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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O POVOADO PERDIDO / Zane Grey
O POVOADO PERDIDO / Zane Grey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O POVOADO PERDIDO

 

Janey sacudiu a cabeça. Que lhe importava? Qualquer coisa quente, que supunha ser ódio, queimava-a. Uma vez rodeado o vasto contraforte de rocha, fora da vista de Randolph, esqueceu-o. Ali, encontrava-se um anfiteatro, à vista do qual era pequeno o Coliseu de Roma, situado contra um fundo de magnificentes rochas intransponíveis. Que silêncio! Janey sentiu-se como que num sepulcro, completamente só. Os seus passos levaram-na alto, tão alto que se maravilhava e estremecia, receosa, por vezes, com as gigantescas fendas e rochas soltas.

De súbito, notou o que parecia serem pequenos degraus talhados na rocha. Atónita, não podia acreditar no que viam os seus olhos. Mas ali estavam eles, um após outro, gastos, apenas distinguíveis na rocha macia. Tinham sido talhados à mão.

Intensamente absorvida, Janey subiu-os, esquecendo o medo das alturas e das rochas fragmentadas.

Agora perdera os pequenos degraus. Parou, sem fôlego e ruborizada. Evidentemente que tinha subido muito. Na sua frente, estendia-se uma plataforma mais maravilhosa ainda pela localização e isolamento. Olhar para trás e para baixo fê-la ficar sem respiração. Como iria descer?...

 

 

Janey Endicott não tinha visto nada do Arizona até àquela manhã. O comboio atravessara a fronteira daquele Estado já de noite. O Novo México, com as suas planícies ermas e abruptas, as suas pastagens negras e rudes e as suas solitárias extensões de terreno, despertara nela sensações completamente novas. Seu pai acabara de lhe bater à porta, acordando-a à hora a que não estava habituada. Aceitara, sem interesse, o seu convite para dar com ele um pequeno passeio pelo Oeste, mas aquilo começava a ter uma maior importância para ela. E Janey já não estava tão segura de que não lhe aconteceria algo de novo.

Tinham chegado a Flagerstown de noite, já tarde e Janey, cansada, tinha ido logo para a cama. Ao despertar nessa manhã, ficara surpreendida com a vitalidade que sentia. Acordara num momento. O sol entrava a jorros pela janela do quarto, muito brilhante e dourado e o ar que o acompanhava era seco e frio.

- Oh! Pensava que alguém me tinha dito que estávamos na Primavera - disse Janey enquanto calçava rapidamente as chinelas e vestia o roupão. Depois foi à janela e olhou em volta.

O pequeno hotel estava, evidentemente, situado nas imediações da cidade. Viu algumas casas dispersas entre os pinheiros, de um lado e outro. Havia rochas cinzentas e abruptas, cobertas de vinha e mato. Os pinheiros cresciam altos e delgados e desapareciam numa mancha verde escura. À distância viam-se cumes brancos contra o azul profundo do céu. Janey teve o pressentimento de que iria gostar daquela aventura.

Embora não o quisesse admitir e apesar de ter só vinte anos, encontrara bastantes aborrecimentos na sua casa do Leste. Pensamento sério este que já lhe tinha surgido muitas vezes e que geralmente evitava, mas que voltava involuntariamente a atormentá-la.

Enquanto se vestia, ponderava a situação. Nunca estivera no Oeste. Depois do colégio, tinha feito uma viagem pela Europa, e nos anos seguintes ocupara o seu tempo com as habituais partidas de golfe, passeios de automóvel e idas a bailes e dancings com todos aqueles que faziam parte do seu grupo. Sabia bem quanto seu pai discordava das ideias da sua geração. Contudo raramente interferia na sua vida. Este passeio tinha uma intenção, que só agora descortinava completamente. Iam encontrar um jovem arqueólogo, ali em Flagerstown, e, provavelmente, conseguir que ele os acompanhasse para lhes mostrar a região dos canyons (1) e outros lugares pitorescos. Janey tinha-o conhecido em Nova Iorque

 

(1) Espécie de garganta ou desfiladeiro muito apertado onde corre um rio.

 

onde ele estivera a fazer conferências sobre as minas pré-históricas do Southwest. Philip Randolph tinha surpreendido Janey porque era diferente dos jovens com quem ela convivia mas no que dizia respeito à sua atitude perante os encantos dela fora tão susceptível como os outros. Randolph nunca traíra os seus sentimentos por palavras ou acções. Parecia ser um indivíduo calmo e varonil, bem educado, mas um pouco antiquado nas suas maneiras e demasiado absorvido pelo seu trabalho de investigação. Janey simpatizou bastante com ele e conviveram um pouco. Ainda ela e o pai não tinham chegado ao Oeste quando este mencionou que esperava encontrar Randolph. Lembrou-se então de que seu pai tinha gostado muito do jovem arqueólogo. O que divertiu Janey.

- Deve ter alguma coisa em mente - monologou ela - e eu só o consegui perceber muito tarde.

Janey encontrou o pai na confortável sala de estar do hotel, lendo o jornal, em frente do fogão. Era um homem de 60 anos, bem conservado, elegante e de cara bem barbeada, um noviorquino típico, perspicaz, vivo e mundano, ainda de aspecto atraente.

- Bom dia Janey - disse ele dobrando o jornal e sorrindo-lhe. - Vejo que dispensaste, quase por completo, a tua maquilhagem. Estás com um belo aspecto.

- Confesso que me sinto esplêndida - respondeu Janey francamente. - Deve ser do ar do Arizona. Apetecia-me comer umas costoletas de carneiro, papá.

Ao pequeno almoço Janey descortinou uma cintilação diferente nos vivos olhos de seu pai. Estava contente por ela parecer esfomeada e não estar inclinada a descobrir defeitos nas comidas e bebidas que lhe serviam. Janey sentiu que ele tinha mais alguma coisa em mente do que proporcionar-lhe apenas um belo passeio. Podia muito bem ser até que estivesse querendo provar a sua própria teoria acerca das reacções de uma jovem bastante sofisticada perante o ainda tão primitivo Oeste.

-           Randolph mandou-me dizer que não pôde encontrar-se connosco aqui - disse o pai. - Nós iremos de automóvel até um lugar chamado Mórmon Canyon. É um posto comercial, penso. Randolp estará lá.

- Iremos pelo deserto? - perguntou Janey entusiasmada.

Cerca de 100 milhas. Atrevo-me a dizer que vai ser um passeio que tu nunca esquecerás. Janey, vais com esse vestido tão leve?

- Claro. Tenho o meu casaco para o caso de estar frio.

- Muito bem. É melhor ires buscá-lo imediatamente. Já pedi um carro.

- Há lojas nesta terra? Queria comprar umas coisas.

- Sim e bem bonitas Mas depressa, minha querida. Estou ansioso por partir.

Quando Janey saiu a fazer as suas compras, lamentou não ter levado o casaco. O ar estava cortante e o vento atirava-lhe pó para a cara. Flagerstown parecia uma pequena cidade morta. Estremeceu à ideia de ter de viver ali. Limitou-se apenas a ir a uma loja, pois começou a ter pressa de voltar para o hotel.

Encontrou índios que, apesar dos seus trajos de brancos, lhe pareceram pitorescos e excitantes. Notou que a olhavam com interesse. Depois viu um rapaz mexicano que conduzia alguns belos e fogosos cavalos. E não houve mais nada que chamasse a sua atenção durante o seu curto passeio.

Rapidamente fez as malas e já estava pronta quando o pai veio ter com ela ao quarto. Janey reparou que ele estava a proceder mais como um rapazito do que como o seu antigo pai, grave e calmo. O carro estava à espera lá fora.

- Vamos embora - disse ele com um ar peremptório. E Janey teve de morder a língua para não retorquir que ele devia falar por ele apenas.

Depressa deixaram para trás a cidade e entraram numa floresta de pinheiros altos e majestosos, crescendo distanciados uns dos outros, num solo atapetado de castanho e levemente inclinado. A fragância era parecida com a das florestas do Leste, diferente talvez por ser mais seca, o que era uma qualidade doce e nova para Janey. Aqui e acolá a estrada atravessava ranchos dos quais apenas eram visíveis os picos vestidos de branco. Janey pôs-se a pensar por que razão as pessoas do Leste deliravam com os Alpes quando o Oeste possuía tantas montanhas como aquelas. Ficou com pena quando deixou de ver a montanha. Seu pai falou um bom pedaço acerca daquela parte do Arizona da qual parecia estar muito bem informado.

- Ouve papá, já aqui tinhas estado alguma vez? - perguntou-lhe.

- Não. Randolph falou-me acerca desta região. Ele adora isto. Não admira!

Janey não respondeu, contrariamente ao seu costume. A estrada subia, mas nem a aspereza nem a rudeza da subida causaram nos passageiros grande interesse. Breve o carro entrava na parte mais densa da floresta, escura e fria, alcançando o cume de uma colina. Depois entrou numa descida gradual, onde as árvores começavam a rarear e, percorrido um bom par de milhas, encontraram-se no limiar do deserto.

Foi a primeira vez que Janey viu qualquer deserto de perto. Sentiu-se fortemente emocionada; não saberia dizer se por temor, maravilha, respeito ou medo, se por um pouco de cada um destes sentimentos combinados. Todas as extensões de terreno que tinha visto em toda a sua vida, somadas, não se podiam comparar com o tremendo espaço que se abria à sua frente. Primeiro era prata e cinzento, semeado de pequenas árvores verdes, depois transformava-se em amarelo e vermelho e acabava numa mistura de muitas cores, donde sobressaíam formas cor de púrpura.

- Este deve ser o Deserto Pintado, se me lembro correctamente do que me disse Randolph - disse o pai. - É magnífico. Não há nada na Europa como isto. E Randolph disse-me que não é nada, comparado com o Utah, a 200 milhas para o Norte.

- Vamos papá - replicou Janey, sonhadora.

Dali em diante, a viagem cresceu em interesse absorvente para Janey, a tal ponto que ela já nem podia reflectir e tomar consciência das suas próprias impressões. O Little Colorado River, o vasto promontório do Kishlipi, as gigantescas estepes para os Badlands, as encantadoras e sinistras formações rochosas estendendo-se por um tremendo e azul golfo, que era o Grand Canyon; os assombrosos planaltos, chamados mesas, pelo motorista, a descida para as deslumbrantes e arenosas Moencopi Wash e ainda, e outra vez, e sempre, sempre, mais léguas de deserto, com extensões negras sobressaindo - estes sucessivos aspectos da viagem prendiam a atenção de Janey, como até ali nenhuma outra paisagem ou cenário a haviam prendido na sua vida.

Ficou surpreendida ao ver o posto comercial. Alcançaram-no mais cedo do que desejava. Assemelhava-se a um dos blocos de rochas vermelhas por que tinham passado frequentemente. Mas mais perto, começou, de facto, a parecer-se com uma habitação. Tudo à volta era areia amarela, vermelha e cinzenta e na crista das serranias, afiadas como gume de punhal, espalhava-se um fumo prateado. Havia pedaços de verde atrás do posto e, abaixo, uma larga cova onde colunas de pó ou areia redemoinhavam por entre estéreis ruínas. Para além, rochas rosadas e salpicadas de branco, maravilhosas à vista, e acima delas, longe, o topo negro e franjado de uma mesa sem fim.

- O que pensas disto, Janey? - perguntou Endicott, com curiosidade.

- Agora compreendo porque Randolph parecia inadaptado ao lugar que desempenhava, como diziam os meus amigos - replicou Janey, enigmaticamente.

-           Hum! Eles não o conheciam muito bem - declarou o pai.

Eram esperados à porta do ponto pelo negociante, John Bennet. Este trazia umas mantas Navajo. O seu chapéu estava inclinado sobre a orelha. Tinha uma cara curtida pelo tempo e era um homem de meia idade, de estatura mediana, grisalho e gasto pelo deserto, com uns olhos que revelavam bondade e bom humor.

-           Ora aqui estão - saudou-os, deixando cair as mantas. - Creiam que não os esperávamos tão cedo. Desçam e entrem.

Janey transpôs a porta e entrou numa colorida e espaçosa sala de estar. Aí encontrou uma mulher gorda, de mangas arregaçadas, mostrando os braços robustos e morenos, que veio para Janey e lhe pediu que se considerasse em sua casa. Depois foi ter com os outros lá fora, deixando Janey sozinha.

Esta olhou à sua volta com interesse. As janelas largas, abrindo para o deserto, chamavam fortemente a atenção de Janey. Tirando o casaco e o chapéu sentou-se a descansar e a inventariar o que a rodeava.

O compartimento, que era comprido, tinha muitas mantas índias, algumas das quais adornavam as paredes. Numa mesa estavam espalhados cintos ornamentados a prata, fitas de chapéus, freios e arreios de cavalos. Sobre o amplo rebordo da lareira estavam penduradas placas índias, e no topo da estante encontravam-se objectos de desenho índio, adornados com contas, e alguns vasos primitivos. Um bom fogo ardia na lareira.

Nesta altura mrs. Bennet entrou acompanhada pelo comerciante, por mr. Endicott e por um homem alto e jovem vestido de caqui. Janey já o tinha visto em qualquer parte. Na verdade era Philip Randolph. A cara queimada, rudemente vestido, ajustava-se decididamente ao ambiente do deserto, para o gosto de Janey.

- Miss Endicott creio que não precisa de ser apresentada ao Phil - anunciou mrs. Bennet, lançando um olhar agudo e penetrante, que percorreu o lindo e curto vestido francês de Janey, as finas meias e os sapatos de salto alto.

- Phil?... Oh, a senhora quer dizer mr. Randolph.

O jovem inclinou-se rigidamente e dirigiu-se-lhe.

- Espero que ainda se lembre de mim, miss Endicott - disse.

- Claro que me lembro mr. Randolph - respondeu Janey, graciosamente, estendendo-lhe a mão.

- É bom vê-la aqui, no meu Oeste. Nunca cheguei a acreditar que viesse, embora seu pai prometesse trazê-la.

- Bem, o papá conseguiu-o, e não posso compreender como - retorquiu Janey, rindo.

- Mr. Endicott o passeio foi bom para todos? - perguntou mrs. Bennet.

- Para mim foi. A minha filha é que está ainda um pouco desconfiada, receio.

Ora, isto não é assim tão mau, miss Endicott - disse, com simpatia, a enorme mulher. - Vejo perfeitamente como está pálida. Vão todos ver como a saúde lhe vai voltar neste deserto.

- A minha saúde! - exclamou Janey quase indignada. - Mas se eu sou absurdamente saudável. Eu até podia ser escolhida para um cartaz de propaganda à saúde! É meu pai quem anda indisposto.

- Desculpe-me, miss - disse mrs. Bennet, embaraçada. - Mas veja, o seu pai parece tão forte...

- Não é o corpo dele que está fraco, mrs. Bennet - interrompeu Janey. - É o seu cérebro.

Nesta altura Philip veio libertá-la, como Janey se lembrava que ele sempre fizera em Nova Iorque.

- Mrs. Bennet, não é uma questão de saúde ou doença para alguém - explicou ele. - Mr. Endicott era um velho amigo de meu pai. Encontrei-o em Nova Iorque. Ele quis visitar o Oeste e trazer miss Janey para tão longe da civilização quanto possível, para...

-           Eu lhe direi se ele fez isso - interrompeu Janey. -

Deve ser uma verdadeira tragédia viver aqui, rodeados de milhas de areia, rochas e céu. Ou vocês estão doidos, ou devem ter cometido algum crime ou coisa semelhante, e querem esconder-se.

Mrs. Bennet tentava conter o seu espanto.

- Mr. Endicott, os vossos quartos ainda não estão prontos. Por favor esperem aqui um pouco... Bennet vê se aqueles rapazes preguiçosos trazem as malas.

- Phil, mas onde é que estão os rapazes? - perguntou Bennet, ao ver a mulher tão azafamada.

- Estavam a mandriar, à sombra, quando o carro chegou. Depois desapareceram como lebres no mato. Certamente estão a divertir-se. Vou ajudá-lo a encontrá-los.

- Estejam à vontade - convidou Bennet e deixou a sala com o arqueólogo.

Mr. Endicott andou à volta de Janey olhando-a com ares reprovadores.

- Janey, não me importo que me chames doido ou troces de mim. Mas, por favor, não faças isso ao meu jovem amigo Randolph. Seu pai era o homem mais educado que conheci, e Philip é muito parecido com ele... Janey faz a diligência por te portares bem com Philip Randolph. Não é provável ver um tipo sofisticado por aqui. Em Nova Iorque ele tinha-te deixado perplexa. Não consegues gostar dele porque não o compreendes.

- Querido pai - respondeu Janey, rindo tentadoramente para ele. - O teu nome devia ser Elijah, mas tu não és profeta. Gostava o bastante do teu jovem amigo para o deixar em paz. Mas isso era em Nova Iorque onde há milhões de homens. Por aqui nada conheço. Provavelmente ele vai aborrecer-me ao máximo. Não vês que é seco como o pó deste deserto? Ele anda a viver há dois milanos atrás. Imagino-o a cavar na terra, para encontrar restos do passado. Bem, ele deve ter desenterrado um cachimbo em forma de maçaroca cheio de jóias e descoberto que havia raparigas engraçadas nos velhos tempos dos Aztecas.

-           Janey tu és uma pessoa incorrigível - retorquiu mr. Endicott, desesperado.

- Papá, sou tua filha. Não sei se foste tu que me educaste mal ou se fui eu que não fiz caso dos teus ensinamentos. Mas o facto é que todos os educadores e cientistas gritam que os pais da geração presente são os verdadeiros responsáveis pelos nossos defeitos.

-           Janey, eu sou o responsável pela tua conduta aqui, em todas as circunstâncias - declarou mr. Endicott, com firmeza.

- Ah, és! Bem, meu papá muito querido. Estou aqui, não há dúvida... ou então estive a beber.

-           Janey, não haverá mais histórias de bebidas.

- Papá, tens uma ideia muito errada a meu respeito. Admito que as minhas companhias bebiam bastante. Mas eu nunca bebia. Palavra, papá.

- Nunca sei quando te hei-de acreditar ou não, Janey. Mas já te tenho visto a fumar.

- Oh, bem, isso é diferente. Fumar não pode ser muito higiénico, mas é um vício elegante e, pelo menos, repousante.

- E que me dizes de todas as tuas conquistas? - inquiriu Endicott, evidentemente cheio de coragem nesse momento. - Senhor! Quando penso nos homens que tu tens transformado em idiotas! Olha para o último - o jovem Valentino que se vangloriava de ser teu noivo!

Janey riu alegremente.

- Papá, achas isso bonito? Bert Durland é tão meigo; e também dança divinamente.

- Durland é um pequeno artigo de luxo. Tal como a sua mãe, tão social e esgalgada. Mas eu providenciarei para que ele não dance ou trepe pela tua herança.

- Pensar que tu nos separaste! - gritou Janey, aparentando estar possuída dos sentimentos mais trágicos.

Uma índia jovem e delgada entrou no compartimento. Era morena e linda.

-           Senhor, o seu quarto está pronto.

- Obrigado - disse Endicott, pegando no casaco e no chapéu. - Janey, tens razão. Separei-te de Durland e também de uma porção de outros caçadores de dotes. Essa é a razão por que tu estás aqui neste deserto para descansar. Além de Bennet e de Randolph, com quem tu não podes flirtar, não há homens por aqui em cem milhas em redor.

Janey olhou para o pai e respondeu modestamente:

- Sim, meu querido, meigo, amável e previdente pai.

Endicott saiu com a criada índia, no mesmo instante em que entrava pela outra porta um jovem, trazendo uma mala em cada mão. Tinha a cara rosada e estava negligentemente vestido com uma camisa de lã às riscas, calças de ganga e botas de montar. Usava também um grande chapéu cheio de pó. Quando notou Janey os seus olhos esbugalharam-se, e deixou cair uma mala, depois a outra.

- Estava a falar para mim, miss? - perguntou espantado.

- Ainda não. Estava a falar com meu pai. Acaba de sair daqui... Você apanhou-me de surpresa.

- Claro, e a senhora a mim deixou-me sem fôlego.

- Vive aqui? - perguntou Janey, com interesse. Aquele posto comercial, talvez, apesar de tudo, não fosse tão mau.

- Claro - respondeu o rapaz, arreganhando os dentes.

- É filho de mrs. Bennet?

- Não. Apenas um simples e mau cow-boy.

O meu primeiro verdadeiro cow-boy! - murmurou com um sorriso.

- Oh, miss! Sinto-me muito honrado. Queria ser o seu... o seu primeiro qualquer coisa. Não é a senhora a rapariga Endicott de quem nós estávamos à espera?

- Sim, sou Janey Endicott.

- E eu Mohave. Os rapazes chamam-me assim por causa do Deserto Mohave, que não tem princípio nem fim.

Enquanto Janey começava a rir, entrou também um outro rapaz, carregando, em cada mão, várias coisas. Este estava vestido com apuro, como um cow-boy de cinema e tinha a face muito morena e tisnada. Dirigiu a Janey um quente sorriso.

- Cow-boy, creio que podes pôr as malas aqui e voltar a buscar mais - disse, suavemente, Mohave.

-           Buenos dias, senorita - cumprimentou o outro, pondo as malas no chão e varrendo-o com o seu chapéu.

Janey reparou que, ao ver aquilo e lembrando-se subitamente, Mohave tirou também o seu enorme chapéu.

- O mesmo para si - respondeu Janey, sorrindo, tão travessa quanto possível.

- Miss Endicott, este é o Diego - disse Mohave, enfaticamente. - É um mexicano. Uma vez viu uma fita do Oeste e nunca mais ficou o mesmo. Tem estado assim vestido todo o dia à sua espera.

- Estou tremendamente lisonjeada - replicou Janey.

- Miss, eu trouxe estas bagagens que são as suas. Peguei só naquelas que tinham o seu nome.

- Agora, Búfalo Bill, não deve adular-me mais - replicou Janey, com coquetismo.

- Oh, miss! Chamou-me Búfalo Bill! Eu tenho-o visto nas fitas.

E dizendo isto empunhou duas pistolas com um exagerado estilo cinematográfico.

- Ah! Vilão! Estás em meu poder finalmente! Ah! Os teus dias estão contados. Vou matar-te!

Brandia as duas pistolas perto da cara de Janey. Alarmada, esta deslizou do lugar onde estava perto da janela, esgueirando-se para trás de uma mesa.

-           Diego, enlouqueceste, vaqueiro, continua a trabalhar - ordenou Mohave, violentamente. - Ray vem aí.

Era evidente que Diego tinha respeito a Mohave. Precipitadamente guardou as pistolas e, pegando no chapéu tornou a agarrar nas duas malas. Entretanto Janey emergiu de trás da mesa.

- Miss, Diego representará outra vez para si - anunciou grandiosamente.

-           Si...im. Obrigada. Mas, por favor, trate de representar em algum sítio onde eu me possa esconder - respondeu Janey.   

Diego deixou a sala, e Mohave, pegando na sua carga,

virou-se para Janey.

-           Miss Endicott, não confie em Diego, ou em qualquer dos outros homens. E especialmente, não monte os cavalos deles. Certamente cairia e talvez morresse. Mas o meu cavalo é seguramente gentil. Eu trazer-lho-ei amanhã.

- Adorarei ir consigo - retorquiu Janey. Então Mohave apressou-se a seguir as passadas de Diego, juntamente a tempo de não ser visto por um terceiro cow-boy que vinha também lá de fora, carregando uma grande mala como se fosse uma pena. Pousou-a no chão. Tinha a cabeça descoberta, e era um jovem louro, nada antipático, de um tamanho que infundia um certo respeito. E a maneira de vestir era o meio termo entre a de Diego e a de Mohave.

Janey olhou fixamente para ele e exclamou:

-           Belo! Tarzan com botas de cow-boy, nem mais nem menos.

Ray encarou-a, depois olhou em volta para ver a quem ela se referia. Mas como não havia nenhum outro homem presente pareceu adivinhar a verdade, e aproximou-se rapidamente.

- Bem! Por amor de Deus! - disse em tom lento e sepulcral, quebrando assim o silêncio.

-           Oh, sim, na verdade, era a si que eu me referia, - volveu janey, toda sorrisos. - Aposto que se o seu cavalo está cansado, você pega nele e leva-o ao colo até casa.

- Bem, por amor de Deus! - exclamou Ray, exactamente no mesmo tom.

- Tem mais alguns versos essa canção?

-           Bem, - por amor de Deus!

- Terceiro e último - espero.

-           É a primeira vez que vejo ou ouço um anjo a falar - declarou o rapaz.

- Por favor não me chame anjo. Os anjos são bons. E eu não o sou. Sou rebelde. Essa é a razão por que me arrastaram até ao Oeste. Pergunte ao papá, ele sabe. Espera, agora me lembro, estou a morrer por um cigarro. O papá é muito antiquado e nunca trago cigarros quando ele vem comigo. Podia dar-me um?

Ray ficou simplesmente pasmado.

- Só tenho cigarros por fazer - conseguiu, finalmente, articular.

- Obrigado. Isso chega - respondeu Janey pegando na pequena bolsa de tabaco que ele lhe estendia.

O ver Janey fazer o cigarro fascinou Ray. Estava tão absorvido que não notou a entrada de um quarto cow-boy, que vinha carregado com caixas de chapéus e mais malas. Era o mais simpático dos quatro. Com os seus olhos, belos e penetrantes, olhando em frente, sem dar pela presença de Janey, atravessou a sala e foi a caminho do vestíbulo. Janey viu-o passar, com surpresa que se transformou em má vontade.

Nem sequer tinha olhado uma vez para ela. Iria pagar aquela indiferença.

-           Bem! Seguramente a menina é uma pequena e atrevida dogie - notou Ray, acendendo-lhe o cigarro.

- Dogie!... Diga senhor cow-boy, explique-me o que quer dizer essa palavra!

-           Uma dogie é uma vitelinha ou um potro que não tem mãe.

- Onde é que você aprendeu tanto a meu respeito? - perguntou Janey, bastante agressiva.

- Certamente que nenhuma garota que tivesse mãe enrolaria um cigarro, e o fumaria como a menina.

- Deveras? Ray, será você um pregador do deserto? - inquiriu Janey, distante.

- Perdão, miss. Eu não queria ferir os seus sentimentos. Mas a sua maneira de me pedir - o vê-la fumar assim: É tão condenável - desculpe-me, quero dizer que a acho tão bonita que é contra a minha índole o vê-la ter esses maus hábitos.

- Você não gosta de ver as mulheres fumarem? - indagou Janey, com curiosidade.

- Particularizando, eu não gosto de a ver fumar.

-           Então não fumo - decidiu Janey, e indo até ao fogão atirou para lá o cigarro.

- Só, só por causa de eu não gostar de a ver fumar? - exclamou Ray, extasiado.

- Só por causa de você não gostar.

- E perdoa-me tudo o que eu disse, há bocado?

- Claro.

- Peço-lhe para mo provar.

- Como?

- Indo passear a cavalo amanhã comigo - sugeriu Ray quase sem fôlego. - Pode montar o meu cavalo favorito. É muito manso. Não queira montar nenhum cavalo desses hombres que andam por aí. Pode cair e magoar-se. Eles são tão vis e desprezíveis.

- Adorarei ir consigo - respondeu Janey, sonhadora.

Nesse momento o belo cow-boy voltou a atravessar a sala, apressado, de olhar em frente, enquanto Ray lhe gritava.

- Agora depressa, cow-boy. Vai buscar as malas para dentro.

Janey tinha dado alguns passos em frente. O cow-boy rodeou a mesa para evitar encará-la e depois saiu da sala.

- Bem, eu nunca! - exclamou Janey. - Você pensa que eu sou a Medusa. Ele não me viu... Ele simplesmente não me viu!... Quem é ele?

- Aquele é Zoroaster. Um cow-boy da tribo dos Mormons. Belo companheiro, mas tímido para com as mulheres. Ele nunca viu senão raparigas Mormon. Nunca olhará para si!

- Ah, não! - respondeu Janey, com uma ameaça na voz.

- Certamente que não. E nunca lhe fale. Ele morreria positivamente. O ano passado uma rapariga do Leste pediu-lhe para dançar e ele fugiu pela porta fora. E ninguém mais o viu durante uma semana.

-           É um terrível risco a correr, mas esse rapaz precisa de ser modificado - declarou Janey.

Ray encarou-a, por momentos, antes de dizer:

-           Bem, por amor de Deus!

Mohave entrou, com um sorriso manhoso, na cara rosada.

- Ray, mr. Bennet anda à tua procura - disse.

-           Onde? - perguntou Ray, meio duvidoso, meio desgostoso.

- Foi lá para fora e precisa já de ti.

Ray saiu resmungando e Mohave aproximou-se de Janey, com profunda e evidente satisfação.

- Parece-me que a menina vai ser tão popular aqui como o papel mata-moscas - disse ele, significativamente.

- Mohave, depois das moscas se colarem ao papel esforçam-se por fugir. Não foi um cumprimento bonito.

- Olha! Sabia que me chamam Mohave? - perguntou, estupefacto.

Janey fingiu surpresa.

-           Sabia?

Então ficou espantada com a entrada de mais outro cow-boy.

- D-d-d-esculpem-me a-a-migos, o-o-onde está Ray?

Saiu do posto, Tay-Tay e eu gostava que tu não...

- Foi para o i-i-inferno, é que ele foi - interrompeu Tay-Tay.

- Bennet andava à procura dele.

- A ú-ú-última vez que vi Bennet estava ele a pôr o carro debaixo do alpendre.

- Bom. Então ele não deve ter voltado ainda e Ray teve de o procurar.

Janey estava fascinada com o esforço que Tay-Tay fazia ao falar.

-           B-b-b-olas, diria eu! Para ti e para Ray! As vacas são o vosso trabalho e vocês estão ambos, para aqui feitos doidos c-c-c-om esta s-s-s-enhora. V-v-v-ai chover a potes!

Janey virou-se para Mohave.

- Talvez seja m-m-elhor ir... Bem, macacos me mordam, se não estou também a gaguejar!

Neste momento apareceu à porta Diego, que, assumindo uma dramática pose e fixando uns olhos sentimentais em Janey, disse eloquentemente:

- Por último! Senorita mia!

- Falam-se aqui línguas demais para mim - replicou Janey.

- Ora aí vem Diego para nos ajudar. Estava justamente a dizer a miss Endicott como tu sabes montar. E ela está cheia de curiosidade para te ver recolher as vacas.

O olhar de Diego, ardente de orgulho, transformou-se, vagarosamente em olhar de desconfiança; e Tay-Tay olhava fixamente ora para ele, ora para Mohave. O que aconteceu em seguida foi Ray empurrar Diego para dentro da sala e vir atrás dele com passos largos, para trespassar Mohave com olhares ameaçadores.

- Bem, por amor de Deus! Tu estavas mesmo a afastar-me do caminho. A dizeres que Bennet andava à minha procura. Bem, cow-boy, ele não andava.

- Não me acuses de baixos estratagemas - respondeu Mohave, colérico.

- Bennet andava à tua procura. Naturalmente esqueceu-se. É muito distraído, tu bem sabes. Pergunta a Tay-Tay se Bennet não o mandou procurar-te para levares as vacas.

- O o o qu-q-ue d-d-d-d-izes, Mohave - retorquiu Tay-Tay. - B-B-Bennet não me mandou a lado nenhum. Eu v-v-v-im por mim.

- Não tens só a tua língua mais presa desde que viste miss Endicott, Tay-Tay, o teu cérebro também está pior - lamentou Mohave.

Então seguiu-se um silêncio que divertiu enormemente Janey. Que belo tempo ela iria passar! Não iria trocar as voltas ao seu manhoso pai? Mohave virou as costas ao ameaçador Ray. Os outros rapazes avançaram para mais perto de Janey, que pensou ser aconselhável retirar-se mais para o pé da janela. A expectativa do momento foi quebrada pela entrada de Zoroaster, que baloiçava nas mãos dois pares de luvas de box. Atrás dele entrou a criada índia.

-           Miss, o seu quarto está pronto - anunciou ela e retirou-se.

Mas Janey não tinha pressa de a seguir.

Devia ir acontecer ali qualquer coisa, demasiado boa para que ela a não visse.

-           Ora lá estás tu! - gritou Zoroaster, indicando Tay-Tay. Podia ser um Mórmon, mas era certamente agradável olhar para ele, reflectiu Janey.

- O q-q-que é q-q-q-ue q-q-q-queres de mim? - gaguejou Tay-Tay, com rebeldia.

- Chegou a tua hora. Tenho estado à tua espera. E agora podemos decidir - voltou a dizer o carrancudo Mórmon.

- P-p-orquê agora mesmo e não em outra ocasião? - perguntou Tay-Tay.

- Bem - falou Ray. - Creio que um cego podia ver isso. Salta lá para fora, Tay, e apanha as luvas.

Diego mostrou a branca dentadura num sorriso fulgurante.

- Dá antes as luvas a Ray e a Mohave. Eles andam à procura de sarilhos.

- Sou eu que estou à procura de sarilhos e depois de ter ajustado contas com Tay-Tay, desafiarei qualquer de vocês. Compreendem?

- M-m-m-as se eu q-q-q-uiser d-d-d-esistir no m-m-eeio de um round eu não sou capaz de dizer para p-p-p-arares - replicou Tay-Tay.

- Ah, tu estás a planear desistir antes que esta senhora... Bem, qual de vocês quer lutar comigo?

Zoroaster olhava de uns para os outros. Todos eles aparentavam estar distraídos. Janey teve uma inspiração, e ergueu-se radiante do seu lugar ao pé da janela, dizendo:

- Eu, mr. Zoroaster.

A face do cow-boy Mórmon tornou-se mais vermelha do que o seu cabelo. Ficou confundido e lutou claramente para não fugir. Mas o sorriso de Janey prendeu-o. Se ela viu no combate de boxe uma oportunidade para se familiarizar com Zoroaster, ele viu, evidentemente, uma oportunidade para exceder os outros zelosos pretendentes à atenção dela. Desastradamente atirou-lhe um par de luvas.

-           Está bem, miss. Vai dar certamente uma lição a estes hombres. Mas eu vou ter cuidado para não a magoar.

Janey era forte e, por acaso, era a melhor pugilista do seu clube. Fingindo não estar familiarizada com luvas de boxe, pediu que a ajudassem a calçá-las. Todos, excepto Ray, se precipitaram para a ajudar.

Este olhava, de boca aberta e, finalmente, exclamou:

- Bem, por amor de Deus!

- Pronto! Agora, mr. Zoroaster, dê-me algumas indicações, por favor - sugeriu Janey, com um jeito encantador.

-           É fácil, miss - disse ele, estendendo as suas mãos enluvadas. - Conserve um pé para diante e abra com a mão esquerda. Conserve os olhos nas minhas luvas e baixe a cabeça.

Janey fingiu praticar, enquanto Zoroaster a vigiava. Ele não era, claramente, um pugilista científico; e Janey que tinha praticado muito com o instrutor do clube, viu uma boa oportunidade para brincar. Subitamente deixou de representar e atirou-se a Zoroaster, rápida e leve como um gato, vendo imediatamente que podia bater-lhe quando e onde lhe agradasse.

- Bravo, cow-girl. Formidável! - gritou Mohave.

- Isto é que é pô-lo no seu lugar, miss - bradou Ray, com grande alegria.

- B-b-b-ata-lhe por mim - gaguejou Tay-Tay, deliciado.

- Senorita, tu és uma grande pugilista - declarou Diego, dramaticamente.

A estupefacção e o receio de Zoroaster ajudaram a pô-lo mais à mercê de Janey. Esta dançava à volta do paralizado Mormon esmurrando-lhe o belo nariz. Finalmente bateu-lhe elegantemente com a mão esquerda e seguiu com uma direita, tão dura quanto podia. Acertou em cheio no nariz de Zoroaster e quase o derrubou.

Os cow-boys ,em lugar de gritarem de entusiasmo pareceram ficar, de repente, paralisados. Janey, afogueada e arquejante, virou-se para ver o que se passava. Seu pai estava à porta, horrorizado, completamente mudo. Zoroaster fugiu pela porta da frente, seguido pelos seus camaradas, O contentamento de Janey não foi em nada diminuído ao ver a cara de seu pai. Gaiatamente correu para ele, estendendo-lhe as luvas para serem descalçadas.

- Eles não são mesmo uns amores? Adoro-os a todos e principalmente àquele belo diabo ruivo. Oh! Bendito sejas, papá. Vou ficar aqui para sempre!

 

Daquele momento em diante, os acontecimentos multiplicaram-se. Janey quase não podia dar conta deles. Estava a passar os dias mais divertidos da sua vida. E, de vez em quando, verificava como eram inocentes estes divertimentos, comparados com os que ela costumava ter no Leste.

Tinha quebrado o curso normal da vida no posto. Bennet afirmava que a esse respeito se tinha de fazer alguma coisa. Os seus cow-boys andavam malucos. Se se lembravam do trabalho era para faltarem a ele ou para o fazerem mal feito. Quando acontecia que Janey andava a passear a cavalo, arranjavam as desculpas mais ridículas para saírem do rancho. Quando ela estava em casa, todos caíam vítimas das mais variadas indisposições.

Janey viu muito pouco Randolph durante os primeiros dias que passou no posto. De manhã, ele saía sempre antes de ela estar levantada e voltava muito tarde do seu trabalho nas escavações. Encontrava-o, é claro, ao jantar, quando todos se sentavam à longa mesa; e depois na sala de estar, mas nunca a sós. Janey estava completamente segura do modo como ele encarava o seu «flirtar» com os cow-boys.

Não gostava nada da atitude dele e de vez em quando punha-se a pensar na maneira de o castigar.

No final, contudo, ela sentia-se demasiado feliz até para se lembrar das razões do pai ao trazê-la para o deserto. Porém, ainda não tinha analisado as verdadeiras razões da sua felicidade.

Era tudo tão novo. Cavalgava todos os dias, durante horas algumas vezes só, o que era difícil de conseguir - e muitas vezes com seu pai, e com os cow-boys. O tempo estava magnífico; o deserto estranhamente excitante; o céu azul e as nuvens brancas, as cores vivas e as magnificentes formações de parede de rocha, tudo isso tinha algum efeito que lhe custava a compreender.

Quando é que ela tinha estado tão esfomeada e tão cansada ao anoitecer? Ia para a cama muito cedo, porque toda a gente ali fazia o mesmo. E dormia como nunca dormira antes. A sua pele começara a adquirir um lindo tom castanho dourado e estava a engordar. Ambos os actos lhe agradavam secretamente. A vida em sua casa, no Leste, deixara-a pálida e magra. Janey contemplava, com verdadeiro espanto e delícia, a sua própria face sorrindo-lhe no espelho. Uma vez, pôs-se a cismar: «Digo-te que este tal «Deserto Pintado» podia fazer com que todos os Institutos de Beleza abrissem falência».

O pai dissera-lhe, muitas vezes, para irem a cavalo até «Sagi Canyon», onde Randolph andava a fazer escavações. Mas Janey aparentava sempre indiferença pelo que ele dizia. De facto sentia uma certa curiosidade em ver que espécie de trabalho era o dele - o que é que no mundo poderia fazer um jovem preferir à companhia dela, cavar e andar ao pó? Havia, porém, outra razão para ela não querer ir: era porque quanto mais via Philip Randolph e ouvia contar coisas a seu respeito aos cow-boys e a Bennet - que lhe estava sempre a tecer elogios - mais simpatizava com ele e mais ressentida ficava.

Por agora, contudo, os cow-boys eram mais que suficientes para distrair Janey, pois eram uma inesgotável fonte de interesse, divertimento e salutar admiração.

Em dez dias, nem um só dentre eles tinha tentado segurar-lhe na mão ou beijá-la. Janey quase que teria gostado que todos lhe tivessem pegado na mão; e não teria fugido para muito longe, para que a não beijassem. Mas acontecia que, apesar de cada cow-boy estar completamente rendido e prostrado a seus pés, nunca houvera uma alusão a familiaridades, como era natural haver com os rapazes do seu grupo.

Primeiro isto surpreendeu Janey e divertiu-a. Depois procurou modificar esta atitude. Mas ainda não estava ali há duas semanas quando começou a pensar seriamente que se passava qualquer coisa que não tinha suposto possível acontecer com o género «Homo», novos ou velhos, do Leste ou do Oeste.

Janey não se importava de ser forçada a penetrar na introspecção, para se confundir com o problema da juventude moderna. Tinha lido bastante sobre este assunto no Leste. Jornais, revistas, peças, sermões e conferências, filmes, tinham feito um ataque cerrado à nova geração. Tinham mesmo chegado a enjoar Janey. Como era agradável ter saído daquela atmosfera, por algum tempo! Talvez estivesse nisso a razão por que gostava do Oeste. Mas parecia haver qualquer coisa mais, a qual cedo ou tarde teria que encarar.

Uma tarde, Janey voltou do seu passeio a cavalo, mais cedo do que habitualmente, e, portanto, não teve muita pressa para se ir vestir para o jantar. Estava deitada, numa rede, a descansar, quando seu pai e Randolph chegaram a cavalo vindos da direcção oposta. A rede estava oculta debaixo de umas videiras, do lado de fora da janela da sala de estar. Eles não viram Janey e ela estava muito preguiçosa e enlanguescida para os chamar.

Um pouco mais tarde ouviu-os entrar na sala. A janela estava aberta.

-           Janey deve estar a vestir-se - disse Endicott. - Já voltou. Vi lá fora o cavalo dela. Temos tempo para conversar um pouco. Tenho andado com vontade de ter uma conversa consigo.

- Comece. Sinto-me satisfeito por ver que o nosso passeio a cavalo não o fatigou. A propósito, o que pensa do meu Sagi?

-           Belo, mas mudo, como diria Janey. O lugar mais calmo que vi até hoje. Porque é, na realidade, tão silencioso como um túmulo.

- Sim. É um túmulo. É essa a razão por que escavo tanto por ali - respondeu Randolph, com uma gargalhada.

Janey lembrava aquela gargalhada porque muito raramente a ouvia. Era uma gargalhada sã e agradável, e dificilmente se ajustava ao carácter que ele lhe tinha atribuído. Nesse momento teve dois súbitos impulsos, um para os fazer sabedores da sua presença ali, o outro para não fazer nada que os fizesse dar por ela. O segundo impulso foi o mais forte.

- Randolph, sinto uma certa curiosidade a seu respeito. O que é que há de interessante para você nesse trabalho de escavar um túmulo, pergunto eu?

Oh, de certo modo é uma caça ao tesouro. Suponho que também se nasce arqueólogo. Raramente penso na recompensa. Mas, realmente, se eu descobrisse as ruínas pré-históricas, que sei estarem sepultadas por aqui, em qualquer sítio, seria uma grande coisa para mim.

- Está lá dinheiro? - inquiriu o homem de negócios novaiorquino.

Lá directamente, não. Pelo menos não teria dinheiro já. Mas suponho que os artigos e as conferências que fizesse sobre isso poderiam ser convertidas em dinheiro. E depois dar-me-iam prestígio.

- Hum. Bem, o prestígio tem valor para um jovem que está no princípio da sua vida, mas não dá muito pão e manteiga. Você terá um ordenado para juntar à remuneração que vai ter por escrever os artigos e as conferências?

- Pode chamar-lhe assim, se quiser. Mas além do pão e manteiga na sua maneira mais simples, ele não comprará meias para uma senhora, eu sei - volveu Randolph, e riu outra vez, com a mesma bonita gargalhada.

Assim é que é falar - respondeu Endicott, animadamente. - A senhora, está claro, sendo Janey... Randolph, vamos ser bons amigos. Confidencialmente, você já pediu à minha filha que casasse consigo?

- Por Deus, não! - exclamou Randolph.

- Bem, isso deixa-me satisfeito. É bom para um jovem manter certa individualidade. Agrada-me que você seja diferente dos outros... Posso perguntar-lhe, desculpe a minha insistência. A terrível responsabilidade de ser o pai desta rapariga, você sabe; você não está apaixonado por ela?

Houve um longo silêncio durante o qual o coração de Janey bateu mais apressadamente e os seus ouvidos zumbiram. Nunca tinha realmente estado segura de Randolph. Talvez esse fosse o seu maior encanto.

-           Sim, Mr. Endicott - replicou o arqueólogo, com constrangimento. - Estive apaixonado por Janey. Não, contudo, como esses jovens do Leste o estão. Mas terrível e profundamente apaixonado.

- Óptimo!... Oh, desculpe, Phil - replicou Endicott. - Quero dizer que era isso o que eu pensava. Essa é a razão por que eu gostei de si. Esses jovens vadios andam a brincar ao amor. Eles enojam-me. Entre nós, tenho uma oculta suspeita de que eles também enojam Janey... Agora, Phil, aqui está a questão vital. Isso foi tudo no passado?

Janey descobriu, de repente, que estava a tremer e pensou que era pela vergonha de a poderem descobrir ali, a escutar. Mas agora era impossível chamar! E todavia ela podia ainda ter-se escapado. Mas não o fez.

-           Não. Nunca me libertei disso. E agora ainda é pior - disse Randolph, não sem uma trágica nota na voz.

- Phil! Pelos céus, você é um camarada leal. Surpreendeu-o que eu me sinta satisfeito?

Obrigado, Mr. Endicott. Mas receio estar mais do que surpreendido.

Olhe lá, Phil, você deve estar preparado para choques, não só da parte de Janey, mas também de mim. Sou pai dela, você sabe... Escute, trouxe Janey para o seu deserto com um intento deliberadamente descarado. Casá-la consigo e livrá-la da matilha de lobos que anda atrás dela... E ao mesmo tempo, está claro, fazê-los felizes aos dois!

Meu Deus! - exclamou Randolph. Ele não foi o único a ficar espantado. Janey na sua excitação quase caiu da rede.

É uma ideia honesta e não estou envergonhado de a ter tido - continuou Endicott, tornando-se grave.

- Mas, Mr. Endicott, honra-me. O senhor é extremamente amável, mas perdeu completamente a cabeça.

- Talvez. Não me importo. É esta a minha intenção. Amo Janey e irei até qualquer extremo para a salvar. Além disso, gosto bastante de si. O seu pai foi o meu mais querido amigo na escola e depois até que morreu. Ficaria muito feliz se ajudasse a sua roda da fortuna.

- Salve-a! - exclamou Randolph.

- Por amor de Deus, Randolph, não me diga que você pensa que é tarde demais - exclamou Endicott, subitamente aflito.

Enquanto a resposta não veio, o coração de Janey manteve-se como se só esperasse pela resposta de Randolph. O que é que aquele doido pensaria? Estava quase doente de cólera e medo, quando Randolph explodiu:

- Endicott, você está maluco. Eu... eu queria dizer... o que é que você quer significar com esse salvá-la?

Quero significar muita coisa, meu rapaz e não passe isto por alto... Diga-me com franqueza, Randolph. E é um assunto muito sério para todos nós. Você pensa que Janey ainda é uma boa rapariga?

Não penso. Tenho a certeza - respondeu Randolph rigidamente. - A sua pergunta é um insulto para ela, Mr. Endicott.

Julgo que qualquer pergunta em relação a raparigas desta idade o seja - continuou Endicott, seriamente. - Dei-lhe crédito por você ser um rapaz esperto e reflectido, com todas as suas propensões para escavar túmulos. Eu vi quanto você desaprovava a conduta de Janey; os seus amigos e hábitos.

- Sim, isso - deploravelmente é verdade. Mas, contudo ...

- O amor é cego, meu filho - interrompeu Endicott. - Você pensa melhor de Janey do que ela é digna. Mesmo assim estou satisfeito. Isso ajudar-nos-á. Olho-o como uma tábua de salvação.

- Mr. Endicott, eu... eu não sei o que dizer. Estou embaraçado.

Bem, atrevo-me a dizer que tem razão para o estar. Mas de qualquer maneira oiça-me pacientemente. Quer?

- Concerteza.

- Você tem razão para ter ficado chocado com a minha pergunta a respeito de Janey. Mas não culpo ninguém por ter má opinião acerca das raparigas modernas. Eu também a tenho... Para ser breve, estas opiniões surgem-nos constantemente, não sei se me compreende. A geração de Janey está para além do meu entendimento. Criaram qualquer coisa de novo. Eliminaram o certo e o errado. Não têm respeito pelos pais, e, tanto quanto eu posso observar, muito pouca afeição. Têm um rancor positivo a todas as restrições. Não estão para ser reprimidos ou controlados. Não têm fé nos nossos velhos padrões. Em regra, não têm religião. Usam vestidos indecentes, ou antes muito pouca roupa. Dançam toda a noite, afogam-se em álcool e carícias, indiscriminadamente, e a maior parte deles ultrapassam os limites.

- Mr. Endicott! - queixou-se Randolph, sentindo qualquer coisa ruir com o desabafo do outro.

-           Phil, estou a falar-lhe com sinceridade. Esta não é a minha teoria. Eu sei. Descrevi esta multidão de jovens, com as mais negras tintas. Não tenho de todo paciência para as mães e pais inconscientes, que dizem que os jovens têm razão. Porque eles não têm razão. São uma multidão dissoluta e a Nação, que depende deles, e que os não pode modificar, está perdida. Esses espertalhões, que dizem que não há uma imoralidade flagrante, estão longe da verdade. Aqueles que dizem que as raparigas de hoje não diferem das de ontem, estão simplesmente cegos. Elas são diferentes e não pretendo acusar a emancipação da mulher, desde a guerra. Fui sempre pelo sufrágio feminino... Bem, não me importo com as causas, embora, nós os pais, tenhamos culpas. Tenho feito o que posso por Janey e dói-me pensar que talvez tenha falhado. Sou honesto ao acreditar que não tenho sido um mau exemplo para a minha filha. Mas às vezes, Janey arrasta-me para um beco sem saída... Refiro-me aos factos de que tenho estado a falar-lhe. Queria ver Janey casada com um bom rapaz, sério e trabalhador. Janey diz que isso já não existe... A mãe dela era como Janey, apenas não tão bonita. Era voluntariosa, inteligente, desnorteante. Mas não tinha vícios... Compreendo que Janey seja tão fascinante quanto o pode ser uma rapariga. Talvez o seja mais até, por causa de toda esta complexidade dos tempos modernos. Ela sabe-o. Não lhe posso chamar vaidosa. E não é verdadeiramente frívola. É mais uma rapariga moderna, alegre e sem piedade, que tem prazer em conviver com homens. Se ouve as amigas falarem de um homem que não está a cair por ela, como elas dizem, Janey grita: «Levem-me até ele!». A despeito de tudo isto eu sinto e espero que Janey ainda possa ser salva. Senhor, imagina ela a ouvir-me dizer isto! Quanto a mim, se ela continuar com a sua multidão de admiradores, nunca fará coisa nenhuma. Provavelmente divorciar-se-á de um marido após outro.

A ideia não me agrada. A mãe de Janey deixou-lhe qualquer coisa que ela terá de dirigir dentro de um ano. E, depois, está claro, ficará com tudo o que eu possuo, o que ainda é considerável. Estas perspectivas e a sua beleza fazem-na um alvo para os homens com quem está em contacto, e o seu nome é uma atracção. Tenho tentado conservá-la afastada dos piores. Mas é impossível.

- Impossível, porquê? - interrompeu, tenso, Philip.

- Porque quando digo a Janey que certo rapaz não é de confiança, só consigo estimular-lhe o interesse. Diz-me: «papá, tu pensas que sabes muito, mas eu tenho que ver por mim», e pode estar certo que ela vai verificar.

- Então Janey não lhe obedece? - perguntou Randolph.

- Obedecer! - inquiriu Endicott, surpreso. - Mas claro que não.

- Então, realmente, tem que se culpar pelo que ela é.

- Ah! Gostava de o ver a si ou a qualquer outro fazer Janey obedecer.

- Eu podia e faria - declarou Randolph.

- Meu querido arqueólogo do Arizona! Posso perguntar-lhe como? - tornou Endicott, não sem uma pontinha de ironia e divertimento.

- Deitaria essa senhora nos meus joelhos e dar-lhe-ia um bom par de açoites.

- Bom Deus! Você não sabe o que está a dizer... Porque se eu infligisse a Janey essa vergonha, ela... ela... bem o que é que ela faria? Deitar abaixo o sítio onde isso acontecesse seria o menos...

E no entanto, oh, como eu gostaria de poder fazer essa coisa tão simples!

Mr. Endicott, a sua filha é uma criança estragada com mimos - disse Randolph, num tom que quase fez gritar Janey.

Estragada com mimos, sim, e mais alguma coisa - concordou, desanimado, Endicott. - Mas mesmo assim ela é adorável. Já deu por isso, Phil?

Sim, creio que sim - respondeu ele, secamente.

- Bem, de qualquer maneira estamos de acordo em muitos pontos. Podemos destronar os seus defeitos conhecendo-os assim como a sua inteligência, sinceridade e outras virtudes que tem em comum com os jovens de hoje. Pode ser que eles tenham avançado demasiado para que nós, os da outra geração, os compreendamos. Pode ser que alguma coisa de maravilhoso venha de tal paradoxo. Mas eu não vejo e o meu problema é deter a doida carreira de Janey... Ah! Ah!

Se me permite aconselhá-lo, Mr. Endicott, o senhor está a querer realizar uma tarefa perfeitamente impossível - disse Randolph.

Não! Porque, algumas vezes sou bastante louco para acreditar que Janey fará tudo o que eu lhe pedir, porque me ama. Eu sei que ela gosta de mim. Mas ponho-lhe sempre as coisas de uma maneira que a faz ficar furiosa. Portanto tenho de disfarçar... Esta é a minha última cartada, o meu trunfo.

- Esta? - perguntou Randolph, com curiosidade.

- Este passeio e o plano que decidi pôr em prática. Aqui está ele! Vou casar Janey consigo.

Houve um silêncio absoluto. Janey calculou o choque que isto deveria ter sido para Randolph. Para ela não tinha sido menor.

- Agora, agora sei do que se trata - disse, finalmente, Randolph, com voz estranha.

- O que é?

- O senhor está realmente fora de si!

- Bem, talvez - volveu Endicott, de bom humor. - Mas continuo na minha. Tenho o bom senso suficiente para compreender que você, primeiramente indignado, recusará tal proposta. Não é verdade?

- Certamente - replicou, estupefacto, Randolph.

- Randolph, nenhum rapaz que conheça Janey e a ame poderia recusar, se não fosse por achar a proposta absurda... ou que ela não se importasse nada com ele?

- Exactamente, é o meu caso.

- O único ponto fraco da minha proposta é a esperança, o sonho de que Janey o possa amar um dia. Você deve lembrar-se de que eu a conheço como conhecia a mãe dela. Janey também é capaz das coisas mais extraordinárias.

- Seria na verdade extraordinário da parte dela querer. Oh, Endicott, a ideia é ridícula - tornou Randolph, começando a falar com amargura e acabando colérico.

-           Oiça-me. Se você não me ouvir acabarei por pensar que é exactamente como todos os da sua geração, também... Baseio as minhas esperanças nisto.

Janey gosta de si, respeita-o. Aproveita todas as oportunidades para troçar de si, mas para lá disso há qualquer coisa de mais profundo. É pelo menos profundo bastante para a impedir de juntar mais o seu troféu à colecção dela... Desculpe-me, Phil, por lhe dizer que mesmo qualquer rapariga livre do poder do amor aprenderia a importar-se consigo - debaixo de circunstâncias favoráveis.

- Quais são elas? - interrogou o arqueólogo.

- Não importa detalhes. Mas quero dizer as coisas que fazem um homem. Juro-lhe que não acredito que Janey tenha já encontrado um verdadeiro homem... Bem, continuemos. Eu salvo a minha consciência neste caso, porque acredito que ela se pode interessar por você. E o meu plano é simplesmente provocar em Janey um choque terrível e então a natureza, com um tão favorável começo, fará o resto.

- Acredite-me, terá que ser um choque terrível, com certeza - disse Randolph, com outra das suas estrepitosas gargalhadas.

- Creia que é. E é simplesmente este. Seja tão simpático quanto dócil. Então, justamente no momento oportuno, atire-a para cima de um cavalo e leve-a para uma das suas ruínas no deserto. Rapte-a! Conserve-a fora daqui por um tempo, assuste-a até ela ficar meio-morta, deixe-a saber o que é sentir-se desconfortável, esfomeada, sem auxílio. Então traga-a de volta. Ela terá que casar consigo. Insistirei nisso... Então seremos todos felizes.

- Mr. Endicott, a única coisa ajuizada que o senhor disse foi o epíteto que aplicou a si próprio há alguns momentos.

É uma oportunidade maravilhosa. Você é ambicioso. Vai fazer isto.

- Não.

Dar-lhe-ei um dote substancial. Ficará independente para o resto da sua vida. Poderá continuar com os seus trabalhos de arqueologia, apenas por amor a ela. Você...

- Não!

- Agora, Phil, posso aplicar-lhe o mesmo epíteto a si. Posso perguntar-lhe porque é que recusa?

- O senhor... Eu... Oh, que Inferno! É porque, Endicott, eu amo Janey realmente. Não posso pensar em mim, num tal caso. Se pensasse seria... seria um fraco... Porque Janey detestar-me-ia.

- Não esteja tão convencido disso - replicou, prudentemente, Endicott. - Nunca se deve afirmar nada a respeito de uma mulher. É um jogo, está claro. Mas você tem a superioridade. Seja um bom desportista, Phil. Mesmo que perca, terá ganho uma experiência que lembrará toda a vida.

- Mr. Endicott, o senhor está a querer tirar vantagens da natureza humana - replicou Randolph, com agitação.

Janey podia ouvi-lo passear pelo aposento e sentiu pena dele. Agradava-lhe que ele tivesse recusado. Mas conhecia o pai e os seus implacáveis meios, e sustinha a respiração.

- Certamente que estou - concordou Endicott, ganhando calor. - Phil, encare o assunto deste modo. Consinta por amor de Janey.

- Mas, homem, não posso acreditar que essa maravilhosa rapariga esteja a caminhar para o inferno. Não posso.

- Naturalmente. Você está apaixonado. Para si ela é um anjo. Está certo. Pense assim, se quiser, admita que ela é adorável. Acaba de dizer que ela é maravilhosa. Sabe como ela é bela. Ora bem, aqui está a oportunidade de ela ser sua. Talvez seja uma oportunidade entre mil. Lembre-se de que lhe fará bem em qualquer dos casos. E terá essa oportunidade em um milhão. A mãe dela era a mulher mais encantadora que eu conheci. Porque, Phil, se Janey o amasse... você entraria no reino dos céus. E ela também.

- Meu Deus! - exclamou o rapaz.

- Eu sou o pai dela. Adoro-a. E estou a mendigar-lhe o você fazer isto.

- Está bem. Eu... farei isso - retorquiu Randolph com uma voz estranha e sufocada. - Será a minha ruína. Mas não posso resistir... Apenas, compreenda, não posso aceitar dinheiro.

- O facto é que não pensei que você aceitasse - respondeu Endicott, rapidamente. - E a sua recusa mais me convence de que é o homem de que eu preciso. Vá, aperte-me a mão, Phil. Ficar-lhe-ei grato para sempre, quer você ganhe ou perca.

Janey ouviu-o levantar-se e atravessar a sala. Tirando vantagem disto deslizou da rede e correu para as traseiras da casa, e entrando pelo longo corredor chegou ao quarto num estado de excitação tal que mal podia respirar. Nunca tinha estado assim em toda a sua vida. Fechando a porta à chave, encostou-se a ela, com a mão sobre o peito, arquejante,

- Se isto não é demais! - exclamou e sucumbiu a uma série de emoções contraditórias, entre as quais uma raiva como nunca tinha sentido, assumiu grandes proporções.

Não muito tempo depois, o pai bateu-lhe à porta. Janey não respondeu. Ele bateu outra vez e chamou ansioso.

- Janey?

- Sim.

- O jantar está pronto. Estamos à tua espera.

- Não quero jantar - respondeu ela.

- Porquê, que se passa?

- Estou com dores -de cabeça.

- Dores de cabeça!... Tu? Nunca me lembro de as teres tido.

Talvez seja dor de dentes.

- Oh! - volveu ele e retirou-se discretamente.

quando a sua cólera finalmente acalmou, de modo a poder pensar, Janey encontrou-se profundamente ofendida. As coisas tinham-se passado de maneira bem triste, na verdade, para seu pai ir a tais extremos. Mas seriam assim tão más? Que perfeito absurdo! Ela nunca tinha feito nada mal. Ainda que a consciência desperta se recusasse a aceitar a sua indignada certeza. Sabia que era o orgulho e a alegria da vida de seu pai. Era um pai duro na verdade; contudo não podia dizer seriamente que ele a tivesse abandonado ou lhe tivesse dado um mau exemplo sequer. Ele era simplesmente obstinado e demasiado ocupado com os negócios. Janey, contudo, esquivava-se por agora a alguns pensamentos sérios, relacionados com os seus amigos e com as suas relações no Leste. Eram tão boas como quaisquer outras.

Randolph! Podia vencer a sua vergonha e ressentimento o bastante para ter pena dele. Que probabilidade tinha ele perante seu pai, especialmente se estava genuinamente atraído por ela! Janey ruborizou-se na solidão do seu quarto. Randolph tinha salvo o seu carácter, na sua consideração, por ter desprezado as opiniões de seu pai, por ter resistido aos ataques subtis dele, por ter recusado qualquer consideração sobre lucros materiais nas suas ultrajantes propostas.

Então Janey lembrou-se do que Randolph tinha dito acerca de lhe bater. Numa fúria súbita levantou-se e começou a passear pelo pequeno quarto. O desgosto, o desprezo, a estupefacção, o orgulho e a ira, tudo isso passou pela sua cabeça. Que insulto atroz! Ele tinha estado a falar a sério. Falara como se ela fosse uma criança de nove anos. As suas faces queimavam. Recusou, na veemência do momento, responder às dúvidas que lhe martelavam os ouvidos.

- Oh, não quero fazer nada a Philip Randolph! - disse ela, sem fôlego. E ao dizer isto, olhou para a sua cara no espelho. Quando é que tinha estado como agora? Ainda outro dia havia imaginado que tinha um olhar cansado e aborrecido.

Pelo menos ficou reconhecida a Randolph pelo brilho que agora havia nele.

Centenas de pensamentos giravam, e turbilhonavam na sua cabeça. Um deles era fugir de seu pai e castigá-lo desse modo. Um outro era passar a ser na verdade aquilo que ele receava que ela fosse, ou pudesse vir a ser. O primeiro parecia-lhe demasiado fácil e o segundo indigno dela. Aguilhoava-a agudamente o ser compelida a

provar-lhe como realmente era diferente. Mas, primeiro, a vingança! Queria mostrar-lhes. Representaria na infame conspiração que eles tinham tramado. Caminharia direita à pequena armadilha deles. Então - assustaria o seu inteligente pai até o pôr fora da razão. Quanto a Randolph! Reduzi-lo-ia a um estado tão deplorável de paixão que ele quereria morrer. Seria dez mil vezes ela própria e todas as coisas mais que pudesse dar a si mesma. Ajudá-lo-ia no pequeno plano fazendo-o casar-se com ela; e então, quando ele e seu pai estivessem bem no topo, determinada e ridiculamente seguros dela e da sua chamada salvação, anunciar-lhes-ia calmamente que conhecia todo o plano desde há muito. Desmascará-los-ia, iria para casa e divorciar-se-ia de Randolph.

Na manhã seguinte Janey viu Randolph e seu pai saírem a cavalo, evidentemente satisfeitos. Então tarde foi tomar o pequeno almoço, achando necessário começar já a representar para a solícita mrs. Bennet. A ajuizar pelo seu belo começo, de qualquer modo teria de ser uma actriz brilhante. Devia ter desenvolvido as suas qualidades histriónicas e teria feito carreira no palco.

Nessa manhã não foi andar a cavalo. Parte do tempo passou-o no seu quarto e outra parte passeando à sombra dos algodoeiros.

Depois do almoço tentou ler. Mas todos os livros e revistas que tinha, pareciam cheios do humor ou da tragédia da geração mais moderna. Um após outro foi-os atirando violentamente para o chão.

- Este assunto está-se a tornar demasiadamente sério - exclamou.

Todos os pregadores, editores, médicos, filósofos explicavam como os jovens eram horríveis ou ainda mal compreendidos ou abandonados ao seu triste destino por pais que só se importavam com o dinheiro. Mesmo os rapazes e raparigas das escolas, escreviam acerca disso. Alguma coisa estava errada em qualquer parte; e enquanto este pensamento lhe matraqueava o cérebro, Janey achou-se a procurar um cigarro. Com súbito mau génio atirou a pequena caixa de cigarros contra a parede. Teria de deixar de fumar - o que não significava nada para ela. Podia deixar tudo. Lembrou-se, contudo, que de acordo com o seu plano de vingança, para com seu pai e Randolph, devia fumar como uma chaminé. Teve, portanto, a maçada de apanhar os cigarros, ainda que acabasse por não fumar nenhum, naquela ocasião.

A tarde declinou lentamente. Tinha sido um dia transtornado para Janey. Tinha mudado de opinião uma centena de vezes, como se fosse um catavento. Mas a impressão mais predominante era a injúria que tinha sido feita ao seu orgulho.

Nunca tão depressa ela esqueceria essa ofensa. Ainda não compreendia justamente o porquê e como ela tinha sido tão mortalmente ofendida, mas adivinhava que eventualmente o compreenderia.

Pela primeira vez, desde há muitos anos, Janey sentiu a falta da mãe. Era ainda tão auto-suficiente quanto supusera? Certamente que não porque lutara durante uma hora contra estranhos sintomas e acabara por sucumbir a um bom e antiquado ataque de choro.

 

Naquela tarde, um pouco antes da hora da ceia, quando Randolph passeava na sala de estar, Janey decidiu ir para lá. Vestiu um vestido que, calculou, iria deslumbrá-lo. Percebeu que ele tinha dificuldade em ocultar o seu desânimo. O dia de concentração mental, sem os exercícios habituais e o contacto com o ar livre, deixara-a pálida e com olheiras. Janey pensou que poderia encarregar-se do resto.

- Lamento que tenha estado indisposta - disse Randolph, com solicitude. - Vejo que não saiu em todo o dia. Foi pena.

- Foi um dia muito solitário, terrível - respondeu Janey, pateticamente.

Espero que não tenha estado muito doente. Você estava tão... tão maravilhosa ontem. Mas agora está pálida. Não há dúvida que tem exagerado os seus passeios a cavalo, com os cow-boys.

Receio não ser tão forte quanto o papá pensa. Mas não estou realmente cansada, isto é, fisicamente.

Não? Então o que tem?

Janey fitou Randolph, com uns olhos muito grandes e melancólicos.

- Estou a morrer com saudades de casa. Este sítio é um autêntico cemitério. É uma ruína. Se você cavasse por aqui encontrava milhões de ossos.

- Morto!... Oh, sim, na verdade é bastante calmo para uma rapariga habituada a Nova Iorque - volveu ele, completamente desapontado. - Quase tinha esperado que você gostasse disto por uns tempos, e, realmente, parecia estar a divertir-se. Sei que o seu pai pensa que você está a passar os melhores dias da sua vida.

E estava. Mas não durou muito. Não acontece nada. Imaginava que houvesse qualquer coisa de excitante. Nem sequer apanhei o coice de um cavalo - lamentou Janey.

Tome cuidado com isso - disse Randolph muito sério. - Bennet tem providenciado para que você só monte cavalos dóceis. Ouvi-o prevenir os cow-boys a esse respeito. Nada de lhe pregarem as habituais partidas!

Mr. Randolph - explicou docemente Janey. - Não quero dizer nenhum desses coices. Gostaria que um cavalo me levasse daqui, já que não há um homem que o faça.

Janey ficou suavemente inocente e aparentemente inconsciente do pequeno sobressalto e rápido olhar de Randolph. Iria divertir-se mais do que pensava.

-           Eu... Eu suponho que os cow-boys e todos os do Oeste, não a podem perceber, Miss Janey - volveu Randolph.

- Eles esforçam-se por a divertir, por tomar conta em si. Mas nunca sonharam... de... como...

- Que uma rapariga de Nova Iorque precise de algum estímulo - interrompeu Janey. - Oh, estou a ver. Esses simpáticos e silenciosos cow-boys! E eu a pensar que eles iam ser uns companheiros normais. Mas, sabe, Mr. Randolph, nem um só deles tentou beijar-me!

- Na verdade! Por aquilo que conheço deles, penso que seria a última coisa que eles tentariam. São cavalheiros, Miss Endicott - disse Randolph, ligeiramente indignado.

-           O que é que isso tem a ver com o beijar uma rapariga? - retorquiu Janey, contendo, dificilmente, o riso.

- Tinha graça ver a maneira como eles o fariam. E no caso desse belo Zoroaster, bem, eu não diria que não.

Randolph fitava-a, com incredulidade, e com um ar de infinita reprovação.

- Além de si, Mr. Zoroaster é o único homem simpático destes sítios. E como você também não parece dar pela minha presença, eu quase teria acolhido bem uma pequena atenção da parte dele.

- Miss Endicott! - exclamou Randolph. - Está a falar gratuitamente. Tem sido a senhora que não tem dado pela minha presença.

-           O que é que você esperava? - perguntou, com desnorteada confusão, Janey. - Posso namoriscar com um cow-boy. Mas não podia... bem... atravessar-me no caminho de um homem da sua inteligência e cultura.

Tenho estado sempre à espera que você me levasse a passear. Que me mostrasse as suas ruínas e alguns lugares interessantes. Ou talvez que me distraísse à noite, ou pelo menos que fizesse qualquer coisa para matar esta terrível monotonia. Você, em Nova Iorque, parecia gostar de mim. Provavelmente o papá disse-lhe qualquer coisa, fez intrigas.

Randolph estava quase reduzido a um estado de não poder falar. Tinha corado, e brilhava nos seus olhos uma luz que os fazia mais ardentes e sedutores. Nesta altura entrou Mr. Endicott. Parecia mais brilhante e animado do que de costume, mas perante o olhar de Janey, o seu sorriso desapareceu.

Janey, minha querida, tu ainda não estás bem - lamentou ele, beijando-a. - Esqueci-me de que tinhas tido uma dor de cabeça ou coisa parecida.

Papá, tenho estado justamente a lamentar-me a Phil. Mas ele não se importa muito com o eu estar doente ou saudosa de casa, ou qualquer outra coisa.

Phil! Saudosa de casa? Mas, porquê, Janey? - exclamou Mr. Endicott completamente surpreendido.

Papá, queres levar-me para casa? - perguntou tristemente.

- Janey!

Não me olhes assim. O que é que pensas? Trouxeste-me para aqui, para este buraco morto. Nada acontece. Tinhas dito que o Phil iria mostrar-me o que nos rodeia.

Não disse nada disso - respondeu o pai, corando ligeiramente.

- Oh, se não foi isso; disseste uma coisa muito parecida - replicou Janey aereamente. - Mas como tens visto, ele tem-me evitado estudadamente, como se eu fosse peste. Tem-me deixado à mercê destes cow-boys.

Estou certo de que há aí um mal entendido - volveu Mr. Endicott, entre entusiasmado e duvidoso.

Certamente que há - acrescentou, enfaticamente, Randolph. - E espero que não seja tarde demais para que eu o desfaça.

Receio que sim - disse Janey, com os olhos pregados nele - De outra maneira para que vos estaria eu a falar nisto?

Disparate - gritou-lhe o pai. - Janey, tu deves estar fora de ti, fraca ou qualquer coisa.

Papá, tens de te convencer que eu não sou um cavalo ou uma vaca e tenho uma vontade doida de comer uma salada de frutas ou uma lagosta. - De súbito bateu as palmas. - Tive uma ideia. Perfeitamente deliciosa. Deixas-me mandar vir Bert?

- O quê? Esse último suspiro da família Durland?

Papá, passaria um tempo esplêndido percorrendo com ele os arredores a cavalo!

Hum! Não acredito. Tu não sabes o que queres.

Por favor, papá. Bert pelo menos divertir-me-ia imenso.

- Ele divertia-te. E nós também. Mas não, Janey. Não posso consentir isso - declarou Endicott.

- Muito bem, pai - concordou Janey. Ela nunca lhe chamava pai excepto em ocasiões como aquela. - Fiz o possível para lhe agradar. As consequências cairão sobre a sua cabeça.

Endicott gemeu, lançou a Janey um olhar desconcertado e caminhou até à porta aberta para ver o resplendor do crepúsculo. Randolph estava perturbado. Janey tinha a certeza de que a sua nova conduta tinha produzido efeitos. Nenhum homem podia resistir a tão subtil lisonja.

- Miss Janey se você... se eu... se há um malentendido... deixe-me corrigi-lo - começou Randolph com uma sinceridade que fez Janey sentir-se infame. - Francamente, eu... eu não pensava que você se pudesse importar alguma coisa com o meu trabalho, ou com as ruínas... ou mesmo comigo. Portanto nunca a convidei. Lembre-se que tentei interessá-la pelo deserto. Na verdade há imensa coisa aqui para a interessar... se você as vir. E se nós fôssemos amanhã passear a cavalo?

Janey pousou uns tristes olhos na face fervorosa dele.

- Não, Phil. Já lhe disse, é demasiado tarde. Você nunca teria pensado nisso se eu não me quisesse ir embora. Lamento mas não posso aceitar atenções instigadas por mim.

- Está a ser pelo menos grosseira - acrescentou Randolph, vexado e magoado. - Quase não tem olhado para mim desde que chegou. E agora lamenta-se da minha... da minha negligência. Digo-lhe que acusar-me de indiferença é absolutamente ridículo.

Nesse momento a criadita índia chamou-os para cearem.

Quando Endicott os seguiu e viu a expressão de Randolph, levantou as mãos e riu gostosamente. Janey percebeu-o. Era a volta do seu bom humor e o desespero de nada conseguir fazer dela. A sua alegria, contudo, não contagiou Randolph, que apenas disse uma ou outra palavra, quase não comeu e depressa se despediu, desculpando-se.

- Dize, querida, que fizeste a Phil? - inquiriu Endicott, naturalmente.

- Nada.

-           O que quer dizer muita coisa. Bem, conta lá.

- Fiz-lhe saber que gostava muito dele, que a sua indiferença me tem ferido profundamente e que agora...

- Ah! Estou a ver. Agora, na linguagem da tua encantadora multidão, não há nada a fazer - interrompeu o pai. - Janey, minha querida, se eu fosse o Phil tinha ficado encorajado. Lembras-me a tua mãe. Quando eu estava mais desesperado é que as minhas probabilidades eram mais brilhantes. O pior é que eu o não sabia.

- Papá, eu gostava do Phil - murmurou Janey, sonhadora.

É muito mau que já não gostes... O que vais fazer amanhã?

Talvez me sinta suficientemente bem disposta para andar um pouco a cavalo.

- Óptimo. Eu vou de carro a Flagerstown. Deverei estar de volta antes do anoitecer, segundo penso. Tenho de enviar umas cartas e telegramas bastante importantes.

Não me deixas telegrafar a Bert Durland? - perguntou Janey.

Janey, não me ponhas sempre em desvantagem - volveu Endicott, com impaciência. - Tu sabes que te deixo fazer tudo - se me convences que te é necessário. Mas, querida, tu sabes que Durland viria incomodar-te mortalmente. Sê honesta.

Suspeito que ele na verdade podia maçar-me depois de cá estar - reconheceu Janey francamente. - Mas papá, pensa precisamente no divertimento que os cow-boys iriam ter com ele. E Phil ficaria completamente furioso!

Ah! Tu o disseste, minha filha - declarou Endicott, batendo as mãos. - Eu bem o desconfiava... Bem, Janey, tens que desculpar-me. Tenho de passar o resto do serão a escrever. Tu podes ir passar uma hora tranquila e encantadora a ler.

Uma hora! Não posso ir para a cama tão cedo.

Janey, estás perfeitamente encantadora, arrebatadora -... bem, indecente com esse finíssimo vestido branco. Ele faria um lenço de primeira ordem para um desses homens típicos do Oeste. Mas acho que é desperdiçado aqui neste deserto.

Sim, tenho receio que o meu desejo de agradar a Phil se tenha desperdiçado - volveu Janey. - Os homens não prestam. Não se lhes consegue agradar.

Talvez a emancipação das mulheres os tenha aborrecido - notou, maliciosamente, Endicott.

Janey estava com curiosidade de ver se Randolph voltaria para a sala.

Esperava que não voltasse, porque lhe parecia que ele lhe estava a revelar algo de diferente, do que estava habituada a ver, em reacções masculinas. Conversou com os Bennets a respeito dos cow-boys e de Randolph, aprendendo cada vez mais para seu divertimento e interesse. Eles viam no arqueólogo uma pessoa de família e estavam imensamente orgulhosos do seu trabalho. Pelo entusiasmo com que falavam dele parecia ser uma autêntica caça ao ouro. Janey começou a colher algumas indicações da importância da descoberta de Randolph, do «pueblo» que os cientistas pretendiam ter existido ali havia séculos. E começou a desejar que ele obtivesse sucesso.

Randolph não voltou a aparecer e os Bennets retiraram-se cedo. Janey ficou só com os seus pensamentos, o que ela achou agradável. Depressa foi para o quarto e deitou-se. Embora não tivesse admitido isso perante o pai, a calma da noite, o sentir-se tão confortável debaixo dos cobertores de lã e a escuridão, agradaram-lhe fortemente.

Que poucas palavras e olhares tinham sido necessários para aniquilar Philip Randolph! Se Janey não estivesse tão ofendida, a consciência devia acusá-la. Bem fundo no seu ser existia um grande respeito pela honestidade e pela simplicidade. A ideia que tinha dado a Randolph - de que ela tinha esperado e desejado algumas pequenas atenções da parte dele - tinha-o deitado por terra completamente. Apesar de tudo não fora uma mistificação. Ela tinha esperado mais do que isso. Havia qualquer coisa de quente e doce no pensamento de ele se interessar por si, daquela maneira. Janey acreditava que qualquer mulher verdadeiramente mulher, do presente ou do futuro, se sentiria lisonjeada ao atrair o amor honesto de um homem. Isso era próprio da raça. O progresso da raça para um nível mais elevado dependia disso. Jany fez a observação mental de que o mundo não tinha progredido muito ultimamente.

Na manhã seguinte tornou a atrasar-se para o pequeno almoço propositadamente para não encontrar nem Randolph nem o pai. Janey envergou o seu trajo de montar, levando horas a vestir-se.

Depois do pequeno almoço o único cow-boy que andava pelos currais era Ray.

- Bom dia - cumprimentou ele. - Quando volta a viver? Nós, os rapazes, já pensávamos que tinha morrido.

Eu? Nunca deixo ninguém cansar-se de mim - respondeu. - Pode-me selar o «Patter»?

Creio que sim, mas não vejo para quê. Esse cavalo não é bom. Tem mau olhar quando rola os olhos. Agora o meu pequeno russo...

Ray, vocês rapazes não me enganam a respeito dos cavalos. São todos bons. Por favor sele-me o «Patter».

Enquanto Ray foi buscar o cavalo, Janey passeou de um lado para o outro, no Posto, que era sempre e cada vez mais interessante para ela. Bennet estava a vender provisões aos índios. Janey gostava de ouvir as vozes deles, baixas e estranhas. Um dos índios estava francamente admirado com ela. Era um indivíduo alto, esguio, desconjuntado, que vestia um fato de bombasina e botas de pele de gamo, tinha um cinto ornamentado a prata, com uma enorme fivela, uma camisa aveludada, cor de granada, e um «sombrero» preto com uma fita brilhante e entrançada. Tinha uma cara magra como um falcão, morena e limpa, e olhos negros muito penetrantes. Janey tinha sido aconselhada para não aparentar interessar-se pelos homens índios -porque eles interpretavam mal esse interesse e eram conhecidos por já terem pregado grandes sustos às mulheres do Leste. Como habitualmente, Janey não ligou ao conselho.

Reparou que ao deixar o Posto, o índio saiu de lá para a ver. Janey pensou que se Phil Randolph procedesse assim, ela ficaria altamente lisonjeada. «Patter» estava já selado à espera dela. Era um pequeno e fino baio.

-           Porque é que Smoky a segue? - perguntou Ray, com ar sombrio.

- Smoky, quem é?

- Aquele estafermo do índio.

Ah, sim. Não sei Ray. Não lho pedi certamente. É bastante lisonjeiro, contudo. Mas não agradável para vocês, rapazes.

Bem, Miss, se me dá licença dir-lhe-ei que não tem graça nenhuma e que não pode sair a cavalo sozinha - disse Ray.

- Na verdade. Você consegue ser muito desagradável às vezes, Ray. Isso contraria o homem perfeitamente maravilhoso que é. Vou sair a cavalo sozinha.

- Não. Se não me quer ouvir, vou dizer a Bennet.

- Não estará a inventar um pretexto para sair comigo?

Creia que não. Não tenho particular interesse em sair a cavalo consigo, depois daquilo que me fez a última vez.

O que foi Ray? Não me lembro.

Bem, não importa... Mas esse índio Smoky é um «hombre» mau e realmente porque ele não é certo é que eu quero ir consigo. Não é de confiança. Deve estar a segui-la porque é curioso, mas se ele a acha muito bonita, várias coisas podem acontecer. Se o maldito pele-vermelha a incomodar não terá muito tempo de vida.

Obrigada, Ray, isso é que é falar - respondeu Janey. - Mas diga-me, o que fazem aqui aos homens brancos, quando eles insultam as raparigas do Leste?

Bem, Miss, os homens brancos... isto é, os do Oeste não insultam raparigas de parte nenhuma - volveu Ray, impetuosamente.

Mas fazem-no. Tenho lido e ouvido imenso. - Suponha que justamente agora, por exemplo, você me raptava e levava para o deserto. O que lhe aconteceria a si?

Se não fosse pendurado numa árvore de algodão, certamente seria açoitado até cair morto... Mas, Miss Janey, não precisa de se atormentar a meu respeito. Aprendi a lutar e a refrear os meus naturais instintos.

Janey riu alegremente. Alguns destes cow-boys tinham imensa graça e bastante espírito.

- Ray, comprometo-me a dar este passeio consigo - disse Janey. - Quero surpreender Mr. Randolph no seu trabalho. Portanto você vai levar-me e mostrar-me onde ele está.

Mas deve ficar a alguma distância dali à minha espera, - mas não estarei a desviá-lo do seu trabalho?

- As ordens do patrão são para que tome conta de si, Miss Janey - disse Ray com grande ênfase nos pronomes pessoais. - Vou buscar uma sela e estarei pronto dentro de instantes.

Cavalgaram ao longo da cerca, onde Bennet conservava o gado, por vezes, e passaram por Tay-Tay, Diego e Zoroaster que cavavam buracos para postes. Se havia alguma coisa que um cow-boy detestasse mais fazer do que aquilo, declarou Ray, ele não sabia o que era. O trio tirou os seus «sombreros» a Janey e sorriram-lhe, porque não podiam deixar de o fazer. Mas via-se bem que eles estavam irritados com a situação.

-           Como trabalho medíocre não está mal - gritou Ray olhando para os buracos dos postes. - Mas vocês ainda os não cavaram bastante profundos.

Zoroaster olhou, com ferocidade, para Ray e atirou ao chão a pá de cabo alto. Diego limpou o suor que lhe escorria pela cara.

Olha lá, tu és o capataz deste rancho? - perguntou, desdenhosamente.

S-s-s-egue o teu caminho ou s-s-s-ais-te mal - gaguejou Tay-Tay.

Bem, como eu não quero que Miss Endicott os veja pior do que estão, vou seguir o meu caminho - disse, com lentidão, Ray.

Janey endereçou a cada um deles um encantador sorriso, tentando dar-lhes a impressão que os preferia, para escolta, a Ray. Depois fez trotar «Patter» atrás de Ray, para o deserto.

Treparam gradualmente até ao nível do vasto vale e encontraram-se em face da grande parede de rocha vermelha que avultava a algumas milhas a Oeste. Ela cavalgou, ombro a ombro com Ray, por um bom par de milhas, conversando ao mesmo tempo. Então, alcançando um terreno muito acidentado, teve de descer atrás dele a pista escabrosa. Ray parou perante uma massa informe de cedros.

- Creio que isto é tão longe quanto a menina quer que eu vá - anunciou ele. - Seguindo o trilho a direito até onde ele entra no «Canyon», aí verá um grande subterrâneo na muralha. É essa a velha habitação onde o senhor Randolph está a fazer escavações.

- Obrigada, Ray. Quer esperar por mim?

- Bem, se voltar com ele, não - respondeu Ray, relutante. - Mas quero ter a certeza disso.

-           Penso que é melhor esperar. Não me demorarei.

Ainda Janey não tinha percorrido uma centena de passos e já de todo se esquecera de Ray. O trilho descia para um charco murado e avermelhado, onde corria água lamacenta sobre areias movediças, que ela teve de atravessar. Já tinha atravessado esta ribeira num ponto diferente, mas não sozinha. Aqui tinha de usar os seus recursos próprios. Fez «Patter» trotar ao atravessá-la; mas mesmo assim ele debateu-se nas areias movediças e salpicou Janey de água lamacenta. Uma vez o cavalo foi de joelhos à água e o coração de Janey saltou-lhe até à garganta. Mas conseguiu passar a salvo. Eram coisas deste género que excitavam e agradavam a Janey. Tudo tão novo! E estar sozinha fazia tudo dez vezes mais emocionante. O caminho poeirento, a subida aos ziguezagues, os sinuosos trilhos por entre as rochas e através dos cedros, com a grande parede de rocha vermelha a destacar-se ao longe, cada vez maior e mais perto, a fragrância seca do deserto e da selva, a solidão e a selvajaria, significavam muito mais para Janey, nesse dia, do que nunca até então. Nem por nada ela deixaria Phil Randolph e o pai penetrarem no segredo de que ela estava, na verdade, aprendendo a amar o Arizona. A beleza, a cor e a solidão, a vastidão dele, tinham acordado qualquer coisa de muito profundo no seu ser. Primeiro lamentara-se do pó, do vento, do vazio, da falta de pessoas. Mas já tinha esquecido tudo isso. Não estava agora tão certa de que não podia gostar do rigor e do primitivismo do deserto.

Presentemente cavalgava já fora dos dispersos cedros de modo que podia ver completamente a grande parede de rocha. Janey deitou para trás a cabeça para poder contemplar mais alto.

- Oh... é maravilhoso! - exclamou. - Pensava que os edifícios de Nova Iorque eram altos. Mas isto!

Era uma autêntica parede de rocha vermelha, erguendo-se com fendas e saliências para um baluarte franjado de cedros altos contra o céu azul. A base era uma rampa de taludes, onde rochas de todos os tamanhos pareciam estar prestes a cair e rolar sobre ela. Então Janey descobriu o subterrâneo.

Era o maior buraco que jamais vira e calculou que a Igreja da Trindade se perderia dentro dele. A parte superior desaparecia na sombra. A parte de baixo mostrava paredes de rocha íngremes, inclinadas e arruinadas, que Janey conjecturou fossem os restos das casas dos habitantes daquelas rochas. Estava a ser impressionada pela magia do cenário, quando ouviu um grito e então descobriu um homem em pé, junto do subterrâneo. Era Randolph. Ele acenou-lhe e começou a descer o declive de rochas resistentes. À medida que ele avançava para mais perto do seu nível, Janey viu que, na verdade, ele tinha estado a trabalhar. Como ele parecia viril! Quase esqueceu completamente o objectivo da sua visita: e quase se persuadiu de que se ele estivesse particularmente simpático, ela poderia trepar lá acima para vê-lo trabalhar.

Olá, Phil - chamou ela, imitando, tanto quanto possível, o negociante. Janey ficou impressionada pelo facto de Phil não parecer muito contente por a ver.

O seu pai está consigo? - perguntou.

Não. Foi à cidade.

Espero que você não tenha vindo até aqui sozinha - disse.

- Mas claro que vim. E foi um passeio delicioso.

-           Janey - gritou ele.

- Sim Janey! - volveu ela.

Ele não percebeu o que havia de petulante da parte dela.

- Porque é que fez isso? - perguntou, quase zangado.

- Bem, pense que eu gostava, que eu queria: vê-lo e ao seu trabalho - tornou ela, inocentemente.

-           Mas disseram-lhe para não andar a cavalo sozinha longe do Posto.

- Eu sei, e isso põe-me doente. Porque não? Eu não sou nenhuma criança, sabe. Além de que não há raptores por aqui, ou há?

- Sim. Raptores e muito pior... Francamente, Miss Endicott, penso que deve ouvir um bom e valente sermão.

Estou muito bem disposta. Portanto comece.

Você é uma rapariga teimosa e obstinada       declarou.

Philip, você não está a ser muito gentil, pensando assim, bem... eu comovi-me um pouco, e vim cá para o ver - replicou ela, censurando-o.

Estou a pensar em si, no seu bem. Alguém tem de impedir que você corra estes riscos. Os cow-boys deixam-na fazer tudo, apesar de terem ordem para a vigiarem, para tomarem conta de si. Se o seu pai não pode fazer com que você se porte bem, alguém tem de o fazer.

E você está convencido que pode ser esse alguém? - inquiriu Janey, laconicamente.

Pareço presunçoso, absurdo - respondeu, inflexível. - Mas realmente receio que sim.

- Vamos ambos passar um tempo maravilhoso - disse Janey, com uma alegre gargalhada. - Mas antes que você perca esta tarefa de me regenerar deixe-me confessar-lhe que não vim sozinha. Deixei Ray lá em baixo, no caminho, naquele barranco.

- Deixou!... Mas você disse-me... mentiu...

- Queria ver o que é que você fazia - disse ela, como o visse hesitar.

Randolph sentou-se num pedaço de rocha e olhou-a, desconcertado.

Isso é o pior em si - assegurou ele. - Um homem não pode ceder completamente ao desespero, ou ao desgosto. Porque parece haver sempre alguma coisa de puro debaixo dessa sua maldita frivolidade.

Estou contente por o ver tão optimista - retorquiu Janey.

Não preciso de lhe perguntar como está - observou Randolph. - Ontem você estava pálida... prostrada. O seu pai estava realmente preocupado. E eu... Mas hoje você parece um lírio do Sago.

- Sago? É o nome do seu «canyon», não é? E que espécie de flor é? É bonita?

- Penso que é a flor mais estranha do mundo. Rara, rica, ardente. Cresce nos profundos vales, no Verão. Estou persuadido que você não estará aqui bastante tempo para ver uma.

- Phil, nunca imaginei que você pudesse ser tão eloquente, ou tão bom adulador - disse, estudando-o gravemente. - Começo a acreditar que há em si possibilidades desconhecidas para o bem... e talvez, também, para o mal.

Claro. Você nunca pode afirmar o que um homem pode ser capaz de fazer... ou de ser levado a fazer.

- Não me vai convidar a descer e a entrar? - perguntou, maliciosa.

-Tem de perdoar as minhas maneiras - disse ele, erguendo-se.

Janey resvalou da sela, sem aceitar a mão que ele lhe oferecia, e guiando «Patter» para um cedro próximo amarrou-lhe as rédeas a um ramo.

- Quero ver o seu subterrâneo.

- É uma grande subida.

-           Suponho que ontem o desconcertei um bocado - respondeu ela. - Não posso ter um dia de cansaço, uma vez, sem que seja considerada uma enfezada? Ora vamos lá.

Janey depressa concordou que aquilo era na verdade, uma grande subida. As distâncias iludiam-na estranhamente aqui no Arizona. Havia um caminho até ao subterrâneo, mas estafante, escarpado e desigual, com muitos e altos degraus de rocha para rocha. Ficou contente ao aceitar a mão de Randolph; e quando ultrapassaram a rampa estava sem fôlego e a suar. Randolph segurou-lhe a mão mais tempo do que o necessário.

-           Oh!... Apre! - arquejou Janey, deixando-se cair numa rocha à sombra. - Que subida!

- Você fê-la sem descansar - volveu Randolph, com admiração. - O seu coração e os seus pulmões são óptimos, seguramente... mesmo que você não tenha cérebro.

-           Mr. Randolph!

- Esta é a opinião de seu pai - disse ele, secamente. - Eu não a partilho exactamente.

- Pode ser que eu seja uma estúpida, saudável - riu Janey, tirando o «sombrero». - Não seria formidável - se o deserto e você - me transformassem numa verdadeira mulher?

- As estúpidas não se transformam - respondeu, ignorando a insinuação dela.

Agora Janey fazia o inventário do subterrâneo do arqueólogo. Era uma caverna espantosa. Sentou-se na parte mais baixa do declive e mesmo assim o tecto abobadado, longe por cima das cabeças deles, alargava-se até ao «canyon». Um cheiro seco, poeirento, bolorento, mas não desagradável penetrava no lugar. Os destroços das paredes e dos declives restos de parede. Na secção mais larga, uma pequena janela preta, como um olho vazio, fixava-a. Deu-lhe uma sensação estranha e extravagante. Olhos humanos tinham olhado através daquela janela há muitas eras atrás. Viu um fosso perto dela, com a picareta e a pá a descansar onde Randolph as tinha deixado.

Esteve na guerra, Mr. Randolph? - perguntou Janey, de repente.

Sim, algum tempo. O bastante para aprender a cavar. E foi essa a única coisa boa que lá aprendi - respondeu, um tanto amargamente.

Devia dar graças a Deus. Os meus amigos que foram para França não voltaram «muito» bem. Pelo menos você parece não ter ficado com qualquer ferida, ou aleijado.

Sim, penso que fiquei bem, à excepção de ter adquirido ideias estranhas.

Só dei por elas recentemente - o inverno passado, para ser sincero.

Deveras? E em que é que isso o afecta? - perguntou Janey, pouco convencida.

Penso que desenvolveu em mim uma fraqueza latente pela beleza.

Da Natureza?

Oh, não. Sempre senti essa. Deve ser - pela beleza da mulher.

De «qualquer» mulher. Bem, isso não é uma fraqueza. É uma coisa muito louvável e dá-lhe um certo parentesco com a maior parte dos homens.

Miss Endicott, eu não disse de qualquer mulher - replicou, vivamente, Randolph.

Não disse? Muito bem, não importa... Agora mostre-me todo este local e fale-me do seu trabalho.

Randolph tinha qualquer coisa em mente. Não parecia muito natural. Era como se tivesse sido impelido a ser alguém muito diferente do que ele habitualmente era. Janey lamentou não o ter encorajado a dizer mais acerca da mulher por quem ele sentia a tal fraqueza. A esse respeito ela estava interiormente toda orgulhosa com o sucesso das suas maquinações.

-           Você não fazia fortuna como guia de senhoras turistas - notou Janey, depois de Randolph lhe ter mostrado os vários fossos que tinha cavado, alguns pedaços de cerâmica seca como pó, e as paredes arruinadas.

- Pelo contrário, fui um sucesso declarado na reunião dos professores que me visitou aqui no verão passado - declarou.

Oh. Então sou eu que tenho um efeito inibidor em si.

Provavelmente. Não pareço importar-me nada - ou - coisa nenhuma com a arqueologia, geologia, teologia, ou qualquer outra forma de ologia - replicou Randolph, tristemente.

Lamento. Não devo criticar as suas faculdades mentais tão severamente - disse Janey.

- Você pensa que está a ser sarcástica. Mas o que é um facto é que você censurou todas as minhas faculdades, até ao limite. Faculdades de paciência, resistência fé - e não sei que mais.

- Que horrível criatura eu sou! - interrompeu Janey, verdadeiramente séria. - Por favor, se não pode esquecer isso, pelo menos não precisa estar sempre a insistir... Onde espera descobrir esse «pueblo» sepultado? O papá disse que você tinha posto todo o seu coração nessa tarefa.

Você não se importa mesmo nada com ruínas - a menos que seja com a ruína de um homem.

Talvez não me importasse ao princípio. Mas importo-me agora. Não pode admitir que eu me tenha modificado, ou crescido, ou que tenha acontecido outra qualquer coisa, entretanto?

Não sei o que pensar a seu respeito - tornou ele, consternado.

Seguramente que não. Bem, eu sou perfeitamente capaz de sair daqui e ir procurar essas ruínas para si.

Por favor, não o faça. Sinto-me completamente miserável - retorquiu, com crueldade. Mas havia uma luz no olhar dele que desmentia as suas palavras. Janey sabia que ele estava a dizer para consigo que não devia acreditar em sonhos.

- Significaria muito para si - encontrar esse «pueblo»?

-           Sim. Só há no mundo uma coisa que pode significar mais para mim.

- Não creio que fique muito bem cavando por aqui em volta, no meio de toda esta porcaria - meditou Janey. - Mas como você não tem o mais pequeno interesse por mim, com vestidos de noite moderníssimos, talvez você goste de me ver toda poeirenta, vermelha e suada. Portanto, vamos a isto.

Janey começou a descer para o fosso mais profundo e quando ficou só com a cabeça de fora, apoderou-se da picareta.

- Miss Endicott, não pode deixar-se de brincadeiras? - explodiu Randolph. - Não consegue ter graça nenhuma. E essa conversa a meu respeito...

- Não estou a brincar quanto ao facto de querer que você me admire, pelo menos - riu Janey, brandindo a picareta.

- Por favor, saia daí. Está a sujar as suas roupas.

- Não. Vou cavar - replicou Janey, despreocupadamente. - «Quien sabe»? Pode ser que ainda tenha de casar com um arqueólogo, um dia.

- Saia daí - disse Randolph, peremptoriamente.

Janey começou a cavar a terra vermelha. Descobriu muitas pedras e até o que se parecia muito com um osso humano.

Oh! Veja. O que é esta coisa? - gritou.

É um osso da perna, claro. Você está a cavar numa sepultura. Já lhe tinha dito.

- Você não tinha dito nada.

- Isso não importa. Saia daí.

-           Mr. Randolph, você pode mandar-me para a minha própria sepultura, mas não consegue fazer-me sair desta.

Como ela brandisse outra vez a picareta, ele baixou-se para a alcançar. Janey insistiu. Randolph esticou o braço até encontrar as mãos dela enluvadas. E fê-la largar a picareta e arrastou-a, não muito gentilmente, para fora do fosso.

Depois deixou-a quase abruptamente, provavelmente por causa do olhar que ela lhe dirigiu; o seu impulso, sendo considerável, fê-la tropeçar. Daquele lado era um pouco a descer. Ela caiu a direito sobre Randolph que a apanhou nos braços. O embaraço daquela situação irritou Janey mais que nunca. O «sombrero» caiu-lhe e o cabelo cobriu-lhe os olhos. Ergueu a cara do ombro dele e procurou retomar o equilíbrio. Subitamente, Randolph curvou-se e beijou-a nos lábios.

 

Janey separou-se com violência de Phil e recuou. Por um momento ela foi presa de agitações tão pouco familiares e tão perturbantes que mal se lembrou do papel de actriz que tinha adoptado.

- Janey!... Miss Endicott! - balbuciou o jovem arqueólogo. - Eu... Eu não queria fazer isto. Devo ter perdido a cabeça. Perdoe-me!

Agora já está feito! - exclamou Janey. Não estava ainda bem certa do que é que ele tinha feito, mas fora certamente mais do que aquilo de que ele se sentia conscientemente culpado.

Estava fora de mim - disse Randolph, precipitadamente. - Você tem de acreditar-me. Eu... eu não tive intenção. Estou... estou tão chocado como você... Você caiu nos meus braços. E eu... eu fiz isso involuntariamente.

Vá contar essa a outro - replicou Janey, recompondo-se, e voltando a representar o seu papel.

Não me acredita? - perguntou, corando.

Claro que não - volveu Janey, friamente, enquanto alisava os cabelos em desordem. - Nunca pensei que você tratasse as raparigas desta maneira... especialmente quando elas são bastante loucas para o virem aqui visitar sozinhas. Ele olhou, ferozmente, para ela, meio raivoso, meio angustiado.

- Eu nunca tinha beijado nenhuma rapariga! - afirmou ele, vigorosamente.

Bem! - exclamou Janey, simulando desdenhosa dúvida, quando estava realmente emocionada com o que parecia haver de verdadeiro nos olhos e na luz dele. - Você deve fazer uma fraca opinião da minha inteligência. Se me tivesse dito sinceramente que um homem como você não tinha podido resistir a tal oportunidade e estava contente por isso, eu devia perdoar-lhe. Não tem importância nenhuma ser beijada. Mas você pretende ser tão honrado. Você considerava indignos os meus jovens amigos. Iludiu-me ao fazer-me pensar tão bem de si... ao fazer-me respeitá-lo. E eu, honestamente, acreditei que gostava de si... Agora estou completamente convencida de que não devo sair a cavalo, sozinha.

Randolph gemeu. Então voltou para o fosso e pegando na picareta começou a cavar, com grande ímpeto, fazendo as pedras voarem e levantarem imenso pó. Janey tornou a falar, mas ele não a ouviu ou não quis ouvi-la. E então ela tornou a pegar no seu «sombrero» e começou a descer a rampa. Tinha justamente alcançado a parte mais escarpada, e estava procurando o caminho quando ouviu Randolph atrás de si.

- Esqueci-me completamente. Não posso deixá-la tentar descer isto sozinha - disse ele.

Mr. Randolph, prefiro cair e quebrar o pescoço a deixá-lo ajudar-me - respondeu Janey, altivamente.

Previno-a de que se cair outra vez não estará ao meu alcance - declarou Phil, terrivelmente.

Janey principiou a descer, sabedora de que ele a seguia de perto. Estava contente porque ele não lhe podia ver a cara. Quando passava pelas secções partidas da rocha aparentava desequilíbrios que teriam envergonhado um equilibrista. Inclinava-se para um lado e para outro e quase caía. Então saltava as fendas e corria alguns riscos de se magoar. Mas conseguiu descer a salvo aquele emaranhado de rochas e depois o resto da rampa, com muita facilidade. Randolph tinha-se detido a cerca de um terço do caminho, e quando Janey olhou em volta, à procura do cavalo, viu-o sentado numa pedra, observando-a.

-           Adeus, mulher selvagem - gritou ele.

-           Adeus, homem das cavernas -- retorquiu ela.

Montou a cavalo e continuou o seu caminho, sem olhar para trás, o que foi um acto que lhe requereu grande força de vontade. Uma vez no meio dos cedros, fora dos olhares dele e sozinha, divertiu-se com a feição inesperada e o sucesso da sua aventura. Randolph era simplesmente um rapaz honesto, muitíssimo apaixonado e à mercê dos seus sentimentos. Tinha-a ajudado no seu pequeno plano por se ter colocado em desvantagem.

Que aterrado ele ficara e depois que furioso com ele próprio e com ela! Janey lembrou-se de que ele se tinha melindrado quando ela lhe dissera que um beijo não tinha importância. Bem, ela tinha mentido ao dizer aquilo. Era muito ser beijada e ela começava a compreender isso agora. Tinha decidido levá-lo a acreditar que beijar era uma coisa casual e meramente familiar na sua vida de rapariga, quando, na realidade, ela nunca fora beijada, senão indiscriminadamente e por brincadeira, em jogos, quando ela o deixava.

Janey acreditava que estava mais zangada do que nunca com Randolph, muito mais agora com ele do que com o pai. Havia porém dentro de si uma voz moderada que ela não queria escutar. Que estava a querer quebrar a resistência dela, até certo ponto, quando chegou ao pé de Ray, tão abruptamente, que ficou surpreendida. Terminou com as suas meditações, pois Ray parecia curioso e mordaz a respeito da visita dela ao arqueólogo. Não ocorreu a Janey atormentar Ray ou parar e arreliar os cow-boys que continuavam a colocar postes. Quando se encontrou de novo no seu quarto, compreendeu que os cow-boys tinham começado a perder cor no quadro. Janey não o lamentou, embora se desconhecesse. Evidentemente, sem dúvidas, contudo, se uma rapariga vai ser raptada contra sua vontade, e maltratada, e finalmente obrigada a casar deve estar completamente interessada no homem que se atreve a fazer tudo isso.

Ao almoço falou a respeito da visita que fizera ao subterrâneo de Randolph. Os Bennets estavam muito contentes.

Era claro que eram muito amigos de Randolph e que estavam orgulhosos do seu trabalho como arqueólogo.

Bem, se a menina gostou desse buraco «Sagi», certamente deveria ir ver Beckyshibeta - notou Bennet.

Beckyshibeta! Oh, mas que palavra difícil de pronunciar - replicou Janey, com uma gargalhada. - O que é e onde é isso?

Beckyshibeta quer dizer água de vacas. Em «Navajo» quer dizer nascente. Nunca o vi quando está enlameado e, claro, cheirando a vacas. Creio que é a cerca de sessenta milhas por trilho, quase atravessando toda a região. Um lugar selvagem e rochoso onde os índios raramente vão. Phil pensa que «eles têm uma razão para o evitarem, a mesma como no caso de Nonnezoshe, a grande Ponte do Arco-íris. Tem a impressão de que deve haver um «pueblo» sepultado em Beckyshibeta. Há residências de rocha ainda em bom estado de conservação e muitas ruínas. Nós raramente indicamos Beckyshibeta aos nossos visitantes. É muito longe. Os cow-boys detestam a região, porque têm de levar feno e água. E, claro, há lugares bastante interessantes aqui perto e mais confortáveis para acampar. Mas a menina e seu pai deviam ver ambos, Beckyshibeta e Nonnezosche, antes de se irem embora.

Tenho a certeza de que havia de gostar muito - respondeu Janey,

Naquele dia não voltou a encontrar os cow-boys, senão depois da ceia, quando andava a passear fora do Posto para ver o crepúsculo e também para esperar o pai.

Esta era sempre uma hora linda ali. Os índios estavam a montar a cavalo para se dirigirem para as suas casas; os pitorescos cow-boys tão ocupados com trabalhos durante o dia estavam naquele momento a preguiçar por ali, em cima de fardos de lã e cobertores. Na altura em que Janey chegou eles animaram se. Mas ela não pareceu dar por eles a despeito dos seus ares e palavras salientes. Vagueando por um pequeno caminho deteve-se na volta da cerca para observar o espectáculo do Oeste todo ouro e púrpura.

Que tarde extremamente fria - notou Mohave, numa voz que veio nitidamente até Janey.

Digam, amigos, não vos está a bater nada nos olhos, como se fossem pedaços de gelo? - pronunciou, vagarosamente, Zoroaster.

A-a-a-lguns dos teus h-h-h-ombres fizeram a-a-a-lguma coisa - gaguejou Tay-Tay, beligerante.

- A nossa graciosa Señorita está em profunda meditação - disse Diego.

- Oh! Vocês, vaqueiros, são loucos - acrescentou desdenhosamente Ray. - Não me podem dizer quando se escapam daqui e se põem a andar?

Janey afastou-se para fora do alcance dos seus leais cavaleiros. Era a primeira vez que ela não prestava atenção a um ou a todos eles. O que lhe tinha acontecido? Mas os argumentos anteriores acalmou ambos, consciência e interesse.

A Oeste o bojo do deserto ondeava preto como ébano, contra o intenso e dourado fulgor do céu. Acima desta faixa, um quebrado recife de nuvens cor de púrpura parecia gasto por competir com marés de prata e rosa. Através de uma renda esfarrapada, o sol, submergindo-se, enviava dardos de luz radiante, para além do horizonte.

A Leste o panorama não era menos admirável, e belo. O deserto atirava as suas paredes e cúpulas e monumentos de rochas vermelhas, lá longe, para o céu cheio de brilhantes nuvens rosadas e brancas.

Janey deu um profundo e grande suspiro. Sim, o Arizona estava a despertar nela qualquer coisa de esplêndido e impulsionante. Quão vasto e livre e varrido pelo vento era este deserto colorido! Aprendera a reconhecer a leve fragrância da salva que vinha só com a brisa do norte. Sentia-a, agora, doce e fresca na cara. Então, sobre uma colina próxima, recortou-se a negra silhueta de um índio e do seu baio, selvagem e solitária. A seguir o som de um carro quebrou a sua concentração. Não havia dúvida, era o pai que voltava no «Studebaker» do comerciante.

Olhem para isto, meus caros - notou, zombando, o pai, quando estavam já em casa. - Parece que estive longe daqui um mês. Qual é a tua ideia?

Oh! Fiz tanto reboliço como isso? - perguntou, alegremente, Janey.

Claro que fizeste. O facto é que tu nunca me vieste receber como hoje, mesmo nos meus regressos da Europa... Estiveste outra vez muito só e aborrecida? Foi por isso?

- Hoje, não - volveu Janey. - Não, eu estava justamente feliz e inconsciente disso, papá... Suponho talvez que senti um pouco a tua falta.

Bem, podes crer que estou contente, qualquer que tenha sido a razão.

Janey deixou-o na casa de jantar, demasiado esfomeado para conversar. Então examinou um pouco os seus pensamentos. Tinha esquecido absolutamente o seu novo papel. Supusera que estava muito zangada com o pai, mas não estava. E tão pouco tinha estado com saudades dele ou de casa. Na realidade transpusera cerca de dez anos da sua vida e tinha ido ao encontro dele cheio de acontecimentos, até à discussão com Phil, e então não foi mais longe. Era quase confuso. Mas acabou por aliviar a sua vaidade ferida, aceitando os seus notáveis e finos engenhos como devidos ao caminho por que ela estava tentando «trocar as vasas» a Phil e a seu pai.

- Talvez me esteja a enganar a mim própria - murmurou Janey, com um riso meio abafado. - Santo Deus! Posso estar tão feliz só porque ele me beijou?

Janey estava outra vez completamente à vontade quando o pai foi ter com ela à sala de estar. Ele vinha entusiasmado com o seu passeio na cidade e proclamou que o caminho - olhado em sentido contrário àquele em que eles tinham vindo - era ainda mais belo. As comunicações telegráficas de Nova Iorque tinham sido muito satisfatórias.

- Como passaste o teu dia? - perguntou ele, quando já tinha contado tudo.

- O meu? Oh, imensamente bem - respondeu Janey.

Espero que não tenhas pregado nenhuma partida a esses cow-boys?

Oh, querido, não. Quase não os vi, só uma ou duas vezes... Levei Ray e fui a cavalo ver o subterrâneo de Phil. Fui fazer-lhe uma surpresa. Deixei Ray em baixo, num pequeno caminho, e continuei sozinha.

Fizeste isso! - exclamou Endicott, surpreendido e contente. - Foi bem bonito da tua parte. O que é que pensaste do subterrâneo de Phil? Já lá estive, sabes.

Uma caverna espantosa! Assenta-lhe como uma luva. Ele é um autêntico homem das cavernas. Não reparaste já nisso, querido papá?

Homem das cavernas? Phil Randolph! Como, se ele é o mais gentil e o mais pacífico dos homens.

Não tanto como estás a dizer. Pelo menos para mim - respondeu Janey, procurando abafar o riso. - Não, papá, tu estás muito enganado a respeito do carácter de Phil, Ele é um «hombre» mau.

- Vocês discutiram? - sondou Endicott, a sua curiosidade vencendo a dúvida.

- Oh, nós esgatanhámo-nos, como de costume. Ele não ficou nada lisonjeado por me ver. Fez alguns reparos idiotas a respeito de ser um apaixonado da beleza na mulher - «numa» mulher. Naturalmente brinquei com ele e quando ele se apercebeu disso ficou magoado. Bem, finalmente, para provar o meu interesse pelo seu velho subterrâneo, saltei para dentro de uma das sepulturas. Peguei na picareta e comecei a cavar. Sabes, papá, ele não gostou nem um bocadinho.

Endicott soltou uma alegre gargalhada. - Janey, tu és incorrigível. Não admira que ele não gostasse de te ver lá. Nem mesmo a mim ele deixaria cavar num buraco daqueles. Ele disse-me que eu podia quebrar uma daquelas peças de preciosa cerâmica. Além de que, no teu caso, ele não queria que tu te sujasses, ou sujasses as roupas, ou empolasses as mãos.

- Pensava que ele havia de gostar - tornou Janey. - Uma vez chamou-me fastidiosa e elegante. Outra vez uma das muitas ricas e ociosas. Ainda outra vez pegou na minha mão e teve a insolência de dizer que eu era uma bela coisa inútil. Bem, continuando, ordenou-me que saísse da sepultura. Não lhe liguei nenhuma. Então conseguiu segurar na picareta e puxou-a até conseguir alcançar-me. A seguir tirou-me de lá. Gentil? Devias tê-lo visto. Mas deixou-me sozinha muito depressa e eu tropecei. Como uma parva caí nos braços dele. Ajudou-me gentilmente a recobrar o equilíbrio? Eu não riria. Esse teu modelo de virtudes, esse sossegado cavalheiro, agarrou-me e beijou-me, bem na boca - comO eu nunca tinha sido beijada em toda a minha vida!

Nesta altura o pai de Janey explodiu de alegria. Recompondo-se e vendo a cara dela, desculpou-se, contrito.

- Janey, é que justamente é tão bom - acrescentou ele. - Penso agora muito melhor de Phil por ele ter tido a coragem de fazer isso.

Admiro-me, no entanto, como «isso» te fez tão feliz.

- Disparate! - exclamou Janey, com as faces vermelhas. - Para mim não representou coragem nenhuma. Apenas perdeu a cabeça. Depois jurou-me que nunca tinha beijado uma rapariga. Imaginas?... Bem, já te contei tudo. Não sei o que hei-de fazer agora.

Vou felicitar Phil por te ter castigado convenientemente.

Não recebo castigos facilmente - disse Janey, com ameaçadora arrogância.

-           Meu Deus. Sê fácil para o pobre rapaz, Janey.

Neste ponto Bennet interrompeu-a para perguntar se precisariam de algum ou de todos os cow-boys nos próximos dias para algum passeio especial.

Quero conduzir algum gado e calculo que esta seja a melhor altura - acrescentou. Tenho vários grupos de turistas prestes a chegarem e os rapazes terão de levá-los a Nonnezoshe. Depois disso virão as chuvas.

- Obrigado, Bennet. Nós passamos muito bem sem os cow-boys - retorquiu Endicott, vivamente. Janey perguntou a si própria porque seria que seu pai se sentira tão alegre com aquela notícia.

- Têm uma estação chuvosa aqui no deserto? - inquiriu Janey, espantada.

-           Nada que lhe interesse, Miss - respondeu o comerciante. - Calculo que gostará de tempestades, de nuvens e de arco-íris. Mas para nós as chuvas são muitas vezes más, porque as terras alagadiças inundam-se e com as areias movediças nós não podemos levar o gado a pastar.

-           Tempestades? Adoro-as. Seria estupendo estar aqui, quando houvesse uma - disse Janey.

Janey estava estendida na cama a ler quando ouviu Randolph entrar e ir para o quarto. Era já bastante tarde para ele. Perguntou a si mesma se ele não teria ceado.

Na manhã seguinte, quando foi tomar o pequeno almoço, seu pai e Randolph ainda lá estavam. Se Janey esperava que ele estivesse abatido ou embaraçado, calculara mal. Não o estava. Cumprimentou-a, como se nada de anormal tivesse acontecido e lançou-lhe um olhar frio e firme. A rápida intuição de Janey apreendeu isso. Randolph não olhava para trás. Não parecia provável que seu pai pudesse ter tido influência nesta última decisão de Randolph. Janey tinha-lhe desejado as boas noites, à porta do quarto dele, e ele não era muito madrugador. Portanto concluiu que Randolph tinha lutado bastante com ele próprio e a sorte estava lançada, o que emocionava Janey, como nunca antes a tinha emocionado. Estava pronta, até mesmo impaciente pela aventura.

Quando é que Bennet vai mandar os cow-boys? - inquiriu Randolph.

- Hoje - respondeu Endicott, com um olhar significativo para o seu jovem amigo. - Vai ser terrível para Janey ficar sem ninguém a quem possa arreliar.

Suponho que você, Phil, vai ficar em casa e vai deixar o seu trabalho para a divertir.

Sentir-me-ei muito feliz - volveu o arqueólogo. - Estou certo de que sou capaz de inventar qualquer coisa que consiga divertir mesmo a «blasé» Miss Endicott.

Não precisa de se preocupar comigo - disse Janey energicamente. - E tenho que lhe fazer saber que não sou «blasé». Já alguma vez me viu com ar de velha ou de aborrecida?

Velha não, certamente, mas maçada - sim, na verdade, e com este seu humilde servidor.

Você nunca mais me maçará, Philip - respondeu. Espero poder viver o bastante para lhe provar que tem razão.

Eternamente grato - retorquiu Randolph, negligente. Espero poder viver o bastante para lhe provar que tem razão.

Quando é que começa a divertir-me? - perguntou Janey, com um sorrisinho provocante.

Podemos começar já.

Muito bem, comecemos. Você tem só de ser perfeitamente natural.

É o que eu pensava. Portanto não preciso de me esforçar. Depois do pequeno almoço venha comigo dar um passeio. Sei onde podemos encontrar alguns sapos muito curiosos, próprios do deserto.

- É longe?

- Pertíssimo. Na grande lagoa, ao cimo da montanha.

Mas aconselho-a a trocar esse vestidinho de criança por qualquer coisa mais confortável e que a possa proteger.

Santo nome de Deus! Isto é uma saia e uma blusa de ténis.

Quem adivinhava? - replicou Randolph, secamente. - Esteja pronta daqui a uma hora.

Janey foi para o seu quarto. Philip tinha sido completamente materialista. Tinha imaginado que ele a levasse, um dia, a dar um longo passeio, que lhe desse melhor oportunidade para fugir com ela. Seguramente não iria tentar o rapto durante um curto passeio, perto do posto. No entanto sentia-se insegura. Fazia melhor em estar preparada para tudo. Com este fim considerou o que seria melhor levar vestido. Se se vestisse com calças e botas de montar, que era o que ela sinceramente desejava, despertaria as suspeitas de Randolph. Fora disso, todas as suas roupas eram impróprias para a espécie de passeio que era provável que fosse ter. Dava a Randolph cerca de um dia e uma noite antes que a trouxesse de volta para o posto. Contudo, este tempo era bastante para o seu propósito, aliás pelo que se lembrava da sugestão do pai. Janey esquadrinhou entre as suas coisas e finalmente encontrou uma velha saia de lã, absurdamente curta. Teria de servir. Escolheu as meias mais grossas que pôde encontrar, mas que ainda eram finas, sapatos de ténis, uma blusa de gola alta e de mangas compridas. Pôs um chapéu de feltro e luvas. Então, lembrando-se, de repente, meteu uma caixa de pó de arroz na algibeira do seu casaco de desporto, curto, e tentou escolher as coisas de que precisaria muito no caso de ser raptada. Mas o espaço da algibeira era limitado. Assim equipada, e cheia de contida alegria, embora um tanto sobressaltada, saiu impetuosamente ao encontro de Mr. Randolph.

Janey sabia que tinha levado mais de uma hora a arranjar-se. No entanto ficou surpreendida ao ver que ele não estava à espera dela. Nem sequer o pai se via por ali. - Aconteceu alguma coisa - aposto - monologou Janey. Foi ver os cow-boys que se iam embora com Bennet. Formavam um grupo muito desconsolado e olharam para ela, já de longe.

Quando voltou a casa encontrou Randolph. As botas dele estavam cheias de pó e a cara esbraseada pelo esforço. Parecia demasiado carrancudo e tenso para ir dar um pequeno passeio. A menos que tencionasse propor-lhe casamento! Ou levar por diante o plano do pai. Janey sabia que se ia passar uma coisa ou outra; e tremia. Mas Phil parecia demasiado interessado nele próprio para notar que ela não estava completamente à vontade. E num instante Janey recobrou a compostura.

- Ora aqui está você - disse ele ao vê-la. - Estou satisfeito por a ver vestida um pouco mais convenientemente.

- Pensei que talvez você me obrigue a cavar um pouco na areia, atrás dos sapos - respondeu ela.

-           Provavelmente você andará à procura de mais coisas antes de voltarmos.

Conduziu-a pela saída do pátio, onde a folhagem dos pessegueiros e a casa encobriam a partida deles, de alguém que pudesse estar a observá-los do posto.

-           Os sapos são realmente uma das maravilhas do

deserto - disse ele, enquanto ia andando rapidamente em direcção à elevação de terreno. -Têm uma coloração protectora. É muito difícil vê-los. São muito belos, com uns olhos que parecem de pedras preciosas. Em raras ocasiões, quando raivosos, deitam sangue pelos olhos.

Enquanto falava ia conduzindo Janey pela colina acima. Em poucos instantes tinham chegado lá acima, e começaram a descer para o outro lado, longe das vistas do posto. Ele falou sobre os sapos, até ter esgotado tudo o que sabia de história natural. Então desviou a conversa para o cenário do deserto. Janey sabia que ele estava só a fazer tempo, esforçando-se por a distrair, para que ela dificilmente se apercebesse da distância a que se encontravam e de que ainda era longe para qualquer descanso. Ajudou-o, pois, ouvindo-o atentamente. Eram umas boas dez milhas até à lagoa.

-           Phil, você não me tinha dito que era só um pequeno passeio

- perguntou ela inocentemente.

- Sim, porquê? Não é?

- Se você me perguntasse eu dir-lhe-ia que era muito grande. Onde é que vamos? - tornou Janey, olhando para todo aquele arenoso vácuo. Não havia caminho que ela pudesse descortinar, ainda que na areia, mesmo abaixo, visse pegadas de cavalos. Randolph saltou para o declive que era a alguns pés abaixo do nível.

- Venha - disse, e Janey descobriu-lhe na voz uma leve mudança de tom.

-           Uf. Não posso descer - respondeu ela, medrosa.

- Se você não me deixa ajudá-la, olhe, escorregue.

-           Escorregar! - Mr. Randolph, não sou nenhum jogador de «baseball».

Rápido como um raio ele agarrou-a, rodeou-lhe os joelhos e levantou-a de modo que ela ficou sobre os ombros dele.

Oh! - gritou Janey, com genuína surpresa. Como ele era forte! Pegara nela como se fosse um saco de batatas. Carregou-a assim alguns passos para baixo, antes de Janey começar a protestar e a espernear. Ela ter-lhe-ia dado um pontapé se tivesse as pernas livres. Em todo o caso, o esforço que ela fazia e a difícil descida na areia tão mole, fizeram com que Randolph perdesse o equilíbrio e caísse de lado. Janey rebolou do ombro dele e ficou sentada. Randolph tropeçou e vendo-a sentada de olhos muito abertos e pálida, rebentou às gargalhadas. Janey não pôde deixar de o imitar.

É assim que o senhor apanha sapos, Mr. Randolph? - perguntou ela, desabridamente.

Não. Mas para que é que você me desequilibrou? Podia levá-la até ao fim da descida.

A minha posição era pouco digna. De futuro, se for necessário transportar-me, como você diz, por favor dê-me um momento para me preparar.

Está bem. Vamos. Deixe-me ver se você tem botas de sete léguas?

- disse, e começou a andar a passos gigantescos.

Janey tentou imitá-lo, sendo bem sucedida, e alcançou o fim do declive ao mesmo tempo.

Tenho os sapatos cheios de areia - anunciou ela e sentou-se para a tirar.

Não deixe que uma pequena coisa como essa a mace. Pode acontecer outra vez.

Você está muito alegre, assim tão de repente -- notou Janey, enquanto ia tirando a areia dos sapatos.

Sim. Porque não? É qualquer coisa ver Miss Endicott tal como está esta manhã - respondeu ele, olhando-a com um brilho de admiração nos olhos.

Suponho que você quer dizer com esta saia curta - tornou ela calmamente. - Mas não precisa de olhar. Era a única coisa velha que eu tinha.

Em breve ela o seguiu pela lagoa abaixo. Parecia ser muito profunda, com o leito seco de rocha e cascalho. Plantas do deserto cresciam espalhadas ao longo das margens. Randolph não olhava para trás nem falava e andava um pouco depressa demais para Janey, que ia perdendo terreno. De repente, numa volta do caminho, Janey observou o que tinha estado à espera - dois cavalos selados. Mais tarde viu um outro animal carregando um fardo.

Janey disfarçou, pretendendo não ter visto os animais. Que loucura! Não obstante ela estava com o coração palpitante, com o sangue a latejar-Lhe nas veias, com picadas na pele.

Um rápido olhar mostrou-lhe que Randolph tinha parado ao lado dos animais. Janey esforçou-se para encontrar coragem e nervos para enfrentar esta situação, como planeara. Onde estava a sua cólera? Tinha-se escoado pela ponta dos seus dedos trementes. Mas aquilo foi só momentâneo. A vista de Randolph reanimou-lhe a coragem. Enganá-lo-ia, castigá-lo-ia e ao pai, se recobrasse todo o espírito e paciência que ela pudesse reunir.

- De quem são os cavalos? - perguntou Janey, quando alcançou Randolph, e sentou-se no declive de areia. Não olhou para ele, directamente. - Está bastante calor - mesmo para dar um pequeno passeio. Quando é que nós caçamos os sapos?

Como ele não respondesse, ela olhou-o. Estava pálido e, sem dúvida, nervoso. Janey percebeu, de súbito que, a despeito do que empreendera, ele tinha medo dela e da ultrajante indignidade que fora persuadido a tentar. Era o estímulo de que ela precisava.

- O que aconteceu, Phil? Você está estranho. Os seus olhos! Você está pasmado a olhar para mim. E é a segunda vez. Não posso agora queixar-me de falta de atenção.

- Mais vale tarde que nunca.

- Venha cá, senhor arqueólogo. Não lhe faço mal - disse Janey, acenando-lhe.

- Você quer-me? Aí?

- Ah! - huh!

- Está correndo um grande risco. Tornei-me um, - um homem mau - volveu ele, obstinadamente, como se precisasse de se convencer a si próprio.

Desde quando? Desde aquele episódio no subterrâneo? Bem, se você repete isso, o seu fim estará próximo... Perguntei-lhe a quem pertenciam aqueles cavalos?

São meus.

- Seus! - O que é que eles estão aqui a fazer - selados? Certamente que não precisamos de todo este equipamento para apanhar sapos.

- Janey, isso dos sapos era - uma mentira - volveu ele vacilando. - Foi um estratagema para a trazer do posto.

Um estratagema? Que emocionante! Bem, agora que conseguiu iludir-me e trazer-me até aqui - o que é que você vai fazer de mim?

- Vou raptá-la - declarou, roucamente.

Janey riu alegremente.

- Oh! Estou a lembrar-me. Você quer divertir-me. Óptimo, Phil! Suponho que planeou um pequeno passeio a cavalo e um piquenique, tudo para mim. Mas meu caro, não posso andar a cavalo, com esta saia.

- Não pode, mas vai ter de andar - tornou ele.

- «Ter de»! Oiça, Phil, isto está a parecer-me brincadeira a mais. Posso tolerar muita brincadeira, mas a cavalo com esta saia pelos joelhos? Nada feito!

- Não é brincadeira, Janey. Estou mortalmente sério. Você vai comigo, a bem ou a mal.

-           Deveras? Não é gentil da sua parte? Mas que fim de dia tão encantador, eh?

- Nós não voltamos esta noite. - Mr. Randolph!-exclamou, friamente. Aquele foi o momento crucial para Philip Randolph. A sua cara empalideceu.

Você bebeu ou enlouqueceu? - acrescentou ela, com voz glacial.

- Ambas as coisas! Embriagado com a sua beleza - louco de amor por si - respondeu ele, com voz rouca.

- Também me parece - disse Janey. Voltou-lhe as costas e começou a andar. Então ele segurou-a pelos ombros, fê-la rodopiar e empurrou-a pelas costas para a sombra.

- Se fugir será pior para si - advertiu, abandonando-a.

Você, seu animal! - gritou Janey, voltando-se. - Deixe-me ir embora.

Randolph enfrentou-a quando ela tentou escapar-se, pôs-lhe as mãos nos ombros e deu-lhe um bem valente safanão. Janey cambaleou para trás. A areia era macia e profunda. Perdeu o equilíbrio e, subitamente, sentiu-se no chão, perdendo o casaco e o chapéu. Isto foi sumamente ridículo. Mesmo assim Janey queria rir. Sentou-se no chão, ardendo num acesso de raiva.

Animal ou qualquer outra coisa - disse Randolph, sombrio. - Mas você vai comigo, nem que eu tenha de a atravessar em cima daquele cavalo.

- O pai bater-lhe-á por isto.

- Não duvido. Mas será demasiado tarde.

- E os cow-boys farão pior.

- Sim. Mas eu comprometê-la-ei perante eles.

Janey levantou-se e avançou para Randolph. Havia agora uma perigosa cintilação no olhar dele - uma luz selvagem e sombria. Tinha conseguido a parte mais difícil - o anúncio da sua intenção. Janey viu que ele não esperava nenhum dissabor com ela. Como o iria enlouquecer!

Não se atreva a pôr-me a mão em cima outra vez - disse ela, apaixonadamente.

Espero que não seja necessário. Mas você vai montar este cavalo.

Não!

Eu digo-lhe...

Janey precipitou-se para lhe fugir. Contudo não foi suficientemente ligeira. Ele agarrou-lhe o braço. Como a balançasse em volta ela deu-lhe uma valente bofetada na cara. Randolph soltou-lhe o braço. Levou a mão à cara, que ficara vermelha como fogo. Parecia que a compreensão lhe aumentara a vergonha e a fúria. Janey percebeu que se não fosse a bofetada ele teria abandonado a brincadeira naquela altura.

- Você... você bateu-me - disse roucamente, e de súbito precipitou-se para ela e agarrou-a pelo braço esquerdo.

-           É certo, bati-lhe, senhor Gangster - replicou Janey.

- E faço-o outra vez. Pensava que me conseguia levar assim tão facilmente? Tome! - E bateu-lhe rápida e fortemente, desta vez com o pequeno punho cerrado.

- Gata selvagem! - bradou Randolph, estimulado a lutar.

E, então, aproximou-se dela. Janey era forte, maleável e flexível como uma pantera e lutou com ele furiosamente. Já não era brincadeira. O áspero contacto das mãos dele e a sua própria violência na acção, fizeram-lhe subir o sangue impetuoso e quente. Ele estava a esforçar-se para a subjugar e ela estava a debater-se para fugir. Ao mesmo tempo batia-lhe e feria-o, com todas as suas forças. Arranhava-lhe a cara. Deitou-lhe as duas mãos aos cabelos e puxou-lhos. Naturalmente a luta não poderia durar muito, porque ele era muito mais forte do que ela. Quando pôs o braço esquerdo por debaixo do braço direito dela e à roda da sua cintura, para lhe agarrar o braço esquerdo, ele teve-a quase desamparada. Então pôs o outro braço debaixo dos joelhos dela e levantou-a.

O cabelo de Phil estava em pé, tal como a juba de um leão; a sua cara estava ensanguentada das arranhadelas; os olhos resplendiam-lhe, ardentes.

- Meu Deus! - ofegou ele. - Quem teria pensado isto de si.

Ponha-me no chão! - gritava Janey, torcendo-se e debatendo-se.

- E montará... aquele cavalo?

- Não... seu estúpido selvagem do Oeste!

- Estúpido?... Ha! Ha! Você acertou no alvo - respondeu ele, descuidadamente. - Muito bem... minha princesa do Leste... Tome isto do estúpido do Oeste.

Curvou a cabeça e beijou-a rapidamente... e outra vez, esmagando os lábios ardentes nos dela.

- Eu... mato-o! - arfou Janey, quando pôde falar.

- Monta e maldita sejas. Desejava que o fizesses - volveu ele, apaixonadamente. Então entregou-se ao contacto e posse dela. Abraçando-a estreitamente cobriu-lhe de beijos os lábios e o pescoço. Janey sentiu na sua cara o sangue húmido que escorria da sua face, toda arranhada. Os seus músculos retesaram-se. Estava como uma mola de aço prestes a saltar. De repente quebrou. A paixão dele venceu onde a força tinha falhado. Mas Janey não perdeu a cabeça. Era como se soubesse que tinha de se conservar representando o seu papel. Além do que o seu colapso e a tremura do seu corpo emocionado, nada tinham a ver com a razão. Ele tinha-a surpreendido com o seu primitivismo de selvagem. A mudança na reacção dela chocou-o e ele abandonou-a.

Janey escorregou para o chão, assim que isto aconteceu, caindo sobre os joelhos. A coisa não poderia ter saído melhor.

- Eu... eu... agora compreendo - arfou Janey. - Você... pretende...

- Meu Deus! - gritou, com horror, Randolph, cambaleando.

- Philip - continuou Janey, lastimosamente. -Não... não sou a rapariga que eu... lhe queria fazer crer. Isto é tanto... minha falta... como sua. Mas tenha piedade. Não seja um bruto.

-           Cale-se! - ordenou Randolph, a cara tornando-se-lhe vermelha escura.

Encostou-se contra uma pedra e sentou-se, cobrindo a cara com as mãos, terrível e profundamente abalado.

Janey caiu em si, descansou um momento e pôs em ordem os vestidos desarranjados. A sua raiva tombou subitamente. Estava ainda consciente da perturbação, das sensações não familiares que, contudo, estavam a acalmar gradualmente. Muito tinha acontecido que não estava no programa. Compreendeu que Randolph não tivera intenção de lhe fazer o mínimo insulto, quanto mais violentá-la. E certamente no seu plano Janey não tinha sonhado fazer-lhe pensar que o acreditava capaz disso. Mesmo naquele momento de perturbação Janey compreendia que daquele incidente mais poderia advir do que se poderia esperar. Ambos estavam a brincar com instintos profundos e desconhecidos. Podiam passar de brincadeira a coisas muito sérias. Mas Randolph não tinha a mais leve desconfiança da duplicidade de Janey.

- Tem sangue na cara - disse, de repente, Randolph.

-           Sim, é seu. Se tivesse feito a minha vontade teria o seu sangue nas minhas «mãos» - replicou Janey, com voz de assassina.

-           Limpe-o - ordenou ele, levantando-se.

Janey puxou pelo lenço.

- Onde é?- perguntou.

-           Do lado esquerdo. Aqui, deixe-me limpá-lo. Com esse trapito não consegue. - Ele tinha um lenço de seda, que usou para lhe limpar o sangue do rosto. Aplicou nisso uma força considerável, agindo como um homem que tentasse tirar uma mancha de culpa.

- Você arranhou-me como... como uma gata selvagem - disse ele, com severidade.

- Esperava que eu ronronasse, não? - volveu ela, sarcástica. Então levantou-se. - Rasgou-me ao meio a manga. Espero que tenha uma agulha e linha.

Ignorando o tom prazenteiro dela, apanhou-lhe o casaco e o chapéu e estendeu-lhos.

- Monte aquele cavalo - ordenou ele.

 

Sem comentários e como uma pessoa aturdida, Janey dirigiu-se para o cavalo e montou-o. A saia ficou-lhe um pouco acima dos joelhos. Pôs-se em pé nos estribos e puxou-a para baixo, mas estava tão curta que lhe mostrava algumas polegadas da pele nua por cima das meias.

- Isto foi imaginado para ser um filme, ou um espectáculo de pernas? - perguntou mordaz.

Não tenho culpa de que você não tenha roupas decentes - replicou ele.

Porque é que não me sugeriu que vestisse o fato de montar?

Pensei nisso. Mas você devia ter suspeitado de qualquer coisa.

Eu? Não. Sou muito estúpida. Se fosse capaz de pensar tinha sabido que você era um vilão... Forçar uma rapariga a montar um cavalo vestida - desta maneira!

- Não me importo como você está - disparou ele com veemência, ferido pela réplica dela. - E não está «muito» pior do que habitualmente.

Tornou a apanhar o casaco de Janey que ela tinha deixado cair e pendurou-o no arção da sela tapando-lhe os joelhos.

Isto, pelo menos, protegê-la-á das queimaduras do Sol.

É muito previdente e amável, Mr. Randolph, - disse Janey, com doçura. - Posso perguntar qual é o nosso destino?

Saiamos da lagoa - disse ele, de mau modo. - Vá à frente.

- Quer-me vigiar, hem? Pensa que posso fugir? Noto que me deu um cavalo que, provavelmente, nunca correu na vida dele.

Acho-a capaz de tudo, Miss Endicott - disse ele.

Que maravilhosa confiança tem em mim! - exclamou Janey.

Depois desta conversa, começou a subir o profundo barranco. Randolph seguiu-a, guiando o cavalo que levava o fardo.

Portanto começara a grande aventura! Janey quase não podia acreditá-lo se não fossem as contusões que sofrera na luta com Randolph, a sua blusa rasgada e aquela ridícula saia, que começava a ter semelhanças com a de uma dançarina de «ballet».

Depois de ter dado balanço ao seu estado físico sondou um pouco o moral. Achou-se ainda trémula, embora mais ligeiramente. O coração batia-lhe forte. E o cérebro trabalhava incansável. Estava sacudida pela amargura para com este homem que tinha sido levado a acreditar que ela não era boa e que precisava de uma lição deste género. Eles pensavam que tinham vantagens, meditava Janey, provocante. Bonita, mas vaidosa! Inteligente ainda que demasiado langorosa para pensar ou trabalhar! Adorável, embora provavelmente imoral! Moderna, mas ainda havia esperanças!

Um pensamento alarmante, que já tinha tido antes, vagamente, assaltou-a. Era possível que estas acusações se justificassem. Janey blasfemou e recusou-se a escutar voz tão traiçoeira.

A coisa de mais agradável, que a invadia, era uma genuína piedade por Randolph. Ele tinha sido um jovem perfeitamente honesto, belo e prometedor até encontrar o pai dela. Estava agora a preparar-se para ser um vilão de primeira escolha. Não havia dúvida. Quando Janey finalmente se divorciasse, não lhe restaria a mais pequena esperança.

Para que ele nunca se recompusesse, decidiu que atrasaria a separação por uns tempos - e entretanto havia de ser muito terna e melancólica para que ele ainda a amasse mais e assim fosse depois, abjectamente, esmagado.

Nesta fase da experiência, as suas meditações eram decididamente agradáveis. E era ainda mais agradável estar a cavalo outra vez. Tinha sido bastante injusta para com o cavalo, porque ele era dócil e fácil de conduzir. Penetraram num atalho que cortava o desfiladeiro.

As paredes agora eram perceptivelmente mais altas e de aspecto diferente. Os declives de areia tinham desaparecido.

A lagoa virava em ângulo à direita e ia dar a um «canyon». Este era profundo e escarpado, emparedado de amarelo e de um extremo ao outro do seu centro, serpenteava um delgado fio de água. Janey supôs que este rio fosse o «Sagi» que já tinha atravessado bastantes vezes. Mas nunca tinha visto este «canyon». O seu aspecto era excitante e perturbador. Havia, certamente, areias movediças. Janey contava expor-se a alguns riscos, de molde a poder descobrir de que era feito Randolph. Se não houvesse qualquer perigo ela o inventaria.

Contudo a areia do leito do rio era desapontadoramente sólida. Daí a uma hora Janey atravessava mais de uma dúzia de vezes aquela corrente de água, sem um contratempo. O seu cavalo era muito melhor ajuizador dos locais do que ela. Entretanto o «canyon» crescia em vastidão e profundidade.

O calor também aumentava. Janey começou a sentir a pele queimada pelo sol. E como o movimento do cavalo lho sacudia muitas vezes o casaco protector, os joelhos começaram a ficar-lhe vermelhos. Era mais uma novidade e ela dividia a sua atenção entre aquele facto e a satisfação de poder, na verdade, mostrar a Randolph mais provas objectivas e reais da sua crueldade.

Por momentos, discretamente, quando o atalho dava uma volta curta, via Randolph à rectaguarda. Não parecia, de modo nenhum, um homem atrevido e mau. Ia curvado. Aparentemente não a via, mas vigiava-a incansavelmente, para evitar alguma tentativa que ela pudesse fazer para fugir.

Talvez estivesse aborrecido agora e esperasse que ela fugisse. Isso era embaraçoso. Janey não queria fugir. Estava só arreliada por ser raptada. Mas não queria que ele soubesse isso. Considerou pois a hipótese de tentar fugir. Porém, esta não a impressionou favoravelmente. Se Randolph não pudesse ou não quisesse agarrá-la, passar-se-ia qualquer coisa de ordem muito diferente. Perder-se-ia, a menos que conseguisse regressar pelo caminho que tinham percorrido.

Janey rejeitou a ideia. Era risco demasiado. E adoptou uma outra, igualmente feminina, e muito melhor. Quando uma volta do atalho a escondeu da vista de Randolph, escolheu um lugar macio na areia do caminho e escorregou do cavalo, tendo o cuidado de fazer parecer que tinha caído.

Agora ouvia o bater dos cascos do cavalo de Randolph cada vez mais perto. Então Janey tentou parecer-se, tanto quanto possível, com uma trouxa velha. Por debaixo da aba do seu «sombrero» viu-o aparecer. Ele teve um violento sobressalto. Saltando da sela correu para ela. O seu gesto e o seu ar foram inenarravelmente doces para Janey. Era duro ter de estar de olhos fechados.

Evidentemente, ele tinha parado para olhar para ela, por um momento. Depois houve um silêncio, e em seguida ajoelhou-se e pôs-lhe a mão no ombro.

- Então o que há? - inquiriu, mais duvidoso do que amável.

Janey mexeu-se e sentou-se.

- Caí do cavalo - disse.

Para quê?

Pense que tive vertigens ou qualquer outra coisa. Você deve ter-me feito mal internamente. Ou desloquei um flanco - de qualquer forma tive uma dor terrível.

Isso é muito mau. Tenho pena. Nunca contei, com fraqueza da sua parte, física ou mental. - Observava o rosto dela, com um profundo e prescrutador olhar e, apesar das palavras que proferia, não estava a ser simpático.

Fraca? Porque estive perto de ter um colapso nervoso, mesmo agora? - volveu Janey.

-           Sim, observei como você era fraca - fisicamente - disse ele. - Provavelmente você podia derrubar-me num combate de «catch-as-catch-can». E ao bater-me no nariz, com o seu punho - bem, você arriscou-se a ficar sozinha durante algum tempo.

Janey lançou-lhe um olhar penetrante.

- Vai levar-me para o posto?

- Claro que não.

- Mas se estou mal ou mesmo doente.

- Você vai para Beckyshibeta, aconteça o que acontecer.

- Beckyshibeta. Mas isso é muito longe, você tinha-mo dito.

- Claro. É longe e também é isolado, acredite-me. Ninguém dará lá connosco.

-           Quanto tempo nós - você me quer conservar lá, prisioneira?

- Não faço a menor ideia do tempo que levará a modificar-se - ou a morrer.

-           Oh!... Muito bem, então pode enterrar-me em

Beckyshibeta - concluiu Janey, levantando-se fatigada.

Recusou a ajuda que ele lhe oferecia e fez um belo esforço para montar, como se estivessem partidos alguns dos seus ossos. E continuou a cavalgar, pensando que a história da fraqueza não pegava com Phil Randolph. Tinha de, calmamente, recobrar as suas forças e tornar-se numa verdadeira amazona. Talvez algum acidente, cuja intensidade fosse suficiente para a assustar mesmo a ela, ocorresse, embora não conseguisse imaginar o que poderia ser. Então tentaria agarrar-se a ele. Mesmo Phil Randolph cairia nessa. Mas teria de ser alguma coisa muito extraordinária para que uma rapariga moderna descontrolasse os nervos. Talvez uma tempestade terrível ou uma inundação! Janey começou a rezar para que acontecessem ambas. Phil Randolph tinha de ser reduzido a um estado perfeitamente deplorável.

Janey cavalgava, recobrando gradualmente o seu equilíbrio na sela. O «canyon» abria-se ante os seus olhos, vasto, a perder de vista. Havia que atravessar prados de relva verde e bosques de cedros. Passou por várias habitações desertas. Os índios tinham: vivido ali. Sentiu o desejo de espreitar pela porta escura, virada a Leste.

O atalho dirigia-se para um ponto onde se bifurcava. Janey esperou que Randolph chegasse ao pé dela.

-           Qual é o caminho, Sir Geraint? - inquiriu.

- Pela esquerda - disse ele. - E não penso que você seja nem um bocadinho como Enid. Ela era dócil. Além de que era a esposa de Geraint.

Bem, Geraint levava Enid à frente dele, para que ela enfrentasse primeiro todos os riscos e perigos. Não há dúvida que a semelhança que existe entre a nossa cavalgada e a deles termina justamente aí.

Aqui, o único perigo, Miss Endicott, é aquele a que eu me exponho. E esse é muito tarde para o evitar.

Perigo! O que queria ele dizer? Talvez a ira dos cow-boys, porque era certo que eles não podiam estar metidos no segredo. Como é que eles iriam encarar esta atitude de Randolph? Janey começou a conjecturar porque é que não tinha pensado naquilo mais cedo. Era verdade que eles tinham partido com o gado, mas tinham que voltar mais tarde ou mais cedo e, portanto, saber. Ali estava um facto que o pai não tinha considerado. Mesmo que ele lhes tivesse que dizer, ela sabia que os cow-boys, especialmente Ray, não se conformariam. Por outro lado, talvez Randolph quisesse aludir ao perigo de se apaixonar por ela. E tinha dito que era demasiado tarde para o evitar. Estava muito contente, e se de facto isso era uma verdade, ela havia de fazer tudo para que ele sofresse cada vez mais.

Seguiram pela bifurcação da esquerda e entraram num interessante «canyon», que ia estreitando até que as esburacadas paredes pareciam prestes a tombar sobre ela. Depressa o atalho se tornou tão asperoso, que Janey teve de lhe prestar atenção e ter cuidado com o cavalo. A subida aumentava até ser tão íngreme como nenhuma que fizera a cavalo até então. À medida que ia subindo, o atalho tornava-se cheio de curvas, até ao declive, e muitas vezes ela pôde olhar directamente para baixo, para Randolph, que não estava a ter muita sorte a guiar o animal com o fardo por aqueles caminhos.

Agora o olhar lá para baixo, quase tirava o fôlego a Janey e ela deixou de o fazer. O atalho algumas vezes estendia-se ao longo de uma plataforma tão estreita que ela se admirava de como o cavalo se podia segurar. Mas este nunca escorregou ou tropeçou e parecia não dar conta da altura. Janey crismou-o de «Surefoot» - «Pé Seguro».

Por fim o atalho subiu até um nível donde Janey pôde ver, lá atrás e em baixo, a rampa vermelha, as vastas rochas, os declives de pedra gasta pelo tempo, os cedros e o sinuoso e seco leito do rio, ao fundo. Janey teve de olhar um bom bocado para localizar Randolph. Não havia atalho para um cavalo carregado ou o cavalo não era o indicado para um atalho tão estreito, íngreme e obstruído. Randolph vinha andando a pé, arrastando o animal. Quando finalmente a alcançou estava vermelho e arquejante.

Noto que o caminho de um transgressor é duro - observou Janey.

Porque é que você não fugiu? - perguntou ele.

Só teria conseguido perder-me. Além de que penso que será imprudente deixar de fazer queixa de si no Comissariado. Tenho também um desejo absorvente de ver o que lhe vai acontecer.

Não será nada comparado com o que lhe vai acontecer a si, - volveu ele, enquanto tornava a montar. - Oh, a propósito, como vai dessa ofensa que eu lhe fiz?

Está melhor. Mas posso conservá-la para sua consideração, Phil. Quero tanto ajudá-lo para que você faça um sucesso desta enfezada que arrancou ao berço paterno.

Apre, você tem-se em boa conta - retorquiu ele.

Bem, sim, não sou exactamente uma criança. Mas serei uma boa experiência para si, de modo que, mais tarde, quando os turistas vierem, você esteja apto a manejar bastante bem algumas das raparigas.

Importa-se de continuar o caminho e não falar tanto - disse ele, com aspereza.

Certamente não teria esperado por si se houvesse algum caminho. Mas não vejo nada.

Continue em direcção àquelas rochas vermelhas - explicou ele, apontando.

Janey fez como ele ordenou, satisfeita por poder, uma vez mais, deixar o seu cavalo à vontade e assim poder reparar em tudo quanto a rodeava. O sol estava a pôr-se, do lado de uma parede alta, que corria para o norte.

A planura do deserto estendia-se à sua frente, com uma linha de horizonte marcada por rochas vermelhas. Em frente, não muito longe, crescentes pinceladas de púrpura começavam a mostrar-se espaçadamente e tornavam-se espessas a distância. Tudo era maravilhosamente fragrante e belo. Agora Janey reconhecia a fragrância da salva.

Grandes nuvens tinham aparecido para Oeste e tinham-se tornado negras e ameaçadoras. Cortinas escuras pendiam delas até ao solo do deserto. Devia ser chuva. A tarde estava quente e abafada, sem uma aragem. A pouco e pouco as nuvens esconderam o sol e tornaram-se de um vermelho sombrio.

Janey ficou um tanto surpreendida ao ver Randolph alcançá-la e ultrapassá-la.

É melhor meter o seu cavalo a trote, se não está muito fraca para o conduzir - disse ele. - Vai haver uma tempestade e nós precisamos de atingir o abrigo das rochas.

Que encanto! espero que chova a potes - respondeu amavelmente.

Não se apoquente. Você vai-se assustar bastante quando a noite chegar, se chover.

Janey esteve quase a rir-se para ele, desdenhosamente, mas aconteceu lembrar-se de que tinha realmente medo de tempestades.

- As tempestades no deserto são más? - inquiriu, com certa ansiedade.

Terríveis,.. Você não calcula. Fica-se meio submerso.

As pedras rolam das rochas e as inundações fazem os rios aumentar assustadoramente.

- Que maravilha!... Imagino que essa foi uma das suas brilhantes ideias para me conservar interessada.

«Surefoot» tinha um trote fácil, pelo qual Janey estava devotadamente grata. Tinha começado a sentir que não era feita de pau. E o passo mais apressado, que levavam agora, dava a ideia de que iam chegar a qualquer lado.

Entretanto o sol tinha desaparecido completamente atrás de umas nuvens muito densas e o trovão ouvia-se a distância. Gotas de chuva começaram a cair e o ar quente arrefeceu perceptivelmente. Janey vestiu o casaco; e foi uma vez mais obrigada a lembrar-se da sua saia absurdamente curta. Que fotografia ela daria! Como os seus companheiros dos passeios a cavalo teriam gozado, se a vissem naquela figura! Pôs-se a pensar no que Randolph faria se chovesse muito. Janey teve a furtiva suspeita de que ele a deixaria ficar tão encharcada como se estivesse debaixo das cataratas do Niagara. Mas, apesar de tudo, uma chuvinha quente não seria uma coisa tão má. Os trovões e os relâmpagos, contudo, faziam-na ficar nervosa, mesmo quando estava em casa.

A tempestade aproximava-se, devagar, através do deserto, e constituía um espectáculo maravilhoso para os olhos habituados às ruas estreitas e populosas da cidade. Janey respirou profundamente. A fragrância da salva parecia intoxicá-la. Sentia a chuva miudinha cair-lhe, suavemente, nas faces quentes.

A brisa crescente trouxe até ela um sopro de poeira húmida.

Randolph fazia trotar o seu cavalo tão depressa quanto o outro animal carregado o podia acompanhar. Janey meteu «Surefoot» a galope. Então sentiu-se bem disposta. Estava atónita porque não se preocupava com a possibilidade de ficar miseravelmente molhada e desconfortável.

Aconteceu porém que conseguiram ultrapassar o cinzento manto de chuva, que se movia já para trás deles, no caminho. Randolph guiou-a para baixo, para o abrigo de uma rocha em prateleira, por entre as estranhas e escarpadas rochas que Janey tinha visto durante tanto tempo. Maciços de cedros e manchas de saliva pontilhavam o declive em frente e, do lado oposto, uma alta parede de rocha fechava o horizonte.

-           Tire a sua sela - ordenou Randolph, praticamente, enquanto desmontava.

Quando Janey acabou de fazer o que ele ordenara, Randolph estava já ali, ao pé, para segurar o cavalo dela e depois soltá-lo.

Se não há um buraco com água neste «canyon» certamente haverá um muito em breve - disse ele.

- Pensa que vai haver uma tempestade? - perguntou ela, sonhadora,

- Tempestade? Vai ver a sua primeira tempestade a valer. Diga-me, sabe fazer campismo?

- Quer dizer partir lenha, cozinhar e lavar pratos?

Bem, não é isso exactamente. Nós não partimos lenha, etc. Mas você apanhou o que eu queria dizer.

Não tenho jeito nenhum para isso - assegurou Janey, o que era uma mentira.

Que bela esposa você fará - replicou ele.

Mr. Randolph, eu estou habituada a ser servida - disse Janey, altiva. - E não o obriguei a trazer-me para este... este passeio de campismo.

Oh céus! - censurou ele, estendendo as mãos para longe. - Já sei... Mas nunca supus que tivéssemos de enfrentar todos estes obstáculos.

Devia combinar o estudo das condições climatéricas com as suas arqueologias e a perseguição às raparigas.

Maçadora! - volveu ele, enfadado. - Não posso libertar-me da ideia de que você foi perfeitamente educada... uma verdadeira desportista em qualquer situação.

Então Randolph voltou-se, sem saber que tinha dado prazer a Janey. Esta esperava merecer o que ele tinha dito. Além de que pareciam ser sinais de que seria experimentada até ao extremo. Contudo, decidiu deixá-lo laborar na dúvida, durante bastante tempo.

Encontrando um lugar onde pôde apoiar-se contra a parede, Janey observou o seu raptor com interesse. Desmanchava os fardos, com mãos rápidas. Depois foi até aos cedros e arranjou uma enorme quantidade de lenha, a qual deitou ao chão com grande estrépito. Os movimentos seguintes foram acender uma fogueira e lavar as mãos. Depois disto, com uma rapidez e facilidade que surpreenderam Janey, misturou massa de biscoito numa caçarola. Havia vários cantis cheios de água e muitas sacas de lona todas cheias. Pôs dois pequenos fogareiros de ferro e uma cafeteira na fogueira. Se Janey fosse cega depressa se aperceberia agradavelmente do café fumegante e do fritar do toucinho. Depois Randolph endireitou-se e olhou na direcção dela.

Claro que você pode jurar que há-de morrer de fome. Mas não o fará. É melhor poupar-se e não fazer figuras tristes... Vamos cear?

Sim, professor Randolph, tenho fome. E além disso tenho curiosidade de ver se você cozinha bem. Você tem tantos e tão variados talentos.

Ele trouxe-lhe a ceia e pô-la numa rocha ao lado dela. Janey tinha dito a verdade quando disse que estava cheia de fome, mas não lhe disse como tudo lhe soube bem. Os biscoitos quentes, muito amanteigados, estavam deliciosos. E quando provou aquele café? Para sobremesa teve uma taça de pêssegos de conserva, em fatias. E toda a refeição foi óptima. Janey teve vergonha de pedir mais, mas podia ter comido mais um bocadinho.

Entretanto caiu a tarde e as sombras do crepúsculo encheram as cavernas lá em baixo. Uma chuva constante começou a cair. A fogueira do acampamento iluminava o tecto inclinado da rocha. Janey andou para cá e para lá até à esquina de uma parede saliente e explorou alguns dos nichos. Sentia-se bastante cansada e moída. Os seus joelhos estavam queimados da longa exposição ao sol. As faces estavam muito quentes.

Randolph pôs-se a fazer molhos de lenha. Não parecia dar pela chuva, mas certamente devia estar molhado e nem sequer se incomodava a vestir o casaco. Podia agora ser observado a uma luz diferente. Janey lembrava-se de grande parte dos seus amigos e conhecidos, que se vestiam bem e conversavam e dançavam e ornamentavam as reuniões sociais da grande cidade, os quais ela duvidava de que servissem para alguma coisa ou fossem capazes de lhe dar protecção ali, no deserto.

Dirigiu-se para a fogueira e estendeu as mãos para a chama. O ar da noite tinha começado a arrefecer. O calor do fogo era agradável.

- Você assim molha o cabelo - disse Randolph, com ar desaprovador.

- Não tem importância - respondeu Janey, pondo a mão na cabeça.

- Bem, como não é muito, secará depressa... Antigamente você devia ter tido um lindo cabelo.

- Antigamente?

- Sim, antigamente. As mulheres têm sacrificado tudo, à moda e ao conforto. A graça, o encanto, aquela qualquer coisa de atraentemente natural que as mulheres tinham, desapareceu com o seu cabelo comprido. É uma pena. Porque é que você se quer parecer com um homem?

- Parecer-me com um homem? Mas eu «nunca» quis.

- Então para que é que cortou o cabelo?

- Para ser franca, não sei. As minhas razões parecer-lhe-ão loucas. Mas é um facto que as mulheres são escravas da moda. Costumavam ser escravas de muita coisa - dos homens, por exemplo. Mas já eliminámos esse hábito.

Estou a pensar se as mulheres também eliminaram o amor? - inquiriu ele, não sem uma ponta de melancolia.

Provavelmente elas fazem-no, até que os homens sejam dignos dele.

Randolph dirigiu-se altivamente para a escuridão e permaneceu lá tanto tempo, que Janey começou a inquietar-se. Com certeza que ele a não deixaria sozinha. Estava escuro como breu, agora; a chuva e o vento tinham aumentado; a solidão do lugar parecia ter-se acentuado. Janey olhou para aquele vácuo escuro e depois para baixo para as rochas cavernosas. Devia haver todas as espécies de animais ferozes. Cobras e outros répteis. Era delicioso para uma mulher estar sozinha em certas ocasiões, mas aqui estava uma em que era evidente a falta de um homem. Para alívio dela, Randolph emergiu da escuridão, carregando outro molho de lenha.

- Vai ficar a pé toda a noite? - perguntou ele. - Amanhã vai ser o dia mais duro da sua vida. Você precisa de dormir e descansar.

- Onde é que poderei fazer isso?

- Vou fazer a sua cama ali em cima - disse Randolph, apontando para uma plataforma. - É fácil subir para lá.

E não se molhará... Estenderei o meu oleado e os meus cobertores aqui ao pé do fogo.

Janey não mostrou vontade nenhuma de se retirar de vez. Estava bastante cansada, mas não gostava de ser mandada, como uma criança. Manteve-se ao pé do fogo até estar completamente seca. Então sentou-se numa pedra, a uma certa distância das achas crepitantes e vermelhas, Randolph estava do outro lado, olhando para o chão, de mãos estendidas. Parecia ter o peso do mundo sobre os ombros. Então virou as costas ao fogo e esteve assim por um grande espaço de tempo. O vento fresco e húmido fustigava a rocha; a chuva caía com bulha e firmemente lá fora; o fogo estalava e crepitava; o fumo aromático espalhava-se por aqui e por ali. Por fim Randolph tornou a voltar-se para o fogo. Parecia mais perturbado que nunca.

- Mr. Randolph, você parece gravemente pensativo para um homem que realizou o seu propósito - observou Janey.

- Estava justamente a pensar - replicou ele, lançando-lhe um estranho olhar - que agradável piquenique este poderia ter sido - se nós fossemos bons amigos.

- É verdade, não teria sido? - volveu com volubilidade Janey.

- Muito pouco razoável da minha parte, eu sei. Não esperava nem podia esperar que você se divertisse sendo arrastada desta maneira. Mas o estarmos aqui faz-me pensar que... que maravilhoso isto seria se... se...

Não acabou a frase e as suas últimas palavras estavam cheias de pesar. Evidentemente sentia que tinha sacrificado muito à fantasia do pai dela. Janey teve a desagradável impressão de que mais cedo ou mais tarde ele trairia seu pai e explicaria todo este procedimento inaudito. Não queria que Randolph fizesse isso e tinha que impedir que isso acontecesse. A única maneira, repetia ela a si própria, era aborrecê-lo tanto que ele acabasse por ficar cheio de ira e aversão. Como último pensamento Janey reflectiu que podia corrigir a terrível impressão que ela estava provavelmente a dar-lhe. Mas supondo que ela não podia! Rejeitou este último pensamento como absurdo.

Preferia que você me tivesse raptado numa «limousine» - disse ela, inconsideradamente. - Estou acostumada a andar muito depressa, e a parar em lugares esquisitos.

Bom Deus! - exclamou ele. - Começo a acreditar em seu pai!

O que é que ele diz?

- Não importa. Mas era bastante... E... você far-me-á o favor de conservar os seus... os seus costumes para si. Janey riu disfarçadamente.

Se isso não é exactamente próprio de um homem! Mereço muitos agradecimentos por estar a tentar simplificar as coisas por sua causa.

Simplificar o quê? - perguntou ele, implicante.

Porque, sou enfezada... Agora que você me trouxe para o seu velho deserto, pensava que ficaria contente por ver que não sou uma rapariguinha inocente e ingénua.

- Janey Endicott, você é uma mentirosa - quase lhe gritou ele, levantando-se encolerizado. Então rodou nos calcanhares e deu grandes passadas na escuridão, ao longo da parede de rocha.

Deixou Janey com o coração a bater forte. A despeito das suas cruas observações ele estava a lutar para conservar vivo o ideal que fizera dela. Janey pensou que tinha de ir demasiado longe e feri-lo de morte. Mas a verdade era que seu pai a tinha grosseiramente representado e que ela tinha ajudado e acrescentado esta representação com falsidades. O amor não se mata tão facilmente e, com certeza, nunca com algumas mentiras. Ela tinha de continuar a farsa. E a revelação do seu verdadeiro eu para Randolph seria de tudo o mais doce. Olhando para o coração de opala da fogueira do acampamento, Janey perdeu-se momentaneamente num sonho, do qual acordou, com um sobressalto. Um coiote tinha soltado o seu lúgubre grito de guerra, o que fez Janey estremecer.

Deixou a fogueira e subiu a rocha escarpada até ao declive onde Randolph fizera a cama dela. Que bela e aconchegada rocha, tão alta e tão seca! Janey sentir-se-ia razoavelmente a salvo quando Randolph voltasse. Sentou-se no oleado que cobria a cama e o seu contacto provocou-lhe a ideia de que durante muito tempo não teria o leito de penas ou o colchão de crina a que estava habituada. Depressa compreendeu que teria de dormir vestida, pela primeira vez na sua vida.

Que estranho! Então, sem mais hesitações, tirou o casaco, fez uma almofada com ele e, descalçando os sapatos, deslizou entre os cobertores, estirou-se ao comprido e ficou quieta.

A cama consistia em dois finíssimos cobertores com uma lona por baixo e sobre eles. Dura como uma tábua! Mesmo assim que descanso, calor e conforto a cama lhe dava. O fogo desenhava sombras fantásticas sobre o telhado desta estranha habitação. Rajadas de vento traziam gotas de chuva gelada e o cheiro e o fumo da madeira, até à sua cara ardente. Acima do barulho do cair da chuva, ouvia o constante crepitar do fogo. Olhando por cima do ombro viu Randolph reanimando este com grandes toros de lenha. A vista disto deu-lhe grande satisfação. Philip Randolph estava numa situação bastante séria.

Janey instalou-se confortavelmente para pensar em tudo o que lhe estava a acontecer. Mas não parecia ser capaz de controlar os seus pensamentos como habitualmente. As pálpebras caíam-lhe pesadamente e, apesar dela as abrir muitas vezes, tornavam a fechar-se, até que finalmente se fecharam de vez. Um agradável calor e uma sensação de sonolento descanso instalaram-se no seu corpo dorido. Teve um vago sentimento de ansiedade em relação a cobras, tarântulas, escorpiões, mas tudo isso passou. Foi sendo, vagarosamente, possuída por qualquer coisa bastante mais forte do que o seu cérebro. O cair da chuva parecia diminuir. E o seu último e lento conhecimento tinha qualquer coisa a ver com a fragrância do fumo.

Janey semi-acordou várias vezes durante a noite, revolvendo-se para encontrar um lugar mais macio na cama. Mas quando acordou completamente era já dia. A chuva tinha parado. O nascer do sol estava tempestuoso, todo vermelho e negro, com um pedacinho pequenino de céu azul por trás. Quando se sentou, com um gemido, e tentou endireitar-se, pensou que todos os ossos do seu corpo estavam quebrados. Sentou-se na cama, penteou o cabelo e, dissimuladamente, limpou o rosto queimado, com creme. À borda da rocha observou Randolph ao pé da fogueira, activo e assobiando. Assobiando! Janey escutava-o enquanto calçava os sapatos. Então ergueu-se sobre os joelhos. Nunca havia tido os músculos tão magoados. O braço que Randolph tinha torcido era o pior.

- Eh, aí em baixo - chamou Janey. - Como se

chamava aquele barão bandoleiro que correu com Maria Tudor?

Randolph encarou-a, quase a rir.

-           Bothwell, creio - replicou constrangidamente.

-           Bem, bom dia, Mr. Bothwell -acrescentou Janey.

Ele devolveu-lhe o cumprimento com o ar de um homem que tinha quase esquecido alguma coisa desagradável. Não assobiou mais nada e olhou Janey, desconfiado, enquanto ela coxeava e quase rastejava da rampa para aquela plataforma.

-           Como vão as comidas? - perguntou ela, animadamente.

- Estava justamente para a chamar - disse ele. - O pequeno almoço estará pronto logo que o café ferva.

- Que dia vamos ter?

Mau, receio. Deixou de chover, mas julgo que vamos ter ainda muita chuva.

Oh, como eu estou dorida. Você quase me partiu o braço. E aquela cama de pedra acabou comigo.

Espero que as ofensas internas estejam melhores - continuou ele, secamente.

Oh, isso! Suponho que era fome ou mais um terrível transe de desapontamento, ao encontrar em si tal monstro... Chame-me quando me puder dar qualquer coisa de comer.

Janey começou a passear, para esticar os membros. O céu por cima das cabeças deles estava pesado e cinzento, excepto onde um pálido brilho tinha substituído o rubro levante. Ouviu um rumor, em baixo, no «canyon», e concluiu que era água corrente. Pequenas correntes lamacentas corriam para fossos pouco profundos. Para além daquela rocha, via lençóis de água correndo por entre rochas. Os cedros estavam verdes e frescos; e a salva tinha um esquisito matiz de púrpura. Janey aventurou-se até à orla do pequeno bosque de cedros; e viu, lá em baixo, o «canyon» onde uma torrente vermelha redemoinhava e esparrinhava. Lembrou-se de ouvir o comerciante falar em súbitas inundações precipitando-se nas lagoas e charcos secos. Esta era uma delas; e agora podia compreender porque é que as grandes tempestades impediam as viagens pelo deserto.

Um grito fez dirigir os passos de Janey para o acampamento.

Randolph tinha o pequeno almoço pronto, e estava igualmente tão apetitoso quanto o estivera a ceia da noite anterior.

É evidente que você não vai matar-me à fome, para me submeter de qualquer maneira - observou ela.

Não percebo nada de submissões, mas você estaria morta de fome dentro de muito pouco tempo, concordo - declarou ele.

Temos de atravessar este «canyon»?

Temos e depressa, ou então não o conseguimos atravessar.

- Mas há lá em baixo uma torrente muito regular. - Não está má ainda.

Então temos que nos apressar?

Sim. Se nos despacharmos - e tivermos sorte - poderemos chegar a Beckyshibeta esta noite.

Nem por nada deste mundo Janey teria importunado Randolph para que voltassem para trás. Mas agora a natureza séria daquela viagem pelo deserto, feita sob péssimas condições, era uma realidade para ela; e a sua disposição de ânimo, um tanto leviana, sofreu um abalo. Não disse mais nada. Despachando-se a tomar o pequeno almoço, pôs-se a ajudar Randolph nos trabalhos do acampamento. Ele protestou, mas ela não fez caso.

- Onde estão os cavalos? - perguntou de repente.

- Andam por aí perto. Estão fatigados, como sabe, e não se afastam do bom pasto. Vou já buscá-los.

Esteve longe dali tanto tempo que Janey começou a inquietar-se.

Por fim apareceu montando o seu cavalo sem selim e guiando os outros dois. «Surefoot» parecia mais gordo. Janey encarregou-se de o selar. Como cambaleasse com o peso da sela, viu Randolph olhando-a pelo canto dos olhos. Quando acabou, virou-se para ele que estava a carregar os fardos no animal que os iria transportar. Janey tinha observado os cow-boys lançarem o que eles chamavam o «nó de diamante» - uma figura intrincada com oito laçadas, que seguravam os fardos sobre os animais - e agora via que Randolph era tão hábil como qualquer deles. Contudo a sua fraca ajuda foi bem acolhida por ele. Só fez um reparo, que consistiu na maneira como ela puxou a corda. Quando o fardo ficou amarrado Randolph selou o seu cavalo.

Deixei as minhas calças de couro cá fora para você vestir - disse, indicando um par de calças de couro, já usadas, que estava estendido em cima de uma rocha.

- Como posso eu usar isso com este fato? - perguntou Janey.

- Não sei. Meta a sua saia dentro delas. Creio que não tem muito que meter.

Janey tolerou a mordaz observação e, pegando nas calças, vestiu-as. Estavam muito compridas e muito largas. Pela expressão de Randolph, concluiu que devia estar com um aspecto muito estranho.

Foi ao tentar montar o seu cavalo que Janey teve um desgosto. As calças eram muito tesas e pesadas e ela não podia alcançar o estribo com o pé. Randolph ofereceu-se para a pôr lá em cima, mas ela recusou. Finalmente fez um violento esforço e deu uma espécie de salto. Escapou-lhe da mão a maçaneta do arção da sela e o estribo do pé e caiu por terra. Janey levantou-se rapidamente, enfurecida. Se havia alguma coisa que ela detestasse era o parecer desajeitada. O rosto de Randolph tinha um olhar forçado. A custo continha o riso.

Sugiro-lhe que tente montar de cima desta rocha - disse.

Montarei daqui, ou morro - replicou, furibunda, Janey.

Em seguida levantou o pé esquerdo com ambas as mãos e pô-lo em cima do estribo. Então saltou e apanhando a maçaneta do arção da sela pelo canto arrastou-se para cima dela.

-           Não está mal para tão delicado pé - observou

Randolph. E começou a cavalgar guiando o cavalo do fardo.

Janey seguiu pela rampa de terra vermelha e seca abaixo, por entre rochas gretadas, até ao «canyon». Tornearam uma esquina e chegaram junto do rio rápido e lodoso. Lá tudo estava silencioso, mas, mais de baixo, vinha até eles um rumor melancólico. Janey nunca tinha visto água de aspecto tão sujo. Era quase lama, Que lugar terrífico para nele se aventurarem!

Randolph atravessou um banco de areia e incitou o Seu cavalo a entrar na água. Depois esporeou, imprecou e arrastou o animal de carga. Levantaram enormes salpicos de lama.

Janey concluiu que quanto mais rapidez usasse mais fácil e mais a salvo faria a travessia. O seu coração, com o susto, sentia-o bater na garganta, O cavalo de Randolph seguia, mergulhado até aos flancos. Que esforço tremendo e, ao mesmo tempo, desajeitado faziam os dois animais. Janey quase os perdia de vista, no meio da lama que eles levantavam. Por fim alcançaram água pouco profunda, começaram a emergir e patinharam, já a salvo, no lado oposto. Randolph parou o seu cavalo e virou-se para trás para a observar. Por um momento apenas olhou.

- Bem, Central Park - gritou num tom que espicaçou Janey.

A postos, caçador de fósseis - replicou ela, provocante.

«Surefoot» preferia ter voltado para trás, naturalmente. Janey teve de lhe bater para que ele se pusesse a andar. E então não pôde fazê-lo andar suficientemente depressa. Ele chafurdou até aos joelhos, andou mais devagar e começou a patinar no lodo.

-           Venha depressa - gritou Randolph.

Janey incitou o seu cavalo, com toda a alma. Era demasiado tarde para obter bons resultados. «Surefoot» batia na água profunda com um andar tão lento que era arrastado pela corrente. Os olhos de Janey, muito abertos, viram o rio vermelho bem pelos seus quadris. Como era frio, furioso e forte! Randolph cavalgava loucamente ao longo da margem oposta gritando ela não sabia o quê. Perante um perigo tão real, o bom senso e os nervos de Janey dominaram o seu terror. Conservou-se sentada na sela. Puxou «Surefoot» pelo rio abaixo diagonalmente. Este meio nadava, meio patinhava. Cinquenta metros abaixo do sítio onde Randolph tinha feito a travessia, o cavalo de Janey encontrou água pouco profunda e o leito do rio mais duro e fez-se à margem, justamente acima de um lugar onde a corrente se apertava entre dois despenhadeiros e começava a ser caudalosa.

Randolph dirigiu o cavalo ao encontro dela.

Devia ter-se apressado mais - disse, quase austero. Mas o facto da sua cara estar completamente branca fez com que Janey esquecesse a rudeza das palavras dele.

Você avisou-me um pouco tarde - respondeu friamente.

Desculpe. Eu... eu pensava que você me imitasse - redarguiu ele, fazendo um esforço.

Janey não precisava que ele lhe dissesse que tinha escapado por um triz. Ela estava só a dissimular o que sentia efectivamente.

-           Por favor, não se desculpe. Não esperava tanta

cortesia da sua parte - disse inexpressiva.

O sangue subiu à cara pálida de Randolph, que abafou uma réplica. Depois tornou a cavalgar até junto do animal carregado e pegou-lhe outra vez nas rédeas. Janey seguiu atrás dele, ponderando nas possibilidades daquele dia tão cheio de acontecimentos.

Cinco horas mais tarde, e quinze milhas mais longe, sobre este deserto considerável, Janey tinha experimentado sensações nunca antes conhecidas, excepto por ouvir dizer.

Tinha estado molhada até aos ossos, durante horas. Não tinha chovido, caíra um verdadeiro dilúvio. Tinha atravessado tantos regos, baldios e desfiladeiros que já lhes tinha perdido a conta. Tinha caído do cavalo na lama. Tinha sido obrigada a desmontar e a subir escarpadas rampas de areia molhada, onde cada passo parecia o último que ela daria, antes que caísse pesada e repentinamente no chão, para morrer. Tinha sido arrastada por Randolph através de enseadas que bramiam e tinha sido salva da morte pelo menos duas vezes. E o estranho de tudo isto era que tinha escondido do seu raptor o verdadeiro estado apavorado e miserável em que se encontrava. Jurou a si própria que, por nada deste mundo, se mostraria assustada ou andaria de rastos - para não dar a esse homem e a seu pai a satisfação por que eles suspiravam. De qualquer maneira ela provaria uma coisa - que uma rapariga moderna podia ter mais sangue frio que todas as outras mulheres juntas. Por último sentia-se incapaz de decidir se iria acabar por detestar apaixonadamente Randolph ou por o amar. Certamente que ele não podia ter planeado todas as peripécias que lhes tinham acontecido. Ele tratava-a quase exactamente como se ela fosse um rapaz. Na verdade tinha sido por causa disto que ela, em duas ocasiões, se tinha quase afogado. Todavia ele ficara assombradamente frio e indiferente ao perigo que ela correra. No entanto, quando necessário, tinha a rapidez, o discernimento e a força precisas para a salvar.

A chuva parava, de vez em quando, e assim Janey podia ver o deserto. Se alguma vez ele tinha sido plano, agora decididamente não o era. Estava partido em pedaços desiguais, cheio de inúmeras voltas, soerguido e monumental. Uma amálgama selvagem de paredes, rochas, pedras e «canyons».

Não havia um farrapo enxuto em cima dela e da cabeça aos pés era toda lama vermelha. A areia e a água misturavam-se dentro dos seus sapatos. Quando Randolph fazia trotar o seu cavalo, ou desmontava para subir e descer qualquer barranco, Janey fazia o mesmo e ficava cheia de calor e sem fôlego por causa do exercício a que não estava habituada. Quando cavalgavam devagar, o que afortunadamente não acontecia muitas vezes, ficava gelada. E agora começava também a ter fome,

Lembrou-se de que tinha guardado e embrulhado um pedaço de carne e um biscoito e que os metera na algibeira. Cheia de tristeza encontrou o biscoito todo molhado e desfeito.

Mas mesmo assim sempre o comeu. Depois o bocado de carne. Nada ainda lhe tinha sabido tão bem. E reflectiu como tinha apreciado pouco os alimentos até àquela altura. É preciso uma pessoa estar a morrer de fome, para se compenetrar disso.

A chuva estava a cair outra vez, tão grossa e densa que só vagamente Janey distinguia o cavalo que levava o fardo, a uns escassos quinze passos mais à frente. A sela era um lago de água fria. Chovia dentro das calças de couro e dos seus sapatos. Era uma sensação horrível! A água caía, com força, nas suas costas e corria em fio da aba do seu chapéu. Pacientemente ela esperava, rezando por uma calmaria. Mas não vinha nenhuma. E o seu estado tornou-se de extrema desdita. Tudo o que ela pedia agora era viver o bastante para estrangular o pai e assassinar Randolph.

Janey estava a aprender alguma coisa que nunca sonhara - o poder de aguentar o sofrimento latente que um ser humano pode ter. Manobrava para sustentar o seu cavalo, para se manter sem gritar. Mas sabia que outro desfiladeiro, se eles encontrassem um, seria o seu fim. Atirar-se-ia justamente do cavalo abaixo e sossobraria à vista de Randolph. Talvez assim comovesse aquele indiferente bruto!

Não encontraram mais «canyons» contudo, não obstante as paredes de rochas se tornarem quase montanhosas. Por uma vez Janey pareceu aperceber-se que a melancólica luz cinzenta estava a escurecer. O dia estava a declinar e a tempestade parecia crescer em fúria. Por vezes as grandes paredes proporcionavam protecção, mas eles cavalgaram muito tempo desabrigados. «Surefoot» agora conservava-se junto ao cavalo carregado. Quando Randolph, por fim, parou, Janey teve uma acabrunhante sensação de paredes enormes e negras e de um bramido de vento ou água.

-           Tem estado um dia horrível - disse Randolph,

enquanto a ajudava a descer da sela.

Janey pôde fracamente ver a cara dele na escuridão. Quando tentou desmontar, conseguiu simplesmente deslizar pelos braços de Randolph. Ele levou-a alguns passos e sentou-a, direita, numa rocha.

-           De qualquer forma, você é uma criança corajosa - murmurou ele, como se falasse consigo próprio. Depois desapareceu. Janey achou que se podia apoiar contra a parede, o que fez com um inexprimível alívio. Evidentemente eles estavam debaixo de alguma espécie de plataforma, porque ali estava seco. Ela respirou pó que nunca tinha estado molhado. A escuridão acima era fendida por

uma faixa pálida que devia ser o céu. O barulho do vento e da água enchiam o lugar, com um estrondo surdo. Tinha muito frio, sentia-se miserável, inerte e esfomeada. Se ao menos pudesse dormir ou morrer! A sua desventura era horrorosa. Com dificuldade podia erguer as mãos. Todos os ossos do seu corpo pareciam quebrados, todos os músculos magoados. E estava tão molhada que sentia que iria transformar-se num charco!

De repente uma luz quebrou a escuridão, e ela ouviu um estalido. O vulto de Randolph mostrou-se contra uma confusa chama.

Tinha acendido uma fogueira. Maravilhoso homem, capaz de conseguir lenha seca no meio de tal dilúvio! Ela viu uma labareda azul dourada saltar de uma pilha de ramos e paus. Em um momento o local iluminou-se com um fogo rumorejante. O que teve um subtil efeito em Janey. Viu abruptas paredes de rocha por três lados e um buraco negro, do outro,

Randolph aproximou-se dela e puxou-a para o pé do lume.

-           Venha secar-se e aquecer-se. Ficará melhor - disse ele, e colocou um dos fardos de lona para ela se sentar.

Mas Janey, fraca como estava, ficou em pé, junto das chamas, estendendo para elas as mãos frias e trementes.

- Sabe bem - replicou.

Na verdade ela queria passear por sobre aquela pilha de paus incandescentes. O que é que ela sabia acerca de uma fogueira? Da sua beleza singular, do seu poder reconfortante, da sua maravilhosa propriedade de aquecer a nossa carne! Era a diferença entre a morte e a vida. Compreendia os bárbaros que a tinham primeiro inventado, ou descoberto. Sabia agora porque amava o sol.

As suas roupas molhadas começavam a secar. Virava-se de um lado para o outro, para secarem melhor.

-           Sente-se e deixe-me tirar-lhe as calças de couro - sugeriu Randolph.

Quando terminou esta tarefa, que não foi fácil, pelo facto de Janey ter de se segurar desesperadamente ao fardo para não ser também arrastada, sentiu-se quase como se estivesse despida.

A curta saia de lã tinha encolhido e enrugado de tal maneira, que constituía um espectáculo que fez Janey romper às gargalhadas, apesar das suas penas. Randolph ria também, mas evidentemente evitava olhar para ela. Depois de torcer a saia tanto quanto pôde, Janey aproximou-se da fogueira tão perto quanto ousou. Voltou-se e tornou a voltar-se, sentou-se sobre o fardo para descansar um pouco e depois voltou a repetir a cena. Era espantoso como as roupas secavam rapidamente. E igualmente espantoso era o efeito disto sobre o seu espírito.

Entretanto Randolph preparava a refeição deles com tanta rapidez que Janey pensou que ele devia ter gasto a lenha toda.

Qual é a pressa? - perguntou Janey. - De qualquer maneira parece-me que temos de passar aqui a noite.

Você não está com fome?

Absolutamente esfomeada.

Bem, essa é a razão desta pressa.

Você é terrivelmente bom para mim... Onde estamos?

Beckyshibeta.

Tão depressa! - exclamou Janey, olhando em redor. O clarão da fogueira deixou-lhe ver paredes amarelas, cavernas escuras, buracos; e em frente um pedaço do solo salpicado de rochas precedidas por árvores confusamente delineadas e depois tudo impreciso.

- Era portanto a maior ambição da sua vida trazer-me para aqui? - disse Janey incrédula. - Caramba, os homens são estranhos!

Você devia conseguir muito mais se me levasse para o «Waldorf Astória»!

- Qualquer homem podia fazer isso - respondeu Randolph - Pelo menos você lembrar-se-á sempre deste passeio.

-           Também digo o mesmo!

A chuva parara e o vento perdera a força. Janey ouvia ao longe um fraco rumor. Randolph informou-a de que era o rumor do trovão e que estavam no meio de uma tempestade ainda pior.

Mas nós estamos secos e a salvo, a não ser que haja uma inundação. Já tem acontecido outras vezes.

Deveras? Que lugar tão interessante.

Está bem enxuta?

- Completamente, creio. E até um bocadinho tostada.

-           Então venha para a mesa do festim - acrescentou ele.

As necessidades dos povos primitivos deviam ter sido muito poucas. Abrigo, calor, alimentos e alguma coisa para se cobrirem. E contudo eram essas as necessidades capitais e importantes. Janey estava tão grata pelas três primeiras, que quase se conformava com a falta da última. Reflectia que se a sua saia encolhesse mais, teria de usar permanentemente as calças de Randolph ou pareceria uma das coristas das «Follies». Bem se importava ela, depois de tudo aquilo. Seria só mais uma coisa para acrescentar a todas as iniquidades de Randolph.

Janey ia pensando deste modo e comendo copiosamente, quando qualquer coisa aconteceu.

Tudo se tornou ofuscante e deslumbrantemente branco. Deixou de ver. Outra vez uma escuridão profunda, depois um terrível e terrífico estrondo. As enormes paredes pareciam ir ruir. Janey gritou, ainda que não conseguisse ouvir a sua própria voz. Estampidos tremendos e enormes pancadas misturaram-se com encadeados trovões, que ribombavam, deixando Janey fraca e paralisada de medo.

- O-o-o que é... i-i-isto? - gaguejou.

- Apenas um pequeno relâmpago e um trovão - replicou ele. - Tornam-se aborrecidos quando os clarões de luz descem como chuva. É melhor acabar a sua ceia. Então pode meter-se debaixo dos cobertores e assim impedir a entrada dos clarões.

O apetite de Janey fora eficientemente reprimido, mas conseguiu engolir o resto da refeição, num instante, temendo algum outro estrondo de partir a terra. Mas não houve mais nenhum. Porém ela juntara a surpresa ao receio. O silêncio e a escuridão tornaram-se mais opressivos.

- Onde é... a minha cama? - interrogou Janey, levantando-se.

- Ainda não a fiz - replicou Randolph, levantando-se de um salto.

Justamente nessa altura uma repentina chama azul -prateada cegou Janey. Ela ficou como uma pessoa atacada, com todos os músculos, nervos e células do cérebro em suspenso, até ao esperado estrondo. Tal foi ele que Janey perdeu os sentidos. E quando voltou a si outra vez, um potente rumor de trovão ribombou pelas paredes. Randolph tentava levantá-la.

Janey abriu os olhos e chegou-se mais para Randolph. Ele tinha-a agarrado pelos joelhos quando um outro clarão branco e um terrível barulho a fizeram cair nos braços dele.

Randolph levou-a alguns passos para trás e deitou-a. Mas ela continuou agarrada a ele.

- É só uma tempestade... são apenas trovões e relâmpagos - começou ele a dizer, muito sinceramente. - Nós estamos a salvo. Não podemos ser atingidos ou feridos. Só há um perigo... o da inundação. Mas teria de chover durante muito tempo... Janey, não seja tão criança. Porque...

As suas palavras não conseguiram recompor Janey. Ela sabia-o, demasiado. Estava fisicamente exausta. E desde criança que tinha o pavor das tempestades. Aquele pavor tinha nascido com ela. E nunca tinha visto ou ouvido nada que se comparasse com estes trovões e relâmpagos. Cegavam, ensurdeciam, esfrangalhavam os nervos e aturdiam completamente. Era por isto que Janey escondia a cara no peito de Randolph e se agarrava a ele, com todas as forças que ainda possuía. Sabia que ele tentava desembaraçar-se... que ele continuava a conversar, mas ambos, gestos e voz, aumentavam o seu terror. Os trovões viriam outra vez e ela queria estar escondida e segura. Eles vinham, e Janey, mesmo com os olhos fechados e a cara bem comprimida contra o peito de Randolph, via a intensa luz branca. Depois seguia-se o estrondoso ribombar. A terra estremecia debaixo dela. Todo o mundo parecia estar cheio de sons que o abalavam, que batiam atrás e à frente, de parede para parede e que rolavam como uma montanha de pedra.

Janey lembrou-se da comédia que tinha pensado representar, de uma perversa esperança que tinha tido por esta bela oportunidade.

- V-v-ocê conseguiu q-q-q-ue eu perdesse a c-c-c-alma - gaguejou.

A resposta de Randolph perdeu-se noutra explosão. Mas Janey sentiu-o cerrá-la bem nos braços e apertá-la bem contra ele. Então pareceu que a tempestade se quebrou em incessantes relâmpagos e trovões de tal modo que não havia mais escuridão ou silêncio. Aqueles momentos, muitos ou poucos, foram os piores porque Janey algum dia passara. Quando a tempestade passou ela estava absolutamente inconsciente. Mas sentiu Randolph estendê-la e cobri-la com os cobertores. E foi a última coisa de que deu conta.

Quando acordou, o sol brilhava em qualquer parte, porque viu a extremidade da altíssima parede coroada de ouro. Lembrou-se imediatamente de onde estava e de como tinha ido ali parar. Sem embargo, o lugar era tão encantador e magnificente como o mais belo sonho. Grandes paredes e colunas de pedra, cor de rosa, elevavam-se por cima dela. Cinicamente podia ver uma estreita tira de céu azul. Ouvia um soturno rumor de água e vinha até ela o cheiro do fumo da madeira.

- Portanto isto é Paris... quero dizer Beckyshibeta - murmurou Janey, com espanto. E tentou levantar-se para poder ver em torno de si. Mas, com o movimento, tal dor lhe percorreu o corpo que ela caiu para trás, soltando um grito pequeno e agudo. Estava tão cheia de cãibras e entorpecida, que o mais ligeiro e pequeno esforço lhe causava sofrimento. Por isso moveu os seus doridos membros, muito cautelosamente, e, do mesmo modo, esticou o corpo magoado.

Janey blasfemava, baixinho, quando descobriu os seus sapatos enlameados numa rocha ao lado da sua cama. Não se lembrava de os ter tirado. Randolph é que o tinha feito. O seu casaco, também, estava debaixo da sua cabeça. Então confirmou, com um certo alívio, que estes dois amáveis serviços tinham constituído todas as actividades de Randolph, como criado de quarto de uma senhora.

Ouviu um passo raspar na rocha. Randolph apareceu, olhando ansiosamente, para ela.

- Chamou? - perguntou ele, com brevidade.

- Apenas gritei - replicou, olhando-o e tendo o cuidado de conservar os cobertores agarrados ao queixo.

Bom dia - continuou ele, lembrando-se de repente.

Bom dia - volveu Janey, docemente.

Como se sente?

Não tenho a certeza, mas penso que estou morta.

Então é com certeza um vivo e elegante cadáver - disse ele, rudemente. - Oh, meu Deus, duvido que haja alguma coisa que possa estragar a sua beleza.

O seu tom era não só de exasperante resignação, mas também de admiração relutante. Para Janey foi como que uma gota de vinho.

Você está a falar em Deus, Phil?

Claro que sim.

Bem, penso que isso é um sacrilégio!

Em casos extremos, o homem mais miserável pode naturalmente expressar-se assim. Confesso que é loucura da minha parte. Não espero ganhar a salvação - disse, solenemente.

Sim, não deve esperar clemência de ambos, do Senhor... ou de mim.

Provavelmente você ficará mais inclinada a ser misericordiosa se eu lhe trouxer um belo e quentinho pequeno almoço - disse ele, tentadoramente.

Sim. Os seus cozinhados são uma das virtudes que o podem redimir.

Obrigado - replicou e voltou-se para se ir embora.

- Phil, espere - chamou ela. - O que é que eu fiz a noite passada?

- O que é que fez? Porquê? Nada de particular.

- Lembro-me de ter desmaiado por causa de um relâmpago. Isso deve ter-me aturdido, e tudo o resto me parece uma espécie de obscuro horror.

- Foi uma tempestade carregada de electricidade, má, mesmo para este deserto. Não imagina como você estava assustada. Sabe, é muito pior quando se está rodeado por estas paredes de rocha. O eco ressoa, de rocha em rocha - é verdadeiramente terrífico.

- Estava muito assustada?

-           Um pouco.

- Gritei ou... disse alguma coisa?

Disse-me que eu a tinha feito perder a calma.

Céus!... O que é que eu «fiz»? - exclamou, intensamente curiosa.

Receio embaraçá-la.

- Não hesite. Estou a insistir. Quero saber.

Bem, eu levantei-a, tentando trazê-la para aqui, que era mais abrigado. Mas você agarrou-se a mim - escondeu a sua cara - e abraçou-se a mim como se fosse para toda a vida. Assim fiquei ao pé de si até a tempestade ter passado.

- Deveras?... E a tempestade durou muito?

- Horas.

Janey lançou-lhe um olhar impenetrável, e sorriu.

- Presumo que você gostaria de ter uma tempestade como essa todas as noites.

- Sim. Gostaria... se tivesse esse poder - disse, intensamente.

- Você seria ainda pior que cruel - retorquiu ela, gravemente. - A minha mãe era uma pessoa muito nervosa e sensível, desmedidamente receosa de trovões e relâmpagos. Eu nasci prematuramente, depois de uma tempestade... Uma das recordações da minha infância é a de que a mãe costumava conservar-me fechada numa sala escura, durante uma tempestade.

- Lamento ter dito aquilo - replicou ele e deixou-a.

Depois trouxe-lhe o pequeno almoço e retirou-se, quase a correr, sem dizer mais nada. Janey tentou sentar-se e dedicou-se diligentemente, ao presunto com ovos, aos biscoitos torrados, com muita manteiga e ao café. Verdadeiramente Philip Randolph era espantoso. Onde é que ele tinha arranjado os ovos frescos? Claro que os tinha trazido. Mas como? Talvez ele acreditasse que o caminho para o coração de uma mulher passava pelo seu estômago.

Janey tencionava ficar na cama e descansar. Mas ao olhar para cima, para o volume das rochas, para as altíssimas extremidades douradas, e para baixo para a rudeza do vale, brilhantemente verde, pôs a preguiça de parte. Exploraria Beckyshibeta mesmo que o tivesse de fazer arrastando-se. Consultando o seu pequeno espelho viu que o seu rosto estava queimado pelo sol mas não estava destituído de uma certa graça. E a outra queimadura do sol, mesmo se estivesse em ferida, não interessava mais do que os seus enrugados e encolhidos vestuários. Não havia o perigo de que qualquer mulher desdenhosa a pudesse ver e criticar. Suponhamos que a mãe de Bert Durland a podia ver naquela figura! Janey riu. Seria bonito. Contudo ela não se importaria muito com essa catástrofe.

Levantou-se, gemendo. Os músculos e os ossos eram, não havia dúvida, essenciais no corpo humano, mas naquela manhã bem quereria poder dispensá-los. Estava fraca, coxa, magoada e queimada pelo sol. A parte de cima dos joelhos, que estava queimada, incomodava-a particularmente.

- Oooo! - lamentava-se Janey à medida que tentava endireitar-se. - Porque é que eu não teria ficado em casa?

Finalmente ganhou elasticidade e conseguiu ser capaz de andar. Então laboriosamente trepou a um plano mais alto e olhou em volta. O lugar parecia ser simplesmente uma enorme caverna, com uma cúpula mais alta do que a da «Grand Central Station», a qual já era altíssima, admitiu Janey. Abria para um banco plano que se estendia sobre um verde «canyon», talvez com meia milha de largura e duas de comprimento. Que frescas e coloridas eram as diferentes formas de folhagem! Contrastavam lindamente com o vermelho e o ouro das rochas grandiosas e colossais que se erguiam para o céu. Um monótono rumor de água a correr, chegava aos ouvidos de Janey. Ouvia o chilrear dos pássaros nos cedros e nas árvores do algodão. Tudo parecia brilhante e limpo, com o quente sol brilhando depois da tempestade. Finas quedas de água escorriam pelas rochas e, no vértice do «canyon», no seu cume mais alto, uma pesada torrente caía sobre as enormes e fendidas montanhas de rochas.

Estas foram as primeiras impressões e sensações de Janey. Depois dirigiu-se da sombra para a luz do sol. Cada passo constituía um esforço, mas resultava numa maravilhosa recompensa, ao alargar o panorama pelos encantadores e magníficos arredores. As paredes de rocha eram mais altas do que as de qualquer arranha-céus de Nova Iorque. Estavam cheias de grandes cavernas e buracos, perto da sua base e mais acima estavam fendidas e manchadas e cobertas de musgo, com nichos e saliências, onde crescia vegetação verde e variegada.

Janey estava fascinada. Beckyshibeta! Que lugar maravilhoso! Era majestoso, grande, e crescia em beleza e maravilha à medida que ela abrangia a sua verdadeira perspectiva. O «canyon» espantava-a também, com a sua fechada solidão.

- Oh, isto é glorioso! - murmurou Janey. - Não fazia ideia de que fosse assim. Ele nunca me tinha dito nada. E Bennet não me levara a esperar tanto. Mas isto!

Janey sentou-se ao sol e deixou de dar pelo tempo. Poderiam ter corrido minutos ou uma hora. Foi bastante, contudo, para que os músculos entorpecidos se fizessem sentir. Respirou fundo. Os seus olhos encheram-se de regozijo. Alguma coisa parecia transformada dentro de si. O que lhe tinha faltado em todos aqueles anos inúteis? Nunca, excepto em um ou dois romances de maior colorido, tinha lido a descrição de lugares como este, e então tinha acreditado que fossem pura imaginação. Mas nenhuma pena, nenhum pincel podiam fazer justiça à verdadeira realidade de Beckyshibeta.

Janey sentiu que ficaria sempre inexprimivelmente grata a Randolph. Mas não podia deixar-lho saber. Onde é que ele estaria? Para um raptor que tinha que se ocupar com a sua vítima, estava a ser um pouco descuidado.

Foi em busca dele. Por causa do estado verdadeiramente estropiado em que se encontrava e da terrível natureza do lugar, Janey não fez muitos progressos. Deu a volta a uma imensa esquina, abaixo da caverna que ele tinha escolhido para o acampamento, e encontrou um outro subterrâneo mais alto e mais largo do que o primeiro. Estava cheio de destroços de paredes que tinham caído. Janey enfiou devagar pela passagem entre blocos de rochas e sobre desmoronamentos causados pelo tempo até uma outra esquina saliente a qual, ela pensava, ocultava a boca do «canyon». O murmúrio da água ouvia-se mais alto. O caminho que seguia estava tão obstruído, que levou muito tempo a alcançar o seu objectivo. Mas por fim conseguiu chegar à outra esquina.

Se se tinha extasiado e ficado de boca aberta anteriormente o que poderia fazer agora? Todos os pormenores que tinha admirado eram aqui repetidos, ainda mais magnificentemente. A juntar a tudo aquilo, um rio, de um vermelho demoníaco, despenhava-se numa série de rápidos. O «canyon» abria-se num outro maior, desnorteante aos olhos de Janey.

A seguir viu Randolph a trabalhar com uma picareta. Estava precisamente ao pé da maior saliência da parede e fora o barulho da picareta que atraíra a atenção dela. Janey dirigiu-se para ele. Era estranho que ele não a tivesse visto. Estava a fingir ou absorto, mas Janey inclinava-se mais para esta última hipótese. Estava a cavar como um homem que tivesse encontrado o princípio do arco-íris.

Janey saudou-o com um: «Olá, aí, cavador de subterrâneos» !

Randolph ficou espantado. Voltou-se e deixou cair a picareta. Janey não precisou que lhe dissessem que ele se tinha esquecido completamente dela.

- O quê... miss Endicott... você... eu... - gaguejou.

- Bela manhã na Avenida - tornou ela.

- Óptima - disse ele, recompondo-se e tornando a pegar na picareta.

- Você, esqueceu-se de mim, não foi, Philip?

- Receio que sim.

- Deixar-me sozinha, em riscos de ser devorada por ursos pardos, ou de fugir e perder-me ou eu sei lá o quê!

- Não há por aqui ursos. E você não podia fugir para lá das quedas de água. Nem ninguém as podia atravessar para a assustar.

- Muito bem, mas isso não explica o ter-me deixado só.

- Não, na verdade. Para ser honesto, decidi esquecê-la.

- Imagine-se!... Você sempre me saiu um raptor. Como, evidentemente você não tencionava maltratar-me, sempre esperei que tomasse conta de mim, me distraísse, me instruísse. E você trata de me esquecer!

- Esqueço sempre tudo, quando venho para Beckyshibeta - replicou, defendendo-se. - Tudo excepto que aqui, algures nestas cavernas, está sepultado o último povoado de Beckyshibeta. Sei-o. Li os sinais... Provavelmente se eu tivesse fugido com Cleópatra ou com Helena de Tróia, eu

tê-las-ia esquecido da mesma forma.

Janey ficou outra vez impressionada pela sua singular simplicidade e paixão. O homem parecia tão ardente, tão sincero, tão forte e tão confiante que quase desejou que ele acabasse por encontrar o tesouro no qual punha tantas esperanças.

- Vou encontrar Beckyshibeta para si - disse, impulsiva.

Ele fitou-a. Depois riu.

- Suponho que seja vingança de mulher. Amontoar brasas sobre a minha cabeça. Esfolar-me com remorsos... Mas, brincando ou não, por favor não procure Beckyshibeta para mim.

- Porque não? Parece ser a sua grande paixão. A maior parte dos homens que conheço são atraídos por outras coisas: dinheiro, poder, fama.

- Beckyshibeta dar-me-ia todas essas coisas. Mas nunca penso nisso.

- Então porque é que não quer que eu tente encontrar Beckyshibeta?

- Eu sou muito pior do que você pensa. Se você encontrasse Beckyshibeta, eu...

- Oh! Portanto é isso? Seria uma calamidade.

- Concordo consigo. Por conseguinte tenha cuidado e não se ponha a cavar nestes subterrâneos. Trate pois de ficar no acampamento e de deixar de me seguir.

- Eu hei-de segui-lo se eu quiser... mas não quero - retorquiu Janey.

- Não aprovo que ande por aqui - disse ele, severamente. - Penso que deve passar o dia a descansar.

- Vá-me levar - volveu Janey, imperiosa.

- Você veio para aqui sozinha. Agora volta pelo mesmo caminho e fique lá - ordenou ele.

Janey não soube se o havia de injuriar ou rir-se dele.

Phil estava decididamente sério. Devia ser pois melhor conservar a irreverência por mais algum tempo. Portanto riu.

- Meu Deus, então vou-me embora - disse. - Quando é que lhe apetecerá voltar ao nosso castelo?

- Estarei aqui até tarde - acrescentou ele, inteiramente esquecido do tom ligeiro dela. - Você mesmo pode arranjar qualquer coisa para almoçar.

Então Janey deixou-o entregue às suas explorações e voltou para trás, ponderando na entrevista. Cada encontro com Randolph a deixava mais insatisfeita, mas não podia saber porquê. Descansando frequentemente, levou uma boa meia hora a retroceder sobre os seus passos; e todo esse tempo dividiu os seus pensamentos entre Randolph e Beckyshibeta. Por fim alcançou o acampamento e encontrou uma laje confortável. Estava exausta, ainda que o exercício lhe tivesse feito bem.

- O papá, apesar de tudo, não foi assim tão louco - monologou Janey. - Gosto de Philip Randolph... É difícil para mim saber porquê. Tenho pena que o papá «o» tenha «pescado» para fugir comigo. Porque, assim, o quero detestar e derrotar completamente. Mas graças a Deus topei finalmente com um homem que não está embriagado pelo álcool, pelo dinheiro ou pelas mulheres!

Janey achou tão agradável descansar, que se meteu debaixo dos cobertores e fez uma coisa sem exemplo para ela, dormir de dia. Quando acordou a tarde ia em meio. Sentiu-se melhor. Randolph ainda não tinha voltado. O facto de ele estar longe dela, sob qualquer pretexto, espantava Janey.

Não estava acostumada a essa atitude da parte dos homens da sua sociedade. Não tinha acreditado que ele ficasse longe dela todo o dia. «Não quero acreditar que ele foi indecente para comigo» - disse para si - enfaticamente. Estava confundida, irritada, divertida, ressentida e alguma coisa mais que ela ainda não realizava inteiramente. Isto teve, contudo, um efeito salutar.

Janey contentou-se em observar a transformação das luzes da tarde no «canyon», e ao crepúsculo, que veio cedo, devido às altas paredes, pensou que tinha sido transportada para algum mundo encantado. Viu o topo de uma «mesa» distante tornar-se em ouro brilhante; esquisitos raios de luz, indescritivelmente pura e bela, escorriam-lhe das extremidades; a distância, através da passagem do «canyon», viu púrpura de um matiz tão real que gritou deliciada; as paredes estavam envoltas em névoa cor-de-rosa e ali perto o ar, feito de âmbar, parecia flutuar sobre a macia folhagem verde.

- Estou contente por estar aqui - suspirou Janey. - E começou a descobrir abismos ignorados em si. Devia ser possível que ela lograsse ser auto-suficiente por um espaço de tempo. Havia alguma coisa de incalculavelmente forte, trabalhando contra a sua habitual maneira de pensar. Vestidos, luxo, divertimentos, indolência, teatro, dança, a sempre presente necessidade de muito dinheiro, a atenção dos homens... tudo isso era atonitamente desnecessário ali. Janey quebrou o encanto. Beckyshibeta era apenas um buraco no meio de rochas. Belo, estranho, selvagem, sim, mas não era um lugar que modificasse a alma de uma pessoa. E ela ressentiu-se do despertar, insistente a dilacerar o seu cérebro.

Tinha-se posto o sol e o céu estava cheio de nuvens rosadas, quando Randolph voltou, cheio de pó e cansado, enxugando a cara queimada. Pareceu diferente a Janey, ou ela via-o com olhos diferentes. Havia algo no seu aspecto.

- Como está a minha formosa prisioneira? - perguntou.

- Se estou melhor de corpo ou de espírito, não o posso agradecer a si - respondeu.

- «Quien sabe?» - replicou ele. - Então, gosta de Beckyshibeta?

- Deste terrível buraco, fechado e solitário no meio de rochas? Oh, Céus! - exclamou ela, languidamente.

- Janey, seja honesta - disse ele.

- Mas porquê, Philip, chamo-me por ventura assim? - perguntou.

- Não. Isso pode ser jogo, mas não é honesto. Você é mesmo retorcida... mentalmente... Por favor seja honesta ao menos «uma vez», Janey.

- Porquê? - inquiriu, curiosa, a despeito da sua frivolidade.

- Porque, de certa forma, sempre a tenho relacionado com Beckyshibeta. É estranho, mas é assim mesmo. Acreditava que você gostaria disto... que seria inspirada, talvez até adoçada.

- Sou assim tão dura, Philip?

- Dura como estas rochas.

- Você não é nada lisonjeiro.

- Pode ser que não. Mas sou honesto - disse, firmemente.

- Não, não o é. Você não é recto nesta sua atitude. Arrastar-me para aqui! - e ela dirigiu um olhar penetrante a Randolph.

- Acabará por me achar honesto - retorquiu, subindo-lhe o sangue ao rosto.

- Ah-hu! - volveu Janey, em ar de dúvida.

- Você vai ser honesta ou não? - inquiriu ele, de modo penetrante. - Tenho ainda fé em si... bastante para acreditar que você não está totalmente perdida... para o sonho de glória da natureza.

- Não é a natureza magnífica? - acrescentou Janey, com um sorriso descarado.

- Janey Endicott, se você não «ama» Beckyshibeta, eu desprezá-la-ei - declarou, com calor.

Janey viu que não havia dúvidas acerca disso. Randolph estava em guerra com o mundo... apoiando a sua fé nela contra o materialismo e o paganismo dos tempos modernos. O que abalou Janey e a roubou inteiramente à sua contradição.

- Philip, gostaria de o fazer desprezar-me, mas honestamente não posso. Gosto de Beckyshibeta e estou «contente» por me ter arrastado para aqui - disse, com uma nota rica na voz, e voltando o rosto.

- Obrigado. Isso ajudará - respondeu ele com emoção.

Janey observou-o enquanto ele descia para a enseada, com o balde de água. Seria duro para ela, considerou, pensar seriamente nele nessa ocasião. Mas compreendia que devia, mais cedo ou mais tarde, ter um ajuste de contas consigo próprio. Quanto ao presente, devia manter-se fiel à comédia que projectara e não deixar que nenhuma veemência ou eloquência de Randolph a arrastasse para a honestidade outra vez.

Randolph voltou assobiando. Além do balde a transbordar, trazia uma acha de lenha suficientemente grande para aniquilar a maior parte dos homens que Janey conhecia. Aproximou-se vagarosamente do acampamento e observou-o a baloiçar um machado. Ele acendeu o fogo, preparou a refeição e foi buscar mais lenha. Desta vez trouxe uma tal porção que Janey protestou.

- Você ainda parte as costelas - disse alarmada. - Você não é, de certo, o mais desejável dos companheiros, Philip, mas é preferível a um aleijado. Por favor, seja cuidadoso.

- Olhe que não sou assim tão fracalhote. Devia ver um índio a carregar lenha. Quase carrega a árvore inteira... Mas não pense mais nisso, se a incomoda, para a outra vez tentarei trazer um fardo ainda maior.

Janey não respondeu. Sentou-se perto a observá-lo, preparando a ceia.

- Philip, quanto tempo durarão os nossos mantimentos... o nosso gorgulho, como lhe chamam os cow-boys - perguntou.

- Enfardei o bastante para três semanas, mas não contei que você comesse tanto. Estou persuadido que, se eu reduzir a minha parte, teremos mantimentos para 10 dias.

- E depois?

- Logo se vê. Podemos subsistir com coelhos, ou posso ir a cavalo a um acampamento índio aqui perto e adquirir mais alguma coisa. Ou... nós podemos voltar para o posto.

- O quê! Vai levar-me daqui... para encarar o meu pai, os Bennets e os cow-boys, sabendo-me desonrada, desgraçada? - exclamou ela.

- Claro que sim - respondeu, alegremente.

- Philip, se outro homem me fizesse isto a mim, e me arrastasse de volta... o que lhe faria você?

- O que lhe faria? Tudo. Matava-o.

- Exactamente. Mas acha que está certo, «você» fazer o mesmo?

- Janey, as minhas intenções são dignas.

- Pensa que os cow-boys acreditarão nisso?

- Confesso que estou um pouco preocupado a esse respeito - respondeu ele, ponderadamente - É quase uma regra, os cow-boys serem obtusos e casmurros. Depois aqueles eram tão absurdamente enfatuados, que cada um deles pensava que a possuía a si. Estúpidos, refinados tontos! E depois ainda tinham amplo encorajamento.

Janey recaiu no silêncio, o melhor para se divertir com o sempre crescente humor daquela situação e com a delícia de um outro sentimento que lhe parecia difícil de definir. Agora Randolph começara a falar, como se ela fosse a mais interessada das camaradas, como na realidade, se a verdade fosse admitida, o era.

- Segui hoje outra pista errada que não conduziu a resultado nenhum. Oito horas em escavações para nada. Quantas vezes isto me tem acontecido aqui. Mas eu sei que Beckyshibeta está sepultada por aqui algures. Se tivesse tempo à minha frente. Mas o departamento insiste por resultados definitivos, por assim dizer. Tenho de encontrar coisas... ossos, olaria, utensílios de pedra e instrumentos defensivos. Em resumo, sou forçado a explorar onde eles me dizem e não onde eu quero. Elliot, o chefe do nosso departamento, esteve fora o ano passado. Penso que lhe disse. É um tipo terrível... Elliot. É apenas um arranhador de superfícies. Bem, ele dá pouca importância à minha teoria. Diz que há poucos sinais da existência de um povo antigo aqui em Beckyshibeta... E que portanto eu pouco posso conseguir com o meu trabalho aqui.

- Suponha que nós dizíamos ao Elliot para ir para o diabo - sugeriu Janey.

- Gostava de poder fazer isso. Mas preciso de ter pão com manteiga, e algumas roupas decentes, ocasionalmente - replicou.

- Você espera ser sempre pobre, Philip? - perguntou-lhe ela.

- Espero que não. Tenho o meu sonho. Mas suponho que realmente sempre o serei.

- É péssimo. Mas não sei. O dinheiro é uma maldição, dizem. Pessoalmente, não acho... Sabe que eu sou rica?

- Não. O seu pai, claro que sei. Mas você também é?

- Sim, desoladoramente rica. Minha mãe deixou-me centenas de milhares de dólares quando morreu.

- Bom Deus! - exclamou Randolph - o seu pai nunca me disse.

- Bem, é a verdade. E o papá disse-me que essa fortuna está quase duplicada. Você vê, eu não posso tocar no capital até ter 25 anos. Só disponho dos rendimentos... cinquenta mil dólares, ou qualquer coisa semelhante por ano... e confesso que a maior parte do tempo nunca tenho dinheiro. Estou sempre a pedir dinheiro emprestado ao papá.

- Janey, você está a ser sincera, agora?

- Sem dúvida. Certamente não o estaria a enganar a respeito de dinheiro.

- De qualquer maneira, maldito seja ele - declarou Randolph, ferozmente, e com gestos violentos.

- Quem? O papá? - perguntou ela, com inocência. Mas Randolph não respondeu, e houve uma mudança imediata no seu procedimento. Preparou a ceia, em silêncio, e permaneceu mal-humorado durante todo o tempo em que esteve a comer. Ela participou cordialmente da bela refeição, e depois deixou Randolph consigo próprio. A este tempo o crepúsculo arrastava-se já por baixo das paredes e depressa cairia a noite. Janey deu um pequeno passeio por ali. Viu uma estrela solitária sobressaindo maravilhosamente no rosa-pálido do crepúsculo. Bela como uma estrela quando é única a brilhar no céu! Tinha lido isto em qualquer parte. Talvez fosse num livro de Wordsworth.

Como é que ele ou Tennyson ou Ruskon teriam descrito Beckyshibeta? Não havia nada na Europa que se pudesse comparar com a região dos «canyons». E Janey sentiu-se orgulhosa disso.

Como estava a fazer-se muito escuro voltou para o acampamento. Randolph tinha desaparecido. Olhou para o coração de opala da fogueira e aí viu belas e perturbantes visões. Depois subiu a rocha até junto da sua cama para se deitar.

Assim que se sentiu na cama ficou surpreendida ao encontrá-la bastante alta e fofa. Depois de a examinar melhor, descobriu, por baixo dela, uma boa camada de ramos de cedros, com cerca de um pé de altura. Que agradável! Randolph devia ter feito aquilo imediatamente a seguir à ceia. Ele era um autêntico paradoxo. Tinha-a tratado rudemente, tinha-a levado ao limite da paciência, mas, contudo, preocupava-se com o seu conforto. E a nova cama era na verdade um alívio e um prazer. Janey suspirou por um pijama de lã quentinho. Mas teria de dormir vestida. Depois de descalçar os sapatos, decidiu que tiraria também as meias.

Então deslizou entre os cobertores e sentiu bem no fundo do seu ser que os não trocaria por lençóis de seda. Cansada, dorida, como ela estava, não podia pensar de outra forma. Nunca tinha apreciado o repouso até àquela altura. Nunca tinha avaliado bem o conforto e a comodidade Tinham sido sempre para ela hábitos, sem que houvesse razão para os justificar. Aqui eles eram uma verdadeira bênção, uma recompensa.

Onde é que Randolph teria ido?

Tinha-o contrariado o saber que ela era rica. Janey não podia imaginar porquê. Ninguém o tomaria por um caçador de dotes. De acordo que era mais embaraçante comprometer uma rapariga rica do que uma pobre, simplesmente porque o casamento não teria tanto o aspecto de um sacrifício. Cada hora desta aventura realçava o seu romantismo, aumentava as suas possibilidades tanto para o prazer como para a dor. O que é que o novo dia iria trazer?

 

Janey passou toda a manhã sozinha. Durante algum tempo acolheu bem essa solidão. Não tinha visto Randolph, o qual lhe gritara, de longe, que lhe deixava o pequeno almoço ao lume. Parecia que estava ainda mais entorpecida e dorida que nunca, mas as dores desapareceram depressa, ao fazer exercício com os músculos. Pelo meio-dia começou a sentir-se completamente bem.

Simplesmente não podia concordar que Randolph a deixasse entregue a si própria. Beckyshibeta representava muito mais para ele do que ela. Isto irritava e agradava a Janey, simultaneamente. Mas claro, ela não queria admitir isso. Portanto pôs-se a caminho para ir ao encontro dele.

O dia estava encantador, embora quando ia ao sol, o que era raro, apanhasse muito calor. Flutuavam no «canyon» os aromas fragrantes do Verão, misturadas a doçura da salva com a das flores silvestres e com a fresca verdura. O ribeiro tinha diminuído, e não era mais uma torrente barulhenta. Janey pensou que se quisesse poderia atravessá-lo. Para um cavalo então seria facílimo.

Quando se afastou do acampamento, debaixo daquelas magníficas paredes, tornou-se outra pessoa.

Pensativa, sonhadora, absorta e feliz. Não valia a pena negar os seus sentimentos! Só não queria que Randolph os notasse. Uma coisa confusa, também, era o facto que, debaixo do encanto deles, tinha de se esforçar por ser fiel às suas velhas inclinações. Por conseguinte recusava-se a compreender, ou pelo menos a procurar compreender, o elevado poder da solidão deste estranho «canyon». Mas não podia evitar as sensações. Tinha de ver, de sentir, que aspirar, aquele lugar e tinha mesmo de saborear a doçura do seco ar do deserto.

Ao transpor o caminho à volta da segunda parede saliente, onde Randolph tinha estado a escavar, já estava aquecida pelo esforço que estava a despender e já não tinha as articulações doridas. Verdadeiramente sentia-se esplêndida. Randolph abandonara aquela caverna. Portanto Janey continuou, ao encontro da subida mais difícil e íngreme que aquele rapto lhe tinha proporcionado. Foi emocionante aquela subida. E que aliviada se sentiu, ao chegar ao fim! Logo descobriu Randolph, quase ao mesmo nível dela. Mas o «canyon» descia em profundidade por trás dele e zigue-zagueava em maravilhosas curvas para além.

Randolph não viu Janey. Teve oportunidade de se aproximar dele, fazendo caminho por uma perigosa saliência, antes que ele se tivesse apercebido da sua presença. As altitudes não incomodavam Janey. Tinha sentido de equilíbrio, era calma e divertia-se a correr riscos.

Quando tinha percorrido cerca de meio caminho, contudo, teve que parar. Ficou atrapalhada ao enfrentar um declive que faria desanimar mesmo uma rapariga da sua bravura.

Portanto sentou-se um pouco a descansar e a observar.

O «canyon» abria-se vasto. Era muito mais vasto e selvagem do que aquela parte de Beckyshibeta onde Randolph fixara o acampamento. Janey sentiu qualquer coisa a vibrar nas fibras do seu coração. Não era esta solidez do deserto simplesmente maravilhosa? Mas olhar para baixo, naquela altura, fê-la estremecer. Avaliava a altura gradual que alcançara. Em baixo, uma centena de pés ou mais, estendia-se uma vertente de taludes, uma confusão de rochas, que caíam bruscamente na mata verde. Quase esqueceu Randolph, quedando-se em profunda admiração.

A picareta de Randolph, ressoando na pedra, trouxe Janey à realidade. Descobriu uma plataforma acima dela, por onde, sem dúvida, Randolph atravessara para a área larga, mais além. Vinda de um ponto muito estreito, pôs-se de gatas e começou a arrastar-se por ali. Bateu em algumas pedras soltas que rolaram fazendo barulho. Janey praguejou. Randolph ouviu o barulho e virou-se.

Atirando para o lado a picareta, correu até ao fim da plataforma onde se encontrava.

- Pare! - bradou.

Janey obedeceu, mais por sugestão do que por qualquer outro motivo. Olhou, sobre o abismo, para Randolph.

- Olá, Phil - gritou ela, alegremente.

- Não lhe disse para não vir ter comigo? - disse, zangado.

- Não me lembro.

- Claro que se lembra.

- Está bem, lembro-me.

- Você vai dar meia volta, com muito cuidado, e depois voltar pelo mesmo caminho, - ordenou. - Tenha cuidado... Você faz-me cabelos brancos!

- O que o fará ter um ar muito elegante e distinto - replicou Janey.

- Vá-se embora! - bradou ele, suavemente.

- Não em vida sua! - retorquiu Janey e começou outra vez a arrastar-se pelas rochas. Estava a aproximar-se da parte mais estreita. Antes ter-se-ia assustado, mas agora passaria até por um lugar muito mais difícil.

- Pare! Volte para trás! - trovejava Randolph. Foi como deitar gasolina no fogo.

- Vá para o inferno! - gritou Janey e continuou a arrastar-se. Sem um tremor ou uma escorregadela, passou o ponto mais perigoso e, atingindo a plataforma, levantou-se diante de Randolph com ar calmo e triunfante.

- Se fizer isto outra vez, eu... eu... - exclamou sufocado.

- Foi muito fácil - respondeu Janey, friamente. - As minhas meias são muito finas e as rochas feriram-me os joelhos.

E esfregava-os desconsoladamente, sem se preocupar nada com o olhar de Randolph.

- Você podia ter-se morto - enfureceu-se ele.

- Não, não nunca a pequenina Janey. Pratiquei saltos

na minha classe, no colégio. Este pequeno passeio até aqui, foi apenas um exercício em coordenação, e é tudo.

- Digo-lhe que foi extremamente perigoso - admoestou Randolph.

- Você está sempre em desacordo, Phil. Imagino que a vida em comum para nós seria um longo e doce inferno.

- Não, não será. Devo ter admitido uma vez essa ideia tão idiota, mas já se dissipou.

- Não temos necessidade de discutir o futuro, agora. Comecei a reconciliar o meu eu com tudo isto e com você. Agora não estrague... Fez alguma escavação produtiva esta manhã?

- Venha. Vou ajudá-la a sair desta plataforma. Depois você vai para o acampamento e fica lá - disse, peremptório.

- Não, não vou. Quero ficar aqui consigo.

- Tenho muita pena, mas não a quero aqui.

- Porquê? Sento-me a observá-lo e estarei quieta.

- Não.

- Por favor, Phíl - pediu.

- Não posso trabalhar com os seus grandes olhos a troçarem de mim. Você lembra-me constantemente que não passo de um pobre e esforçado arqueólogo.

- Mas você trouxe-me para aqui.

- Sim, e estou... estou terrivelmente arrependido de o ter feito. Um dia lhe direi porque o fiz.

- Está a repudiar a sua... a sua... bem, o seu interesse por mim? - inquiriu ela, com altivez.

- Chame as coisas pelo seu nome - replicou ele. - Quer dizer o meu amor por si. Não, não o estou a repudiar. Não me envergonho dele, embora me tenha feito parvo.

- Oh! Então, há uma outra razão para você me ter trazido para Beckyshibeta? - continuou ela, gravemente. Parecia a Janey que não havia utilidade em tentar deter o inevitável. Os acontecimentos estavam a tombar sobre um e outro, demasiado depressa para serem guiados. Em breve teria de os encarar.

- Sim, há uma outra razão, e dessa é que eu estou envergonhado. Mas venha, saia daqui e deixe-me em paz.

- Mr. Randolph - disse Janey, agora arrogante. - Já lhe ocorreu que não devo ser deixada sozinha... inteiramente à parte, com a minha solidão?

- Não, não me ocorreu - volveu, cerrando os punhos e olhando desesperadamente para baixo, para o rio.

- Bem, você é completamente insensível. Pode aparecer alguém... um índio ou um bandido. Já se pode atravessar para cá, penso.

- Nunca vem ninguém para aqui. Pelo menos, muito raramente, e então eu sei-o. Você está perfeitamente a salvo. E certamente não quer a minha companhia.

- Ela é, de facto, horrível. Mas ficarei um bocado. Ficarei aqui até você se preparar para regressar ao acampamento - replicou Janey, aereamente, e prontamente se sentou.

Randolph pegou-lhe pela mão e puxou-a.

- Venha - disse-lhe, tentando controlar-se.

- Deixe-me, ou teremos outra luta - advertiu-o. - Da outra vez nem lhe bati muito nem o mordi.

Ele cedeu.

- Muito bem, se você é teimosa como um burro, fique. Mas oiça, criança mimalhada... se atravessar aquele lugar tão perigoso mais alguma vez, arrepender-se-á.

- Porquê? - perguntou Janey, imensamente interessada.

- Porque terá aquilo que já devia ter tido há muito tempo - e muitas vezes.

- E que vem a ser isso, professor?

- Uma tareia.

Janey não o podia tomar a sério, embora ele estivesse a olhar para ela, com ar ameaçador. Mas aquilo era só mau génio... um blasonar para a derrotar completamente. Era tão ridículo, que riu na cara dele.

- Mr. Randolph, perdoe o meu riso, mas você é tão primitivo... tão original - disse e foi a Janey Endicott, de Long Island que falou, mau grado seu.

Talvez nada o tivesse molestado tanto e tão amargamente como o que ela acabava de dizer.

- Não duvido. No entanto farei o que disse. Nós estamos no Arizona. E se você não pode ver a diferença entre a vida real e a frivolidade moderna, lamento-a. A maior parte da América pôs de lado as tareias boas e saudáveis. Tem, devo dizer, uma forma de interesse bastante diferente na anatomia feminina. Mas, graças a Deus, entre alguns pioneiros que ficaram no Oeste, ainda há pais que seguem os antigos moldes de educação. Eu não sou pai, é certo, mas, apesar disso, posso transformar-me num e dar-lhe lindamente aquilo de que você está a precisar.

Dito isto, continuou a trabalhar, deixando Janey absolutamente sem fala. Passaram alguns momentos até que Janey se recompusesse. Randolph devia estar com alucinações. Ia fazer-lhe um teste imediatamente.

Saracoteando-se por ali, muito perto do centro da plataforma onde ele se encontrava brandindo a picareta, encontrou um lugar que lhe pareceu bom para se sentar a descansar. Iria atormentá-lo o tê-la ali tão perto, observando-o, como ele tinha dito, com olhos trocistas. Contudo, confessou a si própria que o interesse que sentia pelo trabalho dele, estava, viva e sinceramente, a crescer. Desejava verdadeiramente que ele encontrasse Beckyshibeta.

- Como é que você dará por que encontrou esse tal povoado aqui soterrado, Phillip? - perguntou, de súbito. - Como é que ele é?

- Saberei no preciso momento em que a minha picareta der com ele - replicou Randolph com surpreendente animação. Era evidente que ele se esquecia com facilidade de que estava zangado ou raivoso.

- Você, decerto, mas como poderei «eu» saber? Ele lançou-lhe um olhar suplicante.

- Bem, a julgar pela inteligência que você tem mostrado ultimamente, você nunca seria capaz de reconhecer um povoado. A não ser que caísse num kiva!

- Ah-huf! Oh, eu sou uma rapariga brilhante... O que é um kiva?

- É um buraco no chão, profundo e circular, coberto por um telhado, com uma estrada. Foi usado pelos habitantes dos rochedos...

Janey interrompeu-o. Ela apenas tinha feito uma pergunta de natureza arqueológica e tinha sido o bastante para ele esquecer tudo o resto.

- Então se você desaparecer subitamente tenho que procurar os seus restos num kiva? Um fim muito apropriado para si, devo dizer.

Randolph voltou ao trabalho e embora Janey o importunasse, constantemente, com perguntas, aparentemente não a ouvia. Ela cada vez se tornava mais provocante. Ele não lhe prestava atenção. Então ela chamou-lhe caçador de múmias, ladrão de túmulos, cavador de ossos e outros nomes semelhantes. Por fim chamou-lhe «ladrão de berços», mas este epíteto, como os outros, resvalou pela espessa indiferença dele.

- Diga-me - concluiu ela, desgostosa - se eu lhe oferecesse um beijo, falaria?

- Sim - disparou ele, encarando-a rapidamente, com um fulgor no olhar.

- Oh! Bem, retiro a oferta, mas estou satisfeita por ver que você não está completamente morto.

- Janey Endicott, você é a fraude personificada - ripostou ele - E é também uma «chata».

- Não gosto do som dessa última palavra. Onde é que a ouviu?

- É um termo que aprendi em Nova Iorque. Concluí que ele é aplicável a uma rapariga que enfeitiça, com falsos sorrisos, palavras e sugestões.

Que seduz tão femininamente... eu diria com poderes de fêmea... e nunca dá uma só das coisas que prometeu.

- Philip, você chama a capítulo todas as mulheres desde Eva a Mata-Hari... Ora veja - explodiu, de repente. - Apostarei consigo uma sela nova, contra um par de luvas, como o faço engolir a sua indiferença.

- Às suas ordens, Miss Endicott - declarou ele. - Terei muito prazer em cavalgar essa sela e assim, a recordar este Inverno, quando você estiver de volta a Nova Iorque...

- A fazer o quê? - interrompeu ela, como o visse hesitar.

Mas ele voltou a cabeça e tornou ao trabalho interrompido.

- Acabarei por si - acrescentou, com escárnio. - Enquanto eu estiver ociosa, namoriscando, dançando, dormindo as belas horas do alvorecer, estragando dinheiro, bebendo... e outras coisas piores!

Viu-o vacilar e os lábios tremeram-lhe, mas foi tudo o que ela conseguiu. Janey tinha o pouco razoável desejo de o ouvir negar, apaixonadamente, pelo menos alguns dos vícios que ela enumerava. Mas ele não o fez. Acreditava que ela os tivesse.... talvez agora pensasse ainda muito pior dela. Isto estava de acordo com o que ela desejara e planeara, mas, inconscientemente, teria preferido que ele a defendesse como a tinha defendido do pai.

Janey deixou-o então só, por um bocado, embora o seu olhar voltasse muitas vezes dos altíssimos despenhadeiros e das maravilhosas paredes para o forte vulto dobrado e para o seu incansável labor.

Quando o encantamento do «canyon» começou, uma vez mais, a pô-la fora de si, com a sua mágica transformação, ela recorreu a uma perversidade e a um provocamento deveras diabólicos. Estudando as saliências e os declives daquela grande secção de parede desmoronada notou, por fim, uma faixa estreita, onde mesmo uma cabra deveria ter dificuldade em passar. Esta faixa seguia em direcção a uma outra volta da parede vermelha, para além da qual uma outra plataforma ainda mais larga lhe chamava a atenção, com um estranho encanto. Janey estudou o local, por um longo espaço de tempo. Tinha razões para acreditar que Randolph ainda não trabalhara para além do local onde se encontrava agora. Cedeu, pois, a um irresistível impulso de alcançar aquela plataforma.

Levantando-se, aproveitou a ocasião para passear vagarosamente em frente de Randolph, depois começou a subir para a borda do anfiteatro e na direcção de uma parede redonda que conduzia ao ponto que tinha como objectivo.

O barulho da picareta de Randolph cessou. Janey sentiu a sua falta, com infinita satisfação.

-Janey, onde é que você vai? - perguntou ele. - Eu não disse que...

Ela ultrapassou a extremidade da parede e alcançou o princípio da faixa estreita. Metia medo o abismo, olhado dali.

- Pare! - vociferou Randolph, batendo com as botas na rocha.

Janey voltou-se:

- Não ouse dar outro passo! - gritou ela, mais que provocante.

Randolph deteve-se talvez a cerca de cinquenta passos.

- Por favor, volte para trás.

- Eu vou atravessar para a plataforma seguinte.

- Janey! Essa plataforma é pior do que esta. Eu nunca me arrisquei para além de onde você está. Palavra. É muito mais traiçoeiro do que parece.

- Não me importo.

- Meu Deus, rapariga, você pode escorregar! Não tem juízo?

- Só tem de se culpar a si próprio.

Randolph debateu-se, com a tentação de saltar. Conservou-se silencioso por um largo momento. Janey viu a sua expressão e a sua cor modificarem-se.

- Sua grande doida! - rugiu ele por fim. - «Volte para trás»!

- Nada feito, Phil - escarneou ela.

- «Volte para trás»!

A voz estentórica só serviu para a entusiasmar mais.

- Diga-me, como é que consegue ser assim?

Randolph lançou-se na sua direcção e galgou meio caminho antes de parar. Janey voltou as costas à faixa estreita, num movimento excessivamente perigoso, mas estava excitada e não tinha medo. Ele viu e parou como fulminado.

- Janey, querida - gritou ele, com um importuno, quase desesperado, gesto.

Este grito, estranhamente, esteve prestes a ser a ruína de Janey. Quis obedecer-lhe. Ela não podia ser comandada, mas não era à prova de ternura. A sua súbita e incompreensível fraqueza arrastou-a até à fúria.

- Philly adorado, você raptou a mulher errada! - gritou-lhe ela.

Randolph, deliberadamente, rodou sobre os calcanhares e voltou para a plataforma. Encarando-a, então, lançou-lhe:

- Vá e maldita seja. Você descobrirá que não pode voar. E será melhor ficar por lá, porque, se voltar, pagará por isto.

Ouvido isto, Janey virou-se para a faixa estreita. Não se assustaria mesmo se fosse uma vara sobre o Niagara. Firme como um cabrito montês, caminhou até à extremidade, afiada como uma lâmina. Pôs-se, então, de gatas e rastejou como um macaco. Levantou-se e correu o resto do caminho, quando conseguiu ultrapassar aquela extremidade. Alcançada a plataforma, olhou para lá de uma enorme parede de rocha. A mais maravilhosa de todas as cavernas abria-se diante dela. Era magnífica, surpreendente. Seria estupendo voltar outra vez a explorá-la! Contudo, retrocedeu sobre os seus passos.

Randolph permanecera imóvel, como uma estátua, observando-a. Ao voltar, Janey empregou em vez da ousadia o sangue frio. Rastejou quase todo o caminho e nem uma só vez olhou para o abismo. Sem respiração e cheia de calor, descansou um momento antes de continuar até à plataforma onde Randolph de pé, a aguardava.

Reparou que ele até os lábios tinha brancos, mas deu meia volta antes que ela lhe pudesse tornar a olhar para a cara. Parecia disparate segui-lo, mas ela assim fez, pondo-se a imaginar o que é que ele iria fazer ou dizer. Ele tomou pelo caminho de volta ao acampamento.

Janey não esperava isto. Teria ido demasiado longe? Tê-lo-ia ferido irreparavelmente? E agora, que tudo estava acabado, censurava-se. Que rancorosa e vingativa doidinha ela era! Contudo aquele era o papel que ela se tinha proposto representar.

Tinha dificuldade em acompanhar Randolph. Mantinha-se bem no chão fácil e plano, mas sobre os fragmentos de rocha ficava para trás. O caminho até ao acampamento parecia-lhe muito longo. A excitação e o esforço tinham-na esgotado. Quando ultrapassaram a última volta do caminho, Janey pensou que não podia mais.

Randolph virava-lhe as costas. Que largos eram os seus ombros... e que direitos! Ele rodou sobre os calcanhares e dirigiu-lhe um olhar terrível.

- Janey Endicott, lembra-se do que eu lhe disse? - perguntou.

Rápida como as palavras dele uma sensação de doentia fraqueza invadiu-a. Foi como um raio. Imaginara que estava preparada, mas não estava. Tinha feito um falso juízo dele, menosprezando a sua coragem. O seu espírito subtil agarrou-se às mínimas coisas.

- Lembro-me! - gaguejou, tentando sorrir, - A respeito de... estar louco por mim?

- Louco «por sua causa»! - replicou ele, horrivelmente.

Então agarrou-a, antes que ela pudesse ter movido um braço. A surpresa e o medo tolheram-lhe o seu natural instinto de luta e defesa. Randolph levantou-a... carregou-a.

De súbito, sentou-se numa rocha e atirou-a sobre os joelhos, a cara para o chão. Todo o corpo dela estava inteiriçado. O terror da compreensão e o horror da expectativa inundavam-lhe o cérebro. Ele bateu-lhe com tão espantosa força, que parecia que todos os seus ossos se partiam com as pancadas. A dor da sua carne era quente, aguda e violenta. O choque no seu cérebro excedia a soma de todos os choques que Janey tinha sofrido em toda a sua vida. Ela caía-lhe débil, sobre os joelhos dele. Mais pancada! Mais forte desta vez! A cabeça e os pés baloiçavam-lhe. Os dentes rangiam-lhe. Outra vez! «E outra»! «E outra»!

Janey conseguiu não desmaiar. Uma fúria imensa impediu-a disso. Rolou dos joelhos dele para o chão e levantou-se como um gato. O sangue ardente tumultuava-lhe no peito.

- Hei-de... o... matar! - ofegou ela, baixo e profundamente.

Randolph ficou um tanto abalado com a fúria dela, vendo-a fugir tão ferozmente, os punhos cerrados, o peito erguido.

- Uma vez na sua vida, Miss Endicott! - disse, roucamente. - Isto foi feito. Já não o pode evitar. E fui «eu» que o fiz. Serei o único a ter essa distinção entre os seus conhecimentos.

Janey tentou atirar-se a ele, esgatanhar-lhe os olhos, bater-lhe antes de o matar. Mas deixou-o passar. Sentia as pernas vergarem-se-lhe. Subiu às apalpadelas para a cama, meteu-se debaixo dos cobertores e tapou a cara. A tensão do seu corpo relaxou-se. Estendeu-se débil, palpitante, tremente. Esta sensação mortal de entorpecimento foi dando gradualmente lugar a uma dor pungente e abrasadora. Os sofrimentos físicos foram superados pelo caos que se agitava no seu espírito. Lágrimas ardentes corriam-lhe pelas faces. E ela para ali estava estendida, arquejante, sucumbida, o espírito ajudando a carne torturada.

Estava já escuro quando teve que descobrir a cabeça para não sufocar. As sombras da fogueira do acampamento dançavam na rocha por cima dela.

- Janey, criança - chamou Randolph no tom de um pai afectuoso - lave a cara e as mãos e venha cear.

O sangue ferveu-lhe outra vez. Elevando-se sobre os braços, esteve para dar apaixonadamente livre curso a todos os nomes profanos que tinha ouvido até ali, mas ao ver Randolph, movendo-se à volta da fogueira, conteve o impulso. Deitou-se para trás possuída por uma força que nunca tinha conhecido. Tinha sido espancada... açoitada... intimidada? Não! Tinha apenas sido despropositadamente envergonhada e humilhada por um rufião educado. O seu orgulho tinha sido deitado por terra. A sua vaidade estava ferida de morte. Janey revolveu-se na cama, só para sentir outra vez as dores no seu corpo magoado.

No instante em que havia uma possibilidade de voltar à velha Janey Endicott, aquela dor ardente impedia-a. Que coisa estranhamente subjugante! O seu espírito já não tinha mais controle sobre isso ou sobre os pensamentos redemoinhantes que engendrava.

Por último acomodou-se na posição mais confortável que conseguiu encontrar. Randolph chamou-a outra vez para cear. Comer! Morreria de fome, mas não comeria mais nada preparado por ele. Como o odiava terrivelmente! A vingança que planeara era nada para a raiva que a possuía agora. Matá-lo simplesmente não seria bastante. A morte punha fim a todos os sofrimentos. Ele tinha de ser transformado no mais miserável dos infelizes. Teria de rojar-se-lhe aos pés e que tragar o pó do chão.

Estes pensamentos tão amargos tiveram a sua influência. Mas acabaram por se dissipar. Quase imediatamente Janey descobriu que estava a chorar. O compreender isto, o lutar e ter falhado juntava-se à sua depressão. Chorou até que adormeceu.

Os seus olhos abriram-se para um céu de um azul celestial, e para uma parede toda salpicada de ouro. A lembrança de tudo o que se tinha passado assaltou-a, mal abriu os olhos. A sua vontade era poder fechar a bela luz do dia. Tinha vergonha de a encarar. Mas, vagarosamente, afastou o cobertor para o lado. Pondo-se à escuta, depressa se certificou de que Randolph não estava no acampamento. Espreitando por sobre a rocha, viu a fogueira latente e o vapor que subia da cafeteira do café, posta sobre ela.

Janey levantou-se. Se tivesse precisado de alguma coisa para se lembrar do insuportável ultraje que tinha recebido, tê-la-ia tido por causa das dores súbitas que a assaltaram, tão cruciantes como ela nunca suportara. O macaco! Ele não se apercebia da sua força. E daí, talvez se apercebesse. Que fria e calmamente lhe tinha ele batido! Esperar até chegarem ao acampamento! À luz de um outro dia a sua ofensa parecia ainda muito maior.

Lá estava o pequeno almoço ao lume. Janey lembrou-se de que tinha jurado que morreria de fome antes de tocar outra vez na comida feita por Randolph, mas agora não via senso nenhum naquela jura. Como cozinheira ela não era um portento.

- Se aqui houvesse uma chaminé era uma sorte, eu comeria lá o meu pequeno almoço, esta manhã - disse melancolicamente.

Pensamentos negros e sérios assaltaram-na enquanto comia vagarosamente. Depois ocorreu a Janey levar os poucos utensílios que Randolph deixara para ela se servir. Havia panela de água quente ali à mão. Fez isto com uma satisfação quase consciente. Então contemplou por momentos as brasas quase extintas da fogueira. Depois deu um passeio ao sol e não pôde deixar de sentir o seu calor, as doces canções dos pássaros selvagens, a fragrância da salva e todo o «canyon», invadido por uma luz gloriosa vinda por baixo das paredes.

O que é que ela havia de fazer? Havia milhares de coisas. Mas primeiro, e de absolutamente suprema importância, estava o facto, começava a compreender, de que tinha ido repetir o acto temerário da véspera. Nova, indefinida, doce, rebelou-se nela uma voz contra isto, mas foi vencida pela própria Janey Endicott. Tinha que mostrar a Randolph que esse tão apregoado domínio do homem das cavernas do passado, tanto como a superioridade masculina do presente, eram coisas abolidas, obsoletas, postas fora de combate pela mulher moderna. O que já não era do papel que estivera a representar. Tinha deixado de ser actriz. Aquela brincadeira, aquele desejo de trocar as vasas a seu pai e a Randolph desvanecera-se durante a noite.

Randolph estava a trabalhar um pouco mais acima do que no dia anterior e perto do anfiteatro ao redor do qual Janey tinha passado para a plataforma seguinte.

Passou perto dele, olhando casualmente na sua direcção. Como podia ele adivinhar que o coração dela batia mais depressa e as correntes contraditórias que se guerreavam no seu ser?

Se alguma vez tinha visto um homem ficar surpreendido, foi então. A última coisa que Randolph podia imaginar era que ela voltasse. Que dose e reconfortante bálsamo para a subjugada vaidade de Janey! Ele apoiou-se à picareta e observou-a. Iria ele ordenar-lhe que voltasse para trás? Iria ele discutir com ela outra vez?

Janey não era suficientemente louca para menosprezar o risco daquele caminho tão estreito e escorregadio.

Desta vez os seus nervos, o cuidado e a ligeireza dos seus pés contrabalançaram a audácia da véspera. Atravessou-o sem uma escorregadela.

Randolph continuava encostado à picareta a observar. Nem uma palavra soltara! Podia imaginar, claro, como ele estava completamente derrotado e, provavelmente, furioso. Mas estava desapontado? Que ela era uma criança irresponsável! Janey sacudiu a cabeça. Que lhe importava? Qualquer coisa quente, que supunha ser ódio, queimava-a. Uma vez rodeado o vasto contraforte de rocha, fora da vista de Randolph, esqueceu-o. Ali, encontrava-se um anfiteatro, à vista do qual era pequeno o Coliseu de Roma, situado contra um fundo de magnificentes rochas intransponíveis. Que silêncio! Janey sentiu-se como que num sepulcro, completamente só. Os seus passos levaram-na alto, tão alto que se maravilhava e estremecia, receosa, por vezes, com as gigantescas fendas e rochas soltas.

De súbito, notou o que parecia serem pequenos degraus talhados na rocha. Atónita, não podia acreditar no que viam os seus olhos. Mas ali estavam eles, um após outro, gastos, apenas distinguíveis na rocha macia. Tinham sido talhados à mão. Intensamente absorvida, Janey subiu-os, esquecendo o medo das alturas e das rochas fragmentadas.

Agora perdera os pequenos degraus. Parou, sem fôlego e ruborizada. Evidentemente que tinha subido muito. Na sua frente, estendia-se uma plataforma mais maravilhosa ainda pela localização e isolamento. Olhar para trás e para baixo fê-la ficar sem respiração. Como iria descer?

Um rápido olhar bastou-lhe para verificar que esta vasta e protegida plataforma, só podia ser alcançada pelo lado por onde subira. Então compreendeu que a feição predominante daquele lugar era a sua inacessibilidade. Aqueles pequenos degraus tinham sido talhados por habitantes das rochas! O seu coração bateu mais depressa. Tinha descoberto qualquer coisa. Se Randolph conhecesse aquele lugar ter-lhe-ia, decerto, falado nele.

Janey começou a explorar. Na rocha macia encontrou buracos redondos e polidos, onde o grão tinha sido moído séculos atrás. Encontrou pilões de pedra, deixados ali como se alguém lhes tivesse tocado ainda na véspera. Encontrou a borda de uma parede sepultada em escombros. Pequenas pedras vermelhas, primorosamente cortadas e unidas! Mais alto viu uma antiga residência, encostada à parede rochosa, como um vespeiro. Pensara que aquela plataforma fosse um anfiteatro, mas não era. Começava a ter o aspecto de um grande espaço que tivesse sido soterrado por uma avalanche, ou pelos processos de desgaste das diversas eras. Levaria dias a explorar aquilo.

Janey deu um passo e enterrou uma perna até ao joelho. Pareceu-lhe que o chão tinha dado de si. Puxando a perna ficou surpreendida ao descobrir que a tinha enterrado num telhado ou coisa parecida. Cuidadosamente, varreu para o lado a terra. Encontrou vigas de madeira, entrelaçadas e já podres.

- Ena! Isto é qualquer coisa - exclamou.

O buraco feito pelo seu pé olhava-a como um enorme olho negro.

Falava, Janey começou a estremecer e a agitar-se. Deitou uma pequena pedra para lá. Não ouviu qualquer som. Tentou com uma pedra maior. Ouviu-a bater muito distante. Então isto era um Kiva! Muito bem. E o cérebro de Janey entrou em acção:

- «Beckyshibeta»! - murmurou, com respeito.

Sentou-se, subitamente emocionada. Tinha descoberto o antigo «pueblo» que Randolph procurava tão infatigavelmente. Isto estonteou-a. Que estranho! Que sorte! Parecia que o destino, na sua obstinação, a tinha levado para aquele lugar. Devia ter sido mais do que mero acaso.

Lembrou-se que se tinha vangloriado a Randolph de ir descobrir Beckyshibeta para ele. Tinha-o conseguido. Não tinha a menor dúvida. E, subitamente, a sua alegria igualou o seu espanto e ultrapassou-o. Que coisa verdadeiramente maravilhosa para Randolph. Sentia-se tão feliz que ria e chorava ao mesmo tempo. Não era uma ilusão. Ali estava, aberto, o misterioso e enorme olho negro de um Kiva.

Janey consumia-se com um único desejo: dizer a Randolph! Saltou e correu. Os pequenos degraus talhados na rocha em declive não a aterrorizavam agora. Por vezes sentava-se e escorregava, esquecida do vestido e da pele. Contudo, como foi longa a descida. Uma vez em baixo não pôde ir depressa. Era demasiado irregular. E assim mesmo, deu mais de uma pancada na rocha. Por fim dobrou a última rocha, sem respiração, tão ofegante que precisou descansar um momento.

Randolph ali estava, cavando, cavando, cavando.

Agora sim, teria alguma coisa para cavar. Com o peito agitado, Janey observava-o. O momento era para ela rico, doce, belo, fora de alcance e impenetrável. Juntou as mãos e soltou através delas um grito agudo.

- Mr. Randolph.

Ele ouviu-a, pois estremeceu, olhou e retomou, então, o trabalho.

- Venha! Venha cá! - gritou Janey. Ele tornou a olhar mas não respondeu.

- Philip. Venha cá!

Perante isto, ele deixou o seu labor e apoiou-se à picareta, notoriamente embaraçado.

- Phil! Por favor, venha! - guinchou Janey.

- Não. Não. Nunca! - gritou ele, imitando-a.

- Phil, eu preciso de si - continuou ela.

- Nada feito.

- Se você vier... você... você... você terá a maior surpresa da sua vida.

- Não me interessa o seu género de surpresas, miss Endicott - respondeu ele, depois de uma pausa discordante.

- Mas é realmente uma surpresa, digo-lho eu.

- Não em vida sua!

- Palavra. É só vir aqui, - gritou ela, agora suplicante.

Nenhuma resposta, Randolph permanecia como uma estátua. Janey dificilmente se podia conter. Ele estava a tornar aquilo tão perfeitamente maravilhoso. Que climax! Teria de o guiar até à sua descoberta. Na sua excitação estava quase capaz de ir até limites inauditos, para realizar o seu propósito.

Beckyshibeta tinha mudado o mundo para Janey. Ela nem tinha tempo para analisar a mudança.

- Eu fá-lo-ei feliz, Phil - vibrou ela, persuasiva.

- Tem de inventar outra coisa, Miss Endicott - disse ele.

Que teimosa criatura pode ser um homem! E este, com o seu ambicioso sonho esperando por ele! Janey teve uma ardente noção de que se devia incluir na descoberta de Beckyshibeta. Seguramente tinha necessidade, agora, de se descobrir a si própria.

- Philip, querido. Venha - chamou, desesperadamente.

- Eu disse-lhe para não ir para aí - respondeu ele. - Agora pode voltar sozinha.

- Estou terrivelmente assustada, Philip. Eu... eu parece-me que encontrei... qualquer coisa.

- Desapareça - ripostou ele, trocista.

- Acha isso bonito... quando eu preciso de si?

- Janey Endicott, cada palavra que você profere é uma mentira.

- Não. Deixei de mentir. Venha e veja.

- Digo-lhe que estou tão inamovível como estas rochas - disparou ele, num tom que patenteava uma determinação considerável.

Ele imaginava que o era, pensou Janey, e podia levar a sua teimosia a ponto de estragar o seu pequeno plano. Não obstante, se ela não o podia fazer mover agora, teria o prazer de conservar durante mais tempo o seu segredo.

- Phil, muito querido - gritou.

- Vá para o diabo! - vociferou ele, empregando as palavras dela, mas com um tom diferente.

- Meu querido - gritou Janey, com toda a sua sedução. Se isto não o conseguia trazer!

Randolph, desesperado, saltou para dentro do buraco que estivera a cavar. Ela podia ver a picareta mover-se para cima e para baixo, com uma rapidez que implicava um esforço tremendo. Janey compreendeu que o seu plano não podia ser posto em prática naquela altura e, por isso, decidiu que era melhor economizar os seus recursos, atacando-o mais. O que não podia conseguir a uma tão longa distância seria muito mais fácil, quando estivesse junto dele. Assim, pôs-se a caminho pelo estreito trilho. Ao fazer isto, os seus olhos, pela primeira vez, mediram bem o perigoso abismo e as recortadas rochas lá em baixo, tão ao longe. Janey retrocedeu, com uma súbita sensação de frio. De repente a vida crescera em interesse e enchera-se singularmente, mas a morte continuava ainda a um passo. Mas ela não era pessoa para perder a cabeça com a excitação.

Atravessou esta perigosíssima ponte com calma e coragem, não se arriscando e esquecida dos seus joelhos feridos. Foi bem sucedida.

Randolph estava de costas. Ela aproximou-se e, escondendo-se atrás de uma rocha, espreitou-o. Por alguns momentos que a ela pareceram longos, ele não olhou. Mas, por fim, endireitou-se, olhando em volta, evidentemente para ver onde é que ela tinha ido. Janey conservou-se escondida. Era toda formigueiros. Ele concluiu que ela tinha passado por ele e desaparecera das suas vistas. Então, sentou-se na borda da cova, tirou o chapéu e enxugou a cara. Deixou-se ficar ocioso, perdido nos seus pensamentos. Como era triste a sua expressão! Neste momento de abandono, podia ler-se, no seu rosto, a preocupação. Janey venceu o impulso de correr para ele e dizer-lhe que havia pelo menos um par de razões para ele ser torturado até à morte. Mas o momento deu-lhe um vislumbre do que ia no coração dele. E isto agitou Janey, tão profundamente, tão estranhamente, que desejou escapar-se, sem ser vista por Randolph. Este, finalmente, aborrecido e sem esperança, olhou de novo na direcção que supunha que Janey tinha tomado e retomou o trabalho. Janey deslizou sem ruído e afastou-se, sem ser vista.

Depressa cedeu ao desejo de se sentar e de se analisar. Que tinha acontecido? Passou tudo em revista. Para onde tinha desaparecido o encanto, a inexplicável alegria que tinha previsto? O rosto triste de Randolph tinha-a sobressaltado, mudando a direcção do seu pensamento. Sentiu tanta pena dele que quis chorar. Retomando o caminho para o acampamento, deu alguns passos e tornou a parar. Havia qualquer coisa que não estava certa. O seu coração estava demasiado cheio, o seu peito parecia oprimido. Sentia aquele palpitar. Não se tinha esforçado tanto que justificasse aquele estado. A comoção era toda emocional. Passara por uma transição indescritível.

Não era mais a velha Janey Endicott. Por uma última vez sentou-se para enfrentar-se... para analisar a sua alma. E, afinal... como era fácil! Bastava ser honesta! Pela primeira vez na sua vida, estava honestamente, profundamente, verdadeiramente apaixonada. Nada de espantos selvagens ou de redemoinhantes repúdios! Tinha-se apaixonado por esta aventura, pelo deserto glorioso, pelos solitários «canyons» que transformam a alma e por Philip Randolph.

No instante em que a solução iluminou o seu cérebro meditabundo, soube que era verdade. Era a aniquilação da sua própria catástrofe e sentia-se possuída de uma doçura paralizante. Janey recebera o golpe que a consciência lhe desfechara, tal como um soldado, em cheio, na face, enquanto olhava para o «canyon» lá em baixo, agora magnífico, todo ouro e púrpura, com as suas maravilhosas rochas retumbantes.

Ouviu, então, o ruído de cascos de cavalos. Um cavalo! Espantada, dobrou a rocha que a separava do acampamento. O seu espanto transformou-se em estupefacção à vista de um jovem, impecavelmente vestido, que se apeava de um cavalo baio, tão elegante como o seu cavaleiro. Usava um «sombrero» de dez galões que o fazia parecer mais pesado em cima do que em baixo; calças de montar, de pele, brancas, apertadas nos joelhos, botas altas muito brilhantes e enormes esporas que lhe passavam rasteiras à medida que andava, Janey reconheceu-o, então, era Bert Durland, o querido de tantas festas de fim de semana, um moreno e elegante jovem acabado de sair da Universidade. Nisto, ela ouviu outros cavalos e o ruído de vozes aproximarem-se. Blasfemando, em voz baixa, Janey deslizou para trás de um grande fragmento de rocha, que se tinha separado de outra maior e correu ao longo dele para bem longe, onde se escondeu para espreitar através da fenda.

 

Janey ficou atónita, curiosa, ressentida com esta rude interrupção ao seu encantamento. Bert era um rapaz encantador, mas encontrá-lo aqui! Onde ela estava sozinha com Randolph!

Dois cavaleiros, vindos da esquerda, apareceram pela parte de cima do banco. Um era um índio, guiando um cavalo carregado. Depois Janey verificou que o segundo cavaleiro era uma mulher. Mrs. Durland! Nenhuma criatura poderia parecer mais deslocada, ou desconfortável, ou ridícula do que ela naquele momento. A característica marcante de Mrs. Durland fora sempre vestir-se e representar como se a sorte da família fosse próspera. Se Janey não estivesse repentinamente tão furiosa, podia ter gritado. Eles aproximaram-se do acampamento. O índio desmontou e começou a desamarrar o fardo. Bert foi ajudar a mãe. Manifestamente não era brincadeira nenhuma tirá-la de um cavalo. Era pesada, e parecia como que se os ossos se lhe tivessem enferrujado.

- Oh, misericórdia! Os meus músculos ...o meu corpo! - lamentou-se ela.

- Ânimo, mãe! Cá estamos finalmente - replicou Bert, com satisfação.

- Então é «este» o lugar? - perguntou ela, olhando em volta, com desdém.

- Beckyshibeta.

- Parece tal qual como soa... um disparate! E não se vê aqui sombras de acampamento. Mr. Endicott disse que a filha estava aqui, com alguns amigos.

- Talvez isto seja apenas o indicador do acampamento. Vamos procurar por aqui e encontrá-los. Por minha fé! Será bom voltar a ver Janey!

- Bert, o nosso índio vai-se embora! - exclamou mrs. Durland, alarmada.

- Acho que ele vai ver a família.

- Supõe que ele não volta? Supõe que nós não encontramos Miss Endicott e os companheiros! Aqui ficamos nós, num buraco abandonado por Deus, a cento e noventa milhas do caminho de ferro. Nada a não ser índios selvagens à nossa volta. Até pudemos ser escalpelizados.

- Não te apoquentes, mãe - volveu Bert. - Tu nunca serás escalpelizada. Poderás sempre tirar o teu cabelo e pendurá-lo. Apenas eu posso recear essa tortura.

- Bert Durland! Como te atreves a falar-me dessa maneira? Deves pelo menos ser respeitoso depois de eu ter sido tão boa que te deixei arrastares-me até aqui.

- Perdoa, mãe - disse o jovem, contristado. - Estou estafado. Este maldito passeio através de todo este horrível deserto! E nem sinal de conforto por aqui. É terrivelmente aborrecido.

- E de quem é a culpa? - interrompeu a mãe, enquanto, cuidadosamente, olhava em volta de uma rocha, para ver se havia cobras ou besouros. Depois sentou-se, muito enjoada.

- Tua - replicou o jovem Durland, olhando para o seu cavalo prostrado. - Suponho que tenho de ir tirar aquela horrível sela.

- Culpa minha? Oh!, que rapaz tão miserável! - exclamou a mãe, grandemente indignada. - Tu sabes muito bem que estou a fazer tudo isto por tua causa. A perseguir essa rapariga que não vale nada! Tenho sofrido torturas neste passeio. E aquele horrível lugar, onde tentámos dormir a noite passada! Poderei esquecer isso algum dia? E esta terrível queimadura do sol!

- Janey não é de todo desprezível, querida mãe - retorquiu Bert, complacente. - O papá dela tem vários milhões. E Janey está lindamente bem situada na vida. Tu sabes que é essa a razão por que estamos aqui.

- Só devias estar-me grato - declarou mrs. Durland, agreste. - Aqui estou eu a simplificar-te a vida. A ti, para quem foi a maior parte do dinheiro de teu pai. Agora parece que estás a querer insinuar que eu faço isto por minha causa.

- Está bem! Está bem! - disse Bert, com impaciência. - Mas não me censures por te ter trazido para esta caça ao pato bravo. «Eu» não gostei da ideia, acredita-me.

Disse-te em Nova Iorque que Endicott tinha levado Janey para um hotel turístico. E foi o que eu acreditei na altura.

- Mas tu não disseste que Janey te tinha dito que o pai a trouxera para um dos mais solitários lugares do mundo?

- Claro que disse. Mãe, o Arizona parece-me ser quase metade dos Estados Unidos. E é solitário está certo. Imagina correr este deserto todo para achar uma rapariga! E aquele tipo que nos levou cem dólares por uma corrida de automóvel que me revolveu as entranhas! Ainda gostava de o apanhar. Mãe, tenho a impressão que Endicott e aquele comerciante, Bennet, se ficaram a rir de nós pelas costas.

- Humph! Aquele miserável comerciante a rir na minha cara - sustentou mrs. Durland. - E ainda por cima a saborear os meus cem dólares... isso também foi culpa tua. Tu nunca sabes fazer negócios. Só sabes atirar dinheiro pela janela fora. O que me põe louca. Tu não tens miolos, não tens cabeça. De outro modo tinhas fugido com Janey e casado com ela antes que o pai a tivesse trazido para este terrível lugar cheio de rochas.

- Fugido! Minha querida mãe, tu não conheces Janey Endicott - volveu o filho, significativamente.

- Talvez fosse melhor não falarmos tão alto e não mencionarmos nomes - notou mrs. Durland, apreensiva.

- E tu não querias contar ao guia índio: e ao motorista do automóvel a história da nossa família?... Olha! Aqui vem um homem branco! E que tipo vigoroso!

- Oh!, querido, espero que não seja algum bandido - retorquiu mrs. Durland, muito alarmada.

Estas últimas palavras da mãe para o filho divertiram tanto Janey que ela teve muita dificuldade em conter o riso. Espreitou por cima do seu esconderijo. Sim, era Phil que regressava. Ele tinha visto os visitantes e estava a olhar para todos os lados procurando Janey.

- Como estão? - cumprimentou Randolph, ao chegar. - O vosso guia índio informou-me da vossa chegada.

- Foi muito bonito da parte dele encontrar alguém - replicou mrs. Durland, com gratidão.

- A quem tenho o prazer de me dirigir?

- Mrs. Percival Smith Durland, de Nova Iorque, e seu filho Bertrand. Claro que já ouviu falar de nós.

- Lamento dizer que nunca ouvi.

Janey riu-se para dentro com esta desconsideração, pois tinha mais do que uma vez falado a Phil dos Durlands.

- Na verdade. Vejo. O senhor nunca deve ter saído deste desabrido e árido Arizona - respondeu Mrs. Durland, desculpando-o pela sua ignorância. - Vêm muitos turistas aqui a Becky... qualquer coisa mais?

- Muito poucos. Nós não os encorajamos.

- Vê, mãe? Eu disse-lhe isso mesmo - interrompeu Bert, que tinha estado a encarar, fixamente, Randolph.

- Há alguns recursos para turistas por aqui perto? - perguntou Mrs. Durland.

- O posto comercial de Bennet é a habitação de brancos mais próxima. Mas dificilmente o poderão achar um lugar de turismo.

- Eu diria que não. Nós parámos lá para nos prepararmos para esta excursão... Posso perguntar-lhe o seu nome?

- Philip Randolph, para a servir, minha senhora.

- Randolph? Seguramente é o nome que nós ouvimos. O senhor é um arqueólogo, como vejo.

- Sim, minha senhora - volveu Randolph, com brevidade.

- Está a trabalhar por conta do Governo, não?

- Exactamente.

- E o senhor é «o» Mr. Randolph. Bem, lamento-o. Está um tal Mr. Eliot no posto agora. Chegou no dia em que nós chegámos. Ele é de Washington, D C. Ouvi Mr. Bennet dizer que ele estava furioso por o senhor ter partido para este lugar chamado Becky antes do tempo estipulado, e que isso lhe iria custar o emprego a si.

- Mr. Eliot no posto! Bem, isso é uma verdadeira surpresa - volveu Randolph, bastante perturbado.

- Imagino. É muito mau. Tenho pena de si. Mas deve poder encontrar um trabalho decente em qualquer parte. O senhor parece muito mais forte do que qualquer daqueles cow-boys de pernas arqueadas.

- Muito obrigado. Sim, penso que sou bastante forte. Mas falaram de cow-boys. Onde é que eles... os senhores viram algum ao pé do posto?

- cow-boys! Penso que sim. Passaram ao pé de nós lá em baixo. Fizeram parar o nosso carro para nos impedirem de sermos mortos por gado tresmalhado. Um deles tinha cabelo ruivo, e era bastante atrevido para não dizer outra coisa.

- Gado tresmalhado! O, céus! - murmurou Randolph, aflito.

- O que é que o senhor está a dizer? - perguntou Mrs. Durland.

- Eu... eu estava apenas a falar comigo - respondeu Randolph, apressadamente.

- Nós andamos à procura de Miss Janey Endicott e dos seus companheiros - interrompeu Bert, com importância. - Dou-lhe dez dólares para nos guiar ao acampamento dela.

- Lá estás tu, Bert Durland, a atirar dinheiro à rua - gritou a mãe.

- Miss Janey HEndicott e os companheiros! - repetiu Randolph.

- Foi o que eu disse - retorquiu o rapaz, com petulância. - Mr. Endicott é que me informou. Eu sou um grande amigo de Janey... ou melhor da família.

- Endicott disse-lhe..., quantos eram eles? -- inquiriu Randolph.

- Não. Penso que são bastantes. Tudo pessoas do posto. Onde é que eles estão acampados?

- Não por aqui. Não vi nenhum... grupo. Quer dizer que fez todo este caminho para ver Miss Endicott?

- Certamente. Conhece-a? - respondeu Bert, desconfiado.

- Penso que já vi essa senhora - disse Randolph, secamente.

- Não a viu. Todos os homens que já viram Janey Endicott, de modo nenhum «pensam» que já a viram. Nunca mais a podem esquecer.

- Oh, desculpe-me, talvez esteja enganado. A pessoa que eu vi tinha cerca de vinte anos, e procedia como se tivesse quinze, e vestia-se como se só tivesse dez. Muito arisca e cheia de vivacidade, e selvagem, devo dizer. Não era feia.

- Miss Endicott é esmagadoramente bela, é uma das mais encantadoras raparigas de Nova Iorque - tornou o jovem Durland, grandiloquente.

A expressão de Phil fez Janey quase querer gritar de regozijo.

Mrs. Durland tinha estado a olhar para os pedaços de cerâmica partida e utensílios de pedra que estavam, cuidadosamente, dispostos numa rocha em tabuleiro.

-Foi este brique-à-braque que o senhor desenterrou? - inquiriu ela. - Parece-me que o senhor não teve muito cuidado com eles.

- Já estavam partidos quando os encontrámos, minha senhora. Eu não podia ser tão pouco cuidadoso com relíquias tão preciosas.

- Preciosas? Esta porção de lixo desfeito! - interveio Bert, com estupefacção.

- Gostávamos de ver um pouco do seu... do seu lugar aqui - disse Mrs. Durland, gentilmente. - Depois eu contratava-o para nos descobrir o acampamento de Miss Endicott.

- Beckyshibeta é muito perigoso - replicou Randolph. - Tem que subir a rochas muito escarpadas.

- Não conte comigo para subidas. Mas podemos dar uma vista de olhos. Anda, filho.

- Não me interessa nada Bechyshib... ou Beckyshaip - respondeu Bert. - Quero ver Janey Endicott.

- O quê! Depois da nossa tão longa jornada até aqui para ver este maravilhoso lugar?

- Tu chamaste-o horrível antes do professor Randolph aparecer - retorquiu Bert, insolente.

- Oh, meu Deus, esta geração. Não tem um mínimo de apreço pela arte nem de amor ao belo!

- Darei uma vista de olhos pelo «canyon» para ver se Miss Endicott... e os companheiros... estão acampados perto - disse Randolph, pondo-se a caminho com Mrs. Durland.

Bert tirou a sela ao cavalo. Janey, convencida que os Durlands acabariam por a encontrar mais cedo ou mais tarde, preferiu surpreender Bert. Portanto aproveitou a oportunidade de ele estar ocupado com o cavalo e a sela para tornar a percorrer o caminho por onde tinha ido. Então ousadamente entrou no acampamento. Durland andava de um lado para o outro, inspeccionando o acampamento, francamente embaraçado. Nessa altura ouviu os passos de Janey e voltou-se.

- Oh! - gritou Janey, recuando.

- Janey! - exclamou ele, arrebatado. - Que sorte! Por Deus, estou bem contente de a ver!

- Jovem, você assustou-me - replicou Janey. - O que é que está aqui a fazer?

Subitamente o olhar dele quedou-se nas roupas dela e os olhos esbugalharam-se-lhe. Até àquele momento Janey não tinha ainda realizado bem o espantalho que deveria parecer.

- Janey Endicott! Bom Deus! Mas que trajo que «você escolheu»! Parece uma bailarina de ballet. A mãe vai ter um ataque!... Porque, você parece...

- Oiça lá, rapaz, você é muito descarado.

- Porquê toda essa fanfarronada, Janey? - perguntou, com uma gargalhada. - É esplêndido vê-la outra vez, ainda que você de figura esteja de fazer chorar a Park Avenue.

Aproximou-se dela de braços estendidos, com intenção evidente.

- Não se atreva. Se não chamo o meu marido - gritou Janey.

- Marido? Agora olhe cá para mim. Isso soa a sério.

- Eu disse o meu marido.

- Janey Endicott com um marido! Impossível!

- Eu sou Mrs. Philip Randolph, mulher do arqueólogo encarregado destes trabalhos de escavação!

- Mulher? Philip Randolph?... Bom Deus! Mas você é a Janey Endicott. O seu pai disse que você estava aqui.

- Você é doido. Quem é você e o que está aqui a fazer?

- Não, eu não sou doido, mas você está. Janey apontou imperiosamente para o «canyon».

- Leve o seu cavalo e saia daqui.

- Janey Endicott, você não pode tratar-me assim - replicou ele, com calor. - Eu atravessei todo o país com o único intuito de a salvar do seu pai. E aqui está como a encontro! Tudo isto tem um aspecto estranho e condenável!

Os seus olhos reflectiam agudamente a suspeita e a indignação e uma ciumenta dúvida.

- Pobre rapaz! - disse Janey, solícita. - Você deve ter fugido ao seu guarda. Ali! Ali! Corra e vá ter com ele.

Bert apontou para a mão esquerda de Janey.

- Se você é Mrs. Randolph, onde está a sua aliança?

- Em todos estes anos que aqui tenho vivido com meu marido, nunca vi ninguém como você - declarou Janey. - Ou você é um lunático que anda fugido ou um caloiro... tentando impressionar Hopalong Cassidy. Vou chamar o meu marido.

- Vá. Vai ser delicioso quando a mãe a vir. Janey, são os seus parafusos que estão retorcidos e não os meus. - Então pareceu tornar-se genuinamente inquieto. - Sabe, Janey, você parece fatigada e estranha. Meu Deus! Você deve ter perdido a memória!

Janey pôs-se de costas tentando iludi-lo, mas ele moveu-se até ficar de novo em frente dela.

- Não, você não me escapa dessa maneira. Vou fazê-la recordar-se.

- Deixe-me em paz! - gritou Janey, feroz. Ela estava realmente possuída por uma diabólica alegria. O que é que Phil iria dizer àquilo? - Vá-se embora, ou o meu Phil se encarregará de si.

- Janey, querida. Está tão estranha. Os seus olhos. Experimente concentrar-se. Eu sou o Bert. Bert Durland. Fizeram-lhe qualquer coisa terrível, se não você lembrava-se de mim e de como eu a amava. Porque eu não podia fazer-lhe mal nem a um cabelo da sua encantadora cabeça.

Janey continuava manobrando para se esquivar.

- Se me toca, grito!

Bert fez uma investida, apanhou-a, e antes que pudesse opor à intenção dele, apoderou-se da mão dela e olhou-lhe o anel.

- Cá está! Você «é» a Janey Endicott. Conheço este diamante tão bem como se fosse meu. Foi um presente de seu pai.

- Deixe de me maltratar - gritou Janey, libertando-se. - Eu não o conheço. Nunca o vi na minha vida!

- Você representa bem, Janey, se não está de facto louca. Receio que haja qualquer coisa por detrás de tudo isto, minha jovem amiga, e vou tratar de investigar.

Na verdade havia, pensou Janey; e nunca nos seus mais desenfreados voos de imaginação podia ela ter planeado qualquer coisa tão boa. Quase lhe apetecia abraçar Bert por ter aparecido naquela hora tão oportuna. Nesse momento o barulho de vozes atraiu a atenção de Bert que se apressou a ir ao encontro de Randolph, o qual Janey viu de relance entre os cedros. Ela correu para a rocha em declive para se esconder num nicho onde não seria facilmente descoberta.

Quando conseguiu acomodar-se satisfatoriamente, começou a espreitá-los. Os olhos quase dançando-lhe nas órbitas. Aquilo era melhor que uma comédia. Bert e Randolph aproximavam-se. Randolph tinha o olhar perplexo. A sua atitude como que vasculhando todo o acampamento explicou a Janey uma das razões por que ele estava tão inquieto. Ela perguntava a si própria o que teria sido feito de Mrs. Durland.

Bert examinou com terror o acampamento deserto.

- Eu seja cão! - exclamou ele.

- Quer fazer o favor de apresentar a senhora? - perguntou Randolph, inflexível.

- Foi-se embora.

- Meu caro, ela nunca esteve aqui.

- Eu digo-lhe que esteve - retorquiu Durland, indignado. - Janey - gritou ele. - Volte para aqui. Isto foi longe demais.

- Concordo consigo - disse Randolph.

- Ela estava aqui. Falei-lhe, apesar de ela negar ser Janey. Tinha um aspecto horrível. As suas roupas estavam sujas e rotas - dos pés à cabeça. Uma vergonha! E das duas uma: ou ela perdeu a razão ou é uma estupenda actriz.

Nesta altura apareceu Mrs. Durland, muito vermelha e ofegante.

- Bert - este Mr. Randolph - é muito estranho: - ofegou ela. - Deixou-me há alguns minutos sem a mais pequena cerimónia. Não há mais nenhum acampamento. Janey não está aqui.

- Está sim, mãe. Ou estava há momentos - afirmou Bert, positivo. - Mas agora foi-se embora.

- Embora! Para onde?

- Não faço a menor ideia. Desapareceu.

- Porque é que a não procuras? Perseguiste-a tanto tempo e até tão longe - porque não tentas um pouco mais? Meu filho, estás a proceder muito estranhamente.

- Lá está você - interrompeu Randolph, com exagerada convicção. - Porque é que não acaba com essa sua alucinação?... Lamento sinceramente ver um rapaz como você deixar-se sugestionar por uma aberração mental.

- O quê? - bradou Bert.

Randolph voltou-se para Mrs. Durland: - Já alguma vez sujeitou o seu filho a uma observação ou - ou...

- ele já foi examinado, percebe?

- O senhor - o senhor seu carroceiro! Como se atreve! - explodiu Mrs. Durland.

- Realmente, eu não quero ofender. Se ele «estava» bem então foi a longa cavalgada, o calor, a solidão do deserto. Estas coisas actuam poderosamente sobre algumas pessoas, especialmente sobre aquelas que não são muito fortes física ou mentalmente.

Bert adiantou-se e encarou Randolph, com um semblante carregado e carrancudo.

- Escute, senhor - disse - acabe com essa ridicularia. Está a tentar ludibriar-me. Mas não consegue.

Digo-lhe que havia aqui uma rapariga, ainda nem há dez minutos. Se ela não era Janey Endicott então eu «não estou bom» da cabeça. Mas era Janey e é ela que está doida. Ela não sabe quem é. Esqueceu-se de que é a minha noiva.

- Sua noiva! - exclamou Randolph, colhido de surpresa.

- Sim, minha. Pergunte à mãe.

Randolph voltou-se, desorientado, com uma pergunta muda no olhar.

- Havia um entendimento entre meu filho e Miss Endicott - respondeu Mrs. Durland. - Não era ainda uma notícia oficial, mas todos os seus amigos o sabiam.

Randolph parecia aturdido.

- Olhe cá, Randolph - falou Bert, subitamente. - Você é casado?

- Certamente que não - respondeu Randolph, surpreso e falando verdade.

- Portanto! É isso! - Atirou Bert, triunfante. - Tenho a impressão de que você é um canalha da pior espécie. Espere até que eu encontre essa rapariga! Ele correu de um lado para o outro e finalmente desapareceu por trás de uma rocha.

- Mrs. Durland, não pensa que eu faria melhor se o detivesse? - inquiriu Randolph, realmente inquieto. - Este «canyon» é um lugar muito grande. Ele pode perder-se ou cair de alguma rocha. É tão delgado que quase pode deslizar por algum buraco.

- Não me importo com o que acontecer - lamentou-se

Mrs. Durland. - Estou transtornada com esta aborrecida reviravolta do caso. Estava a começar a pensar que Janey Endicott estava aqui. Ao pé dessa rapariga os homens ficam completamente transtornados!... Desejava nunca ter vindo para aqui, para estas suas miseráveis ruínas. Ainda me esmigalho por aqui, antes de me ir embora.

- Coragem, minha senhora. Não está tudo perdido!

- Deixe de me chamar minha senhora - replicou a mulher, de mau modo. - O meu nome é Mrs. Durland.

- Perdão... Vou ver se consigo localizar o seu filho, antes que ele...

Naquele momento Bert apareceu à vista, um pouco mais acima, sobre a rocha inclinada. Janey viu-o antes dos outros e tentou esconder-se melhor. Mas era maior que o esconderijo. Parte dela ficou fora do nicho e o jovem Durland viu-a.

- Ah! - gritou ele, saltando do declive. Janey queria, pelo menos, esconder a cara, porque estava lutando com uma grande gargalhada, mas assim que Bert estendeu, insolente, as mãos para ela, ardeu de raiva.

- Ora cá está você. Saia daí - disse ele exultante. - Olá, vocês aí em baixo. Encontrei-a.

- Largue-me, você... você... - gritou Janey.

- Você, coisa sem vergonha! Não pense que me pode resistir... Saia daí!

- Deixe-me!... Philip! - guinchou Janey, como Bert a puxasse. Ela libertou-se e olhou ferozmente para ele.

- Durland, eu parto-lhe a cara - gritou, muito alto, - Randolph.

- Portanto é «ele» os seus companheiros? - escarneceu Bert, com ciumento desprezo. - Estou edificado a seu respeito, Janey Endicott. Este bate qualquer enfezado que você pudesse arrastar de volta ao Leste. Estou a ver que veio para o Oeste para uma grande paródia, não? Bem! Não lhe vai saber bem voltar para casa?

- Sim e você será exactamente do género de ser indiscreto a esse respeito - retorquiu Janey.

- Vamos para baixo. Você vai ter que os encarar - disse ele, agarrando-a.

Durland não a abandonou, mesmo quando alcançaram um plano mais baixo. De facto, ele arrastava-a, de um modo indigno, mesmo brutal, em direcção à mãe.

- Phil! - gritou Janey, aflita e mortificada.

Randolph deteve Durland, dando-lhe um sopapo, que foi, de certeza, equivalente a um murro. Durland foi-se abaixo, feito num montão. O seu enorme sombrero rolou no pó.

- Seu indecente!- gritou Mrs. Durland. - A bater no meu filho! Há-de pagar por isto.

Bert estava embaraçado nas longas esporas e readquiriu o equilíbrio com muita dificuldade.

- Oiça, meu palerma - declarou Randolph, friamente. - Se tocar nesta senhora, outra vez, dar-lhe-ei um belo ensaio.

- Não lhe bata, Phil - interrompeu Janey, tentando recobrar o ânimo. - Não quero que ele morra às nossas mãos.

Então seguiu-se um grande silêncio. Bert passou de branco a vermelho, sacudiu o pó das suas imaculadas calças de montar e levantou do chão o seu grande «sombrero» de veludo. Entretanto Mrs. Durland estava pasmada ao ter reconhecido Janey.

- Bem, mãe, conheces esta jovem senhora? Tenho ou não tenho razão?

- Tens razão, Bertrand - confirmou Mrs. Durland.

Imediatamente Bert se voltou para os outros dois.

- Janey, apanhei-a - disse. - Não precisa de se incomodar a representar essa farsa mais tempo. O que eu não posso compreender é porque é que o seu pai nos disse que você estava aqui.

- Também não posso compreender isso - replicou, soberba, Janey.

- Ele deve ter calculado o que se passa e esperava que eu a salvasse - continuou Bert. - Ou, ainda, viu que você já não tinha salvação possível.

- É isso, provavelmente, Bert - disse Janey, com doce humildade.

Randolph parecia o mais desolado dos quatro, embora Mrs. Durland estivesse pronta a explodir.

- De qualquer forma, é demasiado tarde - concluiu Durland, com amargura. - Randolph, você disse-me que não era casado. - Certamente que não - disse você.

- Sim, eu... disse - volveu Randolph vacilando, como se o seu cérebro não estivesse a trabalhar.

- Então! Janey, «você» jurou que era Mrs. Philip Randolph, não jurou? - Continuou o acusador, mais ousado à medida que reconhecia que tinha o chicote na mão.

- Sim, eu... jurei- respondeu Janey, dirigindo um olhar terrível a Philip.

- Miss Endicott! - exclamou Mrs. Durland, com acentuado horror. - A menina estava aqui «sozinha» com esse homem?

- Sim, mas não voluntariamente, Mrs. Durland - replicou Janey, com profunda mágoa. - Ele raptou-me.

- Raptou-a? Oh! Céus! Então ele não é quem pretende ser?

- Na verdade, não é.

- Um bandido... é um destes selvagens e vilões do Oeste? - murmurou ela, roucamente.

- Pior do que isso.

Durland tinha empalidecido com esta revelação. Os seus olhos muito abertos, fixos em Randolph, reflectiam ao mesmo tempo medo e cólera.

- O seu nome não é Randolph? - inquiriu ele, apreensivo.

- Diz isso como se o meu nome fosse lama - volveu Phil, saindo da sua estupefacção.

- Bert, a verdade é que ele é Black Dick, um tipo desacreditado aqui das redondezas - explicou Janey.

- Black Dick! Eu... ouvi o motorista falar dele - acrescentou Durland, com apreensão. - Mas, Janey, porque é que tentou enganar-me? Porque é que não me disse em primeiro lugar quem era este homem?

- Foi a vergonha... a ignomínia de tudo isto, Bert - disse ela, divertindo-se com o evidente mal estar de Randolph. - Sabia que ele vos afastaria daqui e pensei que você talvez acreditasse naquela história. Quase preferia morrer de que ter... qualquer pessoa sabe.

- E ele raptou-a, de facto?

- Bem, suponho que sim. Viu-me quando eu estava com uns amigos num acampamento perto daqui. Apanhou-me só. Parece-me que ele me tinha seguido desde o posto, onde me tinha espiado durante dias. Agarrou-me. Lutei com todas as minhas forças. Mas era demasiado para mim. Amarrou-me a um cavalo. Oh, foi horrível! Olhe para estas nódoas negras. E estas não são «nada», comparadas com outras que tenho e que eu... eu não lhe posso mostrar. Tive de andar a cavalo todo um dia e uma noite, debaixo de uma tempestade terrível. Quando aqui chegámos vinha mais morta do que viva.

- Por Deus, parece um romance! - exclamou Durland. - Raptou-a por causa do resgate? Claro que ouviu falar na fortuna de seu pai?

- Não, Bert, não é o dinheiro que ele persegue - declarou Janey. - Primeiramente eu imaginei isso. E ofereci-lhe tudo desde dez a cem mil dólares. Mas o bruto só ria e tornava a beijar-me. E jurou que desde o momento em que me tinha visto no posto, ficara louco por mim.

A consternação e o susto de Bert eram grandes, mas nem por isso ele riu menos... histericamente. Depois moveu-se de um lado para o outro.

- Ah! Ah! Ah! Ah! O que lhe aconteceu... Janey Endicott! Fazê-lo apaixonar-se? Ah! Ah! Ele é apenas um entre muitos. Preferir o seu amor a cem mil dólares!... Por Deus, você conseguiu ter finalmente a grande aventura por que sempre aspirou!

- Bert, eu mereço tudo aquilo que me está a acontecer - acrescentou Janey tristemente resignada.

- Porque é que seu pai não nos disse palavra disto? O que aconteceu aos seus amigos?

- Penso que devem ter sido capturados pelos cúmplices de Black Dick e que devem estar presos.

- Meu Deus! E... e onde está Randolph, o arqueólogo? Eles disseram que estava aqui.

Janey soltou um gemido convincente.

- Havia um Mr. Randolph, um homem maravilhoso, mas agora ele está... ele desapareceu, e não há por aqui mais ninguém a não ser este bandido vicioso.

- Bert fez-se branco. - Quer dizer...

- Silêncio! - quase gritou Janey. - Não me recorde nada!

Todo este tempo, Randolph estivera ali perto, espantado a olhar para eles e absorvido no fantástico diálogo. Tinha assumido um aspecto feroz; e Janey, depois de um segundo olhar, pensou que ele estava a ser sincero. Então, o guia índio que tinha trazido os Durlands, apareceu a cavalo por entre os cedros.

Randolph foi ao encontro dele e disse-lhe algumas palavras índias num tom muito alto e autoritário. O cavaleiro virou o cavalo e desapareceu pelo caminho por onde viera.

- Olhe! - sussurrou Janey. - Eu disse-lhe. Já mandou embora o seu guia.

- Janey, vou bater-lhe e arranjar um cavalo para a salvar - cochichou Bert, sem fôlego por causa da excitação da ideia, e foi à procura do seu cavalo.

- Bertrand! Não me deixes! - gritou Mrs. Durland, que, até àquele minuto tinha estado a ouvir tudo, pálida e muda.

Randolph também reparou em Durland, e, energicamente, ordenou-lhe que voltasse, para trás. Mas Bert começou a andar mais depressa. Então Randolph pegou na sua pistola e atirou para o ar. Bang! Bang!

- Venha cá - rugiu Randolph - ou eu faço-o num feixe!

Mrs. Durland soltou um grande grito e imediatamente caiu desmaiada. Bert voltou para trás bastante vacilante e muito lívido.

- Não... não me mate... Mr. Dick - implorou ele. Era evidente que tinham sido os dois tiros que lhe tinham modificado a intenção.

- Está bem então, mas nada de macaquices - ameaçou Randolph brincando com a pistola e tornando a colocá-la no cinto. - É melhor olhar pela sua mãe. Calculo que ser forte de cabeça não é a especialidade da vossa família.

Depois Randolph dirigiu-se para Janey. Ela viu-o aproximar-se e afastou-se na direcção oposta. Randolph apanhou-a quando ela ia já a desaparecer por trás de uma rocha.

- Mas que grande embrulhada, não é? - disse ele, calmamente, ao detê-la.

Janey sentou-se numa rocha e cravou uns olhos solenes nele. Não parecia serem precisos mais pretextos, pois ela estava realmente angustiada, ainda que não só por lhe agradarem os factos mas também os conservasse e acentuasse.

- Philip, você arruinou-me - disse, tragicamente.

- Oh, Janey, não pode ser tão mau como isso - protestou ele.

- Porque é que você não disse que eu era a sua mulher? - perguntou ela.

- Meu Deus! Julgo que não pensei. Durland perguntou-me se eu era casado. E eu disse. - Certamente que não. Ele suspeitava, está claro, e eu fui suficientemente louco para cair na armadilha.

- Bert conhece muitos dos meus amigos. Vai contar-lhes.

- Mas ele disse que vocês estavam noivos! - exclamou Randolph.

- Disparate! Nunca estive noiva dele. Como pôde acreditar nisso?

- Receio que possa acreditar em tudo vindo da sua parte - tornou ele, com uma dúvida amarga.

- Isso tem sido sempre evidente - replicou ela, distante e fria. - Mas não atenua a sua culpa...

Deve ser possível impedir Bert de falar. Mas não Mrs. Durland. Ela é uma velha alcoviteira. Esta nossa pequena fuga matar-lhe-à a ambição de me ver casada com Bert. Ela vai meter na sua cabeça dura, que sempre foi impossível. E quererá vingar-se de mim. Vai arruinar a minha reputação.

- Como pode fazer isso? - perguntou Randolph, lastimosamente. - Pensava que as raparigas modernas não tinham reputação a perder.

- Essa é uma das suas alucinações e de meu pai também. Concedida uma certa independência e liberdade à vida moderna, a verdade, contudo, é que ainda há limites. Aos olhos dela nós transgredimos o principal.

- Não Você, Janey. Eu sou o único culpado. - Isso há-de me servir de muito-acrescentou a jovem, tristemente.

- Mas talvez possamos levar avante essa ideia de eu ser o Black Dick. Ele é bem conhecido no território. Anda sempre por aqui, com um mestiço Piute. São conhecidos por atacarem os turistas. Pode ser que eu possa manter o embuste.

- Pode tentar, certamente. Mas em minha opinião isso é o último recurso. Além de que os cow-boys acabarão por dar connosco. Ouviu o que disse Mrs. Durland. Os cow-boys, evidentemente, modificaram os seus planos.

- O seu pai... ou... ou qualquer outra coisa deve pô-los fora da nossa pista - disse Randolph, desajeitadamente.

- O pai! Ele com certeza que «mandará» os cow-boys atrás de mim - exclamou Janey. - Declaro-lhe que não sei onde é que você quer chegar.

- Se eu alguma vez tive razão, ela desvaneceu-se quando você apareceu no meu horizonte. O mesmo aconteceu à minha paz! E agora, devo acrescentar, o meu carácter também desapareceu.

- Isso não tem senso nenhum! O que é a desonra hoje em dia para um homem? - ripostou Janey, com supremo desprezo. - Você fugiu com uma rapariga!... Isso nunca o prejudicará. Fá-lo-á até muito mais atraente... depois de eu me divorciar de si!

- Divorciar-se de mim? - ecoou, frouxamente, Randolph.

- Certamente. Você terá de se casar comigo, pelo menos, para fazer com que este seu procedimento seja meio decente. Depois eu pedirei o divórcio.

- Mas e se a trapaça do Black Dick der resultado? - perguntou ele, esperançoso.

- Óptimo para os Durlands - replicou Janey. - Mas eu estou a pensar nos cow-boys e nos Bennets, depois dos Durlands se irem embora. Nós não os podemos enganar a esses espertalhões do Oeste. Portanto devem enforcá-lo. E eu suponho que isso salvaria a minha reputação, se não a notoriedade.

- Enforcar-me! Por Deus, desejo que eles venham e que o façam - respondeu Randolph. - Estou cheio até à raiz dos cabelos.

- Não terá essa sorte! - suspirou Janey. - Você deve sair de tudo isto são e salvo. As mulheres é que pagam sempre.

- Eu... eu estou o mais desesperadamente penalizado - disse Randolph, torcendo as mãos. -Gostaria de ter aqui...alguém... aqui para o estrangular... Mas não pode ser assim tudo tão mau. Havemos de enganar esses Durlands. Quanto aos cow-boys - bem, eles não são assim tão palradores e o Arizona é bem longe de Nova Iorque. Você...

- Philip, não se iluda - interpôs Janey. - Você arruinou-me irremediavelmente.

Janey queria continuar a insistir naquele ponto. Parecia estar a ter sucesso evidente, pois ele blasfemava baixinho e sentando-se cobriu a cara com as mãos.

- Mas que belo e bravo raptor e que bandido você me saiu - disse Janey. - Não deixe que os Durlands o vejam nesse estado.

Ele não prestou atenção às zombarias dela. - Arruinei-a... e... o que sou eu?... Quando as palavras de Elliot chegarem aos ouvidos dos chefes, serei despedido.

- Bem, suponhamos que você é despedido. Você pode continuar o seu trabalho por sua conta. E não seria muito melhor para si descobrir Beckyshibeta «agora» do que quando era empregado do governo?

- Você fala como uma criança - respondeu ele, cansado.

- Porquê? - inquiriu Janey, com grande surpresa. - Penso que até estou a ser muito gentil, considerando o seu caso.

- O que é que me importa a mim Beekyshibeta? - rompeu ele, com melancólica paixão. - Quando você sair da minha vida, nada mais me restará.

- O que é triste... se é verdade - volveu ela com uma piedade e um constrangimento muito dignos. - Mas você só tem de se culpar a si.

- Bah!

- Eu respeitava-o... gostava de si - continuou, com compadecida ternura, Janey. - Agora você fez com que eu... o deteste.

- Não poderia esperar outra coisa - disse, levantando a cabeça, com dignidade. - Não lhe estou a pedir piedade... ou mesmo o seu perdão.

- Oh, quanto a isso, é claro, que nunca lhe poderei perdoar. Aquilo que você fez, nem mesmo um anjo lhe poderia perdoar... e eu não me posso classificar como tal.

- Claro que não - respondeu ele secamente, e levantou-se, rígido e severo. - Mas o que é que se vai fazer? Nós temos aqui esses malditos dos seus amigos.

- O melhor será conservá-los aqui - respondeu Janey. - Até que aconteça alguma coisa. Continuemos com o embuste do Black Dick. Vamos lá a ver que espécie de actor você é.

- Não sou actor. Eu não poderia iludir nem sequer uma criança.

- Você iludiu-me - protestou Janey. - Eu imaginava que você era gentil, amável... exactamente o contrário do que é. Seja natural agora. Seja bruto para mim, como tem sido. Eu também representarei. E faça esses Durlands pagar por terem invadido o nosso- o que poderei eu chamar-lhe? - o nosso paraíso do «canyon»... Seja um monstro para Mrs. Durland e assuste o resto dos dias de vida desse jovem Romeu caçador de dotes.

- Essa última parte será fácil - replicou Randolph, ameaçador.

 

A preocupação de Randolph prejudicava a sua actuação. Mas essa feroz preocupação, fê-lo ainda mais convincente e misterioso para os do Leste.

Durland foi um perfeito modelo de estupefacção, ao ver Janey entrar no acampamento, vacilando sob um feixe de lenha.

- Não faças isso, Janey - pediu ele. - Eu trarei a lenha. - E deixando a mãe, que lhe pedia para ficar, foi com Janey.

- Eh, rapariga, não saias da minha vista com esse imbecil - ameaçou Randolph, com um tom tão natural, que Janey percebeu que ele não estava a fingir.

Então enquanto Bert foi sozinho, Janey aproximou-se de Mrs. Durland.

- Tenho dinheiro e jóias comigo - começou aquela senhora, nervosamente. - Este rufião não será capaz de as roubar?

- Claro. Ele com certeza que a vai revistar - afirmou Janey.

- «Revistar-me»! - exclamou Mrs. Durland.

- Eu riria - respondeu Janey alegremente. - Ele revistou-a?

- Ainda não. Mas qualquer pessoa pode ver que não trago nada escondido. - Eu trago tão pouca roupa.

- Se ele me faz isso eu - eu morrerei - declarou Mrs. Durland, e ela parecia disposta a isso.

Randolph gritou para que Janey voltasse para perto da fogueira.

- Ele também se está a dirigir a mim? - perguntou Mrs. Durland.

- A senhora saberá quando ele se lhe dirigir. E em nome do Céu, obedeça-lhe rapidamente. É um bruto terrível. Não é preciso nada para que ele lhe dê um bom e sonoro pontapé!

- Oh, que monstro incrível! De todos os seus actos - dar um pontapé a uma senhora. Ele deveria ser esfolado vivo... E também bate?

- Oh, muitas vezes. Aprendi a obedecer-lhe prontamente e a conservar os meus olhos fixos nele, quando ele não «está ocupado.

- Que situação horrível! - exclamou Mrs. Durland. - Estou a vê-lo agora a observar-me.

- Vem cá, rapariga - gritou Randolph, com voz possante.

Janey apressou-se a voltar para junto de Randolph, que continuou, ainda em voz alta:

- O que é que estavas a tagarelar com aquela velha?

- Estava apenas a mostrar-me simpática - replicou Janey.

Bert apareceu, transportando, cuidadosamente, alguns pedaços de lenha, evitando sujar os seus lindos calções de montar. Randolph reparou nisso e olhou-o, com ar feroz.

- Hum! Com medo de sujares as tuas calças - silvou e lançando mão de uma frigideira toda enfarruscada esfregou-a bruscamente pelos calções de Bert.

Contudo, isto pareceu ser, naquele momento, o limite da duplicidade de Randolph. Esqueceu-se outra vez do seu papel e caiu num longo silêncio. Janey ajudou-o a preparar a ceia. Não lhe parecia a ela coisa fácil mostrar-se oprimida e assustada quando, na verdade, se sentia precisamente o contrário. Certamente não poderia manter esta situação por muito tempo. Sem dúvida iria tornar-se cada vez mais absorventemente divertida e excitante à medida que o tempo fosse passando. Os Durlands estavam completamente logrados. Estavam intimidados, de cabeça perdida. Janey compreendeu que por agora a sua reputação estava salva. Mas o que aconteceria se os cow-boys aparecessem! Ou alguém que realmente conhecesse Randolph! Janey tremia só com essa ideia. Ela estava bastante céptica, a respeito da reacção dos cow-boys, especialmente de Ray, perante esta tentativa de rapto, de Randolph. Mas tanto quanto eles não recorressem à violência ela imaginava que a sua chegada só aumentaria o interesse. Os cow-boys, porém, eram uma incógnita para ela. Era absolutamente possível que mesmo ela os não pudesse impedir de praticarem o que eles deviam acreditar que fosse justiça sumária para com um ofensor das leis do deserto.

- Venham e tomem lá disto - gritou Randolph, o mais inóspito possível.

- Tomem - o quê? - perguntou Mrs. Durland, sobressaltada. A sugestão daquelas palavras e o seu tom não lhe soaram bem.

- Comida - sua patarata!

A disposição de Randolph não tinha prejudicado as suas qualidades de bom cozinheiro, facto que os Durlands, uma vez sentados a comerem, verificaram amplamente. Para Janey, além de lhe satisfazer a imensa fome, a refeição foi aliás um sucesso considerável. A conversa faltava, até que para o fim da ceia Randolph disse a Mrs. Durland que ela provavelmente morreria de fome e teria os seus ossos comidos pelos coiotes.

- Abri o vosso fardo - acrescentou ele, como explicação. - Vocês deviam ter vindo para um piquenique de um dia.

- Aquele índio comeu quase tudo que nós trazíamos - arriscou Bert.

- Podemos arranjar sempre carneiro - disse Randolph para consigo.

Depois de cearem ordenou aos Durlands para fazerem as camas na base da vertente da rocha. Bert pediu e obteve permissão para cortar alguns ramos de cedros para pôr por baixo dos cobertores. Randolph começou a juntar a fogueira enquanto Janey descansava, ao lado, sonhando e observando.

Quando as sombras do crepúsculo no «canyon» começaram a insinuar-se, acentuando a solidão do lugar, Randolph afastou-se.

- Que estranho... bandido - exclamou Mrs. Durland. - Penso que ele deve ter sido uma pessoa bem diferente, outrora. Este homem foi bem nascido. Uma mulher reconhece sempre isso.

- Black Dick é o mais cavalheiresco dos fora da Lei destes sítios - replicou Janey. - Apesar do seu hábito de matar pessoas - acrescentou, precipitadamente.

- Janey, desculpe-me todas as torpes observações que lhe fiz - disse Bert. - Se nós sairmos daqui com vida... então, tudo será como dantes.

- Ah! - Volveu Janey, sonhadora. Nada poderia voltar a ser o mesmo. O futuro e o mundo estavam prodigiosamente transfigurados. Mas ela queria que o presente durasse, mesmo que tivesse de aguentar mais ataques amorosos de Bert Durland. O jovem, no entanto, estava ainda demasiado perturbado com Black Dick para se preocupar com sentimentalismos.

- Onde é que ele dorme? - perguntou Mrs. Durland, ansiosamente.

- Black Dick? Oh, quando ele dorme é mesmo aqui ao pé da fogueira. Mas ele é como os mochos, dorme pouco.

- Onde é a sua cama? - perguntou Bert.

- A minha é mais acima, sobre essa plataforma, aí atrás - replicou Janey.

- O Bert não podia ir buscá-la para aqui para baixo para o pé das nossas? - inquiriu a mãe.

- Black Dick não deveria gostar.

Uma grande fogueira dissipava a obscuridade debaixo da rocha, mas não conseguia dissipar a que existia no cérebro dos cativos. Janey, por fim, escapuliu-se em silêncio para ficar sozinha. O seu coração estava cheio... cheio nem ela bem sabia de quê. Contudo, algumas dessas coisas que lhe enchiam o coração eram agravos e uma grande e opressiva parte era uma emoção rica e profunda que parecia estranha e aguilhoantemente doce. Esta emoção ameaçava apoderar-se dela completamente; por conseguinte e com rebeldia, achando esses sentimentos reais e verdadeiros e não serem negados, ela comprometia-se a adiar a resignação para mais tarde. Era muito difícil esmagar este sentimento, resistir o mais assombrosamente aos sentimentos amigáveis para com os Durlands, escarnecer, esquecendo-o, o seu pobre e velho pai, que tinha errado só por muito a amar, e para lutar geralmente com uma avalanche de brandura.

- O que se poderia esperar que acontecesse... essa era a questão? Randolph tinha-se colocado num jogo de espera e manter-se-ia nele, mesmo se todos morressem de fome. Apesar de tudo, ele tinha sido tentado por esta coisa; havia desculpa para ele, embora, está claro, nenhum perdão contudo para aquele atroz castigo que ele lhe tinha dado. O véu da noite escondeu o rubor que invadiu a cara de Janey, mas ela sentiu-lhe o calor. A meditação daquilo não se anteporia à sua consciência.

Os índios podiam cair sobre eles, ou os turistas, ou os pastores, ou possivelmente vagabundos de carácter duvidoso. A possibilidade de qualquer ou de todas estas ocorrências era remota, mas qualquer coisa podia acontecer. Os cow--boys viriam certamente. Janey queria que eles viessem, embora ao mesmo tempo receasse isso. Não havia esperança de que Randolph conservasse o seu engano por um espaço de tempo considerável. Portanto Janey estava perplexa. Ela queria que os Durlands apanhassem um bom susto e deixassem o Arizona debaixo da impressão que eles agora tinham. Queria que horríveis e múltiplos castigos caíssem sobre a cabeça de Randolph. Se lhe agradava aliviá-los mais tarde, era uma coisa à parte que nada tinha a ver com a questão. Se ele pudesse ser reduzido à mais abjecta humilhação, que quisesse ser realmente enforcado, como tinha dito, para saborear o mais amargo dos arrependimentos, então seria tempo para o desfecho dela. Embora ele não tivesse o mais leve indício, mesmo a mais remota esperança, das suas duas grandes paixões, Janey sabia-o. Fora ela, Janey, quem tinha descoberto Beckyshibeta e o verdadeiro estado do seu coração, mas isso em nada contribuía para que ele o soubesse. Que profundo pensamento! Janey tremeu ao analisá-lo. Havia uma grandeza nestas descobertas que começava a divorciá-la da velha Janey Endicott. Ela queria, ela tinha de ter a sua vingança; combateu pois esta subtil mudança, como parecia, da sua natureza. Ela ainda odiava mas o pior é que não podia mais estar segura daquilo que odiava. Janey suspirou. Oh, que queda isto iria ser!

Janey Endicott de um pedestal de pensamentos modernos, de liberdade, de independência, de igualdade... caía estrondosamente!

Contudo, e a despeito de tudo, Janey procurou a sua cama, feliz. Por um momento sentou-se e olhou para baixo, para o círculo iluminado pela fogueira. Mrs. Durland e o filho acotovelavam-se lá, conservando as chamas brilhantes, sussurrando, lançando olhares furtivos para as sombras negras, nitidamente cheios de medo de irem para a cama. Agora Randolph saía da obscuridade. Janey estremeceu ao vê-lo. E maravilhou-se consigo própria - nenhum outro homem poderia fazê-la sentir o que ela sentia.

- Minha senhora, está a fazer-se tarde - declarou Randolph dirigindo-se severamente à intimidada mulher. - É preciso que eu a vá deitar?

Imediatamente Mrs. Durland se dirigiu para a cama, que ficava debaixo da plataforma, fora das vistas de Janey.

- Meu jovem companheiro, você vai sentar-se aqui e ficar a vigiar - continuou Randolph, enquanto ia desenrolando a sua cama perto do fogo. - E lembre-se, nada de espertezas. Eu durmo sempre com um olho aberto.

Quando Janey olhou uma última vez, Randolph parecia dormir pacificamente, enquanto Bert estava sofrendo o martírio de ser vigia de noite.

As sombras dançavam na parede acima de Janey, brincavam e revolteavam e pintavam lá histórias. Se pudesse ter escolhido, ela estaria antes aqui nesta cama do que em qualquer outra parte do mundo.

Mas todo o mistério e a doçura do presente, em Beckyshibeta, não eram suficientes para a conservarem acordada.

O sono de Janey foi interrompido por uma voz muito alta. Era Randolph a chamar os seus prisioneiros para o pequeno almoço. Janey sentou-se e tratou de se tornar tão apresentável quanto possível. A face que sorria para ela, no pequeno espelho, não precisava de pinturas. Tinha adquirido um belo tom dourado pelo sol. Os seus olhos brilhavam de entusiasmo.

Desceu para o pequeno almoço. Randolph não levantou os olhos, pelo menos enquanto ela esteve por ali perto. Bert tinha os olhos pesados e estava sombrio, e Mrs. Durland era uma ruína.

- Bons céus, você está com o aspecto de quem dormiu - foi a resposta de Mrs. Durland ao cumprimento de Janey.

- Claro que dormi - replicou Janey e então comeu o seu pequeno almoço, com apetite.

- Deus me defenda de outra noite como esta - orou Mrs. Durland, fervorosamente. - Deitada na rocha... virei-me de um lado para o outro. Sinto o meu corpo cheio de covas. Os mosquitos devoraram-me. Vários animais passaram por cima de mim. Quase que morri gelada. E nunca consegui pregar olho.

- Foi bastante mau - volveu Janey. - Mas habituar-se-á, dentro em pouco tempo. Não é verdade, Mr. Black Dick?

- Os sábios dizem que um ser humano pode habituar-se a toda a espécie de sofrimentos, mas eu pessoalmente não acredito nisso - foi a espantosa resposta do suposto fora da Lei, que trespassou Janey, com um rápido olhar dos seus olhos sombriamente acusadores.

- Mr. Black Dick, o senhor já foi um homem melhor, não foi? - aventurou Mrs. Durland, quase com simpatia.

- Sim. Muito melhor. Fui arruinado por uma mulher - respondeu ele, sombrio.

Esta sensacional revelação causou um momento de silêncio, que foi quebrado pelo som de patas de animais repercutindo-se nas rochas.

- Vêm índios a descer o «canyon» - disse Randolph, que se tinha levantado.

- Oh, meu Deus! São inimigos? - gritou Mrs. Durland.

- Bem, são Navajos mais ou menos amigos - volveu Randolph.

Três cavaleiros, muito pitorescos, dirigiam-se dos cedros para o acampamento. Um deles, particularmente, chamou a atenção de Janey, quando desmontou num movimento sinuoso. Era alto com uma cabeça poderosa que o fazia parecer mais pesado em cima. Usava «moccasins» (1) castanhos, calças de bombazina, um cinto -de cabedal com uma larga fivela e amparos de prata e uma camisa de veludo acastanhada. O seu vasto «sombrero» com uma fita enfeitada

 

(1) Espécie de safões de pele.

 

escondia-lhe as feições, mas Janey podia ver que o seu rosto era vermelho.

- É melhor comerem enquanto a comida está boa - avisou Randolph.

Então falou para os índios em Navajo. As atitudes deles significaram que ele os tinha convidado a participarem da refeição. Janey ficou contente por estar quase a acabar de comer. A carne, os biscoitos, as batatas desapareceram como que por encanto. Mrs. Durland, que tinha enchido o prato, mas que mal lhe tinha tocado, ficou electrizada ao ver a sua parte do pequeno almoço desaparecer com o resto. Para fazer justiça aos índios, contudo, ela não estava a segurar no seu prato naquela altura. Tinha-o pousado numa rocha ao pé da fogueira.

- Ugh! - grunhia o grande índio, depois de cada dentada. Randolph tinha feito biscoitos grandes, mas ele comia-os, um de cada vez.

- Esse miserável comeu o meu pequeno almoço todo - declarou Mrs. Durland, atónita e esfomeada. Evidentemente ela pensava que aqueles navajos não sabiam falar nem percebiam inglês.

- Que grandes brutos! - exclamou o jovem Durland. - Mãe, aquele índio já comeu nove biscoitos. Eu contei-os.

- Mr. Dick disse que eles eram meio amigos - lamentou-se Mrs. Durland. - Declaro que não estou a ver isso.

Randolph afastou-se para o lado para murmurar a Janey: - Aquele índio grande é esperto. Conserve a boca calada e não saia daqui seja a que pretexto for.

- Não se preocupe, Phil - sussurrou Janey. - Ficarei no acampamento. Como é que ele se chama?

Os cow-boys chamam-lhe «Ham-Face» (Cara de presunto).

Agora Janey tinha oportunidade de o ver bem. A alcunha era feliz. Ele tinha exactamente uma cara que se parecia com um presunto. Mas era certamente como que o registo da vida no deserto. Janey não podia saber se ele era novo ou velho. Tinha grandes olhos negros, penetrantes e atrevidos, ainda que um pouco melancólicos. Havia no seu rosto linhas ascendentes de força e tinha uma testa de pensador. Sentando-se atrás de Mrs. Durland o índio dirigiu-se-lhe em navajo.

- O que é que ele está a dizer? - perguntou ela, meio fascinada, meio assustada.

- Mrs. Durland, lamento não poder traduzir bem o navajo - respondeu Randolph. - Mas ele queria mais ou menos saber porque é que a senhora usa calças de homem.

Janey não acreditou uma palavra. Ela podia dizer quando Phil estava a mentir.

- O selvagem sem vergonha! - exclamou a mulher, com indignação.

«Ham-Face» dirigiu-se-lhe de novo, gravemente, com a cara impenetrável, como uma máscara.

- Ele quer saber se a senhora é casada com alguém - explicou Randolph.

- Mãe, fizeste uma conquista - riu o jovem Durland.

O que ofendeu a mãe que se levantou do lado do navajo e deixou o acampamento. «Ham-Face» seguiu-a, muito fascinado, evidentemente, pela sua aparência. Tinha de se admitir, pensou Janey, que Mrs. Durland em calções de montar, feitos pelo alfaiate, demasiado pequenos para a sua corpulenta figura, não era nada menos que um bom espectáculo. Quando ela se apercebeu de que estava a ser seguida, ficou ainda mais perturbada e precipitou-se de um lado para o outro, desnorteada, embora não se afastasse muito dos outros. «Ham-Face» perseguia-a.

- O que é que este doido quer para andar a seguir-me? - gritou ela.

Finalmente e com medo evidente voltou para o lugar ao pé do filho, e sentou-se lá, soprando, batendo no chão com as botas. «Ham-Face» continuou a andar à volta dela e a estudá-la com olhares sepulcrais.

- E ainda falam da nobreza dos homens vermelhos! - exclamou ela. - Eles são abominavelmente rudes... Porque é que eles se não vão embora?

Os três navajos pareciam não ter pressa. «Ham-Face» conservava-se inteiramente devotado a Mrs. Durland, enquanto Os outros dois fumavam cigarros e conversavam em tom grave com Randolph. Janey tinha-se refugiado atrás dos fardos, donde apenas emergia a sua cabeça. Bert estava interessado apesar do medo que sentia. Por fim a atenção de «Ham-Face» para Mrs. Durland tornou-se tão insistente que a nervosa e altamente susceptível senhora explodiu com um discurso que devia ser dirigido a toda a raça índia.

«Ham-Face» imperturbável, acendeu um cigarro e soprou para o ar uma baforada de fumo.

- Perdoe-me, minha senhora, se pareço pasmado - disse num inglês tão fluente como o dela própria. - Mas a senhora é a velha mais bizarra que tenho visto. Gostava de a apresentar às minhas esposas. Quando estive em Nova Iorque e em Paris, durante a guerra, encontrei algumas mulheres muito modernas, mas a senhora bate-as de longe!

O queixo de Mrs. Durland pendeu, inerte, os olhos esbugalharam-se-lhe, e com um arfar ela desmaiou. Janey continuava por trás dos fardos, com o lenço esmagado contra os lábios para a impedir de rebentar às gargalhadas. «Ham-Face» era certamente um dos navajos educados que os cow-boys tinham mencionado.

Depois disto, o índio desistiu de apoquentar Mrs. Durland e depois de um olhar enigmático para Janey foi juntar-se a Randolph e aos seus dois companheiros e foram-se embora. «Ham-Face» voltou para acenar a Mrs. Durland.

- «Adiós», pequena Eva - gritou ele.

Quando eles desapareceram Mrs. Durland saiu da sua síncope.

- Esse selvagem de cabelo comprido, sujo e esfarrapado! - bramou ela. - Pensar que ele compreendeu todas as palavras que eu disse e depois falou tal e qual como um homem branco!... Juntou o insulto à injúria.

Oh, este horrível Arizona com os seus falsos negociantes, cow-boys, índios, foras-da-lei, e armadilhas!... Oh, meu filho, meu filho, tira-me daqui, desta confusão!

- Mãe, sinto que o pior ainda está para vir - disse o jovem, muito esperançado.

Janey deixou o lugar onde tinha estado estendida e tentou captar o olhar de Randolph. Mas a cara dele estava desviada e ele permanecia imóvel numa atitude hirta de quem escuta.

- O que é? - murmurou Janey.

- Penso que ouvi um cavalo - replicou ele. - Mas não são os índios. O som vem de baixo, do «canyon».

- Mãos ao ar! - berrou uma voz áspera, por trás deles.

Janey ficou paralizada. Viu Randolph levantar os seus braços e então, vagarosamente, voltar-se. O seu tom corado desvaneceu-se.

- Meu Deus... é na realidade Black Dick em carne e osso! - exclamou em voz rouca.

O coração de Janey começou a saltar-lhe no peito. Voltando-se ela viu dois homens, com fatos de montar bastante ordinários. O da frente era pesado e grosseiro, com o que parecia uma mancha negra em lugar de rosto. Segurava uma pistola, a qual estava apontada na direcção de Randolph.

- Olá, professor - disse ele. - Permaneça firme e quietinho, enquanto Snitz lhe tira a sua arma.

O segundo homem, cara pequena e corada, cabelos vermelhos, pernas tortas, com um blusão de cabedal azul, todo cheio de nódoas de gordura, apropriou-se da arma de Randolph, e depois, muito destramente, também da bolsa.

- Hum! Isto não é nada para mim - disse o gatuno, olhando para a bolsa com desdém. - Bem, talvez estes enfezados estejam melhor recheados,

Mrs. Durland e Bert permaneciam rígidos, com as mãos no ar e expressões assustadas.

- Contemos que o Willie das calças brancas tenha bastante dinheiro e se ele não tiver a Mrs. Cara de Machado há-de ter.

Uma rápida revista a Bert trouxe à luz do dia algumas pequenas notas e algum troco.

- Bem, se ele não é um desportista de trazer por casa - exclamou o chefe, desgostoso. - Nenhum desses ricaços terá moedas de ouro?... Diga-me, senhora, tem dinheiro e valores?

- Aq-q-ui não - gaguejou Mrs. Durland. Era evidente que não só ela estava a mentir como também estava muito assustada.

- Desculpe-nos, senhora, por toda esta familiaridade sem ainda termos sido apresentados. Eu sou Black Dick, da fronteira, e este aqui é o meu sócio Snitz Jones.

- Oh, céus! Mas há dois Black Dick! - gemeu Mrs. Durland.

- Bem, só há um único e verdadeiro Black Dick e esse sou ele - volveu o ladrão, com altivez.

- Ele chama-se a ele mesmo Black Dick - exclamou a mulher, apontando, com um gesto débil, para Randolph.

- S-s-sim, sim é verdade... portanto... é ele - corroborou, grave, Bert.

- O Inferno é o que ele é! Bem, eu chamo a isso um cumprimento. Mas, minha gente, ele estava apenas a troçar-vos. Talvez divertindo-se com a minha imitação!

- Você... você quer dizer que ele não é Black Dick e sim o senhor é que é? - gaguejou Mrs. Durland.

- Exactamente e precisamente, senhora - volveu Black Dick, amável.

- Quem é então ele?

- Bem, eu não tenho a certeza, mas julgo que é Phil Randolph. Os cow-boys das imediações chamam-lhe o Professor ou Cavador de Ossos.

O arqueólogo culpado deixou cair as mãos com uma gargalhada e sentou-se bruscamente. Janey compreendeu que o gato estava escondido com o rabo de fora.

- Impostor! Mentiroso! - gritou Mrs. Durland.

- Bem, eu seja cão! - exclamou Black Dick, com selvagem interesse. - Snitz, passa-se aqui alguma coisa, e eu tenho a impressão que é bastante divertida. Mas nós não nos podemos esquecer de apanhar todos os valores. - Despeje para cá tudo o que tem, senhora - disse Snitz, exortado por estas palavras, as mãos, ávidas, estendidas.

- Eu... eu disse-lhe que não tinha nada - replicou Mrs. Durland, em voz fraca.

- Revista-a, Snitz - ordenou Black Dick, com dureza. - Eh... senhora... conserve as mãos no ar.

Entretanto o pequeno rufia de cabelos vermelhos dirigiu-se para Mrs. Durland com uma vivacidade e entusiasmo que quase sufocaram Janey, enquanto ao mesmo tempo ela se sentia receosa pelo que lhe poderia ir acontecer.

- Ah! Aqui está o volume de qualquer coisa que parece pesada e que tem um som musical - anunciou Snitz, batendo no bolso traseiro de Mrs. Durland.

- Você... ladrão... patife... miserável! - guinchou Mrs. Durland.

Devia ter-lhe doído ver aquele gordo e tilintante saquinho trazido à luz do dia. Snitz abriu-o rapidamente. Notas de banco, moedas de ouro... jóias!

- Upi! - gritou o pequeno ladrão. - É uma autêntica colheita, patrão. Aqui esta senhora não se incomodou para nada.

- O negócio está a correr bem - notou com satisfação Black Dick. - Agora, Snitz, dá-me isso tudo e vai dar uma olhadela a essa rapariga. A julgarmos pelos olhos dela deve ter um milhão... Não achas engraçada?

Como Snitz se aproximasse de Janey, arreganhando os dentes, ávido, tão demoníaco como voraz, ela de repente aterrorizou-se. Tudo aquilo já não tinha tanta graça.

- Phil! - gritou ela. - Não o deixe tocar-me.

- Seja razoável, criança. Nós estamos à mercê deles - admoestou Randolph.

janey tirou o seu anel de diamante e estendendo, o mais que pôde, o braço, deixou-o cair na palma da mão de Snitz.

- É tudo quanto tenho. Palavra - disse ela, honestamente, no desejo de querer escapar ao contacto daquelas mãos rudes.

- Rapariguinha, tu não pareces ser mentirosa, mas nós vamos experimentar-te -volveu Black Dick, com doçura.

- Minha pérola, se foges será pior para ti - acrescentou Snitz, aproximando-se dela.

O seu contacto, seguido do diabólico fulgor do seu olhar, inflamaram Janey. Com um repelão, libertou-se e começou a bater em Snitz com todas as suas forças. Um rápido baixar de cabeça salvou-o a tempo.

- Ah! - exclamou ele, aturdido e detido.

- Ena! - acrescentou Black Dick, com jovial admiração. - Ela bate como o vento, Snitz. Se aquele golpe te tivesse apanhado tu tinhas sabido... Bem, mas que moça impetuosa!

Janey olhava furiosa e de soslaio para o ladrão estupefacto.

- Tu, malvado animalzinho! Se me tocas outra vez, desfaço-te essa cabeça vermelha!

Black Dick ria ruidosamente, enquanto Snitz, embora se juntasse à alegria do patrão, a tomava a sério.

- Quem havia de pensar isto, patrão? - disse ele. - Olhe para aquele punhozinho e para o modo como ele se move.

- Bem, creio que estou a ver - disse o chefe, guardando o revólver e aproximando-se. - Temos que ser cavalheiros, sabes, Snitz... Olha lá, rapariguinha valente, tu estás a dizer-nos a verdade? Tu só tens em teu poder este anel?

- É tudo o que tenho - retorquiu Janey, respirando com dificuldade.

- Bem, vira-te para te examinar - ordenou ele. Janey fez o que ele lhe mandara.

- Torna a virar-te e não tão depressa. Isto não é um carrossel.

Entretanto Janey, compreendendo que ia escapar à indignidade de ser revistada, voltou-se como se fosse um modelo da «Grande Maison de Blanc».

- Beleza, tu não deves ter nada em cima de ti - notou, fervorosamente Snitz.

Black Dick inspeccionou-a com olhos avaliadores de bom conhecedor.

- Bem, minha filha, creio que se tu tivesses uma moedinha escondida na tua pessoa, eu poderia dar por ela - concluiu ele, finalmente.

 

- Ouve lá, tu estás demasiado crescida para um vestidinho tão curto - observou a Janey Black Dick, com ar desaprovador.

- Fomos apanhados pela chuva e as minhas roupas encolheram - explicou Janey.

- Calculo que tu tens cerca de dezasseis anos, não? - Oh, sou um pouco mais velha - disse Janey, muito lisonjeada. - Quanto?

- Vários anos.

- Hum! Ninguém te tomaria por uma rapariga crescida. Receio que a tua mãe não tenha muito cuidado contigo... deixar-te andar por aí com os joelhos gordos à mostra.

- Gordos? Não são gordos - retorquiu Janey, toda ofendida.

- Desculpa-me. Bem, mas andam à mostra. Não podes negar isso. E depois de eu pregar uma descompostura à tua mãe, pregar-te-ei também uma - concluiu Black Dick.

- Snitz - disse ele para o seu lugar-tenente.

- Vais investigar por aqui à volta e verificar se há mais alguma coisa que se leve.

Então ele enfrentou a abatida e desmoralizada Mrs. Durland.

- Diga lá, senhora - começou ele. - A sua filha diz que tem dezoito anos. E eu tenho de lhe dizer que ela não anda decente. Usando tais roupas aqui no deserto. Porque não é respeitável. E nem tão-pouco é seguro. Vocês podem encontrar alguns homens que não sejam tão cavalheiros como eu e aqui o Snitz somos.

Mrs. Durland passou da apatia em que se encontrava, para uma estupefacção colérica que a deixou muda. Black Dick viu, evidentemente, que lhe tinha feito uma profunda impressão.

- Eu tomei-a por uma criança, como aquelas que eu vejo na cidade, que usam soquetes de algodão brancos, que lhes deixam as pernas nuas - disse ele. - E afinal ela já tem idade. Tem de se fazer alguma coisa a este respeito. A senhora devia envergonhar-se de deixar a sua filha andar por aí assim.

- A minha filha? - rompeu Mrs. Durland, furiosa. - Não queria mais nada! Ela não é minha filha!

- Desculpe senhora. Pensava que ela era irmã desse janota que está consigo -volveu Black Dick, muito friamente. - Pensando melhor, eu devia ter visto que ela não se parece nada com vocês.

Snitz aproximou-se, nesse instante, carregando vários objectos que tinha tirado da sela de Mrs. Durland.

Um deles era um saco de mão muito brilhante, o qual Black Dick prontamente despejou. Continha luvas, lenços de assoar, caixa de pó de arroz, cosméticos e uma revista com uma capa muito colorida e vistosa. O ladrão ficou com esta e tornou a pôr as outras coisas no saco.

- Snitz, vê se descobres mais alguma coisa - disse, lacónico, e voltou-se para Janey. Ela, da sua pilha de fardos, tinha estado à espera disto e tinha-se preparado com a cara triste e os olhos cheios de lágrimas.

- Como te chamas? - perguntou ele.

- Janey.

- O nome assenta-te bem... Porque é que estás a chorar?

- Estou muito assustada e infeliz. - Assustada? Por minha causa?

- Oh não. Eu não tenho medo de si. Penso que o senhor é um «verdadeiro» homem. Mas esta gente raptou-me... para conseguir o dinheiro do meu pai.

- Ah! Era por isso que este tipo, Randolph, pretendia passar por mim? - perguntou Black Dick, cada vez mais curioso.

- Suponho que era para me intimidar. Mas ele não é nem um pedaço como o «senhor».

- Com que então, esta velha ave é uma raptora? - cismou Black Dick, carrancudo. - E Randolph foi seduzido pelo negócio. Bem, eu seja cão se percebo alguma coisa disto. De certeza que estamos a lidar com gente baixa. Eu sou apenas um velho ladrão de fardos do deserto, pilhando por aí quando estou falido, mas podia ver que tu eras uma linda rapariga. Raptar mulheres, por dinheiro, claro que não está na minha linha de conduta. Só fiquei um bocado abalado por o teu vestido estar tão curto.

- Obrigado, Mr. Black Dick - disse Janey, pensando que nunca tinha recebido mais calorosa aprovação.

- Bem, nós veremos o que se pode fazer com esta galinha velha - disse o ladrão. Então aconteceu que ele reparou em Randolph, sentado para ali, como se não tivesse um amigo no mundo.

- Olha, Randolph, os meus amigos da Marinha dar-me-ão boas gorjetas por esta colheita. E o que é que tu pretendias? Não achas que é preciso pretender passar por mim? Há homens que te matariam por isso.

- Nunca pensei nisso - replicou Randolph, baixando a voz -, A verdade, honestamente dita, é que eu estava apenas a brincar. E não estou certo se teria sido tudo ideia minha.

Então eles juntaram as cabeças e conversaram, em tom tão baixo que Janey não pôde ouvir mais nada.

- Patrão, não há mais nada, senão comida - anunciou Snitz, dirigindo-se para ali. - Algumas comidas esquisitas e horríveis!

- Bem, tenho uma grande ideia - disse Black Dick, dando grandes palmadas nos joelhos e piscou um dos seus grandes e descarados olhos pretos para Janey. - Vamos ter comida aristocrática, especialmente feita para nós.

Dizendo isto, aproximou-se de Mrs. Durland, com passo vagaroso e bamboleante, o «sombrero» inclinado para um lado, o polegar direito metido na cava do colete e a mão esquerda agarrando a revista.

- Senhora - disse Dick, grandiloquente. - Vai ter a honra de ir cozinhar uma refeição para Black Dick. E se a senhora não fizer o melhor que souber, sinto que é meu dever ensiná-la.

Mrs. Durland caiu para trás, com o horror estampado na cara.

- Eu gosto das minhas mulheres corajosas - continuou o bandido. - Será portanto capaz de aprender a blasfemar, a preparar-me uma bebida e a dar-me um pontapé nas canelas?

- Bom Deus... não!

- Bem, então vai cozinhar e o Calças Brancas pode ser o ajudante de cozinha. Vá, toca a ir apanhar lenha... E agora, mana, despache-se. E pode ser que eu a deixe livre.

- Animal! - gritou Mrs. Durland e correu em direcção à fogueira.

- Façam o jantar, vocês dois - gritou Dick. - E não estejam todo o dia a fazer isso.

Janey tinha observado que estes homens, apesar da atitude anterior, de terem roubado o acampamento e das suas últimas travessuras, estavam a vigiar sempre o «canyon» lá em baixo. O mais novo, Snitz, estava particularmente atento. Estes bandidos esperavam que alguém viesse ou então estavam apenas habituados a tomarem precauções e a vigiarem.

Black Dick e Snitz sentaram-se muito juntos, com a revista sobre os joelhos do primeiro. Eles estavam com o ar de culpa de alegres colegiais em risco de partilharem um acto excitante e proibido. Formavam um quadro que Janey jamais poderia esquecer e que lhe recordava os travessos cow-boys. Todos estes nativos do Arizona tinham uma qualidade do inimitável Oeste, a chave da qual era o divertimento.

As grandes e sujas mãos de Dick voltavam as páginas até que, de repente, pararam; então as duas cabeças inclinadas mais se absorveram.

- Jerusalém! - exclamou Dick.

- Não é uma beleza! - exclamou o camarada, extasiado.

Voltaram a página e riram. Então Black Dick levantou os olhos, varreu com o olhar o horizonte mais próximo, e acontecendo ver Janey, acenou-lhe com a mão, como se lhe dissesse para se ir embora para qualquer parte longe e assim os deixar entregues ao seu divertimento. Dick voltou uma outra página; e eles assobiaram conhecedoramente. Outra página voltada, um suspiro muito alto de Snitz e qualquer coisa que soou muito parecida com uma praga dita por Black Dick. Então eles ficaram como que petrificados.

- Meu Deus! - exclamou finalmente Dick. - Snitz está a ver o que eu estou a ver?

- Eu estou a olhar para essa senhora nos Jardins do Éden - replicou Snitz, respirando pesadamente.

- Ela não tem mesmo nada em cima - disse Dick, muito consternado. - Olha, isto está-se a tornar um mundo horrível.

- Imagine quem tirou essa fotografia - volveu Snitz.

- Teve que ser tirada por um fotógrafo.

- Claro que sim... e um homem aqui. Garanto-te que não queria ser ele nem por um milhão de dólares.

- E eu então tiraria esta fotografia mesmo de graça! - disse Snitz.

Black Dick continuava a voltar as páginas, muito devagar como se esperasse que uma delas explodisse e o desfizesse em pedaços.

- Bem, aqui está alguém vestido... tal como eles estão - observou ele naquele momento.

- Actriz. Não é má, bem... Palpito que não deve haver muitos homens em Nova Iorque.

- Os homens não cortam muito gelo em parte nenhuma - disse Dick, inesperadamente. - Quando Eva foi tentada por aquela grande cobra elas assentaram que os homens fariam todo o trabalho, ou tornavam-se vagabundos, como nós, ou ir para a prisão.

- Dick, não foi ainda há muito tempo que as fotografias que nós víamos... a maior parte delas nas caixas de cigarros... tinham mulheres em trajos menores -disse Snitz, recordando-se.

- Claro, mas foi há mais tempo do que pensas. Tu já não vês nada disso agora. São tudo mulheres completamente nuas. O mundo. O mundo encaminha-se para o inferno.

- Alto - interrompeu Snitz, detendo com impetuosidade a mão de Dick. - Aqui está uma bela fotografia.

- Bela? Snitz, tu és um ignorante. Isto não é belo. Não vês que são duas raparigas num quarto. Estão meio vestidas e a fumarem. Terrivelmente artificial mas não é belo, claro.

- Ah, não vejo nada de mal nesta fotografia - disse Snitz. - E, pelo menos, elas são mesmo bonitas.

- Snitz, tudo isto aqui não tem graça nenhuma. É a primeira fotografia deste género que eu vejo desde a guerra. Bem, o tempo tudo muda... Mas, Snitz, nós não somos tão maus. Claro, nós estamos muitas vezes esfomeados e muitas vezes mais falidos, esperando por um acaso como este, e estamos sujos e mal barbeados com alguns xerifes à nossa procura, mas maldito seja eu se trocava a minha vida pela de alguma destas pessoas... mesmo pela desse fotógrafo. Tu trocavas?

- Nunca, Dick. Dá-me um cavalo e os campos - replicou Snitz, aproveitando para dar uma olhadela pelo «canyon». Os olhos de raposa de Black Dick rolaram e quedaram-se fazendo uma rude carantonha. Evidentemente o magazine estava a mostrar-lhe um misterioso e perplexo mundo. Janey concluiu que este rato do deserto, no encalço do qual andavam tantos xerifes, não era tão mau como isso.

Agora Mrs. Durland estava a chamá-los para a refeição que fora forçada a preparar-lhes. Tinha a cara muito vermelha e uma máscara negra no nariz, mas encarou-os com confiança. Snitz deu um pulo e ficou sentado no chão com as pernas cruzadas debaixo dele... uma maravilhosa actuação levando em conta que ele tinha umas longas esporas. Black Dick observava a toalha de mesa branca posta sobre o oleado e o variado sortido de alimentos cozinhados e caras.

- Bem, se agora não estou a sonhar, breve vou ter um pesadelo - disse ele e agachou-se. Snitz já tinha começado a comer. Dick, observando que ele não tinha tocado no guardanapo, pegando-lhe e estendeu-lho.

- O que é... isso? - perguntou Snitz, com a boca cheia.

- Tu ignorante. Às vezes desejava que a tua mãe não tivesse sido uma vaca... Bem, nunca tive uma indigestão ou uma cólica, mas se calhar vou ter agora uma.

Janey tinha visto os cow-boys esfomeados a comerem, para seu espanto e divertimento, mas não se podiam comparar com estes dois cavaleiros fora-da-lei. As suas proezas gastronómicas eram estonteantes, mesmo alarmantes de ver. Nem uma sombra de dúvida podia haver de que Mrs. Durland tivesse feito preparações astuciosamente combinadas e misturadas para fazer estes homens doentes, ou para os envenenar imediatamente. Sandes, bolos, sardinhas, queijo, azeitonas, «pickles», geleia, biscoitos, desapareceram tal como biscoitos quentes, presunto, batatas, e favas cozidas. Quando eles limparam completamente os pratos, Black Dick levantou-se e com garbo e elegância tirou o «sombrero» a Mrs. Durland.

- «Madame», a senhora pode ser uma pessoa sem reputação, mas de certeza que sabe preparar uma refeição - disse ele.

Snitz tinha-se levantado também, mas a sua atenção estava no longínquo começo do «canyon», onde nuvens de pó pareciam estar a levantar-se.

- Olhe para aquilo, chefe - disse ele.

- Ah! Sobe aí a qualquer sítio alto, de onde possas ver melhor - volveu Dick, e dirigiu-se para os cavalos que se tinham desviado até aos cedros. Quando ele os trouxe de volta, Snitz descia da plataforma.

- Uma quantidade de vaqueiros vêm, a cavalo, pelo «canyon», - anunciou ele.

- Bem, nós vimo-los primeiro - disse o seu camarada montando. Então, olhou para o ansioso grupo atrás dele. - Madame, creio que nunca esquecerei este jantar que a senhora preparou. Randolph, se você não vai ser enforcado, já não sei o que são vaqueiros. Adeus Miss Janey e boa sorte. Bert... se nos tornarmos a encontrar, hei-de alvejar-lhe essas calças tão branquinhas.

E partiu. Snitz, balouçando-se na sela, arreganhou a sua cara vermelha num sorriso para Janey.

- Adeus, beleza - gritou ele, significativamente. - Gostaria de tornar a ver-te.

Esporeando o cavalo depressa se juntou a Black Dick.

Juntos cavalgaram por entre os cedros e desapareceram no «canyon».

- Graças a Deus, partiram! - gritou Mrs. Durland, feita num feixe. - Foram-se embora com todos os dólares... todas as jóias que eu possuía!... Bert Durland, ainda hás-de lamentar este dia.

Janey começava a recuperar o seu forte estado de espírito. Não era fácil vencerem-na de uma vez. Os cow-boys vinham aí. E ela rememorava a amarga vergonha e a humilhação, que Randolph lhe infligira. Como era impossível ter esquecido ou esquecer! A cólera que ela sentia era como que um vínculo quente de nervos, de repente descoberto. detestava-o e as emoções que depois sentira desenvolverem-se eram como se nunca tivessem existido.

- Mrs. Randolph, os cow-boys estão a chegar - disse ela significativamente, virando-se para ele.

- Já tinha ouvido - replicou ele, muito breve. Parecia endurecido e estava ligeiramente pálido. Talvez apreciasse mais do que ela o que ia acontecer. Janey ficou desapontada porque ele não apelou para ela. Mas ela só teria troçado dele e provavelmente ele sabia-o.

As nuvens de pó aproximavam-se, vindo já para cá dos cedros. O barulho dos cascos nas rochas, o tom que eles faziam ao passar pelos ramos, e o rolar das pedras que eles arrastavam eram, certamente, sons musicais para Janey. Também havia qualquer coisa mais, mas ela não podia adivinhar o quê. Sentia o coração bater mais apressado. Quando Ray saiu de entre os cedros, à frente do grupo dos cow-boys, o coração dela deu como que um salto e depois como que parou de bater. E o estranho pensamento que acompanhou isto! De repente ela desejou que eles não tivessem vindo. Não pareciam ser um grupo jovial de alegres cow-boys; tinham-se transformado em homens carrancudos. Não era habitual nestes cow-boys o virem tão silenciosos.

Ray fez parar o seu cavalo, a pequena distância, e os companheiros ficaram logo atrás. Os seus olhos de falcão quedaram-se nos Durlands. Janey notou neles um sobressalto. Depois ouviu-o falar baixo com os outros. Então Ray desmontou, de revólver em punho. Isto chocou Janey. Este rústico cow-boy, que ela poderia ter torcido a seu belo prazer com um dos seus pequenos dedos, parecia uma outra pessoa muito diferente. Todos eles se deixaram escorregar dos cavalos.

- Creio que Randolph tem uma pistola, mas ele não a quer dar - disse Ray. - Esperem até que eu... veja quem são estas pessoas.

Adiantou-se ao encontro de Mrs. Durland e Bert.

- Quem são vocês? - perguntou rudemente.

- Eu sou Mrs. Percival Durland, de Nova Iorque, e este é o meu filho Bertrand - respondeu ela, muito digna.

- Como é que chegaram até aqui? - Com um guia índio.

- Há quanto tempo estão aqui?

- Parece-me há muito tempo já, mas de facto há apenas dois dias.

- Porque é que vieram?

- Nós «eramos» amigos de Miss Endicott - volveu Mrs. Durland, significativamente. - Ouvimos dizer no posto que ela estava aqui, e portanto viemos... para meu amargo arrependimento e vergonha.

- Quem esteve mais aqui?

- Dois ladrões vis e miseráveis - bradou mrs. Durland. - Black Dick e o seu cúmplice. Eles roubaram-no.

- Creio que eles nos viram e se puseram a mexer, não foi? - continuou Ray, com os seus olhos penetrantes cravados no chão.

- Acabam de partir... com tudo o que eu tinha - lamentou-se Mrs. Durland.

- Tiveram sorte em escapar tão facilmente - disse Ray, de um modo conciso. -Encontraram Miss Endicott e Randolph, sós?

- Bastante sós - replicou a mulher, com insolência. Ele raptou-a.

- Isso é o que «ela» diz - interrompeu Bert, sarcástico.

- Ah... Compreendo - volveu Ray violento. - Vocês estão a insinuar que Miss Endicott deve ter vindo voluntariamente.

Bert estava prestes a responder, quando um dos cow-boys, que estava de costas e que Janey não podia reconhecer, lhe bateu de tal maneira que ele caiu, para trás, em cima da rocha.

- Bem, é melhor conservares-te calado a esse respeito - disse Ray, afastando para trás com o braço o cow-boy conflituoso.

- Claro que isso não vai salvar Randolph.

- Oh, este horrível Oeste! - esganiçou-se Mrs. Durland. - Vocês são todos iguais. cow-boys, negociantes, índios, cientistas! Vocês são todos uns vilões enganadores e sanguinários.

- «Madame», calculo que isto não tenha sido agradável por aqui. A senhora e o seu elegante Jim, o melhor que têm a fazer é deixarem isto, o mais depressa possível.

- Deixar! Para onde e como? Esse homem mandou embora o nosso guia. Nós não podemos selar os cavalos, carregá-los e muito menos encontrar o nosso caminho e sair deste buraco infernal.

- Tratem de sair da nossa vista, quanto antes - continuou ele, asperamente, e voltou-se para se dirigir a Randolph e a Janey, o revólver virado para baixo, mas claramente ameaçador. Diego, Mohave, Zoroaster e Tay-Tay seguiram-no. O tilintar musical das suas esporas não se harmonizava com o seu procedimento.

Ray fixou Janey, com um olhar penetrante e frio. Ela compreendeu que tinha deixado de existir para ele como entidade gloriosa... como uma rapariga para adorar. Esta fuga com Randolph tinha-a arruinado perante Ray, irremediavelmente. Janey tinha medo de olhar para as caras dos outros, receando ver nelas a mesma condenação. Era uma ideia asquerosa. Juntava lenha ao fogo que a raiva pelo causador desta situação despertara nela.

- Cava daqui - ordenou Ray, com um ligeiro movimento da sua pistola, querendo significar que Janey devia sair dali.

- Para quê? - perguntou ela, vivamente.

- Isto aqui não é lugar para uma... uma mulher - respondeu ele. Ele ia a dizer senhora. Janey viu a palavra formar-se-lhe nos lábios, mas ele não a disse. Ela não era mais digna de respeito mesmo para estes rudes cow-boys. A sua alma revoltou-se contra eles, contra ela própria, contra Randolph.

- Depois do que tenho passado, posso suportar tudo. Portanto fico aqui - disse ela, com veemência.

Ele lançou-lhe um olhar estranho. Que olhos - pareciam lâminas escaldantes! Nenhum homem tinha até àquele momento olhado para ela, com tanta desilusão.

- Randolph levante-se e ponha as mãos no ar - ordenou Ray. O arqueólogo levantou os olhos, deixando ver uma cara carrancuda e um olhar que competia com o dos cow-boys.

- Vão para o inferno - replicou, friamente.

- Companheiros, tirem-no de cima daquele fardo e amarrem-lhe as mãos atrás das costas.

Esta ordem foi cumprida quase ao mesmo tempo que Ray a tinha proferido. Randolph estava preso.

- Obrigado - tornou Ray. - Mas não pretendo ir para onde você devia estar...

Não tenho interesse especial em ouvir outra vez a sua voz tão musical, mas se é um homem como deve ser, vai-nos dizer se sim ou não você raptou Miss Endicott.

- Claro que sim, seu cabeça de burro de um vaqueiro - retorquiu Randolph.

- Ouviram isto, rapazes? - gritou Ray, imperiosamente.

- Claro que ouvimos - disseram os outros, como se fossem apenas um só homem,

- Vão buscar uma corda - ordenou Ray, arrastando Randolph. - E procurem-me um cedro suficientemente alto para pendurar este tipo.

Eles moveram-se todos, como um só corpo, em direcção aos cedros, deixando Janey quase paralisada. Ela viu-os pararem debaixo de uma das primeiras árvores. Estiveram falando em voz baixa. Evidentemente Randolph falou. Os cow-boys riram às gargalhadas como que do ridículo. Então Mrs. Durland e Bert precipitaram-se para Janey.

- O que é que eles vão fazer? - balbuciou Mrs. Durland.

- Enforcá-lo - soprou, apavorada, Janey.

- É absolutamente o que ele merece - declarou a mulher, movendo a cabeça com grande satisfação. - Só é pena que eles não façam o mesmo a esse asqueroso Black Dick.

Janey conseguiu libertar-se da sua estupefacção e transpôs, correndo, a pequena distância que a separava do grupo.

Sentiu que os Durlands a seguiram. Janey estaria no fim do seu juízo sem o medo que a tinha inibido. Certamente ela tinha que fazer qualquer coisa. Se se convencia de que aquela situação estava para além dela - o que é que não poderia acontecer? Ela percebeu que tinha havido uma discussão entre Ray e os cow-boys, porque ouviu palavras violentas de um lado e outro, e então, de repente, quando ela se aproximou, eles calaram-se. Randolph parecia menos triste que qualquer dos outros. O olhar de Ray causou em Janey um arrepio gelado. Ela não se tinha assustado muito com Black Dick. Mas este cow-boy, de rosto magro! Num relâmpago o seu ódio por Randolph e a sua sede vil de vingança desapareceram. Ela estava tão vacilante como um cata vento.

- Ray... o q-q-ue é que vai fazer dele? - perguntou ela, esforçando-se por controlar a voz.

- Vamos fazer com que seja a última vez que este pseudo-cientista rapte uma rapariga - replicou Ray.

- Mas... aquela corda! Vocês não podem enforcar lealmente um homem por tão pouco. Imaginem que vos enforcavam se vocês fizessem a mesma coisa. Tem que haver uma investigação, um julgamento.

- É muita amabilidade sua, Miss, importar-se connosco - volveu Ray, irónico. - Não há dúvida de que a lei é uma e única no Arizona. Enforcando este tipo, nós poupamos ao governo a despesa de o ter na cadeia.

- Mas ele não fez nada tão... tão terrível assim - continuou Janey, ainda com esforço.

- Olhe lá, menina - disse Ray, com azedume. - Randolph raptou-a, não é verdade?

- É - admitiu Janey.

- Bem, isso é o bastante. Mas, certamente, isso não foi tudo... pois não? - perguntou o cow-boy, com os olhos penetrantes e desconfiados, cravados nela. O seu ciúme revelava o seu segredo e o seu cérebro naturalmente primitivo fazia deduções.

Janey ficou vermelha como uma papoula. Era uma coisa odiosa sentir-se envergonhada ante aqueles rapazes de olhos penetrantes que a tinham sempre respeitado. E isso tinha muito mais a ver com o rubor de furiosa vergonha que a invadia do que a lembrança da inesquecível indignidade de Randolph.

- Companheiros, olhem para a cara dela. Vermelha como uma romã! - exclamou Ray, apaixonadamente.

- Então, Ray, deixa - rompeu Mohave.

- Não estarás a exagerar, Ray? - perguntou Zoroaster, sombrio.

- T-t-tu... - gaguejou Tay-Tay, num protesto evidente. Mas ele nunca conseguia fazer uma frase coerente.

- Malditos sejam vocês todos! Calem-se! - soprou Ray, com uma raiva mortal. Se os seus camaradas queriam interceder a favor de Janey, pelo menos se queriam poupá-la a insultos, ele certamente que os conseguira intimidar por uns tempos.

- Miss Endicott, a menina não pode dizer honestamente que Randolph não a enganou - afirmou mais do que perguntou Ray.

Ele era um homem duro de encarar e Janey, estranhamente agitada, ainda não provocada, não estava à altura da situação. Além de que as palavras dele eram como sal numa ferida em carne viva.

- Não importa o que ele fez... você não pode enforcá-lo - exclamou Janey. Ray fez-se cor de púrpura. Os outros cow-boys mudaram subitamente.

- Bem, por amor de Deus! - berrou Ray. - Isto não é mesmo próprio de uma mulher?

- E ele também roubou o meu cavalo - acrescentou Mohave, sombrio.

- Mas, Mohave, o meu pai pode comprar-te centenas de cavalos - disse Janey, ardentemente.

- Diga-me, Miss, o que é que o seu pai vai dizer a isto? - perguntou Ray. - Ele não roubou o cavalo. Foi Randolph que o roubou. E isso é tão mau como tê-la roubado a si. Claro que no Arizona se deixou de enforcar os ladrões de cavalos. Mas quando se acumulam as duas coisas, claro que é seguramente um caso de força... Miss Endicott, o seu amigo Randolph não é apenas um vilão. É também cobarde.

- Estou a começar a pensar uma porção de coisas a seu respeito - retorquiu Janey, com ardor. - E uma delas é... que você é um mentiroso!

Ray vacilou como se tivesse sido chicoteado. Os seus olhos estavam ardentes e a sua cara tornou-se ainda mais dura.

- Bem, ao menos não sou raptor de raparigas... que elas estejam inocentes... Ou não - disse, grosseiramente.

Randolph deu meia volta para olhar para o círculo formado pelos cow-boys, por trás dele.

- Companheiros, estou absolutamente disposto a ser enforcado, se vocês me fizerem uma concessão.

- Tu, fala para mim - gritou Ray. - Eu sou o patrão deste «rodeo». O que é que tu queres?

- Gostaria de ter as mãos livres para te poder bater até que fechasses essa boca suja - respondeu Randolph, alto e bom som.

Ray perdeu completamente o poder de controle, e arremessando-se para Randolph deu-lhe um murro sonoro, que o deitou abaixo.

- Oh, você, seu cobarde indecente! - gritou Janey. - Bater num homem que tem as mãos amarradas!

Mrs. Durland berrava em agudos gritos:

- São todos gatunos, assassinos, fora-da-lei!

Foi Tay-Tay quem ajudou Randolph a levantar-se. O sangue escorria-lhe da boca.

- Talvez conserves agora a boca fechada - declarou Ray.

- Ouve cá, Ray, para onde é que nos estás a arrastar? - interrompeu Mohave. - Talvez estejamos a ir longe demais.

- Caminha, Randolph - ordenou Ray, dirigindo o revólver para o lado onde estava Randolph. E forçou o arqueólogo a andar até debaixo de um cedro de ramos muito altos.

- Alguém que atravesse uma corda por cima deste tronco.

Mas ninguém cumpriu esta ordem. Janey teve outra vez a intuição de que esta situação não era o que parecia. Os cow-boys estavam divididos. Ray estava mortalmente implacável. Não havia dúvidas acerca da sua real intenção! Janey como que sentia o seu ciúme e agora verificava a sua brutalidade. Mas uma viva investigação às outras caras convenceu Janey de que para eles tinha sido uma bem representada brincadeira, que Ray estava a tentar transformar naquela coisa séria. Mas ele nunca seria bem sucedido. Janey torturava o cérebro à procura de qualquer expediente para o enganar.

Ray arrebatou o laço de Mohave e atravessou-o sobre o ramo, puxou-o e, com a hábil destreza de um cow-boy, atirou o laço pela cabeça de Randolph.

- Aí tem a sua gravata. Senhor Raptor - disse ele, com uma satisfação diabólica.

Mohave pareceu querer controlar-se. Janey apercebeu-se do seu rápido e significativo olhar para Diego e tomou daí a sua deixa.

- Bem, vou puxar a corda - anunciou Mohave dando um passo em frente.

- Nada feito... Sou eu o homem que vai enforcar este cavalheiro. É a minha corda - replicou Zoroaster.

- Eu é que vou puxar a corda - disse Diego, de modo categórico.

- O-o-o-nde é que eu entro? - gaguejou Tay-Tay, evidentemente ofendido.

Janey estava agora quase segura do terreno, excepto no que respeitava ao silencioso Ray.

- Cavalheiros, deixem-me decidir qual de vocês terá a honra de ser o primeiro a quebrar o pescoço de Randolph - interrompeu Janey, com completa mudança de semblante.

Eles ficaram boquiabertos e confusos, ao ouvi-la. A cara tensa de Ray como que se relaxou num vivo e sardónico arreganhar de dentes. Janey receava-o. A maioria é que venceria aqui. Além disso ela tinha uma ideia.

- Por favor, deixem-me decidir - continuou ela.

- B-b-b-astante imparcial - disse Tay-Tay.

- Escolha-me, Miss Janey. Eu sou o mais forte - suplicou Mohave, que parecia ter readquirido a sua normal personalidade.

Os outros, exceptuando Ray, proclamavam em voz alta a sua especial aptidão para aquela espécie de trabalho.

- Não posso mostrar nenhuma espécie de favoritismo por vocês, rapazes -continuou Janey. - Atirem para o chão as vossas pistolas. Depois tapem-me os olhos. Então, eu pegarei numa delas e aquele, seja ele quem for, a quem pertencer a pistola, será o que primeiro puxará a corda.

- Excelente ideia - declarou Mohave e depositou o seu revólver aos pés de Janey. Um por um, os outros fizeram gravemente o mesmo, até que chegou a vez de Ray. Este segurava a corda numa das mãos e o revólver na outra. Janey receou que ele fosse bloquear o seu atrevido plano que consistia em se apoderar de todas as pistolas e em prender os cow-boys.

- Bert! - disse arquejante Mrs. Durland. - Ela é uma selvagem! Uma bela consorte para tipos como estes!... E pensar que eu tinha permitido que tu antecipasses o casamento com tão impossível criatura!

- Já chega de falatório, minha senhora - retorquiu Ray, ameaçador.

- Vamos, Ray, a sua pistola - gritou Janey, com uma pressa nervosa. - Quem me empresta um lenço?

- Você é esperta, mas não me engana - acrescentou Ray, sombrio. - Eu não atiro o meu revólver aos pés de nenhuma mulher. Estou a percebê-la, Miss... Agora vocês cow-boys de trazer por casa, recuem. Alto! Não vale a pena apanharem os revólveres.

Vagarosamente os cow-boys recuaram e Janey com eles. Nesse momento Ray estava mais assustador do que Black Dick. Ray tinha ganho esta partida e sabia-o. Ele mudava a corda e o revólver de uma mão para a outra. Com um rápido puxão esticou fortemente o laço à volta do pescoço de Randolph, esticando-lhe o corpo e suspendendo-o um pouco.

- Reconheço que é uma honra duvidosa, mas tê-la-ei eu próprio - disse ele, os frios olhos fixos em Janey.

- Meu Deus!... Ray! Você não quer dizer que vai continuar com isso? - gritou Janey, recobrando a voz.

- Certamente que vou. Tenho razões de queixa de Randolph. Você acusou-o e ele confessou. Toda a gente aqui presente os ouviu. E não há um tribunal no Arizona que me possa prender, nem por um dia.

Estava triunfante e perverso. Um ciúme feroz tinha desencadeado nele a maldade. Janey compreendeu terrivelmente toda a sua culpa - porque ela tinha namoriscado com este cow-boy de cabeça esbraseada. Tinha-o olhado com olhares acariciadores; tinha escutado as suas palavras sentimentais, e tinha-o iludido. Que idiota ela tinha sido! Presunçosa, detestavelmente resolvida a conquistar -sem coração, falsa. Ray assemelhava-se a um demónio e, certamente, tinha coisas a seu favor. Janey parecia estar a afundar-se num terror entorpecente. Quase às cegas ela recuou.

- Ray... por amor de Deus... não... não junte um crime a isto... a esta coisa - implorou ela.

- Portanto!... Está a interceder por um homem que a menina jurou que a tratou ultrajosamente? - escarneceu Ray.

- Sim. Peço-lhe. Não deixe a sua... a sua... qualquer coisa actuar em si... ir mais longe. Acalme-se. Pense!

- Tenho estado a pensar - acrescentou ele, com meditada intimação.

- Randolph não me raptou - exclamou Janey, reunindo as forças que lhe restavam. - Vim com ele, voluntariamente.

- O que é isso? - resmungou Ray, quase abalado. Randolph falou, dando pela primeira vez mostras de perturbação.

- Ray, não acredites uma palavra do que ela está a dizer. Ela está a tentar salvar-me, culpando-se.

- Bem, é uma mentirosa, está certo, mas talvez isto seja verdade - disse Ray, sombrio. - Diz, rapariga, tu vieste de vontade... porquê?

- Uma razão era porque eu queria dar um pontapé em tudo isto - replicou Janey, friamente - Estava uma espécie de «blasé». Cansada da vida de sempre. Queria qualquer coisa de novo, de diferente.

- Ah! Ah! E a respeito do tal tratamento ultrajante? - perguntou Ray de mau modo.

Mesmo para salvar a vida de Randolph, Janey não podia fazer parar o curso da vaga de vermelhidão que lhe inundava o pescoço e o rosto. Mas o seu espírito estava flamejante também.

- Eu desobedeci-lhe - confessou, com valentia. - Ele ele castigou-me... Eu merecia-o.

- Ah! Ah! Ah! - gargalhou Ray, em voz alta, mas melancolicamente. Aquelas gargalhadas continham amarga dúvida, desdém, ódio.

- Ray, receio que esteja a ouvir cavalos - interrompeu Mohave, vivamente.

- Portanto, veio de livre vontade, hem? - tornou a perguntar ele, com os olhos terríveis, pregados em Janey.

- Gostava de ser tratada de maneira ultrajante, hem? Queria uma sensação nova e diferente, hem?... Bem, agora observe o seu amor a morrer!

Ray era um tirano e um bruto. Mas não conhecia a fibra de que era feita a rapariga que ele tinha tão grosseiramente insultado. Aquilo foi tudo o que Janey precisou para se reencontrar. Como Ray se curvasse para esticar o «laço» sobre os seus quadris, obrigando assim Randolph a ficar nas pontas dos pés, ela saltou. Apoderou-se da corda que rodeava o pescoço de Randolph e começou a puxá-la para a desatar. Então enfrentou Ray.

- Pára, louco! - gritou, imperiosamente. - Não te atrevas... Se te atreves, eu mato-te!

- Bem, por amor de Deus! - exclamou Ray, surpreendido, empregando a sua frase habitual, e, momentaneamente, afrouxou o laço.

Rápida como um raio Janey apanhou o laço e tirou-o do pescoço de Randolph.

- Ouve, cow-boy! - disse ela. - O que é que tu tens a ver com este negócio? Se Randolph e eu quisemos vir para aqui para Beckyshibeta e mentir a esse respeito, é apenas um negócio nosso. Mas para anedota isto está a ir longe demais.

Janey encostou-se a Randolph e tomou-lhe o braço.

- Claro que foi demasiado longe! - retorquiu furiosamente Ray, recompondo-se do espanto em que a atitude de Janey o deixara. - E você ainda não me deu uma razão para que ele não fosse enforcado.

- Muito bem, vou dar-lhe outra - disse Janey, aparentemente com calmo orgulho, enquanto, no seu íntimo, ela estava num grande estado de exaltação. - Eu amo-o. Pode compreender isso?... Eu amo-o!

Por longos momentos todos os assistentes pareceram ficar petrificados. Ray parecia prostrado por tão grande derrota. Então ele quase sufocou:

- Sua porca cara-pálida!

- Calem-se! - gritou Mohave, desabridamente. - Aí vêm Bennet e alguns índios... Mr. Endicott, também... todos cavalgando à doida! Acalma-te Ray, ou cair-lhes-ás nas mãos!

 

No instante em que Janey fez uma cerrada e minuciosa investigação à cara de seu pai, quando ele refreou o cavalo ao pé do grupo, apercebeu-se de que o seu alegre cumprimento e a indiferente inspecção que fez a todos eles, não tinham profundidade. Ele tinha sempre sido um grande actor, mas não podia iludir a filha.

- Olá, Janey - gritou ele, antes de os alcançar. - Como estás tu? Um pouco branca para uma amazona moderna, não?

A emoção de Janey, apesar da sua grande extensão, sofreu uma rápida transição para uma fúria intensa. Contudo, ela era bastante inteligente, para se lembrar de que aquela não era a melhor altura para representar contra o pai. O seu papel era ser miserável e feliz ao mesmo tempo. E para isso ela precisava só de ser natural.

- Olá, Philip - disse Endicott, cordialmente, deixando o cavalo à vontade e olhando, estupefacto, para o centro daquele paralisado grupo. - Aposto que vocês estão contentes por eu ter chegado. Desculpem termos vindo um pouco tarde. Mas aquela maldita tempestade impediu-nos.

 

Janey afastou-se de Randolph. O que é que ela tinha dito e feito? Não o lamentava, mas o soberbo espírito que a tinha impelido, desvanecera-se. Randolph permanecia ali, pálido, com os olhos fulgurantes e os lábios ensanguentados, as mãos ainda amarradas atrás das Costas. O laço que Janey lhe tinha tirado, pendia, não longe, acima da sua cabeça. Os cow-boys continuavam em pé e inquietos. Ray segurava ainda o seu revólver e era evidente que começava a ter uma confusa compreensão do seu papel naquela farsa. Agora estava a transpirar. As pistolas dos outros cow-boys estavam ainda onde eles as tinham colocado.

Mr. Endicott observou esta cena com o ar de um homem do Oeste, de longa experiência. Estava muito calmo. Então reparou nos Durlands e tirou o chapéu.

- Bom dia, Mrs. Durland. Olá Bert. Espero que tenham feito uma encantadora visitinha a Janey e ao noivo.

Se alguma coisa pudesse incendiar Mrs. Durland, seria esta frase, mas ela estava de tal modo que não podia falar. Mas Bert, agora que o perigo passara, mostrou-se de um temperamento vil.

- Tivemos uma visita asquerosa, se quer saber - rugiu ele. - Fomos ludibriados, insultados, espancados e roubados.

- Roubados! Oh, não completamente, tenho a certeza - replicou Endicott, rindo. - Não há dúvida que Randolph é um patife, mas não posso acreditar que ele tenha roubado.

- Nós fomos presos e roubados por Black Dick e pelo seu cúmplice - continuou Bert, com ardor.

- Todas as minhas jóias... e dinheiro... desapareceram! - gemeu Mrs. Durland.

- Na verdade? Que fatalidade. Deve ter sido um tremendo choque - volveu Endicott, com solicitude. - Mas eu repararei os vossos prejuízos. Compreendem, eu não contei com um verdadeiro malfeitor. - Aqui ele riu. - Foi tudo uma pequena brincadeira da minha parte. Queria que Janey apanhasse um susto. Portanto convenci Randolph a fugir com ela. O meu plano era mandar os cow-boys ainda no mesmo dia. Mas eles não voltaram a tempo e quando voltaram as águas da tempestade tinham inundado tudo.

- Alguém amarrou as minhas mãos - gritou Randolph, interrompendo, muito carrancudo. - Vou mostrar-vos que espécie de brincadeira foi.

Mohave foi o cow-boy que acedeu a este pedido, e notava-se que ele estava nervoso. Segredou qualquer coisa a Randolph. Mas não conseguiu impedir Randolph, que mal se apanhou livre, se dirigiu a grandes passadas para Ray.

- Tu és um patife - .disse deliberadamente Randolph. - Sempre te considerei um fanfarrão e um conceituado asno... um lamechas ao ver qualquer rapariga que por aqui aparecesse. Mas até hoje nunca tinha avaliado bem como tu eras um renegado sujo e obsceno. Tu ...

- Acalme-se, Randolph - interrompeu Endicott, consternado. - já lhe disse que eu é que tive a culpa. Ray estava apenas a seguir as minhas instruções.

- Randolph, você está a deixar-se arrastar pelos seus impulsos, certamente - acrescentou Bennet, conciliador. - Mas está a usar termos muito fortes... demasiado fortes para uma pequena brincadeira.

- Brincadeira, o inferno! - disparou Randolph. - Este cow-boy meio-louco queria enforcar-me!

- Bom Deus! Porquê, rapaz, tu estavas completamente fora de ti - queixou-se Endicott.

Bennet começou a aperceber-se de que havia qualquer coisa de sério na situação. E essa ideia ocorreu-lhe mais ao ver a cara de Ray do que pelas palavras de Randolph. Deixando-se escorregar da sela apressou-se a ir colocar-se entre os dois homens. Randolph deu-lhe tal empurrão, que quase o deitou abaixo.

- Não interfira. Vocês vieram um pouco tarde para me salvarem do negócio mais miserável que um homem pode ter na vida. E demasiado tarde, também, para salvarem este vosso vaqueiro de uma sova mestra.

- Homem! Acautele-se com esse revólver! - avisou, agudamente, Bennet.

- Bem me rala a pistola - replicou Randolph. - Ele nem acerta num coelho.

- Bem, talvez vá acertar depressa num maldito coiote (1).

 

(1) Lobo da América.

 

ou num famoso cientista raptor de raparigas - retorquiu Ray, rindo grosseiramente.

- Larga essa pistola! - ordenou Bennet. - Não vês que Randolph está desarmado.

- Não recebo mais ordens suas - disse o cow-boy, obstinadamente.

- Podes apostar a tua vida que não - atirou o comerciante furioso. - Mas dispara essa pistola contra Randolph e terás que te haver comigo.

De súbito Randolph, num salto de pantera, caiu sobre Ray, e agarrou-lhe o braço justamente quando ele o ia levantar com o revólver. Randolph apoiou todo o peso do seu corpo sobre aquele braço armado, obrigando-o a baixar-se. Ray debateu-se e blasfemando gritou:

- Deixa-me, hei-de matar-te!

Randolph curvou-se, rapidamente, e mordeu-lhe a perigosa mão. O cow-boy deixou escapar um uivo de dor e de fúria. Bang! Janey gritou e tapou os olhos horrorizada. Ela ouviu o barulho dos pés e dos corpos lutando, e depois gritos roucos dos assistentes. O seu coração parecia ir rebentar.. Aquela horrível farsa estava a transformar-se numa tragédia. Randolph! O terror forçou-a a abrir os olhos. Ray largara o revólver. A mão que Randolph agarrara estava toda ensanguentada. Naquele instante Randolph dera um pontapé na pistola. Esta voou até aos pés de Mohave, que se baixou e a apanhou. Então Randolph, largando Ray, bateu-lhe em cheio na cara, dando-lhe um murro que soou como um maço. Ray foi-se abaixo com a violência da pancada.

Ninguém dizia nada. Os espectadores estavam por demais absorvidos para falarem, e os contendores demasiado loucos de raiva. Randolph parecia um homem que pela primeira vez na sua vida se deixara dominar pela ira. Ray, ao saltar como um gato, parecia um demónio.

Atirou-se a Randolph e a luta recomeçou. Janey não a podia ver apesar de, agora, ela ter juntado a fascinação da cena, ao horror. Mas havia bastante doçura no seu carácter para a fazer, instintivamente, contrair-se. Para ali estava tapando os olhos com as mãos. Mas embora não visse podia ouvir. E o barulho dos socos, o raspar das botas, a luta dos corpos, as furiosas respirações arquejantes... tudo isto era pior ainda ouvido do que visto. Como iria a luta? Randolph, o cavalheiro, o pacífico arqueólogo, iria ser vencido por um homem mais jovem e habituado a todas as rudezas do deserto. Traz! Um deles tinha sido atirado contra um cedro. Levantou-se outra vez, soltando horríveis imprecações. Ray! Que emoção tão quente e formigante Janey estava a experimentar! Parecia que lhe modificava a sua verdadeira natureza. Ela queria mais do que quisera qualquer coisa anteriormente na sua vida que Randolph vencesse aquele desprezível cow-boy. Ela sabia a causa da ira de Randolph. Era por causa das torpes insinuações de Ray. Randolph estava lutando por ela, para dar a Ray uma ensinadela, à frente dos espectadores que tudo tinham ouvido.

Portanto era impossível para Janey conservar os olhos tapados por mais tempo.

Encontrou-se só. Os lutadores tinham-se afastado. Mesmo os Durlands tinham seguido os homens. Janey correu para lá. Viu Phil primeiro, a cara voltada na sua direcção. Estava todo sujo e ensanguentado. Então a cara de Ray rodou ante os seus olhos. Estava horrivelmente esmurrado, com a cara mais parecida com um bife sangrento. Respirava doidamente. Além de que não tinha técnica nenhuma. Randolph era ágil, rápido, e quando arremetia deitava sempre o outro abaixo. Ray atirava-se às pernas de Randolph, agarrava-as e arrastava-o para baixo. Enrolavam-se furiosamente e rolavam um sobre o outro, agora este por cima, logo o outro. Ray escouceava vigorosamente e viciosamente. Era claro que ele estava a tentar espetar as esporas nas pernas de Randolph. Os cow-boys gritavam a sua indignação contra a cobarde táctica, tão evidente, de Ray. Ele devia ter imaginado que uma luta violenta e dura como aquela lhe traria vantagens. Mas depressa se tornou claro que ele era tão mau como um lutador de feira. Randolph era capaz de pregar ao cow-boy uma tremenda sova e tudo levava a crer que iriam terminar assim.

Uma vez, quando no seu rebolar Ray ficou por cima, ele agarrou num ramo que para ali estava caído, bastante pesado, e bateu com ele pesadamente na cabeça de Randolph até que o ramo se partiu, em muitos bocados.

- Tu, porco sujo! - gritou Mohave, que estava agora inteiramente do lado de Randolph. - Se tu lhe tornas a bater dessa maneira tens que te haver comigo.

Mas se Ray ouviu, não prestou atenção. Apanhou uma pedra e começou a balançá-la.

- Deita isso fora ou atirarei para o teu braço. - gritou Bennet, empunhando uma pistola.

O cow-boy, completamente enlouquecido, tentava quebrar a cabeça de Randolph. Não conseguia! Bennet queria disparar, mas, como era óbvio, receava matar Ray, ou acertar em Randolph. Então agarrou o revólver pelo cano, querendo bater com ele em Ray. O cow-boy bateu outra vez com a pedra. Randolph esquivou-se, mas foi ferido ligeiramente.

- Por amor de Deus, Bennet, acabe com ele! Ele quer um crime - gritou Endicott, assustado.

- Oh!, Phil... não deixe que ele o mate! - gritou Janey, loucamente.

Mohave saltou para muito perto deles para fazer qualquer coisa que ninguém adivinhava o que seria. Mrs. Durland sucumbiu num desmaio. Randolph ainda não devia ter feito o seu maior esforço, porque a sua fúria e a sua força tornaram-se extraordinárias. Com um poderoso murro fez voar a pedra da mão de Ray. Com um outro golpe conseguiu aprisionar a garganta de Ray. Então elevou-se pesadamente. Sacudiu Ray para longe dele e levantou-se tão depressa como o cow-boy. Precipitou-se outra vez para Ray. Um murro fez parar o cow-boy. O seguinte fê-lo vacilar. Randolph empregou a sua esquerda... Zzztt!

Depois a sua direita... Zut! Ray, que tinha caído ao primeiro golpe, deixou-se abater com o segundo como se ele tivesse sido de uma catapulta. Caiu de cabeça para baixo, e resvalou da extremidade da plataforma, para se ir estatelar no matagal em baixo.

Randolph olhou um momento para a rajada de pó que o cow-boy levantara, então dirigiu-se para o seu fardo, tirou uma toalha e foi pela rampa abaixo até à enseada.

Janey estava tão vacilante e fraca que teve de se sentar numa pedra. Bennet guardou a pistola.

- Bem, assim foi bom - declarou ele, com grande alívio. - Espero que ele tenha partido o pescoço. Alguns de vocês vão lá a baixo ver... Endicott, Mrs. Durland desmaiou. Não admira. Isto foi quase um mau bocado. Você, meu rapaz, traga um pouco de água que nós vamos cuidar da sua mãe.

Janey sentou-se, estonteada, consciente de que as terríveis emoções que a tinham agitado, estavam a acalmar. Bastante devagar ela ia-se restabelecendo. Mrs. Durland já estava reanimada e erguida. Bennet estava muito amável e solícito. O pai de Janey tinha, a substituir o medo, um pálido olhar de remorso. Bert, que rondava junto da mãe, exibia a palidez de uma rapariga e umas mãos que tremiam. Mohave era o único cow-boy que estava ainda na plataforma.

- Com os infernos, mas o que é que se passou? - perguntou Bennet, com severidade.

- Patrão, juro que foi tanta surpresa para nós, como para o senhor - começou Mohave, muito sério. - Os rapazes são testemunhas disto... O senhor sabe que Mr. Endicott estava com imenso interesse em fazer com que este falso enforcamento tivesse todas as aparências de verdadeiro. Nós tínhamos as nossas ordens para actuarmos... como os tipos das fitas. O senhor pode calcular o que nós nos divertimos ao planear tudo isto. A falar sobre isto! Devíamos «parecer» terrivelmente loucos, como se realmente pretendêssemos isto a sério. Bem, Ray representou tão poderosamente bem que estávamos todos a morrer de inveja. Mesmo quando ele começou a dizer coisas desonestas nós pensámos que ele estava só a exceder-se um pouco. Quando ele insultou Miss Janey... então fiquei varado. E o mesmo aconteceu aos outros rapazes. Numa altura eu desmanchei-me, mas Ray deteve-me. E ainda para mais era tudo tão rápido que eu não pude ver o que se passava com Ray, até que ele chamou a Miss Janey uma porca branca.

- Ah! Já era tempo de o conhecerem, parece-me. E depois? - rosnou o comerciante.

- Então tudo aconteceu num relâmpago - continuou Mohave, respirando a custo. - Nós estávamos a obedecer a ordens... tendo um terrível desejo de nos vermos livres de tudo aquilo. Mas Ray não estava a representar. Ele queria mesmo enforcar Randolph. Não há dúvidas a esse respeito, patrão. Ele tinha imaginado tudo e conhecia os factos tão claramente como um tribunal.

- Mas que malvado e que louco! - interrompeu Bennet. - Enforcar Randolph, a sério! Mas com mil raios, porquê?

- Bem, eu não tenho a certeza. Mas creio que Ray pensava que Miss Janey era namorada dele, - replicou Mohave, com ar másculo, embora fosse evidente que ele detestava ser sincero. - Ele falava como se assim pensasse. E quando ele viu... bem, que ele era o que o senhor lhe chamou, patrão, perdeu completamente a cabeça, com ciúmes.

- Ah! Bem, eu dou em doido! - exclamou Bennet.

Mr. Endicott escutara toda aquela conversa e depois voltou-se para a filha.

- Janey, deixaste esse cow-boy apaixonar-se por ti - disse ele. - E não foi uma pergunta que ele fez, mas sim uma afirmação.

- Sim, papá - replicou Janey, corajosa. Era uma confissão que era uma acusação. - Para meu arrependimento e vergonha... eu fiz isso. Deixei-o beijar-me... falar de uma porção de coisas sem sentido.

- Bem, isso não é crime - disse o pai, gravemente. - Mas neste caso quase levou a um crime. Espero que tenha sido uma boa lição para ti.

Janey escondeu a cara nas mãos. Lição! Que lição não tinha ela tido? Havia de sentir a influência dela dias e dias e do seu claro poder transformador. Agora havia apenas um único homem no mundo a quem ela permitiria que a beijasse. E querê-lo-ia ele, outra vez?

Zoroaster e os outros cow-boys regressavam, vindo lá de baixo.

- Ray não está muito mal, senhor, - anunciou Zoroaster. - Está bastante aleijado, mas nada de muito sério.

- Está capaz de montar? - perguntou Bennet, tensamente.

- Creio que sim, se alguém lhe indicar o caminho. Tem ambos os olhos tão inchados que os não pode abrir.

- Bem, vamos lá ver. Os índios podem tratar de nós. Vocês rapazes levem-no para o posto. Digam a Mrs. Bennet que lhe pague e que o mande embora. Imediatamente... E vocês, rapazes, se querem ficar comigo, conservem a boca fechada a respeito deste assunto. Nem uma palavrinha! Entendido?

Todos eles prometeram muito sérios e, apanhando as suas armas, guiaram os cavalos pelo carreiro abaixo por entre os cedros até se perderem de vista.

- Creio que nós podemos ficar por aqui um dia ou dois, não podemos? - inquiriu Bennet, de Endicott. - Os índios tomarão conta dos nossos cavalos e trarão a lenha. Eu posso cozinhar.

- Claro. Quero ver Beckyshibeta. Além de que... - replicou Endicott que, acontecendo reparar em Janey, não completou o que tinha em mente dizer. Então vendo Randolph, que voltava, foi ao encontro dele. Mas encontrou só o seu olhar de desprezo. Ficou atónito por momentos, levantou as mãos e afastou-se tragicamente. Janey notou esta pequena farsa e também Bennet que não estava muito longe de rebentar a rir. Isto e a recepção de Randolph ao pai chegaram para que ela recobrasse o seu estado normal.

- Bem, já passou, foi uma confusão horrível, não foi? - disse o comerciante, com simpatia, sentando-se ao lado de Janey.

- Confusão é o termo, Mr. Bennet, - replicou Janey; recobrando a voz, embora com esforço.

- O seu pai tinha boas intenções - continuou Bennet. - Mas... arriscou-se muito! Que maldita ideia! Ele nunca me disse nada até estar tudo feito e os cow-boys já a caminho. Claro que eu os poderia ter mandado voltar ou continuar. Pensei que havia qualquer coisa de estranho. Qualquer coisa no ar. Mas, senhor, como podia eu adivinhar?

- Não se esteja a desculpar e, por favor, não tenha pena de mim - murmurou Janey.

- Ah!, agora...

- O que esta... esta confusão fez de mim, ainda o não compreendo - interrompeu Janey. - Mas hoje foi horrível... Quando eu... eu acalmar os nervos, ficarei bem... Não censuro o papá. Ele queria fazer-me bem. Ele queria pregar-me um... um susto. Eu direi que tudo isto excedeu em muito os meus maiores projectos... Foi ainda culpa minha, Mr. Bennet. Não posso escapar-me a ela. Devo ter quase enlouquecido o pobre papá. E esse miserável cow-boy Ray! Não sei que dizer. Eu... eu queria que Phil o tivesse morto. Pense só isto!

- Bem, eu próprio teria morto Ray se não tivesse receio de atingir Randolph - disse Bennet. - Não tenha muita pena de Ray. Ele não é bom. Eu sei muita coisa acerca de Ray.

Era um bom homem para os cavalos e para o gado. E não bebia muito. Tenho que dizer isto em seu abono. Mas Ray foi sempre louco por raparigas. Ele não queria parar e casar com uma. Não senhor! Ele sempre disse que se não queria enforcar...- Bem, creio que ele estava verdadeiramente interessado por si.

- Tanto quanto Ray estava interessado... e aquela horrível luta... eu sou a única digna de censura - confessou Janey, quase sufocada. - O que me põe mortalmente doente. Mr. Bennet, eu... eu fiz a loucura de...

- Não se apoquente, deixe - interrompeu o comerciante pondo a mão áspera nas dela. - Eu ouvi o que a menina disse ao seu pai. A menina estava a brincar, como dizemos no Oeste, e a tomar o seu remédio. E justamente não compreendeu os cow-boys, muito menos um «hombre» perigoso como Ray. Tivemos sorte porque poderia ter sido pior... Randolph estava certamente furioso quando ele partiu, não estava? Bem, creio que, apesar de tudo, os homens mais perigosos são os calmos. Nunca me esquecerei da surpresa que ele me fez, embora... Agora, acalme-se. Creio que é melhor ir olhar pelo seu papá.

Com este arrazoado Bennet levantou-se, e depois de dar algumas instruções aos índios, dirigiu-se na direcção que Endicott tinha tomado. Janey sentiu que se tinha libertado dela própria, num sentido, embora ela ainda estivesse longe de sabiamente se poder experimentar. Tinha ainda que fazer face a muitas coisas e escolheu primeiro a mais difícil. Foi ter com Randolph. Ele tinha trocado a camisa toda ensanguentada e rasgada por uma limpa e lavado o sangue dos golpes e da cara ferida. E não estava com o aspecto horrível que ela tinha imaginado.

- Phil... foi... belo... maravilhoso da sua parte lutar dessa maneira por mim. Você... eu... eu não consigo encontrar palavras.

- O que eu fiz nada foi comparado com a maneira como você se portou ante eles e como mentiu por mim - disse ele, com um profundo sentimento.

Janey tinha-se esquecido daquilo. Num segundo sentiu-se infinitamente meiga e compreendeu que estava pisando terreno mais falso. Não tinha mentido e desejava dizer-lhe isso.

- Não fique tão aflita - continuou ele. - Todos eles sabem que você mentiu para me salvar e pensam melhor de si por causa disso.

- Não me importa o que eles pensam - volveu Janey. - Estou muito transtornada. Queria justamente dizer-lhe o que senti - a respeito da sua luta por mim... e pedir-lhe... por favor não discuta com o papá.

- Tenho pena mas nada lhe posso prometer. Isso é o que tem de mais certo esse cavalheiro - disse Randolph, inflexível.

Janey já não era, nunca mais, igual ao que fora; e quando subiu vagarosamente a pequena rampa de rocha, vinda de junto de Randolph, compreendeu que pouco susceptível estava. Uma vez lá, estendeu-se na sua cama e não se importou com o que tinha acontecido.

Não conseguiu dormir, mas descansou um bom par de horas. Mas ainda não se sentia completamente bem para enfrentar as exigências da situação. A curiosidade, contudo, abria caminho por entre o caos que era o seu cérebro. Sentou-se e tentou tornar-se um pouco mais apresentável... pensando, com um pálido sorriso ao ver os estragos da sua cara, que isso era um sinal favorável de que lhe estava a voltar a razão.

Os índios pareciam estar muito ocupados em volta da fogueira do acampamento, limpando a porcaria deixada por Black Dick e pelo companheiro. Nunca mais ela os esqueceria! E bem depressa se encontrou a perguntar a si própria, de uma maneira embaraçosa e única, o efeito que eles tinham tido sobre si. Os Durlands estavam a fixar uma espécie de abrigo nos cedros e, evidentemente, estavam bastante interessados. Janey reflectiu que uma compensação do que eles tinham perdido devia ter feito uma diferença considerável nas reacções deles. Randolph e Bennet não estavam em lugar que se vissem. E de repente Janey viu o pai. Estava tão perto, encostado à parede, à sombra, que ela não dera por ele. Sem chapéu, sem casaco, sem colete, o colarinho aberto, deixando ver o pescoço, abatido, apresentava, na verdade, um aspecto muito pouco habitual nele. Por um instante Janey teve um brusco sobressalto. Seria que Randolph o tinha castigado também? Mas não, não era provável. Contudo alguma coisa deveria ter acontecido a Mr. Endicott, e vendo-o daquela maneira o espírito de Janey reanimou-se.

Poderia ela continuar? Ela morreria tentando! Estes dois difamadores não tinham sido ainda suficientemente punidos para que ela ficasse satisfeita. Especialmente Randolph! Portanto, depois de ter pensado por algum tempo, Janey desceu ao encontro do pai.

- Bem, papá, parece-me que estás a passar um tempo muito divertido - disse ela.

- Ah!... Olá, Janey. Sim, estou a passar um rico tempo. Ha! Ha! - replicou ele.

Era pior do que Janey imaginara. Ela começou a amolecer um pouco, embora não o mostrasse.

- Como achas a pequena Beckyshibeta? - perguntou ela.

- Becky; inferno e fogo!

- O que se passou, papá? - continuou ela, calmamente.

- Nada. Passei a hora mais desagradável de toda a minha vida - acrescentou ele, com um ar miserável. Ela viu que desabafando ele ficaria bem, portanto encorajou-o.

- Não conhecia bem esse Randolph - explodiu ele.

- Nem eu - replicou Janey, contemplativa.

- Janey, esse estranho homem do Oeste veio para mim com chispas nos olhos. E disse: «Maldito seja você, Endicott. Devia dar-lhe uns bons murros!». E eu pensei que ele fosse mesmo fazer isso. Portanto dei uma fraca resposta dizendo que lamentava tê-lo colocado em tal situação. «Situação? O inferno!» gritou ele para mim. «Eu não estou a pensar em mim. Foi a situação que você lhe arranjou «a ela». Não fui eu que lhe arruinei a reputação. Foi «o senhor!» Fez de mim um perfeito maluco. Mas fez-lhe a ela «muito mal». Aqueles Durlands vão ser obscenos. A sua própria filha! Fez-me acreditar que ela era selvagem... que iria direita ao inferno!». Nesta altura eu gritei-lhe que to «o eras». Então ele fez-me calar completamente. Eu soube que estava prestes a apanhar qualquer coisa. Ele estava vermelho como uma lagosta. Deu-me um grande murro mesmo no nariz. Chamou-me aldrabão!... Depois injuriou-me. Amaldiçoou-me. Tanta blasfémia nunca tinha eu ouvido. Deve-as ter aprendido com todos os cow-boys, aqui no Oeste. Não parou enquanto não perdeu o fôlego. Então foi-se embora com o Bennet, não sei para onde.

- Foi tudo? - inquiriu ela.

- Tudo? Bom Deus! O que é que tu querias? Que ele me tivesse batido como bateu nesse cow-boy?

- Pensei que talvez ele fizesse isso.

- Tu serias agora órfã, pela certa, se ele o tivesse feito... Janey, tu não queres dizer que também estás zangada comigo?

- Tu és desumano - volveu Janey, começando a divertir-se com o assunto.

- Porquê, eu pensava que tinha sido sempre o pai mais cómodo que qualquer rapariga poderia ter tido - protestou ele, não sem mostrar uma certa mágoa - Os nossos amigos sempre me repreenderam por te dar tanta liberdade... e tudo o que tu querias.

- Sim, mas nunca o amor que eu tanto necessitava - disse Janey, cruelmente.

- Janey! - exclamou ele, atónito e chocado. - Eu sempre te adorei... e te amei. Esta miserável partida que eu planeei pregar-te... e que resultou tão mal... era uma prova de... de...

- Não de fé, pai - interrompeu ela, friamente.

- Fé! Claro que era fé. Eu jurei a mim próprio que a nossa desgraçada vida no Leste ainda não te tinha arruinado.

- Por favor, não discutas comigo - volveu ela, docemente. - O mal está feito. «Tu» arruinaste-me, isso é que é certo. E eu nunca o esquecerei, nunca.

Isto amarrotou-o tanto que ela teve que o deixar antes que se deixasse vencer por uma irresistível brandura. E por espírito de combatividade irritante, foi conversar com os Durlands. Estes estavam frios e reservados ao princípio, mas a sua cara triste, e a agonia que ela aparentemente estava fazendo por conservar, comoveram completamente Mrs. Durland. O filho, contudo, vinha vagarosamente. Por fim rompeu numa tirada contra Randolph e contra o pai de Janey.

- Sim, eu sei, Bert, eles são tudo o que tu dizes e ainda piores. Mas isso não me ajuda. Eu estava perfeitamente inocente. «Tu» sabes que espécie de rapariga eu sou.

- Apostas que sei. Mas, Janey, aquilo a respeito de teres vindo para aqui voluntariamente? Depois tu mantiveste-te tão... tão maravilhosamente e disseste que o amavas!

- Simplório. Estava a tentar salvar-lhe a vida - protestou Janey.

- Foi grande da tua parte, minha velha, acredita-me, - replicou Bert, fervorosamente. - E acredito que fosse assim.

Janey concluiu que os Durlands seriam difíceis de manejar. Debaixo da sua influência directa eles corresponderiam, mas, uma vez longe dela, eles iriam tagarelar, a menos que os pudesse fazer leais a si. Encarando esta ideia, parecia uma tarefa impossível. E ela, maluca, a esperar que aquilo acontecesse, egoísta em pedir isso. Começou a passear por ali, esperando conseguir dar uma olhadela a Randolph, consciente de uma velada delícia. Viu Bennet, que voltava do acampamento, mas o arqueólogo tinha desaparecido. Seria possível que o homem estivesse outra vez cavando à procura de Beckyshibeta? Se assim fosse ela teria que lhe dar uma coroa de louros. Não podia, contudo, aventurar-se a ir procurá-lo e teve de contentar-se em esperar.

Fora das vistas do acampamento Janey encontrou um altíssimo poleiro ao sol e lá sucumbiu ao espectáculo de glória e de sonho daquela região dos «canyons». Não havia senso comum ou utilidade em tentar resistir ao seu encanto. Mas era um caminho para Janey tentar compreender o que era o melhor dela. Este lugar apoderara-se do seu coração.

Qual era o feitiço desta profunda fenda nas rochas? Sonhadoramente atentou nos seus sentidos. Havia uma tal fragrância estranha, doce e seca, onde predominava a salva, mas onde se notavam também outros perfumes quase tão puros e insidiosos. Era tudo tão colorido como um arco-íris.

Tudo mudava com os movimentos do sol, nunca tinha, muito tempo, o mesmo aspecto. Havia místicos véus de luz, rosados e alaranjados em baixo, âmbar e ouro a esta hora do meio-dia, e à tarde, com as sombras prolongando-se, escurecendo para lilás, púrpura, negro. Então a imensidade das rochas, os altíssimos rebordos, as longínquas e mais altas cúpulas e «mesas» para além, as centenas de lugares fascinantes e inacessíveis só frequentados por esquilos e pássaros..., tudo isto se juntava ao feitiço. E não pouco também, os vestígios de um povo selvagem que ali vivera e lutara e morrera um dia. Talvez amara! Por último Janey estava a descobrir a santidade, a bem-aventurança da solidão, qualquer coisa que se nivelava ao encanto, à beleza, ao alto poder das paredes nuas e claras, com o seu impenetrável significado.

Tudo isto a levava a ter consciência da coisa que lhe tinha acontecido. Ela chamava-lhe «coisa», quando ela confessava bem à sua alma que era um amor novo, exaltado, que a transformava. E ela ousava ceder a ele por enquanto. Quando ela devesse, quando não pudesse ser mais a velha Janey Endicott, quando o orgulho e a vaidade, e a hoste de todos os outros seus defeitos fossem postos à margem então ela encararia a verdade e os seus aterradores problemas. Tinha um tremendo pressentimento de que abismaria tudo... este maravilhoso deserto, o pai idoso e preocupado, os amigos... e Randolph. E tudo isto a iria ferir quase mortalmente.

Janey voltou ao acampamento. O ver Randolph ainda muito magoado chocou-a. Aquela hora, sozinha no «canyon», tinha-o transformado na ideia dela. E a realidade confundia-a.

Evidentemente ele interrompera uma conferência, ou pelo menos um argumento. Ela ainda apanhou o rápido gesto de Randolph a impor silêncio.

- Bem, Randolph - disse Bennet. - Creio que Miss Janey não precisa de ser excluída.

- Se estou a intrometer-me - replicou Janey, altiva, voltando-se para se ir embora.

Bennet deteve-a.

- Nós estávamos precisamente a conversar - disse ele - e talvez a menina possa dar uma opinião. Randolph perdeu o emprego. Mr. Eliot, chefe do Museu de Nova Iorque, está agora no posto, esperando por alguns dos seus homens que vêm do Novo México. Parece que ele acha as «explorações de Randolph desordenadas. Ele quer ser ele próprio a encontrar Beckyshibeta. Tem vindo atrás de Randolph a fazer escavações no deserto! Bem, ele tomou este passeio de Randolph, que não foi autorizado, como uma desculpa e despediu-o. O pai da menina sente-se culpado de tudo isto e ofereceu a Randolph meios substanciais para continuar com as explorações por conta dele. Randolph recusou... Que pensa de tudo isto?

- Eu! Oh, penso que foi muita infelicidade e é aflitivo que Phil... Mr. Randolph seja despedido... e desgraçado por causa do plano idiota de meu pai - replicou Janey. - Certamente que o pai não pode fazer menos do que oferecer-se para reparar as perdas materiais. E é tão justo como certo que Mr. Randolph não possa aceitar isso.

- Porque não? - perguntou Endicott.

- Bem, papá, se tu consegues ver porquê... eu não vou esclarecer-te.

- Obrigado, Miss Endicott - disse Randolph. - Você, pelo menos, compreende-me.

Endicott teria explodido, naquela altura, se tivesse tido a energia bastante para expressar tudo o que ele pensava. Como a sua primeira exclamação fosse ininteligível e apenas ligeira, acrescentou: - Se vocês, jovens de temperamento louco, não fossem estúpidos, eu podia ainda salvar a situação.

- Sim, podia - declarou Randolph, sarcástico. - Endicott, a minha opinião particular é que você devia salvar a sua cara se...

- Olhe lá, seu sabichão de cabelo vermelho! - interrompeu-o Endicott. - Já chega de me insultar.

- Posso ainda juntar injúrias aos insultos - retorquiu Randolph.

Aqui Bennet meteu-se e tentou arranjar as coisas com a sua gentileza e senso comum, característicos do homem do Oeste. Janey tinha estado a pensar desesperadamente. O que a aturdia agora era que ela simplesmente não podia parar a infelicidade de Randolph. Ela, que tinha querido fazê-lo estorcer-se e lamentar-se e amaldiçoar-se com remorsos!

- Mr. Randolph, posso dar-lhe uma palavra em particular? - perguntou ela, muito prática. Ninguém podia ter adivinhado que havia um nó na sua garganta.

- Certamente - disse ele, com polidez glacial. - Se considera isso necessário.

Afastou-se para um lado com ela, manifestamente desconfiado. Janey ouviu o pai murmurar para Bennet.

- O que é que ela vai fazer agora? Nunca se sabe nada a respeito de uma mulher.

Janey mantinha uma compostura aparente. Ela podia encarecer o momento e este era bem grande.

- Quer fazer-me uma promessa? - perguntou.

- Já não posso muito bem ficar surpreendido consigo. E se me perdoa a minha grosseira... não, não quero - respondeu.

Janey fitava-o com uns olhos de mulher penetrante, intuitivos; e o que ela lia na cara dele era a prova pior, pois que lhe dava a certeza de que ela precisava.

- No entanto, se você me fizer uma promessa... mantê-la-á? - continuou ela, com firmeza.

- Sim. Se!

- Lembra-se da última vez que eu andava ao pé de si, enquanto você cavava?

- Não sou de molde a esquecer isso.

- Vou-lhe dizer a verdade, honestamente.

- Será capaz disso, Miss Endicott? - perguntou ele, com acidez.

- Se você é capaz de lutar pela minha honra, também pode ser capaz de me conceder a graça da sua dúvida... quando eu particularmente apelo para si. Quer?

Isto tocou-o profundamente. Perdeu o seu inflexível e frio olhar de dúvida e tornou-se meramente infeliz.

- Eu não estou completamente em mim. Mas diga-me o que quer.

- Se eu lhe revelar uma coisa promete-me nunca a dizer a ninguém? - perguntou ela, baixo e apressadamente.

- Não vejo necessidade de me revelar os seus segredos - replicou.

- Promete-me? - continuou ela, pedindo-lhe também com os olhos.

- Pode experimentar-me - disse ele, rendendo-se, apesar de tudo.

- Obrigada. O segredo que você prometeu guardar é que «eu» encontrei Beckyshibeta para si - sussurrou ela. - Vá por uma vez bem longe para além daquele lugar que eu atravessei arriscando a vida... onde eu trocei de si e o mandei para o inferno... Vá ainda mais acima rodeando aquela rocha inclinada e fendida. Procure umas escadas de pequenos degraus cortados na pedra. Suba-os. Eles conduzi-lo-ão até Beckyshibeta. Não duvide. Não ria. Mas vá!

Janey não esperou para ver a incredulidade dele ou para ouvir o que quer que ele tivesse para lhe dizer. Apressou-se a voltar para o seu poiso. Quando se ajoelhou na sua cama, e olhou para trás, Randolph tinha desaparecido. Depressa ele iria saber que as suas palavras não tinham sido tolas. A maior ambição da sua vida estaria atingida! Beckyshibeta! Como iria ele voltar para ela?

 

Janey previra a paz, a satisfação e o alívio dos seus tumultuosos pensamentos. Mas enganara-se. E se não fosse na realidade Beckyshibeta? Que erro terrível! A sua eloquência, a sua exigência de uma promessa sagrada, a sua fria certeza tinham convencido Randolph. Mas ela podia estar enganada. Como podia ela estar tão segura a respeito de habitações de rochas?

Portanto estava torturada. Como reconciliar-se com Randolph, se tivesse errado! Claro que ela podia entregar-se-lhe. Não lhe parecia possível poder rivalizar com Beckyshibeta na avaliação deste cientista tão entusiasta; apesar disso talvez lhe pudesse servir de pequena consolação. Isso devia pois ser o que ela tinha de fazer; era o que ela tinha projectado infinitamente à medida que as horas passavam. Somente isso teria de ser feito imediatamente, justamente lá onde esta catástrofe tinha acontecido, em lugar de esperar até se sentir total e para sempre vingada.

Uma hora tinha passado, seguramente uma hora que Janey nunca mais queria tornar a viver. O acampamento estava deserto. Ela não tinha ouvido ninguém afastar-se.

E presentemente ela sentia que não podia mentir mais tempo esperando, sem acção, e em suspenso. Tinha de se movimentar, que fazer qualquer coisa.

Janey dirigiu-se para a direcção oposta àquela que estava certa que os outros tinham seguido. Foi dar a volta por baixo das rochas, mais além, para aquele lado onde já tinha estado. Mas desta vez as paredes que pareciam falar não tinham poder de consolação. Ela não estava pronta para se abastecer com as suas próprias necessidades espirituais. Era em Randolph que ela pensava. Se ela tinha realmente descoberto Beckyshibeta seria presentemente a mais afortunada... a mais feliz das mulheres. Nem tentava agora saber a razão. Era qualquer coisa em que acreditava o mais devotadamente e que implorava que acontecesse.

Encontrou um tronco de salva e deteve-se ao pé dele, gozando a sua fragrância e cor. Colheu uma braçada de ramos, pensando metê-los numa almofada, para conservar perto dela uma recordação... da buliçosa doçura do deserto. Então sentou-se com os ramos de salva no colo, e tentou planear claramente o seu procedimento a partir daquele instante. Mas só podia sonhar, porque era tudo tão incerto.

Contudo, o tempo passava e quando voltou ao acampamento encontrou todos os outros lá, excepto Randolph. Ao primeiro relance de olhos pareciam estar todos muito amigos. Devia ter havido oportunidade para uma conversa íntima. Então o pai viu-a e veio correndo. Janey suspirou com alívio. Mr. Endicott não se entregava habitualmente a movimentos tão excitados, nem quando estava melancólico.

- Tenho tido uma boa sorte infernal - anunciou ele, ao alcançá-la e completamente esquecido do seu primitivo estado de espírito, pôs o braço à volta dos ombros dela e apertou-a.

- Tens? Bem, isso é óptimo - replicou Janey, gritando-lhe enquanto ele a arrastava para a sentar numa rocha.

- Randolph e eu fizemos as pazes - disse Mr. Endicott, com enorme prazer e satisfação.

- Fizeram as pazes! Verdade? Não imaginava que fosse possível ele perdoar-te... a ambos. - Janey acrescentou o «a ambos» como um pensamento posterior, que escapou por completo a Mr. Endicott.

- Janey, aquele maroto cheio de sorte descobriu o «pueblo» perdido... Beckyshibeta! -- exclamou o pai.

- Oh! Maravilhoso!

- É verdade. E, bem, eu nunca dei por ter ficado tão contente, com outra qualquer coisa.

- Conta-me - disse Janey, acalmando-se, embora continuasse a desviar um pouco a cara.

- Bennet estava a mostrar-nos as ruínas - continuou Endicott, enxugando a cara escaldante. - Fomos ao encontro de Randolph. Afirmo-te que pensei que ele estava maluco. E o mesmo pensou Bennet. Ao princípio nós não o tomámos a sério. Mas acabou por nos convencer. Tinha descoberto Beckyshibeta... o «pueblo» com o qual tantos arqueólogos têm desvairado e sonhado há tantos anos.

E absolutamente por um estranho acaso. Ele estava radiante. Nunca tinha visto um homem tão completamente feliz. Estava-me absurdamente grato por eu o ter mandado para aqui. Razão por que o moço me abraçou. Eu estava embaraçado porque me lembrava de como ele me tinha tratado poucas horas antes... Janey, ele tinha de facto esquecido tudo. Afirmo-te que aquilo me transtornou... fiquei tão contente. Gosto de Randolph e quando me zanguei com ele, isso aborreceu-me. Ele é um dos melhores rapazes que eu conheço,

- Estou contente... por ti e por ele - acrescentou Janey. - Esta descoberta pode significar muito para ele?

- Eu ainda o não tinha percebido até depois de ele ter desaparecido outra vez - respondeu Endicott. - Bennet disse-mo! Significa para Randolph fama e muito dinheiro. Numa palavra... sucesso. Cientificamente é uma descoberta muito importante. Beckyshibeta é um dos maiores «pueblos», disse Bennet. Uma antiga cidade soterrada! E então o melhor disto tudo é Randolph não estar a trabalhar por conta do museu, quando encontrou o «pueblo». Estava a trabalhar por conta própria. Esse imbecil do Elliot, tu sabes, tinha-o despedido. Bennet disse que Elliot vai praticamente expirar. Randolph conseguirá crédito e tudo o mais que for preciso. Os trabalhos de escavação serão feitos debaixo das suas ordens, em vez das de Elliot. Estou mesmo contente com isso.

- Escavação - reflectiu Janey. - Ele vai aventurar-se nisso? Não será muito dispendioso?

- Eu apoiá-lo-ei. É um grande empreendimento - replicou Mr. Endicott, entusiasmado.

- Pensas que ele aceitará?

- Philip já aceitou - continuou o pai, muito feliz. - Ele disse que podia conseguir dinheiro. O governo deve querer ajudar. Protectores das descobertas científicas devem querer contribuir... para terem os seus nomes ligados a Beckyshibeta. Mas eu derrotei-os a todos. E Phil ficou deliciado.

- Onde é que ele está agora? - perguntou Janey, relançando um olhar, melancólico, pelos maciços de salva. Ela não deixaria a ninguém ver os seus olhos naquele momento.

- Voltou para lá. Bennet e eu tentámos segui-lo. Mas ele atravessou um lugar terrível. Nós certamente teríamos quebrado os pescoços. Portanto voltámos para o acampamento.

Estava uma noite com radiações prateadas que se estendiam por todo o negro «canyon» até às suas extremidades. A lua começara a surgir. Janey estendeu-se nos seus cobertores, à espera de ver o disco branco passar sobre a negra e desigual linha de rochas acima da sua cabeça. Não tinha querido encontrar-se com Randolph, no acampamento e, pretextando fadiga, tinha-se retirado para ali onde o pai lhe fora levar a ceia.

Randolph só voltou depois dos outros terem acabado de comer; e então quase se esqueceu de comer. O seu aspecto esfarrapado testemunhava horas de grande contacto com rochas ásperas e a sua cara radiante, que a descoberta o transformara num outro homem. Enquanto ele falava com Bennet e Endicott, o seu olhar dirigia-se tantas vezes para o poiso de Janey que ela começou a recear que pudesse ser apanhada a espreitar. Mas estava ali oculta na sombra, e podia divertir-se a observar e a escutar. Se já alguma vez tinha visto três homens felizes, foi naquele momento. Os Durlands tinham-se humanizado consideravelmente. Rondavam à volta de Randolph, fascinados e aquecidos pelo entusiasmo do rapaz. Quando por fim eles foram para as suas camas, Bennet disse:

- Bem, Endicott, você pode desencantar para aí uma bebida?

- Não. Não trouxe nenhuma - replicou Endicott, pesaroso.

- E você, Randolph?

- Eu tinha para a hipótese de alguma mordedura de cobra, mas evaporou-se.

Bennet voltou a sua sela e procurou um frasco.

- Olá, amigos, vamos beber por Beckyshibeta!

O tempo que eles levaram a ir para a cama! Por fim Randolph ficou sozinho. Sentou-se durante o que pareceu a Janey uma hora sem final, contemplando a fogueira amortecida mas ainda rubra. Em que é que ele estaria a pensar? Fama e fortuna, as deusas de todas as ambições dos homens, pensou Janey, ciumenta. Claro que não parecia lembrar-se dela.

A lua, alta agora, atravessou a estreita abertura entre as extremidades das rochas lá em cima; a sombra negra a um lado do «canyon» moveu-se magicamente para o outro lado. Um silêncio impenetrável envolveu aquele lugar tão solitário. Janey tinha estado a espreitar até as costas lhe doerem. Por várias vezes se deitou só para se tornar a levantar e espreitar outra vez. Randolph era para ela como que um imã. Ria feliz e abafadamente enquanto o ia espreitando. Se ele soubesse!

Endicott e Bennett estavam estendidos nas suas camas, profundamente adormecidos. Janey enterneceu-se ao ver o prateado dos cabelos do pai, brilhando à luz do luar.

Randolph olhou para eles atentamente e durante muito tempo. Então subindo sem fazer barulho entrou na zona de sombra e desapareceu. Mas depressa o contorno da sua cabeça e ombros se destacou ao luar. Janey teve um sobressalto e deitou-se rapidamente. Ele dirigia-se para ali.

O súbito rubor da sua cara e o bater forte do seu coração acompanhavam um pânico que ela não podia dominar. Portanto cobriu-se com os cobertores e fingiu que dormia. Para os seus olhos estava quase tão claro como dia. Mas Randolph, que vinha do luar, acharia ali escuro. Ainda que ali estivesse bastante tempo! Uma criança poderia ler na cara dela o que lhe ia no coração. Ouviu um leve restolhar na rocha, e começou a tremer. Logo a seguir sentiu a presença dele. Ele estava ali, olhando para ela. Como podia ela mentir ainda? Qual era a intenção dele? Então compreendeu que ele ia de certeza acordá-la e procurou acalmar os nervos. Passou-lhe qualquer coisa levemente pelos cabelos. A mão dele ou os lábios?

No instante seguinte ela sabia-o, porque sentiu o leve sopro da respiração dele muito perto da cara. Ele tinha-lhe beijado os cabelos. Se ele se aventurasse a beijar-lhe os lábios, os braços dela, agora rígidos, voariam até se colocarem à roda do pescoço dele. Ela sabia-o. Esperou, entregando-se já no coração, pronta para acabar regiamente com a luta. Mas em lugar disso ele tocou-lhe levemente e sussurrou:

- Janey!

Isso salvou-a. Ela recobrou o controle que estivera prestes a extinguir-se; e o seu rápido e consciente pensamento contrabalançou a sua emoção.

- Janey - sussurrava ele. - Acorde. Sou eu... Phil. Ela abriu os olhos, não precisando de simular um sobressalto. Viu-o distintamente... a face pálida, arrebatada. Ele ajoelhou-se ao lado dela.

- Oh!... Quem?... O quê? - balbuciou ela.

- Não se assuste - disse ele rapidamente e em voz baixa. - É o Phil. Não podia esperar até amanhã.

- Você... você sobressaltou-me. O que é?... Oh, espero que o meu pai...

- Não fale tão alto - interrompeu-a ele. - Não aconteceu nada de mal. Simplesmente eu não podia esperar até amanhã. Tinha de a acordar.

- Porquê, posso perguntar... se tudo está bem?

- Janey, não era um sonho - continuou ele, profundamente comovido. - Tinha razão. Você encontrou Beckyshibeta para mim.

- Pois claro. E você acordou-me para me dizer isso?

Ele hesitou, e então continuou, explosivamente.

- Não... mas, isto... eles... vocês todos vão juntos.

Janey não respondeu.

- Janey, por favor não seja... não seja... - acrescentou ele, arrebatadamente.

- O quê? - perguntou ela, mas sem o encorajar.

- Bem, tão fria - rompeu ele. - Pelo menos não me enregele mortalmente. Deixe-me dizer-lhe... deixe-me desabafar.

- Está completamente fora das convenções, para não dizer pior. Mas não o mandei embora, ou mandei? - respondeu ela, e pôs a mão de fora para levantar a almofada.

- Obrigado - disse ele, em voz rouca. - Ficarei aliviado e feliz por tirar isto da minha cabeça... Janey, você fez a minha fortuna. Beckyshibeta é maravilhosa. Ainda não tive tempo para avaliar todo o lugar, mas pelo que descobri já, é enorme e muito mais importante do que eu sempre sonhara que pudesse ser. De facto, Beckyshibeta é uma das maiores e mais velhas cidades sepultadas. Levará anos a escavá-la e no campo científico é uma descoberta inestimável. O facto de Elliot me ter destituído do meu lugar do museu, foi particularmente afortunado para mim. Estou inteiramente a trabalhar por minha conta. Posso ditar condições. Posso levantar qualquer capital, mas creio que vou aceitar o auxílio de seu pai. Será uma coisa óptima para ele, também.

- Mas, Phil - replicou Janey, aproveitando uma pausa.

- Já me tinha dito tudo isso antes. Quando me explicou o que significava para si descobrir as minas.

- Sim, mas eu nunca tinha sonhado toda a sua magnitude... Janey, tentei mais do que uma vez fazê-la ver como o meu coração estava com este trabalho. Ele chamava por mim de tantas formas. Gosto de desvendar o bolorento passado. Mas não conseguia avançar porque não tinha nem capital nem sorte. «Você» fez a minha fortuna. Vou ser famoso. Vou ganhar muito dinheiro escrevendo, fazendo conferências e oferecer-me-ão uma grande posição. Expedições em países estrangeiros, se eu quiser, ou trabalho de investigação em todo este deserto. Simplesmente eu não posso pensar que todas estas oportunidades vão ser para mim. Mas penso que você livrar-me-á da minha promessa de não dizer quem foi que fez esta descoberta.

- Certamente que não. Estou contente por isso significar tanto para si. Você sabe o quanto eu sempre quis que fosse bem sucedido, embora não parecesse muito interessada. E posso sentir que consegui alguma coisa de bom do... do mal que você me fez.

- Janey.

- Você arruinou o meu nome - continuou ela, gravemente. - Foi culpa do meu pai, mas isso não o desculpa a si.

- Oh, Janey, isso tudo realmente nada significa - nada - soprou ele, em voz rouca. - Neste tempo! Porque, mesmo que o rapto tivesse sido real, não lhe poderia ter feito mal, essencialmente.

- Não posso concordar consigo, e não acho necessário discutir esse assunto.

- Oiça. Amo-a desde o primeiro momento em que a vi. Mas não tinha esperanças ou ilusões. Você lembra-se quando eu a vi em Nova Iorque... Bem, nunca pensei que alguma vez pudesse sentir o que senti. Nunca tinha reparado em nenhuma outra rapariga. Mas o meu coração nunca se teria destroçado. Mas este seu passeio até aqui - o louco plano de seu pai - as horas maravilhosas passadas neste deserto - e por último, o você ter descoberto Beckyshibeta para mim - eu nunca poderia ficar insensível a tudo isto. Nunca poderia imaginar tudo isto. Já a amava, mas agora adoro-a... Janey, quer casar comigo?

Janey tentava tirar a mão da quente pressão da dele, por medo que ela pudesse trair o verdadeiro estado do seu coração.

- Não mais serei um insignificante - apressou-se ele a continuar. - Nem um pobre mendigo. Posso oferecer-lhe um lar - suficientemente bom para qualquer rapariga. Posso fazê-la feliz Janey. Oh, você nunca me enganou. Essa vida alegre de luxo e ociosidade nunca conseguiu quebrar o que há de bom em si. E há muita coisa boa em si, Janey. Que rapariga maravilhosa para ajudar um homem a fazer qualquer coisa de si próprio. Para construir um verdadeiro lar americano!

- Ainda não há muito tempo você pensava que tudo em mim era mau - replicou ela, escarninha.

- Não é assim. Eu nunca a tomei por aquilo que você parecia ser, aparentemente.

- Eu lembro-me do que você disse, Phil - volveu ela, com tristeza.

- Não me interessa aquilo que eu disse. Deus sabe como eu era provocante ao dizer qualquer coisa... Nem me interessa «o que» eu pensava, também. A sua inspiração ao descobrir Beckyshibeta fez-me ver claro. Sim, agora vejo claramente. Conheço-a tal como você é, no fundo do seu coração. Está a iludir-se a si própria, não a mim... Peço-lhe que me escute. Nunca mais a importunarei. Amo-a. Adoro-a. Se pudesse imaginar a beleza e o esplendor que eu vejo!

- Phil, você não respeita os sentimentos de uma mulher - replicou ela, muito séria. - Eu respeitava-o; gostava de si. E provava-o deixando-o só com o seu trabalho. Se você tivesse recusado as miseráveis propostas do papá. «Se» você me tivesse contado tudo. «Se» tivesse sido criado comigo e tivesse sido meu amigo - «Quién sabe?» - Mas agora é muito tarde!

- Janey, não pode ser assim tão criança - lamentou-se ele torturado. - Se você gostava mesmo de mim, com certeza que ainda gosta.

- Esquece-se de que... de que me bateu! - murmurou ela, e sentiu a ardência do sangue que lhe subia às faces.

- Não, não me esqueço - disse ele, obstinadamente. - Lamento o que fiz, evidentemente. Mas fá-lo-ia outra vez, nas mesmas circunstâncias. Só quero que compreenda que eu não lhe bati «Eu espanquei-a». Há uma diferença muito grande.

- Não me ralo com a diferença... Phil, acredita honestamente que eu o não deva odiar por causa disso?

- Odiar-me? Oh, Céus, claro que não! O meu amor por si rouba qualquer raiva ou ódio a essa humilhação.

Janey sabia que era verdade, e justamente então odiou-se a si própria pela paixão que a agarrava ao seu orgulho e paixão. Ela sabia também que devia acabar com aquela conversa, abruptamente, ou render-se definitivamente.

- Phil, de um momento para o outro você pode acordar os outros - disse, empregando uma altivez que devia ter sido aborrecida para ele. - Mas oiça a minha resposta. É já muito tarde para as coisas belas que você está a visionar. Demasiado tarde!... Insisto para que me leve para Flagerstown imediatamente; e me dê a protecção do seu nome. Seguirei para Nova Iorque e lá divorciar-me-ei de si, libertá-lo-ei.

- Oh, Janey! - gritou ele, com apaixonado desapontamento, e largou-lhe a mão.

- Fará isso, por mim? - perguntou ela, hesitante.

- Sim, fá-lo-ei Mrs. Philip Randolph - respondeu, amargamente, e desceu, em silêncio, a plataforma, desaparecendo na sombra.

Janey tornou a deitar-se com um longo suspiro. A prova estava determinada. Ela viu que dentro de poucos momentos seria gloriosamente feliz. Precisamente no instante em que tivesse satisfeito o seu cérebro insistente e moderno!

Ao deitar-se e ao puxar os cobertores bem apertados à volta do pescoço, sentiu o estremecer do seu corpo. Estava enregelada e exausta. Se não fosse a escuridão nunca poderia ter tido aquela conversa íntima com Philip, até ao clímax que ela tinha atingido. Tinha-o desiludido. Tinha-o torturado com a sugestão do que poderia ter sido. A certeza do amor dele tinha sido o que ela tinha aspirado. A respiração avolumava-se-lhe e a sua consciência acusava-a ao relembrar as palavras dele, a emoção dele, a sua fé. Teria que ter grande cuidado para que nenhuma palavra ou acto dela nada fizesse senão aumentar o remorso e o amor dele. Contudo prosseguiria claramente e até ao último minuto com a sua vingança. Não mais vingança, mas brincadeira, simplesmente amor puro, qualquer coisa para mais aumentar o valor da sua rendição com o mais doce e o mais inesquecível mudar de atitude.

Um pensamento varou-a como um raio - o qual era insignificante comparado com a sua felicidade - não estaria a ir muito longe; a arriscar demasiado? Não! Se Philip a adorava - e como ela o acreditava de um modo emocionante - não ousaria sujeitar-se a isso! - alguns dias mais no deserto e então aquele maravilhoso climax que ela devia inventar para seguir ao casamento deles em Flagerstown, fá-lo-ia mais miserável, mais abandonado, mais inteiramente dela. Como ela teria que lhe torturar o cérebro para fazer a vitória mais completa - qualquer coisa pela qual ele sò poderia amá-la mais!

Janey esteve muito tempo acordada. O sono tinha-a abandonado. A noite passava lentamente. O fulgor prateado das paredes foi empalidecendo, escurecendo, desvanecendo-se. E o «canyon» tornou-se negro, cheio de mistério, silencioso como um túmulo. Mas pela concentração intensa em que Janey estava conseguia ouvir um murmúrio muito baixo de água a correr e o som lamentoso do vento a quebrar-se contra a parede. Que maravilhosa era a noite, a escuridão, o isolamento e o primitivismo, o significado daquelas velhas paredes, o eco do passado, o amor vivo e poderoso do seu coração e a convicção de que nada morrerá!

E então, como por magia, a madrugada começou a aparecer iluminando o «canyon».

Janey permanecia no leito e pensava e sonhava, e sorria e beliscava-se para se provar que estava acordada. Então começou a aperceber-se dos sons do acampamento que se começava a movimentar, lá em baixo. Tinham acordado cedo naquela manhã. Mas estava a aborrecer-lhe deixar os quentes cobertores e demorou-se ali, entretida com os seus pensamentos.

Então o pai apareceu na plataforma, trazendo-lhe o fato de montar e as botas.

- Olá, estás acordada - disse ele.

- Bom dia, pai - respondeu ela, espreitando recatadamente por detrás da dobra do cobertor. Ele não parecia feliz e faltava-lhe o sorriso que habitualmente tinha para ela.

- Estamos a levantar o acampamento. Randolph comunicou-me os seus desejos e intenções. Nós partimos hoje para o Posto e para Flagerstown de vez.

- Tão depressa! Deixar Beckyshibeta hoje? - exclamou ela, consternada.

- Certamente. Suponho que tu hás-de apreciar este lugar - e outras coisas, depois de as teres perdido. Apressa-te e veste-te. O pequeno almoço está à espera.

Janey pasmou com a maneira dele tão retraída. - Bem! - monologou. Depois riu. O que poderia ela esperar? Ele estava tremendamente desapontado com ela. Melhor; As coisas estavam correndo magnificamente. Ela iria certamente dar-lhe uma lição que lhe ficaria de memória, durante toda a vida. Estava pois muito contente por ele estar tão desapontado. Ela poderia perseverar um pouco mais que ele e Randolph continuaria a estar triste a respeito dela e da confusão que iria fazer na sua vida.

Janey vestiu o seu fato de montar e calçou as botas, com extraordinário prazer e satisfação. Que transformação! O trajo deficiente que ela tinha usado, todos aqueles dias, não se harmonizava nada com a dignidade e certamente não tinha ajudado a sua beleza. De qualquer maneira ela conservaria aquela saia encolhida e a blusa rasgada e as meias sujas. Embrulhou tudo dentro dos cobertores. Os sapatos gastos também! Em algum dia, de um futuro ainda distante, ela usaria tudo aquilo para surpresa e delícia de Phil.

O seu pequeno espelho mostrou-lhe uma cara de tom bronzeado pelo sol, com uns olhos muito alegres e iluminada por um sorriso glorioso; e o cabelo lustroso e ondeado, ainda mais bonito por estar revolto e livre. Janey não precisava de ocultar os seus sentimentos por mais tempo. Deixaria Randolph e seu pai tirarem as suas próprias conclusões, quanto à sua felicidade.

Ao descer da plataforma ouviu Mrs. Durland gritar deliciada. Alguma coisa a tinha excitado. Randolph e Bennet estavam ocupados a fazer os fardos. O pequeno almoço fervia ao lume. Os índios tinham vindo com os cavalos. A angústia despedaçou o coração de Janey. Apenas mais uma hora, talvez menos, e não veria mais as esplendorosas paredes do «canyon»! Mas ela voltaria. Os cavaleiros não eram cegos quanto à mudança do seu vestuário e da sua disposição, embora não se tivessem importado com ela. Na verdade nem conseguiu captar o olhar de Randolph.

Mrs. Durland vinha para cima, quase correndo, ofegante, triunfante e radiante. - Oh, minha querida; como está diferente! - arquejou ela. - O que é que acha? Aquele vilão do Black Dick esqueceu-se de levar o nosso dinheiro... e as jóias. O meu saco estava pendurado... num cedro pequeno. Imagine! Fiquei simplesmente petrificada... e aqui tem o seu anel de diamantes.

- Bem, isto é que é sorte! - gritou Janey, surpreendida e satisfeita, ao pegar no anel. - Estou muito contente por sua causa, Mrs. Durland. Claro que a minha perca teria sido pequena... Portanto o nosso malfeitor esqueceu-se de levar o que tinha roubado? Bem, ele era um original.

- Eu agora quase que lhe posso perdoar - respondeu Mrs. Durland, fervorosamente.

Bert apareceu e tirou o «sombrero» a Janey. Mas o azedume do seu olhar não se ajustava à graciosidade do gesto. Janey não precisava que lhe dissessem que o pai lhes tinha dado notícias importantes. Os Durlands tinham que ser corteses, mas Bert, pelo menos, nunca a esqueceria. Janey reflectia que não tinha importância o que eles sentiam ou faziam. Contudo, seria cuidadosa, para fazer crer a Randolph e a seu pai que receava os Durlands e que desejava aplacá-los.

Janey tomou o pequeno almoço sozinha. Um dos índios deixou o trabalho e parou perto a observá-la, aparentemente fascinado. Randolph conservava-se de costas voltadas a trabalhar afadigadamente nos fardos.

- Phil, por favor arranje-me outra chávena de café - chamou ela.

Ele obedeceu e apressadamente foi buscar-lhe o café.

- Você faz um café magnífico - disse olhando para ele.

- Vou sentir a falta dele, pelo menos, quando estiver de novo em casa.

- Foi Bennet que fez este café - replicou Randolph, bruscamente.

- Oh! - Mas não podia molestar Janey naquela manhã maravilhosa. Nada excepto deixar o seu «canyon»! Isolou-se para que pudesse sentir e pensar, sem ser afectada por Randolph ou por seu pai.

As paredes fulgurantes falavam-lhe. A grande rocha vermelha, que se estendia para Beckyshibeta, como que a chamava. E ela foi bastante longe para espreitar em volta. Como tudo era selvagem, escarpado e rochoso! Era um autêntico deserto de pedras quebradas. E, contudo, para ela tudo aquilo tinha espírito e voz. A corrente murmurava no desfiladeiro, o «canyon» arremessava-se, velozmente, as suas alas brilhavam à luz do sol, a fragrância doce e seca da salva enchia-lhe as narinas.

Janey olhou à sua volta e para cima, em todas as direcções, com profunda reverência por este solitário abismo na crosta rochosa da terra. Voltaria depressa, e muitas vezes enquanto Randolph estivesse a trabalhar nas escavações das ruínas do «pueblo». Gostaria de planear o seu futuro, o seu lar, a sua razão de ser no mundo, ali debaixo do feitiço do seu «canyon».

Quando seria isso? Não tinha ainda planeado nada para além de Flagerstown. Não mais além da hora em que ela passaria a ser a esposa de Phil! O tumulto dos seus pensamentos tinha-a inibido de completar o seu plano. Mas não era aquilo o auge, o fim? Isso não satisfazia Janey. Isso impunha confissão, rendição total, as quais ela ficaria contente em dar, ainda que... De súbito teve uma inspiração. O que a maravilhou absolutamente. Arrebatou-a. Era a solução perfeita para o seu problema e ela podia ter contado a sua alegria àquelas paredes observadoras e desconfiadas. Mas... era possível? Poderia ela executar aquilo? Que estranho ela não ter pensado já naquilo! Tão fácil quanto maravilhoso!

E nessa altura ela concedeu-se um mudo e reverente adeus a Beckyshibeta.

Um vigoroso grito interrompeu o arrebatado humor de Janey: - Vamos, Janey. Estamos prontos! - chamava o seu pai.

Então depressa Janey estava montada num cavalo, confortável e confiante no seu equipamento de montar, descendo a vereda por entre os cedros. Era a última da cavalgada. Randolph e os índios iam à frente, conduzindo os animais que levavam os fardos. Bennet ia a seguir aos Durlands. Endicott cavalgava à frente de Janey. Atravessaram o leito do rio salpicado de seixos, subiram o caminho vermelho, poeirento e macio e serpentearam por entre os cedros. Janey não olhava para trás. Não valeria a pena porque os seus olhos estavam cegos com as lágrimas que os inundavam. Eles não ficaram completamente secos, até que ela saiu de junto das paredes de rocha para entrar no deserto.

Janey cavalgou só todo o dia. E foi seguramente o dia mais rico e mais doce de toda a sua vida. Quarenta milhas de salva a atravessar até ao próximo acampamento; tudo à volta cor de púrpura e fragrância admirável; paredes vermelhas e ouro contra o horizonte; a extensão e o isolamento das vastas distâncias; algumas vezes todas só para ela no caminho, longe para trás dos outros; tudo isto foi o esplêndido acampamento dos seus felizes sonhos e pensamentos, de longas e sérias realizações, do permanente estabelecimento de convicções e ideais, da consciência de um terno e exaltado coração.

O crepúsculo caiu enquanto eles iam ainda subindo o atalho; um daqueles incomparáveis crepúsculos do Arizona que Janey tinha começado a amar. Uma parede negra e vasta no horizonte bloqueava o Oeste. Os raios de sol vermelhos e dourados varriam tudo em baixo espalhando luz sobre o deserto. Em cima, massas de nuvens purpúreas com os extremos prateados escondiam o céu. E tudo isto se desvanecia gloriosamente em pó.

Um rebanho de carneiros pretos e brancos atravessou o atalho, em frente de Janey. Os pastores eram um rapazinho e uma rapariguinha índios, ambos montados no mesmo garrano. Que primitivos e esquivos! Os cães ladraram a Janey. O rebanho trotou pela vereda acima. E por último os pequenos pastores e o seu cavalinho destacaram-se em silhueta contra o crepúsculo. Janey acenou e tornou a acenar. A rapariguinha respondeu; um passageiro e tímido sacudir de mão. Depois desapareceram.

Pouco tempo depois a brilhante fogueira de um acampamento saudou Janey a uma volta do caminho. Ela cavalgou para o acampamento e desmontou, descobrindo que não estava fatigada, que não tinha sofrimentos nem dores; e que a excitação da manhã não a tinha estafado durante aquela longa caminhada. Mrs. Durland estava a lamentar o seu estado sentada numa sela durante muito tempo. Os do Oeste estavam activos .

O acampamento era em pleno deserto, ao abrigo de algumas rochas baixas. Coiotes vagueavam e uivavam na escuridão. Um vento frio varria as rochas em volta e trespassava Janey.

Como eram bons os pedaços ardentes de salva. Estava com um apetite voraz.

Janey comeu a sua ceia, sentada num fardo muito pouco confortável e teve que a comer rapidamente enquanto ela estava quente. A lenha parecia ser escassa e o vento do deserto cada vez era mais frio. Havia pouca ou nenhuma alegria no resto dos companheiros. Bennet tentou fazer alguns comentários engraçados a Mrs. Durland, mas eles não obtiveram sucesso. Janey chegou-se tanto para a fogueira que quase queimou as botas. Randolph conservava-se na sombra. Ela sentiu-o a observá-la e não precisou de mais para se conservar animada. Endicott dormitava no chão do outro lado da fogueira, a cabeça pendida. Bert estava silencioso e desanimado. Mrs. Durland lamentava-se dos horríveis efeitos da cavalgada, da comida, do frio, do vento, de tudo.

- Irão estes animais terríveis e selvagens continuar com este barulho ensurdecedor toda a noite? - perguntou.

- Bem, creio que sim - replicou Bennet. - Os coiotes são barulhentos e chegam-se para junto de nós e são até capazes de puxar pelo seu chapéu quando estiver deitada.

- Céus! E nós temos de dormir no chão?

- Pode deitar-se em cima das rochas. Será bastante ventoso... Não está assustada e completamente gelada, Miss Janey?

- Ambas as coisas - riu Janey. - Mas penso que tudo isto é formidável. Adoro ouvir estes coiotes selvagens.

- Estou farta de deserto - suspirou Mrs. Durland.

- Bert, certamente vais voltar qualquer dia ao Arizona, não é verdade? - perguntou, curiosa, Janey.

- Para quê? - perguntou ele, fixando nela uns olhos muito espantados.

- Está claro, Janey, que vai voltar muitas vezes para ver o seu marido cavando naquela pilha de pedras, não? - acrescentou Mrs. Durland.

- S-s-s-im, mas não muito breve - replicou Janey. - O pai vai voltar rapidamente, para começar com as escavações em; Beckyshibeta. Não vai, papá?

- Claro. Vou cavar uma sepultura aqui para mim - chalaceou o pai.

- Ah! Ah! Ah! - riu o comerciante. - Ouviu isto Randolph?... Bem, meus amigos, vocês vão voltar todos ao Arizona. Ainda não encontrei o homem ou a mulher que tenha dormido neste deserto e que não queira cá tornar.

- O melhor é irem-se deitar todos - disse Randolph. - Há pouca lenha e amanhã têm de se levantar de madrugada.

- Tinha-me esquecido da minha cama - exclamou Janey, estendendo as palmas das mãos uma última vez para as brasas. - Phil, onde é que me vou deitar?

- Aqui - respondeu ele e guiou-a alguns passos.

- Uf, é ventoso. Detesto pensar que me vou deitar nestas rochas tão frias - volveu Janey, tentando ver no escuro.

- A sua não será desabrigada, ou fria, ou dura - replicou ele, com brevidade. - Aqui está. Há uma cama de salva debaixo dos seus cobertores, e um espesso paravento. Vai ficar confortável.

- Oh!... Arranjou tempo para preparar tudo isto para mim? - perguntou, olhando-o. A luz das estrelas mostrou-lhe a cara dele sombria e apoquentada, os olhos tristes.

- Certamente. Foi bastante pouco.

- Obrigado, Phil. Você é bom para mim - disse ela, suavemente, «estendeu-lhe a mão.

Randolph teve um sobressalto, agarrou-lhe a mão convulsivamente, e desapareceu sem mesmo lhe dar as boas noites.

Janey fixou por instantes o seu vulto a desaparecer. Depois mergulhou na cama. - Tchi - assobiou - tenho que ter cuidado. Ele pode agarrar-me... e então seria o fim!

Tirando apenas as botas, Janey deixou-se escorregar pelo leito. Como era macia e fragrante a salva! Por almofada tinha uma pele de carneiro muito macia, que já tinha visto no fardo de Randolph. Então, ao estender com força os pés, deu de súbito com qualquer coisa quente. Assustou-se. Depois verificou que era uma pedra aquecida envolta numa lona. Randolph tinha-a aquecido, e posto ali na cama dela. Agora podia soprar o vento do deserto! As estrelas brancas piscavam para ela de uma abóbada de um azul profundo acima da sua cabeça. Pensara já alguma vez que elas eram sem piedade, indiferentes, trocistas? O vento soprava com baixos lamúrios através da salva; os coiotes continuavam com os seus latidos em selvagem «stacato»; a fogueira do acampamento apagara-se e as vozes baixas dos homens cessaram,

Uma noite tranquila, fria e bela envolvia a cena. E Janey ali estava deitada de olhos bem abertos, perscrutando os céus, encantada com a beleza e o mistério da natureza, com a glória do amor, maravilhada com a felicidade que tinha sido concedida ao seu indigno ser.

No dia seguinte, pelo meio da tarde, atravessaram a vasta distância do deserto para o posto, a caravana estendendo-se longe, com Randolph a conduzi-la e Bennet tentando segurar Mrs. Durland na sela. Janey fechava a marcha, tão atrasada que ao alcançar a última plataforma todos os outros tinham já desaparecido no pequeno bosque verde que cercava o posto.

Mohave foi ao encontro de Janey, junto à cancela, de cabeça descoberta, respeitoso, mas com a aflição estampada no rosto.

- O que foi, Mohave, perdeu o seu avô? ou há alguma coisa? - exclamou Janey.

- Receio que tenha sido pior, Miss Janey - replicou ele, intencional.

- Oh, Céus! Por um momento tive pena de si. Mohave, meu rapaz, acautele-se com as raparigas do Leste depois disto. Elas não são grande coisa.

- A maior parte delas creio que não. Mas conheço uma que é um anjo. E ela vai casar com um...

- Mohave, quem é que lhe disse? - interrompeu Janey, desmontando.

- Esse linguareiro, orelhudo e cabeça dura do Bennet. Anda a apregoar isso a toda a gente e nem o maior ciclone do Inverno nos derrubaria mais do que esta notícia.

- Mohave, agora sinceramente, não está satisfeito... por mim? - perguntou Janey, docemente. Ela gostava deste cow-boy franco e puro.

- Bem, Miss Janey, desde que mo pergunta, sim, estou a ver que eu não a podia ter para mim - replicou ele, com as faces vermelhas. - Nunca gostei desse assunto do rapto e mesmo nunca o compreendi. Claro que se nós tivéssemos sabido que estava noiva todo este tempo, não teria havido toda esta confusão. Pobre, velho Ray, temos que reconhecer que ele é que apanhou o maior golpe.

- O que foi feito dele, Mohave? - perguntou Janey, ansiosa.

- Foi-se embora. E extremamente envergonhado. Pediu-me para lhe dizer que tinha perdido completamente a cabeça. E queria que a menina soubesse que não foi a primeira vez.

- Bem! O que é que ele queria dizer com isso?

- Creio que Ray pensou que se a menina souber que ele já tinha feito a mesma figura, anteriormente, com outra rapariga, a menina não se sentiria tão mal com o que lhe fez.

- Ele é bastante homem para confessar a sua fraqueza. Chamo a isso uma atitude recta da parte dele. Não acha, Mohave?

- Claro que é. Bem, Ray é um bom tipo, quando não anda de cabeça perdida com uma rapariga, ou embriagado.

- Como estão os outros rapazes?

- Não estavam mal até ouvirem esta notícia. Creio que neste momento estão deitados no dormitório, afogando as suas mágoas. Vão certamente deixar de trabalhar para mim e para o patrão.

- Que graça! O que é que eles disseram?

- Bem, não posso lembrar tudo, mas nunca esquecerei uma coisa. Tay-Tay exclamou qualquer coisa como isto. - O q-q-q-q-ue é q-q-q-ue o inferno pensará deste ladrão de túmulos? Ele r-r-r-oubou-nos a nossa rapariga e está com uma cara de v-v-v-v-aca enjoada!

- Bem, eu nunca - riu Janey. - «Mr. Randolph devia parecer alegre e feliz, não?

- Claro que devia. Embora eu creia que ele se sente terrivelmente mal por a menina ir para Leste e ele ter que ficar por causa de Beckyshibeta. Bennet disse-nos. Eu podia apostar, Miss Janey, que nenhum cow-boy a deixaria partir sozinha.

Desta vez Janey estava assustada, mas mantinha um ar de indiferença. Fosse como fosse, ela esquecera que os cow-boys iriam pôr-se a imaginar porque é que ela não ficava ali com Randolph até os seus planos estarem realizados. Deixar Mohave ou algum dos outros adivinhar o seu segredo transtornaria todos os seus planos.

- Imagino que não - disse ela, rapidamente. - Mas não devem pensar mal de Mr. Randolph. A descoberta do «pueblo» transtornou todos os nossos planos. É muito importante. Espero persuadi-lo a ir para o Leste passar algumas semanas connosco, mas tenho algumas razões ur gentes de negócios para voltar imediatamente: com meu Pai.

Por favor, Mohave, tome isto como confidencial. E diga aos rapazes que nós partiremos de manhã cedo. Não quero deixar de lhes dizer adeus.

Quando Mohave a deixou, Janey deu um suspiro de alívio. A sua desculpa tinha sido muito coxa, mas o honesto cow-boy tinha-a aparentemente engolido sem reservas.

Então Janey continuou até ao posto, encontrando primeiro Mrs. Bennet, a cujo caloroso cumprimento respondeu. A criada índia mostrou uma tímida alegria por ver Janey regressar sã e salva. Bennet veio azafamado com Endicott, ambos eles muito corados e tossindo. Janey pensou que o seu pai parecia muito melhor e adivinhou porquê. Os Durlands estavam evidentemente nos quartos e Randolph não se via por ali.

- Mr. Bennet, nós queremos partir de manhã cedo - disse Janey.

- Oh, Miss Janey! Só mais um dia - suplicou ele.

- Tenho pena, mas temos de partir. Voltaremos outra vez e estaremos mais tempo... Papá, vou agora vestir-me e fazer as malas. Queres fazer o favor de dizer a Phil que eu lhe quero falar agora. Digamos daqui a uma hora. Diz-lhe para bater à minha porta.

- Está bem, olhos enigmáticos - volveu o pai, lançando-lhe um olhar perplexo.

Janey precipitou-se para o quarto e foi tomar um banho. Vestiu o vestido mais fascinante que tinha, uma daquelas reduzidas criações que Randolph tinha odiado, embora não lhes pudesse resistir. Como o sangue lhe corria rapidamente nas veias! Que calor tinha nas faces! Na verdade os seus olhos estavam brilhantes como estrelas. Veria se Randolph - estaria ele orgulhoso e infeliz de facto? - iria trair-se? Enquanto fazia as malas o seu cérebro redemoinhava harmonizando-se com o seu pulso galopante. Se ela não tivesse concebido um final grandioso para este romance no deserto, seria um pobre juiz de imaginação e graça. O seu pai seria completamente deitado por terra, e, o melhor de tudo, vencido para sempre. Randolph? Mas nenhum esforço de imaginação poderia retratar Randolph como ela esperava vê-lo.

Uma pancada soou na porta. O que sobressaltou Janey. Prendeu a respiração e a sua mão dirigiu-se ao peito. Olhou para um espelho e a imagem que viu lá, estimulou a sua agitação. Mas depressa se recompôs.

- Entre - disse.

Mas a porta não se moveu, nem tornaram a bater. Janey dirigiu-se a ela rapidamente e abriu-a. Randolph estava ali. Nunca o tinha visto assim.

- Oh, é você, Phil. Tinha-me esquecido. Entre. Quero falar-lhe.

Ele não fez nenhum movimento para entrar e aparentemente estava mudo.

- Bem, você está muito reservado... e ponderado, assim tão de repente - disse, sarcástica. - Peço-lhe que não seja tímido a entrar no meu quarto, «agora»... Entre por favor.

Randolph entrou, com relutância. Não havia agora nenhuma insolência da parte dele.

- O que me quer? Para que é necessário chamar-me aqui?

- Sim, penso que é. A sala é muito devassada. E eu quero pedir-lhe um favor muito particular. Vai fazer-mo?

Ele foi até à janela e olhou a paisagem. Então voltou-se, com um olhar quase carrancudo.

- Sim... qualquer coisa.

- Obrigado, Phil - continuou ela, chegando-se a ele mais do que o necessário. A cada momento Janey se sentia mais segura de si, Havia uma doçura estranha e mágica nesta fraude, mais ou menos sincera. Mas ainda seria uma fraude? Estava a arriscar bastante, confiando no génio dele, na sua humilhação. Era um desejo excitante e perverso de mulher o tentá-lo. Mas se ele a tomasse nos braços? Mesmo assim ela continuaria com o seu plano.

- Antes de lhe pedir o favor, quero dizer-lhe que gostaria que isto se tivesse passado de outra forma.

- Ah! Talvez eu não pudesse! - exclamou ele. - Mas o que é que «quer dizer»?

- É difícil de dizer. E em parte eu gostava de o poupar a isto.

- Não se rale comigo. Qual é o favor que pretende? - Phil, você vai casar comigo... não vai?

- Certamente. A não ser que você mude de ideias.

- Toda a gente o sabe. Toda a gente pensa que nós estávamos noivos.

- Isso parece ter sido o que Bennet e seu pai resolveram andar por aí a espalhar - replicou ele, com amargura.

- Qual é o objectivo deste casamento? - perguntou ela, levantando, orgulhosamente, a cabeça.

- O seu pai disse... e você... disse... que para salvar a sua reputação.

- Sim. A minha honra!... E receio que o seu sacrifício falhe, se você continuar a parecer e a proceder assim. Você não está com o aspecto de um noivo feliz. Tay-Tay disse que você estava com uma cara de vaca enjoada. Você, certamente, parece infeliz. Se não se alegra e muda de aspecto... se não procede e não parece um apaixonado... os Durlands adivinharão a verdade. E também os cow-boys. Para não mencionar aqueles em Flagerstown com quem nós estaremos em contacto. Estamos a representar um tremendo engano. Eu posso fazer o meu papel. Está a ver que pareço feliz, não está?

- Sim, vejo - respondeu ele, lastimosamente. - E contudo Deus me ajude, se a compreendo. Você parece-me sempre uma mentira.

- Todas as mulheres são actrizes, Phil. Eu não fujo à regra. E peço-lhe este último favor. Aparente e proceda como apaixonado que foi aceite. Por mim!

- Meu Deus!... Janey Endicott, pode pedir isso a um homem cujo único crime foi amá-la tanto?... E que a deve perder!

- Phil, se você me tinha tal amor, podia ter morrido por mim.

- Podia, bastante mais facilmente do que fazer o que me pede agora. É uma prova quase insuportável a que me está a pedir. Eu não estou habituado a esconder os meus sentimentos.

- Phil, os Durlands e os cow-boys não devem adivinhar que este casamento é uma mistificação.

- Concordo. E sei que pareço um pobre diabo. Mas pensava que seria natural para toda a gente. Todos eles ouviram que eu não vou agora para o Leste.

- Você não conhece as mulheres, meu amigo do deserto, Mrs. Durland é viva como um coral. Se você a conseguir iludir... fazendo parecer este noivado verdadeiro e já antigo, conseguirá fazer parar aquela língua venenosa. Então depois de eu estar em Nova Iorque encontrarei a maneira de lhe agradar, socialmente falando. Mas aqui é perigoso.

- Talvez você esteja a ver o caso com mais clareza que eu- disse Randolph, tristemente. - Em qualquer dos casos aceito o seu raciocínio.

- Então concede-me este favor? - perguntou Janey, começando a sucumbir a uma emoção mal reprimida.

- Favor! Chamo a isso a tarefa mais difícil que até hoje me foi dado fazer. Casar consigo não será nada comparado com esta danada hipocrisia que você me pede.

- Tenho de lha pedir, Phil. Imploro-lhe. Por último tenho de lhe confessar que não sou tão descarada como julga. Tenho medo do escândalo. Nada de mau atingiu o meu nome até agora. Todas estas coisas modernas, sobre liberdade e independência, são tolices. Face a face com a verdade, peço-lhe... faça isto por mim. Por qualquer preço.

- Sim... Janey - disse, sufocado, e apoiou-se à janela.

A reserva de forças de Janey tinha-se esvaído na sua expressão. Esperava, em suspenso. Viu o queixo dele tremer e as veias do seu pescoço. Ele voltou-se para a trespassar com um olhar acusador.

- Com uma condição - disse.

- Condição!... Qual? - murmurou ela.

- Esta, então, estes são os últimos momentos que você e eu estamos sós? - perguntou, rápido.

Ela abandonou a falsidade e apenas pôde olhar para ele, em silêncio.

- Claro que deve ser. Bem, o meu preço para o seu favor é que você mo deixe... Não! Não regatearei... Você minha encantadora criaturinha sem coração... você só recusaria. Eu «tomarei» o que me dará forças para cumprir a sua ordem!

Janey voltou-se para a parede, as mãos no peito, como se o fosse repelir. Mas quando ele, como um turbilhão, a tomou nos braços, não se apercebeu de que aquelas mãos trémulas se fechavam à roda do seu pescoço. Louco de mágoa e de amor incompreendido, apertou-a contra o peito e encheu-lhe de beijos ávidos e insatisfeitos os olhos fechados, os lábios entreabertos, o pescoço. E libertando-a subitamente, cambaleou até à porta, como um cego, e encostando a cara contra ela, soluçou:

- Janey! Janey!... Janey!

Não se voltou para ver os braços dela estendidos, a face convulsa.

E como Janey não podia falar, ele fugiu na ignorância. Janey fechou os olhos, recuperando vagarosamente as forças.

- Pensei... que era... o meu fim - murmurou, arquejando. - Pobre rapaz... nunca olhou para mim!... Bem, será só... tudo ainda mais doce!

 

O sol já se tinha posto, quando o carro entrou no denso pinhal que rodeava as montanhas. A neve caía. O vento estava muito frio e redemoinhava nas árvores. O barulho que o carro fazia! A noite caía e o pinhal estava negro. Os faróis espalhavam raios de luz pelo pinhal, nas curvas da estrada, fazendo espectros dos escuros pinheiros.

Breve, então, os candeeiros de Flagerstown terminaram aquele maravilhoso trajecto.

Na sala de espera do hotel, Janey, indiferente aos hóspedes, estendeu para o fogo as mãos desenluvadas e geladas. Ela aprendera a amar o fogo, a precisar terrivelmente dele, assim como começara a aprender o significado de muitas outras coisas.

Como Janey se voltasse, viu um homem alto e largo de ombros, bastante magro e com um ar académico, levantar-se de uma cadeira, para se dirigir a Randolph.

- Como está, Mr. Elliot - replicou Randolph, constrangido. - Como passa? Este é o meu amigo... e patrão, devo acrescentar... Mr. Endicott, de Nova Iorque.

- Ah! Como está Mr. Endicott - volveu Elliot, vagarosamente, estendendo a mão a Endicott. - Patrão de quê, posso perguntar?

- Por enquanto ainda não bem um patrão - replicou Endicott. - Randolph é um pouco precipitado, naturalmente.

- Sim, na verdade, é - volveu o doutor, não sem sarcasmo. - Zeloso em extremo devo dizer, para precisar melhor. Sonhador quando devia ser científico. Testemunha-o o ridículo boato que me telefonaram de Cameron.

- Boato? O que foi? - perguntou Randolph, muito tenso. Janey gostou do levantar de cabeça dele, e começou a interessar-se. Não havia dúvida de que aquele era o director do museu, que tinha demitido Philip.

- Alguns disparates a respeito de você ter descoberto Beckyshibeta - replicou Elliot, com uma gargalhada seca. - Foi telefonado para o jornal por um motorista. Enfadante para mim para dizer o menos.

Randolph olhou para Endicott e disse:

- Nós parámos em Cameron para meter gasolina.

- Deve ter sido o motorista Bill - replicou Endicott, animado, com os olhos perspicazes pregados em Elliot.

- Sim, doutor Elliot, foi... um pouco precipitado - disse Randolph, no tom seco do director. Mas havia fogo nos seus olhos.

- Han!... Estou aqui à espera de dois dos nossos homens, vindos do Novo México. Espero dar-lhes o cargo de que o destituí. Eu disse a Mr. Bennet, o comerciante, para o informar desta mudança.

- Sim, Bennet disse-me que o senhor me despediu. E Mr. Endicott também o corroborou.

Endicott acenou em resposta ao olhar interrogador do doutor, mas não falou. Janey viu um reflexo nos olhos do pai. Ele iria dizer qualquer coisa.

- Randolph, lamento muito ter de o despedir - continuou Elliot, melífluamente. - Não há necessidade de repetir as minhas razões. Você foi avisado várias vezes.

- Doutor Elliot, não precisa de preocupar-se com aquilo que o senhor considera o seu dever - acrescentou Randolph. - Isso certamente que não me preocupa. De facto foi a única coisa afortunada que me aconteceu desde que estou ligado ao Museu.

- Na verdade. Desculpe-me se não consigo ver alguma boa fortuna nisso para si - replicou Elliot, sufocado.

- O senhor nunca pôde ver muito a meu respeito. Talvez veja quando eu lhe disser que «depois» de me despedir descobri Beckyshibeta.

- O quê! - exclamou Elliot, incrédulo.

- Eu descobri Beckyshibeta - repetiu: Randolph impetuosamente, a verdade estampada na sua cara pálida e nos olhos penetrantes. - Provavelmente a maior de todas as ruínas de «pueblos». Tenho testemunhas. Mr. Endicott e sua filha podem apoiar a minha afirmação. Bennet, os cow-boys e Mrs. Durland com seu filho, estavam lá todos.

Sem dizer palavra o doutor Elliot voltou-se para Endicott para que este corroborasse essa dissertação assombrosa.

- De facto - disse Endicott, com brevidade. - Estou para telegrafar ao doutor Bushnell, chefe do museu. E também a Jackson, um bom amigo meu. Quero que eles saibam que eu vou apoiar Randolph. Resta ser decidido se nós vamos deixar o Museu continuar as escavações.

- Doutor Bushnell! Jackson! - exclamou Elliot, francamente. - Posso perguntar... o senhor é Mr. Elijah Endicott?

- O próprio, senhor - volveu Endicott, inclinando-se e deixou abruptamente o director, atónito, para ir ter com Janey perto do fogão.

- Janey, minha velha, viste aquilo? - murmurou. - Estou simplesmente divertido ao máximo, como tu dizes... Agora escuta Phil a arrefecê-lo.

O doutor Elliot parecia estar no meio de grande consternação e espanto.

- Ah! Sim!... Então é verdade - começou, esforçando-se por se dominar. - Muito notável. Incrível, devo dizer. Mas, claro, compreende... é um facto. Teve muita sorte, Randolph, com a sua descoberta e em ter alcançado o interesse de Elijah Endicott. Felicito-o... E eu... ou... hem... talvez tenha sido eu quem tenha previsto qualquer coisa. Peço-lhe que esqueça a sua demissão tão precipitada. Realmente ela não foi autêntica... feita através de um terceiro. Qualquer coisa de irregular. Podemos solucionar o assunto amigavelmente. De facto eu... eu considero um favor se você não mencionar o assunto ao Departamento de Nova Iorque.

- Eu aceitei a minha demissão, doutor Elliot, obrigado, e vou telegrafar ao Museu para esse efeito. - replicou Randolph, com fria dignidade, e afastando-se.

O director parecia um homem ofuscado, derrotado e assustado.

- Olha, não foi formidável o Phil, Janey? - apregoou Endicott, com alegre orgulho. - Que golpe para ele! Isto vai custar o emprego a Elliot. E por Deus, prevejo que ele vai ser oferecido a Randolph.

- Papá, gostas muito de Philip, não gostas? - perguntou Janey, suavemente.

- Adoro-o, minha jóia. E podes apostar que eu o farei ganhar uma fortuna.

- Tu és muito bom e amável. Estou contente por ti,., por tu te interessares por ele - respondeu Janey, e voltou-se para olhar para o fogo. - É pena que tu... que Phil... que eu... Oh, as palavras são ociosas e inúteis.

- Janey, minha querida, precisamente agora lembraste-me a tua mãe - disse-lhe o pai, comovido. - Há muito tempo que tu não ma lembravas.

- A mãe?... Estou contente, papá. Talvez... depois disto... desta tua lição eu passe a parecer-me mais com ela.

- Janey - murmurou Endicott, curvando-se para ela - queres dizer que vais continuar com este casamento cruel e...

- Sim - volveu ela, baixando os olhos.

- Isso matará Philip.

- Que disparate. Os homens não morrem de amor.

- Se a tua mãe me tivesse conduzido ao altar... e me tivesse deixado depois... eu, seguramente não teria podido continuar a viver.

- Philip Randolph é feito de uma massa mais dura. Além de que ele tem um brilhante futuro à sua frente... Agora estou cansada, papá, e tenho muita fome.

A luz do sol entrava pela janela de Janey, dizendo-lhe que ela tinha dormido até tarde, embora aquele fosse o dia mais maravilhoso da sua vida, o dia, entre os dias. Ela esteve estendida observando as sombras douradas na cortina, apercebendo-se do ar fresco e seco na cara. O seu cérebro activo pegou no desenvolvimento dos seus planos precisamente onde ela os tinha deixado na noite anterior. Seu pai tinha reservado um salão Pullman no comboio Limited. A reserva deste ou pelo menos de um compartimento no comboio era de importância fundamental. Só mais um detalhe a arranjar... o elo mais forte da cadeia do seu climas.

Janey levantou-se, consciente da sua excitação interior e da sua expectativa. Afinal, ela não podia estar certa de nada até que fosse a mulher de Philip. Isso seria a consumação das esperanças, o desaparecimento dos receios. O resto seria como o desenrolar de uma boa peça.

Olhou pela janela. Como o céu estava azul! Os picos das montanhas erguiam-se como escuras lanças. Pinceladas de neve brilhavam à luz do sol, correndo para o limite do vasto cinto verde de floresta. Ela podia ver até aos campos que rodeavam a cidade. Cavalos passeavam com as crinas ao vento; gado avermelhado e branco pastava numa colina relvada, os pinheiros dispersos pareciam convidá-la a cavalgar por entre eles. Vagueou o olhar por cima do arvoredo para as distantes colinas e daqui para o deserto enevoado. Arizona! Não havia lugar no mundo tão cheio de romance e beleza e de coisas naturais que excitam a alma. Janey foi para a pequena sala do hotel, onde seu pai estava sentado junto do acolhedor fogão, lendo o jornal.

- Que noiva tão mandriona! - disse ele, bem humorado. - Já tomámos o pequeno almoço há muito tempo.

- Bom dia, papá - disse Janey. - Creio que vou tomar uma chávena de café e uma torrada aqui mesmo.

- Estás com um muito belo e encantador parecer para uma futura assassina - disse ele. - Janey, minha querida, desisto de tentar compreender as mulheres.

- Belo! Agora tu serás o melhor dos pais. Onde está Phil?

- Esteve aqui, há um momento, com a licença de casamento. Deus, como ele está engraçado! Parece um sonâmbulo! Marquei uma entrevista às dez horas com um pastor... Dr. Cardwell. Tipo simpático. É de Connecticut. Veio para aqui há anos, doente dos pulmões. Teria morrido se continuasse no Leste. Mas está são e salvo, agora. Digo-te, Janey, este Arizonazinho, como Bennet lhe chama, é uma região maravilhosa.

- Arizona. Maduro, dourado, revigorante, belo, purificado pelo vento do deserto - murmurou Janey, olhando para o fogo. - Agora já lhe posso dizer o que ele fez por mim.

- Vou buscar-te o café e a torrada - volveu Endicott, com alacridade.

Alguns momentos passaram, com Janey a meditar. Seu pai voltou, trazendo um pequeno tabuleiro. Randolph entrou. Trazia um fato escuro que lhe realçava a figura. Janey admirou-lhe outra vez a face bem barbeada e queimada pelo sol, magra e forte.

- Bom dia, Miss Endicott - disse com cortesia, mas o seu olhar calmo fez Janey quase sentir-se inquieta. Olhou-o por cima da chávena de café.

- Olá, Phil. Os cavalos estão prontos?

- Não - disparou ele. - Mas o táxi está.

Janey riu, já recomposta. Que pressa ele tinha de acabar com aquele horrível negócio!

- Papá, disseste que o nosso comboio partia às sete e qualquer coisa, não foi?

- Às sete e dez. É o «Limited» e vem sempre à tabela - replicou ele.

- Tanto tempo à espera! Eu desejaria, por causa de Mr. Randolph, que fosse algumas horas mais cedo.

- Não te preocupes com Philip, querida - volveu Endicott. - Temos bastante que conversar e não te aborreceremos.

- Obrigada... Vou arranjar as minhas coisas e estarei de volta num instante - disse Janey, dirigindo-se para o seu quarto.

Randolph mostrava-se abatido pela tensão nervosa. Janey pensou que seria ajuizado para ela vê-lo o menos possível, depois do casamento até à hora do comboio. Sentia-se nervosa, ela própria. Faltavam poucos minutos para as dez horas. Pôs o chapéu e o casaco, e um véu, que arranjou cuidadosamente. Como estava branca a sua cara e enormes os seus olhos! Apressou-se a ir ao encontro dos cavalheiros que se levantaram quando ela entrou.

- Estou pronta - disse, um pouco trémula. - Está... tudo arranjado?

- Sim, tenho a certeza - volveu o pai, virando-se para Randolph - Não era muita coisa. Pastor, licença, táxi. Que mais?

- Mr. Randolph, comprou o anel de noivado?

-Não - replicou ele, com o mais estranho dos olhares. - Então deve fazê-lo ainda. Irei consigo. Há certamente uma joalharia, por aqui.

- Eu tenho um anel de noivado. Era da minha mãe. Suponho que não interessa se lhe serve ou não.

- Ah! Não? Isso é o que você julga - disse Janey. As mãos tremiam-lhe ao pô-lo. - Oh!, está perfeito... Que belo anel! Eu prefiro os anéis de noivado antigos, como este.

- E casamentos à antiga, também - acrescentou o pai. - Meu Deus, Janey, sempre receei que tu fizesses um desses espaventosos casamentos. Salvei-me de boa. Vamos. Isto vai acabar num instante.

Conduziu-a pela escada, através da sala de espera e até um táxi. Randolph tinha evidentemente parado por causa de qualquer coisa. Agora ele aí vinha e, esgueirando-se para o táxi, pôs qualquer coisa nos joelhos de Janey sem dizer uma palavra. Ela levantou a ponta do véu e abriu o pacote que estava no seu colo. Flores! Então ela estremeceu. O pequeno ramo era composto de ramos de cedro e folhagem de zimbro, com as suas bagas verdes e azul alfazema, diversas rosas selvagens, e uma vergôntea de salva com as suas esquisitas e raras flores purpúreas. Janey estava tão profundamente tocada, que não podia falar e rapidamente baixou a ponta do véu antes que Philip visse a ruína que estes doces símbolos do deserto lhe tinham provocado.

O caminho curto, a cerimónia breve e simples, e a volta para o hotel foram como momentos de arrebatamento para Janey. Ela não trocaria a simplicidade do seu casamento por toda a pompa da realeza.

Uma vez mais, a salva no seu quarto, ela pôs de lado o «bouquet», tirou as luvas, rasgou o véu e atirou o chapéu e o casaco. E não reconheceu no espelho a sua cara. Janey nunca se tinha deslumbrado com a sua aparência, mas agora fazia-o.

- Está acabado. Sou a mulher dele - murmurou, beijando o delicado aro de ouro do seu dedo. - Agora! Agora estou salva... e oh, tão inconcebivelmente feliz!...

Como posso esperar para lhe dizer? Suponhamos que ele foge para o seu deserto antes que eu possa!... Oh!, o meu palpitante coração!

Janey, na exaltação daquela hora, chorava. Demorou bastante tempo até que se recompusesse, e então ela recobrou o ânimo como nunca. Ninguém adivinharia que ela tinha chorado como uma rapariga arrebatada de alegria.

O pai bateu-lhe à porta e chamou-a:

- Janey, encomendámos um almoço fora num restaurante. Vens?

- Claro. Apenas um minuto, papá e vou ter convosco. - Dispensou o véu, desta vez. Deixá-los ficarem enganados com a animação da sua cara e a luz dos seus olhos! Eles eram apenas homens que nada sabiam da maravilhosa força e generosidade de um coração de mulher. Então foi ter com eles.

- Palavra, Janey, estás estupenda! - exclamou Endicott, com consciente orgulho.

Randolph pasmou ao vê-la, como se ela fosse uma imagem de pedra impenetrável, escondendo a verdade da mulher. Não obstante, uma vez sentados à mesa, o constrangimento desapareceu, e gozaram o esplêndido almoço.

- Bem, isto foi óptimo - disse Endicott, satisfeito. - Agora, Janey, nós vamos levar-te ao hotel, onde Phil e eu devemos ter uma conferência importante sobre os planos de trabalho em Beckyshibeta.

- Não ficarei sozinha. Vou visitar os armazéns... e procurar cow-boys - replicou Janey, gaiata.

- Encontrarás cow-boys em todas as esquinas - respondeu Endicott. - Tem cuidado, Janey - troçou ele.

- Espera, papá, por favor - replicou Janey, agarrando-o por uma manga. - Tenho qualquer coisa a dizer-te e... ao meu marido.

Randolph estremeceu com o emprego daquela palavra, pela primeira vez entre eles. Endicott deixou-se cair na sua cadeira, seguro de uma catástrofe.

Janey trespassou-os com um olhar onde perpassou longamente o ressentimento e a dor misturados agora com alguma emoção que eles não podiam nomear.

- Cavalheiros, lembram-se de uma tarde passada no posto comercial de Bennet, quando planearam raptar-me?

Randolph olhou-a estupefacto e Endicott engoliu.

- Não. Não posso dizer se me lembro.

- Emprega a tua memória, papá - continuou Janey, secamente. - Nunca foi boa. Mas esta é uma ocasião especial.

Randolph tossiu desassossegado.

- Eu lembro-me, Miss Endicott.

- Já não sou Miss Endicott - corrigiu Janey.

- Perdão, Mrs. Randolph - corrigiu-se ele trocista.

- Papá, eu estava a descansar estendida na rede ao lado da janela aberta, quando tu fizeste a tua infame oferta a Phil Randolph - disse Janey.

- Meu Deus, não! - gritou o pai, estupefacto. - Não te acredito.

- Escuta. Vais acreditar nas tuas próprias palavras - replicou Janey e continuou a repetir muitas coisas que lhe tinham ficado indelevelmente gravadas na memória.

- Já basta - interrompeu-a o pai, de súbito, com a cara muito vermelha, - Posso ver perfeitamente que estavas lá.

- Você sempre soube! - exclamou Randolph, olhos esbugalhados e muito envergonhado.

- Sempre - replicou Janey, sorrindo-lhes.

- Deus me salve de ter outra filha - rompeu Endicott, com um ar muito desamparado.

- Partirei agora - acrescentou Janey, levantando-se. - Obrigada pelo almoço. Lembrá-lo-ei... Papá, nós vamos jantar no comboio... Vai ao comboio connosco para nos dizer adeus, Mr. Randolph? Por favor. Parecerá melhor. Deverei lembrar-lhe...

- Não, não precisa de me lembrar nada - interrompeu Randolph, quase violentamente, com uma sombria e apaixonada dor e censura no olhar. - Estarei no comboio para dizer... adeus... à minha mulher... para sempre.

- Ah... Muito obrigada. Então está tudo bem - replicou Janey, desviando o olhar. - «Adiós»... até lá.

Como ela deslizasse, afastando-se deles, ao sair do restaurante, ouviu ainda seu pai dizer:

- Phil, meu Deus... preciso de uma bebida.

A resposta de Randolph seguiu-se com o súbito arrastar da cadeira.

- Eli, seu velho vilão, eu preciso de duas - disse ele, fracamente. - E nós vamos beber a tudo aquilo que me resta... Beckyshibeta.

Janey saiu dali, nervosa, ruborizada, ardente. Tudo aquilo trazia-lhe ainda mais divertimento e satisfação do que ela previra. Que espantado tinha ficado seu pai! E ela tinha só arriscado um olhar para o abalado Randolph. «Você soube sempre!» - gritara ele. Janey reflectiu que ao voltar a si, ele lembraria muitas coisas que a deviam embaraçar. Mas ela tomaria cuidado para que ele nunca se curasse do amor que tinha por ela. Então foi fazer algumas pequenas tarefas necessárias para assegurar um futuro venturoso a Randolph.

Primeiro contratou o porteiro do hotel para que levasse a mala de Randolph para o comboio juntamente com as dela e as do pai. Ela vincou bem ao esperto rapaz - assim como o remunerou bem - que Randolph não desse por essa mudança da sua bagagem. A seguir foi procurar alguns cow-boys.

Mas ainda não se tinha metido nesta aventura e já lhe compreendia o seu absurdo e risco, para não considerar o embaraço. Era um sábado à tarde ainda cedo. Flagerstown estava cheia de cow-boys os quais, com certeza, davam pela sua presença quando ela passava na rua. Finalmente, perto dos correios, Janey localizou três cow-boys, muito típicos, parados ao pé de um cartaz de cinema que embelezava uma esquina do quarteirão. Devia ser um grupo ocioso, o que considerou talvez por os cow-boys estarem sós,

Janey passou devagar por eles, avaliando-os calmamente. Tal e qual como Mohave, Zoroaster, Ray! Os cow-boys todos se parecem uns com os outros. Janey esperava ser notada e comentada. Não ficou pois desapontada.

- Andy, viste o que eu vi? - rompeu um.

- Bem, creio que sim. E eu fiquei aturdido - foi a resposta.

- Que traço, companheiros - acrescentou o terceiro.

O encontro ordinariamente teria terminado aqui, mas estes cow-boys, ou alguns cow-boys, pelo menos, eram indispensáveis ao seu plano. Ela tinha de os ter. Ela estava preparada para ir até ao limite de lhes fazer olhinhos para atingir o seu fim. Pensando melhor, Janey decidiu passar por eles outra vez, rua abaixo, e então voltar, e pedir-lhes para entrarem no correio. Portanto ela voltou. Ao aproximar-se deles receou que estivesse a sorrir-se. Que sentimento terno ela sentia por estes cow-boys magros e de cara dura!

Ela passou com os ouvidos apurados, para apanhar os sussurros.

- Meu Deus... Andy, olha para as pernas dela! - rouquejou um. - As mulheres deviam ser presas por usarem as saias tão curtas.

- Só vi os olhos, mas eram uma maravilha - veio a resposta. - Minha pobre e pequena Susie! Já não a posso amar agora.

Janey não ouviu a observação do terceiro, e estava contente por a não ter ouvido. A sua cara escaldava. Que diabinhos atrevidos aqueles cow-boys! Então imediatamente o plano de Janey, no que lhes dizia respeito, começou a eclipsar-se. Mas ela não desistiria. Atravessando a rua entrou num armazém, fez algumas compras e, saindo, atravessou outra vez a rua, no outro extremo do quarteirão, e dirigiu-se para o correio. Ela pensava sem descanso. Se aqueles cow-boys a vissem e a seguissem até aos correios, ela arriscaria falar-lhes. A maior parte dos cow-boys eram cavalheirescos pelo coração, apesar de toda a sua rudeza e malícia.

Parecia só estarem dois homens nos correios. Um era feio e escuro, o outro pequeno e loiro. De repente Janey ficou pasmada. Ela reconheceu os atrevidos olhos pretos do gigante e os olhos matreiros e piscos do outro. Ela conhecia aqueles homens.

- Black Dick! Snitz! - exclamou, atónita. - Oh, estou muito contente de os encontrar.

- E eu também, Miss Endicott - replicou Dick, rindo abertamente, enquanto tirava o «sombrero» esfarrapado. - E Eu, Snitz?

- Eu? Nunca fiquei tão comovido na minha vida - disse Snitz, galante, e de cabeça descoberta. - E foi certamente bonito da sua parte falar-nos... depois do que lhe fizemos.

- Isso não tem importância. Mas vocês não têm medo de estarem na cidade? Não estão a correr o risco de serem presos?

- Bem, Miss, não que nós saibamos. Sabe, eu não sou exactamente o tipo que a menina pensa.

- Oh, então você não é Black Dick, o fora da Lei? - perguntou Janey, desapontada.

- Estou terrivelmente pesaroso, Miss, mas não sou. Palavra. O seu pai não lhe disse nada a nosso respeito?

- Meu pai! Não - replicou Janey, pensativa.

- Bem, com certeza ele deve ter dito. Porque ele contratou-nos, a mim e a Snitz para lhe pregarmos um susto.

- Ah, estou a ver... E não foi por distracção que vocês deixaram o saco das jóias de Mrs. Durland?

- Distracção? Eu não riria. Eu pendurei-o justamente numa árvore onde ela lhe iria dar com a cabeça.

- Bem! Bem! O meu papá é um ponto, não é?

- Se quer saber a minha opinião, Miss, penso que ele é um príncipe - replicou Dick, com todo o seu coração.

- Vocês serão sempre para mim o Black Dick e o Snitz. Mas estou na verdade contente por não serem realmente bandidos. Mas que peça vocês nos pregaram!

De súbito, um pensamento como um relâmpago, deslumbrou Janey, com o seu fulgor.

- Venham cá, os dois - murmurou ela, e puxou os dois homens risonhos da porta para um canto. Aqui eles estavam fora das vistas dos empregados dos correios. Mais ninguém tinha ainda entrado. Que sorte! Janey sentiu um borbulhar de tumultuoso sangue quente nas suas veias. - Vocês fazem-me um favor? Querem ganhar cinquenta dólares cada um? - Bem, Miss Endicott, a sua voz é música celestial - sussurrou Dick.

- Senhora, eu daria a minha vida por si, sem receber nada em troca - declarou Snitz.

- Escutem - começou Janey, apressadamente. - Já não sou Miss Endicott. Casei-me hoje com Mr. Randolph... Não vale a pena felicitarem-me. Oiçam. O meu pai e eu vamo-nos embora esta noite no «Limited». Mr. Randolph... meu marido... receio que ele não queira ir para o Leste comigo. Mas eu quero que ele vá. Eu quero-o, terrivelmente. Podem ajudar-me a raptá-lo?

- Bem, nós vamos atar esse maroto de coração gelado, e atirá-lo para o seu comboio - declarou Dick, os olhos rolando-lhe nas órbitas.

- Nunca ouvi nada assim - acrescentou Snitz, impetuosamente. - O safardana... cheio de sorte! Mas eles, os arqueólogos, são uns patinhos muito extravagantes. Senhora, certamente que nós vamos fazer qualquer coisa por si.

- Esplêndido. Podem arranjar um outro homem de confiança... um amigo... um que seja grande e forte? Randolph vai lutar.

- Claro. Conheço um tipo que é maior que uma colina. Ele pode atirar um barril de farinha direitinho para cima de um vagão. Creio que nós os três podemos pôr Randolph nesse comboio, em menos do que um abrir e fechar de olhos.

- Muito bem. Então está combinado - continuou Janey, agora calma e serena. - Aqui estão as vossas instruções. Vocês os três estarão na estação quando o «Limited» chegar. Conservem-se atentos à minha passagem. Eu estarei com meu pai e Mr. Randolph. Sigam-nos um pouco atrás... não muito perto... e quando nós alcançarmos o nosso «Pullman» vocês esperarão um pouco. Eu pararei, à entrada da carruagem, perto do salão. Esperarei até o revisor chamar para dentro do comboio. Quando eu subir esse será o sinal para agarrarem Randolph e o carregarem atrás de mim. Sejam rápidos. E não sejam gentis. Lembrem-se de que ele é forte e lutará. Quero que isto se passe tal e qual.

E Janey estalou os dedos.

- Senhora, repita as suas instruções - replicou Dick, cuidadoso.

Ela repetiu-lhes, palavra por palavra.

Black Dick levantou a sua cabeça negra e hirsuta.

- Tal e qual - disse ele, estalando os enormes dedos. - Senhora, é como se já estivesse feito.

- Então aqui está o vosso dinheiro de avanço - disse ela, entregando-lhes algumas notas. -Vocês não vão faltar-me?

- Eu desejava que a minha entrada no céu fosse tão certa - volveu Black Dick, fervorosamente.

- Senhora, escolheu uns cavalheiros para esta tarefa - acrescentou Snitz, com calor.

Ela deixou-os ali, pregados ao lugar, e saiu dos correios num estado de suprema ventura. Os deuses tinham-na favorecido. Subitamente viu os três cow-boys, não longe, em frente, expectantes. Tinham-na visto sair. Janey reprimiu um impulso primitivo de atravessar a rua no meio do quarteirão para não ter de passar por eles. Então, muito direita, com o queixo erguido, continuou e passou por eles, como se nunca os tivesse visto.

- Olha, Andy, não sentiste um vento frio passar por aqui? - perguntou um, desgostoso.

- Huh! Eu fui golpeado com uma forquilha de gelo - foi a resposta.

- Companheiros, ela é uma deusa, e eu gosto delas difíceis de ganhar - disse o terceiro.

Se eles pudessem ter visto a face congestionada e feliz de Janey quando alcançou a esquina, teriam muitas mais causas para se porem a divagar a respeito da espécie feminina.

A tarde passou como um sonho feliz. Janey passou a maior parte dela a pensar em coisas para dizer a Philip quando chegasse o momento da revelação. Mudou de ideias uma centena de vezes. Como poderia ela dizer-lhe o que lhe queria dizer! Mas cada momento que lhe trazia o climax mais perto, encontrava o estado de espírito de Janey mais intenso.

Tinha que dominar-se. Tinha que permanecer até ao fim. Quando o porteiro bateu ela saltou com o susto. -. Mr. Endicott está à espera - anunciou ele. - O «Limited» está na estação.

- Onde está... Mr. Randolph? - perguntou Janey, os lábios a tremerem-lhe.

- Está também à espera. Vou levar a vossa bagagem... «toda», imediatamente - replicou ele, e piscou-lhe o olho.

Janey vestiu apressadamente o casaco e pôs o chapéu, e esqueceu o véu. Que branca ela estava! Os seus olhos pareciam grandes e escuros golfos. Desceu. O pai parecia extremamente inconfortável. Randolph não tinha um vestígio de cor na cara. Ela juntou-se-lhes e seguiram em silêncio. Já estava escuro. Os candeeiros da rua estavam acesos. O ar tinha a friagem da montanha. Era o momento em que o «Limited» entrava na estação, abrandava o andamento, até parar, o vapor soprando, o apito silvando.

Era apenas uma pequena distância do hotel até à plataforma vasta, onde os «Pullmans» paravam. Janey tinha o olhar de um falcão e viu todos os grupos que ali estavam. Só ao ver Black Dick e os seus camaradas a sua tensão afrouxou. Que homem estupendo era o outro! Fazia Dick parecer pequeno. Janey percebeu que Dick a tinha visto, embora ele parecesse não a notar. Ele e os seus cúmplices conservaram-se fora da plataforma, onde Randolph estava esquecido deles. Na verdade ele parecia esquecido de tudo.

- Aqui está a nossa carruagem - falou Endicott, com esforço.

- Vê se o nosso salão é deste lado - replicou Janey, e ela subiu para olhar em volta. Isto fê-la defrontar Randolph. Por cima do ombro dele, ela viu os seus três cúmplices muito perto, e Black Dick observando. Ia ser um sucesso. Janey sentiu uma labareda dentro de si... um incêndio que tinha de ser sufocado.

O pai tocou-lhe no braço. Ele parecia miserável, abatido.

- O salão é deste lado. Eu vou entrar. Adeus, Phil.

E ele escapou-se. Janey chegou-se mais para Randolph, muito perto, e olhou para ele, sabendo que um cego podia ler nos seus olhos. Mas ele estava mais do que cego. Ela puxou-lhe por um botão do casaco, de olhos no chão, e então mergulhou os seus olhos nos dele outra vez.

- Philip, tenho pena. Prometa-me que nunca mais... nunca mais rapta outra rapariga.

- Oh, meu Deus! Eu fá-lo-ia já amanhã se eu soubesse que isso lhe ia fazer mal - rouquejou ele.

O apito soou, e o eco dele soou no coração de Janey.

- «Tudo para o comboio!» - gritou o condutor, em qualquer parte.

Janey voltou-se e correu para os degraus da carruagem, e virando-se, foi a tempo de ver três formas escuras e volumosas agarrarem Randolph e literalmente arremessarem-no pelos degraus para a plataforma. Janey correu para o corredor, trémula de agitação. Ouviu exclamações em voz alta, a luta dos corpos, o arrastar das botas.

Então os homens apareceram meio arrastando, meio carregando o furioso e agitado Randolph.

Janey fugiu para a porta do salão. Eles vinham aí.

- Dá-lhe um soco, Bill. Ele é um touro - disse Dick, baixo e duramente.

Janey ouviu um grande soco. A agitação cessou. Os homens vinham mais depressa. Eles quase que carregavam Randolph. O coração de Janey saltou-lhe à garganta.

- Aq...ui - abafou ela, permanecendo ao lado deles.

Eles conduziram Randolph para o salão, e desapareceram em direcção à saída. Black Dick voltou-se, os seus olhos grandes e pretos rolando alegremente. Então foi-se embora. O comboio partiu... momento em cheio. Lá fora o porteiro estava a gritar. Ele fechou com violência as portas do compartimento e veio correndo.

- Minha senhora... o que se passa? - perguntou, alarmado. - Três homens deitaram-me por terra. Eu não pude fazer... nada.

- Está tudo bem - replicou Janey. - O meu... o meu marido teve que ser ajudado no comboio.

- Ah, agora, eu assustei-me.

O pai de Janey apareceu, vindo do corredor.

- O que era aquela algazarra? - perguntou nervoso. Janey barrou a porta do salão.

- Papá... eu acabo de raptar Philip - disse ela, muito baixo e claro. Endicott levantou as mãos.

- «Holy Mackali!» - suspirou.

Janey fechou e aferrolhou a porta. O salão estava escuro. Abriu a luz. Randolph estava a respirar com dificuldade. Ele ficara ofuscado, senão mesmo atordoado. Havia sujidade na sua cara e um pouco de sangue. A nódoa negra que Ray lhe fizera num dos olhos e que ainda não tinha desaparecido completamente, tinha sido contundida outra vez. Janey precipitou-se a ir molhar o seu lencinho. Ela limpou-lhe a cara... banhou-lhe a fronte. Ela dissera àquele rufião do Dick para não ser gentil. O remorso sacudiu-a. De repente ela tocou na cara de Randolph.

Ele olhava-a, com olhos que pareciam ir saltar-lhe das órbitas. Agarrou-a com mãos trémulas. Ele pasmou para a janela da carruagem e para as luzes que passavam, Então pareceu compreender o que tinha acontecido.

- Eles arremessaram-me para o comboio - rompeu ele, incrédulo.

Janey levantou-se e chegou-se a ele.

- Você... você...

- Sim, eu raptei-te - interrompeu-o ela.

- Meu Deus!... Janey, você pôde levar a sua vingança tão longe? Oh, como é cruel! Mulher sem piedade!

Ele caiu com a cara enterrada na almofada,

- Philip - chamou ela, tentando dominar as mãos trementes que saltavam para ele.

Enquanto ele não olhou ou falou, ela continuou docemente :

- Phil.

Nenhuma resposta. A cabeça dela moveu-se até ao ombro dele.

- Marido!

Ao ouvir isto, a sua cara pálida ergueu-se e os seus olhos terríveis abriram-se como os de um homem que não acreditava no que via.

- Eu raptei-te... sim... sim... «para sempre»!

Ele caiu de joelhos para agarrar a blusa dela, com mãos enclavinhadas.

- Janey se eu não estou embriagado ou louco... explica-me - implorou.

Ela colocou-lhe as mãos por trás da cabeça. - Na verdade tu és difícil de convencer. Não estamos casados? Não és tu meu prisioneiro neste comboio? Não é esta a noite da nossa lua de mel?

- É demasiado bom... para ser verdade - replicou ele, em voz rouca. - Não posso acreditar nisso.

Ela beijou a nódoa negra na sua fronte.

- Acreditas?

- Não!

Ela beijou-lhe os olhos, a cara, e por último, como ele parecia arrebatado e cego, os lábios. -Philip, amo-te - disse.

- Oh, minha querida, diz-mo outra vez!

- Amo-te. Amo-te. Amo-te... Foi o que tu me fizeste. Oh! Eu confesso. Eu merecia-o. Eu não era boa... e se não sou agora má, eu estava a ser encaminhada para o mal...

Oh, Philip, tu «espancaste-me», espancaste qualquer coisa em mim a tempo, e o teu deserto modificou-me e ganhou-me. Bendigo-te por teres feito de mim uma mulher. Eu desistirei do que era uma vida sem utilidade, ociosa, dissipadora... e trabalharei contigo... para ti... construirei um lar para ti... Esquece esta pequena e última fraude. Oh, devias ter visto a cara do papá... Beija-me!... Vem, vamos dizer-lhe que eu sou a tua Beckyshibeta.

 

                                                                                 Zane Grey  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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