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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O POVO DO FOGO – Primeiro Volume / W. M. Gear
O POVO DO FOGO – Primeiro Volume / W. M. Gear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O POVO DO FOGO

Primeiro Volume

 

Na época das primeiras incursões humanas ao hemisfério ocidental houve uma tradição de caça grossa, conhecida comopaleo-índia, que floresceu na maior parte da América do Norte. Com a sua grande eficiência, foram estes predadores humanos - juntamente com alterações climáticas e, possivelmente, doenças epizoóticas - que aceleraram a extinção de animais como o mamute, o preguiça gigante, o cavalo e o camelo. Neste processo, os seres humanos e as suas presas adaptaram-se gradualmente ao clima, cada vez mais quente, até cerca de oito mil anos atrás. O registo geológico indica uma fabulosa alteração climática: o Altitermal. Uma série de secas atingiram a América do Norte, levando a que os lençóis freáticos descessem uns seis metros. Houve mudanças nas zonas de vegetação, erosão do solo superficial e os canais de drenagem penetraram profundamente no solo. A linha das árvores subiu bem alto nas montanhas. Os enormes lagos da Grande Bacia desapareceram e deixaram ficar os grandes desertos e planícies salgadas do Utá e Nevada. Gigantescas dunas soltaram-se do material, que as tinha originado, e foram cobrir partes de Montana, Wyoming e Nebrasca, enquanto que o Médio Oeste americano era coberto por terras trazidas pelos ventos. As ervas luxuriantes das terras de pastagem, fustigadas pela seca, estiolaram. Declinou o número de manadas de búfalos. Neste período de provações, os seres humanos morriam de fome, os bandos de caçadores dividiam-se, sempre em movimento, guerreando-se - sempre à procura das elusivas manadas de animais de caça. E, no entanto, foi destes tempos duros que nasceu a nova cultura da América do Norte.

 

 

- Jesus! Nem me passou pela cabeça que houvesse tanto pó! - disse o homem louro, tentando levantar a pá cheia que bateu na rocha com um som oco. Os músculos ficaram salientes com o esforço de se endireitar e lançar a terra da pá na peneira do homem grisalho. A coisa apoiava-se em duas pernas periclitantes e consistia numa caixa, cujo fundo era uma rede com uma malha de meio centímetro, segura por umas tiras de metal.

A rede fez um som de shhsshh-sshsshh quando as pedras rolaram sobre o metal.

- Sim, bastante poeirento. É sempre assim nos abrigos de pedra iguais a este. - Uma pausa. - Nesta, só havia lascas. Continua a escavar.

O homem mais velho puxou de um lenço vermelho do bolso e assoou-se. Vestia uma camisa velha, aos quadrados, e as calças de ganga pareciam penduradas numas ancas magras. Enquanto esperava tirou um cigarro do bolso e acendeu-o com um isqueiro.

Mirou o abrigo com um ar conhecedor, procurando avaliar a sua extensão.

- Aposto que isto tem mais de três metros.

O louro, devia estar no fim da casa dos vinte, bronzeado, os músculos salientes nos braços e nas costas. Estava metido até à cintura num buraco irregular, que ele próprio escavara no solo rochoso, ao fundo da saliência calcária. Em tronco nu, também ele tinha umas Levi’s com um cinto de couro trabalhado no estilo ocidental. Uma lata de tabaco de mascar já abrira um sulco redondo no bolso de trás.

- É mesmo poeirento. E há todo este carvão.

- Fogueiras de índio, Pete, meu rapaz! Fogueiras de índio! Se olhares para o tecto desta coisa podes ainda ver toda aquela fuligem. É assim que os descobres. E ali na frente tens centeio gigante bravo. Os índios comiam-no e a planta nascia aqui quando eles soltavam as sementes.

O jovem atirou outra pazada e usou a lâmina para raspar a terra e soltar mais uma carga. Bateu com a pá e um grande bocado da parede rochosa estalou.

- Burt? Tens a certeza de que isto não nos vai meter em sarilhos?

- Não! - O homem mais velho juntou a saliva e cuspiu-a para a poeira negra aos seus pés. - Pelos quintos dos infernos, há anos que escavo pontas de setas. Nunca fui incomodado por ninguém. - Fez um gesto amplo antes de mergulhar as mãos na terra e, com um movimento dos braços, despejar a peneira. - Apanharem-nos aqui? O Serviço Florestal poucas vezes usa aquele caminho de dois sulcos. E estamos desviados da estrada.

- Mas que pode acontecer se nos apanharem? - Pete, com esforço muscular, tirou o bocado de pedra de dentro do buraco e fez uma pausa para limpar o suor que lhe cobria a testa.

- O mais certo é mandarem-nos embora... e dizerem que isto é ilegal. Têm coisas mais importantes com que se preocuparem... como seja venderem árvores para ganharem uns dinheiros e combater todos os fogos florestais que vão aparecendo. Não nos vão chatear. Estragar-lhes-ia a imagem. Daria a ideia de que andam a perseguir os cidadãos. E eu até vou à igreja aos domingos.

Burt encheu outra pá de terra e agitou-a com movimentos de vaivém. Um sorriso abriu-se no rosto comprido.

- Ei! Olha para isto! Uma conta de osso. Estás a ver como eles a poliam?

Meteu o achado num saco.

- É verdade, um tipo trabalha um bocado nestes sítios e depressa tem uma parede cheia de pontas de seta. A maior parte das que andavam espalhadas por aí já foram apanhadas.

- Hum! - O louro observou com mais atenção a pedra que acabara de tirar do buraco. Passou a mão por cima, para limpar os sulcos, e mirou a parede. - Olha para aqui. Desenharam uma coisa qualquer na parede. Parece uma espiral... mas eu cortei-a ao meio.

- Uma espiral? - O homem de cabelos grisalhos inclinou-se para ver melhor. - Nunca vi nenhuma. A maioria são bichos e coisas dessas. É pena que se tenha partido em duas. Podíamos tê-la tirado com cinzel. Fazia uma bonita pedra para a lareira de alguém. Talvez a possamos colar. Da próxima vez, havemos de trazer um cinzel. Para ver se conseguimos tirar a outra metade. Se ficar toda partida, paciência, é como se fosse um bolo seco a esboroar-se!

- E o Serviço Florestal não se importa com isso?

- Não! E mesmo que se importem só estamos a fazer uma pequena alteração. E que mal tem se ganharmos umas centenas de dólares vendendo pontas de setas? Há tipos no Utá que fazem trinta mil com um vaso Anasazi.

- Aposto que se os apanham, ficam lixados.

- Sim, talvez. Mas lembro-me de, há um par de anos, uns tipos encontraram uma múmia, um pouco mais para sul daqui. Sabes, uma daquelas coisas duras e secas. Parecidas com as do Egipto. Os rapazes apanharam uma bebedeira, à noite, ataram-lhe uma corda ao pescoço e penduraram-na num poste telefónico. Só tiveram uma multa de umas centenas de dólares e pena suspensa.

- Raios! Eu apanho mais que isso só por uma rixa no bar! O homem mais velho sorriu, expondo uns dentes castanhos.

- Como vês, rapaz, não há problema!

Trabalharam por mais algum tempo, o mais novo passando terra para o mais velho e ouvindo o shss-shhsss na rede.

- Ora, os geólogos não ficam todos lixados quando encontram um sítio destes já escavado?

- Arqueólogos.

- Ah?

- Chama-se arqueólogos. Não são geólogos. É claro que esperneiam e refilam. Mas quem lhes dá ouvidos? Têm montes de leis nos livros mas, com toda a trampa que acontece em Washington, nestes dias que correm, quem raio se vai preocupar com um bando de índios mortos?

- Viva! Um dos bons! - O velho tirou da peneira uma ponta de projéctil em sílex branco e, segurando-a contra a luz, limpou-a com o polegar.

- De que tipo? - perguntou Pete, com um brilho nos olhos, quando finalmente a pôde ver.

- Parece uma daquelas pontas de Medicine Lodge Creek. Talvez uns oito mil anos de idade. Talvez valha, hum, uns setenta e cinco ou oitenta dólares.

- Ena! - O sorriso de Pete não se apagou quando acariciou a pedra.

- Ei, eu não vou vender esta. É a minha primeira!

- Sim, fica com ela. - Burt abanou a cabeça. - Que se lixe o estúpido do governo! Têm leis contra tudo. Tantas que até já nem lhes ligam. Lá na reserva, os parvos dos índios protestam. Que interessa? Os índios passam a vida a protestar. Dizem que estamos a profanar os seus antepassados. Raios, a maior parte deles nem sabe quem é o pai!

- Então, este sítio é bom?

- Sim, é um bom sítio. Devemos ter bastante que escavar. Este vai dar-nos dinheiro. Sinto que vai. Tal como a gente sente que vai ter sorte com uma tipa quando entra num bar. - Burt piscou o olho com um ar matreiro na face.

- Vou contar isso à Louise.

- Uma ova é que vais! E também vais encontrar os teus tomates numa bandeja!

Pete riu-se.

- Claro que um velho trapaceiro como tu nem todas as noites tem sorte.

Voltou a escavar, a pá tilintando nas pedras. A sombra debaixo da saliência rochosa aumentou quando Burt se viu obrigado a afastar a peneira do monte de terra acumulado.

- Ena! - Pete recuou um passo. - Encontrei um osso. Quase que o cortei em dois com a pá!

Burt veio olhar por cima do ombro dele.

- De funeral? Ou é apenas um osso de búfalo?

- Não achas que é um bocado fino de mais para ser de búfalo? Desviou-se para permitir que o olhar mais experiente do seu mentor avaliasse o achado.

- Ah, é humano, tens razão. Já vi muitos. Se puxares, ele solta-se. É uma tíbia.

Pete puxou mas nada aconteceu. Olhou para cima.

- Não há nenhuma maldição nestas coisas, pois não?

- De que estás tu a falar? Não! Tens visto filmes de terror a mais. Raios, tira essa terra por cima, que é onde deve estar a coxa. Isso mesmo.

Pete atacou a terra, fazendo vibrar a pá. Dedicou-se ao trabalho, a língua fora da boca, procurando cortar a parede. Raspou mais um bocado de terra e puxou. Perdeu o equilíbrio quando o osso se soltou e rolou pelo chão, segurando o trofeu na mão.

- Que coisa! Olha bem para isto, o joelho está agarrado! Deve ter sido de um aleijado. É pena que eu tenha partido o fémur em dois.

- Sim, naquela época, os médicos não eram grande coisa. Imagina que, se calhar, tens aí na mão o joelho aleijado de Gerônimo!

Pete sorriu.

- Merda! E por hoje chega. Já começa a ficar escuro. E esta noite marquei um encontro com a Lorena. Talvez me dê sorte como nunca viste! Dá-me uma mão para eu sair daqui de dentro.

- Sim, acho que temos de ir. Queres ficar com essa perna?

- Claro! Vai ser um bom assunto de conversa da próxima vez que der uma festa lá em casa. Talvez abra aqui uma cova, no sítio em que a parti, e a use para porta-cigarros. Esta vai mostrar ao Dink umas coisas.

- Está bem, mas eu fico com o crânio quando o encontrarmos. As caveiras dão dinheiro. Eu levo-te a perna se tu conseguires levar a espiral que partiste em duas.

Pete olhou para o pôr do Sol, um vistoso vermelho de sangue.

- Está mesmo mais seco. Como se o mundo estivesse a mudar. Toda aquela seca nos estados agrícolas. Deve ser o raio daquela coisa do efeito estufa. Yellostone ardeu, e agora chegou a vez de Whashington e Orégão. Acho que isso vai manter o Serviço Florestal longe de nós por uns tempos.

- Palermices. Não existe nenhum “efeito de estufa”. Vais ver. Burt cuspiu para a erva. - O governo só te diz isso para te manter assustado.

Tiveram de fazer duas viagens para levar os artefactos e as ferramentas para a carrinha.

Pete, com um sorriso, abriu uma cerveja quente e passou-a a Burt. Abriu depois uma para si e instalou-se atrás do volante. O grande V-8 rugiu ao voltar à vida.

O velho virou-se para trás.

- Foi pena a espiral ter-se partido.

- Tens a certeza de que isso não nos traz nenhuma má sorte? Que não há nenhuma mágica índia ou coisa do género?

- Raios, claro que não! Isso são superstições tolas. Que mal podia fazer? - Burt fez uma pausa para sorver a cerveja. - Sim, aquele é um abrigo dos grandes. Se calhar, podemos passar anos a escavar lá. A limpá-lo completamente. Bom dinheiro! Sinto-o!

 

O CULTIVAR DA CRIANÇA

“Para o Poder o tempo nada significa. Tudo faz parte da Espiral seja o caminho que o universo percorre, a rotação da própria Teia-de-estrelas ou a caminhada do Pai Sol nos céus.

“E de onde vem o Poder?

O Poder, tal como as tempestades, vem da terra, do céu e da água, vem do Poder do Pai Sol e do Sábio Lá de Cima - o Criador. De todas as fontes de Poder que conhecemos é a Trouxa de Lobo a mais poderosa sobre a terra. Outrora, no tempo em que o Primeiro Homem - o Sonhador de Lobo - conduziu o Povo do Primeiro Mundo para este, foi criada a Trouxa de Lobo. Nascida de um Sonho, surgida das mentes do Povo. E, como o Povo acreditava nela, cresceu em força... aquecida pelas inúmeras mãos que a seguraram com toda a reverência... com a força do espírito que lhe fora soprada por mil pulmões: é a nossa alma, o nosso Poder como humanos.

“O Povo transportava-a, protegida dentro da pele de lobo sagrada. Defendiam-na da chuva, da neve e do pó. Homens e mulheres nasceram sob o seu Poder... ou morreram com ela nos braços. Por vezes, absorvia o sangue daqueles que morriam para a proteger de profanação ou sacrilégio. Parte das suas almas juntava-se à Trouxa de Lobo tal como acontecia ao espírito das rochas, árvores e animais, e o próprio Povo. Nada sobre a Terra é mais sagrado que a Trouxa de Lobo. É o Poder... o Sonho que dá vida ao Povo.

“Foi o que me trouxe até ti. O poder da Trouxa de Lobo. Não sei porquê? Não sei como? Mas os Círculos estão a girar e a Terra a mudar. Há qualquer coisa que quer desfazer a Teia-de-estrelas tecida pelo Sábio Lá de Cima. Os Círculos... sempre os Círculos... e o tempo pouco significa para o Poder. Quem sabe quanto tempo nos resta?

“Aprendi isto num Sonho. Nele, no Sonho, na visão, falei com a Trouxa de Lobo e escutei a voz do Primeiro Homem. E segui-o... vim até ti... até à Trouxa de Lobo.”

 

CRIA BRANCA A PENA CORTADA

A dor fustigava a barriga do ancião - a sensação de ter uma faca de gume afiado de sílex a separar-lhe a alma da espinha. Quanto tempo lhe restava? Quanto mais tempo faltava até lhe cortar todos os finos fios da vida?

Pena Cortada tentou encontrar uma posição confortável para as suas costas doridas. Dentro do abrigo o calor parecia ser pior, abafado, cobrindo a sua pele velha e engelhada com uma camada de suor. Levantou o fundo do abrigo para que a brisa quente soprasse lá dentro, mas manteve a cobertura para ter sombra, não ajudou lá muito.

Semicerrou os olhos para se tentar defender daquela dor que o mordia e levantou as mãos mirando os dedos ossudos por debaixo da pele fina e curtida. Velho, tão velho. O cabelo brilhava, todo branco, as tranças, cada vez mais curtas, enquadravam o seu rosto. As pálpebras tinham-se encolhido dentro das órbitas e deixado buracos que pareciam captar as sombras da sua alma.

Pareço uma carcaça da caçada de Inverno quando chega a Primavera: seca, mirrada sobre os ossos quebradiços. De mim nem sobra o suficiente para os vermes terem de mastigar.

Cercavam-no, prontos para serem inspeccionados, os restos finais de uma longa vida - todos excepto a sagrada Trouxa de Lobo, cujo lugar estava vazio sobre o pequeno tripé de salgueiro. Por detrás da cortina da porta os cães latiam e rosnavam. As vozes suaves do bando de Mão Vermelha, o seu Povo, chegavam-lhe transportadas pelo ar seco. Até mesmo ali, bem alto nas montanhas, a seca contínua queimava a terra. Há quanto tempo não chovia? A seca levava à guerra.

O búfalo tornara-se escasso nas planícies orientais o que levara o Povo de Pequeno Búfalo a vir até ali, em busca das manadas que viviam nas pastagens elevadas, onde os picos tentavam tocar nas nuvens e tirar-lhes a chuva que podiam. O Povo de Pequeno Búfalo queria chamar sua àquela terra. Os dois povos não podiam coexistir. Os caçadores das planícies só queriam carne, e desdenhavam as raízes e nozes que os Mão Vermelha tanto apreciavam. Os caçadores das planícies usavam um Poder especial para emboscar o búfalo - e tiravam deste roupas, peles para os abrigos e toda a sua comida. Até grelhavam as entranhas. A língua deles não fazia sentido, lembravam mais o grasnar de uma tetraz. Pior ainda: cuspiam nos Mão Vermelha, a quem chamavam comedores de ervas.

Os Mão Vermelha tinham, repetidas vezes, obrigado o Povo de Pequeno Búfalo a voltar para as bacias e fundos dos rios que ficavam a Sul e Oeste. Só os alces conheciam as montanhas tão bem como os Mão Vermelha. Nas montanhas quem controlava os carreiros controlava a região. No processo de emboscar o Povo de Pequeno Búfalo os Mão Vermelha tinham ganho um nome novo: Anifah. Assim eram chamados na língua do Povo de Pequeno Búfalo. ”Inimigo.”

Pena Cortada contemplou, pensativo, as peles escurecidas pelo fumo que o cobriam, conhecendo a forma de cada uma das delicadas varas que ele aparara uma a uma, conhecendo cada um dos pontos que Água Límpida cosera com tanto cuidado. Atrás do abrigo uma mosca zumbia, no sítio onde ele se aliviara. Tempo de mudar de novo o campo, tempo de permitir que o Pai Sol limpasse os dejectos dos Mão Vermelha. Tudo fazia parte dos Círculos, até as moscas e os escaravelhos precisavam de comer.; Círculos como aqueles que gravara com muito trabalho nas rochas, imitando a Dança constante do Sábio Lá de Cima, que os vigiava por entre a Teia-de-estrelas.

Só que desta vez eu não irei com eles. Aqui é, para mim, o fim. O último campo de Pena Cortada. É um bom lugar... um lugar para morrer bem alto na montanha, onde a alma está mais livre para se erguer até às estrelas e ir ao encontro do Sábio.

Como se o tivesse ouvido, o nó de dor na sua barriga apertou-se mais, roubando-lhe a força e o ar, tentando separar-lhe a alma do corpo. O seu corpo, que cada vez estava mais gasto, cada vez mais magro excepto a massa dura que ele sentia quando palpava por debaixo das costelas do lado direito. A massa cada vez maior, ele cada vez mais mirrado.

E resta-me o Sonho final...

Recordou, com um sorriso, o rosto de Água Límpida e o brilho de juventude nele espelhado. Era uma verdadeira Mulher de Espírito. Fora ela que um dia estacara, os olhos subitamente vazios, e lhe falara do Homem Lobo, que lhe murmurava ao ouvido.

Ele escutara... sempre lhe dera ouvidos, e dissera ao Povo o que devia fazer. Nunca tinham suspeitado que o Poder provinha da sua filha. Nunca tinham suspeitado que era guiado pelos conselhos de Água Límpida. Ela vira e agora desaparecera, fugindo do seu homem, Sangue de Urso. Partira em silêncio, durante a noite, acompanhada por aquele estranho tolo, Dois Fumos, que passava o tempo a olhar as plantas, a colher ervas e a mastigar os caules.

Gritos de raiva concederam-lhe o pequeno aviso que esperara ter. O raspar das mocassinas na erva permitiram-lhe um instante final para se compor antes de uma mão forte afastar a cortina.

- Onde é que ela está, velho?

Pena Cortada sorriu às feições distorcidas de Sangue de Urso. O rosto forte do genro estava vermelho e os olhos negros faiscavam. Musculoso e irascível, Sangue de Urso significara sempre sarilhos. No pouco tempo em que estivera casado com Água Límpida batera nesta mais de uma vez. E o Povo virara a cabeça ao escutar os violentos sons de acasalamento que soavam à noite no abrigo, envergonhados pelos gemidos de dor dela.

E ele impotente perante aquilo - um velho Homem do Espírito sem poder. Água Límpida não tinha mais parentes que pudessem protestar contra aquele tratamento, pedir justiça. E Sangue de Urso não receava as ameaças de um Homem do Espírito.

- Partiu.

Sangue de Urso inclinou-se para a frente, os olhos negros a arder.

- Isso já eu sei, velho louco. Para onde foi?

Pena Cortada estendeu a mão para a cabaça meio cheia de água e ofereceu-lha.

- Entra, senta-te. És um hóspede no meu abrigo. Bebe e... Sangue de Urso afastou a cabaça com um gesto violento, espalhando água sobre as peles gastas e encharcando as Trouxas Sagradas.

- Para onde, velho?

Pena Cortada estremeceu ao ver aquela confusão e, piscando os olhos, enfrentou-o.

- Sabes uma coisa, Sangue de Urso, não estás a fazer bem a ti mesmo. Gritares assim comigo enfraquece a tua posição. Estou a morrer e toda a gente o sabe. A raiva roubou-te a esperteza.

- Eu vou...

- Cala-te e ouve-me. És motivo de risota. A tua mulher fugiu com outro homem. O Povo...

Uma mão dura apertou-lhe a garganta. O bafo quente da respiração de Sangue de Urso aqueceu-lhe a cara enquanto aqueles olhos negros o inspeccionavam.

- Que homem, Pena Cortada? Fala depressa ou nunca mais falarás. O reflexo da morte estava nas feições vermelhas de Sangue de Urso.

- Solta-me - rouquejou Pena Cortada, com a língua fora da boca. Sangue de Urso relaxou um tudo-nada os seus poderosos dedos.

- Quem?

- Dois Fumos.

- Esse nãopassa de um tolo! Um homem que gosta de outros homens! Por que raio fugiria ela com... com ele?

Pena Cortada tentou engolir mas sem sucesso. Em vez disso a saliva escapou-se-lhe pelo canto da boca, molhando-lhe o queixo e os dedos de ferro de Sangue de Urso.

- Porquê? Maldito sejas!

- Ainda não estás a perceber? - Pena Cortada fechou os olhos e saboreou a sensação da exclamação de Sangue de Urso. Poderia continuar a gozar as suas memórias quando o seu fantasma subisse até ao Sábio Lá em Cima? Ou seria que a sua alma se evaporaria como o corpo físico, roída por isto e por aquilo, apodrecida?

O aperto em torno da sua garganta desapareceu por completo.

- Conta-me.

- Ela Sonhou tudo. Foi por isso que foi ter contigo. Sentia nojo só de te ver. Sabias disso? - Olhou para cima e não se surpreendeu com a descrença arrogante nos olhos de Sangue de Urso. - Sim, ela não te considerava acima de um cão tinhoso do campo.

- Para um cão de campo, ela veio até mim de boa vontade, velho. Viu que eu guiaria o Povo da Mão Vermelha, viu que eu...

- Louco! Foi um Sonho de Espírito. Não conheço nem metade dele. Um homem não se deita a adivinhar perante o Espírito do Poder. O Poder tem as suas próprias razões para aquilo que faz. Ela Sonhou... e o Sonho disse-lhe que tu devias ser o pai do seu filho. Assim que o sangue deixou de lhe aparecer, ela e Dois Fumos partiram. Não. Não me ameaces. Não sei para onde ela foi, nem porquê, nem sequer que tem Dois Fumos a ver com tudo isto. Mas ele é uma boa pessoa. Talvez ela precise dele para cuidar do bebé. Talvez precise dele para a ajudar noutra coisa qualquer. Ele é um tolo. Há Poder de Espírito nisso.

- Penso que sabes onde ela está. E vais dizer, velho! Vais dizer-me!

- Pensa o que quiseres. Estou certo de que é uma experiência nova para ti.

A pancada apanhou-o de surpresa e ressoou bem alto nos limites do abrigo. A força obrigou a sua cabeça a rodar de lado e ficou com relâmpagos brilhantes nos olhos idosos.

- Claro - comentou Pena Cortada no meio da dor. - Podes matar montes de gente do Povo do Pequeno Búfalo e gabares-te disso. Podes até matar-me. Mas aqui estás arruinado. Acabado. Lá fora, eles estão à escuta, estão a ouvir a tua raiva. Podias ser o líder dos Mão Vermelha... mas pode um povo seguir um homem que não é capaz de manter a esposa e o filho face a um tolo? Poderão alguma vez seguir um homem que mata um velho moribundo por pura raiva? Não... Agua Límpida e eu demos cabo de ti!

Os cantos da boca de Sangue de Urso estremeceram e saltaram enquanto se procurava controlar. Pena Cortada conheceu, por um instante fugaz, o verdadeiro medo.

- Onde está a Trouxa... a Trouxa de Lobo?

- Ela levou-a.

- Isso pertencia ao Povo!

- Era Poder de Espírito... tinha qualquer coisa a ver com o Sonho.

- Hei-de encontrá-la. Hei-de encontrar o meu filho. Estás a ouvir-me? Juro pela Trouxa de Lobo que ela roubou. Encontrarei o meu filho!

-A criança? Ou a Trouxa de Lobo? Penso que te devias importar menos com a criança. Estou a morrer. Nada mais tenho a dizer.

Os músculos estremeceram com violência nas maçãs do rosto de Sangue de Urso e era audível o som dos seus molares a rangerem.

- Então morre, velho!

Sangue de Urso virou-se, hesitante, e deu um pontapé no estômago de Pena Cortada.

- Toma, isso não te vai matar. Mas vai-te fazer saber como me sinto. E desapareceu na luz lá de fora.

Pena Cortada gemeu, dobrando-se ao meio, com uma dor intensa na barriga. Sentiu-a aumentar quando se endireitou, uma onda de calor dentro dele. Uma sensação estranha surgiu, então, fazendo-o sentir a flutuar e de cabeça leve.

Quase nem sentiu que estava a cair. Só se apercebeu de que os rostos o olhavam de lado. As peles debaixo da sua bochecha fria estavam molhadas, ensopadas, como se alguém tivesse entornado água em cima delas. Sentia a cabeça a girar à medida que as pessoas se juntavam à sua volta, procurando ajudar, fazendo perguntas que ele mal conseguia ouvir.

- A Trouxa de Lobo? - Um grito penetrou na névoa da sua mente.

- Não podemos viver sem a Trouxa de Lobo!

Mas Água Límpida levara-a. Sonho de Espírito... Água Límpida sabia o que estava a fazer. Os pensamentos dele derivaram como fumo no céu nocturno. Apagando-se. Apagando-se. Tudo cinzento.

- Parece que voltaste a errar, Sangue de Urso. Apesar de tudo, acabaste por me matar. - E riu-se.

A névoa flutuava em redor dele como nuvens em torno do topo de uma montanha. A sua alma começou a derivar, mergulhando numa quente tranquilidade. Começou então a erguer-se acima do seu corpo desfeito.

Vens?, perguntou uma voz suave.

- Quem? Quem me chama?

Chamam-me Sonhador de Lobo... o Homem do Sol... tens à tua frente um novo caminho. Um novo caminho...

O que tiver de acontecer, acontecerá. As almas humanas deslizam como a corrente de um rio - umas vezes com raiva, em espuma branca, ferventes, atacando com loucura a rocha resistente que lhes bloqueia o caminho. E há outras alturas em que as almas humanas se movem pacificamente, com vagar e preguiça, mal agitando a superfície da água tépida em que mergulham. Depois, conforme a época do ano, fluem en estradas dentro do gelo branco-azulado, fechadas numa escuridão creta.

As almas reúnem-se em redor da Trouxa de Lobo, sem nada saberem dos rápidos que as esperam na derradeira curva.

- Tens de ser paciente - murmura a voz de Sonhador de Lobo por entre as névoas.

- Eu sei - respondeu a Trouxa de Lobo.

 

A tenda prendia o calor da noite, abafado e húmido apesar do vento seco que fazia estremecer a cobertura de pele escurecida pelo fumo. A cobertura tinha sido bem fechada, firmemente agarrada ao chão duro para formar uma junta estanque e evitar assim que os Poderes do Espírito maliciosos pudessem encontrar uma entrada e instalar-se nela. O Povo fazia isso durante um nascimento. As crianças recém-nascidas não possuíam alma e qualquer mal podia entrar nesse paraíso quente. Para garantir mais ainda a segurança contra os poderes maléficos havia salva a dadora da vida - empilhada em redor da tenda, as folhas esmagadas de propósito adicionando uma fragância pungente ao ar secante.

No sítio em que o rapazito estava agachado, fora da tenda, uma costura rasgada abrira um orifício suficiente para poder espreitar lá para dentro.

Um fogo de madeira de algodoeiro seca ardia lentamente soltando fumo, adicionando o seu calor à tenda, já de si abafada, e dando luz àquela noite tão escura e ventosa. O ar quente e carregado de vapor escapava-se pelo orifício e soprava no olho do rapazito, trazendo ao seu nariz os odores de pele curtida, fumo e salva. E, misturados com estes, vinham também cheiros de suor, madeira e medo. A fragância delicada das ervas desvaneceu-se enquanto ele espreitava.

Corça Dançante soltou um grito, deitada nua sobre roupas ensopadas. Os planos suaves do seu rosto jovem torceram-se e deformaram-se quando a barriga se contraiu, procurando forçar a criança a sair dos limites seguros da matriz. Entre os seus seios estava a trouxa natalícia, uma figura em forma de tartaruga - o animal mágico que nunca ficava doente. A tartaruga trazia saúde e sorte. Desaparecia quando surgiam os ventos invernais, rastejando para dentro da Terra Mãe, e regressava quando o Pai Sol trazia ao mundo a Primavera e vida. O amuleto entre os seios de Corça Dançante fora feito de uma pele de antílope, finamente cosida e cheia de salva, bocadinhos de ramos, penas e outros tipos de Poder.

Tinham sido desenhados na sua barriga uma série de desenhos para centrar o Espírito do Poder do nascimento. O mais importante, uma faixa amarela e brilhante, descia desde a trouxa natalícia, entre os dois seios, até terminar numa ponta, junto aos pêlos púbicos dela. O Caminho da Luz que conduziria a criança até este mundo.

O rapazito olhava atentamente, sentindo o Poder do cântico das mulheres que estavam lá dentro. Embora receoso de ser descoberto, a realidade é que lhe era impossível sair dali e deixar de ver aqueles acontecimentos fascinantes. Bem sabia que a mãe o castigaria - e decerto que Dois Fumos estaria naquele preciso instante à procura dele, começando a ficar preocupado com a sua ausência das roupas de dormir.

Uma noite de calor, uma noite de dor. Do outro lado da colina, que era a barriga de Corça Dançante, duas mulheres - uma nova, outra velha - olhavam uma para a outra. A preocupação reflectia-se nos seus rostos tensos.

O cabelo grisalho da mulher mais velha brilhava com a luz. Os padrões das rugas lançavam uma teia de sombras no seu rosto sulcado. A sua boca assumira uma expressão preocupada enquanto continuava a sua vigília da mulher em sofrimento. Estava agachada, as costas curvadas pela idade, nua da cintura para cima, coberta de suor. Os seios, há muito secos, pendiam-lhe achatados sobre as pregas do estômago. Nos seus ombros viam-se linhas de cicatrizes, evidências mudas do número de vezes que oferecera bocados de si mesma ao Mundo do Espírito. O Povo chamava-lhe Cereja de Engasgar, o nome daquela planta de frutos doces-amargos que crescia nas terras altas.

O rapaz observou a sua mãe, Raiz de Salva, agachada, pronta a ajudar, os seus olhos ansiosos fixos no corpo febril de Corça Dançante. Conhecia bem aquele olhar de tensão. Era a preocupação que marcava os rostos de todos os elementos do Povo. Linhas, como arroios cortando a terra, que sulcavam profundamente os rostos. Mas a preocupação sem defesa que a sua mãe traía no rosto assustava-o. Quando Corça Dançante soltou outro grito, as tripas dele encolheram-se como tendões expostos ao sol.

Pobre Corça Dançante. O marido dela, Corre Bem Longe, fora caçar para as colmas na base das Montanhas do Búfalo. Nunca mais regressara.

Cereja de Engasgar respirou fundo e estendeu a mão para um saco cosido com todo o cuidado, de onde retirou salva molhada com que aspergiu os olhos vermelhos das brasas. O perfume da vida evolou-se no ar numa nuvem de vapor.

E começou a entoar baixinho uma ladainha.

- Vem, pequenino. Vem, caminha na vida e abençoa a terra, o sol, as plantas e os animais. Vem juntar-te a nós no caminho da Teia-de-estrelas, que conduz a todas as coisas boas. Escuta a nossa canção. Escuta a nossa alegria. Vem, pequenino. Vem até este mundo e faz-nos sorrir.

Corça Dançante voltou a gemer, tornando tensos os músculos das suas poderosas pernas bronzeadas. Inspirou fundo, freneticamente, e exalou com fúria, os olhos cerrados com força, os dentes à mostra num ricto de esforço. Gotas de suor traçavam sulcos irregulares na sua carne tremente.

Raiz de Salva segurou os dedos de Corça Dançante entre os seus.

- Calma. Respira com calma. Já não falta muito.

Corça Dançante ficou relaxada quando os espasmos desapareceram. Respirou fundo e olhou para a mulher idosa que continuava a cantar.

- Cereja de Engasgar, isto não costuma demorar assim tanto tempo. Está tudo a correr bem?

A anciã terminou a sua litania e encolheu um ombro, sorrindo.

- Já trouxe a este mundo crianças mais difíceis do que esta. É a tua primeira vez. Esses músculos têm de se esticar e ainda não sabem como o fazer. Não se rasgou nada. Tudo o que saiu foi água - lavando-te, tornando o caminho limpo. Mais nada. - Olhou em volta, soltando uma risada tranquilizadora. - Tal como Raiz de Salva. Fez-nos gastar, a mim e a Miolo de Corno, quase um dia inteiro.

Raiz de Salva sorriu, recordando.

- Lembro-me. Mas o meu filho nasceu forte.

Só quando Corça Dançante fechou os olhos e assentiu com a cabeça é que a expressão de Raiz de Salva se alterou. A tensão pairava no ar como névoa de Inverno, reflectida nas suas feições e nos olhos ardentes de Cereja de Engasgar. Flutuava até pelo rasgão na tenda e ia-se instalar, como uma pele verde e húmida, nos ombros do rapazito.

Cereja de Engasgar retomou o seu cântico entredentes e, tirando outra mão-cheia de salva do saco, salpicou-as sobre o fogo, enchendo a tenda de um odor pungente de vapor.

Corça Dançante gritou numa angústia que era até palpável na sua barriga contraída.

- Achas que devemos chamar Castor Pesado? - Os olhos duros de Raiz de Salva fixaram-se nos de Cereja de Engasgar.

O rapaz, sentado lá fora, estremeceu. Castor Pesado, o Sonhador de Espírito do Povo, desencadeava sempre aquele género de reacção. Uma voz murmurou dentro da sua cabeça: ”Não.”

Recuou, como uma sombra na noite, afastando os montes de salva com dedos cuidadosos e abrindo um orifício. Uma vez livre dos arbustos, correu pelo campo com pés ligeiros, indiferente ao ladrar dos cães. Na sua frente, sobre o chão batido, estendiam-se as tendas, baixas, as coberturas enroladas nas varas descascadas para permitir a entrada da brisa nocturna, a fim de refrescar os ocupantes que dormiam sobre camas de ervas. Aqui e ali o olho sanguíneo de um fogo moribundo lançava um clarão de entardecer sobre as bolsas de ferver, suspensas em tripés.

um mocho piou cautelosamente.

”Trouxa de Lobo”, murmurava uma voz dentro da sua cabeça.

Antes de alcançar a sua tenda, distinguiu a silhueta de Dois Fumos a bambolear no campo. Mais ninguém caminhava como Dois Fumos.

- Dois Fumos? - mudou de rumo, a trote.

- Estás aí! Já me sinto quase doente de preocupação contigo. O teu pai partiu numa caçada, a tua mãe está...

- Preciso de ti. Penso que precisamos da Trouxa de Lobo.

- Da Trouxa de Lobo? - Dois Fumos inclinou de lado a cabeça, a sua familiar expressão de curiosidade escondida nas sombras da noite. Num tom suave e reservado perguntou, na sua voz com sotaque anifah: - Por que é que nós precisamos da Trouxa de Lobo, Pequeno Dançarino?

Este hesitou.

- Eu... bem, foi uma voz que me disse.

- Uma voz? Aquela que fala dentro da tua cabeça?

- Essa mesmo. Por favor, traz a Trouxa - implorou ele. - O bebé de Corça Dançante não quer sair. A mãe e Cereja de Engasgar estão preocupadas. Corça Dançante está com medo de morrer. E Cereja de Engasgar não o disse mas eu senti. Sabes como é, aquilo que ela não disse. O olhar dela. Pensei que a Trouxa de Lobo...

- Pensaste bem. Vem. Vamos ver o que podemos fazer.

Dois Fumos deu meia volta sobre a sua perna sã e avançou, naquele seu andar bamboleante, para a tenda deles. As franjas da saia dele oscilavam em sincronia com o seu andar descompassado.

O tresmalhado constituíra desde sempre um enigma para Pequeno Dançarino. Mais nenhum outro homem do Povo usava vestidos. Dois Fumos, em resposta às suas perguntas infantis, sorrira suavemente e respondera que era um tresmalhado - entre mundos. Uma mulher num corpo de homem.

O tresmalhado vivia com o Povo há tanto tempo quanto Pequeno Dançarino era capaz de se recordar, e sempre ficara na tenda dele - um homem estranho e silencioso que viera dos Anifah. Suportava com paciência todas as piadas, graças e até o ridículo franco do Povo. Só e reservado, Dois Fumos ajudava a mãe de Pequeno Dançarino com pequenas tarefas, raspando peles, cozendo o caldo, aceitando os deveres que competiam a uma segunda esposa.

O pai de Pequeno Dançarino, Touro Esfomeado, o maior de todos os caçadores do Povo, era sempre bem educado com Dois Fumos. A sua reprovação inata era temperada com qualquer outra coisa velada que o rapaz nunca conseguira desvendar. O mistério rodeava o tresmalhado como um remoinho de vento em torno de um fogo batido pela chuva.

Não que Pequeno Dançarino estivesse preocupado. Dois Fumos permanecera o seu melhor amigo durante todos os seus oito Verões. Um amigo que o escutava com toda a atenção quando falava das vozes que ouvia com frequência. Quando a mãe ou o pai lhe ralhavam, era para Dois Fumos que ele corria tal como outras crianças corriam para os avós.

- Com que então estavas escondido perto da tenda dos nascimentos? Pequeno Dançarino ficou tenso.

- Eu...

- Bem sabes que os homens nunca se devem aproximar da tenda dos nascimentos. É um lugar para mulheres. E se por acaso alterasses o Poder?

Pequeno Dançarino, envergonhado, fixou os olhos na terra que pisavam, sentindo o coração ficar pequenino.

- Eu não sou um homem. Sou apenas um rapaz. Não sou um homem até que me seja dado um nome e tenha dado provas.

- E não pensaste que até um rapaz podia mudar as coisas?

- A voz não me disse que o faria. Quando estou perto do Poder, normalmente, sei essas coisas.

- A sério?

No silêncio que se instalou Pequeno Dançarino acrescentou:

- É uma sensação. Como... bem, como o silêncio antes da trovoada. Só que dura mais. Uma sensação, nada mais. E, às vezes, a voz.

Parou em frente da tenda da família, esperando, enquanto Dois Fumos lá entrava, ouvindo-o desembrulhar, com cuidado, a Trouxa de Lobo da pesada capa que a mantinha em segurança.

Curvando-se para passar pela ombreira baixa, Dois Fumos saiu, trazendo aninhada nos braços a Trouxa de Lobo embrulhada com todo o cuidado numa bela pele de lobo curtida. À luz fraca das estrelas, a pelagem tinha um brilho acinzentado.

- Se não acreditas em mim, por que é que foste buscar a Trouxa de Lobo? - Apontou para a massa de pêlos cinzentos que Dois Fumos apertava contra o coração. Mas o tresmalhado limitou-se a passar por ele na direcção da tenda dos nascimentos.

- Então? Porquê?

O suspiro de Dois Fumos ficou suspenso no ar.

- Um dia, Pequeno Dançarino, hei-de contar-te.

- Mas eu quero saber agora. Não percebo por que é que...

- Já viste as águias fazerem os ninhos nos penhascos mais altos. Já subiste mais acima para olhares para baixo e veres as crias acabadas de sair dos ovos.

- Hum-hum, a águia é uma ave de Poder. Senti isso. E sei qual o aspecto das crias acabadas de sair dos ovos, todas cheias de penugem e...

- E que aconteceria se atirasses uma dessas crias para fora do ninho? Ficarias à espera que, pelo simples facto de ser uma águia, voasse? Por causa do Poder que há dentro dela?

- Eu... não.

- Nesse caso, não te empurres a ti mesmo para fora do ninho antes de as tuas penas serem capazes de te suportar.

Pequeno Dançarino, perplexo e confuso, tentou tirar algum sentido daquelas palavras. Quererá dizer que eu também tenho Poder? A questão deixava-o estonteado. Um clarão quente formou-se-lhe no coração. Pelo mais breve dos instantes pareceu formar-se um fio vacilante entre ele e a Trouxa que Dois Fumos tanto apertava contra o coração. O padrão desfez-se com a mesma facilidade com que um ramo de salva se dobrava sobre os pés que o pisavam. Um grito desesperado de Corça Dançante penetrou as paredes da tenda dos nascimentos.

- Espera aqui... e fora de vista, se fizeres esse favor. - E, depois, numa voz mais alta. - Raiz de Salva? Sou Dois Fumos. Tenho aqui uma coisa para ajudar.

Mas Pequeno Dançarino já partira a correr para o seu orifício, passando por debaixo da salva e encostando-se à pequena abertura.

Pôde ver o olhar ansioso que a mãe lançou a Cereja de Engasgar antes de dizer, num sussurro:

- Ele é um tresmalhado. Sabe muitas coisas. Entre o Povo dele...

- Eu sei. - Cereja de Engasgar afagou o queixo. - Os Anifah dizem que os tresmalhados têm Poder de Espírito. Eu própria acredito nisso. Levantou a voz. - Entra, Dois Fumos. - E depois, mais baixinho: Pelo Poder Abençoado, bem precisamos de toda a ajuda que pudermos conseguir... tirando Castor Pesado.

Dois Fumos entrou, curvado, na tenda escassamente iluminada, com a Trouxa ainda apertada ao peito.

- Se vos for possível, permitam-me que use a Trouxa de Lobo. Estendeu-a com reverência e implorando com os seus suaves olhos.

- A Trouxa de Lobo? - Cereja de Engasgar inclinou de lado a cabeça, ainda a afagar o queixo. - Sim... talvez.

Corça Dançante levantou um olhar e um novo medo lhe surgiu nos olhos ao ver Dois Fumos.

- Não! Um homem, não! Não aqui... quando...

- Chiu! - acalmou-a Raiz de Salva. - Ele conhece o Poder.

- Eu quero Castor Pesado! - O medo tornou-se mais profundo nos olhos dela.

- Eu sou um tresmalhado - apelou Dois Fumos.

- Já fiz isto antes.

- Confia nele - insistiu Cereja de Engasgar.
Corça Dançante não teve tempo para responder, invadida por nova contracção. Cereja de Engasgar fez um gesto breve para Dois Fumos e recuou para lhe dar espaço.

Dois Fumos instalou-se perto da mulher que gritava e, com dedos cuidadosos, abriu a pele de lobo. Estendeu a pele como um cobertor protector para evitar que a trouxa sagrada contactasse a terra. Quando começou o cântico nos tons melodiosos dos Anifah, Pequeno Dançarino inclinou-se mais para a frente, o olho encostado ao orifício.

Vista do lado de fora, a Trouxa de Lobo não tinha lá grande aspecto: era apenas um saco de pele, bem apertado e pintado, de um vermelho-profundo no extremo pontiagudo. O topo fora deixado branco e tinha traçadas umas linhas que lembravam veias. Um coração! Era isso mesmo que era: um amuleto em coração.

Dois Fumos tirou alguma salva de uma bolsa que trazia consigo, mergulhou-a na água que estava num tripé e salpicou o fogo. Raiz de Salva e Cereja de Engasgar, atrás dele, trocaram entre si olhares nervosos.

- Tomem, é preciso fazer isto em chá. - Dois Fumos estendeu uma mão com flores de salva limpas. - Ela tem de beber um bocado e o resto deve ser esfregado nela. Raiz de Salva, lava-a ali, onde o bebé irá nascer.

Ergueu depois a Trouxa de Lobo na direcção do buraco de fumo, cantando na linguagem dos Anifah, de olhos fechados e rosto sereno.

Pequeno Dançarino observava tudo do sítio onde estava sentado e, de repente, uma tontura surgiu dentro dele, erguendo a sua alma em tons espantosos. A sensação familiar do Poder envolveu-o.

Recuou, mal dando pelo facto de Dois Fumos estar a tocar com a Trouxa na testa suada de Corça Dançante. A mulher acalmou-se e começou a respirar com maior facilidade. Dois Fumos tocou-a então com a Trouxa no coração, logo acima da esfinge da tartaruga, depois no umbigo saliente e a seguir no púbis, acima da ponta da faixa amarela.

Corça Dançante soltou a respiração, mas desta vez em alívio.

Raiz de Salva, tendo terminado o chá, encheu com ele uma colher de corno de búfalo e levou-a aos lábios da mulher. Corça Dançante bebeu, fazendo uma careta.

Voltando a colocar a Trouxa sobre a sua pele protectora, Dois Fumos mergulhou as mãos na bolsa de água quente, agora cheia de chá.

- Foi assim que o meu Povo me ensinou. O chá das flores de salva acalma a carne.

Com as mãos a pingar começou a massajar o ventre pesado da mulher. Raiz de Salva, a um gesto de Dois Fumos, copiou-lhe os movimentos. Corça Dançante mordeu outro grito quando nova contracção começou a percorrê-la.

- Agora com jeito - avisou Dois Fumos, os dedos a avaliarem o corpo contraído da mulher. - A pressão deve ser certa. Se for demasiada, os interiores rasgam-se. E nem sempre se consegue parar a hemorragia.

- Já tentámos as massagens - informou Cereja de Engasgar - e não pareceram dar resultado.

Dois Fumos acenou a cabeça, indicando com os olhos a Trouxa de Lobo.

- Talvez isto resulte.

E pegou na Trouxa, tocando com ela o umbigo de Corça Dançante no ponto em que saía para fora como um botão. Corça Dançante gritou com uma contracção.

- Olhem. - Cereja de Engasgar gatinhou para se ir colocar entre as pernas de Corça Dançante. Rectificou a sua posição. - Temos um líquido. Um bocadinho de sangue.

Dois Fumos colocou a Trouxa no sítio, de olhos fechados, ainda a entoar o seu cântico.

- A criança está a sair - acrescentou Cereja de Engasgar. Pequeno Dançarino, procurando estender o pescoço para tentar ver,

não se apercebeu dos passos suaves. Assustou-se quando a cortina de entrada se levantou e Castor Pesado olhou e, vendo Dois Fumos e a Trouxa de Lobo, estacou de repente.

O choque perpassou um fugaz instante antes de uma raiva cega encher os olhos negros e rearrumar a expressão do rosto.

- Com que então é isto que está a acontecer?

Raiz de Salva olhou por cima do ombro com uma réstea de medo no olhar.

- O bebé está a nascer.

Dois Fumos não perdeu um só ritmo do seu canto.

- Um pouco mais - encorajou Cereja de Engasgar, as mãos prontas. Agachado, lá fora, sentiu a escuridão redemoinhar com Poder. CastorPesado! Podia senti-lo, um odor subtil a raiva e ódio. O efeito atingiu-o como o suave cheiro sulfuroso de um prado verde com ervas e flores a ondular. A Trouxa de Lobo permanecia num brilho poderoso no meio daquele miasma.

- Ah-ah! Para baixo! - gritou Cereja de Engasgar, estendendo as mãos até onde Pequeno Dançarino não lhe podia ver as mãos. - Isso mesmo!

Corça Dançante estremeceu quando o seu ventre diminuiu de volume e Cereja de Engasgar levantou o bebé, todo manchado e molhado nas suas mãos. O grito agudo de uma nova vida encheu a tenda.

Dois Fumos inspirou profundamente e deixou tombar a cabeça, puxando mais uma vez contra o peito a Trouxa de Lobo, acariciando-a com reverência enquanto murmurava uma oração de agradecimento entredentes.

- É uma menina - sussurrou Raiz de Salva, olhando furtivamente para Castor Pesado.

- E por que é que não me sentirei surpreendido? - perguntou Castor Pesado, meio corcovado dentro do espaço limitado da tenda. A expressão dos seus olhos causou um arrepio frio ao longo da espinha de Pequeno Dançarino.

- Outra menina? E nascida sob a influência de um Espírito do Poder maligno? - Castor Pesado cruzou os braços. - Uma dádiva maravilhosa para o Povo.

Corça Dançante mexeu os lábios sem emitir um som, demasiado cansada para fazer outra coisa se não mirar, de olhos muito abertos, o Sonhador de Espírito.

No seu tom cheio de sotaque, Dois Fumos disse, baixinho:

- A Trouxa de Lobo não é maligna. E...

- Aquilo que eu já esperava vindo dos Anifah... e de uma coisa como tu. Quem és tu? Uma mulher num corpo de homem, como clamas ser? Sem dúvida uma maldição, se é que percebo de tais coisas. E, mesmo assim, atreves-te a poluir a tenda dos nascimentos?

Dois Fumos fechou os olhos com uma expressão dolorosa no rosto.

- Deixa-o em paz! - Raiz de Salva virou-se sobre os calcanhares.

- Trouxa de Lobo libertou a criança.

- Outra menina. Uma boca para alimentar, enquanto os homens têm fome.

- Isso é o que tu dizes! - Raiz de Salva corou. - Passas o tempo a culpar as mulheres pela fome! Nós somos o Povo! Por que é que viraste o teu ódio contra nós? Que pretendes com isso? Dividir o Povo? Nesse caso, estás a ser bem sucedido! Nós não somos animais.

- Oh? E pensas que o Sábio Lá em Cima não...

- Eu acho que os teus Sonhos são falsos.

Um silêncio de espanto encheu a tenda enquanto Raiz de Salva se apercebia do que dissera.

Pequeno Dançarino, assustado, deixou escapar uma exclamação. Imediatamente se viraram olhos na sua direcção.

- Quem é? - perguntou Castor Pesado. - Outra poluição? - Lançou a mão à cortina e, num piscar de olhos, Pequeno Dançarino pôs-se em pé, saltou por cima da salva e correu para a escuridão.

De coração a bater descompassadamente passou por uma tenda, ouvindo o ressonar suave do velho Dois Alces. Caminhando sobre pés silenciosos, desenhou um círculo e aproximara-se de novo da tenda quando Castor Pesado voltava a entrar nela.

- Alguém rápido... ou alguma coisa. Venham agora dizer-me que essa tal Trouxa de Lobo não é maligna! - As palavras chegaram até Pequeno Dançarino, que se deixara cair de barriga perto de uma moita de algodoeiros. A cortina não tinha tombado o que lhe permitia ver o que se passava dentro da tenda.

- Não é maligna. É a alma dos... - Dois Fumos calou-se, sem saber o que dizer.

- Dos Anifah? - inquiriu Castor Pesado, debruçando-se sobre o tresmalhado.

- O Poder trabalha para toda a gente, Homem do Espírito. Tu, de todos os homens, devias sabê-lo... Espera! Que estás a fazer?

Castor Pesado arrancou a Trouxa das mãos de Dois Fumos e recuou para escapar aos dedos crispados deste. Curvou-se para sair com Dois Fumos, procurando alcançá-lo. E, com uma praga vil, lançou a Trouxa para a noite. Na meia luz do fogo, Pequeno Dançarino captou o horror gravado no rosto desesperado de Dois Fumos. Sentiu, naquele preciso momento, o grito da alma do tresmalhado. O rosto de Dois Fumos era uma máscara de um completo terror mental e a sua mão estendia-se futilmente para a noite.

Um baque abafado soou na erva em torno do campo. Nesse momento, a alma de Pequeno Dançarino contorceu-se e uma náusea imensa encheu-lhe as entranhas. Vomitou sem sequer ter tempo de procurar evitá-lo.

Ouviu, como se de muito longe, o grito horrorizado de Dois Fumos.

Vozes do Povo, acordadas pela maldição de Castor Pesado, falavam aqui e ali, inseguras. Alguns dos homens mais novos saíram a correr das tendas, procurando os Anifah na escuridão, tentando descobrir a causa daquela perturbação. A confusão instalou-se na noite com homens e mulheres à procura de roupas antes de saírem, apressados, das tendas.

Pequeno Dançarino levantou a cabeça, limpando a boca com as costas da mão e sentindo as entranhas corroídas pelo terror. Dois Fumos estava imóvel, de gatas, a incredulidade estampada nos olhos. As pessoas soltavam exclamações ao verem a silhueta de Castor Pesado, iluminada pelo fogo, na entrada da tenda dos nascimentos.

-A criança tem de ser destruída, - Castor Pesado virou-se, olhando para dentro da tenda. - Estás a ouvir, Corça Dançante? Foste tu que causaste isto... só tu. O Povo já está poluído pela sujidade. Estão poluídos por mulheres que viram as medicinas dos homens contra eles próprios. Esta... esta criança está poluída pelas bruxarias dos Anifah e pelo espírito vil, seja ele qual seja, que espreitava lá fora quando nasceu. Condeno-vos como impuras!

- Não! - gritou lá de dentro Corça Dançante. - A minha criança, não! O meu bebé, não!

- Mata-a! - rugiu Castor Pesado. - A poluição é tua.

Raiz de Salva dobrou-se para atravessar a entrada da tenda e endireitou-se na frente dele.

Pergunto a mim mesma onde está a poluição! Não me sinto de modo algum poluída... excepto pela tua presença!

- Não! - Cereja de Engasgar agarrou Raiz de Salva pelo braço, puxando-a para trás. - Ele é um Sonhador de Espírito. Pede desculpa.

Pequeno Dançarino viu a mãe começar, sentiu a raiva que se escapava do seu corpo tenso.

- Eu... peço desculpa.

O rosto de Castor Pesado mostrou uma estranha mistura de alegria e vingança.

- A criança tem de ser destruída!

  1. tendo pronunciado estas palavras, levantou um pé e pontapeou Dois Fumos, fazendo a cara deste tocar no pó do chão, antes de se afastar.

Um murmúrio abafado de vozes ergueu-se dos espectadores.

Pequeno Dançarino, assustado, tremia e piscava os olhos perante a cena. Dois Fumos levantou a cabeça e a luz do fogo traçou as lágrimas que lhe sulcavam o rosto.

O vento parara, o ar tornara-se pesado e abafante. No silêncio que se instalou, o bebé de Corça Dançante chorou.

No abrigo de rochas de Cria Branca, bem alto nas Montanhas do Búfalo, o Sonho instalou-se como orvalho, tombando suavemente sobre o sono dela. O Sonho, como padrões de gelo, penetrou na mente e apertou o cerco à sua alma. Mais além, as estrelas continuavam o seu círculo no céu, ignorando o abrigo silencioso no flanco da montanha, tão lá em baixo. Os coiotes uivavam e rosnavam em volta da carcaça de uma cria de alce, recentemente abatida. Os mochos pairavam sobre o prado, sem serem notados, as asas silenciosas, enquanto os ratos procuravam sementes entre as ervas cheias de umbelas.

O mundo da noite vivia, enquanto Cria Branca Sonhava...

Caminhava numa terra brilhante, passo cansado atrás de passo cansado - o ancestral ritual da marcha. Um vento, quente como o bafo que se eleva das pedras de cozinhar ao rubro, secava-lhe a peleja fina. Em torno dela, a alma desesperada da terra esperava, inquieta, seca, moribunda.

- Isto não costumava ser assim. - Fez uma careta ao escutar a rouquidão da sua voz. As histórias antigas falam de água, de búfalo com tal fartura, que um homem forte podia lançar o dardo em qualquer direcção e matar. As histórias antigas falam de ervas que chegavam à cintura de um homem. E agora? Nascentes onde o avô do meu avô bebeu não passam de poças lamacentas. Só os velhos o sabem. Só os que guardam as lendas.

Mas as lendas estão a mudar. As gentes estão a mudar. Até os nomes dos lugares estão a mudar. Tudo... está em mudança...

A velha dor familiar picou-a e latejou na articulação da anca direita. Bem fundo, no interior, os músculos das suas pernas, gastas pela idade, as cãimbras de fadiga mordiam-na como formigas negras no coração infestado de um pinheiro tombado de morte. A dor nos pés crescera, expandira-se, invadira tudo. De pés chatos, doloridos, continuava a marchar sobre a argila quente, os dedos dos pés como que queimados, as articulações inflamadas e inchadas.

- Estou velha de mais para isto - murmurou. - Devia estar numa tenda bonita... com filhos e filhas fortes a trazerem-me comida. Devia ter a liberdade de me poder sentar à vontade, a conversar e a trocar gracejos. A contar as velhas histórias para que sejam lembradas. A ver os jovens, eles e elas, a fazerem figuras de tolos para se impressionarem uns aos outros. Isso é o que devia estar a fazer.

Excepto que tivera a visão. Quando estava a orar e jejuar nos altos picos das Montanhas do Búfalo acontecera-lhe algo. Estivera quatro dias sem comida, nem água, enregelada pelo ar frio da noite, desidratada pelos raios do sol primaveril. Tremera e purgara a alma.

Sentara-se, nua, na ponta elevada, buscando a origem do chamamento que a arrastara toda a sua vida. De cada vez que recuara, que tentara viver como um ser humano, o chamamento regressara, imperativo, levando-a a abandonar cada um dos seus maridos e as crianças que lhes dera. E de cada vez regressara aos lugares elevados em busca da origem do Poder.

E assim voltara a fazer até que, no quarto dia, a imagem de um homem se formara nas nuvens, as suas feições iluminadas pelos cegantes raios do sol. Um homem bem-parecido, alto, cujo Poder cantava em silêncio, tornando em anãs as nuvens, uma presença de calor e luz.

Contemplara-o, espantada, quando ele lhe sorrira, um braço estendido apontando o sudeste, na direcção das planícies onde os povos nativos dela haviam vivido desde os tempos do Primeiro Homem. Tão depressa como surgira, a imagem apagara-se para ser substituída pela do Lobo, os brilhantes olhos amarelos como raios do sol a perfurarem as nuvens.

Nessa altura, piscara os olhos, o coração a bater muito depressa dentro do peito, e ficara a olhar, pensativa, para as formações brancas e vaporosas de uma gigantesca frente de tempestade. Enfraquecida e abalada, acabara por descer da rocha, vestir as roupas e comer qualquer coisa antes de iniciar a jornada.

- Sonhador de Lobo - murmurou. - Foi ele quem me trouxe aqui. Inspirou fundo, abanou com força a cabeça e diminuiu o passo até parar. A língua estava encortiçada dentro da boca seca enquanto ela semicerrava os olhos, virados para o clarão branco do sol ofuscante.

Ali se quedou, uma anciã naquela vastidão e calor, as costas curvadas na tumpelina, que segurava um enorme fardo equilibrado no fulcro das ancas. Olhou em todas as direcções enquanto recuperava o fôlego. As nuvens distantes brilhavam como um Sonho de Espírito - linhas quebradas e ondulantes. Até a abóboda azul do céu estava mais escura, desbotada e gasta. No sussurro inquieto da brisa, capaz de secar ossos, só os estalidos de um gafanhoto quebravam o vazio. Até o canto dos pássaros parara no calor do dia.

O espírito da terra falava de calor e prostração. O odor de poeira era pungente nas suas narinas.

Anos de sol tinham sulcado o seu rosto num engelhado tom castanho-avermelhado. Cada dor, raiva, pena e triunfo da sua longa vida estavam ali expostos, um mapa traçado naquele labirinto de rugas, que cobria o seu crânio de rosto largo. Os olhos, cheios de sabedoria e poder, ardiam por detrás de pregas caídas de pele. Uma mandíbula metida para dentro traía a perda de quase todos os incisivos amarelos e polidos. Farripas de cabelo grisalho escapavam-se das suas tranças curtas.

O peito dela subiu e desceu quando começou a arrancar o cuspo de sede da garganta e o lançou sobre a terra branco-acinzentada. Os dedos da brisa brincavam com ela, agitando as escassas franjas que ainda restavam no seu vestido manchado de gordura, agitando os rasgões, levantando a parte de trás, que brilhava de tão puída e fina. Em volta do pescoço, estava pendurado um bocado de tripa de búfalo, a curva tocando-lhe na anca, cheio de água tépida. Encontrou a ponta e levantou-a até levar aos lábios finos e castanhos um fio de água.

Soltou um estalido com os lábios, sem nunca tirar os olhos do horizonte irregular, que dançava e oscilava em padrões prateados.

- Mas, afinal, fiz a minha escolha há muitos anos atrás, não fiz? soltou uma gargalhada, o som de salva a roçar em couro. Mudou a posição do fardo sobre as costas, aliviando a tumpelina que lhe vincava a testa. Retomou a marcha, fatigada. Sob as mocassinas desgastadas, as ervas secas estalavam - tinham um tom castanho de Outono, se bem que ainda nem tivesse terminado a Primavera.

A sua direita, um arroio ziguezagueando cortava o chão do vale uma ferida estalada no seio seco da terra. Os lados das paredes verticais tinham-se quebrado em fracturas dissecantes nos sítios onde os solos haviam cedido e exposto as raízes vermelhas. A fenda, uma barreira intransponível, apresentava a altura de dois homens altos até ao canal do fundo, coberto de pedras soltas, e escondido nas sombras do meio-dia. A sua esquerda, na planície de aluvião, erguiam-se uma série de colinas brancas e baixas sugadas até à secura pelo poder do Pai Sol.

- Sorte de mosca rastejante! - resmungou ela, parando. Na sua frente, estava uma confluência onde outro tributário de paredes escarpadas se encontrava com o canal principal. Aproximou-se mais para melhor observar a fenda. Outrora, num tempo há muito passado, teria atirado com o fardo para o outro lado e, tomando balanço, teria saltado o estreito abismo. Agora, nada mais lhe restava do que suspirar e seguir pelo caminho mais longo, arrastando os seus velhos e raquíticos ossos.

A terra dura e branca reflectia o calor que o Pai Sol lançava impiedosamente lá de cima. Quanto mais suava, mais depressa o vento lhe bebia a água.

-Ah! - piscou os olhos ao clarão, procurando ver melhor a terra que se formava no ar reverberante. Uma linha de rochas calcárias estendia-se ao longo do topo como vértebras informes e lançavam sombras! sobre a encosta coberta aqui e ali de salva. - Já sei aonde estou. As Nascentes do Osso do Monstro ficam para ali. Devo lá chegar ao fim da tarde. Costumava haver por lá boa água.

E, de costas curvadas sob o fardo, retomou a marcha.

Mais perto do cume, teve de se desviar para evitar outras valas de drenagem escavadas na planície. A erva tinha dado lugar a arbustos, alguns até secos e de raízes tenuamente agarradas a torrões de solo mais resistentes.

- Não me lembro se estavas por aqui. Nem dos arroios tão fundos. Em mudança... o mundo está em mudança...

Abanou a cabeça, falando consigo mesma, confiando no seu velho corpo para saltar um dos sulcos mais estreitos.

- Estou demasiado velha para andar por aqui a vaguear como uma garota em busca de um Sonho. Estou velha de mais para isto.

O Sol descera para oeste fazendo a sombra dela alongar-se enquanto avançava, cansada, ao longo do caminho do tributário. Na sua frente, os cumes arredondados destacavam-se contra o céu de bronze.

Estacou, ciente de uma diferença. Não, não importava quanto tempo já se passara, ela lembrar-se-ia. O efeito poderia ter sido o mesmo se as Crianças Monstruosas tivessem retalhado as encostas nas suas batalhas pelo mundo, cortando longos sulcos paralelos no terreno, traçando padrões complicados entre os arbustos de salva. A encosta da colina estava a ser arrastada para a planície e a tornar-se em terra má, à medida que as plantas, que outrora haviam segurado o solo, secavam com a seca.

Inclinou a cabeça de lado, mirando com atenção o terreno sobre o qual caminhava, reparando no aspecto do solo e na forma como as pedras estavam à superfície.

- Costumava estar coberta de ervas - recordou ela, lançando um olhar avaliador às encostas lavadas pela erosão. As estevas pareciam ali estranguladas, meio enterradas pelas terras que tinham descido das encostas.

Fungou, apesar do nariz seco, e estugou o passo.

- Daqui a nada é noite. O melhor é chegar depressa às Nascentes do Osso do Monstro e montar campo. E ter uma boa noite de sono, para variar.

As sombras alongavam-se, acentuavam-se nos esqueletos lavados dos sulcos, há muito secos, cavados nas encostas que a cercavam. Olhando mais de perto, via que a maior parte da salva das colinas arredondadas secara e não passava de esqueletos cinzentos. O arroio escurecido permanecia um obstáculo a seu lado. Penetrou, passo após passo, nas goelas do sulco, avançando pelo fundo, tentando recordar-se a que distância ficavam as Nascentes do Osso do Monstro, sentindo as colinas arredondadas a cercarem-na.

Trepou um pouco pela encosta para evitar um grupo espesso de salva gigante - e os picos que estariam à espera dela na ponta das folhas e chegou à curva final, lembrando-se da linha calcária que descia as colinas até às Nascentes do Osso do Monstro. Ali, no fundo, esperava-a uma espessa aglomeração de salva gigante cuja cor azul-esverdeada brilhava como prata na luz cristalina da tarde.

Deixou o ar escapar devagarinho dos pulmões, bebeu uma derradeira golada do saco de água e voltou a avançar nas pernas trémulas. Na sua frente estavam as Nascentes do Osso do Monstro, um antigo local de campo do seu Povo. Aqui tinham abatido o último dos enormes animais que agora eram conhecidos por monstros. As lendas diziam que eram animais de duas caudas, uma à frente e outra atrás. E ela vira os dentes, uns dentes compridos e curvos, mais altos que um homem.

Aqui já ela vagueara entre os poços de fogo gastos, vira ossos quebrados, pegara nas pontas de dardos compridas com as suas bases biseladas. Agora, tudo parecia ter sido levado pelas águas. Ténues manchas de carvão marcavam os velhos fogos, sinais de oxidação que as fogueiras tinham deixado no solo erodido. Os bocados de carvão tinham sido arrastados para o arroio. As pedras do fogo, avermelhadas, tinham-se partido em formas irregulares e depois espalhadas ao acaso como ossos deixados aqui e ali pelos animais. Até as fortes concentrações de lascas de pedra, restos da fabricação de ferramentas - tinham sido arrastadas pelas águas.

O abrigo estava escondido. Ao princípio até o confundira com um rochedo. Mas, ao aproximar-se, distinguira a forma cónica achatada da tenda aninhada na salva. Uma coisa de aspecto miserável, mal parecia dar para duas pessoas se abrigarem da chuva - se é que alguma vez voltaria a chover.

Começou a avançar mais devagar, mordendo o lábio. Quem? Mais do que nunca era esta a pergunta que podia valer a vida de uma pessoa. Até a dela. Nestes dias de fome e sede nem toda a gente sabia quem ela era.

- Ninguém vive para sempre - resmungou. - Só parece isso algumas vezes.

E avançou mais depressa, olhando com curiosidade para os Ossos do Monstro, apesar do cansaço que sentia. Um deles saía inclinado do chão entre a salva. A ponta - tão larga como a coxa de um homem forte estalara, seca como o resto do mundo. Havia lascas compridas de osso espalhadas nos restos de folhas de salva que cobriam o chão. Mais algumas manchas de carvão escureciam o solo, rodeadas por uma marca avermelhada de oxidação. Quase que dava para ver as formas. Fogueiras. Velhas, tão velhas... e quase desaparecidas.

O mundo estava a mudar.

- Olá! - gritou ela entre as mãos em concha. - Quem está aí? Nada se mexeu. Uma sensação de algo errado percorreu-lhe os pensamentos como um morcego percorrendo a noite.

E, no silêncio, uma criança começou a chorar.

O Sonho voltou a invadi-la. Cria Branca assustou-se e abriu os olhos, a piscar, na luz nocturna do seu abrigo de pedra. As suas tripas revolviam-se, deixando-a fisicamente doente, como se algo se tivesse deslocado. Lutou contra a vontade de vomitar. A calmaria instalara-se na noite. Que acontecera? A sensação de náusea evocava abuso do Poder. Mas quem? E aonde?

Sentindo a boca seca, estendeu a mão para a pele da água e bebeu um golo. Sentou-se, massajando as velhas pernas, sentindo a cãimbra nocturna apertar-lhe os músculos, já doridos pela idade. Oito anos se haviam passado desde que o Poder a tinha levado até à criança e ao tresmalhado. Que acontecera agora de errado?

Olhando por entre as cortinas do abrigo traçou os contornos familiares dos picos contra o céu. Inspeccionou até os padrões negros das nuvens quando a Lua voltou a surgir a leste.

Ficou rígida quando os raios de luar cortaram as nuvens e o viu de novo. O luar brincava, suave, sobre o branco. O homem novo dos seus Sonhos de Espírito formou-se a partir dos cumes. Uma imagem meio homem, meio lobo, que parecia apontar para sudeste - para a terra do seu Povo.

Em choque perante o sacrilégio de Castor Pesado, a Trouxa de Lobo vibrou e lançou a sua angústia nos desfiladeiros e curvas do tempo. As vozes dos milhares que a tinham tocado com fé, e deixado nela parte das suas almas, gemeram e choraram.

O Poder pulsava, recordando a ofensa, retirando-se do mundo dos homens, sugando-se num âmago do ser.

“Lembra-te, a espiral... Círculos dentro de círculos, que estão juntos sem jamais se tocarem. Não é ainda chegado o tempo. Mas chegará... chegará...”

E a Trouxa de Lobo ficou à espera.

 

- Não tens de fazer isso. - Raiz de Salva encarou Corça Dançante, olhos nos olhos, quando esta saiu da tenda dos nascimentos com a criança apertada contra o peito. Corça Dançante lançou um olhar sub-reptício para onde estava Castor Pesado, de pé, em frente da própria tenda, os braços cruzados com o peito largo. A luz do Sol revelava-o um homem de meia-idade, de corpo forte mas baixo. Não se distinguia o mínimo indício dos seus pensamentos no rosto largo e pesado. O próprio nariz parecia amachucado e plano sobre as maçãs do rosto redondas. Uma profunda cicatriz corria-lhe em diagonal pela testa - uma herança de um dardo de guerra dos Anifah.

- Não há comida suficiente - murmurou Corça Dançante cheia de tristeza, estremecendo com a dor que os movimentos das ancas lhe provocavam.

- Torno a dizer que não tens de fazer isso. Alguma coisa acontecerá.

- O nó de raiva que Raiz de Salva sentia no estômago ficou mais tenso. Já pouco restava da última matança, nada mais que algumas tiras de carne seca - o bastante para uma ou duas refeições. Tinham sido colhidas raízes suficientes para um caldo. As mulheres já tinham batido os arbustos à procura de covas de coelhos ou de outros animais que ficassem suficientemente perto do rio para poderem ser inundadas, fazendo saltar cá para fora uma refeição. Apesar de tudo isso, matar uma criança...

A boca de Corça Dançante cerrou-se com força.

- O meu bebé... é uma menina. - O olhar dela voltou a dirigir-se para Castor Pesado. - Ele sabe.

- A decisão é tua. Ele não te pode obrigar a matar a tua própria...

- Por favor! - O tom implorante de Corça Dançante dilacerou o coração de Raiz de Salva. - Sei o que tens estado a tentar, mas até que Corre Bem Longe volte... Bem, não quero arranjar sarilhos.

- Estarei sempre do teu lado. Dar-te-ei o que me resta de carne seca. - prometeu Raiz de Salva, sabendo muito bem que Corre Bem Longe tinha sido morto pelos Anifah. - Ouve-me, não podemos continuar a matar todas as meninas que nascem. - Raiz de Salva colocou uma mão sobre o ombro de Corça Dançante. - Confia em mim. Como te sentirias se matasses o teu bebé e Touro Esfomeado, ou um dos outros grupos chegasse a trote dizendo que tinham cercado uma manada e morto o suficiente para todos?

Corça Dançante mordeu o lábio, os olhos assustados fixos em Castor Pesado, sentindo a sua presença como um miasma.

- E depois o quê? Quanto tempo será até à próxima matança? Não. Está tudo muito enevoado dentro de mim mas lembro-me do que ele me disse para fazer. É por todo o Povo. Esta - indicou a criança - ainda não tem alma. Ainda não tem nome. É apenas um animal.

Raiz de Salva fechou os olhos ao escutar a certeza na voz de Corça Dançante.

- É a tua... - Última ligação com Corre Bem Longe. Mas não o conseguiu dizer, não foi capaz de se obrigar a aumentar ainda mais a miséria em que estava Corça Dançante.

Os olhos de Corça Dançante fixaram-na:

- Já fizeste bastante. Tu... e o teu tresmalhado!

A resistência de Raiz de Salva ruiu perante o fel da voz dela.

- Só tentámos...

- Por favor, Raiz de Salva, deixa-me passar. Quanto mais depressa for feito, mais fácil será.

Raiz de Salva afastou-se para deixar passar Corça Dançante; e viu-a subir o carreiro colina acima, uma figura solitária e alquebrada. Raiz de Salva estremeceu quando viu Corça Dançante levantar a criança acima da cabeça e atirá-la contra as pedras polidas do rio.

Castor Pesado, o rosto inexpressivo, virou-se e entrou na tenda. As pessoas olhavam, meio atordoadas, para a figura inclinada que se via no topo da encosta.

- Em que nos tornámos nós? - murmurou Raiz de Salva, entredentes.

- Em esfomeados. - Cereja de Engasgar apareceu misteriosamente a seu lado. - Afinal, ela sempre o fez?

- Não estava disposta a enfrentar Castor Pesado.

Cereja de Engasgar abanou a cabeça, os olhos meio fechados.

- Ele está a matar o seu próprio Povo e ninguém sabe o que fazer. São os tempos, a falta de chuva. O nosso Povo está a desfazer-se mais depressa do que as nossas tendas gastas. - Cuspiu num ênfase ácido. Bem o ouviste na noite passada. E tornou a falar com ela logo após o alvorecer. Fez a coisa soar como se todos os infortúnios por que tem passado o Povo fossem culpa dela. Disse-lhe que, se não tivesse engravidado, talvez Corre Bem Longe não tivesse ido caçar nas terras dos Anifah. Perguntou-lhe com que carne esperava ela alimentar o bebé. “Que boca roubarás?”, foram as suas palavras exactas.

Raiz de Salva rangeu os dentes. Lágrimas de frustração e raiva forçaram a saída dos seus olhos ardentes.

- Miolo de Corno nunca teria dito coisas dessas.

Cereja de Engasgar assentiu secamente, olhando para a figura vergada que continuava no topo da encosta.

- Não te esqueças disso, rapariga. O Povo está a morrer um a um. Castor Pesado decretou que os bebés meninas não são necessários para a sobrevivência do bando. Culpa-nos a nós da seca e da falta de caça. Olha em volta. Vês algum brilho nos olhos do Povo nos dias que correm? Estamos a desaparecer como o fumo de um fogo velho.

E Cereja de Engasgar, com um estalido dos lábios, dirigiu-se para a sua tenda bem gasta pelo tempo e manchada pelo fumo.

Raiz de Salva lançou um último olhar para onde Corça Dançante continuava agachada. Até mesmo dali podia ver os ombros dela subirem e descerem de dor. Quando se virou para partir, o seu olhar cruzou-se com o de Castor Pesado, sentado na profundeza sombria da sua tenda. Os olhos do Sonhador de Espírito brilharam de promessa.

“Tal como o fumo de um fogo velho”, repetiu ela para si mesma.

Pequeno Dançarino ficou a ver Castor Pesado sair do campo. O homem caminhava com toda a calma, afastando-se das tendas e do Rio Lua, dirigindo-se para as encostas cobertas de arbustos de salva que levavam aos terraços mais acima.

- Vai lá acima para Sonhar. Chama o búfalo. - Dois Alces disse as palavras sem se dirigir a ninguém em particular. O ancião estava em frente da tenda e as suas velhas mãos transformavam um bocado de sílex córneo numa excelente ponta de dardo. Sorria, feliz, ao sol. - Um bom homem, Castor Pesado. Afugentou o fantasma a noite passada. Ele purifica o Povo.

Fantasma? Era eu o fantasma, ancião. Que raio de Sonhador de Espírito! Pequeno Dançarino desviou o olhar e reparou na mãe que se servia de umas varas para tirar pedras do fogo de cozinha. Deixava-as depois tombar dentro da bolsa suspensa para fazer ferver o caldo feito dos últimos restos de carne seca ao sol. Depois daquilo, só lhes restaria comer as peles destinadas a fazer mocassinas e coberturas de tenda. Comida de fome.

Pequeno Dançarino aproximou-se lentamente da tenda, sentindo as tripas a mexerem-se. Mirando as árvores, recordou a emoção de caçar ovos nos ninhos dos pássaros. Mas agora não havia ninhos com ovos num raio de dois dias de marcha para norte e para sul ao longo do rio. Mesmo assim, Castor Pesado não transferia o campo para um novo sítio. Em vez disso, prometia chamar o búfalo... e matava bebés.

O horror do caso iria perdurar. O buraco vazio dentro de si comia-o e tentava imaginar o que lhe doía mais: a fome ou o que sentira quando Castor Pesado lançara a Trouxa de Lobo para a escuridão. Nada voltaria a ser como dantes.

Agachou-se perto da tenda, espreitando lá para dentro, vendo o rosto magoado de Dois Fumos que embalava a Trouxa de Lobo. Uma pessoa com a morte na alma podia ficar assim: abatido, parado, horrorizado perante o futuro.

- Pega num corno e enche-o de caldo - disse a mãe, interrompendo os seus pensamentos.

Ele assim fez, espantado com a água que sentia dentro da boca. Mirou com curiosidade a cobertura da tenda, recordando o sabor amargo do Inverno quando tinham praticamente morrido de fome antes de o pai, Touro Esfomeado, ter levado os caçadores a matar uma pequena manada de búfalos. Já lhes tinham chegado notícias de que as fêmeas tinham poucas crias junto delas.

- Em que estás a pensar?

Olhou para a mãe e viu-lhe uma profunda preocupação no olhar.

- Este Castor Pesado acabará por matar o Povo. Devíamos partir. Ela nada disse enquanto pegava num segundo corno e o mergulhava no caldo.

- Leva isto ao tresmalhado.

Pequeno Dançarino cumpriu a ordem, tendo cuidado para não entornar nada ao gatinhar para dentro da tenda. Dois Fumos nem sequer levantou os olhos. Pequeno Dançarino colocou o líquido quente ao lado dele.

Quando voltou para fora a mãe disse-lhe:

- Sabes bem que Castor Pesado não gosta de nós. Que esperavas tu provar a noite passada?

Pequeno Dançarino olhou para o chão, brincando distraidamente com os dedos.

- Aquilo eras tu, não eras? Ele permaneceu em silêncio.

- Um rapaz não fica com a camisa cheia de pó como a tua a menos que ande a rastejar por aí. Nem sequer paraste para pensar no efeito que poderias ter no Poder?

- Não. Mas a voz não me...

- Não quero ouvir nada sobre vozes. Corça Dançante podia ter morrido a noite passada. O bebé podia... - soltou um suspiro, um som que mais lembrava um rasgar da alma. - Bem, não importa.

- O Poder estava correcto.

Podia sentir os olhos dela a perfurarem-no.

- E que sabes tu do Poder, rapazinho? A boca dele ficara seca.

- Sinto-o. Sinto a Trouxa de Lobo. O Poder de Dois Fumos resultou. Soltou o bebé. Senti isso.

Sentia ainda o olhar penetrante da mãe.

- E que mais sentiste tu?

Engoliu em seco, o coração a bater mais depressa.

- Senti Castor Pesado. É um homem mau. Errado. E, então, quando ele atirou fora a Trouxa de Lobo...

- Sim?

- Fiquei... agoniado.

- Continuas com mau aspecto. - Entregou-lhe outra malga. Pára de andar por aí a espreitar tudo.

Ao sentir a inquietação na voz da mãe, Pequeno Dançarino olhou-a. O olhar que recebeu em troca deixou-o atemorizado.

A mãe correu os dedos pelos cabelos compridos e o olhar dela dirigiu-se para onde Castor Pesado subira a encosta.

- Depois de beberes a sopa, o melhor que tens a fazer é ir domir um pouco. Ajuda a diminuir a fome.

Assentiu com um gesto e, levantando o corno, bebeu o caldo, sentindo um aperto no estômago.

Um homem a viver sem o seu povo não vive bem - um problema em que Sangue de Urso meditava, contemplando os restos das suas mocassinas. Meteu distraidamente um dedo no sítio em que a base do dedo abrira um buraco na sola. O casaco de pele de búfalo que lhe pendia dos ombros estava velho, puido nos sítios em que os pêlos tinham caído. Falta de habilidade sua a curtir: não compreendia como se devia travar a pelagem durante o processo.

Um homem sozinho só podia guardar aquilo que ele e o seu cão pudessem carregar. Nos últimos anos, uma peça abatida significava um festim. Tendo começado como um caçador credível acabara por polir essas suas capacidades até poder atravessar a salva tão silenciosamente como a sombra de um mocho. Apesar disso, um homem sozinho não conseguia preparar uma armadilha, nem empurrar os animais, nem utilizar o benefício do número de caçadores para rodear uma manada. Em vez disso, tinha de avançar, rastejando, aproveitando a mínima protecção do terreno e do vento em seu benefício. Os anos tinham-lhe ensinado a usar com esperteza a emboscada e a dissimulação.

Mesmo assim, as costelas viam-se por debaixo da pele. Os músculos do corpo estavam sempre cansados. O protesto da sua barriga podia ser apaziguado após um abate mas, em poucos dias, a carcaça estaria reduzida a ossos. A fome perseguia-o como um fantasma sempre a espreitar por cima do ombro. Esmagava os ossos para aproveitar o tutano e fervia a gordura dos fragmentos. Tirava os fragmentos que ficavam a boiar e bebia o líquido, cuspindo as lascas aguçadas que lhe entravam na boca.

Do local onde estava sentado, no topo de uma colina, podia contemplar a vasta bacia do Rio de Lama e as Montanhas do Búfalo, recordando as tendas quentes e acolhedoras do seu Povo. Havia no seu coração um vazio que batia em sincronia com a respiração.

Conduzira o grupo de caçadores que perseguira Água Límpida. A reserva que se lia nos olhos deles perseguira-o toda a caçada. À noite murmuravam entre eles, desmoralizados pelo roubo da Trouxa de Lobo. A expressão de cada homem reflectia os pensamentos dentro dele: “A Trouxa de Lobo deixara os Mão Vermelha. O homem que nos dirige fê-la partir. Este homem, este Sangue de Urso, matou o Homem de Espírito. Ele quebrou o Poder do Povo.”

Claro que não tinham conseguido encontrar Água Límpida e Dois Fumos. Os corações deles tinham perdido a chama. Um a um o grupo tinha desaparecido na noite, regressando aos campos, falando de falhanço e derrota. Água Límpida, ao partir, levara com ela a alma dos Mão Vermelha.

- Hei-de encontrá-la! - prometeu ele. - Um dia hei-de encontrar a Trouxa de Lobo. E, quando o fizer, regressarei. Estão a ouvir-me, meu Povo? Regressarei aos Mão Vermelha... e levarei a alma que Água Límpida e Dois Fumos nos roubaram.

Até lá não poderia regressar. Sentia um arrepio só de pensar nos olhos deles; era de todo insuportável a forma como olhavam para ele.

Erguendo o olhar para a infinita abóboda azul do céu, Sangue de Urso levantou-se, abanou a cabeça e sacudiu um punho bem alto. E jurou, virando o rosto para o sol ofuscante:

- Peço-te, pelo meu sangue e pela minha alma, que honres o meu pedido. Dá-me a Trouxa de Lobo! Dá-me um sinal... uma maneira para a encontrar! Faz isso, Sábio Lá em Cima, e me humilharei perante ti. Ouve-me. Ouve o meu pedido. Daria a minha vida pela Trouxa de Lobo. Daria tudo aquilo que me é querido!

Instalou-se uma calmaria, o vento parou, as folhas de salva ficaram em silêncio nos arbustos. Nem sequer o chamamento da cotovia do prado se intrometeu no silêncio.

- Ouve-me! - A boca aberta, enfrentou de olhos meio cerrados o brilho solar. Tirou do bolso a faca de sílex afiado. Agachou-se e colocou a mão esquerda sobre uma pedra arredondada de quartzite, olhando o ara baixo apenas o suficiente para centrar a lâmina afiada sobre a última articulação do dedo mindinho.

O corte da lâmina foi gratificante. O sangue quente que cobriu a lâmiina fez o seu corpo trémulo ser percorrido por uma onda de excitação. Errou os tendões e os ligamentos, o rosto duro como madeira seca por um raio, cortando o último bocadinho de pele ainda agarrada.

Ignorando a dor, pegou no bocado de carne que ficara sobre a pedra ensaguentada e ergueu-o.

- Uma oferta de mim mesmo! Com a minha carne te ligo a mim! Leva de mim o que quiseres, mas dá-me a Trouxa de Lobo!

Com toda a sua força atirou aos ares a ponta o dedo mindinho, perdendo-o no clarão da luz.

Ficou estonteado por um instante, a visão turva. Os raios do sol brilhavam por entre as lágrimas que lhe cobriam os olhos, fazendo a luz estilhaçar-se em todas as cores do arco-íris. Durante um instante, a imagem poderia ser a de um homem, um homem de luz que o olhava, pesando as suas palavras. Piscou os olhos: a imagem persistente do homem solar continuou em escuro nas suas pálpebras. Quando abriu os olhos, dois fios de água percorreram-lhe a face e apenas viu o círculo demasiado radioso do sol.

Uma brisa secou-lhe os sulcos de lágrimas do rosto. Um gafanhoto saltou no ar, soltando o som típico. Uma ave trinou num arbusto perto dele.

O Mundo do Espírito tê-lo-ia ouvido? Após todos os seus anos de descrença, teria acontecido qualquer coisa? Ouviu e sentiu o gotejar do sangue sobre a mocassina. Olhou e ficou a contemplar, absorto, o dedo pulsante.

Teria acontecido qualquer coisa? Ou passara-se tudo dentro da sua mente?

Por mais que procurasse, não conseguiu encontrar a ponta do dedo.

Dor... dor... dor...

Dois Fumos não se sentia tão alquebrado e dorido desde aquele dia há muito passado. Oito longos Verões se tinham passado desde que ele e Água Límpida haviam fugido de Sangue de Urso e do Povo da Mão Vermelha. Naquele momento sentia a alma encarquilhar-se como se queimada pelo fogo.

Pequeno Dançarino dormia do outro lado da tenda, soltando dos lábios sons abafados que faziam eco dos seus sonhos torturados. Sim, ele sabia. Nascido sob a Trouxa de Lobo, Pequeno Dançarino compreendia o horror do que sucedera. O Poder da mãe vivia forte dentro dele, era quase uma presença pulsante que pedia constantemente alívio.

- E eu fiz uma promessa sobre a Trouxa de Lobo - sussurrou Dois Fumos.

Acariciou a Trouxa sagrada nas suas mãos, ferido pelo ultraje perpetrado contra o objecto sagrado à sua guarda, assustado com a retribuição futura que sabia estar logo após o horizonte. Podia senti-la, pesada e poderosa no ar como uma tempestade iminente.

A responsabilidade era dele. Piscou os olhos, fatigado, recordando o momento em que Corça Dançante atirara a criança para o terraço rochoso. Uma criança salva, uma criança tomada. Seria tudo? A Trouxa de Lobo vilipendiada não pediria mais? Nenhuma outra retribuição terrível por ele ter falhado?

Da última vez fora a sua perna e a vida de Água Límpida - que haviam pago pela sua incompetência.

Regressou ao dia, oito Verões atrás, revivendo a dor...

Sendo apenas um tresmalhado e uma Mulher de Espírito não tinham nada que preparar uma armadilha daquelas. Os caçadores experientes eram capazes de ler o bisonte e de compreender as suas atitudes. Água Límpida localizara a pequena manada. A ideia dele fora prender os animais entre as paredes do arroio, junto do qual pastavam.

Empurrá-los para lá fora fácil, tal como nas histórias contadas pelos caçadores. Tinham, com suavidade, levado os animais na direcção que queriam, os búfalos sempre fora do alcance dos dardos, até as paredes do vale os rodearem.

Água Límpida assistira, os olhos cheios de brilho, vendo os búfalos vacilar à entrada do arroio.

- Agora! - gritara ela. - Empurra-os! Assusta-os!

E ele carregara sobre os enormes animais, cheio de medo das lanças de luz que brilhavam nos seus cornos negros e compridos. Com um ar plácido, quase estúpido, os búfalos tinham vagido e andado à roda, os mais perto das paredes de terra protestando contra os vizinhos.. As moscas tinham voado daqueles pêlos encaracolados para rodopiarem no meio das espirais de pó.

A vaca, que chefiava o grupo, virara-se para o enfrentar, cabeça baixa, e ele saltara para o lado com medo. Vendo-o ceder, a vaca avançara com uma rapidez fulminante, procurando alcançar a liberdade.

Abriu os olhos e ficou a contemplar, angustiado, Pequeno Dançarino. A sua mão saiu da Trouxa de Lobo manchada e estendeu-se como se pretendesse tocar o rapaz.

A sua inexperiência matara a única mulher que amara.

Dois Fumos recordou-se de como jazera ali, sentindo uma dor que lhe dilacerava a alma. Tentara engolir mas a boca estava inchada e seca. Fechou os olhos para afastar a agonia que lhe queimava a perna. Apesar da sede, o suor escorria-lhe, quente e salgado, pelo rosto abaixo. Gemendo com a tentativa tentou de novo mover-se, cravando os dedos trémulos na poeira cinzenta do arroio. O esforço evocou lanças ardentes que lhe percorreram de alto a baixo a perna destroçada. O grito soltou-se da sua garganta como uma coisa viva e ele deixou-se tombar, inerte, no solo árido, os pulmões estalando a cada respiração. O odor rico da terra enchia-lhe as narinas. O pó do chão servia de almofada ao queixo encharcado em suor.

A criança. Tenho de regressar para junto da criança!

Dois Fumos, torturado pela dor, observou a gravilha que cobria o fundo do arroio, as pedras espalhadas pelas patas desesperadas dos búfalos enlouquecidos.

- Por minha culpa - gemeu. - Que sei eu de armadilhas para búfalo? E, sem mim, a criança morrerá... sozinha... cheia de fome. Talvez um coiote chegue antes, meta o seu focinho na trouxa, mostre os dentes para os cravar... Não, não posso pensar nisso. Tenho de regressar. Tenho. Eu sou tudo o que lhe resta.

“...Tudo o que lhe resta. - Não conseguira suportar sequer o pensamento de ver o corpo de Água Límpida. Já lhe chegava o horror que permaneceria para sempre em si. Cerrando os dentes, reuniu as forças que lhe restavam e puxou com os braços, quase vomitando quando o corpo avançou, arrastando atrás de si a perna destroçada.

Com a cabeça a rodopiar e os pulmões a rebentarem sugou o ar para acalmar a correria do coração.

- Por minha culpa.

A sua mente reviveu os momentos finais - aquele derradeiro e desesperado instante em que os búfalos carregaram sobre eles, os olhos a rolarem, com farripas de saliva prateada nos cantos das bocas. Sentira, mais que ouvira, os cascos a cravarem-se no chão, procurando tracção. A luz do sol reflectia-se nos cornos negros com a mesma clareza com que se reflectira naquele dia. Podia até cheirar o pó que rodopiava em torno das peles cobertas de pêlos castanhos e encaracolados.

Haveria de morrer com o grito lancinante de Água Límpida nos ouvidos. Subiria ao Sábio Lá em Cima ainda a reviver os esforços dela para parar a onda, a agitar a saia para assustar os animais em estouro, vendo demasiado tarde o perigo que corria, virando-se para fugir.

A imagem ficou mais lenta, como num Sonho de Espírito. As pernas de Água Límpida pareceram ficar como que tesas, as reacções mais lentas tão pouco tempo depois de ter dado à luz. Fora então que a cria de búfalo, os olhos muito abertos pelo medo, passara ao lado de Água Límpida mungindo o terror que sentia.

A enorme vaca, ao som da sua cria, cravara uma pata no chão e travara. Baixando a cabeça, os quartos traseiros baixos, fixando bem as poderosas patas de trás, os músculos salientes nos flancos, arrancara com os cornos em riste, e uma das pontas apanhara Água Límpida ao fundo das costas.

Dois Fumos, sem nada poder fazer, vira a vaca enraivecida levantar a cabeça. A ponta do corno entrara bem fundo e acabara por sair entre os dois peitos cheios de leite de Água Límpida. Os olhos dele encontraram os dela por um instante fugaz, uma comunicação de terror e incredibilidade.

Os búfalos frenéticos tinham obscurecido o resto.

Recordava-se do impacte sobre o próprio corpo, nas costas, quando procurava fugir. Depois a dor... o silêncio... e...

Recordava-se de como a vista vacilara quando recuperara os sentidos, uma miragem que dançava desfocada na frente dos seus olhos. No fundo da sua mente podia ouvir o choro de um bebé, um som que lhe magoava a alma.

Uma névoa cinzenta cercou-o, arrefecendo o terrível calor do sol sobre as suas costas, pulsando dentro dele no mesmo ritmo da dor que lhe tocava os nervos como carvões incandescentes.

Há quanto tempo estava ali prostrado, flutuando dentro e fora da consciência? Uma imagem vaga de noite, de frio e de dor perpassou por instantes na sua mente.

Algo mudara. A sua cabeça tinha sido movida. Sabia-o apesar dos raios de dor que o avassalavam. Talvez o Poder não tivesse morrido. Recordava-se de...

Dois Fumos gemeu tentando encontrar-se a si mesmo nas ondas da miséria.

- Anifah? - Reconheceu a palavra. Inimigo.

- Anifah, consegues ouvir-me?

- Eu... - A rouquidão da sua voz assustou-o.

- Bebe. Devagar.

Uns dedos quentes afastaram os seus lábios ressequidos e levaram os dentes a deixarem abrir as mandíbulas. Um fiozinho de água cobriu-lhe a língua. Lambeu, com desespero, o céu da boca. Mais água, bastante para lhe chegar à garganta, e logo a seguir estava a beber, deliciado com o líquido.

Tentou virar-se... a dor entorpeceu-lhe a mente.

- Não te mexas. A tua perna. Muito mal. Espera um bocadinho. Bebe mais.

Desta vez reconheceu a pressão sobre os lábios: um saco de água de tripa de búfalo. Sugou mais daquele precioso líquido para o seu corpo moribundo.

- Ora, agora, deixa-me ver a tua perna.

Sentiu dedos a levantarem a bainha da sua saia de tresmalhado. Um fogo branco surgiu no sítio onde os dedos lhe tocaram e soltou um grito. O vestido foi levantado mais alto e ouviu uma exclamação de espanto.

- És um homem? Com uma... Ah! Um tresmalhado!

- Tenho de voltar ao campo - murmurou ele. - A culpa foi minha. Tenho de salvar a criança. Tenho... de...

-A criança está bem. Tenho de fazer qualquer coisa a esta perna. Vai doer.

Ele gritou quando uns dedos experientes lhe avaliaram o estado da perna. O cinzento voltou a cercá-lo, arrastando-o para a escuridão... para longe da dor.

Ela salvara-lhe a perna. A anciã tratara-o enquanto permaneciam nas Nascentes do Osso do Monstro. Mais tarde, a anciã partira, regressando, pouco depois, trazendo consigo uns caçadores. Tinham-no então transportado para ali. Agora esperava, sofria e desejava, pelas altas Montanhas do Búfalo, onde crescera, encontrar um lugar num povo que não o tratasse como um animal.

Dois Fumos levantou, com todo o cuidado, a Trouxa de Lobo e colocou-ajunto ao queixo. Não sentiu nada do Poder que outrora havia nela. A cantar, lançou alguma erva-doce sobre os carvões do fogo da manhã e passou a Trouxa quatro vezes pelo fumo purificador enquanto entoava a sua devoção. Endireitou, com um cuidado reverente, os cantos da Trouxa de Lobo e embrulhou-a, com habilidade, na pele de lobo que a protegia.

Uns dedos de gelo percorriam-lhe as costas. Haviam abusado do Poder. Quem iria sofrer para restaurar os círculos? O Poder revelara-se sempre imprevisível. Quando ofendido podia atacar em qualquer lado.

Olhou com ansiedade para o rapazinho.

Trouxa de Lobo estendeu uns tentáculos subtis que rodearam a alma de Castor Pesado. Como uma névoa matinal exploraram a textura do espírito do homem. Como a Teia-de-estrelas que atravessa os céus, os tentáculos cercaram o homem adormecido. A teia começou imperceptivelmente a fechar-se, a apertar-se em torno da vida de Castor Pesado.

Sonhador de Lobo murmurou das estrelas:

- Ainda não é chegado o tempo. Ele continua a servir o nosso objectivo.

“Ele procura arrastar os seres humanos para fora do mundo que os rodeia. Dividirá o mundo. Se fosse como ele quer, os homens tornar-se-iam mais importantes que a terra, o sol, os animais... até mesmo mais importantes que as mulheres.

“Ainda não é chegado o tempo. A nossa planta ainda só deu os primeiros rebentos.

“O rapaz pode não ter ainda força suficiente. Ele pode ser o Malandro.

- A Trouxa de Lobo hesitou. - Este Castor Pesado é o mal.

“Confia nos Círculos.

“Seria tão fácil matá-lo agora, dispersar a alma dele pelas rochas e pelos fungos, fazê-la voar na poeira levantada pelos ventos.

“E serias tu a alterar as Espirais. Confia na harmonia, confia nas vias do Sábio.

O Poder da Trouxa do Lobo, com relutância, desenrolou-se da alma de Castor Pesado.

 

Cria Branca descia, devagarinho, o carreiro. Um caminho aberto por um número incontável de alces, carneiros da montanha e búfalos. Aqui e ali uma árvore caída bloqueava o carreiro, obrigando-a a rodeá-la nas suas pernas frágeis até retomar, de novo, o caminho principal.

Os animais pensavam de forma diferente dos humanos e os carreiros de caça levavam de um prado a outro. Ou a abrigos onde as árvores eram cerradas. Ou talvez a um lugar onde se podia encontrar água. Os seres humanos caminhavam usando linhas mais rectas.

Contemplou o problema e decidiu que dele se podia tirar uma lição. Quais era os mais brilhantes: o Povo, que viajava longas distâncias, e queria longos carreiros rectos pelo caminho mais curto, ou os animais, que viajavam de dia e sofriam apenas o suficiente para satisfazer as suas necessidades?

Parou num sítio onde o carreiro descia abruptamente entre o arvoredo denso. Um esquilo dos pinheiros disse-lhe qualquer coisa. Procurou e acabou por ver o animalzinho, a cauda vertical atrás do corpo.

- Vai, chug-chug tu! - resmungou.

O esquilo de imediato trepou mais um par de ramos e, batendo com as patas, protestou com ela.

Cria Branca coçou-se atrás de uma orelha, acomodou melhor o pesado fardo e soltou um suspiro. Num trilho como aquele, onde um alce ágil subiria ou desceria a correr, uma mulher idosa tinha de seguir por outro caminho.

O odor a abetos encheu-lhe o nariz assim que começou a seguir pela crista da elevação. Há quatro anos que não fazia aquele caminho que a conduziria até à bacia. Em tempos como aqueles só o Sábio Lá em Cima saberia as mudanças que teriam acontecido. Podia ser uma longa viagem.

Sanhaço, escondida nas sombras, vigiava a anciã, tentando imaginar quem seria. A feiticeira Cria Branca? Um breve lampejo de ansiedade percorreu a sua alma velha de oito anos. Que mal nos podia acontecer por vigiar uma feiticeira?

Sanhaço ficou imóvel, nem se atrevendo sequer a afastar as madeixas de cabelo que lhe tombavam sobre o rosto. Manchada e suja permaneceu estática. Aprendera bem, apesar da sua idade. Uma pessoa não se podia mexer quando estava a observar animais. Os alces, por exemplo, viam tudo; eram quase mágicos na sua capacidade de ver, cheirar e escutar. E uma vez vira-se obrigada a ficar imóvel como morta quando um urso cinzento passara ao pé dela. Dessa vez, só a brisa a salvara, soprando o odor acre do urso no nariz dela.

Mas, afinal, Sanhaço sempre soubera que era especial. Os jogos das outras raparigas não a atraíam. Desde sempre que qualquer coisa a arrastava para a mata, para saltar com graciosidade sobre os troncos polidos das árvores mortas e tombadas e trepar acima de rochas onde uma queda significaria morte instantânea.

Não havia ralhos da mãe que a segurassem em casa. Nunca, quando as árvores e os animais a chamavam.

Franziu o nariz quando a anciã desapareceu. Quem acreditaria que ela vira uma feiticeira? Decerto que nem Grilo nem Alce Encantado. Sanhaço, sem fazer mais barulho que um gato selvagem, saiu do seu esconderijo e desceu a correr carreiro abaixo em direcção ao campo, correndo como só Sanhaço era capaz de correr.

Pequeno Dançarino estava deitado, dobrado, na esperança de que o sono acalmasse as dores no estômago. A cadeia de sonhos inquietos cavava bem fundo na sua mente.

Na sua cabeça voltavam a surgir memórias daquilo a que assistira. Jamais esqueceria a imagem do bebé de Corça Dançante quando se esmagara nas pedras do rio, e, depois de um estremeção, ficou imóvel. Vira, no local onde se escondera, num arbusto de salva, a expressão torturada no rosto de Corça Dançante. E, acima de todas estas imagens, Castor Pesado sorria, divertido.

A imagem mudou. As tripas de Pequeno Dançarino deram uma volta ao som oco da Trouxa de Lobo a cair no chão irresistível.

- Não! - gritou ele, ao recordar o vazio sugante que puxara pela sua alma jovem.

- O Povo está a morrer - disse uma voz. - Tal como o fumo de um fogo distante estamos a derivar, a ser cada vez menos.

Uma velha saiu de entre as árvores, bamboleante, ajudada por uma vara. Uma tumpline segurava um fardo desajeitado sobre as costas dela, enquanto a brisa agitava para um lado e para outro as suas tranças brancas. Quando ela olhou para Pequeno Dançarino, este descobriu que os olhos negros dela estavam cheios de Poder.

Tornando a mudar, dançou e rodopiou, com o mundo a girar debaixo dele. Um homem atirou qualquer coisa aos céus, o seu rosto contorcido pela raiva. Um clarão súbito cegou-o dolorosamente.

Sentia a fome como ondas a lamber as pedras do Rio Lua. Ondas de desejo arrastaram-no, levaram-no na corrente, a rodopiar, a engolir água.

- Parem! Parem! - gritou. O nó que sentia na barriga aumentou até abranger o Povo inteiro. Ondas de fome, como tentáculos, tocavam nos homens que vigiavam nas alturas e faziam-lhe comichão nas entranhas, enquanto procuravam pistas frescas. Sofreu por todo o Povo, sentindo a fraqueza dos seus corpos, a energia que se escapulia das suas carnes.

-Alimenta-nos. Alimenta-me! - implorou ele no sonho. A dor no estômago aumentou quando o último bocado de caldo lhe entrou no sangue.

- Nós vamos. Lembra-te deste dia... por nós somos vós. Assustou-se com a proximidade da voz. Uma curiosa e estonteante sensação fê-lo ficar à deriva. Na sua língua estava um gosto, o de salva, em geral tão amarga mas agora quase doce. Baliu assustado, incapaz de formar palavras. Atemorizado, correu com pernas ligeiras. A visão do mundo à sua volta expandiu-se, estranhamente plano mas vividamente claro.

Correu, apercebendo-se de que o fazia sobre quatro pernas finas. Criatura, antílopes, cercavam-no com manchas brancas nos flancos a agitarem-se com o alarme que viam nos olhos dele. Uma fêmea, alertada, chamou-o. Sem pensar sequer correu para ela e para a segurança que ela significava.

- Nós vamos - repetiu a voz. - Nós vamos.

Estremeceu ao ser arrancado do corpo que habitava. Meio estremunhado lutou, dando pontapés, contra a pressão no ombro. Gritou e ouviu nos seus ouvidos, bem alto, o som da sua voz humana.

- Pequeno Dançarino, acorda! É um sonho mau! Acorda!

Piscou os olhos e ficou a mirar o monte de roupas na sua frente, receoso do que iria encontrar. A mãe olhava-o com uma profunda preocupação estampada no rosto tenso.

- Era um sonho. Só isso. Um sonho mau - disse-lhe ela, acalmando-o com festas num ombro.

Com esforço, como se estivesse a andar na neve funda, ele conseguiu aclarar os pensamentos.

- Sentes-te bem?

Sacudiu a cabeça, a realidade meio afastada pela imagem da cria de antílope.

- Não, não foi um sonho mau. Nós somos um. Raiz de Salva inclinou a cabeça de lado.

- Eu sei. Também tenho tido pesadelos. Depois da noite passada, tu tens...

-Não. - Olhou para onde Dois Fumos dormia com a capa que cobria a Trouxa de Lobo bem agarrada contra o peito. - Nós somos um. Os antílopes ouviram. Vêm aí. Pelo rio... estão a chegar...

Ela olhou-o com profundas rugas a cavarem-se na pele lisa da testa.

- Estou a falar a sério. Eu vi no sonho. - Sentou-se, sentindo o lado maravilhoso daquilo. - Só não consigo... não consigo...

- Explicar? - A mãe levantou um sobrolho contemplando, pensativa, a entrada da tenda. A evitar de propósito os olhos dele?

- Fiquei assustado. Mas não era mau. Não como diria Castor Pesado. Não era maléfico. Nem mau. Juro! Era... - Parou, perplexo, procurando palavras.

- Um... Não diferente.

- Vinham pelo rio? No sonho, de que lado estava o Sol? Pensou antes de responder:

- Dali. De oeste.

- E para que lado se dirigiam os antílopes?

Se o Sol estava a oeste, eles iam para a direita, logo estava a ir para... Sul.

Raiz de Salva acocorou-se, apoiando o queixo num punho.

- Se o sonho foi real... um Sonho de Espírito. Se o tempo é agora... mordiscou o lábio e acariciou as suas tranças compridas e brilhantes. O velho trilho dos antílopes fica bem perto daqui.

- Castor Pesado vai ficar muito zangado se tu caçares antílopes. Baixinho, como se falasse consigo mesma, ela disse:

- Não passa de um sonho de rapazinho. Não é um Sonho de Espírito. Mas que nos resta a não ser a esperança? - respirou fundo e abanou a cabeça. Quando se virou para ele a resignação fizera-lhe descair os ombros. - Estamos todos cheios de fome. Ele bem nos pode amaldiçoar de estômagos cheios. - Disse-o num desafio. Mas o medo espreitava nos olhos dela como um coiote na noite.

Sangue de Urso viu primeiro o Mercador. Caminhava com ligeireza pelo carreiro dos búfalos, que corria pelo fundo do vale. Vestia uma camisa pintada de cores brilhantes, de costas dobradas sob o peso de um fardo, seguro por uma tumpelina larga e ornamentada. Numa das mãos trazia uma longa vara cujo topo terminava no tufo de penas tingidas de cores garridas - o bastão de um Mercador. Seguia-o uma linha de cães, de caudas a abanar, cabeças baixas e ofegantes, cada um tendo em cima a sua própria carga.

Sangue de Urso aproximou-se com cuidado do homem. Apesar da pesada carga aos ombros, e da fila de cães de carga, podia mesmo assim ser um inimigo.

- Ho-ahh! - exclamou o homem no calão universal dos viajantes que vêm em paz.

- Ho-ahh! - repetiu Sangue de Urso. Mas sentia as hastes lisas dos seus dardos entre os dedos, apoiadas no atlatl, prontas a disparar.

O homem fez o sinal de “quem?”.

Sangue de Urso levantou a mão, de palma para a frente, dedos abertos. Depois apontou para a mão vermelha que pintara na sua camisa surrada.

- Mão Vermelha - disse o homem, sorrindo. - Eu sou Três Estrondos. Do Povo da Garça Branca, a norte do Grande Rio. Outrora, nos tempos do avô do meu avô, os Povos da Mão Vermelha e da Garça Branca eram um só. As nossas línguas não são ainda muito diferentes.

- Não. A língua não é muito diferente. - Um alívio, pois não precisaria de usar a linguagem dos sinais com todos os seus problemas. Os mercadores iam e vinham usando, quando necessário, uma técnica de sinais para trocarem a suas mercadorias. Os mercadores tinham um Poder especial. Toda a gente o sabia e aceitava. Nenhum bem poderia advir de matar ou roubar um mercador. Fazê-lo, desviava o Poder que os mercadores diziam seu e fazia-o virar-se contra o assassino ou ladrão.

Sem os mercadores nunca poderiam chegar até ali as pedras azuis do sul. As conchas do mexilhão e da ostra, do oceano ocidental, nunca poderiam ser trocadas por contas especiais. As belas ferramentas de sílex e obsidiana, os marfins de alce, as delícias secas como a língua de búfalo ou as roupas delicadamente trabalhadas nunca sairiam da sua própria área para chegarem aos povos do rio, a oriente.

Mas os mercadores faziam mais que trazer as mercadorias que as pessoas não podiam encontrar aonde viviam. Traziam também novas das terras e dos animais. Os mercadores traziam consigo informações sobre guerras e diferentes bandos de povos. Embora Sangue de Urso nunca lá tivesse estado, conhecia os oceanos de oeste e do sul através das histórias dos mercadores. Nunca encontrara um membro do Povo do Trovão, lá muito ao sul, mas sabia que eles rapavam os lados das cabeças e que o cabelo que restava estava apanhado numa longa trança, que lhes descia pelas costas. O Povo do Pai Peixe, segundo lhe haviam contado, vivia a muitas dezenas de dias de viagem para sueste e comiam sobretudo peixe porque não tinham búfalo. As histórias dos mercadores tinham-no feito conhecer muitos povos.

Três Estrondos baixou as costas e soltou-se da tumpelina, deixando a pesada carga deslizar para o chão enquanto os cães vinham cheirar o animal de Sangue de Urso. Ao primeiro rosnar, mandou o seu cão afastar-se.

- Tem sido uma longa viagem - comentou Três Estrondos, apontando para sul. - As coisas não correm bem lá por baixo. Uma série de incursões. Os búfalos estão mal. A maior parte das pessoas estão acampadas ao longo dos rios... e a maior parte deles só leva lodo. Há lugares, ao sul do Rio Lua, onde o pó sopra com tanta força que deixamos de ver. Atravessei lugares onde a areia é amontoada e levada pelo vento como a neve no Inverno. Nada cresce ali. Não há nada para comer. Cada vez que lá vou, as dunas estão maiores. - Fez uma pausa. - E que novas há por aqui?

Sangue de Urso encolheu os ombros.

- Tudo na mesma. O Povo quer chuva.

Três Estrondos inspeccionou Sangue de Urso da cabeça aos pés.

- Tem andado sozinho. - Ficou no ar a pergunta que não fizera. Sangue de Urso, ofendido, conseguiu sorrir.

- Não regressarei até encontrar uma coisa.

- Tu és Sangue de Urso.

- Eu sou Sangue de Urso. Não sabia que a minha fama se tinha espalhado.

Três Estrondos riu-se enquanto se acocorava.

- Tenho aqui uma coisa especial. Peixe seco do oceano sul. Não me sobra muito, um bocado ou dois. Partilha?

Estendeu a mão que continha uma matéria acastanhada.

Sangue de Urso aceitou o bocado e mordeu-o. Não foi capaz de decidir se gostava ou não do curioso sabor oleoso. O peixe estava há tempo demasiado no fardo, deixando-lhe ficar na boca um ligeiro sabor a ranço.

- Não é búfalo - disse o mercador -, mas é comida. Sangue de Urso agachou-se.

- Por acaso não ouviste falar de uma mulher a viajar para sul, pois não? Entre os Mão Vermelha era conhecida como Água Límpida. Deixou o meu Povo oito Verões atrás acompanhada de um tresmalhado.

Três Estrondos abanou a cabeça.

- Ouvi falar disso. Andas há muito tempo à procura?

Sangue de Urso contemplou a paisagem cozida pelo calor. Só alguns arbustos continuavam verdes. Levantou um ombro de forma casual.

- Não, não ouvi falar nada de uma mulher dos Mão Vermelha. Tenho andado para baixo e para cima. Gosto de seguir ao longo das montanhas até às terras inundadas do sul. Durante um ano sigo para sul. Depois volto para norte durante um ano, para estar algum tempo com os Garça Branca e os meus parentes. Assim que termina o Inverno, a voz chama-me e parto para sul. Nunca ouvi falar dessa mulher nas quatro viagens que fiz. O que deixa ainda muito sítio aonde procurar, a leste, oeste e norte.

- Ela tem uma coisa que pertence aos Mão Vermelha.

- A Trouxa de Lobo.

O coração de Sangue de Urso falhou uma batida.

- Afinal, tu sabes.

- Sei. E sei também outra coisa. Se calhar não precisas de procurar muito longe. Na Primavera passada acampei com o Povo do Búfalo Baixo no sítio onde o Rio Lua e o Rio Areia se juntam num só. Ouvi uns gracejos sobre um tresmalhado que come erva. Isto foi na Primavera passada, pelo que não sei até que ponto se pode acreditar nessas histórias. Bem sabes que a informação, tal como os tendões, tende a envelhecer, partir-se e desfazer-se com a idade.

Sangue de Urso franziu a testa.

- Dois Fumos costumava colher ervas. Às vezes mastigava-as mas, na maioria dos casos, metia-as no saco.

- Pode ser ele. O tresmalhado de que eles se riam apanhava ervas. Disseram que tinha com ele uma trouxa sagrada. Outra coisa de que me lembro é de que era coxo. Um búfalo que lhe tinha passado por cima da perna ou coisa parecida.

- Recordas-te do bando com quem ele estava? - O coração de Sangue de Urso batia como um tambor na Bênção. Procurou manter-se calmo, lutando contra o desejo de começar aos pulos.

- O de Castor Pesado. Normalmente, andam pelo Rio Lua. De quando em quando fazem uma incursão aos Mão Vermelha. Mas acho que vocês também fazem o mesmo.

- Nestes últimos anos não temos feito muitas incursões. O espírito do... Bem, não temos feito incursões.

Mas, se o tal tresmalhado fosse Dois Fumos, isso iria mudar.

- Não sei se sabes mas foi por isso que os Mão Vermelha e os Garça Branca se separaram, há muito tempo atrás. Uma guerra por causa da Trouxa de Lobo. Não sei tudo sobre o assunto, mas é coisa velha. Muito velha. Ainda temos lendas sobre isso.

Sangue de Urso levantou-se.

- O bando de Castor Pesado. Acampam perto do Rio Lua.

Ajudou Três Estrondos a recolocar o fardo e entregou ao homem o seu bastão de mercador.

- Não tenho nada para trocar agora. Mas talvez um dia tenha. O rosto de Três Estrondos abriu-se num sorriso enigmático.

- Boa sorte, Sangue de Urso. Espero que um dia possa comerciar contigo. Hei-de querer qualquer coisa em troca do meu peixe.

Sangue de Urso baixou um sobrolho, a pensar no tresmalhado aleijado e no Rio Lua.

- Tê-la-ás.

E, com um aceno, Três Estrondos partiu.

Sangue de Urso ficou longos instantes a ver o mercador e os seus cães avançando para norte. Verificou a sua posição: as Montanhas Altas estavam precisamente a leste. O Rio Lua não devia ficar muito mais para norte. Só precisava de atingir o rio e procurar o campo do Povo do Búfalo Baixo, onde estava o tal Castor Pesado.

Não iria levar muito tempo. Agora já não.

A Trouxa de Lobo flutuava no Sonho do rapaz. Talvez fosse ele o escolhido.

Do brilho das Espirais a voz de Sonhador de Lobo lançou um aviso:

- Tem cuidado. Demasiado Poder numa idade tão tenra e podes seguir as passadas de Castor Pesado. Não passa de uma criança.

A Trouxa de Lobo recuou, quebrando o contacto. O Sonhador de Lobo tinha razão. Devia esperar, submeter-se à grande Espiral do universo. O tempo não tinha significado. Existia agora tal como sempre tinha existido... e sempre existiria.

Mas outro ”agora” chegaria... se a criança provasse ser suficientemente forte.

 

Cruuu! O grito pareceu ficar suspenso no ar.

Raiz de Salva agitou o pau que tinha no topo uma pequena bandeira de pele branca. Estava agachada atrás de um monte de cão-da-pradaria, o rosto escondido por ramadas de salva que arrancara do chão. Os antílopes, apesar da sua capacidade para correrem mais que o vento, também tinham os seus limites. Que ela esperava usar hoje.

De momento nem era capaz de pensar no Sonho de Pequeno Dançarino... ou sequer no seu significado. Os antílopes tinham vindo tal qual ele insistira que viriam.

O corpo dela estava ao sol tão sinuoso como o de uma poderosa cobra. O seu cabelo, farto e espesso, irradiava um negro-lustroso. O seu vestido de trabalho agarrava-se bem justo ao corpo suado, acentuando-lhe a ampla curva da anca, ainda mais marcada pela tensão dos músculos, e as linhas poderosas das pernas. Com ombros largos e cintura estreita atraía os olhares dos homens. Até mesmo os homens mais velhos ficavam a olhá-la quando passava, os olhos mais brilhantes quando deles se aproximava uma fêmea com ar tão saudável e sensual. Apesar das duas crianças que dera a Touro Esfomeado mantinha o estômago liso e os seios cheios e espetados.

Do outro lado do sulco de drenagem, coberto de salva, o antílope macho estacara, mirando-a de lado. A corça continuava a aproximar-se, de cabeça baixa, cautelosa, obcecada pela curiosidade. O resto da manada observava, uns seguindo a corça, outros fazendo uma pausa para mastigar a salva.

Vá lá, todos têm de avançar. Têm de avançar!

Raiz de Salva entoou, na cabeça, a canção do antílope, receosa de a cantar em voz alta, receosa de não ter Poder suficiente para as necessidades do Povo. A memória do rosto preocupado do filho pairava na sua mente. Se conseguissem apanhar os antílopes. Se Touro Esfomeado regressasse, cantando e dançando as notícias de uma armadilha de búfalos. Se chovesse. Se... Se...

E a ameaça de Castor Pesado continuava a pairar, brilhante e assustadora, invadindo-lhe mesmo a imaginação. Maus dias, dissera ele. E eram, na verdade, maus dias.

Raiz de Salva abanou de novo o pau, fazendo flutuar a pele de cão-da-pradaria, alva como a neve.

Cruuu!, chamou a corça, aproximando-se cautelosamente dos ramos entrelaçados de salva. Já estava perto. As paredes laterais da armadilha, tão laboriosamente construída, cercavam-na de ambos os lados. Se os animais avançassem mais alguns comprimentos de corpo ela assobiaria para que fechassem a armadilha.

Raiz de Salva deixou a corça observar por uns momentos a pele antes de a agitar de novo, distraindo-a assim de olhar para o macho lá atrás. Então, a corça avançou a trote, com os restantes animais a seguirem-na. O macho, como era habitual, deixou que as corças e as crias fossem à sua frente.

Mordeu o lábio, afagando-o entre dentes fortes e brancos. Quase... só mais um bocadinho. O vento agitou um tudo-nada a pele branca, fazendo-a dançar com preguiça.

Cruuu, voltou a chamar a corça, e outros animais fizeram eco da sua curiosidade.

Os bandos de antílopes eram ainda pequenos naquela época do ano. AS corças tinham acabado de dar à luz as crias, dispersando-se para o fazer em segredo, deixando os pares de crias entre a salva para as esconder dos coiotes, lobos e águias até os novos animais serem capazes de sugar o suficiente da força das mães para correrem como o vento. Por fim, a manada começava de novo a reunir-se quando as mães procuravam a protecção de mais olhos e ouvidos.

O macho ultrapassou os arbustos que marcavam os limites da armadilha. A corça que os guiava estava agora muito próxima, de orelhas no ar, a avançar nervosamente. Até ali não fizera qualquer sinal com a mancha branca da garupa nem emitira o grito de retirada. Os flancos da armadilha estendiam-se de ambos os lados.

Raiz de Salva - com o coração a martelar - humedeceu os lábios vermelhos e encheu os pulmões. O assobio dela ecoou no vento, uma imitação perfeita do grito de um alce macho.

A corça saltou, sobressaltada, trotando com nervosismo. E, dos poços escavados na extremidade das paredes laterais, explodiram as mulheres e crianças da tribo, gritando, berrando, correndo para fechar a saída.

A corça da frente agitou, em sinal de alarme, a mancha branca da garupa e tentou escapar para o lado, indo encontrar uma parede sólida de salva entrelaçada. Estremeceu e correu sobre patas ligeiras. A manada, em pânico, seguiu-a.

Raiz de Salva esperou, de punhos cerrados, o coração a bater-lhe com toda a força no peito, enquanto cortavam a via de fuga dos antílopes. As mulheres e as crianças juntavam-se atrás da manada apavorada. E, gritando e cantando, começaram a aproximar-se e a empurrar os antílopes para o gargalo da armadilha. A corça líder virou-se e, vendo apenas uma saída, correu em disparada pela estreita passagem até ao arroio. Enquanto os antílopes passavam, Raiz de Salva estremeceu a observar os seus corpos. Segurou com firmeza na arma e sentia-se percorrida por uma excitação que mais parecia um orgasmo dentro dela.

Na poeira da sua passagem, Raiz de Salva levantou-se e correu atrás deles, os seus cabelos negros e compridos esvoaçando na confusão da caçada. Estacou na parte estreita da queda que dava para o arroio, sabendo que os antílopes só poderiam vir por ali - tinham acabado de entrar num beco sem saída de onde não poderiam escapar.

Esperou, agarrando um dardo comprido como se fosse uma lança para o caso de os antílopes voltarem para trás a correr.

- Conseguimos! - Fogo à Noite surgiu ao lado dela, um entroncado jovem de quinze anos, ágil e rápido apesar do corpo pesado, O peito dele arfava com o esforço, os dardos bem seguros na mão. Ao princípio ainda estivera hesitante, perseguido pelos avisos de Castor Pesado acerca das mulheres a caçar. Naquele momento parecia ter esquecido todas as reservas.

- És capaz de aguentar esta ponta? Talvez ficando aqui com Atira Pedras? Se os animais se escaparem vamos todos passar fome.

- Seremos capazes. É uma questão de Cantar.

Ela sorriu-lhe e deu-lhe uma palmadinha no ombro antes de trepar por um dos lados da armadilha, até ao terraço onde a erosão era visível, correndo até ao local onde os antílopes tinham ficado empilhados, quase sem espaço para darem meia volta naquela passagem estreita.

Quando os animais começaram a querer voltar para trás, Raiz de Salva aprontou um dardo e fê-lo voar com todas as forças do seu corpo flexível. O dardo, certeiro, atingiu a corça líder no corpo e trespassou-a de lado a lado. O animal tropeçou e tombou. A manada ficou encravada contra o corpo que escouceava. As crias baliam angústia e medo. Os antílopes escavaram o chão com as patas, de respirações ofegantes. Uma pequena nuvem de poeira surgiu ao mesmo tempo que Raiz de Salva armava e disparava outro dardo contra o antílope que queria passar. Apareceram outros à sua volta, gritando e rindo enquanto lançavam dardos para o espaço confinado onde estavam encurralados os antílopes. Um ou dois animais, em pânico, conseguiram trepar por cima da carnificina, seguidos por um monte de dardos.

Raiz de Salva, sem dardos, sorriu perante a pilha de animais estrebuchantes. A cara e o cabelo estavam cobertos de poeira mas havia uma canção de alegria no seu coração. Recolheu então, do lugar onde o deixara, um saco de pele cheio de instrumentos para desmanchar os animais.

Nos tempos mais próximos não seria preciso que mais nenhuma criança morresse como morrera a de Corça Dançante. Não haveria mais dores de fome a assombrarem o Povo durante as noites. Arranjar a velha armadilha fora um risco, um trabalho feito em segredo, sempre com receio de que alguém falasse. Os sóbrios avisos de Cereja de Engasgar sobre o Poder de Castor Pesado pairavam, pesados, na sua mente. Não conseguia afastar a promessa de retaliação que ele fizera na noite do difícil parto de Corça Dançante.

- Eh, és tu que começas! - gritou Engraçadinha, oferecendo-lhe a honra da primeira carne. - Foste tu que preparaste tudo isto.

Sentiu-se corar ligeiramente com o cumprimento. Sim, desafiara Castor Pesado, assumindo o risco de que aquilo acontecesse quando vira os antílopes a descer o leito do rio. A velha armadilha ficava tão perto da rota dos animais até às terras, que a oportunidade não podia ser desperdiçada. Argumentara com paixão, auxiliada pela fome nos olhos das crianças. O Povo, de início sem entusiasmo, seguira-a.

Raiz de Salva respondeu ao sorriso da mulher de Corvo Negro e desceu de um salto a margem poeirenta. Na sua frente estava a corça líder, o sangue a escorrer-lhe das narinas frementes. A ponta do dardo estremecia a cada respiração moribunda.

Raiz de Salva ajoelhou ao lado da corça e acariciou-lhe a cabeça.

- Perdoa-me, Mãe. É a lei da vida que os homens, tal como os antílopes, precisam de comer. Abençoa a carne que vamos usar. Que a tua alma possa correr como o vento para Dançar entre as estrelas.

A corça acalmou-se e as poças negras e fundas dos seus olhos encontraram os dela, como se admitisse a realidade da Teia-de-estrelas tecida pelo Sábio Lá em Cima.

Raiz de Salva ergueu a pesada pedra-martelo e, com a habilidade de uma longa prática, fê-la descer sobre o crânio da corça. Na sua mente ressoou um eco, o de um crânio de recém-nascido a estalar contra rochas quentes.

Começou então o trabalho duro, entre canções, piadas e sorrisos cheios de dentes. O Povo esventrou, cortou e guardou a carne da armadilha. Bocas esfomeadas consumiram ali mesmo os fígados, oferecendo ritos de primeira carne a amigos e ajudantes, indiferentes ao vermelho que lhes escorria pelos queixos. O sangue pintou fortes braços e pernas ao levarem os quartos para que as mulheres mais velhas os cortassem em tiras. No arroio, coberto de sombra, o ar estava cheio do ruído das pancadas das pedras cortantes misturados com risos.

- Despachem-se a cortar as tiras - dirigia a velha Cereja de Engasgar. - Com o tempo quente como está, têm de cortar bem depressa as tiras. Ponham-nas a secar em cima da salva. Se não fizerem assim, as moscas vão comer mais carne que o Povo!

Raiz de Salva endireitou as costas para acalmar a dor de estar tanto tempo curvada. Sentia o pó a ranger entre os dentes e, na língua, o gosto maravilhoso do sangue e do fígado frescos.

- Quantos apanhámos? - limpou o suor do rosto, sujando as suas feições bonitas com traços de sangue.

- Umas três dezenas de dedos. Atira Pedras e Fogo à Noite não deixaram escapar um só que fosse.

Raiz de Salva, usando a pedra-martelo, cortou ao meio uma pélvis para abrir as patas e expor a carne. Usando uma lasca afiada cortou os tendões e a pele, destruindo o sacro com a pedra-martelo e cortando depois a pele que ficara. Levantou o resto da carne para mãos ansiosas que a receberam, deixando apenas uma lama sangrenta debaixo dos restos de pêlos brancos e castanhos dos antílopes. Agarrando-se a uma mão ensanguentada saiu do arroio e ficou a piscar os olhos perante a luz do entardecer.

À sua volta a salva ficara vermelha, coberta como estava por longas tiras de carne a secar ao sol. Aqui e ali viam-se crianças a correr e a brincar, a abanar os braços para sacudir as moscas para longe da carne fresca.

- Estás a ver? Não querias acreditar em mim, mas eu sabia que eles viriam. Sentado ali na colina conseguia senti-los.

Virou-se, sorridente, para ver Pequeno Dançarino que, com um ramo de salva, procurava afastar as moscas de um arbusto coberto de carne.

- Olha! Comida! Comida para toda a gente!

- Ei! Olha para o que estás a fazer. Vê lá como abanas isso. Estás a atirar a carne ao chão. Enche-a de areia e vais ser tu a comê-la!

Pequeno Dançarino ficou sério e baixou os olhos, dedicando depois toda a sua atenção à tarefa de afastar as moscas.

Raiz de Salva riu para si mesma, sentindo o coração cheio. Sim, comida para toda a gente. Todos iriam comer. E, talvez, só talvez, Touro Esfomeado, Três Dedos e Corvo Negro tivessem conseguido uma armadilha. Ou talvez outros dos bandos que partira do Rio Lua, em diversas direcções, à procura de uma manada.

Pôs a mão em pala sobre os olhos, observando os picos das montanhas a sudoeste. A linha da neve estava mais alta do que jamais a vira no último Inverno. Perto do campo principal, o rio podia atravessar-se a vau sem que a água lhes passasse acima dos joelhos. Até mesmo os algodoeiros pareciam cheios de pó e as suas folhas novas eram de um negro mais sombrio. E, no meio de tudo isto, o vento continuava a soprar de sudoeste, um vento quente e seco que sugava qualquer humidade que porventura ainda existisse no pó.

- Raiz de Salva?

Virou-se ao ouvir aquele chamamento cauteloso e viu Cotovia do Prado a apontar para o sulco de drenagem. Viam-se três pessoas a escolherem o caminho por entre os arbustos de salva. Não teve de fixar muito a vista para reconhecer o andar bamboleante de Castor Pesado.

- Acho que é uma boa altura de partires... de te esconderes entre os ossos do arroio - observou secamente Engraçadinha.

- Não. Continua a fazer o que estás a fazer. - Raiz de Salva endireitou-se, sentindo uma impressão no estômago. - Vou falar-lhe antes de ele aqui chegar. Dessa forma, manterei vocês fora deste assunto.

- Tem cuidado - avisou Cereja de Engasgar. - Não o antagonizes. Viste bem o que aconteceu naquela noite. Não o faças ficar fulo, rapariga. Não faças nada que o leve a lançar sobre ti uma maldição. Sabes bem o que ele diz das mulheres.

- Sei. - Sentiu um aperto na garganta, uma premonição que a abafava. Com nervos de aço conseguiu caminhar com decisão ao encontro dele. O velho Dois Alces era o segundo da linha, os ombros descaídos numa postura nervosa. A mulher de Castor Pesado, Sílex Vermelho, fechava a fila, os olhos baixos no seu rosto redondo. Os lábios petulantes dela estavam cerrados numa expressão amuada.

Castor Pesado parou e endireitou-se, olhando-a inexpressivamente.

- É bom ver-te de volta, Castor Pesado. Tiveste bons Sonhos? Ele inclinou um tudo-nada a cabeça, uma expressão de desagrado a formar-se nos seus grossos lábios castanhos.

- O Sonhar não é assunto teu, mulher. E, olhando para trás de ti, pergunto a mim mesmo o que será.

A sensação no estômago dela piorou.

- Alimentar o Povo é assunto que diz respeito a toda a gente. Não me olhes dessa maneira. Tu és da metade Duas Pedras. Eu sou Coração de Lobo. Nem sequer tenho, por parentesco, obrigação de ser educada. Mas sê-lo-ei... uma vez que tu Cantas e Sonhas para o Povo. Por isso te respeito.

Um esboço de sorriso aflorou aos lábios dele mas o olhar permaneceu duro e cortante como pederneira recentemente lascada.

- Fico satisfeito por seres uma filha obediente do Povo, mulher. Se a tua piedade é tão grande, que fizeste tu aqui? Hum? Será que mataste outro antílope nosso irmão? Ah, claro, acho que foi isso. E o ritual? Cantaste? Dançaste tal como o Antílope Lá em Cima gosta de ser Dançado? - A expressão dele endureceu. - Ou talvez não o tenhas feito. Talvez tenhas feito mal o ritual... e ofendido o Antílope Lá em Cima tal como o Búfalo foi ofendido. E, se assim foi, mulher do Povo? Quem nos alimentará, a todos nós, se os espíritos dos animais subiram ao Sábio Lá em Cima e lhe pediram para impedir o Homem Chuva de Dançar água das nuvens? Que é que tu fizeste?

Ela cruzou os braços e enfrentou o olhar rubro dele, recusando-se a cair nas garras do terror.

- Alimentei a minha gente. Disse à mãe antílope aquilo que estava a fazer. Ela sabe. Eu...

- E presumo que, ainda por cima, estás menstruada. Sangue menstrual? Numa caçada? Nestes últimos tempos, sempre que há sarilho, tens de estar metida nele até ao fundo.

A memória do infanticídio da filha de Corça Dançante deu-lhe ganas para lutar.

- Embora isso não seja assunto que te diga respeito, não estou. A minha passou há duas semanas. Como bem o deves saber, Castor Pesado, pois estás sempre a verificar quando é que cada mulher entra da tenda da hemorragia. Faz parte das tuas responsabilidades como Sonhador? Ou tens outra razão qualquer?

Cuidado! Estás a perder as estribeiras. Bem sabes o que te acontece quando perdes o controlo. Engoliu em seco, tentando apaziguar os fogos de injustiça que lhe queimavam as entranhas.

Mas ele forçou um sorriso a chegar aos lábios.

- Os tempos estão a mudar, Raiz de Salva. Oh, eu conheço bem a tua linhagem. Sei o género de mulher que era a tua mãe. Impetuosa... como tu és. Acho que foi dela que herdaste isso. O teu pai nunca foi capaz de a enfrentar, nunca te ensinou maneiras que te transformassem numa mulher educada, humilde. Depois nem esperaste para apanhar Touro Esfomeado... o nome dele está bem posto. Tu nunca...

- Por que nunca me deitarei contigo? - arqueou uma sobrancelha e de imediato lamentou as palavras. - Não importa. Já passou muito tempo. Seja como for, nunca me quererias para segunda mulher.

E acabo de dizer uma das maiores mentiras da minha vida. Olha para ti, mesmo agora, quase a babares-te. E dizes tu que falas com o Mundo do Espírito?

Sílex Vermelho permaneceu imóvel todo aquele tempo, os olhos como sempre mirando o chão. Esperava estoicamente, o vento agitando-lhe as tranças negras. Uma mulher pequena que nunca dera um filho a Castor Pesado - embora tivesse as suas regras como qualquer outra mulher e passasse o tempo devido na tenda de hemorragia. Apesar de sossegada e dócil, nunca se rira das piadas grosseiras das outras mulheres. Raramente falava e, quando o fazia, dizia apenas o essencial.

A compreensão instalou-se na mente de Raiz de Salva.

Que terrível é ser-se objecto de tanta simpatia. Que vida horrorosa deve ser a dela. Imagine-se ter um marido com quem nunca nos rimos, nunca abraçamos, nunca fazemos amor com frenesim, um marido com quem nunca discutimos. Imagine-se viver uma vida inteira como um cachorrinho. De que servirá viver?

- De facto, darias uma fraca segunda mulher. - As palavras de Castor Pesado penetraram nos seus pensamentos. - E espero que não tenhas arruinado o Povo para sempre com este teu pequeno jogo.

A raiva soltou-se.

Apesar da voz dentro da cabeça que a avisava, Raiz de Salva espetou um dedo no peito dele. Saiu tudo, empurrado pelo medo que sentia nas entranhas. Tinha de responder, tinha de o fazer... ou tudo ficaria perdido.

- E onde estão os búfalos que há tanto tempo Cantas? Será que estou a ver as colinas negras com os seus corpos? Depois de tanto Cantar, Castor Pesado? Todo este tempo, o Povo tem estado a dar-te o melhor do pouco que restava para que tu pudesses passar o teu tempo a Sonhar, sem estares preocupado com a fome na tua barriga gorda! Talvez não tenhas ouvido se não o som da tua própria voz! As crianças do Povo estão a chorar!

“E que obtivemos nós? Chuva? Viste alguma esta Primavera? Não, tudo o que obtivemos foram as tuas acusações de que as mulheres estão a estragar o mundo, a matar o Povo! Não existiria já Povo se todos não estivessem a fazer tudo o que podem. Incluindo as mulheres! Tens olhado nestes últimos tempos para Corça Dançante? Vistes a dor nos olhos dela cada vez que pensa no que a obrigaste a fazer?

- Estás a ir longe de mais, Raiz de Salva. - Ele disse-o tão baixinho que ela quase não o ouvia no meio da sua tirada. O frio do medo, abafado pela raiva, voltou a imperar. Engoliu em seco. O louco ia lançar-lhe uma maldição. E tinha razão para isso desde aquela noite em que tentara possuí-la. O ridículo desgastava um homem, consumia-o... e Castor Pesado não era homem para se esquecer. - Sim, tu compreendes. Levantou o queixo e estudou-a por entre as pestanas. - Talvez fizesses coisas de mais... tomasses demasiadas responsabilidades. Acabarias por dividir o Povo quando eles devem puxar todos para o mesmo lado, Dançar e Cantar, pedir desculpa ao Mundo do Espírito Lá em Cima por todas as transgressões. Em ti vejo apenas arrogância e orgulho. Demasiado orgulho. Será isso por causa da tua beleza? Por causa do teu marido? Pensas que és melhor do que o resto do Povo?

Raiz de Salva mordeu a língua para calar uma resposta mordaz.

- Lembra-te - a voz doce dele arranhava - de que o Sábio Lá em Cima tirou os homens debaixo da terra e trouxe-os a este mundo. Um ser que rastejou para fora da terra como uma toupeia não deve ser orgulhoso.

- Estou perante o Pai Sol com tanto direito como tu, shaman.

- Mas eu Sonho os Poderes, mulher. E penso que és demasiado orgulhosa. Vá, continua, come a tua carne. Eu recuso-me a tocar-lhe, a conspurcar os meus lábios com o teu sacrilégio. Veremos até onde a tua imprudência e o teu orgulho arrogante acabarão por te conduzir.

Passou por ela e levantou os braços, gritando para que todos o pudessem ouvir:

- Antílope Lá em Cima! Vejo aquilo que a mulher te fez! Vejo o insulto aos teus filhos! Vejo o desprezo pelos meus irmãos! Sabe que eu, Castor Pesado, me recuso a saborear, comer... ou mesmo cheirar esta violação! Declaro que esta carne está pútrida e contaminada por alguém que Te despreza... e ao Povo.

E, tendo assim falado, deu meia volta com um brilho de triunfo nos seus olhos negros ao mesmo tempo que empurrava Raiz de Salva para fora do caminho e regressava ao campo.

No silêncio de espanto que se instalou, Raiz de Salva ficou parada, incrédula, incapaz de compreender porque ele agira para desperdiçar uma boa matança, uma matança limpa, desprezando a carne já nas bocas do Povo.

E, como uma grande mão que descesse lá de cima, uma escuridão desceu sobre a sua alma.

Touro Esfomeado imobilizou-se, metade de uma respiração parada dentro dos pulmões. A erva castanha mexeu-se e voltou a ficar quieta com os movimentos do ladrão naquela luz cinzenta. Inclinou a cabeça de lado para escutar, segurando com mais força na arma. A sensação da madeira polida, tão perfeitamente equilibrada no seu punho, tranquilizou-o.

As aves da alvorada tinham começado a trinar. Uma brisa ligeira tocava-lhe a pele, abafando a excitação dos ramos de salva, ainda na sombra da luz antes da alvorada, que brilhava num azul-púrpura. Já não tinha muito tempo. O ladrão escaparia sem ser punido pela sua incursão nocturna.

A erva sussurrou quando a presa de Touro Esfomeado mudou de posição. Perto, tão perto, logo ali do outro lado da salva. Touro Esfomeado testou o equilíbrio da madeira trabalhada que segurava na mão, sentindo-lhe o peso, pronto para despachar o inimigo.

Vida e morte, a velha dança continuava. Mesmo aqui, nos arbustos de salva, o maior dos jogos prosseguia sem fim. Era um jogo que Touro Esfomeado jogava muito bem. Poucos igualavam a sua habilidade com as armas ou a sua esperteza em preparar emboscadas. A presa recuava na sua frente.

Touro Esfomeado acabou a respiração, sentindo o coração bater mais depressa no peito quando os pulmões, sem ar, começaram a oprimi-lo. Servindo-se de toda a sua habilidade, levantou um pé em silêncio, avançou-o para o colocar na erva seca, delicamente equilibrando de novo o peso do corpo na ponta do pé.

Mesmo na sua frente, a erva estalou e ficou silenciosa.

Touro Esfomeado estudou cada uma das sombras, procurando descobrir a silhueta do incursor. O ar estava cheio de tensão, fazendo-lhe o coração bater mais depressa. Travou a vontade de avançar, de enfrentar no seu terreno a presa. Matar exigia paciência. A vingança seria mais saborosa se o ladrão não se chegasse a aperceber do perigo.

Avançou outro passo, os olhos inspeccionando cuidadosamente as pontas aguçadas da salva que o rodeava. Os músculos da perna tremeram ligeiramente quando tentou equilibrar-se para melhor espreitar os espaços onde os arbustos eram menos densos.

O ladrão estacou, levantou-se, pronto para fugir, a cabeça inclinada, os olhos castanhos e vivos brilhando na ténue luz.

Touro Esfomeado parou, tenso como um ramo verde de salgueiro.

O ladrão hesitou, nervoso, como se avisado por um sexto sentido.

Vai saltar! TouroEsfomeado, não tão bem equilibrado como gostaria de estar, disparou. Os músculos treinados flectiram-se com suavidade, o braço avançou quando libertou a arma. Uma só hipótese. Touro Esfomeado pôs corpo e alma no lançamento, sabendo que falhar significava uma fuga fácil para a presa.

A vara de madeira dura, curvada em L, vibrou ligeiramente, e atingiu o ladrão num ponto baixo, fazendo-o rebolar.

- Apanhei-te! - gritou Touro Esfomeado, saltando por cima da salva.

Para sua supresa, o ladrão levantou-se e enfiou-se no sítio onde a erva e os arbustos eram mais densos.

Perplexo, Touro Esfomeado baixou-se para estudar as marcas através dos olhos semicerrados.

- Uh! Talvez um pouco desviado. Partiu uma perna.

Rugindo, debruçou-se sobre o arbusto de salva, agarrando nos ramos cinzentos e dobrando-os até a raiz se partir com um som seco. Satisfeito, recuperou a vara de arremesso e colocou-a no cinto de pele de búfalo, e começou a seguir o rasto do ladrão. Usando a planta arrancada como chicote, vergastou os arbustos aqui e ali à procura da presa ferida.

- Muito bem, onde te meteste? Olha que não podes escapar. Tens uma perna partida. Sai lá daí. É melhor que seja eu a comer-te que um coiote qualquer infestado de pulgas.

Touro Esfomeado inclinou-se, espreitando um tufo de ervas, vendo o brilho de um olho castanho à luz da alvorada. A ponta rosa do focinho tremeu, fazendo vibrar uns bigodes prateados.

Touro Esfomeado enfiou o arbusto no buraco e ficou satisfeito ao ver sair pelo outro lado uma mancha castanha.

Saltou por cima dos arbustos em perseguição da criatura ferida, numa corrida em ziguezague através dos arbustos. A presa saltou para a esquerda. Touro Esfomeado apoiou um pé para saltar - mas tropeçou num tronco seco de salva que saltou, como se estivesse vivo, no seu caminho. Touro estendeu-se ao comprido mas ainda pôde ver a presa que se escapava. Frenético, avançou de gatas, soltando uma praga quando apoiou uma das mãos num monte de espinhos.

Pondo-se de pé, saltou, procurando agarrar o corpo do ladrão mas falhando. De novo, partiu em corrida atrás da pequena forma castanha e branca, partindo e estalando a salva na sua frente, enchendo o ar da sua fragância amarga.

Já tinham atravessado a maior parte do sulco de drenagem e aproximavam-se da encosta suave que conduzia ao topo arredondado. Se o ladrão conseguisse atingir as rochas, ou meter-se num buraco, tudo estaria acabado.

Touro Esfomeado estacou, derrapando.

- Perdi-te!

Inclinou a cabeça, procurando, com os seus ouvidos sensíveis, um restolhar entre as ervas. Uma cotovia dos prados trinou, logo seguida por um pisco entoando uma melodia de saudação ao Pai Sol.

Ali! Touro saltou ao escutar o som das patas. O ladrão inverteu a corrida, fazendo um círculo amplo, seguido de perto por Touro. A louca perseguição continuou, o ladrão arrastando a perna partida e escapando pelos espaços mais estreitos. Touro - condenado pelo tamanho - tinha de abrir caminho, usando a força bruta.

Quando o ladrão entrou num espaço aberto, Touro lançou-se de barriga no pó.

Rugindo a sua raiva, Touro torceu um pé e os seus dedos escorregaram no dorso da criatura ao mesmo tempo que a outra mão agarrava um cacto espinhoso. Berrando da picada e praguejando perante a extraordinária sorte da presa, Touro Esfomeado ficou momentaneamente fora de si, mergulhando de cabeça no sítio onde a salva era mais espessa, mal dando conta das arranhadelas no queixo.

Rastejando atrás do fugitivo acabou, por fim, por lhe agarrar a cauda e puxou. O cativo cravava as garras com frenesim no chão, enquanto Touro Esfomeado o arrastava.

- Apanhei-te! - gritou, vitorioso.

Touro Esfomeado levantou-se, sorridente, a presa pendurada pela cauda castanha e branca, as patas da frente estendidas, a perna quebrada pendente. Debaixo do pêlo macio, os pulmões arfavam e os bigodes estremeciam no focinho. O pêlo branco da barriga brilhava ao sol como neve, em contraste com o rosado das patas.

Touro levantou-o para o mirar bem nos olhos negros e aterrorizados.

- Comeste o resto da minha carne seca. O que não comeste mijaste ou cagaste. Para piorar as coisas, mastigaste a corda do meu atlatl até a cortar em duas! Fazer um atlatl leva o seu tempo... e é preciso colocar nele o Poder do Espírito correcto.

Os bigodes continuavam a estremecer, os olhos salientes brilhavam de terror e dor.

- Por isso aquilo que vou fazer - continuou Touro - é pagar-me. Esta noite, vamos comer-te ao jantar. Para que nos devolvas a carne seca. Que tal?

Fez uma careta perante a dor dos picos do cacto espetados na mão e agarrou o animal pelo lombo, pronto para lhe quebrar o pescoço.

O agitado cativo, sem avisar, cravou os dentes brancos e compridos na membrana de pele entre o polegar e o indicador de Touro Esfomeado, que uivou de dor e surpresa, atirando ao chão a criatura. Mais uma vez, Coiote Traiçoeiro o enganou, oferecendo um tufo de ervas macias para o ladrão cair. E, como um tiro, o animal saltou para a salva.

Touro ficou durante um segundo a olhar estupidamente para a mão, até se aperceber do que acontecera, e dar escape à raiva, correndo como um louco atrás da presa que se escapulia.

Os fios da Teia-de-estrelas começaram a aproximar-se. A Trouxa de Lobo observava a forma como o mundo mudava. Parte dela gritara quando o derradeiro dos mamutes morrera sob os dardos dos caçadores. O caminho das Espirais invadia tudo, alcançando desde as raízes das plantas adormecidas pelo Inverno até ao brilho faiscante das asas de uma mosca a voar. Que estranho que o derradeiro mamute tivesse sido uma cria órfã! Quando o Sábio Lá em Cima criara o universo, fizera tudo com equilíbrio, dor e êxtase, nascimento e podridão, calor e frio.

Agora, os Círculos estavam de novo a ficar cheios. Sonhador de Lobo esperava, vigilante no seu Sonho. Algo de novo podia surgir na Teia-de-estrelas... ou o seu novo Sonhador poderia falhar onde Sonhador de Lobo alcançara sucesso. Não importava. Se este Círculo da Espiral fosse de fome, o seguinte seria de festim.

 

O sol matinal traçava clarões amarelos no fundo do vale, enquanto Touro Esfomeado trotava, seguindo o carreiro dos veados que serpenteava entre os abustos de salva. Sem interromper o movimento das pernas ia retirando com os dentes, um por um, os picos da palma da mão, cuspindo-os para longe.

De ambos os lados erguiam-se as colinas arredondadas pela erosão, elevando-se em encostas suaves cobertas aqui e ali por arbustos de salva e um ou outro arbusto amargo. Esta caçada ao búfalo tornara-se em mais um falhanço. Tinham localizado algumas bostas - todas com anos de secas, abandonadas pelas moscas e já esbranquiçadas pelo sol. Por onde andaria o búfalo? Ao trotar, fazia balouçar um corpo castanho e branco, inerte, pendurado na mão direita.

Podia contar um dedo por cada dia desde que deixara Raiz de Salva e o campo e acrescentar três outros dedos dos pés à lista. Nunca os animais tinham sido tão poucos e tão dispersos. E se os rostos do Povo estavam com ar emagrecido quando partira...

- Ei, tu! - O grito ficou suspenso no ar matinal.

Touro parou, olhando em volta para tentar localizar o chamamento. À cautela, tirou o atlatl do cinto e um dardo comprido do arcaz nas costas. Dedos treinados colocaram o dardo na cova existente no lançador de dardos.

O atlatl aumentava a força, agindo como uma extensão do braço, permitindo a um homem catapultar um dardo três vezes mais longe do que se atirasse uma lança à mão. Sentia a falta das tiras mastigadas que lhe seguravam os dedos à vara polida.

- Quem é? - gritou.

- Aqui!

Desta vez, captou a direcção da voz. Olhou para o topo da colina, semicerrando os olhos perante o brilho do sol. Fez sombra aos olhos com a palma da mão. O corpo da sua vítima dessa manhã balouçou com o gesto.

Nos raios da manhã pode ver uma figura agachada. Agachada? De facto era a posição que tomava o Coiote Traiçoeiro quando lhe surgia a necessidade de assumir a forma humana. Às vezes, na esperança de enganar os homens, aparecia com o aspecto de uma velha de costas dobradas, ou, pelo menos, assim Touro Esfomeado ouvira dizer. A única forma de o distinguir era levantar-lhe as saias procurando um pénis e uns testículos. O Coiote Traiçoeiro nunca mudaria isso... nem quereria. Tinha demasiado orgulho nas suas partes masculinas.

Já inquieto, Touro desviou-se do trilho, vigilante, subindo com cuidado, os olhos inspeccionando tudo à sua volta. Tal como ele emboscara o pequeno ladrão também ele poderia ser emboscado no eterno jogo da vida e da morte. Onde o esperavam, no campo de caça, Três Dedos e Corvo Negro nunca dariam pela diferença - se ainda não tivessem sido apanhados.

- Aqui estou, assumindo já que é um grupo de Anifah - disse Touro a si mesmo. - A voz chamou na língua do Povo. - Mordeu o lábio, vendo com maior nitidez a figura lá no cimo. A silhueta contra o cume, esperava, horrenda, sobre umas pernas finas, com um corpo enorme. Uns frios dedos de premonição apertaram a espinha de Touro.

Isto não é nada de bom. Que diz Castor Pesado? Que há uma maldição à solta pela terra? Castor Pesado-diz que ofendemos o Búfalo Lá em Cima e Ele afastou os Seus filhos, fez que as chuvas não caiam e tornou tudo mais duro para os filhos do Pai Sol.

E isto? Será o Coiote Traiçoeiro? Ou algum espírito ainda pior? Um fantasma errante? Uma coisa que pretende apanhar-me e matar-me?

Pelas bolas penduradas do Búfalo Lá em Cima! Não tem ar de ser o Coiote Traiçoeiro! Um frio cercou o coração de Touro. Ao mesmo tempo, surgiu-lhe na mente uma memória há muito escondida.

- Não gosto do Poder do Espírito. Não tenho uso algum para tal coisa. Só dá sarilhos... mais nada. - O coração começara-lhe a bater com mais força e engoliu em seco ao olhar de novo a aparição, uma silhueta contra o sol.

Cheio de cuidado, pronto para fugir, olhou em volta, procurando um sinal de fantasma, uma marca de mal - como se soubesse o aspecto que isso tinha! Uma sensação de sarilho pairava dentro dele, picando-o como Os espinhos do cacto na mão. Reunindo coragem, chamou:

- Traiçoeiro? És tu? Coiote?

Um riso cacarejado rolou lá de cima, quase irritante pelo óbvio desprezo que comunicava.

- Coiote? Eu? - A silhueta bateu com uma mão na anca, fazendo um som audível. - Ah! É isso que ensinam aos miúdos nos dias que correm? Miolo de Corno ficou tonto com a idade ou quê?

Miolo de Corno morreu! Fumo e fogo! Será uma brincadeira de um espírito? Engoliu a custo, começando a recuar, com formigueiros de medo por todo o corpo como se fossem mil patas de formigas.

- Oh, então - chamou a silhueta, gesticulando. - Não vou descer o caminho todo até aí. Já andei de mais para isso. Preciso da tua ajuda. Ei? Que é isso? Vais fugir? - A voz soltou uma gargalhada histérica. Vou aparecer numa aldeia do Povo e contar-lhes como é que os seus jovens bravos dão meia volta e fogem de mim como o irmão coelho do lobo? Ah, ah, estou mesmo a ver!

Touro Esfomeado, um tanto envergonhado, continuou a subida, procurando nas suas memórias dos anciãos para identificar a voz. Com a luz por detrás, continuava a não ser capaz de ver quem era. Cereja de Engasgar? Não era suficientemente gorda para ser ela. Abeto Adormecido? Alta de mais. Mulher Andarilha? Talvez, mas a figura não coincide. Apesar de tudo, há qualquer coisa nela...

- Ou o Coiote a tentar enganar-me. - Mas o Coiote normalmente fazia essas coisas durante visões e Sonhos. Algumas vezes, disfarçado como uma velha de costas arqueadas, levava uma rapariga bonita a dormir. Nessa altura, o pénis dele crescia, impregnava-a e ela nunca chegava a sabê-lo.

Alguém do Clã do Latido de Cão? Se assim era, então estava muito para Oeste. Do ângulo em que estava podia ver a sua forma. A marreca não era mais que um fardo às costas. O rosto devia ter sido outrora bonito, de bochechas largas e cheias. De facto, apesar de seca e enrugada pela idade, ela ainda mantinha traços de uma beleza orgulhosa. E não conseguia afastar a sensação de que a conhecia.

Mas quem é ela?

Atingiu o topo da colina, olhando em volta, ainda inseguro, se não estaria metido numa armadilha dos Anifah - inseguro sobre uma série de coisas. O seu olhar encontrou pedras polidas pelo vento, alguma salva e uns tufos de erva, todos afagados pelas carícias da brisa matinal. Mas nenhum guerreiro estava embuscado à espera dele.

A anciã inclinou de lado a cabeça, observando-o, enquanto ele inspeccionava a outra encosta, desconfiado.

- Pelo menos, não és tolo de todo. - Fez uma careta, como se a dor escondida a incomodasse, e aproximou-se dele.

Touro ficou à espera, as palmas das mãos suadas, segurando o dardo pronto a disparar. Sabia que a vira antes. Mas o Coiote podia enganarum homem daquela maneira. Tomar o rosto de uma pessoa morta - Ou mesmo, tanto quanto sabia, de uma ainda viva. Pelo aspecto do vestido esfarrapado, a carne emaciada, podia ser uma viúva sem filhos sem ninguém que tomasse conta dela. Foi então que encarou os olhos dela e a sua alma gelou.

- Quem és tu? - sussurrou, tranquilizado pelo atlatl, firmemente seguro na mão. A madeira pulsava levemente com o espírito que ele lhe incutira na Bênção. E de que serve um dardo perfeito contra um fantasma? Se tivesse a Medicina de Cantar Fantasmas de Castor Pesado... mas não tinha.

- Não me reconheces? - Ela inclinou de lado a cabeça. Um brilho divertido assomou-lhe aos olhos negros. - Se és quem eu penso que és, rapaz, cresceste bem. És bonito.

Ele ficou espantado. Ela tratara-o por ”rapaz”!

- Eu sou Touro Esfomeado, filho de Sete Raposas e Nuvem Brilhante. O meu avô era...

- Sim, sim, sei quem és. Conheci o teu pai. Diria até que o conheci bem. Conheci o teu avô, Raposa Grande, bastante bem. - Um brilho maroto acompanhou o olhar dela que o mirou da cabeça aos pés. - De facto, conheci-o mesmo muito bem. Os caminhos do vento levam-nos a dar voltas e voltas, não é? O que uma pessoa começa acaba sempre por regressar... um dia, seja como for. A Visão estava certa. Chegou o Tempo de regresso.

Visões? Franziu os olhos, um tanto irritado, ainda inseguro. Um homem nunca sabia o que os demónios lhe podiam fazer. Ela poderia ser um espírito? E, se o fosse, seria bom ou mau?

Muito perto agora, inseguro, o coração batia-lhe como um malho de pedra em madeira verde. Preparou-se, engolindo, terrivelmente assustado. Rápido como a faísca de uma trovoada, enfiou a ponta do dardo debaixo das saias dela e levantou-as.

- Que fazes? - gritou ela, dando um salto para trás, procurando equilibrar-se com os braços, atrapalhada pelo bastão de andar.

No meio da confusão, ele baixou-se e espreitou debaixo da saia. Uma mulher.

Só a rapidez dos reflexos o salvou quando o bastão de andar desceu sobre ele num arco. Rolou de lado, sentindo o bastão assobiar mesmo ao lado da cabeça.

- Ei! Não me mates! - Tornou a rolar e o bastão de andar foi atingir

As pedras onde estivera um instante antes. Antes de ela conseguir reagir já ele se levantara, recuando.

aaa! - O grito de guerra escapou dos lábios velhos quando ela Carregou sobre ele.

- Espera! - pediu ele, fugindo. - Só estava a verificar!

O velho corpo dela já não aguentava a caça. O fardo - ainda nas suas costas - tornava-a ainda mais lenta. Sem fôlego, sibilante, o bastão de andar erguido no ar, ela soltou uns sons gorgolejantes.

Os coiotes disfarçam-se de mulheres! - explicou Touro Esfomeado.

A anciã voltou a avançar com intenções de lhe rachar a cabeça.

- Que é que tu achas?

Ele recuou para uma distância segura de mãos erguidas. A arquejar, ela parou, o queixo empinado.

- Peço desculpa! - disse ele num fôlego. - Não passo de um caçador. Tudo o que sei do Coiote foi aquilo que os Sonhadores de Espírito me ensinaram.

- Já viste... alguma vez... Coiote... com o aspecto... de uma velha?

- Não!

- Nesse caso por que é que...

- Porque ele pode fazê-lo! E se ele quer enganar alguém, que não seja a mim! Já tenho problemas que bastem!

Perante a expressão preocupada no rosto dele a anciã não lançou um novo ataque e começou a rir, até que foi interrompida por um acesso de tosse.

- Está bem - acabou ela por dizer entre duas tossidelas.

- Acredito em ti.

Touro Esfomeado respirou fundo.

- Ainda bem. Quem és?

Ela fungou, apoiando no chão o bastão.

- O meu primeiro nome humano foi Salgueiro Verde. - Soltou uma gargalhada, indicando com um gesto a região em torno deles. - Um nome que mostra bem há quanto tempo isso foi. Tu és Touro Esfomeado? Ouvi dizer que és um excelente caçador.

Touro engoliu em seco.

- Sou o melhor do meu Povo.

Ela olhou para o troféu pendurado na sua mão direita.

- Bem, se só consegues apanhar um rato da pradaria... eu cá não quero pertencer ao teu Povo. - O olhar crítico dela apreciou as arranhadelas e o desalinho das roupas dele. - E tens o ar de que foi uma caçada renhida. Foi a ti que ouvi a correr no meio da salva como um monstro com cio? Tudo aquilo por um rato da pradaria?

Sentiu-se ofendido e ergueu a cabeça, pronto para soltar a sua ira - mas a precaução travou-o. Nas velhas histórias, os homens novos e orgulhosos como ele metiam-se em sarilhos por fazer isso. O Sábio Lá em Cima transformava-os em sapos, cobras e outros bicharocos.

E depois havia a expressão daqueles olhos - um olhar de Poder do Espírito - como se ela pudesse ver a sua alma por dentro, como se ela soubesse muito, mas muito mais do que ele. E ele conhecia-a. Tinha a certeza de que a conhecia.

- Salgueiro Verde? És... quero dizer, és mesmo real... deste mundo?

- Tinha a garganta seca. Que fazia ali uma anciã?

Ela teve um sorriso matreiro que mostrou uns dentes amarelos e gastos.

- Tão real como tu. E, considerando o teu comportamento recente, um bom bocado mais esperta.

Ele corou, baixando os olhos com vergonha.

- Para onde ias tu quando te vi a andar lá em baixo? Há por aqui algum campo do Povo?

Ele apontou com o dardo para sudoeste.

- A quatro dias de marcha. Junto do Rio Lua. Três de nós, Corvo Negro, Três Dedos e eu, viemos caçar. Estava a tentar fazer um círculo para norte.

- Não tiveram muita sorte, pois não? - Virou a cabeça e cuspiu para cima das pedras. - Bem, eu encontrei sinais de búfalo. Um bando, nervoso e assustado. Acima das colinas. - Apontou por cima do ombro.

- Não fica longe. A meio dia de marcha. - Fez uma pausa. - Vieste dali? É muito perto dos Anifah.

- Eles deixam-me em paz. Onde fica o teu campo de caça? Touro apontou para leste.

- Hum! E o Povo está para o sul? - coçou o queixo. - Vou dizer-te o que vais fazer. Vais buscar os teus amigos. E encontras-te comigo esta noite nas Nascentes do Osso do Monstro.

- Osso do Monstro... Porquê nesse sítio? Quero dizer, é um sítio de Poder, onde os Gémeos Heróis mataram e comeram os Monstros. Quero dizer, tu... - Faltaram-lhe as palavras e recuou um passo.

- Ah! - resmungou ela, os lábios torcidos num humor sarcástico. As histórias são contadas assim? Heróis Gémeos? Foram homens que mataram os Monstros. Tal e qual como nós matamos o búfalo. - Fez uma pausa, contemplando com tristeza o chão pedregoso. - Oh, não sei por que isso me há-de incomodar. Mudança... tudo está em mudança, tudo roda, tudo se transforma em outra coisa diferente.

Touro Esfomeado esperava, nervoso.

- Disseram-nos para não ir para lá. Que os espíritos, como o Traiçoeiro, nos levam a alma.

Ela cravou nele o olhar.

A sério? E, se calhar, foi o mesmo lunático que vos manda espreitar para debaixo das saias das mulheres, não foi? Quem vos conta essas coisas?

Estremecendo com as palavras dela, apenas respondeu:

- Castor Pesado. Ele Sonha...

- Só me lembro dele como uma criança rabujenta. Que aconteceu? poi tocado por qualquer outra coisa sem ser mau humor?

- É um poderoso...

- Talvez. Ou enganou toda a gente, levando-os a pensar que é. Vou esperar para ver. Habitualmente, consigo ver Poder numa criança. Vejo-o nos olhos delas, na maneira como se movimentam. Onde está Miolo de Corno?

- Morreu.

A anciã lançou-lhe um olhar penetrante, cerrando os lábios.

- Quando?

- Talvez há uns três anos. Ninguém sabe porquê. Partiu uma perna que voltou a soldar-se... mas nunca deixou de lhe doer. Depois inchou, envenenada por dentro, como às vezes acontece. Castor Pesado disse que era por Miolo de Corno ter invocado espíritos maus. E que é por isso que o Búfalo Lá em Cima nos está a punir... mantendo o Homem Chuva afastado. Miolo de Corno nunca teve o Poder certo para o manter...

- Bostas e moscas, rapaz! Miolo de Corno era um Sonhador no velho sentido do Poder. Castor Pesado? Não passa de um rapaz que caça búfalos com um ramo na mão.

- Não! Isto é, nunca digas essas coisas. Castor Pesado decerto Cantará sobre ti uma maldição... talvez faça vir os fantasmas e...

- Esse verme? Amaldiçoar-me? - soltou uma nova gargalhada, divertida. - Ainda está para chegar o dia! - Parou, atingida por um pensamento. - Estou a ver... está tudo a fazer sentido. Curiosa a maneira como o Poder dos Sonhos funciona... Curioso.

Perdeu a linha de pensamento, o olhar vazio, perdido no espaço, vendo algo muito para lá de Touro Esfomeado e do topo da colina banhado pelo sol.

- Quem és tu? Já te vi em algum lugar.

- Ah? - soltou ela, espantada, a vista voltando a focar-se. - Já te disse que me chamavam...

- Quem és tu agora?

Ela sorriu-lhe, erguendo uma sobrancelha para aumentar as rugas na testa.

- Encontrámo-nos uma noite na tua tenda. Raiz de Salva acabara de perder uma criança. Um rapaz, se bem me lembro. Eu precisava de uma mãe, uma mãe saudável com leite para dar. Não me admira que não te lembres. Nessa noite, estavas muito afectado. Mal reparaste en mim.

O ar ficou-lhe preso na garganta:

- Cria Branca! Disseram que tu...

- Subi ao céu num remoinho de vento - resmungou ela. - Eu sei. Ao contrário dos corvos, que passam o tempo a grasnar sobre coisas importantes, os homens gostam de falar de coisas sem sentido.

Ele ficou abismado.

- O rapaz está a ir bem?

Touro acenou afirmativamente, recordando aquela noite, recordando a dor nos olhos de Raiz de Salva, que embalava o filho morto. Fora então que surgira, da escuridão, Miolo de Corno e a anciã com uma trouxa nos braços. Uma dádiva, dissera ela. Uma criança dada pelos Espíritos em troca de uma levada.

A preocupação dele não estava virada para velhas que surgiam na noite mas para Raiz de Salva. Tirara o filho morto dos braços dela e substituíra-o pelo vivo. E vira, espantado, como o peito de Raiz de Salva aceitara a criança. Quando se voltara novamente, já Cria Branca partira. No dia seguinte, ninguém a encontrara no campo.

Assobio de Alce, antes de partir para formar o seu próprio bando, falara-lhe de Cria Branca e do tresmalhado ferido. Ela encontrara Assobio de Alce a caçar naquelas mesmas colinas e levara-o para as Nascentes do Osso do Monstro, onde estavam a criança e o tresmalhado ferido.

Miolo de Corno fornecera mais alguns pormenores, falando do Poder de Cria Branca, de como ela vivia nas alturas da Montanha do Búfalo, onde fazia magia. Para além disso, pouco mais se sabia dela ou, pelo menos, pouco mais se sabia de que as pessoas falassem.

Cria Branca fez estalar os lábios, abanando a cabeça.

- Já chega disto. O que preciso de ti é que vás ao teu campo de caça. Pega nos teus amigos e vão ter comigo às Nascentes do Osso do Monstro. Quando lá chegarem, já terei um caldo de rato da pradaria. Poderemos então escutar a história da vossa caçada.

Touro abanou a cabeça, em concordância, a mente a girar muito depressa.

- Vão lá ter?

- Sim.

Cria Branca levantou o rato da pradaria para mirar mais de perto os olhos baços.

- O melhor caçador do Povo, hem? Até parece que te sentaste em cima dele.

Ele, sem pensar, admitiu-o:

- E sentei. Ia fugir outra vez.

Três Dedos assobiava enquanto lascava uma nova ponta de um bocado de sílex castanho-translúcido, finamente preparada. Trocara aquele material soberbo bem longe, ao norte, no Rio Faca. Com mãos experientes poliu os bordos da ferramenta com uma pedra calcária com um sulco causado por anos de uso. Testou o bordo arredondado com um polegar, abanou a cabeça, satisfeito, e tirou do bolso uma haste de veado muito polida pelo uso.

Ainda a assobiar, recostou-se na rocha e começou a tirar lascas finas e largas do sílex. Dando as suas pancadas com a habilidade de um mestre, apanhava cada lasca à medida que as soltava, deixando-as depois cair com o som típico de um trabalho perfeito. Ninguém, em todo o Povo, fazia melhores pontas. Quando Três Dedos trabalhava a pedra, a sua alma compenetrava-se na tarefa e impregnava tudo o que fazia.

Estava sentado em frente de um fogo baixo de salva. Uma pilha de ossos de coelho enegrecia ainda no centro do buraco cheio de pedras. Na periferia do acampamento estavam dois fardos e um abrigo de ramos. Aqui e ali viam-se covas no chão que marcavam os sítios de onde arrancara a salva para a fogueira. O arbusto de salva fazia uma fogueira maravilhosa. Assim que era colocado sobre as brasas transformava-se virtualmente numa tocha, lançando as chamas para o céu num rugido. Depois a fina estrutura laminar da madeira dura colapsava e as brasas ardiam dias a fio. Quando se lhe atiravam pedras para absorver e irradiar o calor, um homem podia cozinhar num fogo daqueles por muito tempo, assar carne ou até colocar-lhe em cima um palmo de terra solta e dormir quente - mesmo no tempo mais frio.

Três Dedos parou a tarefa para limpar o suor da sua testa alta e olhar para onde estava sentado Corvo Negro. Não conseguiu distinguir a figura de Corvo Negro contra o céu. Caça? Estudando a encosta, acabou finalmente por ver o amigo a descê-la entre a salva.

Três Dedos, retomando o assobiar, usou o bocado de calcário para lixar o bordo da longa ponta lanceolada e conseguir uma plataforma. Quando a plataforma ficou com a forma certa, embrulhou a ponta numa grossa pele de búfalo e tirou da bolsa a haste fina de alce. Colocando a ponta na borda da plataforma começou a tirar, por pressão, longas lascas finas, dando assim o bordo e forma finais da peça.

Acompanhando o snap-snap do seu trabalho o assobio imitava o canto da cotovia dos prados e do melro de asas vermelhas. Cantava como o tentilhão e trinava como o pisco, arrancando respostas de dentro dos arbustos altos que cercavam a drenagem mais abaixo do terraço onde haviam acampado.

- Vem aí Touro Esfomeado - gritou Corvo Negro, a sua presença anunciada por uma cascata de gravilha e pedras. - E vem cheio de pressa.

Três Dedos, a língua fora da boca com a concentração, pressionou uma pequena lasca na ponta, deixando um gume de navalha. Terminado isso é que olhou para cima.

- Cheio de pressa? Terá encontrado alguma coisa?

Corvo Negro trotava naquela sua passada desengonçada e oscilante que lhe dava o ar de ter todas as articulações soltas. Alto e magro, vivia há cerca de vinte e cinco Invernos. O rosto dele, tal como o resto do corpo, parecia ter sido esticado desmesuradamente. A sua feição mais feia era o enorme nariz adunco. As pessoas brincavam, dizendo que parecia que um enchido se lhe tinha agarrado à cara. A outra incongruidade - considerando que Corvo Negro era o melhor batedor de todos - estava na sua barriga saliente, onde o umbigo sobressaía, num corpo esgalgado.

Corvo Negro aproximou-se do saco de água, pendurado à sombra de um arbusto de salva particularmente teimoso que havia resistido a repetidas tentativas para o arrancar.

- Esperemos que assim seja. Os carreiros fazem uma sopa fraca. Quero dizer que só há pó e sinais dos búfalos do ano passado.

- Vês mais alguma coisa com ar de ser comestível?

- Só alguns passarinhos... aqueles que tu gostas de imitar. E penso que vi uns antílopes na bacia.

- Não estou a perceber. Olha-me para ali. Não há água na bacia. As ervas estão castanhas e secas. Observas o céu todo e só vês umas farripas de nuvens muito lá em cima. Há quanto tempo não chove? E nem houve neve no Inverno passado.

Enquanto falava, Três Dedos retomou o seu trabalho cuidadoso, rolando a ponta ligeiramente na mão para dar os últimos retoques ao gume.

- Há muito tempo. - Corvo Negro bebeu água. - Sabes, se isto continuar assim, vamos ter de viver de ratos da padaria e ratazanas. Achas que consegues Cantar para chamar uns coelhos?

- Já ouviste isto? - Três Dedos levantou uma sobrancelha e meteu a mão na bolsa. Corvo Negro debruçou-se, curioso, quando Três Dedos tirou de lá um tubo de osso ornamentado e soprou.

Uhhaaahh! O som ecoou no ar parado.

- Muito bem feito, não está? - Três Dedos sorriu, feliz.

- Afinal, consegues imitar o som de um coelho a morrer. Que interessa isso? Era melhor que pudesses cheirar como uma vaca de búfalo no cio.

Três Dedos voltou ao seu trabalho, encolhendo um ombro.

- Vais ficar surpreendido. Coiotes, jaritacas, texugos, doninhas, lobos e montes de outras coisas respondem ao grito de morte de um coelho.

- Excelente! A resposta para a fome nos campos. Podemos comer jaritacas e texugos. O lobo é sagrado e não pode comer-se e os coiotes sabem a... a... Bem, acho que nunca ficarei assim tão esfomeado.

Três Dedos franziu a testa a olhar para a sua ponta, levantou-a à luz, mirando de perto a superfície lascada, procurando qualquer falha que lhe tivesse escapado, qualquer fenda que tivesse causado na produção.

- Não sei. Os coelhos podem ser mauzinhos, às vezes, irem por detrás da armadilha e atacarem-te.

Corvo Negro acocorou-se, entrelaçando os dedos.

- E estás preocupado com isso? Lembras-te da armadilha de búfalo do Ribeiro da Agua Vermelha? Lembras-te quando aquele touro enorme carregou sobre o Melro a resfolegar por todos os lados? Nunca vi um homem saltar tão depressa para fora do curral como tu o fizeste! As pessoas ainda se riem da maneira como caíste com a cara em cheio numa...

- Ei! Ouve! Ainda estou vivo e inteiro. O Melro ainda não consegue respirar bem desde que o touro o pisou e lhe partiu as costelas todas.

- É verdade, mas ter-te-ias livrado de uma série de problemas se não tivesses caído com a cara em cheio na...

- Está bem! Os búfalos estavam assustados. E fazem aqueles montes sempre que estão assustados.

Corvo Negro sorriu, com um brilho nos olhos.

- Vamos lá a ver se a minha mente serve para alguma coisa. Segundo me parece, aquele não foi o único monte de...

- Também fiquei assustado!

Ambos se levantaram quando Touro Esfomeado se aproximou, ainda a trote, o peito a arfar, até parar na frente deles com um sorriso comprometido.

- Então? - gritaram Corvo Negro e Três Dedos ao mesmo tempo. Touro Esfomeado avançou e abanou a cabeça.

- Não vi caça. Mas... acho que estamos metidos num sarilho.

- Por que é que não gosto da maneira como ele diz aquilo? - resmungou Três Dedos, meio consigo mesmo.

- Que tipo de sarilho? Anifah?

Touro Esfomeado sacudiu-se, como para clarificar os pensamentos, e dirigiu-se ao saco da água. Levou-o aos lábios e bebeu uma boa mão travessa. Levou um braço à cabeça e virou-se.

- Não são os Anifah. Já ouviram falar de Cria Branca? Tudo aconteceu esta manhã... - E a história desenrolou-se.

- As Nascentes do Osso do Monstro? - inquiriu Corvo Negro, acocorado. - Cria Branca, a feiticeira, quer que nos encontremos com ela, no escuro, nas Nascentes do Osso do Monstro?

Três Dedos coçava a nuca e olhava, céptico, para Touro Esfomeado.

Sempre teve no seu juízo antes disto. E mais ainda: odeia a ideia de brincar com o Poder do Espírito. Até nega que tem maus sonhos à noite!

- Acho que tenho de ir. Vocês não precisam de o fazer. Acho que devia ter pensado nisso logo no princípio. Devia ter ido com ela. Quero dizer... podemos ficar com doença de fantasma, sei lá o quê! Não sei. Não gosto de coisas do espírito.

Corvo Negro estivera entretido a ver os padrões do fumo que se escapava do poço de fogo.

- E se corrêssemos? Talvez Castor Pesado...

- Não acho boa ideia. - As feições de Touro Esfomeado mostravam desespero. - Ela não me pareceu nem um bocadinho preocupada com ele.

- Se ela esteve assim tão perto de ti, deve ter apanhado a tua alma - decidiu Três Dedos. - Talvez tenha inalado parte da tua respiração ou coisa assim.

- O quê? Inalou a minha...

- Como é que eu sei? Não faço ideia de como é que as feiticeiras roubam as almas!

- Ei! Calma! Vocês os dois estão a tornar-se malucos um ao outro! - disse Corvo Negro, ainda junto do fogo. Inclinou de lado a cabeça, olhando para Touro Esfomeado. - Tu sabes que Salgueiro Verde e o teu avô, Raposa Grande, foram casados, não sabes?

A cor fugiu do rosto de Touro Esfomeado.

- Casados? - engoliu com dificuldade. - Queres dizer que...

- É isso mesmo que quero dizer. Lua Vermelha, a mulher a quem chamavas avó, chegou mais tarde. Salgueiro Verde deu à luz o teu paij Sete Raposas. Houve problemas e ela deixou o Povo. Deixou o teu avô, Rraposa Grande, com a criança.

- Como é que sabes tudo isso?

As feições de Corvo Negro ficaram sérias e encolheu os ombros displicentemente,

- Nem todas as famílias gostam de lembrar todas as coisas... em especial coisas que consideram embaraçantes. Raposa Grande nunca contou ao teu pai. Que nunca te contou a ti. As pessoas são delicadas: Não mencionam aquilo que a tua família não gosta que seja contado.

- Ela é minha... Não!

Corvo Negro, inclinando de lado a cabeça, fixou o olhar penetrante em Touro Esfomeado.

- Sim. É tua avó. E penso que o melhor que temos a fazer é ir até às Nascentes do Osso do Monstro e ver o que ela quer de nós.

Touro Esfomeado levantou as mãos e sacudiu a cabeça.

- Agora não, não depois do que acabaste de...

- Touro Esfomeado - lembrou sombriamente Corvo Negro. - Ela não é o tipo de mulher que tu gostasses de ver zangada contigo. Segundo as histórias, ela matou uma mulher que... Bem, matou-a, é tudo. As histórias dizem que o fez só olhando para a outra. Ao quarto dia, a mulher estava morta. Salgueiro Verde, envergonhada, partiu durante a noite.

Touro Esfomeado olhou implorativamente para Três Dedos. Que faço? Que digo?, aclarou a garganta.

- Mas, Corvo Negro, se partirmos talvez...

- Ela conhece-nos - acrescentou Corvo Negro com firmeza. Touro Esfomeado deu-lhe os nossos nomes. Ela anda à procura de um campo do Povo. Quer vocês queiram quer não estamos metidos nisto.

As palavras foram-lhe arrancadas como um coelho da sua cova.

- Nesse caso, as Nascentes do Osso do Monstro não ficam muito longe daqui, pois não?

 

Corno Solto ria e dançava com Sanhaço a persegui-lo no meio dos abetos. Alce Encantado corria atrás deles, soltando gritos de alegria. De nada servia a Corno Solto ser mais velho: ninguém corria mais que Sanhaço.

O jogo começara com dardo e arco, em que se fazia rolar um arco de salgueiro, forrado por corda de tendão, ao qual as crianças atiravam varas. O vencedor era quem conseguisse acertar mais vezes no arco com os dardos atirados. Claro que ganhara Sanhaço até que a paciência de Corno Solto estalara como uma pedra de sílex no fogo. Virara-se e lançara o dardo contra Sanhaço.

Sanhaço, ligeira de pés, esquivara-se e preparara o seu próprio lançamento. Corno Solto, conhecedor da pontaria certeira dela, fugira.

Sanhaço estava já perto dele, sentindo a força das suas pernas jovens. Travou de repente os pés e colocou toda a força do seu corpo ágil no lançamento. O dardo dela, feito de salgueiro aguçado, voou numa perfeita linha recta, atingindo Corno Solto em cheio nas costas.

Corno Solto uivou de dor e ignomínia.

Assim vingada, Sanhaço soltou no ar um grito de vitória.

Viu-o virar-se, viu a fúria nos olhos dele, viu a raiva que lhe torcia o rosto. Quase passou por cima de Alce Encantado ao dar meia volta e começar a correr, serpenteando entre as árvores. Mas ninguém conseguia correr como Sanhaço. Gritou a sua alegria ao ar tranquilo da montanha. Ele que corresse o que corresse. Nenhum homem -- nem mesmo Corno Solto - a podia apanhar.

Raiz de Salva caminhava ao crepúsculo, sentindo pulsar uma dor dentro de si. Contemplou os céus azuis que escureciam, os olhos atentos, como se deles pudesse chegar alívio. Ali, no intervalo entre o dia e a noite, o Pai Sol desaparecera e a Teia-de-estrelas permanecia obscurecida pelo lusco-fusco.

Na sua solidão, desejava desesperadamente os braços fortes de Touro Esfomeado. Mas ele estava naquela noite para norte, a caçar, procurando fazer aquilo que ela fizera. Este dilema, o problema da carne, era uma coisa que tinha de enfrentar sozinha.

Que fazer? Estacou, os punhos fechados e caídos ao lado do corpo. A brisa do fim do dia agitava as ervas ressequidas. Cada batida do coração parecia-lhe um som cavo e oco dentro do peito. O medo invadia-lhe as entranhas e um peso doloroso pesava-lhe no estômago.

O poder de Castor Pesado ultrapassava o dela - fazendo-a fazer o papel de tola e fútil. Como é que uma mulher sozinha podia enfrentar um shaman? Como é que poderia provar que actuara com correcção?

- Não posso enfrentá-lo - murmurou. E, se o fizer, fico arruinada. O meu filho ficará suspeito. E Touro Esfomeado? Que será dele? Ficará desvastado, humilhado. Pelaprimeira vez, obrigá-lo-ei a bater-me. Terá de proteger a sua honra. Só de pensar na dor nos olhos dele fê-la estremecer. Não posso agir sozinha!

E recordava ainda o desespero nos olhos de Corça Dançante. Pobre Corça Dançante, sentada sozinha, recusando-se a comer, sentada hora após hora a olhar para bem longe.

Também acabarei assim? Castor Pesado não guardava qualquer rancor contra Corça Dançante. Mas tinha-o contra ela.

O frio do entardecer cercou-a ao mesmo tempo que a calmaria. Os primeiros pontos da Teia-de-estrelas começaram a faiscar no oriente.

- Por que é que isto tudo está a acontecer? - implorou ela às estrelas nascentes. - Tudo o que fiz foi dar de comer ao meu Povo!

O vento agitava-lhe as franjas da manga, enrolava dedos refrescantes no seu cabelo, fazia-lhe cócegas no queixo.

Lá em baixo, na sombra mais profunda lançada pela crista da colina, havia uma fortuna em carne a secar em cima dos arbustos de salva. Na noite, os coiotes uivavam e ladravam, mantidos à distância pelo odor da urina humana e pelos movimentos suaves das anciãs, que guardavam a carne. Aqui e ali, ao longo do arroio, piscavm fogos como se fossem olhos cor de âmbar na noite. As pessoas sentavam-se em torno dos clarões, gesticulando, a comentar, discutir e tentar tirar algum sentido do dia que passara. As conversas deles chegavam ali acima como sussurros, nada mais que um fraco murmurar.

Pairava, pesadamente, sobre o lugar da matança uma premonição inquieta como os fumos azulados de fogueiras de Inverno numa manhã fria. Raiz de Salva engoliu com dificuldade. Os fantasmas dos antílopes abatidos enchiam o ar frio que a rodeava. Um tremor percorreu-a quando os olhares das pessoas a observavam lá de baixo, vigilantes. O poder do escrutínio deles fazia eriçar o cabelo da sua nuca.

Toda a gente esperava... por ela.

A gravilha soou debaixo de um pé ligeiro. Raiz de Salva raspava as mocassinas curtidas quando uma mulher começou a subir. Raiz de Salva preparou-se, sabendo que a decisão pairava sobre si. Por que é que a responsabilidade tinha de ser dela?

- Que vais fazer? - perguntou Cereja de Engasgar, arquejante, ainda a subir o resto da encosta. Parou na frente dela, colocando as mãos enrugadas nas costas e fazendo uma careta de dor ao endireitar-se. As articulações soltaram estalidos audíveis no silêncio. A velha mulher inclinou a cabeça, observando a mancha negra e os grupos de gente preocupada.

Raiz de Salva suspirou, limpando o sangue seco que ainda lhe cobria a mão.

- Não sei. Eles estão com medo. Ele amaldiçoou a carne. Cereja de Engasgar soltou um grunhido, sem se comprometer.

- Eu sei que não ofendi o antílope. Eu sei! Eu olhei a corça olhos nos olhos. As nossas almas ligaram-se e ela compreendeu. Eu vi! Eu sei que o antílope não invejou a carne. Eu senti a correcção da canção que Cantei dentro da minha cabeça.

Cereja de Engasgar abanou a cabeça num gesto rápido.

- Nesse caso, a carne está limpa.

- Mas que fazer com a maldição de Castor Pesado?

Cereja de Engasgar mordeu os lábios com as suas gengivas desdentadas.

- Que fazer acerca disso? - hesitou, indecisa. - Penso que ele te cairá em cima seja de que maneira for.

Raiz de Salva acenou em concordância, sentindo a alma gelar-se em torno do seu coração despedaçado.

- Não posso ganhar, pois não? Não tenho maneira de sair disto sem desperdiçar o antílope ou ofender Castor Pesado.

- Não.

- Mas que devo fazer? Diz-me o que devo...

- Não posso. Está tudo sobre os teus ombros, rapariga.

Raiz de Salva aproximou-se mais da anciã, procurando ver os olhos escondidos na sombra.

A anciã escutou-lhe a longa tirada sem pestanejar uma só vez.

- E Castor Pesado Sonhou uma nova maneira...

- Tu não acreditas no que ele diz sobre as mulheres... que são uma poluição, que é por nossa culpa que o búfalo é cada vez mais escasso.

- Ele é um Sonhador de Espírito.

- Tu conheceste muitas pessoas com Poder.

- Sim, conheci. - Cereja de Engasgar soltou uma gargalhada, que não passou de um som oco e fátuo. - Eu penso que sei o que ele é. Mas está a fugir do problema. Que vais fazer quanto a toda aquela carne lá em baixo? Vais comê-la? Vais alimentar o teu filho? Dar um exemplo?

- Eu não...

- Bostas e moscas, rapariga! Estás metida nisto! Ainda não percebeste? És tu que mandas neste momento. Tens a responsabilidade de pegar nisto pelos cornos e obrigar o Povo a agir... a tomar uma decisão. Neste momento, a carne está lá em baixo e o Povo inteiro está à espera para ver o que tu farás.

- Eu não quero isto. Eu não quero nada...

- Ora, é tudo teu. Deixa-te de lamúrias e vive com isso. A vida é uma coisa que acontece às pessoas. Aceita-a e vai em frente! Que vais fazer? Precisamos de um líder. Talvez sejas tu.

- E se eu desafiar Castor Pesado? Se ele me amaldiçoar? Eu... Ele pode matar-me.

Cereja de Engasgar cruzou os braços, perguntando num tom de voz suave:

- Acreditas nisso? Acreditas mesmo que ele é capaz de te matar? Raiz de Salva meditou nas implicações, lendo o desafio da anciã na sua postura.

- Ele é um sham an, um... - Parou, lembrando-se de Castor Pesado como sempre o conhecera. - Tu achas que ele não é capaz, não achas?

Cereja de Engasgar encolheu os seus velhos ombros magros:

- Pode. - Uma pausa. - Se tu acreditares que ele pode. Mas isso é contigo. Não sei muito sobre como é que funciona o Poder, mas sei que te podes defender dele. Sei que o podes combater. E sei também que te podes submeter... e morrer... se for essa a tua crença. Em que é que tu acreditas? Conheces Castor Pesado. Conheces o género de homem que ele é. Acreditas mesmo que o Poder chegou a ele, assim sem mais nem menos, quando Miolo de Corno morreu? - Fez estalar os dedos.

Raiz de Salva pegou numa madeixa do cabelo e torceu-a numa corda, sentindo repuxar o couro cabeludo.

- Só comecei a levá-lo a sério quando começou a ter visões.

- Ora, ora...

Raiz de Salva voltou a contemplar o céu nocturno e o tranquilizante piscar das estrelas, que começavam a cobrir a Teia-de-estrelas.

- Mas ele não poderia ter o Poder do Espírito se não o merecesse, pois não?

Cereja de Engasgar colocou uma mão sobre o braço dela.

- Não sei o que pensar. Não sei o que está a acontecer, por que é que a caça desapareceu, mas Castor Pesado sempre foi um bocado estranho. Vi-o a crescer como um adulto observa uma criança a desenvolver-se. Não sei. A mãe dele sempre o protegeu. Ela correu para o pai dele como um búfalo a pisar erva. Manteve o rapaz afastado da vida, afastado das brincadeiras com as outras crianças. Nunca o deixou correr com o bando. Sempre lutou as batalhas por ele. Sabes o que aconteceu ao pai de Castor Pesado? Partiu. Pegou no que tinha às costas e saiu da tenda. Da última vez que ouvi falar dele tinha morrido lá para o ocidente, no bando de Duas Pedras.

- Ele não é nenhum cachorrinho.

- Os homens e os cães são iguais. Bate num e ele percebe. Mantém um afastado do bando e ele nunca mais lá se integra. Nunca mais tem um lugar junto dos outros.

- Eu penso que ele é...

- Pouco certo da cabeça? - Cereja de Engasgar abriu muito os braços. - Como hei-de eu saber? Rapariga, nós perdemos muita coisa, talvez até tenhamos perdido o caminho para o Poder do Espírito. Miolo de Corno andava sempre preocupado por não entender de facto as coisas. Mas tentava compreender com todas as suas forças! Deu-se todo, mas disse-me uma vez que não tinha fogo na sua alma... e isso preocupava-o. Uma pessoa com Poder do Espírito pode Dançar com o fogo, pode Cantar as estrelas.

Raiz de Salva inclinou a cabeça:

- És capaz de imaginar Castor Pesado a Dançar com o fogo? Cereja de Engasgar riu-se quando a imagem se lhe formou na mente.

- Muito difícil. - Ficou séria. - Mas o Povo está à espera.

- O antílope também. Eu... eu quase que posso...

- Sim?

Confusa, Raiz de Salva tentou aclarar a sua mente que rodopiava.

- Não sei. Consigo senti-los. Só isso. A vaguear por aí. À espera.

- Zangados?

- Não. Apenas... bem, não é muito claro.

- Nesse caso, o melhor que tens a fazer é escolher. Comerás a carne? Desafiarás Castor Pesado? Não és a única a não gostar dele. Não olhes dessa maneira para mim. Pensa nisso. São os mais novos que andam sempre à volta de Castor Pesado. Prega de uma nova maneira: diz que, se fizermos como ele nos diz, as coisas ficarão melhores. Manda-nos deixar os velhos costumes, para seguir o caminho dele e mudar as coisas. Raiz de Salva, escuta os velhos. Nós é que nos recordamos. Tantos se separaram... Duas Pedras, Assobio de Alce, Sete Sóis... tantos que foram formar os seus próprios bandos. Nós somos como fumo ao vento, à deriva, a desaparecer. É isso que tu queres?

- Por que é que tenho de ser eu a...

- Mãe?

A voz assustou-a. Virou-se e viu Pequeno Dançarino que se aproximava.

- Sim, querido?

- Podemos ficar com a carne? Os antílopes estão todos à espera. Estão inquietos. Eu tenho outra vez fome. Gostaria muito que os pudesses sentir como eu os sinto.

Raiz de Salva, por um fugaz instante, sentiu o desejo dele. A fome que roía o seu pequeno corpo tornou-se sua. Estremeceu com o impacte. Que fazer? O medo de Castor Pesado equilibrava o desejo de sentir o estômago cheio.

E se Castor Pesado a amaldiçoasse? Sou apenas uma mulher. Como posso, sequer, enfrentá-lo?

Pairava ali uma presença, expectante. Inspeccionou nervosamente o céu, procurando a origem. Um arrepio correu-lhe a espinha vendo os olhos ardentes do filho. Lutou com os próprios pensamentos e tudo o que havia no mundo ficou imóvel, tudo ficou à espera dela.

- Ficaremos com a carne, filho. Seria mais ofensivo desperdiçar os animais que atender às palavras de Castor Pesado.

Touro Esfomeado, perdoa-me. Perdoa-me, meu querido amor, perdoa-me, por favor, por aquilo que vou fazer. Mas eu juro que nunca mais verei outro filho meu morrer de fome. Já perdi dois rapazes, não vou perder o terceiro. Nunca mais!

Cereja de Engasgar suspirou. O alívio dela era quase tangível.

Cereja de Engasgar piscou os olhos, virados para as estrelas, consciente de uma mudança, mas o filho voltou a surpreendê-la.

- Mãe? Os antílopes estão a partir. Estavam muito preocupados. Fizeste-os sentirem-se muito melhor.

- Os antílopes.

- Sim, mãe. Não os ouviste a falarem contigo?

Raiz de Salva olhou de relance para Cereja de Engasgar, desejando poder ver o rosto da anciã que mirava Pequeno Dançarino. A anciã tinha-se dobrado para melhor ver.

- Não, filho, não ouvi.

A alma dela sentia-se deslocada, uma sensação que quase a nauseava. Castor Pesado nunca poderia ignorar aquilo. Como é que ela poderia resistir? Que podia fazer para se salvar?

Castor Pesado reclinou-se no encosto de salgueiro, fumando casca de salgueiro vermelho no seu cachimbo de barro. Na sua frente o fogo era um clarão carmesim na escuridão da tenda de suar. Quando levantou a cabeça, apenas viu a ténue silhueta do tecto baixo. Meteu a mão na bolsa da água e aspergiu as pedras quentes a seu lado. Sentiu a pele enrugar-se com o calor e o vapor que delas se desprenderam.

Quente, muito quente.

- Castor Pesado? - chamou lá de fora um jovem. - Venho mesmo agora do sítio da matança do antílope. Raiz de Salva mandou toda a gente arranjar varas. Ela vai ficar com a carne e alimentar a família. Cereja de Engasgar e Engraçadinha estão a Cantar graças.

Castor Pesado sorriu para si, abanando a cabeça.

- Muito bem. Foi ela quem escolheu. Obrigado.

Ouviu, do outro lado das paredes da tenda, os passos do jovem a afastarem-se.

Para sua surpresa, sentia-se um tudo-nada magoado com o pensamento de a destruir. Depois de todos estes anos ela acabara finalmente por permitir que o seu orgulho a colocasse nas mãos dele. Nunca se sabia aonde o Poder podia levar. Nunca.

- É doidice estar a suar num tempo como este. Mas, como sabem, limpa. Limpa as confusões de dentro das nossas almas. Tenho de ir preparar-me.

Madeira Desempenada olhou para ele, acenando em concordância.

Castor Pesado gatinhou para fora da tenda onde o vento lhe secou o suor do corpo.

Caminhou até à sua tenda e entrou. Sílex Vermelho assustou-se, olhando temerosamente para ele antes de baixar o olhar. Estava sentada no lado da mulher na tenda, nua da cintura para cima. Os seus longos cabelos negros estavam colados à pele suada, ligeiramente encaracolados.

Estudou-a por entre as pálpebras meio fechadas, vendo o suor em gotas no queixo, que pingava entre os seus peitos cheios. Sílex Vermelho era, de todas as mulheres, a que continuava gorda. Ele tratava disso. Ninguém podia chamar tolo a Castor Pesado. Na sua juventude, ouvira uma conversa entre Cereja de Engasgar e Pé Branco - que mais tarde partira com Assobio de Alce depois de uma disputa sobre a liderança. Cereja de Engasgar afirmara, com saber definitivo, que as mulheres de corpo cheio concebiam melhor que as magricelas. Segundo Cereja de Engasgar, as mulheres que trabalhavam de mais, ou as que eram demasiado magras, não engravidavam quando um homem plantava a semente dentro delas. Além disso, competia a um Sonhador de Espírito ter uma mulher rechonchuda. Ter outro procedimento era dar a ideia de não ser competente como Sonhador ou Cantador. Um homem de Poder devia ter truques para melhorar as suas capacidades.

Castor Pesado puxou uma última fumaça do cachimbo, apreciando o sabor amargo da casca de salgueiro. Apesar do calor, e do corpo meio desnudado de Sílex Vermelho na sua frente, não conseguia afastar Raiz de Salva do seu pensamento. Lembrava-se dela naquela tarde, erecta, colocada entre ele o o sítio da matança, em desafio, os olhos flamejantes. A imagem estava diante dele, tão nítida que quase lhe podia tocar, traçar as curvas das ancas, mexer nos peitos cheios, que empurravam para fora o vestido de antílope.

Melhor do que ela, sempre soubera que Raiz de Salva acabaria por escolher a carne - e, por consequência, a sua perdição.

Desprezou-me. Ridicularizou-me quando a tentei Cantar para as minhas roupas de dormir. Riu-se na minha cara!

Até onde chegavam as suas memórias sempre se sentira obcecado por Raiz de Salva. Era ainda uma rapariguinha e já os olhos e os sorrisos matreiros dela o cativavam. O seu corpo ágil dava-lhe proeminência nos jogos e danças. Quantas e quantas noites ficara a contemplar, fascinado, os pés dela, esvoaçantes, magicamente vivos com a cadência dos Cantores e tambores, enquanto ela, incansável, rodopiava e bailava. Ninguém dançava com a mesma graça de Raiz de Salva.

Chegara então a primeira menstruação de Raiz de Salva. Na cerimónia que a convertera numa mulher, transformara-se numa beleza espantosa. Os homens estavam constantemente a cortejá-la, Cantando à tenda dos pais dela ao abrigo da noite, levando-lhe presentes, procurando atraí-la aos arbustos quando ela andava a fazer recados ou a trabalhar.

Castor Pesado esforçara-se ao máximo. O desejo do seu jovem coração levara-o ao ponto de a emboscar. Nessa noite quase que a forçara. O coração enchera-se de uma febre ardente quando a lançara por terra. Um homem que violava uma mulher pagava caro a sua acção. O Povo mostrava o culpado no meio do campo, despia-o e serrava-lhe a sua masculinidade com uma lasca romba de quartzite.

Se ele não sangrava até morrer - uma raridade -, as mulheres continuavam a cortá-lo até tal acontecer. Só esse sombrio facto o impedira de se satisfazer naquela noite longínqua. E, pela urina podre de búfalo, ela valia a pena.

Fechou os olhos e imaginou-se a atirá-la ao chão. Usou todo o seu peso e força para a deitar, viu os olhos chamejantes dela, viu o cabelo tombar em cascata cobrindo a terra como uma teia negra como o carvão. O rosto enraivecido dela ficaria vermelho com a fúria, a sua boca maravilhosa rangeria.

Segurando-lhe as mãos acima da cabeça, para que não o pudesse arranhar, estenderia uma mão para baixo, levantando-lhe o vestido, puxando-o bem alto até poder passar as mãos pelas suas pernas musculadas, até poder sentir a pele dela, macia como a de uma cria, contra a sua. Perder-se-ia nas curvas suaves dos seios e faria festas nos mamilos enquanto ela lutava.

Quando ela compreendesse a futilidade da sua situação, deitar-se-ia sobre ela, colocando um joelho duro entre as coxas dela, abrindo-a para ele. E, durante tudo isto, jamais deixaria de fixar os olhos negros como a meia-noite, gozando a sua derrota final.

O fogo crepitou fazendo-o regressar à sua tenda. Encheu os pulmões de ar e expirou devagar para acalmar a tensão do seu corpo excitado. Abrindo os olhos fitou Sílex Vermelho.

- O teu sangramento só virá com a Lua?

- Sim.

Acenou a cabeça, calculando. Tinha pelo menos cinco dias antes de se preocupar com a possibilidade de ela o poluir. Deitou Sílex Vermelho de costas, desapertando-lhe, com mãos subitamente desajeitadas, o cinto. Com os olhos cerrados com toda a força deu vazão à fantasia até entrar em espasmo e gemer com o final.

Respirou com força, rolando para o lado, sentindo o suor escorrer pelo seu corpo enquanto se deixava ali ficar de costas, cansado. Os olhos de Sílex Vermelho continuaram fixos no buraco de fumo, sem mostrar qualquer expressão no rosto plácido.

Castor Pesado passou a mão pelo rosto molhado para limpar o suor. Desta vez acabara. Enquanto pudesse fixar Raiz de Salva na sua mente, conseguiria sempre acabar. Se abrisse os olhos, ou se se permitisse lembrar que era Sílex quem estava por debaixo dele, a sua masculinidade desaparecia, flácida e impotente. Desta vez conseguira fixar-se na visão, fixar-se em Raiz de Salva. Talvez, só talvez, tivesse semeado naquele momento um filho. Talvez agora ficasse completo - provasse ser um homem verdadeiro.

E Raiz de Salva desafiara-o abertamente. Amanhã, a primeira coisa que iria fazer era amaldiçoá-la na frente de toda a gente.

Fagulhas, como se fossem coisas vivas, subiam em espirais no céu nocturno, rodopiando, dançando num padrão de vermelho-alaranjado contra o negro-aveludado da noite.

Touro Esfomeado, Três Dedos e Corvo Negro estavam acocorados do lado oposto de Cria Branca. As fagulhas da fogueira acentuavam as suas feições tensas. Olhavam para ela inquietos e nervosos. Três jovens assustados. Ela ria-se, divertida.

- Estão todos com ar de estarem com medo que eu salte por cima da fogueira e vos coma.

Corvo Negro engoliu fazendo a garganta subir e descer.

- Ouvi histórias a seu respeito. Cereja de Engasgar disse-nos que não era completamente humana... que à noite se podia transformar num mocho e voar até ao céu. Dizem que é capaz de falar com os animais, de falar com os...

- Fantasmas? - completou ela quando Corvo Negro não conseguiu terminar. Soltou um suspiro cansado, esticando as pernas perras, mirando o brilho do fogo. - Não, não falo com os fantasmas... mas bem gostava de o poder fazer.

As palavras dela atingiram-nos como um vento frio. Aguardaram, músculos tensos sob a pele lisa, os olhos com um brilho de inquietação, mãos prontas para as levantarem num ápice se necessitassem de fugir.

- Oh, parem com isso! Que é que tudo isso interessa? Pensam que o mundo inteiro está cheio de mal? Quem tem espalhado essa ideia de bosta? Olhem para vocês! Três homens, jovens e fortes, aí sentados e assustados de morte com uma velha frágil! - Abanou a cabeça em desprezo e eles baixaram os olhos. Cria Branca acrescentou, então, baixinho: - Olhem à vossa volta! Estão a ver as plantas? As estrelas? O próprio pó? Estão a ouvir o bacurau e o mocho? Sentem o vento? Nada disto é mau. A vida não é má... como não o são os fantasmas. Pensam que a alma de um homem muda só porque morre e sobe às estrelas?

Catalogou os rostos silenciosos na sua frente.

- Como vêem, a pergunta que têm de fazer é porquê? Por que é que a alma de um homem devia mudar depois de ele morrer?

- Se fala com os fantasmas...

- Não falo!

- Mas disse que...

- Eu disse que falaria... se pudesse. - Balouçou-se para aliviar a dor na anca. - Sim, gostaria de saber o que está do outro lado. Velhas lendas dizem que é como Sonhar. Tudo é um e um é tudo. Assim mesmo.

Estou assustada com o que podia aprender? Claro que estou! Aprender coisas é sempre uma coisa que assusta. Aprender é como caminhar na areia. Nunca se tem a certeza do passo... nunca se sabe quando o pé pode não ter apoio e levar-nos a perder o equilíbrio. Mas, se não se caminhar, não se chegará a lado nenhum, não se verá nada novo. O melhor é ficar sentado na tenda, escondido do mundo pela pele fina e morrer de fome.

Touro Esfomeado franziu a testa e havia um ar perplexo nas suas feições perfeitas. Três Dedos sugava o lábio de baixo enquanto Corvo Negro coçava a nuca.

- Agora, vamos dormir. Amanhã iniciaremos o caminho de regresso ao Povo.

Touro Esfomeado, enrolado na sua roupa de dormir, olhava fixamente o céu, bem acordado. Por que é que não conseguia acreditar na anciã? As premonições de perigo e sarilho agitavam aquele sexto sentido comum nos caçadores. Olhou, sentindo a boca seca, para onde a anciã dormia placidamente.

Um arrepio cortou o caminho pela espinha de Touro Esfomeado. Os espíritos andavam à solta pela terra Dançando por almas.

Sangue de Urso desceu as colinas que conduziam das terras altas até ao Rio Lua. A sua direita, um pouco para trás, o alto pico do Dente de Castor captou o sol da manhã. Na sua frente, o rio curvava e serpenteava ao longo da planície aluvial. Até mesmo ali as ervas estalavam debaixo dos pés. Nenhuma chuva caíra naquela terra pergaminhada.

Ali estava o rio... e uma decisão: leste ou oeste?

Lá muito no alto uma águia aproveitava as correntes térmicas, derivando sempre para ocidente. Desde muito pequeno que ouvia falar do Poder das águias. Muito bem, seguiria para oeste. Uma direção era tão boa como a outra. Além do mais, uma pessoa nunca sabia. Aquele momento de insanidade podia, no fim de contas, ter resultado. O pensamento fez aparecer uma curiosa comichão na ponta do dedo cortado.

Sangue de Urso mudou de direcção ao atingir o terreno plano e duro. Oeste. Depois de todos aqueles longos e fatigantes anos, talvez a sorte jogasse a seu favor.

Como seria maravilhoso não apenas recuperar a Trouxa de Lobo como matar o tresmalhado - e obrigar a mulher, à pancada, a seguir na sua frente até aos campos dos Mão Vermelha, para frisar bem como ela o desgraçara tantos anos atrás. Depois disso, ninguém jamais esqueceria Sangue de Urso. E, como castigo por terem dado abrigo à sua mulher fugida, organizaria uma nova guerra contra o Povo do Búfalo Baixo. Considerando o que vira dos povos da planície, nenhum deles tinha o ânimo para aguentar o ataque dos Mão Vermelha.

A Trouxa de Lobo experimentou o seu Poder. Agitou-se, recordando as mãos duras de Castor Pesado, o ódio maléfico existente no seu espírito quando atirara a Trouxa para a noite. O ódio rodopiou e aumentou dentro dela.

No campo, os homens, mulheres e crianças dormiam, as mentes torturadas por pesadelos de violência e ódio. Castor Pesado murmurou nos seus Sonhos, sentindo-se como que sufocado por um nevoeiro negro.

A Trouxa de Lobo esperava.

 

Pequeno Dançarino acordou de noite, gelado pelo orvalho que se condensara nas folhas à sua volta. A pele, sobre a qual estava deitado, tinha amolecido com a humidade. Estremeceu e sentou-se, instintivamente procurando primeiro a mãe e só depois as estrelas. Faltava talvez uma hora para a falsa madrugada - ou, pelo menos, assim lhe parecia. Era preciso prática para medir o tempo pelas estrelas. Mudavam muito com as estações.

Coçou o olho com o nó do dedo mas não conseguiu ver a mãe. A salva, no meio da sombra, continuava vergada sob o peso da carne. Dois Fumos estava deitado do outro lado do fogo. A cama que o tresmalhado trouxera para a sua mãe continuava enrolada, com o pêlo para dentro, encostada ao arbusto.

Pequeno Dançarino estremeceu outra vez, inquieto por algo mais que o frio nocturno no corpo. A noite parecia pairar, cheia de ansiedade, como as vozes dos antílopes que tinham chamado pela mãe.

Levantou-se, enrolado na roupa, e aproximou-se do brilho ténue do derradeiro fogo nocturno. Dois Fumos dormia com a cabeça coberta por um braço. O respirar suave do tresmalhado foi um alívio para Pequeno Dançarino. Dois Fumos dormia mal desde que a Trouxa de Lobo fora ofendida. Pequeno Dançarino acocorou-se junto ao fogo, colocando a pele a formar uma espécie de tenda. O calor cresceu em torno dele, acariciante, trazendo de novo vida aos seus membros enregelados, afastando o frio. Um odor pungente a fumo encheu-lhe as narinas.

O grito de um bacurau soou na noite. No meio da salva, os insectos davam estalidos e cantavam. A tensão estava no ar como um nevão de inverno a aproximar-se, gelando a alma da mesma maneira que o orvalho da madrugada lhe gelara os ossos e a carne.

Onde estava a mãe? O calor tornou-se desconfortável no seu traseiro. Voltou a levantar-se e começou a regressar ao sítio onde estivera deitado, hesitante, andando de um lado para o outro em vez de se deitar ao pé do tresmalhado.

Foi então que viu o lobo. Um enorme animal negro a caminhar no meio dos arbustos. A criatura, como um espírito, parou. Os seus olhos amarelos e fendidos captavam o brilho do fogo.

Pequeno Dançarino engoliu, assustado, olhando em volta para tentar perceber por que nenhum dos cães reagia. Os animais continuavam a dormir, inconscientes do intruso no meio do seu reino.

Voltou a olhar e encontrou os olhos do lobo, partilhando um sentimento de promessa. Depois, como se fruto da imaginação, o gigantesco animal desapareceu como um fantasma na escuridão.

Dois Fumos mexeu-se quando Pequeno Dançarino se deitou ao seu lado.

- Pequeno Dançarino? Sentes-te bem?

- Assustado. Vi um lobo. Grande e preto. Ele olhou para mim. Dois Fumos estendeu um braço para o rapazito e abraçou-o.

- Não te preocupes.

- Ouvi uma conversa. Quando estava no meio dos arbustos ouvi Mulher Andarilha e Abeto Adormecido a falar. As pessoas dizem que Castor Pesado vai amaldiçoar a minha mãe. Que é que isso quer dizer? Que vai acontecer? As crianças pequenas passam o tempo a dizer que amaldiçoam os outros... e, às vezes, pedras, serpentes e escorpiões. Mas é diferente quando um Sonhador de Espírito amaldiçoa, não é?

- É diferente.

- Que nos acontecerá se Castor Pesado amaldiçoar a minha mãe?

- A ti, nada. Provavelmente, ele nem sequer a amaldiçoará. - Dois Fumos acrescentou uma frase em anifah. - O Sol nasce, o Sol põe-se.

- Queres dizer que não podemos alterar o que irá acontecer? Como o nascer do Sol?

- O teu anifah está a melhorar de dia para dia.

- Por que me fazes falá-lo? - Pequeno Dançarino franziu a testa.

- Dois Fumos...

- Sim, pequenino?

- Tu não gostas de estar aqui, pois não?

- Que queres dizer? Tenho comida. Tenho uma tenda quentinha. A tua mãe e o teu pai tratam-me bem. Tenho-te a ti para me acordares no meio da noite...

- Mas ouvi dizer que às vezes... bem, os homens te ofendem. - O rapaz sentiu o amigo ficar tenso mas continuou com decisão. - E as pessoas dizem piadas a teu respeito e sobre o que fazes com as tuas partes privadas. Já vi as outras crianças a provocarem-te e a fazerem pouco de ti por usares um vestido. Isso tudo dói, não dói?

- Não devias estar a dormir? Foi um dia bem comprido e tu, provavelmente,...

- Isso não é maneira de responder a uma pergunta, pois não? Fazer outra pergunta?

- Acho que não.

- Mas gostavas de voltar para os Anifah, não gostavas? Dois Fumos engoliu audivelmente.

- Gostava.

- Por que não vais? Penso que as coisas por aqui vão bastante mal. Ouvi dizer que os Anifah ainda têm búfalos nas montanhas. Talvez não tenham um Sonhador de Espírito que amaldiçoe as pessoas boas como a minha mãe. E não te ridicularizariam. E os homens não te apanhariam quando colhes as tuas plantas, atirando-te ao chão para te levantar a saia...

- Chiu! Agora dorme. Amanhã vai ser um longo dia e...

- Dois Fumos? Não terás outra maneira de evitares responder do que tentar-me fazer pensar noutras coisas?

O silêncio prolongou-se até que, finalmente, o tresmalhado disse baixinho:

- Há muito, muito tempo, fiz um erro... e uma promessa. Prometi uma coisa sobre a Trouxa de Lobo.

- Que fizeste? Não foi coisa má. És uma pessoa boa. Que prometeste?

- Sabes que não te posso responder. Não é de ânimo leve que se fala de promessas e Poder. Talvez um dia o faça, se fores bonzinho. Entretanto, não te posso deixar, pelo menos por uns tempos. E, é verdade, Pequeno Dançarino, preferia estar entre os Anifah, que compreendem e apreciam o Poder de um tresmalhado. Não me desprezam por preferir o amor de um homem ao de uma mulher. Para eles, um tresmalhado é uma coisa boa, uma coisa que traz sorte.

- Mas como é que surge um tresmalhado?

Dois Fumos, metido nas roupas, encolheu os ombros.

- Não sei. Talvez a semente do homem se plante na matriz da mulher de forma diferente. Talvez o Poder toque na alma... a abençoe... quando ela procura um lar no corpo de um bebé. Sabes que os homens e as mulheres pensam de maneira diferente. Os tresmalhados então no meio... são diferentes, nem homem nem mulher. Apenas tresmalhados. Entre os mundos, mas separados. Só que o Povo do Búfalo Baixo não me aceita como um ser humano. Para eles eu sou outra coisa... um monstro a recear.

- Se calhar, o melhor era nós fugirmos todos para os Anifah...

- O teu pai não gostaria da ideia. Nem a tua mãe quereria ir. Os teus avós foram mortos pelos Anifah. Achas que Touro Esfomeado e Raiz de Salva quereriam viver com as pessoas que fizeram isso? Sabes bem como ralham quando te ensino a língua dos Anifah. Sentir-se-iam pior entre os Mão Vermelha do que eu me sinto aqui. Queres que isso aconteça?

- Por que é que me ensinas a falar Anifah? E todas aquelas histórias sobre o Primeiro Homem que trouxe toda a gente de debaixo da terra? pensas que um dia serei anifah?

De novo, o silêncio se prolongou antes de Dois Fumos responder:

- Talvez seja a minha forma de manter tudo isso vivo. Talvez esteja a pagar pelos meus erros. Agora dorme.

A mente de Pequeno Dançarino era um torvelinho de perguntas. E os Anifah? E a sua mãe? E Castor Pesado? Que aconteceria se o Sonhador de Espírito amaldiçoasse a sua mãe? Ela morreria mesmo?

Começou a pensar em tudo aquilo, sabendo perfeitamente que Dois Fumos não queria falar em tal assunto. Um medo começou a crescer-lhe na tripa. Castor Pesado nunca mataria a mãe dele. Por que haveria de o fazer? Toda a gente gostava de Raiz de Salva. E Pequeno Dançarino amava-a mais do que qualquer outra pessoa do mundo. Os pensamentos rodopiavam na sua cabeça inquieta. O medo pairava, tocava-lhe o estômago, fazia estremecer os músculos todos. Piscou os olhos ansiosamente para a noite.

Jamais esqueceria a noite em que nascera o bebé de Corça Dançante. Jamais esqueceria o ar de desprezo de Castor Pesado, do ódio mal velado contra a sua mãe. Enquanto o dia e a noite dançassem nos céus, ele nunca perdoaria ao shaman por ter ofendido a Trouxa de Lobo e dado pontapés a Dois Fumos.

E se o Sonhador de Espírito se atrevesse mesmo a amaldiçoar Raiz de Salva...

- Dois Fumos?

- Sim?

- Se Castor Pesado amaldiçoar a minha mãe, eu mato-o!

- Cala-te! Os rapazinhos pequenos não matam Sonhadores de Espírito. Respeitam os mais velhos. Não quero que te metas onde não és chamado, rapaz. Quero que te portes bem. Estás a ouvir-me?

- Estou. - Mas matá-lo-ei, Dois Fumos. Nunca esquecerei o que ele te fez... e à Trouxa de Lobo. É melhor para ele que não amaldiçoe a minha mãe.

Cansada, muito cansada, Raiz de Salva olhava para as tiras de carne que ia virando a intervalos de mais ou menos uma hora. A maior parte já secara, encolhendo sob o forte calor do sol, diminuindo naquele ar seco e sugante. Dez antílopes secavam num monte que uma só mulher podia carregar num fardo grande. Cereja de Engasgar trabalhava do outro lado dos arbustos com Cotovia do Prado e Engraçadinha. Os outros esperavam, a fome cada vez mais profunda, o medo de Castor Pesado a desaparecer perante o espectáculo da carne a ser empacotada.

Os nervos não a tinham deixado dormir apesar da exaustão. Que fizera ela? Como poderia alguma vez insultar os antílopes virando-lhes as costas? A fome devorava o seu povo. Como é que Castor Pesado podia amaldiçoar a carne tão desprezivelmente? Não tinham já problemas que bastassem?

Onde estará ele? A pior parte é esperar. Forçara-o, desafiara-o abertamente. Mais uma vez troçara do poder dele.

Endireitou-se, semicerrando os olhos à luz intensa, buscando na abóboda azul do céu por um sinal de chuva. Lá em cima, passavam alguns farrapos brancos, a caminho do oriente, mas que se recusavam a juntar-se numa massa que oferecesse a chuva vital.

- Mãe?

Virou-se e viu o filho meio curvado com o peso de uma bolsa de água. Trazia a língua fora da boca devido ao esforço

- Estás a ver, trouxe água. E quase nem perdi uma gota!

- Estás a ficar cá um homem! Mantém-te assim e teremos de te dar outro nome dentro de uma estação ou duas. Estás preparado para isso? Para receber o nome de um verdadeiro homem?

Uns olhos felizes piscaram.

- A sério? Queres fazê-lo? Estou preparado! Não tem nada de mal ser chamado Pequeno Dançarino, mas já sou crescido o suficiente para merecer um nome de homem.

Ela acariciou-lhe o cabelo e, tirando-lhe das costas a bolsa de água, bebeu alguns goles do líquido tépido. Pelo menos a maior parte da lama já assentara. Fosse como fosse os sedentos não se podiam dar ao luxo de serem esquisitos. Os anciões ainda falavam dos tempos em que o rio corria límpido como o ar e uma pessoa até lhe podia ver o fundo. As lamas davam-lhe agora um tom leitoso - mesmo naquela época, já no final do Outono.

Limpou os lábios, grata.

- Fazes-me um favor? Leva isto a Cereja de Engasgar e depois a toda a gente que o desejar, até que acabe.

Pequeno Dançarino sorriu-lhe.

- Com certeza. Mas posso beber mais um bocadinho? Fartei-me de andar para a trazer.

- Não bebas toda - recomendou ela, virando-se de novo para as tiras de carne, comprimindo as mais grossas para detectar aquela sensação esponjosa que revelava uma secagem incompleta. A maioria estava dura como pedra, testemunho da aridez do ar.

- Mãe?

Virou-se para trás e viu o olhar dele fixo em si.

- Sim, filho?

-A gente até o sente. As pessoas estão com medo. É por causa de Castor Pesado? Ouvi dizer no campo que ele te vai amaldiçoar hoje. Ela ficou tensa, procurando esconder dele a sua expressão.

- Sim, filho, penso que o irá fazer.

- É por isso que as pessoas estão com medo? É por isso que não dormiste a noite passada?

- É por isso. Ele também amaldiçoou a carne. Ouviste-o.

- Mas os antílopes não se importaram. Foram eles que mo disseram. Vi-os a noite passada. Eles não gostam de Castor Pesado.

Obrigou-se a sorrir para ele apesar do vazio que lhe enchia o peito.

- Nesse caso, tu vais ouvir o antílope... sempre. Prometes-me?

- Sim, mãe. - Franziu a testa, preocupado. - E que irá acontecer se Castor Pesado te amaldiçoar?

Ela vacilou, insegura se lhe devia ou não. Ajoelhou-se para o mirar bem no rosto.

- Não sei. Mas, seja o que for, ficarás com o teu pai. Ele cuidará para que nada te aconteça.

- E tu?

Raiz de Salva abanou a cabeça, acariciando-lhe o rosto.

- Não sei. Cereja de Engasgar diz que ele não me pode matar, se eu acreditar que não pode. Mas é Poder do Espírito e eu não sei como é que essas coisas trabalham. Não as compreendo. Só isso.

- Porquê? - gritou ele, desesperado. - Por que tem ele de fazer isso? O Povo precisa da carne e os antílopes...

- Chiu! Não faças barulho. As pessoas estão a olhar para ti.

- Mas porquê? Será que ele odeia toda a gente? Só as mulheres. Em vez destas palavras disse:

- É uma questão antiga entre ele e eu. Não canses a tua cabecita com tal coisa. Tudo vai acabar em bem. Vais ver como as coisas se irão compor.

O pequeno sacudiu a cabeça.

- Não, não vão. Castor Pesado magoou a Trouxa de Lobo. Há coisas más à solta. Sinto-as. Só os antílopes eram bons. - Acenou a cabeça, os olhos muito abertos fixos nela. - Por que não vamos embora? Podíamos arrumar as nossas coisas e...

- Mas é aqui que está o nosso Povo. E para onde iríamos? E se o teu pai não quiser partir?

Ele baixou os olhos.

- Podíamos ir... para qualquer parte. Mesmo os Anif’ah seriiam melhores que...

- Cala-te! Nem sequer quero tornar-te a ouvir falar assim. E, se o fizeres, mando embora Dois Fumos. Estás a ouvir-me? - Perante o olhar horrorizado do filho ela abraçou-o contra si, deixando escapar uma lágrima quente. - Desculpa. Não me ligues. Estou assustada, é só isso.

- Eu sei.

- É este sarilho todo. As pessoas fazem coisas engraçadas.

- Só por que não fizeste o que Castor Pesado queria?

- Isso mesmo. O Povo não pode ter toda a gente a criar as suas próprias regras...

- Mas os antílopes acharam que fizeste o que estava certo. Permitiram que lhes preparasses a armadilha. Foram eles que mo disseram. O pai não gostaria que tu ofendesses os antílopes.

- Não, mas ele não estava cá.

- Mãe...

- Agora, cala-te! Pensa naquilo que te disse. E, além do mais, não queres que toda a gente fique com sede, pois não? Também tu tens um dever para com o Povo. O teu dever é aprender os costumes do Povo, tornar-te um grande caçador como o teu pai. E, neste momento, é evitar que Cereja de Engasgar morra de sede.

- Mas, mãe...

- A caminho, jovem - acentuou as palavras com um dedo estendido. Encheu os pulmões para protestar, a desobediência expressa no seu pequeno rosto nublado. Ela levantou uma sobrancelha para vencer a relutância dele, que se virou e dirigiu para Cereja de Engasgar sobre umas pernas vacilantes.

Abençoado Sábio Lá em Cima, nunca pensei que custasse assim tanto. Mordeu o lábio até fazer doer e voltou a dedicar-se à carne. Já sentia no peito uma sensação de morte. Quanto tempo faltava? Quando é que chegaria Castor Pesado? Ele não podia resolver aquilo já e depressa? A espera devorava-a como uma coisa viva.

Os seus olhos, involuntariamente, iam seguindo o filho, que caminhava de pessoa para pessoa com a bolsa de água.

As lágrimas começaram a escapar-se das suas pálpebras.

Nunca, em toda a sua curta vida, se sentira tão insignificante. Nem mesmo a fome doía tanto. Pequeno Dançarino chorava ao mesmo tempo que virava a carne como a mãe lhe ensinara a fazer. As pessoas afastavam o olhar, envergonhadas. Limpou os olhos, sentindo a preocupação pairar no ar como um fumo mau. Se Castor Pesado obrigasse a mãe a partir, ele partiria também. Segui-la-ia.

A presença dos antílopes permanecia na sua mente como um calor familiar num dia de invernia. Para os fazer sentir melhor pegou num bocadinho pequeno de carne seca pendurado na salva e mastigou-o, pensativo, agradecendo aos seus espíritos pela dádiva da vida. Cantou, para si mesmo, tal como ouvira fazer aos adultos. O sol pareceu ficar de repente mais brilhante, uma luminosidade que cortou a escuridão na sua alma. A carne, dentro da barriga, aqueceu-o e espalhou o poder pelo seu corpo.

Castor Pesado seria incapaz de sentir a luz? Se Castor Pesado Sonhava de verdade com os Espíritos tinha de saber que a carne estava limpa. Tinha de saber que o Antílope Lá em Cima aprovava. Tinha! Os seus pensamento fixaram-se no Sonhador de Espírito.

Os arrepios percorriam-lhe todo o corpo ao recordar o medo nos olhos da mãe. Se a sua mãe... Um vento gelado surgiu das profundezas para o aterrorizar. Que podia ele fazer? Para onde iria? Se houvesse forma de salvar a mãe!

As pessoas iam tirando as tiras de carne endurecida e colocando-as nas peles estendidas. Mesmo as tiras mais grossas, que ainda pareciam esponjosas por dentro, tinham uma crosta dura. As moscas não poriam nelas ovos que dessem larvas. Mas os coiotes ainda podiam vir roubar bocados.

Sentindo a vontade caminhou até à orla do sítio da matança e levantou a aba para urinar. As pessoas tinham de fazer aquilo para manter os coiotes à distância. Os corvos, pelo seu lado, não prestavam atenção alguma às marcas e tinham de ser espantados para não roubarem nada. O pior de tudo era quando faziam as necessidades em cima das carcaças. As bostas brancas tinham de ser cortadas com todo o cuidado. Mas, se lhe dessem a escolher, preferiria os corvos a Castor Pesado.

- Castor Pesado! - contemplou as suas águas a molharem o chão ressequido. - Isto é para ti, Castor Pesado! E o que tu vales!

Uma sombra negra pairou por cima dele. Assustado, Pequeno Dançarino olhou para cima e encontrou os olhos semicerrados do Sonhador de Espírito. A voz ficou-se-lhe na garganta. Ficou a olhar, paralisado, o seu pénis apontando directamente para Castor Pesado.

- Uma saudação? Tens demasiadas coisas da tua mãe em ti, meu rapaz. Trataremos disso um destes dias. Prometo-te que não me irei esquecer.

Um som rouco escapou-se da garganta de Pequeno Dançarino. Castor Pesado afastou-se. A maldade da sua sombra era como uma nuvem negra.

O medo crescia com cada passada enquanto corria, ouvindo o silêncio em que as pessoas caíam ao verem Castor Pesado dirigir-se directamente para Raiz de Salva.

Uma estranha expressão alterou o rosto da mãe. Os tons habitualmente saudáveis do seu rosto transformaram-se em palidez. Conhecendo-a tão bem como a conhecia, Pequeno Dançarino pode ver o brilho nos olhos dela. Rodeou à distância Castor Pesado para se ir agarrar à bainha do vestido da mãe. Obcecava-o um medo como nunca antes sentira, um medo que o deixava atordoado e incapaz de pensar.

- Olá. - A voz de Castor Pesado era quase uma carícia. - Continuaste com a tua poluição? - Um sorriso displicente dobrava-lhe os lábios.

- Fiz a paz com os antílopes. - A voz da mãe soava rouca.

- Poluiste-o, mulher!

O Povo ficou tenso, recuando perante o tom de ira na voz de Castor Pesado.

- Isso é o que tu dizes.

- Arrepende-te das tuas acções, mulher. É a tua última oportunidade. Implora, e talvez eu Cante por ti. Mostra que estás arrependida das tuas acções e farei o melhor que sei para limpar a tua poluição no Mundo do Espírito.

Agarrado como estava à saia da mãe, Pequeno Dançarino apercebeu-se do estremecimento dela, da tensão que lhe contraía os músculos.

- Cantarei para te salvar apesar da tua...

Pequeno Dançarino escutou, horrorizado, a gargalhada que a mãe soltou.

Castor Pesado deu um salto como se tivesse sido esbofeteado. A gargalhada dela feria como um chicote de iúca.

- Cantarás por mim? A mulher que te disse não? Aposto que sim. E a seguir? Queres que eu implore? Que permita que me possuas? Ah, estou a vê-lo nos teus olhos. Não és nenhum Sonhador nem Cantor. És tu a poluição, Castor Pesado. Uma poluição no meio do Povo! O que não permitiríamos a mais ninguém, permitimo-lo a ti, porque convenceste os outros do teu Sonhar. Não passas de um homem doente com ilusões. Enojas-me. Nem as moscas das bostas são tão repulsivas.

Em torno deles, as pessoas tapavam as bocas com as mãos, os olhos chocados. Quando Pequeno Dançarino olhou para o rosto lívido de Castor Pesado sentiu as tripas desfazerem-se e as lágrimas começaram a correr-lhe pelo rosto. Aquilo não podia estar a acontecer, não podia!

- Nesse caso, não há salvação possível para ti, mulher. - Castor Pesado abanou a cabeça. - Em quatro dias Cantarei a tua alma para fora do teu corpo. À frente da minha tenda colocarei quatro varas, uma para cada dia. E, quando a quarta vara cair no quarto dia, morrerás.

Ao ouvir isto, Raiz de Salva estremeceu.

Castor Pesado viu e sorriu. Deu meia volta e afastou-se a passos largos.

Pequeno Dançarino ficou imóvel, sufocado no silêncio opressivo. O terror no corpo rígido da mãe alimentava o seu próprio terror. A mão da mãe apoiava-se na sua cabeça. Os dedos frenéticos apertaram-lhe os cabelos até fazerem doer. Não se importou. Horrorizado, começou a chorar convulsivamente e sem vergonha.

Sangue de Urso mantinha-se abrigado nas drenagens, respirando fundo quando a útima das mulheres desceu a colina na direcção do campo lá em baixo. Os últimos foram uma mulher, um rapaz e outra mulher, que coxeava muito de... Dois Fumos!

Sangue de Urso desceu pela drenagem, mantendo a parte superior do corpo encoberta pelos arbustos de salva. A mulher seria Água Límpida? Dobrou o pescoço para a olhar no ângulo certo. Apesar da distância e do tempo, seria capaz de reconhecer as suas feições perfeitas. Mas, embora bela, aquela mulher preocupada não se podia confundir com Água Límpida.

Agachou-se, apoiando as costas na parede do arroio. Afinal, sempre encontrara Dois Fumos. Um alívio de alegria fez-lhe assomar um sorriso ao rosto. Claro que teria de se certificar se a Trouxa de Lobo continuava com o tresmalhado. Ou tê-la-ia Água Límpida? Decerto que os dois deviam estar perto um do outro, mantendo alguma espécie de contacto. A vida com o Povo do Búfalo Baixo devia ser difícil para os estrangeiros. Água Límpida sem dúvida que gostava de falar dos velhos tempos, de ouvir as velhas histórias.

Sangue de Urso inspeccionou, com todo o cuidado, os topos das colinas, procurando vigias. Não viu nenhum. Onde estariam os homens? O mais provável é que estivessem a caçar, a bater as terras em volta procurando as manadas errantes.

- Tanto melhor. Posso entrar e sair sem ninguém dar por mim. - A oportunidade perfeita surgiria por si. Com a carne que carregavam, a maior parte daquela gente ia empaturrar-se. Naquela noite haveria um festim. Talvez umas canções e até danças até altas horas. Mas amanhã estariam letárgicos, cansados pela noite. Podia entrar no campo um pouco antes da madrugada e penetrar da tenda onde estava Dois Fumos. Uma vez lá tiraria do tresmalhado a localização da Trouxa de Lobo, matá-lo-ia e retomaria o seu caminho.

Tinha de ser naquela noite. Quanto mais esperasse, maior seria a probabilidade de ser descoberto. Nunca se sabia quando alguma criança vinha brincar para os arbustos ou uma mulher vinha em busca de roedores e de raízes com o seu pau de cavar.

Além disso, nunca Sangue de Urso fizera as coisas com meias medidas.

Povo do Búfalo Baixo iria recordar-se desta incursão por muito tempo.

- Castor Pesado?

O Sonhador de Espírito colocou de lado o tambor e limpou o suor que se acumulara no rosto. Acomodou-se melhor, tendo na sua frente os amuletos e adornos dispostos em filas para melhor mostrar o seu poder.

- Entra, Dois Alces.

O ancião gemeu ao vergar-se para levantar a cortina e entrar. Piscou os olhos, as suas longas tranças grisalhas pendentes dos dois lados da cabeça, para tentar ver no interior da tenda. A luz que iluminava o seu corpo velho em silhueta foi brilhar nos olhos de Castor Pesado.

- Está muito escuro. - Dois Alces entrou e colocou-se do lado direito, onde o convidado masculino se devia sentar.

- Cuidado, não tropeces nos meus pés de corvo.

Dois Alces murmurou qualquer coisa e manteve-se o mais encostado possível à parede da tenda. Os seus velhos ossos estalaram quando se sentou.

Todas as durezas das seis dezenas de anos de vida de Dois Alces se podiam ler no seu rosto mapeado pelo tempo. Sem dentes, o queixo parecia metido por debaixo do nariz carnudo. Os olhos tinham encolhido no crânio, dando às órbitas um aspecto vazio. Uma cicatriz muito antiga percorria-lhe o lado direito da face. O olho direito ainda brilhava de vida e inteligência, mas o esquerdo tornara-se de um branco-leitoso.

- Sempre vais matar a jovem Raiz de Salva? Castor Pesado sorriu, um sorriso vazio.

- Ela desafiou-me.

Dois Alces abanou a cabeça para si mesmo, ainda a tentar ajustar-se à fraca luminosidade.

- Queria conversar contigo sobre isso.

- Porquê? - Porque está a preocupar o Povo. Eles estão...

- Eu quero que isso afecte o Povo. Foram as mulheres do género de Raiz de Salva que nos colocaram nas precárias condições em que presentemente estamos. A única maneira de fazer as coisas voltarem ao que eram é conseguirmos purificar-nos. O que não pode ser feito sem alguns castigos exemplares e alguns sacrifícios. Sonhei-o e ouvi-o das estrelas. Raiz de Salva demonstra o meu ponto de vista. Violou abertamente as minhas ordens. Fez correr o sangue dos irmãos do Antílope Lá em Cima. Virou-os contra nós. Agora, vamos passar uma época de fome para purgar os pecados dela do corpo do Povo. Tenciono fazê-la pagar.

- Por que o fazes? Vais matar uma boa mulher só por te ter contrariado? Que vai ser do filho dela... do marido?

- Que vai ser deles? O marido dela é um homem selvagem e irrequieto. Não conseguiu ensinar à mulher o respeito pelos Sonhadores de Espírito. Vives aqui. Não é segredo para ninguém que ele nunca lhe bate, nunca a pune por desobediência. Não é de admirar que as suas caçadas tenham sido tão más nestes últimos anos. Não é de admirar que o Sábio Lá em Cima lhe tire os filhos. De que mais provas precisas?

Dois Alces contemplou a escuridão morta do poço de fogo.

- Não receias que ele te mate por teres amaldiçoado a mulher? Castor Pesado sorriu.

- Acreditas a sério que ele seria capaz de o fazer? Conheço Touro Esfomeado. Quantas vezes o vi ter medo do Poder do Espírito? Quantas vezes o ouvi dizer que não queria ter nada a ver com Sonhos e visões? Não, só preciso de ameaçar a alma dele, como fiz à da sua mulher, e o homem derrete-se com a última neve de Março.

- E Raiz de Salva? Não existe forma alguma de tu tirares a maldição? Castor Pesado fixou o ancião nos olhos:

- Tiraria. Se ela viesse aqui e se submetesse a mim. Se ela viesse aqui, pedindo perdão, e se ligasse a mim durante um ano para aprender a devida penitência por ter assumido as responsabilidades de um homem. Podia fazer uma excepção especial e levá-la para a tenda de suar, para a limpar pelo calor. Poderia então curar a sua alma e religá-la ao corpo.

- Ela nunca faria isso.

Castor Pesado levantou casualmente um ombro.

- Vim pedir-te que parasses. As pessoas têm vindo ter comigo dizendo: “Vai falar com Castor Pesado. Diz-lhe para parar com isto. Nada de bom sairá desta maldição. Diz-lhe para parar pelo bem do Povo.” Estão com medo do que poderá acontecer, caso prossigas com tudo isto.

- E devem estar. Vim para lhes ensinar um caminho novo. Nos últimos meses não vi grandes mudanças na maneira como vivem as suas vidas. Raiz de Salva, Engraçadinha, Abeto Adormecido, Nuvem Brilhante... todas elas continuam a rir e a dizer-me o que devo fazer. Ouvi-as falar como se fossem iguais aos homens...

- É esse o costume do Povo.

- É poluição!

Dois Alces encheu de ar os seus velhos pulmões, abanando a cabeça.

- E voltarás a dividir o Povo? Não és capaz de Sonhar um caminho para nós que não nos vire uns contra os outros? Não é pedir-te muito, pois não? Estás a dividir os jovens dos velhos, os homens das mulheres, como um machado de quartzite divide um osso. Não podemos...

- Hão-de aprender. É isso que lhes tenho tentado ensinar. É tempo de seguir um novo caminho. Ouvi as vozes, falei com as estrelas. Não podemos permitir que as mulheres continuem a ditar os costumes do Povo. É um tempo de homens. Olha para os Anif’ah. Vê como são poderosos. Nunca ouviste dizer que as mulheres deles estão nos Conselhos, pois não?

- Bem, não, mas também nunca...

- E no Povo do Cabelo Rapado? Como é?

- Nunca visitei o Povo do Cabelo Rapado mas, da maneira como vivemos, não podemos emboscar o búfalo a menos que as mulheres façam uma parte do cerco. E quem espanta os coelhos e os ratos da pradaria? Quem ajuda a fechar as linhas de...

- E podem continuar a fazer essas coisas. Mas não podem continuar a fazer parte do planeamento. Isso é obrigação dos homens. Como é que te sentirias se fosses o Búfalo Lá em Cima? Como? Gostarias de ver os teus filhos mortos por mulheres que poluem o mundo sangrando uma vez por mês?

Dois Alces, de cenho franzido, mostrava no rosto uma certa confusão.

- Mas os velhos costumes...

- Abandonaram-nos! Enfrenta a realidade, tio. Olha à tua volta. O búfalo desapareceu. O Homem Chuva já não Dança água das nuvens. Por que pensas que isto está a acontecer? Não, não precisas de responder. Mas eu tenho de o fazer. E salvarei o Povo, nem que o tenha de destruir para o fazer!

O silêncio esticou-se.

- Sim. - Castor Pesado suspirou. - Sei que eles acabarão por ter medo de mim. Não posso deixar que isso me perturbe. Um Sonhador tem de aceitar aquilo que o Mundo do Espírito lhe dá. Se tenho de mudar o Povo através do medo e da Maldição, o resto será melhor para eles no fim.

- Acreditas nisso, não acreditas? Castor Pesado abriu os braços.

- Eu sou aquele que tem os Sonhos, tio. Estavas à espera que eu cuspisse na cara do Poder só para manter os anciões felizes? Não, mandaram-me ensinar uma lição. Raiz de Salva será a minha via para o fazer.

Dois Alces fechou os olhos.

- Por favor, não faças isso. Se a matares, não poderás voltar atrás. Penso que ainda não te apercebeste do que isso causará nos teus amigos e parentes. Pensa nisso, sobrinho. Pensa muito, pensa dura e seriamente no que uma nova divisão fará a este campo. Estamos suspensos por um fio. Sangue e gritos de feitiçaria não melhorarão de modo algum as coisas. De modo algum.

- Eu sou o Sonhador de Espírito. Eu tenho os meus deveres para com o Povo.

Dois Alces levantou-se, vacilante sobre as já velhas pernas.

- Estás mesmo decidido a assassinar Raiz de Salva?

- Já disse tudo. Só lamento que lhe chames assassínio quando o faço para salvar o Povo. Conheces o meu coração e a minha alma, tio.

Dois Alces abanou com tristeza a cabeça e, amparando o corpo com um braço curtido pelo tempo, levantou a cortina e voltou à luz.

Só depois de ele ter saído é que Castor Pesado reparou que o velho tinha pisado e esmagado o seu pé de corvo.

- A minha maneira... ou mais nada, tio. Tal como me disse a minha mãe, velho. Tal como ela viu... e tu não.

Erguendo a voz num canto, começou a bater no tambor, acertando as pancadas pelas batidas do próprio coração. E era óbvio que Raiz de Salva

- por mais amedrontada que estivesse - nunca lhe viria pedir nada.

- Ele nada sabe sobre o Poder. Aquilo a que chama Sonhos são apenas invenções da sua cabeça. Nem sei por que deixas que ele engane o Povo!? Começaram até a aceitar o facto de que aquele impostor, cheio de imaginação, é um Sonhador.

Sonhador de Lobo respondeu através do equilíbrio cintilante dos Círculos:

- Os seres humanos têm os seus próprios desejos e capacidades para discernir o verdadeiro Poder das mentiras. Deixa-os com os seus fins. Tu e eu, irmã, temos de seguir os nossos.

A Trouxa de Lobo meditou.

-Mesmo assim seria tão simples, bastava tocar numa ponta da alma dele e o equilíbrio da sua vida seria alterado. Um tudo-nada de Poder em volta do coração dele e seria melhor. Por que há-de o Povo de sofrer? Qual o objectivo da sua agonia?

- Não estou interessado na agonia do Povo. Podem escolher o seu caminho... tal como o pode Castor Pesado. Tenho outras coisas a fazer.

- O rapaz?

- Claro. - Uma pausa.

- Se sobreviver. Talvez tenha cometido um erro ao chamar Cria Branca.

- Sempre tiveste uma queda para mulheres velhas.

- Se o tenho, não é nada que te diga respeito.

- E sacrificarás o Povo pelo rapaz? Permitirás tanto sofrimento?

- Tenho de o fazer. Não se pode fazer uma ponta de dardo mortífera com uma pedra defeituosa.

 

Cereja de Engasgar saiu curvada da tenda e semicerrou os olhos por causa da luz, ressentida do calor que a fustigava sem misericórdia. Para lá do campo, até os algodoeiros pareciam moles e caídos nas margens do Rio Lua. As folhas abanavam preguiçosamente de um lado para o outro com a brisa da manhã. O próprio Rio Lua consistia em braços de água ondulando entre bancos de lama lenticulares. A água mal tinha uma ruga. O velho leito do rio estava marcado por pedras brancas e acinzentadas - que não eram mais agora que ossos do rio.

Perto da margem batida pelo sol, estava a tenda de suar de Castor Pesado - banida agora das mulheres. Levantou o lábio ao vê-la.

A sudoeste, Cereja de Engasgar podia ver a alta montanha cónica a que chamavam Dente de Castor, colocada bem acima nas Montanhas do Lugar do Alce, que corriam o horizonte a ocidente. Talvez lá estivesse mais fresco. Um bom lugar para ir... se Castor Pesado mudasse o campo.

Pensar nele, fez-lhe azedar o estômago. Amaldiçoado seja ele que faz toda a gente... a Maldição!

Virou-se e o seu olhar percorreu o chão batido até à tenda de Castor Pesado. Ali, bem evidentes naquela luz toda, estavam quatro varas negras e compridas espetadas no chão.

Um frio gelou as tripas de Cereja de Engasgar.

- Bostas e mosca, rapariga. Ele fez mesmo aquilo! - Os seus dedos deram os nós na frente do vestido de pele de cria, já velho e surrado pelo muito uso. Preparando-se para o pior, dirigiu-se à tenda de Touro Esfomeado, rodeando-a, até ver Raiz de Salva sentada em frente da cortina de entrada a contemplar, de olhos muito abertos, as varas. O belo rosto estava branco.

- Que é isto? Moscas no pus, rapariga! É isso mesmo que ele quer que tu faças!

Raiz de Salva continuou com o olhar fixo, mal dando pela sua presença.

- Levanta-te! - ordenou Cereja de Engasgar. - Estás a ouvir-me? Levanta-te!

O rapaz espreitou por um dos lados da cortina.

- Filho, ajuda-me a levantar a tua mãe. Temos de a tirar da vista daquelas quatro varas doidas do homem. - Agarrou numa das mãos, frias como gelo, de Raiz de Salva, enquanto o rapaz puxava pela outra. Raiz de Salva sacudiu a cabeça mas pôs-se em pé e seguiu-os sem protestar. Cereja de Engasgar conduziu-a pára o rio.

- É isso que ele quer, rapariga. Deves olhar para aquilo... pensar no que te vai acontecer.

- Ele é... um Sonhador de Espírito. E se ele tiver razão? E se...

- Cala-te já. Isso é o que ele está a tentar que tu penses. - Cereja de Engasgar levou-a até à margem seca do Rio Lua e parou junto de um lago de água. Baixou-se para beber a água fria, enchendo os seus tecidos ressequidos.

- Então, rapariga, bebe. Vou levar-te a ti e ao rapaz para a minha tenda e preparar um pouco do antílope que apanhaste. E, depois disso, vamos ter uma longa conversa acerca do poder e de como funciona. - Abanou a cabeça. - Como gostaria de ter por aqui a louca da minha irmã!

Viu o ar admirado nos olhos do rapaz. Quase que brilhava, ansiosa por a escutar. Que se passava com ele? Os olhos do garoto tinham ficado desfocados, a mirar as planícies secas, seguindo distraidamente o voo de uma águia que se elevava nas correntes térmicas.

- Vamos. Tenho de alimentar vocês os dois. Estão a ficar com um ar aluado.

Sangue de Urso podia ser uma serpente a banhar-se ao sol. Esperava, de barriga para baixo, sob um arbusto espinhoso de roseira. Podia ver o que se passava por um buraco de esquilo e tinha mesmo na sua frente a tenda ocupada pela mulher e por Dois Fumos. O resto do campo estava meio adormecido no meio de todo aquele calor. Podia sentir a tensão. Via-a até na maneira como se movimentavam, nos olhares inquietos, nas conversas meio sussurradas.

Não tivera uma só oportunidade de entrar na tenda de Dois Fumos antes da madrugada. Quando rastejara para mais perto, a mulher estava sentada na entrada, os olhos fixos na tenda do shaman. Não se mexera a não ser por uns breves instantes em que se fora aliviar atrás da tenda.

Rodando devagar a cabeça, Sangue de Urso estudou cada uma das tendas, escutando o estranho cântico que o Homem de Espírito entoava ao som cavo do tambor. Estremeceu, por um breve instante, sentindo o coto do dedo mindinho. De todas as coisas estúpidas que fizera, aquela fora a mais estúpida de todas.

Não acredito nessa patetice do Poder. Não passa de mito e lenda. Mais nada.

Nesse momento uma velha surgiu junto da tenda de Dois Fumos e, com a ajuda do rapaz, arrastou a mulher bonita, levando-a para longe.

E, se está a acontecer alguma coisa, é melhor que seja eu a actuar primeiro. Levantou ligeiramente a cabeça, verificando a posição de cada um dos grupos de pessoas a conversar à sombra das tendas, de cabeças a agitarem-se, todos os olhos fixos na tenda do Homem de Espírito e nas varas lá colocadas. Desde que o vento se aguentasse e os cães não lhe apanhassem o cheiro, ou alguém decidisse usar o arbusto onde estava para se aliviar, estava em segurança.

Mas uma pessoa nunca sabia quando é que um grupo de caçadores podia regressar, nem quando um acidente o podia pôr a descoberto.

Na sombra da tenda, um dos cães mudou de posição e rolou de lado as patas estendidas. À medida que a respiração do cão ficou mais profunda os seus olhos fecharam-se.

Uma mosca voou. As folhas de algodoeiro mal se mexiam.

Uma quietude invadiu o campo sonolento.

Raiz de Salva cedeu à vontade de Cereja de Engasgar, embora a sua mente estivesse amarrada a outras preocupações. Bebeu a água lamacenta e, pela primeira vez, achou agradável o sabor mineral que ficava na boca. O mundo à sua volta parecia tão brilhante, límpido e claro - em contraste com o frio dentro de si.

Correu uma mão carinhosa sobre a cabeça do filho, seguindo Cereja de Engasgar que ia na frente. Raiz de Salva piscou os olhos para tentar aclarar a mente estranhamente nublada. Os pensamentos dela estavam desfocados, como se tivesse a cabeça cheia de pêlos ou de sementes penugentas. Não conseguia pensar com a mesma clareza de outrora.

Mesmo a caminhar, não pôde evitar olhar para a tenda de Castor Pesado, vendo as varas, sentindo a malevolência da presença dele. Algo gemeu na sua mente.

- Vamos - insistiu Cereja de Engasgar, agarrando-a pela mão e fazendo-a dobrar-se para entrar na claridade ambarina do interior da sua tenda. - Senta-te!

Sentou-se no sítio para onde Cereja de Engasgar apontara, um rolo de pele de alce, e descansou as costas num descanso de ramos de salgueiro. Pequeno Dançarino instalou-se a seu lado, olhando em volta, uma mão tranquilizadora nas suas.

A tenda de Cereja de Engasgar - como a maioria das tendas do Povo - apresentava-se gasta. No topo, a cobertura passava de castanha a cinzenta e depois a negra devido à fuligem de muitos fogos. As varas descascadas formavam uma base com três passos de lado e a altura de um homem alto. Uma vara central, mais grossa, suportava o conjunto. Os topos das varas estavam enegrecidos. Cereja de Engasgar dedicou-se a enrolar as pontas da cobertura para deixar entrar a brisa.

Aqui e ali viam-se trouxas e um dos velhos cães de Cereja de Engasgar mirava-a de soslaio. Um animal enorme que transportava a maioria das posses de Cereja de Engasgar quando o bando viajava para novos campos. Até os cães apresentavam um ar gasto nos dias que corriam, com as costelas bem à vista nos flancos. O ladrar e uivar normais na aldeia pareciam apagados. Mas, afinal, tantos cachorros tinham apanhado já uma pancada na cabeça e ido parar aos caldos, que ela não os podia culpar. O Povo estava irritável. E cães em luta excediam o ponto de tolerância.

Cereja de Engasgar limpou as mãos, satisfeita com o fogo. Inclinou-se para o poço do fogo, remexendo as cinzas, reavivando as brasas a que acrescentou casca de salva e bocados de ramos de algodoeiro até ter uma chama crepitante. Empilhou então no centro as pedras para aquecerem e tirou de uma bolsa umas malgas ornamentadas.

Raiz de Salva, noutra altura, teria parado para se maravilhar com as peças. Cada uma fora talhada de um corno de carneiro das montanhas. Os belos tons de castanho e branco haviam sido polidos com areia fina até rebrilharem. Nos lados tinham sido gravadas, com todo o cuidado, formas de búfalo, alce, veado e antílope, rodeados por caçadores com os dardos em riste.

- Diz-me uma coisa: passaste a noite toda ali sentada a olhar para as varas?

Raiz de Salva fechou os olhos, acenando um sim. Pelos Gémeos Heróis, como se odiara a si mesma por o fazer. Durante as longas horas da noite, enquanto a Lua cheia atravessava os céus, ficara ali a olhar, a observar a sombra das varas rodar lentamente pelo chão. O frio da sua alma crescera, devorando todo o calor do seu corpo até que ficara ali sentada como gelo a sentir cada batida do coração.

Nem sequer a respiração suave do filho, a seu lado, lhe afectara o gelo.

- Raiz de Salva, escuta o que te digo. Estás a fazer isso a ti mesmo. Compreendes? - Cereja de Engasgar virou-se para a encarar bem nos olhos.

Raiz de Salva deixou-se, por um instante, levar por aquelas profundezas castanhas e quentes, permitiu-se acreditar na sinceridade que nela via. Cereja de Engasgar apercebeu-se disso e sorriu calorosamente.

- Agora tens de juntar as tuas forças e pensar. Castor Pesado quer que tu fiques a olhar para aquelas varas. Quer que tu as sintas na tua alma. Se fizeres isso, se te deixares ficar nas mãos dele, serás tu própria a matar-te.

- Mas ele é um Sonhador de Espírito!

- Não acredito em tal. E penso que tu também não. Só que, depois de teres deixado a tua imaginação à solta a noite inteira, já não estás tão segura. É nessa parte de ti em que ele aposta, a que se agarra... como uma espécie de parasita. Raiz de Salva, olha bem para mim, vais permitir que ele consiga chegar ao fim do que pretende?

Deixou cair a cabeça entre as mãos, sentindo o filho agarrar-lhe com mais força a saia.

- Não sei.

- Na outra noite decidiste comer a carne. Sabias que ele faria isto mas mesmo assim tomaste a decisão. Porquê?

Raiz de Salva rangeu os dentes.

- Porque tinha de o fazer. Era a decisão acertada. Não sei. Sentia-me tão forte. Pensava que era capaz de lhe fazer frente, de que tudo ficaria bem.

- E depois?

- Depois, ontem à noite, cheguei à tenda com uma carga de carne seca. E olhei para lá, vi as varas, e tudo se me tornou real. Ele vai matar-me. Sinto o Poder daquilo. Quero dizer, o ódio. É uma coisa poderosa... e está contra mim.

- Ele continua a não ser capaz de te matar... a menos que tu o deixes.

- Mas eu...

- És tão forte agora como quando tomaste a decisão de comer a carne. Agiste correctamente nessa altura, por que é que não aceitas agora isso? Por que não sais e vais enfrentá-lo olhos nos olhos?

Raiz de Salva engoliu para vencer a secura da garganta.

- Eu não sabia como aquilo me iria consumir. Eu... eu sinto-me perdida, Cereja de Engasgar. Já nada sei.

A anciã respirou fundo e reclinou-se.

- Compreendo. É isso, não é? Não sabes.

- E se ele tem razão?

Cereja de Engasgar coçou a testa enrugada.

- Esse é o verdadeiro problema. Só tens a palavra dele em como é um Sonhador de Espírito. Sangue e lágrima, mulher, tens de acreditar que ele é um mentiroso! É a tua única esperança... a única esperança para o Povo! E se morres? Hem? Pensa nisso! Se te matas a pensar naquelas malditas varas, que vai acontecer? Pensas que ele se vai tornar numa pessoa melhor? Ou que virara o seu Poder contra outra pessoa?

Raiz de Salva, horrorizada, fixou os olhos de Cereja de Engasgar.

- É isso mesmo. Depois de ti, quem será o seguinte?

- Eu não queria nada disto. Só queria dar de comer ao meu filho. Cereja de Engasgar abanou a cabeça.

- Eu sei. Mas foste tu. Talvez tenham sido os espíritos a escolher, que achas?

Raiz de Salva estremeceu, invadida por uma vontade súbita de chorar.

- Por que é que isto está a acontecer?

Cereja de Engasgar soltou um suspiro, batendo com as mãos impotentes nas ancas.

- É a seca. O facto de o Povo se estar a espalhar em muitos grupos pequenos para sobreviver. Não sei. Tudo começou a correr mal no tempo do meu pai. Foi quando os Garça Branca nos empurraram para sul, nos forçaram a vir para aqui. O Povo do Cabelo Rapado lutou para manter as suas terras, até que um dos seus chefes capturou uma jovem e se apaixonou e casou com ela. Ele estabeleceu a paz, acabou com a luta na condição de não irmos mais para sul. Ficámos presos pela nossa honra. Os Anifah mantêm os ricos campos de caça nas Montanhas do Búfalo porque conhecem bem os trilhos da região. E nós ficámos com o Rio Lua até à confluência com o Rio Areia a leste. Só que não chega para nos alimentar a todos. Mas, outrora, sim, outrora havia campos enormes do Povo que se estendiam até onde a vista alcançava.

- Disseste que me falavas do Poder do Espírito - disse timidamente Pequeno Dançarino.

Cereja de Engasgar riu-se.

- Sim, disse, não disse? Bem, que queres saber?

- Tudo!

- Tudo?

- Sim. Quero ser um Sonhador de Espírito quando crescer e tiver um nome. Depois, Castor Pesado nunca mais vai incomodar a mãe.

Raiz de Salva ficou tensa.

- Porquê, filho? Por que queres ser um Sonhador de Espírito? O rapaz olhou-a em desafio.

- Porque cravava as minhas varas e matava Castor Pesado! Raiz de Salva fechou os olhos e abanou a cabeça.

- Não. Nunca farás isso. Eu proíbo-te.

Podia sentir os olhos de Cereja de Engasgar cravados nela.

- Rapariga, se o rapaz...

- Eu disse não! Não quero que o meu filho alguma vez faça alguém sentir-se como me sinto agora! Percebes? Isto é... é mau!

Cereja de Engasgar mudou de posição, incomodada, e agarrou nos paus de fogo. Estes não eram mais que duas varas de salgueiro atadas no meio e que podia utilizar como pinças para tirar as pedras quentes do fogo. Fê-lo então, tirando as pedras rubras do meio do fogo e colocando-as, a assobiar, na bolsa do caldo pendurada num tripé.

- Vamos lá, rapariga. Estás confusa. Não comeste, nem dormiste. A mente fica baralhada quando isso acontece.

Raiz de Salva tornou a abanar a cabeça e ficou a ver, de olhos vazios, a velha a mexer o caldo.

- Não. Não quero ter nada a ver com o Poder de Espírito. Está a arruinar a minha vida. Não quero que o meu filho arrume outras.

Cereja de Engasgar mordeu os lábios e experimentou a temperatura do caldo antes de encher as malgas.

- Olha, sendo nós tão poucos, que farás tu se o teu filho, que ouve os antílopes a falar na noite, for um verdadeiro Sonhador? Que farás se ele puder Dançar com o fogo e Cantar com as estrelas?

Raiz de Salva olhou-a, a mente turvada pela incredulidade.

- O meu filho, não! Nunca! - Se Castor Pesado não me matar.

- Aiii! - Um grito rasgou o ar tranquilo.

- Que... - Cereja de Engasgar meteu a cabeça pela cortina para saber o que o provocara.

Raiz de Salva saiu da tenda atrás dela. As pessoas corriam para o fundo do campo. Ela seguiu o mesmo caminho, apanhada pela pequena multidão, ciente de que Pequeno Dançarino continuava agarrado à sua saia.

Um magote de corpos obscurecia a sua vista quando passou pela tenda de nascimento, agora vazia. Um punho fechou-se-lhe sobre o coração, uma premonição do que iria ver.

- Corça Dançante! - gritou Engraçadinha, saindo da multidão. O seu olhar cruzou-se por instantes com o de Raiz de Salva antes de se desfazer em lágrimas e começar a arranhar a própria cara.

- Não - avisou Cereja de Engasgar, segurando-a por um ombro. Raiz de Salva soltou-se para espreitar por cima do ombro da Mulher Andarilha.

Corça Dançante estava deitada de rosto no chão. No sítio em que as moscas negras voavam em círculo saía das suas costas a ponta afiada de um dardo de caça. A haste do dardo partira-se sob o seu peso. A haste partida via-se no sítio em que o sangue coagulado escorrera por debaixo do corpo. Mesmo na morte, os olhos de Corça Dançante reflectiam o seu sofrimento, uma expressão angustiada que condenava Raiz de Salva, que caiu de joelhos.

- Trespassou-se com o dardo - declarou Dois Alces, nervoso, inspeccionando o corpo com o olho bom. - Sabia que Corre Bem Longe não regressaria jamais. Morreu com o dardo dele.

- Castor Pesado também a amaldiçoou - murmurou alguém. Raiz de Salva soltou uma exclamação, perdendo o controlo. Colocou uma mão na boca com os soluços a escaparem-se-lhe dos pulmões.

- Chegou a altura de parar com tudo isto - murmurou Dois Alces consigo mesmo. - Há coisas más à solta. Coisas horríveis. - Dirigiu-se, resoluto, para a tenda de Castor Pesado.

Raiz de Salva nem ouviu o Povo regressar às suas tendas e armas. Mal estava ciente de que Pequeno Dançarino continuava ali, as suas mãozitas assustadas agarrando com força o vestido dela. Fixava apenas, horrorizada, o rosto acusador da amiga morta, enquanto as moscas já passeavam pelos olhos vítreos.

- Tens o teu desejo satisfeito. Sei que não gostavas do Povo do Búfalo Baixo. Agora, voltarás para os Mão Vermelha. -A voz abafada de Sonhador de Lobo traía um certo humor.

- Os Mão Vermelha alimentam o meu Poder. Estes caçadores de búfalo, de mentes entorpecidas, não têm mais juízo do que os seus antepassados que chacinaram o mamute. Se calhar vão fazer o mesmo com o búfalo: matá-los até ao último animal e depois morrerem de fome?

- A menos que eu altere a Espiral.

A Trouxa de Lobo pensou por um momento antes de dizer:

- Espero que o possas fazer. Tenho saudade do mamute. Desde que morreu o último, que sinto falta da majestade das suas almas nos Círculos.

- Nesse caso, conserva-te bem, minha amiga. Quando chegar o tempo, se o rapaz sobreviver, vai precisar do teu Poder. Temos de fazer isto bem. Não é de ânimo leve que se altera a Espiral do Sábio Lá em Cima. O mundo está a mudar. O rapaz pode ser toda a diferença... se não o matarmos no processo.

 

Dois Fumos estava sentado no tronco apodrecido de um choupo derrubado a contemplar as curvas do Rio Lua que se perdiam para leste. A inquietação na sua alma magoada não o deixara dormir. Partira durante a noite para subir ao terraço e assistir ao nascer do novo dia. Apesar da vermelhidão dos céus e dos brilhantes fogos do Pai Sol, não diminuía o frio na sua alma.

Durante horas colhera sementes de ervas, apanhando as umbelas, deixando a brisa seca da manhã levar a palha e triturando as sementes entre os dentes. As ervas davam fruto muito cedo - só que as sementes eram muito pequenas. Apesar de tudo. as ervas nasciam por todo o lado, mesmo num ano seco como aquele. Se as pessoas não tivessem de depender dos búfalos para comer as ervas!

Há anos que meditava no processo, apanhando ervas, observando-as, comendo as folhas, caules e sementes. Não se podia negar a verdade da questão. O Sábio Lá em Cima fizera o homem diferente dos filhos do búfalo. As pessoas não podiam comer ervas e viver. Dois Fumos observara com todo o cuidado as próprias fezes, encontrando folhas, caules e sementes não digeridos.

Não podia deixar de pensar que se lhe escapara qualquer coisa. Havia erva em toda a parte. O búfalo comia a erva. Depois, as pessoas comiam o búfalo - que nem sempre se encontrava ali. Se as pessoas pudessem tirar o búfalo do processo e comerem elas mesmas a erva, nunca mais ninguém teria de passar fome.

A escuridão dentro dele roubou-lhe a linha de pensamento, deixando-o arrepiado naquele calor abrasador. Ansiosamente, dirigiu o olhar para onde o campo permanecia num silêncio agourento. Nem mesmo lhe chegavam os pequenos sons que as pessoas faziam durante o dia - como se o campo inteiro estivesse de respiração suspensa, esperando que Castor Pesado agisse.

- O Povo está perdido - murmurou. - Castor Pesado tem vindo a destruí-los com a sua arrogância. Ninguém ofende uma Trouxa sagrada. Ninguém cospe no rosto do Sábio Lá em Cima e fica à espera de uma vida longa ou feliz. - E nem sequer consigo sentir pena do Povo do Búfalo Baixo. Espancaram-me, fizeram pouco de mim. Os homens violaram-me. As mulheres riram-se de mim. Não, não consigo ter piedade deles, mesmo quando estão à beira da destruição.

Raiz de Salva e Touro Esfomeado tinham sido simpáticos com ele. Tal como lhes ordenara Cria Branca, tinham-no tornado parte da própria família e partilhado com ele a comida e o abrigo. Em troca, dera-lhes a sua parte. Os seus dedos dormentes tinham trabalhado as peles, raspando, curando, lustrando e cosendo até fazer as coberturas de tenda mais apertadas de todas e as roupas mais delicadas. Apesar do escárnio, o Povo do Búfalo Baixo punha de parte os seus preconceitos quando queriam fazer trocas com as peles curtidas e cosidas por Dois Fumos.

E agora preparavam-se para lhe tirar até aquela frágil segurança. Raiz de Salva fora amaldiçoada por aquele medíocre Homem do Espírito. Abanou a cabeça. Castor Pesado, comparado com Cria Branca, Pena Cortada ou Água Límpida, nem sequer era capaz de fazer sair fumo de um fogo bem vivo. E Raiz de Salva morreria sem saber a diferença. Bem vira o medo e a resignação nos olhos dela. Ela acreditava que ia morrer. O seu olhar fixo nas varas do feitiço bem o provava.

- E que será então de Dois Fumos? - piscou os olhos ao Sol, agora já bem alto no céu. - Fica para ser espancado e violado? Quando tempo levarão até também me matarem? Quanto tempo levarão até considerar a Trouxa de Lobo uma coisa maléfica e a queimarem?

Tu prome teste. Pequeno Dançarino está à tua responsabilidade.

Engoliu com dificuldade, a contemplar o rio a montante. As palavras de Pequeno Dançarino ressoavam-lhe na cabeça: “Podemos fugir.”

Levantou-se e enrolou a sua bolsa especial. Colocou, uma a uma, as hastes das ervas nos buracos especiais abertos na pele. A coisa tinha, desenrolada, quase dois braços de comprimento. Tinha dentro dela ervas de quase toda a parte. Erva de centeio selvagem gigante, erva de trigo, erva de agulha, erva de búfalo, erva azul das estepes e muitas mais. Enrolou a comprida tira de couro num tubo e enfiou-o no cinto.

Regressou, coxeando, sabendo que o esperavam todos os problemas.

A perna esmagada voltara a doer. Há anos que não lhe causava tantos tormentos.

Enquanto caminhava ia observando o céu, reparando nas finas tiras de nuvens que atravessavam a imensa abóboda. Há quanto tempo não chovia? Três meses, desde os últimos borrifos? Agora mesmo a sombra de uma nuvem de chuva seria um alívio.

Do campo veio um grito fraco, fazendo-o estugar o passo sobre a perna coxa. O joelho nunca mais voltara a trabalhar como deve de ser depois de o búfalo o pisar. Mesmo assim era melhor estar como estava, rígido, do que destruído de tal maneira que não o deixasse andar - ou teria ficado para trás, abandonado, para morrer à fome e ao vento.

Nada de anormal parecia haver quando atravessou as árvores. O campo parecia deserto. Não, tinha-se juntado um monte de gente atrás da tenda dos nascimentos. Um grito lancinante trespassou a quietude pesada do dia.

Dois Fumos estremeceu, sentindo a ameaça. Que nova tragédia se abatera sobre eles? O estômago dele contorceu-se como uma serpente incapaz de se livrar da sua pele. Vacilou, meio desejoso de poder correr.

Nesse momento o céu pareceu escurecer como se a sua vista se turvasse e obscurecesse. Dois Fumos sacudiu a cabeça tentando livrar-se do medo terrível que lhe apertava o coração. Que teria...

- A Trouxa de Lobo! - gritou ele, apressando-se, coxeando na direcção da tenda de Raiz de Salva.

Sangue de Urso ficou tenso quando os gritos se elevaram do outro lado do campo. A quietude desfez-se. As pessoas levantavam-se num ápice e corriam para ver o que se estava a passar. Até os cães sonolentos os seguiram, cheios de curiosidade, perante a excitação dos donos.

O campo estava-lhe aberto.

Movendo-se com todo o som do fumo sobre granito polido, Sangue de Urso correu, o coração a trovejar-lhe no peito. A sua própria audácia garantia-lhe que a honra seria sua. Este acto, aquela invasão em pleno dia do Povo do Búfalo Baixo, iria trazer-lhe honra e estatura como um homem esperto e poderoso.

Sem um instante de hesitação, puxou para trás a cortina da porta e curvou-se para entrar. Na sua frente estavam três rolos de dormir. O mais perto de si chamou-lhe a atenção. Um fardo de pele dobrada estava colocado sobre um tapete atrás da cabeceira dessa primeira cama. O saco fora feito com uma habilidade espantosa. Os bordos estavam cosidos com um ponto tão fino que quase levavam a pensar que o saco era à prova de água. O couro, curtido com toda a perfeição, brilhava, branco, acentuando as cores vivas da decoração. Os lados estavam cobertos por esfinges do Lobo, da Pele Branca e de outros mitos dos Mão Vermelha.

Sangue de Urso, quase a tremer, ajoelhou-se e deixou cair os dardos para abrir os laços do saco com os seus dedos grossos.

Lá dentro estava uma pele de lobo maravilhosamente curtida. Sangue de Urso puxou por ela e desenrolou a pele sedosa para expor a Trouxa de Lobo, os cantos um tanto amachucados mas mesmo assim familiar.

- O espírito dos Mão Vermelha! - soltou num suspiro. - Venci. A partir de agora ninguém me fará frente! Sou o líder do meu povo!

A tremer de excitação, mal conseguia controlar as suas mãos enquanto refazia o conjunto. Num gesto final, espalhou com um pé as cinzas dentro da tenda e agarrou um saco de carne seca que colocou ao ombro.

Com a Trouxa de Lobo segura contra o peito, pegou de novo no atlatl e nos dardos e baixou-se para passar pela porta.

- Sangue de Urso! - o grito apanhou-o de surpresa.

Virou-se com a velocidade de um lince encurralado. O braço direito recuou, por instinto, pronto para lançar um dardo mortal ainda mesmo antes de reconhecer o rosto angustiado da sua vítima: Dois Fumos!

- Morre, tresmalhado!

Dois Fumos saltou para o lado ao mesmo tempo que Sangue de Urso empregava toda a sua força no lançamento. Dois Fumos teria morrido ali, sem remissão, não fora o pacote de carne seca de antílope que escorregou e bateu no cotovelo de Sangue de Urso quando este soltou o dardo. E, enquanto Dois Fumos gritava, aterrorizado, o dardo assobiou por cima]” dele, sem lhe tocar, e foi perfurar a tenda atrás de si. Anif’ah! - berrou Dois Fumos, procurando afastar-se de Sangue de Urso que já montava o segundo dardo na ponta do atlatl.

Bostas e moscas! Ia-lhe cair em cima o bando inteiro! Sangue de Urso hesitou uma fracção de segundo, ajustando o fardo de carne ao ombro. gastar outro dardo com o tresmalhado? Ou iria precisar dele para escapar?

Um velho, de cabelo branco, olhos assustados, apareceu por detrás da tenda e estacou, abrindo a boca para gritar.

Sangue de Urso apontou, certeiro, e o dardo apanhou o homem em cheio no peito. Dois Alces estremeceu com o impacte, soltando um ruído rouco. As velhas pernas ficaram moles como borracha e tombou de joelhos antes de cair para um dos lados.

Sangue de Urso olhou para trás, mas viu que Dois Fumos desaparecera. Havia já gritos do Povo no ar. Sangue de Urso, o coração a bater muito depressa, saltou por cima de um poço de fogo fumegante. Sentindo o peso incomodá-lo, atirou para o pó o pesado fardo de carne. Com a Trouxa de Lobo bem segura contra o peito começou a correr com todas as suas forças, atropelando um jovem que se lhe atravessou na frente.

Uma mulher gritou. As pessoas chamavam-se umas às outras, numa confusão geral, enquanto Sangue de Urso corria campo fora. Um cão apareceu de qualquer parte e tentou cravar os dentes na sua perna. Sangue de Urso estacou apenas o tempo suficiente para cravar um dardo no animal e recuperá-lo. E logo retomou a corrida.

A suar, a respiração ofegante, forçou o seu corpo cansado a subir a encosta íngreme na sua frente. Abrandou o passo, recuperando o fôlego. Olhando para trás, não viu nenhuns perseguidores. Do seu ponto de observação podia ver o Povo que rodeava o corpo do velho e que apontava para a sua figura em silhueta contra o céu.

Sorrindo, apertou contra si a Trouxa de Lobo e começou a trotar pelo terraço. Ao longe, a noroeste, as encostas geladas das Montanhas do Búfalo brilhavam como um farol.

A Trouxa de Lobo! Desaparecida! O lugar de honra à cabeceira da cama de Dois Fumos mal retinha uma ténue impressão deixada pela pele. O vazio abria um buraco enorme no coração e na alma de Pequeno Dançarino. A escuridão espreitava as fronteiras da sua consciência. Primeiro a profanação de Castor Pesado... e agora isto!

Pequeno Dançarino olhava, incrédulo, para a cortina da tenda, abanando devagar a cabeça para marcar a sua descrença. A tenda, a sua tenda, o lugar onde sempre se sentira protegido da tempestade, do frio e do perigo, estava ali na sua frente, esventrado e violado pelo anif’ah. As peles das camas fumegavam aqui e ali, queimadas pelos carvões em brasa.

- Não. Isto não é... não pode ser...

- Sangue de Urso - murmurou Dois Fumos em anif ’ah, saindo da tenda de Três Dedos com um dardo comprido na mão.

Pequeno Dançarino deixou-se cair no chão, uma mão agarrada à vara da tenda. Estava sem força alguma e só olhava para a destruição dentro da tenda. Mal se apercebeu de que Dois Fumos viera para junto dele com o dardo a girar entre os dedos.

- Depois de todos estes anos, não sei como é que ele me descobriu aqui. Até o Povo sabe que andava por aí a vaguear. Os Mão Vermelha exilaram-no depois de eu ter partido com Água Límpida e a Trouxa de Lobo.

- É por causa de Castor Pesado. Daquela noite em que atirou a Trouxa de Lobo para a escuridão. Eu senti. O Poder mudou. O mundo está a desfazer-se. Tudo está a mudar. Talvez a Trouxa de Lobo quisesse voltar para a gente que a trata com respeito.

- Eu tratava-a com respeito. Amava-a, mantinha-a...

- Castor Pesado ofendeu-a. Já não podia confiar em ti. - Lamentou as palavras, mal as soltou. Olhou para cima, hesitante, e viu as lágrimas surgirem nos olhos de Dois Fumos. Em simpatia colocou um braço pequenino em torno da cintura do tresmalhado e abraçou-o com força.

A culpa não é tua, Dois Fumos. Não é.

Dois Fumos, tão baixinho que ele mal ouviu, murmurou:

- Sim, é. É tudo culpa minha. Desde o princípio.

Um roçar de mocassinas sobre a terra fez Pequeno Dançarino virar-se.

A sua mãe estava ali, cabelos em desalinho a rodopiar na brisa da tarde. Os olhos vazios dela mal deram pela desarrumação. Ficou a olhar para ela com o coração a bater muito depressa. A expressão no rosto dela era a de uma estranha. Olhou através dele como se fosse transparente. As mãos dela abriam-se e fechavam-se espasmodicamente. Os cantos da boca da mãe tremeram, como se fosse falar. Entrou na tenda sem um som. E, sem um som, começou a apagar com os pés os carvões fumegantes. Nos olhos dela, as lágrimas brilhavam como prata.

- Mãe? - murmurou ele, com medo daquele olhar selvagem, com medo de a chamar. Olhou para além do Povo que rodeava o corpo de Dois Alces. Ainda restavam duas varas.

Que golpe de sorte! O Povo vagueava, confuso e incrédulo, em torno do corpo de Dois Alces. Castor Pesado saiu da sua tenda envergando os melhores trajes.

- Meu povo! Eu ouvi os Espíritos! Agora mesmo, enquanto falamos, o mundo roda e aguarda. Que nos aconteceu hoje? Corça Dançante viu o erro em que estava. Os Anifah reclamaram para si o mal que era como uma ferida conspurcada a derramar pus na nossa sociedade!

Sorriu perante o ar horrorizado com que Dois Fumos o olhava. O teu dia está a chegar, monstro do inimigo! Depois de Raiz de Salva será a altura de afastar a tua presença poluidora do Povo.

- Este é o nosso derradeiro aviso! - trovejou Castor Pesado. - Dois Alces, tão juizado, tão amável, pagou com a vida! A escolha final é nossa. Temos de nos purificar dos antigos males! Temos de abrir um caminho novo para nós mesmos, ou o Mundo dos Espíritos nos virará as costas para sempre. Os maus conhecem-se a si mesmos. Dentro de dias, o Poder que invoco os banirá do meio de nós!

- Escutem o nosso Sonhador de Espírito! - gritou Atira Pedras, agitando um punho no ar ao mesmo tempo que dançava. - Castor Pesado traz-nos um novo caminho. Com o seu Poder, o búfalo irá voltar!

Fogo à Noite começou a gritar e saltar, os pés ligeiros marcando o zelo que sentia.

- Vocês - ordenou Castor Pesado ao ver Cereja de Engasgar abrir a boca para falar. - Dois Alces morreu! Nenhum de vocês carpe a morte de um grande homem? Tencionam ficar aí parados? Vão buscar salva para lhe purificar o corpo! Prestem-lhe toda a honra que merece!

- E os Anifah? - perguntou Abeto Adormecido, olhando nervosamente à sua volta. - Há mais?

Um apenas veio reclamar o objecto amaldiçoado. - Castor Pesado olhou para Dois Fumos e a criança conspurcada que estava ao lado dele. Os olhos do miúdo estavam cheios de ódio. Bem, isso era uma coisa que podia ser banida para fora dele. Era ainda suficientemente novo para ser treinado nas atitudes correctas.

- E quanto a Corça Dançante? - inquiriu Cereja de Engasgar quando o Povo já se dispersava, regressando sombriamente às suas tendas, trocando palavras murmuradas.

Castor Pesado fechou os olhos e assumiu um ar de dor.

- Quero que tu, Cereja de Engasgar... e Raiz de Salva... se ocupem dela. Levem-na para o penhasco atrás da aldeia. Decerto que vocês as duas, com a ajuda do tresmalhado e do rapaz, a conseguirão arrastar até lá.

- E Cantarás por ela?

- Às vezes chego a pensar que tu não acreditas que eu tenho Poder. Por que queres que Cante por ela?

Cereja de Engasgar não hesitou:

- Estou a pensar na família dela. A maior parte está com o bando do Pé Branco. Decerto, quereriam que alguém Cantasse por ela.

Ele assentiu.

- Cantarei. - E verás o meu Poder daqui a poucos dias, velha! - E talvez isso limpe um pouco a poluição que ela trouxe ao Povo.

Os olhos de Cereja de Engasgar endureceram.

- Sabes, rapaz, não deixo de imaginar onde está, de facto, a poluição. Ele ficou rígido, fixando olhos nos olhos a velha.

- Queres que eu Cante por ela ou não? As tuas palavras tornam muito difícil fazê-lo.

Cereja de Engasgar reteve a sua resposta mordaz e caminhou até à tenda de Raiz de Salva, murmurando baixinho. Castor Pesado ficou firme, de braços cruzados, a apreciar o ar assustado de Raiz de Salva. Os olhos frenéticos olhavam-no, reflectindo a repugnância que ela sentia por aquilo que ele lhe mandara fazer. Os braços de Cereja de Engasgar agitaram-se num apelo e, por fim, Raiz de Salva lá se levantou.

Castor Pesado ficou a vê-las desaparecer por detrás da tenda dos nascimentos. Então, olhando sub-repticiamente, deslizou em silêncio para dentro da tenda de Raiz de Salva. Tirou da bolsa umas folhas secas, esfarelando-as entre os dedos, e deixou-as cair dentro da malga de corno do guisado.

Depois de uma olhadela rápida, Castor Pesado saiu e regressou à sua própria tenda. A figueira-do-inferno faria o que as ameaças nunca conseguiriam. O Poder agia de muitas maneiras - em especial na mente da vítima.

Cereja de Engasgar baixou-se ao lado de Engraçadinha que pintava a branco uma pele de antílope. Lá em cima, na borda do terraço, Castor Pesado cantava, agitando uma matraca, Dançando em torno do corpo de Corça Dançante. Pelo menos, chegaria aos familiares de Corça Dançante a história de alguém que tinha cuidado dela. Cereja de Engasgar esfregou as manchas de sangue que o corpo de Corça Dançante lhe deixara na bainha do vestido.

- Bonita pintura. Isso é para Dois Alces?

Engraçadinha acenou em confirmação, misturando o pigmento na malga de corno.

- Todos os filhos dele partiram com o bando de Duas Pedras. Quem mais o faria? Um homem tão bom e ajuizado como ele deve subir a Teia-de-estrelas com um ar decente. Não podemos deixar que se encontre com o Sábio Lá em Cima como se fosse um coiote esfomeado.

- Não. Eu tenho um colar de contas. Vou buscá-lo para ele.

- Como é que está Raiz de Salva?

- Não muito bem.

Engraçadinha soltou um suspiro e coçou com o antebraço a testa suada.

- Achas que é grave?

- Claro que é grave. Castor Pesado está a matá-la. E está a fazê-lo através da única fraqueza dela. Ela não percebe nada de Poder. Não sabe se ele está certo ou errado. Assim que ele conseguiu que ela se interrogasse sobre isso, já ficou com meia batalha ganha.

“Pior ainda, pendurou penas de corvo nas pontas das varas da tenda dela. Raiz de Salva viu-as e vomitou. Claro que tirou de lá as penas mas havias de ver como tremia. A tenda dela foi a única que o anifah pôs em desalinho. Tudo isto se está a acumular dentro da sua cabeça.

Engraçadinha soltou o ar com força e balouçou as ancas.

- Ele tem estado o dia todo ali a Cantar. Os meus nervos estão esticados a tal ponto, que trouxe para aqui as minhas peles para deixar de o ouvir. Que dia! Corça Dançante matou-se. Um anifah mata Dois Alces e rouba a Trouxa sagrada do tresmalhado. E, no meio disto tudo, Castor Pesado continua a matar Raiz de Salva. - O seu olhar vazio mirou os lumes longínquos que brilhavam na miragem do Sol. - E eu que pensava que só a minha irmã causava sarilhos!

- Toda a gente anda nervosa. E isso também não ajuda nada. Cereija de Engasgar ajeitou-se e encostou os seus velhos joelhos ao peito.

- Temos de fazer qualquer coisa. Se não o fizermos, Castor Pesado acabará por nos destruir.

- Nós? Julguei que ele andasse atrás de Raiz de Salva. Bem sabes que ela o desprezou. Recusou-se a ir para a cama com ele. Ele é...

- Ora! Isso é apenas uma desculpa. É um engano, tal como espreitar uma manada de búfalos escondidos debaixo de uma pele. A verdade é que há anos que ele anda a preparar isto. Vê-se nos olhos dele cada vez que a olha. Sabes, uma vez até o apanhei. Tinha ido atrás dela e de Touro Esfomeado para os espreitar a fazer amor nos campos.

- Não! - Engraçadinha tapou a boca com uma mão para esconder o espanto. - Isso é... isso é...

- Grosseiro? Suave de mais. Mas, ora, é o género de homem que ele é. Matou Corça Dançante como se fosse ele mesmo a atirar o dardo. E destruir Raiz de Salva é somente mais um passo. Queres viver num bando controlado por ele? Hum? E as tuas crianças? E o teu filho, Rato Corredor? Queres que ele cresça a ouvir a conversa de Castor Pesado de como as mulheres andam a poluir a terra? Queres que a tua filha cresça para casar com um homem que foi criado a pensar dessa maneira?

Engraçadinha abraçou os joelhos com as mãos e ficou a contemplar o vale do Rio Lua. Ao fim de algum tempo, perguntou:

- Que podemos fazer para pôr termo a isso? Corvo Negro anda por aí a caçar com Touro Esfomeado e Três Dedos. Não sei o que posso fazer.

- Apoia-me.

Engraçadinha inclinou a cabeça de lado com preocupação no olhar.

- Apoiar-te a ti? E se ele me amaldiçoar, Cereja de Engasgar? És minha tia. Não sei...

- Sangue e bosta! Escuta bem o que estás para aí a dizer! Já estás meio debaixo da pata deles! Pensa, rapariga! Castor Pesado não passa de um corvo ladrão! Encontrou um bando de ratos doentes da cabeça, devido à água calcária. E agora anda à volta deles aos saltos, rosnando e guinchando para os manter confusos. Já matou e comeu o primeiro rato. O segundo já está assustado e a correr em círculos. Assim que Raiz de Salva desaparecer, irá atrás de outro. E, quando tudo estiver acabado, terão desaparecido para sempre as tradições do Povo. É assim mesmo. Ele está a tentar moldar o Povo para se encaixar na sua imagem do que o Povo deveria ser. E eu, por minha parte, não estou disposta a servir-lhe de rato! Vou lembrar-lhe que não passa de um corvo que vive da podridão!

- Cuidado, tia. - Engraçadinha olhou à volta. - Se ele te ouve...

- Ora! Que ouça! Há muito tempo que não passa de uma dor de chaga. Afinal, sempre me vais dar apoio ou não?

- Mas Corvo Negro...

Cereja de Engasgar segurou-a pelo queixo:

- Escuta que te digo, se recusas, vais acabar por ter menos estatuto que um cão. É isso que queres? Ser como um animal?

- Corvo Negro não permitiria...

- Não, mas Castor Pesado iria gostar. Só tem problemas. A mãe dele, por exemplo. O rapaz toda a sua vida odiou mulheres fortes. Repara com quem casou ele! Mas já ando por cá há bastante tempo, já fiz o funeral a maridos bastantes para te poder dizer que se ele tiver um ou dois anos para trabalhar Corvo Negro tu vais acabar mesmo junto dos cães como uma cadela parideira!

Cereja de Engasgar, o sangue a ferver, levantou-se com uma careta devido às articulações emperradas.

- Pensa nisto tudo, filha da minha irmã. E pensa muito, porque é para isso mesmo que Castor Pesado trabalha. Raiz de Salva opôs-se-lhe. Se ele a quebra... ou a mata, ninguém o conseguirá deter. O Povo, por tudo aquilo em que nos tornámos, nestes últimos dez anos, acabará.

Afastou-se, ciente dos olhos ardentes de Engraçadinha a queimarem-lhe as costas.

Sanhaço estava sentada, embrulhada numa pele, perto de Alce Encantado. Os picos erguiam-se altos e fantasmagóricos ao luar. Atrás delas, o acampamento dos Mão Vermelha parecia calmo e pacífico. Um cão ladrou até que alguém lhe atirou com qualquer coisa. Depois de um ganido nada mais ficou a não ser um suave murmúrio de vozes que se fundiam na noite.

- Detesto estar metida em sarilhos - queixou-se Sanhaço.

- Bem, se ficasses em casa e ajudasses a tua mãe na sua lida, e se deixasses de bater nos rapazes, talvez não passasses o tempo todo metida em sarilhos.

Sanhaço levantou um ombro, os ouvidos em sintonia com os sons da noite.

- Aposto que as crias dos alces andam por aí. Amanhã de manhã pòdíamos escapar e...

- Estás a ver! - Alce Encantado soltou uma risada. - Como é que vais conseguir encontrar um marido, se nunca paras no campo?

Sanhaço olhou de soslaio para a amiga.

- Para que quereria eu um marido?

- Os maridos são uma boa ajuda. Não podemos ficar grávidas sem eles. São capazes de levantar coisas pesadas, como troncos para fazer armadilhas para os animais.

- Não preciso de nenhuma armadilha. Uma vez consegui aproximar-se a um pé de um veado. Podia ter-lhe enfiado um dardo. E, além do mais, os bebés são só sarilhos. Há montes de coisas que não podemos fazer quando temos bebés. Tens de encontrar alguém que tome conta deles quando vais caçar. E tens de dar parte da caçada a quem fica a cuidar do bebé.

- Um dia destes, quando andares a vaguear por aí, um guerreiro dos Búfalo Baixo apanha-te e come-te.

- Nem penses! Se sou capaz de chegar ao pé de um alce, quem será o estúpido do guerreiro dos Búfalo Baixo capaz de me apanhar? Já ouviste as histórias de como eles tropeçam nas árvores. Não conhecem as veredas. Ninguém conhece as veredas como eu!

- Excepto Martelo Estalado, Nunca Suado, Abeto Alto,...

- Mas eu já os conheço quase todos. E, quando chegar a mulher feita, já os conhecerei a todos. Vais ver.

Alce Encantado ficou uns instantes em silêncio, a testa enrugada.

- Por que és assim? Por que estás sempre a tentar ser diferente de toda a gente?

Sanhaço encolheu os ombros, ela mesmo genuinamente surpreendida.

- Não sei. É como se alguma coisa me sussurrasse entre as árvores. Talvez como quando vais com a tua família colher bagas e o que desejas é voltar para casa, é regressar à tua tenda, onde sabes onde estás. Sabes qual é a sensação, não sabes? É que eu sinto isso quando estou na mata ou a trepar aos rochedos.

- Devias ser um rapaz.

- Talvez, mas não conheço nenhuns rapazes que sejam capazes de correr tão depressa como eu. E já obriguei Corno Solto e Vento Quente a correrem atrás de mim. Escorregam nos troncos, partem ramadas e fartam-se de tropeçar. E não é tudo, também sou capaz de atirar pedras com mais pontaria.

- Não és capaz de os vencer em força de braços. Sanhaço sorriu:

- Não, mas se lhes pregar uma rasteira primeiro, eles não conseguirão apanhar-me!

Raiz de Salva bebeu o resto do caldo frio. Mandara Pequeno Dançarino e Dois Fumos irem comer com Cereja de Engasgar. Já não tinha vontade de cozinhar. E não queria Dois Fumos por perto, a fazer coisas que se intrometiam nos seus pensamentos. Já nem sequer ligava aos bocados de gordura que flutuavam na água tépida.

Qualquer coisa negra e aterrorizadora se ergueu da tenda de Castor Pesado. Raiz de Salva soltou uma exclamação e levou a mão à boca. Abanou a cabeça e piscou os olhos, sentindo um arrepio gelado percorrer-lhe a alma. Olhando receosamente para as estrelas não viu nenhum sinal da coisa negra. O espírito de Corvo? Castor Pesado tê-la-ia prometido ao Corvo Lá em Cima em troca de ajuda espiritual?

Cerrou os olhos com força e teve a sensação rodopiante de quem está a perder o equilíbrio. Estava a atravessar a vida como se fosse um sonho. As imagens ondulavam e ficavam desfocadas ao ponto de nem sequer confiar na própria visão. Os sons pareciam ter ficado desconjuntados. Havia vozes a murmurar no ar. Nada parecia real a não ser o frio e o medo na sua alma.

- Já não sou eu. - E o frio devorava-a, aumentava com cada batida do seu coração. Como podia ela negar o poder dele quando estavam a acontecer tantas coisas estranhas? Quando o Sol desaparecera vira os troncos das árvores ondular e dançar ao ritmo do tambor de Castor Pesado.

Tremeu descontroladamente, o estômago cheio de espasmos. Isso não, outra vez não, por favor! De cada vez que comia ou bebia, o seu estômago, nervoso, deitava tudo fora.

Raiz de Salva sentou-se na parte mais recuada da tenda e os dedos, absortos, traçaram o perfil do rolo de cama arruinado onde tantas vezes Touro Esfomeado a acariciara. Fora aqui, nos limites daquela tenda, que tivera os seus filhos. Aqui cuidara deles, os abraçara, os amara. Dois haviam morrido na sua tenda, onde os corpos tinham sido limpos e preparados para serem depositados num cume, de onde as suas almas pudessem voar para a Teia-de-estrelas.

Aqui se rira com as histórias de Touro Esfomeado, aqui o repreendera quando ele disso necessitara, aqui sorrira o seu amor àqueles olhos castanhos e ternos.

A tenda tinha um ar sujo e pobre, as bainhas da pesada cobertura de couro estavam surradas nos bordos. Assim como a cobertura se desintegrara também as varas se tinham desgastado ao serem transportadas de campo em campo. Aquilo que outrora fora uma tenda enorme, que exigia dez cães para ser transportada, podia agora ser carregada por cinco. Tal como o resto da sua vida, até isto, o seu lar, estava gasto e manchado.

Uma vibração encheu-lhe os ouvidos como o som de um milhão de abelhas. A gemer, deu uma palmada num lado da cabeça. O ruído estacou de imediato, deixando um ligeiro halo da pancada que a si mesma dera.

Sentou-se, desassossegada, vendo as cinzas da sua vida, os dedos seguindo distraidamente os buracos queimados dos seus pertences.

Não era capaz de olhar para o pó em frente da entrada. Vira, com horror, Castor Pesado a traçar uma série de linhas na terra.

- Eu podia salvar-te! - Olhara-a por entre pálpebras meio fechadas, a cabeça de lado. - Só precisas de admitir a tua culpa. Curvares-te perante mim para a purificação.

O grito de horror ficara-lhe preso na garganta enquanto abanava freneticamente a cabeça.

Ele sorrira, entoara um cântico e afastara-se no crepúsculo.

O medo percorrera-lhe as veias como lascas quando ela, como louca, correra a apagar os padrões de linhas, esgaravatando a terra até as pontas dos dedos sangrarem. Depois, enrolara-se numa bola e soluçara até Pequeno Dançarino a vir consolar. Dois Fumos pegara nela e levara-a para dentro. E agora os dois dormiam, como uma guarda, à frente da porta.

Touro Esfomeado está muito longe. Quando ele voltar já estarei morta. E depois ?

- Pára com isso - disse a si mesma. - Tens de acreditar que é uma mentira. Castor Pesado não é capaz de Dançar com o fogo. Não é capaz de Cantar as estrelas. Está a tentar assustar-me. Só isso. Só está a tentar assustar-me.

E como é que tu sabes?, perguntou a voz dentro dela. Por que é que o teu estômago não trabalha? Porque é que te dói o corpo todo? Por que é que ouves coisas? E vês coisas que não estão lá? Por que é que os teus músculos passam o tempo todo a tremer? Por que é que te sentes sempre tão fria... mesmo quando estás ao sol? Estás a morrer. Não podes lutar contra o Poder dele.

O frio da sua alma pareceu expandir-se. Mesmo sem o querer, a sua mente trazia-lhe bocados e fragmentos das velhas histórias. Histórias dos Contos de Inverno que falavam de feiticeiras que eram capazes de roubar a alma de um homem. Que falavam dos Gémeos Heróis que tinham trazido os seres humanos de debaixo do chão até este mundo. E, quando tudo ficara feito, um dos irmãos mordera o outro na cabeça e o sangue gotejara, transformando-se em jaspe vermelho. O outro irmão subira ao Céu onde se tornara em um só com a Teia-de-estrelas, pois o seu Povo estava livre do mal.

- Mal. E aquilo terá voltado? - Meio dormente espreitou lá para fora, para o luar. Os raios do luar quebravam-se em milhares de estrelas cadentes. Raiz de Salva, vencida, recuou e cobriu a cabeça. Quedou-se assim até o seu corpo se afastar da terra, a flutuar, rodopiando com lentidão.

Olhou, assustada, para as sombras familiares da sua tenda. Piscando os olhos para aclarar a vista, mergulhou os dedos nas roupas para garantir que estava em chão firme.

Algures, os cães estavam a uivar e a ladrar. Lá fora, Pequeno Dançarino e Dois Fumos dormiam, encostados um ao outro, e a suas sombras oscilavam com o luar que passava entre as folhas do choupo.
A mãe dela falara de fantasmas que caminhavam nas noites de Inverno e que uivavam como o vento. Os fantasmas, sempre inquietos, roubariam decerto uma menininha se ela não fosse boa e obediente. Era assim a história. Mais tarde, meditara. Mas, naquele momento, em que enfrentava a morte da alma, talvez Castor Pesado tivesse encontrado maneira de chamar um fantasma para roubar a alma dela. E por que não?

Apurando os ouvidos conseguia ouvi-lo, cantando baixinho dentro da sua tenda. O bater surdo do tambor parecia o bater do seu coração. Os cabelos da nuca ficaram em pé.

- Eu tinha de o fazer. Eu tinha de salvar o antílope... de o fazer pelo Povo. - Deixou pender a cabeça entre as mãos. - Eu tinha de o fazer... nada mais. Não me restava outra coisa. E, agora, vou morrer por isso.

O soar ténue do tambor ressoava dentro da sua cabeça. Mudou de posição, estendendo a mão para o saco de água, e ficou imóvel. Só restava uma vara.

Cria Branca acordou de repente, piscando os olhos ao luar. Havia na sua alma um apelo que a fazia trémula e receosa. A noite mudava em sua volta e uma sensação de inquietude deslizava no luar como um espírito caprichoso dançando sobre patas de antílope.

Sentou-se, sentindo o velho coração bater de ansiedade. Nas fronteiras da sua consciência sentia ainda os restos do sonho que rebentara e soprara como as sementes do cardo. Sobre o que fora o sonho? Só restava a recordação de olhos espantados e de desespero.

Engoliu em seco contemplando as estrelas que via por entre o manto do luar.

Três Dedos, Touro Esfomeado e Corvo Negro dormiam profundamente em redor dela. O ar nocturno trazia-lhe o odor subtil da salva e, bem perto do seu nariz, havia o cheiro forte da terra. O silêncio era cortado pelo cantar dos grilos.

O medo desceu.

Cria Branca atirou para o lado o cobertor de pele já gasta.

- Vamos! Levantem-se!

Touro Esfomeado sentou-se e estendeu a mão, por instinto, para os dardos. Três Dedos piscava uns olhos muito abertos. Corvo Negro, os olhos meio fechados ao luar, olhava confuso em torno de si ao mesmo tempo que saía debaixo das suas peles de dormir.

- Que se passa? - perguntou Três Dedos. - É ainda noite. Cria Branca estava já a enrolar a sua pele.

- Eu sei. Só espero que não seja tarde de mais.

- Tarde de mais para quê? - inquiriu Touro Esfomeado.

- Não sei. - Cria Branca atou a pele enrolada à trouxa e agachou-se para passar a tira pela testa.

- Ei! Eu... - Mas a anciã já avançava pela vereda que conduzia ao Rio Lua.

Corvo Negro, a mão afagando a barriga redonda, olhava para os amigos:

- Que aconteceu?

- Não sei - disse Touro Esfomeado saindo do meio das peles e começando a enrolá-las. - Mas acho que o melhor que temos a fazer é descobri-lo.

És tu que tens de nos dirigir agora. As palavras de Cereja de Engasgar ecoavam dentro da sua cabeça.

- Não posso. Não sou suficientemente forte. - Com o coração mais parecendo um bocado de madeira continuava de olhos fixos na única vara que restava em frente da tenda de Castor Pesado. Uma vara que, ao meio-dia, já ali não estaria.

E se não puderes? Que sucederá nesse caso, Raiz de Salva? Se permitires que ele te mate, que vai ser do teu filho... e de Touro Esfomeado?

Pareceu ouvir um murmúrio vindo lá de cima, a voz de Corça Dançante a chamar. Esforçou-se por ouvir as palavras, fazendo uma careta à dor que sentia no estômago.

- Não pedi isto. Só queria criar o meu filho e fazer feliz o meu marido. Não pedi nada disto. Só queria ver o meu Povo alimentado. Mas tornei-me agora numa espécie de monstro. Corça Dançante suicidou-se porque a tentei ajudar. Se eu não tivesse lá estado... - Estremeceu e fechou os olhos perante a dor quando o cinzento da alvorada fez surgir os perfis das tendas.

Levantou-se e saiu para olhar à sua volta... e estacou. A bolsa estava pendurada numa das varas cobertas de fuligem. As penas negras de corvo saíam de uma bolsa de couro bem apertada.

Com um soluço preso na garganta puxou pela coisa. Embora incapaz de controlar os dedos trementes conseguiu rasgar a pele e estremeceu quando um bando de moscas e larvas lhe cobriu as mãos.

Uma coisa escura caiu para um lado, rolando.

Estrangulou um grito na garganta, tirando os bichos das mãos com movimentos frenéticos, tremendo descontroladamente enquanto lutava para não gritar. Recuou e o estômago voltou a contrair-se, mas dentro de si apenas havia bílis amarga. O rolo negro ainda cheio de bichos, atraiu-lhe a atenção. Reconheceu nele bocados de casca de salva. Um penso menstrual. Dela? Claro. Tinha de ser. Se não fosse, Castor Pesado não se teria servido dele.
- Um pedaço... da minha alma! - exclamou. Ele ganhou! Estou a morrer! Sinto-o!

Engoliu a custo, os pulmões lutando contra um nó que se lhe instalara na garganta. Que posso fazer? Para onde posso ir? Como me posso salvar?

Duas sombras negras passaram no ar, as asas a bater. Corvos!

As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Ele vai dar a minha alma aos corvos. E depois? Nunca alcançarei a Teia-de-estrelas. Nunca... Os olhos de Corça Dançante miravam-na das profundezas das suas torturadas memórias. Corça Dançante subira à Teia-de-estrelas.

Os dentes de Raiz de Salva bateram com o frio da alma. Quanto tempo lhe restava? Quando tempo faltava para Castor Pesado lhe arrancar a alma do corpo?

Alvorada. A sua derradeira alvorada. Meio atordoada, entrou na tenda e procurou a trouxa de esquartejar - o mesmo que usara nos antílopes. Que apropriado!

Virou-se e endireitou as costas, e os seus olhos encontraram os de Abeto Adormecido, que a observava da porta da sua tenda e se apressou a desaparecer lá dentro.

O frio dentro da sua alma crescia cada vez mais. Até as amigas a receavam naquele momento. Quem queria ser visto a falar com uma mulher amaldiçoada? Estava morta, de uma maneira ou de outra. Podia deixar que Castor Pesado lhe roubasse a alma com o seu Poder de Espírito... ou podia libertar-se a si mesma.

Evitou, colocando os pés com cuidado, Pequeno Dançarino, que dormia nos braços de Dois Fumos. Dos lábios dela soltavam-se sussurros. Se calhar ele estivera perto de mais dela e apanhara um pouco da maldição de Castor Pesado? Mais outro erro dela.

Desceu até ao rio e começou a caminhar ao longo da margem. Olhou, quase sem ver, a linha cada vez mais cinzenta do horizonte, as melodias trinadas dos melros de asas vermelhas que cantavam no meio dos espessos arbustos que ladeavam o rio. Mais à frente, uma enorme garça azul abriu as asas e voou ao sentir a sua presença. Até as aves a evitavam.

Uma sugestão de movimento captou-lhe a atenção. Um enorme lobo negro estava imóvel numa elevação, vigiando-a com olhos conhecedores. No corpo elegante do animal sobressaíam músculos poderosos. A luz cada vez maior acentuava o brilho do seu pêlo. Outra das criaturas de Castor Pesado? Assustada, desviou o olhar.

Esmagava-a uma solidão terrível.

- Touro Esfomeado? Onde estás? Vem para o pé de mim. Não me deixes enfrentar isto sozinha.

- Por que permitiste que Sangue de Urso me roubasse?

A voz do Sonhador de Lobo flutuou da ilusão que rodeava a Trouxa de Lobo como uma nuvem.

-Porque ele pediu e ofereceu uma parte de si mesmo. Vamos ver o que fará ele com o Poder, agora que o invocou.

A Trouxa de Lobo inspeccionou os limites da mente de Sangue de Urso.

- Não vejo mudança alguma. Está tão louco como estava. Troça daquilo que os homens sóbrios consideram com respeito.

-Ele pediu e eu tenho o bocado dele que me ofereceu. Quem sou eu para negar a um implorante?

- Não és tu que estás a correr nos braços dele. E se acabo num fogo?

- Nem mesmo Sangue de Urso é assim tão estúpido.

- Mas as Trouxas, e o Poder nelas contido, podem ser mortas.

- Tal como os Sonhos... e os Sonhadores.

- O Vigilante mantém-se de olho no rapaz.

- E se isto passa para lá das capacidades do Vigilante?

 

Dois dos cães do acampamento envolveram-se numa luta. Pequeno Dançarino acordou. Podia sentir o medo que pairava em volta. O erro e o mal estavam no ar da manhã como o cheiro da carne podre. Esfregou os olhos, meio colados, para os abrir. A seu lado, Dois Fumos resmungou e bocejou. As barras douradas do sol da manhã atravessavam os espaços entre as folhas dos choupos. As coisas tinham um tom azulado devido ao fumo dos fogos da manhã. Em volta dele, o campo começava a agitar-se.

Pequeno Dançarino olhou para a tenda de Castor Pesado e fixou a terrível vara erguida na luz amarela. Voltaram-lhe as memórias do terrível dia anterior, uma colagem de imagens da expressão horrorizada de Corça Dançante morta, o pânico nos olhos da sua mãe quando vira uma vara sozinha, a incursão de Sangue de Urso e a perda dolorosa da Trouxa de Lobo. Recordou o corpo de Dois Alces deitado de lado, com o ancião em posição fetal em volta do dardo violento que lhe bebera tão profundamente a vida.

Pequeno Dançarino levantou-se, frenético, para mirar a destruição dentro da própria tenda. Vazia. Uma premonição sombria começou a crescer dentro de si. Sentiu mais uma daquelas crises de ansiedade a enchê-lo, familiar mas estranha: só.

- Mãe? - Deu a volta à tenda para espreitar nos arbustos, não fosse ela ter ido simplesmente aliviar-se. Nada.

- Mãe?

- Chiiuu! - exclamou Abeto Adormecido de dentro da sua tenda

Há gente a dormir.

- Mã E! - Ficou sem respirar, com uma opressão no peito como se uma mão gigantesca o apertasse.

- Ei - chamou Dois Fumos. - Agarra na minha mão e vamos procurá-la. Não vale a pena acordar o campo inteiro. O tresmalhado sorria, um sorriso inquieto, os olhos inspeccionando as tendas.

Ainda não tranquilizado, Pequeno Dançarino colocou a mão na do amigo e perguntou:

- Vamos encontrá-la?

- Vamos encontrá-la.

E juntos a procuraram, fazendo o perímetro do campo sem nada encontrar. Os carreiros estavam tão usados que a terra se convertera num pó fino. As únicas pistas que neles se viam não passavam de imagens desfocadas.

Uma súbita onda de desespero apanhou Pequeno Dançarino totalmente desprevenido. O mundo pareceu deslizar de lado. Uma tontura repentina fê-lo inclinar-se para a frente, agarrado ao estômago. Uma ânsia de vomitar revolveu-lhe os intestinos até as pernas ficarem moles.

- Pequeno Dançarino? Que tens? Que...?

Uma avassaladora sensação de impotência possuiu-o por um instante antes de ser substituída pelo desespero. Sentia-a, sentia os movimentos da mão dela a segurarem a pedra e...

- Não! - gritou antes de o estômago despejar no chão tudo o que tinha. - Não! - tossiu com a golfada de bílis que lhe entrou pelo nariz e parecia querer-lhe cortar a respiração. - Não!

A sensação de deslocação passou tão depressa como viera. Ficou a olhar, completamente drenado, o vómito espalhado sobre a terra. Um abismo, infindável como o vento, abriu-se dentro dele. A perda rodopiava na sua mente. Desorientado, procurou voltar a respirar, sentindo-se como se atingido no peito.

- ...e respira fundo. Respira devagar. Não tenhas medo. Foi só o medo, a preocupação, que te apanhou. - Dois Fumos, ajoelhado a seu lado, confortava-o. Mãos fortes apoiaram o seu corpo quando voltou a tossir e olhou para cima. O mundo parecia lavado, como se o observasse através de uma película de água. As cores pareciam não ter brilho. O ar dava a sensação de espesso e meio vivo. Até a luz do Pai Sol perdera o seu fogo e ficara pálida e fraca.

- Mãe! Volta! Volta para mim!

- Não, pequenino, nós...

- Ela está morta! - Lutou para se levantar e Dois Fumos ajudou-o quando vacilou. O tresmalhado mirava-o, sentindo dentro de si uma profunda preocupação.

- Provavelmente, ela foi apenas...

- Não! - gemeu o rapaz, percorrendo o carreiro com uns olhos frenéticos. - Eu sentia-a morrer! Eu senti-a.

- Por favor, pequenino, não comeces a imaginar coisas...

- Pára com isso! Pára com isso! Ela está morta! Eu sei!

- Estás maluco! - O tresmalhado calou-se, imobilizado pelo olhar que Pequeno Dançarino lhe lançou.

Pequeno Dançarino, meio engasgado pelas lágrimas, gemeu:

- Tu sabes, não sabes? Vi-o nos teus olhos. Tu sabes que eu sinto coisas. Que ouço coisas que a maioria das pessoas não ouve. Ouvi os antílopes no sítio da matança. Chamei-os. Eu fiz isso. Num Sonho, Dois Fumos. - As lágrimas percorriam-lhe, ardentes, o rosto, para caírem do queixo tremente. - E Castor Pesado matou a minha mãe. Afastou de nós a Trouxa de Lobo. Ele matou o bebé de Corça Dançante... e depois matou-a a ela. Ele é só maldade. Ele é mau e perverso.

- Chiu! - Dois Fumos ficou pálido e caiu de joelhos para mirar Pequeno Dançarino olhos nos olhos. - Está calado, pequenino. Já estás num sarilho. Castor Pesado é um homem poderoso. Pode fazer aquilo que lhe apetecer sem que ninguém lhe diga nada. Tens de ter tento na língua. Farás isso? Por mim? Bem sabes que ele me magoará. Só está à espera de uma ocasião para o fazer.

Pequeno Dançarino olhou-o, indeciso, a mente em torvelinho, sentindo-o doente no mais fundo da sua alma atormentada.

- Eu odeio-o! Vou matá-lo! Estás a ouvir-me, Castor Pesado? Eu vou matar-te!

- Chiu! - Dois Fumos tapou-lhe a boca com uma mão, olhando, receoso, para o caminho que haviam percorrido. - Nunca digas isso. Nunca. A tua vida está à distância de um dardo da morte. - Dois Fumos engoliu em seco, com as mãos a tremer. - Promete-me que não voltas a dizer isso. Promete-me! E depois iremos procurar a tua mãe e mostrar-te-ei como é tola essa tua ideia de que está morta.

Pequeno Dançarino olhou-o com raiva e dor. Levantou um braço, com decisão, e apontou:

- Ela está acolá.

- Nesse caso, vamos ver. E talvez possa, pelo caminho, meter algum juízo dentro da tua cabecita. - Dois Fumos ofereceu-lhe a mão.

Pequeno Dançarino recusou-a, sem se importar, e avançou com um objectivo negro. As lágrimas continuavam a cair-lhe do rosto. Parava periodicamente para passar a manga suja pelos olhos e aclarar a sua visão turva.

Na sua mente formavam-se imagens dela. Sorria para ele e falava-lhe com carinho. À luz de um fogo, dentro de uma tenda acolhedora, o rosto dela reflectia amor e cuidado. Quantas vezes as suas mãos suaves o haviam acalmado, sarado as suas feridas? Quantas vezes a expressão dela se iluminara ao contar-lhe uma história ou a vê-lo comer o caldo que acabara de lhe dar? Quando voltassem outra vez as noites de Inverno onde estariam as mãos quentes que lhe aconchegavam as peles ao queixo? Quem o escutaria quando tivesse um problema? Apagara-se uma luz na sua alma. Só ficara escuridão.

O velho choupo tombara anos antes. Estações de chuva e vento haviam arrancado a casca da madeira. Depois, o sol brilhante da pradaria lavara a madeira até lhe dar um tom de prata-brilhante. Raiz de Salva parara no sítio em que o tronco se dividia em dois ramos. Sentara-se ali, aninhada entre os ossos da árvore. A cabeça tombara-lhe para trás, expondo o seu rosto ao sol matinal. Tinha um ar cansado e vulnerável. Ao lado dela, o saco de desmanchar permanecia aberto. No chão estava tombado um núcleo de obsidiana negra. A luz do sol reflectia-se nas superfícies vítreas de onde tinham sido arrancadas lascas. Um pequeno martelo de quartzite descansava ao lado do núcleo.

As moscas já esvoaçavam, num zumbir coscovilheiro, sobre a rica colheita do seu sangue acumulado na saia do vestido.

Uma mão dura segurou Pequeno Dançarino pelo ombro e procurou fazê-lo recuar.

- Volta já para o campo! - ordenou Dois Fumos. - Imediatamente! Não quero...

- Ela cortou os pulsos, Dois Fumos. Eu senti-o. Foi nessa altura que fiquei agoniado. Ela cortou os pulsos e deixou-me ficar completamente sozinho.

- As lágrimas tinham voltado a correr, quentes, pelo seu rosto. - Por que é que ela morreu? Por que me deixou ficar aqui? Eu precisava dela, Dois Fumos. Eu precisava dela para me abraçar.

- Vamos regressar.

- Não doeu. - murmurou, a soluçar, Pequeno Dançarino. - A obsidiana é muito afiada. Ela bateu uma lasca e abriu os pulsos. E morreu. Dois Fumos, por que é que o mundo é tão mau para nós?

A mão sobre o ombro começou a puxá-lo inexoravelmente para trás.

O movimento parou. Dois Fumos segurava-o, apertando-o contra si num abraço cerrado. Choraram juntos, os dois à deriva, sem sítio para onde ir. Mas nada podia encher o vazio doloroso que estava dentro dele.

Ficara vazio. Tão vazio.

Castor Pesado piscou os olhos e acordou. Podia ver, através do buraco do fumo, uma mancha do céu azul. Não dormira muito bem. O fantasma da sua mãe, como uma língua de nevoeiro, invadia as sombras dos seus sonhos. O eco da sua voz tinha tentado soar na mente dele.

Por que é que as mulheres não podiam todas ser tão perfeitas como a sua mãe fora? Enchia-o uma saudade imensa. Amara-a como amais amaria outra mulher. Tudo o que ele precisava de fazer era chorar e ela vinha logo a correr. Quando os outros rapazes o gozavam, era ela que os afugentava com um pau. Quando se magoava, ela chegava e acariciava-o, acalmando-o. Quando o pai dele objectara a atenção constante dela, e tentara obrigá-lo a sair e brincar, ela pusera-o fora com vis ameaças. Contra todos os problemas do mundo, ela permanecia firme. De todos do Povo, só ela compreendera os seus medos e necessidades. Só ela reconhecera os seus talentos e virtudes especiais, mesmo antes de ele saber que os tinha. Uma vez que ela salientara a grandeza dele como é que ele a podia ignorar?

- Foste escolhido, Castor Pesado. É por isso que és diferente. Os espíritos tornaram-te único para coisas especiais. É por isso que não te adaptas. E por isso que os outros rapazes gozam contigo e te pregam partidas. Têm ciúmes. Vêem como és especial... e não gostam. É esse o caminho dos grandes homens... sempre desprezados pelos seus inferiores. Vais ver. Um dia estarás por cima de todos eles.

Se todas as mulheres tivessem a mesma inteligência e sensibilidade para ver as coisas, o mundo seria um lugar melhor. Não precisaria de tanto esforço para levar o Povo a seguir o caminho correcto.

Mesmo agora, anos depois da sua morte, sentia a sua falta como um desejo e um vazio na sua alma. Mal dera por isso no primeiro dia em que ela se queixara de falta de fôlego. Estava preocupado com outras coisas. Claro que ela sempre ali estivera, forte, sabendo sempre o que devia fazer. O pensamento de que ela não continuaria eternamente ao lado dele parecia-lhe impossível. A decisão de Sílex Vermelho fora dela. E ela mesma combinara tudo com a família da rapariga - e a escolha fora a correcta.

- Sílex Vermelho é a rapariga que te convém, obediente. Nunca tentará sugar-te até ficares seco, como a maior parte das mulheres faz. Merece-te, reconhece os teus talentos sem ter deles ciúmes. Sabes que é por isso que Corça Dançante, Raiz de Salva e as outras não se deitam contigo. Porque estão preocupadas, é só por isso. Junto de ti não poderiam controlar tudo como agora o fazem. Já as viste? A andar por aí, meneando as ancas e os peitos para provocarem uma reacção. Não, tu não serias capaz de viver com uma mulher dessas. Ela estaria constantemente a tentar segurar-te. Teria de viver para sempre na tua sombra e acabaria por te fazer a vida miserável, porque seria a única coisa que lhe restaria fazer. Isso e intrigas. Sabes bem como as mulheres são intriguistas. Sempre a tentarem arranjar sarilhos. Olha-me para Cereja de Engasgar. Repara na maneira como me tenta humilhar na frente dos outros. Sempre a criticar. Decerto não queres uma mulher desprezível como ela. O que queres é uma mulher que te reconheça por aquilo que és... como Sílex Vermelho.

E, de facto, tivera razão. Sílex Vermelho nunca o desafiara. Em vez disso, até fora a primeira a reconhecer as suas capacidades. As pessoas tinham rido muito, divertidas com a ideia de ele se ir casar com uma mulher que ninguém queria, mas o erro fora deles. Não viam com a clareza com que ele via. Não compreendiam a verdadeira situação.

Sorriu ao olhar para o sítio onde Sílex Vermelho dormia. Se ele ainda tivesse a mãe ao pé de si! Se ela pudesse ver o seu sucesso!

A falta de fôlego não desaparecera. Dia após dia, ela ficara cada vez mais consumida. A medida que o tempo passava, e o inevitável se aproximava, ele ficara um tanto louco de preocupação e dor. Claro que isso era natural. Todos os Sonhadores de Espírito ficavam um tanto doídos de tempos a tempos. Nessa altura, não se apercebera de que os Sonhos o tornavam nervoso. A mãe dissera-lho nos seus derradeiros dias.

- É o Poder, rapaz. É por isso que tens andado tão assustado. É o Poder que está a começar a viver dentro de ti. É por isso que tens sido miserável para toda a gente. O Poder faz coisas dessas. Leva tempo a ficar-se acostumado com ele. No futuro terás medo, mas é o Poder. Confia nele e usa a tua cabeça. Foi por isso que o Poder te escolheu. És mais esperto que os outros todos. Pensa, rapaz. Usa o Poder.

Tal como os padrões das brasas sobre o couro também a manhã em que acordara com exclamação abafada de Pederneira Vermelha estava gravada para sempre a fogo na sua memória. A mulher que o dera à luz, que cuidara dele, que vira a sua grandeza, estava morta, uma expressão vazia, os olhos baços à luz da manhã.

A morte da mãe quase o matara. Só o conhecimento de que tinha poder lhe mantivera a sanidade durante aqueles primeiros e dolorosos dias. Ninguém, excepto a mãe e Sílex Vermelho, vira e compreendera as suas capacidades.

Quando começara a pregar a poluição do Povo, os homens e as mulheres escarneciam-no. Primeiro viera a morte de Miolo de Corno, depois a seca cada vez maior e só então tinham começado a ouvi-lo com mais cuidado. Os homens mais novos tinham começado a abanar a cabeça, em concordância, quando ele lhes revelava como as mulheres irritavam os espíritos. Um a um tinham começado a ver a razão das suas palavras. De cada vez que ele previa sarilhos estes aconteciam. E, agora, tudo o que ele proclamava acabava por se tornar verdade. O Búfalo Lá em Cima levara para longe os seus filhos. O Homem Chuva já não dançava as chuvadas vespertinas lá de cima das nuvens. Não conseguiam manter afãstados os Anifah. O Povo sufocava na sua própria poluição.

Hoje, a disciplina que a mãe lhe instilara iria dar os seus frutos. Na noite anterior vira o olhar de Raiz de Salva. Roída pela dúvida, à beira do colapso. Fora uma sorte danada aquela de Corça Dançante ter-se matado com a lança de Corre Bem Longe. Até então, Raiz de Salva podia ter aguentado as suas maquinações apesar da figueira-do-inferno. Vira, espreitando por entre as fendas da tenda, Raiz de Salva rasgar e queimar as penas de corvo. Ter roubado o penso menstrual da tenda de sangue das mulheres fora um acaso. Nem sabia de quem era. Uma rajada de vento trouxera-o até onde o vira. Claro que o tivera de agarrar com paus para não se contaminar. A própria ideia de uma mulher sangrar todos os meses lhe causava asco. Em parte alguma da sua memória se lembrava da mãe a sangrar assim - mas, afinal, ela fora especial.

Gatinhou para espreitar pela fenda que abrira, cortando os pontos miúdos de Sílex Vermelho. A trouxa já não estava pendurada na vara da tenda. Raiz de Salva encontrara-a.

Sílex Vermelho, ainda a dormir, remexeu-se e rolou dentro das roupas e um braço ficou de fora. Ficou um bom bocado a contemplá-la. Como tivera razão a mãe ao escolhê-la para ele.

Começou a compor mentalmente o discurso que faria perante o corpo de Raiz de Salva. Dir-lhes-ia como o Antílope Lá em Cima Dançava de alegria porque o Povo matara a profanadora. As pessoas prestavam atenção quando ele contava histórias sobre os seus sonhos. Aliás, passava a maior parte do seu tempo a pensá-las. Depois, quando os dias ficavam aborrecidos, subia aos cumes das colinas e sentava-se a observar o céu. Agora, já sabia como conseguir aquele olhar distante, como modelar a voz. E eles escutavam-no, de olhos baixos, e aceitavam.

Agora só os mais velhos protestavam. Quanto pior ficava a seca, quanto mais pele e osso os animais, mais o Povo escutava. Já os caçadores mais novos começavam a repreender as mulheres e a excluí-las dos conselhos de caça. Isso colocara a maioria das mulheres no seu lugar.

Alguns, como Touro Esfomeado, continuavam a ignorá-lo - mas, para sua própria consternação, acabaria por aprender. Um leve arrepio percorreu a espinha de Castor Pesado. Que feliz acaso levara aquele jovem impetuoso a partir numa longa caçada. Menos uma barreira a vencer - para não falar do medo de um dardo nas costas. Não dava para imaginar como teria reagido Touro Esfomeado se soubesse que a mulher fora amaldiçoada. Agora, voltaria para uma tenda vazia. Tudo estaria terminado.

E se Raiz de Salva desenterrasse uma resistência final? Castor Pesado riu-se. Ele tinha a planta, a figueira-do-inferno, que obtivera do mercador Três Assobios.

- Uma coisa bonita - dissera-lhe ele. - Cresce nos desertos do sul, a oeste das montanhas altas. As folhas são verde-escuras e, no Verão, tem uma grande flor branca que se abre durante o dia. Os Sonhadores lá em baixo usam apenas pequenas quantidades. Em demasia provoca arrepios na alma - faz uma pessoa vomitar e ver e ouvir coisas.

Castor Pesado usara a maior parte do que tinha no caldo de Raiz de Salva. E, distraída como ela era, acabara por comer tudo. O que ainda sobrara, acabaria com ela.

Uma leve sombra cobriu-lhe o coração. Era uma vergonha perder assim uma mulher tão desejável.

Mas ela estava no caminho dele e ele remodelaria o Povo, tal como a mãe gostaria de ter feito. Usando a imagem dela, uma imagem de pureza e virtude, ele os desbastaria como um artista fazia a uma ponta soberba. Depois, quando os tivesse purificado da poluição, tornariam a ter aquilo que os Anifah lhes haviam retirado. À sombra dele reclamariam os ricos terrenos de caça dos planaltos das Montanhas do Búfalo.

O seu novo caminho, como um fogo, varrê-los-ia da sua frente e abriria uma nova passagem pelas planícies.

Outras mulheres, tão desejáveis como aquela - só que mais obedientes - seriam suas. De todo o Povo, seria ele a escolher.

Gatinhou até à camisa e vestiu-a. Depois vestiu as calças de pele de vitela, que lhe fizera Abeto Adormecido.

- Mãe? - o grito pairou lá fora.

Quem? Ah, sim, a pequena cria indisciplinada de Raiz de Salva. Voltou a chamar. Alguém lhe gritou. O coração de Castor Pesado saltou quando o choro do miúdo ficou mais frenético.

Quando, finalmente, saiu da tenda já tinham silenciado o miúdo. Castor Pesado ainda viu o anif’ah aleijado que conduzia o pequeno por um dos carreiros. Uma onda de ódio cercou-lhe o coração. Hoje, assim que Raiz de Salva deixasse de ser um obstáculo, trataria do tresmalhado. Aceitara, durante anos, a irritante presença de um homem em roupas de mulher. Convenceria os jovens guerreiros a ocuparem-se do anif’ah, explicando-lhes que uma violação degradante seria permitida contra uma coisa como Dois Fumos.

Antes de o Sol se pôr no horizonte já Dois Fumos estaria expulso ou seria arrastado dali para fora com os miolos rebentados. Quando a noite chegasse, o Povo estaria limpo da poluição e de coisas semelhantes. Que bênção fora aquele anif’ah roubar a Trouxa de Lobo, dando-lhe o argumento perfeito para usar contra o tresmalhado. A única coisa que Castor Pesado lamentava era ter-lhe sido negada a glória de queimar aquele objecto de feitiçaria no fogo enquanto Dançava e Cantava perante o espanto do Povo ao ver que o Poder dele vencia a mágica dos Anifah.

Não admirava que o búfalo os tivesse abandonado. O seu Povo apodreceria até ao fundo como um choupo velho. Havia de soprar neles uma força nova como os rebentos da Primavera.

No caminho, para se aliviar, Castor Pesado parou perto da tenda Raiz de Salva para observar um bocado do penso menstrual que a brisa prendera nuns arbustos. Vermes secos tinham caído no chão, mortos. Riu-se baixinho.

Cria Branca seguia na frente ao longo do cume. A dor na anca massacrava-a e os pulmões queriam estalar. Depressa de mais. O seu velho corpo já não aguentava aquele passo.

Atrás dela, os três caçadores trotavam com agilidade, os peitos mal se mexendo. Ah, ser outra vez nova! Outrora correra como o vento apesar das ancas e músculos de mulher.

- Acolá - disse Corvo Negro, apontando à luz cinzenta da alvorada.

- Acolá fica o campo. No sítio onde o rio corre a direito.

Resmungou e retomou o passo mas não sem antes ter visto a expressão preocupada de Touro Esfomeado. Teria ele também sentido aquilo?

- O tempo é curto - resmungou ela. - Vamos.

- Curto? - perguntou Touro Esfomeado com a preocupação a roer-Lhe as feições.

Ela fez uma pequena pausa.

- Há qualquer coisa no vento. Os espíritos estão à solta. Há quatro dias que assim é. - Hesitou. - Escutem. Não sei o que está a cozer na bolsa de ferver, mas na visão está a chama. Seja o que for, eu quero tratar disso.

Os homens olharam uns para os outros com expressões que manifestavam a inquietação que neles crescia.

O pânico invadia os intestinos de Touro Esfomeado. Já antes o sentira. - a sensação que tinha quando sabia que o búfalo ia carregar. Havia algo de errado a pulsar na sua alma. Cada instante passava com a urgência, o sangue a pingar gota a gota no pó. Ansioso, começou a acelerar o passo para ser agarrado por Cria Branca. Os dedos dela cravaram-se no braço dele.

- Não te comportes agora como uma cria aluada de búfalo apanhada numa tempestade de relâmpagos. Isto é Poder de Espírito. Percebes? Deixa que seja eu a preocupar-me com isso.

Touro Esfomeado, de pulso acelerado, lambeu os lábios.

- Tenho de ir. Eu sinto-o. Tenho de ir. Ela cravou-o com o olhar.

- Quero a tua promessa. Sobre a tua alma. Deixa-me tratar disto!

- Sobre a minha alma. - Ele engoliu nervosamente. - Não gosto de me meter com Poder do Espírito. Não quero nada com ele. Mas temos de ir! da luz do sol nem da terra sob os seus pés. Existia separado do ar e da alma da terra. Os braços de Dois Fumos que o rodeavam podiam ser mera ilusão, não fosse a pressão que lhe esmagava os pulmões. As lágrimas tinham secado e deixado uma dor surda entre as costelas. Tornara-se num simples como sem nada lá dentro - como aquelas cascas pequeninas que o tresmalhado tirava das sementes, soprando-as ao vento.

- Temos de a levar para o campo - disse Dois Fumos numa voz rouca.

A voz soou distante aos ouvidos de Pequeno Dançarino. Nem sentiu os braços do tresmalhado afastarem-se. Mantinha o olhar fixo na eternidade. Dois Fumos pegou no corpo inerte de Raiz de Salva, tirando-o de entre os ramos do choupo e colocando-o onde podia segurá-lo melhor.

Pequeno Dançarino mal reparou na dor reflectida no rosto de Dois Fumos quando o peso do corpo da mãe caiu sobre a perna aleijada. O tresmalhado dobrou as costas e reajustou o peso.

Olhou para o tronco manchado de vermelho. Ali, atrás dele, viu o lobo negro. O animal estava imóvel, de orelhas arrebitadas, observando tudo. Um formigueiro de Poder percorreu a nuca de Pequeno Dançarino. Os olhos dele fixaram-se nos do animal, reunindo-se, interligando as almas. “

Não! Não quero isto! Mãe? Onde estás tu? Pequeno Dançarino desviou o olhar e seguiu o homem. Como um martelo de pedra a bater num tronco, Dois Fumos soltava um gemido cada vez que a sua perna rígida aguentava o peso. O caminho de regresso não era mais do que três lançamentos de dardo, mas Dois Fumos vacilava ao entrar no campo.

Uma dor perfurou o coração de Pequeno Dançarino quando Dois Fumos deixou cair a sua mãe. Quando o corpo dela tocou no chão soltou um som cavo e ressaltou como uma carcaça recém-abatida pelo caçador. Dois Fumos tombou de exaustão ao lado dela. Os dentes dele cravaram-se no lábio e o rosto contorceu-se, respondendo à dor da perna defeituosa.

Pequeno Dançarino ficou ali, mudo, os olhos fixos no corpo da mãe enquanto Dois Fumos corria com mãos ansiosas sobre a perna rígida. As gotas de suor captavam a luz da manhã e brilhavam como cristais de gelo ao percorrer o rosto dele. O cabelo do tresmalhado estava molhado e pegajoso e o suor manchava o couro finamente trabalhado das costas do vestido.

- Raiz de Salva! Está morta!

Na névoa que era a sua mente, Pequeno Dançarino não reconheceu a voz. Só vagamente notou o monte de gente que correu para ver. Dentro dele começou a crescer uma tensão quando o sussurro das vozes começou a intrometer-se dentro da sua mente vazia. O crescente murmúrio irritava-o ao interferir na sua concentração. Não eram capazes de compreender? Não eram capazes de sentir a dor e a mágoa?

- Afinal, o momento chegou! Algum de vocês duvida agora de mim?

- Castor Pesado abriu caminho entre a multidão para contemplar o corpo de Raiz de Salva. O Sonhador de Espírito levantou as mãos ao céu matinal. O seu rosto redondo estava vermelho, iluminado pelo triunfo.

- Que ninguém duvide do Poder do meu Sonhar. Olhem! Olhem para o que têm na vossa frente, meu Povo! Vejam a poluição a ser limpa! Olhem para os céus e vejam o Antílope Lá em Cima que se alegra por ter sido feita justiça com a mulher que profanou os seus filhos!

Pequeno Dançarino olhou a manhã. Tornou a olhar, com mais força, nada mais vendo do que ar vazio no ponto para onde Castor Pesado apontava. Um punho fechou-se e rodou no seu estômago. O mal pairava no ar que o rodeava. Ele escutara o antílope, recordava a Unidade do Sonho. Partilhara o sabor da salva nas bocas dele, espreitara e sentira a sua inquietação. Agora, nada mais sentia que a sensação de estar à parte. Quando olhou para Castor Pesado nada viu, nada sentiu, a não ser uma estranha e curiosa sensação de estar a ser enganado.

- Mentes! - gritou ele na sua miséria. - Tu não vês nada a não ser o que está dentro da tua cabeça. Tu nada sabes da Unidade. Tu nem consegues sentir o Poder à tua volta. És um trapaceiro. Um ladrão.

Uma exclamação do Povo atiçou a faísca de raiva dentro do peito de Pequeno Dançarino. No nada queimava, brilhante, procurando atacar, pagar dor com dor e terror com terror.

Castor Pesado rodou sobre si mesmo, os olhos negros brilhando:

- A partir de agora, rapaz, viverás comigo. Foste manchado pela corrupção. Posso vê-la escondida na tua alma. Há dentro de ti um mal. Um mal que tem de ser batido, queimado, expulso de ti para salvar a tua alma da feitiçaria dos Anif’ah.

- Não! - gritou Dois Fumos, levantando-se devagar, o suor a escorrer do seu rosto torturado. Conseguiu fazer força num pé, fazendo uma careta de dor quando se começou a virar para enfrentar o Sonhador de Espírito. Castor Pesado fê-lo tombar com um pontapé.

- E tu, anif’ah! Tu és a pior de todas as poluições. És um monstro! Ofendes tudo o que é normal no mundo. Um homem que gosta de homens e se veste como uma mulher? És uma vil pústula! A partir deste momento expulso-te pelo mal que és! Desaparece! Desaparece do Povo. Agora! Deixa-nos... e, se alguma vez regressares, receberás a morte purificadora que mereces!

Dois Fumos abanou a cabeça e procurou levantar-se, fazendo força sobre a perna boa.

- Não, tu não compreendes a... Gritou de agonia quando Castor Pesado lhe deu um pontapé no joelho aleijado. O grito gelou a alma de Pequeno Dançarino e soltou-lhe os intestinos com a intensidade de sofrimento que comunicava.

A sanidade de Pequeno Dançarino cedeu sob uma onda de ódio. Voou para Castor Pesado arranhando, gritando e batendo com toda a raiva solta do seu pequeno corpo.

O grito assustado que se soltou dos lábios de Dois Fumos foi por ele,! mas a raiva e a dor não o deixaram parar enquanto gritava com desespero. O corpo pesado do homem desafiava-o. Uma mão agarrou-o pela camisa, levantando-o no ar, enquanto batia em carne invulnerável. O mundo girou quando foi lançado com violência para longe.

O chão rodopiou e levantou-se. Quando bateu nele e ressaltou houve luzes brilhantes no seu cérebro. A respiração saía-lhe a custo dos pulmões pesados. A dor - uma dor física e pulsante - rasgava-lhe os nervos. O medo estrangulava-lhe a respiração dos pulmões e a sua vista estava enovoada e cheia de clarões. Os ouvidos estavam cheios de ruídos.

Dois Fumos voltou a gritar como um coelho ferido espetado numa vara afiada.

- Estão a ver? Estão a ver o que fez esta poluição? Estão a ver como transformou um pobre rapazinho num animal? Este é o mal que infligiram a vós próprios! Permitimos o mal no nosso seio. E ainda perguntam por que é que a chuva não cai? Por que é que a erva não cresce, grossa e verde, para o búfalo? Como é que algum Espírito de valor mandaria caça para um povo que alberga uma ofensa assim?

Uma voz de aceitação ergueu-se do Povo.

- Amaldiçoado sejas, Castor Pesado! - A voz velha de Cereja de Engasgar perfurou o ar. - Já não fizeste o bastante? Agora vais acrescentar tortura à...

- Silêncio, velha! Fazes parte disto. Alguém que a remova. Levem-na daqui antes que irrite os Poderes do Espírito!

Cereja de Engasgar gritou por entre um restolhar de pés.

À medida que o ar regressava aos seus pulmões esfomeados, a vista de Pequeno Dançarino permanecia nublada por copiosas lágrimas. Soluçava de dor, de futilidade, de raiva. Soluçava de injustiça e violação. Mais que tudo, soluçava a sua impotência. Corria-lhe sangue do nariz. Castor Pesado atirara-o com tanta força que tudo lhe doía.

- Com que então não partiste, tresmalhado? - A voz de Castor Pesado penetrou na mente de Pequeno Dançarino como óleo a embeber couro seco. - Foste tu a escolher. A tua maldade termina aqui. Alguém que me traga uma maça. Hoje Cantaremos todos o fim da poluição. Juntos Dançaremos para longe a mancha do tresmalhado. Com as nossas vozes unidas chamaremos os Espíritos do Poder, para que vejam como limpamos o Povo! E, então, virão as chuvas. E virão os búfalos.

- Limpos com o meu sangue? - gritou Dois Fumos. - Limpos por assassínio?

O coração de Pequeno Dançarino parou. Engoliu os soluços e passou a manga pelos olhos para aclarar as lágrimas grossas. Castor Pesado olhava intensamente para Dois Fumos e um fluxo de excitação corava o seu rosto plano. Dois Fumos permanecia no chão e abanava lentamente a cabeça não crendo naquilo tudo. Erguera as mãos, vazias, implorantes.

Pequeno Dançarino arrastou-se à custa de músculos doridos até alcançar a entrada da sua tenda. Lá dentro, os velhos e familiares objectos não lhe deram nenhum alívio.

Fogo na Noite, sorridente e satisfeito, abriu caminho pela multidão. Na sua mão direita agitava, como um troféu, um malho com cabo. O pesado martelo possuía uma cabeça de pedra talhada. Uma vara verde de salgueiro, da grossura do polegar, fora dobrada duas vezes sobre a pedra para melhor a agarrar. Sobre o conjunto, tinha sido cosida uma pele crua para manter tudo bem unido.

Dois Fumos começou a tremer, os olhos cheios de horror fixos no malho que Castor Pesado tomou da mão de Fogo na Noite.

- Não - sussurrou. - Não façam isso.

Castor Pesado levantou bem alto o martelo oferecendo-o ao céu.

- Hoje, Sábio Lá em Cima, nos limpamos para sermos merecedores da tua verdade! Vê este acto de humildade! Vê o Povo virar de novo o rosto para ti e para o teu caminho de luz! Observa, Pai Sol, como removemos do meio de nós esta conspurcação!

Dois Fumos engoliu com esforço, procurando uma forma de escapar. As pessoas cercavam-no, os olhos brilhantes, cada vez mais perto.

Eu vos chamo, Espíritos Lá Em Cima! Eu vos chamo para que vejam!

- Não! - gritou Dois Fumos, recuando perante a investida de Castor Pesado com o martelo no ar. Uma expressão de vingança deformava o rosto largo do shaman.

Pequeno Dançarino estendeu os dedos, a medo, fechando-os sobre madeira dura. Virou-se, gritando o seu medo, e carregou em frente numa última e desesperada tentativa.

Alguém gritou um aviso. Castor Pesado estacou de olhos muito abertos. Saltou para trás tropeçando em pés ao recuar. Começou a cair no instante em que Pequeno Dançarino lançava o dardo de Sangue de Urso na direcção do seu corpo.

O grito salvou-o do pior. Castor Pesado sentiu os pés fugirem debaixo de si. A abanar os braços, sentiu que o rapaz atirava o dardo.

Castor Pesado desviou-se por instinto. Em vez de lhe rasgar a barriga a ponta atravessou o couro da sua camisa, rasgando-a. O bordo afiado da pedra cortou-lhe a roupa e a carne.

- Agarrem-no! Ele quer matar-me! - gritou ainda a rolar. O dardo ficou preso nas pregas dacamisa. A haste soltou-se das mãos do rapaz e fê-lo tropeçar. Fogo na Noite saltou e arrancou o rapaz do chão, soltando um grito quando este lhe deu um pontapé no joelho. Um punho atingiu o rapaz mais velho na cara.

Fogo na Noite, soltando um rugido, atingiu o rapaz na cara. Quando este fechou os olhos, Fogo na Noite fechou um punho e atingiu-o na barriga. Pequeno Dançarino gemeu e desistiu.

Castor Pesado soltou um suspiro de alívio. Sobrevivera. Acalmou-se. mas fez uma careta quando a dor da ferida começou a pulsar. Castor] Pesado levantou-se com lentidão, obrigando as pernas a deixarem de tremer. O coração batia-lhe descompassado ao levantar a camisa para espreitar.

Um comprido rasgão sangrava com abundância, aberto pelo dardo) que acabara por ser detido pelo couro espesso da camisa.

O medo de Castor Pesado fundiu-se para ser substituído pelo branco-rubro da raiva.

- Tu és maldade, rapaz! Acabaste de tentar matar um dos do Povo. Já te não posso salvar. A mancha do Poder perverso dos Anifah está demasiado profunda. - Tomou balanço para dar uma bofetada forte no rapaz. O grito que provocou fez aquecer algo dentro de si. Esbofeteou e voltou a esbofetear o rapaz, satisfeito com as marcas que ia deixando.

- Segurem-no. Tu, Atira Pedras. Segura-lhe o outro braço. Há tresmalhado de mais dentro dele. A sua alma está demasiado conspurcada para ser salva. Hoje limpamos o Povo...todo o Povo! E ninguém duvidará do meu Poder!

- Pelo Primeiro Homem - guinchou Dois Fumos. Não o podes matar! Não passa de um rapazinho!

- Madeira Desempenada, se o porco do anifah voltar a falar, mata-o. - Castor Pesado sorriu para o tresmalhado. - Não te preocupes, a tua alma ficará muito longe da de Pequeno Dançarino. Eu estou a falar a sério. Hoje limparei o Povo por mais sangue que tenha de correr por isso!

Dois Fumos fechou os olhos quando Madeira Desempenada tomou posição por cima dele.

Castor Pesado tornou a pegar no martelo e balançou-o para avaliar o equilíbrio. As pessoas olhavam a cena, horrorizadas, algumas cobrindo as bocas, outras os olhos. Ninguém falou. Ninguém deu um passo em frente para o deter. A sua autoridade não era desafiada.

Pequeno Dançarino gritou quando os dois rapazes lhe esticaram os braços atrás das costas. Inchado com a vitória, Castor Pesado olhou para a criança insolente, cujos olhos estavam cheios de medo, e ergueu o martelo bem acima da cabeça, escolhendo o sítio no crânio da criança onde daria a pancada.

O coração de Touro Esfomeado estremeceu. Há anos que não sentia tanto receio. Ansiosamente, tentou olhar para a frente de Cria Branca que trotava na vanguarda do grupo.

O fumo erguia-se entre os choupos como uma névoa azulada, tal como o faria de um campo normal.

Foi então que um bando de corvos levantou voo de uma forma estendida no terraço sobranceiro ao campo. Os intestinos de Touro Esfomeado mexeram-se. Alguém morrera. Não admirava que sentisse como se a catástrofe pairasse sobre si, pronta a descer e eliminar a sua paz e felicidade. Bem, isso já não importava, pois dentro de momentos estaria nos braços de Raiz de Salva a ouvir as novidades.

Um formigueiro de antecipação. Uma vez em casa ficaria livre de todas estas coisas. Podia refugiar-se na sua tenda e deixar Cria Branca e Castor Pesado a cuidar do Poder de Espírito e das visões.

A imagem dos olhos felizes de Raiz de Salva dançava na sua mente. Decerto brincaria com ele por causa das suas infundadas preocupações.

Já podia sentir os seus braços quentes em torno de si, sentir o seu corpo feliz apertado contra o dele, a rir-se. Com os seus longos dedos afastaria os cabelos do rosto para o olhar com alegria. Como a alma dele cintilava quando ela o olhava assim! Todo o amor dela se reflectia no carinho dos seus olhos e na expectativa dos seus lábios.

Talvez agora ficasse em casa por uns tempos. Que Corvo Negro, Três Dedos e Viaja Longe cacem. Além do mais, Fogo na Noite e Atira Pedras já tinham idade suficiente para fazerem a sua primeira caçada.

As pernas de Cria Branca vacilaram quando penetrou entre as árvores. A anciã seria capaz de aguentar? Parecia à beira do colapso. Uma pessoa tão idosa não se devia esforçar daquela maneira. Não admirava que se sentisse nervoso. Se um Poder do Espírito como Cria Branca tombasse e morresse com ele, só o Sábio Lá em Cima sabia as consequências.

- Não gosto de Espírito de Poder - disse para si mesmo. - E juro que, depois disto, jamais me envolverei com ele. - Mas, afinal, já antes jurara o mesmo, e os sarilhos tinham vindo ter com ele. Que histórias tinha para contar a Raiz de Salva e Pequeno Dançarino.

Um grito soou lá na frente. A ansiedade no coração de Touro Esfomeado teve um espasmo. O som não podia ser outra coisa que um homem com dor. Mais gritos torturaram o ar e eles estugaram o passo, forçando Cria Branca.

Entraram na clareira do campo e viram um magote de gente amontoado frente à tenda de Touro Esfomeado.

Castor Pesado estava no centro, com sangue a correr-lhe de lado. Fogo na Noite e Atira Pedras seguravam um rapaz pelos braços, com os pés no ar, no que devia ser uma posição dolorosa. Madeira Desempenada estava em cima de uma outra pessoa - Dois Fumos - pontapeando com raiva, no joelho aleijado, o tresmalhado cada vez que este tentava alcançar o rapaz que...

- Pequeno Dançarino! - O grito soltou-se da garganta de Touro Esfomeado no momento em que Castor Pesado erguia o martelo.

Pequeno Dançarino gritou de medo quando o shaman se aproximou,! Fogo na Noite e Atira Pedras, a segurarem o rapaz que se procurava soltar, olhavam ansiosos para o martelo.

- Não! - o grito saiu da garganta de Touro Esfomeado.

- Basta! - gritou Cria Branca, segurando Touro Esfomeado com uma mão calejada quando este procurou ultrapassá-la. Castor Pesado estacou, o malho erguido acima da cabeça. E o seu olhar raivoso viu Touro Esfomeado.

Touro Esfomeado lutou contra a mão forte da anciã.

- Deixa-me tratar disto - avisou ela, os olhos a brilhar de Poder e fixos nos dele. - Raiz de Salva? Onde está Raiz de Salva?

- Prometeste pela tua alma, caçador. Não quebres agora a tua promessa. Três Dedos e Corvo Negro: certifiquem-se de que ele não faz nenhuma estupidez.

E, com estas palavras, Cria Branca avançou, a resfolegar com o esforço. Touro Esfomeado seguiu-a, o medo a contrair-lhe os poderosos músculos.

- Soltem o rapaz! - a sua voz idosa estalou como um chicote de pele de búfalo. - Já!

- Cria Branca! - gritou Dois Fumos.

- Cria Branca? - Castor Pesado ficou indeciso, segurando ainda o pesado martelo. - A feiticeira!

- Soltem o rapaz! - A estas palavras, Fogo na Noite engoliu em seco e soltou-o. Atira Pedras segurou-o ainda por mais uns instantes. Pequeno Dançarino correu, a chorar, e saltou para os braços de Touro Esfomeado a balbuciar descontroladamente. Touro Esfomeado abraçou-o com força, sentindo a necessidade frenética do filho. Murmurou-lhe ao ouvido para o acalmar.

Dois Fumos saiu a rastejar de debaixo da guarda de Madeira Desempenada, arrastando-se com as mãos.

- Quem és tu? - exigiu Castor Pesado. - Que nova forma de poluição és? Por que estás aqui?

Ela virou-se para o enfrentar cara a cara e o Povo assistia, à espera, chocado com tudo aquilo.

- Com que então! - Cria Branca abanou a cabeça, tentando recuperar o fôlego. - Foi nisto que o Povo caiu?

- Por que estás aqui, FEITICEIRA? - exigiu Castor Pesado, avançando para ela ainda com o martelo erguido.

- Se fosses um Sonhador, rapaz, saberias. - Ela encontrou os olhos dele fazendo-o parar. - Mas não és, pois não? Não ouviste a criança a chamar? - indicou com a cabeça Pequeno Dançarino. - Não ouviste os Sonhos dele? Não sabias o que tinhas, pois não? É disso que se trata? Estás a atormentar aquilo que não compreendes? - E, dirigindo-se a todos, gritou: - É isso? Perderam assim tanto que já nem sabem ver o Poder?

Um som de inspiração forçada encontrou as suas palavras. Cria Branca cuspiu o seu desprezo.

- Desaparece! - gritou Castor Pesado, voltando a avançar. - Eu te declaro uma poluição! Desaparece daqui com a tua conspurcação!

Cria Branca agachou-se para tirar o fardo das costas e levantou as mãos no ar.

- Ou o quê? Eras capaz de me amaldiçoar?

- Eu te amaldiçoarei agora, feiticeira! Ao quarto dia o teu corpo...

- Ora, cala-te! Não eras capaz de reconhecer uma maldição nem que ela saltasse da erva e te mordesse o traseiro! Onde está a mãe deste rapaz?

As pessoas tinham começado a recuar. E agora havia um corredor que deixava aberto um espaço onde uma mulher jovem estava estendida frente a uma tenda com um ar sombrio.

- Oh... não... - Touro Esfomeado olhava, apertando Pequeno Dançarino contra o peito. Ele sabia. De repente, tudo ficou claro e compreendeu porque a alma lhe chorava e gemia dentro de si.

O resto passou a ser uma névoa quando avançou e a levantou nos braços, as lágrimas desfocando a realidade da pele pálida dela, a terra tingida de vermelho por debaixo dos seus pulsos abertos.

Ergueu o rosto para o sol e fechou os olhos de dor.

- Porquê? Como? QUEM FEZ ISTO?

Cria Branca quase nem se mexeu quando Touro Esfomeado passou por ela a correr. Mas disse baixinho aos dois caçadores:

- Acho que ele precisa da vossa ajuda neste momento. Ninguém se mexeu quando Três Dedos e Corvo Negro correram para Touro Esfomeado.

- Eu te amaldiçoo! - repetiu Castor Pesado. - Pelo Sol lá em cima te declaro impura e maléfica!

- Tu nada declaras. - A anciã inclinou de lado a cabeça. - Com que então mataste Raiz de Salva?

- Levou-a a fazê-lo - gritou Dois Fumos numa voz alquebrada. Tal como fez com Corça Dançante. Abusou da Trouxa de Lobo... atirou-a ao chão e fê-la fugir. Desapareceu.

Cria Branca soltou uma exclamação e levou o punho cerrado ao peito.

- Oh, Abençoado Sábio Lá em Cima. - Sacudiu a cabeça e a boca abriu-se-lhe ao ver os olhos triunfantes de Castor Pesado. - Tu sabes o que fizeste?

- Limpei o Povo!

- Não passas de um louco ignorante e estúpido! - Apontou-lhe um dedo. - Essa Trouxa de Lobo... essa Trouxa sagrada... é a herança do Primeiro Homem!

Horrorizadas, cada vez mais as pessoas se afastavam.

Castor Pesado sentía-se inseguro, a boca abrindo-se e fechando-se, a testa franzida.

- Leva-me para fora daqui, Cria Branca - implorou Dois Fumos no chão. - Estão manchados, todos eles. Foste tu que me trouxeste até aqui. Leva-me daqui. Já não posso fazer mais nada por eles.

Ela estendeu a mão, ciente de Castor Pesado e do martelo.

- Consegues levantar-te?

-Vil poluição! - berrou Castor Pesado, recuperando a sua coragem.

- Leva-o! Saiam daqui. Todos. Desapareçam!

Cria Branca conseguiu levantar Dois Fumos mas todas as vértebras da sua coluna estalaram. Ele encostou-se a ela, que lhe podia sentir os músculos trementes.

- Podes ter a certeza de que nos iremos embora - acrescentou Cria Branca. - Considerando aquilo que soltaste aqui, eu nunca ficaria a menos de cinco dias de viagem deste campo.

- Tu és a razão pela qual o Povo chegou ao que chegou. Tu e os da tua laia. És tu a razão. Tu ofendeste o Espírito do Poder. Levaste a que os Espíritos Lá em Cima virassem os seus rostos ao Povo. E mesmo assim consegues ficar aqui, na frente de gente decente, com o braço em torno de uma conspurcação como é Dois Fumos? - Castor Pesado dançava de um pé para outro, apontando.

Dois Fumos ficou rígido e soltou uma exclamação, apontando com um dedo.

- Não! - ordenou Cria Branca.

Uma expressão vítrea encheu os olhos de Touro Esfomeado que ficou imóvel com um dardo já colocado no atlatl. Castor Pesado virou-se e, ao ver o que se passava, recuou cheio de horror.

- Touro Esfomeado! Não faças isso! - avisou Cria Branca. - Ainda não chegou o tempo dele! Maldito sejas, Touro! Prometeste pela tua alma! Não faças isso ou libertarás um Poder que nem sequer és capaz de conceber!

- Touro Esfomeado? - Três Dedos chamou com suavidade, colocando-se à frente do amigo. - Confia nela. Nós prometemos. Cria Branca sabe o que está a fazer.

- Vocês estão amaldiçoados! - cuspiu com raiva Castor Pesado, o rosto branco perante a promessa de morte nos olhos de Touro Esfomeado.

- Amaldiçoados, sou eu que o digo!

Engraçadinha gritou, levando uma mão à boca, e olhou horrorizada para o marido, Corvo Negro. Cotovia do Prado correra a segurar num braço de Três Dedos, os olhos esgazeados de medo.

Cria Branca voltou uns olhos tristes para o Sonhador de Espírito.

- A única pessoa que amaldiçoaste, louco, foi a ti mesmo... e aqueles que te seguem. Degradaste a Trouxa do Sonhador de Lobo. Pensa um bocado nisso.

- Não passa de um mito antigo - insistiu Castor Pesado. - Eu sei, eu Sonho o novo caminho.

- Ele matou Corça Dançante e Raiz de Salva - disse alguém de um dos lados. Surgiram murmúrios de confusão de todos os lados.

Cria Branca ajudou Dois Fumos a coxear até ela fixar Touro Esfomeado olhos nos olhos:

- Não te metas, caçador. Vejo a tua raiva. Sinto a tua dor. Mas isto está para além do alcance das tuas mãos.

A violência tornou-se mais afiada nos olhos de TouroEsfomeado.

- Falo a sério. Nunca te quiseste misturar com Poder do Espírito. Não o faças. Não estás preparado para tal. Castor Pesado fez as suas proclamações. É ele que está a lidar com Poderes que não compreende. O Poder toma conta dos seus. Não é este o lugar para te intrometeres.

Touro Esfomeado hesitou, os olhos de obsidiana reflectindo a luta dentro de si. O desejo de matar, de retaliar, apagou-se em dor.

Cereja de Engasgar saiu, veloz, de uma das tendas. Empurrou todos, espantada com a presença de Cria Branca. Como se toda a sua estamina tivesse finalmente desaparecido deixou cair os ombros e exclamou:

- Graças ao Sábio!

- Corvo Negro, Três Dedos. Ainda não terminei com vocês. - Cria Branca virou a sua atenção para os dois caçadores de rostos cor de cinza.- Levem Raiz de Salva para a escarpa para que esta noite eu possa Cantar a sua alma até à Teia-de-estrelas. Aqui já nada resta para nenhum de vós. Ajudem Touro Esfomeado a preparar as coisas dele. E depois arrumem as vossas. Acho que não desejam ficar aqui. - Sorriu! irónica. - Estão demasiado manchados de Poder para serem o gosto de Castor Pesado e dos seus fanfarrões.

Virou-se, com Dois Fumos a coxear atrás de si. e chamou por cima do ombro:

- Pequeno Dançarino? Segue-me. Tu e eu temos muito que falar. De olhos muito abertos, sozinho e receoso, Pequeno Dançarino hesitou. Cereja de Engasgar foi ter com ele e agarrou-o pela mão.

- Vai, rapaz. Ela só vem de vez em quando. E nessas ocasiões acontecem coisas boas.

Cria Branca ergueu uma sobrancelha. Coisas boas? A irmã mudara de melodia ao longo dos anos. Mas, afinal, Cereja de Engasgar não sentia os tremores, o ir e vir do Poder em volta dela. Um arrepio percorre as costas de Cria Branca.

O poder movia-se sobre a terra. Tinham sido libertadas forças que Cria Branca apenas conseguia imaginar. No fundo da sua mente abria-se um abismo de onde saíam vapores frios e espessos. Nenhum bem viria deste dia. <

Sanhaço estava sentada bem alto nos rochedos a contemplar a vasta bacia do Rio Lua. Ao norte, o Rio Lama seguia o seu percurso serpenteante até ao Rio Búfalo que, por sua vez, corria ao encontro do Rio Grande. No entanto, os olhos dela continuavam a regressar ao traço apagado do Rio Lua, que não passava de uma sombra àquela distância.

A espiral rochosa a que trepara constituíra um desafio. Só homens que necessitassem de provar a sua coragem tentariam uma tal ascensão. Algo que ela não sabia definir a levara a subir aquele rochedo, mais adequado a águias e relâmpagos - uma qualquer necessidade interior. Os fracos pontos de apoio das mãos tinham sido um desafio para a sua agilidade e equilíbrio, mas conseguira-o. Quando alcançara o topo, encontrara um osso ressequido. Deixara-o cair e ficara a vê-lo estilhaçar-se nas rochas lá em baixo.

O vento puxava-lhe pelo cabelo e fazia-o emaranhar-se num nó. A sua força procurava atirá-la para as profundezas. O que emprestava uma emoção àquela sensação de que podia facilmente cair.

Contemplou a planície, estudando cada mudança de cor até os seus olhos se perderem na distância.

O Povo do Búfalo Baixo vivia ali. Nenhum deles fizera um incursão durante aquela estação. Por que razão se sentia inquieta? As suas premonições eram maiores que a probabilidade de cair dali, como se a alma lhe tremesse por dentro.

Sanhaço virou-se para descer e detectou um movimento na rocha à sua frente. O lobo estava de pé, separado dela por uma fenda na rocha, as patas dianteiras fixas para contrariar o vento. Ficaram longos momentos a olhar um para o outro. Sanhaço enfrentou aquele olhar amarelo e sabedor. Depois, como uma sombra, o caçador escuro desapareceu e apenas ficou para trás uma sensação de promessa.

 

O FORJAR DO JOVEM

A Trouxa de Lobo queixou-se ao brilho vacilante da Espiral:

- O número sagrado das estações passou e o que mudou? Ajudei a trazer de volta as chuvas. Os búfalos têm crias com maior regularidade. Com a minha ajuda, vejo Castor Pesado ficar cada vez mais forte. A sua autoridade consolidou-se. Une o Povo sob a sua norma e caminho novo.

Entretanto, nos Mão Vermelha, Sangue de Urso prova ser um louco. Sou exposta como um símbolo da sua autoridade. E, ao mesmo tempo, o desprezo dele é aparente no que faz, se não mesmo no que diz. Dentro da tenda dele sou vilupendiada. O meu Poder está a desaparecer. É esse o teu objectivo? Matar-me?

A voz assombrada do Sonhador de Lobo saiu das Espirais:

- O meu objectivo é o rapaz.

-A minha tendência é fazer Sangue de Urso pagar pelas suas acções.

- Tem paciência. O rapaz cresce.

- E o mesmo sucede com o caminho de Castor Pesado. Ele está a mudar as Espirais. Há demasiado Povo a acreditar nele. No fim, não podemos derrotar uma ideia - avisou a Trouxa de Lobo.

- É esse o caminho. Recorda o tripé. Sem outra perna caímos no pó.

 

O mundo atrás do pequeno bando desaparecia numa névoa cinzenta. Havia cinzento por toda a parte - tal como nos sentimentos dos seus corações. Para onde podiam ir as pessoas quando o mundo ficava louco?

Debaixo dos pés, o chão húmido rangia quando a gravilha era esmagada pelas mocassinas em cada passo cansado. O silêncio cobria pesadamente a terra. Apenas um leve suspiro subia das árvores dos vales lá em baixo. Os sons da passagem deles - o raspar de pele curtida em pedra ou arbusto, o gemido abafado das tiras de couro e o resfolegar da respiração acompanhava-nos na subida. Suspensa no ar havia uma humidade fria que se lhes agarrava ao nariz e colava à pele exposta.

Três Dedos olhou para o carreiro que subia, nervoso com a maneira como as nuvens se agrupavam, tão compactas, em torno das pessoas que guiava. Alguns abetos deformados pelo vento agarravam-se aos rochedos vermelho-acastanhados com raízes nodosas e retorcidas que penetravam nos ossos da Terra Mãe. A que altura estariam? Daqui devia ser capaz de ver toda a bacia, com o Rio Lua ao sul e o Rio Lama a norte. O cinzento-sombrio das nuvens que os acompanhavam mascaravam tudo, quase embotando até os bordos de uma memória tornada dolorosa e cortante.

Ele e Corvo Negro não podiam voltar para trás. Não havia carreiro de regresso para o Povo. Agora e para sempre eram párias. Nada lhes restava, para eles não haveria santuário em nenhum dos campos do Povo. Continuavam a subir, numa linha irregular, figuras desconjuntadas no meio do nevoeiro - pessoas sem lugar nem contexto, viajantes nas nuvens.

Atrás dele, Engraçadinha respirava ruidosamente enquanto falava baixinho com o filho.

E se não conseguirmos encontrar o campo de Cria Branca? E se encontrarmos um grupo de Anif’ah? E se Touro Esfomeado morreu? Se está morto? Que nos restará então?

Continuou pelo carreiro de caça que percorria o topo da encosta. No solo rochoso podia ver sinais de cornos longos, veados e, de quando em quando, de alce. O ar húmido corria-lhe frio pela cara quente. O manto molhado das nuvens tornava irreal o mundo - uma bênção e uma maldição. A humidade cinzenta escondia a sua passagem dos olhos dos Anifah e obscurecia os pontos de referência que Cria Branca lhe indicara, com todos os pormenores, durante a fuga de Castor Pesado, há quatro anos.

Quatro anos? O número sagrado, o número do Primeiro Homem, das direcções e do Sábio Lá em Cima. Tanta coisa mudara em quatro anos! Quem o teria adivinhado?

No carreiro na frente de Três Dedos uma sombra surgiu na névoa trazendo-o de volta ao presente. Instintivamente, apertou o cabo do atlatl, a haste do dardo firme nos seus dedos. Semicerrou os olhos para melhor ver a linha das coníferas e parou meio agachado.

Quando um fraco fantasma de brisa brincou com o nevoeiro cinzento, a forma solidificou-se na silhueta angulosa de Corvo Negro.

- Vês alguma coisa? - perguntou Três Dedos numa voz baixa, receoso de quebrar aquele estranho silêncio.

Corvo Negro levantou um membro e contorceu o nariz anguloso para melhor cheirar o ar.

- Não... a menos que estejas interessado em saber o aspecto de uma nuvem por dentro.

- Mais ou menos como isto, não é? - respondeu Três Dedos, com um gesto em torno de si.

- Mais ou menos. - Corvo Negro abanou a cabeça. - Não sei como os vamos encontrar por aqui. Podemos andar semanas às voltas.

- Se, entretanto, não tropeçarmos num campo de Anifah.

- É isso mesmo. Depois daquela incursão que Castor Pesado fez aos campos deles, no ano passado, acho que não vão sorrir para nós e dizer-nos adeus quando passarmos.

Três Dedos abanou a cabeça. Atrás de si ouvia sons de alívio quando a sua mulher, Cotovia do Prado, se baixou para ajudar a filha mais velha num problema qualquer. Engraçadinha encostara-se a um rochedo. Um ar assustado instalara-se no seu rosto enquanto olhava o marido. O rapaz mais velho de Corvo Negro levantou a banda para urinar. A sua água fez um ruído forte sobre a terra dura.

- Nada do que Castor Pesado faz leva a coisa boa. As incursões contra os Anifah acabarão por se virar contra nós como os gansos em todas as estações.

Um leve arrepio percorreu a espinha de Três Dedos. Sorriu sem humor.

- Começo a pensar se isto terá sido uma boa ideia.

Corvo Negro colocou as mãos nas ancas magras, mudando a posição dos pés cansados e olhando para o carreiro obscurecido que tinham acabado de percorrer.

- Que outra escolha nos restava? Que nos sobrava? Os Cabelo Cortado não querem nada connosco. Para onde quer que vamos, acabamos por entrar nos campos de caça de alguém e as pessoas andam irritadas e com fome. Não é uma boa época para intrusos.

- E os Anifah odeiam-nos mais que todos os outros - lembrou-lhe Três Dedos, desejando poder retirar as palavras que dissera em conselho há longos meses atrás. No entanto, as palavras, tal como o vento, não se podiam capturar e trazer de volta. O Povo inteiro ficara doido. O poder de Castor Pesado continuara a crescer, reunindo os bandos dispersos. Duas Pedras, Assobio de Alce, Pé Branco, todos eles se tinham juntado a Castor Pesado, dançando a sua nova Dança da Renovação. E, quando Sete Sóis se decidira juntar a Castor Pesado, Três Dedos levantara-se levando todos os olhos a fixarem-se nele.

- Não posso tomar parte nisto. Se forem para o acampamento de Castor Pesado, a minha mulher e eu seremos amaldiçoados. Eu conheço Castor Pesado. Cresci com ele. Conheço o seu ódio. Prefiro deixar o Povo a acampar com Castor Pesado.

Tinha perdido a votação.

Não te esqueças, podes sempre ir para o meu campo. Proteger-te-ei, Dar-te-ei de comer. As palavras de Cria Branca ecoaram na sua mente como naquele dia, quatro anos atrás, em que tinham separado os seus caminhos. Segue o Rio Límpido por oeste, pela parede de rocha vermelha, e toma o Carreiro do Espírito que sobe à montanha. Continua pelo sul do vale e encontrarás um carreiro. Ficarás a saber qual é pelo monte de pedras. Segue-o pelo cume e hás-de encontrar o meu campo, no vale, atrás dele. Ali estarás em segurança.

Três Dedos sugou o lábio. Seguro? Apostara a sua vida, assim como da família e dos amigos, nessa promessa ilusória. Mas como poderiam saber qual era o carreiro certo no meio de um nevoeiro tão intenso? Aqui, nas terras dos Anif’ah, as nuvens agarravam-se aos picos e escondiam tudo.

Começou a cair uma chuva miudinha,

- Está a ficar mais frio. Três Dedos resmungou.

- Todo este tempo a desejar chuva e agora aí a temos.

- O mundo inteiro está doido. Talvez o Sábio Lá em Cima se tenha cansado dos homens. - Corvo Negro levantou um ombro ossudo e coçou a barriga pendente. - Talvez esteja a chegar o fim do mundo como afirma Castor Pesado.

Três Dedos observou o cinzento-sombrio com uns olhos ansiosos.

- Espero que estejas a brincar quando dizes isso.

O fogo enchia o mundo, rugindo como o trovão acasalado com o vento. Vermelho e amarelo, raivoso, queimava por baixo, batendo com fúria em Pequeno Dançarino. Estralejando e estalando, o fogo envolveu-o. Piscou os olhos para se defender do calor doloroso, tentando levantar os braços para escudar o rosto da ardência.

O fogo fazia pouco dele, paredes de chama movendo-se em retaliação, ondulando para este lado ou para aquele numa dança medonha. Tentou virar-se mas as chamas rodopiaram numa contradança, rugindo e assobiando com cada um dos movimentos dele. O fôlego de Pequeno Dançarino estava-lhe preso na garganta. Se tentasse respirar, o fogo apressar-se-ia a queimar-lhe os pulmões e a consumir a sua própria alma.

Nós somos Um. As palavras formaram-se no rugir incessante das infindáveis chamas. O mundo inteiro é Um. Somos todos um Sonho. Sê comigo... Dança comigo... Nós somos Um... Um...

Cerrou os olhos com força agitando futilmente a cabeça numa negação. Formaram-se lágrimas nos seus olhos, que assobiavam e rebentavam em vapor ao começarem a descer-lhe pelas bochechas.

- Não! - gritou. - Não!

A pressão dentro dos pulmões queimava tão febrilmente como o inferno lá fora.

Liberta-te, rapaz. Dança comigo. Torna-te em Um comigo. Esquece o teu medo. Confia em ti mesmo.

Saltou para trás quando as chamas dançaram em torno dele num remoinho impossível. Os ventos secavam-no e a pele assobiava como gordura em cima de carvões cobertos de cinza branca.

Gritou de medo - e acordou com o coração a bater com força contra as costelas.

- Ei? estás bem? - Dois Fumos perguntou da sua cama, meio assustado, a piscar os olhos.

- Um sonho. Foi apenas um sonho. - Pequeno Dançarino tentou recuperar o fôlego, piscando os olhos e cravando os dedos nas peles da cama. O toque da pele quente e a segurança da terra fria, que estava por debaixo, tranquilizaram-no.

- Que Sonho? - perguntou atrás dele Cria Branca. Pequeno Dançarino mordeu o lábio, baixando os olhos.

- Nada. Só um sonho. Só isso.

- Só isso, rapaz? - Podia ouvir o cepticismo na voz dela. Iria começar de novo a espicaçá-lo sem nunca lhe dar um momento de paz.

- Só um sonho. - Levantou-se e a magnífica pele trabalhada de carneiro-da-montanha escorregou para o lado. Engoliu, sentindo a garganta seca, assustado pelo suor que lhe ensopava as roupas.

- Um Sonho sobre o fogo? Como é que ela sabia?

- Não. Foi só um sonho sobre a minha mãe. - Isso mesmo, usa a velha defesa. Nada mais lhe restava para enfrentar as perguntas constantes da anciã.

O espaçoso abrigo de rocha consistia numa ampla cavidade na encosta que media quinze passos de lado, escavada pela água no calcário num passado longínquo. A parede de trás fazia uma curva, onde se alinhavam saliências e esconderijos onde se encontravam as medicinas e as trouxas de Poder de Cria Branca. Uma espiral fora escavada, e depois pintada, na parede, junto da qual dormia Cria Branca. Os embrulhos com carne e bagas secas estavam pendurados em ramos espetados na pedra. Por cima das cabeças, a fuligem formara um veludo espesso que arredondava os ângulos da rocha.

A meio corpo de distância da parede do fundo, onde os roedores tinham menos probabilidade de os encontrar, tinham sido escavados no solo poços de armazenagem redondos. Os buracos estavam revestidos de pedra encaixadas umas nas outras para, pelo menos, afastar os insectos, os ratos audaciosos e os esquilos do chão, e os impedir de destruírem as reservas. Cobertos com uma lage de pedra, os poços estavam cheios de pinhões, frutos de roseira brava, batata-doce, bálsamo e raiz de biscoito, assim como bolbos de lilás secos. Roupas curtidas, um par de varas de escavar ornamentadas e um conjunto de taças de como estavam cuidadosamente arrumadas ali atrás. A parede exterior consistia numa série de varas escoradas contra o tecto. Umas peles atadas nelas bloqueavam o frio da tarde e retardavam a força das brisas. Havia fendas suficientes nas rochas para permitir que o fumo se escapasse lá em cima. No chão tinham sido escavados dois poços de fogo. Um consistia num buraco fundo, em forma de sino, para assar, e o outro era uma bacia larga moldada na rocha, para irradiar o calor. Em cada um destes fogos estava colocada uma pedra plana para servir de reflector.

No seu conjunto, o abrigo de pedra constituía um lar acolhedor. Ao contrário das tendas de pele em que vivera quando novo, o abrigo permanecia mais tempo quente porque o calor absorvido durante o dia irradiava das paredes durante a maior parte da noite. No Verão permanecia fresca. O abrigo seria perfeito não fosse a presença constante e irritante de Cria Branca. O lugar pertencia-lhe - e ela dominava-o sob todos os aspectos. Não podia deixar de pensar que a alma dela cobrira as rochas juntamente com a fuligem dos fogos.

Virou-se para mirar os seus olhos ardentes. No máximo, ela encolhera naqueles últimos anos. O cabelo dela brilhava agora à luz do fogo com uma brancura que igualava a neve no pico do Inverno. O seu rosto evoluíra para uma caricatura engelhada, a pele do pescoço tinha mais pregas que a de um peru bastardo. Tinha um ar tão frágil que um espirro parecia poder quebrá-la como um ramo de erva de Inverno dobrada de mais. Pelo menos era o que pensava até mirar aqueles olhos brilhantes. Uns olhos que captavam a luz âmbar do fogo e cintilavam de Poder, capazes de ver através dele como se não passasse de fumo na manhã. O formigueiro familiar de premonição tocou-lhe as tripas.

- Não te podes esconder de ti mesmo para sempre, rapaz. - As palavras dela chegaram-lhe devagar, quase como um nevoeiro à deriva. Nega o Poder, se assim o desejas... mas tens tantas hipóteses de escapar-lhe como um falcão de uma rede torcida. É contigo, rapaz. Tu és o interessado.

Ele nada disse, sentindo o ressentimento e a frustração a crescerem.

- Por que me negas sempre, rapaz? As palavras da mãe ecoaram dentro dele: Eu proíbo! O horror da morte dela continuava a pairar - tão tangível na sua mente como a terra dura que sentia sob o seu eu físico. De cada vez que aquela discussão se reacendia podia sentir os olhos negros da mãe fixos nele, a vigiá-lo, uma lembrança constante daquele horrível momento em que sentira a morte dela e encontrara o seu corpo exangue.

- Porquê, rapaz? - persistiu Cria Branca. - Não importa o que disse a tua mãe, tu não podes alterar a tua natureza. És um Sonhador... está nos teus olhos. - Uma pausa. - Olha para mim. Diz-me que não és. E fala com convicção quando o disseres.

Recusou-se, mordendo a raiva surda que as palavras dela sempre causavam em si. Queria gritar-lhe, aviltá-la pela velha galinha sabida e metediça que era. Como seria doce cuspir-lhe na cara e dizer-lhe, pelo menos uma só vez, que o deixasse em paz. Que recompensa preciosa seria poder fazê-la pagar por aqueles últimos anos. Por um instante, sonhou em espalhar a pontapé as trouxas dela e deleitou-se com a fantasia de lançar ao fogo todas as suas valiosas possessões. Que alegria seria metê-las nas brasas para pegarem fogo e arderem até à cinza. Seria uma lição. Ensinava-a a deixá-lo em paz. Fá-la-ia pagar pela perseguição constante e por todos aqueles joguinhos em que procurava vergá-lo à vontade dela.

Excepto que nunca o faria. Nascera do Povo. Com o mesmo leite do seio da mãe sugara as maneiras do Povo do Búfalo Baixo. Os jovens nunca agiam desrespeitosamente com os mais velhos, que tinham chegado antes. Ninguém se atrevia a uma tal liberdade. Por mais que ela o atormentasse, o torcesse, lhe roesse a resistência, nunca poderia troçar dela ou gritar-lhe a sua raiva. E isso tornava ainda piores a raiva e a frustração.

- Rapaz, tens de escutar as vozes na tua cabeça. Tens de...

- Vou à procura do meu pai. - Incapaz de a olhar, familiarizado com a expressão dorida dos olhos de Dois Fumos, correu para a cortina da porta e explodiu para dentro da noite.

- Um dia destes - disse Dois Fumos, na súbita calma que se instalou - vais empurrá-lo longe de mais. Cereja de Engasgar bem te avisou antes de morrer.

- Ela nunca compreendeu o meu papel.

- Talvez não. Mas conhecia o rapaz. Eu conheço este rapaz. Cria Branca, não podes continuar a forçá-lo desta maneira. Já afastaste o pai. Touro Esfomeado anda perdido... perdeu o caminho na vida e não sabe o que fazer, excepto manter-se afastado. Nunca discutirá contigo devido ao débito que tem contigo. Tem medo do Poder. Mas, quando provocas o rapaz, ele sente-se mal. É outra coisa que nos mantém afastados. Se continuas com isto, acabarás por...

- Sim, sim... eu sei.

- Sabes?

Ela olhou-o, os olhos negros reflectindo um curioso desespero.

- Sei. Só que não consigo alcançar Pequeno Dançarino.

- Ele encontrará sozinho o Poder. Não pode ignorá-lo para sempre. Cria Branca pareceu desinchar ao soltar um suspiro vindo das profundezas da alma. Abanou displicentemente a cabeça.

- Sim, velho amigo, acho que sim. Mas eu é que não tenho muito tempo. E há tanto para ele aprender!

Pequeno Dançarino desceu o carreiro a correr, os olhos vivos apercebendo-se das ondulações e das rochas na escuridão. O rubor da raiva começava a dissipar-se, deixando em seu lugar uma depressão aborrecida, espessa e aderente como a nuvem que cobria o céu nocturno.

- Por que é que não me deixam em paz? - deu um murro num ramo de abeto e ficou estranhamente aliviado com o gesto. Continuou o caminho a fustigar as ervas altas que estavam castanhas e quebradiças com a primeira geada. O ar já transportava um sabor que prometia o frio que estava para vir. Uma pessoa sentia-o; o subtil morder do Inverno cobria as manhãs frias ou escondia-se nas rajadas da brisa vespertina. Esperava, como um fantasma, pronto para sair das memórias do Verão e tombar sobre a terra com um frio de rachar. A luz do dia era já mais sombria no céu outonal à medida que o Pai Sol seguia o carreiro mais baixo ao sul dos céus.

E que traria este Inverno? Mais dias parados em torno do fogo fumegante com Cria Branca a contar de novo as mesmas velhas histórias? Mais da sua constante perseguição, das infindáveis perguntas e dos incessantes comentários sobre o Poder?

Em tais dias, Touro Esfomeado mantinha-se fora de vista, excepto durante o tempo mais frio em que podia sofrer queimaduras do gelo. De que servia um caçador com queimaduras dessas? Se a carne gelasse de mais, o único prazer que o pai tinha na vida podia ser-lhe negado. E se Touro Esfomeado perdesse o alívio da caça seria como se morresse.

Touro Esfomeado mudara. A centelha de alegria desaparecera dentro dele, deixando-o sombrio. O espírito dele voara para qualquer lado no dia em que saíra em choque do acampamento de Castor Pesado. Depois, menos de um ano depois de terem chegado ao acampamento de Cria Branca, Cereja de Engasgar morrera na cama. Sem ela para partilhar o passado, já não havia ninguém para o compreender.

Que lhes acontecera? Mais uma vez, Pequeno Dançarino fez a si mesmo a pergunta já gasta. Tudo mudara desde o dia em que Sonhara o antílope. A existência ficara virada do avesso e perdera-se numa baralhada de dor e confusão. O Poder entrara na vida dele - e não sairia jamais.

Os Sonhos continuavam a atormentá-lo. A anciã tinha razão. Bem podia negar à vontade que tal não alteraria a verdade. Tal como nesta noite, em que o fogo Dançara, os Sonhos surgiam à sua volta com o poder da Aranha Tecedeira da Teia-de-estrelas, apanhando-o, mantendo-o cativo. Uma vez batera em si mesmo com uma pedra de quartzite para tentar tirar as visões de dentro da cabeça. À parte umas nódoas negras e uma terrível dor de cabeça, recebera ainda uma descompostura de Cria Branca, que terminara numa guerra que envolvera Dois Fumos e o pai durante meses até Cria Branca finalmente se acalmar.

- Ele que bata nele mesmo até ficar meio morto - concordara por fim. - Por mim tudo bem. - Hesitara um breve momento antes de acrescentar: - Aposto que Castor Pesado adoraria ouvir isto!

E, a partir daí, nunca mais tentara agredir-se. Mal pensava nisso, logo se formava na sua mente o sorriso sabedor e satisfeito de Castor Pesado.

Os Sonhos chegavam sem qualquer padrão ou aviso. E a anciã parecia não falhar nem um. E se ela fosse de verdade a sua avó? Não precisava de o vigiar daquela maneira. Havia alturas em que se sentia um rato a fugir debaixo do focinho de um coiote. As mandíbulas enormes abriam-se prontas para o abocanhar. Nunca sabia quando é que aquelas patas pesadas saltariam para o esmagar nas ervas, estonteado e moribundo, antes de ser engolido por algo que não compreendia.

Dois Fumos não fora de grande ajuda. Nem sequer ainda falava muito

- nunca se perdoara pelo insulto à Trouxa de Lobo. Os tresmalhados viviam entre os mundos. Não só funcionavam como mediadores entre homens e mulheres, compreendendo ambos, como também haviam sido moldados pelas vias do Poder e podiam sentir o reino do espírito assim como o mundo. Dois Fumos sentira a profanação da Trouxa de Lobo bem no fundo da alma. A experiência deixara nele um buraco, uma falta de objectivo na vida.

Sou apenas um infeliz, mais nada. Mãe? Por que te foste embora e me deixaste assim? Por que desististe? Onde estás, mãe? Volta para mim! Leva-me contigo!

Ao afastar-se da montanha, Pequeno Dançarino podia ver o horizonte ocidental onde as nuvens estavam a derivar para oeste. Pontinhos de luz, onde a Teia-de-estrelas estava à vista, cintilavam e dançavam. Por cima da sua cabeça, para leste, o céu permanecia mascarado por nuvens e escuridão. Podia imaginar a escuridão sobre o Rio Lua e os seus velhos pavores infantis. Estaria também Castor Pesado a olhar para a noite? Estaria a olhar para os mesmos céus maculados e a pensar?

Pequeno Dançarino deu um pontapé num pequeno arbusto de salva, satisfeito com o odor pungente que se evolou dos ramos cheios de sementes que se erguiam acima das folhas.

Tinham feito dele um prisioneiro, mantendo-o ali como uma criança mantinha uma ave novinha numa gaiola de varas. Cria Branca, o Poder e os Sonhos, as maldições de Castor Pesado tudo estava contra ele.

Pontapeou maldosamente a salva, feliz por ser ele a magoar. Isto por Castor Pesado. Isto pelos Sonhos, por Cria Branca e por tudo que o fazia infeliz e triste. A raiva cresceu de novo, incansável, ardente. Atirou-se ao mundo, procurando magoá-lo, fazê-lo pagar pela frustração em que vivia.

Pegou numa vara e começou a bater na salva ao mesmo tempo que lhe rolavam grossas lágrimas pelo rosto. Atacou um pequeno abeto com o chicote, imaginando que era Cria Branca e Castor Pesado, juntos num só. Gritou com os músculos tensos do ataque. Um grito de raiva saiu-lhe da boca, alimentando o assalto.

A vara partiu-se, estalando sob a violência da sua birra. Baixou-se para apanhar pedras, atirando-as à árvore, vendo os ramos vibrar com o impacte. Gritou a sua raiva e exultou com o triunfo que inundou o seu corpo cansado. Uma raiva enlouquecida corria e cantava nas suas veias.

Por fim, exausto, acabou por parar, o peito doido, completamente gasto. Um tremor percorria-lhe os músculos dos braços e pernas. No ardor da fúria a boca ficara seca e a garganta a arder. Uma dor intensa surgiu nos seus dedos magoados, a pele esfolada ao arrancar pedras do chão resistente. O frio do ar da noite começou a invadir o seu rosto corado.

A noite esperava, em volta dele, silenciosa, paciente, eterna, conhecendo a futilidade dos rapazinhos novos e das suas birras estúpidas.

Pequeno Dançarino mirou, de olhos muito abertos, a árvore na sua frente. A sua raiva à solta não parecia ter causado grande impacte. O abeto sombrio continuava resoluto; o véu da escuridão escondia quaisquer cicatrizes que por ventura tivesse provocado nos ramos flexíveis. Derrotado, baixou a cabeça, esfregando a nuca, consciente da calma que pressionava tudo como uma pele.

Por que é que não me deixam em paz?

Uma sombra separou-se da escuridão.

Pequeno Dançarino teve um arrepio de medo e ficou tenso.

O enorme lobo negro podia ser a imagem de um sonho, tão silenciosa fora a sua aproximação entre as árvores.

À quanto tempo o animal o observava? Levantou-se, sobre umas pernas moles, e fez de volta o carreiro de caça. Exausto e esgotado dirigiu os passos para o prado onde sabia que o pai iniciara uma armadilha para búfalo.

Alce Encantado, aninhada dentro da sua roupa macia de pele de alce, baixou-se para espreitar, por debaixo da cortina da tenda menstrual, o campo. Os Mão Vermelha colocavam sempre a tenda de menstruação num ponto alto e a favor do vento. O Primeiro Homem dissera-lhes para fazerem assim.

Franziu o seu nariz jovem. Pela sua vida, não era capaz de imaginar porquê. Será que os velhos pensavam a sério que eram capazes de cheirar uma mulher menstruada? Recordava-se de, uma vez, só para ver, cheirar sub-repticiamente a brisa e apenas detectara o odor mais poderoso do campo: fumo, fezes, cão, humano e o leve travo do couro curtido sobre a fragrância leve das comidas a cozer e das raízes a assar.

Ficou tensa quando Sangue de Urso ultrapassou os limites do campo, a sua silhueta negra assinalada pelos fogos. O Guardião da Trouxa de Lobo fez uma pequena pausa a observar, como se os seus olhos a pudessem ver na tenda coberta pela escuridão da noite.

Alce Encantado susteve a respiração durante um bom bocado, até que o homem voltou a entrar na própria tenda.

Sanhaço ter-se-ia esquecido? Teria ido para outra das suas aventuras loucas na mata?

Alce Encantado soltou o ar dos pulmões, cansada. A mãe dela nunca mais viria? A tenda menstrual confinava-a como um carneiro da montanha num cercado. Ainda se Sangue de Urso não andasse por ali de noite, à espera. E se ela não percebesse por que andava ele na escuridão. Seria sempre assim? Seria assim tão terrível todas as vezes? Em silêncio, lembrou a si mesma que, afinal, era a sua primeira vez. Que tivesse acontecido tão depressa é que fora para ela uma surpresa.

Ao princípio não soubera o que estava mal. Quando começou com as cólicas pensou logo que tinham sido os pastéis de pinhão que roubara da pedra de moer da velha Corno Verde - que a anciã lançara algum género de encantamento para dar às jovens ladras uma dor da barriga. Mas Alce Encantado devia ter adivinhado. O alargamento das ancas - que tão pronunciadas eram agora na sua sombra - não a tinha preparado. Nem sequer a penugem negra dos seus pêlos púbicos a avisara. Quando o sangue aparecera, quase que entrara em pânico.

- Chegou o teu tempo - dissera-lhe a mãe, Cascos Trepidantes, com orgulho. - A minha filha tornou-se uma mulher.

Alce Encantado, num total caos espiritual, ficara simplesmente a olhar, de boca aberta, incapaz de falar. Em toda a sua vida só a morte trágica do pai a deixara assim tão fora de equilíbrio e devastada.

Conduzida à tenda menstrual com grande cerimónia, passara quatro dias no abrigo, alternadamente confusa, extática, aborrecida, excitada ou infeliz. Depois a mãe, a avó e a maior parte das outras mulheres tinham vindo e, depois de lhe depilarem as sobrancelhas, tinham-na despido toda. Tinham-lhe pintado o corpo com cores alegres, tal como todas as mulheres haviam sido pintadas desde que o Primeiro Homem lhe mostrara o caminho que subia do Primeiro Mundo e as expusera à luz do Pai Sol. A mãe mergulhara ambas as mãos em ocre e estampara-as nos seus peitos, simbolicamente dedicando o futuro leite aos Mão Vermelha. Tinham-lhe pintado a cara de branco com um círculo azul na bochecha direita para indicar o céu e um círculo castanho na esquerda para indicar a terra. A partir do osso do peito tinham pintado a Passagem de Luz amarela que cruzava o umbigo e ia terminar no púbis. Corno Verde usou carvão para desenhar flechas que apontavam para o interior das coxas.

- Para conduzir esses jovens estúpidos ao lugar certo, vais ver! - E soltara uma risada para imenso gáudio das mulheres mais velhas.

Corada de vergonha, Alce Encantado engolira em seco, certa de que a saca velha sabia quem lhe roubara os pastéis de pinhão.

O laranja foi usado para pintar um enorme círculo na sua barriga, um símbolo do sol da manhã e da vida nova que trazia ao dia tal como ela traria nova vida aos Mão Vermelha.

Suportou aquilo tudo, sabendo o ritual como qualquer miúda sabia, sabe-se lá como. Ninguém discutia abertamente o assunto mas, mesmo assim, aprendera em conversas murmuradas com as suas amigas, Grilo e Sanhaço. De qualquer modo, só agora lhe parecia real. As mulheres mais velhas tinham saído, acompanhadas pela mãe. Tinham partido a cantar e a chocalhar os fazedores-de-barulho de cascos de veado. Chegara uma nova mulher aos Mão Vermelha.

Alce Encantado ficara erecta a vê-las partir, sentindo a diferença na sua vida. Os homens tinham estado à espera, a rirem-se, e começaram a bater as palmas e a dançar acompanhando a procissão. Grilo e Sanhaço tinham observado tudo do perímetro do campo, de olhos muito abertos, sabendo que a velha e simples relação entre elas tinha mudado. Alce Encantado já não podia rir e brincar com elas como uma criança, ou jogar a jogos como o salta o pau. Tinha de assumir os seus deveres como mulher - e não fazia a mínima ideia do que riam as mulheres nem do que significavam todas as suas piadas.

Um homem iria querê-la. Este pensamento possuíra-a, penetrara nos seus pensamentos como uma brisa fria num dia quente. Andara tão preocupada que de início nada notara.

Um homem não se reunira à dança. O Guardião da Trouxa de Lobo limitara-se a olhar, o rosto severo e inexpressivo. Mesmo àquela distância pudera sentir a antecipação nos olhos dele. De cabeça erguida, alerta, o caçador consumado encontrara uma presa.

Olhara na direcção dela, sorrindo consigo mesmo, com um brilho nos olhos. A compreensão atingiu-a como uma pedra atirada. A sua alma apertou-se e revirou-se: Sangue de Urso queria ser o primeiro a tê-la!

Desesperada, mandara Sanhaço chamar a sua mãe, sem querer revelar a razão do pedido. Mas, ainda ela buscava forma de explicar, já a furtiva Sanhaço desaparecera na noite.

Durante a tarde, com cantos e cânticos a soarem no campo, permanecera enrolada na roupa. Estariam à espera que saísse da tenda na manhã seguinte. E depois? Sangue de Urso estaria à espera. Como o poderia recusar se ele a apanhasse fora do campo? Que faria ela? Ninguém podia negar nada ao Guardião da Trouxa de Lobo. Sangue de Urso devolvera o coração e a alma, outrora roubado, dos Mão Vermelha. Podia ter aquilo que desejasse.

Dobrou-se para voltar a espreitar e viu uma sombra destacar-se do campo para trepar o carreiro batido. A forma familiar do andar aqueceu um pouco do frio interior que sentia. Sanhaço conseguira entrar sorrateira na tenda do padrasto e falar ao ouvido da mãe.

Mocassinas de pele fina sussurraram no carreiro, uma franja de pele roçou nas pernas quando Cascos Trepidantes se baixou para olhar para dentro da tenda.

- Olá, filha! Que é isso que ouvi? Queres falar comigo?

- Preciso de falar.

A mãe soltou uma risada, na sua maneira rouca, e entrou. Suspirou quando se sentou e deitou-se de lado, na pele almofadada que cobria o chão. Relaxada, esticou as pernas e apoiou-se num braço para melhor ver na escuridão.

- Estás preocupada por seres mulher? Sanhaço não foi muito explícita.

Alce Encantado engoliu em seco, acenando a cabeça no escuro. A velha familiaridade que partilhavam - essa apertada ligação entre uma mãe e uma filha que tinham sofrido juntas - comunicava mais que as palavras.

- Bem, não é isso. Não posso fazer grande coisa a esse respeito. Acho que acertei, não acertei? Limita-te a seres tu mesma. Espera e observa, tudo acontecerá como tem de acontecer. Não precisas de recear o futuro. A vida vem e tu vives dia a dia. Neste momento estás assustada ao pensar como será. Quando limpares o traseiro sujo do teu primeiro neto perguntarás a ti mesmo para onde foi tudo.

- Não é isso. - O coração começou a bater mais depressa.

- Oh? - A voz terna da mãe formulou a pergunta. - Isso é que me preocupa.

- E... bem, é Sangue de Urso. - As flechas de carvão que Corno Verde lhe desenhara nas coxas estavam a dar-lhe comichão, seria uma premonição?

A mãe soltou um suspiro.

- Percebo. Ele tem andado a vigiar a tenda?

- Desde que toda a gente saiu. Sabe que estou pronta. Só... Mãe, ele não. Eu não... quero dizer...

A mãe aproximou-se dela na escuridão, mudando de posição. Um braço acolhedor rodeou os ombros de Alce Encantado.

- Acho que compreendo. - O silêncio prolongou-se. - É com todos os homens? Ou só com ele?

- Só com ele. Gostaria que fosse com Corno Solto. Ele tem vindo a dizer umas coisas... bem, talvez até tenha prometido. E penso que não estava a brincar. Já o vi a observar-me. Gostava que fosse ele. A sério que gostava. Quanto aos outros homens, bem, posso dizer-lhes que não.

- Pois podes.

- Mas Sangue de Urso tem a Trouxa de Lobo. Ninguém diz não a ele. Eu não posso... eu nunca deixaria que ele me tocasse. Não quero o que ele faz. Magoa as mulheres. Ouvi falar do que fez a Chuvisco Primaveril da primeira vez. Fez-lhe sangue. Isso não se faz. Eu não quero que me magoe.

- Chiu! Eu sei. Se fosse comigo também não queria. Tive sorte. Quando saí da tenda tinha homens maravilhosos para escolher.

- Mas eu...

- Cala-te, rapariga. Estou a pensar.

Passaram-se longos momentos. Alce Encantado continuava a espreitar para o campo. Os fogos da noite já estavam acesos nas tendas. Os topos em forma cónica dos abrigos de couro tinham um brilho amarelo-acastanhado, iluminados pelos fogos dentro deles. Sabia das cenas por experiência própria. Lá dentro, as pessoas estavam sentadas, a rirem-se e a contarem histórias da infância de Alce Encantado, a tentar imaginar com quem ela acabaria por casar. A maioria das histórias começaria com “lembras-te quando Alce Encantado tinha cinco anos? Lembras-te de quando ela...” e coisas assim.

Porque sentia os dedos frios de uma ameaça na sua alma apesar de toda aquela celebração? Por que é que Sangue de Urso a queria a ela?

- Cria Branca.

- O quê?

A mãe abanava devagar a cabeça na escuridão.

- É a resposta. Vou mandar-te para Cria Branca. Entretanto, talvez Sangue de Urso te esqueça. Ou talvez encontres algures um homem, quem sabe?

- Mas por que irei para Cria Branca? Eu não...

- Em que outro sítio estarias segura? Hum? Para Corredor Rápido? Sangue de Urso poderia lá ir... e, além do mais, a tua família está toda aqui e não terias nenhuma desculpa. Temos de te mandar para algum lugar onde seria de esperar que fosses. O campo de Cria Branca é perfeito.

- Por que seria de esperar que eu fosse lá?

- Porque estou ocupada. Eu...

- Mas está lá toda aquela gente do Búfalo Baixo! Aquele caçador! Ele pode...

- Nada de pânico. Nem mesmo um caçador dos Búfalo Baixo te incomodará no campo de Cria Branca. Sabes isso perfeitamente. Além disso, o tresmalhado, Dois Fumos, estará lá para te guardar. Mesmo agora, ao fim de tanto tempo, as pessoas ainda não se esqueceram do assassínio de Pena Cortada. Para Sangue de Urso, o tresmalhado é uma lembrança desses dias de desgraça. Se há algum sítio aonde Sangue de Urso nunca irá, é o campo de Cria Branca.

- Mas por que irei eu para lá? Quero dizer, Sangue de Urso não perceberá que me estou a esconder dele? Não tornará as coisas piores quando eu regressar?

- Não te ensinei, há muitos anos, a confiares em mim?

- Bem... foi.

- Excelente, porque irás buscar uma medicina para a tua madrasta. Chuva Molhada está doente.

- Está doente? Mas eu via-a...

- Eu sei, posso ter-te ensinado a confiar em mim, mas não tens os meus miolos. Felizmente, que Chuva Molhada os tem com fartura. Vai agir durante uns dias como muito doente. E o teu padrasto odeia Sangue de Urso tanto como os outros. O velho Pena Cortada era o melhor amigo de Lançamento Certeiro, como sabes. Considerava-o como um pai. Vai desempenhar o papel dele. Nunca teria casado com ele, depois de o teu pai ter morrido, se não fosse um homem ajuizado... e capaz de cuidar de ti.

“Sendo assim, vamos fazer o seguinte. Voltarei com um fardo e tu partirás esta noite. Conheces o carreiro até Cria Branca. Vai e depressa. De manhã, podes já ir a meio caminho. Se alguém perguntar direi que foste buscar uma medicina para a dor de estômago de Chuva Molhada. Mandar-te-ei dizer quando for seguro regressares.

- E Sangue de Urso?

- Acreditará em tudo.

As estrelas ainda não tinham caminhado um palmo no céu quando uma figura negra se esgueirou da tenda menstrual.

Momentos depois, Cascos Trepidantes saiu da tenda e contemplou, pensativa, o carreiro envolvido na escuridão. Alce Encantado já se devia estar a aperceber no que se metera. Viajar no meio da noite, sozinha, num carreiro estranho, assustaria o mais corajoso dos caçadores. Alce Encantado enfrentaria o escuro, a possibilidade de fantasmas, ou talvez mesmo um urso cinzento esfomeado pelo Outono. Tudo seria preferível a Sangue de Urso.

Cascos Trepidantes regressou, cansada, à sua tenda. Com Chuva Molhada a fazer de doente tinha o dobro do trabalho para fazer. O destino de uma segunda mulher podia ser muito pior do que tinha com Lançamento Certeiro e Chuva Molhada. Mesmo assim, sempre se tinha sentido uma intrusa a interferir na felicidade dos dois. Lançamento Certeiro e Chuva Molhada sempre a tinham feito sentir bem-vinda, mas isso nunca impedira de se sentir intrusa. Nunca se atreveria a partilhar da intimidade que eles tinham. Algumas pessoas encaixavam daquela maneira, com perfeição. Lançamento Certeiro e Chuva Molhada pareciam duas peças - masculina e feminina - de um todo.

Ao pensar nisso, sentiu um momento de desespero. Outrora tinha amado assim. Se ele não tivesse viajado no Inverno! A neve era sempre traiçoeira na Primavera. Só quase a meio do Verão é que tinham encontrado o corpo dele. E o vazio deixado pela sua morte nunca seria preenchido.

Lançou um derradeiro olhar ao carreiro, o coração preocupado com a filha. Que forma terrível de se tornar mulher.

-Às vezes ponho-me apensar na tua fé no rapaz. É selvagem, ressentido.

- É a força do pai dele - recordou-lhe Sonhador de Lobo das douradas e translúcidas curvas da Espiral.

- Eu vivi com o pai dele! O rapaz herdou demasiada da sua insolência.

- Trouxa de Lobo, tu mesma foste criada de diversas peças. Cada uma delas tem a sua parte no Poder. Juntos, manipulamos os Círculos para obter o rapaz. Agora, de que te queixas?

- Nessa altura o meu Poder não estava a desaparecer. Não experimentava a sensação da minha própria morte lenta. Corremos um risco terrível. Eu vi o rapaz através dos olhos do Vigilante. Sabes bem que não conseguiremos afectar a sua vontade. Ele será o que será. E antevejo] sarilho.

- Nunca tivemos quaisquer garantias. O futuro é um lugar lodoso. - Ele luta contra os Sonhos. E lutará contra nós com o mesmo vigor. Silêncio...

 

Atrás do rapaz um terror sem nome corria pelo espinhaço e o odor fétido da sua respiração - a de um urso comedor de cadáveres - batia quente na nuca dele. Tentou olhar, tentou espreitar por cima do ombro para ver o horror, mas o equilíbrio fugia-lhe sempre que o tentava, levando-o a agitar os braços para manter o precário apoio.

A morte perseguia-o, tocava-lhe os calcanhares. Podia imaginar a saliva prateada a escorrer em fios dos dentes do monstro.

A única forma de escapar consistia num caminho perigoso ao longo de um espinhaço, afiado como uma faca, de granito cinzento. Dos dois lados tombavam paredes lisas, infindáveis, que desciam a uma profundidade estonteante. Em sua volta as nuvens corriam manchando o azul-profundo do céu. O vento empurrava-o enquanto procurava manter o equilíbrio naquela difícil corrida.

Saltou freneticamente de uma rocha para outra, o terror emprestando uma força infinita aos saltos. Ali, na sua frente, a mãe estava agarrada à rocha bloqueando-lhe o caminho. Olhou para ele com uma angústia doentia no rosto. O vento agitava os seus cabelos compridos, obscurecendo parcialmente a sua expressão, piscando os olhos contra as rajadas. Os dedos dela penetravam na própria rocha, segurando-a.

- Depressa! Está muito perto! Tens de continuar, filho.

O vento arrancava os gritos frenéticos da mãe e atirava-os para a vastidão.

- Vem. Sobe para cima de mim.

E, quando ele vacilou, indeciso, o rosto dela tornou-se cinza, a pele endureceu e viu, com horror, que ela se tornava em rocha.

- Não! - gritou ele para a vastidão. O vento uivante quase o desequilibrou. Podia sentir a coisa atrás dele a esticar o pescoço e a abrir a bocarra corrupta para o abocanhar.

- Mãe? - saltou, desesperado, e a massa arredondada das costas dela aguentaram o seu peso.

Podia sentir a presença daquela coisa de pesadelo atrás de si, a avançar, quando ele lutava para encontrar apoio para o pé no rochedo que fora a sua mãe. Quando mudou de pé o rochedo mudou, estalando e vibrando.

Olhou para baixo a soluçar de medo. O rochedo, com o rosto da sua mãe, caía em cascata para as profundezas, os bocados a tombarem no abismo.

O horror invisível estendeu as garras enquanto ele corria sobre o rochedo friável e estreito. Saltou para um enorme espaço plano que se transformou nas costas de Cereja de Engasgar quando nele aterrou.

A anciã olhou para ele, um sorriso malandro a formar-se nos lábios. Mas logo ela mudou de posição como se quisesse lançá-lo no abismo.

Pequeno Dançarino firmou-se nos pés e atirou-se para o rochedo seguinte. Viu, de relance, o corpo de Cereja de Engasgar a solidificar-se em granito cinzento e a mergulhar no abismo sob o peso dele. Conseguiu agarrar-se quando o rochedo de Cereja de Engasgar se despenhou e se desfez no precipício numa chuva de cascalho. Os dentes a baterem com toda a força, pôs-se em pé e recolocou o corpo no caminho, fazendo uma careta quando a rocha lhe cortou a carne.

Pequeno Dançarino, com o fôlego na garganta, avançou, procurando onde colocar os pés naquele bordo traiçoeiro, sentindo de novo as garras da morte nas suas costas. Atrás dele veio o som de cascalho pisado quando o enorme peso se apoiou no espinhaço.

Dois Fumos olhava-o a seus pés, o rosto do tresmalhado a formar-se no granito irregular. Perante o seu olhar horrorizado, os olhos do amigo transformaram-se em rocha e todo o rochedo tombou, desfazendo-se. Aquilo que fora Dois Fumos soltou-se e mergulhou na eternidade lá em baixo. Pequeno Dançarino tornou a avançar, tremendo a cada rajada de vento.

Olhando para baixo viu que o pai o observava, inevitavelmente a tornar-se em rocha. Pequeno Dançarino começou a soluçar, forçando-se a si mesmo a correr sobre a rocha que se desfazia, sabendo, apesar de estar a aguentar o seu peso, que também aquela o atraiçoaria.

A coisa monstruosa que o perseguia estava mais próxima, o seu volume encobria o sol. O bafo dela impedia-lhe a respiração.

- Eu posso salvar-te - disse a voz de Cria Branca, algures na sua frente.

O coração de Pequeno Dançarino bateu de medo quando o rochedo que fora o seu pai se quebrou e começou a deslizar para o lado.

Que fazer?

Atrás dele, o horror soltou uma gargalhada: Tarde de mais. Castor Pesado!

Pequeno Dançarino ficou imóvel, os dedos agarrados com força à rocha que fora o seu pai. O horizonte inclinou-se e o cascalho caiu em cima de si quando os dois começaram a cair no abismo.

- Louco! - gritou Cria Branca. Castor Pesado ria-se de satisfação.

O estômago de Pequeno Dançarino subiu-lhe à garganta. A náusea tocou-lhe no fundo da língua e deixou-o estonteado. A voz aterrorizada do pai gritava para o vazio lá em baixo. O vento assobiava aos seus ouvidos, rasgava-lhe as roupas e queimava as lágrimas nos seus olhos. Os rochedos longínquos corriam ao encontro deles.

A cair... a cair...

Os olhos de Pequeno Dançarino abriram-se um segundo antes de atingir o fundo. Uma guinada torceu-lhe os intestinos ao sugar o ar fervente para os pulmões ansiosos. Tremeu quando as imagens residuais do Sonho se apagaram na consciência.

Olhou em sua volta, para o prado mergulhado na luz da alvorada, e estremeceu com a frialdade da manhã, ao ver traços de geada dispersos nas folhas. Aqui, na periferia da floresta, as plantas ainda se mantinham luxuriantes e verdes. Um corvo crocitava nas árvores atrás dele. Algures, da floresta, vinha o som cavo de um esquilo a cortar pinhas de abeto que tombavam no chão.

Lá em cima, o céu continuava coberto de cinzento.

Sentou-se numa cascata de agulhas que cobriam o sítio onde se escondera, encostado a um velho gigante da floresta. Pequeno Dançarino espreguiçou-se, sentindo um vazio no estômago.

Gatinhou para fora e passou os dedos pelos cabelos para tirar as agulhas castanhas que se tinham agarrado. Perseguiam-no imagens do Sonho. Penteou com cuidado o cabelo e começou a atravessar o prado. O frio da noite tolhia-lhe os músculos e tornava o seu andar inseguro.

Um galo saudou a manhã nascente enquanto um esquilo guinchava no ar frio antes de saltar de ramo em ramo.

Depois de atravessar um bocado arborizado encontrou uma rocha saliente e espreitou lá de cima. O prado estreitava-se a seus pés, limitado entre duas íngremes paredes de arenito. Fora ali construída uma vedação de troncos, cuidadosamente dispostos, para garantir resistência e altura e que corria diagonalmente sobre a erva castanha - a linha de batida de Touro Esfomeado.

Pequeno Dançarino, com um suspiro de alívio, atravessou as rochas, olhando de relance por cima do ombro antes de iniciar a descida. Quando estava a chegar ao fundo ergueu-se um fino tentáculo de fumo das árvores.

Sorriu e obrigou as pernas cansadas a um trote.

Touro Esfomeado estava agachado em frente de um pequeno fogo. Uma carcaça bem aberta de lebre da neve grelhava em cima das pedras quentes. Touro Esfomeado, com o olhar vivo de caçador, já o via e lhe acenara.

- Tiveste de fugir?

Pequeno Dançarino acenou a cabeça e foi sentar-se junto do pai, partilhando aquele instante de camaradagem.

- Perdi-me durante a noite. Não sabia que estava tão perto. Quedaram-se, sentados em silêncio, por um bom bocado.

- Como é que está a ir a armadilha?

- Quase pronta, podes ajudar-me a acabá-la hoje. Com a primeira neve, os búfalos vão começar a descer dos prados mais altos. Há uma manada no vale por cima de nós. Virão por este caminho. Poderemos apanhar os suficientes para o Inverno todo. - Olhou para os céus cinzentos.

- Seria ideal se fizéssemos a matança e a carne congelasse bem e solidamente. É a melhor maneira. Matar tarde como agora e congelá-la. A carne aguenta-se o Inverno inteiro.

Comeram em silêncio, Pequeno Dançarino com água na boca ao provar a carne quente do coelho.

Depois dos ossos serem partidos e chupados do tutano foram atirados ao fogo para se queimarem em memória. Foram então olhar para a armadilha.

- Achas que isto é capaz de segurar um búfalo? - Pequeno Dançarino inclinou cepticamente a cabeça.

Touro Esfomeado sorriu, semicerrando os olhos.

- Parte do sucesso de um caçador está em conhecer melhor os animais do que eles se conhecem a si mesmos. -Apontou. - Estás a ver como coloquei as raízes e os ramos? Vês como as pontas afiadas apontam para fora? Há uma razão para isso. Os búfalos têm um ar estúpido e meio adormecido. Mas estão constantemente a pensar... como descobriu Dois Fumos ao avaliá-los mal nas Nascentes do Osso do Monstro. Embora pareçam sonolentos e parvos, estão sempre preparados, à espera... e são rápidos como o relâmpago com as patas. Podem virar-se num piscar de olhos apesar do ar desajeitado. Não gostam de ser forçados contra uma parede, percebes? E têm uma pele fina que se rasga com facilidade e sabem disso.

Por isso, repara na maneira como construí isto. Um bom caçador sabe que os búfalos se mantêm afastados das farpas. Sabe que eles preferem andar às voltas ali no centro, de onde podem ver em torno. A vaca da frente vai levar um minuto a decidir o que fazer quando vir o caminho bloqueado. Foi por isso que coloquei assim a vedação. Quero esse momento de indecisão para espetar um dardo na vaca da frente.

- E estarás ali naquele alto? - Pequeno Dançarino apontou para um bloco de arenito que se elevava ligeiramente na área da matança.

- Tens mais de caçador do que eu pensava. Será mesmo ali que estarei. Um caçador não só precisa de conhecer os seus animais como tem de saber aquilo com que trabalha. É por isso que isto tem esta forma. Esta armadilha pode funcionar com uma única pessoa. Com dois, dará um melhor resultado. Teremos de começar a empurrá-los e dirigi-los para aqui. Não queremos que entrem em pânico mas que avancem devagar. Depois, quando entrarem na armadilha, tenho de correr para ali. Entretanto, tu ficarás ali atrás daquele tronco. Se eles se afastarem dos meus dardos ficarão ao alcance dos teus.

- Até um deles entrar em pânico e derrubar a vedação.

- Mas nessa altura... se nós próprios não tivermos entrado em pânico... já teremos morto, ou ferido a sério, os suficientes para nos manter no Inverno.

- Mas, na Primavera, não farias uma armadilha igual a esta. Touro Esfomeado colocou as mãos nas ancas.

- Não resultaria. Os búfalos agem de forma diferente na Primavera. As vacas têm crias novas. Estão mais nervosas e atentas porque as crias são vulneráveis. Os touros velhos permanecem na periferia, protectores. As estratégias para apanhar os animais têm de variar com as estações. Não interessa a pontaria ou a distância a que lanças o dardo, se não sabes como trabalhar os animais. Tens de saber como mudam e pensam de modo diferente com as estações ou acabarás por morrer de fome... ou passar a vida toda a comer plantas como os Anifah!

Pequeno Dançarino ergueu uma sobrancelha. Nos últimos tempos, por insistência de Dois Fumos, tinham comido um monte de plantas. Acabara por ficar a gostar de lilás e de raiz de biscoito. E, no Outono, as cerejas de engasgar e as bagas eram deliciosas. As bagas doces eram uma das suas refeições favoritas.

- Os búfalos são para ti a coisa mais importante do mundo, não são?

- Parte da minha alma é búfalo. - Touro Esfomeado olhou pensativamente para longe, os passos a conduzirem-nos para as árvores. Dói só de pensar que o búfalo está tão escasso. Recordo-me das histórias que ouvi em criança. Recordo o meu avô falar dos velhos tempos em que se matavam duas centenas de uma só vez. Nessa altura, o Povo era tão numeroso que dava para organizar uma grande caçada. Toda a gente tinha uma função específica na matança. Nessa época, os círculos estavam completos. Búfalo e Povo eram um só. Eles alimentavam-nos e nós rezávamos pelas suas almas ao Sábio Lá em Cima. As nossas almas misturavam-se com as dos búfalos assim como as deles se misturavam com as nossas.

- E aqui?

- Aqui talvez consiga apanhar dez ou quinze búfalos. Mais do que suficientes para nos alimentar, mas não tantos como a minha habilidade como caçador permitiria se houvesse mais búfalos. - Hesitou. - Talvez seja assim que deva ser. Um caçador ajuizado toma apenas aquilo de que precisa e um pouco mais para o caso de alguma coisa se estragar ou do lobo, do coiote ou do urso apanharem uma parte.

Pequeno Dançarino agarrou na parte mais fina da vara que o pai indicou. Levantou-a e seguiu atrás dele, vacilando sob o peso da comprida vara. Com esforço, colocou-se na extremidade da vedação que o pai lhe apontou.

Os dias passados seriam sempre melhores que o futuro? A vida teria sempre de piorar em vez de melhorar? Assim parecia. Quantas vezes ouvira Cria Branca dizer que o mundo estava a mudar? E, se as coisas continuassem a piorar, que iria ser dele? As imagens do Sonho continuavam. As pessoas na sua vida tinham-se tornado em rochas instáveis debaixo dos seus pés, tentando lançá-lo no abismo. Descobriu-se a mirar, inquieto, as costas largas do pai, enquanto colocavam vara após vara sobre a vedação.

Servindo-se de uma lasca de pederneira que lascara de um núceo já bem usado, Sangue de Urso descascou distraidamente uma vara de salgueiro da grossura do polegar. Sob as suas mãos experientes, a casca soltou-se em longas tiras, expondo a madeira branca debaixo dela. Esta peça daria uma excelente haste de dardo. Uma das extremidades receberia uma cavidade que encaixasse no gancho do atlatl que laboriosamente trabalhara a partir de uma haste de alce, adquirida a norte do Rio Grande por Três Assobios. A outra extremidade seria contradobrada para criar um encaixe para a ponta, que faria de uma madeira dura como a cerejeira ou o freixo.

Começou a caminhar enquanto trabalhava na haste, mirando a tenda menstrual. Alce Encantado já devia ter regressado à tenda de Lançamento Certeiro. Desde a alvorada que ali permanecia, esperando na periferia do campo. E, se a não tivesse visto, decerto ela teria de ir aos arbustos. Para onde teria ido?

Ela sempre o intrigara. Apesar da sua pouca idade, há mais de um ano ou coisa parecida que a forma dela andar, tão direita e composta, o atraía. Observara, com crescente interesse, quando se tornara aparente a sua feminilidade. De todas as mulheres, ela e Sanhaço seriam as mais belas. Sanhaço seria a mais apaixonada, orgulhosa e teimosa - desde que alguém a conseguisse apanhar o tempo suficiente para a deitar. Alce Encantado, no entanto, tinha uma vulnerabilidade que espicaçava o seu desejo. Andava sempre de queixo erguido, como se estivesse timidamente consciente da sua beleza e encanto. Quando não trazia o cabelo numa trança deixava-o tombar até à cintura num negro-azulado que captava a luz do sol e cintilava numa centena de raios isolados. E, mais que tudo, apreciava aqueles olhos dançarinos. Sangue de Urso, apesar da sua idade, veria aqueles olhos a brilhar para ele.

Franziu a testa, avaliando a haste do seu novo dardo... e olhou directamente para a tenda menstrual. Apesar das sombras matinais, era evidente que ninguém estava lá dentro.

Perplexo, avançou devagar pelo carreiro, de olhos no chão, a raspar um nó na madeira. Os longos anos de caça e de pista mantinham-no em boa forma. Aqui Cascos Trepidantes subira o carreiro e regressara. Ao aproximar-se da entrada, descobriu uma pegada ligeira na erva seca. Alce Encantado! Tinha de ser.

Continuou a sua deambulação de testa franzida, dando uma lenta volta ao campo, procurando pistas. Curioso. Geralmente, uma nova mulher acabava a sua hemorragia e regressava ao campo envolta no clarão do seu orgulho. A impertinente Alce Encantado devia fazer exactamente isso, cheia da sua glória na mais auspiciosa das ocasiões.

Outra pista. Assobiou baixinho, a andar, a mente a pensar enquanto trabalhava afincadamente na haste. Alce Encantado seguira pelo carreiro sul. Não restava a mínima dúvida.

Parou a contemplar o carreiro, sabendo como subia ao longo do Rio Límpido para virar depois a leste e descer ao vale, para finalmente atravessar a Parede Vermelha e entrar nas planícies onde corria o Rio Lama até à terra do Povo do Búfalo Baixo.

Que se passava ali? Por que é que uma nova mulher perderia todas as festas em sua honra? Por que escaparia à oportunidade de ouvir os parabéns de toda a gente e de receber os presentes que a esperavam?

Sangue de Urso sugou o lábio e voltou à sua tenda. Verificou, como sempre o fazia, se a Trouxa de Lobo continuava no tripé ao fundo da tenda. Coisa estúpida. Apesar de todo aquele tempo em que fora obrigado a ouvir a conversa de Pena Cortada sobre o Poder da Trouxa, nunca o sentira. Nos últimos quatro anos, desde que viera do campo dos Búfalo Baixo, a Trouxa de Lobo erguida no ar em triunfo, nunca sentira a mais pequena marca de Poder.

- Pena Cortada era um louco! - resmungou. - O meu povo não passa de um bando de loucos por acreditar numa coisa destas.

Estendeu a mão e espetou o indicador na Trouxa de Lobo.

- Fica com essa, Trouxa de Lobo. Encontrei-te e trouxe-te de volta. Eu, Sangue de Urso! E sem nenhum Poder! - Dobrou o lábio e rosnou.

- E que bem fizeste ao tresmalhado? Ei? Apesar do tempo todo em que esteve contigo está aleijado e a viver da caridade de Cria Branca, de um caçador pária dos Búfalo Baixo e da minha boa vontade! - Abanou a cabeça. - Louca!

Abriu um dos pacotes colocados contra a parede do fundo e encontrou o que procurava, tirando uma pequena bolsa. Desfez o nó e vazou o conteúdo: seis belos dentes redondos de marfim extraídos da mandíbula superior de machos jovens.

Voltou a metê-los na bolsa e saiu da tenda, caminhando com vagar pelo campo.

- Está alguém na tenda de Lançamento Certeiro? - chamou ele, bem disposto. - Sangue de Urso vem, nesta manhã especial, com uma prenda para a nova mulher.

- Só um instante.

Reconheceu Cascos Trepidantes e ouviu coisas a serem mexidas lá dentro. Pior para ela. Ai se ali estivesse quando o primeiro marido dela perdera o passo na neve e desencadeara a avalanche que o matara! Ela teria valido a pena. Nem mesmo um louco perguntaria onde fora a filha dela buscar a beleza e o encanto.

Cascos Trepidantes saiu, afastando a cortina. Viu o olhar ensonado e notou as linhas de preocupação em volta da boca.

- Quero oferecer uma prenda à filha de Lançamento Certeiro. Ouvi que ela é uma nova mulher entre nós.

Cascos Trepidantes sorriu, pouco à vontade.

- Ela sentir-se-ia honrada, mas não está aqui. Foi Chuva Molhada... Bem, talvez tenha comido de mais ontem. Acordou a meio da noite a queixar-se do estômago. A seguir ficou com febre e arrepios. Cascos Trepidantes correu nervosamente os dedos pelo cabelo, o rosto exprimindo preocupação. - Não sei. Talvez eu tenha entrado em pânico na escuridão da noite. Seja como for, mandei Alce Encantado até Cria Branca para trazer alguma coisa para o estômago de Chuva Molhada.

- Eu tenho a Trouxa de Lobo. - Cruzou os braços, a pensar. Alce Encantado estaria no carreiro que ia para o campo de Cria Branca? Estaria sozinha, ansiosa de experimentar a sua nova feminilidade no primeiro homem que aparecesse. - Tinha planeado ir hoje caçar. Talvez deixe aqui a Trouxa de Lobo, pode ajudar. Tomarás conta dela enquanto ando por fora.

Um brilho nasceu nos olhos de Cascos Trepidantes e os lábios dela afastaram-se um tudo-nada.

Sangue de Urso conseguiu controlar a expressão. Mulher idiota. Também estava convencida de que o saco velho continha Poder. Quem sabia se poderia usar isso a seu favor no futuro? E, se Alce Encantado o deliciasse tanto como esperava, talvez a isca do poder levasse Cascos Trepidantes a favorecer um casamento?

- Ficaríamos gratos. Tomaremos bem conta dela e será honrada enquanto permanecer na nossa tenda.

Ele sorriu, a mente já no carreiro para Cria Branca.

- Excelente. Vou buscá-la.

Rodou nos calcanhares e dirigiu-se a passos largos para a sua tenda.

Corno Solto esperava em silêncio no meio das árvores. Tal como o caçador em que se tornara, mal se distinguia a sua silhueta. Sanhaço moveu-se com cuidado, testando a sua habilidade contra a dele. Esquivou-se aos ramos mais baixos. Da mesma forma, colocava cada pé, colocando-o junto aos ramos secos e equilibrando-se para não fazer estalar as agulhas de abeto que cobriam o chão.

Corno Solto mudou de posição, rodando devagar o pescoço para observar o carreiro. De repente, ficou imóvel.

Sanhaço mal respirava. Podia ouvir passos no carreiro. Notou como Corno Solto ficava tenso, mergulhando para obscurecer a sua forma nas ervas que rodeavam o abeto. De quem se escondia o seu amigo?

Captou um movimento fugaz e ficou estática enquanto Sangue de Urso passava. Na postura tensa de Corno Solto leu o seu ódio. O silêncio estendeu-se até que Corno Solto finalmente se endireitou.

Sanhaço voltou a avançar até ficar suficientemente perto para espetar os dedos nas costelas de Corno Solto.

- Apanhei-te! - E fugiu a correr ao mesmo tempo que Corno Solto soltava um grito assustado e se virava.

Parou entre as árvores para ver se ele a seguia. Ele explodiu no meio de ramos de abeto quebrados e parou, o rosto uma obra-prima de raiva convulsa.

- Nunca! Nunca mais faças isso! - Bateu com o pé no chão, raivoso. Mas não ia persegui-la. Podia senti-lo.

Ela inclinou de lado a cabeça.

- Afinal, quem estavas tu a emboscar?

- Não é asssunto que te diga respeito, rapariga!

- Ah! Alce Encantado!

As feições dele ficaram rubras. Sanhaço sorriu.

- Bem, tu e Sangue de Urso estão com a mesma ideia fixa. Ela não está aqui. Foi para o campo da feiticeira.

Corno Solto soltou uma exclamação.

- Mas há lá gente do Povo do Búfalo Baixo.

- Uh-uh, mas não há Sangue de Urso. Nem tu!

Ele, soltando um grito, procurou agarrá-la. Ela dançou, escapando sem esforço aos braços dele. Fugiu a correr como o vento, o coração exaltado. Tinha a sua perseguição!

Três Dedos puxou a longa trança que lhe pendia o ombro esquerdo. A sensação de rastejar que sentia nas tripas não diminuía por mais que puxasse. Estava de pé, numa rocha calcária isolada, que sobressaía o suficiente da espinha da montanha para lhe permitir ver a parede de abetos que o rodeava.

O ar fresco carregava o odor pungente das coníferas e da terra molhada. Lá no alto, uma águia dourada pairava nas correntes térmicas. Um alce saltitou algures nas sombras das árvores.

Ao norte estendiam-se picos cobertos de nuvens, uma poeira de neve branca visível logo abaixo da barriga fofa das nuvens. Entre ele e as montanhas estendia-se uma infindável região alta e ondulante que inchava em pequenos cumes, encostas alquebradas e vales que mais pareciam fendas - tudo atapetado por um espesso mosaico de árvores. Antigos fogos criavam remendos na floresta nos locais em que os raios haviam atingido as mais velhas e combustíveis durante a seca.

Tornou a olhar para sul, cerrando os dentes. Mais terreno acidentado - mas os picos não eram tão altos e não via neve. Uma encosta escarpada subia mais alto a oeste e obscurecia a vista nessa direcção. E nem sequer era de pensar em viajar para leste, porque um vale escarpado fendia os ossos da montanha.

- Então? - perguntou Corvo Negro.

Três Dedos encheu bem os pulmões antes de deitar fora o ar, saboreando a sensação.

- Estamos perdidos.

- Maravilhoso! - Corvo Negro bateu, raivoso, com as mãos nos flancos. - E os Anifah conhecem todos os carreiros desta área. O que me faz sentir maravilhosamente!

Três Dedos respirou de novo a pensar quantas mais vezes o faria, caso não encontrassem Cria Branca.

Pequeno Dançarino descansou por um instante para recuperar o fôlego e dar folga às pernas trementes. Para diminuir a carga sobre as ancas e os joelhos dobrou-se ainda mais, agarrando os joelhos com as mãos para melhor aguentar o peso. Os tornozelos não lhe doíam, mas o mesmo não se podia dizer de tudo o resto.

O fardo que tinha às costas pesava quase tanto como ele. O couro largo na tira da testa cortava-lhe a pele - há muito dormente por falta de sangue. Mas, apesar do peso, não podia deixar de sorrir.

O seu primeiro búfalo! Sob a orientação do pai, tinham trabalhado a armadilha na perfeição. Touro Esfomeado soubera exactamente o comportamento dos búfalos. Juntos tinham empurrado com cuidado os animais para o vale e a armadilha.

Correndo para a sua posição de controlo, Touro Esfomeado cravara o primeiro dardo profundamente no flanco da vaca da frente. O segundo dardo entrara entre as costelas de uma vaca mais nova. Quando os outros começaram a andar às voltas tinham permanecido afastados das pontas aguçadas colocadas na vedação da armadilha.

A oportunidade de Pequeno Dançarino chegou quando uma vaca jovem recuou da linha de matança, as narinas distendidas, cabeça baixa, mugindo com o cheiro de sangue. O tiro fora perfeito. A menos de dez passos, enfiara o dardo um pouco por detrás, atravessando o diafragma e furando os pulmões. A vaca saltara, escouceara e soltara uma baforada assustada. A gemer, afastara-se do grupo - e tombara no chão, onde ficara a sangrar a sua vida na erva avermelhada.

Um a um tinham morto sete búfalos antes de uma vaca enlouquecida se lançar contra a vedação. Baixara o focinho, incomodada com os ramos, e, com um golpe da cabeça, demolira a maior parte da vedação, espetando um corno noutro animal durante o processo. Na confusão que se estabeleceu, os animais fugiram todos, vale abaixo, menos os mais feridos, em busca da segurança da cordilheira invernosa.

Só então Pequeno Dançarino ficara parado a sentir o espanto de ter morto um animal tão grande com o dardo feito pela sua mão. Sob a tutela de Cria Branca respirara Poder de Espírito na madeira, na pedra e na corda. O acto de bater a pederneira em pontas acabadas deixara-lhe os dedos cheios de golpes. As pontas afiadas como lâminas tinham embebido suficiente sangue seu para lhes dar a alma e poder de matar.

Agora, tudo fizera um círculo completo. Sugou o ar frio para os pulmões, feliz de mais para ligar ao facto de os músculos das pernas doerem sob o excesso de peso. Ele, Pequeno Dançarino, transportou para o campo a sua primeira carne. Na alegria da ocasião, nem a perspectiva de enfrentar Cria Branca o incomodava.

Firmou-se e endireitou-se, as articulações a protestarem. Fechando os olhos com o esforço iniciou os últimos comprimentos até ao abrigo de rocha de Cria Branca.

Nem sequer ouviu o pai aproximar-se.

- Estás bem?

- Acho que tenho as costas partidas. Ouço todos os meus ossos a estalar e partir.

- Acabarás por te habituar.

- Oh... não duvido, mas ficarei duas mãos mais baixo!

Engoliu, a garganta seca, e obrigou-se a olhar para o vazio confortável do abrigo de Cria Branca. Já não faltava muito, só mais um bocadinho. Passo a passo de sacrifício conseguiu percorrer a distância, a resfolegar na última subida, dando passinhos curtos.

- Só falta um bocadinho - encorajou a voz do pai. Atravessou a erva espezinhada, pronto para gritar e deixar cair a carga - quando a rapariga surgiu.

Rapariga? Estacou, piscando os olhos, e levantou a cabeça sem pensar. Subitamente desequilibrado, a carga puxou-o para trás. Os braços dele bateram futilmente no ar. Gritou ao cair, o fardo quase lhe partindo o pescoço quando se sentou com demasiada força.

Com luzes a faiscarem-lhe nos olhos, e o mundo a rodopiar, mal sentiu os pés a embaterem no chão.

Corou com a risada cristalina da rapariga.

- Como te sentes? - perguntou Sonhador de Lobo, o brilho ondulando com a sua voz.

- Como se me estivesse a evaporar. O Poder dissipa-se. Sangue de Urso desgasta-me. De cada vez que faz pouco de mim, eu fico menor. À noite, quando ele dorme, brinco com a vida dele, pois sei que o posso apagar como um pau a arder na terra.

- As coisas mudaram. E Sangue de Urso é a causa disso.

- A rapariga?

A voz de Sonhador de Lobo suavizou-se.

- Estou preocupado. Devíamos fazer o rapaz amar. Eu sei o Poder do amor. Sei como o amor se pode entrelaçar no Poder e conduzir ao desastre. Uma vez também eu fiquei à beira do desastre por causa do amor.

- Posso estar diminuída mas ainda sou capaz de me estender e remover a ameaça que representa Alce Encantado. Ela nada é.

- Estás zangada, estás sempre disposta a atacar. Eu por mim... bem, dava-lhe o tempo que nunca tive. Talvez ela seja uma forma de o alcançar. De ultrapassar o mal que fez Raiz de Salva. O Vigilante saberá.

- Não hesites tempo de mais, Sonhador de Lobo. O modo como os seres humanos sentem o tempo, trabalha contra nós. Sinto que estamos a chegar ao fim... de uma maneira ou de outra, e muito depressa.

 

A vida funcionava de uma forma curiosa, decidiu Sangue de Urso em passo de trote, os olhos atentos às árvores em sua volta. Partira em busca de uma rapariga caprichosa que tinha esperanças de encher com uma criança dele. Em vez disso, dera com sinais do Povo do Búfalo Baixo no coração do seu domínio. O ferrão da incursão do último ano ainda o picava.

Tinham chegado manhã cedo, quando o sol acinzentava o horizonte a oriente. Na confusão que se seguira, Sangue de Urso carregara, de dardos na mão, e vira o Sonhador do Espírito que observara no dia em que havia roubado a Trouxa de Lobo, a cantar e a exortar os guerreiros para que matassem os Mão Vermelha.

Uma raiva fumegante recusava-se a morrer sempre que pensava nesse dia. Talvez que, se tivesse ficado, pudesse ter levado a sua gente a lutar. Em vez disso, o seu primeiro pensamento fora que os Búfalo Baixo queriam recuperar a Trouxa de Lobo. E, se o fizessem, perderia o seu controlo sobre os Mão Vermelha. Ter perdido uma vez a Trouxa de Lobo já era o bastante, mas duas vezes? Impensável!

Pegara na Trouxa e fugira. Ao verem a sua ingloriosa retirada, os Mão Vermelha não tinham ficado para lutar. Os guerreiros dele fugiram também, perdendo a coragem perante a fuga dele, e cederam ao ataque, deixando o campo para o Povo do Búfalo Baixo, ululante, a dançar. Tinham pilhado tudo e queimado o que deixaram para trás. Um homem e duas mulheres tinham sido mortos, os dardos nas suas costas quando iam a fugir. E tinham capturado algumas crianças, assim como um par de mulheres.

Um desastre total.

Agora tinha uma nova oportunidade. Agora podia levar os Mão Vermelha em retaliação contra o inimigo. Claro que Alce Encantado estava algures naquele carreiro, mas, se o Povo do Búfalo Baixo não a apanhasse, continuaria presente para seu prazer quando os outros assuntos estivessem devidamente resolvidos.

Saiu de entre as árvores e encontrou o campo intacto e pacífico.

- Mão Vermelha! - gritou ele a agitar os braços. - Peguem nas armas! O Povo do Búfalo Baixo voltou! Desta vez, somos nós que os vamos surpreender!

Em poucos instantes estava a a conduzir os guerreiros pelo carreiro. Bastava agora localizar as pistas dos intrusos, caçá-los e matá-los até ao último.

O fogo crepitava e explodia, lançando fagulhas de luz amarela que brincava até ao tecto coberto de fuligem do abrigo de Cria Branca. O ar rescendia ao cheiro de lombo de búfalo a assar e de língua a cozer com azedas, cebola selvagem, raizes de rabo de raposa, folhas da planta das abelhas e raiz de lilás.

Pequeno Dançarino massajava os ombros doridos e sentia as articulações todas doridas. Amanhã, cada um dos músculos do corpo estaria a gritar. Olhou para o pai, que tratava de uma rede de carne a secar. O rosto de Touro Esfomeado mostrava satisfação e a animação do sucesso da caçada substituía a tristeza que normalmente lhe enchia os olhos. Dois Fumos, recostado à parede do fundo, trabalhava com dedos ágeis uma pele curtida e macia, cortando-a para fazer solas para mocassinas, a que depois daria forma com uma lasca cortante de pederneira. Alce Encantado estava no fundo da gruta a estudar as trouxas e os sacos de medicinas pendurados. A luz do fogo brincava com o brilho dos cabelos dela. Pequeno Dançarino não conseguia afastar os olhos da rapariga que se movia, graciosa, como um veado sobre neve fresca. Cria Branca estava sentada junto do fogo, remexendo os carvões com um bocado de ramo.

Pequeno Dançarino mirou, inquieto, Cria Branca, que agora se inclinava para inspeccionar a bolsa de tripa de búfalo que estava suspensa de um tripé de varas.

- Davam-me jeito mais umas pedras. Está a ferver, mas queremos que ferva bastante.

Alce Encantado correu a ajudar e usou os paus do fogo para tirar outra pedra arredondada das brasas e a lançar, a zumbir, para o caldo. Uns olhos negros e brilhantes miraram-na quando ela voltou a colocar os paus no lugar.

Dentro de Pequeno Dançarino formou-se uma sensação curiosa, uma terna excitação - e que aumentou quando os seus olhares se encontraram. O ar entre eles parecia carregado tão intensamente, que podia sentir a presença dela. Que se passava com ela? Por que não era capaz de a tirar dos seus pensamentos?

Baixou o olhar, espantado por se descobrir a remexer desajeitadamente os dedos. E, por mais que tentasse, era incapaz de fazer parar os próprios dedos. Cada nervo do seu corpo exigia que ele fizesse uma coisa. Levantou-se, deu uns passos e voltou a acocorar-se no mesmo sítio de onde partira. Pelo canto do olho notou o sorriso divertido da rapariga, que tentou evitar que ele o visse.

Os Mão Vermelha tinham passado perto do campo de Cria Branca, e mesmo acampado perto, mais de uma vez naqueles anos. Nessas ocasiões, ele brincara com as crianças. Até se encontrara uma vez ou duas com Alce Encantado. Uma das vezes, passara uma tarde com ela e um par de outras crianças a brincar ao pau e salta, a rir e a correr. Nesse caso, por que não teria então notado os tons da pele dela, a maneira como o cabelo brilhava à luz ou a misteriosa profundidade dos olhos dela? E, agora, o mínimo movimento dela absorvia-o quase ao ponto de ser doloroso. Não interessava o esforço que fazia para dar atenção a outras coisas, acabava sempre por olhar para ela, a desejar que ela lhe sorrisse, que falasse com ele.

De momento, a rapariga envolvera-se num estudo atento da espiral traçada na parede do fundo. Cria Branca pintara as linhas como um amarelo feito de flores de bálsamo esmagadas.

Alce Encantado estendeu um dedo para lhe tocar, percorrendo as linhas antes de olhar para Cria Branca.

- Há muitas espirais como esta gravadas em rochas no lado norte das montanhas. Recordo-me delas quando era rapariga. Tínhamos acampado ali para nos encontrarmos com o Povo da Garça Branca. Eu penso que estavam a trocar coisas.

Cria Branca acenou em concordância. Estava curiosamente reservada, o seu olhar predador focando-se primeiro na rapariga e depois nele. Odiava quando o olhar dela ficava assim esfumado e velado.

Alguma coisa a preocupava, uma premonição má dentro da sua mente. Que daria ele para poder remexer na velha alma dela naquele instante? Como se a brisa da manhã tivesse afastado um fumo, Pequeno Dançarino apercebeu-se de que não era com ele mas com Alce Encantado. Cria Branca não gostava de ter Alce Encantado por ali. Ficou a pensar. Porquê? Que se passaria com ela?

- Que sabes sobre a Espiral? - perguntou Cria Branca, olhando para Alce Encantado.

- Só sei que é Poderosa. É velha, não é? Uma coisa dos tempos das Crianças Monstruosas é dos Gémeos Heróis?

Cria Branca sorriua contemplar a arte rupestre.

- Sim, filha, é antiga. A Espiral é tão antiga como o Primeiro Homem. No princípio, o Sábio Lá em Cima criou o mundo. Depois, criou os animais e o homem. Durante muito tempo as coisas estiveram bem. Depois, como sempre, alguma coisa veio criar sarilhos. Pode ter sido o Povo. Talvez os animais. Mas o que aconteceu é que, algures, o Um da criação foi separado. Apartado. Cada coisa começou a seguir na sua própria direcção. Os seres humanos acabaram por acreditar que eram os seres mais importantes do Primeiro Mundo e deixaram de agradecer aos animais e às plantas por se oferecerem como alimento. Os animais começaram a pensar que eram os mais importantes e deixaram os seres humanos a morrer de fome ao recusarem-se a deixar matar. Tal como um núcleo de pederneira com uma falha batido por um martelo, tudo se desfez em diferentes direcções e nada já encaixava entre si.

O rosto de Alce Encantado iluminou-se, extasiado, a contemplar a espiral. Pequeno Dançarino via-a traçar a linha com o dedo e sentiu no peito uma curiosa premonição.

- Ao ver todo aquele sarilho, o Sábio Lá em Cima ficou desgostoso com tudo aquilo - continuou Cria Branca -, e fez para si mesmo um novo mundo. Transformando-se na Aranha Tecedeira teceu a Teia-de-estrelas... o Segundo Mundo. Concluiu que os seres humanos, nos seus corpos físicos, nunca lá conseguiriam chegar para estabelecer a confusão. Só que estava errado. Mal tinha terminado de fazer o Segundo Mundo e logo as almas de todas as pessoas que tinham morrido começaram a subir e a encher a Teia-de-estrelas. Tornaram-se nas estrelas que vimos no céu.

- Mas isso não resolveu a confusão que se instalara no Primeiro Mundo. Só encheu de gente a Teia-de-estrelas, não é verdade? - Alce Encantado lançou a Cria Branca um olhar esperançado, suspensa de cada uma das palavras da outra.

O interesse da rapariga venceu as suspeitas de Cria Branca e lançou-se à história, os velhos olhos cheios de animação:

- Sim, as coisas continuavam mal no Primeiro Mundo... tudo dividido homens e animais em constante discussão e guerra. O Sábio Lá em Cima pensou no assunto e viu uma maneira de resolver as coisas. Criou outro mundo, o Terceiro Mundo, e encheu-o de espíritos para que estes ajudassem as pessoas quando estas precisassem. O Sábio Lá em Cima fez os Sonhos para que os espíritos pudessem falar do Terceiro Mundo para o Primeiro. Por uns tempos, as coisas melhoraram, mas o Primeiro Mundo ainda continha coisas más.

- E foi daí que vieram os Sonhadores? - perguntou Alce Encantado.

- Tu conheces a história - brincou Cria Branca. - Os Sonhadores são a chave para manter as coisas equilibradas. Fazem as coisas ficarem de novo bem e Dançam ao longo da Espiral.

- Estás a perder o teu lugar, velhota - comentou Dois Fumos. Continua com a história.

Cria Branca lançou-lhe um olhar irado.

- Sim, bem, por essa altura, os Gémeos Heróis, o Primeiro Homem e o seu irmão gémeo, nasceram no Primeiro Mundo. Aconteceu qualquer coisa e a mãe deles morreu e deixou os rapazes sozinhos. O Sábio Lá em Cima sentia o Poder de um Sonhador, mas qual das duas crianças o teria? Não os podia deixar morrer, porque um Sonhador podia ser capaz de consertar o Primeiro Mundo e repô-lo no caminho correcto, e assim chamou e falou com Lobo... que sempre foi esperto e matreiro, para que este encontrasse os rapazes. O Lobo encontrou os rapazinhos numa praia junto ao oceano e criou-os. O Primeiro Homem gostava do dia e vivia na luz. O irmão gostava da escuridão e escondia-se a engendrar esquemas.

“Entretanto, o Sábio Lá em Cima decidiu que iria começar tudo de novo e fez um novo mundo, o Quarto Mundo. Quando o fez, achou que era bom. E chamou o Lobo dizendo-lhe que fosse procurar todos os animais bons e os trouxesse, através de um buraco debaixo da terra, para o novo mundo. O Lobo assim fez e levou todos os animais para o Quarto Mundo, este mundo onde estamos agora, e viu como era um mundo maravilhoso!

- Que aconteceu ao Primeiro Homem? - perguntou Pequeno Dançarino. - Se o Lobo só trouxe animais, então o Primeiro Homem continuava ainda do outro lado.

Cria Branca estudou-o por um momento, abanando a cabeça.

- Tens razão. O Primeiro Homem e o irmão estavam do outro lado do buraco entre os dois mundos. Mas Lobo sentia-se sozinho por ter deixado as duas crianças humanas do outro lado. E, por isso, o que fez foi Sonhar o Sonhador de Lobo para Primeiro Homem e deu-lhe a Trouxa de Lobo para ele a usar como guia e trazer as pessoas boas do Primeiro Mundo. O Primeiro Homem assim fez e guiou as pessoas por debaixo da terra. Há quem diga que o buraco atravessava o gelo. Outros dizem que era um túnel no céu e às vezes diz-se que era escavado na rocha mas, fosse como fosse, chegaram a este mundo.

- Mas o irmão mau veio também?

- Sim, o irmão do Primeiro Homem seguiu-o e trouxe a maldade com ele.

“Quando o Primeiro Homem viu o que acontecera, bateu na cabeça do irmão e abriu-a. O irmão mau desapareceu a correr na noite, a sangrar. É por isso que encontramos agora sílex vermelho. Foi nos sítios em que o sangue nele empapou o chão e se tornou em pedra.

-Mas isso nada tem a ver com Espirais - exclamou Alce Encantado.

Cria Branca bateu as palmas com um enorme sorriso a rasgar o seu rosto engelhado. Os olhos dela brilhavam, iluminados pelo entusiasmo da audiência.

- Ah! Mas tem! Não sei se percebem, mas depois de matar o irmão, o Primeiro Homem desenhou a Espiral para recordar aos homens que todas as coisas são Um. Teve esperança de que, fazendo isso, evitaria que acontecessem as coisas más. Enquanto as pessoas se lembrassem que uma Espiral é um círculo dentro de um círculo sem fim, nunca se esqueceriam do Um. Nunca deixariam que o mundo se fragmentasse e separasse como acontecera com o Primeiro Mundo. É por isso que precisamos de um Sonhador, para Dançar e manter a Espiral inteira.

- Então, é por isso que a Espiral é tão Poderosa? Por fazer lembrar ao Povo a viagem desde o Primeiro Mundo? - A testa de Alce Encantado encheu-se de linhas enquanto observava a Espiral.

Cria Branca concordou com um gesto. Havia um sorriso nos seus lábios.

- Mais do que isso, rapariga. A Espiral é o mais poderoso de todos os símbolos. A Espiral é vida. É o todo da criação, é tudo dentro de si mesmo: unidade. Início e fim... e tudo o que está entre eles. É círculos dentro de círculos. O Um, desde o Sábio Lá em Cima até à mais pequena das sementes ou dos grãos de pó. Tudo e nada. Um.

- Um. - O apelo ecoou na mente de Pequeno Dançarino. A sua visão, por um fugaz instante, vibrou e vacilou. Ligeiramente estonteado, meteu a cabeça entre os joelhos. Quando fechou os olhos, focaram-se imagens da Espiral nas pálpebras, imagens que giravam, giravam, envolvendo a sua própria alma. A voz de Cria Branca ecoava dentro de si: É o todo da criação, é tudo dentro de si mesmo: unidade.

Trabalhei de mais hoje, mentiu ele a si mesmo. Devia ter carregado um fardo mais leve. É exaustão. Mais nada. Sacudiu a cabeça como se procurasse livrar-se das imagens que a história de Cria Branca haviam desencadeado na sua cabeça. Quando voltou a levantar a cabeça, Cria Branca tinha mudado de posição e os seus olhos vivos não haviam perdido o menor pormenor do desconforto que sentia. Respondeu ao olhar, na defensiva.

A anciã suspirou e remexeu as suas gengivas desdentadas ao mesmo tempo que se voltava a sentar nas peles.

- Quanto tempo achas que vais ter de passar aqui?

Os olhos de Alce Encantado brilhavam com a magia da história da anciã e continuavam a mirar a rocha gravada.

- Não sei. Até a minha mãe dizer que Sangue de Urso virou as ideias para outro lado.

- Sangue de Urso? - Pequeno Dançarino franziu o sobrolho. Dois Fumos, que fumava o seu cachimbo reclinado num fardo encostado à parede, respondeu:

- Ao que parece, o líder dos Mão Vermelha desenvolveu um certo interesse por Alce Encantado desde que ela se tornou uma mulher completa. Era até capaz de a tomar pela força.

- Mas a violação...

- A coisa é diferente nos Mão Vermelha. - Dois Fumos massajou a nuca. - Um homem que força uma mulher é ridicularizado. Que homem gostará que se saiba que não é suficientemente poderoso para ganhar a mulher que deseja? Quem quer ser alvo de chacota? E, crê em mim, uma mulher forçada contará a história a toda agente! Os homens excluem-no da sua companhia. As mulheres levantam as saias em chacota. As crianças atiram-lhe bostas e urinam nos seus pertences. Quem será capaz de uma vida assim? O último homem de que eu soube que forçara uma mulher ficou tão envergonhado que acabou por se despir todo e caminhar para dentro de uma tempestade de neve, preferindo morrer a viver daquela maneira.

- Nesse caso, por que é que Sangue de Urso correria esse risco? perguntou Touro Esfomeado, levantando os olhos dos instrumentos de desmachar carne que estava a inspeccionar.

Dois Fumos ergueu as mãos.

- Sangue de Urso é o Guardião da Trouxa de Lobo. Isso dá-lhe certos privilégios. Alce Encantado pode dizer não a qualquer homem... a qualquer homem menos ao Guardião da Trouxa de Lobo. Negar alguma coisa ao Guardião, é negar à Trouxa de Lobo. O Guardião e o Poder são Um. Percebem?

- A Trouxa de Lobo. - Pequeno Dançarino teve um baque no coração. Viu a expressão torturada no rosto de Dois Fumos. Até ao dia em que morresse, o tresmalhado atormentar-se-ia com a profanação e perda da Trouxa de Lobo.

- Não está certo - insistiu Touro Esfomeado, na sua forma sincopada de falar a língua dos Anitah. Levantou no ar uma ponta de ágata romba para melhor a estudar. A superfície da pedra captou a luz do fogo e brilhou como gelo polido.

- Certos ou não - resmungou Cria Branca, instalando-se melhor -, os costumes dos Mão Branca são diferentes dos costumes do Povo do Búfalo Baixo. Não são nem melhores nem piores, apenas diferentes. Entre os Mão Vermelha, uma mulher geralmente só se casa quando está grávida. Os Mão Vermelha atribuem grande valor à capacidade de uma mulher para trazer uma nova vida ao mundo. Recordo-me dos comentários curiosos quando Água Límpida se juntou a Sangue de Urso. Mas ela era uma Mulher de Espírito. - Cria Branca observou Pequeno Dançarino por entre as pálpebras meio fechadas. - E eu ainda não endireitei todos os nós e reviravoltas tecidos pelas acções dela.

Pequeno Dançarino baixou os olhos e estendeu os lábios. Dois Fumos acabara por lhe falar da sua verdadeira mãe. Talvez isso tivesse ajudado a suportar a dor da perda de Raiz de Salva. Talvez tivesse tornado as coisas piores.

- Sangue de Urso. - Alce Encantado estremeceu. - Ele não acredita no Poder.

- Oh? - Cria Branca virou a cabeça de espanto.

Alce Encantado mordeu o lábio, subitamente envergonhada.

- E como sabes tu isso, mulher recentemente feita?

Alce Encantado engoliu a custo, o olhar perdido, procurando forma de escapar. Não vendo nenhum, soltou um suspiro e explicou:

- Um dia, Sanhaço e eu estávamo-nos a esconder e Grilo andava à nossa procura. Estávamos nas traseiras da tenda de Sangue de Urso. Ele estava lá dentro a falar consigo mesmo e com a Trouxa de Lobo. Ouvi-o espetar o dedo na Trouxa e dizer-lhe que não acreditava. Ficámos as duas tão assustadas que ficámos ali especadas. Só saímos dali horas depois.

Apesar de si mesmo, Pequeno Dançarino soltou uma exclamação, olhando chocado para a rapariga, antes de os seus olhos se desviarem para a Espiral. Esta parecia rodar e brilhar na luz, sugando-o para o meio dos seus infindáveis círculos.

O rosto de Cria Branca endureceu, a fúria nos seus olhos de obsidiana.

Dois Fumos gemeu baixinho, os olhos magoados focados algures onde só ele sabia.

- Mas cuida dela? Guarda-a em segurança?

- Claro que o faz - rosnou Cria Branca. - Que seria de Sangue de Urso sem a Trouxa de Lobo? Recordas-te de como ele era antes de a trazer de volta para os Mão Vermelha.

Dois Fumos abanou a cabeça, sentindo-se ainda mais infeliz, coçando os pés. A coxear na sua perna doente saiu para a noite fria e o som dos seus passos desencontrados foi-se apagando na escuridão.

- Sangue de Urso acabará por sofrer no fim. - Pequeno Dançarino sacudiu a cabeça, mesmerizado pela Espiral. - É um louco. Eu sei, eu sinto o ultrage daquela noite!.. - Parou, apercebendo-se subitamente do que estava a dizer. Cria Branca não perdera uma palavra. Uma das sobrancelhas da anciã ergueu-se, apertando mais as rugas da sua testa.

- Não era minha intenção magoar os sentimentos de Dois Fumos disse Alce Encantado em tom de desculpa. - Não sabia que ele...

- Cala-te, criança. - Cria Branca fez um gesto de passado. - Este caldo está quase pronto.

- Vamos comer - concordou Touro Esfomeado. -Aqui estamos nós a falar dessas coisas terríveis do Poder. Isso é para Sonhadores e Curandeiros do Espírito. Hoje temos de comemorar. Pequeno Dançarino e eu conseguimos carne para todo o Inverno. Estamos a esquecer-nos de que hoje o meu filho é um homem! Matou o seu primeiro búfalo. Talvez até tenha ganho um nome de homem?

Um nome de homem? O coração de Pequeno Dançarino saltou-lhe no peito. Finalmente, depois de todos estes anos?

- Possivelmente, podíamos pensar num nome. - Cria Branca ficou de testa franzida, o queixo apoiado no braço. - Pensemos nisso uns tempos. Um homem não deve ser nomeado assim sem mais nem menos. Fez estalar os dedos para maior ênfase.

Alce Encantado lançou-lhe um franco olhar de apreço, com uma antecipação pensativa nos olhos. Talve fosse um truque da luz, mas pareceu-lhe que a cara dela ficara ruborizada.

Devia ter inchado até rebentar as costelas. Devia estar aos saltos ululando a sua alegria, a dançar e cantar o ser adulto. Em vez disso, levantou-se e foi tocar os sulcos profundos da Espiral. Debaixo da polpa dos dedos, a pedra parecia quente e rugosa. Não era capaz de esquecer a dor nos olhos de Dois Fumos, as palavras sobre a Trouxa de Lobo, o Primeiro Homem e Sangue de Urso. Sentiu a presença de Alce Encantado quando ela se aproximou dele. Os olhos de Cria Branca queimavam nas suas costas com a intensidade de carvões ardentes. O Poder pulsava na noite.

Lá fora, para lá das cortinas, um lobo uivou ansiosamente.

Cascos Trepidantes trotava pelo carreiro no passo rápido das mulheres acostumadas a viajar. Dos dois lados do carreiro, os abetos, em filas compactas, estendiam-se na direcção do céu nublado lá em cima. A primeira geada passara. Homens e animais teriam alguma paz antes de o verdadeiro fôlego do Inverno soprar e bloquear as Montanhas do Búfalo na sua garra branca.

Reduziu o passo para passar por cima de um tronco caído no caminho. Os alces já tinham quebrado a maior parte dos ramos, tornando mais fácil para ela passar com as pernas por cima. O vestido ficou preso num ramo. Com a velha familiariadade, partiu-o com um estalo e continuou na direcção do campo de Cria Branca.

Afinal, tudo se desenrolara mais depressa do que pensara. Sangue de Urso encontrara sinais do Povo do Búfalo Baixo na sua infrutífera caçada por Alce Encantado. A boa sorte tinha uma maneira de aparecer de quando em quando. Talvez, quando tivesse passado o tempo da caçada aos intrusos, Alce Encantado já conhecesse homens suficientes para apagar o interesse de Sangue de Urso. Talvez um até lhe fizesse a promessa de casar se ela concebesse. Muitas coisas podiam acontecer.

Encheu alegremente os pulmões e vazou-os lentamente para retomar a sua passada rápida carreiro fora.

A pista mal se via na lama endurecida do carreiro. Parou para examinar a pista. Não! Não podiam estar ali! Nunca naquele carreiro tão longe dos carreiros do búfalo, que conduziam às planícies do oriente.

Começou a recuar devagar.

Nem teve tempo para respirar, quando um braço duro a rodeou. Uma mão musculosa tapou-lhe a boca e cortou o grito.

- Sinto que Cria Branca não me quer aqui. - Alce Encantado inclinou a cabeça para observar a expressão de Dois Fumos.

O tresmalhado coçou a testa e deu uma palmada numa mosca que insistia em o atormentar. Estavam sentados numa encosta, a vários lançamentos de dardo de distância do abrigo, a sul, a gozar o calor dourado do sol. Até o céu reflectia a paz do dia, estendendo em toda a extensão uma cúpula incrivelmente azul que ofuscava os olhos. Aqui e ali uma nuvem fofa, branca e brilhante, deslizava com calma, mudando de forma à medida que percorria o céu. Um esquilo listado prestava-lhes escassa atenção enquanto continuava a sua rotina de colher as espigas dos arbustos de salva em volta deles, mordiscando as pequenas sementes até ter as bolsas da cara cheias e ir despejá-las num esconderijo.

Alce Encantado olhava, céptica, para a pilha de cascas vermelho-acinzentadas ao seu lado. O monte parecia nunca mais diminuir. Enquanto conversavam, iam trabalhando as longas e finas tiras de casca de zimbro que Dois Fumos laboriosamente arrancara das árvores durante o Verão. Os dedos velozes de Alce Encantado teciam-nos numa corda, rolando-a entre as palmas como um pau de fogo, antes de tecer a infindável extensão. Dois Fumos juntava as cordas para trás e para a frente e atava-as com destreza, criando uma secção de rede da altura de um homem alto.

Um vento quente suspirava entre as árvores batidas pelo tempo.

Um delicioso sol aquecia as rochas e tombava sobre as ervas secas de Outono em tons acastanhados. As derradeiras flores viravam as cabeças amarelas para a suave carícia do Pai Sol.

- Não é por ti. Normalmente, Cria Branca estaria a falar até te arrancar as orelhas para que aprendesses tudo o que ela sabe acerca de plantas e coisas. Estaria a dizer-te, vezes sem conta, como fazer isto e aquilo. Quem a preocupa é Pequeno Dançarino.

- Parece simpático.

- É por isso que ela está preocupada.

Os dedos de Alce Encantado ficaram mais lentos. Olhou para ele directamente:

- Por ele ser simpático?

- Não... por tu pensares assim.

- Como?

- Ora, ele é um jovem homem... e tu és uma jovem mulher.

- Isso é mau?

Dois Fumos moveu-se com a velocidade do falcão, apanhando a mosca com uma palmada. Sorriu a olhar para o corpo esmagado na palma da mão.

- Nada mau para um velho tresmalhado, pois não? - Voltou, então, ao assunto. - Pequeno Dançarino tem Poder. Cria Branca tem receio de que se ele se envolver com uma mulher... nomeadamente tu, dado que és a única mulher por estas bandas... o possa perder.

- E ela julga que ele está interessado em mim? Dois Fumos teve um sorriso matreiro.

- Está interessado. Só que ele ainda não sabe. Tu estás interessada nele. Vi-os a trocarem olhares, a brincar aqueles jogos que levam a risadas e depois às roupas. És uma mulher, feita de fresco à maneira dos Mão Vermelha. É nosso costume que te deites com um homem para provares a tua feminilidade. Estás curiosa a pensar em como será.

- Como é que sabes tanto sobre as mulheres?

- Perguntas isso a um tresmalhado? - Dois Fumos riu-se, genuinamente divertido. - Nós somos os mediadores, aqueles que conhecem os corações dos homens e das mulheres. Somos metade de cada... e algo diferente. Nem homens nem mulheres. Sabes isso... fui feito assim pelo Poder.

- Oh, lembro-me de como é. Mas as coisas são um tanto diferentes para um tresmalhado. O homem que eu amava chamava-se Cinco Quedas. Claro que eu, ainda jovem, fui ter com Pena Cortada e pedi-lhe que me proclamasse tresmalhado. Gostava das brincadeiras das rapariguinhas e não dos jogos duros e grosseiros dos rapazes. As pessoas não devem lutar contra aquilo que são. Para o corpo, não interessa qual é o equipamento físico com que fomos abençoados, existe sempre o impulso para acasalar.

Cinco Quedas e eu éramos amigos de longa data. Ser um tresmalhado nunca é fácil, nem numa sociedade como os Mão Vermelha. Em geral, o problema surge quando és uma criança e antes de tu, e os outros à tua volta, se aperceberem daquilo que és. Mas Cinco Quedas sempre parecera saber. Era mais velho que eu um par de anos, mas sempre tomara conta de mim. Quando eu fui declarado tresmalhado tomou-me para segunda mulher. Adquiriu grande prestígio com isso e, de qualquer maneira, sempre nos tínhamos dedicado um ao outro. Álamo Caído era a sua primeira mulher. Não gostava lá muito de mim mas, às vezes, as primeiras mulheres são ciumentas. Não é coisa desconhecida - acrescentou secamente.

“Ela trazia no ventre os filhos dele e eu era o seu amante. Éramos bastante felizes, apesar de Álamo Caído refilar bastante. Mas ela tinha pouco de que se queixar. Eu fazia o trabalho, ela tinha a posição.

Alce Encantado abanou a cabeça:

- Cinco Quedas morreu de uma queda mal dada, não foi? A caçar cabras da montanha, segundo ouvi dizer.

Dois Fumos olhou para longe.

- Caçar no Inverno exige grande coragem. Eu disse-lhe para não ir. Era apenas uma daquelas sensações que as pessoas têm nos ossos. Agarrou os joelhos com as mãos calejadas. - Bem, não interessa. Já se passou muito tempo. Água Límpida tornou-se minha amiga depois disso. Também ela tinha problemas de ajustamento. Fomos atraídos um pelo outro.

- Partilhaste a roupa com ela? - inquiriu Alce Encantado. Dois Fumos confirmou com a cabeça.

- Uma ou duas vezes. Suponho que a razão para isso foi o Poder. Um tresmalhado vive entre o Poder e o mundo. O amor surge de muitas maneiras, só isso... e o espírito juntava-nos. A minha verdadeira preferência foi sempre para homens. Mas perdi o que estava a dizer. Há anos que observo os jovens. E vejo a atracção entre ti e Pequeno Dançarino.

Alce Encantado concentrou-se na casca que trabalhava, sentindo a rigidez rugosa entre as palmas das mãos ao enrolar de um lado para o outro.

- Tem um ar nos olhos que me toca cá dentro. Como se tivesse sido magoado. Faz-me... bem...

- Querer segurá-lo nos braços? Ajudá-lo? Eu sei, é assim com os seres humanos. Ansiamos por apaziguar as dores uns dos outros. É essa a tua única razão?

Ela sorriu timidamente.

- Acho também que ele não me magoaria. Depois de Sangue de Urso e de pensar o que ele... - Abanou a cabeça. - Oh, não sei. Nunca pensei que seria assim tão complicado.

- Ele acabou de passar o seu décimo terceiro Verão. - Dois Fumos ergueu uma sobrancelha.

Ela meditou.

- Parece mais velho. Dois Fumos concordou.

- A vida não tem sido simpática com ele. Como já te disse o Poder acompanha-o. Enche-lhe os Sonhos e magoou-o muito no passado. Agora procura evitá-lo. Só que... bem, nem imagino como será. Umtresmalhado pensa que foi tocado pela diferença. Esse Poder não me tem tratado bem através dos anos. O Povo do Búfalo Baixo costumava bater-me. Os homens violavam-me quando surgia uma oportunidade. Para eles, era um monstro, um acidente da natureza que não conseguiam compreender... e por isso perigoso. Alguns pensavam até que eu podia arruinar os filhos, por contágio.

“Mas Pequeno Dançarino é diferente. Tem em si o Poder da mãe. Água Límpida ouviu uma voz, uma voz que ela pensava ser a do Primeiro Homem, o Sonhador de Lobo. Olha até onde isso a levou e o que aconteceu. É por isso que o Poder me põe nervoso. Faço parte dele, rola à minha volta e através de mim. Eu sou a ponte, o comunicador, entre este mundo onde vivemos e o Poder. É por causa do Poder que sou aquilo que sou... mas não vejo as razões por detrás daquilo que acontece. Tudo o que sei é que Pequeno Dançarino é Poderoso e que um dia será um homem importante. Podes aceitar a palavra de um tresmalhado sobre este ponto.

Um homem importante? Ela sentiu uma curiosa excitação.

- Ah, interessante, não é? - Dois Fumos coçou-se atrás de uma orelha. - Talvez não esteja a prestar um serviço a ninguém. Escuta, rapariga, e não te esqueças de que estamos a falar de Poder. Pequeno Dançarino é que é importante... aquele em que o Poder está a trabalhar. Apesar das preocupações de Cria Branca, eu acho que ele não vai conseguir evitá-lo. Um dia terá de seguir o Poder.

“Presta atenção ao que digo, Alce Encantado. O Poder pode fazer um homem importante mas também pode tornar difícil viver com ele. O Poder tende a usar as pessoas como o caçador usa os seus utensílios. Um dardo é feito com grande capacidade e esforço. É preparado, abençoado, o espírito é soprado nele. Depois, o caçador usa-o. Lança-o. Esse dardo, tão cuidadosamente produzido, é solto para aterrar aonde não sabemos. Talvez apanhe um alce ou um veado, perfurando-lhe os pulmões e o coração, sangrando o animal até à morte para que o Povo tenha de comer. Talvez falhe completamente e atinja uma rocha. A ponta desfaz-se, a madeira fende-se e ali ficará... para sempre.

Ela olhou-o, sentindo um vazio a formar-se no coração.

- Queres arriscar? - perguntou Dois Fumos com suavidade e um calor de simpatia nos olhos.

Ela engoliu em seco, insegura da resposta.

- Ei! Touro Esfomeado!

Pequeno Dançarino levantou os olhos do quarto de búfalo ensaguentado sobre o qual estava debruçado. Três Dedos vinha aos saltos prado afora, os braços no ar e uma risada de alegria que era interrompida por gritos. Atrás dele vinha Corvo Negro, com um sorriso enorme no rosto radiante. Engraçadinha e Cotovia do Prado vinham mais atrás, ainda com as crianças. Outra mulher caminhava à frente de Corvo Negro, mas o rosto não se mostrava feliz.

- Três Dedos? - Touro Esfomeado endireitou-se, fazendo sombra aos olhos com uma mão suja de sangue seco. - És tu!

Estabeleceu-se a confusão quando Touro Esfomeado, Três Dedos, Corvo Negro e todos os outros começaram a gritar, dançar, abraçar e a bater nas costas uns dos outros.

Pequeno Dançarino olhou primeiro para a mulher, ignorando a balbúrdia de perguntas e risadas dos homens.

- Não és do Povo do Búfalo Baixo - fez ele notar em Anifah.

- Não, não sou. - Os olhos duros dela perfuraram-no. Apesar da sua idade, Pequeno Dançarino reparou nas linhas agradáveis do rosto dela. A mulher acrescentou, com algum receio. - Apanharam-me ontem. Um sorriso seco curvou-lhe os lábios. - Se calhar, estou a ficar mais velha do que pensava.

Pequeno Dançarino olhou de soslaio para a pequena multidão centrada em torno do pai.

- Eles não te magoaram. Ela soltou uma risada:

- Não, para além da minha dignidade.

- Eu sou Pequeno Dançarino. Vivo no campo de Cria Branca com...

- Eu sei quem és. A minha filha está lá? Chama-se Alce Encantado e deve ter chegado há uma mão-cheia de dedos atrás.

- Está lá. E está bem. És Cascos Trepidantes? Ela encheu os pulmões.

- Eu sou Cascos Trepidantes. - Olhou para o sítio onde o nó de gente do Povo do Búfalo Baixo continuava a dançar e a gritar perguntas numa tal confusão que ninguém se conseguia fazer ouvir. - Não sabia o que estava a acontecer. Os guerreiros sabiam fazer os Sinais dos Mercadores para Cria Branca e perguntar direcções. Uma vez que não me magoaram, para aqui. Mas têm de saber que Sangue de Urso encontrou as pistas deles e está a segui-los com um grupo de guerra. Pequeno Dançarino sentiu gelar-se-lhe o sangue.

- Pai! - gritou, agitando os braços para chamar a atenção de Touro Esfomeado. Apesar da natureza festiva da ocasião, a tensão deve ter dado um sinal. Touro Esfomeado livrou-se do abraço feliz de Cotovia do Prado e aproximou-se com uma mão por cima do ombro de Três Dedos.

- Sangue de Urso vem a caminho com um grupo de guerra - explicou Pequeno Dançarino na língua do Povo. - Esta aqui é a mãe de Alce Encantado. Não seria melhor voltarmos para o campo e sabermos o que Cria Branca tem para dizer? - Olhou para Três Dedos. - Vieram visitar-nos?

- Para ficar - informou Três Dedos pouco à vontade. - Castor Pesado... bem, tornou impossível para nós a vida entre o Povo. Tornou-se muito poderoso. Cria Branca era a nossa única oportunidade.

A excitação de Touro Esfomeado desapareceu como a sombra de uma pequena nuvem num céu limpo de Verão.

- Os Mão Vermelha ainda estão raivosos por causa da incursão do Povo no ano passado. As almas dos mortos ainda andam sem enterrar.

- Eu bem disse que Castor Pesado seria para nós uma maldição recordou Três Dedos.

- Ele ficará pior antes de ser melhor - resmungou Corvo Negro. Num anifah sincopado, Touro Esfomeado fez uma pergunta a Cascos Trepidantes: - Que tempo levará Sangue de Urso a chegar aqui? Ela levantou um ombro.

- Há três dias que ele persegue os teus amigos. E está a andar depressa. Como eu não sabia os motivos dos teus amigos, marquei-lhe o caminho com sinais subtis.

- Nesse caso, é melhor irmos já. - Pequeno Dançarino baixou-se para apanhar os seus instrumentos de desmanche.

- E esta carne toda? - Touro Esfomeado apontou para as carcaças meio esquartejadas. - Com o calor que está, vai ficar estragada antes de... E as moscas...

- E achas que Sangue de Urso vai esperar por nós? - perguntou nervosamente Três Dedos.

- O Búfalo Lá em Cima compreenderá - acrescentou Pequeno Dançarino. - Ele conhece os nossos corações.

- E eu disse o mesmo à minha mãe antes de ela morrer por causa da carne. Um frio comia-lhe a alma.

- Vamos! - E tomou a dianteira, em passo acelerado, pelo carreiro que levava ao campo de Cria Branca.

Cascos Trepidantes acabou por correr ao lado dele.

- Sangue de Urso vai chegar até ao campo de Cria Branca atrás do Povo do Búfalo Baixo - comentou ele. - E encontrará aqui Alce Encantado.

Ela olhou para ele, mexendo os lábios.

- Se chegarmos lá primeiro, eu posso mandá-la fugir. Pode ficar escondida onde ele a não encontre. - Uma pausa. - Por que te preocupas, jovem?

A questão apanhou-o desprevenido. Porquê? Por que é que ela lhe dominara os pensamentos desde o momento em que a vira?

- Porque ela é simpática.

- Hum? - Cascos Trepidantes conseguiu rir-se mesmo sem fôlego.

- Sabes uma coisa, Pequeno Dançarino, isto está tudo a ficar muito complicado. Povo do Búfalo Baixo e dos Mão Vermelha tudo misturado.

- Cria Branca saberá o que fazer.

- Geralmente sabe.

E se ela não souber o que fazer?, imaginou Pequeno Dançarino. Ao todo temos quatro atlatl contra quantos Mão Vermelha? E se lutarmos e eles não nos destruírem, que sobrará de nós?

Engoliu em seco e correu com todas as suas forças.

Em primeiro lugar, que andaria Cascos Trepidantes a fazer no carreiro? Que a teria possuído para se arriscar assim, sabendo que o Povo do Búfalo Baixo andava na área? Sangue de Urso olhava para a frente, conduzindo os guerreiros pelo carreiro. Pelo sinal, os incursores não tinham mais de um par de horas de avanço. E, com as crianças, deslocar-se-iam mais devagar. Apanhá-los-ia antes do pôr do Sol.

Cascos Trepidantes ia decerto na direcção do campo de Cria Branca, preocupada com a filha. Mesmo assim, uma mulher da idade dela devia ter mais juízo e não se arriscar daquela maneira por causa de uma criança mimada. Pior ainda, Cascos Trepidantes caíra numa emboscada do Povo do Búfalo Baixo. Era bem feito para da próxima ter mais cuidado.

Como era habitual, os incursores não conheciam o carreiro. Tinham vagueado dias e dias, subindo pela mata negra, descendo e subindo cumes, atravessando prados, tomando por carreiros de alces que entravam nas partes mais cerradas da floresta e desapareciam. Desde que tinham apanhado Cascos Trepidantes, a mulher afastava-os dos Mão Vermelha... e ia direita ao acampamento de Cria Branca. Que significava isso? Cria Branca, é claro, tinha sido originalmente dos Búfalo Baixo, Casara nos Mão Vermelha e fora durante anos uma Mulher de Espírito, curando aqueles que procuravam o seu auxílio.

Um arrepio pôs-lhe em pé os cabelos da nuca. Mesmo sem acreditar no Poder, o facto é que Cria Branca o assustava. Nem podia imaginar sequer o que a velha feiticeira poderia engendrar. O Povo receava Cria Branca. Se ela dissesse alguma coisa, as palavras dela iam acabar por chegar aos campos e podiam arranjar-lhe problemas e dos grandes.

Abraçou a Trouxa de Lobo contra o peito. Desta vez trouxera consigo o Poder e o espírito do Povo. Ao contrário da outra vez, em que os seus guerreiros tinham desaparecido um a um na noite, viera com aquele tolo talismã para lhe dar coração e espírito. Desta vez, a Trouxa de Lobo conduzia-os e os seus guerreiros lutariam até à morte para a proteger do Povo do BúfaloBaixo, que a havia profanado. Com ela conseguira deles um esforço maior que de qualquer outra maneira.

É espantoso como se pode obter tanto esforço de um mero adorno sem valor!É é minha... só minha! Ignorou o súbito pulsar do dedo mndinho. Bateu com ele na coxa musculosa para o libertar do formigueiro causado por um nervito qualquer.

- Temos de apanhar e matar os intrusos antes de eles lá chegarem. Será o melhor - murmurou entredentes.

Já não faltava muito.

Enquanto pensava nisso, o carreiro mudou de direcção e entrou num prado. Um bando de corvos levantou voo das árvores, a crocitar e a bater as asas negras com ruído.

Sangue de Urso estacou, o peito a subir e a descer para recuperar o fôlego. O prado na sua frente estava cheio de búfalos meio esquartejados. Atrás de si, começaram a soar conversas surdas.

Aproximou-se de uma carcaça e tocou na carne.

- Esfolada há menos de uma hora. - Sorriu aos seus guerreiros. Já os apanhámos!

-A Espiral muda - observou Trouxa de Lobo. - Estamos en grave perigo. Pode estilhaçar-se agora. Está em jogo a vontade livre. Lá se vai o Poder do teu Sonho de Lobo! Estou a ser levada para a destruição do teu Sonhador. Já vejo o meu fim. Posso matar, salvá-lo, talvez para me renovar. A ligação é forte, mas como reagirá ele? Se lhe envolver o coração com os meus tentáculos, será que me aceitará? Ou voltará as costas... e dará ouvidos à voz da mãe morta, que ainda ecoa na mente dele? - Já não me resta muita força. Para matar, terei de me usar toda. O rapaz desconhece os caminhos do Poder. O Vigilante ainda não está preparado. Nós não estamos prontos. Cedo de mais... cedo de mais...

A voz do Sonhador de Lobo transmitia preocupação.

- Espera. Talvez Cria Branca consiga salvar a coisa. Se não, perderemos tudo. Se agirmos, acabaremos por comprovar as pal avras da mãe dele. Se não agirmos...

 

Que ia acontecer?, pensava Três Dedos, quando já todos estavam sentados em frente do abrigo de Cria Branca.

Pequeno Dançarino observava. Podia sentir a tensão, e relâmpagos de imagens do Sonho interrompiam a sua concentração. Porquê? Por que se sentia tão preocupado? Pensamentos que não eram seus pareciam murmurar nos limites da sua consciência.

O Sol continuava a mandar os seus raios, acolhedores e quentes, apesar da ansiedade reflectida em cada rosto e das posturas nervosas das pessoas que revelavam inquietação. Um gafanhoto mais retardatário cantava entre as ervas, o som subindo e descendo conforme o ritmo das suas asas amarelas e castanhas.

Cria Branca saiu do abrigo apoiada na sua velha vara de andar.

Pequeno Dançarino quase estremeceu ao ver o ar dela, antigo, frágil, como se qualquer movimento mais brusco a fizesse estalar e cair. Quando é que ela envelhecera assim tanto? Uma sensação de culpa nasceu-lhe no estômago.

- Com que então Castor Pesado expulsou-vos? - A sua voz rouca vacilava.

Velha, tão velha. E se ela morre? Que acontecerá? Que devo fazer? Uma súbita incerteza apertou o coração de Pequeno Dançarino. Terei agido bem ao lutar contra ela ?

- Ele está ajuntar o Povo - disse Corvo Negro, inseguro, levantando-se e olhando para ela. - Começou um novo caminho. Anda a ensinar a Dança da Renovação e da Bênção. Desde que se tornou líder, as chuvas voltaram e, com elas, os búfalos são um pouco mais numerosos. Ao Povo parece que quanto mais Poder ele tem mais as coisas melhoram.

- Loucos! - sibilou Cria Branca. - Não passam de jovens loucos! Toda a minha vida tenho observado. Há estes períodos, um pouco mais de água durante um par de anos, mas o mundo está a mudar lentamente há mais tempo do que eu... como as lendas lembram. A água já corre nas Nascentes do Osso do Monstro? O Rio Lua já cobre as suas antigas margens e corre tão fundo que uma pessoa não consegue passar a pé?

- Não. - Corvo Negro olhou, inquieto, à sua volta.

- Nesse caso, a seca continua a fazer-nos companhia. Uns anos mais húmidos. Outros mais secos. Vivemos numa era de fogo e não de água. Quando vires a água do Rio Lua a correr límpida, então saberás que a era do fogo terminou. Entretanto, a terra tem sido arrastada. Viram os arroios cheios? Não? Ainda continuam cortados na terra? Bem me parecia. Em breve voltará a haver gente a morrer de fome. A levar os últimos búfalos à extinção, tal como fizeram com os monstros. Castor Pesado é um louco!

- Pode ser um louco, mas é um louco poderoso - respondeu Corvo Negro. - Quando o Campo de Sete Sóis decidiu juntar-se à sua Bênção, nós argumentámos contra. Tínhamos guerra com o Povo do Búfalo de Fogo a leste. O Povo do Cabelo Cortado, a sul, está em luta com Castor Pesado. A velha paz foi quebrada quando Castor Pesado conduziu os guerreiros numa incursão aos Cabelo Cortado. Fogo na Noite e Atira Pedras transformaram-se em grandes guerreiros. Conduziram grupos de jovens guerreiros até muito ao sul, até ao Povo da Pedra Esmagada e mataram os homens deles. Trouxeram mulheres cativas - cada uma delas carregando o seu peso em carne seca, roupas finas e pedras para ferramentas. Atira Pedras, na Primavera passada, atacou o Povo da Garça Branca, matando muitos e queimando os seus campos até ao chão. As mulheres, cães e crianças que trouxeram com eles traziam muitas coisas maravilhosas.

- E essas mulheres? Não causam problemas? - desejou saber Cria Branca.

Cotovia do Prado inclinou de lado a cabeça.

- Que mulher criará problemas? Se recusam as ordens de um homem são espancadas. Se batem num homem são mortas. Quando uma mulher se recusa é amaldiçoada por Castor Pesado. E se uma mulher cativa tenta fugir para o seu Povo, é caçada como uma vaca de búfalo ferida e atravessada por um dardo. - Cotovia do Prado ergueu mãos fúteis.

- De que serve responder com luta? Que é melhor? Viver ou morrer? Essa é a escolha... e os homens acreditam nela. As mulheres vivem aterrorizadas no Povo do Búfalo Baixo.

Cria Branca acenou, pensativa, a cabeça, e um silêncio total instalou-se.

- Então, é assim que ele evita que o Povo se desvaneça como fumo. E aposto que as mulheres capturadas andam sempre grávidas? E que os filhos delas são o novo Povo?

- Uh-huh. - Cotovia do Prado fez uma careta. - E discuti eu com Cereja de Engasgar quando ela me disse o que iria acontecer! E aqui estou eu, expulsa do Povo por uma coisa, uma loucura, que ainda não posso crer seja real.

- O mundo está a mudar. - Cria Branca molhou os braços e abriu-os com as palmas das mãos para fora, a fim de captar o sol. - Castor Pesado queria tornar o Povo de novo forte. Isso acontece quando as coisas correm mal. Aparece sempre alguém a dançar e cantar sobre o regresso aos velhos costumes, aos costumes dos pais... como de facto se lembrassem de como eram os velhos costumes. Castor Pesado fê-lo... e só tens sangue e cuspo se te lembras de costumes antigos diferentes dos dele!

- Ele é um Sonhador. Resultou. - Três Dedos levantou os olhos, sentado numa pedra, com um ar de desespero. - E não é só isso. Os Sonhadores de Espírito dos Cabelo Cortado e Búfalo de Fogo receiam que as ideias de Castor Pesado se espalhem. Já há jovens enraivecidos a apontar o dedo aos Búfalo Baixo e a exigir vingança pelas mortes e pelas mulheres roubadas. Afirmam que os costumes de Castor Pesado são melhores, mais poderosos, pois se assim não fossem não teriam sido derrotados nas batalhas.

- E continua a varrer as planícies? - Cria Branca virou-se e os seus olhos brilhantes fixaram Pequeno Dançarino. - Nesse caso, isto continuará a crescer, ajuntar cada vez mais gentes como os pêlos que se soltam do búfalo na Primavera a enrolarem-se nas roseiras.

- Mas se um bando de guerra os atacasse, os vencesse em batalha, talvez...

- Ora! - Cria Branca afastou com um gesto a ideia de Touro Esfomeado. - Estás a lidar com uma ideia, não com um bando de guerra. É aquilo que Castor Pesado ensina que deve ser detido. E isso tu não o consegues matando os jovens dele em batalha.

- Então como? - perguntou Corvo Negro.

- Poder. - Murmurou a palavra tão baixinho que quase a não ouviram. - Ele tem de ser afastado do Sonho. Esta é a Era do Fogo. Alguém tem de Dançar com o Fogo... tem de segurar as brasas e ser Um com elas. Será esse o fim dele. Há que ensinar a toda a gente um novo caminho. Os caçadores de búfalos estão a morrer. O mundo está a mudar tal como estava quando os animais a que chamamos monstros desapareceram. Os homens caçaram os enormes animais até estes morrerem todos... tal como estamos a fazer aos búfalos.

Cria Branca olhou em volta, mirando cada um dos rostos.

- Está certo. Castor Pesado, com o seu caminho, matará todos eles. O Povo dele ficará desesperado. Se calhar o búfalo tem mesmo de desaparecer, não acham? Talvez seja isso que o Sábio Lá em Cima Sonhou para este Quarto Mundo. - Deu um estalo com os lábios, de olhar fixo em Pequeno Dançarino, como se falasse para ele, sem dar importância aos outros. - Mas talvez seja possível Sonhar um outro caminho para o Povo... um caminho que lhes abra outras vias de sobrevivência sem ser matar búfalos nesta era do Fogo.

- Não podes viver como os Mão Vermelha nas planícies - insistiu Touro Esfomeado. - Lilás, raiz de biscoito, bagas de serviço e coisas como essas não crescem lá em baixo. Ali só crescem ervas e algumas bagas de búfalo nas drenagens. E, para mais, o Povo recusar-se-ia a comer coisas como raízes. São gente do búfalo. Comem carne.

- Isso é o que tem de ser sonhado. - Cria Branca esticou os dedos.

- E a única forma de conseguir mudar será um Sonhador poderoso descer lá abaixo e mudar.

A garganta de Pequeno Dançarino ficou seca.

Não! Oh, isso não! Outra vez, não. Não me podes fazer. Eu não sou o escolhido! Pela alma da minha mãe morta, eu não sou o escolhido. O Poder é forte, magoa as pessoas.

E as palavras da mãe ecoaram na sua memória: Não quero que jamais o meu filho faça alguém sentir-se como eu me sinto agora.

Levantou-se devagar, abanando a cabeça, apercebendo-se de que toda a gente o olhava. Recuou, vendo que o pai baixara os olhos e riscava o chão com uma vara, traçando linhas e cruzando-as.

A imagem do Sonho do espinhaço rochoso cintilava na sua mente, o pai a transformar-se em pedra a seus pés. Tal como todos os outros acabará por me atraiçoar no fim e abandonar-me, deixando que eu caia no abismo.

Pequeno Dançarino virou-se para fugir... e estacou. Sangue de Urso descia o carreiro à frente do seu bando de guerreiros anifah.

E, pior ainda, Alce Encantado marchava à frente dele com o rosto, cinzento.

Quando Sangue de Urso entrou na clareira, Cascos Trepidantes pôs-se em pé de um salto. Perdera a maior parte da conversa na língua do Povo do Búfalo Baixo. Mas aquilo compreendia. Sangue de Urso capturara a sua filha.

Avançou até sentir a ponta do dardo de Sangue de Urso. A ponta afiada da pedra fez uma reentrância na cova do seu pescoço e ela enfrentou os olhos em brasa dele.

- Que fizeste tu, mulher? Guiaste os Búfalo Baixo pelas terras dos Mão Vermelha? É assim que tratas o teu Povo?

- Solta a minha filha. - Forçou as palavras, ciente de que ele só precisava de mexer a mão para lhe rasgar a garganta de lado a lado.

Alce Encantado contorceu-se, agarrada pela mão forte dele. Mais atrás, os guerreiros vigiavam, atentos, a gente do Búfalo Baixo, agrupada atrás de Cria Branca.

- Ela agora é uma mulher... e eu quero-a. Primeiro, acho que vamos matar estes intrusos... e conservar as mulheres deles como eles fizeram às nossas o ano passado. Depois, tu e a tua filha virão viver comigo.

- Nunca! - conseguiu dizer Cascos Trepidantes, por entre os dentes cerrados.

A raiva nos olhos de Sangue de Urso começou a brilhar.

- És uma mulher bonita, Cascos Trepidantes. Mesmo na tua idade conseguiste atrair o meu interesse. Normalmente, um homem não casa com uma mulher e com a filha desta.

- Não! - Cria Branca avançou a coxear, apoiada na vara. - Entre os Mão Vermelha isso é incesto! Serias o pai dela!

- Eu faço as minhas próprias regras e Poder. Tal como controlo a Trouxa de Lobo, também controlo os Mão Vermelha.

- Estúpido e ignorante Louco! Nem mesmo a Trouxa de Lobo te permite tomar os costumes dos Mão Vermelha na tua...Aahhh! - Os olhos de Cria Branca ficaram muito grandes quando ela começou a levantar as mãos para se proteger.

Movendo-se como o relâmpago, Sangue de Urso mudou de atitude, o braço uma mancha ao colocar o dardo em posição. Atirou com Alce Encantado violentamente para longe. O seu atlatl assobiou e assumiu aquele breve instante estático antes do lançamento.

Cascos Trepidantes soltou um grito consciente, ao começar a mexer-se, de que chegaria tarde de mais. Inclinou-se para a frente, desequilibrada, procurando desesperadamente agarrá-lo. Sangue de Urso aplicou todo o seu peso no lançamento.

Mais tarde, ela teve dificuldade em reconstituir tudo. Sangue de Urso gritara o seu triunfo ao soltar o dardo. Um grito. Um som de algo a bater. E Touro Esfomeado apareceu num salto. O caçador estava em posição, o atlatl seguro como uma moca. Cria Branca continuava apoiada na vara, de olhos abertos. Olhou, primeiro para o dardo quebrado que Touro Esfomeado apanhara em pleno voo, e depois para Sangue de Urso, que tentava montar um segundo dardo.

- Parem! - gritou Cascos Trepidantes ao ver os outros guerreiros a retesar para trás os braços musculosos, as pontas de pedra dos dardos a brilharem ao sol nos atlatl equilibrados. - Que estão a fazer? - Eles hesitaram um instante ao mesmo tempo que Touro Esfomeado se virava para trás de braços no ar para parar Três Dedos, Corvo Negro e Cotovia do Prado, todos com os dardos prontos a serem lançados.

- Insanidade! - gritou Alce Encantado, correndo para os guerreiros e implorando em particular a Corno Solto. - Que está a acontecer?

Cria Branca avançou, agitando as mãos.

- Parem com isso! Loucos! - Virou-se, apontando um dedo para Sangue de Urso. - Com que então ias-me matar antes sequer de falarmos disto tudo? E chamas-te a ti mesmo um líder! Pensas que tens miolos suficientes para conservar a Trouxa de Lobo? Idiota!

Os guerreiros ficaram imóveis, olhando para um e para o outro, inseguros. Cascos Trepidantes viu, com a sua longa experiência, a mudança na expressão de Sangue de Urso, instantaneamente ciente de que a situação se alterara. O homem baixou o dardo já pronto. Uma velha luz matreira brilhava nos seus olhos enquanto pensava com rapidez.

- Como é que eu podia saber, anciã? Como é que eu podia saber se não estavas a conspirar com eles - indicou os Búfalo Baixo - para atacar outra vez o nosso campo? Manténs estranhas companhias.

- Como Cascos Trepidantes? - inquiriu com secura Cria Branca. Tu não...

- Eu não o quê? Morreu gente minha! Atacada pelo Povo do Búfalo Baixo.

- Virou-se, de queixo erguido, e observou os seus guerreiros através das pálpebras meio fechadas. - Como é que poderei saber de onde virá o próximo ataque?

- Decerto que não de uma velha que Sonhava e fazia filhos para os Mão Vermelha.

- Ou dela? - Sangue de Urso indicou Cascos Trepidantes com a ponta do dardo. Num ápice, oatlatl de Touro Esfomeado desviou a ponta.

- Da próxima vez, usa o dedo. É mais delicado - insistiu Touro Esfomeado, enfrentando a raiva de Sangue de Urso com a sua.

- Esta mulher é do meu Povo. Estás a arriscar-te, caçador. Touro Esfomeado mal se mexeu.

- Também tu.

Os dois enfrentaram-se olhos nos olhos.

Cascos Trepidantes olhou de relance para Touro Esfomeado. Porquê? Por que tinha ele intercedido? Podia ser morto por a defender.

- Basta! - Cria Branca interpôs-se entre os dois homens. - Ponham de lado os vossos dardos. Ninguém vai matar alguém aqui.

Embora inquietos, os guerreiros baixaram as armas.

- Anciã, eu sou o Guardião da Trouxa de Lobo. - Sangue de Urso estava meio curvado, irradiando raiva e frustração. Cria Branca enfrentou-o olhos nos olhos.

- E, mesmo assim, ainda nada aprendeste, pois não? Recordas-te de quando mataste Pena Cortada? Passaste oito anos sem lar por causa disso. E, agora, queres-me matar? Continuas a ansiar por Poder, mas depois cospes-lhe na cara! Ages como se o Poder não existisse sem ti.

A resistência final desapareceu nos guerreiros de Sangue de Urso. Mudavam agora de posição, olhando inquietos uns para os outros, molhando os lábios, remexendo nervosamente os dardos entre os dedos. Só Corno Solto permanecia firme, um ar decidido na expressão, lançando olhadelas para Alce Encantado.

Sangue de Urso ficou rígido e um tremor apoderou-se dos cantos dos lábios.

- Tem cuidado contigo, anciã. Não forces de mais.

- E continuarei a forçar, louco. - Agarrou na ponta do dardo dele com uns dedos frágeis e apontou a ponta para o espaço entre as próprias costelas.

- Vá, empurra, Sangue de Urso. Estou a facilitar-te as coisas. Mas, antes de me matares, queres fazer uma aposta? Queres apostar quanto tempo te resta antes de voltares a vaguear pelas planícies, esfomeado, esfarrapado, à procura de uma cobra ou de um sapo para comeres?

Ele engoliu a custo.

Com o coração a bater-lhe na garganta, Cascos Trepidantes estendeu o braço e baixou o dardo com a palma da mão.

- Penso que já chega para todos nós.

Touro Esfomeado segurou a anciã pelos ombros.

- Vem, avó, vem sentar-te e vamos conversar sobre tudo isto. Com Castor Pesado a guerrear nas planícies não podemos permitir que os Mão Vermelha se dividam em facções nas montanhas. O mundo inteiro morrerá, se tal permitirmos.

Cria Branca levantou os olhos ao perceber que Touro Esfomeado falara em anif’ah.

- Tens muito juízo, rapaz.

- Acenou a cabeça, fazendo estalar os lábios. - Muito juízo.

Cascos Trepidantes deixou o ar escapar-se devagarinho ao ver o sorriso fugaz que Touro Esfomeado lhe lançava. Ao virar-se, viu que Alce Encantado estava por detrás de Pequeno Dançarino. O rapaz estava pálido, com um dardo montado no atlatl. O olhar que Corno Solto fixava nele, era capaz de derreter gelo.

Sangue de Urso ultrapassou-os, segurando a Trouxa de Lobo pendurada por um canto, e foi sentar-se numa pedra, onde se instalou com as mãos segurando os joelhos e um ar duro.

- Vamos lá então. Quem são estes dos Búfalo Baixo? Que fazem aqui?

- Onde está Dois Fumos? - perguntou Cria Branca a Alce Encantado.

- Está ainda a trabalhar na sua rede. Eu vinha buscar outra braçada de cascas. Nesta altura, já deve vir a caminho para saber o que se está a passar.

- O tresmalhado ainda está a poluir o ar? - perguntou Sangue de Urso com irritação.

Vários guerreiros, entre eles Martelo Estalado e Nunca Suado, estremeceram com o sacrilégio. Corno Solto parecia um ramo de salgueiro vergado, pronto a saltar em qualquer direcção.

- Ele faz parte da minha família - frisou Cria Branca. Sangue de Urso hesitou, voltando a mexer-se quando ela olhou para a Trouxa de Lobo. - Afinal, o Poder ainda não regressou a ela.

Cascos Trepidantes captou a expressão tensa de Pequeno Dançarino, ainda pálido, e a sua total concentração na Trouxa de Lobo. Os olhos dele
brilhavam - uma expressão de lágrimas retidas. O rapaz deu um passo, depois outro, uma mão estendida, a boca a mexer-se sem soltar um só som.

Sangue de Urso inclinou de lado a cabeça a observar o jovem que se aproximava, passo a passo, com uma lágrima a correr-lhe pelo rosto. Sem ligar a mais nada, só procurava a Trouxa de Lobo.

O atlatl de Sangue de Urso afastou-lhe a mão.

Pequeno Dançarino veio a si, sobressaltado pelo contacto, e olhou bem fundo nos olhos ardentes de Sangue de Urso.

- Está... fria - murmurou Pequeno Dançarino. - Tornaste-a fria. Não a fumegaste em erva doce... não cuidaste dela como devias. Um dia, ela há-de virar-se contra ti... tal como se virara contra Castor Pesado e todos aqueles que não a respeitem. Estás a estrangulá-la.

Os guerreiros agitaram-se, sentindo-se pouco à vontade. Olhavam para Pequeno Dançarino e para a Trouxa de Lobo, a recuarem. Só Corno Solto se manteve firme e nunca os seus olhos brilhantes largaram Pequeno Dançarino.

- Estás a uma batida de coração da morte, rapaz - avisou Sangue de Urso.

Cascos Trepidantes ouviu os dentes de Touro Esfomeado rangerem quando este deu um passo em frente. Estendeu uma mão e, agindo por instinto, colocou-a no ombro dele. O toque mostrou-lhe que o músculo retesado dele mal se relaxou.

Touro Esfomeado olhou para ela com preocupação nos olhos. Ela abanou a cabeça sabendo bem a ansiedade que ele sentia. Não, Sangue de Urso não faria mal ao rapaz. Sentia-o.

A mão de Pequeno Dançarino pendeu e o seu olhar dorido ficou mais profundo.

- Tu não compreendes. Ela está à espera. À espera da pessoa certa para a limpar, para a tornar de novo nela. O Poder está aí esperando alguma coisa... alguém. Sentes as chamas? Sentes...

Voltou a estender a mão e mais uma vez Sangue de Urso o bloqueou.

Cascos Trepidantes não soube bem o que aconteceu nesse instante. Talvez Sangue de Urso estivesse a segurar a Trouxa dobrada num canto e se tenha de repente soltado. Talvez fosse a luz que lhe desse a sensação de movimento. Pareceu saltar e bateu suavemente na rocha.

Pequeno Dançarino assustou-se com o salto e abanou a cabeça. Recuou com um olhar esgazeado.

- Não - murmurou. - Eu não. Eu não sou o escolhido! Sangue de Urso aclarou a garganta, contente com a distracção.

- E ninguém deseja falar por estes aqui dos Búfalo Baixo?

- Vieram ver Cria Branca. - Cascos Trepidantes deu um passo em frente. - Tiveram sempre consideração por mim desde o momento em que me apanharam. Penso que não estão aqui para fazer a guerra.

Sangue de Urso estudou-a. Um arrepio dançou ao longo da espinha dela até aos pés pregados no chão.

Quer gostes quer não, pensou ela, a tua vida mudou. Como é que julgas possível voltar a viver no mesmo campo que ele? Que trará isso a Lançamento Certeiro e Chuva Molhada?

- Fico satisfeito por saber que te tornaste uma perita no Povo do Búfalo Baixo.

- Vieram até aqui porque não têm mais nenhum outro lugar para ir

- acrescentou Touro Esfomeado, pronunciando as palavras compassadamente.

Sangue de Urso levantou o lábio num esgar.

- Ainda não terminei contigo, caçador.

- Estou aqui, Sangue de Urso.

- Touro Esfomeado levantou-se com agilidade e um sorriso nos lábios.

Cascos Trepidantes lançou uma olhadela rápida na direcção de Cria Branca. Onde estava ela? Era a sua oportunidade de... A velha Mulher de Espírito parecia feita de pedra e os seus olhos brilhavam com um clarão fixados em Pequeno Dançarino. O rapaz deixara-se cair de joelhos, mas mantinha o olhar colado à Trouxa de Lobo.

- Cria Branca? - Cascos Trepidantes estendeu uma mão, ciente da tensão que pairava no ar. O grupo de Corvo Negro estava agitado. Os Mão Vermelha esperavam, totalmente perdidos. Tudo dependia das palavras de Cria Branca e a anciã apenas tinha olhos para o rapaz, uns olhos repletos de interesse.

- Cria Branca? - sussurrou ela, preparando-se para lhe puxar pela manga.

- O quê? - Os olhos velhos pareceram ficar claros. Abanou a cabeça como para se libertar de um sonho. - Sim? O quê?

Sangue de Urso apressou-se a recordar-lhe:

- O Povo do Búfalo Baixo... se tem algum comentário a fazer. Se não tiver, eu resolvo isto de uma maneira ou de outra. Talvez não compreendas as forças em jogo, anciã, mas o futuro dos Mão Vermelha...

- Louco! - interrompeu ela, dando um passo em frente. - Que sabes tu dos Poderes em jogo? Pensas que estás aqui por causa de Três Dedos e Corvo Negro? Idiota! Isto é uma viragem... um dia como aquele em que Castor Pesado lançou a Trouxa de Lobo no pó. Ahh! E tu estás preocupado com uns poucos de Búfalo Baixo?

- Mas eu...

- Tem calma, Sangue de Urso. Estás quase acabado. Oh, podes ter ainda algum tempo. Podes iludir-te mais algum tempo e gozar da tua posição. Virou-se, a cabeça de lado, e olhou para os guerreiros dos Mão Vermelha.

Vão para casa. Vai haver sarilho, mas ainda não chegou. Não este ano. A tempestade está a fermentar nas planícies. Precisarão de guardar os carreiros... mas não este Inverno. Partam. Continuem. Touro Esfomeado matou alguns búfalos. Levem o que puderem carregar convosco. Dou-vos as minhas bênçãos.

Martelo Estalado olhava para trás e para a frente, procurando desesperadamente uma solução. Rochedo Suspenso puxou Martelo Estalado para trás e o resto seguiu-os, recuando. Corno Solto permaneceu resoluto e só o pouco subtil empurrão de Rochedo Suspenso o pôs em movimento.

Cria Branca afugentou-os e pô-los a andar antes de Sangue de Urso ter tempo de se aperceber do que sucedera. Mas que significava aquele ar de frustração nos olhos de Corno Solto?

Sangue de Urso pôs-se em pé e encheu os pulmões para gritar. Cria Branca tocou-lhe no queixo com a vara de andar, fazendo-o saltar, e a ordem perdeu-se no vento.

- Ó quê? Queres cair outra vez no ridículo? - perguntou Cria Branca.

A raiva refluiu:

- Cuidado, velha! Tu estás...

- Ora! - cuspiu ela. - Hoje tiveste uma oportunidade. Touro Esfomeado tirou-ta. Se me tivesses morto com o primeiro dardo, podias ter salvo alguma coisa, talvez alterado os Círculos e afectado o mundo. Mas perdeste. O poder não está contigo, Sangue de Urso. Fizeste uma coisa que não compreendi. Ofendeste o Poder tão completamente que o Poder te deixou como um touro velho e cego a fugir de uma manada de búfalos.

Quando ele olhou para ela, embasbacado, Cria Branca abanou a cabeça.

- Não te invejo. És um instrumento cuja vida já terminou. Como um núcleo de obsidiana já gasto. Só que tu cortaste demasiados dedos do fabricante de instrumentos para poder ser simplesmente deixado para trás. Só estar ao pé de ti assusta-me, é como estar num pico bem alto no meio de uma tempestade de relâmpagos. Esse tipo de assustado.

- E quanto ao Povo de BúfaloBaixo? - Cascos Trepidantes observava o último dos Mão Vermelha a desaparecer no carreiro, os guerreiros contentes por se afastarem de Cria Branca e dos sarilhos que fermentavam no campo dela.

- Ficarão. - Cria Branca soltou um suspiro como se desinchasse. Mas não aqui. Não posso ter aqui tanta gente. Mas conheço um abrigo na encosta sul das montanhas. Dois Fumos pode levá-los até lá.

Cascos Trepidantes olhou para a filha e depois para Sangue de Urso. Ele vigiava-a com uma ameaça nos olhos. Perante tal olhar, o coração dela vacilou, pesado. Ele ia fazer que ela... e Alce Encantado sofressem por aquele dia.

Cria Branca deu uma pancada no rochedo atrás dele.

- Tens mais alguma coisa para dizer? Sangue de Urso sorriu malevolamente:

- Não, velha. Desta vez, não tenho. Mas um dia, e em breve, desejarás que o meu dardo te tivesse atravessado o coração.

Cria Branca soltou uma gargalhada. Por um breve instante, foi como se os anos parecessem cair do seu corpo.

-Tu nunca saberás o que me deste hoje, Sangue de Urso. Nunca compreenderás a extensão daquilo que soltaste.

Tornou a rir e bateu as palmas, quase dançando a balouçar-se.

Sangue de Urso empertigou-se e levantou a Trouxa de Lobo colocada no rochedo atrás de si. Sem um só olhar deu meia volta e começou a subir o carreiro, correndo sobre poderosas pernas.

Cascos Trepidantes soltou o ar dos pulmões e sentiu os joelhos a fraquejar. Uma mão forte no seu cotovelo conduziu-a ao rochedo onde Sangue de Urso estivera sentado. Olhou e viu preocupação no olhar de Touro Esfomeado.

- Foi uma viagem dura para ti. Obrigado por teres feito o que fizeste. Foi preciso muita coragem.

Ela piscou os olhos.

- Por que ficaste do meu lado?

Ele afastou olhar para esconder a dor que neles se lia.

- Foste corajosa. Falaste pelos meus amigos. Outrora, há muito tempo atrás, ninguém defendeu a minha... Bem, nunca mais quero ver coisa parecida. Jamais desejaria que o teu marido sentisse o que senti nesse dia.

Ela falou sem pensar.

- O meu marido morreu. - Inclinou a cabeça ao pensar no que diria Lançamento Certeiro se a ouvisse. Mas sabia. Ela sempre estivera do lado de fora do círculo da tenda de Lançamento Certeiro.

Ele não lhe deu hipótese de esclarecer a situação.

- Também a minha mulher. Morta por um homem como o Sangue de Urso.

Espantada, estudou o rosto sombrio dele. Ele sorriu, mas a dor nos olhos dele tocou-a, amolecendo-a. Assustada com a sua reacção, forçou-se a desviar o olhar, intrigada com o bater apressado do seu coração.

Pequeno Dançarino contemplava as estrelas. O frio cortante da noite enregelava-lhe os ossos. O ar cristalino queimava-lhe os pulmões e os pensamentos continuavam num remoinho - pó no vento. O seu mundo fora desfeito como se alguém tivesse puxado pelos nós da tenda da sua vida. Sentia-se aberto, exposto à vista de coisas que nem sequer conseguia conceber. Tentou pensar, perdido nas sensações da tarde.

A Trouxa de Lobo queimara-lhe a alma - como uma pedra de ferver lhe queimaria as mãos se a tentasse agarrar sem as varas do fogo. Sentira o desejo, o Poder, a necessidade da Trouxa de Lobo. Fechou os olhos com força a essa memória. O Poder brincara em volta dele como as fagulhas de uma fogueira de Verão.

Imagens e memórias perpassavam na sua mente numa confusão: ”O meu filho não...”, continuavam a repetir as palavras da mãe. O olhar poderoso de Cria Branca ardia em cima dele com a intensidade de um ácido. O sorriso cruel de Sangue de Urso exudava-se através dos poros dos seus pensamentos como se fosse óleo de urso quente. Dois Fumos gritava a sua infelicidade. O corpo de Alce Encantado ondulava, tentador. As profundas piscinas dos olhos prometiam. Podia sentir o toque suave das mãos dela, o corpo dele a responder...

Tudo começou a rodopiar, lançado na tempestade da sua mente desconjuntada. Tombou numa Espiral, a girar sem nunca encontrar o centro. O rosto satisfeito de Sangue de Urso zombava dele, o perigo do mortífero dardo pairava sobre a sua vida. Os olhos de obsidiana do homem imobilizavam a sua alma e criavam um arrepio que lhe percorria as tripas.

E, no meio de tudo isto, a Trouxa de Lobo chamava-o, a presença dela assombrava-o, presente no ar como o perfume delicado do fluxo da Primavera. Frágeis dedos de memória acariciavam-lhe a alma. O toque familiar da Trouxa de Lobo fizera-o recordar a infância. Aquele calor, aquela espantosa proximidade do Poder, rodeava-o todo. Quase conseguia acreditar que estava na cama, a mãe e o pai a dormirem no fundo da tenda. Se estendesse a mão, podia tocar a cobertura decorada e meter lá dentro a mão para sentir a tranquilizante pele de lobo que protegia a Trouxa de qualquer perigo.

Sem pensar, levantou a mão e os dedos apenas encontraram o céu nocturno. Ergueu o olhar e viu apenas a sombra negra dos próprios dedos. Lá no alto, apenas a Teia-de-estrelas se estendia pela infinidade da noite.

- A Trouxa de Lobo - murmurou roucamente.

Como se numa resposta, o uivo estranho de um lobo ecoou, vindo de algures na noite. O grito subiu, elevando-se na escala da sua alma, projectando arrepios ao longo de todos os seus músculos trementes. Um vazio abriu-se no seu ser, parte dele saindo para flutuar no ar claro como as notas do som.

O luar surgiu sobre as montanhas e enviou barras de luz branca, que atravessaram o vale escarpado e tocaram na salva como prata e arrancaram faíscas de luz às ervas secas e murmurantes. As silhuetas fantasmagóricas das árvores negras dançavam naquela luz sobrenatural.

Pequeno Dançarino ficou imóvel a olhar para oeste, onde as nuvens se empilhavam em enormes colunas. Um homem olhava para ele, a sua imagem formada nas nuvens amontoadas, o luar a brilhar-lhe nos olhos. Os cabelos na nuca de Pequeno Dançarino eriçaram-se e um frio tocou-lhe na pele como os pés de mil insectos.

- Quem... és... tu?

- Sonho de Lobo. - As palavras pareciam formar-se no ar que o cercava. - O tempo chegará. Ainda não estás preparado. Os círculos ainda não rodaram.

Pequeno Dançarino ficou espantado a olhar para a escuridão.

- Eu não sou o escolhido - insistiu, sentindo o coração a bater nas costelas.

Das árvores que mal se viam as palavras da mãe surgiram como fios de uma teia de aranha rasgada pela brisa da manhã: Eu proíbo-te.

Pequeno Dançarino estremeceu. O poder das palavras estava gravado nele com a mesma profundidade dos petroglifos no campo de Cria Branca.

- E que desejas tu, rapaz? - As palavras saíram de uma garganta mais profunda, intensa, inegável.

Piscou os olhos como se tocado fisicamente. Uma sombra mexeu-se. O lobo ali estava ao luar, negro de prata, enorme, quase do tamanho de um veado. Observava-o com uns olhos amarelos que perfuravam a sua alma ferida.

- Eu... - As palavras ficaram retidas na garganta.

- Tu conheces o Vigilante - continuou a voz. - Temte seguido. Estás ligado.

O gigantesco animal aproximou-se mais, baixando a cabeça ao mesmo tempo que abria a boca. O luar brilhou nos longos dentes brancos como a luz do sol sobre o gelo.

O medo percorreu Pequeno Dançarino em padrões eléctricos. Imóvel, nada mais podia fazer que olhar.

O lobo parou a menos de uma mão dele.

- A Espiral já quase deu a volta. Os Círculos estão a mudar, o equilíbrio a mudar. A habilidade de o Sonhar de volta é tua. O poder está em ti, Dançarino do Fogo. Não precisas ainda de escolher. Tens tempo para aprender acerca da vida... sobre o que ela significa. Um dia serás chamado. Entretanto vive... e aprende. Quando os Sonhos te queimarem a mente até não conseguires pensar em mais nada, procura Cria Branca. Agora ela compreende. Ela escutará... e ensinará.

As nuvens com forma de homem faiscaram por dentro, iluminadas por relâmpagos. As feições do homem ficaram sobrenaturalmente brancas, olhando, pensativo, a meditar.

Pequeno Dançarino olhou, espantado, deixando de dar atenção ao Vigilante por um fugaz instante. Quando voltou a olhar para ele, o animal desaparecera na noite e só o movimento das ervas indicava a sua passagem. Com dedos trémulos tocou, para os sentir, os ramos esmagados e quase detectou neles um certo calor.

O rugido surdo na trovoada rolou pelas montanhas, a voz do Poder sem limites. Pequeno Dançarino engoliu em seco e virou-se para as nuvens altaneiras; a frente da tempestade mudara-lhes a forma. Onde o homem estivera, havia agora uma cabeça que lembrava um gigantesco lobo. Um novo rugir de trovão ecoou pelos vales escarpados.

Ficou muito tempo ali sentado, paralisado. Batida a batida, o seu coração contava os longos momentos em que o trovão rugia por uma eternidade, arrastando com ele a sua alma.

- É tarde para trovoadas.

Pequeno Dançarino deixou escapar um grito e deu um salto.

- Assustei-te? - perguntou Dois Fumos, descendo o carreiro dos alces no seu passo descompensado para se sentar a seu lado. Atrás dele, Alce Encantado movia-se como uma sombra. - O Poder anda à solta esta noite. Sente-se. Sabes, como aquela calma silenciosa antes da tempestade.

O coração de Pequeno Dançarino continuava a bater como um tambor de pote.

- Sentes-te bem?

- O lobo, o Vigilante... viste-o? Enorme... negro... Dois Fumos inclinou a cabeça.

- Não passou nenhum lobo por nós. Mas o Poder anda por aí. A pele fica arrepiada. Quando cheiras, podes sentir-lhe o odor.

Pequeno Dançarino apoiou a cabeça nos joelhos, respirando fundo. Um tremor súbito assumiu o controlo dos músculos.

Dois Fumos continuou a falar, fazendo de conta que não estava preocupado:

- Cria Branca queria que nós te encontrássemos. Eu tenho de levar Três Dedos e os seus para um campo que conheço. Podes ir ou ficar aqui. A decisão é tua. Foi um dia muito atarefado para toda a gente. Touro Esfomeado vai. Acho que quer passar algum tempo com os amigos, tempo para estar com a sua gente.

Pequeno Dançarino tentou estacar a correria do seu coração.

- Aposto que Cascos Trepidantes irá com ele - continuou Dois Fumos. - Julgo que ela não tem grande interesse em regressar aos Mão Vermelha nos tempos mais próximos. Sangue de Urso tornar-lhe-ia a vida insuportável. Cria Branca pensa que seria uma boa ideia ela ir para contar ao Povo como vivem os Mão Vermelha.

Pequeno Dançarino mordiscou a parte de dentro das bochechas.

- Eu não fico aqui.

Dois Fumos acenou com a cabeça, a expressão escondida pelas sombras.

- Penso que é isso que ela espera.

Pequeno Dançarino olhou, inquieto, para o velho amigo:

- Ela não me mandou ficar?

Dois Fumos abanou a cabeça devagar.

- Eu não compreendo o que se passa, mas ela quase insistiu para que tu... e Alce Encantado partissem. Limitou-se a sorrir, a balouçar-se, a olhar... bem, tinha um ar satisfeito.

Pequeno Dançarino franziu a testa. Os seus nervos ficaram rígidos como os de um esquilo do chão, quando a sombra de um falcão passava sobre as ervas. Tinham acontecido demasiadas coisas muito depressa. No torvelinho da sua mente, nada fazia sentido. Não conseguia pensar. A vida enrolava-se em torno dele com rapidez, descontrolada, virando-lhe os pés pela cabeça antes de ele poder pensar nisso.

- E nem sequer argumentou a favor de eu ficar? Não exigiu que eu lhe falasse dos meus Sonhos?

- Não. Disse que tu agora estavas entre outras mãos que não as dela. Disse que o teu caminho já fora traçado.

Pequeno Dançarino arrancou uma erva e fê-la rolar entre os dedos.

- Já a conheces há muito tempo, Dois Fumos. Que achas tu que ela pretende?

O tresmalhado encolheu os ombros.

- Ela pensava que te podia ensinar coisas que fizessem a diferença quando finalmente encontrasses Castor Pesado. Pensava que podia...

- Eu não vou encontrar Castor Pesado. Eu não sou o Sonhador dela. Dois Fumos fez uma pausa. Quando falou, fê-lo com grande deliberação:

- Eu penso, meu amigo, que ela sabe isso. Penso que aconteceu hoje qualquer coisa que a fez ver que tu não és o seu Sonhador.

- Oh?

Dois Fumos engoliu em seco, com um som forte no silêncio da noite.

- Eu penso...

- Continua. Estamos juntos há muitos anos para tu andares aí com rodeios a serpentear como uma cobra numa bolsa.

Dois Fumos soltou uma pequena gargalhada, mas a sua expressão não era de humor.

- Acho que sim. Talvez devas saber que ela murmurou uma coisa consigo mesma. - Hesitou, pensativo. - As palavras que ela murmurou quando julgou que ninguém a ouvia foram: ”Ele não é meu. Como sou louca. Ele sempre pertenceu ao Lobo.”

Atingido, Pequeno Dançarino olhou para as nuvens. Dedos de gelo percorriam-lhe a espinha.

- Já o temos.

- As mil almas da Trouxa de Lobo agitaram-se, satisfeitas, a preocupação afastada.

- Por agora - concordou Sonhador de Lobo. - Está dividido. Atraído e ao mesmo tempo repelido. Continua a negar.

- É esta a oportunidade. Renova-me. Deixa aumentar o meu Poder. Deixa-me ajustar as Espirais...

-Ainda não - contrariou Sonhador de Lobo, por entre o brilho dourado das Espirais iluminadas. - Vives no Agora. Olha mais longe. O que ganhamos agora perdemos com Castor Pesado. Está a planear atacar os Mão Vermelha. À medida que a sua autoridade se consolida, ele olha para as montanhas.

- Julgaste que as chuvas diminuíram a sua necessidade?!

- Não compreendi a fome dele por dominação.

- Que mais erraste? As coisas estão a ficar mais precárias. Outro erro...

 

                                                                                 Michael & Kathleen Gear  

 

                      

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