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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRESENTE DA ÁGUIA / Carlos Castañeda
O PRESENTE DA ÁGUIA / Carlos Castañeda

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PRESENTE DA ÁGUIA

 

Embora eu seja antropólogo, este não é um trabalho de mera antropologia; ainda assim baseia-se nela, pois foi iniciado há anos atrás como uma pesquisa de campo antropológica. Eu estava inte­ressado, na época, em estudar os usos das plantas medicinais entre os indígenas do sudoeste e do norte do México.

Minha pesquisa evoluiu para outra área com o passar dos anos, como conseqüência de seu próprio momento e do meu próprio desen­volvimento. O estudo das plantas medicinais deu lugar ao estudo de um sistema de crenças que parecia atravessar as fronteiras de, pelo menos, duas culturas diferentes.

A pessoa responsável por essa mudança de enfoque do meu trabalho foi um índio Yaqui do norte do México, Dom Juan Matus, que mais tarde me apresentou a Dom Genaro Flores, um índio Mazatec do México central. Ambos eram praticantes de uma ciência antiga, que em nossa época é comumente denominada feitiçaria, sendo considerada uma forma primitiva de ciência médica ou psicológica, mas que na verdade é uma tradição de praticantes extremamente autodisciplinares e de uma práxis extremamente sofisticada.

Os dois homens passaram a ser mais meus mestres que informan­tes, mas continuei a ver minha tarefa como um trabalho de antropo­logia. Passei anos tentando descobrir a matriz cultural daquele sistema, a aperfeiçoar uma taxinomia, um esquema classificatório, uma hipóte­se de sua origem e disseminação. Todos os esforços foram vãos, pois, no final, as forças compulsórias inerentes àquele sistema desviaram minha busca intelectual e me levaram a ser um participante.

Sob a influência daqueles dois homens poderosos meu trabalho transformou-se numa autobiografia, no sentido de que eu fui forçado, do momento em que me tomei um participante, a registrar o que me acontecia. É uma biografia peculiar porque não registro o que acon­tece comigo na minha vida diária como um homem padrão, nem registro meu estado subjetivo proveniente do todo dia. Registro os acontecimentos que se dão na minha vida como um resultado direto de ter adotado um conjunto estranho de idéias e procedimentos inter­ligados. Em outras palavras, o sistema de crenças que eu queria estu­dar apoderou-se de mim, e a fim de que eu prossiga em minhas observações devo uma extraordinária paga diária, minha vida como um homem pertencente a este mundo.

Devido a essas circunstâncias vejo-me agora com o problema especial de ter de explicar o que estou fazendo. Estou muito longe do meu ponto de origem como homem padrão ocidental ou como antropólogo, e devo em primeiro lugar reiterar que este trabalho não é uma ficção. O que vou descrever é estranho para nós, portanto parece irreal.

À medida que me aprofundo nos detalhes da feitiçaria, o que a princípio parecia ser um sistema de crenças e práticas primitivas torna-se então um mundo enorme e complexo. A fim de me tornar familiarizado com esse mundo, e registrá-lo, tenho de me usar de maneiras cada vez mais complexas e mais refinadas. O que quer que me venha a acontecer não pode ser previsto por mim, ou ser congruen­te com o que os outros antropólogos conhecem sobre os sistemas de crenças dos índios mexicanos. Conseqüentemente estou numa posição difícil; tudo o que posso fazer nessas circunstâncias é registrar o que acontece comigo à medida que vai acontecendo. Não posso dar ne­nhuma outra asseveração da minha boa fé, a não ser reassegurar que não vivo uma vida dupla e que me comprometi a seguir os princí­pios do sistema de Dom Juan na minha existência diária.

Depois que Dom Juan Matus e Dom Genaro Flores, os dois feiticeiros indígenas Mexicanos que me instruíram, explicaram-me toda sua ciência até se satisfazerem, despediram-se de mim e partiram. Compreendi que daquele momento em diante minha tarefa era juntar por mim mesmo tudo o que tinha aprendido deles.

No decurso do empreendimento dessa tarefa voltei para o México e descobri que Dom Juan e Dom Genaro tinham nove outros apren­dizes de feitiçaria: cinco mulheres e quatro homens. A mulher mais velha chamava-se Soledad, a outra era Maria Elena, apelidada de “ia Gorda”, e as restantes, Lydia, Rosa e Josefina, que eram mais novas, eram chamadas de “as irmãzinhas”. Os quatro homens, por ordem de idade, eram Eligio, Benigno, Nestor e Pablito; os três últimos eram chamados de “os Genaros” por serem muito íntimos de Dom Genaro.

Já tinha sabido que Nestor, Pablito e Eligio, este último já não andava mais por lá, eram aprendizes. Mas fui levado a crer que as quatro moças eram irmãs de Pablito, e que Soledad era a mãe delas. Conhecia Soledad ligeiramente há anos, e sempre a tinha chamado de Dona Soledad, como sinal de respeito, já que ela tinha a idade aproximada de Dom Juan. Lydia e Rosa também me tinham sido apresentadas, mas nosso relacionamento fora muito rápido c casual para que eu pudesse compreender o que elas na realidade eram. Conhecia la Gorda e Josefina só de nome. Tinha também conhecido Benigno, mas não tinha idéia de que ele fosse relacionado com Dom Juan e Dom Genaro.

Por motivos que não podia compreender, todos eles pareciam estar esperando, de uma forma ou de outra, que eu voltasse para o México. Informaram-me que eu deveria tomar o lugar de Dom Juan como o seu líder, o seu nagual. Disseram-me que Dom Juan e Dom Genaro tinham desaparecido da face da terra, assim como Eligio. As mulheres e os homens acreditavam que os três não tinham morrido — tinham entrado no outro mundo, diferentes do mundo de nossa vida diária, e ao mesmo tempo igualmente real.

As mulheres, especialmente Dona Soledad, incompatibilizaram-se violentamente comigo desde nosso primeiro encontro. Elas eram, contudo, um instrumental que me produzia uma catarse. Meu contato com elas resultou numa misteriosa efervescência em minha vida. Do momento em que as encontrei ocorreram mudanças drásticas no meu pensamento e na minha compreensão. Nada disso porém aconteceu num nível consciente — depois da minha primeira visita a elas me vi mais confuso que nunca, e ainda assim, no meio do caos, encontrei uma base surpreendentemente sólida. No impacto de nossa incompa­tibilidade encontrei em mim mesmo recursos que não imaginava possuir.

La Gorda e as três irmãzinhas eram sonhadoras consumadas; me davam voluntariamente as “dicas” e me mostravam suas meras reali­zações. Dom Juan tinha descrito a arte de sonhar como a capacidade de utilizar os sonhos comuns da pessoa e transformá-los numa cons­cientização controlada, em virtude de uma forma especializada de atenção, que ele e Dom Genaro chamavam de “a segunda atenção”.

Eu esperava que os três Genaros fossem me ensinar suas realiza­ções sob um aspecto diferente dos ensinamentos de Dom Juan e Dom Genaro, “a arte de espreitar”. A arte de espreitar me foi apresentada como um conjunto de procedimentos e atitudes que permitiam à pessoa conseguir tirar o melhor proveito possível de qualquer situação con­cebível. Mas nada do que os três Genaros me falaram sobre espreitar teve a coesão ou a força que eu imaginara de antemão. Concluí que ou os homens não eram na realidade praticantes daquela arte ou eles simplesmente não queriam discutir ou mostrar nada a mim naquela época.

Parei com minhas perguntas a fim de dar uma oportunidade a todos de se sentirem à vontade comigo, mas todos os homens e mulheres se sentaram e acreditaram que do momento em que eu não fazia mais perguntas estava finalmente me comportando como um nagual. Todos eles me pediram resolutamente conselhos e uma liderança.

Para que pudesse assentir ao pedido deles fui forçado a fazer uma revisão completa de tudo o que Dom Juan e Dom Genaro me tinham ensinado, a aprofundar-me ainda mais na arte da feitiçaria.

 

 

                 O OUTRO EU

                 A Fixação da Segunda Atenção

Era tarde quando cheguei ao local onde moravam la Gorda e as três irmãzinhas. La Gorda estava sozinha, sentada do lado de fora da porta, olhando vagamente para as montanhas distantes. Ficou chocada ao me ver. Explicou que tinha estado completamente absorta por uma lembrança, e que por um instante quase se lembrara de alguma coisa muito vaga com relação a mim.

Mais tarde naquela noite, depois do jantar, la Gorda, as três irmãzinhas, os três Genaros e eu Sentamo-nos no chão da sala de la Gorda. As mulheres sentaram-se juntas.

Por alguma razão, embora eu tivesse estado com cada um deles durante o mesmo tempo, tinha destacado la Gorda como o objeto de meu interesse. Era como se os outros não existissem para mim. Imaginei que talvez fosse porque ela me fizesse lembrar de Dom Juan, enquanto que os outros não. Havia qualquer coisa de muito fácil nela, embora essa facilidade não se demonstrasse tanto nas suas ações quanto nos meus sentimentos por ela.

Eles queriam saber o que eu andava fazendo. Eu lhes disse que tinha acabado de vir da cidade de Tula, Hidalgo, onde tinha ido visitar umas ruínas arqueológicas. Tinha ficado muito impressionado com uma fileira de quatro figuras de pedra colossais, em forma de coluna, chamadas Atlantas, que ficavam na parte plana do topo da pirâmide.

Cada uma das figuras quase circulares, medindo quatro metros e meio de altura e noventa centímetros de diâmetro, é feita de quatro peças separadas de basalto esculpido, representando o que os arqueó­logos pensam ser guerreiros Toltec carregando sua parafernália de guerra. Seis metros atrás de cada uma das figuras da frente, na parte plana do topo daquela pirâmide, há outra fileira de quatro colunas mais finas e retangulares, da mesma altura e largura das primeiras, também feitas de quatro peças separadas de pedra.

O conjunto admirável das Atlantas foi realçado pelo que um amigo que me guiara até lá tinha cantado sobre elas. Disse que um encarregado das ruínas tinha lhe revelado que as Atlantas eram ouvi­das durante a noite caminhando, fazendo que o solo tremesse.

Pedi aos Genaros que comentassem sobre o que o meu amigo me contara. Eles ficaram encabulados e deram umas risadinhas. Virei-me para la Gorda, que estava sentada a meu lado, e pedi a sua opinião diretamente.

— Nunca vi essas figuras — disse ela. — Nunca fui a Tula. Só de pensar em ir àquela cidade me dá medo.

— Por que lhe dá medo, Gorda? — perguntei.

— Uma coisa me aconteceu nas ruínas de Monte Alban, em Oaxaca — disse ela. — Eu costumava passear naquelas ruínas mesmo depois do nagual Juan Matus ter me dito para não pôr os pés lá. Não sei por que mas gostava muito daquele lugar. Toda vez que ia a Oaxaca, ia lá. Pelo fato de mulheres sozinhas serem sempre impor­tunadas, eu geralmente ia com Pablito, que é muito corajoso. Mas uma vez fui lá com Nestor. Ele viu um brilho no chão. Cavamos um pouco e encontramos uma pedra estranha que cabia na palma da minha mão, com um buraco quase atravessando a pedra de ponta a ponta. Tive vontade de enfiar o dedo no buraco, mas Nestor não deixou. A pedra era macia e minha mão ficou muito quente. Não sabíamos o que fazer com ela. Nestor a pôs dentro do chapéu e nós a carregamos como se fosse um animal vivo.

Todos começaram a rir. Parecia haver uma piada velada no que la Gorda estava me contando.

— Para onde você a levou? — perguntei.

— Trouxe-a aqui para casa — respondeu, fazendo com que os outros rissem muito e tossissem.

— A piada é a própria la Gorda — disse Nestor. — Você tem de compreender que ela é a maior cabeça-dura que existe. O nagual já lhe tinha dito que não brincasse com pedras, ossos ou qualquer outra coisa que encontrasse enterrada no chão. Mas ela costumava se esgueirar por trás das suas costas e apanhar todo o tipo de porcaria.

— Naquele dia em Oaxaca ela insistiu em carregar aquele nego­cio horrível. Entramos no ônibus com a coisa e trouxemo-la até essa cidade, e depois até a sala.

— O nagual e Genaro tinham ido viajar — disse la Gorda. — Eu criei coragem, enfiei meu dedo no buraco e percebi que a pedra tinha sido cortada para caber na mão. Imediatamente pude sentir o que a pessoa que tinha tido aquela pedra na mão sentia. Era uma pedra poderosa. Meu humor mudou. Fiquei amedrontada. Uma coisa esquisita começou a mover-se no escuro, uma coisa sem forma e sem cor. Não conseguia ficar sozinha. Acordava gritando, e depois de uns dois dias não consegui dormir. Todos se revezaram para me fazer companhia, dia e noite.

— Quando o nagual e Genaro voltaram — disse Nestor — o nagual mandou Genaro ir comigo colocar a pedra no exato lugar onde ela tinha sido enterrada. Genaro trabalhou três dias para loca­lizar o lugar, e conseguiu.

— O que aconteceu com você depois disso, la Gorda? — per­guntei.

— O nagual me enterrou — disse ela. — Fiquei nua durante nove dias dentro de um caixão sujo.

Houve uma outra explosão de risos entre eles.

— O nagual lhe disse que ela não podia sair de lá — explicou Nestor. — A pobre Gorda tinha de urinar e defecar dentro do caixão. O nagual empurrou-a para dentro de um caixote feito por ele de galhos e lama. Havia uma portinha do lado para se passar comida e água. O resto era todo selado.

— Por que ele a enterrou? — perguntei.

— Esse é o único meio de proteger alguém — falou Nestor. — Ela tinha de ser posta debaixo da terra para que a terra a curasse. Não há cura melhor que a terra; além disso o nagual teve de desviar o sentimento daquela pedra, que estava focalizado na Gorda. A sujei­ra é uma tela que não permite que nada passe para um lado ou para outro. O nagual sabia que ela não podia piorar ficando enterrada durante nove dias, só podia melhorar. E melhorou.

— Como você se sentiu enterrada, la Gorda? — perguntei.

— Quase fiquei maluca — disse ela. — Mas tive de ser condes­cendente. Se o nagual não tivesse me colocado lá eu teria morrido. O poder daquela pedra era grande demais para mim; o dono dela tinha sido um homem muito grande. Eu sabia que a mão dele era o dobro da minha. Ele se prendeu àquela pedra para ter vida e no final alguém o matou. O medo dele me apavorou. Podia sentir uma coisa vindo até mim para comer minha carne. Era aquilo o que o homem sentia. Ele era um homem poderoso, mas alguém mais pode­roso acabou com ele. O nagual disse que quando se tem um objeto desses ele causa um desastre, porque seu poder entra em desafio com outros objetos dessa espécie e o dono torna-se ou um perseguidor ou uma vítima. Falou que é próprio desses objetos estarem em guerra, porque a parte da nossa atenção que se prende a eles para lhes dar poder é uma parte muito perigosa e beligerante.

— La Gorda é muito voraz — disse Pablito. — Imaginou que se pudesse encontrar alguma coisa que já contivesse bastante poder seria uma vencedora, pois hoje em dia ninguém está interessado em desafiar o poder.

La Gorda assentiu com um movimento de cabeça.

— Eu não sabia que a pessoa captava outras coisas além do poder que os objetos têm — disse ela. — Quando pus meu dedo pela primeira vez no buraco e segurei a pedra minha mão ficou quente e meu braço começou a vibrar. Eu me senti verdadeiramente forte e grande. Sou dissimulada, de modo que ninguém soube que eu estava segurando a pedra. Depois de alguns dias de estar com ela na mão começou o horror real. Podia sentir que alguém tinha perse­guido o dono da pedra. Podia sentir o medo dele. Ele era sem dúvida um feiticeiro muito poderoso, e quem quer que estivesse atrás dele queria não só matá-lo como também comer a sua carne. Aquilo me apavorou realmente. Devia ter largado a pedra então, mas o senti­mento que estava tendo era tão novo que a apertei na mão como uma burra. Quando finalmente a soltei era tarde demais. Alguma coisa estava presa em mim. Tinha visões de homens que vinham para mim, vestidos com roupas estranhas. Senti que me mordiam, dilace­ravam a carne das minhas pernas com pequenas facas afiadas e com os dentes. Fiquei enlouquecida!

— Como Dom Juan explicou essas visões? — perguntei-lhe.

— Ele disse que ela não tinha mais defesas — falou Nestor. — E por isso podia captar a fixação daquele homem, sua segunda aten­ção que tinha sido passada para aquela pedra. Quando ele estava sendo morto segurou-se à pedra a fim de juntar toda sua concentra­ção. O nagual falou que o poder do homem passou do seu corpo para a pedra; ele sabia o que estava fazendo, não queria que seus inimigos se beneficiassem ao devorar sua carne. O nagual disse tam­bém que aqueles que o mataram sabiam disso, e por isso o estavam comendo vivo, para conseguir todo o poder que restava nele. Devem ter enterrado a pedra para evitar problemas. E la Gorda e eu, como dois idiotas, a encontramos e a desenterramos.

La Gorda sacudiu a cabeça em sinal de afirmação, por três ou quatro vezes. Ela tinha uma expressão muito séria.

— O nagual me contou que a segunda atenção é a coisa mais terrível que existe — disse ela. — Ela se focaliza em objetos e não há nada mais medonho.

— O que é horrível é que nos prendemos — disse Nestor. — O homem que possuía a pedra estava se prendendo à sua vida e ao seu poder, por isso estava horrorizado ao sentir que sua carne estava sendo comida. O nagual falou que se o homem tivesse soltado sua possessividade e tivesse aceitado sua morte, qualquer que fosse, não teria tido medo algum.

A conversa morreu. Perguntei aos outros se tinham alguma coisa a dizer. As irmãzinhas me olharam fixamente. Benigno deu uma risadinha e escondeu a cara com o chapéu.

— Pablito e eu estivemos nas pirâmides de Tula — disse ele finalmente. — Estivemos em todas as pirâmides que há no México. Nós gostamos delas.

— Por que vocês foram a todas as pirâmides? — perguntei-lhe.

— Realmente não sei por que fomos — disse ele. — Talvez pelo fato do nagual Juan Matus ter nos dito para não ir.

— E você, Pablito? — perguntei.

— Fui lá para aprender — respondeu com um ar rabugento, e riu. — Eu morava na cidade de Tula. Conheço aquelas pirâmides como a palma da mão. O nagual me disse que ele também tinha morado lá e que conhecia tudo sobre as pirâmides. Ele próprio era um Toltec.

Percebi então que tinha sido mais que curiosidade o que me fizera ir ao ponto arqueológico de Tula. A razão principal de eu ter aceitado o convite do meu amigo foi que quando fiz minha primeira visita à la Gorda e aos outros eles me contaram uma coisa que Dom Juan nunca me contara — que ele se considerava um descendente cultural dos Toltecs. Tula tinha sido o antigo epicentro do império Toltec.

— Vocês acham que as Atlantas caminham durante a noite? — perguntei a Pablito.

— É claro que caminham — disse ele. — Aquelas coisas exis­tem há anos. Ninguém sabe quem construiu as pirâmides; o próprio nagual Juan Matus me disse que os espanhóis não foram os primeiros que as descobriram. Disse que houve outros antes deles. Só Deus sabe quantos outros.

— O que você acha que aquelas quatro figuras representam? — perguntei.

— Não são homens, são mulheres — disse ele. — Aquela pirâmide é o centro da ordem e da estabilidade. Aquelas figuras são seus quatro cantos; são os quatro ventos, as quatro direções. Elas são a fundação, a base da pirâmide. Têm de ser mulheres, mulheres masculinizadas, se quiser chamá-las assim. Como você próprio sabe, nós homens não somos quentes assim. Somos uma boa liga, uma cola que mantém as coisas grudadas, mas é só isso. O nagual Juan Matus disse que o mistério da pirâmide é sua estrutura. Os quatro cantos foram elevados para o alto. A própria pirâmide é o homem sustentado pelas guerreiras femininas; o macho que elevou suas sustentadoras ao lugar mais alto. Entende o que quero dizer?

Devo ter ficado com um ar perplexo. Pablito deu uma risada gentil.

— Não. Não entendo o que quer dizer, Pablito — falei. — Mas é que Dom Juan nunca me disse nada sobre isso. O assunto é inteiramente novo para mim. Por favor me conte tudo o que sabe.

— As Atlantas são o nagual; são sonhadoras. Representam a ordem da segunda atenção transportada; é por isso que são tão ameaçadoras e misteriosas. São criaturas em conflito, mas não des­troem. A outra fileira de colunas, as retangulares, representa a ordem da primeira atenção, a tonal. São espreitadoras, por isso são cobertas de inscrições. São muito pacíficas e sábias, o oposto da fileira da frente.

Pablito parou de falar e olhou para mim de modo quase que desafiador, e depois abriu um sorriso.

Pensei que ele fosse continuar a explicar o que tinha iniciado, mas permaneceu em silêncio como que esperando meus comentários.

Disse-lhe como estava assombrado e pedi-lhe para continuar a falar. Ele pareceu indeciso, olhou para mim por um instante e respirou fundo. Mal tinha começado a falar quando as vozes de todos os outros se elevaram num clamor de protesto.

— O nagual já explicou isso para todos nós — disse la Gorda com impaciência. — O que adianta fazê-lo repetir isso?

Tentei fazê-la compreender que realmente não tinha idéia do que Pablito estava dizendo. Forcei-o a continuar sua explicação. Hou­ve outra onda de vozes falando ao mesmo tempo. Pelo modo como as irmãzinhas me olharam, vi que estavam ficando muito zangadas, principalmente Lydia.

— Não gostamos de falar sobre aquelas mulheres — disse la Gorda para mim em tom conciliatório. —- Só de pensar nas mulheres da pirâmide ficamos muito nervosos.

— O que há com vocês todos? — perguntei. — Por que estão agindo assim?

— Não sabemos — replicou la Gorda. — É apenas um senti­mento que temos, um sentimento muito perturbador. Estávamos bem até a hora em que você começou a fazer perguntas sobre aquelas mulheres.

As declarações de la Gorda eram como que um sinal de alarme. Todos se levantaram e vieram na minha direção, ameaçadoramente, talando muito alto.

Levei muito tempo para acalmá-los e fazê-los se sentar. As irmãzinhas estavam muito perturbadas e o humor delas parecia influenciar la Gorda. Os três homens mostravam mais reserva. Olhei para Nestor e pedi-lhe abruptamente para explicar-me por que elas estavam tão agitadas. Obviamente eu estava, de forma inconsciente, fazendo alguma coisa para agravar a situação.

— Realmente não sei o que é — falou ele. — Tenho certeza de que nenhum de nós aqui sabe o que está acontecendo conosco, só que todos nos sentimos muito tristes e nervosos.

— É por que estamos falando sobre as pirâmides? — perguntei.

— Deve ser — respondeu de modo sombrio. — Eu próprio não sabia que aquelas figuras eram mulheres.

— É claro que sabia, seu idiota — interrompeu Lydia.

Nestor pareceu intimidado com o estouro dela. Encolheu-se e sorriu de modo acanhado para mim.

— Talvez eu soubesse — assentiu. — Estamos passando um período muito estranho de nossas vidas. Nenhum de nós sabe nada mais ao certo. Desde que você entrou em nossas vidas não nos conhe­cemos mais.

Instalou-se um clima muito opressivo. Insisti em que o único modo de fazer desaparecer aquilo era falar sobre as colunas miste­riosas por cima das pirâmides.

As mulheres protestaram acaloradamente. Os homens permane­ceram em silêncio. Tive a sensação de que concordavam em princípio com as mulheres, mas que secretamente queriam discutir o assunto tanto quanto eu.

— Dom Juan lhes contou mais algumas coisas sobre as pirâmi­des, Pablito? — perguntei.

Minha intenção era desviar a conversa sobre a questão específica das Atlantas e ao mesmo tempo ficar próximo dela.

— Disse que uma certa pirâmide lá em Tula era uma guia — replicou Pablito ansiosamente.

Pelo tom da sua voz deduzi que ele realmente queria falar. E a atenção dos outros aprendizes me convenceu de que, dissimuladamente, todos queriam trocar opiniões.

— O nagual disse que era uma guia da segunda atenção — continuou Pablito — mas que foi explorada e que destruíram tudo. Ele me falou que algumas pirâmides eram gigantescos lugares de não fazer. Não eram moradas, mas lugares dos guerreiros desenvolverem seus sonhos e exercitarem sua segunda atenção. O que quer que fizessem era registrado em desenhos e figuras nas paredes.

“Depois, uma nova espécie de guerreiros deve ter aparecido, uma espécie que não aprovava o que os feiticeiros da pirâmide tinham feito com a segunda atenção, e destruíram a pirâmide com tudo o que havia dentro.

“O nagual acreditava que os novos guerreiros deviam ser guer­reiros da terceira atenção, como ele próprio era; guerreiros que ficavam horrorizados com o mal da fixação da segunda atenção. Os feiticeiros das pirâmides estavam ocupados demais com sua fixação para perceberem o que estava acontecendo. Quando perceberam, era tarde demais.

Pablito tinha uma platéia. Todos na sala, inclusive eu, estavam fascinados com o que ele dizia. Compreendi as idéias que ele apre­sentava porque Dom Juan já as tinha explicado a mim.

Tinha dito que nosso ser total consiste em dois segmentos per­ceptíveis. O primeiro é o corpo físico conhecido que todos nós pode­mos perceber; o segundo é o corpo luminoso, um casulo que só os videntes conseguem perceber, um casulo que nos dá a aparência de ovos luminosos gigantescos. Tinha dito também que uma das metas mais importantes da feitiçaria é alcançar o casulo luminoso; uma meta que é conseguida pelo uso sofisticado do “sonho” e por um empreendimento rigoroso e sistemático a que ele dava o nome de não fazer. Definia o não fazer como um ato pouco familiar, que envolve todo o nosso ser ao forçá-lo a se tornar consciente do seu segmento luminoso.

A fim de explicar esses conceitos, Dom Juan fez uma divisão de três partes desiguais da nossa consciência. Chamou à menor “pri­meira atenção”, a consciência que toda pessoa normal desenvolve, a fim de lidar com o mundo diário; ela abrange o conhecimento do corpo físico. À outra parte maior deu o nome de “segunda atenção”, o conhecimento de que precisamos para perceber nosso casulo lumi­noso e para agir como seres luminosos. Disse que a segunda atenção permanece como pano de fundo durante toda a nossa vida, a não ser que seja transportada através de treinamento deliberado ou por um trauma acidental, e que ela abrange o conhecimento do nosso corpo luminoso. Chamou à última parte, a maior, de “terceira aten­ção”, uma consciência incomensurável que envolve aspectos indefiníveis do conhecimento dos corpos físico e luminoso.

Perguntei-lhe se ele próprio tinha experimentado a terceira aten­ção. Ele respondeu que estava na sua periferia, e que se entrasse nela completamente eu saberia no mesmo instante, pois ele todo se torna­ria o que era na realidade, uma explosão de energia. Acrescentou que o campo de batalha dos guerreiros era a segunda atenção, uma espécie de campo de treinamento para atingir a terceira atenção. Era um estado bem difícil de se chegar, mas muito frutificante quando atingido.

— As pirâmides são nocivas — continuou Pablito. — Especial­mente para feiticeiros desprotegidos como nós. São ainda piores para guerreiros sem forma como la Gorda. O nagual disse que não há nada mais perigoso que a fixação do mal da segunda atenção. Quan­do os guerreiros aprendem a focalizar o lado fraco da segunda atenção nada é empecilho para eles. Tornam-se caçadores de homens, vampi­ros. Mesmo depois de mortos podem atingir sua presa através do tempo, como se estivessem presentes aqui agora; e nos transforma­mos em presas se entramos numa daquelas pirâmides. O nagual chamou-as de ciladas da segunda atenção.

— O que ele disse exatamente que aconteceria? — perguntou la Gorda.

— Disse que poderíamos agüentar talvez uma visita às pirâmi­des — explicou Pablito. — Na segunda visita sentiríamos uma triste­za estranha. Seria como uma brisa fria que nos deixaria apáticos e fatigados; uma fadiga que em breve se transformaria em má sorte. Nunca teríamos azar, tudo aconteceria conosco mesmo. Na verdade ele disse que nossas crises de azar eram devido à nossa disposição de visitar aquelas ruínas, contra as recomendações dele. Eligio, por exemplo, nunca desobedeceu ao nagual. Ele não seria encontrado morto lá; e nem este nagual aqui. E eles todos tiveram sorte, enquan­to que o resto de nós teve azar, especialmente la Gorda e eu próprio. Nós não fomos mordidos pelo mesmo cachorro? E as mesmas vigas do teto da cozinha não apodreceram duas vezes e caíram em cima de nós?

— O nagual nunca explicou isso para mim — disse la Gorda. — É claro que explicou — insistiu Pablito.

— Se eu soubesse como era ruim, não teria posto os pés naque­les lugares amaldiçoados — protestou la Gorda.

— O nagual disse a nós todos as mesmas coisas — falou Nestor. — O problema é que nenhum de nós ouviu com atenção, ou melhor, cada um de nós ouviu-o a seu modo e ouviu o que queria ouvir. O nagual disse que a fixação da segunda atenção tem duas faces. A primeira e a mais fácil é a do mal. £ quando os sonhadores usam os seus sonhos para focalizar a segunda atenção sobre os itens do mundo, como dinheiro e poder sobre as pessoas. A outra face é a mais difícil de ser alcançada. É quando os sonhadores focalizam sua segunda atenção nos itens que não são deste mundo, tais como a viagem ao desconhecido. Os guerreiros precisam de impecabilidade total para alcançar este lado.

Eu disse a eles que estava certo de que Dom Juan tinha revelado seletivamente certas coisas a alguns de nós e outras coisas a outros. Não podia, por exemplo, lembrar-me de ele ter discutido o lado mau da segunda atenção comigo. Contei-lhes então o que Dom Juan me falara sobre a fixação da atenção em geral.

Ele enfatizou que todas as ruínas arqueológicas do México, espe­cialmente as pirâmides, eram nocivas ao homem moderno. Descreveu as pirâmides como expressões estranhas de pensamento e ação. Disse que todos os itens, todos os desenhos delas, eram um esforço calculado de recordar aspectos de atenção que eram completamente estranhos a nós. Para Dom Juan não só as ruínas das culturas do passado continham um elemento perigoso; qualquer coisa que fosse o objeto de uma preocupação obsessiva tinha um potencial nocivo.

Ele discutira isso detalhadamente uma vez. Foi uma reação que teve a uns comentários que eu fiz sobre não saber onde guardar rainhas notas de campo com segurança. Eu as via de uma maneira muito obsessiva, e estava obcecado com a segurança delas.

— O que eu devo fazer? — tinha perguntado a ele.

— Genaro uma vez lhe deu uma solução — respondera ele. — Você pensou, como sempre pensa, que ele estava brincando. Ele nunca brinca. Disse que você deveria escrever com a ponta dos dedos em vez de escrever a lápis. Você não o levou a sério sobre isso porque não pode imaginar que este seja o não fazer de tomar notas.

Eu argumentei que o que ele estava propondo tinha de ser uma brincadeira. Minha auto-imagem era a de um cientista social que precisava registrar tudo que era dito e feito a fim de chegar a conclu­sões verificáveis. Para Dom Juan uma coisa não tinha nada a ver com a outra. Ser um estudante sério não tinha nada a ver com possessividade. Eu pessoalmente não conseguia ver uma solução; certa­mente a sugestão de Dom Genaro me parecia humorística e não uma possibilidade real.

Dom Juan argumentou novamente. Disse que tomar notas era um modo de envolver a primeira atenção na tarefa de se lembrar, e que eu tomava notas a fim de me lembrar do que era dito e feito. A recomendação de Dom Genaro não era uma brincadeira, pois escrever com a ponta do meu dedo num pedaço de papel, como não fazer de tomar notas, forçaria minha segunda atenção a focalizar a minha lembrança sem acumular folhas de papel. Dom Juan achava que o resultado final seria mais preciso e de mais valor que tomar notas, Nunca tinha sido feito, ao que ele soubesse, mas o principio era sólido.

Pressionou-me a fazer isso por algum tempo. Eu fiquei pertur­bado. Tomar notas não só funcionava como um método mnemônico como também me acalmava. Era minha mania mais construtiva. Acumular folhas de papel me dava uma sensação de objetivo e equi­líbrio.

— Quando você se preocupa com o que fazer com as suas folhas — explicou Dom Juan — está focalizando uma parte muito perigosa de você mesmo nelas. Todos nós temos esse lado perigoso, essa fixação. Quanto mais forte ficamos, mais perigosa essa parte se torna. A recomendação para os guerreiros é não ter nenhuma coisa material na qual focalizar seu poder, mas focalizá-lo no espírito, no verdadeiro vôo ao desconhecido, e não em campos triviais. No seu caso, suas notas são o seu escudo. Elas não o deixarão viver em paz.

Senti seriamente que não tinha nenhum modo possível de me dissociar das minhas notas. Dom Juan então concebeu uma tarefa para mim em lugar do não fazer característico. Disse que, para alguém tão altamente possessivo como eu, o modo mais apropriado de me libertar do meu caderno de notas seria desmantelá-lo, jogá-lo pelos ares e escrever um livro. Pensei, naquela época, que aquilo era uma brincadeira maior que a de tomar notas com a ponta dos dedos.

“— Sua compulsão em possuir e se prender a essas coisas é única — disse ele. — Todo mundo que quer seguir os passos de guerreiro, o caminho de feiticeiro, tem de se livrar da sua fixação. Meu benfeitor me disse que houve uma época em que os guerreiros tinham objetos materiais nos quais colocar sua obsessão. E isso susci­tou a questão de quem teria o objeto mais poderoso, ou seria o mais poderoso de todos eles. Os remanescentes desses objetos ainda exis­tem no mundo, as sobras daquela raça que almejava o poder. Ninguém pode dizer que espécie de fixação esses objetos podem ter recebido. Homens infinitamente mais poderosos que você despejaram todos os aspectos de sua atenção neles. Você apenas começou a despejar sua preocupação insignificativa nessas suas anotações. Ainda não chegou a outros níveis de atenção. Pense como seria horrível se se encontras­se no final de sua trilha como um guerreiro ainda carregando todos os seus pacotes de notas nas costas. Aquela altura as notas estarão vivas, especialmente se você aprender a escrever com a ponta dos dedos e ainda tiver de empilhar folhas de papel. Nessas condições eu não ficaria nada surpreso se alguém encontrasse seus pacotes andando por aí.”

— É fácil compreender por que o nagual Juan Matus não queria que nós tivéssemos posses — disse Nestor, depois que eu terminei de falar. — Somos todos sonhadores. Ele não queria que focalizássemos nosso corpo sonhador no lado fraco da segunda atenção. Eu não compreendia suas manobras naquela época. Fiquei sentido quando ele me fez abrir mão de tudo o que tinha. Achava que ele estava sendo injusto. Acreditava que estivesse tentando fazer com que Pablito e Benigno não me invejassem porque eles não tinham nada. Eu estava muito bem de vida comparado a eles. Naquela época não tinha a menor idéia de que ele estivesse protegendo meu corpo sonhador.

Don Juan tinha me descrito o sonho de várias maneiras. A mais obscura delas todas me parece agora ser aquela que o define do melhor modo. Ele disse que o sonho é intrinsecamente o não fazer de dormir.

Um não fazer básico designado a ajudar o sonho, era o não fazer de falar, chamado “parar o diálogo interno”. Os dois se combinam no sentido de que parar o diálogo interno traz a paz necessária e descansa a mente dos praticantes, e isso por sua vez ajuda-os a controlar seus sonhos. Como o não fazer de dormir, o sonho dá aos praticantes a utilização daquela porção de suas vidas gastas no cochilo. É como se os sonhadores não mais dormissem. Mesmo assim não há mal nisso. Os sonhadores não sentem falta de sono, mas o efeito de sonhar parece ser o aumento do tempo através do uso de um pre­tenso corpo extra, o corpo sonhador.

Dom Juan explicou-me que o corpo sonhador é às vezes chama­do de “o sósia” ou “o outro”, porque é uma réplica perfeita do corpo do sonhador. É basicamente a energia de um ser luminoso, um esbran­quiçado, uma emanação fantasmagórica, que é projetada pela fixação da segunda atenção numa imagem tridimensional do corpo. Explicou que o corpo sonhador não é um fantasma; é tão real quanto qualquer coisa com que lidamos no mundo. Disse que a segunda atenção é inevitavelmente levada a focalizar sobre nosso ser total como um campo de energia, e que transforma essa energia em qualquer coisa apropriada. A coisa mais fácil é, naturalmente, a imagem do corpo físico com o qual já estamos perfeitamente familiarizados em nossa vida diária, através do uso da nossa primeira atenção. O que canaliza a energia do nosso ser total a produzir qualquer coisa que esteja dentro dos limites de possibilidades é conhecido como “vontade”. Dom Juan não sabia dizer quais eram esses limites, a não ser que a nível dos seres luminosos os parâmetros são tão amplos que é boba­gem tentar estabelecer limites; desta forma a energia de um ser lumi­noso pode ser transformada, através da vontade, em qualquer coisa.

— O nagual disse que o corpo sonhador se envolve e se prende a qualquer coisa — disse Benigno. — Ele não tem sentido. Disse-me que os homens são mais fracos que as mulheres porque o corpo sonhador do homem é mais possessivo.

As irmãzinhas concordaram em uníssono com um movimento de cabeça. La Gorda olhou para mim e sorriu.

— O nagual me falou que você é o rei da possessividade — disse-me ele. — Genaro disse que você chega a se despedir dos seus excrementos antes de dar a descarga.

As irmãzinhas rolaram de rir. Os Genaros fizeram esforços óbvios para se conterem. Nestor, que estava sentado a meu lado, bateu no meu joelho.

— O nagual e Genaro costumavam contar grandes histórias de você — disse ele. — Nos divertiram durante anos com relatos de um sujeito esquisito que eles conheciam. Sabemos agora que era você.

Senti uma onda de encabulamento. Era como se Dom Juan e Dom Genaro tivessem me traído, rido de mim na frente de aprendi­zes. A autopiedade tomou conta de mim. Comecei a reclamar. Disse em voz alta que eles estavam predispostos a ficar contra mim, a pensar que eu era um tolo.

— Isso não é verdade — disse Benigno. — Estamos encantados de você estar conosco.

— Estamos? — interrompeu Lydia.

Todos eles entraram numa discussão acalorada. Os homens e as mulheres estavam divididos. La Gorda não se juntou ao grupo. Ficou sentada a meu lado enquanto os outros estavam de pé gritando.

— Estamos passando um tempo difícil — disse-me la Gorda em voz baixa. — Praticamos muito o sonho, mas ainda assim não tem sido o bastante para o que precisamos.

— De que vocês precisam, Gorda? — perguntei.

— Não sabemos — disse ela. — Esperávamos que você pudes­se nos dizer.

As irmãzinhas e os Genaros sentaram-se novamente a fim de ouvir o que la Gorda falava comigo.

— Precisamos de um líder — continuou ela. — Você é o nagual, mas não é um líder.

— Leva tempo para formar um líder perfeito — disse Pablito. — O nagual Juan Matus me disse que ele próprio era uma porcaria quando era moço, até que alguma coisa o tirou da sua passividade.

— Não acredito nisso — gritou Lydia. — Ele nunca me contou isso.

— Ele disse que era muito burro — falou la Gorda em voz baixa.

— O nagual me disse que quando era moço era um azarado, assim como eu — disse Pablito. — Também foi avisado pelo seu benfeitor para não pôr os pés naquelas pirâmides, e por causa disso praticamente vivia lá, até que foi levado embora por uma horda de fantasmas.

Aparentemente ninguém mais sabia da história. Eles emperti­garam-se.

— Tinha me esquecido completamente disso — explicou Pablito. — Só me lembrei agora. Foi exatamente como o que aconteceu à la Gorda. Um dia depois que o nagual tinha finalmente se transfor­mado num guerreiro sem forma, as fixações do mal daqueles guerrei­ros que tinham praticado o sonho e outros não fazeres nas pirâmides vieram à procura dele. Encontraram-no enquanto ele trabalhava no campo. Ele me disse que viu uma mão aparecendo na sujeira de um sulco ainda fresco para puxar a perna das calças dele. Achou que fosse um trabalhador que tivesse sido enterrado acidentalmente. Ten­tou desenterrá-lo. Então percebeu que estava cavando um caixão sujo, que um homem estava enterrado ali. O nagual disse que o homem era muito magro e escuro e não tinha cabelo. Tentou freneticamente ajeitar o caixão sujo, pois não queria que os trabalhadores o vissem e não queria aviltar o homem tirando-o da cova contra sua vontade. Estava trabalhando tanto que nem ao menos percebeu que os outros trabalhadores tinham-se juntado à sua volta. Aquela altura o nagual disse que o caixão sujo tinha caído e que o homem escuro estava esparramado no chão, nu. Tentou ajudá-lo a ficar de pé e pediu aos homens para lhe darem uma mão. Eles Tiram. Pensaram que ele estava bêbado, que estava com delirium tremens, porque não havia nenhum homem ou caixão sujo ou qualquer coisa parecida no campo.

“O nagual contou que ficou abalado mas que não ousou contar aquilo ao seu benfeitor. Não fez diferença, pois à noite um grupo completo de fantasmas veio onde ele estava. Ele foi abrir a porta da frente para alguém que batia, e um bando de homens nus com olhos brilhantes e amarelos irrompeu pela casa. Atiraram-no no chão e se empilharam em cima dele. Teriam esmagado todos os ossos do seu corpo se não fosse a interferência do seu benfeitor. Ele viu os fantas­mas e levou o nagual a um buraco seguro no chão, que conveniente­mente sempre mantinha atrás da casa. Enterrou o nagual lá enquanto os fantasmas se acocoravam à volta, esperando sua oportunidade.

“O nagual me disse que ficou com lauto medo que dormiu volun­tariamente no caixão sujo várias noites, muito depois dos fantasmas terem desaparecido.”

Pablito parou de falar. Todos pareciam estar se arrumando para ir embora. Estavam agitados e mudavam de posição como que para mostrar que estavam cansados de ficar sentados.

Então eu lhes disse que tinha tido uma reação muito forte ao ouvir meu amigo dizer que as Atlantas passeavam durante a noite. Até aquele dia não tinha notado até que ponto eu aceitara o que Dom Juan e Dom Genaro tinham me ensinado. Percebi que tinha deixado o julgamento pendente, embora fosse claro para mim que a possibilidade de que aquelas figuras de pedra colossais pudessem andar não entrasse na esfera da especulação séria. Minha reação me surpreendeu.

Expliquei-lhes longamente que a idéia das Atlantas passearem durante a noite era um exemplo claro da fixação da segunda atenção. Tinha chegado àquela conclusão usando o seguinte conjunto de premissas: Primeiro, que não somos meramente o que nosso bom senso quer que acreditemos que somos. Somos na verdade seres lu­minosos, capazes de nos tornar conscientes de nossa luminosidade. Segundo, que como seres luminosos conscientes de nossa luminosidade somos capazes de diferentes e separados aspectos de nosso conheci­mento, ou de nossa atenção, como Dom Juan chamava. Terceiro, que as diferenças podem existir através de um esforço deliberado, como o que estamos nós próprios tentando atingir, ou, acidentalmente, através de um trauma do corpo. Quarto, que houve uma época em que os feiticeiros colocavam deliberadamente aspectos de sua atenção nos objetos materiais. Quinto, que as Atlantas, tendo em vista a sua disposição fantástica, devem ter sido objetos de fixação dos feiticei­ros de outros tempos.

Disse que o guia que deu ao meu amigo aquela informação tinha indubitavelmente esclarecido outro aspecto de sua atenção; poderia ter se tornado, inconscientemente, um receptor das projeções da segunda atenção dos feiticeiros antigos. Não era tão difícil que o homem pudesse ter visualizado a fixação daqueles feiticeiros.

Se aqueles feiticeiros fossem membros da tradição de Dom Juan e de Dom Genaro, deviam ser praticantes impecáveis, em cujo caso não havia presumivelmente nenhum limite para realizar a fixação da segunda atenção. Se eles pretendiam que as Atlantas passeassem durante a noite, então, de alguma forma, as Atlantas passeariam du­rante a noite.

Enquanto eu falava as irmãzinhas iam ficando muito zangadas e agitadas. Quando terminei, Lydia me acusou de não fazer nada a não ser falar. Depois elas se levantaram e saíram sem ao menos se despe­direm. Os homens as seguiram, mas pararam na porta e apertaram minha mão. La Gorda e eu ficamos no quarto.

— Há alguma coisa de muito errada com aquelas mulheres — disse eu.

— Não. Estão apenas cansadas de conversa — disse la Gorda. — Elas esperam alguma ação da sua parte.

— Como é que os Genaros não estão cansados de conversa? — perguntei.

— Eles são mais burros que as mulheres — respondeu seca­mente.

— E você, la Gorda? — perguntei. — Também está cansada de conversa?

— Não sei como estou — disse ela solenemente. — Quando estou com você não fico cansada, mas quando estou com as irmãzinhas fico exausta igual a elas.

Durante os próximos dias sem novidades em que fiquei com eles era óbvio que as irmãzinhas eram completamente hostis a mim. Os Genaros me toleravam de um modo casual. Só la Gorda parecia estar do meu lado. Comecei a pensar por quê. Perguntei-lhe sobre isso antes de partir para Los Angeles.

— Não sei como é possível, mas estou acostumada com você — disse ela. — É como se você e eu estivéssemos juntos, e as irmã­zinhas e os Genaros estivessem num mundo diferente.

 

                       Vendo Juntos

Durante várias semanas depois de ter voltado a Los Angeles tive uma leve sensação de desconforto, que expliquei como sendo uma tonteira ou uma súbita baixa de respiração devido a exercício físico. Chegou ao auge uma noite em que acordei aterrorizado, incapaz de respirar. O médico que fui ver diagnosticou meu problema como hiperventilação, mais provavelmente causada por tensão. Prescreveu um tranqüilizante e sugeriu que eu respirasse para dentro de uma sacola de papel se a crise ocorresse novamente.

Decidi voltar ao México para pedir conselho a la Gorda. Depois de ter lhe dado o diagnóstico do médico ela calmamente me assegurou que não havia doença alguma, que eu estava finalmente perdendo meus escudos e que o que estava tendo era a “perda da minha forma humana” e a entrada num novo estado de alheamento dos problemas humanos.

— Não lute contra isso — disse ela. — Nossa reação natural é lutar contra. Ao fazer isso afastamos o processo. Deixe o medo de lado e siga a perda da sua forma humana passo a passo.

Acrescentou que no caso dela a desintegração da sua forma humana começou no ventre, com muita dor e uma pressão desorde­nada, que mudava lentamente em duas direções, para baixo das pernas e acima da garganta. Disse também que os efeitos são sentidos imediatamente.

Eu queria registrar cada nuança da minha entrada no novo esta­do. Preparei-me para escrever um relato detalhado de tudo o que acontecesse, mas para minha grande infelicidade nada mais aconteceu. Depois de uns dias de expectativa infrutífera desacreditei da explica­ção de la Gorda e concluí que o médico tinha diagnosticado meu problema corretamente. Eu tinha tomado uma responsabilidade que gerara uma tensão insuportável. Tinha aceitado a liderança que os aprendizes achavam que pertencia a mim, mas não tinha idéia de como liderar.

A pressão na minha vida também se mostrou de uma forma mais séria. Meu nível usual de energia estava se tornando progressivamente mais fraco. Dom Juan teria dito que eu estava perdendo meu poder pessoal e que eventualmente perderia a vida. Ele tinha me preparado para viver exclusivamente através do poder pessoal, que eu compreendia ser um estado de ser, uma relação de ordem entre o sujeito e o Universo, uma relação que não pode ser interrompida sem resultar na morte do sujeito. Já que não havia nenhum modo de prever a mudança da minha situação, tinha concluído que minha vida estava chegando ao fim. Meus sentimentos de estar condenado pareciam enfurecer meus aprendizes. Decidi me afastar deles por uns dois dias para diminuir minha melancolia e a tensão deles.

Quando voltei, encontrei-os de pé do lado de fora da casa das irmãzinhas, como se estivessem esperando por mim. Nestor correu para o meu carro, e antes que eu desligasse o motor deixou escapar que Pablito tinha fugido. Tinha ido morrer, disse Nestor, na cidade de Tula, o lugar dos seus ancestrais. Fiquei apavorado e me senti culpado.

La Gorda não se preocupava como eu. Ela estava radiante, vendendo alegria.

— Aquele alcoviteirozinho merece mesmo é morrer — disse ela. — Todos nós vamos viver juntos em harmonia agora. O nagual nos disse que você ia trazer uma mudança na nossa vida. Bem, você trouxe. Pablito não vai mais nos importunar. Você se viu livre dele. Veja como estamos felizes. Estamos muito melhor sem ele.

Fiquei horrorizado com a dureza dela. Declarei com toda a veemência que Dom Juan tinha nos colocado todos juntos, de uma forma muito suave, na forma de vida de um guerreiro. Reforcei que a impecabilidade de um guerreiro exigia que eu não deixasse Pablito morrer assim.

— E o que você acha que vai fazer? — perguntou la Gorda.

— Vou levar uma de vocês para morar com ele — disse — até o dia em que todos vocês, inclusive Pablito, puderem sair daqui.

Eles riram de mim, até mesmo Nestor e Benigno que pensei que fossem mais chegados a Pablito. La Gorda riu mais do que todos, obviamente em tom de desafio a mim.

Virei-me para Nestor e Benigno como que pedindo apoio moral. Eles olharam para o lado.

Apelei para a compreensão superior de la Gorda. Implorei-lhe. Usei todos os argumentos de que me lembrava. Ela olhou para mim com grande desprezo.

— Vamos indo — disse ela aos outros.

Deu um sorriso muito vago para mim. Encolheu os ombros e apertou os lábios, num gesto distante.

— Você é bem-vindo se quiser vir conosco — disse-me ela — desde que não faça perguntas ou fale sobre aquele alcoviteirozinho.

— Você é uma guerreira sem forma, Gorda — disse eu. — Você mesma me disse isso. Por que então julga Pablito?

La Gorda não respondeu, mas reconheceu a minha jogada. Fran­ziu a testa e evitou o meu olhar.

— La Gorda está conosco! — gritou Josefina numa voz estri­dente.

As três mulheres se juntaram em volta de la Gorda e puxaram-na para dentro de casa. Eu as segui. Nestor e Benigno também entraram.

— O que você vai fazer, levar uma de nós à força? — pergun­tou la Gorda para mim, com os olhos faiscantes de raiva.

Tive vontade de berrar de ódio, como tinha feito uma vez na presença deles, mas as circunstâncias eram diferentes. Não podia fazer isso.

— Vou levar Josefina comigo — disse. — Eu sou o nagual.

La Gorda juntou as três irmãzinhas e protegeu-as com o corpo. Estavam a ponto de se darem as mãos. Alguma coisa em mim sabia que se fizessem isso a força delas se tornaria terrível e meus esforços no sentido de levar Josefina seriam vãos. Minha única chance era atacar antes que elas tivessem a oportunidade de se agrupar. Empur­rei Josefina com a palma das mãos e ela foi parar no meio da sala. Antes que tivessem tempo de se agrupar bati em Lydia e Rosa, que se dobraram de dor. La Gorda veio na minha direção com uma fúria que nunca tinha visto nela antes. Atacava como uma besta selvagem. Toda a sua concentração dirigiu-se para a arremetida do seu corpo. Se ela me golpeasse teria me matado. Passou de raspão pelo meu peito. Segurei-a por trás como se fosse um urso e ela caiu no chão. Rolamos um por cima do outro até ficarmos exaustos. O corpo dela relaxou. Ela começou a acariciar a palma das minhas mãos, que estavam presas com força em volta do estômago dela.

Percebi então que Nestor e Benigno estavam de pé na porta. Ambos pareciam estar a ponto de ficarem doentes.

La Gorda sorriu timidamente e murmurou no meu ouvido que estava contente de eu tê-la vencido.

Levei Josefina para Pablito. Senti que era a única das aprendi­zes que realmente precisava de ser cuidada, e Pablito não se dava mal com ela. Estava certo de que seu senso de cavalheirismo o força­ria a chegar até ela, já que ela iria precisar de ajuda.

Um mês depois voltei mais uma vez ao México. Pablito e Josefina tinham voltado. Estavam vivendo juntos na casa de Dom Genaro, que dividiam com Benigno e Rosa, Nestor e Lydia viviam na casa de Soledad, e la Gorda vivia sozinha na casa das irmãzinhas.

— Nosso novo modo de vida o surpreende? — perguntou la Gorda.

Minha surpresa era mais que evidente. Eu queria saber todas as implicações daquela nova organização.

La Gorda me informou com voz seca que não sabia de implica­ções nenhuma. Tinham resolvido viver a dois, mas não como casais. Acrescentou que ao contrário do que eu estava pensando, eles eram guerreiros impecáveis.

O novo sistema era bastante agradável. Todos pareciam estar completamente relaxados. Não havia mais altercações ou explosões de comportamento competitivo entre eles. Tinham também adotado a forma de vestir típica dos índios daquela região. As mulheres usa­vam vestidos de saias amplas que quase varriam o chão, xales escuros e os cabelos trançados, exceto Josefina, que sempre estava de chapéu. Os homens usavam calças finas e brancas como as de pijama, camisa e chapéu de palha. Todos tinham sandálias feitas em casa.

Perguntei a la Gorda a razão de se vestirem daquela nova forma. Ela disse que estavam se aprontando para partir. Mais cedo ou mais tarde, com a minha ajuda ou por eles próprios, iriam sair daquele vale. Iriam para um mundo novo, uma vida nova. Quando fizessem aquilo iriam reconhecer a mudança; quanto mais tempo usassem as roupas de índios mais drástica seria a mudança quando viessem a usar roupas de cidade. Acrescentou que tinham aprendido a ser flui­dos, à vontade em qualquer situação em que se encontrassem, assim como eu também. Meu desafio era lidar com eles à vontade, indepen­dentemente do que eles fizessem comigo. O desafio deles, por sua vez, era sair do seu vale e se instalar em outro lugar, se pudessem ser tão fluidos como os guerreiros deveriam ser.

Pedi sua opinião honesta em relação a nossas chances de êxito. Ela disse que estava escrito em nossa testa que falharíamos.

La Gorda mudou de assunto abruptamente e me contou que no seu sonho tinha se visto olhando para uma garganta estreita e gigan­tesca, entre duas enormes montanhas arredondadas; achou que as montanhas lhe eram familiares e me pediu que a levasse de carro até à cidade próxima. Ela acreditava, sem saber por que, que as duas montanhas eram localizadas lá e que a mensagem do seu sonho era que nós dois devíamos ir até lá.

Saímos no início da madrugada. Eu já tinha ido de carro até aquela cidade. Era muito pequena, e eu nunca tinha reparado nada nas suas proximidades que se assemelhasse à visão de la Gorda. Havia apenas colinas erodidas por ali. Aconteceu que as montanhas não eram lá, e se eram não conseguimos encontrá-las.

Durante as duas horas em que passamos na cidade, contudo, nós dois sentimos que sabíamos alguma coisa indefinida, que tínhamos um sentimento as vezes transformado numa certeza, e que depois voltava de novo à escuridão, tornando-se um mero aborrecimento e uma frustração. A visita àquela cidade nos perturbou de formas mis­teriosas, ou melhor, por motivos desconhecidos ficamos agitados. Eu fiquei angustiado e com um conflito sem lógica. Não me lembrava de ter jamais parado naquela cidade, e ainda assim podia jurar que não só tinha estado lá como tinha também morado lã por algum tempo. Nada era claro na minha memória; não me lembrava das ruas nem das casas. O que eu sentia era uma vaga porém forte apreensão de que alguma coisa iria se tornar clara. Não estava certo do que, talvez uma lembrança. Em certas horas aquela vaga apreen­são tornava-se predominante, principalmente quando vi uma certa casa em especial, na frente da qual estacionei. La Gorda e eu olha­mos para ela do carro durante quase uma hora, mas nenhum de nós sugeriu que saíssemos para entrar lá.

Ambos estávamos nervosos. Começamos a falar sobre a visão das duas montanhas e nossa conversa em breve transformou-se numa discussão. Ela achava que eu não tinha levado o sonho dela a sério. Ficamos muito agitados e gritamos um com o outro, não tanto de raiva como de nervoso. Controlei-me e parei.

Quando estávamos voltando, estacionei o carro do lado da estra­da suja. Saímos para esticar as pernas. Caminhamos por algum tempo, mas estava muito ventoso para podermos apreciar o passeio. La Gorda ainda parecia agitada. Voltamos para o carro e Sentamo-nos.

— Se ao menos você pusesse em ordem seus conhecimentos — disse la Gorda num tom de súplica — saberia que perder a forma humana.. .

Parou no meio da frase; meu franzir de testa deve tê-la alertado. Ela percebeu minha luta. Se houvesse algum conhecimento em mim que eu pudesse conscientemente pôr em ordem, já teria feito isso.

— O que acha que eu devo fazer? — perguntei.

— Deve deixar de lado sua vontade de se prender — disse ela. — Essa mesma coisa aconteceu comigo. Eu me prendia a coisas, tais como as comidas de que gostava, as montanhas onde vivia, as pessoas com quem gostava de conversar. Mas principalmente me pren­dia ao desejo de ser querida.

Eu lhe disse que o conselho dela não tinha sentido para mim, pois não tinha consciência de me prender a nada. Ela insistiu em que de alguma forma eu sabia que estava levantando barreiras para não perder minha forma humana.

— Nossa atenção é treinada para focalizar com persistência — continuou ela. — É assim que mantemos o mundo. Sua primeira atenção foi ensinada a focalizai alguma coisa que é muito estranha para mim, mas muito familiar para você.

Eu lhe disse que minha cabeça vivia cheia de abstrações, que não eram realmente abstrações como a matemática, por exemplo, nas proposições arrazoadas.

— Agora chegou a hora de se desprender de tudo isso — disse ela. — A fim de perder sua forma você deve se desprender de todo esse lastro. Você equilibra tanto tudo que se paralisa.

Eu estava a fim de discutir. O que ela chamava de perder a forma humana era um conceito vago demais para consideração ime­diata. Estava preocupado com o que tinha sentido na cidade, mas la Gorda não queria falar sobre aquilo.

— A única coisa que vale é pôr em ordem seus conhecimentos — disse ela. — Você pode fazer isso quando precisa, como naquele dia em que Pablito fugiu e eu e você acabamos nos pegando a socos.

La Gorda disse que o que tinha acontecido naquele dia era um exemplo de “pôr em ordem os conhecimentos de uma pessoa”. Sem ter plena consciência do que estava fazendo eu tinha realizado mano­bras complexas que requeriam ver.

— Você não nos atacou apenas — disse. — Você viu.

Ela tinha razão de certo modo. Alguma coisa fora do normal acontecera naquela hora. Já tinha considerado aquilo detalhadamente, limitando a coisa, contudo, à especulação puramente pessoal. Não tinha uma explicação adequada, a não ser que a carga emocional do momento tinha me afetado de modo inconcebível.

Quando entrei na casa e olhei as quatro mulheres fiquei cons­ciente, em uma fração de segundo, que eu era capaz de mudar meu modo normal de percepção. Vi na minha frente quatro manchas amorfas de uma luz âmbar muito intensa. Uma delas era mais suave, mais agradável. As outras três eram de um brilho hostil, agudo, esbranquiçado. O brilho suave era la Gorda. E naquela hora os três brilhos hostis agigantaram-se ameaçadoramente à minha frente.

A mancha esbranquiçada mais próxima a mim, que era Josefina, estava um pouco desequilibrada. Estava debruçada, e então lhe dei um empurrão. Chutei as outras duas num ponto afundado que elas tinham no lado direito. Não tinha consciência de que devia chutá-las naquele ponto. Simplesmente achei que aquele ponto denteado era conveniente, e que de certa forma eu era levado a pôr o pé ali. O resultado foi devastador. Lydia e Rosa desmaiaram na hora. Tinha chutado a coxa direita delas. Não foi um chute de quebrar ossos, apenas empurrei as manchas de luz que estavam na minha frente com meu pé; no entanto, era como se eu tivesse dado um golpe feroz na parte mais vulnerável do corpo delas.

La Gorda tinha razão, eu tinha posto em ordem algum conheci­mento do qual não estava consciente. Se àquilo se chamava ver, a conclusão lógica para o meu intelecto seria dizer que ver é um conhe­cimento corporal. A predominância do sentido visual em nós influen­cia esse conhecimento corporal e lhe dá um sentimento de ser orien­tado visualmente. O que eu experimentei não foi de forma alguma visual. Eu vi manchas de luz com alguma coisa a mais que meus olhos, já que estava consciente de que as quatro mulheres estavam no meu campo de visão durante todo o tempo em que lidei com elas. As manchas de luz não estavam nem ao menos superpostas sobre elas. As duas imagens eram separadas. O que complicava o assunto para mim era o problema do tempo. Tudo aconteceu nuns poucos segundos. Se eu mudei mesmo de uma cena para outra, a mudança deve ter sido tão rápida que se tornou sem sentido, de forma que eu só posso me lembrar de ter percebido duas cenas diferentes simultaneamente.

Depois de ter chutado as duas manchas de luz, a mancha suave — la Gorda — veio na minha direção. Não veio diretamente na minha frente, mas passou pelo meu lado esquerdo no momento em que começou a se mover; a intenção óbvia era não me acertar, de modo que quando o brilho passou eu segurei-o. Quando rolei no chão com ele repetidas vezes senti que estava me transformando nele. Aquela foi a única vez em que eu realmente perdi o senso de continuidade. Novamente tornei-me consciente de mim mesmo quando la Gorda acariciou a palma das minhas mãos.

— No nosso sonho, as irmãzinhas e eu aprendemos a nos dar as mãos — disse la Gorda. — Sabemos como formar uma linha. Nosso problema naquele dia era que nunca tínhamos formado aquela linha do lado de fora da nossa sala. Por isso foi que elas me puxaram para dentro. O seu corpo sabia qual era o significado de nos darmos as mãos. Se tivéssemos feito isso eu teria ficado sob controle delas. Elas são mais fortes que eu. Os corpos delas são firmemente selados; elas não se preocupam com sexo. Eu sim, e isso me torna mais fraca. Estou certa de que a sua preocupação com o sexo é o que torna mais difícil para você pôr em ordem seu conhecimento.

Ela continuou falando sobre os efeitos debilitantes de ter sexo. Eu me senti pouco à vontade. Tentei desviar a conversa, mas ela parecia determinada a voltar ao assunto, apesar do meu desconforto.

— Vamos até a Cidade do México — disse eu em desespero.

Pensei que iria chocá-la. Ela não respondeu. Apertou os lábios e os olhos, e contraiu os músculos do queixo, empurrando o lábio superior até chegar perto do nariz. Seu rosto ficou tão retorcido que eu fui colhido de surpresa. Ela reagiu à minha surpresa e relaxou os músculos faciais.

— O que é isso, Gorda — disse. — Vamos até a Cidade do México.

— Muito bem. Por que não? — disse ela. — O que preciso levar?

Não esperava aquela reação, e acabei ficando chocado.

— Nada — falei. — Iremos assim mesmo como estamos.

Sem dizer mais nada ela se afundou no assento, e partimos na direção da Cidade do México. Ainda era cedo, antes do meio-dia. Perguntei-lhe se ela teria coragem de ir até Los Angeles comigo. Ela ficou pensativa por um instante.

— Acabei de fazer essa pergunta ao meu corpo luminoso — res­pondeu.

— O que ele disse?

— Disse que só se o poder permitir.

Havia uma tal riqueza de sentimento na voz dela que eu parei o carro e abracei-a. Minha afeição por ela naquela hora era tão profun­da que fiquei assustado. Não tinha nada a ver com sexo ou necessi­dade de um reforço psicológico; era um sentimento que transcendia tudo que eu conhecia.

Abraçar la Gorda trouxe de volta o sentimento que eu tinha tido antes; alguma coisa que estava trancada em mim, levada a um recesso que eu conscientemente não podia alcançar, estava a ponto de vir à tona. Quase descobri o que era, mas perdi a sensação quando tentei alcançá-la.

La Gorda e eu chegamos à cidade de Oaxaca à tardinha. Estacionei o carro numa rua lateral e andamos até o centro da cidade, até à praça. Procuramos o banco onde Dom Juan e Dom Genaro costuma­vam se sentar. Estava desocupado. Sentamo-nos num silêncio de reve­rência. Finalmente Ia Gorda disse que tinha estado muitas vezes lá com Dom Juan, e também com outra pessoa de quem não conseguia se lembrar. Não estava certa se tinha sonhado com aquilo.

— O que você fazia com Dom Juan neste banco? — perguntei.

— Nada. Apenas sentávamos para esperar o ônibus ou o cami­nhão de madeira que nos dava uma carona até às montanhas — respondeu.

Eu lhe disse que quando me sentava naquele banco com Dom Juan ficávamos conversando durante horas.

Contei-lhe sobre o grande interesse que ele tinha por poesia, e como eu costumava ler para ele quando não tínhamos mais nada para fazer. Ele ouvia os poemas, partindo do princípio que só a pri­meira ou talvez a segunda estrofe valiam a pena serem tidas; achava que o resto era apelação por parte do poeta. Havia muito poucos poemas, das centenas que devo ter lido para ele, aos quais ouvia de ponta a ponta. No início lia para ele o que eu gostava; minha prefe­rência era pela poesia abstrata, cerebral, complexa. Mais tarde ele me fez ler várias vezes o que ele gostava. Na sua opinião, um poema tinha de ser compacto, de preferência curto. E tinha de ser criado de imagens precisas e pungentes, de grande simplicidade.

No final da tarde, sentados naquele banco de Oaxaca, um poema de Cesar Vallejo sempre parecia dar-lhe um sentimento especial de saudade. Recitei-o para la Gorda, não tanto por ela mas mais por mim.

 

Imagino o que ela esteja fazendo neste momento minha doce e andina Rita dos colmos e cerejeiras silvestres.

Agora que esta fadiga me abate, e que o sangue dormita como um brandy preguiçoso dentro de mim.

 

Imagino o que ela esteja fazendo com aquelas mãos, que em atitude de penitência costumavam passar e engomar as roupas brancas durante as tardes.

Agora que esta chuva está tirando minha vontade de prosseguir.

 

Imagino o que foi feito da sua saia de tenda; das suas labutas; do seu andar; do seu aroma de cana-de-açúcar de primavera daquele lugar.

 

Ela deve estar à porta, vendo passar uma rápida nuvem em movimento.

Um pássaro selvagem soltará um grito sobre o telhado; e, trêmula, ela dirá finalmente, “Jesus, está frio!”

 

A lembrança de Dom Juan era inevitavelmente vivida. Não era uma lembrança a nível do meu pensamento, nem a nível dos meus sentimentos conscientes. Era uma espécie desconhecida de lembrança que me fazia chorar. As lágrimas rolavam dos meus olhos mas não me consolavam.

A última hora da tarde sempre tivera um significado especial para Dom Juan. Eu tinha aceitado seu encanto especial por aquela hora e sua convicção de que se alguma coisa importante tinha de acontecer comigo teria de ser naquela hora.

La Gorda pôs a cabeça no meu ombro. Descansei minha cabeça na dela, ficando nessa posição por algum tempo. Senti-me relaxado; a agitação tinha desaparecido. Era estranho que o mero ato de descansar minha cabeça na de la Gorda pudesse trazer tanta paz. Tive vontade de fazer uma brincadeira e dizer-lhe para ela amarrar nossas cabeças juntas. Então percebi que ela iria realmente me levar a sério. Meu corpo se sacudiu numa risada e eu me dei conta de que estava dormindo, embora meus olhos estivessem abertos; se eu qui­sesse podia me levantar. Não quis me mover, por isso permaneci lá completamente acordado e ainda assim dormindo. Vi as pessoas passeando e olhando para nós, mas não me importava a mínima com isso. Normalmente não gostaria que ficassem olhando para mim. Depois, de repente, as pessoas à minha frente tornaram-se bolhas muito grandes de uma luz branca. Estava vendo os ovos luminosos de uma forma suspensa pela primeira vez na minha vida! Dom Juan tinha me dito que os seres humanos aparecem ao vidente como ovos luminosos. Eu tinha tido uma vaga experiência daquela percepção, mas nunca antes tinha focalizado minha visão sobre elas como estava fazendo aquele dia.

As bolhas de luz eram bastante amorfas de início. Era como se meus olhos não estivessem devidamente focalizados. Mas a um certo momento foi como se eu tivesse finalmente adaptado minha visão e as bolhas se tornassem ovos oblongos luminosos. Eram grandes, na verdade enormes, talvez com altura de dois metros e dez e largura de um metro e vinte, se não maiores.

A uma certa hora percebi que os ovos não se moviam mais. Eram uma massa sólida de luminosidade à minha frente. Os ovos me olhavam; agigantavam-se perigosamente sobre mim. Mexi-me delibe­radamente e me sentei reto. La Gorda dormia a sono solto sobre o meu ombro. Havia um grupo de adolescentes à nossa volta, que deviam achar que estávamos bêbados. Estavam nos imitando. O adolescente mais ousado mexia nos seios de la Gorda. Eu a sacudi e acordei-a. Levantamo-nos com pressa e saímos. Eles nos seguiram gritando obscenidades. A presença de um policial na esquina dissuadiu-os de continuar a nos importunar. Caminhamos em completo silêncio, desde a praça até onde tínhamos deixado meu carro. Era quase noite. De repente la Gorda agarrou meu braço. Seus olhos estavam arregalados e a boca aberta. Ela apontou.

— Olhe! Olhe! — gritou. — Lá estão o nagual e Genaro!

Vi dois homens virando a esquina num quarteirão comprido na nossa frente. La Gorda começou a correr rapidamente. Corri atrás dela e perguntei-lhe se tinha certeza de que eram eles. Ela estava fora de si. Disse que quando olhou para o alto, Dom Juan e Dom Genaro a estavam observando. Assim que os olhos dos três se encon­traram eles saíram de onde estavam.

Quando chegamos à esquina os homens ainda estavam à mesma distância de nós. Não pude distinguir as feições deles. Estavam vesti­dos como mexicanos do campo e usavam chapéus de palha. Um era forte, como Dom Juan, e o outro era magro, como Dom Genaro. Os dois homens deram a volta na outra esquina e nós corremos apressadamente de novo atrás deles. A rua em que tinham virado estava deser­ta e seguia na direção da saída da cidade, virando ligeiramente para a esquerda. Os dois homens estavam exatamente onde a rua fazia a curva. Naquele momento aconteceu uma coisa que fez com que eu sentisse que era possível que eles fossem mesmo Dom Juan e Dom Genaro. Foi um movimento que o homem menor fez. Virou a cabeça quase toda para nós e levantou-a como que dizendo que os seguísse­mos, o que Dom Genaro costumava fazer para mim sempre que íamos para a mata. Ele sempre andava na minha frente, ordenando-me com um movimento de cabeça que eu chegasse até ele.

La Gorda começou a gritar a altos brados.

— Nagual! Genaro! Esperem.

Ela me passou a frente correndo. Eles caminhavam muito depres­sa na direção de umas choupanas que mal podiam ser vistas na semi-escuridão. Devem ter entrado em uma delas ou virado em uma das várias encruzilhadas; subitamente perdemos os dois de vista.

La Gorda ficou parada lá, gritando o nome deles sem se inco­modar. As pessoas apareceram para ver quem estava gritando. Eu segurei-a até ela se acalmar.

— Eles estavam bem na minha frente — disse ela chorando. — Nem ao menos a três metros de distância. Quando gritei e chamei sua atenção para eles, já estavam a um quarteirão de nós num instante.

Tentei apaziguá-la. Ela estava no auge do desespero. Apertou-se de encontro a mim, tremendo. Por alguma razão que não podia dizer eu estava absolutamente certo de que os dois homens não eram Dom Juan e Dom Genaro, portanto não fiquei agitado como la Gorda. Ela disse que tínhamos de voltar para casa, que o poder não lhe permitiria ir a Los Angeles nem à Cidade do México comigo. Ainda não era hora da viagem dela. Estava convencida de que ver aqueles homens tinha sido um presságio. Eles tinham desaparecido na direção do leste; na direção da terra dela.

Não tinha objeções quanto a voltar naquele instante. Depois de todas as coisas que tinham acontecido conosco naquele dia eu devia estar exausto; em lugar disso estava vibrando, com um vigor muito extravagante, reminiscente dos tempos de Dom Juan, quando eu me sentia com vontade de arrebentar uma parede com os ombros.

Voltando ao carro vi-me mais uma vez tomado de uma afeição apaixonada por la Gorda. Nunca poderia agradecer-lhe pela sua aju­da. Pensei que o que quer que fosse que ela tivesse feito para me ajudar a ver os ovos luminosos, tinha funcionado. Tinha sido muito corajosa, expondo-se ao ridículo e até mesmo ao desconforto físico ao se sentar naquele banco. Expressei-lhe meus agradecimentos. Ela olhou para mim como se eu estivesse louco, e depois caiu numa risada.

— Achei a mesma coisa de você — disse ela. — Achei que você tinha feito aquilo só por minha causa. Eu também vi os ovos luminosos. Também foi minha primeira vez. Nós vimos juntos! Como o nagual e Genaro costumavam fazer.

Quando abri a porta do carro para la Gorda o impacto total do que tinha acontecido tomou conta de mim. Até aquele momento tinha ficado paralisado, alguma coisa em mim tinha se atrasado. Agora minha euforia era tão intensa quanto a agitação de la Gorda há uns instantes atrás. Tinha vontade de correr na rua e gritar. Foi a vez de la Gorda me conter. Ela acocorava-se e esfregava minha barriga da perna. Por estranho que pareça acalmei-me imediatamente. Achei muita dificuldade em falar. Meus pensamentos corriam além da minha possibilidade de verbalizá-los. Eu não queria levá-la de volta à terra dela imediatamente. Parecia haver ainda muita coisa a fazer. Uma vez que não conseguia explicar claramente o que queria, praticamente arrastei la Gorda relutante de volta à praça, porém não encontrei bancos vazios àquela hora. Estava faminto, então a levei até um restaurante. Ela achou que não queria comer, mas quando a comida chegou, viu que estava tão faminta quanto eu. Depois que comemos ficamos inteiramente relaxados.

Sentamo-nos no banco mais tarde à noite. Eu evitara falar sobre o que nos tinha acontecido até ter uma chance de me sentar lá. La Gorda estava a princípio sem disposição para dar uma palavra. A minha cabeça estava num estado peculiar de regozijo. Tinha tido momentos semelhantes com Dom Juan, mas associado, via de regra, com os efeitos posteriores das plantas alucinógenas.

Comecei a descrever para la Gorda o que eu tinha visto. A faceta daqueles ovos luminosos que mais tinha me impressionado foram os movimentos. Os movimentos eram empertigados, desajeita­dos e espasmódicos. Quando eles estavam em movimento o todo da forma de ovo deles tornava-se menor e mais redondo; eles mais ou menos pulavam em espasmos ou se sacudiam para cima e para baixo com grande velocidade. O resultado era um tremular nervoso muito irritante. Talvez a forma exata de descrever o desconforto físico causado pelo movimento seja dizer que senti como se as imagens de uma tela de cinema tivessem sido aceleradas.

Outra coisa que me deixou intrigado foi que não pude detectar nenhuma perna. Uma vez vi um espetáculo de dança de uma compa­nhia de balé. Os dançarinos imitavam o movimento de soldados em patins de gelo, e para conseguir esse efeito usavam túnicas soltas que iam até o chão. Não havia meio dos pés serem vistos, de forma que se tinha a impressão de que eles escorregavam sobre o gelo. Os ovos luminosos que desfilaram na minha frente me davam a impressão de estarem deslizando sobre uma superfície rugosa. A luminosidade deles subia e descia quase que imperceptivelmente, e ainda assim movi­mentando-se o suficiente para me deixar enjoado. Quando os ovos paravam, ficavam quase que alongadas. Alguns deles eram tão com­pridos e rígidos que me deram a idéia de um ícone de madeira.

Outra faceta ainda mais intrigante dos ovos luminosos era a ausência de olhos. Nunca tinha percebido tão intensamente que somos atraídos para os olhas dos seres vivos. Os ovos luminosos eram com­pletamente vivos; observavam-me com grande curiosidade. Eu podia vê-los em espasmos para cima e para baixo, dobrando-se para me observar, porém sem olhos.

Muitos daqueles ovos luminosos tinham manchas pretas, man­chas imensas abaixo do meio. Outros não tinham. La Gorda tinha me dito que a reprodução afeta os corpos dos homens e das mulheres, causando um buraco abaixo do estômago, mas as manchas daqueles ovos não me pareciam buracos. Eram áreas sem luminosidade, mas não tinham profundidade como teriam se fossem buracos reais. Aque­les que tinham as manchas pretas pareciam suaves, cansados; a parte de cima da forma oval era murcha, parecendo opaca em comparação com o resto do seu brilho. Os que não tinham manchas, ao contrário, eram faiscantemente brilhantes. Imaginei que podiam ser perigosos. Eram vibrantes, cheios de energia e brancura.

La Gorda falou que no instante em que descansei minha cabeça na dela ela também entrou num estado que parecia de sonho. Estava acordada, mas assim mesmo não conseguia se mover. Tinha consciên­cia de que as pessoas andavam à nossa volta. Depois os viu tornarem-se em manchas luminosas e finalmente criaturas em forma de ovo. Ela não sabia que eu também estava vendo. Pensou a princípio que eu a estava observando de cima, mas em momento algum a pressão da minha cabeça esteve tão pesada a ponto de fazê-la concluir cons­cientemente que eu também devesse estar vendo. Só depois que eu me sentei reto e peguei o rapaz mexendo nela, que parecia estar dormindo, é que tive um vislumbre do que podia lhe estar aconte­cendo.

Nossas visões diferiam no sentido de que ela podia distinguir os homens das mulheres pelo formato de alguns filamentos, que ela chamou de “raízes”. As mulheres, disse ela, tinham feixes espessos de filamentos que pareciam o rabo de um leão; eles saíam de dentro da genitália. Ela explicou que aquelas raízes eram as geradoras da vida. O embrião, a fim de realizar seu crescimento, prende-se a uma dessas raízes nutrientes e consome-a completamente, deixando apenas um buraca. Os homens, por sua vez, tinham filamentos curtos que eram vivos e flutuavam quase que em separado da massa de lumino­sidade dos seus corpos.

Perguntei-lhe qual, na sua opinião, era a razão de lermos visto juntos. Ela não fez nenhum comentário, mas me encorajou a ir adian­te em minhas especulações. Eu lhe disse que a única coisa que me ocorria era o óbvio; as emoções devem ter sido um fator.

Depois de la Gorda e eu nos sentarmos no banco favorito de Dom Juan, no final da tarde, e eu recitar o poema de que ele gosta­va, fiquei altamente carregado de emotividade. Minhas emoções de­vem ter preparado meu corpo. Mas tinha de considerar também o fato de que aprendera a fazer o sonho entrar num estado de quietude total. Eu era capaz de desligar meu diálogo interno e permanecer como se estivesse dentro de um casulo, olhando através de um bu­raco. Naquele estado, ou podia perder algum controle que tinha e entrar no sonho, ou podia manter aquele controle e permanecer pas­sivo, sem pensamento e sem desejos. Eu não achava, contudo, que esses fossem fatores significativos. Na minha opinião, o catalisador era la Gorda. Não podia descrever o que sentia por ela como amor, porque o abuso dessa palavra tornou seu significado espúrio para mim. Achei que eram os sentimentos que criavam as condições de ver.

La Gorda riu timidamente quando lhe disse o que achava.

— Não concordo com você — disse. — Creio que o que acon­teceu é que seu corpo começou a se lembrar.

— O que quer dizer com isso, Gorda? — perguntei.

Houve uma longa pausa. Ela parecia estar ou lutando para dizer alguma coisa que não queria dizer, ou tentando desesperadamente encontrar a palavra apropriada.

— Há tantas coisas que sei — disse ela — e ao mesmo tempo não sei o que sei. Lembro-me de tantas coisas que acabo sem me lembrar de nada. Creio que você está no mesmo impasse.

Assegurei-lhe que não tinha a predisposição dela, mas ela recusou-se a acreditar em mim.

— Às vezes realmente acredito que você não sabe — falou. — Outras vezes acredito que está brincando conosco. O nagual me disse que ele próprio não sábia. Muitas coisas que ele me contou sobre você estão me voltando agora.

— O que quis dizer quando falou que o meu corpo tinha come­çado a se lembrar? — insisti.

— Não me pergunte sobre isso — disse ela com um sorriso. — Não sei do que você deve se lembrar ou como i aquela lembrança. Eu própria nunca a tive. Só sei isso.

— Há alguém entre os aprendizes que possa me esclarecer isso? — perguntei.

— Ninguém — falou. — Acho que eu sou um mensageiro para você, um mensageiro que pode lhe dar apenas meia mensagem desta vez.

Ela levantou-se e me implorou para levá-la de volta à sua terra. Eu estava agitado demais para partir àquela hora. Passeamos pela praça por sugestão minha. Finalmente Sentamo-nos em outro banco.

— Não lhe parece estranho que tenhamos podido ver juntos com tanta facilidade? — perguntou la Gorda.

Eu não sabia o que ela tinha em mente. Hesitei em responder.

— O que você diria se lhe cantasse que acho que já vimos juntos antes? — perguntou la Gorda, pronunciando com cuidado as palavras.

Não podia entender o que ela queria dizer. Ela repetiu sua pergunta mais uma vez e ainda não consegui compreender o que ela dizia.

— Quando podemos ter visto juntos antes? — perguntei. — Sua pergunta não faz sentido.

— E esse o ponto — replicou ela. — Não faz sentido, e ainda assim tenho a sensação de que já vimos juntos antes.

Senti um calafrio e me levantei. Lembrei-me de novo da sensação que tinha tido naquela cidade. La Gorda abriu a boca para dizer alguma coisa e parou no meio. Olhou para mim encantada, pôs a mão nos meus lábios e depois praticamente me arrastou para o carro.

Guiei a noite toda. Queria falar, analisar, mas ela caiu no sono como que para evitar qualquer discussão. Ela estava certa, natural­mente. De nós dois ela era quem reconhecia o perigo de dissipar um estado de espírito através de sua análise.

Quando ela saiu do carro, quando chegamos à sua casa, disse que não podíamos de modo algum falar sobre o que acontecera a nós em Oaxaca.

— Por que, Gorda? — perguntei.

— Não quero perder nosso poder — disse. — É esse o modo dos feiticeiros. Nunca desperdice seus trunfos.

— Mas se não falarmos sobre isso nunca saberemos na realidade o que nos aconteceu — protestei.

— Temos de ficar em silêncio pelo menos por nove dias — falou ela.

— Podemos falar sobre isso só entre nós dois? — perguntei.

— Uma conversa entre nós dois é precisamente o que devemos evitar — disse. — Somos vulneráveis. Devemos dar tempo para nos curarmos.

 

                       As Quase Memórias do Outro Eu

— Pode nos dizer o que está acontecendo? — perguntou-me Nestor quando estávamos todos juntos naquela noite. — Onde vocês dois foram ontem?

Eu tinha me esquecido da recomendação de la Gorda de não falarmos sobre o que nos tinha acontecido. Comecei a contar-lhe que tínhamos passado primeiro pela cidade próxima e tínhamos encon­trado uma casa muito estranha lá.

Todos pareceram tocados de um tremor súbito. Encolheram-se, olharam uns para os outros e então olharam para la Gorda, como que esperando que ela lhes contasse.

— Que espécie de casa era? — perguntou Nestor.

Antes que eu tivesse tempo de responder la Gorda me interrom­peu. Começou a falar depressa, de maneira quase incompreensível. Era evidente que estava improvisando. Usava até mesmo palavras e frases da língua mazatec. Deu-me olhadas furtivas que traduziam uma súplica silenciosa de não falar nada sobre a coisa.

— E o seu sonho, nagual? — perguntou-me ela com o alívio de alguém que encontrou uma saída. — Gostaríamos de saber tudo o que você faz. Acho que é muito importante que nos conte.

Debruçou-se sobre mim e tão de mansinho quanto pôde cochi­chou no meu ouvido que por causa do que nos tinha acontecido em Oaxaca eu teria de lhes contar sobre o meu sonho.

— Por que é tão importante para vocês? — perguntei alto.

— Creio que estamos muito próximos do fim — disse la Gorda solenemente. Tudo o que você nos diga ou faça por nós é de suprema importância agora.

Relatei-lhe os eventos do que considerava ser o meu sonho. Dom Juan tinha me dito que não fazia sentido enfatizar as experiências. Ele me deu uma norma prática; se eu tivesse uma mesma visão três vezes, dissera ele, devia prestar uma atenção extraordinária; de outra forma seria a tentativa de um neófito, uma mera pedra fundamental para construir a segunda atenção.

Sonhei uma vez que levantava e pulava da cama só para me ver ainda dormindo. Ficava me observando e me autocontrolava para me lembrar que estava sonhando. Segui então as orientações de Dom Juan, que eram evitar sustos ou surpresas e levar tudo como se fosse um grão de sal. O sonhador tem de se envolver, dissera Dom Juan, em experiências desapaixonadas. Ao invés de examinar seu corpo dormindo, o sonhador devia sair do quarto. De repente descobri-me, sem saber como, do lado de fora do quarto. Tinha a sensação absolu­tamente clara de que eu tinha sido colocado lá instantaneamente. Quando saí do quarto, o hall e as escadas eram monumentais. Se alguma coisa me assustou aquela noite foi o tamanho daquelas estru­turas, que na vida real eram absolutamente comuns; o hall tinha uns quinze metros e as escadas dezesseis degraus.

Não podia conceber como iria cobrir as enormes distâncias que estava percebendo. Vacilei, e então alguma coisa me fez mover, porém não andei. Não sentia os meus passos. De repente me vi segurando o corrimão. Podia ver minhas mãos e antebraços, mas não os sentia. Estava segurando com a força de alguma coisa que não tinha nada a ver com minha musculatura. A mesma coisa aconteceu quando tentei descer as escadas. Não sabia andar. Não podia dar um passo. Era como se minhas pernas estivessem soldadas juntas. Podia ver minhas pernas se dobrarem, mas não as podia mover para a frente ou para o lado, nem podia levantá-las contra o peito. Parecia estar grudado no degrau de cima. Senti-me como aquelas bonecas de plástico de inflar, que de pé podem dobrar-se em qualquer direção até ficarem na horizontal, sendo puxadas para trás, para uma posição vertical, através de um peso colocado na sua base arredondada.

Fiz um esforço supremo para andar e balancei-me degrau após degrau como uma bola desajeitada. Prestei uma atenção incrível para chegar ao andar térreo. Não podia descrever os movimentos de nenhuma outra forma. Alguma espécie de atenção era necessária para manter os limites da minha visão, para evitar que ela se desin­tegrasse em imagens flutuantes de um sonho comum.

Quando finalmente cheguei à porta da rua não consegui abri-la. Tentei desesperadamente, mas não adiantou; então me lembrei que tinha saído do meu quarto escorregando, como se a porta tivesse sido aberta. Tudo o que precisei foi me lembrar daquela sensação de escor­regar e de repente me vi na rua. Estava escura. De uma escuridão cinzenta peculiar que não me permitia perceber as cores. Senti-me imediatamente interessado por uma enorme lagoa brilhante bem na minha frente, ao nível dos meus olhos. Deduzi, mais que percebi, que era a luz da rua, já que sabia que havia uma bem na esquina, a seis metros do chão. Soube então que não podia fazer os arranjos percep­tivos necessários a fim de julgar o que era em cima, embaixo, aqui ou ali. Tudo parecia tão extraordinariamente presente. Eu não tinha nenhum mecanismo, como na vida comum, para adaptar minha per­cepção e estabelecer um esquema pelo qual um conjunto de priorida­des decidiria quais das minhas percepções chegariam ao primeiro plano e quais não. Tudo estava ali no primeiro plano e eu não tinha volição para ter um procedimento adequado.

Fiquei confuso na rua até que comecei a ter a sensação de que estava levitando. Segurei-me no poste de metal que sustentava a lâm­pada e o sinal da esquina. Uma brisa forte veio até mim. Eu estava subindo pelo poste até que pude ver claramente o nome da rua: Ashton.

Meses depois, quando tive novamente um sonho e olhei o meu corpo dormindo, já tinha uma infinidade de coisas a fazer. No curso do meu sonho regular tinha aprendido que o que importa nesse estado é a volição, a corporeidade do corpo não tem significado. É simplesmente uma memória que atrasa o sonhador. Deslizei do quarto sem hesitar, já que não tinha de fazer os movimentos para abrir a porta ou andar para me movimentar. O hall e as escadas não eram tão enormes como pareciam da primeira vez. Deslizei através dele com a maior facilidade e acabei na rua, onde me fiz atravessar três quarteirões. Tomei conhecimento então que as luzes ainda eram visões muito perturbadoras. Se eu focalizasse minha atenção sobre elas tomar-se-iam lagos de tamanho incomensurável. Os outros elementos do sonho eram fáceis de controlar. Os edifícios eram extra­ordinariamente grandes, mas seus aspectos me eram familiares. Pensei no que fazer. E então casualmente percebi que se não olhasse as coisas fixamente, mas apenas as olhasse de relance, como fazemos no nosso mundo diário, poderia adaptar minha percepção. Em outras palavras, se eu seguisse as sugestões de Dom Juan ao pé da letra e considerasse meu sonho uma coisa simples poderia usar os mesmos desvios de percepção na minha vida diária. Depois de alguns instantes a cena se tornou, se não completamente familiar, familiar.

Na próxima vez em que tive um sonho semelhante fui até minha lanchonete favorita da esquina. A razão de eu a ter escolhido foi que costumava ir sempre lá, bem cedo de manhã. No meu sonho vi a garçonete costumeira que trabalhava no turno da madrugada; vi uma fileira de pessoas no balcão e bem no fim do balcão notei um tipo peculiar, um homem que vivia andando sem rumo pelo campus da UCLA. Era a única pessoa que realmente olhava para mim. No instante em que entrei ele pareceu me perceber. Virou-se e ficou me olhando.

Encontrei o mesmo homem quando estava acordado, uns dias mais tarde na mesma lanchonete, nas primeiras horas da manhã. Ele me deu uma olhada, parecendo me reconhecer. Olhou horrorizado e correu sem me dar uma chance de conversar com ele.

Voltei mais uma vez à lanchonete, e foi aí que o curso do meu sonho mudou. Quando observava o restaurante do outro lado da rua a cena se alterou. Não podia mais ver os edifícios familiares, via em seu lugar uma cena primitiva. Não era mais noite. Era um dia brilhan­te e eu olhava um vale exuberante. Plantas do pântano, verde-escuras, semelhantes ao junco, cresciam por toda parte. Um imenso tigre de dentes de sabre estava sentado lá. Fiquei petrificado. Olhamos um para o outro fixamente por alguns instantes. O tamanho do animal era incrível, mas ele não era grotesco ou fora de proporção. Tinha uma cabeça linda, olhos grandes cor de mel escuro, patas maciças e um imenso arcabouço. O que mais me impressionou foi a cor do seu pêlo. Era marrom-escuro uniforme, quase cor de chocolate. Sua cor me lembrava os grãos de café torrado, só que lustrosos; tinha o pêlo estranhamente alongado, não embaciado ou sujo. Não parecia o pêlo de um puma ou de um lobo ou tampouco de um urso polar. Parecia algo que eu nunca vira antes.

A partir daquela vez tornou-se rotina para mim ir ver o tigre. Às vezes a cena ficava nublada e fria. Eu podia ver a chuva no vale, uma chuva grossa e copiosa. Outras vezes o vale estava banhado de luz do sol. Bastante freqüentemente via outros tigres de dentes de sabre no vale. Podia ouvir seu rugido singular, um som que me dava náuseas.

O tigre nunca encostou em mim. Olhávamos um para o outro, a pouco mais de três metros de distância. Ainda assim sabia o que ele queria. Ele me mostrava como respirar de uma maneira singular. Cheguei ao ponto do meu sonho em que podia imitar a respiração do tigre tão bem que sentia estar me tornando um deles. Disse aos aprendizes que um resultado palpável do meu sonho foi o meu corpo se tornar mais musculoso.

Depois de ouvir meu relato, Nestor se maravilhou em saber como os sonhos deles eram diferentes dos meus. Eles tinham tarefas específicas para os sonhos. A dele era encontrar cura para tudo que afligia o corpo humano. A tarefa de Benigno era predizer, encontrar uma solução para tudo o que fosse do interesse do homem. A de Pablito era encontrar meios de construir. Nestor disse que sua tarefa era a razão de ele lidar com plantas medicinais. Benigno era um profeta, e Pablito era carpinteiro. Acrescentou que até agora tinham apenas arranhado a superfície de seus sonhos e que não tinham nada de substancial para relatar.

— Você pode pensar que fizemos muito — continuou — mas não fizemos. Genaro e o nagual fizeram tudo por nós e por essas mulheres, e nós ainda não fizemos nada por nossa própria conta.

— Me parece que o nagual o preparou de modo diferente — disse Benigno muito devagar. — Você deve ter sido um tigre e vai definitivamente voltar a ser novamente. Foi o que aconteceu com o nagual; ele tinha sido um corvo e durante esta vida voltou a ser corvo novamente.

— O problema é que essa espécie de tigre não existe mais — disse Nestor. — Nunca ouvimos falar no que acontece nesses casos.

Fez um movimento com a cabeça para incluir todos eles com o seu gesto.

— Eu sei o que acontece — disse la Gorda. — Lembro-me que o nagual Juan Matus chamou a isso sonho fantasma. Disse que ne­nhum de nós jamais teve um sonho fantasma porque não somos vio­lentos ou destrutivos. Ele próprio nunca teve. E falou que quem tem está destinado a ter ajudantes e aliados fantasmas.

— O que quer dizer isso, Gorda? — perguntei.

— Quer dizer que você não é como nós — replicou ela som­briamente.

La Gorda parecia estar muito agitada. Levantou-se e andou pela sala para cima e para baixo quatro ou cinco vezes antes de sentar-se de novo ao meu lado.

Houve um intervalo de silêncio na conversa. Josefina murmurou alguma coisa ininteligível. Ela também parecia muito nervosa. La Gorda tentou acalmá-la, abraçando-a e batendo nas suas costas.

— Josefina tem uma coisa a lhe dizer sobre Eligio — disse-me la Gorda.

Todos olharam para Josefina sem dizer palavra, com uma per­gunta nos olhos.

— Apesar de Eligio ter desaparecido da face da terra — conti­nuou la Gorda — ele ainda é um de nós. E Josefina conversa com ele todo o tempo.

Os outros de repente ficaram atentos. Olharam um para o outro e depois olharam para mim.

— Eles se encontram no sonho — falou la Gorda dramatica­mente.

Josefina respirou fundo, parecendo estar no auge do nervosismo. Seu corpo se sacudia em convulsão. Pablito deitou-se em cima dela no chão e começou a respirar com força com seu diafragma, empurrando-o para dentro e para fora, forçando-a a respirar em uníssono com ele.

— O que ele está fazendo? — perguntei à la Gorda.

— O que ele está fazendo? Não está vendo? — respondeu zangada.

Sussurrei para ela que sabia que ele estava tentando fazê-la relaxar, mas que seu método era novo para mim. Ela disse que Pablito estava dando energia a Josefina colocando o meio do seu corpo, onde o homem tem um excesso de energia, por cima do ventre de Josefina, onde as mulheres guardam sua energia.

Josefina sentou-se e sorriu para mim. Parecia completamente relaxada.

— Eu me encontro mesmo com Eligio todo o tempo — falou. — Ele me espera todos os dias.

— Como é que nunca nos contou? — perguntou Pablito numa voz irritada.

— Ela me contou — interrompeu la Gorda, dando depois uma explicação longa do quanto significava para todos nós saber que Eligio estava disponível. Acrescentou que tinha estado esperando um sinal da minha parte a fim de expor as palavras de Eligio.

— Não venha com rodeios, mulher! — gritou Pablito. — Diga-nos as palavras dele.

— Elas não são para você! — gritou la Gorda de volta.

— Para quem são então? — perguntou Pablito.

— São para o nagual — gritou la Gorda, apontando para mim.

La Gorda desculpou-se por elevar a voz. Disse que o que quer que Eligio tivesse dito era complexo e misterioso, e ela não podia tirar cara ou coroa com as palavras dele.

— Eu apenas o ouvi. Tudo o que pude fazer foi ouvi-lo — continuou ela.

— Quer dizer que você também se encontra com Eligio? — perguntou Pablito num tora misturado de raiva e expectativa.

— Encontro-me — replicou la Gorda quase num sussurro. — Não podia falar sobre isso porque tinha de esperar por ele.

Apontou para mim e depois me empurrou com as duas mãos. Perdi por um momento o equilíbrio e caí para o lado.

— O que é isso? O que está fazendo com ele? — perguntou Pablito numa voz muito zangada. — Foi uma exibição de amor indígena?

Eu me virei para la Gorda. Ela fez um gesto com os lábios dizendo-me para ficar quieto.

— Eligio disse que você é o nagual, mas que não é para nós — falou-me Josefina.

Houve um silêncio mortal na sala. Eu não sabia o que fazer com a declaração de Josefina. Tive de esperar até que outra pessoa falasse.

— Está se sentindo aliviado? — disse la Gorda me instigando.

Falei a todos que não tinha opinião alguma neste ou naquele sentido. Eles pareciam crianças, crianças perplexas. La Gorda tinha um ar de mestre-de-cerimônia completamente encabulada.

Nestor levantou-se e olhou para ela. Disse-lhe uma frase em mazatec. Parecia uma ordem ou uma repressão.

— Diga-nos tudo o que sabe, Gorda — continuou em espa­nhol. — Você não tem o direita de brincar conosco, de esconder uma coisa tão importante só para você.

La Gorda protestou veementemente. Explicou que estava escon­dendo o que sabia porque Eligio tinha lhe pedido isso. Josefina assen­tiu com um movimento de cabeça.

— Ele disse tudo isso a você ou a Josefina? — perguntou Pablito.

— Estávamos juntas — falou la Gorda num murmúrio quase inaudível.

— Quer dizer que você e Josefina sonharam juntas! — excla­mou Pablito perdendo o ar.

A surpresa da sua voz foi igual à onda de choque que se abateu em todos eles.

— O que foi exatamente que Eligio disse a vocês duas? — perguntou Nestor, depois que o espanto diminuiu.

— Disse que eu devia tentar ajudar o nagual a lembrar-se do seu lado esquerdo — falou la Gorda.

— Você sabe do que ela está falando? — perguntou-me Nestor.

Não havia possibilidade de eu saber. Disse-lhes que eles deviam se voltar para si mesmos para conseguirem as respostas. Mas nenhum deles deu qualquer sugestão.

— Ele disse a Josefina outras coisas de que ela também não consegue se lembrar — disse la Gorda. — Assim é que estamos num dilema verdadeiro, Eligio falou que você é definitivamente o nagual e que tem de nos ajudar, mas que você não é para nós. Só depois de se lembrar do seu lado esquerdo é que poderá nos levar para onde temos de ir.

Nestor falou com Josefina de um modo paternal, insistindo com ela que se lembrasse do que Eligio lhe dissera, em vez de insistir em que eu me lembrasse de alguma coisa que devia ser uma espécie de código já que nenhum de nós conseguia entender o seu sentido.

Josefina encolheu-se e franziu a testa como se estivesse sob um peso grande que a empurrava para baixo. Parecia realmente uma boneca de trapo sendo comprimida. Observei-a verdadeiramente fascinado.

— Não posso — disse ela finalmente. — Sei do que ele está falando quando fala comigo, mas não consigo dizer agora o que era. Não sei.

— Você se lembra de alguma palavra? — perguntou Nestor. — Qualquer palavra?

Ela esticou a língua para fora, sacudiu a cabeça para um lado e para o outro e gritou ao mesmo tempo.

— Não. Não consigo — disse depois de algum tempo.

— Que espécie de sonho você faz, Josefina? — perguntei.

— O único que eu sei — falou ela agressivamente.

— Eu lhe contei como faço o meu — falei. — Agora conte-me como você faz o seu.

— Fecho meus olhos e vejo esta parede — falou ela. — É como se fosse uma parede de névoa. Eligio me espera aqui. Ele me leva através dela e me mostra coisas, suponho eu. Não sei o que fazemos, mas fazemos juntos. Depois ele me traz de volta para a parede, me manda embora, e eu volto e me esqueço do que vi.

— Como é que você foi com la Gorda? — perguntei.

— Eligio me disse para buscá-la — falou. — Nós dois espera­mos por la Gorda, e quando ela entrou no sonho dela nós a agarra­mos e puxamos para trás da parede. Fizemos isso duas vezes.

— Como vocês a agarraram? — perguntei.

— Não sei! — replicou Josefina. — Mas vou esperá-lo, e quan­do você estiver sonhando eu o agarro e você vai saber como.

— Você pode agarrar qualquer pessoa? — perguntei.

— É claro — disse ela sorrindo. — Mas não faço isso porque é um desperdício. Agarrei la Gorda porque Eligio me disse que queria dizer a ela uma coisa porque ela era mais equilibrada do que eu.

— Então Eligio deve ter lhe dito as mesmas coisas, Gorda — falou Nestor com uma firmeza que não me era familiar.

La Gorda fez um gesto pouco usual de baixar a cabeça, abrir a boca dos lados, sacudindo os ombros e levantando os braços acima da cabeça.

— Josefina acabou de lhes contar o que aconteceu — disse ela. — Não há meio de eu me lembrar. Eligio fala numa velocidade diferente. Ele fala, mas meu corpo não pode compreendê-lo. Não. Não. Meu corpo não consegue se lembrar, é isso. Sei que ele disse que este nagual aqui se lembrará e nos levará para onde devemos ir. Não pôde me dizer mais nada porque havia muito a ser dito em muito pouco tempo. Falou que alguém, e não me lembro quem, está esperando por mim em especial.

— Foi isso tudo o que ele disse? — insistiu Nestor.

— A segunda vez em que o vi ele me falou que todos nós teremos de nos lembrar do nosso lado esquerdo, mais cedo ou mais tarde, se quisermos chegar onde devemos ir. Mas é ele quem tem de se lembrar primeiro...

Apontou para mim e me empurrou novamente como tinha feito da outra vez. A força do seu empurrão me fez cair como uma bola.

— Por que está fazendo isso, Gorda? — perguntei um pouco aborrecido com ela.

— Estou tentando ajudá-lo a se lembrar — falou. — O nagual me disse que eu devia dar-lhe um empurrão de tempos em tempos a fim de sacudir você.

La Gorda me abraçou com um movimento muito repentino.

— Ajude-nos, nagual — implorou ela. — Se não nos ajudar será pior para nós que a morte.

Eu estava a ponto de chorar. Não por causa do dilema deles, mas porque senti uma coisa mexendo-se dentro de mim. Era uma coisa que vinha fazendo seu caminho desde que visitáramos aquela cidade.

A súplica de la Gorda era de quebrar o coração. Então tive um outro ataque que me parecia ser hiperventilação. Um suor frio envol­veu-me e eu fiquei mal do estômago. La Gorda me atendeu com muita bondade.

 

Fiel à sua prática de esperar antes de revelar uma descoberta, la Gorda não considerava a idéia de discutir nosso ver juntos em Oaxaca. Durante dias ela permaneceu à distância e deliberadamente desinte­ressada. Nem ao menos discutia o fato de eu ter ficado doente. Nem as outras mulheres tampouco. Dom Juan costumava insistir na neces­sidade de esperar a hora mais apropriada de soltar alguma coisa que guardava para si. Compreendi a mecânica das ações de la Gorda, embora achasse que a insistência dela em esperar fosse bastante irritante e não tivesse em harmonia com nossas necessidades. Eu não podia ficar com eles muito tempo. Exigi que todos ficássemos juntos e dividíssemos entre nós tudo o que sabíamos. Ela foi inflexível.

— Temos de esperar — falou. — Temos de dar a nossos corpos uma chance de encontrar uma solução. Nossa tarefa é a tarefa de lembrar, não com a cabeça, mas com o corpo. Todos compreendem isso assim.

Olhou para mim de modo indagador. Parecia estar procurando um indício que lhe diria que eu também compreendia a tarefa. Admiti estar confuso, já que eu era de fora. Eu estava sozinho, enquanto eles tinham um ao outro para concordar.

— Este é o silêncio dos guerreiros — disse ela rindo, e depois acrescentando em tom conciliatório. — Este silêncio não quer dizer que não possamos falar de outra coisa.

— Talvez devêssemos voltar à nossa discussão antiga de perder a forma humana — disse eu.

Houve um olhar de surpresa nos olhos dela. Expliquei que, especialmente quando tratava com conceitos estranhos, seu significado tinha de ser continuamente esclarecido para mim.

— O que você quer saber exatamente? — perguntou.

— Qualquer coisa que possa me querer dizer — disse.

— O nagual me disse que perder a forma humana traz liberda­de — falou. — Mas eu ainda não senti essa liberdade.

Houve um momento de silêncio. Ela estava obviamente cobrando minha reação.

— Que espécie de liberdade é essa, Gorda? — perguntei.

— A liberdade de lembrar-se de você próprio — falou. — O nagual disse que perder a forma humana é como que uma espiral. Dá a você a liberdade de lembrar, e isso por sua vez o faz ainda mais livre.

— Por que você ainda não sentiu essa liberdade? — perguntei.

Ela estalou a língua e encolheu os ombros. Parecia confusa ou relutante em continuar nossa conversa.

— Estou presa a você — falou. — Até que você perca sua forma humana a fim de se lembrar, não poderei saber o que é liber­dade. Mas talvez você não seja capaz de perder sua forma humana antes que se lembre. Não devíamos estar falando disso, de qualquer forma. Por que não vai conversar com os Genaros?

Ela parecia uma mãe mandando as crianças brincarem. Não me importei a mínima com isso. A mesma atitude vindo dos outros pode­ria facilmente ter parecido arrogante ou de desprezo. Gostava dela, essa era a diferença.

Encontrei Pablito, Nestor e Benigno na casa de Genaro fazendo uma brincadeira estranha. Pablito balançava-se a um metro e vinte abaixo do chão, dentro de uma espécie de arreio de couro escuro amarrado no peito, por baixo dos braços. O arreio parecia um colete de couro grosso. Quando focalizei minha atenção sobre ele reparei que Pablito estava na realidade de pé, por cima de correias grossas que se penduravam do arreio como estribos. Estava suspenso no centro da sala por duas cordas presas por cima de uma espessa viga transversa, que sustentava o telhado. Cada corda era amarrada ao próprio arreio, por cima dos ombros de Pablito, através de um anel de metal.

Nestor e Benigno seguravam a corda. Estavam de pé, um em frente ao outro, segurando Pablito no meio do ar com a força da puxada deles. Pablito segurava com toda sua força duas estacas finas e compridas plantadas no chão, que cabiam confortavelmente nas suas mãos fechadas. Nestor estava à esquerda e Pablito e Benigno à direita.

A brincadeira parecia ser uma luta decisiva de três lados, uma batalha feroz entre aqueles que puxavam e o que estava suspenso.

Quando entrei na sala tudo o que ouvi foi a respiração forte de Nestor e Benigno. Os músculos dos braços e do pescoço deles esta­vam inchados com a força que faziam para puxar.

Pablito ficava olhando os dois, focalizando cada um, um de cada vez, com uma olhada dividida. Todos estavam tão absortos na brinca­deira que nem notaram minha presença, ou se notaram não podiam quebrar a concentração para falar comigo.

Nestor e Benigno olharam-se por dez ou quinze minutos em silêncio total. Então Nestor fingiu que ia soltar a corda. Benigno não acreditou, mas Pablito sim. Apertou a corda do lado da mão esquerda e prendeu os pés nas estacas a fim de aumentar o máximo a força de sua pega. Benigno aproveitou o momento para atacar e deu uma puxada com força no instante preciso em que Pablito afrouxava a pega.

A puxada de Benigno pegou Pablito e Nestor desprevenidos. Benigno pendurou-se pela corda com todo o seu peso. Nestor perdeu a posição. Pablito lutou desesperadamente para equilibrar-se, mas foi inútil. Benigno ganhou daquela vez.

Pablito saiu do arreio e veio até onde eu estava. Perguntei-lhe sobre aquela brincadeira extraordinária. Ele parecia relutar em falar sobre ela. Nestor e Benigno vieram ter conosco depois de porem de lado suas traquitanas. Nestor disse que a brincadeira tinha sido ensi­nada por Pablito, que encontrara a estrutura de sonhar e depois a construíra como se fosse uma brincadeira. No início era apenas um dispositivo para tensionar os músculos de dois ao mesmo tempo. Costumavam trocar de lugar com o que era içado. Mas depois o sonho de Benigno lhes deu a chave para uma brincadeira na qual todos os três tensionavam seus músculos e aguçavam seu valor vi­sual, permanecendo num estado de alerta, às vezes durante horas.

— Benigno acha que isso agora ajuda nossos corpos a se lem­brarem — continuou Nestor. — La Gorda, por exemplo, faz a brincadeira de uma forma estranha. Ela ganha toda vez, não importa em que posição fique. Benigno acha que é porque o corpo dela se lembra.

Perguntei-lhe se eles também tinham o tabu do silêncio. Eles riram. Pablito disse que la Gorda queria mais que tudo no mundo ser como o nagual Juan Matus. Imitava-o deliberadamente até o mais absurdo detalhe.

— Quer dizer que podemos falar sobre o que aconteceu na outra noite? — perguntei quase que perplexo, já que la Gorda tinha sido tão taxativa em sentido negativo.

— Nós não ligamos — disse Pablito. — Você é o nagual.

— Benigno lembrou-se de uma coisa realmente estranha — dis­se Nestor sem olhar para mim.

Esperei impacientemente. Insisti com eles com um movimento de cabeça para que continuassem.

— No outro dia ele lembrou-se de você ensinando-o a procurar pistas na sujeira fofa — disse Nestor.

— Deve ter sido um sonho — falei.

Queria rir do absurdo, mas todos os três olharam para mim com olhos Suplicantes.

— É absurdo — falei.

— De qualquer forma, é melhor lhe dizer agora que eu tenho uma recordação semelhante — falou Nestor. — Você me levou para umas rochas e mostrou-me como me esconder. A minha lembrança não foi um sonho misturado. Eu estava acordado. Estava andando com Benigno um dia, procurando plantas, e subitamente lembro-me de você me ensinando; então me escondi como me ensinou e assustei Benigno até a alma.

— Eu lhe ensinei? Como pode ter sido? Quando? — perguntei.

Estava começando a ficar nervoso. Eles não pareciam estar brincando.

— Quando? Esse é o problema — disse Nestor. — Não pode­mos imaginar quando. Mas Benigno e eu sabemos que era você.

Senti-me pesado, oprimido. Minha respiração ficou difícil. Tive medo de ficar doente de novo. Decidi naquele momento falar-lhes sobre la Gorda e eu termos visto juntos. Falar sobre aquilo que fez relaxar. No final do meu relato estava de novo controlado.

— O nagual Juan Matus deixou-nos um pouco abertos — falou Nestor. — Todos nós podemos ver um pouco. Vemos buracos nas pessoas que tiveram filhos e também, de tempos em tempos, um pouco de brilho nas pessoas. Já que você não vê absolutamente nada, parece que o nagual deixou-o completamente fechado, a fim de que se abra por dentro. Agora você ajudou la Gorda, e ou ela vê por dentro ou está apenas aproveitando-se de você.

Disse-lhes que o que acontecera em Oaxaca podia ter sido um acaso feliz.

Pablito achou que devíamos ir à rocha favorita de Genaro e sentarmos lá com as cabeças juntas. Os outros dois acharam a idéia brilhante. Eu não tinha objeções. Embora tivéssemos nos sentado lá por um longo tempo nada aconteceu. Ficamos muito relaxados, contudo.

Enquanto estávamos sentados na rocha contei-lhes sobre os dois homens que la Gorda acreditara que fossem Dom Juan e Dom Gena­ro. Eles escorregaram para baixo c praticamente me arrastaram até a casa de la Gorda. Nestor era o mais agitado. Estava quase que incoerente. Tudo o que pude tirar deles foi que eles tinham estado esperando um sinal daquele tipo.

La Gorda nos esperava na porta. Ela sabia o que eu lhes tinha dito.

— Só queria dar tempo ao meu corpo — disse ela antes de qualquer outra coisa ser dita. — Tenho de estar certíssima, e estou. Eram o nagual e Genaro.

— O que há dentro daquelas choupanas? — perguntou Nestor.

— Eles não entraram nelas — disse la Gorda. — Andaram para frente na direção dos campos, na direção do leste. Na direção desta cidade.

Ela parecia inclinada a apaziguá-los. Convidou-os para ficar mas; eles não quiseram. Desculparam-se e partiram. Tinha certeza de que eles se sentiam mal na presença dela. Ela parecia estar muito zangada Eu me diverti bastante com suas explosões de raiva, achando isso um tanto contrário ao meu comportamento. Sempre me senti nervoso na presença de alguém que estivesse transtornado, exceto na presença de la Gorda.

 

No início da noite todos nós nos reunimos na sala de la Gorda. Eles pareciam preocupados. Sentaram-se em silêncio, olhando para o chão, La Gorda tentou iniciar uma conversação. Disse que não tinha sido negligente, que tinha posto os pingos nos ii e que tinha chegado a algumas soluções.

— Não é uma questão de pôr os pingos nos ii — disse Nestor. — É uma tarefa de lembrar com o seu corpo.

Parecia que tinham andado conversando entre eles, a julgar pelos acenos de cabeça de concordância que Nestor recebeu dos outros. Isso deixou la Gorda e eu do lado de fora.

— Lydia também se lembra de uma coisa — continuou Nestor. — Achou que era estupidez dela, mas lembro-me dela ter nos dito que este nagual aqui levou-a a um curandeiro e deixou-a lá para curar os olhos.

La Gorda e eu viramo-nos para Lydia. Ela baixou a cabeça como se estivesse encabulada e gaguejou. A memória parecia dolorosa demais para ela. Disse que quando Dom Juan a encontrou pela primeira vez seus olhos estavam infeccionados e ela não podia ver, e que alguém a levou de carro a um lugar muito longe, a um curandeiro que curou seus olhos. Tinha se convencido de que Dom Juan tinha feito aquilo, mas ao ouvir minha voz compreendeu que era eu quem a tinha levado lá. A incongruência de tal lembrança levou-a à agonia desde o primeiro dia em que me conheceu.

Meus ouvidos não me mentem — acrescentou Lydia depois de um longo silêncio. — Foi você quem me levou lá.

— Impossível! Impossível! — gritei.

Meu corpo começou a sacudir-se sem controle. Tinha a sensação de dualismo. Talvez o que eu chame de meu eu racional, incapaz de controlar o resto de mim, tivesse tomado o lugar de espectador. Alguma parte de mim estava observando a outra parte que se sacudia.

 

                           Atravessando as Fronteiras da Afeição

— O que está acontecendo conosco, Gorda? — perguntei depois que os outros se foram.

— Nossos corpos estão se lembrando mas não posso imaginar o que — disse ela.

— Você acredita nas memórias de Lydia, Nestor e Benigno?

— É claro. Eles são pessoas muito sérias. Não dizem coisas assim pelo simples fato de dizer.

— Mas o que eles dizem é impossível. Você me acredita, não acredita, Gorda?

— Acredito que você não se lembra, mas aí...

Não terminou. Veio para o meu lado e começou a murmurar no meu ouvido. Disse que havia uma coisa que o nagual Juan Matus tinha-a feito prometer guardar para si mesma até a hora certa; um trunfo a ser usado só quando não houvesse outra saída. Acrescentou com um sussurro muito dramático que o nagual tinha previsto o novo arranjo de vida deles, resultado de eu ter levado Josefina a Tula para ficar com Pablito. Falou que havia uma chance mínima de podermos ter êxito como um grupo se seguíssemos a ordem natural daquela organização. Explicou que já estávamos divididos em casais, formá­vamos um organismo vivo. Éramos uma cobra, uma cascavel. A cobra tinha quatro partes e era dividida em duas metades longitudinais, macho e fêmea. Disse que ela e eu formávamos a primeira parte da cobra, a cabeça. Era uma cabeça fria, calculista e venenosa. A segun­da parte, formada por Nestor e Lydia, era o coração firme e belo da serpente. A terceira era a barriga; uma barriga astuta, melancólica, desleal, formada por Pablito e Josefina. E a quarta parte, o rabo onde ficava o chocalho, era formada pelo casal que na vida real podia fazer aquele barulho na língua tzotzil durante horas sem fim — Benigno e Rosa.

La Gorda sentou-se reta, saindo da posição em que estivera para sussurrar no meu ouvido. Sorriu para mim e deu uma palmada nas minhas costas.

— Eligio disse uma palavra que finalmente veio a mim — conti­nuou. — Josefina concorda comigo que ele disse a palavra trilha muitas e muitas vezes. Vamos seguir uma trilha!

Sem me dar uma chance de fazer qualquer pergunta ela disse que ia dormir por algum tempo e depois reunir todos para viajar.

 

Partimos antes da meia-noite, caminhando numa lua brilhante. Todos tinham relutado em ir a princípio, mas la Gorda, com muita habili­dade, fez um esboço para eles da pretensa descrição de Dom Juan da cobra. Antes de partirmos Lydia sugeriu que devíamos levar mantimentos, no caso da viagem ser longa. La Gorda não aceitou a sugestão, baseada no fato de que não tínhamos idéia sobre a nature­za da viagem. Contou que o nagual Juan Matus tinha uma vez mos­trado a ela o início de um caminho e disse que na oportunidade certa devíamos nos colocar naquele lugar e deixar o poder da trilha revelar-se a nós. Acrescentou que não era um caminho comum, mas uma linha natural da terra, que o nagual dissera que nos daria força e conhecimento se pudéssemos seguir e nos tornar unos com ela.

Caminhamos sob uma liderança mista. La Gorda representava a iniciativa e Nestor conhecia o terreno real. Ela nos levou a um lugar nas montanhas. Nestor tomou a frente e localizou um caminho real. Nossa formação era evidente, a cabeça liderava; os outros se adapta­vam, seguindo o modelo anatômico de uma cobra — coração, intes­tinos e rabo. Os homens ficavam à direita das mulheres. Cada casal ficava a um metro e meio do outro à sua frente.

Caminhamos tão depressa e tão silenciosamente quanto possível. Ouvimos cães latindo durante algum tempo; quando subimos mais as montanhas havia só o som dos grilos. Andamos por um longo tem­po. Subitamente la Gorda parou e agarrou o meu braço, apontando na nossa frente. A vinte ou trinta metros, bem no meio da trilha, via-se uma silhueta volumosa de um homem enorme de mais de dois metros e dez de altura, bloqueando nossa passagem. Agrupamo-nos juntos num bloco sólido. Nossos olhos estavam fixos na forma escura. Ele não se movia. Depois de algum tempo Nestor avançou alguns passos na sua direção, e só então ele se moveu. Veio em nossa dire­ção. Do meu ponto de vista era um homem gigante, mas movia-se com agilidade.

Nestor voltou correndo. No momento em que se juntou a nós o homem parou. De maneira corajosa la Gorda dirigiu-se a ele, e o homem parou. Era evidente que se continuássemos em frente iríamos nos chocar com o gigante. Nós não podíamos competir com ele. Sem tentar novamente descobrir quem ele era tomei a iniciativa de empurrar todo mundo para trás, levando-o rapidamente para longe.

Voltamos para a casa de la Gorda em silêncio total, levando horas para chegar lá. Estávamos terrivelmente cansados. Quando nos sentamos em segurança na sala, la Gorda falou.

— Estamos condenados — disse-me. — Você não quis que continuássemos em frente. Aquela coisa que vimos na trilha era um de seus aliados, não era? Eles sabem dos seus esconderijos quando você os tira de lá.

Deixei sua observação sem resposta. Não adiantava protestar. Lembrei-me das vezes sem fim em que tinha acreditado que Dom Juan e Dom Genaro estavam em conluio um com o outro. Achava que enquanto Dom Juan falava comigo, Dom Genaro no escuro, punha um disfarce a fim de me assustar e Dom Juan insistia em que ele era um aliado. A idéia de haver aliados ou entidades à solta, que escapam da nossa atenção diária, era muito forçada para mim. Mas depois tinha tido a experiência de que os aliados que Dom Juan descrevia existiam de fato; havia, como ele dissera, entidades à solta no mundo.

Numa explosão de comportamento autoritário, raro na minha vida diária, levantei-me e disse à la Gorda e aos demais que eu rinha uma proposta para eles e que podiam aceitar ou não. Se estivessem prontos a partir de lá eu estava disposto a tomar a responsabilidade de levá-los para algum outro lugar. Se não estivessem prontos, me sentiria eximido de qualquer outro compromisso com eles.

Senti um ímpeto de otimismo e certeza. Nenhum deles disse coisa alguma. Olharam para mim em silêncio como se estivessem avaliando minhas declarações.

— Quanto tempo levariam para apanhar suas coisas? — perguntei.

— Não temos nada — disse la Gorda. — Iremos como estamos. E podemos ir neste minuto se for necessário. Mas se pudéssemos esperar mais três dias seria melhor para nós.

— E as casas de vocês? — perguntei.

— Soledad cuidará delas — respondeu.

Foi a primeira vez que o nome de dona Soledad foi mencionada, desde a última vez em que a vira. Era tão estranho que por um momento me esqueci do drama daquele instante. Sentei-me. La Gorda hesitava em responder às minhas perguntas sobre Dona Soledad. Nestor tomou a frente e disse que Soledad andava por ali, mas que nenhum deles sabia muito sobre ela. Ela ia e vinha sem dar qualquer aviso, e a combinação entre eles era que cuidariam da casa dela e vice-versa.

 

Soledad sabia que eles teriam de ir embora mais cedo ou mais tarde, e assumiria a responsabilidade de fazer o que fosse necessário para dispor das propriedades deles.

— Como a irão avisar? — perguntei.

— Isso é problema de la Gorda — disse Nestor. — Nós não sabemos onde ela esta.

— Onde está Dona Soledad, Gorda? — perguntei.

— Que diabo, como é que posso saber? — investiu la Gorda contra mim.

— Mas é você quem a chama — disse Nestor.

La Gorda me olhou. Era uma olhada normal, mas senti um arrepio. Reconheci aquele olhar, mas de onde? As profundezas do meu corpo se mexeram, meu plexo solar estava sólido como nunca tinha estado antes. Meu diafragma parecia subir sem que eu o coman­dasse. Estava pensando se devia me deitar, quando de repente me vi de pé.

— La Gorda não sabe — disse eu. — Só eu sei onde ela está.

Todos ficaram chocados, principalmente eu. Tinha feito a decla­ração sem qualquer fundamento racional. No momento em que falei, contudo, tinha a perfeita convicção de que sabia onde ela estava. Era conto se um lampejo tivesse cruzado minha consciência. Vi uma área montanhosa com picos muito áridos e rugosos; um terreno des­carnado, desolado e frio. Imediatamente depois de eu ter falado, meu próximo pensamento consciente foi que eu devia ter visto aquela cena num filme e que a pressão de estar com aquelas pessoas estava me causando uma estafa.

Desculpei-me por enganá-los de uma maneira tão clamorosa, embora sem intenção. Sentei-me.

— Quer dizer que não sabe por que disse isso? — perguntou Nestor.

Ele tinha escolhido as palavras cuidadosamente. O natural, pelo menos para mim, teria sido dizer “então você realmente não sabe onde ela está”. Disse-lhes que uma coisa desconhecida tinha vindo a mim. Descrevia o cenário que tinha visto e a certeza que tivera de que Dona Soledad estava lá.

— Isso nos acontece muito freqüentemente — disse Nestor.

Virei-me para la Gorda e ela fez que sim com a cabeça. Pedi-lhe uma explicação.

— Essas coisas malucas misturadas vêm a toda hora na nossa cabeça — disse la Gorda. — Pergunte a Lydia, Rosa ou Josefina.

Desde que tinham iniciado seu novo sistema de vida, Lydia, Rosa e Josefina não falavam muito comigo. Limitavam-se a me cumprimentar e fazer alguns comentários ligeiros sobre a comida ou o tempo.

Lydia evitava meus olhos. Murmurou que achava as vezes que se lembrava de outras coisas.

— Às vezes eu o detesto — disse-me. — Acho que você é presunçoso e burro. Depois me lembro de que esteve muito doente por nossa causa. Não foi você?

— É claro que foi ele — disse Rosa. — Eu também me lembro de coisas. Lembro-me de uma senhora que foi boa para mim. Ensi­nou-me a ser uma pessoa limpa e este nagual cortou meu cabelo pela primeira vez, enquanto a senhora me segurava porque eu estava com medo. Aquela senhora gostava de mim. Me abraçava todo o tempo. Era muito alta. Lembro-me que meu rosto ficava sobre o seio dela quando ela me abraçava. Ela foi a única pessoa do mundo que ligou para mim. Eu daria de bom grado a minha vida por ela.

— Quem era essa senhora, Rosa? — perguntou la Gorda pren­dendo a respiração.

Rosa apontou para mim com um movimenta do queixo, um gesto cheio de desalento e desdém.

— Ele sabe — disse.

Todos me olharam esperando uma resposta. Fiquei com raiva e gritei para Rosa que ela não tinha direito de fazer declarações que eram na verdade acusações. Eu não estava de forma alguma mentindo para eles.

Rosa não se perturbou com a minha explosão. Calmamente explicou que se lembrava da senhora lhe contar que eu voltaria um dia, depois que tivesse me recobrada da minha doença. Rosa compre­endeu que a senhora estava cuidando de mim, fazendo-me ficar com saúde, e portanto eu tinha de saber quem ela era e onde estava, já que eu parecia ter me recuperado.

— Que espécie de doença eu tive, Rosa? — perguntei.

— Você ficou doente porque não pôde manter seu mundo — disse ela com a máxima convicção. — Alguém me disse, creio que há muito tempo atrás, que você não era feito para nós, exatamente como Eligio disse a la Gorda em sonho. Você aos deixou por causa disso e Lydia nunca o perdoou. Ela o detestará até no outro mundo.

Lydia protestou que seu sentimento por mim não tinha nada a ver com a explicação de Rosa. Ela era apenas mal-humorada e ficava com raiva súbita das minhas burrices.

Perguntei a Josefina se ela também se lembrava de mim.

— É claro que lembro — disse com uma risadinha. — Mas você me conhece, eu sou maluca. Não pode confiar em mim. Não sou digna de confiança.

La Gorda insistiu em ouvir do que Josefina se lembrava. Josefina estava disposta a não dizer nada e elas discutiram; finalmente ela falou para mim.

— O que adianta falar tanto sobre se lembrar? É apenas conver­sa fiada — disse. — E não vale um tostão.

Josefina parecia ter marcado um tento com todos nós. Não havia mais nada a dizer. Estavam se levantando para sair depois de terem se sentado num silêncio gentil por alguns minutos.

— Lembro-me que você comprou roupas lindas para mim — disse Josefina de repente. — Não se lembra quando eu caí das esca­das numa loja? Quase quebrei minha perna e você teve de me car­regar.

Todos se sentaram novamente e ficaram com os olhos fixos nela.

— Também me lembro de uma mulher maluca — continuou. — Ela queria me bater e costumava me procurar por todo lado até que você ficou zangado e a fez parar.

Senti-me exasperado. Todos pareciam acreditar nas palavras de Josefina quando ela própria nos dissera que não confiassem nela por­que ela era maluca.

— Eu também sei por que você ficou doente — continuou. — Eu estava lá. Mas não consigo me lembrar onde. Eles o levaram para além daquela parede de névoa para encontrar essa Gorda burra. Imagino que ela devia estar perdida. Você não conseguiu voltar, c quando o trouxeram de volta você estava quase morto.

O silêncio que se seguiu às suas revelações foi opressivo. Tive medo de perguntar qualquer coisa.

— Não posso me lembrar por que cargas-d'água ela foi lá, ou quem o trouxe de volta — prosseguiu Josefina. — Lembro-me bem que você estava doente e não me reconhecia mais. Essa Gorda burra jura que não o conhecia quando você veio pela primeira vez nesta casa há uns meses atrás. Eu o reconheci imediatamente. Lembro-me que você era o nagual que ficou doente. Quer saber de uma coisa? Creio que essas mulheres estão sem querer falar. E os homens tam­bém, especialmente aquele Pablito burro. Eles têm de se lembrar, estavam lá também.

— Pode se lembrar onde estávamos? — perguntei.

— Não, não consigo — falou Josefina. — Mas saberei se você me levar lá. Quando estávamos todos lá eles costumavam chamar-nos de bêbados porque vivíamos embriagados. Eu era a menos tonta de todos, por isso me lembro muito bem.

— Quem nos chamava de bêbados? — perguntei.

— Não a você, só a nós — replicou Josefina. — Não sei quem. O nagual Juan Matus, suponho.

Olhei para eles e cada um deles evitou meu olhar.

— Estamos chegando ao fim — murmurou Nestor, como que falando consigo mesmo. — Nosso fim está nos olhando nos olhos.

Ele parecia a ponto de chorar.

— Devia ficar contente e orgulhoso de chegarmos ao fim — continuou. — No entanto estou triste. Pode explicar isso, nagual?

De repente todos ficaram tristes, até mesmo a desafiadora Lydia.

— O que é que há com vocês todos? — perguntei num tom amigo. — De que fim estão falando?

— Acho que todos sabem que fim é esse — disse Nestor. — Ultimamente tenho tido sensações estranhas. Alguma coisa está nos chamando, e não nos soltamos como devíamos. Estamos nos pren­dendo.

Pablito teve um momento de verdadeira gentileza e disse que la Gorda era a única dentre eles que não se prendia a nada. Os demais, assegurou-me, eram quase que egoístas arrematados.

— O nagual Juan Matus disse que quando for hora de irmos teremos um sinal — falou Nestor. — Alguma coisa de que realmente gostamos virá e nos levará.

— Ele disse que não terá de ser uma coisa grande — acrescen­tou Benigno. — Qualquer coisa de que gostemos serve.

— Para mim o sinal virá na forma de soldadinhos de chumbo que eu nunca tive — disse Nestor. — Uma fileira de hussardos a cavalo virá me buscar. O que vai ser para você?

Lembrei-me que Dom Juan me dissera uma vez que a morte podia estar por trás de qualquer coisa inimaginável, até mesmo por trás de um pingo no meu bloco de escrever. Deu-me então a metáfora definitiva da minha morte. Eu tinha lhe dito que uma vez quando passeava pelo Hollywood Boulevard, em Los Angeles, tinha ouvido o som de uma clarineta tocando uma música popular antiga e boba. A música vinha de uma casa de discos do outro lado da rua. Nunca tinha ouvido um som tão bonito e fiquei fascinado. Tive de me sentar no meio-fio. O som límpido do metal daquela clarineta entrava dire­tamente no meu cérebro. Sentia-o logo acima da minha têmpora direita. Acalmou-me a ponto de me deixar bêbado. Quando terminou eu soube que não havia meio de repetir jamais aquela experiência, e tive o senso suficiente de desprendimento para não ir correndo à loja e comprai o disco e um estéreo para tocá-lo.

Dom Juan disse que tinha sido um sinal dado a mim pelos poderes que governam o destino do homem. Quando chegar o tempo de eu deixar o mundo, da forma que seja, ouvirei novamente o mesmo som daquela trombeta, a mesma canção boba, o mesmo clarinetista sem par.

 

O dia seguinte foi frenético para eles. Pareciam ter coisas sem fim a fazer. La Gorda disse que todos os trabalhos eram pessoais e que tinham de ser feitos por cada um deles sem a ajuda de ninguém. Gostei de ficar sozinho, pois também tinha coisas a elaborar. Fui de carro até a cidade próxima que tinha me perturbado tanto. Fui direta­mente até à casa que tinha exercido tanto fascínio sobre mim e la Gorda e bati na porta. Uma senhora atendeu. Inventei uma história de que tinha vivido naquela casa quando era criança e queria dar mais uma olhada nela. Ela era uma senhora muito gentil. Deixou-me entrar, desculpando-se enormemente por uma desordem inexistente.

Havia uma riqueza de memórias ocultas naquela casa. Estavam lá, podia senti-las, mas não conseguia me lembrar de nada.

 

No dia seguinte la Gorda saiu de madrugada; esperei que fosse ficar fora o dia todo, mas ela voltou ao meio-dia. Parecia muito perturbada.

— Soledad voltou e quer vê-lo — disse sem mais delongas.

Sem qualquer palavra de explicação levou-me à casa de Dona Soledad, que estava de pé na porta. Parecia mais moça e mais forte do que da última vez em que a vira. Tinha uma semelhança muito pequena com a senhora que eu tinha conhecido há anos atrás.

La Gorda parecia estar a ponto de chorar. A tensão que estáva­mos passando explicava perfeitamente seu estado de espírito. Saiu sem dizer uma palavra.

Dona Soledad falou que só tinha pouco tempo para conversar comigo e que usaria todos os minutos disponíveis. Estava estranha­mente gentil comigo. Havia um tom de delicadeza em cada palavra que dizia.

Fiz um gesto para interrompê-la a fim de fazer uma pergunta. Queria saber onde ela tinha estado. Ela me cortou de uma maneira muito delicada, e disse que tinha escolhido as palavras com cuidado e que a falta de tempo só lhe permitiria dizer o essencial.

Olhou fundo nos meus olhos por um instante que me pareceu enormemente longo. Aquilo me aborreceu. Podia ter falado comigo e respondido a algumas perguntas durante todo aquele tempo. Que­brou o silêncio e falou que o que eu pensava era absurdo. Disse que tinha me atacado como eu lhe pedira, no dia em que atravessamos as linhas paralelas pela primeira vez, e que só esperava que o seu ataque tivesse produzido efeito e servido o seu objetivo. Eu tinha vontade de gritar que não tinha a menor idéia do que ela estava falando. Não sabia de linhas paralelas e nunca tinha lhe pedido nada.

 

Recolhi-me automaticamente. Ela parecia triste. Disse que não adian­tava falarmos porque naquele momento estávamos em duas linhas paralelas e nenhum de nós tinha energia para atravessá-la; só os seus olhos podiam me mostrar seu estado de espírito.

Sem razão alguma comecei a me sentir relaxado, alguma coisa dentro de mim sentindo-se à vontade. Percebi que rolavam lágrimas no meu rosto. E então uma sensação muito incrível tomou conta de mim por um instante, um curto instante mas longo o suficiente para balançar as bases da minha consciência, ou da minha pessoa, ou do que acho e sinto ser eu mesmo. Durante aquele breve momento soube que estávamos muito próximos um do outro em propósito e tempera­mento. Nossas circunstâncias eram iguais. Tive vontade de contar a ela que tinha sido uma luta árdua, mas a luta ainda não terminara. Nunca terminaria. Ela estava se despedindo porque, sendo a guerrei­ra impecável que era, sabia que nossos caminhos nunca mais se cruzariam. Tínhamos chegado ao final de uma trilha. Uma onda perdida de filiação, de parentesco, explodiu de algum canto escuro imaginário de mim mesmo. Aquele lampejo era como que uma carga elétrica no meu corpo. Abracei-a; minha boca se movia dizendo coisas que não tinham significado para mim. Seus lábios se iluminaram. Ela também dizia alguma coisa que eu não podia compreender. A única sensação que era clara para mim, que eu tinha atravessado as linhas paralelas, não tinha sentido pragmático. Havia uma agonia derramada dentro de mim empurrando-me para fora. Alguma força inexplicável rachava-me ao meio. Não podia respirar, e tudo ficou preto.

 

Senti alguém me movendo, me sacudindo gentilmente. O rosto de la Gorda entrou em foco. Eu estava deitado na cama de Dona Soledad e la Gorda estava sentado ao meu lado. Estávamos sozinhos.

— Onde está ela? — perguntei.

— Foi embora — respondeu la Gorda.

Tive vontade de contar tudo para la Gorda. Ela me deteve e abriu a porta. Todos os aprendizes estavam do lado de fora esperando por mim. Tinham vestido suas melhores roupas. La Gorda explicou que tinham rasgado tudo o que tinham. Era fim de tarde. Eu tinha dormido durante horas. Andamos sem falar até a casa de la Gorda, onde meu carro estava estacionado. Eles abarrotaram o carro como crianças indo dar uma volta no domingo.

Antes de entrar no carro fiquei de pé olhando o vale. Meu corpo girava lentamente, fazendo um círculo completo, como se tivesse uma volição e um propósito próprios. Senti que estava captu­rando a essência daquele lugar. Queria guardá-lo comigo, pois sabia que nunca mais na vida iria ver aquele lugar novamente.

Os outros já deviam ter feito aquilo. Não estavam melancólicos, estavam rindo, implicando uns com os outros.

Dei a partida no carro e segui caminho. Quando chegamos à última virada da estrada o sol estava se pondo, e la Gorda gritou para que eu parasse. Saiu do carro e correu para uma pequena colina do lado da estrada. Subiu-a e deu uma última olhada no seu vale. Estendeu os braços na direção dele e respirou fundo.

 

A descida das montanhas foi estranhamente curta e sem novidade. Todos estavam quietos. Tentei travar conversação com la Gorda mas ela se recusou, dizendo que as montanhas eram possessivas e exigiam sua possessividade, e que se não salvassem sua energia as montanhas nunca mais os deixariam ir embora.

Quando chegamos embaixo eles ficaram mais animados, especial­mente la Gorda. Ela parecia estar borbulhando de energia. Até mesmo se ofereceu para dar informações sem nenhum encorajamento da minha parte. Uma das suas declarações foi que o nagual Juan Matus tinha lhe dito, e Soledad tinha confirmado, que havia um outro lado para nós. Depois de ouvir isso os demais fizeram perguntas e comen­tários; estavam frustrados com suas estranhas memórias dos aconteci­mentos que não podiam logicamente ter acontecido. Já que alguns deles tinham me conhecido há apenas uns meses, lembrar-se de mim no passado remoto era uma coisa além das fronteiras da sua razão.

Eu lhes contei então sobre meu encontro com dona Soledad. Descrevi minha sensação de tê-la conhecido antes e a sensação de ter reconhecidamente atravessado o que ela chamava de “linhas para­lelas”. Eles reagiram à minha declaração confusamente; parecia que tinham ouvido o termo antes, mas eu não estava certo se alguns deles compreendiam o que linhas paralelas queria dizer. Para mim era uma metáfora. Não podia garantir que fosse o mesmo para eles.

Quando estávamos chegando à cidade de Oaxaca mostraram o desejo de visitar o lugar em que la Gorda tinha dito que Dom Juan e Dom Genaro haviam desaparecido. Fui diretamente àquele lugar. Saíram apressados do carro e pareciam estar orientados, farejando alguma coisa, olhando os indícios. La Gorda apontou na direção em que achava que eles tinham ido.

— Vocês cometeram um erro terrível Gorda — disse Nestor alto. — Esse não é o leste, é o norte.

La Gorda protestou e defendeu-se veementemente. As mulheres a apoiaram e Pablito também. Benigno ficou de fora; continuava a olhar para mim como se eu fosse dar uma resposta, que não dei. Referi-me ao mapa da cidade de Oaxaca que eu tinha no carro. A direção em que la Gorda apontava era na verdade o norte.

Nestor observou que tinha sentido todo o tempo que a partida deles da cidade não tinha sido prematura ou forçada de forma alguma; o tempo estava certo. Os outros não tinham sentido isso e sua hesita­ção era causada pelo mau julgamento de la Gorda. Tinham acredita­do, como ela própria, que o nagual tinha apontado na direção da cidade natal deles, querendo dizer que eles tinham de ficar a postos. Eu admiti, pensando melhor, que em análise final era a mim que deviam culpar, porque tendo acesso ao mapa não o tinha usado na hora.

Então mencionei que esquecera de lhes dizer que um dos homens, aquele que eu pensara por um instante ser Dom Genaro, tinha nos feito um sinal com a cabeça para o seguirmos. Os olhos de la Gorda se arregalaram com verdadeira surpresa ou mesmo com alarme. Ela não tinha percebido o gesto, disse. O aceno tinha sido só para mim.

— É isso! — exclamou Nestor. — Nossos destinos estão selados!

Virou-se para dirigir-se aos outros. Todos falavam ao mesmo tempo. Ele fez gestos frenéticos com as mãos para acalmá-los.

— Só espero que todos vocês tenham feito o que tinham de fazer como se nunca fossem voltar — disse. — Porque nunca vol­taremos.

— Está nos dizendo a verdade? — perguntou-me Lydia com um olhar feroz, enquanto os outros me olhavam com esperanças.

Assegurei-lhes que não tinha razão alguma para mentir. O fato de eu ter visto um homem me fazendo um gesto com a cabeça não tinha nenhum significado para mim. Além do mais, não estava nem ao menos convencido de que aqueles homens fossem Dom Juan e Dom Genaro.

— Você é muito astuto — disse Lydia. — Talvez esteja nos dizendo isso só para que o sigamos mansamente.

— Ei, esperem um instante — disse la Gorda. — Este nagual pode ser tão astuto quanto você imagina, mas nunca faria uma coisa destas.

Tentei servir de mediador, e tive de gritar por cima das vozes de todos que o que eu tinha visto não fazia diferença alguma. Nestor muito gentilmente explicou que Genaro tinha lhes dito que quando chegasse o tempo deles deixarem o vale ele mostraria, de alguma forma, com um movimento de cabeça. Eles se aquietaram quando eu falei que se os destinos deles estavam selados pelo acontecimento, o meu também estava; todos nós iríamos para o norte.

Nestor então nos levou para uma estalagem, uma pensão onde ficava quando vinha à cidade em negócios. O humor deles estava bom, de fato bom demais para mim. Até mesmo Lydia me abraçou, desculpando-se por ser tão difícil. Explicou que tinha acreditado em la Gorda, e portanto não tinha se preocupado em cortar seus elos efetivamente. Josefina e Rosa estavam entusiasmadas e bateram nas minhas costas várias vezes. Eu queria falar com la Gorda. Precisava discutir nossos cursos de ação, mas não houve meto de ficar sozinho com ela naquela noite.

 

Nestor, Pablito e Benigno saíram de manhã para cuidar de negócios. Lydia, Rosa e Josefina também saíram para fazer compras. La Gorda me pediu que eu a ajudasse a comprar roupas novas. Queria que eu escolhesse um vestido para ela, o vestido perfeito que lhe desse a autoconfiança de que precisava para ser uma guerreira fluida. Não só encontrei um vestido como uma roupa completa, sapatos, náilon e lingerie.

Levei-a a dar uma volta. Demos voltas pela cidade como se fôssemos dois turistas, olhando os índios nas suas roupas regionais. Sendo uma guerreira sem forma, ela estava perfeitamente à vontade com suas roupas. Estava finda. Era como se nunca tivesse se vestido de outro modo. Era eu quem não conseguia se acostumar com aquilo.

As perguntas que eu queria fazer à la Gorda, que deviam ter saído de mim aos borbotões, foram impossíveis de serem formuladas. Não tinha idéia do que perguntar a ela. Disse-lhe com seriedade que sua nova aparência estava me afetando. Com muita sobriedade ela disse que o cruzamento das fronteiras é que tinha me afetado.

— Atravessamos algumas fronteiras na noite passada — disse ela. — Soledad me disse o que esperar, portanto estou preparada. Mas você não está.

Começou a explicar com suavidade e lentidão que tínhamos atravessado umas fronteiras da afeição na noite anterior. Pronunciava cada sílaba como se estivesse falando com uma criança ou um estran­geiro, mas eu não conseguia me concentrar. Voltamos para a estala­gem. Eu precisava descansar, no entanto acabei saindo de novo. Lydia, Rosa e Josefina não tinham conseguido encontrar nada e que­riam uma roupa como a de la Gorda.

No meio da tarde estava de volta à pensão, admirando as irmãzi­nhas. Rosa tinha dificuldade em andar com os sapatos de salto alto. Estávamos falando dos seus pés quando a porta se abriu lentamente e Nestor fez uma entrada dramática. Vestia um terno azul-escuro, camisa rosa-claro e gravata azul. Seu cabelo estava bem penteado, um pouco fofo como se tivesse sido secado no secador. Olhou para as mulheres e as mulheres olharam para ele. Pablito entrou seguido de Benigno. Os dois estavam brilhando, Pablito usava um terno leve verde-claro e Benigno um casaco de tweed marrom e calças marrom-escuro. Os sapatos eram novos em folha e os ternos pareciam feitos sob medida.

Eu não podia me conformar com a adaptação deles às roupas de cidade. Eles me lembravam muito Dom Juan. Eu talvez estivesse tão chocado vendo os três Genaros com roupas de cidade como tinha me chocado quando vi Dom Juan usando um terno, no entanto aceitei a mudança deles no mesmo instante. Por outro lado, por mais que não estivesse surpreso com a transformação das mulheres, por alguma razão não conseguia me adaptar a ela.

Achei que os Genaros deviam ter tido um golpe de sorte de feiticeiro, achando roupas que lhes coubessem tão bem. Eles riram quando me ouviram comentar sua sorte. Nestor disse que um alfaiate tinha feito os ternos há meses atrás.

— Cada um de nós tem outro terno — disse-me. — Temos até malas de couro. Sabíamos que nosso tempo nas montanhas tinha terminado. Estamos prontos para ir! Naturalmente você tem primeiro de nos dizer para onde. E também quanto tempo vamos ficar aqui.

Explicou que tinha antigas contas de negócios a acertai e que precisava de tempo. La Gorda entrou, e com grande segurança e autoridade declarou que naquela noite iriam até aonde o poder permi­tisse, e que conseqüentemente tinham até o fim do dia para acertar os negócios. Nestor e Pablito hesitaram na porta. Olharam para mim, esperando confirmação. Achei que o mínimo que podia fazer era ser honesto com eles, mas la Gorda me interrompeu quando eu ia dizer que estava no limbo quanto ao que nós iríamos fazer exatamente

— Vamos nos encontrar no banco do nagual ao cair da tarde — disse ela. — Sairemos de lá. Devemos fazer tudo o que temos de fazer até essa hora, sabendo que nunca mais voltaremos nesta vida.

La Gorda e eu ficamos sozinhos depois que todos saíram. Num movimento repentino e desajeitado ela sentou-se no meu colo. Era tão leve que eu podia fazer o corpo dela tremer ao contrair meus músculos da canela. Seu cabelo tinha um perfume peculiar. Brinquei que o cheiro era insuportável. Ela estava rindo e se sacudindo quando surgiu em mim um sentimento, uma memória? De repente estava com outra Gorda no colo, gorda, o dobro da Gorda que eu conhecia. Seu rosto era redondo e eu estava brincando com ela sobre o perfume do seu cabelo. Tinha a sensação de estar tomando conta dela.

O impacto daquela memória hipotética me fez ficar de pé. La Gorda caiu pesadamente no chão. Descrevi o que tinha “lembrado” Disse-lhe que a tinha visto como uma mulher gorda só uma vez, e tão ligeiramente que não tinha idéia das suas feições, e ainda assim acabar de ter uma visão do seu rosto quando ela era gorda.

Ela não fez comentário algum. Tirou as roupas e vestiu de novo seu vestido velho.

— Ainda não estou pronta para ele — disse, apontando seu vestido novo. — Ainda temos uma coisa a fazer antes de nos libertar­mos. Segundo as instruções do nagual Juan Matus, todos nós devemos nos sentar juntos num lugar de poder da escolha dele.

— Que lugar é esse?

— Pelas montanhas perto daqui. É como se fosse «ma porta. O nagual me disse que há uma abertura natural naquele lugar. Falou que certos lugares de poder são buracos neste mundo; se você for sem forma pode passar por um desses buracos para o desconhecido, para o outro mundo. Aquele mundo e este em que vivemos são duas linhas paralelas. Há possibilidade de todos nós termos atravessado essas linhas em alguma época e não nos lembramos disso. Eligio está nesse outro mundo. Às vezes o alcançamos através do sonho. Josefina, é claro, é a melhor sonhadora de nós. Ela atravessa aquelas linhas todos os dias, mas como é maluca fica indiferente, até mesmo muda. Por isso Eligio me ajudou a atravessar as linhas pensando que eu fosse mais inteligente, e eu fiquei tão muda quanto ela. Eligio quer que nos lembremos do nosso lado esquerdo. Soledad me disse que o lado esquerdo é a linha paralela à que estamos vivendo agora. Então se ele quer que nos lembremos, precisamos ter estado lá. E não em sonho. É por isso que todos nós nos lembramos de coisas estranhas aqui a ali.

Suas conclusões eram lógicas, dadas as premissas na qual se baseava. Eu sabia sobre o que ela estava falando; aquelas memórias ocasionais não solicitadas exalavam a realidade da vida diária, e no entanto não podíamos achar nenhuma seqüência de tempo para elas, nenhuma abertura no continuado de nossas vidas onde cabíamos.

La Gorda reclinou-se na cama. Seus olhos tinham um ar preo­cupado.

— O que me incomoda é o que fazer para encontrar aquele lugar de poder — falou. — Sem ele não há viagem possível para nós.

— O que me preocupa é onde vou levar todos vocês e o que vou fazer com vocês — disse.

— Soledad me falou que iremos para o norte até a fronteira — disse ela. — Alguns de nós irão talvez ainda mais para o norte. Mas você não irá todo o tempo conosco. Você tem outro destino.

La Gorda ficou pensativa por um instante. Franziu a testa com o esforço aparente de quem está organizando os pensamentos, e disse:

— Soledad falou que você me levará a realizar o meu destino. Eu sou a única de nós que está a seu cargo.

O alarme deve ter ficado evidente no meu rosto. Ela sorriu.

— Soledad também me disse que você está obstruído — conti­nuou la Gorda. — Porém há momentos em que você é o nagual. O resto do tempo, disse Soledad, você é como que um louco que fica lúcido por alguns momentos, e então volta à loucura.

Dona Soledad tinha usado uma imagem apropriada para me descrever, uma imagem que eu podia entender. Devo ter tido um momento de lucidez para ela quando soube que tinha atravessado as linhas paralelas. Aquele mesmo momento, pelos meus padrões, foi o mais incongruente de todos. Dona Soledad e eu estávamos certamente em duas linhas diferentes de pensamento.

— O que mais ela lhe disse? — perguntei.

— Disse que eu devia me forçar a lembrar — falou la Gorda. — Ela se exauriu tentando fazer aparecer minha memória; foi por isso que não pôde lidar com você.

La Gorda levantou-se; estava pronta para partir. Levei-a para dar uma volta pela cidade. Ela parecia contente. Ia de lugar a lugar observando tudo, regozijando os olhos com o mundo. Dom Juan tinha me dado aquela imagem. Tinha dito que um guerreiro sabe que está esperando e sabe também o que está esperando, e enquanto espera regozija os olhos com o mundo. Para ele a extrema realização de um guerreiro era a alegria. Aquele dia em Oaxaca Ia Gorda estava se­guindo os ensinamentos de Dom Juan ao pé da letra.

 

No final da tarde, antes do pôr-do-sol, sentamo-nos no banco de Dom Juan. Benigno, Pablito e Josefina apareceram primeiro. Depois de alguns instantes os outros três chegaram. Pablito sentou-se entre Josefina e Lydia e pôs os braços em volta delas. Tinham voltado a usar suas roupas antigas. La Gorda ficou de pé e começou a contar-lhes sobre o lugar de poder.

Nestor riu dela e os outros o seguiram.

— Nunca mais você vai nos fazer seguir suas idéias — disse Nestor. — Estamos livres de você. Atravessamos as fronteiras na noite passada.

La Gorda não se importou, mas os outros se zangaram. Eu tive de intervir. Disse alto que eu queria saber mais sobre as fronteiras que tínhamos atravessado na noite anterior. Nestor explicou que aquilo pertencia só a eles, La Gorda discordou. Pareciam estar a ponto de brigar. Puxei Nestor para o lado e ordenei-lhe que me falasse sobre as fronteiras.

— Nossos sentimentos formam fronteiras em volta de qualquer coisa — disse ele. — Quanto mais amamos mais forte é a fronteira. Neste caso amávamos nosso lar; antes de deixá-lo tivemos de levantar nossos sentimentos. Nossos sentimentos pelo nosso lar chegou ao alto das montanhas, a oeste do nosso vale. Aquela era a fronteira, e quando atravessamos o alto daquelas montanhas, sabendo que nun­ca voltaríamos para lá, quebramos a fronteira.

— Mas eu também sabia que nunca voltaria — falei.

— Mas você não amava aquelas montanhas como nós — repli­cou Nestor.

— Isso tem de ser provado — falou la Gorda em tom crítico.

— Estávamos sob a influência dela — disse Pablito ficando de pé e apontando para la Gorda. — Ela nos tinha presos pelo pescoço. Agora vejo como fomos burros por causa dela. Não adianta chorar sobre leite derramado, mas nunca mais cairemos nessa.

Lydia e Josefina juntaram-se a Nestor e Pablito. Benigno e Rosa ficaram olhando como se a briga não lhes dissesse mais respeito.

Eu tive então outro momento de certeza e conduta autoritária. Piquei de pé, e sem qualquer volição da minha parte anunciei que estava sob comando e que livrava la Gorda de qualquer obrigação de fazer comentários ou apresentar idéias como solução única. Quan­do terminei de falar fiquei chocado com a minha coragem. Todos, inclusive la Gorda, ficaram felicíssimos.

A força por trás da minha explosão tinha sido primeiramente uma sensação física de que minhas cavidades nasais estavam se abrin­do, e, depois, a certeza de que sabia o que Dom Juan queria dizer, e onde exatamente era o lugar que tínhamos de visitar antes de nos libertarmos. Quando minhas cavidades nasais se abriram tive uma visão da casa que me deixara intrigado.

Disse-lhes onde tínhamos de ir. Eles aceitaram minha palavra sem questionamentos ou comentários. Saímos da pensão e fomos jan­tar. Depois passeamos pela praça até mais ou menos onze horas. Eu fui buscar o carro, eles se empilharam barulhentamente dentro dele e partimos. La Gorda ficou acordada para me fazer companhia enquanto que os demais dormiram, e depois Nestor guiou enquanto eu e La Gorda fomos dormir.

 

                     Uma Horda de Feiticeiros Enraivecidos

Chegamos à cidade no raiar da aurora. Eu então peguei a dire­ção e dirigi diretamente para a casa. Uns dois quarteirões antes de chegarmos lá, la Gorda me pediu para parar. Saiu do carro e começou a andar na calçada alta. Um por um todos saíram do carro, seguindo la Gorda. Pablito veio para o meu lado e disse que eu devia estacionar na praça que ficava um quarteirão adiante. Assim fiz.

No momento em que vi la Gorda virar a esquina soube que havia alguma coisa de errado com ela. Estava incrivelmente pálida. Chegou perto de mim e disse num sussurro que ia assistir à missa da madru­gada. Lydia também queria ir. As duas atravessaram a praça e entra­ram na igreja.

Pablito, Nestor e Benigno estavam mais sombrios que nunca. Rosa estava assustada, com a boca aberta, os olhos fixos, sem piscar, olhando na direção da casa. Só Josefina estava sorridente. Deu um tapinha amigo nas minhas costas.

— Você conseguiu, seu maroto! — exclamou ela. — Tirou a ferrugem desses malandros.

Ela riu até quase perder a respiração.

— É este o lugar, Josefina? — perguntei.

— É claro que é — disse. — La Gorda costumava ir à igreja todo o tempo. Ela era uma verdadeira carola naquela época.

— Você se lembra daquela casa lá? — perguntei, apontando para ela.

— É a casa de Silvio Manuel — falou.

Todos nós pulamos ao ouvir aquele nome. Senti uma coisa seme­lhante a um suave choque de corrente elétrica passando pelos meus joelhos. O nome definitivamente não me era familiar, no entanto meu corpo pulou ao ouvi-lo. Silvio Manuel era um nome tão diferente; tinha um som tão líquido!

Os três Genaros e Rosa ficaram tão perturbados quanto eu. Repa­rei que estavam pálidos. A julgar pelo que eu sentira, devia estar tão pálido quanto eles.

— Quem é Silvio Manuel? — consegui finalmente perguntar à Josefina.

— Agora você me pegou — falou. — Não sei.

Insistiu em dizer que era maluca e que nada do que dizia devia ser levado a sério. Nestor suplicou-lhe para nos contar qualquer coisa de que se lembrasse.

Josefina tentou pensar, mas não era o tipo de pessoa que se saísse bem quando pressionada. Eu sabia que teria mais êxito se ninguém lhe perguntasse. Propus que procurássemos uma padaria ou um lugar para comer.

— Eles não me deixaram fazer grande coisa naquela casa, disso é que me lembro — falou Josefina de repente.

Virou-se como se estivesse procurando uma coisa, ou como se estivesse se orientando.

— Está faltando alguma coisa aqui! — exclamou. — Não é bem assim que costumava ser.

Tentei ajudá-la, fazendo perguntas que julgava apropriadas, tais como se faltavam casas, ou se elas tinham sido pintadas, ou se outras tinham sido construídas. Mas Josefina não conseguia descobrir de que forma as coisas eram diferentes.

Andamos até a padaria e compramos uns pães doces. Quando estávamos voltando para a praça para esperar la Gorda e Lydia, Josefina subitamente bateu na testa como se tivesse tido uma idéia.

— Sei o que está faltando! — gritou. — Aquela parede de névoa, imbecil! Costumava ser aqui. Agora não está mais.

Todos nós falamos ao mesmo tempo, perguntando-lhe sobre a parede, e Josefina continuou a falar imperturbável como se não esti­véssemos lá.

— Era uma parede de névoa que ia até o céu — disse. — Era bem aqui. Toda vez que virava minha cabeça lá estava ela. Eu ficava maluca. É isso mesmo, que droga! Eu não era biruta até que aquela parede me fez ficar maluca. Eu a via com os olhos abertos ou fecha­dos. Achava que a parede estava atrás de mim.

Por algum tempo Josefina perdeu sua vivacidade natural. Um olhar desesperado apareceu em seus olhos. Eu tinha visto aquele olhar em pessoas que estavam passando uma crise psicótica. Apressadamente sugeri que ela comesse seu pão doce. Ela acalmou-se imediata­mente e começou a comê-lo.

— O que você acha de tudo isso, Nestor? — perguntei

— Estou com medo — disse ele suavemente.

— Você está se lembrando de alguma coisa? — perguntei.

Ele sacudiu a cabeça negativamente. Indaguei de Pablito e Benig­no com um movimento de sobrancelhas. Eles também sacudiram a cabeça dizendo que não.

— E você, Rosa? — inquiri.

Rosa pulou quando me ouviu dirigindo-me a ela. Parecia ter perdida a fala. Segurou o pão doce com a mão e ficou olhando para ele, aparentemente sem saber o que fazer.

— É claro que ela se lembra — disse Josefina rindo — mas está morta de medo. Não vê que o pipi está saindo pelas orelhas dela?

Josefina achou sua declaração engraçadíssima. Dobrou-se de rir e deixou cair o pão no chão. Apanhou-o, sacudiu a poeira e comeu-o.

— Pessoas malucas comem qualquer coisa — disse, dando-me uma palmada nas costas.

Nestor e Benigno pareciam pouco à vontade com as bobagens de Josefina. Pablito se deliciava. Havia um olhar de admiração nos olhos dele. Sacudiu a cabeça e estalou a língua como se não pudesse acreditar em tanta graça.

— Vamos até a casa — pediu Josefina. — Vou lhes contar todo o tipo de coisas lã.

Falei que devíamos esperar la Gorda e Lydia; além do mais, ainda era muito cedo para incomodar a gentil senhora que morava lã. Pablito disse que durante seu trabalho de carpintaria ele tinha estado naquela cidade e que conhecia uma casa onde uma família preparava comida para pessoas em trânsito. Josefina não queria espe­rar, queria ou entrar ou sair para comer. Optei por tomar café da manhã e disse à Rosa para ir à igreja buscar la Gorda e Lydia, mas Benigno ofereceu-se cavalheirescamente para esperá-las e levá-las a tomar café onde estivéssemos. Aparentemente ele também conhecia o lugar.

Pablito não nos levou lá diretamente. Em vez disso, a pedido meu, fizemos uma longa volta. Havia uma ponte velha na entrada da cidade que eu queria examinar. Tinha-a visto do carro no dia em que estivera lá com la Gorda. Sua estrutura parecia colonial. Descemos quando chegamos à ponte, e depois paramos abruptamente no meio dela. Perguntei a um homem que estava lá de pé se a ponte era muito antiga. Ele disse que a conhecia desde que nascera, e que ele tinha mais de cinqüenta anos. Achei que aquela ponte exercia um fascínio único sobre mim, mas olhando os outros tive de concluir que eles também estavam tocados por ela. Nestor e Rosa estavam arfando, sem conseguir respirar. Pablito segurava-se a Josefina e ela, por sua vez, segurava-se a mim.

— Lembra-se de alguma coisa, Josefina? — perguntei.

— Aquele diabo, Silvio Manuel, está do outro lado da ponte — disse, apontando para o outro lado a uns nove metros de distância.

Olhei para dentro dos olhos de Rosa. Ela fez que sim com a cabeça e murmurou que uma vez tinha atravessado aquela ponte com muito medo e que uma coisa estava esperando para devorá-la do outro lado.

Os dois homens não ajudavam em nada. Olhavam para mim perplexos. Cada um disse que estava com medo, sem razão aparente. Tive de concordar com eles. Senti que não ousaria atravessar aquela ponte à noite por nenhum dinheiro do mundo, mas não sabia por quê.

— De que mais se lembra, Josefina? — perguntei.

— Meu corpo está com muito medo agora — falou. — Não posso me lembrar de mais nada. Aquele diabo, Silvio Manuel, está sempre no escuro, pergunte a Rosa.

Com um movimento de cabeça pedi a Rosa que falasse. Ela fez que sim três ou quatro vezes mas não pronunciou as palavras. A tensão que eu próprio experimentava era inesperada, mas real. Todos nós estávamos de pé na ponte, a meio caminho de uma ponta e outra, incapazes de dar mais um passo na direção em que Josefina apontara. Finalmente ela tomou a iniciativa e virou-se. Voltamos para o centro da cidade. Pablito nos guiou então a uma casa grande. La Gorda, Lydia e Benigno já estavam comendo, e tinham até pedido comida para nós. Eu não estava com fome. Pablito, Nestor e Rosa estavam tontos; Josefina comeu com vontade. Fez-se um silêncio mortal na mesa. Todos evitaram meus olhos quando tentei iniciar uma con­versação.

Depois do café andamos até a casa. Ninguém dizia uma palavra. Bati na porta, e quando a senhora saiu expliquei-lhe que queria mos­trar a casa a uns amigos. Ela hesitou por um momento. La Gorda lhe deu um dinheiro e desculpou-se por estar lhe causando inconveniente.

Josefina nos levou diretamente, para os fundos. Eu não tinha visto aquela parte da casa no dia em que estive lá. Havia um pátio de pedra com uns quartos à sua volta. Volumosos equipamentos de fazenda estavam guardados nos corredores cobertos. Tive a sensação de ter visto o pátio quando não tinha toda aquela confusão de coisas. Havia oito quartos, dois de cada um dos quatro lados do pátio. Nestor, Pablito e Benigno pareciam que iam ficar doentes. La Gorda suava muito. Sentou-se numa alcova com Josefina, ao lado de uma das paredes, enquanto Lydia e Rosa entravam em um dos quartos. Subitamente Nestor pareceu precisar urgentemente encontrar uma coisa e sumiu para dentro de outro quarto, seguido de Pablito e Benigno.

Eu fiquei sozinho com a senhora. Tive vontade de conversar com ela, fazer-lhe perguntas, ver se ela conhecia Silvio Manuel, mas não tinha energia para falar. Meu estômago dava voltas. Minhas mãos pingavam de suor. O que me oprimia era uma tristeza impalpável, uma saudade de uma coisa que não estava presente, não estava formulado.

Não podia agüentar. Estava a ponto de me despedir da senhora e sair da casa quando la Gorda veio para o meu lado. Murmurou que devíamos nos sentar dentro de um quarto grande do lado de fora do hall separado do pátio. O quarto podia ser visto de onde estáva­mos. Entramos Já. Era muito grande, vazio, com um teto alto de vigas, escuro mas arejado.

La Gorda chamou todos para o quarto. A senhora só nos olhou mas não entrou. Todos pareciam ter um conhecimento preciso de onde se sentar. Os Genaros sentaram-se à direita da porta, de um lado do quarto, e la Gorda e as três moças se sentaram à esquerda, do outro lado. Ficaram próximos às paredes. Embora eu quisesse me sentar do lado de la Gorda fui me instalar no centro do quarto. O lugar parecia adequado para mim. Não sabia por que, mas uma ordem superior parecia ter determinado nossos lugares.

Enquanto estava sentado lá uma onda de sentimentos estranhos passou por mim. Estava passivo e relaxado. Imaginei-me estar diante de uma tela de cinema na qual sentimentos alheios de tristeza e ânsia eram projetados. Mas não havia nada que eu pudesse reconhecer como uma memória precisa. Ficamos naquele quarto por mais de uma hora. Quase no final senti que estava a ponto de descobrir a fonte da tristeza imensa que me fazia chorar quase que sem controle. Mas então, involuntariamente, assim como havíamos sentado lá, nos levan­tamos e saímos da casa. Nem ao menos agradecemos à senhora ou nos despedimos dela.

Reunimo-nos na praça. La Gorda declarou logo que pelo fato de ela ser sem forma ainda estava liderando. Disse que estava tomando aquela posição devido às conclusões a que tinha chegada na casa de Silvio Manuel. O silêncio deles foi insuportável para mim. Finalmente tive de dizer alguma coisa.

— Quais são as conclusões a que chegou, Gorda? — perguntei.

— Creio que todos sabemos quais são — replicou num tom arrogante.

— Não sabemos — disse. — Ninguém falou nada ainda.

— Não temos de falar, nós sabemos — disse la Gorda. Insisti que não iria passar por cima de um acontecimento tão importante. Precisávamos conversar sobre nossos sentimentos. A meu ver, tudo o que eu tinha tirado dele fora uma sensação devastadora de tristeza e desespero.

— O nagual Juan Matus tinha razão — falou la Gorda. — Tivemos de nos sentar naquele lugar de poder para nos libertarmos. Estou liberta agora. Não sei como aconteceu, mas alguma coisa foi levantada de cima de mim quando me sentei lá.

As três mulheres concordaram com ela. Os três homens não. Nestor disse que estivera a ponto de se lembrar de rostos reais, mas que por mais que tentasse tornar sua vista mais clara alguma coisa o impedia. Tudo o que tinha experimentado fora uma sensação de saudade e tristeza de encontrar-se ainda no mundo. Pablito e Benigno disseram mais ou menos a mesma coisa.

— Está vendo o que quero dizer, Gorda? — falei.

Ela pareceu não ter gostado; bufava Como nunca a tinha visto fazer. Ou a teria visto bufar antes em algum lugar? Ela incitava o grupo. Eu não conseguia prestar atenção no que ela dizia, estava imerso numa memória sem forma, mas quase que ao meu alcance; para fazê-la continuar parece que precisava de um fluxo contínuo de la Gorda. Fiquei fixado no som da voz dela, da raiva dela. A um certo momento, quando ela estava arrefecendo, gritei que ela era uma mandona. Estava me lembrando de outra Gorda, de outro tempo; uma Gorda zangada e obesa, batendo com os punhos no meu peito. Lembrei-me de rir ao ver a sua ira, brincando com ela como se fosse uma criança. A memória terminou no momento em que a voz da Gorda silenciou. Ela parecia ter percebido o que eu estava fazendo.

Dirigi-me a todos eles e disse-lhes que estávamos numa posição muito precária, que uma coisa desconhecida estava se abatendo sobre nós.

— Não está se abatendo sobre nós — disse la Gorda secamente. — Já nos golpeou. E acho que você sabe o que é.

— Não sei e acho que também estou falando pelos outros homens — disse.

Os três Genaros assentiram com um sinal de cabeça.

— Vivíamos naquela casa quando estávamos do lado esquerdo — explicou la Gorda. — Eu costumava me sentar naquela alcova para chorar porque não conseguia saber o que fazer. Acho que se pudesse ter ficado naquele quarto um pouco mais hoje teria me lembrado de tudo. Mas uma coisa me empurrou para fora de lá. Costumava também me sentar lá quando havia mais pessoas. Não pude me lembrar do rosto deles, mas no entanto outras coisas ficaram claras para mim quando estava lá hoje. Eu sou sem forma. As coisas chegam a mim, as boas e as más. Eu, por exemplo, retomei minha arrogância antiga e meu desejo de meditar. Mas também retomei outras coisas, coisas boas.

— Eu também — disse Lydia numa voz áspera.

— Quais são as coisas boas? — perguntei.

— Creio que estou errada em detestá-lo — falou Lydia. — Meu ódio não deixará com que eu alce vôo. Disseram-me isso naquele quarto, os homens e as mulheres de lá.

— Que homem e que mulheres? — perguntou Nestor em tom de briga.

— Eu estava lá quando eles estavam lá, é tudo o que sei — disse Lydia. — Você também estava lá. Todos nós estávamos lá.

— Quem eram esses homens e mulheres, Lydia? — perguntei.

— Eu estava lá quando eles estavam lá, é só o que sei — repetiu Lydia.

— E você, Gorda? — perguntei.

— Já lhe disse que não posso me lembrar de nenhum rosto ou de nenhuma outra coisa específica — falou. — Mas sei de uma coisa, o que quer que tenhamos feito naquela casa foi do lado esquerdo. Atravessamos, ou alguém nos fez atravessar, as linhas paralelas. As memórias estranhas de que viemos daquele tempo, daquele mundo.

Sem que tivéssemos combinado nada deixamos a praça e nos dirigimos para a ponte. La Gorda e Lydia corriam adiante de nós. Quando chegamos lá encontramos as duas de pé exatamente onde tínhamos parado antes.

— Silvio Manuel está no escuro — sussurrou la Gorda para mim, com os olhos fixos no outro lado da ponte.

Lydia estava tremendo. Ela também tentou falar comigo. Não consegui entender o que estava balbuciando.

Empurrei todos para trás da ponte. Achei que, talvez, se pudés­semos juntar o que sabíamos sobre aquele lugar poderíamos fazer uma composição que nos ajudaria a compreender nosso dilema.

Sentamos no chão a uns poucos metros da ponte. Havia muitas pessoas passando à volta, mas ninguém prestava atenção em nós.

— Quem é Silvio Manuel, Gorda? — perguntei.

— Nunca tinha ouvido o nome até agora — disse. — Não conheço o homem, no entanto, o conheço. Umas espécies de ondas passaram por mim quando ouvi esse nome. Josefina me disse o nome quando estávamos na casa. Daquele momento em diante as coisas começaram a vir à minha cabeça e à minha boca, como acontece com Josefina. Nunca pensei que viveria o suficiente para me ver igual a Josefina.

— Por que você disse que Silvio Manuel estava na escuridão? — perguntei.

— Não tenho idéia — disse ela. — No entanto todos nós aqui sabemos que é verdade.

Ela insistiu em que as mulheres falassem. Mas ninguém deu uma palavra. Insisti com Rosa. Ela estivera a ponto de dizer alguma coisa umas três ou quatro vezes. Acusei-a de estar nos abandonando. Seu pequeno corpo entrou em convulsão.

— Atravessamos essa ponte e Silvio Manuel nos esperava do outro lado — disse, numa voz quase inaudível. — Eu era a última. Quando ele devorou os outros eu ouvi os gritos deles. Queria correr mas o diabo Silvio Manuel estava nos dois lados da ponte. Não havia meio de escapar.

La Gorda, Lydia e Josefina concordaram. Perguntei se era ape­nas um sentimento que tinham tido ou uma memória real momentâ­nea de alguma coisa. La Gorda disse que para ela tinha sido exata­mente como Rosa descrevera, uma memória momentânea. As outras duas concordaram com ela.

Fiquei pensando alto no que tinha acontecido com as pessoas que viviam em volta da ponte. Se as mulheres estivessem gritando como dizia Rosa, os passantes deviam tê-las ouvido; os gritos teriam causado uma aglomeração. Por um instante senti que toda a cidade devia ter colaborado em algum plano. Senti um calafrio. Virei-me para Nestor e expressei-lhe abertamente a extensão do meu medo.

Nestor disse que o nagual Juan Matus e Genaro eram na verdade guerreiros de realizações supremas, e assim sendo eram seres solitá­rios. Seus contatos com as pessoas eram isolados. Não havia possibi­lidade de que toda a cidade ou mesmo as pessoas que moravam em volta da ponte colaborassem com eles. Para que fizessem isso, Nestor lembrou que todas aquelas pessoas teriam de ser guerreiras, uma possibilidade pouco provável.

Josefina começou a me rodear, olhando-me de alto a baixo com um sorriso de escárnio.

— Você é mesmo descarado — falou. — Fingindo que não sabe de nada quando você próprio estava aqui. Você nos trouxe para cá! Nos empurrou para esta ponte!

Os olhos das mulheres pareciam absolutamente ameaçadores. Virei-me para Nestor pedindo ajuda.

— Não me lembro de nada — disse ele. — Este lugar me dá medo, é só o que sei.

Virar para Nestor foi uma excelente manobra minha. As mulhe­res desembestaram para cima dele.

— É claro que se lembra! — gritou Josefina. — Todos nós estávamos aqui. Que burrice é essa?

Minha pesquisa exigia um senso de ordem. Afastei-os da ponte. Achei que sendo as pessoas ativas que eram, seria mais relaxante para eles passearem do que ficarem sentados conversando sobre as coisas, como eu teria preferido.

Enquanto caminhava, a raiva das mulheres desapareceu com a mesma rapidez com que tinha surgido. Lydia e Josefina ficaram até mais falantes, relatando vezes seguidas a sensação que tinham tido de Silvio Manuel ser um terror. Nenhuma delas, contudo, conseguia se lembrar de ter sido atingida fisicamente; só se lembravam de terem ficado paralisadas de medo. Rosa não deu uma palavra, mostrando por gestos que concordava com tudo o que os outros diziam. Pergun­tei-lhes se era noite quando tentaram atravessar a ponte. Lydia e Josefina disseram que fora durante o dia. Rosa limpou a garganta e murmurou que tinha sido à noite. La Gorda esclareceu o mal-entendido explicando que era madrugada, ou um pouco antes de clarear.

Chegamos ao final de uma rua curta e automaticamente volta-mos em direção à ponte.

— É muito simples — disse la Gorda de repente como se tivesse terminado toda uma linha de pensamento. — Estávamos atravessando, ou melhor, Silvio Manuel estava nos fazendo atravessar as linhas paralelas. Aquela ponte é um lugar de poder, um buraco neste mundo, uma porta para o outro. Nós o atravessamos. Devemos ter ficado feridos na travessia porque meu corpo esta marcado. Silvio Manuel estava nos esperando do outro lado. Nenhum de nós se lem­bra do seu rosto, pois Silvio Manuel estava no escuro e não chegou a se mostrar. Só podíamos ver seus olhos.

— Um olho — disse Rosa calmamente, olhando para o lado.

— Todos aqui, inclusive você — disse-me la Gorda — sabem que o rosto de Silvio Manuel fica na escuridão. Podia-se ouvir sua voz, suave como uma tosse abafada.

La Gorda parou de falar e começou a me observar de uma forma que me deixou sem graça. Seus olhos eram astutos, dando-me a impressão de que ela estava escondendo alguma coisa. Eu lhe per­guntei. Ela negou, mas admitiu que tinha pilhas de sentimentos sem fundamento que não valia a pena explicar. Eu insisti, e então pedi que as mulheres fizessem um esforço para se recordarem do que Unha acontecido a elas do outro lado daquela ponte. Cada uma delas só se lembrava de ter ouvido gritos dos outros.

Os três Genaros ficaram fora da discussão. Perguntei a Nestor se ele tinha alguma idéia do que acontecera. Sua resposta sombria foi que tudo aquilo ia além da sua compreensão.

Cheguei então a uma rápida decisão. Parecia-me que a única saída para nós era atravessar aquela ponte. Ordenei-lhes que voltassem para a ponte e passassem por ela em grupo. Os homens concordaram comigo no mesmo instante, mas as mulheres não. Depois de esgotar todos os meus argumentos, finalmente tive de empurrar e arrastar Lydia, Rosa e Josefina. La Gorda estava relutante mas parecia curio­sa com a possibilidade. Andou sem me ajudar a levar as mulheres e assim fizeram os Genaros; eles davam risadinhas nervosas ao me verem conduzir as três mulheres, mas não moviam um dedo para me ajudar. Caminhamos até o ponto onde tínhamos parado da vez ante­rior. Senti lá que estava subitamente fraco demais para segurar as três. Gritei para la Gorda que me ajudasse. Ela fez uma tentativa vã de pegar Lydia quando o grupo perdeu sua coesão, e todos, exceto la Gorda, se misturaram, bufando esbaforidos até chegarem a salvo na rua. La Gorda e eu ficamos onde estávamos como se estivéssemos grudados lá na ponte, incapazes de irmos adiante e relutando em bater em retirada.

La Gorda sussurrou no meu ouvido que eu não devia ter o menor medo, pois tinha sido eu na verdade quem tinha esperado por eles do outro lado. Acrescentou que estava convencida de que eu sabia que era o ajudante de Silvio Manuel mas não ousava revelar isso a ninguém.

Naquele instante uma fúria fora do meu controle sacudiu meu corpo. Senti que la Gorda não tinha o direito de fazer aquelas obser­vações ou ter aqueles sentimentos. Agarrei-a pelos cabelos e girei-a. Voltei a mim no auge da minha ira e parei. Desculpei-me e abracei-a. Um pensamento de bom senso veio à minha cabeça. Disse-lhe que atuar como líder estava mexendo com meus nervos; a tensão estava se tornando cada vez mais aguda à medida que prosseguíamos. Ela não concordou comigo. Apegou-se inabalavelmente à sua interpreta­ção de que Silvio Manuel e eu éramos muito íntimos, e que ao me lembrar do meu mestre eu tinha reagido com raiva; sorte ele ter sido entregue aos meus cuidados, senão eu provavelmente a teria jogado para fora da ponte.

Voltamos. Os outros estavam em segurança do lado de fora da ponte. Olhando-nos com um medo visível. Parecia prevalecer um esta­do peculiar de ausência de tempo. Não havia ninguém à volta. Deve­mos ter ficado naquela ponte durante pelo menos cinco minutos c nem uma única pessoa a tinha atravessado ou aparecido. Então, subi­tamente, as pessoas começaram a surgir, como em qualquer via de comunicação em hora de atropelo.

Sem uma palavra voltamos para a praça. Estávamos terrivel­mente fracos. Eu tinha um vago desejo de ficar na cidade um pouco mais. Mas entramos no carro e partimos rumo leste, em direção à costa do Atlântico. Nestor e eu nos revezamos na direção, parando só para abastecer o carro e comer, até chegarmos a Veracruz. Aque­la cidade era terreno neutro para nós. Eu tinha estado lá apenas uma vez; nenhum dos outros jamais tinha estado. La Gorda acreditava que uma cidade desconhecida era o lugar próprio para se desfazerem das suas roupas velhas. Ficamos num hotel e lá eles começaram a rasgar suas roupas velhas em tiras. A excitação da cidade grande fez maravilhas em relação ao moral deles e ao seu sentimento de bem-estar.

 

Nossa próxima parada foi na Cidade do México. Fomos para um hotel perto do Alameda Park, onde Dom Juan e eu estivéramos uma vez. Durante dois dias fomos perfeitos turistas. Fizemos compras e visitamos todos os pontos turísticos possíveis. As mulheres estavam assombradas. Benigno comprou uma máquina fotográfica numa loja de penhor. Tirou quatrocentas e vinte e cinco fotos sem filme. Num certo lugar, quando estávamos admirando os magníficos mosaicos das paredes, um guarda de segurança me perguntou de onde eram aque­las lindas mulheres estrangeiras. Imaginou que eu fosse um guia de turismo. Disse-lhe que eram de Sri Lanka. Ele me acreditou e ficou maravilhado com o fato de terem semelhança com os mexicanos.

No dia seguinte, às dez horas da manhã, fomos ao escritório de linhas aéreas ao qual Dom Juan tinha uma vez me forçado a ir. Quando ele me empurrou eu passei por uma porta e saí por outra, não para a rua como devia, mas para um mercado a pelo menos um quilômetro e meio de distância, onde fiquei observando as pessoas trabalharem.

La Gorda disse que o escritório de linhas aéreas também era como aquela ponte, um lugar de poder, uma porta para atravessar de uma linha paralela para a outra. Falou que evidentemente o nagual tinha me empurrado através daquela abertura, mas que eu tinha sido apanhado a meio caminho de dois mundos, entre as linhas, e por isso tinha observado as pessoas trabalhando no mercado, sem fazer parte dele. Disse que o nagual, naturalmente, pretendia me empurrar até o fim do caminho, mas que minha deliberação se opusera a ele e eu terminara na mesma linha de onde tinha vindo, neste mundo.

Andamos do escritório de linhas aéreas até ao mercado e de lá à Alameda Park, onde Dom Juan e eu tínhamo-nos sentado depois da experiência. Eu tinha ido àquele parque com Dom Juan várias vezes. Sentia que era o lugar mais apropriado para falar sobre o curso de nossas ações futuras.

Era minha intenção resumir tudo que tínhamos feito a fim de permitir que o poder daquele lugar decidisse qual seria nosso próximo passo. Depois de nossa tentativa de atravessar a ponte, eu tentara, sem êxito, imaginar um modo de lidar com eles como um grupo. Sentamos nuns degraus de pedra e eu iniciei a falar que para mim o conhecimento estava fundido às palavras. Disse-lhes que acreditava seriamente que se um acontecimento ou experiência não fosse formu­lado num conceito estaria fadado a desaparecer; pedi-lhes, portanto suas contribuições individuais da nossa situação.

Pablito foi o primeiro a falar. Achei aquilo estranho, pois ele era extraordinariamente quieto todo o tempo. Desculpou-se pois o que iria dizer não era nada de que tivesse se lembrado ou sentido, mas uma conclusão baseada em tudo o que sabia. Falou que não via problema algum em compreender o que as mulheres tinham contado que acontecera naquela ponte. Fora, sustentava Pablito, uma questão de serem compelidas a atravessar do lado direito, o tonal, ao lado esquerdo, o nagual. O que tinha amedrontado a todos era o fato de outra pessoa estar no comando, forçando a travessia. Não via nenhum problema tampouco em aceitar ter sido eu a pessoa que ajudara Silvio Manuel. Apoiava suas conclusões no fato de há apenas dois dias ter me visto fazer a mesma coisa, empurrando todos para a ponte. Daquela vez eu não tinha ninguém me ajudando do outro lado da ponte; não havia nenhum Silvio Manuel puxando-os.

Tentei mudar de assunto e comecei a explicar-lhes que esquecer como tínhamos esquecido chamava-se amnésia. O pouco que sabia sobre amnésia não era suficiente para esclarecer o nosso caso, mas o suficiente para me fazer crer que não podíamos esquecer como se estivéssemos sob comando. Disse-lhes que alguém, possivelmente Dom Juan, nos devia ter feito alguma coisa indescritível. Queria descobrir exatamente o que tinha sido.

Pablito insistiu ser importante que eu compreendesse que era eu quem tinha estado de parceria com Sílvio Manuel. Confirmou então que Lydia e Josefina tinham-lhe falado sobre o meu papel ao forçá-las a atravessar as linhas paralelas.

Não me senti à vontade discutindo aquele assunto. Comentei que nunca tinha ouvido falar em linhas paralelas até o dia em que estivera com Dona Soledad; porém que não tivera receio de admitir imediatamente o uso da idéia. Disse-lhes que soube num relance o que ele queria dizer. Até mesmo me convencera de as ter atravessa­do eu mesmo quando achei que me “lembrava” dela. Todos eles, com exceção de la Gorda, disseram que a primeira vez em que ti­nham ouvido falar em linhas paralelas fora quando eu as mencio­nara para eles. La Gorda falou que tinha ouvido pela primeira vez através de Dona Soledad, um pouco antes de mim.

Pablito tentou falar sobre minha relação com Silvio Manuel, mas eu o interrompi. Disse que enquanto estávamos na ponte, a caminho da Cidade do México, eu não tinha reconhecido que eu, e possivel­mente todos eles, tínhamos entrado num estado de realidade incomum. Só me dera conta da mudança quando percebi que não havia outras pessoas na ponte. Apenas nós oito. O dia estava claro, mas de repente o céu ficou nublado e a luz da manhã tomou-se sombria. Eu estava tão tomado de medo e interpretações pessoais que naquela hora não notara a mudança terrível. Quando saímos da ponte percebi que as pessoas estavam novamente trafegando por ela. Mas o que tinha acontecido com elas durante o tempo em que tentávamos atravessá-la?

La Gorda e os demais não tinham notado nada, de fato não tinham nem ao menos se dado conta de qualquer mudança até o instante em que as descrevi. Todos eles olharam para mim com um misto de irritação e medo. Pablito tomou novamente a frente e acusou-me de tentar levá-los a uma coisa que eles não queriam. Não foi específico sobre o que podia ser, mas sua eloqüência era suficiente para pôr os outros contra mim. Levei muito tempo explicando-lhes a minha necessidade de examinar de todos os pontos de vista possíveis uma coisa tão estranha e envolvente como nossa experiência na ponte. Eles finalmente se acalmaram, não tanto por estarem convencidos mas devido ao cansaço emocional. Todos eles, inclusive la Gorda, tinham defendido e apoiado veementemente a posição de Pablito.

Nestor entrou em outra linha de raciocínio. Sugeriu que eu era possivelmente um enviado de má vontade e que não percebia comple­tamente o objetivo de minhas ações. Acrescentou que não conseguia acreditar, como os outros acreditavam, que eu estivesse ciente de que fora deixado a cargo de desviá-los do caminho certo. Achava que eu realmente não sabia que os estava levando à destruição, mas que na verdade estava fazendo aquilo. Ele pensava que havia dois meios de atravessar as linhas paralelas, uma através do poder de alguém e outra através do poder próprio. Sua conclusão final era que Silvio Manuel tinha-os feito atravessá-las amedrontando-os tanto que alguns deles nem ao menos se lembravam de tê-lo feito. A tarefa deixada para eles realizarem era atravessar com seu próprio poder; a minha era impedi-los.

Benigno falou então. Disse que na sua opinião a última coisa que Dom Juan fizera para nós, os aprendizes homens, tinha sido ajudar-nos a cruzar as linhas paralelas fazendo-nos pular no abismo. Acreditava que já tínhamos muito conhecimento sobre a travessia, mas que ainda não era tempo de tentá-la de novo. Na ponte tinham sido incapazes de dar mais um passo por não ser a hora certa. Eles tinham razão, portanto, em acreditar que eu tinha tentado destruí-los ao forçá-los a atravessar. Ele achava que passar as linhas paralelas em plena consciência significava um passa final para todos eles; um passo a ser tomado apenas quando estivessem dispostos a desaparecer deste mundo.

Lydia foi a próxima a me enfrentar. Não fez nenhuma avaliação, mas desafiou-me a lembrar como os tinha atraído pela primeira vez até a ponte. Declarou abertamente que eu não era aprendiz do nagual Juan Matus e sim de Silvio Manuel; que Silvio Manuel e eu tínhamos devorado o corpo um do outro.

Eu tive outro ataque de raiva, como o que tivera com la Gorda na ponte, mas controlei-me a tempo. Um pensamento lógico acalmou-me. Disse a mim mesmo repetidas vezes que estava interessado na análise.

Expliquei a Lydia que era inútil insultar-me assim, mas ela não queria parar. Gritou que Sílvio Manuel era meu mestre e que essa era a razão de eu não pertencer a eles. Rosa acrescentou que Silvio Manuel tinha me dado tudo o que eu era.

Questionei a escolha das palavras dela. Disse-lhe que ela deveria ter falado que Silvio Manuel tinha me dado tudo o que eu tinha. Ela insistiu. Silvio Manuel tinha me dado o que eu era. Até mesmo la Gorda apoiou-a dizendo que se lembrava quando eu tinha ficado doente a ponto de ficar sem forças; tudo em mim tinha se exaurido; fora então que Sílvio Manuel entrara e dera nova vida ao meu corpo. La Gorda disse que era melhor, na verdade, eu conhecer minhas origens do que prosseguir, como fizera até agora, fingindo que tinha sido o nagual Juan Matus quem me tinha ajudado. Insistiu que eu era fixado no nagual por causa do seu encanto pelas palavras. Silvio Manuel, ao contrário, era a escuridão silenciosa. Explicou que para segui-lo eu precisaria cruzar as linhas paralelas. Mas para seguir o nagual Juan Matus tudo o que necessitava era falar sobre ele.

O que quer que estivessem dizendo não fazia sentido algum para mim. Estava a ponto de fazer o que pensava ser uma boa coisa quando minha linha de raciocínio tornou-se literalmente turva. Não conseguia pensar qual era a coisa, embora há um segundo atrás ela fosse perfeitamente clara; ao invés disso uma memória muito curiosa apoderou-se de mim. Não era o sentimento de uma coisa, mas a memória verdadeira de um acontecimento. Lembrei-me que uma vez estavam com Dom Juan e outro homem de cujo rosto não conseguia me recordar. Nós três conversávamos sobre alguma coisa que eu esta­va percebendo como uma característica do mundo. Ficava a uns três ou quatro metros à minha direita e era uma inconcebível barreira de névoa amarelada que, tanto quanto me lembre, dividia o mundo em dois. Ia do chão até o céu, até o infinito. Enquanto conversava com os dois homens a metade do mundo à minha esquerda estava in­tacta, enquanto que a metade à minha direita estava coberta de névoa. Lembrei-me que tinha me orientado com a ajuda de sinais e tinha percebido que o eixo da barreira de névoa passava do leste para o oeste. Tudo ao norte da linha era o meu mundo conhecido. Lembro-me de ter perguntado a Dom Juan o que tinha acontecido com o inundo ao sul da linha. Dom Juan me fez virar alguns graus à minha direita e então percebi que a parede de névoa se movia à medida que eu virava a cabeça. O mundo era dividido em dois a um nível inconcebível ao meu intelecto. A divisão parecia real, mas a fronteira não era num plano físico, tinha de ser em mim mesmo. E será que era?

Havia ainda mais um detalhe da minha memória. O outro homem disse que era uma grande realização dividir o mundo em dois, mas era uma realização ainda maior se um guerreiro pudesse ter a serenidade e o controle suficientes para parar a rotação daquela parede. Disse que a parede não estava dentro de nós; estava certa­mente fora do mundo, dividindo-o em dois e girando quando movía­mos a cabeça como se estivesse grudado em nossa têmpora direita. A grande realização de manter a parede sem girar possibilitava ao guerreiro vê-la e lhe dava o poder de atravessá-la a qualquer tempo que desejasse.

Quando contei aos aprendizes o que tinha acabado de me lem­brar, as mulheres ficaram convencidas de que o homem era Silvio Manuel. Josefina, como conhecedora da parede de névoa, explicou que a vantagem que Eligio tinha sobre todos os outros era sua capaci­dade de fazer a parede parar de girar a fim de poder atravessá-la à vontade. Acrescentou que é fácil ver a parede de névoa no sonho porque então ela não se move.

La Gorda parecia estar movida por uma série de memórias talvez dolorosas. Seu corpo pulava involuntariamente, até que final­mente ela explodiu em palavras. Disse que não lhe era mais possível negar o fato de eu ser ajudante de Silvio Manuel. O próprio nagual tinha lhe advertido que eu a escravizaria se ela não tomasse cuidado. Até mesmo Soledad tinha lhe dito que me observasse porque meu espírito fazia prisioneiros e os mantinha como servos, coisa que só Silvio Manuel faria. Ele tinha me escravizado e eu, por minha vez, escravizaria a qualquer um que ficasse próximo a mim. Afirmou que vivia sob meu encantamento até o momento em que se sentou naquele quarto na casa de Silvio Manuel, quando alguma coisa foi subita­mente levantada dos seus ombros.

Levantei-me e literalmente cambaleei sob o impacto das palavras de la Gorda. Havia um vazio no meu estômago. Estava convencido de que podia contar com ela como apoio em quaisquer condições. Senti-me traído. Achei que deveria lhes fazer conhecer meus senti­mentos, mas um senso de moderação me salvou. Disse-lhes, ao invés disso, que minha conclusão desapaixonada como um guerreiro era que Dom Juan tinha alterado o curso da minha vida para melhor. Eu tinha avaliado repetidas vezes o que ele fizera por mim e a conclusão era sempre a mesma. Ele me trouxera liberdade. Liberdade era tudo o que eu conhecia, tudo o que podia levar a qualquer um que se aproximasse de mim.

Nestor fez um gesto de solidariedade para mim. Exortou as mulheres a abandonarem sua animosidade contra mim. Olhou-me com os olhos de quem não entende mas quer compreender. Disse que eu não pertencia a eles, que eu era na verdade um pássaro solitário. Eles tinham precisado de mim por um tempo a fim de quebrar suas fronteiras da afeição e da rotina. Agora que estavam livres o céu era o limite para eles. Permanecer comigo lhes seria indubitavelmente agra­dável mas mortal.

Ele parecia estar profundamente comovido. Veio para o meu lado e pôs a mão no meu ombro. Disse que tinha a impressão de que não íamos nos ver mais neste mundo. Tinha pena de nos separarmos como pessoas mesquinhas, disputando, queixando, acusando. Disse que falando pelos outros, mas não por ele, ia me pedir para ir embora, pois não tínhamos mais possibilidade de ficarmos juntos. Acrescentou que tinha rido de la Gorda quando ela nos falou sobre a cobra que tínhamos formado, mas que mudara de opinião e não achava mais a idéia ridícula. Tinha realmente sido nossa última chance de funcionar como um grupo.

Dom Juan tinha me ensinado a aceitar meu destino com humil­dade.

“— O curso do destino de um guerreiro é inalterável — dissera-me uma vez. — O desafio é o quão longe ele pode ir dentro desses limites rígidos, o quão impecável ele pode ser dentro desses limites rígidos. Se há obstáculos no seu caminho, o guerreiro luta impecavel­mente para ultrapassá-los. Se acha dificuldades e dores insuportáveis no seu caminho ele chora, mas todas as suas lágrimas juntas não movem a linha do destino nem um milímetro.”

Minha primeira decisão de deixar o poder daquele lugar indicar nosso próximo passo tinha sido correta. Levantei-me. Todos eles viraram-se de costas para mim. La Gorda veio para o meu lado e disse, como se nada tivesse acontecido, que eu devia ir embora e que ela se encontraria comigo mais tarde. Tive vontade de replicar que não via razão para ela ficar comigo. Tinha escolhido ficar cota os outros. Ela pareceu ler meu sentimento de ter sido traído. Calmamente me assegurou que tínhamos de cumprir nosso destino juntos como guerreiros c não como as pessoas mesquinhas que éramos.

 

                     A ARTE DE SONHAR

                     Perdendo a Forma Humana

Alguns meses mais tarde, depois de ajudar todos a se reorgani­zarem em diversas regiões do México, la Gorda fixou residência no Arizona. Começamos então a desfiar a parte mais estranha e envol­vente de nosso aprendizado. De início nossa relação era bastante tensa. Era-me muito difícil superar o modo como nosso grupo tinha se desfeito em Alameda Park. Embora la Gorda soubesse o paradeiro dos outros, nunca mencionou nada para mim. Achava que não adiantaria de nada eu saber sobre as atividades deles.

Na superfície tudo parecia estar bem entre mim e la Gorda. Eu tinha, não obstante, um amargo ressentimento dela ter ficado do lado dos outros e contra mim. Não expressava isso, mas o sentimento estava sempre lá. No entanto ajudava-a e fazia tudo por ela como se nada tivesse acontecido. Mas aquilo fazia parte da impecabilidade. Era meu dever; para realizá-lo iria de bom grado de encontro à morte. Fiquei propositadamente absorvido em guiá-la e ensinar-lhe os de­talhes do modo de viver na cidade moderna; ela estava até apren­dendo inglês. Seu progresso era simplesmente fenomenal.

Três meses se passaram quase que sem novidade. Mas um dia, quando eu estava em Los Angeles, acordei de manhã cedo com uma pressão insuportável na cabeça. Não era dor de cabeça, mas um peso imenso nos ouvidos. Senti o peso nas pálpebras e no céu da boca. Sabia que estava febril, mas o calor se concentrava apenas na cabeça. Tentei me sentar. Tive a impressão que estava tendo um derrame. Minha primeira reação foi pedir ajuda, mas de alguma forma me acalmei e tentei deixar passar o medo. Depois de algum tempo a pressão na cabeça começou a diminuir, mas começou a mudar para a garganta. Lutava para respirar, engasgado e tossindo ao mesmo tempo; então a pressão moveu-se lentamente para o peito, depois para o estômago, a virilha, as pernas e os pés, até finalmente sumir.

O que quer que tenha me acontecido, teve duas horas de dura­ção. Durante essas horas aflitivas era como se alguma coisa dentro do meu corpo estivesse realmente descendo, se escoando através de mim, como se estivesse enrolando-se como um tapete. Outra imagem que me ocorreu foi a de uma bolha que se movia dentro da cavidade do meu corpo. Descartei essa imagem a favor da primeira, pois a sensação era de uma coisa sendo enrolada dentro de si mesma. Exata­mente como um tapete enrolado, ficava mais pesada, e portanto mais dolorosa, à medida que descia. As duas áreas de maior dor eram meus joelhos e meus pés, especialmente meu pé direito, que conti­nuou quente durante quarenta e cinco minutos depois da dor e da pressão passarem.

 

La Gorda, ao ouvir meu relato, disse que dessa vez certamente eu tinha perdido minha forma humana, que tinha deixado cair todos os meus escudos ou a maior parte deles. Ela tinha razão. Sem saber como ou sem ao menos perceber, achava-me numa posição muito pouco familiar. Sentia-me desprendido, solto. Não importava mais o que la Gorda me fizera. Não que eu a tivesse perdoado pelo seu comportamento censurável comigo, mas era como se nunca tivesse havido traição alguma. Não havia nenhum rancor aberto ou oculto em mim por la Gorda ou por ninguém quanto àquilo. O que eu sentia não era uma indiferença negativa ou negligência ao agir; nem uma solidão desesperada ou nem ao menos o desejo de estar sozinho. Era um sentimento estranho de afastamento; uma capacidade de imergir dentro de mim mesmo por um momento e não ter pensamentos de espécie alguma. As atitudes das pessoas não mais me afetavam, pois eu não tinha mais nenhuma expectativa. Uma estranha paz tinha se tornado a força mestra da minha vida. Eu sentia que de alguma forma tinha adotado um dos conceitos da vida de guerreiro — desprendi­mento; la Gorda disse que eu tinha ido além de adotar esse conceito, tinha-o na verdade personificado.

Dom Juan e eu tínhamos tido longas discussões sobre a possibilidade de eu um dia vir a fazer exatamente isso. Ele dissera que o desprendimento não queria dizer automaticamente sabedoria, mas que era uma vantagem, pois permitia ao guerreiro parar momentaneamen­te para reavaliar situações, reconsiderar posições. Para usar aquele momento extra com consistência e correção, entretanto, disse que era necessário que um guerreiro lutasse sem cessar durante toda a vida.

Eu tinha perdido a esperança de um dia experimentar aquele sentimento de soltura. Ao que eu sabia, não havia meio de improvi­sá-lo. Tinha sido inútil pensar nos seus benefícios, ou arrazoar as possibilidades de seu advento. Durante os anos em que conheci Dom Juan eu tinha certamente experimentado uma perda permanente de laços pessoais com o mundo, mas aquela perda tivera lugar num plano intelectual apenas; na minha vida diária eu era imutável, até perder minha forma humana.

Discuti com la Gorda que o conceito de perder a forma humana referia-se a uma condição corporal do aprendiz ao alcançar um certo limiar no curso do treinamento. Como quer que fosse, o resultado final de perder a forma humana para la Gorda e para mim, por incrí­vel que pareça, era não só a procura do sentido oculto de desprendi­mento conto a realização de nossa tarefa impalpável de lembrar. E, ainda neste caso, o intelecto ocupava uma parte mínima.

Uma noite la Gorda e eu estávamos discutindo sobre um filme. Ela tinha ido ver um filme pornográfico e eu estava ansioso para ouvir a sua descrição dele. Ela não tinha gostado. Insistia que era uma experiência enfraquecedora, pois ser um guerreiro incluía levar uma vida austera, em total celibato, com o nagual Juan Matus.

Eu lhe disse que sabia que Dom Juan gostava de mulheres e que não era celibatário, e que eu achava aquilo maravilhoso.

— Você está louco! — exclamou ela com um toque de prazer na voz. — O nagual era um guerreiro perfeito. Ele não se prendia a nenhuma teia de sensualidade.

Ela queria saber por que eu achava que Dom Juan não era celi­batário. Eu lhe contei um incidente que tinha acontecido no Arizona no início do meu aprendizado. Estava descansando na casa dele um dia, depois de voltar de uma excursão exaustiva. Dom Juan parecia estar estranhamente nervoso. Ficava a toda hora se levantando de onde estava para olhar para fora. Parecia estar esperando alguém. Então abruptamente me contou que um carro tinha dobrado na estra­da e se encaminhava na direção da casa. Disse que era uma moça, uma velha amiga, que estava lhe levando uns cobertores. Eu nunca tinha visto Dom Juan encabulado e fiquei com muita pena de vê-lo tão perturbado a ponto de não saber o que fazer. Achei que ele não queria que eu conhecesse a moça; estava quase gaguejando para me dizer isso. Sugeri que podia me esconder, mas como não havia nenhum lugar onde me ocultar no quarto, deitei-me no chão e me cobri com um tapete de palha. Ouvi o som do motor de um carro sendo desligado e então pelas aberturas do tapete vi uma moça de pé na porta. Era alta, esguia e muito jovem. Achei-a bonita. Dom Juan estava dizendo alguma coisa a ela numa voz muito baixa e aconchegante. Depois virou-se e apontou para mim.

— Carlos está escondido debaixo do tapete — disse para a moça, em voz alta e clara. — Vá falar com ele.

A moça deu um adeus para mim com um sorriso muito amigável. Me senti um idiota e fiquei com raiva dele por me colocar naquela situação embaraçosa. Achei que ele estava obviamente tentando aliviar seu nervosismo, ou pior, que estava se mostrando diante de mim.

Quando a moça partiu pedi-lhe uma explicação, enraivecido. Ele disse com brandura que tinha sido forçado a fazer aquilo porque meus pés estavam de fora e que ele não sabia o que fazer. Quando ouvi isso, toda a sua manobra ficou clara; ele estava exibindo sua jovem amiga para mim. Eu não podia de jeito algum estar com os pés de fora porque eles estavam enfiados por baixo da minha coxa. Ri intencionalmente e Dom Juan foi obrigado a explicar que gostava de mulheres, especialmente daquela moça.

Nunca me esqueci desse incidente. Dom Juan nunca falou sobre ele. Quando eu o apresentava ele sempre me fazia parar. Eu pensava obsessivamente naquela jovem mulher. Tinha esperança de que algum dia ela me procurasse depois de ler meus livros.

La Gorda tinha ficado muito excitada. Andava de um lado para o outro no quarto enquanto eu falava. Estava quase chorando. Imagi­nei todo o tipo de tramas complicadas de relacionamentos que esta­vam em jogo. Achei que la Gorda era possessiva e que estava reagin­do como uma mulher ameaçada por outra mulher.

— Está com ciúme, Gorda? — perguntei.

— Não seja imbecil — disse com raiva. — Sou uma guerreira sem forma. Não tenho mais nenhuma inveja ou ciúme.

Eu trouxe à baila uma coisa que os Genaros me tinham dito, que ela era a mulher do nagual. A voz de la Gorda ficou quase que inaudível.

— Acho que eu era — disse, e com um olhar vago sentou-se na cama. — Tenho a impressão de que era, mas não sei até que ponto. Nesta vida o nagual era para mim o que ele era para você. Não era um homem. Era o nagual. Não tinha interesse em sexo.

Assegurei-lhe que eu tinha ouvido o nagual expressar seu senti­mento em relação a seu amor por aquela mulher.

— Ele disse que fazia amor com ela? — perguntou la Gorda.

— Não, não disse, mas era óbvio pelo modo como falava. — falei.

— Você gostaria que o nagual fosse igual a você, não é? — perguntou com um sorriso de escárnio. — O nagual era um guerreiro impecável.

Achei que eu tinha razão e que não precisava refazer minha opinião. Só para implicar com la Gorda disse que talvez a mocinha fosse aprendiz de Dom Juan, se não fosse sua amante.

Houve uma longa pausa. O que eu dissera tinha tido um efeito perturbador sobre mim. Até aquele momento nunca tinha pensado em tal possibilidade. Tinha me trancado numa idéia preconcebida, sem permitir fazer nenhuma revisão.

La Gorda me pediu para descrever a mocinha. Não consegui. Não tinha chegado a ver as feições dela. Tinha ficado muito aborre­cido, muito encabulado para examiná-la com detalhe. Ela também parecia ter sido atingida pela situação esdrúxula e tinha saído rapida­mente da casa.

La Gorda disse que não via razão lógica para aquela mocinha ser uma figura-chave na vida do nagual. Aquela declaração nos levou a falar sobre os amigos de Dom Juan. Lutamos durante horas para juntar todas as informações que tínhamos sobre seus associados. Eu lhe contei as diversas vezes que ele me levara para participar das cerimônias peyotes. Descrevi-lhe cada um dos participantes. Ela não reconhecia nenhum deles. Percebi então que eu possivelmente conhecia mais pessoas associadas a Dom Juan que ela. Mas alguma coisa que eu tinha dito lhe fizera lembrar-se de um tempo em que ela vira uma mocinha saindo com o nagual e Dom Genaro num carro branco. A mulher deixou os dois na porta da sua casa e olhou para ela antes de ir embora. La Gorda achou que a mocinha tinha dado uma carona ao nagual e a Dom Genaro. Lembrei-me então que tinha me levantado por debaixo do tapete de palha da casa de Dom Juan a tempo de ver um Volkswagen branco saindo.

Mencionei mais uma vez o incidente que envolvia outro amigo de Dom Juan, um homem que me tinha dado umas plantas peyotes uma vez, no mercado de uma cidade no norte do México. Ele também me tinha obcecado durante anos. Seu nome era Vicente. Ao ouvir aquele nome o corpo de la Gorda reagiu como se um nervo tivesse sido atingido. Sua voz ficou trêmula. Pediu-me para repetir o nome e descrever o homem. Mais uma vez não consegui descrever. Eu vira o homem só uma vez, por alguns instantes, há mais de dez anos.

La Gorda e eu atravessamos um período difícil, não zangados um com o outro mas com alguma coisa que nos mantinha aprisionados.

O golpe final que precipitou nossa lembrança total veio num dia em que eu tive uma gripe e uma febre alta. Tinha ficado na cama dormitando, com pensamentos soltos. A melodia de uma antiga canção mexicana tinha estado o dia inteiro na minha cabeça, e a um certo momento sonhei que alguém estava tocando-a no violão. Reclamei da monotonia da música e a pessoa que não sei quem era protestou e bateu com o violão no meu estômago. Pulei para trás para evitar me machucar. Bati com a cabeça na parede e acordei. Não tinha sido um sonho vivo, apenas a melodia tinha estado me perseguindo. Não conseguia fazer desaparecer o som do violão, ele continuava na minha cabeça. Fiquei semi-acordado ouvindo aquela melodia. Parecia estar entrando num estado de sonho; uma cena completa e detalhada do sonho apareceu diante dos meus olhos; na cena havia uma mocinha sentada ao meu lado. Podia distinguir todos os detalhes das suas feições. Não sabia quem ela era, mas ao vê-la fiquei chocado. Acordei de repente. A ansiedade criada por aquele rosto era tão intensa que me levantei e automaticamente comecei a andar para baixo e para cima. Estava transpirando muito e fiquei com medo de sair do quarto. Não podia tampouco pedir a la Gorda para me ajudar. Ela tinha ido ao México por uns dias visitar Josefina. Amarrei um lençol na cintura para firmar a parte de baixo do meu corpo, o que ajudou a diminuir uns tremores de energia nervosa que estava sentindo.

Enquanto andava para cima e para baixo a imagem começou a se dissolver, não pacificamente como eu gostaria, mas passando a uma memória complicada. Lembrei-me que uma vez estava sentado sobre uns sacos de trigo ou cevada empilhados numa tulha. A mocinha cantava a canção antiga mexicana que estava na minha cabeça e toca­va violão. Quando caçoei do modo dela tocar, ela deu uma cotovelada nas minhas costelas com o cabo do violão. Havia outras pessoas sentadas comigo, la Gorda e dois homens. Eu conhecia aqueles homens muito bem, mas ainda não conseguia lembrar quem era a mocinha. Tentei, mas parecia em vão.

Deitei-me novamente alagado de suor. Queria descansar um pouco antes de tirar o pijama ensopado. Quando encostei a cabeça no travesseiro alto, minha memória pareceu clarear e então percebi quem era a moça que tocava violão. Era a mulher do nagual; o ser mais importante do mundo para mim e la Gorda. Era o análogo feminino do homem nagual; não a esposa ou mulher dele, mas sua contrapartida. Tinha a serenidade e o comando de um verdadeiro líder. Por ser mulher ela nos nutria.

Não tive coragem de forçar a memória muito além. Sabia intuiti­vamente que não tinha forças para agüentar a recordação completa. Parei no nível dos sentimentos abstratos. Sabia que ela era a personi­ficação da pureza, da mais profunda e espontânea afeição. Seria muito apropriado dizer que la Gorda e eu amávamos a mulher nagual mais que a própria vida. O que será que tinha acontecido para nos esquecermos dela?

Naquela noite, deitado na cama, fiquei tão agitado que tive medo de morrer. Comecei a entoar umas palavras que se tornaram uma força mestra para mim. E só quando me acalmei é que me lembrei que as palavras que tinha dito para mim mesmo repetidas vezes eram também uma memória que me tinha voltado naquela noite; a memó­ria de uma fórmula, uma mágica para me fazer sair bem de uma reviravolta como aquela que eu tinha passado.

 

Já me dei ao poder que rege meu destino.

E não me prendo a nada, para não ter nada a defender.

Não tenho pensamentos, por isso verei.

Não receio nada, por isso me lembrarei de mim mesmo.

 

A fórmula tinha mais uma linha que eu não conseguia compre­ender naquela época.

 

Desprendido e à vontade,

Passarei como um jato pela Águia para me tornar livre.

 

Estar doente e com febre ajudou a amortecer várias coisas; talvez tenha sido o suficiente para desviar o impacto principal do que eu tinha feito, ou melhor, do que tinha caído sobre mim, já que eu volitivamente não tinha feito nada.

Até aquela noite, se o levantamento das minhas experiências fosse feito, podia ter respondido pela continuidade da minha existên­cia. As memórias nebulosas que eu tinha de la Gorda, ou o pressen­timento de ter vivido naquela casa nas montanhas do México central, eram de certa forma ameaças à idéia da minha continuidade, mas nada comparado à lembrança da mulher nagual. Não tanto por causa das emoções que a própria memória trazia de volta, mas por eu tê-la esquecido; e não como se esquece de um nome ou de uma melodia. Não havia nada sobre ela na minha cabeça antes daquele momento de revelação. Nada! Então veio-me alguma coisa, ou caiu sobre mim alguma coisa, e eu me descobri lembrando-me de um ser muito importante que, do ponto de vista do meu eu experimental anterior àquele momento, eu nunca tinha conhecido.

Tive de esperar mais dois dias pela volta de la Gorda para poder contar a ela minha recordação. No momento em que descrevi a mulher nagual, la Gorda lembrou-se dela; sua conscientização era de alguma forma dependente da minha.

— A moça que eu vi no carro branco era a mulher nagual — exclamou la Gorda sem respiração. — Ela voltou e eu não consegui me lembrar dela.

Ouvi as palavras e compreendi o significado delas, mas foi preci­so muito tempo para que minha cabeça focalizasse o que ela tinha dito. Minha atenção flutuava; era como se uma luz fosse na realidade colocada diante dos meus olhos e fosse enfraquecendo. Tinha noção de que se não parasse de enfraquecer eu morreria. Subitamente senti uma convulsão, e então soube que tinha juntado as duas partes de mim mesmo que haviam se separado; percebi que a mocinha que tinha visto na casa de Dom Juan era a mulher nagual.

Naquele momento de reviravolta emocional la Gorda não me serviu de ajuda. Seu humor era contagiante. Ela chorava sem se conter. O choque emocional ao lembrar-se da mulher nagual tinha-a traumatizado.

— Como eu pude esquecê-la — suspirava la Gorda.

Captei um laivo de suspeita nos olhos dela quando me olhou.

— Você não tinha idéia de que ela existia, tinha? — perguntou.

Em qualquer outra circunstância eu teria considerado a sua pergunta impertinente, insultuosa, mas ela verbalizava minhas próprias suspeitas sobre ela. Tinha me ocorrido que ela podia ter sabido mais do que estava dizendo.

— Não, não tinha — falei. — Mas e você, Gorda? Você sabia da existência dela?

Seu rosto tinha um ar tão inocente e perplexo que minhas dúvidas se dissiparam.

— Não — respondeu. — Até hoje não. Sei agora, na verdade, que costumava me sentar com ela e o nagual Juan Matus naquele banco na praça de Oaxaca. Sempre me lembrava de ter me sentado lá, lembrava-me das feições dela, mas achava que tinha sonhado tudo aquilo. Sabia tudo e ao mesmo tempo não sabia. Mas por que eu achava que era um sonho?

Tive um momento de pânico. Depois tive a certeza física de que enquanto ela falava um canal tinha se aberto em algum lugar do meu corpo. De repente soube que eu também costumava me sentar naquele banco com Dom Juan e a mulher nagual. Lembrei-me então de uma sensação que tinha tido em todas aquelas ocasiões. Era um senso de contentamento físico, felicidade, plenitude, impossíveis de serem imagi­nados. Achava que Dom Juan e a mulher nagual eram seres perfeitos e que estar na companhia deles era na verdade minha grande sorte. Sentado naquele banco, ladeado pelos seres mais divinos da terra, eu experimentei talvez a epítome dos meus sentimentos humanos. Uma vez disse a Dom Juan, e estava falando sério, que queria morrer naquela hora, a fim de manter aquele sentimento puro, intacto, tem ruptura.

Contei a la Gorda minha memória. Ela disse que compreendia o que eu queria dizer. Ficamos quietos por um instante, e então o impulso da nossa lembrança nos aproximou perigosamente do deses­pero absoluto e da tristeza. Tive de exercer o máximo controle sobre minhas emoções para não chorar. La Gorda soluçava, cobrindo o rosto com o braço.

Depois de algum tempo ficamos mais calmos. La Gorda olhou dentro dos meus olhos. Eu sabia em que ela eslava pensando. Era como se pudesse ler as perguntas nos seus olhos. Eram as mesmas perguntas que vinham me obcecando há dias. Quem era a mulher nagual? Onde a tínhamos encontrado? Onde ela se encaixava? Os outros a conheciam também?

Estava a ponto de verbalizar minhas perguntas quando la Gorda me interrompeu.

— Eu realmente não sei — disse rapidamente, perguntando antes de mim. — Estava contando que você me dissesse. Não sei por que, mas sinto que você pode me dizer tudo.

Ela contava comigo e eu contava com ela. Rimos da ironia da nossa situação. Pedi-lhe para me dizer tudo o que ela se lembrava sobre a mulher nagual. La Gorda se esforçou para falar por duas ou três vezes, mas parecia ser incapaz de organizar seus pensamentos.

— Realmente não sei por onde começar — falou. — Só sei que eu a amava.

Eu lhe disse que tinha o mesmo sentimento. Uma tristeza fora do comum tomava conta de mim toda vez em que pensava na mulher nagual. Enquanto estava falando meu corpo começou a sacudir.

— Você e eu a amávamos — disse la Gorda. — Não sei por que estou dizendo isso, mas sei que ela nos possuía.

Pedi-lhe que explicasse aquela declaração. Ela não conseguia saber por que tinha dito aquilo. Falava nervosamente, expressando seus sentimentos. Eu não pude mais prestar atenção a ela. Senti uma tremulação no meu plexo solar. Uma memória vaga da mulher nagual começou a tomar forma. Pedi a la Gorda para continuar falando, para se repetir se não tivesse nada mais a dizer, mas para não parar. O som da voz dela parecia agir como um conduto a outra dimensão, a outro tipo de tempo. Era como se o sangue estivesse correndo pelo meu corpo com uma pressão diferente, Senti um formigamento, então tive uma estranha memória corporal. Sabia, em meu corpo, que a mulher nagual era o ser que tomava o nagual completo. Trazia ao nagual paz, plenitude, um senso de proteção.

Disse la Gorda que tinha a percepção de que a mulher nagual era a parceira de Dom Juan. La Gorda me olhou espantada. Balan­çava lentamente a cabeça de um lado para o outro.

— Ela não tinha nada a ver com o nagual Juan Matus, seu idiota — disse, com um tom de voz de extrema autoridade. — Ela era para você. É por isso que eu e você pertencíamos a ela.

La Gorda e eu olhamo-nos nos olhos. Eu tinha certeza de que ela estava verbalizando involuntariamente pensamentos que racional­mente não queriam dizer nada para ela.

— O que quer dizer com ela era para mim, Gorda? — pergun­tei depois de um longo silêncio.

— Ela era sua parceira — disse. — Vocês dois formavam um grupo. E eu era a protegida dela. e você foi encarregado de me entregar a ela um dia.

Implorei a la Gorda para me dizer tudo o que sabia, mas ela não parecia saber nada mais. Fiquei exausto.

— Para onde ela foi? — disse la Gorda de repente. — Não consigo entender isso. Ela estava com você, não com o nagual. Estaria conosco agora.

Teve então outro ataque de descrença e medo. Acusou-me de esconder a mulher nagual em Los Angeles. Tentei abrandar suas apreensões. Surpreendi-me falando com la Gorda como se ela fosse uma criança. Ela me ouviu com todo os sinais exteriores de completa atenção; seus olhos, no entanto, estavam vagos, fora de foco. Ocor­reu-me então que ela estivesse usando o som da minha voz como eu. tinha usado o dela, como um conduto. Sabia que ela estava consciente disso. Continuei a falar até que não tive mais o que dizer dentro dos limites do nosso assunto. Uma outra coisa aconteceu então e eu me surpreendi ouvindo o som da minha própria voz. Estava falando com la Gorda sem qualquer volição da minha parte. As palavras pareciam ter estado trancadas dentro de mim e terem sido agora liberadas, alcançado a níveis incríveis de absurdo. Falei e falei até que alguma coisa me fez parar. Tinha me lembrado do que Dom Juan dissera à mulher nagual e a mim, naquele banco em Oaxaca, sobre um ser hu­mano em particular cuja presença tinha sido a síntese de tudo a que ele podia aspirar ou esperar do companheirismo humano. Era uma mulher que tinha sido para ele o que a mulher nagual era para mim. uma parceira, uma contrapartida. Ela o deixou, do mesmo modo que a mulher nagual me deixou. Seus sentimentos por ela não se altera­ram e eram reacendidos pela melancolia que certos poemas evocavam nele.

Eu também me lembrei que era a mulher nagual que costumava me dar livros de poesia. Guardava pilhas deles na mala do carro. Era por insistência dela que eu lia os poemas para Dom Juan. De repente a memória física da mulher nagual sentada comigo naquele banco ficou tão clara que eu enchi o peito e dei uma respirada involuntária. Um opressivo senso de perda, maior que o sentimento que eu jamais tivera tomou conta de mim. Dobrei-me com uma dor lacerante na minha omoplata direita. Eu sabia de mais alguma coisa, uma memória que parte de mim não queria liberar.

Envolvi-me com o que quer que tivesse sobrado do meu escudo de intelectualismo, como o único meio de recobrar minha serenidade. Disse a mim mesmo várias vezes que la Gorda e eu tínhamos operado todo o tempo em dois planos absolutamente diversos. Ela lembrava-se muito mais do que eu, mas não era curiosa. Não tinha sido treinada para fazer perguntas aos outros ou a si própria. Mas depois tive a sensação de que eu não melhorara; era ainda tão desleixado quanto Dom Juan dissera uma vez que eu era. Nunca me esquecera de ler poesia para ele, e no entanto não me ocorrera que eu nunca tinha tido um livro de poesia em espanhol, comigo ou no meu carro.

La Gorda me tirou das minhas reflexões. Estava quase histérica. Gritava que tinha acabado de descobrir que a mulher nagual tinha de estar em algum lugar perto de nós. Exatamente como tínhamos sido deixados para encontrar um ao outro, a mulher nagual tinha sido deixada para nos encontrar. A força do seu raciocínio quase me convenceu. Alguma coisa em mim, contudo, sabia que não era assim. Aquela era a memória que estava dentro de mim, que eu não ousava trazer à tona.

Tive vontade de começar um debate com la Gorda, mas não havia razão, meu escudo de intelectualismo e palavras era insuficiente para absorver o impacto de me lembrar da mulher nagual. Seu efeito me atordoava, mais devastadoramente que o próprio medo de morrer.

— A mulher nagual está naufragada em algum lugar — disse la Gorda humildemente. — Está provavelmente abandonada e não esta­mos fazendo nada para ajudá-la.

— Não! Não! — gritei. — Ela não está mais aqui!

Não sabia exatamente por que tinha dito aquilo, no entanto sabia que era verdade. Afundamo-nos por um instante numa melancolia profunda, impossível de ser compreendida racionalmente. Pela pri­meira vez na minha vida senti uma tristeza real, sem limites; uma terrível frustração. Havia um ferimento em mim que tinha sido novamente aberto. Dessa vez não pude me esconder, como fizera tantas outras vezes no passado, por trás de um véu de mistério e de não saber. Não saber tinha sido uma alegria para mim. Por um instante, fiquei perigosamente soturno. La Gorda me deteve.

— Um guerreiro é alguém que procura a liberdade — disse no meu ouvido. — Tristeza não é liberdade. Devemos nos libertar dela.

Ter um senso de desprendimento, como dizia Dom Juan, inclui ter uma pausa momentânea para reavaliar situações. No auge da minha tristeza ficava a meu cargo me esforçar para usar essa pausa corretamente.

Não posso ter certeza se minha volição atuou ou não, mas de repente minha tristeza desapareceu; era como se nunca tivesse existi­do. A velocidade da mudança do meu humor e sua totalidade me alarmaram.

— Agora você está onde eu estou! — exclamou la Gorda depois de eu ter descrito minha mudança de humor. — Depois de todos esses anos eu ainda não aprendi como lidar com o meu estado sem forma. Por eu não ter forma pude ajudar as irmãzinhas, mas também fiquei à mercê delas. Qualquer delas era forte o suficiente para me balançar de um extremo ao outro.

— O problema foi que eu perdi a forma humana antes de você. Se você e eu a tivéssemos perdido juntos, por exemplo, poderíamos nos ter ajudado um ao outro; do modo como aconteceu, tive mais altos e baixos do que imaginava.

Tive de admitir que a história dela ser sem forma tinha sempre me parecido uma farsa. A meu ver, perder a forma humana envolvia uma concomitância necessária, uma consistência de caráter, que esta­va, à luz dos altos e baixos emocionais dela, além do seu alcance. Por causa disso tinha-a julgado com severidade e injustamente. Tendo perdido minha forma humana podia agora compreender que a falta de forma era um dano à sensatez e à sobriedade. Não havia uma força emocional automática. O aspecto de ser desprendido, a capaci­dade de tornar-se absorvido em qualquer coisa que se faça, natural­mente estende-se a qualquer detalhe, inclusive ser inconsistente e um mesquinho arrematado. A vantagem de ser sem forma é que nos permite uma pausa momentânea, desde que tenhamos autodisciplina e coragem para utilizá-la.

Finalmente o comportamento passado de la Gorda tornou-se compreensível para mim. Ela era sem forma há anos, mas sem a autodisciplina requerida, e por isso tinha ficado à mercê de mudanças drásticas de humor, e discrepâncias incríveis entre suas ações e seus propósitos.

 

Depois de nossa recordação inicial da mulher nagual, la Gorda e eu juntamos todas as nossas forças e tentamos, durante dias, extrair outras memórias. Mas parecia não haver mais nenhuma. Eu próprio voltei aonde estava antes de começar a me lembrar. Intuí que devia haver muito mais dentro de mim, mas não consegui chegar lá. Minha cabeça estava vazia, sem a mais vaga alusão a qualquer outra memó­ria que pudesse existir.

La Gorda e eu atravessamos um período de tremenda confusão e dúvida. Em nosso caso, ser sem forma significava ser tomado da pior descrença possível. Sentimos que éramos cobaias nas mãos de Dom Juan, um ser com quem estávamos familiarizados, mas que na realidade não conhecíamos. Enchemo-nos de dúvidas e temores. O assunto mais sério para nós era, naturalmente, a mulher nagual. Quando íamos focalizar nossa atenção sobre ela, nossa memória dela tomava-se tão aguçada que não conseguíamos compreender que pudés­semos tê-la esquecido; isso nos levava repetidas vezes a especular o que Dom Juan tinha sido exatamente para nós. Essas conjeturas nos levavam muito facilmente ao sentimento de termos sido usados. Ficávamos enraivecidos com a conclusão inevitável de ele nos ter manipu­lado, fazendo-nos indefesos e desconhecidos de nós mesmos.

Depois da nossa raiva ter sido consumida, o medo começou a nos atingir e nos deparamos com a terrível possibilidade de Dom Juan ter feito coisas ainda mais prejudiciais a nós.

 

                 Sonhando Juntos

Um dia, a fim de aliviar nosso sofrimento por um tempo, sugeri que imergíssemos em sonho. Ao verbalizar minha sugestão, tornei-me ciente de que a melancolia que me perseguia há dias podia ser drasti­camente mudada se eu quisesse mudar. Compreendi claramente então que o problema com la Gorda e comigo próprio era que tínhamos inconscientemente focalizado o medo e a desconfiança, como se eles fossem as únicas opções possíveis para nós, enquanto todo o tempo tínhamos tido, sem saber conscientemente, a alternativa de centrar deliberadamente nossa atenção no oposto, o mistério, a maravilha que nos tinha acontecido.

Contei a la Gorda o que tinha apreendido e ela me apoiou ime­diatamente. Ficou animada no mesmo instante, desfazendo sua melan­colia numa questão de segundos.

— Que espécie de sonho você propõe que façamos? — pergun­tou ela.

— Quantos tipos há? — perguntei.

— Podíamos sonhar juntos — replicou. — Meu corpo me diz que já fizemos isso antes. Entremos no sonho como um grupo. Será facílimo para nós, como foi ver juntos.

— Mas não sabemos o processo de sonhar juntos — falei.

— Não sabíamos como ver juntos e ainda assim vimos — disse ela. — Tenho certeza de que se tentarmos podemos conseguir, pois não há processo para nada que um guerreiro faça. É apenas uma questão de poder pessoal. E nesse momento temos esse poder.

— Nós dois devíamos começar nosso sonho de dois lugares diferentes, tão longe quanto possível um do outro. O que entrar no sonho primeiro espera pelo outro. Quando nos encontrarmos entre­laçamos nossos braços e nos aprofundamos juntos.

Disse-lhe que não tinha idéia de como esperar por ela se eu entrasse no sonho antes. Ela própria não sabia dizer o que se tinha de fazer para esperar. Falou que esperar pelo outro sonhador era o que Josefina tinha descrito como “agarrá-los”. La Gorda tinha sido agarrada por Josefina duas vezes.

— Josefina falava “agarrar” porque uma de nós tinha de segu­rar a outra pelo braço — explicou.

Ela demonstrou então o processo de entrelaçar seu braço esquer­do no meu braço direito, segurando a parte de baixo dos cotovelos.

— Como é que podemos fazer isso sonhando? — inquiri.

Eu pessoalmente considerava sonhar um dos estados mais parti­culares possíveis.

— Não sei como, mas vou segurá-lo — falou la Gorda. — Creio que meu corpo sabe como. Mas quanto mais falarmos sobre isso mais difícil vai parecer.

Começamos a sonhar de dois lugares separados. Podíamos ape­nas concordar sobre o tempo para deitar, já que entrar no sonho era uma coisa impossível de predeterminar. A possibilidade previsível de eu ter de esperar por la Gorda criou-me tanta ansiedade que eu não consegui entrar nele com a facilidade a que estava acostumado. Depois de uns dez ou quinze minutos de inquietação, finalmente consegui ter êxito em chegar a um estado que eu chamava de vigília repousante.

Anos antes, quando eu tinha adquirido um grau de experiência em sonhar, perguntei a Dom Juan se havia processos conhecidos que fossem comuns a todos nós. Ele me disse que em análise final cada sonhador era diferente. Mas falando com la Gorda descobri que tí­nhamos tanta semelhança em nossas experiências de sonho que aven­turei um possível esquema classificatório de estágios diferentes.

A vigília repousante é o estágio preliminar; estágio no qual os sentidos ficam adormecidos mas a pessoa continua consciente. No meu caso, eu tinha sempre percebido nessa fase um derramamento de luz avermelhada, uma luz exatamente como a que se via olhando para o sol com as pálpebras bem cerradas.

O segundo estágio do sonho é chamado vigília dinâmica. Nesse estágio a luz avermelhada desaparece, como desaparece a névoa e a pessoa se vê olhando para um cenário, um painel variado e estático. Vê-se um quadro em três dimensões: uma pontinha de cada coisa, uma paisagem, uma rua, uma casa, uma pessoa, um rosto, e assim por diante.

Chamei ao terceiro estágio presenciar passivamente. Nele o so­nhador não está mais vendo pedacinhos do mundo, mas está obser­vando, presenciando um acontecimento. É como se o primado dos sentidos visuais e auditivos tornasse esse estágio do sonho basica­mente uma questão de olhos e ouvidos.

O quarto estágio tinha sido para mim aquele no qual eu era levado a agir. Nele a pessoa é compelida a aventurar; a dar passos, a aproveitai o máximo do seu tempo. Chamei a esse estágio inicia­tiva dinâmica.

A proposta de la Gorda de esperar por mim tinha ligação com o segundo e o terceiro estágios de nosso sonhar juntos. Quando entrei no segundo estágio, na vigília dinâmica, vi a cena de um sonho de Dom Juan e vários outras pessoas, inclusive a obesa Gorda. Antes mesmo de ter tempo de considerar o que estava vendo, senti um tremendo empurrão no meu braço e percebi de alguma forma longín­qua que a “verdadeira” Gorda estava ao meu lado. Estava à minha esquerda e tinha agarrado meu braço direito com a sua mão esquerda. Senti claramente que estava levantando minha mão até o braço dela. O resultado foi que nós dois nos seguramos pelo braço. Em seguida, me vi no terceiro estágio do sonho, o de presenciar passivamente. Dom Juan estava me dizendo que eu tinha de cuidar de la Gorda de uma forma muito egoísta, isto é, como se ela fosse meu próprio eu.

Seu jogo de palavras me encantou. Senti uma felicidade imensa em estar lá com ele e com os outros. Dom Juan continuou a explicar que meu egoísmo podia ser altamente usado, e que não era impossí­vel aproveitá-lo.

Havia um sentimento geral de camaradagem entre todas as outras pessoas reunidas lá. Estavam rindo de tudo o que Dom Juan me dizia, mas sem caçoada. Ele falou que o meio mais seguro de aproveitar o egoísmo era através das atividades diárias de nossas vidas, que eu era eficiente em tudo o que fazia porque não tinha ninguém para me atormentar, e que não era desafio para mim voar como uma flecha por mim mesmo. Se eu tivesse a tarefa de cuidar de la Gorda, contudo, minha eficiência independente se faria aos pedaços, e a fim de sobre­viver eu teria de estender minha preocupação egoísta por mim mesmo a la Gorda. Só ajudando-a, dizia Dom Juan em tom muito enfático, eu encontraria a chave da realização da minha verdadeira tarefa.

La Gorda colocou seus braços roliços em volta do meu pescoço. Dom Juan tinha parado de falai. Estava rindo tanto que não conseguia continuar. Ouvi o som de risada. Todos eles estavam às gargalhadas.

Fiquei encabulado e aborrecido com Ia Gorda. Tentei sair do seu abraço mas os braços dela estavam grudados no meu pescoço. Dom Juan fez um sinal com a mão para que eu parasse. Disse que o encabulamento mínimo que eu estava experimentando então, não era nada em comparação ao que me estava reservado.

O som dos risos era ensurdecedor. Senti-me muito feliz, embora estivesse preocupado de ter de lidar com la Gorda, pois não sabia o que iria haver como conseqüência.

Naquele momento do meu sonho mudei meu ponto de vista, ou deveria dizer que alguma coisa me tirou da cena e eu comecei a olhar à volta como um espectador. Estávamos numa casa no norte do México; eu sabia onde estava pelos arredores que via parcialmente. Podia ver as montanhas a distância. Também me lembrava da para­fernália da casa. Estávamos nos fundos, numa varanda coberta. Algu­mas pessoas estavam sentadas numas cadeiras volumosas, mas a maio­ria delas estava ou de pé ou sentada no chão. Reconheci todas elas. Havia dezesseis pessoas. La Gorda estava de pé ao meu lado, em frente a Dom Juan.

Dei-me conta de que eu podia ter dois sentimentos diferentes dentro de mim. Ou podia entrar na cena de sonho e sentir que estava recuperando um sentimento perdido há muito, ou podia presenciar a cena com o estado de espírito usual na minha vida. Quando me afundei na cena do sonho me senti seguro e protegido; quando a presenciei com meu estado de espírito usual me senti perdido, insegu­ro, angustiado. Não gostei daquele estado de espírito e por isso mer­gulhei na minha cena de sonho.

A Gorda obesa perguntou a Dom Juan, numa voz que podia se ouvir acima da gargalhada de todos, se eu iria ser marido dela. Houve um instante de silêncio. Dom Juan parecia estar pensando no que dizer. Deu-lhe um tapinha na cabeça e disse que podia falar por mim, e que eu ficaria encantado em ser marido dela. As pessoas riram alto, e eu ri com eles, Meu corpo se convulsionou de verdadeira alegria mas eu não sentia que ria de la Gorda. Não a via como um palhaço ou como uma burra. Ela era uma criança. Dom Juan virou-se para mim e disse que eu tinha de prestar honra a la Gorda, independente do que ela fizesse para mim, e de treinar meu corpo, através da minha interação com ela, para me sentir à vontade frente às situa­ções mais difíceis. Dirigiu-se ao grupo todo e disse que era muito mais fácil passar bem em condições de máxima tensão que ser impecável em condições normais, tais como no convívio com alguém como la Gorda. Acrescentou que em condição alguma eu me podia zangar com la Gorda, pois ela era na verdade minha benfeitora; só através dela eu seria capaz de aproveitar meu egoísmo.

Eu tinha me absorvido tão completamente na cena do sonho que me esqueci que era um sonhador. Uma pressão súbita na minha mão me lembrou de que eu estava sonhando. Senti a presença de la Gorda próxima de mim, mas não a vi. Ela estava lá apenas como um toque, como uma presença tátil no meu braço. Focalizei minha atenção sobre o toque, que me pareceu um apertão firme, e depois sobre la Gorda, como um todo materializado, como se ela fosse feita de molduras sobrepostas de filme fotográfico. Era como um truque de fotografia num filme. A cena do sonho em que eu tinha sido envol­vido desapareceu, e no lugar dele la Gorda e eu estávamos olhando um para o outro com os braços entrelaçados.

Em uníssona focalizamos novamente nossa atenção na cena do sonho que tínhamos presenciado. Naquele momento eu sabia sem a menor sombra de dúvida que nós dois tínhamos visto a mesma coisa. Naquela cena Dom Juan dizia alguma coisa a la Gorda, mas eu não conseguia ouvi-lo. Minha atenção estava sendo levada para frente e para trás entre o terceiro estágio do sonho, presenciar passivamente, e o segundo, vigília dinâmica. Numa hora estava com Dom Juan, a obesa Gorda e dezesseis outras pessoas, e em outra hora com a Gorda atual, observando uma cena estática.

Uma sacudidela forte do meu corpo me levou a um outro nível de atenção. Senti uma coisa como se fosse o estalar de um pedaço seco de madeira. Era um estouro pequeno, mais semelhante a um barulho forte dos nós dos dedos. Encontrei-me no primeiro estágio do sonho, a vigília repousante. Estava dormindo e ao mesmo tempo perfeitamente consciente. Tinha vontade de ficar o mais tempo que pudesse naquele estágio pacífico, mas outra sacudidela me fez acordar instantaneamente. Tinha de repente percebido que la Gorda e eu tínhamos sonhado juntos.

Eu estava ansiosíssimo para falar com ela, e ela também. Corre­mos para conversar um com o outro. Quando tínhamos nos acalmado pedi-lhe para me descrever tudo o que tinha acontecido com ela em nosso sonho juntos.

— Esperei-o por muito tempo — disse. — Uma parte de mim achava que eu o tinha perdido, mas outra achava que você estava nervoso e com algum problema, então esperei.

— Onde esperou, Gorda? — perguntei.

— Não sei — replicou ela. — Sei que estava fora da luz aver­melhada, mas não podia ver nada. Pensando bem, eu não tinha vista, estava tateando. Talvez ainda estivesse dentro da luz avermelhada, mas não era vermelha. O lugar era tingido de uma luz cor de pêssego. Então abri os olhos e lá estava você. Parecia estar pronto para partir, então agarrei-o pelo braço. Depois olhei em volta e vi o nagual Juan Matus, você, eu e outras pessoas na casa do Vicente. Você era mais moço e eu era muito gorda.

A menção da casa do Vicente me deu uma percepção súbita. Disse a la Gorda que uma vez, quando guiava por Zacatecas, no norte do México, tinha tido uma necessidade estranha de visitar um dos amigos de Dom Juan, Vicente, sem nunca perceber que ao fazer aquilo eu tinha inconscientemente atravessado um domínio excluído, pois Dom Juan nunca me tinha apresentado a ele. Vicente pertencia, como a mulher nagual, a outra área, a outro mundo. Não era de estranhar que la Gorda tivesse ficado tão abalada quando tinha lhe contado uma vez sobre minha visita a Vicente. Nós o conhecíamos muito bem. Ele era íntimo nosso como Dom Genaro, ou talvez até mais. No entanto tínhamos nos esquecido dele, do mesmo modo como tínhamos nos esquecido da mulher nagual.

Naquele ponto la Gorda e eu fizemos uma imensa digressão. Lem­bramo-nos juntos de que Vicente, Genaro e Silvio Manuel eram ami­gos de Dom Juan, do seu bando. Eram ligados por uma série de votos. La Gorda e eu não conseguíamos nos lembrar o que os unia. Vicente não era índio. Tinha sido farmacêutico quando era moço, era o estudioso do grupo, o verdadeiro curandeiro que mantinha todos saudáveis. Tinha paixão por botânica. Eu estava convencido, sem dúvida alguma, de que ele conhecia mais sobre plantas do que qual­quer outro ser vivo. La Gorda e eu lembramos que era Vicente quem tinha ensinado a todos, inclusive a Dom Juan, sobre plantas medici­nais. Tinha interesse especial em Nestor, e todos nós achávamos que Nestor fosse ser como ele.

— Lembrando-me de Vicente me faz lembrar de mim mesmo — disse la Gorda. — Me faz pensar que mulher insuportável eu fui. A pior coisa que pode acontecer a uma mulher é ler filhos, ter buracos no corpo e ainda agir como uma menininha. Esse era o problema. Eu queria ser engraçadinha e era vazia. E eles me deixaram bancar a boba, encorajaram-me a ser uma imbecil.

— Quem são eles, Gorda? — perguntei.

— O nagual e Vicente e todas aquelas pessoas que estavam na casa de Vicente quando eu agi como uma imbecil com você.

La Gorda e eu tivemos uma percepção em uníssono. Eles lhe tinham permitido ser insuportável só comigo. Ninguém mais agüentou suas bobagens, embora ela tivesse tentado com todos.

— Vicente me agüentou — disse la Gorda. — Ele brincou comigo e eu até o chamei de tio. Quando tentei chamar Silvio Manuel de tio ele quase arrancou a pele debaixo do meu braço com suas mãos em garra.

Tentamos focalizar nossa atenção sobre Silvio Manuel mas não conseguimos lembrar como ele era. Podíamos sentir sua presença em nossas memórias, mas ele não era uma pessoa, era apenas um sen­timento.

Referente à cena do sonho, lembramos que tinha sido uma répli­ca fiel do que na realidade tinha acontecido em nossas vidas num certo lugar e tempo; ainda não nos era possível discernir onde e quando. Eu sabia, entretanto, que cuidava de la Gorda como um meio de treinar-me para a dificuldade de interagir com as pessoas. Era imperativo que eu internalizasse um espírito solto diante de situa­ções sociais difíceis, e ninguém melhor que la Gorda para me persua­dir. Os lampejos das memórias fracas que eu tinha tido de la Gorda originavam-se dessas circunstâncias, pois eu tinha seguido as ordens de Dom Juan ao pé da letra.

Teria preferido tê-la apenas observado, mas eu a empurrei para dentro para ter os sentimentos antigos, que eram absolutamente abo­mináveis para ela. Seu desconforto era tão grande que ela delibera­damente apertou meu braço com foiça para terminar nossa partici­pação numa coisa que lhe era tão odiosa.

 

No dia seguinte arranjamos tempo para outra sessão de sonhar jun­tos. Ela começou ao seu quarto e eu do meu escritório. Mas não aconteceu nada. Ficamos exaustos somente de tentar entrar no sonho. Depois tentamos por várias semanas reproduzir o efeito de nossa primeira atuação, mas sem qualquer resultado. A cada insucesso ficá­vamos mais desesperados e ansiosos.

Decidi, em face do nosso impasse, que devíamos adiar nosso sonhar juntos por algum tempo, dar uma olhada mais detalhada no processo de sonhar e analisar seus conceitos e manobras. La Gorda não concordou comigo de início. Para ela a idéia de rever o que já sabia sobre sonho era uma outra forma de sucumbir ao desespero e à ansiedade. Preferia continuar tentando, mesmo que não tivesse êxito. Eu triunfei sobre ela, que finalmente aceitou meu ponto de vista pela mera razão de estar perdida.

Uma noite Sentamo-nos e muito casualmente começamos a dis­cutir o que sabíamos sobre o sonho. Tornou-se óbvio para nós que havia alguns assuntos-chave aos quais Dom Juan dera ênfase especial.

Primeiro era o ato de sonhar. Na nossa opinião ele começava como um estado de consciência único, ao qual se chegava aprendendo a localizar o resíduo de consciência que a pessoa ainda tem enquanto dorme, sobre os elementos ou os detalhes dos sonhos da pessoa.

O resíduo de consciência, a que Dom Juan chamava segunda atenção, era levado à ação, ou era aproveitado através de exercidos do não fazer. Achávamos que o não fazer essencial do sonho era um estado de quietude mental, ao qual Dom Juan chamava de “parar o diálogo interno”, ou o não fazer de falar. A fim de me ensinar como manejá-lo ele costumava me fazer andar quilômetros com os olhos fixos e fora de foco a um nível logo ao fim da linha do horizonte, permitindo assim que eu tivesse uma visão periférica. Seu método era eficiente por dois motivos: permitia-me parar meu diálogo interno depois de ter tentado durante anos, e treinava minha atenção. Forçando-me a concentrar-me na minha visão periférica, Dom Juan refor­çava minha capacidade de me concentrar por longo tempo em uma única atividade.

Mais tarde, quando eu tinha conseguido controlar minha atenção c podia trabalhar durante horas em qualquer tarefa a que me impu­nha sem me distrair — coisa que nunca antes fora capaz de fazer — ele me disse que o melhor modo de buscar um sonho era me concen­trar na área próxima à ponta do esterno, na boca do estômago. Falou que a atenção que um homem necessita para sonhar deriva-se da­quela área, mas que a energia a fim de se mover e procurar no sonho origina-se da área a uns três a seis centímetros abaixo do umbigo. Ele chamava a essa energia “vontade” ou poder de selecionar, de acumu­lar. Numa mulher tanto a atenção quanto a energia para o sonho originam-se do ventre.

— O sonho de uma mulher tem de vir do seu ventre porque é esse o seu centro — disse la Gorda. — Para que eu comece a sonhar ou parar o sonho, tudo o que tenho a fazer é colocar minha atenção no ventre. Aprendi a sentir o seu interior. Vejo um brilho averme­lhado por um instante e então se dá o seu início.

— Quanto tempo você leva para ver esse brilho avermelhado? — perguntei.

— Alguns segundos. No momento em que minha atenção vai para o meu ventre já estou entrando no sonho — continuou a expli­car. — Nunca labuto muito. As mulheres são assim. A parte mais difícil para uma mulher é aprender a começar; levei uns dois anos para parar meu diálogo interno, concentrando minha atenção no meu ventre. Talvez seja por isso que uma mulher sempre precise de alguém para estimulá-la.

— O nagual Juan Matus costumava colocar pedrinhas frias e úmidas na minha barriga para me fazer sentir aquela região. Ou co­locava um peso sobre ela; eu tinha um pedaço de chumbo que ele arranjou para mim. Fazia-me fechar os olhos e focalizar minha aten­ção na área em que estava o peso. Eu costumava dormir todas as vezes, mas isso não lhe importava. Realmente não faz diferença o que a pessoa faça, desde que a atenção esteja no ventre. Finalmente aprendi a concentrá-la naquele lugar sem colocar nada lá. Entrei no sonho um dia por mim mesma. Estava sentindo minha barriga, no lugar em que o nagual tinha colocado o peso muitas vezes, quando de repente caí no sono como sempre, com a diferença de que alguma coisa me empurrava até o meu ventre. Vi o brilho avermelhado e então tive o sonho mais lindo. Mas assim que tentei contá-lo ao nagual, vi que não tinha sido um sonho comum. Não houve meio de contar-lhe que sonho era; eu tinha apenas me sentido muito feliz e forte. Ele disse que eu tinha estado sonhando. Daquele dia em diante ele nunca mais colocou o peso em mim. Deixava-me sonhar sem interferir. Pe­dia-me de tempos em tempos que os contasse a ele, e depois me dava uns palpites. É assim que as instruções do sonho devem ser conduzidas.

La Gorda disse que Dom Juan lhe falou que qualquer coisa pode servir como um não fazer para ajudar o sonho, desde que force a atenção a permanecer fixa. Ele fazia com que ela e todos os outros aprendizes, por exemplo, olhassem para as folhas e pedras, e encora­java Pablito a formar seu próprio dispositivo de não fazer. Pablito começou com o não fazer de entrar para trás. Para se movimentar dava olhadas rápidas para os lados a fim de saber para onde ia e evitar obstáculos no caminho. Dei-lhe a idéia de usar um espelho retrovisor, e ele desenvolveu essa idéia, construindo um capacete de madeira com uma parte que prendia dois espelhos pequenos, a uns doze centímetros do rosto e quatro centímetros abaixo do nível dos olhos. Os dois espelhos não interferiam com sua visão frontal, e, devido ao ângulo lateral no qual estavam presos, cobriam toda a área atrás dele. Pablito se gabava de ter uma visão periférica do mundo de 360°. Auxiliado pelo seu dispositivo podia andar para trás a qualquer distância, ou durante qualquer tempo.

A posição em que a pessoa se coloca para sonhar era também um assunto muito importante.

— Não sei por que o nagual não me disse desde o início — disse la Gorda — que a melhor posição para uma mulher iniciar é sentar com as pernas cruzadas e depois deixar o corpo cair como quiser, uma vez que a atenção está no sonho. O nagual me disse isso talvez um ano depois de eu ter começado. Agora em me sento nessa posição por um instante, sinto meu ventre, e lago depois estou sonhando.

No início, como la Gorda, eu tinha começado deitado de costas, até que um dia Dom Juan me disse que para melhores resultados devia me sentar num tapete fino e macio, com as solas do pé juntas e minhas coxas encostadas no tapete. Observou que já que eu tinha as juntas dos quadris elásticas, devia exercitá-las ao máximo, com o objetivo de conseguir que minhas coxas ficassem completamente encos­tadas no tapete. Acrescentou que se eu entrasse no sonho sentado, meu corpo não escorregaria ou cairia para os lados, mas meu tronco iria para a frente e minha testa se apoiaria nos pés.

Outro assunto altamente significativo era a hora de sonhar. Dom Juan tinha nos dito que tarde da noite ou bem cedo de manhã eram as melhores horas. Sua razão de preferir essas horas era o que ele chamava de aplicação prática do conhecimento dos feiticeiros. Disse que já que a pessoa tem de sonhar dentro de um meio social, deve procurar as condições melhores de solidão e ausência de interferência.

 

A interferência a que se referia tinha ligação com a atenção das pes­soas e não com sua presença física. Para Dom Juan, não adiantava retirar-se do mundo e esconder-se, pois mesmo se estando sozinho num lugar deserto, prevalecia a interferência dos homens, pois a fixa­ção da sua primeira atenção não podia ser cortada. Temporariamente e apenas localmente, nas horas em que a maioria das pessoas está dormindo, pode-se desviar parte dessa fixação por um curto tempo. É nessas horas que a primeira atenção está adormecida.

Isso levava à sua descrição da segunda atenção. Explicou-nos que a atenção de que se precisa no início do sonho tem de ser forçosa­mente fixada num determinado item. Só através de imobilização de nossa atenção pode-se transformar um sonho comum em sonho.

Explicou, mais adiante, que no sonho é necessário usar os mes­mos mecanismos de atenção da vida diária; que nossa primeira aten­ção foi orientada para focalizar os itens do mundo com grande força a fim de tornar o reinado amorfo e caótico da percepção no mundo ordenado da consciência.

Disse-nos também que a segunda atenção serve como uma instigação, uma apelação de oportunidades. Quanto mais exercitada, maio­res possibilidades de se conseguir o resultado desejado. Mas que tam­bém é função da atenção em geral uma função tão desvalorizada na nossa vida diária que nem é percebida; se nos deparamos com uma ocorrência fortuita, falemos sobre ela em termos de um acidente, ou coincidência, e não em termos de nossa atenção ter instigado o acon­tecimento.

Discutir a segunda atenção abriu caminho a outro assunto, o corpo sonhador. Como um meio de guiar la Gorda para ele, Dom Juan lhe dera a tarefa de imobilizar sua segunda atenção ao máximo nos elementos propiciadores da sensação de voar no sonho.

— Como você aprendeu a voar no sonho? — perguntei-lhe. — Alguém lhe ensinou?

— O nagual Juan Matus me ensinou neste mundo — ela res­pondeu. — E, sonhando, alguém que eu nunca consegui ver me ensi­nou. Era só uma voz que me dizia o que fazer. O nagual me deu a tarefa de aprender a voar no sonho, e a voz me ensinou como fazê-lo. Depois levei anos para aprender por mim mesma a mudar do meu corpo normal, aquele que se pode tocar, em corpo sonhador.

— Vai ter de me explicar isso, Gorda — falei.

— Você estava aprendendo a chegar ao seu corpo sonhador quando sonhou que saía do seu corpo — continuou ela. — Mas segundo estou vendo, o nagual não lhe deu nenhuma tarefa específica, então você se arrumou como pôde. Eu, pelo contrário, recebi a tarefa de usar meu corpo sonhador. As irmãzinhas tinham a mesma tarefa. No meu caso, uma vez sonhei que voava como uma pipa. Contei ao nagual porque tinha gostado de deslizar. Ele levou a coisa muito a sério e transformou-a numa tarefa. Disse que assim que se aprende a sonhar, qualquer sonho de que a pessoa se lembre não é mais sonho e sim sonho. Comecei então a procurar voar no sonho, mas não conseguia ajustá-lo; por mais que tentasse, mais difícil se tornava. O nagual finalmente me disse para parar de tentar voar em sonho. Foi aí que uma voz começou a me dizer o que fazer; sempre achei que era voz de mulher. Quando aprendi a voar perfeitamente, o nagual me disse que cada momento de vôo que eu fazia no sonho tinha de ser repetido enquanto estivesse acordada. Você teve a mesma chance quando o tigre de dente de sabre lhe mostrava como respirar. Mas nunca se transformou em tigre no sonho, por isso não podia tentar fazê-lo apropriadamente enquanto estava acordado. Mas eu aprendi mesmo a voar no sonho. Trocando minha atenção para meu corpo sonhador, consegui voar como uma pipa quando estava acordada. Eu lhe mostrei meu vôo uma vez porque queria que você visse que eu tinha aprendido a usar meu corpo sonhador, mas você não sabia o que estava acontecendo.

Ela se referia ao tempo em que me assustara com uma ação incompreensível de levantar-se para cima e para baixo no ar como uma pipa. O acontecimento era tão forçado para mim que não tentei compreendê-lo de nenhuma forma lógica. Como sempre, quando coisas daquele tipo me apareciam eu as agrupava numa categoria amorfa de “percepções em condições de forte tensão”. Argumentava que em casos de forte tensão a percepção podia ser altamente defor­mada pelos sentidos. Minha explicação não esclarecia nada, mas parecia manter meu raciocínio apaziguado.

Disse a la Gorda que devia haver mais alguma coisa em relação a mudar seu corpo sonhador do que meramente repetir a ação de voar.

Ela pensou por algum tempo antes de responder.

— Creio que o nagual deve ter lhe dito também — disse ela — que a única coisa que realmente conta ao fazer essa mudança é prender a segunda atenção. Disse que a atenção é o que faz o mundo. É claro que estava absolutamente certo; tinha razões para dizer isso. Ele era o mestre da atenção. Creio que deixou a meu cargo descobrir que tudo o que eu precisava para mudar em corpo sonhador era focalizar minha atenção no vôo. O importante era armazenar atenção no sonho, observar tudo o que eu fazia quando voava. Era esse o único meio de cuidar bem da minha segunda atenção. Uma vez sólida, focalizá-la ligeiramente nos detalhes e na sensação de voar atraía mais o sonho de vôo, até que fosse rotina para mim sonhar que voava pelos ares. No que dizia respeito ao vôo, então, a minha segunda atenção estava aguçada. Quando o nagual me deu a tarefa de mudar para meu corpo sonhador queria que eu mudasse para a segunda atenção enquanto acordada. Foi isso que entendi. A primeira atenção, a atenção que faz o mundo, nunca pode ser completamente dominada; pode apenas ser desligada por um instante e recolocada pela segunda atenção, desde que o corpo tenha armazenado bastante dela. Sonhar é, naturalmente, um modo de armazenar a segunda atenção. Assim sendo, eu diria que a fim de mudar em corpo sonha­dor enquanto acordado, tem de se praticar o sonho até que ele passe a ser uma coisa simples.

— Você pode chegar ao seu corpo sonhador a qualquer hora que quiser? — perguntei.

— Não. Não é assim tão fácil — respondeu. — Aprendi a repetir os movimentos e sensações de voar enquanto acordada mas ainda assim não consigo voar toda vez que quero. Há sempre uma barreira ao meu corpo sonhador. Às vezes sinto que a barreira caiu; nessas horas meu corpo fica livre e eu consigo voar como se estivesse sonhando.

Disse a la Gorda que Dom Juan me dera três tarefas para treinar minha segunda atenção. A primeira era encontrar minhas mãos no sonho. Em seguida recomendou que eu escolhesse um local, focali­zasse minha atenção nele e então sonhasse de dia e descobrisse se poderia mesmo ir para lá. Sugeriu que eu colocasse alguém conhe­cido no lugar, de preferência uma mulher, a fim de fazer duas coisas: primeiro, verificar mudanças súbitas que indicassem que eu estava lá em sonho; segando, isolar o detalhe pequeno, que seria precisamente a coisa na qual a minha segunda atenção deveria se fixar.

O problema mais sério do sonhador a esse respeito é a fixação inflexível da segunda atenção no detalhe, que passaria completamente despercebido da atenção da vida diária, criando assim um obstáculo quase intransponível à sua validez. O que se procura no sonho não é aquilo a que se prestaria atenção todo dia.

Dom Juan disse que a luta para imobilizar a segunda atenção é só no período do aprendizado, depois disso tem de se lutar contra o impulso quase invencível da segunda atenção e dar apenas olhadas rápidas para tudo. Ao sonhar a pessoa tem de se satisfazer com as visões mais breves possíveis de tudo. Assim que se focaliza uma coisa, perde-se o controle.

A última tarefa generalizada que ele me deu foi sair do meu corpo. Eu tinha em parte conseguido, e todo o tempo considerei que isso fosse minha única realização real do sonho. Ele partiu antes de eu ter aperfeiçoado a sensação em sonho de que podia lidar com o mundo de coisas comuns enquanto estava sonhando. Sua partida interrompeu o que eu achava que seria uma superposição inevitável do meu tempo de sonho ao meu inundo da vida diária.

A fim de elucidar o controle da segunda atenção, Dom Juan apresentou a idéia da vontade. Disse que a vontade pode ser descrita como o controle máximo da luminosidade do corpo como um campo de energia, ou como um nível de eficiência, ou um estado de ser que surge abruptamente na vida diária de um guerreiro a um dado momento. Ela é experimentada como uma força que se irradia da parte média do corpo, depois de um instante do mais absoluto silêncio, ou um instante de pleno terror, ou de tristeza profunda; mas não depois de um instante de alegria, pois a alegria é muito envolven­te para permitir ao guerreiro a concentração necessária para usar a luminosidade do corpo e levá-lo ao silêncio.

— O nagual me disse que para um ser humana a tristeza é tão poderosa quanto o terror — falou la Gorda. — A tristeza faz o guerreiro verter lágrimas de sangue. Ambos podem trazer o instante de silêncio. Ou o silêncio vem dele próprio, pois o guerreiro procura alcançá-lo durante toda a vida.

— Você já sentiu esse instante de silêncio? — perguntei.

— Já, naturalmente, mas não consigo me lembrar como é — respondeu ela. — Você e eu já o sentimos, mas nenhum de nós consegue se lembrar de nada dele. O nagual disse que é um instante de negror, um instante ainda mais silencioso do que quando se encer­ra o diálogo interno. Esse negror, esse silêncio, dá surgimento à intenção de dirigir a segunda atenção, de comandá-la, para que ela produza coisas. É por isso que é chamada vontade. A intenção e o efeito são vontade; o nagual disse que estão interligados. Ele me falou de tudo isso quando eu tentava aprender a voar no sonho. A intenção de voar produz o efeito de voar.

Eu lhe disse que tinha quase me descartado da possibilidade de um dia experimentar “a vontade”.

— Você irá experimentá-la — disse la Gorda. — O problema é que você e eu não somos astutos o suficiente para sabermos o que nos está acontecendo. Não sentimos nossa vontade porque achamos que ela deveria ser uma coisa que fizéssemos ou sentíssemos, como ficar com raiva, por exemplo. Vontade é muito quieta, imperceptível. Vontade pertence ao outro eu.

— Que outro eu, Gorda? — perguntei.

— Você sabe do que estou falando — respondeu ela aspera­mente. — Estamos no nosso outro eu quando sonhamos. Já entra­mos no outro eu inúmeras vezes, a essa altura, mas ainda não esta­mos completos.

Houve um longo silêncio. Concordei comigo mesmo que ela tinha razão em dizer que ainda não estávamos completos. Interpretei aquilo como o fato de sermos meros aprendizes de uma arte inexaurível. Mas então veio-me à cabeça que talvez ela se referisse a outra coisa. Não era um pensamento racional. Primeiro senti uma sensação de formigamento do meu plexo solar e depois pensei que talvez ela estivesse falando de outra coisa. Em seguida senti a resposta. Chegou a mim num bloco, numa espécie de massa. Sabia que ela estava toda lá, primeiro na ponta do meu esterno e depois na minha cabeça. Meu problema era que eu não conseguia soltar o que sabia com a mesma rapidez da verbalização.

La Gorda não interrompeu meus processos de pensamento com outros comentários ou gestos. Ficou absolutamente quieta, esperando. Parecia estar internamente ligada a mim a um tal ponto que não havia necessidade de dizermos nada.

Mantivemos o sentimento de comunhão um com o outro por mais um instante, e então ele nos engolfou por completo. La Gorda e eu nos acalmamos aos poucos, e finalmente eu comecei a falar. Não precisávamos reiterar o que tínhamos sentido e sabido em comum: mas para restabelecer nosso início de discussão, disse a ela que sabia de que modo éramos incompletos, mas que não conseguia pôr a coisa em palavras.

— Há muitas e muitas coisas que sabemos — disse ela — e não podemos usar por realmente não conseguirmos fazê-las sair de dentro de nós. Você acabou de sentir essa pressão. Eu a tenho há anos. Sei e ao mesmo tempo não sei. A maior parte do tempo me atrapalho e pareço uma imbecil quando tento dizer o que sei.

Compreendi o que ela queria dizer e a compreendi a um nível físico. Eu sabia uma coisa totalmente prática e auto-evidente sobre a vontade e sobre o que la Gorda tinha chamado de outro eu, e ainda assim não consegui abrir a boca para dizer o que sabia, não porque estivesse reticente ou encabulado, mas porque não sabia por onde começar, ou como organizar meu conhecimento.

— Vontade é um controle tão perfeito da segunda atenção que é chamado de outro eu — disse Ia Gorda depois de uma longa pausa. — Apesar de tudo o que fizemos, sabemos apenas um mínimo do outro eu. O nagual deixou a nosso cargo completar nosso conheci­mento. Essa é a tarefa de lembrar.

Ela bateu na testa com a palma da mão como se tivesse acabado de ter uma idéia.                                                  

— Santo Deus! Nós ESTAMOS nos lembrando do outro eu! — exclamou, com a voz quase histérica, acalmando-se depois e conti­nuando a falar num tom mais baixo. — Evidentemente já estivemos lá, e o único meio de nos lembrarmos é fazer como estamos fazendo, atirando nossos corpos sonhadores quando sonhamos juntos.

— O que quer dizer atirando nossos corpos sonhadores? — perguntei.

— Você mesmo viu quando Genaro atirava o corpo sonhador dele — disse ela. — O corpo balança, sacode e cai lentamente; na verdade ele se prega e desprega do corpo físico com um estalo alto. O nagual me disse que o corpo sonhador de Genaro conseguia fazer a maior parte das coisas que normalmente fazemos; ele costumava vir a você daquele jeito a fim de sacudi-lo. Sei agora o que o nagual e Genaro procuravam; queriam que você se lembrasse, e por isso Genaro costumava realizar façanhas incríveis diante dos seus olhos atirando o corpo sonhador dele, mas tudo em vão.

— Nunca soube que ele estava no seu corpo sonhador — falei.

— Nunca soube porque não estava observando — disse ela. — Genaro tentou mostrar a você ao fazer coisas que o corpo sonhador não consegue fazer, como comer, beber, e assim por diante. O nagual me disse que Genaro costumava brincar com você dizendo que ia cagar e fazer as montanhas tremerem.

— Por que o corpo sonhador não pode fazer essas coisas? — perguntei.

— Porque ele não pode lidar com o propósito de comer ou beber — respondeu.

— O que quer dizer com isso, Gorda? — perguntei.

— A grande façanha de Genaro foi que no seu sonho ele conhe­ceu a intenção do corpo — explicou. — Ele acabou o que você tinha começada a fazer. Podia sonhar com todo o corpo o mais perfeita­mente possível. Mas o corpo sonhador tem uma intenção diferente da intenção do corpo. Por exemplo, o corpo sonhador pode atraves­sar uma parede porque conhece a intenção de desaparecer no ar. O corpo físico conhece a intenção de comer, mas não a de desapa­recer. Para o corpo de Genaro, atravessar uma parede era tão im­possível como comer para seu corpo sonhador.

La Gorda ficou em silêncio por um instante como que medindo o que tinha acabado de dizer. Resolvi esperar em vez de lhe fazer qualquer pergunta.

— Genaro tinha dominado só a intenção do corpo sonhador — disse ela com voz suave. — Silvio Manuel, ao contrário, era mestre exímio da intenção. Sei agora que não conseguimos nos lembrar do seu rosto porque ele era diferente de todo mundo.

— O que a faz dizer isso, Gorda? — perguntei.

Ela começou a explicar o que queria dizer, mas foi incapaz de falar de um modo compreensível. De repente sorriu, com os olhos iluminados.

— Descobri! — exclamou. — O nagual me disse que Silvio Manuel era o mestre da intenção parque era permanentemente o seu outro eu. Ele era o chefe real. Estava por trás de tudo o que o nagual fazia. Na verdade foi ele quem mandou o nagual cuidar de você.

Senti um grande desconforto físico ao ouvir la Gorda dizer isso. Quase fiquei doente do estômago e fiz um esforço extraordinário para não a deixar perceber. Virei de costas e comecei a ter ânsia de vômito. Ela parou de falar por um instante, e então prosseguiu como se tivesse se decidido a desconhecer o meu estado. Muito ao contrá­rio, começou a gritar comigo. Disse que estava na hora de liberarmos nossa repressão. Lembrou-se dos meus sentimentos de ressentimento depois do que acontecera na Cidade do México. Acrescentou que meu rancor não era por ele ter ficado do lado dos outros aprendizes contra mim, mas por ter tomado parte em me desmascarar. Eu expliquei a ela que todos aqueles sentimentos tinham desaparecido. Ela foi infle­xível. Insistiu que a não ser que eu os enfrentasse eles viriam me buscar um dia. Insistiu no fato da minha filiação a Silvio Manuel ser o ponto crucial da questão.

Era inacreditável ver as mudanças de humor por que eu passei logo depois daquela declaração. Tornei-me duas pessoas, uma raivosa, espumando pela boca; e outra calma, observando. Tive um espasmo final de dor de estômago e vomitei. Mas não era uma sensação de náusea que tinha causado o espasmo. Era antes uma ira incontrolável.

Quando finalmente me acalmei fiquei encabulado com o meu comportamento, e com medo de que um incidente daquela natureza pudesse me acontecer de novo em outra ocasião.

— Assim que você aceitar a sua natureza verdadeira estará livre da ira — disse la Gorda num tom indiferente.

Queria argumentar com ela, mas vi que era inútil. Além do mais, meu ataque de raiva tinha acabado com a minha energia. Ri do fato de não saber o que faria se ela tivesse razão. Ocorreu-me a idéia então de que se eu pudesse me esquecer da mulher nagual, tudo seria possível. Tinha uma estranha sensação de calor ou irritação na garganta, como se tivesse comido uma comida condimentada. Tive uma sensação de susto, exatamente como se alguém tivesse se escon­dido por trás de mim. E soube naquele momento uma coisa da qual não tinha idéia até um instante atrás. La Gorda tinha razão. Silvio Manuel tinha sido encarregado de mim.

Ela riu alto quando eu lhe contei. Disse que tinha também se lembrado de uma coisa sobre Silvio Manuel.

— Não me lembro dele como pessoa, como me lembro da mulher nagual — continuou — mas lembro do que o nagual me disse sobre ele.

— O que ele lhe disse? — perguntei.

— Que enquanto Silvio Manuel estava na terra — continuou — ele era como Eligio. Desapareceu um dia sem deixar vestígio e foi para o outro mundo. Foi-se durante anos, e depois um dia voltou. O nagual falou que Silvio Manuel não se lembrava onde tinha estado ou o que tinha feito, mas seu corpo estava mudado. Tinha voltado ao inundo, mas voltado no seu outro eu.

— O que mais ele disse, Gorda? — perguntei.

— Não posso me lembrar de mais nada — respondeu. — É como se estivesse olhando através de uma névoa.

Sabia que se tentássemos bastante iríamos descobrir logo quem era Silvio Manuel. Disse-lhe que estava tendo uma estranha sensação de estar prestes a descobrir o mistério.

— O nagual falou que a intenção está presente em todos os lugares — disse la Gorda de repente.

— O que quer dizer isso? — perguntei.

— Não sei — falou. — Estou apenas verbalizando coisas que vêm à minha cabeça. Ele disse também que a intenção é o que constrói o mundo.

Sabia que tinha ouvido essas palavras antes. Achei que Dom Juan devia ter me dito a mesma coisa e que eu esquecera.

— Quando foi que Dom Juan lhe disse isso? — perguntei.

— Não posso me lembrar quando — falou ela. — Mas disse que as pessoas, e todas as criaturas vivas, são escravas da intenção. Estamos nas suas garras. Ela nos obriga a fazer o que quer. Faz com que atuemos no mundo. E até nos faz morrer. O nagual disse que quando nos tornamos guerreiros, a intenção se torna nossa amiga. Deixa-nos livre por um tempo e às vezes chega até nós como se tivesse estado nos esperando. Ele me disse que era apenas amigo da intenção, mas que Silvio Manuel é que era mestre dela.

Havia barreiras de memórias ocultas em mim lutando para sair. Pareciam a ponto de estourar. Experimentei uma tremenda frustração por alguns instantes e depois alguma coisa dentro de mim desistiu. Fiquei calmo. Não estava mais interessado em saber sobre Silvio Manuel.

La Gorda interpretou minha mudança de humor como um sinal de eu não estar pronto para enfrentar nossas memórias de Silvio Manuel.

— O nagual mostrou a todos nós o que ele podia fazer com a nossa intenção — disse ela abruptamente. — Podia fazer as coisas aparecerem quando apelava para a intenção. Ele me disse que se eu quisesse voar tinha de instigar a intenção de voar. Mostrou-me então como ele próprio podia instigá-la e pulou no ar e voou era círculo como uma imensa pipa. Ou fazia coisas aparecerem na sua mão. Disse que conhecia a intenção de muitas coisas e que podia chamar essas coisas quando as pretendia. A diferença entre ele e Silvio Manuel era que Silvio Manuel, sendo mestre da intenção, conhe­cia a intenção de tudo.

Eu disse a ela que sua explicação precisava ser mais clara. Ela parecia lutar para ajeitar as palavras na cabeça.

— Aprendi a intenção de voar — disse — repetindo todas as sensações que tinha enquanto voava no sonho. Isso era apenas o início. O nagual tinha aprendido na vida a intenção de centenas de coisas. Mas Silvio Manuel foi à sua própria fonte, e abriu-a. Ele não tinha de aprender a intenção de nada. Era uno com ela. O problema era que ele não tinha mais desejos porque a intenção não tem desejo próprio, então ele teve de se apoiar no nagual para volição. Em outras palavras, Silvio Manuel podia fazer tudo que o nagual queria. O nagual dirigia a intenção de Silvio Manuel. Mas já que o nagual também não tinha desejos, a maior parte das vezes eles não faziam nada.

 

                 A Conscientização do Lado Direito e Esquerdo

Nossa discussão sobre sonho nos foi muito útil, não só por ter resolvido nossa dificuldade de sonhar junto, como também por ter esclarecido os conceitos a um nível intelectual. Falar sobre isso nos manteve ocupados e permitiu-nos um momento de pausa a fim de acalmarmos nossa agitação.

Uma noite em que estava fora resolvendo um problema, liguei para la Gorda de uma cabina telefônica. Ela me disse que tinha ido a uma loja e tinha tido a sensação de que eu estava escondido lá por trás de uns manequins da vitrina. Tinha certeza de que eu a estava provocando e ficou furiosa comigo. Correu pela loja tentando me alcançar, para me mostrar como estava zangada. Então percebeu que estava, na verdade, se lembrando de uma coisa que fazia freqüente­mente perto de mim quando tinha seus ataques de mau humor.

Chegamos em uníssono à conclusão de que chegara a hora de experimentarmos de novo sonhar junto. Enquanto falávamos nos sentimos cheios de otimismo. Fui para casa imediatamente.

Entrei com muita facilidade no segundo estágio, a vigília dinâmica. Tive a sensação de prazer corporal, uma vibração irradiante no meu plexo solar, que se transformou na sensação de que teríamos grandes resultados. Essa idéia tornou-se uma antecipação nervosa. Fiquei consciente de que meus pensamentos emanavam da vibração do meu peito. No momento que comecei essa introspecção, contudo, a vibração cessou. Era como que uma corrente elétrica que eu pudesse ligar e desligar.

A vibração começou novamente, ainda mais pronunciada que antes, e subitamente me vi face a face com Ia Gorda; era como se tivesse virado uma esquina e desse de encontro com ela. Fiquei absorto observando-a. Ela era tão absolutamente real, tão ela mesma, que tive necessidade de encostar nela. A afeição mais pura e fantástica por ela brotou em mim naquele instante. Comecei a soluçar incontrola­velmente.

La Gorda tentou rapidamente entrelaçar nossos braços para me fazer parar, mas não conseguiu se mexer. Olhamos em volta. Não havia nenhum painel fixo em frente a nossos olhos, nenhum quadro estático de espécie alguma. Tive uma súbita percepção e falei com la Gorda. Disse-lhe que por termos estado nos observando tínhamos perdido a aparição da cena do sonho. Só depois de ter falado é que notei que estávamos numa situação nova. O som da minha voz me assustou. Era uma voz estranha, áspera, sem graça, que me deu a sensação de repulsa física.

La Gorda respondeu que não tínhamos perdido nada, que nossa segunda atenção tinha captado outra coisa. Sorriu e fez um gesto travesso com a boca, um misto de surpresa e aborrecimento ao som de sua própria voz.

Achei a novidade de falar em sonho uma coisa maravilhosa, pois não estávamos sonhando sobre uma cena na qual falávamos, estáva­mos falando na realidade. E requeria um esforço incrível, bastante semelhante ao meu esforço inicial de descer uma escada sonhando.

Perguntei-lhe se não achava que minha voz tinha um som engra­çado. Ela sacudiu a cabeça afirmativamente e riu alto. O som da risada dela era chocante. Lembrei-me que Dom Genaro costumava fazer os barulhos mais estranhos e assustadores. A risada de la Gorda ocupava a mesma categoria. Perceber isso me fez ver então que la Gorda e eu tínhamos espontaneamente entrada nos nossos corpos sonhadores.

Eu queria segurar a mão dela. Tentei, mas não conseguia mexer meu braço. Por ter alguma experiência em me mover naquele estado, me propus a ficar do lado de la Gorda. Meu desejo era abraçá-la, mas em vez disso fui para tão perto dela que nos fundimos. Eu tinha consciência de mim como um ser individual, e ao mesmo tempo sentia que era parte dela. Gostei imensamente daquele sentimento.

Ficamos fundidos até que alguma coisa nos separou. Recebi uma ordem de examinar o ambiente em que estávamos. Quando olhei, lembrei-me claramente de já ter visto aquele lugar antes. Estávamos rodeados de pequenos montes arredondados, verdadeiras dunas de areia à nossa volta, em todas as direções, indo até a linha do horizon­te. Eram semelhantes a um arenito amarelo-pálido, ou grânulos rugosos de enxofre. O céu também tinha a mesma cor, e estava baixo e opressivo. Havia rolos de neblina amarelada, ou uma espécie de vapor amarelada caindo de certos pontos do céu.

Notei então que la Gorda e eu parecíamos estar respirando. Não conseguia sentir meu peito com as mãos, mas podia senti-lo expandindo-se à medida que eu inspirava. Os vapores amarelados obviamente não nos eram nocivos.

Começamos a nos mover em uníssono, lentamente, cuidadosa­mente, quase como que andando. Depois de uma curta distância fiquei muito cansado e la Gorda também. Estávamos deslizando sobre o chão, e aparentemente mover-se daquela forma era muito cansativo para nossa segunda atenção; requeria um grau extraordinário de con­centração. Não imitávamos deliberadamente nosso passo comum, mas o resultado final era semelhante. Para nos movermos precisávamos de arroubos de energia, como que pequenas explosões, seguidas de uma pausa. Não tínhamos objetivo algum quando nos movíamos a não ser o próprio movimento, por isso finalmente paramos.

La Gorda falou comigo. Sua voz era tão fraca que eu quase não podia ouvir. Disse que estávamos inconscientemente indo para regiões mais pesadas, e que se continuássemos a nos mover naquela direção a pressão ficaria tão grande que poderíamos morrer.

Automaticamente nos viramos e voltamos para onde tínhamos estado. Mas a sensação de fadiga não desapareceu. Estávamos tão exaustos que não conseguíamos mais manter a postura ereta. Caímos, e quase que sem nenhum conhecimento preconcebido do que estáva­mos fazendo, adotando a posição de sonhar.

Acordei instantaneamente no meu escritório. La Gorda acordou na cama. A primeira coisa que lhe disse ao acordar foi que eu já tinha estado naquela paisagem árida muitas vezes. Tinha presenciado pelo menos dois aspectos dela, um absolutamente chato, o outro coberto de pequenos montes semelhantes a dunas de areia. Enquanto faláva­mos tornei-me consciente de que não tentara nem ao menos saber se tínhamos ou não tido a mesma visão. Parei e lhe disse que fora levado pelo meu entusiasmo; tinha me portado como se estivesse comparando umas anotações com ela sobre uma viagem de férias.

— É tarde demais para esse tipo de conversa entre nós — disse ela suspirando. — Mas se quiser, lhe direi o que vimos.

Descreveu pacientemente tudo o que tínhamos visto, dito e feito. Acrescentou que ela também já tinha estado naquele deserto antes, e que sabia de fato que era um lugar fora do mundo; um espaço entre o mundo que conhecemos e o outro mundo.

— É a área entre as linhas paralelas — continuou. — Podemos ir lá em sonho. Mas a fim de deixar esse mundo e alcançar o outra, o que fica além das tinhas paralelas, temos de atravessar essa área com nosso corpo todo.

Senti um arrepio ao ouvi-la falar sobre entrar naquele lugar árido com todo o nosso corpo.

— Você e eu estivemos lá juntos com nossos corpos — conti­nuou la Gorda. — Não se lembra?

Disse-lhe que tudo do que me lembrava era ter visto aquela paisagem duas vezes, guiado por Dom Juan. Ambas as vezes tinha anotado minha experiência porque ela surgira depois da ingestão de plantas alucinógenas. Segundo o meu intelecto, olhava-as como visões e não como experiências consensuais. Não me lembrava de ter presen­ciado aquela cena em nenhuma outra circunstância.

— Quando foi que você e eu chegamos lá com nossos corpos? — perguntei.

— Não sei — falou ela. — Tive uma vaga memória no momento em que você mencionou ter estado lá. Creio que agora é sua vez de me ajudar a terminar de me lembrar. Não consigo ainda focalizar, mas lembro-me de que Silvio Manuel levou a mulher nagual, você e eu para aquele lugar desolado. Não sei por que nos levou lá, contu­do. E não estávamos sonhando.

Não ouvi o resto do que ela dizia. Na minha cabeça tinha come­çado a surgir uma idéia desarticulada. Lutei para pôr meus pensa­mentos em ordem, mas eles rodavam sem direção. Por um instante me senti como se tivesse voltado há anos atrás, a um tempo em que eu não conseguia fazer parar meu diálogo interno. Depois a névoa começou a clarear. Meus pensamentos se organizaram sem minha participação consciente e o resultado foi uma quantidade de memó­rias de um acontecimento de que já tinha me lembrado parcialmente em um daqueles lampejos desestruturados que eu costumava ter. La Gorda tinha razão, tínhamos sido levados uma vez a uma região que Dom Juan chamava de “limbo”, teimo aparentemente tirado do dogma religioso corrente. La Gorda tinha também razão em dizer que não estávamos sonhando.

Naquela ocasião, a pedido de Silvio Manuel, Dom Juan tinha reunido a mulher nagual, la Gorda e eu. Ele disse que a razão do nosso encontro era devido ao fato de eu, por meus próprios meios, mas sem saber como, ter entrado num recesso de conscientização, um estado especial do ponto mais aguçado de atenção. Eu tinha previa­mente alcançado aquele estado, que Dom Juan chamara de “extremo lado esquerdo”, mas muito sumariamente e sempre ajudado por ele. Uma de suas facetas principais, a que tinha mais valor para todos nós que estávamos ligados a Dom Juan, era que enquanto naquele estado tínhamos a capacidade de perceber uma nuvem colossal de vapor amarelado, que ele chamara de “parede de névoa”. Sempre que podia percebê-la ela estava do meu lado direito, estendendo-se até a linha do horizonte e ao infinito, dividindo assim o mundo em dois. A parede de névoa virava para o lado direito ou para o esquer­do, quando eu virava a cabeça, não me dando possibilidade de vê-la.

No dia em questão, Dom Juan e Silvio Manuel me falaram dessa parede. Lembrei-me que depois de Silvio Manuel ter terminado de falar, ele agarrou la Gorda pela nuca como se ela fosse um gatinho e desapareceu na parede de névoa com ela. Eu tinha tido uma fração de segundo para observar o desaparecimento deles, pois Dom Juan tinha de alguma forma conseguido me fazer ver a parede. Ele não me pegou pela nuca mas me empurrou para dentro da névoa, e a próxima coisa que sei é que me vi observando a planície desolada. Dom Juan, Silvio Manuel, a mulher nagual e la Gorda também esta­vam lá. Eu não me importei com o que estavam fazendo. Estava tomado de um sentimento muito desagradável e ameaçador de opres­são; uma fadiga, uma dificuldade louca de respirar. Percebi que estava de pé dentro de uma caverna sufocante, amarela e de teto baixo. A sensação física de pressão era tão imensa que eu não conseguia mais respirar. Parecia que todas minhas funções físicas tinham cessado. Não conseguia sentir nenhuma parte do meu corpo. Mesmo assim podia me mover, andar, esticar os braços, girar a cabeça. Pus as mãos nas coxas e não as senti, assim como não senti a palma das mãos. Minhas pernas e braços estavam visualmente lá, mas não palpavelmente.

Agarrei a mulher nagual pelo braço, movido pelo medo sem limite que sentia, e tirei-a de sua posição de pé. Mas não foi a força do meu músculo que a puxou, foi a força que meu corpo tinha, que não provinha dos músculos ou do arcabouço do esqueleto, e sim do próprio centro do meu corpo.

A fim de exercitar aquela força mais uma vez, agarrei la Gorda. Balancei-a com a força do meu puxão e então descobri que a energia para tirá-las do lugar tinha vindo de uma protuberância feito uma vareta que as pegou como se fosse um tentáculo, e que se equilibrava no meio do meu corpo.

Tudo aquilo se dera num só instante, no momento seguinte voltei de novo ao mesmo estado de angústia física e medo. Olhei para Silvio Manuel numa súplica silenciosa de socorro. O modo como ele me olhou me convenceu de que eu estava perdido. Seus olhos eram frios e indiferentes. Dom Juan me deu as costas e eu tive um tremor, um terror físico incontrolável. Achei que o sangue estava fervendo nas minhas veias, não pelo calor que sentia, mas por uma pressão interna que subia a ponto de estourar.

Dom Juan me ordenou que relaxasse e me deixasse morrer. Disse que eu tinha de ficar lá até morrer, e que podia morrer em paz, se fizesse um supremo esforço e deixasse o terror me envolver, ou morrer em agonia se decidisse lutar contra ele.

Silvio Manuel falou comigo, coisa que raramente fazia. Disse que a energia de que eu precisava para aceitar meu terror estava no meu ponto médio, e que a única maneira de ter êxito era concordar, render-me sem me render.

A mulher nagual e la Gorda estavam absolutamente calmas. Eu era o único que estava morrendo lá: Silvio Manuel disse que do modo como estava desperdiçando energia meu fim estava próximo, e que eu podia me considerar morto. Dom Juan fez um sinal para a mulher nagual e la Gorda seguirem-no. Elas viraram as costas para mim, e não vi o que mais fizeram. Senti uma poderosa vibração em mim e achei que aquilo devia ser o estertor da morte, minha luta terminan­do. Não me importei mais. Cedi ao terror insuportável que estava me matando. Meu corpo, ou a configuração que via como meu corpo, o que quer que fosse, relaxou-se e abandonou-se à morte. Quando deixei o terror entrar, ou talvez sair de mim, senti e vi uma coisa me deixando. Era um vapor tênue, uma fumaça esbranquiçada contra os arredores amarelos de enxofre.

Dom Juan voltou para o meu lado e examinou-me com curiosi­dade. Silvio Manuel foi embora e agarrou la Gorda novamente pela nuca. Eu o vi nitidamente arremessando-a dentro da parede de névoa como se ela fosse uma boneca de trapo gigantesca. Depois desapa­receu.

A mulher nagual fez um gesto, me convidando a entrar na névoa. Eu me movi na direção dela, mas antes de alcançá-la Dom Juan me deu um empurrão com força, atirando-me na névoa amarela espessa. Não senti meus pés, deslizei através da névoa e acabei caindo de cabeça no chão do mundo.

La Gorda lembrou-se de toda a história, quando a contei para ela, e então acrescentou mais uns detalhes.

— A mulher nagual e eu não temíamos pela sua vida — disse.

— O nagual tinha nos dito que você fora forçado a abrir mão das suas ligações, mas que aquilo não era novidade nenhuma. Todo guer­reiro homem tinha de ser forçado pelo medo. Silvio Manuel já tinha me levado para trás daquela parede três vezes, de modo que eu aprendesse a relaxar. Ele disse que se você me visse à vontade ficaria influenciado, e você ficou. Desistiu e relaxou.

— Você também teve muito problema para aprender a relaxar? — perguntei.

— Não. Para a mulher é uma sopa — disse ela. — É essa nossa vantagem. O único problema é que nós temos de ser transportadas para lá. Não podemos ir por nós mesmas.

— Por que não, Gorda? — perguntei.

— A pessoa precisa ser muito pesada para atravessar, e a mu­lher é leve — disse.

— E a mulher nagual? Não vi ninguém levando-a — falei.

— A mulher nagual era especial — disse la Gorda. — Ela podia fazer tudo por si própria. Podia me levar lá ou levá-lo. Podia até mesmo passar por aquela planície deserta, coisa que o nagual disse ser obrigatório para todos os viajantes que vão para o desconhecido.

— Por que a mulher nagual foi lá comigo? — perguntei.

— Silvio Manuel levou-nos a todos para apoiá-lo — disse. — Achou que você precisava ser protegido por duas mulheres e dois homens. Que precisava ser protegido das entidades que se movem furtivamente por lá. Os aliados vêm daquela planície deserta. E outras coisas ainda mais poderosas.

— Você também foi protegida? — perguntei.

— Eu não preciso de proteção — disse. — Sou mulher. Sou livre de tudo isso. Mas nós todos achamos que você estava num dilema terrível. Você era o nagual e um nagual muito burro. Achamos que qualquer daqueles aliados, ou se quiser chamá-los demônios, podiam ter arrebentado com você ou o desmembrado. Foi isso o que Silvio Manuel disse. Ele nos levou para proteger os seus quatro lados. Mas o mais engraçado é que nem o nagual nem Silvio Manuel sabiam que você não precisava de nós. Nós íamos ficar andando por ali um pouco até que você perdesse a energia. Então Silvio Manuel o iria amedrontar mostrando-lhe os aliados e instigando-os contra você. Ele e o nagual planejaram ajudá-lo aos poucos. É essa a regra. Mas algu­ma coisa saiu errada; ao entrar lá você ficou maluco. Não tinha se movido um centímetro e já estavam morrendo. Estava morto de medo e ainda nem tinha visto os aliados. Silvio Manuel me disse que não sabia o que fazer, e então falou no seu ouvido a última coisa que devia ter falada: para você ceder; render-se sem se render. Você ficou calmo de repente por si próprio. E eles não tiveram de fazer nada do que tinham planejado. Não podiam fazer mais nada a não ser nos tirar de lá.

Disse a la Gorda que quando me encontrei de volta ao mundo, havia alguém de pé ao meu lado que me ajudou a levantar. Era só isso que podia me lembrar.

— Estávamos na casa de Silvio Manuel — disse ela. — Posso agora me lembrar de muita coisa daquela casa. Alguém me disse, não sei quem, que Silvio Manuel a encontrara e comprara, porque ela estava construída num lugar de poder. Mas outra pessoa disse que ele tinha encontrado a casa, gostado dela, comprara-a e depois levara o poder a ela. Eu pessoalmente achava que Silvio Manuel tinha levado o poder. Acho isso porque a impecabilidade dele manteve o poder da casa durante todo o tempo em que ele e seus companheiros moraram lá. Quando chegou a hora deles saírem, o poder daquele lugar desapa­receu com eles e a casa tornou-se o que tinha sido antes de Silvio Manuel encontrá-la, uma casa comum.

Enquanto la Gorda falava, minha cabeça parecia clarear mais, mas não o suficiente para revelar o que nos tinha acontecido naquela casa que me enchia de tanta tristeza. Sem saber por que, tinha cer­teza de que tinha ligação com a mulher nagual. Onde estava ela?

La Gorda não me respondeu quando lhe perguntei isso. Houve um longo silêncio. Ela se desculpou dizendo que tinha de preparar o café de manhã; já tinha despontado o dia. Deixou-me sozinho com o coração pesado. Eu chamei-a de volta, ela ficou com raiva e jogou as panelas no chão. Eu compreendi por quê.

 

Outro aspecto do sonho junto, que teve lugar uns dias depois, levou-nos ainda mais longe às complexidades da segunda atenção. La Gorda e eu, sem nenhum esforço, nos encontramos de pé juntos. Ela tentou três ou quatro vezes em vão entrelaçar seu braço no meu. Falou comigo, mas sua faia era incompreensível. Eu sabia, contudo, que dizia que estávamos novamente em nossos corpos sonhadores. Ela me avisava que o movimento devia partir do meio do nosso corpo.

Como na tentativa anterior, nenhuma cena de sonho se apresen­tou a nós. Estávamos, a meu ver, num local físico que eu tinha visto era sonho quase todos os dias durante anos; era o vale do tigre de dente de sabre.

Andamos alguns metros; dessa vez nossos movimentos não eram desajeitados ou intempestuosos. Andávamos realmente com um passo que se originava da barriga. Nenhum tônus muscular se dava. A parte difícil foi minha falta de experiência; foi como a primeira vez em que andei de bicicleta. Fiquei cansado rapidamente e perdi o ritmo, fiquei hesitante, inseguro de mim mesmo. Paramos. La Gorda também estava fora de sincronização.

Começamos então a examinar o que nos rodeava. Tudo tinha uma factualidade indiscutível, pelo menos do meu ponto de vista. Estávamos numa região rugosa, com uma vegetação estranha. Vi arbustos exóticos. Não podia imaginar o que fossem. Pareciam árvores pequenas de um metro e meio a um metro e oitenta de altura. Tinham muito poucas folhas, chatas e grossas, de um amarelo esverdeado; eram flores imensas e lindas, marrom-escuro, listradas de dourado. Os caules não eram de madeira, pareciam ser macios e ocos, como juncos, mas cobertos de espinhos longos com aspecto de agulhas. Concluí que os caules fossem ocos ao ver umas plantas velhas e secas caídas no chão.

O chão era muito escuro e parecia úmido. Tentei me inclinar para encostar a mão nele, mas não consegui me mover. La Gorda me fez um sinal para usar o meio do meu corpo. Percebi que se fizesse isso não teria de me dobrar para tocar no chão. Havia alguma coisa em mim como se fosse um tentáculo, que podia sentir, mas sem saber o que sentia. Não havia critérios para diferençar uma sensação de outra. O chão que eu tinha tocado parecia ser de terra, não para meus sentidos táteis, mas para o que parecia ser um centro visual em mim. Mergulhei então num dilema intelectual. Por que o sonho parecia ser produto da minha faculdade visual? Seria por causa da predominância do visual na nossa vida diária? As questões eram sem sentido. Eu não tinha condições de respondê-las, e tudo o que meus pensamentos faziam era enfraquecer minha segunda atenção.

La Gorda arrancou-me das minhas confabulações me dando um encontrão. Tive a sensação de ter levado um soco e senti um tremor. Ela apontou à nossa frente. Como sempre, o tigre de dente de sabre estava deitado no ressalto onde eu sempre o via. Chegamos mais perto dele e ele levantou-se. Seu tamanho era surpreendente. Sua largura foi o que mais me impressionou. Eu sabia que la Gorda queria que nos esgueirássemos pelo tigre para atravessar para o outro lado do morro. Queria lhe dizer que podia ser perigoso, mas não encontrava um meio para passar-lhe a mensagem. O tigre parecia zangado, alerta. Sentou-se nas patas traseiras e arqueou o lombo, como se estivesse se preparando para pular sobre nós.

Eu estava apavorado. La Gorda virou-se para mim sorrindo. Sabia que ela estava me dizendo para não sucumbir ao pânico porque o tigre era uma imagem fantasma. Estávamos a quase dois metros do ressalto. Tínhamos de levantar a cabeça para ver o tigre. Ele estava agachado, pronto para pular. Paramos.

La Gorda caçoou do meu medo como se o que tivéssemos à nossa frente fosse o que parecia ser, um fantasma. Ela instou comigo, com um movimento de cabeça, para continuarmos. Eu sabia, a um nível incompreensível, que o tigre era uma entidade, não no sentido factual do nosso mundo diário, mas que era real. La Gorda e eu estávamos sonhando, portanto tínhamos perdido a factualidade do mundo. Naquele momento, nossa existência era fantasmagórica como a do tigre.

Demos mais um passo à instância de la Gorda. O tigre pulou do ressalto. Vi seu imenso corpo se lançando no ar, vindo direta­mente sobre nós. Perdi a sensação de estar sonhando. Para mim o tigre era real e eu seria estraçalhado por ele. Uma barreira desorde­nada de luzes, imagens e cores primárias muito intensas, que nunca tinha visto, brilhavam à nossa volta. Acordei no meu escritório.

 

Passada uma preguiça inicial, ou talvez medo de errar, tornamo-nos extremamente eficientes no nosso sonhar junto. Tinha a certeza de que conseguiríamos nos apoderar do nosso desprendimento e que não estávamos mais com pressa. O resultado de nossos esforços não era o que nos movia a agir. Era mais uma compulsão extrema que nas dava o ímpeto de agir impecavelmente sem esperança de recompensa.

Nossas sessões subseqüentes foram como a primeira, em forma mas não em conteúdo. Seus aspectos relevantes eram a velocidade e facilidade com que entrávamos no segundo estágio do sonho, na vigília dinâmica.

Quando as cenas com que nos confrontávamos tinham ligação com outros acontecimentos esquecidos, nos quais la Gorda e eu tínhamos tido papel importante, ela não tinha dificuldade em entre­laçar os braços comigo. Esse ato me dava uma sensação de segurança. La Gorda explicou que ele preenchia uma necessidade de desfazer a extrema solidão da segunda atenção. Disse que o entrelaçar dos braços desenvolvia um estado de objetividade, e devido a isso podíamos observar a atividade que se desenrolava em cada cena. Às vezes éramos levados a tomar parte da atividade. Outras vezes éramos totalmente objetivos e observávamos a cena como se estivéssemos no cinema ou no teatro.

Nossa eficiência em sonhar juntos era tal que repetíamos a coisa com sucesso todas as noites. Sem qualquer influência volitiva de nossa parte, nosso sonho focalizava-se em três regiões: nas dunas de areia, no habitat do tigre de dente de sabre, e, mais importante que tudo, nos acontecimentos esquecidos do passado.

Quando visitávamos as dunas de areia em nosso sonho, ou o habitat do tigre, éramos incapazes de entrelaçar os braços. Naquelas horas nossa atividade nunca era a mesma de uma experiência à outra. Nossas ações nunca eram premeditadas, parecendo reações espontâ­neas para renovar situações.

Segundo la Gorda, a maior parte de nossos sonhos era uma reatuação ou recordação dos acontecimentos que tínhamos vivido juntos. Quando sonhávamos com a terra do tigre de dente de sabre, contudo, revíamos acontecimentos que só eu tinha “vivido”, e nosso sonho do cenário das dunas de areia não era uma reatuação de modo algum, mas um transporte para uma esfera que se mantinha como a víamos no momento da nossa visita. Ela argumentou que aqueles montes amarelados existiam ali naquela hora, e que era assim que apareciam sempre ao guerreiro que viajava para lá.

Eu queria discutir um ponto com ela. Ela e eu tínhamos tido interações misteriosas com pessoas de quem nos tínhamos esquecido, por motivos que não podíamos conceber, mas que tínhamos conhe­cido de fato. O tigre de dente de sabre, ao contrário, era uma criatura do meu sonho. Não podia aceitar que o tigre do meu sonho pertencesse à mesma categoria.

Antes de ter tempo de verbalizar meus pensamentos ela me deu a resposta. Era como se estivesse, na realidade, dentro da minha cabeça, lendo-a como se fosse um texto.

— Eles pertencem à mesma classe — disse, rindo nervosamente. — Não podemos explicar por que nos esquecemos, ou como é que estamos nos lembrando agora. Não podemos explicar nada. O tigre de dente de sabre está lá, em algum lugar. Nunca saberemos onde. Mas por que temos de nos preocupar com uma inconsistência inven­tada? Dizer que um é verdadeiro e o outro é sonho não faz nenhum sentido para o outro eu.

 

La Gorda e eu costumávamos sonhar como um meio de chegarmos a um mundo não imaginado de memórias ocultas. Sonhar nos per­mitia recordar os acontecimentos de que não conseguíamos nos lembrar com nossa memória da vida diária. Quando dávamos nova feição a esses acontecimentos, nas horas em que estávamos acorda­dos, surgiam recordações mais detalhadas. Dessa forma, desenter­rávamos, por assim dizer, pilhas de memórias enterradas dentro de nós. Levamos quase dois anos de esforços e concentrações prodi­giosos para chegar a um mínimo de compreensão do que nos tinha acontecido.

Dom Juan nos dissera que os seres humanos são divididos em dois. O lado direito, que ele chamava de tonal, engloba tudo o que o intelecto pode conceber. O lado esquerdo, chamado nagual, é um reinado de aspectos indescritíveis, um reinado impossível de ser descrito em palavras. O lado esquerdo é talvez compreendido, se é compreensão que tem lugar, pelo todo do corpo, e daí a sua resis­tência ao conceitualismo.

Dom Juan também nos falara que todas as faculdades, possibili­dades e realizações da feitiçaria, da mais simples à mais elaborada, residiam no próprio corpo humano.

Tomando como base os conceitos de que somos divididos em dois e de que tudo está no próprio corpo humano, la Gorda propôs uma explicação para nossas memórias. Ela acreditava que durante os anos em que nos associamos ao nagual Juan Matus, nosso tempo fora dividido entre estados de conscientização normal do lado direito, o tonal, onde a primeira atenção prevalece, e estados de elevada cons­cientização do lado esquerdo, o nagual, ou ponto da segunda atenção.

Ela achava que os esforços do nagual Juan Matus tinham sido no sentido de nos conduzir ao outro eu através de um autocontrole da segunda atenção no sonho. Ele nos pôs em contato direto com alguns aspectos da segunda atenção, contudo, através da manipulação corporal. La Gorda lembrou-se de que ele costumava forçá-la a ir de um lado para o outro empurrando ou massageando suas costas. Disse que às vezes ele até mesmo lhe dava um soco em cima ou em volta da sua omoplata direita. O resultado desses socos para ela era a entrada num estado extraordinário de lucidez. Para ela, parecia que tudo naquele estado acontecia mais depressa, e no entanto nada tinha mudado no mundo.

La Gorda apresentou aquela explicação semanas antes de eu próprio ter lembrado que o mesmo tinha acontecido comigo. A um dado momento Dom Juan me dava um soco nas costas. Eu sempre sentia o soco na espinha, bem entre as omoplatas. Uma extraordiná­ria lucidez se seguia àquele soco. O mundo era o mesmo, porém mais aguçado. Tudo se ajeitava. A agudeza podia ser causada por minhas faculdades de raciocínio estarem amortecidas pelo soco de Dom Juan, permitindo assim que eu percebesse sem a intervenção delas.

Eu ficava lúcido indefinidamente ou até que ele me desse outro soco no mesmo lugar, a fim de me fazer voltar ao estado normal de conscientização. Ele nunca me empurrou ou massageou; era sempre um soco direto, não um soco de punho cerrado, mas um estalo que tirava minha respiração por um segundo; no instante seguinte eu estava respirando profundamente como que para repor o ar que tinha expirado.

La Gorda relatou o mesmo efeito; todo o ar dos seus pulmões era forçado a sair com o soco do nagual, e ela imediatamente tinha de respirar com força para preencher sua capacidade pulmonar. Disse também que ele nunca lhe batia para que ela recuperasse a conscien­tização da vida diária; ela voltava por seus próprios meios, mas sem saber como. La Gorda acreditava que a respiração era o fator de toda a importância. Na sua opinião, as respiradas que tinha de dar depois de ter levado o soco era o que mais importava, mas mesmo assim não podia explicar de que modo o respirar afetava a sua percepção e conscientização.

Suas afirmativas pareciam relevantes. Eu tinha de admitir que os socos de Dom Juan sempre forçavam todo o meu ar a sair. Em criança, ou mesmo já adulto, ficava às vezes sem ar quando levava uma queda de costas. Mas o efeito do soco de Dom Juan não era absolutamente assim. Eu não sentia dor; ao contrário, tinha uma sensação incrível; o melhor que posso descrever seria dizer que aquele soco criava uma experiência sensorial de secura em mim. Sendo atingido nas costas, meus pulmões se secavam e enevoavam tudo. Em seguida eu tinha de arfar, dando respiradas longas e rápidas até poder respirar normalmente de novo. As afirmativas de la Gorda baseavam-se na sua percepção de que tudo ficava nublado depois do soco do nagual, mas que as coisas ficavam claras como cristal à medida que respirava, como se a respiração fosse o catalisador, o fator de toda importância.

A mesma coisa me acontecia quando voltava à conscientização do todo dia. O ar desaparecia, o mundo que eu estava observando tornava-se nublado, e depois clareava à medida que eu enchia os pulmões.

Um outro aspecto daqueles estados de elevada conscientização era a riqueza incomparável de interação pessoal, uma riqueza que nossos corpos compreendiam como uma sensação de velocidade. Nosso movimento de ida e volta entre os lados direito e esquerdo tornava-nos mais fácil perceber que no lado direito consumia-se energia e tempo demais nas ações e interações do nosso todo-dia. No lado esquerdo, ao contrário, havia uma necessidade premente de economia e velocidade.

La Gorda não conseguia descrever o que era na verdade essa velocidade, e nem eu tampouco. O máximo que eu sabia é que no lado esquerdo eu conseguia apreender o significado de coisas com precisão e objetividade. Cada faceta de atividade era isenta de prelimi­nares ou introduções. Eu agia e descansava; ia adiante e voltava sem nenhum dos processos de pensamento com que sou familiarizado. Isso, para la Gorda e para mim, equivalia à velocidade.

Ela e eu concluímos a certa hora que a riqueza de nossa percep­ção do lado esquerdo era uma realização post facto. Nossa interação parecia rica à luz da nossa capacidade de lembrar dela. Ficamos sabe­dores então de que nesses estados de elevada conscientização perce­bíamos tudo num bloco só, numa massa volumosa de detalhe indeslindável. Tínhamos chamado a essa capacidade de percepção imediata de intensidade. Durante anos fôramos incapazes de examinar as partes que formavam essas massas de experiência; incapazes de sintetizar essas partes numa seqüência que fosse compreensível ao intelecto. Uma vez não capazes dessa síntese, não conseguíamos nos lembrar. Nossa incapacidade de lembrar era na realidade uma incapacidade de colocar a memória da nossa percepção numa base linear. Não conse­guíamos pôr nossas experiências no raso, por assim dizer, e colocá-las numa ordem de seqüência. As experiências estavam disponíveis, mas ao mesmo tempo eram impossíveis de serem captadas, pois estavam ocultas por uma parede de intensidade.

A tarefa de lembrar era propriamente a tarefa de juntar nossos lados direito e esquerdo, de trazer essas duas formas separadas de percepção a um todo uno; era a tarefa de consolidar a totalidade do eu através de reorganizar a intensidade numa seqüência linear.

O que nos ocorreu foi que as atividades de que nos lembrávamos ter tomado parte podiam não ter durado muito tempo a serem reali­zadas, em termos de tempo hora. Pela capacidade que tínhamos de perceber em termos de intensidade, podíamos ter tido uma sensação subliminar das passagens do tempo.

La Gorda sentia que se fôssemos capazes de reorganizar a inten­sidade numa seqüência linear, acreditaríamos honestamente ter vivido milhares de anos.

O processo pragmático que Dom Juan seguia para ajudar nossa tarefa de lembrar era fazer-nos interagir com certas pessoas enquanto estávamos num estado de elevada conscientização. Ele tinha o cuida­do de não nos deixar ver aquelas pessoas enquanto estávamos num estado de conscientização normal, produzindo dessa forma o fundo de pano apropriado para lembrar.

Ao completarmos nossa lembrança, la Gorda e eu entramos num estado bizarro. Tínhamos conhecimento detalhado das interações sociais que tínhamos dividido com Dom Juan e seus companheiros. Não eram memórias como os acontecimentos relembrados da infância, mas eram mais que vivas, recordações de acontecimentos de instante a instante. Reconstruíamos conversações que pareciam estar reverberando em nossos ouvidos como se estivéssemos ouvindo-as. Nós dois sentíamos que era supérfluo tentar especular sobre o que nos estava acontecendo. O que lembrávamos, do ponto de vista do nosso eu experimental, estava acontecendo naquela hora. Assim era a caracte­rística da nossa lembrança.

A certo ponto, ela e eu éramos finalmente capazes de responder a perguntas antigas que tinham nos preocupado tanto. Lembramos quem era a mulher nagual, onde ela se encaixou conosco pela primeira vez, que papel desempenhava. Deduzimos, mais que lembramos, que tínhamos passado o mesmo tempo, com Dom Juan e Dom Genaro, em estados de conscientização normal, e com Dom Juan e seus outros companheiros em estados de elevada conscientização; relembramos cada nuança dessas interações que tinham ficado veladas pela intensidade.

Depois de uma profunda avaliação de nossas descobertas, chega­mos à conclusão de que tínhamos transposto os dois lados de nós mesmos de um modo mínimo. Passamos então para outros assuntos, outras perguntas que tinham tido precedência sobre as antigas. Havia três assuntos, três questões que sumarizavam todos os nossos interes­ses. Quem era Dom Juan e quem eram seus companheiros? O que eles tinham feito conosco na verdade? E para onde todos eles tinham ido?

 

                 O PRESENTE DA ÁGUIA

                O Regulamento do Nagual

Dom Juan fora extremamente sucinto na informação sobre sua origem e sua vida pessoal. Sua reticência era, fundamentalmente, um artifício didático; para ele seu tempo começara quando se tornou guerreiro; tudo o que lhe acontecera antes era de pequena importância.

Tudo o que eu e la Gorda sabíamos sobre o início da sua vida era que ele tinha nascido no Arizona, e se originava dos índios Yaquis e Yumas. Quando era ainda bebê seus pais o levaram para viver com os Yaquis no norte do México. Aos dez anos ele se viu no meio das guerras contra os Yaquis. Sua mãe foi assassinada e seu pai foi preso pelo exército mexicano. Ele e o pai foram mandados para uma reserva do extremo sul, no Estado de Yucatan, e lá ele se criou.

O que quer que lhe tenha acontecido durante aquele período nunca nos foi revelado. Dom Juan acreditava não haver necessidade de nos contar. Eu tinha opinião diversa. A importância que dava àquele segmento da sua vida surgiu da minha convicção de que os aspectos fortes e a ênfase de sua liderança vinham daquele conjunto de experiências pessoais.

Mas aquele conjunto, por mais importante que fosse, não era o que dava a significação suprema do seu olhar e do olhar dos seus outros companheiros. Sua total preeminência residia no ato fortuito de ter se envolvido com o “regulamento”.

Ser envolvido pelo regulamento pode ser descrito como viver um mito. Dom Juan vivia um mito, mito que o dominou e o fez o nagual.

Disse que quando o regulamento se apoderou dele, ele era um homem sem agressividade, sem disciplina, que vivia no exílio como milhares de outros índios Yaquis do nordeste do México naquela época. Trabalhava nas plantações de tabaco do sul do México. Um dia depois do trabalho, numa briga quase fatal com um colega, por assunto de dinheiro, levou um tiro no peito. Quando voltou à cons­ciência um velho índio debruçava-se sobre ele, enfiando o dedo no ferimento do seu peito. A bala não tinha penetrado na cavidade peitoral mas estava localizada no músculo, pressionando a costela. Dom Juan desmaiou duas ou três vezes devido ao choque, perda de sangue, e, nas suas próprias palavras, ao medo de morrer. O velho índio removeu a bala e como Dom Juan não tinha um lugar para onde ir, levou-o para sua casa e cuidou dele durante um mês.

O velho índio era bom porém severo. Um dia, quando Dom Juan estava já bastante forte, quase recuperado, o velho lhe deu um soco firme nas costas e forçou-o a chegar a um estado de elevada conscien­tização. Então, sem qualquer outra explicação, revelou a Dom Juan a quota de regulamento que pertencia ao nagual e o seu desempenho.

Dom, Juan fez exatamente a mesma coisa comigo e com la Gorda; fez com que trocássemos os níveis de conscientização e nos apresentou o regulamento do nagual do seguinte modo:

 

O poder que governa o destino de todos os seres vivos é chamado a Águia, não por ser uma águia ou ter qualquer relação com ela, mas por aparecer ao observador como uma incomensurável águia negra, na sua postura ereta, com o corpo voltado para o infinito.

Quando o observador olha a negrura de águia, quatro labaredas de luz revelam como a Águia é. A primeira labareda, como um relâmpago, ajuda o observador a perceber os contornos do seu corpo; vê partes brancas semelhantes às suas penas e garras. A segunda revela as asas adejantes ao vento em sua negrura. Com a terceira labareda o observador nota o olho penetrante, impiedoso. E com a quarta e última labareda vê o que a Águia está fazendo.

A Águia está devorando a consciência de todas as criaturas que, vivas até pouco antes ou já mortas, flutuaram para o seu bico, como um en­xame incessante de vaga-lumes indo ao encontro de seu dono, de razão de terem tido vida. A Águia desemaranha essas chamas mínimas, colo­ca-as no chão, como um curtidor esticando um couro, e então as consome; pois a consciência é o seu alimento.

A Águia, aquele poder que governa os destinos de todas as coisas vivas, reflete equanimemente e subitamente sobre todas essas coisas vivas. Não há nenhum modo, portanto, do homem suplicar à Águia, pedir fa­vores, esperar sua misericórdia. A parte humana da Águia é insignificante demais para mexer com o seu todo.

É só através das ações da Águia que o observador pode saber o que ela quer. A Águia, embora não movida pelas circunstâncias de qualquer coisa viva, concede um presente a cada um desses seres. A seu próprio modo, qualquer um deles, se desejar, tem o poder de manter a chama da consciência, o direito de transgredir os apelos de morrer e ser con­sumido. Toda coisa humana recebe o poder, se desejar, de buscar uma abertura à liberdade e atravessá-la. É evidente ao observador que vê a abertura, e às criaturas que a atravessam, que a Águia concede esse presente a fim de perpetuar a consciência.

Com a finalidade de guiar as coisas humanas até essa abertura, a Águia criou o nagual. O nagual é um ser duplicado para quem o regu­lamento foi revelado. Seja na forma de um ser humana, um animal, uma planta, ou qualquer coisa viva, o nagual, em virtude de sua duplicidade, é levado a buscar aquela passagem secreta.

Aos olhos do observador, um homem ou uma mulher nagual aparecem como um ovo luminoso com quatro compartimentos. Ao contrário do ser humano padrão, que tem apenas dois lados, o esquerdo e o direito, o nagual tem o lado esquerdo dividido em duas longas seções, e o lado direito igualmente dividido em dois.

O nagual vem aos pares, macho e fêmea. Um homem e uma mulher duplicados tornam-se naguais só depois do regulamento ter sido apre­sentado a cada um deles, e cada um tê-lo compreendido e aceito na sua totalidade.

A Águia criou o primeiro homem nagual e a primeira mulher nagual como observadores, e imediatamente os colocou no mundo com esta fina­lidade. Deu-lhes quatro guerreiras, as espreitadoras, três guerreiros e um mensageiro, aos quais eles eram encarregadas de nutrir, desenvolver e levar à liberdade.

As guerreiras são chamadas de as quatro direções, os quatro cantos de um quadrado, os quatro humores, os quatro ventos, refletindo as quatro personalidades diversas existentes na raça humana.

A primeira direção é o leste. Chama-se ordem. É otimista, leve, suave, persistente como uma brisa constante.

A segunda é o norte. Chama-se força. É engenhosa, rude, direta, tenaz como um vento forte.

A terceira é o oeste. Chama-se sentimento. É introspectiva, arrepen­dida, astuta, dissimulada, como uma rajada fria de vento.

A quarta é o sul. Chama-se crescimento. É criativa, sonante, tímida, calorosa, como um vento quente.

Os três guerreiros e o mensageiro são representação dos quatro tipos da atividade e temperamento masculinos.

O primeiro tipo é o homem de conhecimento, o estudioso; nobre e capaz, sereno, totalmente dedicado a realizar sua tarefa, qualquer que ela seja.

O segundo é o homem de ação, altamente volátil, um companheiro volúvel e engraçado.

O terceiro é o organizador por trás dos bastidores, o homem misterioso e desconhecido. Nada pode ser dito sobre ele porque ele não permite que lhe escape nada.

O mensageiro é o quarto tipo. É o assistente, um homem taciturno e sombrio, que funciona bem se bem dirigido, mas incapaz de agir por si próprio.

A fim de tornar as coisas mais fáceis, a Águia mostrou à mulher e ao homem nagual que cada um desses tipos entre os homens e mulheres da terra tinha aspectos específicos no seu corpo luminoso.

O estudioso tem uma espécie de nossa raça, uma depressão brilhante no seu plexo solar. Em alguns homens parece uma poça de luminosidade intensa, às vezes lisa e luzidia como um espelho sem reflexo.

O homem de ação tem umas fibras que emanam da área da vontade. O número de fibras varia de uma a cinco, e seu tamanho vai desde a finura de uma vareta até um espesso tentáculo parecido a um chicote, atingindo o comprimento de quase dois metros e meio.

O homem por trás dos bastidores não é reconhecido por um certo aspecto, mas por sua habilidade de criar, involuntariamente, uma explosão de poder que efetivamente bloqueia a atenção dos observadores. Quando na presença deste tipo de homem, os próprios observadores se afundam em detalhes e não o vêem.

O assistente não tem configuração óbvia. Aos observadores aparece como um brilho claro numa concha de luminosidade impecável.

No reinado feminino, o leste é reconhecido por manchas quase imper­ceptíveis na sua luminosidade, como que pequenas áreas de descoloração.

O norte tem uma irradiação global; exsuda um brilho, avermelhado, quase que como um calor.

O oeste apresenta uma película envolvente, película que a faz parecer mais escura que as outras.

O sul tem um brilho intermitente; brilha um instante e depois fica opaco até brilhar novamente.

O homem nagual e a mulher nagual têm dois movimentos diferentes nos seus corpos luminosos. Seu lado direito tremula, enquanto que o esquerdo gira rapidamente.

Em termos de personalidade, o homem nagual é constante, imutável, um suporte. A mulher nagual é um ser em conflito porém relaxada, sempre atenta, embora sem tensão. Ambos refletem os quatro tipos de seu sexo, como quatro modas de comportamento.

A primeira ordem que a Águia deu ao homem nagual e a mulher nagual foi encontrar, a seu modo, outro grupo de quatro guerreiras, quatro direções, que fossem réplicas exatas das espreitadoras, mas que fossem sonhadoras.

As sonhadoras parecem ter um avental de fibras semelhantes ao cabelo no meia do corpo. As espreitadoras têm um aspecto semelhante a esse, mas em lugar de fibras o avental apresenta um sem-número de protuberâncias pequenas e redondas.

As oito guerreiras dividem-se em quatro grupos, chamados “planetas da direita e da esquerda”. O planeta da direita é formado de quatro esprei­tadoras, e o da esquerda de quatro sonhadoras. Às guerreiras de cada planeta a Águia ensinou a regra de sua tarefa especifica: às espreitadoras ensinou a espreitar; às sonhadoras ensinou a sonhar.

As duas guerreiras de cada direção vivem juntas. São tão parecidas que refletem uma a outra, e só através da impecabilidade podem encontrar alívio e desafio na companhia uma da outra.

A única vez em que as quatro espreitadoras ou as quatro sonhadores se juntam é quando têm de realizar uma tarefa importante; mas só em circunstancias especiais as quatro devera dar-se as mãos, pois o toque delas as funde num só ser e deve ser usado apenas em caso de necessidade extrema, ou no momento de deixarem esse mundo.

As duas guerreiras de cada direção são ligadas a um dos homens, em qualquer combinação que seja necessária. Desse modo formam um conjunto de quatro casas, capazes de incorporar tantos guerreiros quanto preciso.

Os guerreiros e o mensageiro também podem formar uma unidade independente de quatro homens, ou cada um pode funcionar como um ser sozinho, ditado pela necessidade.

Em seguida o nagual e seu grupo receberam a ordem de encontrar mais três mensageiros. Poderiam ser homens ou mulheres ou de sexos misturados, mas o mensageiro homem tinha de ser do quarto tipo, o assis­tente, e as mulheres tinham de ser do sul.

Para se assegurar de que o primeiro homem nagual guiaria seu grupo à liberdade, sem o desviar do caminho ou corrompê-lo, a Águia levou a mulher nagual para o outro mundo para servir de farol, guiando o grupo à abertura.

O nagual e seus guerreiros receberam ordem então de se esquecerem. Foram afundados na escuridão e ganharam novas tarefas: a tarefa de se lembrarem deles próprios, e a tarefa de se lembrarem da Águia.

A ordem de esquecer era tão grande que todos se separaram. Não se lembravam de quem eram. A Águia pretendia que ao serem capazes de lembrar de si próprios novamente, encontrassem sua totalidade. Só então teriam a forca e a antigüidade necessárias para procurar e enfrentar sua viagem definitiva.

Sua tarefa final, depois de terem recuperado sua totalidade, era con­seguir um novo par de seres duplicados e transformá-los num novo homem nagual e uma nova mulher nagual, revelando-lhes o regulamento. E assim como o primeiro homem e mulher naguais tinham sido providos de um grupo mínimo, tinham de suprir o novo par de naguais com quatro guer­reiras espreitadoras, três guerreiros e um mensageiro.

Quando o primeiro nagual e seu grupo estavam prontos a atravessar a passagem, a primeira mulher nagual esperava-os para guiá-los. Recebe­ram ordens então de levar a nova mulher nagual com eles para o outro mundo, para servir de farol para seu povo, deixando o novo homem nagual na terra para repetir o ciclo.

Enquanto neste mundo, o número mínimo sob a liderança de um nagual é sempre dezesseis: oito guerreiras, quatro guerreiros, contando com o nagual, e quatro mensageiros. No momento de deixar o mundo, quando a nova mulher nagual estiver com eles, o número passa a dezessete. Se seu poder pessoal permitir-lhe ter mais guerreiros, então devem ser acres­centados em múltiplos de quatro.

 

Eu tinha confrontado Dom Juan com a questão de como o regulamento se tornava conhecido do homem. Ele explicou que o regulamento é interminável e cobre todas as facetas do comportamento de um guerreiro. A interpretação e acumulação do regulamento é o trabalho dos observadores, cuja única tarefa ao longo dos tempos tem sido ver a Águia, observar seu fluxo incessante. Pelas observações, os observa­dores concluíram que, desde que a concha luminosa que engloba a humanidade de urna pessoa tenha sido quebrada, é possível encontrar na Águia a fraca reflexão do homem. Os ditos irrevogáveis da Águia podem ser apreendidos pelos observadores, propriamente interpreta­dos por eles, e acumulados sob a forma de um corpo dominante.

Dom Juan explicou que o regulamento não é uma lenda, e que atravessar para a liberdade não significa uma vida eterna como se entende comumente — quer dizer, uma vida para sempre. O que o regulamento declara é que se pode manter a consciência, normalmente abandonada no momento da morte. Dom Juan não podia explicar o que queria dizer manter a consciência, ou talvez não pudesse nem mesmo concebê-la. Seu benfeitor tinha lhe dito que no momento da travessia a pessoa entra na terceira atenção, e o corpo, em sua totali­dade, é iluminado pelo conhecimento. Cada célula torna-se de repente consciente de si própria, e também consciente da totalidade do corpo.

Seu benfeitor também lhe disse que o tipo de conscientização é sem significado para nossos espíritos compartimentados. Portanto o ponto crucial da luta do guerreiro não é tanto perceber que a travessia especificada no regulamento significa atravessar a terceira atenção quanto conceber que existe tal conscientização.

Falou que no início tal regulamento lhe era restrito ao reinado das palavras. Não podia imaginar como pudesse sair do domínio do mundo real e de seus meios. Sob a direção efetiva de seu benfeitor, contudo, e depois de uma provação traumatizante finalmente conse­guiu captar a verdadeira natureza do regulamento, e aceitá-lo totalmente como um conjunto de diretivas pragmáticas e não um mito. Daí em diante, não teve problema algum em lidar com a realidade da terceira atenção. O único obstáculo no seu caminho surgiu do fato de ele estar convencido de que o regulamento era um mapa, e apenas um mapa que ele acreditava ter de procurar para encontrar uma abertura literal no mundo, uma passagem. De alguma forma ele tinha empacado sem necessidade no primeiro nível do desenvolvimento de um guerreiro.

O próprio trabalho de Dom Juan como líder e mestre, em resul­tado, foi dirigido no sentido de ajudar os aprendizes, e especialmente eu, a evitarem repetir seu erro. O que conseguiu fazer conosco foi nos dirigir através dos três estágios do desenvolvimento de um guerrei­ro sem superenfatizar nenhum deles. Primeiro nos levou a aceitar o regulamento como um mapa; depois nos levou a compreender que se pode atingir uma conscientização fabulosa por haver tal coisa; e final­mente nos guiou a uma passagem real àquele outro mundo velado de conscientização.

A fim de nos guiar pelo primeiro estágio, a aceitação do regula­mento como um mapa, Dom Juan pegou a secção que pertence ao nagual e ao seu desempenho e nos mostrou que ela corresponde aos fatos inequívocos. Conseguiu isso ao nos permitir ter, enquanto está­vamos nos estágios de elevada conscientização, uma interação irrestri­ta com os membros do nosso grupo, que viviam as personificações dos oito tipos de pessoas descritas no regulamento. Ao interagirmos com eles, aspectos mais complexos e totais do regulamento nos eram revelados, até sermos capazes de perceber que estávamos dentro de uma rede, a princípio conceituada como mito, mas que em essência era um mapa.

Dom Juan nos falou que a esse respeito seu caso tinha sido idêntico ao nosso. Seu benfeitor o ajudara a atravessar aquele primei­ro estágio, permitindo-lhe o mesmo tipo de interação. Para isso ti­nha-o feito mudar várias vezes do lado direito ao esquerdo da cons­cientização, da mesma forma como ele fizera conosco. No lado es­querdo ele apresentou-o aos membros do seu próprio grupo, as oito guerreiras, os três guerreiros, e os quatro mensageiros, que eram, como necessário, os exemplos mais rigorosos dos tipos descritos no regulamento. O impacto de conhecê-los e lidar com eles foi terrível para Dom Juan. Não só forçou-o a ver o regulamento como um guia factual, como também o fez perceber a magnitude de nossas possi­bilidades desconhecidas.

Disse que quando todos os membros de seu próprio grupo foram reunidos, ele estava tão profundamente ligado ao modo do guerreiro que não deu atenção ao fato de, sem qualquer esforço evidente da parte de ninguém, eles terem se transformado em perfeitas réplicas dos guerreiros do grupo do seu benfeitor. A semelhança de seus gostos, aversões e associações pessoais, e assim por diante, não era fruto de imitação; Dom Juan disse que eles pertenciam, como dizia o regulamento, a blocos específicos de pessoas que tinham as mesmas tendências. As únicas diferenças entre os membros do mesmo bloco eram no tom da voz, no som da risada.

Ao tentar explicar-me os efeitos que a interação com os guerrei­ros do seu benfeitor tinham tido sobre ele, Dom Juan tocou no assunto da própria diferença significativa entre seu benfeitor e ele mesmo em relação à interpretação do regulamento, e também em relação a como eles dirigiam e ensinavam os guerreiros a aceitarem o mapa. Disse que há dois tipos de interpretação — a universal e a individual. As interpretações universais dão um valor real aos ditames que formam o corpo do regulamento. Um exemplo seria dizer que a Águia não cuida das ações do homem e ainda assim provê ao homem uma passagem para a liberdade.

A interpretação individual, ao contrário, é uma conclusão cor­rente a que chegaram os observadores, usando interpretações univer­sais como premissas.

Um exemplo seria dizer que, diante da despreocupação da Águia, eu teria de me certificar sobre maiores chances de alcançar a liberda­de, talvez devido à minha própria dedicação.

Segundo Dom Juan, ele e seu benfeitor eram bastante diferentes quando ao tempo de guiar seus protegidos. Dom Juan disse que a forma usada por seu benfeitor era a severidade; ele guiava com mão de ferro, e segundo suas convicções de que com a Águia não se podia brincar, ele nunca fazia nada para ninguém diretamente. Em lugar disso, ajudava ativamente a todos para se ajudarem a si próprios. Considerava o presente de liberdade da Águia não uma concessão, mas uma chance de ter chance.

Dom Juan, embora reconhecesse os méritos do método do seu benfeitor, discordava dele. Mas tarde, quando já estava por conta própria, ele mesmo viu que tinha desperdiçado um tempo precioso. A seu ver, era mais eficiente apresentar uma dada situação a uma pessoa e forçá-la a aceitá-la do que esperar até que ela estivesse pronta a enfrentá-la por si própria. Esse foi o método usado comigo e com os outros aprendizes.

O ponto no qual a diferença de liderança teve maior significado para Dom Juan foi durante a interação compulsória que ele teve com os guerreiros do seu benfeitor. A ordem do regulamento era que seu benfeitor encontrasse para Dom Juan primeiramente uma mulher nagual e depois um grupo de quatro mulheres e quatro homens para formar o grupo de guerreiros. Seu benfeitor viu que Dom Juan ainda não tinha bastante poder pessoal para assumir a responsabilidade de uma mulher nagual; então alterou a seqüência e pediu às mulheres do seu próprio grupo para encontrarem para Dom Juan as quatro guerreiras em primeiro lugar, e depois os quatro guerreiros.

Dom Juan confessou que ficara fascinado com a idéia de tal alteração. Tinha pensado que aquelas mulheres fossem para seu uso, e na sua cabeça isso queria dizer uso sexual. Seu erro, entretanto, foi revelar suas expectativas ao seu benfeitor, que imediatamente pôs Dom Juan em contato com os homens e mulheres do seu próprio grupo e deixou-o sozinho para interagir com eles.

Para Dom Juan, conhecer aqueles guerreiros era uma verdadeira prova, não só porque eles eram deliberadamente difíceis com ele como porque a natureza daquele encontro significava uma ruptura.

Dom Juan disse que interação em estado de conscientização do lado esquerdo é como um oásis, e não pode ter lugar a não ser que os participantes também estejam no mesmo estado. Era por isso que não nos deixava entrar na conscientização do lado esquerdo a não ser para empreender nossa interação com os seus guerreiros. Esse foi o processo que seu benfeitor usou com ele.

Dom Juan fez um breve relato do que acontecera no seu primeiro encontro com os membros do grupo do seu benfeitor. Achava que eu poderia usar sua experiência talvez como uma amostra do que esperar. Disse que o mundo do seu benfeitor tinha uma regularidade magnífica. Os membros do seu grupo eram todos guerreiros índios vindos de várias regiões do México. Na época em que os conheceu eles moravam numa área montanhosa longínqua, no sul do México. Ao chegar à casa deles, Dom Juan confrontou-se com duas mulheres idênticas, as índias maiores que já tinha visto. Eram emburradas e mesquinhas, mas tinham feições muito bonitas. Quando tentou passar entre as duas, elas o prenderam com as barrigas enormes, agarraram seus braços e começaram a bater nele. Jogaram-no no chão e sentaram-se por cima dele, a ponto de quase quebrarem suas costelas. Mantiveram-no imobilizado por mais de doze horas, enquan­to faziam negociações ali mesmo com o seu benfeitor, que teve de falar sem parar durante a noite toda, até elas finalmente deixarem Dom Juan se levantar no início da manhã. Disse que o que o assustou mais foi a determinação dos olhos daquelas mulheres. Achou que estava derrotado, que iriam sentar-se em cima dele até ele morrer, como disseram que fariam.

Normalmente deveria ter havido um período de espera de algu­mas semanas antes de conhecer o outro grupo de guerreiros, mas como seu benfeitor estava planejando deixá-lo no meio deles, Dom Juan foi imediatamente levado a ver os outros. Conheceu todos num só dia e todos o trataram mal. Argumentaram que ele não era o homem talhado para aquilo, que era muito grosseiro e muito burro, jovem e ao mesmo tempo senil. Seu benfeitor argumentou brilhante­mente em sua defesa; disse-lhes que eles podiam mudar aquelas con­dições e que seria maravilhoso para eles e para Dom Juan enfrenta­rem aquele desafio.

Dom Juan disse que sua primeira impressão foi boa. Para ele ha­veria apenas trabalho e privações dali por diante. As mulheres viram que Dom Juan era indisciplinado e que não podiam confiar nele para realizar a tarefa complexa e delicada de guiar quatro mulheres. Uma vez que elas próprias eram observadora?, deram sua interpretação pessoal do regulamento e decidiram que seria melhor que ele ficasse com os quatro guerreiros primeiro e depois com as quatro guerreiras. Dom Juan falou que a observação delas tinha sido correta, pois para lidar com guerreiras o nagual teria de estar num estado de poder pessoal extremada, num estado de serenidade e controle, no qual os sentimentos humanos ocupam uma parte mínima, estado que naquela época lhe era inconcebível.

Seu benfeitor o passou para a supervisão direta de suas duas mulheres do oeste, as guerreiras mais ferozes e descompromissadas de todas. Dom Juan disse que todas as mulheres do oeste, segundo o regulamento, são alucinadas e têm de ser protegidas. Durante o sonho e a espreita elas perdem seus lados direitos, perdem o juízo. A razão é facilmente queimada pelo fato da sua conscientização do lado esquerdo ser muito aguçada. Uma vez perdendo seu lado racional, elas se tornam sonhadoras e espreitadoras sem igual, já que não têm mais qualquer lastro racional a que se apegaram.

Dom Juan falou que aquelas mulheres o curaram de sua luxúria. Durante seis meses ele passou a maior parte do tempo num arreio suspenso do teto da cozinha, como um presunto sendo defumado, até que foi totalmente purificado de pensamentos de lucro e gratificação pessoal.

Explicou que o arreio de couro é um dispositivo magnífico para curar certas doenças de causa não-física. A idéia é que quanto mais alto se fica suspenso, quanto mais tempo se fique sem tocar no chão, balançando no ar, maiores as possibilidades de um efeito verdadeiro de purificação.

Enquanto ele estava sendo purificado pelas guerreiras do oeste, as outras mulheres se viam no processo de encontrar os homens e as mulheres para o seu grupo. Passaram-se anos até que isso se realizas­se. Dom Juan, nesse meio tempo, foi forçado a interagir com todos os guerreiros do seu benfeitor por conta própria. A presença daqueles guerreiros e o contato com eles o impressionaram tanto que achou que nunca poderia sair do cerco deles. O resultado foi sua total e literal concordância ao corpo do regulamento. Dom Juan disse que passou um tempo precioso ponderando sobre a existência de uma passagem real para o outro mundo. Ele via isso como uma cilada a ser evitada a todo custo. A fim de me proteger dela, permitiu que a exigida interação com os membros do seu grupo fosse realizada enquanto eu estava sob a proteção de la Gorda ou de qualquer outro aprendiz.

No meu caso, o encontro com os guerreiros de Dom Juan foi o resultado final de um longo processo. Eles nunca foram mencionados em conversa alguma com Dom Juan. Eu sabia da existência deles apenas por inferência do regulamento, que ele me revelava aos pou­cas. Mais tarde admitiu que eles existiam, e que eventualmente eu teria de encontrá-los. Preparou-me para o encontro dando-me ins­truções gerais e orientações.

Advertiu-me contra um erro habitual, o de superestimar a cons­cientização do lado esquerda, de me deixar deslumbrar por sua claridade e poder. Disse que ter uma conscientização do lado esquer­do não significava que a pessoa se liberasse imediatamente de sua loucura — significava apenas uma extensa capacidade de perceber, uma facilidade maior de compreender e aprender, e, acima de tudo, uma maior capacidade de esquecer.

Quando chegou a hora de encontrar os próprios guerreiros de Dom Juan, ele me deu uma descrição sumária do grupo de seu benfeitor, mais uma vez como uma orientação para meu próprio uso. Disse que o mundo do seu benfeitor era tão equilibrado que às vezes parecia estruturado em quatro casas, cada qual dirigida por um homem e duas mulheres. Três dessas casas tinham um irmão mais moço agregado. A primeira casa era formada pelas mulheres do sul e o mensageiro do nagual; a segunda, pelas mulheres do leste e o intelec­tual; a terceira pelas mulheres do norte e o homem de ação; a quarta, pelas mulheres do oeste & o homem por trás dos bastidores. Os três mensageiros restantes eram trocados de uma casa para a outra, se­gundo a necessidade.

Outras vezes aquele mundo parecia se inserir num modelo dife­rente, homens totalmente diferentes, que eram os guerreiros; quatro homens muitos semelhantes uns aos outros, os mensageiros; dois con­juntas de gêmeas idênticas, do sul e do leste; e dois conjuntos de irmãs, do oeste e do norte. Entretanto, nenhuma das mulheres tinha qualquer laço sangüíneo. Dom Juan descreveu as mulheres do sul como dois mastodontes, amedrontantes à primeira vista, mas muito cordiais e calorosas. As mulheres do leste eram muito bonitas, jovens e engraçadas, um verdadeiro deleite aos olhos e aos ouvidos. As mulheres do norte eram altamente femininas, vaidosas, coquetes, preocupadas com a idade, mas também terrivelmente diretas e impa­cientes. As mulheres do oeste eram às vezes loucas, e outras vezes a imagem da severidade e da objetividade. Eram as que perturbavam mais a Dom Juan, pois ele não conseguia aceitar o fato delas serem tão sóbrias, boas e prestativas, e a um dado momento perderem a compostura e tornarem-se enlouquecidas.

Os homens, ao contrário, não chamavam a atenção de Dom Juan. Ele achava que não tinham nada de extraordinário. Pareciam ter sido totalmente absorvidos pela força chocante da determinação das mulheres e pela personalidade superpoderosa do seu benfeitor.

Dom Juan disse que ao ser lançado no mundo do seu benfeitor, percebeu como fora fácil e conveniente para ele atravessar a vida sem autodomínio. Compreendeu que seu erro fora acreditar que seus objetivos eram os únicos válidos para o homem. Toda sua vida tinha sido de pobreza; sua ambição máxima, portanto, era ter posses mate­riais, ser alguém. Tinha estado tão preocupado com seu desejo de vencer na vida e seu desespero de agir assim que não tinha tido tempo de examinar coisa alguma. Ficara de bom grado ao lado de seu benfeitor por perceber que existia uma oportunidade de ele ser alguém. Ou ao menos achava que podia aprender a ser feiticeiro. Acreditou que se inserindo no mundo do seu benfeitor teria uma conseqüência semelhante à da Conquista Espanhola na cultura indí­gena. Tudo seria destruído, mas ao mesmo tempo seria forçado a um imensa auto-exame.

 

Minha reação a essas preparações não foi, por incrível que pareça, de respeito ou de medo, mas de preocupação intelectual a respeito de dois tópicos. O primeiro era em relação ao fato de haver apenas quatro tipos de homens e quatro tipos de mulheres no mundo. Argu­mentei com Dom Juan que o âmbito de variação individual das pessoas é grande demais para um esquema tão simples. Ele discor­dou de mim. Disse que o regulamento era final, e que não permitia um número infinito de tipos de pessoas.

O segundo tópico era o contexto cultural do conhecimento de Dom Juan. Ele próprio não sabia explicar. Via a coisa como um produto de uma espécie de pan-indianismo. Imaginava que numa certa época, no mundo indígena anterior à Conquista, o manuseio da segun­da atenção fosse lugar-comum. Fora desenvolvida sem qualquer dificuldade por talvez milhares de anos, a ponto de ter perdido sua força. Os praticantes daquela época talvez não tivessem tido necessi­dade de controle, e assim, sem restrição, a segunda atenção enfraque­ceu-se, ao invés de se fortalecer, em virtude da sua crescente comple­xidade. Então os invasores espanhóis chegaram e, com sua tecnologia superior, destruíram o mundo indígena. O choque que os praticantes da segunda atenção tiveram foi certamente indescritível. Dom Juan disse que seu benfeitor estava convencido de que apenas um punhado daqueles guerreiros tinha sobrevivido e reorganizado sua cultura, dan­do nova direção a seus caminhos. O que quer que fosse que Dom Juan e seu benfeitor soubessem sobre a segunda atenção, chegara-lhes em versão reestruturada, uma nova versão cheia de restrições, pois fora forjada sob as condições mais desagradáveis de repressão.

 

                    O Grupo de Guerreiros do Nagual

Quando Dom Juan julgou ser a hora adequada para eu ter meu primeiro encontro com seus guerreiros, ele me fez trocar de níveis de conscientização. Depois disse bem claramente que não teria nada a ver com o modo com que eles se encontrariam comigo. Advertiu-me de que se decidissem bater em mim, ele não poderia detê-los. Podiam fazer qualquer coisa que quisessem, menos me matar. Enfatizou várias vezes que os guerreiros do seu grupo eram uma réplica perfeita dos de seu benfeitor, com a diferença de que algumas das mulheres eram mais ferozes e todos os homens eram extremamente diferentes e pode­rosos. Portanto, meu primeiro encontro com eles poderia assemelhar-se a uma queda de cabeça.

Eu estava nervoso e apreensivo por um lado, mas curioso por outro. Minha cabeça estava cheia de perguntas sem fim, a maioria delas sobre o aspecto dos guerreiros.

Dom Juan disse que ele podia escolher me treinar a memorizar um ritual elaborado, como tinham feito com ele, ou tornar o encontro o mais casual possível. Esperou que um presságio lhe indicasse que alternativa tomar. Seu benfeitor fizera coisa semelhante, só que insis­tira para que ele conhecesse o ritual antes de ter o presságio. Quando Dom Juan revelou seus sonhos sexuais de dormir com quatro mulhe­res, seu benfeitor interpretou isso como um presságio, mandou o ritual às favas e acabou implorando pela vida de Dom Juan.

No meu caso, Dom Juan queria ter um presságio antes de me ensinar o ritual. Uma vez, quando ele e eu passávamos de cano por uma cidade vizinha, um policial nos parou. Ficou intrigado quando eu buzinei alto e com raiva pata o motorista de outro veiculo. Achou que eu era um estrangeiro sem documentos e não quis ouvir minha explicação. Só depois de eu mostrar meu passaporte, que ele pensou que fosse forjado, e outros documentos, é que me deixou seguir cami­nho. Dom Juan estava no banco da frente comigo, e o policial não tinha olhado para ele nem uma vez. Olhava apenas para mim. Dom Juan achou que o incidente era o presságio que ele esperava. Interpre­tou a coisa como sendo muito perigoso eu chamar atenção para mim mesmo, e concluiu que meu mundo tinha de ser de extrema simplici­dade e candura — ritual elaborado e pompa não combinavam comigo. Admitiu, entretanto, que existia um cumprimento mínimo dos modelos ritualísticos quando travei conhecimento com os seus guerreiros. Eu tive de começar me aproximando deles pelo sul, pois essa é a direção seguida pelo poder em seu fluxo incessante. A força da vida nos vem do sul e nos deixa na direção do norte. Ele disse que a única abertura para o mundo de um nagual era através do sul, e que o portão era constituído de duas guerreiras, que teriam de me cumprimentar e me deixariam passar se assim o desejassem.

Levou-me a uma cidade do centro do México, a uma casa no campo. Quando íamos nos aproximando a pé, vindos do sul, vi duas mulheres índias volumosas a um metro e meio de distância, uma em frente à outra. Estavam a uns nove ou doze metros da porta principal da casa, próximo a um monte de lixo. As duas mulheres eram extra­ordinariamente musculosas e fortes. Ambas tinham cabelos compridos e pretos presos numa única trança grossa. Pareciam irmãs. Eram mais ou menos da mesma altura e peso — calculei que deviam medir quase um metro e setenta e pesar uns setenta e cinco quilos. Uma delas era extremamente morena, quase preta, a outra um pouco mais clara. Vestiam-se como índias típicas do México central — vestidos compridos, rodados, com xale e sandálias feitas em casa.

Dom Juan me fez parar a um metro delas. Virou-se para a mulher à nossa esquerda e me fez olhar para ela. Disse que seu nome era Cecília e que ela era uma sonhadora. Depois virou-se abrupta­mente, sem me dar tempo de dizer nada, e me fez olhar a mulher mais morena, à nossa direita. Falou que seu nome era Delia e que ela era uma espreitadora. As mulheres me fizeram um sinal com a cabeça. Não sorriram e nem apertaram minha mão, ou qualquer outro gesto de boas-vindas.

Dom Juan caminhou entre elas como se fossem duas colunas de um portão. Deu uns dois passos e virou-se, como que esperando que as duas mulheres me convidassem a entrar. As. mulheres olharam-me calmamente por um instante. Então Cecília convidou-me a entrar, como se eu estivesse à frente de um verdadeiro pórtico.

Dom Juan foi na frente, em direção à casa. Na porta da frente encontramos um homem muito esguio. À primeira vista parecia extre­mamente jovem, mas olhando-se melhor via-se que ele devia estar próximo dos sessenta anos. Deu-me a impressão de uma criança velha: pequeno, rijo, com olhos penetrantes e escuros. Parecia um ser sobrenatural, uma sombra. Dom Juan me apresentou a ele, chamando-o de Emilito, e disse que ele era o mensageiro e o ajudante de todas as coisas, e que iria me dar as boas-vindas em seu nome.

Eu achei que Emilito era na verdade o ser mais apropriado para dar as boas-vindas a alguém. Seu sorriso era irradiante; seus dentes pequenos eram absolutamente certos. Apertou minha mão, ou melhor, cruzou os braços e agarrou minhas duas mãos. Parecia exsudar con­tentamento; qualquer um podia jurar que ele estava em êxtase por me conhecer. Sua voz era muito suave e seus olhos brilhavam.

Entramos numa sala grande. Havia outra mulher lá. Dom Juan disse que seu nome era Teresa e que ela era a mensageira de Cecília e de Delia. Devia ter uns trinta anos, e parecia ser filha de Cecília. Era muito quieta, mas muito amistosa. Seguimos Dom Juan até os fundos da casa, onde havia uma varanda coberta. O dia estava quente. Sentamo-nos em volta de uma mesa, e, após um jantar frugal, conver­samos até depois da meia-noite.

Emilito era o anfitrião. Encantou e deliciou a todos com suas histórias exóticas. As mulheres se soltaram. Elas eram a grande platéia dele. Ouvir as gargalhadas das mulheres dava um prazer especial. Eram incrivelmente musculosas, valentes, e físicas. A um certo ponto, quando Emilito disse que Cecília e Delia eram como duas mães para ele, e Teresa uma filha, elas o seguraram e sacudiram no ar como se ele fosse uma criança.

Das duas mulheres, Delia parecia a mais racional, com os pés na terra. Cecília era talvez mais ausente, mas parecia ter maior força interior. Deu-me a impressão de ser mais intolerante ou mais impa­ciente; parecia ficar aborrecida com umas histórias de Emilito. Entre­tanto, ficava bem na ponta da cadeira quando ele contava o que chamava de “histórias da eternidade”. Iniciava cada história com a frase: “Vocês, queridos amigos, sabiam que...?” A história que mais me impressionou foi sobre umas certas criaturas que existiam no Universo, muito próximas a seres humanos, mas que não eram huma­nas; criaturas obcecadas pelo movimento e capazes de detectar a flutuação mínima dentro delas mesmas ou à sua volta. Essas criatu­ras eram tão sensíveis ao movimento que isso se tornava um terror para elas. Dava-lhes tanta dor que a sua ambição máxima era a imobilidade.

Emilito entremeava suas histórias da eternidade com as piadas mais imundas possíveis. Por seu incrível dom de contador de história, compreendi cada uma delas como uma metáfora, uma parábola, com a qual nos fazia aprender alguma coisa.

Dom Juan disse que Emilito estava meramente contando coisas que tinha presenciado em suas viagens pela eternidade. O papel de um mensageiro era viajar adiante do nagual, como um explorador em operação militar. Emilito tinha ido até os limites da segunda atenção, e tudo o que presenciara fora passado para os outros.

 

Meu segundo encontro com os guerreiros de Dom Juan foi tão incrí­vel quanto o primeiro. Um dia ele me fez mudar os níveis de cons­cientização e me disse que eu tinha um segundo encontro marcado. Fez-me guiar até Zacatecas, no norte do México. Chegamos lá muito cedo, pela manhã. Dom Juan disse que aquela era apenas uma parada, e que tínhamos de descansar até o dia seguinte, antes de entrarmos no meu segundo encontro formal, a fim de travar conhecimento com as mulheres do leste e com o intelectual do seu grupo. Explicou então um ponto de escolha complexo e delicado. Disse que tínhamos encontrado o sul e o mensageiro no meio da tarde, porque ele tinha feito uma interpretação individual do regulamento e tinha escolhido aquela hora para representar a noite. O sul era realmente a noite — uma noite quente, amistosa e acolhedora — e na verdade devíamos ter encontrado as duas mulheres do sul depois da meia-noite. Entre­tanto, aquilo teria sido ruim para mim, pois minha direção geral era no encontro da luz, do otimismo, um otimismo que funciona por si mesmo harmoniosamente no mistério da escuridão. Falou que aquilo era precisamente o que tinha feito naquele dia; tínhamos gostado da companhia um do outro e conversado até o escurecer, e eu tinha ficado pensando por que eles não haviam acendido as lanternas.

Dom Juan disse que o leste, ao contrário, era a manhã, a luz, e que encontraríamos as mulheres do leste no dia seguinte pela manhã.

Antes do café da manhã fomos até a praça e sentamos num banco. Dom Juan me disse que queria que eu ficasse lá e o esperasse, enquanto ele tomava umas providências. Deixou-me, e logo depois de ter ido embora apareceu uma mulher e sentou-se na outra ponta do banco. Eu não prestei muita atenção a ela e comecei a ler um jornal. Um instante depois outra mulher se juntou a ela. Tive vontade de me mudar para outro banco, mas lembrei-me de que Dom Juan tinha dito especificamente que eu ficasse sentado lá. Dei as costas para as mulheres e cheguei a me esquecer de que elas estavam lá, já que estavam tão quietas, até que um homem as cumprimentou e ficou de pé me olhando. Percebi, pela conversa, que elas o estavam esperando. O homem se desculpou por estar atrasado e nitidamente fez menção de se sentar. Cheguei para o lado para dar lugar para ele. Ele me agradeceu efusivamente e desculpou-se por estar me incomodando. Disse que estavam perdidos na cidade, pois eram pessoas do campo, e que uma vez tinham estado na Cidade do México e quase tinham sido mortos no tráfego. Perguntou-me se eu morava em Zacatecas. Eu disse que não, e ia terminar nossa conversação naquele momento, quando percebi um ar de vitória no seu sorriso. Ele era velho, mas especialmente bem para sua idade. Não era índio. Parecia ser um fazendeiro educado, de uma pequena cidade rural. Usava terno e tinha um chapéu de palha. Suas feições eram muito delicadas e sua pele quase transparente. Tinha o nariz protuberante, boca pequena, e uma barba muito bem-educada. Parecia muito saudável e ao mesmo tempo frágil. Era de estatura média e bem proporcionado, dando contudo a impressão de ser esguio, quase que esquálido.

Ficou de pé e se apresentou a mim. Disse que seu nome era Vicente Medrano, e que tinha vindo à cidade a negócios, só por um dia. Depois apontou para as duas mulheres e disse que elas eram suas irmãs. As mulheres se levantaram e olharam para nós. Eram muito magras e mais morenas que o irmão. Notei que a pele delas não era como a dele; era seca. Eram porém muito bonitas. Como o homem, tinham feições muito finas e os olhos claros e serenos. Mediam apro­ximadamente um metro e sessenta e cinco, usavam roupas de cidade, como o homem, só que tinham xales, sapatos baixos e meias finas de mulher. Pareciam fazendeiras robustas. A mais velha parecia ter uns cinqüenta anos e a mais moça uns quarenta.

O homem apresentou-me a elas. A mais velha chamava-se Car­mela, e a mais moça Hermelinda. Levantei-me e dei um aperto rápido de mão, perguntando se elas tinham filhos. Essa pergunta tia normal­mente uma porta aberta para qualquer conversa minha. As mulheres riram e juntas passaram a mão pelo estômago para me mostrar como não tinham barriga. O homem calmamente explicou que suas irmãs eram solteironas, e que ele próprio também nunca se casara. Confes­sou-me, em tom de brincadeira, que infelizmente suas irmãs eram tão fortes que não tinham sido capazes de encontrar um marido. Eram muito masculinizadas e sem a feminilidade que torna uma mulher desejável.

Eu falei que elas estavam melhor assim, considerando-se o papel subserviente das mulheres na sociedade. Elas discordaram de mim, dizendo que não teriam se importado absolutamente em serem servis se tivessem encontrado homens que quisessem ser donos delas. A mais moça disse que o problema real era que o pai não as ensinara a se portarem como mulheres. O homem comentou, com um suspiro, que o pai era tão dominador que também atrapalhara o casamento dele, negligenciando propositadamente sua educação como um macho. Todos os três suspiraram e ficaram com um ar melancólico. Eu tive vontade de rir.

Depois de um longo silêncio sentamos novamente, e o homem disse que se eu ficasse um pouco mais naquele banco teria oportu­nidade de conhecer o pai deles, que ainda era muito espirituoso para sua idade avançada. Acrescentou, em tom tímido, que o pai iria levá-los a tomar o café da manhã, pois eles próprios nunca tinham dinheiro. Era o pai quem comandava a situação financeira.

Fiquei horrorizado. Aquelas pessoas de meia-idade e tão fortes eram na realidade como crianças frágeis e dependentes. Despedi-me deles e levantei-me para ir embora. O homem e as irmãs insistiram para que eu ficasse. Asseguraram-me que o pai gostaria muito se eu fosse tomar café com eles. Eu não queria conhecer o pai deles e ao mesmo tempo estava curioso. Disse-lhes que estava esperando por alguém. Ao ouvirem isso, as mulheres começaram a dar risadinhas e acabaram caindo na gargalhada. O homem também deixou-se conta­minar pelo riso. Eu não compreendi onde estava a graça; senti-me como um imbecil e tive vontade de sair de lá. Naquele momento Dom Juan apareceu, e percebi a manobra dele, mas não achei graça alguma.

Todos nós ficamos de pé. Eles ainda riam quando Dom Juan me disse que aquelas eram as mulheres do leste, que Carmela era uma espreitadora e Hermelinda uma sonhadora, e que Vicente era o guerreiro intelectual e seu companheiro mais antigo.

Quando estávamos deixando a praça, outro homem juntou-se a nós, um índio alto e moreno, por volta dos quarenta anos. Usava calça Levis e chapéu de cowboy. Parecia incrivelmente forte e mal-humorado. Dom Juan apresentou-o a mim como Juan Tuma, mensa­geiro de Vicente e seu assistente de pesquisa.

Fomos andando até o restaurante, a alguns quarteirões dali. Eu caminhava entre as duas mulheres. Carmela disse que esperava que eu não tivesse me ofendido com a brincadeira, que eles podiam ter escolhido apenas se apresentarem a mim ou me pregarem uma peça. O que os fez decidirem me pregar a peça foi minha atitude totalmente esnobe ao dar as costas para eles e querer passar para outro banco. Hermelinda acrescentou que as pessoas devem ser extremamente humildes e sem defesa alguma, nem mesmo de si próprias; devem se proteger, mas não se defender. Ao fazer um ar esnobe eu não estava me protegendo, mas me defendendo.

Tomei uma atitude agressiva. Tinha ficado desconcertado com a brincadeira deles. Comecei a discutir, mas antes que estabelecesse minha opinião Dom Juan veio para o meu lado. Disse às duas mulheres que elas deviam fazer vista grossa à minha agressividade, pois leva-se muito tempo para limpar o lixo que um ser luminoso apanha do mundo.

Os donos do restaurante onde fomos conheciam Vicente e tinham preparado um suntuoso café da manhã para nós. Todos estavam muito animados, mas eu não conseguia me livrar do meu mau humor. Então, a pedido de Dom Juan, Juan Tuma começou a falar de suas viagens. Ele era um homem singular. Fiquei magnetizado com suas histórias sucintas sobre coisas acima da minha compreensão. O mais fascinante para mim foi a descrição de uns raios de luz ou energia que, segundo se afirma, cruzam pela terra. Disse que aqueles raios não flutuam como tudo o mais no Universo, mas que são fixos numa configuração. Essa configuração coincide com centenas de pontos no corpo luminoso. Hermelinda achava que todos os pontos estavam no nosso corpo físico, mas Juan Tuma explicou que, sendo o corpo lumi­noso muito grande, alguns pontos ficam a um melro de distância do corpo físico. Em certo sentido, estão fora de nós e ao mesmo tempo não estão; estão na periferia de nossa luminosidade e, portanto, ainda pertencem ao corpo total. O mais importante desses pontos fica locali­zado a uns trinta centímetros do estômago, 40 graus à direita de uma linha imaginária projetada para a frente. Juan Tuma nos disse que era um centro de concentração da segunda atenção, e que podia ser manipulado com um leve toque no ar com as palmas das mãos. Ouvin­do Juan Tuma, esqueci-me da minha raiva.

Meu próximo encontro com o mundo de Dom Juan foi a oeste. Ele me advertiu que o primeiro contato com o oeste era um aconte­cimento muito importante, pois iria decidir, de uma forma ou de outra, o que eu iria fazer depois. Alertou-me também para o fato de ser um acontecimento desafiante, especialmente para mim, que era tão rígido e me julgava tão importante. Disse que o oeste é natural­mente procurado na penumbra, hora do dia difícil por si só, e que seus guerreiros do oeste eram poderosos, valentes e muito loucos. Ao mesmo tempo, eu também iria conhecer o guerreiro por trás dos bastidores. Dom Juan me aconselhou a usar da maior precaução e paciência; não só as mulheres eram loucas, como elas e o homem eram os guerreiros mais poderosos que ele jamais conhecera. Eram, na opinião dele, o máximo de autoridade em segunda atenção. Não explicou muito mais que isso.

Um dia, escolhido ao acaso, decidiu de repente que chegara a hora de partirmos para a viagem ao encontro das mulheres do oeste. Guiamos até uma cidade ao norte do México. Ao cair da tarde ele me disse para parar em frente de uma casa grande e sem iluminação, nos arredores da cidade. Saímos do carro e andamos até a porta principal. Dom Juan bateu várias vezes, mas ninguém respondeu. Tive a impressão de que estávamos no endereço errado. A casa parecia vazia.

Dom Juan continuou a bater até que aparentemente ficou cansa­do. Fez um sinal para que eu batesse. Disse-me para continuar a bater sem parar porque as pessoas que moravam lá não ouviam bem. Perguntei-lhe se não seria melhor voltarmos mais tarde, ou no dia seguinte, e ele me respondeu que batesse com força na porta.

Depois de um tempo que me pareceu sem fim, a porta foi aberta lentamente. Uma mulher de aspecto estranho enfiou a cabeça para fora e perguntou se minha intenção era quebrar a porta ou acordar os vizinhos e seus cachorros.

Dom Juan deu um passo à frente para dizer alguma coisa. A mulher saiu e deu-lhe um empurrão para o lado com força. Começou a sacudir o dedo para mim, gritando que eu estava me comportando como se fosse dono do mundo, como se não existisse mais ninguém a não ser eu. Protestei que estava apenas fazendo o que Dom Juan me mandara fazer. A mulher perguntou se ele dissera para eu quebrar a porta. Dom Juan tentou intervir mas foi empurrado para o lado de novo.

A mulher parecia ter acabado de sair da cama. Tinha um aspecto de desalinho total. Provavelmente tinha sido acordada com nossas batidas e pusera um vestido tirada da roupa suja. Estava descalça, o cabelo era grisalho e estava todo despenteado. Os olhos eram verme­lhos e redondos. Ela era feia, mas impressionava de alguma forma: bastante alta, mais de um metro e setenta, morena e muito musculo­sa; seus braços nus eram cheios de músculos rijos. Reparei que suas pernas eram bem torneadas.

Ela me olhou de alto a baixo, elevando-se por cima de mim, e gritou que não tinha ouvido minhas desculpas. Dom Juan cochichou que eu devia me desculpar em voz alta e clara.

Depois que me desculpei a mulher sorriu, virou-se para Dom Juan e abraçou-o como se ele fosse uma criança. Resmunguei que ele não devia me ter feito bater na porta porque meu toque era muito forte e perturbava demais. Segurou Dom Juan pelo braço e o fez entrar, ajudando-o na entrada alta da porta. Ela o chamava de “queri­do velhinho”, e ele ria. Fiquei boquiaberto de vê-lo agir como se estivesse encantado com os absurdos daquela mulher horrível. Depois de ajudar o “querido velhinho” a entrar, virou-se para mim e me fez um gesto com a mão me mandando embora, como se eu fosse um cachorro. Riu da minha surpresa; seus dentes eram grandes, irregula­res e imundos. Depois pareceu mudar de idéia e me convidou a entrar.

Dom Juan estava se encaminhando para uma porta que eu mal podia ver, no final de um hall escuro. A mulher zangou com ele por não saber onde estava indo. Levou-nos por um outro hall escuro. A casa parecia ser enorme, sem uma única luz. A mulher abriu uma porta para uma sala grande, quase vazia, a não ser por duas poltronas velhas no centro sob a lâmpada mais fraca que já vi, uma lâmpada comprida e antiquada.

Havia outra mulher sentada em uma das poltronas. A primeira mulher sentou-se numa esteira de palha no chão e encostou as costas na outra cadeira. Depois levou as coxas ao peito, ficando completa­mente exposta. Estava sem calcinhas, e eu fiquei olhando sem ação.

Em tom ríspido e desagradável a mulher me perguntou por que eu olhava para a sua vagina. Eu não soube o que dizer, a não ser negar. Ela se levantou e avançou para me bater. Exigiu que eu lhe dissesse que tinha ficado de olhos escancarados para ela porque nunca tinha visto uma vagina antes. Eu me senti culpado. Estava completa­mente sem jeito e também aborrecido de ter sido apanhado de forma tão boba.

A mulher perguntou a Dom Juan que espécie de nagual era eu, se nunca tinha visto uma vagina antes. Começou a repetir aquilo várias vezes, aos gritos. Correu em volta da casa e parou perto da cadeira em que a outra mulher se sentava. Sacudiu-a pelos ombros e, apontando para mim, disse que eu era um homem que nunca tinha visto uma vagina em toda a vida. Ela riu e caçoou de mim.

Eu fiquei mortificado. Achei que Dom Juan devia fazer alguma coisa para me livrar daquela humilhação. Lembrei-me que ele me tinha dito que aquelas mulheres eram loucas. Ele tinha atenuado a coisa; a mulher devia estar internada num hospício. Olhei para Dom Juan pedindo apoio e conselho, mas ele olhou para o lado. Parecia estar perdido também, embora eu percebesse um sorriso malicioso, que foi escondido quando ele virou a cabeça.

A mulher deitou-se de costas e levantou a saia, mandando-me olhar à vontade em vez de ficar dando olhadinhas às escondidas. Meu rosto deve ter ficado roxo, pelo calor que senti na cabeça e no pescoço. Eu estava tão aborrecido que quase perdi o controle. Tive vontade de arrebentar a cara dela.

A mulher que estava sentada na cadeira levantou-se subitamente e agarrou a outra pelo cabelo e a fez ficar de pé de uma vez só, sem nenhum esforço aparente. Olhou para mim com os olhos semi-abertos, chegando a uns cinco centímetros do meu rosto. Ela tinha um cheiro surpreendentemente fresco.

Numa voz aguda, disse que devíamos ir direto ao assunto. As duas mulheres ficaram perto de mim, debaixo da lâmpada. Elas não se pareciam. A segunda mulher era mais velha, ou parecia mais velha, e seu rosto era coberto por uma camada grossa de pó-de-arroz, dando-lhe um aspecto de palhaço. Seu cabelo estava bem penteado, preso num coque. Ela parecia calma, a não ser por um tremor conti­nuo do lábio inferior e do queixo.

As duas eram igualmente altas e fortes; olharam por cima de mim com ar ameaçador durante longo tempo. Dom Juan nada fez para quebrar aquele olhar fixo. A mulher mais velha fez um sinal com a cabeça, e Dom Juan me disse que seu nome era Zuleica e que ela era uma sonhadora. A mulher que abrira a porta chamava-se Zoila, e era uma espreitadora.

Zuleica virou-se para mim e, numa voz de papagaio, perguntou se era verdade que eu nunca tinha visto uma vagina. Dom Juan não conseguiu manter a compostura e começou a rir. Com um gesto, fiz um sinal para ele como que dizendo que não sabia o que dizer. Ele cochichou no meu ouvido que seria melhor dizer que não; se não fizesse isso devia me preparar para descrever uma vagina, pois seria a próxima coisa que Zuleica exigiria que eu fizesse.

Respondi que não, e Zuleica disse que tinha pena de mim. Depois mandou Zoila me mostrar a sua vagina. Zoila deitou-se de costas debaixo da lâmpada e abriu as pernas.

Dom Juan ria e tossia. Implorei a ele que me tirasse daquela casa de loucos. Ele cochichou de novo que era bom que eu desse uma boa olhada e ficasse atento e interessado, pois se não fizesse isso teria de ficar lá até o final dos séculos.

Depois do meu exame cuidadoso e atento, Zuleica disse que dali por diante eu podia me gabar de ser um grande conhecedor, e que se me deparasse outra vez com uma mulher sem calcinhas não seria tão grosseiro e obsceno a ponto de deixar meus olhos pularem da órbita, pois agora já sabia como era uma vagina.

Zuleica levou-nos para o pátio muito quieta, e sussurrou que havia uma pessoa lá para se encontrar comigo. O pátio estava negro, e eu mal conseguia ver a silhueta dos outros. Então vi o perfil escuro de um homem a uma pequena distância de mim. Meu corpo sacudiu-se involuntariamente.

Dom Juan falou com o homem em voz muito baixa, dizendo que tinha me trazido para conhecê-lo, e disse o meu nome. Depois de um instante de silêncio, disse-me que o nome do homem era Silvio Manuel, e que ele era o guerreiro das trevas e o líder do grupo de guerreiros. Então Silvio Manuel falou comigo. Achei que ele devia ter um problema de fala — sua voz era abafada e as palavras saíam como se ele estivesse tendo uma crise de tosse.

Ordenou-me que chegasse mais perto. Quando tentei me aproxi­mar ele recuou, como se estivesse boiando. Levou-me para um canto do hall ainda mais escuro, andando, ao que parecia, de costas e sem fazer barulho algum. Murmurou alguma coisa que não consegui entender Eu queria falar, mas minha garganta estava seca e coçando. Ele repetiu a coisa duas ou três vezes até que eu me dei conta de que ele ordenava que eu me despisse. Havia qualquer coisa de poderoso na sua voz e na escuridão que o rodeava. Fui incapaz de desobedecer. Tirei minhas roupas e fiquei absolutamente nu, tremen­do de frio e de medo.

Estava tão escuro que eu não podia ver se Dom Juan e as duas mulheres estavam por ali. Ouvi um barulhinho suave e prolongado de uma fonte a alguns metros de onde estava, e depois senti uma brisa fresca. Percebi que Silvio Manuel exalava seu hálito por todo o meu corpo.

Depois me pediu para sentar em cima das minhas roupas e olhar para um ponto brilhante, facilmente visível na escuridão, ponto esse que parecia irradiar luz fraca de âmbar. Olhei para o ponto durante um longo tempo, que me pareceu horas, até que de repente percebi que o ponto de brilho era o olho esquerdo de Silvio Manuel. Pude então delinear o contorno de todo o seu rosto e seu corpo. O hall não era tão escuro como parecia. Silvio Manuel adiantou-se para mim e me ajudou a levantar. Ver na escuridão com tanta nitidez me deixou fascinado. Nem me importei de estar nu ou de estar sendo observado pelas mulheres, como soube depois. Aparentemente elas também podiam ver no escuro e olharam fixo para mim. Tive von­tade de vestir as calças, mas Zoila arrancou-as da minha mão.

As duas mulheres e Silvio Manuel olharam para mim por longo tempo. Depois Dom Juan apareceu não sei de onde, me passou meus sapatos, e Zoila nos levou por um corredor que dava para um pátio interno, cheio de árvores. Consegui delinear a silhueta escura de uma mulher de pé no meio do pátio. Dom Juan falou com ela e ela murmurou alguma coisa em resposta. Ele me disse que ela era uma mulher do sul, que seu nome era Marta, e que era a mensageira das duas mulheres do oeste. Marta disse que podia apostar como eu nunca tinha sido apresentado nu a uma mulher; que o procedimento normal é travar conhecimento e depois se despir. Disse isso e riu alto. Sua risada era tão agradável, tão clara e jovial, que fiquei arrepiado; ecoou por toda a casa, ampliada pela escuridão e pelo silêncio. Olhei para Dom Juan pedindo apoio. Ele tinha ido embora e Silvio Manuel também. Eu estava sozinho com as três mulheres. Fiquei muito nervoso e perguntei a Marta se ela sabia onde Dom Juan tinha ido. Naquele exato instante, alguém puxou a pele debaixo do meu braço e eu gritei de dor. Sabia que era Silvio Manuel. Ele me levantou como se eu não pesasse nada e sacudiu meus sapatos dos pés. Depois me enfiou de pé numa banheira de água gelada, que che­gava até os joelhos.

Fiquei na banheira por muito tempo enquanto todos eles me examinavam. Então Silvio Manuel me levantou de novo e me colocou junto dos sapatos, que alguém tinha posto ao lado da banheira.

Don Juan apareceu outra vez de não sei onde e me passou minhas roupas. Murmurou que eu as vestisse e ficasse um pouco mais lá para ser delicado. Marta me deu uma toalha para eu me secar. Olhei à volta, procurando as outras mulheres e Silvio Manuel, mas eles não estavam à vista.

Marta, Dom Juan e eu ficamos no escuro conversando durante algum tempo. Ela parecia estar falando basicamente com Dom Juan, mas eu achei que sua platéia real era eu. Esperei que Dom Juan me desse uma indireta para sairmos, mas ele parecia estar gostando da conversa divertida de Marta. Ela disse que Zoila e Zuleica tinham chegado ao auge da loucura aquele dia. Depois acrescentou, para me consolar, que elas eram extremamente racionais a maior parte do tempo.

Como se estivesse revelando um segredo, Marta nos disse que o cabelo de Zoila estava tão despenteado porque pelo menos um terço dele era de Zuleica. O que acontecera era que as duas tinham estado num momento de extrema camaradagem e estavam ajudando uma à outra a arrumar o cabelo. Zuleica trançou o cabelo de Zoila, como fazia centenas de vezes, só que, por estar descontrolada, tinha trançado partes do seu próprio cabelo com o cabelo de Zoila. Marta disse que quando elas se levantaram da cadeira houve uma confusão incrível. Ela foi acudi-las, mas na hora em que entrou na sala Zuleica tinha tomado pé da situação e já que estava mais lúcida que Zoila naquele dia decidiu cortar a parte do cabelo de Zoila que estava presa no dela. Ficou confusa com a desordem que se seguiu e acabou cortando o seu próprio cabelo.

Dom Juan ria como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Eu ouvia explosões de riso como se fosse uma tosse suave vinda da escuridão do outro lado do pátio.

Marta acrescentou que tinha tido de improvisar um coque para Zuleica até seu cabelo crescer novamente.

Eu ri com Dom Juan. Marta era realmente engraçada. As outras duas mulheres eram horríveis; davam-me sensação de náusea. Marta, ao contrário, parecia um exemplo de calma e tranqüilidade. Eu não podia ver as feições dela, mas imaginei que fosse muito bonita. O som da sua voz era impressionante.

Com muita delicadeza ela perguntou a Dom Juan se eu aceitaria alguma coisa de comer. Ele respondeu que eu não tinha me dado bem com Zuleica e Zoila e que provavelmente me sentiria mal do estômago. Marta me assegurou que as duas mulheres tinham ido embora e me levou pelo braço por um hall mais escuro ainda, até uma cozinha bem iluminada. O contraste era grande demais para meus olhos. Fiquei na porta tentando me acostumar à luz.

A cozinha tinha um teto muito alto e era bastante moderna e arrumada. Sentamos numa espécie de copa. Marta era jovem e muito forte, tinha um corpo rechonchudo e voluptuoso, rosto redondo, nariz e boca pequenos. Seu cabelo preto estava trançado e enrolado em volta da cabeça.

Achei que ela devia estar tão curiosa em me examinar como eu estava em olhar para ela. Sentamos, comemos e conversamos durante horas. Eu estava fascinado por ela. Ela era uma mulher inculta mas me deixou embevecido com o seu papo. Contou-nos detalhadamente as coisas absurdas que Zoila e Zuleica faziam quando ficavam enlouquecidas.

Quando fomos embora Dom Juan expressou sua admiração por Mana. Disse que ela era talvez o melhor exemplo que ele conhecia de como a determinação pode atingir um ser humano. Sem nenhuma educação e preparo, a não ser uma intenção inflexível, Marta tinha se encarregado da tarefa mais árdua possível, tomar conta de Zoila, Zuleica e Silvio Manuel.

Perguntei a Dom Juan por que Silvio Manuel tinha se recusado a ser olhado por mim na luz. Ele respondeu que Silvio Manuel era um elemento das trevas, e que eu teria inúmeras oportunidades de vê-lo. No nosso primeiro encontro, contudo, era absolutamente neces­sário que ele se mantivesse nos limites do seu poder, na escuridão da noite. Silvio Manuel e as duas mulheres viviam juntos porque eram um conjunto de formidáveis sonhadores.

Dom Juan me aconselhou a não fazer julgamentos apressados sobre as mulheres do oeste. Eu as tinha conhecido numa hora em que estavam fora de controle, mas sua falta de controle se dava apenas num comportamento superficial. Elas tinham um cerne interior que não se alterava; desse modo, mesmo nas horas das piores loucuras, eram capazes de rir de suas próprias aberrações como se fosse uma atuação de outra pessoa.

O caso de Silvio Manuel era diferente. Ele não estava de forma alguma desorientado; na verdade, era sua sobriedade profunda que lhe permitia lidar tão bem com aquelas mulheres, pois ele e elas eram os extremos opostos. Dom Juan falou que Silvio Manuel tinha nascido daquele jeito e que todos à sua volta percebiam a diferença. Até mesmo seu benfeitor, que era severo e liberal com todos, dedica­va muita atenção a Silvio Manuel. Dom Juan levou anos para com­preender a razão dessa preferência. Devido a alguma coisa inexplicá­vel em sua natureza, uma vez Silvio Manuel entrou na conscientiza­ção do lado esquerdo e nunca saiu dela. Sua propensão a permanecer num estado de alta conscientização, ao lado da bela liderança do seu benfeitor, permitiu que ele chegasse antes de qualquer outro à conclu­são de que o regulamento é um mapa e que há de fato outro tipo de conscientização, e também levou-o primeiro à passagem real, àquele outro mundo de conscientização. Falou que Silvio Manuel, de uma forma muito impecável, equilibrava suas vantagens excessivas, pon­do-as a serviço do objetivo comum deles. Tornou-se a força do silêncio por trás de Dom Juan.

Meu último encontro introdutório com os guerreiros de Dom Juan foi com o norte. Ele me levou à cidade de Guadalajara e disse que nosso encontro teria de ser ao meio-dia, pois o norte era a metade do dia. Saímos do hotel por volta das 11 horas e demos uma volta pelo centro da cidade. Tivemos de andar pouco para chegar até lá.

Eu ia sem prestar atenção por onde passava, preocupado com o encontro, e dei de cabeça com uma senhora que saía rapidamente de uma loja. Ela carregava embrulhos, que se espalharam por todo lado no chão. Eu me desculpei e comecei a ajudá-la a catar os embru­lhos. Dom Juan disse para eu me apressar, senão iríamos chegar tarde. A senhora parecia atordoada. Eu segurei o seu braço. Ela era muito esguia, alta, por volta dos sessenta anos, vestida com muita elegância. Parecia ser uma senhora de bom nível social. Foi extremamente gentil e assumiu a culpa, dizendo que estava distraída procurando o seu empregado. Perguntou se eu podia ajudá-la a localizá-lo no meio da multidão. Eu me virei para Dom Juan e ele me disse que o mínimo que eu podia fazer, depois de quase matar a senhora, era ajudá-la.

Levei os embrulhos dela e voltamos à loja. A uma pequena distância vi um índio com ar desolado, parecendo completamente deslocado. A senhora chamou-o e ele veio para o seu lado como um cachorrinho, só faltando lamber a mão dela.

Dom Juan esperava por nós do lado de fora da loja. Explicou para a senhora que estávamos com pressa e depois disse a ela como eu me chamava. A senhora sorriu graciosamente e apertou minha mão. Achei que devia ter sido maravilhosa quando era jovem, pois ainda era bonita e atraente.

Dom Juan virou-se para mim abruptamente e disse que o nome dela era Nelida, que ela era do norte e que era uma sonhadora. Depois me fez olhar para o empregado e disse que seu nome era Genaro Flores, e que ele era o homem de ação, o guerreiro que agia no grupo. Minha surpresa foi total. Os três riram muito; quanto mais assustado eu parecia mais eles se divertiam.

Dom Genaro deu os embrulhos a um bando de crianças, dizendo-lhes que a senhora gentil que estava falando, a patroa dele, tinha comprado aquelas coisas para eles; era a sua boa ação do dia. Depois caminhamos em silêncio metade de um quarteirão. Eu estava com a língua presa. De repente Nelida apontou para uma loja e nos pediu para esperar só um instante pois tinha de buscar uma caixa de meias de náilon que estavam guardadas lá para ela. Olhou para mim, sorriu com seus olhos brilhantes, e me disse que, deixando de lado a brinca­deira, feiticeira ou não ela tinha de usar meias de náilon c calcinhas de renda. Dom Juan e Dom Genaro riram como dois idiotas. Fiquei olhando para Nelida porque não tinha outra coisa a fazer. Havia alguma coisa nela extremamente terrena e ao mesmo tempo quase etérea.

Ela disse, brincando, que Dom Juan cuidasse de mim porque eu estava a ponto de desmaiar. Depois pediu com gentileza a Dom Genaro para dar uma carreira lá e buscar sua encomenda com um certo vendedor. Quando ele entrou, Nelida pareceu mudar de idéia e cha­mou-o de volta, mas ele aparentemente não a ouviu e desapareceu dentro da loja. Ela desculpou-se e correu atrás dele.

Dom Juan apertou minhas costas para me fazer sair do meu tumulto. Disse que eu iria encontrar a outra mulher do norte, chama­da Florinda, sozinha da próxima vez, pois ela seria meu elo com um outro ciclo, um outro estado de espírito. Descreveu Florinda como um papel-carbono de Nelida, ou vice-versa.

Observei que Nelida era tão sofisticada e elegante que podia imaginá-la numa revista de modas. O fato de ela ser bonita e loura. talvez de origem francesa ou do norte da Itália, surpreendeu-me. Embora Vicente também não fosse índio, sua aparência rural fazia dele um exemplo menos gritante. Perguntei a Dom Juan por que só havia índios no mundo dele. Ele disse que era o poder que escolhia os guerreiros de um grupo do nagual, e que era impossível conhecer seus desígnios.

Esperamos em frente da loja cerca de meia hora. Dom Juan parecia estar ficando impaciente e me pediu para entrar e dizer a eles que se apressassem. Eu entrei. Não era um lugar grande e não havia porta no fundo, entretanto eles não estavam à vista. Perguntei aos empregados mas eles não souberem dizer nada.

Fui até Dom Juan e exigi saber o que tinha acontecido. Ele disse que ou eles tinham desaparecido no ar ou tinham se esgueirado para fora enquanto ele estava estalando minhas costas.

Disse com raiva que a maioria das pessoas era trapaceira. Ele riu até as lágrimas rolarem do seu rosto. Disse que eu era o trouxa ideal. Minha auto-importância fazia de mim um assunto divertido. Ele ria tanto da minha irritação que teve de se encostar numa parede.

 

La Gorda me fez um relato do seu primeiro encontro com os membros do grupo de Dom Juan. Sua versão diferia só em conteúdo; a forma era a mesma. Os guerreiros talvez fossem um pouco mais violentos com ela, mas ela tomou isso como uma tentativa deles de sacudi-la da sua preguiça, e também como uma reação natural ao que ela considerava ser sua personalidade feia.

Quando revimos o mundo de Don. Juan, pudemos ver que ele consistia em quatro pares independentes de irmãos ou parentes próxi­mas, que trabalhavam e viviam juntas; três homens da idade de Dom Juan e muito íntimos dele; um grupo de dois homens mais moços, os mensageiros Emilito e Juan Tuma; e finalmente duas mulheres mais moças, do sul, que pareciam ser aparentadas, Marta e Teresa. Eram dispostos em quatro casas diferentes, localizadas longe umas das outras, em regiões diferentes do México. A mais importante delas era formada pelas duas mulheres do oeste, Zuleica e Zoila, Silvio Manuel e a mensageira Marta. A seguinte em importância era com­posta das mulheres do sul, Cecília e Delia, o mensageiro de Dom Juan, Emilito, e a mensageira Teresa. A outra casa era formada pelas mulheres do leste, Carmela e Hermelinda, Vicente, e o mensageiro Juan Tuma; e a última, pelas mulheres do norte, Nelida e Florinda, e Dom Genaro.

Segundo Dom Juan, seu mundo não tinha a harmonia e o equilí­brio do mundo de seu benfeitor. As únicas duas mulheres que pareciam gêmeas idênticas, por exemplo, eram as guerreiras do norte, Nelida e Florinda — embora, como me disse Nelida uma vez em conversa, elas fossem tão idênticas que tinham até mesmo tipo sangüíneo igual.

Para mim, uma das surpresas mais agradáveis de nossa interação foi a transformação de Zuleica e Zoila, que tinham me parecido tão repulsivas. Elas se transformaram, como disse Dom Juan, nas guerrei­ras mais sóbrias e dedicadas possíveis. Eu não podia acreditai nos meus olhos quando as vi novamente. A crise de loucura tinha passado e elas pareciam duas senhoras mexicanas bem-vestidas, altas, morenas e musculosas, de olhos escuros e brilhantes como dois pedaços de rocha obsidiana preta e luzidia. Riram e brincaram comigo sobre o que tinha acontecido na noite do nosso primeiro encontro, como se outras pessoas e não elas tivessem estada lá. Eu podia entender bem a confusão de Dom Juan com as guerreiras do oeste do grupo de seu benfeitor. Era impassível para mim aceitar que Zuleica e Zoila pudessem se transformar naquelas criaturas repulsivas e desagradáveis que eu tinha conhecido. Presenciei a metamorfose delas várias vezes, mas nunca mais pude julgá-las com tanta severidade quanta no nosso primeiro encontro. Mais do que tudo, seus absurdos me faziam ficar triste.

Mas a maior surpresa para mim foi Silvio Manuel. Na escuridão do nosso primeiro encontro, imaginei que ele fosse um homem impo­nente, um gigante de poder. Na verdade ele era pequeno, mas não de ossatura pequena. Seu corpo parecia o corpo de um jóquei — pequeno e bem proporcionado. Para mim ele podia ser um ginasta. Seu controle físico era tão notável que ele podia inchar como um sapo até chegar ao dobro do seu tamanho, contraindo todos os músculos do seu corpo. Costumava dar demonstrações incríveis de como podia deslocar as juntas e recolocá-las no lugar sem nenhum ar evidente de dor. Quando eu olhava para Silvio Manuel sempre tinha um sentimento estranho e profundo de medo. Para mim ele parecia um ser de outra era. Era moreno-claro como uma estátua do bronze; suas feições eram fortes; nariz aquilino, lábios cheios e bem separados e olhos puxados, fazendo com que parecesse uma figura estilizada de um afresco dos Mayas. Era amigável e cordial durante o dia, mas assim que o sol se punha tornava-se impenetrável. Sua voz mudava. Ia se sentar num canto escuro e deixava a escuridão tornar canta dele. Tudo o que se via dele era seu olho esquerdo, que permanecia aberto e adquiria um brilho estranho, parecido aos olhos de um felino.

Um assunto secundário que surgiu no curso de nossa interação com os guerreiros de Dom Juan foi o da loucura controlada. Dom Juan me deu uma explicação sucinta uma vez quando discutia as duas categorias nas quais todas as mulheres guerreiras eram necessaria­mente divididas, as sonhadoras e as espreitadoras. Disse que todos os membros do seu grupo sonhavam e espreitavam como ações habituais de suas vidas diárias, mas que as mulheres que formavam o planeta das sonhadoras e o planeta das espreitadoras eram as grandes autori­dades nas suas respectivas atividades.

As espreitadoras eram as que recebiam o impacto do mundo diário; as gerentes de negócios, as que lidavam com as pessoas. Tudo que se relacionava ao mundo de assuntos comuns passava por elas. As espreitadoras eram praticantes da loucura controlada, assim como as sonhadoras eram praticantes do sonho. Em outras palavras, a loucura controlada é a base da espreita, e os sonhos são a base do sonhar. Dom Juan disse que, de um modo geral, a maior realização de um guerreiro na segunda atenção era sonhar, e na primeira aten­ção, espreitar.

Eu tinha compreendido mal o que os guerreiros de Dom Juan tinham feito comigo em nossos primeiros encontros. Tornei as atitudes deles como atos de trapaça — e essa ainda seria minha impressão hoje Se não fosse a idéia da loucura controlada. Dom Juan falou que as suas atitudes comigo tinham sido lições de mestre em espreita. Disse-me que a arte da espreita era o que seu benfeitor tinha lhe ensinado antes de qualquer outra coisa. A fim de sobreviver entre os guerreiros do seu benfeitor ele tivera de aprender aquela arte rapida­mente. No meu caso, disse, já que eu não tive de me bater por mim mesmo com os seus guerreiros, tive de aprender a sonhar primeiro. Quando chegava o momento adequado, Florinda saía para me guiar nas complexidades de espreitar. Ninguém mais podia falar deliberada­mente comigo sobre isso; podiam apenas me dar demonstrações dire­tas, como fizeram em nossos primeiros encontros.

Dom Juan explicou longamente que Florinda era uma das melho­res praticantes da espreita por ter sido treinada em toda a sua complexidade pelo seu benfeitor e suas quatro guerreiras espreitadoras. Florinda foi a primeira guerreira a chegar ao mundo de Dom Juan, e por isso ela era minha guia pessoal — não só na arte da espreita, mas também no mistério da terceira atenção, se eu algum dia chegasse lá. Dom Juan não fez declarações sobre isso. Disse que eu teria de esperar até estar pronto, primeiro para aprender a espreitar e depois para entrar na terceira atenção.

Falou que seu benfeitor tinha concedido tempo e cuidado espe­ciais para ele e seus guerreiros em relação a tudo que pertencia ao aperfeiçoamento da arte de espreitar. Usava técnicas complexas para criar um contexto apropriado para uma contrapartida entre os dita­mes do regulamento e o comportamento dos guerreiros no seu mundo diário, quando eles interagiam com as pessoas. Acreditava ser essa a forma de convencê-los de que, na ausência da auto-importância, o único modo de um guerreiro lidar com o meio social era em termos de loucura controlada.

Ao longo do desenvolvimento de suas técnicas, o benfeitor de Dom Juan lançava as ações das pessoas e as ações dos guerreiros contra as exigências do regulamento, e então se retirava e deixava o drama natural se desenrolar por si próprio. A loucura das pessoas tomava a frente por algum tempo e arrastava os guerreiros consigo, como parece ser o curso natural das coisas, e só se recompunha no final, com os desígnios mais abrangentes do regulamento.

Dom Juan nos disse que a princípio ele se ressentira do controle do seu benfeitor sobre os participantes. Chegou a dizer isso na cara dele, mas ele não se perturbou. Argumentou que o controle era mera­mente uma ilusão criada pela Águia. Ele era apenas um guerreiro impecável, e suas ações eram uma humilde tentativa de refletir a Águia.

Dom Juan disse que a força com a qual o seu benfeitor desempe­nhava seus desígnios originava-se de seu conhecimento de que a Águia é real e final, e que o que as pessoas fazem é de extrema lou­cura. Os dois juntos deram origem à loucura controlada, que o ben­feitor de Dom Juan descrevia como a única ponte entre a loucura das pessoas e a finalidade dos ditames da Águia.

 

                     A Mulher Nagual

As oito observadora do grupo de seu benfeitor tinham procurado as configurações distintas de luminosidade, não tendo tido qualquer dificuldade em encontrar os tipos apropriados de guerreiros e guer­reiras para o grupo de Dom Juan. Seu benfeitor, contudo, não permi­tiu que essas observadoras fizessem coisa alguma para reunir os guerreiros encontrados. Ficou a cargo de Dom Juan aplicar os princí­pios de espreita e garanti-los.

Dom Juan disse que quando ficou encarregado de limpar as mulheres do oeste, também foi entregue à orientação da mulher do norte, que era comparável a Florinda, a espreitadora número um que ensinara a Dom Juan os princípios daquela arte. Ela e seu benfeitor lhe deram os meios reais de garantir os três guerreiros, o mensageiro e as quatro espreitadoras que tinham sido encontradas para seu grupo.

O primeiro guerreiro a aparecer foi Vicente, Dom Juan não tinha o domínio suficiente da espreita para poder convocá-lo. Seu benfeitor e a espreitadora do norte tiveram de fazer a maior parte do trabalho. Depois vieram Silvio Manuel, Dom Genaro e finalmente Emilito, o mensageiro.

Florinda foi a primeira guerreira. Foi seguida de Zoila, Delia e depois Hermelinda. Dom Juan disse que seu benfeitor tinha insistido sem cessar para que eles lidassem com o mundo exclusivamente em termos de loucura controlada. O resultado final foi um grupo estu­pendo de praticantes, que pensavam e executavam os esquemas mais complexos.

Quando todos tinham adquirido um grau de eficiência na arte de espreita, seu benfeitor achou que era hora de encontrar a mulher nagual para eles. Fiel a seu método de ajudar a todos a ajudarem a si próprios, esperou para trazê-la ao mundo deles quando todos fossem peritos na espreita e quando Dom Juan aprendesse a ver. Embora Dom Juan se queixasse enormemente do tempo desperdiçado na espera, reconheceu que o esforço reunido deles em garanti-la criara um laço mais. forte entre todos, revitalizando o compromisso da busca de liberdade.

Seu benfeitor começou a desenvolver sua estratégia de atrair a mulher nagual tornando-se de uma hora para outra um católico devo­to. Exigiu que Dom Juan, sendo o herdeiro do seu conhecimento, se comportasse como seu filho e fosse à igreja com ele. Arrastava-o para a missa todos os dias. Dom Juan disse que seu benfeitor, que era muito charmoso e desembaraçado, apresentava-o a todos na igreja como seu filho, mestre em cuidar de ossos quebrados.

Dom Juan, que era pagão naquela época, ficava mortificado quando se encontrava em situações sociais em que tinha de falar e contar a sua própria vida. Só se conformava por saber que seu benfei­tor tinha algum motivo por trás daquilo para fazer o que estava fazendo. Observou-o bem para deduzir quais seriam suas razões. As atitudes de seu benfeitor eram consistentes e pareciam de boa fé. Como católico exemplar, ganhou a confiança de inúmeras pessoas, especialmente do padre da paróquia, que o tinha em alta estima, considerando-o um amigo e confidente. Dom Juan não podia imagi­nar o que ele estava tramando. Achou que podia ter até mesmo se tornado um católico sincero ou ficado louco. Ainda não tinha enten­dido que um guerreiro nunca perde o juízo, em nenhuma circuns­tância.

A repulsa de Dom Juan pela igreja desapareceu quando seu benfeitor começou a apresentá-lo às filhas das pessoas com quem se dava. Ele gostou daquilo, embora se sentisse pouco à vontade. Achou que seu benfeitor estava ajudando-o a exercitar sua língua. Ele não era nem desembaraçado nem charmoso, e seu benfeitor tinha dito que um nagual tinha de ter, por força, essas duas características.

Num domingo, durante a missa, depois de quase um ano de freqüência diária. Dom Juan descobriu a razão real deles irem à igreja. Estava ajoelhado ao lado de uma moça chamada Olinda, filha de um dos conhecidos do seu benfeitor. Virou-se para trocar olhares com ela, o que se tornara hábito entre os dois, depois de meses de contato diário. Seus olhos se encontraram e de repente Dom Juan viu que ela era um ser luminoso — e então viu sua duplicidade. Olinda era uma mulher duplicada. Seu benfeitor sabia disso todo o tempo, e escolhera o caminho mais difícil para pôr Dom Juan em contato com ela. Dom Juan confessou-nos que o momento foi avassa­lador para ele.

Seu benfeitor sabia que ele tinha visto. Sua missão de reunir os dois seres duplicados tinha se completado com sucesso e impeca­bilidade. Levantou-se, seus olhos varreram todos os cantos da igreja, e depois saiu sem dar ao menos uma olhada para trás. Não havia nada mais a fazer lá.

Dom Juan disse que quando seu benfeitor saiu no meio da missa todas as cabeças se viraram. Teve vontade de segui-lo, mas Olinda apertou sua mão corajosamente e puxou-o para trás. Ele soube então que o poder de ver não tinha sido apenas dele. Alguma coisa tinha se passado com os dois e eles estavam petrificados. Dom Juan perce­beu de repente que não só a missa tinha terminado como eles estavam já fora da igreja. Seu benfeitor tentava acalmar a mãe de Olinda, que estava enfurecida e envergonhada com a demonstração de afeição inesperada e inadmissível.

Dom Juan ficou perdido, sem saber o que fazer. Sabia que era ele quem tinha de planejar alguma coisa. Ele tinha os recursos, mas a importância do acontecimento fez com que perdesse a confiança na sua habilidade. Ignorou seu treino de espreitador e ficou perdido no dilema intelectual de tratar ou não Olinda como um exemplo de loucura controlada.

Seu benfeitor lhe disse que não podia ajudá-lo. Seu dever fora apenas juntar os dois, e era aí que sua responsabilidade terminava. Ele é quem tinha de tomar as providências necessárias para garanti-la. Sugeriu que ele pensasse em se casar com ela, se fosse preciso. Só depois de ela vir a ele por vontade própria é que poderia ajudar Dom Juan ao intervir diretamente como nagual.

Dom Juan tentou fazer uma corte formal. Não foi bem recebido pelos pais dela, que não podiam conceber que alguém de classe social diferente fosse um pretendente da sua filha. Olinda não era índia; sua família era de classe média, morava na cidade, e tinha um peque­no negócio. O pai tinha outros planos para a filha. Ameaçou mandá-la embora se Dom Juan insistisse em se casar com ela.

Dom Juan falou que os seres duplicados, especialmente as mulhe­res, são incrivelmente conservadores e até tímidos. Olinda não fugia à regra. Depois de sua alegria inicial na igreja, foi tomada de cuidado e de medo. Suas próprias reações a assustavam.

Como manobra estratégica, seu benfeitor fez Dom Juan recuar, para fazer parecer que concordava com o pai, que não aprovava a moça — era isso que pensavam todos que tinham presenciado o incidente na igreja. Comentavam que a demonstração deles tinha desagradado tanto ao seu pai, que ele, católico tão devoto, nunca mais voltara à igreja.

Seu benfeitor lhe disse que um guerreiro nunca fica assediado. Ficar assediado implica que se tenha posses pessoais que possam ser bloqueadas. Um guerreiro não tem nada no mundo a não ser sua impecabilidade, e a impecabilidade não pode ser ameaçada. Entretanto, numa batalha pela vida, como a que Dom Juan estava passan­do para garantir a mulher nagual, um guerreiro devia usar estrategi­camente todos os meios disponíveis.

Portanto, Dom Juan resolveu utilizar qualquer parte do seu conhecimento de espreitador para conseguir a moça. Com aquela finalidade contratou Silvio Manuel para usar suas artes de feitiçaria, que mesmo naquele estágio inicial eram fantásticas, para raptar a moça. Silvio Manuel e Genaro, que era um verdadeiro louco, entra­ram na casa da moça disfarçados em lavadeiras. Era meio-dia c todos em casa estavam ocupados preparando a comida para um grupo grande de parentes e amigos que iam almoçar. Estavam dando uma festa informal de despedida para Olinda. Silvio Manuel contava com a possibilidade das pessoas verem duas lavadeiras estranhas entrando com trouxas de roupa, e pensarem que elas faziam parte dos arranjos de partida de Olinda, não havendo assim qualquer suspeita. Dom Juan tinha dado de antemão todas as informações necessárias a Sílvio Manuel e Dom Genaro, relativas à rotina da casa. Disse-lhes que as lavadeiras normalmente carregavam as trouxas de roupa lavada para dentro de casa e deixavam-nas num quarto de guardados para serem passadas. Carregando uma trouxa grande, Silvio Manuel e Genaro foram diretamente ao quarto em que Olinda estava.

Dom Juan disse que Silvio Manuel chegou perto de Olinda e usou seus poderes hipnóticos para fazê-la desmaiar. Puseram-na num saco, enrolaram o saco nos lençóis da cama e saíram, deixando para trás a trouxa que tinham levado. Deram de cara com o pai dela na porta, mas ele nem ao menos olhou para eles.

O benfeitor de Dom Juan ficou muito desconcertado com a manobra dele. Ordenou a Dom Juan que levasse a moça de volta imediatamente. Era imperativo, disse ele, que a mulher duplicada fosse para a casa do benfeitor por vontade própria, talvez não com a idéia de se juntar a eles, mas pelo menos mostrando-se interessada.

Dom Juan achou que estava tudo perdido — a possibilidade de fazer contato com ela sem ser notado era muito pequena — mas Silvio Manuel descobriu uma solução. Propôs que deixassem as quatro mulheres do grupo de Dom Juan levarem a moça a uma estrada deserta, onde Dom Juan lhe iria dar socorro.

Silvio Manuel queria que as mulheres fingissem que a iriam seqüestrar. Num certo ponto da estrada alguém as veria e viria salvar a moça. O perseguidor as surpreenderia e elas largariam o saco, com uma certa violência para parecer convincente. O perseguidor seria, naturalmente, Dom Juan, que estaria milagrosamente naquelas proxi­midades no momento exato.

Silvio Manuel exigia uma ação convincente. Ordenou que as mulheres amordaçassem a moça, que àquela altura certamente estaria acordada c gritando dentro do saco, e então corressem vários quilô­metros carregando o saco. Disse-lhes para se esconderem do perse­guidor. Finalmente, depois de tentarem exaustivamente se esconder, deixariam cair o saco de tal modo que a moça pudesse assistir a uma luta feroz entre Dom Juan e as quatro mulheres. Silvio Manuel disse a elas que tudo teria de ser muito real Armou-as com umas varas e deu-lhes instruções para baterem em Dom Juan com convicção, antes de serem escorraçadas de lá.

Das mulheres, Zoila era a que mais facilmente se deixava levar pela histeria; assim que começaram a golpear Dom Juan, ela ficou possuída pelo papel que estava desempenhando e bateu tanto nele que arrancou sua pele das costas e dos ombros. Silvio Manuel teve de sair do seu esconderijo para lembrar-lhes que tudo era apenas um plano e que era hora de fugirem.

Dom Juan assim passou a ser o salvador e protetor de Olinda. Disse a ela que não podia levá-la de volta para casa porque tinha sido ofendido por sua família, mas que iria pedir a seu pai que a levasse.

Ela o ajudou a andar até a casa do seu benfeitor. Dom Juan disse que não teve de fingir estar machucado, pois estava sangrando profusamente e quase não pôde chegar até a porta. Quando Olinda contou ao benfeitor o que tinha acontecido ele teve tanta vontade de rir que precisou fingir que estava chorando.

Fizeram curativos em Dom Juan e depois foram para a cama. Olinda começou a explicar-lhe por que seu pai se opunha a ele, mas não chegou a terminar. O benfeitor de Dom Juan entrou no quarto e disse a ela que era evidente, pelo seu modo de andar, que os seqüestradores tinham machucado suas costas, e ofereceu-se para corrigir o mal antes que piorasse.

Olinda hesitou. O benfeitor de Dom Juan lembrou-lhe que os seqüestradores não tinham brincado — tinham quase matado seu filho, afinal de contas. Aquele comentário foi o suficiente; ela foi para o lado do benfeitor e deixou-o dar um soco sonoro na sua omoplata. Um estalo foi ouvido e Olinda entrou em estado de cons­cientização elevada. Ele expôs o regulamento para ela, e, como Dom Juan, ela aceitou-o por completo. Não houve dúvida nem hesitação.

A mulher nagual e Dom Juan encontraram integração e silêncio na companhia um do outro. Dom Juan disse que o sentimento que tinham um pelo outro não tinha nada a ver com afeição ou necessi­dade; era mais uma sensação física dos dois de que uma barreira sinistra tinha sido rompida dentro deles, e que eles eram um único e mesmo ser.

Dom Juan e sua mulher nagual, como dizia o regulamento, trabalharam juntos durante anos para encontrar o conjunto de quatro mulheres sonhadoras, que vieram a ser Nelida, Zuleica, Cecília e Carmela, e os três mensageiros, Juan Tuma, Teresa e Marta. Quando as encontraram foi outra ocasião em que a natureza pragmática do regulamento se tomou clara para Dom Juan: todos eles eram exata­mente o que o regulamento dizia que iriam ser. Seu advento introdu­ziu um novo ciclo para todos, inclusive para o benfeitor de Dom Juan e seu grupo. Para Dom Juan e seus guerreiros significava o cico do sonho, e para seu benfeitor e seu grupo significava um pe­ríodo de inigualável impecabilidade em seus atos.

Seu benfeitor explicou a Dom Juan que quando ele era jovem e fora levado pela primeira vez à idéia do regulamento como • um meio de liberdade, tinha se sentido exaltado, petrificado de alegria. Liberdade para ele era uma realidade iminente. Quando chegou a compreender a natureza do regulamento como um mapa, suas espe­ranças e otimismo se redobraram. Mais tarde, a sobriedade tomou conta da sua vida; quanto mais velho ficava, menos chance via de ele e seu grupo terem sucesso. Finalmente ficou convencido de que por mais que fizessem, as dificuldades eram muito grandes contra sua tênue conscientização humana de voarem livres um dia. Ficou em paz consigo próprio e com seu destino, e entregou-se à derrota. Disse à Águia, de dentro do seu mais profundo eu, que estava contente e orgulhoso de ter nutrido sua conscientização. A Águia recebeu isso bem.

Dom Juan nos disse que o mesmo estado de espírito espalhou-se pelos membros do grupo de seu benfeitor. A liberdade proposta no regulamento era considerada inatingível por eles. Tinham tido vislum­bres da força destruidora da Águia, e sentiram que não tinham nenhuma chance contra ela. Todos eles tinham concordado, entre­tanto, em viverem suas vidas impecavelmente pela única razão de serem impecáveis.

Dom Juan disse que seu benfeitor e seu grupo, apesar desse sentimento de impotência, ou talvez por causa desse sentimento, encontraram a liberdade na realidade. Entraram na terceira atenção — não como um grupo, entretanto, mas um a um. O fato de encon­trarem a passagem foi a corroboração final da verdade contida no regulamento. O último a deixar o mundo da conscientização da vida diária foi seu benfeitor. Ele cedeu ao regulamento e levou a mulher nagual de Dom Juan com ele. Quando os dois se dissolveram na conscientização total, Dom Juan e todos os seus guerreiros foram forçados a explodir de dentro — não pôde encontrar outro meio de descrever o sentimento ligado a ser forçado a esquecer tudo o que tinha presenciado no mundo do seu benfeitor.

Quem nunca esqueceu foi Silvio Manuel. Foi ele quem levou Dom Juan ao esforço exaustivo de juntar de novo os membros do seu grupo, que tinham ficado todos espalhados. Depois mergulhou-os na tarefa de encontrar a totalidade deles próprios. Levou anos para realizar as duas tarefas.

Dom Juan tinha discutido longamente o assunto do esquecimento, mas só em relação à grande dificuldade deles em se juntarem nova­mente e recomeçarem sem seu benfeitor. Nunca nos disse exatamente o que implicava esquecer. Àquele respeito ele era fiel aos ensina­mentos de seu benfeitor, só nos ajudando a nos ajudar. Só poucas vezes indicou, dramaticamente, um curso geral de ação para la Gorda e para mim. Treinou-nos a ver juntos e conseguiu nos mostrar que, embora os seres humanos pareçam ovos luminosos ao observador, a forma de ovo é um casulo externo, uma casca de luminosidade que encerra um núcleo muito intrigante, assustador e hipnótico, formado de círculos concêntricos de luminosidade amarelada, da cor da chama de uma vela. Durante nossa sessão final, ele nos fez ver pessoas dando voltas numa igreja. Era fim de tarde, quase escuro, e ainda assim as criaturas dentro de seus rígidos e luminosos casulos irradia­vam luz suficiente para tornar tudo em volta deles claro como cristal. A visão foi maravilhosa.

Dom Juan explicou que as cascas em forma de ovo que pareciam tão brilhantes para nós eram na realidade opacas. A luminosidade emanava do núcleo brilhante; a casca de fato diminuía sua radiosidade. Revelou-nos que a casca deve ser quebrada a fim de liberar aquele ser. Deve ser quebrada de dentro para fora no tempo certo, como as criaturas que saem do ovo quebram as cascas. Se não quebrarem, ficam sufocadas e morrem. Como as criaturas que saem da casca do ovo, não há meio do guerreiro quebrar a casca de sua luminosidade antes do tempo certo.

Dom Juan nos falou que perder a forma humana era o único meio de quebrar aquela casca, o único meio de liberar aquele núcleo luminoso assustador, o núcleo da conscientização, que é o alimento da Águia. Quebrar a casca significa lembrar-se do outro eu, e chegar à sua própria totalidade.

Dom Juan e seus guerreiros chegaram à totalidade deles próprios, e dirigiram-se à sua última tarefa, que era a de encontrar um novo par de seres duplicados. Dom Juan disse que achavam que seria uma coisa simples — tudo o mais tinha sido relativamente fácil para eles. Não tinham idéia de que a falta de esforço aparente de suas realiza­ções como guerreiros era conseqüência da maestria do seu benfeitor e de seu poder pessoal.

Sua busca de um novo par de seres duplicados foi infrutífera. Em toda sua procura, nunca depararam com uma mulher duplicada. Encontraram vários homens, mas eram todos bem situados, ocupa­dos, produtivos e tão satisfeitos com suas vidas que teria sido inútil se aproximarem deles. Não tinham de buscar um propósito para a vida, pois achavam que já o tinham encontrado.

Dom Juan disse que um dia percebeu que ele e seu grupo esta­vam ficando velhos, e que não parecia haver qualquer esperança de um dia realizarem sua tarefa. Aquela foi a primeira vez em que sentiram a pontada de desespero e impotência.

Silvio Manuel insistiu que eles deviam se resignar e viver impe­cavelmente sem esperança de encontrar a liberdade. Parecia plausível a Dom Juan que isso fosse na verdade a chave para tudo. A esse respeito ele se viu seguindo os passos do seu benfeitor. Chegou a aceitar que um pessimismo insuperável tomasse conta do guerreiro a uma certa época do seu caminho. Um senso de derrota, ou talvez, mais precisamente, um senso de nulidade tomasse conta dele quase que inesperadamente. Dom Juan disse que antes costumava rir das dúvidas do seu benfeitor e não conseguia acreditar que esse se preo­cupasse seriamente. Apesar dos protestos e advertências de Silvio Manuel, Dom Juan achava que era tudo um plano gigantesco feito para ensinar-lhes alguma coisa.

Não podia acreditar que as dúvidas de seu benfeitor fossem reais, nem podia acreditar que a resolução de seu benfeitor em viver impe­cavelmente sem a esperança de liberdade, fosse genuína. Quando finalmente entendeu que seu benfeitor, com toda sua seriedade, tinha se resignado à derrota, viu também que a resolução de um guerreiro de viver impecavelmente, apesar de tudo, não pode ser atingida como uma estratégia para assegurar sucesso. Dom Juan e seu grupo prova­ram essa verdade por eles próprios quando perceberam de fato que suas dificuldades eram incríveis. Disse que em tais momentos um treinamento da vida inteira ganha força e o guerreiro entra num estado de insuperável humildade; quando a verdadeira pobreza de seus recursos humanos torna-se inegável, o guerreiro não tem outro recurso senão dar um passo atrás e baixar a cabeça.

Dom Juan admirava-se de saber que essa idéia parecia não ter efeito nas guerreiras de um grupo; a confusão parecia deixá-las imperturbáveis. Notara isso no grupo do seu benfeitor: as mulheres nunca se preocupavam tanto com o seu destino como os homens. Pareciam simplesmente aquiescer ao julgamento do benfeitor de Dom Juan, e segui-lo sem mostrar sinais de desespero. Podiam se afligir a certo nível, mas ficavam indiferentes a isso. Tudo o que queriam era estar ocupadas. Era como se só aos homens fosse oferecido a liberdade e eles sentissem o impacto de uma contra-oferta.

Em seu próprio grupo Dom Juan observou o mesmo contraste. As mulheres concordavam prontamente quando ele dizia que seus recursos eram inadequados. Só podia concluir que as mulheres, embo­ra não mencionassem, nunca tinham acreditado que eles tivessem qualquer espécie de recursos. Não havia, conseqüentemente, nenhum modo delas se sentirem desapontadas ou abatidas ao descobrirem sua impotência — sempre a haviam aceitado.

Dom Juan nos disse que a razão da Águia exigir duas vezes mais guerreiras que guerreiros era precisamente pelo fato das mulheres terem um equilíbrio inerente a elas e os homens não. No momento crucial é o homem que fica histérico e comete suicídio quando julga que está tudo perdido. A mulher pode se matar por falta de direção e objetivo, mas não por derrota de um sistema ao qual pertença.

Depois que Dom Juan e seu grupo de guerreiros perderam as esperanças — ou melhor, como disse ele, depois que ele e os guerrei­ros homens chegaram ao fundo do poço e as mulheres encontraram meios adequados de mantê-los de bom humor — ele finalmente depa­rou com um homem duplicado. Esse homem era eu. Ele disse que já que ninguém no seu juízo normal vai se oferecer para um projeto tão absurdo como a luta pela liberdade, teve de seguir os ensina­mentos do seu benfeitor e, num estilo de verdadeiro espreitador, ir me buscar como buscara os membros do seu próprio grupo. Precisa­ria estar sozinho comigo num lugar onde pudesse aplicar uma pres­são física no meu corpo, e seria necessário que eu fosse lá pela própria vontade. Atraiu-me à sua casa com grande desenvoltura — mas, disse ele, assegurar o homem duplicado nunca é um grande problema. A dificuldade é encontrar um que esteja disponível.

Aquela primeira visita foi, do ponto de vista de minha conscien­tização diária, uma sessão sem conseqüência. Dom Juan foi muito charmoso e brincou comigo. Levou a conversa para assuntos como a fadiga do corpo, depois de longas horas guiando um carro, assunto esse que me pareceu bastante inconseqüente, por eu ser estudioso em antropologia. Depois fez um comentário acidental de que minhas costas pareciam estar fora de alinhamento, e sem dizer mais nada pôs a mão no meu peito, endireitou meu corpo e me deu um soco forte nas costas. Pegou-me tão distraído que eu desmaiei. Quando abri os olhos achei que ele tinha quebrado minha espinha, mas no fundo sabia que não era nada disso. Eu era outra pessoa e não a pessoa de sempre. Dali por diante, sempre que o via ele me fazia mudar minha conscientização do lado direito para o lado esquerdo, e então me revelava o regulamento.

Quase que imediatamente depois de me encontrar, encontrou também a mulher duplicada. Não me pôs em contato com ela através de um esquema, como fizera o seu benfeitor, mas fez um plano, tão eficiente e elaborado quanto o de seu benfeitor, pelo qual ele próprio atraía e garantia a mulher duplicada. Assumiu esse encargo porque acreditava que era dever do benfeitor garantir os dois seres duplicados imediatamente após os ter encontrado, e depois reuni-los como sócios de uma empresa inconcebível.

Ele nos disse que um dia, quando vivia no Arizona, foi a uma repartição pública preencher um formulário. A senhora que o atendeu disse-lhe para levar o formulário a uma funcionária do departamento ao lado, e sem olhar apontou para a esquerda. Dom Juan seguiu a direção do braço estendido e viu uma mulher duplicada sentada na mesa. Quando lhe levou o formulário percebeu que ela era muito mocinha. Ela lhe disse que não tinha nada a ver com formulário, mas, com pena do índio velho, ajudou-o a resolver o problema.

Eram necessários alguns documentos legais, documentos que Dom Juan tinha no bolso, mas ele fingiu não entender nada e pareceu estar desprotegido. Agiu como se uma organização burocrática fosse um enigma para ele. Não foi nada difícil demonstrar total ignorância, disse Dom Juan; tudo o que teve de fazer foi voltar ao que era antes quando tinha um estado normal de conscientização. Era sua intenção prolongar sua interação com a mocinha por mais que pudesse. Seu mentor lhe dissera, e ele próprio verificara isso em sua busca, que as mulheres duplicadas são muito raras. Seu mentor também o avisara que elas tinham recursos internos que as faziam muito voláteis. Dom Juan teve medo dela sumir, se não jogasse as cartas como devia. Aproveitou seu espírito de solidariedade para ganhar tempo. Criou mais demora, fingindo ter perdido os documentos e pedindo-lhe que os procurasse. Quase todos os dias levava um papel novo para ela. A mocinha os examinava e dizia que não era o papel necessário. Ficou tão tocada com a condição triste dele que chegou a se oferecer para pagar um advogado para lhe arranjar uma declaração juramen­tada em vez dos papéis.

 

Depois de três meses dessa manobra, Dom Juan achou que era hora de encontrar os documentos, Àquela altura ela tinha se acostumado com ele e quase que esperava vê-lo todos os dias. Dom Juan foi uma última vez expressar seus agradecimentos e se despedir. Disse a ela que gostaria de ter lhe dado um presente para mostrar seu agradecimento, mas que não tinha dinheiro nem mesmo para comer. Ela ficou comovida com a sinceridade dele e levou-o para almoçar. Quan­do estavam comendo ele brincou que um presente não tinha necessa­riamente de ser uma coisa comprada. Podia ser apenas uma coisa para ser olhada, uma coisa que trouxesse recordação, e não uma posse.

Ela ficou intrigada com as palavras dele. Dom Juan lembrou-lhe que ela tinha mostrado pena dos índios e de sua condição de pobreza. Perguntou se gostaria de ver os índios a uma luz diferente — não como pobres mas como artistas. Disse-lhe que conhecia um velho que era o último elemento de uma linha de dançarinos de poder. Garantiu-lhe que o homem dançaria para ela se ela pedisse, e prome­teu ainda que nunca na vida ela veria nada igual. Era uma coisa presenciada apenas pelos índios.

Ela ficou radiante com a idéia. Pegou-o depois do trabalho e foram os dois na direção das montanhas onde ele disse que os índios moravam. Dom Juan levou-a para a sua própria casa. Fez com que ela parasse o carro a uma certa distância e começaram a andar até chegar lá. Antes de chegarem à casa ele parou e desenhou uma linha com o pé na areia ressequida. Disse-lhe que a linha era um limite e insistiu que ela a atravessasse.

A própria mulher nagual me disse que até aquele ponto ela tinha ficado muito intrigada com a possibilidade de presenciar uma verda­deira dança indígena, mas quando o índio velho desenhou a linha no chão e chamou-a de limite, ela começou a hesitar. Depois ficou muito alarmada quando ele lhe disse que o limite era apenas para ela, e que uma vez atravessada a linha não havia meio de retornar.

O índio aparentemente viu sua consternação e tentou deixá-la à vontade. Gentilmente deu um tapinha no seu braço e garantiu-lhe que ela não sofreria nada enquanto ele estivesse perto. O limite podia ser explicado, disse ele, como uma forma de pagamento simbólico ao dançarino, pois ele não aceitava dinheiro. O ritual substituía dinheiro, e a condição do ritual era que ela atravessasse o limite por vontade própria.

O velho índio alegremente passou por cima da linha e lhe disse que para ele tudo aquilo era pura bobagem dos índios, mas que o dançarino, que os estava observando de dentro da casa, tinha de ser agradado se ela quisesse ver a dança.

A mulher nagual falou que subitamente ficou com tanto medo que não podia se mover nem para atravessar a linha. O velho índio fez um esforço para persuadi-la, dizendo que passar por cima da linha-limite beneficiava todo o corpo. Ao atravessá-la ele tinha não só se sentido mais moço como tinha realmente se tornado mais moço, tal era o poder da linha-limite. Para demonstrar esse ponto atravessou para o outro lado e imediatamente seus ombros caíram, os cantos da boca ficaram com uma prega e os olhos perderam o brilho. A mulher nagual não podia negar as diferenças produzidas pelo atravessar da linha.

Dom Juan reatravessou pela terceira vez. Respirou fundo, expan­dindo o peito, com movimentos rápidos e valentes. A mulher nagual disse que lhe veio à cabeça que ele poderia até ter melhorado sua possibilidade sexual. Seu carro estava longe demais para que ela corresse até lá. A única coisa que podia fazer era dizer a si própria que era uma boba de ter medo de um índio velho.

Então o velho fez um outro apelo à sua razão e ao seu senso de humor. Num tom de conspiração, como se estivesse revelando um segredo com relutância, disse-lhe que estava apenas fingindo ter rejuvenescido para agradar o dançarino, e que se ela não o ajudasse atravessando a linha ele iria desmaiar a qualquer instante pelo esfor­ço de andar com uma postura tão ereta. Andou para frente e para trás da linha para mostrar-lhe o imenso esforço que fazia com sua pantomima.

A mulher nagual disse que seus olhos de súplica revelavam a dor imposta ao seu corpo ao fingir juventude. Atravessou a linha para ajudá-lo e acabar com a coisa; o que queria era voltar para casa.

No momento em que atravessou a linha, Dom Juan deu um pulo fantástico e deslizou por cima do telhado da casa. A mulher nagual disse que ele voou como se fosse um imenso bumerangue. Quando aterrissou ao seu lado ela caiu de costas. Seu medo era maior que qualquer coisa que jamais sentira, mas seu entusiasmo de ter presen­ciado tal maravilha também foi imenso. Nem ao menos perguntou como ele conseguira tal façanha. Queria correr de volta para o carro e ir para casa.

O velho ajudou-a a se levantar e desculpou-se por lê-la enganada Na verdade, disse, era ele o dançarino e seu vôo por cima da casa era sua forma de dança. Perguntou se ela tinha prestado atenção na direção do vôo. A mulher nagual fez um círculo com a mão na dire­ção dos ponteiros do relógio. Ele deu uma palmadinha na cabeça dela paternalmente e lhe disse que era muito bom ela ser tão atenta. Depois falou que talvez ela tivesse machucado as costas quando caíra, e que não podia deixá-la ir embora sem se certificar de que ela estava bem. Esticou seus ombros, levantou seu queixo e a parte de trás da cabeça, como se estivesse levando-a a acertar a espinha. Depois deu um soco entre as suas omoplatas, tirando literalmente todo o ar dos seus pulmões. Por um instante ela não conseguiu respirar e desmaiou.

Quando voltou à consciência, estava dentro da casa. Seu nariz sangrava, os ouvidos zumbiam, a respiração estava acelerada, e os olhos não focalizavam bem. Ele lhe disse para respirar fundo oito vezes. Quanto mais ela respirava mais claras as coisas se tornavam. A uma certa altura, disse ela, o quarto inteiro ficou incandescente; tudo brilhava com uma luz âmbar. Ela ficou estupefata e não conse­guiu mais respirar fundo. A luz âmbar já era tão espessa que lembrava uma névoa. Depois a névoa transformou-se em teia de aranha âmbar. Finalmente desapareceu, mas o mundo manteve-se uniformemente âmbar por mais algum tempo.

Dom Juan começou a falar com ela. Levou-a para fora da casa e mostrou-lhe que o mundo era dividido em duas metades. O lado esquerdo era claro, mas o direito era oculto por uma névoa âmbar. Disse-lhe que era monstruoso pensar que o mundo é compreensível ou que nós próprios somos compreensíveis. Disse que o que ela percebia era um enigma, um mistério que só se podia aceitar com humildade e respeito.

Então revelou o regulamento a ela. A clareza da sua mente era tão intensa que ela compreendeu tudo o que ele disse. O regula­mento lhe pareceu apropriado e muito claro.

Ele lhe explicou que os dois lados de um ser humano são total­mente separados, e que é necessário muita disciplina e determinação para quebrar a separação e passar de um lado para o outro. Um ser duplicado apresenta uma grande vantagem: a condição de duplicidade permite movimentos relativamente fáceis entre os compartimentos do lado direito. A grande desvantagem da duplicidade é que em virtude de terem dois compartimentos esses seres são sedentários, conserva­dores, avessos à mudança.

Dom Juan disse a ela que sua intenção tinha sido fazê-la mudar do seu compartimento de extrema direita para o seu lado esquerda mais lúcido, mais aguçado, mas que ao invés disso, por alguma singularidade inexplicável, o soco que lhe dera tinha-a feito atravessar toda a sua duplicidade, do lado de extrema direita para o lado de extrema esquerda. Tentou por quatro vezes fazer com que ela voltasse a um estado normal de conscientização, mas tudo em vão. Seus socos a ajudaram, contudo, a perceber a parede de névoa à vontade. Embo­ra sem intenção, Dom Juan tinha tido razão ao dizer que a linha era um limite sem volta para ela. Uma vez atravessada, ela nunca retor­naria, como aconteceu com Silvio Manuel.

Quando Dom Juan pôs a mulher nagual face a face comigo, nenhum de nós dois sabia da existência do outro, mas ainda assim sentimos instantaneamente que já nos conhecíamos de alguma forma. Dom Juan sabia por experiência própria que o conforto que os seres duplicados sentem na companhia um do outro é indescritível e breve demais. Disse-nos que estávamos reunidos por forças incompreensí­veis à nossa razão, e que a única coisa que não tínhamos era tempo. Cada minuto podia ser o último; portanto, esse tempo tinha de ser vivido com o espírito.

Depois dele nos reunir, tudo o que lhe restava e a seus guerrei­ros era encontrar quatro espreitadoras, três guerreiros e um mensa­geiro homem para formar nosso grupo. Com aquela finalidade, Dom Juan encontrou Lydia, Josefina, la Gorda, Rosa, Benigno, Nestor, Pablito e o mensageiro Eligio. Cada um deles era uma réplica, de certa forma, dos membros do grupo de Dom Juan.

 

                       O Não fazer de Silvio Manuel

Dom Juan e seus guerreiros se retraíram para permitir que a mulher nagual e eu próprio tivéssemos oportunidade de determinar o regulamento — quer dizer, nutríssemos, realçássemos e liderásse­mos os oito guerreiros à liberdade. Tudo parecia perfeito, mas no entanto havia algo de errado. O primeiro conjunto de guerreiros que Dom Juan tinha encontrado eram sonhadoras, quando deviam ser espreitadoras. Ele não sabia como explicar essa anomalia. Podia apenas concluir que o poder tinha colocado essas mulheres no seu caminho de uma maneira que tornara impossível recusá-las.

Havia outra anomalia gritante, ainda mais frustrante para Dom Juan e seu grupo: três das mulheres e os três guerreiros eram incapa­zes de entrar num estado de elevada conscientização, a despeito dos esforços titânicos de Dom Juan. Eram fracos, fora de foco, e não conseguiam quebrar a separação, a membrana que dividia seus dois lados. O apelido deles era “os bêbados”, porque se arrastavam sem coordenação muscular. O mensageiro Eligio e la Gorda eram os únicos que tinham um grau extraordinário de conscientização, especialmente Eligio, que tinha igualdade de condições com qualquer um do grupo de Dom Juan.

As três moças viviam agrupadas e formavam uma unidade inse­parável, assim como os três homens. Grupos de três, quando o regula­mento prevê quatro, era ameaçador. O número três é um símbolo de dinâmica, movimento, mudança, e, acima de tudo, um símbolo de revitalização.

O regulamento não mais servia como um mapa. E ainda assim não era concebível que houvesse um erro. Dom Juan e seus guerrei­ros argumentaram que o poder não comete erros. Ponderaram a questão nos seus sonhos e visões. Imaginaram se teriam talvez sido apressados e simplesmente deixado de ver que as três mulheres e os três homens eram inadequados.

Dom Juan confessou-me que via duas questões relevantes. Uma era o problema pragmático de nossa presença entre eles. A outra era a questão da validade do regulamento. O benfeitor deles tinha-os guiado na certeza de que o regulamento encerrava tudo com que um guerreiro pudesse se preocupar. Ele não os tinha preparado para a eventualidade do regulamento poder se provar inaplicável.

La Gorda disse que as mulheres do grupo nunca tinham tido nenhum problema comigo; eram apenas os homens que se sentiam perdidos. Para os homens, era incompreensível e inaceitável que o regulamento fosse incongruente no meu caso. As mulheres, contudo, confiavam que mais cedo ou mais tarde fossem deparar com um ditame pertinente da Águia, e então a razão para estarmos lá se tornaria clara. Eu tinha observado como as mulheres se mantinham desprendidas do tumulto emocional, parecendo completamente des­preocupadas com o resultado. Pareciam saber, sem grande dúvida, que o meu caso tinha de estar incluído no regulamento de alguma forma. Afinal de contas, eu os tinha ajudado definitivamente quando aceitei meu papel. Graças à mulher nagual e a mim próprio, Dom Juan e seu grupo tinham completado seu ciclo e estavam quase livres.

A resposta lhes foi dada finalmente por Silvio Manuel. Sua visão revelou que as três irmãzinhas e os Genaros não eram inadequa­dos; apenas eu não era o nagual apropriado para eles. Era incapaz de liderá-los porque tinha uma configuração desconhecida, que não combinava com o modelo descrito no regulamento, configuração que Dom Juan não tinha percebido, como observador. Meu corpo lumino­so dava a aparência de ter quatro compartimentos, quando na reali­dade tinha apenas três. Havia outro regulamento para o que eles chamavam de “nagual de três pontas”. Eu pertencia àquele outro regulamento. Silvio Manuel disse que eu era como um pássara incuba­do pelo calor e cuidado por pássaros de espécie diferente. Todos eles estavam prontos para me ajudar, como eu próprio estava pronto a fazer qualquer coisa por eles, mas eu não pertencia àquele grupo.

Dom Juan assumiu a responsabilidade por mim, pois fora ele quem me levara para o seu meio, mas minha presença forçava-as a esforçarem-se ao máximo, procurando duas coisas; uma explicação para o que eu fazia no meio deles, e uma solução ao problema do que fazer com isso.

Silvio Manuel encontrou rapidamente uma forma de me deslocar do meio deles. Assumiu a tarefa de dirigir o projeto, mas como não tinha paciência ou energia para lidar comigo diretamente, encarregou Dom Juan de agir como seu representante. A meta de Silvio Manuel era me preparar para o momento em que o mensageiro, levando o regulamento pertinente a um nagual de três pontas, ficasse à minha disposição. Disse que não era tarefa sua revelar aquela parte do regulamento. Eu teria de esperar, como todos os outros, pela hora certa.

Havia ainda outro problema sério que aumentava a confusão, ligado a la Gorda e a mim, a longo prazo. La Gorda tinha sido aceita para o meu grupo como uma mulher do sul. Dom Juan e os outros observadores tinham se certificado disso, considerando-a na mesma categoria de Cecília, Delia e as duas mensageiras. As semelhanças eram inegáveis. Depois la Gorda perdeu todo o seu peso supérfluo e emagreceu tanto que ficou pesando a metade. A mudança foi tão radical e profunda que ela se tomou outra pessoa.

Passou despercebida por tanto tempo simplesmente porque todos os outros guerreiros estavam preocupados demais com minhas dificul­dades, para prestar atenção a ela. Sua mudança foi tão drástica, con­tudo, que eles foram forçados a percebê-la, e viram que ela não era absolutamente uma mulher do sul. O volume anterior do seu corpo tinha distorcido a visão deles. Lembraram-se então que desde o pri­meiro momento em que la Gorda entrara para o grupo não tinha conseguido se dar bem com Cecília, Delia e as outras mulheres do sul. Por outro lado, ficava muito à vontade com Nelida e Florinda, pois na realidade sempre fora como elas. Isso significava que havia duas mulheres do norte sonhadoras no meu grupo, la Gorda e Rosa — uma discrepância gritante do regulamento.

Dom Juan e seus guerreiros ficaram muito frustrados. Aceitavam tudo o que estava acontecendo como um presságio, uma indicação de que as coisas tinham tomado uma direção imprevisível. Já que Dão podiam aceitar a idéia de erro humano no regulamento, admitiram que tinham sido levados a errar por ardem superior, por uma razão difícil de entender, porém real.

Aquilataram a questão do que fazer em seguida, mas antes que qualquer deles tivesse uma resposta, uma verdadeira mulher do sul, dona Soledad, surgiu no quadro com tanta força que foi impossível recusá-la. Ela era adequada ao regulamento, era uma espreitadora.

Sua presença distraiu-nos por algum tempo. Durante um certo período pareceu que ela iria nos levar para outro estágio. Criou uma forte movimentação. Florinda tomou-a sob sua proteção a fim de instruí-la a espreitar. Mas por melhor que fosse não foi o suficiente para remediar uma estranha perda de energia que eu sentia, uma apatia que parecia aumentar.

Então um dia Silvio Manuel disse que no seu sonho ele recebera um plano magistral. Estava muito animado e passou a discutir os detalhes com Dom Juan e os outros guerreiros. A mulher nagual foi incluída nas discussões, mas eu não. Isso me fez suspeitar que a discussão tivesse alguma coisa a ver comigo e que eles não quisessem que eu soubesse.

Expus a todos eles minhas suspeitas. Eles riram, com exceção da mulher nagual que me disse que eu tinha razão. O sonho de Silvio Manuel tinha revelado a razão da minha presença entre eles, mas eu teria de me entregar ao meu destino, isto é, não conhecer a natureza da minha tarefa até que estivesse pronto para ela.

Havia tanta objetividade no seu tom de voz que tive de aceitar sem questionar tudo o que ela disse. Creio que se Dom Juan ou Silvio Manuel me tivessem dito a mesma coisa eu não teria aquiescido tão facilmente. Ela disse também que discordava de Dom Juan e dos outros — achava que eu devia ser informado do propósito geral das ações deles, ao menos para evitar atrito e rebeldia sem necessidade.

Silvio Manuel pretendia me preparar para a minha tarefa levan­do-me diretamente à minha segunda atenção. Planejou uma série de ações corajosas que iriam galvanizar minha conscientização.

Na presença de todos os outros disse-me que estava assumindo minha orientação e que estava me mudando para sua área de poder, para a noite. A explicação que deu foi que uma quantidade de não fazeres tinham lhe sido apresentados em sonho. O grupo seria com­posto de la Gorda e eu como agentes, e a mulher nagual como supervisora.

Silvio Manuel estava admirado com a mulher nagual e só tinha palavras de admiração por ela. Falou que ela tinha classe por si só, que podia realizar tudo em igualdade de condições com ele ou qual­quer outro guerreiro do seu grupo. Não tinha experiência mas podia manipular sua atenção da forma que precisasse. Confessou que sua proeza era um mistério tão grande para ele quanto minha presença entre eles, e que seu senso de objetividade e sua convicção eram tão aguçados que eu não me podia comparar a ela. Na verdade, pediu a la Gorda para me dar um apoio especial para que eu pudesse enfrentar a mulher nagual.

Para nosso primeiro não fazer Silvio Manuel construiu um en­gradado de madeira grande o suficiente para acomodar la Gorda e eu, de modo a ficarmos sentados de costas um para o outro, com o joelho para o alto. O engradado tinha uma tampa de treliça para deixar passar o ar. La Gorda e eu tínhamos de entrar e sentar na escuridão, em silêncio total, sem dormir. Ele começou fazendo-nos entrar na caixa por breves períodos; depois aumentou o tempo à medida que nos acostumávamos com a coisa, até podermos passar toda uma noite dentro, sem nos mover ou dormir.

A mulher nagual ficou conosco para se certificar de que não mudaríamos nossos níveis de conscientização devido ao cansaço. Silvio Manuel disse que nossa tendência natural sob condições incomuns seria mudar do elevado estado de conscientização para o estado normal, e vice-versa.

O efeito geral do não fazer, toda vez que agíamos, era nos dar uma inigualável sensação de repouso, o que me deixava inteiramente intrigado, já que não podíamos dormir durante nossas longas noites de vigília. Atribuí a sensação de repouso ao fato de estarmos em estado de elevada conscientização, mas Silvio Manuel disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, que a sensação de repouso era resultado de sentarmos com os joelhos para cima.

O segundo não fazer consistia em nos fazer deitar no chão como se fôssemos cachorros enroscados, quase que em posição fetal, apoia­dos no lado esquerdo, na testa e nos braços dobrados. Silvio Manuel insistiu que fechássemos os olhos tanto quanto possível, abrindo-os apenas quando ele nos mandasse trocar de posição e virar para o lado direito. Disse-nos que o objetivo desse não fazer era forçar nosso sentido de audição a se separar da nossa visão. Como antes, aumen­tou gradualmente o tempo até que passássemos toda uma noite em vigília.

Silvio Manuel estava então pronto para nos passar para outra área de atividade. Explicou que nos primeiros dois não fazeres tínha­mos quebrado uma certa barreira de percepção enquanto ficávamos presos ao chão. Por analogia, comparou os seres humanos às árvores. Somos como que árvores móveis, tendo de alguma forma raízes no chão, raízes essas que nos permitem mover mas que não nos separam do chão. Disse que a fim de estabelecermos equilíbrio tínhamos de desenvolver o terceiro não fazer pendurados no ar. Se tivéssemos êxito enquanto suspensos de uma árvore dentro de um arreio de couro, faríamos um triângulo com nossa intenção, triângulo com base no chão e no seu vértice no ar. Silvio Manuel achava que tínhamos reunido nossa atenção com os dois primeiros não fazeres a ponto de podermos realizar o terceiro perfeitamente, desde o início.

Uma noite ele suspendeu la Gorda e eu em dois arreios separa­dos como se fossem cadeiras. Sentamos ali e ele nos levantou com uma roldana até os galhos mais altos de uma árvore grande. Queria que prestássemos atenção à conscientização da árvore, que, segundo ele, nos daria sinais por sermos convidados dela. Fez a mulher nagual ficar no chão e gritar nossos nomes de quando em vez, durante toda a noite.

Enquanto estávamos suspensos na árvore, em nossas inúmeras tentativas, sentimos um fluxo glorioso de sensações físicas, como cargas suaves de impulsos elétricos. Durante as primeiras três ou quatro tentativas foi como se as árvores protestassem contra nossa intromissão; depois disso os impulsos tornaram-se sinais de paz e equilíbrio. Silvio Manuel nos disse que a conscientização de uma árvore alimenta-se das profundezas da terra, enquanto que a cons­cientização das criaturas móveis alimenta-se da superfície. Não há nenhuma sensação de conflito na árvore, enquanto que os seus móveis são cheios de conflito.

Sua alegação era que a percepção sofre um choque profundo quando estamos colocados em estado de quietude no escuro. Nossa audição toma a frente então e os sinais de todas as entidades vivas e existentes à nossa volta podem ser detectados — não apenas com nossa audição, mas por uma combinação dos sentidos auditivos e visuais, nessa ordem. Disse que na escuridão, especialmente enquanto suspensos, os olhos se tornam secundários aos ouvidos.

Ele estava absolutamente certo, como la Gorda e eu descobri­mos. Com o exercício do terceiro não fazer Silvio Manuel nos deu uma nova dimensão à nossa percepção do mundo que nos rodeia.

Ele então disse a la Gorda e a mim que o próximo conjunto de não fazer seria intrinsecamente diferente c mais complexo. Relacio­nava-se ao aprendizado de como lidar com o outro mundo. Era neces­sário maximizar o esforço, mudando nosso tempo de ação para o início da noite ou o início da madrugada. Disse-nos que o primeiro não fazer do segundo conjunto tinha dois estágios. No primeiro está­gio tínhamos de atingir nosso estado mais alerta de elevada conscien­tização a fim de detectarmos a parede de névoa. Uma vez feito isso, o segundo estágio consistiria em fazer aquela parede parar de girar, a fim de nos aventurarmos no mundo entre as linhas paralelas.

Avisou-nos que o que pretendia era nos colocar diretamente na segunda atenção, sem qualquer preparação intelectual. Queria que aprendêssemos os detalhes sem uma compreensão racional do que estávamos fazendo. Sua alegação era que um veado mágico ou um coiote mágico manipula a segunda atenção sem ter nenhum intelecto. Através da prática forçada de passarmos para trás da parede de névoa, iríamos empreender, mais cedo ou mais tarde, uma permanente alteração no nosso ser total, alteração essa que nos faria aceitar que o mundo entre as linhas paralelas é real, pois é parte do mundo total, como nosso corpo luminoso é parte do nosso ser total.

Silvio Manuel disse também que estava usando la Gorda e eu para sondar a possibilidade de podermos um dia ajudar os outros aprendizes, levando-os ao outro mundo, quando ele acompanharia o nagual Juan Matus e seu grupo em sua viagem definitiva. Argumen­tou que como a mulher nagual tinha de deixar esse mundo com o nagual Juan Matus e seus guerreiros, os aprendizes tinham de segui-la, pois ela era a líder única deles na ausência do homem nagual. Assegu­rou-nos que ela contava conosco, sendo por isso que supervisionava nosso trabalho.

Silvio Manuel fez com que la Gorda e eu sentássemos no chão nos fundos da casa, onde tínhamos realizado todos os nossos não fazeres. Não tivemos necessidade da ajuda de Dom Juan para en­trarmos em nosso estado mais alerta de conscientização. Quase que imediatamente eu vi a parede de névoa, o mesmo acontecendo com la Gorda. Porém, por mais que tentássemos não conseguíamos parar sua rotação. Toda vez que eu virava a cabeça a parede virava com ela.

A mulher nagual conseguiu pará-la e atravessá-la por si própria, mas por mais que tentasse não conseguiu levar-nos com ela. Final­mente Dom Juan e Silvio Manuel tiveram de parar a parede para nós e empurrar-nos fisicamente através dela. A sensação que tive ao entrar pela parede de névoa foi que meu corpo estava sendo torcido como as tranças de uma corda.

Do outro lado havia a planície horrível e desoladora com dunas de areia pequenas e redondas. Havia nuvens amarelas muito baixas, mas não havia céu ou horizonte; barreiras de vapor amarelo-pálido prejudicavam a visibilidade. Era muito difícil andar. A pressão parecia muito maior do que a que meu corpo estava habituado. La Gorda e eu andamos sem rumo, mas a mulher nagual parecia saber onde estava indo. Quanto mais nos afastávamos da parede mais escuro ficava e mais difícil era andar. La Gorda e eu não podíamos mais manter a posição ereta, tínhamos de nos arrastar. Perdi minhas forças e la Gorda também; a mulher nagual teve de nos puxar até a parede e para fora dela.

Repetimos essa viagem inúmeras vezes. A princípio éramos ajudados por Dom Juan e Silvio Manuel a fazer parar a parede de névoa, mas depois la Gorda e eu nos tornamos quase tão eficientes quanto a mulher nagual. Aprendemos a parar a rotação da parede. Aconteceu naturalmente. No meu caso, a uma certa altura percebi que a minha intenção era a chave, um aspecto especial da minha intenção, pois ela não partia da minha volição costumeira. Era um desejo intenso focalizado no meio do meu corpo. Um nervosismo peculiar que me fazia estremecer e que depois transformava-se numa força, não parando a parede, mas fazendo com que alguma parte do meu corpo virasse involuntariamente noventa graus à direita. O resultado era que por um instante eu tinha dois lados de visão. Olhava o mundo dividido em dois pela parede de névoa e ao mesmo tempo via diretamente a barreira de vapor amarelado. A última visão predo­minava e alguma coisa me puxava para dentro da névoa e para além dela.

Outra coisa que aprendi foi a encarar aquele lugar como uma coisa real; nossas viagens adquiriram a factualidade de uma excursão nas montanhas, ou uma viagem por mar num veleiro. A planície deserta de montes de dunas de areia era tão real para nós como qualquer outra parte do inundo.

La Gorda e eu tínhamos a sensação racional de que nós três passávamos uma eternidade nesse mundo entre as linhas paralelas, mas ao mesmo tempo não conseguíamos nos lembrar do que acontecia exatamente lá. Só conseguíamos nos lembrar dos momentos terríveis em que tínhamos de voltar ao mundo da vida diária. Era sempre um momento de tremenda angústia e insegurança.

Dom Juan e todos os seus guerreiros seguiram nossos esforços com grande curiosidade, mas quem ficava estranhamente ausente de todas nossas atividades era Eligio. Embora ele próprio fosse um guer­reiro incomparável, como os guerreiros do próprio grupo de Dom Juan, nunca tomava parte na nossa luta nem nos ajudava de forma alguma. Mas ninguém nos explicou por quê.

La Gorda disse que Eligio tinha conseguido prender-se a Emilito e, portanto, diretamente ao nagual Juan Matus. Ele nunca participava de nosso problema porque podia entrar na segunda atenção num abrir e fechar de olhos. Para ele, viajar aos confins da segunda aten­ção era tão fácil quanto estalar os dedos.

La Gorda me lembrou do dia em que os talentos especiais de Eligio lhe permitiram descobrir que eu não era o homem para eles, muito antes de qualquer outro ter idéia dessa verdade.

Eu estava sentado na varanda de trás da casa de Vicente, no norte do México, quando Emilito e Eligio apareceram subitamente. Todos sabiam que Emilito desaparecia por longos períodos; quando aparecia novamente, todos também sabiam que ele tinha voltado de uma viagem. Ninguém lhe fazia qualquer pergunta. Ele relatava suas descobertas primeiro a Dom Juan e depois para todos que quisessem ouvir.

Naquele dia foi como se Emilito e Eligio tivessem simplesmente entrado na casa pela porta de trás. Emilito estava exuberante como sempre, e Eligio sombrio como de costume. Eu sempre achei, quando os dois estavam juntos, que a personalidade exótica de Emilito sobre­pujava a de Eligio, fazendo-o ainda mais taciturno.

Emilito entrou à procura de Dom Juan e Eligio se abriu comigo. Sorriu e veio ficar ao meu lado, pondo o braço em volta dos meus ombros e a boca no meu ouvido, cochichando que tinha perdido o selo que separava as linhas paralelas e que por isso podia entrar no que Emilito chamava de glória.

Eligio continuou a explicar certas coisas sobre glória que eu não pude entender. Era como se minha cabeça pudesse focalizar apenas a periferia daquele acontecimento. Depois de me explicar, ele me puxou pela mão, fazendo-me ficar de pé no meio do pátio, olhando para o céu com o queixo ligeiramente levantado. Ele estava à minha direita, de pé comigo, na mesma posição. Disse para eu me soltar e cair para trás impelido pelo peso do alto da minha cabeça. Alguma coisa me agarrou por trás e me puxou para baixo. Havia um abismo atrás de mim e eu caí nele. Então, subitamente fui parar na planície desolada com os montes de dunas.

Eligio falou que eu o seguisse. Disse-me que o auge da gloria ficava por cima dos morros. Andei com ele até não conseguir mais me mover. Ele corria na minha frente sem nenhum esforço, como se fosse feito de ar. Chegou ao alto de um grande monte e apontou para baixo. Correu para onde eu estava e pediu que eu me arrastasse até aquele morro, que ele dizia ser o auge da glória, localizada talvez a apenas a uns trinta metros, mas eu não consegui me mover mais nem um centímetro.

Tentou me arrastar até o morro, mas não conseguiu me tirar de onde eu estava. Meu peso parecia ter aumentado muitíssimo. Final­mente teve de chamar Dom Juan e seu grupo. Cecília me levantou nos ombros e me carregou.

La Gorda acrescentou que Emilito tinha levado Eligio a isso, e que Emilito procedia segundo o regulamento. Meu mensageiro tinha feito uma viagem à glória e era imprescindível que me mostrasse o seu feito.

Eu podia recordar-me da avidez do rosto de Eligio e do fervor com o qual ele insistira para que eu fizesse um último esforço para presenciar a glória. Podia também me recordar de sua tristeza e desaponto quando eu falhei. Nunca mais falou comigo.

La Gorda e eu tínhamos estado tão envolvidos em nossas viagens por trás da parede de névoa que tínhamos nos esquecido que estava na hora da nossa próxima série de não fazer com Silvio Manuel. Ele nos disse que ela poderia ser devastadora e que consistia em atraves­sar as linhas paralelas com as três irmãzinhas e os três Genaros, diretamente para a entrada no mundo de total conscientização. Não incluiu dona Soledad porque seus não fazeres eram destinados apenas a sonhadoras, e ela era espreitadora.

Silvio Manuel acrescentou que esperava que nós nos tornássemos familiarizados com a terceira atenção se nos colocássemos ao pé da Águia diversas vezes. Ele nos preparou para o choque; explicou que as viagens de um guerreiro às dunas de areia desoladas eram um passo preparatório para a verdadeira travessia das fronteiras. Aventu­rar-se para além da parede de névoa num estado de elevada conscien­tização ou durante um sonho implicava apenas uma porção muito pequena de nossa conscientização total, enquanto que atravessar corporalmente para o outro mundo implicava o comprometimento do nosso ser total.

Silvio Manuel concebera a idéia de usar uma ponte como símbolo de uma verdadeira travessia. Argumentou que a ponte era adjacente a um lugar de poder; e os lugares de poder eram aberturas, passagens para o outro mundo. Achava que seria possível que la Gorda e eu adquiríssemos força suficiente para enfrentar um vislumbre da Águia.

Avisou que era meu dever pessoal ficar à volta das três mulheres e dos três homens para ajudá-los a entrar nos seus estados mais alerta de conscientização. Era o mínimo que eu poderia fazer por eles, já que talvez eu tivesse sido um instrumental para destruir suas chances de liberdade.

Ele alterou nosso tempo de ação para antes da madrugada, ou para a primeira luz da manhã. Tentei cuidadosamente fazê-los mudar sua conscientização, como Dom Juan fizera comigo. Já que eu não tinha idéia de como manipular os seus corpos ou de qual fosse minha ligação com eles realmente, acabei batendo nas suas costas. Depois de várias tentativas vãs da minha parte, Dom Juan finalmente inter­veio. Preparou-os o melhor que podia e passou-os para mim para guiá-los como gado na ponte. Minha tarefa era levá-los um por um pela ponte. O lugar de poder era do lado do sul, um presságio muito auspicioso. Silvio Manuel planejou atravessar primeiro, esperar que eu os entregasse a ele e então acompanhá-los em grupo para o desconhecido.

Silvio Manuel atravessou, seguido de Eligio, que não me deu nem mesmo uma olhada. Eu retive os seis aprendizes em grupo fecha­do, no lado norte da ponte. Eles ficaram aterrorizados; soltaram-se do meu cerco e começaram a correr em diferentes direções. Peguei as três mulheres, uma por uma, e consegui levá-las até Silvio Manuel. Ele as prendeu na entrada da abertura entre os mundos. Os três homens foram rápidos demais para mim, e eu fiquei muito cansado de correr atrás deles.

Olhei para Dom Juan, do outro lado da ponte, pedindo uma orientação. Ele, o resto do seu grupo e a mulher nagual estavam juntos olhando para mim; tinham me persuadido com gestos a correr atrás das mulheres e dos homens, rindo das minhas tentativas desajei­tadas. Dom Juan fez um gesto com a cabeça para que esquecesse os homens e atravessasse até Silvio Manuel com la Gorda.

Atravessamos. Silvio Manuel e Eligio pareciam estar segurando os lados de uma fenda vertical do tamanho de um homem. As mulhe­res correram e se esconderam por trás de la Gorda. Silvio Manuel insistiu que todos nós passássemos para dentro da fenda. Eu o obedeci, mas as mulheres não. Além da entrada não havia nada. No entanto ela era cheia até a boca de alguma coisa que era nada. Meus olhos estavam abertos e meus sentidos alertas. Eu me estiquei para tentar ver à minha frente, mas não havia nada à minha frente. Ou, se havia eu não conseguia captar. Meus sentidos não tinham a compartimentagem que eu aprendera a considerar como significativa. Tudo veio a mim de repente, ou melhor, a nulidade chegou a mira a um grau que eu nunca antes experimentara ou viria a experimentar. Senti meu corpo sendo dilacerado. Uma força vinda de dentro de mim mesmo empurrava para fora. Eu estava explodindo, e não de modo figurado. Subitamente senti uma mão humana me tirando de lá antes que eu me desintegrasse.

A mulher nagual tinha atravessado e me salvara. Eligio não tinha podido se mover porque estava segurando a abertura, e Silvio Manuel segurava as quatro mulheres pelos cabelos, duas em cada mão, pronto para arremessá-las para dentro.

Supus que o incidente todo tivesse levado pelo menos um quarto de hora para se desenrolar, mas nunca me ocorreu pensar nas pessoas que estavam em volta da ponte. O tempo parecia ter sido suspenso, de alguma forma. Assim como foi suspenso quando voltamos para a ponte ao irmos para a Cidade do México.

Silvio Manuel disse que embora a tentativa tivesse parecido falha, fora um sucesso total. As quatro mulheres viram a abertura e o outro mundo; e o que eu senti lá foi uma verdadeira sensação de morte.

— Não há nada de belo ou pacífico na morte — disse ele. — Porque o terror real se inicia ao morrer. Com aquela força incalculá­vel que você sentiu lá, a Águia esmagará cada centelha de conscien­tização que você teve.

Silvio Manuel preparou la Gorda e eu para outra tentativa. Explicou que os lugares de poder eram na realidade buracos numa espécie de dossel, o qual evita que o mundo perca sua forma. Um lugar de poder pode ser utilizado enquanto se tem bastante força na segundo atenção. Disse-nos que a chave para enfrentar a presença da Águia era a potência da intenção de uma pessoa. Sem intenção não existe nada. Disse-me que, já que eu era o único a ter pisado no outro mundo, o que quase me matara fora minha incapacidade de mudar minha intenção. Ele confiava, contudo, que com uma prática forçada todos nós conseguiríamos prolongar nossa intenção. Não podia explicar, entretanto, o que era a “intenção”. Brincou, dizendo que só o nagual Juan Matus poderia explicar, mas que ele não estava por ali.

Infelizmente nossa próxima tentativa não ocorreu, pois eu fiquei esgotado de energia. Foi uma rápida e devastadora perda de vitali­dade. Fiquei de uma hora para a outra tão fraco que desmaiei.

Perguntei a la Gorda se ela sabia o que acontecera depois; eu mesmo não tinha a mais vaga idéia. La Gorda disse que Silvio Manuel falara a todos que a Águia tinha me deslocado do grupo deles, e que finalmente eu estava pronto para ser preparado a desempenhar os desígnios do meu destino. Seu plano era me levar ao mundo entre as linhas paralelas enquanto inconsciente, e deixar aquele mundo tirar toda a energia restante e inútil do meu corpo. Sua idéia era perfeita ao julgamento de todos os seus companheiros, pois o regulamento dizia que só se podia entrar lá com conscientização. Entrar sem ela produzia a morte, já que sem conscientização a força da vida é exau­rida pela pressão física daquele mundo.

La Gorda acrescentou que eles não a levaram comigo. Mas o nagual Juan Matus lhe dissera que já que eu estava esvaziado de energia vital, praticamente morto, todos eles se revezaram para soprar meu corpo com energia nova. Naquele mundo, qualquer pessoa que tivesse força de vida poderia passá-la a outro soprando neles, colocan­do sua respiração em todos os lugares que tivessem ponto de armaze­namento. Silvio Manuel soprou primeiro, depois a mulher nagual. A minha parte restante foi formada de todos os membros do grupo do nagual Juan Matus.

Depois de terem soprado sua energia em mim, a mulher nagual me tirou da névoa e levou para a casa de Silvia Manuel. Deitou-me no chão com a cabeça na direção do sudeste. La Gorda disse que eu parecia morto. Ela, os Genaros e as três irmãzinhas estavam lá. A mulher nagual explicou a eles que eu estava doente, mas que iria voltar um dia para ajudá-los a encontrar sua liberdade, pois eu próprio não seria livre até fazer isso. Silvio Manuel então me deu sua respira­ção e me trouxe de volta à vida. Foi por isso que ela e as irmãzinhas lembravam-se que ele era meu mestre. Carregou-me para a cama e me deixou dormir, como se nada tivesse acontecido. Depois que eu acordei, fui embora e não voltei. E então ela se esqueceu porque ninguém nunca mais a empurrou para o lado esquerdo. Foi viver na cidade onde eu mais tarde a encontrei com os outros. O nagual Juan Matus e Genaro tinham organizado duas casas diferentes. Genaro tomava conta dos homens, e o nagual Juan Matus cuidava das mulheres.

 

Eu tinha ido dormir me sentindo deprimido, fraco. Quando acordei estava em pleno controle de mim mesmo, exuberante, cheio de uma extraordinária e desconhecida energia. Meu bem-estar foi interrom­pido só quando Dom Juan me disse que eu tinha de deixar la Gorda e lutar sozinho para aperfeiçoar minha atenção, até o dia em que eu fosse capaz de voltar para ajudá-la. Disse também para não me desgas­tar ou me sentir desencorajado, pois o portador ou portadora do regulamento faria eventualmente um contato comigo a fim de revelar a minha tarefa verdadeira.

Depois disso não vi Dom Juan por um longo tempo. Quando eu voltei ele continuou a me fazer mudar a conscientização do lado direito para o lado esquerdo, com dois objetivos: primeiro para que eu pudesse continuar meu relacionamento com os guerreiros e a mulher nagual; segundo para que ele pudesse me pôr sob a supervisão direta de Zuleica, com quem eu tive uma interação contínua nos anos restan­tes de minha associação com Dom Juan.

Ele me disse que a razão de ter me confiado a Zuleica foi que, segundo o plano magistral de Silvio Manuel, eram necessários dois tipos de instrução para mim — uma para o lado direito e uma para o esquerdo. A instrução do lado direito pertencia ao estado de cons­ciência normal e tinha relação com o fato de me levar à convicção racional de haver outro tipo de conscientização oculta nos seres huma­nos. A instrução do lado esquerdo ficara a cargo de Zuleica; relacio­nava-se com o estado de elevada conscientização e ligava-se exclusi­vamente à manipulação da segunda atenção. Assim sendo, toda vez que eu ia ao México passava metade do tempo com Zuleica, e a outra metade com. Dom Juan.

 

                     As Complexidades de Sonhar

Dom Juan iniciou a tarefa de me conduzir à segunda atenção dizendo-me que eu já tinha tido muita experiência em entrar nela. Silvio Manuel tinha me levado à própria entrada. A falha fora que não me haviam dado os fundamentos lógicos apropriados. Aos guer­reiros homens deviam ser dadas razões sérias antes de se aventurarem com segurança no desconhecido. As guerreiras mulheres não são sujeitas a isso e podem ir sem qualquer hesitação, desde que tenham total confiança em quem as guia.

Ele me disse que eu tinha de começar aprendendo primeiro “as complexidades de sonhar”. Depois me pôs sob a supervisão de Zuleica. Aconselhou-me a ser impecável e a praticar meticulosamente tudo aquilo que aprendesse e, acima de tudo, a ser cuidadoso e deli­berado em minhas ações a fim de não exaurir minha força de vida em vão. Disse que o pré-requisito de entrada em qualquer dos está­gios de atenção é a posse da força de vida, pois sem ela os guerreiros não podem ter direção ou objetivo. Explicou que ao morrer nossa conscientização entra na terceira atenção; mas só por um instante, como uma ação purgatória, logo antes da Águia devorá-la.

La Gorda falou que o nagual Juan Matus fazia com que todos os aprendizes aprendessem a sonhar. Ela achava que todos eles tinham recebido essa tarefa ao mesmo tempo que eu. A instrução deles também foi dividida entre direita e esquerda. Disse que o nagual e Genaro davam a instrução do estado de conscientização normal. Quando julgavam que os aprendizes estavam prontos, o nagual fazia-os mudarem para um estado de elevada conscientização e dei­xava-os com suas respectivas contrapartidas. Vicente ensinou a Nestor, Silvio Manuel ensinou a Benigno, Genaro a Pablito, Lydia foi ensinada por Hermelinda, e Rosa por Nelida. La Gorda acres­centou que Josefina e ela ficaram a cargo de Zuleica a fim de aprenderem juntas os pontos mais refinados do sonhar, para que pudes­sem me ajudar um dia.

Além disso, la Gorda deduziu por conta própria que os homens ficavam a cargo de Florinda para aprenderem a espreitar. A prova disso era a mudança drástica de comportamento deles. Ela dizia saber, antes de se lembrar de qualquer coisa, que lhe tinham ensinado os princípios da espreita, mas de uma maneira muito superficial; não a tinham feito praticar, enquanto que os homens recebiam conhecimen­to prático e tarefas. A mudança de comportamento deles atestava isso. Tornavam-se mais despreocupados e joviais. Aproveitavam a vida, enquanto que ela e as outras mulheres, por causa do sonho, torna­vam-se gradativamente mais sombrias e mal-humoradas.

La Gorda acreditava que os homens seriam incapazes de se lembrar das suas instruções quando eu lhes pedisse para me revelarem seu conhecimento de espreita, porque eles a praticavam sem saberem o que estavam fazendo. O treinamento deles, contudo, revelava-se quando lidavam com as pessoas. Eram artistas consumados em fazer com que as pessoas agissem segundo seus desejos. Através de sua prática de espreita os homens tinham até aprendido a loucura con­trolada. Por exemplo, comportavam-se como se Soledad fosse mãe de Pablito. Para qualquer observador, pareceria que eles eram mãe e filho presos um ao outro, quando na realidade estavam representando um papel. Convenciam a todo mundo. Às vezes Pablito dava tal demonstração que chegava a se convencer a si próprio.

La Gorda confessou que todos eles estavam mais que frustrados com meu comportamento. Não sabiam se eu era louco ou um mestre de loucura controlada. Eu dava todas as indicações externas de que acreditava na farsa deles. Soledad lhes disse que não se enganassem. pois eu era louco de verdade. Parecia estar sob controle, mas era tão completamente aberrante que não conseguia me comportar como um nagual. Reuniu todas as mulheres para me aplicarem um golpe mor­tal. Disse-lhes que eu tinha pedido isso certa vez, quando estava sob controle das minhas faculdades.

La Gorda disse que levou vários anos, sob a orientação de Zuleica, para aprender a sonhar. Quando o nagual Juan Matus julgou que ela estava bem, finalmente levou-a à sua verdadeira contraparti­da, Nelida. Foi Nelida quem mostrou a ela como se comportar no mundo. Ensinou-lhe não só a se sentir à vontade em roupas ociden­tais, como a ter bom gosto. Assim, quando ela vestiu roupas de ci­dade em Oaxaca e me surpreendeu com sua pose e charme, estava já sentindo aquela transformação.

Zuleica foi muito eficiente como minha guia da segunda atenção. Insistiu que nossa interação ocorresse só à noite, e no escuro total. Para mim, Zuleica era apenas uma voz no escuro, voz essa que iniciava cada contato que tínhamos dizendo-me para focalizar minha aten­ção em suas palavras e em nada mais. Sua voz era a voz de mulher que la Gorda pensou ter ouvido em sonho.

Zuleica me falou que se o sonho fosse feito dentro de casa, seria melhor fazê-lo na escuridão total, deitado ou sentado numa cama estreita, ou, melhor ainda, sentado num berço em forma de caixão. Ela achava que o sonho ao relento devia ser feito sob a proteção de uma gruta, nas áreas arenosas de olhos d'água, ou sentado, encosta­do a uma rocha nas montanhas; nunca no chão chato de um vale, ou próximo a rios, ou lagos, ou ao mar, porque as áreas chatas e as águas eram antiéticas para a segunda atenção.

Todas as minhas sessões com ela foram impregnadas de tons misteriosos. Ela explicou que o meio mais seguro de dar uma tacada direta na segunda atenção era através de atos rituais, canto monótono, movimentos repetitivos e complexos.

Seus ensinamentos não eram sobre as preliminares do sonho, que já tinham sido ensinados a nós por Dom Juan. Ela supunha que quem quer que fosse a ela já soubesse como fazer o sonho, portanto lidava exclusivamente com pontos esotéricos da conscientização do lado esquerdo.

As instruções de Zuleica começaram no dia em que Dom Juan me levou à sua casa. Chegamos lá no final da tarde. O lugar parecia deserto. A porta da frente abriu-se quando nos aproximamos. Eu esperava que Zoila ou Marta aparecessem, mas não havia ninguém na entrada. Percebi que quem quer que tivesse aberto a porta para nós tinha também saído do nosso caminho muito rapidamente. Dom Juan me levou para dentro, para o pátio, e me fez sentar num engradado que tinha uma almofada e fora transformado em banco. O assento era duro e desnivelado, e muito desconfortável. Passei a mão por baixo da almofada fina e achei pedras com pontas afiadas. Dom Juan disse que minha situação era especial porque eu tinha que aprender os pontos refinados de sonhar depressa. Sentar numa superfície dura era um suporte para não deixar meu corpo sentir que estava em posição sentada normal. Uns minutos antes de chegarmos à casa, Dom Juan tinha me feito mudar os níveis de conscientização. Disse que a instrução de Zuleica tinha de ser conduzida naquele estado a fim de ter a velocidade de que eu necessitava. Advertiu-me que eu devia me soltar e confiar em Zuleica inteiramente. Depois ordenou-me que focalizasse meu olhar com toda a concentração de que eu fosse capaz, e memorizasse cada detalhe do pátio que estivesse dentro do meu campo de visão. Insistiu que eu tinha de memorizar tanto os detalhes quanto o sentimento de estar sentado lá. Repetiu suas instruções para se assegurar de que eu compreendera, e depois foi embora.

Ficou muito escuro rapidamente e eu comecei a ficar assustado, sentado lá. Não tinha tido tempo suficiente para me concentrar nos detalhes do pátio como queria. Ouvi um som farfalhante atrás de mim e a voz de Zuleica, que me fez dar um pulo. Num sussurro forçado ela me falou para ficar de pé e segui-la. Eu obedeci-a auto­maticamente. Não podia ver seu rosto, ela era apenas uma sombra escura andando dois passos à minha frente. Levou-me para uma alcova, no hall mais escuro da casa. Embora meus olhos estivessem acostumados à escuridão, ainda assim fui incapaz de ver qualquer coisa. Tropecei em alguma coisa e ela me ordenou que eu me sentasse dentro de um berço estreito e apoiasse a parte de baixo das costas com alguma coisa que eu achei que fosse uma almofada dura.

Em seguida senti que ela tinha dado uns passos por trás de mim, coisa que me frustrou completamente, pois achei que minhas costas estavam a apenas uns centímetros da parede. Falando por trás de mim, ordenou, numa voz suave, que eu focalizasse minha atenção nas suas palavras e deixasse que elas me guiassem. Disse-me para ficar de olhos abertos e fixos num ponto bem à minha frente, ao nível do meu olho; esse ponto escuro iria se transformar num brilho agradável vermelho-alaranjado.

Zuleica falava com muita suavidade, numa entonação regular. Eu ouvia todas as palavras que ela dizia. A escuridão à minha volta parecia ter efetivamente cortado qualquer estímulo externo de distra­ção. Ouvia as palavras de Zuleica num vácuo, e então percebi que o silêncio daquele hall era comparável ao silêncio dentro de mim.

Zuleica explicou que um sonhador devia iniciar de um ponto de cor; luz intensa ou escuridão absoluta são inúteis para um sonhador na investida inicial. Cores como o roxo ou verde-claro ou amarelo-vivo são, ao contrário, estupendos pontos iniciais. Ela preferia, contu­do, vermelho-alaranjado pois, por experiência, tinha provado ser a que lhe dava maior sensação de repouso. Assegurou-me que uma vez conseguindo entrar na cor vermelho-alaranjado eu teria reunido minha segunda atenção permanentemente, desde que ficasse consciente da seqüência dos acontecimentos físicos.

Levei várias sessões ouvindo a voz de Zuleica para perceber com o meu corpo o que ela queria que eu fizesse. A vantagem de estar em estado de elevada conscientização era que eu podia seguir minha transição de um estado de vigília a um estado de sonho. Sob condi­ções normais aquela transição é pouco nítida, mas sob essas circuns­tâncias especiais eu realmente senti, ao longo de uma sessão, como minha segunda atenção assumiu os controles. O primeiro passo foi uma dificuldade incomum de respirar. Não uma dificuldade em ins­pirar ou expirar; não fiquei sem ar — ao contrário, minha respira­ção mudou de ritmo de repente. Meu diagrama começou a se contrair, forçando o meio do meu corpo a se movimentar para dentro e para fora com grande velocidade, o que resultou em respirações curtas e as mais rápidas que já tive. Eu respirei com a parte mais baixa do pulmão e senti uma pressão grande nos intestinos. Tentei em vão parar os espasmos do meu diafragma, mas por mais que tentasse mais doido ele ficava.

Zuleica me disse que deixasse meu corpo fazer o que fosse necessário, esquecendo de direcioná-lo ou controlá-lo. Eu queria obedecer, mas não sabia como. Os espasmos, que duraram cerca de dez a quinze minutos, diminuíram tão repentinamente quanto tinham aparecido, e foram seguidos por outra sensação estranha e chocante. A princípio senti uma coceira muito especial, uma sensação física que não era nem agradável nem desagradável; era como que um tremor nervoso. Tornou-se muito intensa, a ponto de me forçar a focalizar minha atenção nela a fim de determinar em que parte do meu corpo eu sentia aquilo. Fiquei pasmo ao perceber que não só era uma sensação generalizada em todo o meu corpo físico como fora dele, e ainda assim eu continuava a sentir.

Desconheci a ordem de Zuleica de entrar num bloco de colora­ção que estava se formando bem ao nível dos meus olhos, e continuei explorando totalmente aquela sensação fora de mim. Zuleica deve ter visto o que estava se passando comigo; de repente começou a explicar que a segunda atenção pertencia ao corpo luminoso, assim como a primeira atenção pertencia ao corpo físico. Disse que o ponto onde a segunda atenção se concentrava ficava situado bem onde Juan Tuma tinha descrito na primeira vez em que nos encontramos — aproximadamente uns quarenta e cinco centímetros em frente ao meio do corpo, entre o estômago e o umbigo, e a uns dez centíme­tros à direita.

Zuleica me ordenou que massageasse aquela região, com os dedos das duas mãos, como se estivesse tocando harpa. Assegurou-me que mais cedo ou mais tarde eu acabaria sentindo meus dedos passarem por uma coisa espessa como água, e que finalmente sentiria minha casca luminosa.

À medida que mexia com os dedos o ar tomou-se gradativa­mente mais espesso, até que senti uma espécie de massa. Um prazer físico indefinido tomou conta de mim. Achei que estava tocando num nervo do meu corpo e me senti um tolo ao pensar em coisa tão absurda. Parei.

Zuleica me avisou que se eu não mexesse os dedos ela me daria um soco na cabeça. Quanto mais eu fazia o movimento ondulante mais coceira sentia. Finalmente cheguei a uns doze ou quinze centí­metros do meu corpo. Era como se alguma coisa em mim tivesse encolhido, e eu achei realmente que podia sentir uma fenda. Tive então outra sensação estranha. Estava quase dormindo e ao mesmo tempo estava consciente. Senti um zumbido no ouvido que me fez lembrar um boi bufando; depois senti uma força me fazendo rolar sobre o lado esquerdo, sem me acordar. Fiquei muito bem enrolado, como um charuto, e voltei à coceira depressiva. Minha consciência permaneceu em suspenso, incapaz de acordar, mas tão bem enrolado pela própria que eu tampouco conseguia dormir.

Ouvi a voz de Zuleica me dizendo pata olhar em volta. Não podia abrir os olhos, mas meu sentido tátil me disse que eu estava numa vala, deitado de costas. Estava me sentindo confortável, seguro. Meu corpo estava tão retesado, tão compacto, que eu tinha vontade de não me levantar nunca mais. A voz de Zuleica ordenou que eu ficasse de pé e abrisse os olhos, mas não consegui. Ela disse que eu tinha de orientar meus movimentos; não era mais uma questão de contrair os músculos para me levantar.

Achei que ela estava irritada com a minha lentidão. Percebi que eu estava plenamente consciente, talvez mais consciente do que jamais estivera em toda minha vida. Eu podia pensar racionalmente, mas o mesmo tempo parecia estar dormindo a sono solto. Ocorreu-me que Zuleica me tivesse levado a um estado de profunda hipnose. Fiquei preocupado por um instante, mas depois não liguei mais. Abandonei-me ao sentimento de estar suspenso, flutuando livremente.

Não conseguia ouvir mais nada do que ela dizia. Ou ela tinha parado de falar comigo ou tinha diminuído o som da sua voz. Não queria sair daquele refúgio, pois nunca tinha me sentido tão em paz e tão completo. Fiquei deitado lá, sem vontade de levantar ou de mudar qualquer coisa. Podia sentir o ritmo da minha respiração. Subitamente acordei.

Na minha sessão seguinte Zuleica me disse que eu tinha conse­guido fazer uma fenda na minha luminosidade por mim mesmo, e que isso significava levar um ponto distante da minha casca luminosa para mais perto do meu corpo físico, e portanto mais próximo de controle. Asseverou repetidas vezes que do momento em que o corpo aprende a fazer a fenda, fica mais fácil entrar no sonho. Concordei com ela. Eu tinha adquirido um impulso estranho, a sensação de que meu corpo tinha aprendido instantaneamente a reproduzir. Era uma mistura de bem-estar, segurança, dormência, sem o sentido tátil; ao mesmo tempo estava plenamente acordado, consciente de tudo.

La Gorda disse que o nagual Juan Matus tinha lutado durante anos para criar aquela fenda nela, nas três irmãzinhas e nos Genaros, a fim de dar-lhes a capacidade permanente de focalizar a segunda atenção. Ele tinha lhe dito que normalmente a fenda é criada de uma hora para a outra pelo sonhador, quando é necessário, e então a casca luminosa volta para sua forma original. Mas no caso dos aprendizes, pelo fato deles não terem um líder nagual, a fenda foi criada do lado de fora e era uma característica permanente de seus corpos luminosos, uma. grande ajuda mas também um empecilho. Fazia com que todos ficassem vulneráveis e melancólicos.

Lembrei-me então de que uma vez tinha visto uma fenda nas cascas luminosas de Lydia e Rosa. Achei que ficava na altura da parte superior do lado de fora da coxa direita delas, ou talvez bem na ponta do osso da bacia. La Gorda explicou que eu tinha chutado a fenda da segunda atenção delas e que quase as tinha matado.

La Gorda falou que ela e Josefina tinham morado na casa de Zuleica por vários meses. O nagual Juan Matus entregara-as lá um dia depois de fazer com que elas mudassem os níveis de conscientiza­ção. Ele não lhes disse o que iriam fazer lá, nem o que esperar, simplesmente deixou-as sozinhas no hall da casa dela e foi embora. Elas ficaram sentadas até escurecer, e então Zuleica apareceu. Não chegaram a vê-la, ouviram apenas sua voz, como se estivesse fa­lando de um certo ponto da parede.

Zuleica foi muito exigente desde o momento em que ficou encar­regada delas. Fez com que se despissem ali mesmo e ordenou que ambas se arrastassem para dentro de um saco de algodão grosso e fofo, uma espécie de poncho que estava no chão. O poncho as cobria da ponta do pé até o pescoço. Ordenou então que se sentassem de costas uma para a outra, numa esteira, na mesma alcova em que eu costumava me sentar. Disse que a tarefa delas era olhar no escuro até que começassem a perceber uma cor. Depois de muitas sessões elas começaram, na realidade, a ver cores no escuro, e Zuleica então fez com que se sentassem lado a lado e olhassem para o mesmo ponto.

La Gorda disse que Josefina aprendeu muito rapidamente, e que uma noite ela entrou dramaticamente no bloco vermelho-alaran­jado, quando zuniu para fora do poncho. Pensou que ou Josefina tinha alcançado o bloco de cor ou o bloco de cor tinha-a alcançado. O resultado foi que num instante Josefina tinha saído de dentro do poncho. Zuleica separou-as daí por diante, e la Gorda iniciou seu aprendizado lento e solitário.

O relato de la Gorda me fez lembrar que Zuleica também fizera com que eu me arrastasse para dentro de uma vestimenta fofa. Na verdade, os comandos que ela usava para me ordenar que eu me arrastasse mostrava-me os fundamentos do seu objetivo. Ela me orientava para que eu sentisse a fofura com a minha pele nua, espe­cialmente com a pele da barriga da perna. Repetiu várias vezes que os seres humanos têm um extraordinário centro de percepção do lado de fora da barriga da perna, e que se a pele daquela região pudesse ficar relaxada, o objetivo de nossa percepção seria realçado de forma incrível, impossível de se compreender racionalmente. A roupa era muito macia e quente, e levava a uma sensação extraordinária de agradável relaxamento. Os nervos da barriga da perna ficavam alta­mente estimulados.

La Gorda relatou a mesma sensação de prazer físico. Chegou mesmo a dizer que foi o poder daquele poncho que a ajudou a encon­trar o bloco de cor vermelho-alaranjado. Ficou tão impressionada com a roupa que fez uma igual para ela, mas o efeito não foi o mesmo, embora conseguisse lhe dar consolo e bem-estar. Disse que ela e Josefina acabaram ficando todo seu tempo livre dentro dos ponchos que ela costurara.

Lydia e Rosa também tinham sido colocados dentro da roupa, mas nunca se encantaram com ela em particular. E nem eu.

La Gorda explicou o apego dela e de Josefina ao poncho como uma conseqüência direta de terem sido levadas à cor do sonho en­quanto estavam dentro dele. Falou que eu tinha ficado indiferente a isso pelo fato de não ter entrado na área de coloração — a cor é que tinha vindo a mim. Ela tinha razão. Alguma coisa além da voz de Zuleica ordenou a finalização daquela fase preparatória. Tudo indicava que Zuleica seguira os mesmos passos da minha orientação que na orientação de la Gorda e Josefina. Eu tinha olhado no escuro durante muitas sessões e estava pronto a visualizar o ponto de colora­ção. Na verdade, presenciei toda a sua metamorfose do escuro abso­luto a um bloco definido de brilho intenso, e então fui atingido pela coceira externa, na qual focalizei minha atenção até acabar entrando num estado de vigília repousante. Foi então que fiquei imerso pela primeira vez na coloração vermelho-alaranjado.

Depois de eu ter aprendido a ficar suspenso entre o sono e a vigília, Zuleica pareceu relaxar seu ritmo. Até achei que ela não tinha pressa em me tirar daquele estágio. Deixou-me ficar nele sem interfe­rir, sem nunca me perguntar sobre ele, talvez por sua voz ser só para comandos e não para perguntas. Nós nunca conversamos realmente, pelo menos não como eu conversava com Dom Juan.

Enquanto estava no estágio de vigília repousante, percebi uma vez que era inútil permanecer lá, que por mais que fosse agradável suas limitações eram gritantes. Senti então um tremor no corpo e abri os olhos, ou melhor, meus olhos se abriram por si próprios. Zuleica estava me olhando. Eu me senti um tanto desconcertado. Achei que tinha acordado, e encontrar com Zuleica face a face era coisa que eu não esperava. Tinha me habituado a ouvir apenas sua voz. Também me surpreendeu não ser mais noite. Olhei em volta e vi que não estávamos na casa dela. Então concluí que estava sonhando e acordei.

Zuleica iniciou então uma outra faceta dos seus ensinamentos. Ensinou-me como me mexer. Começou a instrução ordenando-me a colocar minha conscientização no meio do meu corpo. Em mim, o meio do corpo é abaixo do lado de baixo do umbigo. Ela falou que eu varresse o chão com o corpo, isto é, que balançasse a barriga como se uma vassoura estivesse presa a ela. Ao longo de inúmeras sessões tentei fazer o que sua voz ordenava. Ela não me deixava ir para o estágio de vigília repousante. Sua intenção era me guiar a extrair a percepção, varrendo o chão com o meio do meu corpo enquanto estava acordado. Disse que estar na conscientização do lado esquerdo era uma vantagem suficiente para fazer o exercício bem.

Um dia, sem saber por que, consegui ter uma vaga sensação no meu estômago. Não era nada definido, e quando focalizei minha aten­ção nela percebi que era uma sensação de comichão dentro da cavida­de do meu corpo, não exatamente no estômago mas acima dele. Quanto mais eu examinava mais detalhes encontrava. A indefinição da sensação logo se transformou em certeza. Havia uma estranha relação de nervosismo ou sensação de comichão entre o meu plexo solar e a barriga da minha perna direita.

Quando a sensação ficou mais aguda eu involuntariamente levei a coxa direita ao peito. Assim, os dois pontos ficaram tão próximos um do outro quanto permitia a minha anatomia. Tive um calafrio súbito de nervoso e então senti claramente que estava varrendo o chão com o meio do corpo; era uma sensação tátil que senti repetidas vezes quando eu balançava meu corpo ao estar sentado.

Na sessão seguinte Zuleica permitiu que eu entrasse no estágio de vigília repousante. Mas daquela vez o estágio não foi exatamente como tinha sido antes. Parecia haver uma espécie de controle em mim que reduzia meu prazer, controle esse que também me fez focalizar os passos que tinha dado para entrar na vigília. A princípio notei a coceira no ponto da segunda atenção na minha casca lumino­sa. Massageei aquele ponto, passando os dedos sobre ele como se estivesse tocando harpa, e o ponto se afundou no meu estômago. Senti como se estivesse quase sobre a minha pele. Tive uma sensação de comichão do lado de fora da barriga da minha perna direita; era um misto de prazer e dor. A sensação irradiou-se por toda a minha perna e depois pela parte inferior dás costas. Senti minhas nádegas tremerem. Todo o meu corpo ficou petrificado por um tremor nervo­so. Achei que tinha ficado preso numa rede de cabeça para baixo Minha testa e os dedos dos pés pareciam estar se tocando. Fiquei em forma de um U fechado. Depois me senti como se estivesse sendo dobrado em dois e enrolado num lençol. Meus espasmos nervosos é que faziam o lençol se enrolar, comigo no centro. Quando fui todo enrolado não consegui mais sentir meu corpo. Eu era apenas uma consciência amorfa, um espasmo nervoso embrulhado em si próprio. Essa consciência acabou repousando dentro de uma vala, dentro de uma depressão de si mesma.

Compreendi então a impossibilidade de descrever o que ocorria no sonho, Zuleica disse que a conscientização do lado direito e a do esquerdo são embrulhadas juntas. Ambas acabam repousando num único embrulho na fenda, o centro deprimido da segunda atenção. Para se fazer um sonho tem que se manipular o corpo luminoso e o corpo físico. Primeiro, o centro de junção para a segunda atenção tem de ser tornado acessível ao ser empurrado de fora para dentro por outra pessoa, ou sugado de dentro pelo sonhador. Segundo, a fim de deslocar a primeira atenção, os centros do corpo físico locali­zados no meio do corpo e na barriga da perna, especialmente da perna direita, têm de ser estimulados e colocados o mais junto possível um do outro até parecerem estar juntos. Então ocorre a sensação de ser embrulhado e automaticamente a segunda atenção toma a frente.

A explicação de Zuleica, vinda através de ordens, era o modo mais convincente de descrever o que ocorria, pois nenhuma das ex­periências sensoriais envolvidas no sonho faz parte de nosso inventá­rio normal de dados sensoriais. Todos eles me frustravam. A sensa­ção de coceira, um formigamento fora de mim mesmo, era localizada, e por isso a agitação do meu corpo ao senti-la era mínima. A sensa­ção de ser enrolado em mim mesmo, ao contrário, era muito mais perturbadora. Incluía uma série de sensações que deixavam meu cor­po em estado de choque. Fiquei convencido de que a um certo ponto os dedos do pé encostavam na testa, numa posição em que eu não era capaz de ficar. E ainda assim eu sabia, sem a menor sombra de dúvida, que estava dentro de uma rede, pendurado de cabeça para baixo, em forma de pêra, com os dedos do pé encostados na testa. Num plano físico eu ficava sentado e minhas coxas encostavam no peito.

Zuleica disse também que a sensação de ser enrolado como um charuto e colocado dentro de uma fenda da segunda atenção era o resultado da fusão da conscientização da direita e da esquerda em uma só, com a ordem de predominância trocada, tendo a direita a supremacia. Ela me desafiou a ficar atento o mais possível para captar o movimento de reversão, com as duas atenções tornando-se novamente o que normalmente são — a direita dando as rédeas da situação.

Nunca consegui captar as sensações, mas seu desafio me obcecou a tal ponto que eu fiquei preso em hesitações mortais ao me esforçar por observar tudo. Ela teve de retirar seu desafio, ordenando-me que parasse minhas pesquisas, pois tinha outras coisas a fazer.

Zuleica disse que antes de mais nada eu tinha de aperfeiçoar meu comando de me mexer segundo minha vontade. Começou sua instru­ção orientando-me inúmeras vezes a abrir os olhos enquanto estava no estágio de vigília repousante. Tive de me esforçar muito para con­seguir isso. Uma vez meus olhos abriram-se de repente e eu vi Zuleica por cima de mim. Eu estava deitado mas não sabia dizer onde. A luz era extremamente brilhante, como se estivéssemos por baixo de uma forte lâmpada, mas não brilhava diretamente nos meus olhos. Eu podia ver Zuleica sem o menor esforço.

Ela me ordenou que eu ficasse de pé, determinando meu movi­mento. Disse que eu tinha de me impulsionar para cima com o meio do corpo, que eu tinha três tentáculos espessos que podiam ser usados como forquilhas para levantar meu corpo todo.

Tentei de todo modo possível me levantar, mas não consegui. Tive uma sensação de desespero e angústia física semelhante aos pe­sadelos que costumava ter quando era criança, nos quais não conse­guia acordar e ao mesmo tempo estava totalmente acordado, tentan­do desesperadamente gritar.

Zuleica finalmente falou comigo. Disse que eu tinha de seguir uma determinada seqüência e que era uma bobagem e um desperdício ficar aflito e agitado como se estivesse lidando com o mundo do todo dia. Aflição era própria apenas da primeira atenção; a segunda aten­ção era calma por si mesma. Queria que eu repetisse a sensação que tinha tido de varrer o chão com o meio do corpo. Achei que para repetir isso teria de estar sentado. Sem qualquer idéia premeditada sentei-me e fiquei na posição em que estivera quando meu corpo teve aquela sensação pela primeira vez. Alguma coisa se balançou em mim e de repente fiquei de pé. Não pude entender o que fizera para me mover. Achei que se começasse tudo de novo podia captar a seqüên­cia, mas assim que pensei nisso me encontrei novamente deitado. Ao me levantar mais uma vez, percebi que não havia nenhum processo, que para me mover tinha de ter a intenção de me mover, a um nível muito profundo. Em outras palavras, tinha de estar extremamente convencido de que queria me mover; ou talvez ficasse mais claro se dissesse que tinha de estar convencido que precisava me mover.

Uma vez compreendido aquele princípio, Zuleica me fez praticar todos os aspectos concebíveis do movimento volitivo. Quanto mais eu praticava mais claro ficava para mim que o sonho era na verdade um estado racional. Zuleica explicou. Disse que no sonho o lado direito, a conscientização racional, está enrolado dentro da conscien­tização do lado esquerdo, a fim de dar ao sonhador uma sensação de sobriedade e racionalidade; mas que a influência da racionalidade tem de ser mínima e usada apenas como um mecanismo inibidor para proteger o sonhador de empreendimentos excessivos e bizarros.

O próximo passo foi aprender a dirigir meu corpo sonhador. Zuleica propusera, desde a primeira vez em que nos encontramos, a tarefa de olhar para o pátio enquanto estava sentado no caixote. Empenhei-me religiosamente nessa tarefa, às vezes durante horas. Eu estava sempre sozinho na casa de Zuleica. Parecia que nos dias em que ia lá todos tinham saído ou se escondido. O silêncio e a solidão trabalhavam a meu favor, e eu consegui memorizar os deta­lhes do pátio.

Zuleica me apresentou, em seguida, a tarefa de abrir os olhos durante o estagio de vigília repousante para ver o pátio. Levei muitas sessões até conseguir isso. De início abria os olhos e me deparava com ela, e ela, com um movimento de corpo, me fazia pular de volta com uma bola para o estágio de vigília repousante. Num desses pulos eu senti um imenso tremor; alguma coisa localizada nos meus pés subia até meu peito e me fazia tossir; o cenário do pátio à noite soltou-se de mim, como se tivesse saído dos meus brônquios. Parecia o rugido de um animal.

Ouvi a voz de Zuleica chegando a mim num murmúrio fraco. Não conseguia entender o que ela dizia. Tive a vaga impressão de que estava sentado no caixote e tive vontade de me levantar, mas não me senti sólido. Era como se um vento estivesse me varrendo para longe. Então ouvi a voz de Zuleica muito claramente, dizendo que eu não me mexesse. Tentei ficar imóvel, mas uma força me puxou e eu acordei na alcova do hall.

Depois de cada sessão de sonho na casa de Zuleica, Dom Juan me esperava no hall negro. Levava-me para fora da casa e me fazia mudar os níveis de conscientização. Naquele dia era Silvio Manuel quem estava lá. Sem dizer palavra, me colocou dentro de um arreio e me alçou até as vigas do telhado. Fiquei lá até meio-dia, quando Dom Juan entrou e me fez descer. Explicou que ficar sem tocar no chão durante um certo tempo faz com que o corpo fique sintonizado, e que é essencial fazer isso antes de iniciar a viagem perigosa que eu iria empreender dentro em pouco.

Levei muitas outras sessões de sonho para aprender finalmente a abrir os olhos e ver Zuleica ou ver o pátio escuro. Percebi então que ela própria tinha estado sonhando. Nunca estivera em pessoa por trás de mim na alcova do hall. Eu estava certo na primeira noite, quando achei que minhas costas se encostavam na parede. Zuleica era mera­mente uma voz no sonho.

Durante uma de minhas sessões de sonho, quando abri os olhos deliberadamente para ver Zuleica, fiquei chocado de ver la Gorda e Josefina juntas com Zuleica, ao meu lado. A fase final dos seus ensinamentos terminou aí. Zuleica ensinou a nós três a viajar com ela. Disse que nossa primeira atenção era presa às emanações da terra, enquanto que a segunda atenção era presa às emanações do Universo. O que queria dizer com isso era que o sonhador, por defini­ção, estava além dos limites das preocupações da vida diária. Como viajante do sonho, então, a última tarefa de Zuleica com la Gorda, Josefina e eu foi sintonizar nossa segunda atenção para segui-la nas suas viagens ao desconhecido.

Em sessões sucessivas a voz de Zuleica. me disse que sua “obses­são” iria me levar a um certo lugar; que em matéria da segunda atenção a obsessão do sonhador serve como um guia, e que a dela estava focalizada num lugar real além desta terra. De lá iria me chamar e eu teria de usar sua voz como uma linha que servisse para me puxar.

Nada ocorreu durante duas sessões; a voz de Zuleica tornou-se cada vez mais fraca, e eu fiquei preocupado de não ser capaz de segui-la. Ela não me dissera o que fazer. Senti também um peso fora do comum; não conseguia quebrar uma força que me atava e que não permitia que eu saísse do estágio de vigília repousante.

Na terceira sessão, abri subitamente os olhos sem fazer força alguma. Zuleica, la Gorda e Josefina olhavam para mim, e eu estava de pé ao lado delas. Percebi imediatamente que estávamos em algum lugar completamente desconhecido. O aspecto mais óbvio de lá era uma luz indireta brilhante. Todo o cenário era inundado pela luz branca, poderosa, como uma luz de gás neon. Zuleica sorria como que nos convidando a olhar em volta. La Gorda e Josefina pareciam tão cautelosas quanto eu, dando olhadas furtivas para mim e para Zuleica. Zuleica nos fez um sinal para nos movermos. Estávamos ao ar livre, no meio de um círculo brilhante. O chão parecia duro, de rocha escura, e ainda assim refletia uma luz branca ofuscante vinda de cima. O estranho é que embora eu soubesse que a luz era intensa demais para meus olhos, ela não os feria quando eu olhava para cima para ver de onde vinha. Era o sol. Eu estava olhando o sol direta­mente, de um branco intenso, talvez devido ao fato de estar sonhando.

La Gorda e Josefina também olhavam para o sol, aparentemente sem ferir sua visão. De repente me senti amedrontado. A luz me parecia estranha. Era uma luz impiedosa; parecia nos atacar, criando um vento em sua volta. Não sentia nenhum calor, contudo. Achei que a luz era maligna. Em uníssono, la Gorda, Josefina e eu ficamos bem juntos de Zuleica, como crianças assustadas. Ela nos abraçou, e então a luz branca e brilhante começou a diminuir de gradação até que desapareceu completamente. Em seu lugar surgiu uma luz suave, confortante e amarelada.

Fiquei ciente então de que não estávamos neste mundo. O chão era da cor de terracota. Não havia montanhas, mas onde estávamos não era plano tampouco. O chão era rachado e crestado. Parecia um mar seco e áspero de terracota. Eu podia ver tudo à minha volta, como se estivesse no meio do mar. Olhei para cima; o céu tinha perdido o brilho assustador. Era escuro, mas não era azul. Percebi naquele instante que estávamos num mundo com dois sóis, duas estrelas. Um era enorme e estava além do horizonte, o outro era menor ou talvez mais distante.

Queria fazer perguntas, andar por ali e examinar as coisas. Zuleica nos fez sinal para relaxarmos, esperarmos com paciência, mas alguma coisa parecia estar nos puxando. Subitamente la Gorda e Josefina desapareceram, e eu acordei.

Depois daquele dia nunca mais voltei à casa de Zuleica. Dom Juan me fazia mudar os níveis de conscientização em sua própria casa ou onde estivéssemos, e eu entrava no sonho. Zuleica, la Gorda e Josefina estavam sempre me esperando. Voltamos ao mesmo cená­rio extraterreno várias vezes, até ficarmos inteiramente familiarizados com ele. Sempre que podíamos íamos lá à noite, depois de ter termi­nado o período de brilho, a tempo de vermos o nascimento no hori­zonte de um corpo celestial gigantesco, coisa de tal magnitude que mesmo quando irrompia sobre a linha denteada do horizonte cobria pelo menos metade dos cento e oitenta graus com que nos defron­távamos. O corpo celestial era belo, e sua ascensão no horizonte era tão maravilhosa que eu tinha vontade de ficar lá para o resto da vida só para presenciar aquela vista.

O corpo celestial ocupava quase que todo o firmamento quanto atingia o zênite. Invariavelmente nos deitávamos de costas a fim de olhá-lo. Tinha configurações consistentes, que Zuleica nos ensinou a reconhecer. Percebi que não era uma estrela. Sua luz era refletida; devia ser um corpo opaco, pois a luz refletida era suave em relação ao seu tamanho monumental Havia manchas enormes, de um marrom imutável, na sua superfície amarelo-açafrão.

Zuleica nos levava sistematicamente a viagens indescritíveis. La Gorda disse que Zuleica levava Josefina ainda mais longe e em pro­fundezas maiores porque Josefina era, como ela própria, um tanto louca; nenhuma das duas tinha aquele cerne de racionalidade que dá sobriedade ao sonhador — dessa forma, não tinham barreiras e nem interesse em descobrir causas ou razões racionais para nada.

A única coisa que Zuleica me disse sobre nossa viagem que aceitei como uma explicação foi que o poder dos sonhadores de focalizar a segunda atenção transformava-os em atiradeiras. Quanto mais fortes e impecáveis fossem os sonhadores, mais longe projetariam a segun­da atenção no desconhecido e mais tempo duraria a projeção de seus sonhos.

Dom Juan falou que minhas viagens com Zuleica não eram uma ilusão, e que tudo o que tinha feito com ela era um passo para o controle da segunda atenção; em outras palavras, Zuleica estava me ensinando a tendência de percepção daquele outro reinado. Ele não podia explicar, contudo, a natureza exata daquelas viagens. Ou talvez não quisesse se comprometer. Disse que se tentasse explicar a tendên­cia de percepção da segunda atenção em termos da tendência de per­cepção da primeira, iria só se atrapalhar com as palavras. Queria que eu chegasse à minha própria conclusão, e quanto mais eu pensava em toda a coisa mais claramente percebia que sua relutância tinha razão de ser.

Sob a orientação de Zuleica, durante suas instruções da segunda atenção, eu fiz visitas a mistérios certamente além do escopo da minha razão, mas obviamente dentro das possibilidades da minha conscientização total. Aprendi a viajar para algum lugar incompreen­sível, e acabei, como Emilito e Juan Tuma, tendo meus próprios “contos de eternidade”.

 

               Florinda

La Gorda e eu concordávamos plenamente que ao término dos ensinamentos de Zuleica sobre as complexidades do sonho nós acei­tamos o fato inegável do regulamento ser um mapa, de haver outra conscientização oculta dentro de nós, e de ser possível entrar nela. Dom Juan tinha realizado o que previa o regulamento.

O regulamento determinava que sua próxima manobra seria me apresentar a Florinda, a única guerreira que eu ainda não conhecera. Dom Juan disse que eu teria de ir à casa dela sozinho, pois o que sucedesse entre mim e Florinda não era de interesse dos outros. Disse que Florinda seria minha guia pessoal, exatamente como se eu fosse um nagual como ele. Ele tivera aquele tipo de relacionamento com a guerreira do grupo do seu benfeitor que correspondia a Florinda.

Deixou-me um dia na porta da casa de Nelida e falou que eu entrasse, pois Florinda estava me esperando lá dentro.

— É uma honra conhecê-la — disse para a mulher que estava no hall.

— Eu sou Florinda — disse ela.

Olhamos um para o outro em silêncio. Eu estava aterrado. Meu estado de conscientização estava extremamente aguçado. Nunca mais tive sensação igual.

— É um belo nome — consegui dizer, querendo dizer muito mais.

A pronúncia suave e alongada das vogais espanholas tornava seu nome fluido e sonoro; especialmente o i depois do r. O nome não era raro; só que eu nunca conhecera ninguém até aquela data que fosse a essência daquele nome. A mulher com quem eu deparava combinava com ele na perfeição, ou talvez ela própria tivesse feito sua pessoa combinar com ele.

Fisicamente ela era a cópia fiel de Nelida, parecendo apenas ser mais segura, mais poderosa. Era bem alta e esguia, com a pele cor de azeitona das pessoas do Mediterrâneo. Espanhola ou talvez fran­cesa. Era idosa, mas não era alquebrada e nem envelhecida. Seu corpo parecia ágil e magro, as pernas eram longas, as feições angulosas, boca pequena, um lindo nariz, olhos escuros e cabelos brancos trançados. Não tinha papada e nem dobras na pele do rosto ou do pescoço. Era como se a tivessem preparado para parecer velha.

Fazendo uma retrospectiva do meu primeiro encontro com ela, lembro-me de uma coisa totalmente fora do assunto mas que me faz recordar de Florinda. Vi uma vez num semanário a reimpressão de uma fotografia de vinte anos atrás de uma atriz de Hollywood, jovem naquela época, e envelhecida vinte anos para fazer o papel de uma senhora de idade. Ao lado daquela fotografia, o jornal imprimia uma fotografia atual da mesma atriz, com seu aspecto real vinte anos depois de levar uma vida difícil. Florinda, no meu julgamento subje­tivo, era como a primeira fotografia da atriz de cinema, uma jovem caracterizada para parecer mais velha.

— Deixe eu ver você — disse ela me dando um beliscão. — Não parece grande coisa. Suave. Mole de coração, até aposto.

Sua franqueza me fez lembrar a de Dom Juan, assim como o brilho interior dos seus olhos. Ocorreu-me, lembrando-me de minha vida com ele, que seus olhos estavam sempre em repouso. Não se percebia qualquer agitação neles. Não que os olhos de Dom Juan fossem bonitos. Já vi olhos maravilhosos, mas nunca me disseram nada. Os olhos de Florinda, como os dele, me davam a impressão de terem presenciado tudo o que havia a ser visto; eram calmos mas não brandos. A agitação tinha sido encaminhada para dentro e se tornara alguma coisa que eu só podia descrever como vida interior.

Florinda atravessou comigo a sala de visita e chegou a um pátio coberto. Sentamos numas cadeiras confortáveis parecidas a um sofá. Seus olhos pareciam procurar alguma coisa no meu rosto.

— Sabe quem eu sou e o que devo fazer por você? — per­guntou.

Disse que tudo o que sabia sobre ela e sua relação comigo era o que Dom Juan tinha falado, por alto. Durante minha explicação chamei-a de Dona Florinda.

— Não me chame de Dona Florinda — disse ela com um gesto infantil de aborrecimento e embaraço. — Ainda não estou tão velha, ou tão respeitável.

Perguntei como queria que a chamasse.

— Só Florinda, é o bastante — disse. — Quanto ao que eu posso lhe dizer que sou uma guerreira que conhece os segredos da espreita. E quanto ao que devo fazer por você, posso lhe dizer que vou ensinar-lhe os sete princípios da espreita, os três primeiros princípios do regulamento para as espreitadoras e as três pri­meiras manobras da espreita.

Acrescentou que o normal era que cada guerreiro esquecesse o que acontece quando a interação está no lado esquerdo, e que eu levaria anos para captar tudo o que ela iria me ensinar. Disse que suas instruções eram um mero começo, e que algum dia iria terminar de me ensinar, cm condições diferentes.

Perguntei se ela se importava que eu lhe fizesse perguntas.

— Faça como quiser — falou. — Tudo o que preciso de você é que se comprometa a praticar. Afinal de contas, você sabe, de uma forma ou de outra, tudo o que vamos discutir. Seu defeito é que você não tem autoconfiança e não está disposto a fazer do seu conhecimento um poder. O nagual, por ser homem, deixou-o hipnotizado. Você não consegue agir por si próprio. Só uma mulher pode libertá-lo disso. Vou começar lhe contando a história da minha vida, e ao fazer isso as coisas vão se tornar mais claras para você. Terei de lhe contar aos poucos, por isso você terá de vir aqui freqüentemente.

Sua aparente disposição de me contar sua vida me pareceu estra­nha, considerando a reticência de todos os outros em revelar qualquer coisa pessoal sobre si próprio. Depois de anos com eles eu aceitava seus métodos tão sem questionamento que a intenção voluntária dela de me revelar sua vida pessoal me parecia uma excentricidade. Sua informação me deixou imediatamente em guarda.

— Desculpe — disse. — Você falou que vai me contar sobre sua vida pessoal?

— Por que não? — perguntou ela.

Respondi, usando a explicação que me fora dada por Dom Juan sobre a força negativa da história pessoal e da necessidade que o guerreiro tinha de apagá-la. Terminei dizendo que ele tinha me proi­bido de falar qualquer coisa sobre a minha vida.

Ela riu com uma voz alta de falsete. Parecia encantada.

— Isso só se aplica aos homens — disse. — O não fazer da sua vida pessoal é contar histórias sem fim, mas nenhuma sobre sua vida real. Como homem, você tem uma história sólida por trás. Uma família, amigos, conhecidos, e todos eles com uma idéia definida sua. Como homem você é responsável. Não pode desaparecer tão facilmente. Para se apagar teria de ter muito trabalho. Meu caso é dife­rente. Sou mulher, o que me traz muita vantagem. Não sou responsá­vel. Você não sabe que as mulheres não são responsáveis?

— Não entendo o que quer dizer com responsável — falei.

— Quero dizer que a mulher pode desaparecer facilmente — replicou. — A mulher pode se casar, por exemplo. Ela pertence ao marido. Numa família com muitas filhos, as filhas são descartadas muito cedo. Ninguém conta com elas, e há possibilidade de umas desaparecerem, sem deixarem vestígio e esses desaparecimentos serem facilmente aceitos.

“O filho, ao contrário, é alguém com quem se conta. Não é fácil para o filho eclipsar-se e desaparecer. E mesmo se fizer isso, deixará vestígios. Ele sente-se culpado se desaparecer. A filha não.

“Quando o nagual o treinou a ficar de boca fechada em relação à sua vida pessoal, pretendia ajudá-lo a superar seu sentimento de ter cometido um erro com sua família e amigos, que contavam com você de uma forma ou de outra.

“Depois de toda uma vida de luta o guerreiro termina apagando-se, naturalmente, mas essa luta tem um preço para o homem. Ele se torna misterioso, sempre em guarda contra si próprio. A mulher já está preparada para se desintegrar no ar. Na verdade, espera-se isso dela.

“Como mulher, não sou obrigada ao segredo. Não dou a mínima para isso. Segredo é o preço que vocês homens têm de pagar por serem importantes para a sociedade. A luta é só para os homens, porque eles se ressentem de terem de se apagar e encontrariam modos curiosos de surgirem em algum lugar, de alguma forma. Veja o seu exemplo; você vive fazendo conferências.”

Florinda me punha nervoso, de alguma forma especial. Ficava muito irrequieto na sua presença. Admitiria sem hesitar que Dom Juan e Silvio Manuel também me punham nervoso e apreensivo, mas era um sentimento diferente. Eu tinha na verdade medo deles, espe­cialmente de Sílvio Manuel. Ele me apavorava, mas mesmo assim eu tinha aprendido a viver com o meu pavor. Florinda não me assustava. Meu nervoso era mais no sentido de me sentir aborrecido, ameaçado pelo seu savoir faire.

Ela não me olhava como Dom Juan ou Silvio Manuel. Eles sempre tinham os olhos fixos em mim até que eu virasse a cabeça para o lado, num gesto de submissão. Florinda só me olhou de relance. Seus olhos se moviam continuamente de uma coisa para outra. Parecia examinar não só os meus olhos como todos os milíme­tros do meu rosto e do meu corpo. Enquanto falava olhava rapida­mente para meu rosto ou minhas mãos, ou para os meus pés ou para o telhado.

— Eu o deixo sem jeito, não é? — perguntou ela.

Sua pergunta me pegou totalmente desprevenido, e eu ri. Seu tom não era absolutamente ameaçador.

— Deixa — respondi.

— Oh, é muito simples — continuou ela. — Você está acostu­mado a ser homem. A mulher para você é uma coisa feita para o seu benefício. A mulher para você é uma burra. E o fato de você ser homem e ser o nagual tornam as coisas ainda mais difíceis.

Senti-me na obrigação de me defender. Achei que ela era uma senhora muito cabeçuda e quis lhe dizer isso. Comecei em grande forma mas fracassei quase que imediatamente, quando ouvi sua risada. Era uma risada alegre e jovial. Dom Juan e Dom Genaro costumavam rir de mim todo o tempo e a risada deles também era jovial, mas a de Florinda tinha uma vibração diferente. Sua risada era sem pressa, sem pressão.

— Acho melhor irmos para dentro — disse ela. — Não devemos nos distrair. O nagual Juan Matus já andou com você por aí, já lhe mostrou o mundo; isso foi importante para o que ele tinha a dizer para você. Eu tenho outras coisas para falar, que requerem outros arranjos.

Sentamos num sofá de couro, numa saleta fora do pátio. Senti-me mais à vontade dentro de casa. Ela começou logo a contar a história da sua vida.

Disse que tinha nascido numa cidade bastante grande do México, de uma família abastada. Como era filha única, seus pais a mimaram desde o momento em que nasceu. Sem qualquer indício de falsa modéstia, Florinda admitiu que tinha sido sempre consciente da sua beleza. Disse que beleza é um demônio que se desenvolve e prolifera quando admirada. Assegurou-me que podia dizer, sem sombra de dúvida, que aquele demônio é o pior para ser derrotado, e que se eu olhasse em volta à procura das pessoas bonitas encontraria os seres mais desgraçados possíveis.

Não quis discutir com ela, mas por outro lado tinha um grande desejo de lhe dizer que ela era um tanto dogmática. Ela deve ter captado meus sentimentos, pois piscou para mim.

— São desgraçados, é bom acreditar — continuou. — Faça uma tentativa com eles. Não concorde com a idéia de que eles são bonitos, e por isso importantes, e então vai entender o que quero dizer

Ela falou que não podia culpar totalmente a seus pais ou a ela própria por ser tão convencida. Todos à sua volta tinham conspirado desde a sua infância para fazê-la sentir-se importante e especial.

— Quando eu tinha quinze anos — continuou — achava que eu era a coisa mais importante que passara pela terra. Todos diziam isso, especialmente os homens.

Confessou que ao longo da sua adolescência tinha aceitado a atenção e adulação de pilhas de admiradores. Aos dezoito anos, escolheu criteriosamente o melhor marido possível entre nada menos de onze sérios pretendentes. Casou-se com Celestino, homem de posses, quinze anos mais velho que ela.

Florinda descreveu sua vida de casada como um paraíso na terra. Ao enorme círculo de amigos que já tinha acrescentou os amigos de Celestino O resultado total foi uma vida de feriado permanente.

Sua felicidade, entretanto, durou apenas seis meses, que passa­ram voando. Tudo terminou de um modo súbito e brutal, quando ela contraiu uma doença misteriosa e deformante. Seu pé, tornozelo e batata da perna esquerdos começaram a inchar. A forma da sua linda perna foi perdida: a inchação tornou-se tão grande que os tecidos da pele começaram a estourar e dar bolhas. Toda a parte de baixo da perna, a partir do joelho, ficou tomada de escaras, com uma secreção horrível. A pele ficou dura. A doença foi diagnosticada como elefantíase. As tentativas dos médicos em curar o mal foram dolorosas e vãs, e a conclusão final deles foi de que só na Europa havia centros médicos adiantados o suficiente, com possibilidade de realizar uma cura.

Em questão de três meses o paraíso de Florinda tinha se tornado um inferno. Desesperada e em verdadeira agonia ela preferia morrer a continuar vivendo daquela forma. Seu sofrimento era tão patético que um dia uma empregada, não agüentando mais, confessou-lhe que tinha sido incumbida, pela antiga amante de Celestino, de colocar uma certa mistura na comida dela — um veneno preparado por feiticeiros. A empregada, em ato de contrição, prometeu levá-la a uma curan­deira, considerada a única pessoa capaz de cortar aquele veneno.

Florinda deu uma risadinha lembrando-se do seu dilema. Ela fora criada como católica devota. Não acreditava em bruxaria ou em curandeiros índios, mas sua dor era tão intensa e sua doença tão séria que estava disposta a tentar tudo. Celestino opôs-se violenta­mente. Queria entregar a empregada às autoridades. Florinda interce­deu, não tanto por pena mas por medo de não conseguir encontrar a curandeira sozinha.

Florinda parou de súbito, e disse que eu tinha de ir embora. Se­gurou-me pelo braço e levou-me até a porta como se eu fosse um grande e velho amigo. Explicou que eu estava exausto, porque a conscientização do lado esquerdo é uma condição especial e frágil, e que tem de ser usada com parcimônia. Certamente não é um es­tado de poder. A prova era que eu quase tinha morrido quando Silvio Manuel tentara reunir minha segunda atenção, forçando-me a entrar corajosamente nela. Disse que não há nenhum meio pos­sível de ordenarmos a alguém ou a nos mesmos reunir conhecimen­to. É um processo lento; o corpo, na hora certa e em circunstâncias apropriadas de impecabilidade, reúne seu conhecimento sem a inter­ferência do desejo.

Ficamos de pé na porta da frente por algum tempo, falando de coisas triviais e agradáveis. De repente ela disse que o nagual Juan Matus tinha me mandado para lá naquele dia porque sabia que seu tempo na terra estava chegando ao fim. As duas formas de instrução que eu tinha recebido, de acordo com o plano genial de Silvio Manuel, tinham sido completadas. Tudo o que estava pendente era o que ela tinha a me dizer. Enfatizou que não ia me dar propriamente uma instrução, mas um estabelecimento de ligação minha com ela.

 

Na próxima vez em que Dom Juan me levou para ver Florinda, logo antes de me deixar na porta repetiu o que ela me dissera, que estava se aproximando o tempo dele e de seu grupo entrarem na terceira atenção. Antes que eu pudesse lhe fazer alguma pergunta, ele me empurrou para dentro da casa. Seu empurrão me mandou não só para dentro da casa como para meu estado mais alerta de conscien­tização. Eu vi a parede de névoa.

Florinda estava de pé no hall, como se estivesse esperando que Dom Juan me empurrasse para dentro. Pegou no meu braço e me levou em silêncio para a sala de visita. Sentamo-nos. Eu queria come­çar a conversar mas não conseguia falar. Ela explicou que um empur­rão de um guerreiro impecável, como o nagual Juan Matus, pode causar uma mudança para outra área de conscientização. Disse que meu erro todo o tempo fora acreditar que os métodos não eram importantes. O método de empurrar um guerreiro para outro estado de conscientização é válido apenas se os dois participantes, especial­mente o que empurra, são impecáveis e impregnados de poder pessoal.

O fato de eu estar vendo a parede de névoa me fez ficar muito nervoso, a um nível físico. Meu corpo se sacudiu incontrolavelmente. Florinda falou que ele estava se sacudindo porque tinha aprendido a ansiar por atividade durante aquele estado de conscientização, e que ele podia aprender também a concentrar melhor sua atenção mais aguçada no que estivesse sendo falado do que no que estivesse sendo feito.

Disse-me então que me colocavam na conscientização do lado esquerdo como um artifício. Forçando-me a um estado de elevada conscientização e deixando que eu interagisse com os seus guerreiros só naquele estado, o nagual Juan Matus estava me garantindo que eu teria um ponto ao qual me prender. Disse que a estratégia dele consistia em cultivar uma pequena parte do outro eu, preenchendo-a deliberadamente com memórias de interação. As memórias são esque­cidas apenas para ressurgirem um dia, a fim de servirem como um posto racional de onde partir para a vastidão incomensurável do outro eu.

Como eu estava tão nervoso, ela se propôs a me acalmar, conti­nuando com a história da sua vida. Esclareceu que não era realmente a história da sua vida como mulher do mundo, mas a história de como uma mulher miserável foi ajudada a se tornar guerreira.

Disse que quando se decidiu a ir ver a curandeira não houve nada que a detivesse. Saiu carregada numa maca pela empregada e por quatro homens, para a viagem de dois dias que mudou o curso de sua vida. Não havia estradas. A região era montanhosa e os homens tiveram de carregá-la nas costas quase que o tempo todo.

Chegaram à casa da curandeira ao anoitecer. O lugar era bem iluminado e havia muitas pessoas na casa. Florinda disse que um velho gentil lhe falou que a curandeira estava passando o dia fora, tratando de um doente. O homem parecia muito bem informado das atividades da curandeira, e Florinda achou fácil conversar com ele. Ele era solícito e confessou que ele próprio era um doente. Descre­veu sua doença como um problema incurável que o fez esquecer o mundo. Conversaram amigavelmente até tarde. O velho era tão prestativo que chegou a dar sua cama para Florinda para que ela pudesse descansar e esperar até o dia seguinte, quando a curandeira voltasse para casa.

De manhã Florinda disse que acordou subitamente com uma dor aguda na perna. Uma mulher mexia em sua perna, pressionando-a com um pedaço de madeira lustrosa.

— A curandeira era uma mulher muito bonita — continuou Florinda. — Deu uma olhada na minha perna e sacudiu a cabeça.

“— Sei quem lhe fez isso! — disse. — Ele deve ter sido muito bem pago, ou deve ter pensado que você era um ser humano impres­tável. Qual das duas coisas você acha que foi?”

Florinda riu. Achou que ou a curandeira era maluca ou estava sendo rude. Não podia imaginar que ninguém no mundo acreditasse que ela fosse um ser imprestável. Embora estivesse com uma dor terrível, avisou à mulher, em poucas palavras, que era uma pessoa rica e importante, e não era nenhuma boba.

Florinda lembrou-se que a curandeira mudou de atitude na mesma hora. Pareceu ter ficado com medo. Dirigiu-se a ela respeito­samente como “Senhorita” e levantou-se da cadeira, mandando que todos saíssem do quarto. Quando ficaram sozinhas sentou-se sobre o peito de Florinda e empurrou sua cabeça para trás, por cima da borda da cama. Florinda falou que lutou contra ela, achando que ia ser morta. Tentou gritar para alertar os empregados, mas a curandei­ra cobriu sua boca e tampou seu nariz. Ela ficou sem ar e teve de respirar pela boca aberta. Quanto mais a curandeira pressionava seu peito, e tampava seu nariz, mais ela abria a boca. Quando percebeu o que a curandeira estava realmente fazendo, já tinha bebido o líquido imundo, de uma garrafa grande, que lhe tinha sido enfiado pela boca aberta. Florinda comentou que a curandeira foi tão hábil que ela nem ao menos engasgou, apesar da sua cabeça estar balan­çando por cima da borda da cama.

— Bebi tanto líquido que estava a ponto de ficar enjoada — continuou Florinda. — Ela me fez sentar e olhou bem dentro dos meus olhos sem piscar. Eu queria pôr o dedo na garganta para vomi­tar. Ela me esbofeteou até que meus lábios ficaram feridos. Uma índia me esbofeteando! Tirando sangue dos meus lábios! Nem meu pai nem minha mãe jamais tinham me posto a mão. Minha surpresa foi tanta que me esqueci do enjôo de estômago.

“Ela chamou os meus criados e lhes disse para me levarem para casa. Depois debruçou-se por cima de mim, pondo a boca no meu ouvido para que ninguém a ouvisse:

“Se você não voltar dentro de nove dias, sua idiota”, murmurou, “vai inchar como um sapo e implorar a Deus para morrer”.

Florinda disse que o líquido tinha irritado sua garganta e suas cordas vocais. Não conseguia dizer uma palavra. Isso, entretanto, era o de menos. Quando chegou em casa, Celestino a estava esperando num estado frenético. Incapaz de falar, Florinda só pôde observá-lo. Notou que ele estava com raiva, não por se preocupar com sua saúde, mas com sua posição de homem rico e de status social. Não agüenta­va ser visto por seus amigos influentes como apelando para curandeiros índios. Estava enfurecido, gritando que iria dar queixa aos quartéis-generais do exército para que seus homens prendessem a curandeira e a trouxessem para a cidade para ser açoitada e posta na prisão. Suas ameaças não eram vãs; realmente pressionou um coman­dante militar a enviar uma patrulha ao encalço da curandeira. Os soldados voltaram uns dias depois dizendo que a mulher tinha fugido.

Florinda foi tranqüilizada pela sua empregada, que lhe assegurou que a curandeira estaria esperando por ela se ela quisesse voltar. Embora a inflamação da garganta persistisse a ponto dela não poder comer nada sólido e quase não poder engolir líquidos, Florinda ficou ansiosa pelo dia de voltar a ver a curandeira. O remédio tinha melho­rado sua dor na perna.

Quando informou Celestino de suas intenções, ele ficou furioso e arranjou ajuda para pôr fim àquele disparate. Ele e três homens de sua confiança foram a cavalo na frente dela.

Florinda disse que quando chegou à casa da curandeira pensou que iria encontrá-la morta, mas ao invés disso encontrou Celestino sentado sozinho. Tinha mandado os homens a três lugares diferentes da vizinhança, com ordem de trazer a curandeira, por força se fosse necessário. Florinda viu o mesmo velho que tinha encontrado da vez anterior; ele tentava acalmar seu marido, assegurando-lhe que um dos seus homens estaria de volta em breve com a mulher.

Assim que Florinda foi colocada numa cama na varanda da frente, a curandeira saiu da casa. Começou a insultar Celestino, xingando-o, gritando obscenidades, até que ele ficou tão enraivecido que correu para bater nela. O velho segurou-o e pediu-lhe que não batesse. Implorou de joelhos, mostrando que ela era uma velha. Celestino não se comoveu. Disse que iria lhe dar uma surra de chico­te, apesar da sua idade. Adiantou-se para agarrá-la mas parou, frio de medo. Seis homens de aspecto horrível saíram de dentro do mato bramindo seus facões. Florinda falou que Celestino ficou congelado de medo. Parecia um cadáver. A curandeira chegou perto dele e lhe disse que ou ele deixava que ela lhe desse uma chicotada na nádega ou seus ajudantes o fariam em pedaços. Orgulhoso como era, ele se abaixou com submissão para ser chicoteado. A curandeira, em poucos minutos, tinha-o reduzido a um homem indefeso. Ela riu na sua cara. Sabia que ele estava encurralado e deixou que se afundasse. Ele tinha ido ao seu encalço, como imbecil que era, embriagado por suas pró­prias idéias de poder.

Florinda olhou para mim e sorriu, ficando em silêncio por um instante.

— O primeiro princípio da arte de espreitar é que os guerrei­ros escolhem seu campo de batalha — disse. — Um guerreiro nunca entra na batalha sem saber o que o cerca. A curandeira tinha me mostrado, na sua batalha com Celestino, o princípio da espreita. Depois ela veio para onde eu me encontrava deitada. Eu estava chorando. Era a única coisa que podia fazer. Ela pareceu preocupada: cobriu meus ombros com o cobertor, sorriu e piscou o olho para mim. “O trato continua — disse. — Volte assim que puder, se quiser viver. Mas não traga seu mestre com você, sua putinha. Venha com os que forem absolutamente necessários”.

Florinda fixou os olhos em mim por algum tempo. Pelo seu silêncio concluí que ela esperava comentários da minha parte.

— Descartar tudo o que for necessário é o princípio da arte de espreitar — disse ela, sem me dar tempo de dizer nada.

Seu relato tinha me absorvido tanto que eu não notara que a parede de névoa tinha desaparecido, ou quando tinha desaparecido. Simplesmente percebi que não estava mais lá. Florinda levantou-se da cadeira e me levou até a porta. Ficamos lá algum tempo, como tínhamos feito no final do nosso primeiro encontro.

Florinda disse que a raiva de Celestino também permitira à curandeira demonstrar ao seu corpo, e não à sua razão, os três primeiros princípios do regulamento dos espreitadores. Embora sua cabeça estivesse inteiramente concentrada em si própria já que nada existia para ela a não ser dor física e angústia de perder sua beleza, seu corpo tinha percebido o que acontecera e só precisara de uma pequena recordação mais tarde para pôr tudo nos devidos lugares.

— Os guerreiros não têm o mundo para os amortizar, portanto necessitam do regulamento — continuou. — No entanto, o regula­mento dos espreitadores se aplica a todos.

“A arrogância de Celestino foi sua grande falha e o início da minha instrução e libertação. Sua auto-importância, como a minha. nos forçava a acreditar que estávamos praticamente acima de todos. A curandeira nos trouxe à realidade do que éramos — nada.

“O primeiro preceito do regulamento é que tudo que nos rodeia é de um mistério insondáveis

“O segundo preceito é que devemos tentar desvendar esses mis­térios, mas sem esperar jamais conseguir isso.

“O terceiro, é que um guerreiro, ciente dos mistérios insondáveis que o cercam e ciente do seu dever de tentar desvendá-los, ocupa seu lugar certo entre os mistérios e vê a si mesmo como um deles. Conse­qüentemente, para um guerreiro o mistério de ser não tem fim, seja ser uma pedra, uma formiga ou ele próprio. Essa é a humildade de um guerreiro. Uma pessoa é igual a tudo.”

Houve um silêncio longo e forçado. Florinda sorriu, brincando com a ponta de sua longa trança, e disse que era o bastante para mim.

Na terceira vez em que fui vê-la, Dom Juan não me deixou na porta, mas entrou comigo. Todos os membros do seu grupo estavam reunidos na casa, e saudaram-me como se eu estivesse voltando de uma longa viagem. Foi um acontecimento raro; integrou Florinda com os restantes, o que aconteceu pela primeira vez comigo presente.

 

Na próxima vez em que fui à casa de Florinda, Dom Juan me empur­rou inesperadamente como fizera da vez anterior. Meu choque foi imenso. Florinda me esperava no hall. Eu tinha entrado instantanea­mente no estado que me permitia ver a parede de névoa.

— Já lhe contei como os princípios da arte de espreitar me foram mostrados — disse ela, assim que me sentei no sofá da sala de visita. — Agora você deve fazer o mesmo comigo. Como o nagual Juan Matus os mostrou a você?

Eu lhe disse que não conseguia me lembrar de um momento para o outro. Tinha de pensar, e não estava conseguindo. Meu corpo estava assustado.

— Não complique as coisas — disse ela em tom de comando. — Tente ser simples. Use toda a concentração de que é capaz para decidir se entra ou não na batalha, pois toda batalha é uma batalha pela vida. Este é o terceiro princípio da arte de espreitar. O guerreiro tem de estar disposto e pronto a tomar sua última posição a um certo momento. Mas não de um modo atabalhoado.

Eu simplesmente não conseguia organizar meus pensamentos. Estiquei as pernas e me deitei no sofá. Respirei fundo para relaxar o meio do corpo, que parecia estar cheio de nós.

— Muito bem — falou Florinda. — Vejo que está aplicando o quarto princípio da arte de espreitar. Relaxe, solte-se, não tenha medo de nada. Só então os poderes que nos guiam abrem o caminho e nos ajudam. Só então.

Lutei para me lembrar como Dom Juan me mostrara os princí­pios da arte de espreitar. Por alguma razão inexplicável, minha cabe­ça se recusava a se concentrar na minha experiência passada. Dom Juan era uma memória muito vaga. Fiquei de pé e comecei a olhar em volta.

A sala em que estávamos tinha uma decoração exótica. O chão era de ladrilhos grandes cor de camurça, certamente assentados por um artesão maravilhoso. Ia começar a examinar os móveis, dando um passo na direção de uma bela mesa marrom-escuro. Florinda pulou para o meu lado e me sacudiu com força.

— Você aplicou corretamente o quinto princípio da arte de espreitar — disse ela. — Não se deixe distrair,

— Qual é o quinto princípio? — perguntei.

— Quando confrontados com coisas com que não conseguem lidar, os guerreiros se retraem por um instante — disse. — Deixam a cabeça se soltar, usando o tempo com outra coisa. Qualquer coisa serve. Você acabou de fazer isso. Mas agora que conseguiu, deve aplicar o sexto princípio: os guerreiros condensam o tempo; até mes­mo um instante é preciso. Numa batalha pela vida, um segundo é uma eternidade, eternidade essa que pode decidir o resultado final. Os guerreiros esperam ter êxito, portanto condensam o tempo. Não desperdiçam nem um minuto.

Subitamente uma quantidade de memórias irrompeu na minha consciência. Falei animadamente para Florinda que podia me lembrar da primeira vez em que Dom Juan me apresentara aqueles princípios. Florinda pôs os dedos sobre os lábios, pedindo silêncio. Disse que só estava interessada em fazer com que eu me confrontasse com os princípios, mas que não precisava relatar aquelas experiências a ela.

Florinda continuou com sua história. Disse que enquanto a curandeira lhe falava para voltar sem Celestino, mandou-a beber uma mistura que lhe proporcionou alívio quase que imediato, e cochichou no seu ouvido que ela tinha de tomar uma decisão por si própria, que devia tranqüilizar a cabeça fazendo uma outra coisa, mas que não devia desperdiçar nem um momento quando chegasse a uma decisão.

Em casa ela demonstrou desejo de voltar. Celestino não viu nenhum sentido em se opor, pois sua convicção era inabalável.

— Quase que imediatamente voltei para ver a curandeira — continuou Florinda. — Levei os empregados de mais confiança comi­go, a menina que tinha me dado o veneno e o homem que cuidava dos cavalos. Dessa vez fomos a cavalo. Tivemos muita dificuldade para atravessar as montanhas; os cavalos estavam muito nervosos por causa do cheiro da minha perna, mas conseguimos chegar lá. Sem saber eu tinha usado o terceiro princípio da arte de espreitar. Tinha posto a minha vida, ou o que restava dela, à disposição. Estava disposta e pronta a morrer. Não foi uma decisão tão grande assim, pois eu já estava morrendo. É verdade que quando se está semi-morta, como no meu caso, não com muita dor mas com muito mal-estar, a tendência é ficar tão indolente e fraca que qualquer esforço se toma impossível. Fiquei na casa da curandeira por seis dias. No segundo dia já me sentia melhor. A inchação tinha diminuído e a purgação da perna tinha parado. Não sentia mais dor alguma. Só estava um pouco fraca e com os joelhos trôpegos quando tentava andar. Durante esses seis dias a curandeira me levou para o seu quar­to. Era muito cuidadosa comigo e, mostrando muita consideração, me fazia sentar na sua cama e me dava café. Ficava sentada no chão aos meus pés, olhando para mim. Posso me lembrar exatamente das suas palavras.

“— Você está muito, muito doente e só eu posso curá-la — dizia. — Se eu não curá-la você vai ter uma morte inacreditável. Como você é imbecil, vai durar até o último minuto. Eu poderia curá-la em um dia, mas não vou fazer isso. Você vai ter de continuar vindo aqui até compreender o que eu tenho para lhe mostrar. Só então eu a curarei completamente; senão, como você é uma imbecil, você nunca mais volta.”

Florinda disse que a curandeira, com muita paciência, explicou a ela os pontos delicados da sua decisão em ajudá-la, mas ela não compreendeu nada do que foi dito. A explicação fez com que ela acreditasse mais que nunca que a curandeira era um tanto maluca.

Quando a curandeira percebeu que Florinda não estava enten­dendo, tornou-se mais ríspida e a fez repetir várias vezes, como se ela fosse uma criança, que sem sua ajuda a vida dela estaria termina­da, e que ela podia decidir não curá-la mais e deixá-la morrer. Final­mente a mulher perdeu a paciência quando Florinda lhe implorou que parasse de cuidar dela e a mandasse para casa; pegou uma garrafa que continha um remédio e estraçalhou-a no chão, dizendo a Flo­rinda que não tinha mais nada a ver com ela.

Florinda falou que então começou a chorar — as únicas lágrimas verdadeiras da sua vida. Disse à curandeira que tudo o que queria era ficar curada e que estava mais que disposta a pagar por isso. A mulher disse que era tarde demais para pagamento em dinheiro, que o que ela queria de Florinda era sua atenção, não seu dinheiro.

Florinda admitiu a mim que tinha aprendido ao longo da vida a conseguir qualquer coisa que quisesse. Sabia ser obstinada; fez a curandeira ver que devia haver milhares de doentes que vinham a ela, semimortos como no seu caso, e que pagavam pelo tratamento; por que o seu caso seria diferente? A resposta da curandeira, que não significou nada para Florinda, foi que por ser uma observadora tinha visto o corpo luminoso de Florinda, e que elas duas eram exatamente iguais. Florinda achou que a mulher tinha de estar maluca para não perceber que havia todo um mundo de diferença entre elas. A curandeira era uma índia rude, inculta e primitiva, enquanto que ela era rica, bonita e branca.

Florinda perguntou o que a mulher pretendia fazer com ela. A curandeira lhe disse que tinha sido encarregada de curá-la e então ensinar-lhe uma coisa de grande importância. Florinda queria saber quem a tinha encarregado disso. A mulher respondeu que fora a Águia — resposta que convenceu Florinda de que a mulher era absolutamente louca. Mas ao mesmo tempo Florinda não via outra alternativa a não ser aceitar suas exigências, e disse-lhe que estava disposta a fazer qualquer coisa.

A mulher mudou sua atitude beligerante no mesmo instante. Deu um remédio para Florinda levar para casa e disse-lhe para voltar assim que pudesse.

— Como você própria sabe — continuou Florinda — o profes­sor deve usar de artifício com o aluno. Ela usou um artifício para a minha cura. Ela tinha razão. Eu era tão idiota que se ficasse cura­da logo teria voltado para casa, para minha vida estúpida, como se nada tivesse me acontecido. Nós todos não fazemos isso?

Florinda retornou na semana seguinte. Ao chegar foi saudada pelo velho que encontrara antes. Ele conversou com ela como se fossem os melhores amigos. Disse que a curandeira estava fora há vários dias, e que ainda iria se demorar, e que ele tinha sido encarre­gado de lhe dar um remédio caso ela chegasse. Disse a Florinda, em tom amigável mas ao mesmo tempo autoritário, que a ausência da curandeira a deixava face a duas alternativas: podia voltar para casa, possivelmente em piores condições físicas devido à viagem exte­nuante, ou seguir as instruções deixadas pela curandeira. Acrescentou que se decidisse ficar e iniciar o tratamento logo, dentro de três a quatro meses estaria nova em folha. Havia, entretanto, uma condi­ção: se decidisse ficar, teria de permanecer na casa da curandeira por oito dias consecutivos c teria, forçosamente, de mandar os emprega­dos embora.

Florinda falou que não havia nada a decidir — ela tinha de ficar. O velho imediatamente lhe deu a poção que a curandeira aparentemente deixara para ela. Ficou ao seu lado a maior parte da noite, o que foi confortante. Sua boa conversa aumentou o otimismo e confiança de Florinda.

Os dois empregados partiam na manhã seguinte, depois do café. Florinda não ficou absolutamente amedrontada, pois confiava cega­mente no velho. Ele lhe disse que tinha de construir uma caixa para o tratamento dela, de acordo com as instruções da curandeira. Fez com que ela se sentasse numa cadeira baixa, que tinha sido colocada no centro de uma área circular sem nenhuma vegetação. Enquanto estava sentada ali, o velho apresentou-a a três rapazes, dizendo que eram seus assistentes. Dois eram índios e um era branco.

Os quatro levaram menos de uma hora para construir um engra­dado em volta da cadeira de Florinda. Quando terminaram, Florinda achava-se confortavelmente instalada dentro de um engradado, com uma tampa de treliça para permitir a ventilação. Um dos lados se abria para servir de porta.

O velho abriu a porta e ajudou Florinda a sair. Levou-a para a casa e pediu que ela o ajudasse a preparar o remédio, para que ficasse à mão quando a curandeira voltasse.

Florinda estava fascinada com o modo dele trabalhar. Ele prepa­rou uma poção feita de plantas, com um cheiro forte, e buscou um balde com um líquido quente. Sugeriu que ela pusesse a perna dentro do balde para se sentir mais confortável, e, se tivesse vontade, bebesse a mistura que ele tinha preparado, antes que perdesse o valor. Florinda obedeceu-o sem questionar, e o alívio que sentiu foi incrível.

O velho então deu-lhe um quarto e fez com que os rapazes levassem o engradado para lá. Disse que talvez a curandeira levasse vários dias para aparecer, e que nesse meio tempo ela tinha de seguir meticulosamente todas as instruções deixadas para ela. Ela concordou, e ele lhe deu uma lista de tarefas. Entre elas, tinha de andar muito para juntar as plantas medicinais necessárias para suas poções, e prepará-las.

Florinda disse que ficou lá doze dias em vez de oito, porque seus empregados se atrasaram devido às chuvas torrenciais. Só no décimo dia é que realmente descobriu que a mulher estava lá todo o tempo e que o velho era o verdadeiro curandeiro.

Florinda riu, descrevendo o choque que teve. O velho a tinha levado a uma participação ativa na sua própria cura. Além do mais, com o pretexto da exigência da curandeira, ele a colocava dentro do engradado diariamente durante seis horas pelo menos, a fim de que ela realizasse uma tarefa específica a que ele dava o nome de “recapitulação”.

Naquele ponto do seu relato Florinda me examinou e concluiu que era o bastante para mim, e que estava na hora de eu ir embora.

 

No nosso próximo encontro ela explicou que o velho era seu benfeitor, e que ela foi a primeira espreitadora que as mulheres do seu grupo tinham encontrado para o nagual Juan Matus. Mas nada disso ela sabia então, embora seu benfeitor a tivesse feito mudar os níveis de conscientização e lhe tivesse revelado isso. Nada adiantou. Ela tinha sido criada para ser bonita e aquilo formara um escudo tão impene­trável à sua volta que a tornara impermeável a mudanças.

Seu benfeitor concluiu que ela precisava de tempo. Engendrou um plano para trazer Celestino ao campo de batalha de Florinda. Fez com que ela visse aspectos da personalidade dele que ela própria sabia serem verdadeiros, mas que não tinha tido coragem de encarar sozinha. Celestino era muito possessivo em relação a tudo o que tinha: sua fortuna e Florinda, que tinha um alto lugar entre suas posses. Ele tinha sido forçado a engolir seu orgulho ao ser humilhado pela curandeira pelo fato dela ser analfabeta e Florinda estar real­mente se recuperando. Estava dando tempo ao tempo, esperando que Florinda ficasse boa, para então se vingar.

Florinda disse que seu benfeitor lhe falou que havia o perigo dela ficar inteiramente curada muito rapidamente e Celestino decidir, já que ele tomava todas as decisões da casa, que não havia mais necessidade dela ir ver a curandeira. Seu benfeitor então lhe deu uma poção para ser aplicada na outra perna. O ungüento era muito forte e produzia uma irritação na pele semelhante à que tivera no início da sua doença. Ele aconselhou-a a usar o ungüento toda vez que ela quisesse ir vê-lo, mesmo que não precisasse de tratamento.

Florinda falou que levou um ano para ficar curada. Durante aquele tempo, seu benfeitor a pôs a par do regulamento, e treinou-a como um soldado na arte de espreitar. Fez com que ela aplicasse os princípios da espreita às coisas que ela fazia diariamente; às pequenas coisas a princípio, e depois às coisas mais importantes da sua vida.

Ao longo daquele ano, seu benfeitor também a apresentou ao nagual Juan Matus, a quem ela descreveu como muito esperto e profundo, mas ao mesmo tempo o homem mais indisciplinado e atemorizante que ela tinha conhecido. Disse que foi ele quem a ajudou a escapar de Celestino. Ele e Silvio Manuel a seqüestraram da cidade, burlando a polícia e as barreiras da estrada do exército. Celestino tinha registrado uma queixa legal de abandono e, sendo um homem influente, usou seus recursos para evitar que ela o deixasse.

Por isso seu benfeitor teve de se mudar para outra região do México e ela teve de ficar escondida na casa dele durante anos; essa situação favoreceu Florinda, pois ela tinha de realizar a tarefa de “recapitular” e necessitava de absoluto silêncio e solidão.

Explicou que a recapitulação é o ponto forte dos espreitadores, como o corpo sonhador é o ponto forte dos sonhadores. Consistia em recordar sua vida até os mínimos detalhes. Para isso seu benfeitor lhe tinha dado aquele engradado como um instrumento e um símbo­lo. Era um instrumento que lhe permitia aprender a se concentrar, pois tinha de se sentar lá durante anos até que toda sua vida tivesse passado diante dos seus olhos. E era um símbolo dos estreitos limi­tes da nossa pessoa. Seu benfeitor lhe disse que quando terminasse a recapitulação quebrasse o engradado para simbolizar que não mais mantinha as limitações da sua pessoa.

Ela disse que os espreitadores usam engradados ou caixões de terra a fim de se trancarem dentro enquanto estão revivendo, mais que simplesmente rememorando, todos os momentos de suas vidas. Os espreitadores devem recapitular suas vidas completamente, por­que a dádiva da Águia ao homem inclui a disposição de aceitar uma conscientização substituta, em vez de verdadeira, se tal substituição for uma réplica perfeita. Florinda explicou que como a consciência é o alimento da Águia, ela pode se satisfazer com uma recapitulação perfeita em lugar da consciência.

Florinda me deu então os fundamentos da recapitulação. Disse que o primeiro estágio é um breve relato de todos os incidentes da nossa vida, que se apresentam de uma maneira óbvia para exame.

O segundo estágio é uma recordação mais detalhada, que siste­maticamente vai desde a época anterior ao espreitador ter se sentado dentro do engradado, e teoricamente se estende ao momento do nas­cimento.

Ela me assegurou que uma recapitulação perfeita pode mudar um guerreiro tanto, se não mais, quanto o controle total do corpo sonhador. Nesse particular, o sonho e a espreita têm a mesma finali­dade, entrar na terceira atenção. É importante, entretanto, que o guer­reiro saiba e pratique os dois. Disse que para a mulher há configu­rações diferentes do corpo luminoso para se aperfeiçoar em uma ou em outra. Os homens, ao contrário, podem realizar os dois com facilidade, mas ao mesmo tempo não podem nunca chegar ao grau de eficiência que as mulheres atingem em cada arte.

Florinda explicou que o elemento-chave na recapitulação é a respiração. Respirar para ela era uma mágica, por ser uma função que produz a vida. Disse que essa recordação é fácil se se consegue reduzir a área de estímulo em volta do corpo. Por isso existia o engradado; a partir daí a respiração produz memórias cada vez mais profundas. Teoricamente, os espreitadores têm de se lembrar de cada sentimento que tiveram na vida, e esse processo se inicia com uma respiração. Ela me avisou que o que estava me ensinando eram apenas preliminares, que mais tarde, em condições diferentes, me ensinaria as complexidades do processo.

Florinda disse que seu benfeitor lhe orientou a escrever uma lista de acontecimentos a serem revividos. Falou que a técnica se iniciava com uma respirada inicial. Os espreitadores começam com o queixo sobre o ombro direito e lentamente inspiram à medida que viram a cabeça num ângulo de cento e oitenta graus. A respirada termina no ombro esquerdo. Uma vez terminada a inspiração, a cabeça volta a ficar relaxada. Eles expiram olhando para a frente.

O espreitador então pega o primeiro acontecimento da lista e se concentra, até que todos os sentimentos que nele se encerram tenham sido recontados. Enquanto se lembram dos sentimentos que tiveram durante o acontecimento recordado, inspiram lentamente, movendo a cabeça do ombro direito para o esquerdo. A função dessa respiração é restaurar energia. Florinda disse que o corpo luminoso está cons­tantemente criando filamentos semelhantes a teias de aranha, que são projetados para fora da massa luminosa, impulsionadas por qualquer tipo de emoções. Portanto, cada situação de interação ou cada situa­ção que envolve sentimentos é potencialmente drenada para o corpo luminoso. Respirando da direita para a esquerda enquanto se lem­bram de um sentimento, os espreitadores, através da mágica da respi­ração, pegam os filamentos que foram deixados para trás. A próxima respirada imediata é da esquerda para a direita e é uma expiração. Com ela os espreitadores soltam os filamentos deixados neles por outros corpos luminosos envolvidos no acontecimento que está sendo recordado.

Ela declarou que essas eram as preliminares essenciais da espreita que todas os membros do seu grupo tinham passado como introdução a exercícios mais apurados da arte. Sem fazer os exercícios prelimi­nares para recuperar os filamentos deixados no mundo, e particular­mente para desprezar os que os outros deixaram neles, não há possi­bilidade de manipular a loucura controlada, pois esses filamentos estranhos são a base da capacidade ilimitada de auto-importância de uma pessoa. Para exercitar a loucura controlada, já que ela não visa a enganar ou punir as pessoas ou se sentir superior a elas, tem-se de ser capaz de rir de si próprio. Florinda disse que um dos resultados de uma recapitulação detalhada é a graça de se ver face a face com a repetição monótona da auto-estima de alguém, que está no cerne de toda a interação humana.

Ela enfatizou que o regulamento definia a espreita e o sonho como artes, portanto, a serem representadas. Disse que a natureza produtora de vida da respiração é também o que dá sua capacidade de limpeza. É essa capacidade que faz da recapitulação uma questão prática.

 

Em nosso próximo encontro Florinda fez um resumo do que chamou de instruções de última hora. Afirmou que já que a conclusão conjunta do nagual Juan Matus e seu grupo fora de que eu não precisava lidar com o mundo do todo-dia, tinham me ensinado a sonhar e não a espreitar. Explicou que essa conclusão tinha sido radicalmente modificada e que eles se achavam numa posição embaraçosa, pois não tinham mais tempo de me ensinar a espreitar. Ela teria de ficar por trás, na periferia da terceira atenção, a fim de cumprir sua tarefa num período posterior, quando eu estivesse pronto. Por outro lado, se eu fosse deixar o mundo com eles, ela estaria eximida de responsabilidade.

Disse que seu benfeitor considerava as três técnicas básicas da espreita — o engradado, a lista de acontecimentos a serem recapitulados, e a respiração do espreitador — como sendo as tarefas talvez mais importantes de um guerreiro. Ele achava que uma recapitulação profunda era o meio mais eficiente para se perder a forma humana. Portanto, seria fácil para os espreitadores, depois de recapitularem suas vidas, fazer uso de todos os não fazeres do seu eu, tais como apagar sua história pessoal, perder a auto-importância, quebrar as rotinas, e assim por diante.

Informou que seu benfeitor deu a todos eles exemplos do que queria dizer, primeiro demonstrando suas premissas, e depois expon­do os princípios do guerreiro nas suas ações. No seu caso, como ele era um mestre na arte de espreitar, engendrou o plano da sua doença e sua cura, que não só foi coerente com o método do guerreiro mas também foi uma introdução magistral aos sete princípios da arte de espreitar. Primeiro atraiu Florinda a seu próprio campo de batalha, onde ela ficou à sua mercê; forçou-a a descartar-se do que não fosse essencial; ensinou-lhe a colocar sua vida nos eixos, através de uma decisão; ensinou-lhe a relaxar; fez com que ela desenvolvesse um espírito diferente de otimismo e autoconfiança para que pudesse reor­ganizar seus recursos; ensinou-lhe a condensar o tempo; e finalmente mostrou-lhe que um espreitador nunca se põe à frente das coisas.

Florinda se impressionava muito com o último princípio. Para ela ele resumia tudo o que ela queria dizer a mim nas suas instruções de última hora.

— Meu benfeitor era o chefe — disse Florinda. — Assim mesmo, olhando para ele ninguém acreditaria. Sempre usava uma de suas guerreiras como fachada, misturando-se livremente entre os doentes, fingindo ser um deles, ou fazendo-se passar por um velho idiota varrendo as folhas secas com uma vassoura improvisada.

Florinda explicou que para aplicar o sétimo princípio da arte de espreitar, tem-se de aplicar os outros seis. Assim, seu benfeitor ficava sempre por trás dos bastidores. Graças a isso ele era capaz de evitar ou aparar conflitos. Se houvesse discórdia, nunca era com ele e sim com a guerreira que estivesse servindo de fachada.

— Espero que você tenha percebido a essa altura — continuou ela — que só um mestre em espreita pode ser um mestre em loucura controlada. A loucura controlada não significa o estudo das pessoas. Significa, como meu benfeitor explicou, que os guerreiros aplicam os sete princípios básicos da arte de espreitar a tudo o que fazem, desde os atos mais simples até situações sérias de vida e de morte. A aplicação desses princípios redunda em três resultados. O primeiro é que os espreitadores aprendem a nunca se levarem a sério; apren­dem a rir de si próprios. Se não se importam de parecer bobos, podem enganar a qualquer um. O segundo é que aprendem a ter uma paciên­cia sem fim. Nunca estão com pressa, nunca se desesperam. E o terceiro é que aprendem a desenvolver uma capacidade infinita de improvisação.

Florinda ficou de pé. Estávamos sentados, como de costume, na sala de visita. Imediatamente concluí que nossa conversa tinha chega­do ao fim. Ela disse que havia mais um assunto a me ser apresentado antes de nos despedirmos. Levou-me para dentro da casa, para um outro pátio, lugar onde eu nunca tinha estado antes. Chamou alguém baixinho e uma mulher saiu de um dos quartos. A princípio não a reconheci. A mulher chamou-me pelo nome, e então percebi que era Dona Soledad. Sua mudança fora incrível; ela estava mais moça e mais poderosa.

Florinda disse que Soledad tinha ficado dentro do engradado de recapitulação durante cinco anos, que a Águia tinha aceitado sua recapitulação em lugar da sua conscientização e a tinha libertado. Dona Soledad assentiu com um sinal de cabeça. Florinda terminou o encontro abruptamente e disse-me que estava na hora de eu ir embora, pois não tinha mais energia.

 

Fui à casa de Florinda muitas outras vezes depois. Via-a todas as vezes, mas só por alguns minutos. Ela me disse que tinha decidido não me dar mais instruções porque era melhor que eu lidasse só com Soledad.

Dona Soledad e eu nos encontramos diversas vezes, mas o que ocorria em nossos encontros era bastante incompreensível para mim. Sempre que estávamos juntos ela me fazia sentar ao lado da porta do quarto dela que dava para o leste. Sentava-se à minha direita e tocava em mim; depois fazíamos a parede de névoa parar de girar e nós dois ficávamos do lado esquerdo, em frente ao sul, no quarto dela.

Já tinha aprendido com la Gorda a parar a rotação da parede; parecia que Dona Soledad estava me ajudando a desempenhar outro aspecto daquela capacidade de percepção. Eu tinha concluído correta­mente com la Gorda que só uma parte de nós parava a parede. Era como se subitamente eu tivesse ficado dividido em dois. Uma parte do meu eu total olhava para a frente e via uma parede imóvel à direita; outra parte do meu eu total tinha virado 90° à direita e continuava vendo a parede.

Toda vez que Dona Soledad e eu parávamos a parede ficávamos olhando para ela; nunca entramos na área entre as linhas paralelas, como a mulher nagual, la Gorda e eu tínhamos feito tantas vezes. Dona Soledad me fazia olhar a névoa todas as vezes, como se a névoa fosse uma superfície de reflexo. Eu sentia então uma dissocia­ção muito extravagante. Era como se estivesse corrente em altíssima velocidade. Via pequenas pedaços de paisagem formando-se na névoa, e de repente outra realidade física: uma região montanhosa, rugosa e inóspita. Dona Soledad estava sempre lá com uma mulher linda que ria ruidosamente para mim.

Minha incapacidade de lembrar do que fazíamos além disso era ainda mais aguda que minha incapacidade de lembrar do que a mulher nagual, la Gorda e eu fazíamos na região entre as linhas paralelas. Parecia que Dona Soledad e eu entrávamos em outra área de conscientização, desconhecida para mim. Eu já estava no que considerava ser meu mais aguçado estado de conscientização, e ainda assim surgia alguma coisa ainda mais aguçada. O aspecto da segunda atenção que Dona Soledad me mostrava era mais complexo e mais inacessível que qualquer outro que eu já presenciara. Tudo do que podia me lembrar era uma sensação de ter me movido muito, uma sensação física semelhante a ter andado quilômetros ou ter excursionado por trilhas de montanhas rugosas. Também tinha uma clara certeza corporal, embora não pudesse imaginar por que Dona Soledad, a mulher e eu trocávamos palavras, pensamentos, sentimentos. Não conseguia posicioná-los.

Depois de cada encontro com Dona Soledad, Florinda me fazia sair imediatamente. Dona Soledad falava o mínimo. Eu tinha a impres­são de que seu estado de conscientização elevada a afetava tão profundamente que ela quase não podia falar. Víamos alguma coisa naquela paisagem rugosa além da mulher bonita, ou fazíamos alguma coisa juntos que nos deixava sem possibilidade de respirar. Ela não conseguia se lembrai de nada, por mais que tentasse.

Pedi a Florinda para esclarecer a natureza das minhas viagens com Dona Soledad. Ela disse que parte das suas instruções de última hora era me fazer entrar na segunda atenção como fazem os esprei­tadores, e que Dona Soledad era mais capaz do que ela própria de me guiar na dimensão do espreitador.

No encontro que deveria ser o último, Florinda, como acontecia no início de nossa instrução, estava me esperando no hall. Pegou-me pelo braço e me levou para a sala de visita, onde nos sentamos. Aconselhou-me a não tentar, por enquanto, compreender minhas viagens com Soledad. Explicou que os espreitadores são diferentes dos sonhadores, no modo como lidam com o mundo à sua volta, e que o que Dona Soledad estava fazendo era tentar me ajudar a virar a cabeça.

Quando Dom Juan descrevera o conceito de virar a cabeça de um guerreiro para que ele olhasse em outra direção, eu tinha com­preendido a coisa como uma metáfora que descrevia uma mudança de atitude. Florinda disse que a descrição era verdadeira, que não era uma metáfora. Era verdade que os espreitadores viram a cabeça; entretanto não a viram para olhar numa nova direção, mas para olhar o tempo de uma forma diferente. Os espreitadores olham o tempo que se aproxima. Normalmente nós olhamos o tempo que ficou para trás. Só os espreitadores podem modificar isso e olhar o tempo à medida que ele se aproxima.

Explicou que virar a cabeça não significava poder-se ver o futu­ro, mas ver o tempo como uma coisa concreta, porém incompreensí­vel. Era bobagem, portanto, tentar decifrar o que Soledad e eu está­vamos fazendo. Tudo iria fazer sentido quando eu pudesse perceber a totalidade de mim mesmo e tivesse então a energia necessária para desvendar aquele mistério.

Florinda me disse, como se estivesse me dando uma grande oportunidade, que Soledad era uma espreitadora extraordinária; achava mesmo que era a melhor de todas. Disse que Soledad podia atravessar as linhas paralelas a qualquer momento. Além do mais, nenhum dos guerreiros do grupo de Dom Juan Matus tinha sido capaz de fazer o que ela fizera. Soledad, através de suas técnicas impecáveis de espreita, tinha encontrado seu ser paralelo.

Explicou que o que quer que eu tivesse experimentado com o nagual Juan Matus, Silvio Manuel, Genaro ou Zuleica, eram apenas partes minúsculas da segunda atenção; o que Soledad me ajudava a presenciar era também uma parte mínima, mas diferente.

Soledad não só me fizera olhar o tempo que se aproxima, como me levara para seu ser paralelo. Florinda definiu o ser paralelo como uma compensação que todas as criaturas humanas têm, pelo fato de serem seres luminosos cheios de inexplicável energia. Um ser paralela de qualquer pessoa do mesmo sexo, íntima e indissoluvelmente ligada à primeira, ou vice-versa. Elas coexistem no mundo ao mesmo tem­po. Os dois seres paralelos são como as duas pontas do mesmo pólo.

É quase impossível os guerreiros encontrarem seu ser paralelo, pois há muitos fatores dispersivos na vida deles, outras prioridades. Mas quem for capaz de realizar esse feito encontrará no seu ser paralelo, como aconteceu a Soledad, uma fonte infindável de juven­tude e energia.

Florinda levantou-se abruptamente e me levou para o quarto de Dona Soledad. Talvez por saber que aquele seria nosso último encon­tro, fui tomado de uma estranha ansiedade. Dona Soledad sorriu para mim quando eu lhe disse o que Florinda tinha me contado. Falou, com verdadeira humildade de guerreira, que não estava me ensinando nada, que tudo o que pretendera fazer fora me mostrar seu ser parale­lo, porque seria lá que se retiraria quando o nagual Juan Matus e seus guerreiros deixassem o mundo. Entretanto, acontecera outra coisa que ela não conseguia compreender. Florinda lhe explicara que nós tínhamos reforçado a energia um do outro e que isso nos fizera olhar o tempo que se aproxima, não em pequenas doses como Florin­da teria gostado, mas numa voracidade incompreensível, devido à minha natureza indisciplinada.

O resultado do nosso último encontro foi ainda mais frustrante. Dona Soledad, seu ser paralelo e eu ficamos juntos um tempo colos­sal, a meu ver. Pude perceber cada detalhe do rosto do ser paralelo dela. Achei que estava tentando me dizer quem era ela. Parecia tam­bém saber que aquele era nosso último encontro. Havia um imenso senso de fragilidade nos seus olhos. Então uma força semelhante a um vento nos varreu para uma outra coisa que não fez sentido nenhum para mim.

Florinda de repente me ajudou a levantar. Pegou-me pelo braço e levou-me até a porta. Dona Soledad foi conosco. Florinda disse que eu teria muita dificuldade em me lembrar de tudo o que tinha aconte­cido porque estava satisfazendo minha racionalidade, e que as coisas ficariam piores porque elas estavam quase indo embora e eu não teria ninguém para me ajudar a mudar os níveis de conscientização. Acres­centou que um dia Soledad e eu nos encontraríamos de novo no mundo da vida real.

Foi então que me virei para Dona Soledad e lhe pedi que me tirasse da minha racionalidade; disse que se ela não conseguisse fazer isso iria me matar. Eu não queria viver num mundo estéril de racio­nalidade.

— É errado dizer isso — falou Florinda. — Nós somos guer­reiros, e os guerreiros só têm uma coisa em mente: sua liberdade. Morrer ou ser vencido pela Águia não é um desafio. Por outro lado, tapear a Águia e ser livre é uma audácia extrema.

 

                         A Serpente de Plumas

Tendo atingido todos os objetivos ditados pelo regulamento, Dom Juan e seu grupo de guerreiros estavam prontos para sua tarefa final — deixar o mundo da vida diária. E coube a la Gorda, os outros aprendizes e eu presenciar a coisa. Havia um único problema não solucionado: o que fazer com os aprendizes. Dom Juan disse que a rigor eles deveriam partir com ele, já que tinham se incorporado ao seu próprio grupo, mas que não estavam preparados. As reações que tiveram ao tentarem atravessar a ponte tinha demonstrado como ainda estavam fracos.

Dom Juan sentia que a decisão de seu benfeitor em esperar anos até reunir um grupo de guerreiros para ele fora uma decisão acertada e produzira resultados positivos, enquanto que sua própria decisão em me fazer adaptado rapidamente à mulher nagual e ao meu grupo fora quase que fatal para nós.

Compreendi que ele verbalizava isso não em tom de arrependi­mento, mas como uma afirmação da liberdade do guerreiro em esco­lher e aceitar sua escolha. Disse, além disso, que tinha pensado seriamente em seguir o exemplo do seu benfeitor, e que se tivesse feito isso teria descoberto bem cedo que eu não era um nagual como ele, e ninguém, a não ser eu, teria se comprometido além daquele ponto. Do modo como a coisa foi feita, Lydia, Rosa, Benigno, Nestor e Pablito ficaram seriamente prejudicados; la Gorda e Josefina preci­savam de tempo para se aperfeiçoarem; só Soledad e Eligio estavam salvos, pois eles eram talvez até mais eficientes que os guerreiros do seu próprio grupo. Dom Juan acrescentou que ficava a cargo dos nove aceitar suas circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis e, sem se arrependerem ou desesperarem, mudar seu rumo ou aventurar-se num verdadeiro desafio.

Mostrou que nem tudo nosso fora falho — a pequena parte que eu desempenhara entre seus guerreiros fora um triunfo completo para todos do grupo, segundo o regulamento, exceto para mim. Concordei com ele plenamente. Para começar, a mulher nagual era tudo o que o regulamento previa. Tinha equilíbrio e controle; era um ser em conflito e ainda assim totalmente à vontade. Sem qualquer preparação evidente, conduziu todos os guerreiros aptos de Dom Juan, apesar deles terem mais do dobro da sua idade. Esses homens e mulheres afirmaram que ela era a cópia da outra mulher nagual que tinham conhecido. Ela refletia perfeitamente cada uma das guerreiras, e por conseguinte podia refletir as cinco mulheres que Dom Juan encontrara para o meu grupo, pois elas eram réplicas das anteriores. Lydia era como Hermelinda, Josefina como Zuleica, Rosa e la Gorda como Nelida, e Soledad como Delia.

Os homens eram réplicas dos guerreiros de Dom Juan; Nestor era a cópia de Vicente, Pablito de Genaro, Benigno de Silvio Manuel, e Eligio de Juan Tuma. O regulamento era na verdade a voz de uma força superpoderosa, que moldara essas pessoas num conjunto homo­gêneo. Por uma estranha virada do destino eles tinham sido deixados à deriva, sem o líder que deveria encontrar para eles a passagem para a outra conscientização.

Dom Juan falou que todos os membros do meu grupo tinham de entrar naquela outra conscientização por si próprios, e que não sabia quais seriam suas possibilidades, pois isso dependeria de cada um individualmente. Ele ajudara a todos impecavelmente; assim, seu espírito estava livre de preocupação e sua cabeça livre de especula­ções vãs. Tudo o que lhe restava era mostrar-nos pragmaticamente, o que significava atravessar as linhas paralelas cm sua totalidade.

Disse que eu poderia ajudar, na melhor das hipóteses a um só dos aprendizes, e que tinha escolhido la Gorda por sua bravura e por eu já ter me familiarizado com ela, Disse que eu não tinha mais energia para os outros, por ter outros deveres a cumprir, outras linhas de ação, eram coerentes com minha verdadeira tarefa. Explicou-me que cada um de seus próprios guerreiros sabia que tarefa era essa, mas não me tinham revelado porque eu precisava provar ser digno dela. O fato de estarem no fim da linha e o fato de eu ter seguido fielmente minhas instruções tornavam necessária essa revelação, embora ela fosse feita parcialmente.

Quando chegou a hora de Dom Juan partir, ele me deu aquela informação enquanto eu estava em estado de conscientização normal, mas eu não compreendi o que ele disse. Tentou até o fim induzir-me a juntar meus dois estados de conscientização. Tudo teria sido muito simples se eu tivesse sido capaz daquela fusão. Como não fui, e como entendi apenas racionalmente sua revelação, ele me fez mudar os níveis de conscientização a fim de que eu pudesse avaliar o aconteci­mento em termos mais abrangentes.

Avisou-me repetidas vezes que estar na conscientização do lado esquerdo era uma vantagem só no sentido da percepção das coisas se acelerar. Era uma desvantagem porque só nos permitia concentrar com lucidez inconcebível em uma coisa de cada vez; o que nos toma­va dependente e vulnerável. Não podemos estar sozinhos enquanto estamos na conscientização do lado esquerdo e temos de ser ampara­dos pelos guerreiros que conseguiram a totalidade de si próprios e sabem como cuidar de si nesse estado.

La Gorda disse que um dia o nagual Juan Matus e Genaro reuniram todos os aprendizes na sua casa. O nagual os fez mudar para a conscientização do lado esquerdo, e lhes disse que seu tempo na terra estava chegando ao fim.

A princípio ela não acreditou nele. Achou que estava tentando assustá-los para que eles agissem como guerreiros. Mas depois perce­beu que havia um brilho em seus olhos como ela nunca vira antes.

Depois de tê-los feito mudar a conscientização, falou com cada um em particular e fez com que eles fizessem um resumo para refres­car todos os conceitos e processos que tinham aprendido. Fez o mesmo comigo. Meu encontro ocorreu no dia anterior ao dia em que o vi pela última vez. Comigo ele conduziu o resumo nos dois estados de conscientização. Na verdade, me fez trocar de níveis várias vezes como que para se certificar de que eu ficaria completamente saturado dos dois.

Eu não tinha conseguido recordar a princípio o que acontecera depois desse resumo. Um dia la Gorda finalmente conseguiu quebrar as barreiras da minha memória. Disse-me que estava dentro da minha cabeça, como se estivesse lendo-me. Afirmou que o que fizera com que minha memória se trancasse fora o meu medo de me lembrar da minha dor. O que acontecera na casa de Silvio Manuel na noite anterior à partida deles estava totalmente ligado ao meu medo. Disse que tinha uma sensação clara de que eu estava amedrontado, mas não sabia por quê. Nem ela conseguia se lembrar do que ocorrera naquela casa, especificamente na sala onde estávamos sentados.

Enquanto la Gorda falava eu me senti como se estivesse mergu­lhando num abismo. Percebi que alguma coisa em mim tentava fazer uma junção entre dois acontecimentos separados que eu presenciara nos meus dois estados de conscientização. No meu lado esquerdo tinha as memórias trancadas de Dom Juan e seu grupo de guerreiros no seu último dia na terra, no lado direito tinha a memória de ter pulado no abismo aquele dia. Ao tentar juntar os dois lados tive uma sensação completa de descida física. Meus joelhos se dobraram e eu caí no chão.

Quando descrevi minha experiência e minha interpretação a ela, la Gorda disse que o que estava surgindo na conscientização do meu lado direito era, sem dúvida, a memória que ela tinha tido enquanto eu falava. Acabara de se lembrar de que tínhamos feito mais uma tentativa de atravessar as linhas paralelas com o nagual Juan Matus e seu grupo. Disse que nós dois juntos e o resto dos aprendizes tínha­mos tentado mais uma vez atravessar a ponte.

Eu não consegui focalizar aquela memória. Parecia haver uma força constritora que não me deixava organizar os pensamentos e sentimentos sobre aquilo. La Gorda falou que Silvio Manuel dissera ao nagual Juan Matus para preparar a mim e aos outros aprendizes para a travessia. Ele não queria me deixar no mundo porque achava que eu não teria nenhuma chance de realizar minha tarefa. O nagual discordou dele mas iniciou as preparações, a despeito do que sentia.

La Gorda disse que se lembrava de eu ter ido até a sua casa para levar os outros aprendizes e ela à casa de Silvio Manuel. Fica­ram lá enquanto eu ia ver o nagual Juan Matus e Genaro, a fim de preparar a travessia.

Não me lembrava absolutamente de nada. Ela insistiu que eu devia usá-la como guia, já que estávamos tão intimamente ligados; assegurou-me que eu podia ler sua mente e encontrar alguma coisa lá que me fizesse lembrar de tudo.

Minha cabeça estava bastante confusa. Um sentimento de ansie­dade não me deixava nem ao menos me concentrar no que la Gorda dizia. Ela continuou falando, descrevendo o que se lembrava da nossa segunda tentativa de atravessar aquela ponte. Disse que Silvio Manuel os tinha orientado, dizendo que eles já tinham treino suficiente para tentar atravessar mais uma vez; o que precisava para entrar plena­mente no outro eu era abandonar a intenção da primeira atenção. Uma vez na conscientização do outro eu o poder do nagual Juan Matus e seu grupo os alcançaria e os levaria à terceira atenção com muita facilidade, coisa que não poderiam fazer se estivessem na sua conscientização normal.

A um certo momento não ouvi mais la Gorda. O som da sua voz era na realidade um veículo para mim. Subitamente a memória de todo o acontecimento subiu à minha cabeça. Senti uma vertigem ao impacto da lembrança. La Gorda parou de falar, e enquanto eu descrevia minha memória ela também se recordou de tudo. Tínhamos juntado as últimas partes das memórias separadas de nossos dois estados de conscientização.

Lembrei-me que Dom Juan e Dom Genaro me prepararam para a travessia enquanto eu estava em estado de conscientização normal. Achei racionalmente que eles me preparavam para pular num abismo.

La Gorda lembrou-se que para prepará-los para a travessia Silvio Manuel tinha-os prendido nas vigas do telhado, amarrados num arreio de couro. Havia um em cada quarto da casa. Ficaram sus­pensos neles quase que o dia inteiro.

La Gorda comentou que um arreio no quarto era uma ótima coisa. Os Genaros, sem realmente saberem o que faziam, tinham atingido a quase-memória dos arreios pelos quais tinham sido suspen­sos e tinham criado seu jogo. Tal jogo juntava as qualidades de curar e limpar ao serem mantidos fora do chão, com a possibilidade de exercitar a concentração necessária para mudar a conscientização do lado direito para o esquerda. O jogo era na verdade um dispositi­vo que os ajudava a lembrar.

Disse que depois dela e dos outros aprendizes terem ficado suspensos todo o dia, Silvio Manuel os descera na hora do pôr-do-sol. Todos foram com ele para a ponte e esperaram lá com o resto do grupo até que o nagual Juan Matus e Genaro aparecessem comigo. O nagual explicou a todos que levara mais tempo do que pensava para me preparar.

Lembrei-me que Dom Juan e seus guerreiros atravessaram a ponte antes de nós. Soledad e Eligio foram automaticamente com eles, e a mulher nagual passou por último. Do outro lado da ponte Silvio Manuel nos fez um sinal para começarmos a andar. Sem uma palavra, todos começamos ao mesmo momento. No meio da ponte, Lydia, Rosa e Pablito pareceram incapazes de dar mais um passo. Benigno e Nestor andaram quase até o final, e então pararam. Só la Gorda, Josefina e eu chegamos onde Dom Juan e os outros estavam.

O que ocorreu em seguida foi quase a mesma coisa que o que acorrera da primeira vez em que tentamos atravessar. Silvio Manuel e Eligio seguraram uma coisa aberta, que me pareceu uma verdadeira fenda. Eu tinha energia suficiente para focalizar minha atenção nela. Não era a abertura no morro que ficava no fim da ponte, nem a abertura na parede de névoa, embora eu pudesse distinguir um vapor enevoado em volta da fenda. Era uma abertura escura e misteriosa, que ficava separada de tudo o mais; era do tamanho de um homem, porém estreita. Dom Genaro soltou uma piada, chamando-a de “vagi­na cósmica”, observação que fez com que todos morressem de rir. La Gorda e Josefina se apoiaram em mim e nós entramos.

Senti, no mesmo instante, que estava sendo esmagado. A mesma força incalculável que quase me fizera explodir da primeira vez tinha me alcançado de novo. Podia sentir la Gorda e Josefina se afundando comigo. Eu parecia ser maior que elas, e a força me acha­tava sobre as duas juntas.

A próxima coisa que percebi foi que estava no chão e la Gorda e Josefina estavam em cima de mim. Silvio Manuel nos ajudou a levantar. Disse-me que seria impossível nos juntarmos a eles daquela vez, mas que talvez depois, quando chegássemos a nos aperfeiçoar, a Águia nos deixasse passar.

Quando voltávamos para sua casa, Sílvio Manuel me disse quase num sussurro que o caminho deles e o meu tinham se distanciado um do outro naquela noite. Disse que nossos caminhos nunca mais se cruzariam e que eu estava sozinho. Exortou-me a ser moderado e a utilizar cada parcela da minha energia, sem desperdiçar nada. Assegurou-me que se conseguisse ganhar a totalidade de mim mesmo sem uma drenagem excessiva, teria energia para realizar minha tarefa. Se me esforçasse em excesso antes de perder minha forma humana, não haveria remédio.

Perguntei-lhe se havia um meio de evitar a drenagem, e ele sacudiu a cabeça. Respondeu que havia um meio, mas não para mim. Conseguir isso ou não dependeria da minha volição. Então revelou-me minha tarefa, mas não me disse como empreendê-la. Disse que algum dia a Águia poria alguém no meu caminho para me dizer como agir, e só quando eu conseguisse empreender a tarefa é que seria livre.

Quando chegamos à sua casa, todos nos reunimos na sala grande. Dom Juan sentou-se no centro, em frente ao sudeste. As oito guerrei­ras o rodearam, sentando-se aos pares nos pontos cardeais, também em frente ao sudeste. Então os três guerreiros formaram um triân­gulo fora do círculo, com Silvio Manuel no vértice que apontava para o sudeste. As duas mensageiras sentaram-se ao seu lado, e os dois mensageiros em frente a ele, quase encostados na parede.

A mulher nagual fez com que os aprendizes se sentassem na parede do leste, e as aprendizes na parede do oeste. Depois levou-me para trás de Dom Juan, onde me sentei com ela.

Ficamos sentados só por um instante, a meu ver, mas ainda assim senti o crescimento de uma energia incrível no meu corpo. Achei que tínhamos nos sentado lá e levantado imediatamente. Quando pergun­tei à mulher nagual por que nos levantáramos tão depressa, ela me respondeu que tínhamos ficado sentados durante horas, e que um dia, antes de entrarmos na terceira atenção, eu me lembraria de tudo aquilo.

La Gorda declarou que não só tivera a sensação de que tínhamos estado sentados apenas por um instante, como nunca chegara a saber que tínhamos ficado lá tanto tempo. O nagual lhe disse depois que ela tinha obrigação de ajudar os outros aprendizes, especialmente Josefina, e que um dia eu voltaria para lhe dar o empurrão final de que ela precisava para atravessar totalmente para o outro eu. Ela estava presa a mim e a Josefina. No nosso sonho junto, sob a super-visão de Zuleica, tínhamos permutado enormidades de luminosidade. Era por isso que podíamos agüentar juntos a pressão do outro eu ao entrar na pele. Ele lhe disse também que o poder dos guerreiros do seu grupo é que tinha tornado a travessia tão fácil daquela vez, e quando ela tivesse de atravessar por si mesma, teria de estar preparada para isso em sonho.

Depois de nos levantarmos, Florinda veio até onde eu estava. Pegou no meu braço e andou em volta da sala comigo, enquanto Dom Juan e seus guerreiros falavam com os aprendizes.

Disse que eu não deveria permitir que os acontecimentos daquela noite na ponte me deixassem confuso. Não devia acreditar, como o nagual Juan Matus acreditara numa época, que havia uma passagem física real para o outro eu. A fenda que eu vira era meramente uma construção da intenção deles, criada pela combinação da obsessão de Juan Matus pelas passagens e o bizarro senso de humor de Silvio Manuel; a mistura dos dois produzira a vagina cósmica. Ao que ela soubesse, a passagem de um eu para o outro não era física. A vagina cósmica era uma expressão física do poder dos dois homens de mover a “roda do tempo”.

Explicou que quando ela ou sua réplica falavam em “tempo”, não se referiam ao tempo medido pelo movimento do relógio. O tempo é a essência da atenção, as emanações da Águia são feitas de tempo; e, propriamente, quando se entra em qualquer aspecto do outro eu, trava-se conhecimento com o tempo.

Florinda assegurou-me que naquela mesma noite, enquanto está­vamos sentados lá, eles tinham tido sua última chance de ajudar a mim e aos aprendizes a ver a roda do tempo. Disse que a roda do tempo era como um estado de elevada conscientização, parte do outro eu, como a conscientização do lado esquerdo é parte do eu da vida diária, e que podia ser descrita fisicamente como um túnel de compri­mento e largura infinitos, com sulcos de reflexão. Cada sulco é infini­to, e há um número infinito deles. As criaturas vivas são necessaria­mente feitas, por força da vida, para olhar para dentro de um sulco. Olhar para dentro dele significa ficar preso a ele, viver nele.

Assegurou-me que o que os guerreiros chamam de “vontade” pertence à roda do tempo. É como o caule de uma parreira, ou um tentáculo intangível que todos nós temos. Disse que o objetivo final de um guerreiro é aprender a focalizá-la na roda do tempo a fim de fazê-la girar. Os guerreiros que conseguem girar a roda do tempo podem olhar para dentro do sulco e tirar dele tudo o que desejarem, como a vagina cósmica, por exemplo. Ficar preso obrigatoriamente num sulco de tempo implica ver as imagens daquele sulco só quando elas retrocedem. Estar livre da força feiticeira desses sulcos significa poder-se olhar nas duas direções, na das imagens que retrocedem e das imagens que se aproximam.

Florinda parou de falar e me abraçou. Cochichou no meu ouvido que voltaria para terminar suas instruções algum dia, quando eu ganhasse a totalidade de mim mesmo.

Dom Juan chamou todos para junto de mim. Eles me rodearam. Dom Juan falou primeiro. Disse que eu não podia ir com eles na viagem porque eu não podia me afastar da minha tarefa. Nessas circunstâncias, a única coisa que podiam fazer por mim seria me desejar boa sorte. Acrescentou que os guerreiros não têm vida própria. No momento em que compreendem a natureza da conscientização, deixam de ser pessoas e a condição humana não mais lhes interessa. Eu tinha meu dever como guerreiro e nada mais importava, pois iria ficar para trás a fim de empreender uma tarefa muito longínqua. Como eu já tinha renunciado à minha vida, não tinham mais nada a me dizer, a não ser que tentasse fazer o melhor que pudesse. E eu não tinha nada a lhes dizer, a não ser que tinha compreendido e aceitado meu destino.

Vicente veio em seguida até onde eu estava, falando com suavi­dade. Disse que o desafio de um guerreiro é chegar a um equilíbrio muito sutil das forças positivas e negativas. Esse desafio não significa que um guerreiro deve se esforçar por ter tudo sob controle, mas que um guerreiro deve se esforçar por enfrentar qualquer situação possí­vel, a esperada e a inesperada, com a mesma eficiência. Ser perfeito em condições perfeitas é ser um guerreiro de papel. Meu desafio era ser deixado para trás. O deles era caminhar em frente, ao desconhe­cido. Os dois desafios eram imensos. Para os guerreiros, a excitação de ficar é igual à excitação da viagem. Ambas são iguais porque encerram a realização de uma confiança sagrada.

Silvio Manuel veio em seguida falar comigo; estava preocupado com coisas práticas. Deu-me uma fórmula, uma mágica para quando minha tarefa fosse maior que minha força; foi essa mágica que me veio à cabeça na primeira vez em que me lembrei da mulher nagual.

 

Já me dei ao poder que rege meu destino.

E não me prendo a nada, para não ter nada a defender.

Não tenho pensamentos, por isso verei.

Não receio nada, por isso me lembrarei de mim mesmo.

Desprendido e à vontade,

Passarei como um jato pela Águia para me tornar livre.

 

Ya me di al poder que a mi destino rige.

No me agarro ya de nada, para así no tener nada que defender.

No tengo pensamientos, para así poder ver.

No temo ya a nada, para así poder acordarme de mi.

Sereno y desprendido,

me dejará el águila posar a la libertad.

 

Disse-me que ia me revelar uma manobra prática da segunda atenção, e logo depois transformou-se num ovo luminoso. Voltou à sua aparência normal e repetiu sua transformação mais umas três ou quatro vezes. Compreendi perfeitamente bem o que ele estava fazendo. Ele não teve de me explicar, mas mesmo assim não consegui pôr em palavras o que sabia.

Silvio Manuel sorriu, entendendo meu problema. Disse que era necessária uma força enorme para desprender a intenção do primeiro anel de poder. O segredo que ele me revelara era como apressar o desprendimento daquela intenção. Para fazer o que ele tinha feito, deve-se colocar a atenção na casca luminosa.

Transformou-se mais uma vez em ovo luminoso e então tornou-se evidente para mim o que eu já sabia todo o tempo. Os olhos de Silvio Manuel viraram-se um instante para focalizar o ponto da segunda atenção. A cabeça ficou reta, como se estivesse olhando para a frente; só os olhos ficavam enviesados. Disse que o guerreiro deve evocar a intenção. O segredo é o olhar; são os olhos que acenam para a intenção.

Fiquei eufórico naquela hora. Era finalmente capaz de pensar em certa coisa que já conhecia, sem na verdade saber. O ver parece visual porque precisamos dos olhos para focalizar a intenção. Dom Juan e seu grupo de guerreiros sabiam como usar os olhos para captar outro aspecto da intenção, e chamavam a isso ver. A ação de ver depende dos olhos, na medida em que os olhos são usados para atrair a intenção. O que Silvio Manuel me mostrara fora a função verdadeira dos olhos, os captadores da intenção.

Eu então usei meus olhos deliberadamente para acenar para a intenção. Focalizei-os no ponto da segunda atenção. De repente, Dom Juan, seus guerreiros, Dona Soledad e Eligio tornaram-se ovos lumi­nosos, mas não la Gorda, as três irmãzinhas e os Genaros. Continuei a girar os olhos para um lado e para o outro, entre as manchas de luz e as pessoas, até ouvir um estalo na base do pescoço, quando todos na sala se tornaram ovos luminosos. Senti por um instante que não os podia diferençar, mas então meus olhos pareceram se ajustar e percebi dois aspectos de intenção, duas imagens simultâneas. Con­segui ver seus corpos físicos e também suas luminosidades. As duas cenas não eram superpostas mas separadas, e ainda assim eu não podia entender como. Eu tinha definitivamente dois canais de visão, e ver estava ligado aos meus olhos, mas ao mesmo tempo era independente deles. Eu continuava a ver os ovos luminosos, mas não os corpos físicos, quando fechava os olhos.

A uma certa hora tive uma sensação muito clara de que sabia como mudar minha atenção para minha luminosidade. Também sabia que para retornar ao nível físico tinha apenas de focalizar meus olhos no corpo.

Dom Genaro aproximou-se de mim e me disse que, como presen­te de despedida, o nagual Juan Matus me dera uma obrigação, Vicente um desafio, Silvio Manuel uma mágica, e que ele iria me dar humor. Olhou-me de cima para baixo e comentou que eu era o nagual de aspecto mais triste que ele já vira. Examinou os aprendizes e concluiu que não podíamos fazer mais nada, exceto ser otimistas e olhar o lado positivo das coisas. Contou uma piada de uma camponesa que tinha sido seduzida e abandonada por um espertalhão da cidade. No dia do casamento, quando lhe disseram que o noivo tinha ido embora da cidade, ela se controlou ao pensar que nem tudo estava perdido. Ela tinha perdido sua virgindade, mas ainda não tinha matado seu porquinho para a festa do casamento.

Dom Genaro nos disse que a única coisa que nos ajudam a sair daquela situação, semelhante à da noiva abandonada, era nos prender aos nossos porquinhos, fossem o que fossem, e rir de nós mesmos. Só através do riso poderíamos mudar nossa condição.

Insistiu, fazendo gestos com a cabeça e com as mãos, para que déssemos um ah, ah, sonoro. Ver os aprendizes tentar rir era tão ridículo como ver minha própria tentativa. De repente eu estava rindo com Dom Juan e seus guerreiros.

Dom Genaro, que sempre brincava dizendo que eu era um poeta, me pediu para ler uma poesia em voz alta. Disse que queria resumir seus sentimentos e suas recomendações com um poema que celebras­se a vida, a morte e o riso. Referia-se a uma passagem do poema de José Gorostiza, Morte Sem Fim.

A mulher nagual me passou o livro e eu li a parte de que Dom Juan e Dom Genaro sempre gostaram.

 

Oh, que alegria extrema

Que avidez em usar

o ar que respiramos,

a boca, o olho, a mão.

Que ânsia penetrante

de nos gastarmos totalmente

em uma única explosão de riso.

Oh, esta morte insolente, afrontante

que nos assassina de longe,

com o prazer que temos em morrer

por uma xícara de chá...

por uma leve carícia.

 

A ambientação para o poema era incrível. Senti um arrepio. Emilito e o mensageiro Juan Tuma vieram para o meu lado, sem dizer uma palavra. Seus olhos brilhavam como bolas de gude pretas. Todos os seus sentimentos pareciam estar concentrados nos olhos. O mensageiro Juan Tuma disse muito baixinho que uma vez de me guiara aos mistérios do mescalito, na sua casa, e que aquilo tinha sido uma antecipação de outra ocasião na roda do tempo, quando iria me guiar ao mistério supremo.

Emilito falou, como se sua voz fosse um eco do mensageiro Juan Tuma, que ambos confiavam na realização da minha tarefa. Estariam esperando, pois um dia eu iria me juntar a eles. O mensageiro Juan Tuma acrescentou que a Águia tinha me colocado junto ao grupo do nagual Juan Matus como uma possibilidade de salvação. Abraçaram-me de novo e murmuraram em uníssono que eu devia confiar em mim mesmo.

Depois dos mensageiros, vieram as guerreiras. Todas me abraça­ram e sussurraram no meu ouvido um desejo de plenitude e realização.

A mulher nagual veio por último. Sentou-se e me pôs no colo como se eu fosse uma criança. Exsudava afeição e pureza. Fiquei sem ar. Levantamo-nos e andamos em volta da sala. Conversamos e tecemos considerações sobre nosso destino. Forças insondáveis tinham-nos guiado àquele momento culminante. O êxtase que eu sentia era indescritível, assim como uma imensa tristeza.

Ela então revelou uma parte do regulamento referente ao nagual de três pontas. Escava num estado de incrível agitação, e ao mesmo tempo parecia calma. Seu intelecto era sem igual, mas ela não tentava racionalizar nada. Seu último dia na terra a fazia resplandecer, e eu fiquei comovido. Era como se até aquele momento não tivesse percebido bem a finalidade de nossa situação. Por estar do lado esquerdo da conscientização fui possuído de um imediatismo que praticamente não me deixava ver além daquele momento. Entretanto, o impacto do humor dela penetrou em grande parte da conscientização do meu lado direito, dando-me capacidade de prever os sentimentos que iria ter. Concluí que nunca mais a veria, e aquilo era insuportável!

Dom Juan tinha me dito que no lado esquerdo não há lágrimas, que um guerreiro não consegue mais chorar, e que a única expressão de angústia é um arrepio que vem das profundezas do Universo. Como se uma das emanações da Águia fosse a angústia. O arrepio do guer­reiro é infinito. Quando a mulher nagual falou comigo e me abraçou, senti esse arrepio.

Ela pôs os braços em volta do meu pescoço e apertou a cabeça contra a minha. Achei que estava me torcendo como se torce um pano. Senti uma coisa saindo do meu corpo, ou do corpo dela para o meu. Minha angústia era tão intensa e tomou conta de mim tão depressa que fiquei desorientado. Caí no chão ainda abraçado à mulher nagual. Achei, como se fosse um sonho, que tinha dado um corte na sua testa quando caímos. Seu rosto e o meu estavam co­bertos de sangue. O sangue tinha se empoçado nos seus olhos.

Dom Juan e Dom Genaro me levantaram muito depressa, e me seguraram. Eu estava com espasmos incontroláveis, como se estivesse tendo um ataque. As guerreiras rodearam a mulher nagual; depois ficaram de pé, em fila, no meio da sala. Os homens juntaram-se a elas. Em um instante formou-se uma cadeia inegável de energia entre eles. A fila andou, desfilando à minha frente. Cada um deles parava por um instante à minha frente, mas sem quebrar a fila. Era como estivessem se movendo numa esteira que os transportava e fazia-os parar ali. Os mensageiros iam na frente, depois as mensageiras, os guerreiros, as sonhadoras, as espreitadoras, e finalmente a mulher nagual. Passaram por mim e ficaram todos à vista por um ou dois segundos, o suficiente para se despedirem, e então desapareceram na escuridão da fenda misteriosa que tinha sido aberta na sala.

Dom Juan massageou minhas costas e aliviou um pouco minha angústia insuportável. Disse que compreendia minha dor, e que a afinidade da mulher nagual e do homem, nagual é uma coisa que não pode ser formulada. Existe como resultado das emanações da Águia; quando duas pessoas são postas juntas e separadas não há meios de preencher o vazio, pois não é um vazio social, mas um movi­mento dessas emanações.

Dom Juan disse então que ia me fazer mudar para minha extre­ma direita. Disse que era uma manobra de misericórdia, porém tempo­rária; iria me fazer esquecer por algum tempo, mas não iria me consolar quando eu me lembrasse.

Disse também que o ato de lembrar é totalmente incompreensí­vel. Na realidade é o ato de lembrar de si próprio, que não termina com a recordação da interação dos guerreiros na sua conscientização do lado esquerdo, mas continua recordando cada momento que o corpo luminoso tem guardado, desde o instante do seu nascimento.

A interação sistemática que os guerreiros desenvolvem em estados de elevada conscientização é o único método para levar o outro eu a revelar-se em termos de memória. Esse ato de recordar, embora pareça ser associado só aos guerreiros, faz parte da esfera de cada ser humano; cada um de nós pode chegar diretamente às memórias da nossa luminosidade com resultados imprevisíveis.

Dom Juan falou então que aquele dia eles partiriam ao cair da tarde, e que a única coisa que tinham a fazer por mim era criar uma abertura, uma interrupção na continuidade do meu tempo. Iriam me fazer pular num abismo, como um meio de interromper a emanação da Águia, responsável pelo meu sentimento de totalidade e continui­dade. O pulo seria dado quando eu estivesse num estado de conscien­tização normal, e a intenção era que minha segunda atenção assumisse a dianteira; em vez de morrer no fundo do abismo eu entraria plena­mente no meu outro eu. Disse que eu eventualmente sairia do outro eu quando minha energia se esgotasse, mas não sairia no alto da montanha de onde iria pular. Previu que eu sairia no meu lugar favorito, onde quer que fosse. Essa seria a interrupção na continui­dade do meu tempo.

Então empurrou-me completamente para fora da conscientização do meu lado esquerdo. E eu me esqueci da minha angústia, meu propósito, minha tarefa.

 

À tardinha, Pablito, Nestor e eu pulamos de um precipício. O soco do nagual fora tão preciso e tão misericordioso que nada do aconte­cimento daquele momento de despedida transcendeu além dos limites do outro acontecimento de pular para uma morte certa e não morrer. Por mais aterrorizante que aquele acontecimento fosse, foi pouco em comparação ao que estava acontecendo em outra esfera.

Dom Juan me fez pular no momento em que ele e seus guerreiros iluminaram sua conscientização. Tive uma visão de sonho de uma fileira de pessoas olhando para mim. Mais tarde racionalizei isso como uma longa série de visões ou alucinações que tivera ao cair. Essa foi minha interpretação primária da minha conscientização do lado direi­to, assombrada pelo horror do acontecimento total.

No meu lado esquerdo, entretanto, percebi que tinha entrado no meu outro eu. E essa entrada não tivera nada a ver com minha racionalização. Os guerreiros do grupo de Dom Juan tinham me apanhado por um instante eterno, antes de desaparecerem na luz total, antes da Águia os deixar passar. Eu sabia que eles estavam no âmbito de emanações da Águia, que ficava além do meu alcan­ce. Esperavam por Dom Juan e Dom Genaro. Vi Dom Juan toman­do a liderança. E então só percebi uma linha de luzes raras no céu. Uma coisa semelhante a um vento parecia fazer o amontoado de luzes se contrair e retorcer. Havia um brilho maciço na ponta da linha de luzes onde estava Dom Juan. Pensei na serpente de plumas da lenda Toltec. E então as luzes desapareceram.

 

                       Cinco Proposições Explicativas

Apesar de Dom Juan manipular minha conscientização, eu persis­tia com teimosia, ao longo dos anos, em tentar avaliar o que ele fazia racionalmente. Embora tenha escrito longamente sobre essas manipu­lações, escrevi sempre de um ponto de vista experimental, e, sobre­tudo, de um ângulo estritamente racional. Imerso como estava na minha própria racionalidade, eu era incapaz de reconhecer as metas do seu ensinamento. Para poder entender o objetivo dele com preci­são, foi necessário que eu perdesse minha forma humana e chegasse a uma totalidade de mim mesmo.

Os ensinamentos de Dom Juan tinham como objetivo me guiar no segundo estágio do desenvolvimento do guerreiro: a compreen­são e total aceitação de que há outro tipo de conscientização dentro de nós. Seus ensinamentos dividiam-se em duas categorias. A pri­meira e mais abrangente, para a qual pediu a ajuda de Dom Genaro, era a que lidava com as atividades. Consistia em mostrar-me certos processos, ações e métodos organizados para exercitar minha outra conscientização. A segunda preocupava-se com a apresentação de cinco proposições explicativas.

Em vista da dificuldade que tive em deixar minha racionalidade aceitar o que me estava sendo ensinado, Dom Juan apresentou essas proposições explicativas em termos do meu preparo escolástico.

A primeira coisa que fez, como introdução, foi criar uma divisão em mim por meio de um soco preciso aplicado na minha omoplata direita, soco esse que me fez entrar num estado invulgar de conscien­tização — estado que eu era incapaz de me lembrar quando voltava ao normal.

Até aquele ponto minha conscientização tinha um inegável senso de continuidade, que eu acreditava ser o resultado da minha experiên­cia de vida. Eu achava que era um todo e que podia ser responsável por tudo o que tinha feito. Sobretudo, estava convencido de que o centro daquela conscientização encontrava-se na minha cabeça. Contudo, Dom Juan me provou com seu soco que existe um centro na espinha, à altura das omoplatas, que é obviamente um local de elevada conscientização.

Quando o questionei sobre a natureza daquele soco, Dom Juan explicou que o nagual é um líder que tem a responsabilidade de abrir os caminhos, e que deve ser impecável, a fim de passar a seus guer­reiros um espírito de confiança e clareza. Só nessas circunstâncias o nagual se encontra na posição de aplicar o soco nas costas e forçar uma mudança de conscientização; pois é o poder do nagual que nos leva a fazer essa transição. Se o nagual não for um praticante impe­cável, não há mudança, como aconteceu quando eu tentei em vão fazer os aprendizes entrarem num estado de elevada conscientiza­ção batendo nas suas costas antes de nos aventurarmos a atraves­sar a ponte.

Perguntei a Dom Juan o que acontecia naquela mudança de conscientização. Ele disse que o nagual tem de aplicar o soco numa região precisa, que varia de pessoa para pessoa, mas que se localiza sempre na área geral das omoplatas. O nagual deve ver a fim de precisar a região, localizada na periferia do corpo luminoso da pessoa e não no próprio corpo físico; uma vez identificado o local, ele mais empurra que bate, formando assim uma mossa denteada, uma depres­são na casca luminosa. O estado de elevada conscientização que resul­ta desse soco dura enquanto a depressão permanece. Algumas cascas luminosas voltam à forma original por si só, outras têm de ser apertadas em outra região para retornarem ao normal, e outras ainda nunca voltam à forma de ovo.

Dom Juan explicou que os observadores vêem a conscientização como um brilho peculiar. A conscientização da vida diária é um brilho no lado direito, estendendo-se do corpo físico à periferia de nossa luminosidade. A elevada conscientização é um brilho mais inten­so, associado a uma grande velocidade e concentração, brilho esse que satura a periferia do lado esquerdo.

Disse que os observadores explicam o que acontece com o soco do nagual como um deslocamento temporário de um centro localizado no casulo luminoso do corpo. As emanações da Águia são na reali­dade avaliadas e selecionadas para o uso desse centro. O soco desregula sua função normal.

Através de suas pesquisas, os observadores concluíram que os guerreiros devem ser colocados em estado de desorientação. A mudan­ça na maneira com a qual a conscientização opera nessas condições torna esse estado um campo ideal para elucidar os comandos da Águia, permitindo que o guerreiro funcione como se estivesse com a conscientização da vida diária, com a diferença de poder focalizai tudo o que quiser com uma força e clareza sem precedentes.

Dom Juan falou que minha situação era semelhante à que ele próprio tinha experimentado. Seu benfeitor criou uma profunda divi­são nele, fazendo-o trocar várias vezes da conscientização do lado direito para o esquerdo e vice-versa. A clareza e liberdade do seu lado esquerdo se opunham diretamente às racionalizações e defesas sem fim do lado direito. Disse que todo guerreiro é lançado nas pro­fundezas dessa mesma situação que se molda por essa polaridade, e que o nagual cria e reforça essa divisão como um meio de liderar os aprendizes à convicção de que existe uma conscientização não percebida pelos seres humanos.

 

1 — O que percebemos como mundo são os comandos da Águia.

 

Dom Juan explicou que o mundo que percebemos não tem existência transcendental. Nossa familiaridade com ele nos leva a acreditar que o que percebemos é um mundo de objetos existentes como os percebemos, quando na verdade não há um mundo de objetos, mas sim um universo dos comandos da Águia.

Esses comandos representam a única realidade imutável. É uma realidade que engloba tudo o que existe, o perceptível e o não-perceptível, o conhecível e o não-conhecível.

Os observadores que vêem as emanações da Águia chamam-nas de comandos por causa da sua força compulsória. Todas as criaturas vivas são compelidas a usar as emanações, e usam-nas sem nunca saberem o que elas significam. O homem padrão interpreta-as como realidade. E os observadores que vêem as emanações interpretam-nas como o regulamento.

Apesar dos observadores verem as emanações, não há um meio deles saberem o que estão vendo. Ao invés de entrarem em conjetu­ras supérfluas, entram numa especulação funcional de como os coman­dos da Águia podem ser interpretados. Dom Juan insistia em dizer que ao intuirmos uma realidade que transcende o mundo percebemos remanescentes a nível de conjeturas não é suficiente resumir que os comandos da Águia são percebidos de uma vez só por todas as criatu­ras vivas da terra e que não há uma criatura que perceba igual à outra. Os guerreiros devem ter como objetivo presenciar o fluxo das emanações e ver como o homem e os outros seres vivos usam-nas para construir seu mundo perceptível.

Quando eu propus o uso da palavra “descrição” em vez de comandos da Águia, Dom Juan esclareceu que não estava construindo uma metáfora. Disse que a palavra “descrição” tem uma conotação de concordância do homem, e que o que percebemos deriva de um comando no qual a concordância do homem é deixada de fora.

 

2 — A atenção é o que nos faz perceber os comandos da Águia como vestígios.

 

Dom Juan disse que a percepção é uma faculdade física cultivada por todos os seres vivos da terra; nos seres humanos o resultado final é conhecido pelos observadores como “atenção”. Acrescentou que qualquer tentativa de defini-la é perigosa, pois transforma uma realiza­ção mágica numa coisa comum. Descreveu a atenção como a utilização e canalização da percepção. Disse que é a nossa maior realização em separado, cobrindo toda a gama de alternativas e possibilidades hu­manas.

Fez uma distinção precisa entre alternativas e possibilidades. As alternativas humanas são nossa capacidade de escolher como pessoas que funcionam dentro do seu meio social. Nosso raio de ação nessa esfera é bastante limitado. As possibilidades humanas são nossa capacidade de alcance como seres mágicos.

Desenvolveu um esquema classificatório de três tipos de atenção, enfatizando que chamá-los de “tipos” podia levar a dúvidas. São, na verdade, três níveis de talento — a primeira, a segunda e a terceira atenção, cada uma com seu domínio independente, cada uma comple­ta por si só.

Para um guerreiro nos estágios iniciais de treino, a primeira atenção é a mais importante das três. Dom Juan disse que suas propo­sições explicativas eram tentativas de trazer a um primeiro plano o modo despercebido com o qual a primeira atenção funciona. Conside­rava imperativo que os guerreiros compreendessem a natureza da primeira atenção se quisessem aventurar-se nas outras duas.

Explicou que para a primeira atenção lidar com os comandos da Águia ela tem de ser treinada a mover-se instantaneamente por todo um espectro das emanações da Águia, do qual não toma conhe­cimento evidente, a fim de alcançar as “unidades perceptíveis” que todos nós aprendemos a aceitar como perceptíveis. Essa realização da nossa primeira atenção é conhecida pelos observadores como “ves­tígio” porque engloba a capacidade de afastar as emanações supér­fluas e escolher as emanações a serem enfatizadas.

Dom Juan elaborou esse processo tomando como exemplo a montanha com que estávamos nos deparando naquele momento. Argu­mentou que a minha primeira atenção, quando eu olhava a montanha, tinha tocado de leve num infinito número de emanações, a fim de conquistar um milagre de percepção, um vestígio que chamamos de “montanha”', e que é conhecido de todos os seres humanos da terra porque eles próprios a alcançaram.

A argumentação dos observadores é que tudo o que a primeira atenção afasta a fim de conquistar um vestígio não pode ser retirado dela em nenhuma condição. Do momento em que aprendemos a perceber em termos de vestígios, as emanações supérfluas deixam de ser registradas por nossos sentidos. Para elucidar esse ponto ele me deu como exemplo o vestígio “corpo humano”. Disse que nossa primeira atenção é completamente ignorante das emanações que formam a casca externa luminosa do nosso corpo físico; nosso casulo em forma de ovo não está sujeito à percepção; as emanações que o tornariam perceptível foram descartadas em favor daquelas que tornam possível à primeira atenção perceber o corpo físico como é conhecido por nós.

O objetivo perceptivo a ser atingido pelos seres humanos infantis, enquanto estão adquirindo maturidade, é aprender a isolar as emana­ções apropriadas a fim de transformar sua percepção caótica na primeira atenção; ao fazer isso aprendem a construir os vestígios. Todos os seres humanos maduros que rodeiam as crianças ensinam-lhes os vestígios. Em tempo as crianças aprendem a levar sua primeira atenção a perceber os vestígios em termos semelhantes aos que seus mestres percebem.

Dom Juan ficava admirado com nossa capacidade de instituir ordem ao caos de percepção. Afirmava que cada um de nós, a nosso próprio modo, é um mágico magistral, e nossa magia consiste em impregnar de racionalidade os vestígios que nossa primeira atenção aprendeu a construir. Nossa percepção em termos de vestígios provém dos comandos da Águia, mas a percepção desses comandos como objetos provém do nosso poder, nosso dom de mágica. Nosso erro, por outro lado, é que sempre caímos em erro ao esquecermos que nossos vestígios são reais apenas no sentido de que os percebemos como reais, em virtude do poder que temos de fazer isso. Dom Juan chamava a isso erro de julgamento, que destrói em nós a riqueza de nossas origens misteriosas.

 

3 — Os vestígios recebem significado do primeiro anel de poder.

 

Dom Juan disse que o primeiro anel de poder é a força que se desprende das emanações da Águia para agir exclusivamente na nossa primeira atenção. Explicou que foi descrita como “anel” devido ao seu dinamismo, seu movimento ininterrupto. Foi chamada de anel de “poder”, primeiro por seu caráter obrigatório, e segundo por sua capacidade única de parar suas obras, mudá-las ou reverter sua direção.

Seu caráter obrigatório se faz ver melhor pelo fato dos vestígios perceptivos com que o anel de poder compele a primeira atenção a construir e perpetuar necessitarem da concordância de todos os parti­cipantes. A concordância de reprodução fiel de vestígios é exigida de todos nós, pois nossa conformidade ao primeiro anel de poder tem de ser total.

É precisamente essa conformidade que nos dá a certeza de que os vestígios são objetos existentes como tal, independentes da nossa percepção. Além do mais, a obrigatoriedade do primeiro anel de poder não cessa depois da nossa concordância inicial, mas exige que renovemos continuamente tal concordância. Temos de operar durante toda a nossa vida, por exemplo, como se cada um de nossos vestígios fosse perceptivamente o mesmo para todos os seres humanos, a des­peito da língua e da cultura. Dom Juan admitia que a coisa é séria demais para ser vista como uma piada, mas que o caráter compulsó­rio do primeiro anel de poder é tão intenso que nos força a crer que se uma “montanha” pudesse ter consciência própria, ver-se-ia como o vestígio que aprendemos a construir.

Para os guerreiros, a característica mais válida do anel, de poder é sua capacidade de interromper seu fluxo de energia ou de pará-lo completamente. Dom Juan disse que é uma capacidade latente que existe em todos nós como uma unidade de retaguarda. Em nosso mundo fechado de vestígios não há necessidade de ser usada. Como nos apoiamos e defendemos com a rede da primeira atenção, não temos consciência de que possuímos recursos ocultos do qual nem suspeitamos. Se uma escolha alternativa nos é apresentada, tal como a opção do guerreiro em utilizar a segunda atenção, a capacidade latente do primeiro anel de poder pode ser posta em funcionamento com resultados falhos.

Dom Juan enfatizou que o processo envolvido em ativar essa capacidade latente é a maior realização do feiticeiro; é chamada de bloqueio funcional do primeiro anel de poder. Explicou que as emana­ções da Águia, que já foram isoladas pela primeira atenção para construir o mundo da vida diária, exercem uma forte pressão sobre a primeira atenção. Para que essa pressão cesse de agir, é preciso que seja deslocada. Os observadores chamam a isso interrupção ou parada do primeiro anel de poder.

 

4 — Intenção é a força que move o primeiro anel de poder.

 

Dom Juan explicou que a intenção não se refere a ter uma intenção, ou a querer uma coisa ou outra, mas a uma força imponde­rável que faz cora que tenhamos atitudes que podem ser descritas como intenção, desejo, volição, e assim por diante. Definiu-a como uma força particular, íntima, que possuímos e usamos individualmente como a chave que faz com que o primeiro anel de poder se mova de formas aceitáveis. A intenção é o que dirige a primeira atenção a focalizar qualquer das emanações da Águia dentro de um certo âmbito. E a intenção é também o que comanda o primeiro anel de poder a interromper ou parar seu fluxo de energia.

Dom Juan sugeriu que eu pensasse na intenção como numa força invisível que existe no Universo, desconhecida de si própria e ainda assim agindo sobre tudo — força que cria e mantém os vestígios.

Afirmou que os vestígios devem ser recriados incessantemente, a fim de serem impregnados de continuidade. Para recriá-los toda vez com a frescura necessária para formar um mundo vivo, temos de ter a intenção deles toda vez que os construímos. Por exemplo, temos de ter a intenção da “montanha” em toda sua complexidade antes do vestígio se tornar usado e completo. Disse que para um observador, comportando-se puramente na base da primeira atenção, sem a inter­ferência da intenção, a “montanha” pode parecer um vestígio inteira­mente diferente. Pode talvez parecer um vestígio “forma geométrica” ou “mancha amorfa de coloração”. Para que o vestígio “montanha” seja completo, o observador tem de ter a intenção dela, quer involun­tariamente, através da força compulsória do primeiro anel de poder, quer deliberadamente, através do treino do guerreiro.

Ele notou três modos pelos quais a intenção vem a nós. O primeiro e mais comum é conhecido pelos observadores como “inten­ção do primeiro anel de poder”. E uma intenção cega que nos vem puramente ao acaso. É como se tivéssemos sido postos em seu cami­nho, ou como se a intenção tivesse sido posta no nosso. Inevitavel­mente nos encontramos presos em suas malhas sem termos a menor idéia do que está nos acontecendo.

O segundo meio de nos depararmos com a intenção é quando ela nos vem por sua própria conta. Isso exige um grau considerável de determinação, um senso de propósito da nossa parte. Só com nossa capacidade de guerreiros conseguimos nos colocar voluntariamente no caminho da intenção, acenar para ela, por assim dizer. Dom Juan explicou que sua insistência em ser um guerreiro impecável nada mais era que um esforço de deixar a intenção saber que ele estava se colocando no seu caminho.

Dom Juan dizia que os guerreiros chamam a esse fenômeno “poder”. Então, quando falam em ter poder pessoal, referem-se ao fato da intenção chegar a eles por sua própria conta. O resultado disso, dizia ele, podia ser descrito como uma facilidade em encontrar novas soluções — ou a facilidade em causar efeitos nos acontecimen­tos ou nas pessoas. É como se as possibilidades desconhecidas previa­mente pelos guerreiros se tornassem evidentes de repente. Assim, um guerreiro impecável nunca planeja nada antes do tempo, mas seus atos são tão decisivos que parecem ter sido planejados detalhada­mente de antemão.

O terceiro meio de encontrarmos a intenção é o mais raro e o mais complexo dos três; acontece quando a intenção nos permite que nos adaptemos a ela. Dom Juan descrevia aquele estado como o verdadeiro momento de poder — a culminação de uma luta intermi­nável pela impecabilidade. Só os guerreiros supremos o atingem, e enquanto permanecem nesse estado a intenção permite que eles a manipulem à vontade. É como se a intenção tivesse se fundido naque­les guerreiros, e ao fazer isso os tivesse transformado numa força pura e ilimitada. Os observadores chamavam a esse estado “intenção do segundo anel de poder”, ou “vontade”.

 

5 — o primeiro anel de poder pode ser detido por um blo­queio funcional da capacidade de reunir vestígios.

 

Dom Juan disse que a função dos não fazeres é criar uma obstrução na focalização habitual da nossa primeira atenção. Os não fazeres são, nesse sentido, manobras designadas a preparar a primei­ra atenção para o bloqueio funcional do primeiro anel de poder.

Ele explicou que esse bloqueio funcional, o único método de utilizar sistematicamente a capacidade latente do primeiro anel de poder, é uma interrupção temporária que o benfeitor cria na capaci­dade de reunir vestígios dos seus discípulos. É uma intromissão artifi­cial; uma invasão deliberada e forçada à primeira atenção, designada para empurrá-la além do verniz superficial dos vestígios familiares; uma intromissão atingida por meio da obstrução da intenção do pri­meiro anel de poder.

Disse que para levar a cabo essa interrupção o benfeitor trata a intenção como um processo, como se ela fosse um fluxo, uma corren­te de energia que pode eventualmente ser cessada ou ser reencaminhada. Avisou repetidas vezes que se tem de reconhecer que uma inter­rupção dessa natureza é um choque de tal magnitude que pode forçar o primeiro anel de poder a parar completamente a qualquer hora; é impossível concebermos tal situação nas nossas condições normais de vida. É inconcebível que possamos refazer, intelectualmente, os passos que demos ao utilizar nossa percepção, mas é viável que sob o impacto dessa interrupção possamos ser colocados numa posição perceptiva muito semelhante aos nossos inícios, quando os coman­dos da Águia eram emanações que ainda não tínhamos impregnado de significado.

Dom Juan atingiu o bloqueio funcional do primeiro anel de poder por meio de um processo complexo, uma combinação de três méto­dos: a ingestão de plantas alucinógenas; a manipulação do corpo; e a manipulação da intenção.

No início apoiou-se muito na ingestão de plantas alucinógenas, aparentemente em vista da inflexibilidade do meu lado racional. O efeito delas foi falho, mas ainda assim retardou a interrupção que ele procurava. O fato daquelas plantas serem alucinógenas fez com que minha razão aceitasse reunir todos seus recursos disponíveis e conti­nuasse mantendo as rédeas do controle. Fiquei convencido de que podia explicar com lógica tudo o que estava sentindo, juntamente com as proezas inconcebíveis que Dom Juan e Dom Genaro costuma­vam realizar, como partes das interrupções, como distorções percep­tivas causadas pela ingestão dos alucinógenos. Por outro lado, contudo, não havia meio possível de eu poder ter escapado ao efeito do bloqueio do primeiro anel de poder, que Dom Juan tinha programado atingir.

Dom Juan disse que o efeito mais notável das plantas alucinóge­nas era o que eu interpretava, sempre que as ingeria, como uma sensação peculiar de que tudo à minha volta exsudava uma extra­ordinária riqueza. Via cores, formas, detalhes que nunca tinha visto antes. Ele utilizou essa condição da minha habilidade elevada de perceber, e com uma série de ordens e comentários me forçou a um estado de agitação nervosa. Ele então manipulou meu corpo e me fez trocar a conscientização da direita para a esquerda e vice-versa, até criar visões fantasmagóricas ou cenas extremamente reais com criaturas em três dimensões que positivamente não podiam existir no mundo.

Explicou que quando a relação entre nossa intenção e os vestígios que construímos é quebrada, nunca mais pode ser restaurada. Daí por diante adquirimos a capacidade de captar uma corrente de que ele denominava “intenção fantasma”, ou a intenção dos vestígios que não estão presentes no momento ou lugar da interrupção, mas que tornam a intenção deles acessível a nós, através de algum aspecto da memória.

Afirmou que com a suspensão da intenção do primeiro anel de poder nós nos tornamos receptivos e maleáveis; o nagual pode então introduzir a intenção do segundo anel de poder. Ele estava convencido de que as crianças têm uma posição de receptividade semelhante; sendo desprovidas de intenção, elas estão prontas a serem marcadas com qualquer intenção que seus mestres lhes dêem.

Depois de um período de ingestão contínua de plantas alucinóge­nas, Dom Juan cortou totalmente o uso delas. Atingiu, no entanto, maiores interrupções em mim ao manipular meu corpo e me fazer mudar os estados de conscientização, juntamente com manobras da intenção. Para aquele efeito ele usava quaisquer fenômenos capazes de apagar perceptivamente os limites delineados dos vestígios, tais como chuva, relâmpago, crepúsculo e escuridão. Através de uma combinação de comandos hipnotizadores, ele criava uma corrente de intenção fantasma e eu era levado a sentir os vestígios familiares como coisas inconcebíveis, que só eu estava presenciando, sem a concor­dância de qualquer outra pessoa da terra.

Dom Juan explicou que a concordância que temos um com o outro sobre a existência de nossos vestígios, além de ser uma combinação, é também um elo de associação. Esse elo é baseado no caráter compulsório do primeiro anel de poder. Exigindo uma concordância nossa em relação à construção fiel dos vestígios, o primeiro anel de poder cria em nós não só a certeza de que esses vestígios são objetos como também nos dá a certeza de que esses vestígios são absoluta­mente homogêneos entre os membros da nossa espécie. Esse elo de associação não precisa ser reiterado. Uma vez convencidos de sua existência, ele se torna uma base de apoio para nós durante toda nossa vida.

Dom Juan me guiou magistralmente através de inúmeras inter­rupções da intenção, até que eu fiquei convencido, como observador, que meu corpo mostrava o efeito do bloqueio funcional do primeiro anel de poder. Ele disse que podia ver uma capacidade invulgar no meu casulo em forma de ovo, em volta da região das minhas omopla­tas. Descreveu-a como uma rugosidade que se formava exatamente como se a. casca de luminosidade fosse um lençol de músculo sendo contraído pelos nervos.

Para mim, o efeito do bloqueio funcional do primeiro anel de poder era conseguir apagar a certeza que eu tinha tido toda a vida de que o que meus sentidos percebiam era “real”. Entrei tranqüila­mente num estado de silêncio interior. Dom Juan disse que o que dá aos guerreiros aquela extrema falta de confiança que seu benfeitor sentiu no fim da vida, aquela resignação à derrota que ele próprio estava sentindo, é olhar a imensidão da Águia, que nos deixa sem esperança. A esperança é o resultado de nossa familiaridade com nossos vestígios e a idéia de que podemos controlá-los. Em tais momentos só o caminho dos guerreiros pode nos fazer persistir em nosso esforço de descobrir o que a Águia ocultou de nós, mas sem esperança de jamais compreender o que descobrirmos.

Dom Juan explicou que o exame do outro eu devia começar com a aceitação de que essa força do primeiro anel de poder que nos cerca é uma verdadeira fronteira física. Os observadores descreve­ram-na como uma parede de névoa, uma barreira que pode ser siste­maticamente levada à nossa conscientização por meio do bloqueio do primeiro anel de poder; então pode ser penetrado através do treino do guerreiro.

Ao penetrar na parede de névoa, entra-se num extenso estado intermediário. A tarefa dos guerreiros é atravessá-la até alcançar outra linha limite, que têm de penetrar a fim de entrarem no outro eu adequado.

Dom Juan disse que ambas as linhas limites são perfeitamente distinguíveis. Quando os guerreiros penetram na parede de névoa sentem que seus corpos estão sendo torcidos, ou sentem um intenso tremor dentro da cavidade de seus corpos, basicamente à direita do estômago ou pelo meio do corpo, da direita para a esquerda. Quando perfuram a segunda linha, sentem um estalo agudo na parte superior do corpo, como o som de um pequeno galho seco sendo partido em dois.

As duas linhas que cercam os dois eus e os selam individual­mente são conhecidas pelos observadores como linhas paralelas. Selam os dois eus porque se estendem até o infinito, nunca permitindo uma travessia, a não ser se forem perfuradas.

Entre as duas linhas há uma área de conscientização específica, que os observadores chamam de limbo ou mundo entre as linhas paralelas. É um espaço real entre dois enormes âmbitos de emanações da Águia, emanações essas que estão dentro da conscientização do homem. Um é o âmbito que forma o eu da vida diária, e o outro é o âmbito que forma o outro eu. Como o limbo é uma área de transi­ção, os dois âmbitos de emanações se sobrepõem lá. A. fração do âmbito com o qual estamos familiarizados, que se estende sobre aque­la área, prende uma orla de nosso primeiro anel de poder; sua capaci­dade de construir vestígios nos força a perceber uma quantidade de vestígios que são quase iguais aos da nossa existência diária, só que parecendo bizarros e torcidos. Assim, o limbo tem características espe­cíficas que não mudam arbitrariamente cada vez que se entra lá. Há uns montes que se assemelham ao que consideramos aspectos físicos nos vestígios da nossa vida diária.

Dom Juan afirmou que a sensação de peso que se sente no limbo é devido à carga crescente colocada na nossa primeira atenção. Na área posterior à parede de névoa, ainda podemos nos comportar como nós mesmos; é como se estivéssemos num mundo grotesco porém ainda reconhecível. À medida que nos aprofundamos para longe da parede de névoa, torna-se progressivamente mais difícil reconhecer seus aspectos ou comportar-se em termos familiares a nós mesmos.

Explicou que a parede de névoa podia se parecer com qualquer outra coisa, mas que os observadores optaram pela linha de menor resistência; visualizá-la como uma parede de névoa não envolve esforço algum.

O que existe além da segunda linha limite é conhecido pelos observadores como o outro eu, ou o mundo paralelo; e o ato de penetrar através de ambos os limites é conhecido como “cruzar as linhas paralelas”.

Dom Juan achava que eu captaria esses conceitos com mais fir­meza se descrevesse cada esfera de conscientização como uma especí­fica tendência de percepção. Disse que na esfera da conscientização da vida diária estamos indissoluvelmente emaranhados nas tendências perceptivas da primeira atenção. Do momento em que o primeiro anel de atenção começa a construir os vestígios, o modo de construí-los se torna nossa tendência normal de percepção. Quebrar a força que ata a tendência perceptiva da primeira atenção é quebrar a primeira linha limite. Nossa tendência perceptiva normal então passa para a área intermediária entre as linhas paralelas. Continua-se a construir vestígios quase normais por algum tempo. Mas quando se aproxima do que os observadores chamam de segunda linha limite, a tendência perceptiva da primeira atenção começa a diminuir, perden­do a força. Dom Juan disse que essa transição é marcada por uma súbita incapacidade de lembrar ou de perceber, através do auto-exame, o que se está fazendo.

Quando a segunda linha limite é alcançada, o outro eu começa a agir sobre os guerreiros que estão fazendo a viagem. Se são inexpe­rientes, sua consciência fica vazia. Dom Juan afirmou que isso acon­tece porque eles se aproximam de um espectro das emanações da Águia que ainda não tem uma tendência perceptiva sistematizada para eles. Minhas experiências com la Gorda e a mulher nagual além da parede de névoa foram um exemplo dessa incapacidade. Viajei para o outro eu mas não pude dar conta do que tinha feito, simplesmente porque minha segunda atenção ainda estava sem formulação e não me permitiu lidar com coisa alguma que tinha per­cebido.

Dom Juan explicou que se começa a conquistar o outro eu forçando a segunda atenção a acordar de sua dormência. O bloqueio funcional do primeiro anel de poder realiza isso. Então a tarefa do mestre é recriar a condição que lançou o primeiro anel de poder, a condição de saturação de intenção. O primeiro anel de poder foi colocado em movimento pela força da intenção, que nos foi dada por quem quer que nos tenha ensinado os vestígios. Como meu mestre, ele estava me dando então uma nova intenção que iria criar um novo meio perceptivo.

Dom Juan disse que se leva toda uma vida de disciplina inces­sante, que os observadores chamam de intenção inflexível, para pre­parar o segundo anel de poder a construir vestígios vindos do outro âmbito das emanações da Águia. Aperfeiçoar a tendência perceptiva do eu paralelo é uma proeza de valor incomparável que poucos guerreiros realizam. Silvio Manuel era um desses poucos.

Dom Juan aconselhou-me a não tentar deliberadamente aperfei­çoar isso. Se viesse a acontecer, seria um processo natural que se desenvolveria sem grande esforço. Explicou que a razão dessa quase indiferença reside na consideração prática de que aperfeiçoar essa tendência faz com que se torne mais difícil quebrá-la, pois a meta dos guerreiros é a capacidade de quebrar as duas tendências perceptivas a fim de entrar na terceira atenção.

 

                                                                                 Carlos Castañeda  

 

                      

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