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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRESSÁGIO DA SEREIA / Katy Gardner
O PRESSÁGIO DA SEREIA / Katy Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PRESSÁGIO DA SEREIA

 

Era a última coisa que ele esperava que acontecesse, naquela manhã enevoada de Agosto, quando foi passear pela praia. Era um homem de hábitos regulares, tão previsíveis como as marés. Acordava de manhã, atirava as pernas para fora da cama e, fosse qual fosse o tempo, dirigia-se para o mar em passos largos. Gostava daquela comunhão matinal com as ondas, com a cadela a ladrar de alegria enquanto corria ao lado dele, de língua pendente, num delírio. Fazia-o sentir-se vivo.

Uma rápida chávena de chá e depois, ala!, para saudar o sol, só ele e a cadelita, pela colina abaixo, as cortinas das casas por onde passavam ainda fechadas. Por vezes cruzava-se com um varredor de ruas solitário, um bêbedo cambaleante mas, em regra, a cidade era só dele. Gostava de sentir a brisa fresca do mar a chegar até ele, no sopé da colina, ainda com tanto espaço vazio à sua volta. Mais tarde, quando chegassem os charabãs e os excursionistas, tudo ficaria diferente: as ruas ficariam apinhadas, os seixos da praia cobertos de corpos rosados e pálidos, os gritos e o ribombar das correrias à beira-mar levados pela brisa colina acima. Mas, naquele momento, a terra pertencia-lhe.

Agora que tinha chegado ao sopé avistava a água imóvel, tranquila e oleosa na linha do horizonte. Sobre ela, o céu era azul pastel. Homem e cadela atravessaram a pista dupla, vazia, depois desceram as escadas e a cadela parecia semi-louca de desejo: puxava pela trela e arfava, com as unhas a raspar no cimento. Finalmente ele baixou-se, libertou-a e ela desatou a correr, com a cauda a abanar freneticamente e os olhos a brilhar de gozo antecipado, quando se lançou para cima dos seixos em direcção ao mar.

O dia estava a aquecer. O sol já quase chegava às fachadas Regency das casas da beira-mar; ele sentia na careca o calor do sol. Dirigiu-se para o molhe, esticando e estalando os dedos, passando por cima dos detritos da noite anterior: garrafas vazias, uma fogueira apagada, um saco de plástico mole. Ao longo de toda a linha da maré jaziam despojos esbranquiçados: chocos, pedaços de corda, bocadinhos de madeira. Empurrou-os com os sapatos e quase nem ouviu o latido súbito e surpreendido da cadela. A praia não costumava estar tão suja, era o que ele estava a pensar. Depois, ergueu os olhos e viu que a cadela ainda não tinha chegado à água, que tinha encontrado qualquer coisa.

O animal parecia louco a ladrar e a arranhar o flanco de um barco de pesca que repousava sobre os seixos. Talvez tivesse comida lá dentro, ou um balde de peixe a apodrecer. Quando se aproximou, viu algumas roupas espalhadas pelo seu fundo de madeira: qualquer coisa que parecia roupa interior e algo mais, talvez uma camisola. Deviam ser os restos da sedução de alguma tonta, cuecas e soutien deixados como bandeiras na praia num domingo de manhã a marcar a conquista. Começou a caminhar para o barco, os seus pés enterrando-se entre os calhaus, de forma a poder afastar dali a cadela; mas esta conseguira saltar para dentro do barco e os seus latidos excitados disseram-lhe que aquilo que ela encontrara era mais interessante do que peixe. Quando chegou à embarcação pousou as mãos nos flancos de madeira rugosa e espreitou lá para dentro.

Levou-lhe um ou dois segundos a perceber aquilo que viu. A cadela estava acocorada no fundo do barco, rosnando quase protectoramente junto daquilo que parecia ser uma trouxa de roupa ensanguentada. O homem permaneceu ali por instantes a olhar para o pêlo eriçado do dorso da cadela, a pensar que aquilo devia ser uma partida de estudantes de Belas-Artes. Mas, ao puxar o animal com mão firme, percebeu que não podia negar por mais tempo a evidência: a coisa que estava dentro do barco era humana.

Quase gritou quando, finalmente, compreendeu: sentiu a tristeza picar-lhe os cantos dos olhos e uma onda de pânico subir-lhe até à garganta. Não, não era uma partida, parecia mais um sonho mau.

Olhou e voltou a olhar, com o coração a bater descompassadamente. A cabeça molhada estava coberta de uma película de sangue castanho seco, os olhos muito fechados. Depois, havia o corpo coberto e na outra ponta do sudário de lã um par de pés com manchas arroxeadas. Foram esses pés que o trouxeram de volta à realidade. Depois, num redemoinho de pensamentos, gritou à cadela que saísse dali e estendeu as mãos para tocar a cara. E quando tocou, meu Deus, que fria estava.

Há muitos anos ele teria sabido melhor o que havia de fazer. Mas agora só conseguia pensar que tinha que pedir auxílio. Não era um homem religioso, mas enquanto subia pela praia, em direcção à rua e às casas brilhantes de sol, ia a rezar.

Eu tinha sete anos quando encontrámos a Bolsa da Sereia, naquele Verão em que nunca aprendi a nadar. A minha mãe foi a primeira a descobri-la com os seus olhinhos de mergulhão. Saltando sobre as rochas da Comualha, ela recolheu-a de entre a espuma e trouxe-a até mim, transportando-a com todo o cuidado na palma da mão, como se fosse o tesouro que realmente era. Era uma coisa tão pequena e preciosa que não tinha mais do que uns centímetros de comprimento, e dela pendiam uns filamentos que lembravam algas, amarrados à bolsa de pele encarquilhada. Ela entregou-ma e eu passei o meu dedo sobre a sua superfície fria e polida pelo mar. Devia ter sido Neptuno que a deixou ali, pensei eu. De certeza que tinha pérolas lá dentro.

Mas havia mais do que isso, muito mais. Por isso, quando a minha mãe perdeu a cabeça e a atirou de novo para o mar, eu corri a salvá-la das ondas que a iam arrebatar. Depois meti-a no bolso onde a agarrei com toda a força durante o caminho para casa. Aquilo era o meu segredo, o facto de eu ainda a ter comigo. Era algo que ela nunca saberia.

Nunca consideres nada como um dado adquirido: esta é uma das primeiras regras de qualquer empreendimento académico. Desconfia daquilo que assumes como óbvio, escava fundo para descobrir o que se encontra lá por baixo. E lembra-te de que aquilo que os teus informadores dizem e aquilo que fazem na realidade são, muitas vezes, coisas diferentes.

Vejam Matt, um excelente exemplo desde último princípio. Um verdadeiro esquerdista, um defensor ardente da igualdade, professor auxiliar de Política e autor de três volumes muito apreciados sobre a Previdência Social e o Estado: meu amante e companheiro destes últimos dez anos. Matt lê a página feminina do Guardian sem fazer comentários sarcásticos; e garante-me frequentemente que a minha carreira é tão importante quanto a dele. Mas, se estudarmos o comportamento de Matt, o fosso entre a sua ideologia e a prática é abismal.

Hoje a sua linguagem corporal é ilustrativa disso mesmo. Eu estou de pé no meio da sala a pensar nisto, a tentar ser objectiva, fingindo que ele não passa de um tema de investigação. Ele retirou-se para a varanda. Está de costas para mim, curvado, e acendeu um cigarro, com as mãos em concha à roda da cara, mantendo-se à distância enquanto puxa fumaças fundas e furiosas. Sinto a cara a arder ao perceber a fúria dele e o peito aperta-se-me. Eu não estava à espera daquilo porque ele tinha dito uma coisa diferente, mas é óbvio que Matt está muitíssimo aborrecido com a recente reviravolta dos acontecimentos. É fundamental olhar para além da superfície: o comportamento social nem sempre é aquilo que parece. Esta é uma perspectiva que ensino há muitos anos, talvez uma lição que ainda tenha de aprender a sério.

O que aconteceu foi o seguinte: aceitei um lugar de professora de História em Brighton e ambos concordámos que era isso que eu devia fazer. Matt passou os últimos três dias a ajudar-me na mudança para o meu novo apartamento e agora está farto. Eu devia ter previsto esta reacção, devia conhecê-lo melhor. Porque aquilo que Matt quer mesmo é que eu fique em Londres e que a sua carreira, e não a minha, seja prioritária.

Por isso, neste momento, tenho de o reconquistar. Passo por cima de uma das muitas pilhas de livros que cobrem a alcatifa de um castanho medonho e desloco-me displicentemente, como quem não quer a coisa, em direcção à varanda. Espero que o nosso olhar se cruze, para que haja aquela espécie de comunicação silenciosa que negará instantaneamente as palavras zangadas que acabámos de trocar. Mas ele recusa-se a apanhar a bola e continua a fumar, amuado, e a olhar para a rua. Percebo que esta cena esteve a fermentar todo o dia e eu, sem consciência do que estava a fazer, dei-lhe a deixa perfeita. E agora, como de costume, sou eu que tenho de fazer as pazes.

- Não estejas zangado - digo. - Quer dizer, aquela história do espelho não tem mesmo qualquer importância.

Ele encolhe os ombros. Eu respiro fundo.

- Peço desculpa por ter dito que eras um idiota. - Não estava, era à espera que o deixasses cair assim, era o que me apetecia acrescentar, mas tendo vivido dez anos com os humores de Matt, calei-me muito calada. Assim, dei mais um passo para ele, até estar tão perto que quase podia pousar-lhe a mão na T-shirt suada. - Sei que isto é complicado para ti - disse eu com voz doce.

- Devíamos ter contratado uma empresa de mudanças - resmunga ele. - Eu preciso de trabalhar. Estivemos nisto toda a semana e daqui a nada é outra vez fim do trimestre e estou lixado.

Calo-me. Existe «lixado» como catástrofe e «lixado» como um leve desconforto. Matt está-se a referir ao segundo caso, porque a única coisa que acontecerá é que ele não vai enviar o seu último artigo nas duas próximas semanas.

Fui até à varanda estreita, com a sua balaustrada com tinta a descascar e vasos de plantas secas. Parando atrás dele, passei-lhe os braços em volta da barriga e tentei abraçá-lo. Ele cheira a tabaco, a exercício e ao nosso detergente da roupa, um cheiro tão familiar que é como abrir a porta de entrada e sentir o odor do lar. Para lá dos tejadilhos brilhantes dos automóveis vejo o jardim público que se estende até ao mar e, a seguir, a grande mancha de água azul pontilhada de barcos longínquos. O sol está a pôr-se por sobre o molhe, numa mancha cor de laranja que lembra Turner. Nas árvores, do outro lado, um grande bando de estorninhos chilreantes começa a acomodar-se. Matt continua rígido e alheado, sem olhar para mim.

- Só não percebo por que razão tens de trazer tudo atrás de ti. É como se não houvesse comboios...

- Olha só para esta vista. Não é razão de sobra?

Ambos sabemos que não estou a ser totalmente honesta mas, de momento, isto parece apaziguá-lo. Atira a beata da varanda abaixo, dá meia-volta e põe as grandes mãos na minha cara. Dr. Hughes, com a sua grande carga de ambição e de impaciência, e todas as suas inseguranças escondidas. Engordou nestes anos, o cabelo, nas têmporas, está a ficar grisalho e tem rugas junto à boca, mas ainda é bonito, ainda é o meu amor. Há dez anos, quando eu era estudante, pensava que nunca viria a precisar de mais ninguém. Vagueando sem destino entre as estantes da biblioteca ou, mais tarde, olhando para a pilha de textos académicos que tinha escolhido, murmurava o nome dele como um feitiço capaz de proteger-me do malevolente mundo exterior. Matt, meu protector: guiou-me desde as confusões da pós-graduação até a um bem-sucedido doutoramento, orientou-me no meu primeiro emprego, ajudou-me, até, com o meu livro. Mais importante ainda, tornou-se a minha família. E agora, olhando-lhe para a cara, vejo que tem os olhos húmidos.

- Não estou a abandonar-lhe -murmuro. - Só precisava de aceitar este trabalho.

Ele abana a cabeça, com ar pesaroso, e depois mete as mãos debaixo da minha camisola à procura da alça do meu soutien, como se as mãos fossem donas dele. E o mais engraçado é que, embora eu saiba que para o consolar e pô-lo outra vez feliz basta-me resvalar com ele até ao chão, empurro-o devagarinho e dou um passo para o lado. -Vamos buscar as últimas caixas - digo.

Depois de ele ter partido, a resmungar, para ir apanhar o comboio, vagueio pelo apartamento. Apesar dos protestos de Matt, pouco trouxe de Londres, apenas algumas malas com roupa, os meus livros, algumas coisas básicas para a cozinha e o futon que tínhamos guardado no sótão. Como me farto de lhe dizer, não estou a mudar-me, limitei-me a alugar um sítio onde ficar durante o trimestre. No princípio, o que tinha em mente eram umas águas-furtadas minúsculas, à Virgínia Woolf, um quarto onde pudesse trabalhar, pensar e estar sozinha. Mas, não sei como, acabei aqui, um apartamento no primeiro andar, numa praceta decrépita, com uma grande sala de estar, janelas que abrem para a varanda enferrujada, magníficos tectos em estuque embora a desfazerem-se, e lareiras da época da Regência 1 originais pelas quais as gentes de Stoke Newington eram capazes de matar. Tem um quarto em forma de L, com janelas de vitrais, no qual desenrolei o futon, um segundo quarto minúsculo onde enfiei o meu PC, uma casa de banho escura nas traseiras e uma cozinha estreita, ambas decoradas com azulejos de flores e linóleo de cortiça em mau estado, de gosto questionável, mas, para além disso, inofensivo.

Agora que Matt se foi embora e estou sozinha, sinto os ritmos da casa a reinstalarem-se, como a água que novamente se alisa depois de se lhe atirar uma pedra. Do vão das escadas, nas traseiras, vem o som de uma pinga; quando abro as torneiras, os canos rangem. Lá de fora chega o barulho dos carros e o chilrear colectivo dos estorninhos que se vão reunindo. Por cima de mim parece que alguém anda a passear de um lado para o outro. De repente, oiço uns acordes abafados de música - A Whiter Shade of Pale - e depois, silêncio.

O apartamento cheira a mofo como se tivesse estado fechado durante demasiado tempo. Abri as janelas, mas os tapetes são tão

 

1 No contexto histórico inglês, a Regência refere-se ao período entre 1811-20, em que o regente era George IV, Príncipe de Gales. (N. Do T)

 

velhos e cada superfície está coberta com uma camada de pó tão espessa e antiga que me levaria dias de limpeza antes de conseguir impor uma série diferente de cheiros. Não é que me proponha fazer grandes limpezas. Em Londres é Matt que se esmera na casa com o pano do pó e que esfrega o chão da cozinha. Não, agora que estou sozinha, a minha intenção é não fazer praticamente nada, porque aquilo por que anseio, com uma paixão que me espantou pela sua força, é o contrário da nossa domesticidade londrina: quero comida já preparada, lides domésticas minimalistas e espaços vazios. Vou desembrulhar os livros e empilhá-los junto às paredes. Talvez compre um sofá barato, um dia destes; tenho uma mesa de madeira para o computador, que vou colocar ao lado das janelas, e um par de cadeiras de armar. Contudo, não estou à espera de muitos hóspedes, já que vou passar em Londres a maior parte dos meus tempos livres. Foi esse o acordo. Este apartamento é uma questão de conveniência e nada mais.

É quase noite. Os pássaros sossegaram e, lá em baixo na rua, os carros já acenderam os faróis. Se me puser no extremo da varanda e esticar o pescoço consigo ver os néons do molhe, onde bate ainda o ritmo do «disco». Encontro os meus cigarros e puxo uma cadeira para poder sentar-me lá fora, onde o ar vai refrescando. O Verão está a chegar ao fim, anoitece mais cedo, o ar começa a ter uma aspereza que é um aviso de folhas molhadas e de temporais vindouros.

Os meus braços nus arrepiam-se com um frio súbito. Preciso de um casaco, mas agora que os meus pés estão tão confortavelmente instalados nas grades da varanda sinto-me incapaz de me mexer, extasiada com a inesperada tranquilidade do crepúsculo. Por cima das árvores, ao fundo dos jardins, a faixa de mar é tão pálida que é quase translúcida. O casco escuro de umferry desloca-se lentamente sobre a linha do horizonte; se me puser à escuta consigo ouvir as ondas a arrastarem-se sobre a praia de seixos.

Matt já deve estar quase em casa. Quando chegar há-de cozinhar qualquer coisa que o conforte: o seu famoso empadão, ou talvez massa. Comerá directamente da travessa, engolindo os restos do vinho da noite passada. Depois abrirá o portátil e regressará ao seu artigo. Detesta estar sozinho, por isso refugia-se no trabalho como se se aconchegasse num cobertor. Acha que eu o estou a abandonar, mas engana-se redondamente. Continuo a amá-lo., continuo a querer passar a minha vida com ele mas, recentemente, algo começou a mudar. Não consigo explicar o que é, nem a ele, nem a mim mesma.

É só que, neste momento, preciso de estar sozinha.

Não sou, por natureza, uma pessoa assertiva. Nem sou particularmente extrovertida. Nunca me levanto durante as conferências académicas para fazer longas perguntas recheadas de auto-referências; aterra-me a ideia de ser entrevistada para a Radio Four. Acho que havia de dizer coisas demasiado ligeiras ou então meter os pés pelas mãos. Matt diz que me falta confiança em mim própria, e que isto é o eterno problema feminino.

Contudo, gosto de ensinar. Dêem-me um estrado numa sala de aulas e um rebanho de miúdos de vinte anos, de piercing no nariz e cabelo rastafári e as minhas inibições caem-me aos pés, como um vestido apertado num dia abrasador de Verão. Neste preciso momento estou sentada numa sala atulhada, no quarto andar do Bloco D, no meu novo posto de trabalho, a observar as várias caras delicadas, atentas e - em poucos casos - alheadas dos novos alunos a meu cargo. E o primeiro dia do trimestre e passam dez minutos das nove.

Este grupo é constituído por quinze estudantes; na próxima semana outros cem estarão à minha frente no auditório. O sol do princípio do Outono entra pela janela e cai sobre as nossas mesas, em feixes quentes de luz empoeirada. A sala cheira a linóleo institucional gasto e a cadeiras de plástico, a giz e ao horrível chá turvo que acabo de encontrar no meu copo de polistireno. Paira no ar um silêncio expectante. Os estudantes pararam de conversar e de remexer nos papéis, a porta foi fechada e, agora, estão todos a olhar para mim, à espera das minhas primeiras palavras.

Respiro fundo. Sinto o afluxo familiar de adrenalina de um novo trimestre, as massas de palavras a formarem-se-me na cabeça, o leve tremor das minhas mãos quando pouso o copo.

- Olá - digo, e a minha voz parece mais animada, mais confiante do que é normalmente. - Bem-vindos a esta cadeira sobre o método histórico. Chamo-me Cass Bainbridge e sou vossa professora este trimestre. Penso que já têm a lista das leituras.

Eles abanam as cabeças lentamente, à espera de serem impressionados. O meu coração bate um pouco mais depressa do que o habitual mas sou boa a esconder os nervos trémulos por detrás do verniz do meu sorriso. Esta cadeira do terceiro ano é aquilo a que o curriculum se refere como «interdisciplinar» e, como os estudantes que aqui estão vêm de uma variedade de cursos, muitos ainda não se conhecem.

- Vamos começar por nos apresentarmos e depois debruçamo-nos sobre algumas questões e temas-chave.

Enquanto me dizem os nomes, eu analiso a sala. Eles parecem ser uma amostra representativa da população estudantil, pelo menos no que toca aos cursos clássicos. Neste momento, tenho à minha frente dez jovens com piercings em vários pontos das respectivas caras: um tipo com uns brincos tão pesados nas orelhas que os lóbulos ficaram alongados como os de um guerreiro Masai e que acaba de nos dizer que se chama Andy, duas mulheres de meia-idade, ambas antigas enfermeiras, e um punhado de raparigas bonitas com nomes do género Emma, Nicole ou Natalie, todas elas com os jeans largos como mandam as regras e com argolas no nariz, na sua maior parte estudantes de Comunicação Social. Também há um rapaz sentado lá ao fundo, cujo nome já esqueci e que, até agora, não sorriu uma única vez. Tem os livros muito arrumados numa pilha à sua frente e, enquanto eu falo, vai percorrendo a lista dos livros indicados e franzindo o sobrolho, como se estivesse a descobrir uma série de erros elementares.

Finalmente chegámos à última pessoa da sala. Paro de escrever nomes e pouso a caneta. Se eu fosse mais organizada, tinha imprimido uma lista com todos estes pormenores que me foram fornecidos pela secretaria da universidade mas, tipicamente, não sei onde a arrumei. Agora a maioria dos estudantes está a folhear a lista das leituras; um par deles está a bocejar. Muita discoteca e muita droga; seja o que for que andaram a fazer na noite anterior, as nove da manhã são sempre umas horas terríveis para ter aulas. Dantes eu compreendia-os, mas, agora, tenho cada vez menos simpatia por eles: estão aqui para aprender, para serem inspirados e provocados, não para passar os três anos em farras de cama e metidos no álcool barato e nas drogas.

Ou talvez eu esteja a envelhecer. À esquerda da sala ouve-se o zumbido abafado de uma conversa. Olho, com uma expressão de censura para as duas Emmas, que ficam muito coradas e se calam imediatamente.

- Muito bem - digo eu, estendendo os braços e estalando os dedos como se fosse a professora mais calma e descontraída que alguma vez percorreu os corredores do Ensino Superior. - Factos históricos objectivos. Existirá tal coisa?

A sala agita-se, ouve-se um suspiro colectivo tangível e, depois, o silêncio. É uma grande pergunta e ninguém quer ser o primeiro a falar. Observo o grupo mordendo o lábio, à espera. Por favor, estou eu a pensar, não sejam SPE; não na minha primeira aula aqui. Seria muito deprimente. SPE: o código secreto e tonto que eu costumava escrever a Matt nas margens dos ensaios, quando ainda estava a acabar o meu doutoramento. Matt já estava nessa altura em Londres e eu ajudava-o nas correcções. «Sem Ponta de Esperança.» Os estudantes que fazem cair o coração dos professores: aqueles que não lêem nada e que têm menos ainda a dizer, que escrevem ensaios enfadonhos e horríveis, que reduzem qualquer lição inspiradora ou monografia brilhante a uma série de declarações frouxas que lhes tiram todo o sentido e intenção originais, tal como se esgota o sangue a um cadáver. Vão às aulas, no meio de um nevoeiro de incompreensão e preguiça. Acabam o curso com média de 10, que não merecem, e dão-me vontade de chorar. E não sei porquê, mas parece que se encontram sempre todos no mesmo grupo, tal como os bichos de conta acumulados debaixo da mesma pedra.

Não aguento mais. Este silêncio absurdo e cada vez mais pesado não é maneira de começar um trimestre. Estou prestes a dizer qualquer coisa para os encorajar, para os orientar amavelmente para o meu objectivo, como se eles fossem póneis Shetland numa gincana, quando oiço uma tossezinha e o tipo que estava no fundo da sala diz, com voz tranquila: - A maioria das pessoas pensa que existe, mas é óbvio que cada narrativa acerca do passado é sempre subjectiva até certo ponto. Quer dizer, quando se vai para além dos factos concretos, verificáveis, as histórias que os ligam dependem de quem as conta.

É uma resposta inteligente, dita no tom desdenhoso de alguém que pensa que a pergunta é pateticamente simples. Dou uma espreitadela à minha lista e verifico que o nome do jovem é Alec. É um rapaz bonito, alto e magro, com cabelo escuro curto e olhos castanhos escondidos por detrás de uns óculos sem aros, mas há algo nele que o diferencia dos outros estudantes. Talvez seja o seu aparente autodomínio e um certo ar de arrogância: tem o aspecto impaciente e levemente irritado de um homem mais velho que se encontra enfiado numa sala cheia de adolescentes aos risinhos. Está agora de olhos postos na mesa, ainda de sobrolho franzido e ombros rígidos. Ainda não consegui estabelecer contacto visual com ele.

- Obrigada, Alec, boa resposta. Pode dizer-nos mais alguma coisa sobre estes «factos concretos»? - Pigarreio e ele olha para mim, impassível, sem desejar, obviamente, perder tempo com uma questão tão trivial.

- Alguém quer responder?

- Sim, há a datação pelo carbono, que é um facto científico alguém sugere, lá do fundo. - E há registos, coisas que ficaram escritas e que permitem verificar outras. Como o Doomsday Book ou os registos de nascimentos ou mortes...

Aceno que sim, entusiasticamente. - Muito bem. Parte deste curso vai tratar exactamente destas fontes. Mas será que isso torna a «história» - desenho no ar com os meus indicadores um par de aspas para mostrar que aquilo a que me refiro é uma construção mental - mais objectiva? Será que o que nos preocupa é meramente descobrir aquilo que realmente aconteceu?

- As pessoas vão sempre discordar acerca do que realmente aconteceu, dependendo das suas próprias ideias.

Aceno que sim e faço um sinal à rapariga de cabelo rastafári que fez este comentário para que continue. Agora que a discussão está a desenvolver-se, sinto a sala a descontrair-se. Talvez, afinal, não sejam SPE.

- É tudo... digamos... relativo. É assim mesmo. Não há factos, há apenas interpretações.

Isto foi dito pelo Andy, que está recostado na cadeira, de braços cruzados, a sorrir como se fosse um génio. Como muitos estudantes que não querem pensar muito, ele parece ter-se agarrado ao pós-modernismo como sendo a resposta inteligente para tudo.

- Então o Holocausto - digo eu, sorrindo-lhe suavemente também foi apenas uma interpretação?

Ele empalidece. Há uma pausa e, depois, uma das jovens sentada à minha direita diz: - É claro que não. Milhões de pessoas morreram no Holocausto e há provas documentais reais. Só os nazis e os loucos é que rejeitam este facto. Quero dizer, não é este o objectivo da História? Descobrir exactamente o que aconteceu, para que as pessoas não possam, digamos assim, distorcer os factos?

Quando acaba de falar, sorri, afastando o cabelo loiro frisado dos olhos e piscando-os com ar divertido. É difícil dizer de onde é a pronúncia dela: do Sudeste, mas com um laivo do Norte. Está vestida como todas as outras jovens: jeans, sapatilhas, o piercing obrigatório no nariz e uma sweatshirt largueirona de skateboarder, mas fico com a impressão de que ela não faz parte da tripulação Emma-Nicole-Natalie. Quando olho para ela, ela cruza os braços e sorri, travessa. Vejo no seu caderno que escreveu o título da cadeira, o meu nome e depois, sublinhada, muito direitinha, a pergunta «será a História objectiva»? Como muitas raparigas da sua geração, tem uma letra pequena e redondinha: convencional, sem surpresas.

- É verdade - digo eu -, mas quererá isso dizer que a boa História é apenas uma questão de trabalho de detective ou haverá também nela algum elemento interpretativo? Alec, querias dizer alguma coisa?

Ele está recostado na cadeira, com a caneta no ar, à espera de poder falar. Parece aborrecido.

- A perspectiva pós-moderna tem obviamente implicações ridículas, mas isso não significa que não devamos prestar muita atenção a quem diz o quê e porquê. É perfeitamente claro que, analisando os textos históricos mais básicos, encontramos versões diferentes da mesma história. - Diz estas palavras no tom lânguido de alguém que se considera inteligente de mais para uma discussão tão básica, mas, apesar dos seus modos imperiais, os outros estudantes olham para ele apreciativamente.

- Obrigada, Alec - digo eu, sorrindo brandamente -, muito bem.

Ele volta a recostar-se, desviando o olhar para a janela.

- Não percebo isso, para falar francamente. Quero dizer, voltando ao Holocausto, as pessoas morreram: facto. Como é que pode haver versões diferentes disso?

E outra vez a rapariga de cabelo frisado, que está um pouco corada. Dou uma olhadela à minha lista e vejo nas minhas notas que ela disse ao grupo que se chamava Beth Wilson, que o seu curso é Estudos de Género e que a razão por que escolheu esta cadeira é poder «explorar o seu próprio passado». Dirijo-lhe um sorriso radioso e tranquilizador. - Continue.

- Quer dizer, porquê querer contestar o facto de toda aquela gente ter sido gaseada?

Cala-se com um risinho constrangido. Não é particularmente bonita, mas a frescura da sua cara, os olhos grandes e a pele macia dão-lhe o encanto de um animalzinho fofo. Olho para ela de esguelha, perguntando a mim própria se teria sido boa ideia introduzir um tópico tão emocional, logo no início do curso.

O Alec está a abanar a cabeça e a bater com o pé tão vigorosamente que atinge a mochila do colega que está ao lado dele.

- Isso é não perceber absolutamente nada.

A veemência com que diz estas palavras fazem a rapariga pestanejar. Olha para mim com uma expressão de súplica e eu pisco-lhe o olho como a dizer: «Não te preocupas. Estás a sair-te muito bem.»

- Oiçam, isto é um bom começo - anuncio-lhes eu. - O principal é que é necessário reflectir sobre as diferentes condições em que os vários relatos históricos são construídos. É por isso que, ao mesmo tempo que têm de ser práticos, na medida em que terão de considerar diferentes métodos históricos e, inclusivamente, realizar a vossa própria historiografia individual, também quero que questionem continuamente o modo como a História é feita e quem a faz.

Com excepção do Alec, que empurrou para o lado o caderno, todos os estudantes escrevem furiosamente. É sempre agradável ser levada tão a sério. Estico as pernas, mexo os dedos dentro dos sapatos. O trimestre começou.

Uma hora depois, os meus novos estudantes estão a arrumar os cadernos e a sair para o corredor. Reúno as minhas coisas, ansiosa por regressar ao meu novo gabinete minúsculo, com os seus caixotes de livros por arrumar e relatórios por ler. Tenho fome, o meu estômago está a suspirar ruidosamente por sanduíches e bolos e o meu espírito anseia por silêncio.

- Doutora Bainbridge?

Volto-me e vejo a Rapariga do Holocausto à minha frente. Enfiou sobre os cabelos loiros um gorro de lã às riscas, o que a faz parecer-se com a bonita irmã mais nova de Worzel Gummidge, e traz os livros apertados de encontro ao peito.

-Olá!

Faz uma pausa e diz, muito depressa: - Só lhe queria dizer quanto gostei da aula.

- Ainda bem! - Não estou exactamente concentrada no que ela diz, pois penso apenas em comida e e-mails. Por isso quero despachá-la o mais rapidamente possível para me ir embora.

- E achei que foi realmente muito, muito inteligente da sua parte fazer com que aquele tipo, o Andy, confrontasse as implicações políticas do que disse. Quero dizer, que tipo de pessoa é que tem interesse em negar o genocídio?

Ergo as sobrancelhas. - Não sei se era exactamente isso que ele estava a fazer.

- É tão consolador ir a um seminário em que as pessoas parecem preocupar-se, de facto, com as coisas. Agora sinto-me cheia de inspiração.

- A sério? - Sorrio-lhe, já que o cumprimento dela me aqueceu como um gole de vinho quente. Pendurando a carteira ao ombro, dirijo-me para a saída.

- Gostava mesmo de saber mais coisas sobre a sua investigação - diz ela, trotando ao meu lado. - Ou seja, no prospecto só diz que a senhora é perita em História da Família no pós-guerra.

- É exactamente sobre essas questões de que falámos na aula, sobre quais as versões da História que são ouvidas e quais as que não o são. O meu doutoramento baseou-se nas histórias orais de mulheres que cresceram no East End, durante a guerra, e das suas atitudes em relação à vida familiar. O livro consta da lista de leituras.

- Céus, deve ser fascinante - faz uma pausa, olhando por uma janela aberta para o campus, lá em baixo. Embora já seja Outubro, o sol ainda está quente; em frente ao Bloco D, os estudantes estão estirados na relva como se estivessem em pleno Verão.

- Acha que eu poderia fazer uma coisa parecida para o meu projecto de curso? Eu estava a pensar analisar a história da minha própria família. É isso o tipo de coisas que quer que façamos?

- É exactamente aquilo que podem fazer. Mas têm de pensar nas coisas sob um determinado ângulo, não podem limitar-se a fazer uma recolha de pormenores genealógicos.

O rosto dela fecha-se como se tivesse momentânea e subitamente ficado aturdida. Chegamos à escadaria que leva ao segundo andar e eu paro, indicando-lhe com esta atitude que não espero que ela venha comigo até ao meu gabinete. Tem ar de ser uma rapariga encantadora, mas eu quero o meu almoço.

- Estava a pensar - diz ela de repente - que podíamos criar um grupo de discussão ou uma coisa desse género. Quer dizer, para além da aula. Se tivesse tempo...

Olho para ela, franzindo os olhos por causa do sol outonal. Se os estudantes aqui forem todos assim, vou ter de ajustar as minhas expectativas. Em Londres, só os mais interessados é que liam alguma coisa, mas nenhum insistia em que houvesse grupos extracurriculares. E apesar do meu vivo desejo de comer e de descansar, o entusiasmo dela é contagioso e eu ponho-me a acenar e a sorrir-lhe.

- Que ideia brilhante. Amanhã, às onze, tenho uma hora livre e estou no meu gabinete. Quer ir lá ter comigo? Podemos discutir este assunto.

Ela devolve-me o sorriso, mostrando uma série de dentes manchados. Talvez fume muito, embora isso não pareça muito provável, a julgar pela sua roupa juvenil e a cara redondinha e animada. É claro que sim!

Pondo o saco ao ombro, afasta-se enquanto eu me dirijo para as escadas. Estou quase a pôr o pé no primeiro degrau quando me lembro de uma coisa. - Como é que disseque se chamava

- Beth. - Bate com o pé, acenando-me. Tem aquele hábito americano, ou talvez australiano, de fazer com que uma afirmação soe como uma pergunta, - Beth Wilson?

       Querida Mãe,

Posso chamar-te assim, não posso?

Tenho pensado muito em ti, ultimamente, não me perguntes porquê. Então, a minha decisão é a seguinte: vou escrever tudo nestas cartas para ti. Provavelmente nunca as lerás, bem sei. É a minha terapia particular.

Que coisas te hei-de contar a meu respeito? Sou estudante, e estou agora no terceiro ano. Talvez me pareça contigo, talvez não. Seja como for, não espero que me reconheças se nos cruzarmos na rua. Trabalho muito, sempre fui assim. Não diria que tenho imensos amigos. Não gosto de festas, não me meto em drogas, discotecas e coisas desse género. Há muita gente que diz que amadureci mais do que devia para a minha idade, mas eu não me sinto assim. Aquilo de que gosto é de instalar-me na biblioteca e perder-me nas palavras e nas ideias. Às vezes fico lá o dia inteiro e, quando volto à superfície, a luz do dia parece dura e as outras pessoas que andam pelo campus parecem estranhas.

Oh, e também gosto do mar. Faz-me sentir que é bom estar só.

E tu, mãe? O que é que gostas de fazer?

 

De volta ao meu gabinete encontro um monte de notas junto à porta: desculpas por faltar à aula, pedidos de entrevista, um lembrete sobre uma reunião, nessa tarde, da qual me tinha esquecido completamente. Só aqui estou há alguns dias e já estou submersa debaixo de uma avalanche de tarefas administrativas, os e-mails a chegarem constantemente, como pedidos de hambúrgueres no McDonalds, sempre que desvio os olhos do ecrã. Do outro lado da porta a universidade fervilha, com os corredores cheios de caloiros apinhados em torno dos painéis de avisos e o ar tenso de excitação nervosa. Coitados, a primeira semana é mais complicada para eles do que para mim, com os seus blocos de notas virgens e as tentativas desesperadas de fazer amigos e um medo adolescente e quase palpável. Oiço as suas vozes agudas e tensas quando passam ao lado da minha porta: os palavrões em voz excessivamente alta e o seu à-vontade forçado a tentarem impressionar-se uns aos outros.

A minha integração na universidade foi mais suave. Até agora foram uns cafés simpáticos tomados com três dos meus colegas, lá em baixo na cantina, e almoço com o nosso amável e já entradote professor, que insistia em chamar-me Kerry e dava uns arrotos abafados enquanto comíamos as nossas sanduíches ressequidas. Ainda me falta conhecer o resto do departamento de História: ou estão para fora em investigação ou, então, estão mergulhados em palestras, aulas ou tarefas burocráticas. Tento descontrair mas andei nervosíssima toda a semana, tal qual uma miúda, com o estômago a apertar-se constantemente à mínima provocação e a cabeça a latejar ao fim de cada dia. Eu tinha um lugar de professora perfeitamente aceitável em Londres. Tinha um apartamento e um companheiro fixo e um bonsai muito acarinhado que, de certeza, ele se vai esquecer de regar como protesto pela minha ausência. Estava bem, estava instalada; não havia razões para todas estas complicações. E além disso era o que eu queria.

Olho para o ecrã, percorrendo todas as mensagens com aspecto desinteressante até chegar a uma cujo assunto é «Há muito sem notícias». É de Sarah, a minha amiga mais antiga.

Uma rapidinha só para dizer olá. Não te vejo há montes de

tempo, que é feito de ti?... Vi outro dia o Matt no Sainsbury's.

Estava com um ar algo infeliz, mas não tive tempo de lhe ir dizer olá, sobretudo porque a Poppy estava numa das fúrias dela, a monstrinha. Para além destes traumas, a vida por aqui continua fantástica. A Pops fala que se farta, até já recita o alfabeto. Ontem deu-me um grande abraço, com aqueles braços gorduchinhos, e disse-me que me adorava. E nem sequer tem dois anos! Juro que não sabes o que estás a perder, Cass. Tens de arrancar o Matt à livralhada e conseguir uma doação de esperma o mais rápido possível. Seja como for, agora não posso estar com conversas - ela está a acordar da sesta. Beijinhos - falamos em breve, OK?

As minhas mãos paíram sobre a opção «Responder» mas não consigo lembrar-me de nenhuma mensagem suficientemente leve e animada. O problema é que há tanto para dizer e nada parece poder ser dito por e-mail. Analiso as possibilidades e faço uma careta ao pensar nas saudades que, de repente, sinto dela.

Querida S.

Montes de novidades. Abandonei o feliz lar conjugal para me vir instalar numa vida de solidão, num apartamento assombrado à beira-mar. Não me perguntes porquê!!! Beijos e abraços - C.

- Ou então:

As doações de esperma são actualmente inviáveis devido a uma alteração completa de orientação na vida pessoal. Telefonar para mais informações (apenas à noite).

Preciso é de falar-lhe pessoalmente mas, nestes últimos tempos, tem sido cada vez mais difícil trocar com ela mais do que meia dúzia de banalidades sem sentido: estou bem, ele está bem, está bem. O problema são as horas. A Sarah gosta de telefonar a meio da tarde, quando a Poppy está a dormir a sesta, mas nessa altura estou eu a trabalhar. E quando lhe telefono à noite, invariavelmente responde-me o atendedor de chamadas. Da última vez que ela atendeu falámos cerca de um minuto e depois a Poppy agarrou no telefone e cortou a chamada. Em todos estes meses houve uma infinidade de e-mails e de mensagens de correio de voz, mas nenhuma comunicação directa. E agora vim instalar-me aqui e ela nem sequer sabe.

Continuo a percorrer o correio, passando por inúmeras mensagens com um aspecto terrível intituladas «Reestruturação curricular», até que, de súbito, vejo uma sem assunto, mas cujo remetente é M.Hughes@uni.ac.uk e o meu coração alegra-se um bocadinho. Clico duas vezes no rato, cheia de esperança de que ele me tenha comutado a sentença. Então, essa de ficares com o carro foi realmente uma bela partida! Foi o que eu pensei ontem à noite, sentado no maldito comboio de East Croydon durante mais de uma hora. Um imbecil qualquer atirou-se para a linha um km adiante de nós, o que quer ddizer que eu só cheguei a casa depois da meia-noite. Por isso, da próxima vez és tu que vens cá, OK?

Espero que gozes a tua «independência». É disso que se trata, afinal? Matt

Quer dizer que ele continua mal-disposto. Engulo em seco, volto a ler a mensagem e depois primo «Responder». Não há dúvida de que ele não queria parecer tão agressivo, mas a mensagem fez-me sentir como se alguém me tivesse dado um murro no estômago, e não totalmente na brincadeira.

Querido [escrevo eu], tenho muita pena que a tua viagem de regresso tenha sido um pesadelo. É claro que vou a Londres na sexta-feira.

Depois telefono. Amo-te - C.

Primo «Enviar», imaginando as minhas palavras a voarem para ele através do éter. Ele há-de lê-las rapidamente, com o espírito ainda mergulhado no seu artigo, naquele argumento delicadamente elaborado que constitui o objectivo final do seu trabalho e que surgirá no capítulo das conclusões. Depois, há-de apagá-las, sem responder, deixando-me a sofrer as consequências dos meus erros, todos aqueles joguinhos tolos de que ele tanto gosta.

Tenho tanto que fazer. Para começar devia pôr-me a abrir, a ler e a dar resposta à pilha de documentos que já começa a alastrar para o chão do meu gabinete. E depois há os dossiers do gabinete das admissões dos pós-graduados, os formulários laboriosamente preenchidos e as propostas de investigação que eu devia ler e comentar, mas que vou deixar em banho-maria no fundo da pilha até receber, pelo menos, três e-mails e um telefonema urgente do dito gabinete. Tenho pelo menos vinte alunos do primeiro ano, de quem serei orientadora pessoal, que tenho de conhecer e cumprimentar e uma reunião introdutória dos estudantes de mestrado a que tenho de comparecer dentro de dez minutos. E, finalmente, há as aulas do seminário que eu devia ter preparado durante o Verão, mas que, até agora, deixei por considerar e por escrever; e o seminário já começa na próxima semana!

Mas não vou entrar em pânico. Não. Aquilo que vou fazer é pôr os pés em cima da mesa e comer o meu almoço.

Porém, exactamente quando começo a tirar a película aderente da minha sanduíche de frango, ouve-se um «bang» na porta e, antes de eu ter tempo de gritar «entre», um homem de trinta e poucos anos irrompe pelo gabinete como se fosse dono dele.

É bastante atraente, do tipo académico descontraído, com óculos de aros grossos, à Harry Hill, jeans e um casaco de malha de fecho-ecler. A barbicha loira, as sobrancelhas cor de areia e o ar de bravata fazem-no parecer-se com um Viking do século XXI. Está com ar de riso, embora não seja claro se a hilaridade provém do meu triste almoço no meio dos despojos da minha vida académica, naquele gabinete que parece uma caixa abafada, ou de qualquer outra piada.

- Ora então, olá, Dra. Bainbridge. Bem-vinda ao primeiro dia do trimestre! - Diz isto em voz alta, parando de pernas afastadas no meio da alcatifa acrílica gasta e rindo. O cabelo cor de areia está cortado de uma forma brutalmente curta, possivelmente numa tentativa de disfarçar uma calvice iminente; tem um nariz grande e os olhos são do tipo que desaparece quando sorri. Olha para mim com a suprema segurança do macho alfa no seu local de trabalho. Já sei quem ele é. Chama-se Julian Leigh e o gabinete dele é ao lado do meu.

- Olá! - digo eu, pousando a sanduíche. É bom ver uma cara tão alegre e animadora.

- Que tal o começo? Produtivo? - Está a contemplar os despojos documentais espalhados pelo chão, com os lábios a tremer.

- Sim. Não me posso queixar.

- Já conheceu algum dos seus clientes?

- Já. - Estou a acenar com a cabeça e, apesar de ainda não ter a certeza de qual é a piada, comecei a rir.

- E já sucumbiu ao encanto do intelecto deles?

- Hmm...

- Quem é que tem?

Ponho-me a olhar para ele, a tentar lembrar-me de todos os nomes. - O tipo com as orelhas Masai... Andy Dubow?

Ele suspira e agarra a testa com a mão. - Burro que nem uma porta, mas acha que sabe tudo. Vai a caminho de uma licenciatura sem grandes honras.

- Hmm-hmm... Foi a impressão que me deu. Hmm... um par de mulheres mais velhas, Mary e Ellen ou algo assim... Uma rapariga chamada Beth.

Ele faz uma careta e abana a cabeça. - E um tal Alec Watkins? Um magricela de óculos? Esse vai fazer-lhe a vida negra.

Lembro-me da maneira como o rapaz franziu o sobrolho ao ver a minha lista de leituras, a forma irritada como abanou o pé.

- Ele é problemático?

Julian torce o nariz. - Só se você fizer dele um problema. Foi o primeiro em todas as cadeiras, o ano passado.

- Também me pareceu que ele era bom.

- Hmm...

Há uma breve pausa e eu sinto-me embaraçada sem qualquer razão. Julian continua a olhar para mim, como se estivesse à espera de mais alguma coisa.

- Então - diz ele -, que tal a praia? Onde é que disse que estava a morar?

- Queen's Square.

- Belas vistas de mar.

Dá-me ideia de que está a gozar comigo, mas sinto-me momentaneamente tão aturdida que não encontro uma réplica inteligente. - Sim, é bonito.

- E vive lá... sozinha?

Parou de rir e, durante um brevíssimo instante, passa-lhe na cara um olhar quase de ansiedade. Céus, está a tentar engatar-me.

Engulo em seco, olhando para as minhas mãos sem anéis. Sim, de certo modo - digo eu e, oh que ridículo!, sinto que as minhas faces coram como as de uma menina de escola. Sem querer analisar as razões, a verdade é que não lhe quero falar de Matt.

- De certo modo?

- Partilho um apartamento com um amigo em Londres.

Para esconder a minha cara carmesim baixo os olhos e aliso desnecessariamente a saia com as mãos.

- Colega de apartamento?

É neste ponto que eu devia corrigi-lo, dizendo que o meu amigo não é exactamente um colega, mais um parceiro de longo prazo, mas, por qualquer razão, tudo quanto consigo fazer é abanar a cabeça para cima e para baixo como um daqueles cães na parte de trás de um carro.

- Então, está a gostar da universidade? - diz ele e, inexplicavelmente, ri-se como se estivesse a perguntar-me se eu gostava de um qualquer hobby estapafúrdio, como por exemplo «engomar radical». O modo como ele olha constantemente para as minhas mamas está-me a deixar cada vez menos à vontade. - Não tem medo que lhe saltem para cima?

Fico estarrecida. De que é que o homem está a falar? Será outra piada? - Saltar-me para cima, em que aspecto? - pergunto eu, com uma careta.

- Ooh!, sabe como é. Todos estes cantos escuros do campus. Não são sítios muito bons para passear à noite sozinha.

- Não são?

Ele passa a língua nos lábios com ar devasso. - Uma estudante foi atacada., perto de Artes B, no trimestre passado.

- A sério?

- E, no Verão, outra rapariga foi violada no bosque, perto do parque de estacionamento.

Diz isto com um tom que lembra uma satisfação lasciva. Neste momento a minha cara contorce-se de tiques, como alguém que sofre de uma doença neurológica pouco grave. Como a minha única ideia é mudar de tema, tartamudeio: - E você, vive sozinho?

- Tociu. Divorciei-me no ano passado e mudei-me para cá.

E põe-se outra vez a sorrir para mim com ar malicioso, interpretando obviamente a minha pergunta como um sinal de interesse romântico. Devia informá-lo rapidamente acerca de Matt, mas não consigo imaginar uma forma de voltar atrás na conversa sem mergulhar em correntes ainda mais profundas de incomunicação. De qualquer modo, agora é tarde de mais porque ele está a olhar para o relógio e a dirigir-se para a porta. - Santo Deus! - resmunga ele.

- Encontramo-nos mais logo, Cass. Talvez possamos ir dar um passeio ou beber um copo junto à praia.

Engulo em seco. - Não estou... - Mas antes de ter tido tempo para acabar, ele acena e bate a porta com força ao sair.

Algum tempo depois encontro-me nos lavabos das senhoras a olhar para o espelho. Uma mulher com excesso de peso, quase de meia-idade, retribui-me o olhar. Enganei-me seguramente acerca do tom de voz do Julian, digo para comigo, porque, para além de Matt, há anos que ninguém se interessa por mim. E mesmo que o Julian estivesse a querer engatar-me, seria isso algo que me interessasse encorajar? Eu estava a gostar da nossa conversa, ia quase a começar a namoriscar também quando, estranhamente, ele se pôs a dizer piadas sobre ataques a raparigas. Não, digo para comigo.

A atracção dele é do género que resvala muito rapidamente para algo menos apetecível, como um fruto que, à primeira vista, parece sumarento e delicioso, mas que acaba por se revelar já ligeiramente apodrecido.

Melancolicamente, apercebo-me de que já não gosto muito de me ver ao espelho. Tenho a mesma cara redonda, os mesmos olhos verdes e o cabelo preto espesso, o mesmo nariz céltico arrebitado e os lábios carnudos, como sempre tive. Mas, actualmente, há uma flacidez nova quase imperceptível na minha cara e passo a vida a arrancar cabelos brancos nas têmporas, a minha nova tiara geriátrica. Também estou mais gorda, mais ainda do que quando era adolescente e passava tanta fome que chegava a desmaiar só para poder enfiar-me num tamanho 36 da Miss Selfridge. Agora deu-me para usar roupa larga, de estilo hippy retardado, calças com elástico no cós e socas em vez dos tailleurs e botas de cano alto que gostava de usar. Não há que negar: sou, inevitavelmente uma, mulher perto do fim dos trinta. Muitas das mulheres que entrevistei no East End já eram avós na minha idade.

Afasto o cabelo dos olhos e ponho baton, o meu instinto feminista a erguer-se na lúgubre direcção dos meus pensamentos. Que se lixe, recuso-me a ficar deprimida. É verdade que ontem à noite descobri um pêlo púbico grisalho, mas quem se importa? Haverá algum homem que se importe? Também não sou assim tão despicienda. Continuo a ter umas pernas bem delineadas e fortes que ainda estão morenas do Verão e, ao contrário das da Sarah, as minhas mamas são firmes e generosas. «As pegas do amor» é como Matt se refere às minhas partes flácidas: «Anda cá, Sexy, deixa-me apalpar essas curvas.» E é claro que a gordura não impede a formosura. Sou aquilo que é descrito como bem-parecida.

Talvez um pouco de baton fosse tudo aquilo de que eu precisava, penso, sorrindo para mim própria com determinação. E assim que me apresento ao mundo: uma mulher alegre, consoladora, positiva, segura de si. Mordo os lábios, espalho o baton e, erguendo as sobrancelhas num gesto dirigido a mim mesma, regresso ao trabalho.

A tarde já vai adiantada na altura em que saio da universidade. Salto para o velho Carocha, que Matt insiste que troquemos por uma coisa mais adulta, e ponho-me a caminho de casa. A medida que o dia foi avançando, o sol foi empalidecendo e o céu está enfarruscado e escuro; a descida para o Outono é cada vez mais irreversível. Uma faixa de nuvens de um tom cinzento-escuro paira ameaçadora sobre o horizonte e, no momento em que meto a chave na ignição, uma bátega de chuva abate-se sobre o pára-brisas empoeirado. Saio do campus, dirigindo o carro para a via dupla que leva ao centro da cidade. Oiço o estrondo de um trovão, vindo não de muito longe. O mar deve estar agora verde-acinzentado, todo encrespado e coberto de espuma, remexido pela tempestade que não tarda aí.

Estou tonta de exaustão, esgotada pelo esforço de passar um dia inteiro a ser simpática para com estranhos. Não quero ver ninguém, nem falar com ninguém, nem fazer nada. vou regressar ao meu apartamento vazio, onde vou ficar muito quieta e sossegada, sozinha. Meto terceira, carrego no acelerador e estou quase a misturar-me no trânsito da hora de ponta quando sinto uma pancada na parte lateral do carro e sou projectada para o lado da estrada, a gritar «merda!» e a carregar com tanta força no travão que o Carocha dá um salto para a frente e, depois, estaca como um coelho ferido.

Bati em qualquer coisa. Atrás de mim, a fila de carros parou e uma mulher de meia-idade, com uma gabardina preta, corre pelo passeio e agacha-se, a espreitar para debaixo do meu carro. Abro a porta e saio do carro aos tropeções. Sinto a chuva a bater-me na testa e o cheiro enjoativo da gasolina derramada. O meu coração bate com tanta força que mal consigo respirar.

É um ciclista. Vejo as rodas retorcidas da bicicleta a espreitarem por baixo do capo e ali, enrodilhado junto ao passeio - oh céus - está um corpo. E uma rapariga. Vejo-lhe o cabelo caído sobre a testa e a ganga puída dos seus jeans. Durante uns segundos tudo parece abrandar: avanço para o passeio, debruço-me e digo numa voz que não parece a minha: - Está bem? - Na estrada há carros que se desviam do meu, devagarinho, com os ocupantes a olharem estarrecidos para a cena. Ao ver-lhes os olhares de curiosidade mórbida, penso que vou vomitar.

- Oh meu Deus, lamento tanto - digo eu. - Não fazia ideia que estivesse aí.

E então, milagrosamente, a rapariga senta-se, olha em volta, levanta-se e eu vejo que a pessoa que derrubei é Beth Wilson, uma das minhas alunas.

- Olá - diz ela, ofegante, e quando lhe estendo a mão para a ajudar a levantar-se, ela sorri-me de uma forma que parece mostrar alívio. De repente está de pé no passeio a limpar a lama aos jeans e a olhar para mim, quase como se estivesse à espera de qualquer coisa. Eu continuo a abanar a cabeça, repetindo - Nem sequer sabia que estava ali... - como se, de certo modo, isso me isentasse de qualquer culpa.

Ao meu lado, a mulher passou o braço sobre os ombros de Beth. Uma pequena multidão juntou-se no passeio, demasiado inglesa para parar e ficar a olhar descaradamente mas, apesar de tudo, curiosa. Chove agora mais abundantemente, uma chuva fininha que cai como um véu. O ruído do trovão ecoa à nossa volta.

- Será melhor chamar uma ambulância? - pergunta a mulher e vejo que ela tirou da carteira o telemóvel e mexe nele tentando apanhar rede.

Beth sorri-me, tranquilizadora - Não, está tudo OK. Estou bem. O carro nem sequer me tocou.

- Mas o que é que aconteceu?

- Não sei, devo ter derrapado. Se calhar, com a chuva...

Percorre-me um sentimento de alívio. Respiro fundo, para acalmar, tentando lembrar-me das aulas de ioga a que raramente consigo ir, por falta de organização.

- Quer dizer que não tive culpa?

- Não, fui eu, foi a minha roda que bateu no passeio. - Beth ri-se.

- E a sua bicicleta? - É a mulher que fala e que, agora, espreita com ar céptico para as rodas retorcidas que espreitam por debaixo do meu carro. Sinto que está ansiosamente à espera de um drama; há nela um antagonismo indefinido para comigo e só desejo que se vá embora.

- Oh! Isso. - Inclinando-se, Beth arranca a bicicleta de debaixo do Carocha. Considerando a pancada que deve ter dado no asfalto duro da estrada e o choque de se sentir a rebolar debaixo do meu carro, parece notavelmente tranquila. Observamos em silêncio a ruína da bicicleta. A roda da frente está toda torcida, o selim partido. Ela acaba por encostá-la a um candeeiro. - Tenho a impressão de que vou ter de a empurrar até casa - diz ela.

- Não, não tem. Não vai a pé para casa. - Pouso-lhe uma mão no ombro - Eu levo-a. É o mínimo que posso fazer.

- Sério?

- Claro que sim. Insisto.

Ela limpa as mãos molhadas e sujas de óleo às calças de ganga.

- Fixe!

E, num abrir e fechar de olhos, está junto da porta do passageiro, abrindo-a ansiosamente e saltando para dentro do carro. Este está tão atafulhado de jornais velhos, de caixas de comida esquecidas e nojentas, e de garrafas de Coca-Cola vazias que tenho de abrir espaço no banco da frente para ela poder sentar-se, atirando com aquela tralha toda para o banco de trás, por cima dos apoios de cabeça, todos rasgados. Ainda ali tenho três caixotes de livros que algum dia terei de desempacotar. Ela empoleira-se no banco da frente, os pés por cima de um saco cheio de CDs, o rabo a partilhar o espaço com um par de cortinas de veludo que herdei da minha avó e que, sabe-se lá porquê, arrasto comigo para todo o lado sem nunca as ter pendurado.

- Desculpe esta porcaria toda.

- Não, que ideia, está óptimo. - Sorri, obviamente deliciada por ter arranjado boleia. Estamos sentadas, imóveis, no interior húmido do carro, escorre-nos água pela cara e temos o cabelo ornamentado com gotas de chuva.

- E a sua bicicleta?

Ela funga. - Agora já ninguém a quer, pois não? Outro murmúrio de trovão, mas para já ainda não se vêem os relâmpagos.

- Então, para onde?

- Tanto me faz.

- Onde mora?

- Deixe-me junto ao mar - diz ela, jovialmente. Moro ali perto e depois vou a pé.

Ao dizer isto levou a mão ao nariz, esfregando-o distraidamente. Reparo, sobressaltada, que está a sangrar um pouco e que agora tem na bochecha um risco de sangue castanho. Meto a mão no bolso e estendo-lhe um lenço de papel. - Tem sangue no nariz.

- Ah, obrigada. - Limpa o nariz, sem parecer aperceber-se do gesto.

Parece tensa; está a segurar na mochila com tanta força que os ossos brancos dos nós dos dedos transparecem através da pele. E não olha para mim. É possível que seja o choque diferido do acidente. Passado um bocadinho, digo: - Sabe uma coisa? E que tal se a levasse a tomar um café ou coisa assim? Só para confirmar que está realmente OK.

Parece que estas palavras surtem efeito, pois o seu rosto ilumina-se. É muito jovem, não deve ter mais de dezanove ou vinte anos.

-Boa!

Ligo o motor, meto a mudança e partimos. Durante uns momentos seguimos em silêncio, subindo os montes Downs na longa fila do trânsito da hora de ponta. Não tarda a escurecer e os candeeiros da rua já estão acesos. Estou a pensar ir até à beira-mar e procurar aquele género de cafés que servem chá forte e fatias de bolo caseiro e que não se importam se lá ficarmos muito tempo. Tenho montes de trabalho para fazer. Mas a rapariga acabou de ficar debaixo do meu carro; o trabalho que espere.

Ela está indubitavelmente satisfeita, recostada no assento descaído do Carocha, rindo ao ouvir-me contar a famosa história do dia em que eu já ia a meio de uma palestra sobre a história da sexualidade britânica quando me apercebi de que o meu público era formado por estudantes de Engenharia do primeiro ano, que estavam à espera de ouvir uma lição sobre termodinâmica. vou olhando para ela de relance para confirmar que não está prestes a desmaiar ou a ter qualquer ataque pós-traumático, mas tem os olhos brilhantes e a cara rosada.

- Então, está a gostar da universidade? - pergunto eu. É uma das minhas deixas de abertura habituais. Esta e «Que tal acha que está a correr o curso?».

- É fantástico! Quero dizer, para mim é uma mudança tão grande.

- Porque...?

- bom, é que, sabe, eu adoro estudar, essa coisa dos livros, estar na biblioteca e tudo isso...

Olho para os candeeiros que vão passando até parecerem um borrão. Não estou a prestar grande atenção àquilo que ela está a dizer.

- E consta que Brighton é uma grande terra no que toca à vida nocturna - digo eu, num tom vago - Montes de discotecas e coisas do género.

Não sei porque digo isto, há anos que não vou a discotecas. Talvez queira dar-lhe a entender que estou a par do mundo dourado da juventude.

- É, são tudo coisas que eu adoro. Dançar e isso tudo. t,n Chegamos ao outro lado das colinas e agora dirigimo-nos para

o mar, através da chuva. Lá em baixo vejo as filas muito direitinhas das casas dos bairros sociais que rodeiam a cidade e, sobre a água, as luzes longínquas e oscilantes de um barco de pesca.

- Estava a pensar no que disse no seminário, sobre o modo como construímos as nossas histórias. Como podemos alterar os factos para que se adaptem aos nossos desejos - diz Beth, de repente. - Quer dizer, é mesmo isso que pensa?

Franzo o sobrolho, tentando centrar os meus pensamentos. Sim, até certo ponto. É claro que duas pessoas podem ter versões diferentes do mesmo acontecimento e isso é uma coisa de que os historiadores têm de ter sempre em mente.

- E o que acontece quando têm a mesma versão? Quando sentem a mesma coisa ao mesmo tempo? Quer dizer, como... quando duas pessoas se apaixonam.

Olho para ela e mal consigo abafar uma risadinha. Ela não tinha percebido absolutamente nada. Ou talvez seja mais sugestionável e imaginativa do que a maior parte dos colegas, como aquelas crianças que descortinam caras no céu onde todas as outras pessoas só vêem nuvens. - Não me parece que isso seja realmente relevante.

- Não, porquê? - Ela cruza os braços e olha para mim com um sorrisinho provocador.

- bom, para começar estamos a falar de coisas académicas e não de emoções.

- E as duas coisas não estão ligadas? Não é verdade que as emoções mudam tudo?

- Acho que sim, mas...

- Então tenho razão! - Ri-se, dando murros no ar, triunfante. Eu ia continuar quando, de repente, soa o toque cómico do meu telemóvel. Matt, que patife, escolheu a música do Rudolfo, o Veado de Nariz Vermelho, e, apesar de todos os esforços para decifrar as instruções do maldito aparelho, não consigo alterá-la. Quando tiro o telefone da carteira vejo que é ele que está a telefonar-me.

- Olá, querido.

- Olá, minha beleza rechonchuda.

Está com uma voz muito animada e divertida, o amuo já desapareceu. Eu não me tinha apercebido de quanto o seu silêncio me magoara, mas agora sinto-me invadida por um grande alívio, como se desapertasse o fecho-ecler de umas calças demasiado justas, ao fim de um dia longo e árduo.

- Então novidades? - digo eu num tom displicente. com Matt é sempre melhor não mencionar problemas anteriores, não vá a paz ser interrompida.

- Só queria ouvir a tua voz.

- Estou no carro, dei boleia a uma pessoa.

- Quem gostava de te dar uma boleia era eu.

- Não era mau.

Pelo canto do olho vejo que Beth olha sonhadoramente pela janela embaciada.

- Acho melhor desligar agora - digo. - Falo-te logo, está bem?

- OK, dão, querida.

Depois, tipicamente, desliga o telefone, antes de eu poder dizer a última palavra. Mas também não importa. Estou tão contente por a fúria dele ter passado que, ao carregar no acelerador, trauteio urna musiquinha.

Chegamos a Marine Parade. Aqui em baixo está mais vento do que nas colinas, onde se situa o campus, e o carro abana levemente, sacudido pelas rajadas. Estaciono e, enchendo-nos de coragem, corremos debaixo da chuva oblíqua em direcção a um café no lado leste do molhe. Gosto do mar quando está assim, agitado pela tempestade, os cartazes dos gelados a abanar, as gaivotas a cruzar o vento como surfistas. Abandonado pelos turistas, pelos estudantes estrangeiros e pelos autocarros apinhados de Sikhs vindos de Southall, o mar é uma coisa completamente diferente. Tumultuoso e revolvido pelas correntes profundas e secretas, perde qualquer ligação com lembranças e remorsos.

Quando chegamos ao café escancaro a porta, respiro fundo de alívio e somos instantaneamente envolvidas numa lufada quente de óleo de fritar barato e de cheiro a fumo frio de cigarros. O café está vazio. Há aí umas dez mesas de fórmica, com cadeiras de madeira e cinzeiros de lata e, por cima do balcão, um quadro preto que anuncia «pequeno-almoço completo» por £2.50 e chá por 75p. Têm fatias de bolo embrulhadas e scones com ar ressequido, salsichas e batatas fritas por £3.50 e uma colecção de sanduíches recessas, de cantos arrebitados.

Um homem de avental, com ar desleixado, está esparramado por cima do balcão, a fumar. A sua barriga é tão gorda que está praticamente pousada em cima da superfície manchada do balcão e o cabelo grisalho é muito oleoso. Olha para nós com uma resignação tristonha: talvez estivesse à espera de poder fechar a loja e ir para casa. Peço, ao balcão, dois chás, um pacote de bolachas para a Beth e um KitKat para mim. Fico aqui uns quinze minutos, penso eu. Depois tenho mesmo de voltar para o apartamento e preparar a primeira aula. Agarrando no tabuleiro de lata, dirijo-me lentamente para a mesa ao pé da janela onde Beth já está sentada. Hoje de manhã, desta janela havia de se ver a praia e o mar, mas agora só se vê a chuva a bater na vidraça escura.

Debato-me com a cadeira de plástico que ficou presa debaixo da mesa. Beth pousou o queixo nas mãos e está a olhar para mim, expectante. - Precisa de uma mãozinha?

- Não - dou um puxão final à cadeira que se solta de repente, abanando a mesa e entornando o meu chá que forma um lago fumegante sobre a mesa de fórmica. - Raios! - rio-me para ela, à guisa de desculpa. - Não sei porque é que sou sempre tão desastrada.

- Não parece desastrada.

- Não?

- Nem pensar. Parece uma pessoa muito equilibrada.

Faço uma careta. A verdade é que enquanto as outras pessoas parecem controlar admiravelmente os objectos materiais que as ligam ao mundo, essas mesmas coisas passaram a vida a escorregar-me das mãos. Os tesouros da infância partidos em bocados, chaves vitais perdidas, vestidos de festa rasgados. «A Menina Desastrada»

- costumava dizer-me a minha mãe. - «Sempre tão descuidada.»

- Quero dizer, fazer história não é isso mesmo? - continua Beth. - Ter cuidado com os factos?

Olho para ela, surpreendida com a profundidade do comentário. - Sim, suponho que, em parte, é exactamente isso.

- Então talvez seja por isso que escolheu esta profissão.

Eu ia fazer mais uns comentários, mas estou a ficar cada vez mais perturbada com a sensação de que falta qualquer coisa. Qualquer coisa de muito importante. Debruço-me para o chão junto aos meus pés e descubro que a minha velha mochila de couro desapareceu.

- A minha mochila!

Eis um comportamento típico de Cass: estou sempre a pousar coisas e a ir-me embora, completamente na lua. Lembro-me perfeitamente de ter pegado na mochila quando estacionei o carro, por isso talvez a tenha deixado na rua quando fechei as portas. Comecei a censurar-me pela minha óbvia estupidez, mas o sorriso feliz da Beth distrai-me.

- Está tudo bem - baixa-se e em seguida exibe a mochila como se tirasse um coelho de uma cartola. - Eu trouxe-a. Deixou-a em cima do capo do carro.

- Obrigada! Agora já está a perceber o que eu queria dizer. Ela encolhe os ombros, bem-humorada.

De repente estamos ambas a falar ao mesmo tempo. -Eu...

- Então...

Ela cora e solta uma gargalhadinha abafada. - Desculpe.

- Gosta de Estudos de Género? - continuo eu.

- Ai, adoro. É fantástico. - Diz estas palavras com um tom tão definitivo que não consigo pensar em mais nenhuma pergunta.

- Óptimo.

Ela sopra o chá, depois sorve-o ruidosamente, afastando com ar embaraçado o cabelo dos olhos e olhando para mim. Procuro os cigarros na minha mochila. Comecei a planear a aula e o meu espírito afasta-se de Beth para se debruçar sobre a lista de perguntas que servirão de introdução, o estudo de caso de que me servirei para ilustrar a minha ideia mestra.

- Eu era para ir para Harvard - continua ela.

Não consigo encontrar a porcaria dos cigarros. Ainda não estou completamente concentrada e, enquanto remexo na mochila, pergunto-me a mim mesma se não os terei deixado no gabinete.

- Passei a entrevista e tudo e também tinha um lugar em Cambridge. Ia estudar Direito. Estava entre os dez por cento dos melhores resultados dos exames do 12? ano a nível nacional.

Desisti da minha busca de cigarros e concentro-me devidamente nela. Está debruçada sobre a mesa a olhar para mim, de braços cruzados. Aceno-lhe com a cabeça, encorajadoramente, pois voltei ao meu modo de professora atenta. Aquela tentativa ingénua de impressionar é amorosa, mas completamente transparente.

- Mas que altos voos! - digo, tentando não parecer demasiado paternalista.

Mas ela não dá mostras de ter registado a ironia da minha voz.

- O que aconteceu foi que quando chegou a altura, não consegui aguentar. Quer dizer, todo aquele mega sucesso que os pais querem de nós. E por isso resolvi vir para cá. Contra a vontade da minha mãe e do meu pai, devo dizer.

- Ainda bem que ouviu a voz do seu coração.

Parto uma barra do KitKat e tiro-lhe a prata. Talvez eu esteja a dar uma impressão errada do meu local de trabalho. - É claro que não gostamos que os nossos estudantes vejam este curso como uma opção de menor categoria - começo eu. - Quer dizer, podemos não estar na mesma liga de Harvard...

Mas Beth interrompe-me: - Consigo aconteceu o mesmo? Sabe, a pressão dos pais a empurrá-la para a vida académica?

- Céus, não. Antes pelo contrário. - Enfio o KitKat na boca e bebo um gole de chá, sorvendo o líquido através da bolacha de chocolate. É um hábito nojento que Matt abomina, mas, privada dos meus cigarros, não consigo dominar-me.

Beth continua a fitar-me com ar interrogativo. Não tocou nas bolachas. - Então como foi?

- Não ia querer saber - Dou uma risadinha e bebo mais um gole de chá. Esta não é uma linha de investigação que me apeteça vê-la seguir.

- Então, também ouviu a voz do seu coração e resolveu fazer o que queria. Que porreiro.

Olho para ela, depois levanto-me.

- Tenho de ir para casa - digo, esfregando as mãos. Beth afasta a cadeira e levanta-se também, sorrindo ansiosamente. vou até à praia olhar para as ondas - diz ela. - Estive a nadar ali hoje de manhã. Nem dá para acreditar, ao ver como está agora, pois não?

Não consigo evitar um arrepio involuntário. - Isso não era para mim. Não, não me parece.

- O tempo ainda está bom.

- Não é o frio.

A pergunta que vejo formar-se-lhe na cara não lhe chega aos lábios. Ela apanha a minha mochila e entrega-ma, presumivelmente para o caso de eu me voltar a esquecer, e segue à minha frente em direcção à porta.

Parou de chover. Despedimo-nos em frente ao café e Beth corre para a praia, com o seu gorro a abanar como um pássaro a tentar levantar voo, enquanto avança contra o vento. Quando desaparece na escuridão enevoada, obrigo os meus pensamentos a regressar à aula. Talvez deva tentar encontrar os meus slides de Bethnal Green durante o Blitz e abrir com eles ou, então, dar-lhes a ouvir um pedacinho de uma das minhas entrevistas. Dê por onde der, esta noite não posso deixar de trabalhar.

Porém, agora que encontrei o meu carro, que me meti lá dentro e fechei a porta, sinto-me incapaz de me mexer. Em menos de uma hora a minha boa disposição dissipou-se e agora sinto-me cansada e tristonha, como um dia prometedor que, inesperadamente, se cobriu de nuvens. A única coisa que tenho a fazer é ligar a ignição e ir-me embora, mas estou gelada, com as mãos inutilmente dobradas sobre a chave e as pernas resolutamente cruzadas. Para lá do pára-brisas, mais ou menos a uma centena de metros, as ondas rebentam sobre os seixos. Oiço o barulho das pedras arrastadas e roladas pelas ondas e o ruído de sucção da água coberta de espuma. Não devia ter vindo aqui, devia ter insistido em deixar Beth onde ela mora e ido direita para o meu apartamento vazio e para o meu computador portátil. E agora aqui estou, parada, a tremer, sentada em frente ao volante do meu Carocha gelado, vítima indefesa do meu próprio mal-estar.

Beth pode pensar que eu sou porreira, mas sou uma fraude. É verdade que tenho um doutoramento e que publiquei uma monografia - que teve boas críticas - sobre a história oral do racionamento e da estrutura familiar no East End, em 1949-50; faço palestras, dou aulas, até sou convidada a participar em conferências austeras e eruditas. Mas, desde que acabei o meu doutoramento, tive sempre a sensação inescapável de que nada sei e de que, um dia, a profundidade da minha ignorância e da minha incompreensão geral do mundo serão descobertas.

- Perita em famílias, que boa piada! - Digo estas palavras em voz alta, numa voz que me surpreende de tão veemente. A muito serena doutora Bainbridge: a mesma mulher cuja família praticamente se desintegrou, cujo irmão vive do outro lado do mundo, cujo pai morreu e que há anos não fala com a mãe, apesar dos postais de parabéns suplicantes que dela recebe. «Por favor, contacta-me, escreve ela na sua letra miudinha e angulosa. «Era tão importante para mim. E sem conseguir impedir-me de o fazer, vejo-a à minha frente: não como está agora, mas como era quando eu era pequena, com os seus cabelos encaracolados e o vestido de pintas que usava para ir às festas. Nessa altura eu achava que ela era linda como os anjos. Enroscava-me no colo dela, passava um dedo pela cara, macia de pó-de-arroz, até chegar aos lábios cor-de-rosa brilhantes. Nunca queria que ela saísse e tentava pendurar-me nela para a impedir de se mexer, mas inevitavelmente, sem nunca falhar, ela pegava em mim e depositava-me firmemente no chão. «Que lapa! dizia ela, E ser lapa» era uma característica que ela detestava.

E, de repente, lembro-me da sensação da água na minha cabeça, da dor aguda nos seios nasais, do pânico das profundezas obscuras e sufocantes. Depois voltava à superfície, a bater com os braços, meio a guinchar por socorro meio a engolir ar e ela ali estava, de pés firmemente implantados no leito de areia, a rir-se de mim. «Não sejas tão piegas» troçava ela, «como é que vai ser quando te tirar as braçadeiras?»

Sento-me muito direita e abano a cabeça para sacudir os pensamentos, como se estes fossem as últimas gotas da chuva. E que importava que eu tivesse tido «problemas» com a minha família? Isto não me desqualificava como perita em história da família. Sou professora, não uma psicóloga de estudantes; há uma enorme diferença entre aquilo que conhecemos intelectualmente e a substância nebulosa e cambiante do que conhecemos emocionalmente. E, mesmo que os críticos quezilentos que habitam no meu espírito estejam constantemente a dizer-me quão pouco eu percebo, eu defendo-me tão bem com as minhas listas de leituras, os meus argumentos cuidadosamente ponderados e as minhas fontes meticulosamente investigadas que ninguém me há-de pôr a nu.

Ligo o motor frio e trepidante e meto a mudança, furiosamente. É altura de ir para casa.

Não demoro a chegar a Queen's Square. Estaciono e corro para o número dezasseis, onde vivo. Na rua perfilam-se aquilo que, em tempos, foram generosas casas de habitação estilo Regência mas que agora estão obviamente na moda de baixo. De certeza que a rua não parecia tão sórdida quando a vim ver no Verão. Esta noite está um caos, com sacos de lixo entornados, bicicletas enferrujadas amarradas às grades com cadeados e colchões velhos atirados para as escadas das caves. com excepção do edifício da ponta, decorado com um arco-íris garrido e com um grande cartaz pendurado das janelas do último andar que proclama DEFENDA O SEU DIREITO À OCUPAÇÃO DE CASAS VAZIAS, todos os outros foram transformados em apartamentos.

O número dezasseis talvez seja o mais decrépito da rua: a tinta a descascar na parede exterior, cinzenta de velha, os caixilhos das janelas a apodrecer. Subo as escadas de um salto, à procura das chaves. Não estão no bolso do casaco nem na parte da frente da mochila. Começo, laboriosamente, a esvaziar o seu conteúdo amarrotado: um punhado de moedas, um postal amarfanhado que eu tencionava mandar ao meu irmão pelo aniversário dele (fez anos há seis meses), duas contas que chegaram esta manhã e que ainda não abri, o meu porta-moedas e um grande maço de ficheiros da universidade. Mas nada de chaves. E a porta de entrada para o apartamento é enorme, pesada e está trancada.

Afasto-me do alpendre e espreito a ver se estará alguém no prédio. Apesar de estar aqui há quase uma semana ainda não vi nenhum dos vizinhos. Às vezes oiço o estrondo da porta da entrada e passos nas escadas ou sinto o cheiro de incenso no átrio, e ontem, quando fui buscar o correio, tive a nítida sensação de que estava alguém atrás de mim. Mas para já não há ainda nenhuma cara a condizer com a lista de apelidos colados junto às campainhas, na entrada.

As janelas do segundo e do terceiro andar estão às escuras mas há luzes por detrás das cortinas de renda do apartamento do rés-do-chão. Batendo os pés para afastar o frio, colo o dedo à campainha. Há uma longa pausa, depois oiço um clique seguido de um surto de estática. Sim? É uma mulher com a voz abafada pelo velho intercomunicador.

- Boa-noite. Vivo no andar por cima do seu e estou cá fora, sem chave.

Silêncio. Através da grossa porta oiço um arrastar de pés, um bang e depois a porta abre-se uns cinco centímetros e aparece uma cara a espreitar cá para fora.

- Olá - digo eu. - Sou a vizinha de cima. Perdi as chaves.

A porta escancara-se. A minha vizinha olha para a rua, puxando ansiosamente um pedaço de pele flácida que lhe pende do pescoço. Antes que tenha tempo de censurar os meus pensamentos, a vergonhosa frase «velhota a querer passar por rapariga nova passa-me num relâmpago pela cabeça. Anda na casa dos cinquenta, talvez mais, veste calças camufladas tipo Lara Croft, que deviam ser largueironas mas que se lhe colam aos refegos das coxas, e calça botas Buffalo. Por cima traz uma T-shirt de mangas compridas subido na barriga balofa, de forma a mostrar um piercing no umbigo. Tem uma cara cinzenta e flácida e uns dedos finos cobertos de pesados anéis em prata. Cabelo preto pintado, amarrado em totós com trapos roxos que brotam da sua cabeça como as bandeiras das orações budistas.

- Já a vi - diz ela, abanando a cabeça, sem sorrir. - Está no antigo apartamento do Doug e da Jenny.

Entro com ela no átrio cheio de correntes de ar. É uma visão deprimente: o papel de parede aveludado a descascar, a alcatifa vermelha tão suja que é quase castanha, com o padrão do estampado a lembrar rolos de sangue seco. Por baixo de um espelho baço, encontra-se uma mesa de madeira desconjuntada, coberta de contas dirigidas a locatários há muito desaparecidos, folhetos a anunciar vidros duplos, sacos de lixo da Ajuda aos Idosos e listas telefónicas desactualizadas. Cheira a comida recessa e a humidade.

- Olá - digo, estendendo a mão -, sou a Cass.

Ela cumprimenta-me apertando frouxamente a minha mão.

- Seja bem vinda, Cass - diz. - É provável que passe a vida a dar de caras com os meus clientes aqui na entrada. - Tem uma voz profunda e rouca, a tonalidade dos grandes fumadores.

Faço um gesto apatetado com a cabeça, incapaz de me lembrar de uma resposta adequada. Através da porta aberta do apartamento dela entrevêem-se umas paredes pintadas de roxo e uma porta ornamentada com uma cortina de contas brilhantes. Cheira a incenso que tresanda. Depois de uma pausa longa, ela acrescenta: - Também faço taro, se estiver interessada. Mas é sobretudo astrologia. Continua sem sorrir mas fita-me intensamente, como se estivesse a tentar descortinar a minha aura.

Estou tão cansada do meu dia e de tanto falar que me limito a sorrir mudamente com ar afectado.

- Oiço-a a andar aqui por cima a altas horas.

Faço uma careta. - Ups, desculpe. Estas paredes são tão finas.

- Ora, não se desculpe - diz ela, com uma risadinha que mais parece um gorgolejo. -Não me importo nada. É um conforto ouvir gente cá em cima.

Não lhe peço explicações. Só tenho um desejo que é entrar no meu apartamento, ligar o computador e começar a trabalhar na aula. Mas, palerma como sou, lá fui perder as chaves e continuo sem poder entrar em casa.

- Tenho de telefonar à administração do prédio ou coisa do género - resmungo -, para poder abrir a minha porta.

Ela olha para mim, depois lambe os lábios como um lagarto à espera de apanhar uma mosca. - Tenho umas chaves sobresselentes - diz, lentamente. - A Jenny pedia-me sempre para lhas guardar.

Dá meia-volta a arrastar os pés e entra no apartamento, regressando pouco depois com um grande porta-chaves de cristal. Sigo-a pelas escadas acima, ela abre a porta e depois volta a meter rapidamente as chaves no bolso. Ao ver que ela se deixa ficar na última escada percebo que está à espera de que a convide a entrar.

- Fantástico - digo eu, quando a porta se abre. - Muitíssimo obrigada!

Ela lança-me uma olhadela mais demorada do que o devido Devo parecer altiva e pouco simpática, mas a verdade é que estou desesperada por me ver livre dela.

- Chamo-me Jan - diz ela -, e não há dúvidas de que você é Caranguejo.

Depois vira costas e desce pesadamente as escadas. E o mais cómico é que acertou!

Finalmente estou sozinha. Entro no apartamento sentindo-me uma impostora. Esta manhã abri as janelas de par em par, enchi a casa com os vestígios tranquilizadores, quotidianos da minha presença. Café, torradas queimadas, sabão de alfazema. Mas na minha ausência o apartamento voltou a afirmar-se e agora sinto a sua pestilência lúgubre, as paredes húmidas e o cheiro da alcatifa poeirenta. Esteve vazio demasiado tempo.

Entro na sala, acendo a luz e contemplo a pilha de livros e o meu computador portátil, ainda na sua pasta muito aninhado junto à parede. A sala parece mais vazia e maior do que nunca, com as janelas de sacada a esticarem-se até ao tecto de estuque sujo e o papel de parede horrendo, de padrão a imitar aparas de madeira, com manchas pálidas nos sítios onde estiveram pendurados quadros. Da primeira vez que vi o apartamento, no início de Setembro, o sol entrava a jorros pelas janela e mal reparei naquele cenário decrépito. Mas agora, à luz baça da lâmpada eléctrica, a sensação de abandono é inevitável. Em tempos alguém deve ter instalado os candelabros falsos e as sanefas aveludadas com esperança e intenção. Deve ter forrado o átrio com papel a imitar o estilo da Regência com a sensação de estar a fazer grandes melhoramentos, escolhido os azulejos de cor verde-lama para o quarto de banho com um zelo modernista. Mas isso foi certamente há muitos anos. Quem quer que fosse que aqui viveu por último pouco se importava com o que o rodeava.

Vou até ao centro do quarto, a imaginar como seriam Doug e Tenny. O único vestígio da sua presença que descobri até agora foi um postal bolorento da Gâmbia, enrolado por detrás do bidé. Que quadros estiveram em tempos pendurados nestas paredes? Que móveis deixaram estas marcas profundas na alcatifa fofa? Paro junto às janelas, sem saber o que fazer a seguir. Sim, tenho a aula para preparar, mas andei todo o dia tão espicaçada por um tal ataque de actividade que, agora que estou sozinha, me sinto à deriva, incapaz de fazer seja o que for para além de ficar junto à janela a olhar para o escuro lá fora. O vento levantou-se de novo e as portadas de madeira abanam e a rangem como se estivessem possessas.

vou é fazer um café, comer umas bolachas. Na cozinha, ligo a chaleira e executo uma espécie de dança para aquecer. A disposição é em forma de L: um corredor estreito que conduz à zona apertada onde nos podemos sentar, descrita no anúncio de aluguer como «balcão de pequenos-almoços. No fim deste há uma porta em vidro de correr, e um terracinho no telhado, ligado ao passeio lá em baixo por uma escada de incêndio bamboleante. Ao ver o telefone fixo à parede, lembro-me de que ia telefonar a Sarah. Devia era estar a abrir o computador e a escrever «Semana Um: Métodos de História Oral, mas estive todo o dia morta por lhe falar e agora vou ver se a encontro.

Levanto o auscultador e marco o número dela. Sarah atende quase imediatamente. Noto na voz dela que está sem fôlego e ligeiramente irritada como se tivesse sido interrompida quando fazia algo importante. - Sim?

- Sou eu.

Pausa. Talvez já não reconheça a minha voz. Depois algo nela parece descontrair-se e respira. - Olá, desaparecida, há imenso tempo que não sei nada de ti - tal qual a velha Sarah com quem estava ansiosa por falar. Estou prestes a contar-lhe como tudo mudou na minha vida e que estou agora a morar num apartamento decrépito junto ao mar quando ela dá um guincho. Ouve-se uma pancada surda, presumo que do auscultador a cair. Oiço os gritos abafados de um bebé lá ao fundo.

Mantenho o telefone afastado do ouvido durante um bocado e; os meus olhos percorrem a cozinha. Não me parece que vá cozinhar muito aqui. O fogão é verdadeiramente repugnante; uma ruína gordurosa, com a tinta plástica a descascar junto aos botões Uma inspecção mais atenta mostra-me que os azulejos, com os seus motivos florais, estão cobertos por uma camada escorregadia de gordura. Levo o auscultador ao ouvido e oiço a voz de Sarah a cantarolar: «Pobre Poppy, a mamã gosta muito de ti repetidamente numa evocação maternal encantatória ao Deus das crianças pequenas. Após mais uma longa pausa, oiço Sarah dizer: «Porque não vais ver o Bob, queridinha?

Depois, de repente, está de volta. - Céus. Desculpa. A Pops caiu por cima do triciclo.

- Coitadinha!

- Acho que está bem. Quero dizer, não tem nenhuma ferida aparente. Mas é um susto cair assim, não é, Popsy? Pois é O Bob vai tratar disso!

Agarro no auscultador com angústia. Nunca pensei que pudesse sentir tanto ressentimento para com dez reis de gente cujas únicas palavras são «Bob» e «Dá-me» - ou, na verdade, que Sarah pudesse estar tão infinitamente alheada. Mas, de facto, desde que a lopsy nasceu houve uma alteração visível na nossa amizade. Imagino a minha amiga, dantes tão glamorosa, no outro extremo da linha. Deve estar vestida com uma camisola de lã polar e um par de calças de treino execráveis. O cabelo, dantes bonito, deve estar desgrenhado para cima da cara e há-de ter no ombro uma manchinha de baba da Popsy. Da última vez que a visitei, a Popsy berrou o tempo todo. E Sarah - que eu adorava pelo seu humor e intensidade estava de olhos vítreos, pedrada de cansaço e com um interesse obsessivo em cada ruído emitido pela Popsy, interesse esse que eu tinha dificuldade em partilhar. com tudo isto, a visita lembrou:me o que senti quando, num fim-de-semana com Matt, passámos inadvertidamente pelo hotel onde a minha família costumava ficar, em tastbourne. Tinha sido quase inteiramente demolido; tudo o que restava eram duas paredes a desfazer-se e uma parte do telhado toda a ala oeste onde havia um bar e onde David e eu costumávamos jogar bilhar estava reduzida a escombros. Aquilo que senti, ao olhar para o grande cartaz que estava no caminho e que proclamava «Um Magnífico Novo Empreendimento de Apartamentos de Luxo foi choque, tristeza e um forte desejo de fugir dali o mais depressa possível. Não é, claro, que a Sarah e a Poppy constituam um edifício em ruínas, mas a verdade é que as minhas emoções nesses dois momentos foram espantosamente semelhantes. Ao ver a Poppy trepar para o colo da Sarah e ao registar o modo como o olhar dela se desviava constantemente da minha cara para se fixar na filha, como se atraído por um íman, compreendi, finalmente, que os dias de liberdade e de irresponsabilidade, quando podíamos ficar a pé toda a noite a rir e a conversar, bebericando uma garrafa de vinho ou, até, apanhar um avião para passar um fim-de-semana entre amigas em Barcelona ou Paris, tinham chegado ao fim. Em dado momento, sem me consultar, a minha melhor amiga atirou-se de cabeça e mudou tudo. E eu fiquei para trás em frente do cartaz do empreendimento de luxo, a sentir-me miserável e deslocada.

- Então - diz Sarah. - Como estás?

- Óptima. É, estou óptima. Mudei-me para a beira-mar.

- Poppy - berra ela. - Não mexas nisso! - Há uma longa pausa durante a qual calculo que esteja a ocupar-se da Poppy. Depois, finalmente, regressa - Que estavas tu a dizer, Cass?

Mordo os lábios, sentindo a cara a franzir-se com uns ciúmes infantis. - Mudei-me para a costa sul.

Ela fica calada durante tanto tempo que me pergunto se voltou a desaparecer. Imagino o auscultador a balançar no fio enquanto ela se atarefa com a Poppy e as minhas palavras metálicas, minúsculas, a ecoarem nas paredes da cozinha sem que ninguém as oiça. - O mar? - acaba por dizer. - Pensava que eras famosa por odiar o mar.

- Não tem nada a ver com o mar - digo eu, lentamente. - É aquele emprego, aquele que eu te disse que me estava a candidatar.

- Ah! Conseguiste? Isso é bom... - parece longe de estar convencida.

- É, é bom.

- Calculo que seja uma mudança sensata - insinua ela. - Que pensa o Matt?

- Está perfeitamente de acordo.

Mais uma pausa. O problema é que ela me conhece bem de mais para deixar passar mentiras tão óbvias quanto esta. Para preencher o silêncio acrescento: - Por acaso até é bom sair de Londres por uns tempos. Tu conheces-me, Sarah. No fundo, sou uma mulher do campo.

-Ah és?!

- Passei toda a minha infância a calcorrear o Hertfordshire rural.

-Ah foi?

- E o emprego também é muito melhor... - Mas calo-me. Tenho a sensação desconfortável de que ela vai dizer qualquer coisa que eu não quero ouvir. - De qualquer forma - digo, com um entusiasmo fingido -, como é que tu estás?

- bom, estava óptima até há um minuto, mas, para ser honesta, estou siderada. Não fazia ideia de que ias mudar-te.

Engulo em seco. Sarah sempre foi devastadoramente honesta comigo. E uma das razões por que a adoro.

- É só temporário - digo, numa explicação fraca. - E volto aos fins-de-semana.

- Mas nunca me disseste que ias mudar-te.

A voz dela parece tão magoada que sinto um nó no peito. Ela tem toda a razão em sentir-se assim: os e-mails de uma só linha e as tentativas falhadas de responder aos seus telefonemas são provas pouco cabais de grandes amizades.

- Peço muita desculpa - digo eu, lutando contra a vontade de fazer de conta que é tudo uma brincadeira tonta -, mas há meses que não temos grandes hipóteses de conversar como deve ser. Se tivéssemos tido, é claro que te dizia.

Ela hesita, depois diz: - vou sentir a tua falta. É certo que não te tenho visto muito, mesmo em Londres, nestes últimos tempos...

Na voz dela transparece tanto sentimento que sustenho a respiração. - Podes vir cá e ficar comigo. A Poppy ia adorar o mar.

A minha ideia é parecer entusiasmada, mas esta última frase parece de certo modo querer despachá-la, como se eu não me importasse com os sentimentos dela. Sarah suspira e eu sinto um frio percorrer-me, possivelmente a lembrar-me de quanto a vida mudou.

- Precisamos de falar - diz ela. - Tenho a impressão de que já não sei o que se passa contigo.

Outra mão gelada a apertar-me o coração. - Eu sei... Algures, ao longe, oiço um estrondo e outro grito de bebé.

- Oh, meu Deus! Outra vez não, Poppy! Ouve, Cass, tenho muita pena, mas tenho mesmo de desligar.

Sinto-me incapaz de falar. Estava à espera de um bocado de conversa fiada com a Sarah para me animar e agora sinto a onda quente das lágrimas a aproximar-se.

- Olha, Cass, gosto muito de ti - disse ela. - Falamos em breve, OK?

- OK.

E desliga.

No instante em que pouso o telefone este volta a tocar num tom estridente e acusador, como se a pessoa do outro lado da linha estivesse farta de esperar. Levanto-o rapidamente com esperança de que talvez o acidente com a Poppy já esteja resolvido e que seja Sarah a ligar-me outra vez. - Estou? - Do outro lado oiço dois sinais longos que assinalam uma chamada de retorno. Depois um clique e lá no outro extremo o som de alguém a respirar. - Estou?

- digo eu a quem quer que seja. - Ligou para o meu número?

Mas não há resposta. O telefone emudece. Seguro-o na mão durante uns momentos, a pensar na má-criação das pessoas e, depois, pouso-o no descanso. Encosto-me à banca e avisto um pacote de Jammie Dodgers, enfiado entre um pacote de saquinhas de chá e um açucareiro. Estou mesmo a precisar de um belo lanche doce. Enfiando na boca bolacha após bolacha, estou prestes a avançar decidida para a sala e para o meu portátil quando o telefone volta a tocar. Levanto o auscultador, cuspinhando bolacha para o bocal.

- Sssim?

Nada, só silêncio. Talvez seja um telemóvel a ficar sem rede.

- Estou? - anuncio, limpando as migalhas do queixo. Tenho a certeza de que está alguém do outro lado. Agarro no auscultador com mais força, para ouvir a respiração. - Então vá-se lixar murmuro e desligo. Contudo, mal o pouso, recomeça a tocar. Deixo-o tocar duas, três vezes. Estou a sentir-me realmente inquieta. Quando atendo, digo secamente - Sim?

Por instantes julgo que é outra vez o meu interlocutor silencioso porque há uma pausa seguida de um respirar fundo. Mas, depois, uma voz diz: - Há duas horas que estou a tentar ligar-te para o telemóvel - e com um surto de alívio percebo que quem me está a telefonar é Matt.

- A sério? Não ouvi nada.

- Provavelmente perdeste-o outra vez - diz ele e imagino-lhe o sorriso vagaroso. Apesar dos esforços que faz para parecer estar a queixar-se, a voz dele soa bem-disposta. Só com uma levíssima censura. - E depois estava ocupado.

- Desculpa. Estava à conversa com a Sarah.

- Como vai a maternidade a tempo inteiro ? E que anda a fazer a pequenita?

- Está tudo bem - apresso-me a responder. - E tu?

- Melhor por estar a falar contigo.

Está a servir-se da sua voz namoradeira, quente e irónica. Sorrio e o meu corpo descontrai-se ao som daquela voz tranquilizadora. Quando estamos aqui, neste lugar soalheiro, é fácil esquecer o lado tempestuoso que ele tem: os acessos imprevisíveis de mau humor e os ciúmes avassaladores que explodem quando ele se sente mal-amado. Podemos ser aquilo que sempre fomos: namorados a longo prazo, ou, como diria Matt, «parceiros», com os papéis de cada um bem definidos - Matt, o experiente e seguro professor de Política, e Cass, a namorada dele. Nada de planos, nada de pressões, só o companheirismo reconfortante de duas vidas partilhadas.

- Que tal a casa?

- Mais limpa desde que cá não estás.

- Não sou assim tão má! Ele ri-se.

- Recebeste o meu e-mail?

- Sim. E a resposta é que vou para Viena na próxima semana, à conferência da Rede Europeia, já não te lembras? Depois tenho de me despachar e acabar o artigo sobre «Estado e Sociedade», por isso não vale lá muito a pena vires a Londres. vou eu visitar-te na semana a seguir. Estou a escrever o artigo para a primeira semana de Novembro. OK?

Ainda bem que ele não pode ver a minha cara, porque estou a fazer uma careta que, estranhamente, é de alívio. A declaração dele equivale a não o ver durante quase um mês. com a excepção de uma viagem de dois meses a Washington para uma investigação, há sete anos, nunca estivemos separados durante mais de quatro ou cinco dias. Este é um novo território, uma situação que eu não tinha previsto. Nunca me tinha passado pela cabeça que não nos veríamos pelo menos aos fins-de-semana. É claro que não estava à espera de termos de fazer combinações formais com agendas efilofaxes, como yuppies em início de namoro. A liberdade inesperada faz-me sentir estranhamente animada.

- Então? - diz Matt. - Não me vais contar como é?

- É bom. Estive com o meu primeiro grupo de estudantes esta manhã e houve reuniões toda a tarde. E agora ando aqui às voltas, nesta porcaria de apartamento, a sentir saudades da tua companhia.

No instante em que digo estas palavras sinto que cometi um erro. No outro extremo da linha sinto-o a ficar tenso, a expressão a ensombrar-se.

- Pois lamento muito. Foste tu quem fez a cama... - diz ele secamente. - Se me queres ao teu lado a fazer-te companhia, então não dês sempre a primazia às tuas ambições académicas.

- Não sejas ridículo! Não fui para Edimburgo. Estou só a uns setenta quilómetros de Londres!

- Pois, mas não sei porquê, parece bastante mais.

Não gosto do modo como ele diz aquilo. Mordo os lábios, com os olhos a encherem-se de lágrimas. - Que queres dizer com isso?

- Ora, Cass. Estás farta de saber.

Aperto o telefone com força, as minhas mãos a suar. - Achas que eu devia ter ficado em Londres - digo, devagar.

- Não quero falar disto ao telefone. - A voz dele é a que costuma usar para lidar com estudantes irritantes; um tom que não admite objecções, fria e terrivelmente ríspida.

Continuo, ciente dos perigos, mas incapaz de ficar por ali. Falar de quê?

- Deixa-te de brincadeiras, Cass. Sabes muito bem de quê. Engulo em seco, sem conseguir responder. Finalmente engasgo-me: - Não vai fazer grande diferença.

- Pois. Está-se mesmo a ver. - E depois, como de costume, desliga-me o telefone na cara.

Quando me acalmo, vou para junto das janelas e olho para a rua, lá em baixo. Parou de chover e há manchas de um azul-escuro a espreitar por entre as nuvens apressadas e, de vez em quando, uma estrela.

As coisas não costumavam ser assim. Houve tempos em que Matt e eu fomos muito felizes. Ele era o meu salvador, o meu fornecedor de segurança, de conforto e de afecto inquestionável. Encosto-me à moldura da janela e fecho os olhos. Há uma corrente de ar e a madeira vibra ligeiramente com a passagem do vento. Eu era uma pós-graduada sem um tostão quando o conheci e partilhava uma casa caótica em Holloway com mais cinco estudantes, vivendo de sanduíches de atum, cigarros e café instantâneo. Nessa altura, a maior parte do meu tempo era passada a tentar transformar as minhas notas de investigação algo confusas em algo coerente. Tinha ideias, montes de ideias, e lera muito acerca da experiência dos civis na Grã-Bretanha durante a guerra, as estruturas do emprego no pós-guerra e as relações entre sexos. Mas, quando tentava relacionar toda esta salgalhada de debates e dados com as mulheres de idade cujas histórias eu tinha ouvido, tudo o que eu queria dizer se esboroava. Sentia-me perdida, frustrada pela minha incapacidade de fazer aquilo que era necessário. Depois, num sábado ao fim da tarde, após um dia passado a tentar escrever um único parágrafo, lembrei-me de que ia jantar a casa de uns amigos. Cheguei atrasada, sem sequer me ter preocupado em mudar de roupa. E ali estava ele, sentado numa das pontas da mesa, um charro na mão, a perorar sobre Foucault e sobre o fim da política organizada, o seu tema de eleição. Quando me viu, interrompeu-se, arranjou espaço para mais uma cadeira e serviu-me um copo de vinho.

É um cliché, mas é como se nos tivéssemos conhecido a vida inteira. Passámos toda a noite a discutir o nosso trabalho, rudemente alheios às pessoas que nos rodeavam. Quando descrevi as minhas senhoras do East End, ele escutou-me com uma empatia que ultrapassava de longe a dos meus orientadores, e quando depois partilhámos um táxi, acompanhei-o sem quaisquer hesitações até casa dele. Logo ali, aquilo foi para nós ponto assente: éramos um casal ainda antes de nos termos beijado.

Mordo os lábios, lembrando-me de como as coisas tinham sido boas. Estamos juntos há tanto tempo, as nossas rotinas e hábitos domésticos estão tão arreigados na minha mente que, até à semana passada, mal me apercebia deles. Agora que desapareceram é como se me tivessem cortado as amarras e sinto que o meu estado de celibato é mais doloroso do que alguma vez tinha imaginado. Vivíamos na zona de conforto, cada bocadinho das nossas vidas era um mapa seguro. Era completamente relaxante, como estar num banho quente a ler um exemplar da Heat. Trabalhávamos na mesma universidade: ele, no seu posto de leitor e eu numa variedade de lugares temporários, a apalpar terreno; a nossa casa era confortável, pintada com cores quentes e brilhantes, com quadros nas paredes que tínhamos comprado juntos, prateleiras apinhadas de livros. Normalmente, à noite ele cozinhava e eu ouvia-o contar como tinha corrido o dia; bebíamos uma garrafa de vinho e depois íamos para a cama com os livros e um com o outro. Às vezes íamos jantar com amigos, todos eles casais, muitos com filhos. Aos sábados de manhã fazíamos as compras no Waitrose, depois passeávamos pelo Heath ou íamos ao cinema; aos domingos trabalhávamos ou fazíamos um brunch sossegado enquanto líamos os jornais. Era raro discutirmos, as nossas arestas mais abrasivas estavam bem limadas por um longo conhecimento. Ou, melhor, eu tinha aprendido a grande arte feminina da aceitação: tratava-lhe das inseguranças e aturava-lhe as crises de mau humor. Estava habituada a elas, não me causavam grande mossa. Amava-o, amava a nossa vida em conjunto, não compreendo o que me deu para estragar tudo e vir para aqui sozinha.

Estremeço e afasto-me da janela. Porque é que comecei a pensar nele no pretérito? Nada acabou. Esta é apenas uma fase, um breve interlúdio enquanto eu melhoro o meu CV. E, de qualquer modo, ambos sabíamos que não podíamos passar toda a vida naquela liberdade abençoada. O Ciclo da Vida mordia-nos os calcanhares como um cão mal-humorado que tem de ser continuamente alimentado com mudança e reajustamento. Já estão nesta vidinha há muito tempo, rosnava ele. A Cass tem trinta e cinco anos, o Matt quase quarenta. Têm de tocar as vossas vidas para diante.

Devia ser tudo tão fácil, tal como foi para Sarah e para quase todos os meus outros amigos. Contudo, em vez de acolher as mudanças de braços abertos, como qualquer pessoa esperaria, estou a ir na direcção contrária. Por qualquer razão, os passeios a Waitrose começaram a perder a graça, os jantares com os amigos, outrora tão agradáveis, passaram a ser opressivos. Era como se eu estivesse a ver-me a representar um papel num drama de televisão chato e previsível. Cada vez mais me apetecia inclinar-me para a frente e desligar-me.

Pestanejo com surpresa porque nunca tinha articulado os pensamentos deste modo. Devo estar a exagerar. Está tudo bem. Matt e eu estamos simplesmente a viver a crise dos dez anos. A razão por que vim para Brighton é porque, pela primeira vez na minha carreira, me ofereceram um posto permanente, não porque quisesse deixá-lo. Passo distraidamente o dedo pelo radiador coberto de pó. É verdade que ultimamente discutimos bastante, mas só porque ele não apreciou muito a mudança de orientação. Pensa que é desnecessária e, se aceitarmos o ponto de vista de que a vida é uma série de fases pelas quais somos obrigados a passar, ele tem toda a razão. Neste preciso momento eu devia era estar com ele, em Londres a construir o nosso futuro.

Mas que se lixe. Não sou do tipo mãe-terra, com uma ninhada de crianças a mamar no seu seio enquanto amassa o pão orgânico feito em casa. E se pensar bem no assunto, Matt também não é do tipo criancinhas. A única razão que o levou a fantasiar sobre ter filhos foi o facto de Josh, o amigo do peito dos dias selvagens da pós-graduação em Manchester, ter tido um bebé há poucos dias. Desde que se encontraram no Heath e Josh transportava a criaturinha comatosa junto a ele, num marsúpio de pele de ovelha, todo babado com a alegria da sua nova vida, o Matt sentiu-se de fora. Mas a fantasia não envolve esforços sérios. O que ele espera é que tudo continue como dantes, podendo acrescentar um estranho passeio com o carrinho do bebé juntamente com os amigos, num domingo à tarde. Não, concluí, ao ver o miúdo regurgitar um charquinho de vómito em cima do colarinho de Josh, quem ia ficar com o trabalho todo era eu.

E, mais uma vez, sinto-me cheia da raiva e da alienação que cada vez mais invade a nossa relação. Abano a cabeça como se a sacudir as emoções bolorentas que se coagularam cá dentro. Lá em baixo, para lá da estrada e dos seixos, o mar ferve. Sarah tinha razão ao sentir-se perplexa com as minhas notícias: que estou eu a fazer neste sítio, que me assusta tanto?

Afasto-me da janela, irritada e desanimada.

Brighton, 11 de Outubro

Querida Mãe,

Isto é um sonho que tive na noite passada. Sonho com isto muitas vezes e parece-me que quer dizer qualquer coisa.

Estou na praia e tu também lá estás, de pé em cima de umas rochas a olhar para as ondas. Não és tu, claro, pois é óbvio que não sei como és, mas a pessoa que imagino que poderias ser. É o pino do Verão, como é sempre. Como ruído de fundo ouço os gritos dos miúdos a chapinhar na água e o bip electrónico das máquinas de jogos. Há gente por todo o lado, grupos de famílias felizes estendidos na praia: pais gordos, mães que dormitam e crianças a guinchar no mar. Por cima deles as gaivotas rapinantes voam em círculos no ar quente do Canal.

Mas tu não reparavas em nada disto. Estavas ali, a olhar para o horizonte como se estivesses à espera que o teu barco chegasse. O teu cabelo comprido era dourado e o teu vestido, que ondulava ao vento, era de seda azul; acho que estavas descalça. Quando te voltaste vi as minhas feições reflectidas na tua cara.

E então pus-me a acenar e a gritar o teu nome e tu voltaste-te e desataste a correr por cima dos seixos, em direcção a mim. Eu estava sem conseguir mexer-me, numa paralisia de alegria e de terror. Finalmente, pensava eu. Finalmente. Mas então, quando estavas já quase a chegar ao pé de mim, percebi que não era para mim que estavas a olhar mas para mais longe, para alguma coisa que eu não conseguia ver. E estendi os braços e gritei-te que parasses mas já tinhas desaparecido.

Tens sonhos? E eu entro neles?

Nem sempre tive medo do mar. Quando era miúda, as nossas férias anuais na praia estavam tão entretecidas na vida da família como a nossa bonita casa suburbana, ou o bosque onde David e eu fazíamos corridas de bicicleta. Retrospectivamente, os preparativos e os planos para esta viagem eram muitas vezes mais divertidos do que o próprio acontecimento que, na altura em que cheguei àqueles ambíguos anos de pré-adolescência, se ia tornando cada vez mais enfadonho e sem graça. Nessa altura, eu suspirava por ser como as outras raparigas da minha turma, cujos pais mais aventureiros e mais ricos se piravam para Maiorca ou Corfu. Que chatice!, resmungava eu. Outra vez Eastbourne! Não! Mas quando era mais pequena ainda achava a costa britânica um lugar mágico e cheio de aventura, onde havia carrinhas de gelados estacionadas em cada praia e o mar era sempre de um azul cintilante.

Na véspera de partirmos, à tarde, David e eu ajudávamos o pai a carregar o Rover, enchendo-o de malas e sacos de impermeáveis e galochas e ainda o velho bote de borracha que, à chegada, o pai havia de encher com grandes esforços com a bomba da bicicleta. Na mesinha da sala tinha aberto o mapa Atlas das Estadas Britânicas, edição de 1971, pois planeava sempre cuidadosamente o seu roteiro. Dali a menos de vinte e quatro horas, pensávamos nós, excitados, chegaríamos à vivenda de férias manhosa que tínhamos alugado nesse ano ou ao hotel decrépito na costa sul onde habitualmente nos hospedávamos e que - pelo menos na primeira visita nos parecia o supra-sumo do paraíso do consumo, com televisores portáteis nos quartos, cestos de torradas ao pequeno-almoço e saquetas de champô e sabonete nas casas de banho. Depois costumava ficar acordada no nosso quarto, a ouvir a respiração regular de David, e a minha barriga apertava-se de excitação antecipada, no caminho por baixo da janela do meu quarto, o Rover esperava, o motor pronto para entrar em acção, a suspensão rebaixada com o peso dos nossos sonhos colectivos.

Depois, chegava a manhã, instalávamo-nos no carro e lá íamos através das tranquilas estradas de Home Counties, saindo da nossa terreola, que não era exactamente uma aldeia, em direcção à auto-estrada. A minha recordação do que devem ter sido aí umas dez viagens para destinos diversos foi comprimida numa viagem totémica: a mãe e o pai à frente a discutir as direcções e onde havíamos de parar para almoçar e David e eu apertados na parte de trás, com as nossas bandas desenhadas. À medida que as horas se tornavam intermináveis, íamos ficando cada vez mais fartos e irritadiços e enjoados dos rebuçados de menta que o pai ia tirando do porta-luvas. Naquele tempo não existia a M25 e por isso descíamos a Al, passando pelo engarrafamento urbano da North Circular e entrando na infinita vastidão suburbana de Purley Way. Depois, precisamente quando já não aguentávamos mais, o automóvel cortava as amarras e lá singrava em direcção à costa, como um cão de cidade que fareja um coelho ao longe e corre em êxtase através dos campos em sua perseguição.

E, finalmente, o mar. Na minha memória este era sempre avistado do cimo de uma colina, uma banda azul brilhante, emoldurada, na minha imaginação, por um arco-íris metafórico, como uma cena do Feiticeiro de Oz. Dávamos então grandes vivas e beliscávamo-nos para ficarmos bem acordados. Até acontecia o pai parar o carro, inclinar-se para a mãe e dar-lhe um beijo pouco usual na bochecha. Tínhamos duas semanas, às vezes três, à nossa frente. Nada de escola, nenhum rabugento contratado para tomar conta de nós durante as manhãs, enquanto a mãe atendia o telefone no centro de saúde local e, melhor ainda, a presença constante de um pai que se metamorfoseava, de presença silenciosa e cinzenta à mesa do jantar, num enérgico construtor de castelos de areia, organizador de concursos de cócegas e campeão de arrotos.

Até a mãe se descontraía. «É mesmo aqui que eu pertenço», dizia ela num tom de censura, suspirando e contemplando melancolicamente a água, como se o seu casamento com o pai e a subsequente vida na clausura do Hertfordshire fosse um castigo imposto pelo capricho cruel e descuidado de um marido todo-poderoso. Como constantemente nos recordava, ela tinha nascido em Dorset e crescido junto ao mar. Era verdade que parecia sempre mais feliz quando estava perto dele. Estou a vê-la, sentada ao sol, descontraída, com o casaco a tapar-lhe os joelhos escaldantes, a cantarolar numa voz satisfeita enquanto barrava pãezinhos com manteiga ou nos escrevia mensagens na areia. Nadava bem, melhor do que o pai e, no fim de cada dia, levantava-se, deixava cair a toalha no chão e dirigia-se para as ondas alterosas. Nunca guinchava por causa do frio nem fazia um grande espectáculo a molhar os braços, como as outras mulheres na praia; mergulhava directamente e afastava-se de nós a nadar, numa linha recta, até só se lhe ver a cabeça ao longe como um pontinho escuro. Naquelas alturas eu amava-a pela sua força e desdém do perigo.

Quantas férias houve assim? Provavelmente não mais de duas ou três e todas antes dos meus dez anos. Depois disso, veio o Verão em que a mãe me obrigou a aprender a nadar «como deve ser, sem braçadeiras, e eu adquiri o terror de me afogar. «Miúda ridícula, resmungava ela entre dentes, ao ver-me recusar a meter na água nem que fosse o dedo do pé. «Salta lá para dentro de uma vez por todas! Tanto a mãe como eu éramos peritas em subir a fasquia. Não tardou a que eu me recusasse até a vestir o fato-de-banho enquanto ela me ameaçava, furiosa, de me deixar fechada no hotel. Contudo, apesar desta experiência posterior, as férias na praia cheia de sol resumem algo da minha primeira infância: um tempo de graça, talvez, em que todos estávamos no nosso melhor e não sabíamos quanto seria em breve perdido. E mesmo se, à medida que os anos vão passando, estas memórias se vão tornando mais difíceis de distinguir, as cores e os contornos se vão esbatendo num mesma sépia, existe uma que continua a sobressair. Volta-me constantemente ao espírito sempre que penso na minha mãe e sempre que agora estou na minha varanda sobranceira ao mar.

Devia ter sete ou oito anos e, para variar, era a mãe e não o pai que me ajudava a fazer um castelo de areia. Desta vez estávamos na Cornualha e não no Sussex. Lembro-me de areia de conchas douradas e de rochas pontiagudas, uma gruta de Neptuno de águas sombrias e recifes escondidos. Ao contrário das construções do meu pai que, dada a sua profissão de agrimensor, envolviam obviamente cidades muralhadas com torres perfeitas produzidas pelo balde de David, esta criação era muito mais fantástica, uma folia à Mervyn Peake, com torreões retorcidos e um fosso meio em ruínas cheio de água. Eu tinha passado grande parte da tarde a percorrer a linha da maré à procura de decorações. Tínhamos coberto a balaustrada de algas, conchas de lapas e penas de gaivota e, agora, andava a inspeccionar as poças escorregadias no extremo da praia com os seus ouriços-do-mar rosados e cheios de picos e de plâncton fugidio. A mãe também tinha abandonado temporariamente o castelo e andava a passear na rebentação, com uma expressão sonhadora e os bolsos cheios de conchas. Não tenho qualquer lembrança do paradeiro de David ou do pai.

- Olha para isto!

Voltando-me, vi que ela vinha a atravessar a praia com ar decidido, trazendo nas mãos em concha alguma coisa preciosa. Quando chegou ao pé de mim, sorriu e agachou-se na areia, abrindo os dedos para me revelar aquilo que no início pensei ser uma bolsa antiga de couro, a relíquia de qualquer naufrágio. De cada lado havia uns atilhos pontiagudos, destinados possivelmente a ser amarrados ao cinto de algum pirata.

- Sabes o que isto é?

Abanei a cabeça. Ela não me falava assim muitas vezes, de uma forma tão séria, como se fôssemos cúmplices numa aventura.

- É uma bolsa de sereia - disse ela, numa voz doce. - Deve ter sido um cação ou um tubarão que a pôs. Está cheia de ovos. A corrente trouxe-a até à praia. - Segurou nela por um dos fios e estendeu-ma. - Até pode ter um bebé lá dentro.

Segurei aquela coisa na palma da mão, a olhar muito atentamente. Queria dizer qualquer coisa que agradasse à mãe, mas não tinha bem a certeza do que havia de dizer. Ela era tão imprevisível, capaz de se rir com ar displicente dos meus comentários ou de perder a cabeça e reagir com impaciência. Olhando agora para trás, acho que ela era infeliz com o modo como as coisas lhe tinham corrido.

- Podemos ver? - murmurei.

- Vamos ver.

Estendendo a mão para que eu a agarrasse, levantou-se e caminhámos solenemente até à borda da água. A maré estava a subir, cobrindo a areia e as rochas em riachos e redemoinhos. Agachámo-nos junto à linha da maré e a água brincava com os dedos dos nossos pés e esparrinhava nas nossas pernas nuas. A mãe meteu a mão no bolso de trás dos calções e tirou o canivete que trazia para os piqueniques. - O mais provável é estar vazio - ia dizendo, franzindo o sobrolho enquanto cortava a pele dura da bolsa. Eu olhava para aquilo, desejando ardentemente que não estivesse vazia.

E então, quando ela levantou a parte de cima da bolsa, um pequeno embrião encolheu-se, amarelo-claro e peganhento, o meu peixe bebé. Ficámos as duas a olhar para aquilo embasbacadas, mãe e filha, de mãos dadas.

- Incrível - murmurou ela e eu sentia o calor dos seus dedos a apertar os meus, o súbito acelerar das suas pulsações. - Nunca na vida tinha visto uma coisa destas!

Aconchegando silenciosamente a bolsa na palma da mão, ela olhou para mim piscando os olhos ao sol do fim da tarde. Naquele momento eu já estava a imaginar o peixe-bebé a crescer e a tornar-se adulto sob os meus cuidados amorosos: o meu caçãozinho de estimação, uma raça obviamente mais inteligente e mais meiga do que a maioria. Podia guardá-lo no meu quarto, pensei, entusiasmada; podia arranjar um aquário. Sorrindo à minha mãe, disse a primeira coisa que me veio à cabeça: - Podemos ficar com ele?

O doce encantamento do rosto da minha mãe desvaneceu-se

- Não sejas parva - disse secamente, sacudindo a minha mão.

- Morria logo.

- Podíamos pô-lo numa bacia e dar-lhe algas para comer murmurei fracamente.

- Eles não comem algas.

- Mãe, deixa, por favor!

Mas agora eu tinha estragado tudo. A expressão dela voltara à sua lassidão habitual e franzia a testa, irritada. - Não!

- Mas eu podia tomar conta dele!

- Não é negociável - disse ela, desviando secamente os olhos e fechando os dedos sobre o saco dos ovos - E nem penses em fazer uma das tuas birras.

E, antes que eu a conseguisse deter, ela levantou-se. Por momentos pensei que ia procurar um lugar seguro para pôr a bolsa, um lugar onde a coisinha macia que estava lá dentro tivesse ao menos uma hipótese de sobreviver, mas depois vi-a rodar o braço por sobre a cabeça e atirar a bolsa para dentro da espuma das águas. Esfregando as mãos para limpar a areia, deu uma brusca meia-volta e, afastando-se da linha de água, subiu a praia em passo acelerado, fugindo do alcance dos meus gritos clamorosos.

Ou estarão erradas as minhas recordações? Será que de facto isto não passou de um sonho? Sinto a areia fria debaixo dos meus pés, oiço o barulho das ondas, oiço até o grito rouco das gaivotas. Mas depois sento-me e constato que não estou na Cornualha mas que, pura e simplesmente, adormeci em cima do tapete gasto junto à janela. Devo estar mais exausta do que pensava. Tenho um gosto fétido na boca e há uma mancha de saliva no meu queixo, de me ter babado.

E agora que os meus olhos estão devidamente abertos e que regressei à realidade percebo que não estou sozinha. O quarto está escuro nos cantos mas o centro da alcatifa tem um charco de luz amarelada vinda do candeeiro que fica do outro lado da rua. E tenho a certeza de que do outro lado, no canto mais escuro, oiço alguém a respirar. Pondo-me em pé, começo a atravessar, cambaleante, a sala. A respiração calou-se mas no escuro a porta acaba de tremer ao fechar-se.

- Ei! - murmuro. - Quem está aí?

É claro que não há resposta, só o som abafado do meu sangue envenenado a pulsar-me nos ouvidos.

O que são histórias de vida? - Faço uma pausa e olho em volta do anfiteatro tentando parecer segura de mim. Estou encostada ao ambão num esforço de informalidade, mas as minhas mãos causam-me problemas: tenho-as à minha frente entrelaçadas como as mãos de um padre novato. Cerrando-as firmemente sobre o peito, volto a respirar fundo.

- As histórias de vida têm essencialmente a ver com o registo oral daquilo que as pessoas recordam do passado, ou aquilo a que hoje em dia é moda chamar «narrativas». Estas são, por natureza, menos formais do que as meta-narrativas da história tradicional, os grandes feitos de reis e de estadistas, as guerras que são os textos históricos escolares. Para alguns, as histórias de vida são por conseguinte, e inevitavelmente, mais subjectivas.

Calo-me mais por uma questão de efeito do que para consultar as minhas notas: sei perfeitamente o que vem a seguir. Carrego no botão do retroprojector e o acetato que preparei à pressa há uns dez minutos ecoa as minhas palavras: O que são histórias de vida? Qual a sua importância? Elevando-se nas filas de cadeiras à minha frente estão mais de cem estudantes, alguns a olhar para o ecrã, outros a tomar notas nos cadernos. Não reconheço ninguém do grupo do meu seminário. Perscruto a sala mas não consigo encontrar a cara de Beth na escuridão. E se ela sofreu alguma reacção posterior por causa da queda da semana passada e está agora algures, sozinha no seu estudiozito sombrio, mergulhada num coma?

Endireitando as costas e encolhendo a barriga, que está mais proeminente do que devia acima da cinta das minhas calças de linho, respiro fundo e continuo.

- Temos, por exemplo, o problema preocupante da memória. É possível comparar relatos formais da história com fontes secundárias, mas as histórias que as pessoas contam acerca do passado são frequentemente menos passíveis de serem verificadas. As memórias, basicamente, não são fiáveis: quantos de nós não ouvimos já as lembranças confusas de parentes idosos?

Ergo os olhos, forçando um sorriso. É sempre melhor quando estou lançada.

- E que dizer das coisas de que pensamos lembrar-nos e que estão apenas indirectamente relacionadas com os acontecimentos reais? As fotografias, por exemplo, ou os vídeos, tanto podem ser coadjuvantes úteis da memória como prejudiciais; podem atirar-nos para terrenos de areias movediças. Durante muitos anos pensei que a menina na fotografia de um casamento era eu. Lembrava-me do tecido do vestido que trazia, do cheiro do ramo de rosas que tinha na mão. Eu tinha estado no casamento da prima Milly, lembrava-me de tudo. Só muitos anos mais tarde me disseram que aquela menina não era eu mas sim uma outra criança, com a mesma estatura e aparência. Na altura do casamento eu nem sequer era nascida.

Finalmente descortino Beth na fila da frente, muito concentrada a tomar notas daquilo que eu digo. O meu alívio ao vê-la faz-me rir alto, como se o que disse fosse muito espirituoso. Dobrando o canto superior das minhas notas, calo-me durante uns segundos e depois prossigo.

- No momento em que concluímos que todos os relatos, quer formais quer informais, têm de ser contextualizados, não precisamos de nos preocupar tanto com estes problemas. Aquilo que temos de treinar é a arte da interpretação...

São quase onze horas. Faltam dez minutos para acabar a minha sessão e distribuir umas páginas com os pontos-chave e a bibliografia mais importante que, esta manhã, imprimi em considerável pânico. Entro nas conclusões e, sentindo a mudança do tom de voz, o meu público pousa as canetas e começa a mexer os pés na expectativa do movimento. A minha voz está rouca dos cigarros da noite passada. Espero que ninguém tenha reparado que as calças que trago, as únicas limpas que consegui encontrar, estão rotas no gancho, por me ter sentado com demasiada violência depois do pequeno-almoço.

- Muito bem - digo, desligando o projector. - Por hoje é tudo. Vemo-nos daqui a uma semana.

E agora estão todos em pé, a agarrar nos casacos, debruçados sobre os bancos e a chamar uns pelos outros, um êxodo em massa de jovens que avançam para a luz do dia, de mochilas atiradas para trás das costas, a abrir latas de bebidas e a enfiar comida e cigarros na boca. Perscruto a sala que se está a esvaziar rapidamente, à procura de caras conhecidas. As ex-enfermeiras estão juntas lá atrás, Andy Thickow desapareceu e Beth ainda está curvada sobre a cadeira, a tomar notas laboriosas. Talvez sinta que a estou a observar porque levanta os olhos e faz um breve aceno.

- Dra. Bainbridge?

Sobressalto-me e depois volto-me para deparar com Alec Watkins por detrás do ambão. Estou tão pouco habituada a que me tratem pelo meu título que, durante um momento cómico, penso que ele está a fazer troça de mim. A maior parte dos alunos trata-me pelo nome próprio e mesmo quando as meninas das televendas me perguntam «E Miss ou Mrs?» nunca sou suficientemente pomposa para as pôr no seu lugar e responder «Na realidade é Doutora».

-Sim?

- Posso dar-lhe uma palavrinha?

- Claro.

Ele anda um pouco curvado, como se tivesse vergonha da sua altura, e não me retribui o sorriso. Em vez disso, franze os lábios e põe-se a fitar os pés que, em flagrante contraste com as ubíquas sapatilhas dos estudantes, estão calçados com o tipo de sapatos macios e de atacadores que o meu pai poderia ter escolhido. Tenho a sensação assustadora que sempre me assalta quando percebo que um estudante está prestes a apresentar uma queixa.

- Tem a ver com o curso - diz ele, e o meu estômago cai-me aos pés. Eu devia ser mais como Matt, que toma as críticas como desafios, ri dos comentários desagradáveis que às vezes lê nas folhas de avaliação do curso e, em regra, tem tanta autoconfiança que não se preocupa nada com o que os estudantes pensam dele; mas eu ainda tenho de me elevar acima da mesquinha preocupação de desejar terrivelmente que gostem de mim. E é claro, enquanto que a posição de Matt é segura, eu estou constantemente a ser posta à prova.

- E que tem o curso? - Lanço-lhe um sorriso caloroso e amigável, ainda na esperança de lhe levar a melhor. Enquanto ele olha para trás com ar desconfiado, reparo que está a apertar as mãos com toda a força em frente do peito e sinto um surto de compaixão pelas suas maneiras desajeitadas. Quando era miúdo devia sentar-se na primeira fila da sala de aula e levantar a mão sempre que faziam alguma pergunta; o tipo que é sempre maltratado pelos fortalhaços da turma. Como continuo com um ar interrogativo ali à frente dele, segurando os meus papéis contra o peito, a sua cara fica da cor da beterraba. Desvia o olhar, resmunga umas palavras e depois abana rapidamente a cabeça como se a tentar apagar qualquer coisa.

- Como?

- Nada, tudo OK. Não interessa.

- Que é que queria dizer-me?

Há outra longa pausa. Apesar das minhas boas intenções começo a sentir-me cada vez mais irritada. com um pequeno suspiro olho impacientemente para a porta.

- Olhe - diz ele de repente -, escrevi isto.

Pára, remexe na mochila e mostra-me uma capa de cartão com de uma grande mancha de café num dos lados. Fico com a impressão de que não é exactamente isto que ele quer, que está só a tentar ganhar tempo. - Aí tem - diz, enfiando-me a pasta na mão. - É o meu ensaio para a semana três.

- Óptimo! Mas é melhor dar-me isso quando todos entregarem, na data devida. Se não ainda o ponho na pilha errada e, conhecendo-me como me conheço, sou capaz de o perder. - Rio, despreocupadamente.

Ele olha para mim gravemente, recusando-se a deixar-se levar.

- Acho melhor não.

Relutantemente tiro-lhe a pasta das mãos estendidas. Continua imóvel. Tento esgueirar-me para a porta mas ele está a bloquear-me a passagem. - Mais alguma coisa?

Ele engole em seco e fita-me com uma expressão mal-humorada. - É só que eu gostava de falar consigo - murmura. - Em particular, se possível.

- Muito bem - digo eu, acenando em sinal de que tenciono pôr fim à conversa. Talvez esteja a ser injusta, mas estes modos rígidos e solenes não são atraentes e estou ansiosa por me ver livre dele. - As minhas horas de atendimento estão afixadas na porta.

- E com estas palavras viro-me decididamente para a porta do anfiteatro deixando-o sozinho na grande sala vazia.

Quando chego cá fora inspiro uma longa baforada de ar frio. Lá dentro estava horrivelmente abafado, mas aqui está um belo dia de Outono. A chuva de ontem desapareceu e por entre os edifícios do campus vislumbro o céu, de um azul de cartaz. Há folhas amarelas e vermelhas espalhadas pelos passeios de cimento e a rua está salpicada de pocinhas de água. Adoro esta época do ano: depois dos indefiníveis anseios do calor do Verão, volto a cair em mim e dou as boas-vindas à mudança do tempo, sentindo-me ao mesmo tempo excitada e motivada. Viro à direita, dirigindo-me à cafetaria do Bloco D. Sem querer pensar mais no meu desagradável diálogo com Alec penso no queque de chocolate enorme e na meia-de-leite que tenciono comprar ali. Pretendo regressar com o meu saque ao gabinete, fechar a porta e consumi-lo com total dedicação, deixando os pedaços do queque desfazerem-se-me na boca com os goles do café amargo e, depois, lambendo as migalhas que me ficarem nos lábios. Espero ardentemente que ninguém me venha perturbar, mas não por ter vergonha desta gulodice. Não, o que quero é dar à comida toda a minha atenção: é uma reacção aos regimes que a minha mãe me impôs - a insípida alface iceherg e o peixe ressequido, a proibição de doces e bolos, o modo como me pesava no fim de cada semana, franzindo o sobrolho insatisfeita com a filha gorducha. Será assim tão espantoso que eu não suba para uma balança aí há uns vinte anos?

Mas quando chego à minha porta constato que o meu pequeno festim vai ter de esperar porque encontro Beth Wilson.

- Olá! - pouso o café no chão e remexo nos bolsos à procura da chave. Tipicamente, nunca encontrei as originais, por isso estas são as sobresselentes, aquelas que eu ia dar a Matt. - Em que posso ajudar?

- Bem. - Respira fundo. - Duas coisas e nenhuma demora. A primeira é que gostei muito da sua aula. No fim toda a gente dizia que tinha sido óptima.

- A sério? - olho para ela, espantada. Tinha a impressão de que fora útil mas aborrecida.

- A segunda coisa é que comecei a analisar alguns dos documentos da minha família e acho que vai dar mesmo um projecto louco. Estava a pensar se seria possível falar consigo um destes dias acerca disto.

- Claro. Mas agora talvez não.

- Amanhã de manhã, então? Logo de manhã, digamos, tipo encontro de pequeno-almoço?

- Óptimo.

E, ao contrário de Alec, que é tão austista que não faz a mínima ideia do que seja linguagem corporal ou quando deve retirar-se, ela ergue o polegar em sinal de assentimento e volta-se na direcção contrária. Oiço-a cantarolar baixinho enquanto se afasta ao longo do corredor.

Cinco minutos depois, o queque passou à história e Julian Leigh entrou-me no gabinete. Hoje traz uma T-shirt justa ejeans coçados que sublinham o seu físico musculoso; encostado à minha porta não pára de estalar os dedos, como se se preparasse para bater em alguém. Deve fazer exercício regularmente, penso eu, ao vê-lo tão contente consigo próprio. Não há dúvida que deve namoriscar todas as estudantes mais giras.

- Ao que parece teve uma manhã dos diabos!

Afasto-me do computador onde estava a tentar redigir a Aula Dois e sorrio-lhe aliviada. Talvez seja a ausência do zelo puritano de Matt, mas ultimamente a única coisa relativa a trabalho que acho fácil tem sido a forma de o evitar.

- Porquê?

- bom, tem o seu casaco do avesso. Ou é moda nova? v Volto a cabeça e vejo a etiqueta do Hennes do meu casaco preto

e brilhante a espreitar, como uma bandeira a celebrar a roupa barata.

- Porra!

- Até é bastante interessante!

- Ora, esteja calado!

Ele ri-se. Apesar de tudo, sinto-me contente por ele ter aparecido. Talvez o tenha julgado mal, penso, enquanto arranjo a roupa. É verdade que na semana passada ele fez uns comentários decididamente esquisitos sobre mulheres que tinham sido atacadas, mas talvez tivesse sido uma tentativa falhada para ser irónico, tal como outras pessoas normalmente inteligentes, na sua ânsia de dizer o indizível e de fugir ao politicamente correcto, podem parecer hipócritas.

- Que é que andou a fazer? - diz ele displicentemente.

- Uma aula sobre métodos para o terceiro ano. Escrevi-a em dez minutos certos, esta manhã. - Não acrescento que me levantei às seis, preocupada com a aula, porque é decididamente mal visto entre os docentes universitários admitir que se trabalhou com demasiado afinco numa coisa como o ensino, que supostamente se faz com tão pouco esforço. Mas eu sempre tive uma relação difícil com o meu trabalho. Sobrevivo num estado de quase permanente rejeição, esperando que ele desapareça, e descobrindo depois que, inevitavelmente, ele veio atrás de mim, sorrateiramente, mostrando os dentes, pronto a morder: daí as noites de insónia, as madrugadas de pânico, as notas rabiscadas.

- Impressionante!

Sem ter a certeza da sinceridade deste comentário, dirijo-lhe aquilo que espero ser um sorriso enigmático. - Esperemos que eles não tenham reparado.

- É altamente improvável. - Olha em volta, erguendo as sobrancelhas naquilo que considero ser uma manifestação fingida de choque pela desordem em que está o meu gabinete. Aos pés dele está a pasta de Alec que já caiu no chão. Empurra-a com o pé. - Já são ensaios?

- Do arrepiante Alec Watkins.

Mal pronuncio estas palavras apetece-me voltar a engoli-las. Ao fim e ao cabo não há qualquer motivo racional para que eu sinta esta antipatia por Alec, mas saiu-me da boca sem querer.

- Arrepiante porquê?

Encolho os ombros, à defesa. - Não sei, mete-me medo e pronto.

- Medotl - Julian faz uma careta de aparente repugnância, possivelmente por causa da infantilidade das minhas palavras e sinto-me corar. Que é que me terá feito dizer aquilo?

- É só que ele é tão sério e ansioso - tartamudeio.

Mas em vez de fazer troça de mim como eu previa, Julian ri simpaticamente. - bom, se calhar é verdade. De facto, são todos demasiado ansiosos. Têm de pedir empréstimos avultadíssimos para virem para aqui e, por isso, querem ter a certeza de que esse dinheiro é bem empregado. Quando eu andava a estudar, fugia das aulas como da peste e fazia mais ou menos um ensaio por trimestre. Passava o resto do tempo a fazer o que me dava na gana.

Olho para ele piscando os olhos. Estou a pensar na minha própria experiência, os dias sem fim passados na biblioteca, as noites passadas a pé a beber chá de menta e a tomar notas. Se alguma vez tivesse menos de «Muito bom, castigava-me com mais noites de estudo, sem me permitir uma única saída. Foi só mais tarde, depois de ter conhecido Matt, que descontraí e que a pressão do trabalho aliviou. Mas talvez Julian seja tão esperto que não precise de trabalhar. - A sério? - digo, num tom indiferente. - Então como é que acabou o seu doutoramento?

- Oferendas e sacrifícios aos deuses.

- Ah, pois, a esses. - Estou a tentar, sem grande sucesso, usar o tom jocoso adequado. É típico de pessoas como Julian, que tem estampado nas suas feições esculpidas o ar de macho de classe alta, fazer de conta que as suas classificações académicas lhes caíram do céu aos trambolhões. Pelo menos, Matt que, como eu, frequentou uma escola pública, admite prontamente quão arduamente teve de trabalhar para chegar onde está. Julian cruzou os braços, considerando-me sem dúvida incorrigivelmente moralista.

- Sei que estou a ser pouco sério - diz -, mas há momentos em que se impõe uma certa loucura.

Olho para ele a pensar quais serão os seus antecedentes. Não é difícil: pais cultos, artísticos, uma grande casa cheia de livros algures no Norte de Londres; uma escola privada, chique, uma vaga mais ou menos garantida num curso de Humanidades de Oxbridge. Na universidade deve ter sido o tipo de jovem que me aterrorizava no meu primeiro ano: expansivo, seguro de si a ponto de ser arrogante, feliz por desdenhar de alguém vindo de uma escola banal dos Home Counties, cuja única experiência em vinhos era Liebfraumilch e que nunca tinha «feito» a Ásia nem a África no ano anterior à entrada na faculdade. No fim do curso este terror tinha-se transformado num ódio firme. Nessa altura, estava inscrita no Grupo de Apoio aos Mineiros e tinha trocado as golas reviradas à Lady Di e as saias de linhas triangulares do início dos anos 80, as minhas tentativas goradas de parecer bem, por calças largas e Doe Martens. E mesmo agora, apesar de sermos supostamente adultos, ainda sinto percorrer-me um tremor do velho antagonismo. Cruzo os braços, com ar maldisposto, tentando desviar a inevitável direcção dos meus pensamentos, mas é tarde de mais. As pessoas do tipo de Julian acabam sempre no topo, penso, cheia de ressentimento. Por esta altura, muitos dos seus pares estarão nos meios de comunicação ou serão advogados; alguns serão académicos, outros estarão na carreira diplomática. Daqui a uns anos será gente desta que governará o país. E, quando ele fala em cometer algumas loucuras, não faz a mínima ideia de que está a dizer.

- Pois - digo eu, inexpressivamente. - Deve ter razão.

- E você não?

- Quer dizer, fazer loucuras quando era estudante?

- Sim...

Encolho os ombros, incapaz de evitar por mais tempo a minha imagem aos quinze anos. O meu vestido gótico desbotado, com a franja comprida preta, as botas de cowboy e aquela pulseira de couro com pregos que era tão pesada que me punha o pulso dorido. Dias inteiros, perdidos, passados no meu quarto a ouvir os Black Sabbath e a emborcar cidra quando a minha mãe pensava que eu estava na escola.

- Não - disse eu, num tom azedo. - Lamento ser tão chata. Quando era estudante não fazia senão marrar.

Ele recua, mira-me de alto a baixo, apreciativamente. - Não sei porquê, mas duvido muito.

E agora sou eu que desejo ardentemente mudar de assunto. bom, talvez seja melhor não ter muitas certezas - digo, secamente.

- Não faz a mais mínima ideia de como sou, portanto não comece a pôr-me rótulos, está bem?

Olho rapidamente para o chão, sentindo-me embaraçada até ao âmago. Julian está boquiaberto. Por momentos olhamos um para o outro, ambos corados. A minha raiva esgotou-se rapidamente e resta-me um resíduo de mortificação. Apetece-me pedir desculpa, rir do meu ataque de fúria com um certo espírito, mas sei que se abrir a boca desato a chorar.

- Não se preocupe - diz Julian e, embora não tenha acontecido realmente nada, sinto-o a afastar-se de mim, a interrogar-se se afinal sempre quererá ser meu amigo.

- Não tenho a menor intenção de o fazer.

Mas cometi loucuras. Sim, andei por essas bandas. Durante o Inverno de 1979 estava cheia de raiva, de desejos e de energias que não conseguia controlar. Odiava os meus pais e os meus professores e apetecia-me dar pontapés a toda a gente. Em quase todos os aspectos eu era, potencialmente, uma delinquente juvenil a tempo inteiro.

Retrospectivamente, os alicerces desta mudança de direcção aparentemente surpreendente, desta passagem de aluna bem-comportada, a melhor da turma, para gazeteira, consumidora de drogas e rebelde, tinham sido cavados muito antes. Por qualquer razão, naqueles anos ambivalentes do fim da infância eu tinha deixado de agradar aos meus pais. Ou, mais exactamente, tinha deixado de agradar à minha mãe. Não sei o que ela queria de mim: uma criança mais magra, menos obtusa e mais «fácil», isso de certeza; uma criança que, como ela dizia, «não andasse sempre a arranjar sarilhos». Talvez quisesse que eu fosse mais como ela: esbelta, objectiva, determinada. Uma coisa que detestava era eu lamuriar-me: aí pelos meus dez, onze anos, a minha mais pequena queixa desencadeava uma tirada furiosa, por isso, aprendi a calar-me. Talvez, muito simplesmente, as minhas exigências lhe lembrassem quão pouco ela estava disposta a dar.

Contudo, quando me tornei adolescente, esta dissensão latente, informe, transformou-se em algo mais tangível. Desde o terceiro ano que achava a escola cada vez mais entediante. Em vez de dar ouvidos à lengalenga das lições, preferia sentar-me ao fundo da sala e rabiscar corações e nomes de bandas nos meus cadernos. Eu e o meu pequeno grupo de amigas andávamos a experimentar, já há uns tempos, a estonteante mistura de nicotina, cidra e vodka-and-black, vagueando pelo único pub que aceitava servir-nos e beijando praticamente qualquer macho interessado. Podíamos ser virgens, mas estávamos também dedicadas à busca do que apelidávamos de «experiência».

Mas foi nesse Inverno que os acontecimentos se precipitaram. Algures entre o início do quinto ano e o Natal, deixei completamente de ir à escola. Nessa altura conheci a Billie e o grupo dela, miúdos mais velhos que me iniciaram no seu mundo, inacreditavelmente glamoroso, de pequenos delitos e heavy metal. Em casa da Billie, onde passávamos grande parte do tempo, bebíamos, fumávamos maços intermináveis de Benson and Hedges, ou vagueávamos pelo centro da cidade a roubar coisas pequenas das lojas. Escondia debaixo da cama os eyeliners e os álbuns dos Motorhead assim obtidos. Se os tivessem descoberto, os meus pais teriam ficado boquiabertos. De vez em quando snifávamos o speed que o namorado da Billie, que tinha dezanove anos, nos arranjava, e aumentávamos o volume do gira-discos ao máximo e abanávamos o capacete ao som das guitarradas. Eu achava que era invencível, que nada importava, nem agora nem nunca.

Olho para o teclado, tento concentrar-me no artigo que estou a escrever. Devia estar a trabalhar, não a passar o tempo com reminiscências. Mas agora que comecei não consigo obrigar os meus pensamentos a regressarem ao presente. Os inocentes comentários de Julian desencadearam uma torrente lamacenta de memória: uma coisa espessa e pegajosa que, sempre que baixo as defesas, me envolve numa avalanche de remorsos. Não quero pensar nisso. É suposto eu estar a trabalhar. Olho resolutamente para o monitor, forçando os meus pensamentos a articularem-se. Nos últimos minutos apareceram seis e-mails: um de Alec a perguntar se pode confirmar a hora do nosso encontro, um lembrete interno sobre a segurança no campus e vários avisos sobre seminários a realizar: Políticas Singulares; A Semiótica da Paisagem Pós-Urbana; Pedagogia Feminista; Para Entrar no Século XXI. Nenhum deles faz actualmente grande sentido.

Parece há tanto tempo, há mais de vinte anos, tanto, tanto tempo, mas nunca esqueci o mais ínfimo pormenor. Natal de 1979. íamos ao Odeon de Peckham para ver o novo grupo que estava a fazer furor: os Dreadheads. Fechando os olhos, consigo ver-nos amontoados no comboio abafado e húmido, três raparigas e dois rapazes a partilharem uma garrafa de vodka e a fumarem cigarro atrás de cigarro como se a vida dependesse disso. Curvados a um canto da sala de espera da estação, a tresandar a urina e com os vidros das janelas partidos, fumámos um charro. Afirmávamos que não nos importava nada se nos apanhassem. Achávamos que éramos uns duros: guerreiros adolescentes dos subúrbios, corajosos e livres.

Santo Deus, como tudo aquilo era risível. Estou a ver-me, já bêbeda quando nos apinhámos no comboio, a dizer palavrões, a desafiar as pessoas. Quando fechava os olhos e encostava a cabeça à janela embaciada pela humidade, os meus pensamentos resvalavam da realidade para o zumbido da ilusão. A vida era boa, as possibilidades infinitas, cantava uma voz dentro de mim. A história do pai não tinha qualquer importância. Era tudo mentira.

Não vale a pena, desisto. Preciso de ir lá para fora, caminhar depressa, sentir o ar a bater-me na cara. Agarro no casaco e precipito-me para fora da sala, empurrando os estudantes que deambulam pelo corredor.

Quando chego ao exterior começo a correr pelo campus, com as minhas calças largueironas a enrodilharem-se nos joelhos. Iço-me com pouca elegância numa cancela, respirando o cheiro a musgo húmido. Folhas molhadas atapetam o caminho, um tributo ensopado ao fim do Verão. Vou avançando, consciente da lama que me salpica as pernas mas sem lhe dar importância. É a estação dos cogumelos, dos míscaros polposos e das carcaças de troncos a apodrecer. O exercício acelerou-me o coração. Dói-me o peito. Continuo a engolir ar, a dizer a mim própria para me acalmar mas, agora que comecei, não consigo deixar de pensar naquela tarde, há tantos anos. Pensava que tinha tudo aquilo sob controlo, porém um comentário ocasional de Julian atirou-me outra vez para o fundo, para o passado e para a pessoa que eu era. A noite dos Dreadheads, é assim que me lembro daquilo. A noite em que tudo começou.

11 de Novembro de 1979, quinze anos de idade, íamos no comboio, a vodka tinha acabado, falávamos muito alto com vozes arrastadas de excitação e bebedeira. E então chegámos: desaguámos na atmosfera sufocante da cerveja, passámos pelos candongueiros dos bilhetes e pelos vendedores de T-shirts, pelas hordas de metaleiros, com os seus casacos de couro e as madeixas de cabelo caídas sobre caras cheias de borbulhas, pelas miúdas roqueiras de botas até às coxas e olhos muito pintados à Cleópatra. Eu já tinha ido a concertos na minha cidade: música tocada em salões paroquiais ou em clubes de jovens, em que as luzes se apagavam às onze e os pais e as mães ficavam lá fora nos carros, à nossa espera. Mas isto era diferente: isto era Rock and Roll. Um grupo de HelFs Angels tinha passado por nós no átrio; tive de me controlar para não ficar pasmada a olhar para um tipo que tinha a palavra ÓDIO tatuada na testa. Havia qualquer coisa de estranho naquele sítio, a sensação de uma batalha prestes a desencadear-se.

O barulho era tanto que me dava vontade de saltar, de dar pontapés e de gritar. Havia uma banda de abertura em palco, tipos de que só os mais fervorosos leitores da revista NME tinham ouvido falar. Só conseguia vê-los de relance, dobrados sobre as guitarras, com os seus jeans rasgados e as longas madeixas de cabelo a abanarem sobre os seus rostos, como trigo a ondular ao vento. Os rapazes queriam ir para a frente, por isso começámos a tentar abrir caminho entre a multidão apinhada, entornando-lhes as cervejas e pisando-lhes os pés, à medida que passávamos por eles como por um túnel. Nessa altura eu já estava tão bêbeda que passava a vida a tropeçar e via as coisas a dobrar e a triplicar, como se estivesse numa sala de espelhos. Estava agora quase na frente e dançava, com a cabeça atirada para trás e os olhos fechados. Os outros já há muito que tinham sido devorados pela multidão e, à minha volta, sentia corpos a esmagar o meu, jovens suados que tentavam aproximar-se cada vez mais do palco. O tipo à minha esquerda a quem eu sorria ebriamente tinha os braços à volta da minha cinta e movíamo-nos juntos. Mal conseguia ver-lhe a cara mas lembro-me do calor da mão dele metida debaixo da minha blusa, o odor a charro do blusão de ganga.

Basta! Não preciso de pensar nisto. Já passou tanto tempo; já nada interessa. Volto à direita, esfregando os olhos com as costas da mão. vou até ao sopé da colina, decido, e depois volto para trás. À minha frente o caminho faz uma curva abrupta e torna-se mais estreito ao entrar numa zona de moitas e de silvas. Avanço, respirando fundo o ar refrescante do início da tarde. Através das árvores, aquosa e difusa a luz do sol coa-se até ao chão enlameado.

Entro no túnel de arbustos tentando não reparar que o sol desapareceu por detrás da espessa abóbada de vegetação. Sou claramente demasiado racional para estar a reagir assim, mas os simples factos físicos da ausência de luz e do próprio bosque provocam-me um inesperado surto de ansiedade. O caminho raramente é usado e ninguém sabe que estou aqui, reparo com nervosismo. Atrás de mim há uma certa restolhada, uma actividade entre as folhas, talvez um esquilo ou um pássaro, nada de mais sinistro. Mas é suficiente para me sobressaltar e fazer virar-me rapidamente, e a perspectiva de um passeio pelo campo perde, de repente, muitos dos seus atractivos. Só desejo estar de regresso ao meu gabinete pequeno e seguro.

Começo a percorrer o caminho de regresso ao longo da vereda. Não tinha percebido que tinha vindo tão longe, mas agora, ao espreitar para trás, por entre as árvores, as casas lá em baixo parecem muito pequenas. Avançando mais depressa, roço descuidadamente pelos arbustos pendentes. Atrás de mim acabo de ouvir o som de galhos quebrados. E óbvio que estou a ser parva. Uma mulher adulta tinha obrigação de passear nos bosques em pleno dia sem medo de ser atacada, sobretudo alguém assim forte como eu. Apesar disso estou ofegante, com o coração a bater descompassadamente. Agora tenho a certeza: há passos que se aproximam rapidamente atrás de mim.

Deve ser alguém que anda a passear um cão, nada minimamente ameaçador. Ponho-me a correr pelo caminho abaixo, a arfar. Daqui a uns momentos o meu medo vai parecer ridículo, repito para comigo: estúpida Cassie, outra vez a fazeres figura de parva. Mas, agora, a pessoa que vem atrás de mim desatou a correr e aproxima-se rapidamente com o que me parece serem intenções fatais. Oiço os passos a pisar o solo enlameado, oiço até o arfar de uma respiração masculina. Depois, de repente, está em cima de mim, dando a curva precipitadamente, colide comigo e atira-me para o meio dos arbustos.

- Céus!

Durante alguns instantes só sinto uma dor pungente no joelho direito e na cara. Aterrei praticamente de barriga para baixo num charco e já sinto a água a infiltrar-se pelas mangas do casaco e nas joelheiras das calças. Um ramo cheio de picos, que me arranhou a cara, ficou enfiado no meu cabelo. O meu atacante, que começou por cair em cima de mim, deu um salto para trás como se tivesse apanhado um choque eléctrico. Quando abro os olhos vejo sapatilhas, meias brancas e pêlos escuros a subir por umas pernas musculosas. Ponho-me em pé, cambaleando, e volto-me para encarar o meu atacante, pois é evidente que não me adianta nada tentar fugir. Se ao menos me conseguisse lembrar dos pormenores das aulas de autodefesa feminina que tive quando tinha uns vinte anos! Que diziam? Qualquer coisa sobre gritar impropérios à cara de quem nos atacava?

Estou frente a um homem novo vestido com um fato-de-treino azul-marinho. Tem a cara suada e vermelha e está a passar as mãos enlameadas pelo cabelo castanho e curto. A cara dele é-me tão familiar que sinto uma bolha de reconhecimento a formar-se à frente

do meu cérebro, prestes a explodir.

- Não estava à espera de ninguém... - interrompe-se. Está a fitar-me intensamente.    

- Porque é que vinha a seguir-me? - arquejo.

- Não vinha. Só estava a correr. Olho para ele desconfiada e o meu medo coagula-se numa coisa mais semelhante a fúria. Agora que vi o fato-de-treino e as sapa-

tilhas, a explicação dele parece fazer sentido. - bom, raios, mas devia olhar por onde anda!

Mas ele não pede desculpa; limita-se a permanecer de olhos pregados na minha cara, num olhar longo e fixo, como uma raposa à espreita junto da toca de um coelho. Pigarreio para aclarar a voz mas, para além de um chorrilho de obscenidades, não tenho nada a dizer. O silêncio e o olhar observador do rapaz são enervantes.

- Para onde vai? - pergunta ele.

Mas eu já lhe virei as costas e encolho os ombros com uma displicência fingida, afastando-me o mais rapidamente possível pelo caminho. Sinto o braço a latejar e dói-me o joelho, mas vou avançando penosamente, ao mesmo tempo embaraçada e assustada, esperando que ele não se aperceba de como é grande o meu desconforto.

Quando chego à primeira curva, atrevo-me a olhar para trás. Estava à espera de ver o caminho novamente deserto, de poder rir-me de mim mesma por ser tão parva, mas o rapaz continua ali a olhar para mim de olhos arregalados. Então percebo quem ele é.

É Alec Watkins, sem os óculos.

É na noite a seguir ao meu encontro nos bosques com Alec que acontece o incidente seguinte. Como de costume, estou sozinha, oprimida com aquele sentimento de tarefas por terminar e, apesar disso, demasiado enervada para conseguir meter mãos à obra. Em parte é o apartamento que me faz sentir assim. Tem qualquer coisa que me põe ansiosa de uma maneira que não consigo explicar totalmente. Sinto-me como se fosse uma intrusa, como se outra pessoa - o verdadeiro ocupante - estivesse prestes a entrar e a pedir-me explicações. Até o mais pequeno dos sons, o ranger das tábuas do soalho ou o gorgolejar dos canos, me põe em sobressalto. À noite é tudo pior. De manhã, quando o sol entra a jorros pela janela de sacada enferrujada e oiço os sons quotidianos de automóveis e de gente a caminhar no passeio e o grito das gaivotas que navegam no vento, consigo tranquilizar-me. Fiz a escolha certa. Este apartamento é um belo exemplar do estilo Regência, embora algo decrépito, digo eu. Um sítio cheio de potencialidades no que toca a estilo, com muito daquilo a que os agentes imobiliários chamam «características da época».

Mas, quando a luz se esvai e fico à mercê do brilho tristonho das lâmpadas eléctricas poeirentas, já não tenho tantas certezas. Fito os botões de rosa e os peixes que se esboroam na decoração de gesso do tecto estalado. Não quero dizer isto em voz alta, porque vai aumentar mais ainda o meu constrangimento, transformando-o em qualquer coisa de tangível e real, mas a verdade é que esta casa me põe os cabelos em pé. Se ao menos eu conseguisse habituar-me ao rangido constante dos radiadores, aos gorgolejos estranhos da parede das traseiras que, como diria de certeza. Matt no seu tom paternalista, cheio de certezas masculinas, são apenas os canos do esgoto. De cada vez que oiço bater a porta da frente, fico hirta, à espera de ouvir os passos nas escadas a chegarem até à minha porta. E, de noite, os constantes rangidos e suspiros do acomodar de um prédio velho fazem-me arrepios. É como se o meu corpo estivesse em alerta total, à espera de que aconteça qualquer coisa.

Mas não é só o apartamento. Esta sensação angustiante de mau presságio está também relacionada com o telefone. Agora, todas as noites, ele trina a chamar-me em intervalos regulares de cerca de dez minutos. Contudo, sempre que levanto o auscultador, só há silêncio. Ou, melhor dizendo, tudo o que oiço é a respiração tranquila da pessoa que está do outro lado. E quando ligo para o 1471, a única coisa que me dizem é «O número do assinante é confidencial». Fiquei tão assustada com esta cena nocturna que comprei um atendedor e programei-o para «atendimento imediato». Basta-me passar pelo maldito aparelho na entrada, com a sua caixa maldosa a piscar, a anunciar talvez umas dez mensagens silenciosas que recebi nessa noite, para o meu estômago se revoltar.

É neste estado de espírito - inquieta, com uma ansiedade que não consigo controlar, solitária mas incapaz de levantar o telefone e ligar para casa - que tomo um banho e vou para a cama. vou mudar de casa, declaro, tapando a cabeça com os cobertores. vou encontrar qualquer coisa mais pequena e em melhor estado no centro da cidade. Estava cheia de aspirações românticas, mas instalar-me aqui foi um erro. Do outro lado das portadas, oiço o lânguido marulhar das ondas. Sinto repugnância pela praia e pelos seus seixos mas, ao mesmo tempo, cada vez me atraem mais, tal como a lua atrai as marés. Caio num sono leve, os acontecimentos do dia esbatem-se. Vejo o anfiteatro, a floresta e a cara de Alec. Depois, misericordiosamente, a minha mente apaga-se.

Acordo num sobressalto. Estava a sonhar com coisas confusas, assustadoras, e deixo-me ficar durante uns instantes, deitada de olhos fechados, tentando regressar à realidade. Estava a correr por uma floresta e alguém me perseguia - um homem, cuja cara eu nunca via mas cujos passos, em corrida, se ouviam cada vez mais perto. Eu tentava andar mais depressa mas atolava-me e as minhas pernas recusavam-se a avançar. E, então, quando ele estava praticamente a alcançar-me, as árvores desapareciam e eu encontrava-me na borda de um precipício. Lá muito em baixo, o mar pálido estendia-se até ao infinito. No horizonte, passava lentamente um navio solitário.

Aquele panorama encheu-me de um tal terror que dei um grito. Talvez tenha sido isso que me acordou. Ao abrir os olhos vejo vagamente a silhueta da lareira, as paredes nuas e as espessas cortinas de veludo que pendem por cima dos vitrais das janelas. O mostrador digital do meu relógio marca 3:05.

Volto-me na cama, tentando sacudir as imagens da minha mente. Devem ser as consequências do meu sonho, porque me sinto irracionalmente abalada, como uma menina pequena que acordou de um pesadelo e ainda pensa que está um monstro debaixo da cama. Se calhar era boa ideia ligar o rádio, ouvir os sons embaladores de um qualquer DJ nocturno. Aos apalpões procuro o gravador de cassetes mas, quando estou prestes a carregar no botão, oiço outra coisa: uma pancada e depois um encontrão, vindos do lado da cozinha. Fico gelada, sinto a minha coragem desvanecer-se. Lá está outra vez: uma pancada, um som de qualquer coisa a arrastar, que vem do terraço junto à porta de correr da cozinha. Devem ser ratos ou então os pombos que se juntaram, irritados, junto à escada de incêndio. De qualquer modo estou agora tão alarmada que, para além de me enfiar debaixo dos lençóis, não me resta outra alternativa senão ir investigar. Volto-me na cama, ponho os pés no chão, arrasto-me para fora do quarto e vou até à cozinha.

O brilho esfumado de um candeeiro da rua ilumina o átrio. Consigo vislumbrar a porta de entrada, a forma mole do meu casaco pendurado num cabide e o atendedor cintilante que me informa que, desde que adormeci, recebi seis mensagens novas, todas supostamente do meu interlocutor fantasma. Ali de pé, naquela meia-luz, com o roupão coçado enrolado à volta do meu corpo nu, submerge-me um terror tão forte que mal posso respirar. É a noite que me está a fazer isto, repito para comigo, é a noite e estar tão sozinha. Daqui a umas horas, quando o dia romper, hei-de rir-me de ter ficado tão aterrorizada com a gaivota ou o gato que, quase de certeza, são responsáveis por este barulho.

Dou mais um passo, a bater os dentes. Vinda da cozinha acabei de ouvir mais uma pancada. Se calhar devia telefonar à polícia. Obrigando-me a avançar, desloco-me furtivamente pelo corredor até à cozinha. No outro extremo, as escadas levam ao chamado balcão do pequeno-almoço, depois as janelas e o telhado plano. Tal como o átrio, a cozinha está mergulhada numa luz difusa vinda dos candeeiros da rua, a escuridão pouco convencida das noites das cidades.

O céu amplo, para lá das janelas, está roxo e com um aspecto doentio, pisado pelo surdo brilho urbano. Dou um passo hesitante na sua direcção, com o coração aos saltos. As janelas estão fechadas, repito para comigo. Mesmo que houvesse alguém no telhado não poderia entrar. Mas, quando ponho o pé no primeiro degrau, dou de repente um guincho.

Está um homem no telhado, a olhar para mim. Ao olhar para cima, vi uma figura encostada ao rebordo da janela e, por uma fracção de segundo, o contorno de uma cara encapuzada a espreitar através do vidro. Mas, antes de eu conseguir ter alguma certeza, a pessoa afasta-se. E neste momento, enquanto eu estou parada ofegante nas escadas, ele deve estar a descer a correr a escada de incêndio em direcção ao passeio.

vou vomitar. Estou parada, gelada, nas escadas, a tentar dominar a onda de náusea. Só pode ter sido engano. Não tiro os olhos da janela, a tentar tranquilizar-me, dizendo para comigo que o homem se foi realmente embora mas não sinto a coragem suficiente de subir e ir investigar. Talvez fosse um ladrão oportunista, provavelmente um drogado, que, ao ver a escada de incêndio, teve esperanças de que alguma janela estivesse aberta.

Mas por muito prosaica que tente ser, não consigo apagar a imagem daquela cara a olhar para mim através do vidro. E, agora, ao tentar caminhar com as pernas trémulas, percebo que devo ter estado na mesma posição durante mais de um minuto e que tenho as mãos a tapar a boca como se quisesse abafar um grito.

Desço, rígida, as escadas tentando pensar nas coisas racionalmente: a) era um ladrão que se assustou e fugiu, ou b) fui eu que imaginei tudo. Mas apercebo-me de que agora estou a correr para ir aferrolhar e trancar a porta da entrada, porque aquilo que realmente penso é que se trata de um papão capaz dos horrores mais inimagináveis, que está neste momento a rastejar escada acima, à minha procura, com um machado ensanguentado escondido atrás das costas.

Estou à beira das lágrimas, as mãos tremem-me enquanto se debatem com os ferrolhos nos dois extremos da porta. Paro constantemente para me pôr à escuta de mais sons, sustendo a respiração e forçando o coração a aquietar-se, mas não se ouve nada, só um avião que se dirige para Gatwick ou um automóvel ocasional

na rua.

E, agora, com a porta aferrolhada, deixo-me cair no chão encostada à porta e os meus dedos trémulos estendem-se para o telefone. Atende, por favor!

Matt atende de imediato pois o telefone está mesmo ao lado da nossa cama.

-Sim?

Parece zonzo, desorientado, como suponho que fica qualquer pessoa que é acordada às três e dez da manhã. - Sou eu! - guincho. - Estava alguém no terraço da cozinha! Estava a olhar para mim pela janela!

- Quéq...?

- Ouvi alguém e depois fui à cozinha e estava lá uma cara! Imagino-o a endireitar-se, a acender o candeeiro da mesa-de-

-cabeceira, a obrigar-se a acordar.

- Aguenta aí, Cassie, acalma-te - diz ele lentamente, e quando lhe oiço a voz familiar, ainda toldada pelo sono, só me apetece estar junto dele, enroscada na nossa cama da Ikea, com o edredão de linho e as almofadas gigantes. Foi uma loucura deixá-lo e neste momento não consigo sequer lembrar-me por que razão o fiz.

- Isso foi agora?

- Há dois minutos! E agora não sei o que hei-de fazer!

Há uma pausa. Talvez ele esteja a abafar um bocejo. :,

- Chamaste a polícia?

- Que é que eles podem fazer agora? O tipo fugiu!

A minha voz está outra vez a subir de tom, a angústia que eu estava a tentar manter arrolhada a escapar-se novamente, imparável.

- E também havias de estar toda a noite a pé, à espera que eles chegassem... - acrescenta ele, num tom quase demasiado razoável.

- Mas, e se ele voltar? - Sinto que os soluços se vão acumulando algures na minha garganta, uma grande vaga deles à espera de rebentar.

- É muito pouco provável - diz o Matt, docemente.

- Achas?

- Ouve - diz ele, depois de outra pausa breve -, estás cem por cento certa de que viste alguém?

- bom, penso que sim. Ouvi aqueles barulhos. Pensei que talvez fosse um gato...

- Mas viste mesmo bem a pessoa?

- Não! Quer dizer, a cara esteve ali apenas uma fracção de segundo e depois desapareceu.

- E como é que essa pessoa chegou lá acima?

- É a estupidez daquela escada de incêndio, porque é que tu não... - Calo-me a meio da frase, como um automóvel lançado a grande velocidade que de repente mete travões a fundo: estou prestes a gritar-lhe que se cale. Não suporto mais perguntas. Apetece-me gritar. Ao menos leva-me a sério!

Mas, ignorante de tudo isto, Matt insiste: - Então devias tê-lo ouvido descer as escadas, depois correr no passeio, não achas?

- diz ele na sua voz razoável, adulta. - Se se assustou...

- Não ouvi nada - resmungo.

- Porque... sabes o que é que isto me faz lembrar... ?

Mas ele não precisa de acabar porque também eu me lembro. Há uns quatro ou cinco anos, quando ele estava fora numa conferência, acordei convencida de que estava alguém lá em baixo, na nossa casa, e em pânico liguei para o 112. O único resultado da busca subsequente foi o meu pedido de desculpa e a minha cara muito corada. Não havia ninguém escondido debaixo da minha cama nem no armário, como eu tinha imaginado, nem qualquer vestígio de terem forçado a entrada. Eu tinha imaginado aquilo tudo, não podia haver outra explicação.

O facto de só agora me lembrar disto mostra bem a dimensão da minha vergonha e quão veementemente a memória foi reprimida. E, agora que Matt começou a interrogar-me deste modo, a minha memória estremece com dúvidas, como um velho calhambeque com o tubo de escape obstruído. Estava lá uma cara, não estava? Ou poderia ter sido a lua, avistada entre nuvens e refractada através do vidro? E o súbito movimento que vi, no canto da janela, talvez tivesse sido de um animal mais do que de um assaltante humano. De facto, parece estranho não ter ouvido o bater metálico da escada quando o homem desceu ou passos apressados a correr pela rua.

- Achas que imaginei isto? - pergunto num murmúrio.

- Às vezes és um bocado assustadiça, Cassie. E isso o que estou a dizer.

- Talvez tenhas razão - respondo eu, fracamente. Sinto-me uma menina pequena a quem estão a mimar e a acalmar.

- Ouve - diz ele, na sua voz de «vamos lá resolver o assunto». - Tens todas as janelas e portas trancadas, não tens?

- Tenho.

- Então tenta esquecer tudo por agora. Amanhã podes ver se há sinais de alguém ter querido entrar. Mas agora precisas de voltar para a cama.

- OK, paizinho!

- Pronto! Já te sentes melhor, não sentes?

- Acho que sim - esforço-me por sorrir. - Sinto. - Levanto-me, sentindo que a conversa chegou ao fim. Ele está a fazer o melhor que pode para me sossegar, tratou-me com bondade e não me falou bruscamente por o ter acordado a meio da noite, mas sinto-me mais só do que nunca. - Peço-te muita desculpa por te ter acordado - digo. O meu pulso está normal, a minha voz mais firme. Sinto frio, estou a precisar dos meus cobertores.

- Telefono-te outra vez amanhã de manhã, está bem?

- Matt? -Sim?

Ia dizer-lhe que ainda o amava, mas depois ele suspirou e eu engoli as minhas palavras. Sei o que o suspiro significa: a tonta da Cass, outra vez em sarilhos e, enquanto o imagino a pousar o telefone e a voltar para a cama, é como se ele estivesse a afastar-se de mim irremediavelmente para o centro do vértice da nossa separação. E, por muito que não queira que isto aconteça, sou incapaz de lhe pôr fim.

- Obrigada - murmuro.

Dou um grito de confusão e sento-me. Estava a sonhar outra vez com a falésia e, agora, vindo algures do outro lado da porta, oiço um zumbido.

Estou em Brighton, na segurança da minha cama. O meu terror de ser perseguida, a visão do mar ao fundo da falésia e o assobio do ar nos meus ouvidos eram um sonho. Contudo, agora, ao deixar-me cair outra vez nas almofadas, também me lembro de que esta noite aconteceu qualquer coisa de desagradável - ainda não consigo saber exactamente o quê. Percorro o quarto com o olhar, tentando pôr as ideias em ordem, mas, como teias de aranha húmidas, os meus sonhos confusos não despegam. Que foi que me assustou tanto? Tacteio o chão à procura do relógio, constato que são quase nove horas e, de repente, lembro-me: era uma cara que estava a olhar para mim no telhado da cozinha.

Lá está outra vez o som da campainha. Aconchegando-me no roupão, meia zonza, vou aos tropeções até ao átrio. Alguém, provavelmente uma Testemunha de Jeová ou um ex-preso com uma saca de panos do pó em segunda mão deve estar lá em baixo a carregar na campainha do meu apartamento. Mas antes de eu conseguir carregar no botão de «falar» do intercomunicador, vejo o contorno de uma cabeça aparecer no vidro fosco da porta de entrada. Durante um momento estarrecedor revejo a cara do telhado e a minha garganta aperta-se, mas depois oiço uma doce voz feminina dizer «Cass?» e, estendendo a mão para a fechadura, abro a porta. Para meu desmesurado alívio, a pessoa que está do outro lado é Beth Wilson. Traz, numa mão, um ramo de goivos cor-de-rosa e roxos e, na outra, um cesto de vime e olha para mim alegremente.

- Bom-dia! - chilreia.

Afasto-me para o lado, ao mesmo tempo surpreendida e satisfeita. Não me lembro de ter combinado com ela encontrarmo-nos aqui hoje de manhã e, normalmente, sentir-me-ia irritada ao ver um estudante chegar inesperadamente a minha casa, sobretudo tão cedo. No entanto, agora não há ninguém que me agradasse tanto ver. Olho para a cara dela, sorridente e animada, e sinto-me descontrair um pouco; uma jovem presença feminina e conversa animada sobre trabalho é exactamente aquilo de que preciso.

- A sua vizinha abriu-me a porta lá em baixo - balbucia ela, enquanto desaperta o casaco de ganga e avança para a sala de estar.

- Trouxe todos os meus papéis, a tralha toda... Não sei por onde começar, por isso vai ser bom ter a sua opinião. - Interrompe-se.

- Era mesmo aqui que disse para nos encontrarmos e não na universidade, não era?

- Hmm...

Ela dá meia-volta, levando as mãos à boca numa paródia de embaraço. - Oh céus! Não era, pois não? Era no seu gabinete. Pff! Beth Wilson, és uma besta!

Rio-me à socapa e vou atrás dela para a sala de estar. Lembro-me de qualquer coisa acerca de um encontro, mas ela tem razão quando diz que devia ter lugar no meu gabinete. - Não se preocupe com isso - digo, em tom ligeiro. - Eu devia ter sido mais clara. De qualquer forma, se calhar até é melhor que tenha vindo cá a casa porque, como vê, não acordei a horas.

A luz da manhã, vinda das janelas de sacada, cai sobre o chão em colunas rodopiantes de pó. É mais agradável do que aquilo que eu tinha imaginado ouvir no apartamento uma voz jovem e despreocupada. Tenho estado demasiado tempo sozinha, penso melancolicamente. E a solidão que me põe tão nervosa.

- Ei - diz Beth -, isto aqui podia ser realmente giro!

- Hmm. Podia é a palavra certa.

Enquanto a minha aluna inspecciona com ar crítico o meu novo lar, sinto-me desconfortavelmente consciente de quão sórdido deve ser o seu aspecto: as pilhas de livros e papéis, os pratos vazios de jantares em cima de tabuleiros há muito esquecidos, as canecas cheias de borras que vão paulatinamente cobrindo o rebordo da lareira. Sempre o neguei com todas as forças da minha alma, mas, ao fim e ao cabo, talvez Matt tenha razão: é ele de facto quem faz todos os trabalhos de casa. E agora, para além das chaves, perdi o meu telemóvel. Porque viverei eu sempre nesta confusão? Pelo menos em Londres tenho Matt e os seus sistemas domésticos para me manter na ordem: os ganchos convenientemente colocados para pendurar as chaves; os números de telefone armazenados nos nossos telemóveis e computadores; as listas de «Coisas a Fazer» que ele rabiscava na lousa da cozinha. Mas desde que aqui estou tenho vindo cada vez mais a sucumbir ao demónio do caos.

- Trouxe pequeno-almoço - diz Beth numa voz animada, pousando o saco no meio da sala. - Só precisamos de fazer café.

Faço uma careta: a única coisa que tenho é um frasco quase vazio de café instantâneo. Matt é quem faz o café lá em casa e mede obsessivamente a quantidade de grãos e de água na nossa cafeteira como se a feitura de um bom café fosse ciência aeroespacial. Se ele pudesse ver o conteúdo dos meus armários ficava sem fala. Mas, ei!, Beth é uma estudante, não é o eternamente crítico Matt.

- Vamos a isto - diz ela, acocorando-se no chão e tirando coisas do saco. - Pains au chocolat, pão quente... que delícia!... sumo de laranja acabado de espremer e umas mangas que estavam baratas.

- Não devia ter tido esta trabalheira toda - murmuro. Apesar dos gorgolejes gulosos do meu estômago, a sua extravagância é deslocada. Sou eu, o professor, que devia fornecer a comida e ela, a aluna, que a devia receber com toda a gratidão: esta inesperada inversão dos nossos papéis faz-me sentir desconfortável.

- Ora, deixe-se disso! - Faz-me um sorriso descarado. - Isto é o equivalente, ao nível universitário, da maçã vermelha que se leva ao professor na escola primária.

Rio-me e estendo a mão para um dos bolos. Que importância tem se houve ali algum exagero da parte dela?

- bom, estou horrorizada por me ter apanhado neste roupão terrivelmente velho. Tenho mesmo de me vestir antes de começar a falar-me acerca do seu trabalho.

Ela lança-me um olhar longo e apreciativo. - Realmente, a cor fica-lhe a matar!

- Não me goze!

Deixo-a na sala de estar e, devorando um segundo pain au chocolat, vou vestir-me. Quando regresso, passados cinco minutos, com duas canecas de chá, dois pratos e dois copos para o sumo de laranja, ela está de pé junto à lareira a arranjar as flores numa garrafa de leite vazia. A comida espalhada no tapete não foi tocada.

- Tem alguma jarra?

- Infelizmente não.

- Não faz mal.

Fico a vê-la a atarefar-se com o arranjo das flores, que já começaram a encher a sala com o seu perfume doce. Ao contrário da sua querida professora, vê-se que ela tira satisfação da ordem doméstica.

- Então como é que sabia onde eu moro? - pergunto. Ela já acabou de arranjar as flores e depois de examinar o rebordo em mármore da lareira escolhe o melhor lugar e aí poisa cuidadosamente a garrafa.

- Disse-me a sua secretária - responde ela, voltando-se com um sorriso. Usa uns jeans largueirões, descaídos nas ancas, e uma camisolinha justa que lhe acentua os seios pequenos e redondos. Traz o cabelo amarrado atrás e deu uma pintadela aos olhos.

Fito-a, semicerrando os olhos. - Disse?

- Sim, com o ar mais... natural deste mundo. Não se importa, pois não? - Olha para mim com ar interrogativo, inclinando a cabeça para um lado como um pardalinho, e depois saltita através da sala e vem sentar-se ao meu lado, de mãos cruzadas sobre os joelhos, a ver-me tirar outra fatia de pão. bom, podia dizer que, na realidade, não me importo, mas sinto-me um tanto surpreendida com a atitude displicente de Maggie. No sítio de onde eu venho, os estudantes eram vistos mais ou menos à mesma luz com que os britânicos vêem os requerentes de asilo; sabem que têm de os deixar entrar, mas mantêm-nos à distância, são atendidos nas horas de expediente pelos funcionários menos importantes e não são obviamente considerados amigos nem convidados a irem lá a casa. Mas é possível que a tranquila revelação da minha morada por Maggie seja indício de uma instituição aberta e amigável e não de uma administração desleixada, que seria o que significaria em Londres.

- Não - digo eu. - Não me importo nada. Na verdade até é bastante simpático ter aqui alguém a animar a casa.

Ela sorri como uma menina pequena que é elogiada. - Não gosta de viver sozinha?

- É óptimo... - Hesito. É impossível resistir à vontade de fazer confidências. - É só que às vezes as coisas são um bocadinho arrepiantes.

- Arrepiantes? - Ela olha para mim à espera da continuação e, de repente, sou incapaz de me deter.

- Na noite passada até pensei que estava uma pessoa a espreitar-me pela janela.

Dou uma gargalhada saudável, sentindo-me já melhor. Agora que pronunciei as palavras, estas soam a ridículo. Mas Beth arregala os olhos e, tal como eu nas escadas da cozinha na noite passada, tapa a boca com as mãos.

-Oh!

- Na realidade não estava lá ninguém - digo, em tom displicente. - Tenho a certeza de que foi mera imaginação minha. Não é uma estupidez?

- Mas viu alguém?

- Não, claro que não. É precisamente isso. Tive um pesadelo e imaginei as coisas. Provavelmente era só um reflexo da lua. - Estou prestes a dar outra gargalhada forçada mas paro, envergonhada por me estar a expor deste modo.

Beth olha para mim com ar compreensivo, de olhos arregalados e brilhantes. - Céus! Não foi isso que aconteceu àquela rapariga?

O modo como ela diz isto arrepia-me. - Que rapariga?

- Sabe, aquela rapariga da universidade? Que acordou no estúdio e estava lá aquele tipo, ao canto do quarto, a olhar para ela?

Eu estava a ponto de dar outra mordidela no pão, mas a crosta fica intacta na minha mão rígida.

- Entrou pela janela - acrescenta Beth. - Enquanto ela dormia.

- Meu Deus! - murmuro eu. - Que aconteceu?

Beth encolhe os ombros. - Já foi há uns tempos - diz ela..

- Mas acho que foi morta.

Olho para ela, com a mente bloqueada. Finalmente levo a mã«o até à boca e meto lá dentro um pouco de pão. Mastigo-o mecanicamente, desejando nunca lhe ter contado acerca do meu intruso.

- Não quer uma fatia deste pão delicioso? - consigo, finalmente, dizer.

Ela abana a cabeça a desculpar-se. - Sou alérgica ao trigo.

- Oh céus! - faço uma careta, sem grandes comentários a tecer.

- Não se preocupe - diz Beth. - De qualquer modo, nunca tomo pequeno-almoço.

- Credo! Isso é uma loucura.

Finalmente, quebrou-se a tensão. Sem qualquer razão válida, ambas desatamos a rir, aliviadas por mudar de assunto.

- Também não devo tomar produtos lácteos - acrescenta ela, bebendo um golinho de chá.

- Bolas! - Mastigo a comida com um certo embaraço; sinto-me como alguém numa praia de nudistas que se despiu entusiasticamente e descobre que toda a gente ficou vestida, alegando que os banhos de sol causam cancro. Ainda bem que Matt não está aqui, porque, tal como a homeopatia e a macrobiótica, as alegadas alergias alimentares das pessoas são capazes de suscitar nele ataques «de palavreado bombástico que o fazem parecer-se mais com um Alf Garnett intelectual do que com um académico civilizado. É aquilo que ele designa como a «nova irracionalidade» e que o põe estado de fúria cega: a crença fervorosa de pessoas - que normalmente são inteligentes e cultas - naquilo que ele considera estar apenas um passo acima da utilização de sanguessugas para fazer baixar a febre ou da proibição de as mulheres menstruadas mugirem as vacas.

- Põe uma pessoa muito letárgica, sabe. Quero dizer, todas essas toxinas - está Beth a dizer. - A Cass devia, de facto, tentar cortar com elas. Passadas as primeiras semanas até já nem custa tanto. Se quiser venho cá fazer-lhe uma refeição vegetariana, sem trigo.

- Caramba!

- A sério, vai ver que vai adorar!

Espero que a minha cara não registre a minha total ausência de entusiasmo. Tal como Matt, sempre adorei comer toda a carne, natas, manteiga e queijo que a vida tem para oferecer. Na verdade, quando nos conhecemos, fizemos três juras solenes um ao outro, os nossos votos anti-matrimoniais. O primeiro é que nunca nos trataríamos por nomes piegas; o segundo, que deixaríamos sempre a loiça para lavar na manhã seguinte; o último, que qualquer alimento em que a saúde, e não o sabor, era o principal objectivo seria banido da nossa cozinha.

- bom - digo, limpando a boca e pousando o prato -, falemos então desse projecto.

- É sobre a história das mulheres ao longo do século XX - diz ela, estendendo a mão para agarrar no saco. - Quer dizer, sei que ainda é cedo para pensar nos nossos projectos e nisso tudo, mas senti-me muito inspirada pelos seminários.

Encosto-me para trás, cruzando os braços. Inspiração não é um termo muito usado pelos meus estudantes. - Então diga-me lá exactamente o que pretende fazer.

- Está bem. - Ela respira fundo, a ordenar as ideias. - É um bocadinho como a sua investigação. Quer dizer, é claro que sei que não poderei fazer nada tão bom como isso, mas estava a pensar entrevistar todas as mulheres da minha família, perguntando-lhes como achavam que a posição da mulher na sociedade se tinha alterado ao longo das suas vidas. Como, por exemplo, a minha avó e a irmã dela. Ainda vivem as duas no Yorkshire, de onde é a minha mãe. E depois, há estes papéis... - remexe dentro do saco e tira uma pasta. - Estas cartas foram escritas pela minha bisavó ao marido, durante a guerra. Ela era enfermeira, estava em Londres.

- Fantástico!

Ela ainda está a remexer no saco, com a franja a cair-lhe sobre a testa. Reparo que tem ali umas borbulhas que disfarçou cuidadosamente com maquilhagem. A maquilhagem não condiz com o resto do seu aspecto, que é de maria-rapaz, e pergunto a mim mesma se ela saberá o quanto a cor bronzeada do creme se destaca de encontro à sua pele clara.

- Há um maço inteiro delas. Tudo sobre os bombardeamentos e o efeito que a guerra teve nela. Também tinha filhos pequenos.

- Parece fascinante - digo eu, genuinamente interessada. Adorava ver esses papéis.

- É espantoso como as mulheres viviam, não é? Quero dizer, a minha avó manteve, de facto, a família unida. Nunca diria que era feminista ou coisa do género, no sentido político do termo, mas era, digamos, tão forte! É isso que eu queria apanhar.

Parou a sua busca de papéis e fita-me com olhos brilhantes. Acabei de me lembrar que, por muito impróprio que seja o cenário, a verdade é que a minha função é ensiná-la. É esquisito, mas ela tem um jeito de me fazer esquecer que eu sou a professora e ela a aluna.

- Tem de começar por ler historiografia feminina - começo.

- Dou-lhe uma bibliografia quando voltar ao gabinete.

- Ai, isso vai ser mesmo magnífico!

- Então não há cartas?

- Devo tê-las deixado em casa. Beth, a Palerma, voltou a atacar.

- Era interessante analisar a sua própria historiografia à luz de um trabalho comparado... - continuo, mas ela interrompe-me.

- Já alguma vez pensou fazer isso? Escrever acerca da sua família?

- Hum, não!

- Como é possível?

Engulo a picada de emoção que sempre me ataca quando me fazem perguntas sobre a minha família. Uma parte de mim gostaria de lhe dizer que não metesse o nariz onde não era chamada e, se estivesse no meu gabinete, diria provavelmente algo acerca de não nos desviarmos do assunto, mas aqui, no meu estúdio cheio de sol, uma resposta dessas pareceria grosseira. - Morreram todos digo, e coro até à raiz dos cabelos com esta mentira infantil. Dra. Bainbridge, a eminente académica, a inventar aldrabices diante de uma aluna. Completamentepatético.

Beth arregala os olhos.

-Oh!

Apetecia-me agarrar as palavras no ar e metê-las outra vez na boca, mas é tarde de mais. À minha frente, sentada na carpete cheia de pó, Beth olha para mim com ar de espanto. - Então é órfã?

Sinto-me invadida de vergonha. E se ela descobre que estou a mentir? Como é que poderei explicar? E então, antes que consiga impedi-lo, vejo as cartas da minha mãe dobradas num maço no meio dos livros. Nunca respondi a uma única. Mas também nunca as deitei fora.

- Pensemos então noutras leituras essenciais - digo atabalhoadamente, desesperada por mudar de assunto, mas Beth ignora-me.

- Como é que morreram? - murmura ela. - Foi num desastre de automóvel ou qualquer coisa desse género?

Ofereço-lhe um sorriso amarelo, com a mente atulhada de meias verdades. Mesmo da parte que não é mentira, raramente falo. Apesar disso, aqui estou eu a abrir a boca e a dizer: - O meu pai morreu de cancro do pulmão quando eu tinha quinze anos.

Como é que a simples declaração de um facto, uma fila de palavras dispostas umas a seguir às outras, consegue evocar emoções tão fortes? Sorrio de uma forma pouco convincente, tentando dar a entender que já não tem importância.

- Que horror!

- O malandro fumava um maço de John Player por dia, por isso não é propriamente de estranhar.

Estendo a mão para a pasta que ela trouxe, ainda com um sorriso rígido nos lábios. Dava tudo para conseguir evitar aquilo, mas agora vejo à minha frente o meu pai, naquele Natal em que a doença o venceu, apoiado em almofadas ao lado da televisão, a tossir tanto que até tinha vómitos enquanto o programa especial de Natal do Bruce Forsyth ecoava em fundo.

- bom, voltemos então a debruçar-nos sobre isto.

Mas ela é como um perdigueiro com um coelho morto: recusa-se a largá-lo. - E a sua mãe?

- O mesmo cenário.

Pego na pasta, abro-a e olho para o conteúdo, mas a única coisa que vejo é a cara cinzenta do meu pai. - Foi há muito tempo digo rispidamente.

- Que coisa tão terrivelmente triste.

Analisa-me com um tal ar de pena que temo que possa rebentar em lágrimas. - Não tem importância. Já não tem.

- Tem, sim. Sei como é.

Levanto os olhos, surpreendida com a mudança do tom de voz. Ela endireita as costas e inclina a cara para a frente, de modo a que eu não possa evitar-lhe o olhar, e fala numa voz baixa e confidencial.

- Normalmente não digo isto a ninguém. Mas eu também não tenho uma verdadeira família.

Inspecciono-lhe a expressão, que ela se esforça por controlar, e ainda me odeio mais. Que horror - a minha mentira covarde impeliu-a a confessar as suas próprias intimidades. - Mas a sua mãe - digo, num tom esperançado - e a sua avó?

- Não são minhas. Só me adoptaram. É por isso que tenho de ter cuidado com este projecto, para que... Bem... não se zanguem comigo.

- Meu Deus, claro! Claro...

Só desejo que ela se cale, mas ela continua a falar, numa voz baixa e tranquila como se estivesse a explicar uma coisa terra-a-terra e sem importância.

- Só vivo com elas há um par de anos. Tiveram de me tirar da família onde estive antes, porque o pai começou a abusar de mim.

- Céus! - esbugalho os olhos. Pobre rapariga! Não sei o que dizer, só me apetece desesperadamente estender a mão e apertar a dela.

Mas, de repente, ela põe-se em pé, sacudindo migalhas imaginárias dos jeans. - Não tem mal - murmura, com um sorriso corajoso. - Quem me dera não ter trazido isto à baila. Quer dizer, a Sue e o John são realmente fantásticos. Dão-me todo o afecto que podem e para mim isso basta. A filha deles morreu numa colisão de automóveis, por isso, de certo modo, estou a ajudá-los no processo do luto.

- Mas deve ser muito difícil para si...

- Tudo bem - Encolhe os ombros. - É por isso que não quero sair de casa deles. Quer dizer, com todas as perdas que já tiveram e tudo. Sei que toda a gente aqui na universidade se diverte à grande a partilhar os quartos, mas eu prefiro estar perto deles. É uma das razões por que estou a estudar aqui e não em Harvard.

- Eles devem estar incrivelmente gratos.

Ela faz um sorriso triste. - Não sei se eles vêem as coisas por esse prisma. Quer dizer, eu é que tenho de estar grata. Pelo menos agora tenho alguém em quem pensar como família, mesmo que, oficialmente, eles não me possam adoptar. Sou, digamos, velha de mais.

Ela está de pé no meio da sala, a olhar pelas janelas, para o mar. O nosso breve encontro parece ter chegado ao fim. Como não tenho nada a acrescentar acerca dos seus pais adoptivos, estou prestes a encerrar a sessão, dizendo-lhe que passe a buscar a bibliografia quando eu estiver na universidade, quando o telefone toca.

- Oh céus! Onde é que ele se meteu?

Dou um salto e tento encontrar o aparelho sem fios no meio de todos os detritos. Quem quer que seja ao telefone forneceu-me um pretexto bem-vindo para acabar com a nossa difícil conversa. Mas, ao olhar em volta da sala, vejo que Beth já tem o aparelho na mão e para minha leve surpresa já carregou no botão «atender». Tal como anteriormente, os meus pensamentos seguem duas vias cruzadas: por um lado aborrece-me a presunção de intimidade, ou de igualdade, que não deve existir entre professor e estudante, mas, por outro lado, a verdade é que não me importo. De facto é, até, bastante agradável que ela se sinta tão à vontade.

- Casa de Cass Bainbridge - diz ela, piscando-me o olho. Depois: - Está mesmo aqui.

Tiro-lhe o telefone da mão, fazendo uma careta que se destina a pô-la no seu lugar mas que, provavelmente, só me dá ar de estar com gases. Penso que é Matt, a saber se estou bem.

- Estou?

- Cass? Aqui é o Julian. Julian Leigh.

O meu coração dá um saltinho estranho. - Julian! - A minha voz tem um som agudo e ameninado, certamente por me sentir embaraçada com a minha rispidez de ontem para com ele. - Como está?

- Bem, mas queria pedir desculpa se ontem a perturbei.

Não estava à espera daquilo. Desde o primeiro dia do trimestre que o considero um convencido, o tipo de homem que normalmente conduz demasiado depressa, fazendo com frequência sinais de luzes para os automobilistas se deslocarem para a faixa mais lenta, enquanto vai tratando de negócios ao telemóvel. Não estava realmente à espera de pedidos de desculpa por uma falta de comunicação tão subtil que mal se pode chamar uma discussão.

- Tudo bem!- Respiro fundo, esperando que Beth não esteja a ouvir. - Também eu peço desculpa. Estava cansada e rabugenta.

Ele faz uma pausa. Fico com a impressão de que está nervoso porque, quando volta a falar, gagueja ligeiramente. - É que acho que começámos com o pé errado e queria compensar as coisas. Sei que às vezes exagero, com piadas parvas e tudo o mais, sobretudo quando «quero impressionar». - Dá uma gargalhada estranha, entrecortada.

- Está bem... - digo, lentamente.

- Por isso estava a pensar... se queria... digamos, sair um dia destes. Estou farto de telefonar, mas nunca atende.

Olho de relance para o rosto da Beth. Quando os nossos olhos se encontram ela põe uma mão sobre o estômago e faz de conta que vomita. É estranho, porque eu pensava que Julian era popular entre os estudantes. Mas, no momento em que ela faz este gesto, as minhas emoções passam de um calor agradável por ser convidada para sair a uma vergonha avassaladora por estar a pensar aceitar. Ela tem razão, lembro-me. Ele é tão esquisito comigo, como se, lá no fundo, escondesse uma perversão secreta.

- Então era o Julian ontem à noite? - digo em voz fria, lembrando-me dos toques incessantes, quase obsessivos, mas sem acreditar totalmente que ele pudesse descer tão baixo.

- Era? Não sei.

- É que alguém não pára de telefonar para desligar logo a seguir.

- Inocente! ?' Não, penso eu, é óbvio que não é assim tão louco.

- Podíamos ir dar uma volta ou ver um filme... - acrescenta ele, cheio de esperança, mas eu já tomei a minha decisão. É altura de ser honesta.

- Não sei - digo, voltando-me ligeiramente para que Beth não me possa ouvir. - Isto é assim: tenho uma relação...

- Oh! - A sua voz soa surpreendida e, de certo modo, afrontada, como se, de repente, eu tivesse arrancado o meu vestido e mostrado que era um homem.

- Mas encontramo-nos no trabalho, OK? - apresso-me a dizer. E, antes que tenha de ouvir mais alguma manifestação de desapontamento, pouso o telefone.

Depois de a Beth sair, sento-me à janela. Só tenho aulas depois do almoço e agora quase nem tenho energias para me mexer e, muito menos, para me vestir e conduzir até à universidade. Continuo a pensar naquelas cartas, nas que eu guardei em segredo, e na forma como menti acerca da minha família. Quando me mexo, dou por mini a dirigir-me apressada para o meu quarto, onde abro bruscamente a gaveta de cima da cómoda em pinho folheado, da qual tiro um livro pesado, escondido por baixo da roupa interior.

É um exemplar, datado de 1929, das Obras Completas de William Shakespeare, que me foi dado pelo meu avô quando eu fiz onze anos. Seguro-o entre as mãos, apalpando a capa vermelha maltratada, que se está a desfazer nos cantos, e as letras gravadas a ouro. Por uns instantes fico a contemplá-lo e os meus dedos acariciam o bordo dourado das páginas. O meu avô ganhou aquele prémio na escola e na página de guarda está uma placa amarelada cuidadosamente calcografada: «Preparatória Masculina de Heathview: Oferecido a Alfred Bainbridge, Primeiro Classificado nos Exames de Latim, Setembro de 1930».

Nunca li o conteúdo. Não é esse o objectivo deste tipo de livros. As minhas altas notas em Shakespeare foram colhidas numa série de livros de bolso baratos nos quais se podia, sem sentimentos de culpa, escrever notas nas margens e sublinhar os discursos com marcador florescente. Mais do que constituir a soma dos seus compostos, este livro é um daqueles artefactos que eu descrevi na minha aula: um aguilhão para a memória, parte da história da família, um objecto a ser transmitido de geração em geração. Volto as primeiras páginas, dou uma olhadela ao retrato de um Shakespeare com ar divertido, depois deixo o livro abrir-se a meio, no sítio onde estão guardadas as cartas.

São quatro no total, mais a de David. Há anos que não olho para elas; basta-me saber que estão ali, a porta está fechada, mas ainda não deitei fora a chave. Quando as retiro, desdobrando o maço grosso, tenho as mãos a tremer.

A carta de David não é assim tão difícil. Devo tê-la lido pelo menos cinco ou seis vezes mas, apesar das minhas boas intenções como o cartão de parabéns que não mandei e que ainda anda na minha mochila e várias tentativas pouco diligentes de encontrar o número do telefone dele -, nunca lhe respondi. Observo a morada, tentando imaginar como será a casa dele. Uma casa branca, baixa, com uma varanda e um relvado bem tratado, algures numa rua de Sydney, um sol branco e implacável, o som de aspersores de água e de crianças a brincar. Também haverá cantos de pássaros - que pássaros é que haverá na Austrália? Pica-peixes? E, à tardinha, o cricri dos grilos. Ao contrário do que aconteceu comigo, a fuga de David foi feliz e sem confrontos; em contraste com a sua indisciplinada irmã, ele sempre desempenhou o papel do filho bonzinho e equilibrado.

«Querida Cass» - leio, e os meus olhos percorrem as frase que sei de cor - «Como estás?»

Como vês, mudei de casa. Tenho um emprego novo, estou a trabalhar para, uma grande empresa com um salário bestial e todas as mordomias (havias de ver o meu carro, um BMW deste ano. É um grande passo em frente, depois da Fábrica Sunblest, ha, ha. Por isso, finalmente mudamos do nosso apartamentozito simpático, ao pé do porto, ! para uma casa com quatro quartos nos arredores. A outra .» grande notícia é que a Clare está grávida. O bebé está previsto para a Primavera...

A Izzy deve ter agora três anos, penso com tristeza. Se calhar até já tem um irmãozinho. Paro de ler, passando à frente a parte onde ele escreve: «Já há muito que não sei nada de ti. A mãe diz que te ouviu, na rádio, a falar sobre as tuas mulheres do East End. Por isso sabemos que ainda andas algures por aí. Era bom se desses notícias...»

No fim ele escreveu: «Felicidades, David» e não os «muitos beijos» de que eu pensava lembrar-me. É mesmo típico, ele despedir-se assim, como se fosse uma nota para um colega ou para um simples conhecido. Fico com a carta no regaço e olho, sem ver, para a letra direitinha, para o modo como escreve o nome dele em maiúsculas, como se estivesse a treinar a minha memória. A carta evoca uma combinação deprimente de tristeza e remorso, o monstro de duas cabeças que me acompanha sempre para onde quer que eu vá. Devia ter-lhe respondido, claro que devia. Passei o tempo a tencionar fazê-lo, mas cada mês se tornava mais difícil saber por onde começar. Depois desta carta, chegou o cartão a anunciar o nascimento da Izzy. Calculo que ele esteja ressentido por eu não ter respondido às suas tentativas de comunicação. Não lhe será difícil descobrir através da Net onde é que eu trabalho, por isso deve saber que recebi as cartas dele. Talvez esteja zangado: pelo menos deve sentir-se magoado com a minha rejeição. Pergunto a mim mesma: pensará ele nas razões que me levam a portar-me tão mal? De que se lembrará ele?

Depois do Verão em que encontrámos a Bolsa da Sereia não houve mais férias à beira-mar. Alguma coisa tinha acontecido, porque a mãe começou a trabalhar na clínica a tempo inteiro e o rosto dela adquiriu aquele ar de exaustão que associo a esses anos mais recentes: gasto e cansado, de olhos distraídos. Também mudámos de casa, passando de uma espaçosa, que dava para o parque, para uma espécie de caixote com dois quartos num dos «dormitórios» que iam alastrando em redor da aldeia. Retrospectivamente, penso que o pai deve ter ficado sem emprego nessa época, porque me lembro dele em casa mais do que era costume e de nos ir buscar à escola e fazer o jantar, enquanto a mãe estava a trabalhar. Ao contrário da mãe, ele nunca gritava connosco por entornarmos comida dos pratos, nem nos proibia de pousar os cotovelos em cima da mesa; era mole como manteiga rançosa, dizia ela, quando voltava tarde e se irritava ao ver a cozinha em pantanas.

Eu gostava dele assim. Depois do banho saltava-lhe para o colo e líamos juntos O Hobbit, os livros de Narnia, Jennings e E. Nesbit. Também brincava connosco horas a fio, ao passo que a mãe não tardava a ficar impaciente e aborrecida com as complexidades infantis dos nossos jogos de fantasia, os bons e os maus, os acampamentos precariamente construídos e os códigos secretos. Aquilo que suponho que fosse uma falta de objectivos no mundo adulto transformava-o num bom pai para o meu mundo inseguro e dependente de criança de oito anos. Ele devia ter sido a mãe, lembro-me de dizer, e ele ria-se, mas de uma maneira que dava a entender que não era uma coisa que ele quisesse ouvir. Não era uma marido caseiro do século XXI. Nos anos 70 esses maridos ainda não tinham sido inventados, pelo menos entre a classe média-baixa da província. Ele - e não a mãe - devia ser o sustentáculo da família, e o babysitting, como desdenhosamente ela se lhe referia, era trabalho de mulher.

Mas a nossa proximidade não se limitou a esse breve período de desemprego. Sempre, desde o nascimento de David, tinha sido o pai e eu versus David e a mãe. Calculo que seja assim: o novo bebé a exigir a atenção da mãe e, quase por necessidade, a criança mais velha a agarrar-se ao pai. Mas em vez de ser temporário, no nosso caso tornou-se um modelo que ao longo dos anos se foi consolidando cada vez mais. A mãe sempre deixou muito claro que preferia a companhia de David à minha. Ele era um bebé «extraordinariamente fácil» ou, pelo menos, era o que ela dizia constantemente às pessoas, ao contrário da mais velha. Enquanto eu era tumultuosa e agitada, David era plácido e realizado; enquanto eu pedia mais leite do que aquele que o corpo dela podia fornecer, um bem-aventurado David foi amamentado até quase completar um ano. Enquanto eu me recusava a andar, a fazer no pote ou a dormir durante toda a noite, David chegava a cada barreira do seu desenvolvimento como chegaria à sua vida futura: com à-vontade, confiança e sucesso. Estava sempre tão «descontraído» - pelo menos era o que sempre se dizia na nossa família. E eu, por contraste, era sempre muito difícil.

Ou, pelo menos, é essa a minha recordação. Mas sou suficientemente profissional para saber que a memória é uma besta melancólica, obcecada consigo mesma; escolhe do passado aquilo que lhe apraz e adapta-o aos seus interesses narcisistas. E, hoje em dia, já não comunico com ninguém cuja memória pudesse pôr a minha em xeque. Dobro novamente a carta de David e ao abrir o Shakespeare para a guardar, cai lá de dentro um cartão de Boas-Festas.

Basta-me olhar para a letra para ficar com arrepios, mas não consigo impedir-me de pegar nele e de o abrir. Na capa está o desenho esborratado de um pintarroxo, pintado provavelmente por alguém com necessidades especiais; é o tipo de cartão caritativo que a minha mãe compraria por atacado para, depois, arrumar ao fundo da secretária. Feliz Natal! Por baixo da alegre saudação, a minha mãe escreveu numa letrinha cerrada: «Espero que este postal te encontre de boa saúde. Por favor manda-me a tua nova morada, se é que mudaste. Beijos da mãe.»

Como é que ela queria que eu recebesse o cartão se me tivesse mudado? Ou saberia pelo David que eu ainda estava a trabalhar na Universidade de Londres e aquilo tinha sido escrito como uma censura em código? Reli a mensagem, depois voltei a enterrá-la no seu mausoléu literário. Ali repousam já outras notas mais longas, na maioria contendo notícias de David. Uma delas conta, em pormenor, o funeral de um primo dela que eu acho que nunca conheci, outra descreve um jardim no West Country que ela visitou recentemente. As cartas dela são impessoais e vazias e, praticamente, não me dizem nada acerca dela. E há cerca de três anos cessaram completamente.

Passado uns tempos, o pai arranjou outro emprego, mas que devia ser menos bem pago do que o primeiro, porque continuámos a não ter férias e a mãe manteve-se na clínica. Eu passei da escola da aldeia onde sabia o nome de todos os alunos e passava a maior parte do tempo a fazer «projectos» sobre cavalos, para uma escola preparatória grande e impessoal, na cidade, onde éramos orientados e tínhamos lições de Química e Geografia como deve ser e onde nos davam trabalhos de casa. A princípio odiei-a, não por o trabalho ser demasiado exigente, mas porque me assustava, habitada como era por adolescentes de sapatos com grandes solas e cabelo cortado à escovinha, que fumavam nas casas de banho e faziam os alunos dos primeiros anos tropeçar. Era o início do punk e algumas raparigas mais velhas pintavam os olhos com kohl preto, muito carregado, como Cleópatras adolescentes, e usavam alfinetes-de-dama nas orelhas. Eu ainda estava a alguns anos de distância da minha transformação de snob pesadona da aldeia em rebelde do sétimo ano e, por isso, as minhas recordações dos primeiros anos são de me encolher de terror. O principal era que não dessem por mim, mas já alguém tinha escrito «Gorducha» na minha pasta, por isso as perspectivas não eram maravilhosas.

Foi durante esse ano que as discussões com a mãe começaram a sério. O pai tinha sido novamente sugado para o mundo masculino do trabalho e só voltava para casa tarde e, de repente, éramos só a mãe, David e eu a discutir à hora do jantar. Ou melhor, David ficava sentado à mesa, a comer muito sossegado, e a mãe e eu berrávamos uma com a outra. A questão que se erguia cada vez mais entre nós era o seu desejo de me ver emagrecer. Mas, tendo passado sem almoço, porque tinha demasiado medo de passar junto dos valentões do oitavo ano a caminho da cantina, quando chegava ao jantar estava absolutamente esfaimada. E assim, em casa, eu aspirava cá para dentro tudo o que podia. Aos doze anos pesava mais de sessenta e cinco quilos e a mãe tinha colado no frigorífico uma folha com uma dieta. Nada de batatas fritas, nem gelados, nem bolos, nem chocolates. Não interessava que eu agora andasse a gastar o dinheiro dos almoços em chocolates Mars e batatas fritas da carrinha dos gelados, que vadiava como um passador de drogas à frente do portão da escola. Não interessava que eu fosse naturalmente alta e, como a mãe dizia, de «ossos largos». O facto é que ela queria que eu fosse diferente do que era.

Houve sobretudo um momento em que ainda penso. Por qualquer razão de que não consigo lembrar-me, tinha voltado para casa mais cedo do que o habitual, talvez por ter apanhado boleia com a mãe de algum colega em vez de ficar à espera do autocarro. Fosse como fosse, era evidente que a mãe e David não estavam a contar comigo porque, quando atirei os meus sacos para o chão e entrei pesadamente na cozinha, vi uma profusão de alimentos proibidos espalhados diante do meu irmão, como oferendas a uma divindade. Havia éclairs de chocolate, bolos de creme e donuts. Mais infame ainda, ele estava a petiscar um prato de batatas fritas, que a minha mãe tinha evidentemente acabado de fazer.

Então as maçãs e o queijo fresco eram uma charada! Nas minhas costas, o meu irmãozinho comia como um rei enquanto a mim me punham a pão e água. Fiquei na soleira da porta, a olhar para eles embasbacada como a Rapariguinha dos Fósforos. David e a mãe ergueram os olhos, envergonhados, mas não o suficiente. Senti-me como se os tivesse apanhado em flagrante a conspirar um assassínio e não a jantar cedo. Finalmente murmurei, com uma voz rouca: - Posso comer qualquer coisa?

Mas a minha mãe já se tinha posto em pé de um salto e limpava a mesa do seu conteúdo ilícito, varrendo os bolos para um tupperware (então era isso que ela guardava naquelas caixas!) e fazendo desaparecer o prato de David.

- Não sejas parva, Cassandra - respondeu ela. - Sabes que não é permitido.

- Mas tenho fome

- Há muito pão com manteiga e trouxe-te umas óptimas maçãs.

- Mas o David está a comer!

Ao ouvir mencionar o seu nome, o meu irmão franziu o sobrolho e enfiou na boca mais uma garfada de batatas fritas. Um salpico de ketchup tinha-lhe aterrado na camisola e a sua boca estava toda besuntada de gordura, que limpou à manga. Tinha seis anos e vivia obcecado com os comboios Brio, passando tardes inteiras a brincar com eles, fazendo-os passar por choques complicadíssimos. Naquela idade mal falávamos um com o outro e muito menos brincávamos juntos. A nossa interacção consistia principalmente em breves mas violentas escaramuças à travesseira ou ao murro que resultavam, invariavelmente, em eu ser mandada para o quarto e o David a receber festinhas da mãe. Eu tinha quase doze anos, por isso já devia saber que não podia bater no meu irmãozinho.

O que a minha mãe disse a seguir é uma coisa que nunca hei-de esquecer. Mesmo agora, quando tento pôr-me no lugar dela e imagino o que faria com uma filha de doze anos gorda e intimidada, as palavras ficam-me presas à garganta. «O David», disse ela muito devagar e deliberadamente, «é diferente de ti. E é por isso que pode comer coisas que tu não podes.»

Eu devia ter ultrapassado estas emoções tão infantis. Não devia sentir esta baforada de ciúmes, por causa de um prato de batatas fritas. Devia ser capaz de rir daquilo, pôr as coisas em perspectiva. Porque é que tal não é possível?

 

Brigbton, 20 de Novembro

Querida Mãe,

Aqui vão algumas coisas sobre a minha história (mas não aquilo que diria na aula).

Depois de me deixares, puseram-me numa família de acolhimento e acabaram por conseguir meter-me num lar. Nessa altura eu não era um bebêzinho amoroso, mas um diabinho de quatro anos, não o tipo de criança que muitos pais adoptivos desejam ter. Ao que parece eu era uma criança irrequieta, sempre a gritar e a protestar e a acordar a meio da noite. As várias pessoas que tomaram conta de mim fizeram o que puderam, mas nunca tive um lar nem nada que se parecesse com as verdadeiras casas de família

Espero que não tenhas vergonha de mim. Apesar dos meus começos instáveis, sempre fiz tudo o que mepediram. Portei-me bem, passei nos exames, não me meti em sarilhos. É verdade que tenho dificuldades em confiar nas pessoas e em relacionar-me com elas. as vezes sinto invadir-me uma raiva tão violenta,

Uma vontade de bater em qualquer coisa, causar a alguém este sofrimento. E quando a escuridão me envolve, só consigo pensar: que fiz eu para assim me rejeitares? Pronto, hoje faço anos! Mas isso é uma coisa que tu já sabias,

não é?

Estamos na Semana Cinco, o ponto mais profundo do trimestre, quando as águas agitadas que lambem o porto da Semana Um se afastaram e a calma lagoa das férias do Natal ainda não se avista. Por muito tormentosa que seja a viagem não há outro remédio se não enfiar o casaco de oleado, deitar as mãos ao leme e avançar.

Não é, evidentemente, que eu seja uma Ellen MacArthur, apenas outra professora exausta, com trabalho a mais e demasiados alunos, que se vai arrastando penosamente em direcção à Semana Dez. É nessa altura que os estudantes se vão embora, deixando atrás de si um rasto de papelada: relatórios a escrever, testes a corrigir, uma miscelânea burocrática de formulários a preencher, antes que chegue a Terra do Nunca das férias. Mas para isso ainda faltam muitas semanas. Estamos em meados de Novembro, só ensinei metade dos Métodos Históricos e, neste momento, encontro-me encurralada numa reunião da faculdade que, apesar de ter progredido durante praticamente toda a manhã, ainda tem cinco pontos importantes a debater na ordem do dia: falésias escorregadias a serem escaladas antes da corrida, encosta abaixo, para o ponto Diverso.

Estou a fazer-me de morta. Não sonharia sequer com um comportamento destes em Londres, onde entrava a vociferar nos debates sobre a política universitária, fazia perguntas directas e pertinentes aos conferencistas nos seminários académicos e até me divertia a criar subcomités sobre o procedimento nos exames. Mas, por qualquer razão, desde que aqui cheguei, as minhas opiniões calmamente ponderadas evaporaram-se e a minha autoconfiança encolheu.

Debruço-me para a frente e traço mais um rabisco no canto da folha com a ordem do dia. Um monstro de banda desenhada cobre neste momento quase todo o Ponto Um e os seus olhos protuberantes escondem a Lista dos Ausentes, os joelhos ossudos ocultam a nota de parabéns à Dra. Ruth Brown que teve recentemente um bebé, um rapaz. As margens da folha estão cobertas de espirais pouco limpas e uma fila de sapatos ornamenta o rodapé. É um comportamento infantil e espero que ninguém tenha reparado. Ergo os olhos, tentando concentrar-me. Bob Stennings, director do Departamento de Ciências Sociais, está a presidir à reunião. E um tipo grande e jovial: um geógrafo, cuja especialidade, antes de assumir este cargo, era o desenvolvimento dos recursos aquáticos na África subsaariana. Hoje está todo amarrotado numa camisa aos quadrados, calças de bombazina e gravata de malha. Vejo-o ali de pé, a perorar sobre os recursos da biblioteca, e imagino-o como um colonialista de calções de caqui deformados, meias pelo joelho e botas de montanha. A minha mente vagueia, num transe parecido com um sonho que desce sobre mim, enquanto os meus colegas vão falando monotonamente. Se cada um deles fosse um animal, ponho-me a pensar, que animal seria? Jenny Montgommery, a jovem azeda de vinte e poucos anos que é a estrela do departamento de História e que acaba de fazer um comentário espirituoso sobre as admissões de estudantes, é fácil: um gato siamês, a lamber presunçosamente as patas. John Stanley, o enfadonho director das pós-graduações é, sem sombra de dúvidas, um caranguejo a percorrer o edifício com os seus olhos exorbitados e as pernas arqueadas que lhe dão um andar especial. Bob Stennings é obviamente um labrador. E Julian? Espreito na sua direcção e percebo que, sub-repticiamente, ele esteve o tempo todo a observar-me. Por uma fracção de segundo os nossos olhares encontram-se, depois ele desvia os olhos. Que animal poderá ser?

Esta estratégia de me fazer de morta nem sempre compensa. Sempre que Stennings pede um voluntário para fazer isto ou aquilo, cruzo os braços e olho resolutamente para os meus joelhos. Mas agora ele está obviamente a tentar atrair a minha atenção e já não me é possível evitá-lo.

- Qual é a sua opinião, Cass?

Concentro-me, endireito-me na cadeira e retribuo-lhe o olhar inquisitivo com um sorriso que espero que tenha um aspecto brilhante e profissional. Não percebo por que razão me estou a comportar deste modo. Posso ser uma desmazelada crónica, com uma tendência para a bagunça, mas, pelo menos até às últimas semanas, no trabalho fui sempre uma colega disponível e entusiasta.

- É difícil dizer - balbucio, tentando lembrar-me de que coisa estava ele a falar - mas, em princípio, pelo menos, parece boa ideia.

Isto parece satisfazê-lo. À volta da mesa, as pessoas acenam que sim e a reunião prossegue. Volto a página da ordem do dia, decidida a parar com os rabiscos. Estamos no Ponto Seis, que é um documento bastante longo apresentado pela administração da universidade sobre segurança no campos. A ideia central parece ser que, devido a vários incidentes noutras universidades - uma rapariga violada em Oxford, um docente atacado em Leeds -, os estudantes e o pessoal deviam ter bilhetes de identidade.

- Então sejamos consequentes e ponhamo-los todos em pêlo para os inspeccionarmos antes de entrarem para as aulas - diz Julian. - Quer dizer, é possível que o primeiro ano esteja a planear assaltar a «Teoria Contemporânea e o Outro» e desviá-la para o Senado.

Há uma gargalhada quase geral, um cacarejar discordante de Madge Wernski, a americana da Política Social, uma criatura assustadoramente desprovida de humor que está a chupar os dentes e tem os braços cruzados sobre o vasto peito. Pelos olhares de censura que tem lançado a Julian desde o início da reunião, vê-se que a postura dele, lacónica e anti-politicamente correcta, não é do seu agrado. Mas Julian está lançado: - Ou que tal rusgas da polícia à faculdade? Para verificar se nenhum de nós tem cadastro por tráfico de drogas ou pornografia infantil. Deus nos ajude, podíamos corromper os alunos.

- Vocês, homens, podem rir à vontade, mas não é brincadeira nenhuma ser-se violado - interrompe rispidamente Madge Wernski.

Ao ouvir estas palavras, a faculdade reunida, que estava colectivamente afundada nas cadeiras e a rir à socapa com as piadas de Julian, engoliu em seco, endireitou-se e compôs a expressão.

- Quero dizer que uma rapariga foi violentamente atacada não noutro lugar qualquer mas exactamente aqui, no trimestre passado - sibila Madge. Reparo que o pescoço dela está coberto de manchas vermelhas e, quando olha para Julian, os seus olhos têm um brilho perigoso. - Esses bilhetes de identidade são importantes. É vital protegermos as mulheres na nossa instituição.

À volta da mesa repetem-se os acenos.

- Então aprovamos a moção? - propõe Bob Stennings. Todas as mãos se erguem num ápice e a reunião avança. Pouso

os cotovelos na mesa e apoio o queixo nos nós dos dedos, sorrindo aos meus colegas reunidos numa paródia de atenção, mas continuo incapaz de prender o meu pensamento ao assunto em debate. A lembrança da rapariga atacada tocou uma nota discordante e desagradável e, agora, estou a sentir palpitações nervosas. Se ao menos me conseguisse descontrair! Mas a minha mente continua a galopar em todas as direcções. Volto a página e olho sem ver para um longo memorando intitulado: «Revisão Periódica dos Mestrados: Como Proceder.»

Devia fazer umas férias, penso, ir a Londres ver Matt. Mas as nossas comunicações tornaram-se cada vez mais distantes e tensas. A minha visita a Londres foi adiada, outra vinda dele a Brighton cancelada, porque ele disse que estava com gripe. E agora, sempre que começo a marcar o número dele - o nosso - há qualquer coisa que me faz parar. Ele nunca ouve, é esse o problema. Se eu lhe fosse contar os vários incidentes que ocorreram durante as últimas semanas, o seu principal objectivo seria provar que estou enganada, que sou uma miúda parva, cheia de nervos. Os telefonemas que agora obedecem a um modelo previsível, começando cerca das seis da tarde e terminando às oito e meia, seriam uma coisa que ele descreveria como uma maçada, o desaparecimento do meu telemóvel e das chaves seria um descuido e a coisa que mais me assustou seria a tonta da Cass «outra vez a meter-se em sarilhos».

Aconteceu na passada quarta-feira. Cheguei tarde a casa, depois do seminário no departamento e, ao subir as escadas para o meu apartamento, tive um choque ao ver que a porta estava entreaberta.

Tinha a certeza de que a tinha fechado à chave ao sair de manhã. Na realidade, ao empurrá-la para entrar lembrei-me nitidamente de a ter batido com toda a força ao sair cheia de pressa.

A minha primeira ideia foi de que a casa tinha sido assaltada. Mas ao explorar nervosamente o apartamento não dei por falta de nada. O meu leitor de CD continuava na sala, a minha carteira que contém a totalidade dos cartões de crédito - estava sobre a lareira. E o Shakespeare - que de repente procurei num frenesim - continuava bem escondido debaixo da roupa interior na gaveta do meu quarto. A única coisa diferente - e ao pensar nisso ainda sinto um aperto no estômago - era o meu computador portátil. Não tinha trabalhado nele na noite anterior, disso tinha a certeza. Num raro ataque de arrumação tinha-o guardado na respectiva mala e posto junto à porta. Mas, quando entrei em bicos dos pés na cozinha vi que estava em cima da mesa, aberto e ligado, com o protector do ecrã a mostrar diferentes formas.

Não tive coragem de ir ver o que havia por detrás das espirais. Talvez tenha sido um disparate, mas subi num salto os degraus da cozinha, arranquei a ficha e desliguei aquela maldita coisa. Desde então não consegui voltar a ligá-lo.

Tê-lo-ia eu deixado ali? Tenho a certeza de que isto era o que Matt afirmaria. Que outra explicação poderia haver? Contudo, apesar de não lhe ter contado nada disto e de ele não ter tido oportunidade de responder, estou, percebo-o agora, cada vez mais irritada com a sua incapacidade de levar a sério os meus medos. Sei que não estou a ser justa mas, apesar disso, a fúria incomensurável e o sentimento de ter de fazer um corte permanecem.

Finalmente, a reunião acabou. Voltei para o meu gabinete e estou aninhada entre as pilhas cada vez maiores de papéis sobre a secretária. Desde esta manhã chegaram quatro novos e-mails. Olho para eles com uma languidez exausta.

Olá, Cass. Posso aparecer rapidamente hoje à tarde para falar da apresentação no seminário de hoje? Juro que não lhe tomo muito tempo.

Beijos da Beth

Clico em «Responder» a pensar no seminário da semana passada. Para além de Alec, cuja explicação dos textos da semana tinha sido bastante completa, Beth tinha sido a única pessoa a ler alguma coisa. Os outros coraram e agitaram-se nas cadeiras, quando interrogados sobre o que haviam feito. Natalie lera um livro «que era bastante grosso e que tinha uma capa verde». Estranhamente, não conseguia lembrar-se de nada sobre o seu conteúdo. Andy invocou uma gripe, outros uma imensidão de trabalhos que tinham de ser entregues com urgência para as cadeiras principais do curso. Noutra altura qualquer eu ter-lhes-ia dito das boas ou recusado, até, continuar a aula mas, no meu estado de espírito, a letargia deles era contagiosa. Inclinando-me para trás na cadeira, olhei-os de viés. «Vamos então dividir-nos em grupos e discutir a aula.»

Eles enterraram-se mais ainda nas cadeiras e alguns até resmungaram. Alec teve uma exclamação de impaciência e voltou-se com uma resignação desdenhosa para os vizinhos.

Senti um assomo de vergonha porque, até há bem pouco tempo, tinha tido orgulho na minha maneira de ensinar, mas agora parecia que só Beth se sentia entusiasmada com a perspectiva desta discussão. Deve ter visto a minha expressão porque, fitando-me lá do fundo da sala, piscou-me o olho em sinal de simpatia. Passados quarenta minutos, depois de os estudantes se terem reunido em grupos num silêncio absoluto durante vinte minutos e de nos termos arrastado por uma sinistra sessão plenária em que repeti parte da aula, os alunos saíram uns atrás dos outros numa fila desanimada e ela foi a única a ficar para trás.

- Não posso acreditar que eles não fizeram nada! - sussurrou, enquanto me ajudava a arrumar a mobília da sala. - Deve ser um pesadelo ver que todos são tão preguiçosos. E depois nem sequer falaram como deve ser sobre a aula! - Abanou a cabeça com ar moralista.

Fiz uma careta, cansada. Tinha tido aulas toda a manhã e doía-me a cabeça. - bom, nem todos. Pelo menos a Beth e o Alec trabalharam bem.

Ao ouvir isto ela limitou-se a dar uma risadinha e dirigiu-se em passo ligeiro para a porta. - Posso ir falar consigo mais tarde, digamos, por volta das quatro?

Mas eu tinha-me esquecido! Lembrando-me do recado culpabilizador que tinha encontrado na minha porta (Bem, devemos ter-nos desencontrado, deixe lá, beijos, Bettí, escrevo Óptimo, clico em Enviar e movo o meu cursor para a outra linha.

Para: Toda a faculdade

De: Admin. Central

RE: Segurança do campus

Conforme mencionado na imprensa desta manhã, uma estudante foi atacada a noite passada no bosque próximo do estacionamento do Edifício das Artes. Tendo este e outros incidentes anteriores em consideração, a universidade aconselha vivamente os estudantes e o pessoal a redobrarem a vigilância...

O meu coração dá um salto. Clico em «Apagar» e passo rapidamente à mensagem seguinte.

Cass,

Temos de discutir as notas para a avaliação do segundo ano de metodologias. Como sabe, o prazo acabou na semana passada.

Bev Cope

Bolas! Não tinha percebido que estava tão atrasada. E a minha co-examinadora é a Bev, uma professora de Estudos Críticos que ainda não conheço e que é famosa pela sua eficiência paranóica. Olho em volta do gabinete, a tentar localizar os trabalhos, e descubro que a maior parte deles caiu para trás da minha secretária. Tenho de os corrigir agora, antes do seminário desta tarde. Voltando a olhar para o ecrã, abro o mail mais recente.

Cara Dra. Bainbridge,

Gostava de saber se já corrigiu o meu trabalho. Já passaram quatro semanas desde que lho entreguei. Como sabe, este é o prazo máximo concedido aos professores para as correcções (como vem indicado no manual do estudante).

Cumprimentos, AlecWatkins

Esta última missiva faz-me sentir como se as tripas me caíssem ao chão. É como se Alec fosse o professor a admoestar o aluno indisciplinado. Sinto a garganta apertada. OK, ultrapassei o prazo, mas como é que ele se atreve a escrever-me nestes termos? Sem pensar clico em «Responder».

Corrigirei o seu trabalho quando tiver tempo. Devo acrescentar que não gosto do tom do seu e-mail. Cass Bainbridge

Clico em «Enviar», com as mãos a tremer furiosamente. Nunca na vida escrevi um e-mail tão seco a um estudante. Amável e disponível, são os meus atributos principais. Posso não ser uma erudita mundialmente famosa, mas sempre fiz questão de tratar os meus estudantes com uma empatia humana e não com a arrogância desdenhosa de muitos dos meus colegas mais bem-sucedidos. Mas há qualquer coisa em Alec que me põe gelada e impaciente. O modo, por exemplo, como se senta ao fundo da sala, a olhar convencido pela janela ou a abanar o pé com irritação quando os outros tentam falar, põe-me os nervos em franja. Parece estar sempre a criticar tudo. Dir-se-ia que vem aos meus seminários e aulas para apalpar a mercadoria, que sabe que eu não sou suficientemente capaz e que só está à espera do momento certo para atacar.

Acalma-te, digo para comigo. Alec não passa de um jovem desajeitado que precisa de reconhecimento. Tenho é de corrigir os malditos ensaios e ver-me livre de Alec e de Bev Cope. Colocando o cursor sobre os dois últimos e-mails, clico em «Apagar» e, de repente, uma outra mensagem pisca no ecrã. Não tem título, só o nome do remetente: loveandkisse$@juniper. Sem pensar no que estou a fazer percorro-a com o cursor.

A mensagem abre imediatamente.

Estou nos teus pensamentos.

Estou nos teus sonhos. y

Quando me chamares não estarei onde PENSAS.

Que disparate é este? Uma circular? Olhando para aquilo, perplexa, verifico que está endereçada apenas a mim. E vem com um anexo. E embora saiba que não o devo abrir, que pode conter um vírus e que a minha acção irresponsável pode fazer parar todo o campus, não consigo controlar-me. Clico em «Abrir» e fico a olhar ansiosamente para o ecrã. Há-de ser uma brincadeira, ou então qualquer coisa que Matt mandou, uma maneira de pôr fim ao nosso distanciamento.

O computador chia e zumbe, mastigando a nova informação. Abre-se uma caixa sobre o texto da mensagem e surge uma imagem granulosa. Estou à espera de um desenho, ou talvez de uma piada pornográfica com as cabeças de dirigentes políticos coladas sobre corpos em cio, o tipo de coisa que circulava muitas vezes no meu último emprego. Contudo, aquilo que está à minha frente é um close-up de uma cara. A testa é a primeira coisa a aparecer, rodeada de cabelo escuro encrespado. Depois vêm os olhos e... Meu Deus! Cubro a boca com as mãos, chocada. É um retráto meu.

Durante cerca de dez segundos, analiso a fotografia com o coração aos pulos. A fotografia é só da minha cara, não tem fundo nem nenhuma pista que me diga onde possa ter sido tirada, nem sequer o que trago vestido. Mas deve ter sido tirada recentemente, porque estas rugas à volta dos olhos só apareceram nos últimos meses. Estou a sorrir e tenho uma expressão vagamente satisfeita com a minha pessoa, como se fosse uma versão actualizada, de meia-idade, da Mona Lisa. Engolindo pesadamente em seco, apago-o. Não quero pensar em quem possa ter mandado aquilo.

Afasto-me do computador e, ajoelhando-me na alcatifa acrílica coberta de pó, tacteio o chão atrás da secretária para tentar recuperar os trabalhos. O e-mail deve ser uma brincadeira de estudante. É provável que todos os meus colegas tenham recebido a mesma coisa. Porém, quando finalmente me afundo na cadeira e olho para o primeiro parágrafo do primeiro ensaio, não consigo libertar-me de uma sensação enjoativa, de afundamento.

Que se lixe, não vou continuar a pensar nisto. Há cerca de quinze trabalhos empilhados à minha frente. Quase todos os estudantes optaram por responder à primeira pergunta da minha lista: Discuta a relação entre os métodos da historiografia e o conteúdo histórico.

Começo a ler o primeiro trabalho com a devida concentração. Virando a página contemplo a caligrafia redonda, ligeiramente infantil. Como sempre afirmei, nós, o proletariado académico, que não conseguimos obter subsídios de investigação suficientemente importantes para nos livrarmos dos rigores do ensino, podíamos poupar muito tempo se avaliássemos os nossos alunos meramente pela caligrafia. Para quê incomodarmo-nos a desbravar cinco ou seis páginas se tudo quanto precisamos de saber se encontra na primeira? Certa e pequena, com parágrafos curtos, equivale normalmente a um 15; a letra grande com volutas e com muitos sublinhados é normalmente um 10; os rabiscos muito complicados são mais problemáticos, porque tanto podem ser um chumbo como uma excelente nota. O Departamento das Normas para o Ensino Superior pode não aprovar os meus métodos, mas uma breve olhadela a este trabalho diz-me que será um 16. Chego ao fim do trabalho, escrevo uns comentários encorajadores e uns conselhos úteis e passo para o seguinte.

Quando chego à dissertação número dez, passaram-se duas horas e os meus olhos estão a arder. Finalmente, chego ao trabalho de Alec. Como é típico dele, este não revela nada, pois foi escrito num processador de texto. Agarrando na caneta vermelha, como se se tratasse de uma faca, seguro-a criticamente por cima do parágrafo introdutório. Para ser honesta estou à espera de que seja terrível. Mas, à medida que vou lendo, o que sinto é uma mistura ambivalente de prazer pedagógico e de ciúmes infantis. Estava à espera de que Alec se revelasse um daqueles alunos a que Matt, encantador como sempre, se refere como: «só peido e nada de consistente»; o tipo que gosta muito de fazer grandes tiradas nos seminários mas, depois, não é capaz de argumentar nada no papel. Mas aqui não é claramente o que se passa. Enquanto vou virando as páginas apercebo-me de que é um dos trabalhos de estudantes mais sofisticado que jamais li. É evidente que estudou tudo aquilo que constava da minha lista de leituras, mais alguns artigos e livros eruditos que eu nem conhecia. Na verdade, o nível da argumentação é tão elevado e os seus conhecimentos históricos e filosóficos tão vastos que fico arrepiada com a ideia de o ter sentado na sala a ouvir as minhas aulas e a participar nas discussões atabalhoadas dos meus seminários,

Engolindo o orgulho, chego ao parágrafo de conclusão belamente argumentado e escrevinho: «Excelente. É verdadeiramente brilhante. É evidente que analisou atentamente a matéria tratada até agora e acrescentou um contributo original ao debate. Estou extremamente bem impressionada.»

Respiro fundo, pouso o trabalho dele e pego no seguinte. Espero que Alec não se queixe da brevidade dos meus comentários, mas a dissertação é tão exaustiva que não consigo lembrar-me de nada que possa melhorá-lo. Talvez os meus elogios o apaziguem e ele venha a participar nos seminários de um modo mais positivo. É possível, mas não é muito provável. Olhando para as páginas que tenho agora entre mãos, vejo a letra de Beth, redondinha e ameninada. «Que há de feminista na elaboração da história oral?», leio. Ao contrário do que aconteceu com Alec, quero que este seja um bom trabalho.

A dissertação não me desilude. Beth escreve fluentemente com algum humor e, embora os seus argumentos me sejam perfeitamente familiares, rio-me da forma como ela dá a volta aos argumentos dos historiadores convencionais. «Em vez de comparar as histórias orais com as 'histórias tradicionais', porque não inverter o processo e comparar as últimas com as primeiras? Isto iria certamente minar as relações de poder que estão tão profundamente arreigadas à historiografia convencional.»

É uma questão absolutamente pertinente, mas há ali qualquer coisa que me incomoda. Faço um risco na margem, perguntando a mim mesma o que será. Mas, antes que consiga articular o pensamento, o telefone toca.

- Fala Bev Cope - ladra uma voz do outro lado da linha.

- Oiça, estou a correr entre duas aulas e parto amanhã para os Estados Unidos. Será que podemos fazer essas correcções por telefone?

Sinto a minha cara ficar sem pinga de cor. - Estou a acabar uma reunião com um aluno - minto. - Telefono-lhe daqui a cinco minutos.

Passados cinco minutos, depois de ter deitado uma olhadela ao resto do trabalho de Beth e, em seguida, ao de Andy que, felizmente, só tem duas páginas, cheguei a acordo sobre as notas com Bev. Para meu grande alívio, ela não se mostrou interessada em discutir o conteúdo das dissertações e as nossas notas são praticamente idênticas. Introduzo-as no formulário do Departamento de Exames e enfio-o na caixa do correio do nosso departamento. Devia ter dedicado mais tempo às correcções, mas espera-se que ninguém repare. Recuperando do meu inesperado surto de actividade, tento arranjar energia para telefonar a Matt quando oiço uma pancada na porta e Beth entra.

Não a via desde o seminário da semana passada e ela está mais magra, com uma cara cansada e preocupada. Durante um segundo penso que há qualquer coisa errada e lembro-me, com remorsos, da nota que ela espetou na minha porta, mas, mal me vê, a expressão dela anima-se.

- Olá!

- Olá, Beth. Acabo de responder à sua mensagem.

Ela pestaneja, como a tentar lembrar-se de que é que eu estou a falar e, depois, encolhe os ombros. - Ora, não se preocupe. Sei que deve estar até aos cabelos.

- E então, que se passa?

Ela detém-se à porta, com o saco a tiracolo. Parece mais tímida do que nas aulas, com uma expressão insegura e nervosa, como se o facto de me ver fora de contexto a deixasse pouco à vontade.

- Estava a pensar se não queria vir tomar um café comigo ou assim - murmura. - Quer dizer, se tiver algum tempo...

Olho para os trabalhos, depois olho pela janela para a tarde dourada de Outono e, de repente, sinto uma vontade enorme de estar lá fora com o sol a aquecer-me a cara, na companhia de alguém simpático e pouco exigente.

- OK, que óptima ideia.

Lá fora encontramos um banco e instalamo-nos, segurando aí garrafa-termos que Beth fez surgir milagrosamente. Também trouxe bolo de cenoura que ela própria fez. Engulo as fatias cor de laranja e húmidas gulosamente, enfiando a mão no cós das minhas calças de tecido indiano para arranjar mais espaço. Toda esta comida acrescentou pelo menos três centímetros à minha cintura.

Está um dia magnífico. Por cima de nós, as árvores amareleceram e o ar é cortante, gelado, com uma sugestão do Inverno que está a chegar, mas era capaz de passar aqui a manhã inteira, a apanhar o sol fraco de Novembro. À nossa volta passam grupos de alegres estudantes que se dirigem para as aulas; oiço grasnar os corvos no campos e, ao longe, o ruído de erva a ser cortada. O som lembra-me os Verões da minha infância: o pai com a máquina de cortar relva, David e eu a passar por baixo do jacto da mangueira.

- Espero que não tenha feito tudo isto para mim - digo, lambendo os dedos. Ao meu lado, Beth está a depenicar uma fatia fina, como um ratinho.

- Oh, adoro cozinhar. Estou sempre a fazer coisas. Não dá trabalho nenhum.

- bom, é delicioso.

Ela esmigalha o bolo entre os dedos e sacode as migalhas das calças de ganga para a relva. Esteve a fazer de conta que comia, mas, na realidade, não engoliu nem um bocadinho.

- Estou a impedi-la de trabalhar?

Abano a cabeça. - Para dizer a verdade, é um alívio fazer uma pausa. Estive a corrigir trabalhos e fiquei com os olhos um pouco cansados. O seu colega Alec Watkins encarregou-se de me lembrar que já estava atrasada.

Estou a ser injusta, bem sei, porque foi Bev Cope que me obrigou a meter mãos à obra, mas sinto um impulso nada profissional de partilhar a minha irritação para com Alec. As mãos de Beth pairam sobre as últimas migalhas; continua de olhos baixos, mas os lábios contorcem-se num sorrisinho de satisfação. - Ele às vezes é um chato, não é? - diz ela, levantando a cabeça e fitando-me. Tem os olhos a brilhar.

- Oh! Ele é óptimo - digo eu, já a tentar fazer marcha atrás.

- Acho que é sempre por parecer tão crítico...

Queria acrescentar mais qualquer coisa, mas calo-me. Não devia ter indicado que sinto uma animosidade pessoal contra Alec: ao fim e ao cabo, Beth também é uma aluna, não um dos meus colegas. Estou prestes a mudar de conversa quando ela acrescenta: - De facto ele é esquisito. Quer dizer, passa a vida na sala dos computadores a mexericar em tudo.

Levanto o sobrolho. - A mexericar em tudo?

Ela desata a rir, entornando o chá nas pernas. - Não é isso! -

Dá-me uma cotovelada nas costelas e cobre a boca com a mão, como uma menina apanhada em falta.

- Então que quer dizer com mexericar?

- São todos aqueles e-mails que ele passa a vida a mandar. E se passarmos ao pé dele para ir à impressora, desata aos berros a mandar-nos embora como se estivesse a escrever bilhetes a pedir algum resgate ou nalgum site de pornografia que não quer que a gente veja.

Limpa com as mãos o chá entornado e a sua expressão torna-se de repente séria.

- Ele causa-me arrepios, a sério!

Mas ainda não acabou. - É mesmo chato, sabe? É que não é só a maneira como ele se porta na sala dos computadores. É também o que diz sobre a sua cadeira.

Agarro com força no meu copo de plástico, prestando agora toda a atenção. Se calhar já devia mudar de assunto, porque de certeza que não vou gostar daquilo que vou ouvir, mas não consigo deixar de engolir em seco e perguntar:

- Por exemplo?

Beth faz um sorrisinho afectado. É claro que não faz ideia da profundidade da minha paranóia.

- Ora, sabe - diz ela, num tom ligeiro -, todas essas coisas que ele anda a dizer a seu respeito e a respeito da disciplina. Farto-me de tentar dizer aos outros que não lhe liguem, mas ele é muito bom a convencer as pessoas.

As palavras penetram-me na pele como setas. Sinto-me gelar, depois arder.

- Que quer dizer? - Tento manter-me calma mas, que humilhação!, a minha voz está toda trémula. - Que andou ele a dizer a meu respeito?

- Ora, coisas... Palermices. - Ri-se, como se aquilo não tivesse qualquer importância. Talvez esteja arrependida de ter tocado no assunto. De certeza que não faz a mínima ideia de quão pateticamente insegura sou. Finalmente, diz: - Só diz que as aulas estão mal articuladas e que são chatas. Parece que acha que era capaz de fazer muito melhor.

O seu tom displicente, quase trocista, diz claramente que não o leva a sério, mas isso pouco consolo me dá. É exactamente o que eu suspeitava, penso, sentindo-me profundamente desesperada. O estudante mais inteligente do terceiro ano intuiu a minha insegurança e está a espalhar a novidade: A Cass Bainbridge não é nenhuma luminária. Sinto como se tivesse levado um murro na cara: estonteada com a surpresa do ataque violento, mas com o hematoma já a instalar-se. Tento engolir, mas tenho uma bola enorme na garganta. Não devia importar-me tanto com a opinião de Alec, mas a verdade é que me importo, desesperadamente.

- Não se preocupe com ele - diz Beth, indiferentemente.

- Desculpe o termo, mas é um cagão.

- E que é que pensam os outros?

Observo o rosto dela, tranquilo. Para ela nada disto tem grande importância.

- Céus! - diz ela a rir. - Que interessa? Oiça, Cass, a sua cadeira é óptima, não se preocupe com isso. O Alec é um palerma. Pensa que é superior a toda a gente.

Mordisco o lábio inferior. - Calculo que ele possa ser um bocadinho aborrecido... - murmuro.

- Mexe com os nervos de toda a gente! Sabe como lhe chamo? Alec, o Andróide.

Contra minha vontade dou uma gargalhadinha para dentro do copo de plástico. Beth tem razão, penso, e a humilhação de ouvir críticas em segunda mão já se está a esbater. Ele não passa de um provocador. - Não lhe chama Alec, o Sabichão? - digo, em voz fraca.

Não tem graça absolutamente nenhuma, mas o comentário pueril faz-me sentir muito melhor, especialmente ao ver Beth rebentar de riso.

- bom - digo, permitindo afinal que o meu ego ferido leve a melhor sobre o meu bom senso profissional -, pelo menos tenho alguns estudantes simpáticos no grupo. - Dou uma palmadinha no joelho da Beth e levanto-me. Aumentou a vaga de estudantes que se dirigem para o Bloco D, as marés do dia controladas pela atracção magnética dos anfiteatros. Beth também se levanta. Só aqui estivemos uns dez minutos, mas durante este tempo, sem qualquer intenção, eu tornei-me sua aliada, as duas contra os sabichões deste mundo.

- Pois é - diz ela, com uma piscadela de olho. - E nunca precisará de se preocupar com o que eu penso.

Lanço-lhe uma olhadela. OK, minha menina, é verdade que baixei as minhas defesas. Mas não insistas. Contudo, o seu grande sorriso diz-me que esta subtileza caiu em saco roto. Ao virar-me para as escadas, quase espero que ela me dê a mão e me acompanhe aos saltinhos: «Vejam todos! A Cass é minha amiga!» Mas é claro que ela não faz nada disso, limitando-se a chilrear «Adeusinho!», afastando-se a correr pelo relvado.

São agora três e um quarto e, apesar das minhas boas intenções, estou dez minutos atrasada para o seminário. Tenho os meus apontamentos, a pilha de trabalhos corrigidos e notas e informação para distribuir sobre metodologia feminista. Levo numa mão um copo de plástico com um café que está a arrefecer rapidamente e na outra a papelada, a carteira e as chaves do gabinete. Sinto-me horrivelmente nervosa, com a barriga às voltas, enquanto subo as escadas, dois degraus de cada vez. Eu tinha consciência de que o curso não estava a correr às mil maravilhas, mas os comentários de Beth vieram confirmar os meus piores receios. E agora há uma probabilidade real de uma revolta estudantil, com Alec ao leme, de forquilha numa das mãos e tratado revolucionário na outra. Devia empreender uma acção drástica, mas sinto-me tão deprimida com as notícias desagradáveis de Beth que o meu cérebro entrou em curto-circuito quanto a ataques defensivos. Quando eu era estudante lia sempre tudo. Esta gente não faz nenhum; só sabem queixar-se. Agora, ao aproximar-me da sala, oiço um ruído abafado de vozes. Estarão a discutir os meus fracassos? Expulsando violentamente o pensamento do meu cérebro, escancare a porta, deixo cair alguns papéis ao chão e atiro o resto para cima da secretária. Faço isto há anos: que estupidez deixar-me minar por um único estudante.

- Desculpem o atraso... Obrigada por os apanhar, Beth, não se importa de os distribuir? Sento-me pesadamente e olho em volta da sala que se calou instantaneamente. Dez caras a olhar para mim. Para minha surpresa, não manifestam qualquer desprezo crítico mas um respeito atento. Talvez Beth estivesse a exagerar, penso com uma lufada de esperança, talvez esteja tudo bem.

- bom, vamos só esperar que a Beth volte para o seu lugar e começamos...

Olho em volta da mesa. Agora já sei os nomes de todos e tenho cada vez maior percepção das personalidades de cada um, as alianças e amizades envolvidas. Nicola e Emma, por exemplo, são amigas íntimas mas não gostam de Andy Dubow que está sempre a interrompê-las com as suas intervenções pesadonas. As antigas enfermeiras também se sentam sempre juntas mas pouco dizem, excepto se forem directamente interpeladas. Também elas costumam trocar olhares quando Andy fala. Alec não fala com ninguém. Neste momento está a abanar-se na cadeira, ao fundo da sala, a destilar insatisfação por todos os poros mal-humorados. Quando Beth passa por ele para se ir sentar, ele levanta os olhos e franze a testa. Ela faz de conta que não repara, de cabeça erguida. Contudo, quando se senta, espalha os livros à sua frente e procura qualquer coisa no saco, lança-lhe um olhar que quase parece de triunfo. Quando os olhares de ambos se cruzam, ele desvia os olhos com maus modos e resmunga qualquer coisa por entre dentes e, de repente, no meu pensamento surge algo que ainda não me tinha ocorrido: passa-se qualquer coisa entre eles.

Estranhamente, esta ideia é tranquilizadora. Inclinando-me para trás, observo a turma. Apesar do tempo anormalmente ameno para a estação, o aquecimento está ligado no máximo e a sala está quente e abafada, como um carro no Verão, com as janelas fechadas e cães no interior. Os casacos e camisolas inúteis estão pousados nas costas das cadeiras; livros da biblioteca amontoam-se nas mesas. Pigarreio e aliso os apontamentos.

- Muito bem - digo. - Para começar, aqui têm os vossos trabalhos corrigidos. Desculpem a demora.

Empurro os papéis por cima da mesa para os entregar aos respectivos donos. Quando chego ao trabalho de Alec, entrego-o a Natalie para que esta lho passe, mas ela dá-o a Beth, que o agarra sofregamente. Virando-o ao contrário demora-se a olhar para o que eu rabisquei nas costas e depois empurra-o lentamente para Alec: É realmente brilhante... Enquanto espera pelo seu trabalho, ele pegou naquilo que penso ser o de Beth. Mordendo os lábios, contempla-a desdenhosamente, depois atira-a para a mesa. Forço os meus lábios a um sorriso insípido.

- Alec, foi fantástico... Um dos melhores trabalhos escritos por um estudante que já li.

Os seus ombros estremecem e surge-lhe no rosto uma expressão que eu ainda não tinha visto: alívio, talvez, ou até alegria. Depois, aquela expressão apaga-se e ele arranca os papéis das mãos de Beth, vira-os e estuda os meus comentários. Talvez os meus elogios o amoleçam um pouco, penso miseravelmente. Entretanto, Beth debruça-se sobre o seu trabalho que recuperou de cima da mesa. Pensava que ela ia ficar satisfeita com os meus comentários encorajadores e o «Muito bom -» que recebeu pelo seu esforço, mas a cara e o pescoço cobrem-se-lhe de manchas vermelhas.

- Está tudo bem?

Ela volta-se e levanta os olhos e oferece-me um dos seus sorrisos de cem watts.

- Bem, obrigada, Cass.

- Óptimo. Então continuemos.

Dou uma espreitadela às minhas notas e constato que é a ela que compete fazer a apresentação desta semana. Graças aos céus que não é a vez de Alec: ele havia certamente de aproveitar a ocasião para sabotar toda a cadeira com um ataque selvagem a tudo o que se passou antes. Obrigando a minha mente a apagar a imagem de um Alec no estrado a apontar para um acetato intitulado Métodos Históricos: Práticas Ignorantes e Erros Elementares da Dra. C. Bainbridge, volto-me para Beth.

- Então, quer dar o pontapé de saída, Beth? Ia apresentar-nos um relatório sobre o progresso do seu projecto, não é verdade?

Sorrindo envergonhada ela levanta-se. Os outros pararam a análise dos trabalhos e estão a abrir os cadernos, olhando para ela com expectativa. Da sala ao lado chega o ruído de uma gargalhada. É uma das turmas de Julian Leigh e, pelo que é filtrado através da parede fina, estão a divertir-se à grande.

- Aquilo de que quero falar hoje - anuncia Beth à turma – é do meu projecto Vozes Feministas Através das Gerações. Ou talvez devesse dizer Herstory1.

Dá uma gargalhadinha, obviamente satisfeita com o trocadilho. Na realidade, é um dos clichés mais gastos da história feminista revisionista mas, aos seus olhos de noviça, deve parecer inteligente. Cruzando os braços, recosto-me na cadeira. É importante que me concentre.

- Tanto a Cass como eu nos sentimos excitadas com aquilo que estou a pensar fazer e que é, basicamente, entrevistar todas as gerações de mulheres da minha família sobre as suas atitudes em relação ao feminismo e as diferentes posições das mulheres na sociedade no decorrer das suas vidas. - Pega nos apontamentos com um floreado e continua: - Mas, primeiro, quero dizer algo acerca dos métodos. Quando se recolhe histórias orais é muito importante compreender a relação entre narrativa e formação da identidade.

Enuncia estas últimas frases lentamente, concedendo aos colegas o tempo de as escrever. Deixando cair um milímetro as minhas pálpebras, penso sombriamente em Alec. O que é, exactamente, que ele não gosta nas minhas aulas? Achava que o assunto era razoavelmente sólido e interessante; na realidade, nunca tive queixas quando o ensinei em Londres. E, para além disso, quem diabo pensa ele que é? Ao meu lado, Beth continua a falar:

- Como os colegas historiadores têm vindo a dizer há tempos, precisamos também de tomar cuidadosamente nota não só daquilo que as pessoas dizem, mas também daquilo que fica por dizer...

Ao fundo da sala, Alec emite um grunhido de desdém, certamente por causa do pomposo colegas historiadores. Talvez a gravidade com que Beth está a falar seja um pouco tonta, mas, seja como for, bombardeio-o com um olhar aborrecido.

- As lacunas e os silêncios são tão significativos quanto o conteúdo e os tropos do discurso informativo.

Tal como os estudantes, também eu devia estar a tomar notas rápidas e a pensar nos comentários a fazer à apresentação, mas está tanto calor na sala que sinto os olhos a fecharem-se. Talvez deva pedir a Alec que se explique no fim da aula, penso, hesitante. Ou talvez

 

1 Jogo de palavras, intraduzível em português, com o termo History (História), em que é feita alusão ao facto de «His» significar, isoladamente, «ele», e «Her», «ela». (N. do E.)

 

devesse ter a coragem de pedir ao grupo que faça uma avaliação espontânea da minha maneira de ensinar. Podia anunciar que íamos fazer uma sessão de «detecção de problemas». Assim, podia enfrentar as queixas deles. Podia organizar um grupo de trabalho com o objectivo de redefinir a cadeira em harmonia com as especificações dos alunos. Certamente o Conselho para o Ensino Superior acharia esta ideia altamente louvável.

Mas só de pensar nisso fico ainda mais cansada. Olhando desfocadamente para Beth, começo a pensar se não deveria mudar de profissão e fazer um curso ligado à aromaterapia ou a alguma coisa que tivesse a ver com comida - agricultura biológica, talvez? Podia ter cabras, fazer o meu pão...

- ...em muitas sociedades, por exemplo, as mulheres podem achar que certas questões, tais como as políticas ou religiosas, são do domínio dos homens...

- Desculpe? Posso interromper um instante?

Os meus olhos abrem-se num sobressalto: ao fundo da sala, Alec está a agitar a caneta no ar. Também deve estar afectado pelo calor, porque tem a testa brilhante. Beth calou-se e observa-o com um desdém gelado. Bravo, rapariga, penso, não o deixes abater-te.

- Pode deixar as perguntas para o fim da apresentação? - digo, secamente.

Ele franze o sobrolho, amuado. - Poder, posso...

- bom. No fim fazemos uma sessão de perguntas e respostas. Faço sinal a Beth para continuar, mas Alec interrompe. - A

questão é que - diz ele, soerguendo-se na cadeira como que propulsionado por uma energia ansiosa, um foguetão humano apontado à minha aula -, o que eu queria dizer é que penso que todos haviam de gostar de saber que, em vez de estarem para aí a tomar notas do que a Beth está a dizer, perdiam menos tempo se fossem consultar Society and History, volume 21, Julho de 1999. Ela está a citar o artigo de introdução, quase palavra por palavra.

Cala-se, ruborizado. A sala está num tal silêncio que, através da parede de separação, oiço claramente o que Julian está a dizer: «Esta é exactamente a contradição de que vos falava e que Derrida descreveu tão eloquentemente.»

Junto a Alec, Beth parou a meio de um gesto, como uma criança a brincar às estátuas. Os outros alunos deixaram de escrever e recostaram-se nas cadeiras, a olhar para ela com um interesse renovado. Pigarreio. Tenho de dizer qualquer coisa, rapidamente, para mostrar que ainda controlo as coisas, mas não sei que dizer. Um dos principais problemas é que, apesar de ter indicado Society and History, volume 21, como um dos livros fundamentais na bibliografia do curso, não o li. Dominando-me, fito Alec com aquilo que espero seja a surpresa de quem está ao corrente. - E o que o faz estar tão certo do que diz? - pergunto, em voz ácida.

Ele voltou a sentar-se e está a bater com a mão numa pilha de papéis à frente dele, com os lábios franzidos em desaprovação.

- Tenho aqui mesmo à minha frente uma fotocópia. Tenho estado a seguir o que ela diz, ponto por ponto. Passou à frente o ponto sobre a investigação comparada mas, neste momento, vamos na página quatro, segundo parágrafo.

Ao fundo da sala, Andy murmura qualquer coisa e o vizinho, um tipo apagado, de camuflado e sapatilhas, funga de riso.

- OK, obrigada. - Lanço um olhar frio a Alec. - É bom saber que alguém está atento. É óbvio que a Beth precisa de ser um pouco mais explícita sobre as suas fontes.

- Bem pode dizê-lo.

Desta vez vários alunos riem mas Alec não sorri. Cruzo os braços sobre o peito e faço um sinal a Beth para que continue. - Da próxima vez refira as fontes, Beth - digo eu, apaziguadora. Quero que todos percebam que ela só é culpada de uma certa negligência e descuido, não do odioso crime de plágio, relativamente ao qual todos os estudantes caloiros são avisados na primeira semana de vida universitária e que leva ao fracasso definitivo do curso. Apesar disso, há qualquer coisa que me está a irritar, uma ideia que zumbe no fundo da minha cabeça, como uma vareja encurralada. - bom, agora talvez possa passar directamente para a discussão do seu projecto.

Mas Beth não reage. Está de pé junto da mesa a fitar Alec de olhos esbugalhadas. As mãos agitam-se-lhe junto à cintura, como se estivesse à procura de uma espada imaginária com a qual pudesse abater o atacante. A sala está em silêncio, um silêncio pouco natural, que, a cada segundo que passa, se vai tornando mais pesado, uma enorme nuvem negra prestes a rebentar.

- Beth? ?

Ao ouvir a minha voz, Beth volta-se para mim.

-Sim?

Estou prestes a repetir o meu pedido para que ela continue, quando se faz luz. Dou, fisicamente, um salto, e os meus dedos tremem com o choque. Então, era isso que era tão esquisito no trabalho dela! Eu sabia que aquilo me soava a conhecido. Mas aquilo em que não tinha reparado era que, aparte alguns floreados, o autor original não era Beth, mas sim eu Olho para ela, boquiaberta e estarrecida e, mentalmente, vou folheando os parágrafos: Em vez de verificar as histórias orais, comparando-as com a «história estabelecida», em busca de veracidade, porque não inverter a abordagem e comparar esta última com as primeiras? Não é de espantar que eu tenha achado aquilo inteligente. Era o que eu tinha escrito como introdução à minha tese! Como podia ter sido tão completamente estúpida?!

- Porque não passa directamente à descrição do seu projecto?

- resmoneio debilmente. Sinto-me tão humilhada e tão amesquinhada que só me apetece rastejar para debaixo da mesa a gemer como um animal ferido. Percebo agora que li os ensaios demasiado à pressa e que estava demasiado ansiosa por dar a Beth uma boa nota e, cá por dentro, dou uivos de autocensura. Tenho de falar à maldita Bev Cope, explicar o meu erro e discutir com ela as medidas disciplinares que têm de ser tomadas. Como toda a gente que vier a saber desta história - e vai ser certamente a maior piada do trimestre -, ela vai considerar-me uma imbecil chapada. Porque, se a não detecção de um plágio ainda pode, às vezes, ser desculpável

- por exemplo, quando se está a corrigir os trabalhos de outra turma, como aconteceu agora a Bev Cope -, não detectar o plágio do nosso próprio trabalho é o mesmo que um médico não se aperceber que o doente está morto.

Beth respira fundo e olha em volta. A cor está a voltar-lhe à cara, a crise passou. - Peço desculpa - diz ela, com voz calma.

- Sei que baseei a minha introdução naquele artigo. Mas não tinha certezas quanto às referências. Também não sabia que era assim tão importante.

Olho para ela. Tenho a boca seca. - Tudo bem - respondo -, mas pode vir falar comigo depois do seminário? Há outra coisa que quero discutir consigo.

Outro grande sorriso deslumbrante. - Claro, Cass. Será um prazer.

Uma hora depois, ela está à espera em frente da porta do meu gabinete, encostada à parede e a cantarolar, muito satisfeita, como se não tivesse uma única preocupação neste mundo. Ao ver-me chegar, acena-me com ar de expectativa. Dirijo-lhe um sorriso nauseado. Sinto como se tivesse uma coisa grande e venenosa a bloquear-me a traqueia. Sem querer olhar para ela nos olhos, remexo desnecessariamente nas chaves, acabo por abrir a porta e entrar aos tropeções. Passei os últimos trinta minutos do seminário num estado de pânico mal disfarçado por causa daquilo que eu tentava convencer-me que tinha sido uma simples negligência, mas que ia, sem dúvida, transformar-me no objecto da galhofa de toda a faculdade. Felizmente, os outros estudantes estavam tão entusiasmados com o ataque de Alec a Beth que não se aperceberam do meu estado sombrio e apatetado. Passámos quinze minutos a discutir os planos de Beth, mais dez a analisar as questões que eu queria que eles estudassem para a próxima semana e acabei a aula dez minutos mais cedo. Mal consegui sair porta fora, corri até ao meu gabinete, na esperança vã de que os trabalhos corrigidos não tivessem ido para o Gabinete de Exames. Mas é claro que o tabuleiro do correio a enviar estava vazio e o meu plano de uma rápida correcção da nota de Beth foi por água abaixo.

- Ora bem - digo, enquanto Beth se empoleira na beira da cadeira em frente da minha. - Acho que chegou a altura de termos uma conversinha.

Ela sorri-me radiante, ainda sem perceber que eu estou preocupada. - Vai ser mesmo óptimo!

Olho para as calças, puxando distraidamente um fio de uma das costuras. - É por causa do seu trabalho - digo, de rajada. Sinto o coração a bater com mais força. É ridículo, mas é como se fosse eu a deixar mal Beth e não o contrário. Até ao seminário, eu quase esquecera que ela era apenas uma estudante: não só ela se tinha confiado a mim, como também eu me tinha começado a confiar a ela. E agora, com o que tenho para lhe dizer, tudo isso se vai desvanecer.

- Ainda bem que gostou - responde Beth. - Estava preocupada com a sua opinião.

Olho para ela de frente. Suponho que devia sentir-me zangada, mas ela está a sorrir-me com ar tão inocente que não deve ter consciência do seu crime. - A verdade é que lhe dei uma nota errada digo, lentamente. - Tenho muita pena, mas tem de me devolver o trabalho para eu a alterar.

Ao ouvir estas palavras, ela inclina-se para a frente, com ar intrigado. - Porquê?

Respiro fundo, tentando falar em voz calma. - Porque, como certamente sabe, copiou tudo aquilo directamente da minha tese. Aquilo soava-me a conhecido, mas só percebi durante o seminário. Em parte a culpa é minha por não ter percebido mais cedo. Mas sabe quais são as regras: tem de citar todas as fontes secundárias, caso contrário é considerado plágio. Por isso, agora tenho muita pena, mas vou ter de lhe dar uma negativa.

Estava a pensar que me ia sentir aliviada depois de deitar isto tudo cá para fora, mas a expressão de Beth faz-me sentir pior e não melhor. Parece abalada, de olhos esbugalhados de choque, o lábio inferior a tremer. Está tão pálida que pergunto a mim mesma se não irá desmaiar.

-Oh!

- De certeza que sabia - digo eu. Não era essa a minha intenção, mas falo num tom duro, de censura. Por amor de Deus, apetece-me dizer, até que ponto pensas que eu sou parva?

- Talvez ainda não saiba muito bem como se utilizam as fontes secundárias - continuo -, embora no terceiro ano ache isso surpreendente. com certeza que tem consciência de como isto é grave.

- Claro - murmura Beth. - Bem sei.

Para minha consternação, ela esconde a cabeça entre as mãos.

- Porque é que fez isso? - pergunto, mais gentilmente.

Está agora a chorar, de cara tapada pelas mãos, com grandes soluços que a sacodem toda. Uma parte de mim quer estender-lhe os braços e tranquilizá-la, mas qualquer coisa me impede de o fazer: fúria, talvez, por me ter obrigado a fazer figura de parva. Quando ergue os olhos, tem a cara toda molhada e uma gota de ranho pendurada do nariz. Limpando-a com a manga, murmura: - Foi um grande disparate. Juro, Cass, foi só um engano.

- Mas como? Certamente sabe quais são as regras, não é verdade?

- Acho que me enganei na versão que lhe entreguei - diz ela.

- Escrevi tudo assim, sem as fontes e essa tralha toda, só para me ajudar a ter tudo direitinho na minha cabeça. Depois escrevi outra versão, que era a que devia ter entregue.

Cala-se, continuando a abanar a cabeça e a fungar. Olho para ela, tão pequena e vulnerável, sentada na cadeira decrépita do meu gabinete. Queria acreditar nela, mas não tenho a certeza de que seja possível.

- A sério - diz. - Juro que não estou a inventar...

- Então, onde está a outra versão?

com isto, ela desata outra vez a soluçar, com os ombros a tremer de desespero. - Pensei que era a velha! Pu-la no lixo! Nem acredito que tenha sido tão estúpida!

Eu ia dizer: Eu também não! Mas, tendo em conta o meu próprio comportamento tão pouco inteligente, essas palavras pareceriam de certo modo hipócritas. Assim, continuo a fitá-la, a tentar decidir o que fazer.

- Que me vai acontecer? - pergunta ela.

- Não sei - digo lentamente. - O problema é que o trabalho faz parte da nota de curso que, como sabes, conta para o diploma final. E agora vou ter de recuperar o trabalho e alterar a nota.

- Então vou ter sarilhos ?

- É claro que vou ter de dizer ao reitor.

Formou-se uma bolha de saliva entre os seus lábios. Quando expele o ar, a bolha rebenta, deixando-lhe no queixo um fiozinho brilhante. Os ombros voltam a erguer-se e ela dá um suspiro tão fundo que parece o ar a sair de um pneu furado. - Oh, meu Deus!

- Ouça! Provavelmente terá de voltar a escrever o trabalho. Não é assim tão mau!

- Mas fica no meu currículo?

- Não sei bem. Suponho que não, se conseguirmos convencê-los de que foi mesmo um engano. Provavelmente, dependerá daquilo que o outro examinador pensar. É possível que tenhamos de recorrer a um examinador externo.

Por instantes julgo que ela vai recomeçar a chorar mas, em vez disso, domina-se, endireita-se na cadeira e olha-me de frente. Por favor, Cass - murmura. - Sei que estraguei tudo, mas correu-me tudo mal na semana passada e perdi-o. Quer dizer, não quero incomodá-la com tudo o que aconteceu, mas a verdade é que escrevi um rascunho do trabalho e, como disse, devo ter entregue a versão errada. Houve todas aquelas trapalhadas e não me sentia muito bem. Não era minha intenção entregar o trabalho assim. Foi só um engano estúpido.

Olho para o seu rosto desalinhado. O rímel escorre pelas suas faces, deixando marcados traços pretos que lhe dão o ar de um palhaço surreal. Continuo a enrolar o fio nos dedos, mas perco a paciência e arranco-o. Lá fora, o sol fraco de Inverno desapareceu e no campus começa a instalar-se a escuridão. Sinto-me invadida por um cansaço pesado, esmagador.

- Vai ter de voltar a escrevê-lo... - começo, mas Beth não me deixa acabar.

- Para ser sincera, Cass, neste momento não consigo concentrar-me em nada. Foi por isso que me meti neste sarilho. É aquela trapalhada toda, e se agora também arranjo sarilhos na faculdade, vai ser a gota de água, sei que vai... - Cala-se e a voz sobe-lhe de tom, perigosamente.

Debruço-me para a frente e pego-lhe na mão. Ela levanta os olhos para mim, num apelo.

- Que se passa?

- São os meus chamados pais. Está tudo a rebentar pelas costuras. Anda tudo num vendaval e acho que estão a usar-me como pretexto, como bode expiatório, ou lá o que é. E na semana passada, com tudo isto, não consegui pensar como devia.

- Estou a perceber.

- Por favor, Cass, só por esta vez, deixe passar. Prometo que não volto a fazer uma coisa tão estúpida.

Olho para a cara dela, pequena e esborratada, os olhos vermelhos, o cabelo num desalinho e penso que vou ter de telefonar a Bev Cope e ao Gabinete dos Exames, a pedir que me devolvam a folha das notas e a relatar o meu erro ao reitor. Penso que só estou neste emprego há cinco semanas e um dos estudantes mais inteligentes já está em campanha contra mim. Penso no meu desempenho ridículo na reunião desta manhã e na pilha de trabalho administrativo por fazer que está a invadir-me o gabinete como ervas daninhas no Verão. Penso no facto de estar aqui à experiência e em como Matt gostaria de me ver falhar. E, então, faço uma coisa que em Londres nem sequer me passaria pela cabeça: estendo a mão, pouso-a no cotovelo de Beth e oiço-me dizer: - Está bem, Beth. Por esta vez vou deixar passar.

Mas o meu dia ainda não acabou. Ainda tenho um workshop sobre narrativas pós-coloniais que está previsto para as cinco horas. Faltei na semana passada, a pretexto de uma constipação, mas, como esta manhã estava fresca que nem uma alface, não tenho outro remédio senão comparecer. Abotoo o casaco e esgueiro-me pelo campus em direcção ao anfiteatro onde vai decorrer o workshop. É o professor Maurice Salsberg quem o vai proferir, um historiador eminente que tem uma cátedra na Califórnia; e já estou atrasada. Desço as escadas que levam ao Bloco A a correr e, sob os meus pés, as folhas secas estalam. Há cinco horas atrás eu estava deliciada com o sol quentinho, mas agora que o sol se pôs, solto nuvenzinhas brancas ao respirar. O campus tem agora menos gente: em vez de se dirigirem aos magotes para as aulas, os estudantes com quem me cruzo vão agora na direcção contrária, ansiosos por sair dali.

Quando chego à porta do anfiteatro, abro-a e fecho-a devagarinho atrás de mim e vou em bicos de pés para a última fila. A sala está cheia, o workshop já começou. Na fila da frente vejo as cabeças de Jenny Montgomery e de Julian; um pouco mais longe, Madge Wernski está muito encostada a um asiático com ar distinto, de óculos sem aros e barbicha. É uma bela assistência. Devem estar aqui uns quarenta pós-graduados, calculo, e mais uns vinte e tal docentes. Embora, no início do trimestre, tenha informado o meu grupo de metodologias de que ia haver esta série de conferências, até agora só Alec tem aparecido com regularidade. Agora, ao instalar-me no banco, vejo que ele está sentado duas filas abaixo.

Franzindo a testa, espreito para o acetato que o professor Salsberg está a mostrar com grandes gestos. Não consigo lembrar-me do título da conferência de hoje, mas, durante as minhas investigações, recorri muitas vezes à sua monografia, internacionalmente famosa, Vozes Subalternas: a Alteridade e o Discurso da Exclusão na Nova Ordem Global, por isso estou interessada em vê-lo em carne e osso. É um tipo pequeno e intenso, de quarenta e muitos anos, com uma barba curta, olhos azuis profundos e um bronzeado californiano. Vestindo calças de ganga e com a camisa abotoada, o uniforme dos académicos de quarenta e tal anos, acaba de dizer uma piada fraca sobre o estado dos comboios britânicos e o público tem a amabilidade de reagir com um risinho.

Desenrosco a tampa da caneta e escrevo o nome dele e a data no bloco que trouxe comigo. Salsberg está a dizer algo de interessante sobre os fundamentos teóricos do seu trabalho: a análise clássica de Bromich sobre as estruturas do parentesco no capitalismo avançado, a obra de Foucault sobre os asilos de alienados, naturalmente, e, em seguida, o imenso cânone de teoria pós-estruturalista que nós, é evidente, conhecemos perfeitamente. Os meus colegas acenam que sim, com ar entendido. À minha esquerda a porta acaba de se abrir e Beth esgueira-se para dentro da sala, com ar de quem pede desculpa.

Enfia-se no banco ao meu lado e tira ruidosamente o casaco, ficando com ar muito atrapalhado. No entanto, a única pessoa que se volta com uma expressão de censura é Alec. Estou quase à espera que ele leve um dedo aos lábios, num gesto de «chiu», como um beato numa igreja cheia de crianças traquinas, mas, quando os olhos dele se focam em Beth, limita-se a fazer um ar zangado. Observo-o a voltar-se de novo com ar de censura para Maurice Salsberg e de repente lembro-me de uma coisa que me deixa gelada: ele viu o trabalho de Beth. Não me tinha lembrado disso, mas, agora, recordo que ele pegou nas folhas de papel, olhou para as páginas repletas de uma escrita cerrada e atirou-as para cima da mesa, com ar enjoado. Ele leu tanto e é tão desconfiado que é bem possível que tenha reparado que ela copiou o meu trabalho. E também deve ter reparado na nota que lhe dei.

Estremecendo, agarro na caneta com toda a força e copio o que Maurice Salsberg está a mostrar no acetato: Vidas Perdidas e Vozes Roubadas: as Crianças Anglo-indianas da Companhia das índias Orientais, 1750-85. Contudo, apesar desta fachada de concentração estudiosa, não estou a ouvir uma única palavra, porque os meus pensamentos entraram numa espiral de preocupação e remorso. Nunca devia ter consentido em deixar passar o trabalho de Beth, percebo-o agora perfeitamente. É verdade que ela estava num estado tremendo. E também é provavelmente verdade que o seu engano foi genuíno, pois o que tinha ela a ganhar com uma mentira tão flagrante e descarada? Mas, agora que já não a tenho a choramingar à minha frente no meu gabinete, não consigo lembrar-me por que razão fui tão benevolente para com ela.

Supondo que Alec reparou, de facto, que o trabalho tinha sido copiado da minha tese? Podia denunciar o caso ao vice-reitor ou até ao reitor e, nesse caso, o que aconteceria? Para me explicar, eu teria de escolher entre duas opções, ambas altamente indesejáveis. A primeira - que não tinha reparado que ela copiara o meu próprio trabalho - far-me-ia passar por parva; a segunda -que tinha reparado, mas que tinha deixado passar - ia tornar-me cúmplice da batota, numa transgressão inaudita no meu papel de pedagoga. Sentindo-me doente, vejo Salsberg através de uma névoa. Está de pé, diante do retroprojector, de forma que a sua silhueta se vê ampliada sobre o ecrã, e fala numa voz untuosa acerca de uma história que espera poder contar-nos. É a história de uma infância perdida, de racismo e de crueldade terrível. E crucialmente, pelo menos do ponto de vista deste humilde orador - aqui cruza as mãos sobre o peito e cala-se por instantes, como se fosse um daqueles oradores das reuniões de vendas cuja função é motivar os vendedores de banha de cobra e não o reverenciado académico, historiador do colonialismo britânico - trata-se de um estudo de caso par excellence do modo como o Estado silenciou, ou melhor, apagou literalmente, as histórias dos expropriados. Ao meu lado, Beth suspira, de queixo apoiado nas mãos.

  1. Aquilo que eu fiz foi, de certo modo, pouco convencional, mas a nível moral, humano, foi um acto correcto. Beth tenta aparentar um ar forte, mas está desfeita. Terá assim tanta importância ela ter-se esquecido de citar as fontes? A versão que deitou fora teria umas dez décimas a menos do que aquele que corrigi, o que constitui uma fracção mínima do resultado do diploma. E se Alec der com a língua nos dentes, recolho-me à hipótese A: ignorância embaraçada. Decidida a atirar tudo aquilo para o fundo da mente, obrigo-me a estar atenta à conferência.

- Tudo isto tem por base uma série de documentos que desenterrei na Biblioteca Britânica para um outro projecto sobre os anglo-indianos - diz Salsberg na sua voz arrastada. - É claro que nada é dito sobre as crianças reais. Nem sequer lhes dão um nome, são apenas catalogadas sob o título do respectivo pai. Mas aquilo que podemos deduzir é que, ao longo destes dez anos cruciais, uma percentagem surpreendentemente grande dos descendentes anglo-indianos dos administradores do império foi sistematicamente abandonada, tanto na índia como nas ruas de Londres, depois de as crianças terem sido arrancadas às mães, enviadas para Inglaterra e novamente abandonadas pelas suas alegadas famílias.

Comecei a transpirar. Este enfoque nas crianças é novo na obra do professor: o seu livro mais famoso tinha a ver com a relação entre a administração colonial e a representação da História, por isso não era disto que eu estava à espera. No anfiteatro silencioso e atento a sua voz tem uma qualidade encenada, dramática: é óbvio que o tipo está habituado a ser o centro das atenções. Quase nada se sabe das circunstâncias em que essas crianças foram enviadas para Inglaterra, diz-nos ele, cofiando a barba com ar interrogativo, como se se estivesse a debruçar-se sobre um jogo de xadrez. O que sabemos depois de aturados estudos, em que este vosso criado foi juntando cuidadosamente fragmentos de cartas, registos de algumas instituições de caridade que trabalhavam no leste de Londres e um relato verdadeiramente tenebroso de John Taylor, um anglo-indiano de oitenta anos de idade que vivia em Hackney em finais do século XIX, é que muitas crianças foram mandadas pelos pais para Inglaterra, possivelmente por razões de assistência social, mas, ao chegarem, deparavam-se com as suas meias-famílias bem pouco entusiastas na sua recepção. Abandonadas na área das docas de Londres e de Liverpool, muitas delas simplesmente não sobreviviam. Outras eram recolhidas por instituições de caridade e, como John Taylor, o seu futuro era serem criados, bufarinheiros ou vagabundos. Contudo, a investigação dos documentos das famílias implicadas - e ele conseguiu localizar algumas das crianças que faziam parte de listas de passageiros nos navios de Calcutá - mostra que as crianças tinham sido praticamente espoliadas da sua memória colectiva.

Cala-se, olhando em volta com uma expressão dramática, depois dirige-se pomposamente para o ambão, que é ligeiramente alto de mais para ele, e pousa as mãos sobre o mesmo. - Voltaremos a esta pequena questão do apagamento - diz -, mas, entretanto, retomemos John Taylor. O que temos aqui é um velho anglo-indiano, de pais desconhecidos, que consta dos registos dos asilos de pobres como vagabundo. Extraordinariamente, porém, a história da sua vida foi registada por uma tal Mary Bunbury, provavelmente uma missionária que trabalhava com os pobres de Londres...

Afasta-se do ambão e o seu tom de voz sobe, jubilante. Aquilo que recuperei é um longo relato das memórias do velho, de uma infância pobre vivida nas ruas do leste de Londres. Fala também de recordações anteriores, de coisas que, a julgar pelos nomes, são bengali. Naturalmente, um dos problemas é saber até que ponto se pode extrapolar a partir dessas memórias.

Naturalmente. Fecho os olhos e deixo as palavras fluir à minha volta.

- Analisemos com maior profundidade esta ideia da memória como interpretação. Até onde nos pode levar? Um dos problemas não será o facto de a história nos ser devolvida refractada, uma série de distorções em espelhos de feira?

À minha volta oiço murmúrios de aprovação; algumas pessoas estão simplesmente a ouvir, enquanto outras tomam notas. Rodo a caneta entre os dedos. Se a memória é interpretação, então quem sou eu para ter estes pensamentos? Ao fim e ao cabo, isto faz parte daquilo que ensinei durante todo o trimestre mas, neste momento, parece um conceito académico pouco sofisticado. É muito simples declarar numa conferência que tudo aquilo que sabemos do passado é distorcido, mas, se for realmente assim, então como podemos saber quem somos? E o que é que o eminente professor da cátedra de Estudos Culturais extrapolaria das minhas memórias?

Tendo dito isto, Salsberg está agora a descrever pormenorizadamente as lembranças do velho John Taylor. Contudo, eu já não consigo ouvir. Então, as nossas histórias são uma teia que tecemos para nos apanharmos a nós próprios. Mas, às vezes, as imagens são tão fortes que tenho a impressão de poder estender a mão e tocar-lhes. Será que são apenas construções mentais, tecidas por mim mesma? David e eu sentados no chão da casa de banho, com toalhas sobre as costas enquanto a mãe nos examina a cabeça à procura de lêndeas; comer com um tabuleiro no colo a ver o Blue Peter; o pão e o leite com açúcar que ela nos dava quando estávamos doentes. E, mais tarde, as suas mãos enluvadas a dar murros no volante, «Não aguento mais!» e o modo como os olhos dela ficavam vermelhos, mas não chorava. E os detonadores, que me enviam de volta para o passado: o cheiro doce e enjoativo das pílulas do frasco castanho, por exemplo, que pairava na casa durante meses; cerveja entornada, chávenas de plástico lascadas e o modo como as cortinas de veludo castanho se fechavam para encobrir a noite. E, muitos meses depois, «Love Will Tear Us Apart»; o fedor insuportável do peixe seco.

E depois o outro pensamento, aquele que eu tenho estado a combater desde que o humilde Salsberg começou a contar a sua história de crueldade, racismo e espoliação. Poderão de facto as pessoas ser espoliadas do passado? Ou voltarão os seus vestígios sempre a reaparecer? De repente, sinto-me a sufocar e levanto-me da cadeira. Tenho de sair daqui já, porque não consigo respirar. Agarro o casaco e a sala põe-se a andar à roda, vejo tudo desfocado. Talvez seja do anfiteatro que está muito abafado - anseio desesperadamente pelo ar fresco de Novembro. Mas, quando me levanto, o Salsberg cala-se a meio de uma frase e sinto uns cinquenta pares de olhos curiosos fitos em mim.

- Sim, minha senhora? - diz Salsberg em voz muito alta.

- Alguma pergunta?

Olho para ele, de boca aberta. Respiro ofegante e sinto os ouvidos cheios com sons que parecem ondas a quebrar. Todo o público está a olhar para mim, à espera de um comentário inteligente ou de uma pergunta interessante. - Não - respondo finalmente. - Dêem-me licença.

E então, passando à frente de Beth, liberto-me dos bancos estreitos e saio aos tropeções pelas portas giratórias.

Mal chego cá fora sinto-me melhor. Encosto-me ao cimento frio do Bloco A durante alguns instantes, a gozar o luxo do silêncio. Quando a minha respiração regulariza, puxo o fecho do casaco e começo a dirigir-me para o parque de estacionamento. Devo estar a ficar com gripe. Assim se explicaria por que razão sinto tanto frio e estou a tremer tanto.

Atravesso rapidamente o campus vazio. Parte da recente discussão sobre a segurança do campus teve a ver com a iluminação deficiente do recinto da universidade e, agora, percebo porquê. Quando nos afastamos dos edifícios e das ruas principais, e principalmente nesta noite sem lua, os caminhos mais pequenos conduzem a uma escuridão fúnebre. Viro à esquerda, desejando que não estivesse tudo tão deserto, e caminho depressa pelo caminho de cimento que conduz ao parque de estacionamento. Os seguranças que costumam andar por aqui a colar nos pára-brisas dos carros mal estacionados os seus auto-colantes de aviso, desapareceram agora todos e, dos estudantes com quem me cruzei há uma hora, nem um se avista. Podia ser meia-noite e não umas meras seis da tarde. Para além das árvores, oiço o rugir da via rápida. Passo por amontoados de folhas secas e ando cada vez mais depressa. Mal consigo ver o caminho.

Ignorando a crescente ansiedade que me domina, chego ao fim do caminho e desço as escadas que levam ao parque. Alguém vem atrás de mim. Oiço o ranger macio de solas de borracha no cimento e volto-me instintivamente, mas quem é deve ainda estar bastante para trás, porque só consigo distinguir o contorno das paredes do corredor e, a uns duzentos ou trezentos metros, os Blocos A e B iluminados no meio da escuridão, como navios oceânicos. É claro que é perfeitamente razoável que alguém venha a caminho do parque de estacionamento. Não há motivo para preocupações. Cantarolando em voz alta, passo pelos lugares de estacionamento que esta manhã estavam cheios de carros, mas que estão agora praticamente vazios, como uma boca à qual arrancaram muitos dentes a murro. Pelo som dos passos atrás de mim, a outra pessoa vem na mesma direcção. Estou constantemente a espreitar para trás, mas continuo sem ver nada. Aperto com toda a força as chaves do carro entre os dedos e avanço ainda mais depressa para o fundo do parque, onde deixei o Carocha, empoleirado num pequeno talude de erva ao lado de uma fila de arbustos. Devia ter chegado mais cedo esta manhã e apanhado o lugar óptimo junto à estrada bem iluminada.

Peço a Deus que a pessoa que vem lá atrás siga noutra direcção. De segundo a segundo, com aqueles passos sempre tão próximos, vou ficando mais alarmada mas, agora, estou até assustada de mais para me virar e confrontar a pessoa, por isso só me resta caminhar o mais rápido possível para o abrigo do meu automóvel. O coração quase me salta do peito. No escuro, procuro desesperadamente o carro. Parece que o homem está mesmo atrás de mim. Tenho a certeza de que oiço respirar e depois, muito nitidamente, vem o arranhar de um sapato de encontro ao alcatrão. Repito para comigo que não entre em pânico mas sinto formar-se na garganta um grito de terror à espera, à mínima provocação, de me sair pela boca fora.

Finalmente, avisto o Carocha. Corro para ele e forço a chave na fechadura. Mal esta abre mergulho lá para dentro e tranco todas as portas. Meto a chave na ignição e carrego com toda a força no pedal do acelerador e o carro derrapa no talude coberto de erva. A lama salpica os vidros e as rodas gemem, zangadas.

- Raios!

Engato a marcha-atrás e atiro o carro para o alcatrão e só agora me lembro de acender os faróis. Finalmente estou na posição correcta. Meto a primeira e obrigo-me a ir devagar. Quando as luzes do Carocha varrem o parque de estacionamento vazio, estou quase a chorar. Mas é claro que é como desconfiava. Não está ali ninguém.

Ao chegar a casa vou directa à cozinha, sento-me nas escadas e engulo um saco inteiro de donuts que tem estado provocatoriamente à espera na caixa do pão, desde o fim-de-semana. Como tão depressa que mal saboreio a massa fofa e doce, enfiando os bolos na boca com as mãos a tremer. Quando o saco chega ao fim, tenho geleia a escorrer-me pelo queixo e as mãos todas gordurosas. Depois, como se dois pecados se anulassem mutuamente, fumo três cigarros de seguida, ainda instalada nas escadas, tentando acalmar.

Estou a ficar um frangalho neurótico. E também demasiado gorda. Desapertando o botão das calças, apago o último cigarro no prato e levanto-me decidida. vou fazer aquilo que faço todas as noites por esta hora. vou ouvir as mensagens no atendedor.

A máquina está semi-escondida no átrio, a piscar com ar sinistro. À procura do botão de «play», engulo em seco, pouco à vontade. Nas últimas semanas houve tantas chamadas estranhas que não consigo escapar à sensação de que a máquina, tal como quando se lança a rede a um mar profundo, apanhou alguma coisa má.

A mensagem número um não é, como eu esperava, do meu fantasma, mas sim de Sarah.

- Sou eu - diz ela, numa voz estranha. - Olha lá, estás bem? Acabo de receber a tua mensagem de texto e fiquei um bocado preocupada. Podes telefonar-me?

A mensagem é esquisita: a voz dela tem um tom preocupado mas também formal e levemente paternalista, como se eu fosse uma novata no trabalho ou a au pair que lhe trata dos filhos. Não me lembro de lhe ter mandado nenhum texto, por isso ela deve estar enganada, mas não me sinto com forças para lhe telefonar a perguntar que quer ela dizer.

As mensagens seguintes são o silêncio habitual, o som de respiração e finalmente um clique. Depois, na mensagem número seis, há outra coisa, um resmungar abafado. Dura mais ou menos um minuto e em seguida é cortado. Talvez a pessoa esteja a falar de um telemóvel que ficou sem rede, ou então foi a Poppy que carregou nos botões do telefone de Sarah, sem esta dar por isso. Seja como for, o som põe-me os cabelos em pé. As mensagens número sete, oito e nove são outra vez só o clique do telefone a ser desligado.

Blip. As mensagens chegaram ao fim. Ponho-me em pé e arrasto-me nervosamente para o quarto. Não quero ficar a matutar na ideia do telefone ainda a tocar esporadicamente durante a noite. Talvez devesse arrancá-lo da parede. Quando chego à porta, espreito lá para dentro, desanimada. Nas últimas semanas deixei que a casa ficasse cada vez mais desarrumada. Observo a desgraça da minha cama por fazer, os detritos de chávenas de chá, revistas, livros meio lidos e caixas vazias de pizza que constituem uma semana de serões solitários. Por todo o lado está espalhada roupa suja, cada peça a marcar a minha aproximação à cama: as calças de tecido indiano da semana passada ainda estão estendidas junto à porta, onde as deixei cair; uma camisa e mais uma colecção pouco apetitosa de casacos e blusas estão atiradas para cima de uma cadeira. A cama está rodeada por uma semana de soutiens e cuecas usadas, deixados junto à ponta da almofada, como roupa de banhistas na praia. Até eu sou obrigada a admitir que a cena mete nojo.

Fecho a porta. Devia arrumar, mas sem Matt a espicaçar-me com a sua diligência doméstica não estou para maçadas. Volto a arrastar-me para o corredor e apanho um monte de jornais velhos que se acumularam junto à parede. O quarto de arrumos é na porta ao lado. vou enfiá-los lá.

Abro a porta, entro no espaço minúsculo e espreito no meio do escuro para as caixas das mudanças, que Matt e eu pusemos ali no fim do Verão. Atirando os jornais para cima de uma das caixas, avanço para dentro do quarto. Reparo que lá ao fundo há um armário de parede. É raro vir aqui e mal dei por ele nas minhas incursões anteriores.

Aos apalpões à parede, vou avançando pelo quarto. Talvez possa arrumar aqui alguns dos livros, transformar isto até num escritório. Agora reparo noutra coisa: no alto das paredes, por cima do papel rosa-pálido, corre um friso de coelhinhos a saltar. Parece ter sido feito à mão, em stencil, um trabalho pouco perfeito de «faça você mesmo», que está agora a acumular pó e teias de aranha. Penso que vou ter de o pintar e abro as portas do guarda-roupa.

Levo alguns segundos a focar correctamente aquilo que está lá dentro. A princípio parece ser uma série de grades de madeira, postas a direito como as grades de uma cela de prisão. Espreitando por entre elas, do outro lado, está uma cabeça decepada. Pisco os olhos num choque repentino, depois percebo que se trata apenas de um berço de bebé, arrumado de lado. Metendo uma mão por entre as grades, puxo cá para fora uma grande boneca de trapos - a minha cabeça decepada. Esta sorri alegrimente para a sala escura: cabelos de lã amarela e bochechas pintadas de vermelho captam o brilho da luz do átrio. Está ligeiramente húmida. Atiro-a outra vez para dentro do armário, onde aterra ao lado de um candeeiro infantil, decorado com imagens do Humpty Dumpty. Ora, então isto era um quarto de criança. O Doug e a Jenny deviam ter um filho. Fecho as portas, sentindo-me aborrecida sem grande razão. Mas a verdade é que bem podiam ter arrumado o raio das coisas deles.

E agora o telefone está a tocar outra vez. Já chega. Corro para o átrio e agarro violentamente no auscultador.

-Sim?

Há uma pausa e depois uma voz feminina diz num tom fraco:

- Cass?

- Sim.

- É a Beth.

Suspiro de alívio. Deve estar num bar, porque consigo ouvir, em fundo, o zumbido das vozes e uma batida musical distante. É tarde que se farta para estares a telefonar a estas horas, menina, espero que tenhas uma boa razão.

- Beth! Que aconteceu?

Outro longo silêncio, entre o qual distingo o ruído de copos e uma gargalhada ocasional. Algo está errado, penso, aconteceu qualquer coisa.

- Estou bem - diz ela. - Estou a telefonar do trabalho.

- Do trabalho?

- Deste estúpido bar.

E agora tenho a certeza de que ela está a chorar porque oiço fungadelas e o esforço para conter os soluços. Tive um dia muito longo, mas, ao lembrar-me da nossa conversa durante a tarde, o meu cansaço desvanece-se e sou outra vez a Cass de quem gosto: interessada e bondosa, a professora a quem os estudantes recorrem.

- Ainda aí está? - digo em voz doce.

- Cass? - murmura ela.

- O que é?

- Desculpe incomodá-la assim. Não pude telefonar mais cedo porque tinha de fazer o meu turno e agora já é tão tarde...

- Não faz mal. Diga-me só o que aconteceu.

- Por favor, Cass, posso ir ter consigo?

- Claro, mas que aconteceu?

- Eu... - E agora a voz dela vai-se abaixo e ela rebenta em lágrimas. - Oh, meu Deus, Cass, eles puseram-me na rua.

O bar onde a Beth trabalha é um estabelecimento grande que cheira a cerveja e fica na marginal, enfiado por baixo das arcadas manchadas com excrementos de gaivotas. Esta não é a parte da cidade que está na moda, aquela em que, ao longo da praia, se encontram clubes e lojas chiques; é o lado errado do molhe - uma série de cafés entaipados, passeios salpicados de cocô de cão e pilares cobertos de musgo húmido em frente de um minigolfe abandonado e de uma fila de carrosséis tapados por lonas. Um pouco mais adiante fica o café onde levei a Beth, no primeiro dia do trimestre.

Ao aproximar-me oiço a batida da música de dança e sinto a multidão suada apinhada lá dentro. O bar parece um ser vivo, um animal que pulsa e exala o vapor do seu hálito quente para o ar da noite. Talvez tenha sido outrora uma casa de chá da época de Eduardo VII, mas, agora, as grandes janelas panorâmicas foram entaipadas e cobertas de cartazes de bandas e de disc jockeys e as portas de aço reforçado estão guardadas por uns brutamontes vestidos de preto e com auriculares, que olham para mim impassíveis, a mascar pastilha elástica, quando passo a correr por eles.

Beth disse que esperava cá fora, mas não a vejo em parte alguma. É quase hora de fechar e grupos de jovens vagueiam pelo passeio e atravessam para o outro lado da larga estrada marginal. A noite de Novembro está gelada: os foliões juntam-se muito e embrulham-se bem nos casacos. Apesar de estar escuro, tento vê-los bem, na esperança de que algum seja Beth. Eles devolvem-me displicentemente o olhar, avaliando-me num abrir e fechar de olhos: velha de mais, não faz parte desta cena. Também não estou convenientemente vestida para uma noite tão agreste. Atravesso a rua a correr: preciso de chegar rapidamente ao abrigo do meu carro. Aliás, não devia sequer estar aqui - devia era estar enfiada na cama e não em missões de caridade. Levanto os olhos para o perfeito círculo prateado da lua, para o clarão amarelado do céu da cidade. A verdade é que me soube bem o pretexto para sair do apartamento.

E então vejo-a, agachada no passeio. Tem a cabeça pousada nos braços como se estivesse a dormir e o cabelo bate-lhe nos joelhos. Deve estar gelada: veste apenas umas calças largas e uma T-shirt curta - a farda académica a rigor. Está sentada exactamente por baixo de um candeeiro cheio de arrebiques e naquela luz artificial a pele dela parece azulada, cheia de manchas. Quando atravesso a rua, ela levanta a cabeça. Tem os olhos inchados e vermelhos e a cara pastosa. Ao ver-me sorri de alívio e levanta-se a cambalear. Deve estar muito sozinha, apercebo-me de repente, ao vê-la avançar para fora da luz. Se assim não fosse, porque se veria obrigada a recorrer a uma professora nesta hora de necessidade e não aos amigos? Fico cheia de pena dela e caminho mais depressa, de garganta apertada.

Quando chego junto dela, passo-lhe um braço pelos ombros e conduzo-a de novo para o outro lado da rua. - Desculpe a demora. Não conseguia pôr o carro a funcionar. Sente-se bem?

Ela acena que sim. - Não devia tê-la incomodado, mas não me consegui lembrar de mais ninguém a quem telefonar... acabei agora o meu turno e, de repente, aquilo bateu-me...

- Não se preocupe com isso.

Ela está cheia de frio, com a pele gelada e sem vida. Quando os meus dedos lhe apertam o braço reparo como é magra. Na universidade disfarça a magreza com as suas roupas de skatehoard, mas agora sinto o frágil contorno das costelas dela como as de um passarinho magoado. Precisa de ser alimentada, colheradas de comida enfiadas na sua boca, como Sarah a alimentar a Poppy. Encostada a mim, treme com arrepios intensos, profundos.

- Nunca me tinha dito que trabalhava num bar - digo, tentando fazê-la falar.

- É um trabalho merdoso.

- De facto, deve ser difícil fazer isto e estudar ao mesmo tempo.

- Se não fizesse isto, como é que eu arranjava dinheiro?

Levo-a até ao carro, a pensar no quanto mudou a vida de estudante desde os meus tempos, quando até os tipos das classes mais altas, aqueles que participam em caçadas e usam panamás nas festas da Semana de Maio recebiam uma bolsa. Beth continua calada, a contemplar o mar iluminado pela lua e as cintilantes luzes de néon do molhe. Passado um bocadinho deixo-me de conversa fiada e, despindo o meu pesado casaco de couro, ponho-lho às costas. Quero embrulhá-la em cobertores, dar-lhe whisky quente e mel.

Quando chegamos ao Carocha, ela enfia-se no banco da frente sem um murmúrio.

- Os seus pais adoptivos sabem onde está? - pergunto, debruçando-me sobre ela para fechar a porta. Talvez não seja uma pergunta muito diplomática, mas quero saber se ela foi realmente posta na rua ou se fugiu. Ela vira-se, fitando-me com um olhar chocado. Até que enfim que lhe veio alguma cor à cara! - Não são meus pais! - atira ela. - E deixaram isso absolutamente claro!

Tapando a boca com o punho fechado, Beth sacode violentamente a cabeça e afasta os olhos do meu olhar inquiridor. Ligo a ignição e meto pela marginal escura. Suponho que devia sentir-me irritada com a sua recusa de me contar o que aconteceu, depois de eu me ter oferecido tão amavelmente para a ir buscar, mas passei tanto tempo sozinha nestas últimas semanas que a minha principal emoção é alívio. Este é um papel em que me sinto à vontade, a Cass interessada e bondosa, não aquela pessoa paranóica, com medo até de atravessar um parque de estacionamento. E, se há alguém que precisa realmente de apoio, esse alguém é Beth. Continua enrolada no banco da frente, com o rosto tenso de infelicidade, repuxando os jeans com os dedos. Quando paro diante do apartamento, ela olha-me com ar perdido e murmura: - Pode sempre deixar-me na estação. Não quero incomodar.

- E para onde ia?

- Não sei.

A voz dela faz pena, como se a rejeição fosse uma coisa que ela toma por certa.

- Por amor de Deus, rapariga - exclamo, apertando-lhe o braço animadoramente -, não seja tão ridícula! Esta noite fica comigo e amanhã havemos de encontrar qualquer coisa. OK?

Dentro de casa afadigo-me a fazer café, a procurar a minha camisola mais quente nas malas que ainda não desfiz e que enfiei para um canto do quarto, a tentar pôr a funcionar a lareira de imitação. Beth está sentada de pernas cruzadas no chão da sala, a aquecer as mãos muito brancas numa caneca. Metida na minha camisola, com a cara sombria e os ombros trémulos, parece dez anos mais nova do que a jovem exuberante a que eu estava acostumada: uma menininha solitária.

- bom - digo eu, sentando-me junto dela -, quer falar do assunto?

Ela faz uma careta e bebe um gole de café. - É muito tarde murmura. - Precisa de ir para a cama.

- Não faz mal. De qualquer forma, nunca durmo.

Estendo um braço e faço-lhe uma festa ao de leve no ombro. O que realmente me apetece é estender-lhe os braços e apertá-la muito. Mas, no momento em que lhe toco, ela retrai-se. Passado um bocadinho, murmura: - Nunca devia ter-me convencido de que eles eram a minha família.

Deixo passar uns segundos e pergunto docemente: - Que aconteceu?

- Ora, sabe, a merda do costume. É claro que nunca podia comparar-me com a verdadeira filha deles.

- Que é que eles queriam que fizesses?

; Ela encolhe os ombros, indiferente, como se já não tivesse importância. - Só que eu fosse mais como ela e menos como eu. Um maldito anjo. Sempre a melhor da turma, brilhante em tudo, blá, blá, blá.

- Deve ser tão difícil para si.

Outro resmungo de desdém. De repente parece muito mais velha, com a cara velada por uma fúria que eu nunca lhe tinha visto.

- Pois, não são meus pais. Nunca foram e nunca serão. Sou como a Cass, estou completamente só.

Cala-se, cobrindo a cara com as mãos, enterrando os dedos na juba do cabelo. A camisola descai-lhe sobre um ombro e reparo, chocada, que tem os braços cobertos de manchas vermelhas e roxas, o princípio de hematomas. Quando ergue os olhos, a sua cara não tem qualquer expressão. - A culpa é minha - diz ela, numa voz átona, como se estivesse a recitar os nomes de uma lista telefónica ou um rol de compras. - Cometo sempre os mesmos erros, toda a minha vida.

Há uma longa pausa. Estendo a mão e pego na dela com ar decidido, segurando-a. Ela ergue a cabeça e o nosso olhar volta a encontrar-se. - Ouça - digo eu. - Tem mesmo a certeza de que eles não a querem mais? Se calhar, o que é preciso é conversar com eles sobre tudo isto.

Soa muito fraco, exactamente o tipo de coisa impensada que diria alguém que gosta de varrer os problemas dos outros para debaixo do tapete. Fico logo envergonhada, mas Beth não me dá a resposta brusca que mereço. - Já não se resolve com conversas diz ela, baixinho.

Seguro entre as minhas mãos os frios dedos dela, concentrando-me a fundo. Tal como quando tomámos o pequeno-almoço, no início do trimestre, a história dela faz-me sentir vergonha. Pelo menos eu tive um bom começo, um pai, uma mãe e um irmão muito meus; nunca foi questão de eu não pertencer. Não, foi muito mais tarde que as coisas começaram a correr mal.

- Também houve outras coisas - está Beth a dizer. - Há anos que eu devia ter percebido e ido embora. É exactamente como em todos os outros sítios.

- Outros sítios?

- Sim, sabe, as outras famílias de acolhimento. Mas nesta é que estive mais tempo, por isso fui-me deixando ficar, sabe, com esperanças...

Cala-se. Olhando para a pele dela sem rugas, os olhos pálidos e o cabelo sujo, sinto uma tal tristeza que parece que a sua vastidão pesa sobre mim e quase me funde com o chão, tal é o desgosto. com esperanças de que eles gostassem mais de si? - murmuro.

Tenho a certeza de que ela vê nos meus olhos aquela imensa saudade que, normalmente, consigo disfarçar. Porque é que é sempre tão importante? Porque é que não consigo escapar?

- Sim - diz ela, lentamente - É exactamente isso. Perscruta-me o rosto, de uma forma terrivelmente intensa e séria, como se quisesse descobrir que mentiras haverá por detrás dele. Depois, de repente, eu desvio os olhos e ponho-me em pé, desajeitadamente.

Sinto-me inexplicavelmente perturbada. Ela viu qualquer coisa que eu não sabia que estava tão exposta.

- vou mudar os lençóis na sua cama - digo, afastando-me em direcção à porta. - Pode dormir nofuton do meu quarto.

Passada uma hora estou outra vez sozinha, de pé, desalentada, junto à janela. Beth tomou banho, bebeu um pouco de chá e está no quarto, aconchegada debaixo do meu edredão. Eu devia estar a dormir mas nem vale a pena tentar, por isso arrasto-me pelo apartamento, sem saber muito bem o que fazer. Sinto-me como um balão cheio de mais, prestes a rebentar com um estrondo devastador. A presença de Beth desencadeia em mim qualquer coisa que eu tentei manter escondida durante muitos anos. Será a sua intensidade? Ou simplesmente porque ela me faz lembrar eu própria? Ando às voltas de um lado para o outro, num esforço para me descontrair. Olhando retrospectivamente para estas últimas semanas, esta cena agora parece-me estranhamente inevitável, como se eu fosse um actor involuntário de uma peça urdida por outros. No entanto, sou absolutamente incapaz de dizer exactamente quem são os outros ou qual vai ser o desfecho da peça.

Regresso novamente ao quarto. Enfiada debaixo dos cobertores da minha cama, Beth dorme. Dirijo-me em bicos de pés para o futon, agacho-me ao lado dele, de forma que a minha cara está quase ao nível de Beth. A cabeça descansa nas mãos dobradas e a sua expressão é tranquila. com o seu cabelo dourado, as longas pestanas e a pele pálida, ela parece-se com um daqueles anjos vitorianos que guardam os mortos no cemitério de Highgate, com as suas harpas de pedra meias destruídas e as longas fitas de hera. Eu não devia fazer isto, mas estou agora a estender a mão e a pousar os dedos na face dela, percorrendo a pele macia até aos lábios cor-de-rosa. Que aconteceria se aproximasse ainda mais o meu rosto e lhe aflorasse os lábios com os meus?

Ergo-me de um salto, horrorizada. De onde raio veio esta ideia? Fico por instantes parada, muito quieta, no meio do quarto, de olhos fechados, tentando controlar-me. A rapariga é tua aluna, nem mais nem menos. Nada do que está a acontecer aqui tem a ver contigo e nada vai mudar. O passado passou. Dá meia-volta e sai desse quarto.

Mas é demasiado tarde. Subi a bordo deste comboio com os seus assentos rasgados e os graffiti incompreensíveis e, quer lá queira ir quer não, ele vai levar-me ao meu destino.

- Por favor deixa-me sozinha... - gemo e volto a correr para a cozinha, à procura de chocolate. Mas mesmo enquanto descubro a minha reserva de Mars e, arrancando o papel, enfio um na boca, estou a mergulhar através do espesso sedimento de todos aqueles anos, sem tempo para vir ao de cima respirar.

11 de Novembro de 1979. Os Dreadheads acabam de cantar a segunda canção da noite e eu estava mais bêbeda do que nunca. Não era a embriaguez do conhecedor que sabe interpretar os sinais, mas a queda de cabeça de um inocente. Assim, naquele triste estado em que me encontrava, emborquei a lata de cerveja e, apesar de sentir tudo a andar à roda, quase a chegar à náusea, continuei a dançar. Se fechar os olhos e me esquecer de onde estou, sou capaz de me ver com o pormenor de um retrato: Cass, quinze anos, com o top roxo de franjas, estilo hippie, calças de ganga e botas de cowboy, os olhos muito pintados e a cara rechonchuda. «A pequena Miss Piggy», chamava-me a minha mãe por essa altura. Ela considerava o meu peso uma afronta, não suportava a fraqueza que lhe estava implícita. Eu, pelo meu lado, servia-me dele como de uma ferramenta destinada a aguilhoá-la para a fazer entrar no confronto que, cada vez mais, era o teor das nossas relações. Nessa altura, a menina que fazia castelos de areia na praia já não existia. Provavelmente, eu já o sabia nesse tempo, mas ao longo daqueles anos as coisas tinham-se vindo a confirmar: a minha mãe nunca me daria aquilo que eu queria. E agora, mais do que tentar conquistar-lhe alguma atenção, um exercício semelhante a arrancar uma lapa reticente de um rochedo, a minha táctica tinha-se tornado mais agressiva.

Talvez fosse por isso que eu me tornara amiga da Billie, que ela detestava; talvez por isso estivesse nesta festa, onde ela me proibira de ir; talvez por isso me tivesse embebedado. Seria certamente conveniente poder culpá-la. Do mesmo modo, aqueles anos teriam sido mais fáceis de suportar se, de facto, eu não me conseguisse lembrar de nada do que tinha acontecido naquela noite. Mas a verdade é que está tudo a voltar.

Os Dreadheads tinham recomeçado a tocar, mas eu já estava tão embriagada que, se em vez de um grupo heavy metal estivesse no palco um rebanho de vacas a tocar guitarra, duvido que tivesse notado. Tinha-me perdido da Billie e do grupo dela há mais de uma hora, mas não me importava. Estava junto ao palco, a dançar furiosamente. Hoje esta recordação enche-me de vergonha, mas a minha emoção principal era de extrema satisfação pelo aspecto que devia ter: uma miúda rock-and-roll, a dançar, livre e sexy. Eu devia estar a agitar-me com grande exuberância, porque as pessoas não paravam de se voltar, não, certamente, para olharem maravilhadas para a fantástica miúda que eu me imaginava ser, mas para rirem à farta da adolescente gorda que, tão obviamente, tinha perdido a cabeça.

Havia um tipo, sobretudo, que não parava de sorrir, de admiração, pensava eu. Eu devolvi-lhe o sorriso, dizendo-lhe com um gesto que se juntasse a mim. Era bom ser, por uma vez, o centro das atenções, poder pôr em prática as minhas proezas sexuais até agora nunca experimentadas. Abanando as ancas, penso que até lhe posso ter feito uma piscadela de olhos provocatória. Rindo, o homem separou-se dos amigos e veio postar-se à minha frente. Não era um adolescente como os rapazes do liceu a que eu estava habituada, com a sua vaga penugem e o seu acne, mas sim um adulto, de vinte e muitos anos ou até trinta. O cabelo comprido batia-lhe solto nos ombros e vestia uma T-shirt dos Motorhead, que se lhe colava ao peito em manchas húmidas. Durante cerca de um minuto gingámos em conjunto, bem-dispostos. Os Dreadheads tinham acabado precisamente de tocar «Hot Rod Chick», a multidão gritava por mais e ouvi os acordes iniciais de «Lady of the Night», a única tentativa melódica do repertório deles. À nossa volta as pessoas acendiam os isqueiros e ondulavam sentimentalmente, ao som do sintetizador. Parei de dançar, tentando manter-me direita quando, por momentos, emergi à superfície. Tenho de encontrar a Billie, pensei. Devia tentar abrir caminho por entre a multidão.

Enjoada, como se estivesse num iate sacudido por um temporal, arrastei-me para a luz de néon que indicava a saída e que piscava ao fundo do pavilhão. Estava a precisar desesperadamente de apanhar ar fresco. De facto, ia até vomitar. Passei por entre os gorilas que estavam à porta e tropecei para o ar frio da noite, vendo o passeio a erguer-se enjoativamente na minha direcção. Sentia na boca o sabor da bílis e não me aguentava nas pernas. Havia uma avenida mesmo do outro lado das portas. Tapando a boca com a mão, dirigi-me aos para lá aos tropeções.

Nunca na vida, nem antes nem depois, vomitei tanto como naquela noite: fora do Odeon, depois na casa de banho, enquanto a Billie - em quem tinha literalmente tropeçado nas escadas - me salpicava a cara de água, no comboio, onde o grupo fez troça de mim por causa do estado da minha roupa, e em casa, na bendita calma do meu quarto. É bem feito, disse a minha mãe, debruçada sobre o meu corpo inerte na manhã seguinte. Tinha-me dito para não ir, avisara-me dos malefícios de beber de mais e, agora, eu tinha vomitado todo o tapete do meu quarto e podia ter a certeza de que não era ela que ia limpar aquilo. Abriu de par em par as cortinas, de forma que o sol foi como uma martelada nos meus olhos, e depois pôs-se muito direita e seca à minha frente, de mãos na cintura. Não achava eu que ela já tinha coisas suficientes com que se ocupar?, dizia ela. Como podia eu ser tão egoísta?

Lá em baixo, a voz do pai chamava por ela.

Depois de a minha mãe ter descido as escadas em passos bruscos, deixei-me ficar deitada a olhar para o tecto. Estava desesperada por apagar da mente os acontecimentos da noite passada. A única coisa em que conseguia pensar era que tinha chegado a altura de mudar de vida. Tinha-os achado tão porreiros, mas agora desprezava-o a todos, à Billie e à malta dela, com a sua adoração patética pelas bandas de metaleiros que ninguém, a não ser os ignorantes, podia levar a sério. Eles bem podiam pensar que os blusões de couro e os lenços que usavam os faziam parecer uns duros, mas a verdade é que eram uns zeros. Na noite passada, por exemplo, o namorado da Billie trazia numas calças de ganga que eram literalmente um sino. E os pêlos ralos, que lhe brotavam do queixo cheio de espinhas, eram um nojo. Eu tinha pensado que ele era do tipo calado e intenso mas, agora, ao lembrar-me da única conversa que tinha tido com ele, em que ele me dissera que os Motorhead eram «uns grandes malucos, topas?», comentário que pretendia ser um cumprimento, percebi que de facto ele era do tipo calado e burro.

Eles tinham-se rido de mim quando eu voltei ao Odeon, apesar de estar a tremer tanto que mal conseguia falar. E tinham continuado a gozar comigo durante todo o caminho, agitando hambúrgueres e latas de cerveja debaixo do meu nariz para me fazer vomitar. E agora eu odiava-os, a eles e a tudo aquilo que representavam. Não queria continuar a ser como aqueles idiotas, pensei, olhando apaticamente para os meus cartazes dos Led Zeppelin e dos Black Sabbath. A Billie já estava em liberdade condicional por ter roubado uma garrafa de cidra num supermercado e, com a minha idade, já abandonara a escola. Na realidade, descartando os roubos nas lojas e a bebida - actividades que eu considerava cada vez mais ocas -, o interesse pela companhia dela começava a desvanecer-se. Ela agia como se fosse de uma grande esperteza mas, no fundo, isto equivalia apenas a apartes sarcásticos ou desdenhosos e muitos palavrões. Sempre que eu dizia alguma coisa inteligente, ela olhava-me com uma expressão vazia e acusava-me de ser snob. Percebi que, com ela, me aborrecia.

Então era o fim, decidi, levantando-me da cama e arrancando os cartazes das paredes. Acabou-se o heavy metal e acabou-se a Billie.

Pensei que estivesse tudo acabado, percebem, que bastava eu querer sair daquilo. O que me faltava perceber é que ainda estava tudo a começar.

Quando volto a abrir os olhos a sala está semi-iluminada pela luz de uma madrugada encoberta. Sento-me, piscando os olhos na penumbra desconhecida. O radioso sol de Outono que nos vinha deliciando acabou: esta manhã o céu está cinzento e tempestuoso - oiço o vento a bater nas janelas, as paredes fustigadas a ranger. O relógio diz-me que são oito menos cinco.

Aconteceu qualquer coisa na noite passada. Estico um braço para coçar as costas, esforçando-me por me lembrar. Estou gelada, doem-me as costas que estão pisadas de uma noite dormida no sofá. De repente, lembro-me de Beth: o engano dela com o plágio, a forma como estava à minha espera à porta do bar e as coisas estranhas que me fez sentir. E agora está ali, a dormir na minha cama. Toquei-lhe na cara, penso, humilhada, quase lhe beijei a boca. Céus!

Levanto-me com esforço e arrasto-me para a porta, a pensar que tenho de ir fazer xixi e de me vestir. Hoje vai ser tudo diferente: nada de confusões, uma eficiência seca no trabalho e, acima de tudo, nada de reminiscências. Para começar, digo a mim mesma, toda mestre-escola, tenho de fazer qualquer coisa sobre o meu aspecto. Olho para mim e vejo que dormi com a roupa amarrotada que tinha vestido para ir em auxílio de Beth e que o meu cabelo parece um ninho de ratos. Quando estendo a mão para a maçaneta da porta, olhando para ela com ar sombrio, resolvo tomar um duche e mudar-me e, depois, comer uma taça saudável e energética de muesli

- como se alguma vez fosse haver coisas dessas no meu apartamento. A minha mão está prestes a fechar-se sobre a maçaneta, quando dou um grito de alarme. No estado de sonolência em que estou, só agora reparei numa figura acocorada junto da parede.

- Santo Deus!

Mas é só Beth. Está sentada de pernas cruzadas, com o meu edredão enrolado em volta dos ombros, as mãos no regaço. Sabe Deus há quanto tempo ela está ali, a observar-me.

- Olá, Cass - murmura ela. - Não queria acordá-la. Respiro fundo. O meu coração bate à disparada. - Que susto

me pregou - digo, tentando rir-me, mas sem sucesso, e fazendo, em vez disso, um gorgolejo roufenho.

Ela sorri timidamente, olhando-me com atenção.

- Como se sente? - arquejo.

- Bem, acho eu. Acabo de falar ao telefone com o Alec.

- A sério?

- Disse que ia fazer queixa de mim por causa do que aconteceu ontem no seminário.

- Que ridículo - digo eu em voz rouca. - Ele não sabe de que está a falar.

Ela sorri hesitantemente. Não quero que ela perceba o quanto esta notícia me irritou.

- A sério que não precisa de se preocupar com o Alec - digo, apaziguadoramente. - Eu trato dele.

Ela encolhe os ombros. - Para dizer a verdade, não me interessa o que ele faça. Sobretudo agora que já não tenho família. - O lábio inferior treme-lhe.

- E que tal um estúdio na cidade? - pergunto, dominando-me. - Ou talvez a universidade tenha algumas instalações para estas emergências. Tenho a certeza de que havemos de arranjar qualquer coisa para si.

Ela desvia os olhos, amassando o edredão com as mãos. - Calculo que ache que eu sou patética por ainda estar a viver com eles, não? Sei que devia ser capaz de andar para a frente sozinha, mas...

- Beth, não penso que seja patética... - sorrio-lhe a tranquilizá-la.

Ela fita-me, de olhos muito abertos e redondos como os de um gatinho perdido. - Posso confiar em si, Cass, não posso? - A forma como ela diz isto faz-me sentir que há qualquer outra coisa de que ela ainda não me falou.

- Claro que sim - digo. - Estou aqui consigo, a cem por cento.

Ela cala-se por instantes, a digerir estas palavras. Em quantas outras pessoas poderá ela confiar?

- É só que não queria que falasse aos outros professores da minha família e de tudo isto. Gosto de guardar estas coisas para mim.

Baixo-me e seguro-lhe nas mãos. - Não vou andar com mexericos a seu respeito, Beth, prometo, mas a sua situação não é nada que possa envergonhá-la. Quer dizer, a culpa não é sua, pois não?

- Não será? - suspira ela, olhando desanimada para as mãos ossudas. - Às vezes penso se isto não terá tudo a ver comigo. Quero dizer, o facto de eles não gostarem de mim.

Tenho de fazer um esforço deliberado para não suspirar de impaciência. Como é possível que ela se recrimine? Seja o que for que lhe tenha acontecido na infância, dificilmente terá sido por culpa dela. Não, penso eu, com um feio surto de ódio por mim própria, as crianças nunca são as culpadas.

- É só um grande azar - digo, docemente. - É claro que não conheço as circunstâncias exactas mas, provavelmente, pouco poderia fazer para que eles a preferissem à filha que morreu.

Ela envolve a cintura com os braços.

- Talvez devêssemos arranjar-lhe ajuda psicológica - continuo. - Há um serviço gratuito na universidade. Acho que a ia ajudar muito. Lembre-se que eles estudam para isso. Para ajudar as pessoas que têm problemas semelhantes aos seus. É capaz de ser o melhor que tem a fazer.

Ela não responde. Quero ajudá-la mas sinto-me derrotada. Ouça, Beth.

Coloco as mãos sobre a sua cara e seguro-a com firmeza para que ela não possa deixar de olhar para mim. Por instantes ficamos em silêncio, a olhar uma para a outra com uma intimidade para a qual eu não estava preparada. Que sabe ela do meu passado? Para ela, eu sou apenas uma mulher mais velha numa posição de respeitabilidade, de quem ela precisa de ajuda. Se soubesse a verdade, que pensaria de mim?

- Aconteça o que acontecer - digo, lentamente -, estarei aqui para o que precisar. Por isso, confie em mim, está bem?

Mergulhando solenemente os olhos nos meus, ela acena que sim. - Claro que confio em si, Cass. - murmura ela. - Faço tudo o que a Cass quiser.

Aproxima-se uma tempestade e o ar está pesado e ameaçador. Enquanto sigo no carro para o trabalho, ao longo da falésia, o céu de chumbo está carregado de nuvens, que se assemelham a escuras cabeças de hidra, que se deslocam velozmente sobre o mar. O vento varreu as minhas resoluções anteriores. Sinto-me desanimada e oprimida, incapaz de pensar nas tarefas que, esta manhã, prometi a mim mesma levar a cabo. Viro para o campus, estaciono o Carocha e travo um combate contra o vento para conseguir fechar a porta do carro. Desta vez, consegui deixá-lo junto à estrada principal.

Atravesso o parque de estacionamento e percorro apressada o passadiço de cimento. As folhas caídas tornam os caminhos que levam ao Bloco D escorregadios e o vento cola-me às pernas turbilhões de papéis molhados. As pessoas com quem me cruzo trazem as golas levantadas e as mãos enfiadas nos fundos dos bolsos, os corpos dobrados para se defenderem do vento. Os dias em que passeei pelos relvados do campus, sob o doce sol de Outono, parecem bem distantes.

Subo as escadas a correr. Bebi duas canecas de café, comi torradas, tomei até um duche e mudei de roupa, tudo por instruções da mestre-escola, mas continuo a sentir-me horrível. O meu cérebro está confuso e desorientado, a minha barriga palpita; é como se não dormisse há dias. Contudo, não é tanto o meu estado físico que me impede de levantar a cabeça latejante e de dizer um alegre «bom-dia» a Maggie, a secretária do nosso departamento, que acaba de passar por mim, acenando. Não, mais do que o cansaço, é o temor que tem vindo a crescer, a aumentar de intensidade, durante toda a manhã. Sinto-me como se estivesse a tentar caminhar por areias movediças: o solo parece bastante sólido mas, a qualquer momento, posso pôr o pé no lugar errado e ser inevitavelmente sugada para as profundezas. Tem quase tudo a ver com Beth e com o seu estúpido trabalho. Apesar dos esforços de ontem, esta manhã sinto-me incapaz de perceber por que razão fechei os olhos à situação. Se fosse qualquer outro aluno, Andy, por exemplo, ou a caprichosa da Nathalie, não teria hesitado em apresentar o caso ao Gabinete de Exames. Mas, com Beth, as coisas parecem muito mais complicadas. Bem sei que não devia permitir a mim mesma envolver-me pessoalmente com os meus alunos, mas os acontecimentos da noite passada despertaram qualquer coisa em mim que eu quase tinha esquecido, como soda cáustica deitada num cano há muito entupido.

Entro no edifício e dirijo-me para a cantina. O meu plano é devorar um ou dois queques de chocolate antes da aula, mas percebo logo que a cantina está atulhada de gente. As aulas das nove acabaram agora mesmo e a fila estende-se até ao corredor. Ao passar por ela vou olhando em volta, distraidamente. Por que raio estou tão ansiosa? Será só o trabalho de Beth ou haverá mais qualquer coisa? De repente, lembro-me do estranho e-mail e dos telefonemas e o meu estômago contrai-se, nervoso. Olho em volta, à procura de uma cara amiga, mas só vejo Julian, refastelado a uma mesa com um grupo de pós-graduados, e Bob Stennings, que está sentado, sozinho, a ler o Guardian. Percebo, num assomo de auto-compaixão, que estou a precisar de Sarah, com o seu cepticismo sofisticado e o seu faro para os disparates. Quero descrever-lhe o que está a acontecer, com palavras que reduzam os acontecimentos à soma das suas partes: um e-mail esquisito; uma série de telefonemas excêntricos; dois estudantes, um que não me interessa nada e outra que talvez me interesse de mais. Iria então ouvir a gargalhada reconfortante e trocista de Sarah quando eu sugerisse que, se calhar, estava tudo ligado e o seu tom de censura seca a dizer-me que eu devia sair mais.

Esqueçamos os queques, decido. vou telefonar-lhe já. Mesmo que esteja com a Poppy, havemos de arranjar tempo para falar. Mas quando retrocedo para o corredor, em direcção ao meu gabinete e ao telefone, uma figura surge de repente do meio da fila e posta-se à minha frente.

- Dra. Bainbridge?

O meu rosto franze-se em desagrado, pois vejo que é Alec. Traz de encontro ao peito uma pilha de livros e sorri-me afectadamente, com uma expressão tão inocente como a de um bebé.

- Sim? - replico secamente, reprimindo mentalmente um comentário acrimonioso. Porque é que nos persegues, a Beth e a mini?, apetece-me gritar-lhe. Que raio se está a passar aqui?

Ele finge-se confuso com a minha resposta pouco simpática, engole em seco e passa a mão desajeitadamente pelo cabelo. Eu...

- O que é?

- Queria falar consigo acerca do seminário de ontem... - diz ele, arrastando as palavras.

Fito-o de olhos muito abertos, lembrando-me da sua expressão satisfeita ao apontar para o artigo de Sociedade e História, o seu manifesto prazer por ter marcado um ponto. Não me chateies, miúdo, apetece-me gritar-lhe, não estou com paciência para aturar os teus queixumes. Em vez de dizer isso, franzo os lábios.

- Ainda bem que mencionou o assunto - digo -, porque acho que deve um pedido de desculpa a Beth pela forma como se comportou.

Ele empalidece, olhando-me esgazeado e boquiaberto. Gradualmente, a sua cara - até às raízes dos cabelos - vai-se tornando escarlate. Na fila, os estudantes que estão à espera calaram-se ao captarem o meu tom de desaprovação, tal como um bando de pássaros nas árvores que se prepara para a investida às sementes espalhadas cá em baixo. Sinto-os a voltarem-se, sinto o silêncio expectante de uma multidão ansiosa por um escândalo.

- Não é assim que vejo as coisas - diz ele friamente.

- Não?

- A única coisa que fiz foi apontar o facto de ela não estar a citar as fontes - diz ele, com uma expressão de desdém tão ténue, um breve levantar do lábio superior, que quase não dou por ela.

- A única coisa? - digo, num tom impaciente. - Isso, mais todas as ameaças que lhe fez. Acho que deve ponderar o efeito das suas atitudes sobre as outras pessoas. - Podia dizer mais, é melhor ficar por aqui. com a cara muito rígida, Alec emite um pequeno gemido de afronta. Dou meia-volta, sem querer assistir a mais nada. À nossa volta, as pessoas estão de ouvido à escuta.

- Está a olhar para onde? - pergunto, furiosa, a uma rapariga de pele cor de café e cabelo azul espetado, que escolho como alvo das atenções. - Meta-se no raio da sua vida.

Ela olha-me boquiaberta, depois desvia rapidamente os olhos, e procura abrigo junto dos seus amigos, tão espantados quanto ela. A cara de Alec está pálida de fúria. com os livros ainda seguros pela mão magra de rapaz novo, abre caminho por entre a multidão e sai da cantina.

Em vez de me fazer sentir melhor, este diálogo deixou-me a tremer de emoção contida. Quero sair dali o mais depressa possível, mas a fila está agora tão grande que, para escapar, vou ter de passar através de uma multidão de estudantes que se acotovelam e que assistiram à minha explosão. Comportei-me mal, penso eu, já com o amargo remorso a apoderar-se de mim, rápido e furioso. Relações profissionais e sensíveis? De certo modo, acho que não. A única acção possível é fazer de conta que não aconteceu nada de extraordinário. Ao olhar desesperadamente em volta à procura de algum sítio onde me sentar, vejo Julian a acenar-me efusivamente e não me é possível ignorá-lo.

- Que história foi essa? - diz ele, com um sorrisinho. - Pareceu-me que estava a dar uma bela descompostura a alguém.

Sinto os olhos dele deterem-se em mim durante um segundo a mais e de repente tomo consciência do meu aspecto. Vesti-me tão depressa hoje de manhã que o resultado final é bastante enxovalhado, para não dizer mais. Quando Beth se fechou no quarto de banho, enfiei a primeira roupa a que deitei mão: uma saia velha de bombazina que me aperta na cintura e uma camisola largueirona e com borboto que já há muitas estações devia ter sido entregue a uma instituição de caridade. Ao ver-me no espelho, a minha principal impressão é de uma mulher gorducha e excêntrica cujo guarda-roupa foi escolhido da pilha das peças a 10 pence numa venda da igreja.

- Uma mera questão de gestão estudantil - digo, tentando dar um tom ligeiro às minhas palavras ao sentar-me junto dele. Não quero estar aqui, mas parece-me a única opção. Espero que ninguém repare como as minhas mãos estão a tremer.

- Às vezes és um bocadinho assustadora, sabes? - diz Julian. -Sou?

- Tens um aspecto simpático, caloroso e tudo, mas por baixo desse exterior agradável és perigosa. - Olha para mim com ar brincalhão.

Devolvo-lhe o olhar, perplexa. Só consigo pensar na pouca confiança que tenho nele.

- Que disseste tu ao velho Alec? - continua ele. - Parecia que ia desatar a chorar.

- bom, o problema é dele - tento sorrir mas só consigo mostrar os dentes num esgar afectado.

- E porquê? - Um dos pós-graduados observa-me franzindo o sobrolho e depois recosta-se na cadeira e começa a enrolar um cigarro. É um tipo peludo, com patilhas ruivas farfalhudas e usa um casaco de couro que ostenta nas costas as palavras «Fuck Capitalism».

- Porque sim - digo eu, continuando a tentar sorrir. Conheço bem aquele género: o tipo que aparece em todas as reuniões com os membros da associação de estudantes e sempre armado com uma longa lista de queixas. Se julga que vou discutir Alec com ele, está muito enganado.

- Ele tem-te envergonhado nas aulas, Cass? - diz Julian, dando-me cotoveladas, com ar malandro. - Tem fama de ser mais esperto do que muitos dos professores, sabes?

Olho para ele furibunda. Será que Alec se queixou a Julian das minhas aulas? Será que estão conluiados?

- Não, é porreiro - diz o pós-graduado «Fuck Capitalism», encolhendo os ombros. - Vive no estúdio por cima do da minha namorada. É um bom tipo.

- Então qual é o problema? - diz Julian.

Mexo-me pouco à vontade na cadeira. Dava quase tudo para não estar ali, mas estou pregada à cadeira pelo terror de passar junto àquela fila.

- Não há problema nenhum. Não nos entendemos muito bem, só isso.

Há um silêncio, longo e pesado. Os vários pós-graduados observam-me à espera de mais. Olho para as mãos, a girar os anéis. Sinto que Julian me está a avaliar. A sua jovialidade parece ter desaparecido: quando levanto os olhos ele desvia os dele, franzindo a testa. Por instantes, a minha suspeita desvanece-se: ele está apenas a tentar ser simpático. Mas, depois, olha-me de alto a baixo e diz: Estás bem?

Estas palavras implicam uma crítica, tenho a certeza. - Claro que estou - digo, indignada. - Porque não havia de estar?

- Bem, é que acho que parecias um bocado irritadiça.

- Não, estou bem.

Ele levanta aquelas sobrancelhas cor de areia, deixando claro que não acredita em mim. Depois desvia os olhos.

Sozinha no meu gabinete, finjo que examino a camada de cima de papéis que estão na minha secretária. Estive toda a tarde a dar aulas e agora sinto-me esgotada, completamente vazia de satisfação e de objectivos. O seminário de hoje não correu bem: os estudantes mostraram-se reticentes, a observar-me desconfiadamente. Preenchi o silêncio deles com meras insignificâncias, paleio de arquivo público enquanto eles evitavam olhar para mim. Quando ralhei com um deles por não ter lido a bibliografia recomendada vi-os trocarem olhares entendidos. Todos eles deviam ter assistido à cena na cantina. O departamento inteiro deve estar neste momento a falar de mim, penso, angustiada. Talvez Julian tenha razão: estou a perder o tino e toda a gente já se apercebeu disso.

Sinto-me tão sozinha. Achava que precisava de solidão mas, ao que parece, sou incapaz de funcionar sem a almofada confortável que é a companhia de outras pessoas. E é óbvio que sou mais dependente de Matt do que aquilo que pensava. Imagino-o sentado à mesa, na cozinha lá de casa, com o jornal aberto à sua frente, a rir-se de alguma história ridícula que descobriu nas páginas interiores. Apesar do seu imenso intelecto, adora estas fofocas, bendito seja! Era lá que eu devia estar agora: podia estar às voltas na nossa confortável cozinha de Londres, a preparar o almoço. Depois, quando estivéssemos fartos de trabalhar, ele vinha postar-se atrás de mim, passava-me os braços pela cinta e subíamos para o quarto.

Que está a acontecer? Vivemos uma relação tão íntima nos últimos dez anos que conheço os seus hábitos tão bem quanto conheço os meus. Mas agora estamos separados e já nem sequer conseguimos falar um com o outro sem deslizar rapidamente para a discussão e para as acusações. Fecho os olhos, imaginando a cara dele, imaginando que vamos pelo Heath de mãos dadas e, depois, de repente, sento-me muito direita.

Foi isto que desencadeou tudo. Acabei de me lembrar do passeio no Heath com Josh e o seu bebé. Sim, tenho a certeza de ter razão: as coisas começaram a deteriorar-se quando a nova namorada de Josh engravidou. Ele costumava ser o amigo louco de Matt, dos velhos dias de Manchester, com quem passava noites inteiras a beber, um verdadeiro hedonista, com uma adolescência retardada, metido nas drogas. Mas depois tinha-se apaixonado por uma jovem hippie amorosa, chamada Miranda, e tudo mudou. Nos meses seguintes, os apaixonados transformaram-se nuns fanáticos da gravidez. Ouvimos falar de tudo: das restrições alimentares dela, da recusa de intervenções médicas, do chá de folhas de framboesa. Mas enquanto eu me obrigava a ficar calada sempre que eles iam lá a casa, sentando-se ambos muito juntinhos para Josh poder pôr a mão em cima da pança dela, Matt ouvia-lhes as novidades da frente da fertilidade com olhos brilhantes e sôfregos.

- Céus, que chatos são - suspirava eu, mal eles saíam, depois de um serão particularmente sinistro. - Imagina como será quando o bebé chegar!

Mas, em vez de se rir e de concordar comigo, como teria acontecido em tempos, Matt atirou-se a mim com uma violência que me deixou boquiaberta e sem fala. - Por amor de Deus, Cass! - admoestou. - Estiveste toda a noite com uma cara que parecia que estavas a chupar limões. Que raio se passa contigo?

Ou estarei enganada? Talvez Matt só esteja a fazer de conta que está fascinado pelos futuros três dias de trabalho de parto de Miranda; talvez os seus olhos marejados de lágrimas de entusiasmo pelo estranho ser que dali resultará sejam simplesmente fingidos; talvez só tenha insistido em transportar o bebé durante o passeio para ser delicado. Talvez ele não tenha mesmo mudado. Decidida a resolver as coisas, pego no telefone e marco o número da nossa casa de Stoke Newington, sustendo a respiração. Quando ele atender digo-lhe de chofre que vou voltar para Londres e fazer a viagem para cá todos os dias. Depois conto-lhe dos telefonemas e do e-mail arrepiantes. O seu intenso cepticismo há-de varrer tudo isto, tal como o vento a passar por uma teia de aranha.

Mas responde-me o atendedor. Não deixo mensagem, limito-me a pousar o telefone. Deixo cair a cabeça entre as mãos, suspiro e esfrego o couro cabeludo, como se isto pudesse expulsar o meu desânimo. Normalmente não sou assim, sou Cass Bainbridge, uma mulher calma e bem-disposta que acha sempre que toda a gente tem um lado bom. Então porque é que me sinto cada vez mais sufocada de estranheza, tão azeda e irritada?

Talvez do que precise mesmo é de uma boa noite de sono. Empurro os papéis para o chão e encosto a cabeça na secretária, sentindo a madeira áspera a arranhar-me a orelha. O computador zumbe e geme. Oiço, vindos lá de fora, os gritos e as gargalhadas dos estudantes que saem das aulas. O vento está a aumentar de intensidade: os ramos da árvore à frente da minha janela estão constantemente a bater no vidro; através dos olhos semicerrados vejo as nuvens escuras que correm pelo céu.

Arrastando-me para me levantar, encosto o cotovelo à secretária e ponho-me a olhar para o computador. Devia telefonar a Sarah, mas não estou com energia para tal. Clico no programa do correio e fico à espera de ver abrir-se a lista das novas mensagens. Podia, pelo menos, tentar limpar o arquivo. Esta manhã, quando abri o correio electrónico, tinha vinte mensagens não lidas; agora devo ter, pelo menos, outras dez. Durante alguns segundos o ecrã fica vazio, enquanto o programa descarrega. Depois, quando as mensagens começam a aparecer, leio: «Tem 159 mensagens novas.» Credo, isto é que é sobrecarga do sistema! Cerrando os lábios, espreito para o ecrã enquanto os ícones se amontoam e piscam.

A primeira coisa em que reparo é que as novas mensagens são idênticas. Às vezes isto acontece, quando o remetente clica duas vezes, por engano, no botão «Enviar». Mas, para aparecerem tantas mensagens, deve ter sido deliberado. Depois vejo o endereço do remetente e sinto-me gelar: loveandkisses@jun.iper. «Assunto: TU!»

Sinto um aperto no estômago. Ao olhar para a longa lista de mensagens, repito para comigo que isto não tem nada a ver com o resto, que é só uma partida. Apesar disso, não consigo varrer do espírito a imagem da cara furiosa de Alec. Será que ele está por detrás disto? O primeiro e-mail foi enviado às 10h09, muito pouco depois do nosso confronto na fila do café. O segundo chegou passados trinta segundos, seguido rapidamente por mais uma série deles. Ao lembrar-me da descrição de Beth sobre o comportamento bizarro dele na sala dos computadores da universidade, a explicação faz cada vez mais sentido. Talvez ele utilize um endereço diferente quando quer mandar coisas desagradáveis. É o tipo de coisas com que se entretém um maluco da informática.

E agora tenho de encarar aquilo que me mandou. Clico em «Abrir», retraindo-me enquanto espero que a mensagem apareça. Quase espero que saia um monstro de dentro do computador e que me agarre pelo pescoço, mas em vez do monstro aparece uma única linha:

Eu sei.

Olho para o ecrã, hipnotizada. Que quer ele dizer? Como é que ele pode saber? Clico cada vez mais desesperada em «Ler» e percorro as mensagens esperando conseguir encontrar novas pistas. Mas a mensagem é sempre a mesma, «Eu sei», constantemente repetida. Céus! É exactamente o que eu temia. Está a falar do trabalho de Beth! Viu que ela o copiou e, agora, está a castigar-me por o ter repreendido na cantina, com esta ameaça vagamente velada. Levo as mãos às minhas faces a ferver. Que confusão!

Não suporto abrir o resto das mensagens. Clicando com toda a força no botão «Apagar», elimino-as uma a uma. Quando acabo, sinto a cabeça leve, com os pensamentos a fugir em todas as direcções como um bando de pássaros assustados. Ele podia denunciar-me, penso incessantemente. Será uma tentativa de chantagem? De repente tenho uma necessidade enorme de sair do gabinete. Empurro a cadeira para trás com grande estrondo e ponho-me em pé.

Beth deve ter andado à minha procura: subo as escadas e ela está à espera à porta do meu apartamento. Escovou o cabelo e tras-o amarrado atrás numa trança, e também trocou as calças de ganga e o top, que anunciava um grupo qualquer, por um vestido vermelho comprido que - reparo, num sobressalto - me pertence. Apesar dos acontecimentos recentes, vem com ar bem-disposto.

- Bem-vinda a casa! - faz uma piruetazinha com o meu vestido que lhe está enorme, disfarçando-lhe a silhueta franzina e dando-lhe o aspecto de uma menininha mascarada.

- Não se importa, pois não? Estava a ficar cheia de frio. Abano a cabeça. De qualquer forma estava-me pequeno e é

bom vê-la feliz.

- E ainda não viu tudo! - Pega-me no braço e leva-me pelo átrio em direcção à sala. Abre a porta com um floreado e dá um passo para o lado. - Tcha-ran!

Passo a porta e olho em volta, espantada. A sala está transformada. Os meus livros, que estavam espalhados pelo chão, foram arrumados e alinhados com precisão junto às paredes. Todo o outro lixo - os jornais velhos, as garrafas vazias e a roupa suja - desapareceu. As janelas foram lavadas e a alcatifa foi aspirada. A lareira está acesa e, exactamente no meio da sala, está um tapete de cores vivas.

- Encontrei-o no armário do outro quarto - diz Beth ao ver-me a olhar para o tapete. - Achei que condizia bem com as outras cores. Agora só precisa aqui de uns quadros

- O que fez da minha roupa? - digo em voz fraca. A verdade é que despojada da minha confusão me sinto estranhamente desconcertada.

- Aqui. - Sorrindo, ela pega-me no braço e leva-me para o quarto. Para meu grande espanto não se vê pelo chão uma peça de roupa - esta foi lavada, passada a ferro e arrumada no armário.

- Lavei tudo - diz Beth. - Quer dizer, a Cass trabalha tanto, e como eu não tinha nada para fazer a tarde toda achei que podia ajudar.

Não consigo lembrar-me de nada construtivo para dizer. Devia sentir-me satisfeita porque não há dúvida de que ela se esforçou imenso por fazer aquilo que achou correcto, mas a verdade é que avaliou mal a situação. Viu as minhas cuecas sujas, penso com uma careta de embaraço, andou a remexer nas minhas coisas. Continuo a olhar em volta tentando não manifestar qualquer expressão. Sinto-me como uma participante no programa Minha Casa, Sua Casa, cujos amados interiores foram substituídos pelo pesadelo da invenção dos seus piores inimigos. Sobre a lareira está um ramo de malmequeres enfiado numa garrafa de leite e, em cima da cama feita de lavado, ela pôs a boneca de trapos do quarto dos caixotes. Incapaz de me dominar, debruço-me e pego na boneca. - Isto não é meu - digo, em tom azedo. - Era dos inquilinos anteriores. Vai para o lixo.

- Aah! Mas é tão querida!

- Está bem, então fique com ela. Enfio-lhe a boneca nas mãos e saio do quarto. Preciso de estar sozinha, nem que seja só por uns minutos. Em passos pesados atravesso o átrio, deixando na alcatifa a marca dos pés. Beth só quis ajudar, digo para comigo: nos padrões de muita gente - de Matt, por exemplo -, seria uma terrível falta de educação ela preguiçar todo o dia sem fazer nada. Na cozinha, paro junto ao fogão reluzente, dando uma espreitadela às panelas muito bem arrumadas ao lado do balcão, aos azulejos, que continuam a ser hediondos mas que, agora, brilham de limpos. Ela até dispôs os frascos vazios junto da janela numa linha geométrica. Abrindo o frigorífico, constato que ao lado do meu stock de embalagens de refeições pré-cozinhadas encontra-se agora uma caixa de tofu, vários legumes presumivelmente de cultura biológica, um grande pacote de leite de soja e outro de salsichas vegetarianas com um ar nojento.

- Achei que esta noite podia cozinhar-lhe um banquete vegetariano - diz Beth tranquilamente. Dou meia-volta e vejo-a postada ao meu lado. - Quer dizer, se tiver fome.

Aceno silenciosamente, sem saber muito bem o que dizer. Eu tinha ficado com a impressão de que estava a tomar conta dela, mas parece que os nossos papéis se inverteram. Objectivamente, ela tem razão, o apartamento precisava de ser limpo, mas, apesar disso, sinto que tomaram o controlo por mim e que o meu espaço foi invadido.

- Tudo isto - Beth aponta para a cozinha - é, digamos, a minha maneira de dizer obrigada. Quero dizer, saiu de casa a meio da noite. Não tinha obrigação de fazer isso.

Volto-me. Ela está parada, hesitante, na soleira da porta da cozinha, pondo a cabeça de lado com aquele gesto de pássaro inquiridor. Ao contrário de mim, ela é uma mulher caseira, o tipo de jovem que se delicia a tratar da casa. Organizar o meu caos doméstico foi provavelmente uma tarefa que lhe deu prazer, por isso para quê aborrecer-me com ela?

- Está óptimo - digo, sorrindo finalmente sem precisar de esforçar os músculos faciais. - Foi realmente muito querida.

- Desculpe se exagerei... É que, sabe, é a minha forma de controlar as coisas... Arrumar e assim...

Cruza os braços sobre o peito com ar apreensivo e eu amaldiçoo-me pela minha reacção grosseira à boneca e por não lhe ter agradecido mais efusivamente.

- Não, a sério - digo, respirando fundo. - Está uma beleza. Muito obrigada.

Ela fita-me, radiante. - Sabia que ia gostar. Ponho-me a tratar da chaleira, procuro canecas e saquetas de chá.

- Para mim de ervas - diz ela e eu abro o armário e espreito lá para dentro. No lugar do meu café instantâneo está uma caixa de chá de camomila e um frasco de uma coisa dúbia que dá pelo nome de cevada.

- Esta comida toda deve ter-lhe custado um balúrdio - murmuro. - Deixe-me pagar-lhe.

- Não... não foi nada.

- Mas como é que arranjou dinheiro para estas coisas? Ela encolhe os ombros. - Tenho o trabalho no bar.

- Mas isso não lhe pode render muito. Também tem uma bolsa?

- Claro, tenho essas coisas todas. - Ela virou costas e está muito atarefada a polir as torneiras impecáveis com um pano, trauteando baixinho como que para consigo. Talvez tenha uma fonte de rendimentos alternativa, algo de que tem vergonha. No último sítio em que leccionei tinha uma estudante que, à noite, dançava nos bares de strip para complementar a sua magra bolsa.

- Oh, a propósito - diz ela de repente -, encontrei o seu telefone.

- O telemóvel?

- Debaixo de um monte de roupa no seu quarto.

Pela primeira vez desde que cheguei a casa, sinto-me genuinamente satisfeita.

- É um verdadeiro anjo! Procurei-o por toda a parte.

Ela deixa cair o pano no lava-louça e volta-se para me fitar. Sem pensar atiro-lhe um beijo e ela fica radiante, uma menina pequena a receber elogios. Mais uma vez me sinto impressionada com a solidão dela e com o seu desejo desesperado de agradar. No fogão ao lado dela a chaleira ferve furiosamente.

- Bem - digo, tentando encontrar as palavras certas -, como se sente hoje?

- Melhor. ''

- Tomou alguma decisão sobre o que quer fazer? "; Ela franze o sobrolho. - Que é que há para decidir?

- bom - digo, cuidadosamente. - Precisa de arranjar um sítio onde ficar. Quero dizer, se de facto não pode voltar para casa.

Fico por momentos com a ideia de que ela não me ouviu: pega na chaleira, põe água nas canecas, parece estar concentrada noutra coisa qualquer. Depois, muito devagarinho, volta-se e vejo uma coisa que não esperava ver-lhe na cara: um vestígio de fúria.

- Pensei que tinha explicado ontem à noite, Cass - diz ela baixinho. - Não posso ir para casa. Puseram-me na rua.

- Então tem que arranjar outra solução qualquer...

Mas ela não me deixa acabar. Está a abanar a cabeça de um lado para o outro e a olhar para mim de boca aberta, numa angústia.

Cruzo os braços e o coração cai-me aos pés. Quero ajudá-la, mas está tudo a tornar-se muito complicado. E se Alec está prestes a acusar-me de a ajudar a fazer batota, as coisas ainda ficavam mais difíceis se ela estivesse aqui instalada. Mas a sua cara perdeu toda a cor e os olhos estão desesperados.

- Por favor! - suplica. - Não consigo pensar mais nisso. Só quero ficar aqui consigo, onde estou a salvo.

Olho para ela pensativamente, tentando formular uma resposta adequada. De que está ela a falar? Porque não estaria a salvo? Já não percebo nada do que está a acontecer. Tudo o que sei de certeza é que alguma coisa mudou e que agora me sinto profundamente angustiada.

- Está bem, fica esta noite - digo lentamente. - Tudo bem. Mas amanhã temos de pensar...

Mas sou interrompida a meio da frase. Calo-me e volto-me para a porta de entrada. Acabo de ouvir uma chave a rodar na fechadura.

 

Matt entra no átrio em grandes passadas e deixa os sacos cair no chão, com ar de estar em casa, enquanto a porta se fecha. Espreito da cozinha. Está com ar diferente: nas semanas em que não o vi perdeu peso e tem o cabelo, normalmente desalinhado, cortado muito curto. com os seus ombros largos e maxilar quadrado parece um soldado raso. Numa das mãos traz o portátil, o seu amigo fiel de sempre, e na outra um grande ramo de lírios. - Cass?

- chama, e já está a avançar impacientemente para a sala.

Dou uma olhadela a Beth e saio da sala a correr, dirigindo-me a ele. O seu aparecimento inesperado desequilibrou-me completamente: o meu coração palpita de nervosismo e de um sentimento inexplicável de culpa. Ele há-de perceber o facto de Beth estar aqui, digo para comigo. Também não pode aparecer aqui, assim sem mais nem menos, e esperar que eu largue tudo.

- Olá! - digo, tentando parecer feliz.

Ao ouvir a minha voz, gira nos calcanhares sorrindo abertamente. - Cass! Minha querida miúda! - Põe-me os lírios nos braços e recua um passo, olhando interrogativamente para a minha cara. - Vá, pega neles.

Está com um ar tão diferente que me sinto desorientada, atingida não tanto pelo prazer de o rever, mas essencialmente por um assomo frio de estranheza. Será realmente este o homem com quem vivi durante quase dez anos? - Céus! Estás mesmo com mau ar! - diz ele, jovialmente. - A precisar de um bom tratamento, não há dúvida! Porque não vens até aqui desapertar o teu corpete avec mói'?

Deve estar a gozar. Era como fazer sexo com alguém vagamente conhecido. Fazendo um grande esforço para não franzir o sobrolho, pouso devagarinho as flores no chão e afasto-me dos braços dele, chocada com os meus próprios sentimentos. Devia estar esfuziante de alegria com a vinda dele e não sentir-me como se tivesse sido rudemente interrompida.

- Devias ter-me dito que vinhas.

Queria que estas palavras soassem como se o estivesse a repreender afectuosamente, mas a minha voz está tensa de irritação. Se ao menos pudesse dar-lhe um grande abraço! Porém, ao vê-lo recuar, parece-me uma impossibilidade, como se fosse abordar um estranho na rua e lhe atirasse os braços ao pescoço.

- Pensei que gostasses de surpresas. - Estuda-me, intrigado. Como ele, também eu devo parecer diferente. Para começar, engordei imenso e de certeza que ele vai comentar o facto. Mas, em vez de me estar a medir de cima a baixo como eu temia, o olhar dele é apaixonado.

- Tu nunca respondes às minhas mensagens - diz ele docemente -, por isso achei que o melhor era meter-me num comboio e vir ver-te. Senti a tua falta. Foi tempo de mais.

- Óptimo. - Tenho de lhe dizer depressa que também tive saudades dele. Mas a única coisa que me sai é: - Devias ter-me avisado.

E agora a expressão dele altera-se, a testa franze-se e os cantos da boca descaem. - Santo Deus, Cass - diz, secamente. - Não nos vemos há séculos. Podias, ao menos, fazer de conta que estás contente.

A expressão magoada da cara dele - que se esforça por disfarçar - dá-me vontade de chorar. Ele ama-me, penso. E então, antes de ter qualquer hipótese de o bloquear, outro pensamento bem mais desconcertante, incendeia-me a mente: vou magoá-lo. - Estiveste tão incontactável... - murmuro. Se me concentrar muito talvez consiga escorraçar estes pensamentos. - Nem telefonaste nem nada.

- Claro que me fartei de telefonar - resmunga ele, amuado.

- Deixei para aí umas cem mensagens no teu telemóvel.

- Perdi-o. - Ele continua a fitar-me e é claro que não acredita em mim. Parece que ultrapassámos o ponto em que podia ganhar qualquer coisa se tentasse convencê-lo. Faço uma pausa para reunir forças a fim de obrigar a minha voz a mostrar-se calorosa e amiga.

- De qualquer forma, é bom que estejas aqui... - Avanço para ele, passo-lhe os braços pelo pescoço e tento beijar-lhe a cara barbeada de fresco, mas ele dá um passo ao lado, de expressão gélida. Está uma garrafa de champanhe enfiada num dos lados do saco dele e percebo, com um baque, que ele devia estar à espera de qualquer comemoração. Por instantes penso que ele me vai perdoar: a sua expressão suaviza-se e quase retribui a pressão da minha mão quando, de repente, os olhos se lhe arregalam com aquilo que eu posso apenas definir como repulsa e diz com brusquidão: - Quem diabo é você?

Voltando-me, vejo que Beth veio atrás de mim da cozinha e está agora no átrio a olhar para nós. Não sei há quanto tempo ali está nem o que ouviu das palavras que trocámos. - É uma das minhas alunas - digo, apaziguadoramente. Estou a entrar no modo acalma o Matt, a afagar-lhe as penas eriçadas e a mimá-lo para o fazer sair de um acesso de mau humor que vejo formar-se-lhe na cara, como uma tempestade. Recuo um passo, sorrindo com um entusiasmo fingido. - Beth, venha conhecer o meu parceiro, o Dr. Matthew Hughes. Matt, esta é a Beth.

Estou à espera de que eles apertem as mãos, de que a situação evolua suavemente de uma hostilidade flagrante para um formalismo amigável, mas Matt enfia as mãos nos bolsos e faz um breve aceno em direcção a Beth. - Está aqui para um explicação, é? diz, displicentemente, afastando-a com um gesto da mão, como se ele fosse um patriarca vitoriano e ela uma criada insignificante.

Beth observa-o, de cara sombria. - Estou a viver aqui - diz.

As sobrancelhas de Matt erguem-se, Beth faz um sorriso afectado e eu fico de boca aberta, tanto de espanto com a presunção dela como de horror pela reacção que Matt inevitavelmente vai ter. Ele está a olhar para Beth, de olhos esbugalhados e, depois, vira-se para mim, com o mesmo olhar de espanto: - Estás a partilhar o teu apartamento?

- É só por esta noite - apresso-me a responder. - Precisava urgentemente de um poiso e...

- A Cass convidou-me a ficar cá hoje, também - acrescenta Beth a despropósito. Depois, ou talvez seja eu a imaginar coisas, faz-me um breve sinal de triunfo, como que a dizer: «Isto vai pô-lo no lugar!»

- Ai convidou?

Cruzando os braços, Matt lança-me um olhar carregado. Engulo em seco. Se ao menos eu tivesse sabido que ele vinha cá hoje à noite podia ter-me preparado para reagir adequadamente.

- De certo modo - murmuro. Depois, voltando-me para Beth, acrescento: - Beth, deixe-nos a sós por instantes, está bem?

Durante um instante o seu rosto adquire uma expressão ilegível. Depois diz: - Sem problema - e dá meia-volta.

- Que raio se passa aqui? - pergunta Matt num tom venenoso, quando a porta se fecha atrás dela.

Está furioso e, pela primeira vez desde que entrou por aquela porta, sinto-me a ficar tensa de indignação. - Acalma-te. É uma aluna que precisa de ajuda, não é minha amante. - Ao dizer isto lembro-me da sensação estranha que tive ao vê-la dormir e sinto-me corar.

Mas Matt não repara. Reage, acenando sarcasticamente. - bom, isso é um alívio. Mais uma vez tudo é posto em causa só para que possas ajudar uma desgraçada patética que desenterraste algures por aí.

Agora estou a sentir-me realmente zangada. Não sabe nada do que se tem passado aqui e, apesar disso, acha que é perfeitamente normal entrar-me pelo apartamento dentro sempre que lhe dá na gana e começar a dar ordens. Pensava que estávamos a entender-nos, mas é evidente que bastaram umas semaninhas para tudo descarrilar.

- Não sabes nada acerca dela - respondo num tom irritado.

- Está metida num grande sarilho. Zangou-se com a família e agora não tem onde ficar.

- E desde quando é que diriges um refúgio de mulheres ? : - Oh, por amor de Deus!

Começo a afastar-me dele, mas ele agarra-me pelo pulso e puxa-me para ele. - Não te vás embora, Cass!

Tiro-lhe os dedos do meu pulso, respiro fundo e digo, tão calmamente quanto me é possível: - Não me estou a ir embora, mas não quero ficar aqui a ouvir gritos. Sobretudo quando temos público.

- OK, então está bem - diz ele, agarrando no casaco que estava no chão. - Vamos sair.

Matt atravessa a estrada em grandes passadas e avança para o jardim da praça, de rosto tenso. Ao arrastar-me no seu encalço sinto-me explodir com um ressentimento que não pára de crescer. Será que ele está à espera que eu vá atrás dele, como um cãozinho de estimação, a pedir-lhe perdão? E sou culpada exactamente de quê? Ele abre o portão de rompante e começa a andar pelo relvado em passos pesados, dirigindo-se para o túnel que desemboca na estrada e, depois, na praia. Sinto o cheiro a sal e o aroma de terra e erva húmida. Cerca de cem metros adiante, o trânsito rola incessantemente. Para oeste vejo as luzes cintilantes do molhe e, mais longe, a massa urbana da cidade em expansão. O vento está glacial.

Finalmente consigo alcançá-lo e pego-lhe na mão, numa última tentativa de reconciliação. Ele olha para mim, um menino pequeno a fazer uma birra porque as coisas não lhe correram como planeado. Tinha-me esquecido de que ele podia comportar-se desta forma, mas agora, sem sequer me esforçar, estou a deslizar novamente para os sulcos bem gastos da nossa relação.

- Onde queres ir? - pergunto, sorrindo calmamente, como se estivéssemos simplesmente a ir até à praia, numa passeata nocturna. Vale a pena tentar: dar-lhe algum tempo para que a fúria dele passe e depois fazer de conta que não aconteceu nada.

- Que estás tu a dizer? - resmunga ele. - Não quero ir a parte nenhuma.

Ignoro estas palavras e esforço-me por manter a calma. - Enn tão vamos voltar para o apartamento. Está muito frio aqui fora.

- Era bom. Só que tu convidaste metade da população estudantil para te fazer companhia.

- Que disparate!

Ele olha para mim com ar de desdém e está prestes a continuar a longa marcha até ao mar quando, de repente, se volta outra vez para mim.

- Diz-me só uma coisa - diz atabalhoadamente. - Fizeste isto de propósito?

- Fiz o quê?

- Convidar alguém para ficar em tua casa para não teres de ficar sozinha comigo?

Olho para ele, boquiaberta. Será que ele é assim tão paranóico?

- Que disparate! Nem fazia ideia que tu vinhas. E ela só fica uma noite.

Estava à espera de que estas palavras o fizessem pelo menos hesitar, mas nem pisca os olhos. - Diz-lhe que vá para outro sítio qualquer.

- Ela não tem outro sítio qualquer.

- Ai não?! E desde quando és a mãezinha dela?

Resisto à tentação de retorquir, com azedume, Nem metade do tempo que tenho sido tua. Em vez disso, abano a cabeça com tristeza e tento pegar de novo na sua mão. O cabelo bate-me na cara, o ar gelado penetra através do meu casaco fino. - Ouve, querido digo, tentando apaziguá-lo -, vamos voltar para o apartamento. Se não a queres lá, hei-de encontrar um sítio onde ela possa ficar. Não há-de ser assim tão grave.

- Estás sempre a fazer isto - diz ele, de mau humor. - Precisamente quando precisamos de estar juntos, descobres um falhado qualquer a quem apaparicar.

Está à minha frente com ar amuado. A ralhar. Eu devia estar a abraçá-lo, a tirar Beth dos meus pensamentos, mas não consigo deixar de pensar que, no breve período em que estivemos separados, ele se transformou num estranho que já não sabe nada a meu respeito. Como é que pôde acontecer tão depressa? Então ele atira-se para a frente, agarra-me desajeitadamente pela cintura e puxa-me para ele. Fico tão surpreendida que quase tropeço e caio de encontro ao seu casacão quente e áspero antes de conseguir endireitar-me e recuar apressadamente. O pensamento é tão terrível que quero empurrá-lo para longe com toda a violência, mas agora instalou-se no meu espírito, como uma espécie de cabeçalho de jornal: Não me toques!

- Que estás afazer? - gaguejo. - Larga-me!

Ele volta-se bruscamente e, aos tropeções por sobre os montículos das toupeiras e os cardos, caminha em direcção ao mar. E na fracção de segundo em que vislumbro a cara dele, chocada, compreendo que ele me leu os pensamentos. - Matt! Espera! - grito, correndo atrás dele.

Quando consigo alcançá-lo, ele está junto de uma moita de arbustos e árvores mesmo diante do portão. Começou a chover, uma chuvinha fina que escorrega pelas nossas caras e nos molha e gela os lábios. Matt respira ofegantemente e limpa a chuva das faces.

- Que se passa, Cass? - pergunta, baixinho. - Que vem a ser tudo isto?

Engulo em seco. Não gosto daquele tom sério, da intensidade do olhar dele. Enche-me de um terror que alastra e que é impossível ignorar. - Não se passa nada. Sabes perfeitamente.

-Sei?

Encolho os ombros, fingindo displicência. Não quero estar a ter esta conversa. Quero carregar num interruptor invisível que apague esta última hora e que nos leve de regresso à zona do bem-estar. Mas Matt tem os olhos vermelhos e a testa vincada de rugas que eu ainda não tinha visto.

- Volta para Londres - diz ele. - Podíamos casar... - Morde o lábio e a voz torna-se um murmúrio. - Ter um bebé.

No momento em que diz estas palavras, percebo imediatamente que é isto que está na base da nossa ruptura, daquela fractura quase invisível, da espessura de um cabelo, que está agora a transformar-se num abismo. Começou por ser uma coisa tão pequenina, aquele desejo nunca mencionado: um assomo de inveja ao ver Josh com o bebé, uma sensação fugidia de vazio ao ver os carrinhos em Clissold Park. Mas, ao deixar-se alimentar pela luz, foi crescendo, separando-nos implacavelmente, como a hera que prolifera e se espalha pelos tijolos de um muro. E agora, ao retribuir o olhar de Matt, cujos olhos estão fixos na minha cara com uma intensidade que normalmente ele reserva para o ecrã do computador, há outra coisa que compreendo. A nossa relação terminou.

Abano a cabeça, triste. - Não posso - digo. - Lamento muito.

- Podias ir e vir todos os dias - continua, num tom intenso.

- Não quero dizer que tivesses de desistir do teu trabalho. Podíamos revezar-nos a tomar conta do bebé. Ouve, Cass, por favor, ao menos diz que vais pensar no assunto. Quer dizer, nenhum de nós está a ficar mais novo e tu davas uma mamã amorosa...

Mas eu estou a afastar-me dele, incapaz de aguentar aquilo mais tempo. As minhas meias são demasiado finas e, com os mocassins que trago e que são inadequados para este tempo, os meus pés estão a ficar gelados. Tenho a cara encharcada: a chuva escorre-me pelos olhos e pelo pescoço, uma chuva tristonha que tudo ensopa.

- Tenho de voltar para casa - digo. - Ver se a Beth está bem... No momento em que pronuncio estas palavras, a expressão

dele muda, o entusiasmo esfuziante é substituído pela repulsa. Se a Beth está bem! - grita. - Céus, mulher, que diabo se passa contigo? Fiz a viagem de Londres para te pedir em casamento e tu preocupas-te com uma maldita estudante!

Durante alguns instantes sinto-me incapaz de responder. Ele tem razão em certos aspectos, mas também está totalmente enganado. Afasto o cabelo da cara e tento controlar o conflito das minhas emoções. Os seus olhos têm uma expressão alarmada. - Não sabia que me estavas a pedir em casamento - digo, num esforço para controlar a minha voz. Tenho um nó na garganta. Queria poder rebobinar toda a cena, voltar ao ponto em que ele entra pela porta, ainda tão optimista. Talvez tivesse sido possível evitar isto através de uma série de desvios inteligentes. Mas agora estamos a atirar-nos de cabeça para um confronto ao qual já não consigo escapar.

- Pois bem, estou. - Uma expressão de súplica perpassa-lhe pelo rosto.

Tenho a sensação horrenda de que ele está prestes a cair de joelhos e a apresentar um anel cintilante numa caixinha preta. E, agora que isto se está a desenrolar diante dos meus olhos, vejo que se trata de um confronto que me tenho esforçado por evitar nestes últimos dez anos: aquela parte em que as coisas ficam sérias e me vejo obrigada a revelar a verdade. - Lamento - digo -, mas não quero casar.

Ele estremece, mas continua a olhar-me de frente. - E porque não?

- Apenas porque não quero.

Fico surpreendida com a calma com que ele absorve estas palavras. Talvez tivesse sempre sabido que eu ia recusar. Olha para a erva escura enquanto raspa na lama com o pé. Durante um instante de loucura penso que tudo vai ficar bem. Quando ergue os olhos, diz tranquilamente:

- Tem a ver com a tua família, não tem?

Não consigo desviar os olhos dos dele. Engulo em seco. Demasiado chata para se falar nela, era assim que costumava esquivar-me quando, no princípio, ele me perguntava por ela. Depois, mais tarde, quando insistia que lhe contasse mais, eu mostrava-lhe a única fotografia que conservei, em que estávamos sentados no sofá, em casa, no Natal antes de o meu pai morrer. Estou sentada ligeiramente afastada dos outros, mal-humorada e de cabelo cor-de-rosa; a mãe e o pai estão de mãos dadas, os grandes hipócritas; David está a olhar para o chão. É a última fotografia em que estamos juntos. As coisas são assim, dizia eu quando ele me pressionava. Há famílias que gostam da companhia uns dos outros, outras não. Por isso, deixamos o assunto por aqui, está bem?

- Amo-te - diz Matt de repente.

Esta declaração é de tal modo surpreendente que fico de boca aberta. Desde que nos conhecemos, sempre fizemos ponto de honra em nunca cair naquilo a que, desdenhosamente, chamávamos «lamechices»: nada de cartões no Dia dos Namorados, canções românticas ou declarações enjoativas. Mas nos olhos de Matt não há qualquer indício de ironia, de forma que é possível que, durante todo este tempo, ele tenha estado a fazer-me a vontade, a fingir que não gostava de sentimentalismos quando, em segredo, esconde uma paixão por ursinhos cor-de-rosa e rosas vermelhas.

- Desculpa, Matt - digo, em voz fraca. - Só quero estar sozinha.

Durante dois ou três segundos os olhos dele não largam os meus, não com a paixão alucinada de um amante rejeitado, mas mais num espírito inquiridor, como se estivesse a discernir coisas que até agora ainda não tinha entendido. - Porque tens tanto medo? pergunta, tranquilamente.

Sou incapaz de responder. Depois há qualquer coisa na cara dele que parece descair. Quero estender-lhe as mãos, passar-lhe os braços à volta do pescoço e abraçá-lo com toda a força, mas é tarde de mais, porque ele está a afastar-se de mim rapidamente, através do parque.

Quando regresso ao apartamento, ele já foi embora. Abro a porta, que está só no trinco, e é com uma mistura desconfortável de alívio e pena que constato que a entrada está vazia. Ao pisar o tapete, reparo que levou os sacos e o champanhe e que até os lírios desapareceram. O apartamento parece muito grande, uma caverna oca e cheia de ecos. Há uns minutos, estava cheio com as nossas vozes furiosas. Agora só consigo ouvir os sons distantes e incorpóreos da televisão de Jan no andar de baixo e dos carros na rua. O cheiro a mofo também regressou.

Volto-me na direcção da sala. Não sei o que deva sentir. As minhas emoções em conflito apagam-se umas às outras e sinto-me no meio de uma vertiginosa espiral de desorientação. Será o fim da nossa relação? Calculo que seja, mas a minha mente recusa-se a aceitar este facto nu e cru. Passo distraidamente a porta, vagueio até às janelas com as suas correntes de ar, onde fico a olhar vagamente lá para fora. Não sei se quero ou não ver Matt uma última vez, a desaparecer na esquina.

Não há sinais de Beth. Olho lá para baixo, para as árvores irrequietas, observando distraidamente uma lata a ser arrastada no passeio. Meu Deus, penso incessantemente, que está a acontecer? Matt é o meu homem: apesar das suas manias e da minha incapacidade de o verbalizar, ele é o amor da minha vida. E agora esta cena terrível, de dilacerar o coração. Ele veio com flores e champanhe pedir-me em casamento - como qualquer pateta dos heróis da Mills and Boon equilibrando-se sobre um joelho e trazendo um anel de diamantes aninhado num leito de veludo vermelho. E eu atirei-lho à cara.

Mas não é isso que eu quero, pois não? A ideia de casar com ele, de percorrer a nave da igreja num vestido de folhos para me tornar Mrs. Hughes é hilariante. Parti sempre do princípio que ele sentia o mesmo, mas talvez tenha avançado nesta direcção sorrateiramente, e a maneira como desdenhava dos casamentos dos nossos amigos provavelmente não passou de uma mera tentativa de me atirar poeira para os olhos. É evidente que não o conheço tão bem

 

1 Editora especializada na publicação e romances de cordel. (N. do E.)

 

como pensava. E, penso ao afastar-me da janela, na realidade ele não me conhece. Talvez a nossa confortável vida de casal tenha sido sempre uma charada, um lugar conveniente para nos escondermos.

Estremeço, reparando só agora quão gelada estou. No andar de baixo o barulho indistinto da televisão calou-se. Foi substituído por umas pancada cavas que a televisão deve ter disfarçado. O som vem da cozinha e, à medida que vai aumentando de intensidade, o meu corpo fica cada vez mais hirto, a ansiedade a crescer dentro de mim. Afasto-me da janela e atravesso a sala, com os dedos a latejar. Deve ser o vento a atirar qualquer coisa de encontro à janela.

Chego à porta da sala e agarro o puxador. O barulho começou com um arranhar fraco, mas agora, do outro lado do apartamento, parece que qualquer coisa - ou alguém - está a bater com toda a força de encontro ao vidro. Tento manter a calma, mas não consigo deixar de imaginar uma figura escura, de pé em cima do telhado plano, a bater com os punhos de encontro às portas de correr. Vai-te embora!, suplico. Por favor, deixa-me em paz!

Mas o barulho aumenta de intensidade. Paro do outro lado da porta e a minha mão escorregadia aperta-se em torno do puxador, enquanto reúno coragem para a abrir. A janela está trancada, digo para com os meus botões. Ninguém pode entrar. Contudo, ao agarrar o puxador, não consigo impedir que o refrão do pesadelo se repita uma e outra vez: o perseguidor voltou!

Mal consigo respirar, a adrenalina zumbe-me nas veias como uma droga dura. Não posso deixar-me aterrorizar a este ponto, penso insistentemente. Tenho de fazer alguma coisa. As minhas mãos estão a tremer tão violentamente que mal consigo dominá-las, mas, finalmente, agarro no puxador, giro-o e entro decididamente pela porta.

No momento em que faço isto o barulho cessa. Paro desorientada no átrio poeirento, a arfar. Não há barulho nenhum a não ser o tema de EastEnders, que Jan deve estar a ver. E agora apareceu Beth, desalinhada e com os olhos vermelhos à porta do meu quarto, embrulhada no meu edredão. Olho para ela boquiaberta e surpreendida. Não sei porquê, mas estava convencida de que ela se tinha ido embora e acho que vai ser complicado voltar a enfiar-me na pele da pessoa que eu era antes de Matt ter cá vindo.

- Olá - digo vagamente, tentando lembrar-me do comportamento que devo assumir. - Pensei que se tinha ido embora.

Ela abana a cabeça com ar ensonado. Os olhos, que parecem , maiores e mais escuros do que antes, estão fixos nos meus.

- Que barulho era aquele? - pergunto. - Era você?

- Que barulho?

- Vinha da cozinha, como se alguém estivesse a bater na janela , - quero dizer mais, mas calo-me pois não quero parecer histérica.

Beth fita-me por instantes, depois encolhe os ombros e deixa o edredão cair no chão. Ainda traz o meu vestido que se enrola, como uma pesada cortina de veludo, em volta das suas pernas.

- Estive a fazer uma sestinha.

Passa por cima do edredão e avança para a cozinha. Não parece espantada por Matt se ter ido embora. A meio do corredor, volta-se:

- Quer que vá ver lá fora?

Encolho os ombros, demasiado covarde para lhe pedir que o faça. Foi certamente uma alucinação, as minhas memórias excitadas que convocaram o barulho, nada mais. - Não, está tudo bem. Deve ter sido imaginação minha.

- Então vou começar a tratar do jantar - diz ela e desaparece na cozinha.

Brighton, 21 de Novembro

Querida Mãe,

Às vezes sinto que preciso de ti tão desesperadamente que não sei que fazer de mim. Ultimamente tenho pensado muito nisso, em como acabar com estes pensamentos. Pergunto-me como é possível precisar realmente de uma pessoa que, para todos os efeitos, já não existe. Nem sequer sei o teu nome, nem nada a teu respeito. Se passasses na rua, não te reconheceria. E tu, certamente, já não me reconhecerias. Mas, quando vens ter comigo à noite e tocas na minha cara com a tua mão doce e macia, só desejo que sejas real. Deve haver certamente alguns laços indefiníveis que nos unem, alguma característica genética que partilhamos. Como eu, gostas do vento a bater-te na cara mas detestas o calor do Verão? Sofres de dores de cabeça e de insónia? Tens pernas belas e fortes mas um temperamento inquieto? Quem é a tua família e de onde vens? És a minha história e o meu lar, percebes? E sem saber quem tu és, eu não tenho para onde ir.

E quando penso estas coisas que me interrogo se é apenas necessidade aquilo que sinto, ou se será algo mais. Algo mais parecido com ódio.

Quando acabamos o assado de nozes feito por Beth, sento-me junto das janelas a olhar em direcção ao mar. A tempestade esteve a preparar-se todo o dia e agora, enquanto as janelas abanam com o vento, as primeiras gotas de chuva esmagam-se nas vidraças. Encosto-me à parede. Beth deve ter-se retirado para o quarto porque não há sinais dela. Talvez esteja perturbada com o meu ar taciturno. Tentei ser sociável durante o jantar, mas estava tão chocada com a discussão com Matt que só consegui articular algumas frases. Ele queria casar comigo, mas eu recusei, expliquei, surpreendendo-me a mim mesma por conseguir dizer-lhe tanto. A verdade é que não quero falar disso. Também não fiz as honras do jantar vegetariano que ela preparou. Olhando com ar tristonho para o meu prato cheio de comida no fim do jantar, pegou nele e despejou-o silenciosamente no lixo.

Mas o facto de Beth estar ou não ofendida é de facto a última das minhas preocupações. É tarde de mais para lhe dizer qualquer coisa esta noite, mas a verdade é que quero estar sozinha. Pouso a cabeça nos joelhos, recusando-me a ceder às lágrimas. Mereço que isto aconteça, penso, porque aquilo que Matt quer é perfeitamente razoável. Porque não reagi eu como ele esperava? Devia ter-me derretido nos braços dele, murmurando «Sim». Devia, como muitas mulheres da minha idade, sem filhos, ansiar por um bebé. Seria a fase seguinte da minha vida, a próxima coisa em grande.

Imagino Sarah, com a sua menininha ao colo. Talvez possa parecer que tenho ciúmes e que essa seja a razão pela qual é cada vez mais difícil falar com ela. Mas a realidade é mais complicada. Não é que eu queira aquilo que ela tem ou, até, que tenha ciúmes da Poppy por a afastar de mim, embora possa haver nisso um fundo de verdade. Não, é porque o sucesso de Sarah me lembra o meu falhanço. Como é que todas essas mulheres conseguem? Fazem com que tudo pareça tão simples e natural; os esquadrões de Sarahs e de Mirandas, a enfiarem comida nas boquinhas macias e molhadas dos seus bebés; os exércitos de mulheres que carregam miúdos sobre a anca enquanto avançam para os parques infantis do mundo ocidental. Tanto tempo livre desperdiçado com coisas de «mãe», as suas vidas sacrificadas no altar da infância, aterram-me. Vejo-as todos os dias a empurrar os seus excelentíssimos bebés gorduchos nos carrinhos ou a transportá-los às costas, como rajás imperiais. E sei que, por mais sucesso e prestígio que eu consiga obter academicamente, elas têm um conhecimento que não possuo: sabem amar.

Sento-me, tentando escorraçar mentalmente as memórias que se instalaram à minha volta, mas estas são tão inevitáveis como poeira nuclear. Matt está melhor sem mim, penso desanimadamente. Precisa é de uma rapariga simpática, uma pós-graduada do tipo alegre e de bochechinhas rosadas, pronta a concordar com as opiniões dele, a ler tudo o que ele escreve e a pensar que ele é absolutamente maravilhoso. Podem instalar-se nos subúrbios de Londres, arranjar uma grande casa com jardim e produzir uma prole numerosa. Mas se pensa que essa mulher posso ser eu, está redondamente enganado. Certamente reparou no esforço que faço para evitar crianças. Em toda a nossa vida em comum fui sempre paranóica com a gravidez. Os bebés são nojentinhos, foi o que sempre disse. Todo aquele cocô e aquela baba, todas aquelas noites sem dormir - que seca!

Mas ali, afundada na cadeira junto à janela, sei que isso é mentira. Porque sinto cada vez mais um vazio tão profundo e negro que sei que nunca hei-de combater, um pesado fardo daquilo que não tenho e daquilo que preciso de dar. Porque tens tanto medo? Matt fez esta pergunta e eu fui incapaz de responder.

Levanto-me abruptamente e procuro a minha carteira por todo o quarto. Quando a descubro, muito arrumada num canto, abro-a e vasculho-a, à procura da minha agenda velha e muito usada.

Pronto, cá está. Tiro-a do estojo de plástico, procuro a fotografia que está guardada na contracapa, desdobro-a e estendo-a sobre os joelhos. É tão antiga e foi dobrada e tantas vezes que não tarda a que se rasgue pelos vincos. Natal de 1979, seis semanas depois de eu ter ido ver os Dreadheads. A minha família, fotografada pelo tio Bob. Contemplo a imagem granulosa como se pudesse encontrar a resposta que procuro inscrita nas nossas caras. Mas só vejo expressões entediadas: a mãe, que cortou o cabelo e fez caracóis, com o seu braço traiçoeiro por trás das costas do pai; David, com ar de quem está farto, e eu, com o meu penteado punk. O pai está a sorrir, como se tudo estivesse normal. Era dia de Natal, mas ninguém está para grandes celebrações.

Passo o dedo pelo papel, examinando a minha cara gorducha e mal-humorada. Retrospectivamente, percebo que o meu infeliz penteado e as bochechas rotundas me dão um ar de um donut gigante coberto de açúcar. Tinha feito um corte radical e pintado o cabelo de cor-de-rosa poucos dias antes, num sinal de vitória em desafio aos metaleiros. Depois disso, queimei ritualmente toda a minha colecção de discos na lareira. David e eu ficámos a contemplar solenemente os discos de vinil a retorcerem-se no calor, a derreterem-se em bolas pegajosas que entupiram a grade da lareira e fizeram a minha mãe ter um ataque de fúria. Ainda não tinha recuperado da intoxicação alcoólica da semana anterior. Acendia cigarros uns atrás dos outros só para chatear a mãe, mas ainda me faziam sentir pior. A verdade é que a única coisa que desejava era ir para a cama.

Mas nada disto interessava muito aos meus pais ou, melhor dizendo, eles nem davam por nada. Porque, naquela altura, uma coisa muito mais assustadora do que a minha recém-encontrada pureza tinha entrado em cena. Tinham-nos contado, na Noite de Guy Fawkes, e nós ficámos sentados em silêncio e em choque no sofá, enquanto a noite suburbana explodia com os estalos e os assobios do fogo-de-artifício das famílias vizinhas. Este ano não iríamos a nenhuma das festas de Guy Fawkes, anunciou a mãe, porque havia uma coisa que tínhamos de saber. Lembro-me de ter ficado a olhar para a cara dela, muito pálida, com o meu cérebro embotado.

Devem querer anunciar que vão separar-se, pensei, num assomo de excitação. E isso significava que a mãe ficava com David e eu ia viver com o pai.

Mas não tinha nada a ver com o estado do seu casamento. O pai estava doente, disse a mãe, com a voz a tremer. Tinha a ver com a tosse dele; tinha feito exames e as coisas não estavam bem. Quando disse estas palavras, os olhos toldaram-se-lhe de lágrimas e o meu pai pegou-lhe na mão, num gesto raro de afecto. Eu pus-me a olhar atarantada para a lareira, aquela que eu estava prestes a destruir com os meus LPs dos Saxon e dos Motorhead, ouvindo o silvar das chamas. Tinha uma doença terminal, continuou o pai. Provavelmente não se manifestaria para já; podia ser mais uma questão de anos do que de meses. Mas tinha sido obrigado a pedir uma licença por doença no emprego, por isso haveria uma baixa imediata dos rendimentos. Chegaria um momento em que a mãe teria de deixar de trabalhar no consultório para tomar conta dele. Talvez tivéssemos até de mudar de casa. Neste ponto, o pai olhou para as janelas da frente, tapadas, para esconder o fogo-de-artifício da noite, pelas novas cortinas de veludo cor-de-rosa que ele e a mãe tinham comprado recentemente. Acontecesse o que acontecesse, continuou, tínhamos de ter coragem.

Mas eu não me sentia corajosa: sentia-me horrivelmente traída. Era demasiado jovem para perder um pai, gemia eu para mim própria.

E não havia qualquer hipótese de ser feliz a viver só com a mãe. Mas, depois daquela rara manifestação de emoção na noite de Guy Fawkes, o assunto foi totalmente posto de lado. O pai foi ficando mais silencioso e mais alheado, passando mais dias em frente da televisão, enquanto o humor da mãe oscilava entre a calma forçada e a histeria mal reprimida. Estava prestes a acontecer uma coisa tremenda, mas nenhum de nós se atrevia a reconhecê-lo.

Os dias escoavam-se velozmente. David ia para a escola, eu fazia gazeta e o pai e a mãe continuavam com as suas vidas separadas. O Dr. Death - o lúgubre sócio do consultório onde a mãe trabalhava - telefonava regularmente e visitava também regularmente a casa. Eu não conseguia perceber por que razão a mãe tinha de murmurar ao telefone com ele durante tanto tempo ou a altas horas da noite, nem o motivo para o rápido beijo que um dia ele lhe deu à porta. Devia ter a ver com a doença do pai que, nessa altura, estava a avançar muito rapidamente. Fosse como fosse, as idas e vindas do Dr. Death pouco interesse tinham para mim porque se estava a tornar claro que o pai estava muito mais doente do que aquilo que o seu próprio médico assistente tinha previsto. Na primeira semana de Dezembro estava a dormir numa cama de campismo no rés-do-chão; na altura do Natal, uma enfermeira vinha trazer-lhe morfina. Passei a maior parte das férias no meu quarto, a dormitar, numa letargia tão profunda que parecia que não era o pai mas sim eu quem estava sob o efeito de drogas.

Na Páscoa levaram-no para o hospital. Lembro-me de o ver deitado numa grande cama metálica rodeado de aparelhos. Era um hospital católico: havia cruzes por todo o lado e, mesmo ao lado do cubículo onde estava o meu pai, ficava uma capela minúscula com losangos de vitrais à guisa de janelas onde, penso, achavam que devíamos ir rezar. Eu odiava as visitas, sempre distorcidas por uma horrível jovialidade fingida. Cada uma delas era pior do que a anterior. Não conseguia lembrar-me de nada para dizer e ele, depois de se meter comigo pela milionésima vez, por causa do meu cabelo cor-de-rosa e do aumento de peso, caía também num silêncio envergonhado. Às vezes, tossia tanto que nem conseguia respirar. Nessas alturas punha a máscara de oxigénio na cara e desviava os olhos, envergonhado da sua falta de controlo, até o ataque passar e os ombros se descontraírem. Parecia que já o tínhamos perdido, que estava já fora do nosso alcance.

O problema era que tudo nele estava tão diferente. Para começar, emagrecera imenso, a pele tão esticada sobre os ossos que parecia pisada e estaladiça. E também não trazia vestidos os pijamas habituais, mas uns azuis, grosseiros, que deviam ter sido comprados de propósito para o hospital. Também estava inesperadamente alheado. Às vezes, quando eu ia a meio de alguma conversa, o seu olhar desviava-se do meu rosto e eu compreendia que ele já não estava a ouvir-me.

A principal recordação que guardo dessas visitas é a sensação de um embaraço intenso. É claro que sabíamos o que estava prestes a acontecer, mas ainda éramos crianças e não sabíamos como lidar com a situação nem o que dizer. Por isso, quando não estávamos na escola ou a visitá-lo, continuávamos a viver como de costume.

David passava dias inteiros a atirar uma bola contra o muro da garagem e eu deitava-me na cama a olhar para as paredes. Não conseguia afugentar a letargia que se tinha instalado tão pesadamente. Agora, em vez de fazer gazeta à escola, as minhas ausências eram legitimadas pelas mensagens que a minha mãe escrevia: «Peço que seja justificada a falta da Cassandra. O pai sofre de doença terminal e ela está muito perturbada, com vómitos, dores de cabeça, etc...»

Eu tinha cada vez mais fome e resistia com êxito a todas as tentativas de dietas. Não era de espantar que estivesse a ficar tão gorda, comentava a minha mãe, ao ver-me engolir mais um prato de bolos; nunca tinha visto uma coisa daquelas. Ela fitava-me demoradamente, crítica, perplexa, bastante impaciente, depois desviava bruscamente os olhos e esquecia-se da pergunta que ia fazer. Quanto a mim, eu estava esgotada, deprimida, quase incapaz de sair da cama. Na escola, as outras raparigas tratavam-me com um interesse cauteloso. Eu tinha sido a insurrecta do quinto ano, a perturbadora que se sentava ao fundo da sala de aula, que inspirava a admiração universal e o medo pelo seu desdém em relação à autoridade. Agora tinha regressado e num papel diferente: um objecto de compaixão, um caso de estudo sobre quão baixo podem cair os grandes deste mundo. Quando pendurava o casaco ouvia-os bichanar a meu respeito: Coitada da Cassie Bainbridge. Sabes o que aconteceu ao pai dela? E depois, mais tarde: Já viste como ela engordou? Ao que parece a mãe dela anda metida com um médico. Bem podiam ter esperado um pouco.

O pai morreu no dia 21 de Abril, no dia a seguir ao aniversário de David. Sabíamos que a morte estava próxima, na véspera tínhamos pegado na mão dele, que já não tinha forças, e ficámos até as enfermeiras nos mandarem para casa, a nossa casa fria e claustrofóbica onde ficámos a beber Horlicks, evitando olhar uns para os outros. O óbito foi declarado às 3h05 da manhã, disseram-nos que ele não tinha saído do coma e informaram-nos de que a causa da morte fora carcinoma do pulmão.

Passados dois meses terminei o ano lectivo com sucesso, a mãe namorava abertamente o Dr. Death e eu tinha engordado doze quilos e meio.

-Olá!

Dou um salto e volto-me. Estava de tal forma mergulhada nas minhas recordações que me tinha esquecido de Beth. Mas agora ela está encostada ao umbral da porta, do outro lado da sala, a olhar para mim com ar de tédio. Como não quero que ela veja a fotografia, enfio-a rapidamente na carteira.

- Então, que tal? - digo, obrigando a minha voz a ter um tom displicente. - Pensei que tinha ido para a cama.

- Estou bem, só queria saber como a Cass estava.

Abano a cabeça tentando parecer calma e controlada. Ela é um amor em perguntar, mas não consigo entrar em grandes pormenores.

- Estou óptima - digo. - Só estou para aqui em devaneios. Beth dá um passo no interior da sala e estremece na corrente

de ar.

- Já voltou a pensar nalgum sítio onde viver? - digo, tentando manter um sorriso nos lábios.

Ela não deve ter ouvido porque não responde.

- Lembrei-me agora de uma coisa - diz, olhando-me fixamente. - Acerca daquele barulho que ouviu.

- Ah sim?

- Não sei se tem importância ou não, mas se calhar é melhor saber.

Aceno lentamente que sim, arrancando-me ao passado. Parece que passou muito tempo desde que eu estive junto daquela porta, demasiado assustada para a abrir.

- Continue - digo, apreensivamente.

- Ora bem, hoje à tarde, quando voltei das compras, estava um homem à espera junto do portão do jardim, com ar de estar a olhar para o seu apartamento. E, quando me viu entrar, olhou para mim de uma forma mesmo esquisita.

Sorri expectante, porque está a tentar ajudar, e agora acho que está à espera de um sinal de aprovação. Mas a única coisa que consigo fazer é olhar para ela de olhos arregalados.

- Oh! - digo eu num tom átono.

- Não sei se tem alguma coisa a ver ou não. Foi só aquela sensação que tive. Sabe como é, intuição feminina e esse tipo de coisas?

Engulo em seco. Quem me dera nunca lhe ter falado dos barulhos que vinham do telhado da cozinha, porque o homem que ela viu era provavelmente um simples agente imobiliário ou um cliente de Jan ou qualquer outra pessoa inocente. E é claro que ela só está a tentar ajudar. Mas agora, tal como acontece com tudo o resto, a imagem de um homem estranho a vigiar o meu apartamento vai fixar-se na minha mente entre os meus já excitados pensamentos, como uma chapada de gordura a ferver.

- E não era o Matt? - pergunto.

Ela encolhe os ombros, em sinal de que não seria de esperar que se lembrasse de como Matt é. - Para ser sincera, não lhe vi muito bem a cara.

Não consigo impedir-me de estremecer. - bom, nada de arranjar matéria para pesadelos - digo, em tom ligeiro. - De certeza que não foi nada.

- Provavelmente não. - Ela dá uma gargalhadinha, e a sua expressão está novamente animada. - Estou exausta - diz ela, quase estendendo a mão para o meu braço, mas sem lhe tocar. - Vamos para a cama.

Estamos outra vez junto à falésia, à espera. O céu está limpo mas, lá em baixo, o mar está agitado. Isto causa-me uma sensação desconfortável de enjoo, como se estivesse encurralada num barco que sei que vai naufragar. Quero dar meia-volta e desatar a correr, mas, inexplicavelmente, não consigo mexer-me. Olhando para as ondas enjoativas vejo que, no horizonte, se começou a amontoar uma crista de água que se vai avolumando cada vez mais à medida que avança para terra. Observo a onda, hipnotizada. Está agora tão grande que parece que absorveu o oceano inteiro, um vagalhão de água e espuma que, a qualquer momento, se vai desmoronar, varrendo implacavelmente a praia e a falésia.

O céu ficou negro e o sol não se vê, tapado pela imensa parede de água que se aproxima. Não vale a pena correr, não vale a pena fazer o que quer que seja para além de ficar ali e esperar. Oiço o rugido, sinto o vento a assobiar-me aos ouvidos. Uma gota de água molha-me a testa, depois outra. Daqui a nada vou ser engolida. Fecho os olhos com toda a força, encolhendo-me à espera do impacto inevitável e, de repente, abro de novo os olhos.

É de manhã. Estou deitada no chão da sala, embrulhada num edredão. Sinto frio e uma humidade desagradável. A verdade é que, percebo-o agora que um salpico de água me aterra na cabeça, está a chover em cima de mim. Perplexa, passo os dedos sobre a pele molhada. Outra gota de água bate-me no nariz. Soerguendo-me, vejo que estou deitada numa poça, e que estou a ser vigorosamente regada pelo tecto onde, no estuque directamente por cima de mim, se formou uma barriga na qual se acumula uma grossa pinga única. - Oh, não!

Analiso a linha da mancha. Deve haver um charco de água no andar de cima; talvez faltem algumas telhas, o que permitiu a entrada de chuva. A minha alcatifa também está húmida, não só no sítio onde eu estava deitada mas, também, junto das janelas de sacada, que deixaram entrar água em poças incontinentes através dos painéis inferiores. O prédio parece um navio a meter água, penso, irritada, incapaz de aguentar a mínima tempestade de Outono. Isto, juntamente com o perseguidor, deviam realmente fazer-me ganhar forças e pôr-me a mexer daqui. Mesmo que o homem só tenha existido na minha imaginação, o modo como a escada de incêndio desemboca no passeio é um convite aberto: Gatunos! Façam favor de subir!

Mas conseguir fazer algo mais do que as tarefas básicas parece uma impossibilidade. Não devo ter dormido mais do que três ou quatro horas esta noite e sinto a exaustão a pesar-me nos olhos, uma opressão que vou ter de carregar o dia inteiro. Levanto-me, estendo o edredão em cima do radiador cuja pintura está a descascar, numa vaga tentativa de o secar, e dirijo-me aos tropeções para o quarto. Acabo de me lembrar que esta manhã tenho uma reunião com alunos e professores e, se o meu relógio está certo e se forem de facto nove menos dez, só tenho meia hora para lá chegar.

Felizmente, Beth ainda está a dormir. Para além de umas gotas de chuva no peitoril da janela, o quarto parece estar seco. Vacilo às apalpadelas até ao armário, agarro numas roupas e visto-me rapidamente. Tenho de falar ao senhorio por causa do telhado. Depois telefono para o gabinete da universidade que trata dos alojamentos para arranjar um quarto para Beth. Pego num artigo académico que tenho de comentar no próximo número de Feminismo e História Oral, arranco a primeira página e escrevinho: «Beth! Podemos encontrar-nos mais tarde no campus Temos urgentemente de resolver os seus problemas de alojamento (desculpe, mas preciso de recuperar o meu quarto para visitas que chegam hoje à noite). Cass.»

É mentira, mas mais vale isto do que dizer a verdade: Desculpe, mas não aguento ter de me ocupar de si. Prendo o bilhete na porta de entrada, depois agarro na carteira que está em cima da mesa do átrio, bato a porta atrás de mim com toda a força e desço as escadas gastas a correr. Ao chegar ao patamar apercebo-me de que me esqueci do casaco, mas é tarde de mais para voltar atrás: sejam quais forem as calamidades que se estejam a abater sobre a minha vida particular, não posso dar-me ao luxo de chegar outra vez atrasada ao trabalho. com um assomo de nervosismo lembro-me que, dentro de breves semanas, tenho um encontro com o reitor para uma sessão de «auto-avaliação» sobre o desempenho do trimestre, uma questão meramente burocrática para professores que se comportam normalmente mas, para mim, algo que pode ser mais problemático. Nessa altura já os estudantes entregaram os seus formulários de avaliação do curso e de certeza que hão-de comentar que eu chegava sempre atrasada a todos os seminários, que escolhia displicentemente as leituras e que, vezes sem conta, começava uma frase para chegar a meio e não saber de que estava a falar.

São agora nove e vinte. Oh, meu Deus, meudeuuus, meudeuuuuuus! Dou a última curva das escadas e paro de repente. No átrio da entrada, Jan tem água pelos tornozelos, e está de balde na mão. Ao ouvir os meus passos, volta-se com uma careta. Traz uma capa amarela impermeável, um boné de baseball e umas calças de camuflado, enroladas sobre umas pernas com pele de galinha.

- Estive à espera desde as seis horas desta manhã - diz ela, em resposta à minha pergunta muda. - Ao que parece, todos os veículos de emergência do condado estavam ocupados.

Encosta o balde à anca, como se fosse uma mulher africana junto do poço, e abana a cabeça, provavelmente num gesto de desespero.

Olho para ela, ao mesmo tempo que me dou conta das paredes molhadas e dos pedaços de jornal que flutuam junto à porta.

- Que aconteceu? - pergunto, numa voz baixa e fraca.

- O pior temporal em duzentos anos, segundo o noticiário. Há fios eléctricos caídos por todo o lado, árvores a bloquear as estradas. Eu podia ter-lhes dito tudo isto porque vi nas cartas na semana passada, mas claro que nem me dariam ouvidos. - Dá uma risadinha irónica, volta a ocupar-se da água, tentando apanhá-la com o balde, embora sem grande resultado.

Respiro fundo.

- Precisa de ajuda?

- Só tenho um balde, por isso não servia de nada.

Graças a Deus! Sorrindo hipocritamente porque estou prestes a patinhar pelo átrio e a fugir pelas escadas da frente, acrescento:

- No seu apartamento também está assim?

- Só um bocadinho na entrada. A culpa é daquele cano entupido. Houve um espertinho qualquer que deixou a porta da frente aberta, por isso entrou tudo para aqui.

- Oh, céus, espero que não tenha sido eu. - Arregaço as calças e salto do último degrau para aquela que me parece ser a poça com menos água em todo o átrio. Mais um salto e chego à porta da rua.

- Só se tiver chegado depois da meia-noite - diz Jan, sem parar de apanhar água com o balde. - Aquele seu aluno fartou-se de tocar à campainha e no fim até tive de ir à porta e dizer-lhe que se fosse embora, por isso provavelmente fui eu que a deixei aberta.

Diz isto precisamente no momento em que estou a dar lanço para saltar para a liberdade. Aterro mal e a água enlameada salpica-me as pernas quando escorrego no tapete todo sujo. Segurando-me à moldura da porta, viro-me e pergunto-lhe, espantada: - Que aluno? - Tenho as pernas a tremer e não é de ter saltado.

- O tipo de óculos que tem andado por aí. Queria que eu o deixasse entrar, mas eu disse-lhe que, se não respondiam à campainha, o melhor que ele tinha a fazer era pôr-se ao fresco.

Sinto um aperto no estômago. - Queria que a senhora o deixasse entrar?

Ela acena que sim, como se fosse evidente.

- E era novo, de óculos?

- E um gorro azul. Para ser sincera achei que ele estava num estado psíquico tremendo. Muito perturbado. Via-se-lhe na aura.

- Mas eu não ouvi nenhuma campainha. Que é que ele queria? Jan observa-me durante alguns instantes. Depois encolhe os ombros.

- Pergunte-lhe - diz ela. - Ele ainda está aí fora.

Fito-a de olhos arregalados. Que diabo estará Alec a fazer à volta do meu apartamento? Precipito-me para a porta, derrapo nas escadas e olho em volta com toda a atenção. É ridículo, mas a verdade é que agora estou tão tensa que quase espero que ele salte de detrás de um candeeiro e me aponte uma faca ao pescoço.

Contudo, agora que estou cá fora, que a porta se fechou com um grande estrondo atrás de mim, e que o ar frio me bate na cara, o que vejo é uma coisa diferente. Chocada, contemplo a cena. A rua parece que foi varrida por um furacão. Os jardins da praça, onde ontem à noite estive com Matt, estão devastados: os relvados estão cobertos de galhos e de folhas e as árvores, agora despidas, foram despedaçadas, esgalhadas e algumas completamente arrancadas pela raíz. Quando espreito para a fachada lateral do edifício, percebo a origem das pancadas de ontem à noite: a escada de incêndio soltou-se das braçadeiras enferrujadas e está agora pendurada perigosamente ao lado do prédio, com os seus degraus de metal a tilintar ao vento. Mais dramático ainda, um dos automóveis estacionados junto ao gradeamento foi esmagado por um carvalho caído que, agora, jaz tragicamente atravessado sobre aquilo que resta do capô. Ramos e telhas estão espalhados pela rua. Sobre o mar, outra frente de nuvens inchadas e cor de chumbo flutua velozmente sobre o Canal. Apesar do vento, que ruge aos meus ouvidos, ainda consigo distinguir o barulho do mar.

Não há ninguém à vista: é como se o Armagedão tivesse chegado e eu fosse a única sobrevivente. Atravesso a rua a correr até ao meu carro que, tendo em conta o destino do automóvel que está do outro lado da rua, permaneceu milagrosamente intacto. Quando destranco a porta do lado do condutor, esta abre-se violentamente apanhada numa rajada de vento. Enquanto luto com ela, reparo numa figura alta que vem a correr na minha direcção. O meu coração dá um salto porque é Alec, sem qualquer sombra de dúvida.

Quero desesperadamente sair dali antes que ele me alcance. Atirando a pasta para o banco de trás, tento entrar rapidamente para o carro, mas é demasiado tarde. A mão dele apanha-me o braço.

Salto para trás, consternada. Ao pé do carro, Alec empurrou o capuz para trás e está a olhar para mim, através dos óculos embaciados.

- Dra. Bainbridge?

Engulo em seco. - Que quer?

Posso estar a reagir com demasiada intensidade, mas tenho as chaves apertadas entre os dedos, tal como me ensinaram nas aulas de auto-defesa feminina. Alec olha para mim gravemente. De facto é só um rapazote, com um buço macio no lábio superior e uma elegância angulosa, como um cão jovem, mas a verdade é que estar perto dele causa-me uma angústia terrível.

- Preciso de falar consigo.

Diz isto com uma tal ansiedade que fico com os nervos em franja. Olho para a porta do carro que continua a bater. Será que isto ainda tem a ver com Beth e com o seu trabalho? Será ele do tipo obsessivo, incapaz de esquecer uma coisa? Ou será pior ainda?

- Como sabe onde eu moro? - digo, friamente. Não quero que ele perceba o quanto me assusta.

- Tenho um quarto do outro lado da praça. Vejo-a entrar e sair todos os dias.

Olho para ele, incrédula. Poderia ser ele a pessoa que Beth viu ontem à noite junto do meu apartamento? Quando falo, a minha voz sai esganiçada. - Deixe-me em paz!

Fazendo peito contra o vento, Alec pisca os olhos. À volta da sua cara, o capuz de nylon do casaco ondula e enche-se de ar como um balão. Depois, de repente, ele desvia os olhos para o céu, onde as gaivotas agitam inutilmente as asas ao vento. Enrolaram-se-lhe nos pés as folhas de um jornal velho. «O Caos das Cheias Inunda o Sussex» leio distraidamente. Ele dá pontapés inúteis às páginas molhadas. Há uma longa pausa durante a qual me volto para o carro e depois ele parece tomar uma decisão: - A Beth não é o que parece - diz ele. - É só isso que lhe queria dizer. Sei que ela tem estado aqui e...

- Ah sim? E como é que sabe?

A cara cansada é percorrida por espasmos e lembro-me da sua superioridade assumida na aula, da forma como amesquinhou os outros estudantes.

- Vi-a aqui - diz ele.

- Anda a espiar-nos, é? - exclamo.

Ele franze o sobrolho, de mau humor, e enfia as mãos no fundo dos bolsos.

- Não gosto do que se está a passar - murmura ele. - Resolvi tomar o caso nas minhas mãos.

Isto parece uma nova ameaça. Apesar das rajadas de vento tão fortes que mal consigo assentar os pés na terra, a minha cara ficou escarlate.

- Meta-se na sua vida! - grito, por cima do barulho do vento.

- Não pode...

Não consigo apanhar o resto da frase porque o vento lhe abafa as palavras. Entro para o Carocha. Quero estar no carro, passar pelas árvores esmagadas e chegar ao refúgio do meu gabinete.

- Deixe-nos em paz! - grito. - Se tem algum problema vá procurar o seu orientador.

Depois, batendo com a porta e olhando resolutamente na direcção oposta, giro a chave na ignição.

A presença de Alec junto ao meu apartamento deixou-me abalada e chorosa. Enxugo os olhos, repetindo para comigo que não seja medricas, enquanto contorno a praça e viro para a via rápida que corre ao longo da falésia e corta em seguida para norte, em direcção à universidade. Porque está ele a perseguir-me assim? Justifica tudo com a sua preocupação fanática com os procedimentos correctos das aulas, mas o que sinto é que ele quer deliberadamente aborrecer-me. Depois, também há outras coisas. Tento puxar os fios de vários pensamentos e transformá-los em qualquer coisa mais substancial mas, tal como o vento, o meu espírito recusa-se a amainar saltando desenfreado de um assunto para outro. Aquilo em que não quero pensar é na cara no telhado.

Se ao menos não estivesse tão cansada ainda seria capaz de tentar perceber, mas agora estou a ver Matt a tropeçar na erva enlameada com uma expressão irritada, zangado comigo. Um novo surto de lágrimas pica-me os olhos. Ele foi o meu companheiro durante dez anos, o homem com quem eu pensava que ia viver o resto da minha vida. Porém, naqueles segundos medonhos, tudo o que era nosso foi violentamente arrancado e deitado fora.

Ao afastar-se da praia, a estrada passa por campos de golfe e lares de terceira idade. Carrego no pedal do acelerador e o Carocha avança inseguro pela estrada fora. Ao fundo das falésias vislumbro as ondas bravas a rebentarem com estrondo; de vez em quando um dedo de espuma chega ao bordo da falésia e asperge os carros que passam de água salgada. Ao lado da estrada, os candeeiros abanam e rangem precariamente, sentinelas bêbedas a fingir que estão sóbrias. O vento terrível abana e empurra o meu carrito. O temporal é de tal ordem que não tenho a certeza de que as rodas se manterão na estrada. Que fim tão apropriado, ser arrastada e derrubada por um ciclone. Doravante estarei sempre sozinha: não há escapatória possível deste lugar vazio.

Mal-humorada, agarro-me ao volante com unhas e dentes. Porque estarei tão surpreendida? Devia ter previsto o que ia acontecer há muito tempo. Por muito que se julguem adultas, as pessoas ficam inquietas quando chegam aos trinta. Racionalmente, ninguém são de espírito pensa que as noites sem dormir, as interrupções da carreira e o caos doméstico são perspectivas interessantes. Mas gradualmente vão sentindo que falta qualquer coisa, interrogam-se sobre as razões que as levam a viver de uma forma tão egoísta. E antes que o diabo esfregue um olho, dão por si a babar-se ao ver os bebés nas filas dos supermercados, os contraceptivos vão parar ao caixote do lixo e o casal encontra-se na cama a escolher uma lista de nomes possíveis.

Mas eu, não. Eu, nunca. E isso significa que nenhum homem vai querer ficar para sempre comigo. Porque apesar do seu individualismo deliberadamente construído, Matt é mais sensível aos ditames da sociedade do que aquilo que quer reconhecer. E o que a nossa cultura decreta é que chegámos ao momento de começar a produzir crianças. Durante uns segundos vejo à minha frente a praia e o barco e, de repente, oiço um estrondo e uma bátega de água obscurece o pára-brisas. Praguejo em voz alta, derrapo e ligo os limpa-pára-brisas no máximo. O mar está a chegar cá acima e a agarrar-me, tal como no meu sonho.

Tem a ver com a tua família, não é? Foi o que Matt disse ontem à noite. Enquanto o carro abana assustadoramente ao vento e os limpa-pára-brisas se agitam freneticamente, lembro-me da expressão perplexa dele. Vivemos juntos todos estes anos, mas nunca lhe contei nada, para além de um relato incompleto da morte do meu pai e da ruptura subsequente com a minha mãe. Ele não havia de perceber - como poderia? Os pais dele continuam juntos, a viver

- agora que chegaram quase ao fim de uma confortável meia-idade - na sua vivendinha no Lake District, fazendo viagens regulares à Provença. Matt teve uma infância feliz e banal. Não viveu a experiência de morte nem de perdas. E agora, bruscamente, lembro-me do Verão a seguir à morte do meu pai, e sinto-me cheia de auto-compaixão.

Esta não é a primeira vez que estou aqui a contemplar o mar, é esse o problema. E agora não consigo impedir que essas memórias venham à superfície e me afoguem.

20 de Agosto de 1980. O dia do casamento da minha mãe e ela acabou de nos informar: «vou casar com o Don, disse nessa manhã, cruzando os braços e desafiando-me com o olhar. «A cerimónia é daqui a duas horas e espero ver-te lá.

Eu fiquei desnorteada. Ela tinha-nos dito que ia ser um fim-de-semana em família na praia, não um maldito casamento. Retrospectivamente, acho que ela planeou tudo daquela forma. Esperando que quando nos tivesse seguros, instalados no hotel, oporíamos menos resistência. Estava bem enganada.

Passaram-se muitos anos, mas lembro-me de tudo: o quente sol matinal, o horrível enjoo que senti. Fiquei a vê-la arranjar-se para ir à conservatória, sem dizer nada, enroscada na cama de casal da sua «Suíte Pavilhão», numa agonia de ressentimento. Calçava sapatos brancos de salto, um fato de seda creme com chumaços nos ombros e brincos de mola com pérolas. As mãos tremiam-lhe um pouco quando os pôs nas orelhas. Suponho que deve ter tido a fantasia de me ver como uma bonita menina das alianças, porque, ao fazer o seu anúncio, tinha-me apresentado um medonho vestido de tafetá da Laura Ashley que devia ter escondido entre os sacos dela quando fizemos as malas para o fim-de-semana. Era três tamanhos abaixo do meu, mas, mesmo que me servisse, não o vestia nem morta. Saí da cama e disse-lhe que se fosse lixar.

Nova onda embate contra a falésia e é por pouco que não apanha o meu carro. Paro, abro a porta que o vento quase arranca e saio. Aqui a ventania é tão forte que mal me aguento em pé. Agarrando-me ao capô do Carocha, espreito por cima da borda da ravina para a espuma das ondas encrespadas. Não é um lugar lá muito seguro, mas não me importo. Nunca foi minha intenção que isto acontecesse, mas regressar a este sítio abalou os alicerces da minha vida e agora não consigo escapar às consequências. Quem me dera poder alterar os acontecimentos: quem me dera poder voltar atrás, com a sensatez de uma mulher mais velha, e salvar-me daquele dia calmo de Verão. Mas isso é impossível. Depois de insultar a minha mãe, saí do hotel à beira-mar e atravessei a rua para ir até à praia, onde me sentei a atirar seixos às ondinhas. Ia ser outro dia de esturricar: as vagas nuvens luminosas, baixas e rosadas que vogavam sobre as águas claras à hora do pequeno-almoço já há muito se tinham desvanecido e os banhistas já se estavam a despir e a delimitar os seus lugares nas rochas. Lá diante, junto ao molhe, dois rapazes instalavam as cadeiras de lona em frente ao mar. Ouvia o ruído da lona a esticar quando eles armavam as cadeiras, as suas vozes animadas e a música electrónica enlatada que saía do rádio deles: «Love Will Tear Us Apart», cantavam e eu sentia-me mais doente do que nunca.

Como podia ela fazer uma coisa destas? A minha mãe sabia quanto David e eu odiávamos o Dr. Death. Ele tinha andado constantemente à nossa volta desde a morte do pai, esmagando a gravilha da nossa álea com o seu MG vermelho e atravancando a sala com o seu corpo enorme e desajeitado. Protegia obsessivamente o carro, guiando confrangedoramente devagar e, uma vez, até gritou com David, quando a bola com que este jogava aterrou, cheia de lama, em cima do pára-brisas do MG. Foi a única ocasião em que se permitiu deixar cair a máscara obsequiosa que sempre afivelava. Até casar mostrou-se sempre meticulosamente amável, dando gargalhadinhas inúteis e despenteando-nos sempre que passava por nós, como se fosse isso o que convinha fazer com os jovens. A minha principal recordação daquela época é ele connosco na sala, à espera da mãe, trauteando uma musiquinha como se estivesse muito satisfeito, enquanto nós o ignorávamos completamente em frente da televisão. Quando a mãe aparecia, animada e corada de expectativa, ele punha-se de pé num salto, aliviado, conduzia-a para fora da sala e levava-a para o carro, com uma mão protectora pousada sobre o ombro dela. «A vossa pobre mãe», costumava ele dizer e ela suspirava e punha a cabeça no ombro dele, a fingir-se de muito pesarosa.

Aquilo punha-nos doentes. Sempre que ele estava de costas voltadas, David e eu levávamos os dedos à boca e fingíamos vomitar. Queríamos o nosso pai, não este velhadas de sessenta e tal anos com as suas gravatas de seda e os seus tacos de golfe. Apesar das discussões e dos comentários azedos, eu sempre tinha pensado que os nossos pais se amavam. Mas, ao ver as brincadeiras da mãe e do Dr. Death na cozinha, percebi que estava enganada. E agora ele ia ser meu padrasto. A mãe tinha-me dito que «sob pena de um castigo severo», eu tinha de assistir à cerimónia que devia ter lugar ao meio-dia na conservatória do outro lado da rua do molhe. O meu relógio disse-me que eram onze e meia. Atirei uma última pedra para a água, levantei-me e caminhei na direcção oposta.

Regressei a meio da tarde. Tinha caminhado ao longo de toda a praia, passando pela marina, junto aos barcos que, tilintando, lutavam por espaço nas suas águas e até fora dela, e depois pelas arribas brancas e escarpadas que se erguiam abruptamente da margem. Resolvi que ia fugir, escapar-me para algum sítio onde ninguém me pudesse encontrar. Ou talvez cortasse pura e simplesmente os pulsos, espalhando sangue por sobre o leito conjugal dos recém-casados. Isso havia de lhes causar remorsos.

A maré estava baixa, o mar tinha recuado, deixando à mostra a praia e hectares de rochas verdes escorregadias. Para lá do caminho, as crianças brincavam com os baldes e os camaroeiros enquanto os pais se abrigavam à sombra do quebra-mar. Sentia-me cheia de ódio, não só pela mãe e pelo Dr. Death, mas por todas as pessoas naquela horrenda estância balnear. Doíam-me as pernas e as costas começavam a incomodar-me. Passado um bocado tive de parar para descansar, levando uma mão à coluna para tentar esfregá-la. Quando cheguei ao hotel estava tão exausta que mal conseguia andar e a cabeça latejava-me por causa do sol impiedoso. O casamento já tinha acabado há muito, mas, felizmente, não havia sinais da mãe nem do Dr. Death. Atirei-me para cima da cama, enrosquei-me e adormeci.

Acordei ao som da voz da minha mãe a ralhar comigo. Ao abrir os olhos, vi que ela estava debruçada sobre a cama, a abanar-me pelo ombro. Tinha a cara vermelha, o hálito azedo do champanhe.

O Dr. Death estava parado ao lado dela. Penso que David estava lá em baixo a ver televisão. Pouco a pouco fui tomando consciência do que ela estava a dizer.

- És uma cabra egoísta - queixou-se ela. - Pedi-te que fizesses uma coisa que era terrivelmente importante para o Don e para mim e, deliberadamente, fizeste precisamente o contrário daquilo que era o meu desejo. Esperámos por ti lá fora por mais de meia hora. Quase perdemos a nossa vez.

Rebolei na cama, virando-me para cima para olhar para ela. Tinha havido um tempo em que ela era o centro do meu mundo. Teria dado tudo para me sentar ao colo dela e abraçar-lhe o corpo, macio e quente. Ela lia-me histórias e fazia-me cócegas nos pés e eu enchia-a de beijos húmidos de bebé. Mas agora tudo isso pertencia ao passado. Eu estava em plena adolescência e desprezava tudo nela: o tom de mártir da sua voz, os fatos baratos da Marks & Spencer que agora resolvera usar, o modo como se referia a si própria na presença do Dr. Death, chamando-se «menininha». Quando os nossos olhos se encontraram, ela quase cedeu. Suponho que ainda me amava e era um choque ver o ódio na minha cara.

Estendendo a mão para a do nojento marido, respirou fundo, como se estivesse a fazer um esforço de santa para não se exaltar e disse:

- Agora fazes o favor de te levantar e de te vestires para vires jantar? Reservámos uma mesa para as oito e já passa das sete.

Mordi os lábios e desviei os olhos. - Vai-te lixar! - respondi.

Fungando como uma criancinha, volto para o Carocha e entro no carro. Ontem à noite Matt perguntou-me pela minha família, mas eu não consegui responder-lhe. Talvez lhe devesse ter contado tudo. Se eu lhe tivesse contado, ele perdoar-me-ia?

Milagrosamente, chego ao trabalho com cinco minutos de antecedência. Não quero ir ver os meus e-mails, nem sequer estar sozinha no meu gabinete, com a possibilidade de Alec andar a cirandar por ali, por isso vou ao gabinete de Maggie e faço de conta que estou a ver a correspondência que chegou para mim. Quando entro, ela olha para mim por cima do pince-nez. É uma mulher pesada, com o cabelo grisalho amarrado num carrapito e o peito ornamentado com fiadas de contas de madeira. com os seus olhares de desprezo e a sua capacidade de pôr os professores na ordem, a secretária do nosso departamento tem uma fama bastante assustadora. - Está um ventinho - diz ela, franzindo o sobrolho ao ver o meu cabelo, que deve estar parecido com uma meda de palha no meio de um furacão.

- Pois está mesmo. - Dou uma vista de olhos displicente ao meu correio. São as palermices habituais: um espesso maço de fichas do gabinete dos pós-graduados, um monte de trabalhos, um par de brochuras sobre publicações académicas. Quando chego ao envelope do topo, rasgo-o distraidamente, reparando apenas vagamente que a minha morada foi escrita em maiúsculas e que foi posto no correio fora da universidade.

No entanto, quando retiro o seu conteúdo, tenho a mesma sensação de angústia. Olho para o que tenho na mão durante cinco segundos ou menos, depois, em estado de choque, volto a meter aquilo no envelope. É outra fotografia minha, ampliada. O fundo é indistinguível, mas podia ser o campus, porque há umas figuras esbatidas atrás de mim e uma série de degraus, talvez os que conduzem ao Bloco D. Pareço estar sozinha e tenho um aspecto particularmente desmazelado, de sobrolho franzido, que eu só posso interpretar como estando num estado de grande agitação. O meu cabelo desalinhado cobre-me a cara. Em cima alguém escreveu com caneta de feltro vermelha:

Não é ela. És TU!

A tinta da caneta de feltro manchou-me os dedos. Limpo-os à camisola, mas isso não me impede de me sentir suja. Sinto uma tontura de medo, e o estômago aperta-se-me, como se estivesse numa montanha-russa, mas sem o prazer. Será que foi também Alec que enviou isto?

- Está a sentir-se bem, Cass?

Quando finalmente consigo que a minha voz funcione, esta sai tensa de histeria reprimida. - Sim, estou bem, obrigada.

Tem de ser de Alec. Deu-lhe para uma vendetta obsessiva em relação a mim e está a tentar intimidar-me e assediar-me, tal como fez com Beth na aula. Estou junto à fila de tabuleiros de metal, cambaleando e tentando perceber as coisas. Se ao menos não estivesse tão cansada, talvez conseguisse concentrar-me. O «ela» refere-se obviamente a Beth. Esta manhã ele disse qualquer outra coisa que me incomodou, mas não consigo lembrar-me o que foi. Tudo quanto sei é que, desde o início do trimestre, ele me sabotou e ameaçou deliberadamente e agora cheguei à fase em que tenho de tomar uma atitude. Volto a pôr o envelope no meu tabuleiro e viro-me para Maggie, que está calmamente a escrever no teclado.

- Tem as fichas do terceiro ano de Humanísticas ?

Sem levantar os olhos, ela aponta para um grande armário de arquivo. - Segunda gaveta a contar de baixo.

Tenho só um ou dois minutos para fazer isto. Acocorando-me junto ao armário, abro a gaveta e começo a percorrer rapidamente as fichas. Se a letra da fotografia for igual à do formulário de candidatura de Alec - que está certamente no arquivo -, então posso apresentar directamente o caso às autoridades universitárias ou até à polícia. Não tenho exactamente a certeza de que tipo de caso é o meu, mas estou cada vez mais decidida a tomar em mãos a situação. O apelido de Alec é Watkins. Folheio o «W» e encontro três. Lila Washemi, Jonathan Welborough e Alec Watkins.

- Hmmmf!

Tiro para fora a ficha e dou-lhe uma olhadela rápida. Reparo que ele fez os últimos anos do secundário em Potters Bar, passo os olhos pelas excelentes referências do director da escola, vejo que concluiu o secundário com excelentes notas e que não preencheu o espaço referente aos nomes dos pais. Tal como o seu trabalho, e irritantemente, também este formulário foi dactilografado. Enfio novamente o ficheiro no arquivo e levanto-me a custo. Segundo o relógio na parede de Maggie, a reunião já começou. Devia ir a correr pelos corredores, mas há mais qualquer coisa que me está a incomodar.

- Oiça, Maggie, desculpe interrompê-la, mas são só estas fichas ?

Ela levanta os olhos do trabalho, com uma expressão sofredora.

- É o que diz na gaveta, não é? Se falta alguma é porque a tiraram sem minha autorização. - Olha para mim, zangada, espreitando por cima do pince-nez, já com uma censura a formar-se-lhe nos lábios.

Sem me atrever a insistir, dou meia-volta e sigo apressadamente pelo corredor fora em direcção à minha reunião. Pelo caminho oiço o meu telemóvel tocar, algures dentro da minha carteira. Nem sequer sabia que o trazia comigo, e muito menos me lembro de o ter ligado, mas pouso a carteira e procuro-o desesperadamente. Porque diabo fazem estes malditos aparelhos tão pequenos? Finalmente descubro-o, enfiado entre a agenda e um par de meias cheias de malhas caídas. Estou espantada por estar ligado. Enfiando a carteira debaixo do braço e segurando no telefone com a outra mão, continuo o meu caminho para a reunião.

- Estou?

- Sou eu.

O coração cai-me aos pés. Ob, céus, agora não!

- Olá, Beth - digo, sem qualquer entusiasmo.

- Desculpe telefonar-lhe, Cass - diz a vozinha do outro lado da linha -, mas estou com medo.

Sinto o meu estômago apertar-se novamente. O que é agora?

- O que foi?

- Está um homem no telhado.

Engasgo-me e tropeço e tenho de me agarrar à parede para não cair. Estudantes passam por mim. Maggie, quase enterrada debaixo de uma enorme montanha de fichas, faz um passinho de dança para se desviar de mim. Tendo realizado com sucesso esta manobra, ultrapassa-me e continua o seu caminho a correr.

- Estava a bater à janela - continua Beth. - Vi-o ali, em pé.

- Oh! Valha-meDeus!

Do outro lado da linha, ela cala-se.

- Que aspecto tinha? - pergunto, em voz roufenha.

- Não lhe vi a cara, só o vi de costas.

- Tem de chamar a polícia.

Talvez ela esteja a acenar que sim. Mas o que diz, num sopro que dá arrepios, é :

- Vem para casa, Cass? Por favor? Estou assustada de mais para conseguir sair.

Mal posso respirar. Como é que posso voltar agora ao apartamento?

Sou demasiado covarde para enfrentar o que quer que esteja lá à minha espera.

- Chame a polícia - guincho.

Ou fiquei sem rede ou ela pousou o telefone, porque só se ouvem uns estalidos e depois emudece. Olho para ele, estonteada. Então, afinal de contas, o perseguidor não foi imaginação minha. Estava lá realmente alguém que, ou queria entrar em casa, ou queria assustar-me. E agora está de volta.

Mas desta vez sei quem é. Deve ter ido directamente para a janela depois do nosso confronto junto ao carro com o desejo, por qualquer razão perversa, de aterrorizar a pobre Beth. Foi, como sempre suspeitei, Alec quem enviou os e-mails, quem meteu no correio a fotografia de hoje, e Alec quem está por detrás daqueles telefonemas arrepiantes.

- Bom-dia, Cass! Vens à reunião?

Dou meia-volta. Por detrás de mim, Bob Stennings aproxima-se rapidamente e não sou suficientemente ágil para o evitar. Arrasta-me, quase me passa um braço por cima dos ombros e vai falando acerca da reunião de reestruturação curricular em que espera que eu participe. - Por isso seria uma grande ajuda se também te envolvesses nisto! - diz ele, todo entusiasmado, e praticamente empurra-me para dentro da sala onde está a decorrer a reunião.

- Precisamos é de novas ideias, de novas energias, de sangue novo!

Olho para ele de boca aberta, demasiado apalermada para falar. Devia pedir-lhe licença e ir telefonar à polícia ou despachar-me a ir ao apartamento para ver se Beth está bem, mas, como um carro cujo motor aqueceu demasiado, estou em tal estado que não consigo empreender qualquer acção. É como se tivesse caído de uma grande altura e, apesar de a minha estrutura exterior ter permanecido intacta, todo o interior está partido: posso parecer ilesa, mas as minhas reacções normais já não funcionam.

A sala está cheia. As cadeiras em roda da grande mesa rectangular que está no meio estão ocupadas sobretudo por colegas meus que bebericam chá ou conversam em voz baixa e estudam as resmas de papel colocadas em frente deles. Junto às paredes da sala encontram-se cerca de dez estudantes, a maioria a cabecear ou com ar de tédio. Quando me atiro para o primeiro lugar vago, vejo que as pessoas se voltam para olhar para mim. Julian, por exemplo, que está sentado do lado oposto à porta, levanta os olhos e perpassa-lhe pelo rosto uma expressão irónica. Depois, demasiado depressa, desvia o olhar.

- Ora bem, ora bem, ora bem! - exorta Stennings, abanando os braços como um instrutor de Educação Física maluco. - Vamos a isto!

Começa a tagarelar sobre a próxima reestruturação curricular. Oiço mencionar o meu nome e consigo sorrir e acenar com a cabeça, espero que nos momentos apropriados, mas não oiço uma palavra do que estão a dizer. Só consigo pensar nas palavras de Alec: Não é ela. És TU!

Tenho de contactar a polícia ou alguém que possa tomar providências - quem? - e apresentar queixa mas, agora que a reunião começou, sinto-me incapaz de mexer. Nada disto devia ter tanta importância. Devia ser capaz de lidar com um aluno bizarro e obsessivo sem ficar feita em farrapos; não devia ficar tão assustada. Mas agora que Madge Wernski tomou a palavra e está a falar demoradamente acerca da importância dos cursos interdisciplinares, recuo no tempo, incapaz de parar.

O problema é que, em tempos, já fui assediada. E agora, finalmente, não consigo deixar de recordar o 11 de Novembro de 1979: a noite em que tudo mudou.

Senti-me enjoada no momento em que entrei no beco e me encostei aos blocos de cimento húmidos. Vomitei para cima de um caixote do lixo municipal que tinham empurrado para ali. Por instantes, pensei que a minha cabeça ia explodir, que ia despejar as minhas entranhas para cima do lixo, das latas e das caixas de esferovite dos hambúrgueres, mas passado um bocado as convulsões cessaram e senti-me ligeiramente melhor. Endireitando-me, tentei focar a parede coberta de graffitti e o pedacinho de céu acima de mim. A noite de Inverno estava gelada e comecei a tremer violentamente. Devia voltar ao concerto e recuperar o meu casaco, pensei vagamente, e depois tentar ir para casa. Mas a ideia de voltar àquela confusão nauseante era grotesca. Cambaleante, consegui voltar-me e dar um ou dois passos em direcção à estrada.

Tinha começado a cair uma neve miudinha e esporádica. À minha frente a rua estava surpreendentemente vazia. Até os seguranças, que poucos minutos antes tinham estado a fumar e a rir nas escadas do Odeon, haviam desaparecido. Pensando confusamente que talvez encontrasse um autocarro que me levasse à estação, fui-me arrastando, cambaleante, pelo passeio. Já nessa altura me tinha apercebido de que alguém vinha a caminhar atrás de mim. Mas só tinha quinze anos e, apesar de todas as minhas pretensões a durona e espertinha, era extremamente ingénua.

Enrolei-me nos meus próprios braços e continuei a andar mais uns três ou quatro minutos. Eu estava habituada à segurança insípida dos subúrbios, mas isto era Peckham e, apesar de estar tão bêbeda, começava a aperceber-me de que não era um lugar muito bom para andar sozinha à noite. As grandes casas vitorianas do outro lado da rua estavam meio em ruínas, com os jardins da frente cheios de silvas; deste lado já não havia mais lojas fechadas com as suas grades de segurança e cadeados e eu estava agora numa zona de terrenos baldios ladeada por um passeio esburacado. Estuguei o passo, começando rapidamente a ficar sóbria. A pessoa que caminhava atrás de mim continuava lá e eu estava a sentir-me cada vez mais assustada. Se ao menos conseguisse chegar a outro troço de rua mais animado, compubs, gente e luzes! Mas a estrada estava escura como breu. Quando uma carripana velha, com os vidros fumados, passou por mim, o meu coração bateu com mais força. O carro abrandou e os seus ocupantes deram-me uma boa olhadela. De lá de dentro brotava música reggae em altos gritos e via-se nitidamente o carro baixo a abanar. Olhando em frente com ar altivo, continuei a andar, só me atrevendo a respirar quando o carro finalmente acelerou.

Oh, meu Deus! Cobri com a mão a minha boca fétida. Tinha-me lembrado de repente que a minha busca de autocarro era inútil: não tinha dinheiro. Tudo aquilo de que precisava para poder voltar para casa, incluindo o bilhete de comboio, estava no meu saco, actualmente guardado no vestiário do Odeon. E isso significava que tinha de dar meia-volta e passar novamente pela escuridão do terreno baldio. Insegura, voltei-me e comecei a percorrer cambaleante o mesmo caminho, pelo passeio que estava cada vez mais escorregadio. Mas o que vi nessa altura fez com que os meus joelhos se fossem abaixo. A cerca de uns cinquenta metros, encostado à barreira de segurança que separava o passeio do terreno baldio, estava um homem.

Soube imediatamente que aquela era a pessoa que tinha vindo a seguir-me. E, agora, tinha a certeza de que ele estava à minha espera. Era demasiado tarde para recuar porque estava quase em cima dele; era de certeza tarde de mais para correr. E, assim, olhando fixamente para as casas entaipadas do outro lado da rua, fui caminhando, passo a passo, aproximando-me inexoravelmente dele. De certeza, pensava eu, que há-de passar um carro. Ou até um polícia. Não haveria polícias em Peckham?

Mas agora ele tinha-se afastado da barreira e cortava-me o caminho, de braços cruzados. E, com um alívio mitigado, percebi que não era um qualquer atacante encapuzado, mas sim o homem com quem tinha estado a dançar no concerto.

- Olá! - disse ele. - Andas perdida?

Era a primeira vez que falávamos. Tinha um sotaque surpreendentemente snoh e era mais baixo do que eu me lembrava, com um físico delgado e seco.

Dei um risinho nervoso, ainda não totalmente sossegada. Esqueci-me que não trouxe dinheiro.

- Vais para casa?

- vou.

Ele continuava no meio do caminho, quase a bloqueá-lo.

- Queres boleia?

Abanei a cabeça. O que eu queria era uma proposta cavalheiresca de me acompanhar ao Odeon e depois que me deixassem em paz. - Não, 'tá tudo bem. - Encolhi os ombros, tentando parecer crescida. Ele devia ter mais uns dez ou quinze anos do que eu. Sem saber que mais fazer, voltei a rir. Devia ser do frio, porque não conseguia parar de tremer.

- com licença.

Mas ele não se mexia. - Está tanto frio - disse. - Tens de aquecer. Porque não vens sentar-te comigo? - Sorriu-me de esguelha, mas os olhos não se moveram. Estava outra vez a sentir-me assustada e quase desejava que o carro de há pouco voltasse a aparecer.

- Tenho de voltar para lá - digo, tentando mostrar-me amável, mas firme.

- És uma bela dançarina, não és?

Dei um passo para o lado, afastando-me dele, ainda a tentar fazer frente e a parecer desenvolta. - Tenho de voltar lá - repeti, mas desta vez mal consegui pronunciar as palavras.

- Tens mesmo?

- Deixa-me passar.

Parecia um desafio. No momento em que disse isto percebi que tinha cometido um erro, mas era tarde de mais porque ele já me tinha agarrado pela cintura. - Anda daí, querida - dizia ele e já me estava a empurrar de encontro à barreira, com um braço de ferro a rodear-me a cintura e íamos tropeçando ao recuar. - Não sejas tímida.

- Não, por favor - murmurei. - Não quero.

Mas ele tinha-me bem segura e eu não podia fazer nada. Através de um buraco na barreira caímos na erva enlameada e ele trepou para cima de mim, pondo a cara dele, que cheirava a vinho, tão perto da minha que eu quase não conseguia respirar. Sentia a lama gelada penetrar-me os fundilhos das calças; a bota de cowboy do meu pé esquerdo tinha misteriosamente voado não sei para onde.

- Não - continuava eu a dizer, pateticamente. - Não, por favor.

- Só quero um beijinho e um mimo. Há bocadinho não me largavas.

- Pára, pára...

Mas é claro que ele não parou. As minhas súplicas inúteis perderam-se, enterradas sob o desejo dele. Enfiando o joelho entre as minhas pernas, abriu-mas com uma eficiência profissional, como um talhante a separar a carne da articulação. com as mãos nos meus seios, arrancou-me o soutien ligeiro de adolescente, como se fosse uma criança impaciente a desembrulhar um rebuçado. Apertou os meus mamilos com tanta força que eu gritei de dor, enquanto com a outra mão se ocupava dos meus jeans e calcinhas. Eu continuava a tentar esgueirar-me para um lado, na esperança de o fazer sair de cima de mim, mas era tarde de mais pois ele já tinha conseguido rasgar a minha roupa e estava a segurar-me com toda a força, continuando a abrir-me as pernas com os joelhos.

- Sai de cima de mim!

Senti-lhe a erecção, quente e elástica, na parte interior da minha coxa e de repente ele puxou-se para cima e penetrou-me, com uma violência que me fez gritar de choque.

- Então? Alguém quer acrescentar mais qualquer coisa?

Levanto os olhos, num sobressalto, e constato que não estou a ser violada num caminho enlameado em Peckham, mas sim a participar numa reunião de ensino numa sala de seminário, no Sussex. Devo ter estado ali sentada mais de dez minutos, perdida no vazio, enquanto a reunião ia decorrendo à minha volta. Mas agora que as recordações regressaram não posso fazer nada para lhes pôr cobro. Durante todos estes anos nunca disse nada a ninguém. Mas nunca esqueci, porque fez sempre parte de mim: primeira parte de minha história secreta.

Se ao menos tivesse contado à mãe na manhã seguinte o que me tinha acontecido... mas nunca o fiz porque ela estava zangada comigo por causa do tapete vomitado e eu não consegui fazer outra coisa que não fosse refugiar-me no meu humor de escapatória: um silêncio amuado. Se eu tivesse podido confiar-me a ela, que teria acontecido?

Atrás de mim a porta abre-se e fecha-se com um clique abafado e alguém passa em bicos de pés, alguém que chegou atrasado e procura um lugar para se sentar. Afasto ligeiramente a minha cadeira para deixar passar e olho para cima, ficando imediatamente gelada.

É Alec. Inspecciono-o, desejando que ele possa desaparecer num sopro de fumo tóxico. Agora que ele entrou na sala, o terror que senti com o telefonema de Beth transformou-se numa coisa mais próxima da fúria. Será que ele está deliberadamente a seguir-me? Como se atreve a assustar-me assim? E como ousa trazer de volta estas recordações? Finalmente ele encontrou uma cadeira do outro lado da sala na qual se senta na bordinha, agarrado aos seus papéis que analisa atentamente. O impermeável encharcado está num monte aos seus pés. Mordo os lábios, tentando respirar normalmente. Algures, perto do meu ouvido, um estudante está a explicar pormenorizadamente a forma como o seu cartão da biblioteca deixou de funcionar.

- Muito bem - diz Bob Stennings, quando há uma breve acalmia. - Vamos referir esse assunto ao departamento de recursos e passar ao ponto seis: Preocupações dos Estudantes.

Olha rapidamente em volta da sala, esperando obviamente que não haja nada a mencionar no ponto seis e que possamos passar adiante. Contemplo os meus pés, a pensar se não faria melhor em levantar-me pura e simplesmente da minha cadeira e sair da sala. com Alec tão perto, duvido que consiga continuar aqui sentada. Mas é tarde de mais, porque agora ele está a pigarrear e a levantar a mão, e o violento bater do meu coração diz-me que, seja o que for que aconteça aqui, eu não vou poder escapar a Alec.

- Alec? - diz Bob Stennings. - É o representante do segundo ano. Tem algum assunto a tratar?

Alec aclara a voz e passa a mão pelo cabelo húmido. Está com ar de doente, com olheiras escuras e um brilho pouco saudável na cara. Poderia ter sido realmente ele que esteve a espreitar-me naquela noite? Ao fundo da mesa, Bob Stennings ainda está a examinar os documentos.

- Tem a ver com o ensino? Gostava de me ater à ordem do dia.

- É sobre a cadeira de Métodos Históricos - responde Alec, virando-se agora para olhar para mim. Parece estar com dificuldades em encontrar as palavras porque fala com voz presa e embargada.

- Continue.

- bom, o problema é que estou muito preocupado com o facto de não estarem a ser cumpridos procedimentos administrativos básicos.

Encosta-se na cadeira, remexendo nos óculos, e a sala inteira volta-se para me observar. Engulo em seco, sentindo a cara ficar vermelha. É evidente que ele vai dizer qualquer coisa acerca do trabalho de Beth. Fechando as mãos húmidas de suor tento falar, mas a minha garganta parece ter bloqueado. Entretanto, Bob Stennings está a trautear uma musiquinha qualquer e diz:

- Talvez esta questão deva ser tratada directamente com o professor em causa...

- O professor em causa recusa-se a mostrar-se disponível.

- Hmm...

- Posso explicar?

Interpretando o silêncio da sala como um consentimento, Alec continua: - Basicamente, desde o início do trimestre, apesar das minhas tentativas para discutir o assunto com ela, ela recusa-se a receber-me. Na realidade... - interrompe-se, talvez para ganhar coragem - ...na realidade ela informou-me recentemente que desejava que eu a deixasse em paz.

Bob Stennings olha para mim, perplexo. Na sala, o ruído abafado de vozes e de papéis a serem manuseados cessou. Os docentes calaram-se, os estudantes que se aborreciam ao fundo da sala inclinam-se agora para a frente, interessados. - Acho, de facto, que estes assuntos devem ser tratados noutras circunstâncias, Alec. Talvez com o seu orientador?

Duas cadeiras à minha frente levanta-se um braço e alguém diz:

- Penso que deve ser tratado aqui, se é isso que ele deseja.

É o palerma das patilhas ruivas e do «Fuck Capitalism». Fico gelada, em frente do público ali reunido. Sinto tudo a amontoar-se cá dentro, prestes a explodir.

- Talvez possamos pedir ao professor da cadeira que se explique - continua o Fuck Capitalism, olhando para Alec com um ar entendido. É evidente que este apoio vai ter a sua recompensa.

- Não, Nick, não concordo. Não é apropriado tratar disso aqui. O Alec e a Dra. Bainbridge têm de combinar um encontro para resolver a questão. - Estas palavras foram ditas por Julian, que está a olhar com simpatia na minha direcção.

Eu estou a fazer um imenso esforço para me controlar, agarrando-me à cadeira e cerrando os lábios com todas a força para impedir que a bolha de palavras escape, mas isto está a tornar-se cada vez mais complicado. Não gostaria que isto acontecesse, sobretudo num local tão público, mas, agora que Alec está sentado à minha frente, as minhas emoções crescem desmesuradamente, como um rio prestes a inundar as margens.

- A verdade - oiço a minha própria voz dizer, esganiçadamente - é que terei o maior prazer em responder ao Alec aqui. Se estiverem de acordo?

À minha frente, Julian ergue as sobrancelhas. Fico com a impressão de que está a avisar-me, mas eu estou demasiado perturbada e furiosa para lhe prestar atenção. - Tem razão, Alec - digo, voltando-me para o encarar de frente. Tendo em conta a velocidade a que o meu coração bate, é surpreendente que consiga falar com uma voz tão descontraída. - De facto, quero que me deixe em paz.

Alec pisca os olhos. Ficou muito pálido.

- A verdade é que mal esta reunião acabe, tenciono ir à polícia apresentar queixa do seu comportamento - continuo. - Tenho a certeza de que há muitas coisas que lhe interessarão. - Calo-me. As palpitações estão a abrandar, mas tenho as mãos a tremer incontrolavelmente. Para que ninguém repare, escondo-as no regaço. Sinto-me como um bungee jumper, prestes a dar o salto de um enorme edifício.

- E que coisas são essas? - replica Alec, num tom de voz gélido.

Vejo-lhe a maçã-de-adão subir e descer no pescoço. A sala está num silêncio tal que consigo ouvir os estalidos do radiador e o vento a assobiar através das janelas.

- Tem andado a perseguir-me constantemente desde o início do trimestre - digo, continuando a olhar para ele. - Mandou-me e-mails insultuosos, fez-me telefonemas indecentes e tentou entrar no meu apartamento.

Pronto! Já disse tudo. Estou a voar pelos ares, e a corda elástica está prestes a fazer-me subir novamente. Respiro fundo, tentando controlar-me. À minha volta todos parecem girar, excepto Alec e eu, o que nos deixa no centro do palco.

- Tenho testemunhas e provas.

- É mentira - murmura ele.

- Não me parece. Ainda esta manhã estava à espera à porta do meu apartamento e acabo de receber um telefonema de Beth Wilson que me disse que o viu, esta manhã, no terraço do telhado lá de casa. Estava a tentar entrar.

A minha voz tem um som pouco familiar, como a de alguém assustado e amargo. Observo as caras chocadas dos meus colegas. Devia sentir-me vingada mas, em vez disso, sinto-me tão tensa que estou capaz de explodir. É claro que Beth não disse explicitamente que se tratava de Alec, mas quem mais poderia ser?

A boca de Alec está a abrir e a fechar como a de um peixe fora de água. No topo da mesa, Bob Stennings tem um ar horrorizado. Há uma pausa de espanto, depois ele tosse:

- Desculpa, Cass - diz ele, sempre ansioso por que tudo esteja em ordem do ponto de vista administrativo. - Quem é essa Beth Wilson?

- Uma estudante do terceiro ano, em Estudos de Género digo, secamente. - Está em minha casa.

- E quando é que ela me viu? - pergunta Alec.

- Mesmo agora. Recebi uma chamada dela há meia hora. Está assustadíssima.

- Então explique-me como é que eu podia ter chegado aqui de bicicleta, se estava a tentar entrar no seu apartamento?

Faço-lhe uma careta, pois estou-me nas tintas para o modo como ele chegou até aqui. Ia dizer mais, falar da fotografia e dos e-mails mas de repente lembrei-me de outra coisa. A escada de incêndios está partida.

- Esperem um instante. Posso dizer uma coisa?

Ao fundo da sala, uma rapariga está a levantar hesitantemente uma mão. É uma das estudantes de doutoramento, um bocado gorducha, com tendência para uma maquilhagem gótica e vestidos compridos pretos. Empurrando para o lado a ordem do dia, Bob Stennings acena que sim, derrotado. O ponto sobre as preocupações dos estudantes vai obviamente demorar mais tempo do que o previsto.

- Faça favor.

- É só que, quando vinha no carro do meu amigo, passei pelo Alec na estrada da universidade, aí há uns quarenta minutos. Foi como ele disse, vinha de bicicleta, mas estava tanto vento que vinha incrivelmente devagar. Todos lhe acenámos. - Ri-se, em tom de desculpa. - Desculpa lá, Alec, mas parecia que ias levantar voo.

Há um silêncio breve, desconfortável.

Percorro o monte da minha correspondência e puxo a fotografia para fora do envelope, erguendo-a no ar para que Alec a possa ver. À minha volta, as pessoas debruçam-se para a frente, espreitando para a estranha fotografia e para as palavras mal escritas. Estava à espera de ver Alec reagir mal ou ficar com ar contrito, mas ele limita-se a franzir o sobrolho.

- Não faço a mínima ideia do que está a dizer.

- Ouve, Cass, talvez ajudasse a esclarecer as coisas se pudéssemos ver onde é que isso foi posto no correio. - interrompe Julian.

Examino de novo o carimbo: 14 Nov. - Foi enviado anteontem, de Brighton.

- Então, pronto, aí tens a resposta. O Alec não pode ter posto a carta no correio, porque passou os primeiros três dias da semana comigo, na Biblioteca Britânica em Londres. Está a trabalhar como assistente de investigação no meu projecto sobre a Academia Britânica.

Há um silêncio longo e terrível. Então o elástico estava podre: saltei, mas não voltei para cima. Bob Stennings vira-se para mim. Por instantes observa-me com uma compaixão avuncular; apesar das suas fanfarronices joviais, é suficientemente inteligente para ver o sarilho em que estou metida.

- Então deves estar enganada, Cass.

- Mas quem pode ter mandado isto? - Olho em volta, transtornada. O meu coração bate desvairadamente de encontro às costelas, tenho os lábios secos. Só consigo pensar que percebi tudo mal. Se Alec não me mandou a fotografia e não estava no telhado, então deve ter sido outra pessoa qualquer. Mas, para baralhar ainda mais as coisas, a escada de incêndio caiu esta manhã, por isso como pode alguém ter subido por ela? Entretanto, ali na sala, toda a gente está de olhos postos em mim, como se, de repente, me tivessem nascido cornos na cabeça. Julian levantou-se e está a dizer qualquer coisa, mas um assobio nos meus ouvidos está a bloquear todos os outros sons. Finalmente, consigo levantar-me. Obrigando-me a olhar para Alec, que está sentado na ponta da cadeira de olhos fixos no chão, forço-me a pronunciar as palavras com a minha boca em_ pastelada: - Lamento imenso. É evidente que avaliei mal a situação.

Depois, tentando dar ares de que nada tinha acontecido mas falhando rotundamente, deixo-me cair novamente na cadeira.

A hora seguinte é um borrão. Fico imóvel, amarrada à cadeira por uma mistura incapacitante de vergonha e de pânico. Tenho as mãos dobradas com força, pousadas no colo e olho, sem ver, para o chão. Estou determinada a não levantar os olhos, para não ver as expressões curiosas dos meus colegas. Quando a reunião termina, sou a primeira a levantar-me e a correr para a porta. De volta ao gabinete, sento-me muito rígida e tento rebobinar a espiral dos meus pensamentos. Julgava que tinha compreendido o que se estava a passar, mas enganava-me. Fechando os olhos com muita força, tento ordenar os acontecimentos: Alec mostrou-se antagonista e desagradável; houve os e-mails esquisitos e os telefonemas. Sempre que me virava, parecia que ele estava atrás de mim, acusador. E cada um dos e-mails veio na sequência de um confronto com ele. Apesar disso, ele não podia ser o homem do telhado porque não só estava a vir de bicicleta para o campus e teria de percorrer cerca de cinco quilómetros como, ainda, com a escada de incêndio partida, só o Homem-Aranha podia ter escalado a parede.

Porque haveria Beth de mentir? Seria a história do homem que estava a vigiar o apartamento, junto ao portão do jardim, uma outra ficção? Enquanto medito nisto, toca o telefone. Atendo imediatamente.

- Sim - digo, sentindo-me uma miúda de cinco anos. - Sou eu - responde Matt. Fico toda nervosa, o coração bate-me nos ouvidos como se estivesse parada na beira de um precipício. Ontem à noite, nos jardins, tudo parecia tão claro: a nossa relação tinha acabado porque eu nunca poderia dar-lhe aquilo que ele quer, mas, agora, ao ouvir-lhe a voz, quero desesperadamente uma suspensão da pena. Por favor!, apetece-me suplicar. Não consigo suportar a ideia de que isto seja o fim!

- Olá! - Esta voz fraquinha pertencer-me-á realmente? Durante uns segundos, Matt não diz nada. Talvez me dê nova

oportunidade, penso loucamente. Talvez tenha decidido que afinal de contas não quer bebé nenhum e vamos poder começar de novo.

- vou a Londres... - começo, mas ele interrompe.

- Quero marcar uma data para tirares as tuas tralhas cá de casa

- diz ele, secamente. - As tuas coisas estão a atrapalhar. vou amanhã para Manchester e não as quero aqui quando voltar.

Engasgo-me, impressionada com a decisão da voz dele.

- Que queres dizer? - gaguejo. - Eu vivo aí!

- Agora vives em Brighton, não vives aqui. - A voz dele é fria e dura, sem qualquer vestígio de emoção.

Sinto o corpo adormecido, como se todos os sistemas tivessem entrado em ruptura. - Não podes fazer uma coisa dessas.

Ele ri-se mesmo, a gargalhadinha gelada de desdém que reserva para o trabalho de colegas estúpidos ou de políticos desonestos que estão a ser cilindrados no Newsnight. - Vais ver se não posso. Dado que, legalmente, a casa é propriedade minha, posso fazer exactamente o que muito bem entender.

Passados uns instantes tartamudeio: - Não podemos, ao menos, discutir isso cara a cara?

- Discutir o quê? Tu mandaste-me passear, não te lembras? A tua nova amiga deixou as coisas absolutamente claras. A única coisa que quero agora é que tires daqui as tuas tralhas. OK? Oh, e também gostava que acabasses com essas mensagens histéricas.

Antes de poder perguntar-lhe de que raio está a falar, ele desliga o telefone. Sento-me, a olhar para o auscultador que zumbe, pendurado da minha mão. Que mensagens histéricas? Estará a referir-se às minhas tentativas de o contactar na noite passada? E por que razão atribui tanta importância ao facto de Beth estar no meu apartamento? Estendo os dedos para o telefone de um tom verde sujo, sinto-lhe o peso na minha mão: uma peça de plástico tão funcional que conseguiu trazer uma tal devastação. Que interessa, penso, rolando-o desanimadamente entre as mãos. Nenhum desses pormenores tem grande importância, porque tudo acabou.

Pouso o auscultador no descanso. Tenho as mãos a tremer. Se calhar vou vomitar. Não sei o que fazer nem para onde ir. Olho distraidamente para o relógio. Sim, sei. vou levantar-me, abrir a porta e voltar ao apartamento para fazer as malas. Depois falo para o departamento a comunicar que estou doente e fujo para casa de Sarah, em Highbury.

Junto as minhas coisas, de uma forma quase inconsciente. vou abandonar a vida académica, digo para comigo, vou para repositora no Sainsbury. Como poderei continuar sem Matt? Ele era o meu guia, o meu mentor; a voz racional que me incitava a prosseguir. Foi ele que salvou o meu doutoramento, que me ajudou profundamente no meu livro. Eu só escrevi aquela maldita coisa para lhe agradar. Agora, que é que ainda poderá ter interesse?

Empurro uma pilha de trabalhos para o chão e procuro sem grande empenho os meus óculos. Sinto-me como se me tivessem aberto um grande buraco no meio do corpo com um tiro de canhão. Porque estás tão espantada?, grita a voz na minha cabeça. Não é isto que mereces? E, depois, sem que a consiga deter, a imagem está novamente comigo. Pernas esguias e olhos piscos e sonolentos; uma cabeça macia, húmida.

Mas agora o telefone está novamente a tocar. com o cérebro embotado pelo choque pego no auscultador, encosto-o com toda a força ao ouvido.

- Olá, Cass - diz Beth, numa vozinha mimada. - Sou só eu. No momento em que oiço a voz dela regresso imediatamente

ao presente. Para alguém que há apenas uma hora me telefonou em pânico, parece-me extraordinariamente tranquila.

- Que quer agora?

Sinto que, do outro lado da linha, a expressão dela mudou, numa alteração rápida de registo ao perceber o meu desagrado. Só estou a telefonar a saber o que quer para o jantar - diz com uma voz doce.

O auscultador está quente e escorregadio. E impossível que ela não tenha visto a mensagem que espetei na porta. Porque é que está a perguntar-me do jantar?

- Porque me disse que viu alguém no terraço? - pergunto abruptamente.

- Fiquei assustada, Cass.

A voz dela soa a choraminguice e irritação e, de repente, não consigo perceber por que razão alguma vez gostei dela. Esta manhã ela estava a mentir, penso, enojada. E também gostava que ela deixasse de me tratar pelo nome próprio. Fá-la parecer uma daqueles agentes lambe-botas das televendas a fazer-se muito íntima quando não há qualquer razão para intimidades, só para chegar onde quer.

- Está a mentir - digo secamente. - Não é possível que estivesse lá alguém, porque a escada de incêndio caiu esta noite. Foi o barulho que ouvi ontem.

A pausa é tão longa que pergunto a mim mesma se ela não terá desligado. Depois, muito baixinho, diz:

- Só lhe disse aquilo que pensei ter visto. Nunca disse que era real.

- Que quer dizer com isso?

- Só que estava muito assustada.

- E não telefonou à polícia?

Ela ri, um riso suave e doce. - Claro que não, Cass.

De repente não consigo conter-me. Há demasiadas coisas na minha mente e estou demasiado preocupada para ainda ter de me haver com as complicações adicionais desta menina tonta e das suas manobras. - Ouça, Beth, lamento muito - digo com secura -, mas tem de sair hoje do meu apartamento. Como lhe disse, tenho amigos que chegam hoje. Tem de arranjar alguma alternativa, OK?

Ela começa a dizer qualquer coisa mas eu não suporto ouvi-la. Tenho de ser firme e não continuar a ouvir mais histórias melodramáticas: fiz o que podia para a ajudar e, agora, tenho de me ocupar de mim. De certo modo, descobrir o autor dos e-mails e da fotografia é irrelevante. Só sei que tenho de voltar ao apartamento, empacotar os meus haveres e partir antes que as recordações, que estão agora a acumular-se rápida e violentamente, me afoguem.

- Vá ao campus falar com o funcionário que trata dos alojamentos - digo bruscamente. - Estão abertos todo o dia.

E pouso o auscultador.

Volto para casa, guiando de forma errática, e o meu cérebro quase nem regista a paisagem. Apesar das árvores caídas e do vento impiedoso, não demoro muito tempo a chegar à praça. Dentro da carteira, o meu telemóvel está a tocar freneticamente, mas como não quero ouvir as previsíveis lamúrias de Beth, não atendo. Depois de ter estacionado o carro, dirijo-me em passos pesados para o número dezasseis. A luz do princípio da tarde está tão baça que parece crepúsculo e uma chuva gelada bate-me na testa. No jardim, as árvores estão numa dança frenética, fantoches negros manipulados por uma mão invisível. Mesmo à minha frente, uma telha solta-se de um telhado e vem esmagar-se no passeio. Passo por cima dos cacos. O céu está revolto e cinzento.

Ao aproximar-me do prédio, sinto-me outra vez irracionalmente inquieta, embora tudo o que possa acontecer de mal já tenha acontecido. Há outra coisa em que tenho de pensar antes de entrar no apartamento, mas acho que já é tarde de mais. Dou volta à chave na porta da entrada, empurro-a e entro no átrio húmido, lembrando-me de repente de Jan e dos seus baldes.

A água já desapareceu quase toda; tudo o que resta do dilúvio são umas poças e um monte de jornais molhados encostados à parede. Atravesso o tapete estragado e passo em bicos de pés pela porta de Jan. Quero subir rapidamente as escadas, agarrar nas minhas coisas e escapar dali a toda a pressa e não me apetece ficar no átrio gelado a fazer conversa fiada com uma new ager excêntrica. Tarde de mais. Se calhar ela estava à escuta, à espera de me ouvir, pois abre a porta e sai para a luz fraca. - Abre-te, Sésamo - diz ela, estremecendo com o frio.

Tento sorrir-lhe mas só consigo fazer uma careta mórbida.

- Que temporal vai lá fora!

- Hum.

- O aquecimento global é que está a fazer isto.

- Pois.

Fita-me demoradamente com frieza. Talvez esteja zangada por não a ter ajudado hoje de manhã. - Então chamou os homens das mudanças, hein? - diz ela subitamente, erguendo os olhos para o tecto.

Olho para ela, franzindo a testa. Talvez as cartas lhe tenham vaticinado a minha mudança próxima. - Ainda não.

- Você ia-me enganando.

Não percebo o que ela quer dizer. Vai abrir a boca, mas eu interrompo-a. - Oiça - exclamo -, gostava imenso de ficar aqui na conversa, mas estou cheia de frio e cansada.

Antes que ela possa acrescentar mais qualquer coisa, dou meia-volta e corro para as escadas. Sei que fui pouco simpática, mas estou morta por me ir embora. Quando chego ao patamar diante do meu apartamento, paro, tentando acalmar. Estou a respirar depressa de mais e tenho as pernas a tremer. Encosto-me à parede, em busca de apoio, enfio a chave na fechadura e empurro a porta. Oxalá, penso, Beth se tenha ido embora. Não suporto a ideia de ter de lidar com os problemas dela, pelo menos por agora.

Entro no hall e respiro de alívio. Desde o breve episódio de limpeza de ontem, o apartamento regressou ao seu habitual estado de desordem: casacos amontoados ao acaso em cima de uma cadeira, cartas por abrir e contas espalhadas pelo chão; não há sinais de Beth nem da sua mania da arrumação. Mais prometedor ainda, a nota na porta desapareceu. Está tudo tranquilo. Oiço o estalar dos canos, o abanar das janelas ao vento, mas não há sinais de ocupação. Há um cheiro a abafado, como se o apartamento estivesse fechado há semanas.

No seu lugar, na mesa do hall, o telefone está a tocar. Hesito. Provavelmente é Beth, mas a minúscula hipótese de ser Matt é irresistível. Apesar de tudo o que aconteceu, estou desesperada por lhe ouvir a voz, desesperada por um sinal de recuo, a esperança de um futuro. Sem mais hesitações, corro para o telefone. Agarrando no plástico macio com as mãos geladas, carrego em «falar». Quando a comunicação é estabelecida, a minha voz sai tão rouca que é irreconhecível. - Matt?

A pausa é suficientemente longa para perceber que cometi outro erro. Em vez da voz brusca de Matt, oiço outra voz de homem, mais jovem e mais sofisticada que pigarreia e diz, hesitante:

- Cass, és tu?

Passam-se uns segundos antes de conseguir responder: o desapontamento cortou-me a respiração. Finalmente pigarreio e digo em voz roufenha: - Sim? - Tenho as mãos tão frias que mal consigo segurar no auscultador. ?'"?'' - Aqui fala o Julian, Julian Leigh.

- Hmm, hmm...

- Estás bem?

- Mais ou menos.

- Há bocado estavas num estado deplorável. Calculo que essa fotografia te tenha assustado muitíssimo.

Sustenho a respiração, decidida a não dar largas ao grito de angústia que, ao menor sinal de simpatia, se forma nos meus pulmões. Porque fui tão hostil para com ele? Tudo o que ele sempre quis foi criar laços de amizade.

- De qualquer forma, ouve lá, não quero deitar óleo sobre a fervura, por assim dizer, mas havia outra coisa que queria discutir contigo.

Fico a olhar para o telefone, incapaz de perceber o que ele está a dizer. Que é que ele poderá ter para discutir comigo?

- É acerca da tua aluna - continua o Julian. - Aquela que disseste que está em tua casa.

Aperta-se-me o peito. - Que se passa com ela? - Fiz uma pesquisa. Beth Wilson é o nome dela, não é?

- É.

- E o curso dela é Estudos de Género? - Certo.

Os meus olhos percorrem o átrio e a sala vazia. Ela foi-se embora definitivamente, repito para com os meus botões. Então porque estou tão enervada? Lá em baixo oiço Jan a deslocar-se furtivamente pelo seu apartamento.

- Acontece que não há nenhum curso de Estudos de Género

- continua o Julian.

Agarro no telefone com mais força. - Não há esse curso? ecoo.

- Acho que nunca o descobririas porque és nova no sistema, mas nunca fazemos Estudos de Género como curso principal. Andava intrigado com isto, por isso fui verificar a ficha da tua jovem.

Há um estalido na linha. Quero imenso ouvir o que ele tem para me dizer, mas há qualquer coisa que me está a distrair. Percebo que os sons que eu pensava virem do apartamento de Jan são mais próximos. De facto, parecem vir do outro lado da porta do meu quarto: o arrastar sorrateiro de pés, o raspar de objectos a serem empurrados.

- Basicamente, não há nenhuma ficha em nome de Beth Wilson. É por isso que nenhum de nós ouviu falar dela.

Da direcção do meu quarto vem outro som abafado. Estou a sentir cada vez mais tonturas. Então é por isso que, hoje de manhã, não encontrei nenhum Wilson nos «Ws».

- Que queres dizer? - murmuro.

No outro extremo da linha, Julian ri-se, provavelmente da minha imbecilidade. - Quero dizer que ela não é estudante aqui. Tanto quanto sabemos, ela pode ter entrado na tua aula simplesmente vinda da rua. Até que insistam na universidade para que tenhamos BI, é perfeitamente possível, embora suponha que ela não possa levantar livros da biblioteca. A única coisa que não percebo é como não te cheirou nada quando viste o registo, na primeira semana.

Engulo em seco, com dificuldade. - O problema é que nunca vi o registo. Perdi a folha do computador.

Julian cala-se, demasiado bem-educado para dizer o óbvio: Cass, fizeste uma asneira das grossas. - Mas não era evidente? - acaba por dizer. - Que ela não estava no seu meio?

- Pareceu-me tudo bem.

Mas, mal acabara de dizer estas palavras, lembrei-me que, das duas vezes que ela tinha tido que apresentar material, aldrabara, copiando a minha tese para o trabalho e o artigo de Sociedade e História para a sua apresentação, tudo perfeitamente possível de copiar numa biblioteca, sem cartão. E, parva como sou, deixei passar tudo isto.

- Portanto, essa rapariga é claramente uma impostora - diz Julian em tom divertido e imagino-o a agitar os dedos no ar a fazer aspas, um gesto que é característico nele. - Era disso que o Alec estava a tentar falar-te. Ele estava agora mesmo a dizer-me que tinha percebido, logo no primeiro dia, que ela não era uma estudante normal.

As pancadas cessaram mas agora oiço com toda a nitidez o barulho de passos no chão do meu quarto.

- Por isso vamos fazer mais umas pesquisas e depois damos-te notícias.

- Obrigada por me contares isto - digo ao telefone, numa voz engasgada. - Agora tenho de desligar.

- Cass?

Não o deixo acabar. Carrego em desligar e pouso devagarinho o auscultador. Do outro lado do corredor há um silêncio súbito. Lentamente dirijo-me para o quarto. Tenho a impressão de que o peito me vai explodir. Meu Deus!, penso, Mas que se passa aqui? Quando chego à porta fechada, paro e tento controlar-me. Continuo a não ouvir nada do outro lado. Mas depois há um estrondo nítido: uma portada, que tenho a certeza de não ter deixado aberta, a bater de encontro à parede. com o sangue a latejar-me nos ouvidos, escancaro a porta.

O meu quarto está transformado. Já antes não estava propriamente arrumado, mas agora todo o armário da minha roupa parece que foi despejado em cima da alcatifa, como se alguém estivesse freneticamente à procura de qualquer coisa, todas as peças de vestuário atiradas à toa em montes como cadáveres de tecido. Empilhados à volta das paredes estão montanhas de livros e papéis, a uma altura tal que muitos escorregaram para o chão, numa avalanche de papel impresso. Ao ver aquilo, compreendo que devem ter vindo dos caixotes que estavam no quarto que me tem servido de arrecadação. As cortinas estão corridas e a luz de cima apagada mas, junto da janela, está um candeeirinho daqueles que ficam acesos nos quartos das crianças e que reconheço como tendo vindo do armário do mesmo quarto. Gira interminavelmente, projectando no tecto imagens do Humpty Dumpty e da sua cabeça partida.

Viro-me devagarinho para a cama. Durante um segundo parece-me que está vazia e que o seu ocupante já saiu: a única coisa que vejo é o meu edredão todo enrodilhado e uma almofada atirada displicentemente para um lado. Mas depois vejo um pé aparecer num dos extremos e, quando murmuro o nome dela, Beth senta-se na cama e olha para mim.

Querida Mãe,

Finalmente desencadeou-se tudo - estão a acontecer coisas, já não é possível evitar as consequências. Por isso decidi que há coisas que tenho de fazer. Toda a minha vida me senti como se tivesse estado à janela da casa de outra criança, com o nariz colado aos vidros e isso agora tem de acabar. Como posso avançar se não sei quem sou? E como posso deixar entrar outras pessoas, quando não sei a razão por que me deixaste de fora?

A vida tornou-se mais complicada do que aquilo que eu esperava, estás a compreender? As pessoas disseram e fizeram coisas que tenho dificuldade em entender. Sempre pensei que era boa pessoa. Nunca quis magoar ninguém. Mas de repente tudo entrou numa espiral de descontrolo.

E agora tenho a certeza de que tenho que contar.

Ao ver-me, Beth puxou o edredão para o peito e está agarrada a ele, com a expressão surpreendida de uma criança apanhada em brincadeiras proibidas. Traz outra vez o meu vestido vermelho, mas deve ter andado a dar-lhe umas tesouradas, porque no lugar das mangas compridas de veludo pende agora uma massa irregular de fios cauterizados de onde emergem uns braços brancos e sardentos, como ossos a sobressaírem de uma pele rasgada.

- Olá, Beth - digo, como se ela estivesse a fazer uma coisa perfeitamente normal, como ler um livro ou passar pelas brasas.

- Que aconteceu?

- Estava só arrumar umas coisas.

Tem um sorriso que interpreto como sendo de embaraço, mostrando os dentes acastanhados. Passo por cima dos papéis e da roupa e vou até ao meio do quarto. Depois do primeiro assomo de adrenalina, à entrada, estou agora mais calma. Portanto, ela contou-me algumas mentiras. Talvez ainda possa haver alguma explicação aceitável.

- Está na minha cama - digo lentamente. - E o que fez ao meu vestido?

Ela encolhe os ombros, como se o seu comportamento fosse normal. De punhos cerrados, posto-me junto à cama, tentando não captar directamente os olhos dela, remelosos e alheados e que continuamente se direccionam para a porta atrás de mim, como se esperasse ver entrar mais alguém, o último convidado da nossa festa improvisada. Parece outra pessoa, completamente diferente da presença luminosa que encheu o meu apartamento naquela manhã de há cinco semanas atrás. E agora que a vejo assim, tão obviamente confusa, percebo que o comportamento dela não é tão inesperado como poderia parecer porque, ao longo da semana, ela tem agido de forma cada vez mais estranha.

- Viu o meu recado? - pergunto.

Ela olha para mim com uma expressão de surpresa total.

- Que recado ?

- Escrevi-lhe uma notazinha a pedir que fosse ao campus para que pudéssemos tratar de encontrar urgentemente alojamento para si. - Tento manter um tom ligeiro e displicente, mas o modo como ela me observa torna tudo cada vez mais difícil.

- Ah, escreveu?

O meu coração palpita desagradavelmente. É claro que ela encontrou o recado, mas qualquer autoridade que eu possa ter tido sobre ela era nitidamente uma miragem. Agora sorri-me com ar matreiro. - Gosta mesmo de jogar estes joguinhos, não gosta? diz ela pausadamente.

- Não sei o que quer dizer. - Franzo os lábios tentando disfarçar o tremor de medo da minha voz.

Beth pestaneja com ar pretensamente sedutor. - Não espera que eu leve a sério esse mau feitio, pois não? - Lançando-me um olhar entendido, atira os lençóis para o lado e passa as pernas por cima da beira da cama. Vejo que o meu vestido foi rasgado à frente e que ela calçou as minhas botas de salto. Estão-lhe grandes de mais e o efeito é cómico: uma menininha apanhada a rapinar o guarda-fatos de um adulto. Acenando entusiasticamente, levanta-se. - Ambas sabemos o que está realmente a acontecer, não é?

A minha cara franze-se de incompreensão. Sinto-me como um actor que sabe o seu papel na ponta da língua, mas que está na peça errada. Em vez de representar o adulto controlado, tornei-me passiva e não sei quais são as deixas. - Não faço a mínima ideia digo calmamente. - Gostava que me explicasse.

- Que é que há para explicar?

Continua de pé à minha frente, pestanejando, e eu tenho de lutar contra o impulso para lhe gritar que se vá embora. Avança com cautela, Cass, digo para com os meus botões. Esta situação exige um cuidado especial. - Porque não está inscrita na universidade?

- digo, como se lhe estivesse a perguntar se usa o cabelo comprido ou curto.

Ela ri-se, como se a pergunta fosse irrelevante. - Eles nunca mo permitiram. Depois do que aconteceu em Leeds.

Não faço ideia de que está ela a falar, mas sinto-me cada vez mais tensa. Ela dá uns passinhos cambaleantes, depois pára no meio do quarto, de olhos brilhantes, como se estivesse à espera da mais maravilhosa das surpresas. Cruzo os braços, tentando reafirmar a minha autoridade. Este é o meu apartamento. E mesmo que ela não seja uma estudante, eu continuo a ser mais velha do que ela. Mas, apesar de ir repetindo isto para mim mesma, não deixo de meter a mão no bolso para sentir a reconfortante frieza metálica do meu telemóvel. Quanto tempo, pergunto a mim mesma, levará a polícia achegar?

- Porque me disse que viu alguém no telhado? - pergunto secamente.

Ela pisca os olhos, com ar de tragédia. - Porque me sentia sozinha. Queria que viesse para casa e ficasse comigo.

- Então mentiu-me?

- Quer dizer, eu não diria as coisas desse modo. Diria que elaborei um determinado tipo de verdade. Não é isso que nos tem ensinado durante todo o trimestre? Que não há verdades objectivas?

Abano a cabeça. Acabo de reparar na forma como ela está a segurar nos braços, com os dedos fincados na carne. As mangas estão arregaçadas até aos cotovelos e a pele macia do interior do braço está vermelha e irritada, com pisaduras a começarem a formar-se. - Não foi exactamente isso. Não, de forma nenhuma.

- Mas moldamo-la, não é verdade? Tudo aquilo que precisamos de fazer é escutar com muita atenção e a verdade será revelada. Não é uma coisa deste tipo? - Ri-se, atirando a cabeça para trás e espetando para a frente o queixinho obstinado.

É evidente que ela não percebeu patavina de todo o curso.

- Qual é a sua verdade, Beth? - pergunto calmamente.

- Diferente daquela que pensa e, apesar disso, igual. Fita-me com ar convencido, tão diferente da rapariga que levei a tomar chá no primeiro dia do trimestre. Seria aquilo apenas uma charada? Um espectáculo para me fascinar e apanhar na sua rede?

- Que quer dizer com isso?

- Sabe tão bem quanto eu.

Se tiver de continuar a olhar para aquela expressão matreira, juro que lhe bato. Desvio os olhos e digo tranquilamente: - E a sua família de adopção? Também moldou essa verdade?

Ela sorri com ar apatetado, erguendo uma mão e afastando o cabelo da testa cheia de borbulhas. - Que família de adopção?

- O casal cuja filha morreu? Ou também isso foi inventado?

Ao ouvir estas palavras ela faz uma careta a fingir arrependimento, como uma adolescente a ser repreendida por um crime que não leva muito a sério. - Foi isso que lhe contei? E tem assim tanta importância?

- Claro que sim! Se nunca teve uma família de adopção, então por que raio fez esse drama todo de eles a terem posto na rua?

Por instantes passa-lhe no rosto uma expressão feia, talvez fúria, talvez ódio. Depois parece querer dominar-se.

- Só queria estar consigo, Cass. Será assim tão mau? - Olha para mim e faz aquele gesto irritante de pássaro, inclinando coquetemente a cabeça para um lado. Vendo-a ali, parada no meio do meu quarto devastado, como se fosse dona dele, sinto uma repulsa tão forte que até me arrepia. Sinto a raiva a subir dentro de mim; sinto um formigueiro nos dedos e um gosto amargo invade-me a boca. Como é que pude deixá-la aproximar-se tanto? Sou considerada uma historiadora da oralidade, uma perita em perceber os matizes e os significados ocultos das histórias que as pessoas contam, verificando e cruzando os factos que se conseguem apurar. E, apesar disso, acreditei em tudo o que ela me disse, com uma inocência quase infantil, sem investigar sequer os elementos mais básicos. Seria preciso de facto grande ciência para detectar que ela não era uma estudante a sério? E a história da família dela nunca soou a verdadeira, sobretudo a parte da filha morta. Contudo, parva como sou, achei que ela precisava da minha ajuda, por isso aceitei-a e fiz por ela tudo o que estava ao meu alcance. Mas agora vejo que a vulnerabilidade dela era uma ilusão, que, apesar da miragem de inocência, ela se compraz na mentira. Não, não é a minha ajuda, mas sim outra Coisa - ainda não sei o quê - que ela quer de mim.

- Nada disto tem grande importância - diz ela em voz suave.

- E a Cass sabe-o muito bem. Porque não o aceita?

- Aceito o quê?

- A nossa verdadeira relação, claro.

Fico a olhar para ela, de boca aberta. Que quer ela dizer com «a nossa verdadeira relação»? Como é que alguém pode saber do meu passado?

- Aquele primeiro seminário, quando me piscou o olho? Foi o meu sinal.

A sua expressão satisfeita mostra que ela acredita que tudo aquilo é óbvio. com um esforço consciente para me dominar, fecho a boca. Que piscadela? O meu espírito salta entre recordações que giram num torvelinho de imagens fragmentadas. Os teus olhos negros retintos; o calor da tua, pele de encontro à minha; sentia o teu coração, tão rápido como um cavalo a galope. Mas Beth não parece ter reparado na minha confusão, porque continua a falar.

- Não se preocupe - diz ela, quase apaziguadora. - Percebi os seus sinais, todos eles. Como, por exemplo, só atender o telefone depois de tocar cinco vezes. Ou deixar que eu tirasse o telemóvel da sua carteira logo naquele primeiro dia em que estivemos juntas.

Sacudo a cabeça. Estou a ter cada vez mais dificuldade em concentrar-me no que ela está a dizer. Uma sensação doce e fugaz. Foi ao mesmo tempo o princípio e o fim.

- Não sei de que está a falar - digo em voz fraca.

- Ora, deixe-se disso, Cass. Não será altura de deixar de fingir? Eu sabia que a Cass nunca teria coragem para admitir tudo, por isso fi-lo eu em seu lugar. Era o que a Cass queria, era mais do que óbvio. Bastou um par de mensagens de texto para se ver livre de todos esses seus alegados amigos. E, quando lhe devolvi o telemóvel, ficou tão aliviada por eu ter feito aquilo que até me atirou um beijo.

Não consigo perceber patavina daquilo. Tento concentrar-me no presente, mas, como se estivessem pendurados num elástico, os meus pensamentos continuam obstinadamente a saltar para o passado. Deixei-te ali, talvez para viveres, talvez para morreres. E desde então sempre foste uma obsessão, - Quem é você? - pergunto em voz rouca. - Que quer de mim?

- Sabe quem eu sou - diz Beth, avançando um passo na minha direcção. - E sabe o que quero.

Comecei a desviar-me para a porta, a minha mente a entrar numa espiralzinha de pânico. De certeza que isto não é possível!

- Vá, admita - murmura ela -, vai ver que se sente melhor quando o aceitar.

Olho para ela, lembrando-me dos e-mails. Sei.

- Foi você que mandou os e-mails - digo em voz débil.

- Claro que fui, tonta.

Sei. Ela escreveu-o, vezes sem conta. Mas como poderá ela saber do meu passado? Ninguém sabe a não ser eu. Talvez tenhas vivido, talvez tenhas morrido. De repente, ela atira-se para a frente, de braços estendidos, como se esperasse aterrar nos meus. Dou rapidamente um passo para o lado e ela tropeça e vai embater na moldura da porta onde se agarra para se segurar. Tem a testa molhada de suor e manchas húmidas alastram no vestido vermelho, na zona das axilas.

Ergue os olhos para mim, numa súplica. - Sei que é difícil, mas basta-lhe ser sincera. Ambas conhecemos a verdadeira razão por que não quis casar com aquele seu namorado, por que não teve filhos. Guardou segredo disso durante demasiado tempo.

Está prestes a estender a mão e a tocar-me, mas a ideia de um contacto físico com ela é repugnante. Será que ela arranjou maneira de descobrir a minha história? Será que esta cena se está a encaminhar para chantagem ou para algo ainda pior? Olhando para ela, confusa, sei que a onda chegou ao cimo, que agora só lhe resta esmagar-se cá em baixo. - Não tem nada a ver com isso - digo, em voz fraca.

- Não é verdade.

Empurrando-me a cara com a mão, obriga-me a olhar para ela. Cheiro-lhe o hálito ligeiramente ácido, vejo com pormenor nítido o acne a espreitar através da base com que untou a pele. Sinto-me como se estivesse num sonho, movendo-me desajeitada e desorientada através de uma paisagem distorcida, cujos elementos não são o que parecem. Ainda vivia, mas só um bocadinho. Isto é o fim, pensava eu enquanto me afastava. Agora as coisas nunca mais serão iguais.

- Diga-o, por favor - implora Beth.

- Não posso.

- Pode sim; tem de o fazer.

O quarto está num silêncio profundo. Ao meu lado, Beth continua a respirar e oiço a batida informe do sangue nos ouvidos e, se me puser atenta à escuta, o barulho distante do mar enraivecido. Então, não sei como, ela descobriu a verdade. Durante toda a minha vida adulta, uma parte de mim ansiou por que isto acontecesse e, agora que aconteceu, estou atordoada de terror. Mas é demasiado tarde. Tenho de fazer o que ela diz.

- Tive um bebé - digo, num sopro. - Deixei-o a morrer na praia.

E agora que o disse em voz alta, sei que tudo mudou e que nunca mais voltará a ser segredo. O bebé era meu. Segurei-o de encontro à minha pele durante um escasso minuto, mas era meu. E depois fui-me embora.

Volto-me de novo para Beth, de olhos vítreos. Ela é a primeira pessoa a quem digo isto. Embora ainda não perceba como, ela fez com que a verdade jorrasse à superfície. E agora estou à espera que o rosto dela reflicta reconhecimento ou, até, alívio. Mas não parece interessada. Está até de sobrolho franzido, com a irritação do supremo egoísta cujo momento de glória foi interrompido, batendo impacientemente o pé com as botas demasiado grandes. - De que é que está a falar? - pergunta, zangada.

- Do bebé. Quero dizer, o segredo é esse. Não é disso que está a falar?

Ela ri-se e diz mais qualquer coisa. Mas eu já não a estou a ouvir porque, agora que cheguei a este ponto, não posso deixar de pensar no meu bebé, ali deitado nas rochas. Era um bebé perfeito, até à ponta das unhas minúsculas, até à mínima pestana. Pés do tamanho do meu dedo mindinho, orelhas desenhadas como conchas. Uma criatura do mar, enrolada e misteriosa, a ser devolvida às ondas.

- Não estou a falar de bebés - resmunga Beth desdenhosamente. - Estou a falar de si e de mim. Do facto de estarmos apaixonadas.

- O quê?!

Sinto-me tão atordoada que, durante um segundo, fecho os olhos. Será que entendi mal tudo o que ela disse até agora? Tento rebobinar o que acaba de acontecer, mas já se me escapou. De qualquer forma, nada disto importa porque, finalmente, eu disse aquilo que durante tantos anos trouxe encerrado dentro de mim. Tinha quinze anos, era quase adulta, quase criança mas, ao longo dos meses tinha sentido a mudança fugaz em direcção a algo mais consequente: o agitar de um peixe gordo, a vida à espera de explodir, libertando-se. Sabia biologia mesmo que, no princípio, o tivesse negado. Tinha feito os meus cálculos. Sabia o que me esperava.

Quando volto a abrir os olhos, vejo a cara vermelha de Beth mesmo junto a mim, a olhar-me furiosa.

- Cass - geme ela -, porque não me está a ouvir? Abano a cabeça, tentando sair do transe.

- Que é que lhe aconteceu? - pergunta, impaciente. Lentamente, forço-me a olhar para ela. - Quero que se vá

embora - digo calmamente.

- Não...

Engulo a minha agitação, estendo um braço e ponho-lhe a mão no cotovelo, empurrando-a. O braço dela está quente e pegajoso como se tivesse febre. Está ligeiramente mais calma, mas respira com dificuldade, ofegante. Como ruído de fundo, oiço o telefone tocar e o atendedor responder: Olá, ligou para Cass Bainbridge. Deixe mensagem e entrarei em contacto consigo...

- Fomos feitas para estar juntas, Cass - diz ela, sacudindo a cabeça a censurar-me. - Prometeu-me que ia tomar conta de mim para sempre. Como eu disse, aquela mulher de Leeds já não interessa nada. É só a Cass. Mas agora está a atirar-me tudo à cara.

Observo os olhos dela, confusos e injectados de sangue. Depois respiro fundo. Não, ela não pode ter qualquer relação comigo.

- Saia - exclamo.

É incrível como me sinto calma. Endireito-me e olho para ela tranquilamente. Do outro lado da porta, oiço uma voz masculina distorcida pela máquina. Tem um tom de urgência, as palavras saem em rajadas que se interrompem quando desliga o telefone.

- Se não sai imediatamente - digo em tom displicente -, chamo a polícia.

- Tantas promessas! Para agora ter de chegar a isto.

Apesar de querer ser ameaçadora, a voz dela é uma voz ameninada, como se estivesse a desempenhar um papel numa peça de escola.

- Nunca fiz promessas.

Ela sorri, prestes a apresentar o seu trunfo. - Naquela noite, na sua cama, quis beijar-me mas não se atreveu.

Engulo ar brutalmente e desvio os olhos da sua carinha determinada. Então, ela tinha estado sempre acordada. Por instantes, sinto-me corar, mas a emoção dissipa-se logo. Já não interessa o que eu fiz ou o que ela pensa, porque eu disse as palavras: Tive um bebé. Viro a frase do avesso, sinto mentalmente a forma e o peso das palavras estranhas. Sinto-me tonta, num estado liminar bizarro em que o significado daquelas palavras ainda não penetrou até ao fundo. Quando finalmente falo, a minha voz é diferente; mais velha, talvez, mas também menos assustada. - Quero que me deixe em paz.

As minhas mãos fecham-se sobre a maçaneta de latão. Estou prestes a escapar, mas de repente tudo se precipita.

- Não vá!

Ela atira-se para cima de mim, e geme com um grunhido baixo e animalesco, empurrando-me para cima do tapete com uma força de que não a imaginava capaz. Embora eu deva pesar aí mais uns vinte e cinco quilos do que ela, fico tão surpreendida que, por instantes, não consigo defender-me. Tento soltar o tronco das garras dela, girando e enfiando-lhe os dedos nos olhos, mas antes de conseguir descobrir uma boa posição ela trepou-me para as costas e empurra-me a cabeça para baixo. Dou um grito abafado, com a boca enfiada no pêlo da alcatifa. Sinto o cheiro a mofo do pavimento húmido e oiço os sons abafados da televisão de Jan.

Consigo mover um pouco a cabeça e olhar para ela. Está encavalitada nas minhas costas, cavaleiro lunático de uma égua caída. Sinto os seus dedos frios no meu pescoço, sinto o cheiro almiscarado do seu corpo. Quando falo, a voz sai-me num assobio fraco.

- Quem é você?

- Não sou ninguém.

Franze os lábios, uma menininha vexada. Se eu quisesse, conseguia certamente atirá-la para longe das minhas costas porque ela é tão pequena e leve, como um liliputiano a atacar uma versão feminina de Gulliver. - Beth - digo lentamente -, isto realmente é um grande disparate.

Ela não responde, mas sinto uma pontada aguda no pescoço quando ela me enterra as unhas na pele. Estou agora a tentar concentrar-me o mais possível, esforçando-me por manter a voz calma e apaziguadora. - Sei que está perturbada - continuo. - Eu compreendo, passou um mau bocado. - Suspiro, fazendo uma pausa para dar mais efeito às palavras. Não tenho a certeza por que razão comecei a falar desta maneira, mas parece que está a resultar. Nas minhas costas a pressão dos dedos dela está a aliviar.

- Por isso não vou dizer mais nada sobre este assunto. O que vamos fazer é arrumar toda esta confusão, depois sentamo-nos e tomamos uma chávena de chá. Que acha?

O meu tom soa familiar. É como se tivesse redescoberto um depósito antigo de conhecimento, algo tão profundamente interiorizado que eu nem sequer percebia que estava esquecido. Percorro rapidamente as minhas memórias, apoderando-me dos seus ténues filamentos.

- Vá, querida - digo gentilmente. - Vamos acalmar.

E então lembro-me. Era assim que a minha mãe costumava falar-me, antes de ter deixado de me olhar de frente e de eu ter começado a odiá-la. Cassie-bebé, chamava-me ela, quando eu era pequena. Anda fazer miminhos à mamã, Cassie-bebé, pousa a cabeça no meu ombro, vai correr tudo bem. Às vezes, depois da alguma queda ou discussão, eu soluçava tão violentamente que ficava com dores de barriga. Nessas alturas, ela era a única pessoa que conseguia consolar-me. Pegava em mim ao colo, agarrava-me com força de encontro à sua barriga macia e acariciava-me o cabelo até pararem as sacudidelas dos meus ombros. Eu adorava-a. E agora, ao sentir Beth aliviar a pressão e sair de cima de mim, percebo que seja o que for que tenha acontecido entre a minha mãe e eu, há tantos anos atrás, tenho de lhe perdoar.

- Só queria que se ocupasse de mim - diz Beth num fio de voz. - Estou tão cansada.

- Sei que estás cansada, querida.

- Todas as pessoas me odeiam...

- Não é verdade...

Viro-me, sento-me e faço deslizar devagarinho o meu rabo para junto da porta.

- Odeiam, odeiam - resmunga ela. - Nunca tive amigos a

sério.

- Tenho a certeza de que há montes de pessoas que gostam de si - digo, na mesma voz de canção de embalar. Pegando-lhe na mão, dou-lhe uma apertadela hipócrita. A fúria está a desaparecer-lhe da cara, mas os olhos continuam a vaguear pelo quarto, como se tivesse esquecido a razão por que está aqui.

- Nas aulas, a Cass é fantástica... ajuda mesmo e é divertida... Mas fui expulsa por causa daquela outra mulher. E nenhuma das outras universidades me aceitava, nem de perto nem de longe.

Não pergunto de que está ela a falar. Franze o sobrolho, como se estivesse a tentar perceber alguma coisa, de olhos vagos. Pego-lhe na mão livre e acaricio-lha devagarinho. Ela está a descair para cima de mim, apoiando todo o seu peso sobre a parte superior do meu corpo. Mal saiu da infância, com as suas bochechinhas macias como as de um bebé e caracóis da cor do mel. Que lhe terá acontecido? Teriam as sementes desta cena sido semeadas ainda no ventre materno, uma predisposição genética para um comportamento obsessivo? Ou alguém terá abusado dela? Ou uns pais, incapazes de lhe dar aquilo de que ela necessitava, terão destruído a sua oportunidade de ser feliz?

- Os seus pais não morreram mesmo, pois não? - digo docemente. Ela estremece, agarrando os braços pisados.

- Antes tivessem...

- Sabem onde está?

Ela encolhe-se. - Nunca se interessaram. Há uma longa pausa. Só quero sair daqui.

- Quer que lhe faça um chá de camomila? - acabo por dizer. Fazia-lhe bem.

? Ela acena que sim, com uma expressão trágica. Muito devagarinho começo a afastar-me dela. - Depois talvez possa cozinhar outro jantar.

Ela levanta os olhos e o rosto ensombra-se-lhe com alguma recordação.

com toda a cautela levanto-me e viro-me para a porta. Não quero andar muito depressa, não vá ela detectar a urgência que tão arduamente tento disfarçar. Se ao menos tivesse uma chave do meu quarto podia fechá-la lá dentro. Ela voltou a deixar-se cair no chão e está enroscada na alcatifa com os braços a tapar a cabeça de modo que tudo quanto vejo da cara dela é um emaranhado de caracóis húmidos. Sorrindo tão serenamente quanto sou capaz abro uma nesga da porta.

- Cass? - oiço-a sussurrar.

- Sim, querida?

- Não vai demorar, pois não?

- Claro que não.

Mal saio do quarto, atravesso o hall a correr. As minhas pernas tremem como as de um marinheiro de água doce apanhado numa tempestade, o coração bate-me desordenadamente no peito. Quando chego à porta que dá para o patamar, abro-a de rompante. Tento fazer o menos barulho possível mas há uma corrente de ar e, quando cruzo o umbral, o vento arranca-me das mãos a porta, que se fecha com grande estrondo.

Lá fora, o vento bate-me na cara com tanta força que, por momentos, me corta a respiração. Do outro lado da rua, as árvores estão numa dança frenética e os ramos andam numa roda viva como punks bêbedos a dançar. Ao fundo da praça, do outro lado da via rápida, oiço o matraquear das ondas. Atravesso a rua a correr, em direcção aos jardins. A cena com Beth adquiriu já uma qualidade de sonho, desbotada, algo de irrelevante e de passado. Tudo o que agora me interessa é o meu bebé.

Abro o portão e calcorreio com dificuldade a relva enlameada. Nas vinte e quatro horas que passaram desde a minha discussão com Matt, o jardim sofreu uma modificação violenta. A relva está coberta de ramos e galhos partidos e, lá ao fundo, uma árvore gigante foi arrancada pela raiz e jaz agora atravessada no caminho, um gigante adormecido. Ao chegar ao fim da barreira oiço o rugido incansável do mar. Desato a soluçar, corro loucamente pelo túnel húmido que passa por baixo da estrada e vai dar à praia. Arrancaste-me, grita a voz. Puseste-me de lado, como a um embrulho entregue na morada errada. E, depois, abandonaste-me à morte.

Mas não é verdade - é claro que não fiz uma coisa dessas. Corro pelo túnel, abraçando o meu próprio corpo numa tentativa desesperada de consolo. Em breve chegarei à praia, ao lugar onde tudo acabou e tudo começou. Durante alguns segundos abafados há silêncio, só entrecortado pelo barulho das pingas que caem do musgo do tecto e pelo som metálico do portão na outra ponta. A escuridão é quase total; cheira a água choca, a sal e, vagamente, a urina.

Então, de repente, chego ao fim. Abro o portão, tropeço nos calhaus e corro em direcção ao mar. A chuva bate-me violentamente na cara e o vento quase me derruba, mas, finalmente, estou aqui. Paro por instantes, a olhar freneticamente para as ondas de um verde sujo que molham as paredes da marina e rebentam nos seixos da praia.

As rochas amontoam-se nesta parte da praia, esculpidas pelo vento numa estranha paisagem ondulada de colinas e vales. Passo por cima delas aos tropeções, aproximando-me cada vez mais da água. Tenho estado a viver aqui tão próximo desde o Verão, as ondas e a faixa azul para além da praia o meu pano de fundo constante, mas é a primeira vez que me atrevo a encará-las. E agora estou de regresso à cena do meu crime, o lugar que, na realidade, nunca abandonei.

Onde é que aconteceu, exactamente? Espreito desesperadamente através da névoa, limpando com a manga os salpicos que me toldam os olhos. Não foi tão para leste, de certeza, foi mais perto do molhe, porque era aí que ficava o restaurante. Durante uma fracção de segundo, vejo-me deitada nas rochas, com a água ensanguentada a escorrer-me pelas coxas. Pensei que ia morrer, que de manhã haviam de me encontrar estendida sobre os seixos, lavada e cozida pelo sol como um choco. Nessa altura ainda não queria esconder nada, só queria desesperadamente que me ajudassem. Mas eram as horas mais mortas da noite e a praia estava deserta.

E depois veio, abrindo caminho tão depressa que, mesmo que eu tivesse tentado arrastar-me de volta para a estrada, nunca lá chegaria. Devia estar tão ansiosa por viver como estava por dominar e abafar a vida.

O meu estômago revolta-se com esta recordação. Volto-me bruscamente para olhar de frente para o mar. Estou tão perto das ondas que a espuma me salpica, mas mal dou por ela. Todos estes anos carreguei este segredo dentro de mim: não uma vida que vai crescendo, mas o conhecimento mortífero daquilo que fiz.

A mãe atirou-me um dos seus olhares «atreve-te-a-desobedecer-e-vais-ver» e saiu do quarto do hotel. Era contra todos os meus princípios fazer o que ela dizia, mas eu estava a sentir-me demasiado doente para resistir mais, por isso, saí da cama, vesti uma espécie de túnica comprida e com franjas, que tinha comprado no mercado de Kensington na minha fase heavy metal, e um casaco afegão de um tamanho enorme e cambaleei pelas escadas abaixo. A dor nas costas tinha-se agora deslocado para a frente da barriga, como uma dor menstrual forte. Não parava de ir e vir, fazendo com que estremecesse de desconforto, e depois desaparecia. Sentada no banco de trás do táxi que eles tinham chamado, gemi de dentes cerrados com uma guinada inesperadamente forte. Deve ter sido de andar, repetia para comigo, devo ter feito uma distensão muscular. Não era possível que fosse a coisa.

No restaurante não consegui comer o prato de massa que pediram para mim. Estava a sentir-me outra vez enjoada e as dores aumentavam regularmente de intensidade. A mãe e o Dr. Death iam pedindo garrafas de espumante e fazendo brindes, numa celebração satisfeita. Mas eu não conseguia beber nem um gole. Sabia a desinfectante e dava-me volta ao estômago. A verdade é que, quando os empregados levaram o meu prato intacto, eu percebi que ia vomitar. Agarrada à barriga corri para os lavabos e vomitei no primeiro cubículo vazio, no momento em que outra dor violenta me assaltava.

Quando de lá saí, a mãe estava à minha espera junto dos lavatórios. - Estiveste a beber outra vez, Cass? - disse ela, observando-me de alto a baixo. Atordoada, olhei também para ela. Devia ter-lhe pegado na mão, pousado essa mão na minha barriga inchada. Estou em trabalho de parto, estúpida! Mas só consegui abanar a cabeça.

- Porque é isso que me parece - disse ela, com a voz numa perigosa oitava acima. - Julguei que tinhas acabado com esse comportamento juvenil, mas afinal não. Foi o que andaste a fazer todo o dia, não? Agarrada à garrafa. - Os olhos dela, pesadamente maquilhados e cada vez mais vermelhos, cravavam-se em mim, com uma expressão de censura. - Não espanta que estejas enjoada.

A maneira como ela estava a olhar para mim dava-me vontade de desatar a chorar. Se ao menos ela não fosse tão crítica para comigo! Se ao menos eu lhe conseguisse contar a verdade! Contudo, apesar do horror que, desde a Primavera, eu tinha gradualmente percebido que era impossível negar, falar com ela era impossível. Nos primeiros meses, quando o meu corpo foi abalado pelas náuseas e pelo cansaço, mas nada se via, a minha atitude fora simples: uma negação total e absoluta. E assim, apesar de os meses passarem e de o período não vir, ia repetindo para comigo que isso não tinha importância. Como dizia naquela coluna do médico, na revista Cosmopolitan, tratava-se provavelmente do resultado de stress ou de uma mudança brusca de regime alimentar. Amenorreia: até havia um termo médico para tal. Nessa altura, o meu pai já estava muito mal, por isso aquilo permaneceu um pequeno medo que pairava desconfortavelmente na boca do meu estômago, não exactamente esquecido, mas ignorado, como um cão desprezado que rosna mas que ainda não mostra os dentes nem ataca.

Mais tarde, porém, quando o pai morreu e a vida, como dizia a minha mãe de dentes cerrados, «tinha voltado ao normal», foi-me mais difícil reprimir os meus medos. Nessa altura já a minha barriga tinha crescido, um monte duro, e lá dentro eu sentia a coisa a mexer-se e a dar pontapés. Nunca pensei naquilo como um bebé, era apenas uma coisa estranha que me estava a invadir e da qual não havia escapatória. Durante todo o Inverno tinha expulso da cabeça a recordação daquele terreno baldio em Peckham, sob a neve derretida. Tudo tinha sido culpa minha, disso tinha a certeza, uma violação tão hedionda e humilhante que nunca, nunca, contaria a ninguém e, menos ainda, à minha mãe. Porém, apesar dos meus esforços febris, às vezes o meu cérebro não conseguia reprimi-la e, como um monstro debaixo da cama, aquela recordação assaltava-me com um guincho macabro. A culpa era minha por ter dançado assim, troçava o monstro. Eu tinha saído da festa como uma doida e ele tinha-me seguido, agarrado e feito aquilo, rasgando-me os jeans e o soutien e deixando-me magoada e a sangrar. Lembrava-me, numa agonia de vergonha, de ter estado a dançar com o tipo como uma puta, por isso, devia ter merecido aquilo. E agora, aqui deitada sem conseguir dormir, a olhar para a confusão de discos e de roupas que, por uma questão de política adolescente, me recusava a arrumar, sabia que aquilo que todas as adolescentes mais temem estava

realmente a acontecer neste preciso momento, dentro de mim.

E Quando adormecia tinha pesadelos: provações terríveis em que eu tentava fugir de um perseguidor sem rosto, mas em que não conseguia mexer as pernas. Durante o dia, passava de um pragmatismo inconsciente para um terror tão avassalador que mal me conseguia aguentar em pé. Este podia atacar-me em qualquer altura: no meio de uma aula, à espera do autocarro da escola, sentada, de rosto inexpressivo, a lanchar com a mãe e David. Uma sensação vertiginosa de pânico que me deixava atordoada e com falta de ar. Se alguém reparasse, calculo que partiriam do princípio que se tratava de tristeza. Pobre criança, claro que está com um comportamento estranho. O pai só morreu há uns meses.

Mas quase ninguém reparava. E eu estava demasiado assustada para contar à mãe. Não é que tivesse medo de que ela me batesse ou me pusesse na rua: ela era recepcionista num consultório médico nos arredores de Londres, em 1980, não um patriarca vitoriano. Era mais uma questão de eu não me conseguir convencer a articular as palavras, de forma a que elas constituíssem um todo compreensível, porque, se o fizesse, a coisa tornar-se-ia irrevogavelmente real. Já sabes a novidade? Que choque!... A Cassie Bainbridge está de barriga!

Olhando agora para a minha mãe, sinto as palavras a formarem-se-me na boca, a minha prenda de casamento surpresa. vou ter um bebé. Mas a maneira como ela estava a olhar para mim fez-me engolir as palavras, demasiado covarde para aguentar a reacção que eu sabia que elas iriam provocar.

- Não estive a beber - murmurei.

E ela agarrou-me pelo pulso e puxou-me para ela - Vai haver algumas mudanças, agora que o Don está cá para se ocupar de nós - sussurrou ela. - Chegou a altura de deixares de ser um sarilho constante.

Há nove meses eu era capaz de tentar dar-lhe uma estalada, mas naquela altura já quase não tinha energia para falar. Arranquei o meu pulso da mão dela, voltei-me e saí dos lavabos, atravessando o restaurante em direcção à saída. Ali chegada, parei, olhei para trás para ver onde ela estava, como uma criança pequena recalcitrante. Estava furiosa com ela, mas não queria estar sozinha. O que vi foi que ela tinha voltado para a mesa, estava a dizer qualquer coisa, a minimizar a importância da cena, e a sentar-se junto do Dr. Death. Nem sequer estava a olhar na minha direcção.

Porque é que ela não me seguiu? Nunca percebi. Era filha dela e ela devia ter-se apercebido que algo não estava bem. Estaria a tentar dar-me uma lição, a mostrar-me que aquilo a que ela chamava «o meu comportamento de chamada de atenção» não funcionava? Ou tinha, pura e simplesmente, desistido? Tento constantemente pôr-me no lugar dela: era a noite do casamento deles; já tinha suportado anos de disparates adolescentes; não fazia a mínima ideia da dimensão do problema; o seu casamento infeliz tinha terminado havia quatro meses com a desagradável morte do marido. Mas, mesmo tentando imaginar o que ela sentia, a minha simpatia evapora-se como água no deserto e a única coisa de que me consigo lembrar é de que, naquela altura, eu precisava dela mais do que nunca. Como é possível que ela não tenha reparado? Eu tinha deixado pistas suficientes: teria bastado que ela me perguntasse e eu tinha despejado tudo. Contudo, apesar dos pacotes de pensos higiénicos que ficavam por abrir e das Rennies que eu trazia no bolso e chupava como se fossem rebuçados, ela nunca disse uma palavra. Andava, na altura, muito ocupada com o Dr. Death, sempre dentro e fora, maquilhada e com um risinho agudo que não lhe conhecia. «Chegou a minha vez», dizia ela, se a desafiassem. Ouvi-a uma vez ao telefone com a minha avó, a erguer a voz na defensiva: «Já passei por maus bocados que cheguem. Esta é a minha única oportunidade.» Quanto ao seu médico adorado era óbvio que, do ponto de vista clínico, não era grande observador. Na maioria das vezes fazia de conta que eu não estava presente. Quando olhava na minha direcção, suponho que o que via era uma adolescente gorda e mal-humorada, com quem mais lhe valia não meter conversa.

Ou talvez, lá no fundo, a minha mãe soubesse a verdade mas, tal como eu, estava estupidamente à espera de que o problema, se fosse ignorado durante bastante tempo, desaparecesse sozinho. Fosse como fosse, contudo, agora já era demasiado tarde para ela adivinhar ou para eu confessar. As portas giratórias expeliram-me para a rua juntamente com um bafo de ar pesado do restaurante. Já passava das nove horas e o passeio estava cheio de gente a gozar o calor da noite. Não sabia para onde havia de ir, só sabia que a dor ia recomeçar. Quando eu ia a descer aos tropeções para o corrimão de ferro que conduzia à praia, a dor atingiu-me mais rapidamente do que eu pensava. Curvei-me e quase caí, atravessando-me no caminho de um grupo de rapazes adolescentes. Deviam ter a minha idade, vinham com latas de cerveja na mão e andavam, bêbedos, a pavonear-se pelo centro da cidade.

- Ei, miúda! - gritaram quando me desviei deles, dirigindo-me na direcção oposta. - Aguenta-te! - E, quando caí sentada num banco, tentando respirar entre as contracções lancinantes, ouvi um deles dizer desdenhosamente: - Puta gorda!

Durante talvez uns dez segundos pensei que ia morrer. A dor agarrava-me com as suas tenazes maléficas, depois, gradualmente, diminuía e desaparecia. Choramingando, desci as escadas e dirigi-me para o mar. Lá em baixo devia estar mais fresco, pensava eu, posso molhar a cara. De repente, a camisola sufocava-me, por isso tirei-a e amarrei-a à minha enorme cintura. À minha frente estendia-se a praia de seixos e a seguir, cintilando ao luar, uma faixa plana de água.

Olhei em volta, desesperadamente. Perto das luzes de néon do molhe luziam no escuro as brasas de várias fogueiras, podiam ver-se casais, também - distinguia as figuras horizontais que rolavam sobre os seixos. Dirigindo-me para leste, comecei a caminhar para a parte mais escura da praia, longe das luzes e dos olhares. Estavam a acontecer coisas estranhas ao meu sentido do tempo. Desamparada, passava de um monte de pedras para o seguinte, descansando de vez em quando. Parecia que só ali estava há uns instantes, mas quando a dor mais violenta que tinha sentido até então ainda estava lentamente a desvanecer-se, reparei que as fogueiras tinham desaparecido e que estava sozinha. Num momento de lucidez fugaz, percebi exactamente qual era o meu problema e fui invadida pelo pânico. A coisa estava a chegar. Agora não a podia deter nem podia ir procurar ajuda porque o monte de pedras, por onde tinha descido há pouco, tinha um declive muito íngreme e eu sentia-me demasiado fraca para trepar. Quando olhei novamente para os candeeiros vitorianos que ornavam graciosamente a frente marítima pareceu-me que eles se tinham afastado vários quilómetros: outra realidade impossível de atingir. Depois a dor voltou e eu perdi-me nela, a minha mente contava febrilmente as suas batidas e o meu corpo encolhia-se todo, como se eu já não fosse a pessoa dentro dele.

Foi mais ou menos nessa altura que tentei pôr-me em pé. Tinha estado agachada, com a cara encostada na areia e os joelhos raspados pelas pedras e estava tão rígida que mal me podia mexer. Tinha mais ou menos cinco segundos até a dor voltar a atacar. Levantei-me a custo, voltei-me de frente para o mar e, de repente, senti água a correr-me pelas pernas. Tocando no meu vestido, os meus dedos encontraram-no ensopado naquilo que só podia ser xixi. Mas também tinha sangue. Cheirei o líquido, cada vez mais assustada. O líquido jorrava de dentro de mim, como se as minhas entranhas tivessem explodido. Quando outra vaga de dor me invadiu, eu sabia apenas uma coisa: ia morrer, exactamente ali, naquela estúpida praia.

Mas não era a morte que me estava a invadir, era a vida. E agora sentia não só a dor lancinante como, também, uma necessidade desesperada de evacuar ou de fazer qualquer coisa para expelir aquilo do meu corpo. Talvez seja apenas um problema de estômago, pensei, cheia de esperanças loucas. Talvez fosse apenas um ataque de diarreia. Baixei as cuecas e acocorei-me no meio das pedras. Lembro-me do suor a escorrer-me pela cara, da sensação horrenda de estar a rebentar como um figo maduro. Sentia o cheiro dos chocos que apodreciam na praia e da água salgada que lambia com languidez os seixos, e o fedor dava-me vómitos. Lá mais à frente, o mar estava liso e vidrado, indiferente ao que estava a acontecer.

Não havia forma de voltar atrás. Quando a luz da madrugada começou a espalhar-se pelo céu e me acocorei nas rochas, senti um volume grande e duro a fazer pressão contra o meu rabo. A dor era insuportável e eu ofegava de medo. Ia ser partida a meio e morrer, tinha a certeza. Amanhã, os banhistas iam encontrar o meu corpo partido em vários pedaços horrendos. Depois houve outra contracção e, incapaz de me conter por mais tempo, puxei e senti uma massa encharcada a emergir por entre as minhas pernas. Mais uma vez, só mais uma, dizia-me o meu corpo, e acaba tudo. Então, de repente, senti aquilo cair, com um som mole de fruto demasiado maduro, no meio do chão, entre as minhas pernas.

Depois deitei-me, pousando a cara sobre as rochas e chorei. As dores tinham cessado, tornando-se apenas uma ligeira tremura, quando senti outra coisa quente e gelatinosa deslizar de dentro de mim e ir juntar-se à coisa em cima das rochas. Não queria voltar-me para olhar, mas senti o calor da pele a roçar-me pelas coxas escorregadias e ouvi um gritinho abafado e lamentoso. Finalmente ergui-me e olhei.

Era um bebé. Eu sempre soubera, mas agora, inclinando-me para a frente e pousando devagarinho a mão na sua carinha ensanguentada, senti-me estarrecida. Como podia ter acontecido isto? Tantos meses de medo e de aflição e ele a crescer lentamente dentro de mim; uma pessoa pequenina, embora completamente formada, com cabelo escuro molhado e mãozinhas minúsculas que se agitavam no ar. Era espantoso e tão perfeito! Quando olhei para baixo, dois olhinhos pretos e velados retribuíram-me o olhar. Passei um dedo pela boquinha húmida e ela abriu-se, expectante: um passarinho à espera de ser alimentado. Observei-lhe o corpo magrinho e vi que um pedaço de cordão que parecia borracha e era roxo lhe saía da barriga; ligado a este cordão estava um monte de carne gelatinosa e nojenta que jazia entre as minhas pernas, como um adereço de um filme de terror. Algures no meu cérebro ecoou a expressão cordão umbilical, como uma lição de biologia aprendida de cor. Tacteando entre as rochas, os meus dedos encontraram um dos chocos esbranquiçados, cujos restos cartilaginosos estavam ressequidos e tinham arestas duras. Serrei com aquilo o cordão, cortando-o em dois, como se fosse uma porção de lula. Quando os bocados se separaram dei um pontapé à placenta ensanguentada e atirei-a para cima da areia e dos seixos. Depois peguei no bebé e a cabeça dele descaiu para cima do meu ombro.

Estava frio como alabastro, mas sentia-lhe o coração a bater de encontro à minha pele. Procurei e encontrei a minha camisola que tinha deixado cair ao chão muitas horas antes e embrulhei nela o corpinho trémulo, segurando-o com toda a força de encontro ao peito. Olhei para baixo. Era tão bonito, o meu filhinho, com os seus olhos escuros tão sensíveis e cheios de confiança. E quando tentei aquecê-lo, soube o que devia fazer. Agora dava tudo para inverter a situação, para voltar àquela noite sufocante de Verão e conduzir-me, a mim, com os meus quinze anos, de regresso à segurança do hotel, mas estava meio enlouquecida com o choque. Parecia ser a única solução.

E, assim, levantei-me, trémula, e comecei a calcorrear a praia em passos cambaleantes. Estava outra vez com medo porque não tardava a ser dia e iam descobrir-nos. O bebé repousava nos meus braços, silencioso como uma boneca, com os olhos meio cegos a piscar por causa da luz do sol que brilhava agora já por cima do molhe. Passados uns minutos parei, olhando em volta num pânico cada vez mais intenso. Sentia o sangue a escorrer-me pelas pernas e a minha visão estava constantemente a desfocar-se.

A curta distância do sítio onde me encontrava estava um barco de pesca que tinha sido içado para a zona acima dos seixos e descansava junto a um monte de baldes de plástico e rolos de cabos grossos. Cambaleei até lá, pensando apenas que poderia fornecer-me algum refúgio. Quando cheguei junto do barco, parei e espreitei lá para dentro. Queria um sítio quente e seco, porque, embora estivesse desesperada por escondê-lo, não queria que acontecesse mal ao bebé. Hoje é claro que tudo isto parece de uma displicência criminosa. A coisa óbvia a fazer era levar a criança até à estrada ou deixá-la, até, junto da porta de alguma casa, em qualquer sítio, excepto num barco velho na praia. Mas eu estava muito longe de qualquer pensamento racional.

com excepção de mais um balde, de uma rede de nylon azul e de uma prancha de madeira que servia de banco, o barco estava vazio. Era evidente que já há tempos não saía para o mar, porque o chão estava seco. Era um bom lugar, pensei eu: o sol e o mar aqui não incomodariam o meu bebé. Debruçando-me, coloquei o meu embrulho debaixo do banco, empurrando-o bem lá para trás, para que não se visse. O bebé dormia agora, com os seus olhos sem pestanas muito fechados para não ver o novo mundo: um pedaço de mim, mas que já não me pertencia. Gostava de poder dizer que me despedi da criança com um beijo ou que sussurrei uma oração aos seus ouvidos, mas a verdade é que não fiz nem uma coisa nem outra. A única coisa em que conseguia pensar era que ninguém devia saber o que tinha acontecido. Por isso pousei-o ali com cuidado, verifiquei que a camisola lhe cobria bem a pele gelada, depois dei meia-volta e regressei por sobre as pedras.

Sei que o que fiz foi errado. Nunca devia ter deixado a criança assim. Devia tê-la mantido junto a mim, aconchegada de encontro ao meu corpo. Devia tê-la levado para o calor do hotel, devia tê-la alimentado com o líquido branco e espesso que enchia agora o meu peito e não me preocupar com o que as pessoas dissessem. Devia ter sido uma mãe para aquela criança que hoje seria adulta. Talvez pudéssemos ser amigas; e eu estaria, de certeza, livre.

Mas não fiz nada disso. Tinha quinze anos, estava aterrada e em estado de choque. Por isso coloquei o bebé dentro do barco e regressei sozinha ao hotel.

Quando a minha mãe me acordou passado cinco horas disse-lhe que estava com uma menstruação muito forte e que queria ficar na cama. Ela não fez mais perguntas. Se manifestou alguma coisa foi um certo alívio. Suponho que temia passar o primeiro dia da sua nova vida de casada com a bêbeda delinquente que tinha por filha. E, se reparou na trouxa de roupa ensanguentada que eu tinha enfiado no cesto ou se se interrogou por que razão, passados tantos meses, eu tinha de repente uma menstruação tão forte, a verdade é que não fez qualquer comentário.

Foi só na manhã seguinte que vi a primeira página do jornal local. Li que um homem que andava a passear o cão na praia encontrou dentro de um barco uma criança recém-nascida. Embora fosse crime abandonar um bebé, pediam à mãe que aparecesse, pois precisaria de cuidados médicos. Era imperativo que ela entrasse em contacto com as autoridades.

Amarrotei o jornal e pu-lo no cesto dos papéis. Apesar do sangue que continuava a escorrer de dentro de mim, nunca me apresentaria, pois era evidente que se tratava de uma armadilha que acabaria em prisão. O que eu ia fazer era muito simples: voltar para casa com a mãe, David e o Dr. Death. Ia trabalhar, trabalhar, trabalhar, até apagar da mente a ideia do bebé. E, depois, quando acabasse o ensino secundário com notas excelentes e tivesse a garantia de um lugar em Oxford, cortaria todos os contactos com o passado.

Pára, por favor. Não suporto pensar mais nisso. Esquecendo as bátegas de chuva que me martelam a cara, desato a correr ao longo da linha da costa. Toda a gente pensa que eu sou uma pessoa bondosa e interessada: a boa Cassie, tão maternal, com todos os seus enjeitados. O próprio Matt queria ter um filho comigo. Achava que eu seria uma mamã encantadora. Não sabes que ela já teve um filho? Saiu-se uma bela mãe! Começo a chorar, de ódio por mim mesma. Não sei o que farei quando lá chegar, mas vou a caminho da marina.

Quando chego ao rebordo do cais de cimento que circunda os iates e os barquinhos ancorados, subo os degraus que levam ao caminho. Nos fins-de-semana tristonhos, quando o mar está cinzento e calmo, este sítio enche-se de pescadores de caras rubicundas e de miúdos a andar de skate, mas hoje está vazio porque só um louco se atreveria a desafiar as ondas que rebentam, brincalhonas, sobre o paredão. Já estou bastante encharcada, mas quase não dou pela roupa molhada que se agarra ao meu corpo. Ignorando um painel que diz: Perigo! Não entrar nesta zona em caso de mau tempo!, corro ao longo do caminho estreito.

Quando chego ao extremo, paro, contemplando o mar violento. Ponho-me a imaginar como será estar dentro da água gelada, com a escuridão a fechar-se irrevogavelmente em torno da minha cabeça. Serei puxada para baixo, afundar-me-ei devagarinho até ao fundo, sem direcção, como um barco reduzido a escombros pelos cavalos brancos desenfreados. Uma grande pluma de água alcança-me, fecho os olhos, entregando-me a ela, sabendo que nunca poderei regressar.

As ondas esmagam-se em cima de mim, obrigando-me a encostar-me à balaustrada de cimento, cuspinhando água salgada. Tento recuperar o equilíbrio, mas outra onda, ainda maior, ergue-se por cima do paredão com os seus dedos gelados a inundar o quebra-mar. Ali acocorada, à espera do inevitável, parece-me que o rugido do vento me atira estas palavras: Dra. Cassie Bainhridge: a sua vida confortável é uma mentira! Outra onda vem agora na minha direcção, como se quisesse deliberadamente arrastar-me com ela, e a única coisa que faço é escutar o bater da água de encontro ao paredão e esperar pelo seu toque gélido. Não ouviram? Ela teve um bebé e deixou a criança a morrer na praia!

Aqui está ela, finalmente. A onda embate no meu tronco atirando-me violentamente de encontro ao muro da marina, onde caio de costas, a ofegar com o choque do frio. Estava à espera disto: sempre que passo por um bebé na rua ou pego numa criança ao colo, lembro-me daquela que deixei sozinha e apetece-me morrer. E agora escoaram-se os poucos segundos que separam o momento em que a onda me atinge e daquele em que ela recua e, apesar de tentar levantar-me, já outra onda chega e me bate duramente na cara.

Enquanto isto acontece e sinto a água passar-me por cima da cabeça e grito com frio, lembro-me de outra coisa. O bebé não morreu, foi salvo. Havia um senhor de idade com um cão. Encontraram-no mesmo a tempo. E agora que estou prestes a ser arrastada pelo mar, descubro que nunca foi esta a minha intenção. Não voltei a este lugar para morrer. Vim porque, atrás da minha imbecil negação, sempre se escondeu o sonho de encontrar o meu bebé e, para tal, tinha que encarar, finalmente, este lugar. E agora, mais do que qualquer outra coisa, quero viver.

Agarrando-me ao cimento com os dedos molhados, vou andando ao longo do cais. O vento é tanto que corro o risco de ser atirada pelos ares e cair no turbilhão, e assim vou seguindo devagarinho, sempre encostada à parede. À minha volta, as ondas furiosas quebram-se, trocistas, no cimento. Tenho de recuar uma centena de metros para regressar ao santuário dos ancoradouros, onde o mar bate vigorosamente de encontro aos barcos que chocalham mas onde, pelo menos, está cercado pelos paredões.

Uma onda gigantesca acaba de se esmagar atrás de mim. Fechando os olhos para os proteger, dou mais dois ou três passos, lutando contra o vento que me sacode em rajadas imprevisíveis. A cerca de vinte e cinco metros, onde o cais faz uma curva na direcção da praia, há um nicho escavado na parede onde, às vezes, os pescadores se abrigam da chuva. Talvez possa esperar ali, até o temporal amainar. À minha volta, o mar acalma de repente, como se estivesse a reunir forças para a nova investida. Cruzo os braços sobre a cintura e corro para lá. Recomeçou a chover com força, reduzindo o meu campo de visão a uma névoa cinzenta e impenetrável.

Já quase lá cheguei. A minha roupa está encharcada, o cabelo cola-se-me à cara. Quase não sinto os dedos. Mas, pela primeira vez em mais de vinte anos, penso que talvez esteja verdadeiramente viva. Corro para o nicho, quase saltando de alívio por estar tão perto da segurança. Não importa o tempo que lá tenha de esperar, porque a tempestade acabará por passar e eu poderei continuar o meu caminho. Vejo vagamente os seus contornos, um posto de vigia forte e firme. Mas ao percorrer os últimos passos, quando o nicho emerge através do nevoeiro, sinto os pêlos dos braços eriçar-se, como os de um gato assanhado. Apercebo-me, com horror e desânimo, que já está ocupado. O que significa que estou encurralada porque é tão inconcebível retroceder até às ondas homicidas como também o é avançar. Porque agora, a cortar-me o caminho, está Beth.

Por instantes, ficamos a olhar uma para a outra, com as ondas a rebentar à nossa volta. Ela deve ter ouvido bater a porta e seguiu-me até aqui, abalada a sua frágil confiança em mim. E agora, ao observar através da chuva oblíqua a sua cara pequena e tensa, sinto, pela primeira vez, verdadeiramente medo dela. Enquanto eu imaginava um perseguidor masculino, todas aquelas versões diferentes do pesadelo do homem que me esperava na rua de Peckham, afinal era uma rapariguinha com acne, calças de ganga largueironas e sapatilhas que me perseguia. - Que quer? - grito, tentando sobrepor-me ao rugido do mar.

Ela avança um passo na minha direcção. Foi ela que fez todos os telefonemas, ela que esteve no telhado naquela noite, e ela que, depois de ter tirado as chaves da minha carteira, entrou no meu apartamento para aceder ao meu computador. E agora está perigosamente junto da borda do caminho.

- Amo-te, Cass - diz ela docemente.

Um agudo pressentimento arrepiante sobe dentro de mim.

- Não, não é verdade - grito-lhe em resposta. - Não sabes «nada a meu respeito.

- Disseste que ias cuidar de mim.

Olho para ela. O meu coração bate tão violentamente que não consigo falar, por isso limito-me a abanar a cabeça.

- Porque estás a fazer isto? - O tom da voz dela torna-se mais agudo, já não é irritado e amuado, mas estridente e exigente. Também está a respirar mais depressa: através da névoa consigo distinguir o peito dela a arfar, o modo agitado como os dedos dela sacodem a chuva.

- Beth - articulo -, tens de te acalmar.

Mas isto só piora as coisas. Atirando-se a mim, com olhos baços de raiva, lança um uivo de fúria. - Porque não podes amar-me?

Então, antes de eu conseguir desviar-me para um dos lados, ela agarra-me e, puxando-me pela cintura, tenta empurrar-me para a borda do cais. Eu sou muito maior e mais forte do que ela, mas fui apanhada desprevenida e, de repente, estamos exactamente no limite, com as ondas à nossa espera lá em baixo, como um fosso de leões esfaimados. Penso que estou a gritar: é difícil dizer, porque o mar e o vento fazem muito barulho, a própria Beth está a berrar qualquer coisa a cerca das pessoas que a abandonaram e o meu coração bate desenfreadamente. De qualquer forma, agora já é tarde de mais para ambas porque, ao debater-me, Beth empurra-me para trás, e como um personagem de banda desenhada numa luta, de repente não tenho nada debaixo dos meus pés e estou a cair, com os braços a agitarem-se no ar. E, como está agarrada a mim, Beth também está a cair.

Talvez durante um segundo não há nada, para além da sensação de cair a toda a velocidade e de muito alto e a pressão desesperada dos dedos de Beth no meu braço. Depois batemos na água e, de respiração cortada pela temperatura gelada, somos empurradas para o fundo. Fiquei em tal estado de choque com o frio que não tenho qualquer reacção. Afundo-me cada vez mais na água esverdeada, a minha boca sabe a sal, o meu cabelo flutua à volta da minha cabeça como uma auréola.

O afundamento parece levar minutos e não apenas segundos. E, estranhamente, agora que aqui estou, já não tenho medo. Está escuro aqui no fundo e, depois do frenesim do vento, uma calma abençoada. Apesar da água gelada, o meu corpo está tão entorpecido que quase sinto calor. Podia ficar aqui em baixo para sempre, penso, sonhadoramente; não precisarei de voltar a pensar na criança.

Depois, de repente, as mãos de Beth cravam-se nos meus ombros, agarram-se desesperadamente aos meus braços. Ao senti-la empurrar-me para baixo e a última gota de oxigénio ser expelida dos meus pulmões, regresso à realidade de que estou a afogar-me. Tenho de voltar à superfície: preciso desesperadamente de respirar. Sacudo-me com todo o vigor, empurro-a com toda a força, depois, com um impulso, propulsiono-me para cima, em direcção à luz. Talvez ela esteja agarrada aos meus pés, talvez estes estejam simplesmente presos nas algas. Seja como for, liberto-me com violência aos pontapés e a esbracejar loucamente.

Então, de repente, a minha cabeça fura a água à superfície e há luz e ar e respiro tão fundo que fico com soluços. Mas, apesar de ter chegado aqui, o pânico ainda não desapareceu. As minhas pernas movem-se na água com pouca eficácia e sou novamente criança, a desesperar por ar, a lutar para manter a cabeça à tona. Estica-me esses braços, ordenava a minha mãe, meio a rir, meio irritada. Faz esses movimentos de rã com as pernas. É tão fácil! E, depois, largava-me e recuava, sem expressão, a ver-me cuspir e abanar os braços. Mãe!, gritava eu, Não!

Mas claro que era o que ela fazia e agora estou sozinha e mal consigo manter-me a flutuar. Bato com desespero na água lembrando-me das instruções dela. Mantém os braços abaixo da superfície, assim mesmo! Vá estende os braços para mim, linda menina, vês que consegues...

A minha roupa ensopada está demasiado pesada. Puxo pelo casaco e liberto-me do tecido encharcado. Depois, de pernas e braços soltos, respiro fundo outra vez. Continuo a engolir água e a minha visão fica obscurecida pelas ondas que passam sobre a minha cabeça, mas estou decidida a não me afogar. Força, Cassi, implora a minha mãe. Não desistas! E, para meu espanto, estou a fazer progressos, a conseguir manter a cabeça fora de água e a avançar, apesar das ondas agitadas me baterem na cara. Quando há uma acalmia, paro de nadar e olho em volta. Vejo que não estou tão afastada da praia como tinha imaginado, mas apenas a uma centena de metros. Depois outra onda rebenta e enrola-me, puxando-me para baixo.

Mas desta vez subo para a luta. E agora percebo que a maré está a meu favor. Em vez de me arrastar para fora, está a empurrar-me resolutamente em direcção à praia. Por isso deixo-me ir, paro de lutar contra as ondas alterosas e deixo que elas carreguem o meu peso, me levem de volta para a vida e para a esperança. Quando os meus pés tocam nos seixos, penso que estou salva, mas, nesse momento, a rebentação apanha-me, arrasta-me para trás, a minha cabeça volta a mergulhar, o meu corpo gira num turbilhão. Também fico presa não sei em quê. Está a puxar por mim, a arrastar-me para trás. Empurro para me libertar daquilo, numa confusão, girando e torcendo-me até que, de repente, percebo que alguém está na água ao meu lado. Esse alguém passou-me os braços pela cintura, e leva-me para a segurança, pondo-me a cabeça a salvo da espuma quando chegamos à praia.

E agora estou livre, deitada nas rochas, cheia de soluços das goladas de água salgada que engoli, aspirando o ar. Perto de mim, uma figura encharcada põe-se de pé, cambaleando, e grita: - Afaste-se das ondas!

O braço volta a rodear-me a cintura e ajuda-me a levantar-me. Devagarinho, trepamos a encosta íngreme pelo meio dos seixos, e a água escorre em pequenos riachos das nossas roupas encharcadas. Estou sem fôlego de tanto esforço feito e, a tremer com o choque, tropeço nas pilhas de madeira e de detritos que a tempestade fez dar à costa. O que sinto, pelo menos nestes primeiros minutos, é um assomo de excitação. É incrível que alguém me tenha visto, é um milagre estar viva. Olhando para baixo, vejo, com espanto que ainda tenho os sapatos calçados. Rangem quando me movo. Foi-me concedida uma segunda oportunidade.

Finalmente chegamos ao topo da zona dos seixos. Deixo-me cair, demasiado exausta para continuar, a minha alegria inicial por ter sido salva a transformar-se já em algo diferente. Há um minuto atrás não me tinha apercebido do frio, mas agora comecei a tremer incontrolavelmente e os meus dentes batem como os de um esqueleto numa loja de brinquedos de Carnaval. Olhando de novo para as ondas violentas, lembro-me de Beth e do modo como me libertei a pontapé das mãos dela. Ao meu lado, o meu companheiro agacha-se. Ainda não lhe vi a cara, mas sei quem ele é.

- Temos de chamar uma ambulância para a levar - diz ele.

- A Beth ainda lá ficou - respondo, numa voz sem expressão.

- Eu sei. Segui-a até à praia. Vi tudo.

E agora volto-me e, olhando para a cara dele, pálida e perturbada, estendo a minha mão para a mão de Alec.

Depois disto, muita coisa aconteceu ao mesmo tempo. Alec encontrou a sua mochila caída entre os seixos e, servindo-se do telemóvel, chama os serviços de emergência. Vem uma ambulância e a polícia e, um pouco depois, um helicóptero que varre, com a luz dos seus focos, o mar tempestuoso. Os paramédicos ocupam-se de mim, mas eu não preciso dos seus cuidados e recuso-me liminarmente a ir para o hospital. Aceito um cobertor térmico e uma chávena de chá e sento-me com Alec na nossa colina de rochas a olhar para as ondas que começam agora a recuar. Apesar de estar encharcado e de todos os traumas que lhe infligi anteriormente, ele continua tão arguto como sempre. Quando a polícia nos interroga, ele interrompe as minhas tentativas hesitantes de explicação. Ele viu tudo, diz. Beth atirou-me do paredão da marina e depois caiu também. Ela estava obcecada comigo e sofria de perturbações mentais; se precisassem de verificar, podiam falar com o Dr. Leigh. A polícia anotou estas informações nos seus caderninhos e afastou-se um pouco, para fazer telefonemas. Mais tarde haveria interrogatórios e declarações formais, mas para já tudo o que nos resta é esperar.

Beth não voltará viva, isso é uma certeza. Olhando para o mar revolto sei que, apesar de eu ter escapado por milagre, ela deve ter-se afogado. Pergunto a mim mesma constantemente se poderia ter feito alguma coisa para lhe evitar aquele terrível fim. Devia ter ficado com ela no apartamento até ela ter acalmado; devia ter telefonado a pedir ajuda; desse por onde desse, devia ter evitado a luta no paredão da marina. Porém, ao tentar imaginar estes diferentes cenários, sei que, acontecesse o que acontecesse, nunca seria capaz de lhe dar aquilo que ela queria. Foi o seu desejo imenso e fanático de ser amada que a atirou para a água, não fui eu.

Mas, apesar de me tentar tranquilizar desta forma, também sei que fui tola. Fui como o pior tipo de investigador amador, centrando-me apenas num argumento único e pré-determinado, ignorando quaisquer provas que não se encaixassem na teoria. Os meus métodos foram péssimos, a minha análise pouco honesta. Mergulhada em subjectividade, desde o meu encontro com Beth, segui apenas uma narrativa: a do meu próprio passado. Em todas as conversas que tivemos, eu estava tão obcecada pela minha história que fui incapaz de a ver tal como ela era. Porque não lhe fiz perguntas mais pormenorizadas? Porque é que senti semelhante preconceito em relação a Alec? Ele tentou avisar-me acerca dela, disse-me Julian ao telefone, mas eu recusei-me a ouvir.

O crepúsculo adensa-se e o céu escurece, mas eu mal me mexo. O helicóptero ainda anda por ali às voltas, mas todos sabemos que Beth está morta. Parece que passou muito pouco tempo desde que me arrancaram às ondas, mas suponho que devem ter sido horas porque, quando há alguma aberta entre as nuvens que correm à desfilada, vê-se a lua alta e luminosa. Também o estado do mar se alterou, as ondas rolam mais calmas e a maré recua num arco largo. A chuva parou há já um pedaço. Na realidade, não tenho frio nem estou molhada. Tenho vestida a camisola de um homem, reparo, levemente surpreendida, e amontoaram mais cobertores sobre os meus ombros. Quando levanto os olhos vejo Alec de pé, junto a mim.

- Quer outra chávena de chá?

- Não, estou óptima.

- bom.

Descansa ora num pé, ora no outro. Apesar de tudo aquilo por que passámos juntos, é visível que ele ainda não está muito à vontade comigo; tem os braços cruzados, o olhar fixo no horizonte. Talvez tema outra denúncia excitada. Volto-me para poder ver-lhe a cara. Está com melhor aspecto do que antes; as faces estão rosadas do frio, mas vestiu roupas secas e tem na mão um copo de esferovite que contém um líquido fumegante.

273

- Eles acham que precisa de tratamento contra o choque diz ele, gaguejando. - Querem levá-la para o hospital.

Abano a cabeça, sem o deixar acabar. Não estou em estado de choque, pelo contrário, invadiu-me uma tal claridade que me parece que consigo ver a quilómetros de distância. É como se durante estes anos todos me tivesse tornado cada vez mais míope, perdendo a visão a pouco e pouco, de tal forma que a névoa me parece normal. Mas agora adquiri o mais maravilhoso par de óculos e tudo o que me rodeia está de novo focado.

- Onde arranjou essa roupa? - pergunto, interrompendo.

- Deixaram-me ir a casa e tomei um banho.

Franze o sobrolho, ao lembrar-se de qualquer coisa desagradável, talvez de ter assistido ao desaparecimento de Beth no mar. Ele sofreu, de facto, e tudo por minha causa.

- Não se quer sentar? - pergunto, docemente.

Ele obedece e senta-se nas pedras húmidas, ainda sem descruzar os braços. Queria voltar a pegar-lhe na mão e apertar-lha, mas passou muito tempo desde esses primeiros momentos de euforia na praia de seixos e agora regressamos a um formalismo estranho.

- Lamento tanto, Alec - digo, baixinho. - Julguei-o mal. E agora salvou-me a vida.

Ele baixa os olhos, pega numa pedra, toma-lhe o peso. - Não tem importância.

- Podia ter morrido também, ao mergulhar assim naquele mar.

Ele encolhe os ombros, sem querer fazer-se de herói. - Não foi nada de especial. Sou bom nadador. Saio para o mar quase todos os dias.

Quero dizer mais, cobri-lo de desculpas como ele me cobriu com o conforto deste cobertor, aquecê-lo com os meus elogios. Mas ele não mo permite.

- Vi tudo - diz, numa voz triste. - O Julian estava realmente preocupado com o facto de a Beth estar em sua casa, por isso eu ia ao seu apartamento. Depois vi-a sair a correr e ela foi atrás de si.

Atira a pedra para os seixos. Ela salta duas vezes e depois cai com um ping. Ele fica a observá-la, com os lábios descaídos. Continua a não olhar para mim de frente.

- Bem - digo eu -, ao que parece o Alec tem uma ou duas coisas a ensinar-me no que toca a veracidade. - Sustenho a respiração. Agora já pouco importa, mas estou à espera de um comentário humilhante.

Contudo, em vez de me responder com sarcasmo - o aluno desdenhoso que sempre o imaginei ser -, Alec arrasta os pés, como se estivesse embaraçado por ter provado que eu estava enganada. - Soube logo no primeiro seminário que ela não era uma aluna normal. Como o Julian disse na reunião, não há Estudos de Género. Ela nem sequer sabia onde era a biblioteca.

- Eu devia ter percebido - murmuro.

- Ela tentou tornar-se minha amiga - continua ele. - Passava o tempo a pedir-me os apontamentos do ano passado e a tentar arrancar-me informações acerca do Julian e de si, mas eu não fui nessa. No fim, tive de lhe dizer que se pusesse a milhas. E hoje, depois da reunião, lembrei-me de ela ter falado de Leeds. E o Julian telefonou a um amigo que dá lá aulas.

Faz uma pausa, pega noutra pedra. Há qualquer coisa na maneira como franze os olhos, na sua expressão pensativa, que me lembra o meu pai. Não quer continuar, mas eu forço-o: - E... ?

- Ele lembrava-se perfeitamente dela. O nome era diferente, mas a rapariga que descreveu ajustava-se-lhe como uma luva. Andou a perseguir furiosamente uma professora e acabou a tentar atacá-la no gabinete dela. Teve uma pena suspensa de dois anos e uma ordem do tribunal para fazer tratamento psiquiátrico.

Então era disso que ela estava a falar no meu quarto. Estremeço, embrulho-me melhor nos cobertores. - Oh, meu Deus!

- Pois é. - Cala-se, como se não houvesse mais nada a dizer. Apetece-me esconder a cabeça entre os dedos roxos, puxar os

cabelos para me castigar. Em vez disso, pouso-lhe uma mão no joelho ossudo. - Tenho tanta, tanta pena!

Ele volta-se e vejo-lhe a expressão de tristeza. Sempre o julguei arrogante e cruel e ele estava era a tentar lidar com a preocupação de saber que eu não lhe queria dar ouvidos. Não é de espantar que se tivesse atirado a Beth no seminário: ela merecia-o. - A culpa não foi sua - diz ele.

Os olhos picam-me. Se ao menos isso fosse verdade. - Foi,

sim.

Defensor intransigente como sempre da precisão histórica, ele não me contradiz. Mas a tensão entre nós aliviou: talvez ele precisasse apenas de ouvir as minhas desculpas. Ficamos calados durante um pedaço, contemplando a paisagem que a maré deixou atrás de si. As nuvens foram-se dissipando e a lua ilumina tudo, com a sua tranquila iridescência. Os restos da tempestade jazem à nossa volta: tábuas e pedaços de madeira cobertos de óleo e tão polidos pelas ondas que parecem de pedra; recipientes de plástico, bocados de cordas; linha após linha de algas emaranhadas; garrafas e pedaços de vidro partido. Gostava de apanhar tudo aquilo e de construir um monumento louco com o lixo marinho, dedicando-o a todas as crianças que se julgam sozinhas. Mas estou sentada ao lado de Alec, um pouco embaraçada, cavando entre os seixos com o pé.

- Os seus pais devem sentir-se orgulhosos de si - acabo por dizer. - Podia dar-me a direcção deles para eu lhes escrever a contar o que fez.

Por instantes fico sem ter a certeza se ele ouviu. Depois diz, muito baixinho: - Não tenho pais.

Levanto a cabeça num movimento impetuoso. - Não?

Ele funga numa tentativa de minimizar a importância do facto, transformando-o numa brincadeira, numa piada entre companheiros. Adquiriu o hábito de Julian de falar entre aspas. - A minha mãe «abandonou-me». Passei a infância nos chamados «lares».

Sinto-me como se tivesse acabado de enfiar os dedos numa tomada e ligado a corrente. Engasgo-me, tentando estabelecer as ligações, porque acabo de me lembrar de outra coisa: o meu bebé era um rapaz. Claro que era - sempre o soubera. E agora está aqui este jovem a dizer-me que a mãe o abandonou! Tem a idade certa, e é alto e estudioso, tal como eu! Até se parece com o meu pai. Devo estar a olhar para ele, de olhos tão arregalados, que ele cora e desvia os seus. É tão parecido comigo, penso, com os meus pensamentos num rebuliço. Será possível que...? Muito devagarinho, curvo-me e apanho também uma pedra. Sinto-a, redonda e fria, na palma da minha mão. O sangue sobe-me à cara.

Mas enquanto imagino uma reconciliação lacrimosa, nós os dois a cair nos braços um do outro chamando alegremente pelos nossos nomes, Alec está a olhar para o outro lado e a atirar outra pedra, com toda a força, para a linha de detritos que a maré deixou.

- A verdade é que recentemente resolvi tentar encontrá-la.

As minhas mãos apertam a pedra fria, as unhas enterram-se-me nas palmas. Quero dizer qualquer coisa importante mas só me sai um: - Ah, sim?

- É uma daquelas coisas estranhas. Toda esta história... Faz uma pausa e sei que se está a referir a Beth e a mim, mas é demasiado educado para o dizer directamente - ...fez-me perceber o quanto preciso de saber coisas acerca dela. Criar relações e comunicar não é exactamente o meu forte, como sem dúvida já reparou. Tenho estado a pensar como alterar isso.

- Parece que passou alguns maus bocados - digo, engasgada.

Mas ele não está interessado naquilo que podem parecer banalidades. - Aparentemente haverá uma morada na certidão de nascimento e toda a papelada à volta do caso...

Sinto a testa franzir-se. Lambo um bocadinho de sal que se formou nos lábios, enfio os dedos no pneu da minha cintura, consternada. De que está ele a falar? Como é que podia haver uma morada na certidão de nascimento?

- Tem uma ficha?

Acima de mim as gaivotas estão a guinchar tão alto que mal oiço a resposta abafada de Alec.

- Claro. Houve um processo no tribunal antes de eu ir para o lar. E ao que parece também tem uma morada. Quer dizer, eu só queria saber porque é que a minha mãe fez aquilo.

- Fez o quê? - gaguejo. Ainda estou desesperadamente agarrada à ideia de que ele é o meu filho, mas pouco a pouco as certezas vão-se esfumando.

- Deixou-me num comboio. Parece que estava bêbeda. Eu tinha dezoito meses. Voltou à minha procura quando ficou sóbria, mas nessa altura já tinham decretado que era uma mãe indigna. Acho que ela se manteve em contacto quando eu era pequeno, mas depois afastou-se. Tentaram encontrar-me pais adoptivos, mas já era grande de mais e dava alguns problemas... - Cala-se.

Ainda bem que não está a olhar para a minha cara. Engulo em seco, incrédula, a observar os pássaros que descem em voo picado e mergulham na água. Alec atira outra pedra, que salta três vezes na água antes de desaparecer.

- Só consigo pensar nisso, para ser sincero - diz ele. - Passo a vida a escrever cartas estúpidas, a tentar imaginar o que lhe hei-de dizer se algum dia nos encontrarmos.

Olho para ele com uma expressão ausente, para este jovem solitário que se veio misturar na minha vida. Sinto a desilusão invadir-me, um desejo imenso e pesado do filho que pensava ter encontrado. Onde estás?, apetece-me gritar às ondas. Em que te transformaste? E, depois, aquela ideia surpreendente que mesmo agora, com os helicópteros a circular lá em cima, está a começar a tomar forma: vou encontrar-te.

- Dá-me ideia que ela é que deve ter coisas para dizer.

- Pois, mas essa é a parte que não consigo imaginar.

Calamo-nos. Alec continua a atirar pedras para a água e eu deixei de olhar para o mar e estou agora a observar o molhe que, apesar do mau tempo, está todo iluminado, expectante, como uma prostituta toda aperaltada à espera de clientes, debaixo de chuva. É claro que ele não é o meu filho, penso, à medida que a desilusão se vai esbatendo e outro sentimento vai surgindo. Seria uma coincidência ridícula. Não, vou ter de me esforçar mais para conseguir aquilo que quero.

Levanto-me, deixando cair os cobertores em cima das rochas. O que sinto, reparo com surpresa, é uma excitação crescente. Tudo mudou e, estranhamente, Beth ajudou-me a mudar. Apesar de eu jamais poder tê-la salvado, talvez as suas obsessões me ajudem a salvar-me a mim mesma. Já não sou como as ondas inquietas, sempre atraída e repelida pela praia. Ao longo dos anos evitei-a laboriosamente mas, ironia!, nunca na realidade abandonei esta praia. Tudo isto, porém, vai mudar. Confessei, expiei.

E agora há coisas de que tenho de tratar.

Dois dias depois, Alec vem visitar-me. Tenho tido uns dias muito atarefados, entre as explicações à polícia e a Bob Stennings. Na realidade, desde que fui salva das águas, tenho estado rodeada de pessoas e sido objecto de ofertas de ajuda. Sarah quer vir para cá e, esta manhã, Julian apareceu-me com flores, como se eu estivesse doente. Aprecio a solidariedade deles, mas ainda não estou pronta para falar. Ainda estou a recompor-me, a tentar fazer algum sentido do que aconteceu. Como é que me escaparam as mentiras de Beth? Ela roubou-me o telemóvel no café, percebo-o agora, e deve ter apanhado a minha morada nas contas que eu trazia, na carteira. A história sobre a família de acolhimento era uma invenção total, claro. Afinal de contas, veio a saber-se que ela vivia num quartinho, nas traseiras do bar onde trabalhava. Os pais, que tinham declarado o seu desaparecimento havia três meses, viviam numa aldeiazinha perto de Leeds. E eu, palerma, não tinha percebido nada disto.

A razão principal por que não preciso de companhia é porque tenho Jan aqui, a fazer-me chávenas de chá, a mudar os baldes de sítio na sala e, acima de tudo, a não fazer perguntas. Estou a achar a sua companhia extraordinariamente terapêutica. O seu ponto de vista é: as coisas acontecem e pronto. Um dia destes já me prometeu que ia deitar-me as cartas.

O apartamento já não me assusta. Uma das poucas coisas que decidi, no meio de tanta ruína, é que afinal vou ficar aqui. O senhorio prometeu arranjar o buraco no telhado e depois vou decorá-lo de novo. Jan vai ajudar-me. Garantiu-me que tem um jeitão para essas coisas. Já decidimos a cor: um tom de terracota, profundo, generoso, uma cor para nos aquecer.

Por isso, quando Alec se anuncia pelo intercomunicador, estou melhor, embora ainda não totalmente recuperada, e fico satisfeita por ele vir aqui, embora não me surpreenda. Abro-lhe a porta e, depois de me dar um abraço tímido, atravessa o átrio e vai até às janelas da sala que eu escancarei, apesar do frio. Está com ar diferente; menos hesitante, talvez, obviamente menos distante. Continuo a conhecê-lo mal, mas penso que ambos sentimos uma proximidade crescente, a sensação de partilhar algo realmente grande. Agora está a olhar para os jardins e para a faixa de mar que se avista para além deles.

- Tenho uma coisa para lhe dizer - diz ele, quando lhe trago chá de camomila que era de Beth. - Foi por isso que vim cá.

Olho para ele interrogativamente enquanto pouso no chão as canecas fumegantes. De segundo a segundo uma pinga cai num dos baldes com um grandeplop. - Ah, sim?

- Resolvi ir-me embora.

Estou mais surpreendida do que, se calhar, devia. Ele é tão evidentemente um estudioso que não consigo imaginá-lo sem a universidade. Ele observa-me, com os seus olhos castanhos inteligentes, apercebendo-se do meu espanto.

- E o seu diploma?

- vou estar um ano fora. Depois, não sei o que farei.

- Santo Deus, Alec! Não acha que é um bocadinho radical? Ele encolhe os ombros, como se já não tivesse importância.

- Não é só por causa do que aconteceu. É qualquer coisa que se tem vindo a acumular ao longo do trimestre. - Pigarreia, quase a desculpar-se. - Era uma das coisa de que queria falar consigo.

- Ah...

- Ou seja, foi a sua cadeira que, no fundo, desencadeou isto. Engulo em seco. Ao ver a minha expressão ele sorri-me, um

sorriso fugaz e contrito. Se sorrisse mais, o miúdo era mesmo bonito.

- Não é nada de pessoal - diz ele. - Foi apenas o exercício de ter de fazer a ligação entre, sabe, as grandes histórias e as histórias pessoais. Na realidade, não soube lidar com isso.

- Mas o seu trabalho foi brilhante.

A boca dele estremece. Possivelmente ficou irritado por esta declaração tão óbvia. - Não é isso - diz num tom brusco. - O trabalho posso sempre fazê-lo. E a outra coisa.

Pego no meu chá. Ainda não tirei os olhos da cara dele. Sei exactamente o que ele quer dizer.

- Quero dar-lhe estas coisas - diz ele. - Basicamente, foi por isto que vim cá. São para o meu projecto de metodologias.

Tira do bolso do casaco um grande envelope acolchoado e entrega-mo, de rosto sério. A maneira como o faz, com um ritual tão solene, deixa claro que o envelope contém algo de importante.

- Isto é o seu projecto?

Ele abana a cabeça impacientemente. É óbvio que há alguma coisa que me escapa.

- Sei que não é o que queria, mas não pude escrever um documento de cinco mil palavras sobre um projecto com que sonhei, só para passar na cadeira. Aliás, nem espero que me passe. Para ser sincero, nem sequer quero que os outros examinadores vejam isto.

Viro o envelope, curiosa.

- Na realidade, é só para si - acrescenta ele, baixinho. Quero que considere isso como uma espécie de explicação; para o facto de me ir embora, quero dizer. São fotocópias de umas cartas que andei a escrever, aquelas de que lhe falei na praia.

Aceno que sim. Não parece valer a pena fazer mais nada, porque ele decidiu ir embora e agora só me resta ler o conteúdo do envelope.

- E então, o que vai fazer? - pergunto.

Ele respira fundo. - Encontrar a minha mãe - diz, atirando a cabeça para trás e percebo, agora, que não é por arrogância mas sim por nervos. - Andei a sonhar com isto durante anos e agora vou tentar fazê-lo.

O sangue sobe-me à cara. Apetecia-me atirar-me ao pescoço dele, esmagá-lo de beijos de congratulação. - É fantástico!

A cara dele ensombra-se como se, pela primeira vez, tivesse encarado a hipótese de eu poder reagir diferentemente. - Talvez seja um erro gigantesco, mas quero saber mais acerca do que aconteceu, porque é que ela bebia e tudo isso. Ou seja, o que é que havia comigo. - Cala-se e olha para mim num apelo. - Se calhar era um miúdo insuportável...

- Aposto que era um amor - digo, tentando rir-me e limpando os olhos com a manga, como se tivesse entrado qualquer coisa lá para dentro. E o que digo é sincero porque, agora que soube a verdade acerca de Beth, posso ver a verdade acerca de Alec. Mais do que frieza ou altivez é a sua insegurança que o faz ser como é. E tal como reagi de braços abertos às carências infantis de Beth, a recusa taciturna de Alec em se mostrar minimamente simpático levou-me a assumir preconceitos lamentáveis e lamentados.

- Acha que sim? - diz ele ansiosamente e percebo que, apesar da sua timidez, ele anseia por partilhar isto com alguém. É uma criatura extremamente reservada e discreta, mas agora que começou a falar, está tudo a brotar dele como o sangue da ferida numa artéria.

- Claro que acho. É como lhe disse na praia. Se ela soubesse como o Alec é agora, havia de se orgulhar de si.

- Então acha que o que estou a fazer é correcto?

- Acho - digo eu, e sinto ardor e comichão nos olhos. Acho, sim.

- Quero dizer, ela pode não me querer ver, não pode? Olho para ele, fixamente.

- Pode querer esquecer que eu existo - continua, tentando sorrir.

- Duvido muito que aquilo que a sua mãe fez tivesse alguma coisa a ver consigo - digo, calmamente. - Provavelmente ela estava numa situação muito precária.

Ele acena que sim, como se isto fosse aquilo que queria que eu confirmasse. - Disseram-me que era muito jovem.

- Oiça, Alec - digo -, seja o que for que aconteceu e sejam quais forem as razões que levaram a sua mãe a beber e a deixá-lo naquele comboio, aposto que não há dia em que ela não pense em si. Provavelmente está morta por encontrá-lo.

Olha para mim e o rosto ilumina-se-lhe. - Acha que sim?

- De certeza.

Ele engole em seco. Oiço a minha voz dizer lentamente: - E se fosse o contrário? Se ela viesse à sua procura?

E agora ele sorri, mostrando os dentes brancos. - Está a gozar comigo? Ficava eufórico!

- Mesmo depois do que ela fez?

- Não interessava. Talvez conseguíssemos resolver tudo. Só quero ter uma oportunidade e tentar. - Olha para a minha cara que tem uma expressão de dúvida - Não se trata de perdoar, é isso que estou a tentar dizer. Trata-se de saber quem somos e de onde vimos. Calculo que a si isto lhe pareça um disparate, mas agora, neste preciso momento, é a única coisa que me importa.

Olho para ele, tão novo, no limiar da sua vida.

- Não, Alec - digo e não sei se ele ouve ou não a emoção na minha voz. - Não me parece disparate nenhum.

Depois deste diálogo, breve e intenso, Alec não se demora muito mais. Bebemos o nosso chá, comparamos notas sobre as nossas experiências na esquadra da polícia e depois ele vai embora. Aconteça o que acontecer, e ambos concordámos, manter-nos-emos em contacto. - Escreva-me - digo, pousando a mão no ombro dele, no momento em que vai a desaparecer pela porta. - Se precisar de ajuda, basta dizer.

Ao contemplar a sua figura solitária a atravessar a praça, penso que talvez haja uma razão para estarmos assim ligados. Talvez tenha sido a necessidade comum de conhecer o nosso passado, a nossa ânsia daquilo que perdemos sem nunca o ter conhecido, que Beth sentiu em nós e que nos tornou vulneráveis a ela. E talvez também ela tenha sofrido de algo semelhante: uma configuração diferente das circunstâncias mas, tal como Alec e eu, uma história que, de certo modo, foi distorcida, uma narrativa cheia de silêncio onde faltam os personagens principais.

Um dia gostava de conversar com Alec e contar-lhe tudo. Um dia talvez até sejamos amigos.

Brighton, 21 de Novembro

Querida Mãe,

Aconteceu muita coisa. Coisas más e (talvez) coisas boas. Não vou agora contar tudo. Talvez um dia te conte.

Esta é a última carta que escrevo porque tomei uma decisão. vou deixar a universidade e vou à tua procura. Fiz uma coisa que parece realmente um passo importante, sabes. Entrei em contacto com os serviços sociais e eles prometeram-me que me mostravam a minha ficha. vou encontrar-me com o psicólogo para a semana. Por isso vou para Londres e fico em casa de um dos pós-graduados de quem fiquei amigo no ano passado. Digo para comigo que não devo esperar nada. Mas tenho a certeza de que te vou encontrar.

Arrumei o meu quarto, enfiei umas roupas e uns livros na mochila e estou finalmente pronto para partir. No bolso de trás dos jeans tenho a morada do sítio onde estão as fichas. Estou constantemente a apalpar o bolso, para ver se o papel ainda lá está, a chave do meu passado. Talvez esteja a cometer um erro. Talvez chegue a porta da tua casa e descubra que cheguei tarde de mais e que já lá não vives. Mas o facto a que estou a agarrar-me é o que a assistente social me disse ao telefone, que tinhas deixado o teu contacto na minha ficha, no dia em que fiz dezoito anos. Quer dizer que queres que te contacte, não é?

Portanto, esta é a última carta que te escrevo. Espero que seja apenas uma questão de dias e colocarei todo este pacote de comunicações nas tuas mãos de carne e osso. Será um fim feliz para ambos? Quem sabe? És ao mesmo tempo a minha mãe e uma estranha. Quero terrivelmente conhecer-te, mas tenho medo do que isso possa implicar. Por isso, naturalmente, estou assustado. Passou-se muita coisa ultimamente e há dias que não durmo nem como, por isso devo estar com um aspecto miserável. Pode ser que abras a porta e só sintas remorsos por teres dado a tua direcção. Podes simplesmente fazer de conta que não sabes quem sou.

Mas, aconteça o que acontecer, não penso que o venha a lamentar. É uma questão de identidade, sabes. Toda a minha vida perguntei a mim próprio quem tu eras e o que fazias. Agora vou descobrir.

Aqui vai, ao nosso futuro.

O teu filho, Alec.

 

Encontro a casa dela ao fundo de um caminho perdido no Dorset, que se vai desenrolando sinuosamente por entre os campos do West Country. Estamos agora na Primavera e os arbustos das sebes exibem todo o seu esplendor: taludes de cerefólio e de prímulas correm à beira da estrada, como para me alegrarem. No banco do passageiro trago o meu mapa aberto na página certa e, junto deste, a morada que rabisquei ao lado da minha lista de direcções. Embora seja ainda o princípio de Abril, tenho calor e abri as janelas, deixando o suave perfume de flores e de erva fresca entrar no carro. Desliguei o rádio há muitos quilómetros atrás: não queria agora os meus pensamentos contaminados por paleios mundanos ou pelo ruído de fundo da música. Preciso, sim, de me concentrar neste período final de transição, a estranha liberdade de ter partido mas de não ter, ainda, chegado.

Estou nervosa, mas não sinto medo. Quando chego ao cruzamento, a última indicação da minha lista, viro à esquerda e vejo imediatamente a placa da casa: Oak Tree Cottage. Saio da estrada, olhando em volta com curiosidade. Não é o que esperava: a casa menos escondida, a relva da frente, semeada de junquilhos, menos bem cuidada. Seguro o volante com força, sentindo todos os músculos tensos, quando as rodas do Carocha esmagam a gravilha da entrada. Durante um momento de pânico acho que me enganei. É tudo tão diferente do que eu tinha imaginado - uma monstruosidade a imitar o estilo Tudor com leões de pedra ao portão, talvez, ou uma vivenda com janelas de vidro duplo e uma fonte pirosa, mas nunca esta moradia decrépita com o seu jardim selvagem. Depois espreito pelas janelas do rés-do-chão, vejo as fotografias na parede e sei que, afinal de contas, estou no lugar certo.

Quando acabo de estacionar o carro, tenho a boca seca. Tinha andado a imaginar esta cena durante tantos meses, a pensar e a repensar como seria, que, agora que estou finalmente aqui, todos os meus cuidadosos preparativos foram esquecidos e só sinto o desejo premente de fazer marcha atrás e de nunca mais aqui voltar. Mas é claro que é tarde de mais. Devia estar à minha espera porque, mesmo antes de eu sair do carro, já ela está ao cimo das escadas. Debatendo-me com a porta enferrujada do Carocha, abro-a e respiro o doce ar campestre. Por instantes, demasiado covarde para olhar directamente para ela, finjo que estou muito ocupada com a minha chegada, debruçando-me para o banco de trás e mexendo nos meus sacos e nas flores - tudo menos encarar aquilo que aqui me trouxe, depois de várias horas de viagem.

Depois, finalmente, não restam mais pretextos e atravesso a álea, olho para ela e digo: - Olá, mãe.

O aspecto dela choca-me mais do que devia. Não a vejo há quase quinze anos, por isso devia estar preparada para a transição dela, dos quarenta e picos para os sessenta. Mas por instantes quase não a reconheço. Os anos que passaram devem tê-la tratado mal, penso, com um assomo surpreendente de compaixão. O rosto dela está flácido, tem duplo queixo que está agora a puxar com dedos artríticos e nodosos e parece mais pequena do que aquilo de que me lembrava, como se a vida a tivesse literalmente encolhido. Parece, vejo agora com uma pequena surpresa de reconhecimento, a minha avó.

Mas quando sorri, estendendo-me os braços como a mãe de livro de histórias que nunca foi, vejo-lhe nos olhos a mesma mistura desconfortável de esperança e desilusão de que me tinha esquecido, mas de que agora me lembro tão bem, vejo-lhe os dentes ainda bons e regulares, a ruga na cana do nariz e percebo que ela envelheceu, sim, mas não mudou.

- Ora bem - diz ela. - Então cá estás.

Abraço-a desajeitadamente. Não temos bem a certeza de como fazer as coisas, porque nunca criámos uma convenção de cumprimentos adultos. Tento passar-lhe ao de leve os lábios pelas duas bochechas, um cumprimento delicado e possivelmente demasiado cosmopolita, que não indica nem hostilidade nem calor, mas ela recua demasiado depressa e aterro embaraçosamente no cabelo dela. Não consigo habituar-me ao facto de ela ser mais baixa do que eu.

- Estás de saltos - diz ela, afastando-se e olhando-me de cima a baixo. - Devo dizer que não estava a contar que estivesses com tão bom aspecto.

Faço uma careta sem saber como responder a este cumprimento mitigado. Então as minhas recordações estavam certas. Acabei de chegar e já estamos metidas de novo nos velhos hábitos: ela, ácida e crítica; eu, na defensiva e rude. Que esperava ela jeans rasgados e túnicas de gaze? Por instantes, a irritação sufoca-me e o meu cérebro põe-se à procura de uma resposta mordaz, de adolescente de quinze anos, do tipo «Pois e eu não estava à espera de te encontrar tão velha», mas domino-me pois não vim tão longe para entrar numa discussão infantil.

Sigo-a humildemente para dentro de casa, com a garganta a apertar-se de emoção. Nunca aqui tinha estado antes, mas é como se fosse a casa da minha infância, porque ela encheu a moradia com aquilo que ela é. Ali, pendurado na parede, está a reprodução do Monet que ela costumava ter no quarto e, atulhando a sala pequena, está o velho conjunto de sofás castanhos. Sobre a lareira está o gato de porcelana, a que eu fazia de conta que dava de comer quando era pequena, e o relógio do meu avô. Até o tapete é o mesmo. Parece que a minha infância foi atirada ao ar e caiu à toa, neste espaço desconhecido.

- Faço um chá? - pergunta a mãe.

Estou a contemplar as fotografias encaixilhadas na parede mais distante. Como tantas outras coisas na sala, já conhecia muitas delas: a fotografia a preto e branco do casamento dos meus avós, tirada nas escadas da Conservatória de Kensington em 1934; o meu retrato e o de David, feitos na escola; a fotografia das nossas férias em 1975, a comer gelados na praia. Há outras mais recentes. A primeira novidade é a minha mãe e o Don, em pose num estúdio, algures nos anos 80. Incrivelmente, a minha mãe está vestida como uma senhora eduardina, com uma boa de plumas à Eliza Doolittle e o meu padrasto está de chapéu alto e fraque, como se fizessem parte do coro de My Fair Lady. Como nas produções de Gilbert & Sullivan em que eles participavam quando eu estava no 12? ano, é o género de coisa com que o Don se deleitaria. Ao pé desta está uma grande fotografia de um casal radioso, sentado num jardim cheio de sol. A mulher é pequena e bonita e tem um bebé ao colo. O homem tem barba e uma cara morena e com algumas rugas, como se passasse muito tempo ao ar livre. Embora mais velha, é uma cara que conheço intimamente.

- É o David, a Clare e a Izzy - diz a mãe por trás de mim. Tirei esta fotografia quando os fui visitar no ano passado. Não está óptima?

- Está - digo em voz fraca. - Ela é linda!

Por momentos penso que vou rebentar em lágrimas. Fecho a boca com firmeza, lutando contra a onda de emoção. Sempre que imaginei esta cena nunca pensei vir a ser confrontada com a bebé perfeita do meu perfeito irmão.

- Já tem quase quatro anos - continua a mãe a tagarelar - e estão à espera de outro bebezinho para Julho. Todos queríamos dizer-te, mas como não respondeste a nenhuma das cartas, não sabíamos por onde andavas. Que tonta, desapareceres assim sem deixar rasto. - Toca-me no braço de uma maneira quase afectuosa, como se estivesse a censurar-me por não telefonar com suficiente regularidade ou por ter faltado a alguma celebração familiar. - Tenho a certeza de que ele ia adorar a tua visita - continua. - Ele e a Clare têm lá uma casa magnífica.

Olho para as fotografias durante mais uns instantes. O bom do David, sempre a história de sucesso. E também consigo imaginar a minha mãe no seu papel de avó, a ir ver a pequena Izzy, cheia de prendinhas e de mimos e de passeatas. Tudo coisas que a mim nunca me fez.

Quando me volto para a sala, a mãe desapareceu. Sento-me pesadamente no sofá que desbotou, passando de um castanho-escuro para um bege deslavado. Deixou-se desleixar, reparo, olhando em redor. Há teias de aranha nos cantos do tecto e a estante está nitidamente com pó. Mas não parece um sítio de que não se goste. Na realidade, é o inverso da nossa casa de família que ela passava o dia a limpar, enfiada em luvas amarelas de borracha e avental de nylon azul, mas que era estranhamente incaracterística. Era como se toda a identidade da minha mãe dependesse de ter a casa limpa. Ou, melhor, tal como os biscoitos duros como pedras ou os bolos que não levedavam, era como se ela estivesse a tentar provar que era uma coisa que não era. E esta sala às três pancadas, com os ramos de flores silvestres arranjados astuciosamente em jarras esbotenadas, os livros da biblioteca empilhados, como os meus, junto às paredes, e as imagens eclécticas a cobrir o papel de parede a imitar madeira está provavelmente muito mais próxima da pessoa que realmente ela é.

- Ora aqui está - diz ela, regressando com um tabuleiro com chá e biscoitos que pousa na mesinha baixa sobre a qual, há muito, muito tempo, quando tinha quatro anos, eu costumava deslizar de soquetes. Serve o chá, e os seus dedos tortos têm dificuldade em segurar o bule. - Olha-me para estas mãos - suspira -, que tristeza!

- Pobrezinha!

Ela diz «ora, ora!», mais por causa do trabalho de servir o chá do que por causa do que eu disse, e depois acrescenta, quase em tom de censura:

- Deves estar cansada. É uma viagem tão longa!

- Foi óptima.

Equilibro a chávena em cima do joelho, sem saber o que dizer. É como se ela fosse a minha tia-avó. Pigarreio. - Tenho muita pena do Don.

Ela ergue os olhos, aparentemente surpreendida com a referência ao nome dele. - Pois é. Coitado do Don.

- O David disse-me, na altura. Eu devia ter-te escrito, mãe. Uma sombra passa-lhe pelo rosto, uma nuvem de saudade ou uma antiga mágoa que se habituou a disfarçar. - Já passou muito tempo - diz ela, sem emoção, acenando para a parede. - Dei toda a roupa dele e a mobília aos filhos. Não os conheces, pois não? São um encanto. Já todos têm filhos, claro. A única coisa que me resta dele são os tacos de golfe.

Beberico o chá, mordisco o biscoito de chocolate que ela me pôs no prato. Nem sequer me lembrava de que o Dr. Death tinha filhos. A desconfiança paira pesadamente entre nós, como uma cortina velha que precisa de ser retirada do varão para se lhe limpar o pó.

- Se não fosse aquela fotografia nem me lembrava de como ele era - diz ela, num tom desdenhoso. - Mas obrigada por teres falado nele.

Mordo os lábios. A tarefa de chegar até ela é árdua mas, enquanto há vinte anos estávamos separadas pelas torrentes impetuosas da fúria adolescente e da infelicidade materna, aquilo que agora se ergue entre nós é um vidro inquebrável de formalismo educado. E depois de tudo o que aconteceu, não tenho a certeza de querer quebrá-lo.

- Ainda tens o mesmo namorado? - pergunta ela. - O David disse-me que ele era professor ou coisa do género.

Sorrio-lhe, um sorriso gelado. Ainda me dói muito.

- Acabámos.

Ela abana a cabeça, como se eu tivesse sido irresponsavelmente descuidada. - Que pena. Alguém no horizonte?

- Não.

Durante um momento fugaz, vejo Julian no cinema, os nossos joelhos a evitarem-se cuidadosamente, os braços das cadeiras uma zona proibida. O passeio e o almoço no pub, na semana seguinte, também não deram em nada: era demasiado cedo, o meu coração ainda está em carne viva.

- Credo, minha querida, não deixes essas coisas para demasiado tarde, vê lá.

Estou a fazer um esforço tão grande para me dominar que a chávena treme no pires. Não fui eu que escolhi esta situação, apetece-me gritar-lhe. Julgas que quero estar sozinha? Olho em volta do quarto, pestanejando para conter a emoção ao lembrar-me da última vez que vi Matt, o que chorámos ao abraçarmo-nos em despedida. Mesmo depois de termos desensarilhado os nós em que as mentiras de Beth e as minhas verdades nos tinham metido, era-nos impossível regressar ao ponto onde antes tínhamos estado. Era pelo melhor, ambos queríamos coisas diferentes; repito isto vezes sem conta, como uma ladainha fúnebre.

Olho amargamente para a minha mãe. OK, penso, com que então nada mudou. Durante um momento apetece-me pousar a maldita chávena de chá e sair dali, mas domino-me. Não foi isso que vim discutir aqui. - Mãe? - digo.

Ela levanta os olhos e a sua expressão é, de repente, tão frágil que, por instantes, eu tenho outra vez dez anos e ela é tão vulnerável como uma apara de madeira prestes a quebrar. - Diz?

Hesito, depois atiro-me de cabeça. - Desculpa não ter respondido a nenhuma das tuas cartas.

Ela desvia rapidamente os olhos, muito atarefada com o bule.

- Estavas muito ocupada - murmura. - Sempre trabalhaste muito...

- Não foi isso.

As mãos voam-lhe para o duplo queixo, que apalpa nervosamente. - O que lá vai, lá vai - diz ela.

- Não - digo eu. - Não vai.

Ela engole em seco, continuando a olhar para mim enquanto pousa o bule. Ao observá-la, com as suas mãos artríticas e os ombros curvados, lembro-me da mãe que tive em tempos, que corria pela areia em direcção ao mar e mergulhava sem hesitar nas águas geladas da Cornualha e sinto-me invadida pelo remorso. Amava-a tanto, só porque ela era a minha mãezinha. E claro, suspirava por que ela me amasse também. Mas ao longo dos anos fomo-nos cristalizando nas nossas posições de combate. E, apesar de uma parte de mim desejar ardentemente mudar, nunca consegui quebrar a armadura. E agora, embora não queira magoá-la mais, tenho de levar isto até ao fim.

- E que - digo lentamente - a razão por que vim é perguntar-te uma coisa.

Estou a sentir dificuldade em respirar. Sou adulta, por amor de Deus, mas continuo com o mesmo terror infantil de ser descoberta.

- Continua, então - diz ela, cruzando as mãos no regaço.

- Estou à espera.

- E há uma coisa que te quero dizer.

- Céus. Vai ser um dia muito ocupado.

Mordo os lábios. Ela continua sarcástica, aparentemente frágil mas com a mesma capacidade de derramar sangue.

- Por favor, não me critiques - digo calmamente. - Não quero mais guerras contigo.

Por detrás dos óculos, os olhos dela parecem de aço. - Diz lá o que tens a dizer, Cass. Sei que não fizeste esta viagem toda só para tomar chá.

- Vamos a isto, então.

Cruzo os braços. Ensaiei isto muitas vezes e nunca encontrei as frases certas. Diga o que disser, pareço sempre uma menina pequena a fazer queixa. Percorro mentalmente as perguntas, como num teste de escolha múltipla: Porque não fizeste, porque não quiseste, porque não... Depois abro a boca e pergunto apenas: - Porque foste incapaz de gostar de mim?

Por momentos, ela fica sem qualquer expressão, como se não tivesse ouvido a pergunta. Depois, quase ao ralenti, o rosto parece descair-lhe. Os olhos enchem-se-lhe de água, a pele fica rosada e pastosa, a boca pende. Tira os óculos, leva os dedos aos olhos e esfrega-os.

- Que queres dizer? - pergunta, numa voz tão baixa que mal a oiço.

- Sabes muito bem o que quero dizer.

O silêncio é devastador. Empoleiro-me no sofá, ainda de chávena na mão. Se ao menos ela dissesse alguma coisa! Mas limita-se a olhar em roda, de olhos vazios, como se estivesse a convocar os fantasmas que habitam nas suas fotografias. Tenho tanto medo daquilo que ela possa dizer, que repito para comigo uma frase mágica para evitar que ela diga as palavras que temo: Gostar de ti? Mas era impossível! Que frágil deve ser a minha história, para depender tão completamente das palavras de uma pessoa, que ténue a minha auto-confiança. Mas em vez da fungadela desdenhosa de que estava à espera, a mãe abana a cabeça.

- Mas eu gostava muito de ti, Cass - murmura. - Eras a minha menininha.

Analiso-lhe o rosto, mordendo os lábios. É quase impossível, mas tenho de continuar.

- Nunca senti que gostasses - digo lentamente. - Só estou a tentar perceber porquê.

Ela não está a gostar do meu tom, porque a expressão dela altera-se, as barreiras caem com estrondo. Espero ansiosamente que diga mais qualquer coisa, mas ela empurra novamente os óculos para o nariz e diz, secamente: - Acho que estás a imaginar coisas.

- Acho que não estou.

Ela desvia os olhos, contemplando as unhas.

- Tornaste-te muito difícil - murmura. - Em adolescente...

De novo a voz de menina pequena: Porque me censuras sempre por tudo? Mas calo essa voz e digo:

- Não foi uma época boa para mim...

- Que queres que te diga, Cassandra? - sussurra a mãe, mexendo nos óculos e continuando a não me olhar de frente. - O David foi sempre muito mais fácil.

Sim, bem sei que David era mais fácil. Disseste-me isso milhares de vezes! A rapariga é difícil, o rapaz um amor. A história da Cass, capítulo um, primeiro parágrafo. Agora, por favor, ajuda-me a reescrever o resto.

- Isso não serve - digo.

Há outra longa pausa e penso que ela não vai responder, minimizando a minha pergunta como a provocação tonta de uma criança exigente. Depois levanta-se, atravessa a sala e dirige-se à estante, de onde tira um álbum grosso, forrado a couro. Segura-o de encontro ao peito, como se tivesse medo de o largar, e depois entrega-mo.

- Podes ficar com isto, se quiseres - diz. - O David tem o dele.

Tiro-lho das mãos, sentindo o couro morno sob os meus dedos; cheira a mofo e a velho mas não tem pó e as marcas na lombada mostram que foi aberto muitas vezes. Quando abro a primeira página, lembro-me onde o vi anteriormente. É o meu álbum de bebé, cheio de fotografias e recordações da minha infância.

Folheio-o, de respiração suspensa. Aqui estou eu, rechonchuda e bem-disposta, presa num andarilho; talvez um ano mais tarde e estou sentada numa velha cadeira alta de que de repente me lembro tão bem como se lá tivesse estado sentada ontem, com o seu assento de madeira arranhada e a mesa de fórmica; tenho uma colher na mão. Aqui, colada entre duas folhas, está uma madeixa do meu cabelo, castanha e encaracolada, apertada com um laço de cetim cor de rosa. Até lá está uma marca do meu pé, feita a tinta. Mais tarde, passei para os vestidos de favos, com as calcinhas a condizer; empurro um carrinho de mão cheio de tijolos, com a cara rasgada num sorriso de bebé cheio de dentes; noutra estou com o pai, no jardim de trás, a jogar à bola. Não há retratos da mãe e agora percebo porquê. Era ela que tinha a máquina e que tirava as fotografias, como quaisquer outros pais dedicados.

Quando acabo de ver o álbum, coloco-o devagarinho em cima da mesa, junto do bule e dos biscoitos. Sinto que tudo o que se acumulou dentro de mim nos últimos meses está prestes a rebentar, a espalhar-se pela sala e a levar tudo à sua frente.

- Não fui capaz de ser a mãe que queria ser, Cass - diz a minha mãe, baixinho - Eu amava-te, mas quando começaste a crescer eu andava tão infeliz.

Olho para ela com surpresa, perscrutando-lhe a cara enrugada à procura de mais informação. Nunca a tinha ouvido falar assim e é um choque ouvi-la dizer estas palavras, tão tristes e resignadas.

- Porquê? - digo eu. - Que é que aconteceu de mal?

Ela encolhe os ombros. - Talvez eu não fosse feita para aquilo.

Desvio os olhos, desiludida. Isso é fácil de mais; as coisas nunca, são assim tão simples. Como é que podias «não ser feita» para gostares de mim? - Mas porquê? Todas as outras mães conseguiam.

A minha intenção não era que estas palavras parecessem acusadoras mas, em vez de me responder com palavras igualmente duras, ela diz: - Isso era o que eu costumava pensar. Mas, retrospectivamente, duvido que assim fosse. Descobrirás provavelmente, se perguntares, que muitas de nós andávamos terrivelmente deprimidas. Mas nunca falávamos disso, passámos a vida a tentar encaixar-nos numa imagem ideal ridícula. Não era como agora, com todas estas histórias de beijinhos e abraços, nós não exprimíamos as nossas emoções. Deves lembrar-te que os movimentos feministas não tiveram grande impacto nos anos 60, pelo menos entre gente comum.

- Eu sei - murmuro. - Escrevi um livro acerca disso.

- Bem sei - diz ela, novamente cáustica. - Tenho-o aí.

- Leste-o?

- Claro que li. És minha filha, sabes.

Mordo os lábios, surpreendida com a veemência da sua censura. Mas quando volta a falar, a sua voz é meiga: - O que aconteceu, Cass, é que eu devia estar no mundo, como tu, com uma carreira. Mas as coisas não eram assim. Quando as mulheres como eu casavam, quero eu dizer, as que não eram chiques ou não tinham ido para a universidade, basicamente esperava-se que a família fosse a primeira prioridade delas. E claro que tinha um emprego. Mas era apenas para contribuir para as despesas mensais. O teu pai era muito pouco cauteloso, sabes. Arranjou maneira de ser despedido e então era eu quem trazia o dinheiro para a casa...

- Mas a culpa não era minha - murmuro.

- Claro que não. E eras a menina mais querida, mais adorável. Olho para ela. Mais! Quero ouvir mais!

- Mas fiquei tão deprimida - continua ela. - E suponho que tive problemas... de relacionamento...

Contemplo as minhas mãos. Não vou tentar falar.

- E mais tarde - continua ela -, quando as coisas não corriam lá muito bem entre o teu pai e eu e tudo estava a ficar numa confusão, bom, talvez tu também tenhas contribuído...

Não consigo calar-me. Oiço a minha voz dizer: - Foste infiel ao pai com o Don, antes de ele morrer.

Estou quase à espera que ela me grite por ser impertinente, mas ela não pestaneja. - Sim, fui - responde simplesmente. - Mas ele também foi.

Esta declaração bate-me como uma bofetada: sinto-a penetrar-me na pele, cavar profundamente. Mas para já não há dor, só uma compreensão aturdida de que tudo aquilo de que me lembro da minha infância tem de ser filtrado, escolhido e reordenado para fazer sentido. E exactamente aquilo que sempre ensinei aos meus alunos. Gostamos que as coisas sejam simples, gostamos de ter uma narrativa linear com princípio, meio e fim, mas há tantas versões diferentes do passado e o tempo retorce as nossas memórias em formas tão bizarras que a verdade se afunda, como várias camadas de sedimento, e se transforma numa coisa diferente. Mas há mais, uma ideia com que não contava, mas que agora parece o rebentar inesperado de uma ferida, tão antiga que até me esquecia que ela estava ali. Temos tanto para conversar.

E agora tenho a coragem que, durante todos estes anos, tentei desesperadamente encontrar. - Tens de me contar isso tudo digo. - Tenho pensado tanto como é que tudo isto faz sentido.

- bom - diz ela prontamente. - Contarei.

Respiro fundo. - Mas, primeiro, há uma coisa que te quero mostrar.

Curvo-me, remexendo na minha carteira. Sinto-me eléctrica, como um cabo tão repuxado que qualquer movimento, por mais mínimo que seja, causa um ricochete de tremuras ansiosas ao longo de toda a linha. Quando os meus dedos se fecham sobre a pasta de plástico, puxo-a para fora e entrego-lha. É a única maneira de lhe dizer.

Ela olha para mim, voltando a empurrar os óculos no nariz.

- Que é isto? - murmura, franzindo o sobrolho a observar a fotocópia manchada que tirou da capa. - É alguma coisa que publicaste?

- Lê.

Observo-a enquanto lê, com o coração aos saltos. Encontrei isto na Biblioteca Britânica sem grandes dificuldades porque sabia a data e o local. Bastou-me consultar o Evening Argus de 21 de Agosto de 1980. E ali estava.

Encontrado Bebé

Um homem que passeava o cão descobriu um bebé recém-nascido na praia de Brighton, ao princípio da manhã de hoje. Pensa-se que a criança, que estava escondida num barco de pesca, tinha menos de uma hora de vida. Jim Wright, que tem setenta e um anos e vive em Carlton Hill, contou ao Argus o modo como hoje a sua cadela Queenie encontrou o bebé dentro do barco. Nem podia acreditar no que os meus olhos viam», disse

Mr. Wright, cuja rápida acção de enrolar o bebé na sua camisola contribuiu, no dizer dos pediatras do Royal Sussex Hospital, para salvar a vida da criança. «Primeiro pensei que era uma boneca, mas depois percebi que era um bebé verdadeiro e que estava vivo. Quem poderia ter abandonado

assim uma criança naquele barco?»

A criança, que recuperou bem das suas traumáticas primeiras horas de vida, está, neste momento, internada no Royal Sussex. Entretanto a polícia apelou à mãe para que esta se apresentasse. Embora abandonar uma criança seja um crime, a polícia garantiu que a mãe será tratada com benevolência.

A mãe passa muito tempo a examinar o papel. Chega ao fim, depois volta ao princípio, como se tentasse perceber alguma coisa. - Mas não entendo - murmura. - Porque me mostraste isto?

De repente, deixa de olhar para o artigo; pousa-o muito lentamente. 20 de Agosto foi o nosso casamento. Estávamos em Brighton.

Aceno afirmativamente.

- Alguém deixou um bebé na praia... uma jovem mãe ou assim...

Sou incapaz de responder: há demasiadas emoções em conflito a lutar por espaço. Ainda me sinto zangada, comigo e com ela, por o que aconteceu naquele dia. Mas estou a sentir-me tão exausta com aquela sensação de estar para sempre encurralada nos nossos respectivos papéis, que quero que aquilo mude. Onde é que a minha zanga me levará, ao fim de tantos anos ?

- Fugiste - murmura ela. - Estavas num estado terrível. E não voltaste durante toda a noite.

- Pois foi.

Algo de novo se manifesta na cara dela enquanto tenta encaixar as peças. - Tinhas engordado tanto. E no restaurante vomitaste...

Os nossos olhos encontram-se e, nesse momento, enquanto a compreensão do que aconteceu naquela noite se vai espelhando lentamente no seu rosto, descubro o que vim aqui procurar: esta informação é nova. Se ela desconfiou da minha gravidez, nunca permitiu que essa desconfiança subisse à superfície da sua consciência. O seu crime tinha sido apenas o de estar demasiado alheada e preocupada para captar o que estava a passar-se e não aquilo de que eu sempre tinha suspeitado: que sabia e não se importava. E agora percebo também outra coisa: que ainda a amo.

- Meu Deus, Cass - murmura e esconde a cabeça entre as mãos.

- Era meu... - digo. - O meu bebé. Tive-o sozinha na praia. E depois escondi-o num barco. Tive medo que descobrisses e ficasses zangada.

Calo-me. Se prestar muita atenção quase consigo ouvir o barulho das ondas a correr por sobre os seixos. A mãe está agora a tentar dizer alguma coisa mas tem a voz abafada. Ao olhar para ela, percebo que tudo mudou entre nós. OK, ela às vezes era fria e distante; não amava o meu pai; achava difícil ser dona de casa. E, mais difícil para mim de engolir, David foi sempre o seu favorito. E depois? Tenho de pôr tudo isto para trás das costas. Chegou a altura de reinterpretar a minha infância, de assumir um papel diferente. A mãe amava-me, ou tentava amar-me, mas a nossa relação naufragou em rochedos que nunca tínhamos visto: a história colectiva da geração dela, a história do seu casamento, e o meu próprio passado secreto. Mas agora há uma nova narrativa a ser forjada. Talvez possamos contá-la juntas.

- Fartei-me de que esta história desse cabo da minha vida digo calmamente. - Quero tentar encontrá-lo.

Depois disto, passámos o resto do dia, muito juntas, a conversar. Eu era para ficar numa hospedaria, mas depois do que tinha acontecido, parecia ridículo não ficar com a mãe e, por isso, fui para a cama no quarto de hóspedes e enfiei-me entre os velhos lençóis de flores que eu conhecia da minha infância. Há tanto a dizer, tantas lacunas de todos estes anos a colmatar. Mas ambas sabemos que, mais tarde, teremos tempo para isso. Em vez disso, passámos a maior parte da longa tarde a pensar como iremos recuperar o tempo perdido.

Eis o que decidimos: amanhã, depois do pequeno-almoço, vamos de carro para Brighton. Quando lá chegarmos vamos à polícia e contamos-lhes tudo, tal como lhe contei a ela. Achamos que não me vão processar, passados tantos anos. Mas talvez tenham algum registo daquilo que aconteceu ao meu filho ou, pelo menos, dos nomes dos assistentes sociais implicados. E depois, talvez, quem sabe, consiga encontrá-lo.

É noite. A mãe pôs o gato na rua e apagou as luzes lá de baixo e eu mudei-me e lavei-me na casa de banho pequenina, e, enquanto lavava os dentes, contemplei, através das janelas de gradinha os campos escuros que rodeiam a casa. Ela retirou-se agora para o seu quarto; oiço, vindos de lá, o ruído de suspiros e de passos e, finalmente, ela fecha a porta.

O silêncio instala-se na casa. Sozinha no meu quarto, abro a janela e o ar da noite entra a jorros: doce e húmido e com uma sugestão do Verão que está para chegar. Não há lua e a noite está negra retinta, uma escuridão total que não existe nas cidades. Oiço os mugidos abafados das vacas nos campos, os seus suspiros e o ranger dos cascos sobre a erva nova. Um pouco mais longe, as ovelhas balem aos cordeiros, um chamamento gutural e profundo que ecoa através da noite.

Estou cansada de uma forma que não sentia desde a infância: doem-me as pernas como se tivesse corrido o dia inteiro pelos campos ou subido de bicicleta pelos carreiros entre as colinas. Estou deitada na cama, enfiada debaixo dos cobertores, aliviada. Sinto como se me estivesse a afundar no colchão mole e macio, possivelmente para nunca mais voltar; um calor novo espalha-se pelo meu corpo exausto. Talvez fique a dormir para sempre. Mas antes de fechar os olhos e de ceder ao descanso que, em todos estes anos de culpa e remorso, nunca tive, há uma imagem que me está na cabeça.

Estou de novo na falésia a olhar para as ondas que se esmagam lá em baixo. A arriba desaparece, abrupta e letal sob os meus olhos. Ao longe as gaivotas fazem os seus ninhos nas saliências das rochas. Parece impossível, mas há flores que crescem ali. Sobre as águas, os mergulhões pairam na brisa atlântica, depois apontam ao alvo e descem a pique.

Estou tão perto da beira que as pernas me tremem. Olhando por cima do rebordo vejo a praia de pedra com a sua linha de algas, a espuma da maré. Mas, desta vez, não sinto medo. E, desta vez, em lugar de dar meia-volta e de correr aos tropeções para longe dali, olho de frente para as rochas e para as ondas e para as gaivotas que pairam abaixo de mim,

E depois, salto.

 

                                                                                Katy Gardner  

 

                      

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