proporcionara à Armada, entre outras coisas, uma excelente base naval, e que agradara ao Sultão, um ponto de grande importância diplomática nesse momento, estava a salvo de insidiosos comentários marginais que aludissem a sua má conduta ou de notas semi-oficiais que mencionassem as indiscrições de sua juventude.
- Aí está o outro - disse Lesueur quando Graham saíu da sombra e se sentou do lado de Stephen Maturin. - A informação que tínhamos sobre ele era confusa. A princípio acreditávamos que fazia parte de uma organização totalmente diferente, mas agora achamos que não é mais que um lingüista que foi contratado para traduzir e redigir documentos em turco e em árabe e que logo deve voltar para sua universidade. Não obstante, você o vigiará e anotará quem são suas conexões. Onde essa mulher terá se metido? Tinha que estar lá há vinte e três, não, vinte e quatro minutos, para dar a aula a Aubrey. Não terá tempo de dá-la antes de sua reunião.
Houve uma longa pausa, e Giuseppe, que olhava pelo postigo da janela do canto além de olhar pela da janela da frente, disse:
- Uma dama se aproxima rapidamente pelo beco do lado seguida de uma criada.
- Leva um cachorro, um enorme mastim de Iliria?
- Não, senhor, não leva nenhum cachorro.
- Então não é a senhora Fielding - disse Lesueur em tom mal-humorado e com convicção.
Mas estava equivocado, e percebeu isso no momento em que a dama e sua criada, que usava uma capa com capuz negro, dobraram a esquina e entraram precipitadamente no jardim do hotel Searle.
Todos os homens que estavam sentados na mesa de Aubrey se levantaram, pois ela não era um distração local nem interpretava o papel do jardineiro recruta. Em realidade, o fato do capitão Pelham cair de bruços, se fosse um ato voluntário, dificilmente teria sido considerado um exagerado testemunho de seu respeito em vez do efeito do excesso do vinho de Marsala e uma inoportuna perna de uma cadeira.
Houve um alvoroço durante alguns momentos, quando a senhora Fielding tentava pedir desculpas ao capitão Aubrey e ao mesmo tempo responder aos oficiais que desejavam saber como ela estava e se havia ocorrido algo com Ponto. Ponto era um cachorro tosco, receioso, torvo e implacável, um mastim de Iliria, um animal do tamanho de um bezerro médio, e tinha uma coleira com pontas de aço. Sempre caminhava junto da senhora Fielding, reduzindo seus compridos passos para igualá-los aos pequenos passos dela, e geralmente sua presença a protegia dos excessos de confiança, mas se não bastasse, dava um estrondoso latido. Pelo que eles puderam entender, a senhora Fielding deixara Ponto em sua casa para castigá-lo por ter matado um asno. Sabiam que Ponto era perfeitamente capaz de fazer isso, porém, devido ao fato dela algumas vezes não pronunciar bem o inglês e pela calma com que falava do incidente, pensaram que devia de haver um erro.
- Os senhores hoje estão muito elegantes, cavalheiros - continuou depois de uma breve pausa. - Calções brancos! Meias de seda!
Eles disseram que sim e perguntaram se não soubera da notícia, de que o senhor Wray, o enviado do Almirantado, havia chegado não Calliope na noite anterior. Acrescentaram que em torno de vinte minutos iriam ao palácio do governador para apresentar-lhe seus respeitos muito elegantes, com seus melhores calções e com as perucas muito empoadas, e acreditavam que ele ficaria boquiaberto ao ver seu bonito aspecto.
Era divertido ver como os capitães, alguns verdadeiros déspotas em seus barcos, muitos acostumados a combater e todos capazes de assumir grandes responsabilidades, faziam graça diante de uma mulher.
- Há um livro importantíssimo, ainda por escrever, sobre a manifestação do desejo de acasalamento humano e todas suas absurdas variedades - disse o doutor Maturin. - Ainda que isto não é mais que a sombra do princípio da cerimônia. Aqui não há rivalidade, não há ardentes paixões, não há esperança - disse, olhando fixamente para seu amigo Aubrey. - Além disso, a dama não é livre.
Efetivamente, a senhora Fielding não era livre, se se levasse em conta o significado com que Maturin havia usado essa palavra, ainda que também era agradável ver como recebia as amostras de respeitosa admiração, as brincadeiras e as frases engenhosas: não atuava como uma falsa moralista nem se mostrava ofendida nem sorria com afetação, mas tampouco dava demasiada confiança. Tratava-os com o grau de amabilidade justo, e Maturin a olhava com admiração. Antes notara que ela não dera importância à bebedeira de Pelham, e pensou que estava acostumada a lidar com marinheiros, e nesse momento observou como ela recuperou a serenidade imediatamente depois de ter uma forte impressão ao ver a cara de Pullings quando Jack Aubrey o fez sair da sombra do caramanchão para apresentá-lo. Também observou como felicitava a Pullings por sua promoção e o convidava para sua casa aquela noite porque dava uma pequena festa, somente para ouvir ensaiar um quarteto. Notou seu infantil regozijo quando o chelengk começou a girar, e seu olhar cobiçoso quando o tinha em suas mãos e admirava as grandes pedras que o coroavam. A olhava com curiosidade… e com algo mais que isso. Uma das razões era que ela lhe recordava o seu primeiro amor. Tinha a mesma constituição, não era muito alta, mas era magra como um junco, e o cabelo da mesma cor, uma cor vermelho escuro fora do comum, e coincidia também que havia se penteado de modo que podia ver-se sua fina e graciosa nuca e as suaves curvas de suas orelhas. A outra razão era que ela mostrara interesse por ele.
Os insetos ainda podiam enganar a Maturin e perfurar sua pele, mas era difícil que as mulheres pudessem enganar-lhe nesta tardia etapa de sua vida. Sabia que ninguém podia admirar-lhe por sua aparência; não tinha esperança de inspirar simpatia por seu trato nem por sua conversa; e ainda que pensava que alguns de seus melhores livros, Remarks on Pezophaps solitarius e Modest Proposals for the Preservation of Health in the Navy, não careciam de mérito, não acreditava que nenhum impressionaria a uma mulher. Nem sequer sua esposa havia podido ler mais que algumas páginas, apesar de sua boa vontade. Além disso, sua posição na Armada não era muito alta, pois nem sequer havia sido nomeado oficial, e não era poderoso nem influente nem rico.
Portanto, a amabilidade e os convites da senhora Fielding eram provocados por qualquer outra coisa que não fosse a coqueteria nem a ambição, ainda que não sabia o que era e só lhe havia ocorrido que tinha a ver com a espionagem. Se fosse assim, então, obviamente, seu dever era ser complacente. Não havia outra maneira de analisar a questão, não havia nenhuma outra maneira descobrir suas conexões ou induzi-la a revelá-las ou utilizá-la para dar informação falsa. Era possível que estivesse completamente equivocado, já que depois de um tempo os agentes secretos viam espiões por toda parte, eram como os lunáticos que achavam que eram mencionados em todos os jornais, mas tanto se fosse assim como se não, jogaria sua parte no hipotético jogo. E se havia convencera com facilidade de que essa era a estratégia correta porque gostava de sua companhia e das noitadas musicais em sua casa. Além disso, estava convencido de que podia controlar qualquer sentimento inoportuno que brotasse em seu coração. Psera essas meias brancas para a senhora Fielding (pois por seu posto não estava obrigado a assistir à recepção nem tinha desejo de assistir), e era pela senhora Fielding que avançou nesse momento, tirou o chapéu, fez uma cortês reverência com uma genuflexão e disse:
- Bom dia, senhora. Encontra-se bem?
- Melhor depois de ver o senhor, senhor - respondeu ela, sorrindo e dando-lhe a mão. - Querido doutor, não poderia convencer ao capitão Aubrey para que tome a lição? Só temos que repassar o traspassato remoto.
- Desgraçadamente, não. É um marinheiro, e a senhora já sabe que os marinheiros sentem devoção pelos relógios e os sinos.
O rosto de Laura Fielding se entristeceu, pois pensou que o único ponto em que estava em desacordo com seu marido era a pontualidade, e depois, com uma alegria artificial continuou:
- Somente o traspassato remoto regular. Não tardaremos nem dez minutos.
- Olhe… - disse Stephen, indicando o relógio da torre.
Todos se voltaram para ali, e uma vez mais os espiões retrocederam.
- Dez minutos é todo o tempo que estes senhores têm para ir andando majestosamente até o palácio do governador - continuou, - já que não devem subir a toda pressa pela empinada ladeira porque suas gravatas ficariam bagunçadas, cairia o pó das perucas e, como faz tanto calor, sufocar-se-iam tanto que chegariam como se viessem de uma batalha. Será melhor que se sente comigo à sombra e tome um copo de leite de vaca frio. O leite de cabra eu não recomendo.
- Não posso - disse ela quando os capitães saiam um depois do outro, por ordem de antiguidade. - Tenho um encontro com a senhorita Lumley e vou chegar tarde. Capitão Aubrey! - exclamou. - Se por qualquer motivo me atrase para o ensaio desta noite, peço que entre e mostre ao capitão Pullings o limoeiro. O regaram hoje. Giovanna irá para Notabile dentro de pouco, mas a porta não estará fechada com chave.
- Com muito prazer mostrarei o limoeiro ao capitão Pullings - disse Jack, e ao dizer "capitão Pullings", havia soltado uma gargalhada de novo. - É o mais bonito limoeiro que já vi em minha vida. E diga-me, senhora, Ponto também irá a Notabile?
- Não. A última vez matou algumas cabras e alguns cabritinhos. Mas conhece o uniforme da Armada. Não lhe dirá nada ao senhor, a não ser que colha limões.
- Parece que seu plano dá resultado, senhor - disse Giuseppe, observando aos oficiais e a Graham, que começavam a subir a ladeira que levava ao palácio, e a Stephen e à senhora Fielding, que estavam sentados tomando um sorvete de café. Haviam se sentado depois de comentar que a senhora Lumley não era um oficial de marinha e que, portanto, não teria o mórbido costume de medir o tempo constantemente.
- Acredito que dará um bom resultado - disse Lesueur. -Descobri, que, no geral, quanto mais feio é um homem, mais vaidoso ele é.
- Bem, senhor - disse Laura Fielding antes de lamber a colher, - como o senhor foi tão amável e como gostaria de enviar Giovanna para Notabile imediatamente, queria pedir-lhe que fosse ainda mais amável e me acompanhasse até a igreja de Santo Publius, porque sempre há muitos soldados sem-vergonhas vagueando por Porta Reale, e sem meu cachorro…
O doutor Maturin disse que seria uma satisfação para ele servir de escolta para uma criatura tão gentil. Em verdade, parecia estar muito contente e satisfeito quando saíram do jardim e atravessaram agarrados da mão a praça Regina, onde havia uma multidão de soldados e dois rebanhos de cabras, mas quando passavam pela frente da Pousada de Castelo, uma parte de sua mente já havia voltado a ocupar-se do assunto do estado de ânimo e suas causas. Apesar disso, a outra parte se ocupava do que ocorria no presente, e o silêncio de Stephen era deliberado. Mas não durou muito, se bem, como havia previsto, incomodou a Laura Fielding. Ela se sentia coibida por algo, o que ele notava cada vez com mais clareza, e seu tom alegre e seu sorriso eram artificiais quando perguntou:
- Gosta dos cachorros?
- Os cachorros? - repetiu, olhando-a de soslaio e sorrindo. - Bem, se a senhora fosse uma mulher comum, que entabula uma conversa por cortesia, exclamaria: "Oh, senhora, os adoro!", com um sorriso artificial e um gesto o mais gracioso possível. Mas posto que a senhora é como é, me limitarei a dizer que interpreto suas palavras como um pedido de que diga algo. Poderia ter me perguntado igualmente se gosto dos homens, das mulheres, dos gatos, das serpentes ou dos morcegos.
- Não, os morcegos não - disse a senhora Fielding.
- Sim, os morcegos - disse o doutor Maturin. - Há tantas variedades deles como de outras criaturas. Conheci alguns muito alegres e enérgicos e outros toscos, mal-humorados e teimosos. Naturalmente, o mesmo ocorre com os cachorros. A gama de cachorros vai desde os mestiços covardes e traiçoeiros até o heróico Ponto.
- Meu querido Ponto! - exclamou a senhora Fielding. - É um grande consolo para mim, mas desejaria que fosse mais inteligente. Meu pai tinha um cachorro que sabia multiplicar e dividir.
- Não obstante - disse Maturin, seguindo seus própios pensamentos, - os cachorros têm uma característica que, tenho que reconhecer, raras vezes se encontra em outros animais, eles sentem afeto. Não me refiro ao amor violento, possessivo e protetor que sentem por seus amos, mas a esse tenro carinho que sentem por seus amigos e que amiúde vemos nas melhores espécies de cachorros. E quando um pensa na lamentável falta de afeto puro e desinteressado em nossa própia espécie quando chegamos a adultos, e pensa quanto melhora a vida cotidiana e quanto enriquece nosso passado e nosso futuro, porque nos permite olhar para frente e para trás com satisfação, é um prazer encontrá-lo em um animal.
O afeto também podia encontrar-se nos capitães: Pullings o irradiava quando Aubrey o conduziu para onde estavam o governador e seu convidado. Jack não achava engraçado encontrar-se com Wray, mas como sabia que não podia evitar sem que parecesse que lhe fazia um desaire, estava contente de que o protocolo exigisse que apresentasse ao seu antigo tenente, pois a necessária formalidade faria menos difícil a situação. Contudo, ao olhar para onde começava a fila, pensou que talvez não seria difícil. Wray estava igual. Era um homem alto, charmoso, simpático e cavalheiresco, e vestia uma casaca negra com duas insígnias de ordens estrangeiras. Havia percebido que Jack se aproximava, e seu olhar havia se cruzado com o dele, mas continuara rindo com sir Hildebrand e um civil com a cara vermelha, aparentemente sem alterar-se, como se não tivesse nenhum motivo para preocupar-se nem para inquietar-se.
A fila se moveu. Chegou a vez de Jack e Pullings. Jack o apresentou ao governador, que respondeu com uma inclinação de cabeça, uma olhada indiferente, e a palavra "encantado". Então indicou para Pullings que desse um passo adiante e disse:
- Senhor, permita-me apresentar-lhe ao capitão Pullings. Capitão Pullings, o senhor vice-secretário Wray.
- Encantado de conhecer-lhe, capitão Pullings - disse Wray, estendendo-lhe a mão. - Eu o felicito de todo coração por haver contribuído para a grande vitória da Surprise. Quando li o relatório do capitão Aubrey - disse voltando-se para Jack e fazendo uma inclinação de cabeça - e a magnífica descrição de seus esforços sem comparação, pensei: "O senhor Pullings deve ser promovido". Alguns cavalheiros objetaram que a Torgud não estava ao serviço do Sultão no momento de sua captura e que, portanto, a promoção seria irregular e estabeleceria um indesejável precedente, mas insisti em que devíamos considerar a recomendação do capitão Aubrey e, aqui entre nós - acrescentou em um tom mais baixo e olhando sorridente para Jack, - digo que insisti mais porque uma vez o capitão Aubrey foi injusto comigo, e conceder a promoção ao seu tenente era a melhor maneira de demostrar-lhe que atuo de boa fé. Poucas coisas me proporcionaram tanto prazer como dar esta nomeação, e só lamento que a vitória lhe custasse essa terrível ferida.
- Senhor Wray, o coronel Manners, do Quadragésimo Terceiro Regimento - disse o senhor Hildebrand, que pensava que a apresentação havia durado muito.
Jack e Pullings fizeram uma reverência e deram passagem ao coronel. Jack ouviu o governador dizer: "Esse é Jack Aubrey, o que conquistou Marga", e imediatamente depois, a resposta do militar: "Ah! estava então ocupada pelo inimigo, né?", mas estava muito perturbado. Era possível que houvesse julgado mal a Wray? Era possível que um homem tivesse o descaramento de falar dessa maneira se a acusação fosse falsa? Indubtavelmente, Wray poderia haver denegado a promoção se quisesse, já que tinha a desculpa de que a Torgud estava ao comando de um rebelde. Jack tentou recordar todos os detalhes do que havia sucedido naquela remota noite desafortunada e cheia de ira em Portsmouth. Queria recordar a ordem em que haviam ocorrido os acontecimentos, quem eram os outros civis que estavam na mesa, e se havia bebido muito, mas desde então havia passado por muitas mais situações difíceis e já não podia recordar qual era a base de sua certeza de então. Houve trapaças, sobretudo quando havia grandes somas em jogo, disso ainda estava seguro, mas na mesa havia vários jogadores, não era apenas Andrew Wray.
Nesse momento se deu conta de que Pullings, já fazia um tempo, falava do vice-secretário com entusiasmo: "Que magnanimidade! Que magnanimidade!… Já sabe ao que me refiro, senhor… Que benévolo!… Sem dúvida, é muito culto… Deveria ser secretário e inclusive primeiro lorde…". E também se deu conta de que estavam de pé em frente a uma mesa cheia de garrafas, garrafões, taças e jarras.
- Bebamos uma jarra de flip pela saúde do senhor Wray, senhor! - disse Pullings, pegando uma jarra de prata, fria como o gelo.
- Flip a esta hora do dia? - disse Jack, olhando atentamente a cara redonda e alegre do capitão Pullings, onde a ferida, agora de uma intensa cor púrpura, destacava-se; a cara de um homem que havia bebido já uma pinta de vinho de Marsala e que estava perturbado pela felicidade; a cara de um homem que quase nunca bebia e não estava agora em condições de beber champanhe mesclada com conhaque em partes iguais. - Não seria o mesmo brindar com um copo de cerveja? É ótima esta cerveja das Índias Orientais.
- Vamos, senhor! - disse Pullings com censura. - Não brindo por uma promoção todos os dias.
- É verdade - disse Jack, recordando a infinita alegria que havia sentido a primeira vez que havia posto a dragona de capitão e que naquela época só davam uma aos capitães. - É verdade. À saúde do senhor vice-secretário! Que possa realizar todos seus projetos!
O flip fez efeito no pobre Pullings antes do esperado. Foram separados por um grupo de sedentos oficiais, muitos dos quais felicitaram a Pullings por sua promoção, e Jack havia falado apenas cinco minutos com seu velho amigo Dundas quando viu a dois deles levarem Pullings quase carregado nos braços. Ele os seguiu e viu que haviam sentado Pullings em um banco, em um tranqüilo canto do jardim, e que estava pálido e quase adormecido, mas que ainda sorria.
- Tom, está bem, né?
- Oh, sim, senhor! - respondeu Pullings como se falasse a uma grande distância dali. - Alí dentro a atmosfera era sufocante, como a da bodega de um barco negreiro.
Depois acrescentou que estava pensando na senhora Pullings, a senhora do capitão Pullings, e no que diria de um pagamento de dezesseis guinéus por mês, de dezesseis preciosos guinéus a cada mês lunar.
"Melhor seria pensar no que dirá de sua cara", disse Jack para si contemplando o capitão, que agora estava silencioso e imóvel. A ferida tinha um aspecto realmente feio. Jack raras vezes havia visto uma ferida com um aspecto mais feio, mas Stephen Maturin lhe assegurara que o grande corte se fecharia bem e que o olho não corria perigo, e nunca havia visto Stephen equivocar-se em questões médicas. Nesse momento recordou seu encontro e pensou: "Que bonita é a senhora Fielding!". Depois voltou para o palácio e, abrindo passagem entre a multidão, chegou até o jardim da frente e ali gritou:
- Surprise!
O grito chamou a atenção de todos os marinheiros e infantes da marinha que estavam ali, e em poucos segundos apareceu o timoneiro de Jack, limpando a boca. Bonden estava vestido esplêndidamente, já que em ocasiões como essa todos os capitães orgulhosos de seus barcos queriam que sua falua e os homens que a tripulavam tivessem um aspecto que beneficiasse sua reputação. Usava um chapéu de copa alta e redonda com o nome Surprise, uma casaca azul claro com colarinho de veludo, calções de cetim e sapatos com fivela de prata, tudo isso (com excessão dos sapatos, que eram de um renegado morto) feito por ele e seus amigos com suas agulhas.
- Bonden - disse Jack, - o senhor… o capitão Pullings não se sente bem.
- Está enfermo, senhor? - perguntou Bonden só por curiosidade, não porque tencionasse julgar-lhe do ponto de vista moral.
- Não, eu não diria que está enfermo - disse Jack, mas os outros entenderam que essa era uma fórmula para guardar as aparências.
Bonden disse que pegaria uma maca do monte que sempre ficava preparado no barracão dos guardas quando o governador dava uma festa, que chamaria a um par de tripulantes da falua bastante fortes para carregá e sairia pela porta do jardim para evitar um escândalo e que os casacas vermelhas rissem.
- Muito bem, Bonden, muito bem - disse Jack. - Nós nos encontraremos na porta do jardim dentro de cinco minutos.
Dez minutos depois já havia chegado na metade da rua parecida com uma escada que levava para seu hotel e caminhava ao lado da maca. Dois tripulantes da falua sustentavam o extremo anterior da maca à altura do ombro, e o posterior era sustentado pelo corpulento timoneiro à altura dos joelhos, de modo que ficava bastante reta, e haviam atado o capitão a ela dando sete voltas em um cabo, as sete voltas tradicionais, ao seu redor de modo que parecia estar em uma rede. Ninguém do grupo ainda tinha pensado que o fato de um oficial da marinha estar bêbado era vergonhoso, porque agora as casacas vermelhas do palácio não os viam, e a única preocupação de Jack era não perder seu chapéu. As casas de ambos os lados da rua tinham sacadas fechadas e a cada vinte jardas mais ou menos, onde, devido à inclinação da rua, as sacadas ficavam muito baixas, algumas mãos saiam de detrás dos postigos e tentavam alcançar sua cabeça, acompanhadas umas vezes de um riso cristalina e outras do característico riso de uma pessoa ébria, e um convite para entrar. Os oficiais tão importantes como os capitães de navio raras vezes eram tratados assim, ao menos durante o dia, mas esse dia era a festa de São Simeón Estilita e se toleravam muitas confianças. Mas Jack, a quem mesmo antes de começar a se barbear, já o haviam arrebatado em muitos portos o chapéu (que por admiração a lorde Nelson e para recordar os hábitos de sua juventude, usava-o com os bicos para os lados em vez de para frente e detrás), e tinha muita habilidade para conservá-lo.
Também pôde conservá-lo desta vez, e, ao chegar ao pátio do hotel, chamou ao seu dispenseiro, que estava trepado no telhado olhando na direção contrária.
- Ei, Killick, vem dar uma mão!
Killick desceu correndo.
- Finalmente chegou, senhor! - exclamou, pegando a maca distraidamente, com os olhos fixos no chapéu de Jack. - Eu estou lhe procurando há mais de uma hora.
Killick fora um marinheiro simples que se ocupava das velas do mastro traquete e era bastante mais tosco que os outros. Não se convertera em um homem civilizado por trabalhar na cabine do capitão, era ignorante e teimoso e era mal informado. Mas sabia que "um diamante do tamanho de uma ervilha era tão valioso como o resgate de um rei", e sabia que o chelengk era feito de diamantes porque havia escrito com ele em uma janela "Preserved Killick, da Surprise, é o melhor". Os dois diamantes da parte superior eram tão grandes como as ervilhas secas que havia comido durante toda sua vida na Armada (nunca as havia visto verdes), e havia chegado a pensar que o chelengk era tão valioso como as jóias da coroa ou inclusive mais, já que as jóias da coroa não podiam girar. Desde que o presente chegara de Constantinopla, sua vida havia sido um constante sofrimento, sobretudo porque estavam em terra, onde havia ladrões por todo lado. Cada noite escondia o broche em um lugar distinto, geralmente envolto em um pedaço de vela que depois rodeava com trapos sujos, e o colocava entre iscas e ratoeiras que fechariam por um simples espirro.
Killick e Bonden puseram Pullings na cama cuidadosamente e com a destreza própia dos bons marinheiros. Jack olhou seu relógio e percebeu que devia ir embora imediatamente se não quisesse chegar tarde ao ensaio na casa da senhora Fielding, mas também percebeu de que não havia enviado seu violino para ali pela manhã, o que era um imperdoável descuido, já que nessa cidade todos os oficiais sempre usavam uniforme e não ficava bem ser visto que levando pacotes pela rua, e muito menos um instrumento musical.
- Bonden - disse, - vá à sala de estar do doutor, pegue o estojo de meu violino do lugar encostado na janela e acompanha-me à casa da senhora Fielding. Já irei imediatamente.
Bonden, sem responder, franziu o cenho, inclinou a cabeça para um lado e fingiu que prestava atenção às tiras do gorro de dormir do capitão Pullings. Então Killick tirou o chapéu de Jack do criado mudo com tanta força que o chelengk começou a girar outra vez e disse:
- Não com este chapéu.
Os diamantes eram o que mais lhe preocupava, mas também se preocupava com o chapéu, o melhor chapéu do capitão Aubrey, pois detestava ver bons uniformes desgastados ou simplesmente embaçados. Ainda que fosse um homem generoso (não havia ninguém mais dadivoso que Preserved Killick quando ficava em terra com o chapéu cheio do dinheiro de um butim) não gostava que os víveres e o vinho do capitão Aubrey fosse comido ou bebido por pessoas que não fossem almirantes, lordes ou muito bons amigos seus, e todos sabiam que o vinho que dava aos oficiais com pouca antiguidade e aos guardas-marinhas era uma mistura do que havia restado nas garrafas no dia anterior. Nesse momento regressou com um pequeno chapéu de pior qualidade, que havia encolhido e estragado pelo uso durante duros anos de serviço no Canal.
- Bah, ao diabo o chapéu! - exclamou Jack, pensando que levar o chelengk ao ensaio estaria completamente fora de lugar. - Bonden, que está fazendo?
- Tenho que trocar minha roupa primeiro - respondeu Bonden, desviando o olhar.
- Quer dizer que se leva um violino é possível que os casacas vermelhas lhe gritem: "Toque-nos uma canção, marinheiro" - disse Killick. - E o senhor não gostaria que isso acontecesse, Sua Senhoria, enquanto estivesse com o nome Surprise bordado na cinta do chapéu. O senhor preferiria que eu chamasse a um malandrinho para que o levasse e que Bonden o vigiasse, como é seu dever.
O capitão Aubrey disse que isso não tinha sentido e que eram um par de malditos tontos, mas depois, ao se recordar as vezes que o haviam seguido para a coberta de um barco de guerra inimigo, quando não se preocupavam em levar o estojo de um violino nem ser vítima de zombaria, disse que não havia tempo a perder e que fizessem o que quisessem, mas que se aquele violino não estivesse na casa da senhora Fielding cinco minutos antes que ele chegasse, seria melhor que procurassem outro barco.
O violino chegou antes dele. O garoto descalço que ia com Bonden conhecia todos os atalhos, e ambos já estavam junto à grade que dava para a rua quando Jack chegou, depois de abrir passagem entre uma adversa multidão de mulheres com capas negras, homens de meia dúzia de países, alguns perfumados, e cabras.
- Muito bem - disse, dando um xelim ao garoto. - Chegado bem a tempo. Pode retirar-se, Bonden. Quero que a falua esteja preparada para as seis da manhã.
Pegou o violino e avançou apressadamente pela comprida vereda de pedra que atravessava os jardins da frente da parte posterior e levava para a pequena casa da senhora Fielding, mas quando chegou à porta do jardim, se deu conta de que se havia dado pressa desnecessariamente, pois não responderam ao seu batida. Depois de esperar um tempo prudente, empurrou a porta, e quando a abriu, sentiu o intenso aroma do limoeiro. Era uma árvore enorme, que tinha flores durante todo o ano e, sem dúvida, tão velho como Valletta ou ainda mais velho. Jack se sentou no muro baixo que tinha ao redor, um muro parecido ao de um poço, e ficou ofegando durante alguns momentos. Nesse mesmo dia haviam regado a árvore com a enorme quantidade de água que lhe jogavam a cada três meses e a terra úmida produzia uma agradável sensação de frescor.
Durante a caminhada havia recuperado seu bom humor, que raras vezes o abandonava por muito tempo, e agora, com a casaca desabotoada e sem chapéu, contemplava os limões à luz do crepúsculo, acariciado pela fresca brisa. Já havia parado de ofegar, e estava a ponto de tirar o violino do estojo quando notou que um débil som que ouvia há algum tempo se fez mais forte, um gemido que parecia irreal e se repetia regularmente.
- Não parece humano - disse, aguçando o ouvido, e pensou em suas possíveis causas: um moinho sem graxa no eixo dando voltas, um torno de qualquer tipo, um homem que havia enlouquecido de melancolia e estava encerrado atrás da parede da esquerda. - Contudo, o eco de um som pode ter muitas formas curiosas- disse, pondo-se de pé.
Atrás do limoeiro ficava a pequena casa, e colada ao canto da direita havia uma majestosa arcada que era a entrada de outro jardim perpendicular ao primeiro. Atravessou a arcada e notou que o som, que agora era muito mais forte, vinha de uma larga e profunda cisterna que ficava junto ao canto e na qual se recolhia a água da chuva que caía do telhado.
- Meu Deus! - exclamou Jack, correndo para a cisterna com o horrível pressentimento de que o louco havia se jogado nela impulsionado pelo desespero.
Quando se inclinou sobre o muro que o rodeava e olhou a água escura, que estava a uns quatro ou cinco pés de profundidade, pensou que seu pressentimento se havia cumprido, já que nela nadava uma figura escura e peluda que estirava sua enorme cabeça e, com voz rouca, repetia: "Auu! Auu!". Mas quando voltou a olhar percebeu de que era Ponto.
Haviam pegado mais da metade da água da cisterna para regar o limoeiro (ainda havia baldes ao seu lado), e o desgraçado cachorro, por causa de sua grande curiosidade e de ter cometido um grande erro, caiu dentro. Ainda restava água suficiente para que não chegasse ao fundo, mas o nível estva tão baixo que lhe era impossível chegar à borda e sair por si mesmo. Havia estado na água durante um longo tempo, e nos lugares das paredes onde havia tentado se agarrar se viam as sangrentas marcas de suas patas. Parecia aterrorizado e desesperado, e a princípio não percebeu a presença e seguiu uivando e uivando.
- Se está louco, me arrancará a mão - disse Jack, depois de falar com o cachorro sem obter nenhum resultado. - Tenho que pegá-lo pela coleira, mas a distância é condenadamente longa.
Tirou a casaca e o sabre e estendeu o braço para o fundo, mas não se estirou o suficiente, ainda que seus calções rangeram. Então se endireitou, tirou o colete, afrouxou a gravata, desabotoou os calções e, entre os uivos que enchiam o ar, voltou a se inclinar e a descer o braço na escuridão, e desta vez pôde tocar a água com a mão. Viu o cachorro aproximar-se e disse:
- Ei, Ponto, dá-me o cangote!
Jack abriu a mão para pegar a coleira, mas viu com desgosto que o animal nadou trabalhosamente até o outro lado, onde, sem parar de uivar, tentou em vão subir pela parede apoiando suas garras esfoladas e com as unhas destroçadas.
- Condenado imbecil! - exclamou. - Estúpido! Cabeça de bezerro! Dá-me o cangote! Faça sua parte, maldito canalha!
Os familiares sons marinheiros, que foram pronunciados em alta voz e retumbaram na cisterna, foram um consolo para o cachorro. Foi nadando até onde estava Jack, e Jack passou a mão pela sua peluda cabeça até encontrar a coleira, a horrível coleira de puas, e o agarrou como pôde.
- Rápido! - disse, deslizando seus dedos debaixo da coleira para agarrá-lo mais fortemente. - Espere!
Então inspirou e, agarrando-se à borda da cisterna com a mão esquerda e segurando a coleira com a direita de tal modo que suas mãos estivessem o mais separadas possível, começou a subir o cachorro. Já o tinha meio fora da água e estava pensando que era muito pesado para estar seguro tão debilmente, mas que era possível sacá-lo, quando o muro cedeu e ele caiu dentro da cisterna. Enquanto caía, dois pensamentos brotaram em sua mente: "Se me caem os calções" e "Tenho que manter-me longe de seus dentes". Alguns momentos depois estava de pé no fundo da cisterna, com a água na altura do peito, e ouvia justamente junto de sua orelha o ofego do cachorro, que estava agarrado ao seu pescoço com as patas dianteiras como se estivesse dando-lhe um abraço. Ponto estava ofegante, mas não demente. Havia recuperado toda a sensatez que tinha. Jack soltou a coleira, girou o cachorro e o pegou pelo meio do tronco e depois o subiu até a borda do muro gritando:
- Para cima!
Ponto apoiou as patas nele e depois o queixo, e então Jack o empurrou com força pelas ancas e ele se afastou dali. Agora Jack só podia ver o claro céu e três estrelas pela boca da cisterna.
CAPÍTULO 2
Em Malta se fofocava muito, e o rumor de que o capitão Aubrey tinha relações com a senhora Fielding se difundiu com rapidez por Valletta e inclusive pelos povoados vizinhos, onde viviam alguns militares que haviam sido destinados ali. Muitos oficiais invejavam Jack por sua boa sorte, mas não lhe tinham má vontade. Muitas vezes Jack notava que o olhavam com complacência e que sorriam maliciosamente, mas não se explicava por que, pois, como costumava ocorrer nesses casos, era uma das últimas pessoas que saberiam o que diziam dele. Mas o rumor lhe causaria surpresa, já que considerava as esposas de seus companheiros sagradas, a não ser que elas fizessem sinais que o induzissem a pensar diferente.
Portanto, Jack só conhecia as desvantagens da situação: as palavras recriminatórias de alguns oficiais, os olhares furiosos e os gestos de enfado e de desprezo de algumas esposas de marinheiros que conheciam a senhora Aubrey, e a ridícula perseguição que havia motivado o rumor.
Jack, acompanhado pelo doutor Maturin e seguido por Killick, ia caminhando pela rua Real sob a deslumbrante luz do sol, e de repente se pôs sério.
- Por favor, Stephen, entremos aqui um momento - disse para seu amigo enquanto o conduzia para a loja mais próxima, uma loja onde se vendia vidro de Murano e que era propriedade de Moisés Maimónides. Mas era tarde demais. Jack ainda não havia chegado ao fundo da loja quando Ponto se jogou sobre ele ladrando alegremente. Ponto era um cachorro grande e desajeitado, e agora, com as botas de tecido que lhe haviam posto para proteger-lhe as patas feridas, era ainda mais desajeitado. Quando havia entrado, havia derrubado duas filas de frascos, e agora que estava diante de Jack, com as patas dianteiras apoiadas em seus ombros, lambendo-lhe a cara e movendo a calda de um lado para o outro, estava tombando candelabros, botijões e sinos de vidro com a calda.
A cena era horrível, e se repetia, em ocasiões até três vezes por dia, com uma só coisa diferente, a loja, a taberna, o clube ou o restaurante onde Jack se refugiava, e durava o suficiente para que provocasse sérios danos. Mas Jack, logicamente, não podia amputar as patas do cachorro, e somente uma grave lesão seria efetiva, já que Ponto era tão lerdo de inteligência como de movimentos. Ao final, Killick e Maimónides fizeram Ponto sair para a rua caminhando para trás, e ao chegar ali, o cachorro conduziu Jack para onde estava sua dona com orgulho, dando longos passos e saltando torpemente de vez em quando, e ao ver-lhes reunidos mostrou uma grande satisfação, que muitos oficiais da marinha notaram, militares e civis, e suas respectivas esposas.
- Espero que não lhe haja causado incômodos - disse a senhora Fielding. - Ele o viu quando estava a cem jardas do senhor e nada foi capaz de impedir que fosse lhe dar bom dia outra vez. Ele está tão agradecido! E eu também, sem dúvida - acrescentou, lançando-lhe um olhar afetuoso que fez Jack pensar que poderia ser um daqueles sinais.
Essa manhã Jack era mais propenso a pensar nisso porque havia desjejuado uma ou duas libras de sardinhas frescas, que produziam o efeito de um afrodisíaco nas pessoas de compleição sanguínea.
- Oh, não, senhora! - exclamou. - Alegro-me muito de ver-lhes mais uma vez.
Nesse momento se ouviram os gritos de Killick e do vendedor de objetos de vidro, que falavam em tom áspero. Em ocasiões como essa, Killick pagava pelos danos, mas não pagava nem uma só moeda maltesa nem um décimo de penique a mais do que custavam, e agora insistia em que queria ver todos os pedaços e encaixá-los uns com outros, e em pagar o preço de venda no atacado. Jack afastou a senhora Fielding dali para que não pudesse ouvir-lhes.
- Me alegro muito de ver-lhes - repetiu, - mas peço que o segure agora, porque estão me esperando no estaleiro e a verdade é que não posso perder tempo. Acredito que o doutor terá prazer em lhe ajudar.
Estava sendo esperado por alguns carpinteiros de barcos que faziam as custosas reparações do Worcester e outros que não faziam nada, mas que deveriam estar fazendo as reparações da Surprise, que agora, completamente vazia e sem canhões, estava escorado em um fétido lodaçal. Também o esperavam uma parte da tripulação de seu barco. Havia zarpado da Inglaterra em companhia de seiscentos homens no Worcester, e quando o haviam trasladado temporariamente para a Surprise, havia levado consigo os duzentos melhores, e havia pensado que regressaria com eles para a Inglaterra, depois deste breve parêntese no Mediterrâneo, para levar para a base naval da América do Norte uma das novas fragatas de grande potência. Contudo, na esquadra do Mediterrâneo sempre havia escassez de marinheiros, e os almirantes e os capitães de mais antiguidade não eram escrupulosos quando tencionavam consegui-los, e posto que a Surprise sofreu muitos danos em uma batalha no mar Jônico e havia tido que ser levada ao estaleiro, sua tripulação havia diminuído consideravelmente, porque eles, com um pretexto ou outro, haviam recrutado forçosamente seus membros, a tantos membros que Jack havia tido que lutar muito duro para que seu própio timoneiro e os homens em quem mais confiava ficassem com ele. Os tripulantes da Surprise que restavam estavam hospedados em pestilentas barracas de madeira pintadas de preto, que agora eram ainda mais pestilentas porque eles haviam tapado todos os buracos com estopa e breu e no interior havia odor de fumaça de tabaco e ar viciado, como o que estavam acostumados a respirar na entrecoberta dos barcos. Posto que a fragata estava em mãos dos empregados do estaleiro, eles podiam dedicar grande parte de seu tempo a gastar dinheiro e debilitar sua saúde, e ambas coisas as faziam em companhia de um grande número de mulheres que se amontoavam nas portas, algumas delas prostitutas veteranas, que exerciam seu ofício desde o tempo dos cavalheiros da Ordem de Malta, mas outras muitas exageradamente jovens, ainda que todas eram mulheres muito baixas e gordas, mulheres como as quais se encontravam poucas vezes em lugares que não fossem os arredores das barracas onde se hospedavam os soldados e os marinheiros.
Este pequeno grupo de tripulantes sujos e fedorentos que levavam uma vida dissoluta estava esperando por Jack enquanto ele, tão pacientemente como podia, escutava as falsas desculpas daqueles que deveriam estar reparando a fragata e, contudo, não a estavam reparando. Os marinheiros haviam se colocado como habitualmente faziam no barco para passar em revista, com a ponta dos pés coladas às linhas desenhadas com argila branca que representavam as juntas da coberta da Surprise, detrás dos guardas-marinhas e oficiais ao comando da brigada à qual pertenciam. Os infantes da marinha que iam na fragata haviam ido para suas barracas quando a embarcação foi levada ao estaleiro, portanto, não restava nenhum casaca vermelha ali e não houve a ritual apresentação de armas com seus gritos e seus estalidos quando Jack se aproximou do grupo. Nesse momento William Mowett, seu primeiro oficial, deu um passo adiante, tirou o chapéu e, em tom coloquial e com voz muito distinta do vozeirão dos oficiais, com a voz própia de um homem com um terrível dor de cabeça, disse:
- Todos presentes e sóbrios, senhor, com sua permissão.
Podia se dizer que estavam sóbrios se se levasse em conta as bebedeiras que os marinheiros costumavam tomar, mas alguns cambaleavam e a maioria fedia a álcool. "Pode-se dizer que estão sóbrios, mas é inegável que estão sujos e andrajosos", pensou Jack enquanto passava em revista aos tripulantes. Conhecia a todos, a alguns desde que havia tido o comando de um barco pela primeira vez ou inclusive antes, e quase todos tinham a cara mais pálida, mais inchada e com mais pústulas que nunca. Quando Jack navegava pelo mar Jônico na Surprise, havia capturado uma corveta francesa que tinha a bordo alguns cofres com moedas de prata, e em vez de esperar longo tempo para que o tribunal competente decidisse como distribuir o butim, havia ordenado reparti-lo imediatamente. Essa divisão não era estritamente legal, e ele tinha a obrigação de repor todo o butim em caso de que a corveta não fosse considerada uma presa legal, mas estava convencido de que por ter esse traço pirático que era a urgência, havia animado mais aos tripulantes que a promessa de uma quantidade de dinheiro muito maior em um futuro distante. Cada tripulante havia recebido no cabrestante o equivalente à quarta parte de seu pagamento anual em coroas, e todos haviam sentido uma grande satisfação, mas essa soma, naturalmente, não havia durado muito (os marinheiros eram tão ávidos por se divertir em terra que nenhuma soma durava muito), e era evidente que alguns vendiam sua roupa. Jack sabia muito bem que se agora mesmo desse a ordem "Esvaziar as bolsas!", veria que os tripulantes da Surprise não eram marinheiros com boa roupa e certa quantidade de dinheiro, senão pobres com roupa surrada que não tinham mais roupas decentes que as que usavam para descer a terra (que nunca se punham no barco) e algumas compradas ao contador que só lhes serviam para proteger-se do clima pouco rigoroso do Mediterrâneo. Havia feito o possível para mantê-los ocupados, mas além de ordenar que todos praticassem tiro com armas leves e tirar a ferrugem das balas de canhão, não podia dar-lhes outras tarefas navais.
E ainda que lhes serviam de diversão o críquete e as excursões pela ilha diante da qual naufragara São Pablo, quando seu barco foi empurrado para a costa a sotavento pelo gregal, nenhuma das duas coisas podia se comparar com as diversões da cidade.
- Bando de libertinos e esbanjadores! - murmurou enquanto passava pela frente da fila de marinheiros com o cenho franzido.
Mas os oficiais não estavam em condições muito melhores. Havia visto Mowett e Rowan, o outro tenente, no baile de Sappers, e era óbvio que haviam competido para ver qual dos dois mais bebia, do mesmo modo que competiam no barco para ser o melhor poeta, e ambos sofriam agora as consequências. Adams, o contador, e os dois ajudantes do oficial de derrota, Honey e Maitland, haviam estado na mesma festa e, assim como os tenentes, tinham o aspecto de cansados; enquanto que Gill, o oficial de derrota, tinha tal expressão que parecia que estava a ponto de enforcar-se, ainda que essa era sua expressão habitual. As únicas pessoas alegres e atentas de toda a tripulação eram os dois guardas-marinhas que restavam, Williamson e Calamy, dois garotos inúteis mas simpáticos e, quando prestavam atenção, cumpridores de seu dever. Pullings tinha uma expressão mais triste, mas ainda que estivesse presente não contava, porque já não pertencia à tripulação da Surprise e estava ali como visitante, como espectador. Apesar de ser óbvio que sentia satisfação por usar as dragonas, um bom observador podia notar atrás dela a nostalgia e a angústia. Parecia que o capitão Pullings, um capitão sem barco e com poucas probabilidades de consegui-lo, percebera que uma viagem com esperanças podia ser melhor do que a chegada, que nada ocorria como um esperava, e que os velhos costumes, o velho barco e os velhos amigos de um tinham muito valor.
- Muito bem, senhor Mowett - disse o capitão Aubrey quando a revista terminou, e depois, decepcionando a todos, acrescentou: - Todos os marinheiros irão para Gozo nas lanchas imediatamente!
Então observou que Pullings ficou aflito e desconcertado, e acrescentou:
- Capitão Pullings, se tem tempo livre, agradeceria se tomasse o comando da lancha grande.
"Isto os fará acordar", pensou Jack com satisfação quando as lanchas dobraram o cabo São Telmo e os tripulantes de todas (da falua, da lancha grande, do esquife, dos dois cúteres e do bote) começaram a remar com muita força porque tinham que navegar contra a corrente e contra o moderado vento do noroeste sem esperança de içar nenhuma vela ao longo das treze milhas que os separavam de Gozo. Os marinheiros pensavam que o capitão estava de tão mau humor que, quando chegassem ali, poderia ordenar-lhes dar uma volta ao redor de Gozo, Comino, Cominetto e das outras ilhotas que rodeavam Malta. Os que iam na falua, de cuja popa lhes olhava atentamente o capitão, que estava sentado entre seu timoneiro e um guarda-marinha, não podiam expressar sua opinião mais que com uma olhada reprovatória, e os remadores das outras lanchas, sobretudo os que iam na popa, tampouco podiam expressar seus sentimentos. Mas as lanchas estavam abarrotadas e os remadores se substituíam a cada meia hora, e os marinheiros das lanchas que estavam sob o comando de Pullings e dos dois tenentes lograram falar muito, ainda que muito baixo, do capitão, e sempre desrespeitosamente, enquanto que os que iam a bordo dos cúteres e do bote, que estavam ao comando dos guardas-marinhas, pareciam estar promoviendo um motim, e, a intervalos, ouvia-se o senhor Calamy gritar: "Silêncio de proa a popa! Silêncio! Apontarei o nome de todos os que estão a bordo!", e sua voz ia subindo de tom à medida que o repetia.
Mas em torno aproximadamente uma hora, o mau humor dos marinheiros desapareceu, e quando chegaram às tranqüilas águas que rodeavam Comino, começaram a perseguir uma speronara{2} e, dando gritos de alegria e gastando em vão suas energias, perseguiram-na até a mesma baía de Megiarro, onde ficava o porto de Gozo. Ali desembarcaram, e muitos gritaram frases jocosas para os tripulantes das últimas lanchas que chegaram à margem. Então se informaram de que o capitão havia encomendado refrescos para eles em um comprido boliche coberto por um parreiral que ficava perto da praia, e voltaram a olhá-lo com o afeto de sempre.
Os oficiais foram ao clube Mocenigo, onde encontraram outros oficiais da Armada que haviam ido ali para desfrutar do bonito dia ou para visitar seus amigos da ilhota. Também havia alguns casacas vermelhas, mas, em geral, os soldados e os marinheiros se mantinham separados. Os primeiros se sentavam na parte mais próxima da fortaleza e os últimos, nos terraços que davam para o mar, e nas mais altas se reuniam os capitães. Jack guiou Pullings pela escada e o apresentou a Ball e Hanmer, dois capitães de navio, e para Meares, um capitão de corveta. Ocorreu-lhe um jogo de palavras com esse nome, mas não disse, porque pouco tempo antes, ao saber que o pai de um oficial era um cônego de Windsor, dissera que ninguém podia ser melhor recebido em um barco que desse importância à artilharia que o filho de um canhão, e o oficial sorrira forçadamente.
- Estávamos falando da operação secreta - disse Ball depois que se sentaram e pediram algo de beber.
- Que operação secreta? - perguntou Jack.
- A do mar Vermelho, naturalmente - respondeu Ball.
- Ah! - exclamou Jack.
Já fazia algum tempo se falava de uma operação que ia ser realizada nesse perigoso mar, em parte para diminuir a influência dos franceses ali, em parte para satisfazer ao Sultão, que era quem governava, pelo menos nominalmente, em todos os territórios da costa da Arábia até Bab-el-Mandeb e no Egito e até os territórios do Negus, e em parte para satisfazer aos comerciantes ingleses que sofriam exações e abusos de Tallal ibn Yahya, o governante da pequena ilha de Mubara e de uma parte da costa próxima, que, assim como seus antepassados, obrigava a pagar direitos de passagem aos barcos que navegavam pela zona e que não eram potentes o bastante para opor-se a isso nem rápidos o bastante para fugir de seus incômodos faluchos. Contudo, o costume não podia comparar-se com a verdadeira pirataria, e todos consideravam o xeique simplesmente uma pessoa incômoda, mas seu filho, de caráter muito mais enérgico, apoiara Bonaparte na invasão do Egito e era considerado em Paris um valioso possível aliado na operação cujos objetivos eram expulsar os ingleses da Índia e acabar com o comércio entre eles e os países do Oriente. Os franceses lhe haviam proporcionado algumas embarcações européias e carpinteiros de barco, que haviam construído as galeras que hoje formavam sua pequena esquadra. Ainda que a operação para apoderar-se da Índia parecesse remota, Tallal incomodava aos turcos quando favoreciam muito à Inglaterra, e sua crescente influência preocupava ao Sultão e aos donos da Companhia das Índias. Além disso, em um recente acesso de fervor religioso, fizera a circuncisão de três comerciantes ingleses à força, em represália pelo batismo de três de seus antepassados à força (sua família, os Beni Adi, haviam vivido setecentos anos em Andaluzia, quase sempre em Sevilha, onde eram muito conhecidos, e Ibn Khaldun falava deles com respeito). Mas esses comerciantes não eram membros da Companhia, senão que comerciavam sem licença, e por três traficantes circuncisos não valia a pena realizar uma operação com grande número de barcos e soldados, assim que o plano era que a Companhia levaria até o golfo de Suez um de seus barcos para emprestá-lo às autoridades turcas, a Armada proporcionaria a tripulação do barco, e os ingleses, na qualidade de conselheiros para assuntos navais, levariam a Mubara algumas tropas turcas e um governante mais adequado, da mesma família que o xeique, e se apoderariam das galeras que o xeique possuía. Tudo devia ser feito discretamente, para não ofender aos governantes árabes dos territórios que ficavam mais ao sul e no golfo Pérsico (nada menos que três das mulheres de Tallal eram dessa zona), e repentinamente, para pegar o inimigo de surpresa, já que assim não oporia resistência.
- Lowestoffe será o encarregado da operação - disse Ball, - e me parece muito bom, porque está acostumado a tratar com os turcos e os árabes, encontra-se nessa zona e não tem barco. Eu o imagino caminhando sudoroso pelo deserto, ah, ah, ah! Ele e seus homens terão que ir andando até Suez. Meu Deus! - exclamou e voltou a rir; e os demais sorriram.
Lorde Lowestoffe era um dos marinheiros que mais simpatias despertava na Armada, mas tinha as pernas curtas e era excessivamente gordo (sua cara redonda, vermelha e risonha sempre estava brilhante), e por isso imaginá-lo caminhando pela areia do deserto sob o sol africano era engraçado.
- Fico com muita pena Lowestoffe - disse Jack. - Ele se queixou do calor quando estávamos no mar Báltico! Acho que seria muito mais feliz se estivesse na base naval da América do Norte, aonde espero chegar muito cedo. Pobre homem! Faz muito tempo que não o vejo.
- Esteve enfermo - disse Hanmer. - Garanto que parecia um cadáver quando veio me ver outro dia para me fazer algumas perguntas sobre o mar Vermelho. Queria que lhe falasse dos ventos que sopram ali e dos bancos de areia, dos arrecifes e outras coisas. Escrevia tudo cuidadosamente enquanto ofegava como um buldogue. Pobre homem!
- Então o senhor é um perito na navegação pelo mar Vermelho? - perguntou Pullings, que falava pela primeira vez.
Fez a pergunta com boa fé, porque se interessava pelo assunto, mas sua ferida transformou seu amável sorriso em uma careta que expressava desconfiança, e seu tom nervoso não a desmentiu.
- Não acho que conheça essa zona tão bem como o senhor, senhor - respondeu Hanmer. - Não acho. Contudo, conheço-a pelo menos superficialmente, e tive a honra de guiar nossa esquadra de Barim a Suez em 1801, quando tentávamos expulsar os franceses dali.
Hanmer era propenso a contar fantasias, mas nesta ocasião havia dito a verdade, por isso se incomodava mais que em outras vezes que alguém não acreditasse.
- Senhor, eu nunca estive nesse lugar, ainda que tenha navegado pelo oceano Índico. O que sucede é que muitas vezes ouvi dizer que é muito difícil navegar por ali, que as marés e as correntes do extremo norte são enganosas e que o calor é, por assim dizer, exageradamente quente, e gostaria muito de conhecer mais detalhes.
Hanmer escrutinou o rosto de Pullings e desta vez a ferida não o impediu de notar que o jovem era sincero.
- Realmente, senhor, é sumamente difícil navegar por ali, sobretudo quando se entra. Nós entramos pelo endemoninhado canal oriental, que bordeja Barim. É um canal que tem só duas milhas de largura e que em nenhum ponto mede mais de dezesseis braças de profundidade, e não há nele nem uma só baliza, nem uma única. Mas isso não é nada comparado com o terrível calor, um calor que parece o fogo do inferno e é acompanhado de umidade. O maldito sol brilha perpetuamente, o ar nunca esfria, o alcatrão jorra da exárcia, o breu borbulha nas juntas, os marinheiros enlouquecem, o que se limpa não seca nunca. Aqui, Meares - disse, indicando com a cabeça para o oficial que estava ao seu lado, - esteve a ponto enlouquecer. Tinham que mergulhá-lo no mar duas vezes a cada hora, mas encerrado em uma cesta de ferro que o protegia dos tubarões. Hanmer olhou atentamente para Meares e pensou que apesar de que estivera trastornado, ainda podia perceber se dizia a verdade ou não, assim que seguiu descrevendo as coisas como realmente eram. Jack lhe prestava muito pouca atenção, já que a maior parte dela ele dedicava à sua jarra de limonada gelada com uma pitada de vinho de Marsala, mas o ouviu falar dos arrecifes de coral, que se encontravam inclusive a vinte milhas da costa na parte oriental, e mais próximos na parte setentrional, e também o ouviu falar das ilhas vulcânicas, dos perigosos bancos de areia nas imediações de Hodeida, das tempestades de areia no golfo de Suez e dos ventos que sopravam com mais freqüência na região: o vento do norte, o do noroeste e um denominado vento egípcio. Alegrou-se por Hanmer não falar do fênix nem das serpentes marinhas (apesar de Hanmer mentir há muitos anos, não o fazia muito bem, e amiúde sua falta de habilidade resultava vergonhosa), mas lamentou-se por ouvi-lo falar tanto de algo que devia ser mantido em segredo, lembrando que Stephen preconizava a discrição absoluta, e pensou que Hanmer se excedera muito, talvez demais. Agora Hanmer falava dos tubarões do mar Vermelho.
- A maioria dos tubarões são covardes - disse Jack em uma das raras pausas. - Parecem ferozes e agressivos, mas no fundo não são, sabem? Muito barulho por nada. Um dia me jogei ao mar na costa de Marrocos, ao sul do banco de areia Timgad, e caí justo em cima de um enorme peixe martelo, que só fez me pedir perdão e sair fugindo. A maioria dos tubarões são covardes.
- Os do mar Vermelho não - disse Hanmer. - Em meu barco havia um grumete chamado Thwaites, um garoto um pouco lerdo que vinha da Sociedade Naval{3}, e um dia, quando estava sentado no pescante de bombordo com os pés na água para refrescar-se, o barco inclinou uma ou dois embornos empurrado por uma lufada de vento e um tubarão arrancou-lhe as pernas na altura do joelho em um instante.
Isso fez reagir o capitão Ball, que havia deixado de prestar-lhes atenção há pouco.
- Precisamente esse é o pescado que vou almoçar hoje! - exclamou. - Mostraram-me quando cheguei. Disseram que é uma lixa e que se parece com o robalo. Aubrey, o senhor e o capitão Pullings podem almoçar comigo, pois a lixa é o bastante grande para que três pessoas possam comer.
- O senhor é muito amável, Ball - disse Jack, - e, verdadeiramente, não há nada como uma lixa, mas tenho que ir imediatamente. Vou entrevistar-me com o almirante Hartley, e provavelmente me pedirá que fique para almoçar com ele.
O capitão Hartley de outro tempo talvez não fosse um dos marinheiros mais destacados, mas tratara Jack Aubrey com amabilidade quando era guarda-marinha e lhe havia elogiado no relatório oficial que fizera sobre uma operação em que os marinheiros do Fortitude, a bordo de várias lanchas, conseguiram sacar do porto uma corveta espanhola protegida pelos canhões do castelo de São Felipe. Além disso, fora um dos membros do tribunal que naquela espantosa quarta-feira examinara em Somerset House vários guardas-marinhas, entre eles o guarda-marinha Aubrey, que se apresentara ao exame com vários documentos falsos, um que certificava que tinha dezenove anos, e outros, firmados pelos diversos capitães sob cujas ordens havia estado, em que se certificava que havia passado seis anos navegando e que sabia aferrar, rizar, usar o leme, calcular as mudanças da maré e medir a distância angular. E precisamente fora ele quem havia falado quando Jack, que estava tão nervoso por causa das perguntas de matemática de um capitão malvado, faminto e mal-humorado, que já não distinguia a latitude da longitude, havia ficado paralizado ao ouvir a pergunta: "Por que o capitão Douglas o rebaixou de categoria, fazendo-lhe passar de guarda-marinha a marinheiro simples, quando estava no Resolution na base naval do Cabo?". Jack estava muito aturdido para encontrar uma resposta que o fizesse parecer inocente sem ofender ao seu capitão anterior. Tinha que discorrer e utilizar toda sua astúcia (desta vez não parecia conveniente responder com a sinceridade com que costumava fazer), mas não podia, e sentira um grande alívio quando ouvira o capitão Hartley dizer: "Porque escondeu uma jovem na coberta inferior, não porque cometeu nenhum erro ao realizar as tarefas própias de um marinheiro. Douglas me contou no castelo de popa de meu barco quando veio visitar-me. Bem, senhor Aubrey, suponhamos o senhor que está ao comando de um transporte e que ele só leva lastro, é instável, e navega rumo sul com as joanetes desdobradas e com vento do oeste, e suponhamos que uma rajada de vento a faz virar. Como resolve a situação sem cortar os mastros?".
O senhor Aubrey havia resolvido a situação largando pela alheta de sotavento uma guindaleza de considerável comprimento com alguns objetos amarrados que servissem de apoio na água, como por exemplo, as vergas e os galinheiros, usando-a também como espia{4} para mudar o barco de bordo, e havia ordenado aos marinheiros puxar com toda sua força até o momento em que a alheta que ficava a sotavento estivesse a barlavento, momento em que o barco teria que endireitar-se forçosamente, e recolher a guindaleza.
Pouco depois havia saído da sede da Junta Naval resplandecente de alegria e com outro certificado, um bonito documento em que se dizia que estava preparado para desempenhar as funções de tenente de navio. E precisamente quando tinha essa classe fora a uma missão nas Antilhas com o capitão Hartley, mas a missão fora interrompida porque o capitão fora nomeado almirante. Ainda que Hartley não fosse popular na Armada (era um avaro e um libertino, levava a bordo amantes de baixa ralé às quais largava em portos de países estrangeiros sem se preocupar com elas e oferecia poucos banquetes, geralmente muito maus e chatos), Jack e ele se entendiam, em primeiro lugar porque ambos se conheciam bem, em segundo, porque os dois davam muita importância à artilharia, e em terceiro, porque Jack havia tirado Hartley do mar quando seu esquife havia virado em frente a Saint Kitts. Jack nadava muito bem e salvara muitos marinheiros. Quem pudera perceber o horrível que era afogar-se e deixar tantas coisas neste mundo lhe dava constantes amostras de agradecimento, ainda que a maioria estivera tão preocupada em respirar, sair para superfície quando afundavam e gritar, que não haviam podido refletir; e muitos daqueles que, assim como o capitão Hartley, haviam sido pegos do mar imediatamente, diziam que poderiam ter saído sozinhos, ainda que não se sabia se pensavam que podiam caminhar pela água ou em aprender a nadar imediatamente. Porém, Jack sentia afeto por todos os homens que salvara, ainda que tivessem uma atitude hostil com ele ou não lhe fossem agradecidos, e Hartley não estava em nenhum desses dois grupos.
Jack pensava nele com afeto enquanto caminhava para o interior da ilhota por um caminho empoeirado flanqueado por oliveiras. Não o via há muitos anos, ainda que amiúde lhe havia levado móveis, livros e tonéis de vinho, que havia deixado no porto mais próximo ao lugar onde se encontrava, nem havia estado em sua casa de Gozo. Mas recordava muito bem do almirante e tinha desejo de falar com ele. Evidentemente, aquele caminho não era frequentado, pois em meia hora só vira passar um camponês com uma carreta e um asno. Em realidade, não era frequentado por pessoas, mas havia cigarras nas oliveiras, que produziam um som chiante que às vezes era tão alto que, se alguém o acompanhasse, não poderia conversar com ele. Ademais, depois que Jack deixou para trás os bosques e os campos cultivados e começou a atravessar os terrenos rochosos onde as cabras pastavam, viu que havia muitos répteis no caminho. Havia lagartos verdes do tamanho de seu antebraço que se afastavam quando ele se aproximava e lagartixas pardas entre a ressecada grama das bordas; e viu algumas serpentes passarem de um lado para o outro, e esteve a ponto de morrer de medo, porque lhes tinha terror. Quase sempre que caminhava pelas ilhas do Mediterrâneo via tartarugas, que não achava desagradáveis, pelo contrário, mas pensava que em Gozo mal tinha. Contudo, depois de caminhar durante um longo tempo, ouviu um estranho toc-toc e viu uma pequena tartaruga atravessar correndo, literalmente correndo, com as pernas totalmente estendidas. Era perseguida por uma tartaruga maior que, quando conseguiu alcançá-la, deu-lhe três encontrões seguidos, e Jack percebeu de que o toc-toc era produzido pelas carapaças ao se chocarem. "Tirana!", pensou Jack decidido a intervir, mas a tartaruga, uma tartaruga fêmea, parou de repente, talvez debilitada pelos últimos golpes ou talvez porque pensava que já havia oferecido resistência durante o tempo devido. Então a tartaruga macho subiu em cima dela, e, sustentando-se precariamente sobre a arredondada couraça, com suas velhas pernas dobradas apoiadas nela, virou a cabeça para o sol, estirou o pescoço, abriu muito a boca e deu um estranho grito de agonia.
- Meu Deus! - exclamou. - Não tinha idéia… Quanto eu gostaria que Stephen estivesse aqui!
Como não desejava interrompê-las, passou a considerável distância delas e depois seguiu avançando pelo caminho, recordando alguns versos de Shakespeare que não faziam referência a tartarugas mas a mulheres jovens, até que chegou a uma ermita consagrada a São Sebastián, na qual o sangue do mártir havia sido repintado recentemente e tinha um brilho extraordinário. Além da ermida havia um muro de pedra meio derrubado, e no centro do muro havia uma grade de ferro forjado, em outro tempo dourado, que havia saído dos gonzos e estava apoiado contra ele.
- Deve de ser esta casa - disse, recordando a direção que lhe haviam dado.
Mas vários minutos depois disse:
- Talvez tenha me equivocado.
O imenso jardim, que parecia um terreno baldio, a vereda que o atravessava e a lúgubre casa amarelada que se via ao final da vereda, não pareciam ter nada a ver com a Armada. Jack vira na Irlanda propriedades tão descuidadas como essa, com veredas cobertas de erva daninha, basculantes soltos da metade de seus gonzos e vidros quebrados, mas não se notava tanto que estavam descuidadas devido ao constante chuvisco e ao musgo. Aqui, em troca, sim se notava, pois o sol brilhava intensamente, o céu estava limpo e só o que havia verde era um pequeno grupo de azinheiras empoeiradas, e os chiados das inumeráveis cigarras faziam que se notasse ainda mais. "Esse tipo me dirá se o é", pensou.
A lúgubre casa amarelada foi construída em torno de um pátio ao qual se entrava por uma porta com a parte superior em forma de arco, e no pilar da esquerda havia um homem recostado que parecia um moço de estábulo ou um camponês que se estava futucando o nariz.
- Por favor, pode me dizer se o almirante Hartley vive aqui? - perguntou Jack.
O homem não respondeu, lançou um olhar malicioso, deslizou pela abertura da porta e entrou no pátio. Jack o ouviu falar com uma mulher. Falavam em italiano, não em maltês, e ele pôde entender as palavras "oficial", "pensão" e "cuidado". Tinha a impressão de que lhe estavam olhando de uma pequena janela. Após alguns instantes saiu a mulher, uma mulher mal-encarada que vestia um sujo vestido branco e estava desarrumada. Ao ver-lhe, pôs uma expressão amável e disse em correto inglês que aquela era a casa do almirante, e perguntou se ele fora tratar de algum assunto oficial. Jack disse que era um amigo do almirante e se surpreendeu ao ver uma sombra de incredulidade em seus olhos pequenos e quase unidos. Apesar disso, ela conservou o sorriso, mandou que entrasse e disse que ia avisar ao almirante de que estava ali. Depois o guiou por uma escada mal iluminada até uma sala esplêndida. Era esplêndida por seus componentes, o piso de mármore verde claro com faixas brancas, o alto teto artesoado e a chaminé, com uma lareira muito maior que o das chaminés das cabines em que Jack se alojara quando era tenente de navio; mas não era por seus móveis, uma mesinha redonda e um par de poltronas com o assento e o espaldar forrado de couro, que pareciam menores em meio daquele grande espaço iluminado. A princípio Jack achou que não havia nada mais dentro, mas depois, quando avançou para a parede em que havia sete janelas, aproximou-se da janela do meio e voltou a cabeça para a chaminé, viu um retrato de seu antigo capitão na idade de quarenta ou quarenta e cinco anos, um retrato excelente e com os cores ainda muito vivas. Permaneceu ali de pé, com as mãos atrás das costas, contemplando-o silenciosamente durante um tempo. Não conhecia ao pintor. Não era Beechey, nem Lawrence, nem Abbott, nem nenhum dos pintores que costumavam retratar os membros da Armada. Provavelmente não era inglês. Jack pensou que era um bom pintor, pois havia reproduzido fielmente a expressão altiva, voluntariosa e resolvida de Hartley, porém, depois de observar o retrato longo tempo, chegou à conclusão de que não havia gostado de seu modelo. Não havia estampado nenhum sentimento naquela cara pintada, e, apesar de que o retrato era bastante fiel, nele não se refletia a bondade que, indubtavelmente, Hartley tinha, ainda que a mostrava em raras ocasiões. Para Jack parecia que o quadro era como a crítica de um inimigo, e recordou que um companheiro havia dito que o inegável valor de Hartley tinha uma estranha particularidade, pois Hartley atacava ao inimigo movido pela indignação e o afã de vingança pessoal, como se pensasse que o outro bando tratava de tirar-lhe coisas vantajosas, como butins, elogios ou promoções.
Pensava nisto e na verdadeira função da pintura quando a porta se abriu e entrou uma caricatura do homem representado no retrato. O almirante Hartley usava uma velha bata amarela com manchas de tabaco na parte dianteira, calças largas e sapatos com o calcanhar dobrado em vez de sapatilhas. Seu nariz e sua mandíbula haviam crescido, e tinha a cara muito maior. Perdera a expressão altiva e voluntariosa, e, naturalmente, sua pele já não tinha a cor de bronze que adquiriu enquanto esteve exposta ao sol. Tinha um aspecto desagradável e ridículo, e seu rosto pálido só refletia descontente. Dirigiu um olhar para Jack carente de humanidade, que não expressava interesse nem prazer, e perguntou por que havia ido ali. Jack disse que, posto que se encontrava em Gozo, havia pensado que podia apresentar seus respeitos ao seu antigo capitão e perguntar-lhe se queria enviar algum recado para Valletta. O almirante não respondeu, e os dois permaneceram ali de pé enquanto Jack falava do tempo que havia havido durante os últimos dias, das mudanças que se haviam produzido em Valletta e de sua esperança de que o vento mudasse, e sua voz ressoava na habitação vazia.
- Bem, sente-se um momento - disse o almirante Hartley e, fazendo um esforço, perguntou se Aubrey tinha algum barco agora, mas, sem esperar a resposta, inquiriu: - Que horas são? É a hora de tomar o leite de cabra. É fundamental que eu tome o leite de cabra com regularidade.
Então olhou com ansiedade para a porta.
- Espero que se encontre bem neste clima, senhor. Dizem que é muito saudável.
- Não é possível ter saúde quando se é velho. Além do mais, saúde para que?
Um servente trouxe o leite. Era um homem que se parecia em tudo com a mulher que Jack vira, exceto que tinha um pouco de barba de cor preto azulado porque não se barbeava já fazia cinco dias.
- Onde está a signora? - perguntou Hartley.
- Já vem - respondeu o servente.
Em efeito, a mulher já estava na porta quando ele se ia, e trazia uma bandeja com uma garrafa de vinho, bolachas e um copo. Havia trocado o sujo vestido branco por outro bem mais limpo e mais decotado. Jack notou que Hartley pôs uma expressão alegre; contudo, apesar de sua alegria, suas primeiras palavras foram um protesto:
- Aubrey não quer vinho a esta hora do dia.
Antes que se tomasse uma decisão com respeito a este assunto, ouviram-se alguns gritos no pátio e o almirante e a mulher correram para a janela. O almirante lhe acariciou os peitos, mas ela o afastou com um tapa e depois se debruçou pela janela e se pôs a gritar com uma voz tão potente que provavelmente podia ser ouvida a uma milha e meia de distância. Seguiu gritando assim por algum tempo. Jack não tinha mais perspicácia que a maioria dos homens, mas compreendera imediatamente que o almirante caíra em desgraça, e que isso, mesclado com sua luxúria, provocara um sentimento que podia ser amor, paixão ou carinho.
- Que temperamento! - exclamou o almirante quando a mulher saiu correndo da sala para seguir discutindo mais de perto. - Sempre se pode conhecer o caráter de uma mulher pela proeminêcia de suas nádegas - afirmou, ruborizando, e depois, em um tom mais humano, disse: - Sirva-se de um copo de vinho e depois sirva um para mim. Beberemos juntos. Só o que me deixam beber é leite, sabe?
Fez uma breve pausa, na qual inalou um pouco de rapé que tinha envolto em um papel, e depois disse:
- Vou a Valletta de vez em quando para buscar meu meio soldo. Estive lá há duas semanas, e Brocas mencionou seu nome. Sim, sim, lembro-me perfeitamente bem. Ele me falou do senhor. Parece que o senhor ainda não aprendeu a prender bem os calções. Tanto melhor! Um deve se portar como um homem enquanto pode, como eu digo. Desejaria não ter desperdiçado tantas oportunidades no passado. Quase choro sangue quando me recordo de algumas dessas mulheres, dessas esplêndidas mulheres! Um deve se portar como um homem enquanto pode. Depois, na tumba, um passa muito tempo como um eunuco. E alguns nos convertemos em eunucos antes de chegar a ela - disse, soltando uma risada mesclada com um soluço.
Quando Jack regressava para a costa, o calor estava mais intenso, o resplendor do branco caminho era cegante e os chiados das cigarras eram mais fortes. Raras vezes se sentira tão triste. Por sua mente passaram negros pensamentos um depois de outro: o estado do almirante, a eterna passagem do tempo, a inevitável decadência, a espantosa impotência… Retrocedeu de maneira instintiva quando passou perto de sua cara um objeto que lhe recordou os pedaços de madeira que caiam da exárcia nas batalhas. O objeto caiu no pedregoso caminho, justamente diante de seus pés, e se rompeu em pedaços. Era uma tartaruga, provavelmente uma das duas tartarugas enamoradas que havia visto pouco antes, já que esse era precisamente o lugar onde estavam. Olhou por cima e viu a enorme ave de plumagem preta que a deixara cair. A ave começou a voar ao redor de sua cabeça, olhando-lhe fixamente.
- Meu Deus! - gritou. - Meu Deus!
E depois de pensar por alguns instantes, exclamou:
- Quanto eu gostaria que Stephen estivesse aqui!
Stephen Maturin estava sentado em um banco da igreja da abadia de São Simón, ouvindo os monges cantando as vésperas. Tampouco havia comido, mas porque não quisera, para fazer penitência por haver desejado a Laura Fielding e esperava fazer diminuir sua concupiscência. Mas seu estômago, que era pagão, protestara por esse tratamento a princípio e seguira resmungando até o final da primeira antífona. Contudo, já fazia algum tempo que Stephen se achava em um estado que poderia chamar-se de estado graça, pois se esquecera de seu estômago, do banco incômodo e do amor carnal, ficara arrebatado ouvindo aquele canto familiar, o velho canto gregoriano.
Durante a ocupação francesa de Valletta, os franceses haviam causado graves danos à abadia. Haviam levado seus tesouros, venderam o claustro, quebraram sem motivo as vidraças coloridas das janelas (que foram substituídas por esteiras) e arrancaram as placas de mármore nobre, lápis-lazúli e malaquita que recobriam as paredes. Mas esto último havia tido uma boa consequência: a acústica era muito melhor. E agora que o coro de monges cantava entre as paredes de pedra e os arcos de tijolo, parecia que estava em uma igreja mais antiga, um lugar mais adequado para cantar que a igreja renacentista que os franceses haviam encontrado em sua chegada. O abade era um homem muito velho. Havia conhecido os últimos três mestres de campo gerais, vira os franceses chegarem e depois os ingleses. Agora, pelas ruinosas naves laterais, expandia-se sua voz débil mas melodiosa, uma voz diáfana, que não parecia pertencer a um ser terreno. Imediatamente os monges o seguiram, e o tom de seu canto subia e descia como as suaves ondas.
Havia poucas pessoas na igreja, e as poucas que havia somente podiam ser vistas quando passavam pela frente das velas das capelas laterais. A maioria delas eram mulheres cujas capas negras se fundiam com as sombras. Mas no final da missa, quando Stephen se voltou para fazer uma reverência como mostra de respeito ao altar, justo ao lado da pia de água benta que ficava perto da porta, viu um homem sentado junto a um dos pilares. O homem secava seus olhos com o lenço, e seu rosto estava iluminado pela luz que entrava por uma fenda da parede que dava para o claustro secularizado. Nesse momento voltou a cabeça, e Stephen descobriu que era Andrew Wray.
As mulheres haviam se aglomerado diante da porta e avançavam por ela muito devagar, falando animadamente umas com as outras. Stephen teve que ficar ali de pé durante um tempo. Ficara surpreso ver por Wray, pois ainda que as leis do código penal já não fossem o que eram, um católico não podia ser vice-secretário interino do Almirantado. Stephen se encontrara com Wray em alguns concertos em Londres, mas pensava que comparecia a eles para estar em companhia de gente importante em vez de pelo amor à música. Contudo, notou que o vice-secretário se mocionara de verdade, pois quando já havia se serenado e começara a caminhar pela porta, estava muito sério e seu gesto transluzia sua emoção. As mulheres puxaram a cortina de couro para um lado e abriram a porta, e, ao mesmo tempo que saíram, entrou a luz do sol. Wray não deu importância ao altar nem à água benta, e isso era uma prova inequívoca que não era um papista. Então viu Stephen, e sua expressão séria se transformou em uma sorridente.
- O senhor é o doutor Maturin, né? Como está, senhor? Sou o senhor Wray. Nos conhecemos na casa de lady Jersey. Também tenho a honra de conhecer à senhora Maturin, a quem vi precisamente pouco antes de zarpar.
Falaram um pouco, pestanejando sob a intensa luz do sol. Falaram de Diana, a quem Wray vira no Teatro da Ópera no camarote dos Columptons, e de amigos comuns, e depois Wray o convidou para tomar uma xícara de chocolate em uma elegante pastelaria que ficava do outro lado da praça;
- Vou a São Simón com tanta freqüência como posso - disse quando se sentaram em uma mesa verde no caramanchão que ficava detrás da pastelaria. - Gosta do canto gregoriano, senhor?
- Gosto muito, senhor - respondeu Stephen, - quando não é meloso, nem tem brilhantismo, nem é cantado para causar efeito. Gosto quando é sóbrio, tem frases uniformes e carece de notas supérfluas e de transição.
- Eu também - disse Wray. - Tampouco gosto desses melismas modernos. A simplicidade angelical é o que lhe confere beleza. E estes admiráveis monges conhecem o segredo.
Então falaram dos modos, e descobriram que os dois gostavam mais do canto ambrosiano que qualquer modo plagal, e depois Wray disse:
- Estive em uma de suas missas outro dia, um dia que cantaram o Agnus de Mixolydian, e devo confessar-lhe que me emocionei tanto quando o ancião cantou dona nobis pacem que estive a ponto de chorar.
- Paz… - disse Stephen. - voltaremos a ter paz algum dia?
- Pela forma como o Imperador se comporta atualmente, eu duvido.
- A verdade é que acabo de sair de uma igreja - disse Stephen, - porém, apesar disso, não posso deixar de desejar que esse porco do Bonaparte, esse maldito tirano, seja condenado a passar no inferno toda a eternidade.
Wray riu e disse:
- Recordo-me de um francês que admitia que Bonaparte tinha muitos defeitos, inclusive o de comportar-se como um tirano, como o senhor disse muito acertadamente, e outro muito pior, ignorar a gramática e os costumes franceses. Mas disse que, apesar disso, ele o apoiava. Seu argumento era o seguinte: as artes diferenciam os homens dos animais e fazem a vida quase suportável, e as artes florescem em tempo de paz, e um governo universal é um requisito indispensável para que haja paz no universo. A propósito disto, citou umas palavras de Gibbon nas quais expressava sua alegria por viver na época dos imperadores Antoninos, e disse que todos os imperadores romanos absolutistas, inclusive Marco Aurélio, eram tiranos, ainda que só fosse in posse, mas que a pax romana justificava exercer um governo tirano. Disse que considerava Napoleão o único homem, melhor dizendo, semideus capaz de formar um império universal, e que militava na guarda imperial por seu amor à arte e à humanidade.
Ocorreu a Stephen um monte de argumentos contundentes para opor-se a esse, mas fazia muito tempo que havia deixado de expressar sua opinião a todos menos aos seus amigos íntimos e, sorrindo, limitou-se a dizer:
- Bem, é um ponto de vista.
- De toda forma - disse Wray, - nosso dever é, se me permite a expressão, minar a fortaleza do império universal. De minha parte - disse, inclinando-se pela mesa, - tenho que realizar uma delicada missão dentro de pouco e gostaria que me assessorasse. O almirante me disse que podia lhe consultar sobre ela. Assim que ele chegue, haverá uma reunião geral, e queria que tivesse a amabilidade de participar.
Stephen disse que estava à disposição do senhor Wray. Nesse momento deram a hora numerosos relógios perto e longe dali, e Stephen percebeu que estava atrasado para o encontro com Laura Fielding pelo que, levantando-se de um salto, despediu-se.
Wray viu como Stephen cruzava a praça apressadamente e desaparecia na concorrida rua. Então regressou à igreja, que a essa hora ficava vazia, observou como estavam colocadas as velas da capela de São Roque e foi até a nave lateral que voltada para o sul. Ali havia uma pequena porta que agora não estava fechada com chave, como habitualmente ficava; Wray a abriu e passou ao claustro, que estava cheio de barris de vários tamanhos, e, ao chegar a uma esquina, atravessou um corredor que levava a um armazém, também cheio de barris, e entre eles estava Lesueur, que tinha um caderno e uma caneta na mão, e um corno que servia de tinteiro enganchado no olhal.
- Chegou muito tarde, senhor Wray - disse. - É surpreendente que as velas ainda não tenham apagado.
- Sim. Estava falando com um homem que me encontrei na igreja.
- Foi o que me disseram. E o que o senhor tinha a dizer ao doutor Maturin?
- Falamos do canto gregoriano. Por que a pergunta?
- Sabe que ele é um espião?
- Para quem trabalha?
- Para o senhor, naturalmente. Para o Almirantado.
- Ouvi dizer que o consultaram sobre alguns assuntos. Sei que lhe pediram que examinasse alguns informes sobre a situação política da Catalunha porque ele a conhece bem, e que assessorou ao secretário do almirante sobre os casos relacionados com Espanha, mas daí a que seja um espião… Não, não acredito que seja um espião. Além disso, seu nome não aparece na lista de ordens de pagamento.
- Não sabe que foi ele que matou Dubreuil e Pontet-Canet em Boston, que destruiu quase por completo a organização de Joliot introduzindo informação falsa no Ministério da Guerra, que arruinou nossas relações com os norte-americanos?
- Não! - gritou Wray.
- Então, o senhor Blaine não foi franco com o senhor. Talvez não tenha sido porque é muito astuto, ou talvez porque alguém, em algum lugar, viu algo que lhe infundiu suspeitas. O senhor deve vigiar os canais de informação, meu amigo.
- Conheço a lista de pagamentos quase de memória - disse Wray, - e posso assegurar que o nome de Maturin não está em nenhuma delas.
- Estou seguro de que é verdade - disse Lesueur. - É um idealista, como o senhor, e precisamente por isso é tão perigoso. Mas é melhor assim, porque se soubesse, não haveria podido falar com naturalidade com ele. Se suspeitam algo, e se ele o sabe, é provável que lhes diga que suas suspeitas são infundadas. Falou da missão para ele?
- Eu a mencionei e disse que queria que assistisse à reunião quando o comandante geral chegasse.
- Muito bem. Mas é melhor guardar distância. Trate-o como um conselheiro político, como um especialista em alguns assuntos, mas nada mais. Além da vigilância ordinária, há um agente vigiando só a ele. Não há dúvida que ele tem uma rede de informantes, alguns na França, e o nome de pelo menos um deles poderia nos levar aos outros e depois a Paris… Mas é como um animal perigoso e com uma dura couraça, e se este agente não tiver êxito logo, é improvável que consigamos nosso objetivo, assim que terei que pedir-lhe que busque uma maneira plausível de tirá-lo do caminho sem comprometer a sua posição.
- Verei - disse Wray e, depois de refletir durante um momento, acrescentou: - Isso pode se arrumar. Se não surgir uma oportunidade antes, o dey de Mascara resolverá o problema. Verdadeiramente - acrescentou depois de pensar por um minuto, - o dey nos será muito útil. Poderemos matar dois pássaros com um tiro.
Lesueur o olhou pensativo e depois disse:
- Por favor, conte os barris que estão do outro lado do pilar, porque não posso ver todos daqui.
- Vinte e oito - disse Wray.
- Obrigado - disse Lesueur, anotando a cifra em seu caderno. - Me devolvem sete francos e meio por cada um, o que é uma quantidade apreciável.
Era óbvio que Wray estava pensando no que ia dizer a seguir enquanto Lesueur multiplicava essas cifras com satisfação. E quando disse, notava-se que careciam de espontaneidade, o mesmo que um elaborado discurso, e que expressavam uma indignação maior da que razoavelmente podia sentir.
- Acaba de dizer que sou um idealista - disse, - e é verdade que sou. Nenhuma soma poderia comprar meu apoio; nenhuma soma nunca comprou meu apoio. Mas não posso viver somente de ideais. Até que minha esposa herde, minhas rendas serão muito reduzidas, e enquanto permaneça aqui, sou obrigado a manter minha posição. O senhor Hildebrand e todos os que podem pegar partes do estaleiro e do aprovisionamento fazem apostas muito altas, e eu sou obrigado a segui-los.
- O senhor já acrescentou uma grande quantidade extra à habitual… ajuda antes de sair de Londres - disse Lesueur. - Não pode pretender que a rue Villars pague por suas dívidas de jogo.
- Sim posso, quando incorro nelas por uma razão como esta - disse Wray.
- Se o direi ao meu chefe - disse Lesueur, - ainda que não posso prometer nada. Porém, indubtavelmente, o senhor pode ganhar a confiança desses homens sem fazer apostas tão altas, né? - disse em tom impaciente. - Acho que esse procedimento não é ideal.
- Com esses homens é fundamental - disse Wray teimosamente.
CAPÍTULO 3
O mau humor que a visita ao almirante Hartley produzira em Jack Aubrey foi atenuado por uma avalancha de pensamentos e uma intensa atividade física. O tribunal do Almirantado havia examinado as circunstâncias em que ele havia capturado uma corveta francesa no mar Jônico e a havia considerado uma presa legal. Isto, apesar de haver tido que pagar os elevados honorários de seu mandatário, proporcionou-lhe uma considerável quantidade de dinheiro, não tanta como a que necessitava para solucionar os complicados problemas que tinha na Inglaterra, mas o suficiente para enviar para Sophie o pagamento de dez anos, rogando-lhe que não se privasse de nada, para mudar-se para um alojamento mais digno no hotel Searle, e, como já lhe haviam indicado os canais pelos quais podia conseguir que começassem as reparações da Surprise, para fazer os adequados subornos. Mas no fundo ainda sentia tristeza, que nem a companhia de outros nem a música faziam desaparecer e que trazia consigo a determinação de viver sem contenção enquanto pudesse.
Por isso quando Laura Fielding foi lhe dar aula de italiano em seu novo quarto, muito mais cômodo, encontrou um Jack de excelente humor, apesar de ter passado um mau dia no estaleiro e estar muito preocupado com as curvas da fragata. Posto que Jack nunca em sua vida havia tentado seduzir uma mulher com malícia, não tratava de conquistá-la da maneira usual, tentando minar sua fortaleza e aproximando-se por tortuosos caminhos, senão que sua estratégia (se a algo não premeditado, fruto do instinto, podia chamar-se estratégia) era sorrir, ser tão agradável como podia e aproximar cada vez mais sua cadeira da dela.
No início da revisão do imperfeito do subjuntivo do verbo irregular stare, a senhora Fielding se alarmou ao ver que o comportamento de seu aluno era mais irregular que o verbo. Percebeu a sua intenção inclusive antes de que ele mesmo a observasse, porque se criara na corte napolitana, onde havia costumes dissolutos, e se acostumara aos galenteios desde muito nova. Anciãos conselheiros, pagens lampinhos e numerosos cavalheiros de distintas idades haviam tentado minar sua virtude, mas ela recusara à maioria deles. O caso havia terminado por interessar-lhe, e era capaz de detectar os primeiros sinais de uma paixão amorosa, que, pelo que vira, não se diferenciavam muito de um homem para outro. Mas nenhum de seus galanteadores era tão robusto como este, nem tinha os olhos tão brilhantes, nem suspirava tanto, nem ria de uma maneira tão desconcertante. A pobre dama, preocupada por não haver chegado a um acordo com o doutor Maturin e incômoda pelos rumores de que cometia adultério com o capitão Aubrey, não estava de humor para brincar e lamentava a ausência de sua criada, já que Ponto, seu fiel guarda, não podia protegê-la nestas circunstâncias. Ponto estava deitado ali e os olhava com expressão risonha e golpeava o solo com a calda cada vez que o capitão Aubrey aproximava sua cadeira um pouco mais.
Ambos largaram o imperfeito do subjuntivo com indiferença, e Jack, cuja imaginação havia despertado, falava agora daquilo que se rumorejava sobre eles. Ela, apesar de que não conhecia bem o inglês e de que ele não era coerente, compreendeu o sentido geral de suas palavras e antes de que chegasse a expressar seu desejo de fazer algo para que esse rumor tivesse fundamento e dizer que era justo que assim fosse porque ambos haviam sofrido sem ter culpa, ela o interrompeu.
- Ah, capitão Aubrey! - exclamou. - Tenho que pedir-lhe um favor.
Jack, sorrindo e olhando afetuosamente para a senhora Fielding, disse que ela podia pedir o que quisesse, que ele estava à sua disposição e que se encantaria em servi-la.
- Muito bem - disse ela. - Já sabe que sou faladora, e que amiúde o doutor me disse e me pediu que não falasse tanto, mas não gosto de escrever, pelo menos, escrever em inglês. Se lhe dito um texto para que o senhor o escreva em bom inglês, poderei usar as palavras que escreva quando envie cartas para meu esposo.
- Muito bem - disse Jack, deixando de sorrir.
Era exatamente o que Jack temia e compreendeu que interpretara mal os sinais. Dizia que o senhor Fielding devia saber que o admirável capitão Aubrey evitara que Ponto se afogasse e que agora Ponto adorava ao capitão e corria ao seu encontro quando lhe via na rua e que por isso a gente maliciosa dizia que o capitão Aubrey e ela eram amantes, e que se esse rumor chegasse aos seus ouvidos não devia fazer-lhe caso. Depois dizia que o capitão Aubrey era um homem honorável e nunca ofenderia à esposa de um companheiro com proposições desonestas, que ela estava tão segura de que era um homem correto que o visitava inclusive sem sua criada. E terminava dizendo que o capitão Aubrey sabia perfeitamente que ela não era uma beltrana.
- Beltrana? - perguntou Jack, alçando a vista e deixando de mover a pluma.
- Essa palavra não é correta? Estava tão orgulhosa de que a sabia!
- Oh, sim! - exclamou Jack. - Mas é difícil de escrever, sabe?
Então, rindo para seu interior, escreveu "não sou uma fulana" com muito cuidado, para que as letras não pudessem confundir-se, e sentiu mais vergonha por ter feito um papel ridículo do que pela amargura por sofrer uma decepção.
Despediram-se amistosamente, e então ela, olhando-o com afeto, disse:
- O senhor não se esquecerá de minha festa, né? Convidei o conde Muratori, que toca a flauta magnificamente.
- Nada me impediria de ir, a não ser que perdesse as duas pernas - disse Jack. - E mesmo assim, iria em uma maca.
- Pode lembrá-la ao doutor? - perguntou.
- Estou certo de que ele se recordará dela sozinho - disse Jack, mantendo a porta aberta para que ela passasse. - E se não… Mas aí está - disse, voltando a cabeça para escutar alguns passos na escada. - Quando tem pressa, muitas vezes sobe como um rebanho de ovelhas degarradas e não como um cristão.
Era o doutor Maturin, mas agora não estava pálido e sério, como era habitual, mas rosado e risonho.
- Está empapado! - gritaram os dois.
Era verdade, e quando parou na frente deles, começou a se formar um charco debaixo de seus pés. Jack esteve a ponto de perguntar "caíu na água?", mas não queria pôr em ridículo o seu amigo, porque a resposta tinha que ser necessariamente "Sim". O doutor Maturin era desajeitado no mar, e amiúde, ao passar de uma lancha para um barco ou ao descer de um firme cais de pedra para uma embarcação imóvel, inclusive para uma espécie de gôndola típica daquela região especialmente desenhada para transportar de um modo seguro a homens do interior, perdia o equilíbrio e caía ao mar. Isso lhe ocorrera tantas vezes que sua roupa íntima e a bainha de sua casaca quase sempre tinham manchas brancas formadas pelo sal seco.
Contudo, Laura Fielding a quem isso não a coibia, e, com naturalidade, perguntou:
- Caiu na água?
- Aos seus pés, senhora - disse Stephen distraidamente, beijando sua mão. - Jack, que alegria, o Dromedary chegou!
- E daí? - perguntou Jack, que vira ao transporte de costados retos aproximar-se dando bordejadas desde o amanhecer.
- A bordo está meu sino de escafandrista!
- Que sino de escafandrista?
- Meu ansiado sino de escafandrista desenhada por Halley. Quase perdera as esperanças de recebê-la. Tem uma janela de vidro na parte superior! Estou ansioso para submergir-me no mar. Tem que vir vê-la imediatamente. Uma embarcação está me esperando no cais.
- Adeus, cavalheiros - disse a senhora Fielding, que não estava acostumada que deixassem de lhe prestar atenção por causa de um sino.
Ambos pediram perdão e lhe disseram que sentiam muito o ocorrido e que sua intenção não fora faltar-lhe o respeito. Stephen a ajudou a descer as escadas, e atrás deles desceram calmamente Jack e Ponto.
- É o modelo de Halley, sabe? - disse Stephen quando a típica embarcação maltesa, uma embarcação longa e estreita parecida com uma gôndola, zarpou e seus tripulantes começaram a remar com grande rapidez para atravessar o porto em direção ao Dromedary, já que ele havia prometido pagar-lhes o dobro pela viagem. - Como estes homens remam rápido! E percebeu que remam de pé e voltados para o ponto ao qual se dirigem, como os gondoleiros de Veneza? Acho um costume digno de elogio e deveriam adotá-lo na Armada.
Com freqüência Stephen fazia propostas para melhorar a Armada. Havia recomendado que se entregasse gratuitamente aos marinheiros um uniforme de tecido resistente, sobretudo para os novos e para os grumetes, que se reduzisse sua monstruosa ração de grogue e que lhes desse uma pequena quantidade de sabão, e também que se abolissem vários castigos, como por exemplo, açoitar a um homem diante de cada um dos barcos de uma esquadra, mas todas estas propostas haviam tido pouco êxito, tão pouco como a atual sugestão de que os membros da Armada, contra a tradição, olhassem aonde iam. Jack, sem escutar-lhe, perguntou:
- Halley? O do cometa Halley? O astrônomo real?
- Exatamente.
- Sabia que era capitão do pingue Paramour quando estudava as estrelas do hemisfério austral e traçava a carta marítima do Atlântico, e o admiro muito por sua grande capacidade para observar e fazer cálculos; contudo, ignorava que tivesse algo a ver com as redomas de escafandrista.
- Mas eu lhe falei de seu artigo Art of Living under Water, que apareceu em Philosophical Transactions, e você elogiou minha idéia de caminhar pelo fundo do mar, você disse que seria uma forma de encontrar amarras e âncoras perdidas melhor do que tentar pegá-las com ganchos.
- Lembro perfeitamente, mas você não mencionou o nome de Halley. Além disso, você falou foi de uma espécie de capacete com tubos.
- Estou certo de que mencionei o nome de Halley e de que descrevi o sino com bastantes detalhes, mas você não prestou atenção. Estava jogando críquete, e em um intervalo, aproximei-me de você e o disse.
- Isso foi em outra ocasião, quando jogávamos com vários cavalheiros de Hampshire. Tive que dizer a Babbington que lhe afastasse dali. Nunca consegui fazer-te compreender que na Inglaterra levamos muito a sério esse jogo. Porém, por favor, conte-me tudo outra vez. Como é o sino de escafandrista?
- É belo por sua simplicidade. Imagine um cone truncado, aberto pela parte de abaixo, com uma janela de vidro grosso na parte superior e com pesos repartidos de maneira que ao descer no mar se move perpendicularmente ao fundo. É amplo, e seu ocupante pode sentar-se comodamente em um banco do tamanho de seu diâmetro, colocado a certa distância da borda, enquanto desfruta contemplando as maravilhas das profundezas, aproveitando a luz que entra pelo vidro da parte superior. Poderá objetar que à medida que o sino afunda o ar que há em seu interior se comprime e a água sobe proporcionalmente - disse Stephen, subindo a mão, - e, em circunstâncias normais seria assim, e o sino estaria meio cheio quando tivesse descido trinta e três pés. Mas também tem que imaginar um barril com pesos repartidos e com um buraco no fundo e outro na parte superior. No buraco da parte superior fica metida uma mangueira de couro, untada com azeite e cera de abelha, na qual não entram nem o ar nem a água, e o buraco do fundo fica aberto para que a água entre no barril à medida que afunda.
- Que vantagem tem isso?
- Não percebe? O barril mantém o sino cheio de ar.
- Não. O ar sai pela mangueira de couro.
Stephen se ficou perplexo ao ouvir o comentário. Abriu a boca, logo a fechou e ficou pensando no problema durante alguns minutos, enquanto a ligeira embarcação navegava velozmente por entre os barcos e botes que enchiam o porto, com o contraforte Três Cidades pela proa e Valletta pela popa. Então sorriu e, sentindo satisfação de novo, disse:
- Isso mesmo, isso mesmo. Como sou tonto! Esqueci de dizer que a mangueira de couro tem um peso pendurado para que permaneça abaixo do buraco mais baixo. Mantém-se assim enquanto o barril desce, o que é fundamental, e o homem que vai dentro do sino tem que pegá-la, introduzi-la no sino e subi-la. Quando a sobe acima do nível da água que há dentro do barril, o ar sai com força e se expande no sino, permitindo ao homem respirar melhor e empurrando a água para a parte inferior do sino. Então o homem faz um sinal para que tirem o barril da água e desçam outro. O doutor Halley diz, e usarei suas própias palavras, Jack, que "essa sucessão pode abastecer o sino com tanto ar e tão rapidamente que às vezes outras quatro pessoas e eu ficamos durante uma hora e meia juntos no fundo, em águas de nove ou dez braças, e não sentimos nenhum mal-estar".
- Cinco pessoas! - exclamou Jack. - Meu Deus! Então é enorme. Diga-me, por favor, quais são suas dimensões?
- Meu sino é pequeno, muito pequeno - disse Stephen. - duvido que você caiba nele.
- Quanto pesa?
- Não me recordo do peso exato, mas é muito pequeno, apenas o suficiente para afundar-se, e não muito rápido. Vê essa ave que está aí diante a uns trinta e cinco graus de elevação? Acredito que é um hangi, uma ave típica desta ilha.
Era evidente que os tripulantes do Dromedary já conheciam o doutor, pois desceram uma escada quando a embarcação se abordou com o transporte e, depois que subiu trabalhosamente pelo costado, alçaram-no segurando pelos braços e o fizeram passar por cima da borda. Também era evidente que lhe tinham simpatia, pois apesar de que deviam realizar urgentes tarefas, haviam pego seu sino e os instrumentos que iam nele. E foi o própio capitão, acompanhado de um grupo de sorridentes tripulantes, que levou os visitantes para vê-lo.
- Aqui está - disse o capitão, assinalando com a cabeça a escotilha central, - preparada para ser içada. Como verá, senhor, segui as instruções do doutor Halley ao pé da letra: aí está a espicha, unida por estais ao tope, e aí estão as braças, para poder sacar ou meter o sino, conforme se queira. Aqui, Joe, deu um pouco de polimento para que não pareça uma coisa insignificante.
Em realidade, estava muito longe de parecer insignificante. O aro de latão que rodeava a parte de vidro tinha mais de uma jarda de diâmetro e parecia o olho de um Deus gigantesco, ingênuo e alegre que lhes olhava atentamente. Jack, cheio de angústia, desviou a vista.
- Parece muito grande porque está em um espaço pequeno - disse Stephen, - mas isso é uma ilusão de ótica. Quando a levantarem, verá que é muito pequena.
- Tem oito pés de altura, a parte superior tem um diâmetro de três pés e seis polegadas e a inferior, de cinco pés - disse o capitão com grande satisfação. - Tem uma capacidade de quase sessenta pés cúbicos e pesa aproximadamente quatro mil trezentas libras.
Jack tinha pensado chamar Stephen aparte a para dizer-lhe que essa máquina teria que ficar em terra ou ser enviada à Inglaterra e que, como não havia nascido ontem, sabia perfeitamente que tratava de fazer-lhe aceitar um fato consumado; contudo, as elevadas cifras lhe causaram tal surpresa que gritou:
- Meu Deus! Cinco pés de largura e oito de profundidade e quase duas toneladas de peso! Como pode pensar que na coberta de uma fragata cabia uma coisa monstruosa como esta?
Os sorridentes tripulantes do Dromedary que estavam ao seu redor ficaram sérios, e por sua expressão Jack compreendeu que desaprovavam sua conduta e estavam do lado de Stephen.
- Para dizer verdade - disse Stephen, - eu o encomendei quando estávamos no Worcester.
- Mas em que parte de um navio de setenta e quatro canhões ele poderia caber?
Stephen disse que havia pensado em colocá-lo no castelinho, porque dali seria fácil passá-la por cima da borda se quisesse descê-la ao mar quando o barco não estivesse navegando, e achava inclusive que serviria de adorno.
- O castelinho, o castelinho… - começou a dizer Jack, mas esse não era o momento para falar dos desastrosos efeitos que produziria um objeto de duas toneladas que estivesse colocado na popa e muito acima do centro de gravidade do barco, e oferecesse resistência ao vento, assim que disse: - Mas não estamos falando agora de um navio de linha mas de uma fragata, e muito pequena. Além disso, permita-me que lhe diga que nenhuma das fragatas que construídas até agora tem castelinho.
- Sendo assim - disse Stephen, - que acha de colocá-la no pequeno espaço que há entre o mastro traquete e o cabillero{5}?
- Colocar um objeto de duas toneladas sobre a roda, justo sobre o pé da roda? Isso seria horrível! Faria diminuir a velocidade da fragata dois nós quando navegasse de bolina! Além do mais, aí ficam o estai do maior e das velas. E como vou subir a âncora? Não, não, doutor, não é possível. Sinto muito. Se houvesse falado disto antes, eu teria desaconselhado que a trouxesse, teria dito que não cabia em nenhum barco de guerra a não ser que fosse um navio de primeira classe{6}, não que se podia colocar sobre os calços.
- É o modelo desenhado pelo doutor Halley - disse Stephen em voz baixa.
- Contudo, pense no bem que faria em qualquer lugar da costa - disse Jack em um tom alegre pouco convincente. - Servirá para buscar guindalezas{7}, amarras e âncoras perdidas, e acredito que o comandante do porto lhe emprestará de vez em quando uma chalana para que possa ver o fundo do mar.
- Sempre que meço a altitude de um astro, penso que tenho uma grande dívida de gratidão com o doutor Halley - disse o capitão do Dromedary.
- Todos os marinheiros deveriam estar agradecidos ao doutor Halley - disse o primeiro oficial, e essa parecia ser a opinião geral no transporte.
- Então, senhor - disse o capitão, olhando compassivamente para Stephen, - que tenho que fazer com este sino, com o sino do doutor Halley? Devo levá-lo para a costa tal como está ou o desmonto e o guardo na bodega até que o senhor decida o que fazer com ele? Tenho que fazer uma dessas duas coisas para deixar livre a escotilha, e muito rápido, sabe?, porque de um momento a outro virá o inspetor do estaleiro para passar revista na tripulação. Ali está ele, ali junto ao Edinburgh, conversando com seu capitão!
- Por favor, desmonte-o, capitão, se não for muito incômodo - disse Stephen. - Tenho alguns amigos em Malta em cuja ajuda confio.
- Não é nenhum incômodo, senhor. Tiro uma dúzia de parafusos e caso terminado.
- Se for desmontada - disse Jack, - a coisa muda. Se for desmontada ela pode ser levada na fragata. Pode ser guardada na bodega e ser montada no momento oportuno, quando haja calmaria ou quando a fragata estiver ao pairo ou em um porto. Enviarei minha falua imediatamente.
Enquanto a ligeira embarcação lhes levava ao estaleiro, Jack pensou: "Ainda que pareça estranho, se estivéssemos no castelo de popa de meu própio barco, eles não se atreveriam a falar assim do doutor Halley. Eu me senti como Juliano o Apóstata diante de um monte de bispos… os teria cortado se houvesse estado em meu própio barco… A autoridade depende em boa medida do lugar… Eu sou dócil na casa de meu pai, como a maioria das pessoas…". Então se recordou que suas filhas não eram muito dóceis e que uma vez lhe haviam gritado: "Vamos, papai! A este passo não chegaremos ao cume da montanha! Parece uma lesma!". Antes de então provavelmente haveriam dito "maldita lesma", pois se haviam acostumado a dizer expressões soeces com os marinheiros que trabalhavam de serventes em sua casa, mas quando Jack havia regressado ali depois de sua última viagem, Sophie já havia se encarregado do caso, e agora só se ouviam vozes femininas gritar "Condenado imbecil!" e "Maldito canalha!" em remotos cantos do bosque que rodeava Ashgrove.
- Eu me pergunto o que Graham nos dará - disse Stephen, rompendo o silêncio.
- Estou seguro de que nos dará algo bom - disse Jack, sorrindo.
O professor Graham tinha fama de avarento, e muitos o chamavam de avarento, avaro, mesquinho, miserável ou ruim, mas estavam equivocados. O professor era generoso quando dava um banquete, sobretudo um como este, um banquete no qual ia se despedir de seus antigos companheiros de tripulação do Worcester e da Surprise, de alguns amigos e de vários oficiais dos regimentos da região montanhosa da Escócia.
- Seria estranho que no banquete não houvesse um cachorro com manchas{8} porque ele me perguntou quais eram seus pratos favoritos.
- Adoraria… - disse. - Se atravessar em meu caminho passarei por cima, condenado filho bastardo de um maldito egípcio! - acrescentou, alçando sem esforço a voz de tal modo que podia ser ouvido da margem e voltando a cabeça para um bote cuja tripulação parecia distraída. - Mas agora que me recordo, tinha pensado subir a bordo do Edinburgh e pedir-lhe emprestado a Dundas sua falua, pois é mais adequada que a minha porque é mais larga. Ademais, como seu barco está ancorado em águas de dez braças de profundidade, um lugar muito mais apropriado para o sino do que o fétido atoleiro onde se encontra a Surprise, acredito que a amarrará com o cabo de uma polia e te descerá nela até o fundo do mar, ainda que seria conveniente que descesse primeiro algum grumete ou algum guarda-marinha para nos assegurar de que funciona.
- Boa tarde, professor Graham - disse o doutor Maturin, entrando no quarto de seu colega. - Venho do fundo do mar.
- Sim, já sei que estava ali - disse Graham, afastando a vista de seus documentos e olhando-lhe. - Das barracas alguns puderam ver com binóculos como descia em sua caldeira, e o coronel Véale apostou duas e meia contra uma que o senhor nunca voltaria a subir.
- Espero que esse homem malvado e inumano haja perdido.
- Naturalmente que perdeu, já que o senhor está aqui - disse Graham com impaciência. - Porém, sem dúvida, o senhor estava brincando outra vez. A julgar por seus sapatos e suas meias, o fundo do mar está coberto de lodo fedorento.
- Sim, está coberto de uma capa ondulada de lodo cinza amarelado que tem um estranho brilho, mas… há tantos anelídeos ali, estimado Graham! Há centenas de milhares de anelídeos de pelo menos trinta e seis tipos diferentes, alguns com filamentos e outros sem eles. E espere até que lhe conte o que aprendi dos holotúridos, das lesmas do mar, dos pepinos dp mar…
- Pepinos do mar? - perguntou Graham, anotando algo, e por fim fez uma pausa. - Dê uma espiada nesta lista e diga-me sua opinião. Estou quase completamente satisfeito do conjunto de pratos que escolhi, mas não dos lugares que atribuí aos convidados. Além dos oficiais da marinha de diferentes classes, virão cavalheiros da região montanhosa da Escócia que pertencem a diferentes clãs, e devo ter em conta quem tem primazia sobre os outros membros de seu clã e que clã tem a primazia sobre os demais, do contrário haverá problemas. Se imagina o que pass;aria se se desse mais importância a um McWhirter que a um MacAlpine? Em uma reunião informal como esta, nós não temos em conta a categoria dos militares, ainda que, indubtavelmente, os oficiais do Quadragésimo Segundo Regimento não quererão que se anteponham a eles os de nenhum outro regimento escocês.
- O que deve fazer é numerar os lugares, colocar os números em um chapéu e deixar que cada um saque um. Pode passar o chapéu dizendo algo gracioso.
- Algo gracioso? Ufa, quanto eu gostaria que já houvesse acabado!
- Acredito que você gostará do banquete quando ele começar - disse Stephen, olhando o menu. - Como são estes nabos?
- São nabos com molho. Não só gostaria que houvesse acabado o banquete, mas também todo o resto. Queira voltar ao meu país e levar uma vida tranqüila, estudando e dando aulas. Passarei menos tempo em sua companhia, Maturin, mas me alegro de ir. A situação de Malta me cheira mal, ou seja, a organização dos serviços secretos em Malta. Há muitos homens trabalhando aqui e há muitos que têm a língua solta. Há alguns planos que se porão em execução em Berbería que não me agradam, e se se tem em conta o que Mehemet Ali opina realmente do Sultão, o caso do mar Vermelho parece uma empresa de resultado duvidoso. Há muitas coisas que não me agradam em absoluto - disse e, depois de uma pausa, olhando fixamente para Stephen, perguntou: - Ouviu falar de um homem chamado André Lesueur?
Stephen pensou por um momento.
- Acho que é um agente secreto e que pertence ao grupo de Thévenot, mas não sei nada sobre ele nem nunca o vi.
- Eu o vi em Paris durante a paz. Soube quem era porque um de nossos agentes me disse. Pois bem, estou quase seguro de que o vi hoje na rua Real, caminhando como se estivesse em seu país, quando o senhor estava em sua embarcação. Dei a volta discretamente e tratei de seguir-lhe, mas havia muita gente.
- Como é?
- É um homem baixo, de ombros estreitos, um pouco encurvado, pálido, e tem um gesto triste. Usava uma casaca negra com botões de tecido e calção pardo claro. Terá cerca de quarenta e cinco anos e parece um homem de negócios ou um comerciante importante. Como o senhor não estava e não confio na discrição do secretário, fui ver o senhor Wray.
- Ah, é? E o que ele disse?
- Escutou-me com muita atenção e me recomendou que não dissesse a ninguém. É muito mais inteligente do que supunha. Está tratando de atar cabos para fazer um coup de filet..
- Deus queira que tenha êxito! Tenho a impressão de que os franceses estão tão afiançados em Malta como estávamos em Toulon em 1803. Então nos informávamos de qualquer movimento de barcos, tropas e armas apenas vinte e quatro horas depois que ocorria.
- Deus o queira! Mas isso não porá fim à rivalidade entre os militares e os marinheiros que se encontram na ilha, nem à divisão entre os conselheiros, nem às indiscrições, nem ao constante ir e vir de estrangeiros e nativos descontentes. Tampouco porá fim ao inoportuno zelo do novo comandante geral e seus colaboradores.
- Provavelmente teremos mais informação sobre isso e sobre a situação em geral quando convoque uma reunião. Como o senhor sabe, seu navio foi avistado a oeste de Gozo, e se o vento mudar, poderá chegar aqui amanhã ou depois de manhã.
- Duvido que nos diga muitas coisas. Em uma reunião desse tipo, na qual estarão presentes o senhor Hildebrand e os militares e, além disso, haverá vários assistentes que verão aos outros pela primeira vez, é provável que não se digam mais que tópicos. Quem vai dizer o que sabe sobre assuntos confidenciais diante de estranhos? Acho que o senhor Wray se limitará a falar em geral dos assuntos, e eu não vou dizer nada. Não diria nada mesmo que Figgins Pocock, esse pastrano orelhudo, não estivesse presente.
Stephen sabia que o senhor Pocock, um distinto orientalista que acompanhava o almirante sir Francis Ives como conselheiro para assuntos árabes e turcos, discutira com o professor Graham sobre uma edição de um livro de Abulfeda, e que ambos haviam escrito artigos atacando duramente ao seu oponente, e pensava que isso podia influir na opinião de Graham sobre a maneira em que o comandante geral tratava os assuntos orientais. Apesar disso, admitiu que Graham tinha razão quando disse:
- A atmosfera que há em Valletta não é boa. Ainda que o senhor Wray solucionasse as dificuldades atuais, não melhorará, porque há divisão entre os altos cargos e rivalidade e ódio em todos os níveis, e os que têm o comando são tontos. Por isso, como o senhor ficará aqui durante um tempo, acho que seria melhor que se mantivesse a distância dos demais e que se ocupasse da medicina, das ciências naturais e de seu sino.
- Sim, isso é o melhor - disse Stephen, pondo-se de pé. - Mas agora tenho que ocupar-me das meias e, sobretudo, dos sapatos. Fui convidado para uma elegante soirée, a festa concerto que se celebra na casa da senhora Fielding, e tenho que ir imediatamente, mas acho que expelirão um odor horrível quando secarem. Acredita que poderei limpá-los esfregando-os com algo?
- Duvido muito - disse Graham, examinando-os mais de perto. - As partes que ainda estão molhadas têm uma substância untuosa aderida que faz supor que essa medida não é efetiva.
- Posso trocar a casaca, a camisa e as meias - disse Stephen, - mas este é o único par de sapatos que tenho.
- Deveria ter posto um par velho para mergulhar - disse o professor Graham, que não havia estudado ética inutilmente. - Ou talvez botas de meia cana. Não me importaria de emprestar-lhe um par, ainda que tenha fivelas de prata, mas são grandes.
- Isso não importa - disse Stephen. - Posso completar com lenços, papel ou trapos. Desde que os calcanhares e os dedos dos pés façam pressão sobre algo que sirva de sustento, as dimensões externas do sapato não têm importância.
- Eram de meu avô - disse o professor Graham, pegando os sapatos de uma bolsa de tecido, - e em sua época era comum que os homens os usassem com saltos de cortiça de duas polegadas para parecerem mais altos.
O violoncelo de Stephen, que agora estava metido no estojo almofadado onde ele o guardava quando fazia viagens pelo mar, era volumoso, mas não pesado, e para ele não fazia vergonha levá-lo pela rua. Não eram o peso do instrumento nem a vergonha as causas de que ofegasse e se detivesse amiúde para descansar sentado em um degrau, mas uma dor atroz. Sua teoria sobre o tamanho dos sapatos era errônea, e havia tardado pouco tempo em comprová-lo. A tarde era exageradamente quente, e as meias que usava, as únicas que tinha limpas, não eram de seda mas de lã, e os pés, além de doerem por estarem torcidos devido aos saltos, haviam inchado após as primeiras duzentas jardas, e haviam se enchido de bolhas e roçaduras antes de que chegasse à rua Vescovo. Como caminhava cambaleando, parecia que estava bêbado, e um pequeno grupo de prostitutas e meninos rueiros o acompanhavam com a esperança de tirar proveito das circunstâncias.
Voltou a se sentar em uma esquina, debaixo da imagem mal iluminada de São Roque, e se disse: "Calor, rubor, dor… Isto não pode continuar; contudo, se tiro os sapatos, não posso levá-los nas mãos junto com o violoncelo e, além disso, qualquer destes malandrinhos poderia pegá-los e fugir com eles, e então, o que eu diria a Graham? Por outro lado, não me atrevo a confiar-lhes meu instrumento porque me parece que são desajeitados e que não o pegarão como é devido, entre os dois braços, como se fosse uma criança débil e enferma. Se alguma destas prostitutas baratas fosse amável… Mas todas têm cara de poucos amigos. Encontro-me em um dilema".
Analisou as duas soluções, mas não se decidiu a recorrer a nenhuma, e nesse momento um grupo de tripulantes da Surprise que estavam de licença dobraram a esquina da rua São Roque e se toparam com ele. Imediatamente se ofereceram para levar seus sapatos, e um deles, um marinheiro do castelo de olhar sinistro, que provavelmente havia sido pirata em sua juventude, disse que levaria o grande violino e que o canalha que se atrevesse a rir dele ou a pedir que tocasse algo ia lamentar.
Podia dizer-se que os tripulantes da Surprise não estavam bêbados nem sequer alegres se se comparava sua embriaguez com as bebedeiras que os marinheiros costumavam pegar, mas caminhavam cambaleando e dando tropeções e se detinham de vez em quando para rir ou discutir, e quando finalmente deixaram Stephen na grade da casa de Laura Fielding, era tarde; tão tarde que quando começou a percorrer o corredor coxeando, ouviu no pátio, que ainda não podia ver, as notas que saiam do violino de Jack Aubrey seguidas pelas de uma lamurienta flauta.
"Da próxima vez deixarei o violoncelo na casa da bonita criatura", pensou enquanto esperava atrás da porta que a música cessasse. Então, escutando com atenção o nítido som da flauta, pensou: "Acho que esse som é de um flauto d'amore. Fazia tempo que não o ouvia".
O movimento terminou com um floreio convencional. Stephen entrou no pátio deslizando por entre as folhas da porta, baixou a cabeça para indicar que se desculpava, sentou-se em um frio banco de pedra e pôs o violoncelo do seu lado. Laura Fielding, que estava sentada ao piano, sorriu-lhe amavelmente, o capitão Aubrey lhe lançou um furioso olhar e o conde Muratori, que nesse momento aproximava a flauta dos lábios, olhou-lhe com indiferença. Não podia ver à maioria das outras pessoas porque estavam ocultas pelo limoeiro.
A composição musical não era importante, mas quando Stephen se tirou os sapatos, sentiu uma grande satisfação ouvindo as caprichosas combinações de sons em meio da cálida e suave brisa, aspirando o aroma do limoeiro, um aroma forte, ainda que não muito, e tão bem conhecido, e observando os vaga-lumes que ficavam além dos faróis, no canto mais escuro do pátio. Estas formavam caprichosas combinações de luzes, e Stephen pensou que com ajuda da imaginação podiam deixar de levar em conta algumas notas e alguns vaga-lumes desnecessários e fazer-se coincidir os dois tipos de combinações.
Ponto atravessou o pátio devagar, aproximou-se dele e o farejou. Então fez um gesto de desaprovação, esquivou sua carícia, afastou-se dele outra vez e, dando um suspiro de descontente, jogou-se entre os vaga-lumes. Pouco depois lambeu suas partes pudendas, fazendo tanto ruído que quase não se pôde ouvir um fragmento pianíssimo interpretado pela flauta e Stephen deixou de seguir o desenvolvimento da composição. Então pensou nos vaga-lumes que vira, inclusive naqueles que haviam na América, e no que um entomólogo de Boston lhe contara sobre eles. Conforme aquele cavalheiro, os vaga-lumes de diferentes espécies faziam diferentes sinais luminosos para expressar seu desejo de unir-se sexualmente uns com os outros. Essa maneira de agir era lógica e, sem dúvida, louvável, mas o que não era louvável era que as fêmeas de uma espécie, por exemplo, a A, não impulsionadas pela paixão amorosa mas pela voracidade, imitavam os sinais das de outra espécie, por exemplo, a B, e os machos desta última, sem suspeitar de nada, em vez de cair em um fosforescente leito nupcial caiam em um horrível talhador.
A música terminou e se ouviram alguns breves aplausos. A senhora Fielding se levantou do piano e foi ao encontro de Stephen, que lhe apresentou suas desculpas.
- Oh! - exclamou ela ao baixar a vista e ver que Stephen estava em meias. - Esqueceu-se dos sapatos!
- Senhora Fielding - disse Stephen, - minha amiga, não me esquecerei deles enquanto viva, porque me fizeram muito estrago. Mas pensava que não era preciso que eu observasse rigorosamente a etiqueta porque tínhamos muita confiança.
- Naturalmente que temos muita confiança! - disse ela, apertando-lhe o braço afetuosamente. - Eu também me tiraria os sapatos em sua casa se estivessem me machucando. Conhece a todo mundo? Ao conde Muratori? Ao coronel O'Hará? Venha beber um copo de ponche frio. Traga os sapatos e os levarei para meu dormitório.
Ela o conduziu pela casa, e quando Stephen entrou, viu que a poncheira estava colocada onde costumavam estar as jarras de limonada. Mas as mudanças não terminavam ali, porque as bolachas de Nápoles haviam sido sustituídas por anchovas e pequenas fatias de pão untadas com uma pasta picante. Além disso, a senhora Fielding passara várias horas no salão de beleza e tratara de melhorar o aspecto de sua cútis, bonita por natureza, diante de um espelho bem iluminado, se bem que Stephen, que estava pensando em seus pés e na sonata que ia tocar e que apenas havia ensaiado, não percebeu isso, ainda que notou que estava perfumada e usava um vestido vermelho muito decotado. Stephen não gostou do vestido. Pensou que os peitos bonitos meio descobertos atraiam a muitos homens, entre os quais Jack Aubrey, que havia ficado desconcertado muitas vezes ao vê-los, e que não era justo que uma mulher provocasse desejos que não tinha a intenção de satisfazer. Tampouco gostou do ponche, porque estava muito forte, muito forte. Depois, ao morder o pão com a pasta vermelha, voltou a ofegar. Debaixo do sabor picante notou o de algo conhecido de cujo nome não podia se recordar em poucos minutos, assim que lhe foi impossível recordá-lo, já que, por cortesia, imediatamente teve que felicitar Laura Fielding pelo ponche que preparara, assegurar-lhe que aquelas coisas picantes eram ambrosia e comer outra para demostrá-lo, e trocar frases corteses com os outros convidados. Achou que a atmosfera da festa era distinta da que havia nas outras que participara, e isso o entristeceu. Provavelmente não era tão alegre como as outras festas porque Laura Fielding se esforçava muito porque o fosse, tanto que tinha o nervosismo à flor da pele, e porque pelo menos alguns homens tinham mais interesse nela que na música que tocava. Mas quando Jack Aubrey se aproximou e disse "Ah, você já chegou, Stephen! Finalmente chegou! Foi tudo bem na imersão?", recuperou a alegria porque recordou aquela maravilhosa tarde e respondeu:
- Oh, Jack, garanto que o sino é maravilhoso! Assim que a lancha que o transportava se abordou com o Edinburgh, o capitão Dundas, esse homem admirável, disse aos gritos que queria descer ao fundo do mar nesse momento que não permitiria de nenhuma maneira que eu descesse sozinho e que ele mesmo me acompanharia e…
- Eu lhe interrompi, querido doutor? - perguntou Laura Fielding, entregando-lhe uma partitura.
- Não tem importância, senhora - disse Stephen. - Só estava falando com o capitão Aubrey de meu sino de escafandrista, meu novo sino de escafandrista.
- Ah, sim, seu sino de escafandrista! - exclamou ela. - Eu gostaria muito que me falasse dele. Vamos interpretar agora esta peça e depois poderá me falar dele com tranqüilidade. Imagino as pérolas e as sereias…
A peça era uma sonata para violoncelo de Contarini com um só baixo cifrado, e Laura Fielding sempre havia tocado muito bem a parte que lhe correspondia. Para ela produzir sons harmoniosos era tão natural como respirar, e a música brotava de suas mãos como a água de uma fonte. Mas nesta ocasião, apenas haviam tocado juntos dez compassos, tocou um acorde dissonante, e ao ouvi-lo, Stephen fez uma careta, Jack, Muratori e o coronel O'Hara arquearam as sobrancelhas e franziram os lábios, e um velho commendatore, em voz bastante alta, exclamou: "Tu - tu - tu!".
Depois do primeiro tropeção, ela se concentrou em executar a peça. Stephen a viu inclinar sua bonita cabeça para o teclado, e notou que tinha uma expressão grave e que mordia o lábio inferior. Mas a peça não estava de acordo com seu estilo, e terminou de interpretar o movimento com pouco brilhantismo, umas vezes fazendo Stephen perder o ritmo e outras dando notas discordantes.
- Sinto muito - disse. - Tratarei de fazê-lo melhor agora.
Desgraçadamente, não foi assim. Para expressar com nitidez as frases do adágio, havia que interpretá-lo com delicadeza, mas ela não o fez. De vez em quando implorava perdão a Stephen com o olhar, e uma vez cometeu um erro tão grave que ele ficou paralizado, com o arco no ar. Então ela, pondo as mãos no colo, perguntou:
- Começamos desde o início?
- Não faltava mais nada! - exclamou Stephen.
Mas a prova não deu bom resultado, e juntos mataram lentamente ao pobre Contarini, porque Maturin tocou tão mal como sua companheira, tão mal que quando a corda que dava a nota la se rompeu com um solene estalido, no momento em que terminavam de executar dois terços do adágio, todos sentiram alívio.
Depois disto, o coronel O’Hara interpretou algumas composições para piano com brio e paixão, mas desde aquele percalço a festa não voltou a ter animação.
- A senhora Fielding não se encontra em bom estado de ânimo - disse Stephen para Jack, que estava junto com ele ao lado do limoeiro. - Refiro-me ao seu estado de ânimo real - acrescentou, porque a vira falando e rindo muito.
- Não - disse Jack. - Sem dúvida, está preocupada com seu esposo. Ela me falou dele esta tarde.
Estava olhando para Laura Fielding por entre as folhas do limoeiro com admiração e afeto, porque ela, ainda que estivesse atormentada, tinha um magnífico aspecto com aquele vestido de noite vermelho, e porque ele chegava a estimar às mulheres que lhe recusavam amavelmente.
- Acho que gostaria que fôssemos embora - disse Stephen. - Eu irei quando passe certo tempo e já não pareça uma descortesia ir embora. Ainda que também poderia pegar agora meus sapatos, quer dizer, os sapatos de Graham, e meu violoncelo e escapulir-me.
Suas últimas palavras quase não puderam ser ouvidas por causa dos risos de um grupo de homens que estavam do outro lado do limoeiro e a voz do capitão Wagstaff, que se aproximou de Jack e em um tom agudo e com familiaridade, perguntou se havia comido muitas dessas coisas vermelhas picantes.
Stephen entrou na casa e ali encontrou a senhora Fielding, que enchia cuidadosamente vários copos de ponche com uma jarra. Ela pôs uma expressão risonha e disse:
- Seja bom e ajude-me a levar as bandejas.
Depois se aproximou mais e lhe sussurrou ao ouvido:
- Estou tratando de desfazer-me deles, mas não se vão. Diga-lhes que já é hora de ir dormir.
- Eu ia embora agora - disse Stephen.
- Ah, não, o senhor não vai! - exclamou ela em tom alegre. - O senhor fica porque tenho que consultar-lhe sobre um assunto. Beba um copo de ponche e coma um destes maçapães que guardei para o senhor.
- Para dizer verdade, minha amiga, acredito que já comi tudo o que podia comer em um dia.
- Coma só a metade, e eu comerei a outra.
Levaram as bandejas para o pátio. Stephen sustentava a maior, na qual estavam os copos, e ela, a outra, na qual ele pôde ver suas velhas amigas, as bolachas de Nápoles. Quando faziam a ronda, a senhora Fielding conversava com os convidados, agradecia por terem ido à festa e lhes felicitava por haver tocado tão bem; contudo, os convidados não se foram, aliás permaneceram ali rindo mais e falando com mais liberdade. No início da noite ela fingira que paquerava e agora estava arrependida disso, mas a seriedade e a atitude reservada que tinha agora não bastavam para anular o efeito daquele comportamento. E posto que a liberdade tende a converter-se em libertinagem, o capitão Wagstaff, afastando a vista do rosto de Jack e dirigindo-a para Stephen, disse:
- O senhor é um homem afortunado, doutor. Muitos dariam qualquer coisa para substituir-lhe no posto de mordomo.
Até ela falar aparte com o commendatore, os convidados não começaram a se despedir. Partiram pouco a pouco, em pequenos grupos, mas Wagstaff ficou um tempo interminável na porta contando uma anedota da qual acabava de se recordar, uma anedota cujo final, evidentemente, era impróprio, e obrigou seus amigos a interromper-lhe e a tirá-lo dali. O riso de Wagstaff retumbou no corredor abobadado até que o grupo chegou à rua, e nesse momento um observador oculto tachou seus nomes em uma lista.
Ao final só restavam Maturin e Aubrey, que esperava o seu amigo para acompanhá-lo ao hotel porque ainda coxeava. Jack não deixara de pensar em que ele era um homem e Laura Fielding era uma mulher, mas a considerava uma mulher pura, quase um anjo, até que ela lhe pediu que prendesse Ponto no jardim traseiro, dizendo "Ele não gosta de ir, mas fará o que o senhor lhe peça", e que fechasse a grade para que não entrassem gatos, e ele a surpreendeu dizendo ao doutor que não se fosse ainda, que lhe agradeceria se ficasse com ela um pouco. Jack pôde ver que sorria ao dizer isso e teve a sensação de que lhe haviam disparado um tiro, pois, apesar de que podia confundir os sinais que uma mulher fazia para ele, não confundia os que fazia para outro homem.
Conseguiu ocultar seus sentimentos e manter-se sereno fazendo um grande esforço. Agradeceu à senhora Fielding pela agradável noitada e disse que esperava ter a honra de visitá-la outra vez muito cedo. Mas não pôde enganar a Ponto, que alçou seus bondosos olhos e escrutinou seu rosto e depois lhe seguiu mansamente sem dizer nada, com as orelhas baixas, até o jardim onde ficava a cisterna, ainda que detestasse dormir em qualquer outro lugar que não fosse junto da cama de sua dona.
- Para que não entrassem gatos - murmurou quando fechava a grade atrás dele. - Nunca pensaria que Stephen fizesse uma coisa assim.
Stephen estava de pé em meio de um monte de copos e pratinhos espalhados pelo pátio, sem saber o que fazer, quando Laura reapareceu, equipada com o necessário para acabar com a desordem.
- Só vou recolher o que mais atrapalha - disse Laura. - Entre na casa e vá para meu quarto. Ali encontrará fiamme e uma garrafa de vinho.
- Onde está Giovanna? - perguntou Stephen.
- Não dorme aqui esta noite - disse Laura, sorrindo. - Não demorarei.
Era usual receber visitas no dormitório na França e na maioria dos países que haviam adotado costumes franceses, e Stephen estivera outras vezes no quarto da senhora Fielding (quando fazia mau tempo, celebrava as festas na pequena sala, e os convidados também passavam para o dormitório), mas nunca lhe parecera tão acolhedor. Em frente ao sofá que ficava em um canto, em posição oblíqua, estava colocada uma resplandecente mesinha baixa de latão, sobre a qual havia uma lâmpada que formava um luminoso círculo branco no piso e outro menor no teto, e de sua translúzida cúpula vermelha saía um resplendor rosáceo que harmonizava com as desnudas paredes caiadas. Além do sofá não se via nada com claridade (à esquerda se via a silhueta da cama com dossel e perto dela umas cadeiras com algumas caixas em cima), mas quando Stephen se sentou observou que havia sido retirado um enorme e horrível retrato do senhor Fielding. Recordava-se muito bem do retrato. O tenente (era então primeiro oficial interino do Phoenix) estava vestido com um calça de riscas e um chapéu sombreiro, e tinha em uma mão uma buzina, e na outra, a braça de estibordo da verga traquete, e conduzia seu barco por um arrecife nas Antilhas, em meio de um furacão. A maior parte do quadro havia sido pintada por um companheiro de tripulação, e Jack havia dito que não havia nem um só cabo que não estivesse exatamente na posição em que se encontraria em meio de um furacão assim; contudo, o rosto havia sido pintado por um pintor profissional. O rosto parecia o de um homem suntuoso, um homem convencido, mas preocupado, e contrastava com o corpo, rígido como se fosse de madeira e com gestos teatrais. Para uma mulher de tão bom gosto como a senhora Fielding, só a devoção pelo seu esposo podia havê-la feito pendurar esse quadro em sua casa. A bandeja que estava junto da garrafa de vinho de Marsala, em cima da mesinha de latão, revelava seu verdadeiro gosto. Era uma bandeja grega comprada na Sicília com ninfas vestidas de vermelho, e ainda que estivesse descascada e fora reparada várias vezes, as ninfas ainda seguiam bailando graciosamente sob a árvore como há dois mil anos. Então Stephen, afastando a vista das ninfas e fixando-a nas fatias de pão com pasta picante, perguntou-se: "Como é possível que pusesse dois vermelhos juntos? Fazem um contraste tão desagradável!".
Esteve olhando seus pés um pouco e depois voltou a pensar na pasta e em seus prováveis ingredientes e se disse: "Às vezes é tão difícil recordar um odor! Um o conhece muito bem, mas não pode identificá-lo". voltou a aproximar o nariz da bandeja e inspirou com os olhos semicerrados, e de imediato ocorreu algo que contradisse suas palavras: identificou o odor. Era o odor da cantárida ou mosca espanhola, um inseto de cor verde amarelado brilhante, conhecido por todos os naturalistas do hemisfério sul, que tinha nos élitros uma substância de odor penetrante. Era empregado em preparados de uso externo, que se usavam como irritantes, e em preparados que se ingeriam, que se usavam para excitar o apetite sexual, e, além disso, era o ingrediente mais potente dos filtros de amor.
Então pensou: "Sim, é pasta de mosca espanhola. Coitada!". Depois de refletir sobre as implicações que isso tinha, pensou: "É provável que a tenha comprado de Anigoni, esse boticário famoso por adulterar mercadorias, porém, apesar disso, me horroriza pensar nesses homens que agora estarão percorrendo Valletta como touros famintos. Eu mesmo noto perfeitamente os efeitos, e estou certo de que dentro de pouco aumentarão de intensidade".
Laura Fielding chegou por fim. Não havia demorado somente por haver arrumado o pátio, já que se havia posto um faixa azul, que fazia a sua cintura parecer ainda menor, e havia arrumado o penteado. Foi sentar-se junto de Stephen visivelmente nervosa, muito mais nervosa que no pátio cheio de convidados.
- Mas o senhor não bebeu nada! - disse em tom enfático. - Eu lhe servirei um copo de vinho enquanto termina de comer isto - disse, oferecendo-lhe a bandeja com as fatias pequenas de pão com pasta vermelha.
- Aceito com gosto um copo de vinho - disse Stephen, - mas prefiro comer um desses excelentes maçapães.
- Não posso negar-lhe nada - disse ela, - assim que os trarei imediatamente.
- E já que está de pé, traga a giz, por favor! - gritou Stephen quando ela saiu, referindo-se a um giz com que Laura Fielding apontava os encontros que tinha a cada dia para que recordasse deles.
Ele também estava nervoso. Os poucos contatos com mulheres que havia tido ao longo de sua vida profissional foram decepcionantes. Sabia que devia andar com cuidado, mas não sabia com segurança por onde devia encaminhar seus passos.
- Aqui tem: maçapães e o giz - disse ela ao voltar e, pegando a garrafa, acrescentou: - Teremos que compartilhar o copo, porque é o único que resta limpo. Incomoda-se de beber no mesmo copo que eu?
- Não - respondeu Stephen.
Os dois permaneceram um tempo silenciosos, comendo maçapães e passando-se o copo de vinho, e se sentiram muito à vontade durante a pausa, apesar dos dois estarem tensos.
- Diga-me, a senhora queria que lhe desse minha opinião como médico?
- Sim, quer dizer, não - respondeu. - Desejava falar-lhe de… Mas primeiro queria pedir desculpas por ter tocado tão mal.
Contou que o primeiro erro havia conduzido aos outros, pois começara a pensar no que fazia e pensar prejudicava o movimento de seus dedos, e então, pondo-lhe a mão no joelho e ruborizando-se, perguntou:
- Que posso fazer para que me perdoe?
- Já a perdoei, minha amiga.
- Então tem que me dar um beijo.
Stephen lhe deu um beijo, que foi realmente uma carícia abstrata porque estava pensando em outra coisa. Sabia muito bem que apesar de haver tentado reforçar sua vontade pensando que ela era uma paciente, sua vontade fraquejava. E o que o havia levado quase a abandonar a castidade era que detestava se comportar como um homem insensível, e esse insulto, provocado por sua aparente indiferença, percebia-se cada vez com mais claridade. Apesar disso, estendeu o braço para pegar o giz e perguntou:
- Quer que lhe conte como é meu sino?
- Oh, sim! - respondeu ela. - Ficarei encantada em saber como é seu sino.
- Este é o sino visto de lado, sabe? - disse, desenhando o sino na parte do piso que estava iluminado. - Tem uma altura de oito pés. A janela da parte superior mede nada menos que uma jarda. Aqui, onde fica o banco, tem uma largura de uns quatro pés e seis polegadas. E pode conter cinqüenta e nove pés cúbicos de ar!
- Cinqüenta e nove pés cúbicos! - exclamou Laura Fielding.
Passara um dia muito ruim, e alguém mais atento que ele teria notado seu desespero atrás de seu grande interesse.
- Sem dúvida, cinqüenta e nove pés cúbicos no início - disse Stephen, desenhando duas figuras minúsculas no banco e pondo ao lado, entre parêntese: "Aqui estava sentado o admirável capitão Dundas" e "Aqui estava eu". - Como pode ver, é muito espaçosa. Naturalmente, quando o sino se afundou, quer dizer, desceu duas braças, a água subiu, comprimindo o ar, e sentimos uma detonação nos ouvidos. Quando a água chegou até o banco, subimos os pés assim - disse, pondo os pés no sofá - e puxamos um cabo para fazer o sinal para que mandassem o barril.
Desenhou o barril com os dois buracos e a mangueira de couro e indicou seu percurso até a borda do sino com uma linha descontínua, e disse que não era um desenho em escala.
- O barril desceu - continuou, - e a medida que descia, o ar que havia em seu interior se comprimia, compreende? Então pegamos a mangueira, e no momento em que a subimos acima da superfície, a superfície da água dentro do barril, claro, o ar comprimido penetrou no sino com uma força incrível e a água desceu até a beira. Os barris desciam uns depois dos outros e o sino afundava cada vez mais e a luz diminuía, ainda que não chegou a diminuir tanto que fosse impossível ler e escrever. Tínhamos placas de chumbo e escrevíamos com um punção de ferro e as mandávamos para cima com uma corda. E para deixar sair o ar viciado, com o fim de ter sempre ar puro, há uma pequena chave na parte superior. Quer que desenhe a chave?
Finalmente, levou o sino até o fundo do mar, e ela, fazendo o último esforço, disse:
- Oh, meu Deus, no fundo do mar! E o que encontrou ali?
- Vermes! - exclamou ele. - Vermes marinhos em abundância! E não tive receio em caminhar por uma fétida capa de lodo de séculos, ainda que isso só produziu uma ligeira mudança em sua superfície. Havia alguns com filamentos conhecido pelo nome de…
Quando começara a falar-lhe dos anelídeos malteses, havia notado que seu peito palpitava. Sabia perfeitamente que a causa não era ele, mas não percebeu que era sofrimento até que começou a falar do estranho comportamento da Polychaeta rubra na cópula, quando viu, penalizado e envergonhado, que as lágrimas resvalavam por suas faces, e então se interrompeu. Seus olhares se encontraram, e ela sorriu forçadamente, mas seu queixo começou a tremer e ela passou soluçar.
Stephen lhe pegou a mão, dizendo frases de consolo que não serviram de nada. Laura esteve a ponto de retirar a mão, mas agarrou fortemente a dele e, entre soluços, perguntou:
- Tenho que ficar de joelhos? Como pode ser tão duro? Como poderei lograr que me ame?
Stephen não respondeu até que ela se acalmou.
- Não pode - disse. - Como é possível que seja tão ingênua, minha amiga? Provavelmente saberá que uma coisa como esta não tem valor se não é recíproca. A senhora não está enamorada de mim. talvez sinta afeto por mim, e espero que assim seja, mas não sente amor nem desejo nem nenhum outro sentimento desse tipo.
- Oh, sim, sim! Eu lhe demonstrarei.
- Sou médico, e sei perfeitamente que não sente nada - disse em um tom convincente, que demonstrava sua autoridade, dando-lhe palmadinhas no joelho.
- Como pode saber? - perguntou ela, ruborizando-se.
- Não importa. O caso é que é um fato, e pela magnitude de meu própio desejo posso calcular a de sua indiferença. Desejo ardentemente gozar de seu favor e possuí-la, como dizem muitos incompreensivelmente, mas nunca o faria nestas condições.
- Não? - perguntou ela.
Stephen negou com a cabeça. Então ela começou a chorar com uma amargura mais profunda que antes, apertando sua mão como se fosse sua única tábua de salvação. Mas respondeu com incoerências quando ele disse:
- É evidente que deseja que eu faça algo extraordinário. Tem que ser algo muito importante e que deve guardar-se em segredo, pois uma mulher como a senhora não estaria disposta a fazer um sacrifício como este se não fosse por algo assim. Quer me dizer o que é?
Só respondeu com algumas frases incoerentes. Primeiro disse que não podia dizer, depois que não se atrevia porque era muito perigoso e depois que não tinha nada para dizer-lhe.
A senhora Fielding estava apoiada em Stephen, que estava sentado com as pernas cruzadas em um canto do sofá, e de vez em quando seu corpo fazia um movimento convulsivo. Stephen estava com os joelhos doendo por suas pernas estarem dobradas e desejava pegar o copo de vinho, mas pensou que ela poderia ter outra crise nos próximos minutos, e só o que fez foi coninuar tentado averiguar que favor ela queria lhe pedir. Falou dos certificados médicos e dos homens recrutados forçosamente que haviam sido deixados em liberdade graças a eles, mas apenas para fazer um burburinho que produzisse a mesma sensação de tranqüilidade que um baixo cifrado ou um baixo contínuo, pois só se preocupava de averiguar quais eram realmente o estado mental e físico de sua paciente. E achava que havia deduzido a resposta, ainda que apenas do comentário de Jack e da ausência do quadro. Ela parou de soluçar, inspirou profundamente e depois começou a respirar com mais facilidade, ainda que não com normalidade.
- É algo relacionado com seu esposo, minha amiga? - perguntou.
- Oh, sim! - exclamou desesperada e chorando.
Ela lhe contou que seu esposo estava na prisão e que o matariam se ela não tivesse êxito em sua missão. Além do mais, disse que não se atrevia a dizer àqueles homens que fracassara e que a pressionaram para que agisse com rapidez. Finalmente, rogou que fosse amável com ela, pois do contrário, matariam o seu esposo.
- Bobeiras! - exclamou Stephen, levantando-se. - Não farão semelhante coisa. Eles a enganaram. Ainda resta café no fogão?
Enquanto tomavam café e comiam pão com azeite de oliva rançoso, ela contou todos os detalhes da horrível história. Falou da difícil situação em que Charles Fielding se encontrava, o que dizia em suas cartas, a informação que ela recolhia (nada mau, só informação relacionada com os seguros marítimos, mas confidencial), a delicada missão que lhe haviam encomendado inesperadamente, da qual dependia a vida de seu esposo. Acrescentou que eles haviam dito que o doutor Maturin e as conexões que tinha na França trocavam cartas em código em que falavam de assuntos relacionados com as finanças e, possivelmente, o contrabando, e que ela devia ganhar sua confiança e averiguar os endereços dessas pessoas e o código. Depois respondeu a Stephen que sabia o nome do homem que havia trazido a última carta de seu esposo, e lhe disse que era Pablo Moroni, um veneziano que vira de vez em quando em Valletta, e que achava que era um comerciante. Contudo, disse que não conhecia o nome dos outros homens que tinham contato com ela nem nunca os vira e acrescentou que eram três ou quatro e que se revezavam. Acrescentou que a mandavam chamar e que ela respondia deixando um papel com a hora proposta na casa de um vinhateiro e que sempre tinha que ir à igreja de São Simón e ajoelhar-se no terceiro confessionário da esquerda, onde se encontrava um dos homens, que não abria a janela, como costumavam fazer os curas, falava oculto atrás da rótula, pelo que ela nunca lhe via a cara, e então ela dava a informação que tinha e recebia suas cartas, se havia chegado alguma. Contudo, confessou que conhecia um dos homens, porque o vira falando com o senhor Moroni, e disse que falava bastante bem o italiano, ainda que com um forte sotaque napolitano, que podia descrevê-lo, mas que não o faria enquanto Charles estivesse em suas mãos, porque talvez isso lhe prejudicasse e ela nunca faria nada que pudesse perjudicar a Charles. Finalmente, disse que estava preocupada com ele porque nas últimas semanas havia escrito cartas muito estranhas, das que havia deduzido que estava enfermo ou triste, e que, como não eram cartas íntimas, porque ele tinha que enviá-las sem fechar, ela não se importava de mostrá-las ao doutor Maturin para que lhe desse sua opinião.
O senhor Fielding escrevia com letra clara e em um estilo simples. Ainda que suas cartas tivessem que ser forçosamente discretas, refletiam um amor puro e profundo, e Stephen sentiu simpatia por ele antes de terminar de ler a segunda. As cartas mais recentes, como Laura havia dito, eram mais curtas, e pese que continham muitas das palavras e frases que havia nas outras, tinham um estilo carregado. Stephen se perguntou: "Haverá escrito contra a sua vontade, ao um ditado? Não foi ele mesmo que escreveu?". Sabia que se tivesse morrido ou sido assassinado, a vida de Laura Fielding não valeria nem quatro peniques de "Brummagem"{9} quando ela o soubesse com certeza. Pensou que nenhum chefe de um serviço secreto a deixaria passear-se por Malta se não tivesse um meio efetivo para evitar que dissesse o que sabia, e que era muito fácil matar a uma mulher sem que os outros suspeitassem que havia um motivo oculto, pois sua morte sempre podia ser associada a um estupro.
- Naturalmente - disse em voz alta, - não o conheço como a senhora, mas um resfriado ou qualquer indisposição ou o desânimo poderiam ser as causas de algo assim ou inclusive pior.
- Alegro-me que seja essa sua opinião - disse ela. - Acredito que tem razão: isto se deve a um resfriado ou a uma indisposição.
Depois de uma comprida pausa, Stephen disse:
- Quero que saiba que Moroni e seus amigos estão equivocados, porque eu não tenho nada a ver com as finanças, nem com o contrabando, nem com os seguros, nem terrestres nem marítimos. Eu lhe dou minha palavra de honra de que não teria encontrado nem um código nem o endereço de nenhuma pessoa que viva na França se houvesse revistado meus documentos. Juro pelos Evangelhos e por minha esperança de salvação.
- Oh! - exclamou ela.
Stephen compreendeu que apesar de suas palavras serem verdadeiras, ela havia notado que não dizia toda a verdade e não acreditado.
- Contudo - continuou, - acho que conheço a causa do equívoco. Tenho um amigo que, por sua profissão, relaciona-se com os serviços secretos, e muitas vezes nos viram juntos. Esses homens, ou talvez seus informantes, nos confundiram um com o outro. Porém, como uma dama que sofre por seu esposo é digna de compaixão e como seu esposo está prisioneiro, tenho certeza que meu amigo nos proporcionará a informação necessária para satisfazer a Moroni. Eu não digo que será realmente útil a Moroni, mas que logrará satisfazer sua curiosidade e demostrará que a senhora teve êxito. Ademais, Moroni se satisfará por eu ser seu amante, assim que virei vê-la quando esteja sozinha e a senhora virá ao meu quarto usando a faldetta{10} de sua criada, se for possível, e o fará acreditar que os documentos são o fruto de seus esforços.
A luz da alvorada já havia chegado ao pequeno pátio quando Stephen se foi, mas ele não notou porque estava abstraído em suas meditações. Tampouco notou a mudança do vento. Enquanto caminhava pelo escuro corredor com os sapatos de Graham na mão, pensou: "Se Wray for a pessoa que penso que é, tudo isto será desnecessário. Mas se não for ou se esta é uma organização diferente e sem conexões com as outras, não sei até onde poderei chegar sem comprometer a Laura Fielding". Mil formas de falsear informação de maneira que fosse realmente perniciosa haviam passado por sua mente antes de que chegasse à grade, e quando a abriu, o cansado observador que estava do outro lado da rua o viu sorrir à luz matinal e, tocando em seu chapéu, pensou: "Que afortunado é este libertino!". Nesse mesmo momento as salvas para dar a boas-vindas ao comandante geral estremeceram o ar, e mil pombas subiram voando para o céu azul claro.
CAPÍTULO 4
Jack Aubrey, que não era vingativo, já havia perdoado Stephen por sua boa fortuna na hora do café da manhã da manhã seguinte, quando os empregados do hotel lhe disseram que não haviam conseguido que o doutor Maturin se levantasse apesar de haver-lhe anunciado a chegada de um mensageiro para lhe pedir que comparecesse a uma reunião convocada pelo comandante geral, pelo que se pôs de pé de um salto e subiu correndo a escada para recordar-lhe qual era seu dever. Mas não obteve nenhuma resposta quando bateu na porta com os nós dos dedos nem quando o chamou.
- Que desgraça! O pobre cavalheiro está morto! - gritou a camareira. - Degolou-se como o do quarto número dezessete! Oh, não posso suportar! Vou sair daqui correndo!
- Mas antes dê-me a chave mestra - disse Jack, e imediatamente abriu a porta, entrou no quarto e gritou: - Levante-se! Ou sai daí ou lhe atiro ao solo! Levante-se!
Tampouco obteve resposta depois de dizer isto, assim que pegou Stephen pelos ombros e o sacudiu com força. Stephen abriu seus avermelhados olhos e, apesar de não poder ver bem a Jack porque tinha a vista nublada por consequência do sonífero que tomara, lançou-lhe um olhar de ódio, pois seu amigo o havia tirado de um agradável sonho que lhe produzia emoções tão intensas que parecia real, um sonho no qual a senhora Fielding sentia por ele uma paixão tão intensa como a que ela despertara nele. Então tirou os tampões de cera dos ouvidos e, com voz áspera e lamurienta, perguntou:
- Que horas são?
- Três e meia da madrugada, chove e faz muito frio - disse Jack enquanto abria as cortinas e os postigos para que o sol pudesse entrar. - Vamos, não deve ficar aí.
- O que houve, senhor? - perguntou Bonden da porta.
Bonden e Killick haviam entrado na cozinha ao mesmo tempo que a camareira, que havia contado que o sangue saía por debaixo da porta desse quarto, como havia ocorrido no número dezessete, que daria trabalho para limpá-lo, e que provavelmente o pobre cavalheiro se dera um corte tão profundo que a cabeça se havia separado quase por completo do corpo.
- Dentro de sete minutos o doutor deve apresentar-se no palácio barbeado, asseado e com seu melhor uniforme - disse o capitão Aubrey.
Stephen, em tom mal-humorado, disse que não necessitavam dele, que a reunião podia celebrar-se perfeitamente sem que ele estivesse presente, e que a nota que lhe enviaram do navio insígnia não era uma ordem mas um simples convite, o qual podia aceitar ou recusar conforme… Mas Jack saiu do quarto enquanto Stephen fazia estes comentários, e Stephen, que sabia que Killick e Bonden não teriam piedade nem atenderiam a razões, não disse mais nada até que se sentou na abarrotada sala de reuniões, pouco antes de que chegasse o grande homem. Sua cara, por causa das fricções, havia tomado um intenso colorido rosa que raras vezes tinha, seu uniforme e seus sapatos estavam como deviam estar, e sua peruca estava perfeitamente ajustada à sua cabeça, mas ainda tinha a vista enturvada pela falta de sono, e cumprimentou a Graham, que estava ao seu lado, com uma espécie de grunhido. Contudo, Graham não se sentiu coibido por isso, e, sem vacilar um momento e sem reservas, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Sabe o que me fizeram? Arruinaram o meu almoço. Não tenho que regressar no Dromedary na quinta-feira, não senhor. Tenho que embarcar no Sylph hoje às doze e meia. Arruinaram o meu almoço, e o culpado é Figgings Pocock, esse pastrano orelhudo, estúpido e analfabeto. Olhe, está sentado ali, junto ao secretário do almirante. Já viu alguma vez alguém com uma cara tão feia como essa?
Stephen pensou que vira caras mais feias que essa, e amiúde, e que, em realidade, apesar de que o senhor Pocock tinha a pele das faces amareladas e ressecadas e certa quantidade de pêlo nas orelhas e no nariz, seu aspecto era comparável ao de Graham. Ainda que o senhor Pocock distava muito de ser bonito, parecia mais forte, sério e inteligente que o secretário do almirante, um homem muito jovem para desempenhar um cargo tão importante. Contudo, o senhor Yarrow não parecia estúpido mas inexperto, ansioso e constrangido. Agora tinha agarrado um enorme monte de papéis e estava inclinado para o senhor Wray, a quem escutava atentamente.
O comandante geral, sir Francis Ives, chegou por fim, e a reunião começou. Como Graham previra, o almirante falou muito sem dizer nada. Stephen observou durante um tempo a sir Francis, que era um homem baixo, de certa idade, enérgico e com autoridade inata, a quem seu esplêndido uniforme dava um aspecto majestoso. Ainda que pertencesse a uma conhecida família vinculada à Armada e havia adquirido grande prestígio durante o tempo que havia servido nela, fazia anos que não tinha o comando de uma operação naval, e todos diziam que se propunha mandar na frota do Mediterrâneo para que lhe fosse outorgado por fim o título de lorde, e que não economizaria esforços para superar aos seus dois irmãos, que eram lordes. Enquanto falava olhava para os oficiais e para os conselheiros que o rodeavam para tratar de deduzir de suas expressões o que pensavam, mas sem revelar nada, o que fazia patente que estava acostumado a dirigir-se a um comitê. O senhor Wray tinha a capacidade de escutar longos discursos sem demostrar nenhum sentimento, ao contrário de seu sogro, o contra-almirante Harte (um oficial famoso por sua fortuna, que herdara recentemente, e por não ser um bom marinheiro), que olhava com raiva para o governador, o senhor Hildebrand, que agora tinha a palavra e dizia que era possível que algumas pessoas não autorizadas tivessem obtido informação secreta, mas que não se podia culpar disso a nenhum dos departamentos que estavam sob seu comando e que tinha plena confiança em seus oficiais, seu secretário e todos os membros da administração pública.
Quando Stephen observou a sir Francis pelo tempo suficiente para estar seguro de que manteria sua atitude reservada e não revelaria nada até mais tarde, quando se reunisse com um grupo menor, havia deixado de prestar-lhe atenção e ficara sentado ali, com a cabeça baixa, dormindo em alguns momentos ou comendo pequenos pedaços de uma torrada que metera no bolso quando Bonden não lhe estava olhando.
De vez em quando ouvia a alguns cavalheiros dizerem que a guerra devia continuar e que tinham que lutar com todas suas forças, e a outros, que todos os organismos deviam manter a disciplina e ter boas relações e cooperar com os outros. Uma vez achou ter ouvido o soldado de olhar inteligente que fornecia dados e cifras ao senhor Hildebrand dizer que era contra a tirania e que a França dominasse o mundo, mas era possível que o houvesse sonhado. Não pediram nem a ele nem a Graham que expressassem sua opinião, e ambos desperdiçaram todas as oportunidades de intervir que se apresentaram. Além disso, durante todo o tempo Graham deixou ver que estava decidido a permanecer em silêncio.
Stephen esperava que Wray, que lhe havia cumprimentado cortesmente com uma inclinação de cabeça, se entrevistaria com ele ao terminar a reunião para falar mais amplamente do "delicado caso" ao qual havia feito referência em um encontro anterior. "Tenho que averiguar o que pensa sobre muito mais coisas e se é discreto, antes de falar de Laura Fielding", pensou. Em seu opinião, Laura estava com a corda no pescoço, e ainda que provavelmente poderia se salvar se delatasse a um cúmplice, as autoridades a tratariam com dureza e lhe causariam um sofrimento indizível. Por outro lado, queria enganar aos agentes franceses sem interferências, porque pensava que esse era um trabalho muito delicado que devia ser realizado por uma pessoa com grande experiência e completamente sozinha. "Hoje não vou falar-lhe abertamente, mas quero informar-me do que sabe sobre André Lesueur, o amigo de Graham", pensou.
Não se viu obrigado a falar abertamente nem obteve nenhuma informação sobre Lesueur, já que Wray partiu dali falando com o secretário do almirante e se limitou a despedir-se com outra inclinação de cabeça e um olhar com o qual parecia dizer: "Como pode ver, estou muito ocupado e não tenho tempo disponível".
Jack Aubrey passou essas horas da manhã no estaleiro, falando com vários carpinteiros de barcos no interior de sua querida Surprise. Os carpinteiros de barcos, assim como aqueles lhes controlavam, eram corruptos, mas pensavam que havia grande diferença entre o dinheiro do Governo e o de um particular e que um capitão devia receber em troca de seu dinheiro algo cujo valor realmente correspondesse à quantia gasta. Além disso, tinham grande destreza, e Jack estava muito satisfeito porque haviam posto na fragata curvas e trancaniles de carvalho de Dalmacia na parte da coxia posterior ao pescante central, onde havia sofrido graves danos. Jack acreditara quando lhes disseram que, além dos dias festivos por ser dias de santos, ainda tardariam uma semana em terminar o trabalho. Mas os carpinteiros não haviam dito exatamente quantos dias festivos haviam contado, e quando Jack subia com eles para a destroçada coberta pela escada provisória, sacudindo as virutas de madeira da casaca e dos calções, mandaram buscar um calendário, e depois começaram a discutir acaloradamente sobre quais eram os dias festivos e se deviam deixar de trabalhar um total de doze horas entre os dias de São Aniceto e São Cucufate ou só uma tarde, como os calafates. Jack escreveu tudo isto. Conhecia a sir Francis há muito tempo e sabia que não era um dos almirantes da Armada que exigia que seus homens fizessem seu trabalho correndo, mas sim um dos mais enérgicos e persistentes, que detestava que os oficiais estivessem inativos no castelo de popa e em qualquer outra parte, e que quando pedia que tomassem uma decisão ou lhe entregassem um relatório sobre qualquer assunto ou sobre o estado de um barco, gostava que cumprissem sua ordem imediatamente. Às vezes essas decisões tomadas com rapidez não eram tão acertadas como as que seguiam a uma profunda reflexão e esses informes não eram tão precisos como os que se faziam com detalhamento, mas o almirante dizia: "Se um pensa em que perna mete primeiro nos calções, é provável que desperdice uma ocasião, e entretanto, os calções seguem vazios". Em sua opinião, a rapidez era fundamental em um ataque, e isto fora verdade nas batalhas em que participara.
- Senhor Ward - disse Jack ao seu escrevente, que o estava esperando no castelo de popa com a lista do que necessitava a fragata debaixo do braço, - tenha a amabilidade de fazer um relatório sobre o estado da Surprise e faça constar nele que dentro de treze dias estará pronta para zarpar, pois já estarão colocados os canhões e os amantilhos e se encontrarão a bordo todos os barris de água potável. Quero vê-lo quando terminar de revisar.
Ambos foram até as negras barracas onde se alojavam os tripulantes da Surprise, passando de uma vertente a outra de uma colina através do cume. Todos esperavam ao capitão Aubrey, e os oficiais lhe deram as boas-vindas. Também estava ali o pobre Thomas Pullings, um pouco afastado para que não parecesse que tratava de invadir o território de seu sucessor, William Mowett. Na frota do Mediterrâneo haviam sido ascendidos a capitães quatro oficiais, os quais haviam recebido ordem de permanecer no porto da capital de Malta, e no improvável caso de que um barco ficar sem capitão, poderia ser designado para qualquer um dos quatro, pois todos tinham muitas influências. Agora Jack usava uma casaca normal em vez de sua esplêndida casaca com galões dourados, e um chapéu velho, e os outros oficiais também vestiam roupa de trabalho, com excessão do senhor Gill, o oficial de derrota, e o senhor Adams, o contador, que tinham uma missão a cumprir em Valletta, pois tão logo terminassem de passar revista, os tripulantes da fragata iriam fazer práticas de tiro, nas quais poderiam conseguir um cobiçado prêmio que o capitão Pullings oferecia para demostrar que ainda estava unido à tripulação da fragata, ainda que fosse debilmente, e que consistia em um enorme bolo gelado em forma de alvo. Iriam a um lugar o mais distante possível dali, mas em lanchas, porque os oficiais estavam convencidos de que não conseguiriam que levassem o passo nem que se mantivessem alinhados se fossem marchando, e não desejavam conduzi-los até ali pelas ruas cheias de casacas vermelhas. Agora todos estavam relaxados, em posturas cômodas, e sustentavam os mosquetes como lhes parecia adequado. Quando Jack terminou de inspecionar o lugar, disse:
- Senhor Mowett, passaremos revista os tripulantes nomeando-lhes conforme a ordem da lista.
Então Mowett disse ao contramestre:
- Todos para passar revista.
O contramestre começou a dar os gritos e as agudas apitadas com que costumava chamar os marinheiros para que lhe ouvissem inclusive na coberta inferior e na bodega de proa, e os marinheiros largaram os mosquetes no solo, empilhando-os de uma forma que teriam feito a qualquer soldado se ruborizar, e depois se agruparam na faixa de terra que representava o lado de bombordo do castelo de popa. O escrevente foi dizendo os nomes dos tripulantes, e um depois do outro passaram para o lado de estibordo por detrás do imaginário mastro maior, cumprimentando ao capitão tocando a testa com a mão e dizendo em voz alta: "presente, senhor".
O número de membros da tripulação havia diminuído muito. Alguns estavam no hospital, outros em prisões navais ou militares, e muitos haviam sido incorporados a outras tripulações. Mas Jack havia lutado com afinco para que ficassem com ele seus companheiros de tripulação mais antigos e os melhores marinheiros, e com tal de consegui-lo, havia recorrido à substituição de alguns marinheiros por outros e inclusive ao engano quando lhe haviam obrigado a ceder certo número de tripulantes. Agora, quando observava como passavam de um lado para outro, percebeu que conhecia quase todos há anos. Alguns deles haviam sido tripulantes do primeiro barco que tivera sob seu comando, a corveta Sophie, de catorze canhões, e entre os restantes havia poucos grumetes, não havia nenhum camponês e nenhum marinheiro de segunda. Todos eram marinheiros de primeira, e, por sua destreza, muitos poderiam ser classificados como suboficiais em um navio insígnia. Olhavam para Jack com afeto quando passavam de um lado para o outro, mas ele lhes olhava com repugnância, pois nunca em sua vida vira a uma tripulação em que houvesse tantos homens bêbados, desalinhados e fedorentos. Mowett, Rowan e os ajudantes do oficial de derrota faziam heróicos esforços para manter-lhes ocupados durante boa parte do dia, mas negar-lhes umas horas de licença teria sido inumano e contrário ao costume.
Acabavam de repetir o nome de Davis, mas Davis não havia respondido.
- Davis desertou? - perguntou Jack, ansioso.
Davis era um marinheiro que navegava com Jack há muito tempo. Era um homem moreno, corpulento e agressivo que costumava pedir traslado para qualquer barco que estivesse ao comando do capitão Aubrey ou oferecer-se como voluntário para tripulá-lo, e nada, nada, poderia lhe induzir a desertar.
- Temo que não, senhor - disse Mowett. - Ele tirou a saia de vários soldados escoceses, e eles o encerraram na prisão da guarnição.
Outros três tripulantes da Surprise que estavam ausentes haviam tido a mesma sorte. Mas o pior era a diferença entre a lista atual e a que havia na última vez que passara revista. Nada menos que onze marinheiros haviam sido levados ao hospital, quatro com febre de Malta, quatro com sífilis, dois com membros quebrados devido a terem caído quando estavam bêbados, e um com uma ferida causada por um punhal maltês; e outro, acusado de estupro, estava na prisão esperando ser julgado. Contudo, nenhum dos tripulantes da Surprise havia desertado, apesar de que vários mercantes haviam entrado e saído do porto, pois eram felizes na fragata e a maioria deles preferia tripular barcos de guerra.
- Bem, pelo menos tenho todas os números - disse Jack, suspirando e sacodindo a cabeça.
Afortunadamente, os havia anotado, pois quando acabou de escrever e expressar seu desejo de levar a bordo da fragata a um pastor ("alguém que possa reformar aos marinheiros, que possivelmente tenham mais medo do fogo do inferno que do chicote, e que ponha fim a esta degeneração") chegou um guarda-marinha com a ordem de que se apresentasse imediatamente diante o comandante geral.
Depois de agradecer ao céu porque decidira pôr um bom uniforme para passar revista, Jack disse:
- Capitão Pullings, teria a amabilidade de ocupar meu lugar? Agora eu ia visitar os tripulantes que estão no hospital. Continue, senhor Mowett. Bonden, minha falua!
Então se voltou para o guarda-marinha do navio insígnia, que fora até a costa em uma lancha de aluguel, e acrescentou:
- Venha comigo. Assim poupará quatro peniques.
E quando a falua cruzava o porto a grande velocidade, disse:
- Achava que o almirante estava em terra.
- Está em terra, senhor - disse o jovem com voz clara e aguda, - mas disse que estaria a bordo de seu barco outra vez antes que eu encontrasse o senhor e muito antes que o senhor pusesse os calções.
Todos os tripulantes da falua sorriram, e o remador de proa apenas pôde reprimir uma risada.
- Mas não fui à casa da senhora - prosseguiu o jovem inocentemente, - porque um dos tripulantes de nosso barco disse que lhe vira afastar-se de Nix Mangiare e dirigir-se ao estaleiro. E lhe encontrei imediatamente!
Quando Jack subiu pelo costado do Caledônia, notou com satisfação que no castelo de popa havia mais oficiais dos que costumavam reunir-se ali para receber a um simples capitão de navio. Era óbvio que o almirante não havia regressado ainda. E quando falava com o capitão do Caledônia pôde ouvir o sino do navio soar duas vezes antes que a falua do almirante zarpasse do porto e começasse a se aproximar com suas duas fileiras de remos movendo-se com grande rapidez, como se sua tripulação quisesse ganhar uma aposta. Todos os oficiais se ergueram; os ajudantes do contramestre suavizaram a voz ao dar as ordens; os infantes da marinha endireitaram as culatras de suas armas; os grumetes puseram luvas brancas. O almirante foi recebido a bordo com uma esplêndida cerimônia, na qual os tripulantes lançaram ao ar seus chapéus, os infantes da marinha apresentaram armas dando um golpe no piso com o pé e produzindo um estalido todos de uma vez, e os oficiais brandiram seus sabres, cujas lâminas curvas brilharam ao sol, enquanto se ouviam as ordens do contramestre. Sir Francis cumprimentou tocando o chapéu, olhou para o castelo de popa e, ao ver os cabelos dourados de Jack, exclamou:
- Aubrey! Isso é o que eu chamo de rapidez! Bem, muito bem! Não lhe esperava antes de mais de uma hora. Venha comigo.
Conduziu Jack para a grande cabine, indicou com a mão para que Jack se sentasse em uma cadeira com braços, sentou-se atrás de uma grande mesa cheia de papéis e disse:
- Em primeiro lugar, quero dizer que o Worcester foi declarado inservível. Nunca deveriam ter-lhe reparado, pois só serviram para malgastar o dinheiro do Governo. Os inspetores que hão vindo comigo dizem que a menos que seja reconstruído, não poderá voltar a estar na linha de batalha, e que não vale a pena fazer a reconstrução. Já havemos gastamos muito dinheiro nesse navio. Ordenei que o transformem em uma grua portuária flutuante, porque nos faz falta uma.
Jack esperava que isto sucedería, mas não lhe penalizava porque atualmente tinha o comando da Surprise e haviam prometido dar-lhe o comando da Blackwater no futuro e, além disso, porque sabia que o Worcester era um dos poucos barcos pelos quais nunca chegaria a sentir afeto. Então, fazendo uma inclinação de cabeça, disse:
- Sim, senhor.
O almirante lhe dirigiu um olhar de aprovação e depois perguntou:
- Como vão as reparações da Surprise?
- Muito bem, senhor. Fui vê-la esta manhã e, salvo imprevistos, estará pronta para zarpar dentro de treze dias. Contudo, senhor, a menos que me proporcionem uma grande quantidade de marinheiros, não terei um grupo de homens grande o bastante para tripulá-la. Hão esgotado à tripulação.
- Tem um grupo grande o bastante para tripular um barco de tamanho médio?
- Oh, sim, senhor! Grande o bastante para tripular e manejar os canhões de uma corveta.
- Aposto que a maioria deles são marinheiros de primeira e que que ficaram com o senhor todos os que lhe acompanharam em missões anteriores - disse o almirante, pegando a lista que Jack se havia pego do bolso. - Sim, há muito poucos que não estão classificados como marinheiros de primeira - disse, sustentando a lista com o braço estendido. - Isto é exatamente o que necessito.
Procurou entre as pastas que tinha em cima da mesa, pegou uma e abriu, e então, com seu estranho sorriso, disse:
- Acredito que poderei ajudar-lhe a conseguir um bom butim. O senhor o merece por ter expulsado os franceses de Marga.
Folheou os papéis por alguns minutos, enquanto Jack olhava pela janela de popa o grande porto iluminado pelo sol, por onde o Thunderer, um navio de setenta e quatro canhões, deslizava em direção ao cabo São Telmo com as gáveas desdobradas, com o vento do oeste-noroeste em popa e com a bandeira vermelha ondeando no mastro mezena. Era o navio que levaria o contra-almirante Harte para se reunir com a esquadra que fazia o eterno bloqueio ao porto francês de Toulon. Jack pensou: "Um butim? Gostaria de conseguir um butim, mas restam muito poucos no Mediterrâneo. Será uma ironia o que ele disse?".
- Sim, expulsar os franceses de Marga foi uma grande façanha - disse o almirante. - Bem, aproxime a cadeira e olhe isto - disse, pegando uma carta marítima da pasta, e depois, em um tom diferente, um tom entusiasta e urgente que usava espontaneamente sempre que falava de uma missão naval que havia que realizar. - Já navegou pelo mar Vermelho?
- Até Barim, senhor.
- Bem. Aqui fica Mubara. O governante da ilha, que possue várias galeras e um ou dois bergantins armados, é odiado pelo sultão da Turquia e pelos propietários da Companhia das Índias, e todos pensam que pode ser deposto facilmente se um pequeno grupo de soldados atacar a ilha inesperadamente. A Companhia participará da operação contribuindo com uma corveta de dezoito canhões com aparelho de navio, e os turcos, enviando para ali um número adequado de soldados e um novo governante. A corveta se encontra no porto de Suez e é tripulada por marinheiros das Índias Orientais, que a fazem parecer um mercante, e os turcos já prepararam os seus soldados. Primeiro pensaram em ordenar a lorde Lowestoffe que fosse até ali com uma brigada de marinheiros, avançasse por terra até o lugar apropriado e levasse a cabo a operação no próximo mês, mas lorde Lowestoffe está doente. Além disso, a situação mudou, pois os franceses querem ter uma base naval onde possam apetrechar todas as fragatas que enviaram e pensam em enviar para o oceano Índico, e ainda que Mubara fique muito ao norte, é melhor ter uma base ali que não ter nenhuma. O governante da ilha, que se chama Tallal, sempre foi amigo dos franceses, e eles lhe ofereceram canhões, a ajuda de vários engenheiros para fortificar o porto e bugigangas; contudo, ele não quer bugigangas mas dinheiro, muito dinheiro. Ele lhes pede mais dinheiro cada vez que fala com eles. Como lhe disse, ele pede mais dinheiro cada vez que fala com eles.
- Por favor, senhor, pode me dizer por que?
- Porque Mehemet Ali se propõe a conquistar todos os estados da Arábia até o golfo Pérsico e deixar de render vassalagem e depois unir-se aos franceses para expulsar-nos da Índia. Mubara é muito importante para ele porque ainda não tem uma esquadra no mar Vermelho, e para os franceses porque dali podem vigiar o seu aliado. Por outro lado, Tallal tem boas relações com todos os estados da costa, e os franceses lhes ofereceram dinheiro para que passassem para o seu lado também. Chegaram a um acordo por fim, e Tallal enviou uma de suas galeras a Kassawa para recolher os franceses e o tesouro prometido. Não sei quanto dinheiro lhe darão. Alguns dizem que cinco mil bolsas, e outros, que a metade dessa quantidade, mas todos concordam que contêm as moedas de prata que Decaen tirou da ilha Mauricio em um bergantim carregado até os topes logo antes que fosse conquistada… Mas o senhor sabe tudo isto, naturalmente.
Naturalmente que sim, pois fora Jack, à frente de uma pequena esquadra, que havia conquistado a ilha Mauricio, ainda que não havia participado nas últimas fases da operação, quando o almirante assumia o comando e se cumpriam as formalidades.
- Sim, senhor - disse. - Ouvi falar do maldito bergantim e inclusive cheguei a vê-lo ao norte, mas não pude persegui-lo porque se encontrava a grande distância da esquadra, e lamentei muito.
- Não tenho dúvida. Pois bem, isso ocorreu no início do ramadã, e quando termine, a galera regressará. Quer que lhe diga o que é o ramadã, Aubrey?
- Sim, por favor, senhor.
- É parecido com a quaresma, mas mais rigoroso. Dura de uma lua nova até a seguinte, e durante esse tempo fica proibido comer, beber e ter relações com mulheres do amanhecer ao ocaso. Alguns dizem que os viajantes são dispensados de se submeterem a essa proibição, mas esses homens, os mubaritas, são beatos e dizem que isso é uma bobeira e que quem não jejue condenar-se-á. É improvável que os remadores de uma galera possam remar ao longo de centenas e centenas de milhas pelo mar Vermelho sob um sol abrasador sem beber uma só gota de água nem comer nada, sobretudo nesta época do ano, em que sopra o vento do norte, e teriam que remar durante todo o trajeto porque as galeras não navegam bem de bolina. Por essa razão ficarão em Kussawa até que termine o ramadã. Eu não gosto das galeras porque são tão frágeis que não podem suportar um temporal e tão instáveis que não podem levar muitas velas desdobradas se não têm o vento justamente em popa. Ademais, são perigosas, pois se se aproximam de um barco quando há calmaria, seus tripulantes, geralmente várias centenas de homens, podem disparar-lhe continuamente durante certo tempo e depois abordá-lo pelos dois costados. Não gosto das galeras, mas todos os oficiais que conhecem essa zona e outras pessoas que nos proporcionam informação dizem que cruzam essas águas com a mesma regularidade que o correio e que costumam navegar durante doze horas e permanecem imóveis e com as velas recolhidas por toda a noite. Assim que pelo menos sabemos onde achá-las. Se um barco vai para Mubara pelo canal que fica ao sul da ilha, mantendo-se a considerável distância destes bancos de areia e destas ilhotas que existem aqui, vê?, seria raro que não pudesse interceptar a galera carregada com as moedas aproximadamente quinze dias depois da lua nova. Depois o barco levaria os turcos a Mubara para que depusessem o seu governante, o que não é assunto nosso.
- Nesta operação é necessário agir coordenadamente e com rapidez, senhor - disse Jack depois da pausa expectante que o almirante fizera.
- Sem dúvida, a rapidez é fundamental em um ataque - disse o almirante. - Mas esta operação também requer que esteja ao comando dela um homem decidido e acostumado a tratar com turcos e com albaneses, pois Mehemet Alí é albanês, sabe?, e muitos de seus homens e seus aliados também o são. Por isso pensei no senhor. O que acha?
- Aceito com muito gosto, senhor, e lhe agradeço que tenha tão boa opinião de mim.
- Esperava por isso. Sem dúvida, o senhor é a pessoa mais adequada, pois tem uma excelente relação com o Sultão, e, graças ao chelengk, terá uma grande autoridade nessa região. Então embarcará com seus homens no transporte Dromedary e zarpará esta tarde rumo ao extremo oriental do delta do Nilo, desembarcará em um povoado afastado chamado Tina, na boca do rio onde fica Pelusio, para não molestar os egípcios, que não nos têm simpatia desde que ocorreu aquele lamentável fato em Alexandria em 1807, e depois irá com alguns de seus homens até Suez por terra, escoltado pelos turcos. Queria mandar com o senhor o meu conselheiro para assuntos orientais, o senhor Pocock, mas não posso. Contudo, um intérprete lhe acompanhará, um excelente intérprete armênio recomendado pelo senhor Wray. Chama-se Hairabedian e é um homem douto. Depois do almoço, o senhor Pocock lhe informará sobre a situação política da zona. Gostaria que o doutor Maturin assistisse também?
- Sim, senhor.
O almirante olhou para Jack por alguns momentos e disse:
- Sugeriram-Me que insistisse para que o senhor levasse outro cirurgião para que Maturin ficasse aqui e fosse nosso conselheiro em diversos casos, mas depois de pensar bem, decidi não considerar essa sugestão. Em uma operação desta classe, é conveniente dispor de toda a informação possível sobre assuntos políticos, e ainda que a boa opinião que o senhor Wray tem de Hairabedian seja justificada, não há que esquecer que, além de tudo, o pobre homem é um estrangeiro. Não vou lhe cansar com os detalhes do plano que tem que executar. Os encontrará junto com uma série de recomendações e as ordens que se porão por escrito enquanto comemos. Como não recebemos a notícia até esta manhã, não foram redigidas antes. Desejaria que já fosse a hora do almoço, pois não desjejuei. Se não fosse porque virão alguns convidados, mandaria pôr a mesa agora mesmo. Mas pelo menos podemos beber algo. Por favor, toque a campainha.
Jack estava um pouco cansado por causa da loquacidade do almirante, o entusiasmo com que falava e os parêntese que fazia, que nem sempre eram esclarecedores, e tinha muita vontade de tomar uma taça de genebra de Plymouth. Enquanto a tomava e o almirante bebia uma jarra de cerveja, tentava se serenar para avaliar objetivamente o plano que lhe oferecia a oportunidade de obter um butim. Sua emoção, que fazia bater aceleradamente seu coração, e seu veemente desejo de que o plano tivesse êxito, não lhe impediam de perceber que seu resultado dependia do vento, pois não poderia levar a cabo se o vento se acalmasse ou fosse desfavorável por alguns dias enquanto o barco se encontrava em algum ponto da rota de centenas de milhas que devia percorrer no Mediterrâneo e no mar Vermelho. Além disso, devia levar em consideração que teria que tratar com turcos e navegar em um barco desconhecido. O plano parecia quimérico, mas não era irrealizável, apesar de que era preciso que todas as etapas saíssem bem. Mas uma coisa era indubitável: não havia que perder nem um minuto.
- Com sua permissão, senhor - disse, deixando de um lado a taça, - escreverei uma nota ao primeiro oficial para que ordene aos homens que se preparem para zarpar imediatamente. Agora estão fazendo práticas de tiro com as armas leves perto de Sliema.
- Todos?
- Todos, inclusive o cozinheiro e os dois únicos guardas-marinhas que estão sob meu comando, senhor. Estou muito orgulhoso de que meus homens disparem os mosquetes com maior precisão que todos os que se encontram nesta base. Competiram com êxito com os do 63º Regimento, e acho que poderiam competir satisfatoriamente com os de qualquer navio de linha. Todos estão ali.
- Bem - disse o almirante, - pelo menos não terá que revistar as prisões civis e militares nem os bordéis nem as tabernas desta condenada cidade onde abunda a imoralidade, como em Sodoma e Gomorra. Mas espero que não os tenha transformado em soldados. Não há nada que eu goste menos do que ver a um tipo esticado como um eixo com uma casaca vermelha, polainas brancas como o cal e o cabelo empoado disparando uma arma como se fosse uma maldita máquina - disse com mau humor pela fome que tinha e depois olhou o relógio e pediu a Jack que voltasse a tocar a campainha.
O almirante era mais amável quando tinha o estômago cheio do que quando estava em jejum. Havia convidado para almoçar a várias pessoas mais: seu secretário, um monsenhor, um lorde inglês que estava de passagem na ilha, três militares e três marinheiros, um dos quais era o guarda-marinha que havia ido buscar a Jack, um guarda-marinha voluntário que se chamava George Harvey e era sobrinho neto do almirante. Sir Francis era um bom anfitrião, pois oferecia aos seus convidados excelente comida e muito vinho, e, tanto se havia paz como se havia guerra, nunca entediava nem desconcertava aos não marinheiros contando o que havia ocorrido a este ou aquele barco. Em realidade, o almoço diferia com o que se davam nos barcos mais que pela austeridade do ambiente, o movimento da coberta, a especial forma de brindar ao Rei e um pequeno detalhe na maneira de servi-la.
Jack notou que o almirante sentia um grande afeto por seu sobrinho neto e que desejava que seguisse o melhor caminho, sobretudo na Armada. Achava bom que o almirante guiasse ao guarda-marinha pelo bom caminho, e ele mesmo tratava de guiar a outros quando tinha tempo, mas pensava que exagerava um pouco, talvez por não ter filhos, e se incomodou quando percebeu que havia tomado a ele como exemplo. Não lhe molestou que o almirante dissesse que os jovens tinham o má costume de inclinar ligeiramente a cabeça para baixo em vez de incliná-la quando bebiam junto com outro homem, e tampouco lhe molestou que pouco depois dirigisse a George um olhar cheio de raiva, um olhar que haveria traspassado uma prancha de nove polegadas de grossura, quando o jovem levantou sua taça e, vermelho de vergonha, disse: "Conceda-me a honra de beber uma taça de vinho com o senhor, senhor", e baixou a cabeça até que seu nariz roçou o toalha da mesa. Contudo, incomodou-lhe muito que lhe tomasse como exemplo de dinamismo, e muito mais que dissesse que alguns oficiais punham em seus cartões de visita as siglas da "Armada real" em vez do nome completo da instituição, o que lhe parecia uma impertinência, e que o capitão Aubrey, em troca, não punha as siglas mas o nome completo em seu cartão de visita e no final das cartas oficiais. Sir Francis também disse que o capitão Aubrey usava o chapéu corretamente, de modo que ficava um bico de cada lado da cabeça em vez de um na frente e o outro atrás. Havia feito estes comentários de passada durante a conversa, na qual participavam o lorde inglês e o prelado sem sentir-se coibidos pela diferença de classe, pois o primeiro era muito rico e o segundo gozava do favor do rei das Duas Sicilias, mas não haviam passado despercebidos para os oficiais sentados dos lados de Jack, dois capitães de navio da mesma antiguidade que ele, que haviam achado muito engraçado.
Por tanto, Jack Aubrey não lamentou que a refeição terminasse. Então foi conduzido para uma pequena cabine onde o senhor Pocock e Stephen já falavam a um tempo da complicada situação política dos estados do Mediterrâneo oriental. Ambos lhe informaram sobre as questões mais importantes de que haviam tratado, e depois o senhor Pocock disse:
- A situação atual é muito delicada, em parte porque Mehemet Alí está fazendo todo o possível para ganhar a confiança do paxá Osman, mas não acho que tenha dificuldades para viajar por terra, pois as autoridades de Tina se ofereceram a proporcionar-lhe um considerável número de animais de carga, especialmente camelos e asnos, e, além disso, o senhor terá o aspecto de uma pessoa muito importante, quero dizer, muito mais importante, com esses diamantes turcos que leva de adorno. Apesar disso, deve manter-se longe do território governado por Ibrahim, um tipo agressivo, rebelde e ambicioso de poder. Além do mais, deve evitar se encontrar com os árabes nômades, os beduínos, ainda que não seja provável que ataquem a um grupo de homens tão grande como o seu, sobretudo se os homens estão bem armados, pelo que convém que levem as armas de modo que sejam visíveis.
Então voltou a fazer comentários sobre o fortalecimento de Mehemet Alí e do debilitamento dos beis, aos quais o Governo inglês não ajudava muito, e quando terminou de falar da última matança de mamelucos, entrou sir Francis.
- Aqui tem as ordens, capitão Aubrey - disse. - São concisas, porque detesto as palavras supérfluas. Não queria instar-lhe a que partir, mas os marinheiros terminarão de descarregar o Dromedary dentro de meia hora, muito antes do previsto. Seu primeiro oficial… Como se chama?
- William Mowett, senhor. É um marinheiro hábil e diligente.
- Ah, sim, Mowett! Pois bem, mandou os tripulantes da Surprise esvaziarem a bodega de proa e colocar dois pares de amantilhos novos, assim que se o senhor tem que se despedir de alguém em terra, este é o momento adequado para fazê-lo.
- Obrigado, senhor - disse Jack, - mas não me despedirei de ninguém, aliás, irei diretamente para o barco porque não há nem um minuto a perder.
- De fato, Aubrey - disse o almirante. - E a rapidez é fundamental em um ataque. Adeus, Aubrey. Espero ver-lhe outra vez dentro de um mês mais ou menos, depois de haver conquistado a glória e talvez algo material também. Doutor, despede-se do senhor seu humilde servidor.
Uma vez mais a falua cruzou o porto a grande velocidade, e durante o percurso, Stephen disse:
- Esta manhã, ao sair do palácio, tive a satisfação de encontrar-me com um amigo. Recorda-se do senhor Martin, o pastor?
- O clérigo caolho, quer dizer, o que pronunciou no Worcester aquele estupendo sermão em que falava das codornas? Claro que me recordo. É um pastor digno de estar em um navio de linha e, se não me engano, um naturalista também.
- Exatamente. Encontrei-me com ele ao chegar à rua Real, e me convidou para almoçar no Rizzio. O almoço foi excelente e consistiu em uma grande variedade de octópodes e cefalópodes. Seu barco navegou pelas imediações das ilhas gregas, e como ele tem especial interesse nos cefalópodes, aprendeu a mergulhar com os pescadores de esponjas de Lesina. Conta que se untaba o corpo com o melhor azeite de oliva, punha pedaços de lã empapados em azeite nos ouvidos, metia na boca um grande pedaço de esponja também empapado em azeite e depois atava uma pedra pesada para chegar ao fundo do mar, porém, apesar de que havia muitos cefalópodes ali, não podia permanecer submerso mais de quarenta e três segundos, um tempo insuficiente para ganhar sua confiança e também para estudar seu modo de vida, mesmo no caso de que os houvesse visto bem, o que não ocorria, pois as águas circundantes eram turvas. Sempre lhe saía sangue pelos ouvidos, o nariz e a boca; algumas vezes perdia a consciência, e o tiravam da água e conseguiam que se recobrasse com álcool cânforado. Como pode imaginar, quando lhe falei de meu sino de escafandrista, mostrou grande interesse por ele.
- Não duvido. Gostaria de voltar a vê-la algum dia.
- É claro que a verá, porque está no Dromedary. O senhor Martin está no barco também, contemplando-a. Depois de almoçar o levei ali para mostrar-lhe as partes mais importantes, e ali recebi sua mensagem.
- Que; diabos faz esse artefato no Dromedary? - perguntou Jack.
- Não podia carregar ao capitão Dundas com meu apreciado sino de escafandrista e tampouco ia deixá-lo ao cuidado desses ladrões do estaleiro. O capitão do Dromedary me disse que conhecia os sinos de escafandrista e que ficaria encantado de que subisse o meu a bordo. Se tivermos tempo livre…
- Tempo livre? - gritou Jack. - Disporemos de muito pouco tempo livre, porque temos que estar ao sul de Hameda quando haja lua cheia ou antes. Tempo livre! Vamos, remar com força! - ordenou aos tripulantes da falua.
O Dromedary fora levado a reboque até o estaleiro e agora estava atracado com os costados paralelos ao cais, e parecia que ninguém estava inativo na coberta nem na entrecoberta. Alguns marinheiros caminhavam como formigas pela prancha, com bolsas, colchões de palha e macas, e desciam pela escotilha de proa; enquanto outros, encarregados de limpar a bodega, saiam pela escotilha de popa com montes de lixo (tiras de palha empapadas de água da sentina, muito grandes, mas leves, e cabos rotos mesclados com poeira e farinha em mau estado) e os jogavam pela borda. Ao mesmo tempo outros marinheiros subiam a bordo barris de água, de vinho e de carne de vaca e de porco, pacotes de bolachas e bolsas que continham roupa e outros artigos que eram vendidos para a tripulação pelo contador, vigiadas pelo senhor Adams, seu ajudante e o ajudante do despenseiro. Por outro lado, os verdadeiros tripulantes do Dromedary se ocupavam de suas tarefas ordinárias, e na proa se ouviam as marteladas do carpinteiro e de sua brigada. O sino de escafandrista, situado na frente da escotilha principal, parecia um ídolo da antiguidade; contudo, o senhor Martin não estava junto dele. Stephen deu uma volta ao seu redor esforçando-se para abrir passagem entre a multidão de marinheiros que passavam apressadamente por ali, e quando começava a dar outra, se topou com Edward Calamy, um jovem que pertencia à tripulação da Surprise. O senhor Calamy, um garoto loiro e nervoso, era um cadete e só havia navegado durante alguns meses, desde que havia embarcado no Worcester em Plymouth, ainda que por sua atitude decidida e a grande quantidade de termos náuticos que empregava, ninguém teria acreditado. Fazia algum tempo que tinha uma atitude amável e protetora por Stephen, e agora, ao ver-lhe, disse:
- Ah, o senhor está aí, senhor! Estava procurando-lhe. Consegui uma cabine para o senhor no lado de bombordo. Afastemo-nos para não atrapalhar. Cuidado com esses cabos! Já pus sua bagagem abaixo, e também levei para lá o senhor Martin. A bagagem de Stephen não era muito grande, já que se vestia com simplicidade, mas incluía um herbário que continha as plantas mais raras de Malta e um exemplar de Philosophical Transactions, no qual o doutor Halley descrevia o que havia observado no fundo do mar. O senhor Martin e Stephen estavam lendo o livro, afastados do mundo agitado e ruidoso que os rodeava, quando o Dromedary desatracou e, com o velacho desdobrado, começou a atravessar o porto enquanto o desolado capitão Pullings, de pé no cais, agitava a mão no ar para despedir-se dos poucos amigos que não estavam ocupados demais para advertir que se encontrava ali. Ainda não haviam chegado na parte que tratava da esponja nem sequer haviam terminado de ler a que tratava do coral quando o Dromedary, já com todas as maiores desdobradas, dobrou o cabo Ricasoli e começou a navegar rumo este-sudeste com um forte vento que permitia abrir as joanetes.
- Eu vi muitos corais no oceano Índico e também no Pacífico - disse Stephen, - mas só os estudei superficialmente, em um espaço e um tempo limitados, pois me afastavam deles muito rápido. Amiúde lamentei ter desperdiçado tantas oportunidades. Para alguém dotado de um espírito curioso, poucas coisas podem fazer-lhe mais feliz que caminhar por um arrecife de coral e ver passar por cima do arrecife aves desconhecidas e por baixo peixes desconhecidos e observar no fundo do mar uma incrível quantidade de lesmas do mar, cefalópodes e outros moluscos e também de nemertíneos.
- Indubtavelmente, não pode haver um lugar mais prazeroso que esse fora do Paraíso - disse Martin, juntando as mãos. - Contudo, no mar Vermelho voltará a ver corais, não acha?
- Por que disse isso, meu amigo?
- Não é seu destino o mar Vermelho? Estou equivocado? Em Valletta muitos diziam que uma expedição partiria para lá para realizar uma missão secreta, e o cadete que me conduziu até aqui acreditava que haviam dado o comando ao capitão Aubrey, assim que supus que o senhor havia trazido seu sino de escafandrista para submergir entre os arrecifes durante seu tempo livre. Mas lhe rogo que me desculpe se cometi uma indiscrição.
- Não, não. Se pudesse submergir no mar Vermelho em meu tempo livre, teria uma alegria indescritível, porém, desafortunadamente, os marinheiros não querem nem ouvir falar de tempo livre. Salvo em uma ocasião, quando estivemos a ponto de naufragar frente à ilha Desolação, um lugar bendito por Deus, sempre me impediram de fazer as coisas ao meu ritmo e a meu gosto. Os marinheiros acham que sempre há que estar ocupado, e têm a obsessão de que tudo tem que ser feito com pressa, que não há que perder nem um minuto, como se o tempo só devesse empregar-se em seguir avançando com rapidez e não importasse aonde um se dirige contanto que siga adiante.
- É verdade. Além disso, sua preocupação com a limpeza é quase uma obsessão. O primeiro que ouvi quando subi a bordo de um barco de guerra foi o grito "Garis!", e desde então o hei ouvido em torno de vinte vezes diárias, ainda que como os marinheiros estão restregando o barco constantemente, não há nada que varrer, assim que não é necessário empregar uma vassoura para limpá-lo, e muito menos doze. Agora tenho que ir, senhor, porque hei ouvido dizer que o barco zarpa ao entardecer, e a luz já começou a debilitar-se.
- Poderíamos dar um passeio pela coberta, porque parece que agora há menos ruído e os tripulantes não têm tanta pressa - disse Stephen. - Além domais, o capitão Aubrey se alegrará de ver-lhe.
Avançaram até a escada do castelinho passando por uma série de lugares que não lhes eram familiares, e antes de chegar à coberta, Stephen se preocupou, pois notou que o transporte estava mais inclinado do que costumava ficar um barco quando ficava atracado junto a um cais e ouviu o grito "Destrincar os canhões!", um grito que não tinha nada que ver com os preparativos para zarpar que ele conhecia. Mas essa preocupação era insignificante comparada com a consternação que sentiram os dois quando suas cabeças assomaram por cima da braçarola e viram que só o que havia ao seu redor era o mar, enfeitado de um intenso azul pelo entardecer, que o majestoso sol estava a ponto de se ocultar ao longe, pela popa, e que de ambos lados da coberta os tripulantes realizavam as tarefas que habitualmente se faziam nos barcos com verdadeiro afã, como se a terra já não existisse, e se informaram de que o barco navegava a seis nós e meio. O capitão Aubrey havia pedido emprestado os canhões de seis libras do Dromedary, e para que os tripulantes da Surprise voltassem a ter dignidade e disciplina, mandava-os fazerem todas as operações necessárias para dispará-los, e parecia que representavam uma pantomima com rapidísimos movimentos.
- Guardar os canhões! - ordenou ao final. - O resultado da prática de tiro foi muito ruim, senhor Mowett. Demorar dois minutos e cinco segundos com canhões de cento e noventa libras de peso é um mau resultado.
Então se voltou, e sua expressão mal-humorada tornou-se uma sorridente quando viu Stephen e Martin. Ambos estavam ainda no penúltimo degrau da escada, com o corpo visível somente até as joelhos, e olhavam ao seu redor com a boca aberta, perplexos como dois homens que nunca houvessem estado em um barco. "E estes pobres homens não estão muito melhor", pensou, e disse:
- Senhor Martin, quanto me alegro de ver-lhe! Como está?
- Oh, senhor! - exclamou Martin olhando em torno seu como se a terra fosse aparecer milagrosamente. - Acho que estou viajando, que não desci do barco a tempo.
- Não se preocupe. Provavelmente encontraremos algum barco pesqueiro que vá para Valletta e poderá regressar nele, a menos que prefira acompanhar-nos durante um tempo. Navegamos rumo à boca do Nilo onde fica Pelusio…
Nesse momento começou uma acalorada discussão entre o carpinteiro do Dromedary e Hollar, o contramestre da Surprise, e o capitão Aubrey teve que intervir, mas convidou o senhor Martin para jantar. Durante a janta, o pastor disse:
- Talvez o senhor não falasse a sério quando sugeriu que lhes acompanhasse, mas se não era assim, permita-me dizer-lhe que me encantaria. Tenho um mês de licença, e o capitão Bennet teve a amabilidade de dizer que não oporia obstáculos a que prolongasse o período de licença um mês ou dois, ou inclusive mais.
Jack sabia que Harry Bennet aceitara levar um pastor a bordo porque o comandante geral lhe pressionara. Bennet não tinha ódio contra o clero, mas gostava de estar acompanhado de mulheres, e como lhe ordenavam realizar missões sozinho muito amiúde, podia fazer sua vontade. Contudo, respeitava muito aos clérigos e não levava em seu barco a sua amante e a um deles ao mesmo tempo porque achava que assim lhes ofendia.
- Naturalmente, pagarei pelo alojamento e a comida - prosseguiu. - Além disso, como possuo algumas noções de anatomia, talvez possa ajudar ao doutor Maturin, pois não tem nenhum ajudante neste momento.
- Muito bem - disse Jack. - Mas lhe advirto que não vamos ficar em Tina senão que avançaremos por um deserto cheio de serpentes de diversos graus de nocividade, como diz o doutor, até…
- Me limitei a repetir as palavras de Goldsmith - disse Stephen adormecido por causa de que havia dormido pouco essa noite e estava esgotado pelas fortes emoções do dia anterior, e depois murmurou: - Sonolência… coma… letargia…
- … chegar ao mar Vermelho, onde realizaremos uma missão que requer muito esforço e que provavelmente seja perigosa, suportando um terrível calor e muitas incômodos.
Enquanto falava, havia notado um brilho de alegria nos olhos do senhor Martin, apesar do pastor fazer grandes esforços para manter uma expressão grave.
- Por outro lado - continuou Jack, - devo dizer-lhe que a Armada não foi criada para os que querem recolher insetos e meimendro em distantes praias coralíneas e que se irritam quando se pede que cumpram com seu dever. Resmungar e franzir o cenho... - disse, alçando a voz, mas parou ao perceber que Stephen não ia responder. - Será um prazer para mim estar em sua companhia, e estou seguro de que também será para os marinheiros que foram companheiros de tripulação seus no Worcester. Nem eles nem eu havemos esquecido quanto trabalhou o senhor para preparar o oratório. Talvez pudéssemos ouvir um par de cânticos uma tarde, já que alguns de seus antigos discípulos estão a bordo.
O senhor Martin disse que se as serpentes, o esforço, o perigo, o calor e os incômodos eram o preço que havia que pagar para ver um arrecife de coral, ainda que fosse brevemente, achava muito baixo, e que cumpriria com seu dever sem resmungar, e acrescentou que se alegrava de estar com seus antigos companheiros de tripulação outra vez.
- Agora que me recordo, esta mesma manhã me lamentava da falta de um pastor - disse Jack. - Os marinheiros têm uma conduta licenciosa, e me ocorreu que…
Esteve a ponto de dizer: "um bom sermão em que fossem ameaçados com o fogo do inferno os assustaria tanto que se comportariam bem", mas pensou que não era correto dizer a um pastor o que devia fazer e terminou dizendo:
- … seria conveniente celebrar ofícios religiosos, pois ouviriam palavras sensatas, ou seja, condenando o vício e a libertinagem. O que foi, Killick?
- O senhor Mowett me pediu que o molestasse, senhor… - disse Killick, e como gostava de ser o primeiro em dar as notícias, acrescentou: - É que não sabe onde alojar o cavalheiro estrangeiro.
- Diga que entre e traga outra cadeira e outra taça.
O cavalheiro estrangeiro era o intérprete, e Mowett, depois de sentar-se e beber uma taça de vinho do porto, perguntou onde devia comer e se devia pendurar sua maca na proa ou na popa.
- Não sei onde os intérpretes devem comer- disse Jack, - mas o comandante geral disse que este era um homem douto e tinha recomendação do senhor Wray, assim que deveria comer na câmara dos oficiais. Eu o vi quando subiu a bordo, e me pareceu bastante alegre apesar de ser sábio, pelo que acredito que o senhor não se molestará que coma ali, e ainda que assim fosse, espero que só tenha que fazê-lo por uma semana, ou inclusive menos, se continuar soprando este vento favorável, o vento que acompanhou Nelson. Recordo que no ano 1798, quando procurávamos a frota francesa, fomos do estreito de Mesina a Alexandria em sete dias…
Recordava claramente daqueles longos dias de verão em que quinze barcos de guerra navegavam pelas águas azuis jaspeadas de branco rumo leste e a grande velocidade, com as alas superiores e inferiores, as sobrejoanetes e as monterillas{11} desdobradas, enquanto o contra-almirante Nelson caminhava de um lado para outro do castelo de popa do Vanguard do amanhecer ao ocaso. Recordava o fragor da batalha no meio da noite, as labaredas dos canhonaços rasgando uma e outra vez a escuridão, o impressionante estampido da explosão de L'Orient, depois do qual, durante alguns minutos houve completa escuridão e silêncio. Contou como haviam feito a busca da frota francesa e depois fizeram regressar sua esquadra de Alexandria para a Sicília e levá-la outra vez de Siracusa para Alexandria, e disse:
- … e ao final a encontramos ali, atracada na baía de Abukir.
Nesse momento o Dromedary deu um solavanco, fazendo Stephen cair da cadeira. Jack deu um salto com muita agilidade por ser um homem tão pesado, mas não com o suficiente para evitar que Stephen se desse um golpe com a cabeça na borda da mesa que lhe causou uma ferida de um palmo de comprimento de um lado a outro da testa, uma ferida quase igual e quase tão sangrenta como a que sofreu Nelson no Nilo.
- Por que fazem tantos trejeitos? - perguntou Stephen, mal-humorado. - Qualquer um pensaria que nunca haviam visto sangue, o que é impossível, pois são assassinos a soldo. Tosco, pedaço de sobreiro, inútil, mantenha a bacia direita! - gritou, olhando para Killick. - Senhor Mowett, na gaveta esquerda de meu estojo de remédios há agulhas curvas enfiadas com fio de tripa, e quisesse que me trouxesse um par delas, e também um frasco de hemostático que está na estante central e um punhado de fibras. Em lugar de uma venda podemos usar minha gravata, porque já está suja.
- Não seria melhor que estivesse deitado? - perguntou Jack. - A perda de sangue…
- Bobeiras! A ferida é superficial, um simples corte na pele, como lhe disse. Senhor Martin, agradeceria que passasse hemostático em mim e que unisse as bordas da ferida com doze pontos enquanto as seguro.
- Não sei como pode suportar fazer isto - disse Jack, afastando a vista quando a agulha se introduziu na pele.
- Estou acostumado a dissecar pássaros - disse Martin sem parar de costurar, - e também a costurar sua pele… Todos a têm muito mais delicada que esta… exceto os cisnes machos velhos… Pronto! Acho que é uma costura bastante bem feita.
- O pastor diz que o senhor já está bem, senhor - disse Killick a Stephen em voz alta e tom solene.
- Muitas obrigado, senhor - disse Stephen para Martin. - Agora vou deitar-me. Ontem à noite dormi pouco. Boa noite, cavalheiros. Senhor Mowett, peço que solte meu braço, porque não estou bêbado nem decrépito.
Também dormiu pouco essa noite, já que pouco antes da alvorada ouviu a menos de seis polegadas do escotilhão de sua cabine uma voz desconhecida que, em tom mal-humorado, tão alto que lhe rompeu o sono, gritou:
- Não sabe como fazer um cornudo, maldito marinheiro de água doce? Onde está o condenado nó?
Sua cabeça doía, mas não muito, e permaneceu deitado em sua maca, que se balançava ao ritmo do balanço do barco, pensando nos cornos e no costume quase universal de fazer zombaria deles. Quando estava em Malta, em uma das poucas cartas que recebera da Inglaterra (durante os dois meses anteriores apenas haviam chegado cartas da esquadra do Mediterrâneo) lhe diziam que era um corno porque sua mulher o enganava com um adido da embaixada sueca, mas ele não acreditou. Na mesma saca havia chegado uma nota de Diana, uma nota muito breve e escrita com má letra e com borrões, mas muito afetuosa; e ainda que ele não acreditava que ela deixaria de fazer o que desejava por razões morais, sabia que era incapaz de cometer ações que a fizessem desprezível e que isso a impediria de escrever-lhe uma nota afetuosa ao mesmo tempo que lhe punha os cornos. Estava convencido de que ela não lhe desonraria se não a incitassem a fazê-lo. Além disso, Diana ia a muitas festas de sociedade em Londres e tinha muitos amigos ricos e distintos, e como não se importava com a opinião dos outros, provavelmente havia dado motivos para que a censurassem ou a difamassem.
Sua prima Sophie, a esposa de Jack Aubrey, era completamente diferente, e apesar de que distava muito de ser uma falsa moralista e dava tão pouca importância à opinião da senhora Grundy como Diana, só um louco escreveria para Jack para dizer-lhe que era um cornudo, ainda que se as ações de ambos fossem recíprocas, ela lhe teria posto uma galhada de grande tamanho. Stephen refletia sobre o assunto e se perguntava se estava motivado pelo apetite sexual, que mesmo sendo potencial e, portanto, não ostensível, podia ser percebido claramente pelos outros. Pensou no apetite sexual das mulheres distintas e o comparou com o das vulgares, e ainda pensava nisto quando a porta da cabine se abriu muito devagar e a cabeça de Jack apareceu por detrás dela.
- Deus te bendiga, Jack! - disse. - Precisamente agora estava pensando em você! O que chamam de cornudo em um barco?
- Para amarrar um cabo a um mastro, dobram-se os dois extremos de modo que um fique sobre o outro e depois se faz um nó com eles, e chamamos cornudo a esse nó.
- Muito bem, obrigado.
- Quer tomar um pouco de chá e um ovo passado em água?
- Não - respondeu Stephen em tom decidido. - Tomarei uma grande xícara de café forte, como um cristão, e arenques defumados.
Jack ficou pensativo por um momento e depois, franzindo o cenho, perguntou:
- Que demônios significa o que me disse: "Precisamente agora estava pensando em você. O que chamam de cornudo em um barco?".
- Ouvi que alguém dizia essa palavra perto da janela de minha cabine e queria saber o que significava, assim que perguntei a você, que é uma autoridade em náutica. Não deve comportar-se como se fosse Otelo, meu amigo. Deveria envergonhar-se disso. Se um homem tivesse o atrevimento de fazer uma proposição desonesta a Sophie, ela não lhe entenderia até uma semana depois, e então lhe mataria com sua escopeta de dois canos.
- Agradeço que diga que sou uma autoridade em náutica - disse Jack, sorrindo ao imaginar Sophie no momento em que compreendia a hipotética proposição e em que sua amabilidade se tornava em raiva. - E também pode chamar-me diplomático, se quiser. Tive uma entrevista muito satisfatória com o capitão do Dromedary ontem à noite. É um assunto muito delicado ter que dizer a um homem como deve governar seu barco ou sugerir-lhe que faça melhorias nele, sabe?, especialmente neste caso, pois o senhor Alien não é meu subordinado. Além disso, os capitães de barcos mercantes, em geral, têm uma atitude hostil pela Armada porque recruta seus homens a força, e lhes incomoda a arrogância de alguns de seus oficiais. Se eu houvesse ofendido a Alien, ele poderia ter diminuído o velame só para me contrariar. Mas desceu precisamente quando você foi dormir, pois lhe disseram que estava bêbado e nos havia atacado e que nós lhe golpeamos quase até matá-lo, e ficou para tomar uma taça de vinho, e enquanto bebia, terminei de contar a Mowett e ao pastor como nossa esquadra navegava mais rápido que a fumaça por estas mesmas águas antes da batalha do Nilo.
- Acho que você mencionou alguma vez a batalha do Nilo - disse Stephen.
- Claro que sim - disse Jack em tom amável. - Pois bem, demostrou que era um tipo estupendo enquanto soube que não queríamos interferir no que faz nem dar-lhe ordens em seu própio barco. Quando Mowett e o pastor se foram, eu lhe falei disso com franqueza, de forma espontânea, sem premeditação. Eu lhe disse que não era minha intenção criticar como governava o Dromedary e que ele conhecia melhor que ninguém seus defeitos e suas qualidades, mas que com muito gosto lhe proporcionaria duas vintenas de marinheiros e que talvez quando ele tivesse muitos mais tripulantes decidiria desdobrar mais velame, e acrescentei que se por consequência disso se desprendesse algum pau, eu indenizaria aos donos do barco imediatamente. Disse que nada lhe houvesse parecido melhor e que sabia que eu estava preocupado mas que não me havia falado disso porque temia que o cortasse. Contudo, acrescentou que eu não devia esperar muito desta carraca ainda que houvesse nela homens suficientes para sustentar a escada de Jacob ou construir a torre de Babel, porque os fundos estavam sujos, todos os mastros e as vergas tinham mais encaixes que madeira, e a exárcia era feita de fragmentos de cabos usados, ainda que pensava que, apesar de tudo, uma boa tripulação podia fazê-lo navegar a considerável velocidade com o vento pela quadra, pois tinha as mesmas linhas curvas que um cisne, as mais bonitas que vira. Então nos demos a mão para selar o acordo. Quando subir para o convés, verá que ali tudo está diferente.
Qualquer marinheiro podia perceber que ali tudo estava muito diferente, já que agora o Dromedary tinha desdobradas as alas de barlavento, a cevadeira e a sobrecevadeira, mas o que realmente surpreendeu a Stephen foi ver uma fila de pacotes vermelhos. Ainda não haviam estendido os toldos no Dromedary, e a brilhante luz do sol fazia a cor vermelha tão intensa que era uma delícia de ver. Stephen passou olhar a coberta com atenção, colocando o gorro de dormir de modo que não apertasse os pontos da ferida, e imediatamente compreendeu o que ocorria. Estavam inspecionando as bolsas de roupa e as armas da tripulação da Surprise. Haviam dado a ordem: "Sacar a roupa!", e agora cada marinheiro tinha diante de si um monte de roupa, um monte pequeno, e por cima de quase todos havia várias roupas bem lavadas e arrumadas: uma calça de dril branco, uma casaca azul escuro com botões dourados e um colete bordado de cor escarlata (pois havia feito escala recentemente em Santa Maura, famosa porque nela se fabricavam peças de vestir dessa cor). Os marinheiros haviam estendido estas roupas, as que usavam para descer a terra, em um tentativa de ocultar que debaixo delas havia muito pouca roupa de trabalho, mas o intento era vão, porque assim não poderiam enganar nem a um guarda-marinha recém chegado, e muito menos a um capitão de navio que passara toda sua vida no mar, ainda que quase todos pensassem que poderiam conseguir. Jack, visivelmente irritado, revistou os andrajos mal escondidos debaixo da elegante roupa e leu em voz alta para os oficiais das brigadas a lista de roupa que era obrigatório ter. A situação era pior do que esperava. A roupa estava em péssimas condições, se bem que as armas estavam em excelente estado, pois os marinheiros, temendo receber uma furiosa reprimenda, haviam polido os mosquetes, as baionetas, as pistolas, os sabres e inclusive as cartucheiras até que haviam brilhado mais que as armas dos militares.
- Plaice - disse a um marinheiro do castelo de certa idade e de cabelo grisalho, - estou seguro de que o senhor tem uma camisa de reserva. Tinha várias com o peitilho bordada quando inspecionamos as bolsas de roupa pela última vez. O que aconteceu?
Plaice, baixando a cabeça, disse que não sabia, e sugeriu sem muita convicção que os ratos as haviam comido.
- Duas camisas e duas camisas de algodão para Plaice, e também dois pares de meias e duas calças curtas - disse Jack para Rowan, que anotou tudo.
Avançaram até o marinheiro seguinte sem roupa para trocar-se. Era um homem que em um dia em que estava bêbado perdera seus pertences e agora toda sua bagagem era só um sapato.
- Senhor Calamy - disse o capitão Aubrey ao guarda-marinha encarregado de sua brigada, - diga-me qual é, conforme o regulamento, a roupa que nas altas latitudes devem ter os marinheiros, quer dizer, os marinheiros sóbrios e responsáveis que tripulam os barcos do Rei, não os irresponsáveis, preguiçosos e bêbados que tripulam os barcos corsários.
- Duas casacas azuis, um jaquetão, duas calças azuis, dois pares de sapatos, seis camisas, quatro pares de meias, duas camisas de Guernsey, dois chapéus, dois lenços negros de Barcelona, um cachecol, várias… - parou e então, baixando a voz e ruborizando-se, disse: - cuecas de flanela. E além disso, um colchão de palha, um travesseiro, dois cobertores e duas macas. Isso é tudo, senhor.
- E nas zonas de clima quente?
- Quatro camisas de algodão, quatro calças de dril, um chapéu de palha e uma capa de lona para as tempestades.
- E se um marinheiro não tem muitas destas coisas por esbanjo ou negligência, ou simples preguiça, deve ser incluído na lista dos que cometem faltas, ser levado ao portal, colocado em um mal gradeado e receber doze açoites por cada coisa que esteja faltando, não é verdade?
- Sim, senhor - disse em voz muito baixa.
- Este homem pertence à sua brigada. É um dos tripulantes de sua lancha. O senhor sabia que se havia ficado somente com um sapato e não fez nada. Não acha que é responsável pelo que fazem seus homens? O senhor é uma vergonha para a Armada. Ficará sem sua ração de grogue até que lhe avise. Agiu muito mal.
A situação era pior do que Jack esperava, ainda que estivesse habituado a ver sinais de pobreza extrema na Armada. Contudo, o senhor Adams e ele haviam trazido tantos suprimentos como se para os tripulantes lhes faltasse quase tudo, e o ajudante do contador ficou vendendo peças de roupa por toda a manhã. Pela tarde os tripulantes da Surprise que não pertenciam à brigada que trabalhava no Dromedary se sentaram na coberta, formando pequenos grupos, e para evitar que lhes criticassem porque a roupa não lhes caía bem, descosturaram, ajustaram e voltaram a costurar as peças de vestir fornecidas pela Junta Naval por um provedor.
Jack, que caminhava pela parte superior da exárcia com o senhor Alien, falando das possíveis formas de aumentar a velocidade do barco quando o vento viesse de proa, olhou para abaixo. A coberta lhe pareceu a oficina de um alfaiate, pois sobre ela havia pedaços de tecido e de fio por todas as partes, e os tripulantes estavam sentados com as pernas cruzadas e a cabeça inclinada sobre as roupas que costuravam, levantando o braço direito e movendo a agulha ritmicamente. Estava satisfeito não só porque os marinheiros tinham menos preguiça mas também porque o Dromedary, agora com o vento em popa, que não era o vento com que ele nem nenhum outro barco de exárcia de cruz navegava mais rápido, deslocava muita água com a proa e navegava a uma velocidade de cinco nós e quatro braças, uma velocidade suficiente para fazer a viagem em uma semana, se o vento não mudasse.
O vento seguiu soprando no mesmo quadrante por mais um dia e também pela manhã seguinte, e então a maioria dos tripulantes da Surprise ainda estavam costurando. Haviam terminado de arrumar a roupa de trabalho e agora recuperavam a roupa de vestir. Sabiam que no domingo ia se celebrar o ofício religioso (os marinheiros que tinham as melhores vozes, reunidos pelo senhor Martin, ensaiavam a canção Old Hundredth sob sua direção na bodega de proa, e a coberta vibraba como as paredes da caixa de ressonância de um enorme instrumento) e achavam que os tripulantes do Dromedary iam assistir a ele muito bem vestidos, e como não queriam que os tripulantes de um mercante lhes superassem em elegância, mas não lhes parecia adequado pôr a roupa de descer a terra, porque era luxuosa demais, nem tinham tempo para fazer finos bordados, estavam costurando fitas nas costuras da roupa.
Apesar disso, alguns haviam dedicado algum tempo para polir o sino de escafandrista do doutor, e agora as grandes placas de chumbo que recobriam a parte inferior tinham o brilho mais intenso que o atrito da areia e da argila podiam dar, e as placas de latão da parte superior brilhavam mais que o sol. Haviam feito isto para demostrar que sentiam simpatia por Stephen, que caminhava pelo barco com um gorro de dormir ensangüentado e tinha um aspecto lamentável, e agora sentiam mais simpatia por ele que antes porque estavam convencidos de que estava bêbado quando sofreu a ferida.
Mas hoje o doutor Maturin não ia usar o gorro de dormir, pois todos haviam dito que devia pôr uma peruca, ainda que lhe molestasse muito, porque o capitão da Surprise e seus oficiais haviam convidado para almoçar ao capitão do Dromedary e ao seu primeiro oficial. Mas haviam acrescentado que, apesar de que ser tão necessário ter posta a peruca como usar calções durante a refeição, poderia afastá-la um pouco para trás quando tirassem a mesa e inclusive tirá-la se cantassem ao final da refeição. Portanto, com a peruca posta, Stephen foi para sua enfermaria provisória. Depois de atender a dois novos pacientes, confirmou que tinham sífilis e lhes repreendeu por haver ido à enfermaria muito tarde, como todos costumavam fazer, e lhes disse que haviam perdido a cabeça e que perderiam os dentes, o nariz e inclusive a vida se não seguissem suas recomendações ao pé da letra. Suprimiu o grogue, prescreveu uma dieta leve, iniciou o tratamento apropriado e disse que o custo dos remédios seria descontado de seus pagamentos. Depois examinou a um tripulante do Dromedary, que tinha dor de dente, e chegou à conclusão de que deveria arrancar o dente imediatamente; e então mandou buscar dois de seus companheiros, para que lhe segurassem a cabeça, e ao infante de marinha que tocava o tambor.
- A bordo não há ninguém que toque o tambor, senhor - disse seu ajudante. - Todos os infantes da marinha ficaram em Malta.
- É verdade - disse Stephen. - Mas necessito que alguém toque o tambor.
Não tinha muita habilidade para extrair dentes, e por esse motivo queria que seu paciente estivesse aturdido e ensurdecido por um ruído muito forte.
- Neste barco não tocam um tambor quando há névoa? - acrescentou.
- Não, senhor - disseram os companheiros do marinheiro do Dromedary. - Usamos volutas e um mosquete.
- Bem, isso também poderia servir - disse Stephen. - Apresentem meus respeitos ao oficial encarregado da guarda e perguntem-lhe que se me pode proporcionar volutas e um mosquete. Não. Esperem. Poderemos golpear algumas panelas da cozinha.
Porém, posto que poucas mensagens se compreendem perfeitamente bem e poucos as transmitem sem acrescentar algo, o doutor extraiu o dente, laboriosamente e pedaço a pedaço, entre o som das volutas, o ruído dos golpes nas panelas de cobre e os disparos de dois mosquetes.
- Eu lhes rogo que me desculpem por chegar tarde - disse Stephen, sentando-se em seu posto, pois Jack e seus oficiais e os convidados já se haviam sentado à mesa. - Demorei porque fui à enfermaria.
- Parece que havia uma batalha ali.
- Não. Arranquei um dente, um dente muito difícil de extrair. Já ajudei a vir ao mundo a muitas crianças causando menos incômodos para meus pacientes.
Todos acharam que o comentário era de mau gosto, e Stephen não o teria feito se não o houvessem instado para que falasse, pois em circunstâncias normais, teria se lembrado que os marinheiros consideravam indelicado falar de qualquer coisa relacionada com a ginecologia. Guardou silêncio e, depois de tomar sopa suficiente para acalmar seu apetite, olhou ao seu redor. Jack estava sentado na cabeceira da mesa, à sua direita estava o capitão do Dromedary e à sua esquerda o senhor Smith, o primeiro oficial deste. Ao lado do senhor Alien se encontrava Mowett, que tinha em sua frente a Rowan. Stephen, que estava junto a Mowett, tinha em sua frente a Martin. O senhor Gill, o oficial de derrota da Surprise, estava à direita de Stephen, e em sua frente estava Hairabedian, o intérprete. E Honey e Maitland, os dois ajudantes do oficial de derrota, estavam um de cada lado do senhor Adams, que se encontrava no outro extremo da mesa.
Na presença do capitão, estes dois jovens eram agora como corpos inertes, na primeira parte da refeição, quando todos ainda estavam sóbrios, e o senhor Gill, que era um homem melancólico e não gostava de conversar com as pessoas, provavelmente permaneceria em silêncio do início até o fim. No centro da mesa, Martin e Hairabedian já haviam começado a falar, pois não tinham que sujeitar-se às convenções da Armada, mas era Jack, da cabeceira, quem teria que realizar a difícil tarefa de manter a conversa até que o almoço se animasse, mas não tinha sido porque, pouco antes que chegasse, os dois tenentes quase haviam chegado a se pegar por estarem em desacordo sobre o significado da palavra "dromedário". Os dois eram bons marinheiros e bons companheiros, e os dois cultivavam a poesia, mas Mowett escrevia poemas épicos em dísticos, e Rowan, em troca, preferia escrever com tanta liberdade como Píndaro. Contudo, cada um pensava que o outro escrevia mal porque não tinha inspiração poética e desconhecia a gramática e o significado das palavras. Quando haviam soado as duas badaladas da guarda da tarde, a rivalidade entre ambos havia chegado ao seu grau máximo pela palavra que o transporte tinha por nome, ainda que ninguém compreendia bem por que, pois parecia difícil encontrar outras que rimassem com ela, e ainda estavam tão aborrecidos que, apesar de que agora o capitão Aubrey comia o cordeiro de Valletta em silêncio, Rowan disse:
- Doutor, o senhor que é um naturalista poderá confirmar que um dromedário é um animal peludo e com duas corcovas que caminha devagar.
- Bobeiras! O doutor sabe perfeitamente que o dromedário tem uma só corcova e caminha rápido. Se não por que iam chamá-lo de o barco do deserto?
Stephen lançou um olhar para Martin, que estava perplexo, e depois disse:
- Se não me equivoco, o significado da palavra não é preciso, aliás varia de acordo com o critério de quem a usa.
Ocorre o mesmo com o nome "corveta", que os marinheiros atribuem a embarcações de um, dois e inclusive três mastros. E tenha em conta que há corvetas rápidas e lentas, assim que é possível que haja dromedários ágeis e lerdos. Contudo, tomando como exemplo o excelente barco do capitão Alien, acho que o dromedário ideal seria um que se movesse com rapidez e que, tivesse as corcovas que tivesse, pudesse dar um agradável passeio a quem montasse nele.
- Alguns dizem drumedario - disse o contador.
Então Jack mudou o tema porque pensou que esse poderia ser desagradável para os convidados, mas o senhor Alien reteve a palavra na mente e, depois de um tempo, olhando pela frente de Mowett para onde estava Stephen, disse:
- Senhor, eu lhe agradeço que tenha extraído o a dente do pobre Polwhele. Mas, por favor, diga-me por que precisava de um tambor para arrancá-lo.
- É um velho truque dos dentistas - disse Stephen, sorrindo, - mas dá bom resultado. Nas feiras, o ajudante do dentista toca o tambor não só para afogar os gritos do paciente, que poderiam afugentar outros clientes, mas também para provocar a perda parcial da sensibilidade durante certo tempo, no que seu patrão pode trabalhar. É um método empírico, mas muito bom. Durante as batalhas, amiúde notei que os feridos que eram levados para a enfermaria durante uma batalha não haviam percebido que tinham feridas, e muitas vezes cortei membros destroçados sem ouvir quase nenhuma lamúria e sondei as profundas feridas enquanto os pacientes seguiam falando com voz normal. Acho que isto se deve à intensa atividade, à excitação e ao atordoamento provocado pelo fragor da batalha.
- Estou convencido de que tem razão, doutor - disse Alien. - No ano passado entramos em um combate com um barco corsário no Canal. Era um lugre procedente da ilha Saint Malo e navegava a três nós, enquanto nosso barco navegava a dois. Os tripulantes nos dispararam um par de bombardeios e abordaram nosso barco em meio da fumaça, e não exagero se lhe digo que os forçamos a voltar para seu barco, o Víctor, tão rápido como haviam vindo, e a afastar-se dali imediatamente depois. Mas dizia tudo isto porque depois que o combate acabou, quando estava sentado tomando uma xícara de chá com o senhor Smith, aqui presente - disse, assinalando com a cabeça o seu primeiro oficial, - senti um incômodo no ombro e, ao tirar a casaca, vi que tinha um buraco e que eu tinha outro no ombro. Então percebi que tinha alojada no ombro uma bala de pistola, que havia penetrado tanto na carne que quase a havia traspassado. Senti o golpe sem dúvida, mas pensei que me havia caído em cima uma polia que se desprendera e não lhe dei importância.
Muitos outros disseram que a eles e a seus amigos lhes haviam ocorrido coisas parecidas. Depois de um breve silêncio, o capitão Aubrey contou que uma vez, quando era ajudante do oficial de derrota, uma bala lhe entrara por um lado, mas que não pudera distinguir entre a sensação produzida pela bala e a produzida pela ponta de uma lança que se lhe havia cravado nesse mesmo momento, e que a bala estivera se movendo pelo interior de seu corpo até que chegara a capitão, e que o doutor Maturin a havia sacado então de entre os ombros. Os outros contaram várias anedotas, que, apesar de se referirem a coisas um pouco desagradáveis, tornaram a refeição amena.
A conversa e os risos não cessaram desde então até que tiraram a mesa, ainda que Stephen, que ultimamente se incomodava com a companhia de outras pessoas, permaneceu em silêncio, pensando na senhora Fielding. Depois, enquanto comiam figos e amêndoas verdes, Stephen viu Rowan inclinar-se para frente para dizer algo ao intérprete.
- O senhor disse que conhecia ao lorde Byron?
Hairabedian respondeu que sim, o conhecia. Disse que tinha a honra de ter comido duas vezes com ele e com vários comerciantes armênios que viviam em Constantinopla, e que uma vez lhe entregara uma toalha quando saía tremendo e arroxado das águas do Helesponto. Stephen escrutinou sua cara redonda e risonha para saber se dizia a verdade. Em Valletta falara com muitas pessoas que afirmavam ter conhecido a Byron. As mulheres diziam que haviam recusado suas insinuações, e os homens, que lhe haviam baixado a bola. Stephen chegou à conclusão de que Hairabedian dizia a verdade. Não tratara muito ao intérprete, mas lhe parecia que era realmente um homem instruído, pois falara a Martin da doutrina dos monofisitas, que seguiam a Igreja armênia e a copta, e a dos homusianos, de tal modo que era evidente que as conhecia em profundidade. Além disso, havia ganhado a simpatia dos oficiais, não por falar muito, ainda que falasse um inglês quase perfeito, mas porque tinha um olhar vivo e um riso contagioso, ele os escutava atentamente e admirava a Armada real.
Nesse momento vieram buscar Mowett, e o jovem se foi contra a sua vontade. Enquanto Rowan, Martin, o contador e os ajudantes do oficial de derrota faziam perguntas a Hairabedian, o senhor Alien se inclinou para Stephen e perguntou:
- Quem é esse tal Byron que as pessoas falam constantemente?
- É um poeta, senhor - respondeu Stephen. - Escreve poemas muito ruins com fragmentos de autêntica poesia intercalados, ainda que não sejam, mas parecem poesia autêntica em contraste com os outros. Não li muitos livros seus.
- Eu gosto de ouvir bons poemas - disse o senhor Alien.
Jack tossiu e a conversa cessou. Então pegou uma das garrafas de vinho que acabavam de trazer, encheu sua taça e disse:
- Senhor Adams, brindemos ao Rei!
- Cavalheiros, brindemos ao Rei! - disse o senhor Adams.
Depois brindaram pelo Dromedary, pela Surprise e por suas noivas e esposas, e então Jack, olhando para o senhor Alien, disse:
- Se gosta de ouvir poemas, o senhor veio ao lugar certo. Meus dois tenentes são excelentes poetas. Rowan, agrade ao capitão com o poema que relata as façanhas de sir Michael Seymour, quer dizer, o primeiro deles, mas comece pela metade para que não demore muito.
- Bem, senhor, este é o combate com o Thetis, sabe? - disse Rowan, olhando sorridente para o senhor Alien, e depois, sem abandonar o tom coloquial, continuou:
Dou testemunho de que não se viu há
anos uma luta tão feroz.
Às sete da noite a batalha começou,
e passaram muitas horas até que terminou.
Houve muitos feridos e muitos mortos
também, e o sangue cobriu o convés
e pelos embornais saiu.
Por três horas e vinte minutos sustentamos o horrível combate,
e com trincas amarramos
seu barco ao nosso para que não pudessem fugir.
Muitas vezes tentaram a abordagem, mas
com rapidez lhes fizemos retroceder,
e ainda que fossem muitos,
no final lhes pudemos vencer.
Então arriaram sua bandeira, porque lutar
já não podiam, e os marinheiros britânicos,
contemplando o admirável espetáculo,
deram três vivas.
Tomamos posse do barco sem tardar,
e a Plymouth o mandamos, companheiros,
sem esperar mais.
Tinha grande quantidade de canhões
e munições também,
e mil tonéis de farinha que foram para os
marinheiros um valioso butim.
O barco vinha da Martinica, essa é a verdade
e a tenho que dizer,
mas o encontramos no meio da noite
e à sua carreira pusemos um fim.
Mowett havia chegado quando o jovem recitava os últimos versos, e Jack, notando sua decepção má dissimulada, olhou para o senhor Alien e disse:
- Os poemas de meu primeiro oficial também são excelentes, senhor, mas talvez seu estilo não lhe agrade, porque é moderno.
- Oh, não, senhor! - exclamou Alien com a cara vermelha e com gesto risonho. - Ah, ah, ah! Gosto muito!
- Então queria que recitasse o poema do delfim moribundo, senhor Mowett - disse Jack.
- Bem, se insiste, senhor - disse Mowett com satisfação e, depois de explicar que o poema narrava a história de alguns pescadores no mar Egeu, em tom grave, recitou:
Agora os marinheiros, para o barco aliviar,
diminuem as gáveas com um rizes.
Cada uma das altas vergas, com os cabos frouxos,
começa a cambalear,
e rangem os aparelhos e chiam suas rodas.
Pelas alturas cabos descem com rapidez as gáveas,
e logo, diminuidas, voltam a ocupar seu lugar.
Agora, perto da alta popa, uma manada de
delfins vem saltar.
De suas polidas escamas saíram luminosos raios
até que todo o oceano parecia arder.
de repente os marinheiros começam a caça mortal,
e compridos arpões e redes com isca começam a jogar.
Um dá voltas e mais voltas assustado
e, oh, desgraçado!, ao tridente se aproxima pouco
a pouco.
Stephen deixou de prestar atenção e pensou em Laura Fielding e em sua própia castidade, sua inoportuna, ilógica e inútil castidade, próxima ao puritanismo, e voltou ao presente ao ouvir os aplausos dedicados a Mowett quando terminou de recitar. Então o senhor Alien falou, e seu vozeirão, o característico vozeirão dos marinheiros, agora sem a débil oposição de algumas garrafas, distinguiu-se entre o ruído geral. Disse que o Dromedary não podia corresponder-lhes com o mesmo, porque não tinha a bordo cavalheiros de tanto talento, mas sim pelo menos com uma canção, que ele cantaria suprindo com boa vontade a possível falta de harmonia.
- Damas da Espanha, William - disse o seu primeiro oficial.
Deu três golpes na mesa e ambos começaram a cantar:
Adeus, adieu, bonitas damas espanholas,
adeus, adieu, damas da Espanha.
Recebemos ordens de regressar
à nossa querida Inglaterra
e talvez não voltaremos a vê-las nunca mais.
Quase todos os marinheiros sabiam a canção, e cantaram com eles o coro:
Gritaremos e riremos como autênticos
marinheiros britânicos,
e por todos os mares navegaremos
até chegar à entrada do canal de nossa
querida Inglaterra,
onde estão Ushant e Scilly, separadas por
trinta e cinco léguas.
Então o capitão e seu primeiro oficial continuaram:
Orçamos quando o vento soprou do sudoeste,
companheiros,
orçamos para aproximar-nos imediatamente da entrada,
e se inchou a gávea maior, companheiros, e
avançamos com rapidez,
e logo começamos a navegar pelo Canal.
Abaixo, no camarote de guardas-marinhas, os cadetes que haviam sido excluídos começaram a seguinte estrofe antes que os marinheiros que estavam na sala dos oficiais e, com voz forte, cantaram:
O primeiro cabo que avistamos foi Dodman,
e depois o Rame, perto de Plymouth,
o Start e o Portland e a ilha de Wight…
Mas a melhor recordação que Stephen teve daquela refeição foi a cara risonha de Hairabedian e seu vivo olhar e sua voz de contralto, com a qual, em meio do ruído estrondoso, dizia que ele, como os autênticos marinheiros britânicos, navegaria por todos os mares.
CAPÍTULO 5
O Dromedary navegava contra o vento, e sua quilha estava tão próxima da direção em que soprava que na coberta havia apenas ar para respirar e não se ouvia nenhum burburinho na exárcia. O silêncio era quase absoluto, pois só se ouvia o rangido das vergas e dos mastros quando o barco cabeceava suavemente entre as ondas e o rumor da água ao passar por seus costados. Havia silêncio no Dromedary apesar do castelo de popa estar abarrotado de marinheiros, pois estava sendo celebrado um ofício religioso.
Os tripulantes do transporte estavam acostumados a isto, porque seu barco costumava levar soldados de um lado para outro, e os soldados iam acompanhados de pastores com mais freqüência que os marinheiros. O carpinteiro havia convertido o cabrestante, que se encontrava justo detrás do pau maior, em uma mesa aceitável, e o veleiro havia transformado um retalho de lona de número oito em uma sobrepeliz que orgulharia a um bispo. O senhor Martin a havia tirado ao se preparar para pronunciar o sermão, e agora, em meio do respeitoso silêncio, olhava uma folha de papel com suas notas. Jack, sentado em uma cadeira com braços, percebeu de que ia ler algo escrito por ele mesmo em vez dos escritos do deão Donne ou do arcebispo Tillotson, como tinha por costume, e isso lhe causou ansiedade.
- Este fragmento o retirei do Eclesiastes. É o versículo oito do capítulo doze: "Vaidade das vaidades, disse o pregador, e tudo vaidade" - disse Martin, e fez uma breve pausa.
Os marinheiros o olhavam expectantes. O vento era favorável e a velocidade média do barco fora de cinco ou seis nós desde que saíra de Malta, e às vezes chegara a oito ou nove, e Jack, pela estimativa que fizera e que quase coincidia com a de Alien, achava que avistariam terra nessa manhã. Sua força de vontade e o inexplicável encolhimento dos músculos do estômago haviam contribuído para que deixasse de tentar que o barco navegasse mais rápido, e agora, quando se dispunha a escutar ao senhor Martin, percebeu de que no fundo de sua mente ferviam idéias que lhe provocavam entusiasmo, como ocorria em sua juventude. Seus homens também se sentiam alegres, pois estavam tão bem vestidos como os tripulantes do Dromedary, sabiam que faltava uma hora mais ou menos para que lhes servissem a carne de porco e o pudim de passas dos domingos, e, além disso, o grogue, e pensavam que poderiam conseguir um valioso butim no mar Vermelho.
- Quando subi a bordo do Worcester, para começar a exercer meu ministério na Armada - continuou o senhor Martin, - a primeira coisa que ouvi foi: "Garis!".
Os fiéis sorriram e assentiram com a cabeça, pensando que nada era mais normal que isso em um barco de guerra respeitável, sobretudo se o primeiro oficial fose o senhor Pullings.
- Já na manhã seguinte me despertou o ruído que faziam os tripulantes ao limpar a coberta com a pedra arenito e os esfregões, e pela tarde vi que outros pintavam um grande pedaço de um lado.
Seguiu falando deste tipo de coisas durante um tempo, e os marinheiros o olhavam com satisfação quando fazia uma descrição técnica exata e também quando errava em algum detalhe, e o olharam com mais satisfação mesmo quando lhes contou que havia visitado sua fragata.
- … a "Alegre Surprise", como a chamam na Armada. Todos me haviam explicado que era a fragata mais bonita do Mediterrâneo e também a mais veloz, apesar de ser pequena.
Como Stephen Maturin era um papista, não participava desse tipo de ofício religioso; contudo, havia ficado tanto tempo no cesto da gávea do mezena, olhando para o céu pelo telescópio do capitão Aubrey para ver se aparecia alguma andorinha do mar Caspio, que o ofício religioso começara quando ainda estava ali, por isso pôde ouvir tudo o que diziam e cantavam nele. Enquanto os tripulantes da Surprise e os do Dromedary cantavam os hinos e os salmos, nos quais havia mais veemência que musicalidade devido à rivalidade que havia entre eles, Stephen deixou de prestar atenção e voltou a pensar em Diana e na carta anônima. Pensou em sua peculiar fidelidade e no rancor que guardava por uma leve ofensa, e lhe pareceu que podia comparar-se com um falcão que vira quando era menino na casa de seu avô, na Espanha, um falcão comum que haviam caçado no bosque e haviam domesticado. Tinha uma audácia e uma coragem extraordinários, era inimigo mortal das garças, dos patos e inclusive dos gansos, e ainda que fosse afetuoso com quem lhe era simpático, tornava-se hostil e inclusive perigoso se lhes ofendessem. Uma vez o menino Stephen dera de comer a um açor na frente do falcão, e desde então o falcão lhe olhava fixamente, com seus grandes olhos negros muito abertos, e não havia voltado a se aproximar dele. "Nunca ofenderei a Diana", pensou. Nesse momento os fiéis disseram "Amém!", e pouco depois o senhor Martin começou a pronunciar seu sermão. Stephen, que desconhecia o modo como os sacerdotes anglicanos pregavam do pulpito, escutou com atenção. "Que passa?", perguntou-se ao ouvir ao pastor falar tanto da limpeza e da manutenção de um barco de guerra.
- E o que há no final de tanta limpeza e tanta pintura? - perguntou o senhor Martin. - O desmache, isso é o que há ao final. A Armada vende o barco, e talvez o barco seja usado como mercante durante alguns anos, mas ao final, a menos que tenha afundado ou queimado antes, chega ao desmache, convertido em um simples casco. Inclusive o barco mais bonito, inclusive a "Alegre Surprise", terminará por converter-se em lenha e sucata.
Stephen olhou para os oficiais da Surprise, para o contador, para o condestável e para o carpinteiro. Todos pertenciam à sua tripulação já fazia muitos anos e estiveram a bordo mais tempo que muitos capitães, tenentes e cirurgiões. O carpinteiro, um homem aprazível por natureza e, além disso, por sua profissão, estava perplexo, enquanto que o senhor Hollar e o senhor Borrell tinham o cenho e os lábios franzidos e olhavam para o pastor com uma mistura de desconfiança e raiva. Stephen não podia ver a cara de Jack Aubrey desde o cesto da gávea do mezena, mas via suas costas, e pela forma como estava erguida, supôs que sua expressão era mal-humorada. Além disso, muitos dos tripulantes mais antigos distavam muito de estar comprazidos.
Como se tivesse notado a antipatia que despertara naqueles que lhe rodeavam, o senhor Martin continuou o sermão falando rápido. Convidou aos que lhe escutavam a pensar na viagem que o homem fazia através da vida, e em que durante essa viagem cuidava de seu corpo, lavando-se, vistiéndose e alimentando-se, e cuidava de sua saúde, às vezes em extremo, com exercício, passeios a cavalo, abstinência, banhos de mar, banhos frios, gibões de flanela, sangrias, suores, dietas e remédios, mas que tudo isso não servia de nada, porque ao final seria derrotado inevitavelmente, ao final chegaria à decrepitude e talvez inclusive à imbecilidade. Acrescentou que se a morte não o derrotasse quando era jovem, poderiam provocar sua derrota a velhice e a falta de saúde, de amigos e de comodidades em um momento em que a mente e o corpo eram menos fortes para suportá-los, ou talvez a insuportável separação do marido e da mulher, ou muitas outras coisas. E terminou dizendo que ao final da vida neste mundo não há surpresas, e muito menos surpresas agradáveis, mas duas coisas certas: a derrota e a morte.
- Coberta! - gritou o serviola desde a verga joanete de proa. - Terra pela amura de estibordo!
O grito mudou por completo o ambiente e interrompeu o sermão do senhor Martin. Depois o pastor fez o quanto pôde para esclarecer que apesar da vida do homem na Terra poder comparar-se com a de um barco, o homem tinha uma parte imortal e o barco, em troca, não, e que a limpeza e a manutenção dessa parte imortal lhe permitiria encontrar-se ao final com uma agradável surpresa, mas que a negligência, tanto por falta de reflexão como por falta de continência, o levaria à morte eterna. Contudo, muitos dos fiéis haviam deixado de sentir simpatia por ele e muitos mais haviam deixado de prestar-lhe atenção, e, além disso, ele não era um bom orador e sua segurança e seu poder de convicção haviam diminuído pelo fato de ter sido desprezado, assim que se desanimou e voltou a pôr a sobrepeliz e terminou o ofício religioso da forma tradicional.
Alguns momentos depois do último amém, o senhor Alien subiu ao cesto da gávea do maior seguido de Jack.
- Aí está, senhor - disse em tom triunfal, dando o telescópio para Jack. - na colina da direita fica a fortaleza de Tina, e na da esquerda, a velha cidade de Pelusio. A passada foi muito rápida, ainda que eu não deveria dizê-lo.
- A mais rápida que vi em minha vida - disse Jack. - Eu lhe felicito, senhor.
Ficou observando a distante costa, uma costa lisa e baixa, durante um tempo e perguntou:
- Vê uma espécie de nuvem no noroeste da fortaleza?
- Provavelmente são as aves aquáticas que vivem na boca do Nilo - respondeu Alien. - Essa parte não é mais que um imenso lamaçal agora, e as aves se criam ali a centenas. Há grous, corvos marinhos e outras aves parecidas. Passam a noite guaguejando, e se algo passa perto dali quando o vento sopra do sudoeste, pode ouvi-las e, além disso, ver que a coberta se recobre de várias polegadas de excrementos.
- O doutor se encantará em saber disto - disse Jack. - Ele gosta muito das aves higiênicas.
Pouco depois, enquanto bebia uma taça de vinho Madeira na cabine, disse:
- Tenho uma surpresa para você, Stephen. O senhor Alien me disse que há inumeráveis aves aquáticas na boca do Nilo.
- Eu sei disso, meu amigo - disse Stephen. - Este extremo do delta é conhecido em todo o mundo cristão como a morada do franga de água de plumagem púrpura e de outras mil maravilhas da criação. E também sei perfeitamente que me obrigará a afastar-me daqui imediatamente, sem sentir remorsos, como já fez tantas vezes antes. Na verdade, eu me pergunto como é possível que haja cometido esta crueldade, que me tenha falado desse lugar.
- Não sem remorsos - disse Jack, voltando a encher a taça de Stephen. - O que ocorre é que não há tempo a perder, já sabe. Até agora tivemos muita sorte, porque o vento foi favorável em todo momento e a viagem foi mais rápida do que qualquer um poderia imaginar, e há muitas probabilidades de que cheguemos a Mubara muito antes da lua cheia, assim que seria uma lástima estragar tudo para ver a franga de água de plumagem púrpura. Contudo, se tivermos êxito, repito, Stephen, se tivermos êxito - disse Jack, tocando a perna da mesa, - prometo que na volta Martin e você poderão encher o estômago de frangas de água vermelhas, brancas e azuis, e de águias de duas cabeças no mar Vermelho e aqui.
Então fez uma pausa, ficou assobiando muito baixo alguns momentos e, por fim, continuou:
- Diga-me, Stephen, o que é uma bolsa?
- É um saquinho em que as pessoas guardam o dinheiro. Vi alguns e inclusive tive um em meus tempos.
- O que eu quero saber é o que os turcos chamam de uma bolsa.
- A quinhentas piastras.
- Meu Deus! - exclamou Jack.
Não era um homem cobiçoso nem avaro, mas desde sua juventude, muito antes de que se enamorasse das matemáticas, podia calcular com rapidez, como a maioria dos homens do mar, o butim que lhe corresponderia uma presa. Agora sua mente, acostumada há muito tempo a fazer cálculos astronômicos e náuticos, calculou em poucos segundos a parte de um butim de cinco mil bolsas que correspondia a um capitão e seu equivalente em libras esterlinas, uma impressionante soma que não só lhe permitiria resolver os complicados problemas que tinha na Inglaterra, mas também voltar a ter uma fortuna, pois havia arriscado a que fizera com sua habilidade como marinheiro, sua combatividade e sua boa sorte, e, desgraçadamente, perdera grande parte dela porque havia confiado muito nos homens do interior, a quem considerava mais honestos do que na realidade eram, e assinara documentos legais sem lê-los previamente porque lhe haviam assegurado que eram simples formalidades.
- Bem, essa é uma notícia muito boa, muito boa - disse, enchendo as taças outra vez. - Não falara deste assunto com ninguém até agora, porque não era algo certo mas apenas uma hipótese. E ainda é, sem dúvida. Mas, diga-me, Stephen, acha que temos possibilidades de ter êxito?
- Com respeito a este assunto, minha opinião tem muito pouco valor - disse Stephen, - mas acho que, em geral, quando se fala tanto de uma expedição como se falou desta, não há probabilidade de pegar o inimigo de surpresa. Era um tema de conversa freqüente em Malta, e não há nenhum homem a bordo que não saiba aonde vamos. Além disso, há que ter em conta esses elementos completamente novos, o acordo com os franceses e o envio da galera para pegar os engenheiros franceses, os canhões e o dinheiro. Naturalmente, não sei de que fonte procede a informação, e tampouco se é verdadeira, mas o senhor Pocock está convencido de que é verdade, e o senhor Pocock não é nenhum tonto.
- Me alegro muito de que penses assim - disse Jack. - Essa é exatamente minha opinião - acrescentou, sorrindo porque em sua mente via claramente a galera de Mubara navegando com rumo norte e bastante afundada na água por causa de sua pesada carga. - Ainda há surpresas agradáveis neste mundo, diga o que diga o senhor Martin. Tive dúzias delas. Você ouviu seu sermão, né?
- Estava no cesto da gávea do mezena.
- Queria que não houvesse falado assim da fragata.
- O fez para ser amável contigo e mostrar seu agradecimento.
- Oh, sim! Não ache que sou ingrato. Sei que o fez para ser amável comigo, e lhe estou agradecido. Mas os marinheiros estão mal-humorados, e Mowett, furioso. Mowett diz que nunca poderá conseguir que voltem a esmerar-se em limpar a coberta nem em pintar o barco, porque no sermão se dizia que ambas as coisas eram vaidades e que por sua causa o barco ia ao desmache.
- Se não o tivessem interrompido, não tenho dúvida de que teria se explicado melhor e faria compreender o sentido figurado de suas palavras inclusive para a pessoa menos inteligente. Porém, mesmo em um caso assim, é um erro usar tropos e símiles nesta época tão sem poesia, a menos que um seja outro Bossuet.
- Não há tanta falta de poesia, meu amigo- disse Jack. - Esta manhã mesmo, logo depois do ofício religioso, Rowan criou o verso mais bonito que já ouvi em minha vida. Ele estava examinando os canhões de seis libras com o segundo oficial e disse: "Oh, máquinas mortais cujas toscas gargantas / os terríveis gritos do imortal Júpiter imitam…".
- Excelente, excelente! Duvido que Shakespeare tivesse feito um melhor - disse Stephen muito sério, consentindo com a cabeça.
Há muito tempo se dera conta de que os dois jovens tinham uma tendência muito má, uma tendência a cometer plágios, originada pelo fato de que cada um pensava que o outro havia lido muito poucos livros além de Elements of Navigation.
- O almoço está servido - anunciou Killick, aparecendo na porta e deixando entrar um odor que lhes era familiar, o desagradável odor da couve fervida.
- Agora que o penso - disse Jack e esvaziou a taça, - acho que está equivocado com relação aos tropos e os símiles. Eu entendi a alusão imediatamente e disse a Alien: "Acho que se refere ao trovão", e Alien me respondeu: "Sim, percebi imediatamente".
Então sorriu, pensando na possibilidade de fazer um jogo de palavras com os termos "canhão" e "trovão", mas imediatamente lhe ocorreu uma frase melhor, e disse:
- Acho que Rowan é outro Bossuet.
Imediatamente seu riso franco e brincalhão encheu a cabine e a popa do Dromedary, seu eco chegou até a proa, e sua cara ficou vermelho escarlata. Killick e Stephen, sem poder evitar rir também, ficaram olhando-o até que perdeu o fôlego. Então Jack, ofegando, secou os olhos, e se levantou, murmurando ainda:
- Outro Bossuet! Meu Deus!
Durante o almoço o odor da couve e do cordeiro fervidos foi substituído pelo do lodo, pois o transporte estava se aproximando da costa e acabava de passar a invisível fronteira da zona onde o vento do oeste não vinha do alto mar mas do delta do Nilo e das marismas que bordejavam Pelusio. O senhor Martin havia estado silencioso até agora, apesar de que lhe haviam convidado a fazer um brinde o capitão Aubrey, o senhor Adams, o senhor Rowan, o doutor Maturin e inclusive o melancólico senhor Gill, que quase nunca bebia; contudo, nesse momento pôs uma expressão satisfeita. Então lançou um significativa olhada para Stephen e assim que pôde se levantou da mesa.
Stephen tinha que preparar algumas doses de medicamentos para os enfermos que teriam que ficar ali, mas quando terminou e entregou os xaropes e os granulados ao segundo oficial do Dromedary, um escocês de meia idade muito reservado, ele também foi correndo para a coberta. A costa estava muito mais perto do que esperava. Era uma costa lisa com uma extensa praia de areia de cor pardoa avermelhada que fazia o azul do mar parecer mais intenso ainda, detrás da praia havia dunas, e detrás das dunas uma colina sobre a qual se erguia uma fortaleza flanqueada por uma espécie de povoado. A umas duas milhas à esquerda havia outra colina, e, através do ar que vibrava pelo calor, viam-se pedaços de pedra espalhados que pareciam ruínas. Havia muito poucas palmas e estavam isoladas. O resto era uma infinita quantidade de areia, a areia branca do deserto de Sin.
O senhor Alien havia mandado arriar todas as velas exceto o velacho, e o transporte, com a âncora já preparada para ser jogada na água, aproximava-se da costa a uma velocidade suficiente apenas para manobrar, enquanto um sondador dizia qual era a profundidade do mar constantemente: "Marca vinte! Marca dezoito! Marca dezessete… !". Quase todos os que iam a bordo do transporte estavam na coberta olhando para a costa com curiosidade e, como era usual em ocasiões como essa, em silêncio. Por isso Stephen se assombrou ao ouvir um riso perto do costado do barco, e se assombrou mais ainda quando chegou do corrimão e viu Hairabedian dando pulos na água. Sabia que o intérprete armênio costumava banhar-se no Bósforo e o havia ouvido se lamentar de que o barco nunca navegava devagar o bastante para que ele pudesse dar um mergulho, mas havia suposto que se se jogasse na água era para dar umas pocas braçadas convulsivas, como ele fazia, e não mover-se entre as ondas com a soltura de um anfibío. Podia nadar com suficiente rapidez para manter-se junto ao transporte, e às vezes nadava com a metade de seu gorducho corpo fora da água e outras mergulhava e passava por debaixo do barco nadando e saía à superfície perto do costado oposto, lançando jorros de água como um tritão. Mas seus gritos e o borbulhar da água molestavam ao senhor Alien, porque nem sempre podia ouvir o sondador, e Jack, ao perceber isto, inclinou-se sobre a borda e gritou:
- Senhor Hairabedian, suba a bordo imediatamente, por favor!
O senhor Hairabedian subiu e ficou ali de pé alguns momentos. Tinha postos alguns calções de percal negros atados à cintura e os joelhos com fitas brancas que lhe davam um aspecto ridículo, e a água jorrava de seu corpo pequeno, largo como um barril e lanoso, e das mechas do cabelo preto que rodeavam sua calva. Como havia notado os olhares de censura, seu amplo sorriso de rã havia desaparecido e sua expressão alegre fora substituída por uma resignada. Mas seu mal-estar não durou muito. O senhor Alien deu a ordem de jogar a âncora, e imediatamente a âncora caiu na água e a amarra se desenrolou. Então o barco virou a proa contra o vento e o condestável fez a primeira das onze salvas que devia disparar, já que, conforme um acordo existente há tempos, cumprimentariam e seriam recebidos com esse número de salvas.
Mas parecia que as salvas surpreenderam aos turcos ou não os haviam tirado de sua sonolência, pois não responderam. Durante a comprida e silenciosa espera, Jack sentiu como sua indignação aumentava por momentos. Era capaz de suportar que o tratassem com descortesia e com desprezo, mas lhe parecia intolerável inclusive a mais leve ofensa à Armada real, e esta ofensa não era leve, pois responder ao cumprimento era um assunto muito importante. Ao olhar a fortaleza pelo telescópio, viu que o que pensava que era um povoado era na realidade um grupo de tendas entre as quais havia asnos e camelos e alguns homens com roupa de paisano sentados na sombra, e todo o conjunto lhe pareceu uma feira na qual todos estavam sonolentos. E não notou movimento no interior da fortaleza.
- Senhor Hairabedian, vá se vestir imediatamente. Senhor Mowett, desça a terra e diga ao senhor Hairabedian que lhes pergunte o que ocorre e o que pensam. Bonden, prepara minha falua rápido.
Hairabedian desceu correndo e reapareceu alguns minutos mais tarde com uma túnica branca e um casquete bordado. Então dois robustos marinheiros, tão desgostosos como seu capitão, desceram-no até a falua. A embarcação avançou pela costa com tanta rapidez que, pelo impulso que estava, parou sobre a praia. Mas antes de que Mowett e Hairabedian chegassem às dunas, ouviram-se débeis canhonaços na fortaleza e um grupo de soldados desceram pela vereda em direção a eles.
Como Jack não queria parecer preocupado, deu o telescópio para Calamy, e começou a passear pelo lado de estibordo do castelo de popa com as mãos atrás das costas. Mas o doutor Maturin não tinha essa preocupação, não estava ali para preservar a dignidade do rei Jorge nem de ninguém, assim que pegou o telescópio do cadete e o dirigiu para aquele grupo. Os soldados haviam chegado aonde estava a falua, e Hairabedian e três ou quatro deles discutiam à maneira oriental, agitando os braços, mas antes que Stephen pudesse descobrir o motivo da discussão (se era uma discussão), Martin lhe apontou uma ave que voava no alto do céu limpo, com suas asas brancas como a neve totalmente abertas, que parecia ser um colhereiro, e ambos ficaram olhando-o até que a falua regressou, nela vinha um funcionário egípcio pálido, sério e preocupado.
Jack conduziu os homens abaixo e ordenou que trouxessem café.
- Com sua permissão, senhor - disse Hairabedian em voz baixa, - o efêndi não pode comer nem beber nada até o por do sol. Estamos no ramadã.
- Nesse caso, não vamos atormentá-lo nem torturá-lo bebendo diante dele - disse Jack. - Killick! Killick! Não traga o café! Diga-me, senhor Hairabedian, o que ocorreu na costa? Este cavalheiro veio para convidar-me a descer a terra ou tenho que explodir a fortaleza diante de seus narizes?
Hairabedian o olhou alarmado, mas percebeu que o capitão Aubrey falava de brincadeira e, sorrindo, disse que o que havia ocorrido era que o Dromedary chegara muito cedo, que não o esperavam até depois do ramadã, e ainda que os habitantes do povoado já haviam reunido os animais de carga, que era precisamente o que fazia com que aquele lugar parecesse uma feira, os oficiais do Exército não estavam preparados. Acrescentou que durante os últimos dias do ramadã, muitos muçulmanos se retiravam para um lugar isolado para orar, e que o bei Murad estava na mesquita de Katia, a uma hora ou duas de caminho, e o segundo ao comando da guarnição acompanhara a um sacerdote que se retirara a um lugar costeiro e levara a chave do arsenal. Explicou-lhe que esse foi o motivo pelo qual demoraram para disparar as salvas quando o Dromedary chegou e que o único oficial que restava ali, um odabashi, viu-se obrigado a usar a pólvora que continham os frascos que os soldados levavam.
- Este cavalheiro é o odabashi?
- Oh, não, senhor! É um homem instruído, um efêndi, e escreve cartas poéticas em árabe e fala grego, e o odabashi, em troca, não é mais que um tosco militar, um soldado turco que tem uma patente equivalente à de contramestre. O odabashi não se atreve a abandonar seu posto e subir a bordo do transporte sem uma ordem, porque Murad é um homem irrascível e o esfolaria e depois o mandaria ao quartel general. Contudo, o honorável efêndi - disse, olhando para o egípcio e fazendo uma inclinação de cabeça, - é um funcionário, e sua situação é completamente diferente. Ele veio para apresentar-lhe seus respeitos e para dizer que tudo o que os habitantes do povoado tinham que preparar já está ponto e que com muito gosto lhe proporcionará qualquer coisa que necessite. Também quer comunicar-lhe que depois de amanhã trarão um grande número de lanchas de Menzala para levar seus homens e seus apetrechos para a costa.
- Diga ao efêndi que agradeço a sua visita e seus esforços, mas que não deve se preocupar com as lanchas, porque nós temos muitas. Além disso, depois de amanhã penso estar já a meio caminho de Suez. Por favor, pergunte-lhe se pode nos dizer como é o caminho de Suez.
- Diz que já viajou por esse caminho várias vezes, senhor. Diz que ao sul de Tel Farama, aquele monte que fica ali, e perto do oásis chamado Bir ed Dueidar, passa a rota das caravanas que vão para a Síria, e que o tramo que fica depois é o que seguem os peregrinos para ir ao mar Vermelho para pegar o barco que vai para Jeddah. Também diz que há vários oásis mais e que se os poços estiverem secos, pode ir para os lagos Balah e Timsah, e que o caminho é plano em quase toda sua extensão, e firme, a menos que tenha havido tormentas de areia, pois costumam formar dunas movediças.
- Sim, isso coincide com o que me haviam dito. Alegro-me que ele tenha confirmado. Por outro lado, suponho que o odabashi já deverá ter mandado avisar a Murad que estamos aqui.
- Temo que não, senhor. Diz que não se deve molestar ao Bei durante seu retiro por nenhum motivo, e que talvez regresse à fortaleza amanhã pela noite ou na noite seguinte. Também diz que, de toda forma, é melhor esperar que o ramadã termine para fazer algo, pois não se faz nada durante o ramadã.
- Compreendo. Então diga ao efêndi que desça a terra imediatamente e que proporcione cavalos para o senhor e para mim e também um guia. Nós desceremos assim que eu der as ordens necessárias.
Depois de esperar que o egípcio, mais pálido e preocupado do que antes e visivelmente fraco por falta de alimento, terminasse de descer pelo costado, Jack reuniu seus oficiais e lhes disse que se preparassem para desembarcar em brigadas.
- Será um desembarque vi et armis (pela força das armas), cavalheiros - disse e, satisfeito com a frase e com o desejo de obter alguma resposta, repetiu: - Vi et armis.
Então escrutinou os rostos sorridentes daqueles homens que se encontravam em sua frente e notou que estavam animados, mas que não haviam compreendido. Estavam contentes de vê-lo tão alegre, mas o que realmente lhes importava nesse momento era receber instruções claras e detalhadas. O capitão Aubrey, dando um suspiro quase imperceptível, as deu. Disse que os homens deviam desembarcar com as armas e a bagagem quando ele desse o sinal, que provavelmente daria dentro de meia hora, e, marchando em filas, iriam diretamente ao acampamento que haviam preparado para eles, e ali esperariam suas instruções; e não deviam se dispersar nem deitar, pois pensava percorrer um pequeno vão do caminho essa noite. Disse que daria aos tripulantes sua ração de tabaco e rum de quatro dias, porque se tivessem que beber, era melhor que bebessem como cristãos, e ordenou que dois suboficiais fossem sentados durante toda a viagem sobre os barris para vigiá-los. Por último, disse que, apesar de que daria aos marinheiros a comida do lugar, deviam levar a ração de bolachas desse mesmo período, pois assim se evitariam as queixas dos que têm o estômago delicado. Então, elevando a voz e voltando a cabeça pela cabine contígua, porque sabia que seu dispenseiro estava escutando atrás do anteparo, disse:
- Killick! Killick! Pegue uma camisa com peitilho, minha melhor casaca, as botas hessianas e as calças azuis, tanto faz se são adequados conforme a etiqueta ou não, porque não quero estragar os calções brancos cavalgando pela Ásia. E meu melhor chapéu, com o chelengk colocado. Você me ouviu?
Killick ouvira, e como entendera que o capitão ia visitar o comandante geral do Exército turco, pela primeira vez em sua vida pegou a melhor roupa sem resmungar nem propor outra diferente. Além do mais, chegou inclusive a pegar a medalha do Nilo de Jack e o sabre de cem guinéus.
"Meu Deus, aumentou um codo{12} de estatura!", pensou Stephen quando o capitão Aubrey apareceu na coberta abotoando o cinturão do qual pendurava esse sabre.
Era verdade. A idéia de realizar uma ação importante parecia aumentar a altura e a largura de Jack e lhe fazia pôr um gesto diferente, um gesto austero e evasivo. Jack era um homem realmente corpulento, capaz de levar sem dificuldade um monte de diamantes no chapéu, e quando aumentava sua estatura moral, seu aspecto causava muita impressão inclusive em quem o conhecia bem e sabia que era um homem benévolo e amável, ainda que nem sempre um companheiro agradável.
Jack falou com o senhor Alien e pouco depois, justo quando ele e Hairabedian estavam a ponto de descer para a falua, viu Stephen e Martin. Então sua expressão rude se transformou em algo risonho.
- Doutor, vou desembarcar - disse. - Quer vir comigo? - perguntou e, ao ver que Stephen olhava para seu companheiro, acrescentou: - Podemos fazer lugar para o senhor Martin, sem nos apertamos.
- E pensar que dentro de cinco ou dez minutos caminharei pela costa de África! - exclamou Martin quando a falua zarpou. - Não esperava lograr algo tão importante.
- Sinto decepcioná-lo - disse Jack, - mas essa costa que vê é a costa da Ásia. A África fica um pouco mais à direita.
- Ásia! - exclamou Martin. - tanto melhor!
Riu com vontade, e ainda ria quando a falua encalhou na areia da costa asiática.
O sinistro Davis, que era o remador de proa, saltou para a praia e colocou a prancha para que a água não salpicasse as reluzentes botas do capitão, e teve inclusive a amabilidade de dar sua mão peluda e áspera para Stephen e para Martin quando desciam torpemente como dois marinheiros de água doce.
A pouca distância da margem do mar, a areia dava passagem a um terreno ondulante coberto de lodo ressecado e de odor penetrante, e o terreno coberto de lodo dava passagem às dunas. Quando chegaram às dunas, o vento se acalmou e o calor expelido pela terra lhes envolveu, e com o calor chegou um enxame de moscas negras, gordas e peludas que se lançaram sobre eles e começaram a caminhar por suas caras, a subir pelas mangas de suas roupas e a descer por seus pescoços.
Ao final do caminho um homem gorducho lhes recebeu com seus longos braços pendurando aos lados do corpo. Era um militar e lhes cumprimentou à maneira turca. Depois olhou fixamente para Jack e seu chelengk, e em sua cara larga e de tez amarela verdosa, talvez a cara mais feia de todo o mundo muçulmano, apareceu uma expressão de assombro.
- Este é o odabashi - disse Hairabedian.
- Já vi - disse Jack, respondendo ao cumprimento.
Mas parecia que o odabashi não tinha nada que dizer, e como ansiavam chegar ao alto da colina porque pensavam que ali havia menos calor e menos moscas, Jack prosseguiu a marcha. Contudo, apenas havia avançado cinco jardas quando o odabashi se aproximou dele e, visivelmente nervoso, inclinou muitas vezes para a frente a parte superior de seu desproporcionado corpo enquanto, com sua voz áspera, dizia algo com ansiedade e respeito.
- Ele pede que entre pela entrada principal para que possa ser recebido pela guarda e os trompetistas - disse Hairabedian. - Também lhe roga que entre e tome um lugar à sombra.
- Agradeça e diga que tenho pressa e não posso me desviar de meu caminho - disse Jack. - Malditas moscas!
Era óbvio que o desgraçado odabashi não sabia que fazer, porque tinha medo de molestar a uma pessoa com um adorno tão valioso como o do capitão Aubrey e tinha medo do bei Murad. Estava tão angustiado que dizia incoerências; contudo, entre as desculpas e as frases inacabadas, disse algo muito claro, que não ia mandar buscar o seu chefe, porque o Bei dera ordem de que não o molestassem e o principal dever de um soldado era a obediência.
- Que se vá ao diabo! - disse Jack, caminhando ainda mais rápido entre as moscas. - Diga-lhe que vá dar lições de moral em outro lugar.
Agora subiam pela colina onde se encontrava a fortaleza, caminhando pelo lodo endurecido, e quando começaram a caminhar pelas dunas, o número de moscas diminuiu, mas o calor aumentou.
- Estácom uma cor ruim - disse Stephen. - Não acha que deveria tirar essa casaca tão grossa e afrouxar a gravata? Os sujeitos corpulentos e gordos são propensos a ter apoplexia e congestão cerebral e, por isso, a morrer de repente.
- Ficarei bem quando me sentar na sela de montar e comesse a cavalgar - disse Jack, que não tinha vontade de desfazer o perfeito nó de sua gravata. - Ali está o efêndi! Deus o abençoe!
Aproximavam-se do acampamento que ficava na ladeira da colina, ao leste da fortaleza, que agora dava sombra para a ladeira, e viram ao efêndi junto a vários cavalos e moços de estábulo, a certa distância das tendas e dos animais de carga. Então o efêndi mandou um garoto ir ao seu encontro. O garoto, que era bonito, magro e ágil como um gamo, ele os cumprimentou com um sorriso triunfal, disse que seria seu guia até Katia e os guiou por entre as tendas, as cabanas feitas de ramos de tamariz e os camelos que, deitados no solo na mesma postura que os gatos, olhavam ao seu redor com arrogância.
- Camelos! - gritou Martin. - Camelos! E, sem dúvida, estes são os tabernáculos em que se escreveu a Sagrada Escritura.
Seu único olho brilhou, e, apesar das moscas e do asfixiante calor, que para os que acabavam de vir do mar era mais difícil de suportar, pôs uma expressão alegre, uma expressão que contrastava com a dos cameleiros, que, apáticos por causa do jejum, estavam deitados na sombra e pareciam moribundos. Contudo, os cavalos tinham muita energia. Eram três bonitos cavalos árabes, dois deles baios e de pequeno tamanho, e o terceiro, uma égua de quase dezesseis palmos, e os três pareciam muito contentes e atentos ao que ocorria ao seu redor. A égua, uma das criaturas mais bonitas que Jack vira, tinha um raro colorido dourado, a cabeça pequena e os olhos grandes e brilhantes. Jack gostou da égua assim que a viu e, aparentemente, causou-lhe boa impressão, porque aguçou suas pequenas orelhas e o olhou com interesse quando ele lhe perguntou como estava.
- Senhor Hairabedian, por favor, diga ao efêndi que admiro seu bom gosto - disse, passando a mão pelo pescoço da égua, - que a égua é muito bonita e que lhe estou muito agradecido. Conte-lhe os preparativos que fizemos para o desembarque dos marinheiros e diga-lhe que terão que esperar aqui até que eu regresse, que provavelmente será pouco depois do ocaso, e que espero que então os marinheiros já hajam comido, os animais já hajam bebido, as tendas estejam dobradas e as lanternas preparadas, porque assim poderemos pôr-nos em marcha sem perder nem um minuto.
Hairabedian deu a mensagem ao efêndi, que deixou de ter uma expressão preocupada e, em tom satisfeito, disse que as instruções do capitão seriam seguidas ao pé da letra.
- Muito bem - disse Jack. - Doutor Maturin, tenha a amabilidade de fazer o sinal combinado para barco com seu lenço.
Estava a ponto de montar quando o odabashi avançou e agarrou as rédeas para ajudar-lhe a subir, dizendo algo muito semelhante a "Perdoe-me, milord".
- Obrigado, odabashi - disse Jack. - Sem dúvida, o senhor é um homem honesto, mas muito tonto. Que foi? - perguntou, olhando para Stephen, que havia segurado uma rédea.
- Suponho que não terá nada contra a que nos aproximemos um pouco do delta, em camelo talvez. Assim poderemos caminhar pela África e ver parte de sua flora.
- Não tenho nada contra - disse Jack. - Pode recolher todas as flores que queira contanto que cuide de não ser devorado pelos leões e pelos crocodilos, e, sobretudo, que regresse a tempo. Quer que Hairabedian fale com o efêndi para que lhes ajude?
- Não, não. Nós nos viramos muito bem com o grego. Vá com Deus!
Jack moveu para um lado a cabeça da égua e seguiu o garoto. Começaram a descer a colina obliquamente por detrás da fortaleza, e quando chegaram abaixo viram um grupo de tendas negras entre as quais havia camelos e cavalos atados com cabrestos: era um acampamento beduíno. Então a égua levantou a cabeça e deu um forte relincho. Um homem com uma barba longa e grizalha e uma camisa de dormir suja saiu de uma das tendas e cumprimentou com a mão, e a égua voltou a relinchar.
- O garoto diz que esse é Mohamed ibn Rashid, o homem maior e mais gordo de Beni Khoda, o mais pesado do deserto do norte. Também diz que a égua é sua e que todos pensaram que seria adequada para o senhor - disse Hairabedian.
- Bem, não há nada como a sinceridade - continuou, orientando a cabeça da égua, que tentava aproximar-se das tendas. - Só tardaremos uma hora mais ou menos para chegar a Katia. Leve-me até ali e depois voltará para seu dono.
Não tinha dúvida de que a égua lhe entendera perfeitamente bem. A viu mover suas pequenas orelhas uma ou duas vezes e incliná-las para frente, e depois dar um curioso saltinho para mudar o passo e começar a trotar. Deixaram para trás, à direita, a colina onde ficavam as ruínas de Pelusio, e agora tinham diante deles uma vasta extensão de areia dura de colorido pardo avermelhado salpicada de pequenas pedras planas. Então a égua começou a andar a galope, dando saltos exageradamente compridos, e seus movimentos eram tão ágeis que parecia que levava em cima um menino, e muito magro, em vez de um corpulento capitão de navio com seu magnífico uniforme e um monte de galões dourados. Mas isto não a impedia de galopar. O garoto fez com que seu cavalo ultrapassasse os outros, mas Jack notou que a égua não gostou porque ficou tensa. Então deixou que fizesse o que quisesse, e ela trocou o passo imediatamente, como se a impulsionassem. Poucos momentos depois já estava do outro lado da baía, correndo pela planície velozmente, tão velozmente como Jack nunca havia imaginado, e com os mesmos movimentos ágeis e perfeitos, saltando tão alto e tocando o solo a intervalos tão compridos que parecia voar. Jack sentiu o vento golpear-lhe a cara e atravessar sua grossa casaca, e seu coração se encheu de gozo. Nunca havia sentido tanto prazer cavalgando; nunca achara que era tão bom cavaleiro, e, verdadeiramente, nunca cavalgara tão bem.
Mas isso não podia durar. Freou a égua devagar, dizendo:
- Vamos, querida, este comportamento não é prudente. Temos um longo caminho que percorrer.
A égua voltou a relinchar, e Jack notou com assombro que não estava mais sufocada do que antes. Pouco depois os outros lhe alcançaram (Hairabedian fazendo um grande esforço para avançar), e Jack perguntou qual era seu nome.
- Yamina - respondeu o garoto.
"Se tivermos êxito, e se o dinheiro tentar ao homem mais gordo do deserto, a levarei comigo e a meterei em meu estábulo. As crianças poderiam aprender a montar nela, e graças a ela Sophie se reconciliaria com os cavalos", pensou Jack.
Seguiram cavalgando, agora a uma velocidade mais prudente, e Jack pensou em Murad. Pelo que lhe havia ocorrido em Jônia, sabia que amiúde havia uma grande diferença entre os objetivos do Sultão e os dos governantes turcos locais, e entre o que um ordenava e o que os outros faziam. Pensou em várias formas de tratar com ele, mas as descartou e depois pensou: "Se for um turco honesto e franco, imediatamente nos poremos de acordo, mas se for um homem tortuoso, terei que averiguar quais são suas idéias. E se não posso pôr-me de acordo com ele, terei que fazer a viagem sozinho, ainda que esse será um mau começo".
Agora que o hipotético plano havia se convertido em uma possibilidade, desejava com ânsia que tivesse êxito. Sem dúvida, um dos motivos era o tesouro que, conforme diziam, a galera levava para Mubara, mas não era o único. Já fazia algum tempo, estava descontente consigo mesmo, e ainda que por ter sido enviado para Jônia, os franceses haviam sido expulsos de Marga, sabia muito bem que isso se deveu em grande parte à sorte e ao excelente comportamento de seus aliados turcos e albaneses. Também havia afundado a Torgud, mas não em uma batalha entre forças equiparáveis, mas em uma matança, e uma matança não podia acabar com seu sentimento de insatisfação. Achava que a reputação que tinha na Armada (tendo em conta que ele mesmo era alguém que julgava os atos de Jack Aubrey de certa distância e conhecendo perfeitamente sua motivação) se devia a duas ou três vitoriosas batalhas navais que podia recordar com satisfação, apesar de que haviam sido pequenas. Mas pertenciam ao passado, haviam ocorrido há muito tempo, e agora havia vários marinheiros aos quais aqueles cuja opinião lhe importava atribuíam mais coragem. Por exemplo, o jovem Hoste havia feito grandes façanhas no Adriático, e Hoste era um capitão de navio de menos antiguidade. Parecia que participava de uma corrida, uma corrida na qual estivera em um bom lugar durante um tempo, depois de ter avançado lentamente no princípio, mas na qual não pudera seguir na frente e fora ultrapassado por alguns. Talvez isso ocorrera por falta de resolução, talvez por falta de sensatez, talvez por falta de uma especial qualidade sem nome que fazia com que alguns homens tivessem êxito e outros não, ainda que fizessem o mesmo esforço para consegui-lo. Não podia dizer com segurança qual fora seu erro. Alguns dias era capaz de afirmar com convicção que tudo fora obra da fatalidade, o reverso da boa sorte que lhe acompanhara desde que tinha vinte anos até que tinha trinta e tantos, o restabelecimento do equilíbrio; contudo, outros dias lhe parecia que seu sentimento de insatisfação era uma prova irrefutável de que cometera um erro, e que, apesar dele não saber qual era, os outros sabiam, sobretudo os que estavam no poder, o que era óbvio porque haviam designado os melhores barcos para outros homens, não para ele.
Jack levantou a cabeça. Se sentia tão bem cavalgando a esse ritmo quase perfeito que havia ficado absorto em suas meditações, e se surpreendeu ao ver muito perto dali uma pequena cidade. À esquerda da aldeia havia um grupo de palmeiras tamareiras que pareciam brotar da areia, à direita havia uma mesquita com a cúpula azul, e entre ambos se erguiam casas de paredes brancas e tetos planos. O caminho que seguiam já se unira à rota das caravanas que iam à Síria, um caminho largo e reto como um cabo esticado que se estendia para o leste, e muito mais diante deles se via uma caravana de camelos carregados que caminhavam com passo lento em direção à Palestina.
Quando entraram na cidade, passaram pelo lado de um monte de lixo que havia justo ao lado dos poços, e uma revoada de abutres que estavam em cima saíram voando.
- Que aves são essas? - perguntou Jack.
- Diz o garoto que as de plumas brancas e negras são abutres - disse Hairabedian, - e que essas grandes de colorido pardo as chamam de "filhas do lixo".
- Espero que o doutor possa vê-las - disse Jack. - Ele gosta de aves raras, sejam quais forem.
"Meu Deus! Isto parece um forno!", pensou, pois agora que cavalgavam muito devagar o ar não se movia, e o calor aumentava pela luz que reverberava nas muralhas da cidade, e o sol, ainda que já estivesse perto do horizonte ao oeste, seguia brilhando com intensidade, e seus raios lhe acertavam em cheio nas costas.
Katia era uma cidade pequena, mas tinha um elegante café. O garoto lhes guiou pelas estreitas ruas desertas até seu pátio traseiro e ali pediu a ajuda de alguns moços de estábulo em tom autoritário. Jack se alegrou de saber que os cavalos eram conhecidos ali e viu que tratavam Yamina com um cuidado que lhe teria parecido exagerado se não houvesse cavalgado nela.
Entraram em um amplo e escuro local de teto alto com uma fonte no centro. Havia um banco com almofadas encostado nas três das paredes, embaixo de janelas de rótulas e sem vidros sombreadas por frondosas árvores. No banco havia dois ou três grupos de homens sentados de cócoras fumando cachimbos de água, alguns em silêncio e outros conversando em voz muito baixa. A conversa cessou quando eles entraram, mas continuou apenas um segundo depois, no mesmo tom. O ar era muito fresco e produzia uma agradável sensação, e quando o garoto lhes conduziu a um canto afastado, Jack pensou: "Se me sento aqui sem me mover, talvez o suor pare de correr pelas costas imediatamente".
- O garoto foi avisar ao Bei que o senhor está aqui - disse Hairabedian. - Diz que é o único que pode incomodar-lhe sem correr perigo. Além disso, diz que como somos cristãos, podemos comer se quisermos.
Jack reprimiu as palavras que surgiram em sua mente e se limitou a dizer em tom indiferente que preferia esperar. Pensou que era uma descortesia comer e beber diante daqueles barbudos cavalheiros que não podiam fazê-lo, e, além disso, que havia a possibilidade de que o Bei entrasse quando ele não havia terminado ainda as pintas de sorvete que tanto desejava tomar. Ficou sentado ali, escutando a água da fonte, e sentiu frescor por todo o corpo. Enquanto a luz do dia diminuía, seguia pensando na bonita égua com satisfação, porém, ao ver o garoto regressar correndo, sentiu ansiedade. O garoto havia comido, pois estava tragando algo e sacudia migalhas da boca enquanto gritava: "Aí vem!".
Efetivamente, o Bei vinha. Era um homem baixo, com uma pequena barba e um bigode brancos, e usava um turbante e um uniforme simples, cujo único detalhe luxuoso era um iatagã com a empunhadura de jade. Foi diretamente aonde Jack estava e lhe apertou a mão à maneira européia, e Jack viu com agrado que parecia irmão de Sciahan, seu aliado anterior, um turco honesto e franco.
- O Bei lhe dá boas-vindas e diz com assombro que já está o senhor aqui - disse Hairabedian.
Jack se sentiu como em sua pátria ao ouvir essa exclamação típica dos soldados e respondeu que ali estava. Agradeceu pelas boas-vindas e disse que se alegrava de ver-lhe.
- O Bei pergunta se quer beber algo.
- Diga ao Bei que eu gostaria de tomar um sorvete quando ele estime conveniente tomar algo.
- O Bei diz que esteve em Acre com lorde Smith quando Bonaparte foi derrotado e que reconheceu seu uniforme imediatamente. Quer que venha ao pavilhão para que fume com ele.
Reuniram-se sentados ao redor de uma cuba de água, em um pequeno jardim privado, e falaram com naturalidade e claramente, como Jack desejava. Murad rogou ao capitão Aubrey que esperasse que terminasse o ramadã e houvesse lua nova, pois para os soldados turcos que levaria de escolta, que observavam rigoroso jejum, seria difícil percorrer grandes distâncias em jejum e com o terrível calor do dia, e, além disso, faltava pouco para que chegasse a festa de Sheker Baram, que se celebrava no final do ramadã, e ambos poderiam comer juntos durante todo o dia. Mas quando Jack disse com toda franqueza que tinha pensado em fazer a viagem de noite porque não devia perder nem um minuto, já que um atraso poderia ter uma influência nefasta na expedição, o Bei sorriu e disse:
- Os senhores os jovens sempre são impacientes para entrar em ação. Bem, regressarei esta tarde com o senhor e darei ordem de que lhe proporcionem uma escolta. Meu odabashi, que é um homem estúpido, mas tão valente como um urso, e que obedece e sabe se fazer obedecer por seus homens lhe acompanhará. Além disso, acredito que tem noções de baixo alemão. Escolherá três ou quatro homens que não tenham medo dos espíritos nem dos demônios da noite, se é que pode achá-los. O deserto fica cheio desses espíritos, sabe? Mas sou um homem velho e jejuei o dia todo, assim que necessito comer algo antes de empreender a viagem.
Jack disse que esperaria com muito gosto e rogou a Murad que entretanto lhe contasse como havia ocorrido o sítio de Acre.
- Conheço a sir Sidney Smith e tenho alguns amigos no Tigre e no Theseus - disse, - mas não hei ouvi nunca a história contada por um turco.
Agora a ouviu. E Murad estava fazendo um vivido relato do último e desesperado assalto, quando a bandeira francesa ondeava ainda em uma das torres exteriores, os homens lutavam furiosamente na brecha e o paxá Jezzar estava sentado em sua cadeira detrás dele e repartia munições e recompensava aos que lhe traziam cabeças de soldados franceses, quando se ouviu por todo o café e toda a cidade um ruído confuso que indicava que o longo dia de jejum se havia acabado oficialmente e que os homens podiam comer e beber outra vez.
Já havia escurecido quando saíram do pátio e avançaram pela porta da cidade seguidos pelo som amortecido dos cascos dos cavalos ao afundar-se na areia dos becos, e as lanternas que lhes acompanhavam faziam que a escuridão parecer mais profunda. Mas quando chegaram à rota das caravanas, depois que seus olhos se acostumaram à escuridão, notaram que a tênue luz das estrelas banhava o deserto. Vênus se havia posto, Marte estava tão baixo que parecia muito pequeno e sua luz apenas se propagava, e não se viam outros planetas no céu. Contudo, as estrelas, como lâmpadas penduradas no céu limpo, brilhavam com bastante intensidade, e Jack podia distinguir as silhuetas de tudo o que lhe rodeava e inclusive ver a barba de Murad mover-se quando falava.
Murad ainda falava do sítio de Acre, e o que contava era muito interessante, mas Jack teria gostado que seguisse seu relato mais tarde. Um dos motivos era que o Bei avançava mais devagar quando falava; outro era que Hairabedian tinha que ir entre eles para traduzir o que dizia, e como era nervoso e não estava acostumado a cavalgar na escuridão, avançava ainda mais devagar, puxando a embocadura do cavalo todo o tempo; outro era que Yamina estava ansiosa de regressar para sua casa e ele tinha que obrigá-la a diminuir a marcha constantemente e ela começara a sentir antipatia por ele; e outro era que estava faminto. O Bei, conforme o costume espartano dos soldados turcos, não comera mais que um pouco de qualhada, e lhe havia convidado a comê-la também, mas acrescentando que seria uma lástima que se lhe tirasse o apetite porque na fortaleza haviam assado um cordeiro e queria que o compartisse com ele, assim que o capitão Aubrey se havia limitado a tomar um sorvete, e agora o lamentava profundamente.
Quando se dirigiam a Katia, o deserto lhe parecera estéril, e agora, ao contrário, via que era habitado, ainda que não podia dizer que estivesse cheio de vida. Três ou quatro vezes alguns animais pequenos haviam cruzado o caminho tão perto de Yamina que a égua saltara e as havia esquivado descrevendo um semicírculo, e uma vez algo parecido a uma serpente de duas jardas de comprimento a havia feito enpinar, e ele estivera a ponto de cair da sela. Depois, quando podia se ver à direita a colina onde se encontrava Pelusio recortando-se sobre o céu estrelado, uma manada de chacais que estava perto do caminho começaram a uivar, uivos tão fortes que afogaram a voz de Murad, e, depois, quando fizeram uma pausa momentânea, ouviu-se algo mais desagradável ainda, o grito de uma hiena, que terminou em um riso estentórea que estremeceu o ar quente e imóvel.
- São esses os espíritos ou os demônios noturnos a que se referia? - perguntou Jack.
- Não, não. Esses são uma manada de chacais e uma hiena - respondeu o Bei. - Percebi há pouco de que havia um asno morto ali e acho que estão brigando por ele. Para ver os demônios há que subir a essa colina. Na torre em ruínas dorme um gênio do tamanho deste garoto, que tem as orelhas empinadas e alguns horríveis olhos alaranjados. Nós o vimos mitas vezes. E em uma das velhas cisternas vive um grupo de espíritos necrófagos.
- Não sou supersticioso, mas gostaria de saber sobre os espíritos. Há por aqui perto outros demônios, ou gênios, como talvez seja preferível chamá-los?
- Demônios? - disse o Bei impaciente. - Oh, sim, sim! O deserto está cheio deles. São de vários tipos e têm várias formas. Todo mundo sabe. Mas se quer saber mais coisas sobre os demônios, deve perguntar ao nosso médico, pois é um homem sábio e conhece a todos os gênios que existem daqui até Alepo.
Deixaram Pelusio para trás e dobraram em direção à colina onde ficava Tina. Então viram as fogueiras dos beduínos e depois as do acampamento dos marinheiros, e depois a porta e as janelas iluminadas da fortaleza. Quando começaram a subir a colina (Jack segurou fortemente as rédeas de Yamina para evitar que corresse para sua casa), o ar trouxe até ali o odor de cordeiro assado.
Poucos minutos depois entravam no grande refeitório, e Jack se assombrou ao ver sentados ao redor de uma grande caldeira a todos os soldados turcos da companhia e aos oficiais mesclados com eles, conforme o costume dos turcos de tratar-se como iguais, e também ao ver sentados a Stephen e a Martin dos lados do homem que era o médico e o sábio do regimento. Todos se levantaram e fizeram uma inclinação de cabeça, e um momento depois voltaram a formar um círculo, no qual o Bei estava sentado no lugar que lhe correspondia e Jack ao seu lado. Além das palavras ceremoniosas com que deram as boas-vindas aos recém chegados enquanto se lavavam as mãos, falaram muito pouco porque os que haviam jejuado só se ocupavam de comer cordeiro. Comeram o primeiro cordeiro inteiro, junto com uma montanha de arroz com açafrão, e do segundo só restaram as costelas quando todos começaram a afastar-se da caldeira e a falar. Então apareceram grandes e bonitas cafeteiras de cobre, e depois que Jack falou com alguns oficiais, viu ao seu lado a Stephen e Martin. Perguntou-lhes se haviam passado uma tarde agradável e se haviam visto as aves e os outros animais que esperavam ver. Eles lhe agradeceram e disseram que passaram uma tarde realmente agradável, apesar de alguns contratempos, como por exemplo, que um camelo mordera ao senhor Martin e havia fugido. Disseram que a lesão não era grave, mas o senhor Martin estava muito preocupado porque, conforme diziam, a sífilis podia ser trasmitida pela mordida de um camelo, ainda que o doutor muçulmano a houvesse coberto com um ungüento extraído de um lagarto. Também lhe contaram que o outro camelo, ainda que não fosse mau, não queria se ajoelhar, e, por isso, eles não puderam montá-lo e tiveram que trazê-lo ao povoado puxando ele através do deserto, às vezes inclusive correndo para evitar chegar tarde.
- Mas, pelo menos viram algumas aves? - perguntou Jack. - Havia muitas perto de Katia.
Ambos ficaram silenciosos, mas, por fim, Martin contou que haviam chegado a um espesso juncal e haviam se entrado nele, caminhando trabalhosamente por causa do pegajoso lodo, entre o ar cheio de famintos mosquitos, e então ouviram alguns gritos e movimentos diante deles, que lhes fizeram ter esperanças de que veriam alguma ave, e seguiram avançando até chegar a um charco em que haviam encontrado uma franga d’água e duas patetas como as da Inglaterra. Acrescentou que depois viram uma ave pousada no galho de um salgueiro e que, apesar de ter a cara tão inchada pelas picadas dos mosquitos que apenas podiam abrir os olhos, puderam perceber que era um tentilhão.
- A viagem teve momentos difíceis - disse Martin, - especialmente quando regressávamos, porque caímos sobre umas arzolas, mas valeu a pena passar tantas penalidades, pois pudemos ver as marismas do Nilo.
- Além disso, tenho razões para acreditar que a coruja real vive ali - disse Stephen. - Não só hei vi seus excrementos como ouvi ao efêndi imitar perfeitamente seu canto, um grave ujú-ujú, que é capaz de assustar a mamíferos tão grandes como a gazela e a pássaros do tamanho da abetarda.
- Bem, tiveram sorte - disse Jack. - Senhor Hairabedian, acho que agora deveríamos dizer ao Bei que desejo ver a Mowett e ao funcionário egípcio, e empreender a marcha quando ele estime oportuno, se o informe que me derem for satisfatório.
O Bei disse que sabia que o capitão Aubrey estava impaciente e que não queria atrasar-lhe se sua brigada estivesse preparada para partir.
- Além disso - acrescentou, - como o odabashi vai ser o chefe da escolta, tem que apresentar seus respeitos ao oficial de categoria equivalente - disse e, torcendo a boca para um lado e com entonação inglesa, acrescentou: - o contramestre.
Então golpeou o gongo e se fez o silêncio.
- Odabashi - disse, e o odabashi se pôs de pé. - O senhor e cinco homens escoltarão ao capitão Aubrey, um capitão muito querido pelo Sultão, até Suez. Avançarão de noite quando ele o ordene. Escolha a esses homens imediatamente e acompanhe ao intérprete, que lhe guiará até o oficial de categoria equivalente à sua.
O odabashi pôs a mão na testa e fez uma inclinação de cabeça. Então, com voz rouca, disse os nomes de cinco homens e seguiu o intérprete.
O senhor Hollar, o contramestre, o senhor Borrell, o condestável, e o senhor Lamb, o carpinteiro, estavam bebendo chá na tenda dos oficiais assimilados quando o intérprete levou o visitante ali. O intérprete disse qual era sua classe e sua função, e acrescentou:
- Acredito que deve comer com os senhores.
Depois disse que tinha que ir imediatamente buscar ao primeiro oficial e ao efêndi porque o capitão queria saber como estavam as coisas.
- Tudo está bem - disse o contramestre. - Um de cada cinco camelos tem colocado atrás da carga uma lanterna preparada para ser acesa, e a todos os insolentes lhes hão posto um focinheira. As únicas tendas que restam para desmontar são esta e a dos oficiais, assim que podemos partir dentro de cinco minutos. E quanto ao senhor Mowett, poderá ser encontrado depois da grande fogueira junto à qual está sentada a guarda de estibordo.
- Obrigado - disse Hairabedian. - Tenho que ir correndo.
Desapareceu na escuridão e deixou o odabashi ali de pé.
- Tome uma xícara de chá - disse o contramestre em voz alta, e depois, alçando ainda mais a voz, acrescentou: - Chá! Cha!
O odabashi não respondeu senão que fez um estranho movimento com o corpo e permaneceu ali de pé, com os braços pendurando dos lados do corpo, olhando para o solo.
- Este tipo é peludo como não há dois - disse o contramestre, observando-o. - Nunca vi ninguém tão feio. Parece um macaco em vez de um homem.
- Macaco? - gritou o odabashi, saindo de seu silêncio. - Macaco será seu pai. Tampouco o senhor é um adônis.
A estas palavras seguiu um silêncio absoluto, que rompeu o contramestre por fim, perguntando se o odabashi sabia falar inglês.
- Nem uma maldita palavra - respondeu o odabashi.
- Não era minha intenção ofender-lhe, amigo - disse o contramestre, estendendo-lhe a mão.
- Não estou ofendido - disse o odabashi, apertando-a.
- Sente-se sobre esta bolsa - disse o condestável.
- Por que não disse ao capitão? - perguntou o carpinteiro. - Acredito que teria ficado muito contente.
O odabashi coçou a cabeça, murmurando que era muito tímido.
- Eu lhe falei uma vez - acrescentou, - mas não percebeu.
- Então o senhor fala inglês… - disse o contramestre, que pensava na idéia e o olhava fixamente há um tempo. - Não queria parecer atrevido, mas eu gostaria saber como aprendeu.
- Sou um soldado turco - disse o odabashi.
- Não duvido, amigo - disse o carpinteiro. - E deve estar orgulhoso disso.
- Já sabem como enclausuravam os soldados turcos, né?
Olharam-se uns para os outros perplexos e negaram com a cabeça.
- Hoje em dia não são tão estritos - disse o odabashi, - e entram no corpo todo tipo de pessoa, mas quando eu era menino, recrutavam por um procedimento que chamamos de devshurmeh. Ainda o empregam hoje em dia, mas não tanto, sabem? O tournaji-bashi percorre todas as províncias onde há cristãos, sobretudo a Albânia e a Bósnia, porque as outras são o que poderia chamar escória, e de cada povoado se leva um grupo de meninos cristãos, umas vezes maior, outras menor, digam o que digam seus pais. Esses meninos são colocados em umas barracas especiais, recortam-lhes o prepúcio, e perdoe-me pela palavra, e lhes ensinam a ser bons muçulmanos e bons soldados. Depois de passar por um período em que são ajami, como nós dizemos, são enviados a uma brigada de soldados turcos.
- Então muitos soldados turcos saberão falar idiomas estrangeiros, né? - disse o carpinteiro.
- Não - disse o odabashi. - Eles os enclausuram com tão pouca idade e os levam para tão longe que esquecem sua língua, sua religião e os costumes de seu povo. Meu caso é diferente. Minha mãe estava na mesma cidade que eu. Era de Londres, de Tower Hamlets, e foi para Esmirna para servir de cozinheira na casa de um comerciante turco e ali travou amizade com meu pai, um pasteleiro de Gjirokastra, e isso lhe causou problemas com a família. Ele a levou para Gjirokastra, mas morreu, e seus primos a expulsaram da tenda, porque essa é a lei, assim que ela teve que vender seus bolos em uma banca. Um dia o tournaji-bashi chegou ali e o advogado de meus primos deu um presente para seu escrevente para que me levasse com eles, e assim o fez. Levaram-me para Widin e ela ficou sozinha.
- E sendo uma viúva! - exclamou o carpinteiro, movendo a cabeça de um lado e para o outro.
- Foi uma crueldade - disse o contramestre.
- Detesto os advogados - disse o condestável.
- Mas apenas levava seis meses como cadete em Widin quando minha mãe instalou a banca de bolos diante das barracas, assim que podíamos nos ver todas as sextas-feiras, e amiúde outros dias também. E quando terminei esse período, também nos víamos em Belgrado e em Constantinopla e onde quer que a brigada fosse. Por isso nunca esqueci o inglês.
- Talvez seja essa a razão pela qual lhe mandaram aqui - sugeriu o contramestre.
- Se é essa, desejaria que me houvesse cortado a língua - disse o odabashi.
- Não gosta de estar aqui?
- Detesto estar aqui, apesar de sua agradável companhia.
- Por que, amigo?
- Sempre estive em cidades e não gosto do campo. E o deserto é dez vezes pior que o campo.
- É porque há leões e tigres?
- Algo pior, amigo.
- Serpentes?
O odabashi negou com a cabeça, inclinou-se para eles e murmurou:
- Gênios e demônios necrófagos.
- O que são gênios?
- Duendes.
- Mas o senhor não acredita nos duendes, né?
- Como não acreditar neles se hei visto um maldito duende naquela velha torre que fica ali? Era desse altura - disse, mantendo a mão no ar a uma jarda do solo - e tinha as orelhas compridas e os olhos alaranjados. Pelas noites faz: Ujú-ujú! E cada vez que dá um grito um pobre homem morre em algum lugar. Não há pior presságio que esse no mundo dos mortais. Eu o ouvi quase todas as noites a semana passada e muitas vezes mais.
Fez uma pausa e continuou:
- Não deveria ter dito duendes. São espíritos, espíritos malignos.
- Oh! - exclamou o contramestre, que zombava dos duendes, mas, como a maioria dos marinheiros, na qual estavam incluídos todos os da Surprise, estavam convencidos da existência de espíritos.
- E o que são os demônios necrófagos? - perguntou o condestável em voz muito baixa, temeroso de ouvi-lo, mas aproximando-se mais.
- Oh, são muito piores! - exclamou o odabashi. - Com freqüência tomam a forma de mulheres jovens, mas têm o interior da boca verde, como seus olhos, e em ocasiões podem ver-se caminhando entre as tumbas. Quando cai a noite tiram da terra os cadáveres recém enterrados e os comem, e às vezes inclusive aos que estam enterrados há muito tempo. Mas assumem todo tipo de formas, como os gênios. Uma pessoa encontra a uns e a outros a cada passo do deserto que vamos atravessar. O único que há que fazer é dizer transiens per medium illorum ibat muito rápido, mas sem se equivocar, porque se não…
Durante o ramadã, a essa hora da noite os cozinheiros da fortaleza jogavam os ossos que haviam restado da refeição para fora da muralha, e agora os chacais estavam esperando-os. Mas se enfrentaram com a hiena outra vez e, além disso, com outras quatro, e as palavras do odabashi foram interrompidas por gritos que pareciam sair de Bedlam{13} e por risos estentóreas que se ouviam a menos de vinte jardas dali. Os oficiais assimilados da Surprise, boquiabertos, levantaram-se de um salto e se agarraram uns aos outros, e então um pesado corpo se apoiou na ponta de um mastro, justo acima deles. Um momento depois, o potente grito Ujú-ujú! Encheu a tenda.
Depois do último Ujú-ujú!, o silêncio se fez dentro e fora da tenda, e em meio do silêncio, ouviram a um vozeirão dizer:
- Desmontem essa tenda! Estão ouvindo? Onde está o contramestre? Digam ao contramestre que venha! Senhor Mowett, que o primeiro grupo acenda suas lanternas e se prepare para partir.
CAPÍTULO 6
Niobe, corveta da Companhia das Índias.
Suez.
Queridíssima Sophie:
Aproveito o amável oferecimento do major Hooper, da base naval de Madras, para escrever-lhe umas breves linhas. O major fará a viagem para a Inglaterra por terra até o Cairo (veio do golfo Pérsico atravessando o deserto em um bonito camelo branco de raça pura que percorria cem milhas por dia) e até aqui só demorou quarenta e nove dias.
Chegamos aqui bastante bem. Avançávamos durante a noite e descansávamos durante o dia em tendas e debaixo de toldos que nos protegiam do calor e cruzamos o istmo antes do que o chefe dos cameleiros e eu pensávamos, pois fizemos o percurso em três etapas em vez de quatro apesar de ter saído tarde na primeira noite. Isto não se deveu à diligência da tripulação de meu barco (ainda que seja excelente, como sabe), mas a um estúpido turco que fala inglês, que está ao comando de nossa escolta, encheu-lhes a cabeça com histórias de gênios e fantasmas, e os pobres iam quase correndo toda a noite, todos juntos porque tinham medo de ficar para trás e todos desejosos de estar perto de Byrne, um marinheiro do cesto da gávea do traquete que tem uma caixa de rapé que dá sorte e protege ao seu dono dos maus espíritos e das doenças.
Desgraçadamente, sempre ocorria algo que fazia que seguissem tendo superstições e medo. Acampávamos junto aos poços, e sempre havia arbustos por perto, sobretudo arzolas, e entre eles sempre havia algum animal que gritava como uma alma penada ao amanhecer ou ao anoitecer ou em ambos momentos. E como se isso não fosse pouco, ocorriam milagres, montes de milagres durante o dia. Recordo um que sucedeu quando partimos de Bir el Gada cedo, muito antes de que o sol se pusesse: a pouca distância apareceu um grupo de verdes palmeiras e umas jovens com cântaros caminhado entre elas, e se viam tão claramente que qualquer um teria jurado que eram reais. Esses idiotas gritaram: "Oh, oh, são os demônios necrófagos! Estamos perdidos!". Então Davis (que, conforme tenho entendido, é um canibal) se agarrou ao contramestre e fechou os olhos, e o contramestre se agarrou a uma cinta de um camelo, e os dois chamaram aos gritos ao pequeno Calamy e lhe rogaram que lhes avisasse quando houvessem desaparecido. Atuaram como covardes, e teria me envergonhado que os vissem se não fosse porque os turcos agiram igual.
E tenho que dizer que Stephen não atuou sempre com a sensatez com que deveria ter feito. Quando o pastor Martin afirmou que a crença nos demônios necrófagos e outros seres parecidos era uma superstição, Stephen o contradisse e pôs como exemplos a pitonisa de Endor, a piara dos garadenos e montes de espíritos malignos que aparecem nas Sagradas Escrituras. Depois citou inumeráveis fantasmas da antiguidade, disse que essa crença havia existido sempre em todas as nações e contou uma história de um homem lobo que ele vira nos Pirineus que aterrorizou aos cadetes. Martin e ele quase não dormiam (a menos que cochilassem em seus camelos pela noite enquanto avançávamos), porque enquanto os demais descansávam debaixo dos toldos, eles corriam entre os arbustos buscando plantas e animais. Mas acho que não deveria haver trazido tantas serpentes, porque sabe que atemorizam aos marinheiros, e muito menos um monstruoso morcego que de uma ponta a outra das asas mede três pés. Saiu voando quando estava sobre a mesa e posou no peito de Killick, e achei que Killick desmaiaria do susto porque acreditaria que era um espírito maligno.
Contudo, na tarde seguinte ele desmaiou (você teria ficado com pena de vê-lo) devido a uma insolação e ao desgosto. Dois camelos se chatearam (conforme dizem, chateiam-se amiúde na época do cio) e começaram a brigar furiosamente perto de minha tenda, passaram sobre ela rugindo e jogando espuma pela boca, e espalharam meus pertences em todas direções. Os marinheiros os agarraram pelas patas e pela calda e conseguiram separá-los, mas meu melhor chapéu já estava destroçado. Lamento o ocorrido, porque em vez de uma roseta lhe havia posto o chelengk, o broche de diamantes turco, que ia presentear-te, pensando que me permitiria ter mais influência sobre os turcos, e os camelos o pisotearam e o enterraram na areia. Killick, com muita ajuda, removeu toneladas de areia até que o sol se pôs, e então desmaiou, como lhe disse; contudo, tivemos que seguir adiante sem o broche e com o pobre Killick deitado sobre um camelo.
Voltando a Stephen, eu lhe contarei algo que me surpreendeu. Já sabe que ele é muito poupador (compra uma casaca nova a cada dez anos, usa meias velhas e calções gastos, e não gasta mais que em livros e em instrumentos para a investigação científica), e, contudo, em Tina vi com assombro que pegava uma grande quantidade de moedas de ouro de sua bolsa e comprava uma manada de camelos (como a de Job) para transportar o sino de escafandrista de que lhe falei. Está desmontado, mas precisa de um animal forte para levar cada pedaço. O egípcio que conseguiu os animais de carga para que fizéssemos esta viagem não havia pensado no transporte de um sino de escafandrista, porém, afortunadamente, vendiam camelos no acampamento beduíno que estava perto. A propósito! Nesse mesmo acampamento havia uma égua…"
Quando terminou de descrevê-la, ficou imóvel durante um tempo, sorrindo, e depois continuou:
Assim que chegamos rápido e com só um homem doente. Lamentavelmente, o intérprete pôs as botas sem notar que dentro de uma havia um escorpião e agora está tombado com uma perna como uma almofada. Me dá muita lástima, porque é um homem amável e atencioso e conhece todas as línguas de Levante e também o inglês. Ele sozinho poderia ter construído a torre de Babel. Por desgraça, uma vez mais, chegamos quando nossos aliados ainda não estavam preparados. Já estava aqui a corveta da Companhia, uma embarcação muito larga e com a proa arredondada que realmente parece um mercante, com quase todos os canhões ocultos sob a coberta, e já estavam a bordo seus tripulantes, todos marinheiros das Índias Orientais exceto um dos pilotos, que é europeu, e soprava um vento favorável para sair do golfo, mas os turcos que tinham que subir a bordo… onde estavam?
Fui ver o governador egípcio, mas não estava, e, aparentemente, o vice-governador, um homem novo nesse cargo, ao qual chegou depois dos recentes distúrbios, não sabia nada do plano e só parecia interessado em que lhe pagássemos uma absurda soma em caráter de direitos de ancoragem, abastecimento de água para a Nimbe e direitos de aduana de seu falso carregamento. Devido à insistência de Hairabedian, que foi levado ali em uma maca, disse que havia um destacamento turco nas imediações da cidade, mas que se haviam deslocado um pouco, ainda que não sabia exatamente onde. Acrescentou que talvez regressariam depois do ramadã, mas que de toda forma, mandaria lhes avisar que estávamos aqui. É evidente que não sente simpatia pelos turcos, e seria raro que os turcos a sentissem por ele, ainda que tentassem com todas suas forças. Ele me tratou com descortesia (quanto lamentei não estar com o chelengk então!), mas Hairabedian disse que neste momento não é conveniente discutir com ele, devido a que as atuais relações entre a Turquia e o Egito são muito delicadas. Naturalmente, não avisou aos turcos, e como Hairabedian estava na maca, eu estava paralizado. Seguia soprando com força um vento favorável, um vento muito quente, mas que soprava na direção conveniente, e as horas passavam, e a lua era um pouco menor cada vez que saía. Mas somente graças à sorte finalmente encontrei os soldados. Os soldados de nossa escolta passaram algum tempo na cidade esperando para que terminasse o ramadã para regressar a Tina e gastando a gratificação que lhes dera para satisfazer seus desejos depois que anoitecia, e quando iam partir, o odabashi veio despedir-se dos oficiais assimilados e lhes disse que o governador egípcio e o oficial que mandava nas tropas turcas haviam discutido e que, por consequência disto, o oficial havia retirado as tropas para o oásis de Moisés, e que no bazar corria o rumor de que o egípcio ordenaria à tribo beduína de Beni Ataba que as atacasse. Isso parecia absurdo, porém, de toda maneira, não podíamos confiar nos egípcios. Imediatamente mandei um mensageiro ao oásis de Moisés, mas já havia chegado o bayram, o fim do ramadã, e o oficial turco respondeu convidando-me para o banquete que iam celebrar e dizendo que não se moveria até que não tivéssemos comido juntos uma cria de camelo e que não importava esperar dois ou três dias mais. Desafortunadamente, o egípcio também me convidara para esse dia, e Hairabedian disse que tinha que ir, e com meu melhor uniforme, se não se ofenderia, assim que fui aos dois banquetes".
Pensou em falar-lhe do banquete oferecido pelo egípcio, da interminável música árabe, do calor que sentia sentado ali hora após hora, sorrindo tanto como podia, e das mulheres gordas que dançaram ou, pelo menos, retorceram-se e se moveram com sacudidas o tempo todo, enquanto os homens as comiam com os olhos. Também pensou em contar-lhe de que maneira chegou até o oásis de Moisés, que os turcos lhe receberam tocando timbales e trompetes e disparando salvas com mosquetes, que o ensopado de cria de camelo com amêndoas, mel e muito coentro era viscoso, e como a alta temperatura, inclusive à sombra, afetou o seu corpo cheio com a comida de dois banquetes sucessivos. Mas em vez disso, contou que era difícil se comunicar com o bimbashi Midhar, o oficial ao comando das tropas turcas.
Como o intérprete não estava em condições de mover-se, o pobre, Stephen teve a amabilidade de vir comigo para ver se podia ajudar falando grego, a língua franca e uma espécie de árabe que falam em Marrocos. Essas línguas serviram para fazer comentários gerais sobre a comida, como "A sopa é excelente, senhor" ou "Permita-me servir-lhe mais olhos de cordeiro", mas ao final do banquete, quando todos se foram exceto os dois oficiais de mais antiguidade e o cavalheiro árabe que vamos instalar no trono de Mubara, e quis dizer ao bimbashi que era muito importante dar-se pressa, não pudemos nos entender. Era evidente que nem o turco nem o egípcio sabiam nada da galera que esse dia ou no dia seguinte zarparia de Kassawa com rumo norte com os franceses e o tesouro a bordo (o que me admirou, pois antes de que Hairabedian se ficasse tão mau, me disse que um mercador árabe que estava em Suez lhe assegurou que a bordo da galera que se encontrava em Kassawa já haviam subido muitas caixas pequenas, mas mais pesadas que o chumbo, e muito bem protegidas), assim que era absolutamente necessário fazer-lhe compreender qual era a situação nesse momento. Mas cada vez que tentávamos, os dois oficiais riam a gargalhadas. Os turcos não riem com facilidade, como sabe, e esses dois, ainda que fossem jovens e dinâmicos, até esse momento haviam estado tão sérios como juízes. Mas quando dissemos "depressa", não puderam se conter e começaram a rir com sonoras gargalhadas, balançando-se e dando-se palmadas nas coxas. E quando puderam falar, secaram os olhos e disseram: "amanhã ou na semana que vem". No final inclusive Hassan, o governante árabe, uniu-se a eles, e ofegava como um cavalo enquanto ria.
Então trouxeram o cachimbo de água e nos pusemos a fumar. Os turcos riam entre si de vez em quando, o árabe sorria, e Stephen e eu estávamos desconcertados. Por fim Stephen voltou a tentar, mudando a frase e soprando para indicar que devíamos aproveitar o vento favorável, que tudo dependia do vento. Mas tampouco deu resultado, e ao ouvir a desafortunada palavra, os turcos arrebentaram de riso, e um soprou com tal força pelo tubo do cachimbo que fez sair um jorro de água por cima e o tabaco caiu e então Stephen disse: "Ah, zut alors!". O árabe se voltou para ele e, depois de perguntar-lhe "O senhor fala francês, senhor?", começou a falar nesse idioma com fluidez. Parece que Hassan, como seu primo, o xeique atual, foi prisioneiro dos franceses quando era jovem.
Muitas vezes em minha vida eu vi mudanças de expressão bruscas, mas nenhuma tão rápido e tão grande como a do bimbashi, pois estava transbordante de alegria e pôs um gesto muito grave de repente, quando ouviu o árabe traduzir a parte da mensagem relativa ao dinheiro francês. No início não podia acreditar que a quantidade fosse tão alta, ainda que Stephen, prudentemente, dissera o cálculo mais baixo, duas mil e quinhentas bolsas, e se voltou para mim. Eu lhe disse "Sim", escrevendo essa quantidade no solo com uma sobremesa gelatinosa meio derretida (nossos números são muito parecidos aos seus), e acrescentei "E talvez isto", escrevendo cinco mil.
O árabe, juntando as mãos, disse: "Ah, sim?". E um minuto depois havia tanta atividade naquele lugar como em uma colméia virada ao contrário. Os homens corriam em todas as direções, os suboficiais gritavam, e os tambores e os trompetes soavam. Ao amanhecer já havia subido a bordo até o último soldado, mas tínhamos o vento contrário.
O vento rolara durante a noite, e havia se fixado nessa direção e soprava com força. Se olhar o mapa, compreenderá que para que nossa corveta possa atravessar o comprido e estreito golfo de Suez em direção sul-sudoeste, é necessário que navegue com o vento em popa. Às vezes o bimbashi puxa os cabelos e açoita seus homens; às vezes o calor úmido e a frustração me produzem a sensação de que meu pequeno corpo não poderá suportar mais o cansaço neste grande mundo; e às vezes os marinheiros (que sabem perfeitamente o que vamos fazer e no fundo são como piratas) me mandam dizer através dos guardas-marinhas, dos oficiais, de Killick e de Bonden que com muito gosto tirarão a corveta daqui a reboque quando eu considerar oportuno, e que pouco lhes importam a insolação e a apoplexia. Mas como o porto não fica resguardado e tem arrecifes de coral e intrincados canais, suas águas são pouco profundas e o terreno do fundo não é bom para a ancoragem, enquanto este vento soprar, não seria bom pedir-lhes que o façam; contudo, se o vento amainar, direi para eles que tentem, ainda que Deus sabe que um sua copiosamente ao caminhar só de uma ponta a outra da corveta, assim que suará muito mais ao realizar a árdua tarefa de rebocá-la. Inclusive para os marinheiros das Índias Orientais é difícil suportar o calor. Entretanto, fazemos preparativos para a viagem (pôr os canhões em seu lugar e outras coisas) ou permanecemos sentados, e de vez em quando nos rangem os dentes. Mowett e Rowan têm tendência a brigarem. Sinto ter que dizer isto, mas, em minha opinião, dois rouxinóis não podem estar em uma mesma árvore. Os únicos que estão contentes são Stephen e o senhor Martin. Passam lá embaixo dentro do sino de escafandrista pegando vermes, peixinhos de brilhantes cores e pedaços de coral, e inclusive comem dentro dele às vezes. E quando não estão alí, caminham pelos arrecifes observando os animais que vivem nas águas pouco profundas e as aves (dizem que viram montes de quebra-ossos). Stephen nunca se incomodou com o calor, ainda que fosse excessivo, mas não sei se para Martin é fácil suportá-lo, ainda que costuma levar uma sombrinha verde. Ficou magro como uma grou. Parece uma grou sorridente, ainda que não sei se você poderá imaginar um animal assim. Perdoe-me, Sophie, mas o major Hooper está aqui e tem pressa para continuar sua viagem. Amo muito a você e às crianças."
Seu amante esposo,
John Aubrey
Quando viu a lancha do major zarpar, Jack, ofegante, voltou para a cabine, aonde o ar quente chegava através dos escotilhões. Ao longe, diante de uma fileira de altas e ondulantes palmeiras, viu Stephen e Martin carregando entre os dois uma tartaruga de considerável tamanho. Uma lancha se abordou com a corveta, e nela vinha mais um árabe para visitar o senhor Hairabedian. Através da clarabóia que ficava justo acima de sua cabeça, ouviu Mowett dizer "Gosto de estar perto do bosque quando caem as folhas / e o frio vento invernal sopra", e por alguma razão, apareceu em sua mente a imagem da lua da noite anterior. Aquela noite a lua já não parecia uma foice, como na noite do beyram, aliás, por desgraça, um grande pedaço de melão, e provavelmente iluminaria a rota da galera, que já estaria muito perto de Mubara. Então pensou: "Contudo, não havemos perdido nem um minuto quando atravessamos o istmo. Não posso me culpar disso". Mas também pensou que talvez deveria ter tratado o egípcio com mais tato ou ter encontrado uma maneira de pôr-se em contato com os turcos mais rápido, apesar do que ele dissesse, e analisou uma série de possibilidades. Depois o sono fez com que suas acusações se suavizassem, e de uma parte de sua mente surgiu a frase "Até os ratos melhor guiados se perdem às vezes", e antes que se formasse na outra a réplica "Sim, mas aos líderes sem sorte não lhes confiam missões delicadas e mal planejadas", ficou adormecido, ainda que esta idéia permaneceu no mais profundo de sua mente, preparada para aflorar de novo.
Quando começara sua carreira naval, havia adquirido a habilidade de dormir rapidamente a qualquer hora, e a conservava ainda, apesar de que haviam passado muitos anos desde que fazia a guarda. Podia dormir por maior que fosse o ruído e por mais incômodo que fosse, e para despertar-lhe era necessário alguma alteração importante do modo de navegar do barco. Por isso não foram suficientes o ruído produzido por uma amarra ao arrastar-se pela coberta nem os gritos dos marinheiros das Índias Orientais, nem seus própios roncos (tinha a cabeça inclinada para trás e a boca aberta), nem o odor da comida turca, que o ar da tarde arrastava. O que lhe despertou, e lhe despertou completamente, foi a mudança do vento, que de repente rolara trinta graus e agora estava amainando e soprava com intermitências.
Subiu para a coberta e foi até o castelo de popa, que estava mais cheio que de costume. Imediatamente seus oficiais levaram para o lado de sotavento aos oficiais turcos e ao árabe, que, apesar de não compreender o que ocorria a bordo de um barco, tinham uma atitude obediente. Num momento o lado de barlavento ficou vazio, e Jack ficou ali de pé olhando o céu ao anoitecer, as rachadas nuvens que passavam sobre África e a névoa que cobria a costa de Arábia. Acreditava que o tempo ia mudar, e essa também era a opinião de muitos dos marinheiros da Surprise destinados ao castelo, marinheiros velhos e experientes que eram tão sensíveis a essas alterações como os gatos, que agora estavam alinhados no corrimão e de vez em quando lhe dirigiam significativos olhares.
- Senhor McElwee - disse, virando-se para o piloto da companhia, - o que o senhor e o piloto indonésio pensam?
- Bem, senhor - disse o senhor McElwee, - não naveguei muitas vezes mais ao norte de Jiddah ou de Yanbu, como lhe disse, e tampouco o piloto indonésio, mas nós dois pensamos que é provável que haja uma tormenta pela noite e que amanhã sopre o vento egípcio.
Jack consentiu com a cabeça. O vento egípcio não era o mais favorável para navegar por um golfo como o de Suez, muito estreito e com muitos arrecifes de coral e fortes correntes, mas pelo menos era um vento largo, e se a Niobe tivesse tanta agilidade como diziam e se as manobras fossem executadas com precisão, poderia fazê-la sair para o alto mar.
- Bem, - disse Jack - acho que deveríamos preparar uma âncora pequena para rebocar a corveta, pois se este maldito vento tiver amainado o suficiente quando suba a maré, poderemos rebocá-la até a saída do porto, e desse modo, se o vento egípcio chegar, poderemos aproveitá-lo assim que começar a soprar.
- Doutor, nos disseram que provavelmente soprará o vento egípcio - disse, quando Stephen e Martin, depois de mandar subir muitas caixas com corais e conchas, subiram a bordo, e quando a guindaleza já saía pela proa da Niobe, puxada pela bote longo, que avançava por entre a multidão de felucas e faluas.
- É tão ruim como o simún?
- Sim - respondeu Jack. - Ouvi dizer que é exageradamente quente, inclusive comparado com os que sopram nesta zona. Mas o importante é que sopra do oeste ou do noroeste. Contanto que seja largo, pode ser tão quente como queira.
- Tão quente como queira - repetiu quando tomavam chá na cabine. - Ainda que não acredito que possa ser mais quente, porque se fosse, só sobreviveriam os crocodilos. Já sentiu alguma vez um calor como este, Stephen?
- Não - respondeu Stephen.
- Nelson disse uma vez que não necessitava abrigo, porque o amor à sua pátria lhe mantinha com calor. Pergunto-me se lhe teria mantido fresco se houvesse estado aqui. Acredito que não me produz nenhum efeito, porque estou jorrando como o destilador de Purvis.
- Talvez não ame a sua pátria o suficiente.
- Quem pode amá-la se há que pagar como imposto dois xelins por libra e hão cortaram a parte que os capitães recebem do butim a um oitavo?
As primeiras rajadas do vento egípcio chegaram pouco depois do amanhecer. A Niobe estava ancorada com uma só âncora na saída do porto, aonde fora rebocada durante a noite. O vento havia se acalmado durante a guarda de meia, e ainda que todas as escotilhas e os escotilhões estavam abertas, havia um calor sufocante debaixo do convés, e as primeiras rajadas do vento egípcio aumentaram ainda mais o calor.
Jack dera dois cochilos, mas subiu para o convés ao despontar a alvorada, e ao ver que o vento formava ondulações na água, sentiu uma grande alegria e uma sensação de liberação, e voltou a ter esperança. Com tantos e tão dispostos tripulantes, o cabrestante deu voltas a considerável velocidade, fazendo subir a âncora quase ininterruptamente, e pouco depois a Niobe começou a navegar, movendo a proa com rapidez apesar de ir contra a corrente, mas Jack notou que não tinha comparação com a Surprise nem na rapidez com que respondia nem na velocidade, ainda que fosse uma pequena corveta estável e manejável, que inclinava pouco para sotavento, pelo menos quando navegava com vento largo, e isso lhe causava uma grande satisfação. Contudo, achou o vento estranho, não porque estava exageradamente quente, como se houvesse saído de um forno, nem porque chegava em rajadas desiguais, mas por algo que não podia definir. O sol acabava de sair pelo leste e brilhava com intensidade no céu limpo, mas pelo oeste se via uma ameaçadora massa escura, e sobre a linha do horizonte, formando uns dez graus com ela, havia uma faixa de colorido amarelo alaranjado muito grossa para ser uma nuvem.
"Não sei o que é isso", disse para si. E quando se voltou para descer para tomar seu primeiro café da manhã, a primeira e reconfortante xícara de café (genuíno café de Moka, trazido diretamente do porto dessa cidade), viu seus quatro guardas-marinhas olhando-lhe fixamente, e pensou: "Sem dúvida, esperam que eu saiba o que é, porque acreditam que um capitão é onisciente".
Stephen entrou na cabine com uma pequena garrafa na mão.
- Bom dia - disse. - Sabe que temperatura tem o mar? Oitenta e quatro graus Farenheit. Ainda não calculei a salinidade, mas suponho que será extraordinariamente alta.
- Estou seguro. Este é um lugar extraordinário. Contudo, o barômetro não baixou muito… Sabe de uma coisa, Stephen? Eu lhe agradeceria que perguntasse a Hassan o que é aquela faixa que há no céu ao oeste. Como passa grande parte de seu tempo cavalgando em um camelo pelo deserto, deve conhecer bem o tempo nesta zona. Mas não tenho pressa em sabê-lo. Terminemos esta cafeteira primeiro.
Era melhor para ele que não tivesse pressa, porque a cafeteira era muito grande e Stephen falava sem contenção sobre os escorpiões, porque havia um grande número deles na bodega e os tripulantes da Surprise corriam de um lado para outro tentando matá-los.
- É um abuso! Os escorpiões não atacam sem motivo. Só picam se são provocados, e a picada pode produzir certo mal-estar e inclusive fazer a alguém cair em estado de coma, mas raras vezes causam a morte, melhor dizendo, nunca, salvo às pessoas que sofriam do coração, e essas pessoas iam morrer logo de toda maneira.
- Como está o pobre Hairabedian? - perguntou Jack.
-Amanhã já poderá correr de um lado para o outro, e isso lhe parecerá melhor que o descanso - respondeu Stephen.
Nesse momento, uma rajada de vento arremeteu contra a Niobe e a fez se inclinar tanto que quase virou. O café se espalhou para sotavento, ainda que eles, inexplicavelmente, retiveram as xícaras vazias nas mãos. Quando a corveta se endireitou, Jack voltou a pôr-se de pé e começou a caminhar por entre a mesa e as cadeiras derrubadas, os papéis e os instrumentos. Enquanto atravessou a porta da cabine, uma nuvem de areia amarelada lhe envolveu (tinha areia em cima, areia debaixo dos pés e areia entre os dentes) e através dela notou uma grande desordem. As velas golpeavam; o leme estava dando voltas e, aparentemente, por consequência de seu movimento, um braço do timoneiro havia partido, saltado para o ar e caído no corrimão; os botalós e as lanchas estavam sobre a coberta; e a vela de estai maior, com aspecto fantasmal, estava quase completamente desprendida da relinga e fazia um movimento ondulante em direção a sotavento. A situação era grave, mas os danos não haviam sido importantes. As retrancas dos canhões não haviam desatado (a corveta se haveria afundado rapidamente se um dos canhões de nove libras houvesse chegado a atravessar o costado oposto quando dera o solavanco) e os marinheiros haviam soltado as escotas para proteger os mastros e dois timoneiros já haviam agarrado o leme. Mas mais grave ainda era o comportamento da multidão de turcos. Alguns corriam pelo castelo e pelo convés entre os redemoinhos de areia, muitos mais saiam pela escotilha central e a de proa, e a maioria dos que estavam no convés estavam segugando na exárcia, atrapalhando o trabalho dos marinheiros. Se mais turcos se segurassem a ela, seria impossível manobrar a corveta, e em caso de que chegasse outra rajada, a corveta viraria e provavelmente muitas vidas se perderiam, pois os que não eram homens do mar cairiam pela borda aos montes.
Estavam ali Mowett, Rowan e Gill, o oficial de derrota, ainda meio desnudo.
- Levem-nos abaixo! - gritou Jack, correndo pela proa com os braços abertos e gritando como se estivesse conduzindo uma revoada de gansos.
Os turcos eram ferozes guerreiros em terra, mas agora se achavam fora de seu elemento e estavam desconcertados e aterrorizados, e muitos deles também enjoados. Ante o prumo dos quatro oficiais que caminhavam tão facilmente pela oscilante coberta, os turcos cederam e se dirigiram para as escotilhas caminhando aos esbarrões, e alguns desceram e outros caíram por elas. Jack havia acabado de dar a ordem de que taparan as escotilhas para que os turcos permanecessem abaixo quando teve a sensação de que o ar era extraído de seus ouvidos, uma sensação que precedeu a seguinte lufada uma fração de segundo. A rajada fez a corveta inclinar, mas a corveta não voltou a endireitar-se porque o vento egípcio se entabulou e a partir de então soprou constantemente, ainda que com intensidade variável. Quando Jack voltava para a popa, com os olhos quase fechados para protegê-los da areia, perguntou-se como as pessoas conseguiam respirar aquele ar tão quente e agradeceu à sua estrela por ter evitado que guindasse os mastaréus.
Também podia lhe agradecer por ter lhe proporcionado uma tripulação formada por robustos e experimentados marinheiros e, além disso, um grupo de oficiais competentes (Mowett e Rowan eram aficionados por recitar poesias na câmara dos oficiais, mas eram capazes de falar em prosa com rapidez e convicção no convés quando havia uma emergência). Mas talvez não lhe agradecesse ainda que tivesse tempo para fazê-lo, já que pensava que todos os membros da Armada tinham que ser forçosamente bons marinheiros, e que se algum não o era não era digno de respeito, e só elogiava os seus homens quando faziam algo extraordinário. Contudo, não teve tempo, porque a maior parte das vinte horas que se seguiram ocupou-se de proteger a corveta e fazer com que mantivesse o rumo.
Durante grande parte do início desse período dedicou-se a diminuir velas e a outras tarefas como preservar as vergas e as lanchas que ainda estavam amarradas, pôr contraestais e braças e polias móveis, reforçar os canhões com retrancas mais grossas e reparar os danos que a exárcia sofrera na parte superior. Enquanto isso tratava de ver se se aproximava alguma tempestade através da capa de areia e poeira amarelada que o ar formara, uma capa tão espessa que atrás dela o brilhante sol parecia uma laranja avermelhada, como em Londres nesses dias de novembro, ainda que nesses dias de novembro aqui tinham uma temperatura de cento e vinte e cinco graus Farenheit à sombra.
Mas ao redor do meio-dia, quando foi reparado o mastaréu de velacho e o vento egípcio deixou de soprar com intermitências, a situação mudou. Agora tinham que se preocupar menos por sobreviver que por avançar todas as milhas possíveis com ajuda do vento, ou como Jack se disse, "mimando ao vento", e a alegria substituiu a preocupação que todos tinham nas primeiras horas, quando um erro poderia haver tido como consequência a perda de vidas. Poucas coisas entusiasmavam a Jack como fazer um barco navegar ao limite de seus possibilidades em meio de uma tormenta, e agora sua principal preocupação era averiguar que quantidade de velame a Niobe podia levar desdobrado e onde devia aplicá-lo. Naturalmente, a resposta dependia da força do vento e do movimento do mar, e não era fácil calcular nenhuma das duas coisas, já que no golfo a maré e as correntes variavam continuamente.
Mas não foi só por prazer que Jack fez a Niobe navegar a grande velocidade, a tão grande velocidade que a proa fazia saltar a branca espuma pela amura de bombordo e cair como uma rajada de chuva salgada sobre a parte de estibordo do castelo. Desde muito cedo percebera que quanto mais rápido navegava a corveta, menos inclinava, e como o golfo era apertado, beirado por arrecifes, sem baías protegidas nem portos, tinha fazer com que a corveta não inclinasse nem sequer uma jarda. Além do mais, não podiam parar perto da costa arábica, assim que tinham que seguir navegando, e sempre pelo centro do golfo ou mais perto de barlavento, tão perto como ele julgasse conveniente, a menos que decidisse mudar de bordo em redondo para voltar ao porto de Suez, onde talvez a corveta poderia estar protegida. Mas nesse caso, teria que abandonar a expedição, porque uma vez que os engenheiros franceses chegassem a Mubara, melhorariam o sistema de defesa da fortaleza de tal modo que uma corveta de canhões de nove libras da Companhia e um punhado de soldados turcos não poderiam atacar a ilha. Ou chegava antes deles ou era inútil que fosse.
Navegar para o sul a grande velocidade era perigoso, mas agora era menos, em primeiro lugar, porque o mar tinha um movimento tumultuoso e descobria os arrecifes, e em segundo lugar, porque Jack tinha a ajuda do piloto indonésio, que da verga traquete dirigia a corveta, comunicando aos gritos tudo o que observava para Davis, o marinheiro de voz mais potente de toda a tripulação, que, de pé no castelo, meio coberto pelas ondas, repetia para que o ouvissem na popa, e também tinha a ajuda de todos os tripulantes da Surprise, que o conheciam tão bem que compreendiam as ordens desde a primeira palavra e que eram excelentes marinheiros. Contudo, algumas vezes pensou que estavam perdidos. A primeira foi quando a corveta se chocou com um tronco de palma meio afundado, golpeando-o com tal força no centro com o talha-mar que quase parou e se soltaram três brandais, ainda que os mastros se mantiveram firmes, e depois o tronco seguiu movendo-se por debaixo da quilha e faltou pouco para que se chocasse com o leme, pois passou pelo seu lado a poucas polegadas. A segunda foi quando a Niobe foi sacudida por uma cegante rajada de areia e, entre os uivos do vento, ouviu-se claramente um chiado debaixo do convés e Jack viu brilhar entre as ondas, por bombordo, uma das grandes placas de cobre que recobria o casco.
Ao meio-dia era ainda menos perigoso. Ainda que a corveta seguia navegando a uma velocidade vertiginosa, com as gáveas e as maiores rizadas, a parte da costa egípcia que agora tinham por estibordo bordejava uma grande extensão de terreno rochoso e seco, mas não desértico, por isso, com menos areia que oferecer ao ar, e a visibilidade aumentou. A vida na corveta voltou quase ao normal, e ainda que não se pôde fazer a medição de meio-dia nem se pôde acender o fogo da cozinha para preparar o almoço dos marinheiros, voltaram a suceder-se regularmente as badaladas, a substituição do timoneiro e as medições com a barquilha. A última delas causou grande satisfação para Jack, pois era de doze nós e duas braças, a qual, tendo em conta a forma matronal da Niobe, era provavelmente a maior velocidade que podia alcançar sem sofrer danos, ainda que pensava que talvez podia fazê-la aumentar uma braça ou mais colocando uma vela de capa no mastaréu de sobremezena.
Jack estava pensando nisso quando notou que Killick estava ao seu lado e tinha nas mãos um sanduíche e uma garrafa de vinho mesclado com água com um tubo encaixado na rolha.
- Obrigado, Killick - disse.
De repente percebeu de que estava faminto apesar do terrível calor e do monte de areia que tinha na garganta, e de que estava sedento apesar de que a espuma do mar e os jorros de água que às vezes passavam por cima da borda o haviam empapado. Enquanto comia, escutava sem muito interesse a Killick, que em tom bastante alto, protestava:
- Nunca terminarei de tirar a areia… Há areia em todos os uniformes, nos baús e nos armários… Entra por todas as frestas… Tenho areia até nos ouvidos…
E quando acabou de beber o vinho, disse:
- Senhor Mowett, devemos substituir ao piloto e a Davis, porque estão roucos como corvos. Chame para almoçar por separado aos dois grupos de guarda. Terão que contentar-se com pão e o que o contador encontre, mas todos receberão sua ração de grogue, inclusive os que cometeram faltas. Agora vou descer para ver como estão os turcos.
Os turcos estavam muito bem. Stephen e Martin se encontravam ali com eles e também estavam sentados comodamente no chão à maneira oriental, com as pernas cruzadas, e tinham a costas apoiadas no costado do barco, diante do qual haviam posto todas as coisas que lhes podiam servir de almofadas. Todos estavam tranqüilos, tão tranqüilos como um grupo de gatos domésticos junto a uma chaminé, sem olhar nada em particular e sem falar. Alguns lhe sorriram e outros lhe cumprimentaram com a mão, e no começo Jack pensou que estavam bêbados, mas depois recordou que os turcos e o árabe eram muçulmanos, que nunca vira Stephen enjoado por causa do vinho e que Martin quase nunca bebia mais do que uma taça.
- Estamos mascando khat - disse Stephen, mostrando-lhe uma rama verde. - Dizem que serve de tranquilizante, como a folha de coca que mascam os peruanos.
Então se ouviu uma débil voz perto de Stephen, e ele continuou:
- O bimbashi falou que espera que não esteja muito fatigado e que esteja contente de como vai a viagem.
- Por favor, diga-lhe que nunca me senti melhor, que a viagem vai bastante bem e que se este vento segue soprando até depois de amanhã, poderemos percorrer a distância que não pudemos percorrer no momento adequado e teremos a possibilidade de chegar ao sul de Mubara a tempo para apresar a galera.
- O bimbashi diz que se estiver escrito que apresaremos a galera e que enriqueceremos, a apresaremos, mas que se não estiver escrito, não a apresaremos. Diz que não se pode fazer nada para mudar o destino e lhe roga que não se preocupe nem faça esforços desnecessários, porque o que está escrito está escrito.
- Pergunte, se puder encontrar a maneira de fazê-lo cortesmente, que se isso é assim, por que razão trouxe os seus homens a bordo tão rápido que se chocavam uns contra outros. Se não encontrar, diga que também está escrito que "Deus ajuda aos que se ajudam" e que o tenha presente. Pode acrescentar que é adequado que um filósofo use um tom sentencioso quando se dirije a uma audiência, mas não é adequado que um bimbashi o use quando fala com um capitão de navio.
Quando estas palavras, convenientemente modificadas, foram traduzidas para o francês por Stephen e ao árabe por Hassan, o bimbashi disse que se contentava com o pequeno pagamento de soldado e que não se importava a riqueza.
- Muito bem, meu amigo - disse Jack. - Espero que o vento siga soprando nesta direção um par de dias, ainda que só seja para que tenha a oportunidade de demostrar na prática que não se importa.
O vento egípcio seguiu soprando na mesma direção essa tarde, ainda que com uma intensidade maior que o desejável, e, apesar de ter amainado ao entardecer, Jack jantou frango com areia e bebeu grogue com três partes de água e um pouco de areia quase convencido de que continuaria soprando assim por toda a noite. McElwee, Gill e o piloto indonésio tinham a mesma opinião que ele, e ainda que não podiam ver nada através da areia que o ar arrastava, todos haviam chegado à mesma estimativa, todos concordavam que a Niobe se achava ao sul de Ras Minah e que ainda faltava percorrer uma parte do golfo bastante grande.
Ficou no convés até que terminou a guarda de prima (uma guarda de prima em que havia sentido mais calor que em todas as que havia feito em sua vida), escutando o uivo do vento e os ruídos que havia a bordo da corveta, e observando o movimento ondulante das fosforescentes águas, que subiam junto à proa, desciam junto à coxia até as placas de cobre que a revestiam e voltavam a subir junto ao pescante próximo do pau mezena e a descer junto à popa, onde formavam uma esteira turbulenta e luminosa, uma esteira que se destacava na escuridão e que agora podia ver-se porque, se bem a areia seguia passando por em cima da coberta, já não passava o pó, que era o que formava uma espécie de névoa. De vez em quando, enquanto permanecia ali de pé, balançando-se ao ritmo do balanço da corveta, fechava os olhos, e nesses momentos lhe parecia que a corveta e a tormenta de areia estavam em um sonho. Agora a corveta navegava sem dificuldade, pois as maiores haviam sido aferradas quando os dois grupos de guarda estavam no convés e, devido à diminuição de velame, movia-se mais facilmente, os brandais já não estavam esticados como cabos de ferro e o pescante de bombordo raras vezes roçava o mar.
- Atento, serviola! - gritou pouco depois de que soassem as quatro badaladas.
O vento trouxe a resposta:
- Sim, senhor!
Pela voz, Jack soube que o serviola era o jovem Taplow, um marinheiro do cesto da gávea do maior em quem se podia confiar.
- Senhor Rowan - disse, - agora vou me deitar. Quero que me chame quando se avistem as ilhas.
Quando caminhava pelo convés, sentiu uma rajada de vento chegar por detrás dele, uma rajada de vento quase tão forte como as anteriores, e o vento era tão quente e tão difícil de respirar como o que soprava ao meio-dia. Contudo, enquando se esforçava para sair das profundezas do sono, quando Calamy sacudia sua maca gritando "Ilhas à vista, senhor! Ilhas por proa, senhor!", não lhe surpreendeu notar que o ar não entrava pela clarabóia aberta nem que a corveta inclinava apenas um emborno, pois a parte de sua mente que se havia mantido ativa (ainda que fosse muito pequena) lhe avisara que o vento estava amainando. Essa parte escolhera um estranho modo de fazer-lhe saltar a grande barreira do cansaço: um sonho no qual cavalgava em um formosíssimo cavalo que pouco a pouco se fazia menor, e ficava incômodo por isso e chegou a se sentir envergonhado quando seus pés roçaram o solo e a multidão que lhe rodeava o olhou com indignação. Apesar da mensagem ser cifrada, provavelmente compreendera seu significado há algum tempo, pois já se resignara a que a situação atual fosse assim.
Subiu ao convés ainda com a vista nublada, mas pôde ver claramente as ilhas, situadas pela proa e por ambas as amuras, à luz do sol nascente. Formavam um pequeno arquipélago que guardava a entrada do golfo, e era muito difícil atravessá-lo, mas do outro lado dele ficava o mar Vermelho, cuja amplitude permitia navegar facilmente. O ar ainda formava uma espécie de névoa, ainda que não podia se comparar com a do dia anterior, e além da ilha mais ocidental, Jack pôde ver o cabo que delimitavam o golfo, e o litoral do outro lado dele, um litoral que se estendia em direção leste até ficar fora do alcance de sua vista e que tinha um comprimento de mais de cinqüenta milhas, como sabia pela carta marítima. Agora não tinha por que temer a proximidade da costa a sotavento. O senhor McElwee observara detalhadamente as duas ilhas mais orientais, a Niobe percorrera grande parte da distância que devia percorrer e tudo era perfeito exceto o vento; contudo, o vento era o mais importante, e continuava amainando. Jack olhou ao seu redor, tentando recobrar sua capacidade de refletir. Os marinheiros da guarda de estibordo estavam limpando o convés. Jogavam grande quantidade de água com a bomba da proa para a popa para tirar o barro formado pelo pó que havia caído na coberta, que estava em todos os cantos por onde não passara a água do mar, e se viam sair pelos embornais grossos jorros de água de cor areia que caiam ao mar turvo e amarelado. Em geral, Jack não interrompia esse tipo de trabalhos nem molestava à guarda que estava abaixo descansando, mas agora ordenou:
- Todos a desdobrar velas! Guindar os mastaréus!
A Niobe abriu suas alas e se moveu para frente bruscamente, impulsionada pelo vento que ainda não era fraco demais, e a água começou a sussurrar de novo ao passar por seus costados. Com ajuda da maré avançava com rapidez entre as ilhas em direção ao alto mar, e era digna de se ver com as joanetes e as alas superiores e inferiores desdobradas.
Era ainda mais digna de se ver quando o sol chegou ao seu zênite, pois levava desdobrada todas as velas que tinha (sobrejoanetes, sossobres, monterillas3 e velas de estai muito raras que se colocavam no alto da exárcia) e, além disso, toldos na proa e na popa para proteger os tripulantes do intolerável calor.
Stephen passou boa parte da manhã na enfermaria, pois devido a mudanças de velocidade tão repentinas como essa, os marinheiros sempre sofriam luxações, machucados e inclusive fraturas, e desta vez também os pobres turcos tinham que ser curados dessas coisas. Quando terminou de atender seus pacientes, foi para a cabine de Hairabedian. A encontrou vazia, ainda que isso não lhe surpreendeu porque o intérprete estava quase recuperado e se queixava com amargura do confinamento e do calor, e então foi até o castelo de popa. Se dali houvesse olhado para cima pela abertura entre os dois toldos estendidos, teria pensado que a corveta não era digna de ser vista, pois agora as velas que haviam sido abertas e bracejadas com esmero penduravam flácidas. A corveta não se movia, e os marinheiros, que haviam trabalhado tão duro no dia anterior, agora arranhavam às escondidas os brandais e assobiavam para atrair o vento.
- Bom dia, doutor - disse Jack. - Como estão seus pacientes?
- Bom dia, senhor. Estão bastante bem, mas um me escapou. Viu o senhor Hairabedian?
- Sim. Acaba de passar correndo e saltando como um menino pelo corrimão de estibordo. Ali está, justo detrás da serviola. Não, a serviola, essa coisa que sobressai. Quer falar com ele?
- Não, porque vejo que está muito bem. Parece a única pessoa feliz em toda a corveta. Olha como fala alegremente com William Plaice e como Plaice olha para outro lado muito triste porque não há vento.
- Talvez seja. Talvez nem todos tenhamos a mesma filosofia que o bimbashi. É possível que alguns tripulantes da Surprise prefiram ser ricos que pobres e sintam raiva ao pensar que a galera pode nos escapar porque pode seguir avançando para o norte com vento ou sem ele, enquanto que nós passamos o tempo aqui sentados ociosos. Se a tormenta nos houvesse deixado lanchas suficientes, estou certo de que neste momento estariam nelas rebocando a corveta, se pudessem fazer o que quisessem.
- Estive falando com Hassan sobre os ventos desta região. Diz que, em geral, depois do vento egípcio há calmaria e que depois da calmaria vem outra vez o vento do norte que sopra habitualmente aqui.
- Ah, é? É um homem confiável, sem dúvida. Haviam me dito isso e me alegro muito de ter obtido a confirmação de uma fonte como essa.
Todos os outros homens que estavam no castelo de popa, exceto os que levavam o leme e o que governava a corveta, que tinham que permanecer em seu lugar, haviam se deslocado para o lado de bombordo, e ao chegar ali haviam posto uma expressão com que fingiam bastante bem que não estavam escutando. Mas a Niobe era uma pequena embarcação e agora havia um silêncio quase absoluto, pois só ouvia o rumor da água ao roçar os costados, e eles tinham que ouvir o que falavam forçosamente, quisessem ou não. "Vem o vento do norte que sopra habitualmente aqui" significava que teriam a possibilidade de enriquecer, e em seus rostos apareceram amplos sorrisos, e Williamson, alegre porque ia satisfazer sua cobiça, saltou os amantilhos do mastro mezena e, voltando-se para Calamy, disse:
- Vamos ver quem chega primeiro ao tope!
- Ele disse quanto duraria a calmaria? - perguntou Jack, secando o suor da cara.
- Disse que dois ou três dias - respondeu Stephen, e os sorrisos desapareceram. - E também disse que tudo estava nas mãos de Deus.
- O que ele está fazendo? - perguntou Jack ao ver que o intérprete se tirava a camisa e se subia na borda. - Senhor Hairabedian! - gritou.
Mas era tarde demais. Hairabedian o ouviu, mas já estava no ar. Caiu nas águas opacas e cálidas quase sem salpicar, nadou por debaixo da superfície paralelamente ao lado da corveta, reapareceu perto do pescante central e olhou para o castelo de popa rindo. De repente voltou sua cara sorridente para cima e tirou o peito e os ombros da água, e todos puderam ver uma comprida e escura figura debaixo dele. Ainda tinha a cara voltada para cima quando foi sacodido fortemente e desapareceu debaixo de um grande redemoinho de água dando um horrível grito. Depois todos voltaram a ver sua cabeça, ainda reconhecível, sair à superfície, e também viram o toco de um de seus braços e pelo menos cinco tubarões que lutavam furiosamente nas águas ensangüentadas. Poucos momentos depois, ali só havia uma mancha avermelhada, vários tubarões buscando laboriosamente algo nela e outros aproximando-se com rapidez, com as barbatanas fora da superfície.
O sepulcral silêncio durou muito, muito tempo, até que o suboficial que governava a corveta tossiu para indicar que quase não restava areia na ampulheta do relógio de meia hora.
- Continuo, senhor? - perguntou o oficial de derrota em voz baixa.
- Sim, senhor Gill - disse Jack. - Senhor Calamy, meu sextante, por favor.
Então se repetiram mecanicamente as palavras e movimentos do ritual da medição do meio-dia, e ao final, Jack, em tom solene, disse:
- São doze horas.
Alguns momentos mais tarde soaram as oito badaladas e o senhor Rowan ordenou:
- Chamem os marinheiros para almoçar!
O contramestre tocou o apito, os marinheiros correram para ocupar seus postos e os encarregados de servir a comida de cada grupo entraram na cozinha, onde (ainda que parecesse incrível) ferviam a fogo lento há pouco tempo pedaços de carne de porco e ervilhas secas, já que era quinta-feira. Esses atos eram mecânicos, pois os haviam repetido com muita freqüência, mas não lhes despertaram o apetite, e salvo alguns poucos marinheiros, todos comeram pouco e em silêncio. A atmosfera mudou quando chegou o grogue, mas, apesar disso, os marinheiros não riram nem fizeram brincadeiras nem golpearam seus pratos.
No meio da tarde Mowett foi ao encontro do capitão Aubrey e disse:
- Senhor, os marinheiros me pediram que lhe expressasse seu desejo de que lhes permita usar os anzóis e os aparelhos para pescar tubarões. Como estimavam e respeitavam ao senhor Hairabedian, queriam comer alguns.
- Não, por Deus! - exclamou Jack. - Ainda têm o pobre homem no estômago! - argumentou, e pela expressão dos marinheiros que lhe escutavam, soube que pensavam que tinha razão. - Não, mas esta tarde, depois que passemos revista, faremos práticas de tiro com as armas leves, e cada um poderá disparar-lhes meia dúzia de vezes se quiser.
O sol desceu pelo céu e, pouco depois que chamaram para passar revista, ocultou-se atrás do Egito brilhando intensamente e colorindo de carmim a abóbada celeste. A Niobe virou com a corrente lentamente, primeiro para leste, depois para este-nordeste, e finalmente para norte-noroeste, para o lugar de onde havia vindo, e as estrelas começaram a brilhar. Jack comprovou com desânimo a latitude em que se achava fazendo medições na penumbra e, depois de tomar café com os turcos, foi tentar respirar em para sua cabine.
- Que Deus nos proteja, Stephen! - disse, cobrindo seu corpo desnudo com uma toalha quando Stephen entrou. - Parece que estamos em uma casa de banhos turca. Devo de ter perdido umas vinte libras.
- Poderia perder mais uma vintena - disse Stephen. - E como é de constituição robusta, uma sangria lhe beneficiaria. Vou tirar-te dezesseis ou vinte onças agora mesmo, e se sentirá melhor imediatamente e, além disso, terá menos probabilidade de pegar uma insolação ou ter uma apoplexia - disse, largando de um lado o cofre que tinha nas mãos e pegando uma lanceta do bolso. - Esta está despontada - disse, tratando de cravá-la no armário para prová-la, - mas acredito que poderá chegar até a veia. Tenho que afiá-las todas amanhã, porque se a calmaria continuar, vou fazer sangrias em toda a tripulação.
- Não - disse Jack. - Pode ser que pareça uma reação própia de mulheres, mas não quero ver mais sangue hoje, nem o meu nem o de ninguém. Não consigo deixar de pensar em Hairabedian. Lamento muito o que ocorreu.
- Queria que houvessem podido salvá-lo - disse Stephen muito sério, e vacilou alguns momentos, virando o cofre entre as mãos, e, por fim, continuou: - arrumei seus papéis e seus pertences, como você me pediu. Não encontrei o endereço de sua família em nenhuma das cartas que pude ler, que foram poucas porque a maioria estava em árabe, mas encontrei isto.
Então tirou o falso fundo do cofre e entregou o chelengk para Jack.
- Isto é assombroso! - exclamou. - Sinto muito o que ocorreu ao pobre homem - acrescentou, e então jogou o broche em uma gaveta, levantou-se e vestiu a camisa e a calça. - Vamos caminhar pelo convés. Dentro de cinco minutos poderemos ver a maldita lua sair, provavelmente com uma parte visível muito menor do que eu gostaria.
A maldita lua tinha uma parte visível muito menor na noite seguinte, e a Niobe seguia ali movendo-se com a corrente, mas sem avançar e rodeada de um calor sufocante. Acabou o khat do bimbashi, e com ele terminou sua serenidade. Mandou açoitar dois de seus homens à maneira turca, com varas, e com tal força que um perdeu a consciência e o outro ficou ali cambaleando enquanto o sangue corria pelas costas laceradas e saía pela boca. A surra podia qualificar-se de cruel, inclusive se fosse julgada conforme o critério dos homens do mar, mas os turcos que olhavam dar os golpes pareciam indiferentes e as vítimas só deram alguns gemidos involuntários. Isto fez com que os tripulantes da Surprise tivessem melhor opinião dos turcos, e alguns chegaram a pensar que seu sangrento castigo foi responsável pela melhora da situação da corveta, que fez o vento começar a soprar, ainda que debilmente, quando terminaram de limpar o convés.
Se essa era a causa, teriam que ter sido açoitados pelo menos doze turcos para que o vento soprasse com força suficiente para fazer a Niobe avançar para o sul com tal rapidez que pudesse interceptar a galera. Desgraçadamente, o vento seguiu sendo fraco, muito fraco. Permitia que respirassem e inchava algumas das velas que era conveniente usar abertas, ainda que muito poucas comparativamente (a cevadeira, a traquete, as alas inferiores, o velacho, não totalmente aberto, a gávea maior e todas as da parte superior da exárcia, mas não as da parte inferior nem as do pau mezena), já que seguia soprando obstinadamente pela popa. Ainda que os marinheiros jogassem água por todas as velas que podiam alcançar com as mangueiras desde o cesto da gávea e subiam baldes de água para vertê-los sobre as velas mais altas, a Niobe raras vezes navegava a mais de três nós.
A lua já havia passado a fase de quarto minguante fazia tempo, e Jack Aubrey pensava com amargura que fracassara. O calor havia aumentado, e a reserva e o comportamento descortês de Hassan e dos oficiais turcos faziam a situação mais desagradável, se isso era possível. Desde o momento em que Jack havia diminuído velame, eles se haviam oposto, e como Jack lhes havia explicado, através de Stephen, que desdobrar mais velas nem sempre tinha como resultado navegar com maior velocidade e que, neste caso, as velas que se abrissem na popa anulariam o efeito das de proa, pensava que o olhavam com raiva por outros motivos, provavelmente por seus comentários sobre a sujeira dos soldados. Jack nunca imaginaria que pensavam que ele lhes enganava, mas se informou uma tarde exageradamente tediosa quando Stephen foi vê-lo e disse:
- Prometi dar este recado e serei o mais breve possível. Tratarei de resumir três horas de delicadas indiretas, conjeturas, análise de casos teóricos e meias verdades em um minuto: Hassan suspeita que os egípcios lhe ofereceram uma grande quantidade de dinheiro para que não capture a galera. Hassan disse que todo mundo sabe que o intérprete falou com mensageiros de Mehemet Alí e o bimbashi disse que todo mundo sabe e que é lógico que quanto mais velas estejam desdobradas, mais vento pegarão. Hassan lhe oferece uma grande soma para que atraiçoe os egípcios e lhe roga que a aceite. Já terminei.
- Obrigado, Stephen - disse Jack. - Suponho que não servirá de nada explicar-lhes outra vez os princípios da navegação.
- De nada, meu amigo.
- Então acho que terei que suportar seu mau humor - disse Jack.
Mas se equivocou. O vento rolou para noroeste durante a noite e na manhã seguinte chegava pela alheta, assim que quando Hassan e os turcos subiram para o convés essa manhã, viram que a Niobe tinha tantas velas abertas como era de desejar. Lançaram-se uns para os outros discretos mas significativos olhares, e Hassan se aproximou do capitão Aubrey e lhe disse algumas bajulações em francês, uma língua da qual Jack tinha noções, e o bimbashi murmurou algo em turco em tom amável. Contudo, Jack não queria dar-lhes motivos para que pensassem que suas suposições tinham fundamento, e se limitou a fazer uma inclinação de cabeça. Depois subiu ao cesto da gávea do maior, de onde observou o imenso mar azul e reverberante envolto na névoa e olhou para o sul através das clareiras da nuvem de velas. Depois de olhar para ali com tristeza durante um tempo, chamou Rowan e lhe disse secamente que gostaria de caminhar tranqüilo pelo castelo de popa e que na Armada era costume que o oficial de guarda evitasse que o capitão fosse interrompido pelos "Bom dia" e os "Como está?" dos passageiros que não conheciam suas regras, e que a verga velacho não estava perpendicular ao mastro, como deveria estar.
Aquela era uma nuvem de velas, em efeito, e os marinheiros bracejavam cuidadosamente cada uma delas; contudo, ainda estavam a uns trinta graus ao norte de Mubara quando a lua ficou cheia, e quando avistaram a ilha, já tinha dezessete dias e uma horrível forma côncava e saiu muito tarde.
Foi em uma quinta-feira pela tarde quando avistaram Mubara recortando-se sobre as montanhas da Arábia debaixo da luz do sol no ocaso. Jack orçou para que a corveta passasse perto dela sem ser vista e com muito cuidado estabeleceu uma rota para avançar para o sul pelo canal que havia entre as ilhotas e os arrecifes. Agora estavam em uma região que conhecia bem pelas cartas marítimas, e, guiando-se por duas marcas no mar e com a ajuda de McElwee, levou a Niobe até a metade do canal, e depois jogou a âncora onde as águas tinham trinta e cinco braças de profundidade.
Havia a possibilidade de que a galera ainda não houvesse passado. Mas era uma possibilidade remota, pois o vento norte que soprava habitualmente na região havia soprado tão poucos dias e com tão pouca intensidade que não era provável que a houvesse atrasado. Contudo, ainda que com pouco fundamento, muitos ainda tinham esperanças, particularmente aqueles que mais o desejavam, e bastante antes do amanhecer estavam no convés o capitão Aubrey, todos os oficiais e a maior parte da guarda que estava de folga, exceto o cirurgião e o pastor. A noite terminou, mas deixou atrás de si a névoa, e agora o vento do oeste-noroeste soprava mais forte e fazia passar massas de vapor quente sobre a lua minguante, que ainda irradiava uma débil luz, e as estrelas maiores pareciam manchas de cor laranja.
A Niobe balançava junto com a amarra da âncora, empurrada por uma lenta corrente por sotavento. Se alguém falava, fazia em voz muito baixa. Ao leste, o céu tomava um colorido cada vez mais claro. Já fazia certo tempo que Jack olhava para Canopo, que se via borrada ao sul, e pensava em seu filho. Perguntou-se se um menino criado por sua mãe, que só brincava com suas irmãs, seria um afeminado. Depois pensou que havia conhecido meninos que se haviam feito ao mar quando eram menores que George e que talvez o melhor seria que George fosse com ele em uma viagem que durasse quatro estações e depois freqüentasse um ou dois anos uma escola e depois voltasse a incorporar-se à Armada, pois assim não teria tão pouca cultura como seu pai. Estava certo de que algum amigo manteria seu nome no rol de seu barco para que os anos que passasse na escola não deixassem de ser considerados anos de serviço quando ascendesse a tenente. Soaram duas badaladas. Jack olhou pela proa ao ouvi-las, e quando voltou a olhar para o céu, as estrelas haviam desaparecido.
Começaram a ouvir-se os chiados da bomba de proa, e nesse desagradável período em que a tranqüilidade da noite havia se acabado e o barulho do dia não havia recomeçado, a guarda de estibordo começou a limpar a corveta. A maré de água e areia havia chegado ao convés, e a pedra arenito raspava as tábuas do castelo quando o vermelho halo do sol apareceu sobre o horizonte. Calamy, que estava sentado no cabrestante com as calças arregaçadas para que não se molhassem, saltou de repente para a coberta molhada e correu até onde estava Mowett, que imediatamente gritou:
- Ei, os de proa, quietos todos!
Então, com grandes passos, foi até onde Jack se encontrava.
- Senhor - disse, tirando o chapéu, - Calamy acha que ouviu algo.
- Silêncio de proa a popa! - gritou Jack.
Todos os marinheiros ficaram paralizados no lugar em que estavam, como em um jogo de crianças, alguns em ridículas posturas, sustentando no alto um pedaço de pedra arenito ou um esfregão, e puseram uma expressão grave, como se dedicassem toda sua atenção a ouvir algo. Então todos ouviram ao longe, por sotavento, o canto Ayajú-ajá, que o vento trazia em fragmentos.
- Preparados para soltar a amarra da âncora! - ordenou Jack. - Digam ao senhor Hassan e ao piloto indonésio que venham!
Mas Hassan e o piloto indonésio já estavam ali, e quando Jack se voltou para eles, ambos assentiram com a cabeça e fizeram um movimento como se estivessem movendo um remo. Esse era, com efeito, o canto dos remadores das galeras.
Não sabiam exatamente de onde vinha, só que saía da escuridão que ainda havia por sotavento, ainda que todos, exceto os marinheiros que iam soltar a amarra, escutassem atentamente. O sol subira até que toda sua circunferência havia ficado sobre o horizonte, e tinha um brilho cegante, mas a névoa branca ainda cobria a superfície do mar. Jack se inclinou o quanto pôde sobre a borda para tratar de ver através dela, e como tinha a boca aberta, podia ouvir as batidas de seu coração, muito fortes e graves. Então se ouviram dois vozes no alto da exárcia. Uma, da cruzeta do traquete, gritou: "Alí está!"; a outra, do cesto da gávea do maior, gritou: "Convés, a galera está pela alheta de estibordo!".
- Senhor Mowett, solte a amarra com uma baliza realmente boa e mande zarpar imediatamente - ordenou Jack. - Desdobraremos as gáveas e as maiores, mas devagar, como se a corveta fosse um mercante da Companhia, um mercante que faz uma viagem normal e que, depois de ter passado a noite ao pairo, aproxima-se de Mubara para comprovar sua posição. Não devem subir muitos homens para a exárcia, a guarda que está abaixo deve ficar ali, e a maioria dos que formam a outra devem sair do convés. Não mande subir as macas.
Desceu para buscar seu telescópio e voltou a olhar a carta marítima que já conhecia tão bem, e quando voltou para o convés, a amarra da âncora já saía pelo escovém, e a Niobe, com o velacho em pairo, desviava a proa da parte de onde vinha o vento. Alguns marinheiros abriam a gávea maior e a sobremezena com deliberada torpeza, e outros estavam preparados para subir sobre as vergas mais baixas.
- Onde está? - perguntou Jack.
- A trinta graus pela amura de estibordo, senhor - respondeu Mowett.
Nesse breve momento o sol havia dissipado os últimos vestígios da névoa da noite, e a galera estava ali, muito mais longe e muito mais próxima da proa do que pensavam, mas podia ver-se tão claramente como desejavam. Estava no final do canal, na borda do arrecife de coral debruado de branco de umas cinco ou seis milhas de comprimento que se estendia para o noroeste até a ilhota Hatiba, que guardava a entrada da longa e estreita baía de Mubara, em cujo fundo se elevava a cidade. A galera navegava de bolina rumo à ilha, e apesar de Jack e seus homens se esforçarem em aparentar que não tinham pressa nem a perseguiam, parecia que a tripulação da galera estava alarmada, pois os remadores haviam deixado de cantar e remavam com todas suas forças.
Imediatamente lhe ocorreram duas perguntas: poderia a Niobe chegar do outro lado da ilhota Hatiba? Se não pudesse chegar, poderia interceptar a galera antes? Não sabia as respostas. Ambas dependiam não só da velocidade e das qualidades de navegação das duas embarcações, mas também da corrente e da maré, e não chegaria a sabê-las até o último momento. McElwee e o piloto indonésio conheciam bem a corveta e sabiam como navegava de bolina, mas também tinham uma expressão desconcertada.
Então Jack se aproximou do leme.
- Mantenha-a ajustada, Thompson - ordenou ao timoneiro.
Pouco depois, quando as últimas velas se abriram e se incharam, a corveta aumentou de velocidade, e Jack disse:
- Vire um pouco mais contra o vento.
A quilha da corveta formava um ângulo cada vez menor com a direção do vento, e quando as bordas de barlavento, apesar de que as bolinas estavam esticadas, começaram a ondear, Jack pegou as cavilhas do leme e deixou que a corveta abatesse o rumo até que navegasse sem dificuldade.
- Mantenha-a assim, justamente assim - disse, e voltou ao corrimão, pensando que tinha que encontrar uma solução rapidamente e que se a corveta seguisse esse rumo enquanto a procurava, isso não afetaria a nenhuma das soluções possíveis.
Jack se pôs a observar a galera, uma embarcação baixa, alongada e negra, similar a uma gôndola veneziana. Era tão negra como a costa sul de Mubara, uma faixa de terreno estéril e abrupto formado por rochas vulcânicas, um lugar despovoado que agora se via claramente além do arrecife. Media uns cem ou cento e vinte pés de proa a popa e seus mastros estavam ligeiramente inclinados para frente, como os de todas as galeras do mar Vermelho, e no maior levava uma flâmula verde com a ponta em forma de calda de andorinha. Tinha duas vergas latinas e todas as velas aferradas, e do tope de cada mastro pendurava uma espécie de cesto ou ninho, e dentro de cada um havia um homem olhando para a Niobe, um deles com um telescópio. Não podia apreciar se os tripulantes estavam muito assustados, ainda que era indubitável que remavam com todas suas forças. Na cabine de popa, onde se supunha que deviam ir os oficiais franceses, não via nenhum europeu senão somente a um homem com uma calça bombacha de cor carmim que ia de um lado para outro abanando-se. Não sabia qual era sua velocidade, pois era muito difícil de calcular, mas achava que não navegava a mais de cinco nós.
- Então é isso que é uma galera - disse Martin, com grande satisfação.
Stephen e ele estavam junto ao cabillero1 e compartiam um telescópio.
- E se não me equivoco - acrescentou, - tem vinte e cinco remos de cada lado. Nisso é semelhante aos grandes barcos de remo da antiguidade. Tucídides teve ter visto muitas embarcações como esta! Quanta alegria!
- Provavelmente. Fixe-se nos remos, em seu movimento. Parecem as asas de uma enorme ave voando baixo, de um grande cisne celestial.
Martin riu com vontade.
- Acredito que foi Píndaro que fez essa mesma comparação - disse. - Mas não vejo correntes. Parece que os remadores podem mover-se livremente.
- Hassan me contou que nas galeras de Mubara nunca houve escravos. Essa é outra semelhança desta galera com os barcos de remo da antiguidade.
- Sim, é verdade. Vamos capturá-la?
- Bem, minha opinião sobre isso não vale nada - disse Stephen. - Mas quero recordar-lhe que Tucídides fala de uma galera que tardou em ir de Pireo a Lesbos desde que a lua saiu em uma noite até que voltou a sair no dia seguinte, aliás, até um pouco antes, o que significa que navegava a dez milhas por hora, que é uma grande velocidade.
- Mas, meu amigo - disse Martin, - recorde que a galera de Tucídides era trirreme, quer dizer, com três ordens de remos, e por isso provavelmente navegava três vezes mais rápido.
- Ah, é? Então talvez possamos capturá-la. Mas se não a alcançamos, e me parece que não será fácil bordejar essa ilhota, o capitão Aubrey a perseguirá até o porto de Mubara. O único problema é que se chegar ali primeiro e todos virem que a corveta a persegue e inclusive a ataca, fica suprimido o fator surpresa, e é possível que tratem de impedir o desembarque violentamente.
- Doutor - disse o capitão Aubrey, interrompendo suas especulações, - por favor, diga ao senhor Hassan que fique com os turcos onde não possam ver-lhes.
Havia duas soluções possíveis. Uma era se aproximar rapidamente da galera para tentar interceptá-la antes que chegasse a Hatiba. Provavelmente o terral sopraria com mais força quando a temperatura aumentasse em terra e rolaria alguns graus, e a maré, que mudaria em menos de uma hora, contrariaria o efeito da corrente que ia para o leste. Porém, isso ocorreria no momento propicio? A galera podia navegar mais rápido se seu capitão quisesse, mas muito mais rápido? Recordava ter visto uma percorrer um curto espaço navegando a dez nós. Se a Niobe, por sua tendência a trocar o rumo para sotavento, não pudesse contornar o extremo do arrecife, a galera fugiria dela, dobraria o cabo, largaria as imensas velas latinas e navegaria com o vento em popa até a baía de Mubara, e seus homens, seguros de que a corveta havia tentado apresá-la, dariam o alarme na ilha. A outra solução era fazer rumo ao alto mar para dissipar os temores dos tripulantes da galera e ficar ali durante um tempo e depois, talvez de noite, aproximar-se muito devagar, aparentemente sem rumo fixo, com as gáveas desdobradas e talvez com a bandeira francesa. Contudo, isso lhe faria perder tempo, e não era necessário que o almirante lhe dissesse que a rapidez era fundamental em um ataque. Olhou atentamente a distante ilhota, calculando a marcação e o abatimento da corveta, e a esses cálculos acrescentou o impulso da corrente e o efeito da baixa-mar. Por causa do calor, o suor ia cobrindo-lhe e a ilha parecia tremer, e de repente caiu no desespero e pensou: "Como é cômodo estar sob as ordens de outros e fazer exatamente o que lhe mandam!". Depois, alçando a voz, ordenou:
- Desdobrar as sobrejoanetes! Para cima, para cima!
Enquanto os marinheiros subiam pelos enfrechates da Niobe, olhava a galera com muita atenção, e quando as velas foram abertas, viu que o homem de bombacha de cor carmim soltou o leque e pegou um pau com a ponta arredondada e começou a marcar o compasso do movimento dos remos e a gritar para os remadores ao mesmo tempo. Os remos começaram a formar mais espuma e a velocidade da galera aumentou quase imediatamente, muito mais rápido que a da Niobe.
- É indubitável que nos têm medo - disse Jack e decidiu que se aproximaria rapidamente da galera, porque se seus homens já conheciam suas intenções, não serviria de nada sair para o alto mar.
Depois de dar a ordem de abrir o maior número de velas possível, aproximou-se de Stephen e disse:
- Talvez devessemos deixar o pobre Hassan subir ao convés, pois já não é necessário fingir. Diga-lhe que dentro de trinta minutos mais ou menos o assunto estará resolvido e também que se os turcos se colocarem no corrimão de barlavento, seu peso contribuirá para que a corveta tenha mais estabilidade.
Quando as sobrejoanetes e as monterillas foram abertas, a Niobe inclinou um emborno mais, mas no início sua velocidade não superou os seis nós. A galera se afastava cada vez mais, porém, depois de cinco minutos, sua velocidade deixou de aumentar, e ambas embarcações seguiram navegando pelas agitadas águas à mesma distância uma da outra durante um tempo. O relógio de areia de meia hora foi virado e se ouviu o sino. Durante todo este tempo, o feroz olhar de predador que tinham os marinheiros agrupados no corrimão da Niobe não mudou, e nenhum deles falou, mas quando a corveta começou a se aproximar da presa, quando apenas havia se aproximado algumas jardas, todos puseram uma expressão alegre e deram gritos de alegria.
- Os remadores estão começando a se cansar - disse Jack, que estava inclinado sobre a borda, de cara parao sol, e secava o suor da testa. - E não me estranha.
A distância se reduziu um cabo mais, e a maré começou a mudar. A Niobe, ainda no canal, tinha vantagem sobre a galera, e começou a se aproximar dela com mais rapidez. A tensão aumentou ainda mais. Agora todos estavam quase certos de que a corveta não poderia contornar a ilha, quer dizer, não podia fazê-lo sem dar bordejadas (uma horrível perda de tempo), mas cada vez havia mais probabilidade de apresar a galera antes que chegasse a Hatiba.
Então Jack viu algo que não havia previsto e que era um perigo. Pela amura de estibordo da galera havia uma zona escura entre a espuma, uma passagem no arrecife para ir à laguna contígua que a galera podia atravessar, já que tinha pouco calado, mas a Niobe não.
Suas rotas eram convergentes, e agora a galera estava ao alcance dos canhões de nove libras da corveta.
- Digam ao condestável que venha - ordenou, e depois, quando o condestável chegou, disse: - Senhor Borrell, suponho que os canhões de proa já estão preparados.
- Claro que sim, senhor! - disse o senhor Borrell em tom de censura. - Faz mais de meia hora.
- Então faça passar uma bala pela frente da proa da galera, senhor Borrell. Mas procure que não passe muito perto. Entendido? Faça o que faça, nenhuma bala deve alcançá-la, porque uma embarcação feita de tábuas de uma polegada e meia se afunda por nada. Nós jogamos o todo pelo todo.
O senhor Borrell não tinha intenção de afundar cinco mil bolsas e disparou com o coração na boca, mas acertou. A bala caiu a seis pés da proa da galera, lançando numerosos jorros de água para o convés. Não fez a galera se desviar do rumo, mas deu o que pensar ao seu capitão. Então os remadores retrocederam os remos e a galera se estremeceu, mas imediatamente a galera voltou a navegar em direção a Hatiba, afastando-se da apertada passagem do arrecife.
As duas embarcações seguiram avançando velozmente, umas vezes mais rápido a primeira, outras vezes, a segunda. A distância entre ambas diminuiu tanto que a galera estava ao alcance de todos os canhões da corveta. Se o capitão da galera não estivesse seguro de que ninguém lhe dispararia, já teria se rendido para evitar que a afundasse, mas o capitão de um barco com um carregamento tão valioso como esse podia se expor a tudo, exceto a ser abordado.
Nada no mundo agradava mais a Jack do que perseguir a uma presa no mar, mas fazia algum tempo que sua alegria havia diminuído, como havia ocorrido ao cavalo de seu sonho. No fundo de sua mente, uma voz perguntou em tom desconfiado por que os tripulantes da galera haviam se alarmado ao ver um barco da Companhia em um lugar por onde lhe era permitido passar e por que não haviam atravessado a apertada passagem. Também disse que apesar de que o homem do bombacha de cor carmim corria de uma ponta a outra do corrimão central arengando para os remadores e dando golpes com sua vara, a velocidade da galera não correspondia ao rápido movimento dos remos. Jack pensou que tudo isso era estranho.
Havia enganado a muitos inimigos no mar para que alguém pudesse enganar-lhe com facilidade. Quando a corveta chegou a estar a tiro de mosquete da galera e os marinheiros que estavam no castelo começaram a dar gritos de alegria, suas suspeitas se confirmaram porque viu um cabo que se estendia desde a popa da galera até a metade de sua agitada esteira.
- Senhor Williamson! - gritou. - Senhor Calamy!
Os guardas-marinhas se aproximaram dele correndo, com uma expressão alegre.
- Sabem o que fazem os patos quando têm as asas quebadas? - perguntou.
- Não, senhor - responderam sorridentes.
- Tentam jogar sua penas nos olhos de um. As ventoinhas fazem o mesmo quando alguém se aproxima de seus ninhos. Os senhores vêem esse cabo que sai da popa da galera?
- Sim, senhor - disseram depois de olhar fixamente a popa durante um tempo.
- Está atado a um pedaço de lona que serve de âncora e se encontra debaixo da superfície. Por isso podem remar com todas suas forças e, contudo, permitir que lhes alcancemos. Olhem, agora podem ver o aro que há na esteira. Querem levar-nos ao desmache, e por isso vou afundar sua galera. Senhor Mowett, prepare os canhões de estibordo!
No momento em que as portalós se abriram, o homem de bombacha de cor carmim correu até a popa e cortou o cabo. Então a galera começou a navegar com tanta rapidez que sua proa formava ondas que chegavam até a metade de seus costados. Hassan atravessou o convés correndo, com sua túnica branca ondeando e uma expressão preocupada em lugar de sua habitual expressão indiferente.
- Ele roga para que não dispare na galera, porque tem um tesouro a bordo - disse Stephen.
- Diga-lhe que estamos aqui para tomar Mubara, não para fazer-nos ricos - disse Jack. - Não somos corsários. Não podemos capturar a galera neste lado da ilha porque navega muito rápido agora, como pode ver, e assim que dobrar o cabo, seu capitão dará o alarme. Senhor Mowett, ice a bandeira turca. Senhor Borrell, dispare um canhonaço na parte baixa da abobadilha, por favor.
A galera virou noventa graus para estibordo e começou a avançar para o arrecife a toda velocidade, e agora da corveta só se viam sua popa e alguns bancos, e foi a sua popa aonde o condestável apontou o canhão. Ia disparar de uma plataforma estável em um alvo estável e não podia falhar porque era um excelente profissional, ainda que se errasse, a bateria de estibordo faria o trabalho por ele. Disparou com o coração encolhido, arqueou o corpo para esquivar o canhão quando retrocedia violentamente e depois, enquanto os artilheiros de sua brigada moviam o aparelho para arrastá-lo e limpavam seu interior, que ainda crepitava, tratava de ver através do fumaça.
- Muito bem, senhor Borrell - disse Jack.
Vira do castelo de popa que a bala acertou o alvo, fazendo saltar pedaços de madeira justo na altura da linha d’água. A maioria dos tripulantes haviam visto também, e nesse momento deram um grito, mas não de triunfo nem de alegria, mas de sincera admiração. A galera seguiu movendo-se, mas os remos deram somente uma remada a mais juntos, porque depois começaram a mover-se em distintas direções e a cruzar-se e, finalmente, foram abandonados, e Jack viu pelo telescópio que os tripulantes desamarravam as lanchas. Apenas acabaram de cortar as amarras e as trincas, a galera afundou, deixando a eles e às lanchas flutuando nas águas tranqüilas. Nesse mesmo momento a bateria de uma ilhota que ficava do outro lado de Hatiba, no extremo mais distante da entrada da baía de Mubara, começou a disparar contra a Niobe, mas esses disparos eram simplesmente demonstração de raiva, pois a corveta se encontrava a uma distância superior a um quarto de milha do alcance dos canhões.
- Orçar e diminuir velame! - gritou Jack, pensando imediatamente em cuidar dos paus.
Enquanto a velocidade da corveta diminuía, Jack, com as mãos atrás das costas, pensava na armadilha em que evitara cair e na fortuna que perdera, e ao mesmo tempo olhava as abarrotadas lanchas que atravessavam a passagem do arrecife para entrar nas águas pouco profundas da laguna. Não sabia se agora estava mais alegre ou mais triste. Não sabia se se alegrava do ocorrido ou o lamentava, e estava tão exaltado que não podia saber com segurança. Então pensou: "Não cheguei a ver os franceses, nem ao menos no final. Provavelmente estavam vestidos como os árabes".
- Senhor, o estandarte da galera se vê ainda - disse Mowett. - Quer que o peguemos?
- Claro que sim! - respondeu Jack. - Desça uma lancha.
Seguiu com a vista a rota pela qual a galera havia ido até ali e, a certa distância do arrecife, viu o tope e um pedaço da parte superior do mastro maior de uns dois pés, e o galhardete verde com a ponta em forma de calda de andorinha fazendo um movimento ondulatório na superfície.
- Não, para - disse. - Viraremos e nos aproximaremos na corveta. E, pelo amor de Deus, ordene estender alguns toldos, porque se não nossos miolos vão derreter.
A água estava claríssima. Quando os marinheiros jogaram a âncora de leva, não só puderam ver debaixo dela a galera, com a quilha apoiada sobre uma plataforma coralínea de cinqüenta jardas de diâmetro, como também a amarra de sua própia âncora descendo mais e mais e uma âncora coberta de uma crosta procedente de um naufrágio anterior. Os marinheiros se inclinaram sobre a borda e olharam para abaixo com tristeza.
Durante o almoço, Jack disse:
- Decidi que ficaremos aqui enquanto Hassan e os turcos discutem sobre que parte da ilha é melhor para desembarcar, pois seria absurdo mudar de bordo de um lado para outro e afastar-se e aproximar-se todo o dia com este maldito calor. Mas talvez deveria ter escolhido outro lugar, porque quando vejo debaixo de nossa quilha cinco mil bolsas a menos de dez braças de profundidade quase me arrependo de praticar a virtude.
- A que virtude se refere, meu amigo? - perguntou Stephen. Stephen era seu único convidado, já que o senhor Martin se havia desculpado por não assistir ao almoço dizendo que não podia comer nem um bocado com esse calor, ainda que havia acrescentado que estaria encantado de reunir-se com eles quando tomassem o chá ou o café.
- Deus nos assista! - exclamou Jack. - Não se deu conta de que fiz um ato heróico?
- Não.
- Ao afundar essa galera, joguei uma fortuna por minha própia vontade.
- Mas não podia apresá-la, meu amigo. Você mesmo disse.
- Não nesta parte. Contudo, se contornássemos a ilha, nós a perseguiríamos até a baía, e seria estranho se nos impedissem de apoderar-nos do tesouro, tanto se houvéssemos tomado Mubara como se não.
- Mas tinham as baterias carregadas. Estavam nos esperando prontos para disparar. Teriam explodido a corveta.
- É mesmo, mas eu não o sabia então. Dei a ordem para fazer o bem, para que a expedição não fracassasse e os franceses e seus aliados perdessem o dinheiro. Eu me assombro de minha própia magnanimidade.
- O pastor pergunta se pode entrar agora - disse Killick, com voz mais aguda e desagradável que o habitual, olhando com raiva a parte posterior da cabeça do capitão Aubrey, e depois fez um gesto depreciativo e murmurou a palavra "magnanimidade".
- Entre, meu amigo, entre - disse Jack, levantando-se para cumprimentar ao senhor Martin. - Agora mesmo estava dizendo ao doutor que esta situação é absurda, porque um grupo de pobres estão flutuando sobre uma fortuna, e sabem que está alí e a vêem, por assim dizer, a arca onde está guardada, e, contudo, não podem alcançá-la. Killick, apressesse com o café! Ouviu?
- Totalmente absurda, senhor - disse Martin.
Pouco depois Killick trouxe a cafeteira e a pôs na mesa fazendo uma forte inspiração, e depois de um breve silêncio, Stephen disse:
- Sou um escafandrista - disse Stephen.
- Stephen, por favor, modere-se - disse Jack, que tinha muito respeito aos eclesiásticos.
- Todo mundo sabe que sou um escafandrista - disse Stephen, olhando-lhe fixamente. - E durante as últimas horas estive pensando que tenho o dever moral de mergulhar.
Era verdade. Ninguém lhe havia pedido abertamente que o fizesse, e, depois da triste sorte que havia ocorrido o pobre Hairabedian, ninguém tinha a coragem para pedir, mas vira a muitos marinheiros conversando em voz baixa e lançando olhares tão eloqüentes como os dos cachorros para seu sino de escafandrista, que estava colocado agora em um canto do convés.
- Assim que vou descer - continuou, - com sua permissão, tão logo como John Cooper monte o sino. Meu plano é meter ganchos pelas juntas das tábuas que formam o convés da galera para que as tábuas se rompam quando eles forem puxados e fique ao descoberto o que está debaixo. Mas necessito de um companheiro para que me ajude a fazer as manobras.
- Eu também sou um escafandrista - disse Martin, - e estou acostumado a estar no sino. Eu me encantaria em ir com o doutor Maturin.
- Não, não, cavalheiros - disse Jack. - Os senhores são muito amáveis, infinitamente generosos, mas não devem pensar nisso agora. Pensem no perigo que correrão. Pensem no final que teve o pobre Hairabedian.
- Não temos intenção de sair do sino - disse Stephen.
- Contudo, os tubarões não podem entrar nele?
- Duvido, porém, ainda que assim fosse, nós os induziriamos a sair com um arpão de ferro ou uma pistola.
- Exatamente - disse Killick, e deixou cair um prato para dar ênfase à sua afirmação e depois se foi com os pedaços na mão.
Quando Stephen havia descido para almoçar com o capitão, os marinheiros que se encontravam no convés estavam tristes, cansados, decepcionados, quase asfixiados por causa do calor, e tinham tendência a brigar uns com os outros e com os turcos; contudo, ao regressar encontrou uma atmosfera alegre, olhares afetuosos, caras sorridentes, risos de proa a popa. Além disso, seu sino já estava montado e pronto para passar por cima da borda e descer. Tinha o vidro resplandecente, e em seu interior estavam penduradas várias vinhateiras que seguravam seis pistolas carregadas e duas lanças de abordagem, e sobre o banco havia numerosos ganchos, polias e cabos perfeitamente aduchados. Mas os risos cessaram e a atmosfera mudou por completo quando o que era uma probabilidade se converteu em uma realidade.
- Não acha que deveria esperar o entardecer, senhor? - perguntou Bonden quando Stephen se dispunha a entrar no sino, e a julgar pela expressão grave e preocupada dos outros, o marinheiro falava em nome de muitos de seus companheiros.
- Bobeiras! - exclamou Stephen. - Lembre, quando desçamos duas braças, pararemos e renovaremos o ar.
- Talvez devessemos mandar primeiro dois guardas-marinhas para que fizessem um teste - disse o contador.
- Senhor Martin, por favor, sente-se em seu lugar habitual - disse Stephen e, voltando-se para o marinheiro encarregado dos barris, recomendou: - Tenha cuidado para que não nos falte ar.
Não havia que temer isso. James Ogle deu voltas na manivela como se de seu movimento dependesse sua salvação, e antes que o sino descesse as duas primeiras braças debaixo d’água, já havia acumulado ali o ar que ia ser introduzido nele. Tudo o que os preocupados e angustiados marinheiros podiam fazer na corveta para proteger-lhes o fizeram, e vinte deles foram selecionados para alinhar-se no costado com mosquetes; contudo, não podiam fazer quase nada mais que vigiar as polias, e todos viram aterrorizados como um enorme peixe de uns trinta e cinco ou quarenta pés de comprimento passava entre a corveta e o sino a uma profundidade tão grande que não estava ao alcance dos mosquetes. O peixe passou por em cima do vidro, ocultando a luz do dia, e Stephen, olhando para cima, disse:
- Esse deve ser um Carcharodon. Vamos ver o que ele faz.
Abriu a chave de um barril e o ar usado formou uma corrente de bolhas. O enorme tubarão virou fazendo um só movimento e desapareceu.
- Queria que tivesse ficado mais tempo - disse Martin, tratando de alcançar o tubo do outro barril. - Poggius diz que é muito raro.
Subiu o tubo e o ar comprimido se espalhou pelo interior do sino e fez descer até a borda dele as poucas polegadas de água que haviam entrado.
- Acho que este é o dia mais claro de todos os que havemos descido - acrescentou.
- Acho que tem razão. Nunca subi em um globo aerostático, por desgraça, mas suponho que flutuar no ar produz esta mesma sensação, a sensação de ser imaterial ou estar em um sonho. Olhe, um pequeno Chlamys heterodontus!
Poucos minutos mais tarde o sino se assentou sobre a coberta da galera, detrás das bancadas e justamente em cima da escotilha de popa, cujos quartéis se haviam desprendido.
O tempo passava, e parecia interminável para os que estavam acima e, em troca, muito curto para os que estavam abaixo.
- Que estarão fazendo? - perguntou Jack por fim. - Que estarão fazendo? Queria que não lhes houvesse deixado ir.
Não chegava nenhum sinal desde o sino e o único sinal de que ainda havia vida nele eram os jorros de ar que formavam bolhas na superfície de vez em quando.
- Talvez deveríamos mandar-lhes uma mensagem - disse Martin, depois da décima tentativa de unir o cabo, o gancho e a polia. - Talvez deveríamos dizer-lhes que mandassem um cabo que já tenha amarrado um gancho e esteja colocado em uma polia.
- Não quero que pensem que não sou um bom marinheiro - disse Stephen. - Vamos tentar só mais uma vez.
- Há dois pequenos cações olhando pelo vidro - disse Martin.
- Sim, sim - disse Stephen em tom irritado, - mas lhe rogo que atenda a isto. Passe o cabo por esta presilha enquanto eu a mantenho aberta.
Ainda que o cabo tenha passado pela presilha, o conjunto não se manteve unido, e não tiveram mais remédio que mandar uma mensagem escrita em uma placa de chumbo com uma punção de ferro.
Então os marinheiros desceram um gancho que inclusive a pessoa mais tonta podia colocar. Era preciso fazer um grande esforço para descê-lo desde o convés da Niobe, mas os marinheiros que puxavam o cabo não se importavam, apesar de que havia muita umidade e a temperatura era de cento vinte e oito graus Farenheit debaixo dos toldos. Pouco depois começaram a ver grandes pedaços do convés da galera flutuando na superfície. Posto que todas as tábuas que formavam a coberta eram muito delgadas e leves, exceto os vaus que ficavam diante e detrás dos mastros, o convés pôde romper-se com um gancho, e os vaus se desprenderam quando a âncora pequena da Niobe puxou eles para cima. Quando terminaram de abrir o casco, as águas estavam tão agitadas que não se via nada desde a corveta, mas do sino chegou outra mensagem: "Vemos cofres ou caixas, aparentemente celadas. Se nos deslocam uma jarda para a esquerda, poderemos alcançar o mais próximo e o ataremos com um cabo".
- Nunca pensei que um cofre tão pequeno pudesse pesar tanto - disse Martin quando subiam o cofre até o centro do sino, onde havia mais luz. - Percebeu que o selo francês, esse com o galo que simboliza a Galia, é vermelho, e que o árabe é verde?
- Sim, muito bem. Se você o inclinar um pouco, passarei o cabo ao redor dele duas vezes.
- Não, não. Devemos rodeá-lo com o cabo e amarrar os dois extremos por cima, como se fazem nos pacotes. Queria que na Armada houvesse cordas normais, porque este cabo é tão grosso e tão pouco flexível que é muito difícil fazer um nó. Acha que este nó é adequado?
- É estupendo - disse Stephen. - Agora temos que passá-lo por debaixo do sino e fazer a sinal.
- Senhor, do sino chegou a mensagem: "puxar" - disse Bonden.
- Então comecem a puxar, mas devagar, muito devagar - disse Jack.
Nesse momento não saiam bolhas do sino. Todos viram o cofre subir devagar pela água, no início não muito claramente, mas depois perfeitamente, e os marinheiros que notaram seu peso sorriram.
- Meu Deus! - exclamou Mowett. - O nó está se desfazendo! Rápido, rápido…! Maldito seja!
Ao chegar à superfície o cofre se soltou e começou a descer, movendo-se em direção ao o sino.
Enquanto Jack, cheio de angústia, seguia com a vista sua trajetória pensou "Se golpeia o vidro, estão perdidos" e ao mesmo tempo gritou:
- Rápido, puxem o cabo do sino!
O cofre passou a poucas polegadas de distância do vidro, chocou-se com estrépito contra o sino e caiu junto à borda.
- Da próxima vez temos que fazer o nó ao revés - disse Martin.
- Não posso suportar isto mais tempo - disse Jack. - Descerei e farei o nó eu mesmo. Senhor Hollar, dê-me um pedaço de merlín{14} e outro de cordão. Subam o sino!
Os marinheiros subiram o sino e o colocaram sobre o convés. Então Stephen e Martin saíram dele e foram aclamados por todos.
- Acho que não apertamos bastante o nó - disse Stephen.
- Bobeiras! Fizeram um magnífico trabalho, doutor. Eu lhe felicito sinceramente, senhor Martin, mas desta vez eu ocuparei seu lugar. O senhor já sabe o que dizem: Sapateiro, a teus sapatos.
Todos se riram ao ouvir isto, pois tinham tão bom humor que não puderam se conter. Contudo, o capitão Aubrey entrou no sino sobrepondo-se à aversão que sentia por ele, e não pôde evitar que sua expressão alegre e triunfante se transformasse em uma grave. Detestava estar encerrado (nunca teria descido a uma mina de carvão por nada do mundo) e durante a descida lhe assaltaram temores irracionais e teve que reprimir seu desejo de sair dali. Mas as pausas que faziam na água, a renovação do ar e a eliminação do ar usado o mantinham ocupado, e quando se pôs de pé sobre umas tábuas da galera se sentiu melhor e seguro.
- Voltamos ao mesmo lugar onde estávamos - disse Stephen. - Esse é o cofre que caiu. Vamos metê-lo aqui.
- São todos iguais? - perguntou Jack, olhando o pesado cofre, que tinha profundas ranhuras dos lados.
- Pelo que vi, todos são exatamente iguais - disse Stephen. - Olhe, aqui junto à borda há uma fila que chega até a proa.
- Então não tem sentido usar cabos, porque com correntes poderemos pegá-los em um instante. Vamos subir para pegar um par delas. Nós levaremos este no banco.
Outra vez os marinheiros subiram o sino e o colocaram sobre o convés, e outra vez se ouviram vivas, mas agora muito mais altos. Bonden e Davis, dois homens muito robustos, levaram o pequeno cofre ao centro do castelo de popa.
- Dêem passagem! - gritou o contramestre, empurrando os tripulantes da Surprise, os turcos e os marinheiros das Índias Orientais, que, cheios de alegria e ansiedade, haviam se aglomerado ao redor.
Então o carpinteiro, com suas ferramentas, passou pela abertura que deixaram. Depois se ajoelhou junto ao cofre, tirou três pregos e levantou a tampa com uma alavanca.
Os alegres e ansiosos marinheiros, agora mais perto uns dos outros que antes, ficaram perplexos. Os que sabiam ler leram devagar a frase Merde á celui qui le lit, que estava pintada em branco em um bloco de metal de cor cinza fosco.
- Que significa isto, doutor? - perguntou Jack.
- Mais ou menos: Merda àqueles que lêem.
- É um maldito lingote de chumbo! - gritou Davis, e pegou o lingote com um rápido movimento e se pôs a dançar sustentando-o em alto acima de sua cabeça, vermelho de ira e com a boca cheia de saliva.
- Dá-me e o jogarei pela borda - disse Jack em tom amável, dando-lhe palmadinhas no ombro.
- Senhor… - disse Rowan em tom vacilante. - Quer comprar pescado?
- Nada me agradaria mais, senhor Rowan - respondeu Jack. - Mas, por que me pergunta?
- Há um barco abordado com a corveta, senhor, e o pescador tem um pescado que parece uma arraia com manchas vermelhas. Faz bastante tempo que está aqui, e temo que partirá se não o atendermos imediatamente.
- Compre todo o pescado que tenha a bordo - disse Jack. - Doutor, tenha a amabilidade de perguntar-lhe sobre a situação da ilha com ajuda do senhor Hassan. Isso permitirá aos turcos decidir onde vão desembarcar e a nós saber que medidas devemos tomar.
Foi para sua cabine, e ali se encontrou com Stephen no final da calorosa tarde.
- A situação é clara, Jack - disse. - Os franceses chegaram à ilha faz um mês e reconstruíram as fortificações e colocaram baterias em todos os lugares onde eram necessárias. Não é possível desembarcar. Durante as duas últimas semanas fizeram a galera passar pelo canal em direção sul pela noite e navegar em direção contrária pela manhã. Os pescadores estavam convencidos de que levava grande quantidade de prata, e provavelmente os franceses deixaram a bordo os cofres em que foi transportada para que seguissem acreditando, porque se nós nos encontrássemos com alguma feluca ou alguma falua, seus tripulantes nos falariam do tesouro e isso nos atrairia.
- Eles nos enganaram - disse Jack. - Fizemos papel de bobos.
- Acho que é de esperar que seja esse o resultado de qualquer operação da qual se fale tanto como esta - disse Stephen. - Apesar disso, estou assombrado da exatidão de sua informação.
CAPÍTULO 7
Durante a viagem de regresso da Niobe para Suez, o vento do norte soprou quase ininterruptamente, pelo que a corveta teve que avançar dando bordejadas, às vezes duas ou três em cada guarda, e a ordem "Todos a mudar de bordo!" se repetiu mais vezes que a chamada dos faxineiros, pois não só se dava de dia, mas também de noite. Tinha os fundos muito sujos, especialmente na parte onde se haviam desprendido as placas de cobre, e isto provocou que perdesse os estais mais amiúde do que era de esperar e que navegasse a muito pouca velocidade, o que afetou em grande medida aos numerosos homens que iam a bordo, que pensavam que derrotariam os turcos em Mubara e completariam a aguada ali. A água foi racionada, e a concha do tonel que sempre ficava no convés para que qualquer um bebesse, foi substituída pelo cano de um mosquete desmontado, assim que todo aquele que desejava beber tinha que sorver a água com ele. Contudo, para que nenhum bebesse sem uma poderosa razão, o cano foi colocado no cesto da gávea do maior, porque os homens não pensariam que valia a pena subir para pegá-lo em meio do asfixiante calor se não tivessem uma sede terrível. Os turcos pensaram que isso era uma injustiça, e disseram que, apesar de que outros subissem, eles não eram capazes de subir porque nem suas mães nem seus pais eram macacos, e os marinheiros responderam que eles não trabalhavam e que não podiam ter sede porque tinham enrolada na cabeça essa coisa horrível. Mas esse argumento não pareceu convincente para os turcos, e poderia ter-se criado um grave problema na Niobe se não houvesse rumado para Kossier, onde se podia pegar muita água, ainda que a corveta teve que ficar a considerável distância da costa e os poços ficavam em lugares aos quais era difícil chegar nas lanchas.
A tarefa de encher todos os tonéis de água e levá-los a bordo era demorada, e ali foi mais demorada ainda. Geralmente o ar que rodeava o mar Vermelho era tão úmido que os raios de sol não queimavam a quem ficava exposto a eles, e por isso os marinheiros trabalharam desnudos da cintura para cima, e a maioria deles ainda tinham a costas pálidas depois de ter passado semanas assim. Mas numa sexta-feira começou a soprar o terral, um vento tão seco que as bolachas, as cartas marítimas e os livros se enrugaram em pouco tempo e a pele de alguns marinheiros se pôs vermelha como um tijolo e a de outros, púrpura. A ordem pela qual se retirava a permissão para trabalhar sem camisa para os marinheiros que não eram de raça negra, amarela ou acobreada chegou tarde, e ainda que Stephen lhes tenha untado a costas com azeite de oliva, as queimaduras eram tão profundas que o azeite não fez efeito. A partir de então carregar a água foi um processo mais doloroso e mais lento, e enquanto isso, o bimbashi, que não havia perdoado Jack por ter-se deixado enganar, mostrava-lhe o cenário de outra grande derrota da Armada real e lhe contava com detalhe como havia ocorrido. O bimbashi lhe mostrou a pequena fortaleza com cinco canhões que defendia a enseada de Kossier, à qual duas fragatas de trinta e dois canhões, a Daedalus e a Fox, haviam disparado canhonaços durante dois dias e uma noite quando a cidade estava ocupada pelos franceses. Disse que haviam disparado seis mil bombardeios e o escreveu para que não houvesse erro e depois acrescentou que os ingleses não puderam tomar a fortaleza e que os turcos haviam logrado repelir o ataque sem perder mais que um canhão, ainda que se havia produzido um grande número de baixas.
Jack havia dito a Stephen: "Por favor, diga ao bimbashi que lhe estou muito agradecido pela informação e que considero que é muito cortês o fato de tê-la dado". Suas palavras haviam tido que ser transmitidas necessariamente através de Hassan, um homem refinado que se havia envergonhado de ouvir ao bimbashi contar aquela história e ainda estava envergonhado.
Contudo, Hassan se despediu de Jack com a mesma frieza que o bimbashi quando chegaram a Suez. Então o árabe voltou ao deserto e o turco levou seus homens para o quartel.
- Que maneira mais estranha de dizer adeus! - exclamou Jack, olhando com pena e indignação como Hassan se afastava. - Sempre o tratei com cortesia e nos dávamos muito bem. Não sei o que lhe fez adotar essa atitude soberba.
- Ah, não? - perguntou Stephen. - Pois que ele esperava que descesse para pegar as setecentas e cinqüenta bolsas que ele prometeu lhe entregar se atraiçoasse os egípcios. Pensava que havia cumprido a sua parte do contrato e que ele não podia lhe dar nem uma só bolsa, e muito menos várias centenas, no momento de partir. Achava que pretendia zombar dele, e isso é suficiente para que um homem adote uma atitude reservada e soberba.
- Em nenhum momento aceitei sua disparatada proposta. Nem a considerei.
- Naturalmente que não! Contudo, ele acredita que sim, que é o que importa. Mas não é um homem desagradável. Pela manhã, enquanto você estava limpando os fundos da corveta, estive falando com ele e com um médico copta que fala francês, um homem que ele conhece desde a infância e que nos servirá de intermediário se temos que voltar a tratar algum assunto com o governador egípcio. Esse cavalheiro tem relações com muitos mercantes gregos e armênios, e avidez de informação. Quer que peça um pouco mais deste admirável sorvete, a única coisa fria de toda a criação, e que lhe conte o que averiguei?
- Sim, por favor.
Estavam sentados no terraço que ficava justo em cima da entrada do caravançará onde Stephen havia deixado sua manada de camelos e onde agora se encontravam os homens do capitão Aubrey. Os tripulantes da Surprise haviam terminado suas tarefas matutinas e agora a maioria deles estavam descansando - debaixo dos arcos da galeria que rodeava o pátio e contemplando os camelos, que estavam sob o sol, a pouca distância da carga que teriam que levar no futuro: fardos, o sino desmontado e muitas caixas com pedaços de coral, conchas e outras maravilhas da natureza recolhidas por Stephen e Martin. Vários tripulantes haviam adotado alguns dos cachorros meio selvagens que vagabundeavam pelas ruas de Suez e David discutia com o dono de uma ursa da Síria o preço de seu filhote de urso. Todos pareciam homens aprazíveis e amáveis, porém, no fundo do pátio, havia numerosos mosquetes empilhados ao estilo da Armada, e talvez isso e o diamante de Jack influíram em que o vice-governador egípcio fosse mais complacente que antes. Seus soldados haviam sido chamados para acompanhar a Mehemet Alí em uma operação bélica, e ainda que voltou a pedir a Jack que lhe pagasse direitos de ancoragem, não insistiu, e tampouco os aduaneiros insistiram em que pagasse direitos de aduana quando lhes disse que nas caixas não havia mercadoria senão objetos pessoais e que não podiam abrir.
Trouxeram o sorvete, tão frio que estava coberto de geada, e Stephen tomou uma pinta inteira e depois disse:
- Então, parece que o Serviço secreto tinha razão no que dizia sobre o carregamento da galera, mas estava equivocado com relação à data de sua partida. Os franceses sabiam muito bem quais eram nossas intenções e provavelmente também todos nossos movimentos e contrataram um grupo de cristãos de Abissínia como tripulantes para que a levassem ao seu destino durante o ramadã. Mas depois que os tripulantes abissínios voltaram ao seu país, ordenaram a outros levar continuamente a galera de uma ponta a outra desse espantoso canal e difundiram o rumor de que transportavam mais tesouros de uma das ilhotas do sul para que chegasse até nós. Esperavam que nós, convencidos do valor do carregamento, perseguiríamos a galera. Então a galera nos levaria a um braço do mar que se encontra do outro lado das baterias, onde a tripulação a abandonaria, e depois, enquanto nós houvéssemos subido a bordo dela, a teriam destruído ou nos haveriam capturado.
- Por isso tinham tantos botes! - exclamou Jack. - Naquele momento me perguntei por que - disse Jack ofegante e, depois de se abanar por um momento, acrescentou: - Killick surpreendeu a um dos homens do vice-governador tratando de abrir uma das caixas com os selos estampados que o senhor Martin me pediu para guardar seus equinodermos. Acho que o vice-governador suspeita que abordamos a galera. Fez todo o possível para que o convidasse para subir em nossa corveta. O que será que os turcos lhe disseram?
- Eles lhe disseram a pura verdade. Bem, agora é evidente que Mehemet Alí joga sujo com o Sultão, e, naturalmente, os egípcios pensam que os turcos fazem o mesmo com eles. Aqui alguns pensam que nos apoderamos do tesouro francês ou pelo menos de parte dele; outros pensam que tiramos do mar um tesouro que estava afundado há muito tempo; outros pensam que pegamos pérolas nos lugares onde eles sabem que há muitas, mas onde ninguém se atreve a mergulhar; e outros pensam que fracassamos. Por outro lado, acho que todas as criaturas pensantes e com duas pernas que há na cidade pensam que nós usamos o sino para conseguir bens materiais. Não sei com qual dessas opiniões coincide a do vice-governador, mas Hassan me aconselhou que não confiasse nele, entre outras razões, porque se houver a ruptura entre Mehemet Alí e o Sultão, o que é muito provável, ele não terá medo das represálias dos turcos por ter nos tratado mal. Direi a Martin que cuide melhor de seus equinodermos.
- Não vou dizer que me importo pouco com o vice-governador - disse Jack, - e tampouco que não tem poder porque não tem soldados, porque isso poderia trazer má sorte, mas deixaremos de vê-lo amanhã. Contudo, tenho que dizer algo em favor dele: foi bastante cortês e nos conseguiu um bom grupo de camelos. Acredito que os trarão ao amanhecer. E se fizermos a viagem com mais calma desta vez, andando pela manhã e pela tarde e descansando ao meio-dia e pela noite, e se tudo vai bem, dentro de três ou quatro dias também deixaremos de ver este horrível país e estaremos a bordo do bendito Dromedary, navegando pelo Mediterrâneo como cristãos… e eu terei que escrever o relatório oficial. Que Deus me ajude! Garanto que preferiria ser açoitado diante de todos os barcos da esquadra, Stephen.
Jack Aubrey nunca havia gostado de escrever cartas oficiais, nem sequer aquelas em que comunicava uma vitória, e a idéia de ter que escrever uma em que devia dizer que havia fracassado, sem poder mencionar nenhum benefício ou ganho que o compensasse (não capturara nenhuma presa, não conseguira nenhum aliado valioso), fez decair seu ânimo.
Mas voltou a animar-se quando chegou o médico copta, o doutor Simaika, que havia ido visitar Stephen e falar-lhe de política européia, de oftalmía e de lady Hester Stanhope. O visitante havia trazido uma cesta com folhas de khat recém colhidas e quando Jack e Stephen as mascavam para comprovar se lhes fariam sentir menos calor, começou a falar do adultério, da fornicação e da pederastia no Egito, fazendo referência aos seus aspectos menos trágicos, e assinalando que Sodoma ficava ao este-nordeste, detrás do oásis de Moisés, a tão somente alguns dias de caminho. Falava com tanta zombaria e estava tão alegre que Jack passou uma tarde muito agradável, e passou muito tempo rindo apesar de que não entender muitas coisas das quais dizia e amiúde tinha que pedir-lhe que as explicasse. Jack achava que Suez não era agora um lugar tão repugnante, pois o calor era realmente mais suportável e o vento arrastava a pestilência para o mar, por isso, quando o vice-governador enviou o seu secretário para dizer-lhe que seria melhor que o capitão Aubrey não partisse no dia seguinte o recebeu muito sereno.
Afortunadamente, o doutor Simaika ainda estava ali, e o assunto ficou claro: como tiraram do vice-governador até o meio pelotão de soldados que formavam sua guarda e que haviam prometido deixar-lhe, considerou conveniente mandar um mensageiro a Tina para que trouxesse consigo um grupo de soldados turcos que poderiam escoltar o capitão Aubrey quando atravessasse o deserto, e como os soldados tardariam uns dez dias para chegar, enquanto isso ele poderia desfrutar da agradável companhia do capitão Aubrey.
- Que Deus não o permita! - exclamou Jack. - Por favor, diga-lhe que conhecemos muito bem o caminho e que não necessito de escolta porque meus homens irão armados e que nada me causaria mais satisfação que estar em sua companhia, mas que tenho que cumprir o meu dever.
O secretário perguntou se o capitão Aubrey se responsabilizaria do que ocorresse e não culparia o governador caso lhe ocorresse algo como, por exemplo, que um de seus homens fosse mordido por um camelo ou que os ladrões lhe roubassem em um oásis.
- Oh, sim, assumo a responsabilidade! Apresente meus respeitos a sua excelência e diga-lhe que eu gostaria fazer as coisas como haviamos acordado e, por isso, receber os camelos ao amanhecer.
- Acha que os verei? - perguntou Jack quando o secretário havia partido.
- É possível - respondeu o doutor Simaika com um olhar significativo.
Mas antes de que seu significado fosse explícito, o contador foi lhe pedir instruções de como carregar as provisões, e Mowett, sua opinião sobre a licença dos marinheiros. Ao mesmo tempo começou uma briga no pátio, uma briga entre Davis e o urso, que dava golpes no queixo do marinheiro porque se incomodara com a familiaridade com que lhe tratava.
O copta fez uma inclinação de cabeça e se foi. Stephen desceu correndo para proteger o urso e Jack, depois de ter resolvido o problema das provisões, disse que não dava licença aos marinheiros para que saíssem porque possivelmente partiriam pela manhã e não queria passar o dia buscando os atrasados nos bordéis de Suez. Ordenou que fechassem com chave o portal do caravançará e que fizessem guarda junto dela Wardle e Pomfret, dois suboficiais de certa idade, puritanos e misóginos, que tinham entre os dois dezessete filhos e que eram de confiança quando estavam sóbrios. Depois acrescentou:
- Tenho que ir me despedir da Niobe, que zarpará quando comece a baixa-mar. Mas regressarei logo, para o caso dos camelos chegarem.
Os camelos, barulhentos e fedorentos, chegaram com a luz cinzenta do amanhecer, e quando o portal se abriu, entraram com passos largos. Entre suas pernas, agachando-se o mais possível para que não os vissem e guiados por Wardle e Pomfret, iam numerosos tripulantes da Surprise pálidos e olheirudos, os tripulantes que haviam escapulido durante a noite. Contudo, não faltava nenhum, e Mowett, depois de fazer uma breve inspeção, disse:
- Todos presentes e sóbrios, senhor, com sua permissão.
Em suas palavras não havia mais falsidades além das toleráveis, pois os poucos marinheiros que ainda estavam bêbados não caíram até depois da inspeção, e foram colocados silenciosamente sobre o lombo dos camelos, entre as tendas e as bolsas dos marinheiros.
Enquanto carregavam os camelos com as poucas provisões que lhes restavam da viagem (algumas bolachas, um pouco de tabaco, um quarto de barril de rum e vários aros de barril que o senhor Adams havia guardado porque era o responsável de que não se perdesse nenhum), as bolsas dos marinheiros, os baús dos oficiais e os pertences de Stephen, Killick tirou de Jack seus melhores trajes e os guardou em seu baú, e depois fechou o baú com chave, o envolveu em um pedaço de lona e o pôs sobre um camelo fêmea sumamente dócil que era conduzido por um preto com cara de honrado. Só deixou para Jack uma calça de nanquim, uma camisa de linho, um chapéu de palha de aba larga, duas pistolas e o velho sabre que usava para a abordagem, e pensava pegar as armas do baú quando saíssem da cidade.
Apesar de estar vestido com simplicidade, o capitão Aubrey caminhava majestosamente. Era o primeiro do grupo, e tinha a Mowett de um lado, a um guarda-marinha do outro, e ao seu timoneiro detrás. A seguir iam os oficiais e os tripulantes da Surprise: primeiro os marinheiros do castelo, depois os gavieiros do traquete, depois os gavieiros do maior e, por último, a guarda de popa. E no final iam os camelos carregados com a bagagem. Deixaram Suez dignamente, escoltados por uma nuvem de meninos e cachorros rueiros, pois ainda que muito cedo os marinheiros deixaram de ter os brios que tinham quando começaram a caminhar, pelo menos seguiram formando grupos bem delimitados até que adentraram no deserto.
Agora atravessavam uma parte do deserto pela qual era difícil caminhar, onde a areia era tão branda que a menos que os homens tivessem patas como as dos camelos, afundavam nela até o tornozelo. Além disso, todos haviam passado tanto tempo no mar que tiham trabalho em voltar a caminhar, e quando Jack deu a ordem de parar para desjejuar, a coluna se convertera em uma linha quebrada.
- Há alguns camelos que só têm em cima marinheiros bêbados e umas poucas tendas - disse Martin. - Geralmente, os oficiais do exército vão a cavalo, inclusive nos regimentos de Infantaria.
- Às vezes os da Armada também - disse Stephen, - e em certas ocasiões é engraçado vê-los. Mas cada vez sã mais numerosos os que têm a absurda idéia de que se há que fazer alguma tarefa difícil e desagradável, como caminhar pelo deserto, suportando o calor e sem possibilidade de encontrar uma sombra, todos devem fazê-la. Acho uma idéia insensata e disparatada, fruto da vaidade e de um razoamento ilógico. Eu disse amiúde ao capitão Aubrey que ninguém pensa que ele tenha que ajudar a limpar os sanitários do barco nem a fazer outros trabalhos própios de ofícios desleais, e que atravessar assim o deserto voluntariamente é uma arrogância, uma soberba, um pecado.
- Desculpe-me, doutor Maturin, mas o senhor também faz o mesmo e tem seus própios camelos a mão.
- Eu faço por covardia. Mas minha valentia aumentará a medida que surjam bolhas nos meus pés e se meus tornozelos inchem. Dentro de pouco montarei silenciosamente em um camelo.
- Nós fizemos a viagem de ida cavalgando.
- Isso se deveu a que eles andavam de noite e nós, em troca, passávamos o dia recolhendo plantas. Além disso, passávamos desapercebidos.
- Quantas plantas recolhemos! O senhor acha que chegaremos a Bir Hafsa amanhã?
- Bir Hafsa?
- Aquele lugar onde paramos para descansar e encontramos tantas centáureas para os camelos e um raro eufórbio entre as dunas.
- E lagartos verdes e um curioso chasco e a calandra … É possível que cheguemos. Deus queira que cheguemos!
Contudo, chegou um momento em que não parecia possível. O grupo não avançava muito, porque havia aumentado o calor desde que o sol havia subido um pouco no céu e, além disso, porque os que haviam passado a noite cantando e bailando estavam esgotados. Mas nesta viagem intervinha um fator que não havia influído na que haviam feito para Suez avançando de noite. Posto que ali o deserto era plano, os que desejavam aliviar-se não podiam refugiar-se em nenhum lugar durante o dia, e o capitão e muitos dos tripulantes, que eram tão vergonzosos em suas ações como descarados ao falar, afastavam-se do grupo com o fim de que a distância que os separava dele, amiúde uma grande distância, permitisse manter a decência. Por fim o grupo conseguiu avançar muito pouco, somente até um lugar chamado Shuwak, um lugar em que havia umas ruínas e alguns tamarices e mimosas e que ficava situado a menos de dezesseis milhas de Suez. Mas se fossem mais longe, Stephen não poderia mostrar a Jack uma cobra egípcia, um animal digno de se ver, um magnífico exemplar de cinco pés e nove polegadas que se deslizava pelo solo do pequeno caravançará em ruínas com a cabeça levantada e a capuz estendido, e tampouco teria podido ir com Martin de camelo até a margem de um pequeno lago onde viram sob os últimos raios de sol um curioso martim pescador e uma abetarda mais velha.
Mas no dia seguinte a maioria dos homens haviam recuperado suas forças, e como agora atravessavam uma zona onde a areia era firme, o grupo pôde avançar muito rápido. Depois do descanso do meio-dia, seguiram caminhando com a mesma rapidez, e quando o sol estava ainda a um quarto do horizonte, avistaram Bir Hafsa, um lugar no qual havia outra construção em ruínas e um poço que tinha três palmeiras do lado, um lugar muito próximo do caminho e rodeado de dunas.
- Acho que seria melhor acampar junto daquele poço - disse Jack. - Poderíamos comer com mais calma, e, de toda maneira, não adiantariamos muito se seguíssemos andando mais uma hora.
- Você se importaria que Martin e eu nos adiantássemos com o camelo? - perguntou Stephen.
- Oh, não! - exclamou Jack. - E lhe agradeceria muito que tirasse dali os répteis mais repugnantes.
O camelo em questão, um animal bastante dócil que caminhava com passos muito compridos, adiantou ao grupo muito cedo, apesar de que agora levava carga dupla, e parou junto das centáureas que ficavam próximas das palmeiras quando ainda faltava meia hora para que o sol se pusesse. Quando os dois homens já haviam visto muitos chascos curiosos, com um topete branco, e estavam subindo uma duna situada ao leste do lugar onde se podia acampar, Martin, apontando uma duna que ficava ao oeste, exclamou:
- Olhe que cenário mais pitoresco!
Stephen olhou para lá e viu as silhuetas de um dromedário e seu cavaleiro recortando-se sobre o céu alaranjado. Depois pôs a mão acima dos olhos para protegê-los do sol e viu ao pé da duna muitos mais camelos, e não só camelos mas também cavalos. Então olhou para o sul e viu aos marinheiros, que, sem muita ordem, formavam uma fila de um estadio{15} de comprimento, e mais atrás a fila de camelos carregados com a bagagem que agora avançavam com rapidez porque haviam cheirado o espinhoso pasto.
- Acho que deveríamos descer imediatamente - disse.
Jack estava indicando os lugares onde deviam pôr as tendas e Stephen o interrompeu.
- Perdoe, senhor, mas há um grande número de camelos a menos de uma milha a oeste. Quando os vi dali de cima, os cavaleiros estavam passando para os cavalos, e acredito que é isso o que os beduínos fazem antes de lançar um ataque.
- Obrigado, doutor - disse Jack. - Senhor Hollar, chame todos para seus postos!
Depois, alçando tremendamente a voz, ordenou:
- Guarda de popa, passo ligeiro! Passo ligeiro!
A guarda de popa avançou com passo ligeiro e logo passou a formar o quarto lado do quadrado que compunham com os marinheiros do castelo e os gavieiros do traquete e os do maior.
- Senhor Rowan, o senhor e um grupo de marinheiros levarão os cameleiros e os camelos para se refugiar naquele recinto - ordenou Jack. - Killick, meu sabre e minhas pistolas!
O quadrado não estava tão bem formado como o dos militares, e quando Jack gritou: Calar baionetas!", não se viram lampejos nem se ouviram estalidos nem golpes no solo simultaneamente, mas ali estavam os mosquetes com as baionetas postas e os marinheiros estavam habituados a usá-los. O quadrado era pequeno, mas os marinheiros eram temíveis. Jack, no meio do quadrado, dava graças a Deus por não ter tentado aumentar o ritmo de marcha acrescentando-as à carga dos camelos. Mas não sentiu satisfação quando viu que os camelos se moviam muito lentamente. Seu baú ia em um dos primeiros camelos, e Killick já regressava do recinto, porém, apesar de Rowan e seus homens terem metido a maioria deles para dentro, ainda tinham que fazer entrar aos que haviam se separado do grupo. Estava a ponto de ordenar-lhes algo quando viu aparecer vários ginetes na duna que Stephen havia indicado, e então gritou:
- Rowan! Honey! Regressem imediatamente!
E enquanto os homens regressavam correndo, na areia se viam suas sombras alongadas.
O grupo de ginetes aumentou, e então, todos juntos, lançaram um grito agudo e desceram a duna a galope em direção a Rowan e Honey. Eles os alcançaram, cortaram sua passagem e deram uma volta ao seu redor, apenas a umas polegadas deles, e um momento depois subiram a ladeira galopando furiosamente e, ao chegar no alto, frearam os cavalos bruscamente. Então todos ficaram ali um longo tempo, alguns empunhando sabres, outros, fuzis.
Jack vira muitas vezes os árabes representarem fantasias como essa em Berbería. Avançavam a galope em direção ao seu chefe e aos seus convidados, fazendo disparos no ar, e, no último momento, davam a volta. Quando Rowan e Honey chegaram ofegantes ao quadrado, disse:
- Talvez só fazem isto para se divertir. Não disparem até que dê a ordem.
Repetiu isto com ênfase e se ouviu um rumor de aprovação, ainda que Pomfret sussurrou:
- Diversão estúpida!
Os marinheiros estavam sérios e desgostosos, mas atentos e confiantes. Tanto Calamy como Williamson estavam muito nervosos, o que era compreensível porque não haviam visto batalhas em terra, e Calamy brincava com a chave da pistola.
No alto da duna, um homem com uma capa vermelha apontou para cima com o fuzil, disparou no ar e desceu a ladeira a galope, seguido dos outros, disparando e gritando: "Illa-illa-illa!".
- Estão representando uma fantasia - disse Jack. - Não disparem!
Os ginetes avançaram na direção deles, dividiram-se em dois grupos e rodearam o quadrado, formando uma grande nuvem de poeira, enquanto suas túnicas ondeavam ao vento, os sabres brilhavam à luz do entardecer e os fuzis disparavam sem cessar.
O sol se pôs. O pó opaco adquiriu um brilho dourado. Os ginetes deram outra volta ao redor deles, desta vez mais perto, gritando entre o ruído ensurdecedor dos cascos. Calamy deixou a pistola cair, e saíram lampejos da caçoleta. Nesse momento Killick deixou seu posto lançando-se para frente, como se estivesse ferido, e gritando:
- Não, não, preto bastardo!
Então alguém gritou:
- Estão indo!
Efetivamente, estavam indo. Depois de dar a última volta, haviam começado a galopar em direção oeste, formando uma fila. Então todos viram que os camelos também corriam na mesma direção, açoitados com fúria pelos cameleiros. Puderam ser vistos apenas por alguns momentos na penumbra e imediatamente desapareceram entre as dunas. Mas se restaram dois camelos: um que agora pastava tranqüilamente e que tinha as rédeas quebadas e outro que estava deitado no solo e cujas patas Killick tinha fortemente seguras. Este camelo estava meio enterrado na areia e aturdido porque lhe haviam dado vários golpes e o haviam pisoteado e chutado. Contudo, não estava pior que Killick, que tinha o punho ensangüentado.
- Eu lhe dei o merecido a esse canalha - disse Killick.
O silêncio se fez. A escuridão se estendia com rapidez. Tudo havia terminado, e ninguém havia morrido nem sofrera feridas graves; contudo, o grupo perdera tudo exceto os uniformes e os adornos do capitão Aubrey, vários documentos, alguns instrumentos e duas tendas grandes, que um dos camelos carregava.
- O melhor que podemos fazer é beber tanta água como possamos e continuar a viagem para Tina avançando de noite. Não necessitamos de comida com este calor, e se tivermos fome, comeremos os camelos. Recolham algumas ramas e façam uma fogueira junto ao poço.
Uma grande chama saiu das ramas secas de tamariz, e sob sua luz, Jack não viu o que temia, um buraco seco com um camelo morto dentro, mas uma considerável quantidade de água. Desafortunadamente, não tinham nenhum balde, mas Anderson, o veleiro, fez um imediatamente com o pedaço de lona que cobria o baú de Jack e a caixa de costura que estava dentro, e os marinheiros o jogaram e o encheram uma e outra vez até que já nenhum podia beber mais e os camelos a recusavam.
- Vamos, chegaremos muito bem - disse Jack. - Verdade que chegaremos bem, doutor?
- Acho que poderemos - respondeu Stephen, - especialmente aqueles que respirarem pelo nariz, já que assim evitarão a perda de humores, e os que tenham um seixo na boca o tempo todo e os que se abstenham de urinar e de conversar. Os outros provavelmente ficarão pelo caminho.
Quase imediatamente depois se ouviu nas dunas um forte grito: "Ujú-ujú!". Isso evitou que os marinheiros conversassem, mas depois de um momento, muitos marinheiros começaram a falar em voz baixa. Pouco depois o contramestre se aproximou de Mowett, e depois Mowett foi aonde Jack estava e disse:
- Senhor, os homens perguntam se o pastor poderia pedir a Deus que bendiga a viagem.
- Sem dúvida - respondeu Jack. - Em momentos como este, uma oração vem muito bem, quero dizer, é muito mais apropiada que um tedéu. Senhor Martin, acha adequado celebrar uma breve cerimônia religiosa?
- Sim, naturalmente - disse Martin.
Depois de ficar pensativo por alguns momentos, recitou uma ladainha com voz monótona e sem emoção, e convidou a todos a cantar junto com ele o salmo dezesseis.
Quando o canto deixou de ser ouvido, no deserto iluminado pelas estrelas, os terrores da noite haviam se dissipado.
- Agora estou completamente seguro de que chegaremos bem - disse Jack. - Chegaremos a Tina e à fortaleza dos turcos em perfeitas condições.
Chegaram a Tina (demoraram meio dia desde que avistaram a colina e a fortaleza até que chegaram a ela, caminhando trabalhosamente em meio do sufocante calor, seguidos pelos abutres), mas não chegaram em perfeitas condições. Não comeram os camelos porque necessitavam deles para transportar os homens que haviam perdido as forças por causa da sede, da fome, do terrível calor ou da disenteria que haviam contraído em Suez, e os pobres animais iam tão carregados que apenas podiam caminhar ao lento ritmo da coluna, se àquele grupo de homens sedentos, esgotados e silenciosos podia se chamar uma coluna em vez de um monte de moribundos. Contudo, não viram os turcos. Muito cedo Jack vira pelo telescópio que não havia nenhuma bandeira ondeando na fortaleza, e quando todos já estavam bastante perto dela, viram que não havia movimento no interior e que a porta principal estava fechada e, além disso, que o acampamento dos beduínos já não estava ali, que dava ao lugar um aspecto desolador. Jack não sabia se os turcos haviam se retirado para a fronteira com a Síria porque a Turquia e o Egito haviam rompido relações ou se tinham ido fazer alguma operação bélica, e tampouco lhe importava muito. O que lhe preocupava era o Dromedary. Fazia-se várias perguntas: "Estará ali ainda ou terá nos abandonado porque passou muito tempo? Teve que partir porque houve algum combate entre os turcos e os egípcios? Será que o afundaram?".
As dunas e as colinas cobertas de lodo que beiravam a costa o impediam de ver a parte mais próxima da baía, e a parte mais distante, onde havia deixado o barco, estava vazia, vazia como o deserto. Estava horrorizado com a idéia de que possivelmente não estivesse ali e, por isso, tivessem que ficar naquela praia cheia de moscas sob um sol abrasador, e teve que fazer um grande esforço para serenar-se quando subia a última colina. Contudo, subiu precipitadamente para o cume e parou ali um momento para prolongar a sensação de alívio que lhe havia produzido ver o barco muito perto da costa, amarrado pela proa e pela popa, e a alguns tripulantes pescando nas lanchas ao redor dele.
Então se voltou, e os marinheiros, ao ver sua cara sorridente, caminharam mais rápido, ainda que até esse momento a maioria deles caminhava cambaleando. Contudo, não tinham forças para gritar; só podiam emitir sons roucos que não se ouviam nem a cem jardas. Cumprimentaram os tripulantes das lanchas agitando as mãos, mas eles não lhes viram até depois de um bom tempo, e então se limitaram a responder-lhes agitando as mãos também, o que lhes provocou raiva.
- Disparem os mosquetes! - ordenou Jack.
Alguns homens haviam deixado cair os mosquetes nas últimas insuportáveis milhas, mas outros os conservavam. Ao ouvir os disparos, a lancha que estava mais próxima começou a avançar para o barco, e todos pensaram que provavelmente os tripulantes do Dromedary se haviam assustado porque haviam suposto que os turcos e os egípcios estavam atacando uns aos outros ou atacavam a eles e haviam pensado que era melhor sair para o alto mar; contudo, o que havia ocorrido era que o senhor Alien fora buscar seu telescópio.
Os tripulantes do Dromedary não podiam ter encontrado nada melhor para conquistar a simpatia dos da Surprise que as xícaras de chá, a enorme quantidade de vinho com água e suco de limão e a abundante refeição que lhes ofereceram; os tripulantes da Surprise não podiam ter encontrado nada melhor para conquistar a simpatia dos do Dromedary que contar-lhes as dificuldades que haviam passado e o fracasso de sua missão e expressar-lhes sua gratidão. Quando iam navegando para o oeste, comportavam-se como velhos companheiros de tripulação, e as diferenças entre os marinheiros de barco de guerra e os de barco mercante foram esquecidas. Além disso, os ventos eram mais favoráveis que os que haviam soprado quando haviam navegado pela zona oriental do Mediterrâneo e amiúde mais fortes. Cada dia Malta ficava cem ou cento e cinqüenta jardas mais perto, e cada dia, depois de percorrer as duas ou três primeiras milhas, o capitão Aubrey tentava escrever a carta oficial.
- Stephen - disse quando estavam nos 19°45'E, - por favor, escute isto: "Senhor, tenho a honra de informar-lhe que, seguindo suas ordens do dia três do último, zarpei rumo a Tina com uma brigada sob meu comando e dali fui com uma escolta turca até Suez, onde embarquei na Niobe, uma corveta da Companhia, e, depois que subiu a bordo um grupo de soldados turcos, zarpei com tempo adverso para o canal de Mubara… onde fiz ridículo". A questão é como dizer isto sem que pareça um estúpido.
CAPÍTULO 8
Jack Aubrey, com a carta oficial na mão, subiu a bordo do navio do comandante geral dez minutos depois de que o Dromedary escolheu um lugar para fundear. O almirante o recebeu de imediato e o olhou atentamente de sua mesa, mas o rosto que agora sir Francis via não tinha a expressão própia de alguém que havia conseguido um butim de cinco mil bolsas de quinhentas piastras, e, sem esperanças de obter uma resposta satisfatória, disse:
- Há, finalmente chegou, Aubrey! Sente-se. Como saiu a operação?
- Não saiu bem, senhor.
- Capturou a galera?
- Nós a capturamos, senhor, melhor dizendo, nós a afundamos, mas não tinha nada a bordo. Estavam nos esperando.
- Então terminarei este relatório - disse o almirante, - pois agora tenho todos os dados na mente. Sobre esse armário encontrará alguns jornais e o último número do Boletim Oficial da Armada que chegou ontem mesmo.
Jack pegou a publicação que lhe era tão familiar. Não estivera de viagem por um longo tempo, mas haviam ocorrido importantes mudanças. Alguns almirantes haviam morrido e seus postos, além de outros postos vacantes, já haviam sido ocupados, assim que todas as pessoas que estavam na lista de capitães de navio haviam mudado de lugar. Os primeiros haviam alcançado o nobre grau de contra-almirantes da esquadra azul ou da amarela, conforme os casos, e outros, a um lugar muito mais próximo da apoteose. O nome Jack Aubrey estava muito antes da metade, havia subido mais do que o que correspondia de acordo com o número de almirantes que haviam morrido, e quando Jack tratou de saber os motivos, descobriu que vários capitães de mais antiguidade que ele também haviam morrido, alguns deles por causa de doenças (tinha havido epidemias nas Antilhas e nas Índias Orientais) e dois em combate.
- Uma série de mentiras… Absurdas desculpas… Qualquer coisa para jogar a culpa nos outros… - murmurou o almirante, pondo as páginas do relatório em cima de um monte de papéis e arrumando-as para que ficassem colocadas justamente em cima deles. - Viu quantas promoções para almirante houve? Na verdade, muitos dos oficiais promovidos deixaram o comando de seus barcos sem nunca terem chegado a governá-los bem, e lamento dizer que atualmente a primeira parte da lista de capitães não é melhor que a de antes. Um comandante geral não pode conseguir nada se tem subordinados incompetentes.
- Bem, senhor - disse Jack, envergonhado, e depois de uma desagradável pausa, pondo sobre a mesa um envelope, continuou: - Trouxe a minha carta oficial, senhor, e sinto dizer que não é provável que lhe faça mudar de opinião.
- Diabo! - exclamou o almirante.
Jack pensou que era um dos poucos oficiais da Armada que ainda dizia essa palavra.
- É eterna! - continuou. - Duas, não, três páginas, e escritas dos dois lados. O senhor não tem idéia de quantas coisas tenho que ler, Aubrey. Faz pouco cheguei de Toulon, e havia um monte de papéis esperando-me aqui. Faça um resumo.
- Que? - perguntou Jack.
- Faça uma exposição sucinta, um breve relato, um compêndio. Pelo amor de Deus! O senhor me lembra àquele guarda-marinha tonto que admiti no Ajax por consideração ao seu pai. Eu lhe perguntei: "O senhor não tem o nous{16}?". E me respondeu: "Não, senhor. Não sabia que era necessário trazê-lo a bordo. Mas comprarei um pouco na próxima vez que desça a terra".
- Ah, ah, ah! - riu Jack, e contou sua viagem e terminou dizendo: - E então, senhor, regressei quando vi que, se me permite a expressão, havia feito ridículo. Meu único consolo é que não houve baixas, além do intérprete.
- Obviamente, nossa informação era errônea - disse o almirante. - Teremos que descobrir quais são as causas - acrescentou, e fez uma longa pausa e, por fim, continuou: - É possível que tivesse conseguido algo se em vez de ir esperar a galera fosse imediatamente para Mubara e os turcos desembarcassem ao amanhecer ao amparo do fogo de seus canhões. A rapidez é fundamental em um ataque.
Jack recordava que nas ordens se dizia de maneira explícita que fosse primeiro ao canal do sul e abriu a boca para dizê-lo, mas voltou a fechá-la sem dizer nada.
- Mas isto não é uma censura - prosseguiu. - Não, não… Por outro lado, tenho más notícias para lhe dar: a Surprise deve regressar para a Inglaterra, mas permanecerá ali sem ser utilizada em nenhuma missão ou será vendida. Não, não - disse alçando a mão estendida. Sei exatamente o que vai dizer. - Eu diria o mesmo na sua idade: está em boas condições, restam-lhe muitos anos de vida útil e é mais fácil de manobrar que qualquer outra embarcação. Tudo isso é verdade, ainda que de passagem lhe direi que provavelmente necessitará de custosas reparações dentro de pouco e que, além do mais, como é muito velha, já o era quando a arrebatamos dos franceses no início da guerra passada, em comparação com as fragatas modernas, é pequena e pouco potente, é um anacronismo.
- Permita-me dizer-lhe que o Victory é mais velho ainda, senhor.
- Só um pouco mais. E o senhor já sabe o quanto custaram as suas reparações. Mas isso não é o importante. O Victory ainda pode lutar contra qualquer navio francês de primeira classe porque têm uma potência similar à sua, enquanto que na armada francesa e na norte-americana quase não restam fragatas de potência semelhante à da Surprise.
Era verdade. Há muitos anos havia uma tendência de construir barcos cada vez maiores e mais potentes, e as fragatas mais comuns na Armada real nesse momento tinham trinta e oito canhões de dezoito libras e um arqueio de mais de mil toneladas, quase o dobro do da Surprise. Apesar de tudo, Jack, cheio de tristeza, disse:
- Mas os norte-americanos têm a Norfolk e também a Essex, senhor.
- Outro anacronismo. A excessão que confirma a regra. Que poderia fazer a Surprise com seus canhões de vinte e quatro libras à President ou a qualquer das outras fragatas norte-americanas com canhões de quarenta libras? Absolutamente nada. Tampouco poderia fazer nada a um barco de linha. Não leve a sério, Aubrey. Não é o único barco que há no mundo, sabe?
- Oh, não me importa, senhor! - disse Jack. - Não me importa em absoluto. Quando zarpei no Worcester rumo ao Mediterrâneo, sabia que o intervalo de tempo que estivesse aqui era simplesmente um parêntese até que a Blackwater estivesse pronta.
- A Blackwater? - perguntou sir Francis, surpreso.
- Sim, senhor. Ela me foi prometida. Disseram-me que deveria ir nela para a base naval da América do Norte quando estivesse pronta.
- Quem lhe disse?
- O própio secretário, senhor.
- Ah, é? - perguntou o almirante, baixando a vista. - Compreendo, compreendo. Contudo, antes de que leve a Surprise para a Inglaterra quero que faça com ela algumas missões de pouca importância, a primeira delas no mar Adriático.
Jack disse que com muito gosto as faria e acrescentou:
- Provavelmente o senhor pensará que sou descortês, senhor, porque não o felicitei por sua promoção. Quando subia a bordo vi que agora tem uma insígnia vermelha no mastro traquete. Eu o felicito de todo coração.
- Obrigado, Aubrey, o senhor é muito amável. Mas isso é algo normal nesta etapa de minha vida. Espero que o senhor viva o suficiente para chegar a ter uma no mastro maior. Quer almoçar comigo? Convidei algumas pessoas muito interessantes.
Jack disse que com prazer ficaria. E, na realidade, sentiu-se à vontade comendo sem parar e bebendo o bom vinho do almirante, sentado em meio de duas mulheres e de frente para seu velho amigo Heneage Dundas, que sorria alegremente. Mas quando cruzava o porto na lancha para voltar para a costa, pensou na fragata e lhe invadiu uma grande tristeza. Havia navegado nela quando era guarda-marinha e fora seu capitão no oceano Índico. Era uma fragata complicada e temperamental, mas quem a conhecia bem podia lograr que respondesse bem às manobras e que alcançasse uma grande velocidade. Nunca o havia desapontado nas emergências, e ele nunca vira outra embarcação que navegasse com mais facilidade de bolina e a um largo tanto com ventos frouxos como em meio de uma forte tempestade. Sentiu uma dor quase insuportável ao pensar que poderia apodrecer em um sujo ancoradouro ou ser vendida e convertida em um lerdo barco mercante. Se a galera houvesse sido o que parecia, haveria comprado a fragata para evitar que tivesse essa sorte. Recordava de alguns barcos, especialmente barcos inimigos, que a Armada recusara e havia vendido por uma soma não muito grande.
Não era provável que voltasse a ter sob seu comando a tripulação da Surprise, uma tripulação formada inteiramente por marinheiros escolhidos, que sabiam aferrar, rizar e usar o leme, e que, além disso, simpatizavam com ele. Ele os entendia perfeitamente e eles entendiam a ele e aos seus oficiais. Aos tripulantes da Surprise se podia dar liberdade para fazer coisas que nunca se permitiriam fazer a um barco com uma tripulação formada por indivíduos diferentes, entre os quais houvesse camponeses, ladrões e grande quantidade de homens recrutados a força, que, naturalmente, estariam cheios de raiva e ressentimento, pois a uma tripulação assim era necessário impor a férrea disciplina própia da Armada para adestrá-la nas tarefas habituais (como rizar, aferrar, tirar os mastaréus e subir as lanchas) com métodos adaptados aos menos inteligentes, um trabalho difícil e que quase inevitavelmente incluía duros castigos. Jack Aubrey era um capitão severo, mas não considerava tão necessários os castigos como os outros oficiais. Detestava açoitar os homens e não achava justo mandar flagelá-los por faltas que ele cometera alguma vez, mas como essa era uma tradição da Armada, em muitas ocasiões havia ordenado castigar-lhes com uma dúzia de açoites. Mas sentia um grande alívio quando não tinha que fazê-lo, quando não ficava sumamente indignado nem tinha que inspirar mais medo que todos os outros homens no barco. Desde que se havia ecarregado da Surprise, quase nenhum de seus tripulantes havia recebido castigos corporais, e se entre eles houvesse encontrado mais guardas-marinhas e dois oficiais que tocassem música tão bem que houvessem podido formar um quarteto com Stephen e com ele, se o dispenseiro do capitão houvesse sido mais amável e menos rude, e se o cozinheiro do capitão houvesse tido sob seu comando algo mais que pudins, haveria dito que antes que houvessem promovido Pullings e antes que houvessem obrigado tantos marinheiros a irem para outros barcos, a fragata tinha a melhor tripulação de todos os barcos da esquadra e provavelmente de todos os da Armada.
"Não lhes direi nada até que me veja obrigado a isso", pensou Jack, que podia ver a fragata agora, enquanto a lancha passava por entre várias chalanas. Estava atracada a certa distância do estaleiro, mas para Jack não lhe surpreendeu ver que ainda havia duas chalanas atracadas a ela e que na popa havia um grupo de empregados do estaleiro caminhando de um lado para outro.
- Para o costado de bombordo! - ordenou ao seu timoneiro, pensando que seria ridículo que o recebessem com uma cerimônia, já que no barco, nesse momento, ele era o único homem que possuía outra roupa que não fosse uma camisa, um calça de dril e um chapéu de palha roto.
- Senhor - disse Mowett, descobrindo-se com a elegância que era possível fazê-lo com um chapéu de aba rota. - Sinto muito dizer-lhe que estes pilantras não vão calafetar o castelo de popa até a terça-feira. Sua cabine está aberta…
- Não há vidros nas janelas de popa! - gritou Killick, furioso.
- Acalme-se, Killick - disse Jack.
- Senhor - disse o contador, - o encarregado do armazém não atendeu meu pedido de macas e colchonetes. Enganou-se com minha roupa e fingiu que acreditava que eu estava bêbado e depois me disse que contasse minha história de camelos e árabes para os infantes da marinha e depois saiu rindo.
- Tampouco há no jardim!{17} - murmurou Killick.
- Tampouco me entregou as provisões, senhor - disse o contador. - Negar isto a um contador que está há quinze anos no cargo!
- E o correio, senhor… - disse Mowett. - Há uma saca para nós, mas a mandaram para o escritório de São Isidoro, e dizem que hoje está fechada porque é festa.
- Fechada? - perguntou Jack. - Isso é o que veremos! Bonden, minha falua! Killick, vá rapidamente para Searle e separe um quarto para mim para vários dias e mande que preparem um almoço para os oficiais do Dromedary amanhã! Senhor Adams, venha comigo.
Depois, ao chegar ao portaló, virou-se e perguntou:
- Onde está o doutor?
- Levou Rogers, Mann e Himmelfahrt para o hospital, senhor.
Como era um cirurgião consciencioso, havia ido ao hospital para ver seus pacientes e levar mais três e, além disso, para falar com seu colega e para operar com ele; e como era um agente secreto consciencioso, foi à casa de Laura Fielding ao entardecer.
A grade estava aberta, mas a lanterna do final da vereda de pedra não estava acesa, e quando Stephen o atravessou na escuridão pensou: "Dá medo este lugar com este silêncio sepulcral". Ao chegar à porta, tateou a campainha e a tocou, e então o débil repique foi afogado pelos latidos de Ponto, e logo se ouviu a voz de Laura Fielding perguntando quem era.
- Stephen Maturin - respondeu.
- Virgem santa! - exclamou ela, abrindo a porta, pela qual saiu um feixe de luz. - Quanto me alegro de voltar a vê-lo! Aconteceu-lhe alguma desgraça? - perguntou quando pôde ver-lhe bem, depois que entrou na casa.
- Não - respondeu Stephen em tom irritado, pois havia se barbeado e pedira emprestados alguns calções de cor púrpura no hospital. - Acha que não tenho bom aspecto?
- Oh, não, doutor! O que ocorre é que geralmente o senhor fica, se me permite a expressão, tão descuidado que…
- É verdade.
- E sempre com uniforme. Surpreendeu-me ver-lhe com uma casaca branca.
- Isto é um banyan - disse Stephen olhando a casaca, uma larga casaca que Bonden havia feito com um pedaço de lona fina que havia de reserva no Dromedary e que tinha fitas em vez de botões. - Mas talvez aqui em terra pareça miserável. Sim, talvez pareça. Uma anciã, a mãe do coronel Fellowes, se não me equivoco, deu-me uma moeda quando dobrei a esquina e me disse: "Não para bebida, bom homem". Pas gin. Mente débauche. Mas agora não tenho nada além disso. Uma bando de ladrões a cavalo levaram meu sino. Deus queira que queimem nas brasas do inferno por toda a eternidade! Também levaram minhas coleções e minha roupa. Contudo, como sou um homem prudente, não havia levado meu outro baú, onde estava meu melhor uniforme, e me alegro muito.
Haviam chegado à sala. Sobre a pequena mesa redonda estava o jantar da senhora Fielding: três triângulos de polenta fria, um ovo cozido e uma jarra de limonada.
- Pode acreditar - perguntou, pegando um dos triângulos, - minha amiga, que esse uniforme me custou onze guinéus? Onze guinéus! Uma soma impressionante.
Sentia vergonha, um sentimento que raras vezes experimentava, e falava por falar. Ela lhe serviu um copo de limonada e sentiu pena ao ver que ele tencionava pegar o ovo.
- Contudo - disse, retirando a mão inconscientemente, - se fosse pôr aquele esplêndido uniforme no hotel, onde o deixei, não a haveria encontrado acordada quando chegasse em sua casa, assim que preferi vir de banyan e estragar a sua reputação, como haviamos combinado, do que vir em um magnífico uniforme e não feri-la.
- O senhor é muito bom comigo - disse ela, pegando-lhe a mão e olhando-lhe com os olhos lacrimejantes. - Eu lhe agradeço que tenha se preocupado comigo e que haja vindo ver-me tão rápido.
- Não tem importância, minha amiga - disse Stephen, apertando-lhe a mão como ela apertara a dele. - Diga-me, aqueles homens a incomodaram alguma vez desde que parti?
- Só duas vezes. Tive que ir à igreja de São Simón no dia seguinte e disse que o senhor passara a noite comigo. Ficou muito contente e disse que me traria uma carta da próxima vez.
- Era o mesmo estrangeiro com sotaque napolitano, aquele homem baixo de meia idade?
- Sim, mas o que me deu a carta era italiano.
- Como está o senhor Fielding?
- Não está muito bem, ainda que não diga. Só diz que caiu e feriu uma mão. Mas não é o mesmo de sempre. Temo que está muito mau, muito deprimido. Vou lhe mostrar sua carta.
Com efeito, a carta carecia de algumas das qualidades que as primeiras tinham, não de elegância, porque o senhor Fielding não tinha esse dom, senão de fluidez, coesão e naturalidade, e não refletiam o amor que discretamente refletiam as outras. Era uma carta escrita com esmero, na qual contava com detalhe como havia caído de uma escada coberta de gelo que dava para o pátio onde fazia exercício, dizia que lhe haviam atendido muito bem na enfermaria da prisão e pedia com insistência a Laura que fizesse tudo o que pudesse para mostrar sua gratidão aos cavalheiros que faziam possível que se correspondessem, assegurando-lhe que eles tinham influência no Governo.
Enquanto Stephen observava a esmerada letra pensou que não podiam lhe enganar. A história da mão lastimada era muito comum, fora usada muitas vezes. A impressão que tivera no início era agora quase uma certeza: Fielding estava morto e alguém imitava sua letra para que os franceses seguissem dominando Laura. Era provável que o espião francês que estava em Malta fosse Graham Lesueur e que Wray não tivesse conseguido capturá-lo. Talvez fosse melhor que não o houvesse logrado, porque um Lesueur com a informação falsa que ele lhe proporcionaria através de Laura seria mais útil que um Lesueur atado a um poste diante de um pelotão de fuzilamento. Mas tinha que proporcioná-la rápido, antes que a Surprise se fosse, já que não queria confiar o caso a ninguém em Malta sem consultar a sir Joseph ou a algum de seus íntimos colaboradores, e antes de que se soubesse que Fielding havia morrido, já que então Laura não poderia seguir desempenhando seu papel. A partir desse momento Lesueur não acreditaria no que ela lhe contasse, e, além disso, como ela poderia e quereria comprometê-lo e a toda sua organização, ele a eliminaria. Laura desapareceria quando deixasse de desempenhar seu papel.
Todas estas idéias passaram pela mente de Stephen com grande rapidez, sem chegar ao nível das palavras, enquanto observava a carta. Muitas dessas idéias eram as mesmas que lhe haviam ocorrido a princípio, mas agora tinham mais fundamento, agora lhe pareciam certas e, como sentia um grande afeto por Laura, elas lhe afligiam mais. Stephen disse quase as mesmas palavras de consolo que havia dito da primeira vez, e depois os dois falaram do aspecto mais concreto de sua relação com os agentes secretos. Ela foi menos cautelosa desta vez e fez uma descrição precisa de Lesueur e de seus colaboradores. Também falou de um tal Basilio, um tipo indiscreto que lhe dissera que não estava planejado que o doutor Maturin fosse ao mar Vermelho senão que fosse outro homem em seu lugar. Pelo que ela disse, Stephen compreendeu que pelo menos alguns haviam cometido o freqüente erro de subestimar a inteligência de uma mulher, um erro que às vezes trazia consequências fatais, e pensou que apesar de Lesueur não saber que ela podia reconhecê-lo, não toleraria sua deserção porque ela sabia demais de sua rede de espionagem.
- Desgraçadamente… - disse Stephen depois de uma comprida pausa, e nesse momento seus olhos brilharam. - Aí está! - exclamou, assinalando com a cabeça seu violoncelo, que estava junto ao piano de Laura. - Quanto falta senti dela nesta viagem!
- Fala do violoncelo como se fosse uma mulher? - perguntou. - Sempre me pareceu que tinha traços masculinos: voz grave, barba…
- Homem ou mulher - disse, - por que não faz um pouco de café e come a sua janta que comi sem perceber e depois tocamos a peça que crucificamos da última vez?
Enquanto retirava o instrumento de seu tosco estojo, murmurou:
- Homem ou mulher… Quantas coisas passam entre os dois!
- Que disse? - gritou ela da cozinha, e se notava que estava comendo algo.
- Nada, nada, minha amiga. Falava sozinho.
Afinou o violoncelo enquanto pensava no que sentia por Laura. A desejava, mas também sentia simpatia, ternura e afeto por ela, uma amizade amorosa mais forte do que as que sentira até então.
Saiu para a rua ao despontar o dia, notou com satisfação a presença do observador e desceu até o cais muito pensativo. Ali esperou que alguma das ligeiras embarcações de aluguel ficasse livre. Haviam acordado que ele alugaria um quarto em Searle, que ela iria ver-lhe com uma máscara e uma faldetta{18} e que ele lhe daria algo para saciar o apetite de Lesueur. Mas não sabia o que devia lhe dar. Permaneceu de pé no cais enquanto considerava a infinidade de possibilidades com os olhos descomedidamente abertos e olhando, sem ver, para o desconjuntado Worcester, que fora convertido em uma grua portuária flutuante ante o olhar indiferente de todos os que haviam navegado nele. Entre suas meditações ouvia a intervalos o grito característico dos barqueiros de Londres, o conhecido grito: "Sobe ou desce?". Ao ouvi-lo pela terceira vez, reagiu e olhou para o final da escada e viu as caras sorridentes dos tripulantes da falua da Surprise.
- Quer subir na falua, senhor? - perguntou Plaice, o remador de proa. - O capitão virá dentro de um minuto. Bonden acaba de ir buscá-lo em Searle. Estranho que não o tenha visto passar. Bem, provavelmente o senhor estava meditando.
- Bom dia, doutor - disse Jack, que havia se aproximado de Stephen pelas costas. - Não sabia que estava no hotel.
- Bom dia, senhor - disse Stephen. - Não estava no hotel. Dormi na casa de um amigo.
- Ah, compreendo! - exclamou Jack.
Jack estava satisfeito porque a fraqueza de Stephen lhe servia de desculpa para as suas, mas também estava decepcionado, mais decepcionado que satisfeito, porque o fato de que Stephen houvesse cometido essa fraqueza indicava que não possuía todas as virtudes em grau máximo. Não o considerava um santo, mas achava que resistia a todas as tentações: não se embebedava, não perseguia as mulheres em portos remotos nem ia a bordéis com os outros oficiais e, apesar de ser afortunado jogando cartas, raras vezes jogava; portanto, esse deslize comum, que era desculpável em outros homens, incluído o própio Jack Aubrey, parecia muito pior. Não sem malícia, quando a falua atravessava o porto envolto na névoa, o capitão Aubrey perguntou:
- Já viu suas cartas? Fialmente recebemos uma saca de correio inteira!
Isto queria dizer: "Diana lhe escreveu. Vi sua letra nos envelopes. Espero que isto lhe faça sentir-se culpado".
- Não - respondeu Stephen com uma irritante indiferença.
Mas a chegada do correio não lhe era indiferente, e quando lhe entregaram suas cartas, desceu correndo para lê-las sozinho em sua cabine. Diana lhe havia escrito, e cartas mais longas que de costume, contando-lhe detalhes de sua vida social. Contava que vira Sophie, que ela fora a Londres duas vezes para levar as crianças ao dentista e havia ficado em sua casa nas duas vezes, e também a Jagiello, um jovem que era adido da embaixada sueca e que estivera preso junto com Jack e Stephen na França. Dizia que tanto Jagiello como outros amigos, entre eles muitos monárquicos franceses, mandavam-lhe saldações. Também dizia que tinha muita vontade de que ele regressasse e que esperava que se cuidasse. Entre as outras cartas havia algumas de colegas seus, de naturalistas de vários países, algumas faturas, naturalmente, e um relatório de seu agente financeiro que indicava que era muito mais rico do que supunha, o que lhe causou uma grande satisfação. Mas além disso, havia a habitual carta anônima em que o remetente lhe informava que Diana o enganava com o capitão Jagiello e que agora se encontravam na igreja londrina de Saint Stephen, e "o faziam" de pé detrás do altar. Então se perguntou: "Essa descrição é típica de um homem ou de uma mulher?". Mas não seguiu pensando em isso, porque a carta seguinte era de sir Joseph Blaine, o chefe do serviço secreto da Armada, que também era um colega e um velho amigo. Ambos costumavam misturar os comentários sobre as notícias das sociedades científicas a que pertenciam (sir Joseph era um entomólogo) com outros sobre os projetos e os avanços em sua guerra particular. A carta era muito interessante, mas a frase que Stephen releu com especial atenção foi: "… e sem dúvida, querido Maturin, o senhor já deve conhecer ao senhor Wray, o vice-secretário interino". Só dizia isso de Wray. Não falava de sua missão nem pedia a Stephen que o ajudasse, e Stephen achava que punha ênfase na palavra "interino". Essas omissões em um homem como sir Joseph eram muito significativas, e tanto por elas como pelo fato de que Wray não havia trazido nenhuma mensagem pessoal, Stephen chegou à conclusão de que, apesar de sir Joseph pensar que Wray era capaz de resolver um problema como o vazamento de informação sobre os assuntos navais em Valletta, não lhe achava conveniente contar-lhe todos os segredos do departamento. Mas era natural que não se confiasse toda a informação do serviço secreto a um oficial que ocupava seu cargo há muito pouco tempo e que talvez só o ocuparia temporariamente, a menos que tivesse dotes excepcionais para desempenhá-lo, já que nesse terreno um erro ou uma indiscrição, por pequenos que fossem, poderiam ter graves consequências. Como Wray não gozava da confiança de sir Joseph (provavelmente porque até o momento sir Joseph não o considerava um homem com dotes excepcionais para trabalhar no serviço secreto), Stephen pensou que seria conveniente que o tratasse com reserva, assim como seu chefe, e que resolvesse sozinho o caso da senhora Fielding.
Apenas havia tomado essa decisão quando chegaram dois mensageiros. O primeiro disse que devia apresentar-se no Caledônia às dez e quinze da manhã, e o segundo disse que estava convidado para almoçar no palácio do governador para conhecer o senhor Summerhays, um botânico rico e com conexões, e lhe entregou uma nota do senhor Hildebrand na qual se desculpava por avisar-lhe com tão pouca antecedência e dizia que o senhor Summerhays partiria para Jerusalém no dia seguinte e que lamentaria muito partir de Malta sem ter ouvido o que o doutor Maturin sabia da flora da península de Sinai.
A primeira das mensagens teve que chegar a ele forçosamente através do capitão Aubrey, que lhe falou, ou melhor, gritou (porque os calafetadores do estaleiro estavam dando marteladas acima deles e todos os marinheiros limpavam a parte do convés onde eles haviam terminado de trabalhar, do pau maior até a proa):
- Às dez e quinze! Terá que se apressar para estar ali a tempo com o uniforme que tem em terra!
- Talvez não vá até amanhã - disse Stephen.
- Bobeiras! - exclamou Jack com impaciência.
Depois chamou seu dispenseiro e seu timoneiro. Demoraram para achá-los, porque haviam ido recolher a roupa que deixaram em um baú no estaleiro, e neste meio tempo, Stephen disse:
- Meu amigo, acho que o correio lhe há trouxe más notícias. Raras vezes o vi tão abatido.
- Não, não foi o correio. Todos estão bem em casa e lhe mandam muitas lembranças. Vou lhe contar, porque sei que você não dirá a ninguém. Vamos usar isso no tope - disse, assinalando uma vassoura que estava em um canto, porém, ao ver que isso não significava nada para Stephen, teve que falar claramente. - Vamos levar a Surprise para a Inglaterra e ela ficará ancorada em um porto ou será vendida.
Stephen viu que as lágrimas assomavam em seus olhos e, por falta de outro comentário mais apropriado, disse:
- Isso lhe afetará profissionalmente, né?
- Não, porque a Blackwater estará pronta dentro de pouco, mas não tenho palavras para expressar a dor que sinto…
Então se interrompeu porque viu que o seu dispenseiro e seu timoneiro estavam chegando.
- Killick - disse, - o doutor tem que apresentar-se no navio insígnia às dez e quinze. Você sabe onde estão guardados seus uniformes. Que se troque em meu quarto no Searle. Bonden, o doutor irá em minha falua e não deve se esquecer de apresentar seus respeitos aos oficiais e tampouco ao capitão do Caledônia e ao da esquadra, se estiverem no convés. Providencie que suba a bordo com os pés secos.
O doutor Maturin não só chegou ao castelo de popa do Caledônia com os pés secos, como também à grande cabine, pois Bonden o subiu nos braços até o final da escada. Na cabine se encontrou com o senhor Wray, o senhor Pocock e o jovem senhor Yarrow, o secretário do almirante. Um momento depois entrou apressadamente o almirante, que acabava de sair do jardim12 e estava abotoando o calção.
- Desculpem, cavalheiros - disse. - Acho que comi algo que… Bom dia, doutor Maturin. Os objetivos desta reunião são, em primeiro lugar, averiguar por que a informação que tínhamos sobre Mubara era totalmente errônea, e em segundo lugar, decidir que medidas tomar para evitar que o inimigo obtenha informações de nossos movimentos neste lugar. O senhor Yarrow começará lendo os fragmentos mais importantes da carta do capitão Aubrey. Depois eu gostaria de ouvir seus comentários.
Pocock disse que, em sua opinião, isso devia-se à Inglaterra ter se negado a ajudar Mehemet Alí a se tornar independente de Constantinopla e, portanto, o havia jogado nos braços dos franceses. Assinalou que a data da ambígua resposta inglesa, que, em realidade, era uma negativa, havia coincidido com a elaboração de seu plano, que, evidentemente, tinha como objetivo algo mais que apresar um barco, conseguir o apoio dos franceses e anular a influência da Grã-Bretanha no mar Vermelho.
Wray disse que estava de acordo com ele, mas que um plano desse tipo requeria a participação de um homem no palco das operações, um homem pago pelos franceses ou pelos egípcios para que transmitisse informação e coordenasse os movimentos do outro bando. Também disse que estava seguro de que o homem em questão era Hairabedian e que era uma lástima que houvesse morrido, porque poderiam ter logrado que fizesse importantes revelações. Acrescentou que viera com boas recomendações de um diplomata da embaixada inglesa no Cairo e do embaixador inglês em Constantinopla ao mesmo tempo que chegaram as primeiras notícias de que os franceses haviam posto a mira em Mubara, mas como a missão era urgente, não houve tempo de verificar a recomendação do diplomata nem a do embaixador. Acrescentou que acreditava de que haveriam comprovado que eram falsas, já que, conforme entendera, o intérprete lançou o rumor de que estavam carregando a galera em Kassawa, o que provavelmente se inventou ou repetiu sabendo que não era verdade. Então disse que achava que o doutor Maturin podia confirmar isso.
- É verdade - disse Stephen. - Contudo, não sei se ele estava nos enganando ou se o estavam enganando. Talvez seus documentos nos permitam resolver esta questão.
- Que documentos deixou? - perguntou Wray.
- Um pequeno cofre que contém alguns poemas em grego moderno e várias cartas - disse Stephen e, por um lado, porque gostava de Hairabedian e, por outro, porque tinha inclinação a reservar parte da informação que possuía, omitiu as palavras "e o chelengk do capitão Aubrey". - Eu lhes dei uma espiada porque o capitão Aubrey me pediu que o fizesse com o fim de encontrar o endereço de algum familiar para comunicar-nos com ele, mas as poucas que estavam em grego não davam detalhes sobre a questão, e as que estavam em árabe e em turco não pude ler. Desgraçadamente, não sou um especialista em assuntos orientais.
- Não se perderam quando os beduínos lhes atacaram? - perguntou Pocock.
O almirante saiu rapidamente da cabine murmurando uma desculpa.
- Não - respondeu Stephen. - estavam no baú que salvamos, o baú do capitão Aubrey.
Enquanto esperavam o almirante, Pocock falou das complexas relações entre a Turquia e o Egito, e depois, quando o almirante regressou, disse:
- Acho que o senhor estará de acordo comigo, sir Francis, em que do último relatório do Cairo se deduz que Mehemet Alí não teria deixado ficar um novo xeique em Mubara por mais de um mês, ainda que o houvessem instalado.
- Exatamente - disse o almirante em tom fatigado. - Bem, a primeira questão não poderá se resolver até que sejam decifradas as cartas de Hairabedian. Agora passemos para a segunda. Senhor Wray?
O senhor Wray disse que lamentava que nesse momento não pudesse dizer que havia feito tantos progressos quantos gostaria em seu trabalho. Explicou que em um dado momento havia pensado que poderia capturar a um importante espião francês e seus colaboradores, graças à precisa descrição que o predecessor do senhor Pocock havia feito, mas que, fosse porque o senhor Graham estava equivocado ou porque o homem em questão sabia que o haviam reconhecido, não havia conseguido.
- Contudo - disse, - ordenei que vigissem dois empregados, dois tipos que, apesar de não serem importantes, poderiam levar-nos mais longe. Com respeito à investigação da corrupção no estaleiro, descobri alguns detalhes muito curiosos. Acredito que estou a ponto de descobrir os verdadeiros causadores do problema, ainda que, lamento dizer, os civis e os militares apenas hão cooperado comigo. Contudo, como é possível que alguns homens que ocupam altos cargos, cargos muito altos, estejam implicados neste caso, não seria apropriado dizer nomes neste momento.
- Tem razão - disse o almirante. - Mas deve solucionar o problema antes que eu regresse para fazer o bloqueio, se for possível. Não há dúvida de que os franceses recebem informação de uma forma tão rápida ou inclusive mais rápida que pelo correio.
Yarrow, leia o relatório enviado pelos três últimos comboios do Adriático.
- Sim - disse Wray quando a leitura terminou, - estou convencido de que é necessário agir com celeridade, porém, como disse antes, a falta de cooperação dos civis e dos militares dificulta meu trabalho. Também dificulta a falta de bons colegas. Como o senhor sabe, senhor, as forças do Mediterrâneo sempre tiveram pouca informação secreta, muito menos que os franceses, pelo menos a informação secreta oficial que um comandante geral passa para seu sucessor. É óbvio que não posso falar abertamente com meus subordinados locais nem posso acreditar que é verdade tudo o que dizem, e como este é o primeiro caso deste tipo que me hão encarregado resolver, tenho que improvisar e avançar passo a passo e tanteando o terreno. Se algum cavalheiro quiser fazer algum comentário sobre isto, eu lhe escutaria com muito gosto - disse, sorrindo e olhando alternativamente para Stephen e para Pocock.
- Doutor Maturin? - perguntou o almirante.
- Acredito que minhas contribuições foram mal interpretadas - disse Stephen. - Por diversas razões conheço a situação política da Espanha e da Catalunha, e dei a seus predecessores e ao Almirantado bastante informação sobre ela e minha opinião sobre alguns informes que lhes haviam enviado dali. Não tenho capacidade para julgar outras coisas. Além disso, permita-me dizer que esses conselhos ou recomendações sempre os dei por vontade própia, não forçado pelo dever.
- Era isso que eu tinha entendido - disse o almirante.
- Contudo - continuou Stephen depois de uma pausa, - era amigo íntimo do defunto senhor Waterhouse, o conselheiro sobre assuntos relacionados com a espionagem do comandante geral anterior, e amiúde falávamos do modo de obter informação e impedir que o inimigo a obtenha, na teoria e na prática. Tinha muita experiência, e, como os princípios da contra-espionagem raras vezes se hão escrito, se me permitirem, farei um resumo de suas idéias.
- Sim, por favor - disse sir Francis. - Sei que o almirante Thornton o tinha em muita estima.
Stephen havia falado apenas cinco minutos quando o almirante voltou a sair apressadamente da cabine. Mas desta vez não regressou. Depois de uma longa espera, o infante de marinha que era seu ajudante entrou e falou com o senhor Yarrow, que mandou chamar o cirurgião do navio insígnia e disse que a reunião havia terminado.
- Pelo que entendi, nós dois almoçaremos com o governador - disse Wray a Stephen quando ficavam no castelo de popa do Caledônia. - Quer que o leve para terra? contudo, é muito cedo, e talvez prefira voltar para seu barco. O almoço que o senhor Hildebrand oferecerá não começará até dentro de muito tempo.
- Gostaria muito de descer para a terra. Hoje os monges da abadia de São Simón vão cantar a sexta e a nona juntas e tenho muito desejo de assistir-lhes.
- Ah, é? Gostaria muito de acompanhar-lhe, se me permite. Estive tão ocupado fazendo essas tediosas investigações que pude ir muito poucas vezes nas duas últimas semanas.
- Essas tediosas investigações… - repetiu quando os dois saíram da igreja de São Simón, pestanejando debaixo da intensa luz do sol. - Pensava falar-lhe de alguns homens que me inspiram suspeitas, alguns cujos nomes causam surpresa e fazem pensar que não se pode confiar em ninguém e recordar que munera navium saevos inlaqueant duces; contudo, não tenho ânimo depois de estar imerso nessa excelente música, não tenho a coragem de fazê-lo.
Quer que nos sentemos no caramanchão até que chegue a hora do almoço?
- Seria um prazer - respondeu Stephen.
Em efeito, tinha prazer em estar ali sentado à sombra, acariciado pela suave brisa que atenuava o terrível calor do dia, bebendo café com gelo. Wray não era um homem que despertasse admiração, mas falava com paixão de um tema que conhecia bem (e Wray sabia muito de música, tanto da antiga como da moderna), e era difícil que não fosse uma agradável companhia para um homem que tivesse seus mesmos gostos. Contudo, Stephen percebeu que nem todos seus gostos eram iguais ao observar Wray através dos verdes lentes de seus óculos quando o garçon, um bonito jovem de finos modos, trouxe as bebidas, os charutos e os isqueiros e quando, desnecessariamente, trouxe outros isqueiros. Pensou que provavelmente o vice-secretário era um pederasta ou um homem como Horácio, que sentia inclinação amorosa pelos dois sexos. Isto não lhe produziu indignação por ser imoral nem por nenhuma outra razão. Admirava Horácio e, como tinha a atitude tolerante própia das pessoas do Mediterrâneo, admirava também a muitos outros homens que tinham as mesmas inclinações estranhas que ele. Mas parecia que Wray não estava a vontade, e quando deixaram de falar de música, ficou nervoso e pediu mais café e outro charuto antes de ter terminado o primeiro. Parecia que não se achava bem.
- Acho que terei que deixar-lhe - disse Stephen por fim. - Tenho que ir ao hotel pegar dinheiro.
- Talvez devessemos ir juntos - disse Wray. - Mas não se preocupe com dinheiro, porque tenho muito no bolso, pelo menos cinco libras.
- O senhor é muito amável - disse Stephen, - mas eu falava de uma soma muito maior. Me hão dito que no palácio jogam com apostas muito grandes, e como meu agente financeiro me disse que sou mais rico que Creso, pelo menos este trimestre, vou me permitir entregar-me a um de meus vícios uma hora ou duas.
Wray o olhou atentamente, mas não pôde descobrir se falava sério. Stephen Maturin não tinha aspecto de jogador, mas o que dissera era verdade, pois gostava de jogar de vez em quando, e fazendo as apostas maiores que podia. Sabia que isso era uma fraqueza, mas sabia controlar-se, e, além disso, como passara um longo tempo em uma prisão espanhola encerrado na mesma cela que um jogador de cartas rico (um homem que fora condenado ao garrote não por fazer trapaças, já que nunca lhe descobriam, senão por estupro), era pouco provável que o ganhassem.
Caminharam em silêncio durante um tempo e depois Wray perguntou:
- O senhor e Aubrey se hospedam no hotel Carlotta, não é?
- No Searle, para ser exato.
- Bem, tenho que dizer-lhe adeus, porque o senhor tem que seguir reto e eu tenho que dobrar à direita.
Separaram-se, mas não por muito tempo. No almoço se sentaram bastante perto, e como ao homem que estava sentado à direita de Stephen, o senhor Summerhays, o vinho subia à cabeça com tanta facilidade que se embebedou quando bebeu a segunda taça de clarete, e o oficial alemão que estava sentado a sua esquerda não sabia falar inglês, francês nem latim, Stephen teve tempo de observar Wray. Notou que Wray sabia ganhar a simpatia dos homens que compareciam a esse tipo de reuniões, pois era inteligente e divertido. Não profundizaba nas coisas e tinha melhores aptidões para ser um político que para ser um funcionário, mas era evidente que era capaz de conquistar a simpatia de homens tão diferentes como o tesoureiro e o tosco capitão governador.
Quando a refeição terminou, a maioria dos convidados (todos eram homens e entre eles estavam quase todos os militares e civis mais importantes de Valletta) passaram para a sala de jogo, e Stephen se reuniu com eles depois de se despedir do botânico. Vários cavalheiros, sérios e pensativos, já estavam jogando o whist, mas muitos haviam se reunido ao redor de uma mesa onde se jogava dados. Stephen ficou olhando-os um tempo e, apesar de que ouvira que esses homens faziam apostas muito altas, surpreendeu-lhe ver a grande quantidade de dinheiro que passava de umas mãos para outras.
- Não quer jogar uma partida de dados? - perguntou Wray, que estava justo detrás de Stephen.
- Não - respondeu Stephen. - Prometi ao meu padrinho que não voltaria a tocar nos dados um dia que me tirou de um apuro quando era jovem. Agora só jogo cartas.
- Gostaria de jogar o jogo das centenas?
- Ficaria encantado.
Quando Maturin jogava cartas, não era o mais amável dos mortais. Quando jogava por dinheiro, jogava para ganhar, jogava tão seriamente como se estivesse realizando uma operação contra o inimigo, e ainda que observava estritamente as regras, sempre aproveitava as oportunidades que se apresentavam, se bem que com correção. Agora estava jogando seriamente, como devia fazer em vista da quantidade de dinheiro que havia apostado com Wray, depois de ter escolhido uma mesa próxima da janela e ter se sentado de maneira que o sol não desse na cara dele mas na de Wray.
Não lhe surpreendeu ver que Wray era um jogador experiente, um jogador que misturava as cartas como um prestidigitador e as repartia com soltura. Tampouco lhe surpreendeu que, apesar da experiência que Wray tinha, não soubesse que a posição que ocupava era desvantajosa, porque o sabiam poucas pessoas, inclusive poucos jogadores de cartas. Ainda que Stephen fosse médico e um entendido em fisiologia, não o havia sabido até que estivera na prisão de Teruel e Jaime, seu companheiro de cela, falara da influência das emoções na pupila do olho. "É como um espelho que está colocado detrás dos olhos de nosso oponente e nos mostra as cartas que tem na mão", dissera Jaime. Havia lhe explicado que a pupila se contraía ou se dilatava involuntariamente e conforme o valor das cartas do jogador e da possibilidade de que fizesse uma jogada brilhante ou má. Acrescentara que quanto mais emotivo era um jogador e mais altas eram as apostas, maior era a influência, mas que sempre a havia, desde que houvesse algo para ganhar ou perder. Mas havia acrescentado que o problema era que havia que ter boa vista para detectar as mudanças e muita prática para interpretá-las, e que, além disso, o oponente de um tinha que estar bem iluminado.
Stephen tinha uma vista excelente e muita prática em interpretar as mudanças, pois havia usado esse método com bons resultados nos interrogatórios, e Wray estava sentado em uma posição em que o sol lhe acertava em cheio na cara. Além do mais, ainda que Wray se acostumara a pôr um gesto que só expressava a complacência que uma pessoa cortês devia mostrar, era um homem emotivo (e Stephen achou que estava mais ainda) e ambos haviam feito grandes apostas. Por outro lado, como no jogo se soltavam e pegavam cartas constantemente, a sorte podia mudar rapidamente. Mas Stephen haveria ganhado mesmo sem todos os fatores, já que a sorte lhe acompanhou desde a primeira mão até a última, em que pegou o sete de corações, tirou três cartas de diamantes baixas, a jota e o dez de espadas e depois pegou os três últimos ases, um rei e o sete de espadas, estragando para Wray uma jogada com o rei, e logrou repicar e, depois que Wray jogou mal sua última carta, ganhou a vaza e a partida.
- Ganhar quando um tem tão boa sorte não produz satisfação - disse Stephen.
- Acho que eu poderia suportar - disse Wray, fazendo uma boa imitação de um riso alegre ao mesmo tempo que pegava um caderno do bolso. - Talvez possa dar-me a chance da revanche em outro dia, quando tenha tempo livre.
Stephen disse que com muito prazer a daria, despediu-se do governador e saiu com o bolso da casaca cheio de rangentes notas novas. Como Laura Fielding ia visitá-lo essa tarde, quando regressava para o hotel comprou flores, bolos, ovos, um lombo de porco assado, mas já frio, um fornilho de álcool e um bandolim. Colocou todas as coisas na salinha que havia alugado por decência e depois mandou que enchessem a banheira de banho do hotel. Depois de ficar submerso na água quente durante um tempo, trocou de roupa íntima e se arrumou o pouco que podia: barbeou-se (não havia se barbeado para ir ver ao almirante nem para ir à casa do governador), passou mais pó em sua peruca e escovou a casaca. Enquanto se arrumava se olhava de vez em quando no espelho com a vã esperança de que ocorresse um milagre e a imagem que refletia se transformasse, pois apesar de saber que a relação entre ele e a senhora Fielding devia continuar sendo casta, tinha muito desejo de que não fosse e ofegava ao pensar que ia vê-la muito breve.
Mas o termo "breve" era vago e abarcou tempo suficiente para que Stephen arrumasse as flores duas vezes, deixasse cair o lombo de porco e chegasse a se convencer de que não haviam se entendido bem ao recordar o dia, a hora e o lugar. Já estava raivoso quando um moço bateu na porta e disse que uma dama queria ver-lhe.
- Conduza-a até aqui - disse Stephen em tom irritado.
Contudo, quando ela chegou e tirou a máscara e o capuz da faldetta, Stephen sentiu que a raiva se desvanecia como a geada ao sair o sol. Contudo, ela observou a raiva, e sabia perfeitamente que havia chegado muito tarde, assim que tentou mostrar-se amável elogiando as flores, o bandolim e a colocação dos bolos. Desafortunadamente, isso era o pior que podia ter feito, porque avivou o fogo de sua paixão. Depois de alguns momentos, ele entrou no dormitório, repetiu rapidamente três aves-marias e regressou à salinha com um documento que parecia ser o rascunho de uma mensagem cifrada, interrompida pela metade por um erro ao usar a chave, e descartada.
- Aqui está - disse. - Isto convencerá àquele homem de que a senhora fez progressos.
Ela agradeceu e, com um gesto preocupado, disse:
- Espero que assim seja. Estou tão angustiada!
- Estou seguro disso - disse em tom convincente.
- Confio plenamente no senhor - disse ela.
Depois de uma pausa de vários minutos, Stephen perguntou:
- Gostaria de um ovo cozido?
- Um ovo cozido? - perguntou ela.
- Sim. Pensei que devíamos tomar uma colação, já que ficaríamos várias horas juntos, e, como é sabido, os amantes comem ovos cozidos para se fortalecerem. Era necessário preparar o cenário, sabe?
- De toda forma, eu gostaria de comer um ovo cozido. Não tive tempo de jantar.
Laura Fielding era uma mulher de compleição robusta. Apesar de sua profunda angústia, comeu dois ovos, e comê-los lhe abriu o apetite. Então, com um copo de vinho de Marsala na mão, comeu o lombo e, depois de uma pausa, comeu muitos bolos. Era um prazer vê-la comer.
Também era um prazer ouvi-la tocar o bandolim. Tocava ao estilo siciliano, e das cordas brotava um som agudo que parecia nasal, um som que contrastava agradavelmente com sua voz de contralto quando ela cantava uma longa balada que contava a história do paladino Orlando e sua amada Angélica.
Ainda que Stephen comera bastante no palácio, pensou que seu dever, como anfitrião, era compartir a colação com ela, ovo por ovo, fatia por fatia, e o poder das orações e o excesso de comida fizeram diminuir seu desejo até um grau em que era perfeitamente suportável, assim que nas últimas horas que ambos estiveram juntos passaram conversando como amigos, ainda que com as mãos gordurentas, já que não tinham garfos. Falaram quase sem pausa de vários temas, inclusive de temas confidenciais, passando sem transição de um para outro, e no final falaram das lembranças de sua infância e de sua juventude. Laura lhe contou que, apesar de não haver sido recatada quando era uma adolescente, pois estava na corte do reino das Duas Sicilias, onde seu pai trabalhava sob as ordens do grande fidalgo, onde não existia o recato, desde que havia se casado com o senhor Fielding levava uma vida virtuosa. Acrescentou que por essa razão se incomodava ainda mais por Charles Fielding ser ciumento, ainda que assegurou que esse era seu único defeito. Disse que era um homem charmoso, amável e valente, generoso, um homem que tinha tudo o que a mulher mais exigente podia pedir, mas que era possessivo e desconfiado como um espanhol ou um mouro. Contou algumas das injustificadas cenas que havia feito, mas depois, pensando que fora injusta, desleal e maligna, voltou a falar de seus méritos durante muito mais tempo.
Stephen se entediou com seus méritos e, por fim, em uma pausa em que ela sorriu e baixou a vista, pensando, sem dúvida, em outros méritos, disse:
- Vamos, minha amiga. É hora de voltar a pôr seu disfarce e partir, porque se não, não restará ninguém aí fora para vê-la partindo.
Laura pôs a máscara e a capa com capuz e Stephen abriu a porta. Ambos saíram e percorreram o corredor na ponta dos pés e entre rangidos e desceram dois vãos de escada até o piso onde Jack ficava. Nesse momento o silêncio foi rompido por um alarido, alguns golpes e o grito: "Alto, pare!". Duas delgadas figuras passaram correndo pelo patamar e saltaram por uma janela, e depois apareceu Killick, que tinha uma palmatória na mão e gritava:
- Marinheiros! Marinheiros, detenham os ladrões!
Killick passou por eles, enquanto as portas de ambos lados do corredor se abriam, mas depois voltaram a encontrá-lo no iluminado saguão. Ele disse que não havia agarrado ninguém, mas tinha um sorriso triunfante e malicioso.
- Eram dois sacanas! - disse ao grupo de homens que havia se reunido ao seu redor, mas ao perceber que uma mulher acompanhava Stephen, tirou o gorro de dormir e disse: - Perdoe, senhora. Eram dois indivíduos.
- Saltaram pela janela do primeiro andar - disse Stephen.
- Mas não o levaram - disse Killick.
Então Killick disse aos que lhe rodeavam que os ladrões procuravam o chelengk do capitão Aubrey, mas que ele, Preserved Killick, era mais astuto que eles e havia posto ao seu redor anzóis e uma ratoeira que se fechava com extraordinária violência, na qual um deles havia deixado um dedo, e acrescentou que os dois haviam deixado um fio de sangue que dava gosto ver.
Chegaram mais pessoas de baixo e de cima. Quando os oficiais da marinha viam Stephen, afastavam imediatamente a vista dele, e, por discrição, não falavam com ele senão que se limitavam a saudar-lhe com uma inclinação de cabeça. Contudo, Laura abaixou mais o capuz, porque pensava que uma coisa era que se fixassem nela os espiões franceses e outra muito diferente que a reconhecessem as pessoas entre a quais vivia, seus própios amigos e os amigos de seu esposo.
- Onde está o capitão Aubrey? - perguntou uma voz.
- Fazendo uma visita - respondeu Killick, e começou a contar a história outra vez para que os recém chegados a ouvissem.
Killick disse que os ladrões haviam levado alguns galões com fios de ouro, o dinheiro que havia em um gaveta do baú, que não era muito porque o capitão havia guardado quase tudo no bolso, e um ou dois cofres, mas que os diamantes estavam a salvo. Depois começou a mudar a história, aumentando a quantidade de sangue e o número de dedos que os ladrões haviam largado para trás, e a contá-la com muitos detalhes, e então Stephen pegou a senhora Fielding pelo cotovelo e, abrindo passagem entre a multidão, a levou para a escura noite, já próxima do seu final.
- Não se esqueça de vir no sábado pela tarde - disse quando se despediu dele na porta de sua casa, atrás da qual estava Ponto dando bufos. - E traga Aubrey também, se quiser vir.
- Acho que ele se encantará. Poderia trazer também outro amigo, o senhor Martin, o pastor que fez a viagem conosco?
- Todos seus amigos serão bem-vindos - disse, apertando-lhe a mão, e os dois se separaram.
- Bom dia, meu amigo - disse Lesueur com seu estranho sorriso. - Pensei que hoje chegaria a tempo.
- Quais são as notícias? - perguntou Wray em tom mal-humorado.
- Tudo saiu bem - respondeu Lesueur, - mas quase aprisionam os garotos, e um deles perdeu um dedo. Nossos temores eram infundados, porque no cofre só havia documentos pessoais. Não havia nem uma só indiscrição.
- Graças a Deus! - exclamou Wray. - Graças a Deus! - repetiu, sentindo alívio e raiva ao mesmo tempo. - Podia tê-lo dito. Tinha que saber que eu estava angustiado. Não podia dormir nem me concentrar no que fazia. Isto me fez perder uma grande soma jogando cartas. Teria bastado que me mandasse uma simples nota.
- Quanto menos coisas se escrevam melhor - disse Lesueur. - Littera scripta manet. Olhe isto.
- O que é?
- O rascunho de uma mensagem cifrada. Você a reconhece?
- É da seção B do Almirantado.
- Sim mas o homem que a cifrava se equivocou na segunda transposição e tirou o rascunho, ou melhor, o pôs entre as páginas de um livro e começou de novo. Se houvesse avançado um pouco mais, o documento haveria sido muito valioso. Apesar de tudo, é útil. Conhece a letra?
- É de Maturin.
Pela viva expressão de Lesueur, parecia que ia falar mais do assunto, mas se absteve de pronunciar as palavras que ia dizer e perguntou:
- Como se comportou na reunião?
- Foi muito prudente. Disse que era um conselheiro ocasional e voluntário, nada mais, e praticamente disse ao almirante que, como conselheiro, não tinha que receber ordens de ninguém. Acredito que não confia em ninguém em Malta. Contudo, nos deu alguns conselhos, que, conforme ele, Waterhouse lhe dera. O senhor teria rido muito se o ouvisse falar da redução dos comitês, das precauções que há que tomar ao fazer mensagens cifradas, da detecção de espiões transmitindo falsas informações e coisas similares.
- Se os conselhos, pelo menos em parte, eram de Waterhouse, eram bons. Waterhouse era um agente secreto exemplar, que desempenhava à perfeição sua profissão. Estive presente no último interrogatório que lhe fizeram. Não era possível obter informação dele. Enquanto de Maturin, acho que pelo momento posso sacar-lhe informação, mas temo que isso não durará, e quando esse momento chegar, terá que ser eliminado. Como o senhor sugeriu, o dey de Mascasse será útil para conseguir este propósito.
- Indubtavelmente - disse Wray. - Lembro que disse que o dey nos serviria para matar dois pássaros de um tiro. Agora acho que nos servirá para matar três.
- Tanto melhor - disse Lesueur. - Mas lhe aconselho que não fale com Maturin com freqüência.
- Provavelmente só o verei uma vez mais por questões oficiais. Não quero ver um discípulo de Waterhouse observando o que faço aqui, e não acredito que ele queira interferir nisso. Mas talvez passe uma tarde com ele por uma questão não oficial, para a revanche de uma absurda perda. Mas quero que saiba que não gosto de seus ares de superioridade nem que me espie nem que me aconselhe quem devem ser meus acompanhantes.
- Não vamos brigar - disse Lesueur, - porque isso teria necessariamente como consequência a destruição dos dois. Pode ver Maturin a cada dia da semana, se quiser. Só lhe peço que se lembre que é perigoso.
- Muito bem - disse Wray e, em tom irritado, perguntou: - Teve resposta da rue Villars?
- Sobre pagar suas dívidas de jogo?
- Se quer dizer assim…
- Temo que não lhe darão mais do que a ajuda inicial.
Como Wray havia profetizado, ele e Stephen Maturin voltaram a se ver em uma reunião que se celebrou no navio insígnia, na qual se chegou à conclusão de que Hairabedian era um agente secreto a serviço dos franceses e que, por óbvias razões, seus amigos ou seus colegas em Valletta havia mandado roubar seus papéis. Depois o almirante propôs que o doutor Maturin ajudasse os homens do departamento do senhor Wray a buscar esses amigos ou colegas, mas a proposta foi acolhida com indiferença pelos dois, e o almirante não insistiu. Contudo, por questões não oficiais, viram-se com muita mais freqüência. Não se viram todos os dias, mas sim muito amiúde, já que a sorte se negava a acompanhar-lhe. Contudo, Stephen não se reunia com ele para saciar sua vontade de jogar, mas porque sua cabine estava cheia de potes de tinta e não havia tranqüilidade nela porque se ouviam constantemente marteladas e gritos, e, além disso, porque seus habituais companheiros tinham toda sua atenção posta nas tarefas navais, assim que depois que fazia a ronda no hospital, dedicava a parte da tarde que não passava nas montanhas ou na praia com Martin para jogar com Wray. Pela noite costumava visitar a senhora Fielding, e era em sua casa onde via Jack com mais freqüência.
Os empregados do estaleiro haviam feito um excelente trabalho no interior da Surprise, haviam cumprido sua parte do acordo, ainda que não muito limpamente. Mas no acordo só se fazia referência a várias reparações estruturais, e os carpinteiros de barco haviam deixado as partes mais visíveis da fragata em um estado lamentável. Mas Jack se importava muito com o aspecto da fragata, a inclinação de seus mastros e sua exárcia, pois pensava que se saísse da Armada, devia sair com elegância, com muita elegância, e que, além disso, havia possibilidade de que entrasse em outro combate com ela antes de seu final. Por essa razão, todos os marinheiros estavam cuidando dela como poucas vezes a haviam cuidado antes. Aducharam todos seus cabos, trocaram de lugar a fila de tonéis inferiores e recolocaram o carregamento na bodega para que afundasse um pouco mais a popa, porque dessa maneira navegava melhor, pintaram-na por dentro e por fora e esfregaram o convés. O senhor Borrell e seus homens ajustaram cuidadosamente os canhões e seus aparelhos e prepararam a pólvora e as balas. O senhor Hollar, seus ajudantes e todos os guardas-marinhas haviam subido como arranhas pela exárcia para revisá-la. Era a primeira vez que não tinham pressa. O capitão da esquadra havia assegurado a Jack que não zarparia até que voltasse a ter a bordo "uma razoável quantidade de tripulantes" dos quais haviam levado e os infantes da marinha. Contudo, o capitão e o primeiro oficial, que haviam ouvido muitas promessas de seus superiores em sua vida, faziam realizar os trabalhos bastante rápido. Jack não gostava muito dos adornos brilhantes, mas achava que neste caso era diferente e, pela primeira vez em sua vida, havia gastado uma considerável quantidade de dinheiro em folha de ouro para cobrir as grinaldas de popa, e, ademais, havia chamado o melhor pintor de letreiros de hotéis de Valletta para que pintasse o mascarão de proa, uma dama anônima com esplêndidos seios. Estava satisfeito porque se ocupava de todas essas tarefas, tarefas própias de marinheiros (dissera aos guardas-marinhas que realizando-as chegariam a conhecer melhor um barco de guerra que navegando meses e inclusive anos nele) e porque, finalmente, podia fazer muitas das coisas que sempre desejara fazer, mas às vezes sentia amargura. Por isso gostava de ir com seu violino, carregado por um marinheiro supernumerário maltês, aos concertos na casa de Laura Fielding pelas noites, onde tocava, às vezes realmente bem, ou ouvia outras pessoas tocarem.
Já se acostumara com a idéia de que Laura e Stephen eram amantes, e ainda que admirasse menos aos dois, não se importava, mas achava injusto que todos em Valletta supusessem ainda que ele, Jack Aubrey, era o homem afortunado. As pesoas lhe diziam: "Se por casualidade passar pela casa da senhora Fielding, por favor, diga-lhe que…" ou "Quem irá na terça-feira pela noite?", como se soubessem com certeza que tinham relações. Naturalmente, isso se devia em grande parte ao maldito Ponto, que o havia cumprimentado efusivamente e com muito ruído na abarrotada rua Real dez minutos após ter descido a terra. Contudo, tinha que admitir que Stephen e Laura eram muito discretos. Nenhuma pessoa que visse Stephen em uma das festas que Laura Fielding dava às noites poderia supor que passaria ali o resto da noite.
Wray, indubtavelmente, não supunha. Desde o início deste período, ria e se referia a Jack dizendo "seu amigo Aubrey, que conforme dizem tem muita sorte". Mas a medida que passavam os dias tendia a rir menos. A má sorte ainda não o havia abandonado, e já perdera tanto dinheiro que Stephen, apesar de que o jogo já lhe entediaria, achava injusto não dar-lhe a ocasião de tomar a revanche, que pedia continuamente. Ainda que Wray havia jogado muito, não era um muito bom jogador. Podia ser enganado facilmente por uma repentina mudança de uma firme defensiva a um arriscado ataque, e suas tentativas de engano, que não iam mais lá de breves vacilações e gestos de desgosto, eram totalmente transparentes. Mas além disso, como Stephen tinha boas cartas e, em troca, ele não, o jogo lhe chatearia ainda mais. Por outro lado, como Wray estava com má sorte e angustiado, não era um companheiro tão divertido como antes. Quando Stephen chegou a conhecê-lo um pouco melhor, descobriu que era um libertino, não se atinha a princípios morais, dava demasiada importância ao dinheiro e não tinha escrúpulos, mas tinha uma grande inteligência. Contudo, Wray não tentava modificar sua sorte, já que em outro tempo fora acusado de fazer trapaças jogando cartas e nenhum homem que estivesse em sua posição podia se permitir que o acusassem disso uma segunda vez.
Costumavam jogar no clube dos oficiais ou no caramanchão, e conbinaram se reunir precisamente no caramanchão para a partida final. Há algum tempo Wray esperava receber uma remessa, e como não tinha dinheiro efetivo (Stephen o havia tirado todo) pagava suas dívidas com promissórias. Agora a aposta era equivalente a toda a dívida, e Stephen apostava o mesmo seja qual fosse o resultado, contanto que tivesse tempo suficiente para ir visitar uma caverna cheia de morcegos com Martin e Pullings.
Wray voltou a perder, e cometeu mais erros que das outras vezes. Ficou um tempo calculando de novo seus pontos e preparando o que tinha que dizer e levantou a vista e, com um sorriso forçado, disse que lamentava muito ter que comunicar ao doutor Maturin que não havia recebido a remessa que esperava devido às recentes perdas da Cidade e que não podia lhe pagar o que devia. Repetiu que lamentava muito e acrescentou que pelo menos podia propor uma solução: daria agora um reconhecimento de dívida e nos próximos dias faria redigir um contrato de anualidade garantido pelas propriedades de sua esposa, e os pagamentos seriam acrescidos com o juro habitual e seriam enviados ao banco do doutor Maturin a cada três meses até que a senhora Wray herdasse, momento no qual ele poderia saldar a dívida imediatamente sem dificuldade, já que, como todo mundo sabia, o almirante havia herdado uma grande fortuna, em que noventa porcento estava vinculado.
- Compreendo - disse Stephen.
Não estava satisfeito. Haviam jogado por dinheiro em dinheiro e Wray havia faltado à ética aventurando-se a jogar a última partida sem poder pagar em efetivo se perdesse. Stephen não desjara em nenhum momento conseguir aquela soma, porque já lhe passara a febre do jogo, mas considerava que a merecia por ter arriscado seu dinheiro com boa fé.
Wray sabia quais eram seus sentimentos.
- Acha que posso adoçar de alguma forma este trago amargo? Tenho certa influência na comissão que dá as nomeações, como sabe.
- Acho que o senhor concorda que falta muito açúcar para adoçar esta bebida - disse Stephen e, depois que Wray disse que estava totalmente de acordo com ele, prosseguiu: - Esta manhã, no clube de oficiais, ouvi um rumor muito desagradável: que a Blackwater, que fora prometida ao capitão Aubrey há tempos, foi designada a um tal capitão Irby. Isso é verdade?
- Sim - respondeu Wray depois de vacilar um momento. - Suas conexões no Parlamento o exigiram.
- Nesse caso - disse Stephen, - quero que proporcione a Aubrey uma embarcação similar. O senhor já conhece os serviços que ele prestou, suas justificadas petições e seu desejo de estar ao comando de uma potente fragata na base naval da América do Norte.
- Certamente! - exclamou Wray.
- Em segundo lugar, quero que atribua um barco ao capitão Pullings, e, em terceiro lugar, quero que seja benévolo com o reverendo Martin quando queira trasladar-se de um barco para outro.
- Muito bem - disse Wray, apontando os nomes. - Farei o que possa. Como sabe, há muito poucos barcos disponíveis na atualidade porque número de capitães é o dobro que o de barcos, mas farei o que possa. Quanto ao pastor, não terá dificuldades para trasladar-se, poderá ir onde queira.
Guardou o caderno no bolso e pediu mais café. Depois, quando chegou o café, disse:
- Eu estou muito agradecido por ser tão benévolo, Maturin, garanto. Meu sogro tem sessenta e sete anos e não está bem de saúde…
Wray disse que, aparentemente, o almirante Harte estava afetado de hidropisia, e que, apesar de que os escrivãos, baseando-se nas estatísticas, pensavam que lhe restavam uns oito anos de vida, era pouco provável que durasse mais da metade desse tempo. Estava tão nervoso que falava sem consideração, e Stephen não sabia o que responder. Por fim, Stephen disse que alguns médicos estavam tratando a hidropisia com um novo remédio que continha digitalina, mas que pensava que ela devia ser usada com muita cautela porque poderia ser perigosa. A conversa seguiu esse rumo durante um tempo, e Stephen teve a impressão de que Wray desejava conseguir qualquer remédio que diminuisse ainda mais a esperança de vida do almirante, porém, antes que Wray aludisse a isso, chegaram Pullings e Martin para levar-lhe para a caverna.
- Essa caverna é uma das maravilhas do universo, minha amiga! - disse a Laura a meia-noite, quando ambos estavam sentados no quarto do hotel comendo esplendidamente. - Pude ver morcegos de todas as espécies do Mediterrâneo e dois que, conforme acredito, são de espécies africanas. Mas eram tímidos e se meteram em uma fenda onde Pullings não podia alcançá-los com uma corda. Era uma caverna maravilhosa! Em alguns lugares havia capas de excrementos de dois pés de altura com um grande número de ossos e de exemplares mumificados dentro. Eu a levarei para vê-la na sexta-feira.
- Não, na sexta-feira não - disse Laura, untando uma rabanada de pão com uma pasta feita com ovas de salmonete.
- Não me diga que é supersticiosa! - exclamou Stephen.
- Eu sou. Não passaria por debaixo de uma escada por nada do mundo. Mas não falei por isso. Na sexta-feira o senhor estará muito longe daqui. Como vou sentir sua falta!
- Pode me dizer qual é a sua fonte de informação?
- A esposa do coronel Rhodes me disse que uma brigada de infantes da marinha irá subir a bordo da Surprise na quinta-feira e que a fragata irá zarpar no dia seguinte. Seu irmão, que está ao comando da brigada, está muito incômodo, porque tinha um compromisso no sábado. E a filha do comandante do porto disse que fora decidido que a Surprise escoltasse o comboio do Adriático.
- Obrigado, minha amiga - disse Stephen. - Me alegro de sabê-lo - acrescentou e, depois de ficar pensativo por um momento, continuou: - É lógico que de nossos abraços de despedida brote algo muito importante para o cavalheiro estrangeiro.
Então foi para o dormitório e escolheu cuidadosamente um presente envenenado entre os muitos que preparara com esmero, um caderno de bolso com capas de carneira com fecho. "Meu amigo, dou-lhe isto com o desejo de que faça sair mal seus sujos truques durante muito tempo", pensou.
CAPÍTULO 9
A cabine do cirurgião na fragata Surprise teria sido um triângulo pequeno e escuro, algo muito parecido a um pedaço de torta, se não lhe houvessem cortado a ponta, transformando-a em um quadrilátero pequeno e escuro. O teto, formado pelo convés, era tão baixo que qualquer homem de altura média bateria a cabeça nele se ficasse erguido, e nem um só de seus ângulos era reto. Mas o doutor Maturin era bem mais baixo, e ainda que, logicamente, gostasse dos ângulos retos, gostava mais ainda de um lugar que não tivesse que ser desalojado cada vez que os tripulantes da Surprise faziam preparativos de combate (o que ocorria a cada tarde), um lugar em que seus livros e seus espécimes não fossem tocados. Havia resolvido o problema da falta de espaço em parte graças a estar acostumado com ela e em parte graças ao invento do carpinteiro, que havia feito um beliche e um mesa dobráveis e armários em lugares imprevistos. E quanto ao problema da escuridão, Stephen havia usado uma pequena fração da enorme quantidade de dinheiro que havia ganhado (da parte que recebera em elegantes notas do Banco da Inglaterra) para cobrir todas as superfícies livres com espelhos venezianos da melhor qualidade, que intensificavam a luz que se filtrava pela coberta de tal maneira que podia ler e escrever sem necessidade de uma vela. Agora estava escrevendo, escrevendo para sua esposa, com os pés metidos debaixo de um candelero{19} e o respaldo da cadeira apoiado contra outro, pois a fragata balançava fortemente enquanto avançava através de grandes ondas que vinham pela proa. Começara a carta no dia anterior, quando a Surprise, que se dirigia para Santa Maura, onde ia se juntar a dois barcos do comboio, havia se desviado do rumo por causa do mau tempo e havia chegado quase até Itaca.
"… até a mesmíssima Itaca, eu lhe asseguro. Porém, acredita que minhas súplicas e as de alguns homens instruídos que formam parte da tripulação induziram esse animal a chegar a esse lugar sagrado? Pois não. Disse que ouvira falar de Homero e que havia lido a versão de sua história feita pelo senhor Pope, e que podia assegurar que esse tipo não era um bom marinheiro. Também disse que Ulisses não tinha cronômetro e que era provável que tampouco tivesse sextante, mas que um bom capitão haveria podido regressar de Troya para Itaca muito mais rápido sem nada mais que uma barquilha, uma sonda e um serviola, e, além disso, que se entregava ao vício que tinham os marinheiros do tempo de Noé ao de Nelson: passar muito tempo nos portos e correr atrás das mulheres. Acrescentou que essa história de que os marinheiros foram tranformados em porcos para que ele não pudesse recolher âncoras nem fazer-se ao mar só os infantes da marinha acreditariam, e que havia aparecido como um miserável para a rainha Dido, ainda que depois pensou melhor e disse que talvez havia sido outro tipo, o beato Anquises, mas que dava no mesmo, porque os dois eram cortados com o mesmo padrão: os dois eram uns chatos e não eram cavalheiros nem bons marinheiros. Depois confessou que gostava muito mais do que Mowett e Rowan escreviam, porque era um tipo de poesia que qualquer homem podia entender e, além do mais, estava impregnada de conhecimentos de náutica, e, finalmente, disse que estava ali para levar o comboio para Santa Maura, não para contemplar curiosidades".
Agora, pensando que havia ofendido seu amigo (porque o animal em questão era, naturalmente, o capitão da Surprise), deixou essa folha de um lado e escreveu:
"Bem sabe Deus que Jack Aubrey tem muitos defeitos: pensa que o principal objetivo de um marinheiro é levar seu barco da posição A para a B no menor tempo possível, sem perder nem um minuto, como se a vida fosse uma contínua corrida. Ontem mesmo se negou redondamente a desviar-se um pouco do rumo para que pudéssemos ver Itaca. Contudo, por outro lado (e isso é o importante), quando a ocasião o requer, é capaz de agir com magnanimidade e de controlar seus sentimentos até um ponto que ninguém poderia imaginar ao ver-lhe exasperar-se por bobeiras. Tive uma prova disto no dia seguinte ao que zarpamos de Valletta. Durante o almoço, um dos passageiros, o capitão Pollock, disse que seu irmão, um tenente de navio, estava muito satisfeito de sua nova embarcação, a Blackwater, e tinha a certeza de que podia rivalizar com qualquer das potentes fragatas norte-americanas. "Tem certeza?", Jack lhe perguntou assombrado, pois, como sabe, haviam lhe prometido essa fragata desde que haviam formado sua quilha e confiava em que a levaria para a base naval da América do Norte assim que terminasse de passar este curto período no Mediterrâneo. "Tenho certeza, senhor", respondeu o militar. E acrescentou: "Recebi uma carta sua na mesma manhã em que embarquei, na última saca de correio que chegou. Escreveu a carta na Blackwater no porto de Cork, e dizia que esperava chegar a Nova Escócia antes de que a carta chegasse em minhas mãos porque o vento soprava do nordeste e com muita força, e o capitão Irby gostava de navegar a toda vela". Então Jack disse: "Então brindemos por ele. Pela Blackwater e todos os que vão a bordo!". Pela tarde, quando estávamos sozinhos na grande cabine, mencionei a promessa quebada, e o único que disse foi: "Sim, é um golpe baixo, mas se queixar não serve de nada. Vamos tocar música"".
Em efeito, era um golpe baixo, e quando Jack despertou na manhã seguinte e a recordação veio para sua mente, o luminoso dia se entristeceu. Confiava em que lhe dariam o comando da Blackwater, confiava em que seguiria tendo um emprego no mar, o que para ele tinha muita importância porque seus negócios em terra se achavam em um estado lamentável, e, além disso, confiava em que poderia levar com ele todos seus oficiais e seus homens de confiança e, se tivesse sorte, a quase todos os tripulantes da Surprise. Mas nada disso ia ocorrer. Agora aquela tripulação bem organizada e eficiente, que podia fazer reinar a harmonia em um barco e convertê-lo em uma máquina de guerra, seria dispersada, e ele seria abandonado na praia. Além disso, como o senhor Croker, o secretário, havia lhe tratado tão mau, tão desrespeitosamente, era provável que houvesse perdido seu favor para sempre.
Era um golpe muito baixo, mas poucos o haveriam suposto ao ver Jack contar ao capitão Pollock como ele e seus aliados haviam expulsado os franceses de Marga da última vez que a Surprise havia navegado por aquelas águas. A fragata e o restante do comboio (um comboio conduzido por excelentes capitães, já que todos os barcos se mantinham em suas posições apesar da turbulência das águas) estavam ao sul do cabo Stavros, um enorme saliente que penetrava no mar Jônico, e tinham justamente em frente a cidade amuralhada que ficava ao pé do escarpado e se estendia por terraços pela parte superior.
- Aí está a cidadela - disse, apotando para o outro lado das águas verde pálido jaspeadas de branco. - Está vendo? À direita da igreja da cúpula verde e um pouco mais acima. E abaixo, junto ao cais há duas baterias que guardam a entrada do porto.
O militar ficou observando Marga pelo telescópio durante um comprido tempo.
- Eu teria pensado que não se podia conquistar pelo mar - disse por fim. - Essas baterias sozinhas poderiam afundar uma esquadra.
- Foi isso o que eu pensei- disse Jack. - Assim que a atacamos de outra forma. Por trás da muralha da cidadela, perto da parte superior do escarpado, há uma torre quadrada.
- Já a vejo.
- E detrás há uma construção de pedra de forma redonda que parece um grande tubo de desaguamento.
- Sim.
- Esse é seu aqueduto. A cidade não tem água, e se abastece de um manancial de Kutali que fica situado do outro lado do cabo, a umas duas ou três milhas de distância. Da parte superior do escarpado pode ser visto parte do caminho, ou seja, da vereda que cobre o canal pelo qual transcorre a água até onde se une com a tubulação. Ali colocamos nossos canhões.
- O outro lado do cabo é tão alto como este?
- Ainda mais.
- Então deve de ter dado muito trabalho subir os canhões até ali. Suponho que debe ter feito um caminho.
- Não, um teleférico. Nós os subimos em duas etapas até a vereda que cobre o aqueduto, e quando chegavam ali, os levávamos até o final nas carretas facilmente, sobretudo porque seiscentos albaneses e um grande número de turcos puxavam as cordas de arraste. Quando formamos uma bateria bastante grande ali em cima, apontamos os canhões para o porto e fizemos alguns disparos de aviso e depois mandamos um mensageiro para dizer ao oficial no comando das tropas francesas que se não se rendesse imediatamente seríamos obrigados a destruir a cidade.
- Pôs algumas condições?
- Não. E disse que não admitiria que eles pusessem nenhuma, pois tínhamos a posição dominante.
- Sem dúvida, os disparos feitos de uma altura assim teriam sido devastadores e o oficial francês não poderia responder ao ataque.
- Não podia subir pelo escarpado até onde nós estávamos. Para chegar ali só há uma vereda que os pastores usam, como aquele de Gibraltar que leva à baía catalã, e meu aliado turco, o bei Sciahan, havia colocado um grupo de franco-atiradores de modo que protegessem até a última curva do caminho. Contudo, ficamos surpresos que se rendesse imediatamente.
- talvez deveria ter aparentado que oferecia resistência durante um tempo ou esperado que algumas casas fossem derrubadas. É o que se costuma fazer.
- Isso houvesse sido mais digno e mais benéfico para ele quando um conselho de guerra o julgasse. Mas, como soubemos depois, a mulher do oficial estava dando a luz e os médicos estavam preocupados com ela, já que não era conveniente que estivesse em meio de canhonaços e de casas que se derrubavam, assim que o oficial preferiu não dar uma resposta que era simplesmente um pouco de ruído para obter o mesmo resultado no final.
- Indubtavelmente, tomou uma decisão sensata - disse o capitão Pollock, em tom de desgosto.
- Meu Deus! - exclamou Jack Aubrey, recordando o fato. - Nunca vi ninguém mais decepcionado que os albaneses. Haviam suado como galeotes para levar os canhões até ali, porque depois de subi-los ao extremo do teleférico tinham que trasladá-los para o final da vereda que cobre o aqueduto, o que requeria mover constantemente centenas de pranchas de quatro polegadas de grossura para contrariar o peso e puxar os cabos com força, e também haviam subido grande quantidade de balas e pólvora como autênticos heróis e haviam se armado com quantas armas lhes fora possível, e depois tiveram que voltar a levar tudo sem ter feito um só disparo e sem ter descarregado sua raiva. Estiveram a ponto de atacar os turcos, para não ficar sem combater, e o pope, um dos muitos que há nessa região, e o bei lhes golpearam com suas armas para impedi-los, berrando como touros. Contudo, tudo saiu bem. Mandamos os franceses para Zante com todas suas tralhas e depois os habitantes de Marga nos agasalharam com um banquete que durou do meio-dia até o amanhecer do dia seguinte. Os cristãos ficavam em uma praça e os muçulmanos na do lado, e quando já não podíam mais comer, começaram a falar amavelmente uns com os outros e a cantar e a bailar.
Jack recordou a arcada que separava as duas praças e os corpulentos albaneses vestidos com faldillas brancas, que haviam formado uma linha pondo os braços sobre os ombros de seus companheiros e se moviam todos exatamente ao mesmo ritmo. Também recordou o resplendor das chamas que ardiam na cálida noite, os alegres cantos que tinham sempre o mesmo ritmo e o sabor áspero do vinho.
- Vai fazer escala aí, senhor? - perguntou o capitão Pollock.
- Oh, não! - exclamou Jack. - Vamos para Kutali, que fica do outro lado do cabo. Se essa maldita carraca não voltar a perder os estais - disse, olhando para o mercante Tortoise, - nós o dobraremos sem dar bordejadas e chegaremos ao porto antes do anoitecer e o senhor poderá ver onde ocorreu a outra parte da história. Senhor Mowett, acredito que deveria fazer o sinal para mudar de bordo e preparar a fragata para fazê-lo, mas dê muito tempo ao pobre Tortoise. Algum dia nós também seremos velhos e pesaremos muito.
O Tortoise recebeu o sinal que lhe ordenava mudar de bordo muito antes que os outros e virou tão bem que em todos os barcos deram vivas. Então o comboio pôs rumou para o outro lado do cabo Stavros e o dobrou, bordejando-o a uma milha de distância, quando o capitão Aubrey terminava seu solitário almoço. Até que sua situação econômica começara a ser má, Jack comera da maneira tradicional, convidando todos os dias dois ou três oficiais e um guarda-marinha, e mesmo que agora ainda os convidasse muitas vezes para compartir algum almoço com ele (particularmente, porque sabia que os guardas-marinhas não tinham recursos e não queria que se esquecessem de comer como seres humanos), costumava convidar-lhes para tomar o café da manhã, que requeria menos preparativos. Contudo, desde que havia se informado de qual era o destino da fragata não havia querido convidar a ninguém, porque todos exceto o melancólico Gill estavam muito alegres, e se lhes ocultasse o que sabia, o que podia fazer seus dias tão tristes como os dele, seria hipócrita.
Não estava comendo na cabine-refeitório, mas justamente no final da popa, sentado de frente para as grandes janelas de popa, e podia ver do outro lado dos vidros e um pouco mais abaixo a esteira da fragata afastando-se dele, uma esteira branca que se destacava entre as turbulentas águas verdes, tão branca que as gaivotas que planavam ou mergulhavam nela pareciam sujas. Nunca deixava de se emocionar ao ver este espetáculo, ao ver os bonitos vidros curvos, tão diferentes dos das janelas que havia em terra, e o mar em um dos infinitos estados em que podia se encontrar, e tudo envolto no silêncio e oferecendo-se somente para sua vista. Enquanto comia o último pedaço de queijo de Cefalonia pensou que se tivesse que passar o resto de sua vida com meio pagamento e na prisão por não pagar as dívidas, ainda conservaria isto, que era melhor que qualquer recompensa que lhe dessem em sua vida.
Na parte inferior do vidro de estibordo apareceu a ponta do cabo Stavros, um cinzento escarpado de calcário de setecentos pés de altura, em cuja parte superior ficavam as ruínas de um templo arcaico, do qual só restava uma coluna em pé. O cabo foi estendendo-se lentamente de uma janela a outra, subindo e descendo com o fluxo de ondas, e uma revoada de pelicanos dálmatas passaram pela frente das janelas e desapareceram por estibordo. Justo nesse momento, quando Jack ia gritar algo, ouviu-se o grito de Rowan: "Todos a mudar de bordo!", e imediatamente depois se ouviram os agudos apitos e os gritos do contramestre. Mas depois disto não se ouviram passos apressados nem nenhum outro ruído, pois os tripulantes da Surprise já estavam preparados para fazer a manobra já fazia cinco minutos. Haviam virado sua fragata milhares de vezes, em muitas ocasiões em plena escuridão e com forte marejada, assim que era lógico que não corressem agora de um lado para outro como um bando de marinheiros de água doce. Em realidade, as ordens que seguiram eram simples formalidades.
- Soltar as amuras e as escotas! - gritou Rowan e, no momento em que Jack notou que a fragata começava a mudar de bordo, acrescentou: - soltar das braças a maior!
Os pelicanos e o cabo apareceram de novo na janela. A Surprise tinha o vento em contra, e provavelmente os marinheiros haviam descido as amuras e recolhido as escotas.
- Largar e puxar! - gritou Rowan em tom indiferente.
A fragata virou então mais rapidamente, e o vinho de Chiana que havia na taça de Jack se moveu para um lado devido à força centrífuga, que atuou independentemente do movimento ascendente produzido pelas ondas, e permaneceu nessa posição até que a fragata tomou o novo rumo.
- Davis, largue isso, pelo amor de Deus! - Rowan voltou a gritar, pois cada vez que a Surprise virava, quando as vergas terminavam de girar, Davis dava um puxão a mais na bolina do velacho porque achava que assim ficava mais tensa, mas como era um homem muito corpulento e tinha pouca habilidade, às vezes fazia a poa dos garrunchos se desprender.
- Killick! - gritou Jack. - resta bolo de Santa Maura?
- Não, não resta…! - respondeu Killick da cozinha, obviamente, com a boca cheia, ainda que nem por isso deixou de notar seu tom; era metade irônico e metade triunfal, devido a que lhe molestava que o capitão comesse na grande cabine porque tinha que percorrer várias jardas mais para levar e trazer os pratos. - … senhor! - acrescentou depois de tragar.
- Bem, não importa! - gritou Jack. - Traga-me café!
E dez minutos depois voltou a gritar:
- Apresse-se, homem!
- Já estou aqui! - exclamou Killick no momento em que entrou com a bandeja, inclinado para frente como se houvesse tido que percorrer uma grande distância com ela, como se houvesse atravessado um deserto infinito.
- Preparou o cachimbo de água para o caso dos oficiais turcos sobirem a bordo? - inquiriu Jack, servindo-se de uma xícara de café.
- Preparada, está preparada, senhor - respondeu Killick, que havia fumado com ela toda a manhã em companhia de Lewis, o cozinheiro do capitão. - Pensei que era meu dever fazê-la funcionar e me pareceu que tinha pouco tabaco. Ponho mais?
Jack assentiu com a cabeça e perguntou:
- E as almofadas?
- Não se preocupe, senhor. Peguei todas as que haviam nas macas da câmara dos oficiais e Velas as está costurando. De forma que as almofadas estão preparadas, e também os tabletes de menta.
Esses tabletes, que haviam comprado em Malta, eram muito populares no Mediterrâneo oriental, e haviam servido para encher mais de uma pausa embaraçosa nos portos gregos, balcânicos, turcos e levantinos.
- Que alívio! Bem, queria que o senhor Honey e o senhor Maitland se apresentassem aqui dentro de cinco minutos.
Esses eram os guardas-marinhas de mais antiguidade dos poucos que tinha e haviam sido classificados como ajudantes do oficial de derrota já fazia bastante tempo, pelo que já podiam se encarregar das guardas. Eram jovens agradáveis e bons marinheiros e, apesar de não serem linces, bons capitães em formação. Mas precisamente aí radicava o problema. Para chegar a ser capitão, um guarda-marinha tinha que passar por tenente de navio e depois esperar que alguém ou algo induzisse ao Almirantado a empregar-lhe em um barco como tenente de navio, e se isto não ocorresse seguiria sendo por toda sua vida um guarda-marinha aprovado no exame de tenente de navio. Jack recordou que havia conhecido muitos guardas-marinhas de mais de quarenta anos. Depois pensou que não podia prestar ajuda aos jovens na segunda etapa, mas que ninguém poderia prestá-la até que não passassem a primeira, e que pelo menos em essa sim podia ajudar-lhes.
- Entre - disse, virando-se. - Entrem e sentem-se.
Nenhum acreditava que havia cometido uma falta grave, mas nenhum queria desafiar ao destino tomando-se confianças, assim que ambos, mostrando um grande respeito, sentaram-se docilmente.
- Estive lendo o rol e vi que os dois terminaram o primeiro período na Armada - continuou Jack.
- Sim, senhor - disse Maitland. - Eu servi por seis anos, e durante todos eles estive navegando, senhor. Já Honey só lhe faltam duas semanas.
- Exatamente - disse Jack. - Acho que poderiam tentar passar no exame de tenente de navio tão logo regressemos a Malta. Dois dos capitães do tribunal são amigos meus, e não vão lhes fazer favores indevidos, mas pelo menos não lhes acossarão, o que é muito importante quando um está nervoso, e a maioria das pessoas ficam nervosas quando são examinadas. Eu fiquei. Podem esperar por Londres para fazer o exame, mas ali impõe respeito. Em meus tempos esse era o único lugar onde se podia fazer. Havia que ir à Junta Naval para se examinar, ainda que isso significasse esperar anos e anos até que um pudesse regressar de Sumatra ou de Coromandel.
Jack voltou àquela quarta-feira em que havia ido a Somerset House e voltou a ver a magnífica fachada de pedra, a grande sala redonda onde havia trinta ou quarenta jovens desajeitados e de pernas frouxas com seus certificados nas mãos, cada um acompanhado de um monte de parentes, alguns com aspecto imponente e quase todos com uma atitude hostil para os outros candidatos. Recordou que o porteiro lhes chamava de dois em dois e que os dois que eram chamados subiam a escada e então um deles entrava para prestar o exame e o outro ficava junto à grade branca, aguçando o ouvido para ouvir as perguntas. Voltou a ver as lágrimas do garoto que saía quando ele entrava.
- Em troca, aqui o farão em um ambiente familiar - continuou.
- Sim, senhor.
- Não tenho medo de que lhes reprovem pelas manobras - disse. - Não. É a navegação que pode lhes trazer problemas. Estes cálculos estão muito bons - acrescentou, pegando os trabalhos dos guardas-marinhas, os papéis que todos os guardas-marinhas deviam entregar diariamente ao infante de marinha que fazia guarda na porta da cabine com o cálculo da posição da fragata conforme as medições de meio-dia, - são bastante exatos, mas os fizeram de maneira empírica. Se lhes fizerem perguntas teóricas, e os capitães examinadores fazem muitas atualmente, estarão perdidos. Honey, suponha que conhece o abatimento de um barco e calculou sua velocidade com a barquilha. Como se calcula o ângulo de correção que tem que se levar em conta para corrigir o rumo?
Honey o olhou com assombro e disse que achava que podia averiguá-lo se lhe dessem um papel e tempo. Maitland disse que achava o mesmo e que se guiaria por Norie.
- Sem dúvida - disse Jack. - Mas ocorre que se encontraram com um temível inimigo e não têm tempo de olhar para Norie nem papel. Têm que dizer imediatamente a velocidade do barco que é proporcional ao seno do abatimento, de maneira que o abatimento é proporcional ao seno do ângulo de correção. Suponho que não teremos muito trabalho nesta singradura, portanto, se desejarem vir pelas tardes, trataremos de aumentar seus conhecimentos de navegação.
Quando se foram, Jack anotou vários pontos difíceis, como o da ascenção reta e oblíqua, dos quais falara com Dudley o Sextante, um capitão com uma boa formação científica que desprezava aqueles que eram simples marinheiros e que provavelmente tormasse parte do tribunal junto com seus amigos íntimos. Então subiu para o convés. A Surprise estava já no meio da baía de Kutali, a barlavento do comboio, como um bonito cisne com uma revoada de gansos comuns, alguns deles sujos. Todos os passageiros contemplavam aquele espetáculo, um espetáculo pelo qual Jack, que já o vira, voltou a sentir a mesma admiração que da primeira vez ao notar a admiração deles: a grande baía cheia de pequenas embarcações e sloops, a fileira de enormes montanhas que se alçavam justo na beira das profundas águas, e detrás do porto, formando com ele um ângulo de quarenta e cinco graus, a cidade compacta e fortificada, com seus tetos rosados, suas paredes brancas, seus muros de contenção cinzentos e suas cúpulas verdosas de cobre brilhando sob o sol, e mais além outras montanhas ainda mais altas, umas desprovidas de vegetação e outras cobertas de bosques, com os picos ocultos por vaporosas nuvens brancas.
- Agora, senhor - disse Jack ao capitão Pollock, - pode ver onde começamos. Em essa ponta do cais colocamos um enorme suporte e dali estendemos um cabo até a cidadela, por cima dos muros de contenção e pelo centro da cidade. O pusemos tão esticado como a corda de um violino e o atamos a alguns postes justo antes e depois dos vãos mais perigosos, e subir os canhões foi costurar e cantar. Essa foi a primeira etapa. O que fizemos na segunda não se pode ver bem daqui porque o terreno desce um pouco do outro lado desses penhascos que estão detrás da cidadela, mas ali, onde volta a se elevar, naquela zona verde que há abaixo dessas pontiagudas rochas de cor clara, pode ver a linha do aqueduto enterrado, que segue o contorno da montanha. Ainda que, agora, penso que talvez deveria ter-lhe falado primeiro sobre a estrutura política, que era muito complexa.
- Com sua licença, senhor - disse Mowett. - Acho que o bei já zarpou.
- Como é possível que venha tão rápido? - perguntou Jack, pegando seu telescópio. - Tem toda razão. E o amável pope vem com ele. Comece a fazer as salvas. Esses eram meus aliados nesta operação - disse para Pollock quando o condestável chegou correndo para a popa com seu acendedor, - e temo que não poderei voltar a falar com o senhor até dentro de um tempo, sobretudo porque vejo que lhe seguem mais meia dúzia de lanchas.
As salvas da Surprise ainda não haviam terminado quando os turcos começaram a disparar canhonaços de saldação com uma bateria que ficava ao sul da parte baixa da cidade. Haviam tirado proveito do arsenal dos franceses em Marga e agora tinham numerosos canhões e munições. Dispararam com o entusiasmo própio dos turcos e algumas das balas quicaram na água entre os barcos pesqueiros. Em poucos minutos, os cristãos da cidadela, que haviam tirado ainda mais proveito, começaram a disparar seus canhões de doze libras. Várias colunas de espessa fumaça ascenderam e desceram para Kutali; o eco dos canhonaços se propagava das montanhas até a entrada da baía; nos intervalos entre os canhonaços se ouviam tiros de mosquetes, pistolas e rifles. A Surprise era uma fragata muito popular entre os habitantes de Kutali porque graças a ela não haviam caído em mãos de dois beis déspotas e rapaces e haviam conseguido os meios para defender sua liberdade. Contudo, a intenção de seu capitão não era fazer uma boa ação senão levar a cabo uma operação contra os franceses, mas a intenção também fora boa e o resultado fora o mesmo.
Os governantes da pequena cidade subiram pelo costado radiantes de alegria e foram recebidos com uma magnífica cerimônia na qual o contramestre deu pontualmente as ordens, os infantes da marinha apresentaram armas, os oficiais, vestidos com seus melhores uniformes, tiraram os chapéus, e o tambor fez um comprido redobre. O bei Sciahan, um turco de baixa estatura, largo de costas, com o cabelo grisalho e muitas cicatrizes, aproximou-se de Jack com os braços abertos e o beijou em ambas as bochechas, o padre Andros o seguiu, e isto agradou tanto aos tripulantes da Surprise que deram um viva.
- Onde está Pullings? - perguntou o padre Andros em italiano, olhando ao seu redor.
Jack não podia recordar como se dizia em italiano "foi promovido", assim que decidiu dizê-lo em grego.
- Promotides - disse, apontando para para cima.
Então, ao ver que eles puseram uma expressão de assombro e tristeza de uma vez e que o sacerdote fazia o sinal da cruz ao estilo ortodoxo, deu umas palmadinhas em suas dragonas dizendo:
- Não, não! Capitão! Não morto! Elevado em grau!
Depois, elevando a voz, ordenou:
- Chamem o doutor Maturin!
Em a pausa que seguiu, o sacerdote chamou uma menina que estava de pé na proa da lancha. A menina, que não se atrevia a sentar-se porque tinha o vestido engomado, estava tão empoada e com alguns cachos tão perfeitos que não parecia humana e tinha na mão um ramo de flores tão grande como ela. Era uma tarefa bastante difícil subi-la a bordo, pois resistia a largar as flores e a fazer qualquer movimento que pudesse apertar seu esticado vestido vermelho, mas por fim os marinheiros lograram realizá-la. Então ela, com os olhos fixos no padre Andros, disse o discurso de homenagem a Jack e ao final lhe entregou com desânimo o ramo de flores. Enquanto isto havia ocorrido, os marinheiros haviam jogado a âncora da Surprise e, ao carregar a gávea maior, haviam visto que o doutor Maturin estava na cruzeta do mastaréu maior, um lugar alto demais para seus dotes. Passara a maior parte da tarde sentado no amplo e confortável cesto da gávea do maior com a esperança de ver uma águia manchada, um dos tesouros dessa costa, e foi recompensado por sua paciência com nada menos que duas delas, que haviam passado voando tão baixo que ele quase pudera olhar-lhes aos olhos, mas, ao ver que a gávea reduzia o espaço que podia abarcar com o olhar, havia subido lentamente até esse perigoso lugar com a energia que a frustração e a satisfação lhe haviam produzido, sem deixar de olhar para o céu. Da cruzeta pudera ver perfeitamente bem as aves, mas fazia tempo que se haviam afastado, fazia tempo que haviam subido ao alto do céu voando em círculos e haviam desaparecido entre as etéreas nuvens, e desde então quebrava a cabeça para encontrar a maneira de descer dali. Quanto mais olhava o vazio que tinha debaixo, achava mais difícil acreditar que havia chegado até a cruzeta e se agarrava mais fortemente na base do mastaréu e a qualquer cabo que estivesse à mão. Sabia que se atuasse com a firmeza própia dos homens e se pegasse nos cabos acertadamente, ainda que com os olhos fechados, era provável que tanteando com os pés pudesse encontrar um lugar onde apoiá-los, mas saber disso não havia tido nenhum resultado na prática, não lhe havia feito se decidir a agir, só lhe havia induzido a refletir sobre a vontade humana e a verdadeira natureza da vertigem.
No final da cerimônia com as flores, Jack seguiu o significativo olhar do primeiro oficial e percebeu a situação. Beijou a menina, deu o ramo de flores ao seu timoneiro e lhe disse:
- Bonden, suba na exárcia e ate o ramo de flores no tope do pau maior, e quando descer, mostre ao doutor qual é a forma mais conveniente de chegar ao convés. Além disso, cumprimente-lhe de minha parte e diga-lhe que eu gostaria vê-lo na cabine.
Quando Stephen desceu, a coberta estava cheia de habitantes de Kutali de diversos tipos (católicos, ortodoxos, muçulmanos, judeus, cristãos da Armênia e coptas), sorridentes e com presentes nas mãos, e outros muitos se aproximavam em pequenas lanchas. E quando chegou à cabine, viu como estava cheia de fumaça de tabaco de Cefalonia. No centro estava o cachimbo de água bolbulhando, e ao redor dele estavam o capitão Aubrey, o padre Andros e o bei Sciahan sentados em almofadas, ou melhor, nos travesseiros dos tripulantes da Surprise cobertos com bandeiras de sinais, bebendo café em xícaras de porcelana de Wedgewood. Todos lhe deram cordiais boas-vindas e lhe ofereceram uma boquilha de âmbar para que fumasse.
- Temos muita sorte - disse Jack, - porque, se não hei entendido mal, os homens do bei encontraram um enorme urso e vamos caçá-lo amanhã.
Em uma carta que escreveu na Surprise nas imediações de Trieste, o capitão Aubrey contou:
De fato, minha querida, era um enorme urso, e se houvéssemos sido um pouco mais valentes, agora você teria sua pele. Nós o encurralamos, e então ele ergueu seu corpo sumamente peludo (tinha uns sete ou oito pés de altura) e apoiou a costas contra uma rocha, com sua boca vermelha cheia de espuma e com os olhos brilhantes (se parecia com o almirante Duncan). Podíamos tê-lo matado com os rifles, mas Stephen disse que um urso era como um cavalheiro e que havia que matar-lhe com uma lança. Nós dissemos que estávamos de acordo, mas que nos dissesse como podíamos fazê-lo. Então respondeu que não, porque do único que tinha que ocupar-se era de evitar que abusássemos do urso, e, além disso, que era um guerreiro que devia ter a honra de matá-lo, não um homem de paz. Isso era inegável, mas o problema era que guerreiro o mataria. Eu pensava que o Bei tinha a precedência, porque sua patente era superior, mas ele disse que isso era uma bobeira e que, conforme as normas de cortesia, devia ceder seu posto para um estrangeiro. Enquanto discutíamos, o urso voltou a ficar em quatro patas e entrou lentamente em um pequeno vale povoado de arbustos que ficava do outro lado da rocha, um lugar pelo qual era muito difícil de persegui-lo. Finalmente, um entrometido sugeriu que Sciahan e eu o caçássemos juntos, e não pudemos negar. Garanto que passamos um longo tempo avançando com dificuldade por entre os malditos arbustos com a lança na mão ou agachados olhando ao nosso ao redor na escuridão com a esperança de que o urso aparecesse a qualquer momento (era tão corpulento como um cavalo de carga, mas de pernas mais curtas). Os únicos cachorros que restavam vivos eram os mais cautelosos, os que estavam muito mais atrás que nós, e ordenamos que os recolhessem para que seus latidos não nos impedissem de ouvir o urso. Seguimos andando devagar, aguçando o ouvido, e te asseguro que nunca em minha vida havia sentido tanto medo. De repente, Stephen, agitando seu chapéu gritou: "Vá!", imediatamente vimos o urso a um quarto de milha de distância, subindo a ladeira como uma gigantesca lebre. Então tivemos que deixar de persegui-lo, porque eu tinha que voltar para a fragata, mas esse dia de caçadas, inclusive com uma má matilha, levantou-me o ânimo. E o mesmo fez uma escaramuça que sustentamos na noite seguinte, quando passávamos perto de Corfú. O decidido oficial ao comando das tropas francesas da ilha, um tal general Donzelot, fez com que numerosos homens saissem do porto em várias lanchas para que se apoderassem de um ou dois dos barcos de nosso comboio. Seus homens não tiveram êxito, e ninguém ficou ferido, mas passamos a noite muito agitados, e com tanta agitação, um dos mercantes chocou-se contra nossa fragata quando foi empurrado por uma rajada de vento e lhe arrancou o botaló. Estou contente de estar nestas águas relativamente tranqüilas, onde há muitos barcos amigos que podem nos proteger: três fragatas e pelo menos quatro corvetas. Acabamos de chegar, e ainda não tive tempo de ver seus capitães, nem sequer a Hervey, o oficial da marinha de mais antiguidade, porque estará em Veneza até amanhã. Mas Babbington, que está aqui na Dryad, mandou uma mensagem em que me convidava para jantar quando ainda não haviamos jogado a âncora. Também está aqui o jovem Hoste. É um oficial diligente que progrediu muito, e eu gostaria de simpatizar com ele, mas se parece com Sidney Smith, é um pouco convencido e teatral. Além disso, queima muitas presas pequenas, o que não o beneficia nem prejudica aos franceses, mas arruina aos pobres homens que as tripulam e a seus propietários. Henry Cotton também se encontra aqui, na Nymphe. Estava em terra quando chegamos, mas seu cirurgião (a quem provavelmente se recordará, pois é o senhor Thomas, aquele cavalheiro tão falador que foi visitar Stephen quando estava em nossa casa) veio pedir ao doutor Maturin que o ajudasse a fazer uma operação muito delicada. Me disse que agora há uma via para transportar a correspondência por terra que passa por Viena e que é bastante segura. A situação nesta zona é muito confusa. Os oficiais ao comando das tropas francesas são competentes, enérgicos e astutos, e me parece que nossos aliados… Mas talvez deveria deixar este tema agora. Na verdade, querida, tenho que deixar de escrever também, porque ouvi que a falua de Harry Cotton se abordou com a fragata, ouvi a voz escandalosa de seu velho timoneiro, que parece a de uma ninfa asmática, gritar: "Nymphe! Nymphe!"".
Na Nymphe, o doutor Maturin se inclinou sobre seu paciente, que tinha a cara amarelada e brilhante e uma expressão de horror.
- Já passou tudo - disse. - Se Deus quiser, ficará bem.
Depois, voltando-se para seus companheiros, disse:
- Já podem desamarrá-lo.
- Obrigado, senhor - sussurrou o paciente quando Stephen tirou de sua boca o pedaço de alcochoado forrado de pele. - Agradeço muito o esforço que fez.
- Eu li a descrição da operação - disse o cirurgião da Cerberus, - mas nunca pensei que pudesse fazê-la tão rápido. Parece que fez um ato de prestí… prestidigitação.
- Admiro seu valor, senhor - disse o cirurgião da Redwing.
- Venham, cavalheiros - disse o senhor Thomas. - Acredito que merecemos uma taça.
Foram para a deserta câmara dos oficiais e o senhor Thomas lhes ofereceu vinho de Tokay.
- O outro caso é muito comum - disse o senhor Thomas depois de ter falado um pouco de Malta e do bloqueio de Toulon. - Há anos o paciente tem uma bala alojada no corpo, que lhe dispararam com uma pistola, e agora, por ter feito um grande esforço físico, causa-lhe dor. Está alojada justo na borda do músculo subescapular, de modo que o único interesse que tem para um experientado cirurgião é que se encontra no corpo de um herói de romance.
- Ah, é? - perguntou Stephen, porque pensava que era necessário dizer algo e se dera conta de que nenhum dos outros tinham intenção de dizer nada.
- Sim, senhor - respondeu Thomas. - Mas deixem-me começar pelo início.
O pedido do senhor Thomas parecia razoável; contudo, seus amigos, que já haviam ouvido a história antes e haviam visto o doutor Maturin fazer a cistostomia suprapúbica, beberam o vinho de Tokay e se foram, e Maturin assentiu com um sorriso forçado.
- Então, senhor, faz algum tempo, quando estávamos nas imediações de Pula navegando com rumo sudoeste com um vento fraco que soprava do norte, pela manhã muito cedo, ou talvez seria melhor dizer ao final da noite, bem antes de que chamassem os preguiçosos; e a propósito disto, é absurdo que lhes chamem de preguiçosos, tão absurdo como dizer que o oficial de derrota, o contador e o cirurgião não são combatentes. Quando eu estava no navio de linha Andrômeda e era ajudante de cirurgião ou, como dizem atualmente, assistente, e me parece que este nome é mais apropriado, porque "ajudante", por levar em si a idéia de familiaridade, não é adequado para designar a um membro de uma profissão nobre… Participei mais vezes que os guardas-marinhas em operações para sacar barcos de portos inimigos, para inspecionar a costa na iole, da qual tive o comando em duas ocasiões, ou na barcaça. Mas, como lhe dizia ou tentava dizer, esse tempo entre a noite e o dia, que é o melhor tempo, se o vento não é muito forte, tão forte que não permita levar desdobradas as sobrejoanetes, para pescar os peixes que nesta região chamam scombri e que, em minha opinião, são da mesma família da cavala, ainda que a carne é mais delicada. E eu estava ali inclinado sobre o coroamento com a vara de pescar na mão, depois de jogar para um lado da esteira o anzol, no qual havia posto um pedaço de pele de bacon recortado em forma de enguia, ainda que alguns dizem que se podem pegar muitos mais peixes enganchando-lhe um trapo vermelho, mas eu confio no pedaço de pele de bacon. Mas isso sim - disse, levantando o dedo indicador, - tem que estar molhada. Depois que a casca passa vinte e quatro horas submergida na água em um recipiente fundo, quando se torna branca e flexível, não há nada como isso para atrair os peixes grandes. E o tenente de infantaria estava do meu lado, esperando pescar algum peixe para o desjejum dos oficiais... Como melhor sabem é cozinhados em uma grelha quente untada com azeite, garanto, porque os molhos elaborados e os aparatos persas lhes tiram seu autêntico sabor. Pois ainda não havia picado nem um só peixe quando Norton disse: "Quieto!" ou "Silêncio!" ou algo parecido. Devia ter lhe dito que Norton era o infante de marinha. Chama-se William Norton e procede de uma família de Westmorland aparentada com os Collingwood. Pois Norton disse: "Escute! Não ouve disparos de mosquetes?".
Eram disparos de mosquetes, conforme disse o senhor Thomas, e, depois de repetir o que o oficial de guarda dissera e de contar que no início ele era céptico mas ao final havia se convencido disso e havia mandado mudar a Nymphe de bordo, contou que quando o sol aparecera sobre o horizonte pelo leste, viram um lugre que levava a reboque o esquife, que, sem dúvida, acabara de capturar, e que começaram a persegui-lo e que quando a claridade aumentara e haviam visto a bordo do lugre vários homens com o uniforme da armada francesa, avançaram com mais rapidez. Acrescentou que muito cedo perceberam que a quilha da presa formava com a direção do vento um ângulo menor que a da Nymphe, que tinha aparelho latino, e de que, por isso, poderia dobrar o cabo Promontore, e a fragata, em troca, não. Ao chegar a esse ponto, desviou-se da narração e fez algumas considerações sobre a navegação, como por exemplo, qual era a diferença entre o aparelho latino e o de velas áuricas e que vantagens teria a combinação de ambos os aparelhos, e contou de que forma um amigo seu havia medido a verdadeira força dos moinhos de vento, e Stephen deixou de prestar atenção até que o ouviu dizer:
- Bem, para abreviar o relato, quando o lugre estava a um cabo de distância do cabo, seu velacho caiu, e, naturalmente, orçou de imediato. Então vimos a um tipo saltando pela coberta como o boneco de uma caixa surpresa e derrubando homens por todos os lados. Não pude ver o que se passou no último momento porque o capitão mandou me dizer que largasse a vara de pescar e fosse vê-lo com urgência, com a desnecessária urgência com que os marinheiros sempre pedem que se façam as coisas. A propósito! No dia seguinte, quando tinha que tomar seu remédio, a poção negra, acrescentei sem escrúpulos um pouco de pó de pepininho amargo, ah, ah, ah! E que bom é o pepininho amargo para provocar fortes cólicas e diarréia! Não achou engraçado, senhor?
- Sim, muito engraçado, colega.
- Quando regressei ao convés, a fragata estava em pairo e nossa lancha se afastava do lugre, que ao final fora capturado. Já a bordo da lancha estava ele, rindo e cumprimentando seus amigos, que estavam inclinados sobre a borda e davam vivas.
- A quem se refere, colega?
- Ao boneco da caixa surpresa, é claro. Ele ria porque havia escapado das garras dos franceses e cumprimentava seus amigos, os oficiais, porque estivera de serviço nesta fragata antes de ser capturado. Fora o terceiro a bordo da Nymphe e ainda havia a bordo muitos dos oficiais que eram seus companheiros de tripulação. Por isso lhe disse que era um herói de romance. Escapou de uma prisão francesa, saiu para alto mar em um bote de remos com a esperança de encontrar a fragata inglesa que, conforme ouvira, cruzava as águas que rodeavam o cabo, foi capturado por uma das patrulhas francesas quando já via as gáveas de nossa fragata recortar-se sobre o céu e ao final foi resgatado por sua própia fragata. Esqueci de dizer que foi ele que cortou a adriça do velacho do lugre para que caísse. Foi resgatado por sua própia fragata! Se estes fatos não são novelescos, não sei o que é um romance.
- Sem dúvida, não admite comparação com Bevis de Hampton. E esse é o cavalheiro que vamos operar, não é? Alegro-me. Sempre pensei que um homem com ânimo se cura antes dos outros, e ainda que extrair-lhe a bala não parece uma operação perigosa, quanto mais vantagens tenhamos, melhor.
- De fato - disse Thomas, em tom preocupado. - talvez deveria ter-lhe operado antes, quando estava alegre. Há dias está desanimado e sente uma mistura de tristeza e raiva, e quis enforcar-se quando um estúpido que, como todos nós, conhecia o rumor que circula por Valletta lhe disse que era um… - disse e logo fez uma pausa enquanto dirigia uma olhar significativo para Stephen. - Ele lhe disse que sua mulher não tivera um comportamento decente. O senhor já sabe o que quero dizer e com quem o há feito. Espero que perder um pouco de sangue lhe faça resignar-se. Depois de tudo, muitos homens sofreram a mesma desgraça e a maioria deles sobreviveu.
Stephen não sabia o que Thomas queria dizer, mas não se preocupou com isso e simplesmente perguntou:
- Já o preparou?
- Sim. Eu lhe disse que jejuasse e lhe dei três dracmas de mandrágora.
- A mandrágora… - Stephen começou a dizer com desprezo, mas nesse momento chegou um infante da marinha e o interrompeu.
- O senhor Fielding lhes apresenta seus respeitos - disse o infante da marinha. - Quer saber quando o vão abrir e diz que faz mais de uma hora que os está esperando na enfermaria.
- Diga-lhe que iremos imediatamente - disse o senhor Thomas. - Que inconvenientes encontra na mandrágora, colega?
- Nenhum - respondeu Stephen. - Era Charles Fielding o homem de que o senhor falava? O tenente de navio Charles Fielding?
- Sim. Não se recorda que eu disse? Charles Fielding, o esposo da dona do cachorro que gosta tanto do capitão Aubrey. Não adivinhou? Não entendeu o que queria dizer? Que estranho! Mas agora devemos guardar silêncio.
Entraram na enfermaria, e ali de pé debaixo da intensa luz que entrava pelo gradeado do teto, olhando para fora pelo escotilhão, estava um homem moreno e corpulento que parecia ter saído do quadro que havia no dormitório de Laura Fielding e usava inclusive uma calça de riscas como a do quadro. O senhor Thomas fez as apresentações de rigor, e o senhor Fielding, cortesmente, perguntou: "Como está senhor?", e fez uma inclinação de cabeça, mas era evidente que não prestava atenção. Também era evidente que algo, quer fosse a mandrágora que o senhor Thomas lhe dera ou o rum que bebera por sua própia vontade, surtira efeito, pois tinha a voz embaçada e havia pronunciado as palavras com pouca clareza. Stephen nunca vira nenhum homem alegre quando ia se deitar em uma mesa de operações ou em um baú, ou sentar-se em uma cadeira para ser operado, sabia que até o mais valente se opunha a que lhe fizessem incisões a sangue frio e que a maioria dos marinheiros acrescentavam o que podiam à dose oficial de remédio. Contudo, o senhor Fielding não havia exagerado, como muitos pacientes que tinham meios para fazê-lo, e ainda era dono de si mesmo. Depois que tirou a camisa, aceitou com resignação que lhe atassem os braços (disseram que o motivo era que se fizesse algum movimento involuntário, poderiam cravar-lhe o bisturi em uma artéria ou cortar-lhe algum nervo), sentou-se e, apertando as mandíbulas, olhou desafiante ao seu redor.
A bala estava mais profunda do que Thomas supunha, e apesar de que Fielding só proferiu um ou duas lamúrias enquanto eles tentavam tirá-la das costas, ofegava e suava copiosamente quando terminaram. Depois que costuraram sua ferida e soltaram seus braços, Thomas lhe disse:
- Deve permanecer aqui um pouco. Mandarei meu ajudante para que lhe faça companhia.
- Eu farei companhia ao senhor Fielding com muito prazer - disse Stephen. - Gostaria que me contasse como fugiu da França quando tenha se recuperado.
O senhor Fielding se recuperou muito rápido com café forte e quente. Depois de beber a segunda xícara, estirou o braço para pegar sua casaca, tirou de um bolso um pedaço de pudim de passas frio e o devorou em um instante.
- Peço que me desculpe - disse, - mas passei tanta fome durante os últimos meses que sempre tenho que ter por perto algo de comer.
Então, em voz mais alta, chamou ao ajudante do cirurgião e lhe pediu que trouxesse uma garrafa de sua cabine. O ajudante era um homem velho e autoritário a quem os marinheiros admiravam por seus conhecimentos médicos, e como era proibido beber na enfermaria, vacilou e olhou para Stephen, mas a expressão grave de Fielding se fez austera e aterradora, e sua voz adquiriu o tom da de um tenente exigente, um tenente capaz de acompanhar suas ordens com um soco, e era evidente que era um homem de caráter violento. A garrafa chegou, e Fielding, depois de oferecer uma taça para Stephen, tomou uma considerável quantidade de álcool de uma vez em duas ocasiões seguidas.
- Isso é o bastante por agora - disse Stephen, tirando-lhe a garrafa. - Não pode se permitir perder mais sangue, porque está muito fraco. Estou seguro de que fez uma viagem muito longa e difícil.
- Se houvesse avançado em linha reta todo o tempo - disse Fielding, - a distância que percorrida não teria sido muito grande, e provavelmente qualquer correio a percorreria em menos de uma semana. Mas meus companheiros e eu tivemos que fazer a viagem escondendo-nos de dia e caminhando de noite, geralmente por caminhos secundários ou pelo campo, e nos perdíamos amiúde, de modo que demoramos mais de dois meses. Setenta e seis dias, para ser exato.
Falara com desânimo e havia se interrompido como se não quisesse continuar falando. Os dois ficaram em silêncio alguns minutos, enquanto a fragata balançava suavemente e a trêmula luz do sol, que refletida no mar, iluminava o teto. Stephen pensou que esse tempo, dois meses e meio, coincidia com o transcorrido desde que Laura havia recebido a primeira das cartas que a haviam preocupado tanto, a primeira das cartas com a letra falsificada.
- Quanto às dificuldades… - continuou Fielding por fim. - Sim, foi uma viagem difícil. Quase sempre o único que tínhamos para comer era o que caçávamos furtivamente ou o que roubávamos, e nas altas montanhas, nem mesmo isso. E quanto à umidade e ao frio… Wilson morreu no Trentino depois de passar dois dias debaixo de uma tormenta de neve, e um pé de Corby congelou e desde então andava coxeando. Eu tive sorte.
- Se não lhe desagrada, queria que me contasse com detalhes a sua fuga - disse Stephen.
- Muito bem - disse Fielding.
Contou que estivera encarcerado na fortaleza de Bitche, um lugar reservado para os prisioneiros de guerra rebeldes ou que escapavam de Verdún, e que a maior parte do tempo estivera isolado, porque na tentativa de fuga havia matado a um gendarme, mas que por causa de uma parte do castelo ter se queimado e terem que realizar trabalhos de reconstrução, haviam-no metido na cela de Wilson e Corby. Disse que naqueles dias havia muita desordem na fortaleza, sobretudo porque o comandante acabava de ser substituído por outro, e que os três haviam decidido tentar fugir de novo, e acrescentou que nas tentativas anteriores, que haviam feito separadamente, tentaram chegar ao Canal ou aos portos do mar do Norte, mas que haviam combinado que dessa vez iriam por outro lado, que avançariam para o leste para atravessar a Áustria e chegar ao Adriático. Acrescentou que tinham que fazer a tentativa rápido, enquanto os operários e os materiais para a construção estivessem ainda no castelo, e que Corby, que era o oficial de mais antiguidade e dominava o alemão, dissera à maioria dos outros oficiais que eles três iam tentar escapar. Disse que alguns dos oficiais os haviam ajudado muito, porque lhes haviam proporcionado mapas que desenharam de memória, um telescópio de bolso, uma bússola bastante exata, um pouco de dinheiro e, sobretudo, várias peças de roupa, inclusive algumas roupas íntimas, para que se as pusessem em cima das suas, e um grupo havia armado um alvoroço junto à muralha interior na noite escura e atroz em que os três haviam passado por cima da muralha exterior e depois haviam recolhido a corda e a haviam escondido. Disse que haviam caminhado por toda a noite, tão rápido como podiam, em direção ao Rin, com o propósito de atravessá-lo por uma ponte de botes para chegar ao caminho que levava a Rastatt, e que, apesar de não terem chegado à ponte até o meio-dia do dia seguinte, tiveram muita sorte, já que quando estavam em um bosquezinho, olhando para o extremo da ponte para ver o que os sentinelas faziam, havia se aproximado uma procissão integrada por centenas de pessoas com ramos verdes nas mãos que formavam vários grupos, e quando os homens que iam na frente com as bandeiras começaram a atravessar a ponte, eles apanharam alguns galhos e se meteram dissimuladamente na multidão e cantaram o melhor que puderam e aparentado que sentiam fervor. Acrescentou que haviam atraído a atenção de poucas pessoas, já que a procissão era formada por habitantes de diferentes povoados, e que quando alguém lhes falava, Corby respondia e ele e o outro oficial cantavam. Disse que haviam cruzado a ponte com um grande grupo detrás e que Corby havia seguido até a cidade, onde havia comprado pão integral de centeio e charque, e que pareciam pessoas respeitáveis porque usavam suas excelentes casacas azuis, das quais haviam tirado todos os galões, mas que Corby fora interrogado quando regressava da cidade, ainda que, afortunadamente, por um recruta simples e fácil de impressionar e enganar, por que se haviam informado de que os militares procuravam três oficiais ingleses, e que devido a isso, haviam permanecido escondidos no bosque mais ou menos uma semana, avançando somente durante a noite, e que ao final desse período, como houvera mau tempo e haviam adormecido na terra e haviam escorregado no lodo e haviam caído em centenas de charcos, pareciam vagabundos e despertavam suspeitas. Acrescentou que, apesar de que se asseavam o máximo possível e se barbeavam, pois tinham uma navalha, todos os cachorros lhes ladravam, e que, se por casualidade, se encontravam com algum camponês e Corby o cumprimentava, o homem lhes olhava com assombro e medo, e que por isso não se atreviam a se aproximar de nenhum povoado. Disse que haviam seguido avançando dessa maneira para o sudeste muito mais devagar do que esperavam, e que durante semanas e semanas o único que haviam encontrado para comer haviam sido nabos, batatas, milho tenro e pequenos animais de caça, e que se haviam debilitado por causa disso e da incessante chuva. Admitiu que em várias ocasiões haviam sido perseguidos, uma ou duas vezes pelos guardas-florestais, mas quase todas pelos camponeses, porque se haviam metido em seus imóveis para roubar, e pelas patrulha, porque haviam ouvido dizer que estavam em determinado lugar. Além disso, disse que haviam tido medo em todo momento durante a viagem e que todos tinham uma expressão austera e sentiam um profundo ódio não só por seus perseguidores, mas também por qualquer um que pudesse trair-lhes, e confessou que haviam estado a ponto de matar dois meninos que encontraram seu esconderijo por casualidade. Finalmente, disse que o ódio havia impregnado as relações entre os três de tal maneira que havia provocado acaloradas disputas e havia aumentado, se era possível, sua tristeza durante as últimas semanas da viagem. Falara com uma emoção tão profunda que por seu gesto austero algumas vezes e impassível em outras, Stephen, nunca teria suspeitado que pudesse sentir.
- Não sei como pôde suportar - disse quando Fielding chegou ao ponto do relato em que haviam percebido que estavam perdidos.
Fielding disse que depois de passar dois dias subindo e descendo trabalhosamente várias montanhas peladas sem ter o que comer, ao final haviam avistado um vale, mas que nele não haviam visto o posto austríaco que esperavam encontrar senão uma bandeira tricolor, pois estava na parte da Itália ocupada pela França. Acrescentou que no centro do vale se alçava uma fortaleza e não havia por perto nenhum povoado, nenhuma fazenda e nenhuma cabana de pastor, e que, por isso, não havia nenhum lugar onde se refugiar.
- Eu sentia que um… um estranho sentimento me alentava a seguir - disse Fielding, - e haveria percorrido o dobro dessa distância se meus pés o houvessem aguentado. E acredito que o mesmo ocorria aos outros. Quando penso que suportaram em vão tantas penalidades, acho que não há justiça no mundo, garanto. Não temos motivos para achar que suas mulheres são prostitutas.
- O que ocorreu ao senhor Corby?
- Ele foi morto. Fomos perseguidos por uma patrulha de soldados de cavalaria quando faltavam três dias para terminar a viagem, quando estávamos muito perto da costa e avistávamos os barcos. Não podia correr, e os soldados o destroçaram apesar de não estar armado. Eu me escondi em um pântano cheio de juncos altos com a água até aqui.
Fez uma pausa e pouco depois, com voz apagada, disse:
- Eu fui o único que restou. Não lhes dei sorte. A menos que considere este caso do ponto de vista profissional, penso que teria sido melhor que ficasse em Bitche, e ainda desse ponto de vista… de toda maneira, não vou voltar correndo para Malta para buscar um barco.
As últimas palavras Fielding as dissera como se falasse consigo mesmo, mas Stephen pensou que, apesar disso, era necessário responder.
- Tive a honra de ser apresentado à senhora Fielding, e ela teve a amabilidade de convidar-me para as veladas musicais que se celebram em sua casa.
- Oh! - exclamou Fielding. - Ela tem tanto talento para a música! Talvez esse fosse o problema. Eu nem sequer posso tocar Deus salve ao Rei com um apito de um penique.
O capitão Aubrey e o capitão Cotton, da Nymphe, haviam navegado juntos quando eram guardas-marinhas e inclusive antes, quando eram simplesmente cadetes, tenros pombinhos que não eram úteis para nada, e haviam sido inscritos no rol do Resolution com a classificação de serventes do capitão. Não se tratavam com cerimônia aos doze anos, e não se haviam tratado muito mais formalmente à medida que haviam subido de categoria. Agora Jack acabava de conduzir ao seu amigo para sua cabine e se assombrou ao ver que tinha uma expressão preocupada e envergonhada de uma vez e que se esquivava de seu olhar.
- Algo lhe preocupa, Harry? Está enfermo? Está incômodo?
- Oh, não! - respondeu o capitão Cotton com um sorriso artificial. - Nada disso.
- Então, o que tem? Está com uma cara como se lhe houvessem pegado falsificando o rol ou ajudando aos inimigos do Rei.
- A verdade, a pura verdade é que tenho que lhe dar uma má notícia, Jack. Charles Fielding, que estava prisioneiro em Verdún e depois em Bitche, Charles Fielding, que faz algum tempo foi terceiro a bordo da Nymphe e depois segundo da Volage, escapou. Nós o recolhemos diante do cabo Promontore há vários dias e está a bordo de minha fragata neste momento.
- Se há escapado? - perguntou Jack. - Quanto o admiro por isso! Escapar de Bitche! Que jogada! Alegro-me muito de que o haja conseguido. Mas, diga-me, qual é a má notícia?
- Oh! - exclamou Cotton, ficando vermelho de vergonha. - Pensava que… Todo mundo diz que… Todos acreditam que você e a senhora…
- Oh! - exclamou e se passou a rir. - É por causa desse maldito cachorro. Isso não é verdade, desgraçadamente. É um disparate, é só uma fofoca de Valletta. Com muito gosto o levarei para Malta. Partimos amanhã, assim que diga-lhe que se vier a qualquer hora antes que zarpemos, poderá chegar a Malta mais rápido que em qualquer outro barco. Escreverei uma nota para ele agora mesmo - disse, aproximando-se de sua escrivaninha.
A resposta a essa nota chegou da Nymphe pouco antes que Stephen entrasse na grande cabine.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack. - Suponho que sabe que o esposo de Laura fugiu e está a bordo da Nymphe.
- Sim, sei - disse Stephen.
- Há ocorrido algo horrível - disse Jack. - Parece que um maldito estúpido lhe disse que eu era o amante de sua mulher. Cotton esteve aqui faz pouco e me disse. Imediatamente o neguei, claro, e para que minha negativa fosse convincente, mandei uma nota para Fielding na qual me oferecia a levar-lhe para Valletta, pois se não for conosco, demrará mais de um mês em chegar ali. Não tive tempo de pedir sua opinião - disse em tom de angústia, escrutinando o rosto de Stephen, - mas me pareceu que era o que devia fazer, o mínimo que podia fazer, e que tinha que fazê-lo imediatamente. E lhe ofereci minha cabine-refeitório, o que, em minha opinião, foi um ato generoso. Mas esta é sua resposta.
- Fizeste bem em oferecer-te - disse Stephen enquanto pegava a nota. - E não havia necessidade de pedir minha opinião, meu amigo. Às vezes supervaloriza minhas ações. Não havia nenhuma necessidade… - murmurou e imediatamente leu: - "O senhor Fielding acusa recebimento da carta do capitão Aubrey com data de hoje, mas lamenta não poder aceitar a oferta que lhe faz, e espera encontrar-se com ele em Malta dentro de pouco tempo". Eu sinto muito.
Ainda que Jack conhecesse Stephen muito bem, não entendia o que queria dizer nem sabia por que razão lamentava tanto.
- Hei operado a esse cavalheiro esta manhã e depois estive falando com ele um tempo - disse Stephen depois de alguns momentos. - Ainda que lhe conviria mais regressar conosco, não acho que a persuasão tenha um bom resultado, pelo contrário. Mas seremos nós os primeiros em dar a notícia da fuga do senhor Fielding em Valletta, né?
- Certamente! Ainda que, como Babbington nos acompanhará nessa maldita carraca, provavelmente não poderemos desdobrar as sobrejoanetes nem as joanetes em nenhum momento, nenhum outro barco partirá daqui até que não chegue o próximo comboio.
Ficaram em silêncio, cada um muito distante do outro. Jack havia se batido em seus tempos, mas não gostava dos duelos então, e muito menos agora, porque quase sempre se usavam pistolas, que eram mais perigosas que as espadas. Achava-os absurdos e atrozes, e pensou que não tinha desejo de converter Laura Fielding em uma viúva, e ainda menos a Sophie.
- A falua está preparada, senhor, com sua licença - disse Bonden com seu vozeirão de marinheiro, rompendo o silêncio da cabine.
- A falua? - perguntou Jack, interrompendo suas meditações.
- Sim, Sua Senhoria - respondeu Bonden cortesmente. - Tem que estar a bordo da Dryad dentro de cinco minutos para almoçar com o capitão Babbington.
CAPÍTULO 10
Poucos animais marinhos gostavam tanto de Stephen Maturin como os delfins, e no estreito de Otranto havia montes deles. Desde que terminara a ronda passara a observar um grupo que acompanhava a fragata desde a ponta da proa, inclinado sobre o mascarão. Os delfins, saltando juntos, passavam perto do lado de bombordo, o lado iluminado pelo sol, até chegar à esteira, e, depois de brincar um pouco nela, iam para frente outra vez. Às vezes, ao passar nadando junto à fragata, roçavam o costado e inclusive o quebra-mar, mas a maior parte do tempo saltavam, e Stephen podia ver suas caras risonhas fora da água. O mesmo bando, no qual havia dois delfins muito gordos e com muita manchas, havia aparecido várias vezes antes, e Stephen estava convencido de que notavam sua presença e agitava a mão no ar cada vez que saiam da água porque tinha esperanças de que o reconhecessem e inclusive simpatizassem com ele.
Os delfins não tinham que esforçar-se muito, pois o vento era fraco e a Surprise, navegando para o sul-sudoeste com poucas velas desdobradas, apenas alcançava uma velocidade de cinco nós. Por outro lado, sua lerda companheira, a Dryad, avançava trabalhosamente e tinha desdobradas todas as velas que podia levar estendidas para poder manter-se em seu posto. Ambas embarcações navegavam de modo que podiam vigiar uma grande extensão do mar, já que havia muita probabilidade de que se encontrem com barcos corsários inimigos no sul do mar Adriático e o norte do mar Jônico (ali haviam sido atacados muitos barcos britânicos que navegavam sem companhia e alguns comboios pequenos) e alguma possibilidade de que se encontrem com barcos de guerra franceses ou venezianos, ou com algum mercante com um valioso carregamento que fosse uma presa legal. O capitão da corveta Dryad estava tão ansioso de conseguir a glória e butins como qualquer outro da Armada, mas a corveta, que era pequena e muito baixa, não subia facilmente com as ondas, sobretudo com aquelas tão grandes que chegavam pela amura de estibordo, que eram claros indícios de tormenta no Mediterrâneo ocidental. Às vezes a velas baixas se punham flácidas quando a corveta caía nos seios que se formavam entre as ondas, e às vezes se inchavam tanto quando subia que introduzia a proa na crista das ondas e as verdes águas saltavam até o castelo, espalhavam-se pelo convés e chegavam à cabine do capitão. A Surprise, em troca, subia com as ondas como se fosse um cisne, e às vezes, quando descia seios muito profundos entre ondas muito altas, Stephen podia ver os delfins nadar dentro das enormes massas de água transparente tão bem como se estivesse olhando-os através das paredes de um imenso tanque. Se havia colocado nesse lugar quando o sol se encontrava a certa distância do horizonte pelo leste, e havia permanecido ali, recostado comodamente, às vezes refletindo e outras simplesmente olhando para o mar, açoitado por cálidas rajadas de vento, enquanto o gurupés, que ficava justo acima de sua cabeça, rangia por causa do cabeceio da fragata e dos puxões da estai do trinquete. Ainda estava nesse lugar quando se haviam feito as medições do meio-dia, quando haviam chamado aos gritos aos marinheiros para almoçar e quando havia soado o agudo apito que indicava que era a hora de pegar o grogue, e teria ficado ali indefinidamente se não lhe houvessem chamado. Há tempos decidira como resolver o problema que a aparição de Fielding havia apresentado e pensava que apesar de que a notícia chegaria com a Surprise, seria preciso agir com rapidez. Teria que se abrir com o almirante e com Wray e lamentava, mas pensava que esse era o preço que tinha que pagar para pegar os agentes secretos franceses mais importantes que havia em Malta. Faria que Laura marcasse um encontro com seu enlace, e provavelmente ele os levaria aos outros espiões. Mas antes que os pegassem, tinham que trasladar Laura para um lugar seguro, pois provavelmente escapariam alguns descontentes malteses que eram agentes secretos sem importância. Havia pensado no que diria para desculpar Laura ante o almirante e não temia que Wray adotasse uma atitude intransigente por razões morais. Essa decisão pertencia ao passado, pois no presente Stephen estava extasiado com a limpidez do ar quente, o brilho da luz e o rítmico movimento da fragata enquanto sulcava o mar azul verdoso. O sol já passara o zênite e havia se deslocado dois palmos para o oeste, e a vela de estai dava sombra a Stephen quando Calamy, muito bem penteado e com uma camisa com peitilho, chegou à proa e perguntou:
- Que ocorre, senhor? Não se esqueceu que o capitão foi convidado para almoçar com o senhor, né?
- E o que devo fazer? - perguntou Stephen. - Devo entreter ao capitão com adivinhações, jogos de palavras e piadas?
- Vamos, senhor, o senhor já sabe que o capitão está convidado a almoçar na câmara dos oficiais. Só dispõe de dez minutos para se trocar. Não há nem um minuto a perder.
E quando acompanhava Stephen da popa, disse:
- Eu também vou. Será uma refeição divertida, né? Foi divertida, mas no início o capitão estava muito sério, e ainda que não estivesse mal-humorado, não falava. No momento em que se sentou junto a Mowett, sentiu uma grande tristeza. Sentia muita falta de Pullings, e quando olhou para os oficiais que conhecia tão bem e que estimava, pensou que aquele grupo se separaria dentro de poucas semanas. Achava que era iminente uma mudança em sua vida, que estava em um momento de transição entre duas etapas, e que as coisas válidas em uma não seriam na outra. Não era um visionário, mas há algum tempo tinha a sensação de que a ordem ia ser substituída pelo caos, de que estava a ponto de ocorrer um desastre, e isso o entristecia.
Tentava consolar-se pensando que a vida na Armada era uma vida de freqüentes despedidas, uma vida em que as tripulações dos barcos se separavam continuamente. Sabia que, em geral, um grupo de tripulantes que iam realizar uma missão juntos, por bem ou por mau, separavam-se quando o barco regressava, ainda que era possível que o capitão retivesse alguns de seus oficiais, seus guardas-marinhas e seus homens de confiança se lhe encomendavam outra missão imediatamente. Por isso pensava que esta separação seria como uma de tantas pelas quais passara, ainda que seria mais dolorosa, já que agora tinha mais apego ao seu barco e à tripulação que em outras ocasiões. À medida que a refeição transcorria, na qual se sucediam excelentes pratos, achava que tinha mais razão. Por outro lado, seus anfitriões, que ignoravam o que pensava e sentiam satisfação porque havia bom tempo e porque Maclean, o novo tenente de infantaria da marinha, oferecia esplêndidas refeições, estavam muito alegres. A boa comida e o bom vinho surtiram efeito, e ainda que a conversa não fosse muito interessante, era amena, e Jack Aubrey tinha que ser um homem de pior humor para não ter desfrutado a refeição e a companhia. Depois que tiraram a toalha de mesa e encheram a mesa de nozes, poucos cantaram o coro com mais entusiasmo que ele quando Calamy, a pedido dos demais e depois de ter perdido a timidez por ter bebido três copos de clarete e um de vinho do porto, com uma voz aguda que contrastava agradavelmente com a voz grave de seus superiores, cantou Nelson at Copenhague:
Com suas estrepitosas e estrondosas,
suas estrondosas e estrondosas
suas ruidosas e estrondosas bombas…
E poucos escutaram com mais atenção que ele a Maclean quando disse:
- Não é minha intenção competir com o senhor Mowett nem com o senhor Rowan, pois não tenho talento para a poesia, mas, como tive a honra de ter-lhes oferecido este almoço, espero que me permitam recitar um poema composto por um cavalheiro escocês meu amigo que é um louvor à geléia de groselha.
Alguns exclamaram: "Certamente!" ou "Naturalmente!". Outros gritaram: "Viva a geléia de groselha!" ou "Atenção, atenção!".
- Refere-se à geléia de groselha do café da manhã, já sabem - disse Maclean e imediatamente começou a recitar:
Muito antes de que enchessem as xícaras, me pus de pé
enquanto o desejo de comer geléia meus olhos fazia brilhar,
e uma fina fatia de pão e uma colher peguei
e com minha habitual tranqüilidade,
com uma grande quantidade de ambrosia untei
suavemente a fatia de pão…
Parou ao ver Williamson, o guarda-marinha de guarda, entrar precipitadamente e aproximar-se do capitão.
- Com sua licença, senhor - disse Williamson. - A Dryad há comunicado que um barco acaba de dobrar o cabo Saint Mary e navega com rumo leste, e parece ser o Edinburgh.
Era o Edinburgh, um potente navio de setenta e quatro canhões ao comando de Heneage Dundas. As duas embarcações, que tinham rumos convergentes, aproximaram-se devagar e se puseram em pairo quando se encontraram, e então Jack foi ao navio para perguntar a Heneage como estava. Heneage respondeu que estava bem, mas que poderia estar melhor se houvesse capturado um barco corsário francês, um barco de vinte canhões com o casco de cor azul celeste, que havia perseguido nesse dia, da alvorada até a tarde, mas que deixara seu navio para trás e havia se posto sob a proteção dos canhões de Tarento. Depois disse que tinha muitas outras notícias que dar-lhe além dessa, e lhe contou que duas terríveis tempestades que houve no golfo de Leão haviam causado graves danos à esquadra que fazia o bloqueio ali e a haviam obrigado a deslocar-se para o porto de Mahón, onde alguns navios ainda eram reparados. Acrescentou que a esquadra francesa não havia saído do porto, mas que se acreditava que alguns de seus barcos haviam escapulido, ainda que ninguém sabia com certeza isso nem quantos eram nem que potência tinham. Acrescentou que, em troca, todos sabiam com certeza que o comandante geral e Harte haviam brigado e que, apesar das causas serem incertas, o efeito era evidente: Harte ia regressar para a Inglaterra. Não sabia se fora exonerado de seu cargo, se arriara sua insígnia e a pisoteara, como alguns diziam, se lhe deram baixa por doença ou se caíra em desgraça, mas estava seguro de que ia regressar para a Inglaterra.
- E Deus queira que fique ali por muito tempo - disse. - Nunca conheci um capitão que tivesse tão pouca habilidade para governar um barco e mandar em seus homens. Ainda que lhe dêem o comando de outro barco, o que poderia ocorrer devido a sua relação com Andrew Wray, não acredito que voltasse a servir na Armada, porque agora é muito rico. Meu primo Jelks, que sabe destas coisas, me disse que é propietário da metade de Houndsdith, que produz anualmente uma renda de nada menos que oito mil libras.
Durante a tarde o vento aumentou de intensidade e pela noite rolou para noroeste e começou a soprar com tanta força que Jack ordenou pôr os mastaréus sobre o convés depois de passar revista. Um pouco antes de que saísse a lua pensou mandar colocar outro rizo nas gáveas, não só porque o vento era muito forte, mas porque soprava perpendicularmente às ondas e agitava o mar de tal maneira que a exárcia da Surprise rangia. Mas esse trabalho teria se perdido, porque antes de que a lua se separasse do horizonte, o serviola do castelo gritou:
- Barco à vista! Barco pela amura de bombordo, a trinta graus pela amura de bombordo!
Ali estava o barco corsário que o Edinburgh perseguira. Imediatamente Jack mandou tirar o rizo das gáveas e o barco corsário rumou para Tarento para pôr-se sob a proteção de seus potentes canhões. Mas a Dryad, que estava perto do lado de barlavento do barco francês, em resposta aos sinais luminosos azuis que a Surprise fez, desdobrou todas as velas e se situou de maneira que o impedia de aproximar-se da costa. Seguiu comportando-se heroicamente durante um comprido tempo, enquanto a Dryad e sua companheira perseguiam o veloz barco corsário como os cachorros de uma matilha e, apesar de que seu botaló e seu mastaréu do maior terem se desprendido e caído pela borda estrondosamente, quando isso ocorreu o barco já não podia mudar de bordo. Nesse momento o barco francês se encontrava perto do lado de sotavento da Surprise, a umas duas milhas de distância, e começou a navegar a toda velocidade em direção sul, em direção à distante costa berbere.
Então começou uma longa perseguição, na qual cada capitão empregava todos seus conhecimentos de náutica e fazia até as menores mudanças na exárcia e na posição do leme para navegar mais rápido que seu adversário. O barco corsário tinha a vantagem de poder navegar na forma em que alcançava maior velocidade, com o vento pela quadra, enquanto que a Surprise não, pois navegava mais rápido com o vento pela alheta, ainda que seus tripulantes pudessem desdobrar e arriar velas mais rápido. As duas embarcações avançavam rapidamente, a uns doze ou treze nós, fazendo saltar a água e a espuma para grande distância pelos lados e por trás, e seus tripulantes estavam muito animados. Os tripulantes do barco corsário jogaram pela borda os tonéis de água, as lanchas, as âncoras de leva e, por último, os canhões. Como o vento diminuiu ligeiramente de intensidade, o barco se afastava mais e mais, de modo que a distância aumentou meia milha entre as duas e as três da madrugada. Para diminuir essa distância, um grupo de tripulantes da Surprise jogaram pela borda vinte toneladas de água e todos os que estavam desocupados se alinharam no lado de barlavento para que o barco se endireitasse um pouco, e quando o vento voltou a aumentar de intensidade e a presa não pôde seguir usando desdobradas as alas (que se desprenderam antes que pudessem arriá-las), e a Surprise sim, a distância entre elas começou a diminuir. Ao riscar a alvorada o barco francês estava ao tiro de mosquete da Surprise, mas ainda navegava a grande velocidade, como se seu capitão tivesse a vã esperança de que algum mastro da fragata caísse. Os tripulantes da Surprise pensavam que o capitão do barco corsário estava prolongando muito a perseguição simplesmente porque era obstinado e alardeava de valente, e que teriam que deter-lhe com uma descarga ou, em caso contrário, não se poderiam acender os fogos da cozinha e o café da manhã seria preparado muito tarde. Jack notou que muitos tripulantes lhe lançavam olhares significativos e muitos dos artilheiros que manejavam os canhões de proa, que já haviam sido preparados para disparar fazia tempo e cujo cevo mudava agora o senhor Borrell ostentosamente, olhavam com a cabeça inclinada e com uma expressão inquisitiva ou assombrada. Em resposta a um comentário, Mowett lhe disse:
- Senhor, estou preocupado com os marinheiros. Todos, da proa até a popa, estão muito excitados, e se esse tipo…
Parou ao ver que um jorro de água se aproximava de sua cabeça, e Jack, protegendo os olhos da água com uma mão e agarrando-se fortemente com a outra a um brandal tenso como um cabo de ferro enquanto a fragata se elevava com uma onda, olhou para o veloz barco corsário, que era digno de ser visto, pois tinha todas as velas abertas e tanta espuma ao seu redor que o casco parecia estar envolto na névoa.
- Muito bem - disse. - dispararemos um canhonaço.
Então, alçando a voz, ordenou:
- Senhor Borrell, por favor, dispare um canhonaço alto para demostrar que queremos capturá-lo de verdade. Um pouco alto, não muito.
- Sim, senhor: um pouco alto, não muito - repetiu o condestável.
E Tom Turk, o comprido, depois de fazer uma série de cálculos, disparou dando um gemido, como sempre fazia.
Abriu um buraco em cada uma das gáveas do barco corsário, e o velacho, que já estava a ponto de se romper, rachou. Então o barco orçou e imediatamente arriou a bandeira em sinal de rendição. O cozinheiro da Surprise e seus ajudantes correram para a cozinha murmurando algo.
A única coisa que Stephen ouviu da perseguição foi o canhonaço, e como o tambor não havia chamado os tripulantes para seus postos, pensou que provavelmente era uma das extravagâncias dos marinheiros ou uma salva e voltou a dormir, de modo que quando subiu para o convés por fim, furioso por causa de que havia adormecido mais do que o devido porque não lhe haviam despertado o ruído da pedra arenito, nem os rítmicos chiados das bombas, nem os gritos dos tripulantes, assombrou-se ao ver que a fragata estava em pairo, que havia outra embarcação perto dela e que as lanchas iam e vinham de uma para a outra. Ficou ali olhando-a com os olhos semicerrados, sem responder a quem lhe dava bom dia, e depois de um tempo disse:
- Essa não é a Dryad, porque tem três mastros.
- Não se pode ocultar nada ao doutor - disse Jack e, voltando-se para ele, continuou: - Felicite-nos por termos capturado esta presa. Nós a capturamos ontem à noite.
- O café da manhã se atrasou muito - disse Stephen.
- Venha beber uma xícara de café comigo e lhe contarei como a apresamos - disse Jack.
Contou, talvez com muitos detalhes, mas Stephen recuperou a cortesia graças ao café e escutou com aparente atenção. Mas quando ouviu que Jack disse: "Nunca vira um barco que navegasse tão rápido com o vento pela quadra.
Garanto que a Armada o compra. Rowan vai levá-lo para Malta assim que os marinheiros enverguem um velacho novo", interessou-se vivamente pelo caso e perguntou:
- Há a possibilidade de que chegue ali antes que nós?
- Oh, não! - exclamou Jack. - Não há nenhuma, a não ser que nos encontremos com um barco inimigo ou persigamos outra presa.
Stephen vacilou um momento e depois, em voz muito baixa, disse:
- É sumamente importante que a notícia da fuga não chegue a Valletta antes que eu tenha chegado.
- Compreendo - disse Jack secamente. - Bem, poderei assegurar-me disso.
- E a Dryad?
- Acho que não temos que nos preocupar com ela. Perdeu o botaló e o mastaréu da maior, e duvido que possa avançar rápido com o vento que está soprando. Além disso, a perseguição de ontem à noite não nos afastou muito de nossa rota, pois navegamos rumo sudeste em vez de sul-sudeste. Não é provável que a vejamos até pelo menos dois dias depois de termos chegado ao porto.
Stephen pensava que seu amigo era infalível quando julgava assuntos relacionados com o mar e os barcos, e, apesar da Surprise fazer a viagem navegando com ventos desfavoráveis, ficou tranqüilo até a escura e tormentosa tarde de domingo em que chegou ao porto, um porto onde, em contra do habitual, havia muito poucos barcos de guerra. Assombrou-se ao notar que o navio do comandante geral não estava e dois minutos depois se assustou tanto que ficou sem respiração ao ver a Dryad atracada ali. Ao seu redor havia numerosos vendedores e típicas embarcações maltesas, e enquanto ele a contemplava, um de seus cúteres, que estava cheio de marinheiros de licença vestidos com a roupa de descer a terra, começou a afastar-se de um costado. Os tripulantes da Dryad deram vivas ao ver entrar a presa (pois lhes correspondia uma parte de seu valor) e os tripulantes da Surprise deram vivas em resposta, e quando a fragata navegava em direção ao cais Thompson, onde ia deixar os prisioneiros, alguns disseram frases jocosas sobre a lentidão com que a fragata havia regressado e outros sobre a aparência atual da corveta. Stephen procurou ansiosamente por Jack com o olhar, mas o sinal que ordenava ao capitão da Surprise descer a terra fora içada poucos minutos depois que a fragata se identificou, e agora estava em sua cabine trocando de roupa.
- Senhor Mowett - disse em meio ao alvoroço, - por favor, pergunte-lhes desde quando estão aqui.
Estavam ali desde a sexta-feira pela noite, assim que pelo menos os oficiais haviam disposto de todo o sábado e a maior parte do domingo para descer a terra. Stephen correu para a cabine de Jack e, sem pedir desculpas, entrou quando Jack vestia seus melhores calções e disse:
- Escute-me. Tenho que ir a Valletta imediatamente. Você me levará?
Jack o olhou com o cenho franzido e disse:
- Já sabe quais são as regras da Armada: não se concedem permissões até que o capitão informe da viagem ao seu superior. Tem uma poderosa razão para me pedir que faça uma excessão?
- Dou-lhe minha palavra de honra de que sim.
- Muito bem. Mas devo advertir-lhe que, pela rapidez do sinal, acredito que é provável que nos ordenem zarpar assim que completemos a aguada.
- Claro - disse Stephen distraidamente, e correu para sua cabine, onde pegou uma pistola e pegou um bisturi do estojo de remédios.
Stephen viu os degraus de Nix Mangiare na penumbra e desceu da falua de um salto. Foi até o palácio, em uma de cujas alas vivia Wray, passando o mais rápido que podia por entre uma multidão que caminhava devagar. Ali se informou que Wray estava na Sicília, o que frustrou seus planos, e durante alguns momentos não soube o que fazer. A situação era muito perigosa e delicada e Stephen não sabia em quem podia confiar. As palavras com que Wray havia expressado suas suspeitas voltaram à sua mente uma e outra vez, e pensou que possivelmente ao dizer navium duces se referia a um alto cargo. Caminhava pela rua Real contra a maré humana que avançava por Floriana quando Babbington, Pullings e Martin, que estavam muito alegres, fizeram com que parasse junto a um poste de luz dourada e disseram que se aproximava chuva ou talvez uma tormenta e que devia ir com eles para o hotel Bonelli, onde iam passar uma agradável noitada e estariam cantando até o amanhecer. Seu olhar, inexpressivo como o de um réptil, impressionou-lhes, perderam a alegria e o deixaram ir.
Quando chegou à rua onde ela vivia, os relâmpagos largamente esperados feriram o firmamento, seguidos imediatamente por trovões tão fortes que parecia que o céu havia se partido em dois, e pouco depois desatou a tormenta e começaram a cair grandes pedaços de granizo que saltavam à altura da cintura. Refugiou-se, junto com muitas outras pessoas, sob a marquise que ficava sobre a grade de sua casa. Estava quase seguro de que o homem que costumava vigiá-la não a vigiava agora, mas se alegrou de que estivesse escuro e de que as pessoas houvessem corrido e se metido ali aos empurrões, porque isso impedia que inclusive o observador mais atento o visse. O granizo foi sucedido por uma forte chuva, que imediatamente começou a derreter a branca capa que cobria o solo e a cair com estrépito pelas bocas das sargetas. A chuva cessou de repente, e depois de um tempo, a gente se foi dali, caminhando com cuidado e levantando muito os pés para passar por cima dos charcos, mas ainda passavam algumas nuvens baixas pela frente da lua e se viam relâmpagos sobre Senglea, assim que provavelmente ia chover mais.
Stephen avançou pela vereda. Por alguma razão, tinha certeza que Laura Fielding não estava ali. Quando chegou à porta do jardim, viu que, em efeito, estava fechada, e quando tocou com os nós dos dedos não ouviu dentro os habituais latidos e respirações. A porta se fechava automaticamente, e como Laura havia ficado tantas vezes fora da casa porque ela havia se fechado, tinha uma cópia da chave escondida entre duas pedras do tapume. Stephen a procurou tateando e conseguiu entrar.
O jardim cheirava a chuva, a terra molhada e a folhas de limoeiro machucadas pelo granizo, e ainda se ouvia a água cair na cisterna do outro lado da arcada. Junto à parede da direita, parte do pavimento fora tirado, e um raio de lua permitiu Stephen ver que agora havia ali um montículo, provavelmente um novo alegrete, e sobre ele muitas flores esmagadas pela tormenta. Todo o resto estava igual. No pórtico, perto do nicho onde ficava São Telmo, ainda ardia uma pequena lâmpada, à qual não haviam chegado nem o granizo nem a chuva, e a porta da casa, como era habitual, não estava fechada com chave. No dormitório de Laura, entre o retrato do senhor Fielding e a imagem de Nossa Senhora do Consolo, havia outra lâmpada acesa, mas dava uma luz azul. O lugar estava vazio mas em ordem. Parecia que ela havia saído há uma hora mais ou menos, pois em um jarro que estava junto à lâmpada havia um ramo de delicadas estevas que ainda não havia caído nenhum pétala. Stephen se sentou e sentiu um alívio tão grande que o própio relaxamento o debilitou.
Não acendeu nenhuma luz porque o isqueiro de Laura falhava e porque podia ver bastante bem, já que seus olhos haviam se acostumado com a tênue luz azul. De onde estava sentado podia ver o retrato, e contemplou durante um tempo àquele homem temível, apaixonado e triste. "Laura é a única que pode dar-se bem com ele", pensou quando vários relâmpagos sucessivos iluminaram o quadro, de tal modo que parecia que Fielding saía dele acompanhado de trovões tão fortes como uma salva feita pela esquadra do Mediterrâneo inteira. A chuva começou a cair outra vez, e Stephen foi até a janela da salinha e olhou como caía entre os intermitentes relâmpagos. Notou que o montículo estava desmoronando e que a água arrastava a terra e as maltratadas flores pela porta. "Parece uma tumba", pensou, e foi sentar-se ao piano de Laura. Tocava as teclas distraidamente, pensando que era inútil decidir o que iam fazer até que Laura regressasse e ele se informasse de qual era a situação; contudo, pensou em várias possíveis ações até que, durante um intervalo da chuva, ouviu o rouco som do pequeno sino da igreja dos franciscanos tocando a completas além da amálgama de escuros telhados.
Mecanicamente a princípio e intencionalmente depois, rezou a oração em que se implorava proteção durante a escura noite e começou a tocar a versão do primeiro salmo no modo dórico, mas não seguiu porque não tocava bem e o piano não era um instrumento adequado para o canto gregoriano. Permaneceu ali sentado, completamente relaxado e em silêncio, durante muito tempo. A chuva seguia caindo, umas vezes violentamente e outras suavemente, e a cisterna já havia se enchido até a borda e não fazia ruído. Só o que se ouvia no solitário jardim era o ruído da chuva ao cair, e em um intervalo em que o ruído era muito débil, Stephen ouviu um som metálico. Então olhou pela janela e viu luz por debaixo do dintel da porta do jardim. O som se repetiu três vezes. Era um som débil e pouco comum, mas ele o ouvira anteriormente: uma pessoa forçava a fechadura. Essa pessoa não tentava abrir a porta com uma alavanca e sim forçando a fechadura.
Esperou a porta se abrir (foi aberta com muito cuidado, lentamente, de modo que não fez os habituais chiados) e viu a dois homens, um alto e o outro baixo, antes de que cobrissem com uma capa sua lanterna. Os homens vacilaram um momento e depois atravessaram o inundado jardim correndo na ponta dos pés. Stephen foi silenciosamente até o dormitório de Laura e se sentou no lugar encostado à janela. Ambos os lados estavam cobertos em parte pelas cortinas descorridas, e Stephen sabia por experiência que quase ninguém pensava que eram esconderijos.
Os homens se aproximaram silenciosamente do dormitório e entraram movendo a lanterna ao seu redor.
- Ainda não voltou - disse um em francês, iluminando a cama que ainda estava coberta pela colcha.
- Vá ver se está na cozinha - disse o outro.
- Não está - disse o primeiro, ao regressar. - Não voltou ainda. Contudo, a festa tem que ter terminado há horas.
- Acho que a chuva a impediu de vir.
- Vamos esperá-la?
O homem mais baixo, que estava sentado no sofá, tirou por completo a capa do farol e o pôs sobre a mesinha de latão, e então olhou seu relógio.
- Não podemos faltar ao encontro com Andreotti. Se não voltar antes da hora em que ele chega à igreja de Saint James, mandaremos um par de homens confiáveis às três ou as quatro da madrugada. A essa hora tem que estar forçosamente aqui. Não é possível que fique a noite toda na casa do commendatore.
Agora que a luz era mais intensa, Stephen reconheceu Lesueur graças à descrição que Graham e Laura haviam feito dele, e pensou que era realmente um homem duro. Depois viu com assombro que o companheiro de Lesueur era Boulay, um funcionário que ocupava um posto importante e estava sob as ordens do senhor Hildebrand. Descartou a idéia de matar Lesueur com a pistola e Boulay com o bisturi, porque Boulay era muito valioso para ser eliminado imediatamente. Devia deixá-lo viver, a menos que as coisas se complicassem.
- Mandaremos Beppo e o Árabe? - sugeriu Boulay.
- Não, Beppo não - respondeu Lesueur, exasperado, - porque desfruta muito fazendo-o. Como lhe disse, quero que o façam rápida e limpamente, e sem alvoroço.
- Paolo pode fazê-lo. É muito sério, consciencioso e forte como um touro, e foi ajudante de um açougueiro.
Lesueur tardou algum tempo em responder. Stephen percebeu de que não gostava do assunto em absoluto.
- O ideal teria sido encontrá-la adormecida - disse por fim.
Durante uma comprida pausa os três permaneceram ali sentados escutando a chuva. Depois Boulay e Lesueur tiveram uma estranha conversa, e Stephen chegou a saber menos coisas das que esperava. Informou-se de que um tal Luigi malversava os fundos que eram enviados de Palermo e que havia vários planos para surpreender-lhe, mas os dois falavam sem convicção e não tinham interesse na conversa, pois dedicavam nove décimas partes de sua atenção para a porta do jardim porque supunham que se abriria de um momento para o outro. Também ficou sabendo que Boulay nascera em uma ilha do Canal e tinha parentes em Fécamp, que Lesueur tinha hemorróidas, que estavam representadas em Malta outras duas organizações, uma cooperadora e outra hostil, mas as duas pouco importantes, e que ambos haviam chegado de Città Vecchia fazia pouco, quando começara a tormenta, o que explicava que não soubessem que a fragata havia regressado e que não suspeitassem que ele estava em Valletta.
Em Valletta havia agora uma estranha situação, pois não era um almirante que estava a frente do comando do porto. O oficial da marinha a quem Jack teve que dar seu relatório era um velho capitão de navio chamado Fellowes, um oficial sério e circunspecto que havia ocupado cargos em terra durante a maioria de seus anos de serviço na Armada. Quase não se conheciam e sua entrevista foi muito formal.
- É uma lástima que a Surprise não haja chegado dois dias antes - disse Fellowes. - O comandante geral - disse, fazendo uma inclinação de cabeça em sinal de respeito - atrasou sua partida até a noite com a esperança de ver-lhe, mas ao final me encarregou que lhe desse estas ordens, que respondesse o melhor que pudesse a suas perguntas e que lhe desse algumas instruções verbalmente. Acho que seria conveniente que as lesse agora.
- Com sua licença, senhor - disse, pegando o documento que lhe oferecia e leu: "Para o capitão J. Aubrey, capitão da Surprise, fragata de Sua Majestade, de sir Francis Ives, vice-almirante da Esquadra Vermelha. O senhor Eliot, o cônsul britânico em Zambra, me informou que Sua Alteza o dey de Mascasse fez petições absurdas, inapropiadas e inadimissíveis ao Governo da Grã-Bretanha, acompanhadas de insultos e da ameaça de realizar atos de hostilidade contra nosso país se não lhe entregarmos a princípios do próximo mês as somas que reclama. Pela presente se lhe exige ir a Zambra, conseguir entrevistar-se com o senhor Eliot e decidir o que fazer para resolver a situação: quer seja pedir audiência ao Dey e dizer-lhe que suas petições são disparatadas e que se expõe a que sua frota e seu comércio sejam aniquilados se tiver a ousadia de realizar algum ato de hostilidade contra os súditos de Sua Majestade ou estrague suas propriedades, e também informar-lhe das ações e das intrigas dos agentes franceses e dos comerciantes judeus que manejam o comércio de Mascasse e Zambra; quer seja subir a bordo de sua fragata o senhor Eliot, seu séquito e sua bagagem, assim como a todos os súditos britânicos que desejem partir e suas posses. Quando for recebido pelo Dey, é absolutamente necessário que não perca a serenidade, ainda que se ponha furioso e lhe faça graves ofensas, mas não aceite as condições que provavelmente porá nem admita que em alguma ocasião os barcos de Sua Majestade deixaram de respeitar a neutralidade. Se todas as reconvenções resultarem inúteis e Sua Alteza insistir em suas exorbitantes petições e cumpra as ameaças que fez por meio do senhor Eliot, quer seja porque agrave à Armada Real, quer seja porque viole os tratados firmados pelos dois governos, deverá dizer a Sua Alteza que no momento em que se cometa um ato de hostilidade por ordem sua, a Grã-Bretanha declarará guerra a Mascasse e que o senhor tem instruções de castigar sua injustiça e sua temeridade com o apresamento, o afundamento, a queima ou a destruição por qualquer meio de todos os barcos que levem a bandeira de Mascasse, com o bloqueio de todos os portos do país e com a interrupção de seu comércio com outros países e a navegação entre seus portos e os portos de outros países. Após realizar a missão, deverá ir para Gibraltar sem perder um minuto para dar-me um informe sobre ela".
- Tem alguma pergunta? - inquiriu Fellowes.
- Não, senhor - respondeu Jack. - Acho que a missão está clara.
- Então tenho que acrescentar que deve consultar ao doutor Maturin sobre as questões políticas e deve ir a Zambra em companhia do Pollux, no qual viaja o almirante Harte. O almirante não deve tomar parte nas negociações, entre outras razões porque a participação de um almirante provocaria que o Dey e os outros governantes se atribuíssem mais importância do que têm, o que traria más consequências, ainda que a presença do navio de um almirante nessas águas seria conveniente. Além disso, como é provável que alguns barcos franceses tenham saído de Toulon durante a recente tempestade, talvez necessitem ajudar-se mutuamente.
- O almirante Harte sabe que só o capitão da Surprise deve realizar as negociações?
Os dois se olharam significativamente, pois sabiam que o almirante costumava interferir nos assuntos da Armada e que agora, por ter herdado uma grande fortuna, estava totalmente convencido de que sabia mais que os outros.
- Acredito que sim - respondeu Fellowes e, depois de uma eloqüente pausa, continuou: - Neste escrito o senhor Pocock informa ao doutor Maturin sobre a situação de Mascasse. O senhor está com o relatório sobre o estado da fragata?
- Sim, senhor - respondeu Jack, pegando o escrito e entregando-lhe o documento em que aparecia o número de tripulantes da Surprise nesse momento, em que condições estava a fragata para navegar e qual a quantidade de pólvora, balas, apetrechos e provisões de todo tipo havia nela.
- Ela precisa de água - disse Fellowes.
- Sim, senhor - disse Jack. - Tivemos que jogar pela borda os tonéis da fila superior para capturar a presa. Mas se quiser que zarpemos imediatamente, podemos completar a aguada em Zambra. Isso não será difícil, pois ali se pode pegar água com facilidade.
- Talvez seja essa a melhor solução, porque o Pollux zarpará pela manhã cedo. Pelo que vejo, o senhor conhece Zambra, Aubrey.
- Oh, sim, senhor! Eu era terceiro a bordo do Eurotas quando encalhou em The Brothers, no interior da baía. Tardamos muito tempo em desencalhá-lo e depois tivemos que esperar que chegassem suprimentos de Mahón, assim que enquanto estávamos sem trabalhar, o oficial de derrota e eu reconhecemos toda a zona norte, até a última polegada, e boa parte do restante. O manancial de onde se pega a água fica situado em um lugar acessível, ao pé de uma escarpa e justo à beira de uma praia, e as lanchas podem aproximar-se muito dele.
- Muito bem. Assim se fará. Vejo que também lhe faltam tripulantes. Sir Francis me encarregou especialmente que recuperasse alguns dos marinheiros que foram pegos da tripulação enquanto a Surprise era reparada.
- Agradeço-lhe muito, senhor - disse Jack, a quem isto lhe pareceria uma benção se não estivesse obrigado a se separar da fragata e dos tripulantes em poucas semanas.
- Não tem importância. Esses homens subirão a bordo amanhã a primeira hora. A fragata está no cais Thompson, não é? Meu Deus, quanto chove! - disse em um tom coloquial quando a chuva começou a golpear fortemente o vidro da janela. - Quer ficar para jantar comigo e com minha filha, Aubrey? Em uma noite assim não é bom sair para a rua.
Finalmente Lesueur disse que não podiam esperar mais.
- Paolo terá que fazê-lo. Em parte, sinto muito. Deve insistir para que ele faça rápido, rápido como o raio, usando um meio eficaz e indolor.
As portas se fecharam atrás deles, e Stephen desarmou a pistola e meteu o bisturi em sua capa. Laura chegou poucos minutos depois, tão poucos que poderia ter se encontrado na rua com eles. Stephen ouviu a porta fazer os habituais chiados, viu a luz do farol iluminar a porta e depois a Laura, que se despediu das pessoas que a haviam acompanhado e depois, sustentando uma capa sobre sua cabeça, atravessou o jardim.
- Laura - disse Stephen.
- Stephen! - exclamou ela, soltando a capa, e depois o abraçou. - Quanto me alegro de ver-lhe! Não sabia que a Surprise havia chegado. Como entrou? Ah, claro, com a chave! Por que ficou sentado aqui no escuro? Venha, vamos acender uma lâmpada e comer um ovo cozido.
- Onde está Ponto? - perguntou ele quando chegaram na cozinha.
Imediatamente sua expressão alegre se transformou em uma triste.
- Morreu - respondeu, e começou a chorar. - Morreu de repente esta manhã e o carvoeiro me ajudou a enterrá-lo no jardim.
- Onde está Giovanna?
- Teve que ir para Gozo. Tinha um comportamento extranho… Parecia assustada.
- Agora escute-me, minha amiga. Seu esposo fugiu da prisão já faz quase três meses, e isso explica por que suas cartas pareciam tão diferentes. Naturalmente, eram falsas, compreende? Neste momento está a bordo da Nymphe, diante de Trieste.
- Não está ferido? Ele está bem?
- Muito bem.
- Graças a Deus! Graças a Deus! Mas, por que…?
- Escute-me - disse Stephen, agitando a mão para interromper sua pergunta. - A Dryad regressou do Adriático antes que nossa fragata, e seus tripulantes sabem que ele fugiu. Os agentes franceses sabem que se informará da notícia a qualquer momento e que então não poderão dominá-la. Querem evitar que os delate. Estiveram aqui esta noite e vão voltar. Tem amizade com alguém que possua uma casa muito grande e muitos criados, e que possa oferecer-lhe refúgio nela? Vamos, trate de recordar minha amiga. O Commendatore?
Laura havia se sentado e agora o olhava assombrada.
- Não - respondeu por fim. - Só tem uma velha criada. É pobre.
Em realidade, ela tinha poucos amigos íntimos em Valletta, e nenhum a cuja porta pudesse bater a essa hora da noite. E Stephen não conhecia na cidade nenhum lugar que pudesse servir-lhe de refúgio.
- Vamos, minha amiga, pegue algumas coisas para passar a noite e ponha uma faldetta. Temos que subir a bordo imediatamente.
Assim que o capitão Aubrey começou a percorrer o cais Thompson contra o vento e a chuva, segurando com uma mão o chapéu e com a outra a capa de chuva que o vento fazia ondear, observou que havia luz nas janelas de popa e pensou que provavelmente Killick, que tinha afã pela limpeza, aproveitava sua ausência para limpar ou abrilhantar todas as coisas que podia, apesar de que ser tarde. A chuva piorou, e o capitão correu pela prancha, procurou um lugar onde se refugiar e ali sacudiu a água do chapéu e ficou ofegando por alguns momentos. Sob a luz da lanterna, viu Mowett, Killick, Bonden e alguns membros da guarda e notou que tinham uma expressão comprazida ou sorriam.
- O doutor já está a bordo? - perguntou.
Sentiu um grande alívio quando responderam que sim, mas se assombrou ao ouvir Mowett acrescentar:
- Está em sua cabine com um visitante, senhor.
Se assombrou porque Stephen, apesar de ser seu amigo íntimo, nunca ia a sua cabine se não o convidasse, a menos que viajasse na qualidade de convidado, o que não ocorria agora. Mas se assombrou ainda mais quando abriu a porta da cabine e viu a senhora Fielding sentada em sua poltrona. Ela tinha o aspecto de um rato afogado e o cabelo molhado e separado em mechas, mas estava radiante de alegria. O assassinato fazia parte da vida na Sicília, onde ela passara sua infância e sua juventude, e por isso compreendia o sentido dessa palavra melhor que uma inglesa, e, por outro lado, havia sentido um medo terrível durante os últimos momentos que Stephen e ela haviam passado em sua casa, porque se convertera em uma armadilha, e também quando atravessavam a cidade empapados, sempre ouvindo passos detrás deles e em ocasiões detendo-se diante das portas, onde às vezes lhes molestavam soldados e marinheiros bêbados; contudo, agora estava a salvo, rodeada de duzentos homens fortes e afetuosos, e a pesar de ainda não estar seca, pelo menos estava aquecida. Além disso, finalmente percebera que ainda tinha esposo, um esposo a quem amava com paixão apesar de seus defeitos e a quem dera por morto há dois meses. Stephen lhe dissera que o senhor Fielding estava mal-humorado, mas ela o conhecia muito bem e não tinha a menor dúvida de que poderia mudar seu estado de ânimo quando se reunisse com ele. Agora só o que ela necessitava para que sua felicidade fosse completa era ver Charles outra vez, por isso não era de estranhar que tivesse o rosto tão resplandecente como a lâmpada.
- Boa noite, Jack - disse Stephen, afastando-se da mesa do capitão, onde estivera escrevendo. - Perdoe a intrusão, mas quando trazia a senhora Fielding, ensopuo-se até os ossos, e pensei que a cabine era um lugar mais apropriado para ela do que a câmara dos oficiais. Eu lhe prometi em seu nome que a levaria a Gibraltar.
Jack notou que estava pálido e esgotado e que lhe olhava com angústia, e, quase sem pausa, disse:
- Fez bem.
Então, cumprimentou Laura com uma cortês inclinação de cabeça.
- É um prazer tê-la a bordo, senhora - disse, e depois, alçando a voz mas em um tom mais suave que o que usava habitualmente, chamou Killick e ordenou: - Leve meu baú para a cabine do senhor Pullings. A senhora Fielding ficará aqui. Traga toalhas limpas e o sabão cheiroso. Bonden pendurará a maca um pé mais baixa. Traga seu baú para a cabine.
- Não tem baú, senhor - disse Killick. - Não tem mais que uma pequena bolsa.
- nesse caso… - disse, olhando dissimuladamente para o charco que se formara debaixo dos pés de Laura. - Esquente uma camisa de dormir de flanela, um par de meias de lã, e minha bata de lã, a de lã, ouviu?, e depois traga-os. Apressesse! Tem que trocar-se imediatamente, senhora - disse para Laura, - se não, pegará um horrível resfriado. Gosta de torradas com queijo?
- Muito, senhor - respondeu Laura, sorrindo.
- Então prepare torradas com queijo, Killick. E traga cerveja quente e temperada com açúcar e especiarias. Senhora - disse, olhando seu relógio, - agora a senhora deve pôr a roupa seca e quente, ainda que esteja áspera, e dentro de dez minutos teremos a honra de comer torradas com queijo com a senhora. Imediatamente depois deverá deitar-se, já que zarparemos ao amanhecer e terá muito pouco tempo para dormir antes que comecem os ruídos.
Com excessão da cabine do capitão, em um barco de guerra não havia nenhum lugar onde se pudesse falar confidencialmente, já que a maioria das divisões eram feitas com finas pranchas de madeira e lona. Contudo, na pequene cabine de Pullings, Jack perguntou:
- Está tudo bem?
- Muito bem, meu amigo. Eu lhe agradeço muito que tenha acolhido cordialmente a nossa convidada.
- Como se informou de que íamos para Gibraltar?
- A filha do comandante do porto sabia e, por isso, todas as suas amigas da ilha, entre as quais se encontra Laura.
- Senhor, posso dar esse objeto com rebordos de ouro para a senhora? - perguntou Killick a Stephen ao entrar precipitadamente na cabine.
- Sim, Killick - respondeu Stephen. - Não há dúvida de que ela necessita algo mais que um pequeno espelho de se barbear.
O objeto em questão era um presente que Diana havia dado a Stephen, uma extravagante e engenhosa arqueta que também podia servir de atril, lavatório, tabuleiro de gamão e muitas outras coisas, e que sempre ficava enrolada com uma capa de lona encerada porque era muito valiosa e muito delicada para ser usada em um barco.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack ao recordar de repente a sua irrascível prima. - Isto lhe custará muito caro. Será muito difícil explicar para Diana.
- Acha que ela suspeitará de mim?
- Estou completamente seguro. Não poderia justificar-se nem que falasse em todas as línguas dos homens e, além disso, na dos anjos. Stephen, pense um momento nisto: você trouxe para bordo, durante a guarda de meia, a mulher mais bonita de Malta, a mulher que viram sair de seu quarto no Searle na noite em que os ladrões…
- Com sua licença, Sua Senhoria - disse um grumete muito excitado e com os olhos exorbitados. - Killick disse que o jantar está pronto.
Até o outro dia na hora do café da manhã Stephen não percebeu de que Jack acertara com a opinião da tripulação da fragata. Tinha a lucidez que segue a um período de grande tensão e de falta de sono. Passara o que restava da noite fazendo dois detalhados informes da situação, um para Wray e outro para sir Francis, cifrados com duas chaves diferentes, porque tinha que enviá-los para a comandância do porto, junto com os reproduzidos, urgentemente, antes de que a Surprise soltasse as amarras. Depois de pensar muito, havia decidido não mandar um para o governador, já que vira um de seus subordinados na casa de Laura e pensava que esse homem poderia abrir facilmente o envelope. Wray ia regressar na quarta-feira ou antes, se recebesse logo o relatório de Stephen, e conseguiria aprisionar os franceses apesar de que provavelmente o desaparecimento de Laura lhes causaria intranqüilidade, porque a intranqüilidade não os levaria a tomar medidas drásticas, já que pensariam que não era a primeira jovem que fugia com seu amante quando seu marido ia chegar.
Durante o desjejum observou seus companheiros. Sua reserva podia atribuir-se à presença do capitão, que não era usual a essa hora do dia, mas persistiu depois que ele se foi, e a situação chegou a ficar embaraçosa. Stephen detectou desprezo em alguns, certamente admiração ou respeito em outros e em Gill desaprovação do ponto de vista da moral, e bebeu o café pensando que não merecia ser objeto de nenhuma dessas coisas.
Depois que Stephen deu uma olhada rápida na enfermaria vazia enquanto seu ajudante tocava em vão o sino para que comparecessem a ela todos os que se sentissem mal, se foi para sua cabine com um frasco de láudano e o informe de Pocock sobre o dey de Mascasse. Pelo relatório se informou que o Dey governava um país pequeno mas poderoso, que nominalmente dependia do sultão da Turquia, mas que era tão pouco dependente dele como a Argélia ou ainda menos, e que apesar de que Mascasse era a capital, a residência principal do Dey ficava em Zambra, um porto por onde passava todo o comércio do país e onde os agentes franceses tinham influência… muita influência… e muito êxito… E então adormeceu.
Tanto ele como Laura dormiram durante o dia, enquanto foram servidas várias refeições no barco e apesar do ruído do vento, do mar e das manobras, e isto provocou muitos comentários de proa a popa. Stephen foi o que dormiu mais dos dois, mas quando por fim subiu para o convés pôde ver um entardecer tão bonito que pensou que havia valido a pena suportar o mau tempo. A Surprise, com poucas velas desdobradas, sulcava o mar, um mar de sonho, ilimitado e com uma infinidade de tons nacarados entremesclados, sobre o qual se estendia o céu azul e sem nuvens. Aquele era um desses dias em que não se via o horizonte, em que era impossível dizer em que ponto da névoa perolada o mar se juntava com o céu, e isso parecia aumentar sua imensidade. O vento soprava pela amura e sussurrava na exárcia, e a água deslizava pelos costados da fragata com um suave burburinho, e tudo junto formava uma espécie de silêncio do mar. Mas a impressão de que estava em um lugar isolado desapareceu quando olhou para frente, porque ali, a dois cabos de distância estava o Pollux, um navio de setenta e quatro canhões velho e acabado, um dos últimos de sua classe. Ainda que estivesse estragado, era digno de ser visto por sua torre de velas abertas, suas vergas exatamente perpendiculares aos mastros, sua enorme flâmula ondeando para sotavento e as curvas e retas de sua complexa estrutura iluminadas pelo sol, que já estava muito baixo e se encontrava pela amura de estibordo.
- Senhor - disse Calamy ao seu lado, - a senhora Fielding quer mostrar-lhe Vênus.
- Vênus? - perguntou Stephen.
Então viu com surpresa que não só Calamy se havia posto a camisa com peitilho senão que também se havia lavado a cara, uma cerimônia que tinha reservada para os dias em que era convidado para jantar e os domingos, quando se celebrava o ofício religioso. E quando caminhava pela popa, onde se encontrava a senhora Fielding, que estava sentada na poltrona de Jack muito perto do coroamento, notou que todos os oficiais estavam presentes, que todos estavam barbeados e que a maioria deles usavam a casaca do uniforme.
- Venha vê-la! - exclamou ela, agitando no ar o telescópio menor de Jack. - Está à esquerda da verga do maior. Uma estrela em pleno dia! Sabia que é como a lua em quarto minguante, mas muito menor?
- Sei muito poucas coisas sobre Vênus - disse Stephen, - além de ser um planeta inferior.
- Deveria se envergonhar! - exclamou ela.
O contador, o tenente da infantaria da marinha e Jack fizeram alguns comentários corteses e disseram algumas frases engenhosas, enquanto que Mowett e Rowan, que poderiam ter dito algo brilhante, permaneceram silenciosos mas sem deixar de sorrir alegremente, até que o suboficial que governava a fragata, em tom solene, ordenou:
- Girem o relógio e toquem o sino!
Essas palavras e as duas badaladas fizeram Mowett recordar-se de suas tarefas, e então perguntou:
- Senhor, temos que tirar os anteparos hoje depois da revista?
Desde que a Surprise estava sob o comando do capitão Aubrey, todos os dias ao entardecer seus tripulantes faziam preparativos de combate como se fossem entrar realmente em uma luta, quer dizer, tiravam todos os anteparos e levavam para a bodega todas seus pertences, e depois pegavam os canhões. Mas isso teria necessariamente que acabar com a tranqüilidade da senhora Fielding, e Jack, depois de pensar um momento, disse:
- Talvez seja melhor limitar-nos a sacar e guardar os canhões de proa. Depois, se no Pollux rizarem as gáveas ou mudarem a orientação das joanetes, nós faremos o mesmo.
Em realidade, os tripulantes da Surprise não fizeram preparativos de combate durante nos seis dias que a viagem para Zambra durou, os seis dias em que Jack viajou mais prazerosamente que em toda sua vida. Se a Surprise não estivesse acompanhada do velho e lento Pollux, provavelmente teria feito o percurso em dois dias menos, mas todos os marinheiros o teriam lamentado muito. Durante esses seis dias os ventos haviam sido favoráveis e cálidos, o mar estivera em calmo e os tripulantes não haviam tido que fazer as coisas com urgência (pois a Surprise tinha que estar na mesma velocidade que o Pollux), algo muito incômodo que ocorria amiúde durante as viagens. Por essa razão haviam tido a impressão de que esses seis dias foram extraordinários, que não estavam no calendário, ainda que não podiam considerá-los dias livres, porque haviam tido que trabalhar muito, mas pelo menos durante eles haviam disposto de momentos livres, de muitos momentos livres. Contudo, não era essa a única nem a principal razão para que tivessem essa impressão.
Alguns desses momentos haviam se dedicado a se arrumar. Williamson havia superado Calamy, pois havia se lavado quase todo o pescoço, além do rosto e das mãos, o que era assombroso porque ambos só dispunham da água contida em uma bacia de peltre de nove polegadas de diâmetro, e os dois haviam posto camisas limpas todos os dias. Todos os oficiais haviam se vestido com o uniforme completo, haviam se convertido em um modelo de perfeição, como os do Victory quando estava ao comando de Saint Vincent. Haviam tirado as calças largas de dril, as casacas e os chapéus de palha de aba larga e copa baixa chamados benjies com que se protegiam do sol, e haviam posto calções ou pelo menos calças azuis, suas melhores casacas azuis, botas e o chapéu regulamentar. Por outro lado, os marinheiros encarregados do mastro traquete amiúde haviam posto os coletes vermelhos que usavam nos domingos e esplêndidos lenços levantinos. Todos haviam deixado de dizer blasfêmias, maldições e execrações ou as haviam modificado (ainda que, em realidade, estavam proibidas pelo segundo artigo do Código Naval). Fora muito gracioso ouvir ao contramestre gritar: "Oh… m… marinheiro lerdo!", quando Doudle o Rápido, por olhar para trás para ver a senhora Fielding, havia deixado cair do cesto da gávea do maior um grampo, que estivera a ponto de se cravar no pé do senhor Hollar. Também havia se deixado de aplicar o castigo consistente em dar chicotadas, e ainda que isso não tivesse grande importância porque na fragata quase nunca se davam açoites, o fato de que os membros da tripulação, em geral, pensavam que ser tratados com indulgência, teria como consequência a falta de disciplina se não fosse porque a tripulação era excepcional. Os tripulantes da Surprise sempre haviam estado contentes e agora o estavam muito mais, e isso fez Stephen pensar que seria benéfico para todos os tripulantes dos barcos de guerra que sempre houvesse a bordo uma jovem bonita e simpática, mas inacessível, que fosse sustituída por outra periodicamente, antes de que eles chegassem a tratá-la com confiança.
Quase todas as noites, até muito avançada a guarda de prima, os marinheiros haviam cantado e bailado, e até muito mais tarde Stephen e Jack haviam tocado música ou, em companhia dos outros oficiais, haviam escutado à senhora Fielding cantar, acompanhando-se ela mesma com o bandolim de Honey.
Muito cedo a senhora Fielding fora convidada para almoçar com os oficiais, e quando lhes dissera que lamentava não poder ir porque não tinha nada para vestir, nada menos que três cavalheiros haviam mandado um mensageiro para apresentar seus respeitos e para entregar várias jardas da seda que haviam comprado, respectivamente, para sua mãe, sua irmã e sua esposa, da famosa seda escarlata da ilha Santa Maura, onde a Surprise estivera recentemente. Ela havia feito um vestido que realçava sua beleza, e Killick e o veleiro a haviam ajudado a costurar a bainha para que pudesse terminá-lo a tempo. Todos a bordo sentiam afeto e admiração por ela e, apesar de acreditarem que havia fugido com o doutor, os poucos que consideravam esse ato condenável não censuravam a ela e sim a ele. Inclusive o senhor Gill, um homem puritano, reservado e melancólico, quando ela perguntara quanto tempo demorariam para chegar ao cabo Raba, onde terminava a primeira etapa da viagem, respondera:
- Infelizmente, só três dias, se segue soprando este vento.
No último desses dias, quando as duas embarcações navegavam tão devagar que apenas tinham a velocidade suficiente para manobrar, Jack fora convidado para almoçar no Pollux. E havia lamentado muito, porque as refeições em seu própio barco eram muito mais agradáveis, mas não tinha escolha, e quando faltavam dez minutos para a hora do encontro, muito esmerado (tão esmerado que inclusive usava os sapatos com fivela prateada e o chelengk no chapéu), havia subido a bordo de sua falua, onde os tripulantes lhe esperavam vestidos esplêndidamente, com casacas azul claro e calças de dril branco como a neve.
Encontrara o capitão do Pollux, a quem apenas conhecia, e ao almirante Harte, a quem conhecia muito bem, em excelente estado de ânimo. Dawson disse que lamentava não ter convidado antes ao capitão Aubrey, mas que seu cozinheiro estivera enfermo por causa de um caranguejo que comera em Valletta pouco antes de zarpar, e acrescentou que se alegrava de que já se houvesse recuperado porque estava farto de comer a comida da câmara dos oficiais.
O cozinheiro havia se recuperado, mas havia celebrado o acontecimento embebedando-se, e a refeição foi tão caótica que às vezes mediaram longos intervalos entre os pratos e outras vezes apareceram repentinamente cinco de uma vez, e, além disso, ocorreram coisas raras como, por exemplo, que no pudim com merengue aparecesse um pedaço de cenoura.
- Tenho que desculpar-me por esta comida - dissera o senhor Dawson quase no final.
- Eu que o diga! - havia exclamado Harte. - A comida era muito ruim e estava muito mal distribuída. Pato em três pratos seguidos! Pense nisso!
- O vinho do porto é excelente - disse Jack. - Acho que nunca bebi um vinho do porto melhor.
- Eu sim - replicou Harte. - Meu genro, Andrew Wray, comprou a bodega de lorde Colville, e em um dos barris havia um vinho do porto tão bom que este, ao seu lado, pareceria um vinho para guardas-marinhas. Contudo, é bastante bom, bastante bom.
Tanto se fosse bom como se não, Harte havia bebido muito, e quando passavam uns para os outros a garrafa, havia aumentado sua curiosidade pela missão de Jack. Mas Jack lhe dera respostas vagas e evasivas, e haveria saído dessa situação somente com o conselho: "Deve que dar um chute no traseiro do Dey, porque a melhor forma de tratar os estrangeiros, sobretudo os nativos desta região, é dando-lhes um chute no traseiro", se não houvesse mencionado o lugar onde ficava o manancial. Harte lhe havia feito descrever o lugar com todo detalhe três vezes e dissera que talvez levasse seu barco até ali para vê-lo, porque algum dia poderia ser útil saber onde ficava. Jack havia tentado convencer-lhe de que abandonasse a idéia com os argumentos mais contundentes que podia encontrar, e assim que pudera havia se levantado e pedira permissão para se retirar.
- Antes de que se vá, Aubrey - dissera Harte, - queria lhe pedir um favor.
Então lhe dera uma pequena bolsa de couro que, obviamente, preparara de antemão, e havia acrescentado:
- Quando vá a Zambra, libere um ou dois cativos cristãos com isto. Preferiria que fossem marinheiros ingleses, mas não me importaria que fossem uns pobres desgraçados. Cada vez que meu barco fez escala em algum porto de Berbería, resgatei um par dos mais velhos e os mandei para Gibraltar.
Jack conhecia Harte desde que era tenente e nunca o vira fazer uma boa ação, e enquanto ia na falua na viagem de regresso, havia pensado que a descoberta desse traço de seu caráter contribuía para que aqueles dias lhe parecessem um sonho, um sonho maravilhoso, apesar de que sentia a tristeza que acompanhava sempre "a última vez". Contudo, não pudera definir seus sentimentos com palavras e havia pensado que talvez poderia fazê-lo, pelo menos de uma maneira que fosse satisfatória para ele mesmo, com música, com o violino debaixo do queixo. Enquanto passavam por sua mente as notas de um movimento lento de uma peça que às vezes tocava, um movimento encantador mas complexo, havia observado a Surprise. Ele a conhecia melhor que a qualquer outra embarcação, mas nesse momento notou que havia mudado, ainda que não sabia se era realmente distinta ou se o parecia devido a suas própias meditações ou à oscilação da luz; nesse momento pareceu que a fragata era uma embarcação que não conhecia, que estava em um sonho e que seguia uma rota traçada há muito tempo deslizando por um caminho reto e estreito como o fio de uma navalha.
- Dê uma volta ao redor dela - havia ordenado a Bonden, que se encontrava ao seu lado.
Então, julgando-a com o critério prosaico dos marinheiros, havia notado que navegava completamente horizontal, ainda que a forma em que navegava com mais facilidade era com a popa um pouco mais afundada, e havia pensado que isso se solucionaria com as vinte toneladas de água que logo carregariam na bodega.
Chegaram ao cabo Raba quando começava a manhã, uma manhã horrível: a pressão atmosférica havia descido, o vento rolara para oeste, havia nuvens baixas e estava ameaçando chover. Mas Mowett, que era um primeiro oficial muito exigente, havia decidido que a Surprise teria um aspecto digno quando chegasse a Zambra, tanto se chovesse como se fizesse bom tempo. Os marinheiros passaram muita água do mar no convés para tirar até o último grão da tonelada de areia com que a haviam esfregado, tanta água que parecia que caía um dilúvio, e depois a secaram e poliram todo o brilho que perdera. Antes de que esta cerimônia chegasse ao clímax, o capitão subiu para o convés pela segunda vez, olhou para o mar e depois para o céu e disse:
- Senhor Honey, por favor, faça para o Pollux o sinal: "Permissão para nos separar".
Wilkins, o suboficial encarregado dos sinais, estivera esperando esse momento já fazia algum tempo, e também seu colega que estava no Pollux, assim que o pedido e a concessão apareceram com extraordinária rapidez, junto com uma mensagem adicional do Pollux: "Feliz regresso".
A Surprise pôs rumo à costa e o navio de linha (assim era sua classificação oficial, apesar de que ser muito menos potente que os dessa época) virou em redondo. Conforme o acordo entre os capitães, o navio avançaria para alto mar e regressaria ao seu posto constantemente, em espera de que a fragata se reunisse com ele no dia seguinte. A silhueta da costa se via cada vez mais claramente, e logo Jack chamou os guardas-marinhas, como fazia sempre que se aproximavam de um ancoradouro desconhecido para eles. Como a essa hora da manhã e com esse tempo não era provável ver a senhora Fielding no convés, todos vestiam roupas de trabalho, e a maioria deles tinham a roupa molhada e estavam com frio. Williamson estava muito sujo, pois havia manchado de graxa a camisa de Gernsey, já que havia ajudado ao contramestre a engraxar os tamboretes; contudo, como era seu dever, havia trazido o compasso para medir o azimute, já que provavelmente o capitão Aubrey indicaria aos guardas-marinhas vários pontos fixos na costa que poderiam tomar como sinal para saber a posição da fragata e lhes pediria que a calculassem.
- Ali, pela amura de bombordo, fica o cabo Raba - disse assinalando com a cabeça um enorme e escuro promontório com um escarpado na borda do mar. - Deve-se doblá-lo navegando a considerável distância da costa, porque há um arrecife que sobressai meia milha do litoral. Já a direita, a umas duas léguas para oeste-sudeste, fica o cabo Akroma.
Eles olharam atentamente para o distante promontório, que só se diferenciava do primeiro por que sobre ele, justo na ponta, erguia-se uma fortaleza.
- Do outro lado do cabo Akroma fica a baía Jedid - continuou, - que tem a boca muito larga, mas tem um ancoradouro de quinze braças de profundidade com o fundo firme. Além disso, diante dela há um ilhota cheia de coelhos que a protege dos ventos do oeste e do noroeste. É um lugar ideal para se refugiar quando o vento sopra com muita força e não se pode dobrar o cabo Akroma. Mas não é tão grande nem tem um ancoradouro tão bom como aquela outra baía mais próxima, à qual nos dirigimos agora, a baía Zambra, que se encontra entre Raba e Akroma.
O vento aumentara de intensidade quando havia saído o sol, que era quase invisível, e a Surprise, que agora não tinha que adaptar sua velocidade à do velho Pollux, navegava a mais de oito nós. O cabo Raba pareceu mover-se rapidamente em direção à popa quando a fragata entrou na baía Zambra, uma imensa extensão de água que penetrava na costa dez ou doze milhas. Era mais profunda do que larga e o litoral que a bordejava tinha muitas pontas rochosas e cabos. A fragata se situou de modo que tivesse o vento pelo través e começou a navegar ainda mais rápido e em direção ao lado oeste da baía.
- Ainda não podem ver Zambra - disse Jack, - porque fica em um lugar oculto ao sudeste. Mas podem ver as ilhotas The Brothers. Se olharem para o cabo Akroma e depois um pouco mais para o sul, verão a umas duas milhas de distância um cabo com uma palmeira, e um pouco mais além quatro ilhotas em fila, mais ou menos a um cabo de distância uma das outros. Essas são as ilhotas The Brothers.
- Já as vejo, senhor - disse Calamy.
- Estão ao sudoeste quarta ao oeste - disse Williamson.
- Poderiam vê-las melhor se o vento soprasse do nordeste e com mais intensidade, e se houvesse forte marejada. Entre elas há um arrecife branco que não tem nem duas braças de água por cima, e se vê quando sopra o vento do nordeste e há marejada. Mas, geralmente, o mar fica calmo, como agora. Os mouros que vivem nesta região não lhes dão importância, mas quando eu estava a bordo do Eurotas, que tinha um calado de dezoito pés e seis polegadas, o barco encalhou ali. Quando há uma fila de ilhotas semelhantes, o mais provável é que as águas que as separam sejam pouco profundas. Senhor Mowett - disse, interrompendo a conversa, - como demoramos tão pouco para vir até aqui, completaremos a aguada antes de chegar ao porto. Não é conveniente chegar muito cedo, e, além disso, acho que esta tarde vai chover, assim que será melhor pegar a água agora. O manancial se encontra a leste, em uma enseada que fica detrás dessas três pequenas ilhotas.
Depois de dizer isto, virou-se e desceu para sua cabine, mas quando estava com a mão na maçaneta da porta, percebeu que havia se equivocado e desceu para a câmara dos oficiais.
Ali encontrou Stephen, que estava descontente e desalinhado (para Jack, a melhor prova de que seu amigo não mantinha relações com a senhora Fielding era que tinha uma barba de três dias e usava uma peruca velha).
- Se essa mulher não nos convidar para algo mais cristão, beberei isto - disse, assinalando o café da câmara dos oficiais, que era claro e insípido e estava morno. - Nos convidou para tomar chocolate com ela. Mãe de Deus! Chocolate a esta hora da manhã! Que o tome ela!
Nesse momento Killick entrou, ainda com o sorriso amável que tinha na cabine, e disse:
- A senhora disse que haverá café, se os cavalheiros preferirem.
Certamente, os cavalheiros preferiam, e, como era seu costume, beberam uma quantidade exorbitante, uma xícara depois da outra. Ficaram bebendo até que Jack notou que a fragata mudava de movimento e deduziu que estavam muito perto da costa. Subiu para o convés, conduziu a fragata até a pequena enseada, com uma praia de areia que ficava atrás das verdes ilhotas, e jogou uma âncora pequena nada mais, porque era um lugar resguardado. Desceu a terra na primeira lancha que transportava os tonéis vazios, e pela primeira vez nessa manhã voltou a ter a mesma impressão que tivera nos últimos dias, a impressão de que estava em um mundo diferente e paralelo. A causa havia sido encontrar-se de novo naquele lugar, que lhe era familiar. Não estivera ali já fazia vinte anos, vinte anos de intensa atividade, e, contudo, recordava de cada pedra da fonte quando se inclinou sobre ela.
Mas subir a bordo vinte toneladas de água, tonel a tonel, requeria muita energia e atenção, e como essa era uma das tarefas que Jack não gostava encomendar a outra pessoa, nem ele nem ninguém tinham muito tempo para uma introspecção consciente. Além disso, imediatamente começaram a chegar rajadas de chuva do noroeste e os pesados tonéis ficaram escorregadios, pelo que foi mais difícil movê-los.
Fazia algum tempo, o Pollux se aproximava de vez em quando da boca da baía, como todos haviam suposto. Devido à sua tendência a abater para sotavento e à curiosidade de Harte, havia chegado inclusive à linha que unia os dois cabos, e agora estava em pairo diante do cabo Akroma, enquanto seus tripulantes praticavam como tirar os mastaréus. Ainda que o navio estivesse dentro da baía, e teria que mudar de bordo e dar bordejadas para sair dela, não podia ser visto de Zambra, portanto, o almirante ainda mantinha a sua promessa; contudo, sua presença ali irritava aos tripulantes da Surprise.
- Se esse entrometido seguir assim, o navio terá dificuldade de voltar para o alto mar, pois terá que dar muitas bordejadas - disse Mowett para Rowan.
Nesse momento a fortaleza do cabo Akroma disparou um canhonaço, e o vento propagou o som pela imensa baía. Todos o marinheiros que não estavam ocupados nesse momento alçaram a vista, mas não notaram nada ocorrer, e como uma das lanchas carregadas com tonéis se abordou com a fragata imediatamente depois, voltaram a baixá-la imediatamente.
Mas Jack estranhou isso, pois na fortaleza não ondeava nenhuma bandeira, e ainda estava olhando o cabo pelo telescópio quando um barco grande que havia saído da baía Jedid o contornou. Era um barco de guerra de duas pontes e oitenta canhões e levava a bandeira turca e o galhardetão de um comodoro. O seguiam de perto duas fragatas, uma de trinta e oito ou quarenta canhões e outra, menos potente, de uns vinte e oito canhões. Apenas havia acabado de ver as embarcações quando viu que a fragata mais potente se situava junto ao lado de bombordo do barco, e então foi arriada a bandeira turca e foi içada a francesa e o barco disparou contra o Pollux com os canhões de proa. O Pollux dirigiu a proa para o lado de onde vinha o vento, o pouco vento que soprava naquele lado do cabo, mas em dois minutos o barco francês chegou a colocar-se tão perto que seus penóis quase se tocavam, e nesse momento começou a disparar com toda a bateria do costado. Entretanto, a fragata avançou pelo lado do barco do comodoro cuja bateria não disparava e se colocou perto da proa do Pollux. Antes que a fragata começasse a disparar os devastadores canhonaços, a Surprise saiu rapidamente da enseada, abandonando as lanchas, e seus tripulantes começaram a desdobrar velas e a fazer os preparativos de combate.
O Pollux estava a barlavento, e, a menos que se adentrasse uma ou duas milhas na baía, a Surprise teria que mudar de bordo duas vezes para alcançá-lo, uma perto de The Brothers e outra à altura da fortaleza de Akroma. A Surprise tinha que percorrer nove milhas em muito pouco tempo, mas como o vento havia aumentado de intensidade, agora navegava a dez nós. O Pollux disparava a um ritmo muito rápido, inclusive com as caronadas de trinta e duas libras que tinha no castelo e no castelo de popa. Pelo que Jack podia ver através do fumaça que enchia o lugar da batalha, seus três mastros ainda estavam em pé, e pensou que era possível que resistisse até que ele chegasse e disparasse na popa do barco francês ou evitasse que a fragata mais potente seguisse disparando-lhe. A fragata francesa menor estava perto do navio e de vez em quando disparava, mas não parecia que seus disparos causavam graves danos nem que seu capitão tivesse muito interesse em participar da batalha.
- Desdobrar a joanete da maior! - ordenou.
Quando os marinheiros amarraram as escotas, a Surprise inclinou ainda mais, a serviola e o pescante central de bombordo se cobriram de espuma e a água saltou até a borda. Então a fragata aumentou ainda mais de velocidade. "Espera, desgraçado", pensou e imediatamente, em voz alta, disse:
- Desdobrar a bujarrona!
A coberta se inclinou como o telhado de uma casa, e Jack permaneceu de pé no convés, com o braço direito ao redor do brandal do pau mezena. Do seu lado estavam Mowett e o guarda-marinha encarregado de transmitir suas mensagens. Dois excelentes timoneiros, Devlin e Harper, estavam no leme, e detrás deles estava o oficial de derrota, que governava a fragata. Todos os marinheiros que manejavam os canhões, exceto os que orientavam as velas, estavam em seus postos, e junto a cada brigada estava oficial e o guarda-marinha que as comandava, os infantes da marinha e os marinheiros que manejavam as armas leves também estavam em seus postos. Todos olhavam fixamente os barcos apinhados que combatiam em meio do ruído estrondoso e da preta fumaça onde apareciam constantemente clarões alaranjados.
Quase havia chegado o momento de mudar de bordo. Jack olhou para The Brothers, que estavam a meia milha de distância, e depois viu Stephen, que acabava de subir a escada do castelinho e agora subia trabalhosamente a ladeira. Em uma batalha, o posto do doutor Maturin ficava na coberta inferior, mas quase nunca ia ali antes de que a batalha começasse.
- Como está a senhora Fielding? - perguntou Jack em voz muito alta para que o ouvisse apesar do rumor da água.
- Muito bem, obrigado. Tem a valentia e a fortaleza dos antigos romanos.
- Tem cuidado. Segure-se a Davis porque vamos mudar de bordo.
Jack olhou para Gill e assentiu com a cabeça.
- Agora! - gritou o oficial de derrota.
A Surprise começou a mudar de bordo lentamente, girando sobre si mesma, como um cúter, e suas velas foram movendo-se para bombordo cada vez mais rápido. Então o vento, formando redemoinhos, trouxe o odor da fumaça da pólvora, e Jack disse:
- Poderão dizer tudo o que queiram do almirante, mas ninguém poderá chamar-lhe de covarde. Meu Deus! Como luta o Pollux!
- Senhor - disse Mowett, olhando pelo telescópio, - ele perdeu o mastro traquete.
Enquanto falava, havia surgido uma clareira na fumaça, e Jack pôde ver que, realmente, o Pollux perdera um mastro, de forma que não poderia mudar de bordo para sotavento, mas que seguia disparando a um ritmo muito rápido. Um momento depois na fragata mais potente, em resposta a um sinal do barco de duas pontes, mudaram a orientação das velas e rumaram para o sul para interceptar a Surprise.
- Doutor - disse Jack, - é hora de ir para baixo. Cumprimente de minha parte a a senhora Fielding e diga-lhe que acho que ficará melhor na bodega, e depois leve-a até ali, por favor.
Agora que as fragatas estavam afastadas da fumaça, Jack as olhou com grande atenção. A mais próxima tinha trinta e oito canhões, como havia suposto, e era muito bonita e rápida; contudo, como pesava mil toneladas, era improvável que fosse tão ágil como a Surprise. A outra tinha vinte e oito canhões, como a Surprise, mas aí terminava a semelhança entre elas, porque era muito larga e tinha a proa chata, e por seu aspecto parecia construída na Holanda.
- Cinco graus para barlavento! - ordenou.
- Sim, senhor, cinco graus para barlavento!
Quando os disparos da primeira fragata francesa pudessem alcançar a Surprise, provavelmente daria uma guinada para disparar-lhe uma descarga, e a Surprise teria que mudar de bordo todo o leme para barlavento para evitar ser alcançada. Contudo, os poucos graus que a Surprise havia virado lhe permitiriam colocar-se quase contra o vento e não só evitar a descarga como talvez inclusive passar entre as duas fragatas inimigas antes que a primeira tivesse tempo de disparar-lhe outra descarga. Mas isso dependia em grande medida do que a segunda fizesse. Era muito perigoso passar entre as duas fragatas, mas tinha que fazê-lo. Nesse momento as duas embarcações, como se seus capitães tivessem adivinhado sua intenção, desviaram ligeiramente do rumo, uma para estibordo e a outra para bombordo, de modo que a fragata ficasse no meio das duas.
Jack estava muito tenso e muito animado; contudo, uma parte de sua mente se recordou que Stephen lhe dissera que a frase à Dieu va, que os franceses usavam com o significado "Mudar de bordo o barco", queria dizer na linguagem comum "Temos que nos arriscar e confiar em Deus". "Isso é o que nós temos que fazer", pensou enquanto olhava o distante navio de duas pontes que ainda disparava com fúria, o mesmo que seu adversário. Nesse momento a nuvem de fumaça se dividiu em duas e a fumaça se estendeu por ambos os lados, Jack viu brotar no espaço central uma imensa labareda de extraordinário brilho, da qual saltavam para cima escuros objetos, e viu que por em cima dela havia uma nuvem de fumaça branca. O Pollux havia explodido. E antes que a imensurável labareda se extinguisse, chegou até a fragata o estampido produzido pela santa-bárbara ao estourar, que fez estremecer o mar e as velas. O pau traquete do barco francês também havia caído pela borda, mas nem a explosão nem os pedaços de paus e vaus que lhe haviam caído em cima haviam provocado seu afundamento.
- Preparados para mudar de bordo! - ordenou Jack.
Agora que o Pollux não podia ajudar-lhe, tinha que fazer tudo o que pudesse para salvar a Surprise e sua tripulação, e tratar de passar entre aquelas duas fragatas não parecia a melhor forma de conseguir.
Não duvidava que os franceses, que tinham superioridade sobre eles, atacariam-lhes em Zambra, e não foi com a intenção de se refugiar em um porto neutro que fez rumo ao sul-sudeste, para o cabo em que se alçava a fortaleza que guardava a entrada do porto e da cidade.
Inclinou-se sobre o coroamento e dirigiu o telescópio para o barco francês. De vez em quando as rajadas de chuva o impediam de vê-lo com clareza, mas estava seguro de que sofrera graves danos. Seus tripulantes haviam jogado na água as lanchas que restavam, haviam posto cabos de reforço na proa e na popa e estavam fazendo uma balsa com diversos paus do barco. Na opinião de Jack, não era provável que fizesse estrago à fragata se a mantivesse fora do alcance dos canhões de trinta e duas libras que lhe restavam, mas as fragatas francesas eram outra coisa. Poderia lutar com elas em separado, ainda que seria difícil escapar do ataque de uma fragata de trinta e oito canhões bem governada e que estivesse a sotavento em uma baía estreita; contudo, lutar com as duas juntas…
Observou-as muito atentamente para julgá-las com objetividade, conforme os critérios mais apropiados. Cada vez lhe parecia mais claro que a fragata mais potente, ainda que fosse elegante e veloz, estava governada de uma forma correta, mas não com soltura, que o capitão e seus tripulantes haviam passado mais tempo nos portos que navegando em todas as estações e que não se sentiam a vontade em sua fragata. Havia notado que os tripulantes faziam as manobras com indecisão e lentidão e sem coordenação, o que demonstrava que não estavam acostumados a trabalhar juntos. Além disso, tinha a impressão de que não conheciam bem o mar. Contudo, isso não significava que não manejassem bem os canhões, tão bem como os franceses costumavam fazer, nem que o peso conjunto das balas de uma descarga não fosse muito maior que o das de uma descarga da Surprise. Enquanto que a fragata menor, Jack pensava que seu capitão tinha mais experiência. Contudo, era muito lenta, e quando a Surprise chegou nas imediações da fortaleza, estava longe demais, pela popa. Estava muito longe, mas por barlavento, e isso era o mau. As duas fragatas francesas tinham a vantagem de estarem a barlavento.
Não lhe surpreendeu que a fortaleza abrisse fogo, ainda que em vão, porque desde que vira a esquadra francesa aparecer tinha certeza de que o Dey era seu aliado; contudo, isso lhe deu uma boa desculpa para fazer o que tinha pensado.
A Surprise virou e começou a navegar contra o vento e em direção da costa ocidental, e novamente Jack a fez avançar o mais rápido que podia. Nunca antes estivera tão unido a uma embarcação. A Surprise podia desdobrar uma grande quantidade de velame com o vento de pouca intensidade que soprava no fundo da baía, e ele sabia exatamente o quanto e foi essa quantidade que ele aplicou. A fragata se comportava como um puro sangue e se afastava cada vez mais do grande barco francês, que havia virado ao mesmo tempo que ela e agora se achava a duas milhas pela alheta de estibordo, navegando em rumo paralelo e disparando de vez em quando com o canhão de proa. A costa ocidental já estava muito perto, e podiam ser vistos vários barcos pesqueiros jogando as redes. Aproximava-se mais e mais, e enquanto isso Jack pensava nos possíveis caminhos a seguir, na intensidade do vento, no abatimento da fragata, e fazia uma série de cálculos quase inconscientemente.
Em meio ao silêncio, gritou:
- Preparados para mudar de bordo! E quando dê a ordem, movam-se rápido como um raio!
Outras cem jardas. Duzentas jardas.
- Leme a bombordo! - gritou.
A fragata voltou a mudar de bordo em redondo com a mesma graça de sempre e começou a navegar velozmente em direção ao norte da costa ocidental, em direção às ilhotas The Brothers e ao cabo que se encontrava justo detrás delas. Nesse momento se fez patente a vantagem de estar por barlavento. Apesar da Surprise ter virado muito rápido e navegar a grande velocidade, as fragatas francesas tinham que percorrer uma distância menor (sua posição era comparável à dos cavalos que iam nas raias interiores de uma pista de corrida, e a da Surprise com a do que ia na raia exterior), e parecia que se a fragata não se detinha em um ponto da costa, elas poderiam interceptá-la antes que chegasse a The Brothers ou pegá-la entre eles e o cabo que ficava detrás.
Havia silêncio absoluto na fragata enquanto todos viam se aproximar com rapidez as ilhotas The Brothers, com seus três canais, e as fragatas francesas. Durante aquela longa corrida, os tripulantes da fragata mais potente haviam tido tempo de desdobrar uma grande quantidade de velame, e agora a fragata navegava tão rápido quanto a Surprise ou mais. Dirigia-se para o canal central, por onde poderia chegar ao cabo antes da Surprise, e uma vez ali se poria em pairo e prepararia os canhões para disparar contra a fragata quando dobrasse o cabo. A fragata de vinte e oito canhões havia alcançado a esteira da Surprise para cortar-lhe a passagem no caso de tentar retroceder depois de atravessar o primeiro canal.
A fragata mais potente se encontrava agora a um pouco mais de meia milha pelo través de estibordo e seguia avançando com rapidez. Jack, em vez de diminuir velame, fez diminuir a velocidade soltando discretamente algumas escotas e aproximando mais a proa da direção de onde vinha o vento. Os tripulantes conheciam muito bem o modo de de Jack agir, mas puseram uma expressão grave ao ver que a fragata francesa estava paralela à sua e ia ultrapassá-la quando o canal entre a primeira ilhota e a segunda estava muito perto e do outro lado já se avistava o ameaçador bloco do cabo sob a chuva. Quando a fragata francesa passou pelo lado da Surprise, apesar de estar distante, disparou uma descarga, e Jack, em vez de responder com outra, gritou:
- Preparados para diminuir velame!
Então foi até onde ficava o leme.
A fragata francesa seguiu avançando rapidamente, formando grandes ondas com a proa. Finalmente entrou no canal central e se chocou contra o arrecife com uma força incrível, e imediatamente seus mastros caíram para frente ou para sotavento. Sua companheira virou de imediato e começou a navegar velozmente em direção à costa leste.
- Silêncio de proa a popa! - gritou Jack entre os vivas dos tripulantes. - Carregar as velas! Carregar as velas! Mover a gávea do maior!
Quando a velocidade da fragata diminuiu o suficiente, Jack virou o leme e a conduziu muito devagar pelo primeiro canal, por uma passagem profunda que havia entre a primeira ilhota e o escarpado, uma passagem tão estreita que os penóis de ambos os lados roçavam as rochas.
- Puxar das braças! Amarrar as escotas!
A Surprise voltou a alcançar a velocidade que tinha e começou a navegar em direção ao alto mar com o vento pelo través.
Quando a Surprise dobrou o cabo que ficava do outro lado das ilhotas The Brothers, a chuva chegou do nor-noroeste e, como um manto grosso e cinzento, cobriu toda a baía, ocultando as costas e temperando o entusiasmo que havia na coberta, que os marinheiros expressavam dando-se palmadas nas costas uns dos outros dizendo: "Demos aos sacanas o que eles mereciam!" ou "Nós os enganamos!" ou "Haviam visto alguma vez uma coisa igual?". E quando a chuva cessou e o céu do outro lado do cabo Akroma se tornou azul, os marinheiros, com a cara empapada mas ainda resplandecente de alegria, seguiam olhando com admiração para o seu capitão.
O capitão estava de pé, com as pernas separadas, muito perto do coroamento, e movia o telescópio de um lado e para o outro da baía. A euforia que havia sentido nos primeiros momentos posteriores ao triunfo já passara, mas ainda havia em seus olhos um brilho pirático enquanto pensava nas possíveis formas de agir.
- Digam ao doutor que venha - ordenou após um tempo.
E quando o doutor chegou, Jack, assinalando com a cabeça o barco de duas pontes francês que estava imóvel entre as águas cinzas e agitadas, a uma milha e meia de distância, disse:
- Quero que saiba qual é a situação. O Pollux afundou, ou melhor, explodiu e, naturalmente, afundou, mas antes causou graves danos ao barco francês.
Então deu o telescópio para Stephen, que viu que o barco estava meio afundado e a água saía pelos embornais, e também que tinha as portalós da coxia destroçadas e lhe faltava o mastro traquete.
- A explosão também lhe causou danos importantes - continuou Jack. - Acho que muitos vaus se desprenderam. Está bastante afundado, e a proa está muito mais baixa. Os tripulantes puseram cabos de reforço na proa e na popa. Estou convencido de que hoje não se moverá, façamos o que façamos.
Stephen olhou pelo telescópio os enegrecidos restos do navio, que abarcavam uma área de meia milha, e disse:
- Mãe de Deus! Quinhentos homens mortos em uma explosão que durou um segundo!
- Agora olhe para as ilhotas The Brothers - disse Jack depois de uma breve pausa. - Essa embarcação desaparelhada que está sobre o arrecife do canal central é a fragata mais potente. Chocou-se com tanta força e entrou tanto que nunca poderá sair. Não vale a pena irmos queimá-la.
- Suponho que esses homens que se aproximam da costa nas lanchas são seus tripulantes - disse Stephen.
- Exatamente. Agora olhe para o fundo da baía - disse, apontando para lá. - Essa é sua infeliz companheira. Navega à velocidade do raio para chegar a Zambra. Acho que é um barco holandês. Provavelmente seus homens foram obrigados pelos franceses a servir em sua armada, mas eles não estão dispostos a derramar seu sangue por um grupo de estrangeiros. Percebe qual é a situação?
- E aqueles botes?
- São botes de pescadores e de outras pessoas que vêm para se apoderar do que encontrem entre os restos do naufrágio.
- E aquele barco com dois mastros?
- É nossa lancha. A deixamos para trás quando partimos dali. Honey a trará imediatamente, e também a âncora pequena e a guindaleza.
- Acho que tudo está claro.
- Muito bem. Então quero que tenha a amabilidade de dar-me sua opinião, do ponto de vista político, sobre o seguinte plano: iremos a Zambra sem perder um minuto, entraremos em combate com esse miserável arenqueiro holandês e atacaremos a fortaleza que nos disparou e, depois de tomá-la, mandaremos ao Dey a mensagem de que a menos que seu governo se desculpe imediatamente pela ofensa feita à nossa armada, queimaremos todos os barcos que há no porto, e depois de resolver isto, falaremos com o senhor Eliot. Acha que é um bom plano?
- Não, não acho. É evidente que o Dey tomou parte nesta armadilha, e como a fortaleza disparou para a Surprise, provavelmente acredita que já estamos em guerra com ele. Tenho entendido que é irrascível e cruel, e acho que atacá-lo neste momento, quando está tão excitado, terá forçosamente como consequência a morte do senhor Eliot. Além disso, como há um barco de duas pontes francês na baía, não podemos perder tempo em negociações, ainda que ele tenha que ficar amarrado durante um tempo. Acho que o plano, do ponto de vista político, é disparatado, e não só por esses motivos, senão por muitos outros, e peço que o abandone. Nestas circunstâncias, o que qualquer conselheiro político em seu são julgamento lhe aconselharia seria que saísse daqui com celeridade e fosse pedir novas instruções e um bom reforço.
- Temia que ia me dizer isso - disse Jack, olhando para Zambra com tristeza. - Contudo, a ocasião é propícia, sabe? Mas não quero que o senhor Eliot morra. Por outro lado, desobedeceria as ordens que me deram se me apoderasse da cidade.
Foi até o pau maior e voltou duas vezes, depois deu a ordem de que aproximassem a fragata da lancha e depois, com sua alegria habitual, disse:
- Tem razão: devo ir a Gibraltar com celeridade. Como já parou de chover e não há combate, podemos deixar a pobre senhora Fielding sair da bodega.
Os dois haviam se afastado da zona próxima ao coroamento, onde se podia falar confidencialmente, e Jack falara em voz muito alta, e como na fragata reinava agora uma atmosfera distendida, como a que costumava seguir os momentos de grande tensão, e, além disso, agradável, Williamson não achou incorreto dizer: "Eu irei buscá-la, senhor!", nem Calamy, replicar: "Eu sei perfeitamente onde está! Deixe que eu vá, senhor!".
A senhora Fielding subiu ao convés justamente quando a Surprise se punha em pairo e a lancha se abordava com ela. Haviam lhe contado a desgraça que havia ocorrido ao Pollux e tinha uma expressão grave. Disse ao capitão Aubrey que esperava que nenhum amigo seu houvesse perecido na explosão e que ela não conhecia a nenhum dos que iam a bordo do navio. Depois, com um olhar melancólico, disse que seu esposo estivera sob as ordens do pobre almirante Harte. Ambos fizeram os apropiados comentários, e sentiam realmente o que diziam, apesar de que predominava neles a alegria que a vitória lhes havia produzido; contudo, não puderam estender-se porque nesse momento os tripulantes subiam a lancha a bordo, uma manobra para cuja realização se davam muitas apitadas e se gritavam muitas ordens.
Para o capitão Aubrey pareceu que os tripulantes falavam inclusive mais que o habitual e conveniente, e observou que seguiram falando muito mesmo depois que a lancha foi introduzida na fragata, apoiada nos calços e amarrada fortemente e que repetiam amiúde a palavra "braçadeiras". Quando conseguiu fazer a senhora Fielding compreender em que posição estava a fragata quando se encontrava perto do arrecife agora distante, notou que Mowett hesitava em falar-lhe ou não e viu que detrás dele estava o contador, cheio de ira, e detrás do contador, Honey, com o cenho franzido.
- Senhor Mowett? - perguntou.
- Desculpe, senhor - disse Mowett, - mas o senhor Adams quer dizer-lhe, com todo o respeito, que suas braçadeiras não foram recolhidas.
- Quatro maços de braçadeiras de dezenove peniques e duas de meia libra - disse o contador, como se estivesse fazendo um juramento. - Foram entregues ao toneleiro para os tonéis de reserva e não foram recolhidas pelo senhor… por alguém.
Mowett continuou:
- Diz que se contornamos as ilhotas, demorará só um pouco para ir buscá-las no bote.
- O contador é responsável por todas as braçadeiras - disse o senhor Adams, ainda falando de modo que parecia se dirigir a todo mundo em vez de a uma só pessoa. - E a Junta me repreendeu duramente três vezes durante o último trimestre.
- Senhor Mowett - disse Jack, - ainda que essas braçadeiras fossem de ouro de vinte e quatro quilates, ficariam em terra até que voltássemos a passar por aqui. Não há nem um momento a perder. Senhor Gill, trace uma rota para ir a Gibraltar, por favor. Vamos desdobrar todo o velame que a fragata possa levar estendido.
- Minhas braçadeiras… - disse o contador.
- Suas braçadeiras valem muito, senhor Adams - deu Jack, - mas não se podem comparar com a possibilidade que temos de capturar esses dois barcos franceses se o vento for favorável. Que foi, Killick?
- A cabine da senhora já está arrumada, senhor, com sua permissão. E fiz café.
Nunca ninguém havia arrumado a cabine de Jack nem lhe preparara café em tão pouco tempo, mas ele não protestava quando tinha boa sorte. Pouco depois, quando a fragata saiu da baía e inclinou-se por causa da grande intensidade do vento do nor-noroeste, disse:
- Não queria desafiar ao destino, mas a esta velocidade poderíamos chegar a Gibraltar na terça-feira pela manhã, que é um dia de sorte, assim que vou começar meu relatório oficial nesta mesma tarde.
Então pensou que se o almirante lhe desse um navio de linha que agora estivesse sob o comando de um capitão de menos antiguidade que ele (os nomes de meia dúzia deles passaram por sua mente), a possível ou quase provável captura dos dois barcos franceses voltaria a pôr-lhe no caminho adequado, no caminho pela obtenção de um bom posto, como por exemplo, estar ao comando de uma excelente fragata de quarenta canhões na base naval da América do Norte.
- Vou chegar longe! - disse com um alegre sorriso.
- E eu vou escrever - disse Laura Fielding. - Vou escrever para Charles imediatamente para lhe pedir que venha buscar-me. Quando lhe diga o amável que o senhor foi comigo, quererá lhe conhecer. Apenas passemos juntos alguns momentos, quererá lhe conhecer.
E Stephen disse para si: "Eu também vou escrever uma carta. Só oito ou nove homens conheciam o conteúdo das ordens de Jack, e se isso não permitir a Wray pegar ao responsável principal, a esse Judas, então não há dúvida de que o próprio diabo está metido neste caso".
{1} Curva: Peça de madeira naturalmente curva que se emprega nos barcos para prender duas madeiras unidas em ângulo.
{2} Speronara: Barco grande de remos com uma vela latina usado no sul da Itália e de Malta.
{3} Sociedade Naval (Marine Society): Organização caridosa fundada em 1756 para preparar jovens e adultos para ingressarem na Armada.
{4} Espia: Cabo que prende em um lugar e se puxa para que o barco se mova na direção deste.
{5} Cabillero: Mar. Peça de madeira ou metal com furos, pelos quais se atravessam as barras que servem para amarrar e dar voltas nos cabos de trabalho.
{6} Classe: Na Armada, os navios eram agrupados em classes atendendo ao número de canhões que tinham.
{7} Guindaleza: cabo de 12 a 25 cm de diâmetro, de três ou quatro cordões torcidos da direita para a esquerda e de 100 o mais braças de comprimento, que se usa a bordo e em terra.
{8} Cachorro com manchas: Pudim de sebo com passas.
{9} Brummagem: Nome que vulgarmente se dava a Birmingham, onde se fabricaram moedas de quatro peniques falsas em certa ocasião.
{10} Faldetta: Capa com capuz usada pelas mulheres em Malta.
{11} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{12} Codo: Medida de comprimento que é aproximadamente a distância entre o cotobelo e o extremo da mão.
{13} Bedlam (Bethlehem Royal Hospital): Primeiro manicômio inglês e o primeiro da Europa, tristemente famoso pela forma brutal com que tratavam os loucos. Atualmente se usa seu nome para fazer referência a qualquer manicômio.
{14} Merlín: Mar. Cabo delgado de canhamo alcatroado, que se emprega a bordo em uniões e outros usos semelhantes.
{15} Estadio: Medida de comprimento equivalente a cento e vinte e cinco passos (201,2 metros).
{16} Nous: palavra grega que significa inteligência.
{17} Jardim: chama-se assim o banheiro nos barcos. (N. do T.)
{18} Faldetta: espécie de capa ou bata com capus largo.
{19} Candelero: Mar. Cada um dos puntales verticais, geralmente de metal, que se colocam em diversos lugares de uma embarcação para prender neles cordas, telas, listéis ou barras e formar gradis, anteparas e outros acessórios.Aubrey e Maturin se encontram em Malta à espera de embarcar, enquanto os serviços secretos franceses os vigiam. Entram em contato com uma mulher, cujo marido está preso, que atua como agente secreto. Maturin fica enamorado por ela e descobre que as cartas que ela recebe de seu marido são falsificações.
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CAPÍTULO 1
Um suave vento soprava do nordeste depois de uma noite de chuva, e a luz que iluminava o céu de Malta tinha uma qualidade especial que fazia ressaltar as linhas dos nobres edifícios, destacando todos os atributos das pedras. Era um prazer respirar o ar, e a cidade de Valletta estava muito animada, como se todos nela estivessem enamorados ou de repente tivessem ouvido boas notícias.
Isto se notava particularmente em um grupo de oficiais da marinha sentados no caramanchão do hotel Searle. Olhavam para o passeio Upper Baracca, sob cujos arcos caminhavam muito devagar para um lado e para o outro uma multidão de soldados, marinheiros e civis debaixo da brilhante luz do sol, tão brilhante que fazia parecer alegres as negras capas com capuzes das mulheres maltesas, e resplandecer como flores esplendorosas os uniformes dos oficiais. Apesar de que os uniformes que mais se viam na multidão eram os de cor escarlata e dourado da Armada britânica, era uma multidão cosmopolita, na qual estavam representados muitos dos países que faziam a guerra à Napoleão, e também se viam nela, por exemplo, os uniformes de cor rosa claro dos croatas de Kresimir e os de colorido azul com galões prateados dos hussardos napolitanos, que faziam um agradável contraste. Para lá do passeio e muito mais abaixo ficava o grande porto, hoje com as águas de cor safira, nas quais formavam veios brancos as velas de inumeráveis barcos pequenos que iam e vinham de Valletta para os grandes cabos fortificados que ficavam do outro lado, Sant'Angelo e Isola, e dos barcos de guerra, os transportes e os vendedores, e tudo isto constituia um espetáculo que deleitava a qualquer homem do mar.
Todos esses cavalheiros eram capitães sem barcos. Os que estavam em sua posição ficavam geralmente silenciosos e tristes, e muito mais na atualidade, já que a prolongada guerra parecia estar chegando ao seu clímax, a concorrência era mais dura que antes, e para receber distinções e nomeações que valessem a pena, para não falar de conseguir butins e promoções, era preciso estar ao comando de um barco. Alguns haviam ficado sem barco, ou porque suas embarcações haviam afundado, como no caso da antiqüíssima Aeolus, que estava sob o comando de Edward Long, ou porque a promoção havia provocado que ficassem em terra, ou devido a um maldito conselho de guerra. Contudo, a maioria deles somente se separavam temporariamente de seus barcos, os quais estavam sendo repararados porque estavam estragados por ter passado anos fazendo o bloqueio a Toulon em todas as condições climatológicas possíveis. Mas os estaleiros estavam abarrotados, as reparações costumavam ser grandes e complicadas e sempre eram muito lentas, e os capitães tinham que permanecer ali enquanto transcorria o precioso tempo que podiam passar no mar, e maldiziam constantemente o atraso. Ainda que alguns dos mais ricos haviam mandado buscar suas mulheres, que, sem dúvida, eram um consolo para eles, a maioria dos capitães ficavam condenados ao triste celibato ou ao solaz local que pudessem encontrar. O capitão Aubrey era um destes, porque apesar de ter capturado uma presa valiosa no mar Jônico, o Almirantado ainda não decidira se era uma presa legal, e seus negócios na Inglaterra iam tão mal que lhe haviam causado problemas legais de todo tipo. Por outro lado, como o alojamento em Malta encarecera e ele, por ser mais velho agora, já não se atrevia a desembolsar grandes somas que mesmo não possuía, vivia como um solteiro, com as poucas coisas com que um capitão de navio podia viver com decoro, de modo que subia três vãos de escada até seu quarto no hotel Searle e a ópera era seu único entretenimento. Em realidade, era o mais desafortunado de todos os capitães cujos barcos estavam nmãos dos homens que deviam repará-los, já que havia tido que mandar nada menos que duas embarcações ao estaleiro, assim que tinha que tratar com dois grupos diferentes de empregados corruptos e incompetentes, artesãos lentos e estúpidos e comerciantes velhacos. Uma das embarcações era o Worcester, um desconjuntado navio de linha de setenta e quatro canhões que quase se despedaçara na longa e inútil perseguição da esquadra francesa em um temporal, e a outra era a Surprise, uma pequena fragata que navegava com facilidade e que lhe fora designada temporariamente, enquanto o Worcester era reparado, para que fosse ao mar Jônico para realizar uma missão na qual atacara duas embarcações turcas, a Torgud e o Kitabi, e sustentara com elas um encarniçado combate ao final do qual a Torgud afundara, o Kitabi fora apresado e a Surprise ficara cheia de buracos na linha d’água. O Worcester, esse barco mal desenhado e mal construído, esse caixão flutuante, seria mais útil se fosse feito em pedaços e vendido como lenha, mas era ao seu casco sem valor ao que os empregados do estaleiro atendiam, pois isso lhes produzia benefícios, enquanto a Surprise fora esquecida porque faltavam umas curvas{1} para a coxia, a coluna do gurupés e a serviola de estibordo e placas de cobre para cobrir vinte jardas quadradas. Enquanto isso, os marinheiros que integravam a tripulação da Surprise, excelentes marinheiros selecionados, não só eram cada vez mais preguiçosos, viciosos e dissolutos, senão que se embebedavam e adoeciam mais, e os melhores e inclusive os suboficiais, eram levados pelos superiores de Jack que não tinham escrúpulos. Ademais, o magnífico primeiro oficial havia deixado a fragata. O capitão Aubrey deveria ser o mais triste daquele grupo de homens tristes; contudo, estava muito animado, falava em voz muito alta e inclusive cantava com entusiasmo, com tanto entusiasmo que seu amigo íntimo, o cirurgião da Surprise, Stephen Maturin, fora para um lugar do caramanchão mais tranqüilo, levando consigo um antigo companheiro de tripulação, o professor Graham, um filósofo que viajava com permissão da universidade escocesa onde trabalhava, um homem que dominava a língua turca e era uma autoridade em assuntos orientais. O entusiasmo do capitão Aubrey devia-se em parte ao efeito daquele bonito dia em uma pessoa alegre por natureza, em parte pela contagiosa alegria de seu companheiros, e em parte, principalmente, por que ao final da mesa estava sentado Thomas Pullings, que até pouco tempo era seu primeiro tenente e agora era o capitão de menos antiguidade da Armada, o homem que ocupava o lugar mais baixo na lista dos que tinham direito a ser designados com o nome de capitão, ainda que só fosse por cortesia. A promoção custara ao senhor Pullings algumas pintas de sangue e uma terrível ferida (um turco lhe havia desferido um golpe e lhe cortara grande parte da testa e do nariz), mas suportaria com gosto uma dor dez vezes mais intensa e ter ficado mais desfigurado para conseguir as dragonas douradas, para as quais lançava olhares e tocava constantemente, sorrindo dissimuladamente. Jack Aubrey havia tentado que lhe dessem essa promoção durante muitos anos, e perdera a esperança de conseguir, já que Pullings, ainda que fosse um experimentado marinheiro e um homem simpático e valente, não tinha privilégios por sua origem. Inclusive na última ocasião, Aubrey não confiava em que seu relatório produzisse o efeito desejado, pois o Almirantado, sempre resistente a dar promoções, poderia dar a desculpa de que o capitão da Torgud era um rebelde e não o capitão de um barco que pertencia a um país hostil. Contudo, a nomeação havia sido enviada imediatamente no Calliope, e o capitão Pullings a recebera há tão pouco tempo que sua alegria ainda estava mesclada com o assombro; falava muito pouco e respondia sem pensar, algumas vezes sorria, outras ria sem razão aparente.
O doutor Maturin também sentia afeto por Thomas Pullings. Assim como o capitão Aubrey, navegara com ele quando era guarda-marinha, ajudante de oficial de derrota e tenente. Estimava-o muito e lhe costurara a ferida da testa e do nariz com mais cuidado do que costumava ter e havia passado a noite sentado junto de sua maca durante o período em que havia tido febre. Mas o doutor Maturin não havia podido conseguir o peixe de São Pedro. Era sexta-feira e havia esperado com aflição o peixe de São Pedro que haviam prometido dar-lhe nesse mesmo dia; contudo, o gregal soprara com tanta força durante a terça-feira, a quarta-feira e a quinta-feira que os barcos pesqueiros não haviam podido sair do porto, e posto que em Searle não estavam acostumados a ver oficiais da marinha católicos (era raro encontrar-lhes na Armada, já que quando chegavam ao grau de tenente lhes exigiam declarar que não reconheciam a autoridade do Papa), não haviam incluído na refeição nem um pedaço de pescado em salmoura, ele havia tido que comer umas horríveis verduras cozidas ao estilo inglês, muito cozidas e sem sabor de nada. Maturin não era ambicioso nem tinha muito mau humor, mas esta decepção se somava a uma série de desgostos e molestias que havia tido e, ademais, chegava quando fazia dois dias que havia deixado de fumar.
- Pode-se dizer que Duns Scotus tem a mesma relação com Aquino que Kant com Leibniz - disse Graham, continuando a conversa que mantinham antes.
- Ovi isso amiúde em Ballinasloe - disse Maturin. - Mas não aguento a Immanuel Kant. Desde que descobri que faz caso desse ladrão do Rousseau, não lhe aguento. O fato de que um filósofo dê crédito ao que diz esse tipo extravagante filho de um bandido suiço demostra que tem dois defeitos: ligeiraza e credulidade. As lágrimas abundantes e tão bem calculadas, as confissões falsas, o entusiasmo, as paisagens ideais… - disse, aproximando a mão de sua tabaqueira e logo afastando-a com decepção. - Quanto detesto o entusiasmo e as paisagens ideais!
- David Hume achava o mesmo que o senhor - disse Graham, - quero dizer, tinha a mesma opinião sobre monsieur Rousseau. Achava que ele era simplesmente um crackit gaberlunzie.
- Mas Rousseau pelo menos não fazia ruído - disse Maturin, olhando com raiva para o outro lado do caramanchão, onde estavam seus amigos. - Jean Jacques Rousseau era um homem insensível, um apóstata, um fornicador e um embusteiro, mas não berrava como um touro quando ficava alegre. Olhe como gritam para essas jovens! Que vergonha!
As jovens, que a cada noite dançavam ou cantavam em coro no palco e amiúde iam de excursão com os oficiais mais jovens para as ilhas Gozo e Camino, onde comiam em algum de seus pequenos bosques, não pareciam icomodadas. Todas lhes responderam algo e lhes cumprimentaram com a mão, e uma delas inclusive subiu a escada, sentou-se no braço da cadeira do capitão Pellew, bebeu de seu copo de vinho e disse que todos deveriam ir ver a ópera no sábado porque ela ia cantar a parte do jardineiro recruta. Nesse momento o capitão Aubrey fez um comentário jocoso, que Maturin não pôde ouvir, mas as gargalhadas que o seguiram provavelmente se ouviram em Sant'Angelo.
- Jesus, María e José! - exclamou Maturin. - Na Irlanda, quando um grupo de amigos brincam não se ouve mais que um burburinho, e acho que o mesmo ocorre na Escócia.
Graham não achava, mas tinha uma atitude benévola por Maturin e se limitou a dizer: "Heuch: ablins".
- Alguns de meus melhores amigos são ingleses - continuou Maturin, - e inclusive os mais respeitáveis têm essa horrível tendência de fazer um ruído confuso quando estão alegres. Isso carece de importância em seu país, onde a dieta embota a sensibilidade, mas em outros, não, em outros é percebido como uma amostra de arrogância e causa mais indignação que muitas faltas piores. Os espanhóis são desprezíveis, são colonialistas, rapaces e cruéis assassinos, mas nunca se lhes ouve rir. Sua arrogância é um tipo de arrogância comum, universal, e sua presença não causa tanta indignação como a dos ingleses. Tomemos como exemplo o caso desta ilha: faz mais ou menos dez anos que a marinha resgatou sua população da espantosa tirania francesa e encheu o lugar de riquezas em vez de carregar seus barcos até o tope com os tesouros das igrejas e os levar, mas agora difunde o descontente entre a população, e acredito que o riso tem algo a ver com isso. Ainda que bem sabe Deus que também tem algo a ver com a arrogância corrente. Quer dar uma lhada nisto?
Graham pegou o papel, sustentou diante dele com o braço estirado, e leu: "O governador civil nomeado pelo Rei lamenta que algumas pessoas débeis e irrefletidas, enganadas por falsos argumentos, tenham se convertido em instrumentos de alguns revoltosos. Que as convenceram a subscrever uma petição de mudanças na atual forma de governo destas ilhas que será apresentada ao Rei".
- Nota-se nele o estilo polido de sir Hildebrand - disse Maturin. - Ebenezer Graham, já que o senhor goza de sua confiança, não poderia aconselhá-lo que esquecesse seu orgulho e sua justificada indignação por um momento e refletisse sobre a enorme importância da benevolência dos malteses? Não poderia persuadi-lo a que se dirigisse a eles com cortesia e em sua própia língua ou, ao menos, em italiano? Não poderia…? Que foi, garoto? - perguntou a um menino que conseguira atravessar a cerca, pusera-se ao seu lado e, sorrindo timidamente, esperava o momento oportuno para dizer-lhe que sua irmã, de apenas quinze anos de idade, era amável com os cavalheiros ingleses, que seus honorários eram moderados e que a plena satisfação estava garantida.
A interrupção não fora longa, mas impediu Maturin de seguir falando com fluidez, e quando o menino se foi, Graham disse:
- E posto que o senhor goza da confiança do capitão Aubrey, não poderia aconselhá-lo que evitasse a companhia do senhor Holden em vez de saudar-lhe dessa maneira em público?
O senhor Holden fora expulso da Armada por usar seu barco para proteger a um grupo de gregos que fugiam por causa de alguns atos de repressão cometidos pelos turcos e agora representava um pequeno, incipiente e ineficaz Comitê para a Independência da Grécia, e como o governo inglês tinha que manter boas relações com o Sultão, não era uma pessoa grata para as autoridades de Malta.
Mas era muito tarde para dar esse conselho, pois Holden já estava sentado na mesa de seu velho companheiro de tripulação e com uma mão sustentava em alto um copo de vinho e com a outra assinalava um conjunto de esplêndidos diamantes que estavam no chapéu de Jack Aubrey.
- Que… que é isso? - perguntou.
- É um chelengk - disse Jack com orgulho. Não é verdade que estou elegante?
- Dá-lhe voltas outra vez. Dá-lhe voltas para que ele o veja - disseram seus amigos.
O capitão Aubrey pôs seu chapéu de dois bicos com um ribete dourado, seu melhor chapéu, sobre a mesa. O magnífico broche (formado por duas fileiras de pequenos diamantes unidos, cada uma delas de umas quatro ou cinco polegadas de comprimento e coroada por um diamante de considerável tamanho) ficava montado sobre uma base redonda salpicada de pequenos diamantes; Jack deu várias voltas em sentido anti-horário, e quando colocava o chapéu outra vez, a base redonda começou a girar com um suave zumbido e os ramos começaram a estremecer como se tivessem vida própia. O capitão ficou ali sentado, rodeado de luzes que pareciam brotar de fogos artificiais, cujas cores ficavam mais vivas à luz do sol.
- Onde… onde o conseguiu? - perguntou Holden, olhando para os outros, como se não devesse se dirigir ao capitão Aubrey enquanto o resplandecente broche estremecia.
Os outros perguntaram admirados se Holden não o sabia e disseram que o sultão da Turquia lhe havia presenteado por ter capturado a Torgud, que estava sob o comando de um capitão rebelde, e também o barco que a acompanhava. Logo perguntaram para Holden em que lugar estivera que não havia ouvido falar da batalha entre a Surprise e o Torgud, a batalha mais importante dos últimos tempos.
- Conhecia a Torgud, claro - disse Holden. - Tinha canhões muito potentes e estava sob o comando do bei Mustafá, um cruel assassino. Diga-me, Jack, como entabulou o combate com ela?
- Então, entrávamos no canal de Corfú, sabe? - disse Jack, - com vento enquadrado do sudeste, um vento que permitia desdobrar as joanetes. E os barcos se encontravam assim…
O caramanchão estava agora mais tranqüilo, e o doutor Maturin estava sentado com as pernas cruzadas e as calças desabotoadas na parte do joelho. Nesse momento sentiu algo movendo-se por sua panturrilha, algo que parecia um inseto, e instintivamente levantou a mão, mas devido aos anos dedicados ao estudo das ciências naturais, que aumentaram seu interesse por conhecer todas as criaturas e seu desejo de proteger desde uma abelha a uma inocente mariposinha noturna, atrasou o golpe. No passado, amiúde havia pago caro por seus conhecimentos, e agora voltou a pagar caro. Apenas havia reconhecido o grande tábano maltês, um tabano com doze pintas, quando o inseto cravou profundamente a probóscide em sua carne. Então golpeou o animal, esmagando-o, e se ficou ali sentado olhando em silêncio como o sangue se espalhava por sua meia de seda branca, com os lábios franzidos por causa da raiva.
- O senhor dizia que havia se liberado do tabaco - disse Graham, - mas, não lhe parece que a decisão de deixar de fumar lhe priva da liberdade? Não lhe parece que suprime o direito de escolher, que é a verdadeira essência da liberdade? Não lhe parece que um homem sensato deveria ser livre de escolher entre fumar ou não fumar, conforme as circunstâncias? Somos animais sociais, mas passar privações voluntariamente, como os ascetas, em um momento inoportuno, nos causa irritação e pode fazer-nos esquecer nossa responsabilidade social e, portanto, chegar a romper os vínculos que nos unem ao resto da sociedade.
- Acredito que diz isto com boa vontade - disse Maturin. - Mas permita-me dizer-lhe que me admira que o diga. Estranho que um homem tão inteligente como o senhor pense que algo tão complexo como é o estado de ânimo só tenha uma causa. É possível que a única causa de meu mau humor seja não fumar? Não, não. Em psicologia, como em história, os fenômenos têm múltiplas causas. Ainda que eu fume um pequeno charuto, ou parte de um pequeno charuto, para comprazer-lhe, verá que a diferença, se houver, será mínima. As mudanças de humor têm motivos obscuros, e às vezes fico surpreso ao encontrar-me com o que surge deles, com os pensamentos e as atitudes que surgem em minha mente completamente formados.
Isso era verdade. Nem o peixe de São Pedro nem a ânsia de fumar eram razões suficientes para justificar o mau humor de Maturin, que há dias aparecia a cada manhã quando se levantava. Enquanto meditava sobre o assunto, ocorreu-lhe que pelo menos uma das muitas razões era que estava faminto de prazer sexual e que recentemente haviam excitado seu desejo. "O touro se torna ressabiado quando está encerrado", disse para si, aspirando profundamente a agradável fumaça. Mas ainda não havia encontrado a explicação completa, de nenhuma maneira. Então passou para a parte do jardim onde dava o sol, para a parte onde não havia vento, para não encher de fumaça o professor Graham, e ali, pestanejando por causa da intensidade da luz, remoeu o assunto na cabeça.
O lugar para onde tunham ido podia ser visto da torre da sede da Ordem de Malta, um edifício alto, sóbrio, com um incongruente relógio na parte superior da fachada. O quarto mais alto, uma habitação lúgubre e desmobiliada, não havia sido ocupada desde que os cavalheiros haviam partido, tinha o solo coberto por uma poeira suave e cinzenta e pelos excrementos dos morcegos que se ouviam voar entre as escuras vigas do teto e retumbava com o grave som com qual o relógio marcava os segundos. Era a habitação mais escura e incômoda; contudo, dela os espiões podiam ver bem o passeio, o hotel Searle e seu jardim, ainda que, obviamente, não seu caramanchão.
- Aí está um deles - disse um dos espiões. - Acaba de entrar aonde dá o sol.
- Esse homem que está fumando um charuto? - perguntou o outro. - O cirurgião naval?
- É um cirurgião naval, e muito inteligente, conforme dizem, mas também um agente secreto. Seu nome é Stephen Maturin. Seu pai é irlandês e sua mãe é espanhola, e poderia passar por um homem de ambas as nacionalidades ou por francês. Nos causou muito estrago: por sua causa muitos de nossos homens morreram. Estava a bordo do Ocean quando seu primo foi envenenado.
- Eu o eliminarei esta noite.
- Não fará semelhante coisa - disse o primeiro homem secamente.
Falava italiano com um marcado sotaque do sul, porém, na realidade, era um espião francês, um dos espiões franceses mais importantes na região mediterrânea, e os malteses que estavam com ele baixaram a cabeça obedientemente. Lesueur era o sobrenome do francês, e parecia uma versão antiga do doutor Maturin, a quem olhava agora atentamente através de um telescópio de bolso: um homem de baixa estatura, magro, encurvado, de pele amarelada, habitualmente com uma expressão austera, reservada e pedante, que raras vezes atraía a atenção dos outros, mas que se a atraía, demonstrava imediatamente que tinha domínio de si mesmo e uma grande inteligência. Mas Lesueur, ademais, controlava grandes somas e vestia como um próspero comerciante.
- Não, não, Giuseppe - disse em tom mais amável. - Admiro sua determinação e sei que maneja muito bem a faca, mas isto não é Nápoles nem Roma. Sua repentina e inexplicável desaparición levantaria uma agitação e, obviamente, seríamos relacionados com ela, e é fundamental que não suspeitem de nossa presença aqui. De toda forma, obteríamos pouca informação de um cadáver, enquanto que poderíamos obter muita do doutor Maturin vivo. Eu encarreguei à senhora Fielding que o vigie, e você e Luigi o vigiarão quando ele se reunir com outras pessoas.
- Quem é a senhora Fielding?
- Uma dama que trabalha para nós. Ela reporta-se a mim ou a Carlos.
Poderia ter acrescentado que Laura Fielding é napolitana e está casada com um tenente da Armada real, um jovem que fora capturado pelos franceses quando participava de uma operação que tinha como objetivo sacar um barco de um de seus portos e que agora estava encerrado na prisão de Bitche, uma prisão de castigo, por ter fugido de Verdún. Como matara a um dos gendarmes que o perseguia, era provável que no julgamento fosse condenado à morte. Mas o julgamento havia sido adiado uma e outra vez, e a senhora Fielding fora informada de maneira indireta de que podia ser adiado indefinidamente se cooperasse com uma pessoa que estava interessada nos movimentos do transporte marítimo. Apresentaram-lhe o caso como algo relacionado com os seguros internacionais e com grandes companhias venezianas e genovesas cujos correspondentes franceses tinham o apoio do Governo. Nenhuma pessoa que estivesse familiarizada com os negócios teria dado crédito a essa história, mas o homem que lhe contara era um orador convincente e lhe deu uma carta autêntica do senhor Fielding dirigida para sua esposa e escrita há menos de três semanas antes, uma carta na qual dizia que aproveitava essa excepcional oportunidade para enviar seu amor à sua "queridíssima Laura" e dizer-lhe que o julgamento havia sido adiado de novo, que na prisão o tratavam com menos severidade e que era possível que não mantivessem todas as acusações que lhe haviam feito.
A senhora Fielding tinha uma posição adequada para conseguir informação porque era bem recebida em todos os lugares e, ademais, porque, para ganhar um pouco de dinheiro que complementasse suas modestas rendas, dava aulas de italiano às esposas e às filhas dos oficiais e às vezes aos própios oficiais, o que lhe permitia informar-se de fragmentos de notícias, em ocasiões sobre assuntos confidenciais, que não tinham sentido sozinhos, mas que unidos permitiam fazer-se uma idéia da situação. Apesar de sua pobreza, também dava festas nas quais tocava música e nas quais oferecia aos seus convidados limonada procedente da prolífica árvore de seu própio jardim e bolachas de Nápoles, ainda que só uma para cada um. Lesueur pensava que ela tinha ainda mais valor devido a isso, pois como tocava muito bem o piano e o bandolim e cantava muito bem, reunia todos os marinheiros e militares que eram músicos amadores e que tinham mais talento em uma atmosfera distendida e sem receios; contudo, até agora não aproveitara todo seu potencial, porque preferia que se acostumasse à idéia de que o bem-estar de seu marido dependia de sua diligência. Lesueur não causaria nenhum estrago se houvesse dito tudo isto a Giuseppe, mas era um homem tão circunspecto como seu gesto e gostava de reservar para si a informação, toda a informação. Contudo, tinha que agadar um pouco a Giuseppe e tinha que dar-lhe certa informação sobre a situação atual, já que o maltês estivera ausente por muito tempo.
- Dá aulas de italiano - disse Lesueur de má vontade e fez uma pausa. - Vê aquele homem que está ao fundo do lado esquerdo do caramanchão?
- O capitão manco com a peruca curta?
- Não. Do outro lado da mesa.
- O capitão de navio gordo e loiro que tem uma coisa brilhante no chapéu?
- Exatamente. Ele gosta muito de ópera.
- Aquele homem de cara vermelha que parece um boi? O senhor me surpreende. Eu pensaria que ele gosta de cerveja e de bolos. Olhe como ele ri. Com certeza o ouvem em Ricasoli. Provavelmente está bêbado. Os ingleses sempre estão bêbados. Não sabem o que é a decência.
- Talvez. De toda maneira, ele gosta muito de ópera. E de passagem lhe direi que não deve permitir que seu desgosto perturbe seu julgamento e o faça subestimar o inimigo: esse homem com a cara vermelha que parece um boi é o capitão Aubrey, e ainda que agora não lhe pareça muito astuto, foi o homem que negociou com o bei Sciahan, destruiu Mustafá e nos expulsou de Marga. Nenhum néscio poderia ter feito uma dessas coisas, e muito menos as três. Mas o que eu ia dizer era que, como ele terá que passar algum tempo aqui e por gostar de ópera, decidiu tomar aulas de italiano para poder entender o que dizem nela.
Giuseppe ia fazer um comentário sobre a simplicidade dessa idéia, mas ao ver o olhar de Lesueur, fechou a boca.
- Seu primeiro professor foi o velho Ambrogio - continuou, - mas assim que Carlos se informou disso mandou que as pessoas adequadas dissessemr a Ambrogio que fingisse que estava doente e que recomendasse a senhora Fielding. Não me interrompa, por favor - disse, levantando a mão quando Giuseppe voltou a abrir a boca. - Ela já está doze minutos atrasada e quero dizer tudo o que tenho a dizer antes que ela chegue. O importante é isto: como Aubrey e Maturin sempre navegaram juntos e são amigos íntimos, se pomos essa mulher em contato com Aubrey também a pomos em contato com Maturin. Ela é jovem, atraente, muito inteligente e tem boa reputação, pois não teve nenhum amante, quer dizer, não teve nenhum desde que se casou. Nestas circunstâncias, não duvido que chegará a ter relações com ela, assim que espero receber informações muito valiosas.
Enquanto Lesueur dizia estas palavras, Maturin se moveu em seu assento e olhou para a torre da casa do boticário. Para os dois homens que est;avam dentro pareceu que seus estranhos olhos claros podiam ver-lhes através dâs barras dos postigos e deram um passo para trás.
- Parece um asqueroso crocodilo - sussurrou Giuseppe.
A inquietação de Stephen Maturin aumentara pela sensação de que era observado, ainda que isto não havia chegado ao nível da consciência. Sua inteligência ainda não havia captado o que seu instinto havia percebido, e ainda que seus olhos olhassem na direção correta, sua mente considerava a torre uma guarida de morcegos. Sabia que a parte inferior era usada por um comerciante como armazém desde que os cavalheiros haviam partido e estava quase certo de que a superior não fora usada desde então; portanto, poucos lugares podiam ser mais adequados para os morcegos. Clusius descrevera boa parte da flora da ilha e Pozzo di Borgo, das aves, porém, lamentavelmente, não haviam prestado atenção aos morcegos malteses.
Apesar do doutor Maturin ter interesse nos morcegos, e também em tudo o relacionado com as ciências naturais, somente a parte superficial de sua mente se ocupava deles. O reconfortante charuto havia eliminado parte de seu mau humor, mas ainda estava muito incômodo. Como Lesueur dissera, era um agente secreto além de ser um cirurgião naval, e ao regressar a Malta depois de ter estado em Jônia se encontrara em uma inquietante situação que agora era ainda mais inquietante. Muita informação confidencial fora divulgada, até tal extremo que um vinhateiro siciliano que ele conhecia pudera lhe dar informação precisa sobre o 73º Regimento, dissera que ele zarparia de Gibraltar na semana seguinte com destino a Citera e Santa Maura. Porém, ademais, alguns planos importantes haviam sido revelados, ao menos em parte, e poderiam chegar a conhecer-se em Toulon e Paris.
Desgraçadamente, houvera falta de autoridade. Em Valletta, o popular governador, um oficial de marinha que lutara com os malteses contra os franceses, um homem que simpatizava com os malteses, falava sua língua e conhecia bem os seus líderes, fora substituído, inexplicavelmente, por um militar estúpido e arrogante que se referia aos malteses em público como "nativos papistas a quem mostraria quem mandava". Os franceses não podiam pedir nada melhor. Haviam reforçado as redes de espionagem que já tinham na ilha com dinheiro e homens, recrutando grande número de descontentes.
Sem dúvida, tivera mais importância ainda o intervalo entre a morte do almirante sir John Thornton e a nomeação de um novo comandante geral. Sir John dirigira muito bem o serviço secreto naval e havia sido um hábil diplomata, um bom estrategista e um excelente marinheiro; contudo, suas relações com a maior parte das pessoas que integravam sua improvisada organização não eram de caráter oficial senão pessoal, e a organização havia se desintegrado nas mãos do segundo ao comando da esquadra, seu incompetente sucessor temporal, o contra-almirante Harte. Muitos homens influentes e muitos funcionários que desempenhavam cargos importantes em governos de um lado a outro do Mediterrâneo faziam confidências a sir John ou ao seu secretário, mas não tinham nada que dizer a um mal-humorado, indiscreto, e ignorante substituto temporal. O própio Maturin, que cooperava com o serviço secreto voluntariamente, impulsionado nada mais que por um profundo ódio da tirania napoleônica, havia decidido não desempenhar mais que o cargo de cirurgião naval enquanto Harte estivesse ao comando da esquadra.
Mas esse intervalo chegara ao seu fim. Agora o respeitável sir Francis Ives, o novo comandante geral, estava com o grosso da esquadra fazendo o bloqueio a Toulon, onde os franceses tinham vinte e um navios de linha e sete fragatas e havia muita atividade, e ao mesmo tempo tratava de desenredar os fios de seu comando, que controlavam os assuntos táticos, políticos e o complementar, mas necessária, serviço secreto. Ao mesmo tempo, o Almirantado havia enviado um funcionário para que resolvesse os problemas que havia em Malta, nada menos que o vice-secretário interino, o senhor Andrew Wray. Tinha fama de ser brilhante, e, certamente, fez um excelente trabalho no Ministério da Fazenda, sob as ordens de seu primo lorde Pelham. Não restava dúvida de que era um funcionário competente. E Maturin não tinha a menor dúvida de que, além de lutar com os franceses, necessitaria usar toda sua inteligência para superar o ódio do Exército e a obstrução e os ciúmes de outros serviços secretos britânicos que haviam penetrado na ilha. Havia ali misteriosos cavalheiros de vários departamentos, que davam maus conselhos, atrapalhavam-se uns aos outros e causavam confusão, e quando Stephen Maturin analisava sua situação, só o que lhe consolava era pensar que provavelmente a dos franceses era pior, pois sabia muito bem que nos governos autoritários proliferavam os espiões e os delatores. Havia indícios de que os membros de pelo menos três ministérios franceses trabalhavam em Malta, cada grupo sem saber que os outros estavam presentes, e de que todos estavam vigiados por um homem de um quarto ministério. O aparente objetivo da visita do senhor Wray era acabar com a corrupção no estaleiro, e Maturin achava que ele teria mais êxito nisto que na contra-espionagem. A espionagem requeria a especialização em assuntos relacionados com ela, e esta era o primeiro cotato direto de Wray com este departamento, que Stephen soubesse; em troca, como a corrupção era universal, ou seja, que se achava em toda a sociedade, e como Wray em sua juventude havia vivido delicadamente em uma casa luxuosa só com o soldo de funcionário (poucas centenas de libras por ano), sem nenhuma renda de propriedades privadas, era provável que a conhecesse bem. Maturin conhecera a Wray há alguns anos, quando Jack Aubrey estava em terra e tinha uma extraordinária quantidade de dinheiro, pois acabava de conseguir um importante butim na operação que realizara em Mauricio. Haviam se encontrado em um clube de jogo de Portsmouth onde Jack estava jogando com alguns conhecidos e se limitaram a cumprimentar-se com uma inclinação de cabeça e a dizer "Como está o senhor?". Maturin não deu importância à apresentação, e nunca teria se recordado de Wray se não fosse porque alguns dias mais tarde, quando estava em Londres, Jack acusara Wray e aos seus companheiros de fazer trapaças no jogo de cartas, ainda que em termos bastante ambíguos para manter a dignidade. Mas Wray não lhe exigira uma satisfação da forma bárbara que era normal em casos como esse. Ainda que Stephen não sabia de primeira mão o que havia passado, pensava que possivelmente Wray entendera que as acusações de Jack eram dirigidas a outro jogador; contudo, havia indícios de que no Almirantado teve uma atitude hostil com ele durante algum tempo, pois lhe haviam denegado barcos, haviam dado boas nomeações para homens com menos méritos de guerra, não haviam promovido os subordinados de Jack, e Stephen suspeitara que Wray estava se vingando dessa maneira. Mas isso também poderia ser o resultado de outras causas; poderia ser, por exemplo, consequência dos ministros não gostarem do general Aubrey, o pai de Jack, um eterno parlamentário membro do partido radical que era um tormento para eles, e esta explicação se apoiava no fato de que a reputação de Wray não havia sofrido menosprezo. Geralmente, um homem que não se batia em semelhantes circunstâncias era desprezado por todos; contudo, quando Aubrey e Maturin regressaram de uma missão que tiveram que realizar para lá das Índias Orientais pouco depois do desagradável incidente, Stephen achou que todos davam por serto que houve um duelo ou que Wray deu explicações a Jack, e que Wray era recebido em todas partes. Stephen o vira várias vezes em Londres. E se a reputação de Wray não havia sofrido menosprezo, não tinha motivos para se vingar. De toda maneira, seu modo de vida havia mudado por completo desde aqueles dias. Havia feito um bom matrimônio, do ponto de vista material, porque, apesar de Fanny Harte ter pouca beleza e menos afeto que dar-lhe (ela era contra o matrimônio desde o início, porque estava enamorada de William Babbington, capitão da Armada real), sua fortuna lhe permitia levar uma vida deleitada, como ele gostava, sem necessidade de valer-se de outros recursos, e tinha a possibilidade de conseguir uma maior riqueza, que esperava com ânsia, quando o contra-almirante Harte morresse, já que Harte herdara uma grande soma de um parente seu que era prestamista na rua Lombard e Fanny era sua única filha. Por Além disso, devido a Jack Aubrey ter conseguido uma importante vitória no mar Jônico, que proporcionara à Armada, entre outras coisas, uma excelente base naval, e que agradara ao Sultão, um ponto de grande importância diplomática nesse momento, estava a salvo de insidiosos comentários marginais que aludissem a sua má conduta ou de notas semi-oficiais que mencionassem as indiscrições de sua juventude.
- Aí está o outro - disse Lesueur quando Graham saíu da sombra e se sentou do lado de Stephen Maturin. - A informação que tínhamos sobre ele era confusa. A princípio acreditávamos que fazia parte de uma organização totalmente diferente, mas agora achamos que não é mais que um lingüista que foi contratado para traduzir e redigir documentos em turco e em árabe e que logo deve voltar para sua universidade. Não obstante, você o vigiará e anotará quem são suas conexões. Onde essa mulher terá se metido? Tinha que estar lá há vinte e três, não, vinte e quatro minutos, para dar a aula a Aubrey. Não terá tempo de dá-la antes de sua reunião.
Houve uma longa pausa, e Giuseppe, que olhava pelo postigo da janela do canto além de olhar pela da janela da frente, disse:
- Uma dama se aproxima rapidamente pelo beco do lado seguida de uma criada.
- Leva um cachorro, um enorme mastim de Iliria?
- Não, senhor, não leva nenhum cachorro.
- Então não é a senhora Fielding - disse Lesueur em tom mal-humorado e com convicção.
Mas estava equivocado, e percebeu isso no momento em que a dama e sua criada, que usava uma capa com capuz negro, dobraram a esquina e entraram precipitadamente no jardim do hotel Searle.
Todos os homens que estavam sentados na mesa de Aubrey se levantaram, pois ela não era um distração local nem interpretava o papel do jardineiro recruta. Em realidade, o fato do capitão Pelham cair de bruços, se fosse um ato voluntário, dificilmente teria sido considerado um exagerado testemunho de seu respeito em vez do efeito do excesso do vinho de Marsala e uma inoportuna perna de uma cadeira.
Houve um alvoroço durante alguns momentos, quando a senhora Fielding tentava pedir desculpas ao capitão Aubrey e ao mesmo tempo responder aos oficiais que desejavam saber como ela estava e se havia ocorrido algo com Ponto. Ponto era um cachorro tosco, receioso, torvo e implacável, um mastim de Iliria, um animal do tamanho de um bezerro médio, e tinha uma coleira com pontas de aço. Sempre caminhava junto da senhora Fielding, reduzindo seus compridos passos para igualá-los aos pequenos passos dela, e geralmente sua presença a protegia dos excessos de confiança, mas se não bastasse, dava um estrondoso latido. Pelo que eles puderam entender, a senhora Fielding deixara Ponto em sua casa para castigá-lo por ter matado um asno. Sabiam que Ponto era perfeitamente capaz de fazer isso, porém, devido ao fato dela algumas vezes não pronunciar bem o inglês e pela calma com que falava do incidente, pensaram que devia de haver um erro.
- Os senhores hoje estão muito elegantes, cavalheiros - continuou depois de uma breve pausa. - Calções brancos! Meias de seda!
Eles disseram que sim e perguntaram se não soubera da notícia, de que o senhor Wray, o enviado do Almirantado, havia chegado não Calliope na noite anterior. Acrescentaram que em torno de vinte minutos iriam ao palácio do governador para apresentar-lhe seus respeitos muito elegantes, com seus melhores calções e com as perucas muito empoadas, e acreditavam que ele ficaria boquiaberto ao ver seu bonito aspecto.
Era divertido ver como os capitães, alguns verdadeiros déspotas em seus barcos, muitos acostumados a combater e todos capazes de assumir grandes responsabilidades, faziam graça diante de uma mulher.
- Há um livro importantíssimo, ainda por escrever, sobre a manifestação do desejo de acasalamento humano e todas suas absurdas variedades - disse o doutor Maturin. - Ainda que isto não é mais que a sombra do princípio da cerimônia. Aqui não há rivalidade, não há ardentes paixões, não há esperança - disse, olhando fixamente para seu amigo Aubrey. - Além disso, a dama não é livre.
Efetivamente, a senhora Fielding não era livre, se se levasse em conta o significado com que Maturin havia usado essa palavra, ainda que também era agradável ver como recebia as amostras de respeitosa admiração, as brincadeiras e as frases engenhosas: não atuava como uma falsa moralista nem se mostrava ofendida nem sorria com afetação, mas tampouco dava demasiada confiança. Tratava-os com o grau de amabilidade justo, e Maturin a olhava com admiração. Antes notara que ela não dera importância à bebedeira de Pelham, e pensou que estava acostumada a lidar com marinheiros, e nesse momento observou como ela recuperou a serenidade imediatamente depois de ter uma forte impressão ao ver a cara de Pullings quando Jack Aubrey o fez sair da sombra do caramanchão para apresentá-lo. Também observou como felicitava a Pullings por sua promoção e o convidava para sua casa aquela noite porque dava uma pequena festa, somente para ouvir ensaiar um quarteto. Notou seu infantil regozijo quando o chelengk começou a girar, e seu olhar cobiçoso quando o tinha em suas mãos e admirava as grandes pedras que o coroavam. A olhava com curiosidade… e com algo mais que isso. Uma das razões era que ela lhe recordava o seu primeiro amor. Tinha a mesma constituição, não era muito alta, mas era magra como um junco, e o cabelo da mesma cor, uma cor vermelho escuro fora do comum, e coincidia também que havia se penteado de modo que podia ver-se sua fina e graciosa nuca e as suaves curvas de suas orelhas. A outra razão era que ela mostrara interesse por ele.
Os insetos ainda podiam enganar a Maturin e perfurar sua pele, mas era difícil que as mulheres pudessem enganar-lhe nesta tardia etapa de sua vida. Sabia que ninguém podia admirar-lhe por sua aparência; não tinha esperança de inspirar simpatia por seu trato nem por sua conversa; e ainda que pensava que alguns de seus melhores livros, Remarks on Pezophaps solitarius e Modest Proposals for the Preservation of Health in the Navy, não careciam de mérito, não acreditava que nenhum impressionaria a uma mulher. Nem sequer sua esposa havia podido ler mais que algumas páginas, apesar de sua boa vontade. Além disso, sua posição na Armada não era muito alta, pois nem sequer havia sido nomeado oficial, e não era poderoso nem influente nem rico.
Portanto, a amabilidade e os convites da senhora Fielding eram provocados por qualquer outra coisa que não fosse a coqueteria nem a ambição, ainda que não sabia o que era e só lhe havia ocorrido que tinha a ver com a espionagem. Se fosse assim, então, obviamente, seu dever era ser complacente. Não havia outra maneira de analisar a questão, não havia nenhuma outra maneira descobrir suas conexões ou induzi-la a revelá-las ou utilizá-la para dar informação falsa. Era possível que estivesse completamente equivocado, já que depois de um tempo os agentes secretos viam espiões por toda parte, eram como os lunáticos que achavam que eram mencionados em todos os jornais, mas tanto se fosse assim como se não, jogaria sua parte no hipotético jogo. E se havia convencera com facilidade de que essa era a estratégia correta porque gostava de sua companhia e das noitadas musicais em sua casa. Além disso, estava convencido de que podia controlar qualquer sentimento inoportuno que brotasse em seu coração. Psera essas meias brancas para a senhora Fielding (pois por seu posto não estava obrigado a assistir à recepção nem tinha desejo de assistir), e era pela senhora Fielding que avançou nesse momento, tirou o chapéu, fez uma cortês reverência com uma genuflexão e disse:
- Bom dia, senhora. Encontra-se bem?
- Melhor depois de ver o senhor, senhor - respondeu ela, sorrindo e dando-lhe a mão. - Querido doutor, não poderia convencer ao capitão Aubrey para que tome a lição? Só temos que repassar o traspassato remoto.
- Desgraçadamente, não. É um marinheiro, e a senhora já sabe que os marinheiros sentem devoção pelos relógios e os sinos.
O rosto de Laura Fielding se entristeceu, pois pensou que o único ponto em que estava em desacordo com seu marido era a pontualidade, e depois, com uma alegria artificial continuou:
- Somente o traspassato remoto regular. Não tardaremos nem dez minutos.
- Olhe… - disse Stephen, indicando o relógio da torre.
Todos se voltaram para ali, e uma vez mais os espiões retrocederam.
- Dez minutos é todo o tempo que estes senhores têm para ir andando majestosamente até o palácio do governador - continuou, - já que não devem subir a toda pressa pela empinada ladeira porque suas gravatas ficariam bagunçadas, cairia o pó das perucas e, como faz tanto calor, sufocar-se-iam tanto que chegariam como se viessem de uma batalha. Será melhor que se sente comigo à sombra e tome um copo de leite de vaca frio. O leite de cabra eu não recomendo.
- Não posso - disse ela quando os capitães saiam um depois do outro, por ordem de antiguidade. - Tenho um encontro com a senhorita Lumley e vou chegar tarde. Capitão Aubrey! - exclamou. - Se por qualquer motivo me atrase para o ensaio desta noite, peço que entre e mostre ao capitão Pullings o limoeiro. O regaram hoje. Giovanna irá para Notabile dentro de pouco, mas a porta não estará fechada com chave.
- Com muito prazer mostrarei o limoeiro ao capitão Pullings - disse Jack, e ao dizer "capitão Pullings", havia soltado uma gargalhada de novo. - É o mais bonito limoeiro que já vi em minha vida. E diga-me, senhora, Ponto também irá a Notabile?
- Não. A última vez matou algumas cabras e alguns cabritinhos. Mas conhece o uniforme da Armada. Não lhe dirá nada ao senhor, a não ser que colha limões.
- Parece que seu plano dá resultado, senhor - disse Giuseppe, observando aos oficiais e a Graham, que começavam a subir a ladeira que levava ao palácio, e a Stephen e à senhora Fielding, que estavam sentados tomando um sorvete de café. Haviam se sentado depois de comentar que a senhora Lumley não era um oficial de marinha e que, portanto, não teria o mórbido costume de medir o tempo constantemente.
- Acredito que dará um bom resultado - disse Lesueur. -Descobri, que, no geral, quanto mais feio é um homem, mais vaidoso ele é.
- Bem, senhor - disse Laura Fielding antes de lamber a colher, - como o senhor foi tão amável e como gostaria de enviar Giovanna para Notabile imediatamente, queria pedir-lhe que fosse ainda mais amável e me acompanhasse até a igreja de Santo Publius, porque sempre há muitos soldados sem-vergonhas vagueando por Porta Reale, e sem meu cachorro…
O doutor Maturin disse que seria uma satisfação para ele servir de escolta para uma criatura tão gentil. Em verdade, parecia estar muito contente e satisfeito quando saíram do jardim e atravessaram agarrados da mão a praça Regina, onde havia uma multidão de soldados e dois rebanhos de cabras, mas quando passavam pela frente da Pousada de Castelo, uma parte de sua mente já havia voltado a ocupar-se do assunto do estado de ânimo e suas causas. Apesar disso, a outra parte se ocupava do que ocorria no presente, e o silêncio de Stephen era deliberado. Mas não durou muito, se bem, como havia previsto, incomodou a Laura Fielding. Ela se sentia coibida por algo, o que ele notava cada vez com mais clareza, e seu tom alegre e seu sorriso eram artificiais quando perguntou:
- Gosta dos cachorros?
- Os cachorros? - repetiu, olhando-a de soslaio e sorrindo. - Bem, se a senhora fosse uma mulher comum, que entabula uma conversa por cortesia, exclamaria: "Oh, senhora, os adoro!", com um sorriso artificial e um gesto o mais gracioso possível. Mas posto que a senhora é como é, me limitarei a dizer que interpreto suas palavras como um pedido de que diga algo. Poderia ter me perguntado igualmente se gosto dos homens, das mulheres, dos gatos, das serpentes ou dos morcegos.
- Não, os morcegos não - disse a senhora Fielding.
- Sim, os morcegos - disse o doutor Maturin. - Há tantas variedades deles como de outras criaturas. Conheci alguns muito alegres e enérgicos e outros toscos, mal-humorados e teimosos. Naturalmente, o mesmo ocorre com os cachorros. A gama de cachorros vai desde os mestiços covardes e traiçoeiros até o heróico Ponto.
- Meu querido Ponto! - exclamou a senhora Fielding. - É um grande consolo para mim, mas desejaria que fosse mais inteligente. Meu pai tinha um cachorro que sabia multiplicar e dividir.
- Não obstante - disse Maturin, seguindo seus própios pensamentos, - os cachorros têm uma característica que, tenho que reconhecer, raras vezes se encontra em outros animais, eles sentem afeto. Não me refiro ao amor violento, possessivo e protetor que sentem por seus amos, mas a esse tenro carinho que sentem por seus amigos e que amiúde vemos nas melhores espécies de cachorros. E quando um pensa na lamentável falta de afeto puro e desinteressado em nossa própia espécie quando chegamos a adultos, e pensa quanto melhora a vida cotidiana e quanto enriquece nosso passado e nosso futuro, porque nos permite olhar para frente e para trás com satisfação, é um prazer encontrá-lo em um animal.
O afeto também podia encontrar-se nos capitães: Pullings o irradiava quando Aubrey o conduziu para onde estavam o governador e seu convidado. Jack não achava engraçado encontrar-se com Wray, mas como sabia que não podia evitar sem que parecesse que lhe fazia um desaire, estava contente de que o protocolo exigisse que apresentasse ao seu antigo tenente, pois a necessária formalidade faria menos difícil a situação. Contudo, ao olhar para onde começava a fila, pensou que talvez não seria difícil. Wray estava igual. Era um homem alto, charmoso, simpático e cavalheiresco, e vestia uma casaca negra com duas insígnias de ordens estrangeiras. Havia percebido que Jack se aproximava, e seu olhar havia se cruzado com o dele, mas continuara rindo com sir Hildebrand e um civil com a cara vermelha, aparentemente sem alterar-se, como se não tivesse nenhum motivo para preocupar-se nem para inquietar-se.
A fila se moveu. Chegou a vez de Jack e Pullings. Jack o apresentou ao governador, que respondeu com uma inclinação de cabeça, uma olhada indiferente, e a palavra "encantado". Então indicou para Pullings que desse um passo adiante e disse:
- Senhor, permita-me apresentar-lhe ao capitão Pullings. Capitão Pullings, o senhor vice-secretário Wray.
- Encantado de conhecer-lhe, capitão Pullings - disse Wray, estendendo-lhe a mão. - Eu o felicito de todo coração por haver contribuído para a grande vitória da Surprise. Quando li o relatório do capitão Aubrey - disse voltando-se para Jack e fazendo uma inclinação de cabeça - e a magnífica descrição de seus esforços sem comparação, pensei: "O senhor Pullings deve ser promovido". Alguns cavalheiros objetaram que a Torgud não estava ao serviço do Sultão no momento de sua captura e que, portanto, a promoção seria irregular e estabeleceria um indesejável precedente, mas insisti em que devíamos considerar a recomendação do capitão Aubrey e, aqui entre nós - acrescentou em um tom mais baixo e olhando sorridente para Jack, - digo que insisti mais porque uma vez o capitão Aubrey foi injusto comigo, e conceder a promoção ao seu tenente era a melhor maneira de demostrar-lhe que atuo de boa fé. Poucas coisas me proporcionaram tanto prazer como dar esta nomeação, e só lamento que a vitória lhe custasse essa terrível ferida.
- Senhor Wray, o coronel Manners, do Quadragésimo Terceiro Regimento - disse o senhor Hildebrand, que pensava que a apresentação havia durado muito.
Jack e Pullings fizeram uma reverência e deram passagem ao coronel. Jack ouviu o governador dizer: "Esse é Jack Aubrey, o que conquistou Marga", e imediatamente depois, a resposta do militar: "Ah! estava então ocupada pelo inimigo, né?", mas estava muito perturbado. Era possível que houvesse julgado mal a Wray? Era possível que um homem tivesse o descaramento de falar dessa maneira se a acusação fosse falsa? Indubtavelmente, Wray poderia haver denegado a promoção se quisesse, já que tinha a desculpa de que a Torgud estava ao comando de um rebelde. Jack tentou recordar todos os detalhes do que havia sucedido naquela remota noite desafortunada e cheia de ira em Portsmouth. Queria recordar a ordem em que haviam ocorrido os acontecimentos, quem eram os outros civis que estavam na mesa, e se havia bebido muito, mas desde então havia passado por muitas mais situações difíceis e já não podia recordar qual era a base de sua certeza de então. Houve trapaças, sobretudo quando havia grandes somas em jogo, disso ainda estava seguro, mas na mesa havia vários jogadores, não era apenas Andrew Wray.
Nesse momento se deu conta de que Pullings, já fazia um tempo, falava do vice-secretário com entusiasmo: "Que magnanimidade! Que magnanimidade!… Já sabe ao que me refiro, senhor… Que benévolo!… Sem dúvida, é muito culto… Deveria ser secretário e inclusive primeiro lorde…". E também se deu conta de que estavam de pé em frente a uma mesa cheia de garrafas, garrafões, taças e jarras.
- Bebamos uma jarra de flip pela saúde do senhor Wray, senhor! - disse Pullings, pegando uma jarra de prata, fria como o gelo.
- Flip a esta hora do dia? - disse Jack, olhando atentamente a cara redonda e alegre do capitão Pullings, onde a ferida, agora de uma intensa cor púrpura, destacava-se; a cara de um homem que havia bebido já uma pinta de vinho de Marsala e que estava perturbado pela felicidade; a cara de um homem que quase nunca bebia e não estava agora em condições de beber champanhe mesclada com conhaque em partes iguais. - Não seria o mesmo brindar com um copo de cerveja? É ótima esta cerveja das Índias Orientais.
- Vamos, senhor! - disse Pullings com censura. - Não brindo por uma promoção todos os dias.
- É verdade - disse Jack, recordando a infinita alegria que havia sentido a primeira vez que havia posto a dragona de capitão e que naquela época só davam uma aos capitães. - É verdade. À saúde do senhor vice-secretário! Que possa realizar todos seus projetos!
O flip fez efeito no pobre Pullings antes do esperado. Foram separados por um grupo de sedentos oficiais, muitos dos quais felicitaram a Pullings por sua promoção, e Jack havia falado apenas cinco minutos com seu velho amigo Dundas quando viu a dois deles levarem Pullings quase carregado nos braços. Ele os seguiu e viu que haviam sentado Pullings em um banco, em um tranqüilo canto do jardim, e que estava pálido e quase adormecido, mas que ainda sorria.
- Tom, está bem, né?
- Oh, sim, senhor! - respondeu Pullings como se falasse a uma grande distância dali. - Alí dentro a atmosfera era sufocante, como a da bodega de um barco negreiro.
Depois acrescentou que estava pensando na senhora Pullings, a senhora do capitão Pullings, e no que diria de um pagamento de dezesseis guinéus por mês, de dezesseis preciosos guinéus a cada mês lunar.
"Melhor seria pensar no que dirá de sua cara", disse Jack para si contemplando o capitão, que agora estava silencioso e imóvel. A ferida tinha um aspecto realmente feio. Jack raras vezes havia visto uma ferida com um aspecto mais feio, mas Stephen Maturin lhe assegurara que o grande corte se fecharia bem e que o olho não corria perigo, e nunca havia visto Stephen equivocar-se em questões médicas. Nesse momento recordou seu encontro e pensou: "Que bonita é a senhora Fielding!". Depois voltou para o palácio e, abrindo passagem entre a multidão, chegou até o jardim da frente e ali gritou:
- Surprise!
O grito chamou a atenção de todos os marinheiros e infantes da marinha que estavam ali, e em poucos segundos apareceu o timoneiro de Jack, limpando a boca. Bonden estava vestido esplêndidamente, já que em ocasiões como essa todos os capitães orgulhosos de seus barcos queriam que sua falua e os homens que a tripulavam tivessem um aspecto que beneficiasse sua reputação. Usava um chapéu de copa alta e redonda com o nome Surprise, uma casaca azul claro com colarinho de veludo, calções de cetim e sapatos com fivela de prata, tudo isso (com excessão dos sapatos, que eram de um renegado morto) feito por ele e seus amigos com suas agulhas.
- Bonden - disse Jack, - o senhor… o capitão Pullings não se sente bem.
- Está enfermo, senhor? - perguntou Bonden só por curiosidade, não porque tencionasse julgar-lhe do ponto de vista moral.
- Não, eu não diria que está enfermo - disse Jack, mas os outros entenderam que essa era uma fórmula para guardar as aparências.
Bonden disse que pegaria uma maca do monte que sempre ficava preparado no barracão dos guardas quando o governador dava uma festa, que chamaria a um par de tripulantes da falua bastante fortes para carregá e sairia pela porta do jardim para evitar um escândalo e que os casacas vermelhas rissem.
- Muito bem, Bonden, muito bem - disse Jack. - Nós nos encontraremos na porta do jardim dentro de cinco minutos.
Dez minutos depois já havia chegado na metade da rua parecida com uma escada que levava para seu hotel e caminhava ao lado da maca. Dois tripulantes da falua sustentavam o extremo anterior da maca à altura do ombro, e o posterior era sustentado pelo corpulento timoneiro à altura dos joelhos, de modo que ficava bastante reta, e haviam atado o capitão a ela dando sete voltas em um cabo, as sete voltas tradicionais, ao seu redor de modo que parecia estar em uma rede. Ninguém do grupo ainda tinha pensado que o fato de um oficial da marinha estar bêbado era vergonhoso, porque agora as casacas vermelhas do palácio não os viam, e a única preocupação de Jack era não perder seu chapéu. As casas de ambos os lados da rua tinham sacadas fechadas e a cada vinte jardas mais ou menos, onde, devido à inclinação da rua, as sacadas ficavam muito baixas, algumas mãos saiam de detrás dos postigos e tentavam alcançar sua cabeça, acompanhadas umas vezes de um riso cristalina e outras do característico riso de uma pessoa ébria, e um convite para entrar. Os oficiais tão importantes como os capitães de navio raras vezes eram tratados assim, ao menos durante o dia, mas esse dia era a festa de São Simeón Estilita e se toleravam muitas confianças. Mas Jack, a quem mesmo antes de começar a se barbear, já o haviam arrebatado em muitos portos o chapéu (que por admiração a lorde Nelson e para recordar os hábitos de sua juventude, usava-o com os bicos para os lados em vez de para frente e detrás), e tinha muita habilidade para conservá-lo.
Também pôde conservá-lo desta vez, e, ao chegar ao pátio do hotel, chamou ao seu dispenseiro, que estava trepado no telhado olhando na direção contrária.
- Ei, Killick, vem dar uma mão!
Killick desceu correndo.
- Finalmente chegou, senhor! - exclamou, pegando a maca distraidamente, com os olhos fixos no chapéu de Jack. - Eu estou lhe procurando há mais de uma hora.
Killick fora um marinheiro simples que se ocupava das velas do mastro traquete e era bastante mais tosco que os outros. Não se convertera em um homem civilizado por trabalhar na cabine do capitão, era ignorante e teimoso e era mal informado. Mas sabia que "um diamante do tamanho de uma ervilha era tão valioso como o resgate de um rei", e sabia que o chelengk era feito de diamantes porque havia escrito com ele em uma janela "Preserved Killick, da Surprise, é o melhor". Os dois diamantes da parte superior eram tão grandes como as ervilhas secas que havia comido durante toda sua vida na Armada (nunca as havia visto verdes), e havia chegado a pensar que o chelengk era tão valioso como as jóias da coroa ou inclusive mais, já que as jóias da coroa não podiam girar. Desde que o presente chegara de Constantinopla, sua vida havia sido um constante sofrimento, sobretudo porque estavam em terra, onde havia ladrões por todo lado. Cada noite escondia o broche em um lugar distinto, geralmente envolto em um pedaço de vela que depois rodeava com trapos sujos, e o colocava entre iscas e ratoeiras que fechariam por um simples espirro.
Killick e Bonden puseram Pullings na cama cuidadosamente e com a destreza própia dos bons marinheiros. Jack olhou seu relógio e percebeu que devia ir embora imediatamente se não quisesse chegar tarde ao ensaio na casa da senhora Fielding, mas também percebeu de que não havia enviado seu violino para ali pela manhã, o que era um imperdoável descuido, já que nessa cidade todos os oficiais sempre usavam uniforme e não ficava bem ser visto que levando pacotes pela rua, e muito menos um instrumento musical.
- Bonden - disse, - vá à sala de estar do doutor, pegue o estojo de meu violino do lugar encostado na janela e acompanha-me à casa da senhora Fielding. Já irei imediatamente.
Bonden, sem responder, franziu o cenho, inclinou a cabeça para um lado e fingiu que prestava atenção às tiras do gorro de dormir do capitão Pullings. Então Killick tirou o chapéu de Jack do criado mudo com tanta força que o chelengk começou a girar outra vez e disse:
- Não com este chapéu.
Os diamantes eram o que mais lhe preocupava, mas também se preocupava com o chapéu, o melhor chapéu do capitão Aubrey, pois detestava ver bons uniformes desgastados ou simplesmente embaçados. Ainda que fosse um homem generoso (não havia ninguém mais dadivoso que Preserved Killick quando ficava em terra com o chapéu cheio do dinheiro de um butim) não gostava que os víveres e o vinho do capitão Aubrey fosse comido ou bebido por pessoas que não fossem almirantes, lordes ou muito bons amigos seus, e todos sabiam que o vinho que dava aos oficiais com pouca antiguidade e aos guardas-marinhas era uma mistura do que havia restado nas garrafas no dia anterior. Nesse momento regressou com um pequeno chapéu de pior qualidade, que havia encolhido e estragado pelo uso durante duros anos de serviço no Canal.
- Bah, ao diabo o chapéu! - exclamou Jack, pensando que levar o chelengk ao ensaio estaria completamente fora de lugar. - Bonden, que está fazendo?
- Tenho que trocar minha roupa primeiro - respondeu Bonden, desviando o olhar.
- Quer dizer que se leva um violino é possível que os casacas vermelhas lhe gritem: "Toque-nos uma canção, marinheiro" - disse Killick. - E o senhor não gostaria que isso acontecesse, Sua Senhoria, enquanto estivesse com o nome Surprise bordado na cinta do chapéu. O senhor preferiria que eu chamasse a um malandrinho para que o levasse e que Bonden o vigiasse, como é seu dever.
O capitão Aubrey disse que isso não tinha sentido e que eram um par de malditos tontos, mas depois, ao se recordar as vezes que o haviam seguido para a coberta de um barco de guerra inimigo, quando não se preocupavam em levar o estojo de um violino nem ser vítima de zombaria, disse que não havia tempo a perder e que fizessem o que quisessem, mas que se aquele violino não estivesse na casa da senhora Fielding cinco minutos antes que ele chegasse, seria melhor que procurassem outro barco.
O violino chegou antes dele. O garoto descalço que ia com Bonden conhecia todos os atalhos, e ambos já estavam junto à grade que dava para a rua quando Jack chegou, depois de abrir passagem entre uma adversa multidão de mulheres com capas negras, homens de meia dúzia de países, alguns perfumados, e cabras.
- Muito bem - disse, dando um xelim ao garoto. - Chegado bem a tempo. Pode retirar-se, Bonden. Quero que a falua esteja preparada para as seis da manhã.
Pegou o violino e avançou apressadamente pela comprida vereda de pedra que atravessava os jardins da frente da parte posterior e levava para a pequena casa da senhora Fielding, mas quando chegou à porta do jardim, se deu conta de que se havia dado pressa desnecessariamente, pois não responderam ao seu batida. Depois de esperar um tempo prudente, empurrou a porta, e quando a abriu, sentiu o intenso aroma do limoeiro. Era uma árvore enorme, que tinha flores durante todo o ano e, sem dúvida, tão velho como Valletta ou ainda mais velho. Jack se sentou no muro baixo que tinha ao redor, um muro parecido ao de um poço, e ficou ofegando durante alguns momentos. Nesse mesmo dia haviam regado a árvore com a enorme quantidade de água que lhe jogavam a cada três meses e a terra úmida produzia uma agradável sensação de frescor.
Durante a caminhada havia recuperado seu bom humor, que raras vezes o abandonava por muito tempo, e agora, com a casaca desabotoada e sem chapéu, contemplava os limões à luz do crepúsculo, acariciado pela fresca brisa. Já havia parado de ofegar, e estava a ponto de tirar o violino do estojo quando notou que um débil som que ouvia há algum tempo se fez mais forte, um gemido que parecia irreal e se repetia regularmente.
- Não parece humano - disse, aguçando o ouvido, e pensou em suas possíveis causas: um moinho sem graxa no eixo dando voltas, um torno de qualquer tipo, um homem que havia enlouquecido de melancolia e estava encerrado atrás da parede da esquerda. - Contudo, o eco de um som pode ter muitas formas curiosas- disse, pondo-se de pé.
Atrás do limoeiro ficava a pequena casa, e colada ao canto da direita havia uma majestosa arcada que era a entrada de outro jardim perpendicular ao primeiro. Atravessou a arcada e notou que o som, que agora era muito mais forte, vinha de uma larga e profunda cisterna que ficava junto ao canto e na qual se recolhia a água da chuva que caía do telhado.
- Meu Deus! - exclamou Jack, correndo para a cisterna com o horrível pressentimento de que o louco havia se jogado nela impulsionado pelo desespero.
Quando se inclinou sobre o muro que o rodeava e olhou a água escura, que estava a uns quatro ou cinco pés de profundidade, pensou que seu pressentimento se havia cumprido, já que nela nadava uma figura escura e peluda que estirava sua enorme cabeça e, com voz rouca, repetia: "Auu! Auu!". Mas quando voltou a olhar percebeu de que era Ponto.
Haviam pegado mais da metade da água da cisterna para regar o limoeiro (ainda havia baldes ao seu lado), e o desgraçado cachorro, por causa de sua grande curiosidade e de ter cometido um grande erro, caiu dentro. Ainda restava água suficiente para que não chegasse ao fundo, mas o nível estva tão baixo que lhe era impossível chegar à borda e sair por si mesmo. Havia estado na água durante um longo tempo, e nos lugares das paredes onde havia tentado se agarrar se viam as sangrentas marcas de suas patas. Parecia aterrorizado e desesperado, e a princípio não percebeu a presença e seguiu uivando e uivando.
- Se está louco, me arrancará a mão - disse Jack, depois de falar com o cachorro sem obter nenhum resultado. - Tenho que pegá-lo pela coleira, mas a distância é condenadamente longa.
Tirou a casaca e o sabre e estendeu o braço para o fundo, mas não se estirou o suficiente, ainda que seus calções rangeram. Então se endireitou, tirou o colete, afrouxou a gravata, desabotoou os calções e, entre os uivos que enchiam o ar, voltou a se inclinar e a descer o braço na escuridão, e desta vez pôde tocar a água com a mão. Viu o cachorro aproximar-se e disse:
- Ei, Ponto, dá-me o cangote!
Jack abriu a mão para pegar a coleira, mas viu com desgosto que o animal nadou trabalhosamente até o outro lado, onde, sem parar de uivar, tentou em vão subir pela parede apoiando suas garras esfoladas e com as unhas destroçadas.
- Condenado imbecil! - exclamou. - Estúpido! Cabeça de bezerro! Dá-me o cangote! Faça sua parte, maldito canalha!
Os familiares sons marinheiros, que foram pronunciados em alta voz e retumbaram na cisterna, foram um consolo para o cachorro. Foi nadando até onde estava Jack, e Jack passou a mão pela sua peluda cabeça até encontrar a coleira, a horrível coleira de puas, e o agarrou como pôde.
- Rápido! - disse, deslizando seus dedos debaixo da coleira para agarrá-lo mais fortemente. - Espere!
Então inspirou e, agarrando-se à borda da cisterna com a mão esquerda e segurando a coleira com a direita de tal modo que suas mãos estivessem o mais separadas possível, começou a subir o cachorro. Já o tinha meio fora da água e estava pensando que era muito pesado para estar seguro tão debilmente, mas que era possível sacá-lo, quando o muro cedeu e ele caiu dentro da cisterna. Enquanto caía, dois pensamentos brotaram em sua mente: "Se me caem os calções" e "Tenho que manter-me longe de seus dentes". Alguns momentos depois estava de pé no fundo da cisterna, com a água na altura do peito, e ouvia justamente junto de sua orelha o ofego do cachorro, que estava agarrado ao seu pescoço com as patas dianteiras como se estivesse dando-lhe um abraço. Ponto estava ofegante, mas não demente. Havia recuperado toda a sensatez que tinha. Jack soltou a coleira, girou o cachorro e o pegou pelo meio do tronco e depois o subiu até a borda do muro gritando:
- Para cima!
Ponto apoiou as patas nele e depois o queixo, e então Jack o empurrou com força pelas ancas e ele se afastou dali. Agora Jack só podia ver o claro céu e três estrelas pela boca da cisterna.
CAPÍTULO 2
Em Malta se fofocava muito, e o rumor de que o capitão Aubrey tinha relações com a senhora Fielding se difundiu com rapidez por Valletta e inclusive pelos povoados vizinhos, onde viviam alguns militares que haviam sido destinados ali. Muitos oficiais invejavam Jack por sua boa sorte, mas não lhe tinham má vontade. Muitas vezes Jack notava que o olhavam com complacência e que sorriam maliciosamente, mas não se explicava por que, pois, como costumava ocorrer nesses casos, era uma das últimas pessoas que saberiam o que diziam dele. Mas o rumor lhe causaria surpresa, já que considerava as esposas de seus companheiros sagradas, a não ser que elas fizessem sinais que o induzissem a pensar diferente.
Portanto, Jack só conhecia as desvantagens da situação: as palavras recriminatórias de alguns oficiais, os olhares furiosos e os gestos de enfado e de desprezo de algumas esposas de marinheiros que conheciam a senhora Aubrey, e a ridícula perseguição que havia motivado o rumor.
Jack, acompanhado pelo doutor Maturin e seguido por Killick, ia caminhando pela rua Real sob a deslumbrante luz do sol, e de repente se pôs sério.
- Por favor, Stephen, entremos aqui um momento - disse para seu amigo enquanto o conduzia para a loja mais próxima, uma loja onde se vendia vidro de Murano e que era propriedade de Moisés Maimónides. Mas era tarde demais. Jack ainda não havia chegado ao fundo da loja quando Ponto se jogou sobre ele ladrando alegremente. Ponto era um cachorro grande e desajeitado, e agora, com as botas de tecido que lhe haviam posto para proteger-lhe as patas feridas, era ainda mais desajeitado. Quando havia entrado, havia derrubado duas filas de frascos, e agora que estava diante de Jack, com as patas dianteiras apoiadas em seus ombros, lambendo-lhe a cara e movendo a calda de um lado para o outro, estava tombando candelabros, botijões e sinos de vidro com a calda.
A cena era horrível, e se repetia, em ocasiões até três vezes por dia, com uma só coisa diferente, a loja, a taberna, o clube ou o restaurante onde Jack se refugiava, e durava o suficiente para que provocasse sérios danos. Mas Jack, logicamente, não podia amputar as patas do cachorro, e somente uma grave lesão seria efetiva, já que Ponto era tão lerdo de inteligência como de movimentos. Ao final, Killick e Maimónides fizeram Ponto sair para a rua caminhando para trás, e ao chegar ali, o cachorro conduziu Jack para onde estava sua dona com orgulho, dando longos passos e saltando torpemente de vez em quando, e ao ver-lhes reunidos mostrou uma grande satisfação, que muitos oficiais da marinha notaram, militares e civis, e suas respectivas esposas.
- Espero que não lhe haja causado incômodos - disse a senhora Fielding. - Ele o viu quando estava a cem jardas do senhor e nada foi capaz de impedir que fosse lhe dar bom dia outra vez. Ele está tão agradecido! E eu também, sem dúvida - acrescentou, lançando-lhe um olhar afetuoso que fez Jack pensar que poderia ser um daqueles sinais.
Essa manhã Jack era mais propenso a pensar nisso porque havia desjejuado uma ou duas libras de sardinhas frescas, que produziam o efeito de um afrodisíaco nas pessoas de compleição sanguínea.
- Oh, não, senhora! - exclamou. - Alegro-me muito de ver-lhes mais uma vez.
Nesse momento se ouviram os gritos de Killick e do vendedor de objetos de vidro, que falavam em tom áspero. Em ocasiões como essa, Killick pagava pelos danos, mas não pagava nem uma só moeda maltesa nem um décimo de penique a mais do que custavam, e agora insistia em que queria ver todos os pedaços e encaixá-los uns com outros, e em pagar o preço de venda no atacado. Jack afastou a senhora Fielding dali para que não pudesse ouvir-lhes.
- Me alegro muito de ver-lhes - repetiu, - mas peço que o segure agora, porque estão me esperando no estaleiro e a verdade é que não posso perder tempo. Acredito que o doutor terá prazer em lhe ajudar.
Estava sendo esperado por alguns carpinteiros de barcos que faziam as custosas reparações do Worcester e outros que não faziam nada, mas que deveriam estar fazendo as reparações da Surprise, que agora, completamente vazia e sem canhões, estava escorado em um fétido lodaçal. Também o esperavam uma parte da tripulação de seu barco. Havia zarpado da Inglaterra em companhia de seiscentos homens no Worcester, e quando o haviam trasladado temporariamente para a Surprise, havia levado consigo os duzentos melhores, e havia pensado que regressaria com eles para a Inglaterra, depois deste breve parêntese no Mediterrâneo, para levar para a base naval da América do Norte uma das novas fragatas de grande potência. Contudo, na esquadra do Mediterrâneo sempre havia escassez de marinheiros, e os almirantes e os capitães de mais antiguidade não eram escrupulosos quando tencionavam consegui-los, e posto que a Surprise sofreu muitos danos em uma batalha no mar Jônico e havia tido que ser levada ao estaleiro, sua tripulação havia diminuído consideravelmente, porque eles, com um pretexto ou outro, haviam recrutado forçosamente seus membros, a tantos membros que Jack havia tido que lutar muito duro para que seu própio timoneiro e os homens em quem mais confiava ficassem com ele. Os tripulantes da Surprise que restavam estavam hospedados em pestilentas barracas de madeira pintadas de preto, que agora eram ainda mais pestilentas porque eles haviam tapado todos os buracos com estopa e breu e no interior havia odor de fumaça de tabaco e ar viciado, como o que estavam acostumados a respirar na entrecoberta dos barcos. Posto que a fragata estava em mãos dos empregados do estaleiro, eles podiam dedicar grande parte de seu tempo a gastar dinheiro e debilitar sua saúde, e ambas coisas as faziam em companhia de um grande número de mulheres que se amontoavam nas portas, algumas delas prostitutas veteranas, que exerciam seu ofício desde o tempo dos cavalheiros da Ordem de Malta, mas outras muitas exageradamente jovens, ainda que todas eram mulheres muito baixas e gordas, mulheres como as quais se encontravam poucas vezes em lugares que não fossem os arredores das barracas onde se hospedavam os soldados e os marinheiros.
Este pequeno grupo de tripulantes sujos e fedorentos que levavam uma vida dissoluta estava esperando por Jack enquanto ele, tão pacientemente como podia, escutava as falsas desculpas daqueles que deveriam estar reparando a fragata e, contudo, não a estavam reparando. Os marinheiros haviam se colocado como habitualmente faziam no barco para passar em revista, com a ponta dos pés coladas às linhas desenhadas com argila branca que representavam as juntas da coberta da Surprise, detrás dos guardas-marinhas e oficiais ao comando da brigada à qual pertenciam. Os infantes da marinha que iam na fragata haviam ido para suas barracas quando a embarcação foi levada ao estaleiro, portanto, não restava nenhum casaca vermelha ali e não houve a ritual apresentação de armas com seus gritos e seus estalidos quando Jack se aproximou do grupo. Nesse momento William Mowett, seu primeiro oficial, deu um passo adiante, tirou o chapéu e, em tom coloquial e com voz muito distinta do vozeirão dos oficiais, com a voz própia de um homem com um terrível dor de cabeça, disse:
- Todos presentes e sóbrios, senhor, com sua permissão.
Podia se dizer que estavam sóbrios se se levasse em conta as bebedeiras que os marinheiros costumavam tomar, mas alguns cambaleavam e a maioria fedia a álcool. "Pode-se dizer que estão sóbrios, mas é inegável que estão sujos e andrajosos", pensou Jack enquanto passava em revista aos tripulantes. Conhecia a todos, a alguns desde que havia tido o comando de um barco pela primeira vez ou inclusive antes, e quase todos tinham a cara mais pálida, mais inchada e com mais pústulas que nunca. Quando Jack navegava pelo mar Jônico na Surprise, havia capturado uma corveta francesa que tinha a bordo alguns cofres com moedas de prata, e em vez de esperar longo tempo para que o tribunal competente decidisse como distribuir o butim, havia ordenado reparti-lo imediatamente. Essa divisão não era estritamente legal, e ele tinha a obrigação de repor todo o butim em caso de que a corveta não fosse considerada uma presa legal, mas estava convencido de que por ter esse traço pirático que era a urgência, havia animado mais aos tripulantes que a promessa de uma quantidade de dinheiro muito maior em um futuro distante. Cada tripulante havia recebido no cabrestante o equivalente à quarta parte de seu pagamento anual em coroas, e todos haviam sentido uma grande satisfação, mas essa soma, naturalmente, não havia durado muito (os marinheiros eram tão ávidos por se divertir em terra que nenhuma soma durava muito), e era evidente que alguns vendiam sua roupa. Jack sabia muito bem que se agora mesmo desse a ordem "Esvaziar as bolsas!", veria que os tripulantes da Surprise não eram marinheiros com boa roupa e certa quantidade de dinheiro, senão pobres com roupa surrada que não tinham mais roupas decentes que as que usavam para descer a terra (que nunca se punham no barco) e algumas compradas ao contador que só lhes serviam para proteger-se do clima pouco rigoroso do Mediterrâneo. Havia feito o possível para mantê-los ocupados, mas além de ordenar que todos praticassem tiro com armas leves e tirar a ferrugem das balas de canhão, não podia dar-lhes outras tarefas navais.
E ainda que lhes serviam de diversão o críquete e as excursões pela ilha diante da qual naufragara São Pablo, quando seu barco foi empurrado para a costa a sotavento pelo gregal, nenhuma das duas coisas podia se comparar com as diversões da cidade.
- Bando de libertinos e esbanjadores! - murmurou enquanto passava pela frente da fila de marinheiros com o cenho franzido.
Mas os oficiais não estavam em condições muito melhores. Havia visto Mowett e Rowan, o outro tenente, no baile de Sappers, e era óbvio que haviam competido para ver qual dos dois mais bebia, do mesmo modo que competiam no barco para ser o melhor poeta, e ambos sofriam agora as consequências. Adams, o contador, e os dois ajudantes do oficial de derrota, Honey e Maitland, haviam estado na mesma festa e, assim como os tenentes, tinham o aspecto de cansados; enquanto que Gill, o oficial de derrota, tinha tal expressão que parecia que estava a ponto de enforcar-se, ainda que essa era sua expressão habitual. As únicas pessoas alegres e atentas de toda a tripulação eram os dois guardas-marinhas que restavam, Williamson e Calamy, dois garotos inúteis mas simpáticos e, quando prestavam atenção, cumpridores de seu dever. Pullings tinha uma expressão mais triste, mas ainda que estivesse presente não contava, porque já não pertencia à tripulação da Surprise e estava ali como visitante, como espectador. Apesar de ser óbvio que sentia satisfação por usar as dragonas, um bom observador podia notar atrás dela a nostalgia e a angústia. Parecia que o capitão Pullings, um capitão sem barco e com poucas probabilidades de consegui-lo, percebera que uma viagem com esperanças podia ser melhor do que a chegada, que nada ocorria como um esperava, e que os velhos costumes, o velho barco e os velhos amigos de um tinham muito valor.
- Muito bem, senhor Mowett - disse o capitão Aubrey quando a revista terminou, e depois, decepcionando a todos, acrescentou: - Todos os marinheiros irão para Gozo nas lanchas imediatamente!
Então observou que Pullings ficou aflito e desconcertado, e acrescentou:
- Capitão Pullings, se tem tempo livre, agradeceria se tomasse o comando da lancha grande.
"Isto os fará acordar", pensou Jack com satisfação quando as lanchas dobraram o cabo São Telmo e os tripulantes de todas (da falua, da lancha grande, do esquife, dos dois cúteres e do bote) começaram a remar com muita força porque tinham que navegar contra a corrente e contra o moderado vento do noroeste sem esperança de içar nenhuma vela ao longo das treze milhas que os separavam de Gozo. Os marinheiros pensavam que o capitão estava de tão mau humor que, quando chegassem ali, poderia ordenar-lhes dar uma volta ao redor de Gozo, Comino, Cominetto e das outras ilhotas que rodeavam Malta. Os que iam na falua, de cuja popa lhes olhava atentamente o capitão, que estava sentado entre seu timoneiro e um guarda-marinha, não podiam expressar sua opinião mais que com uma olhada reprovatória, e os remadores das outras lanchas, sobretudo os que iam na popa, tampouco podiam expressar seus sentimentos. Mas as lanchas estavam abarrotadas e os remadores se substituíam a cada meia hora, e os marinheiros das lanchas que estavam sob o comando de Pullings e dos dois tenentes lograram falar muito, ainda que muito baixo, do capitão, e sempre desrespeitosamente, enquanto que os que iam a bordo dos cúteres e do bote, que estavam ao comando dos guardas-marinhas, pareciam estar promoviendo um motim, e, a intervalos, ouvia-se o senhor Calamy gritar: "Silêncio de proa a popa! Silêncio! Apontarei o nome de todos os que estão a bordo!", e sua voz ia subindo de tom à medida que o repetia.
Mas em torno aproximadamente uma hora, o mau humor dos marinheiros desapareceu, e quando chegaram às tranqüilas águas que rodeavam Comino, começaram a perseguir uma speronara{2} e, dando gritos de alegria e gastando em vão suas energias, perseguiram-na até a mesma baía de Megiarro, onde ficava o porto de Gozo. Ali desembarcaram, e muitos gritaram frases jocosas para os tripulantes das últimas lanchas que chegaram à margem. Então se informaram de que o capitão havia encomendado refrescos para eles em um comprido boliche coberto por um parreiral que ficava perto da praia, e voltaram a olhá-lo com o afeto de sempre.
Os oficiais foram ao clube Mocenigo, onde encontraram outros oficiais da Armada que haviam ido ali para desfrutar do bonito dia ou para visitar seus amigos da ilhota. Também havia alguns casacas vermelhas, mas, em geral, os soldados e os marinheiros se mantinham separados. Os primeiros se sentavam na parte mais próxima da fortaleza e os últimos, nos terraços que davam para o mar, e nas mais altas se reuniam os capitães. Jack guiou Pullings pela escada e o apresentou a Ball e Hanmer, dois capitães de navio, e para Meares, um capitão de corveta. Ocorreu-lhe um jogo de palavras com esse nome, mas não disse, porque pouco tempo antes, ao saber que o pai de um oficial era um cônego de Windsor, dissera que ninguém podia ser melhor recebido em um barco que desse importância à artilharia que o filho de um canhão, e o oficial sorrira forçadamente.
- Estávamos falando da operação secreta - disse Ball depois que se sentaram e pediram algo de beber.
- Que operação secreta? - perguntou Jack.
- A do mar Vermelho, naturalmente - respondeu Ball.
- Ah! - exclamou Jack.
Já fazia algum tempo se falava de uma operação que ia ser realizada nesse perigoso mar, em parte para diminuir a influência dos franceses ali, em parte para satisfazer ao Sultão, que era quem governava, pelo menos nominalmente, em todos os territórios da costa da Arábia até Bab-el-Mandeb e no Egito e até os territórios do Negus, e em parte para satisfazer aos comerciantes ingleses que sofriam exações e abusos de Tallal ibn Yahya, o governante da pequena ilha de Mubara e de uma parte da costa próxima, que, assim como seus antepassados, obrigava a pagar direitos de passagem aos barcos que navegavam pela zona e que não eram potentes o bastante para opor-se a isso nem rápidos o bastante para fugir de seus incômodos faluchos. Contudo, o costume não podia comparar-se com a verdadeira pirataria, e todos consideravam o xeique simplesmente uma pessoa incômoda, mas seu filho, de caráter muito mais enérgico, apoiara Bonaparte na invasão do Egito e era considerado em Paris um valioso possível aliado na operação cujos objetivos eram expulsar os ingleses da Índia e acabar com o comércio entre eles e os países do Oriente. Os franceses lhe haviam proporcionado algumas embarcações européias e carpinteiros de barco, que haviam construído as galeras que hoje formavam sua pequena esquadra. Ainda que a operação para apoderar-se da Índia parecesse remota, Tallal incomodava aos turcos quando favoreciam muito à Inglaterra, e sua crescente influência preocupava ao Sultão e aos donos da Companhia das Índias. Além disso, em um recente acesso de fervor religioso, fizera a circuncisão de três comerciantes ingleses à força, em represália pelo batismo de três de seus antepassados à força (sua família, os Beni Adi, haviam vivido setecentos anos em Andaluzia, quase sempre em Sevilha, onde eram muito conhecidos, e Ibn Khaldun falava deles com respeito). Mas esses comerciantes não eram membros da Companhia, senão que comerciavam sem licença, e por três traficantes circuncisos não valia a pena realizar uma operação com grande número de barcos e soldados, assim que o plano era que a Companhia levaria até o golfo de Suez um de seus barcos para emprestá-lo às autoridades turcas, a Armada proporcionaria a tripulação do barco, e os ingleses, na qualidade de conselheiros para assuntos navais, levariam a Mubara algumas tropas turcas e um governante mais adequado, da mesma família que o xeique, e se apoderariam das galeras que o xeique possuía. Tudo devia ser feito discretamente, para não ofender aos governantes árabes dos territórios que ficavam mais ao sul e no golfo Pérsico (nada menos que três das mulheres de Tallal eram dessa zona), e repentinamente, para pegar o inimigo de surpresa, já que assim não oporia resistência.
- Lowestoffe será o encarregado da operação - disse Ball, - e me parece muito bom, porque está acostumado a tratar com os turcos e os árabes, encontra-se nessa zona e não tem barco. Eu o imagino caminhando sudoroso pelo deserto, ah, ah, ah! Ele e seus homens terão que ir andando até Suez. Meu Deus! - exclamou e voltou a rir; e os demais sorriram.
Lorde Lowestoffe era um dos marinheiros que mais simpatias despertava na Armada, mas tinha as pernas curtas e era excessivamente gordo (sua cara redonda, vermelha e risonha sempre estava brilhante), e por isso imaginá-lo caminhando pela areia do deserto sob o sol africano era engraçado.
- Fico com muita pena Lowestoffe - disse Jack. - Ele se queixou do calor quando estávamos no mar Báltico! Acho que seria muito mais feliz se estivesse na base naval da América do Norte, aonde espero chegar muito cedo. Pobre homem! Faz muito tempo que não o vejo.
- Esteve enfermo - disse Hanmer. - Garanto que parecia um cadáver quando veio me ver outro dia para me fazer algumas perguntas sobre o mar Vermelho. Queria que lhe falasse dos ventos que sopram ali e dos bancos de areia, dos arrecifes e outras coisas. Escrevia tudo cuidadosamente enquanto ofegava como um buldogue. Pobre homem!
- Então o senhor é um perito na navegação pelo mar Vermelho? - perguntou Pullings, que falava pela primeira vez.
Fez a pergunta com boa fé, porque se interessava pelo assunto, mas sua ferida transformou seu amável sorriso em uma careta que expressava desconfiança, e seu tom nervoso não a desmentiu.
- Não acho que conheça essa zona tão bem como o senhor, senhor - respondeu Hanmer. - Não acho. Contudo, conheço-a pelo menos superficialmente, e tive a honra de guiar nossa esquadra de Barim a Suez em 1801, quando tentávamos expulsar os franceses dali.
Hanmer era propenso a contar fantasias, mas nesta ocasião havia dito a verdade, por isso se incomodava mais que em outras vezes que alguém não acreditasse.
- Senhor, eu nunca estive nesse lugar, ainda que tenha navegado pelo oceano Índico. O que sucede é que muitas vezes ouvi dizer que é muito difícil navegar por ali, que as marés e as correntes do extremo norte são enganosas e que o calor é, por assim dizer, exageradamente quente, e gostaria muito de conhecer mais detalhes.
Hanmer escrutinou o rosto de Pullings e desta vez a ferida não o impediu de notar que o jovem era sincero.
- Realmente, senhor, é sumamente difícil navegar por ali, sobretudo quando se entra. Nós entramos pelo endemoninhado canal oriental, que bordeja Barim. É um canal que tem só duas milhas de largura e que em nenhum ponto mede mais de dezesseis braças de profundidade, e não há nele nem uma só baliza, nem uma única. Mas isso não é nada comparado com o terrível calor, um calor que parece o fogo do inferno e é acompanhado de umidade. O maldito sol brilha perpetuamente, o ar nunca esfria, o alcatrão jorra da exárcia, o breu borbulha nas juntas, os marinheiros enlouquecem, o que se limpa não seca nunca. Aqui, Meares - disse, indicando com a cabeça para o oficial que estava ao seu lado, - esteve a ponto enlouquecer. Tinham que mergulhá-lo no mar duas vezes a cada hora, mas encerrado em uma cesta de ferro que o protegia dos tubarões. Hanmer olhou atentamente para Meares e pensou que apesar de que estivera trastornado, ainda podia perceber se dizia a verdade ou não, assim que seguiu descrevendo as coisas como realmente eram. Jack lhe prestava muito pouca atenção, já que a maior parte dela ele dedicava à sua jarra de limonada gelada com uma pitada de vinho de Marsala, mas o ouviu falar dos arrecifes de coral, que se encontravam inclusive a vinte milhas da costa na parte oriental, e mais próximos na parte setentrional, e também o ouviu falar das ilhas vulcânicas, dos perigosos bancos de areia nas imediações de Hodeida, das tempestades de areia no golfo de Suez e dos ventos que sopravam com mais freqüência na região: o vento do norte, o do noroeste e um denominado vento egípcio. Alegrou-se por Hanmer não falar do fênix nem das serpentes marinhas (apesar de Hanmer mentir há muitos anos, não o fazia muito bem, e amiúde sua falta de habilidade resultava vergonhosa), mas lamentou-se por ouvi-lo falar tanto de algo que devia ser mantido em segredo, lembrando que Stephen preconizava a discrição absoluta, e pensou que Hanmer se excedera muito, talvez demais. Agora Hanmer falava dos tubarões do mar Vermelho.
- A maioria dos tubarões são covardes - disse Jack em uma das raras pausas. - Parecem ferozes e agressivos, mas no fundo não são, sabem? Muito barulho por nada. Um dia me jogei ao mar na costa de Marrocos, ao sul do banco de areia Timgad, e caí justo em cima de um enorme peixe martelo, que só fez me pedir perdão e sair fugindo. A maioria dos tubarões são covardes.
- Os do mar Vermelho não - disse Hanmer. - Em meu barco havia um grumete chamado Thwaites, um garoto um pouco lerdo que vinha da Sociedade Naval{3}, e um dia, quando estava sentado no pescante de bombordo com os pés na água para refrescar-se, o barco inclinou uma ou dois embornos empurrado por uma lufada de vento e um tubarão arrancou-lhe as pernas na altura do joelho em um instante.
Isso fez reagir o capitão Ball, que havia deixado de prestar-lhes atenção há pouco.
- Precisamente esse é o pescado que vou almoçar hoje! - exclamou. - Mostraram-me quando cheguei. Disseram que é uma lixa e que se parece com o robalo. Aubrey, o senhor e o capitão Pullings podem almoçar comigo, pois a lixa é o bastante grande para que três pessoas possam comer.
- O senhor é muito amável, Ball - disse Jack, - e, verdadeiramente, não há nada como uma lixa, mas tenho que ir imediatamente. Vou entrevistar-me com o almirante Hartley, e provavelmente me pedirá que fique para almoçar com ele.
O capitão Hartley de outro tempo talvez não fosse um dos marinheiros mais destacados, mas tratara Jack Aubrey com amabilidade quando era guarda-marinha e lhe havia elogiado no relatório oficial que fizera sobre uma operação em que os marinheiros do Fortitude, a bordo de várias lanchas, conseguiram sacar do porto uma corveta espanhola protegida pelos canhões do castelo de São Felipe. Além disso, fora um dos membros do tribunal que naquela espantosa quarta-feira examinara em Somerset House vários guardas-marinhas, entre eles o guarda-marinha Aubrey, que se apresentara ao exame com vários documentos falsos, um que certificava que tinha dezenove anos, e outros, firmados pelos diversos capitães sob cujas ordens havia estado, em que se certificava que havia passado seis anos navegando e que sabia aferrar, rizar, usar o leme, calcular as mudanças da maré e medir a distância angular. E precisamente fora ele quem havia falado quando Jack, que estava tão nervoso por causa das perguntas de matemática de um capitão malvado, faminto e mal-humorado, que já não distinguia a latitude da longitude, havia ficado paralizado ao ouvir a pergunta: "Por que o capitão Douglas o rebaixou de categoria, fazendo-lhe passar de guarda-marinha a marinheiro simples, quando estava no Resolution na base naval do Cabo?". Jack estava muito aturdido para encontrar uma resposta que o fizesse parecer inocente sem ofender ao seu capitão anterior. Tinha que discorrer e utilizar toda sua astúcia (desta vez não parecia conveniente responder com a sinceridade com que costumava fazer), mas não podia, e sentira um grande alívio quando ouvira o capitão Hartley dizer: "Porque escondeu uma jovem na coberta inferior, não porque cometeu nenhum erro ao realizar as tarefas própias de um marinheiro. Douglas me contou no castelo de popa de meu barco quando veio visitar-me. Bem, senhor Aubrey, suponhamos o senhor que está ao comando de um transporte e que ele só leva lastro, é instável, e navega rumo sul com as joanetes desdobradas e com vento do oeste, e suponhamos que uma rajada de vento a faz virar. Como resolve a situação sem cortar os mastros?".
O senhor Aubrey havia resolvido a situação largando pela alheta de sotavento uma guindaleza de considerável comprimento com alguns objetos amarrados que servissem de apoio na água, como por exemplo, as vergas e os galinheiros, usando-a também como espia{4} para mudar o barco de bordo, e havia ordenado aos marinheiros puxar com toda sua força até o momento em que a alheta que ficava a sotavento estivesse a barlavento, momento em que o barco teria que endireitar-se forçosamente, e recolher a guindaleza.
Pouco depois havia saído da sede da Junta Naval resplandecente de alegria e com outro certificado, um bonito documento em que se dizia que estava preparado para desempenhar as funções de tenente de navio. E precisamente quando tinha essa classe fora a uma missão nas Antilhas com o capitão Hartley, mas a missão fora interrompida porque o capitão fora nomeado almirante. Ainda que Hartley não fosse popular na Armada (era um avaro e um libertino, levava a bordo amantes de baixa ralé às quais largava em portos de países estrangeiros sem se preocupar com elas e oferecia poucos banquetes, geralmente muito maus e chatos), Jack e ele se entendiam, em primeiro lugar porque ambos se conheciam bem, em segundo, porque os dois davam muita importância à artilharia, e em terceiro, porque Jack havia tirado Hartley do mar quando seu esquife havia virado em frente a Saint Kitts. Jack nadava muito bem e salvara muitos marinheiros. Quem pudera perceber o horrível que era afogar-se e deixar tantas coisas neste mundo lhe dava constantes amostras de agradecimento, ainda que a maioria estivera tão preocupada em respirar, sair para superfície quando afundavam e gritar, que não haviam podido refletir; e muitos daqueles que, assim como o capitão Hartley, haviam sido pegos do mar imediatamente, diziam que poderiam ter saído sozinhos, ainda que não se sabia se pensavam que podiam caminhar pela água ou em aprender a nadar imediatamente. Porém, Jack sentia afeto por todos os homens que salvara, ainda que tivessem uma atitude hostil com ele ou não lhe fossem agradecidos, e Hartley não estava em nenhum desses dois grupos.
Jack pensava nele com afeto enquanto caminhava para o interior da ilhota por um caminho empoeirado flanqueado por oliveiras. Não o via há muitos anos, ainda que amiúde lhe havia levado móveis, livros e tonéis de vinho, que havia deixado no porto mais próximo ao lugar onde se encontrava, nem havia estado em sua casa de Gozo. Mas recordava muito bem do almirante e tinha desejo de falar com ele. Evidentemente, aquele caminho não era frequentado, pois em meia hora só vira passar um camponês com uma carreta e um asno. Em realidade, não era frequentado por pessoas, mas havia cigarras nas oliveiras, que produziam um som chiante que às vezes era tão alto que, se alguém o acompanhasse, não poderia conversar com ele. Ademais, depois que Jack deixou para trás os bosques e os campos cultivados e começou a atravessar os terrenos rochosos onde as cabras pastavam, viu que havia muitos répteis no caminho. Havia lagartos verdes do tamanho de seu antebraço que se afastavam quando ele se aproximava e lagartixas pardas entre a ressecada grama das bordas; e viu algumas serpentes passarem de um lado para o outro, e esteve a ponto de morrer de medo, porque lhes tinha terror. Quase sempre que caminhava pelas ilhas do Mediterrâneo via tartarugas, que não achava desagradáveis, pelo contrário, mas pensava que em Gozo mal tinha. Contudo, depois de caminhar durante um longo tempo, ouviu um estranho toc-toc e viu uma pequena tartaruga atravessar correndo, literalmente correndo, com as pernas totalmente estendidas. Era perseguida por uma tartaruga maior que, quando conseguiu alcançá-la, deu-lhe três encontrões seguidos, e Jack percebeu de que o toc-toc era produzido pelas carapaças ao se chocarem. "Tirana!", pensou Jack decidido a intervir, mas a tartaruga, uma tartaruga fêmea, parou de repente, talvez debilitada pelos últimos golpes ou talvez porque pensava que já havia oferecido resistência durante o tempo devido. Então a tartaruga macho subiu em cima dela, e, sustentando-se precariamente sobre a arredondada couraça, com suas velhas pernas dobradas apoiadas nela, virou a cabeça para o sol, estirou o pescoço, abriu muito a boca e deu um estranho grito de agonia.
- Meu Deus! - exclamou. - Não tinha idéia… Quanto eu gostaria que Stephen estivesse aqui!
Como não desejava interrompê-las, passou a considerável distância delas e depois seguiu avançando pelo caminho, recordando alguns versos de Shakespeare que não faziam referência a tartarugas mas a mulheres jovens, até que chegou a uma ermita consagrada a São Sebastián, na qual o sangue do mártir havia sido repintado recentemente e tinha um brilho extraordinário. Além da ermida havia um muro de pedra meio derrubado, e no centro do muro havia uma grade de ferro forjado, em outro tempo dourado, que havia saído dos gonzos e estava apoiado contra ele.
- Deve de ser esta casa - disse, recordando a direção que lhe haviam dado.
Mas vários minutos depois disse:
- Talvez tenha me equivocado.
O imenso jardim, que parecia um terreno baldio, a vereda que o atravessava e a lúgubre casa amarelada que se via ao final da vereda, não pareciam ter nada a ver com a Armada. Jack vira na Irlanda propriedades tão descuidadas como essa, com veredas cobertas de erva daninha, basculantes soltos da metade de seus gonzos e vidros quebrados, mas não se notava tanto que estavam descuidadas devido ao constante chuvisco e ao musgo. Aqui, em troca, sim se notava, pois o sol brilhava intensamente, o céu estava limpo e só o que havia verde era um pequeno grupo de azinheiras empoeiradas, e os chiados das inumeráveis cigarras faziam que se notasse ainda mais. "Esse tipo me dirá se o é", pensou.
A lúgubre casa amarelada foi construída em torno de um pátio ao qual se entrava por uma porta com a parte superior em forma de arco, e no pilar da esquerda havia um homem recostado que parecia um moço de estábulo ou um camponês que se estava futucando o nariz.
- Por favor, pode me dizer se o almirante Hartley vive aqui? - perguntou Jack.
O homem não respondeu, lançou um olhar malicioso, deslizou pela abertura da porta e entrou no pátio. Jack o ouviu falar com uma mulher. Falavam em italiano, não em maltês, e ele pôde entender as palavras "oficial", "pensão" e "cuidado". Tinha a impressão de que lhe estavam olhando de uma pequena janela. Após alguns instantes saiu a mulher, uma mulher mal-encarada que vestia um sujo vestido branco e estava desarrumada. Ao ver-lhe, pôs uma expressão amável e disse em correto inglês que aquela era a casa do almirante, e perguntou se ele fora tratar de algum assunto oficial. Jack disse que era um amigo do almirante e se surpreendeu ao ver uma sombra de incredulidade em seus olhos pequenos e quase unidos. Apesar disso, ela conservou o sorriso, mandou que entrasse e disse que ia avisar ao almirante de que estava ali. Depois o guiou por uma escada mal iluminada até uma sala esplêndida. Era esplêndida por seus componentes, o piso de mármore verde claro com faixas brancas, o alto teto artesoado e a chaminé, com uma lareira muito maior que o das chaminés das cabines em que Jack se alojara quando era tenente de navio; mas não era por seus móveis, uma mesinha redonda e um par de poltronas com o assento e o espaldar forrado de couro, que pareciam menores em meio daquele grande espaço iluminado. A princípio Jack achou que não havia nada mais dentro, mas depois, quando avançou para a parede em que havia sete janelas, aproximou-se da janela do meio e voltou a cabeça para a chaminé, viu um retrato de seu antigo capitão na idade de quarenta ou quarenta e cinco anos, um retrato excelente e com os cores ainda muito vivas. Permaneceu ali de pé, com as mãos atrás das costas, contemplando-o silenciosamente durante um tempo. Não conhecia ao pintor. Não era Beechey, nem Lawrence, nem Abbott, nem nenhum dos pintores que costumavam retratar os membros da Armada. Provavelmente não era inglês. Jack pensou que era um bom pintor, pois havia reproduzido fielmente a expressão altiva, voluntariosa e resolvida de Hartley, porém, depois de observar o retrato longo tempo, chegou à conclusão de que não havia gostado de seu modelo. Não havia estampado nenhum sentimento naquela cara pintada, e, apesar de que o retrato era bastante fiel, nele não se refletia a bondade que, indubtavelmente, Hartley tinha, ainda que a mostrava em raras ocasiões. Para Jack parecia que o quadro era como a crítica de um inimigo, e recordou que um companheiro havia dito que o inegável valor de Hartley tinha uma estranha particularidade, pois Hartley atacava ao inimigo movido pela indignação e o afã de vingança pessoal, como se pensasse que o outro bando tratava de tirar-lhe coisas vantajosas, como butins, elogios ou promoções.
Pensava nisto e na verdadeira função da pintura quando a porta se abriu e entrou uma caricatura do homem representado no retrato. O almirante Hartley usava uma velha bata amarela com manchas de tabaco na parte dianteira, calças largas e sapatos com o calcanhar dobrado em vez de sapatilhas. Seu nariz e sua mandíbula haviam crescido, e tinha a cara muito maior. Perdera a expressão altiva e voluntariosa, e, naturalmente, sua pele já não tinha a cor de bronze que adquiriu enquanto esteve exposta ao sol. Tinha um aspecto desagradável e ridículo, e seu rosto pálido só refletia descontente. Dirigiu um olhar para Jack carente de humanidade, que não expressava interesse nem prazer, e perguntou por que havia ido ali. Jack disse que, posto que se encontrava em Gozo, havia pensado que podia apresentar seus respeitos ao seu antigo capitão e perguntar-lhe se queria enviar algum recado para Valletta. O almirante não respondeu, e os dois permaneceram ali de pé enquanto Jack falava do tempo que havia havido durante os últimos dias, das mudanças que se haviam produzido em Valletta e de sua esperança de que o vento mudasse, e sua voz ressoava na habitação vazia.
- Bem, sente-se um momento - disse o almirante Hartley e, fazendo um esforço, perguntou se Aubrey tinha algum barco agora, mas, sem esperar a resposta, inquiriu: - Que horas são? É a hora de tomar o leite de cabra. É fundamental que eu tome o leite de cabra com regularidade.
Então olhou com ansiedade para a porta.
- Espero que se encontre bem neste clima, senhor. Dizem que é muito saudável.
- Não é possível ter saúde quando se é velho. Além do mais, saúde para que?
Um servente trouxe o leite. Era um homem que se parecia em tudo com a mulher que Jack vira, exceto que tinha um pouco de barba de cor preto azulado porque não se barbeava já fazia cinco dias.
- Onde está a signora? - perguntou Hartley.
- Já vem - respondeu o servente.
Em efeito, a mulher já estava na porta quando ele se ia, e trazia uma bandeja com uma garrafa de vinho, bolachas e um copo. Havia trocado o sujo vestido branco por outro bem mais limpo e mais decotado. Jack notou que Hartley pôs uma expressão alegre; contudo, apesar de sua alegria, suas primeiras palavras foram um protesto:
- Aubrey não quer vinho a esta hora do dia.
Antes que se tomasse uma decisão com respeito a este assunto, ouviram-se alguns gritos no pátio e o almirante e a mulher correram para a janela. O almirante lhe acariciou os peitos, mas ela o afastou com um tapa e depois se debruçou pela janela e se pôs a gritar com uma voz tão potente que provavelmente podia ser ouvida a uma milha e meia de distância. Seguiu gritando assim por algum tempo. Jack não tinha mais perspicácia que a maioria dos homens, mas compreendera imediatamente que o almirante caíra em desgraça, e que isso, mesclado com sua luxúria, provocara um sentimento que podia ser amor, paixão ou carinho.
- Que temperamento! - exclamou o almirante quando a mulher saiu correndo da sala para seguir discutindo mais de perto. - Sempre se pode conhecer o caráter de uma mulher pela proeminêcia de suas nádegas - afirmou, ruborizando, e depois, em um tom mais humano, disse: - Sirva-se de um copo de vinho e depois sirva um para mim. Beberemos juntos. Só o que me deixam beber é leite, sabe?
Fez uma breve pausa, na qual inalou um pouco de rapé que tinha envolto em um papel, e depois disse:
- Vou a Valletta de vez em quando para buscar meu meio soldo. Estive lá há duas semanas, e Brocas mencionou seu nome. Sim, sim, lembro-me perfeitamente bem. Ele me falou do senhor. Parece que o senhor ainda não aprendeu a prender bem os calções. Tanto melhor! Um deve se portar como um homem enquanto pode, como eu digo. Desejaria não ter desperdiçado tantas oportunidades no passado. Quase choro sangue quando me recordo de algumas dessas mulheres, dessas esplêndidas mulheres! Um deve se portar como um homem enquanto pode. Depois, na tumba, um passa muito tempo como um eunuco. E alguns nos convertemos em eunucos antes de chegar a ela - disse, soltando uma risada mesclada com um soluço.
Quando Jack regressava para a costa, o calor estava mais intenso, o resplendor do branco caminho era cegante e os chiados das cigarras eram mais fortes. Raras vezes se sentira tão triste. Por sua mente passaram negros pensamentos um depois de outro: o estado do almirante, a eterna passagem do tempo, a inevitável decadência, a espantosa impotência… Retrocedeu de maneira instintiva quando passou perto de sua cara um objeto que lhe recordou os pedaços de madeira que caiam da exárcia nas batalhas. O objeto caiu no pedregoso caminho, justamente diante de seus pés, e se rompeu em pedaços. Era uma tartaruga, provavelmente uma das duas tartarugas enamoradas que havia visto pouco antes, já que esse era precisamente o lugar onde estavam. Olhou por cima e viu a enorme ave de plumagem preta que a deixara cair. A ave começou a voar ao redor de sua cabeça, olhando-lhe fixamente.
- Meu Deus! - gritou. - Meu Deus!
E depois de pensar por alguns instantes, exclamou:
- Quanto eu gostaria que Stephen estivesse aqui!
Stephen Maturin estava sentado em um banco da igreja da abadia de São Simón, ouvindo os monges cantando as vésperas. Tampouco havia comido, mas porque não quisera, para fazer penitência por haver desejado a Laura Fielding e esperava fazer diminuir sua concupiscência. Mas seu estômago, que era pagão, protestara por esse tratamento a princípio e seguira resmungando até o final da primeira antífona. Contudo, já fazia algum tempo que Stephen se achava em um estado que poderia chamar-se de estado graça, pois se esquecera de seu estômago, do banco incômodo e do amor carnal, ficara arrebatado ouvindo aquele canto familiar, o velho canto gregoriano.
Durante a ocupação francesa de Valletta, os franceses haviam causado graves danos à abadia. Haviam levado seus tesouros, venderam o claustro, quebraram sem motivo as vidraças coloridas das janelas (que foram substituídas por esteiras) e arrancaram as placas de mármore nobre, lápis-lazúli e malaquita que recobriam as paredes. Mas esto último havia tido uma boa consequência: a acústica era muito melhor. E agora que o coro de monges cantava entre as paredes de pedra e os arcos de tijolo, parecia que estava em uma igreja mais antiga, um lugar mais adequado para cantar que a igreja renacentista que os franceses haviam encontrado em sua chegada. O abade era um homem muito velho. Havia conhecido os últimos três mestres de campo gerais, vira os franceses chegarem e depois os ingleses. Agora, pelas ruinosas naves laterais, expandia-se sua voz débil mas melodiosa, uma voz diáfana, que não parecia pertencer a um ser terreno. Imediatamente os monges o seguiram, e o tom de seu canto subia e descia como as suaves ondas.
Havia poucas pessoas na igreja, e as poucas que havia somente podiam ser vistas quando passavam pela frente das velas das capelas laterais. A maioria delas eram mulheres cujas capas negras se fundiam com as sombras. Mas no final da missa, quando Stephen se voltou para fazer uma reverência como mostra de respeito ao altar, justo ao lado da pia de água benta que ficava perto da porta, viu um homem sentado junto a um dos pilares. O homem secava seus olhos com o lenço, e seu rosto estava iluminado pela luz que entrava por uma fenda da parede que dava para o claustro secularizado. Nesse momento voltou a cabeça, e Stephen descobriu que era Andrew Wray.
As mulheres haviam se aglomerado diante da porta e avançavam por ela muito devagar, falando animadamente umas com as outras. Stephen teve que ficar ali de pé durante um tempo. Ficara surpreso ver por Wray, pois ainda que as leis do código penal já não fossem o que eram, um católico não podia ser vice-secretário interino do Almirantado. Stephen se encontrara com Wray em alguns concertos em Londres, mas pensava que comparecia a eles para estar em companhia de gente importante em vez de pelo amor à música. Contudo, notou que o vice-secretário se mocionara de verdade, pois quando já havia se serenado e começara a caminhar pela porta, estava muito sério e seu gesto transluzia sua emoção. As mulheres puxaram a cortina de couro para um lado e abriram a porta, e, ao mesmo tempo que saíram, entrou a luz do sol. Wray não deu importância ao altar nem à água benta, e isso era uma prova inequívoca que não era um papista. Então viu Stephen, e sua expressão séria se transformou em uma sorridente.
- O senhor é o doutor Maturin, né? Como está, senhor? Sou o senhor Wray. Nos conhecemos na casa de lady Jersey. Também tenho a honra de conhecer à senhora Maturin, a quem vi precisamente pouco antes de zarpar.
Falaram um pouco, pestanejando sob a intensa luz do sol. Falaram de Diana, a quem Wray vira no Teatro da Ópera no camarote dos Columptons, e de amigos comuns, e depois Wray o convidou para tomar uma xícara de chocolate em uma elegante pastelaria que ficava do outro lado da praça;
- Vou a São Simón com tanta freqüência como posso - disse quando se sentaram em uma mesa verde no caramanchão que ficava detrás da pastelaria. - Gosta do canto gregoriano, senhor?
- Gosto muito, senhor - respondeu Stephen, - quando não é meloso, nem tem brilhantismo, nem é cantado para causar efeito. Gosto quando é sóbrio, tem frases uniformes e carece de notas supérfluas e de transição.
- Eu também - disse Wray. - Tampouco gosto desses melismas modernos. A simplicidade angelical é o que lhe confere beleza. E estes admiráveis monges conhecem o segredo.
Então falaram dos modos, e descobriram que os dois gostavam mais do canto ambrosiano que qualquer modo plagal, e depois Wray disse:
- Estive em uma de suas missas outro dia, um dia que cantaram o Agnus de Mixolydian, e devo confessar-lhe que me emocionei tanto quando o ancião cantou dona nobis pacem que estive a ponto de chorar.
- Paz… - disse Stephen. - voltaremos a ter paz algum dia?
- Pela forma como o Imperador se comporta atualmente, eu duvido.
- A verdade é que acabo de sair de uma igreja - disse Stephen, - porém, apesar disso, não posso deixar de desejar que esse porco do Bonaparte, esse maldito tirano, seja condenado a passar no inferno toda a eternidade.
Wray riu e disse:
- Recordo-me de um francês que admitia que Bonaparte tinha muitos defeitos, inclusive o de comportar-se como um tirano, como o senhor disse muito acertadamente, e outro muito pior, ignorar a gramática e os costumes franceses. Mas disse que, apesar disso, ele o apoiava. Seu argumento era o seguinte: as artes diferenciam os homens dos animais e fazem a vida quase suportável, e as artes florescem em tempo de paz, e um governo universal é um requisito indispensável para que haja paz no universo. A propósito disto, citou umas palavras de Gibbon nas quais expressava sua alegria por viver na época dos imperadores Antoninos, e disse que todos os imperadores romanos absolutistas, inclusive Marco Aurélio, eram tiranos, ainda que só fosse in posse, mas que a pax romana justificava exercer um governo tirano. Disse que considerava Napoleão o único homem, melhor dizendo, semideus capaz de formar um império universal, e que militava na guarda imperial por seu amor à arte e à humanidade.
Ocorreu a Stephen um monte de argumentos contundentes para opor-se a esse, mas fazia muito tempo que havia deixado de expressar sua opinião a todos menos aos seus amigos íntimos e, sorrindo, limitou-se a dizer:
- Bem, é um ponto de vista.
- De toda forma - disse Wray, - nosso dever é, se me permite a expressão, minar a fortaleza do império universal. De minha parte - disse, inclinando-se pela mesa, - tenho que realizar uma delicada missão dentro de pouco e gostaria que me assessorasse. O almirante me disse que podia lhe consultar sobre ela. Assim que ele chegue, haverá uma reunião geral, e queria que tivesse a amabilidade de participar.
Stephen disse que estava à disposição do senhor Wray. Nesse momento deram a hora numerosos relógios perto e longe dali, e Stephen percebeu que estava atrasado para o encontro com Laura Fielding pelo que, levantando-se de um salto, despediu-se.
Wray viu como Stephen cruzava a praça apressadamente e desaparecia na concorrida rua. Então regressou à igreja, que a essa hora ficava vazia, observou como estavam colocadas as velas da capela de São Roque e foi até a nave lateral que voltada para o sul. Ali havia uma pequena porta que agora não estava fechada com chave, como habitualmente ficava; Wray a abriu e passou ao claustro, que estava cheio de barris de vários tamanhos, e, ao chegar a uma esquina, atravessou um corredor que levava a um armazém, também cheio de barris, e entre eles estava Lesueur, que tinha um caderno e uma caneta na mão, e um corno que servia de tinteiro enganchado no olhal.
- Chegou muito tarde, senhor Wray - disse. - É surpreendente que as velas ainda não tenham apagado.
- Sim. Estava falando com um homem que me encontrei na igreja.
- Foi o que me disseram. E o que o senhor tinha a dizer ao doutor Maturin?
- Falamos do canto gregoriano. Por que a pergunta?
- Sabe que ele é um espião?
- Para quem trabalha?
- Para o senhor, naturalmente. Para o Almirantado.
- Ouvi dizer que o consultaram sobre alguns assuntos. Sei que lhe pediram que examinasse alguns informes sobre a situação política da Catalunha porque ele a conhece bem, e que assessorou ao secretário do almirante sobre os casos relacionados com Espanha, mas daí a que seja um espião… Não, não acredito que seja um espião. Além disso, seu nome não aparece na lista de ordens de pagamento.
- Não sabe que foi ele que matou Dubreuil e Pontet-Canet em Boston, que destruiu quase por completo a organização de Joliot introduzindo informação falsa no Ministério da Guerra, que arruinou nossas relações com os norte-americanos?
- Não! - gritou Wray.
- Então, o senhor Blaine não foi franco com o senhor. Talvez não tenha sido porque é muito astuto, ou talvez porque alguém, em algum lugar, viu algo que lhe infundiu suspeitas. O senhor deve vigiar os canais de informação, meu amigo.
- Conheço a lista de pagamentos quase de memória - disse Wray, - e posso assegurar que o nome de Maturin não está em nenhuma delas.
- Estou seguro de que é verdade - disse Lesueur. - É um idealista, como o senhor, e precisamente por isso é tão perigoso. Mas é melhor assim, porque se soubesse, não haveria podido falar com naturalidade com ele. Se suspeitam algo, e se ele o sabe, é provável que lhes diga que suas suspeitas são infundadas. Falou da missão para ele?
- Eu a mencionei e disse que queria que assistisse à reunião quando o comandante geral chegasse.
- Muito bem. Mas é melhor guardar distância. Trate-o como um conselheiro político, como um especialista em alguns assuntos, mas nada mais. Além da vigilância ordinária, há um agente vigiando só a ele. Não há dúvida que ele tem uma rede de informantes, alguns na França, e o nome de pelo menos um deles poderia nos levar aos outros e depois a Paris… Mas é como um animal perigoso e com uma dura couraça, e se este agente não tiver êxito logo, é improvável que consigamos nosso objetivo, assim que terei que pedir-lhe que busque uma maneira plausível de tirá-lo do caminho sem comprometer a sua posição.
- Verei - disse Wray e, depois de refletir durante um momento, acrescentou: - Isso pode se arrumar. Se não surgir uma oportunidade antes, o dey de Mascara resolverá o problema. Verdadeiramente - acrescentou depois de pensar por um minuto, - o dey nos será muito útil. Poderemos matar dois pássaros com um tiro.
Lesueur o olhou pensativo e depois disse:
- Por favor, conte os barris que estão do outro lado do pilar, porque não posso ver todos daqui.
- Vinte e oito - disse Wray.
- Obrigado - disse Lesueur, anotando a cifra em seu caderno. - Me devolvem sete francos e meio por cada um, o que é uma quantidade apreciável.
Era óbvio que Wray estava pensando no que ia dizer a seguir enquanto Lesueur multiplicava essas cifras com satisfação. E quando disse, notava-se que careciam de espontaneidade, o mesmo que um elaborado discurso, e que expressavam uma indignação maior da que razoavelmente podia sentir.
- Acaba de dizer que sou um idealista - disse, - e é verdade que sou. Nenhuma soma poderia comprar meu apoio; nenhuma soma nunca comprou meu apoio. Mas não posso viver somente de ideais. Até que minha esposa herde, minhas rendas serão muito reduzidas, e enquanto permaneça aqui, sou obrigado a manter minha posição. O senhor Hildebrand e todos os que podem pegar partes do estaleiro e do aprovisionamento fazem apostas muito altas, e eu sou obrigado a segui-los.
- O senhor já acrescentou uma grande quantidade extra à habitual… ajuda antes de sair de Londres - disse Lesueur. - Não pode pretender que a rue Villars pague por suas dívidas de jogo.
- Sim posso, quando incorro nelas por uma razão como esta - disse Wray.
- Se o direi ao meu chefe - disse Lesueur, - ainda que não posso prometer nada. Porém, indubtavelmente, o senhor pode ganhar a confiança desses homens sem fazer apostas tão altas, né? - disse em tom impaciente. - Acho que esse procedimento não é ideal.
- Com esses homens é fundamental - disse Wray teimosamente.
CAPÍTULO 3
O mau humor que a visita ao almirante Hartley produzira em Jack Aubrey foi atenuado por uma avalancha de pensamentos e uma intensa atividade física. O tribunal do Almirantado havia examinado as circunstâncias em que ele havia capturado uma corveta francesa no mar Jônico e a havia considerado uma presa legal. Isto, apesar de haver tido que pagar os elevados honorários de seu mandatário, proporcionou-lhe uma considerável quantidade de dinheiro, não tanta como a que necessitava para solucionar os complicados problemas que tinha na Inglaterra, mas o suficiente para enviar para Sophie o pagamento de dez anos, rogando-lhe que não se privasse de nada, para mudar-se para um alojamento mais digno no hotel Searle, e, como já lhe haviam indicado os canais pelos quais podia conseguir que começassem as reparações da Surprise, para fazer os adequados subornos. Mas no fundo ainda sentia tristeza, que nem a companhia de outros nem a música faziam desaparecer e que trazia consigo a determinação de viver sem contenção enquanto pudesse.
Por isso quando Laura Fielding foi lhe dar aula de italiano em seu novo quarto, muito mais cômodo, encontrou um Jack de excelente humor, apesar de ter passado um mau dia no estaleiro e estar muito preocupado com as curvas da fragata. Posto que Jack nunca em sua vida havia tentado seduzir uma mulher com malícia, não tratava de conquistá-la da maneira usual, tentando minar sua fortaleza e aproximando-se por tortuosos caminhos, senão que sua estratégia (se a algo não premeditado, fruto do instinto, podia chamar-se estratégia) era sorrir, ser tão agradável como podia e aproximar cada vez mais sua cadeira da dela.
No início da revisão do imperfeito do subjuntivo do verbo irregular stare, a senhora Fielding se alarmou ao ver que o comportamento de seu aluno era mais irregular que o verbo. Percebeu a sua intenção inclusive antes de que ele mesmo a observasse, porque se criara na corte napolitana, onde havia costumes dissolutos, e se acostumara aos galenteios desde muito nova. Anciãos conselheiros, pagens lampinhos e numerosos cavalheiros de distintas idades haviam tentado minar sua virtude, mas ela recusara à maioria deles. O caso havia terminado por interessar-lhe, e era capaz de detectar os primeiros sinais de uma paixão amorosa, que, pelo que vira, não se diferenciavam muito de um homem para outro. Mas nenhum de seus galanteadores era tão robusto como este, nem tinha os olhos tão brilhantes, nem suspirava tanto, nem ria de uma maneira tão desconcertante. A pobre dama, preocupada por não haver chegado a um acordo com o doutor Maturin e incômoda pelos rumores de que cometia adultério com o capitão Aubrey, não estava de humor para brincar e lamentava a ausência de sua criada, já que Ponto, seu fiel guarda, não podia protegê-la nestas circunstâncias. Ponto estava deitado ali e os olhava com expressão risonha e golpeava o solo com a calda cada vez que o capitão Aubrey aproximava sua cadeira um pouco mais.
Ambos largaram o imperfeito do subjuntivo com indiferença, e Jack, cuja imaginação havia despertado, falava agora daquilo que se rumorejava sobre eles. Ela, apesar de que não conhecia bem o inglês e de que ele não era coerente, compreendeu o sentido geral de suas palavras e antes de que chegasse a expressar seu desejo de fazer algo para que esse rumor tivesse fundamento e dizer que era justo que assim fosse porque ambos haviam sofrido sem ter culpa, ela o interrompeu.
- Ah, capitão Aubrey! - exclamou. - Tenho que pedir-lhe um favor.
Jack, sorrindo e olhando afetuosamente para a senhora Fielding, disse que ela podia pedir o que quisesse, que ele estava à sua disposição e que se encantaria em servi-la.
- Muito bem - disse ela. - Já sabe que sou faladora, e que amiúde o doutor me disse e me pediu que não falasse tanto, mas não gosto de escrever, pelo menos, escrever em inglês. Se lhe dito um texto para que o senhor o escreva em bom inglês, poderei usar as palavras que escreva quando envie cartas para meu esposo.
- Muito bem - disse Jack, deixando de sorrir.
Era exatamente o que Jack temia e compreendeu que interpretara mal os sinais. Dizia que o senhor Fielding devia saber que o admirável capitão Aubrey evitara que Ponto se afogasse e que agora Ponto adorava ao capitão e corria ao seu encontro quando lhe via na rua e que por isso a gente maliciosa dizia que o capitão Aubrey e ela eram amantes, e que se esse rumor chegasse aos seus ouvidos não devia fazer-lhe caso. Depois dizia que o capitão Aubrey era um homem honorável e nunca ofenderia à esposa de um companheiro com proposições desonestas, que ela estava tão segura de que era um homem correto que o visitava inclusive sem sua criada. E terminava dizendo que o capitão Aubrey sabia perfeitamente que ela não era uma beltrana.
- Beltrana? - perguntou Jack, alçando a vista e deixando de mover a pluma.
- Essa palavra não é correta? Estava tão orgulhosa de que a sabia!
- Oh, sim! - exclamou Jack. - Mas é difícil de escrever, sabe?
Então, rindo para seu interior, escreveu "não sou uma fulana" com muito cuidado, para que as letras não pudessem confundir-se, e sentiu mais vergonha por ter feito um papel ridículo do que pela amargura por sofrer uma decepção.
Despediram-se amistosamente, e então ela, olhando-o com afeto, disse:
- O senhor não se esquecerá de minha festa, né? Convidei o conde Muratori, que toca a flauta magnificamente.
- Nada me impediria de ir, a não ser que perdesse as duas pernas - disse Jack. - E mesmo assim, iria em uma maca.
- Pode lembrá-la ao doutor? - perguntou.
- Estou certo de que ele se recordará dela sozinho - disse Jack, mantendo a porta aberta para que ela passasse. - E se não… Mas aí está - disse, voltando a cabeça para escutar alguns passos na escada. - Quando tem pressa, muitas vezes sobe como um rebanho de ovelhas degarradas e não como um cristão.
Era o doutor Maturin, mas agora não estava pálido e sério, como era habitual, mas rosado e risonho.
- Está empapado! - gritaram os dois.
Era verdade, e quando parou na frente deles, começou a se formar um charco debaixo de seus pés. Jack esteve a ponto de perguntar "caíu na água?", mas não queria pôr em ridículo o seu amigo, porque a resposta tinha que ser necessariamente "Sim". O doutor Maturin era desajeitado no mar, e amiúde, ao passar de uma lancha para um barco ou ao descer de um firme cais de pedra para uma embarcação imóvel, inclusive para uma espécie de gôndola típica daquela região especialmente desenhada para transportar de um modo seguro a homens do interior, perdia o equilíbrio e caía ao mar. Isso lhe ocorrera tantas vezes que sua roupa íntima e a bainha de sua casaca quase sempre tinham manchas brancas formadas pelo sal seco.
Contudo, Laura Fielding a quem isso não a coibia, e, com naturalidade, perguntou:
- Caiu na água?
- Aos seus pés, senhora - disse Stephen distraidamente, beijando sua mão. - Jack, que alegria, o Dromedary chegou!
- E daí? - perguntou Jack, que vira ao transporte de costados retos aproximar-se dando bordejadas desde o amanhecer.
- A bordo está meu sino de escafandrista!
- Que sino de escafandrista?
- Meu ansiado sino de escafandrista desenhada por Halley. Quase perdera as esperanças de recebê-la. Tem uma janela de vidro na parte superior! Estou ansioso para submergir-me no mar. Tem que vir vê-la imediatamente. Uma embarcação está me esperando no cais.
- Adeus, cavalheiros - disse a senhora Fielding, que não estava acostumada que deixassem de lhe prestar atenção por causa de um sino.
Ambos pediram perdão e lhe disseram que sentiam muito o ocorrido e que sua intenção não fora faltar-lhe o respeito. Stephen a ajudou a descer as escadas, e atrás deles desceram calmamente Jack e Ponto.
- É o modelo de Halley, sabe? - disse Stephen quando a típica embarcação maltesa, uma embarcação longa e estreita parecida com uma gôndola, zarpou e seus tripulantes começaram a remar com grande rapidez para atravessar o porto em direção ao Dromedary, já que ele havia prometido pagar-lhes o dobro pela viagem. - Como estes homens remam rápido! E percebeu que remam de pé e voltados para o ponto ao qual se dirigem, como os gondoleiros de Veneza? Acho um costume digno de elogio e deveriam adotá-lo na Armada.
Com freqüência Stephen fazia propostas para melhorar a Armada. Havia recomendado que se entregasse gratuitamente aos marinheiros um uniforme de tecido resistente, sobretudo para os novos e para os grumetes, que se reduzisse sua monstruosa ração de grogue e que lhes desse uma pequena quantidade de sabão, e também que se abolissem vários castigos, como por exemplo, açoitar a um homem diante de cada um dos barcos de uma esquadra, mas todas estas propostas haviam tido pouco êxito, tão pouco como a atual sugestão de que os membros da Armada, contra a tradição, olhassem aonde iam. Jack, sem escutar-lhe, perguntou:
- Halley? O do cometa Halley? O astrônomo real?
- Exatamente.
- Sabia que era capitão do pingue Paramour quando estudava as estrelas do hemisfério austral e traçava a carta marítima do Atlântico, e o admiro muito por sua grande capacidade para observar e fazer cálculos; contudo, ignorava que tivesse algo a ver com as redomas de escafandrista.
- Mas eu lhe falei de seu artigo Art of Living under Water, que apareceu em Philosophical Transactions, e você elogiou minha idéia de caminhar pelo fundo do mar, você disse que seria uma forma de encontrar amarras e âncoras perdidas melhor do que tentar pegá-las com ganchos.
- Lembro perfeitamente, mas você não mencionou o nome de Halley. Além disso, você falou foi de uma espécie de capacete com tubos.
- Estou certo de que mencionei o nome de Halley e de que descrevi o sino com bastantes detalhes, mas você não prestou atenção. Estava jogando críquete, e em um intervalo, aproximei-me de você e o disse.
- Isso foi em outra ocasião, quando jogávamos com vários cavalheiros de Hampshire. Tive que dizer a Babbington que lhe afastasse dali. Nunca consegui fazer-te compreender que na Inglaterra levamos muito a sério esse jogo. Porém, por favor, conte-me tudo outra vez. Como é o sino de escafandrista?
- É belo por sua simplicidade. Imagine um cone truncado, aberto pela parte de abaixo, com uma janela de vidro grosso na parte superior e com pesos repartidos de maneira que ao descer no mar se move perpendicularmente ao fundo. É amplo, e seu ocupante pode sentar-se comodamente em um banco do tamanho de seu diâmetro, colocado a certa distância da borda, enquanto desfruta contemplando as maravilhas das profundezas, aproveitando a luz que entra pelo vidro da parte superior. Poderá objetar que à medida que o sino afunda o ar que há em seu interior se comprime e a água sobe proporcionalmente - disse Stephen, subindo a mão, - e, em circunstâncias normais seria assim, e o sino estaria meio cheio quando tivesse descido trinta e três pés. Mas também tem que imaginar um barril com pesos repartidos e com um buraco no fundo e outro na parte superior. No buraco da parte superior fica metida uma mangueira de couro, untada com azeite e cera de abelha, na qual não entram nem o ar nem a água, e o buraco do fundo fica aberto para que a água entre no barril à medida que afunda.
- Que vantagem tem isso?
- Não percebe? O barril mantém o sino cheio de ar.
- Não. O ar sai pela mangueira de couro.
Stephen se ficou perplexo ao ouvir o comentário. Abriu a boca, logo a fechou e ficou pensando no problema durante alguns minutos, enquanto a ligeira embarcação navegava velozmente por entre os barcos e botes que enchiam o porto, com o contraforte Três Cidades pela proa e Valletta pela popa. Então sorriu e, sentindo satisfação de novo, disse:
- Isso mesmo, isso mesmo. Como sou tonto! Esqueci de dizer que a mangueira de couro tem um peso pendurado para que permaneça abaixo do buraco mais baixo. Mantém-se assim enquanto o barril desce, o que é fundamental, e o homem que vai dentro do sino tem que pegá-la, introduzi-la no sino e subi-la. Quando a sobe acima do nível da água que há dentro do barril, o ar sai com força e se expande no sino, permitindo ao homem respirar melhor e empurrando a água para a parte inferior do sino. Então o homem faz um sinal para que tirem o barril da água e desçam outro. O doutor Halley diz, e usarei suas própias palavras, Jack, que "essa sucessão pode abastecer o sino com tanto ar e tão rapidamente que às vezes outras quatro pessoas e eu ficamos durante uma hora e meia juntos no fundo, em águas de nove ou dez braças, e não sentimos nenhum mal-estar".
- Cinco pessoas! - exclamou Jack. - Meu Deus! Então é enorme. Diga-me, por favor, quais são suas dimensões?
- Meu sino é pequeno, muito pequeno - disse Stephen. - duvido que você caiba nele.
- Quanto pesa?
- Não me recordo do peso exato, mas é muito pequeno, apenas o suficiente para afundar-se, e não muito rápido. Vê essa ave que está aí diante a uns trinta e cinco graus de elevação? Acredito que é um hangi, uma ave típica desta ilha.
Era evidente que os tripulantes do Dromedary já conheciam o doutor, pois desceram uma escada quando a embarcação se abordou com o transporte e, depois que subiu trabalhosamente pelo costado, alçaram-no segurando pelos braços e o fizeram passar por cima da borda. Também era evidente que lhe tinham simpatia, pois apesar de que deviam realizar urgentes tarefas, haviam pego seu sino e os instrumentos que iam nele. E foi o própio capitão, acompanhado de um grupo de sorridentes tripulantes, que levou os visitantes para vê-lo.
- Aqui está - disse o capitão, assinalando com a cabeça a escotilha central, - preparada para ser içada. Como verá, senhor, segui as instruções do doutor Halley ao pé da letra: aí está a espicha, unida por estais ao tope, e aí estão as braças, para poder sacar ou meter o sino, conforme se queira. Aqui, Joe, deu um pouco de polimento para que não pareça uma coisa insignificante.
Em realidade, estava muito longe de parecer insignificante. O aro de latão que rodeava a parte de vidro tinha mais de uma jarda de diâmetro e parecia o olho de um Deus gigantesco, ingênuo e alegre que lhes olhava atentamente. Jack, cheio de angústia, desviou a vista.
- Parece muito grande porque está em um espaço pequeno - disse Stephen, - mas isso é uma ilusão de ótica. Quando a levantarem, verá que é muito pequena.
- Tem oito pés de altura, a parte superior tem um diâmetro de três pés e seis polegadas e a inferior, de cinco pés - disse o capitão com grande satisfação. - Tem uma capacidade de quase sessenta pés cúbicos e pesa aproximadamente quatro mil trezentas libras.
Jack tinha pensado chamar Stephen aparte a para dizer-lhe que essa máquina teria que ficar em terra ou ser enviada à Inglaterra e que, como não havia nascido ontem, sabia perfeitamente que tratava de fazer-lhe aceitar um fato consumado; contudo, as elevadas cifras lhe causaram tal surpresa que gritou:
- Meu Deus! Cinco pés de largura e oito de profundidade e quase duas toneladas de peso! Como pode pensar que na coberta de uma fragata cabia uma coisa monstruosa como esta?
Os sorridentes tripulantes do Dromedary que estavam ao seu redor ficaram sérios, e por sua expressão Jack compreendeu que desaprovavam sua conduta e estavam do lado de Stephen.
- Para dizer verdade - disse Stephen, - eu o encomendei quando estávamos no Worcester.
- Mas em que parte de um navio de setenta e quatro canhões ele poderia caber?
Stephen disse que havia pensado em colocá-lo no castelinho, porque dali seria fácil passá-la por cima da borda se quisesse descê-la ao mar quando o barco não estivesse navegando, e achava inclusive que serviria de adorno.
- O castelinho, o castelinho… - começou a dizer Jack, mas esse não era o momento para falar dos desastrosos efeitos que produziria um objeto de duas toneladas que estivesse colocado na popa e muito acima do centro de gravidade do barco, e oferecesse resistência ao vento, assim que disse: - Mas não estamos falando agora de um navio de linha mas de uma fragata, e muito pequena. Além disso, permita-me que lhe diga que nenhuma das fragatas que construídas até agora tem castelinho.
- Sendo assim - disse Stephen, - que acha de colocá-la no pequeno espaço que há entre o mastro traquete e o cabillero{5}?
- Colocar um objeto de duas toneladas sobre a roda, justo sobre o pé da roda? Isso seria horrível! Faria diminuir a velocidade da fragata dois nós quando navegasse de bolina! Além do mais, aí ficam o estai do maior e das velas. E como vou subir a âncora? Não, não, doutor, não é possível. Sinto muito. Se houvesse falado disto antes, eu teria desaconselhado que a trouxesse, teria dito que não cabia em nenhum barco de guerra a não ser que fosse um navio de primeira classe{6}, não que se podia colocar sobre os calços.
- É o modelo desenhado pelo doutor Halley - disse Stephen em voz baixa.
- Contudo, pense no bem que faria em qualquer lugar da costa - disse Jack em um tom alegre pouco convincente. - Servirá para buscar guindalezas{7}, amarras e âncoras perdidas, e acredito que o comandante do porto lhe emprestará de vez em quando uma chalana para que possa ver o fundo do mar.
- Sempre que meço a altitude de um astro, penso que tenho uma grande dívida de gratidão com o doutor Halley - disse o capitão do Dromedary.
- Todos os marinheiros deveriam estar agradecidos ao doutor Halley - disse o primeiro oficial, e essa parecia ser a opinião geral no transporte.
- Então, senhor - disse o capitão, olhando compassivamente para Stephen, - que tenho que fazer com este sino, com o sino do doutor Halley? Devo levá-lo para a costa tal como está ou o desmonto e o guardo na bodega até que o senhor decida o que fazer com ele? Tenho que fazer uma dessas duas coisas para deixar livre a escotilha, e muito rápido, sabe?, porque de um momento a outro virá o inspetor do estaleiro para passar revista na tripulação. Ali está ele, ali junto ao Edinburgh, conversando com seu capitão!
- Por favor, desmonte-o, capitão, se não for muito incômodo - disse Stephen. - Tenho alguns amigos em Malta em cuja ajuda confio.
- Não é nenhum incômodo, senhor. Tiro uma dúzia de parafusos e caso terminado.
- Se for desmontada - disse Jack, - a coisa muda. Se for desmontada ela pode ser levada na fragata. Pode ser guardada na bodega e ser montada no momento oportuno, quando haja calmaria ou quando a fragata estiver ao pairo ou em um porto. Enviarei minha falua imediatamente.
Enquanto a ligeira embarcação lhes levava ao estaleiro, Jack pensou: "Ainda que pareça estranho, se estivéssemos no castelo de popa de meu própio barco, eles não se atreveriam a falar assim do doutor Halley. Eu me senti como Juliano o Apóstata diante de um monte de bispos… os teria cortado se houvesse estado em meu própio barco… A autoridade depende em boa medida do lugar… Eu sou dócil na casa de meu pai, como a maioria das pessoas…". Então se recordou que suas filhas não eram muito dóceis e que uma vez lhe haviam gritado: "Vamos, papai! A este passo não chegaremos ao cume da montanha! Parece uma lesma!". Antes de então provavelmente haveriam dito "maldita lesma", pois se haviam acostumado a dizer expressões soeces com os marinheiros que trabalhavam de serventes em sua casa, mas quando Jack havia regressado ali depois de sua última viagem, Sophie já havia se encarregado do caso, e agora só se ouviam vozes femininas gritar "Condenado imbecil!" e "Maldito canalha!" em remotos cantos do bosque que rodeava Ashgrove.
- Eu me pergunto o que Graham nos dará - disse Stephen, rompendo o silêncio.
- Estou seguro de que nos dará algo bom - disse Jack, sorrindo.
O professor Graham tinha fama de avarento, e muitos o chamavam de avarento, avaro, mesquinho, miserável ou ruim, mas estavam equivocados. O professor era generoso quando dava um banquete, sobretudo um como este, um banquete no qual ia se despedir de seus antigos companheiros de tripulação do Worcester e da Surprise, de alguns amigos e de vários oficiais dos regimentos da região montanhosa da Escócia.
- Seria estranho que no banquete não houvesse um cachorro com manchas{8} porque ele me perguntou quais eram seus pratos favoritos.
- Adoraria… - disse. - Se atravessar em meu caminho passarei por cima, condenado filho bastardo de um maldito egípcio! - acrescentou, alçando sem esforço a voz de tal modo que podia ser ouvido da margem e voltando a cabeça para um bote cuja tripulação parecia distraída. - Mas agora que me recordo, tinha pensado subir a bordo do Edinburgh e pedir-lhe emprestado a Dundas sua falua, pois é mais adequada que a minha porque é mais larga. Ademais, como seu barco está ancorado em águas de dez braças de profundidade, um lugar muito mais apropriado para o sino do que o fétido atoleiro onde se encontra a Surprise, acredito que a amarrará com o cabo de uma polia e te descerá nela até o fundo do mar, ainda que seria conveniente que descesse primeiro algum grumete ou algum guarda-marinha para nos assegurar de que funciona.
- Boa tarde, professor Graham - disse o doutor Maturin, entrando no quarto de seu colega. - Venho do fundo do mar.
- Sim, já sei que estava ali - disse Graham, afastando a vista de seus documentos e olhando-lhe. - Das barracas alguns puderam ver com binóculos como descia em sua caldeira, e o coronel Véale apostou duas e meia contra uma que o senhor nunca voltaria a subir.
- Espero que esse homem malvado e inumano haja perdido.
- Naturalmente que perdeu, já que o senhor está aqui - disse Graham com impaciência. - Porém, sem dúvida, o senhor estava brincando outra vez. A julgar por seus sapatos e suas meias, o fundo do mar está coberto de lodo fedorento.
- Sim, está coberto de uma capa ondulada de lodo cinza amarelado que tem um estranho brilho, mas… há tantos anelídeos ali, estimado Graham! Há centenas de milhares de anelídeos de pelo menos trinta e seis tipos diferentes, alguns com filamentos e outros sem eles. E espere até que lhe conte o que aprendi dos holotúridos, das lesmas do mar, dos pepinos dp mar…
- Pepinos do mar? - perguntou Graham, anotando algo, e por fim fez uma pausa. - Dê uma espiada nesta lista e diga-me sua opinião. Estou quase completamente satisfeito do conjunto de pratos que escolhi, mas não dos lugares que atribuí aos convidados. Além dos oficiais da marinha de diferentes classes, virão cavalheiros da região montanhosa da Escócia que pertencem a diferentes clãs, e devo ter em conta quem tem primazia sobre os outros membros de seu clã e que clã tem a primazia sobre os demais, do contrário haverá problemas. Se imagina o que pass;aria se se desse mais importância a um McWhirter que a um MacAlpine? Em uma reunião informal como esta, nós não temos em conta a categoria dos militares, ainda que, indubtavelmente, os oficiais do Quadragésimo Segundo Regimento não quererão que se anteponham a eles os de nenhum outro regimento escocês.
- O que deve fazer é numerar os lugares, colocar os números em um chapéu e deixar que cada um saque um. Pode passar o chapéu dizendo algo gracioso.
- Algo gracioso? Ufa, quanto eu gostaria que já houvesse acabado!
- Acredito que você gostará do banquete quando ele começar - disse Stephen, olhando o menu. - Como são estes nabos?
- São nabos com molho. Não só gostaria que houvesse acabado o banquete, mas também todo o resto. Queira voltar ao meu país e levar uma vida tranqüila, estudando e dando aulas. Passarei menos tempo em sua companhia, Maturin, mas me alegro de ir. A situação de Malta me cheira mal, ou seja, a organização dos serviços secretos em Malta. Há muitos homens trabalhando aqui e há muitos que têm a língua solta. Há alguns planos que se porão em execução em Berbería que não me agradam, e se se tem em conta o que Mehemet Ali opina realmente do Sultão, o caso do mar Vermelho parece uma empresa de resultado duvidoso. Há muitas coisas que não me agradam em absoluto - disse e, depois de uma pausa, olhando fixamente para Stephen, perguntou: - Ouviu falar de um homem chamado André Lesueur?
Stephen pensou por um momento.
- Acho que é um agente secreto e que pertence ao grupo de Thévenot, mas não sei nada sobre ele nem nunca o vi.
- Eu o vi em Paris durante a paz. Soube quem era porque um de nossos agentes me disse. Pois bem, estou quase seguro de que o vi hoje na rua Real, caminhando como se estivesse em seu país, quando o senhor estava em sua embarcação. Dei a volta discretamente e tratei de seguir-lhe, mas havia muita gente.
- Como é?
- É um homem baixo, de ombros estreitos, um pouco encurvado, pálido, e tem um gesto triste. Usava uma casaca negra com botões de tecido e calção pardo claro. Terá cerca de quarenta e cinco anos e parece um homem de negócios ou um comerciante importante. Como o senhor não estava e não confio na discrição do secretário, fui ver o senhor Wray.
- Ah, é? E o que ele disse?
- Escutou-me com muita atenção e me recomendou que não dissesse a ninguém. É muito mais inteligente do que supunha. Está tratando de atar cabos para fazer um coup de filet..
- Deus queira que tenha êxito! Tenho a impressão de que os franceses estão tão afiançados em Malta como estávamos em Toulon em 1803. Então nos informávamos de qualquer movimento de barcos, tropas e armas apenas vinte e quatro horas depois que ocorria.
- Deus o queira! Mas isso não porá fim à rivalidade entre os militares e os marinheiros que se encontram na ilha, nem à divisão entre os conselheiros, nem às indiscrições, nem ao constante ir e vir de estrangeiros e nativos descontentes. Tampouco porá fim ao inoportuno zelo do novo comandante geral e seus colaboradores.
- Provavelmente teremos mais informação sobre isso e sobre a situação em geral quando convoque uma reunião. Como o senhor sabe, seu navio foi avistado a oeste de Gozo, e se o vento mudar, poderá chegar aqui amanhã ou depois de manhã.
- Duvido que nos diga muitas coisas. Em uma reunião desse tipo, na qual estarão presentes o senhor Hildebrand e os militares e, além disso, haverá vários assistentes que verão aos outros pela primeira vez, é provável que não se digam mais que tópicos. Quem vai dizer o que sabe sobre assuntos confidenciais diante de estranhos? Acho que o senhor Wray se limitará a falar em geral dos assuntos, e eu não vou dizer nada. Não diria nada mesmo que Figgins Pocock, esse pastrano orelhudo, não estivesse presente.
Stephen sabia que o senhor Pocock, um distinto orientalista que acompanhava o almirante sir Francis Ives como conselheiro para assuntos árabes e turcos, discutira com o professor Graham sobre uma edição de um livro de Abulfeda, e que ambos haviam escrito artigos atacando duramente ao seu oponente, e pensava que isso podia influir na opinião de Graham sobre a maneira em que o comandante geral tratava os assuntos orientais. Apesar disso, admitiu que Graham tinha razão quando disse:
- A atmosfera que há em Valletta não é boa. Ainda que o senhor Wray solucionasse as dificuldades atuais, não melhorará, porque há divisão entre os altos cargos e rivalidade e ódio em todos os níveis, e os que têm o comando são tontos. Por isso, como o senhor ficará aqui durante um tempo, acho que seria melhor que se mantivesse a distância dos demais e que se ocupasse da medicina, das ciências naturais e de seu sino.
- Sim, isso é o melhor - disse Stephen, pondo-se de pé. - Mas agora tenho que ocupar-me das meias e, sobretudo, dos sapatos. Fui convidado para uma elegante soirée, a festa concerto que se celebra na casa da senhora Fielding, e tenho que ir imediatamente, mas acho que expelirão um odor horrível quando secarem. Acredita que poderei limpá-los esfregando-os com algo?
- Duvido muito - disse Graham, examinando-os mais de perto. - As partes que ainda estão molhadas têm uma substância untuosa aderida que faz supor que essa medida não é efetiva.
- Posso trocar a casaca, a camisa e as meias - disse Stephen, - mas este é o único par de sapatos que tenho.
- Deveria ter posto um par velho para mergulhar - disse o professor Graham, que não havia estudado ética inutilmente. - Ou talvez botas de meia cana. Não me importaria de emprestar-lhe um par, ainda que tenha fivelas de prata, mas são grandes.
- Isso não importa - disse Stephen. - Posso completar com lenços, papel ou trapos. Desde que os calcanhares e os dedos dos pés façam pressão sobre algo que sirva de sustento, as dimensões externas do sapato não têm importância.
- Eram de meu avô - disse o professor Graham, pegando os sapatos de uma bolsa de tecido, - e em sua época era comum que os homens os usassem com saltos de cortiça de duas polegadas para parecerem mais altos.
O violoncelo de Stephen, que agora estava metido no estojo almofadado onde ele o guardava quando fazia viagens pelo mar, era volumoso, mas não pesado, e para ele não fazia vergonha levá-lo pela rua. Não eram o peso do instrumento nem a vergonha as causas de que ofegasse e se detivesse amiúde para descansar sentado em um degrau, mas uma dor atroz. Sua teoria sobre o tamanho dos sapatos era errônea, e havia tardado pouco tempo em comprová-lo. A tarde era exageradamente quente, e as meias que usava, as únicas que tinha limpas, não eram de seda mas de lã, e os pés, além de doerem por estarem torcidos devido aos saltos, haviam inchado após as primeiras duzentas jardas, e haviam se enchido de bolhas e roçaduras antes de que chegasse à rua Vescovo. Como caminhava cambaleando, parecia que estava bêbado, e um pequeno grupo de prostitutas e meninos rueiros o acompanhavam com a esperança de tirar proveito das circunstâncias.
Voltou a se sentar em uma esquina, debaixo da imagem mal iluminada de São Roque, e se disse: "Calor, rubor, dor… Isto não pode continuar; contudo, se tiro os sapatos, não posso levá-los nas mãos junto com o violoncelo e, além disso, qualquer destes malandrinhos poderia pegá-los e fugir com eles, e então, o que eu diria a Graham? Por outro lado, não me atrevo a confiar-lhes meu instrumento porque me parece que são desajeitados e que não o pegarão como é devido, entre os dois braços, como se fosse uma criança débil e enferma. Se alguma destas prostitutas baratas fosse amável… Mas todas têm cara de poucos amigos. Encontro-me em um dilema".
Analisou as duas soluções, mas não se decidiu a recorrer a nenhuma, e nesse momento um grupo de tripulantes da Surprise que estavam de licença dobraram a esquina da rua São Roque e se toparam com ele. Imediatamente se ofereceram para levar seus sapatos, e um deles, um marinheiro do castelo de olhar sinistro, que provavelmente havia sido pirata em sua juventude, disse que levaria o grande violino e que o canalha que se atrevesse a rir dele ou a pedir que tocasse algo ia lamentar.
Podia dizer-se que os tripulantes da Surprise não estavam bêbados nem sequer alegres se se comparava sua embriaguez com as bebedeiras que os marinheiros costumavam pegar, mas caminhavam cambaleando e dando tropeções e se detinham de vez em quando para rir ou discutir, e quando finalmente deixaram Stephen na grade da casa de Laura Fielding, era tarde; tão tarde que quando começou a percorrer o corredor coxeando, ouviu no pátio, que ainda não podia ver, as notas que saiam do violino de Jack Aubrey seguidas pelas de uma lamurienta flauta.
"Da próxima vez deixarei o violoncelo na casa da bonita criatura", pensou enquanto esperava atrás da porta que a música cessasse. Então, escutando com atenção o nítido som da flauta, pensou: "Acho que esse som é de um flauto d'amore. Fazia tempo que não o ouvia".
O movimento terminou com um floreio convencional. Stephen entrou no pátio deslizando por entre as folhas da porta, baixou a cabeça para indicar que se desculpava, sentou-se em um frio banco de pedra e pôs o violoncelo do seu lado. Laura Fielding, que estava sentada ao piano, sorriu-lhe amavelmente, o capitão Aubrey lhe lançou um furioso olhar e o conde Muratori, que nesse momento aproximava a flauta dos lábios, olhou-lhe com indiferença. Não podia ver à maioria das outras pessoas porque estavam ocultas pelo limoeiro.
A composição musical não era importante, mas quando Stephen se tirou os sapatos, sentiu uma grande satisfação ouvindo as caprichosas combinações de sons em meio da cálida e suave brisa, aspirando o aroma do limoeiro, um aroma forte, ainda que não muito, e tão bem conhecido, e observando os vaga-lumes que ficavam além dos faróis, no canto mais escuro do pátio. Estas formavam caprichosas combinações de luzes, e Stephen pensou que com ajuda da imaginação podiam deixar de levar em conta algumas notas e alguns vaga-lumes desnecessários e fazer-se coincidir os dois tipos de combinações.
Ponto atravessou o pátio devagar, aproximou-se dele e o farejou. Então fez um gesto de desaprovação, esquivou sua carícia, afastou-se dele outra vez e, dando um suspiro de descontente, jogou-se entre os vaga-lumes. Pouco depois lambeu suas partes pudendas, fazendo tanto ruído que quase não se pôde ouvir um fragmento pianíssimo interpretado pela flauta e Stephen deixou de seguir o desenvolvimento da composição. Então pensou nos vaga-lumes que vira, inclusive naqueles que haviam na América, e no que um entomólogo de Boston lhe contara sobre eles. Conforme aquele cavalheiro, os vaga-lumes de diferentes espécies faziam diferentes sinais luminosos para expressar seu desejo de unir-se sexualmente uns com os outros. Essa maneira de agir era lógica e, sem dúvida, louvável, mas o que não era louvável era que as fêmeas de uma espécie, por exemplo, a A, não impulsionadas pela paixão amorosa mas pela voracidade, imitavam os sinais das de outra espécie, por exemplo, a B, e os machos desta última, sem suspeitar de nada, em vez de cair em um fosforescente leito nupcial caiam em um horrível talhador.
A música terminou e se ouviram alguns breves aplausos. A senhora Fielding se levantou do piano e foi ao encontro de Stephen, que lhe apresentou suas desculpas.
- Oh! - exclamou ela ao baixar a vista e ver que Stephen estava em meias. - Esqueceu-se dos sapatos!
- Senhora Fielding - disse Stephen, - minha amiga, não me esquecerei deles enquanto viva, porque me fizeram muito estrago. Mas pensava que não era preciso que eu observasse rigorosamente a etiqueta porque tínhamos muita confiança.
- Naturalmente que temos muita confiança! - disse ela, apertando-lhe o braço afetuosamente. - Eu também me tiraria os sapatos em sua casa se estivessem me machucando. Conhece a todo mundo? Ao conde Muratori? Ao coronel O'Hará? Venha beber um copo de ponche frio. Traga os sapatos e os levarei para meu dormitório.
Ela o conduziu pela casa, e quando Stephen entrou, viu que a poncheira estava colocada onde costumavam estar as jarras de limonada. Mas as mudanças não terminavam ali, porque as bolachas de Nápoles haviam sido sustituídas por anchovas e pequenas fatias de pão untadas com uma pasta picante. Além disso, a senhora Fielding passara várias horas no salão de beleza e tratara de melhorar o aspecto de sua cútis, bonita por natureza, diante de um espelho bem iluminado, se bem que Stephen, que estava pensando em seus pés e na sonata que ia tocar e que apenas havia ensaiado, não percebeu isso, ainda que notou que estava perfumada e usava um vestido vermelho muito decotado. Stephen não gostou do vestido. Pensou que os peitos bonitos meio descobertos atraiam a muitos homens, entre os quais Jack Aubrey, que havia ficado desconcertado muitas vezes ao vê-los, e que não era justo que uma mulher provocasse desejos que não tinha a intenção de satisfazer. Tampouco gostou do ponche, porque estava muito forte, muito forte. Depois, ao morder o pão com a pasta vermelha, voltou a ofegar. Debaixo do sabor picante notou o de algo conhecido de cujo nome não podia se recordar em poucos minutos, assim que lhe foi impossível recordá-lo, já que, por cortesia, imediatamente teve que felicitar Laura Fielding pelo ponche que preparara, assegurar-lhe que aquelas coisas picantes eram ambrosia e comer outra para demostrá-lo, e trocar frases corteses com os outros convidados. Achou que a atmosfera da festa era distinta da que havia nas outras que participara, e isso o entristeceu. Provavelmente não era tão alegre como as outras festas porque Laura Fielding se esforçava muito porque o fosse, tanto que tinha o nervosismo à flor da pele, e porque pelo menos alguns homens tinham mais interesse nela que na música que tocava. Mas quando Jack Aubrey se aproximou e disse "Ah, você já chegou, Stephen! Finalmente chegou! Foi tudo bem na imersão?", recuperou a alegria porque recordou aquela maravilhosa tarde e respondeu:
- Oh, Jack, garanto que o sino é maravilhoso! Assim que a lancha que o transportava se abordou com o Edinburgh, o capitão Dundas, esse homem admirável, disse aos gritos que queria descer ao fundo do mar nesse momento que não permitiria de nenhuma maneira que eu descesse sozinho e que ele mesmo me acompanharia e…
- Eu lhe interrompi, querido doutor? - perguntou Laura Fielding, entregando-lhe uma partitura.
- Não tem importância, senhora - disse Stephen. - Só estava falando com o capitão Aubrey de meu sino de escafandrista, meu novo sino de escafandrista.
- Ah, sim, seu sino de escafandrista! - exclamou ela. - Eu gostaria muito que me falasse dele. Vamos interpretar agora esta peça e depois poderá me falar dele com tranqüilidade. Imagino as pérolas e as sereias…
A peça era uma sonata para violoncelo de Contarini com um só baixo cifrado, e Laura Fielding sempre havia tocado muito bem a parte que lhe correspondia. Para ela produzir sons harmoniosos era tão natural como respirar, e a música brotava de suas mãos como a água de uma fonte. Mas nesta ocasião, apenas haviam tocado juntos dez compassos, tocou um acorde dissonante, e ao ouvi-lo, Stephen fez uma careta, Jack, Muratori e o coronel O'Hara arquearam as sobrancelhas e franziram os lábios, e um velho commendatore, em voz bastante alta, exclamou: "Tu - tu - tu!".
Depois do primeiro tropeção, ela se concentrou em executar a peça. Stephen a viu inclinar sua bonita cabeça para o teclado, e notou que tinha uma expressão grave e que mordia o lábio inferior. Mas a peça não estava de acordo com seu estilo, e terminou de interpretar o movimento com pouco brilhantismo, umas vezes fazendo Stephen perder o ritmo e outras dando notas discordantes.
- Sinto muito - disse. - Tratarei de fazê-lo melhor agora.
Desgraçadamente, não foi assim. Para expressar com nitidez as frases do adágio, havia que interpretá-lo com delicadeza, mas ela não o fez. De vez em quando implorava perdão a Stephen com o olhar, e uma vez cometeu um erro tão grave que ele ficou paralizado, com o arco no ar. Então ela, pondo as mãos no colo, perguntou:
- Começamos desde o início?
- Não faltava mais nada! - exclamou Stephen.
Mas a prova não deu bom resultado, e juntos mataram lentamente ao pobre Contarini, porque Maturin tocou tão mal como sua companheira, tão mal que quando a corda que dava a nota la se rompeu com um solene estalido, no momento em que terminavam de executar dois terços do adágio, todos sentiram alívio.
Depois disto, o coronel O’Hara interpretou algumas composições para piano com brio e paixão, mas desde aquele percalço a festa não voltou a ter animação.
- A senhora Fielding não se encontra em bom estado de ânimo - disse Stephen para Jack, que estava junto com ele ao lado do limoeiro. - Refiro-me ao seu estado de ânimo real - acrescentou, porque a vira falando e rindo muito.
- Não - disse Jack. - Sem dúvida, está preocupada com seu esposo. Ela me falou dele esta tarde.
Estava olhando para Laura Fielding por entre as folhas do limoeiro com admiração e afeto, porque ela, ainda que estivesse atormentada, tinha um magnífico aspecto com aquele vestido de noite vermelho, e porque ele chegava a estimar às mulheres que lhe recusavam amavelmente.
- Acho que gostaria que fôssemos embora - disse Stephen. - Eu irei quando passe certo tempo e já não pareça uma descortesia ir embora. Ainda que também poderia pegar agora meus sapatos, quer dizer, os sapatos de Graham, e meu violoncelo e escapulir-me.
Suas últimas palavras quase não puderam ser ouvidas por causa dos risos de um grupo de homens que estavam do outro lado do limoeiro e a voz do capitão Wagstaff, que se aproximou de Jack e em um tom agudo e com familiaridade, perguntou se havia comido muitas dessas coisas vermelhas picantes.
Stephen entrou na casa e ali encontrou a senhora Fielding, que enchia cuidadosamente vários copos de ponche com uma jarra. Ela pôs uma expressão risonha e disse:
- Seja bom e ajude-me a levar as bandejas.
Depois se aproximou mais e lhe sussurrou ao ouvido:
- Estou tratando de desfazer-me deles, mas não se vão. Diga-lhes que já é hora de ir dormir.
- Eu ia embora agora - disse Stephen.
- Ah, não, o senhor não vai! - exclamou ela em tom alegre. - O senhor fica porque tenho que consultar-lhe sobre um assunto. Beba um copo de ponche e coma um destes maçapães que guardei para o senhor.
- Para dizer verdade, minha amiga, acredito que já comi tudo o que podia comer em um dia.
- Coma só a metade, e eu comerei a outra.
Levaram as bandejas para o pátio. Stephen sustentava a maior, na qual estavam os copos, e ela, a outra, na qual ele pôde ver suas velhas amigas, as bolachas de Nápoles. Quando faziam a ronda, a senhora Fielding conversava com os convidados, agradecia por terem ido à festa e lhes felicitava por haver tocado tão bem; contudo, os convidados não se foram, aliás permaneceram ali rindo mais e falando com mais liberdade. No início da noite ela fingira que paquerava e agora estava arrependida disso, mas a seriedade e a atitude reservada que tinha agora não bastavam para anular o efeito daquele comportamento. E posto que a liberdade tende a converter-se em libertinagem, o capitão Wagstaff, afastando a vista do rosto de Jack e dirigindo-a para Stephen, disse:
- O senhor é um homem afortunado, doutor. Muitos dariam qualquer coisa para substituir-lhe no posto de mordomo.
Até ela falar aparte com o commendatore, os convidados não começaram a se despedir. Partiram pouco a pouco, em pequenos grupos, mas Wagstaff ficou um tempo interminável na porta contando uma anedota da qual acabava de se recordar, uma anedota cujo final, evidentemente, era impróprio, e obrigou seus amigos a interromper-lhe e a tirá-lo dali. O riso de Wagstaff retumbou no corredor abobadado até que o grupo chegou à rua, e nesse momento um observador oculto tachou seus nomes em uma lista.
Ao final só restavam Maturin e Aubrey, que esperava o seu amigo para acompanhá-lo ao hotel porque ainda coxeava. Jack não deixara de pensar em que ele era um homem e Laura Fielding era uma mulher, mas a considerava uma mulher pura, quase um anjo, até que ela lhe pediu que prendesse Ponto no jardim traseiro, dizendo "Ele não gosta de ir, mas fará o que o senhor lhe peça", e que fechasse a grade para que não entrassem gatos, e ele a surpreendeu dizendo ao doutor que não se fosse ainda, que lhe agradeceria se ficasse com ela um pouco. Jack pôde ver que sorria ao dizer isso e teve a sensação de que lhe haviam disparado um tiro, pois, apesar de que podia confundir os sinais que uma mulher fazia para ele, não confundia os que fazia para outro homem.
Conseguiu ocultar seus sentimentos e manter-se sereno fazendo um grande esforço. Agradeceu à senhora Fielding pela agradável noitada e disse que esperava ter a honra de visitá-la outra vez muito cedo. Mas não pôde enganar a Ponto, que alçou seus bondosos olhos e escrutinou seu rosto e depois lhe seguiu mansamente sem dizer nada, com as orelhas baixas, até o jardim onde ficava a cisterna, ainda que detestasse dormir em qualquer outro lugar que não fosse junto da cama de sua dona.
- Para que não entrassem gatos - murmurou quando fechava a grade atrás dele. - Nunca pensaria que Stephen fizesse uma coisa assim.
Stephen estava de pé em meio de um monte de copos e pratinhos espalhados pelo pátio, sem saber o que fazer, quando Laura reapareceu, equipada com o necessário para acabar com a desordem.
- Só vou recolher o que mais atrapalha - disse Laura. - Entre na casa e vá para meu quarto. Ali encontrará fiamme e uma garrafa de vinho.
- Onde está Giovanna? - perguntou Stephen.
- Não dorme aqui esta noite - disse Laura, sorrindo. - Não demorarei.
Era usual receber visitas no dormitório na França e na maioria dos países que haviam adotado costumes franceses, e Stephen estivera outras vezes no quarto da senhora Fielding (quando fazia mau tempo, celebrava as festas na pequena sala, e os convidados também passavam para o dormitório), mas nunca lhe parecera tão acolhedor. Em frente ao sofá que ficava em um canto, em posição oblíqua, estava colocada uma resplandecente mesinha baixa de latão, sobre a qual havia uma lâmpada que formava um luminoso círculo branco no piso e outro menor no teto, e de sua translúzida cúpula vermelha saía um resplendor rosáceo que harmonizava com as desnudas paredes caiadas. Além do sofá não se via nada com claridade (à esquerda se via a silhueta da cama com dossel e perto dela umas cadeiras com algumas caixas em cima), mas quando Stephen se sentou observou que havia sido retirado um enorme e horrível retrato do senhor Fielding. Recordava-se muito bem do retrato. O tenente (era então primeiro oficial interino do Phoenix) estava vestido com um calça de riscas e um chapéu sombreiro, e tinha em uma mão uma buzina, e na outra, a braça de estibordo da verga traquete, e conduzia seu barco por um arrecife nas Antilhas, em meio de um furacão. A maior parte do quadro havia sido pintada por um companheiro de tripulação, e Jack havia dito que não havia nem um só cabo que não estivesse exatamente na posição em que se encontraria em meio de um furacão assim; contudo, o rosto havia sido pintado por um pintor profissional. O rosto parecia o de um homem suntuoso, um homem convencido, mas preocupado, e contrastava com o corpo, rígido como se fosse de madeira e com gestos teatrais. Para uma mulher de tão bom gosto como a senhora Fielding, só a devoção pelo seu esposo podia havê-la feito pendurar esse quadro em sua casa. A bandeja que estava junto da garrafa de vinho de Marsala, em cima da mesinha de latão, revelava seu verdadeiro gosto. Era uma bandeja grega comprada na Sicília com ninfas vestidas de vermelho, e ainda que estivesse descascada e fora reparada várias vezes, as ninfas ainda seguiam bailando graciosamente sob a árvore como há dois mil anos. Então Stephen, afastando a vista das ninfas e fixando-a nas fatias de pão com pasta picante, perguntou-se: "Como é possível que pusesse dois vermelhos juntos? Fazem um contraste tão desagradável!".
Esteve olhando seus pés um pouco e depois voltou a pensar na pasta e em seus prováveis ingredientes e se disse: "Às vezes é tão difícil recordar um odor! Um o conhece muito bem, mas não pode identificá-lo". voltou a aproximar o nariz da bandeja e inspirou com os olhos semicerrados, e de imediato ocorreu algo que contradisse suas palavras: identificou o odor. Era o odor da cantárida ou mosca espanhola, um inseto de cor verde amarelado brilhante, conhecido por todos os naturalistas do hemisfério sul, que tinha nos élitros uma substância de odor penetrante. Era empregado em preparados de uso externo, que se usavam como irritantes, e em preparados que se ingeriam, que se usavam para excitar o apetite sexual, e, além disso, era o ingrediente mais potente dos filtros de amor.
Então pensou: "Sim, é pasta de mosca espanhola. Coitada!". Depois de refletir sobre as implicações que isso tinha, pensou: "É provável que a tenha comprado de Anigoni, esse boticário famoso por adulterar mercadorias, porém, apesar disso, me horroriza pensar nesses homens que agora estarão percorrendo Valletta como touros famintos. Eu mesmo noto perfeitamente os efeitos, e estou certo de que dentro de pouco aumentarão de intensidade".
Laura Fielding chegou por fim. Não havia demorado somente por haver arrumado o pátio, já que se havia posto um faixa azul, que fazia a sua cintura parecer ainda menor, e havia arrumado o penteado. Foi sentar-se junto de Stephen visivelmente nervosa, muito mais nervosa que no pátio cheio de convidados.
- Mas o senhor não bebeu nada! - disse em tom enfático. - Eu lhe servirei um copo de vinho enquanto termina de comer isto - disse, oferecendo-lhe a bandeja com as fatias pequenas de pão com pasta vermelha.
- Aceito com gosto um copo de vinho - disse Stephen, - mas prefiro comer um desses excelentes maçapães.
- Não posso negar-lhe nada - disse ela, - assim que os trarei imediatamente.
- E já que está de pé, traga a giz, por favor! - gritou Stephen quando ela saiu, referindo-se a um giz com que Laura Fielding apontava os encontros que tinha a cada dia para que recordasse deles.
Ele também estava nervoso. Os poucos contatos com mulheres que havia tido ao longo de sua vida profissional foram decepcionantes. Sabia que devia andar com cuidado, mas não sabia com segurança por onde devia encaminhar seus passos.
- Aqui tem: maçapães e o giz - disse ela ao voltar e, pegando a garrafa, acrescentou: - Teremos que compartilhar o copo, porque é o único que resta limpo. Incomoda-se de beber no mesmo copo que eu?
- Não - respondeu Stephen.
Os dois permaneceram um tempo silenciosos, comendo maçapães e passando-se o copo de vinho, e se sentiram muito à vontade durante a pausa, apesar dos dois estarem tensos.
- Diga-me, a senhora queria que lhe desse minha opinião como médico?
- Sim, quer dizer, não - respondeu. - Desejava falar-lhe de… Mas primeiro queria pedir desculpas por ter tocado tão mal.
Contou que o primeiro erro havia conduzido aos outros, pois começara a pensar no que fazia e pensar prejudicava o movimento de seus dedos, e então, pondo-lhe a mão no joelho e ruborizando-se, perguntou:
- Que posso fazer para que me perdoe?
- Já a perdoei, minha amiga.
- Então tem que me dar um beijo.
Stephen lhe deu um beijo, que foi realmente uma carícia abstrata porque estava pensando em outra coisa. Sabia muito bem que apesar de haver tentado reforçar sua vontade pensando que ela era uma paciente, sua vontade fraquejava. E o que o havia levado quase a abandonar a castidade era que detestava se comportar como um homem insensível, e esse insulto, provocado por sua aparente indiferença, percebia-se cada vez com mais claridade. Apesar disso, estendeu o braço para pegar o giz e perguntou:
- Quer que lhe conte como é meu sino?
- Oh, sim! - respondeu ela. - Ficarei encantada em saber como é seu sino.
- Este é o sino visto de lado, sabe? - disse, desenhando o sino na parte do piso que estava iluminado. - Tem uma altura de oito pés. A janela da parte superior mede nada menos que uma jarda. Aqui, onde fica o banco, tem uma largura de uns quatro pés e seis polegadas. E pode conter cinqüenta e nove pés cúbicos de ar!
- Cinqüenta e nove pés cúbicos! - exclamou Laura Fielding.
Passara um dia muito ruim, e alguém mais atento que ele teria notado seu desespero atrás de seu grande interesse.
- Sem dúvida, cinqüenta e nove pés cúbicos no início - disse Stephen, desenhando duas figuras minúsculas no banco e pondo ao lado, entre parêntese: "Aqui estava sentado o admirável capitão Dundas" e "Aqui estava eu". - Como pode ver, é muito espaçosa. Naturalmente, quando o sino se afundou, quer dizer, desceu duas braças, a água subiu, comprimindo o ar, e sentimos uma detonação nos ouvidos. Quando a água chegou até o banco, subimos os pés assim - disse, pondo os pés no sofá - e puxamos um cabo para fazer o sinal para que mandassem o barril.
Desenhou o barril com os dois buracos e a mangueira de couro e indicou seu percurso até a borda do sino com uma linha descontínua, e disse que não era um desenho em escala.
- O barril desceu - continuou, - e a medida que descia, o ar que havia em seu interior se comprimia, compreende? Então pegamos a mangueira, e no momento em que a subimos acima da superfície, a superfície da água dentro do barril, claro, o ar comprimido penetrou no sino com uma força incrível e a água desceu até a beira. Os barris desciam uns depois dos outros e o sino afundava cada vez mais e a luz diminuía, ainda que não chegou a diminuir tanto que fosse impossível ler e escrever. Tínhamos placas de chumbo e escrevíamos com um punção de ferro e as mandávamos para cima com uma corda. E para deixar sair o ar viciado, com o fim de ter sempre ar puro, há uma pequena chave na parte superior. Quer que desenhe a chave?
Finalmente, levou o sino até o fundo do mar, e ela, fazendo o último esforço, disse:
- Oh, meu Deus, no fundo do mar! E o que encontrou ali?
- Vermes! - exclamou ele. - Vermes marinhos em abundância! E não tive receio em caminhar por uma fétida capa de lodo de séculos, ainda que isso só produziu uma ligeira mudança em sua superfície. Havia alguns com filamentos conhecido pelo nome de…
Quando começara a falar-lhe dos anelídeos malteses, havia notado que seu peito palpitava. Sabia perfeitamente que a causa não era ele, mas não percebeu que era sofrimento até que começou a falar do estranho comportamento da Polychaeta rubra na cópula, quando viu, penalizado e envergonhado, que as lágrimas resvalavam por suas faces, e então se interrompeu. Seus olhares se encontraram, e ela sorriu forçadamente, mas seu queixo começou a tremer e ela passou soluçar.
Stephen lhe pegou a mão, dizendo frases de consolo que não serviram de nada. Laura esteve a ponto de retirar a mão, mas agarrou fortemente a dele e, entre soluços, perguntou:
- Tenho que ficar de joelhos? Como pode ser tão duro? Como poderei lograr que me ame?
Stephen não respondeu até que ela se acalmou.
- Não pode - disse. - Como é possível que seja tão ingênua, minha amiga? Provavelmente saberá que uma coisa como esta não tem valor se não é recíproca. A senhora não está enamorada de mim. talvez sinta afeto por mim, e espero que assim seja, mas não sente amor nem desejo nem nenhum outro sentimento desse tipo.
- Oh, sim, sim! Eu lhe demonstrarei.
- Sou médico, e sei perfeitamente que não sente nada - disse em um tom convincente, que demonstrava sua autoridade, dando-lhe palmadinhas no joelho.
- Como pode saber? - perguntou ela, ruborizando-se.
- Não importa. O caso é que é um fato, e pela magnitude de meu própio desejo posso calcular a de sua indiferença. Desejo ardentemente gozar de seu favor e possuí-la, como dizem muitos incompreensivelmente, mas nunca o faria nestas condições.
- Não? - perguntou ela.
Stephen negou com a cabeça. Então ela começou a chorar com uma amargura mais profunda que antes, apertando sua mão como se fosse sua única tábua de salvação. Mas respondeu com incoerências quando ele disse:
- É evidente que deseja que eu faça algo extraordinário. Tem que ser algo muito importante e que deve guardar-se em segredo, pois uma mulher como a senhora não estaria disposta a fazer um sacrifício como este se não fosse por algo assim. Quer me dizer o que é?
Só respondeu com algumas frases incoerentes. Primeiro disse que não podia dizer, depois que não se atrevia porque era muito perigoso e depois que não tinha nada para dizer-lhe.
A senhora Fielding estava apoiada em Stephen, que estava sentado com as pernas cruzadas em um canto do sofá, e de vez em quando seu corpo fazia um movimento convulsivo. Stephen estava com os joelhos doendo por suas pernas estarem dobradas e desejava pegar o copo de vinho, mas pensou que ela poderia ter outra crise nos próximos minutos, e só o que fez foi coninuar tentado averiguar que favor ela queria lhe pedir. Falou dos certificados médicos e dos homens recrutados forçosamente que haviam sido deixados em liberdade graças a eles, mas apenas para fazer um burburinho que produzisse a mesma sensação de tranqüilidade que um baixo cifrado ou um baixo contínuo, pois só se preocupava de averiguar quais eram realmente o estado mental e físico de sua paciente. E achava que havia deduzido a resposta, ainda que apenas do comentário de Jack e da ausência do quadro. Ela parou de soluçar, inspirou profundamente e depois começou a respirar com mais facilidade, ainda que não com normalidade.
- É algo relacionado com seu esposo, minha amiga? - perguntou.
- Oh, sim! - exclamou desesperada e chorando.
Ela lhe contou que seu esposo estava na prisão e que o matariam se ela não tivesse êxito em sua missão. Além do mais, disse que não se atrevia a dizer àqueles homens que fracassara e que a pressionaram para que agisse com rapidez. Finalmente, rogou que fosse amável com ela, pois do contrário, matariam o seu esposo.
- Bobeiras! - exclamou Stephen, levantando-se. - Não farão semelhante coisa. Eles a enganaram. Ainda resta café no fogão?
Enquanto tomavam café e comiam pão com azeite de oliva rançoso, ela contou todos os detalhes da horrível história. Falou da difícil situação em que Charles Fielding se encontrava, o que dizia em suas cartas, a informação que ela recolhia (nada mau, só informação relacionada com os seguros marítimos, mas confidencial), a delicada missão que lhe haviam encomendado inesperadamente, da qual dependia a vida de seu esposo. Acrescentou que eles haviam dito que o doutor Maturin e as conexões que tinha na França trocavam cartas em código em que falavam de assuntos relacionados com as finanças e, possivelmente, o contrabando, e que ela devia ganhar sua confiança e averiguar os endereços dessas pessoas e o código. Depois respondeu a Stephen que sabia o nome do homem que havia trazido a última carta de seu esposo, e lhe disse que era Pablo Moroni, um veneziano que vira de vez em quando em Valletta, e que achava que era um comerciante. Contudo, disse que não conhecia o nome dos outros homens que tinham contato com ela nem nunca os vira e acrescentou que eram três ou quatro e que se revezavam. Acrescentou que a mandavam chamar e que ela respondia deixando um papel com a hora proposta na casa de um vinhateiro e que sempre tinha que ir à igreja de São Simón e ajoelhar-se no terceiro confessionário da esquerda, onde se encontrava um dos homens, que não abria a janela, como costumavam fazer os curas, falava oculto atrás da rótula, pelo que ela nunca lhe via a cara, e então ela dava a informação que tinha e recebia suas cartas, se havia chegado alguma. Contudo, confessou que conhecia um dos homens, porque o vira falando com o senhor Moroni, e disse que falava bastante bem o italiano, ainda que com um forte sotaque napolitano, que podia descrevê-lo, mas que não o faria enquanto Charles estivesse em suas mãos, porque talvez isso lhe prejudicasse e ela nunca faria nada que pudesse perjudicar a Charles. Finalmente, disse que estava preocupada com ele porque nas últimas semanas havia escrito cartas muito estranhas, das que havia deduzido que estava enfermo ou triste, e que, como não eram cartas íntimas, porque ele tinha que enviá-las sem fechar, ela não se importava de mostrá-las ao doutor Maturin para que lhe desse sua opinião.
O senhor Fielding escrevia com letra clara e em um estilo simples. Ainda que suas cartas tivessem que ser forçosamente discretas, refletiam um amor puro e profundo, e Stephen sentiu simpatia por ele antes de terminar de ler a segunda. As cartas mais recentes, como Laura havia dito, eram mais curtas, e pese que continham muitas das palavras e frases que havia nas outras, tinham um estilo carregado. Stephen se perguntou: "Haverá escrito contra a sua vontade, ao um ditado? Não foi ele mesmo que escreveu?". Sabia que se tivesse morrido ou sido assassinado, a vida de Laura Fielding não valeria nem quatro peniques de "Brummagem"{9} quando ela o soubesse com certeza. Pensou que nenhum chefe de um serviço secreto a deixaria passear-se por Malta se não tivesse um meio efetivo para evitar que dissesse o que sabia, e que era muito fácil matar a uma mulher sem que os outros suspeitassem que havia um motivo oculto, pois sua morte sempre podia ser associada a um estupro.
- Naturalmente - disse em voz alta, - não o conheço como a senhora, mas um resfriado ou qualquer indisposição ou o desânimo poderiam ser as causas de algo assim ou inclusive pior.
- Alegro-me que seja essa sua opinião - disse ela. - Acredito que tem razão: isto se deve a um resfriado ou a uma indisposição.
Depois de uma comprida pausa, Stephen disse:
- Quero que saiba que Moroni e seus amigos estão equivocados, porque eu não tenho nada a ver com as finanças, nem com o contrabando, nem com os seguros, nem terrestres nem marítimos. Eu lhe dou minha palavra de honra de que não teria encontrado nem um código nem o endereço de nenhuma pessoa que viva na França se houvesse revistado meus documentos. Juro pelos Evangelhos e por minha esperança de salvação.
- Oh! - exclamou ela.
Stephen compreendeu que apesar de suas palavras serem verdadeiras, ela havia notado que não dizia toda a verdade e não acreditado.
- Contudo - continuou, - acho que conheço a causa do equívoco. Tenho um amigo que, por sua profissão, relaciona-se com os serviços secretos, e muitas vezes nos viram juntos. Esses homens, ou talvez seus informantes, nos confundiram um com o outro. Porém, como uma dama que sofre por seu esposo é digna de compaixão e como seu esposo está prisioneiro, tenho certeza que meu amigo nos proporcionará a informação necessária para satisfazer a Moroni. Eu não digo que será realmente útil a Moroni, mas que logrará satisfazer sua curiosidade e demostrará que a senhora teve êxito. Ademais, Moroni se satisfará por eu ser seu amante, assim que virei vê-la quando esteja sozinha e a senhora virá ao meu quarto usando a faldetta{10} de sua criada, se for possível, e o fará acreditar que os documentos são o fruto de seus esforços.
A luz da alvorada já havia chegado ao pequeno pátio quando Stephen se foi, mas ele não notou porque estava abstraído em suas meditações. Tampouco notou a mudança do vento. Enquanto caminhava pelo escuro corredor com os sapatos de Graham na mão, pensou: "Se Wray for a pessoa que penso que é, tudo isto será desnecessário. Mas se não for ou se esta é uma organização diferente e sem conexões com as outras, não sei até onde poderei chegar sem comprometer a Laura Fielding". Mil formas de falsear informação de maneira que fosse realmente perniciosa haviam passado por sua mente antes de que chegasse à grade, e quando a abriu, o cansado observador que estava do outro lado da rua o viu sorrir à luz matinal e, tocando em seu chapéu, pensou: "Que afortunado é este libertino!". Nesse mesmo momento as salvas para dar a boas-vindas ao comandante geral estremeceram o ar, e mil pombas subiram voando para o céu azul claro.
CAPÍTULO 4
Jack Aubrey, que não era vingativo, já havia perdoado Stephen por sua boa fortuna na hora do café da manhã da manhã seguinte, quando os empregados do hotel lhe disseram que não haviam conseguido que o doutor Maturin se levantasse apesar de haver-lhe anunciado a chegada de um mensageiro para lhe pedir que comparecesse a uma reunião convocada pelo comandante geral, pelo que se pôs de pé de um salto e subiu correndo a escada para recordar-lhe qual era seu dever. Mas não obteve nenhuma resposta quando bateu na porta com os nós dos dedos nem quando o chamou.
- Que desgraça! O pobre cavalheiro está morto! - gritou a camareira. - Degolou-se como o do quarto número dezessete! Oh, não posso suportar! Vou sair daqui correndo!
- Mas antes dê-me a chave mestra - disse Jack, e imediatamente abriu a porta, entrou no quarto e gritou: - Levante-se! Ou sai daí ou lhe atiro ao solo! Levante-se!
Tampouco obteve resposta depois de dizer isto, assim que pegou Stephen pelos ombros e o sacudiu com força. Stephen abriu seus avermelhados olhos e, apesar de não poder ver bem a Jack porque tinha a vista nublada por consequência do sonífero que tomara, lançou-lhe um olhar de ódio, pois seu amigo o havia tirado de um agradável sonho que lhe produzia emoções tão intensas que parecia real, um sonho no qual a senhora Fielding sentia por ele uma paixão tão intensa como a que ela despertara nele. Então tirou os tampões de cera dos ouvidos e, com voz áspera e lamurienta, perguntou:
- Que horas são?
- Três e meia da madrugada, chove e faz muito frio - disse Jack enquanto abria as cortinas e os postigos para que o sol pudesse entrar. - Vamos, não deve ficar aí.
- O que houve, senhor? - perguntou Bonden da porta.
Bonden e Killick haviam entrado na cozinha ao mesmo tempo que a camareira, que havia contado que o sangue saía por debaixo da porta desse quarto, como havia ocorrido no número dezessete, que daria trabalho para limpá-lo, e que provavelmente o pobre cavalheiro se dera um corte tão profundo que a cabeça se havia separado quase por completo do corpo.
- Dentro de sete minutos o doutor deve apresentar-se no palácio barbeado, asseado e com seu melhor uniforme - disse o capitão Aubrey.
Stephen, em tom mal-humorado, disse que não necessitavam dele, que a reunião podia celebrar-se perfeitamente sem que ele estivesse presente, e que a nota que lhe enviaram do navio insígnia não era uma ordem mas um simples convite, o qual podia aceitar ou recusar conforme… Mas Jack saiu do quarto enquanto Stephen fazia estes comentários, e Stephen, que sabia que Killick e Bonden não teriam piedade nem atenderiam a razões, não disse mais nada até que se sentou na abarrotada sala de reuniões, pouco antes de que chegasse o grande homem. Sua cara, por causa das fricções, havia tomado um intenso colorido rosa que raras vezes tinha, seu uniforme e seus sapatos estavam como deviam estar, e sua peruca estava perfeitamente ajustada à sua cabeça, mas ainda tinha a vista enturvada pela falta de sono, e cumprimentou a Graham, que estava ao seu lado, com uma espécie de grunhido. Contudo, Graham não se sentiu coibido por isso, e, sem vacilar um momento e sem reservas, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Sabe o que me fizeram? Arruinaram o meu almoço. Não tenho que regressar no Dromedary na quinta-feira, não senhor. Tenho que embarcar no Sylph hoje às doze e meia. Arruinaram o meu almoço, e o culpado é Figgings Pocock, esse pastrano orelhudo, estúpido e analfabeto. Olhe, está sentado ali, junto ao secretário do almirante. Já viu alguma vez alguém com uma cara tão feia como essa?
Stephen pensou que vira caras mais feias que essa, e amiúde, e que, em realidade, apesar de que o senhor Pocock tinha a pele das faces amareladas e ressecadas e certa quantidade de pêlo nas orelhas e no nariz, seu aspecto era comparável ao de Graham. Ainda que o senhor Pocock distava muito de ser bonito, parecia mais forte, sério e inteligente que o secretário do almirante, um homem muito jovem para desempenhar um cargo tão importante. Contudo, o senhor Yarrow não parecia estúpido mas inexperto, ansioso e constrangido. Agora tinha agarrado um enorme monte de papéis e estava inclinado para o senhor Wray, a quem escutava atentamente.
O comandante geral, sir Francis Ives, chegou por fim, e a reunião começou. Como Graham previra, o almirante falou muito sem dizer nada. Stephen observou durante um tempo a sir Francis, que era um homem baixo, de certa idade, enérgico e com autoridade inata, a quem seu esplêndido uniforme dava um aspecto majestoso. Ainda que pertencesse a uma conhecida família vinculada à Armada e havia adquirido grande prestígio durante o tempo que havia servido nela, fazia anos que não tinha o comando de uma operação naval, e todos diziam que se propunha mandar na frota do Mediterrâneo para que lhe fosse outorgado por fim o título de lorde, e que não economizaria esforços para superar aos seus dois irmãos, que eram lordes. Enquanto falava olhava para os oficiais e para os conselheiros que o rodeavam para tratar de deduzir de suas expressões o que pensavam, mas sem revelar nada, o que fazia patente que estava acostumado a dirigir-se a um comitê. O senhor Wray tinha a capacidade de escutar longos discursos sem demostrar nenhum sentimento, ao contrário de seu sogro, o contra-almirante Harte (um oficial famoso por sua fortuna, que herdara recentemente, e por não ser um bom marinheiro), que olhava com raiva para o governador, o senhor Hildebrand, que agora tinha a palavra e dizia que era possível que algumas pessoas não autorizadas tivessem obtido informação secreta, mas que não se podia culpar disso a nenhum dos departamentos que estavam sob seu comando e que tinha plena confiança em seus oficiais, seu secretário e todos os membros da administração pública.
Quando Stephen observou a sir Francis pelo tempo suficiente para estar seguro de que manteria sua atitude reservada e não revelaria nada até mais tarde, quando se reunisse com um grupo menor, havia deixado de prestar-lhe atenção e ficara sentado ali, com a cabeça baixa, dormindo em alguns momentos ou comendo pequenos pedaços de uma torrada que metera no bolso quando Bonden não lhe estava olhando.
De vez em quando ouvia a alguns cavalheiros dizerem que a guerra devia continuar e que tinham que lutar com todas suas forças, e a outros, que todos os organismos deviam manter a disciplina e ter boas relações e cooperar com os outros. Uma vez achou ter ouvido o soldado de olhar inteligente que fornecia dados e cifras ao senhor Hildebrand dizer que era contra a tirania e que a França dominasse o mundo, mas era possível que o houvesse sonhado. Não pediram nem a ele nem a Graham que expressassem sua opinião, e ambos desperdiçaram todas as oportunidades de intervir que se apresentaram. Além disso, durante todo o tempo Graham deixou ver que estava decidido a permanecer em silêncio.
Stephen esperava que Wray, que lhe havia cumprimentado cortesmente com uma inclinação de cabeça, se entrevistaria com ele ao terminar a reunião para falar mais amplamente do "delicado caso" ao qual havia feito referência em um encontro anterior. "Tenho que averiguar o que pensa sobre muito mais coisas e se é discreto, antes de falar de Laura Fielding", pensou. Em seu opinião, Laura estava com a corda no pescoço, e ainda que provavelmente poderia se salvar se delatasse a um cúmplice, as autoridades a tratariam com dureza e lhe causariam um sofrimento indizível. Por outro lado, queria enganar aos agentes franceses sem interferências, porque pensava que esse era um trabalho muito delicado que devia ser realizado por uma pessoa com grande experiência e completamente sozinha. "Hoje não vou falar-lhe abertamente, mas quero informar-me do que sabe sobre André Lesueur, o amigo de Graham", pensou.
Não se viu obrigado a falar abertamente nem obteve nenhuma informação sobre Lesueur, já que Wray partiu dali falando com o secretário do almirante e se limitou a despedir-se com outra inclinação de cabeça e um olhar com o qual parecia dizer: "Como pode ver, estou muito ocupado e não tenho tempo disponível".
Jack Aubrey passou essas horas da manhã no estaleiro, falando com vários carpinteiros de barcos no interior de sua querida Surprise. Os carpinteiros de barcos, assim como aqueles lhes controlavam, eram corruptos, mas pensavam que havia grande diferença entre o dinheiro do Governo e o de um particular e que um capitão devia receber em troca de seu dinheiro algo cujo valor realmente correspondesse à quantia gasta. Além disso, tinham grande destreza, e Jack estava muito satisfeito porque haviam posto na fragata curvas e trancaniles de carvalho de Dalmacia na parte da coxia posterior ao pescante central, onde havia sofrido graves danos. Jack acreditara quando lhes disseram que, além dos dias festivos por ser dias de santos, ainda tardariam uma semana em terminar o trabalho. Mas os carpinteiros não haviam dito exatamente quantos dias festivos haviam contado, e quando Jack subia com eles para a destroçada coberta pela escada provisória, sacudindo as virutas de madeira da casaca e dos calções, mandaram buscar um calendário, e depois começaram a discutir acaloradamente sobre quais eram os dias festivos e se deviam deixar de trabalhar um total de doze horas entre os dias de São Aniceto e São Cucufate ou só uma tarde, como os calafates. Jack escreveu tudo isto. Conhecia a sir Francis há muito tempo e sabia que não era um dos almirantes da Armada que exigia que seus homens fizessem seu trabalho correndo, mas sim um dos mais enérgicos e persistentes, que detestava que os oficiais estivessem inativos no castelo de popa e em qualquer outra parte, e que quando pedia que tomassem uma decisão ou lhe entregassem um relatório sobre qualquer assunto ou sobre o estado de um barco, gostava que cumprissem sua ordem imediatamente. Às vezes essas decisões tomadas com rapidez não eram tão acertadas como as que seguiam a uma profunda reflexão e esses informes não eram tão precisos como os que se faziam com detalhamento, mas o almirante dizia: "Se um pensa em que perna mete primeiro nos calções, é provável que desperdice uma ocasião, e entretanto, os calções seguem vazios". Em sua opinião, a rapidez era fundamental em um ataque, e isto fora verdade nas batalhas em que participara.
- Senhor Ward - disse Jack ao seu escrevente, que o estava esperando no castelo de popa com a lista do que necessitava a fragata debaixo do braço, - tenha a amabilidade de fazer um relatório sobre o estado da Surprise e faça constar nele que dentro de treze dias estará pronta para zarpar, pois já estarão colocados os canhões e os amantilhos e se encontrarão a bordo todos os barris de água potável. Quero vê-lo quando terminar de revisar.
Ambos foram até as negras barracas onde se alojavam os tripulantes da Surprise, passando de uma vertente a outra de uma colina através do cume. Todos esperavam ao capitão Aubrey, e os oficiais lhe deram as boas-vindas. Também estava ali o pobre Thomas Pullings, um pouco afastado para que não parecesse que tratava de invadir o território de seu sucessor, William Mowett. Na frota do Mediterrâneo haviam sido ascendidos a capitães quatro oficiais, os quais haviam recebido ordem de permanecer no porto da capital de Malta, e no improvável caso de que um barco ficar sem capitão, poderia ser designado para qualquer um dos quatro, pois todos tinham muitas influências. Agora Jack usava uma casaca normal em vez de sua esplêndida casaca com galões dourados, e um chapéu velho, e os outros oficiais também vestiam roupa de trabalho, com excessão do senhor Gill, o oficial de derrota, e o senhor Adams, o contador, que tinham uma missão a cumprir em Valletta, pois tão logo terminassem de passar revista, os tripulantes da fragata iriam fazer práticas de tiro, nas quais poderiam conseguir um cobiçado prêmio que o capitão Pullings oferecia para demostrar que ainda estava unido à tripulação da fragata, ainda que fosse debilmente, e que consistia em um enorme bolo gelado em forma de alvo. Iriam a um lugar o mais distante possível dali, mas em lanchas, porque os oficiais estavam convencidos de que não conseguiriam que levassem o passo nem que se mantivessem alinhados se fossem marchando, e não desejavam conduzi-los até ali pelas ruas cheias de casacas vermelhas. Agora todos estavam relaxados, em posturas cômodas, e sustentavam os mosquetes como lhes parecia adequado. Quando Jack terminou de inspecionar o lugar, disse:
- Senhor Mowett, passaremos revista os tripulantes nomeando-lhes conforme a ordem da lista.
Então Mowett disse ao contramestre:
- Todos para passar revista.
O contramestre começou a dar os gritos e as agudas apitadas com que costumava chamar os marinheiros para que lhe ouvissem inclusive na coberta inferior e na bodega de proa, e os marinheiros largaram os mosquetes no solo, empilhando-os de uma forma que teriam feito a qualquer soldado se ruborizar, e depois se agruparam na faixa de terra que representava o lado de bombordo do castelo de popa. O escrevente foi dizendo os nomes dos tripulantes, e um depois do outro passaram para o lado de estibordo por detrás do imaginário mastro maior, cumprimentando ao capitão tocando a testa com a mão e dizendo em voz alta: "presente, senhor".
O número de membros da tripulação havia diminuído muito. Alguns estavam no hospital, outros em prisões navais ou militares, e muitos haviam sido incorporados a outras tripulações. Mas Jack havia lutado com afinco para que ficassem com ele seus companheiros de tripulação mais antigos e os melhores marinheiros, e com tal de consegui-lo, havia recorrido à substituição de alguns marinheiros por outros e inclusive ao engano quando lhe haviam obrigado a ceder certo número de tripulantes. Agora, quando observava como passavam de um lado para outro, percebeu que conhecia quase todos há anos. Alguns deles haviam sido tripulantes do primeiro barco que tivera sob seu comando, a corveta Sophie, de catorze canhões, e entre os restantes havia poucos grumetes, não havia nenhum camponês e nenhum marinheiro de segunda. Todos eram marinheiros de primeira, e, por sua destreza, muitos poderiam ser classificados como suboficiais em um navio insígnia. Olhavam para Jack com afeto quando passavam de um lado para o outro, mas ele lhes olhava com repugnância, pois nunca em sua vida vira a uma tripulação em que houvesse tantos homens bêbados, desalinhados e fedorentos. Mowett, Rowan e os ajudantes do oficial de derrota faziam heróicos esforços para manter-lhes ocupados durante boa parte do dia, mas negar-lhes umas horas de licença teria sido inumano e contrário ao costume.
Acabavam de repetir o nome de Davis, mas Davis não havia respondido.
- Davis desertou? - perguntou Jack, ansioso.
Davis era um marinheiro que navegava com Jack há muito tempo. Era um homem moreno, corpulento e agressivo que costumava pedir traslado para qualquer barco que estivesse ao comando do capitão Aubrey ou oferecer-se como voluntário para tripulá-lo, e nada, nada, poderia lhe induzir a desertar.
- Temo que não, senhor - disse Mowett. - Ele tirou a saia de vários soldados escoceses, e eles o encerraram na prisão da guarnição.
Outros três tripulantes da Surprise que estavam ausentes haviam tido a mesma sorte. Mas o pior era a diferença entre a lista atual e a que havia na última vez que passara revista. Nada menos que onze marinheiros haviam sido levados ao hospital, quatro com febre de Malta, quatro com sífilis, dois com membros quebrados devido a terem caído quando estavam bêbados, e um com uma ferida causada por um punhal maltês; e outro, acusado de estupro, estava na prisão esperando ser julgado. Contudo, nenhum dos tripulantes da Surprise havia desertado, apesar de que vários mercantes haviam entrado e saído do porto, pois eram felizes na fragata e a maioria deles preferia tripular barcos de guerra.
- Bem, pelo menos tenho todas os números - disse Jack, suspirando e sacodindo a cabeça.
Afortunadamente, os havia anotado, pois quando acabou de escrever e expressar seu desejo de levar a bordo da fragata a um pastor ("alguém que possa reformar aos marinheiros, que possivelmente tenham mais medo do fogo do inferno que do chicote, e que ponha fim a esta degeneração") chegou um guarda-marinha com a ordem de que se apresentasse imediatamente diante o comandante geral.
Depois de agradecer ao céu porque decidira pôr um bom uniforme para passar revista, Jack disse:
- Capitão Pullings, teria a amabilidade de ocupar meu lugar? Agora eu ia visitar os tripulantes que estão no hospital. Continue, senhor Mowett. Bonden, minha falua!
Então se voltou para o guarda-marinha do navio insígnia, que fora até a costa em uma lancha de aluguel, e acrescentou:
- Venha comigo. Assim poupará quatro peniques.
E quando a falua cruzava o porto a grande velocidade, disse:
- Achava que o almirante estava em terra.
- Está em terra, senhor - disse o jovem com voz clara e aguda, - mas disse que estaria a bordo de seu barco outra vez antes que eu encontrasse o senhor e muito antes que o senhor pusesse os calções.
Todos os tripulantes da falua sorriram, e o remador de proa apenas pôde reprimir uma risada.
- Mas não fui à casa da senhora - prosseguiu o jovem inocentemente, - porque um dos tripulantes de nosso barco disse que lhe vira afastar-se de Nix Mangiare e dirigir-se ao estaleiro. E lhe encontrei imediatamente!
Quando Jack subiu pelo costado do Caledônia, notou com satisfação que no castelo de popa havia mais oficiais dos que costumavam reunir-se ali para receber a um simples capitão de navio. Era óbvio que o almirante não havia regressado ainda. E quando falava com o capitão do Caledônia pôde ouvir o sino do navio soar duas vezes antes que a falua do almirante zarpasse do porto e começasse a se aproximar com suas duas fileiras de remos movendo-se com grande rapidez, como se sua tripulação quisesse ganhar uma aposta. Todos os oficiais se ergueram; os ajudantes do contramestre suavizaram a voz ao dar as ordens; os infantes da marinha endireitaram as culatras de suas armas; os grumetes puseram luvas brancas. O almirante foi recebido a bordo com uma esplêndida cerimônia, na qual os tripulantes lançaram ao ar seus chapéus, os infantes da marinha apresentaram armas dando um golpe no piso com o pé e produzindo um estalido todos de uma vez, e os oficiais brandiram seus sabres, cujas lâminas curvas brilharam ao sol, enquanto se ouviam as ordens do contramestre. Sir Francis cumprimentou tocando o chapéu, olhou para o castelo de popa e, ao ver os cabelos dourados de Jack, exclamou:
- Aubrey! Isso é o que eu chamo de rapidez! Bem, muito bem! Não lhe esperava antes de mais de uma hora. Venha comigo.
Conduziu Jack para a grande cabine, indicou com a mão para que Jack se sentasse em uma cadeira com braços, sentou-se atrás de uma grande mesa cheia de papéis e disse:
- Em primeiro lugar, quero dizer que o Worcester foi declarado inservível. Nunca deveriam ter-lhe reparado, pois só serviram para malgastar o dinheiro do Governo. Os inspetores que hão vindo comigo dizem que a menos que seja reconstruído, não poderá voltar a estar na linha de batalha, e que não vale a pena fazer a reconstrução. Já havemos gastamos muito dinheiro nesse navio. Ordenei que o transformem em uma grua portuária flutuante, porque nos faz falta uma.
Jack esperava que isto sucedería, mas não lhe penalizava porque atualmente tinha o comando da Surprise e haviam prometido dar-lhe o comando da Blackwater no futuro e, além disso, porque sabia que o Worcester era um dos poucos barcos pelos quais nunca chegaria a sentir afeto. Então, fazendo uma inclinação de cabeça, disse:
- Sim, senhor.
O almirante lhe dirigiu um olhar de aprovação e depois perguntou:
- Como vão as reparações da Surprise?
- Muito bem, senhor. Fui vê-la esta manhã e, salvo imprevistos, estará pronta para zarpar dentro de treze dias. Contudo, senhor, a menos que me proporcionem uma grande quantidade de marinheiros, não terei um grupo de homens grande o bastante para tripulá-la. Hão esgotado à tripulação.
- Tem um grupo grande o bastante para tripular um barco de tamanho médio?
- Oh, sim, senhor! Grande o bastante para tripular e manejar os canhões de uma corveta.
- Aposto que a maioria deles são marinheiros de primeira e que que ficaram com o senhor todos os que lhe acompanharam em missões anteriores - disse o almirante, pegando a lista que Jack se havia pego do bolso. - Sim, há muito poucos que não estão classificados como marinheiros de primeira - disse, sustentando a lista com o braço estendido. - Isto é exatamente o que necessito.
Procurou entre as pastas que tinha em cima da mesa, pegou uma e abriu, e então, com seu estranho sorriso, disse:
- Acredito que poderei ajudar-lhe a conseguir um bom butim. O senhor o merece por ter expulsado os franceses de Marga.
Folheou os papéis por alguns minutos, enquanto Jack olhava pela janela de popa o grande porto iluminado pelo sol, por onde o Thunderer, um navio de setenta e quatro canhões, deslizava em direção ao cabo São Telmo com as gáveas desdobradas, com o vento do oeste-noroeste em popa e com a bandeira vermelha ondeando no mastro mezena. Era o navio que levaria o contra-almirante Harte para se reunir com a esquadra que fazia o eterno bloqueio ao porto francês de Toulon. Jack pensou: "Um butim? Gostaria de conseguir um butim, mas restam muito poucos no Mediterrâneo. Será uma ironia o que ele disse?".
- Sim, expulsar os franceses de Marga foi uma grande façanha - disse o almirante. - Bem, aproxime a cadeira e olhe isto - disse, pegando uma carta marítima da pasta, e depois, em um tom diferente, um tom entusiasta e urgente que usava espontaneamente sempre que falava de uma missão naval que havia que realizar. - Já navegou pelo mar Vermelho?
- Até Barim, senhor.
- Bem. Aqui fica Mubara. O governante da ilha, que possue várias galeras e um ou dois bergantins armados, é odiado pelo sultão da Turquia e pelos propietários da Companhia das Índias, e todos pensam que pode ser deposto facilmente se um pequeno grupo de soldados atacar a ilha inesperadamente. A Companhia participará da operação contribuindo com uma corveta de dezoito canhões com aparelho de navio, e os turcos, enviando para ali um número adequado de soldados e um novo governante. A corveta se encontra no porto de Suez e é tripulada por marinheiros das Índias Orientais, que a fazem parecer um mercante, e os turcos já prepararam os seus soldados. Primeiro pensaram em ordenar a lorde Lowestoffe que fosse até ali com uma brigada de marinheiros, avançasse por terra até o lugar apropriado e levasse a cabo a operação no próximo mês, mas lorde Lowestoffe está doente. Além disso, a situação mudou, pois os franceses querem ter uma base naval onde possam apetrechar todas as fragatas que enviaram e pensam em enviar para o oceano Índico, e ainda que Mubara fique muito ao norte, é melhor ter uma base ali que não ter nenhuma. O governante da ilha, que se chama Tallal, sempre foi amigo dos franceses, e eles lhe ofereceram canhões, a ajuda de vários engenheiros para fortificar o porto e bugigangas; contudo, ele não quer bugigangas mas dinheiro, muito dinheiro. Ele lhes pede mais dinheiro cada vez que fala com eles. Como lhe disse, ele pede mais dinheiro cada vez que fala com eles.
- Por favor, senhor, pode me dizer por que?
- Porque Mehemet Ali se propõe a conquistar todos os estados da Arábia até o golfo Pérsico e deixar de render vassalagem e depois unir-se aos franceses para expulsar-nos da Índia. Mubara é muito importante para ele porque ainda não tem uma esquadra no mar Vermelho, e para os franceses porque dali podem vigiar o seu aliado. Por outro lado, Tallal tem boas relações com todos os estados da costa, e os franceses lhes ofereceram dinheiro para que passassem para o seu lado também. Chegaram a um acordo por fim, e Tallal enviou uma de suas galeras a Kassawa para recolher os franceses e o tesouro prometido. Não sei quanto dinheiro lhe darão. Alguns dizem que cinco mil bolsas, e outros, que a metade dessa quantidade, mas todos concordam que contêm as moedas de prata que Decaen tirou da ilha Mauricio em um bergantim carregado até os topes logo antes que fosse conquistada… Mas o senhor sabe tudo isto, naturalmente.
Naturalmente que sim, pois fora Jack, à frente de uma pequena esquadra, que havia conquistado a ilha Mauricio, ainda que não havia participado nas últimas fases da operação, quando o almirante assumia o comando e se cumpriam as formalidades.
- Sim, senhor - disse. - Ouvi falar do maldito bergantim e inclusive cheguei a vê-lo ao norte, mas não pude persegui-lo porque se encontrava a grande distância da esquadra, e lamentei muito.
- Não tenho dúvida. Pois bem, isso ocorreu no início do ramadã, e quando termine, a galera regressará. Quer que lhe diga o que é o ramadã, Aubrey?
- Sim, por favor, senhor.
- É parecido com a quaresma, mas mais rigoroso. Dura de uma lua nova até a seguinte, e durante esse tempo fica proibido comer, beber e ter relações com mulheres do amanhecer ao ocaso. Alguns dizem que os viajantes são dispensados de se submeterem a essa proibição, mas esses homens, os mubaritas, são beatos e dizem que isso é uma bobeira e que quem não jejue condenar-se-á. É improvável que os remadores de uma galera possam remar ao longo de centenas e centenas de milhas pelo mar Vermelho sob um sol abrasador sem beber uma só gota de água nem comer nada, sobretudo nesta época do ano, em que sopra o vento do norte, e teriam que remar durante todo o trajeto porque as galeras não navegam bem de bolina. Por essa razão ficarão em Kussawa até que termine o ramadã. Eu não gosto das galeras porque são tão frágeis que não podem suportar um temporal e tão instáveis que não podem levar muitas velas desdobradas se não têm o vento justamente em popa. Ademais, são perigosas, pois se se aproximam de um barco quando há calmaria, seus tripulantes, geralmente várias centenas de homens, podem disparar-lhe continuamente durante certo tempo e depois abordá-lo pelos dois costados. Não gosto das galeras, mas todos os oficiais que conhecem essa zona e outras pessoas que nos proporcionam informação dizem que cruzam essas águas com a mesma regularidade que o correio e que costumam navegar durante doze horas e permanecem imóveis e com as velas recolhidas por toda a noite. Assim que pelo menos sabemos onde achá-las. Se um barco vai para Mubara pelo canal que fica ao sul da ilha, mantendo-se a considerável distância destes bancos de areia e destas ilhotas que existem aqui, vê?, seria raro que não pudesse interceptar a galera carregada com as moedas aproximadamente quinze dias depois da lua nova. Depois o barco levaria os turcos a Mubara para que depusessem o seu governante, o que não é assunto nosso.
- Nesta operação é necessário agir coordenadamente e com rapidez, senhor - disse Jack depois da pausa expectante que o almirante fizera.
- Sem dúvida, a rapidez é fundamental em um ataque - disse o almirante. - Mas esta operação também requer que esteja ao comando dela um homem decidido e acostumado a tratar com turcos e com albaneses, pois Mehemet Alí é albanês, sabe?, e muitos de seus homens e seus aliados também o são. Por isso pensei no senhor. O que acha?
- Aceito com muito gosto, senhor, e lhe agradeço que tenha tão boa opinião de mim.
- Esperava por isso. Sem dúvida, o senhor é a pessoa mais adequada, pois tem uma excelente relação com o Sultão, e, graças ao chelengk, terá uma grande autoridade nessa região. Então embarcará com seus homens no transporte Dromedary e zarpará esta tarde rumo ao extremo oriental do delta do Nilo, desembarcará em um povoado afastado chamado Tina, na boca do rio onde fica Pelusio, para não molestar os egípcios, que não nos têm simpatia desde que ocorreu aquele lamentável fato em Alexandria em 1807, e depois irá com alguns de seus homens até Suez por terra, escoltado pelos turcos. Queria mandar com o senhor o meu conselheiro para assuntos orientais, o senhor Pocock, mas não posso. Contudo, um intérprete lhe acompanhará, um excelente intérprete armênio recomendado pelo senhor Wray. Chama-se Hairabedian e é um homem douto. Depois do almoço, o senhor Pocock lhe informará sobre a situação política da zona. Gostaria que o doutor Maturin assistisse também?
- Sim, senhor.
O almirante olhou para Jack por alguns momentos e disse:
- Sugeriram-Me que insistisse para que o senhor levasse outro cirurgião para que Maturin ficasse aqui e fosse nosso conselheiro em diversos casos, mas depois de pensar bem, decidi não considerar essa sugestão. Em uma operação desta classe, é conveniente dispor de toda a informação possível sobre assuntos políticos, e ainda que a boa opinião que o senhor Wray tem de Hairabedian seja justificada, não há que esquecer que, além de tudo, o pobre homem é um estrangeiro. Não vou lhe cansar com os detalhes do plano que tem que executar. Os encontrará junto com uma série de recomendações e as ordens que se porão por escrito enquanto comemos. Como não recebemos a notícia até esta manhã, não foram redigidas antes. Desejaria que já fosse a hora do almoço, pois não desjejuei. Se não fosse porque virão alguns convidados, mandaria pôr a mesa agora mesmo. Mas pelo menos podemos beber algo. Por favor, toque a campainha.
Jack estava um pouco cansado por causa da loquacidade do almirante, o entusiasmo com que falava e os parêntese que fazia, que nem sempre eram esclarecedores, e tinha muita vontade de tomar uma taça de genebra de Plymouth. Enquanto a tomava e o almirante bebia uma jarra de cerveja, tentava se serenar para avaliar objetivamente o plano que lhe oferecia a oportunidade de obter um butim. Sua emoção, que fazia bater aceleradamente seu coração, e seu veemente desejo de que o plano tivesse êxito, não lhe impediam de perceber que seu resultado dependia do vento, pois não poderia levar a cabo se o vento se acalmasse ou fosse desfavorável por alguns dias enquanto o barco se encontrava em algum ponto da rota de centenas de milhas que devia percorrer no Mediterrâneo e no mar Vermelho. Além disso, devia levar em consideração que teria que tratar com turcos e navegar em um barco desconhecido. O plano parecia quimérico, mas não era irrealizável, apesar de que era preciso que todas as etapas saíssem bem. Mas uma coisa era indubitável: não havia que perder nem um minuto.
- Com sua permissão, senhor - disse, deixando de um lado a taça, - escreverei uma nota ao primeiro oficial para que ordene aos homens que se preparem para zarpar imediatamente. Agora estão fazendo práticas de tiro com as armas leves perto de Sliema.
- Todos?
- Todos, inclusive o cozinheiro e os dois únicos guardas-marinhas que estão sob meu comando, senhor. Estou muito orgulhoso de que meus homens disparem os mosquetes com maior precisão que todos os que se encontram nesta base. Competiram com êxito com os do 63º Regimento, e acho que poderiam competir satisfatoriamente com os de qualquer navio de linha. Todos estão ali.
- Bem - disse o almirante, - pelo menos não terá que revistar as prisões civis e militares nem os bordéis nem as tabernas desta condenada cidade onde abunda a imoralidade, como em Sodoma e Gomorra. Mas espero que não os tenha transformado em soldados. Não há nada que eu goste menos do que ver a um tipo esticado como um eixo com uma casaca vermelha, polainas brancas como o cal e o cabelo empoado disparando uma arma como se fosse uma maldita máquina - disse com mau humor pela fome que tinha e depois olhou o relógio e pediu a Jack que voltasse a tocar a campainha.
O almirante era mais amável quando tinha o estômago cheio do que quando estava em jejum. Havia convidado para almoçar a várias pessoas mais: seu secretário, um monsenhor, um lorde inglês que estava de passagem na ilha, três militares e três marinheiros, um dos quais era o guarda-marinha que havia ido buscar a Jack, um guarda-marinha voluntário que se chamava George Harvey e era sobrinho neto do almirante. Sir Francis era um bom anfitrião, pois oferecia aos seus convidados excelente comida e muito vinho, e, tanto se havia paz como se havia guerra, nunca entediava nem desconcertava aos não marinheiros contando o que havia ocorrido a este ou aquele barco. Em realidade, o almoço diferia com o que se davam nos barcos mais que pela austeridade do ambiente, o movimento da coberta, a especial forma de brindar ao Rei e um pequeno detalhe na maneira de servi-la.
Jack notou que o almirante sentia um grande afeto por seu sobrinho neto e que desejava que seguisse o melhor caminho, sobretudo na Armada. Achava bom que o almirante guiasse ao guarda-marinha pelo bom caminho, e ele mesmo tratava de guiar a outros quando tinha tempo, mas pensava que exagerava um pouco, talvez por não ter filhos, e se incomodou quando percebeu que havia tomado a ele como exemplo. Não lhe molestou que o almirante dissesse que os jovens tinham o má costume de inclinar ligeiramente a cabeça para baixo em vez de incliná-la quando bebiam junto com outro homem, e tampouco lhe molestou que pouco depois dirigisse a George um olhar cheio de raiva, um olhar que haveria traspassado uma prancha de nove polegadas de grossura, quando o jovem levantou sua taça e, vermelho de vergonha, disse: "Conceda-me a honra de beber uma taça de vinho com o senhor, senhor", e baixou a cabeça até que seu nariz roçou o toalha da mesa. Contudo, incomodou-lhe muito que lhe tomasse como exemplo de dinamismo, e muito mais que dissesse que alguns oficiais punham em seus cartões de visita as siglas da "Armada real" em vez do nome completo da instituição, o que lhe parecia uma impertinência, e que o capitão Aubrey, em troca, não punha as siglas mas o nome completo em seu cartão de visita e no final das cartas oficiais. Sir Francis também disse que o capitão Aubrey usava o chapéu corretamente, de modo que ficava um bico de cada lado da cabeça em vez de um na frente e o outro atrás. Havia feito estes comentários de passada durante a conversa, na qual participavam o lorde inglês e o prelado sem sentir-se coibidos pela diferença de classe, pois o primeiro era muito rico e o segundo gozava do favor do rei das Duas Sicilias, mas não haviam passado despercebidos para os oficiais sentados dos lados de Jack, dois capitães de navio da mesma antiguidade que ele, que haviam achado muito engraçado.
Por tanto, Jack Aubrey não lamentou que a refeição terminasse. Então foi conduzido para uma pequena cabine onde o senhor Pocock e Stephen já falavam a um tempo da complicada situação política dos estados do Mediterrâneo oriental. Ambos lhe informaram sobre as questões mais importantes de que haviam tratado, e depois o senhor Pocock disse:
- A situação atual é muito delicada, em parte porque Mehemet Alí está fazendo todo o possível para ganhar a confiança do paxá Osman, mas não acho que tenha dificuldades para viajar por terra, pois as autoridades de Tina se ofereceram a proporcionar-lhe um considerável número de animais de carga, especialmente camelos e asnos, e, além disso, o senhor terá o aspecto de uma pessoa muito importante, quero dizer, muito mais importante, com esses diamantes turcos que leva de adorno. Apesar disso, deve manter-se longe do território governado por Ibrahim, um tipo agressivo, rebelde e ambicioso de poder. Além do mais, deve evitar se encontrar com os árabes nômades, os beduínos, ainda que não seja provável que ataquem a um grupo de homens tão grande como o seu, sobretudo se os homens estão bem armados, pelo que convém que levem as armas de modo que sejam visíveis.
Então voltou a fazer comentários sobre o fortalecimento de Mehemet Alí e do debilitamento dos beis, aos quais o Governo inglês não ajudava muito, e quando terminou de falar da última matança de mamelucos, entrou sir Francis.
- Aqui tem as ordens, capitão Aubrey - disse. - São concisas, porque detesto as palavras supérfluas. Não queria instar-lhe a que partir, mas os marinheiros terminarão de descarregar o Dromedary dentro de meia hora, muito antes do previsto. Seu primeiro oficial… Como se chama?
- William Mowett, senhor. É um marinheiro hábil e diligente.
- Ah, sim, Mowett! Pois bem, mandou os tripulantes da Surprise esvaziarem a bodega de proa e colocar dois pares de amantilhos novos, assim que se o senhor tem que se despedir de alguém em terra, este é o momento adequado para fazê-lo.
- Obrigado, senhor - disse Jack, - mas não me despedirei de ninguém, aliás, irei diretamente para o barco porque não há nem um minuto a perder.
- De fato, Aubrey - disse o almirante. - E a rapidez é fundamental em um ataque. Adeus, Aubrey. Espero ver-lhe outra vez dentro de um mês mais ou menos, depois de haver conquistado a glória e talvez algo material também. Doutor, despede-se do senhor seu humilde servidor.
Uma vez mais a falua cruzou o porto a grande velocidade, e durante o percurso, Stephen disse:
- Esta manhã, ao sair do palácio, tive a satisfação de encontrar-me com um amigo. Recorda-se do senhor Martin, o pastor?
- O clérigo caolho, quer dizer, o que pronunciou no Worcester aquele estupendo sermão em que falava das codornas? Claro que me recordo. É um pastor digno de estar em um navio de linha e, se não me engano, um naturalista também.
- Exatamente. Encontrei-me com ele ao chegar à rua Real, e me convidou para almoçar no Rizzio. O almoço foi excelente e consistiu em uma grande variedade de octópodes e cefalópodes. Seu barco navegou pelas imediações das ilhas gregas, e como ele tem especial interesse nos cefalópodes, aprendeu a mergulhar com os pescadores de esponjas de Lesina. Conta que se untaba o corpo com o melhor azeite de oliva, punha pedaços de lã empapados em azeite nos ouvidos, metia na boca um grande pedaço de esponja também empapado em azeite e depois atava uma pedra pesada para chegar ao fundo do mar, porém, apesar de que havia muitos cefalópodes ali, não podia permanecer submerso mais de quarenta e três segundos, um tempo insuficiente para ganhar sua confiança e também para estudar seu modo de vida, mesmo no caso de que os houvesse visto bem, o que não ocorria, pois as águas circundantes eram turvas. Sempre lhe saía sangue pelos ouvidos, o nariz e a boca; algumas vezes perdia a consciência, e o tiravam da água e conseguiam que se recobrasse com álcool cânforado. Como pode imaginar, quando lhe falei de meu sino de escafandrista, mostrou grande interesse por ele.
- Não duvido. Gostaria de voltar a vê-la algum dia.
- É claro que a verá, porque está no Dromedary. O senhor Martin está no barco também, contemplando-a. Depois de almoçar o levei ali para mostrar-lhe as partes mais importantes, e ali recebi sua mensagem.
- Que; diabos faz esse artefato no Dromedary? - perguntou Jack.
- Não podia carregar ao capitão Dundas com meu apreciado sino de escafandrista e tampouco ia deixá-lo ao cuidado desses ladrões do estaleiro. O capitão do Dromedary me disse que conhecia os sinos de escafandrista e que ficaria encantado de que subisse o meu a bordo. Se tivermos tempo livre…
- Tempo livre? - gritou Jack. - Disporemos de muito pouco tempo livre, porque temos que estar ao sul de Hameda quando haja lua cheia ou antes. Tempo livre! Vamos, remar com força! - ordenou aos tripulantes da falua.
O Dromedary fora levado a reboque até o estaleiro e agora estava atracado com os costados paralelos ao cais, e parecia que ninguém estava inativo na coberta nem na entrecoberta. Alguns marinheiros caminhavam como formigas pela prancha, com bolsas, colchões de palha e macas, e desciam pela escotilha de proa; enquanto outros, encarregados de limpar a bodega, saiam pela escotilha de popa com montes de lixo (tiras de palha empapadas de água da sentina, muito grandes, mas leves, e cabos rotos mesclados com poeira e farinha em mau estado) e os jogavam pela borda. Ao mesmo tempo outros marinheiros subiam a bordo barris de água, de vinho e de carne de vaca e de porco, pacotes de bolachas e bolsas que continham roupa e outros artigos que eram vendidos para a tripulação pelo contador, vigiadas pelo senhor Adams, seu ajudante e o ajudante do despenseiro. Por outro lado, os verdadeiros tripulantes do Dromedary se ocupavam de suas tarefas ordinárias, e na proa se ouviam as marteladas do carpinteiro e de sua brigada. O sino de escafandrista, situado na frente da escotilha principal, parecia um ídolo da antiguidade; contudo, o senhor Martin não estava junto dele. Stephen deu uma volta ao seu redor esforçando-se para abrir passagem entre a multidão de marinheiros que passavam apressadamente por ali, e quando começava a dar outra, se topou com Edward Calamy, um jovem que pertencia à tripulação da Surprise. O senhor Calamy, um garoto loiro e nervoso, era um cadete e só havia navegado durante alguns meses, desde que havia embarcado no Worcester em Plymouth, ainda que por sua atitude decidida e a grande quantidade de termos náuticos que empregava, ninguém teria acreditado. Fazia algum tempo que tinha uma atitude amável e protetora por Stephen, e agora, ao ver-lhe, disse:
- Ah, o senhor está aí, senhor! Estava procurando-lhe. Consegui uma cabine para o senhor no lado de bombordo. Afastemo-nos para não atrapalhar. Cuidado com esses cabos! Já pus sua bagagem abaixo, e também levei para lá o senhor Martin. A bagagem de Stephen não era muito grande, já que se vestia com simplicidade, mas incluía um herbário que continha as plantas mais raras de Malta e um exemplar de Philosophical Transactions, no qual o doutor Halley descrevia o que havia observado no fundo do mar. O senhor Martin e Stephen estavam lendo o livro, afastados do mundo agitado e ruidoso que os rodeava, quando o Dromedary desatracou e, com o velacho desdobrado, começou a atravessar o porto enquanto o desolado capitão Pullings, de pé no cais, agitava a mão no ar para despedir-se dos poucos amigos que não estavam ocupados demais para advertir que se encontrava ali. Ainda não haviam chegado na parte que tratava da esponja nem sequer haviam terminado de ler a que tratava do coral quando o Dromedary, já com todas as maiores desdobradas, dobrou o cabo Ricasoli e começou a navegar rumo este-sudeste com um forte vento que permitia abrir as joanetes.
- Eu vi muitos corais no oceano Índico e também no Pacífico - disse Stephen, - mas só os estudei superficialmente, em um espaço e um tempo limitados, pois me afastavam deles muito rápido. Amiúde lamentei ter desperdiçado tantas oportunidades. Para alguém dotado de um espírito curioso, poucas coisas podem fazer-lhe mais feliz que caminhar por um arrecife de coral e ver passar por cima do arrecife aves desconhecidas e por baixo peixes desconhecidos e observar no fundo do mar uma incrível quantidade de lesmas do mar, cefalópodes e outros moluscos e também de nemertíneos.
- Indubtavelmente, não pode haver um lugar mais prazeroso que esse fora do Paraíso - disse Martin, juntando as mãos. - Contudo, no mar Vermelho voltará a ver corais, não acha?
- Por que disse isso, meu amigo?
- Não é seu destino o mar Vermelho? Estou equivocado? Em Valletta muitos diziam que uma expedição partiria para lá para realizar uma missão secreta, e o cadete que me conduziu até aqui acreditava que haviam dado o comando ao capitão Aubrey, assim que supus que o senhor havia trazido seu sino de escafandrista para submergir entre os arrecifes durante seu tempo livre. Mas lhe rogo que me desculpe se cometi uma indiscrição.
- Não, não. Se pudesse submergir no mar Vermelho em meu tempo livre, teria uma alegria indescritível, porém, desafortunadamente, os marinheiros não querem nem ouvir falar de tempo livre. Salvo em uma ocasião, quando estivemos a ponto de naufragar frente à ilha Desolação, um lugar bendito por Deus, sempre me impediram de fazer as coisas ao meu ritmo e a meu gosto. Os marinheiros acham que sempre há que estar ocupado, e têm a obsessão de que tudo tem que ser feito com pressa, que não há que perder nem um minuto, como se o tempo só devesse empregar-se em seguir avançando com rapidez e não importasse aonde um se dirige contanto que siga adiante.
- É verdade. Além disso, sua preocupação com a limpeza é quase uma obsessão. O primeiro que ouvi quando subi a bordo de um barco de guerra foi o grito "Garis!", e desde então o hei ouvido em torno de vinte vezes diárias, ainda que como os marinheiros estão restregando o barco constantemente, não há nada que varrer, assim que não é necessário empregar uma vassoura para limpá-lo, e muito menos doze. Agora tenho que ir, senhor, porque hei ouvido dizer que o barco zarpa ao entardecer, e a luz já começou a debilitar-se.
- Poderíamos dar um passeio pela coberta, porque parece que agora há menos ruído e os tripulantes não têm tanta pressa - disse Stephen. - Além domais, o capitão Aubrey se alegrará de ver-lhe.
Avançaram até a escada do castelinho passando por uma série de lugares que não lhes eram familiares, e antes de chegar à coberta, Stephen se preocupou, pois notou que o transporte estava mais inclinado do que costumava ficar um barco quando ficava atracado junto a um cais e ouviu o grito "Destrincar os canhões!", um grito que não tinha nada que ver com os preparativos para zarpar que ele conhecia. Mas essa preocupação era insignificante comparada com a consternação que sentiram os dois quando suas cabeças assomaram por cima da braçarola e viram que só o que havia ao seu redor era o mar, enfeitado de um intenso azul pelo entardecer, que o majestoso sol estava a ponto de se ocultar ao longe, pela popa, e que de ambos lados da coberta os tripulantes realizavam as tarefas que habitualmente se faziam nos barcos com verdadeiro afã, como se a terra já não existisse, e se informaram de que o barco navegava a seis nós e meio. O capitão Aubrey havia pedido emprestado os canhões de seis libras do Dromedary, e para que os tripulantes da Surprise voltassem a ter dignidade e disciplina, mandava-os fazerem todas as operações necessárias para dispará-los, e parecia que representavam uma pantomima com rapidísimos movimentos.
- Guardar os canhões! - ordenou ao final. - O resultado da prática de tiro foi muito ruim, senhor Mowett. Demorar dois minutos e cinco segundos com canhões de cento e noventa libras de peso é um mau resultado.
Então se voltou, e sua expressão mal-humorada tornou-se uma sorridente quando viu Stephen e Martin. Ambos estavam ainda no penúltimo degrau da escada, com o corpo visível somente até as joelhos, e olhavam ao seu redor com a boca aberta, perplexos como dois homens que nunca houvessem estado em um barco. "E estes pobres homens não estão muito melhor", pensou, e disse:
- Senhor Martin, quanto me alegro de ver-lhe! Como está?
- Oh, senhor! - exclamou Martin olhando em torno seu como se a terra fosse aparecer milagrosamente. - Acho que estou viajando, que não desci do barco a tempo.
- Não se preocupe. Provavelmente encontraremos algum barco pesqueiro que vá para Valletta e poderá regressar nele, a menos que prefira acompanhar-nos durante um tempo. Navegamos rumo à boca do Nilo onde fica Pelusio…
Nesse momento começou uma acalorada discussão entre o carpinteiro do Dromedary e Hollar, o contramestre da Surprise, e o capitão Aubrey teve que intervir, mas convidou o senhor Martin para jantar. Durante a janta, o pastor disse:
- Talvez o senhor não falasse a sério quando sugeriu que lhes acompanhasse, mas se não era assim, permita-me dizer-lhe que me encantaria. Tenho um mês de licença, e o capitão Bennet teve a amabilidade de dizer que não oporia obstáculos a que prolongasse o período de licença um mês ou dois, ou inclusive mais.
Jack sabia que Harry Bennet aceitara levar um pastor a bordo porque o comandante geral lhe pressionara. Bennet não tinha ódio contra o clero, mas gostava de estar acompanhado de mulheres, e como lhe ordenavam realizar missões sozinho muito amiúde, podia fazer sua vontade. Contudo, respeitava muito aos clérigos e não levava em seu barco a sua amante e a um deles ao mesmo tempo porque achava que assim lhes ofendia.
- Naturalmente, pagarei pelo alojamento e a comida - prosseguiu. - Além disso, como possuo algumas noções de anatomia, talvez possa ajudar ao doutor Maturin, pois não tem nenhum ajudante neste momento.
- Muito bem - disse Jack. - Mas lhe advirto que não vamos ficar em Tina senão que avançaremos por um deserto cheio de serpentes de diversos graus de nocividade, como diz o doutor, até…
- Me limitei a repetir as palavras de Goldsmith - disse Stephen adormecido por causa de que havia dormido pouco essa noite e estava esgotado pelas fortes emoções do dia anterior, e depois murmurou: - Sonolência… coma… letargia…
- … chegar ao mar Vermelho, onde realizaremos uma missão que requer muito esforço e que provavelmente seja perigosa, suportando um terrível calor e muitas incômodos.
Enquanto falava, havia notado um brilho de alegria nos olhos do senhor Martin, apesar do pastor fazer grandes esforços para manter uma expressão grave.
- Por outro lado - continuou Jack, - devo dizer-lhe que a Armada não foi criada para os que querem recolher insetos e meimendro em distantes praias coralíneas e que se irritam quando se pede que cumpram com seu dever. Resmungar e franzir o cenho... - disse, alçando a voz, mas parou ao perceber que Stephen não ia responder. - Será um prazer para mim estar em sua companhia, e estou seguro de que também será para os marinheiros que foram companheiros de tripulação seus no Worcester. Nem eles nem eu havemos esquecido quanto trabalhou o senhor para preparar o oratório. Talvez pudéssemos ouvir um par de cânticos uma tarde, já que alguns de seus antigos discípulos estão a bordo.
O senhor Martin disse que se as serpentes, o esforço, o perigo, o calor e os incômodos eram o preço que havia que pagar para ver um arrecife de coral, ainda que fosse brevemente, achava muito baixo, e que cumpriria com seu dever sem resmungar, e acrescentou que se alegrava de estar com seus antigos companheiros de tripulação outra vez.
- Agora que me recordo, esta mesma manhã me lamentava da falta de um pastor - disse Jack. - Os marinheiros têm uma conduta licenciosa, e me ocorreu que…
Esteve a ponto de dizer: "um bom sermão em que fossem ameaçados com o fogo do inferno os assustaria tanto que se comportariam bem", mas pensou que não era correto dizer a um pastor o que devia fazer e terminou dizendo:
- … seria conveniente celebrar ofícios religiosos, pois ouviriam palavras sensatas, ou seja, condenando o vício e a libertinagem. O que foi, Killick?
- O senhor Mowett me pediu que o molestasse, senhor… - disse Killick, e como gostava de ser o primeiro em dar as notícias, acrescentou: - É que não sabe onde alojar o cavalheiro estrangeiro.
- Diga que entre e traga outra cadeira e outra taça.
O cavalheiro estrangeiro era o intérprete, e Mowett, depois de sentar-se e beber uma taça de vinho do porto, perguntou onde devia comer e se devia pendurar sua maca na proa ou na popa.
- Não sei onde os intérpretes devem comer- disse Jack, - mas o comandante geral disse que este era um homem douto e tinha recomendação do senhor Wray, assim que deveria comer na câmara dos oficiais. Eu o vi quando subiu a bordo, e me pareceu bastante alegre apesar de ser sábio, pelo que acredito que o senhor não se molestará que coma ali, e ainda que assim fosse, espero que só tenha que fazê-lo por uma semana, ou inclusive menos, se continuar soprando este vento favorável, o vento que acompanhou Nelson. Recordo que no ano 1798, quando procurávamos a frota francesa, fomos do estreito de Mesina a Alexandria em sete dias…
Recordava claramente daqueles longos dias de verão em que quinze barcos de guerra navegavam pelas águas azuis jaspeadas de branco rumo leste e a grande velocidade, com as alas superiores e inferiores, as sobrejoanetes e as monterillas{11} desdobradas, enquanto o contra-almirante Nelson caminhava de um lado para outro do castelo de popa do Vanguard do amanhecer ao ocaso. Recordava o fragor da batalha no meio da noite, as labaredas dos canhonaços rasgando uma e outra vez a escuridão, o impressionante estampido da explosão de L'Orient, depois do qual, durante alguns minutos houve completa escuridão e silêncio. Contou como haviam feito a busca da frota francesa e depois fizeram regressar sua esquadra de Alexandria para a Sicília e levá-la outra vez de Siracusa para Alexandria, e disse:
- … e ao final a encontramos ali, atracada na baía de Abukir.
Nesse momento o Dromedary deu um solavanco, fazendo Stephen cair da cadeira. Jack deu um salto com muita agilidade por ser um homem tão pesado, mas não com o suficiente para evitar que Stephen se desse um golpe com a cabeça na borda da mesa que lhe causou uma ferida de um palmo de comprimento de um lado a outro da testa, uma ferida quase igual e quase tão sangrenta como a que sofreu Nelson no Nilo.
- Por que fazem tantos trejeitos? - perguntou Stephen, mal-humorado. - Qualquer um pensaria que nunca haviam visto sangue, o que é impossível, pois são assassinos a soldo. Tosco, pedaço de sobreiro, inútil, mantenha a bacia direita! - gritou, olhando para Killick. - Senhor Mowett, na gaveta esquerda de meu estojo de remédios há agulhas curvas enfiadas com fio de tripa, e quisesse que me trouxesse um par delas, e também um frasco de hemostático que está na estante central e um punhado de fibras. Em lugar de uma venda podemos usar minha gravata, porque já está suja.
- Não seria melhor que estivesse deitado? - perguntou Jack. - A perda de sangue…
- Bobeiras! A ferida é superficial, um simples corte na pele, como lhe disse. Senhor Martin, agradeceria que passasse hemostático em mim e que unisse as bordas da ferida com doze pontos enquanto as seguro.
- Não sei como pode suportar fazer isto - disse Jack, afastando a vista quando a agulha se introduziu na pele.
- Estou acostumado a dissecar pássaros - disse Martin sem parar de costurar, - e também a costurar sua pele… Todos a têm muito mais delicada que esta… exceto os cisnes machos velhos… Pronto! Acho que é uma costura bastante bem feita.
- O pastor diz que o senhor já está bem, senhor - disse Killick a Stephen em voz alta e tom solene.
- Muitas obrigado, senhor - disse Stephen para Martin. - Agora vou deitar-me. Ontem à noite dormi pouco. Boa noite, cavalheiros. Senhor Mowett, peço que solte meu braço, porque não estou bêbado nem decrépito.
Também dormiu pouco essa noite, já que pouco antes da alvorada ouviu a menos de seis polegadas do escotilhão de sua cabine uma voz desconhecida que, em tom mal-humorado, tão alto que lhe rompeu o sono, gritou:
- Não sabe como fazer um cornudo, maldito marinheiro de água doce? Onde está o condenado nó?
Sua cabeça doía, mas não muito, e permaneceu deitado em sua maca, que se balançava ao ritmo do balanço do barco, pensando nos cornos e no costume quase universal de fazer zombaria deles. Quando estava em Malta, em uma das poucas cartas que recebera da Inglaterra (durante os dois meses anteriores apenas haviam chegado cartas da esquadra do Mediterrâneo) lhe diziam que era um corno porque sua mulher o enganava com um adido da embaixada sueca, mas ele não acreditou. Na mesma saca havia chegado uma nota de Diana, uma nota muito breve e escrita com má letra e com borrões, mas muito afetuosa; e ainda que ele não acreditava que ela deixaria de fazer o que desejava por razões morais, sabia que era incapaz de cometer ações que a fizessem desprezível e que isso a impediria de escrever-lhe uma nota afetuosa ao mesmo tempo que lhe punha os cornos. Estava convencido de que ela não lhe desonraria se não a incitassem a fazê-lo. Além disso, Diana ia a muitas festas de sociedade em Londres e tinha muitos amigos ricos e distintos, e como não se importava com a opinião dos outros, provavelmente havia dado motivos para que a censurassem ou a difamassem.
Sua prima Sophie, a esposa de Jack Aubrey, era completamente diferente, e apesar de que distava muito de ser uma falsa moralista e dava tão pouca importância à opinião da senhora Grundy como Diana, só um louco escreveria para Jack para dizer-lhe que era um cornudo, ainda que se as ações de ambos fossem recíprocas, ela lhe teria posto uma galhada de grande tamanho. Stephen refletia sobre o assunto e se perguntava se estava motivado pelo apetite sexual, que mesmo sendo potencial e, portanto, não ostensível, podia ser percebido claramente pelos outros. Pensou no apetite sexual das mulheres distintas e o comparou com o das vulgares, e ainda pensava nisto quando a porta da cabine se abriu muito devagar e a cabeça de Jack apareceu por detrás dela.
- Deus te bendiga, Jack! - disse. - Precisamente agora estava pensando em você! O que chamam de cornudo em um barco?
- Para amarrar um cabo a um mastro, dobram-se os dois extremos de modo que um fique sobre o outro e depois se faz um nó com eles, e chamamos cornudo a esse nó.
- Muito bem, obrigado.
- Quer tomar um pouco de chá e um ovo passado em água?
- Não - respondeu Stephen em tom decidido. - Tomarei uma grande xícara de café forte, como um cristão, e arenques defumados.
Jack ficou pensativo por um momento e depois, franzindo o cenho, perguntou:
- Que demônios significa o que me disse: "Precisamente agora estava pensando em você. O que chamam de cornudo em um barco?".
- Ouvi que alguém dizia essa palavra perto da janela de minha cabine e queria saber o que significava, assim que perguntei a você, que é uma autoridade em náutica. Não deve comportar-se como se fosse Otelo, meu amigo. Deveria envergonhar-se disso. Se um homem tivesse o atrevimento de fazer uma proposição desonesta a Sophie, ela não lhe entenderia até uma semana depois, e então lhe mataria com sua escopeta de dois canos.
- Agradeço que diga que sou uma autoridade em náutica - disse Jack, sorrindo ao imaginar Sophie no momento em que compreendia a hipotética proposição e em que sua amabilidade se tornava em raiva. - E também pode chamar-me diplomático, se quiser. Tive uma entrevista muito satisfatória com o capitão do Dromedary ontem à noite. É um assunto muito delicado ter que dizer a um homem como deve governar seu barco ou sugerir-lhe que faça melhorias nele, sabe?, especialmente neste caso, pois o senhor Alien não é meu subordinado. Além disso, os capitães de barcos mercantes, em geral, têm uma atitude hostil pela Armada porque recruta seus homens a força, e lhes incomoda a arrogância de alguns de seus oficiais. Se eu houvesse ofendido a Alien, ele poderia ter diminuído o velame só para me contrariar. Mas desceu precisamente quando você foi dormir, pois lhe disseram que estava bêbado e nos havia atacado e que nós lhe golpeamos quase até matá-lo, e ficou para tomar uma taça de vinho, e enquanto bebia, terminei de contar a Mowett e ao pastor como nossa esquadra navegava mais rápido que a fumaça por estas mesmas águas antes da batalha do Nilo.
- Acho que você mencionou alguma vez a batalha do Nilo - disse Stephen.
- Claro que sim - disse Jack em tom amável. - Pois bem, demostrou que era um tipo estupendo enquanto soube que não queríamos interferir no que faz nem dar-lhe ordens em seu própio barco. Quando Mowett e o pastor se foram, eu lhe falei disso com franqueza, de forma espontânea, sem premeditação. Eu lhe disse que não era minha intenção criticar como governava o Dromedary e que ele conhecia melhor que ninguém seus defeitos e suas qualidades, mas que com muito gosto lhe proporcionaria duas vintenas de marinheiros e que talvez quando ele tivesse muitos mais tripulantes decidiria desdobrar mais velame, e acrescentei que se por consequência disso se desprendesse algum pau, eu indenizaria aos donos do barco imediatamente. Disse que nada lhe houvesse parecido melhor e que sabia que eu estava preocupado mas que não me havia falado disso porque temia que o cortasse. Contudo, acrescentou que eu não devia esperar muito desta carraca ainda que houvesse nela homens suficientes para sustentar a escada de Jacob ou construir a torre de Babel, porque os fundos estavam sujos, todos os mastros e as vergas tinham mais encaixes que madeira, e a exárcia era feita de fragmentos de cabos usados, ainda que pensava que, apesar de tudo, uma boa tripulação podia fazê-lo navegar a considerável velocidade com o vento pela quadra, pois tinha as mesmas linhas curvas que um cisne, as mais bonitas que vira. Então nos demos a mão para selar o acordo. Quando subir para o convés, verá que ali tudo está diferente.
Qualquer marinheiro podia perceber que ali tudo estava muito diferente, já que agora o Dromedary tinha desdobradas as alas de barlavento, a cevadeira e a sobrecevadeira, mas o que realmente surpreendeu a Stephen foi ver uma fila de pacotes vermelhos. Ainda não haviam estendido os toldos no Dromedary, e a brilhante luz do sol fazia a cor vermelha tão intensa que era uma delícia de ver. Stephen passou olhar a coberta com atenção, colocando o gorro de dormir de modo que não apertasse os pontos da ferida, e imediatamente compreendeu o que ocorria. Estavam inspecionando as bolsas de roupa e as armas da tripulação da Surprise. Haviam dado a ordem: "Sacar a roupa!", e agora cada marinheiro tinha diante de si um monte de roupa, um monte pequeno, e por cima de quase todos havia várias roupas bem lavadas e arrumadas: uma calça de dril branco, uma casaca azul escuro com botões dourados e um colete bordado de cor escarlata (pois havia feito escala recentemente em Santa Maura, famosa porque nela se fabricavam peças de vestir dessa cor). Os marinheiros haviam estendido estas roupas, as que usavam para descer a terra, em um tentativa de ocultar que debaixo delas havia muito pouca roupa de trabalho, mas o intento era vão, porque assim não poderiam enganar nem a um guarda-marinha recém chegado, e muito menos a um capitão de navio que passara toda sua vida no mar, ainda que quase todos pensassem que poderiam conseguir. Jack, visivelmente irritado, revistou os andrajos mal escondidos debaixo da elegante roupa e leu em voz alta para os oficiais das brigadas a lista de roupa que era obrigatório ter. A situação era pior do que esperava. A roupa estava em péssimas condições, se bem que as armas estavam em excelente estado, pois os marinheiros, temendo receber uma furiosa reprimenda, haviam polido os mosquetes, as baionetas, as pistolas, os sabres e inclusive as cartucheiras até que haviam brilhado mais que as armas dos militares.
- Plaice - disse a um marinheiro do castelo de certa idade e de cabelo grisalho, - estou seguro de que o senhor tem uma camisa de reserva. Tinha várias com o peitilho bordada quando inspecionamos as bolsas de roupa pela última vez. O que aconteceu?
Plaice, baixando a cabeça, disse que não sabia, e sugeriu sem muita convicção que os ratos as haviam comido.
- Duas camisas e duas camisas de algodão para Plaice, e também dois pares de meias e duas calças curtas - disse Jack para Rowan, que anotou tudo.
Avançaram até o marinheiro seguinte sem roupa para trocar-se. Era um homem que em um dia em que estava bêbado perdera seus pertences e agora toda sua bagagem era só um sapato.
- Senhor Calamy - disse o capitão Aubrey ao guarda-marinha encarregado de sua brigada, - diga-me qual é, conforme o regulamento, a roupa que nas altas latitudes devem ter os marinheiros, quer dizer, os marinheiros sóbrios e responsáveis que tripulam os barcos do Rei, não os irresponsáveis, preguiçosos e bêbados que tripulam os barcos corsários.
- Duas casacas azuis, um jaquetão, duas calças azuis, dois pares de sapatos, seis camisas, quatro pares de meias, duas camisas de Guernsey, dois chapéus, dois lenços negros de Barcelona, um cachecol, várias… - parou e então, baixando a voz e ruborizando-se, disse: - cuecas de flanela. E além disso, um colchão de palha, um travesseiro, dois cobertores e duas macas. Isso é tudo, senhor.
- E nas zonas de clima quente?
- Quatro camisas de algodão, quatro calças de dril, um chapéu de palha e uma capa de lona para as tempestades.
- E se um marinheiro não tem muitas destas coisas por esbanjo ou negligência, ou simples preguiça, deve ser incluído na lista dos que cometem faltas, ser levado ao portal, colocado em um mal gradeado e receber doze açoites por cada coisa que esteja faltando, não é verdade?
- Sim, senhor - disse em voz muito baixa.
- Este homem pertence à sua brigada. É um dos tripulantes de sua lancha. O senhor sabia que se havia ficado somente com um sapato e não fez nada. Não acha que é responsável pelo que fazem seus homens? O senhor é uma vergonha para a Armada. Ficará sem sua ração de grogue até que lhe avise. Agiu muito mal.
A situação era pior do que Jack esperava, ainda que estivesse habituado a ver sinais de pobreza extrema na Armada. Contudo, o senhor Adams e ele haviam trazido tantos suprimentos como se para os tripulantes lhes faltasse quase tudo, e o ajudante do contador ficou vendendo peças de roupa por toda a manhã. Pela tarde os tripulantes da Surprise que não pertenciam à brigada que trabalhava no Dromedary se sentaram na coberta, formando pequenos grupos, e para evitar que lhes criticassem porque a roupa não lhes caía bem, descosturaram, ajustaram e voltaram a costurar as peças de vestir fornecidas pela Junta Naval por um provedor.
Jack, que caminhava pela parte superior da exárcia com o senhor Alien, falando das possíveis formas de aumentar a velocidade do barco quando o vento viesse de proa, olhou para abaixo. A coberta lhe pareceu a oficina de um alfaiate, pois sobre ela havia pedaços de tecido e de fio por todas as partes, e os tripulantes estavam sentados com as pernas cruzadas e a cabeça inclinada sobre as roupas que costuravam, levantando o braço direito e movendo a agulha ritmicamente. Estava satisfeito não só porque os marinheiros tinham menos preguiça mas também porque o Dromedary, agora com o vento em popa, que não era o vento com que ele nem nenhum outro barco de exárcia de cruz navegava mais rápido, deslocava muita água com a proa e navegava a uma velocidade de cinco nós e quatro braças, uma velocidade suficiente para fazer a viagem em uma semana, se o vento não mudasse.
O vento seguiu soprando no mesmo quadrante por mais um dia e também pela manhã seguinte, e então a maioria dos tripulantes da Surprise ainda estavam costurando. Haviam terminado de arrumar a roupa de trabalho e agora recuperavam a roupa de vestir. Sabiam que no domingo ia se celebrar o ofício religioso (os marinheiros que tinham as melhores vozes, reunidos pelo senhor Martin, ensaiavam a canção Old Hundredth sob sua direção na bodega de proa, e a coberta vibraba como as paredes da caixa de ressonância de um enorme instrumento) e achavam que os tripulantes do Dromedary iam assistir a ele muito bem vestidos, e como não queriam que os tripulantes de um mercante lhes superassem em elegância, mas não lhes parecia adequado pôr a roupa de descer a terra, porque era luxuosa demais, nem tinham tempo para fazer finos bordados, estavam costurando fitas nas costuras da roupa.
Apesar disso, alguns haviam dedicado algum tempo para polir o sino de escafandrista do doutor, e agora as grandes placas de chumbo que recobriam a parte inferior tinham o brilho mais intenso que o atrito da areia e da argila podiam dar, e as placas de latão da parte superior brilhavam mais que o sol. Haviam feito isto para demostrar que sentiam simpatia por Stephen, que caminhava pelo barco com um gorro de dormir ensangüentado e tinha um aspecto lamentável, e agora sentiam mais simpatia por ele que antes porque estavam convencidos de que estava bêbado quando sofreu a ferida.
Mas hoje o doutor Maturin não ia usar o gorro de dormir, pois todos haviam dito que devia pôr uma peruca, ainda que lhe molestasse muito, porque o capitão da Surprise e seus oficiais haviam convidado para almoçar ao capitão do Dromedary e ao seu primeiro oficial. Mas haviam acrescentado que, apesar de que ser tão necessário ter posta a peruca como usar calções durante a refeição, poderia afastá-la um pouco para trás quando tirassem a mesa e inclusive tirá-la se cantassem ao final da refeição. Portanto, com a peruca posta, Stephen foi para sua enfermaria provisória. Depois de atender a dois novos pacientes, confirmou que tinham sífilis e lhes repreendeu por haver ido à enfermaria muito tarde, como todos costumavam fazer, e lhes disse que haviam perdido a cabeça e que perderiam os dentes, o nariz e inclusive a vida se não seguissem suas recomendações ao pé da letra. Suprimiu o grogue, prescreveu uma dieta leve, iniciou o tratamento apropriado e disse que o custo dos remédios seria descontado de seus pagamentos. Depois examinou a um tripulante do Dromedary, que tinha dor de dente, e chegou à conclusão de que deveria arrancar o dente imediatamente; e então mandou buscar dois de seus companheiros, para que lhe segurassem a cabeça, e ao infante de marinha que tocava o tambor.
- A bordo não há ninguém que toque o tambor, senhor - disse seu ajudante. - Todos os infantes da marinha ficaram em Malta.
- É verdade - disse Stephen. - Mas necessito que alguém toque o tambor.
Não tinha muita habilidade para extrair dentes, e por esse motivo queria que seu paciente estivesse aturdido e ensurdecido por um ruído muito forte.
- Neste barco não tocam um tambor quando há névoa? - acrescentou.
- Não, senhor - disseram os companheiros do marinheiro do Dromedary. - Usamos volutas e um mosquete.
- Bem, isso também poderia servir - disse Stephen. - Apresentem meus respeitos ao oficial encarregado da guarda e perguntem-lhe que se me pode proporcionar volutas e um mosquete. Não. Esperem. Poderemos golpear algumas panelas da cozinha.
Porém, posto que poucas mensagens se compreendem perfeitamente bem e poucos as transmitem sem acrescentar algo, o doutor extraiu o dente, laboriosamente e pedaço a pedaço, entre o som das volutas, o ruído dos golpes nas panelas de cobre e os disparos de dois mosquetes.
- Eu lhes rogo que me desculpem por chegar tarde - disse Stephen, sentando-se em seu posto, pois Jack e seus oficiais e os convidados já se haviam sentado à mesa. - Demorei porque fui à enfermaria.
- Parece que havia uma batalha ali.
- Não. Arranquei um dente, um dente muito difícil de extrair. Já ajudei a vir ao mundo a muitas crianças causando menos incômodos para meus pacientes.
Todos acharam que o comentário era de mau gosto, e Stephen não o teria feito se não o houvessem instado para que falasse, pois em circunstâncias normais, teria se lembrado que os marinheiros consideravam indelicado falar de qualquer coisa relacionada com a ginecologia. Guardou silêncio e, depois de tomar sopa suficiente para acalmar seu apetite, olhou ao seu redor. Jack estava sentado na cabeceira da mesa, à sua direita estava o capitão do Dromedary e à sua esquerda o senhor Smith, o primeiro oficial deste. Ao lado do senhor Alien se encontrava Mowett, que tinha em sua frente a Rowan. Stephen, que estava junto a Mowett, tinha em sua frente a Martin. O senhor Gill, o oficial de derrota da Surprise, estava à direita de Stephen, e em sua frente estava Hairabedian, o intérprete. E Honey e Maitland, os dois ajudantes do oficial de derrota, estavam um de cada lado do senhor Adams, que se encontrava no outro extremo da mesa.
Na presença do capitão, estes dois jovens eram agora como corpos inertes, na primeira parte da refeição, quando todos ainda estavam sóbrios, e o senhor Gill, que era um homem melancólico e não gostava de conversar com as pessoas, provavelmente permaneceria em silêncio do início até o fim. No centro da mesa, Martin e Hairabedian já haviam começado a falar, pois não tinham que sujeitar-se às convenções da Armada, mas era Jack, da cabeceira, quem teria que realizar a difícil tarefa de manter a conversa até que o almoço se animasse, mas não tinha sido porque, pouco antes que chegasse, os dois tenentes quase haviam chegado a se pegar por estarem em desacordo sobre o significado da palavra "dromedário". Os dois eram bons marinheiros e bons companheiros, e os dois cultivavam a poesia, mas Mowett escrevia poemas épicos em dísticos, e Rowan, em troca, preferia escrever com tanta liberdade como Píndaro. Contudo, cada um pensava que o outro escrevia mal porque não tinha inspiração poética e desconhecia a gramática e o significado das palavras. Quando haviam soado as duas badaladas da guarda da tarde, a rivalidade entre ambos havia chegado ao seu grau máximo pela palavra que o transporte tinha por nome, ainda que ninguém compreendia bem por que, pois parecia difícil encontrar outras que rimassem com ela, e ainda estavam tão aborrecidos que, apesar de que agora o capitão Aubrey comia o cordeiro de Valletta em silêncio, Rowan disse:
- Doutor, o senhor que é um naturalista poderá confirmar que um dromedário é um animal peludo e com duas corcovas que caminha devagar.
- Bobeiras! O doutor sabe perfeitamente que o dromedário tem uma só corcova e caminha rápido. Se não por que iam chamá-lo de o barco do deserto?
Stephen lançou um olhar para Martin, que estava perplexo, e depois disse:
- Se não me equivoco, o significado da palavra não é preciso, aliás varia de acordo com o critério de quem a usa.
Ocorre o mesmo com o nome "corveta", que os marinheiros atribuem a embarcações de um, dois e inclusive três mastros. E tenha em conta que há corvetas rápidas e lentas, assim que é possível que haja dromedários ágeis e lerdos. Contudo, tomando como exemplo o excelente barco do capitão Alien, acho que o dromedário ideal seria um que se movesse com rapidez e que, tivesse as corcovas que tivesse, pudesse dar um agradável passeio a quem montasse nele.
- Alguns dizem drumedario - disse o contador.
Então Jack mudou o tema porque pensou que esse poderia ser desagradável para os convidados, mas o senhor Alien reteve a palavra na mente e, depois de um tempo, olhando pela frente de Mowett para onde estava Stephen, disse:
- Senhor, eu lhe agradeço que tenha extraído o a dente do pobre Polwhele. Mas, por favor, diga-me por que precisava de um tambor para arrancá-lo.
- É um velho truque dos dentistas - disse Stephen, sorrindo, - mas dá bom resultado. Nas feiras, o ajudante do dentista toca o tambor não só para afogar os gritos do paciente, que poderiam afugentar outros clientes, mas também para provocar a perda parcial da sensibilidade durante certo tempo, no que seu patrão pode trabalhar. É um método empírico, mas muito bom. Durante as batalhas, amiúde notei que os feridos que eram levados para a enfermaria durante uma batalha não haviam percebido que tinham feridas, e muitas vezes cortei membros destroçados sem ouvir quase nenhuma lamúria e sondei as profundas feridas enquanto os pacientes seguiam falando com voz normal. Acho que isto se deve à intensa atividade, à excitação e ao atordoamento provocado pelo fragor da batalha.
- Estou convencido de que tem razão, doutor - disse Alien. - No ano passado entramos em um combate com um barco corsário no Canal. Era um lugre procedente da ilha Saint Malo e navegava a três nós, enquanto nosso barco navegava a dois. Os tripulantes nos dispararam um par de bombardeios e abordaram nosso barco em meio da fumaça, e não exagero se lhe digo que os forçamos a voltar para seu barco, o Víctor, tão rápido como haviam vindo, e a afastar-se dali imediatamente depois. Mas dizia tudo isto porque depois que o combate acabou, quando estava sentado tomando uma xícara de chá com o senhor Smith, aqui presente - disse, assinalando com a cabeça o seu primeiro oficial, - senti um incômodo no ombro e, ao tirar a casaca, vi que tinha um buraco e que eu tinha outro no ombro. Então percebi que tinha alojada no ombro uma bala de pistola, que havia penetrado tanto na carne que quase a havia traspassado. Senti o golpe sem dúvida, mas pensei que me havia caído em cima uma polia que se desprendera e não lhe dei importância.
Muitos outros disseram que a eles e a seus amigos lhes haviam ocorrido coisas parecidas. Depois de um breve silêncio, o capitão Aubrey contou que uma vez, quando era ajudante do oficial de derrota, uma bala lhe entrara por um lado, mas que não pudera distinguir entre a sensação produzida pela bala e a produzida pela ponta de uma lança que se lhe havia cravado nesse mesmo momento, e que a bala estivera se movendo pelo interior de seu corpo até que chegara a capitão, e que o doutor Maturin a havia sacado então de entre os ombros. Os outros contaram várias anedotas, que, apesar de se referirem a coisas um pouco desagradáveis, tornaram a refeição amena.
A conversa e os risos não cessaram desde então até que tiraram a mesa, ainda que Stephen, que ultimamente se incomodava com a companhia de outras pessoas, permaneceu em silêncio, pensando na senhora Fielding. Depois, enquanto comiam figos e amêndoas verdes, Stephen viu Rowan inclinar-se para frente para dizer algo ao intérprete.
- O senhor disse que conhecia ao lorde Byron?
Hairabedian respondeu que sim, o conhecia. Disse que tinha a honra de ter comido duas vezes com ele e com vários comerciantes armênios que viviam em Constantinopla, e que uma vez lhe entregara uma toalha quando saía tremendo e arroxado das águas do Helesponto. Stephen escrutinou sua cara redonda e risonha para saber se dizia a verdade. Em Valletta falara com muitas pessoas que afirmavam ter conhecido a Byron. As mulheres diziam que haviam recusado suas insinuações, e os homens, que lhe haviam baixado a bola. Stephen chegou à conclusão de que Hairabedian dizia a verdade. Não tratara muito ao intérprete, mas lhe parecia que era realmente um homem instruído, pois falara a Martin da doutrina dos monofisitas, que seguiam a Igreja armênia e a copta, e a dos homusianos, de tal modo que era evidente que as conhecia em profundidade. Além disso, havia ganhado a simpatia dos oficiais, não por falar muito, ainda que falasse um inglês quase perfeito, mas porque tinha um olhar vivo e um riso contagioso, ele os escutava atentamente e admirava a Armada real.
Nesse momento vieram buscar Mowett, e o jovem se foi contra a sua vontade. Enquanto Rowan, Martin, o contador e os ajudantes do oficial de derrota faziam perguntas a Hairabedian, o senhor Alien se inclinou para Stephen e perguntou:
- Quem é esse tal Byron que as pessoas falam constantemente?
- É um poeta, senhor - respondeu Stephen. - Escreve poemas muito ruins com fragmentos de autêntica poesia intercalados, ainda que não sejam, mas parecem poesia autêntica em contraste com os outros. Não li muitos livros seus.
- Eu gosto de ouvir bons poemas - disse o senhor Alien.
Jack tossiu e a conversa cessou. Então pegou uma das garrafas de vinho que acabavam de trazer, encheu sua taça e disse:
- Senhor Adams, brindemos ao Rei!
- Cavalheiros, brindemos ao Rei! - disse o senhor Adams.
Depois brindaram pelo Dromedary, pela Surprise e por suas noivas e esposas, e então Jack, olhando para o senhor Alien, disse:
- Se gosta de ouvir poemas, o senhor veio ao lugar certo. Meus dois tenentes são excelentes poetas. Rowan, agrade ao capitão com o poema que relata as façanhas de sir Michael Seymour, quer dizer, o primeiro deles, mas comece pela metade para que não demore muito.
- Bem, senhor, este é o combate com o Thetis, sabe? - disse Rowan, olhando sorridente para o senhor Alien, e depois, sem abandonar o tom coloquial, continuou:
Dou testemunho de que não se viu há
anos uma luta tão feroz.
Às sete da noite a batalha começou,
e passaram muitas horas até que terminou.
Houve muitos feridos e muitos mortos
também, e o sangue cobriu o convés
e pelos embornais saiu.
Por três horas e vinte minutos sustentamos o horrível combate,
e com trincas amarramos
seu barco ao nosso para que não pudessem fugir.
Muitas vezes tentaram a abordagem, mas
com rapidez lhes fizemos retroceder,
e ainda que fossem muitos,
no final lhes pudemos vencer.
Então arriaram sua bandeira, porque lutar
já não podiam, e os marinheiros britânicos,
contemplando o admirável espetáculo,
deram três vivas.
Tomamos posse do barco sem tardar,
e a Plymouth o mandamos, companheiros,
sem esperar mais.
Tinha grande quantidade de canhões
e munições também,
e mil tonéis de farinha que foram para os
marinheiros um valioso butim.
O barco vinha da Martinica, essa é a verdade
e a tenho que dizer,
mas o encontramos no meio da noite
e à sua carreira pusemos um fim.
Mowett havia chegado quando o jovem recitava os últimos versos, e Jack, notando sua decepção má dissimulada, olhou para o senhor Alien e disse:
- Os poemas de meu primeiro oficial também são excelentes, senhor, mas talvez seu estilo não lhe agrade, porque é moderno.
- Oh, não, senhor! - exclamou Alien com a cara vermelha e com gesto risonho. - Ah, ah, ah! Gosto muito!
- Então queria que recitasse o poema do delfim moribundo, senhor Mowett - disse Jack.
- Bem, se insiste, senhor - disse Mowett com satisfação e, depois de explicar que o poema narrava a história de alguns pescadores no mar Egeu, em tom grave, recitou:
Agora os marinheiros, para o barco aliviar,
diminuem as gáveas com um rizes.
Cada uma das altas vergas, com os cabos frouxos,
começa a cambalear,
e rangem os aparelhos e chiam suas rodas.
Pelas alturas cabos descem com rapidez as gáveas,
e logo, diminuidas, voltam a ocupar seu lugar.
Agora, perto da alta popa, uma manada de
delfins vem saltar.
De suas polidas escamas saíram luminosos raios
até que todo o oceano parecia arder.
de repente os marinheiros começam a caça mortal,
e compridos arpões e redes com isca começam a jogar.
Um dá voltas e mais voltas assustado
e, oh, desgraçado!, ao tridente se aproxima pouco
a pouco.
Stephen deixou de prestar atenção e pensou em Laura Fielding e em sua própia castidade, sua inoportuna, ilógica e inútil castidade, próxima ao puritanismo, e voltou ao presente ao ouvir os aplausos dedicados a Mowett quando terminou de recitar. Então o senhor Alien falou, e seu vozeirão, o característico vozeirão dos marinheiros, agora sem a débil oposição de algumas garrafas, distinguiu-se entre o ruído geral. Disse que o Dromedary não podia corresponder-lhes com o mesmo, porque não tinha a bordo cavalheiros de tanto talento, mas sim pelo menos com uma canção, que ele cantaria suprindo com boa vontade a possível falta de harmonia.
- Damas da Espanha, William - disse o seu primeiro oficial.
Deu três golpes na mesa e ambos começaram a cantar:
Adeus, adieu, bonitas damas espanholas,
adeus, adieu, damas da Espanha.
Recebemos ordens de regressar
à nossa querida Inglaterra
e talvez não voltaremos a vê-las nunca mais.
Quase todos os marinheiros sabiam a canção, e cantaram com eles o coro:
Gritaremos e riremos como autênticos
marinheiros britânicos,
e por todos os mares navegaremos
até chegar à entrada do canal de nossa
querida Inglaterra,
onde estão Ushant e Scilly, separadas por
trinta e cinco léguas.
Então o capitão e seu primeiro oficial continuaram:
Orçamos quando o vento soprou do sudoeste,
companheiros,
orçamos para aproximar-nos imediatamente da entrada,
e se inchou a gávea maior, companheiros, e
avançamos com rapidez,
e logo começamos a navegar pelo Canal.
Abaixo, no camarote de guardas-marinhas, os cadetes que haviam sido excluídos começaram a seguinte estrofe antes que os marinheiros que estavam na sala dos oficiais e, com voz forte, cantaram:
O primeiro cabo que avistamos foi Dodman,
e depois o Rame, perto de Plymouth,
o Start e o Portland e a ilha de Wight…
Mas a melhor recordação que Stephen teve daquela refeição foi a cara risonha de Hairabedian e seu vivo olhar e sua voz de contralto, com a qual, em meio do ruído estrondoso, dizia que ele, como os autênticos marinheiros britânicos, navegaria por todos os mares.
CAPÍTULO 5
O Dromedary navegava contra o vento, e sua quilha estava tão próxima da direção em que soprava que na coberta havia apenas ar para respirar e não se ouvia nenhum burburinho na exárcia. O silêncio era quase absoluto, pois só se ouvia o rangido das vergas e dos mastros quando o barco cabeceava suavemente entre as ondas e o rumor da água ao passar por seus costados. Havia silêncio no Dromedary apesar do castelo de popa estar abarrotado de marinheiros, pois estava sendo celebrado um ofício religioso.
Os tripulantes do transporte estavam acostumados a isto, porque seu barco costumava levar soldados de um lado para outro, e os soldados iam acompanhados de pastores com mais freqüência que os marinheiros. O carpinteiro havia convertido o cabrestante, que se encontrava justo detrás do pau maior, em uma mesa aceitável, e o veleiro havia transformado um retalho de lona de número oito em uma sobrepeliz que orgulharia a um bispo. O senhor Martin a havia tirado ao se preparar para pronunciar o sermão, e agora, em meio do respeitoso silêncio, olhava uma folha de papel com suas notas. Jack, sentado em uma cadeira com braços, percebeu de que ia ler algo escrito por ele mesmo em vez dos escritos do deão Donne ou do arcebispo Tillotson, como tinha por costume, e isso lhe causou ansiedade.
- Este fragmento o retirei do Eclesiastes. É o versículo oito do capítulo doze: "Vaidade das vaidades, disse o pregador, e tudo vaidade" - disse Martin, e fez uma breve pausa.
Os marinheiros o olhavam expectantes. O vento era favorável e a velocidade média do barco fora de cinco ou seis nós desde que saíra de Malta, e às vezes chegara a oito ou nove, e Jack, pela estimativa que fizera e que quase coincidia com a de Alien, achava que avistariam terra nessa manhã. Sua força de vontade e o inexplicável encolhimento dos músculos do estômago haviam contribuído para que deixasse de tentar que o barco navegasse mais rápido, e agora, quando se dispunha a escutar ao senhor Martin, percebeu de que no fundo de sua mente ferviam idéias que lhe provocavam entusiasmo, como ocorria em sua juventude. Seus homens também se sentiam alegres, pois estavam tão bem vestidos como os tripulantes do Dromedary, sabiam que faltava uma hora mais ou menos para que lhes servissem a carne de porco e o pudim de passas dos domingos, e, além disso, o grogue, e pensavam que poderiam conseguir um valioso butim no mar Vermelho.
- Quando subi a bordo do Worcester, para começar a exercer meu ministério na Armada - continuou o senhor Martin, - a primeira coisa que ouvi foi: "Garis!".
Os fiéis sorriram e assentiram com a cabeça, pensando que nada era mais normal que isso em um barco de guerra respeitável, sobretudo se o primeiro oficial fose o senhor Pullings.
- Já na manhã seguinte me despertou o ruído que faziam os tripulantes ao limpar a coberta com a pedra arenito e os esfregões, e pela tarde vi que outros pintavam um grande pedaço de um lado.
Seguiu falando deste tipo de coisas durante um tempo, e os marinheiros o olhavam com satisfação quando fazia uma descrição técnica exata e também quando errava em algum detalhe, e o olharam com mais satisfação mesmo quando lhes contou que havia visitado sua fragata.
- … a "Alegre Surprise", como a chamam na Armada. Todos me haviam explicado que era a fragata mais bonita do Mediterrâneo e também a mais veloz, apesar de ser pequena.
Como Stephen Maturin era um papista, não participava desse tipo de ofício religioso; contudo, havia ficado tanto tempo no cesto da gávea do mezena, olhando para o céu pelo telescópio do capitão Aubrey para ver se aparecia alguma andorinha do mar Caspio, que o ofício religioso começara quando ainda estava ali, por isso pôde ouvir tudo o que diziam e cantavam nele. Enquanto os tripulantes da Surprise e os do Dromedary cantavam os hinos e os salmos, nos quais havia mais veemência que musicalidade devido à rivalidade que havia entre eles, Stephen deixou de prestar atenção e voltou a pensar em Diana e na carta anônima. Pensou em sua peculiar fidelidade e no rancor que guardava por uma leve ofensa, e lhe pareceu que podia comparar-se com um falcão que vira quando era menino na casa de seu avô, na Espanha, um falcão comum que haviam caçado no bosque e haviam domesticado. Tinha uma audácia e uma coragem extraordinários, era inimigo mortal das garças, dos patos e inclusive dos gansos, e ainda que fosse afetuoso com quem lhe era simpático, tornava-se hostil e inclusive perigoso se lhes ofendessem. Uma vez o menino Stephen dera de comer a um açor na frente do falcão, e desde então o falcão lhe olhava fixamente, com seus grandes olhos negros muito abertos, e não havia voltado a se aproximar dele. "Nunca ofenderei a Diana", pensou. Nesse momento os fiéis disseram "Amém!", e pouco depois o senhor Martin começou a pronunciar seu sermão. Stephen, que desconhecia o modo como os sacerdotes anglicanos pregavam do pulpito, escutou com atenção. "Que passa?", perguntou-se ao ouvir ao pastor falar tanto da limpeza e da manutenção de um barco de guerra.
- E o que há no final de tanta limpeza e tanta pintura? - perguntou o senhor Martin. - O desmache, isso é o que há ao final. A Armada vende o barco, e talvez o barco seja usado como mercante durante alguns anos, mas ao final, a menos que tenha afundado ou queimado antes, chega ao desmache, convertido em um simples casco. Inclusive o barco mais bonito, inclusive a "Alegre Surprise", terminará por converter-se em lenha e sucata.
Stephen olhou para os oficiais da Surprise, para o contador, para o condestável e para o carpinteiro. Todos pertenciam à sua tripulação já fazia muitos anos e estiveram a bordo mais tempo que muitos capitães, tenentes e cirurgiões. O carpinteiro, um homem aprazível por natureza e, além disso, por sua profissão, estava perplexo, enquanto que o senhor Hollar e o senhor Borrell tinham o cenho e os lábios franzidos e olhavam para o pastor com uma mistura de desconfiança e raiva. Stephen não podia ver a cara de Jack Aubrey desde o cesto da gávea do mezena, mas via suas costas, e pela forma como estava erguida, supôs que sua expressão era mal-humorada. Além disso, muitos dos tripulantes mais antigos distavam muito de estar comprazidos.
Como se tivesse notado a antipatia que despertara naqueles que lhe rodeavam, o senhor Martin continuou o sermão falando rápido. Convidou aos que lhe escutavam a pensar na viagem que o homem fazia através da vida, e em que durante essa viagem cuidava de seu corpo, lavando-se, vistiéndose e alimentando-se, e cuidava de sua saúde, às vezes em extremo, com exercício, passeios a cavalo, abstinência, banhos de mar, banhos frios, gibões de flanela, sangrias, suores, dietas e remédios, mas que tudo isso não servia de nada, porque ao final seria derrotado inevitavelmente, ao final chegaria à decrepitude e talvez inclusive à imbecilidade. Acrescentou que se a morte não o derrotasse quando era jovem, poderiam provocar sua derrota a velhice e a falta de saúde, de amigos e de comodidades em um momento em que a mente e o corpo eram menos fortes para suportá-los, ou talvez a insuportável separação do marido e da mulher, ou muitas outras coisas. E terminou dizendo que ao final da vida neste mundo não há surpresas, e muito menos surpresas agradáveis, mas duas coisas certas: a derrota e a morte.
- Coberta! - gritou o serviola desde a verga joanete de proa. - Terra pela amura de estibordo!
O grito mudou por completo o ambiente e interrompeu o sermão do senhor Martin. Depois o pastor fez o quanto pôde para esclarecer que apesar da vida do homem na Terra poder comparar-se com a de um barco, o homem tinha uma parte imortal e o barco, em troca, não, e que a limpeza e a manutenção dessa parte imortal lhe permitiria encontrar-se ao final com uma agradável surpresa, mas que a negligência, tanto por falta de reflexão como por falta de continência, o levaria à morte eterna. Contudo, muitos dos fiéis haviam deixado de sentir simpatia por ele e muitos mais haviam deixado de prestar-lhe atenção, e, além disso, ele não era um bom orador e sua segurança e seu poder de convicção haviam diminuído pelo fato de ter sido desprezado, assim que se desanimou e voltou a pôr a sobrepeliz e terminou o ofício religioso da forma tradicional.
Alguns momentos depois do último amém, o senhor Alien subiu ao cesto da gávea do maior seguido de Jack.
- Aí está, senhor - disse em tom triunfal, dando o telescópio para Jack. - na colina da direita fica a fortaleza de Tina, e na da esquerda, a velha cidade de Pelusio. A passada foi muito rápida, ainda que eu não deveria dizê-lo.
- A mais rápida que vi em minha vida - disse Jack. - Eu lhe felicito, senhor.
Ficou observando a distante costa, uma costa lisa e baixa, durante um tempo e perguntou:
- Vê uma espécie de nuvem no noroeste da fortaleza?
- Provavelmente são as aves aquáticas que vivem na boca do Nilo - respondeu Alien. - Essa parte não é mais que um imenso lamaçal agora, e as aves se criam ali a centenas. Há grous, corvos marinhos e outras aves parecidas. Passam a noite guaguejando, e se algo passa perto dali quando o vento sopra do sudoeste, pode ouvi-las e, além disso, ver que a coberta se recobre de várias polegadas de excrementos.
- O doutor se encantará em saber disto - disse Jack. - Ele gosta muito das aves higiênicas.
Pouco depois, enquanto bebia uma taça de vinho Madeira na cabine, disse:
- Tenho uma surpresa para você, Stephen. O senhor Alien me disse que há inumeráveis aves aquáticas na boca do Nilo.
- Eu sei disso, meu amigo - disse Stephen. - Este extremo do delta é conhecido em todo o mundo cristão como a morada do franga de água de plumagem púrpura e de outras mil maravilhas da criação. E também sei perfeitamente que me obrigará a afastar-me daqui imediatamente, sem sentir remorsos, como já fez tantas vezes antes. Na verdade, eu me pergunto como é possível que haja cometido esta crueldade, que me tenha falado desse lugar.
- Não sem remorsos - disse Jack, voltando a encher a taça de Stephen. - O que ocorre é que não há tempo a perder, já sabe. Até agora tivemos muita sorte, porque o vento foi favorável em todo momento e a viagem foi mais rápida do que qualquer um poderia imaginar, e há muitas probabilidades de que cheguemos a Mubara muito antes da lua cheia, assim que seria uma lástima estragar tudo para ver a franga de água de plumagem púrpura. Contudo, se tivermos êxito, repito, Stephen, se tivermos êxito - disse Jack, tocando a perna da mesa, - prometo que na volta Martin e você poderão encher o estômago de frangas de água vermelhas, brancas e azuis, e de águias de duas cabeças no mar Vermelho e aqui.
Então fez uma pausa, ficou assobiando muito baixo alguns momentos e, por fim, continuou:
- Diga-me, Stephen, o que é uma bolsa?
- É um saquinho em que as pessoas guardam o dinheiro. Vi alguns e inclusive tive um em meus tempos.
- O que eu quero saber é o que os turcos chamam de uma bolsa.
- A quinhentas piastras.
- Meu Deus! - exclamou Jack.
Não era um homem cobiçoso nem avaro, mas desde sua juventude, muito antes de que se enamorasse das matemáticas, podia calcular com rapidez, como a maioria dos homens do mar, o butim que lhe corresponderia uma presa. Agora sua mente, acostumada há muito tempo a fazer cálculos astronômicos e náuticos, calculou em poucos segundos a parte de um butim de cinco mil bolsas que correspondia a um capitão e seu equivalente em libras esterlinas, uma impressionante soma que não só lhe permitiria resolver os complicados problemas que tinha na Inglaterra, mas também voltar a ter uma fortuna, pois havia arriscado a que fizera com sua habilidade como marinheiro, sua combatividade e sua boa sorte, e, desgraçadamente, perdera grande parte dela porque havia confiado muito nos homens do interior, a quem considerava mais honestos do que na realidade eram, e assinara documentos legais sem lê-los previamente porque lhe haviam assegurado que eram simples formalidades.
- Bem, essa é uma notícia muito boa, muito boa - disse, enchendo as taças outra vez. - Não falara deste assunto com ninguém até agora, porque não era algo certo mas apenas uma hipótese. E ainda é, sem dúvida. Mas, diga-me, Stephen, acha que temos possibilidades de ter êxito?
- Com respeito a este assunto, minha opinião tem muito pouco valor - disse Stephen, - mas acho que, em geral, quando se fala tanto de uma expedição como se falou desta, não há probabilidade de pegar o inimigo de surpresa. Era um tema de conversa freqüente em Malta, e não há nenhum homem a bordo que não saiba aonde vamos. Além disso, há que ter em conta esses elementos completamente novos, o acordo com os franceses e o envio da galera para pegar os engenheiros franceses, os canhões e o dinheiro. Naturalmente, não sei de que fonte procede a informação, e tampouco se é verdadeira, mas o senhor Pocock está convencido de que é verdade, e o senhor Pocock não é nenhum tonto.
- Me alegro muito de que penses assim - disse Jack. - Essa é exatamente minha opinião - acrescentou, sorrindo porque em sua mente via claramente a galera de Mubara navegando com rumo norte e bastante afundada na água por causa de sua pesada carga. - Ainda há surpresas agradáveis neste mundo, diga o que diga o senhor Martin. Tive dúzias delas. Você ouviu seu sermão, né?
- Estava no cesto da gávea do mezena.
- Queria que não houvesse falado assim da fragata.
- O fez para ser amável contigo e mostrar seu agradecimento.
- Oh, sim! Não ache que sou ingrato. Sei que o fez para ser amável comigo, e lhe estou agradecido. Mas os marinheiros estão mal-humorados, e Mowett, furioso. Mowett diz que nunca poderá conseguir que voltem a esmerar-se em limpar a coberta nem em pintar o barco, porque no sermão se dizia que ambas as coisas eram vaidades e que por sua causa o barco ia ao desmache.
- Se não o tivessem interrompido, não tenho dúvida de que teria se explicado melhor e faria compreender o sentido figurado de suas palavras inclusive para a pessoa menos inteligente. Porém, mesmo em um caso assim, é um erro usar tropos e símiles nesta época tão sem poesia, a menos que um seja outro Bossuet.
- Não há tanta falta de poesia, meu amigo- disse Jack. - Esta manhã mesmo, logo depois do ofício religioso, Rowan criou o verso mais bonito que já ouvi em minha vida. Ele estava examinando os canhões de seis libras com o segundo oficial e disse: "Oh, máquinas mortais cujas toscas gargantas / os terríveis gritos do imortal Júpiter imitam…".
- Excelente, excelente! Duvido que Shakespeare tivesse feito um melhor - disse Stephen muito sério, consentindo com a cabeça.
Há muito tempo se dera conta de que os dois jovens tinham uma tendência muito má, uma tendência a cometer plágios, originada pelo fato de que cada um pensava que o outro havia lido muito poucos livros além de Elements of Navigation.
- O almoço está servido - anunciou Killick, aparecendo na porta e deixando entrar um odor que lhes era familiar, o desagradável odor da couve fervida.
- Agora que o penso - disse Jack e esvaziou a taça, - acho que está equivocado com relação aos tropos e os símiles. Eu entendi a alusão imediatamente e disse a Alien: "Acho que se refere ao trovão", e Alien me respondeu: "Sim, percebi imediatamente".
Então sorriu, pensando na possibilidade de fazer um jogo de palavras com os termos "canhão" e "trovão", mas imediatamente lhe ocorreu uma frase melhor, e disse:
- Acho que Rowan é outro Bossuet.
Imediatamente seu riso franco e brincalhão encheu a cabine e a popa do Dromedary, seu eco chegou até a proa, e sua cara ficou vermelho escarlata. Killick e Stephen, sem poder evitar rir também, ficaram olhando-o até que perdeu o fôlego. Então Jack, ofegando, secou os olhos, e se levantou, murmurando ainda:
- Outro Bossuet! Meu Deus!
Durante o almoço o odor da couve e do cordeiro fervidos foi substituído pelo do lodo, pois o transporte estava se aproximando da costa e acabava de passar a invisível fronteira da zona onde o vento do oeste não vinha do alto mar mas do delta do Nilo e das marismas que bordejavam Pelusio. O senhor Martin havia estado silencioso até agora, apesar de que lhe haviam convidado a fazer um brinde o capitão Aubrey, o senhor Adams, o senhor Rowan, o doutor Maturin e inclusive o melancólico senhor Gill, que quase nunca bebia; contudo, nesse momento pôs uma expressão satisfeita. Então lançou um significativa olhada para Stephen e assim que pôde se levantou da mesa.
Stephen tinha que preparar algumas doses de medicamentos para os enfermos que teriam que ficar ali, mas quando terminou e entregou os xaropes e os granulados ao segundo oficial do Dromedary, um escocês de meia idade muito reservado, ele também foi correndo para a coberta. A costa estava muito mais perto do que esperava. Era uma costa lisa com uma extensa praia de areia de cor pardoa avermelhada que fazia o azul do mar parecer mais intenso ainda, detrás da praia havia dunas, e detrás das dunas uma colina sobre a qual se erguia uma fortaleza flanqueada por uma espécie de povoado. A umas duas milhas à esquerda havia outra colina, e, através do ar que vibrava pelo calor, viam-se pedaços de pedra espalhados que pareciam ruínas. Havia muito poucas palmas e estavam isoladas. O resto era uma infinita quantidade de areia, a areia branca do deserto de Sin.
O senhor Alien havia mandado arriar todas as velas exceto o velacho, e o transporte, com a âncora já preparada para ser jogada na água, aproximava-se da costa a uma velocidade suficiente apenas para manobrar, enquanto um sondador dizia qual era a profundidade do mar constantemente: "Marca vinte! Marca dezoito! Marca dezessete… !". Quase todos os que iam a bordo do transporte estavam na coberta olhando para a costa com curiosidade e, como era usual em ocasiões como essa, em silêncio. Por isso Stephen se assombrou ao ouvir um riso perto do costado do barco, e se assombrou mais ainda quando chegou do corrimão e viu Hairabedian dando pulos na água. Sabia que o intérprete armênio costumava banhar-se no Bósforo e o havia ouvido se lamentar de que o barco nunca navegava devagar o bastante para que ele pudesse dar um mergulho, mas havia suposto que se se jogasse na água era para dar umas pocas braçadas convulsivas, como ele fazia, e não mover-se entre as ondas com a soltura de um anfibío. Podia nadar com suficiente rapidez para manter-se junto ao transporte, e às vezes nadava com a metade de seu gorducho corpo fora da água e outras mergulhava e passava por debaixo do barco nadando e saía à superfície perto do costado oposto, lançando jorros de água como um tritão. Mas seus gritos e o borbulhar da água molestavam ao senhor Alien, porque nem sempre podia ouvir o sondador, e Jack, ao perceber isto, inclinou-se sobre a borda e gritou:
- Senhor Hairabedian, suba a bordo imediatamente, por favor!
O senhor Hairabedian subiu e ficou ali de pé alguns momentos. Tinha postos alguns calções de percal negros atados à cintura e os joelhos com fitas brancas que lhe davam um aspecto ridículo, e a água jorrava de seu corpo pequeno, largo como um barril e lanoso, e das mechas do cabelo preto que rodeavam sua calva. Como havia notado os olhares de censura, seu amplo sorriso de rã havia desaparecido e sua expressão alegre fora substituída por uma resignada. Mas seu mal-estar não durou muito. O senhor Alien deu a ordem de jogar a âncora, e imediatamente a âncora caiu na água e a amarra se desenrolou. Então o barco virou a proa contra o vento e o condestável fez a primeira das onze salvas que devia disparar, já que, conforme um acordo existente há tempos, cumprimentariam e seriam recebidos com esse número de salvas.
Mas parecia que as salvas surpreenderam aos turcos ou não os haviam tirado de sua sonolência, pois não responderam. Durante a comprida e silenciosa espera, Jack sentiu como sua indignação aumentava por momentos. Era capaz de suportar que o tratassem com descortesia e com desprezo, mas lhe parecia intolerável inclusive a mais leve ofensa à Armada real, e esta ofensa não era leve, pois responder ao cumprimento era um assunto muito importante. Ao olhar a fortaleza pelo telescópio, viu que o que pensava que era um povoado era na realidade um grupo de tendas entre as quais havia asnos e camelos e alguns homens com roupa de paisano sentados na sombra, e todo o conjunto lhe pareceu uma feira na qual todos estavam sonolentos. E não notou movimento no interior da fortaleza.
- Senhor Hairabedian, vá se vestir imediatamente. Senhor Mowett, desça a terra e diga ao senhor Hairabedian que lhes pergunte o que ocorre e o que pensam. Bonden, prepara minha falua rápido.
Hairabedian desceu correndo e reapareceu alguns minutos mais tarde com uma túnica branca e um casquete bordado. Então dois robustos marinheiros, tão desgostosos como seu capitão, desceram-no até a falua. A embarcação avançou pela costa com tanta rapidez que, pelo impulso que estava, parou sobre a praia. Mas antes de que Mowett e Hairabedian chegassem às dunas, ouviram-se débeis canhonaços na fortaleza e um grupo de soldados desceram pela vereda em direção a eles.
Como Jack não queria parecer preocupado, deu o telescópio para Calamy, e começou a passear pelo lado de estibordo do castelo de popa com as mãos atrás das costas. Mas o doutor Maturin não tinha essa preocupação, não estava ali para preservar a dignidade do rei Jorge nem de ninguém, assim que pegou o telescópio do cadete e o dirigiu para aquele grupo. Os soldados haviam chegado aonde estava a falua, e Hairabedian e três ou quatro deles discutiam à maneira oriental, agitando os braços, mas antes que Stephen pudesse descobrir o motivo da discussão (se era uma discussão), Martin lhe apontou uma ave que voava no alto do céu limpo, com suas asas brancas como a neve totalmente abertas, que parecia ser um colhereiro, e ambos ficaram olhando-o até que a falua regressou, nela vinha um funcionário egípcio pálido, sério e preocupado.
Jack conduziu os homens abaixo e ordenou que trouxessem café.
- Com sua permissão, senhor - disse Hairabedian em voz baixa, - o efêndi não pode comer nem beber nada até o por do sol. Estamos no ramadã.
- Nesse caso, não vamos atormentá-lo nem torturá-lo bebendo diante dele - disse Jack. - Killick! Killick! Não traga o café! Diga-me, senhor Hairabedian, o que ocorreu na costa? Este cavalheiro veio para convidar-me a descer a terra ou tenho que explodir a fortaleza diante de seus narizes?
Hairabedian o olhou alarmado, mas percebeu que o capitão Aubrey falava de brincadeira e, sorrindo, disse que o que havia ocorrido era que o Dromedary chegara muito cedo, que não o esperavam até depois do ramadã, e ainda que os habitantes do povoado já haviam reunido os animais de carga, que era precisamente o que fazia com que aquele lugar parecesse uma feira, os oficiais do Exército não estavam preparados. Acrescentou que durante os últimos dias do ramadã, muitos muçulmanos se retiravam para um lugar isolado para orar, e que o bei Murad estava na mesquita de Katia, a uma hora ou duas de caminho, e o segundo ao comando da guarnição acompanhara a um sacerdote que se retirara a um lugar costeiro e levara a chave do arsenal. Explicou-lhe que esse foi o motivo pelo qual demoraram para disparar as salvas quando o Dromedary chegou e que o único oficial que restava ali, um odabashi, viu-se obrigado a usar a pólvora que continham os frascos que os soldados levavam.
- Este cavalheiro é o odabashi?
- Oh, não, senhor! É um homem instruído, um efêndi, e escreve cartas poéticas em árabe e fala grego, e o odabashi, em troca, não é mais que um tosco militar, um soldado turco que tem uma patente equivalente à de contramestre. O odabashi não se atreve a abandonar seu posto e subir a bordo do transporte sem uma ordem, porque Murad é um homem irrascível e o esfolaria e depois o mandaria ao quartel general. Contudo, o honorável efêndi - disse, olhando para o egípcio e fazendo uma inclinação de cabeça, - é um funcionário, e sua situação é completamente diferente. Ele veio para apresentar-lhe seus respeitos e para dizer que tudo o que os habitantes do povoado tinham que preparar já está ponto e que com muito gosto lhe proporcionará qualquer coisa que necessite. Também quer comunicar-lhe que depois de amanhã trarão um grande número de lanchas de Menzala para levar seus homens e seus apetrechos para a costa.
- Diga ao efêndi que agradeço a sua visita e seus esforços, mas que não deve se preocupar com as lanchas, porque nós temos muitas. Além disso, depois de amanhã penso estar já a meio caminho de Suez. Por favor, pergunte-lhe se pode nos dizer como é o caminho de Suez.
- Diz que já viajou por esse caminho várias vezes, senhor. Diz que ao sul de Tel Farama, aquele monte que fica ali, e perto do oásis chamado Bir ed Dueidar, passa a rota das caravanas que vão para a Síria, e que o tramo que fica depois é o que seguem os peregrinos para ir ao mar Vermelho para pegar o barco que vai para Jeddah. Também diz que há vários oásis mais e que se os poços estiverem secos, pode ir para os lagos Balah e Timsah, e que o caminho é plano em quase toda sua extensão, e firme, a menos que tenha havido tormentas de areia, pois costumam formar dunas movediças.
- Sim, isso coincide com o que me haviam dito. Alegro-me que ele tenha confirmado. Por outro lado, suponho que o odabashi já deverá ter mandado avisar a Murad que estamos aqui.
- Temo que não, senhor. Diz que não se deve molestar ao Bei durante seu retiro por nenhum motivo, e que talvez regresse à fortaleza amanhã pela noite ou na noite seguinte. Também diz que, de toda forma, é melhor esperar que o ramadã termine para fazer algo, pois não se faz nada durante o ramadã.
- Compreendo. Então diga ao efêndi que desça a terra imediatamente e que proporcione cavalos para o senhor e para mim e também um guia. Nós desceremos assim que eu der as ordens necessárias.
Depois de esperar que o egípcio, mais pálido e preocupado do que antes e visivelmente fraco por falta de alimento, terminasse de descer pelo costado, Jack reuniu seus oficiais e lhes disse que se preparassem para desembarcar em brigadas.
- Será um desembarque vi et armis (pela força das armas), cavalheiros - disse e, satisfeito com a frase e com o desejo de obter alguma resposta, repetiu: - Vi et armis.
Então escrutinou os rostos sorridentes daqueles homens que se encontravam em sua frente e notou que estavam animados, mas que não haviam compreendido. Estavam contentes de vê-lo tão alegre, mas o que realmente lhes importava nesse momento era receber instruções claras e detalhadas. O capitão Aubrey, dando um suspiro quase imperceptível, as deu. Disse que os homens deviam desembarcar com as armas e a bagagem quando ele desse o sinal, que provavelmente daria dentro de meia hora, e, marchando em filas, iriam diretamente ao acampamento que haviam preparado para eles, e ali esperariam suas instruções; e não deviam se dispersar nem deitar, pois pensava percorrer um pequeno vão do caminho essa noite. Disse que daria aos tripulantes sua ração de tabaco e rum de quatro dias, porque se tivessem que beber, era melhor que bebessem como cristãos, e ordenou que dois suboficiais fossem sentados durante toda a viagem sobre os barris para vigiá-los. Por último, disse que, apesar de que daria aos marinheiros a comida do lugar, deviam levar a ração de bolachas desse mesmo período, pois assim se evitariam as queixas dos que têm o estômago delicado. Então, elevando a voz e voltando a cabeça pela cabine contígua, porque sabia que seu dispenseiro estava escutando atrás do anteparo, disse:
- Killick! Killick! Pegue uma camisa com peitilho, minha melhor casaca, as botas hessianas e as calças azuis, tanto faz se são adequados conforme a etiqueta ou não, porque não quero estragar os calções brancos cavalgando pela Ásia. E meu melhor chapéu, com o chelengk colocado. Você me ouviu?
Killick ouvira, e como entendera que o capitão ia visitar o comandante geral do Exército turco, pela primeira vez em sua vida pegou a melhor roupa sem resmungar nem propor outra diferente. Além do mais, chegou inclusive a pegar a medalha do Nilo de Jack e o sabre de cem guinéus.
"Meu Deus, aumentou um codo{12} de estatura!", pensou Stephen quando o capitão Aubrey apareceu na coberta abotoando o cinturão do qual pendurava esse sabre.
Era verdade. A idéia de realizar uma ação importante parecia aumentar a altura e a largura de Jack e lhe fazia pôr um gesto diferente, um gesto austero e evasivo. Jack era um homem realmente corpulento, capaz de levar sem dificuldade um monte de diamantes no chapéu, e quando aumentava sua estatura moral, seu aspecto causava muita impressão inclusive em quem o conhecia bem e sabia que era um homem benévolo e amável, ainda que nem sempre um companheiro agradável.
Jack falou com o senhor Alien e pouco depois, justo quando ele e Hairabedian estavam a ponto de descer para a falua, viu Stephen e Martin. Então sua expressão rude se transformou em algo risonho.
- Doutor, vou desembarcar - disse. - Quer vir comigo? - perguntou e, ao ver que Stephen olhava para seu companheiro, acrescentou: - Podemos fazer lugar para o senhor Martin, sem nos apertamos.
- E pensar que dentro de cinco ou dez minutos caminharei pela costa de África! - exclamou Martin quando a falua zarpou. - Não esperava lograr algo tão importante.
- Sinto decepcioná-lo - disse Jack, - mas essa costa que vê é a costa da Ásia. A África fica um pouco mais à direita.
- Ásia! - exclamou Martin. - tanto melhor!
Riu com vontade, e ainda ria quando a falua encalhou na areia da costa asiática.
O sinistro Davis, que era o remador de proa, saltou para a praia e colocou a prancha para que a água não salpicasse as reluzentes botas do capitão, e teve inclusive a amabilidade de dar sua mão peluda e áspera para Stephen e para Martin quando desciam torpemente como dois marinheiros de água doce.
A pouca distância da margem do mar, a areia dava passagem a um terreno ondulante coberto de lodo ressecado e de odor penetrante, e o terreno coberto de lodo dava passagem às dunas. Quando chegaram às dunas, o vento se acalmou e o calor expelido pela terra lhes envolveu, e com o calor chegou um enxame de moscas negras, gordas e peludas que se lançaram sobre eles e começaram a caminhar por suas caras, a subir pelas mangas de suas roupas e a descer por seus pescoços.
Ao final do caminho um homem gorducho lhes recebeu com seus longos braços pendurando aos lados do corpo. Era um militar e lhes cumprimentou à maneira turca. Depois olhou fixamente para Jack e seu chelengk, e em sua cara larga e de tez amarela verdosa, talvez a cara mais feia de todo o mundo muçulmano, apareceu uma expressão de assombro.
- Este é o odabashi - disse Hairabedian.
- Já vi - disse Jack, respondendo ao cumprimento.
Mas parecia que o odabashi não tinha nada que dizer, e como ansiavam chegar ao alto da colina porque pensavam que ali havia menos calor e menos moscas, Jack prosseguiu a marcha. Contudo, apenas havia avançado cinco jardas quando o odabashi se aproximou dele e, visivelmente nervoso, inclinou muitas vezes para a frente a parte superior de seu desproporcionado corpo enquanto, com sua voz áspera, dizia algo com ansiedade e respeito.
- Ele pede que entre pela entrada principal para que possa ser recebido pela guarda e os trompetistas - disse Hairabedian. - Também lhe roga que entre e tome um lugar à sombra.
- Agradeça e diga que tenho pressa e não posso me desviar de meu caminho - disse Jack. - Malditas moscas!
Era óbvio que o desgraçado odabashi não sabia que fazer, porque tinha medo de molestar a uma pessoa com um adorno tão valioso como o do capitão Aubrey e tinha medo do bei Murad. Estava tão angustiado que dizia incoerências; contudo, entre as desculpas e as frases inacabadas, disse algo muito claro, que não ia mandar buscar o seu chefe, porque o Bei dera ordem de que não o molestassem e o principal dever de um soldado era a obediência.
- Que se vá ao diabo! - disse Jack, caminhando ainda mais rápido entre as moscas. - Diga-lhe que vá dar lições de moral em outro lugar.
Agora subiam pela colina onde se encontrava a fortaleza, caminhando pelo lodo endurecido, e quando começaram a caminhar pelas dunas, o número de moscas diminuiu, mas o calor aumentou.
- Estácom uma cor ruim - disse Stephen. - Não acha que deveria tirar essa casaca tão grossa e afrouxar a gravata? Os sujeitos corpulentos e gordos são propensos a ter apoplexia e congestão cerebral e, por isso, a morrer de repente.
- Ficarei bem quando me sentar na sela de montar e comesse a cavalgar - disse Jack, que não tinha vontade de desfazer o perfeito nó de sua gravata. - Ali está o efêndi! Deus o abençoe!
Aproximavam-se do acampamento que ficava na ladeira da colina, ao leste da fortaleza, que agora dava sombra para a ladeira, e viram ao efêndi junto a vários cavalos e moços de estábulo, a certa distância das tendas e dos animais de carga. Então o efêndi mandou um garoto ir ao seu encontro. O garoto, que era bonito, magro e ágil como um gamo, ele os cumprimentou com um sorriso triunfal, disse que seria seu guia até Katia e os guiou por entre as tendas, as cabanas feitas de ramos de tamariz e os camelos que, deitados no solo na mesma postura que os gatos, olhavam ao seu redor com arrogância.
- Camelos! - gritou Martin. - Camelos! E, sem dúvida, estes são os tabernáculos em que se escreveu a Sagrada Escritura.
Seu único olho brilhou, e, apesar das moscas e do asfixiante calor, que para os que acabavam de vir do mar era mais difícil de suportar, pôs uma expressão alegre, uma expressão que contrastava com a dos cameleiros, que, apáticos por causa do jejum, estavam deitados na sombra e pareciam moribundos. Contudo, os cavalos tinham muita energia. Eram três bonitos cavalos árabes, dois deles baios e de pequeno tamanho, e o terceiro, uma égua de quase dezesseis palmos, e os três pareciam muito contentes e atentos ao que ocorria ao seu redor. A égua, uma das criaturas mais bonitas que Jack vira, tinha um raro colorido dourado, a cabeça pequena e os olhos grandes e brilhantes. Jack gostou da égua assim que a viu e, aparentemente, causou-lhe boa impressão, porque aguçou suas pequenas orelhas e o olhou com interesse quando ele lhe perguntou como estava.
- Senhor Hairabedian, por favor, diga ao efêndi que admiro seu bom gosto - disse, passando a mão pelo pescoço da égua, - que a égua é muito bonita e que lhe estou muito agradecido. Conte-lhe os preparativos que fizemos para o desembarque dos marinheiros e diga-lhe que terão que esperar aqui até que eu regresse, que provavelmente será pouco depois do ocaso, e que espero que então os marinheiros já hajam comido, os animais já hajam bebido, as tendas estejam dobradas e as lanternas preparadas, porque assim poderemos pôr-nos em marcha sem perder nem um minuto.
Hairabedian deu a mensagem ao efêndi, que deixou de ter uma expressão preocupada e, em tom satisfeito, disse que as instruções do capitão seriam seguidas ao pé da letra.
- Muito bem - disse Jack. - Doutor Maturin, tenha a amabilidade de fazer o sinal combinado para barco com seu lenço.
Estava a ponto de montar quando o odabashi avançou e agarrou as rédeas para ajudar-lhe a subir, dizendo algo muito semelhante a "Perdoe-me, milord".
- Obrigado, odabashi - disse Jack. - Sem dúvida, o senhor é um homem honesto, mas muito tonto. Que foi? - perguntou, olhando para Stephen, que havia segurado uma rédea.
- Suponho que não terá nada contra a que nos aproximemos um pouco do delta, em camelo talvez. Assim poderemos caminhar pela África e ver parte de sua flora.
- Não tenho nada contra - disse Jack. - Pode recolher todas as flores que queira contanto que cuide de não ser devorado pelos leões e pelos crocodilos, e, sobretudo, que regresse a tempo. Quer que Hairabedian fale com o efêndi para que lhes ajude?
- Não, não. Nós nos viramos muito bem com o grego. Vá com Deus!
Jack moveu para um lado a cabeça da égua e seguiu o garoto. Começaram a descer a colina obliquamente por detrás da fortaleza, e quando chegaram abaixo viram um grupo de tendas negras entre as quais havia camelos e cavalos atados com cabrestos: era um acampamento beduíno. Então a égua levantou a cabeça e deu um forte relincho. Um homem com uma barba longa e grizalha e uma camisa de dormir suja saiu de uma das tendas e cumprimentou com a mão, e a égua voltou a relinchar.
- O garoto diz que esse é Mohamed ibn Rashid, o homem maior e mais gordo de Beni Khoda, o mais pesado do deserto do norte. Também diz que a égua é sua e que todos pensaram que seria adequada para o senhor - disse Hairabedian.
- Bem, não há nada como a sinceridade - continuou, orientando a cabeça da égua, que tentava aproximar-se das tendas. - Só tardaremos uma hora mais ou menos para chegar a Katia. Leve-me até ali e depois voltará para seu dono.
Não tinha dúvida de que a égua lhe entendera perfeitamente bem. A viu mover suas pequenas orelhas uma ou duas vezes e incliná-las para frente, e depois dar um curioso saltinho para mudar o passo e começar a trotar. Deixaram para trás, à direita, a colina onde ficavam as ruínas de Pelusio, e agora tinham diante deles uma vasta extensão de areia dura de colorido pardo avermelhado salpicada de pequenas pedras planas. Então a égua começou a andar a galope, dando saltos exageradamente compridos, e seus movimentos eram tão ágeis que parecia que levava em cima um menino, e muito magro, em vez de um corpulento capitão de navio com seu magnífico uniforme e um monte de galões dourados. Mas isto não a impedia de galopar. O garoto fez com que seu cavalo ultrapassasse os outros, mas Jack notou que a égua não gostou porque ficou tensa. Então deixou que fizesse o que quisesse, e ela trocou o passo imediatamente, como se a impulsionassem. Poucos momentos depois já estava do outro lado da baía, correndo pela planície velozmente, tão velozmente como Jack nunca havia imaginado, e com os mesmos movimentos ágeis e perfeitos, saltando tão alto e tocando o solo a intervalos tão compridos que parecia voar. Jack sentiu o vento golpear-lhe a cara e atravessar sua grossa casaca, e seu coração se encheu de gozo. Nunca havia sentido tanto prazer cavalgando; nunca achara que era tão bom cavaleiro, e, verdadeiramente, nunca cavalgara tão bem.
Mas isso não podia durar. Freou a égua devagar, dizendo:
- Vamos, querida, este comportamento não é prudente. Temos um longo caminho que percorrer.
A égua voltou a relinchar, e Jack notou com assombro que não estava mais sufocada do que antes. Pouco depois os outros lhe alcançaram (Hairabedian fazendo um grande esforço para avançar), e Jack perguntou qual era seu nome.
- Yamina - respondeu o garoto.
"Se tivermos êxito, e se o dinheiro tentar ao homem mais gordo do deserto, a levarei comigo e a meterei em meu estábulo. As crianças poderiam aprender a montar nela, e graças a ela Sophie se reconciliaria com os cavalos", pensou Jack.
Seguiram cavalgando, agora a uma velocidade mais prudente, e Jack pensou em Murad. Pelo que lhe havia ocorrido em Jônia, sabia que amiúde havia uma grande diferença entre os objetivos do Sultão e os dos governantes turcos locais, e entre o que um ordenava e o que os outros faziam. Pensou em várias formas de tratar com ele, mas as descartou e depois pensou: "Se for um turco honesto e franco, imediatamente nos poremos de acordo, mas se for um homem tortuoso, terei que averiguar quais são suas idéias. E se não posso pôr-me de acordo com ele, terei que fazer a viagem sozinho, ainda que esse será um mau começo".
Agora que o hipotético plano havia se convertido em uma possibilidade, desejava com ânsia que tivesse êxito. Sem dúvida, um dos motivos era o tesouro que, conforme diziam, a galera levava para Mubara, mas não era o único. Já fazia algum tempo, estava descontente consigo mesmo, e ainda que por ter sido enviado para Jônia, os franceses haviam sido expulsos de Marga, sabia muito bem que isso se deveu em grande parte à sorte e ao excelente comportamento de seus aliados turcos e albaneses. Também havia afundado a Torgud, mas não em uma batalha entre forças equiparáveis, mas em uma matança, e uma matança não podia acabar com seu sentimento de insatisfação. Achava que a reputação que tinha na Armada (tendo em conta que ele mesmo era alguém que julgava os atos de Jack Aubrey de certa distância e conhecendo perfeitamente sua motivação) se devia a duas ou três vitoriosas batalhas navais que podia recordar com satisfação, apesar de que haviam sido pequenas. Mas pertenciam ao passado, haviam ocorrido há muito tempo, e agora havia vários marinheiros aos quais aqueles cuja opinião lhe importava atribuíam mais coragem. Por exemplo, o jovem Hoste havia feito grandes façanhas no Adriático, e Hoste era um capitão de navio de menos antiguidade. Parecia que participava de uma corrida, uma corrida na qual estivera em um bom lugar durante um tempo, depois de ter avançado lentamente no princípio, mas na qual não pudera seguir na frente e fora ultrapassado por alguns. Talvez isso ocorrera por falta de resolução, talvez por falta de sensatez, talvez por falta de uma especial qualidade sem nome que fazia com que alguns homens tivessem êxito e outros não, ainda que fizessem o mesmo esforço para consegui-lo. Não podia dizer com segurança qual fora seu erro. Alguns dias era capaz de afirmar com convicção que tudo fora obra da fatalidade, o reverso da boa sorte que lhe acompanhara desde que tinha vinte anos até que tinha trinta e tantos, o restabelecimento do equilíbrio; contudo, outros dias lhe parecia que seu sentimento de insatisfação era uma prova irrefutável de que cometera um erro, e que, apesar dele não saber qual era, os outros sabiam, sobretudo os que estavam no poder, o que era óbvio porque haviam designado os melhores barcos para outros homens, não para ele.
Jack levantou a cabeça. Se sentia tão bem cavalgando a esse ritmo quase perfeito que havia ficado absorto em suas meditações, e se surpreendeu ao ver muito perto dali uma pequena cidade. À esquerda da aldeia havia um grupo de palmeiras tamareiras que pareciam brotar da areia, à direita havia uma mesquita com a cúpula azul, e entre ambos se erguiam casas de paredes brancas e tetos planos. O caminho que seguiam já se unira à rota das caravanas que iam à Síria, um caminho largo e reto como um cabo esticado que se estendia para o leste, e muito mais diante deles se via uma caravana de camelos carregados que caminhavam com passo lento em direção à Palestina.
Quando entraram na cidade, passaram pelo lado de um monte de lixo que havia justo ao lado dos poços, e uma revoada de abutres que estavam em cima saíram voando.
- Que aves são essas? - perguntou Jack.
- Diz o garoto que as de plumas brancas e negras são abutres - disse Hairabedian, - e que essas grandes de colorido pardo as chamam de "filhas do lixo".
- Espero que o doutor possa vê-las - disse Jack. - Ele gosta de aves raras, sejam quais forem.
"Meu Deus! Isto parece um forno!", pensou, pois agora que cavalgavam muito devagar o ar não se movia, e o calor aumentava pela luz que reverberava nas muralhas da cidade, e o sol, ainda que já estivesse perto do horizonte ao oeste, seguia brilhando com intensidade, e seus raios lhe acertavam em cheio nas costas.
Katia era uma cidade pequena, mas tinha um elegante café. O garoto lhes guiou pelas estreitas ruas desertas até seu pátio traseiro e ali pediu a ajuda de alguns moços de estábulo em tom autoritário. Jack se alegrou de saber que os cavalos eram conhecidos ali e viu que tratavam Yamina com um cuidado que lhe teria parecido exagerado se não houvesse cavalgado nela.
Entraram em um amplo e escuro local de teto alto com uma fonte no centro. Havia um banco com almofadas encostado nas três das paredes, embaixo de janelas de rótulas e sem vidros sombreadas por frondosas árvores. No banco havia dois ou três grupos de homens sentados de cócoras fumando cachimbos de água, alguns em silêncio e outros conversando em voz muito baixa. A conversa cessou quando eles entraram, mas continuou apenas um segundo depois, no mesmo tom. O ar era muito fresco e produzia uma agradável sensação, e quando o garoto lhes conduziu a um canto afastado, Jack pensou: "Se me sento aqui sem me mover, talvez o suor pare de correr pelas costas imediatamente".
- O garoto foi avisar ao Bei que o senhor está aqui - disse Hairabedian. - Diz que é o único que pode incomodar-lhe sem correr perigo. Além disso, diz que como somos cristãos, podemos comer se quisermos.
Jack reprimiu as palavras que surgiram em sua mente e se limitou a dizer em tom indiferente que preferia esperar. Pensou que era uma descortesia comer e beber diante daqueles barbudos cavalheiros que não podiam fazê-lo, e, além disso, que havia a possibilidade de que o Bei entrasse quando ele não havia terminado ainda as pintas de sorvete que tanto desejava tomar. Ficou sentado ali, escutando a água da fonte, e sentiu frescor por todo o corpo. Enquanto a luz do dia diminuía, seguia pensando na bonita égua com satisfação, porém, ao ver o garoto regressar correndo, sentiu ansiedade. O garoto havia comido, pois estava tragando algo e sacudia migalhas da boca enquanto gritava: "Aí vem!".
Efetivamente, o Bei vinha. Era um homem baixo, com uma pequena barba e um bigode brancos, e usava um turbante e um uniforme simples, cujo único detalhe luxuoso era um iatagã com a empunhadura de jade. Foi diretamente aonde Jack estava e lhe apertou a mão à maneira européia, e Jack viu com agrado que parecia irmão de Sciahan, seu aliado anterior, um turco honesto e franco.
- O Bei lhe dá boas-vindas e diz com assombro que já está o senhor aqui - disse Hairabedian.
Jack se sentiu como em sua pátria ao ouvir essa exclamação típica dos soldados e respondeu que ali estava. Agradeceu pelas boas-vindas e disse que se alegrava de ver-lhe.
- O Bei pergunta se quer beber algo.
- Diga ao Bei que eu gostaria de tomar um sorvete quando ele estime conveniente tomar algo.
- O Bei diz que esteve em Acre com lorde Smith quando Bonaparte foi derrotado e que reconheceu seu uniforme imediatamente. Quer que venha ao pavilhão para que fume com ele.
Reuniram-se sentados ao redor de uma cuba de água, em um pequeno jardim privado, e falaram com naturalidade e claramente, como Jack desejava. Murad rogou ao capitão Aubrey que esperasse que terminasse o ramadã e houvesse lua nova, pois para os soldados turcos que levaria de escolta, que observavam rigoroso jejum, seria difícil percorrer grandes distâncias em jejum e com o terrível calor do dia, e, além disso, faltava pouco para que chegasse a festa de Sheker Baram, que se celebrava no final do ramadã, e ambos poderiam comer juntos durante todo o dia. Mas quando Jack disse com toda franqueza que tinha pensado em fazer a viagem de noite porque não devia perder nem um minuto, já que um atraso poderia ter uma influência nefasta na expedição, o Bei sorriu e disse:
- Os senhores os jovens sempre são impacientes para entrar em ação. Bem, regressarei esta tarde com o senhor e darei ordem de que lhe proporcionem uma escolta. Meu odabashi, que é um homem estúpido, mas tão valente como um urso, e que obedece e sabe se fazer obedecer por seus homens lhe acompanhará. Além disso, acredito que tem noções de baixo alemão. Escolherá três ou quatro homens que não tenham medo dos espíritos nem dos demônios da noite, se é que pode achá-los. O deserto fica cheio desses espíritos, sabe? Mas sou um homem velho e jejuei o dia todo, assim que necessito comer algo antes de empreender a viagem.
Jack disse que esperaria com muito gosto e rogou a Murad que entretanto lhe contasse como havia ocorrido o sítio de Acre.
- Conheço a sir Sidney Smith e tenho alguns amigos no Tigre e no Theseus - disse, - mas não hei ouvi nunca a história contada por um turco.
Agora a ouviu. E Murad estava fazendo um vivido relato do último e desesperado assalto, quando a bandeira francesa ondeava ainda em uma das torres exteriores, os homens lutavam furiosamente na brecha e o paxá Jezzar estava sentado em sua cadeira detrás dele e repartia munições e recompensava aos que lhe traziam cabeças de soldados franceses, quando se ouviu por todo o café e toda a cidade um ruído confuso que indicava que o longo dia de jejum se havia acabado oficialmente e que os homens podiam comer e beber outra vez.
Já havia escurecido quando saíram do pátio e avançaram pela porta da cidade seguidos pelo som amortecido dos cascos dos cavalos ao afundar-se na areia dos becos, e as lanternas que lhes acompanhavam faziam que a escuridão parecer mais profunda. Mas quando chegaram à rota das caravanas, depois que seus olhos se acostumaram à escuridão, notaram que a tênue luz das estrelas banhava o deserto. Vênus se havia posto, Marte estava tão baixo que parecia muito pequeno e sua luz apenas se propagava, e não se viam outros planetas no céu. Contudo, as estrelas, como lâmpadas penduradas no céu limpo, brilhavam com bastante intensidade, e Jack podia distinguir as silhuetas de tudo o que lhe rodeava e inclusive ver a barba de Murad mover-se quando falava.
Murad ainda falava do sítio de Acre, e o que contava era muito interessante, mas Jack teria gostado que seguisse seu relato mais tarde. Um dos motivos era que o Bei avançava mais devagar quando falava; outro era que Hairabedian tinha que ir entre eles para traduzir o que dizia, e como era nervoso e não estava acostumado a cavalgar na escuridão, avançava ainda mais devagar, puxando a embocadura do cavalo todo o tempo; outro era que Yamina estava ansiosa de regressar para sua casa e ele tinha que obrigá-la a diminuir a marcha constantemente e ela começara a sentir antipatia por ele; e outro era que estava faminto. O Bei, conforme o costume espartano dos soldados turcos, não comera mais que um pouco de qualhada, e lhe havia convidado a comê-la também, mas acrescentando que seria uma lástima que se lhe tirasse o apetite porque na fortaleza haviam assado um cordeiro e queria que o compartisse com ele, assim que o capitão Aubrey se havia limitado a tomar um sorvete, e agora o lamentava profundamente.
Quando se dirigiam a Katia, o deserto lhe parecera estéril, e agora, ao contrário, via que era habitado, ainda que não podia dizer que estivesse cheio de vida. Três ou quatro vezes alguns animais pequenos haviam cruzado o caminho tão perto de Yamina que a égua saltara e as havia esquivado descrevendo um semicírculo, e uma vez algo parecido a uma serpente de duas jardas de comprimento a havia feito enpinar, e ele estivera a ponto de cair da sela. Depois, quando podia se ver à direita a colina onde se encontrava Pelusio recortando-se sobre o céu estrelado, uma manada de chacais que estava perto do caminho começaram a uivar, uivos tão fortes que afogaram a voz de Murad, e, depois, quando fizeram uma pausa momentânea, ouviu-se algo mais desagradável ainda, o grito de uma hiena, que terminou em um riso estentórea que estremeceu o ar quente e imóvel.
- São esses os espíritos ou os demônios noturnos a que se referia? - perguntou Jack.
- Não, não. Esses são uma manada de chacais e uma hiena - respondeu o Bei. - Percebi há pouco de que havia um asno morto ali e acho que estão brigando por ele. Para ver os demônios há que subir a essa colina. Na torre em ruínas dorme um gênio do tamanho deste garoto, que tem as orelhas empinadas e alguns horríveis olhos alaranjados. Nós o vimos mitas vezes. E em uma das velhas cisternas vive um grupo de espíritos necrófagos.
- Não sou supersticioso, mas gostaria de saber sobre os espíritos. Há por aqui perto outros demônios, ou gênios, como talvez seja preferível chamá-los?
- Demônios? - disse o Bei impaciente. - Oh, sim, sim! O deserto está cheio deles. São de vários tipos e têm várias formas. Todo mundo sabe. Mas se quer saber mais coisas sobre os demônios, deve perguntar ao nosso médico, pois é um homem sábio e conhece a todos os gênios que existem daqui até Alepo.
Deixaram Pelusio para trás e dobraram em direção à colina onde ficava Tina. Então viram as fogueiras dos beduínos e depois as do acampamento dos marinheiros, e depois a porta e as janelas iluminadas da fortaleza. Quando começaram a subir a colina (Jack segurou fortemente as rédeas de Yamina para evitar que corresse para sua casa), o ar trouxe até ali o odor de cordeiro assado.
Poucos minutos depois entravam no grande refeitório, e Jack se assombrou ao ver sentados ao redor de uma grande caldeira a todos os soldados turcos da companhia e aos oficiais mesclados com eles, conforme o costume dos turcos de tratar-se como iguais, e também ao ver sentados a Stephen e a Martin dos lados do homem que era o médico e o sábio do regimento. Todos se levantaram e fizeram uma inclinação de cabeça, e um momento depois voltaram a formar um círculo, no qual o Bei estava sentado no lugar que lhe correspondia e Jack ao seu lado. Além das palavras ceremoniosas com que deram as boas-vindas aos recém chegados enquanto se lavavam as mãos, falaram muito pouco porque os que haviam jejuado só se ocupavam de comer cordeiro. Comeram o primeiro cordeiro inteiro, junto com uma montanha de arroz com açafrão, e do segundo só restaram as costelas quando todos começaram a afastar-se da caldeira e a falar. Então apareceram grandes e bonitas cafeteiras de cobre, e depois que Jack falou com alguns oficiais, viu ao seu lado a Stephen e Martin. Perguntou-lhes se haviam passado uma tarde agradável e se haviam visto as aves e os outros animais que esperavam ver. Eles lhe agradeceram e disseram que passaram uma tarde realmente agradável, apesar de alguns contratempos, como por exemplo, que um camelo mordera ao senhor Martin e havia fugido. Disseram que a lesão não era grave, mas o senhor Martin estava muito preocupado porque, conforme diziam, a sífilis podia ser trasmitida pela mordida de um camelo, ainda que o doutor muçulmano a houvesse coberto com um ungüento extraído de um lagarto. Também lhe contaram que o outro camelo, ainda que não fosse mau, não queria se ajoelhar, e, por isso, eles não puderam montá-lo e tiveram que trazê-lo ao povoado puxando ele através do deserto, às vezes inclusive correndo para evitar chegar tarde.
- Mas, pelo menos viram algumas aves? - perguntou Jack. - Havia muitas perto de Katia.
Ambos ficaram silenciosos, mas, por fim, Martin contou que haviam chegado a um espesso juncal e haviam se entrado nele, caminhando trabalhosamente por causa do pegajoso lodo, entre o ar cheio de famintos mosquitos, e então ouviram alguns gritos e movimentos diante deles, que lhes fizeram ter esperanças de que veriam alguma ave, e seguiram avançando até chegar a um charco em que haviam encontrado uma franga d’água e duas patetas como as da Inglaterra. Acrescentou que depois viram uma ave pousada no galho de um salgueiro e que, apesar de ter a cara tão inchada pelas picadas dos mosquitos que apenas podiam abrir os olhos, puderam perceber que era um tentilhão.
- A viagem teve momentos difíceis - disse Martin, - especialmente quando regressávamos, porque caímos sobre umas arzolas, mas valeu a pena passar tantas penalidades, pois pudemos ver as marismas do Nilo.
- Além disso, tenho razões para acreditar que a coruja real vive ali - disse Stephen. - Não só hei vi seus excrementos como ouvi ao efêndi imitar perfeitamente seu canto, um grave ujú-ujú, que é capaz de assustar a mamíferos tão grandes como a gazela e a pássaros do tamanho da abetarda.
- Bem, tiveram sorte - disse Jack. - Senhor Hairabedian, acho que agora deveríamos dizer ao Bei que desejo ver a Mowett e ao funcionário egípcio, e empreender a marcha quando ele estime oportuno, se o informe que me derem for satisfatório.
O Bei disse que sabia que o capitão Aubrey estava impaciente e que não queria atrasar-lhe se sua brigada estivesse preparada para partir.
- Além disso - acrescentou, - como o odabashi vai ser o chefe da escolta, tem que apresentar seus respeitos ao oficial de categoria equivalente - disse e, torcendo a boca para um lado e com entonação inglesa, acrescentou: - o contramestre.
Então golpeou o gongo e se fez o silêncio.
- Odabashi - disse, e o odabashi se pôs de pé. - O senhor e cinco homens escoltarão ao capitão Aubrey, um capitão muito querido pelo Sultão, até Suez. Avançarão de noite quando ele o ordene. Escolha a esses homens imediatamente e acompanhe ao intérprete, que lhe guiará até o oficial de categoria equivalente à sua.
O odabashi pôs a mão na testa e fez uma inclinação de cabeça. Então, com voz rouca, disse os nomes de cinco homens e seguiu o intérprete.
O senhor Hollar, o contramestre, o senhor Borrell, o condestável, e o senhor Lamb, o carpinteiro, estavam bebendo chá na tenda dos oficiais assimilados quando o intérprete levou o visitante ali. O intérprete disse qual era sua classe e sua função, e acrescentou:
- Acredito que deve comer com os senhores.
Depois disse que tinha que ir imediatamente buscar ao primeiro oficial e ao efêndi porque o capitão queria saber como estavam as coisas.
- Tudo está bem - disse o contramestre. - Um de cada cinco camelos tem colocado atrás da carga uma lanterna preparada para ser acesa, e a todos os insolentes lhes hão posto um focinheira. As únicas tendas que restam para desmontar são esta e a dos oficiais, assim que podemos partir dentro de cinco minutos. E quanto ao senhor Mowett, poderá ser encontrado depois da grande fogueira junto à qual está sentada a guarda de estibordo.
- Obrigado - disse Hairabedian. - Tenho que ir correndo.
Desapareceu na escuridão e deixou o odabashi ali de pé.
- Tome uma xícara de chá - disse o contramestre em voz alta, e depois, alçando ainda mais a voz, acrescentou: - Chá! Cha!
O odabashi não respondeu senão que fez um estranho movimento com o corpo e permaneceu ali de pé, com os braços pendurando dos lados do corpo, olhando para o solo.
- Este tipo é peludo como não há dois - disse o contramestre, observando-o. - Nunca vi ninguém tão feio. Parece um macaco em vez de um homem.
- Macaco? - gritou o odabashi, saindo de seu silêncio. - Macaco será seu pai. Tampouco o senhor é um adônis.
A estas palavras seguiu um silêncio absoluto, que rompeu o contramestre por fim, perguntando se o odabashi sabia falar inglês.
- Nem uma maldita palavra - respondeu o odabashi.
- Não era minha intenção ofender-lhe, amigo - disse o contramestre, estendendo-lhe a mão.
- Não estou ofendido - disse o odabashi, apertando-a.
- Sente-se sobre esta bolsa - disse o condestável.
- Por que não disse ao capitão? - perguntou o carpinteiro. - Acredito que teria ficado muito contente.
O odabashi coçou a cabeça, murmurando que era muito tímido.
- Eu lhe falei uma vez - acrescentou, - mas não percebeu.
- Então o senhor fala inglês… - disse o contramestre, que pensava na idéia e o olhava fixamente há um tempo. - Não queria parecer atrevido, mas eu gostaria saber como aprendeu.
- Sou um soldado turco - disse o odabashi.
- Não duvido, amigo - disse o carpinteiro. - E deve estar orgulhoso disso.
- Já sabem como enclausuravam os soldados turcos, né?
Olharam-se uns para os outros perplexos e negaram com a cabeça.
- Hoje em dia não são tão estritos - disse o odabashi, - e entram no corpo todo tipo de pessoa, mas quando eu era menino, recrutavam por um procedimento que chamamos de devshurmeh. Ainda o empregam hoje em dia, mas não tanto, sabem? O tournaji-bashi percorre todas as províncias onde há cristãos, sobretudo a Albânia e a Bósnia, porque as outras são o que poderia chamar escória, e de cada povoado se leva um grupo de meninos cristãos, umas vezes maior, outras menor, digam o que digam seus pais. Esses meninos são colocados em umas barracas especiais, recortam-lhes o prepúcio, e perdoe-me pela palavra, e lhes ensinam a ser bons muçulmanos e bons soldados. Depois de passar por um período em que são ajami, como nós dizemos, são enviados a uma brigada de soldados turcos.
- Então muitos soldados turcos saberão falar idiomas estrangeiros, né? - disse o carpinteiro.
- Não - disse o odabashi. - Eles os enclausuram com tão pouca idade e os levam para tão longe que esquecem sua língua, sua religião e os costumes de seu povo. Meu caso é diferente. Minha mãe estava na mesma cidade que eu. Era de Londres, de Tower Hamlets, e foi para Esmirna para servir de cozinheira na casa de um comerciante turco e ali travou amizade com meu pai, um pasteleiro de Gjirokastra, e isso lhe causou problemas com a família. Ele a levou para Gjirokastra, mas morreu, e seus primos a expulsaram da tenda, porque essa é a lei, assim que ela teve que vender seus bolos em uma banca. Um dia o tournaji-bashi chegou ali e o advogado de meus primos deu um presente para seu escrevente para que me levasse com eles, e assim o fez. Levaram-me para Widin e ela ficou sozinha.
- E sendo uma viúva! - exclamou o carpinteiro, movendo a cabeça de um lado e para o outro.
- Foi uma crueldade - disse o contramestre.
- Detesto os advogados - disse o condestável.
- Mas apenas levava seis meses como cadete em Widin quando minha mãe instalou a banca de bolos diante das barracas, assim que podíamos nos ver todas as sextas-feiras, e amiúde outros dias também. E quando terminei esse período, também nos víamos em Belgrado e em Constantinopla e onde quer que a brigada fosse. Por isso nunca esqueci o inglês.
- Talvez seja essa a razão pela qual lhe mandaram aqui - sugeriu o contramestre.
- Se é essa, desejaria que me houvesse cortado a língua - disse o odabashi.
- Não gosta de estar aqui?
- Detesto estar aqui, apesar de sua agradável companhia.
- Por que, amigo?
- Sempre estive em cidades e não gosto do campo. E o deserto é dez vezes pior que o campo.
- É porque há leões e tigres?
- Algo pior, amigo.
- Serpentes?
O odabashi negou com a cabeça, inclinou-se para eles e murmurou:
- Gênios e demônios necrófagos.
- O que são gênios?
- Duendes.
- Mas o senhor não acredita nos duendes, né?
- Como não acreditar neles se hei visto um maldito duende naquela velha torre que fica ali? Era desse altura - disse, mantendo a mão no ar a uma jarda do solo - e tinha as orelhas compridas e os olhos alaranjados. Pelas noites faz: Ujú-ujú! E cada vez que dá um grito um pobre homem morre em algum lugar. Não há pior presságio que esse no mundo dos mortais. Eu o ouvi quase todas as noites a semana passada e muitas vezes mais.
Fez uma pausa e continuou:
- Não deveria ter dito duendes. São espíritos, espíritos malignos.
- Oh! - exclamou o contramestre, que zombava dos duendes, mas, como a maioria dos marinheiros, na qual estavam incluídos todos os da Surprise, estavam convencidos da existência de espíritos.
- E o que são os demônios necrófagos? - perguntou o condestável em voz muito baixa, temeroso de ouvi-lo, mas aproximando-se mais.
- Oh, são muito piores! - exclamou o odabashi. - Com freqüência tomam a forma de mulheres jovens, mas têm o interior da boca verde, como seus olhos, e em ocasiões podem ver-se caminhando entre as tumbas. Quando cai a noite tiram da terra os cadáveres recém enterrados e os comem, e às vezes inclusive aos que estam enterrados há muito tempo. Mas assumem todo tipo de formas, como os gênios. Uma pessoa encontra a uns e a outros a cada passo do deserto que vamos atravessar. O único que há que fazer é dizer transiens per medium illorum ibat muito rápido, mas sem se equivocar, porque se não…
Durante o ramadã, a essa hora da noite os cozinheiros da fortaleza jogavam os ossos que haviam restado da refeição para fora da muralha, e agora os chacais estavam esperando-os. Mas se enfrentaram com a hiena outra vez e, além disso, com outras quatro, e as palavras do odabashi foram interrompidas por gritos que pareciam sair de Bedlam{13} e por risos estentóreas que se ouviam a menos de vinte jardas dali. Os oficiais assimilados da Surprise, boquiabertos, levantaram-se de um salto e se agarraram uns aos outros, e então um pesado corpo se apoiou na ponta de um mastro, justo acima deles. Um momento depois, o potente grito Ujú-ujú! Encheu a tenda.
Depois do último Ujú-ujú!, o silêncio se fez dentro e fora da tenda, e em meio do silêncio, ouviram a um vozeirão dizer:
- Desmontem essa tenda! Estão ouvindo? Onde está o contramestre? Digam ao contramestre que venha! Senhor Mowett, que o primeiro grupo acenda suas lanternas e se prepare para partir.
CAPÍTULO 6
Niobe, corveta da Companhia das Índias.
Suez.
Queridíssima Sophie:
Aproveito o amável oferecimento do major Hooper, da base naval de Madras, para escrever-lhe umas breves linhas. O major fará a viagem para a Inglaterra por terra até o Cairo (veio do golfo Pérsico atravessando o deserto em um bonito camelo branco de raça pura que percorria cem milhas por dia) e até aqui só demorou quarenta e nove dias.
Chegamos aqui bastante bem. Avançávamos durante a noite e descansávamos durante o dia em tendas e debaixo de toldos que nos protegiam do calor e cruzamos o istmo antes do que o chefe dos cameleiros e eu pensávamos, pois fizemos o percurso em três etapas em vez de quatro apesar de ter saído tarde na primeira noite. Isto não se deveu à diligência da tripulação de meu barco (ainda que seja excelente, como sabe), mas a um estúpido turco que fala inglês, que está ao comando de nossa escolta, encheu-lhes a cabeça com histórias de gênios e fantasmas, e os pobres iam quase correndo toda a noite, todos juntos porque tinham medo de ficar para trás e todos desejosos de estar perto de Byrne, um marinheiro do cesto da gávea do traquete que tem uma caixa de rapé que dá sorte e protege ao seu dono dos maus espíritos e das doenças.
Desgraçadamente, sempre ocorria algo que fazia que seguissem tendo superstições e medo. Acampávamos junto aos poços, e sempre havia arbustos por perto, sobretudo arzolas, e entre eles sempre havia algum animal que gritava como uma alma penada ao amanhecer ou ao anoitecer ou em ambos momentos. E como se isso não fosse pouco, ocorriam milagres, montes de milagres durante o dia. Recordo um que sucedeu quando partimos de Bir el Gada cedo, muito antes de que o sol se pusesse: a pouca distância apareceu um grupo de verdes palmeiras e umas jovens com cântaros caminhado entre elas, e se viam tão claramente que qualquer um teria jurado que eram reais. Esses idiotas gritaram: "Oh, oh, são os demônios necrófagos! Estamos perdidos!". Então Davis (que, conforme tenho entendido, é um canibal) se agarrou ao contramestre e fechou os olhos, e o contramestre se agarrou a uma cinta de um camelo, e os dois chamaram aos gritos ao pequeno Calamy e lhe rogaram que lhes avisasse quando houvessem desaparecido. Atuaram como covardes, e teria me envergonhado que os vissem se não fosse porque os turcos agiram igual.
E tenho que dizer que Stephen não atuou sempre com a sensatez com que deveria ter feito. Quando o pastor Martin afirmou que a crença nos demônios necrófagos e outros seres parecidos era uma superstição, Stephen o contradisse e pôs como exemplos a pitonisa de Endor, a piara dos garadenos e montes de espíritos malignos que aparecem nas Sagradas Escrituras. Depois citou inumeráveis fantasmas da antiguidade, disse que essa crença havia existido sempre em todas as nações e contou uma história de um homem lobo que ele vira nos Pirineus que aterrorizou aos cadetes. Martin e ele quase não dormiam (a menos que cochilassem em seus camelos pela noite enquanto avançávamos), porque enquanto os demais descansávam debaixo dos toldos, eles corriam entre os arbustos buscando plantas e animais. Mas acho que não deveria haver trazido tantas serpentes, porque sabe que atemorizam aos marinheiros, e muito menos um monstruoso morcego que de uma ponta a outra das asas mede três pés. Saiu voando quando estava sobre a mesa e posou no peito de Killick, e achei que Killick desmaiaria do susto porque acreditaria que era um espírito maligno.
Contudo, na tarde seguinte ele desmaiou (você teria ficado com pena de vê-lo) devido a uma insolação e ao desgosto. Dois camelos se chatearam (conforme dizem, chateiam-se amiúde na época do cio) e começaram a brigar furiosamente perto de minha tenda, passaram sobre ela rugindo e jogando espuma pela boca, e espalharam meus pertences em todas direções. Os marinheiros os agarraram pelas patas e pela calda e conseguiram separá-los, mas meu melhor chapéu já estava destroçado. Lamento o ocorrido, porque em vez de uma roseta lhe havia posto o chelengk, o broche de diamantes turco, que ia presentear-te, pensando que me permitiria ter mais influência sobre os turcos, e os camelos o pisotearam e o enterraram na areia. Killick, com muita ajuda, removeu toneladas de areia até que o sol se pôs, e então desmaiou, como lhe disse; contudo, tivemos que seguir adiante sem o broche e com o pobre Killick deitado sobre um camelo.
Voltando a Stephen, eu lhe contarei algo que me surpreendeu. Já sabe que ele é muito poupador (compra uma casaca nova a cada dez anos, usa meias velhas e calções gastos, e não gasta mais que em livros e em instrumentos para a investigação científica), e, contudo, em Tina vi com assombro que pegava uma grande quantidade de moedas de ouro de sua bolsa e comprava uma manada de camelos (como a de Job) para transportar o sino de escafandrista de que lhe falei. Está desmontado, mas precisa de um animal forte para levar cada pedaço. O egípcio que conseguiu os animais de carga para que fizéssemos esta viagem não havia pensado no transporte de um sino de escafandrista, porém, afortunadamente, vendiam camelos no acampamento beduíno que estava perto. A propósito! Nesse mesmo acampamento havia uma égua…"
Quando terminou de descrevê-la, ficou imóvel durante um tempo, sorrindo, e depois continuou:
Assim que chegamos rápido e com só um homem doente. Lamentavelmente, o intérprete pôs as botas sem notar que dentro de uma havia um escorpião e agora está tombado com uma perna como uma almofada. Me dá muita lástima, porque é um homem amável e atencioso e conhece todas as línguas de Levante e também o inglês. Ele sozinho poderia ter construído a torre de Babel. Por desgraça, uma vez mais, chegamos quando nossos aliados ainda não estavam preparados. Já estava aqui a corveta da Companhia, uma embarcação muito larga e com a proa arredondada que realmente parece um mercante, com quase todos os canhões ocultos sob a coberta, e já estavam a bordo seus tripulantes, todos marinheiros das Índias Orientais exceto um dos pilotos, que é europeu, e soprava um vento favorável para sair do golfo, mas os turcos que tinham que subir a bordo… onde estavam?
Fui ver o governador egípcio, mas não estava, e, aparentemente, o vice-governador, um homem novo nesse cargo, ao qual chegou depois dos recentes distúrbios, não sabia nada do plano e só parecia interessado em que lhe pagássemos uma absurda soma em caráter de direitos de ancoragem, abastecimento de água para a Nimbe e direitos de aduana de seu falso carregamento. Devido à insistência de Hairabedian, que foi levado ali em uma maca, disse que havia um destacamento turco nas imediações da cidade, mas que se haviam deslocado um pouco, ainda que não sabia exatamente onde. Acrescentou que talvez regressariam depois do ramadã, mas que de toda forma, mandaria lhes avisar que estávamos aqui. É evidente que não sente simpatia pelos turcos, e seria raro que os turcos a sentissem por ele, ainda que tentassem com todas suas forças. Ele me tratou com descortesia (quanto lamentei não estar com o chelengk então!), mas Hairabedian disse que neste momento não é conveniente discutir com ele, devido a que as atuais relações entre a Turquia e o Egito são muito delicadas. Naturalmente, não avisou aos turcos, e como Hairabedian estava na maca, eu estava paralizado. Seguia soprando com força um vento favorável, um vento muito quente, mas que soprava na direção conveniente, e as horas passavam, e a lua era um pouco menor cada vez que saía. Mas somente graças à sorte finalmente encontrei os soldados. Os soldados de nossa escolta passaram algum tempo na cidade esperando para que terminasse o ramadã para regressar a Tina e gastando a gratificação que lhes dera para satisfazer seus desejos depois que anoitecia, e quando iam partir, o odabashi veio despedir-se dos oficiais assimilados e lhes disse que o governador egípcio e o oficial que mandava nas tropas turcas haviam discutido e que, por consequência disto, o oficial havia retirado as tropas para o oásis de Moisés, e que no bazar corria o rumor de que o egípcio ordenaria à tribo beduína de Beni Ataba que as atacasse. Isso parecia absurdo, porém, de toda maneira, não podíamos confiar nos egípcios. Imediatamente mandei um mensageiro ao oásis de Moisés, mas já havia chegado o bayram, o fim do ramadã, e o oficial turco respondeu convidando-me para o banquete que iam celebrar e dizendo que não se moveria até que não tivéssemos comido juntos uma cria de camelo e que não importava esperar dois ou três dias mais. Desafortunadamente, o egípcio também me convidara para esse dia, e Hairabedian disse que tinha que ir, e com meu melhor uniforme, se não se ofenderia, assim que fui aos dois banquetes".
Pensou em falar-lhe do banquete oferecido pelo egípcio, da interminável música árabe, do calor que sentia sentado ali hora após hora, sorrindo tanto como podia, e das mulheres gordas que dançaram ou, pelo menos, retorceram-se e se moveram com sacudidas o tempo todo, enquanto os homens as comiam com os olhos. Também pensou em contar-lhe de que maneira chegou até o oásis de Moisés, que os turcos lhe receberam tocando timbales e trompetes e disparando salvas com mosquetes, que o ensopado de cria de camelo com amêndoas, mel e muito coentro era viscoso, e como a alta temperatura, inclusive à sombra, afetou o seu corpo cheio com a comida de dois banquetes sucessivos. Mas em vez disso, contou que era difícil se comunicar com o bimbashi Midhar, o oficial ao comando das tropas turcas.
Como o intérprete não estava em condições de mover-se, o pobre, Stephen teve a amabilidade de vir comigo para ver se podia ajudar falando grego, a língua franca e uma espécie de árabe que falam em Marrocos. Essas línguas serviram para fazer comentários gerais sobre a comida, como "A sopa é excelente, senhor" ou "Permita-me servir-lhe mais olhos de cordeiro", mas ao final do banquete, quando todos se foram exceto os dois oficiais de mais antiguidade e o cavalheiro árabe que vamos instalar no trono de Mubara, e quis dizer ao bimbashi que era muito importante dar-se pressa, não pudemos nos entender. Era evidente que nem o turco nem o egípcio sabiam nada da galera que esse dia ou no dia seguinte zarparia de Kassawa com rumo norte com os franceses e o tesouro a bordo (o que me admirou, pois antes de que Hairabedian se ficasse tão mau, me disse que um mercador árabe que estava em Suez lhe assegurou que a bordo da galera que se encontrava em Kassawa já haviam subido muitas caixas pequenas, mas mais pesadas que o chumbo, e muito bem protegidas), assim que era absolutamente necessário fazer-lhe compreender qual era a situação nesse momento. Mas cada vez que tentávamos, os dois oficiais riam a gargalhadas. Os turcos não riem com facilidade, como sabe, e esses dois, ainda que fossem jovens e dinâmicos, até esse momento haviam estado tão sérios como juízes. Mas quando dissemos "depressa", não puderam se conter e começaram a rir com sonoras gargalhadas, balançando-se e dando-se palmadas nas coxas. E quando puderam falar, secaram os olhos e disseram: "amanhã ou na semana que vem". No final inclusive Hassan, o governante árabe, uniu-se a eles, e ofegava como um cavalo enquanto ria.
Então trouxeram o cachimbo de água e nos pusemos a fumar. Os turcos riam entre si de vez em quando, o árabe sorria, e Stephen e eu estávamos desconcertados. Por fim Stephen voltou a tentar, mudando a frase e soprando para indicar que devíamos aproveitar o vento favorável, que tudo dependia do vento. Mas tampouco deu resultado, e ao ouvir a desafortunada palavra, os turcos arrebentaram de riso, e um soprou com tal força pelo tubo do cachimbo que fez sair um jorro de água por cima e o tabaco caiu e então Stephen disse: "Ah, zut alors!". O árabe se voltou para ele e, depois de perguntar-lhe "O senhor fala francês, senhor?", começou a falar nesse idioma com fluidez. Parece que Hassan, como seu primo, o xeique atual, foi prisioneiro dos franceses quando era jovem.
Muitas vezes em minha vida eu vi mudanças de expressão bruscas, mas nenhuma tão rápido e tão grande como a do bimbashi, pois estava transbordante de alegria e pôs um gesto muito grave de repente, quando ouviu o árabe traduzir a parte da mensagem relativa ao dinheiro francês. No início não podia acreditar que a quantidade fosse tão alta, ainda que Stephen, prudentemente, dissera o cálculo mais baixo, duas mil e quinhentas bolsas, e se voltou para mim. Eu lhe disse "Sim", escrevendo essa quantidade no solo com uma sobremesa gelatinosa meio derretida (nossos números são muito parecidos aos seus), e acrescentei "E talvez isto", escrevendo cinco mil.
O árabe, juntando as mãos, disse: "Ah, sim?". E um minuto depois havia tanta atividade naquele lugar como em uma colméia virada ao contrário. Os homens corriam em todas as direções, os suboficiais gritavam, e os tambores e os trompetes soavam. Ao amanhecer já havia subido a bordo até o último soldado, mas tínhamos o vento contrário.
O vento rolara durante a noite, e havia se fixado nessa direção e soprava com força. Se olhar o mapa, compreenderá que para que nossa corveta possa atravessar o comprido e estreito golfo de Suez em direção sul-sudoeste, é necessário que navegue com o vento em popa. Às vezes o bimbashi puxa os cabelos e açoita seus homens; às vezes o calor úmido e a frustração me produzem a sensação de que meu pequeno corpo não poderá suportar mais o cansaço neste grande mundo; e às vezes os marinheiros (que sabem perfeitamente o que vamos fazer e no fundo são como piratas) me mandam dizer através dos guardas-marinhas, dos oficiais, de Killick e de Bonden que com muito gosto tirarão a corveta daqui a reboque quando eu considerar oportuno, e que pouco lhes importam a insolação e a apoplexia. Mas como o porto não fica resguardado e tem arrecifes de coral e intrincados canais, suas águas são pouco profundas e o terreno do fundo não é bom para a ancoragem, enquanto este vento soprar, não seria bom pedir-lhes que o façam; contudo, se o vento amainar, direi para eles que tentem, ainda que Deus sabe que um sua copiosamente ao caminhar só de uma ponta a outra da corveta, assim que suará muito mais ao realizar a árdua tarefa de rebocá-la. Inclusive para os marinheiros das Índias Orientais é difícil suportar o calor. Entretanto, fazemos preparativos para a viagem (pôr os canhões em seu lugar e outras coisas) ou permanecemos sentados, e de vez em quando nos rangem os dentes. Mowett e Rowan têm tendência a brigarem. Sinto ter que dizer isto, mas, em minha opinião, dois rouxinóis não podem estar em uma mesma árvore. Os únicos que estão contentes são Stephen e o senhor Martin. Passam lá embaixo dentro do sino de escafandrista pegando vermes, peixinhos de brilhantes cores e pedaços de coral, e inclusive comem dentro dele às vezes. E quando não estão alí, caminham pelos arrecifes observando os animais que vivem nas águas pouco profundas e as aves (dizem que viram montes de quebra-ossos). Stephen nunca se incomodou com o calor, ainda que fosse excessivo, mas não sei se para Martin é fácil suportá-lo, ainda que costuma levar uma sombrinha verde. Ficou magro como uma grou. Parece uma grou sorridente, ainda que não sei se você poderá imaginar um animal assim. Perdoe-me, Sophie, mas o major Hooper está aqui e tem pressa para continuar sua viagem. Amo muito a você e às crianças."
Seu amante esposo,
John Aubrey
Quando viu a lancha do major zarpar, Jack, ofegante, voltou para a cabine, aonde o ar quente chegava através dos escotilhões. Ao longe, diante de uma fileira de altas e ondulantes palmeiras, viu Stephen e Martin carregando entre os dois uma tartaruga de considerável tamanho. Uma lancha se abordou com a corveta, e nela vinha mais um árabe para visitar o senhor Hairabedian. Através da clarabóia que ficava justo acima de sua cabeça, ouviu Mowett dizer "Gosto de estar perto do bosque quando caem as folhas / e o frio vento invernal sopra", e por alguma razão, apareceu em sua mente a imagem da lua da noite anterior. Aquela noite a lua já não parecia uma foice, como na noite do beyram, aliás, por desgraça, um grande pedaço de melão, e provavelmente iluminaria a rota da galera, que já estaria muito perto de Mubara. Então pensou: "Contudo, não havemos perdido nem um minuto quando atravessamos o istmo. Não posso me culpar disso". Mas também pensou que talvez deveria ter tratado o egípcio com mais tato ou ter encontrado uma maneira de pôr-se em contato com os turcos mais rápido, apesar do que ele dissesse, e analisou uma série de possibilidades. Depois o sono fez com que suas acusações se suavizassem, e de uma parte de sua mente surgiu a frase "Até os ratos melhor guiados se perdem às vezes", e antes que se formasse na outra a réplica "Sim, mas aos líderes sem sorte não lhes confiam missões delicadas e mal planejadas", ficou adormecido, ainda que esta idéia permaneceu no mais profundo de sua mente, preparada para aflorar de novo.
Quando começara sua carreira naval, havia adquirido a habilidade de dormir rapidamente a qualquer hora, e a conservava ainda, apesar de que haviam passado muitos anos desde que fazia a guarda. Podia dormir por maior que fosse o ruído e por mais incômodo que fosse, e para despertar-lhe era necessário alguma alteração importante do modo de navegar do barco. Por isso não foram suficientes o ruído produzido por uma amarra ao arrastar-se pela coberta nem os gritos dos marinheiros das Índias Orientais, nem seus própios roncos (tinha a cabeça inclinada para trás e a boca aberta), nem o odor da comida turca, que o ar da tarde arrastava. O que lhe despertou, e lhe despertou completamente, foi a mudança do vento, que de repente rolara trinta graus e agora estava amainando e soprava com intermitências.
Subiu para a coberta e foi até o castelo de popa, que estava mais cheio que de costume. Imediatamente seus oficiais levaram para o lado de sotavento aos oficiais turcos e ao árabe, que, apesar de não compreender o que ocorria a bordo de um barco, tinham uma atitude obediente. Num momento o lado de barlavento ficou vazio, e Jack ficou ali de pé olhando o céu ao anoitecer, as rachadas nuvens que passavam sobre África e a névoa que cobria a costa de Arábia. Acreditava que o tempo ia mudar, e essa também era a opinião de muitos dos marinheiros da Surprise destinados ao castelo, marinheiros velhos e experientes que eram tão sensíveis a essas alterações como os gatos, que agora estavam alinhados no corrimão e de vez em quando lhe dirigiam significativos olhares.
- Senhor McElwee - disse, virando-se para o piloto da companhia, - o que o senhor e o piloto indonésio pensam?
- Bem, senhor - disse o senhor McElwee, - não naveguei muitas vezes mais ao norte de Jiddah ou de Yanbu, como lhe disse, e tampouco o piloto indonésio, mas nós dois pensamos que é provável que haja uma tormenta pela noite e que amanhã sopre o vento egípcio.
Jack consentiu com a cabeça. O vento egípcio não era o mais favorável para navegar por um golfo como o de Suez, muito estreito e com muitos arrecifes de coral e fortes correntes, mas pelo menos era um vento largo, e se a Niobe tivesse tanta agilidade como diziam e se as manobras fossem executadas com precisão, poderia fazê-la sair para o alto mar.
- Bem, - disse Jack - acho que deveríamos preparar uma âncora pequena para rebocar a corveta, pois se este maldito vento tiver amainado o suficiente quando suba a maré, poderemos rebocá-la até a saída do porto, e desse modo, se o vento egípcio chegar, poderemos aproveitá-lo assim que começar a soprar.
- Doutor, nos disseram que provavelmente soprará o vento egípcio - disse, quando Stephen e Martin, depois de mandar subir muitas caixas com corais e conchas, subiram a bordo, e quando a guindaleza já saía pela proa da Niobe, puxada pela bote longo, que avançava por entre a multidão de felucas e faluas.
- É tão ruim como o simún?
- Sim - respondeu Jack. - Ouvi dizer que é exageradamente quente, inclusive comparado com os que sopram nesta zona. Mas o importante é que sopra do oeste ou do noroeste. Contanto que seja largo, pode ser tão quente como queira.
- Tão quente como queira - repetiu quando tomavam chá na cabine. - Ainda que não acredito que possa ser mais quente, porque se fosse, só sobreviveriam os crocodilos. Já sentiu alguma vez um calor como este, Stephen?
- Não - respondeu Stephen.
- Nelson disse uma vez que não necessitava abrigo, porque o amor à sua pátria lhe mantinha com calor. Pergunto-me se lhe teria mantido fresco se houvesse estado aqui. Acredito que não me produz nenhum efeito, porque estou jorrando como o destilador de Purvis.
- Talvez não ame a sua pátria o suficiente.
- Quem pode amá-la se há que pagar como imposto dois xelins por libra e hão cortaram a parte que os capitães recebem do butim a um oitavo?
As primeiras rajadas do vento egípcio chegaram pouco depois do amanhecer. A Niobe estava ancorada com uma só âncora na saída do porto, aonde fora rebocada durante a noite. O vento havia se acalmado durante a guarda de meia, e ainda que todas as escotilhas e os escotilhões estavam abertas, havia um calor sufocante debaixo do convés, e as primeiras rajadas do vento egípcio aumentaram ainda mais o calor.
Jack dera dois cochilos, mas subiu para o convés ao despontar a alvorada, e ao ver que o vento formava ondulações na água, sentiu uma grande alegria e uma sensação de liberação, e voltou a ter esperança. Com tantos e tão dispostos tripulantes, o cabrestante deu voltas a considerável velocidade, fazendo subir a âncora quase ininterruptamente, e pouco depois a Niobe começou a navegar, movendo a proa com rapidez apesar de ir contra a corrente, mas Jack notou que não tinha comparação com a Surprise nem na rapidez com que respondia nem na velocidade, ainda que fosse uma pequena corveta estável e manejável, que inclinava pouco para sotavento, pelo menos quando navegava com vento largo, e isso lhe causava uma grande satisfação. Contudo, achou o vento estranho, não porque estava exageradamente quente, como se houvesse saído de um forno, nem porque chegava em rajadas desiguais, mas por algo que não podia definir. O sol acabava de sair pelo leste e brilhava com intensidade no céu limpo, mas pelo oeste se via uma ameaçadora massa escura, e sobre a linha do horizonte, formando uns dez graus com ela, havia uma faixa de colorido amarelo alaranjado muito grossa para ser uma nuvem.
"Não sei o que é isso", disse para si. E quando se voltou para descer para tomar seu primeiro café da manhã, a primeira e reconfortante xícara de café (genuíno café de Moka, trazido diretamente do porto dessa cidade), viu seus quatro guardas-marinhas olhando-lhe fixamente, e pensou: "Sem dúvida, esperam que eu saiba o que é, porque acreditam que um capitão é onisciente".
Stephen entrou na cabine com uma pequena garrafa na mão.
- Bom dia - disse. - Sabe que temperatura tem o mar? Oitenta e quatro graus Farenheit. Ainda não calculei a salinidade, mas suponho que será extraordinariamente alta.
- Estou seguro. Este é um lugar extraordinário. Contudo, o barômetro não baixou muito… Sabe de uma coisa, Stephen? Eu lhe agradeceria que perguntasse a Hassan o que é aquela faixa que há no céu ao oeste. Como passa grande parte de seu tempo cavalgando em um camelo pelo deserto, deve conhecer bem o tempo nesta zona. Mas não tenho pressa em sabê-lo. Terminemos esta cafeteira primeiro.
Era melhor para ele que não tivesse pressa, porque a cafeteira era muito grande e Stephen falava sem contenção sobre os escorpiões, porque havia um grande número deles na bodega e os tripulantes da Surprise corriam de um lado para outro tentando matá-los.
- É um abuso! Os escorpiões não atacam sem motivo. Só picam se são provocados, e a picada pode produzir certo mal-estar e inclusive fazer a alguém cair em estado de coma, mas raras vezes causam a morte, melhor dizendo, nunca, salvo às pessoas que sofriam do coração, e essas pessoas iam morrer logo de toda maneira.
- Como está o pobre Hairabedian? - perguntou Jack.
-Amanhã já poderá correr de um lado para o outro, e isso lhe parecerá melhor que o descanso - respondeu Stephen.
Nesse momento, uma rajada de vento arremeteu contra a Niobe e a fez se inclinar tanto que quase virou. O café se espalhou para sotavento, ainda que eles, inexplicavelmente, retiveram as xícaras vazias nas mãos. Quando a corveta se endireitou, Jack voltou a pôr-se de pé e começou a caminhar por entre a mesa e as cadeiras derrubadas, os papéis e os instrumentos. Enquanto atravessou a porta da cabine, uma nuvem de areia amarelada lhe envolveu (tinha areia em cima, areia debaixo dos pés e areia entre os dentes) e através dela notou uma grande desordem. As velas golpeavam; o leme estava dando voltas e, aparentemente, por consequência de seu movimento, um braço do timoneiro havia partido, saltado para o ar e caído no corrimão; os botalós e as lanchas estavam sobre a coberta; e a vela de estai maior, com aspecto fantasmal, estava quase completamente desprendida da relinga e fazia um movimento ondulante em direção a sotavento. A situação era grave, mas os danos não haviam sido importantes. As retrancas dos canhões não haviam desatado (a corveta se haveria afundado rapidamente se um dos canhões de nove libras houvesse chegado a atravessar o costado oposto quando dera o solavanco) e os marinheiros haviam soltado as escotas para proteger os mastros e dois timoneiros já haviam agarrado o leme. Mas mais grave ainda era o comportamento da multidão de turcos. Alguns corriam pelo castelo e pelo convés entre os redemoinhos de areia, muitos mais saiam pela escotilha central e a de proa, e a maioria dos que estavam no convés estavam segugando na exárcia, atrapalhando o trabalho dos marinheiros. Se mais turcos se segurassem a ela, seria impossível manobrar a corveta, e em caso de que chegasse outra rajada, a corveta viraria e provavelmente muitas vidas se perderiam, pois os que não eram homens do mar cairiam pela borda aos montes.
Estavam ali Mowett, Rowan e Gill, o oficial de derrota, ainda meio desnudo.
- Levem-nos abaixo! - gritou Jack, correndo pela proa com os braços abertos e gritando como se estivesse conduzindo uma revoada de gansos.
Os turcos eram ferozes guerreiros em terra, mas agora se achavam fora de seu elemento e estavam desconcertados e aterrorizados, e muitos deles também enjoados. Ante o prumo dos quatro oficiais que caminhavam tão facilmente pela oscilante coberta, os turcos cederam e se dirigiram para as escotilhas caminhando aos esbarrões, e alguns desceram e outros caíram por elas. Jack havia acabado de dar a ordem de que taparan as escotilhas para que os turcos permanecessem abaixo quando teve a sensação de que o ar era extraído de seus ouvidos, uma sensação que precedeu a seguinte lufada uma fração de segundo. A rajada fez a corveta inclinar, mas a corveta não voltou a endireitar-se porque o vento egípcio se entabulou e a partir de então soprou constantemente, ainda que com intensidade variável. Quando Jack voltava para a popa, com os olhos quase fechados para protegê-los da areia, perguntou-se como as pessoas conseguiam respirar aquele ar tão quente e agradeceu à sua estrela por ter evitado que guindasse os mastaréus.
Também podia lhe agradecer por ter lhe proporcionado uma tripulação formada por robustos e experimentados marinheiros e, além disso, um grupo de oficiais competentes (Mowett e Rowan eram aficionados por recitar poesias na câmara dos oficiais, mas eram capazes de falar em prosa com rapidez e convicção no convés quando havia uma emergência). Mas talvez não lhe agradecesse ainda que tivesse tempo para fazê-lo, já que pensava que todos os membros da Armada tinham que ser forçosamente bons marinheiros, e que se algum não o era não era digno de respeito, e só elogiava os seus homens quando faziam algo extraordinário. Contudo, não teve tempo, porque a maior parte das vinte horas que se seguiram ocupou-se de proteger a corveta e fazer com que mantivesse o rumo.
Durante grande parte do início desse período dedicou-se a diminuir velas e a outras tarefas como preservar as vergas e as lanchas que ainda estavam amarradas, pôr contraestais e braças e polias móveis, reforçar os canhões com retrancas mais grossas e reparar os danos que a exárcia sofrera na parte superior. Enquanto isso tratava de ver se se aproximava alguma tempestade através da capa de areia e poeira amarelada que o ar formara, uma capa tão espessa que atrás dela o brilhante sol parecia uma laranja avermelhada, como em Londres nesses dias de novembro, ainda que nesses dias de novembro aqui tinham uma temperatura de cento e vinte e cinco graus Farenheit à sombra.
Mas ao redor do meio-dia, quando foi reparado o mastaréu de velacho e o vento egípcio deixou de soprar com intermitências, a situação mudou. Agora tinham que se preocupar menos por sobreviver que por avançar todas as milhas possíveis com ajuda do vento, ou como Jack se disse, "mimando ao vento", e a alegria substituiu a preocupação que todos tinham nas primeiras horas, quando um erro poderia haver tido como consequência a perda de vidas. Poucas coisas entusiasmavam a Jack como fazer um barco navegar ao limite de seus possibilidades em meio de uma tormenta, e agora sua principal preocupação era averiguar que quantidade de velame a Niobe podia levar desdobrado e onde devia aplicá-lo. Naturalmente, a resposta dependia da força do vento e do movimento do mar, e não era fácil calcular nenhuma das duas coisas, já que no golfo a maré e as correntes variavam continuamente.
Mas não foi só por prazer que Jack fez a Niobe navegar a grande velocidade, a tão grande velocidade que a proa fazia saltar a branca espuma pela amura de bombordo e cair como uma rajada de chuva salgada sobre a parte de estibordo do castelo. Desde muito cedo percebera que quanto mais rápido navegava a corveta, menos inclinava, e como o golfo era apertado, beirado por arrecifes, sem baías protegidas nem portos, tinha fazer com que a corveta não inclinasse nem sequer uma jarda. Além do mais, não podiam parar perto da costa arábica, assim que tinham que seguir navegando, e sempre pelo centro do golfo ou mais perto de barlavento, tão perto como ele julgasse conveniente, a menos que decidisse mudar de bordo em redondo para voltar ao porto de Suez, onde talvez a corveta poderia estar protegida. Mas nesse caso, teria que abandonar a expedição, porque uma vez que os engenheiros franceses chegassem a Mubara, melhorariam o sistema de defesa da fortaleza de tal modo que uma corveta de canhões de nove libras da Companhia e um punhado de soldados turcos não poderiam atacar a ilha. Ou chegava antes deles ou era inútil que fosse.
Navegar para o sul a grande velocidade era perigoso, mas agora era menos, em primeiro lugar, porque o mar tinha um movimento tumultuoso e descobria os arrecifes, e em segundo lugar, porque Jack tinha a ajuda do piloto indonésio, que da verga traquete dirigia a corveta, comunicando aos gritos tudo o que observava para Davis, o marinheiro de voz mais potente de toda a tripulação, que, de pé no castelo, meio coberto pelas ondas, repetia para que o ouvissem na popa, e também tinha a ajuda de todos os tripulantes da Surprise, que o conheciam tão bem que compreendiam as ordens desde a primeira palavra e que eram excelentes marinheiros. Contudo, algumas vezes pensou que estavam perdidos. A primeira foi quando a corveta se chocou com um tronco de palma meio afundado, golpeando-o com tal força no centro com o talha-mar que quase parou e se soltaram três brandais, ainda que os mastros se mantiveram firmes, e depois o tronco seguiu movendo-se por debaixo da quilha e faltou pouco para que se chocasse com o leme, pois passou pelo seu lado a poucas polegadas. A segunda foi quando a Niobe foi sacudida por uma cegante rajada de areia e, entre os uivos do vento, ouviu-se claramente um chiado debaixo do convés e Jack viu brilhar entre as ondas, por bombordo, uma das grandes placas de cobre que recobria o casco.
Ao meio-dia era ainda menos perigoso. Ainda que a corveta seguia navegando a uma velocidade vertiginosa, com as gáveas e as maiores rizadas, a parte da costa egípcia que agora tinham por estibordo bordejava uma grande extensão de terreno rochoso e seco, mas não desértico, por isso, com menos areia que oferecer ao ar, e a visibilidade aumentou. A vida na corveta voltou quase ao normal, e ainda que não se pôde fazer a medição de meio-dia nem se pôde acender o fogo da cozinha para preparar o almoço dos marinheiros, voltaram a suceder-se regularmente as badaladas, a substituição do timoneiro e as medições com a barquilha. A última delas causou grande satisfação para Jack, pois era de doze nós e duas braças, a qual, tendo em conta a forma matronal da Niobe, era provavelmente a maior velocidade que podia alcançar sem sofrer danos, ainda que pensava que talvez podia fazê-la aumentar uma braça ou mais colocando uma vela de capa no mastaréu de sobremezena.
Jack estava pensando nisso quando notou que Killick estava ao seu lado e tinha nas mãos um sanduíche e uma garrafa de vinho mesclado com água com um tubo encaixado na rolha.
- Obrigado, Killick - disse.
De repente percebeu de que estava faminto apesar do terrível calor e do monte de areia que tinha na garganta, e de que estava sedento apesar de que a espuma do mar e os jorros de água que às vezes passavam por cima da borda o haviam empapado. Enquanto comia, escutava sem muito interesse a Killick, que em tom bastante alto, protestava:
- Nunca terminarei de tirar a areia… Há areia em todos os uniformes, nos baús e nos armários… Entra por todas as frestas… Tenho areia até nos ouvidos…
E quando acabou de beber o vinho, disse:
- Senhor Mowett, devemos substituir ao piloto e a Davis, porque estão roucos como corvos. Chame para almoçar por separado aos dois grupos de guarda. Terão que contentar-se com pão e o que o contador encontre, mas todos receberão sua ração de grogue, inclusive os que cometeram faltas. Agora vou descer para ver como estão os turcos.
Os turcos estavam muito bem. Stephen e Martin se encontravam ali com eles e também estavam sentados comodamente no chão à maneira oriental, com as pernas cruzadas, e tinham a costas apoiadas no costado do barco, diante do qual haviam posto todas as coisas que lhes podiam servir de almofadas. Todos estavam tranqüilos, tão tranqüilos como um grupo de gatos domésticos junto a uma chaminé, sem olhar nada em particular e sem falar. Alguns lhe sorriram e outros lhe cumprimentaram com a mão, e no começo Jack pensou que estavam bêbados, mas depois recordou que os turcos e o árabe eram muçulmanos, que nunca vira Stephen enjoado por causa do vinho e que Martin quase nunca bebia mais do que uma taça.
- Estamos mascando khat - disse Stephen, mostrando-lhe uma rama verde. - Dizem que serve de tranquilizante, como a folha de coca que mascam os peruanos.
Então se ouviu uma débil voz perto de Stephen, e ele continuou:
- O bimbashi falou que espera que não esteja muito fatigado e que esteja contente de como vai a viagem.
- Por favor, diga-lhe que nunca me senti melhor, que a viagem vai bastante bem e que se este vento segue soprando até depois de amanhã, poderemos percorrer a distância que não pudemos percorrer no momento adequado e teremos a possibilidade de chegar ao sul de Mubara a tempo para apresar a galera.
- O bimbashi diz que se estiver escrito que apresaremos a galera e que enriqueceremos, a apresaremos, mas que se não estiver escrito, não a apresaremos. Diz que não se pode fazer nada para mudar o destino e lhe roga que não se preocupe nem faça esforços desnecessários, porque o que está escrito está escrito.
- Pergunte, se puder encontrar a maneira de fazê-lo cortesmente, que se isso é assim, por que razão trouxe os seus homens a bordo tão rápido que se chocavam uns contra outros. Se não encontrar, diga que também está escrito que "Deus ajuda aos que se ajudam" e que o tenha presente. Pode acrescentar que é adequado que um filósofo use um tom sentencioso quando se dirije a uma audiência, mas não é adequado que um bimbashi o use quando fala com um capitão de navio.
Quando estas palavras, convenientemente modificadas, foram traduzidas para o francês por Stephen e ao árabe por Hassan, o bimbashi disse que se contentava com o pequeno pagamento de soldado e que não se importava a riqueza.
- Muito bem, meu amigo - disse Jack. - Espero que o vento siga soprando nesta direção um par de dias, ainda que só seja para que tenha a oportunidade de demostrar na prática que não se importa.
O vento egípcio seguiu soprando na mesma direção essa tarde, ainda que com uma intensidade maior que o desejável, e, apesar de ter amainado ao entardecer, Jack jantou frango com areia e bebeu grogue com três partes de água e um pouco de areia quase convencido de que continuaria soprando assim por toda a noite. McElwee, Gill e o piloto indonésio tinham a mesma opinião que ele, e ainda que não podiam ver nada através da areia que o ar arrastava, todos haviam chegado à mesma estimativa, todos concordavam que a Niobe se achava ao sul de Ras Minah e que ainda faltava percorrer uma parte do golfo bastante grande.
Ficou no convés até que terminou a guarda de prima (uma guarda de prima em que havia sentido mais calor que em todas as que havia feito em sua vida), escutando o uivo do vento e os ruídos que havia a bordo da corveta, e observando o movimento ondulante das fosforescentes águas, que subiam junto à proa, desciam junto à coxia até as placas de cobre que a revestiam e voltavam a subir junto ao pescante próximo do pau mezena e a descer junto à popa, onde formavam uma esteira turbulenta e luminosa, uma esteira que se destacava na escuridão e que agora podia ver-se porque, se bem a areia seguia passando por em cima da coberta, já não passava o pó, que era o que formava uma espécie de névoa. De vez em quando, enquanto permanecia ali de pé, balançando-se ao ritmo do balanço da corveta, fechava os olhos, e nesses momentos lhe parecia que a corveta e a tormenta de areia estavam em um sonho. Agora a corveta navegava sem dificuldade, pois as maiores haviam sido aferradas quando os dois grupos de guarda estavam no convés e, devido à diminuição de velame, movia-se mais facilmente, os brandais já não estavam esticados como cabos de ferro e o pescante de bombordo raras vezes roçava o mar.
- Atento, serviola! - gritou pouco depois de que soassem as quatro badaladas.
O vento trouxe a resposta:
- Sim, senhor!
Pela voz, Jack soube que o serviola era o jovem Taplow, um marinheiro do cesto da gávea do maior em quem se podia confiar.
- Senhor Rowan - disse, - agora vou me deitar. Quero que me chame quando se avistem as ilhas.
Quando caminhava pelo convés, sentiu uma rajada de vento chegar por detrás dele, uma rajada de vento quase tão forte como as anteriores, e o vento era tão quente e tão difícil de respirar como o que soprava ao meio-dia. Contudo, enquando se esforçava para sair das profundezas do sono, quando Calamy sacudia sua maca gritando "Ilhas à vista, senhor! Ilhas por proa, senhor!", não lhe surpreendeu notar que o ar não entrava pela clarabóia aberta nem que a corveta inclinava apenas um emborno, pois a parte de sua mente que se havia mantido ativa (ainda que fosse muito pequena) lhe avisara que o vento estava amainando. Essa parte escolhera um estranho modo de fazer-lhe saltar a grande barreira do cansaço: um sonho no qual cavalgava em um formosíssimo cavalo que pouco a pouco se fazia menor, e ficava incômodo por isso e chegou a se sentir envergonhado quando seus pés roçaram o solo e a multidão que lhe rodeava o olhou com indignação. Apesar da mensagem ser cifrada, provavelmente compreendera seu significado há algum tempo, pois já se resignara a que a situação atual fosse assim.
Subiu ao convés ainda com a vista nublada, mas pôde ver claramente as ilhas, situadas pela proa e por ambas as amuras, à luz do sol nascente. Formavam um pequeno arquipélago que guardava a entrada do golfo, e era muito difícil atravessá-lo, mas do outro lado dele ficava o mar Vermelho, cuja amplitude permitia navegar facilmente. O ar ainda formava uma espécie de névoa, ainda que não podia se comparar com a do dia anterior, e além da ilha mais ocidental, Jack pôde ver o cabo que delimitavam o golfo, e o litoral do outro lado dele, um litoral que se estendia em direção leste até ficar fora do alcance de sua vista e que tinha um comprimento de mais de cinqüenta milhas, como sabia pela carta marítima. Agora não tinha por que temer a proximidade da costa a sotavento. O senhor McElwee observara detalhadamente as duas ilhas mais orientais, a Niobe percorrera grande parte da distância que devia percorrer e tudo era perfeito exceto o vento; contudo, o vento era o mais importante, e continuava amainando. Jack olhou ao seu redor, tentando recobrar sua capacidade de refletir. Os marinheiros da guarda de estibordo estavam limpando o convés. Jogavam grande quantidade de água com a bomba da proa para a popa para tirar o barro formado pelo pó que havia caído na coberta, que estava em todos os cantos por onde não passara a água do mar, e se viam sair pelos embornais grossos jorros de água de cor areia que caiam ao mar turvo e amarelado. Em geral, Jack não interrompia esse tipo de trabalhos nem molestava à guarda que estava abaixo descansando, mas agora ordenou:
- Todos a desdobrar velas! Guindar os mastaréus!
A Niobe abriu suas alas e se moveu para frente bruscamente, impulsionada pelo vento que ainda não era fraco demais, e a água começou a sussurrar de novo ao passar por seus costados. Com ajuda da maré avançava com rapidez entre as ilhas em direção ao alto mar, e era digna de se ver com as joanetes e as alas superiores e inferiores desdobradas.
Era ainda mais digna de se ver quando o sol chegou ao seu zênite, pois levava desdobrada todas as velas que tinha (sobrejoanetes, sossobres, monterillas3 e velas de estai muito raras que se colocavam no alto da exárcia) e, além disso, toldos na proa e na popa para proteger os tripulantes do intolerável calor.
Stephen passou boa parte da manhã na enfermaria, pois devido a mudanças de velocidade tão repentinas como essa, os marinheiros sempre sofriam luxações, machucados e inclusive fraturas, e desta vez também os pobres turcos tinham que ser curados dessas coisas. Quando terminou de atender seus pacientes, foi para a cabine de Hairabedian. A encontrou vazia, ainda que isso não lhe surpreendeu porque o intérprete estava quase recuperado e se queixava com amargura do confinamento e do calor, e então foi até o castelo de popa. Se dali houvesse olhado para cima pela abertura entre os dois toldos estendidos, teria pensado que a corveta não era digna de ser vista, pois agora as velas que haviam sido abertas e bracejadas com esmero penduravam flácidas. A corveta não se movia, e os marinheiros, que haviam trabalhado tão duro no dia anterior, agora arranhavam às escondidas os brandais e assobiavam para atrair o vento.
- Bom dia, doutor - disse Jack. - Como estão seus pacientes?
- Bom dia, senhor. Estão bastante bem, mas um me escapou. Viu o senhor Hairabedian?
- Sim. Acaba de passar correndo e saltando como um menino pelo corrimão de estibordo. Ali está, justo detrás da serviola. Não, a serviola, essa coisa que sobressai. Quer falar com ele?
- Não, porque vejo que está muito bem. Parece a única pessoa feliz em toda a corveta. Olha como fala alegremente com William Plaice e como Plaice olha para outro lado muito triste porque não há vento.
- Talvez seja. Talvez nem todos tenhamos a mesma filosofia que o bimbashi. É possível que alguns tripulantes da Surprise prefiram ser ricos que pobres e sintam raiva ao pensar que a galera pode nos escapar porque pode seguir avançando para o norte com vento ou sem ele, enquanto que nós passamos o tempo aqui sentados ociosos. Se a tormenta nos houvesse deixado lanchas suficientes, estou certo de que neste momento estariam nelas rebocando a corveta, se pudessem fazer o que quisessem.
- Estive falando com Hassan sobre os ventos desta região. Diz que, em geral, depois do vento egípcio há calmaria e que depois da calmaria vem outra vez o vento do norte que sopra habitualmente aqui.
- Ah, é? É um homem confiável, sem dúvida. Haviam me dito isso e me alegro muito de ter obtido a confirmação de uma fonte como essa.
Todos os outros homens que estavam no castelo de popa, exceto os que levavam o leme e o que governava a corveta, que tinham que permanecer em seu lugar, haviam se deslocado para o lado de bombordo, e ao chegar ali haviam posto uma expressão com que fingiam bastante bem que não estavam escutando. Mas a Niobe era uma pequena embarcação e agora havia um silêncio quase absoluto, pois só ouvia o rumor da água ao roçar os costados, e eles tinham que ouvir o que falavam forçosamente, quisessem ou não. "Vem o vento do norte que sopra habitualmente aqui" significava que teriam a possibilidade de enriquecer, e em seus rostos apareceram amplos sorrisos, e Williamson, alegre porque ia satisfazer sua cobiça, saltou os amantilhos do mastro mezena e, voltando-se para Calamy, disse:
- Vamos ver quem chega primeiro ao tope!
- Ele disse quanto duraria a calmaria? - perguntou Jack, secando o suor da cara.
- Disse que dois ou três dias - respondeu Stephen, e os sorrisos desapareceram. - E também disse que tudo estava nas mãos de Deus.
- O que ele está fazendo? - perguntou Jack ao ver que o intérprete se tirava a camisa e se subia na borda. - Senhor Hairabedian! - gritou.
Mas era tarde demais. Hairabedian o ouviu, mas já estava no ar. Caiu nas águas opacas e cálidas quase sem salpicar, nadou por debaixo da superfície paralelamente ao lado da corveta, reapareceu perto do pescante central e olhou para o castelo de popa rindo. De repente voltou sua cara sorridente para cima e tirou o peito e os ombros da água, e todos puderam ver uma comprida e escura figura debaixo dele. Ainda tinha a cara voltada para cima quando foi sacodido fortemente e desapareceu debaixo de um grande redemoinho de água dando um horrível grito. Depois todos voltaram a ver sua cabeça, ainda reconhecível, sair à superfície, e também viram o toco de um de seus braços e pelo menos cinco tubarões que lutavam furiosamente nas águas ensangüentadas. Poucos momentos depois, ali só havia uma mancha avermelhada, vários tubarões buscando laboriosamente algo nela e outros aproximando-se com rapidez, com as barbatanas fora da superfície.
O sepulcral silêncio durou muito, muito tempo, até que o suboficial que governava a corveta tossiu para indicar que quase não restava areia na ampulheta do relógio de meia hora.
- Continuo, senhor? - perguntou o oficial de derrota em voz baixa.
- Sim, senhor Gill - disse Jack. - Senhor Calamy, meu sextante, por favor.
Então se repetiram mecanicamente as palavras e movimentos do ritual da medição do meio-dia, e ao final, Jack, em tom solene, disse:
- São doze horas.
Alguns momentos mais tarde soaram as oito badaladas e o senhor Rowan ordenou:
- Chamem os marinheiros para almoçar!
O contramestre tocou o apito, os marinheiros correram para ocupar seus postos e os encarregados de servir a comida de cada grupo entraram na cozinha, onde (ainda que parecesse incrível) ferviam a fogo lento há pouco tempo pedaços de carne de porco e ervilhas secas, já que era quinta-feira. Esses atos eram mecânicos, pois os haviam repetido com muita freqüência, mas não lhes despertaram o apetite, e salvo alguns poucos marinheiros, todos comeram pouco e em silêncio. A atmosfera mudou quando chegou o grogue, mas, apesar disso, os marinheiros não riram nem fizeram brincadeiras nem golpearam seus pratos.
No meio da tarde Mowett foi ao encontro do capitão Aubrey e disse:
- Senhor, os marinheiros me pediram que lhe expressasse seu desejo de que lhes permita usar os anzóis e os aparelhos para pescar tubarões. Como estimavam e respeitavam ao senhor Hairabedian, queriam comer alguns.
- Não, por Deus! - exclamou Jack. - Ainda têm o pobre homem no estômago! - argumentou, e pela expressão dos marinheiros que lhe escutavam, soube que pensavam que tinha razão. - Não, mas esta tarde, depois que passemos revista, faremos práticas de tiro com as armas leves, e cada um poderá disparar-lhes meia dúzia de vezes se quiser.
O sol desceu pelo céu e, pouco depois que chamaram para passar revista, ocultou-se atrás do Egito brilhando intensamente e colorindo de carmim a abóbada celeste. A Niobe virou com a corrente lentamente, primeiro para leste, depois para este-nordeste, e finalmente para norte-noroeste, para o lugar de onde havia vindo, e as estrelas começaram a brilhar. Jack comprovou com desânimo a latitude em que se achava fazendo medições na penumbra e, depois de tomar café com os turcos, foi tentar respirar em para sua cabine.
- Que Deus nos proteja, Stephen! - disse, cobrindo seu corpo desnudo com uma toalha quando Stephen entrou. - Parece que estamos em uma casa de banhos turca. Devo de ter perdido umas vinte libras.
- Poderia perder mais uma vintena - disse Stephen. - E como é de constituição robusta, uma sangria lhe beneficiaria. Vou tirar-te dezesseis ou vinte onças agora mesmo, e se sentirá melhor imediatamente e, além disso, terá menos probabilidade de pegar uma insolação ou ter uma apoplexia - disse, largando de um lado o cofre que tinha nas mãos e pegando uma lanceta do bolso. - Esta está despontada - disse, tratando de cravá-la no armário para prová-la, - mas acredito que poderá chegar até a veia. Tenho que afiá-las todas amanhã, porque se a calmaria continuar, vou fazer sangrias em toda a tripulação.
- Não - disse Jack. - Pode ser que pareça uma reação própia de mulheres, mas não quero ver mais sangue hoje, nem o meu nem o de ninguém. Não consigo deixar de pensar em Hairabedian. Lamento muito o que ocorreu.
- Queria que houvessem podido salvá-lo - disse Stephen muito sério, e vacilou alguns momentos, virando o cofre entre as mãos, e, por fim, continuou: - arrumei seus papéis e seus pertences, como você me pediu. Não encontrei o endereço de sua família em nenhuma das cartas que pude ler, que foram poucas porque a maioria estava em árabe, mas encontrei isto.
Então tirou o falso fundo do cofre e entregou o chelengk para Jack.
- Isto é assombroso! - exclamou. - Sinto muito o que ocorreu ao pobre homem - acrescentou, e então jogou o broche em uma gaveta, levantou-se e vestiu a camisa e a calça. - Vamos caminhar pelo convés. Dentro de cinco minutos poderemos ver a maldita lua sair, provavelmente com uma parte visível muito menor do que eu gostaria.
A maldita lua tinha uma parte visível muito menor na noite seguinte, e a Niobe seguia ali movendo-se com a corrente, mas sem avançar e rodeada de um calor sufocante. Acabou o khat do bimbashi, e com ele terminou sua serenidade. Mandou açoitar dois de seus homens à maneira turca, com varas, e com tal força que um perdeu a consciência e o outro ficou ali cambaleando enquanto o sangue corria pelas costas laceradas e saía pela boca. A surra podia qualificar-se de cruel, inclusive se fosse julgada conforme o critério dos homens do mar, mas os turcos que olhavam dar os golpes pareciam indiferentes e as vítimas só deram alguns gemidos involuntários. Isto fez com que os tripulantes da Surprise tivessem melhor opinião dos turcos, e alguns chegaram a pensar que seu sangrento castigo foi responsável pela melhora da situação da corveta, que fez o vento começar a soprar, ainda que debilmente, quando terminaram de limpar o convés.
Se essa era a causa, teriam que ter sido açoitados pelo menos doze turcos para que o vento soprasse com força suficiente para fazer a Niobe avançar para o sul com tal rapidez que pudesse interceptar a galera. Desgraçadamente, o vento seguiu sendo fraco, muito fraco. Permitia que respirassem e inchava algumas das velas que era conveniente usar abertas, ainda que muito poucas comparativamente (a cevadeira, a traquete, as alas inferiores, o velacho, não totalmente aberto, a gávea maior e todas as da parte superior da exárcia, mas não as da parte inferior nem as do pau mezena), já que seguia soprando obstinadamente pela popa. Ainda que os marinheiros jogassem água por todas as velas que podiam alcançar com as mangueiras desde o cesto da gávea e subiam baldes de água para vertê-los sobre as velas mais altas, a Niobe raras vezes navegava a mais de três nós.
A lua já havia passado a fase de quarto minguante fazia tempo, e Jack Aubrey pensava com amargura que fracassara. O calor havia aumentado, e a reserva e o comportamento descortês de Hassan e dos oficiais turcos faziam a situação mais desagradável, se isso era possível. Desde o momento em que Jack havia diminuído velame, eles se haviam oposto, e como Jack lhes havia explicado, através de Stephen, que desdobrar mais velas nem sempre tinha como resultado navegar com maior velocidade e que, neste caso, as velas que se abrissem na popa anulariam o efeito das de proa, pensava que o olhavam com raiva por outros motivos, provavelmente por seus comentários sobre a sujeira dos soldados. Jack nunca imaginaria que pensavam que ele lhes enganava, mas se informou uma tarde exageradamente tediosa quando Stephen foi vê-lo e disse:
- Prometi dar este recado e serei o mais breve possível. Tratarei de resumir três horas de delicadas indiretas, conjeturas, análise de casos teóricos e meias verdades em um minuto: Hassan suspeita que os egípcios lhe ofereceram uma grande quantidade de dinheiro para que não capture a galera. Hassan disse que todo mundo sabe que o intérprete falou com mensageiros de Mehemet Alí e o bimbashi disse que todo mundo sabe e que é lógico que quanto mais velas estejam desdobradas, mais vento pegarão. Hassan lhe oferece uma grande soma para que atraiçoe os egípcios e lhe roga que a aceite. Já terminei.
- Obrigado, Stephen - disse Jack. - Suponho que não servirá de nada explicar-lhes outra vez os princípios da navegação.
- De nada, meu amigo.
- Então acho que terei que suportar seu mau humor - disse Jack.
Mas se equivocou. O vento rolou para noroeste durante a noite e na manhã seguinte chegava pela alheta, assim que quando Hassan e os turcos subiram para o convés essa manhã, viram que a Niobe tinha tantas velas abertas como era de desejar. Lançaram-se uns para os outros discretos mas significativos olhares, e Hassan se aproximou do capitão Aubrey e lhe disse algumas bajulações em francês, uma língua da qual Jack tinha noções, e o bimbashi murmurou algo em turco em tom amável. Contudo, Jack não queria dar-lhes motivos para que pensassem que suas suposições tinham fundamento, e se limitou a fazer uma inclinação de cabeça. Depois subiu ao cesto da gávea do maior, de onde observou o imenso mar azul e reverberante envolto na névoa e olhou para o sul através das clareiras da nuvem de velas. Depois de olhar para ali com tristeza durante um tempo, chamou Rowan e lhe disse secamente que gostaria de caminhar tranqüilo pelo castelo de popa e que na Armada era costume que o oficial de guarda evitasse que o capitão fosse interrompido pelos "Bom dia" e os "Como está?" dos passageiros que não conheciam suas regras, e que a verga velacho não estava perpendicular ao mastro, como deveria estar.
Aquela era uma nuvem de velas, em efeito, e os marinheiros bracejavam cuidadosamente cada uma delas; contudo, ainda estavam a uns trinta graus ao norte de Mubara quando a lua ficou cheia, e quando avistaram a ilha, já tinha dezessete dias e uma horrível forma côncava e saiu muito tarde.
Foi em uma quinta-feira pela tarde quando avistaram Mubara recortando-se sobre as montanhas da Arábia debaixo da luz do sol no ocaso. Jack orçou para que a corveta passasse perto dela sem ser vista e com muito cuidado estabeleceu uma rota para avançar para o sul pelo canal que havia entre as ilhotas e os arrecifes. Agora estavam em uma região que conhecia bem pelas cartas marítimas, e, guiando-se por duas marcas no mar e com a ajuda de McElwee, levou a Niobe até a metade do canal, e depois jogou a âncora onde as águas tinham trinta e cinco braças de profundidade.
Havia a possibilidade de que a galera ainda não houvesse passado. Mas era uma possibilidade remota, pois o vento norte que soprava habitualmente na região havia soprado tão poucos dias e com tão pouca intensidade que não era provável que a houvesse atrasado. Contudo, ainda que com pouco fundamento, muitos ainda tinham esperanças, particularmente aqueles que mais o desejavam, e bastante antes do amanhecer estavam no convés o capitão Aubrey, todos os oficiais e a maior parte da guarda que estava de folga, exceto o cirurgião e o pastor. A noite terminou, mas deixou atrás de si a névoa, e agora o vento do oeste-noroeste soprava mais forte e fazia passar massas de vapor quente sobre a lua minguante, que ainda irradiava uma débil luz, e as estrelas maiores pareciam manchas de cor laranja.
A Niobe balançava junto com a amarra da âncora, empurrada por uma lenta corrente por sotavento. Se alguém falava, fazia em voz muito baixa. Ao leste, o céu tomava um colorido cada vez mais claro. Já fazia certo tempo que Jack olhava para Canopo, que se via borrada ao sul, e pensava em seu filho. Perguntou-se se um menino criado por sua mãe, que só brincava com suas irmãs, seria um afeminado. Depois pensou que havia conhecido meninos que se haviam feito ao mar quando eram menores que George e que talvez o melhor seria que George fosse com ele em uma viagem que durasse quatro estações e depois freqüentasse um ou dois anos uma escola e depois voltasse a incorporar-se à Armada, pois assim não teria tão pouca cultura como seu pai. Estava certo de que algum amigo manteria seu nome no rol de seu barco para que os anos que passasse na escola não deixassem de ser considerados anos de serviço quando ascendesse a tenente. Soaram duas badaladas. Jack olhou pela proa ao ouvi-las, e quando voltou a olhar para o céu, as estrelas haviam desaparecido.
Começaram a ouvir-se os chiados da bomba de proa, e nesse desagradável período em que a tranqüilidade da noite havia se acabado e o barulho do dia não havia recomeçado, a guarda de estibordo começou a limpar a corveta. A maré de água e areia havia chegado ao convés, e a pedra arenito raspava as tábuas do castelo quando o vermelho halo do sol apareceu sobre o horizonte. Calamy, que estava sentado no cabrestante com as calças arregaçadas para que não se molhassem, saltou de repente para a coberta molhada e correu até onde estava Mowett, que imediatamente gritou:
- Ei, os de proa, quietos todos!
Então, com grandes passos, foi até onde Jack se encontrava.
- Senhor - disse, tirando o chapéu, - Calamy acha que ouviu algo.
- Silêncio de proa a popa! - gritou Jack.
Todos os marinheiros ficaram paralizados no lugar em que estavam, como em um jogo de crianças, alguns em ridículas posturas, sustentando no alto um pedaço de pedra arenito ou um esfregão, e puseram uma expressão grave, como se dedicassem toda sua atenção a ouvir algo. Então todos ouviram ao longe, por sotavento, o canto Ayajú-ajá, que o vento trazia em fragmentos.
- Preparados para soltar a amarra da âncora! - ordenou Jack. - Digam ao senhor Hassan e ao piloto indonésio que venham!
Mas Hassan e o piloto indonésio já estavam ali, e quando Jack se voltou para eles, ambos assentiram com a cabeça e fizeram um movimento como se estivessem movendo um remo. Esse era, com efeito, o canto dos remadores das galeras.
Não sabiam exatamente de onde vinha, só que saía da escuridão que ainda havia por sotavento, ainda que todos, exceto os marinheiros que iam soltar a amarra, escutassem atentamente. O sol subira até que toda sua circunferência havia ficado sobre o horizonte, e tinha um brilho cegante, mas a névoa branca ainda cobria a superfície do mar. Jack se inclinou o quanto pôde sobre a borda para tratar de ver através dela, e como tinha a boca aberta, podia ouvir as batidas de seu coração, muito fortes e graves. Então se ouviram dois vozes no alto da exárcia. Uma, da cruzeta do traquete, gritou: "Alí está!"; a outra, do cesto da gávea do maior, gritou: "Convés, a galera está pela alheta de estibordo!".
- Senhor Mowett, solte a amarra com uma baliza realmente boa e mande zarpar imediatamente - ordenou Jack. - Desdobraremos as gáveas e as maiores, mas devagar, como se a corveta fosse um mercante da Companhia, um mercante que faz uma viagem normal e que, depois de ter passado a noite ao pairo, aproxima-se de Mubara para comprovar sua posição. Não devem subir muitos homens para a exárcia, a guarda que está abaixo deve ficar ali, e a maioria dos que formam a outra devem sair do convés. Não mande subir as macas.
Desceu para buscar seu telescópio e voltou a olhar a carta marítima que já conhecia tão bem, e quando voltou para o convés, a amarra da âncora já saía pelo escovém, e a Niobe, com o velacho em pairo, desviava a proa da parte de onde vinha o vento. Alguns marinheiros abriam a gávea maior e a sobremezena com deliberada torpeza, e outros estavam preparados para subir sobre as vergas mais baixas.
- Onde está? - perguntou Jack.
- A trinta graus pela amura de estibordo, senhor - respondeu Mowett.
Nesse breve momento o sol havia dissipado os últimos vestígios da névoa da noite, e a galera estava ali, muito mais longe e muito mais próxima da proa do que pensavam, mas podia ver-se tão claramente como desejavam. Estava no final do canal, na borda do arrecife de coral debruado de branco de umas cinco ou seis milhas de comprimento que se estendia para o noroeste até a ilhota Hatiba, que guardava a entrada da longa e estreita baía de Mubara, em cujo fundo se elevava a cidade. A galera navegava de bolina rumo à ilha, e apesar de Jack e seus homens se esforçarem em aparentar que não tinham pressa nem a perseguiam, parecia que a tripulação da galera estava alarmada, pois os remadores haviam deixado de cantar e remavam com todas suas forças.
Imediatamente lhe ocorreram duas perguntas: poderia a Niobe chegar do outro lado da ilhota Hatiba? Se não pudesse chegar, poderia interceptar a galera antes? Não sabia as respostas. Ambas dependiam não só da velocidade e das qualidades de navegação das duas embarcações, mas também da corrente e da maré, e não chegaria a sabê-las até o último momento. McElwee e o piloto indonésio conheciam bem a corveta e sabiam como navegava de bolina, mas também tinham uma expressão desconcertada.
Então Jack se aproximou do leme.
- Mantenha-a ajustada, Thompson - ordenou ao timoneiro.
Pouco depois, quando as últimas velas se abriram e se incharam, a corveta aumentou de velocidade, e Jack disse:
- Vire um pouco mais contra o vento.
A quilha da corveta formava um ângulo cada vez menor com a direção do vento, e quando as bordas de barlavento, apesar de que as bolinas estavam esticadas, começaram a ondear, Jack pegou as cavilhas do leme e deixou que a corveta abatesse o rumo até que navegasse sem dificuldade.
- Mantenha-a assim, justamente assim - disse, e voltou ao corrimão, pensando que tinha que encontrar uma solução rapidamente e que se a corveta seguisse esse rumo enquanto a procurava, isso não afetaria a nenhuma das soluções possíveis.
Jack se pôs a observar a galera, uma embarcação baixa, alongada e negra, similar a uma gôndola veneziana. Era tão negra como a costa sul de Mubara, uma faixa de terreno estéril e abrupto formado por rochas vulcânicas, um lugar despovoado que agora se via claramente além do arrecife. Media uns cem ou cento e vinte pés de proa a popa e seus mastros estavam ligeiramente inclinados para frente, como os de todas as galeras do mar Vermelho, e no maior levava uma flâmula verde com a ponta em forma de calda de andorinha. Tinha duas vergas latinas e todas as velas aferradas, e do tope de cada mastro pendurava uma espécie de cesto ou ninho, e dentro de cada um havia um homem olhando para a Niobe, um deles com um telescópio. Não podia apreciar se os tripulantes estavam muito assustados, ainda que era indubitável que remavam com todas suas forças. Na cabine de popa, onde se supunha que deviam ir os oficiais franceses, não via nenhum europeu senão somente a um homem com uma calça bombacha de cor carmim que ia de um lado para outro abanando-se. Não sabia qual era sua velocidade, pois era muito difícil de calcular, mas achava que não navegava a mais de cinco nós.
- Então é isso que é uma galera - disse Martin, com grande satisfação.
Stephen e ele estavam junto ao cabillero1 e compartiam um telescópio.
- E se não me equivoco - acrescentou, - tem vinte e cinco remos de cada lado. Nisso é semelhante aos grandes barcos de remo da antiguidade. Tucídides teve ter visto muitas embarcações como esta! Quanta alegria!
- Provavelmente. Fixe-se nos remos, em seu movimento. Parecem as asas de uma enorme ave voando baixo, de um grande cisne celestial.
Martin riu com vontade.
- Acredito que foi Píndaro que fez essa mesma comparação - disse. - Mas não vejo correntes. Parece que os remadores podem mover-se livremente.
- Hassan me contou que nas galeras de Mubara nunca houve escravos. Essa é outra semelhança desta galera com os barcos de remo da antiguidade.
- Sim, é verdade. Vamos capturá-la?
- Bem, minha opinião sobre isso não vale nada - disse Stephen. - Mas quero recordar-lhe que Tucídides fala de uma galera que tardou em ir de Pireo a Lesbos desde que a lua saiu em uma noite até que voltou a sair no dia seguinte, aliás, até um pouco antes, o que significa que navegava a dez milhas por hora, que é uma grande velocidade.
- Mas, meu amigo - disse Martin, - recorde que a galera de Tucídides era trirreme, quer dizer, com três ordens de remos, e por isso provavelmente navegava três vezes mais rápido.
- Ah, é? Então talvez possamos capturá-la. Mas se não a alcançamos, e me parece que não será fácil bordejar essa ilhota, o capitão Aubrey a perseguirá até o porto de Mubara. O único problema é que se chegar ali primeiro e todos virem que a corveta a persegue e inclusive a ataca, fica suprimido o fator surpresa, e é possível que tratem de impedir o desembarque violentamente.
- Doutor - disse o capitão Aubrey, interrompendo suas especulações, - por favor, diga ao senhor Hassan que fique com os turcos onde não possam ver-lhes.
Havia duas soluções possíveis. Uma era se aproximar rapidamente da galera para tentar interceptá-la antes que chegasse a Hatiba. Provavelmente o terral sopraria com mais força quando a temperatura aumentasse em terra e rolaria alguns graus, e a maré, que mudaria em menos de uma hora, contrariaria o efeito da corrente que ia para o leste. Porém, isso ocorreria no momento propicio? A galera podia navegar mais rápido se seu capitão quisesse, mas muito mais rápido? Recordava ter visto uma percorrer um curto espaço navegando a dez nós. Se a Niobe, por sua tendência a trocar o rumo para sotavento, não pudesse contornar o extremo do arrecife, a galera fugiria dela, dobraria o cabo, largaria as imensas velas latinas e navegaria com o vento em popa até a baía de Mubara, e seus homens, seguros de que a corveta havia tentado apresá-la, dariam o alarme na ilha. A outra solução era fazer rumo ao alto mar para dissipar os temores dos tripulantes da galera e ficar ali durante um tempo e depois, talvez de noite, aproximar-se muito devagar, aparentemente sem rumo fixo, com as gáveas desdobradas e talvez com a bandeira francesa. Contudo, isso lhe faria perder tempo, e não era necessário que o almirante lhe dissesse que a rapidez era fundamental em um ataque. Olhou atentamente a distante ilhota, calculando a marcação e o abatimento da corveta, e a esses cálculos acrescentou o impulso da corrente e o efeito da baixa-mar. Por causa do calor, o suor ia cobrindo-lhe e a ilha parecia tremer, e de repente caiu no desespero e pensou: "Como é cômodo estar sob as ordens de outros e fazer exatamente o que lhe mandam!". Depois, alçando a voz, ordenou:
- Desdobrar as sobrejoanetes! Para cima, para cima!
Enquanto os marinheiros subiam pelos enfrechates da Niobe, olhava a galera com muita atenção, e quando as velas foram abertas, viu que o homem de bombacha de cor carmim soltou o leque e pegou um pau com a ponta arredondada e começou a marcar o compasso do movimento dos remos e a gritar para os remadores ao mesmo tempo. Os remos começaram a formar mais espuma e a velocidade da galera aumentou quase imediatamente, muito mais rápido que a da Niobe.
- É indubitável que nos têm medo - disse Jack e decidiu que se aproximaria rapidamente da galera, porque se seus homens já conheciam suas intenções, não serviria de nada sair para o alto mar.
Depois de dar a ordem de abrir o maior número de velas possível, aproximou-se de Stephen e disse:
- Talvez devessemos deixar o pobre Hassan subir ao convés, pois já não é necessário fingir. Diga-lhe que dentro de trinta minutos mais ou menos o assunto estará resolvido e também que se os turcos se colocarem no corrimão de barlavento, seu peso contribuirá para que a corveta tenha mais estabilidade.
Quando as sobrejoanetes e as monterillas foram abertas, a Niobe inclinou um emborno mais, mas no início sua velocidade não superou os seis nós. A galera se afastava cada vez mais, porém, depois de cinco minutos, sua velocidade deixou de aumentar, e ambas embarcações seguiram navegando pelas agitadas águas à mesma distância uma da outra durante um tempo. O relógio de areia de meia hora foi virado e se ouviu o sino. Durante todo este tempo, o feroz olhar de predador que tinham os marinheiros agrupados no corrimão da Niobe não mudou, e nenhum deles falou, mas quando a corveta começou a se aproximar da presa, quando apenas havia se aproximado algumas jardas, todos puseram uma expressão alegre e deram gritos de alegria.
- Os remadores estão começando a se cansar - disse Jack, que estava inclinado sobre a borda, de cara parao sol, e secava o suor da testa. - E não me estranha.
A distância se reduziu um cabo mais, e a maré começou a mudar. A Niobe, ainda no canal, tinha vantagem sobre a galera, e começou a se aproximar dela com mais rapidez. A tensão aumentou ainda mais. Agora todos estavam quase certos de que a corveta não poderia contornar a ilha, quer dizer, não podia fazê-lo sem dar bordejadas (uma horrível perda de tempo), mas cada vez havia mais probabilidade de apresar a galera antes que chegasse a Hatiba.
Então Jack viu algo que não havia previsto e que era um perigo. Pela amura de estibordo da galera havia uma zona escura entre a espuma, uma passagem no arrecife para ir à laguna contígua que a galera podia atravessar, já que tinha pouco calado, mas a Niobe não.
Suas rotas eram convergentes, e agora a galera estava ao alcance dos canhões de nove libras da corveta.
- Digam ao condestável que venha - ordenou, e depois, quando o condestável chegou, disse: - Senhor Borrell, suponho que os canhões de proa já estão preparados.
- Claro que sim, senhor! - disse o senhor Borrell em tom de censura. - Faz mais de meia hora.
- Então faça passar uma bala pela frente da proa da galera, senhor Borrell. Mas procure que não passe muito perto. Entendido? Faça o que faça, nenhuma bala deve alcançá-la, porque uma embarcação feita de tábuas de uma polegada e meia se afunda por nada. Nós jogamos o todo pelo todo.
O senhor Borrell não tinha intenção de afundar cinco mil bolsas e disparou com o coração na boca, mas acertou. A bala caiu a seis pés da proa da galera, lançando numerosos jorros de água para o convés. Não fez a galera se desviar do rumo, mas deu o que pensar ao seu capitão. Então os remadores retrocederam os remos e a galera se estremeceu, mas imediatamente a galera voltou a navegar em direção a Hatiba, afastando-se da apertada passagem do arrecife.
As duas embarcações seguiram avançando velozmente, umas vezes mais rápido a primeira, outras vezes, a segunda. A distância entre ambas diminuiu tanto que a galera estava ao alcance de todos os canhões da corveta. Se o capitão da galera não estivesse seguro de que ninguém lhe dispararia, já teria se rendido para evitar que a afundasse, mas o capitão de um barco com um carregamento tão valioso como esse podia se expor a tudo, exceto a ser abordado.
Nada no mundo agradava mais a Jack do que perseguir a uma presa no mar, mas fazia algum tempo que sua alegria havia diminuído, como havia ocorrido ao cavalo de seu sonho. No fundo de sua mente, uma voz perguntou em tom desconfiado por que os tripulantes da galera haviam se alarmado ao ver um barco da Companhia em um lugar por onde lhe era permitido passar e por que não haviam atravessado a apertada passagem. Também disse que apesar de que o homem do bombacha de cor carmim corria de uma ponta a outra do corrimão central arengando para os remadores e dando golpes com sua vara, a velocidade da galera não correspondia ao rápido movimento dos remos. Jack pensou que tudo isso era estranho.
Havia enganado a muitos inimigos no mar para que alguém pudesse enganar-lhe com facilidade. Quando a corveta chegou a estar a tiro de mosquete da galera e os marinheiros que estavam no castelo começaram a dar gritos de alegria, suas suspeitas se confirmaram porque viu um cabo que se estendia desde a popa da galera até a metade de sua agitada esteira.
- Senhor Williamson! - gritou. - Senhor Calamy!
Os guardas-marinhas se aproximaram dele correndo, com uma expressão alegre.
- Sabem o que fazem os patos quando têm as asas quebadas? - perguntou.
- Não, senhor - responderam sorridentes.
- Tentam jogar sua penas nos olhos de um. As ventoinhas fazem o mesmo quando alguém se aproxima de seus ninhos. Os senhores vêem esse cabo que sai da popa da galera?
- Sim, senhor - disseram depois de olhar fixamente a popa durante um tempo.
- Está atado a um pedaço de lona que serve de âncora e se encontra debaixo da superfície. Por isso podem remar com todas suas forças e, contudo, permitir que lhes alcancemos. Olhem, agora podem ver o aro que há na esteira. Querem levar-nos ao desmache, e por isso vou afundar sua galera. Senhor Mowett, prepare os canhões de estibordo!
No momento em que as portalós se abriram, o homem de bombacha de cor carmim correu até a popa e cortou o cabo. Então a galera começou a navegar com tanta rapidez que sua proa formava ondas que chegavam até a metade de seus costados. Hassan atravessou o convés correndo, com sua túnica branca ondeando e uma expressão preocupada em lugar de sua habitual expressão indiferente.
- Ele roga para que não dispare na galera, porque tem um tesouro a bordo - disse Stephen.
- Diga-lhe que estamos aqui para tomar Mubara, não para fazer-nos ricos - disse Jack. - Não somos corsários. Não podemos capturar a galera neste lado da ilha porque navega muito rápido agora, como pode ver, e assim que dobrar o cabo, seu capitão dará o alarme. Senhor Mowett, ice a bandeira turca. Senhor Borrell, dispare um canhonaço na parte baixa da abobadilha, por favor.
A galera virou noventa graus para estibordo e começou a avançar para o arrecife a toda velocidade, e agora da corveta só se viam sua popa e alguns bancos, e foi a sua popa aonde o condestável apontou o canhão. Ia disparar de uma plataforma estável em um alvo estável e não podia falhar porque era um excelente profissional, ainda que se errasse, a bateria de estibordo faria o trabalho por ele. Disparou com o coração encolhido, arqueou o corpo para esquivar o canhão quando retrocedia violentamente e depois, enquanto os artilheiros de sua brigada moviam o aparelho para arrastá-lo e limpavam seu interior, que ainda crepitava, tratava de ver através do fumaça.
- Muito bem, senhor Borrell - disse Jack.
Vira do castelo de popa que a bala acertou o alvo, fazendo saltar pedaços de madeira justo na altura da linha d’água. A maioria dos tripulantes haviam visto também, e nesse momento deram um grito, mas não de triunfo nem de alegria, mas de sincera admiração. A galera seguiu movendo-se, mas os remos deram somente uma remada a mais juntos, porque depois começaram a mover-se em distintas direções e a cruzar-se e, finalmente, foram abandonados, e Jack viu pelo telescópio que os tripulantes desamarravam as lanchas. Apenas acabaram de cortar as amarras e as trincas, a galera afundou, deixando a eles e às lanchas flutuando nas águas tranqüilas. Nesse mesmo momento a bateria de uma ilhota que ficava do outro lado de Hatiba, no extremo mais distante da entrada da baía de Mubara, começou a disparar contra a Niobe, mas esses disparos eram simplesmente demonstração de raiva, pois a corveta se encontrava a uma distância superior a um quarto de milha do alcance dos canhões.
- Orçar e diminuir velame! - gritou Jack, pensando imediatamente em cuidar dos paus.
Enquanto a velocidade da corveta diminuía, Jack, com as mãos atrás das costas, pensava na armadilha em que evitara cair e na fortuna que perdera, e ao mesmo tempo olhava as abarrotadas lanchas que atravessavam a passagem do arrecife para entrar nas águas pouco profundas da laguna. Não sabia se agora estava mais alegre ou mais triste. Não sabia se se alegrava do ocorrido ou o lamentava, e estava tão exaltado que não podia saber com segurança. Então pensou: "Não cheguei a ver os franceses, nem ao menos no final. Provavelmente estavam vestidos como os árabes".
- Senhor, o estandarte da galera se vê ainda - disse Mowett. - Quer que o peguemos?
- Claro que sim! - respondeu Jack. - Desça uma lancha.
Seguiu com a vista a rota pela qual a galera havia ido até ali e, a certa distância do arrecife, viu o tope e um pedaço da parte superior do mastro maior de uns dois pés, e o galhardete verde com a ponta em forma de calda de andorinha fazendo um movimento ondulatório na superfície.
- Não, para - disse. - Viraremos e nos aproximaremos na corveta. E, pelo amor de Deus, ordene estender alguns toldos, porque se não nossos miolos vão derreter.
A água estava claríssima. Quando os marinheiros jogaram a âncora de leva, não só puderam ver debaixo dela a galera, com a quilha apoiada sobre uma plataforma coralínea de cinqüenta jardas de diâmetro, como também a amarra de sua própia âncora descendo mais e mais e uma âncora coberta de uma crosta procedente de um naufrágio anterior. Os marinheiros se inclinaram sobre a borda e olharam para abaixo com tristeza.
Durante o almoço, Jack disse:
- Decidi que ficaremos aqui enquanto Hassan e os turcos discutem sobre que parte da ilha é melhor para desembarcar, pois seria absurdo mudar de bordo de um lado para outro e afastar-se e aproximar-se todo o dia com este maldito calor. Mas talvez deveria ter escolhido outro lugar, porque quando vejo debaixo de nossa quilha cinco mil bolsas a menos de dez braças de profundidade quase me arrependo de praticar a virtude.
- A que virtude se refere, meu amigo? - perguntou Stephen. Stephen era seu único convidado, já que o senhor Martin se havia desculpado por não assistir ao almoço dizendo que não podia comer nem um bocado com esse calor, ainda que havia acrescentado que estaria encantado de reunir-se com eles quando tomassem o chá ou o café.
- Deus nos assista! - exclamou Jack. - Não se deu conta de que fiz um ato heróico?
- Não.
- Ao afundar essa galera, joguei uma fortuna por minha própia vontade.
- Mas não podia apresá-la, meu amigo. Você mesmo disse.
- Não nesta parte. Contudo, se contornássemos a ilha, nós a perseguiríamos até a baía, e seria estranho se nos impedissem de apoderar-nos do tesouro, tanto se houvéssemos tomado Mubara como se não.
- Mas tinham as baterias carregadas. Estavam nos esperando prontos para disparar. Teriam explodido a corveta.
- É mesmo, mas eu não o sabia então. Dei a ordem para fazer o bem, para que a expedição não fracassasse e os franceses e seus aliados perdessem o dinheiro. Eu me assombro de minha própia magnanimidade.
- O pastor pergunta se pode entrar agora - disse Killick, com voz mais aguda e desagradável que o habitual, olhando com raiva a parte posterior da cabeça do capitão Aubrey, e depois fez um gesto depreciativo e murmurou a palavra "magnanimidade".
- Entre, meu amigo, entre - disse Jack, levantando-se para cumprimentar ao senhor Martin. - Agora mesmo estava dizendo ao doutor que esta situação é absurda, porque um grupo de pobres estão flutuando sobre uma fortuna, e sabem que está alí e a vêem, por assim dizer, a arca onde está guardada, e, contudo, não podem alcançá-la. Killick, apressesse com o café! Ouviu?
- Totalmente absurda, senhor - disse Martin.
Pouco depois Killick trouxe a cafeteira e a pôs na mesa fazendo uma forte inspiração, e depois de um breve silêncio, Stephen disse:
- Sou um escafandrista - disse Stephen.
- Stephen, por favor, modere-se - disse Jack, que tinha muito respeito aos eclesiásticos.
- Todo mundo sabe que sou um escafandrista - disse Stephen, olhando-lhe fixamente. - E durante as últimas horas estive pensando que tenho o dever moral de mergulhar.
Era verdade. Ninguém lhe havia pedido abertamente que o fizesse, e, depois da triste sorte que havia ocorrido o pobre Hairabedian, ninguém tinha a coragem para pedir, mas vira a muitos marinheiros conversando em voz baixa e lançando olhares tão eloqüentes como os dos cachorros para seu sino de escafandrista, que estava colocado agora em um canto do convés.
- Assim que vou descer - continuou, - com sua permissão, tão logo como John Cooper monte o sino. Meu plano é meter ganchos pelas juntas das tábuas que formam o convés da galera para que as tábuas se rompam quando eles forem puxados e fique ao descoberto o que está debaixo. Mas necessito de um companheiro para que me ajude a fazer as manobras.
- Eu também sou um escafandrista - disse Martin, - e estou acostumado a estar no sino. Eu me encantaria em ir com o doutor Maturin.
- Não, não, cavalheiros - disse Jack. - Os senhores são muito amáveis, infinitamente generosos, mas não devem pensar nisso agora. Pensem no perigo que correrão. Pensem no final que teve o pobre Hairabedian.
- Não temos intenção de sair do sino - disse Stephen.
- Contudo, os tubarões não podem entrar nele?
- Duvido, porém, ainda que assim fosse, nós os induziriamos a sair com um arpão de ferro ou uma pistola.
- Exatamente - disse Killick, e deixou cair um prato para dar ênfase à sua afirmação e depois se foi com os pedaços na mão.
Quando Stephen havia descido para almoçar com o capitão, os marinheiros que se encontravam no convés estavam tristes, cansados, decepcionados, quase asfixiados por causa do calor, e tinham tendência a brigar uns com os outros e com os turcos; contudo, ao regressar encontrou uma atmosfera alegre, olhares afetuosos, caras sorridentes, risos de proa a popa. Além disso, seu sino já estava montado e pronto para passar por cima da borda e descer. Tinha o vidro resplandecente, e em seu interior estavam penduradas várias vinhateiras que seguravam seis pistolas carregadas e duas lanças de abordagem, e sobre o banco havia numerosos ganchos, polias e cabos perfeitamente aduchados. Mas os risos cessaram e a atmosfera mudou por completo quando o que era uma probabilidade se converteu em uma realidade.
- Não acha que deveria esperar o entardecer, senhor? - perguntou Bonden quando Stephen se dispunha a entrar no sino, e a julgar pela expressão grave e preocupada dos outros, o marinheiro falava em nome de muitos de seus companheiros.
- Bobeiras! - exclamou Stephen. - Lembre, quando desçamos duas braças, pararemos e renovaremos o ar.
- Talvez devessemos mandar primeiro dois guardas-marinhas para que fizessem um teste - disse o contador.
- Senhor Martin, por favor, sente-se em seu lugar habitual - disse Stephen e, voltando-se para o marinheiro encarregado dos barris, recomendou: - Tenha cuidado para que não nos falte ar.
Não havia que temer isso. James Ogle deu voltas na manivela como se de seu movimento dependesse sua salvação, e antes que o sino descesse as duas primeiras braças debaixo d’água, já havia acumulado ali o ar que ia ser introduzido nele. Tudo o que os preocupados e angustiados marinheiros podiam fazer na corveta para proteger-lhes o fizeram, e vinte deles foram selecionados para alinhar-se no costado com mosquetes; contudo, não podiam fazer quase nada mais que vigiar as polias, e todos viram aterrorizados como um enorme peixe de uns trinta e cinco ou quarenta pés de comprimento passava entre a corveta e o sino a uma profundidade tão grande que não estava ao alcance dos mosquetes. O peixe passou por em cima do vidro, ocultando a luz do dia, e Stephen, olhando para cima, disse:
- Esse deve ser um Carcharodon. Vamos ver o que ele faz.
Abriu a chave de um barril e o ar usado formou uma corrente de bolhas. O enorme tubarão virou fazendo um só movimento e desapareceu.
- Queria que tivesse ficado mais tempo - disse Martin, tratando de alcançar o tubo do outro barril. - Poggius diz que é muito raro.
Subiu o tubo e o ar comprimido se espalhou pelo interior do sino e fez descer até a borda dele as poucas polegadas de água que haviam entrado.
- Acho que este é o dia mais claro de todos os que havemos descido - acrescentou.
- Acho que tem razão. Nunca subi em um globo aerostático, por desgraça, mas suponho que flutuar no ar produz esta mesma sensação, a sensação de ser imaterial ou estar em um sonho. Olhe, um pequeno Chlamys heterodontus!
Poucos minutos mais tarde o sino se assentou sobre a coberta da galera, detrás das bancadas e justamente em cima da escotilha de popa, cujos quartéis se haviam desprendido.
O tempo passava, e parecia interminável para os que estavam acima e, em troca, muito curto para os que estavam abaixo.
- Que estarão fazendo? - perguntou Jack por fim. - Que estarão fazendo? Queria que não lhes houvesse deixado ir.
Não chegava nenhum sinal desde o sino e o único sinal de que ainda havia vida nele eram os jorros de ar que formavam bolhas na superfície de vez em quando.
- Talvez deveríamos mandar-lhes uma mensagem - disse Martin, depois da décima tentativa de unir o cabo, o gancho e a polia. - Talvez deveríamos dizer-lhes que mandassem um cabo que já tenha amarrado um gancho e esteja colocado em uma polia.
- Não quero que pensem que não sou um bom marinheiro - disse Stephen. - Vamos tentar só mais uma vez.
- Há dois pequenos cações olhando pelo vidro - disse Martin.
- Sim, sim - disse Stephen em tom irritado, - mas lhe rogo que atenda a isto. Passe o cabo por esta presilha enquanto eu a mantenho aberta.
Ainda que o cabo tenha passado pela presilha, o conjunto não se manteve unido, e não tiveram mais remédio que mandar uma mensagem escrita em uma placa de chumbo com uma punção de ferro.
Então os marinheiros desceram um gancho que inclusive a pessoa mais tonta podia colocar. Era preciso fazer um grande esforço para descê-lo desde o convés da Niobe, mas os marinheiros que puxavam o cabo não se importavam, apesar de que havia muita umidade e a temperatura era de cento vinte e oito graus Farenheit debaixo dos toldos. Pouco depois começaram a ver grandes pedaços do convés da galera flutuando na superfície. Posto que todas as tábuas que formavam a coberta eram muito delgadas e leves, exceto os vaus que ficavam diante e detrás dos mastros, o convés pôde romper-se com um gancho, e os vaus se desprenderam quando a âncora pequena da Niobe puxou eles para cima. Quando terminaram de abrir o casco, as águas estavam tão agitadas que não se via nada desde a corveta, mas do sino chegou outra mensagem: "Vemos cofres ou caixas, aparentemente celadas. Se nos deslocam uma jarda para a esquerda, poderemos alcançar o mais próximo e o ataremos com um cabo".
- Nunca pensei que um cofre tão pequeno pudesse pesar tanto - disse Martin quando subiam o cofre até o centro do sino, onde havia mais luz. - Percebeu que o selo francês, esse com o galo que simboliza a Galia, é vermelho, e que o árabe é verde?
- Sim, muito bem. Se você o inclinar um pouco, passarei o cabo ao redor dele duas vezes.
- Não, não. Devemos rodeá-lo com o cabo e amarrar os dois extremos por cima, como se fazem nos pacotes. Queria que na Armada houvesse cordas normais, porque este cabo é tão grosso e tão pouco flexível que é muito difícil fazer um nó. Acha que este nó é adequado?
- É estupendo - disse Stephen. - Agora temos que passá-lo por debaixo do sino e fazer a sinal.
- Senhor, do sino chegou a mensagem: "puxar" - disse Bonden.
- Então comecem a puxar, mas devagar, muito devagar - disse Jack.
Nesse momento não saiam bolhas do sino. Todos viram o cofre subir devagar pela água, no início não muito claramente, mas depois perfeitamente, e os marinheiros que notaram seu peso sorriram.
- Meu Deus! - exclamou Mowett. - O nó está se desfazendo! Rápido, rápido…! Maldito seja!
Ao chegar à superfície o cofre se soltou e começou a descer, movendo-se em direção ao o sino.
Enquanto Jack, cheio de angústia, seguia com a vista sua trajetória pensou "Se golpeia o vidro, estão perdidos" e ao mesmo tempo gritou:
- Rápido, puxem o cabo do sino!
O cofre passou a poucas polegadas de distância do vidro, chocou-se com estrépito contra o sino e caiu junto à borda.
- Da próxima vez temos que fazer o nó ao revés - disse Martin.
- Não posso suportar isto mais tempo - disse Jack. - Descerei e farei o nó eu mesmo. Senhor Hollar, dê-me um pedaço de merlín{14} e outro de cordão. Subam o sino!
Os marinheiros subiram o sino e o colocaram sobre o convés. Então Stephen e Martin saíram dele e foram aclamados por todos.
- Acho que não apertamos bastante o nó - disse Stephen.
- Bobeiras! Fizeram um magnífico trabalho, doutor. Eu lhe felicito sinceramente, senhor Martin, mas desta vez eu ocuparei seu lugar. O senhor já sabe o que dizem: Sapateiro, a teus sapatos.
Todos se riram ao ouvir isto, pois tinham tão bom humor que não puderam se conter. Contudo, o capitão Aubrey entrou no sino sobrepondo-se à aversão que sentia por ele, e não pôde evitar que sua expressão alegre e triunfante se transformasse em uma grave. Detestava estar encerrado (nunca teria descido a uma mina de carvão por nada do mundo) e durante a descida lhe assaltaram temores irracionais e teve que reprimir seu desejo de sair dali. Mas as pausas que faziam na água, a renovação do ar e a eliminação do ar usado o mantinham ocupado, e quando se pôs de pé sobre umas tábuas da galera se sentiu melhor e seguro.
- Voltamos ao mesmo lugar onde estávamos - disse Stephen. - Esse é o cofre que caiu. Vamos metê-lo aqui.
- São todos iguais? - perguntou Jack, olhando o pesado cofre, que tinha profundas ranhuras dos lados.
- Pelo que vi, todos são exatamente iguais - disse Stephen. - Olhe, aqui junto à borda há uma fila que chega até a proa.
- Então não tem sentido usar cabos, porque com correntes poderemos pegá-los em um instante. Vamos subir para pegar um par delas. Nós levaremos este no banco.
Outra vez os marinheiros subiram o sino e o colocaram sobre o convés, e outra vez se ouviram vivas, mas agora muito mais altos. Bonden e Davis, dois homens muito robustos, levaram o pequeno cofre ao centro do castelo de popa.
- Dêem passagem! - gritou o contramestre, empurrando os tripulantes da Surprise, os turcos e os marinheiros das Índias Orientais, que, cheios de alegria e ansiedade, haviam se aglomerado ao redor.
Então o carpinteiro, com suas ferramentas, passou pela abertura que deixaram. Depois se ajoelhou junto ao cofre, tirou três pregos e levantou a tampa com uma alavanca.
Os alegres e ansiosos marinheiros, agora mais perto uns dos outros que antes, ficaram perplexos. Os que sabiam ler leram devagar a frase Merde á celui qui le lit, que estava pintada em branco em um bloco de metal de cor cinza fosco.
- Que significa isto, doutor? - perguntou Jack.
- Mais ou menos: Merda àqueles que lêem.
- É um maldito lingote de chumbo! - gritou Davis, e pegou o lingote com um rápido movimento e se pôs a dançar sustentando-o em alto acima de sua cabeça, vermelho de ira e com a boca cheia de saliva.
- Dá-me e o jogarei pela borda - disse Jack em tom amável, dando-lhe palmadinhas no ombro.
- Senhor… - disse Rowan em tom vacilante. - Quer comprar pescado?
- Nada me agradaria mais, senhor Rowan - respondeu Jack. - Mas, por que me pergunta?
- Há um barco abordado com a corveta, senhor, e o pescador tem um pescado que parece uma arraia com manchas vermelhas. Faz bastante tempo que está aqui, e temo que partirá se não o atendermos imediatamente.
- Compre todo o pescado que tenha a bordo - disse Jack. - Doutor, tenha a amabilidade de perguntar-lhe sobre a situação da ilha com ajuda do senhor Hassan. Isso permitirá aos turcos decidir onde vão desembarcar e a nós saber que medidas devemos tomar.
Foi para sua cabine, e ali se encontrou com Stephen no final da calorosa tarde.
- A situação é clara, Jack - disse. - Os franceses chegaram à ilha faz um mês e reconstruíram as fortificações e colocaram baterias em todos os lugares onde eram necessárias. Não é possível desembarcar. Durante as duas últimas semanas fizeram a galera passar pelo canal em direção sul pela noite e navegar em direção contrária pela manhã. Os pescadores estavam convencidos de que levava grande quantidade de prata, e provavelmente os franceses deixaram a bordo os cofres em que foi transportada para que seguissem acreditando, porque se nós nos encontrássemos com alguma feluca ou alguma falua, seus tripulantes nos falariam do tesouro e isso nos atrairia.
- Eles nos enganaram - disse Jack. - Fizemos papel de bobos.
- Acho que é de esperar que seja esse o resultado de qualquer operação da qual se fale tanto como esta - disse Stephen. - Apesar disso, estou assombrado da exatidão de sua informação.
CAPÍTULO 7
Durante a viagem de regresso da Niobe para Suez, o vento do norte soprou quase ininterruptamente, pelo que a corveta teve que avançar dando bordejadas, às vezes duas ou três em cada guarda, e a ordem "Todos a mudar de bordo!" se repetiu mais vezes que a chamada dos faxineiros, pois não só se dava de dia, mas também de noite. Tinha os fundos muito sujos, especialmente na parte onde se haviam desprendido as placas de cobre, e isto provocou que perdesse os estais mais amiúde do que era de esperar e que navegasse a muito pouca velocidade, o que afetou em grande medida aos numerosos homens que iam a bordo, que pensavam que derrotariam os turcos em Mubara e completariam a aguada ali. A água foi racionada, e a concha do tonel que sempre ficava no convés para que qualquer um bebesse, foi substituída pelo cano de um mosquete desmontado, assim que todo aquele que desejava beber tinha que sorver a água com ele. Contudo, para que nenhum bebesse sem uma poderosa razão, o cano foi colocado no cesto da gávea do maior, porque os homens não pensariam que valia a pena subir para pegá-lo em meio do asfixiante calor se não tivessem uma sede terrível. Os turcos pensaram que isso era uma injustiça, e disseram que, apesar de que outros subissem, eles não eram capazes de subir porque nem suas mães nem seus pais eram macacos, e os marinheiros responderam que eles não trabalhavam e que não podiam ter sede porque tinham enrolada na cabeça essa coisa horrível. Mas esse argumento não pareceu convincente para os turcos, e poderia ter-se criado um grave problema na Niobe se não houvesse rumado para Kossier, onde se podia pegar muita água, ainda que a corveta teve que ficar a considerável distância da costa e os poços ficavam em lugares aos quais era difícil chegar nas lanchas.
A tarefa de encher todos os tonéis de água e levá-los a bordo era demorada, e ali foi mais demorada ainda. Geralmente o ar que rodeava o mar Vermelho era tão úmido que os raios de sol não queimavam a quem ficava exposto a eles, e por isso os marinheiros trabalharam desnudos da cintura para cima, e a maioria deles ainda tinham a costas pálidas depois de ter passado semanas assim. Mas numa sexta-feira começou a soprar o terral, um vento tão seco que as bolachas, as cartas marítimas e os livros se enrugaram em pouco tempo e a pele de alguns marinheiros se pôs vermelha como um tijolo e a de outros, púrpura. A ordem pela qual se retirava a permissão para trabalhar sem camisa para os marinheiros que não eram de raça negra, amarela ou acobreada chegou tarde, e ainda que Stephen lhes tenha untado a costas com azeite de oliva, as queimaduras eram tão profundas que o azeite não fez efeito. A partir de então carregar a água foi um processo mais doloroso e mais lento, e enquanto isso, o bimbashi, que não havia perdoado Jack por ter-se deixado enganar, mostrava-lhe o cenário de outra grande derrota da Armada real e lhe contava com detalhe como havia ocorrido. O bimbashi lhe mostrou a pequena fortaleza com cinco canhões que defendia a enseada de Kossier, à qual duas fragatas de trinta e dois canhões, a Daedalus e a Fox, haviam disparado canhonaços durante dois dias e uma noite quando a cidade estava ocupada pelos franceses. Disse que haviam disparado seis mil bombardeios e o escreveu para que não houvesse erro e depois acrescentou que os ingleses não puderam tomar a fortaleza e que os turcos haviam logrado repelir o ataque sem perder mais que um canhão, ainda que se havia produzido um grande número de baixas.
Jack havia dito a Stephen: "Por favor, diga ao bimbashi que lhe estou muito agradecido pela informação e que considero que é muito cortês o fato de tê-la dado". Suas palavras haviam tido que ser transmitidas necessariamente através de Hassan, um homem refinado que se havia envergonhado de ouvir ao bimbashi contar aquela história e ainda estava envergonhado.
Contudo, Hassan se despediu de Jack com a mesma frieza que o bimbashi quando chegaram a Suez. Então o árabe voltou ao deserto e o turco levou seus homens para o quartel.
- Que maneira mais estranha de dizer adeus! - exclamou Jack, olhando com pena e indignação como Hassan se afastava. - Sempre o tratei com cortesia e nos dávamos muito bem. Não sei o que lhe fez adotar essa atitude soberba.
- Ah, não? - perguntou Stephen. - Pois que ele esperava que descesse para pegar as setecentas e cinqüenta bolsas que ele prometeu lhe entregar se atraiçoasse os egípcios. Pensava que havia cumprido a sua parte do contrato e que ele não podia lhe dar nem uma só bolsa, e muito menos várias centenas, no momento de partir. Achava que pretendia zombar dele, e isso é suficiente para que um homem adote uma atitude reservada e soberba.
- Em nenhum momento aceitei sua disparatada proposta. Nem a considerei.
- Naturalmente que não! Contudo, ele acredita que sim, que é o que importa. Mas não é um homem desagradável. Pela manhã, enquanto você estava limpando os fundos da corveta, estive falando com ele e com um médico copta que fala francês, um homem que ele conhece desde a infância e que nos servirá de intermediário se temos que voltar a tratar algum assunto com o governador egípcio. Esse cavalheiro tem relações com muitos mercantes gregos e armênios, e avidez de informação. Quer que peça um pouco mais deste admirável sorvete, a única coisa fria de toda a criação, e que lhe conte o que averiguei?
- Sim, por favor.
Estavam sentados no terraço que ficava justo em cima da entrada do caravançará onde Stephen havia deixado sua manada de camelos e onde agora se encontravam os homens do capitão Aubrey. Os tripulantes da Surprise haviam terminado suas tarefas matutinas e agora a maioria deles estavam descansando - debaixo dos arcos da galeria que rodeava o pátio e contemplando os camelos, que estavam sob o sol, a pouca distância da carga que teriam que levar no futuro: fardos, o sino desmontado e muitas caixas com pedaços de coral, conchas e outras maravilhas da natureza recolhidas por Stephen e Martin. Vários tripulantes haviam adotado alguns dos cachorros meio selvagens que vagabundeavam pelas ruas de Suez e David discutia com o dono de uma ursa da Síria o preço de seu filhote de urso. Todos pareciam homens aprazíveis e amáveis, porém, no fundo do pátio, havia numerosos mosquetes empilhados ao estilo da Armada, e talvez isso e o diamante de Jack influíram em que o vice-governador egípcio fosse mais complacente que antes. Seus soldados haviam sido chamados para acompanhar a Mehemet Alí em uma operação bélica, e ainda que voltou a pedir a Jack que lhe pagasse direitos de ancoragem, não insistiu, e tampouco os aduaneiros insistiram em que pagasse direitos de aduana quando lhes disse que nas caixas não havia mercadoria senão objetos pessoais e que não podiam abrir.
Trouxeram o sorvete, tão frio que estava coberto de geada, e Stephen tomou uma pinta inteira e depois disse:
- Então, parece que o Serviço secreto tinha razão no que dizia sobre o carregamento da galera, mas estava equivocado com relação à data de sua partida. Os franceses sabiam muito bem quais eram nossas intenções e provavelmente também todos nossos movimentos e contrataram um grupo de cristãos de Abissínia como tripulantes para que a levassem ao seu destino durante o ramadã. Mas depois que os tripulantes abissínios voltaram ao seu país, ordenaram a outros levar continuamente a galera de uma ponta a outra desse espantoso canal e difundiram o rumor de que transportavam mais tesouros de uma das ilhotas do sul para que chegasse até nós. Esperavam que nós, convencidos do valor do carregamento, perseguiríamos a galera. Então a galera nos levaria a um braço do mar que se encontra do outro lado das baterias, onde a tripulação a abandonaria, e depois, enquanto nós houvéssemos subido a bordo dela, a teriam destruído ou nos haveriam capturado.
- Por isso tinham tantos botes! - exclamou Jack. - Naquele momento me perguntei por que - disse Jack ofegante e, depois de se abanar por um momento, acrescentou: - Killick surpreendeu a um dos homens do vice-governador tratando de abrir uma das caixas com os selos estampados que o senhor Martin me pediu para guardar seus equinodermos. Acho que o vice-governador suspeita que abordamos a galera. Fez todo o possível para que o convidasse para subir em nossa corveta. O que será que os turcos lhe disseram?
- Eles lhe disseram a pura verdade. Bem, agora é evidente que Mehemet Alí joga sujo com o Sultão, e, naturalmente, os egípcios pensam que os turcos fazem o mesmo com eles. Aqui alguns pensam que nos apoderamos do tesouro francês ou pelo menos de parte dele; outros pensam que tiramos do mar um tesouro que estava afundado há muito tempo; outros pensam que pegamos pérolas nos lugares onde eles sabem que há muitas, mas onde ninguém se atreve a mergulhar; e outros pensam que fracassamos. Por outro lado, acho que todas as criaturas pensantes e com duas pernas que há na cidade pensam que nós usamos o sino para conseguir bens materiais. Não sei com qual dessas opiniões coincide a do vice-governador, mas Hassan me aconselhou que não confiasse nele, entre outras razões, porque se houver a ruptura entre Mehemet Alí e o Sultão, o que é muito provável, ele não terá medo das represálias dos turcos por ter nos tratado mal. Direi a Martin que cuide melhor de seus equinodermos.
- Não vou dizer que me importo pouco com o vice-governador - disse Jack, - e tampouco que não tem poder porque não tem soldados, porque isso poderia trazer má sorte, mas deixaremos de vê-lo amanhã. Contudo, tenho que dizer algo em favor dele: foi bastante cortês e nos conseguiu um bom grupo de camelos. Acredito que os trarão ao amanhecer. E se fizermos a viagem com mais calma desta vez, andando pela manhã e pela tarde e descansando ao meio-dia e pela noite, e se tudo vai bem, dentro de três ou quatro dias também deixaremos de ver este horrível país e estaremos a bordo do bendito Dromedary, navegando pelo Mediterrâneo como cristãos… e eu terei que escrever o relatório oficial. Que Deus me ajude! Garanto que preferiria ser açoitado diante de todos os barcos da esquadra, Stephen.
Jack Aubrey nunca havia gostado de escrever cartas oficiais, nem sequer aquelas em que comunicava uma vitória, e a idéia de ter que escrever uma em que devia dizer que havia fracassado, sem poder mencionar nenhum benefício ou ganho que o compensasse (não capturara nenhuma presa, não conseguira nenhum aliado valioso), fez decair seu ânimo.
Mas voltou a animar-se quando chegou o médico copta, o doutor Simaika, que havia ido visitar Stephen e falar-lhe de política européia, de oftalmía e de lady Hester Stanhope. O visitante havia trazido uma cesta com folhas de khat recém colhidas e quando Jack e Stephen as mascavam para comprovar se lhes fariam sentir menos calor, começou a falar do adultério, da fornicação e da pederastia no Egito, fazendo referência aos seus aspectos menos trágicos, e assinalando que Sodoma ficava ao este-nordeste, detrás do oásis de Moisés, a tão somente alguns dias de caminho. Falava com tanta zombaria e estava tão alegre que Jack passou uma tarde muito agradável, e passou muito tempo rindo apesar de que não entender muitas coisas das quais dizia e amiúde tinha que pedir-lhe que as explicasse. Jack achava que Suez não era agora um lugar tão repugnante, pois o calor era realmente mais suportável e o vento arrastava a pestilência para o mar, por isso, quando o vice-governador enviou o seu secretário para dizer-lhe que seria melhor que o capitão Aubrey não partisse no dia seguinte o recebeu muito sereno.
Afortunadamente, o doutor Simaika ainda estava ali, e o assunto ficou claro: como tiraram do vice-governador até o meio pelotão de soldados que formavam sua guarda e que haviam prometido deixar-lhe, considerou conveniente mandar um mensageiro a Tina para que trouxesse consigo um grupo de soldados turcos que poderiam escoltar o capitão Aubrey quando atravessasse o deserto, e como os soldados tardariam uns dez dias para chegar, enquanto isso ele poderia desfrutar da agradável companhia do capitão Aubrey.
- Que Deus não o permita! - exclamou Jack. - Por favor, diga-lhe que conhecemos muito bem o caminho e que não necessito de escolta porque meus homens irão armados e que nada me causaria mais satisfação que estar em sua companhia, mas que tenho que cumprir o meu dever.
O secretário perguntou se o capitão Aubrey se responsabilizaria do que ocorresse e não culparia o governador caso lhe ocorresse algo como, por exemplo, que um de seus homens fosse mordido por um camelo ou que os ladrões lhe roubassem em um oásis.
- Oh, sim, assumo a responsabilidade! Apresente meus respeitos a sua excelência e diga-lhe que eu gostaria fazer as coisas como haviamos acordado e, por isso, receber os camelos ao amanhecer.
- Acha que os verei? - perguntou Jack quando o secretário havia partido.
- É possível - respondeu o doutor Simaika com um olhar significativo.
Mas antes de que seu significado fosse explícito, o contador foi lhe pedir instruções de como carregar as provisões, e Mowett, sua opinião sobre a licença dos marinheiros. Ao mesmo tempo começou uma briga no pátio, uma briga entre Davis e o urso, que dava golpes no queixo do marinheiro porque se incomodara com a familiaridade com que lhe tratava.
O copta fez uma inclinação de cabeça e se foi. Stephen desceu correndo para proteger o urso e Jack, depois de ter resolvido o problema das provisões, disse que não dava licença aos marinheiros para que saíssem porque possivelmente partiriam pela manhã e não queria passar o dia buscando os atrasados nos bordéis de Suez. Ordenou que fechassem com chave o portal do caravançará e que fizessem guarda junto dela Wardle e Pomfret, dois suboficiais de certa idade, puritanos e misóginos, que tinham entre os dois dezessete filhos e que eram de confiança quando estavam sóbrios. Depois acrescentou:
- Tenho que ir me despedir da Niobe, que zarpará quando comece a baixa-mar. Mas regressarei logo, para o caso dos camelos chegarem.
Os camelos, barulhentos e fedorentos, chegaram com a luz cinzenta do amanhecer, e quando o portal se abriu, entraram com passos largos. Entre suas pernas, agachando-se o mais possível para que não os vissem e guiados por Wardle e Pomfret, iam numerosos tripulantes da Surprise pálidos e olheirudos, os tripulantes que haviam escapulido durante a noite. Contudo, não faltava nenhum, e Mowett, depois de fazer uma breve inspeção, disse:
- Todos presentes e sóbrios, senhor, com sua permissão.
Em suas palavras não havia mais falsidades além das toleráveis, pois os poucos marinheiros que ainda estavam bêbados não caíram até depois da inspeção, e foram colocados silenciosamente sobre o lombo dos camelos, entre as tendas e as bolsas dos marinheiros.
Enquanto carregavam os camelos com as poucas provisões que lhes restavam da viagem (algumas bolachas, um pouco de tabaco, um quarto de barril de rum e vários aros de barril que o senhor Adams havia guardado porque era o responsável de que não se perdesse nenhum), as bolsas dos marinheiros, os baús dos oficiais e os pertences de Stephen, Killick tirou de Jack seus melhores trajes e os guardou em seu baú, e depois fechou o baú com chave, o envolveu em um pedaço de lona e o pôs sobre um camelo fêmea sumamente dócil que era conduzido por um preto com cara de honrado. Só deixou para Jack uma calça de nanquim, uma camisa de linho, um chapéu de palha de aba larga, duas pistolas e o velho sabre que usava para a abordagem, e pensava pegar as armas do baú quando saíssem da cidade.
Apesar de estar vestido com simplicidade, o capitão Aubrey caminhava majestosamente. Era o primeiro do grupo, e tinha a Mowett de um lado, a um guarda-marinha do outro, e ao seu timoneiro detrás. A seguir iam os oficiais e os tripulantes da Surprise: primeiro os marinheiros do castelo, depois os gavieiros do traquete, depois os gavieiros do maior e, por último, a guarda de popa. E no final iam os camelos carregados com a bagagem. Deixaram Suez dignamente, escoltados por uma nuvem de meninos e cachorros rueiros, pois ainda que muito cedo os marinheiros deixaram de ter os brios que tinham quando começaram a caminhar, pelo menos seguiram formando grupos bem delimitados até que adentraram no deserto.
Agora atravessavam uma parte do deserto pela qual era difícil caminhar, onde a areia era tão branda que a menos que os homens tivessem patas como as dos camelos, afundavam nela até o tornozelo. Além disso, todos haviam passado tanto tempo no mar que tiham trabalho em voltar a caminhar, e quando Jack deu a ordem de parar para desjejuar, a coluna se convertera em uma linha quebrada.
- Há alguns camelos que só têm em cima marinheiros bêbados e umas poucas tendas - disse Martin. - Geralmente, os oficiais do exército vão a cavalo, inclusive nos regimentos de Infantaria.
- Às vezes os da Armada também - disse Stephen, - e em certas ocasiões é engraçado vê-los. Mas cada vez sã mais numerosos os que têm a absurda idéia de que se há que fazer alguma tarefa difícil e desagradável, como caminhar pelo deserto, suportando o calor e sem possibilidade de encontrar uma sombra, todos devem fazê-la. Acho uma idéia insensata e disparatada, fruto da vaidade e de um razoamento ilógico. Eu disse amiúde ao capitão Aubrey que ninguém pensa que ele tenha que ajudar a limpar os sanitários do barco nem a fazer outros trabalhos própios de ofícios desleais, e que atravessar assim o deserto voluntariamente é uma arrogância, uma soberba, um pecado.
- Desculpe-me, doutor Maturin, mas o senhor também faz o mesmo e tem seus própios camelos a mão.
- Eu faço por covardia. Mas minha valentia aumentará a medida que surjam bolhas nos meus pés e se meus tornozelos inchem. Dentro de pouco montarei silenciosamente em um camelo.
- Nós fizemos a viagem de ida cavalgando.
- Isso se deveu a que eles andavam de noite e nós, em troca, passávamos o dia recolhendo plantas. Além disso, passávamos desapercebidos.
- Quantas plantas recolhemos! O senhor acha que chegaremos a Bir Hafsa amanhã?
- Bir Hafsa?
- Aquele lugar onde paramos para descansar e encontramos tantas centáureas para os camelos e um raro eufórbio entre as dunas.
- E lagartos verdes e um curioso chasco e a calandra … É possível que cheguemos. Deus queira que cheguemos!
Contudo, chegou um momento em que não parecia possível. O grupo não avançava muito, porque havia aumentado o calor desde que o sol havia subido um pouco no céu e, além disso, porque os que haviam passado a noite cantando e bailando estavam esgotados. Mas nesta viagem intervinha um fator que não havia influído na que haviam feito para Suez avançando de noite. Posto que ali o deserto era plano, os que desejavam aliviar-se não podiam refugiar-se em nenhum lugar durante o dia, e o capitão e muitos dos tripulantes, que eram tão vergonzosos em suas ações como descarados ao falar, afastavam-se do grupo com o fim de que a distância que os separava dele, amiúde uma grande distância, permitisse manter a decência. Por fim o grupo conseguiu avançar muito pouco, somente até um lugar chamado Shuwak, um lugar em que havia umas ruínas e alguns tamarices e mimosas e que ficava situado a menos de dezesseis milhas de Suez. Mas se fossem mais longe, Stephen não poderia mostrar a Jack uma cobra egípcia, um animal digno de se ver, um magnífico exemplar de cinco pés e nove polegadas que se deslizava pelo solo do pequeno caravançará em ruínas com a cabeça levantada e a capuz estendido, e tampouco teria podido ir com Martin de camelo até a margem de um pequeno lago onde viram sob os últimos raios de sol um curioso martim pescador e uma abetarda mais velha.
Mas no dia seguinte a maioria dos homens haviam recuperado suas forças, e como agora atravessavam uma zona onde a areia era firme, o grupo pôde avançar muito rápido. Depois do descanso do meio-dia, seguiram caminhando com a mesma rapidez, e quando o sol estava ainda a um quarto do horizonte, avistaram Bir Hafsa, um lugar no qual havia outra construção em ruínas e um poço que tinha três palmeiras do lado, um lugar muito próximo do caminho e rodeado de dunas.
- Acho que seria melhor acampar junto daquele poço - disse Jack. - Poderíamos comer com mais calma, e, de toda maneira, não adiantariamos muito se seguíssemos andando mais uma hora.
- Você se importaria que Martin e eu nos adiantássemos com o camelo? - perguntou Stephen.
- Oh, não! - exclamou Jack. - E lhe agradeceria muito que tirasse dali os répteis mais repugnantes.
O camelo em questão, um animal bastante dócil que caminhava com passos muito compridos, adiantou ao grupo muito cedo, apesar de que agora levava carga dupla, e parou junto das centáureas que ficavam próximas das palmeiras quando ainda faltava meia hora para que o sol se pusesse. Quando os dois homens já haviam visto muitos chascos curiosos, com um topete branco, e estavam subindo uma duna situada ao leste do lugar onde se podia acampar, Martin, apontando uma duna que ficava ao oeste, exclamou:
- Olhe que cenário mais pitoresco!
Stephen olhou para lá e viu as silhuetas de um dromedário e seu cavaleiro recortando-se sobre o céu alaranjado. Depois pôs a mão acima dos olhos para protegê-los do sol e viu ao pé da duna muitos mais camelos, e não só camelos mas também cavalos. Então olhou para o sul e viu aos marinheiros, que, sem muita ordem, formavam uma fila de um estadio{15} de comprimento, e mais atrás a fila de camelos carregados com a bagagem que agora avançavam com rapidez porque haviam cheirado o espinhoso pasto.
- Acho que deveríamos descer imediatamente - disse.
Jack estava indicando os lugares onde deviam pôr as tendas e Stephen o interrompeu.
- Perdoe, senhor, mas há um grande número de camelos a menos de uma milha a oeste. Quando os vi dali de cima, os cavaleiros estavam passando para os cavalos, e acredito que é isso o que os beduínos fazem antes de lançar um ataque.
- Obrigado, doutor - disse Jack. - Senhor Hollar, chame todos para seus postos!
Depois, alçando tremendamente a voz, ordenou:
- Guarda de popa, passo ligeiro! Passo ligeiro!
A guarda de popa avançou com passo ligeiro e logo passou a formar o quarto lado do quadrado que compunham com os marinheiros do castelo e os gavieiros do traquete e os do maior.
- Senhor Rowan, o senhor e um grupo de marinheiros levarão os cameleiros e os camelos para se refugiar naquele recinto - ordenou Jack. - Killick, meu sabre e minhas pistolas!
O quadrado não estava tão bem formado como o dos militares, e quando Jack gritou: Calar baionetas!", não se viram lampejos nem se ouviram estalidos nem golpes no solo simultaneamente, mas ali estavam os mosquetes com as baionetas postas e os marinheiros estavam habituados a usá-los. O quadrado era pequeno, mas os marinheiros eram temíveis. Jack, no meio do quadrado, dava graças a Deus por não ter tentado aumentar o ritmo de marcha acrescentando-as à carga dos camelos. Mas não sentiu satisfação quando viu que os camelos se moviam muito lentamente. Seu baú ia em um dos primeiros camelos, e Killick já regressava do recinto, porém, apesar de Rowan e seus homens terem metido a maioria deles para dentro, ainda tinham que fazer entrar aos que haviam se separado do grupo. Estava a ponto de ordenar-lhes algo quando viu aparecer vários ginetes na duna que Stephen havia indicado, e então gritou:
- Rowan! Honey! Regressem imediatamente!
E enquanto os homens regressavam correndo, na areia se viam suas sombras alongadas.
O grupo de ginetes aumentou, e então, todos juntos, lançaram um grito agudo e desceram a duna a galope em direção a Rowan e Honey. Eles os alcançaram, cortaram sua passagem e deram uma volta ao seu redor, apenas a umas polegadas deles, e um momento depois subiram a ladeira galopando furiosamente e, ao chegar no alto, frearam os cavalos bruscamente. Então todos ficaram ali um longo tempo, alguns empunhando sabres, outros, fuzis.
Jack vira muitas vezes os árabes representarem fantasias como essa em Berbería. Avançavam a galope em direção ao seu chefe e aos seus convidados, fazendo disparos no ar, e, no último momento, davam a volta. Quando Rowan e Honey chegaram ofegantes ao quadrado, disse:
- Talvez só fazem isto para se divertir. Não disparem até que dê a ordem.
Repetiu isto com ênfase e se ouviu um rumor de aprovação, ainda que Pomfret sussurrou:
- Diversão estúpida!
Os marinheiros estavam sérios e desgostosos, mas atentos e confiantes. Tanto Calamy como Williamson estavam muito nervosos, o que era compreensível porque não haviam visto batalhas em terra, e Calamy brincava com a chave da pistola.
No alto da duna, um homem com uma capa vermelha apontou para cima com o fuzil, disparou no ar e desceu a ladeira a galope, seguido dos outros, disparando e gritando: "Illa-illa-illa!".
- Estão representando uma fantasia - disse Jack. - Não disparem!
Os ginetes avançaram na direção deles, dividiram-se em dois grupos e rodearam o quadrado, formando uma grande nuvem de poeira, enquanto suas túnicas ondeavam ao vento, os sabres brilhavam à luz do entardecer e os fuzis disparavam sem cessar.
O sol se pôs. O pó opaco adquiriu um brilho dourado. Os ginetes deram outra volta ao redor deles, desta vez mais perto, gritando entre o ruído ensurdecedor dos cascos. Calamy deixou a pistola cair, e saíram lampejos da caçoleta. Nesse momento Killick deixou seu posto lançando-se para frente, como se estivesse ferido, e gritando:
- Não, não, preto bastardo!
Então alguém gritou:
- Estão indo!
Efetivamente, estavam indo. Depois de dar a última volta, haviam começado a galopar em direção oeste, formando uma fila. Então todos viram que os camelos também corriam na mesma direção, açoitados com fúria pelos cameleiros. Puderam ser vistos apenas por alguns momentos na penumbra e imediatamente desapareceram entre as dunas. Mas se restaram dois camelos: um que agora pastava tranqüilamente e que tinha as rédeas quebadas e outro que estava deitado no solo e cujas patas Killick tinha fortemente seguras. Este camelo estava meio enterrado na areia e aturdido porque lhe haviam dado vários golpes e o haviam pisoteado e chutado. Contudo, não estava pior que Killick, que tinha o punho ensangüentado.
- Eu lhe dei o merecido a esse canalha - disse Killick.
O silêncio se fez. A escuridão se estendia com rapidez. Tudo havia terminado, e ninguém havia morrido nem sofrera feridas graves; contudo, o grupo perdera tudo exceto os uniformes e os adornos do capitão Aubrey, vários documentos, alguns instrumentos e duas tendas grandes, que um dos camelos carregava.
- O melhor que podemos fazer é beber tanta água como possamos e continuar a viagem para Tina avançando de noite. Não necessitamos de comida com este calor, e se tivermos fome, comeremos os camelos. Recolham algumas ramas e façam uma fogueira junto ao poço.
Uma grande chama saiu das ramas secas de tamariz, e sob sua luz, Jack não viu o que temia, um buraco seco com um camelo morto dentro, mas uma considerável quantidade de água. Desafortunadamente, não tinham nenhum balde, mas Anderson, o veleiro, fez um imediatamente com o pedaço de lona que cobria o baú de Jack e a caixa de costura que estava dentro, e os marinheiros o jogaram e o encheram uma e outra vez até que já nenhum podia beber mais e os camelos a recusavam.
- Vamos, chegaremos muito bem - disse Jack. - Verdade que chegaremos bem, doutor?
- Acho que poderemos - respondeu Stephen, - especialmente aqueles que respirarem pelo nariz, já que assim evitarão a perda de humores, e os que tenham um seixo na boca o tempo todo e os que se abstenham de urinar e de conversar. Os outros provavelmente ficarão pelo caminho.
Quase imediatamente depois se ouviu nas dunas um forte grito: "Ujú-ujú!". Isso evitou que os marinheiros conversassem, mas depois de um momento, muitos marinheiros começaram a falar em voz baixa. Pouco depois o contramestre se aproximou de Mowett, e depois Mowett foi aonde Jack estava e disse:
- Senhor, os homens perguntam se o pastor poderia pedir a Deus que bendiga a viagem.
- Sem dúvida - respondeu Jack. - Em momentos como este, uma oração vem muito bem, quero dizer, é muito mais apropiada que um tedéu. Senhor Martin, acha adequado celebrar uma breve cerimônia religiosa?
- Sim, naturalmente - disse Martin.
Depois de ficar pensativo por alguns momentos, recitou uma ladainha com voz monótona e sem emoção, e convidou a todos a cantar junto com ele o salmo dezesseis.
Quando o canto deixou de ser ouvido, no deserto iluminado pelas estrelas, os terrores da noite haviam se dissipado.
- Agora estou completamente seguro de que chegaremos bem - disse Jack. - Chegaremos a Tina e à fortaleza dos turcos em perfeitas condições.
Chegaram a Tina (demoraram meio dia desde que avistaram a colina e a fortaleza até que chegaram a ela, caminhando trabalhosamente em meio do sufocante calor, seguidos pelos abutres), mas não chegaram em perfeitas condições. Não comeram os camelos porque necessitavam deles para transportar os homens que haviam perdido as forças por causa da sede, da fome, do terrível calor ou da disenteria que haviam contraído em Suez, e os pobres animais iam tão carregados que apenas podiam caminhar ao lento ritmo da coluna, se àquele grupo de homens sedentos, esgotados e silenciosos podia se chamar uma coluna em vez de um monte de moribundos. Contudo, não viram os turcos. Muito cedo Jack vira pelo telescópio que não havia nenhuma bandeira ondeando na fortaleza, e quando todos já estavam bastante perto dela, viram que não havia movimento no interior e que a porta principal estava fechada e, além disso, que o acampamento dos beduínos já não estava ali, que dava ao lugar um aspecto desolador. Jack não sabia se os turcos haviam se retirado para a fronteira com a Síria porque a Turquia e o Egito haviam rompido relações ou se tinham ido fazer alguma operação bélica, e tampouco lhe importava muito. O que lhe preocupava era o Dromedary. Fazia-se várias perguntas: "Estará ali ainda ou terá nos abandonado porque passou muito tempo? Teve que partir porque houve algum combate entre os turcos e os egípcios? Será que o afundaram?".
As dunas e as colinas cobertas de lodo que beiravam a costa o impediam de ver a parte mais próxima da baía, e a parte mais distante, onde havia deixado o barco, estava vazia, vazia como o deserto. Estava horrorizado com a idéia de que possivelmente não estivesse ali e, por isso, tivessem que ficar naquela praia cheia de moscas sob um sol abrasador, e teve que fazer um grande esforço para serenar-se quando subia a última colina. Contudo, subiu precipitadamente para o cume e parou ali um momento para prolongar a sensação de alívio que lhe havia produzido ver o barco muito perto da costa, amarrado pela proa e pela popa, e a alguns tripulantes pescando nas lanchas ao redor dele.
Então se voltou, e os marinheiros, ao ver sua cara sorridente, caminharam mais rápido, ainda que até esse momento a maioria deles caminhava cambaleando. Contudo, não tinham forças para gritar; só podiam emitir sons roucos que não se ouviam nem a cem jardas. Cumprimentaram os tripulantes das lanchas agitando as mãos, mas eles não lhes viram até depois de um bom tempo, e então se limitaram a responder-lhes agitando as mãos também, o que lhes provocou raiva.
- Disparem os mosquetes! - ordenou Jack.
Alguns homens haviam deixado cair os mosquetes nas últimas insuportáveis milhas, mas outros os conservavam. Ao ouvir os disparos, a lancha que estava mais próxima começou a avançar para o barco, e todos pensaram que provavelmente os tripulantes do Dromedary se haviam assustado porque haviam suposto que os turcos e os egípcios estavam atacando uns aos outros ou atacavam a eles e haviam pensado que era melhor sair para o alto mar; contudo, o que havia ocorrido era que o senhor Alien fora buscar seu telescópio.
Os tripulantes do Dromedary não podiam ter encontrado nada melhor para conquistar a simpatia dos da Surprise que as xícaras de chá, a enorme quantidade de vinho com água e suco de limão e a abundante refeição que lhes ofereceram; os tripulantes da Surprise não podiam ter encontrado nada melhor para conquistar a simpatia dos do Dromedary que contar-lhes as dificuldades que haviam passado e o fracasso de sua missão e expressar-lhes sua gratidão. Quando iam navegando para o oeste, comportavam-se como velhos companheiros de tripulação, e as diferenças entre os marinheiros de barco de guerra e os de barco mercante foram esquecidas. Além disso, os ventos eram mais favoráveis que os que haviam soprado quando haviam navegado pela zona oriental do Mediterrâneo e amiúde mais fortes. Cada dia Malta ficava cem ou cento e cinqüenta jardas mais perto, e cada dia, depois de percorrer as duas ou três primeiras milhas, o capitão Aubrey tentava escrever a carta oficial.
- Stephen - disse quando estavam nos 19°45'E, - por favor, escute isto: "Senhor, tenho a honra de informar-lhe que, seguindo suas ordens do dia três do último, zarpei rumo a Tina com uma brigada sob meu comando e dali fui com uma escolta turca até Suez, onde embarquei na Niobe, uma corveta da Companhia, e, depois que subiu a bordo um grupo de soldados turcos, zarpei com tempo adverso para o canal de Mubara… onde fiz ridículo". A questão é como dizer isto sem que pareça um estúpido.
CAPÍTULO 8
Jack Aubrey, com a carta oficial na mão, subiu a bordo do navio do comandante geral dez minutos depois de que o Dromedary escolheu um lugar para fundear. O almirante o recebeu de imediato e o olhou atentamente de sua mesa, mas o rosto que agora sir Francis via não tinha a expressão própia de alguém que havia conseguido um butim de cinco mil bolsas de quinhentas piastras, e, sem esperanças de obter uma resposta satisfatória, disse:
- Há, finalmente chegou, Aubrey! Sente-se. Como saiu a operação?
- Não saiu bem, senhor.
- Capturou a galera?
- Nós a capturamos, senhor, melhor dizendo, nós a afundamos, mas não tinha nada a bordo. Estavam nos esperando.
- Então terminarei este relatório - disse o almirante, - pois agora tenho todos os dados na mente. Sobre esse armário encontrará alguns jornais e o último número do Boletim Oficial da Armada que chegou ontem mesmo.
Jack pegou a publicação que lhe era tão familiar. Não estivera de viagem por um longo tempo, mas haviam ocorrido importantes mudanças. Alguns almirantes haviam morrido e seus postos, além de outros postos vacantes, já haviam sido ocupados, assim que todas as pessoas que estavam na lista de capitães de navio haviam mudado de lugar. Os primeiros haviam alcançado o nobre grau de contra-almirantes da esquadra azul ou da amarela, conforme os casos, e outros, a um lugar muito mais próximo da apoteose. O nome Jack Aubrey estava muito antes da metade, havia subido mais do que o que correspondia de acordo com o número de almirantes que haviam morrido, e quando Jack tratou de saber os motivos, descobriu que vários capitães de mais antiguidade que ele também haviam morrido, alguns deles por causa de doenças (tinha havido epidemias nas Antilhas e nas Índias Orientais) e dois em combate.
- Uma série de mentiras… Absurdas desculpas… Qualquer coisa para jogar a culpa nos outros… - murmurou o almirante, pondo as páginas do relatório em cima de um monte de papéis e arrumando-as para que ficassem colocadas justamente em cima deles. - Viu quantas promoções para almirante houve? Na verdade, muitos dos oficiais promovidos deixaram o comando de seus barcos sem nunca terem chegado a governá-los bem, e lamento dizer que atualmente a primeira parte da lista de capitães não é melhor que a de antes. Um comandante geral não pode conseguir nada se tem subordinados incompetentes.
- Bem, senhor - disse Jack, envergonhado, e depois de uma desagradável pausa, pondo sobre a mesa um envelope, continuou: - Trouxe a minha carta oficial, senhor, e sinto dizer que não é provável que lhe faça mudar de opinião.
- Diabo! - exclamou o almirante.
Jack pensou que era um dos poucos oficiais da Armada que ainda dizia essa palavra.
- É eterna! - continuou. - Duas, não, três páginas, e escritas dos dois lados. O senhor não tem idéia de quantas coisas tenho que ler, Aubrey. Faz pouco cheguei de Toulon, e havia um monte de papéis esperando-me aqui. Faça um resumo.
- Que? - perguntou Jack.
- Faça uma exposição sucinta, um breve relato, um compêndio. Pelo amor de Deus! O senhor me lembra àquele guarda-marinha tonto que admiti no Ajax por consideração ao seu pai. Eu lhe perguntei: "O senhor não tem o nous{16}?". E me respondeu: "Não, senhor. Não sabia que era necessário trazê-lo a bordo. Mas comprarei um pouco na próxima vez que desça a terra".
- Ah, ah, ah! - riu Jack, e contou sua viagem e terminou dizendo: - E então, senhor, regressei quando vi que, se me permite a expressão, havia feito ridículo. Meu único consolo é que não houve baixas, além do intérprete.
- Obviamente, nossa informação era errônea - disse o almirante. - Teremos que descobrir quais são as causas - acrescentou, e fez uma longa pausa e, por fim, continuou: - É possível que tivesse conseguido algo se em vez de ir esperar a galera fosse imediatamente para Mubara e os turcos desembarcassem ao amanhecer ao amparo do fogo de seus canhões. A rapidez é fundamental em um ataque.
Jack recordava que nas ordens se dizia de maneira explícita que fosse primeiro ao canal do sul e abriu a boca para dizê-lo, mas voltou a fechá-la sem dizer nada.
- Mas isto não é uma censura - prosseguiu. - Não, não… Por outro lado, tenho más notícias para lhe dar: a Surprise deve regressar para a Inglaterra, mas permanecerá ali sem ser utilizada em nenhuma missão ou será vendida. Não, não - disse alçando a mão estendida. Sei exatamente o que vai dizer. - Eu diria o mesmo na sua idade: está em boas condições, restam-lhe muitos anos de vida útil e é mais fácil de manobrar que qualquer outra embarcação. Tudo isso é verdade, ainda que de passagem lhe direi que provavelmente necessitará de custosas reparações dentro de pouco e que, além do mais, como é muito velha, já o era quando a arrebatamos dos franceses no início da guerra passada, em comparação com as fragatas modernas, é pequena e pouco potente, é um anacronismo.
- Permita-me dizer-lhe que o Victory é mais velho ainda, senhor.
- Só um pouco mais. E o senhor já sabe o quanto custaram as suas reparações. Mas isso não é o importante. O Victory ainda pode lutar contra qualquer navio francês de primeira classe porque têm uma potência similar à sua, enquanto que na armada francesa e na norte-americana quase não restam fragatas de potência semelhante à da Surprise.
Era verdade. Há muitos anos havia uma tendência de construir barcos cada vez maiores e mais potentes, e as fragatas mais comuns na Armada real nesse momento tinham trinta e oito canhões de dezoito libras e um arqueio de mais de mil toneladas, quase o dobro do da Surprise. Apesar de tudo, Jack, cheio de tristeza, disse:
- Mas os norte-americanos têm a Norfolk e também a Essex, senhor.
- Outro anacronismo. A excessão que confirma a regra. Que poderia fazer a Surprise com seus canhões de vinte e quatro libras à President ou a qualquer das outras fragatas norte-americanas com canhões de quarenta libras? Absolutamente nada. Tampouco poderia fazer nada a um barco de linha. Não leve a sério, Aubrey. Não é o único barco que há no mundo, sabe?
- Oh, não me importa, senhor! - disse Jack. - Não me importa em absoluto. Quando zarpei no Worcester rumo ao Mediterrâneo, sabia que o intervalo de tempo que estivesse aqui era simplesmente um parêntese até que a Blackwater estivesse pronta.
- A Blackwater? - perguntou sir Francis, surpreso.
- Sim, senhor. Ela me foi prometida. Disseram-me que deveria ir nela para a base naval da América do Norte quando estivesse pronta.
- Quem lhe disse?
- O própio secretário, senhor.
- Ah, é? - perguntou o almirante, baixando a vista. - Compreendo, compreendo. Contudo, antes de que leve a Surprise para a Inglaterra quero que faça com ela algumas missões de pouca importância, a primeira delas no mar Adriático.
Jack disse que com muito gosto as faria e acrescentou:
- Provavelmente o senhor pensará que sou descortês, senhor, porque não o felicitei por sua promoção. Quando subia a bordo vi que agora tem uma insígnia vermelha no mastro traquete. Eu o felicito de todo coração.
- Obrigado, Aubrey, o senhor é muito amável. Mas isso é algo normal nesta etapa de minha vida. Espero que o senhor viva o suficiente para chegar a ter uma no mastro maior. Quer almoçar comigo? Convidei algumas pessoas muito interessantes.
Jack disse que com prazer ficaria. E, na realidade, sentiu-se à vontade comendo sem parar e bebendo o bom vinho do almirante, sentado em meio de duas mulheres e de frente para seu velho amigo Heneage Dundas, que sorria alegremente. Mas quando cruzava o porto na lancha para voltar para a costa, pensou na fragata e lhe invadiu uma grande tristeza. Havia navegado nela quando era guarda-marinha e fora seu capitão no oceano Índico. Era uma fragata complicada e temperamental, mas quem a conhecia bem podia lograr que respondesse bem às manobras e que alcançasse uma grande velocidade. Nunca o havia desapontado nas emergências, e ele nunca vira outra embarcação que navegasse com mais facilidade de bolina e a um largo tanto com ventos frouxos como em meio de uma forte tempestade. Sentiu uma dor quase insuportável ao pensar que poderia apodrecer em um sujo ancoradouro ou ser vendida e convertida em um lerdo barco mercante. Se a galera houvesse sido o que parecia, haveria comprado a fragata para evitar que tivesse essa sorte. Recordava de alguns barcos, especialmente barcos inimigos, que a Armada recusara e havia vendido por uma soma não muito grande.
Não era provável que voltasse a ter sob seu comando a tripulação da Surprise, uma tripulação formada inteiramente por marinheiros escolhidos, que sabiam aferrar, rizar e usar o leme, e que, além disso, simpatizavam com ele. Ele os entendia perfeitamente e eles entendiam a ele e aos seus oficiais. Aos tripulantes da Surprise se podia dar liberdade para fazer coisas que nunca se permitiriam fazer a um barco com uma tripulação formada por indivíduos diferentes, entre os quais houvesse camponeses, ladrões e grande quantidade de homens recrutados a força, que, naturalmente, estariam cheios de raiva e ressentimento, pois a uma tripulação assim era necessário impor a férrea disciplina própia da Armada para adestrá-la nas tarefas habituais (como rizar, aferrar, tirar os mastaréus e subir as lanchas) com métodos adaptados aos menos inteligentes, um trabalho difícil e que quase inevitavelmente incluía duros castigos. Jack Aubrey era um capitão severo, mas não considerava tão necessários os castigos como os outros oficiais. Detestava açoitar os homens e não achava justo mandar flagelá-los por faltas que ele cometera alguma vez, mas como essa era uma tradição da Armada, em muitas ocasiões havia ordenado castigar-lhes com uma dúzia de açoites. Mas sentia um grande alívio quando não tinha que fazê-lo, quando não ficava sumamente indignado nem tinha que inspirar mais medo que todos os outros homens no barco. Desde que se havia ecarregado da Surprise, quase nenhum de seus tripulantes havia recebido castigos corporais, e se entre eles houvesse encontrado mais guardas-marinhas e dois oficiais que tocassem música tão bem que houvessem podido formar um quarteto com Stephen e com ele, se o dispenseiro do capitão houvesse sido mais amável e menos rude, e se o cozinheiro do capitão houvesse tido sob seu comando algo mais que pudins, haveria dito que antes que houvessem promovido Pullings e antes que houvessem obrigado tantos marinheiros a irem para outros barcos, a fragata tinha a melhor tripulação de todos os barcos da esquadra e provavelmente de todos os da Armada.
"Não lhes direi nada até que me veja obrigado a isso", pensou Jack, que podia ver a fragata agora, enquanto a lancha passava por entre várias chalanas. Estava atracada a certa distância do estaleiro, mas para Jack não lhe surpreendeu ver que ainda havia duas chalanas atracadas a ela e que na popa havia um grupo de empregados do estaleiro caminhando de um lado para outro.
- Para o costado de bombordo! - ordenou ao seu timoneiro, pensando que seria ridículo que o recebessem com uma cerimônia, já que no barco, nesse momento, ele era o único homem que possuía outra roupa que não fosse uma camisa, um calça de dril e um chapéu de palha roto.
- Senhor - disse Mowett, descobrindo-se com a elegância que era possível fazê-lo com um chapéu de aba rota. - Sinto muito dizer-lhe que estes pilantras não vão calafetar o castelo de popa até a terça-feira. Sua cabine está aberta…
- Não há vidros nas janelas de popa! - gritou Killick, furioso.
- Acalme-se, Killick - disse Jack.
- Senhor - disse o contador, - o encarregado do armazém não atendeu meu pedido de macas e colchonetes. Enganou-se com minha roupa e fingiu que acreditava que eu estava bêbado e depois me disse que contasse minha história de camelos e árabes para os infantes da marinha e depois saiu rindo.
- Tampouco há no jardim!{17} - murmurou Killick.
- Tampouco me entregou as provisões, senhor - disse o contador. - Negar isto a um contador que está há quinze anos no cargo!
- E o correio, senhor… - disse Mowett. - Há uma saca para nós, mas a mandaram para o escritório de São Isidoro, e dizem que hoje está fechada porque é festa.
- Fechada? - perguntou Jack. - Isso é o que veremos! Bonden, minha falua! Killick, vá rapidamente para Searle e separe um quarto para mim para vários dias e mande que preparem um almoço para os oficiais do Dromedary amanhã! Senhor Adams, venha comigo.
Depois, ao chegar ao portaló, virou-se e perguntou:
- Onde está o doutor?
- Levou Rogers, Mann e Himmelfahrt para o hospital, senhor.
Como era um cirurgião consciencioso, havia ido ao hospital para ver seus pacientes e levar mais três e, além disso, para falar com seu colega e para operar com ele; e como era um agente secreto consciencioso, foi à casa de Laura Fielding ao entardecer.
A grade estava aberta, mas a lanterna do final da vereda de pedra não estava acesa, e quando Stephen o atravessou na escuridão pensou: "Dá medo este lugar com este silêncio sepulcral". Ao chegar à porta, tateou a campainha e a tocou, e então o débil repique foi afogado pelos latidos de Ponto, e logo se ouviu a voz de Laura Fielding perguntando quem era.
- Stephen Maturin - respondeu.
- Virgem santa! - exclamou ela, abrindo a porta, pela qual saiu um feixe de luz. - Quanto me alegro de voltar a vê-lo! Aconteceu-lhe alguma desgraça? - perguntou quando pôde ver-lhe bem, depois que entrou na casa.
- Não - respondeu Stephen em tom irritado, pois havia se barbeado e pedira emprestados alguns calções de cor púrpura no hospital. - Acha que não tenho bom aspecto?
- Oh, não, doutor! O que ocorre é que geralmente o senhor fica, se me permite a expressão, tão descuidado que…
- É verdade.
- E sempre com uniforme. Surpreendeu-me ver-lhe com uma casaca branca.
- Isto é um banyan - disse Stephen olhando a casaca, uma larga casaca que Bonden havia feito com um pedaço de lona fina que havia de reserva no Dromedary e que tinha fitas em vez de botões. - Mas talvez aqui em terra pareça miserável. Sim, talvez pareça. Uma anciã, a mãe do coronel Fellowes, se não me equivoco, deu-me uma moeda quando dobrei a esquina e me disse: "Não para bebida, bom homem". Pas gin. Mente débauche. Mas agora não tenho nada além disso. Uma bando de ladrões a cavalo levaram meu sino. Deus queira que queimem nas brasas do inferno por toda a eternidade! Também levaram minhas coleções e minha roupa. Contudo, como sou um homem prudente, não havia levado meu outro baú, onde estava meu melhor uniforme, e me alegro muito.
Haviam chegado à sala. Sobre a pequena mesa redonda estava o jantar da senhora Fielding: três triângulos de polenta fria, um ovo cozido e uma jarra de limonada.
- Pode acreditar - perguntou, pegando um dos triângulos, - minha amiga, que esse uniforme me custou onze guinéus? Onze guinéus! Uma soma impressionante.
Sentia vergonha, um sentimento que raras vezes experimentava, e falava por falar. Ela lhe serviu um copo de limonada e sentiu pena ao ver que ele tencionava pegar o ovo.
- Contudo - disse, retirando a mão inconscientemente, - se fosse pôr aquele esplêndido uniforme no hotel, onde o deixei, não a haveria encontrado acordada quando chegasse em sua casa, assim que preferi vir de banyan e estragar a sua reputação, como haviamos combinado, do que vir em um magnífico uniforme e não feri-la.
- O senhor é muito bom comigo - disse ela, pegando-lhe a mão e olhando-lhe com os olhos lacrimejantes. - Eu lhe agradeço que tenha se preocupado comigo e que haja vindo ver-me tão rápido.
- Não tem importância, minha amiga - disse Stephen, apertando-lhe a mão como ela apertara a dele. - Diga-me, aqueles homens a incomodaram alguma vez desde que parti?
- Só duas vezes. Tive que ir à igreja de São Simón no dia seguinte e disse que o senhor passara a noite comigo. Ficou muito contente e disse que me traria uma carta da próxima vez.
- Era o mesmo estrangeiro com sotaque napolitano, aquele homem baixo de meia idade?
- Sim, mas o que me deu a carta era italiano.
- Como está o senhor Fielding?
- Não está muito bem, ainda que não diga. Só diz que caiu e feriu uma mão. Mas não é o mesmo de sempre. Temo que está muito mau, muito deprimido. Vou lhe mostrar sua carta.
Com efeito, a carta carecia de algumas das qualidades que as primeiras tinham, não de elegância, porque o senhor Fielding não tinha esse dom, senão de fluidez, coesão e naturalidade, e não refletiam o amor que discretamente refletiam as outras. Era uma carta escrita com esmero, na qual contava com detalhe como havia caído de uma escada coberta de gelo que dava para o pátio onde fazia exercício, dizia que lhe haviam atendido muito bem na enfermaria da prisão e pedia com insistência a Laura que fizesse tudo o que pudesse para mostrar sua gratidão aos cavalheiros que faziam possível que se correspondessem, assegurando-lhe que eles tinham influência no Governo.
Enquanto Stephen observava a esmerada letra pensou que não podiam lhe enganar. A história da mão lastimada era muito comum, fora usada muitas vezes. A impressão que tivera no início era agora quase uma certeza: Fielding estava morto e alguém imitava sua letra para que os franceses seguissem dominando Laura. Era provável que o espião francês que estava em Malta fosse Graham Lesueur e que Wray não tivesse conseguido capturá-lo. Talvez fosse melhor que não o houvesse logrado, porque um Lesueur com a informação falsa que ele lhe proporcionaria através de Laura seria mais útil que um Lesueur atado a um poste diante de um pelotão de fuzilamento. Mas tinha que proporcioná-la rápido, antes que a Surprise se fosse, já que não queria confiar o caso a ninguém em Malta sem consultar a sir Joseph ou a algum de seus íntimos colaboradores, e antes de que se soubesse que Fielding havia morrido, já que então Laura não poderia seguir desempenhando seu papel. A partir desse momento Lesueur não acreditaria no que ela lhe contasse, e, além disso, como ela poderia e quereria comprometê-lo e a toda sua organização, ele a eliminaria. Laura desapareceria quando deixasse de desempenhar seu papel.
Todas estas idéias passaram pela mente de Stephen com grande rapidez, sem chegar ao nível das palavras, enquanto observava a carta. Muitas dessas idéias eram as mesmas que lhe haviam ocorrido a princípio, mas agora tinham mais fundamento, agora lhe pareciam certas e, como sentia um grande afeto por Laura, elas lhe afligiam mais. Stephen disse quase as mesmas palavras de consolo que havia dito da primeira vez, e depois os dois falaram do aspecto mais concreto de sua relação com os agentes secretos. Ela foi menos cautelosa desta vez e fez uma descrição precisa de Lesueur e de seus colaboradores. Também falou de um tal Basilio, um tipo indiscreto que lhe dissera que não estava planejado que o doutor Maturin fosse ao mar Vermelho senão que fosse outro homem em seu lugar. Pelo que ela disse, Stephen compreendeu que pelo menos alguns haviam cometido o freqüente erro de subestimar a inteligência de uma mulher, um erro que às vezes trazia consequências fatais, e pensou que apesar de Lesueur não saber que ela podia reconhecê-lo, não toleraria sua deserção porque ela sabia demais de sua rede de espionagem.
- Desgraçadamente… - disse Stephen depois de uma comprida pausa, e nesse momento seus olhos brilharam. - Aí está! - exclamou, assinalando com a cabeça seu violoncelo, que estava junto ao piano de Laura. - Quanto falta senti dela nesta viagem!
- Fala do violoncelo como se fosse uma mulher? - perguntou. - Sempre me pareceu que tinha traços masculinos: voz grave, barba…
- Homem ou mulher - disse, - por que não faz um pouco de café e come a sua janta que comi sem perceber e depois tocamos a peça que crucificamos da última vez?
Enquanto retirava o instrumento de seu tosco estojo, murmurou:
- Homem ou mulher… Quantas coisas passam entre os dois!
- Que disse? - gritou ela da cozinha, e se notava que estava comendo algo.
- Nada, nada, minha amiga. Falava sozinho.
Afinou o violoncelo enquanto pensava no que sentia por Laura. A desejava, mas também sentia simpatia, ternura e afeto por ela, uma amizade amorosa mais forte do que as que sentira até então.
Saiu para a rua ao despontar o dia, notou com satisfação a presença do observador e desceu até o cais muito pensativo. Ali esperou que alguma das ligeiras embarcações de aluguel ficasse livre. Haviam acordado que ele alugaria um quarto em Searle, que ela iria ver-lhe com uma máscara e uma faldetta{18} e que ele lhe daria algo para saciar o apetite de Lesueur. Mas não sabia o que devia lhe dar. Permaneceu de pé no cais enquanto considerava a infinidade de possibilidades com os olhos descomedidamente abertos e olhando, sem ver, para o desconjuntado Worcester, que fora convertido em uma grua portuária flutuante ante o olhar indiferente de todos os que haviam navegado nele. Entre suas meditações ouvia a intervalos o grito característico dos barqueiros de Londres, o conhecido grito: "Sobe ou desce?". Ao ouvi-lo pela terceira vez, reagiu e olhou para o final da escada e viu as caras sorridentes dos tripulantes da falua da Surprise.
- Quer subir na falua, senhor? - perguntou Plaice, o remador de proa. - O capitão virá dentro de um minuto. Bonden acaba de ir buscá-lo em Searle. Estranho que não o tenha visto passar. Bem, provavelmente o senhor estava meditando.
- Bom dia, doutor - disse Jack, que havia se aproximado de Stephen pelas costas. - Não sabia que estava no hotel.
- Bom dia, senhor - disse Stephen. - Não estava no hotel. Dormi na casa de um amigo.
- Ah, compreendo! - exclamou Jack.
Jack estava satisfeito porque a fraqueza de Stephen lhe servia de desculpa para as suas, mas também estava decepcionado, mais decepcionado que satisfeito, porque o fato de que Stephen houvesse cometido essa fraqueza indicava que não possuía todas as virtudes em grau máximo. Não o considerava um santo, mas achava que resistia a todas as tentações: não se embebedava, não perseguia as mulheres em portos remotos nem ia a bordéis com os outros oficiais e, apesar de ser afortunado jogando cartas, raras vezes jogava; portanto, esse deslize comum, que era desculpável em outros homens, incluído o própio Jack Aubrey, parecia muito pior. Não sem malícia, quando a falua atravessava o porto envolto na névoa, o capitão Aubrey perguntou:
- Já viu suas cartas? Fialmente recebemos uma saca de correio inteira!
Isto queria dizer: "Diana lhe escreveu. Vi sua letra nos envelopes. Espero que isto lhe faça sentir-se culpado".
- Não - respondeu Stephen com uma irritante indiferença.
Mas a chegada do correio não lhe era indiferente, e quando lhe entregaram suas cartas, desceu correndo para lê-las sozinho em sua cabine. Diana lhe havia escrito, e cartas mais longas que de costume, contando-lhe detalhes de sua vida social. Contava que vira Sophie, que ela fora a Londres duas vezes para levar as crianças ao dentista e havia ficado em sua casa nas duas vezes, e também a Jagiello, um jovem que era adido da embaixada sueca e que estivera preso junto com Jack e Stephen na França. Dizia que tanto Jagiello como outros amigos, entre eles muitos monárquicos franceses, mandavam-lhe saldações. Também dizia que tinha muita vontade de que ele regressasse e que esperava que se cuidasse. Entre as outras cartas havia algumas de colegas seus, de naturalistas de vários países, algumas faturas, naturalmente, e um relatório de seu agente financeiro que indicava que era muito mais rico do que supunha, o que lhe causou uma grande satisfação. Mas além disso, havia a habitual carta anônima em que o remetente lhe informava que Diana o enganava com o capitão Jagiello e que agora se encontravam na igreja londrina de Saint Stephen, e "o faziam" de pé detrás do altar. Então se perguntou: "Essa descrição é típica de um homem ou de uma mulher?". Mas não seguiu pensando em isso, porque a carta seguinte era de sir Joseph Blaine, o chefe do serviço secreto da Armada, que também era um colega e um velho amigo. Ambos costumavam misturar os comentários sobre as notícias das sociedades científicas a que pertenciam (sir Joseph era um entomólogo) com outros sobre os projetos e os avanços em sua guerra particular. A carta era muito interessante, mas a frase que Stephen releu com especial atenção foi: "… e sem dúvida, querido Maturin, o senhor já deve conhecer ao senhor Wray, o vice-secretário interino". Só dizia isso de Wray. Não falava de sua missão nem pedia a Stephen que o ajudasse, e Stephen achava que punha ênfase na palavra "interino". Essas omissões em um homem como sir Joseph eram muito significativas, e tanto por elas como pelo fato de que Wray não havia trazido nenhuma mensagem pessoal, Stephen chegou à conclusão de que, apesar de sir Joseph pensar que Wray era capaz de resolver um problema como o vazamento de informação sobre os assuntos navais em Valletta, não lhe achava conveniente contar-lhe todos os segredos do departamento. Mas era natural que não se confiasse toda a informação do serviço secreto a um oficial que ocupava seu cargo há muito pouco tempo e que talvez só o ocuparia temporariamente, a menos que tivesse dotes excepcionais para desempenhá-lo, já que nesse terreno um erro ou uma indiscrição, por pequenos que fossem, poderiam ter graves consequências. Como Wray não gozava da confiança de sir Joseph (provavelmente porque até o momento sir Joseph não o considerava um homem com dotes excepcionais para trabalhar no serviço secreto), Stephen pensou que seria conveniente que o tratasse com reserva, assim como seu chefe, e que resolvesse sozinho o caso da senhora Fielding.
Apenas havia tomado essa decisão quando chegaram dois mensageiros. O primeiro disse que devia apresentar-se no Caledônia às dez e quinze da manhã, e o segundo disse que estava convidado para almoçar no palácio do governador para conhecer o senhor Summerhays, um botânico rico e com conexões, e lhe entregou uma nota do senhor Hildebrand na qual se desculpava por avisar-lhe com tão pouca antecedência e dizia que o senhor Summerhays partiria para Jerusalém no dia seguinte e que lamentaria muito partir de Malta sem ter ouvido o que o doutor Maturin sabia da flora da península de Sinai.
A primeira das mensagens teve que chegar a ele forçosamente através do capitão Aubrey, que lhe falou, ou melhor, gritou (porque os calafetadores do estaleiro estavam dando marteladas acima deles e todos os marinheiros limpavam a parte do convés onde eles haviam terminado de trabalhar, do pau maior até a proa):
- Às dez e quinze! Terá que se apressar para estar ali a tempo com o uniforme que tem em terra!
- Talvez não vá até amanhã - disse Stephen.
- Bobeiras! - exclamou Jack com impaciência.
Depois chamou seu dispenseiro e seu timoneiro. Demoraram para achá-los, porque haviam ido recolher a roupa que deixaram em um baú no estaleiro, e neste meio tempo, Stephen disse:
- Meu amigo, acho que o correio lhe há trouxe más notícias. Raras vezes o vi tão abatido.
- Não, não foi o correio. Todos estão bem em casa e lhe mandam muitas lembranças. Vou lhe contar, porque sei que você não dirá a ninguém. Vamos usar isso no tope - disse, assinalando uma vassoura que estava em um canto, porém, ao ver que isso não significava nada para Stephen, teve que falar claramente. - Vamos levar a Surprise para a Inglaterra e ela ficará ancorada em um porto ou será vendida.
Stephen viu que as lágrimas assomavam em seus olhos e, por falta de outro comentário mais apropriado, disse:
- Isso lhe afetará profissionalmente, né?
- Não, porque a Blackwater estará pronta dentro de pouco, mas não tenho palavras para expressar a dor que sinto…
Então se interrompeu porque viu que o seu dispenseiro e seu timoneiro estavam chegando.
- Killick - disse, - o doutor tem que apresentar-se no navio insígnia às dez e quinze. Você sabe onde estão guardados seus uniformes. Que se troque em meu quarto no Searle. Bonden, o doutor irá em minha falua e não deve se esquecer de apresentar seus respeitos aos oficiais e tampouco ao capitão do Caledônia e ao da esquadra, se estiverem no convés. Providencie que suba a bordo com os pés secos.
O doutor Maturin não só chegou ao castelo de popa do Caledônia com os pés secos, como também à grande cabine, pois Bonden o subiu nos braços até o final da escada. Na cabine se encontrou com o senhor Wray, o senhor Pocock e o jovem senhor Yarrow, o secretário do almirante. Um momento depois entrou apressadamente o almirante, que acabava de sair do jardim12 e estava abotoando o calção.
- Desculpem, cavalheiros - disse. - Acho que comi algo que… Bom dia, doutor Maturin. Os objetivos desta reunião são, em primeiro lugar, averiguar por que a informação que tínhamos sobre Mubara era totalmente errônea, e em segundo lugar, decidir que medidas tomar para evitar que o inimigo obtenha informações de nossos movimentos neste lugar. O senhor Yarrow começará lendo os fragmentos mais importantes da carta do capitão Aubrey. Depois eu gostaria de ouvir seus comentários.
Pocock disse que, em sua opinião, isso devia-se à Inglaterra ter se negado a ajudar Mehemet Alí a se tornar independente de Constantinopla e, portanto, o havia jogado nos braços dos franceses. Assinalou que a data da ambígua resposta inglesa, que, em realidade, era uma negativa, havia coincidido com a elaboração de seu plano, que, evidentemente, tinha como objetivo algo mais que apresar um barco, conseguir o apoio dos franceses e anular a influência da Grã-Bretanha no mar Vermelho.
Wray disse que estava de acordo com ele, mas que um plano desse tipo requeria a participação de um homem no palco das operações, um homem pago pelos franceses ou pelos egípcios para que transmitisse informação e coordenasse os movimentos do outro bando. Também disse que estava seguro de que o homem em questão era Hairabedian e que era uma lástima que houvesse morrido, porque poderiam ter logrado que fizesse importantes revelações. Acrescentou que viera com boas recomendações de um diplomata da embaixada inglesa no Cairo e do embaixador inglês em Constantinopla ao mesmo tempo que chegaram as primeiras notícias de que os franceses haviam posto a mira em Mubara, mas como a missão era urgente, não houve tempo de verificar a recomendação do diplomata nem a do embaixador. Acrescentou que acreditava de que haveriam comprovado que eram falsas, já que, conforme entendera, o intérprete lançou o rumor de que estavam carregando a galera em Kassawa, o que provavelmente se inventou ou repetiu sabendo que não era verdade. Então disse que achava que o doutor Maturin podia confirmar isso.
- É verdade - disse Stephen. - Contudo, não sei se ele estava nos enganando ou se o estavam enganando. Talvez seus documentos nos permitam resolver esta questão.
- Que documentos deixou? - perguntou Wray.
- Um pequeno cofre que contém alguns poemas em grego moderno e várias cartas - disse Stephen e, por um lado, porque gostava de Hairabedian e, por outro, porque tinha inclinação a reservar parte da informação que possuía, omitiu as palavras "e o chelengk do capitão Aubrey". - Eu lhes dei uma espiada porque o capitão Aubrey me pediu que o fizesse com o fim de encontrar o endereço de algum familiar para comunicar-nos com ele, mas as poucas que estavam em grego não davam detalhes sobre a questão, e as que estavam em árabe e em turco não pude ler. Desgraçadamente, não sou um especialista em assuntos orientais.
- Não se perderam quando os beduínos lhes atacaram? - perguntou Pocock.
O almirante saiu rapidamente da cabine murmurando uma desculpa.
- Não - respondeu Stephen. - estavam no baú que salvamos, o baú do capitão Aubrey.
Enquanto esperavam o almirante, Pocock falou das complexas relações entre a Turquia e o Egito, e depois, quando o almirante regressou, disse:
- Acho que o senhor estará de acordo comigo, sir Francis, em que do último relatório do Cairo se deduz que Mehemet Alí não teria deixado ficar um novo xeique em Mubara por mais de um mês, ainda que o houvessem instalado.
- Exatamente - disse o almirante em tom fatigado. - Bem, a primeira questão não poderá se resolver até que sejam decifradas as cartas de Hairabedian. Agora passemos para a segunda. Senhor Wray?
O senhor Wray disse que lamentava que nesse momento não pudesse dizer que havia feito tantos progressos quantos gostaria em seu trabalho. Explicou que em um dado momento havia pensado que poderia capturar a um importante espião francês e seus colaboradores, graças à precisa descrição que o predecessor do senhor Pocock havia feito, mas que, fosse porque o senhor Graham estava equivocado ou porque o homem em questão sabia que o haviam reconhecido, não havia conseguido.
- Contudo - disse, - ordenei que vigissem dois empregados, dois tipos que, apesar de não serem importantes, poderiam levar-nos mais longe. Com respeito à investigação da corrupção no estaleiro, descobri alguns detalhes muito curiosos. Acredito que estou a ponto de descobrir os verdadeiros causadores do problema, ainda que, lamento dizer, os civis e os militares apenas hão cooperado comigo. Contudo, como é possível que alguns homens que ocupam altos cargos, cargos muito altos, estejam implicados neste caso, não seria apropriado dizer nomes neste momento.
- Tem razão - disse o almirante. - Mas deve solucionar o problema antes que eu regresse para fazer o bloqueio, se for possível. Não há dúvida de que os franceses recebem informação de uma forma tão rápida ou inclusive mais rápida que pelo correio.
Yarrow, leia o relatório enviado pelos três últimos comboios do Adriático.
- Sim - disse Wray quando a leitura terminou, - estou convencido de que é necessário agir com celeridade, porém, como disse antes, a falta de cooperação dos civis e dos militares dificulta meu trabalho. Também dificulta a falta de bons colegas. Como o senhor sabe, senhor, as forças do Mediterrâneo sempre tiveram pouca informação secreta, muito menos que os franceses, pelo menos a informação secreta oficial que um comandante geral passa para seu sucessor. É óbvio que não posso falar abertamente com meus subordinados locais nem posso acreditar que é verdade tudo o que dizem, e como este é o primeiro caso deste tipo que me hão encarregado resolver, tenho que improvisar e avançar passo a passo e tanteando o terreno. Se algum cavalheiro quiser fazer algum comentário sobre isto, eu lhe escutaria com muito gosto - disse, sorrindo e olhando alternativamente para Stephen e para Pocock.
- Doutor Maturin? - perguntou o almirante.
- Acredito que minhas contribuições foram mal interpretadas - disse Stephen. - Por diversas razões conheço a situação política da Espanha e da Catalunha, e dei a seus predecessores e ao Almirantado bastante informação sobre ela e minha opinião sobre alguns informes que lhes haviam enviado dali. Não tenho capacidade para julgar outras coisas. Além disso, permita-me dizer que esses conselhos ou recomendações sempre os dei por vontade própia, não forçado pelo dever.
- Era isso que eu tinha entendido - disse o almirante.
- Contudo - continuou Stephen depois de uma pausa, - era amigo íntimo do defunto senhor Waterhouse, o conselheiro sobre assuntos relacionados com a espionagem do comandante geral anterior, e amiúde falávamos do modo de obter informação e impedir que o inimigo a obtenha, na teoria e na prática. Tinha muita experiência, e, como os princípios da contra-espionagem raras vezes se hão escrito, se me permitirem, farei um resumo de suas idéias.
- Sim, por favor - disse sir Francis. - Sei que o almirante Thornton o tinha em muita estima.
Stephen havia falado apenas cinco minutos quando o almirante voltou a sair apressadamente da cabine. Mas desta vez não regressou. Depois de uma longa espera, o infante de marinha que era seu ajudante entrou e falou com o senhor Yarrow, que mandou chamar o cirurgião do navio insígnia e disse que a reunião havia terminado.
- Pelo que entendi, nós dois almoçaremos com o governador - disse Wray a Stephen quando ficavam no castelo de popa do Caledônia. - Quer que o leve para terra? contudo, é muito cedo, e talvez prefira voltar para seu barco. O almoço que o senhor Hildebrand oferecerá não começará até dentro de muito tempo.
- Gostaria muito de descer para a terra. Hoje os monges da abadia de São Simón vão cantar a sexta e a nona juntas e tenho muito desejo de assistir-lhes.
- Ah, é? Gostaria muito de acompanhar-lhe, se me permite. Estive tão ocupado fazendo essas tediosas investigações que pude ir muito poucas vezes nas duas últimas semanas.
- Essas tediosas investigações… - repetiu quando os dois saíram da igreja de São Simón, pestanejando debaixo da intensa luz do sol. - Pensava falar-lhe de alguns homens que me inspiram suspeitas, alguns cujos nomes causam surpresa e fazem pensar que não se pode confiar em ninguém e recordar que munera navium saevos inlaqueant duces; contudo, não tenho ânimo depois de estar imerso nessa excelente música, não tenho a coragem de fazê-lo.
Quer que nos sentemos no caramanchão até que chegue a hora do almoço?
- Seria um prazer - respondeu Stephen.
Em efeito, tinha prazer em estar ali sentado à sombra, acariciado pela suave brisa que atenuava o terrível calor do dia, bebendo café com gelo. Wray não era um homem que despertasse admiração, mas falava com paixão de um tema que conhecia bem (e Wray sabia muito de música, tanto da antiga como da moderna), e era difícil que não fosse uma agradável companhia para um homem que tivesse seus mesmos gostos. Contudo, Stephen percebeu que nem todos seus gostos eram iguais ao observar Wray através dos verdes lentes de seus óculos quando o garçon, um bonito jovem de finos modos, trouxe as bebidas, os charutos e os isqueiros e quando, desnecessariamente, trouxe outros isqueiros. Pensou que provavelmente o vice-secretário era um pederasta ou um homem como Horácio, que sentia inclinação amorosa pelos dois sexos. Isto não lhe produziu indignação por ser imoral nem por nenhuma outra razão. Admirava Horácio e, como tinha a atitude tolerante própia das pessoas do Mediterrâneo, admirava também a muitos outros homens que tinham as mesmas inclinações estranhas que ele. Mas parecia que Wray não estava a vontade, e quando deixaram de falar de música, ficou nervoso e pediu mais café e outro charuto antes de ter terminado o primeiro. Parecia que não se achava bem.
- Acho que terei que deixar-lhe - disse Stephen por fim. - Tenho que ir ao hotel pegar dinheiro.
- Talvez devessemos ir juntos - disse Wray. - Mas não se preocupe com dinheiro, porque tenho muito no bolso, pelo menos cinco libras.
- O senhor é muito amável - disse Stephen, - mas eu falava de uma soma muito maior. Me hão dito que no palácio jogam com apostas muito grandes, e como meu agente financeiro me disse que sou mais rico que Creso, pelo menos este trimestre, vou me permitir entregar-me a um de meus vícios uma hora ou duas.
Wray o olhou atentamente, mas não pôde descobrir se falava sério. Stephen Maturin não tinha aspecto de jogador, mas o que dissera era verdade, pois gostava de jogar de vez em quando, e fazendo as apostas maiores que podia. Sabia que isso era uma fraqueza, mas sabia controlar-se, e, além disso, como passara um longo tempo em uma prisão espanhola encerrado na mesma cela que um jogador de cartas rico (um homem que fora condenado ao garrote não por fazer trapaças, já que nunca lhe descobriam, senão por estupro), era pouco provável que o ganhassem.
Caminharam em silêncio durante um tempo e depois Wray perguntou:
- O senhor e Aubrey se hospedam no hotel Carlotta, não é?
- No Searle, para ser exato.
- Bem, tenho que dizer-lhe adeus, porque o senhor tem que seguir reto e eu tenho que dobrar à direita.
Separaram-se, mas não por muito tempo. No almoço se sentaram bastante perto, e como ao homem que estava sentado à direita de Stephen, o senhor Summerhays, o vinho subia à cabeça com tanta facilidade que se embebedou quando bebeu a segunda taça de clarete, e o oficial alemão que estava sentado a sua esquerda não sabia falar inglês, francês nem latim, Stephen teve tempo de observar Wray. Notou que Wray sabia ganhar a simpatia dos homens que compareciam a esse tipo de reuniões, pois era inteligente e divertido. Não profundizaba nas coisas e tinha melhores aptidões para ser um político que para ser um funcionário, mas era evidente que era capaz de conquistar a simpatia de homens tão diferentes como o tesoureiro e o tosco capitão governador.
Quando a refeição terminou, a maioria dos convidados (todos eram homens e entre eles estavam quase todos os militares e civis mais importantes de Valletta) passaram para a sala de jogo, e Stephen se reuniu com eles depois de se despedir do botânico. Vários cavalheiros, sérios e pensativos, já estavam jogando o whist, mas muitos haviam se reunido ao redor de uma mesa onde se jogava dados. Stephen ficou olhando-os um tempo e, apesar de que ouvira que esses homens faziam apostas muito altas, surpreendeu-lhe ver a grande quantidade de dinheiro que passava de umas mãos para outras.
- Não quer jogar uma partida de dados? - perguntou Wray, que estava justo detrás de Stephen.
- Não - respondeu Stephen. - Prometi ao meu padrinho que não voltaria a tocar nos dados um dia que me tirou de um apuro quando era jovem. Agora só jogo cartas.
- Gostaria de jogar o jogo das centenas?
- Ficaria encantado.
Quando Maturin jogava cartas, não era o mais amável dos mortais. Quando jogava por dinheiro, jogava para ganhar, jogava tão seriamente como se estivesse realizando uma operação contra o inimigo, e ainda que observava estritamente as regras, sempre aproveitava as oportunidades que se apresentavam, se bem que com correção. Agora estava jogando seriamente, como devia fazer em vista da quantidade de dinheiro que havia apostado com Wray, depois de ter escolhido uma mesa próxima da janela e ter se sentado de maneira que o sol não desse na cara dele mas na de Wray.
Não lhe surpreendeu ver que Wray era um jogador experiente, um jogador que misturava as cartas como um prestidigitador e as repartia com soltura. Tampouco lhe surpreendeu que, apesar da experiência que Wray tinha, não soubesse que a posição que ocupava era desvantajosa, porque o sabiam poucas pessoas, inclusive poucos jogadores de cartas. Ainda que Stephen fosse médico e um entendido em fisiologia, não o havia sabido até que estivera na prisão de Teruel e Jaime, seu companheiro de cela, falara da influência das emoções na pupila do olho. "É como um espelho que está colocado detrás dos olhos de nosso oponente e nos mostra as cartas que tem na mão", dissera Jaime. Havia lhe explicado que a pupila se contraía ou se dilatava involuntariamente e conforme o valor das cartas do jogador e da possibilidade de que fizesse uma jogada brilhante ou má. Acrescentara que quanto mais emotivo era um jogador e mais altas eram as apostas, maior era a influência, mas que sempre a havia, desde que houvesse algo para ganhar ou perder. Mas havia acrescentado que o problema era que havia que ter boa vista para detectar as mudanças e muita prática para interpretá-las, e que, além disso, o oponente de um tinha que estar bem iluminado.
Stephen tinha uma vista excelente e muita prática em interpretar as mudanças, pois havia usado esse método com bons resultados nos interrogatórios, e Wray estava sentado em uma posição em que o sol lhe acertava em cheio na cara. Além do mais, ainda que Wray se acostumara a pôr um gesto que só expressava a complacência que uma pessoa cortês devia mostrar, era um homem emotivo (e Stephen achou que estava mais ainda) e ambos haviam feito grandes apostas. Por outro lado, como no jogo se soltavam e pegavam cartas constantemente, a sorte podia mudar rapidamente. Mas Stephen haveria ganhado mesmo sem todos os fatores, já que a sorte lhe acompanhou desde a primeira mão até a última, em que pegou o sete de corações, tirou três cartas de diamantes baixas, a jota e o dez de espadas e depois pegou os três últimos ases, um rei e o sete de espadas, estragando para Wray uma jogada com o rei, e logrou repicar e, depois que Wray jogou mal sua última carta, ganhou a vaza e a partida.
- Ganhar quando um tem tão boa sorte não produz satisfação - disse Stephen.
- Acho que eu poderia suportar - disse Wray, fazendo uma boa imitação de um riso alegre ao mesmo tempo que pegava um caderno do bolso. - Talvez possa dar-me a chance da revanche em outro dia, quando tenha tempo livre.
Stephen disse que com muito prazer a daria, despediu-se do governador e saiu com o bolso da casaca cheio de rangentes notas novas. Como Laura Fielding ia visitá-lo essa tarde, quando regressava para o hotel comprou flores, bolos, ovos, um lombo de porco assado, mas já frio, um fornilho de álcool e um bandolim. Colocou todas as coisas na salinha que havia alugado por decência e depois mandou que enchessem a banheira de banho do hotel. Depois de ficar submerso na água quente durante um tempo, trocou de roupa íntima e se arrumou o pouco que podia: barbeou-se (não havia se barbeado para ir ver ao almirante nem para ir à casa do governador), passou mais pó em sua peruca e escovou a casaca. Enquanto se arrumava se olhava de vez em quando no espelho com a vã esperança de que ocorresse um milagre e a imagem que refletia se transformasse, pois apesar de saber que a relação entre ele e a senhora Fielding devia continuar sendo casta, tinha muito desejo de que não fosse e ofegava ao pensar que ia vê-la muito breve.
Mas o termo "breve" era vago e abarcou tempo suficiente para que Stephen arrumasse as flores duas vezes, deixasse cair o lombo de porco e chegasse a se convencer de que não haviam se entendido bem ao recordar o dia, a hora e o lugar. Já estava raivoso quando um moço bateu na porta e disse que uma dama queria ver-lhe.
- Conduza-a até aqui - disse Stephen em tom irritado.
Contudo, quando ela chegou e tirou a máscara e o capuz da faldetta, Stephen sentiu que a raiva se desvanecia como a geada ao sair o sol. Contudo, ela observou a raiva, e sabia perfeitamente que havia chegado muito tarde, assim que tentou mostrar-se amável elogiando as flores, o bandolim e a colocação dos bolos. Desafortunadamente, isso era o pior que podia ter feito, porque avivou o fogo de sua paixão. Depois de alguns momentos, ele entrou no dormitório, repetiu rapidamente três aves-marias e regressou à salinha com um documento que parecia ser o rascunho de uma mensagem cifrada, interrompida pela metade por um erro ao usar a chave, e descartada.
- Aqui está - disse. - Isto convencerá àquele homem de que a senhora fez progressos.
Ela agradeceu e, com um gesto preocupado, disse:
- Espero que assim seja. Estou tão angustiada!
- Estou seguro disso - disse em tom convincente.
- Confio plenamente no senhor - disse ela.
Depois de uma pausa de vários minutos, Stephen perguntou:
- Gostaria de um ovo cozido?
- Um ovo cozido? - perguntou ela.
- Sim. Pensei que devíamos tomar uma colação, já que ficaríamos várias horas juntos, e, como é sabido, os amantes comem ovos cozidos para se fortalecerem. Era necessário preparar o cenário, sabe?
- De toda forma, eu gostaria de comer um ovo cozido. Não tive tempo de jantar.
Laura Fielding era uma mulher de compleição robusta. Apesar de sua profunda angústia, comeu dois ovos, e comê-los lhe abriu o apetite. Então, com um copo de vinho de Marsala na mão, comeu o lombo e, depois de uma pausa, comeu muitos bolos. Era um prazer vê-la comer.
Também era um prazer ouvi-la tocar o bandolim. Tocava ao estilo siciliano, e das cordas brotava um som agudo que parecia nasal, um som que contrastava agradavelmente com sua voz de contralto quando ela cantava uma longa balada que contava a história do paladino Orlando e sua amada Angélica.
Ainda que Stephen comera bastante no palácio, pensou que seu dever, como anfitrião, era compartir a colação com ela, ovo por ovo, fatia por fatia, e o poder das orações e o excesso de comida fizeram diminuir seu desejo até um grau em que era perfeitamente suportável, assim que nas últimas horas que ambos estiveram juntos passaram conversando como amigos, ainda que com as mãos gordurentas, já que não tinham garfos. Falaram quase sem pausa de vários temas, inclusive de temas confidenciais, passando sem transição de um para outro, e no final falaram das lembranças de sua infância e de sua juventude. Laura lhe contou que, apesar de não haver sido recatada quando era uma adolescente, pois estava na corte do reino das Duas Sicilias, onde seu pai trabalhava sob as ordens do grande fidalgo, onde não existia o recato, desde que havia se casado com o senhor Fielding levava uma vida virtuosa. Acrescentou que por essa razão se incomodava ainda mais por Charles Fielding ser ciumento, ainda que assegurou que esse era seu único defeito. Disse que era um homem charmoso, amável e valente, generoso, um homem que tinha tudo o que a mulher mais exigente podia pedir, mas que era possessivo e desconfiado como um espanhol ou um mouro. Contou algumas das injustificadas cenas que havia feito, mas depois, pensando que fora injusta, desleal e maligna, voltou a falar de seus méritos durante muito mais tempo.
Stephen se entediou com seus méritos e, por fim, em uma pausa em que ela sorriu e baixou a vista, pensando, sem dúvida, em outros méritos, disse:
- Vamos, minha amiga. É hora de voltar a pôr seu disfarce e partir, porque se não, não restará ninguém aí fora para vê-la partindo.
Laura pôs a máscara e a capa com capuz e Stephen abriu a porta. Ambos saíram e percorreram o corredor na ponta dos pés e entre rangidos e desceram dois vãos de escada até o piso onde Jack ficava. Nesse momento o silêncio foi rompido por um alarido, alguns golpes e o grito: "Alto, pare!". Duas delgadas figuras passaram correndo pelo patamar e saltaram por uma janela, e depois apareceu Killick, que tinha uma palmatória na mão e gritava:
- Marinheiros! Marinheiros, detenham os ladrões!
Killick passou por eles, enquanto as portas de ambos lados do corredor se abriam, mas depois voltaram a encontrá-lo no iluminado saguão. Ele disse que não havia agarrado ninguém, mas tinha um sorriso triunfante e malicioso.
- Eram dois sacanas! - disse ao grupo de homens que havia se reunido ao seu redor, mas ao perceber que uma mulher acompanhava Stephen, tirou o gorro de dormir e disse: - Perdoe, senhora. Eram dois indivíduos.
- Saltaram pela janela do primeiro andar - disse Stephen.
- Mas não o levaram - disse Killick.
Então Killick disse aos que lhe rodeavam que os ladrões procuravam o chelengk do capitão Aubrey, mas que ele, Preserved Killick, era mais astuto que eles e havia posto ao seu redor anzóis e uma ratoeira que se fechava com extraordinária violência, na qual um deles havia deixado um dedo, e acrescentou que os dois haviam deixado um fio de sangue que dava gosto ver.
Chegaram mais pessoas de baixo e de cima. Quando os oficiais da marinha viam Stephen, afastavam imediatamente a vista dele, e, por discrição, não falavam com ele senão que se limitavam a saudar-lhe com uma inclinação de cabeça. Contudo, Laura abaixou mais o capuz, porque pensava que uma coisa era que se fixassem nela os espiões franceses e outra muito diferente que a reconhecessem as pessoas entre a quais vivia, seus própios amigos e os amigos de seu esposo.
- Onde está o capitão Aubrey? - perguntou uma voz.
- Fazendo uma visita - respondeu Killick, e começou a contar a história outra vez para que os recém chegados a ouvissem.
Killick disse que os ladrões haviam levado alguns galões com fios de ouro, o dinheiro que havia em um gaveta do baú, que não era muito porque o capitão havia guardado quase tudo no bolso, e um ou dois cofres, mas que os diamantes estavam a salvo. Depois começou a mudar a história, aumentando a quantidade de sangue e o número de dedos que os ladrões haviam largado para trás, e a contá-la com muitos detalhes, e então Stephen pegou a senhora Fielding pelo cotovelo e, abrindo passagem entre a multidão, a levou para a escura noite, já próxima do seu final.
- Não se esqueça de vir no sábado pela tarde - disse quando se despediu dele na porta de sua casa, atrás da qual estava Ponto dando bufos. - E traga Aubrey também, se quiser vir.
- Acho que ele se encantará. Poderia trazer também outro amigo, o senhor Martin, o pastor que fez a viagem conosco?
- Todos seus amigos serão bem-vindos - disse, apertando-lhe a mão, e os dois se separaram.
- Bom dia, meu amigo - disse Lesueur com seu estranho sorriso. - Pensei que hoje chegaria a tempo.
- Quais são as notícias? - perguntou Wray em tom mal-humorado.
- Tudo saiu bem - respondeu Lesueur, - mas quase aprisionam os garotos, e um deles perdeu um dedo. Nossos temores eram infundados, porque no cofre só havia documentos pessoais. Não havia nem uma só indiscrição.
- Graças a Deus! - exclamou Wray. - Graças a Deus! - repetiu, sentindo alívio e raiva ao mesmo tempo. - Podia tê-lo dito. Tinha que saber que eu estava angustiado. Não podia dormir nem me concentrar no que fazia. Isto me fez perder uma grande soma jogando cartas. Teria bastado que me mandasse uma simples nota.
- Quanto menos coisas se escrevam melhor - disse Lesueur. - Littera scripta manet. Olhe isto.
- O que é?
- O rascunho de uma mensagem cifrada. Você a reconhece?
- É da seção B do Almirantado.
- Sim mas o homem que a cifrava se equivocou na segunda transposição e tirou o rascunho, ou melhor, o pôs entre as páginas de um livro e começou de novo. Se houvesse avançado um pouco mais, o documento haveria sido muito valioso. Apesar de tudo, é útil. Conhece a letra?
- É de Maturin.
Pela viva expressão de Lesueur, parecia que ia falar mais do assunto, mas se absteve de pronunciar as palavras que ia dizer e perguntou:
- Como se comportou na reunião?
- Foi muito prudente. Disse que era um conselheiro ocasional e voluntário, nada mais, e praticamente disse ao almirante que, como conselheiro, não tinha que receber ordens de ninguém. Acredito que não confia em ninguém em Malta. Contudo, nos deu alguns conselhos, que, conforme ele, Waterhouse lhe dera. O senhor teria rido muito se o ouvisse falar da redução dos comitês, das precauções que há que tomar ao fazer mensagens cifradas, da detecção de espiões transmitindo falsas informações e coisas similares.
- Se os conselhos, pelo menos em parte, eram de Waterhouse, eram bons. Waterhouse era um agente secreto exemplar, que desempenhava à perfeição sua profissão. Estive presente no último interrogatório que lhe fizeram. Não era possível obter informação dele. Enquanto de Maturin, acho que pelo momento posso sacar-lhe informação, mas temo que isso não durará, e quando esse momento chegar, terá que ser eliminado. Como o senhor sugeriu, o dey de Mascasse será útil para conseguir este propósito.
- Indubtavelmente - disse Wray. - Lembro que disse que o dey nos serviria para matar dois pássaros de um tiro. Agora acho que nos servirá para matar três.
- Tanto melhor - disse Lesueur. - Mas lhe aconselho que não fale com Maturin com freqüência.
- Provavelmente só o verei uma vez mais por questões oficiais. Não quero ver um discípulo de Waterhouse observando o que faço aqui, e não acredito que ele queira interferir nisso. Mas talvez passe uma tarde com ele por uma questão não oficial, para a revanche de uma absurda perda. Mas quero que saiba que não gosto de seus ares de superioridade nem que me espie nem que me aconselhe quem devem ser meus acompanhantes.
- Não vamos brigar - disse Lesueur, - porque isso teria necessariamente como consequência a destruição dos dois. Pode ver Maturin a cada dia da semana, se quiser. Só lhe peço que se lembre que é perigoso.
- Muito bem - disse Wray e, em tom irritado, perguntou: - Teve resposta da rue Villars?
- Sobre pagar suas dívidas de jogo?
- Se quer dizer assim…
- Temo que não lhe darão mais do que a ajuda inicial.
Como Wray havia profetizado, ele e Stephen Maturin voltaram a se ver em uma reunião que se celebrou no navio insígnia, na qual se chegou à conclusão de que Hairabedian era um agente secreto a serviço dos franceses e que, por óbvias razões, seus amigos ou seus colegas em Valletta havia mandado roubar seus papéis. Depois o almirante propôs que o doutor Maturin ajudasse os homens do departamento do senhor Wray a buscar esses amigos ou colegas, mas a proposta foi acolhida com indiferença pelos dois, e o almirante não insistiu. Contudo, por questões não oficiais, viram-se com muita mais freqüência. Não se viram todos os dias, mas sim muito amiúde, já que a sorte se negava a acompanhar-lhe. Contudo, Stephen não se reunia com ele para saciar sua vontade de jogar, mas porque sua cabine estava cheia de potes de tinta e não havia tranqüilidade nela porque se ouviam constantemente marteladas e gritos, e, além disso, porque seus habituais companheiros tinham toda sua atenção posta nas tarefas navais, assim que depois que fazia a ronda no hospital, dedicava a parte da tarde que não passava nas montanhas ou na praia com Martin para jogar com Wray. Pela noite costumava visitar a senhora Fielding, e era em sua casa onde via Jack com mais freqüência.
Os empregados do estaleiro haviam feito um excelente trabalho no interior da Surprise, haviam cumprido sua parte do acordo, ainda que não muito limpamente. Mas no acordo só se fazia referência a várias reparações estruturais, e os carpinteiros de barco haviam deixado as partes mais visíveis da fragata em um estado lamentável. Mas Jack se importava muito com o aspecto da fragata, a inclinação de seus mastros e sua exárcia, pois pensava que se saísse da Armada, devia sair com elegância, com muita elegância, e que, além disso, havia possibilidade de que entrasse em outro combate com ela antes de seu final. Por essa razão, todos os marinheiros estavam cuidando dela como poucas vezes a haviam cuidado antes. Aducharam todos seus cabos, trocaram de lugar a fila de tonéis inferiores e recolocaram o carregamento na bodega para que afundasse um pouco mais a popa, porque dessa maneira navegava melhor, pintaram-na por dentro e por fora e esfregaram o convés. O senhor Borrell e seus homens ajustaram cuidadosamente os canhões e seus aparelhos e prepararam a pólvora e as balas. O senhor Hollar, seus ajudantes e todos os guardas-marinhas haviam subido como arranhas pela exárcia para revisá-la. Era a primeira vez que não tinham pressa. O capitão da esquadra havia assegurado a Jack que não zarparia até que voltasse a ter a bordo "uma razoável quantidade de tripulantes" dos quais haviam levado e os infantes da marinha. Contudo, o capitão e o primeiro oficial, que haviam ouvido muitas promessas de seus superiores em sua vida, faziam realizar os trabalhos bastante rápido. Jack não gostava muito dos adornos brilhantes, mas achava que neste caso era diferente e, pela primeira vez em sua vida, havia gastado uma considerável quantidade de dinheiro em folha de ouro para cobrir as grinaldas de popa, e, ademais, havia chamado o melhor pintor de letreiros de hotéis de Valletta para que pintasse o mascarão de proa, uma dama anônima com esplêndidos seios. Estava satisfeito porque se ocupava de todas essas tarefas, tarefas própias de marinheiros (dissera aos guardas-marinhas que realizando-as chegariam a conhecer melhor um barco de guerra que navegando meses e inclusive anos nele) e porque, finalmente, podia fazer muitas das coisas que sempre desejara fazer, mas às vezes sentia amargura. Por isso gostava de ir com seu violino, carregado por um marinheiro supernumerário maltês, aos concertos na casa de Laura Fielding pelas noites, onde tocava, às vezes realmente bem, ou ouvia outras pessoas tocarem.
Já se acostumara com a idéia de que Laura e Stephen eram amantes, e ainda que admirasse menos aos dois, não se importava, mas achava injusto que todos em Valletta supusessem ainda que ele, Jack Aubrey, era o homem afortunado. As pesoas lhe diziam: "Se por casualidade passar pela casa da senhora Fielding, por favor, diga-lhe que…" ou "Quem irá na terça-feira pela noite?", como se soubessem com certeza que tinham relações. Naturalmente, isso se devia em grande parte ao maldito Ponto, que o havia cumprimentado efusivamente e com muito ruído na abarrotada rua Real dez minutos após ter descido a terra. Contudo, tinha que admitir que Stephen e Laura eram muito discretos. Nenhuma pessoa que visse Stephen em uma das festas que Laura Fielding dava às noites poderia supor que passaria ali o resto da noite.
Wray, indubtavelmente, não supunha. Desde o início deste período, ria e se referia a Jack dizendo "seu amigo Aubrey, que conforme dizem tem muita sorte". Mas a medida que passavam os dias tendia a rir menos. A má sorte ainda não o havia abandonado, e já perdera tanto dinheiro que Stephen, apesar de que o jogo já lhe entediaria, achava injusto não dar-lhe a ocasião de tomar a revanche, que pedia continuamente. Ainda que Wray havia jogado muito, não era um muito bom jogador. Podia ser enganado facilmente por uma repentina mudança de uma firme defensiva a um arriscado ataque, e suas tentativas de engano, que não iam mais lá de breves vacilações e gestos de desgosto, eram totalmente transparentes. Mas além disso, como Stephen tinha boas cartas e, em troca, ele não, o jogo lhe chatearia ainda mais. Por outro lado, como Wray estava com má sorte e angustiado, não era um companheiro tão divertido como antes. Quando Stephen chegou a conhecê-lo um pouco melhor, descobriu que era um libertino, não se atinha a princípios morais, dava demasiada importância ao dinheiro e não tinha escrúpulos, mas tinha uma grande inteligência. Contudo, Wray não tentava modificar sua sorte, já que em outro tempo fora acusado de fazer trapaças jogando cartas e nenhum homem que estivesse em sua posição podia se permitir que o acusassem disso uma segunda vez.
Costumavam jogar no clube dos oficiais ou no caramanchão, e conbinaram se reunir precisamente no caramanchão para a partida final. Há algum tempo Wray esperava receber uma remessa, e como não tinha dinheiro efetivo (Stephen o havia tirado todo) pagava suas dívidas com promissórias. Agora a aposta era equivalente a toda a dívida, e Stephen apostava o mesmo seja qual fosse o resultado, contanto que tivesse tempo suficiente para ir visitar uma caverna cheia de morcegos com Martin e Pullings.
Wray voltou a perder, e cometeu mais erros que das outras vezes. Ficou um tempo calculando de novo seus pontos e preparando o que tinha que dizer e levantou a vista e, com um sorriso forçado, disse que lamentava muito ter que comunicar ao doutor Maturin que não havia recebido a remessa que esperava devido às recentes perdas da Cidade e que não podia lhe pagar o que devia. Repetiu que lamentava muito e acrescentou que pelo menos podia propor uma solução: daria agora um reconhecimento de dívida e nos próximos dias faria redigir um contrato de anualidade garantido pelas propriedades de sua esposa, e os pagamentos seriam acrescidos com o juro habitual e seriam enviados ao banco do doutor Maturin a cada três meses até que a senhora Wray herdasse, momento no qual ele poderia saldar a dívida imediatamente sem dificuldade, já que, como todo mundo sabia, o almirante havia herdado uma grande fortuna, em que noventa porcento estava vinculado.
- Compreendo - disse Stephen.
Não estava satisfeito. Haviam jogado por dinheiro em dinheiro e Wray havia faltado à ética aventurando-se a jogar a última partida sem poder pagar em efetivo se perdesse. Stephen não desjara em nenhum momento conseguir aquela soma, porque já lhe passara a febre do jogo, mas considerava que a merecia por ter arriscado seu dinheiro com boa fé.
Wray sabia quais eram seus sentimentos.
- Acha que posso adoçar de alguma forma este trago amargo? Tenho certa influência na comissão que dá as nomeações, como sabe.
- Acho que o senhor concorda que falta muito açúcar para adoçar esta bebida - disse Stephen e, depois que Wray disse que estava totalmente de acordo com ele, prosseguiu: - Esta manhã, no clube de oficiais, ouvi um rumor muito desagradável: que a Blackwater, que fora prometida ao capitão Aubrey há tempos, foi designada a um tal capitão Irby. Isso é verdade?
- Sim - respondeu Wray depois de vacilar um momento. - Suas conexões no Parlamento o exigiram.
- Nesse caso - disse Stephen, - quero que proporcione a Aubrey uma embarcação similar. O senhor já conhece os serviços que ele prestou, suas justificadas petições e seu desejo de estar ao comando de uma potente fragata na base naval da América do Norte.
- Certamente! - exclamou Wray.
- Em segundo lugar, quero que atribua um barco ao capitão Pullings, e, em terceiro lugar, quero que seja benévolo com o reverendo Martin quando queira trasladar-se de um barco para outro.
- Muito bem - disse Wray, apontando os nomes. - Farei o que possa. Como sabe, há muito poucos barcos disponíveis na atualidade porque número de capitães é o dobro que o de barcos, mas farei o que possa. Quanto ao pastor, não terá dificuldades para trasladar-se, poderá ir onde queira.
Guardou o caderno no bolso e pediu mais café. Depois, quando chegou o café, disse:
- Eu estou muito agradecido por ser tão benévolo, Maturin, garanto. Meu sogro tem sessenta e sete anos e não está bem de saúde…
Wray disse que, aparentemente, o almirante Harte estava afetado de hidropisia, e que, apesar de que os escrivãos, baseando-se nas estatísticas, pensavam que lhe restavam uns oito anos de vida, era pouco provável que durasse mais da metade desse tempo. Estava tão nervoso que falava sem consideração, e Stephen não sabia o que responder. Por fim, Stephen disse que alguns médicos estavam tratando a hidropisia com um novo remédio que continha digitalina, mas que pensava que ela devia ser usada com muita cautela porque poderia ser perigosa. A conversa seguiu esse rumo durante um tempo, e Stephen teve a impressão de que Wray desejava conseguir qualquer remédio que diminuisse ainda mais a esperança de vida do almirante, porém, antes que Wray aludisse a isso, chegaram Pullings e Martin para levar-lhe para a caverna.
- Essa caverna é uma das maravilhas do universo, minha amiga! - disse a Laura a meia-noite, quando ambos estavam sentados no quarto do hotel comendo esplendidamente. - Pude ver morcegos de todas as espécies do Mediterrâneo e dois que, conforme acredito, são de espécies africanas. Mas eram tímidos e se meteram em uma fenda onde Pullings não podia alcançá-los com uma corda. Era uma caverna maravilhosa! Em alguns lugares havia capas de excrementos de dois pés de altura com um grande número de ossos e de exemplares mumificados dentro. Eu a levarei para vê-la na sexta-feira.
- Não, na sexta-feira não - disse Laura, untando uma rabanada de pão com uma pasta feita com ovas de salmonete.
- Não me diga que é supersticiosa! - exclamou Stephen.
- Eu sou. Não passaria por debaixo de uma escada por nada do mundo. Mas não falei por isso. Na sexta-feira o senhor estará muito longe daqui. Como vou sentir sua falta!
- Pode me dizer qual é a sua fonte de informação?
- A esposa do coronel Rhodes me disse que uma brigada de infantes da marinha irá subir a bordo da Surprise na quinta-feira e que a fragata irá zarpar no dia seguinte. Seu irmão, que está ao comando da brigada, está muito incômodo, porque tinha um compromisso no sábado. E a filha do comandante do porto disse que fora decidido que a Surprise escoltasse o comboio do Adriático.
- Obrigado, minha amiga - disse Stephen. - Me alegro de sabê-lo - acrescentou e, depois de ficar pensativo por um momento, continuou: - É lógico que de nossos abraços de despedida brote algo muito importante para o cavalheiro estrangeiro.
Então foi para o dormitório e escolheu cuidadosamente um presente envenenado entre os muitos que preparara com esmero, um caderno de bolso com capas de carneira com fecho. "Meu amigo, dou-lhe isto com o desejo de que faça sair mal seus sujos truques durante muito tempo", pensou.
CAPÍTULO 9
A cabine do cirurgião na fragata Surprise teria sido um triângulo pequeno e escuro, algo muito parecido a um pedaço de torta, se não lhe houvessem cortado a ponta, transformando-a em um quadrilátero pequeno e escuro. O teto, formado pelo convés, era tão baixo que qualquer homem de altura média bateria a cabeça nele se ficasse erguido, e nem um só de seus ângulos era reto. Mas o doutor Maturin era bem mais baixo, e ainda que, logicamente, gostasse dos ângulos retos, gostava mais ainda de um lugar que não tivesse que ser desalojado cada vez que os tripulantes da Surprise faziam preparativos de combate (o que ocorria a cada tarde), um lugar em que seus livros e seus espécimes não fossem tocados. Havia resolvido o problema da falta de espaço em parte graças a estar acostumado com ela e em parte graças ao invento do carpinteiro, que havia feito um beliche e um mesa dobráveis e armários em lugares imprevistos. E quanto ao problema da escuridão, Stephen havia usado uma pequena fração da enorme quantidade de dinheiro que havia ganhado (da parte que recebera em elegantes notas do Banco da Inglaterra) para cobrir todas as superfícies livres com espelhos venezianos da melhor qualidade, que intensificavam a luz que se filtrava pela coberta de tal maneira que podia ler e escrever sem necessidade de uma vela. Agora estava escrevendo, escrevendo para sua esposa, com os pés metidos debaixo de um candelero{19} e o respaldo da cadeira apoiado contra outro, pois a fragata balançava fortemente enquanto avançava através de grandes ondas que vinham pela proa. Começara a carta no dia anterior, quando a Surprise, que se dirigia para Santa Maura, onde ia se juntar a dois barcos do comboio, havia se desviado do rumo por causa do mau tempo e havia chegado quase até Itaca.
"… até a mesmíssima Itaca, eu lhe asseguro. Porém, acredita que minhas súplicas e as de alguns homens instruídos que formam parte da tripulação induziram esse animal a chegar a esse lugar sagrado? Pois não. Disse que ouvira falar de Homero e que havia lido a versão de sua história feita pelo senhor Pope, e que podia assegurar que esse tipo não era um bom marinheiro. Também disse que Ulisses não tinha cronômetro e que era provável que tampouco tivesse sextante, mas que um bom capitão haveria podido regressar de Troya para Itaca muito mais rápido sem nada mais que uma barquilha, uma sonda e um serviola, e, além disso, que se entregava ao vício que tinham os marinheiros do tempo de Noé ao de Nelson: passar muito tempo nos portos e correr atrás das mulheres. Acrescentou que essa história de que os marinheiros foram tranformados em porcos para que ele não pudesse recolher âncoras nem fazer-se ao mar só os infantes da marinha acreditariam, e que havia aparecido como um miserável para a rainha Dido, ainda que depois pensou melhor e disse que talvez havia sido outro tipo, o beato Anquises, mas que dava no mesmo, porque os dois eram cortados com o mesmo padrão: os dois eram uns chatos e não eram cavalheiros nem bons marinheiros. Depois confessou que gostava muito mais do que Mowett e Rowan escreviam, porque era um tipo de poesia que qualquer homem podia entender e, além do mais, estava impregnada de conhecimentos de náutica, e, finalmente, disse que estava ali para levar o comboio para Santa Maura, não para contemplar curiosidades".
Agora, pensando que havia ofendido seu amigo (porque o animal em questão era, naturalmente, o capitão da Surprise), deixou essa folha de um lado e escreveu:
"Bem sabe Deus que Jack Aubrey tem muitos defeitos: pensa que o principal objetivo de um marinheiro é levar seu barco da posição A para a B no menor tempo possível, sem perder nem um minuto, como se a vida fosse uma contínua corrida. Ontem mesmo se negou redondamente a desviar-se um pouco do rumo para que pudéssemos ver Itaca. Contudo, por outro lado (e isso é o importante), quando a ocasião o requer, é capaz de agir com magnanimidade e de controlar seus sentimentos até um ponto que ninguém poderia imaginar ao ver-lhe exasperar-se por bobeiras. Tive uma prova disto no dia seguinte ao que zarpamos de Valletta. Durante o almoço, um dos passageiros, o capitão Pollock, disse que seu irmão, um tenente de navio, estava muito satisfeito de sua nova embarcação, a Blackwater, e tinha a certeza de que podia rivalizar com qualquer das potentes fragatas norte-americanas. "Tem certeza?", Jack lhe perguntou assombrado, pois, como sabe, haviam lhe prometido essa fragata desde que haviam formado sua quilha e confiava em que a levaria para a base naval da América do Norte assim que terminasse de passar este curto período no Mediterrâneo. "Tenho certeza, senhor", respondeu o militar. E acrescentou: "Recebi uma carta sua na mesma manhã em que embarquei, na última saca de correio que chegou. Escreveu a carta na Blackwater no porto de Cork, e dizia que esperava chegar a Nova Escócia antes de que a carta chegasse em minhas mãos porque o vento soprava do nordeste e com muita força, e o capitão Irby gostava de navegar a toda vela". Então Jack disse: "Então brindemos por ele. Pela Blackwater e todos os que vão a bordo!". Pela tarde, quando estávamos sozinhos na grande cabine, mencionei a promessa quebada, e o único que disse foi: "Sim, é um golpe baixo, mas se queixar não serve de nada. Vamos tocar música"".
Em efeito, era um golpe baixo, e quando Jack despertou na manhã seguinte e a recordação veio para sua mente, o luminoso dia se entristeceu. Confiava em que lhe dariam o comando da Blackwater, confiava em que seguiria tendo um emprego no mar, o que para ele tinha muita importância porque seus negócios em terra se achavam em um estado lamentável, e, além disso, confiava em que poderia levar com ele todos seus oficiais e seus homens de confiança e, se tivesse sorte, a quase todos os tripulantes da Surprise. Mas nada disso ia ocorrer. Agora aquela tripulação bem organizada e eficiente, que podia fazer reinar a harmonia em um barco e convertê-lo em uma máquina de guerra, seria dispersada, e ele seria abandonado na praia. Além disso, como o senhor Croker, o secretário, havia lhe tratado tão mau, tão desrespeitosamente, era provável que houvesse perdido seu favor para sempre.
Era um golpe muito baixo, mas poucos o haveriam suposto ao ver Jack contar ao capitão Pollock como ele e seus aliados haviam expulsado os franceses de Marga da última vez que a Surprise havia navegado por aquelas águas. A fragata e o restante do comboio (um comboio conduzido por excelentes capitães, já que todos os barcos se mantinham em suas posições apesar da turbulência das águas) estavam ao sul do cabo Stavros, um enorme saliente que penetrava no mar Jônico, e tinham justamente em frente a cidade amuralhada que ficava ao pé do escarpado e se estendia por terraços pela parte superior.
- Aí está a cidadela - disse, apotando para o outro lado das águas verde pálido jaspeadas de branco. - Está vendo? À direita da igreja da cúpula verde e um pouco mais acima. E abaixo, junto ao cais há duas baterias que guardam a entrada do porto.
O militar ficou observando Marga pelo telescópio durante um comprido tempo.
- Eu teria pensado que não se podia conquistar pelo mar - disse por fim. - Essas baterias sozinhas poderiam afundar uma esquadra.
- Foi isso o que eu pensei- disse Jack. - Assim que a atacamos de outra forma. Por trás da muralha da cidadela, perto da parte superior do escarpado, há uma torre quadrada.
- Já a vejo.
- E detrás há uma construção de pedra de forma redonda que parece um grande tubo de desaguamento.
- Sim.
- Esse é seu aqueduto. A cidade não tem água, e se abastece de um manancial de Kutali que fica situado do outro lado do cabo, a umas duas ou três milhas de distância. Da parte superior do escarpado pode ser visto parte do caminho, ou seja, da vereda que cobre o canal pelo qual transcorre a água até onde se une com a tubulação. Ali colocamos nossos canhões.
- O outro lado do cabo é tão alto como este?
- Ainda mais.
- Então deve de ter dado muito trabalho subir os canhões até ali. Suponho que debe ter feito um caminho.
- Não, um teleférico. Nós os subimos em duas etapas até a vereda que cobre o aqueduto, e quando chegavam ali, os levávamos até o final nas carretas facilmente, sobretudo porque seiscentos albaneses e um grande número de turcos puxavam as cordas de arraste. Quando formamos uma bateria bastante grande ali em cima, apontamos os canhões para o porto e fizemos alguns disparos de aviso e depois mandamos um mensageiro para dizer ao oficial no comando das tropas francesas que se não se rendesse imediatamente seríamos obrigados a destruir a cidade.
- Pôs algumas condições?
- Não. E disse que não admitiria que eles pusessem nenhuma, pois tínhamos a posição dominante.
- Sem dúvida, os disparos feitos de uma altura assim teriam sido devastadores e o oficial francês não poderia responder ao ataque.
- Não podia subir pelo escarpado até onde nós estávamos. Para chegar ali só há uma vereda que os pastores usam, como aquele de Gibraltar que leva à baía catalã, e meu aliado turco, o bei Sciahan, havia colocado um grupo de franco-atiradores de modo que protegessem até a última curva do caminho. Contudo, ficamos surpresos que se rendesse imediatamente.
- talvez deveria ter aparentado que oferecia resistência durante um tempo ou esperado que algumas casas fossem derrubadas. É o que se costuma fazer.
- Isso houvesse sido mais digno e mais benéfico para ele quando um conselho de guerra o julgasse. Mas, como soubemos depois, a mulher do oficial estava dando a luz e os médicos estavam preocupados com ela, já que não era conveniente que estivesse em meio de canhonaços e de casas que se derrubavam, assim que o oficial preferiu não dar uma resposta que era simplesmente um pouco de ruído para obter o mesmo resultado no final.
- Indubtavelmente, tomou uma decisão sensata - disse o capitão Pollock, em tom de desgosto.
- Meu Deus! - exclamou Jack Aubrey, recordando o fato. - Nunca vi ninguém mais decepcionado que os albaneses. Haviam suado como galeotes para levar os canhões até ali, porque depois de subi-los ao extremo do teleférico tinham que trasladá-los para o final da vereda que cobre o aqueduto, o que requeria mover constantemente centenas de pranchas de quatro polegadas de grossura para contrariar o peso e puxar os cabos com força, e também haviam subido grande quantidade de balas e pólvora como autênticos heróis e haviam se armado com quantas armas lhes fora possível, e depois tiveram que voltar a levar tudo sem ter feito um só disparo e sem ter descarregado sua raiva. Estiveram a ponto de atacar os turcos, para não ficar sem combater, e o pope, um dos muitos que há nessa região, e o bei lhes golpearam com suas armas para impedi-los, berrando como touros. Contudo, tudo saiu bem. Mandamos os franceses para Zante com todas suas tralhas e depois os habitantes de Marga nos agasalharam com um banquete que durou do meio-dia até o amanhecer do dia seguinte. Os cristãos ficavam em uma praça e os muçulmanos na do lado, e quando já não podíam mais comer, começaram a falar amavelmente uns com os outros e a cantar e a bailar.
Jack recordou a arcada que separava as duas praças e os corpulentos albaneses vestidos com faldillas brancas, que haviam formado uma linha pondo os braços sobre os ombros de seus companheiros e se moviam todos exatamente ao mesmo ritmo. Também recordou o resplendor das chamas que ardiam na cálida noite, os alegres cantos que tinham sempre o mesmo ritmo e o sabor áspero do vinho.
- Vai fazer escala aí, senhor? - perguntou o capitão Pollock.
- Oh, não! - exclamou Jack. - Vamos para Kutali, que fica do outro lado do cabo. Se essa maldita carraca não voltar a perder os estais - disse, olhando para o mercante Tortoise, - nós o dobraremos sem dar bordejadas e chegaremos ao porto antes do anoitecer e o senhor poderá ver onde ocorreu a outra parte da história. Senhor Mowett, acredito que deveria fazer o sinal para mudar de bordo e preparar a fragata para fazê-lo, mas dê muito tempo ao pobre Tortoise. Algum dia nós também seremos velhos e pesaremos muito.
O Tortoise recebeu o sinal que lhe ordenava mudar de bordo muito antes que os outros e virou tão bem que em todos os barcos deram vivas. Então o comboio pôs rumou para o outro lado do cabo Stavros e o dobrou, bordejando-o a uma milha de distância, quando o capitão Aubrey terminava seu solitário almoço. Até que sua situação econômica começara a ser má, Jack comera da maneira tradicional, convidando todos os dias dois ou três oficiais e um guarda-marinha, e mesmo que agora ainda os convidasse muitas vezes para compartir algum almoço com ele (particularmente, porque sabia que os guardas-marinhas não tinham recursos e não queria que se esquecessem de comer como seres humanos), costumava convidar-lhes para tomar o café da manhã, que requeria menos preparativos. Contudo, desde que havia se informado de qual era o destino da fragata não havia querido convidar a ninguém, porque todos exceto o melancólico Gill estavam muito alegres, e se lhes ocultasse o que sabia, o que podia fazer seus dias tão tristes como os dele, seria hipócrita.
Não estava comendo na cabine-refeitório, mas justamente no final da popa, sentado de frente para as grandes janelas de popa, e podia ver do outro lado dos vidros e um pouco mais abaixo a esteira da fragata afastando-se dele, uma esteira branca que se destacava entre as turbulentas águas verdes, tão branca que as gaivotas que planavam ou mergulhavam nela pareciam sujas. Nunca deixava de se emocionar ao ver este espetáculo, ao ver os bonitos vidros curvos, tão diferentes dos das janelas que havia em terra, e o mar em um dos infinitos estados em que podia se encontrar, e tudo envolto no silêncio e oferecendo-se somente para sua vista. Enquanto comia o último pedaço de queijo de Cefalonia pensou que se tivesse que passar o resto de sua vida com meio pagamento e na prisão por não pagar as dívidas, ainda conservaria isto, que era melhor que qualquer recompensa que lhe dessem em sua vida.
Na parte inferior do vidro de estibordo apareceu a ponta do cabo Stavros, um cinzento escarpado de calcário de setecentos pés de altura, em cuja parte superior ficavam as ruínas de um templo arcaico, do qual só restava uma coluna em pé. O cabo foi estendendo-se lentamente de uma janela a outra, subindo e descendo com o fluxo de ondas, e uma revoada de pelicanos dálmatas passaram pela frente das janelas e desapareceram por estibordo. Justo nesse momento, quando Jack ia gritar algo, ouviu-se o grito de Rowan: "Todos a mudar de bordo!", e imediatamente depois se ouviram os agudos apitos e os gritos do contramestre. Mas depois disto não se ouviram passos apressados nem nenhum outro ruído, pois os tripulantes da Surprise já estavam preparados para fazer a manobra já fazia cinco minutos. Haviam virado sua fragata milhares de vezes, em muitas ocasiões em plena escuridão e com forte marejada, assim que era lógico que não corressem agora de um lado para outro como um bando de marinheiros de água doce. Em realidade, as ordens que seguiram eram simples formalidades.
- Soltar as amuras e as escotas! - gritou Rowan e, no momento em que Jack notou que a fragata começava a mudar de bordo, acrescentou: - soltar das braças a maior!
Os pelicanos e o cabo apareceram de novo na janela. A Surprise tinha o vento em contra, e provavelmente os marinheiros haviam descido as amuras e recolhido as escotas.
- Largar e puxar! - gritou Rowan em tom indiferente.
A fragata virou então mais rapidamente, e o vinho de Chiana que havia na taça de Jack se moveu para um lado devido à força centrífuga, que atuou independentemente do movimento ascendente produzido pelas ondas, e permaneceu nessa posição até que a fragata tomou o novo rumo.
- Davis, largue isso, pelo amor de Deus! - Rowan voltou a gritar, pois cada vez que a Surprise virava, quando as vergas terminavam de girar, Davis dava um puxão a mais na bolina do velacho porque achava que assim ficava mais tensa, mas como era um homem muito corpulento e tinha pouca habilidade, às vezes fazia a poa dos garrunchos se desprender.
- Killick! - gritou Jack. - resta bolo de Santa Maura?
- Não, não resta…! - respondeu Killick da cozinha, obviamente, com a boca cheia, ainda que nem por isso deixou de notar seu tom; era metade irônico e metade triunfal, devido a que lhe molestava que o capitão comesse na grande cabine porque tinha que percorrer várias jardas mais para levar e trazer os pratos. - … senhor! - acrescentou depois de tragar.
- Bem, não importa! - gritou Jack. - Traga-me café!
E dez minutos depois voltou a gritar:
- Apresse-se, homem!
- Já estou aqui! - exclamou Killick no momento em que entrou com a bandeja, inclinado para frente como se houvesse tido que percorrer uma grande distância com ela, como se houvesse atravessado um deserto infinito.
- Preparou o cachimbo de água para o caso dos oficiais turcos sobirem a bordo? - inquiriu Jack, servindo-se de uma xícara de café.
- Preparada, está preparada, senhor - respondeu Killick, que havia fumado com ela toda a manhã em companhia de Lewis, o cozinheiro do capitão. - Pensei que era meu dever fazê-la funcionar e me pareceu que tinha pouco tabaco. Ponho mais?
Jack assentiu com a cabeça e perguntou:
- E as almofadas?
- Não se preocupe, senhor. Peguei todas as que haviam nas macas da câmara dos oficiais e Velas as está costurando. De forma que as almofadas estão preparadas, e também os tabletes de menta.
Esses tabletes, que haviam comprado em Malta, eram muito populares no Mediterrâneo oriental, e haviam servido para encher mais de uma pausa embaraçosa nos portos gregos, balcânicos, turcos e levantinos.
- Que alívio! Bem, queria que o senhor Honey e o senhor Maitland se apresentassem aqui dentro de cinco minutos.
Esses eram os guardas-marinhas de mais antiguidade dos poucos que tinha e haviam sido classificados como ajudantes do oficial de derrota já fazia bastante tempo, pelo que já podiam se encarregar das guardas. Eram jovens agradáveis e bons marinheiros e, apesar de não serem linces, bons capitães em formação. Mas precisamente aí radicava o problema. Para chegar a ser capitão, um guarda-marinha tinha que passar por tenente de navio e depois esperar que alguém ou algo induzisse ao Almirantado a empregar-lhe em um barco como tenente de navio, e se isto não ocorresse seguiria sendo por toda sua vida um guarda-marinha aprovado no exame de tenente de navio. Jack recordou que havia conhecido muitos guardas-marinhas de mais de quarenta anos. Depois pensou que não podia prestar ajuda aos jovens na segunda etapa, mas que ninguém poderia prestá-la até que não passassem a primeira, e que pelo menos em essa sim podia ajudar-lhes.
- Entre - disse, virando-se. - Entrem e sentem-se.
Nenhum acreditava que havia cometido uma falta grave, mas nenhum queria desafiar ao destino tomando-se confianças, assim que ambos, mostrando um grande respeito, sentaram-se docilmente.
- Estive lendo o rol e vi que os dois terminaram o primeiro período na Armada - continuou Jack.
- Sim, senhor - disse Maitland. - Eu servi por seis anos, e durante todos eles estive navegando, senhor. Já Honey só lhe faltam duas semanas.
- Exatamente - disse Jack. - Acho que poderiam tentar passar no exame de tenente de navio tão logo regressemos a Malta. Dois dos capitães do tribunal são amigos meus, e não vão lhes fazer favores indevidos, mas pelo menos não lhes acossarão, o que é muito importante quando um está nervoso, e a maioria das pessoas ficam nervosas quando são examinadas. Eu fiquei. Podem esperar por Londres para fazer o exame, mas ali impõe respeito. Em meus tempos esse era o único lugar onde se podia fazer. Havia que ir à Junta Naval para se examinar, ainda que isso significasse esperar anos e anos até que um pudesse regressar de Sumatra ou de Coromandel.
Jack voltou àquela quarta-feira em que havia ido a Somerset House e voltou a ver a magnífica fachada de pedra, a grande sala redonda onde havia trinta ou quarenta jovens desajeitados e de pernas frouxas com seus certificados nas mãos, cada um acompanhado de um monte de parentes, alguns com aspecto imponente e quase todos com uma atitude hostil para os outros candidatos. Recordou que o porteiro lhes chamava de dois em dois e que os dois que eram chamados subiam a escada e então um deles entrava para prestar o exame e o outro ficava junto à grade branca, aguçando o ouvido para ouvir as perguntas. Voltou a ver as lágrimas do garoto que saía quando ele entrava.
- Em troca, aqui o farão em um ambiente familiar - continuou.
- Sim, senhor.
- Não tenho medo de que lhes reprovem pelas manobras - disse. - Não. É a navegação que pode lhes trazer problemas. Estes cálculos estão muito bons - acrescentou, pegando os trabalhos dos guardas-marinhas, os papéis que todos os guardas-marinhas deviam entregar diariamente ao infante de marinha que fazia guarda na porta da cabine com o cálculo da posição da fragata conforme as medições de meio-dia, - são bastante exatos, mas os fizeram de maneira empírica. Se lhes fizerem perguntas teóricas, e os capitães examinadores fazem muitas atualmente, estarão perdidos. Honey, suponha que conhece o abatimento de um barco e calculou sua velocidade com a barquilha. Como se calcula o ângulo de correção que tem que se levar em conta para corrigir o rumo?
Honey o olhou com assombro e disse que achava que podia averiguá-lo se lhe dessem um papel e tempo. Maitland disse que achava o mesmo e que se guiaria por Norie.
- Sem dúvida - disse Jack. - Mas ocorre que se encontraram com um temível inimigo e não têm tempo de olhar para Norie nem papel. Têm que dizer imediatamente a velocidade do barco que é proporcional ao seno do abatimento, de maneira que o abatimento é proporcional ao seno do ângulo de correção. Suponho que não teremos muito trabalho nesta singradura, portanto, se desejarem vir pelas tardes, trataremos de aumentar seus conhecimentos de navegação.
Quando se foram, Jack anotou vários pontos difíceis, como o da ascenção reta e oblíqua, dos quais falara com Dudley o Sextante, um capitão com uma boa formação científica que desprezava aqueles que eram simples marinheiros e que provavelmente tormasse parte do tribunal junto com seus amigos íntimos. Então subiu para o convés. A Surprise estava já no meio da baía de Kutali, a barlavento do comboio, como um bonito cisne com uma revoada de gansos comuns, alguns deles sujos. Todos os passageiros contemplavam aquele espetáculo, um espetáculo pelo qual Jack, que já o vira, voltou a sentir a mesma admiração que da primeira vez ao notar a admiração deles: a grande baía cheia de pequenas embarcações e sloops, a fileira de enormes montanhas que se alçavam justo na beira das profundas águas, e detrás do porto, formando com ele um ângulo de quarenta e cinco graus, a cidade compacta e fortificada, com seus tetos rosados, suas paredes brancas, seus muros de contenção cinzentos e suas cúpulas verdosas de cobre brilhando sob o sol, e mais além outras montanhas ainda mais altas, umas desprovidas de vegetação e outras cobertas de bosques, com os picos ocultos por vaporosas nuvens brancas.
- Agora, senhor - disse Jack ao capitão Pollock, - pode ver onde começamos. Em essa ponta do cais colocamos um enorme suporte e dali estendemos um cabo até a cidadela, por cima dos muros de contenção e pelo centro da cidade. O pusemos tão esticado como a corda de um violino e o atamos a alguns postes justo antes e depois dos vãos mais perigosos, e subir os canhões foi costurar e cantar. Essa foi a primeira etapa. O que fizemos na segunda não se pode ver bem daqui porque o terreno desce um pouco do outro lado desses penhascos que estão detrás da cidadela, mas ali, onde volta a se elevar, naquela zona verde que há abaixo dessas pontiagudas rochas de cor clara, pode ver a linha do aqueduto enterrado, que segue o contorno da montanha. Ainda que, agora, penso que talvez deveria ter-lhe falado primeiro sobre a estrutura política, que era muito complexa.
- Com sua licença, senhor - disse Mowett. - Acho que o bei já zarpou.
- Como é possível que venha tão rápido? - perguntou Jack, pegando seu telescópio. - Tem toda razão. E o amável pope vem com ele. Comece a fazer as salvas. Esses eram meus aliados nesta operação - disse para Pollock quando o condestável chegou correndo para a popa com seu acendedor, - e temo que não poderei voltar a falar com o senhor até dentro de um tempo, sobretudo porque vejo que lhe seguem mais meia dúzia de lanchas.
As salvas da Surprise ainda não haviam terminado quando os turcos começaram a disparar canhonaços de saldação com uma bateria que ficava ao sul da parte baixa da cidade. Haviam tirado proveito do arsenal dos franceses em Marga e agora tinham numerosos canhões e munições. Dispararam com o entusiasmo própio dos turcos e algumas das balas quicaram na água entre os barcos pesqueiros. Em poucos minutos, os cristãos da cidadela, que haviam tirado ainda mais proveito, começaram a disparar seus canhões de doze libras. Várias colunas de espessa fumaça ascenderam e desceram para Kutali; o eco dos canhonaços se propagava das montanhas até a entrada da baía; nos intervalos entre os canhonaços se ouviam tiros de mosquetes, pistolas e rifles. A Surprise era uma fragata muito popular entre os habitantes de Kutali porque graças a ela não haviam caído em mãos de dois beis déspotas e rapaces e haviam conseguido os meios para defender sua liberdade. Contudo, a intenção de seu capitão não era fazer uma boa ação senão levar a cabo uma operação contra os franceses, mas a intenção também fora boa e o resultado fora o mesmo.
Os governantes da pequena cidade subiram pelo costado radiantes de alegria e foram recebidos com uma magnífica cerimônia na qual o contramestre deu pontualmente as ordens, os infantes da marinha apresentaram armas, os oficiais, vestidos com seus melhores uniformes, tiraram os chapéus, e o tambor fez um comprido redobre. O bei Sciahan, um turco de baixa estatura, largo de costas, com o cabelo grisalho e muitas cicatrizes, aproximou-se de Jack com os braços abertos e o beijou em ambas as bochechas, o padre Andros o seguiu, e isto agradou tanto aos tripulantes da Surprise que deram um viva.
- Onde está Pullings? - perguntou o padre Andros em italiano, olhando ao seu redor.
Jack não podia recordar como se dizia em italiano "foi promovido", assim que decidiu dizê-lo em grego.
- Promotides - disse, apontando para para cima.
Então, ao ver que eles puseram uma expressão de assombro e tristeza de uma vez e que o sacerdote fazia o sinal da cruz ao estilo ortodoxo, deu umas palmadinhas em suas dragonas dizendo:
- Não, não! Capitão! Não morto! Elevado em grau!
Depois, elevando a voz, ordenou:
- Chamem o doutor Maturin!
Em a pausa que seguiu, o sacerdote chamou uma menina que estava de pé na proa da lancha. A menina, que não se atrevia a sentar-se porque tinha o vestido engomado, estava tão empoada e com alguns cachos tão perfeitos que não parecia humana e tinha na mão um ramo de flores tão grande como ela. Era uma tarefa bastante difícil subi-la a bordo, pois resistia a largar as flores e a fazer qualquer movimento que pudesse apertar seu esticado vestido vermelho, mas por fim os marinheiros lograram realizá-la. Então ela, com os olhos fixos no padre Andros, disse o discurso de homenagem a Jack e ao final lhe entregou com desânimo o ramo de flores. Enquanto isto havia ocorrido, os marinheiros haviam jogado a âncora da Surprise e, ao carregar a gávea maior, haviam visto que o doutor Maturin estava na cruzeta do mastaréu maior, um lugar alto demais para seus dotes. Passara a maior parte da tarde sentado no amplo e confortável cesto da gávea do maior com a esperança de ver uma águia manchada, um dos tesouros dessa costa, e foi recompensado por sua paciência com nada menos que duas delas, que haviam passado voando tão baixo que ele quase pudera olhar-lhes aos olhos, mas, ao ver que a gávea reduzia o espaço que podia abarcar com o olhar, havia subido lentamente até esse perigoso lugar com a energia que a frustração e a satisfação lhe haviam produzido, sem deixar de olhar para o céu. Da cruzeta pudera ver perfeitamente bem as aves, mas fazia tempo que se haviam afastado, fazia tempo que haviam subido ao alto do céu voando em círculos e haviam desaparecido entre as etéreas nuvens, e desde então quebrava a cabeça para encontrar a maneira de descer dali. Quanto mais olhava o vazio que tinha debaixo, achava mais difícil acreditar que havia chegado até a cruzeta e se agarrava mais fortemente na base do mastaréu e a qualquer cabo que estivesse à mão. Sabia que se atuasse com a firmeza própia dos homens e se pegasse nos cabos acertadamente, ainda que com os olhos fechados, era provável que tanteando com os pés pudesse encontrar um lugar onde apoiá-los, mas saber disso não havia tido nenhum resultado na prática, não lhe havia feito se decidir a agir, só lhe havia induzido a refletir sobre a vontade humana e a verdadeira natureza da vertigem.
No final da cerimônia com as flores, Jack seguiu o significativo olhar do primeiro oficial e percebeu a situação. Beijou a menina, deu o ramo de flores ao seu timoneiro e lhe disse:
- Bonden, suba na exárcia e ate o ramo de flores no tope do pau maior, e quando descer, mostre ao doutor qual é a forma mais conveniente de chegar ao convés. Além disso, cumprimente-lhe de minha parte e diga-lhe que eu gostaria vê-lo na cabine.
Quando Stephen desceu, a coberta estava cheia de habitantes de Kutali de diversos tipos (católicos, ortodoxos, muçulmanos, judeus, cristãos da Armênia e coptas), sorridentes e com presentes nas mãos, e outros muitos se aproximavam em pequenas lanchas. E quando chegou à cabine, viu como estava cheia de fumaça de tabaco de Cefalonia. No centro estava o cachimbo de água bolbulhando, e ao redor dele estavam o capitão Aubrey, o padre Andros e o bei Sciahan sentados em almofadas, ou melhor, nos travesseiros dos tripulantes da Surprise cobertos com bandeiras de sinais, bebendo café em xícaras de porcelana de Wedgewood. Todos lhe deram cordiais boas-vindas e lhe ofereceram uma boquilha de âmbar para que fumasse.
- Temos muita sorte - disse Jack, - porque, se não hei entendido mal, os homens do bei encontraram um enorme urso e vamos caçá-lo amanhã.
Em uma carta que escreveu na Surprise nas imediações de Trieste, o capitão Aubrey contou:
De fato, minha querida, era um enorme urso, e se houvéssemos sido um pouco mais valentes, agora você teria sua pele. Nós o encurralamos, e então ele ergueu seu corpo sumamente peludo (tinha uns sete ou oito pés de altura) e apoiou a costas contra uma rocha, com sua boca vermelha cheia de espuma e com os olhos brilhantes (se parecia com o almirante Duncan). Podíamos tê-lo matado com os rifles, mas Stephen disse que um urso era como um cavalheiro e que havia que matar-lhe com uma lança. Nós dissemos que estávamos de acordo, mas que nos dissesse como podíamos fazê-lo. Então respondeu que não, porque do único que tinha que ocupar-se era de evitar que abusássemos do urso, e, além disso, que era um guerreiro que devia ter a honra de matá-lo, não um homem de paz. Isso era inegável, mas o problema era que guerreiro o mataria. Eu pensava que o Bei tinha a precedência, porque sua patente era superior, mas ele disse que isso era uma bobeira e que, conforme as normas de cortesia, devia ceder seu posto para um estrangeiro. Enquanto discutíamos, o urso voltou a ficar em quatro patas e entrou lentamente em um pequeno vale povoado de arbustos que ficava do outro lado da rocha, um lugar pelo qual era muito difícil de persegui-lo. Finalmente, um entrometido sugeriu que Sciahan e eu o caçássemos juntos, e não pudemos negar. Garanto que passamos um longo tempo avançando com dificuldade por entre os malditos arbustos com a lança na mão ou agachados olhando ao nosso ao redor na escuridão com a esperança de que o urso aparecesse a qualquer momento (era tão corpulento como um cavalo de carga, mas de pernas mais curtas). Os únicos cachorros que restavam vivos eram os mais cautelosos, os que estavam muito mais atrás que nós, e ordenamos que os recolhessem para que seus latidos não nos impedissem de ouvir o urso. Seguimos andando devagar, aguçando o ouvido, e te asseguro que nunca em minha vida havia sentido tanto medo. De repente, Stephen, agitando seu chapéu gritou: "Vá!", imediatamente vimos o urso a um quarto de milha de distância, subindo a ladeira como uma gigantesca lebre. Então tivemos que deixar de persegui-lo, porque eu tinha que voltar para a fragata, mas esse dia de caçadas, inclusive com uma má matilha, levantou-me o ânimo. E o mesmo fez uma escaramuça que sustentamos na noite seguinte, quando passávamos perto de Corfú. O decidido oficial ao comando das tropas francesas da ilha, um tal general Donzelot, fez com que numerosos homens saissem do porto em várias lanchas para que se apoderassem de um ou dois dos barcos de nosso comboio. Seus homens não tiveram êxito, e ninguém ficou ferido, mas passamos a noite muito agitados, e com tanta agitação, um dos mercantes chocou-se contra nossa fragata quando foi empurrado por uma rajada de vento e lhe arrancou o botaló. Estou contente de estar nestas águas relativamente tranqüilas, onde há muitos barcos amigos que podem nos proteger: três fragatas e pelo menos quatro corvetas. Acabamos de chegar, e ainda não tive tempo de ver seus capitães, nem sequer a Hervey, o oficial da marinha de mais antiguidade, porque estará em Veneza até amanhã. Mas Babbington, que está aqui na Dryad, mandou uma mensagem em que me convidava para jantar quando ainda não haviamos jogado a âncora. Também está aqui o jovem Hoste. É um oficial diligente que progrediu muito, e eu gostaria de simpatizar com ele, mas se parece com Sidney Smith, é um pouco convencido e teatral. Além disso, queima muitas presas pequenas, o que não o beneficia nem prejudica aos franceses, mas arruina aos pobres homens que as tripulam e a seus propietários. Henry Cotton também se encontra aqui, na Nymphe. Estava em terra quando chegamos, mas seu cirurgião (a quem provavelmente se recordará, pois é o senhor Thomas, aquele cavalheiro tão falador que foi visitar Stephen quando estava em nossa casa) veio pedir ao doutor Maturin que o ajudasse a fazer uma operação muito delicada. Me disse que agora há uma via para transportar a correspondência por terra que passa por Viena e que é bastante segura. A situação nesta zona é muito confusa. Os oficiais ao comando das tropas francesas são competentes, enérgicos e astutos, e me parece que nossos aliados… Mas talvez deveria deixar este tema agora. Na verdade, querida, tenho que deixar de escrever também, porque ouvi que a falua de Harry Cotton se abordou com a fragata, ouvi a voz escandalosa de seu velho timoneiro, que parece a de uma ninfa asmática, gritar: "Nymphe! Nymphe!"".
Na Nymphe, o doutor Maturin se inclinou sobre seu paciente, que tinha a cara amarelada e brilhante e uma expressão de horror.
- Já passou tudo - disse. - Se Deus quiser, ficará bem.
Depois, voltando-se para seus companheiros, disse:
- Já podem desamarrá-lo.
- Obrigado, senhor - sussurrou o paciente quando Stephen tirou de sua boca o pedaço de alcochoado forrado de pele. - Agradeço muito o esforço que fez.
- Eu li a descrição da operação - disse o cirurgião da Cerberus, - mas nunca pensei que pudesse fazê-la tão rápido. Parece que fez um ato de prestí… prestidigitação.
- Admiro seu valor, senhor - disse o cirurgião da Redwing.
- Venham, cavalheiros - disse o senhor Thomas. - Acredito que merecemos uma taça.
Foram para a deserta câmara dos oficiais e o senhor Thomas lhes ofereceu vinho de Tokay.
- O outro caso é muito comum - disse o senhor Thomas depois de ter falado um pouco de Malta e do bloqueio de Toulon. - Há anos o paciente tem uma bala alojada no corpo, que lhe dispararam com uma pistola, e agora, por ter feito um grande esforço físico, causa-lhe dor. Está alojada justo na borda do músculo subescapular, de modo que o único interesse que tem para um experientado cirurgião é que se encontra no corpo de um herói de romance.
- Ah, é? - perguntou Stephen, porque pensava que era necessário dizer algo e se dera conta de que nenhum dos outros tinham intenção de dizer nada.
- Sim, senhor - respondeu Thomas. - Mas deixem-me começar pelo início.
O pedido do senhor Thomas parecia razoável; contudo, seus amigos, que já haviam ouvido a história antes e haviam visto o doutor Maturin fazer a cistostomia suprapúbica, beberam o vinho de Tokay e se foram, e Maturin assentiu com um sorriso forçado.
- Então, senhor, faz algum tempo, quando estávamos nas imediações de Pula navegando com rumo sudoeste com um vento fraco que soprava do norte, pela manhã muito cedo, ou talvez seria melhor dizer ao final da noite, bem antes de que chamassem os preguiçosos; e a propósito disto, é absurdo que lhes chamem de preguiçosos, tão absurdo como dizer que o oficial de derrota, o contador e o cirurgião não são combatentes. Quando eu estava no navio de linha Andrômeda e era ajudante de cirurgião ou, como dizem atualmente, assistente, e me parece que este nome é mais apropriado, porque "ajudante", por levar em si a idéia de familiaridade, não é adequado para designar a um membro de uma profissão nobre… Participei mais vezes que os guardas-marinhas em operações para sacar barcos de portos inimigos, para inspecionar a costa na iole, da qual tive o comando em duas ocasiões, ou na barcaça. Mas, como lhe dizia ou tentava dizer, esse tempo entre a noite e o dia, que é o melhor tempo, se o vento não é muito forte, tão forte que não permita levar desdobradas as sobrejoanetes, para pescar os peixes que nesta região chamam scombri e que, em minha opinião, são da mesma família da cavala, ainda que a carne é mais delicada. E eu estava ali inclinado sobre o coroamento com a vara de pescar na mão, depois de jogar para um lado da esteira o anzol, no qual havia posto um pedaço de pele de bacon recortado em forma de enguia, ainda que alguns dizem que se podem pegar muitos mais peixes enganchando-lhe um trapo vermelho, mas eu confio no pedaço de pele de bacon. Mas isso sim - disse, levantando o dedo indicador, - tem que estar molhada. Depois que a casca passa vinte e quatro horas submergida na água em um recipiente fundo, quando se torna branca e flexível, não há nada como isso para atrair os peixes grandes. E o tenente de infantaria estava do meu lado, esperando pescar algum peixe para o desjejum dos oficiais... Como melhor sabem é cozinhados em uma grelha quente untada com azeite, garanto, porque os molhos elaborados e os aparatos persas lhes tiram seu autêntico sabor. Pois ainda não havia picado nem um só peixe quando Norton disse: "Quieto!" ou "Silêncio!" ou algo parecido. Devia ter lhe dito que Norton era o infante de marinha. Chama-se William Norton e procede de uma família de Westmorland aparentada com os Collingwood. Pois Norton disse: "Escute! Não ouve disparos de mosquetes?".
Eram disparos de mosquetes, conforme disse o senhor Thomas, e, depois de repetir o que o oficial de guarda dissera e de contar que no início ele era céptico mas ao final havia se convencido disso e havia mandado mudar a Nymphe de bordo, contou que quando o sol aparecera sobre o horizonte pelo leste, viram um lugre que levava a reboque o esquife, que, sem dúvida, acabara de capturar, e que começaram a persegui-lo e que quando a claridade aumentara e haviam visto a bordo do lugre vários homens com o uniforme da armada francesa, avançaram com mais rapidez. Acrescentou que muito cedo perceberam que a quilha da presa formava com a direção do vento um ângulo menor que a da Nymphe, que tinha aparelho latino, e de que, por isso, poderia dobrar o cabo Promontore, e a fragata, em troca, não. Ao chegar a esse ponto, desviou-se da narração e fez algumas considerações sobre a navegação, como por exemplo, qual era a diferença entre o aparelho latino e o de velas áuricas e que vantagens teria a combinação de ambos os aparelhos, e contou de que forma um amigo seu havia medido a verdadeira força dos moinhos de vento, e Stephen deixou de prestar atenção até que o ouviu dizer:
- Bem, para abreviar o relato, quando o lugre estava a um cabo de distância do cabo, seu velacho caiu, e, naturalmente, orçou de imediato. Então vimos a um tipo saltando pela coberta como o boneco de uma caixa surpresa e derrubando homens por todos os lados. Não pude ver o que se passou no último momento porque o capitão mandou me dizer que largasse a vara de pescar e fosse vê-lo com urgência, com a desnecessária urgência com que os marinheiros sempre pedem que se façam as coisas. A propósito! No dia seguinte, quando tinha que tomar seu remédio, a poção negra, acrescentei sem escrúpulos um pouco de pó de pepininho amargo, ah, ah, ah! E que bom é o pepininho amargo para provocar fortes cólicas e diarréia! Não achou engraçado, senhor?
- Sim, muito engraçado, colega.
- Quando regressei ao convés, a fragata estava em pairo e nossa lancha se afastava do lugre, que ao final fora capturado. Já a bordo da lancha estava ele, rindo e cumprimentando seus amigos, que estavam inclinados sobre a borda e davam vivas.
- A quem se refere, colega?
- Ao boneco da caixa surpresa, é claro. Ele ria porque havia escapado das garras dos franceses e cumprimentava seus amigos, os oficiais, porque estivera de serviço nesta fragata antes de ser capturado. Fora o terceiro a bordo da Nymphe e ainda havia a bordo muitos dos oficiais que eram seus companheiros de tripulação. Por isso lhe disse que era um herói de romance. Escapou de uma prisão francesa, saiu para alto mar em um bote de remos com a esperança de encontrar a fragata inglesa que, conforme ouvira, cruzava as águas que rodeavam o cabo, foi capturado por uma das patrulhas francesas quando já via as gáveas de nossa fragata recortar-se sobre o céu e ao final foi resgatado por sua própia fragata. Esqueci de dizer que foi ele que cortou a adriça do velacho do lugre para que caísse. Foi resgatado por sua própia fragata! Se estes fatos não são novelescos, não sei o que é um romance.
- Sem dúvida, não admite comparação com Bevis de Hampton. E esse é o cavalheiro que vamos operar, não é? Alegro-me. Sempre pensei que um homem com ânimo se cura antes dos outros, e ainda que extrair-lhe a bala não parece uma operação perigosa, quanto mais vantagens tenhamos, melhor.
- De fato - disse Thomas, em tom preocupado. - talvez deveria ter-lhe operado antes, quando estava alegre. Há dias está desanimado e sente uma mistura de tristeza e raiva, e quis enforcar-se quando um estúpido que, como todos nós, conhecia o rumor que circula por Valletta lhe disse que era um… - disse e logo fez uma pausa enquanto dirigia uma olhar significativo para Stephen. - Ele lhe disse que sua mulher não tivera um comportamento decente. O senhor já sabe o que quero dizer e com quem o há feito. Espero que perder um pouco de sangue lhe faça resignar-se. Depois de tudo, muitos homens sofreram a mesma desgraça e a maioria deles sobreviveu.
Stephen não sabia o que Thomas queria dizer, mas não se preocupou com isso e simplesmente perguntou:
- Já o preparou?
- Sim. Eu lhe disse que jejuasse e lhe dei três dracmas de mandrágora.
- A mandrágora… - Stephen começou a dizer com desprezo, mas nesse momento chegou um infante da marinha e o interrompeu.
- O senhor Fielding lhes apresenta seus respeitos - disse o infante da marinha. - Quer saber quando o vão abrir e diz que faz mais de uma hora que os está esperando na enfermaria.
- Diga-lhe que iremos imediatamente - disse o senhor Thomas. - Que inconvenientes encontra na mandrágora, colega?
- Nenhum - respondeu Stephen. - Era Charles Fielding o homem de que o senhor falava? O tenente de navio Charles Fielding?
- Sim. Não se recorda que eu disse? Charles Fielding, o esposo da dona do cachorro que gosta tanto do capitão Aubrey. Não adivinhou? Não entendeu o que queria dizer? Que estranho! Mas agora devemos guardar silêncio.
Entraram na enfermaria, e ali de pé debaixo da intensa luz que entrava pelo gradeado do teto, olhando para fora pelo escotilhão, estava um homem moreno e corpulento que parecia ter saído do quadro que havia no dormitório de Laura Fielding e usava inclusive uma calça de riscas como a do quadro. O senhor Thomas fez as apresentações de rigor, e o senhor Fielding, cortesmente, perguntou: "Como está senhor?", e fez uma inclinação de cabeça, mas era evidente que não prestava atenção. Também era evidente que algo, quer fosse a mandrágora que o senhor Thomas lhe dera ou o rum que bebera por sua própia vontade, surtira efeito, pois tinha a voz embaçada e havia pronunciado as palavras com pouca clareza. Stephen nunca vira nenhum homem alegre quando ia se deitar em uma mesa de operações ou em um baú, ou sentar-se em uma cadeira para ser operado, sabia que até o mais valente se opunha a que lhe fizessem incisões a sangue frio e que a maioria dos marinheiros acrescentavam o que podiam à dose oficial de remédio. Contudo, o senhor Fielding não havia exagerado, como muitos pacientes que tinham meios para fazê-lo, e ainda era dono de si mesmo. Depois que tirou a camisa, aceitou com resignação que lhe atassem os braços (disseram que o motivo era que se fizesse algum movimento involuntário, poderiam cravar-lhe o bisturi em uma artéria ou cortar-lhe algum nervo), sentou-se e, apertando as mandíbulas, olhou desafiante ao seu redor.
A bala estava mais profunda do que Thomas supunha, e apesar de que Fielding só proferiu um ou duas lamúrias enquanto eles tentavam tirá-la das costas, ofegava e suava copiosamente quando terminaram. Depois que costuraram sua ferida e soltaram seus braços, Thomas lhe disse:
- Deve permanecer aqui um pouco. Mandarei meu ajudante para que lhe faça companhia.
- Eu farei companhia ao senhor Fielding com muito prazer - disse Stephen. - Gostaria que me contasse como fugiu da França quando tenha se recuperado.
O senhor Fielding se recuperou muito rápido com café forte e quente. Depois de beber a segunda xícara, estirou o braço para pegar sua casaca, tirou de um bolso um pedaço de pudim de passas frio e o devorou em um instante.
- Peço que me desculpe - disse, - mas passei tanta fome durante os últimos meses que sempre tenho que ter por perto algo de comer.
Então, em voz mais alta, chamou ao ajudante do cirurgião e lhe pediu que trouxesse uma garrafa de sua cabine. O ajudante era um homem velho e autoritário a quem os marinheiros admiravam por seus conhecimentos médicos, e como era proibido beber na enfermaria, vacilou e olhou para Stephen, mas a expressão grave de Fielding se fez austera e aterradora, e sua voz adquiriu o tom da de um tenente exigente, um tenente capaz de acompanhar suas ordens com um soco, e era evidente que era um homem de caráter violento. A garrafa chegou, e Fielding, depois de oferecer uma taça para Stephen, tomou uma considerável quantidade de álcool de uma vez em duas ocasiões seguidas.
- Isso é o bastante por agora - disse Stephen, tirando-lhe a garrafa. - Não pode se permitir perder mais sangue, porque está muito fraco. Estou seguro de que fez uma viagem muito longa e difícil.
- Se houvesse avançado em linha reta todo o tempo - disse Fielding, - a distância que percorrida não teria sido muito grande, e provavelmente qualquer correio a percorreria em menos de uma semana. Mas meus companheiros e eu tivemos que fazer a viagem escondendo-nos de dia e caminhando de noite, geralmente por caminhos secundários ou pelo campo, e nos perdíamos amiúde, de modo que demoramos mais de dois meses. Setenta e seis dias, para ser exato.
Falara com desânimo e havia se interrompido como se não quisesse continuar falando. Os dois ficaram em silêncio alguns minutos, enquanto a fragata balançava suavemente e a trêmula luz do sol, que refletida no mar, iluminava o teto. Stephen pensou que esse tempo, dois meses e meio, coincidia com o transcorrido desde que Laura havia recebido a primeira das cartas que a haviam preocupado tanto, a primeira das cartas com a letra falsificada.
- Quanto às dificuldades… - continuou Fielding por fim. - Sim, foi uma viagem difícil. Quase sempre o único que tínhamos para comer era o que caçávamos furtivamente ou o que roubávamos, e nas altas montanhas, nem mesmo isso. E quanto à umidade e ao frio… Wilson morreu no Trentino depois de passar dois dias debaixo de uma tormenta de neve, e um pé de Corby congelou e desde então andava coxeando. Eu tive sorte.
- Se não lhe desagrada, queria que me contasse com detalhes a sua fuga - disse Stephen.
- Muito bem - disse Fielding.
Contou que estivera encarcerado na fortaleza de Bitche, um lugar reservado para os prisioneiros de guerra rebeldes ou que escapavam de Verdún, e que a maior parte do tempo estivera isolado, porque na tentativa de fuga havia matado a um gendarme, mas que por causa de uma parte do castelo ter se queimado e terem que realizar trabalhos de reconstrução, haviam-no metido na cela de Wilson e Corby. Disse que naqueles dias havia muita desordem na fortaleza, sobretudo porque o comandante acabava de ser substituído por outro, e que os três haviam decidido tentar fugir de novo, e acrescentou que nas tentativas anteriores, que haviam feito separadamente, tentaram chegar ao Canal ou aos portos do mar do Norte, mas que haviam combinado que dessa vez iriam por outro lado, que avançariam para o leste para atravessar a Áustria e chegar ao Adriático. Acrescentou que tinham que fazer a tentativa rápido, enquanto os operários e os materiais para a construção estivessem ainda no castelo, e que Corby, que era o oficial de mais antiguidade e dominava o alemão, dissera à maioria dos outros oficiais que eles três iam tentar escapar. Disse que alguns dos oficiais os haviam ajudado muito, porque lhes haviam proporcionado mapas que desenharam de memória, um telescópio de bolso, uma bússola bastante exata, um pouco de dinheiro e, sobretudo, várias peças de roupa, inclusive algumas roupas íntimas, para que se as pusessem em cima das suas, e um grupo havia armado um alvoroço junto à muralha interior na noite escura e atroz em que os três haviam passado por cima da muralha exterior e depois haviam recolhido a corda e a haviam escondido. Disse que haviam caminhado por toda a noite, tão rápido como podiam, em direção ao Rin, com o propósito de atravessá-lo por uma ponte de botes para chegar ao caminho que levava a Rastatt, e que, apesar de não terem chegado à ponte até o meio-dia do dia seguinte, tiveram muita sorte, já que quando estavam em um bosquezinho, olhando para o extremo da ponte para ver o que os sentinelas faziam, havia se aproximado uma procissão integrada por centenas de pessoas com ramos verdes nas mãos que formavam vários grupos, e quando os homens que iam na frente com as bandeiras começaram a atravessar a ponte, eles apanharam alguns galhos e se meteram dissimuladamente na multidão e cantaram o melhor que puderam e aparentado que sentiam fervor. Acrescentou que haviam atraído a atenção de poucas pessoas, já que a procissão era formada por habitantes de diferentes povoados, e que quando alguém lhes falava, Corby respondia e ele e o outro oficial cantavam. Disse que haviam cruzado a ponte com um grande grupo detrás e que Corby havia seguido até a cidade, onde havia comprado pão integral de centeio e charque, e que pareciam pessoas respeitáveis porque usavam suas excelentes casacas azuis, das quais haviam tirado todos os galões, mas que Corby fora interrogado quando regressava da cidade, ainda que, afortunadamente, por um recruta simples e fácil de impressionar e enganar, por que se haviam informado de que os militares procuravam três oficiais ingleses, e que devido a isso, haviam permanecido escondidos no bosque mais ou menos uma semana, avançando somente durante a noite, e que ao final desse período, como houvera mau tempo e haviam adormecido na terra e haviam escorregado no lodo e haviam caído em centenas de charcos, pareciam vagabundos e despertavam suspeitas. Acrescentou que, apesar de que se asseavam o máximo possível e se barbeavam, pois tinham uma navalha, todos os cachorros lhes ladravam, e que, se por casualidade, se encontravam com algum camponês e Corby o cumprimentava, o homem lhes olhava com assombro e medo, e que por isso não se atreviam a se aproximar de nenhum povoado. Disse que haviam seguido avançando dessa maneira para o sudeste muito mais devagar do que esperavam, e que durante semanas e semanas o único que haviam encontrado para comer haviam sido nabos, batatas, milho tenro e pequenos animais de caça, e que se haviam debilitado por causa disso e da incessante chuva. Admitiu que em várias ocasiões haviam sido perseguidos, uma ou duas vezes pelos guardas-florestais, mas quase todas pelos camponeses, porque se haviam metido em seus imóveis para roubar, e pelas patrulha, porque haviam ouvido dizer que estavam em determinado lugar. Além disso, disse que haviam tido medo em todo momento durante a viagem e que todos tinham uma expressão austera e sentiam um profundo ódio não só por seus perseguidores, mas também por qualquer um que pudesse trair-lhes, e confessou que haviam estado a ponto de matar dois meninos que encontraram seu esconderijo por casualidade. Finalmente, disse que o ódio havia impregnado as relações entre os três de tal maneira que havia provocado acaloradas disputas e havia aumentado, se era possível, sua tristeza durante as últimas semanas da viagem. Falara com uma emoção tão profunda que por seu gesto austero algumas vezes e impassível em outras, Stephen, nunca teria suspeitado que pudesse sentir.
- Não sei como pôde suportar - disse quando Fielding chegou ao ponto do relato em que haviam percebido que estavam perdidos.
Fielding disse que depois de passar dois dias subindo e descendo trabalhosamente várias montanhas peladas sem ter o que comer, ao final haviam avistado um vale, mas que nele não haviam visto o posto austríaco que esperavam encontrar senão uma bandeira tricolor, pois estava na parte da Itália ocupada pela França. Acrescentou que no centro do vale se alçava uma fortaleza e não havia por perto nenhum povoado, nenhuma fazenda e nenhuma cabana de pastor, e que, por isso, não havia nenhum lugar onde se refugiar.
- Eu sentia que um… um estranho sentimento me alentava a seguir - disse Fielding, - e haveria percorrido o dobro dessa distância se meus pés o houvessem aguentado. E acredito que o mesmo ocorria aos outros. Quando penso que suportaram em vão tantas penalidades, acho que não há justiça no mundo, garanto. Não temos motivos para achar que suas mulheres são prostitutas.
- O que ocorreu ao senhor Corby?
- Ele foi morto. Fomos perseguidos por uma patrulha de soldados de cavalaria quando faltavam três dias para terminar a viagem, quando estávamos muito perto da costa e avistávamos os barcos. Não podia correr, e os soldados o destroçaram apesar de não estar armado. Eu me escondi em um pântano cheio de juncos altos com a água até aqui.
Fez uma pausa e pouco depois, com voz apagada, disse:
- Eu fui o único que restou. Não lhes dei sorte. A menos que considere este caso do ponto de vista profissional, penso que teria sido melhor que ficasse em Bitche, e ainda desse ponto de vista… de toda maneira, não vou voltar correndo para Malta para buscar um barco.
As últimas palavras Fielding as dissera como se falasse consigo mesmo, mas Stephen pensou que, apesar disso, era necessário responder.
- Tive a honra de ser apresentado à senhora Fielding, e ela teve a amabilidade de convidar-me para as veladas musicais que se celebram em sua casa.
- Oh! - exclamou Fielding. - Ela tem tanto talento para a música! Talvez esse fosse o problema. Eu nem sequer posso tocar Deus salve ao Rei com um apito de um penique.
O capitão Aubrey e o capitão Cotton, da Nymphe, haviam navegado juntos quando eram guardas-marinhas e inclusive antes, quando eram simplesmente cadetes, tenros pombinhos que não eram úteis para nada, e haviam sido inscritos no rol do Resolution com a classificação de serventes do capitão. Não se tratavam com cerimônia aos doze anos, e não se haviam tratado muito mais formalmente à medida que haviam subido de categoria. Agora Jack acabava de conduzir ao seu amigo para sua cabine e se assombrou ao ver que tinha uma expressão preocupada e envergonhada de uma vez e que se esquivava de seu olhar.
- Algo lhe preocupa, Harry? Está enfermo? Está incômodo?
- Oh, não! - respondeu o capitão Cotton com um sorriso artificial. - Nada disso.
- Então, o que tem? Está com uma cara como se lhe houvessem pegado falsificando o rol ou ajudando aos inimigos do Rei.
- A verdade, a pura verdade é que tenho que lhe dar uma má notícia, Jack. Charles Fielding, que estava prisioneiro em Verdún e depois em Bitche, Charles Fielding, que faz algum tempo foi terceiro a bordo da Nymphe e depois segundo da Volage, escapou. Nós o recolhemos diante do cabo Promontore há vários dias e está a bordo de minha fragata neste momento.
- Se há escapado? - perguntou Jack. - Quanto o admiro por isso! Escapar de Bitche! Que jogada! Alegro-me muito de que o haja conseguido. Mas, diga-me, qual é a má notícia?
- Oh! - exclamou Cotton, ficando vermelho de vergonha. - Pensava que… Todo mundo diz que… Todos acreditam que você e a senhora…
- Oh! - exclamou e se passou a rir. - É por causa desse maldito cachorro. Isso não é verdade, desgraçadamente. É um disparate, é só uma fofoca de Valletta. Com muito gosto o levarei para Malta. Partimos amanhã, assim que diga-lhe que se vier a qualquer hora antes que zarpemos, poderá chegar a Malta mais rápido que em qualquer outro barco. Escreverei uma nota para ele agora mesmo - disse, aproximando-se de sua escrivaninha.
A resposta a essa nota chegou da Nymphe pouco antes que Stephen entrasse na grande cabine.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou Jack. - Suponho que sabe que o esposo de Laura fugiu e está a bordo da Nymphe.
- Sim, sei - disse Stephen.
- Há ocorrido algo horrível - disse Jack. - Parece que um maldito estúpido lhe disse que eu era o amante de sua mulher. Cotton esteve aqui faz pouco e me disse. Imediatamente o neguei, claro, e para que minha negativa fosse convincente, mandei uma nota para Fielding na qual me oferecia a levar-lhe para Valletta, pois se não for conosco, demrará mais de um mês em chegar ali. Não tive tempo de pedir sua opinião - disse em tom de angústia, escrutinando o rosto de Stephen, - mas me pareceu que era o que devia fazer, o mínimo que podia fazer, e que tinha que fazê-lo imediatamente. E lhe ofereci minha cabine-refeitório, o que, em minha opinião, foi um ato generoso. Mas esta é sua resposta.
- Fizeste bem em oferecer-te - disse Stephen enquanto pegava a nota. - E não havia necessidade de pedir minha opinião, meu amigo. Às vezes supervaloriza minhas ações. Não havia nenhuma necessidade… - murmurou e imediatamente leu: - "O senhor Fielding acusa recebimento da carta do capitão Aubrey com data de hoje, mas lamenta não poder aceitar a oferta que lhe faz, e espera encontrar-se com ele em Malta dentro de pouco tempo". Eu sinto muito.
Ainda que Jack conhecesse Stephen muito bem, não entendia o que queria dizer nem sabia por que razão lamentava tanto.
- Hei operado a esse cavalheiro esta manhã e depois estive falando com ele um tempo - disse Stephen depois de alguns momentos. - Ainda que lhe conviria mais regressar conosco, não acho que a persuasão tenha um bom resultado, pelo contrário. Mas seremos nós os primeiros em dar a notícia da fuga do senhor Fielding em Valletta, né?
- Certamente! Ainda que, como Babbington nos acompanhará nessa maldita carraca, provavelmente não poderemos desdobrar as sobrejoanetes nem as joanetes em nenhum momento, nenhum outro barco partirá daqui até que não chegue o próximo comboio.
Ficaram em silêncio, cada um muito distante do outro. Jack havia se batido em seus tempos, mas não gostava dos duelos então, e muito menos agora, porque quase sempre se usavam pistolas, que eram mais perigosas que as espadas. Achava-os absurdos e atrozes, e pensou que não tinha desejo de converter Laura Fielding em uma viúva, e ainda menos a Sophie.
- A falua está preparada, senhor, com sua licença - disse Bonden com seu vozeirão de marinheiro, rompendo o silêncio da cabine.
- A falua? - perguntou Jack, interrompendo suas meditações.
- Sim, Sua Senhoria - respondeu Bonden cortesmente. - Tem que estar a bordo da Dryad dentro de cinco minutos para almoçar com o capitão Babbington.
CAPÍTULO 10
Poucos animais marinhos gostavam tanto de Stephen Maturin como os delfins, e no estreito de Otranto havia montes deles. Desde que terminara a ronda passara a observar um grupo que acompanhava a fragata desde a ponta da proa, inclinado sobre o mascarão. Os delfins, saltando juntos, passavam perto do lado de bombordo, o lado iluminado pelo sol, até chegar à esteira, e, depois de brincar um pouco nela, iam para frente outra vez. Às vezes, ao passar nadando junto à fragata, roçavam o costado e inclusive o quebra-mar, mas a maior parte do tempo saltavam, e Stephen podia ver suas caras risonhas fora da água. O mesmo bando, no qual havia dois delfins muito gordos e com muita manchas, havia aparecido várias vezes antes, e Stephen estava convencido de que notavam sua presença e agitava a mão no ar cada vez que saiam da água porque tinha esperanças de que o reconhecessem e inclusive simpatizassem com ele.
Os delfins não tinham que esforçar-se muito, pois o vento era fraco e a Surprise, navegando para o sul-sudoeste com poucas velas desdobradas, apenas alcançava uma velocidade de cinco nós. Por outro lado, sua lerda companheira, a Dryad, avançava trabalhosamente e tinha desdobradas todas as velas que podia levar estendidas para poder manter-se em seu posto. Ambas embarcações navegavam de modo que podiam vigiar uma grande extensão do mar, já que havia muita probabilidade de que se encontrem com barcos corsários inimigos no sul do mar Adriático e o norte do mar Jônico (ali haviam sido atacados muitos barcos britânicos que navegavam sem companhia e alguns comboios pequenos) e alguma possibilidade de que se encontrem com barcos de guerra franceses ou venezianos, ou com algum mercante com um valioso carregamento que fosse uma presa legal. O capitão da corveta Dryad estava tão ansioso de conseguir a glória e butins como qualquer outro da Armada, mas a corveta, que era pequena e muito baixa, não subia facilmente com as ondas, sobretudo com aquelas tão grandes que chegavam pela amura de estibordo, que eram claros indícios de tormenta no Mediterrâneo ocidental. Às vezes a velas baixas se punham flácidas quando a corveta caía nos seios que se formavam entre as ondas, e às vezes se inchavam tanto quando subia que introduzia a proa na crista das ondas e as verdes águas saltavam até o castelo, espalhavam-se pelo convés e chegavam à cabine do capitão. A Surprise, em troca, subia com as ondas como se fosse um cisne, e às vezes, quando descia seios muito profundos entre ondas muito altas, Stephen podia ver os delfins nadar dentro das enormes massas de água transparente tão bem como se estivesse olhando-os através das paredes de um imenso tanque. Se havia colocado nesse lugar quando o sol se encontrava a certa distância do horizonte pelo leste, e havia permanecido ali, recostado comodamente, às vezes refletindo e outras simplesmente olhando para o mar, açoitado por cálidas rajadas de vento, enquanto o gurupés, que ficava justo acima de sua cabeça, rangia por causa do cabeceio da fragata e dos puxões da estai do trinquete. Ainda estava nesse lugar quando se haviam feito as medições do meio-dia, quando haviam chamado aos gritos aos marinheiros para almoçar e quando havia soado o agudo apito que indicava que era a hora de pegar o grogue, e teria ficado ali indefinidamente se não lhe houvessem chamado. Há tempos decidira como resolver o problema que a aparição de Fielding havia apresentado e pensava que apesar de que a notícia chegaria com a Surprise, seria preciso agir com rapidez. Teria que se abrir com o almirante e com Wray e lamentava, mas pensava que esse era o preço que tinha que pagar para pegar os agentes secretos franceses mais importantes que havia em Malta. Faria que Laura marcasse um encontro com seu enlace, e provavelmente ele os levaria aos outros espiões. Mas antes que os pegassem, tinham que trasladar Laura para um lugar seguro, pois provavelmente escapariam alguns descontentes malteses que eram agentes secretos sem importância. Havia pensado no que diria para desculpar Laura ante o almirante e não temia que Wray adotasse uma atitude intransigente por razões morais. Essa decisão pertencia ao passado, pois no presente Stephen estava extasiado com a limpidez do ar quente, o brilho da luz e o rítmico movimento da fragata enquanto sulcava o mar azul verdoso. O sol já passara o zênite e havia se deslocado dois palmos para o oeste, e a vela de estai dava sombra a Stephen quando Calamy, muito bem penteado e com uma camisa com peitilho, chegou à proa e perguntou:
- Que ocorre, senhor? Não se esqueceu que o capitão foi convidado para almoçar com o senhor, né?
- E o que devo fazer? - perguntou Stephen. - Devo entreter ao capitão com adivinhações, jogos de palavras e piadas?
- Vamos, senhor, o senhor já sabe que o capitão está convidado a almoçar na câmara dos oficiais. Só dispõe de dez minutos para se trocar. Não há nem um minuto a perder.
E quando acompanhava Stephen da popa, disse:
- Eu também vou. Será uma refeição divertida, né? Foi divertida, mas no início o capitão estava muito sério, e ainda que não estivesse mal-humorado, não falava. No momento em que se sentou junto a Mowett, sentiu uma grande tristeza. Sentia muita falta de Pullings, e quando olhou para os oficiais que conhecia tão bem e que estimava, pensou que aquele grupo se separaria dentro de poucas semanas. Achava que era iminente uma mudança em sua vida, que estava em um momento de transição entre duas etapas, e que as coisas válidas em uma não seriam na outra. Não era um visionário, mas há algum tempo tinha a sensação de que a ordem ia ser substituída pelo caos, de que estava a ponto de ocorrer um desastre, e isso o entristecia.
Tentava consolar-se pensando que a vida na Armada era uma vida de freqüentes despedidas, uma vida em que as tripulações dos barcos se separavam continuamente. Sabia que, em geral, um grupo de tripulantes que iam realizar uma missão juntos, por bem ou por mau, separavam-se quando o barco regressava, ainda que era possível que o capitão retivesse alguns de seus oficiais, seus guardas-marinhas e seus homens de confiança se lhe encomendavam outra missão imediatamente. Por isso pensava que esta separação seria como uma de tantas pelas quais passara, ainda que seria mais dolorosa, já que agora tinha mais apego ao seu barco e à tripulação que em outras ocasiões. À medida que a refeição transcorria, na qual se sucediam excelentes pratos, achava que tinha mais razão. Por outro lado, seus anfitriões, que ignoravam o que pensava e sentiam satisfação porque havia bom tempo e porque Maclean, o novo tenente de infantaria da marinha, oferecia esplêndidas refeições, estavam muito alegres. A boa comida e o bom vinho surtiram efeito, e ainda que a conversa não fosse muito interessante, era amena, e Jack Aubrey tinha que ser um homem de pior humor para não ter desfrutado a refeição e a companhia. Depois que tiraram a toalha de mesa e encheram a mesa de nozes, poucos cantaram o coro com mais entusiasmo que ele quando Calamy, a pedido dos demais e depois de ter perdido a timidez por ter bebido três copos de clarete e um de vinho do porto, com uma voz aguda que contrastava agradavelmente com a voz grave de seus superiores, cantou Nelson at Copenhague:
Com suas estrepitosas e estrondosas,
suas estrondosas e estrondosas
suas ruidosas e estrondosas bombas…
E poucos escutaram com mais atenção que ele a Maclean quando disse:
- Não é minha intenção competir com o senhor Mowett nem com o senhor Rowan, pois não tenho talento para a poesia, mas, como tive a honra de ter-lhes oferecido este almoço, espero que me permitam recitar um poema composto por um cavalheiro escocês meu amigo que é um louvor à geléia de groselha.
Alguns exclamaram: "Certamente!" ou "Naturalmente!". Outros gritaram: "Viva a geléia de groselha!" ou "Atenção, atenção!".
- Refere-se à geléia de groselha do café da manhã, já sabem - disse Maclean e imediatamente começou a recitar:
Muito antes de que enchessem as xícaras, me pus de pé
enquanto o desejo de comer geléia meus olhos fazia brilhar,
e uma fina fatia de pão e uma colher peguei
e com minha habitual tranqüilidade,
com uma grande quantidade de ambrosia untei
suavemente a fatia de pão…
Parou ao ver Williamson, o guarda-marinha de guarda, entrar precipitadamente e aproximar-se do capitão.
- Com sua licença, senhor - disse Williamson. - A Dryad há comunicado que um barco acaba de dobrar o cabo Saint Mary e navega com rumo leste, e parece ser o Edinburgh.
Era o Edinburgh, um potente navio de setenta e quatro canhões ao comando de Heneage Dundas. As duas embarcações, que tinham rumos convergentes, aproximaram-se devagar e se puseram em pairo quando se encontraram, e então Jack foi ao navio para perguntar a Heneage como estava. Heneage respondeu que estava bem, mas que poderia estar melhor se houvesse capturado um barco corsário francês, um barco de vinte canhões com o casco de cor azul celeste, que havia perseguido nesse dia, da alvorada até a tarde, mas que deixara seu navio para trás e havia se posto sob a proteção dos canhões de Tarento. Depois disse que tinha muitas outras notícias que dar-lhe além dessa, e lhe contou que duas terríveis tempestades que houve no golfo de Leão haviam causado graves danos à esquadra que fazia o bloqueio ali e a haviam obrigado a deslocar-se para o porto de Mahón, onde alguns navios ainda eram reparados. Acrescentou que a esquadra francesa não havia saído do porto, mas que se acreditava que alguns de seus barcos haviam escapulido, ainda que ninguém sabia com certeza isso nem quantos eram nem que potência tinham. Acrescentou que, em troca, todos sabiam com certeza que o comandante geral e Harte haviam brigado e que, apesar das causas serem incertas, o efeito era evidente: Harte ia regressar para a Inglaterra. Não sabia se fora exonerado de seu cargo, se arriara sua insígnia e a pisoteara, como alguns diziam, se lhe deram baixa por doença ou se caíra em desgraça, mas estava seguro de que ia regressar para a Inglaterra.
- E Deus queira que fique ali por muito tempo - disse. - Nunca conheci um capitão que tivesse tão pouca habilidade para governar um barco e mandar em seus homens. Ainda que lhe dêem o comando de outro barco, o que poderia ocorrer devido a sua relação com Andrew Wray, não acredito que voltasse a servir na Armada, porque agora é muito rico. Meu primo Jelks, que sabe destas coisas, me disse que é propietário da metade de Houndsdith, que produz anualmente uma renda de nada menos que oito mil libras.
Durante a tarde o vento aumentou de intensidade e pela noite rolou para noroeste e começou a soprar com tanta força que Jack ordenou pôr os mastaréus sobre o convés depois de passar revista. Um pouco antes de que saísse a lua pensou mandar colocar outro rizo nas gáveas, não só porque o vento era muito forte, mas porque soprava perpendicularmente às ondas e agitava o mar de tal maneira que a exárcia da Surprise rangia. Mas esse trabalho teria se perdido, porque antes de que a lua se separasse do horizonte, o serviola do castelo gritou:
- Barco à vista! Barco pela amura de bombordo, a trinta graus pela amura de bombordo!
Ali estava o barco corsário que o Edinburgh perseguira. Imediatamente Jack mandou tirar o rizo das gáveas e o barco corsário rumou para Tarento para pôr-se sob a proteção de seus potentes canhões. Mas a Dryad, que estava perto do lado de barlavento do barco francês, em resposta aos sinais luminosos azuis que a Surprise fez, desdobrou todas as velas e se situou de maneira que o impedia de aproximar-se da costa. Seguiu comportando-se heroicamente durante um comprido tempo, enquanto a Dryad e sua companheira perseguiam o veloz barco corsário como os cachorros de uma matilha e, apesar de que seu botaló e seu mastaréu do maior terem se desprendido e caído pela borda estrondosamente, quando isso ocorreu o barco já não podia mudar de bordo. Nesse momento o barco francês se encontrava perto do lado de sotavento da Surprise, a umas duas milhas de distância, e começou a navegar a toda velocidade em direção sul, em direção à distante costa berbere.
Então começou uma longa perseguição, na qual cada capitão empregava todos seus conhecimentos de náutica e fazia até as menores mudanças na exárcia e na posição do leme para navegar mais rápido que seu adversário. O barco corsário tinha a vantagem de poder navegar na forma em que alcançava maior velocidade, com o vento pela quadra, enquanto que a Surprise não, pois navegava mais rápido com o vento pela alheta, ainda que seus tripulantes pudessem desdobrar e arriar velas mais rápido. As duas embarcações avançavam rapidamente, a uns doze ou treze nós, fazendo saltar a água e a espuma para grande distância pelos lados e por trás, e seus tripulantes estavam muito animados. Os tripulantes do barco corsário jogaram pela borda os tonéis de água, as lanchas, as âncoras de leva e, por último, os canhões. Como o vento diminuiu ligeiramente de intensidade, o barco se afastava mais e mais, de modo que a distância aumentou meia milha entre as duas e as três da madrugada. Para diminuir essa distância, um grupo de tripulantes da Surprise jogaram pela borda vinte toneladas de água e todos os que estavam desocupados se alinharam no lado de barlavento para que o barco se endireitasse um pouco, e quando o vento voltou a aumentar de intensidade e a presa não pôde seguir usando desdobradas as alas (que se desprenderam antes que pudessem arriá-las), e a Surprise sim, a distância entre elas começou a diminuir. Ao riscar a alvorada o barco francês estava ao tiro de mosquete da Surprise, mas ainda navegava a grande velocidade, como se seu capitão tivesse a vã esperança de que algum mastro da fragata caísse. Os tripulantes da Surprise pensavam que o capitão do barco corsário estava prolongando muito a perseguição simplesmente porque era obstinado e alardeava de valente, e que teriam que deter-lhe com uma descarga ou, em caso contrário, não se poderiam acender os fogos da cozinha e o café da manhã seria preparado muito tarde. Jack notou que muitos tripulantes lhe lançavam olhares significativos e muitos dos artilheiros que manejavam os canhões de proa, que já haviam sido preparados para disparar fazia tempo e cujo cevo mudava agora o senhor Borrell ostentosamente, olhavam com a cabeça inclinada e com uma expressão inquisitiva ou assombrada. Em resposta a um comentário, Mowett lhe disse:
- Senhor, estou preocupado com os marinheiros. Todos, da proa até a popa, estão muito excitados, e se esse tipo…
Parou ao ver que um jorro de água se aproximava de sua cabeça, e Jack, protegendo os olhos da água com uma mão e agarrando-se fortemente com a outra a um brandal tenso como um cabo de ferro enquanto a fragata se elevava com uma onda, olhou para o veloz barco corsário, que era digno de ser visto, pois tinha todas as velas abertas e tanta espuma ao seu redor que o casco parecia estar envolto na névoa.
- Muito bem - disse. - dispararemos um canhonaço.
Então, alçando a voz, ordenou:
- Senhor Borrell, por favor, dispare um canhonaço alto para demostrar que queremos capturá-lo de verdade. Um pouco alto, não muito.
- Sim, senhor: um pouco alto, não muito - repetiu o condestável.
E Tom Turk, o comprido, depois de fazer uma série de cálculos, disparou dando um gemido, como sempre fazia.
Abriu um buraco em cada uma das gáveas do barco corsário, e o velacho, que já estava a ponto de se romper, rachou. Então o barco orçou e imediatamente arriou a bandeira em sinal de rendição. O cozinheiro da Surprise e seus ajudantes correram para a cozinha murmurando algo.
A única coisa que Stephen ouviu da perseguição foi o canhonaço, e como o tambor não havia chamado os tripulantes para seus postos, pensou que provavelmente era uma das extravagâncias dos marinheiros ou uma salva e voltou a dormir, de modo que quando subiu para o convés por fim, furioso por causa de que havia adormecido mais do que o devido porque não lhe haviam despertado o ruído da pedra arenito, nem os rítmicos chiados das bombas, nem os gritos dos tripulantes, assombrou-se ao ver que a fragata estava em pairo, que havia outra embarcação perto dela e que as lanchas iam e vinham de uma para a outra. Ficou ali olhando-a com os olhos semicerrados, sem responder a quem lhe dava bom dia, e depois de um tempo disse:
- Essa não é a Dryad, porque tem três mastros.
- Não se pode ocultar nada ao doutor - disse Jack e, voltando-se para ele, continuou: - Felicite-nos por termos capturado esta presa. Nós a capturamos ontem à noite.
- O café da manhã se atrasou muito - disse Stephen.
- Venha beber uma xícara de café comigo e lhe contarei como a apresamos - disse Jack.
Contou, talvez com muitos detalhes, mas Stephen recuperou a cortesia graças ao café e escutou com aparente atenção. Mas quando ouviu que Jack disse: "Nunca vira um barco que navegasse tão rápido com o vento pela quadra.
Garanto que a Armada o compra. Rowan vai levá-lo para Malta assim que os marinheiros enverguem um velacho novo", interessou-se vivamente pelo caso e perguntou:
- Há a possibilidade de que chegue ali antes que nós?
- Oh, não! - exclamou Jack. - Não há nenhuma, a não ser que nos encontremos com um barco inimigo ou persigamos outra presa.
Stephen vacilou um momento e depois, em voz muito baixa, disse:
- É sumamente importante que a notícia da fuga não chegue a Valletta antes que eu tenha chegado.
- Compreendo - disse Jack secamente. - Bem, poderei assegurar-me disso.
- E a Dryad?
- Acho que não temos que nos preocupar com ela. Perdeu o botaló e o mastaréu da maior, e duvido que possa avançar rápido com o vento que está soprando. Além disso, a perseguição de ontem à noite não nos afastou muito de nossa rota, pois navegamos rumo sudeste em vez de sul-sudeste. Não é provável que a vejamos até pelo menos dois dias depois de termos chegado ao porto.
Stephen pensava que seu amigo era infalível quando julgava assuntos relacionados com o mar e os barcos, e, apesar da Surprise fazer a viagem navegando com ventos desfavoráveis, ficou tranqüilo até a escura e tormentosa tarde de domingo em que chegou ao porto, um porto onde, em contra do habitual, havia muito poucos barcos de guerra. Assombrou-se ao notar que o navio do comandante geral não estava e dois minutos depois se assustou tanto que ficou sem respiração ao ver a Dryad atracada ali. Ao seu redor havia numerosos vendedores e típicas embarcações maltesas, e enquanto ele a contemplava, um de seus cúteres, que estava cheio de marinheiros de licença vestidos com a roupa de descer a terra, começou a afastar-se de um costado. Os tripulantes da Dryad deram vivas ao ver entrar a presa (pois lhes correspondia uma parte de seu valor) e os tripulantes da Surprise deram vivas em resposta, e quando a fragata navegava em direção ao cais Thompson, onde ia deixar os prisioneiros, alguns disseram frases jocosas sobre a lentidão com que a fragata havia regressado e outros sobre a aparência atual da corveta. Stephen procurou ansiosamente por Jack com o olhar, mas o sinal que ordenava ao capitão da Surprise descer a terra fora içada poucos minutos depois que a fragata se identificou, e agora estava em sua cabine trocando de roupa.
- Senhor Mowett - disse em meio ao alvoroço, - por favor, pergunte-lhes desde quando estão aqui.
Estavam ali desde a sexta-feira pela noite, assim que pelo menos os oficiais haviam disposto de todo o sábado e a maior parte do domingo para descer a terra. Stephen correu para a cabine de Jack e, sem pedir desculpas, entrou quando Jack vestia seus melhores calções e disse:
- Escute-me. Tenho que ir a Valletta imediatamente. Você me levará?
Jack o olhou com o cenho franzido e disse:
- Já sabe quais são as regras da Armada: não se concedem permissões até que o capitão informe da viagem ao seu superior. Tem uma poderosa razão para me pedir que faça uma excessão?
- Dou-lhe minha palavra de honra de que sim.
- Muito bem. Mas devo advertir-lhe que, pela rapidez do sinal, acredito que é provável que nos ordenem zarpar assim que completemos a aguada.
- Claro - disse Stephen distraidamente, e correu para sua cabine, onde pegou uma pistola e pegou um bisturi do estojo de remédios.
Stephen viu os degraus de Nix Mangiare na penumbra e desceu da falua de um salto. Foi até o palácio, em uma de cujas alas vivia Wray, passando o mais rápido que podia por entre uma multidão que caminhava devagar. Ali se informou que Wray estava na Sicília, o que frustrou seus planos, e durante alguns momentos não soube o que fazer. A situação era muito perigosa e delicada e Stephen não sabia em quem podia confiar. As palavras com que Wray havia expressado suas suspeitas voltaram à sua mente uma e outra vez, e pensou que possivelmente ao dizer navium duces se referia a um alto cargo. Caminhava pela rua Real contra a maré humana que avançava por Floriana quando Babbington, Pullings e Martin, que estavam muito alegres, fizeram com que parasse junto a um poste de luz dourada e disseram que se aproximava chuva ou talvez uma tormenta e que devia ir com eles para o hotel Bonelli, onde iam passar uma agradável noitada e estariam cantando até o amanhecer. Seu olhar, inexpressivo como o de um réptil, impressionou-lhes, perderam a alegria e o deixaram ir.
Quando chegou à rua onde ela vivia, os relâmpagos largamente esperados feriram o firmamento, seguidos imediatamente por trovões tão fortes que parecia que o céu havia se partido em dois, e pouco depois desatou a tormenta e começaram a cair grandes pedaços de granizo que saltavam à altura da cintura. Refugiou-se, junto com muitas outras pessoas, sob a marquise que ficava sobre a grade de sua casa. Estava quase seguro de que o homem que costumava vigiá-la não a vigiava agora, mas se alegrou de que estivesse escuro e de que as pessoas houvessem corrido e se metido ali aos empurrões, porque isso impedia que inclusive o observador mais atento o visse. O granizo foi sucedido por uma forte chuva, que imediatamente começou a derreter a branca capa que cobria o solo e a cair com estrépito pelas bocas das sargetas. A chuva cessou de repente, e depois de um tempo, a gente se foi dali, caminhando com cuidado e levantando muito os pés para passar por cima dos charcos, mas ainda passavam algumas nuvens baixas pela frente da lua e se viam relâmpagos sobre Senglea, assim que provavelmente ia chover mais.
Stephen avançou pela vereda. Por alguma razão, tinha certeza que Laura Fielding não estava ali. Quando chegou à porta do jardim, viu que, em efeito, estava fechada, e quando tocou com os nós dos dedos não ouviu dentro os habituais latidos e respirações. A porta se fechava automaticamente, e como Laura havia ficado tantas vezes fora da casa porque ela havia se fechado, tinha uma cópia da chave escondida entre duas pedras do tapume. Stephen a procurou tateando e conseguiu entrar.
O jardim cheirava a chuva, a terra molhada e a folhas de limoeiro machucadas pelo granizo, e ainda se ouvia a água cair na cisterna do outro lado da arcada. Junto à parede da direita, parte do pavimento fora tirado, e um raio de lua permitiu Stephen ver que agora havia ali um montículo, provavelmente um novo alegrete, e sobre ele muitas flores esmagadas pela tormenta. Todo o resto estava igual. No pórtico, perto do nicho onde ficava São Telmo, ainda ardia uma pequena lâmpada, à qual não haviam chegado nem o granizo nem a chuva, e a porta da casa, como era habitual, não estava fechada com chave. No dormitório de Laura, entre o retrato do senhor Fielding e a imagem de Nossa Senhora do Consolo, havia outra lâmpada acesa, mas dava uma luz azul. O lugar estava vazio mas em ordem. Parecia que ela havia saído há uma hora mais ou menos, pois em um jarro que estava junto à lâmpada havia um ramo de delicadas estevas que ainda não havia caído nenhum pétala. Stephen se sentou e sentiu um alívio tão grande que o própio relaxamento o debilitou.
Não acendeu nenhuma luz porque o isqueiro de Laura falhava e porque podia ver bastante bem, já que seus olhos haviam se acostumado com a tênue luz azul. De onde estava sentado podia ver o retrato, e contemplou durante um tempo àquele homem temível, apaixonado e triste. "Laura é a única que pode dar-se bem com ele", pensou quando vários relâmpagos sucessivos iluminaram o quadro, de tal modo que parecia que Fielding saía dele acompanhado de trovões tão fortes como uma salva feita pela esquadra do Mediterrâneo inteira. A chuva começou a cair outra vez, e Stephen foi até a janela da salinha e olhou como caía entre os intermitentes relâmpagos. Notou que o montículo estava desmoronando e que a água arrastava a terra e as maltratadas flores pela porta. "Parece uma tumba", pensou, e foi sentar-se ao piano de Laura. Tocava as teclas distraidamente, pensando que era inútil decidir o que iam fazer até que Laura regressasse e ele se informasse de qual era a situação; contudo, pensou em várias possíveis ações até que, durante um intervalo da chuva, ouviu o rouco som do pequeno sino da igreja dos franciscanos tocando a completas além da amálgama de escuros telhados.
Mecanicamente a princípio e intencionalmente depois, rezou a oração em que se implorava proteção durante a escura noite e começou a tocar a versão do primeiro salmo no modo dórico, mas não seguiu porque não tocava bem e o piano não era um instrumento adequado para o canto gregoriano. Permaneceu ali sentado, completamente relaxado e em silêncio, durante muito tempo. A chuva seguia caindo, umas vezes violentamente e outras suavemente, e a cisterna já havia se enchido até a borda e não fazia ruído. Só o que se ouvia no solitário jardim era o ruído da chuva ao cair, e em um intervalo em que o ruído era muito débil, Stephen ouviu um som metálico. Então olhou pela janela e viu luz por debaixo do dintel da porta do jardim. O som se repetiu três vezes. Era um som débil e pouco comum, mas ele o ouvira anteriormente: uma pessoa forçava a fechadura. Essa pessoa não tentava abrir a porta com uma alavanca e sim forçando a fechadura.
Esperou a porta se abrir (foi aberta com muito cuidado, lentamente, de modo que não fez os habituais chiados) e viu a dois homens, um alto e o outro baixo, antes de que cobrissem com uma capa sua lanterna. Os homens vacilaram um momento e depois atravessaram o inundado jardim correndo na ponta dos pés. Stephen foi silenciosamente até o dormitório de Laura e se sentou no lugar encostado à janela. Ambos os lados estavam cobertos em parte pelas cortinas descorridas, e Stephen sabia por experiência que quase ninguém pensava que eram esconderijos.
Os homens se aproximaram silenciosamente do dormitório e entraram movendo a lanterna ao seu redor.
- Ainda não voltou - disse um em francês, iluminando a cama que ainda estava coberta pela colcha.
- Vá ver se está na cozinha - disse o outro.
- Não está - disse o primeiro, ao regressar. - Não voltou ainda. Contudo, a festa tem que ter terminado há horas.
- Acho que a chuva a impediu de vir.
- Vamos esperá-la?
O homem mais baixo, que estava sentado no sofá, tirou por completo a capa do farol e o pôs sobre a mesinha de latão, e então olhou seu relógio.
- Não podemos faltar ao encontro com Andreotti. Se não voltar antes da hora em que ele chega à igreja de Saint James, mandaremos um par de homens confiáveis às três ou as quatro da madrugada. A essa hora tem que estar forçosamente aqui. Não é possível que fique a noite toda na casa do commendatore.
Agora que a luz era mais intensa, Stephen reconheceu Lesueur graças à descrição que Graham e Laura haviam feito dele, e pensou que era realmente um homem duro. Depois viu com assombro que o companheiro de Lesueur era Boulay, um funcionário que ocupava um posto importante e estava sob as ordens do senhor Hildebrand. Descartou a idéia de matar Lesueur com a pistola e Boulay com o bisturi, porque Boulay era muito valioso para ser eliminado imediatamente. Devia deixá-lo viver, a menos que as coisas se complicassem.
- Mandaremos Beppo e o Árabe? - sugeriu Boulay.
- Não, Beppo não - respondeu Lesueur, exasperado, - porque desfruta muito fazendo-o. Como lhe disse, quero que o façam rápida e limpamente, e sem alvoroço.
- Paolo pode fazê-lo. É muito sério, consciencioso e forte como um touro, e foi ajudante de um açougueiro.
Lesueur tardou algum tempo em responder. Stephen percebeu de que não gostava do assunto em absoluto.
- O ideal teria sido encontrá-la adormecida - disse por fim.
Durante uma comprida pausa os três permaneceram ali sentados escutando a chuva. Depois Boulay e Lesueur tiveram uma estranha conversa, e Stephen chegou a saber menos coisas das que esperava. Informou-se de que um tal Luigi malversava os fundos que eram enviados de Palermo e que havia vários planos para surpreender-lhe, mas os dois falavam sem convicção e não tinham interesse na conversa, pois dedicavam nove décimas partes de sua atenção para a porta do jardim porque supunham que se abriria de um momento para o outro. Também ficou sabendo que Boulay nascera em uma ilha do Canal e tinha parentes em Fécamp, que Lesueur tinha hemorróidas, que estavam representadas em Malta outras duas organizações, uma cooperadora e outra hostil, mas as duas pouco importantes, e que ambos haviam chegado de Città Vecchia fazia pouco, quando começara a tormenta, o que explicava que não soubessem que a fragata havia regressado e que não suspeitassem que ele estava em Valletta.
Em Valletta havia agora uma estranha situação, pois não era um almirante que estava a frente do comando do porto. O oficial da marinha a quem Jack teve que dar seu relatório era um velho capitão de navio chamado Fellowes, um oficial sério e circunspecto que havia ocupado cargos em terra durante a maioria de seus anos de serviço na Armada. Quase não se conheciam e sua entrevista foi muito formal.
- É uma lástima que a Surprise não haja chegado dois dias antes - disse Fellowes. - O comandante geral - disse, fazendo uma inclinação de cabeça em sinal de respeito - atrasou sua partida até a noite com a esperança de ver-lhe, mas ao final me encarregou que lhe desse estas ordens, que respondesse o melhor que pudesse a suas perguntas e que lhe desse algumas instruções verbalmente. Acho que seria conveniente que as lesse agora.
- Com sua licença, senhor - disse, pegando o documento que lhe oferecia e leu: "Para o capitão J. Aubrey, capitão da Surprise, fragata de Sua Majestade, de sir Francis Ives, vice-almirante da Esquadra Vermelha. O senhor Eliot, o cônsul britânico em Zambra, me informou que Sua Alteza o dey de Mascasse fez petições absurdas, inapropiadas e inadimissíveis ao Governo da Grã-Bretanha, acompanhadas de insultos e da ameaça de realizar atos de hostilidade contra nosso país se não lhe entregarmos a princípios do próximo mês as somas que reclama. Pela presente se lhe exige ir a Zambra, conseguir entrevistar-se com o senhor Eliot e decidir o que fazer para resolver a situação: quer seja pedir audiência ao Dey e dizer-lhe que suas petições são disparatadas e que se expõe a que sua frota e seu comércio sejam aniquilados se tiver a ousadia de realizar algum ato de hostilidade contra os súditos de Sua Majestade ou estrague suas propriedades, e também informar-lhe das ações e das intrigas dos agentes franceses e dos comerciantes judeus que manejam o comércio de Mascasse e Zambra; quer seja subir a bordo de sua fragata o senhor Eliot, seu séquito e sua bagagem, assim como a todos os súditos britânicos que desejem partir e suas posses. Quando for recebido pelo Dey, é absolutamente necessário que não perca a serenidade, ainda que se ponha furioso e lhe faça graves ofensas, mas não aceite as condições que provavelmente porá nem admita que em alguma ocasião os barcos de Sua Majestade deixaram de respeitar a neutralidade. Se todas as reconvenções resultarem inúteis e Sua Alteza insistir em suas exorbitantes petições e cumpra as ameaças que fez por meio do senhor Eliot, quer seja porque agrave à Armada Real, quer seja porque viole os tratados firmados pelos dois governos, deverá dizer a Sua Alteza que no momento em que se cometa um ato de hostilidade por ordem sua, a Grã-Bretanha declarará guerra a Mascasse e que o senhor tem instruções de castigar sua injustiça e sua temeridade com o apresamento, o afundamento, a queima ou a destruição por qualquer meio de todos os barcos que levem a bandeira de Mascasse, com o bloqueio de todos os portos do país e com a interrupção de seu comércio com outros países e a navegação entre seus portos e os portos de outros países. Após realizar a missão, deverá ir para Gibraltar sem perder um minuto para dar-me um informe sobre ela".
- Tem alguma pergunta? - inquiriu Fellowes.
- Não, senhor - respondeu Jack. - Acho que a missão está clara.
- Então tenho que acrescentar que deve consultar ao doutor Maturin sobre as questões políticas e deve ir a Zambra em companhia do Pollux, no qual viaja o almirante Harte. O almirante não deve tomar parte nas negociações, entre outras razões porque a participação de um almirante provocaria que o Dey e os outros governantes se atribuíssem mais importância do que têm, o que traria más consequências, ainda que a presença do navio de um almirante nessas águas seria conveniente. Além disso, como é provável que alguns barcos franceses tenham saído de Toulon durante a recente tempestade, talvez necessitem ajudar-se mutuamente.
- O almirante Harte sabe que só o capitão da Surprise deve realizar as negociações?
Os dois se olharam significativamente, pois sabiam que o almirante costumava interferir nos assuntos da Armada e que agora, por ter herdado uma grande fortuna, estava totalmente convencido de que sabia mais que os outros.
- Acredito que sim - respondeu Fellowes e, depois de uma eloqüente pausa, continuou: - Neste escrito o senhor Pocock informa ao doutor Maturin sobre a situação de Mascasse. O senhor está com o relatório sobre o estado da fragata?
- Sim, senhor - respondeu Jack, pegando o escrito e entregando-lhe o documento em que aparecia o número de tripulantes da Surprise nesse momento, em que condições estava a fragata para navegar e qual a quantidade de pólvora, balas, apetrechos e provisões de todo tipo havia nela.
- Ela precisa de água - disse Fellowes.
- Sim, senhor - disse Jack. - Tivemos que jogar pela borda os tonéis da fila superior para capturar a presa. Mas se quiser que zarpemos imediatamente, podemos completar a aguada em Zambra. Isso não será difícil, pois ali se pode pegar água com facilidade.
- Talvez seja essa a melhor solução, porque o Pollux zarpará pela manhã cedo. Pelo que vejo, o senhor conhece Zambra, Aubrey.
- Oh, sim, senhor! Eu era terceiro a bordo do Eurotas quando encalhou em The Brothers, no interior da baía. Tardamos muito tempo em desencalhá-lo e depois tivemos que esperar que chegassem suprimentos de Mahón, assim que enquanto estávamos sem trabalhar, o oficial de derrota e eu reconhecemos toda a zona norte, até a última polegada, e boa parte do restante. O manancial de onde se pega a água fica situado em um lugar acessível, ao pé de uma escarpa e justo à beira de uma praia, e as lanchas podem aproximar-se muito dele.
- Muito bem. Assim se fará. Vejo que também lhe faltam tripulantes. Sir Francis me encarregou especialmente que recuperasse alguns dos marinheiros que foram pegos da tripulação enquanto a Surprise era reparada.
- Agradeço-lhe muito, senhor - disse Jack, a quem isto lhe pareceria uma benção se não estivesse obrigado a se separar da fragata e dos tripulantes em poucas semanas.
- Não tem importância. Esses homens subirão a bordo amanhã a primeira hora. A fragata está no cais Thompson, não é? Meu Deus, quanto chove! - disse em um tom coloquial quando a chuva começou a golpear fortemente o vidro da janela. - Quer ficar para jantar comigo e com minha filha, Aubrey? Em uma noite assim não é bom sair para a rua.
Finalmente Lesueur disse que não podiam esperar mais.
- Paolo terá que fazê-lo. Em parte, sinto muito. Deve insistir para que ele faça rápido, rápido como o raio, usando um meio eficaz e indolor.
As portas se fecharam atrás deles, e Stephen desarmou a pistola e meteu o bisturi em sua capa. Laura chegou poucos minutos depois, tão poucos que poderia ter se encontrado na rua com eles. Stephen ouviu a porta fazer os habituais chiados, viu a luz do farol iluminar a porta e depois a Laura, que se despediu das pessoas que a haviam acompanhado e depois, sustentando uma capa sobre sua cabeça, atravessou o jardim.
- Laura - disse Stephen.
- Stephen! - exclamou ela, soltando a capa, e depois o abraçou. - Quanto me alegro de ver-lhe! Não sabia que a Surprise havia chegado. Como entrou? Ah, claro, com a chave! Por que ficou sentado aqui no escuro? Venha, vamos acender uma lâmpada e comer um ovo cozido.
- Onde está Ponto? - perguntou ele quando chegaram na cozinha.
Imediatamente sua expressão alegre se transformou em uma triste.
- Morreu - respondeu, e começou a chorar. - Morreu de repente esta manhã e o carvoeiro me ajudou a enterrá-lo no jardim.
- Onde está Giovanna?
- Teve que ir para Gozo. Tinha um comportamento extranho… Parecia assustada.
- Agora escute-me, minha amiga. Seu esposo fugiu da prisão já faz quase três meses, e isso explica por que suas cartas pareciam tão diferentes. Naturalmente, eram falsas, compreende? Neste momento está a bordo da Nymphe, diante de Trieste.
- Não está ferido? Ele está bem?
- Muito bem.
- Graças a Deus! Graças a Deus! Mas, por que…?
- Escute-me - disse Stephen, agitando a mão para interromper sua pergunta. - A Dryad regressou do Adriático antes que nossa fragata, e seus tripulantes sabem que ele fugiu. Os agentes franceses sabem que se informará da notícia a qualquer momento e que então não poderão dominá-la. Querem evitar que os delate. Estiveram aqui esta noite e vão voltar. Tem amizade com alguém que possua uma casa muito grande e muitos criados, e que possa oferecer-lhe refúgio nela? Vamos, trate de recordar minha amiga. O Commendatore?
Laura havia se sentado e agora o olhava assombrada.
- Não - respondeu por fim. - Só tem uma velha criada. É pobre.
Em realidade, ela tinha poucos amigos íntimos em Valletta, e nenhum a cuja porta pudesse bater a essa hora da noite. E Stephen não conhecia na cidade nenhum lugar que pudesse servir-lhe de refúgio.
- Vamos, minha amiga, pegue algumas coisas para passar a noite e ponha uma faldetta. Temos que subir a bordo imediatamente.
Assim que o capitão Aubrey começou a percorrer o cais Thompson contra o vento e a chuva, segurando com uma mão o chapéu e com a outra a capa de chuva que o vento fazia ondear, observou que havia luz nas janelas de popa e pensou que provavelmente Killick, que tinha afã pela limpeza, aproveitava sua ausência para limpar ou abrilhantar todas as coisas que podia, apesar de que ser tarde. A chuva piorou, e o capitão correu pela prancha, procurou um lugar onde se refugiar e ali sacudiu a água do chapéu e ficou ofegando por alguns momentos. Sob a luz da lanterna, viu Mowett, Killick, Bonden e alguns membros da guarda e notou que tinham uma expressão comprazida ou sorriam.
- O doutor já está a bordo? - perguntou.
Sentiu um grande alívio quando responderam que sim, mas se assombrou ao ouvir Mowett acrescentar:
- Está em sua cabine com um visitante, senhor.
Se assombrou porque Stephen, apesar de ser seu amigo íntimo, nunca ia a sua cabine se não o convidasse, a menos que viajasse na qualidade de convidado, o que não ocorria agora. Mas se assombrou ainda mais quando abriu a porta da cabine e viu a senhora Fielding sentada em sua poltrona. Ela tinha o aspecto de um rato afogado e o cabelo molhado e separado em mechas, mas estava radiante de alegria. O assassinato fazia parte da vida na Sicília, onde ela passara sua infância e sua juventude, e por isso compreendia o sentido dessa palavra melhor que uma inglesa, e, por outro lado, havia sentido um medo terrível durante os últimos momentos que Stephen e ela haviam passado em sua casa, porque se convertera em uma armadilha, e também quando atravessavam a cidade empapados, sempre ouvindo passos detrás deles e em ocasiões detendo-se diante das portas, onde às vezes lhes molestavam soldados e marinheiros bêbados; contudo, agora estava a salvo, rodeada de duzentos homens fortes e afetuosos, e a pesar de ainda não estar seca, pelo menos estava aquecida. Além disso, finalmente percebera que ainda tinha esposo, um esposo a quem amava com paixão apesar de seus defeitos e a quem dera por morto há dois meses. Stephen lhe dissera que o senhor Fielding estava mal-humorado, mas ela o conhecia muito bem e não tinha a menor dúvida de que poderia mudar seu estado de ânimo quando se reunisse com ele. Agora só o que ela necessitava para que sua felicidade fosse completa era ver Charles outra vez, por isso não era de estranhar que tivesse o rosto tão resplandecente como a lâmpada.
- Boa noite, Jack - disse Stephen, afastando-se da mesa do capitão, onde estivera escrevendo. - Perdoe a intrusão, mas quando trazia a senhora Fielding, ensopuo-se até os ossos, e pensei que a cabine era um lugar mais apropriado para ela do que a câmara dos oficiais. Eu lhe prometi em seu nome que a levaria a Gibraltar.
Jack notou que estava pálido e esgotado e que lhe olhava com angústia, e, quase sem pausa, disse:
- Fez bem.
Então, cumprimentou Laura com uma cortês inclinação de cabeça.
- É um prazer tê-la a bordo, senhora - disse, e depois, alçando a voz mas em um tom mais suave que o que usava habitualmente, chamou Killick e ordenou: - Leve meu baú para a cabine do senhor Pullings. A senhora Fielding ficará aqui. Traga toalhas limpas e o sabão cheiroso. Bonden pendurará a maca um pé mais baixa. Traga seu baú para a cabine.
- Não tem baú, senhor - disse Killick. - Não tem mais que uma pequena bolsa.
- nesse caso… - disse, olhando dissimuladamente para o charco que se formara debaixo dos pés de Laura. - Esquente uma camisa de dormir de flanela, um par de meias de lã, e minha bata de lã, a de lã, ouviu?, e depois traga-os. Apressesse! Tem que trocar-se imediatamente, senhora - disse para Laura, - se não, pegará um horrível resfriado. Gosta de torradas com queijo?
- Muito, senhor - respondeu Laura, sorrindo.
- Então prepare torradas com queijo, Killick. E traga cerveja quente e temperada com açúcar e especiarias. Senhora - disse, olhando seu relógio, - agora a senhora deve pôr a roupa seca e quente, ainda que esteja áspera, e dentro de dez minutos teremos a honra de comer torradas com queijo com a senhora. Imediatamente depois deverá deitar-se, já que zarparemos ao amanhecer e terá muito pouco tempo para dormir antes que comecem os ruídos.
Com excessão da cabine do capitão, em um barco de guerra não havia nenhum lugar onde se pudesse falar confidencialmente, já que a maioria das divisões eram feitas com finas pranchas de madeira e lona. Contudo, na pequene cabine de Pullings, Jack perguntou:
- Está tudo bem?
- Muito bem, meu amigo. Eu lhe agradeço muito que tenha acolhido cordialmente a nossa convidada.
- Como se informou de que íamos para Gibraltar?
- A filha do comandante do porto sabia e, por isso, todas as suas amigas da ilha, entre as quais se encontra Laura.
- Senhor, posso dar esse objeto com rebordos de ouro para a senhora? - perguntou Killick a Stephen ao entrar precipitadamente na cabine.
- Sim, Killick - respondeu Stephen. - Não há dúvida de que ela necessita algo mais que um pequeno espelho de se barbear.
O objeto em questão era um presente que Diana havia dado a Stephen, uma extravagante e engenhosa arqueta que também podia servir de atril, lavatório, tabuleiro de gamão e muitas outras coisas, e que sempre ficava enrolada com uma capa de lona encerada porque era muito valiosa e muito delicada para ser usada em um barco.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack ao recordar de repente a sua irrascível prima. - Isto lhe custará muito caro. Será muito difícil explicar para Diana.
- Acha que ela suspeitará de mim?
- Estou completamente seguro. Não poderia justificar-se nem que falasse em todas as línguas dos homens e, além disso, na dos anjos. Stephen, pense um momento nisto: você trouxe para bordo, durante a guarda de meia, a mulher mais bonita de Malta, a mulher que viram sair de seu quarto no Searle na noite em que os ladrões…
- Com sua licença, Sua Senhoria - disse um grumete muito excitado e com os olhos exorbitados. - Killick disse que o jantar está pronto.
Até o outro dia na hora do café da manhã Stephen não percebeu de que Jack acertara com a opinião da tripulação da fragata. Tinha a lucidez que segue a um período de grande tensão e de falta de sono. Passara o que restava da noite fazendo dois detalhados informes da situação, um para Wray e outro para sir Francis, cifrados com duas chaves diferentes, porque tinha que enviá-los para a comandância do porto, junto com os reproduzidos, urgentemente, antes de que a Surprise soltasse as amarras. Depois de pensar muito, havia decidido não mandar um para o governador, já que vira um de seus subordinados na casa de Laura e pensava que esse homem poderia abrir facilmente o envelope. Wray ia regressar na quarta-feira ou antes, se recebesse logo o relatório de Stephen, e conseguiria aprisionar os franceses apesar de que provavelmente o desaparecimento de Laura lhes causaria intranqüilidade, porque a intranqüilidade não os levaria a tomar medidas drásticas, já que pensariam que não era a primeira jovem que fugia com seu amante quando seu marido ia chegar.
Durante o desjejum observou seus companheiros. Sua reserva podia atribuir-se à presença do capitão, que não era usual a essa hora do dia, mas persistiu depois que ele se foi, e a situação chegou a ficar embaraçosa. Stephen detectou desprezo em alguns, certamente admiração ou respeito em outros e em Gill desaprovação do ponto de vista da moral, e bebeu o café pensando que não merecia ser objeto de nenhuma dessas coisas.
Depois que Stephen deu uma olhada rápida na enfermaria vazia enquanto seu ajudante tocava em vão o sino para que comparecessem a ela todos os que se sentissem mal, se foi para sua cabine com um frasco de láudano e o informe de Pocock sobre o dey de Mascasse. Pelo relatório se informou que o Dey governava um país pequeno mas poderoso, que nominalmente dependia do sultão da Turquia, mas que era tão pouco dependente dele como a Argélia ou ainda menos, e que apesar de que Mascasse era a capital, a residência principal do Dey ficava em Zambra, um porto por onde passava todo o comércio do país e onde os agentes franceses tinham influência… muita influência… e muito êxito… E então adormeceu.
Tanto ele como Laura dormiram durante o dia, enquanto foram servidas várias refeições no barco e apesar do ruído do vento, do mar e das manobras, e isto provocou muitos comentários de proa a popa. Stephen foi o que dormiu mais dos dois, mas quando por fim subiu para o convés pôde ver um entardecer tão bonito que pensou que havia valido a pena suportar o mau tempo. A Surprise, com poucas velas desdobradas, sulcava o mar, um mar de sonho, ilimitado e com uma infinidade de tons nacarados entremesclados, sobre o qual se estendia o céu azul e sem nuvens. Aquele era um desses dias em que não se via o horizonte, em que era impossível dizer em que ponto da névoa perolada o mar se juntava com o céu, e isso parecia aumentar sua imensidade. O vento soprava pela amura e sussurrava na exárcia, e a água deslizava pelos costados da fragata com um suave burburinho, e tudo junto formava uma espécie de silêncio do mar. Mas a impressão de que estava em um lugar isolado desapareceu quando olhou para frente, porque ali, a dois cabos de distância estava o Pollux, um navio de setenta e quatro canhões velho e acabado, um dos últimos de sua classe. Ainda que estivesse estragado, era digno de ser visto por sua torre de velas abertas, suas vergas exatamente perpendiculares aos mastros, sua enorme flâmula ondeando para sotavento e as curvas e retas de sua complexa estrutura iluminadas pelo sol, que já estava muito baixo e se encontrava pela amura de estibordo.
- Senhor - disse Calamy ao seu lado, - a senhora Fielding quer mostrar-lhe Vênus.
- Vênus? - perguntou Stephen.
Então viu com surpresa que não só Calamy se havia posto a camisa com peitilho senão que também se havia lavado a cara, uma cerimônia que tinha reservada para os dias em que era convidado para jantar e os domingos, quando se celebrava o ofício religioso. E quando caminhava pela popa, onde se encontrava a senhora Fielding, que estava sentada na poltrona de Jack muito perto do coroamento, notou que todos os oficiais estavam presentes, que todos estavam barbeados e que a maioria deles usavam a casaca do uniforme.
- Venha vê-la! - exclamou ela, agitando no ar o telescópio menor de Jack. - Está à esquerda da verga do maior. Uma estrela em pleno dia! Sabia que é como a lua em quarto minguante, mas muito menor?
- Sei muito poucas coisas sobre Vênus - disse Stephen, - além de ser um planeta inferior.
- Deveria se envergonhar! - exclamou ela.
O contador, o tenente da infantaria da marinha e Jack fizeram alguns comentários corteses e disseram algumas frases engenhosas, enquanto que Mowett e Rowan, que poderiam ter dito algo brilhante, permaneceram silenciosos mas sem deixar de sorrir alegremente, até que o suboficial que governava a fragata, em tom solene, ordenou:
- Girem o relógio e toquem o sino!
Essas palavras e as duas badaladas fizeram Mowett recordar-se de suas tarefas, e então perguntou:
- Senhor, temos que tirar os anteparos hoje depois da revista?
Desde que a Surprise estava sob o comando do capitão Aubrey, todos os dias ao entardecer seus tripulantes faziam preparativos de combate como se fossem entrar realmente em uma luta, quer dizer, tiravam todos os anteparos e levavam para a bodega todas seus pertences, e depois pegavam os canhões. Mas isso teria necessariamente que acabar com a tranqüilidade da senhora Fielding, e Jack, depois de pensar um momento, disse:
- Talvez seja melhor limitar-nos a sacar e guardar os canhões de proa. Depois, se no Pollux rizarem as gáveas ou mudarem a orientação das joanetes, nós faremos o mesmo.
Em realidade, os tripulantes da Surprise não fizeram preparativos de combate durante nos seis dias que a viagem para Zambra durou, os seis dias em que Jack viajou mais prazerosamente que em toda sua vida. Se a Surprise não estivesse acompanhada do velho e lento Pollux, provavelmente teria feito o percurso em dois dias menos, mas todos os marinheiros o teriam lamentado muito. Durante esses seis dias os ventos haviam sido favoráveis e cálidos, o mar estivera em calmo e os tripulantes não haviam tido que fazer as coisas com urgência (pois a Surprise tinha que estar na mesma velocidade que o Pollux), algo muito incômodo que ocorria amiúde durante as viagens. Por essa razão haviam tido a impressão de que esses seis dias foram extraordinários, que não estavam no calendário, ainda que não podiam considerá-los dias livres, porque haviam tido que trabalhar muito, mas pelo menos durante eles haviam disposto de momentos livres, de muitos momentos livres. Contudo, não era essa a única nem a principal razão para que tivessem essa impressão.
Alguns desses momentos haviam se dedicado a se arrumar. Williamson havia superado Calamy, pois havia se lavado quase todo o pescoço, além do rosto e das mãos, o que era assombroso porque ambos só dispunham da água contida em uma bacia de peltre de nove polegadas de diâmetro, e os dois haviam posto camisas limpas todos os dias. Todos os oficiais haviam se vestido com o uniforme completo, haviam se convertido em um modelo de perfeição, como os do Victory quando estava ao comando de Saint Vincent. Haviam tirado as calças largas de dril, as casacas e os chapéus de palha de aba larga e copa baixa chamados benjies com que se protegiam do sol, e haviam posto calções ou pelo menos calças azuis, suas melhores casacas azuis, botas e o chapéu regulamentar. Por outro lado, os marinheiros encarregados do mastro traquete amiúde haviam posto os coletes vermelhos que usavam nos domingos e esplêndidos lenços levantinos. Todos haviam deixado de dizer blasfêmias, maldições e execrações ou as haviam modificado (ainda que, em realidade, estavam proibidas pelo segundo artigo do Código Naval). Fora muito gracioso ouvir ao contramestre gritar: "Oh… m… marinheiro lerdo!", quando Doudle o Rápido, por olhar para trás para ver a senhora Fielding, havia deixado cair do cesto da gávea do maior um grampo, que estivera a ponto de se cravar no pé do senhor Hollar. Também havia se deixado de aplicar o castigo consistente em dar chicotadas, e ainda que isso não tivesse grande importância porque na fragata quase nunca se davam açoites, o fato de que os membros da tripulação, em geral, pensavam que ser tratados com indulgência, teria como consequência a falta de disciplina se não fosse porque a tripulação era excepcional. Os tripulantes da Surprise sempre haviam estado contentes e agora o estavam muito mais, e isso fez Stephen pensar que seria benéfico para todos os tripulantes dos barcos de guerra que sempre houvesse a bordo uma jovem bonita e simpática, mas inacessível, que fosse sustituída por outra periodicamente, antes de que eles chegassem a tratá-la com confiança.
Quase todas as noites, até muito avançada a guarda de prima, os marinheiros haviam cantado e bailado, e até muito mais tarde Stephen e Jack haviam tocado música ou, em companhia dos outros oficiais, haviam escutado à senhora Fielding cantar, acompanhando-se ela mesma com o bandolim de Honey.
Muito cedo a senhora Fielding fora convidada para almoçar com os oficiais, e quando lhes dissera que lamentava não poder ir porque não tinha nada para vestir, nada menos que três cavalheiros haviam mandado um mensageiro para apresentar seus respeitos e para entregar várias jardas da seda que haviam comprado, respectivamente, para sua mãe, sua irmã e sua esposa, da famosa seda escarlata da ilha Santa Maura, onde a Surprise estivera recentemente. Ela havia feito um vestido que realçava sua beleza, e Killick e o veleiro a haviam ajudado a costurar a bainha para que pudesse terminá-lo a tempo. Todos a bordo sentiam afeto e admiração por ela e, apesar de acreditarem que havia fugido com o doutor, os poucos que consideravam esse ato condenável não censuravam a ela e sim a ele. Inclusive o senhor Gill, um homem puritano, reservado e melancólico, quando ela perguntara quanto tempo demorariam para chegar ao cabo Raba, onde terminava a primeira etapa da viagem, respondera:
- Infelizmente, só três dias, se segue soprando este vento.
No último desses dias, quando as duas embarcações navegavam tão devagar que apenas tinham a velocidade suficiente para manobrar, Jack fora convidado para almoçar no Pollux. E havia lamentado muito, porque as refeições em seu própio barco eram muito mais agradáveis, mas não tinha escolha, e quando faltavam dez minutos para a hora do encontro, muito esmerado (tão esmerado que inclusive usava os sapatos com fivela prateada e o chelengk no chapéu), havia subido a bordo de sua falua, onde os tripulantes lhe esperavam vestidos esplêndidamente, com casacas azul claro e calças de dril branco como a neve.
Encontrara o capitão do Pollux, a quem apenas conhecia, e ao almirante Harte, a quem conhecia muito bem, em excelente estado de ânimo. Dawson disse que lamentava não ter convidado antes ao capitão Aubrey, mas que seu cozinheiro estivera enfermo por causa de um caranguejo que comera em Valletta pouco antes de zarpar, e acrescentou que se alegrava de que já se houvesse recuperado porque estava farto de comer a comida da câmara dos oficiais.
O cozinheiro havia se recuperado, mas havia celebrado o acontecimento embebedando-se, e a refeição foi tão caótica que às vezes mediaram longos intervalos entre os pratos e outras vezes apareceram repentinamente cinco de uma vez, e, além disso, ocorreram coisas raras como, por exemplo, que no pudim com merengue aparecesse um pedaço de cenoura.
- Tenho que desculpar-me por esta comida - dissera o senhor Dawson quase no final.
- Eu que o diga! - havia exclamado Harte. - A comida era muito ruim e estava muito mal distribuída. Pato em três pratos seguidos! Pense nisso!
- O vinho do porto é excelente - disse Jack. - Acho que nunca bebi um vinho do porto melhor.
- Eu sim - replicou Harte. - Meu genro, Andrew Wray, comprou a bodega de lorde Colville, e em um dos barris havia um vinho do porto tão bom que este, ao seu lado, pareceria um vinho para guardas-marinhas. Contudo, é bastante bom, bastante bom.
Tanto se fosse bom como se não, Harte havia bebido muito, e quando passavam uns para os outros a garrafa, havia aumentado sua curiosidade pela missão de Jack. Mas Jack lhe dera respostas vagas e evasivas, e haveria saído dessa situação somente com o conselho: "Deve que dar um chute no traseiro do Dey, porque a melhor forma de tratar os estrangeiros, sobretudo os nativos desta região, é dando-lhes um chute no traseiro", se não houvesse mencionado o lugar onde ficava o manancial. Harte lhe havia feito descrever o lugar com todo detalhe três vezes e dissera que talvez levasse seu barco até ali para vê-lo, porque algum dia poderia ser útil saber onde ficava. Jack havia tentado convencer-lhe de que abandonasse a idéia com os argumentos mais contundentes que podia encontrar, e assim que pudera havia se levantado e pedira permissão para se retirar.
- Antes de que se vá, Aubrey - dissera Harte, - queria lhe pedir um favor.
Então lhe dera uma pequena bolsa de couro que, obviamente, preparara de antemão, e havia acrescentado:
- Quando vá a Zambra, libere um ou dois cativos cristãos com isto. Preferiria que fossem marinheiros ingleses, mas não me importaria que fossem uns pobres desgraçados. Cada vez que meu barco fez escala em algum porto de Berbería, resgatei um par dos mais velhos e os mandei para Gibraltar.
Jack conhecia Harte desde que era tenente e nunca o vira fazer uma boa ação, e enquanto ia na falua na viagem de regresso, havia pensado que a descoberta desse traço de seu caráter contribuía para que aqueles dias lhe parecessem um sonho, um sonho maravilhoso, apesar de que sentia a tristeza que acompanhava sempre "a última vez". Contudo, não pudera definir seus sentimentos com palavras e havia pensado que talvez poderia fazê-lo, pelo menos de uma maneira que fosse satisfatória para ele mesmo, com música, com o violino debaixo do queixo. Enquanto passavam por sua mente as notas de um movimento lento de uma peça que às vezes tocava, um movimento encantador mas complexo, havia observado a Surprise. Ele a conhecia melhor que a qualquer outra embarcação, mas nesse momento notou que havia mudado, ainda que não sabia se era realmente distinta ou se o parecia devido a suas própias meditações ou à oscilação da luz; nesse momento pareceu que a fragata era uma embarcação que não conhecia, que estava em um sonho e que seguia uma rota traçada há muito tempo deslizando por um caminho reto e estreito como o fio de uma navalha.
- Dê uma volta ao redor dela - havia ordenado a Bonden, que se encontrava ao seu lado.
Então, julgando-a com o critério prosaico dos marinheiros, havia notado que navegava completamente horizontal, ainda que a forma em que navegava com mais facilidade era com a popa um pouco mais afundada, e havia pensado que isso se solucionaria com as vinte toneladas de água que logo carregariam na bodega.
Chegaram ao cabo Raba quando começava a manhã, uma manhã horrível: a pressão atmosférica havia descido, o vento rolara para oeste, havia nuvens baixas e estava ameaçando chover. Mas Mowett, que era um primeiro oficial muito exigente, havia decidido que a Surprise teria um aspecto digno quando chegasse a Zambra, tanto se chovesse como se fizesse bom tempo. Os marinheiros passaram muita água do mar no convés para tirar até o último grão da tonelada de areia com que a haviam esfregado, tanta água que parecia que caía um dilúvio, e depois a secaram e poliram todo o brilho que perdera. Antes de que esta cerimônia chegasse ao clímax, o capitão subiu para o convés pela segunda vez, olhou para o mar e depois para o céu e disse:
- Senhor Honey, por favor, faça para o Pollux o sinal: "Permissão para nos separar".
Wilkins, o suboficial encarregado dos sinais, estivera esperando esse momento já fazia algum tempo, e também seu colega que estava no Pollux, assim que o pedido e a concessão apareceram com extraordinária rapidez, junto com uma mensagem adicional do Pollux: "Feliz regresso".
A Surprise pôs rumo à costa e o navio de linha (assim era sua classificação oficial, apesar de que ser muito menos potente que os dessa época) virou em redondo. Conforme o acordo entre os capitães, o navio avançaria para alto mar e regressaria ao seu posto constantemente, em espera de que a fragata se reunisse com ele no dia seguinte. A silhueta da costa se via cada vez mais claramente, e logo Jack chamou os guardas-marinhas, como fazia sempre que se aproximavam de um ancoradouro desconhecido para eles. Como a essa hora da manhã e com esse tempo não era provável ver a senhora Fielding no convés, todos vestiam roupas de trabalho, e a maioria deles tinham a roupa molhada e estavam com frio. Williamson estava muito sujo, pois havia manchado de graxa a camisa de Gernsey, já que havia ajudado ao contramestre a engraxar os tamboretes; contudo, como era seu dever, havia trazido o compasso para medir o azimute, já que provavelmente o capitão Aubrey indicaria aos guardas-marinhas vários pontos fixos na costa que poderiam tomar como sinal para saber a posição da fragata e lhes pediria que a calculassem.
- Ali, pela amura de bombordo, fica o cabo Raba - disse assinalando com a cabeça um enorme e escuro promontório com um escarpado na borda do mar. - Deve-se doblá-lo navegando a considerável distância da costa, porque há um arrecife que sobressai meia milha do litoral. Já a direita, a umas duas léguas para oeste-sudeste, fica o cabo Akroma.
Eles olharam atentamente para o distante promontório, que só se diferenciava do primeiro por que sobre ele, justo na ponta, erguia-se uma fortaleza.
- Do outro lado do cabo Akroma fica a baía Jedid - continuou, - que tem a boca muito larga, mas tem um ancoradouro de quinze braças de profundidade com o fundo firme. Além disso, diante dela há um ilhota cheia de coelhos que a protege dos ventos do oeste e do noroeste. É um lugar ideal para se refugiar quando o vento sopra com muita força e não se pode dobrar o cabo Akroma. Mas não é tão grande nem tem um ancoradouro tão bom como aquela outra baía mais próxima, à qual nos dirigimos agora, a baía Zambra, que se encontra entre Raba e Akroma.
O vento aumentara de intensidade quando havia saído o sol, que era quase invisível, e a Surprise, que agora não tinha que adaptar sua velocidade à do velho Pollux, navegava a mais de oito nós. O cabo Raba pareceu mover-se rapidamente em direção à popa quando a fragata entrou na baía Zambra, uma imensa extensão de água que penetrava na costa dez ou doze milhas. Era mais profunda do que larga e o litoral que a bordejava tinha muitas pontas rochosas e cabos. A fragata se situou de modo que tivesse o vento pelo través e começou a navegar ainda mais rápido e em direção ao lado oeste da baía.
- Ainda não podem ver Zambra - disse Jack, - porque fica em um lugar oculto ao sudeste. Mas podem ver as ilhotas The Brothers. Se olharem para o cabo Akroma e depois um pouco mais para o sul, verão a umas duas milhas de distância um cabo com uma palmeira, e um pouco mais além quatro ilhotas em fila, mais ou menos a um cabo de distância uma das outros. Essas são as ilhotas The Brothers.
- Já as vejo, senhor - disse Calamy.
- Estão ao sudoeste quarta ao oeste - disse Williamson.
- Poderiam vê-las melhor se o vento soprasse do nordeste e com mais intensidade, e se houvesse forte marejada. Entre elas há um arrecife branco que não tem nem duas braças de água por cima, e se vê quando sopra o vento do nordeste e há marejada. Mas, geralmente, o mar fica calmo, como agora. Os mouros que vivem nesta região não lhes dão importância, mas quando eu estava a bordo do Eurotas, que tinha um calado de dezoito pés e seis polegadas, o barco encalhou ali. Quando há uma fila de ilhotas semelhantes, o mais provável é que as águas que as separam sejam pouco profundas. Senhor Mowett - disse, interrompendo a conversa, - como demoramos tão pouco para vir até aqui, completaremos a aguada antes de chegar ao porto. Não é conveniente chegar muito cedo, e, além disso, acho que esta tarde vai chover, assim que será melhor pegar a água agora. O manancial se encontra a leste, em uma enseada que fica detrás dessas três pequenas ilhotas.
Depois de dizer isto, virou-se e desceu para sua cabine, mas quando estava com a mão na maçaneta da porta, percebeu que havia se equivocado e desceu para a câmara dos oficiais.
Ali encontrou Stephen, que estava descontente e desalinhado (para Jack, a melhor prova de que seu amigo não mantinha relações com a senhora Fielding era que tinha uma barba de três dias e usava uma peruca velha).
- Se essa mulher não nos convidar para algo mais cristão, beberei isto - disse, assinalando o café da câmara dos oficiais, que era claro e insípido e estava morno. - Nos convidou para tomar chocolate com ela. Mãe de Deus! Chocolate a esta hora da manhã! Que o tome ela!
Nesse momento Killick entrou, ainda com o sorriso amável que tinha na cabine, e disse:
- A senhora disse que haverá café, se os cavalheiros preferirem.
Certamente, os cavalheiros preferiam, e, como era seu costume, beberam uma quantidade exorbitante, uma xícara depois da outra. Ficaram bebendo até que Jack notou que a fragata mudava de movimento e deduziu que estavam muito perto da costa. Subiu para o convés, conduziu a fragata até a pequena enseada, com uma praia de areia que ficava atrás das verdes ilhotas, e jogou uma âncora pequena nada mais, porque era um lugar resguardado. Desceu a terra na primeira lancha que transportava os tonéis vazios, e pela primeira vez nessa manhã voltou a ter a mesma impressão que tivera nos últimos dias, a impressão de que estava em um mundo diferente e paralelo. A causa havia sido encontrar-se de novo naquele lugar, que lhe era familiar. Não estivera ali já fazia vinte anos, vinte anos de intensa atividade, e, contudo, recordava de cada pedra da fonte quando se inclinou sobre ela.
Mas subir a bordo vinte toneladas de água, tonel a tonel, requeria muita energia e atenção, e como essa era uma das tarefas que Jack não gostava encomendar a outra pessoa, nem ele nem ninguém tinham muito tempo para uma introspecção consciente. Além disso, imediatamente começaram a chegar rajadas de chuva do noroeste e os pesados tonéis ficaram escorregadios, pelo que foi mais difícil movê-los.
Fazia algum tempo, o Pollux se aproximava de vez em quando da boca da baía, como todos haviam suposto. Devido à sua tendência a abater para sotavento e à curiosidade de Harte, havia chegado inclusive à linha que unia os dois cabos, e agora estava em pairo diante do cabo Akroma, enquanto seus tripulantes praticavam como tirar os mastaréus. Ainda que o navio estivesse dentro da baía, e teria que mudar de bordo e dar bordejadas para sair dela, não podia ser visto de Zambra, portanto, o almirante ainda mantinha a sua promessa; contudo, sua presença ali irritava aos tripulantes da Surprise.
- Se esse entrometido seguir assim, o navio terá dificuldade de voltar para o alto mar, pois terá que dar muitas bordejadas - disse Mowett para Rowan.
Nesse momento a fortaleza do cabo Akroma disparou um canhonaço, e o vento propagou o som pela imensa baía. Todos o marinheiros que não estavam ocupados nesse momento alçaram a vista, mas não notaram nada ocorrer, e como uma das lanchas carregadas com tonéis se abordou com a fragata imediatamente depois, voltaram a baixá-la imediatamente.
Mas Jack estranhou isso, pois na fortaleza não ondeava nenhuma bandeira, e ainda estava olhando o cabo pelo telescópio quando um barco grande que havia saído da baía Jedid o contornou. Era um barco de guerra de duas pontes e oitenta canhões e levava a bandeira turca e o galhardetão de um comodoro. O seguiam de perto duas fragatas, uma de trinta e oito ou quarenta canhões e outra, menos potente, de uns vinte e oito canhões. Apenas havia acabado de ver as embarcações quando viu que a fragata mais potente se situava junto ao lado de bombordo do barco, e então foi arriada a bandeira turca e foi içada a francesa e o barco disparou contra o Pollux com os canhões de proa. O Pollux dirigiu a proa para o lado de onde vinha o vento, o pouco vento que soprava naquele lado do cabo, mas em dois minutos o barco francês chegou a colocar-se tão perto que seus penóis quase se tocavam, e nesse momento começou a disparar com toda a bateria do costado. Entretanto, a fragata avançou pelo lado do barco do comodoro cuja bateria não disparava e se colocou perto da proa do Pollux. Antes que a fragata começasse a disparar os devastadores canhonaços, a Surprise saiu rapidamente da enseada, abandonando as lanchas, e seus tripulantes começaram a desdobrar velas e a fazer os preparativos de combate.
O Pollux estava a barlavento, e, a menos que se adentrasse uma ou duas milhas na baía, a Surprise teria que mudar de bordo duas vezes para alcançá-lo, uma perto de The Brothers e outra à altura da fortaleza de Akroma. A Surprise tinha que percorrer nove milhas em muito pouco tempo, mas como o vento havia aumentado de intensidade, agora navegava a dez nós. O Pollux disparava a um ritmo muito rápido, inclusive com as caronadas de trinta e duas libras que tinha no castelo e no castelo de popa. Pelo que Jack podia ver através do fumaça que enchia o lugar da batalha, seus três mastros ainda estavam em pé, e pensou que era possível que resistisse até que ele chegasse e disparasse na popa do barco francês ou evitasse que a fragata mais potente seguisse disparando-lhe. A fragata francesa menor estava perto do navio e de vez em quando disparava, mas não parecia que seus disparos causavam graves danos nem que seu capitão tivesse muito interesse em participar da batalha.
- Desdobrar a joanete da maior! - ordenou.
Quando os marinheiros amarraram as escotas, a Surprise inclinou ainda mais, a serviola e o pescante central de bombordo se cobriram de espuma e a água saltou até a borda. Então a fragata aumentou ainda mais de velocidade. "Espera, desgraçado", pensou e imediatamente, em voz alta, disse:
- Desdobrar a bujarrona!
A coberta se inclinou como o telhado de uma casa, e Jack permaneceu de pé no convés, com o braço direito ao redor do brandal do pau mezena. Do seu lado estavam Mowett e o guarda-marinha encarregado de transmitir suas mensagens. Dois excelentes timoneiros, Devlin e Harper, estavam no leme, e detrás deles estava o oficial de derrota, que governava a fragata. Todos os marinheiros que manejavam os canhões, exceto os que orientavam as velas, estavam em seus postos, e junto a cada brigada estava oficial e o guarda-marinha que as comandava, os infantes da marinha e os marinheiros que manejavam as armas leves também estavam em seus postos. Todos olhavam fixamente os barcos apinhados que combatiam em meio do ruído estrondoso e da preta fumaça onde apareciam constantemente clarões alaranjados.
Quase havia chegado o momento de mudar de bordo. Jack olhou para The Brothers, que estavam a meia milha de distância, e depois viu Stephen, que acabava de subir a escada do castelinho e agora subia trabalhosamente a ladeira. Em uma batalha, o posto do doutor Maturin ficava na coberta inferior, mas quase nunca ia ali antes de que a batalha começasse.
- Como está a senhora Fielding? - perguntou Jack em voz muito alta para que o ouvisse apesar do rumor da água.
- Muito bem, obrigado. Tem a valentia e a fortaleza dos antigos romanos.
- Tem cuidado. Segure-se a Davis porque vamos mudar de bordo.
Jack olhou para Gill e assentiu com a cabeça.
- Agora! - gritou o oficial de derrota.
A Surprise começou a mudar de bordo lentamente, girando sobre si mesma, como um cúter, e suas velas foram movendo-se para bombordo cada vez mais rápido. Então o vento, formando redemoinhos, trouxe o odor da fumaça da pólvora, e Jack disse:
- Poderão dizer tudo o que queiram do almirante, mas ninguém poderá chamar-lhe de covarde. Meu Deus! Como luta o Pollux!
- Senhor - disse Mowett, olhando pelo telescópio, - ele perdeu o mastro traquete.
Enquanto falava, havia surgido uma clareira na fumaça, e Jack pôde ver que, realmente, o Pollux perdera um mastro, de forma que não poderia mudar de bordo para sotavento, mas que seguia disparando a um ritmo muito rápido. Um momento depois na fragata mais potente, em resposta a um sinal do barco de duas pontes, mudaram a orientação das velas e rumaram para o sul para interceptar a Surprise.
- Doutor - disse Jack, - é hora de ir para baixo. Cumprimente de minha parte a a senhora Fielding e diga-lhe que acho que ficará melhor na bodega, e depois leve-a até ali, por favor.
Agora que as fragatas estavam afastadas da fumaça, Jack as olhou com grande atenção. A mais próxima tinha trinta e oito canhões, como havia suposto, e era muito bonita e rápida; contudo, como pesava mil toneladas, era improvável que fosse tão ágil como a Surprise. A outra tinha vinte e oito canhões, como a Surprise, mas aí terminava a semelhança entre elas, porque era muito larga e tinha a proa chata, e por seu aspecto parecia construída na Holanda.
- Cinco graus para barlavento! - ordenou.
- Sim, senhor, cinco graus para barlavento!
Quando os disparos da primeira fragata francesa pudessem alcançar a Surprise, provavelmente daria uma guinada para disparar-lhe uma descarga, e a Surprise teria que mudar de bordo todo o leme para barlavento para evitar ser alcançada. Contudo, os poucos graus que a Surprise havia virado lhe permitiriam colocar-se quase contra o vento e não só evitar a descarga como talvez inclusive passar entre as duas fragatas inimigas antes que a primeira tivesse tempo de disparar-lhe outra descarga. Mas isso dependia em grande medida do que a segunda fizesse. Era muito perigoso passar entre as duas fragatas, mas tinha que fazê-lo. Nesse momento as duas embarcações, como se seus capitães tivessem adivinhado sua intenção, desviaram ligeiramente do rumo, uma para estibordo e a outra para bombordo, de modo que a fragata ficasse no meio das duas.
Jack estava muito tenso e muito animado; contudo, uma parte de sua mente se recordou que Stephen lhe dissera que a frase à Dieu va, que os franceses usavam com o significado "Mudar de bordo o barco", queria dizer na linguagem comum "Temos que nos arriscar e confiar em Deus". "Isso é o que nós temos que fazer", pensou enquanto olhava o distante navio de duas pontes que ainda disparava com fúria, o mesmo que seu adversário. Nesse momento a nuvem de fumaça se dividiu em duas e a fumaça se estendeu por ambos os lados, Jack viu brotar no espaço central uma imensa labareda de extraordinário brilho, da qual saltavam para cima escuros objetos, e viu que por em cima dela havia uma nuvem de fumaça branca. O Pollux havia explodido. E antes que a imensurável labareda se extinguisse, chegou até a fragata o estampido produzido pela santa-bárbara ao estourar, que fez estremecer o mar e as velas. O pau traquete do barco francês também havia caído pela borda, mas nem a explosão nem os pedaços de paus e vaus que lhe haviam caído em cima haviam provocado seu afundamento.
- Preparados para mudar de bordo! - ordenou Jack.
Agora que o Pollux não podia ajudar-lhe, tinha que fazer tudo o que pudesse para salvar a Surprise e sua tripulação, e tratar de passar entre aquelas duas fragatas não parecia a melhor forma de conseguir.
Não duvidava que os franceses, que tinham superioridade sobre eles, atacariam-lhes em Zambra, e não foi com a intenção de se refugiar em um porto neutro que fez rumo ao sul-sudeste, para o cabo em que se alçava a fortaleza que guardava a entrada do porto e da cidade.
Inclinou-se sobre o coroamento e dirigiu o telescópio para o barco francês. De vez em quando as rajadas de chuva o impediam de vê-lo com clareza, mas estava seguro de que sofrera graves danos. Seus tripulantes haviam jogado na água as lanchas que restavam, haviam posto cabos de reforço na proa e na popa e estavam fazendo uma balsa com diversos paus do barco. Na opinião de Jack, não era provável que fizesse estrago à fragata se a mantivesse fora do alcance dos canhões de trinta e duas libras que lhe restavam, mas as fragatas francesas eram outra coisa. Poderia lutar com elas em separado, ainda que seria difícil escapar do ataque de uma fragata de trinta e oito canhões bem governada e que estivesse a sotavento em uma baía estreita; contudo, lutar com as duas juntas…
Observou-as muito atentamente para julgá-las com objetividade, conforme os critérios mais apropiados. Cada vez lhe parecia mais claro que a fragata mais potente, ainda que fosse elegante e veloz, estava governada de uma forma correta, mas não com soltura, que o capitão e seus tripulantes haviam passado mais tempo nos portos que navegando em todas as estações e que não se sentiam a vontade em sua fragata. Havia notado que os tripulantes faziam as manobras com indecisão e lentidão e sem coordenação, o que demonstrava que não estavam acostumados a trabalhar juntos. Além disso, tinha a impressão de que não conheciam bem o mar. Contudo, isso não significava que não manejassem bem os canhões, tão bem como os franceses costumavam fazer, nem que o peso conjunto das balas de uma descarga não fosse muito maior que o das de uma descarga da Surprise. Enquanto que a fragata menor, Jack pensava que seu capitão tinha mais experiência. Contudo, era muito lenta, e quando a Surprise chegou nas imediações da fortaleza, estava longe demais, pela popa. Estava muito longe, mas por barlavento, e isso era o mau. As duas fragatas francesas tinham a vantagem de estarem a barlavento.
Não lhe surpreendeu que a fortaleza abrisse fogo, ainda que em vão, porque desde que vira a esquadra francesa aparecer tinha certeza de que o Dey era seu aliado; contudo, isso lhe deu uma boa desculpa para fazer o que tinha pensado.
A Surprise virou e começou a navegar contra o vento e em direção da costa ocidental, e novamente Jack a fez avançar o mais rápido que podia. Nunca antes estivera tão unido a uma embarcação. A Surprise podia desdobrar uma grande quantidade de velame com o vento de pouca intensidade que soprava no fundo da baía, e ele sabia exatamente o quanto e foi essa quantidade que ele aplicou. A fragata se comportava como um puro sangue e se afastava cada vez mais do grande barco francês, que havia virado ao mesmo tempo que ela e agora se achava a duas milhas pela alheta de estibordo, navegando em rumo paralelo e disparando de vez em quando com o canhão de proa. A costa ocidental já estava muito perto, e podiam ser vistos vários barcos pesqueiros jogando as redes. Aproximava-se mais e mais, e enquanto isso Jack pensava nos possíveis caminhos a seguir, na intensidade do vento, no abatimento da fragata, e fazia uma série de cálculos quase inconscientemente.
Em meio ao silêncio, gritou:
- Preparados para mudar de bordo! E quando dê a ordem, movam-se rápido como um raio!
Outras cem jardas. Duzentas jardas.
- Leme a bombordo! - gritou.
A fragata voltou a mudar de bordo em redondo com a mesma graça de sempre e começou a navegar velozmente em direção ao norte da costa ocidental, em direção às ilhotas The Brothers e ao cabo que se encontrava justo detrás delas. Nesse momento se fez patente a vantagem de estar por barlavento. Apesar da Surprise ter virado muito rápido e navegar a grande velocidade, as fragatas francesas tinham que percorrer uma distância menor (sua posição era comparável à dos cavalos que iam nas raias interiores de uma pista de corrida, e a da Surprise com a do que ia na raia exterior), e parecia que se a fragata não se detinha em um ponto da costa, elas poderiam interceptá-la antes que chegasse a The Brothers ou pegá-la entre eles e o cabo que ficava detrás.
Havia silêncio absoluto na fragata enquanto todos viam se aproximar com rapidez as ilhotas The Brothers, com seus três canais, e as fragatas francesas. Durante aquela longa corrida, os tripulantes da fragata mais potente haviam tido tempo de desdobrar uma grande quantidade de velame, e agora a fragata navegava tão rápido quanto a Surprise ou mais. Dirigia-se para o canal central, por onde poderia chegar ao cabo antes da Surprise, e uma vez ali se poria em pairo e prepararia os canhões para disparar contra a fragata quando dobrasse o cabo. A fragata de vinte e oito canhões havia alcançado a esteira da Surprise para cortar-lhe a passagem no caso de tentar retroceder depois de atravessar o primeiro canal.
A fragata mais potente se encontrava agora a um pouco mais de meia milha pelo través de estibordo e seguia avançando com rapidez. Jack, em vez de diminuir velame, fez diminuir a velocidade soltando discretamente algumas escotas e aproximando mais a proa da direção de onde vinha o vento. Os tripulantes conheciam muito bem o modo de de Jack agir, mas puseram uma expressão grave ao ver que a fragata francesa estava paralela à sua e ia ultrapassá-la quando o canal entre a primeira ilhota e a segunda estava muito perto e do outro lado já se avistava o ameaçador bloco do cabo sob a chuva. Quando a fragata francesa passou pelo lado da Surprise, apesar de estar distante, disparou uma descarga, e Jack, em vez de responder com outra, gritou:
- Preparados para diminuir velame!
Então foi até onde ficava o leme.
A fragata francesa seguiu avançando rapidamente, formando grandes ondas com a proa. Finalmente entrou no canal central e se chocou contra o arrecife com uma força incrível, e imediatamente seus mastros caíram para frente ou para sotavento. Sua companheira virou de imediato e começou a navegar velozmente em direção à costa leste.
- Silêncio de proa a popa! - gritou Jack entre os vivas dos tripulantes. - Carregar as velas! Carregar as velas! Mover a gávea do maior!
Quando a velocidade da fragata diminuiu o suficiente, Jack virou o leme e a conduziu muito devagar pelo primeiro canal, por uma passagem profunda que havia entre a primeira ilhota e o escarpado, uma passagem tão estreita que os penóis de ambos os lados roçavam as rochas.
- Puxar das braças! Amarrar as escotas!
A Surprise voltou a alcançar a velocidade que tinha e começou a navegar em direção ao alto mar com o vento pelo través.
Quando a Surprise dobrou o cabo que ficava do outro lado das ilhotas The Brothers, a chuva chegou do nor-noroeste e, como um manto grosso e cinzento, cobriu toda a baía, ocultando as costas e temperando o entusiasmo que havia na coberta, que os marinheiros expressavam dando-se palmadas nas costas uns dos outros dizendo: "Demos aos sacanas o que eles mereciam!" ou "Nós os enganamos!" ou "Haviam visto alguma vez uma coisa igual?". E quando a chuva cessou e o céu do outro lado do cabo Akroma se tornou azul, os marinheiros, com a cara empapada mas ainda resplandecente de alegria, seguiam olhando com admiração para o seu capitão.
O capitão estava de pé, com as pernas separadas, muito perto do coroamento, e movia o telescópio de um lado e para o outro da baía. A euforia que havia sentido nos primeiros momentos posteriores ao triunfo já passara, mas ainda havia em seus olhos um brilho pirático enquanto pensava nas possíveis formas de agir.
- Digam ao doutor que venha - ordenou após um tempo.
E quando o doutor chegou, Jack, assinalando com a cabeça o barco de duas pontes francês que estava imóvel entre as águas cinzas e agitadas, a uma milha e meia de distância, disse:
- Quero que saiba qual é a situação. O Pollux afundou, ou melhor, explodiu e, naturalmente, afundou, mas antes causou graves danos ao barco francês.
Então deu o telescópio para Stephen, que viu que o barco estava meio afundado e a água saía pelos embornais, e também que tinha as portalós da coxia destroçadas e lhe faltava o mastro traquete.
- A explosão também lhe causou danos importantes - continuou Jack. - Acho que muitos vaus se desprenderam. Está bastante afundado, e a proa está muito mais baixa. Os tripulantes puseram cabos de reforço na proa e na popa. Estou convencido de que hoje não se moverá, façamos o que façamos.
Stephen olhou pelo telescópio os enegrecidos restos do navio, que abarcavam uma área de meia milha, e disse:
- Mãe de Deus! Quinhentos homens mortos em uma explosão que durou um segundo!
- Agora olhe para as ilhotas The Brothers - disse Jack depois de uma breve pausa. - Essa embarcação desaparelhada que está sobre o arrecife do canal central é a fragata mais potente. Chocou-se com tanta força e entrou tanto que nunca poderá sair. Não vale a pena irmos queimá-la.
- Suponho que esses homens que se aproximam da costa nas lanchas são seus tripulantes - disse Stephen.
- Exatamente. Agora olhe para o fundo da baía - disse, apontando para lá. - Essa é sua infeliz companheira. Navega à velocidade do raio para chegar a Zambra. Acho que é um barco holandês. Provavelmente seus homens foram obrigados pelos franceses a servir em sua armada, mas eles não estão dispostos a derramar seu sangue por um grupo de estrangeiros. Percebe qual é a situação?
- E aqueles botes?
- São botes de pescadores e de outras pessoas que vêm para se apoderar do que encontrem entre os restos do naufrágio.
- E aquele barco com dois mastros?
- É nossa lancha. A deixamos para trás quando partimos dali. Honey a trará imediatamente, e também a âncora pequena e a guindaleza.
- Acho que tudo está claro.
- Muito bem. Então quero que tenha a amabilidade de dar-me sua opinião, do ponto de vista político, sobre o seguinte plano: iremos a Zambra sem perder um minuto, entraremos em combate com esse miserável arenqueiro holandês e atacaremos a fortaleza que nos disparou e, depois de tomá-la, mandaremos ao Dey a mensagem de que a menos que seu governo se desculpe imediatamente pela ofensa feita à nossa armada, queimaremos todos os barcos que há no porto, e depois de resolver isto, falaremos com o senhor Eliot. Acha que é um bom plano?
- Não, não acho. É evidente que o Dey tomou parte nesta armadilha, e como a fortaleza disparou para a Surprise, provavelmente acredita que já estamos em guerra com ele. Tenho entendido que é irrascível e cruel, e acho que atacá-lo neste momento, quando está tão excitado, terá forçosamente como consequência a morte do senhor Eliot. Além disso, como há um barco de duas pontes francês na baía, não podemos perder tempo em negociações, ainda que ele tenha que ficar amarrado durante um tempo. Acho que o plano, do ponto de vista político, é disparatado, e não só por esses motivos, senão por muitos outros, e peço que o abandone. Nestas circunstâncias, o que qualquer conselheiro político em seu são julgamento lhe aconselharia seria que saísse daqui com celeridade e fosse pedir novas instruções e um bom reforço.
- Temia que ia me dizer isso - disse Jack, olhando para Zambra com tristeza. - Contudo, a ocasião é propícia, sabe? Mas não quero que o senhor Eliot morra. Por outro lado, desobedeceria as ordens que me deram se me apoderasse da cidade.
Foi até o pau maior e voltou duas vezes, depois deu a ordem de que aproximassem a fragata da lancha e depois, com sua alegria habitual, disse:
- Tem razão: devo ir a Gibraltar com celeridade. Como já parou de chover e não há combate, podemos deixar a pobre senhora Fielding sair da bodega.
Os dois haviam se afastado da zona próxima ao coroamento, onde se podia falar confidencialmente, e Jack falara em voz muito alta, e como na fragata reinava agora uma atmosfera distendida, como a que costumava seguir os momentos de grande tensão, e, além disso, agradável, Williamson não achou incorreto dizer: "Eu irei buscá-la, senhor!", nem Calamy, replicar: "Eu sei perfeitamente onde está! Deixe que eu vá, senhor!".
A senhora Fielding subiu ao convés justamente quando a Surprise se punha em pairo e a lancha se abordava com ela. Haviam lhe contado a desgraça que havia ocorrido ao Pollux e tinha uma expressão grave. Disse ao capitão Aubrey que esperava que nenhum amigo seu houvesse perecido na explosão e que ela não conhecia a nenhum dos que iam a bordo do navio. Depois, com um olhar melancólico, disse que seu esposo estivera sob as ordens do pobre almirante Harte. Ambos fizeram os apropiados comentários, e sentiam realmente o que diziam, apesar de que predominava neles a alegria que a vitória lhes havia produzido; contudo, não puderam estender-se porque nesse momento os tripulantes subiam a lancha a bordo, uma manobra para cuja realização se davam muitas apitadas e se gritavam muitas ordens.
Para o capitão Aubrey pareceu que os tripulantes falavam inclusive mais que o habitual e conveniente, e observou que seguiram falando muito mesmo depois que a lancha foi introduzida na fragata, apoiada nos calços e amarrada fortemente e que repetiam amiúde a palavra "braçadeiras". Quando conseguiu fazer a senhora Fielding compreender em que posição estava a fragata quando se encontrava perto do arrecife agora distante, notou que Mowett hesitava em falar-lhe ou não e viu que detrás dele estava o contador, cheio de ira, e detrás do contador, Honey, com o cenho franzido.
- Senhor Mowett? - perguntou.
- Desculpe, senhor - disse Mowett, - mas o senhor Adams quer dizer-lhe, com todo o respeito, que suas braçadeiras não foram recolhidas.
- Quatro maços de braçadeiras de dezenove peniques e duas de meia libra - disse o contador, como se estivesse fazendo um juramento. - Foram entregues ao toneleiro para os tonéis de reserva e não foram recolhidas pelo senhor… por alguém.
Mowett continuou:
- Diz que se contornamos as ilhotas, demorará só um pouco para ir buscá-las no bote.
- O contador é responsável por todas as braçadeiras - disse o senhor Adams, ainda falando de modo que parecia se dirigir a todo mundo em vez de a uma só pessoa. - E a Junta me repreendeu duramente três vezes durante o último trimestre.
- Senhor Mowett - disse Jack, - ainda que essas braçadeiras fossem de ouro de vinte e quatro quilates, ficariam em terra até que voltássemos a passar por aqui. Não há nem um momento a perder. Senhor Gill, trace uma rota para ir a Gibraltar, por favor. Vamos desdobrar todo o velame que a fragata possa levar estendido.
- Minhas braçadeiras… - disse o contador.
- Suas braçadeiras valem muito, senhor Adams - deu Jack, - mas não se podem comparar com a possibilidade que temos de capturar esses dois barcos franceses se o vento for favorável. Que foi, Killick?
- A cabine da senhora já está arrumada, senhor, com sua permissão. E fiz café.
Nunca ninguém havia arrumado a cabine de Jack nem lhe preparara café em tão pouco tempo, mas ele não protestava quando tinha boa sorte. Pouco depois, quando a fragata saiu da baía e inclinou-se por causa da grande intensidade do vento do nor-noroeste, disse:
- Não queria desafiar ao destino, mas a esta velocidade poderíamos chegar a Gibraltar na terça-feira pela manhã, que é um dia de sorte, assim que vou começar meu relatório oficial nesta mesma tarde.
Então pensou que se o almirante lhe desse um navio de linha que agora estivesse sob o comando de um capitão de menos antiguidade que ele (os nomes de meia dúzia deles passaram por sua mente), a possível ou quase provável captura dos dois barcos franceses voltaria a pôr-lhe no caminho adequado, no caminho pela obtenção de um bom posto, como por exemplo, estar ao comando de uma excelente fragata de quarenta canhões na base naval da América do Norte.
- Vou chegar longe! - disse com um alegre sorriso.
- E eu vou escrever - disse Laura Fielding. - Vou escrever para Charles imediatamente para lhe pedir que venha buscar-me. Quando lhe diga o amável que o senhor foi comigo, quererá lhe conhecer. Apenas passemos juntos alguns momentos, quererá lhe conhecer.
E Stephen disse para si: "Eu também vou escrever uma carta. Só oito ou nove homens conheciam o conteúdo das ordens de Jack, e se isso não permitir a Wray pegar ao responsável principal, a esse Judas, então não há dúvida de que o próprio diabo está metido neste caso".
X
X
X
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{1} Curva: Peça de madeira naturalmente curva que se emprega nos barcos para prender duas madeiras unidas em ângulo.
{2} Speronara: Barco grande de remos com uma vela latina usado no sul da Itália e de Malta.
{3} Sociedade Naval (Marine Society): Organização caridosa fundada em 1756 para preparar jovens e adultos para ingressarem na Armada.
{4} Espia: Cabo que prende em um lugar e se puxa para que o barco se mova na direção deste.
{5} Cabillero: Mar. Peça de madeira ou metal com furos, pelos quais se atravessam as barras que servem para amarrar e dar voltas nos cabos de trabalho.
{6} Classe: Na Armada, os navios eram agrupados em classes atendendo ao número de canhões que tinham.
{7} Guindaleza: cabo de 12 a 25 cm de diâmetro, de três ou quatro cordões torcidos da direita para a esquerda e de 100 o mais braças de comprimento, que se usa a bordo e em terra.
{8} Cachorro com manchas: Pudim de sebo com passas.
{9} Brummagem: Nome que vulgarmente se dava a Birmingham, onde se fabricaram moedas de quatro peniques falsas em certa ocasião.
{10} Faldetta: Capa com capuz usada pelas mulheres em Malta.
{11} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{12} Codo: Medida de comprimento que é aproximadamente a distância entre o cotobelo e o extremo da mão.
{13} Bedlam (Bethlehem Royal Hospital): Primeiro manicômio inglês e o primeiro da Europa, tristemente famoso pela forma brutal com que tratavam os loucos. Atualmente se usa seu nome para fazer referência a qualquer manicômio.
{14} Merlín: Mar. Cabo delgado de canhamo alcatroado, que se emprega a bordo em uniões e outros usos semelhantes.
{15} Estadio: Medida de comprimento equivalente a cento e vinte e cinco passos (201,2 metros).
{16} Nous: palavra grega que significa inteligência.
{17} Jardim: chama-se assim o banheiro nos barcos. (N. do T.)
{18} Faldetta: espécie de capa ou bata com capus largo.
{19} Candelero: Mar. Cada um dos puntales verticais, geralmente de metal, que se colocam em diversos lugares de uma embarcação para prender neles cordas, telas, listéis ou barras e formar gradis, anteparas e outros acessórios.
Patrick O'brian
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