Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRIMEIRO PECADO MORTAL / Lawrence Sanders
O PRIMEIRO PECADO MORTAL / Lawrence Sanders

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Havia silêncio ali. Ele se encontrava estirado de costas sobre uma projeção de pedra chamada A Agulha do Diabo. Sentiu-se perdido, flutuando no ar. Acima dele, por toda parte, estendia-se uma esgarçada cúpula azul. Através dela podia ver as garatujas das nuvens e um sol cor de limão.
Ouvia apenas o bater forte do coração e a lenta normalização da respiração enquanto se recuperava da escalada. Era fácil acreditar que se encontrava sozinho no Universo.
Finalmente, ergueu-se e olhou em volta. Ondas de folhagem lambiam a base da pedra, qual escuro oceano verde, coroado pela espuma avermelhada do outono. Viu a estrada de rodagem, os telhados escuros de Chilton, e a fita de aço de um rio desenrolando-se em direção ao sul e ao mar.
Já gelava o ar frio do outono; vinha com a brisa que fustigava os pulmões e provocava calafrios na pele. Respirou profundamente o ar seco como se sorvesse uma bebida; coisa alguma havia que não pudesse realizar.
Dirigiu-se até a fenda na borda da pedra e começou a recolher o cabo de nylon amarrado ao cinto. Na extremidade do Cabo prendera a mochila. Nela havia sanduíches, uma garrafa térmica de café, um estojo de primeiros socorros, cravos pontiagudos para as botas de montanhista, grampos de pressão, uma suéter de reserva e, preso por uma fivela, do lado de fora, o machado de gelo.
Ele mesmo preparara os sanduíches, feitos com pão de trigo integral, que se dizia ter sido cultivado sem adubos químicos. Um dos sanduíches tinha como recheio rodelas de cebola, e o outro, rabanete branco e tomates.
Sentou-se sobre o granito liso e comeu lentamente. O café estava ainda quente, e fresco o pão do sanduíche, com uma crosta quebradiça. Um gaio azul apareceu não se sabe de onde e cumprimentou-o com seu pio de duas notas. Pousou na pedra e olhou-o sem medo. Ele riu e lançou-lhe um pedaço de pão. A ave apanhou-o, largou-o imediatamente, e desapareceu em um relâmpago azul.
Terminada a refeição, colocou o envoltório dos sanduíches e a garrafa térmica na mochila. Deitou-se de costas, usando-a como travesseiro. Virou-se de lado, curvando a espinha e puxando os joelhos. Resolveu acordar dentro de meia hora. Adormeceu quase instantaneamente e sonhou com uma mulher, glabra como a mão de um homem.

 


 


Acordou meia hora depois e acendeu um cigarro. O dia aproximava-se do fim. Precisava descer e sair do parque antes do anoitecer. Mas havia tempo ainda para um cigarro, tempo para fumar, tempo para o silêncio, para um último café, frio naquele instante e terroso com a borra.
Divorciara-se recentemente. Isso não o preocupava. Acontecera como que a um estranho. Mas estava perplexo com o que lhe vinha acontecendo desde que ele e Gilda haviam-se separado. Estava armando um jogo de quebra-cabeça. Mas não possuía todas as peças e não tinha a menor idéia de como seria o desenho completo.
Tirou o gorro tricotado de marinheiro, expondo a cabeça raspada à luz líquida do sol. Pressionou com os dedos o liso couro cabeludo e a pele macia deslizou sobre o duro osso.
O divórcio acabara de ser decretado (no México), mas estava separado da esposa havia quase dois anos. Pouco depois de concordarem em viver separados, raspara inteiramente a cabeça e comprara duas perucas. A primeira (ivy-league) era usada no escritório e em ocasiões formais. A segunda (via-veneto) possuía cachos e madeixas. Usava-a em festas ou quando recebia em casa. Ambas as perucas tinham a mesma tonalidade castanho-escuro de seu próprio cabelo.
Era verdade que seu cabelo andara rareando desde os 24 anos. À época de sua separação, quando contava 33 anos, o cabelo na testa havia recuado, deixando profundas entradas. Possuía também uma pequena tonsura na parte de trás da cabeça. Mas não era em absoluto calvo. O cabelo que lhe restava conservava o brilho e o viço.
Apesar de tudo, raspara todo o crânio ao comprar as perucas, embora o cabeleireiro lhe assegurasse que isso era desnecessário; o cabelo artificial podia ser misturado ("Ninguém nota, em absoluto, cavalheiro") com o natural.
Quando fazia escaladas, nadava, ou simplesmente ficava sozinho no apartamento, preferia a cabeça raspada. Havia desenvolvido o hábito – quase um tique nervoso – de acariciá-la com as pontas dos dedos, sondando o frágil crânio e aquele perigoso material que lhe ficava por baixo.
Enterrou o gorro na cabeça, ajeitando-o em torno das orelhas. Preparou-se para a descida calçando as luvas de couro de cavalo, com o lado áspero para fora. Desceu em seguida a mochila para os calhaus embaixo. A extremidade do cabo continuava presa ao cinto, uma fita larga de lona, semelhante às usadas por lavadores de janelas.
A fenda através da qual se faziam as escaladas e descidas do topo plano da Agulha do Diabo era uma chaminé, ou rachadura vertical no túnel de granito, com uma largura de um metro e vinte na base. Estreitava-se para cima até que, na parte superior, mal havia largura suficiente para que o montanhista chegasse, raspando, até o cume.
Fazia-se pressão com os ombros e as costas contra uma das paredes da chaminé. Dobravam-se os joelhos, colocando as solas das botas na parede oposta. Em seguida, literalmente subia-se a fenda dependendo-se da força das nádegas, coxas e panturrilhas para manter pressão suficiente e evitar a queda.
Dando pequenas passadas, não movendo um pé para arrastar-se para cima senão quando o outro se encontrava firmemente plantado, "andava-se com os ombros", lentamente, para cima – direita, esquerda, direita, esquerda. Mantinha-se a pressão nas pernas dobradas para conservar-se imprensado entre as paredes opostas da chaminé.
À medida que a fenda ia-se estreitando em direção ao topo da chaminé, vinte metros acima, as pernas do montanhista dobravam-se cada vez mais até que seus joelhos quase tocavam o queixo e o progresso passava a ser medido em centímetros. No alto, era necessário aplicar pressão com os joelhos, em vez dos pés. Com ajuda dos grampos, o montanhista podia puxar-se para fora da estreita chaminé, passar pela borda e chegar ao topo plano. Era um lençol de pedra.
A descida, embora mais difícil, não era excessivamente perigosa para um alpinista experiente. Segurando os grampos, deslizava para dentro da fenda. Começava pressionando fortemente os pés contra uma das paredes de granito e as costas na outra. Soltando os grampos, lentamente "caminhava" para baixo até que a rachadura se alargasse o suficiente para que pudesse pôr as solas de borracha das botas contra a parede oposta.
Nessa hora do dia, em setembro, ao começar a descida, o cume da Agulha do Diabo estava sendo banhado pela pálida luz do sol. A fenda pela qual ele descia, contudo, estava às escuras e cheirava a coisa rançosa.
Empurrou fortemente os joelhos, tomou uma profunda respiração soltou os grampos. Ficou suspenso na escuridão com o vazio embaixo. Parou por um momento sob a mortiça luz, e, em seguida, colocou as palmas das mãos na parede em frente para aliviar um pouco a tensão dos joelhos. Começou a serpentear vagarosamente para baixo e para fora.
A fenda alargou-se até que lhe deu espaço suficiente para colocar os pés contra a parede. Movendo-se com mais rapidez nesse momento, contorceu-se, esforçou-se e espremeu-se, dando ao corpo um movimento rítmico da esquerda para a direita, mudando a posição de um pé e outro, um ombro e outro, até sair na espessa escuridão.
Descansou durante cinco minutos, enquanto a respiração se normalizava. Enrolou a linha de nylon e pendurou a mochila no ombro. Andou de calhau em calhau, através de um prado, ao longo de uma estrada de terra, até a cabana do guarda florestal.
O guarda era um homem idoso, e que ficara mal-humorado com a recusa do visitante de levar-lhe em conta a advertência contra uma escalada isolada. Empurrou irritado o registro pelo balcão de madeira. O montanhista assinou na coluna "Saída" e marcou a hora.

 

 

2

Seu nome era Daniel Blank.
Segundo os termos da sentença do divórcio, Gilda Blank conservou o carro, um seda Buick de quatro portas. Daniel, em vista disso, comprara um Chevrolet Corvette. Desde que comprara o automóvel esporte, fora detido duas vezes por excesso de velocidade. Pagara multa em ambos os casos. Mais uma violação da mesma natureza e teria suspensa a licença.
Naquele instante, ao lado do carro, tirando a jaqueta de lona, a suéter de lã, e a camiseta de algodão, admirou as linhas puras e femininas do carro. Passou uma toalha úmida no crânio, na face, nos ombros e braços e na parte superior do tórax. O ar noturno era tão adstringente como o álcool. Sentiu uma sensação de saudável bem-estar. A difícil escalada, o dia perfeito, a comida simples; tudo lhe dera o júbilo de um novo começo. Estava começando.
Daniel Blank era um homem alto, de pouco mais de um metro e oitenta, e magro, naquela ocasião. Na escola secundária e na faculdade competira em natação, pista (220 jardas com barreiras) e tênis, esportes individuais que dispensavam trabalho de equipe. Tais atividades físicas haviam-lhe dado ao corpo uma firme camada de longos músculos. Possuía ombros e músculos peitorais bem desenvolvidos. As mãos e pés eram estreitos, e longas as unhas de ambos. Conservava-as bem manicuradas e polidas.
Pouco depois da separação, fizera um "inventário físico", inspecionando atentamente o corpo nu no espelho da porta do banheiro. Notara imediatamente que já se iniciara a deterioração: começara a pender a carne sob o queixo, os ombros estavam encurvados e o baixo abdômen projetava-se, mole e sem tono muscular.
Imediatamente, iniciara rigoroso regime de dieta e exercício. À sua maneira metódica, comprara vários livros sobre nutrição e sistemas de treinamento físico. Lera cuidadosamente os volumes, tomando notas, e formulara um programa que lhe agradara e que achava que produziria resultados quase imediatos na aparência física.
Não era um fanático. Não jurou deixar de beber e fumar. Mas cortou pela metade o consumo de álcool e passou a fumar ciganos sem nicotina, fabricados com folhas secas de alface. Procurou evitar amiláceos, carboidratos, produtos lácteos, ovos e carnes sangrentas. Comia frutas frescas, verduras, peixe frito, e saladas temperadas com suco de limão. Dentro de três meses perdera oito quilos, e suas costelas e os ossos dos quadris começaram a aparecer.
Enquanto isso, iniciara um programa de exercícios diários de trinta minutos pela manhã, ao levantar-se, e trinta minutos à noite, antes de deitar-se.
Os exercícios foram tirados de um manual de treinamento de ginastas finlandeses. Todos os movimentos eram ilustrados por fotografias de jovens louras vestidas com malhas brancas. Blank achou que isso não importava. Somente os exercícios contavam e eles prometiam aumentar-lhe a agilidade, a flexibilidade e a graça.
Foram eficazes. Sua cintura caíra naquele momento para oitenta centímetros. Desde que possuía quadris largos (embora suas nádegas fossem batidas) e o peito largo em virtude do interesse juvenil por corridas e natação, desenvolvera uma silhueta feminina do tipo "ampulheta". Todos seus músculos recuperaram a firmeza juvenil. A pele tornou-se macia e rosada. A idade parecia ter sido detida.
A dieta e o exercício, porém, ocasionaram diversos e curiosos efeitos secundários. Os bicos dos peitos tomaram-se permanentemente ingurgitados e, desde que geralmente não usava camiseta, apareciam muito sob o tecido das camisas sociais ou suéteres finas. Não achou isso aborrecido. Um traje mais pesado, como uma suéter de lã de gola rulê em cima da pele, às vezes provocava irritação, mas não desagradável.
Outro fato inesperado foi a mudança na aparência dos seus órgãos genitais. Os testículos tornaram-se algo flácidos e pendiam mais baixo do que anteriormente. O pênis, embora não aumentasse em tamanho (o que ele sabia ser impossível em sua idade), havia-se alterado no tocante à cor e à elasticidade. Parecia naquela época ligeiramente avermelhado, como se estivesse em um estado constante de leve excitação. Isso, tampouco, era desagradável. Poderia ser ocasionado pelo atrito contra o tecido das calças mais apertadas que comprara.
Finalmente, descobriu que ficara livre da diarréia que, com freqüência, afligira-o durante o casamento. Atribuiu o fato à nova dieta, ao exercício, ou a ambas as coisas. Qualquer que fosse a razão, as suas evacuações tornaram-se regulares, sem dor, e satisfatórias. Eram firmes as fezes.
Tomou o rumo de Manhattan. Comprara nova camisa de lã aveludada. O rádio do carro pouco mais era do que uma cantiga tranqüilizante. Seguiu por uma estrada de duas pistas, sem iluminação, que desembocava na via expressa.
O velocímetro começou a subir lentamente: 80, 95,110,120. O carro rugia para alcançar a luz dos faróis. Árvores voavam para trás; cartazes e casas fantasmas saíam da escuridão, brilhavam vividamente, e desapareciam na noite.
Adorava a velocidade, não tanto pela satisfação sensual do poder, quanto pelo senso de deslocamento solitário.
Era noite de sábado e a via expressa estava congestionada de veículos que se dirigiam para a cidade. Naquele momento, ele dirigia com brutal hostilidade, mudando de pistas, ultrapassando por dentro e por fora. Curvou-se sobre o volante procurando aberturas por onde pudesse enfiar-se, inesperados intervalos no padrão do tráfego que lhe permitissem passar raspando pelos motoristas mais cautelosos.
Chegou à ponte. Ali estavam os limites duros, as esquinas fechadas, e as luzes baratas de Manhattan. Retardado por sinais, caminhões e ônibus, foi forçado a dirigir-se para o sul em velocidade moderada. Virou para leste na 96th Street. A cidade fechou-se em volta.
Era uma cidade excitada e cambaleante. Pulsava com um ritmo doentio e celebrava a morte com insensato júbilo. A imundície era o traço típico de suas ruas fantasmagóricas. O ar cheirava a cinzas. Nas escolas, meninotes habilmente injetavam heroína nas veias.
O proprietário de uma lanchonete fora assassinado a tiros porque não pudera servir torta de maçã a um freguês exigente. Um turista francês, roubado à luz do dia, ficara paralítico em conseqüência de um tiro. Uma mulher grávida fora estuprada por três indivíduos em uma estação do metrô, às 10:30 da manhã. Colocavam bombas. Atiravam ácido. Explosões destruíam embaixadas, bancos, igrejas. Meninos de colo eram surrados até a morte. Quebrava-se vidro, rasgava-se couro, arrancavam-se plantas pelas raízes e lemas obscenos eram pintados com spray no mármore dos monumentos. Invadiam-se os zoológicos e eram esquartejados pequenos animais.
A cidade envenenada cambaleava em uma dança insana de peste. Um sol enferrujado dardejava sobre um mundo sem significação. À noite, o indivíduo aferrolhava-se por trás de barras, esperando sobreviver numa gaiola de ferro. O indivíduo se fechava em si mesmo procurando conservar a sanidade, e andava pelas ruas congestionadas olhando por cima do ombro, alerta para desviar o primeiro golpe com sua própria lâmina lubrificada.
O edifício de apartamentos de Daniel Blank era uma estrutura nua, de vidro e aço esmaltado. Elevava-se por 34 andares e ocupava um quarteirão inteiro. Tinha a forma de um U; uma passagem de automóvel de asfalto negro curvava-se em frente à entrada. Projetava-se do edifício um pórtico de aço inoxidável, protegendo da chuva os moradores que desciam dos carros. Os degraus da entrada eram cobertos por uma passadeira verde.
No interior, uma escrivaninha dava frente para as portas envidraçadas. Dois porteiros revezavam-se durante as 24 horas do dia. Podiam também inspecionar a garagem subterrânea, as entradas de serviço, os corredores e elevadores por televisão de circuito fechado. Por trás deles estendia-se um largo saguão, mobiliado com cadeiras de aço inoxidável e plástico preto. Das paredes pendiam quadros abstratos e, no centro, uma pesada escultura de bronze, não-representativa, intitulada "Nascimento".
Daniel Blank entrou num desvio ao lado da passagem curva de automóveis. Descia para a garagem, onde os moradores, mediante pagamento de aluguel adicional, podiam estacionar os carros, que eram lavados, abastecidos e entregues na porta principal quando solicitados.
Entregou o Corvette ao garagista de serviço. Tirou a mochila e as roupas esporte do cano e tomou a escada rolante até o saguão principal. Dirigiu-se à escrivaninha, onde era distribuída a correspondência dos moradores, recebidas as encomendas, e guardados os recados.
O relógio marcava quase dez horas da noite e não havia ninguém no balcão da correspondência. Um dos porteiros, porém, estava de serviço na recepção. Não havia cartas no escaninho de Blank, mas encontrou uma pequena folha de papel dobrada. Dizia: "Café-Almoço domingo (amanhã) às 11:30. Não perca. Venha cedo, Milhares de pessoas fantásticas. Amor e Beijos. Flo e Sam". Leu a nota e enfiou-a no bolso da camisa.
O porteiro, que não lhe havia falado nem erguido os olhos, voltou à escrivaninha. Chamava-se Charles Lipsky e fora envolvido com Blank em um incidente ocorrido um ano antes.
Nessa ocasião, Daniel estivera esperando sob o pórtico um táxi para levá-lo ao trabalho. Raramente ia de carro ao escritório desde que o espaço de estacionamento era praticamente inexistente. O porteiro Lipsky descera à rua para chamar um táxi. Conseguiu um e veio no mesmo pela passagem de automóvel. Abriu a porta para Blank e estendeu a mão para a habitual gorjeta de 25 centavos.
No momento em que ele ia pagá-lo, um indivíduo, que Daniel reconheceu como morador do edifício, aproximou-se da entrada, puxando um cãozinho pastor alemão por uma longa correia de couro.
– Anda! – gritou o homem. – Anda!
O cachorrinho, porém, resistiu. Deitou-se na passagem de automóvel com o focinho entre as patas e recusou-se a mexer-se.
– Anda, seu calhorda! – gritou o homem. Em seguida, bateu duas vezes na cabeça do cão com um jornal dobrado que levava sob o braço. O cachorrinho encolheu-se de medo e afastou-se amedrontado do caminho. Em seguida, o homem deu-lhe um violento pontapé nas costelas.
Daniel Blank e Charles Lipsky viram claramente toda a cena. Blank saltou para a frente. Não podia ver um animal ser maltratado; não podia nem mesmo pensar em um cavalo puxando uma carga.
– Pare com isso! – exclamou furioso.
O morador voltou para ele, ofendido:
– Meta-se com sua vida!
Atingiu-o em seguida na cabeça com o jornal dobrado. Furioso, Daniel deu-lhe violento empurrão. O homem cambaleou para trás, enredou-se na correia de couro, e caiu de mau jeito sobre a passagem de automóveis, quebrando o braço. Chamada a Polícia, o morador insistiu em acusá-lo de agressão.
No devido tempo, Blank e Charles foram citados a comparecer à 251ª Delegacia para prestar depoimento. Contou Daniel que o morador maltratara o cão e que, ao objetar, fora atacado com o jornal dobrado. Somente empurrara o indivíduo após aquele primeiro golpe. Charles Lipsky confirmou o depoimento.
A acusação foi finalmente retirada e encerrado o caso. O dono do cão mudou-se do edifício. Blank deu a Lipsky cinco dólares pelo seu trabalho e esqueceu o assunto.
Seis meses após o incidente, porém, ocorreu algo de mais sério. Numa noite de sábado, solitário e inquieto, Daniel Blank colocou a peruca via-veneto e saiu a passeio pela meia-noite de Manhattan. Usava um blazer sueco de lã preta e uma camisa francesa de renda de poliéster, cortada de modo a colar-se ao busto. Era o estilo chamado de chemise de gigolo e, na frente, abria-se até quase a cintura. Uma cruz de malta enfeitada pendia de uma corrente preta em volta do pescoço.
Atendendo a um impulso, nada mais, parou em um bar que vira antes, mas no qual nunca entrara. Era chamado The Parrot. Encontrou mesas. O solitário garçom do salão lia um tratado religioso.
Blank pediu conhaque e acendeu um cigarro de alface. Ergueu a vista e, inesperadamente, notou o olhar de um dos homens no espelho por trás do bar. Imediatamente, desviou a vista. O homem estava sentado a três bancos de distância. Tinha mais ou menos 45 anos, era baixo e flácido, com um nariz carnudo e o rosto avermelhado de viciado em bourbon.
O garçom ligara o rádio para a estação WOXR, que irradiava, no momento, "The Moldau", de Smetana, lia a página de turfe e fazia suas escolhas. De cabeças juntas, os casais conversavam baixinho.
– Você tem um belo cabelo.
Daniel ergueu a vista da bebida.
– O quê?
O indivíduo de aspecto porcino havia-se aproximado e sentado no banco ao seu lado.
– O seu cabelo. É belo. É peruca?
A sua primeira vontade foi esvaziar a bebida, pagar, e sair. Mas por que deveria fazer isso? O escuro isolamento do The Parrot constituía um conforto. Gente junta e, ainda assim, separada: tal era o segredo.
Pediu outro conhaque. Deu as costas ao indivíduo, que se curvou mais para ele. O garçom serviu a bebida e voltou às previsões do turfe.
– Bem? – perguntou o homem.
Blank voltou-se para ele:
– Bem o quê?
– Que tal?
– Que tal a respeito do quê?
Até então haviam estado conversando em voz baixa. Não em voz alta, mas o suficiente para ser compreendida, se alguém estivesse interessado em escutar. Ninguém estava.
Subitamente, o homem inclinou-se para a frente. Aproximou mais a face gordalhufa: olhos líquidos, lábios trêmulos, esperançoso, condenado.
– Eu te amo – murmurou ele com um sorriso nervoso.
Blank atingiu-o na boca com um murro que o lançou do tamborete ao chão. Erguendo-se o indivíduo, atingiu-o novamente, quebrando-lhe o queixo. Ele tornou a cair. Dava-lhe furiosos pontapés na virilha quando o garçom, finalmente, ressuscitou e correu de trás do bar para prender-lhe os braços e arrastá-lo dali.
Mais uma vez, foi chamada a Polícia. Desta vez, Blank achou melhor chamar seu advogado, Russell Tamblyn. Chegou ele à 251ª Delegacia, e pouco antes do amanhecer, o incidente foi encerrado.
O ferido, que se descobriu que possuía uma triste folha de antecedentes – incluindo tentativas de molestar crianças e uma cantada num policial em um toalete do metrô – recusou-se a assinar a queixa. Disse que estivera bêbado, não sabia o que acontecera, e que aceitava a responsabilidade pelo "infeliz acidente".
O detetive que tomou o depoimento de Daniel Blank era o mesmo que o ouvira no incidente que envolvera o dono do cachorro.
– O senhor, novamente? – perguntou, curioso, o detetive.
O advogado entrou trazendo a desistência assinada da queixa e entregou-a a Daniel Blank, dizendo:
– Está tudo resolvido. Ele não vai fazer acusação. Você pode sair quando quiser.
– Russ, eu disse que não foi culpa minha.
– Oh, claro. Mas o cara está com o queixo quebrado e, possivelmente, sofreu ferimentos internos. Dan, você precisa aprender a controlar-se.
Mas a coisa não ficou só nisso. E não ficou porque o caso foi descoberto por Charles Lipsky, o porteiro, embora coisa alguma houvesse sido noticiada nos jornais. O garçom do The Parrot era cunhado de Lipsky.
Uma semana depois, o porteiro tocou a campainha do apartamento de Blank. Depois de ver quem era pelo olho mágico, Blank deixou-o entrar. Lipsky iniciou imediatamente uma longa e confusa crônica de seus problemas. A mulher precisava fazer uma operação de hérnia; a filha carecia de extenso tratamento de um dente encravado, e ele mesmo estava profundamente endividado com usurários, que lhe ameaçavam quebrar as pernas. Precisava imediatamente de quinhentos dólares.
Blank ficou atônito com a história. Perguntou o que era que aquilo tinha a ver com ele. Lipsky, em vista disso, balbuciou que sabia o que havia acontecido no bar. Não era culpa do Sr. Blank, claro, mas se os demais moradores... Se o fato fosse divulgado... Se as pessoas começassem a falar.
Em seguida, piscou para Daniel Blank.
A piscadela de entendedor, aquela piscadela maliciosa, foi pior do que o murmurado "Eu te amo" da vítima. Daniel sentiu-se como que atacado por um animal, cuja mordida doía e inflamava. A violência borbulhou nele.
Lipsky deve ter visto alguma coisa em seus olhos, pois virou-se subitamente e saiu correndo, batendo a porta. Desde então, mal se falavam. Quando necessário, Blank ordenava e o porteiro obedecia, nunca erguendo a vista. No Natal, Daniel distribuiu as gratificações habituais: dez dólares a cada porteiro. Recebeu o habitual cartão de agradecimentos de Charles Lipsky.
Blank apertou o botão. A porta do elevador automático deslizou silenciosa. Entrou e premiu o botão F (fechar a porta), botão 21 (o seu andar) e botão M (queria música). Subiu acompanhado pelos acordes suaves de "I Got Rhythm".
Residia na extremidade de uma das pernas do edifício em forma de U. Era um apartamento excepcionalmente grande, de quatro cômodos, com as janelas da sala de estar dando para o norte, as do quarto para leste, e as da cozinha e banheiro para oeste, ou melhor, para a área interna do edifício. A caminhada do elevador à porta era feita através de um túnel atapetado. O corredor era suavemente iluminado, possuía numerosas portas fechadas, ar-refrigerado, estava em silêncio.
Abriu a porta, enfiou o braço e acendeu as luzes do saguão. Entrou e olhou em volta. Fechou a porta, deu duas voltas na chave, prendeu a corrente, ajustou a "Barra Policial", um dispositivo à prova de ladrões que consistia em uma pesada barra de aço que se apoiava em uma ranhura no assoalho e se ajustava a uma reentrância aparafusada na porta.
Sentindo fome, deixou as roupas e o material de montanhismo numa cadeira do saguão e dirigiu-se para a cozinha. Acendeu a luz fluorescente azul. Examinou o conteúdo do refrigerador, escolheu um pequeno melão, partiu-o ao meio, em ângulo reto com a linha da haste. Embrulhou uma das metades em papel encerado e colocou-a na geladeira. Tirou as sementes e a polpa mole da outra metade e encheu a cavidade com "Família", um cereal orgânico suíço. Espremeu uma rodela de limão sobre o alimento. Comeu-o sem pausa, de pé, olhando para sua imagem refletida no espelho pendurado sobre a pia da cozinha.
Ao terminar, colocou a casca do melão na lata de lixo e lavou as mãos. Correu em seguida o apartamento, cômodo por cômodo, acendendo a luz no seguinte antes de apagá-la no último. Despindo-se no quarto, encontrou o bilhete no bolso da camisa: ".. . Milhares de pessoas fantásticas. . ." Colocou-o sobre a mesinha de cabeceira, onde o veria ao acordar.
Fechou bem a porta do banheiro antes de tomar um banho de chuveiro tão quente que encheu o ar de espesso vapor, embaçando os espelhos e umedecendo os azulejos. Ensaboou-se com um sabão emoliente de manteiga de cacau, que lhe amaciava a pele. Após enxaguar-se com água fria e fechar o chuveiro, esfregou o corpo úmido com um papel de seda cosmeticamente tratado, que os fabricantes alegavam "restaurar os óleos naturais da pele seca" e "amaciar, suavizar e lubrificar a epiderme".
À empregada, que vinha ao apartamento duas vezes por semana, estivera ali naquela tarde. A cama fora forrada com lençóis e fronhas limpas. O lençol e a colcha de cetim de algodão haviam sido dobrados no meio da cama. Não eram ainda onze horas da noite, mas estava agradavelmente cansado e queria dormir.
Nu, deixando que a água e os minúsculos glóbulos de óleo secassem sobre o corpo, andou pelo apartamento, puxando cortinas, verificando os ferrolhos das janelas e as fechaduras das portas. Entrou novamente no banheiro para tomar um comprimido para dormir. Tinha certeza de que não precisava daquilo, mas não queria ficar na cama, pensando.
A longa sala de estar recebia uma luz difusa, vinda do quarto. A extremidade do aposento dava para o norte e cortinas cobriam as grandes janelas de vidro, que não podiam ser abertas. A parede leste, de frente para o quarto, media quase oito metros de comprimento por três de altura.
Daniel Blank decorara com espelhos a grande extensão branca da parede. Deixara um espaço de um metro e vinte a partir do assoalho e ali colocara um sofá, cadeiras, mesas de canto, abajures, uma estante, e um conjunto de alta fidelidade sobre rodas. Acima desse nível, toda a parede era coberta por espelhos.
Não um único espelho, ou espelhos individuais grandes, em combinações, porém mais de cinqüenta adornavam a parede: pequenos e grandes, lisos e enfeitados, fiéis ou exagerados, redondos e quadrados, ovais e retangulares. A parede tremia com reflexos de prata.
Todos os espelhos estavam emoldurados e eram pendurados separadamente; molduras de madeira e metal, pintadas e nuas, simples e complicadas, modernas e antigas, madeira talhada e plástico liso. Alguns eram antigüidades embaçadas; um deles era uma folha de metal polido, de sete e meio por dez centímetros, o espelho do tipo fornecido aos fuzileiros navais durante a II Guerra Mundial.
Os espelhos não haviam sido arranjados em uma combinação propositada na trêmula parede. Daniel os pendurara à medida que os comprara. Mas, de alguma maneira, ao acaso, à medida que a parede se enchia, molduras e reflexos haviam formado uma composição assimétrica. A sua cidade estava ali, viva e nervosa.
Voltando descalço para o quarto, nu, perfumado, contemplou-se na parede espelhada. Surgiu cortado e fragmentado. Ao mover-se, sua imagem saltou de espelho a espelho. Um nariz aqui, uma orelha ali. Joelho. Peito. Umbigo. Pé. Cotovelo. Saltavam todos, paravam por um momento, e desapareciam para renascer em algo novo.
Parou, fascinado. Mesmo imóvel, era reduzido a pedaços, fragmentado, e todo o seu corpo dividido pelo vidro prateado que oscilava ora para um lado ora para outro. Apalpou-se e viu vinte mãos em movimento e centenas de dedos tenteando: maravilhas e deleite.
Entrou no quarto, ajustou o termostato do ar-refrigerado e deslizou para a cama. Adormeceu vendo no mortiço brilho da lamparina aquela miríade de olhos, refletindo-o em detalhes. Cintura em aço. Ombro em carvalho talhado. Pescoço em plástico. Joelho em cobre. Pênis em nogueira corroída pelo caruncho.
Arte.

3

Ela fora uma das primeiras mulheres de Manhattan a abandonar o soutien. Ele fora um dos primeiros homens de Manhattan a usar gravata como cinto. Ela fora uma das primeiras a usar a lancheira de operário como bolsa. Ele fora um dos primeiros a usar sapato esporte com meias. Os primeiros! Torturava-os e impelia-os a ânsia pelo novo.
Nenhuma referência a Florence e Samuel Morton foi feita no longo acordo de separação assinado pelos Blanks. Gilda ficou com o sedã Buick, os cristais de Waterford, a gravura de Picasso. A Daniel coube o aluguel do apartamento, 100 ações da U.S. Steel, e o liquidificador Waring. Ninguém mencionou os Mortons. Tacitamente, ficou entendido que eram os "melhores amigos" de Daniel e que ficariam com ele. E ficaram.
Contradiziam eles o ditado popular, "Os opostos se atraem". Marido e mulher eram o verso e reverso da mesma moeda. Onde parava Samuel e começava Florence? Ninguém podia saber. Constituíam uma imagem bifocal. Não. Eram uma imagem dupla, simultaneamente em foco.
Fisicamente pareciam-se tanto que estranhos tomavam-nos como irmão e irmã. Baixos, magros, com capacetes de cabelos pretos e oleosos, caras de fuinha e movimentos vivos e rápidos de criaturas perseguidas.
Ele, casado, trabalhara numa fábrica de tecidos sintéticos. Ela, casada, fora desenhista de tecidos. Conheceram-se num piquete que protestava contra a encenação de "O Mercador de Veneza" e descobriram que freqüentavam o mesmo psicanalista. Um ano depois, divorciaram-se, casaram-se, e concordaram em evitar filhos em virtude da explosão demográfica. Satisfeitos, alegres e jubilosos, submeteram-se a operações cirúrgicas.
O casamento foi, no caso deles, o estalo de dois ímãs que se encontram. Possuíam idênticos amores, medos, esperanças, preconceitos, ambições, gostos, estados de espírito, antipatias e desesperos. Eram uma pessoa multiplicada por dois. Dormiam entrelaçados em uma cama tamanho família.
Mudavam de estilo de vida com a mesma freqüência com que trocavam de roupa de baixo. Estavam à frente de todo mundo. Antes que elas caíssem no gosto do público, compraram arte pop, op-arte e voltaram ao realismo antes mesmo que os críticos de arte. Passaram por maconha, anfetamina, barbitúricos, misturas para cheirar, e uma chocante experiência com heroína antes de voltarem ao vermute seco com gelo. Eram os primeiros a experimentar os novos restaurantes, foram os primeiros a usar relógios Mickey Mouse, os primeiros a usar óculos escuros sobre o cabelo. Exploravam Nova York inteira e davam o serviço: "Aquele incrível restaurantezinho de Chinatown. . ." "A melhor dançarina de ventre do West Side. . ." "Aquela loja maluca de trastes velhos na Junk Street..."
Judeus ambos, haviam aberto caminho para o catolicismo via unitarismo, metodismo e episcopalismo (com uma breve experiência de marxismo). Após a conversão e de terem se confessado uma vez, descobriram aquela igreja evangélica "ligada" no Harlem, onde todo mundo batia palmas e gritava. Passaram à astrologia, e receberam para jantar certa noite um guru de suíças.
Aderiram entusiasticamente ao movimento anti-Guerra do Vietnã e viajaram a Washington para conduzir cartazes, desfilar, e gritar slogans. Certa vez, Sam foi atingido na cabeça por um operário de construção civil. De outra, Flo recebeu uma cusparada de um executivo de Wall Street. Passaram, em seguida, três semanas numa comuna de New Hampshire, onde vinte e uma pessoas dormiam no mesmo quarto.
– Não faziam coisa alguma senão falar – disse Sam.
– Nada de profundidade, nada de significação! – acrescentou Flo.
– Um péssimo espetáculo! – disseram juntos.
O que os impelia, o que lhes inflamava a busca pela "relevância", a ânsia de "comunicar-se", de manter um "diálogo significativo", de encontrar "um relâmpago cósmico", de descobrir o "contato universal" e, na verdade, remodelar o Universo, era a culpa.
O grande talento de ambos, o dom que negavam por ser tão vulgar, era simplesmente o seguinte: possuíam uma maravilhosa capacidade de ganhar dinheiro. Os desenhos psicodélicos de Florence vendiam como água. Samuel fora um dos primeiros indivíduos a prever o potencial do "mercado jovem". Fundaram uma fábrica. O dinheiro começou a chover.
Ambos, na ocasião, em meados da casa dos trinta, haviam sido os primeiros com o novo. Cevavam-se no caos social da década de 60: os hippies, a moçada avançada, camisas e gravatas de pioneiros para os homens, contas indianas, óculos do tipo que a vovó usava e toda a parafernália dos jovens, aceita logo depois pelos mais velhos.
Os Mortons lucraram imensamente com a perspicácia nata, mas pareceu-lhes que aquilo era um talento sem estilo. Sem o reconhecerem para si mesmos, sabiam que estavam ficando ricos com o que começara como uma sincera e comovente cruzada. Daí a corrida frenética da linha do piquete para as passeatas, dos desfiles para a contestação. Queriam dar sua contribuição.
Numa expiação ainda maior, venderam a fábrica (com um lucro enorme) e abriram uma butique na Madison Avenue, um investimento que, estavam alegremente convencidos, seria um desastre. Chamava-se Erótica, e baseava-se em um conceito insólito para uma loja. A idéia lhes ocorrera durante os serviços religiosos de uma pequena seita escandinava, no Brooklyn, que adorava Thor.
– Estou cheio de não fazer nada – murmurou ele.
– Eu também – murmurou ela.
– Uma loja? – sugeriu ele. – Apenas para conservar-nos ocupados.
– Uma loja? – sugeriu ela. – Um troço divertido.
– Uma butique.
– Elegante e cara – observou ela. – Perderemos uma nota.
– Uma coisa diferente – meditou ele. – Nada de calcinhas cavadas e vestidos de papel, minissaias e suéteres transparentes, jaquetas do exército e bonés de jornaleiros. Algo realmente diferente. O que é que o povo quer?
– Amor? – perguntou ela pensativa.
– Oh, sim – concordou ele com um aceno de cabeça. – Isso mesmo.
A butique, a Erótica, vendia apenas artigos relacionados, por mais distante fosse, com o amor e o sexo. Oferecia lençóis de cetim em 14 cores (inclusive preto) e "travesseiro para as nádegas", anunciados meramente como "para maior conforto e conveniência". Vendia cartões de amor e livros de poesia lírica; perfumes e incenso; discos para criar atmosfera; cremes e loções perfumadas; velas fálicas; gravuras, quadros, desenhos e cartazes amorosos; lingerie unissex; pijamas de rendas para homem e camisola de couro para mulheres; e chicotes para ambos. Um guarda armado precisou ser contratado para expulsar certos fregueses, obviamente perturbados.
A Erótica constituiu um sucesso imediato. Florence e Samuel Morton enriqueceram ainda mais. Deprimidos, passaram a comer melado e adotaram a acupuntura. Ganhar dinheiro constituía um talento trágico. A única bênção para ambos era que não tinham malícia.
A primeira coisa que Daniel Blank viu ao acordar na manhã de domingo foi o bilhete, na mesinha de cabeceira, o convite para o café-almoço, enviado por Flo e Sam. Eles serviriam, lembrou-se carinhosamente, comidas tais como pão sírio quente, pasta de peixe gelada, carpa defumada, e seis tipos de arenque. Até mesmo champanha.
Foi descalço até a porta da frente, tirou as correntes e a barra, e apanhou o New York Times. Cumpriu o ritual de fechar tudo novamente, levou o jornal para a cozinha, voltou ao quarto, e iniciou o programa de 30 minutos de exercícios em frente ao espelho do guarda-roupa.
Era uma tranqüila rotina domingueira que viera a apreciar desde que passara a morar sozinho. O dia e suas preguiçosas possibilidades estendiam-se com um brilho dourado à frente. As distensões, flexões e curvaturas levaram-no tépida e vivamente para um novo mundo. Tudo era possível.
Tomou um rápido banho de chuveiro, satisfeito em ver que a pele seca se tornara macia e lustrosa. Barbeando-se em frente ao armarinho do banheiro, perguntou-se, mais uma vez, se não devia deixar crescer o bigode. Mais uma vez, resolveu que não. O bigode, concluiu, fá-lo-ia parecer mais velho, embora um bigode Fu-Manchu pendente, combinando com seu crânio glabro, pudesse ser interessante. Excitante?
A sua face era do tipo caixão de defunto, elegante, com pequenas orelhas bem pregadas ao osso. O queixo, um pouco agressivo, lábios cinzelados, com um frescor novo. O nariz longo, algo estreito, possuía narinas elípticas. Os olhos constituíam o seu melhor atrativo: grandes, bem espaçados, com a íris castanha. Sobrancelhas grossas e bem delineadas.
Curiosamente, parecia mais velho visto de frente do que de perfil. Na primeira posição, parecia meditabundo e rugas desciam do nariz para os cantos da boca. Os dois lados da face eram idênticos, produzindo o efeito de uma máscara religiosa. Raramente pestanejava e só raras vezes sorria.
De perfil, no entanto, parecia mais alerta. A face ganhava vida. Havia nela uma expectativa jovem, testa nobre, olhos claros, nariz reto, lábios bem cortados e ligeiramente amuados, queixo forte. Podiam-se ver os excelentes ossos do rosto e do queixo.
Terminou de barbear-se, aplicou loção após-barba Fauno, passou uma ligeira camada de pó no rosto, e borrifou as axilas com desodorante perfumado. Voltou ao quarto e pensou no que vestir.
Os Mortons com o seu ". .. Milhares de pessoas fantásticas..." certamente haviam convidado a variada coleção de bizarros amigos e conhecidos que cultivavam: artistas e desenhistas industriais, atores e escritores, dançarinas e diretores, temperado tudo com um picante punhado de viciados em tóxicos, prostitutas e incendiários. Todos eles, numa manhã de domingo, viriam informalmente, com as roupas as mais malucas.
Para ser diferente – distante da populaça, acima da gentalha – colocou a conservadora peruca ivy-league, vestiu calças esporte cinzentas de flanela, sapatos esporte Gucci, suéter de caxemira com gola rulê, e jaqueta de camurça marrom-avermelhada. No bolso externo, colocou um lenço de foulard de padronagem amarela.
Dirigiu-se à cozinha e preparou um pequeno bule de café. Bebeu duas xícaras, sem leite, sentado na cozinha, folheando a seção de anúncios de lojas da revista do Times. Os anúncios provavam que a moda masculina corrente havia-se tornado mais criadora, colorida e excitante do que a feminina.
Precisamente às 11:30, fechou a porta da frente e tomou o elevador para ir para o apartamento de cobertura dos Mortons, no 349 andar.
Subiu sozinho no elevador. Não havia ninguém à espera à porta dos Mortons, e quando escutou, nenhum som de festa ouviu no interior. Perplexo, tocou a campainha, esperando que a porta fosse aberta por Blanche, a empregada dos Mortons, ou talvez por um mordomo contratado para a ocasião.
A porta, porém, foi aberta pelo próprio Samuel Morton, que saiu rapidamente para o corredor, e fechou-a, mas não a chave.
Era um homem pequenino e vigoroso. Vestia uma camisa preta de couro e calças blue-jeans cravejadas de tachas. Reluzia quando se movia. Os olhos, brilhantes de alegria, eram outros dois cravos. Pôs uma mão no braço de Daniel Blank.
– Dan – suplicou – não fique zangado.
Blank gemeu teatralmente.
– Sam, não de novo? Você prometeu que não. O que é que há com você e Flo? São casamenteiros profissionais? Eu lhe disse que posso arranjar minhas próprias mulheres.
– Ouça aqui, Dan, o caso é tão terrível assim? Nós queremos que você seja feliz! Isso é tão terrível assim? A sua felicidade. . . Isso é tudo! Muito bem, bote a culpa em nós. Mas vivemos tão felizes que queremos que todos sejam felizes como nós!
– Mas você prometeu! – acusou-o Blank. – Sam, você está sendo alcoviteiro demais. Depois daquele desastre com a criadora de jóias, você prometeu. Quem é desta vez?
Morton chegou-se a ele, sussurrando...
– Você não acreditará! Original! Juro por Deus... – Ergueu a mão direita. – ... Original! Foi à loja na semana passada. Usava um casaco de zibelina até o tornozelo! O dia estava quente, mas ela usava uma pele até o tornozelo. E zibelina! Não marta, Dan. . . zibelina! E é bela de um jeito assim meio largado, excitante. Não uma Marilyn Monroe, mas tem a coisa. Ela mete medo. Sério. Talvez não seja bonita. Mas tem aquele algo mais. Algo melhor! Bem, ela chegou vestindo aquela longa zibelina. Cinqüenta mil, aquele casaco. . . no mínimo! E trazia com ela aquele menino, talvez de onze, doze anos, por aí. E ele é lindo! O menino mais bonito que já vi. . . e você sabe que eu não me inclino para essas coisas! Mas ela não é casada. O menino é irmão dela. De qualquer modo, começamos a conversar, Flo gostou do casaco, e acabamos descobrindo que ela comprou-o na Rússia. Rússia! E mora em uma casa na East End Avenue. Pode imaginar uma coisa dessas? East End Avenue! Uma casa na cidade! Deve ser cheia da nota. Assim, uma coisa levou à outra e a convidamos para um café-almoço. O que é que há de tão terrível nisso?
– Você lhe disse também que estava convidando um amigo divorciado que vive em solidão e procura a companhia de uma mulher?
– Não. Juro que não!
– Sam, não acredito em você.
– Dan, você acha que eu lhe mentiria?
– Naturalmente. Como os seus "milhares de pessoas fantásticas".
– Bem. . . Flo pode ter mencionado casualmente que alguns vizinhos poderiam aparecer.
Daniel riu. Sam agarrou-lhe o braço e puxou-o para mais perto.
– Olhe, dê uma olhada, uma olhada rápida. É uma mulher como você jamais viu igual! Juro-lhe, Dan... é original. Você, simplesmente, tem de conhecê-la! Se coisa alguma resultar disso – naturalmente Flo e eu estamos esperançosos – mesmo que nada resulte, acredite-me que será uma boa experiência para você. Está aqui um novo ser humano! Você vai ver. O nome dela é Célia Montfort. O meu nome é Sam e o nome dela é Célia. De início, isso diz um bocado de coisas, não?
O apartamento dos Mortons vivia na maior desarrumação possível. Era uma loja de ofertas, um ninho de ratos, um bazar de caridade, e um acampamento de ciganos, tão incoerente como a vida de ambos. Redecoravam-no pelo menos duas vezes por ano e essas sublevações deixavam um monte de detritos: cadeiras suecas modernas, um sofá de namoro vitoriano, uma cômoda baixa Sheraton, um índio de madeira, uma mesa de Plexiglas, cinzeiros de ouropel, copos Tiffany, e quadros de uma dúzia de estilos da moda, emoldurados ou não, pendurados ou encostados à parede.
E, por toda parte, livros, revistas, gravuras, fotografias, jornais, cartazes., peças de tecido, bastões de incenso, caixas de chocolate, flores frescas, desenhos de moda, cigarros partidos, uma hélice de bronze, e uma "comadre" azul, tudo misturado ao acaso, como se gigantescos garfos de salada houvessem mergulhado entre os móveis do apartamento, lançando-os até o teto e deixando-os cair como quisessem, empilhando-se, inclinando-se, sobrepondo-se, criando um ambiente de frenética desordem que atordoava os visitantes, mas que era maravilhosamente confortável e relaxante.
Sam Morton levou Daniel para a entrada da sala de estar, puxando-o pelo braço, receoso de que ele fugisse. Blank acenou para Blanche, que trabalhava na cozinha, ao passar rebocado.
Na sala de estar, Flo Morton sorriu e atirou-lhe um beijo. Desviou a vista dela para a mulher sobre quem haviam estado conversando e que não quis interromper-se para tomar conhecimento da presença de ambos.
– É má lógica e semântica ainda pior – dizia ela em uma voz curiosamente destituída de tom e inflexão. – O negro é belo? Isso equivale a dizer "O baixo é o alto". Sei que eles querem afirmar sua existência e mostrar orgulho. Mas escolheram um grito de guerra em que ninguém, nem mesmo eles, pode acreditar. O significado das palavras é meramente um suporte, quase tão básico como a ortografia. As palavras, porém, têm também peso emocional. As palavras mais simples, mais inocentes – no que interessa à definição – podem constituir um erro absoluto, emocionalmente falando. Uma palavra que parece simples e despretensiosa quando escrita ou impressa pode excitar-nos até o assassinato ou o deleite. O negro é belo? Para a raça humana, para os brancos, os negros, os amarelos, os vermelhos, o negro nunca poderá ser belo. O negro é mau e sempre será. Isto porque o negro é escuridão e é nela que reside o medo e nascem os pesadelos. De coração negro. A ovelha negra da família. A magia negra: a magia praticada pelas feiticeiras. A missa negra. Não se trata de uma mácula racial. Tem origem no medo primitivo do homem em relação à escuridão. O negro é o tempo ou o local sem luz, onde se escondem os perigos e a morte. As crianças têm naturalmente medo da escuridão. O medo não lhes é ensinado. Nascem com ele. Até mesmo alguns adultos dormem com uma lamparina acesa. "Comporte-se ou o papa-figo vem pegar você." Imaginem que até às crianças negras é ensinado isso. O "papa-figo", o monstro negro que sai da escuridão, da perigosa escuridão. O negro é aquilo que não se pode conhecer. Negro é perigo. Negro é mal. Negro é morte. O negro é belo? Nunca. Jamais conseguirão que pessoa alguma acredite nisso. Nós somos todos animais. Acho que não fomos apresentados.
Ergueu os olhos e olhou francamente para Daniel Blank. Ele teve um sobressalto. Estivera tão absorvido na exposição da moça, tão atento ao desenvolvimento de seu raciocínio, que não formou idéia clara daquilo com que ela se parecia. Naquele momento, quando Florence Morton fazia as apressadas apresentações, e ao atravessar a sala para apertar a mão estendida de Célia Montfort, examinou-a atentamente.
Ela sentava-se enrodilhada na maciez de uma grande espreguiçadeira, que era toda espuma, veludo vermelho, e queimaduras de cigarro. Estranhamente numa manhã de domingo, usava um elegante vestido de noite de cetim preto. O decote era reto e o vestido suspenso dos ombros por alças tipo "espaguete". Usava uma fina gargantilha de brilhantes e trazia no punho da mão que estendeu a Blank um bracelete, combinando. Ele perguntou a seus botões se ela não estivera por acaso em uma festa que durara a noite inteira e não pudera ir em casa trocar de roupa. Pensou nisso ao ver os sapatos altos de seda.
O cabelo, tão preto que parecia quase púrpura, era dividido ao meio, caindo frouxamente pelos ombros, sem onda ou cacho. A cabeleira dava-lhe uma aparência de feiticeira, realçada pelas longas mãos, afilando-se em dedos terminados em unhas pontudas.
Os braços nus, os ombros, a parte superior dos pequenos seios, revelados pelo decote baixo, brilhavam contra o veludo vermelho. Havia na carne dela uma nudez peculiar, límpida. Os braços pareciam especialmente sensuais: lisos, glabros, parecendo tão destituídos de ossos como tentáculos, braços como que formados por extrusão de tubos.
Era difícil calcular-lhe a altura ou fazer conjeturas sobre o seu corpo enquanto continuasse ali enrodilhada. Blank achou que devia ser alta, de um metro e setenta ou mais, com uma boa cintura, quadris chatos, coxas duras. Mas, no momento, tudo isso pouca importância tinha para ele. A face dela fascinava-o e os olhos estavam presos nos seus.
Eram cinzentos ou azuis-claros? As finas sobrancelhas eram arqueadas ou retas? 0 nariz era... o quê? Nariz egípcio? Nariz de sarcófago ou baixo relevo? E os lábios entreabertos: eram cheios e secos, ou finos e úmidos? O longo queixo, semelhante à ponta do sapato alto de seda, era encantador, ou talvez masculino demais? Como dissera Sam Morton, não era bonita. Mas havia nela alguma coisa. Alguma coisa melhor? O assunto requeria estudo.
Ele teve a impressão de que, naquela ocasião, ao meio-dia de um brilhante domingo, usando as ricas roupas de uma noite de sábado, o corpo e a face da moça mostravam sinais de cansaço. Havia langor na postura, palidez na pele, e leves sombras sob os olhos. Tresandava a deboche, e a voz incolor provinha de sentidos solicitados além da capacidade de reagir e de paixões esgotadas.
Florence e Samuel desfecharam imediatamente uma violenta crítica aos comentários da moça sobre o tema "O negro é belo". Daniel observava, procurando ver como ela reagia ao ataque. Notou imediatamente que possuía o dom do repouso: nada de contorções, nada de mexer-se inquieta, de brincar com o bracelete, de afofar o cabelo, de tocar as orelhas. Continuava sentada, tranqüila, calma. Daniel, subitamente, deu-se conta de que ela não escutava as críticas. Havia-se afastado deles.
Estava longe, desconfiou, mas não devaneando. Não flutuava. Recolhera-se em si mesma, mergulhando mais profundamente em seus pensamentos, anseios, esperanças. Aqueles olhos, indecifráveis como a água, acompanhavam-nos, mas ele sentiu-lhe o distanciamento. Ele também iria à terra dela, mesmo que fosse apenas de visita, para olhar em volta e ver que lugar era aquele.
Flo parou, esperando resposta a uma pergunta. Mas não houve. Célia Montfort simplesmente fitou-a com uma expressão algo vidrada. O momento foi salvo pela entrada de Blanche, empurrando um carrinho de três prateleiras carregado de pratos quentes e frios, um jarro de Bloody Marys, e uma garrafa gelada de rosé borbulhante.
A comida era menos estranha do que Blank esperara, mas, ainda assim, os ovos quentes tinham tempero de xerez, o presunto estava impregnado com molho de borgonha, os cogumelos haviam recebido conhaque, e os waffles nadavam em melado traçado com rum.
– Coma! – ordenou Flo.
– Aprecie! – ordenou Sam.
Daniel serviu-se de um único ovo pochê, uma fatia de bacon, e um copo de vinho. Recostou-se em seguida com um cacho de uvas Concord geladas na mão, escutando as conversas dos Mortons e observando Célia Montfort, silenciosa e determinada, devorar um volume imenso de comida.
Em seguida, tomaram conhaque português aquecido, em pequenos cálices. Daniel e os Mortons iniciaram uma conversação volúvel sobre art déco, a moda do momento. Ao ser pedida sua opinião, Célia sacudiu a cabeça:
– Não sei de coisa alguma a esse respeito.
Em seguida, permaneceu tranqüila, segurando o cálice de conhaque em ambas as mãos, pensativa. Não tinha talento para a conversação inconseqüente. Queixe-se a pessoa do mau tempo, pensou ele, e ela poderá fazer um sermão sobre a humildade. Mulher estranha. O que fora que Sam dissera? "Ela mete medo". Por que, em nome de Deus, havia dito ele aquilo? A menos que se referisse aos perturbadores silêncios da moça ou à sua alienação, que poderiam ser apenas egoísmo e maus modos.
Ela ergueu-se subitamente e, pela primeira vez, Blank teve oportunidade de ver claramente seu corpo. Como havia desconfiado, era alta, embora mais magra e seca do que suspeitara. Tinha boa postura, movia-se com graça sinuosa, e os raros gestos eram pequenos e controlados.
Disse que precisava ir e endereçou a Flo e a Sam um gélido sorriso. Agradeceu-lhes polidamente a hospitalidade. Flo foi buscar-lhe o casaco: uma pelerine de pesado brocado de seda, tão esfuziante como uma jaqueta de toureiro. Blank ficou convencido de que ela não voltara para a casa, na East End Avenue, desde a noite de sábado, nem havia dormido na noite anterior.
Ela dirigiu-se à porta. Flo e Sam olharam-no em ansiosa expectativa.
– Posso acompanhá-la até em casa? – perguntou ele.
Ela fitou-o pensativa.
– Sim – disse finalmente. – Pode.
Os Mortons trocaram um rápido olhar de triunfo. Ficaram no corredor em seus trajos cravejados de tachas, com os rostos abertos em sorrisos idiotas, até que o elevador se fechou sobre eles.
No elevador, ela inesperadamente perguntou:
– Você mora neste edifício, não?
– Sim. No vigésimo primeiro.
– Vamos até lá.
Dez minutos depois, ela se encontrava em seu quarto, com a pelerine de brocado caída no chão, dormindo inteiramente vestida a sono solto sobre às cobertas da cama. Blank apanhou a pelerine, pendurou-a no guarda-roupa, tirou-lhe os sapatos e colocou-os lado a lado junto à cama. Em seguida, fechou a porta sem ruído e voltou à sala de estar para ler o New York Times de domingo, enquanto procurava não pensar na estranha mulher que dormia em sua cama.
Às 430, terminando o jornal, foi vê-la. Ela dormia de costas sobre os travesseiros, com a grande massa de cabelos pretos aberta em forma de leque. Ficou excitado. Dos ombros para baixo, ela se virara para um dos lados e dormia com os braços abraçados um no outro. Tirou um cobertor leve de lã da cômoda e cobriu-a suavemente. Dirigiu-se em seguida à cozinha, comeu uma maçã descascada e engoliu um tablete de levedura de cerveja.
Uma hora depois, sentado na sala de estar escura, procurou recordar-se das feições da estranha e descobrir por que o intrigava aquela suficiência. A aparência de feiticeira, de bruxa misteriosa, podia ser devida, concluiu, à maneira como ela usava o cabelo longo e liso, e ao fato, como descobriu subitamente, de não usar absolutamente maquilagem: nenhum pó, nada de batom, e nenhuma sombra nos olhos. A face era despojada.
Ouviu-lhe os movimentos. Fechou-se a porta do banheiro; escutou a descarga no vaso. Acendeu a luz. No momento em que ela entrou na sala de estar, notou que calçara os sapatos e penteara o cabelo.
– Você nunca usa maquilagem alguma? – perguntou.
Ela fitou-o durante longo momento.
– Ocasionalmente, ponho ruge nos bicos dos seios.
Ele a fitou com um riso sardônico.
– Isso não é de mau gosto?
Ela percebeu-lhe logo o significado obsceno.
– Homem espirituoso – disse em sua voz sem expressão. – Posso tomar uma vodca? Pura. Bastante gelo, por favor. E uma rodela de limão, se houver.
Ao voltar com duas bebidas idênticas, encontrou-a enrodilhada em seu sofá Tobia Scarpa, com a face suavemente iluminada por uma lâmpada inflável Marc Lepage. Notou imediatamente que o cansaço desaparecera e que ela estava serena. Mas, chocado, observou algo que não vira antes: uma contusão do tamanho de um punho no bíceps do braço esquerdo, púrpura viva.
Ela estendeu para a bebida dedos frios e exangues como material plástico.
– Gosto de seu apartamento – disse.
De acordo com a sentença da separação, Gilda Blank levara a maior parte das antigüidades, a mobília excessivamente acolchoada, as cortinas de veludo, os tapetes grossos. Daniel ficara satisfeito em ver tudo aquilo sair. O apartamento viera a sufocá-lo. Sentira-se abafado por toda aquela madeira entalhada, tecidos pesados, coisas macias que o sobrecarregavam, prendiam-no.
Redecorara o apartamento quase vazio com peças modernas, a maioria comprada na Knoll. Havia cromo e vidro, couro e plástico preto, aço inoxidável e esmalte branco. O apartamento era naquela ocasião aberto, arejado, quase frágil era sua delicadeza. Reduzira a mobília ao mínimo, deixando que boas partes da sala de estar dissessem o que ali faziam. A parede espelhada estava cheia demais, mas, com essa exceção, o aposento era limpo, preciso, e nobre como uma galeria de museu.
– Uma sala como esta prova que você não precisa de raízes – disse ela. Você destruiu o passado, ignorando-o. A maioria das pessoas tem necessidade da história, de viver em um ambiente que, constantemente, lembre-lhe gerações passadas. Encontram consolo e significação na sensação de serem parte de um fluxo, do que era, é, e será. Eu acho isso uma emoção fraca e vergonhosa. E preciso força para romper laços, esquecer o passado, e negar o futuro. É exatamente isto o que esta sala faz. Aqui, pode a pessoa existir por si mesma, em si mesma, sem muletas. A sala não tem sentimentos. Você não os tem, também?
– Oh – disse ele – acho que não. Sou um homem sem emoção, talvez. O seu apartamento é decorado em estilo moderno? Tão austero como este?
– Não é apartamento. É uma casa de cidade. Pertence aos meus pais.
– Ah. Eles vivem ainda, então?
– Sim – respondeu ela. – Vivem ainda.
– Soube que mora com seu irmão.
– Ele se chama Anthony. Tem vinte anos menos do que eu. Mamãe teve-o já tarde na vida. Constituiu um embaraço para ela. Ela e meu pai preferem que ele more comigo.
– E onde moram eles?
– Oh, por aí – replicou ela vagamente. – Mas há uma coisa de que não gosto nesta sala.
– O quê?
Ela apontou para o candelabro preto de ferro fundido, com seus doze braços contorcidos. Cada braço sustentava uma vela branca.
– Não gosto de velas inteiras – disse, inexpressivamente. – Parecem-me tão desonestas como flores plásticas e papel de parede pintado imitando tijolos.
– Isso pode ser facilmente remediado – disse ele, erguendo-se e acendendo-as.
– Sim – concordou ela. – Fica melhor assim.
– Está pronta para outro drinque?
– Traga a garrafa de vodca e um balde de gelo. Assim, você não terá que andar de um lado para outro.
– Muito bem – retrucou ele. – Farei isso.
Ao voltar, ela havia apagado três das velas. Acrescentou gelo e vodca à bebida.
– Nós as apagaremos a intervalos. Dessa maneira, ficarão de vários tamanhos. É ótimo que você use a variedade que não pinga. Eu gosto de velas, mas não dos depósitos de cera morta.
– Recordações de antigos prazeres?
– Algo parecido. Mas lembram muito, também, restaurantes italianos de quinta classe, com velas enfiadas em garrafas de Chianti vazias e excesso de alho no molho. Eu odeio falsidades. Como imitações de brilhantes e soutiens acolchoados.
– Minha esposa. . . – começou ele. – Minha ex-esposa – sorriu – usava soutien acolchoado. O curioso era que ela não precisava disso. Era muito bem dotada. É ainda.
– Fale-me a respeito dela.
– Gilda? Uma mulher muito agradável. Somos de Indiana. Conhecemo-nos na Universidade. Um encontro ao acaso. Eu estava adiantado um ano em relação a ela. Saíamos ocasionalmente. Nada sério. Vim para Nova York. Ela chegou um ano depois e começamos a nos ver novamente. Sério, dessa vez.
– Como era ela? Fisicamente, quero dizer.
– Uma mulher forte, com tendência para engordar. Adorava comidas gordurosas. A mãe dela é enorme. Gilda é loura. O que você chamaria de "uma mulher bonita". Boa atleta. Natação, tênis, golfe, esqui – tudo isso. Muito ativa em obras de caridade, organizações sociais, lições de bridge, comida chinesa e gosto pela música. Coisas assim.
– Filhos?
– Não.
– Quanto tempo ficaram casados?
– Ahh. . . – Fitou-a. – Meu Deus, não posso me lembrar. Claro. Sete anos. Quase oito. Sim, foi isso. Quase oito anos.
– Não queriam filhos?
– Eu não queria...
– Ela?
– Sim.
– Foi por isso que se divorciaram?
– Oh, não. Não, isso não teve coisa alguma a ver com o divórcio. Nós nos divorciamos porque. . . bem, por que mesmo? Incompatibilidade, acho. Simplesmente, nos afastamos um do outro. Ela seguiu seu caminho, e eu, o meu.
– Qual era o caminho dela?
– Você é muito curiosa.
– Sou mesmo. Você pode recusar-se a responder.
– Bem, Gilda é muito sadia, bem ajustada, uma mulher que gosta de sair. Gosta de gente, de crianças, festas, piqueniques, teatro, igreja. Todas as vezes que íamos ao teatro ou a um cinema em que se pedia à platéia que cantasse com o artista, ela cantava sempre. Era esse tipo de mulher.
– Uma acompanhadora de coro com soutien acolchoado.
– E flores de plástico – acrescentou ele. – Bem, não de plástico. Mas ela comprava dúzias de rosas de seda. Eu não consegui convencê-la de que eram feias.
Ele levantou-se e apagou três outras velas. Voltou para junto dela e sentou-se na cadeira Eames. Subitamente, ela aproximou-se dele e sentou-se no pufe à frente. Colocou uma mão leve sobre o joelho de Daniel.
– O que foi que aconteceu?
– Você desconfiou? – perguntou ele, sem surpresa. – Uma história estranha. Eu mesmo não a compreendo.
– Contou aos Mortons?
– Meu Deus, não. Não contei a ninguém.
– Mas quer me contar?
– Sim, quero contar a você. E quero que a explique a mim. Bem, Gilda é uma mulher normal, sadia, que gostava de sexo. Eu, também. Nossa vida sexual era muito satisfatória. Era, realmente. Pelo menos no começo. Mas, você sabe, a gente envelhece e o sexo não parece tão importante. Ao menos, não para ela. Não quero desfazer de Gilda. Era boa e entusiástica na cama. Talvez sem imaginação. Às vezes, ria de mim. Mas uma mulher normal e sadia.
– Você continua a dizer sadia, sadia, sadia.
– Bem, ela era. Uma mulher grande e sadia. Pernas grandes. Seios grandes. Uma pele lustrosa. Rubens a teria adorado. Bem... mais ou menos há três anos alugamos uma casa para passar o verão em Barnegat Bay. Sabe onde fica?
– Não.
– Uma praia de Jersey. Ao sul de Bay Head. É um lugar lindo. Ótima praia, areia branca, sem muita gente. Certa tarde, convidamos alguns vizinhos para um churrasco ao ar livre. Todos nós bebemos muito. Foi divertido. Estávamos todos de roupa de banho, bebemos, ficamos um pouco altos, mergulhamos no oceano, nadamos, curtimos a bebida, comemos e bebemos mais. Foi uma tarde maravilhosa. Finalmente, todo mundo foi para casa, Gilda e eu ficamos sozinhos. Talvez um pouco bêbados, excitados com tanto sol, comida e alegria. Resolvemos voltar para a cabana e fazer amor. Tiramos a roupa de banho. Mas conservamos os óculos de sol.
– Oh!
– Não sei por que fizemos isso, mas fizemos. Talvez tenhamos pensado que era engraçado. De qualquer maneira, fizemos amor usando óculos escuros, opacos, de modo que não podíamos ver os olhos um do outro.
– Você gostou?
– Do ato? Para mim foi uma revelação, uma porta que se abria. Acho que Gilda pensou que era engraçado e esqueceu o caso. Eu nunca pude esquecê-lo. Foi a coisa sexualmente mais excitante que jamais fiz na vida. Havia algo de primitivo e ameaçador naquilo. É difícil de explicar. Mas abalou-me. Quis fazer a mesma coisa novamente.
– Mas ela não quis?
– Exato. Depois de voltarmos a Nova York e embora fosse inverno, sugeri que usássemos os óculos de sol, mas ela não quis. Você acha que sou maluco?
– A história termina aí?
– Não. Há mais. Espere até que eu sopre outras velas.
– Eu apago.
Ela apagou mais três velas. Ficaram apenas três queimando, aproximando-se do bocal de ferro. Ela voltou para junto dele e sentou-se mais uma vez no escabelo estofado.
– Continue.
– Bem, certo dia eu andava ao léu pela Brentano's – isso aconteceu no inverno, imediatamente depois de Barnegat Bay – e a Brentano's, como você sabe, vende um bocado de troços do tipo museu: jóias antigas, pedras semipreciosas, peças de coral, e artesanato nativo. Coisas assim. Bem, a loja tinha uma coleção de máscaras africanas à venda. Muito primitivas. Impressionantes e algo apavorantes. Você deve conhecer o efeito produzido pela arte africana primitiva. Ela toca algo muito profundo em nós, muito misterioso. Bem, eu quis fazer amor com Gilda enquanto usássemos as máscaras. Uma idéia irracional, sei. Soube disso na ocasião, mas não consegui resistir. Assim, comprei duas máscaras – não eram baratas, por falar nisso – e levei-as para casa. Gilda nem gostou nem desgostou delas. Deixou que eu as pendurasse no corredor. Algumas semanas depois bebemos um bocado...
– Você a embebedou.
– Acho que sim. Mas ela não quis. Não usaria de maneira alguma uma daquelas máscaras na cama. Disse que eu estava louco. De qualquer modo, no dia seguinte, jogou-as fora, queimou-as, deu-as de presente, ou fez alguma outra coisa. Haviam desaparecido quando voltei para casa.
– E então vocês se divorciaram?
– Bem, não foi apenas por causa dos óculos de sol e das máscaras africanas. Houve outras coisas. Nós vínhamos nos separando gradualmente havia algum tempo. Mas a história das máscaras foi certamente um fator decisivo. História esquisita, não?
Ela levantou-se e apagou as três velas restantes. Fumegaram um pouco. A moça umedeceu os dedos na língua e apertou os pavios. Serviu-se de mais vodca e, em seguida, ficou olhando para o candelabro, com a cabeça inclinada para um lado.
– Assim é melhor.
– Sim – concordou ele – é.
– Você tem um cigarro?
– Eu fumo um tipo feito de folhas secas de alface. Sem nicotina. Mas tenho também o tipo comum. Qual o que prefere?
– A variedade venenosa.
Acendeu-o, e ela passou.a caminhar para cima e para baixo em frente à parede espelhada, com os cotovelos nas mãos. Com a cabeça inclinada para a frente, o cabelo longo lhe escondia a face.
– Não – disse ela. – Não acredito que tivesse sido irracional. Eu não acredito que você seja louco. Estou falando a respeito dos óculos de sol e das máscaras. Sabe, houve época em que no sexo em si, por si, havia poder, mistério, uma aura de reverência. Atualmente é, "vamos tomar outro martíni, ou fazer amor?" O ato em si não significa mais do que uma segunda porção de sobremesa. Em um esforço para restaurar a significação, as pessoas tentam intensificar o prazer. Usam de todos os tipos de dispositivos, mas tudo o que fazem é intensificar a mecanização do sexo. É o remédio errado. O sexo não é exclusivamente, nem mesmo principalmente, prazer físico. Sexo é rito. E a única maneira de restaurar-lhe a significação é devolver-lhe a pompa da cerimônia. Foi por isso que fiquei deliciada ao descobrir a loja dos Mortons. Provavelmente sem compreender, eles descobriram que, atualmente, a satisfação psíquica do sexo tornou-se mais importante do que a gratificação física. O sexo tornou-se, ou deve tornar-se, uma arte dramática. Foi, outrora, em várias culturas. E os Mortons fizeram um começo proporcionando a maquilagem, as fantasias, os cenários para a peça. É apenas um começo, mas bom. Agora, a seu respeito. . . Acho que você tornou-se, senão entediado, pelo menos insatisfeito com a sua esposa "sadia e normal". Isso é tudo o que há? perguntou-se você a si mesmo. Não há mais nada? Naturalmente que há. Muito, muito mais. E você estava no caminho certo quando falou a respeito de "uma revelação. . . uma porta que se abria", quando fez amor usando óculos de sol. E quando disse que as máscaras africanas eram "primitivas" e "algo apavorantes". Você, na verdade, descobriu o aspecto desconhecido ou ignorado do sexo: a realização psíquica. Tendo-se tornado consciente do fato, você desconfiou – corretamente – que as satisfações espirituais do amor podem superar de longe o prazer físico. Afinal de contas, é limitado o número de orifícios e membranas mucosas no corpo humano. Em outras palavras, você está começando a encarar o sexo como rito religioso e cerimônia dramática. As máscaras foram meramente o primeiro passo nessa direção. Foi uma pena que sua esposa não tivesse podido interpretar as coisas dessa maneira.
– Sim – concordou ele – foi uma pena.
– Preciso ir – disse ela bruscamente, dirigindo-se até o quarto para buscar a pelerine.
– Vou levá-la em casa – disse ele vivamente.
– Não. Não é necessário. Eu tomarei um táxi.
– Pelo menos, deixe que eu desça e chame um táxi para você.
– Por favor, não.
– Gostaria de vê-la novamente. Posso telefonar-lhe?
– Pode.
Ela passou pela porta e desapareceu antes mesmo que ele se desse conta do fato. O cheiro de velas apagadas e fumaça permaneceu na sala.
Apagou a luz e ficou sentado durante longo tempo na escuridão, pensando no que ela havia dito. Algo nele vibrava em resposta às palavras dela. Começou a vislumbrar o quadro final, que poderia ser composto com os fragmentos de seus pensamentos e conduta, que o haviam, até aquele momento, deixado perplexo. O quadro final chocou-o, mas nem se sentiu amedrontado nem consternado.
Certa vez, em fins do verão anterior, estivera admirando o corpo nu, novamente esbelto e moreno, no espelho do quarto. Deixara acesa apenas a lamparina. A sua carne reluzia ao brilho rosado da luz mortiça.
Notou como parecia estranha e, de certa forma, excitante a corrente de ouro de seu relógio contra a pele do pulso. Havia alguma coisa ali. . . Uma semana depois, comprou um cinto de mulher, feito de pesados elos folheados a ouro. Especificou uma corrente ajustável a todos os tamanhos e mandou fazer um embrulho de presente, por motivos que não conseguiu compreender.
Naquele instante, apenas horas depois de ter conhecido Célia Montfort, depois de ter ela dormido em sua cama, depois de ter ela o ouvido e lhe falado, postou-se nu novamente perante o mesmo espelho, deixando como iluminação apenas a acariciante lamparina. Tinha em volta do pulso a corrente de ouro do relógio e, em torno da cintura, o cinto de elos.
Olhou-se fixamente, fascinado. Acorrentado, apalpou-se.

4

A Javis-Bircham Publications, Inc. era a proprietária do edifício de es critórios e ocupava os quinze últimos andares na esquina. O prédio for: construído em fins da década de 30 no estilo maciço e piramidal da época, com decoração e enfeites segundo o modelo do Rockefeller Center.
A Javis-Bircham publicava revistas comerciais, livros e revistas técnicas. Quando Daniel Blank fora contratado, seis anos antes, a companhia publicava 129 diferentes revistas relativas à indústria química, a óleo e petróleo, engenharia, administração de empresas, automóveis, máquinas e aviação. Em anos recentes, haviam sido lançadas novas revistas sobre automação, tecnologia dos computadores, poluição industrial, oceanografia, exploração espacial e um mensário, destinado a consumidores, sobre pesquisas e desenvolvimento. Além disso, a empresa fundara um clube de livros técnicos. No momento, estudava a possibilidade de curtas news letters semanais nos campos abrangidos por suas revistas comerciais, mensais e bimensais. A Javis-Bircham fora classificada em 216º lugar na lista mais recente da revista Fortune entre as 500 maiores empresas da América. Abrira o capital em 1951 e suas ações, após uma bonificação de 3-1 em 1962, tiveram uma valorização de vinte vezes o valor nominal nas cotações.
Daniel Blank fora contratado como Gerente-Assistente de Circulação. Anteriormente, trabalhara como Gerente de Assinaturas e de Circulação de revistas destinadas a consumidores. As três revistas em que trabalhara antes de ingressar na Javis-Bircham haviam, desde então, cerrado as portas. Blank, que percebera o que vinha acontecendo, sobrevivera em melhor emprego, com um salário que teria considerado um sonho inatingível dez anos antes.
Foi inequívoca a sua primeira reação à organização de circulação da Javis-Bircham.
– É uma confusão dos diabos – disse à esposa.
O superior imediato de Blank, o Gerente de Circulação, era um indivíduo gordalhufo e cordial chamado Robert White, conhecido por "Bob" por todo mundo, incluindo secretárias e mensageiros. Isso, pensava Blank, dava uma idéia do homem.
White trabalhava na Javis-Bircham havia 25 anos e se cercara de um quadro de mais de 50 empregados e empregadas que, para Blank, eram "umas velhas" cheirando a lavanda e "whiskey sours", chegando tarde para o trabalho e continuamente organizando vaquinhas para aniversários, falecimentos, casamentos, e festinhas de aposentadoria.
Constituía o principal dever do Departamento de Circulação fornecer "estimativas de tiragem", ao Departamento de Produção: o número de exemplares que se devia imprimir de cada revista para assegurar o lucro máximo à Javis-Bireham. As revistas poderiam ser semanais, quinzenais, mensais, trimestrais, semestrais, ou anuais. Poderiam ser distribuídas gratuitamente a uma platéia de nível empresarial ou vendidas por assinatura. Algumas eram mesmo vendidas nas bancas. A maioria produzia a principal renda sob a forma de anúncios. Algumas não os publicavam em absoluto, mas eram de natureza tão especializada que os interessados as compravam exclusivamente pelo valor de seu conteúdo editorial.
A estimativa da tiragem de cada revista, de modo a assegurar o lucro máximo, constituía uma tarefa incrivelmente complexa. Tinha-se de levar em conta a circulação passada, o potencial de cada revista, a receita corrente e projetada de anúncios, a parcela das despesas gerais, os custos concretos de impressão – qualidade do papel, processo desejado, chapas a quatro cores etc. – os custos de correio e distribuição, o orçamento editorial (incluindo pessoal), as campanhas de publicidade e relações públicas etc. etc.
Ao entrar Daniel Blank na organização esse confuso trabalho de "estimação da tiragem" parecia ser feito "por palpite e por Deus". A equipe de "velhas" do "Feliz" Bob White fornecia-lhe as informações, rindo muito durante as conversações com ele. Em seguida, ao chegar a época da recomendação, White sentava-se à mesa com uma régua de cálculo, cantarolando, e dentro de uma hora, mais ou menos, fornecia a estimativa ao Departamento de Produção.
Daniel Blank percebeu imediatamente que havia tantas variáveis envolvidas que o sistema clamava por computadorização. Era mínima, porém, sua experiência com computadores. Nos empregos anteriores trabalhara principalmente com máquinas relativamente simples de processamento de dados.
Em conseqüência, matriculou-se num curso noturno de seis meses, intitulado "Triunfo do Computador". Dois anos depois de começar a trabalhar na Javis-Bircham apresentou a Bob White um relatório de 30 páginas, cuidadosamente organizado e logicamente racionalizado sobre as vantagens de um Departamento de Circulação computadorizado.
White levou o trabalho para ler em casa no fim de semana. Devolveu-o a Blank na segunda-feira pela manhã. As páginas estavam marcadas com círculos marrons de xícaras de café e uma delas fora enrugada e quase obliterada pelo líquido derramado.
White convidou-o para almoçar e, sorrindo, explicou por que o plano de Blank não daria certo. Não daria, absolutamente.
– Você obviamente trabalhou e pensou muito para escrever aquele trabalho – disse White – mas esqueceu as personalidades envolvidas. O pessoal. Meu Deus, Dan! Eu almoço quase todos os dias com os editores e gerentes de publicidade dessas revistas. São meus amigos. Todos eles têm planos para suas publicações: um artigo que pode despertar um bocado de publicidade e gerar grande aumento de circulação, ou um novo e enérgico corretor de publicidade que pode elevar a receita acima do que foi no mesmo mês do ano passado. Preciso levar em conta todos esses aspectos pessoais. Os fatores humanos envolvidos. Não se pode fornecer esses dados a um computador.
Daniel Blank inclinou a cabeça com ar de entendedor. Uma hora após a volta do almoço, uma cópia nova do relatório chegava à mesa do Vice-Presidente Executivo.
Um mês depois, o Departamento de Circulação soube, chocado, que o sorridente Bob fora aposentado. Daniel Blank foi nomeado Diretor de Circulação, título que escolheu pessoalmente, e com plenos poderes.
Dentro de um ano não havia mais nenhuma "velha". Blank cercara-se de um quadro jovem de técnicos pálidos. Os gabinetes do AMROK II ocupavam metade do 30º andar do Edifício Javis-Bircham. Conforme previra Blank, não apenas o computador e as máquinas auxiliares de processamento de dados conseguiram resolver todos os problemas de circulação – novas assinaturas e estimativas de tiragem – mas executavam tais tarefas com tal rapidez que podiam ser usados também para imprimir contracheques de salários, anotar dados sobre o pessoal, e elaborar o programa de pensões. Em conseqüência, a Javis-Bircham pôde dispensar mais de 500 empregados e, como tivera o cuidado de observar Blank no relatório original, o arrendamento anual do extremamente caro AMROK II resultou em apreciável dedução nos impostos.
Daniel Blank ganhava, na ocasião, $ 55,000 por ano e tinha uma conta de despesas ilimitada, um plano de pensão extremamente vantajoso e um esquema de opção para compra de ações. Contava 36 anos de idade.
Mais ou menos um mês depois de ter tomado posse no cargo, recebeu um cartão-postal muito estranho de Bob White. Dizia simplesmente: "Que dados está você fornecendo ao computador? Ah! Ah!".
Blank ficou intrigado com o cartão. Fornecera ao computador, naturalmente, a antiga circulação, as cifras relativas à receita de anúncios e os totais de lucros e perdas de todas as revistas publicadas pela Javis-Bircham. Evidentemente, White estivera trabalhando com sua gasta régua de cálculo durante a maioria dos anos de onde haviam sido tiradas as cifras, e se podia dizer que, em certo sentido, ele programara o computador. Mas ainda assim, o cartão pouco sentido fazia e Daniel Blank perguntou-se por que seu antigo chefe se dera ao trabalho de enviá-lo.
Era agradável ouvir o porteiro uniformizado dizer, "Bom dia, Sr. Blank", e não menos agradável subir no Elevador Executivo, em solitário conforto, até o 30º andar. O seu gabinete era um conjunto de salas com tapetes de parede a parede, banheiro privativo, e não uma escrivaninha, mas uma mesa, um imenso tampo de nogueira sobre uma base de ferro forjado. Essas coisas contavam.
Escolhera deliberadamente como secretária particular uma viúva ossuda de 28 anos, a Sra. Cleek, que precisava urgentemente do emprego e se mostraria grata. Ela se revelara tão eficiente e incolor como esperara. Possuía alguns estranhos hábitos: insistia em fechar a chave todas as portas e arquivos que se encontravam ligeiramente abertos, e continuamente alinhava as bordas de cinzeiros e papéis com as bordas das mesas e escrivaninhas, colocando todos os artigos em arranjo paralelo ou em ângulos retos perfeitos. Um quadro fora de prumo tornava-a maluca. Esses tiques, porém, não tinham maior importância.
Ao chegar ao gabinete, encontrava-a à espera para pendurar-lhe o paletó e o chapéu em um pequeno guarda-roupa. O café estava pronto, bem quente, numa pequena bandeja plástica sobre a mesa, tendo sido entregue pela cantina, localizada no 20º andar.
– Bom dia, Sr. Blank – dizia ela em voz aguada, consultando o bloco que levava nas mãos. –O senhor tem uma reunião às dez e trinta com a Junta de Pensões. Almoço às doze e trinta no Plaza com a Acme, a respeito do contrato de manutenção. Tentei confirmar, mas não chegou ninguém lá ainda. Tentarei novamente.
– Obrigado - disse ele. – Gosto de seu vestido. É novo?
– Não – respondeu ela.
– Vou ficar na Sala do Computador até a reunião da Junta de Pensões, caso você precise de mim.
– Sim, Sr. Blank.
A embaraçosa verdade era que, como a Sra. Cleek provavelmente sabia, ele coisa alguma tinha a fazer. Era verdade que ocupava o cargo de supervisor de um departamento de extrema importância – talvez o departamento mais importante – de uma grande empresa. Mas, literalmente, era-lhe difícil encontrar o que fazer durante o expediente.
Poderia ter dado a impressão de que trabalhava. Numerosos executivos, em circunstâncias análogas, fazem exatamente isso. Podia aceitar convites para almoços facilmente evitáveis. Poderia andar em passos duros pelos corredores, conduzindo documentos que leria em caminho, franzindo o cenho e sacudindo a cabeça. Poderia solicitar literatura técnica sobre suprimentos e sistemas de computadores totalmente inadequados ou sofisticados demais para as necessidades da Javis-Bircham, trazendo isso um grande aumento de correspondência desnecessária. Poderia fazer tolas viagens de negócios a fim de inspecionar as operações dos distribuidores de revistas e gráficas. Poderia comparecer a dezenas de convenções e reuniões de negócios, fazer discursos e gratificar generosamente as mocinhas encarregadas dos vestiários.
Mas nada disso enquadrava-se em seu estilo. Precisava de trabalho; não podia suportar a inação por muito tempo. E, assim, voltou-se para a "construção de impérios", conspirando sobre a maneira de ampliar o Departamento de Circulação e aumentar sua própria influência e poder.
Na vida pessoal sentia a mesma necessidade de ação após a breve hibernação que se seguira ao divórcio (período em que, inexplicavelmente, jurou guardar continência). Esse desejo de "fazer" datava de seu primeiro encontro com Célia Montfort. Apertou um botão pedindo uma linha externa e discou-lhe o número. Novamente.
Não a vira nem falara com ela desde aquele domingo em que a conhecera na casa dos Mortons e ela tirara um cochilo em sua cama. Procurara seu nome no catálogo de Manhattan. Lá estava: "Montfort, C." em um endereço do East End. Mas todas as vezes que telefonava para ela ouvia uma voz masculina, balbuciando:
– Residência da senorrita Montfort.
Blank supôs que fosse um mordomo ou um caseiro. A voz, a despeito do tom agudo, era madura demais para pertencer ao irmão de doze anos. Em todas as ocasiões, era informado que a senorrita Montfort estava fora da cidade e, não, o interlocutor não sabia quando voltaria.
Naquela ocasião, contudo, a resposta foi diferente. Era a mesma "Residência da senorrita Montfort", mas com uma informação adicional: a Srta. Montfort havia chegado, telefonara do aeroporto, e se o Sr. Blank quisesse ligar mais tarde, durante o dia, a Srta. Montfort indubitavelmente estaria em casa.
Desligou, sentindo uma grande esperança. Confiava em seus instintos, embora nem sempre pudesse explicar por que agia como agia. Estava convencido de que havia algo para ele na companhia daquela mulher estranha e inquietante: algo importante. Se tivesse energia e coragem para agir...
Daniel Blank entrou no saguão aberto da Sala do Computador e inclinou a cabeça para a recepcionista. Dirigiu-se diretamente para um grande armário esmaltado branco, à direita das portas internas, e tirou um guarda-pó esterilizado e um gorro, hermeticamente fechados em um saco de plástico transparente.
Vestiu o guarda-pó, colocou o gorro, e passou pelo primeiro par de portas de vaivém. A dois metros, à frente, havia um segundo par de portas. O espaço entre ambas era chamado de câmara pneumática, embora não fosse selada. A iluminação vinha de frias lâmpadas fluorescentes azuis, que se dizia terem capacidade germicida. Parou por um momento para observar a atividade ordeira na Sala do Computador.
AMROK II trabalhava 24 horas por dia e era assessorado por três turmas de acólitos, vinte em cada turno. Blank ficou satisfeito ao notar que todo o pessoal da turma da manhã usava os obrigatórios guarda-pós e gorros descartáveis. Quatro homens sentavam-se a uma mesa de aço inoxidável; os demais funcionários, jovens, homens e mulheres assexuados em seus trajes de papel branco, cuidavam do computador e das máquinas processadoras auxiliares, uma das quais estava no momento pairando baixinho e vomitando um formulário interminável, que se dobrava elegantemente em folhas parcialmente serrilhadas em uma cesta de arame. Aquilo era, sabia Blank, uma compilação das taxas de seguro do desemprego estadual.
O murmúrio dessa máquina e o girar macio, com início e paradas dos carretéis de fita, eram os únicos sons ouvidos no momento em que Blank passou pelo segundo par de portas. A proibição contra o ruído desnecessário era rigorosamente cumprida. E a profusamente iluminada sala não apenas era silenciosa, mas à prova de poeira, com temperatura e umidade rigorosamente controladas e verificadas. Um alarma automático seria disparado pela presença de qualquer inusitada fonte de radiação magnética. Um incêndio era coisa inconcebível. Não apenas o fumo era proibido, mas até mesmo a posse de fósforos ou isqueiros constituía motivo para dispensa imediata do empregado. As paredes eram de aço inoxidável sem pintura e, as lâmpadas, fluorescentes. A Sala do Computador era um cofre forte sem adornos, um anfiteatro cirúrgico flutuando sobre suportes de borracha, dentro da estrutura de apoio do Edifício Javis-Bircham.
E 90% disso era puro absurdo, tolice. Aquilo não era uma instalação de pesquisa atômica nem um laboratório onde se trabalhava com vírus mortais. As atividades do AMROK II não exigiam tais precauções idiotas – os aventais e gorros esterilizados, a "câmara pneumática", e a proibição da conversa normal.
Propositadamente, Daniel Blank ordenara tudo isso. Mesmo antes da instalação e início da operação do aparelho, compreendeu que o funcionamento do AMROK II constituiria um apavorante mistério para a maioria dos empregados da Javis-Bircham, inclusive para seus superiores: vice-presidentes, o presidente, e a diretoria. Era sua intenção continuar a dar um caráter de enigma às atividades que se processavam naquela sala. Tal medida não apenas lhe assegurava a importância para a firma, mas tornava realmente muito mais fácil sua tarefa quando se aproximava, anualmente, o "dia do orçamento" e ele pedia invariavelmente somas crescentes para as despesas de operação de seu departamento.
Blank dirigiu-se imediatamente à mesa de aço inoxidável, em torno da qual se sentavam quatro jovens em profunda conversação sussurrada. Formavam eles a sua Força-Tarefa X-l, os melhores técnicos da turma da manhã. Blank lhes propusera um problema que continuava a ser ainda "Altamente Secreto".
Para combater o tédio, o motivado pelo desejo de aumentar a importância do Departamento de Circulação e ampliar seu poder e influência pessoal, resolvera que deveria ter responsabilidade de decidir, no caso de cada revista, a proporção entre as páginas de texto e de anúncios. Ano antes, esse índice era determinado de modo empírico pelas limitações das rotativas, cada uma das quais podia produzir revistas apenas em múltiplos de oito ou dezesseis páginas.
Os progressos nas técnicas de impressão, todavia, permitiam agora a produção em qualquer número de páginas – 15,47, 76, 103, 241 – o número que se desejasse, com uma variada mistura de qualidade de papel. Os editores das revistas lutavam constantemente por maior número de páginas de texto, argumentando (às vezes, corretamente, às vezes, não) que a pura quantidade atraia os leitores.
Mas havia obviamente um limite: o papel custava dinheiro e não menos o tempo de impressão. Os editores discutiam sem cessar com o Departamento de Produção sobre a grossura das revistas. Daniel Blank percebeu uma excelente oportunidade de entrar na briga e substituir ambos os lados, sugerindo que se deixasse a AMROK II determinar a proporção mais lucrativa entre as páginas de texto e de anúncios.
Sabia que enfrentaria forte e vociferante oposição. Os editores alegariam invasão de suas responsabilidades criadoras; o pessoal de produção veria nisso uma redução de seus poderes. Mas, se pudesse apresentar um programa exeqüível, tinha certeza de conquistar o apoio dos indivíduos astutos que perambulavam pelas suítes do 31º andar. Neste caso, ele – e AMROK II, naturalmente –determinariam o conteúdo editorial de cada revista. Para ele, isso parecia apenas um curto passo até que se permitisse que AMROK II ditasse a matéria mais lucrativa do conteúdo editorial. Possível.
Mas tudo isso era para o futuro. Naquele momento, a Força-Tarefa X-1 discutia a programação que seria necessária antes que o computador pudesse tomar sábias decisões sobre a proporção mais rendosa entre páginas editoriais e de anúncios em todos os números de todas as revistas da Javis-Bircham. Blank escutou atento a conversa murmurada, olhando de interlocutor para interlocutor, perguntando-se se era verdade, como ela dissera, que ocasionalmente passava ruge nos bicos dos seios.
Esperou, procurando adotar um controle consciente, até 3 da tarde antes de telefonar. O balbuciante caseiro pediu-lhe que esperasse um momento e voltou em seguida ao telefone para dizer-lhe.
– A senorrita Montfort pede-lhe que telefone novamente daqui a meia hora.
Perplexo, Blank desligou, caminhou de um lado para outro no gabinete durante exatamente 30 minutos, comeu uma pêra gelada, tirada do pequeno refrigerador, e telefonou novamente. Desta vez foi feita a ligação com ela.
– Alô – disse. – Como vai? (Devia chamá-la de "Célia" ou "Srta. Montfort"?)
– Bem, e você?
– Ótimo. Você disse que eu podia telefonar.
–Sim.
– Esteve fora da cidade?
– Fora do país. Em Samarra.
– Oh? – disse ele, e acrescentou, com a esperança de que ela o julgasse inteligente: – Teve um encontro?
– Algo parecido.
– Onde, exatamente, fica Samarra?
– No Iraque. Passei lá apenas um dia. Na verdade, fui visitar meus pais. Eles estão atualmente em Marrakech.
– Como estão eles? – perguntou polidamente.
– Na mesma – respondeu ela naquela voz sem expressão. – Não mudaram em trinta anos. Desde que... – A voz morreu.
– Desde o quê?
– Desde a II Guerra Mundial. A guerra modificou seus planos. – Ela falava em enigmas e ele não quis forçar a barra.
– Marrakech fica perto de Samarra, não?
– Oh, não. Marrakech fica no Marrocos.
– A Geografia não é o meu forte. Eu me perco toda vez que desço ao sul da rua onde moro.
Pensou que ela fosse rir, mas não riu.
– Amanhã à noite – disse ele deliberadamente – amanhã à noite os Mortons vão oferecer um coquetel. Nós fomos convidados. Gostaria de levá-la para jantar antes da festa. Começa às dez.
– Sim – respondeu ela imediatamente. – Esteja aqui às oito. Tomaremos uns drinques e depois iremos jantar. Em seguida, iremos à festa dos Mortons.
Ele começou a dizer "Muito obrigado", "Excelente", ou "Estou aguardando ansioso", ou "Então, até lá", mas ela já havia desligado. Olhou fixamente para o telefone mudo em sua mão.
No dia seguinte, sexta-feira, saiu mais cedo do trabalho para ir preparar-se. Debateu consigo mesmo se devia ou não enviar-lhe flores. Resolveu não mandar. Tinha a impressão de que ela adorava flores, mas que nunca as usava. O melhor, pensou, seria gravitar macia e lentamente em torno dela até descobrir-lhe os gostos e preconceitos.
Preparou-se cuidadosamente, embora houvesse se barbeado pela manhã. Usou uma colônia feminina, Je Reviens, um perfume que o excitava. Vestiu roupa de baixo francesa – cueca biquíni apertada de nylon – e uma camisa de seda de padrão geométrico, de quadrados brancos e azuis. A gravata larga era de uma padronagem marrom sutil. Escolheu um paletó-saco azul. Além do relógio de pulso, abotoaduras, e de um pesado anel de ouro no indicador direito, colocou um bracelete de identificação de ouro, frouxo, no punho direito. E a peruca via-veneto.
Saiu cedo e foi a pé até o apartamento dela. Não era longe e a noite estava agradável.
O sobretudo de gabardine inglesa, com mangas ragla, era abotoado na frente e possuía bolsos oblíquos. Os bolsos, segundo o estilo britânico, tinham uma abertura adicional do lado de dentro do tecido, de modo que a pessoa não precisava abrir o casaco para chegar às calças ou aos bolsos do paletó, podendo enfiar a mão para tirar ingressos, carteira, chave, trocados, qualquer coisa.
Naquele momento, andando vagarosamente em direção à casa de Célia Montfort pela noite impregnada de vapores de enxofre, Daniel Blank enfiou a mão no casaco do sobretudo para apalpar-se. Para o transeunte, era um elegante cavalheiro, com as mãos casualmente enfiadas no bolso. Mas, por baixo do sobretudo ...
Certa vez, pouco depois de haver-se separado de Gilda, usara o mesmo sobretudo e passeara por Times Square em uma noite de sábado. Introduzira a mão na abertura, abrira o zíper da calça, e ficara exposto por baixo do frouxo casaco, enquanto caminhava no meio da multidão, olhando para a face dos transeuntes.
Célia Montfort morava em uma casa de pedras cinzentas de cinco andares. A campainha da porta era de um tipo sobre o qual lera, mas nunca vira. Era do tipo de puxar, uma maçaneta de latão que se puxa para fora e se solta. A campainha toca quando se puxa a maçaneta e ela volta ao encaixe. Daniel Blank admirou o polimento e a porta de teca que ela adornava...
. . . Uma porta de teca que foi aberta por um homem surpreendentemente alto, pálido, magro, usando calças listradas e uma lustrosa jaqueta de alpaca. Trazia na lapela uma rosa clara. Daniel sentiu um perfume: não o seu, mas algo mais forte e mais agradável.
– Meu nome é Daniel Blank – disse. – A Srta. Montfort está à minha espera.
– Sim, senhorr – respondeu o homem, abrindo bem a porta. – Eu sou Valenter. Entre, por favor.
A entrada impressionava: chão de mármore e uma bela escadaria subindo para longe. Sobre um esguio pedestal viu um vaso de cristal cheio de crisântemos cor de cereja. Tivera razão: ela gostava de flores de longas hastes.
– Por favorr espere no estúdio. A senorrita Montfort descerá logo.
Tomou-lhe o sobretudo e o casaco e guardou-os em alguma parte. Voltando, o indivíduo alto e magrelo levou-o para uma sala apainelada de carvalho e transbordante de livros encadernados em couro.
– Gostaria de tomar uma bebida, senhorr?
Chamas macias tremulavam na lareira azulejada, tirando reflexos sobre o couro polido do sofá acolchoado. Sobre a cornija da lareira, viu um inesperado modelo, belamente detalhado, de um baleeiro ianque. A chaminé e os utensílios da lareira eram de ferro preto, com cabos de bronze.
– Por favor. Um martíni e vodca com gelo.
Cortinas de brocado pesado. Tapetes. . . de quê? Não orientais. Gregos talvez? Ou turcos? Vasos chineses com flores. Um biombo indiano decorado cora estranhas e inquietantes figuras. Uma batedeira de coquetel de prata da Era da Proibição. O aposento ficara congelado em 1927 ou 1931.
– Azeitona ou uma rodela de limão?
Vestígio de incenso no ar. Teto alto e, entre as vigas escuras, querubins pintados, com covinhas nas nádegas. Portas e molduras das janelas em carvalho. Uma estatueta de bronze de uma ninfa, nua, retesando um arco. A "corda" era um arame retorcido.
– Limão, por favor.
Um espelho de art nouveau na parede coberta de papel. Um pequeno óleo de urna morena nua de meia-idade, segurando o queixo e olhando para os seios pendentes, de bicos escuros. Um recipiente de latão com empoeiradas folhas de rodondendro. Uma pequena mesa marchetada como tabuleiro de xadrez, com as peças desarrumadas e tombadas. E, em uma poltrona de couro preto, com espaldar alto e envolvente, o menino mais lindo que Daniel Blank jamais conhecera.
– Alô.
– Alô. Meu nome é Daniel Blank. Você deve ser Anthony.
– Tony.
– Tony.
– Posso chamá-lo de Dan?
– Claro.
– Podia me emprestar dez dólares, Dan?
Blank, surpreso, olhou-o com maior atenção. O menino havia puxado os joelhos para cima e abraçava-os com a cabeça inclinada para um dos lados.
A beleza do garoto era de tal modo sobrenatural que chegava a apavorar. Olhos azuis-claros inocentes, lábios cinzelados, um ar de juventude e de necessidade de alguma coisa, orelhas bem talhadas, um sorriso que pegava, e cachos dourados e frescos suficientemente longos para emoldurar a face e o pescoço esculpido. E uma aura tão rosada como a que cercava os querubins do teto.
– É terrível, não? – disse ele. – Pedir dez dólares a um estranho, mas, para dizer a verdade...
Blank ficou imediatamente alerta, escutando, e não apenas olhando. Sabia, por experiência própria, que quando alguém dizia "Para dizer a verdade", ou "Eu lhe mentiria?", o indivíduo era mentiroso, trapaceiro, ou ambas as coisas.
– Sabe – disse Tony com um sorriso audacioso – eu vi um alfinete de jade absolutamente maravilhoso. Sei que Célia o adoraria.
– Naturalmente – respondeu Blank. Tirou uma nota de dez dólares da carteira. 0 garoto nenhum movimento fez para apanhá-la. Daniel foi forçado a atravessar a sala para entregá-la.
– Muitíssimo obrigado – disse lânguido o garoto. – Recebo minha mesada no primeiro dia do mês. Eu lhe restituirei o dinheiro.
Ele pagou, sabia Blank, tudo o que jamais pagaria: um estonteante sorriso, de tal beleza e jovem promessa que Daniel ficou aturdido de desejo. O momento foi salvo do desastre pela entrada de Valenter trazendo o martíni, não numa bandeja, mas na mão. Ao tomar o cálice, os dedos de Blank tocaram os de Valenter. A noite começou a girar e a perder o controle.
Ela entrou momentos depois, vestindo um traje de noite de modelo exatamente igual ao de cetim preto que usara quando a conhecera. Esse, porém, era de cor verde-garrafa, escuro e brilhante. No pescoço trazia, em uma corrente de prata oxidada, um pendant com a imagem de um deus-animal. Mexicano, pensou Blank.
– Fui a Samarra encontrar-me com um poeta – disse ela ao cruzar a porta e dirigir-se em passos firmes para ele. – Certa vez, escrevi poesia. Contei-lhe isso? Não. Mas não escrevo mais. Tenho talento, mas não o suficiente. O poeta cego de Samarra é um gênio. Um poema é um romance condensado. Acho que o romancista precisa aumentar o sentido do que escreve em um terço para comunicar tudo o que quer dizer. Compreendeu? O poeta, porém, tão condensado, precisa duplicar ou triplicar o que quer transmitir, na esperança de que o leitor extraia do poema tudo o que ele tem em mente.
Inesperadamente, curvou-se e beijou-o nos lábios, enquanto Valenter e o rapaz olhavam-nos gravemente.
– Como vai? – perguntou.
Valenter trouxe-lhe um cálice de vinho tinto. Ela sentou-se ao lado de Blank no sofá de couro. Valenter atiçou o fogo, colocou outra pequena tora sobre as chamas, e postou-se em seguida atrás da poltrona pequena onde Anthony se enrodilhava qual reluzente sombra.
– Acho que a festa dos Mortons vai ser divertida – opinou ele. – Um bocado de gente. Muito barulho e muita gente. Mas não teremos que ficar lá muito tempo.
– Você já fumou haxixe?
Nervoso, ele olhou para o menino.
– Tentei, certa vez – disse em voz baixa. – Não me produziu sensação alguma. Prefiro álcool.
– Bebe muito?
– Não.
O menino usava calças frouxas de flanela, sapatos esporte brancos de couro, e uma camiseta branca que lhe deixava nus os braços. Moveu-se lentamente, cruzando as pernas, estirando-se, fazendo cara amuada. Célia Montfort virou-se para fitá-lo. Teria passado um sinal entre eles?
– Tony – disse.
Imediatamente, Valenter colocou uma mão terna sobre o ombro do garoto.
– Hora de sua lição, mestre Montfort – disse.
– Oh, pô – respondeu Tony.
Saíram juntos da sala. O garoto parou à porta, virou-se e fez uma solene curvatura na direção de Blank.
– Foi um prazer conhecê-lo, senhor – disse formalmente.
Desapareceu em seguida. Valenter fechou sem ruído a porta.
– Um belo garoto – disse Daniel. – Que escola freqüenta?
Ela não respondeu. Daniel virou-se para fitá-la. Olhando para dentro do cálice de vinho, ela girava-o pela haste entre os longos dedos. O cabelo preto liso caía em volta de sua face, longa, pensativa e determinada.
Pôs subitamente o copo de lado e ergueu-se de chofre. Andou indiferentemente pela sala enquanto ele girava a cabeça para acompanhá-la. Tocou em coisas, levantou-se, e colocou-as de novo em seus lugares. Tinha certeza de que ela estava nua sob o vestido de cetim. O tecido tocava-lhe o corpo e deslocava-se. Prendia-se e sussurrava.
Enquanto caminhava de um lado para outro, ela recomeçou o que parecia ser um repertório aparentemente inesgotável de monólogos. Ele tornou-se consciente de uma representação planejada. Mas não era uma peça: era um bale, igualmente formal e obscuro. Acima de tudo, sentiu a intenção: um motivo e um plano.
– Meus pais são umas criaturas tão tristes – dizia ela. – Vivem na História. Mas isso não é viver em absoluto, é? É um sepultamento. O chiffon de seda de minha mãe, e os calções folgados, amarrados abaixo do joelho, de meu pai. Podiam ser manequins vivos no Instituto de Trajes Típicos. Procuro dignidade e tudo o que encontro é. . . O que é que eu quero? Grandeza, acho. Sim. Pensei nela. Mas será possível ser grande em vida? Aquilo que consideramos grandeza está sempre ligado à derrota e à morte. As peças gregas. Napoleão voltando de Moscou. Lincoln. Dignidade sobre-humana no caso dele. Nobreza, se quiser. Mas sempre termina com a morte. Os vivos, por mais nobres que sejam, nunca conseguem atingir esse estado, não? Mas a morte os completa. O que teria acontecido se John Kennedv tivesse vivido? Ninguém jamais lhe descreveu a vida como uma obra de arte, mas foi. O começo, o meio, e o fim. Grandeza. E a morte a fez assim. Está pronto? Vamos?
– Espero que goste de cozinha francesa – murmurou ele. – Fiz uma reserva.
– Isso não tem importância.
A dança continuou durante o jantar. Ela pediu um sofá de canto. Sentaram-se lado a lado. Comeram e beberam, falando pouco. Certa ocasião, ela apanhou uma fina fatia de vitela macia e enfiou-a na boca. A mão livre dela, porém, ficou no seu colo ou empurrando para trás o longo cabelo. O cetim verde-garrafa do vestido colava-se, com esses movimentos, ao botão dos bicos dos seios. Uma ocasião, enquanto tomavam café e conhaque, ela cruzou as pernas. O vestido subiu: a carne das coxas era perfeitamente branca, macia, luminosa. Ele pensou em saborosas ostras do mar e em solha de Dover.
– Você gosta de ópera? – perguntou ela, à sua brusca maneira.
– Não – respondeu ele honestamente. – Não muito. É tão... tão artificial.
– Exato. Isso mesmo. Artificial. Mas é apenas um utensílio: um frágil cabide de arame, onde penduram as vozes.
Ele não era estúpido e enquanto continuavam sentados na banqueta notou que os movimentos rápidos dela – os toques, as.inclinações, a súbita e inesperada carícia daquele cabelo contra seu rosto – essas coisas todas eram sugestões de diretor, partes de uma representação de balé. Ela fora ensaiada. Não tinha certeza sobre qual seria seu papel, mas queria desempenhá-lo bem.
– As vozes – continuou ela – as poderosas vozes que me dão a impressão de poder sob controle. No caso de alguns cantores, fico com a impressão de que há neles arte e força que não foram explorados. Penso que se realmente se soltassem poderiam romper tímpanos e despedaçar vitrais de janelas. Talvez os melhores entre eles, abandonando toda a reserva, pudessem destruir o mundo. Quebrá-lo em pequenos pedaços e lançá-los rodopiando pelo espaço.
Ele sentiu-se inferiorizado pelos solilóquios e procurou coragem no vinho e no conhaque.
– Por que diabo está você me contando tudo isso? – perguntou.
Ela inclinou-se mais, pressionando um seio, envolvido em cetim, contra o braço dele.
– É a mesma sensação que você me provoca – murmurou ela. – Que você tem uma força e uma determinação que poderiam despedaçar o mundo.
Ele fitou-a, começando a entrever sua intenção. Teve vontade de perguntar, "Por que eu?", mas descobriu, surpreso, que isso não era importante.
A festa dos Mortons coroou-lhes a movimentada noite. Florence e Samuel, vestindo macacões idênticos de veludo vermelho, receberam-nos à porta com risinhos de casamenteiros bem-sucedidos.
– Entrem – exclamou Sam.
– Já houve duas brigas! – riu Flo.
– E uma crise de choro! – riu Sam.
A festa desenrolava-se em certo ritmo frenético. Perdeu Célia na agitação e, nas horas seguintes, conheceu e escutou uma dúzia de desorientados homens e mulheres que deslizavam, chocavam-se e derivavam para longe. Teve uma horrível visão do refugo da água do porto, subindo e descendo, aproximando-se e afastando-se.
Inesperadamente, ela apareceu atrás dele, pôs as mãos sob o seu paletó e cravou as unhas nas suas costas.
– Sabe o que acontece à meia-noite? – murmurou.
– O que é?
– Todos tiram as faces... exatamente como se fossem máscaras. E sabe o que há por baixo?
– O que é?
– As faces. Mais uma vez. E outras.
Deslizou para longe. Estava confuso demais para detê-la. Queria, naquele momento, estar nu em frente a um espelho, certificando-se.
Finalmente, finalmente, ela reapareceu e levou-o. Apertaram as mãos dos donos da casa e saíram arquejantes para o tranqüilo corredor. No elevador, ela caiu-lhe nos braços e mordeu-lhe o lobo da orelha esquerda enquanto ele dizia "Oh" e a música, vinha de onde viesse, tocava "My Old Kentucky Home". Estava ardendo de desejo e consciente de que a vida que levava era perigosa e absurda. Estava balançando na gangorra e nem grampos de segurança eram cravados, nem fora preso na pedra o machado de gelo.
Valenter abriu-lhes a porta. Estava já murcha a rosa na sua lapela. Tinha na face o brilho de uma panela de ferro polida e seus lábios pareciam feridos. Serviu-lhes café preto em frente à lareira. Sentaram-se no sofá de couro e ficaram olhando para as brasas.
– Mais alguma coisa, senorrita Montfort?
Ela sacudiu a cabeça e ele afastou-se. Daniel Blank não ousou olhar para ele. E se o homem piscasse?
Célia saiu da sala e voltou com dois pequenos copos e uma garrafa pela metade de bagaceira.
– O que é isso? – perguntou ele.
– Uma espécie de conhaque – respondeu ela. – Borgonha, acho. Feito do resíduo. Muito forte.
Encheu o copo e, antes de entregá-lo a ele, passou uma língua longa e vermelha pela borda, olhando-o. Ele aceitou o copo e bebericou-o com prazer.
– Sim – inclinou a cabeça, concordando. – Forte.
– Aquelas pessoas hoje à noite – disse ela. – Tão inconseqüentes. A maioria é inteligente, alerta mentalmente, talentosa. Mas não têm oportunidade. De se entregarem, quero dizer. A algo importante e vibrante. Desejam-no mais do que sabem. Entregarem-se. A quê? Ecologia, centros de atendimento diurno de pobres, ou à igualdade racial? Sentem a necessidade de algo mais, e Deus está morto. Daí. . . o ruído e a histeria. Se eles pudessem encontrar.
A voz morreu. Ele ergueu a vista.
– Encontrar o quê? – perguntou.
– Oh – disse ela, com olhos absortos – você sabe.
Ergueu-se do sofá. Quando Daniel se levantou para ir para junto dela, ela inesperadamente aproximou-se, estendeu a mão e, suavemente, baixou a pálpebra inferior do olho direito de Dan. Olhou atentamente para o globo ocular exposto.
– Que foi? – perguntou ele, confuso.
– Você não é inconseqüente – respondeu ela, segurando-lhe a mão e levando-o para os andares superiores. – Em absoluto.
Atordoado pela bebida e pelo espanto, seguiu-a dócil. Subiram a bela escadaria de mármore até o terceiro andar. Aí chegando, passaram por uma espalhafatosa porta de madeira e subiram mais dois lances até uma escada de madeira arruinada, coberta de teias de aranha.
– O que é isto?
– Eu moro aqui – explicou ela, voltando-se subitamente. Estando acima dele na escada, estendeu as mãos, puxou-lhe a cabeça para frente e pressionou-a contra o frio cetim que lhe cobria o ventre e as coxas.
Era um gesto que transcendia à obscenidade e que o levou, trêmulo, a cair de joelhos ali nos degraus empoeirados.
– Descanse um momento – disse ela.
– Eu sou montanhista – respondeu ele, e a troca murmurada de palavras pareceu-lhe tão sem sentido que soltou uma curta e seca gargalhada, que ecoou nas paredes surdas.
– Que é isso? – perguntou ele novamente e, desta vez, sabia.
O quarto era pequeno, de ripas de madeira sem pintura, mal acabado e cortado por arranhões brancos, como se algum animal frenético houvesse procurado escapar dali usando as garras. Havia um único catre de metal, com tiras de latão cruzadas. Sobre o estrado fora lançado um colchão delgado, com o forro cinzento sujo e queimado.
Havia também um banco de cozinha, que fora pintado umas cinqüenta vezes e que estava, naquela ocasião, tão cheio de mossas e cortes que uma dúzia de cores apareciam em manchas irregulares. Uma lâmpada, amarela e fraca, pendia de um fio empoeirado.
O assoalho era coberto por um linóleo tão gasto que o motivo de decoração havia desaparecido e o forro aparecia por baixo. O espelho sem moldura do lado de dentro da porta era embaçado e apresentava rachaduras. O cinzeiro de ferro no chão, junto ao catre, transbordava de pontas frias de cigarro. O quarto tresandava a bolor, mofo e amor velho.
– Belo – disse Daniel Blank espantado, olhando em volta. – É um palco de teatro. A qualquer momento uma parede se deslocará e veremos a platéia, aplaudindo polidamente. O que devo dizer?
– Tire a peruca.
Ele tirou, ali junto ao catre, segurando tolamente nas mãos o cabelo, como se oferecesse a ela um pequeno animal morto.
Ela aproximou-se e acariciou-lhe com ambas as mãos a cabeça pelada.
– Gosta deste quarto? – perguntou.
– Bem... não é exatamente minha idéia de um ninho de amor.
– Oh, é mais do que isso. Muito mais. Deite-se.
Cauteloso, com alguma repugnância, sentou-se no colchão manchado. Suavemente, ela empurrou-o para trás. Ele olhou fixamente para a lâmpada descoberta e pareceu-lhe que havia um nimbo em volta dela, um brilho composto de milhões de brilhantes partículas que vibravam, contraíam-se e expandiam-se, até que encheram o quarto.
E então, quase antes mesmo que ele soubesse que havia iniciado, ela começou a fazer-lhe coisas. Não pôde acreditar que essa mulher inteligente, reservada, pudesse estar fazendo aquilo. Sentiu um choque de medo, e protestou um pouco em voz baixa. A voz dela, porém, era macia, tranqüilizante. Após algum tempo, simplesmente ficou ali de olhos fechados, e deixou-a fazer o que queria.
– Grite, se quiser – disse ela. – Ninguém ouvirá.
Ele, porém, cerrou os dentes e pensou que iria morrer de prazer.
Abriu os olhos e viu-a nua a seu lado, o corpo longo e branco tão flácido como filé de peixe. Começou a despi-lo com dedos práticos. .. abrindo botões. . . baixando o zíper. . . tirando peças, suavemente, tão suavemente que ele mal precisou mover-se...
Em seguida, passou a usá-lo, e ele começou a compreender qual poderia ser seu destino. O medo dissolveu-se numa espécie de desmaio sexual que nunca experimentara antes, enquanto as fortes mãos de Célia puxavam-no e a sua língua seca lhe lixava a pele febril.
– Logo – prometeu ela. – Logo.
Uma vez sentiu uma dor tão aguda e doce que pensou que ela o havia assassinado. Em outra ocasião, ouviu-a rindo: um som grosso e borbulhante. Em dado momento, envolveu-o com o cabelo macio e preto em forma de pequeno laço e puxou-o, bem apertado.
Ela continuou, a vontade dele começou a dissolver-se, um grande peso foi erguido e ele sentiu que estava disposto a pagar qualquer preço. Era uma escalada: missão, perigo, sublimidade. Finalmente, o cume.
Mais tarde, examinando-lhe o corpo, notou, pela primeira vez, que ela não raspava as axilas. Descobriu, oculta entre os cabelos úmidos e perfumados do braço esquerdo, uma pequena tatuagem de curioso desenho.
Ainda mais tarde, cochilando nos braços suados um do outro, com a luz apagada, semi-acordado, notou curioso uma presença no quarto. A porta do corredor estava parcialmente aberta. Através de olhos pegajosos viu alguém em silêncio, de pé ao fundo do catre, olhando fixamente para seus corpos entrelaçados.
À luz mortiça, teve a impressão de uma figura despida, ou de uma pessoa vestida de branco. Ergueu a cabeça e emitiu um som ciciante. A aparição retirou-se. A porta fechou-se suavemente. Ficou sozinho com ela naquele horrendo quarto.

5

Certa noite, deitado nu e sozinho entre seus próprios lençóis de cetim, perguntou-se se este mundo não poderia ser o sonho de um outro mundo. Era concebível: em alguma parte, em um outro planeta povoado por seres de inteligência superior, eles compartilhavam de um sonho comunal como um tipo de brinquedo. E a Terra era o sonho deles, cheio de fantasias, de coisas grotescas, do mal – enfim, de todas as irracionalidades que rejeitavam na vida diária, mas que procuravam em sonhos. Para se divertirem.
Neste caso, somos todos de fumaça e vagueamos ao léu. Somos criaturas das visões de meia-noite de um outro mundo, levando uma vida tão ilógica como qualquer sonho, e com a mesma realidade. Existimos apenas no sono profundo de um estranho. Nossa morte é o seu despertar, sorrindo da história louca e complicada concebida no sono.
Parecia-lhe que desde que conhecera Célia Montfort sua vida adquirira as características de sonho, a característica vaporosa de um sonho cortado por relâmpagos violentos e cegantes. Sua vida se transformara em todas as variáveis e, pouco antes de adormecer e cair no seu próprio e desordenado sonho, perguntou-se se AMROK II, devidamente programado, não poderia fornecer a solução, impressa em um segundo, algo de suma importância.
– Não, não – disse Célia Montfort muito séria, inclinando-se para a luz da vela. – O mal não é simplesmente a ausência do bem. Não é apenas omissão, é uma comissão, uma ação. Não se pode chamar um homem de mau simplesmente porque ele deixa o povo passar fome e canaliza os escassos recursos do país para a indústria pesada. Talvez ele tenha razão, talvez não. Essas coisas não me interessam. Mas acho que você erra em chamá-lo de mau. O mal é realmente uma espécie de religião. Acho que é simplesmente um tolo bem-intencionado. Mau, porém, ele não é. O mal implica inteligência e intenção deliberada. Concorda, Daniel?
Voltou-se bruscamente para ele. Sua mão tremeu e derramou algumas gotas de vinho tinto. Caíram sobre a toalha e espalharam-se como coágulos de sangue espesso.
– Bem... – disse ele lentamente.
Ela oferecia um jantar. Blank, os Mortons e Anthony Montfort sentavam-se em torno de uma enorme mesa de jantar, iluminada a velas, que poderia ter facilmente acomodado duas vezes o número de convivas na fria e cavernosa sala de jantar. A refeição, comum e sem surpresas, fora servida por Valenter e uma mulher gorda, de meia-idade, dotada de um bigode bem visível.
Os pratos estavam sendo tirados, terminavam de beber a garrafa empoeirada de Beaujolais, e a conversação havia-se desviado para a visita que, naquele momento, o ditador de uma nação africana, indivíduo que usava colete branco com botões brancos e um coldre sob a axila, fazia a Washington.
– Não, Samuel – Célia sacudiu a cabeça – ele não é um homem mau. Você usa essa palavra sem precisão alguma. Ele é simplesmente um desastrado. Ganancioso, talvez. Ou porque quer vingar-se dos inimigos. Mas cobiça e vingança são motivos sórdidos. O verdadeiro mal reveste-se de uma espécie de nobreza, como todas as religiões. A fé implica rendição total, uma renúncia à razão.
– Quem foi mau? – perguntou Florence Morton.
– Hitler? – indagou Samuel Morton.
Célia olhou lentamente em volta da mesa.
– Vocês não compreendem – disse baixinho. – Eu não estou falando do mal motivado pela ambição. Estou falando do mal pelo amor ao mal. Não, Hitler não. Estou-me referindo aos santos do mal – homens e mulheres que entrevêem uma visão e a seguem. Da mesma forma que os santos cristãos tiveram uma visão do bem e a seguiram. Não acredito que tenha havido santos modernos, do bem ou do mal. Mas a possibilidade existe. Em todos nós.
– Compreendo – disse em voz alta Anthony Montfort, e todos se viraram surpresos para olhá-lo. – Fazer o mal porque é divertido – disse o menino.
– Sim, Tony – respondeu a irmã suavemente, sorrindo-lhe. – Porque é divertido. Vamos tomar café no estúdio. Há uma lareira lá.
No quarto de cima, a lâmpada nua queimava no ar qual lua empoeirada. Saturava o cômodo um cheiro de maré baixa e de coisas que rastejam. Certa vez, ouvindo uma risada baixa, Daniel Blank perguntou-se se era Tony quem estava rindo, e por quê.
Haviam-se despido e olhavam-se através dos óculos escuros que ela conseguira. Ele olhava-a fixamente. .. mas faria ela o mesmo? Não podia saber. Mas olhos cegos olhavam para seus olhos cegos, discos pretos contra pele branca. Sentiu novamente a trêmula felicidade. Era o mistério.
A boca de Célia abriu-se lentamente. Esticou a língua, que pendeu flácida entre os lábios secos. Estariam fechados os olhos dela? Estaria ela olhando para a parede? Fitando-a com mais atenção, viu por trás do vidro escuro um brilho distante. Uma das mãos dela insinuou-se entre as coxas e uma pequena bolha de cuspe apareceu no canto de sua boca. Ouviu-lhe a respiração.
Aproximou-se. Ela afastou-se e começou a murmurar alguma coisa. Compreendeu parte do que ela dizia, mas, a maior parte era enigmática.
– O que é? O que é? – queria gritar, mas não o fez porque temia que fosse menos do que esperava. Ficou, portanto, em silêncio, ouvindo-lhe o murmúrio, sentindo as pontas dos dedos dela lhe beliscarem a pele sensível.
As vendas pretas nos olhos de Célia transformaram-se em buracos, poços que desciam pela carne, ossos, catre, assoalhos,edifício, terra e, finalmente, mergulhavam em longínquos e sombrios recessos. Desceu flutuando por esses corredores vazios, puxado pelas mãos nuas da companheira.
O murmúrio dela não cessou sequer por um instante. Descreveu círculos e círculos, movendo-se em espiral, mas não disse nunca o que queria. Ele ficou em dúvida se havia uma palavra para aquilo, pois, nesse caso, poderia acreditar que aquilo existia. Se não tivesse nome, nenhuma palavra para descrevê-lo, então era uma realidade absoluta, além de sua capacidade de apreensão, tão infinita como as trevas que percorria em alta velocidade, puxado pelas mãos ávidas da amiga.
– Descobrimos tudo a respeito dela! – riu Florence Morton.
– Bem... não tudo, mas alguma coisa! – riu Samuel Morton.
Haviam aparecido à porta de Daniel, tarde da noite, usando ambos blue-jeans de camurça e jaquetas de babados. Era difícil acreditar que ali estavam marido e mulher; eram gêmeos assexuados, com seus corpos ossudos, fisionomias de aves, e capacetes de cabelo oleado.
Convidou-os a entrar e a tomar uma bebida. Os Mortons sentaram-se juntos no sofá e deram-se as mãos.
– Que foi que vocês descobriram? – perguntou, curioso.
– Nós sabemos de tudo!
– Nossos espiões estão em toda parte! – acrescentou Samuel.
Daniel Blank sorriu. Era quase verdade.
–Tem um bocado de dinheiro – disse Flo. – Do avô, pelo lado da mãe. Petróleo e aço. Um bocado de tutu. O pai dela, porém, entrou só com a família. Não herdou grande coisa, salvo boa aparência. Dizem que foi o homem mais bonito de sua geração na América. Em Princeton, chamavam-no de "Beau Montfort". Ele, porém, nunca se formou. Foi expulso por ter surrado... alguém. Quem foi, Samuel?
– A esposa do diretor ou uma empregada da cozinha... alguém desse tipo. De qualquer modo, isso aconteceu no fim da década de 20. Em seguida, casou com todo aquele petróleo e aço. Deu uma generosa contribuição para o fundo da campanha de Roosevelt e pensou que podia ser nomeado embaixador em Londres, Paris, ou Roma. FDR, porém, tinha bom senso. Nomeou-o "representante itinerante" e afastou-o de Washington. Foi uma medida inteligente. Os Montfort adoraram-na. Bebiam e provocavam tempestades. O motivo de conversação na Europa. Célia nasceu em Lausanne. Mas as coisas começaram a azedar. Os pais meteram-se com os nazistas e o papai Hitler. Naturalmente, Roosevelt chutou-o. Em seguida, pelo que pudemos saber, simplesmente passaram a vagabundear em grande estilo.
– Mas o que me diz de Célia? – perguntou Daniel. – Tony é realmente irmão dela?
Eles fitaram-no, atônitos:
– Você está em dúvida? – perguntou Flo.
– Você desconfia? – perguntou Sam.
– Não conseguimos apurar a coisa direito – reconheceu Flo. – Ninguém sabe, realmente.
– Todo mundo dá palpites – sugeriu Sam. – Mas é apenas bisbilhotice. Ninguém sabe.
– Mas Tony podia ser filho dela – aventou Flo, inclinando a cabeça.
– As idades combinam – concordou Sam, inclinando também a cabeça. – Mas ela nunca se casou. Isso todo mundo sabe.
– Há boatos.
– É uma mulher estranha.
– E quem é Valenter?
– Qual a relação dele com ela?
– E com Tony?
– E para onde vai ela quando desaparece?
– E volta machucada? O que anda fazendo?
– Por que os pais não a querem na Europa?
– O que há com ela?
– Quem é ela?
– Não me importo – sussurrou Daniel Blank. – Amo-a.
Trabalhou até tarde no escritório na Noite de Todos os Santos. Comeu uma salada e tomou café enviado pela cantina. Enquanto comia, relia o esboço final do relatório que deveria apresentar à Junta de Produção no dia seguinte: o plano segundo o qual AMROK II determinaria a proporção entre as páginas de anúncios e as de texto em todas as revistas publicadas pela Javis-Bircham.
O relatório pareceu-lhe moderado, lógico, e convincente. Mas reconheceu que lhe faltava entusiasmo. Era tão estimulante como uma apólice de seguro, tão inspirador como um resumo da lei das sociedades anônimas. Empurrou-o para o outro lado da mesa e ficou olhando-o. Não. Era bom. Ele é que se tornara indiferente.
Sabia também o motivo da indiferença: Célia Montfort. Comparado com ela, com suas relações, o trabalho na Javis-Bircham era uma partida jogada por um garoto crescido, nem pior nem melhor do que Xadrez Chinês e Monopólio. Dava a impressão de trabalho, seguia as regras, mas o emprego não o absorvia.
Ficou pensativo, perguntando-se até onde poderia ela levá-lo. Finalmente, ergueu-se, apanhou a capa e o chapéu. Deixou o esboço sobre a mesa, juntamente com os restos do jantar e do café frio no copo plástico. A caminho do elevador executivo, relanceou os olhos pela Sala do Computador. A turma da noite, vestida de branco, deslizava lentamente com sapatos de crepe-sola sobre o chão de cortiça, passando como que por um sonho estéril.
A chuva caiu em catadupas, impelida por um vento cortante. Não havia táxis à vista. Levantou a gola da capa, e puxou para baixo a aba do chapéu. Mergulhou na direção da Eighth Avenue. Se não encontrasse um táxi, tomaria um ônibus circular, em seguida mudaria para um ônibus que fosse em direção à parte residencial da cidade.
Brilhavam os anúncios de néon. Lojas de artigos pornográficos ofereciam massagens e pintura corporal. De uma loja de discos, aproveitando a estação, saía como novidade uma gravação de um cão ganindo "Adeste Fidelis". Uma prostituta com o rosto marcado de acne, murmurou, "Querendo?", no momento em que passou. Conhecia bem essa zona perigosa e não prestou atenção. Nada tinha a ver com ele.
Ao aproximar-se da estação do metrô, viu um sorridente bando de mocinhas trajando vestidos de noite vermelhos, amarelos e azuis, com os casacos voando abertos e os longos cabelos soprados pelo vento. Blank olhou-as atentamente, perguntando-se por que tais beldades se encontravam numa rua tão horrenda como aquela.
Compreendeu, então. Eram todos meninos ou rapazes a caminho das festividades do Dia de Todos os Santos, usando cetim e rendas, sapatos altos e perucas esvoaçantes, lábios pintados e olhos sombreados, pernas raspadas enfiadas em meias de nylon trançado, peitos acolchoados, mãos agitadas e risos roucos.
Dedos macios pousaram em seu braço. Uma voz zombeteira disse:
– Dan!
Era Anthony Montfort olhando para trás e lançando uma onda de cabelos dourados, que brilharam como chamas na chuva. Seguindo-o, a alguns passos de distância, o magrelo Valenter, envolvido em uma capa preta.
Daniel Blank parou e observou a desvairada procissão esvair-se à medida que subira a avenida. Ouviu gritos e berros roucos. Desapareceram e ele ficou olhando fixamente para a rua.
Ela desapareceu durante um dia, dois, uma semana. Ou, se realmente não viajou, não conseguiu falar-lhe. Ouvia apenas o "residência da senorrita Montfort", e a informação de que ela se encontrava ausente.
Percebeu que as inexplicáveis ausências invariavelmente ocorriam após as cerimônias eróticas no quarto do só tão. No dia seguinte, arrasado de amor e de recordação dos prazeres, telefonava e descobria que ela viajara, ou não queria falar-lhe.
Pensou que ela o estava manipulando, dançando até o fim aquele balé cheio de intenções. Aproximava-se dele, tocava-o, e retirava-se. Ele seguia-a, ela ria, ele tocava-a, ela acariciava-o, ele estendia os braços, e ela recuava, acenando com dedos convidativos. A dança inflamava-o.
Certa ocasião, após uma ausência de quatro dias, encontrou-a cansada, esgotada, com braços e pernas cobertos de manchas amarelas de contusões e círculos púrpura em volta dos olhos. Não dizia onde estivera ou o que fizera. Ficava mole, apática, e insistia em que ele a insultasse. Enfurecido, insultava-a e ela agradecia. Seria isso, também, parte do plano?
Ela era um feixe de coisas estranhas. Geralmente, apresentava-se bem arrumada, banhada, perfumada, o longo cabelo escovado até brilhar, as unhas aparadas e pintadas. Certa noite, porém, viera visitá-lo parecendo uma megera. Não havia tomado banho, descobriu, e bancou a prostituta desalinhada, olhando-o com desprezo e usando palavrões. Não conseguiu resistir-lhe.
Brincava de estranhos jogos. Certa noite, vestiu uma jardineira de criança, sentou-se no seu colo e chamou-o de "Papai". Em outra ocasião – como havia ela desconfiado daquilo? – trouxe uma corrente dourada e insistiu em que ele a colocasse na esguia cintura. Mordeu-o. Pensou que ela estava louca de amor por ele, mas quando estendeu os braços, ela fugiu.
Sabia o que estava acontecendo, mas não se importava. Somente ela tinha importância. Recitava-lhe um poema em uma língua que ele não podia identificar, e, em seguida, lambia-lhe os olhos. Certa noite, tentou beijá-la – um beijo inocente no rosto, um beijo de boas-vindas – e ela atingiu-o no queixo com o punho fechado. No momento seguinte, de joelhos, mexia-lhe nas calças.
E os monólogos jamais terminavam. Podia conservar-se calada durante horas e, inesperadamente, falar de pecado e amor, do mal e de Deus, ou por que o sexo devia transcender o sexual. Estaria ela treinando-o? Pensou que sim, e estudou.
Desapareceu durante quase uma semana. Levou-a a jantar quando voltou, mas não foi uma noite agradável. Ela permaneceu silenciosa e distante. Somente uma vez fitou-o diretamente. Em seguida, baixou a vista e, com o dedo médio da mão direita, tocou, acariciou e alisou de leve a toalha branca.
Levou-o imediatamente para casa. Ele seguiu-a, obediente, pela escada coberta de teias de aranha. No quarto do sótão, nua sob a luz amarela, mostrou-lhe as máscaras africanas que comprara para ambos.
E disse-lhe o que queria que ele fizesse.
Escalou centímetro por centímetro a chaminé da Agulha do Diabo. Sentiu o frio da pedra contra os ombros, as mãos enluvadas e as pesadas botas. Estava escuro dentro da fenda. O frio úmido cheirava a morte.
Lentamente e com cuidado, subiu para o topo plano. Houvera pequenas quedas de neve no dia anterior e esperara encontrar gelo. Estava ali, em pequenos trechos. Após ter puxado a mochila, usou o machado para lascá-lo e lançar os pedaços pela borda. Pôde, então, pôr-se de pé sobre as solas ranhuradas e olhar interrogativamente em volta.
As nuvens baixas sugeriam mais neve ao oeste. Nuvens sujas espumavam ao sol; o vento teimoso açoitava-o. Esta, sabia, seria a última escalada até a primavera. O parque fechava no Dia de Ação de Graças. Não havia pistas para esqui e, no inverno, as rochas tornavam-se perigosas demais.
Sentou-se sobre a pedra, comeu um sanduíche de cebola e bebeu uma xícara de café, que pareceu gelar no momento em que o vertia. Havia trazido uma pequena garrafa de conhaque, e tomou pequenos goles. O calor espalhou-se pelo seu corpo como sangue novo, e pensou em Célia.
Ela circulou por ele como uma injeção de sangue novo, também; um degelo que conhecia no coração, nas entranhas, nas virilhas. Derreteu-o, e não apenas a carne. Sentia-lhe o cio em todos os pensamentos durante o dia e nos confusos sonhos durante a noite. O amor por ela havia-o tornado consciente, sensível, de um mundo que existia para os demais, mas para o qual nunca havia relanceado os olhos.
Fora filho único, criado em uma grande casa, onde abundavam o cheiro de desinfetantes e o grande sorriso da mãe. O pai era moderadamente rico, tendo herdado de uma tia. Trabalhava em um banco. A mãe bebia e colecionava copos Lalique. Isso acontecera em Indiana.
Era uma casa silenciosa e, anos depois, quando tentava recordar-se dela, tinha uma absurda lembrança do local como sendo toda azulejada: paredes, assoalhos, tetos recobertos de azulejos brancos e esmalte sobre aço inoxidável, exatamente como um reluzente túnel de metrô, que seguia para sempre e para parte alguma. Talvez fosse simplesmente a recordação de um sonho.
Sempre fora solitário. A mãe e o pai nunca o haviam beijado nos lábios. Limitavam-se a oferecer o rosto. Azulejo branco. A recordação mais feliz de sua infância era do dia em que a empregada negra lhe dera de presente de aniversário uma caixa para guardar sua coleção de rochas. O marido dela a fizera com um velho caixote de laranjas, lixando cuidadosamente a madeira áspera e forrando-a com um pano preto lustroso. Era bela, justamente o que ele queria. Naquele ano, a mãe deu-lhe lenços e roupas de baixo e, o pai, uma caderneta de poupança.
Fora um solitário na faculdade, também. No primeiro ano, porém, perdeu a virgindade no único prostíbulo da cidade. Nos últimos dois anos de faculdade tivera um satisfatório caso com uma moça judia de Boston. Era feia, mas possuía olhos desvairados e um corpo que parecia não ter fim. Tudo o que ela queria era fazer amor. Para ele, não havia problema.
Achou um pedaço de calcedônia e a poliu. Não era uma pedra preciosa, mas julgava-a bonita. A moça judia soltou uma gargalhada quando lhe deu a pedra de presente no dia da formatura.
– Goy sacana – disse.
O presente de formatura dos pais foi um verão na Europa, uma grande excursão por uma dúzia de países, com tempo suficiente para escaladas na Suíça e visitação a sítios arqueológicos no sul da França. Esperava o avião em Nova York, numa cama de hotel com a judia, que voara de Boston para uma última farra, quando o advogado telefonou contando que os pais, voltando para casa de automóvel após a formatura, derraparam para fora da estrada e, presos às ferragens, haviam morrido queimados.
Daniel ficou calado, pensando, durante menos de um minuto. Em seguida, disse ao advogado para vender a casa, resolver a questão da herança, e sepultar os pais. Voltaria para casa após a viagem à Europa. A moça de Boston ouviu-o dizer tudo isso ao telefone. Ao desligar, viu-a vestida e a caminho da porta, levando a bolsa Louis Vuitton. Nunca mais a viu. Mas o verão foi maravilhoso.
Ao voltar à cidade natal, em fins de agosto, ninguém queria falar-lhe, com exceção do advogado – e o mínimo possível. Daniel Blank não podia se importar menos. Foi de avião para Nova York, abriu uma conta bancária com o dinheiro da herança, voou de novo para Bloomington, e conseguiu ser finalmente aceito na Universidade de Indiana, onde pensava em conquistar um M. S., com ênfase em Geologia e Arqueologia. No segundo ano, conheceu Gilda, a mulher com quem se casou mais tarde.
Dois meses antes de receber o diploma chegou à conclusão de que aquilo tudo era uma boa merda: não queria passar o resto da vida cavando com uma pá. Deu a Gilda a melhor pedra de sua coleção (um belo pedaço de jade), doou as pedras restantes à Universidade, e tomou um avião para Nova York. Durante seis meses desempenhou em Manhattan o papel de um solteiro modestamente endinheirado. A maior parte do dinheiro acabou, mas não vendera ainda qualquer ação ou título. Conseguiu um emprego sem expressão no departamento de circulação de uma revista de âmbito nacional. Descobriu, surpreso, que era bom na coisa. E, também, que sua ambição não era prejudicada pela consciência. Gilda foi para Nova York, e casaram-se.
Não era burro. Sabia que as emoções reprimidas da infância e juventude haviam-no embotado. E que aquela casa que cheirava a gim. . . aqueles beijos na face. . . os copos Lalique. .. Outras pessoas se apaixonavam e choravam; ele colecionava pedras e ignorava o enterro dos pais.
O que Célia Montfort fizera por ele, concluiu, fora trazer à tona o que sempre existira nele, mas que nunca fora revelado. Naquele instante, podia sentir profundamente e reagir a ela. Podia amá-la. Podia sacrificar-se por ela. Era paixão, tão quente como um conhaque em uma desolada tarde de novembro. Era fogo nas veias, uma percepção intensificada, uma necessidade multiplicada por uma louca esperança e um apavorante medo. Procurava, obedecendo ao mesmo instinto que o havia levado a desfazer-se da coleção de rochas, aquelas lembranças de uma história morta.
Iniciou a descida pensando ainda no amor por Célia, nua e mascarada no quarto do sótão, e na rapidez com que ela aprendera a deslizar a mão pelo bolso aberto do sobretudo e acariciá-lo enquanto passeavam pelas ruas.
Descendo, moveu uma bota com rapidez grande demais. O salto atingiu a ponta da outra bota, colocada fortemente contra o paredão oposto da chaminé. Em seguida, ambas as pernas se soltaram. Durante um longomo mento que lhe revolveu o estômago, ficou suspenso apenas pela pressão dos braços, preso pelo ombros e pelas palmas das mãos que pressionavam os paredões opostos. Obrigou-se a tomar uma profunda respiração, de olhos fechados nas frias trevas. Recusou-se a pensar numa queda rápida contra as pedras embaixo.
Lentamente, sorrindo, ergueu um joelho e plantou a sola do pé cuidadosamente na parede fronteira. Os cotovelos tremiam com a tensão. Ergueu a outra bota, colocou-a em posição e fez força. Em seguida, soltou a pressão dos ombros, braços, punhos e mãos.
Olhou para a nesga de céu escuro que aparecia sobre o buraco preto onde se encontrava e riu, deliciado. Desceria em segurança. Podia realizar qualquer coisa. Possuía força para resistir ao bom senso.


PARTE 2

1

O Capitão Edward X. Delaney, titular da 251ª Delegacia do Departamento de Polícia de Nova York, vestindo traje de passeio, empurrou a porta do consultório médico, tirou o chapéu de feltro (duro como pedra), e deu o nome à enfermeira.
Sentou-se solidamente numa poltrona, lançou rápido os olhos em volta e em seguida baixou-os para o chapéu, equilibrado precisamente sobre os joelhos. Era o "Jogo de Observação", originariamente um dever, mas, naquele momento, uma diversão que apreciava havia quase trinta anos, desde que se tornara guarda. Se, por qualquer razão, fosse chamado a descrever os pacientes na sala de espera...
"Esquerda: homem, negro, mais ou menos 35 anos, aproximadamente um metro e setenta e cinco, setenta e dois quilos. Carapinha preta cortada curta, sem divisão. Vestia jaqueta esporte quadriculada, calça esporte marrom-clara, sapatos esporte. Gravata enrolada, mas sem laço. Anel pesado na mão direita. Pequena cicatriz branca no pescoço. Fumava cigarro de ponta de cortiça, seguro entre o polegar e o indicador da mão esquerda."
"Centro: mulher, branca, mais ou menos sessenta ou sessenta e cinco anos; baixa, gorda, tipo maternal. Tremor incontrolável na mão direita. Vestia casaco preto, sujo; meias elásticas, buraco no joelho esquerdo; chapéu de modelo antigo, com uma única flor de pano. O cabelo ruivo escuro pode ser peruca. Aproximadamente, um metro e sessenta e cinco, sessenta e três quilos."
"Direita: homem, branco, mais ou menos cinqüenta anos, um metro e oitenta e cinco. Extremamente magro e emaciado. Colarinho frouxo e paletó denunciando perda recente de peso. Faces encovadas. Nervoso. Olho direito talvez seja de vidro. Dedos manchados de nicotina indicam fumante inveterado. Morde o lábio inferior. Pestaneja com freqüência."
Ergueu os olhos, examinando-os novamente. Quase. O anel do negro era usado na mão esquerda. O cabelo da velha (ou peruca) era mais castanho do que ruivo. O homem magro não era tão alto quanto calculara. Mas o Capitão Delaney poderia fornecer uma descrição razoavelmente exata e reconhecer esses estranhos em uma fila para identificação na Polícia ou perante o juiz, se necessário
Ele não era, reconhecia, tão preciso como certas pessoas no julgamento de características físicas. Havia, por exemplo, um detetive de segunda classe, da 251ª Delegacia, que podia lançar um olhar de relance a uma pessoa durante segundos e calcular-lhe a altura com uma margem de um centímetro, e o peso, com uma diferença de dois quilos. Mas isso era um dom especial.
O Capitão Delaney tinha também olhos argutos. Olhos que se dirigiam para a gravata passada, mas não atada do negro, a mão da velha, e o pestanejar contínuo do magrelo. Pequenas coisas. Coisas significativas.
Observava e recordava-se de hábitos, gostos, a maneira como um indivíduo se vestia, movia-se, careteava, andava, falava, acendia um cigarro ou cuspia. Mais importante, o Capitão Delaney – o policial – sentia interesse pelo que o homem fazia quando estava a sós, ou pensava que estava. Ele se masturbaria, enfiaria o dedo no nariz, escutaria discos de Gilbert & Sullivan, examinaria fotografias pornográficas, resolveria problemas de xadrez? Ou leria Nietzsche?
Houve um caso e Delaney lembrava-se bem. Servia como detetive na delegacia de Chelsea quando acontecera – três mocinhas violentadas e assassinadas em um período de dezoito meses, todas nos telhados de casas de cômodos. A Polícia pensou haver identificado o criminoso. Seguiu-lhe cuidadosamente os movimentos diários. Prendeu-o para interrogatório e nada conseguiu. Em seguida estabeleceu uma vigilância severa do suspeito. O detetive Delaney observava-o com binóculo de um apartamento em frente ao quintal da casa do suspeito. Observou o indivíduo, que ninguém jamais vira na igreja, o homem que pensava encontrar-se sozinho, longe das vistas de todos, ajoelhar-se todas as noites e rezar ante a reprodução da imagem da face de Jesus Cristo – uma dessas gravuras monstruosas em que os olhos parecem abrir-se, fechar-se ou piscar, dependendo do ângulo.
Prenderam-no novamente, em vista disso. Naquela ocasião, por insistência de Delaney, chamaram um padre para conversar com o suspeito. Dentro de uma hora a Polícia havia obtido uma confissão completa. Bem. . . era isso o que aquele homem fazia quando pensava que se encontrava a sós, sem ser observado.
Era para a contração espástica e o tique incontrolável que o Capitão Delaney tinha um olho vigilante. Queria saber que músicas o suspeito assobiava, que comidas comia, e como era decorada sua casa. Era casado, solteiro, três vezes casado? Batia no cachorro ou na esposa? Todos esses detalhes revelavam fatos. E, naturalmente, o que ele fazia quando se encontrava a sós.
As "grandes coisas", dizia o Capitão Delaney aos seus subordinados – coisas tais como o emprego, a religião, a política, a maneira como o indivíduo conversa em coquetéis – são a fachada que ele cria para manter à distância um mundo hostil. As coisas vitais permanecem ocultas. O dever do policial, quando necessário, é espiar em volta da fachada e procurar descobrir as ânsias secretas e os atos compulsivos.
– O médico o atenderá agora – avisou a recepcionista.
Delaney inclinou a cabeça, agarrou o chapéu e entrou no consultório. Ignorou os olhares hostis dos outros pacientes, que haviam obviamente estado à espera há mais tempo do que ele.
O Dr. Louis Bernardi levantou-se da escrivaninha, estendendo a mão gorda, coberta de anéis.
– Capitão, é sempre um prazer.
– Doutor – respondeu Delaney – é um prazer vê-lo novamente. O senhor está com excelente aparência.
Bernardi acariciou o colete de flanela cinza sobre o estômago protuberante, a lutar contra os enferrujados botões de prata que, Bárbara Delaney contara ao marido, o médico dissera que eram antigas moedas romanas.
– São os pratos de minha mulher – replicou Bernardi, sorrindo e encolhendo os ombros. – O que é que se pode fazer? Sente-se, sente-se. A Sra. Delaney está vestindo-se. Sairá logo. Mas teremos tempo para uma pequena prosa.
Uma pequena prosa? Delaney supunha que os homens conversavam ou discutiam. Aquela "prosa" era típica do Bernardi. Era o médico de sua esposa, e o fora durante trinta anos. Havia levado ao fim duas gestações bem-sucedidas, tratado de uma séria crise de hepatite, e recomendado e lhe acompanhado a recuperação após uma histerectomia, dois meses antes.
Era um homem arredondado, irrepreensivelmente barbeado, macio e, se não untuoso, pelo menos escorregadio. O seu terno de seda preta brilhava e os sapatos emitiam um brilho baço. Não estava perfumado, mas exsudava um odor de auto-satisfação.
Os olhos contradiziam tudo isso. Eram duros e brilhantes. Pareciam astutos pedacinhos de quartzo. O olhar nunca se desviava. Aquele olhar mudo podia levar uma enfermeira às lágrimas.
Delaney antipatizava com ele. Não duvidava, nem por um momento, da competência profissional do Dr. Bernardi. Mas desconfiava da gordura bem disfarçada pelos ternos, do sorriso escondido, dos longos fios de cabelo colados de um lado a outro da cabeça quase calva. Irritava-o, especialmente, o bigode do médico: uma linha fina e preta, cuidadosamente aparada, impressa sobre o lábio superior, como se traçada com caneta hidrográfica.
O capitão sabia que Bernardi o achava engraçado. Mas não se incomodava. Sabia que certas pessoas achavam graça nele: os superiores no Departamento, seus colegas, os policiais uniformizados que comandava. Jornalistas. Investigadores. Doutores em Sociologia e Patologia Criminal. Divertia todos eles. Sua esposa e filhos. Sabia. Mas, certa ocasião, o Dr. Bernardi nenhum esforço fizera para ocultar o divertimento. Delaney não podia perdoá-lo por isso.
– Espero que tenha boas notícias para mim, doutor.
Bernardi estendeu as mãos num gesto vazio, do cameleiro descoberto vendendo um camelo herniado.
– Lamentavelmente, não tenho. Capitão, sua esposa não reagiu aos antibióticos. Como eu disse a ela, a minha primeira impressão, instintiva, foi que havia uma infecção de pequena importância. Persistente e de alguma duração. Isso explicaria a febre.
– Que tipo de infecção?
Mais uma vez, o gesto: mãos bem abertas e erguidas, com as palmas para fora.
– Isso, não sei. Os exames nada indicam. Coisa alguma há no raios-X. Nenhum tumor, tanto quanto posso saber. Mas ainda assim, aparentemente, uma infecção. O que acha disso?
– Não gosto – respondeu Delaney.
– Nem eu – inclinou a cabeça. – Em primeiro lugar, sua esposa está doente. Isto é o mais importante. Em segundo, o caso dela constitui uma derrota para mim. Que infecção é essa? Não sei. É uma situação embaraçosa.
Um "embaraço", pensou irritado Delaney. Que tipo de coisa para dizer! O homem não sabia falar inglês correto. Seria ele italiano, libanês, grego, sírio, ou árabe? Que diabo era ele?
– Por último – prosseguiu o Dr. Bernardi, consultando a ficha técnica aberta sobre a mesa – consideremos a febre. Dura há aproximadamente seis semanas desde a primeira visita de sua esposa, queixando-se, para citar suas palavras, de "febre e arrepios súbitos". Na primeira visita, temperatura um pouco acima da normal. Nada de estranho. Comprimidos para resfriados, gripe, vírus – o que quer que se a queira chamar. Outra visita. Temperatura mais alta. Não um grande aumento, mas apreciável. Em seguida, antibióticos. Agora, terceira visita e a temperatura subindo novamente. Os arrepios continuam. O caso me preocupa.
– Bem, preocupa o senhor e a mim também – disse rudemente Delaney.
– Naturalmente – acalmou-o Bernardi. – E agora, ela passou a encontrar muitos fios soltos no pente. Isso é indubitavelmente resultado da febre. Nada de sério, mas, ainda assim... Sabe que ela tem uma erupção cutânea na parte interna das coxas e nos antebraços?
– Sei.
– Mais uma vez, indubitavelmente, resultado da febre, provocada pela infecção. Receitei um ungüento. Não uma cura, mas acabará com a coceira.
– Ela parece tão sadia.
– O senhor vê as feições rosadas. É a infecção.
– Que infecção? – perguntou, furioso, Delaney. – Que diabo é? Câncer?
Os olhos de Bernardi reluziram.
– Nesta fase, acho que não. Ouviu falar de infecção protéica, capitão?
– Não, nunca ouvi. O que é?
– Não falarei nisso agora. Preciso ler um pouco sobre o assunto. O senhor pensa que nós médicos sabemos de tudo? Mas há coisas demais. Há jovens médicos hoje que não conseguem reconhecer (porque nunca trataram) o tifo, a varíola ou a paralisia infantil. Mas isso é secundário.
– Doutor – disse Delaney, cansado daquela conversa mole – vamos voltar ao assunto. O que faremos? Quais são as nossas opções?
O Dr. Bernardi reclinou-se na cadeira giratória, juntou os dois dedos indicadores e pressionou-os contra os lábios gordos. Olhou para Delaney durante um longo momento.
– Sabe, capitão – disse com alguma malevolência – eu o admiro. Sua esposa está obviamente doente e, ainda assim, o senhor diz: "O que é que faremos agora?", e "Quais são nossas opções?" Isso é admirável.
– Doutor. . .
– Muito bem. – Bernardi inclinou-se para a frente e bateu na ficha sobre a mesa com a palma da mão. – O senhor tem três opções. Primeira: posso tentar baixar a febre, dominar a misteriosa infecção mediante o emprego de doses mais fortes de antibióticos ou de drogas que ainda não experimentei. Não recomendo que isso seja feito fora de um hospital. Os efeitos secundários podem ser alarmantes. Segundo: sua esposa pode internar-se num hospital durante cinco dias, ou uma semana, e submeter-se a uma série de exames muito mais exaustivos do que eu posso fazer neste consultório. Recomendaria que consultasse outros médicos. Especialistas. Neurologistas, ginecologistas, mesmo dermatologistas. Isso seria muito caro.
Parou e olhou em expectativa para o capitão.
– Muito bem, doutor. Qual é a terceira opção?
Bernardi fitou-o ternamente.
– Talvez o senhor prefira consultar outro médico já que eu falhei.
Delaney suspirou, conhecendo a fé da esposa nesse untuoso indivíduo.
– Faremos os exames. No hospital. O senhor providenciará?
– Naturalmente.
– Um quarto particular.
– Isso não será necessário, capitão. O internamento será apenas para exames.
– Minha esposa preferiria um quarto particular. Ela é uma mulher muito recatada. Muito tímida.
– Eu sei, capitão – murmurou o médico – eu sei. O senhor dirá a ela, ou eu mesmo direi?
– Eu direi.
– Muito bem – concordou o Dr. Bernardi. – Acho que assim será melhor.
O capitão voltou à sala de espera para aguardá-la e treinou sorrisos.
Fazia um belo dia, alegre e agitado. Havia um abraço no sol e um beijo na brisa. Caminhando na direção norte pela Fifth Avenue, ouviram o estalar das bandeiras e o brilho de um céu de princípios de setembro. Delaney, que conhecia a cidade em todos os seus estados de espírito e temperamentos, percebeu um ritmo mais vivo no ar. Acabado o verão e terminadas as férias, Manhattan corria para o Natal e o Ano Novo.
A esposa enlaçara o braço no seu. Ao lançar um olhar de relance para ela, achou que nunca lhe parecera tão bela. O cabelo louro, naquele momento entremeado de prata, fora puxado para trás e preso em um coque com um grampo. As feições dela, outrora de traços bem precisos, haviam sido suavizadas pela idade. Os lábios eram úmidos e havia algo na linha do queixo e da garganta. Oh, ela era algo! E o brilho (aquela maldita febre!) dava-lhe à pele um aspecto de juventude rosada.
Quase tão alta como ele, andava espigada e alerta, com a mão ligeiramente pousada em seu braço. Os homens olhavam-na desejosos, e Delaney sentia orgulho. Como andava, rindo das coisas! Virava a cabeça de um lado para o outro, como se visse tudo aquilo pela primeira vez. A última vez? Sentiu o toque de um dedo frio.
Ela era quase cinco anos mais velha do que ele, mas era também o calor, o humor, o coração daquele casamento. Ele nascera velho, mas ela trouxera para o lar uma receita de sopa de lentilhas, de camisolas finas com fitas rosa, e alegria. Ele era bastante mau. Sem ela teria sido grotesco.
Continuaram a caminhar para o norte pela rua, agora pela calçada do lado oposto. Ao se aproximarem do meio-fio, o sinal estava prestes a mudar. Poderiam ter atravessado a rua em segurança, mas ele deteve-a.
– Espere um minuto – disse – quero ver isso.
Seus olhos vivos viram um carro – uma perua com a placa de Illinois – descendo em direção ao sul. O motorista tentou virar para oeste, entrando numa rua de mão única. Imediatamente, ouviu-se um grande estridor de buzinas. Uma dúzia de pedestres, pelo menos, gritou: "Mão única". O carro parou subitamente, – de frente para os veículos que se aproximavam. O motorista curvou-se sobre o volante, sem saber o que fazer. A mulher ao seu lado, aparentemente a esposa, segurou-lhe o braço. No assento traseiro, dois meninos saltaram excitados, passando de uma janela a outra.
Havia um guarda de serviço na esquina nordeste do cruzamento, de costas para uma vitrina. Naquele momento, sorridente, veio lentamente em direção ao carro parado.
– Esquadrão do Centro – murmurou o Capitão Delaney para a esposa. – Escolhem os guardas mais altos e mais bonitões.
O policial aproximou-se da janela do motorista, inclinou-se, e trocou com ele breves palavras. O casal do carro, de outro Estado, riu aliviado. O policial ergueu o polegar e o indicador para as duas crianças no assento traseiro e estalou a língua. Elas soltaram risinhos, deliciadas.
– Não vai multá-los? – perguntou, indignado, a si mesmo Delaney. – Vai deixá-los ir embora, sem mais nada?
O guarda voltou para a Fifth Avenue e interrompeu o tráfego. Com um gesto, ordenou ao carro de Illinois que recuasse. Colocou-o na direção certa, de onde podia seguir novamente em segurança para o centro da cidade.
– Eu vou. . . – começou o Capitão Delaney.
– Edward – disse a esposa – por favor.
Ele hesitou. O carro afastou-se e as crianças acenaram freneticamente para o guarda, que acenou em resposta.
Delaney lançou um olhar severo à esposa.
– Vou tomar o nome e o número dele – disse. – Aqueles sinais de mão única são bem visíveis. Ele deveria ter. . .
– Edward – repetiu ela, paciente – eles estão evidentemente de férias. Não viu as malas na traseira? Não conhecem nossos sistemas de mão única. Por que lhes estragar as férias? Com dois garotos com eles? Acho que o guarda resolveu muito bem a situação. Talvez isso tenha sido a melhor coisa que lhes aconteceu em Nova York, e eles desejarão voltar.
Olhou para a esposa. ("Sua esposa está obviamente doente.. .a febre... os cabelos no pente... o senhor tem três opções... uma infecção...") Tomou-lhe o braço e levou-a cuidadosamente até o outro lado da rua. Percorreram em silêncio o quarteirão seguinte.
– Bem, de qualquer maneira – murmurou ele – as costeletas dele estavam compridas demais. Você não encontra costeletas daquele tamanho em minha delegacia.
– Gostaria de saber por quê – disse ela inocentemente. Riu e inclinou a cabeça de lado, tocando no ombro do marido.
Ele pensara em almoçar no Plaza, olhar as vitrinas e visitar as lojas de antigüidades – coisas que ela gostava de fazer com ele nos seus dias de folga. Era importante que ela se sentisse feliz durante algum tempo, antes que lhe contasse. Mas quando sugeriu um passeio pelo Parque e almoço no terraço do zoológico, concordou imediatamente. Seria melhor. Encontrariam um banco onde poderiam ficar a sós.
Atravessando a 59th Street, a caminho do Parque, olhou em volta espantado. Bem, o que era que existira ali em frente do Edifício da General Motors?
– O Savoy-Plaza – disse ela.
– Telepata – comentou ele.
E ela era – no que dizia respeito ao marido.
A cidade mudava da noite para o dia. Casas de cômodos transformavam-se em pátios de estacionamento, que se transformavam em escavações, que se transformavam em altos prédios de escritórios enquanto o indivíduo virava a cabeça. Vizinhanças desapareciam, novos restaurantes eram abertos, tijolos transmudavam-se em pedra, três andares espichavam-se em trinta, ruas floresciam com esguias árvores, e um pequeno parque surgia no lugar onde existira um velho bar irlandês.
Era a sua cidade, onde nascera e se criara. Era o lar. Quem lhe conheceria melhor os vícios do que ele? Mas recusava-se a entregar-se ao desespero. A sua cidade continuaria a existir e se tornaria mais bela.
Parte de sua fé baseava-se no conhecimento de seus antigos pecados, hoje páginas do passado. Era do tempo em que a Quadrilha das Cinco Pontas arrancava orelhas e narizes dos inimigos em brigas de tavernas, quando rapazes do interior eram drogados e seqüestrados no Swamp, quando bordéis de crianças floresciam no Tenderloin, quando quadrilheiros chineses abriam caminho com pistolas de grosso calibre (e olhos fechados) no Triângulo Sangrento.
Tudo isso desaparecera e fora romanceado, pois os velhos crimes, a guerra e o mal entram nos livros sem o sangue e a dor. Naquela ocasião, a cidade sofria novas agonias. Elas, também, estava convencido, passariam, se os homens de boa vontade não voltassem as costas ao futuro.
A sua cidade era uma afirmação de vida, com sua beleza, dureza, mágoa, humor, horror e êxtase. Nos entrechoques, na brutalidade e na violência, via o fluxo enérgico e interminável da vida, e não a trocaria por qualquer outro lugar, Poderia reduzir um homem a lixo ou colocá-lo nos mais altos telhados de cobre que reluziam sob os benignos raios do sol.
Entraram no Parque, caminhando entre fileiras de bancos opostos em direção ao zoológico. Pararam diante da jaula do iaque e olharam para o grande e meditabundo animal, de cabeça baixa e olhos de embotado espanto para um mundo estranho.
– Você – disse Bárbara Delaney ao marido.
Ele riu, virou-a pelo cotovelo, apontou para uma jaula em frente, onde se via uma graciosa corça Sika, de olhos luminosos, com a orgulhosa cabeça coroando o pescoço esguio.
– Você – disse Edward Delaney à esposa.
Fizeram uma refeição leve. Ele brincou nervoso com a xícara vazia de café, olhando para dentro dela, virando-a, girando-a entre os grossos dedos.
– Muito bem – suspirou ela com fingido cansaço – vá dar seu telefonema.
Ele olhou-a, agradecido.
– Demorarei apenas um minuto.
– Eu sei. Só quer ter certeza de que a delegacia continua no mesmo lugar.
A voz grossa disse:
– Ducentésima qüinquagésima primeira delegacia. Guarda Curdy. Em que lhe posso ser útil?
– Fala o Capitão Edward X. Delaney – disse ele em voz sem expressão. – Ligue-me com o Tenente Dorfman, por favor.
– Oh, pois não, capitão. Creio que está no segundo andar. Um minuto. Vou localizá-lo.
Dorfman atendeu quase que imediatamente.
– Alô, capitão. Divertindo-se no seu dia de folga? Lindo dia.
– Sim. O que está acontecendo por aí?
– Nada fora do comum, senhor. O de sempre. Uma pequena manifestação em frente à embaixada, mas conseguimos dissolvê-la. Nenhuma acusação. Nenhum ferimento.
– Danos?
– Uma janela partida.
– Muito bem. Mande Donaldson bater o habitual pedido de desculpas. Eu o assinarei amanhã.
– Já foi batido, capitão. Está sobre a sua mesa.
– Oh, bem... ótimo. Nada mais?
– Não, senhor. Tudo está sob controle.
– Muito bem. Transfira a chamada para o guarda na mesa, sim?
– Sim, senhor. Vou chamá-lo.
O telefonista uniformizado voltou ao telefone.
– Capitão.
– Guarda Curdy?
– Sim, senhor.
– Curdy, você respondeu à minha primeira chamada com: "Ducentésima qüinquagésima primeira delegacia". Em meu memorando número seis três um, datado de quatorze de julho deste ano, dei ordens muito explícitas a respeito do procedimento dos telefonistas de serviço. Disse nesse memorando que as chamadas deviam ser respondidas da seguinte maneira:"Delegacia dois cinco um". É mais curto e mais fácil de compreender do que "Ducentésima qüinquagésima primeira delegacia". Leu aquele memorando?
– Sim, senhor, capitão. Li. Eu me esqueci, senhor. Estou tão acostumado a responder à maneira antiga.
– Curdy, não há "maneira antiga". Há uma maneira correta e uma errada de fazer as coisas. E "dois cinco um" é a maneira correta em minha delegacia. Está claro isso?
– Sim, senhor.
Desligou e voltou para junto da esposa. No Departamento de Polícia de Nova York, ele era conhecido como "Delaney Culhões de Ferro". Conhecia o apelido e não se importava. Havia piores.
– Tudo bem? – perguntou ela.
Ele inclinou afirmativamente a cabeça.
– Quem está de serviço?
– Dorfman.
– Como vai o pai dele?
Olhou para ela, arregalando os olhos. Em seguida, baixou a cabeça e gemeu:
– Oh, meu Deus, Bárbara. Esqueci de lhe contar. O pai de Dorfman morreu na semana passada. Na sexta-feira.
– Oh, Edward. – Fitou-o com ar de censura. – Por que não me contou?
– Bem, eu ia contar... mas esqueci.
– Esqueceu? Como é que pode esquecer uma coisa dessas? Bem, vou escrever um cartão de pêsames a ele logo que chegar em casa.
– Sim, boa idéia. Fizeram uma vaquinha para as flores. Entrei com vinte dólares.
– Pobre Dorfman.
– É mesmo.
– Você não gosta dele, não é?
– Naturalmente que gosto. Como homem, como pessoa. Mas não é realmente um bom policial.
– Não é? Pensei que você me havia dito que ele trabalhava muito bem.
– Trabalha. É um bom administrador, mantém em dia a parte burocrática. É um dos melhores advogados do Departamento. Mas não é um bom policial. É razoável. Dá a impressão, mas lhe falta o instinto.
– Diga-me uma coisa, ó sábio – perguntou ela – o que é esse instinto do policial?
Era para ele um prazer ter alguém com quem conversar sobre essas coisas.
– Bem – respondeu – ri: se quiser, mas esse instinto existe. O que foi que me levou a tornar-me um "tira"? Meu pai não era policial. Nem ninguém em minha família. Eu poderia ter entrado na Faculdade de Direito. Minhas notas eram suficientemente boas para isso. Mas eu simplesmente queria ser policial. Tanto quanto consigo me lembrar. E lhe digo por quê. Porque quando a roupa volta da lavanderia – como você sabe muito bem, minha querida, depois de trinta anos – eu insisto em...
– Trinta e um anos, seu bruto.
– Muito bem, trinta e um anos. Mas no primeiro ano nós vivemos em estado de pecado.
– Você é um bruto.
– Bem, vivemos, e foi o ano mais maravilhoso de minha vida.
Ela colocou as mãos sobre as dele.
– E tudo mais, desde então, tem sido um anticlímax?
– Você sabe muito bem que não. Mas, deixe que eu volte ao assunto do instinto do verdadeiro policial.
– E à roupa da lavanderia...
– Exato. Bem, como sabe, insisto em guardar minhas roupas na cômoda pessoalmente. As meias são dobradas uma vez e empilhadas com a dobra para a frente. Os lenços são empilhados com as bordas abertas para a direita. As camisas são empilhadas alternadamente, colarinho para trás e colarinho para a frente, para que a pilha não se desmorone, como você sabe. E um sistema semelhante para roupas de baixo, pijamas, e assim por diante. E sempre, naturalmente, as roupas recém-passadas vão para o fundo de cada pilha para que tudo seja usado uniformemente e em ordem. A palavra é essa: ordem. È assim que eu sou. Você me conhece. Quero tudo em ordem.
– E foi por isso que se tomou policial? Para tornar o mundo ordeiro e bem arrumado?
– Isso mesmo.
Ela empurrou a cabeça lentamente para trás e riu. Como gostava de vê-la rir! Se ele pudesse rir assim! Era uma expressão tão sincera de pura alegria: ela fechava os olhos, abria a boca, os ombros se sacudiam e soltava uma gargalhada surpreendentemente cheia e profunda, que não era nem feminina nem masculina, mas assexuada e primitiva como todo o riso autêntico.
– Edward, Edward – ela gaguejou um pouco, apanhando um lenço de renda na bolsa para enxugar os olhos – você tem uma capacidade maravilhosa para iludir-se. Acho que é por isso que o amo tanto.
– Muito bem – disse ele, encabulado. – Então, me diga. Por que foi que me tornei policial?
Mais uma vez, ela cobriu-lhe as mãos com as suas. Olhou-o nos olhos, subitamente séria.
– Você não sabe? – perguntou suavemente. – Não sabe, realmente? Porque você ama a beleza. Oh, sei que a lei, a ordem e a justiça são importantes para você. Mas o que realmente quer é um mundo belo, onde tudo seja autêntico e coisa alguma seja falsa. Seu sonhador!
Ele pensou durante longo tempo nas palavras da esposa. Ergueram-se depois e, de mãos dadas, saíram vagarosamente pelo Parque.
Há no Central Park um carrossel fechado que há gerações faz as delícias das crianças. Em alguns dias, quando o vento sopra certo, pode-se ouvir o seu tilintar musical à distância. O ar parece dançar.
Os animais do carrossel – cavalos maravilhosamente esculpidos e pintados – correm uns atrás dos outros em um alegre rodopio que excita as crianças e hipnotiza os pais. Em um banco próximo ao carrossel, Bárbara e Edward Delaney sentaram-se para descansar, com os ombros se tocando. Escutaram a música e viram os giros estonteantes através de árvores ainda vestidas do verde do verão.
Permaneceram em silêncio durante algum tempo. Em seguida, sem olhá-lo, ela disse:
– Pode me contar agora?
Ele inclinou a cabeça. Com tanta rapidez quando pôde, fez um conciso relato do que lhe dissera o Dr. Bernardi. Omitiu apenas a referência rápida do médico a uma "infecção múltipla".
– Eu não vejo alternativa – disse ele, e apertou-lhe mais fortemente a mão. – Você vê? Precisamos esclarecer isso. Eu me sentiria melhor se Bernardi chamasse outros médicos. Acho que você também. Os exames exigirão apenas cinco dias de internamento no hospital. Em seguida, eles resolverão o que deverá ser feito. Disse a Bernardi para tomar as providências necessárias, reservar um quarto. Um quarto particular. Bárbara? Está bem?
Ficou em dúvida se ela havia respondido. Ou se havia compreendido. Tinha os olhos longe e ele não viu o sorriso que lhe encrespou os lábios macios.
– Bárbara? – perguntou novamente.
– Durante a guerra, quando você estava na França, eu trazia as crianças para cá quando fazia bom tempo. Eddie já sabia andar, mas Elizabeth andava ainda de carrinho. Às vezes, Eddie se cansava na volta para casa e eu o colocava no carrinho, juntamente com Liza. Como ele odiava aquilo!
– Eu sei. Você me escreveu.
– Escrevi? Às vezes, sentávamo-nos neste mesmo banco onde estamos agora. Eddie andaria de carrossel o dia inteiro se eu deixasse.
– Ele sempre montava um cavalo branco.
– Você se lembra. – Ela sorriu. – Sim, sempre montava um cavalo branco e todas as vezes que passava acenava para nós, muito espigado na sela. Ele ficava tão orgulhoso.
– Era mesmo.
– Eles são boas crianças, não, Edward?
– São, sim.
– Crianças felizes.
– Bem, gostaria que Eddie se casasse, mas não adianta apoquentá-lo.
– Não. Ele é teimoso. Como o pai.
– Eu sou teimoso?
– Às vezes. A respeito de algumas coisas. Quando resolve fazer uma coisa. Como meu internamento no hospital para fazer os exames.
– Você se internará, não?
Ela endereçou-lhe um sorriso estonteante e, inesperadamente, inclinou-se e beijou-o nos lábios. Foi um beijo macio, jovem, demorado, que o chocou com o anelo que nele havia.
Tarde naquela noite, ela ainda queimava com aquele anelo, com o corpo incendiado pelo desejo e pela febre. Entregou-se nua em seus braços e parecia resolvida a esgotá-lo, drená-lo de toda a força, tomar tudo e nada deixar.
Tentou conter-lhe a fúria, coisa tão estranha nela, ela que era geralmente lânguida e provocante, mas foi derrotado. Certa ocasião, debatendo-se em suado paroxismo, chamou-o de "Ted", o que não fizera desde que se haviam casado.
Fez o que pôde para satisfazer e tranqüilizar, miseravelmente consciente de que suas palavras não eram ouvidas, nem sentidas suas carícias; o máximo que podia fazer era ser. Passou a tempestade, deixando-o esgotado. Mordeu uma junta do dedo e adormeceu.
Acordou horas depois e não a viu na cama. Instantaneamente alerta, puxou o velho robe de quadrados, já um tanto puído. Descalço, desceu sem fazer ruído a escada, procurando nos cômodos vazios.
Encontrou-a no que ainda chamavam de "sala de visitas" da casa de pedra cinzenta, contígua à Delegacia. Sentava-se no peitoril da janela, vestida com uma camisola branca de algodão. Abraçava os joelhos erguidos. À luz do corredor, viu-lhe a cabeça curvada. O cabelo caíra, escondendo-lhe o rosto, os ombros arriados e os joelhos.
– Bárbara – chamou.
Ela ergueu a cabeça. O cabelo caiu para trás. Endereçou-lhe um sorriso que lhe cortou o coração.
– Eu estou morrendo – disse.

2

A permanência de Bárbara Delaney no Hospital demorou mais do que os cinco dias previstos pelo Dr. Louis Bernardi. Estendeu-se por um fim de semana e os cinco dias e, em seguida, dois fins de semana e os cinco dias e, finalmente, um total de quinze dias. A todas as perguntas do Capitão Edward X. Delaney, o médico respondia apenas:
– Mais exames.
De suas visitas diárias – às vezes, duas visitas – ao quarto particular da esposa, Delaney saía com a apavorante impressão de que as coisas não iam absolutamente bem. Persistia a febre, subindo em um dia e baixando ligeiramente no outro. Mas a tendência era ininterruptamente para cima. Certa ocasião, chegou quase a quarenta graus. Ela estava sendo queimada.
Presenciara também os súbitos arrepios que lhe dilaceravam o corpo, faziam os dentes bater e tremer os membros. Enfermeiras apareciam correndo com cobertores extras e garrafas de água quente. Cinco minutos depois, ardia de febre; os cobertores eram lançados para o lado, a face se tornava rosada, e ela arquejava, procurando respirar.
Novos sintomas surgiram nesses quinze dias: dor de cabeça, micção difícil, tão difícil que foi preciso fazer uma cateterização, dor forte na região lombar, e inesperadas crises de vômito que a deixavam mole e esgotada. Certa ocasião, vomitara numa bacia que ele segurara. Erguera a vista humildemente para ele; ele virara a cabeça para olhar pela janela, com os olhos úmidos.
Na manhã em que finalmente resolveu, contra os desejos da esposa, despedir Bernardi e chamar novo médico, foi convocado em seu gabinete na Delegacia para uma reunião, no início da tarde, com Bernardi no quarto da esposa. O Tenente Dorfman viu-o partir com angústia nos olhos.
– Por favor, capitão – disse – procure não se preocupar. Ela vai ficar boa.
Marty Dorfman era um judeu extraordinariamente alto (um metro e noventa e dois) de olhos azuis-claros e cabelo ruivo eriçado num crânio estreito. Usava sapatos número quarenta e quatro e não encontrava luvas que lhe servissem. Parecia estar constantemente coberto de migalhas de pão e ninguém jamais o ouvira dizer um nome feio.
Coisa alguma se ajustava a ele: o uniforme de enorme tamanho enrugava-se sobre os ombros e as calças pendiam frouxas nos fundilhos, como um calção de menino holandês. Cinzas de cigarros manchavam-lhe os punhos. Vez por outra, as meias não combinavam e ele perdera as presilhas do colarinho da túnica. Os sapatos estavam sempre encardidos e ele se apresentava ao trabalho com espuma seca do sabão de barba por trás das orelhas.
Certa vez, quando era ainda guarda, fora forçado a matar um ladrão armado de faca. Desde então, andava com um revólver descarregado. Pensava que ninguém sabia disso, mas o fato era de conhecimento geral. Como dissera o Capitão Delaney à esposa, o trabalho burocrático de Dorfman era impecável e ele possuía uma das melhores mentes jurídicas do Departamento. Era desleixado, mas quando um dos policiais da Delegacia tinha algum problema pessoal, era a ele que procurava. Que se soubesse, nunca perdera o enterro de um policial morto em serviço. Nessas ocasiões, punha uniforme novo e chorava.
– Muito obrigado, tenente. Telefonarei logo que for possível. Espero voltar antes que o senhor saia de folga. Se não voltar, não espere por mim. Está claro?
– Sim, capitão.
O Dr. Louis Bernardi, Delaney chegou a essa conclusão, era perfeitamente capaz de segurar a mão de um moribundo enquanto dizia: "Calma, calma". Naquele momento, exibia as chapas de raios X como se fossem quadros de Rembrandt.
– As sombras! – exclamou. – Veja as sombras!
Havia puxado uma cadeira para junto da cama de Bárbara Delaney. O capitão permanecia impassível do outro lado, com as mãos cruzadas nas costas para esconder o tremor.
– O que é que mostram? – perguntou em sua voz férrea.
– O que é? – murmurou a esposa.
– Pedras nos rins! – exclamou feliz Bernardi. – Sim, querida senhora – continuou, dirigindo-se à doente que, deitada, olhava-o sonolenta, balançando ligeiramente a cabeça – a possibilidade havia: febre e calafrios pertinazes. E, mais recentemente, dores de cabeça, vômitos, dificuldade de micção, e dor na parte interior das costas. Esta manhã; depois de mais de dez dias de exames exaustivos – que imagino que achou, ah! ah!, exaustivos bem como de causar exaustão – convocamos uma junta médica para estudar seu caso e eles acham que a senhora, infelizmente, sofre de cálculos nos rins.
Falou em tom de tal maneira triunfante que Delaney permaneceu calado por não confiar na própria voz. A esposa virou a cabeça no travesseiro e lançou-lhe um olhar de advertência. Logo que ele inclinou a cabeça, ela voltou-se para Bernardi e perguntou debilmente:
– Como foi que arranjei essas pedras?
O medicou inclinou-se na cadeira, fez o gesto habitual de colocar os dois dedos indicadores e pressioná-los contra o beiço protuberante.
– Quem sabe? – perguntou mansamente. – Dieta, tensão, talvez uma predisposição, hereditariedade. Há uma coisa que desconhecemos. Se soubéssemos de tudo, a vida seria uma caceteação, não?
Delaney grunhiu desgostoso. Bernardi não lhe deu atenção.
– De qualquer modo, este é o nosso diagnóstico. Pedras nos rins. Uma concreção freqüentemente encontrada na bexiga e nos rins. Uma pedra dura, inorgânica. Algumas, não maiores de que uma cabeça de alfinete. Outras, bastante grandes. São matérias estranhas, alojadas em tecido vivo. O corpo, o tecido vivo, não pode tolerar essa invasão. Daí a febre, os calafrios, a dor. E, naturalmente, a dificuldade de urinar. Oh, sim, isso acima de tudo.
Mais uma vez, Delaney ficou furioso com a auto-satisfação daquele homem. Para Bernardi, tudo aquilo era um problema de palavras cruzadas tirado do Times.
– Qual é a gravidade do caso? – perguntou Bárbara.
Uma sombra pareceu descer sobre os olhos sonhadores de Bernardi, uma película leitosa e translúcida: Ele podia ver, mas ninguém podia enxergar dentro dele.
– Precisávamos dos exames de sangue e dessas chapas sensíveis. Em seguida, desde que a senhora foi internada, surgiram sintomas que nos deram outras indicações. Agora sabemos o que estamos enfrentando.
– Qual é a gravidade? – insistiu Bárbara, mais determinada.
– Nós achamos – continuou Bernardi, sem escutá-la – nós julgamos que no seu caso, querida senhora, é indicada a operação. Oh, sim. Definitivamente. Sinto muito dizer isso. Uma operação.
– Espere – aparteou Delaney, erguendo a mão. – Espere apenas um minuto. Antes de começarmos a falar em operação. Conheço um homem que teve pedras nos rins. Os médicos deram-lhe um líquido, ele as expeliu e ficou bom. Minha esposa não pode fazer a mesma coisa?
– Inteiramente impossível – respondeu, seco, Bernardi. – Quando as pedras são minúsculas, esse tratamento, às vezes, é eficaz. As radiografias mostram uma grande área de inflamação. A operação é indicada.
– Quem foi que decidiu isso?
– Nós.
– Nós? Nós, quem?
Bernardi olhou-o friamente. Reclinou-se, puxou a calça de uma perna e, com todo o cuidado, cruzou-a.
– Eu e os especialistas que chamei. Tenho aqui a opinião profissional deles, capitão – os laudos escritos e assinados – e preparei um conjunto em duplicata para o senhor.
O Capitão Edward X. Delaney havia interrogado um número suficiente de testemunhas e suspeitos em sua longa carreira para saber quando um homem ou mulher mentiam. O indício revelador podia aparecer sob grande variedade de formas. Com os estúpidos ou inexperientes, aparecia sob a forma de gestos: desvio dos olhos, um movimento nervoso, piscadelas, talvez um ligeiro porejamento de suor ou um arquejo súbito. Os inteligentes e experientes revelavam a falsidade de maneiras diferentes: uma indiferença deliberada demais, um olhar "honesto", olho no olho, ou esfregamento proposital das sobrancelhas. Às vezes, inclinavam-se para a frente e sorriam com ares francos.
Aquele homem, porém, não mentia, disso estava convencido o capitão. Estava convencido também de que Bernardi não lhe contava toda a verdade. Escondia algo, algo que lhe era desagradável.
– Muito bem – disse Delaney em voz áspera. – Temos os laudos assinados por eles. Suponho que há unanimidade, não?
Os olhos de Bernardi brilharam de malícia. Inclinou-se para a frente e deu umas palmadinhas na mão de Bárbara, molemente caída sobre o cobertor azul.
– Calma, calma – disse. – Não é uma operação muito grave – continuou. – É executada em todos os hospitais do país. Mas toda cirurgia acarreta alguns riscos. Até mesmo lancetar um furúnculo. Tenho certeza de que a senhora compreende isso. Operação alguma deve ser encarada levianamente.
– Nós não a estamos encarando levianamente – disse irritado Delaney, pensando nesse homem, nesse "estrangeiro" que não sabia falar direito.
Durante essa troca de palavras, a cabeça de Bárbara Delaney movia-se de um lado para outro, entre o marido e o médico.
– Muito bem – continuou Delaney, fazendo um esforço para controlar-se – o senhor recomenda uma operação. O senhor tira essas pedras dos rins e minha esposa recupera a saúde. É isso? Não há mais alguma coisa que o senhor não está nos dizendo?
– Edward! – exclamou ela. – Por favor!
– Eu quero saber! – afirmou ele, teimosamente. – Eu quero saber!
Bernardi suspirou. Parecia prestes a servir de mediador entre os dois, mas mudou de idéia.
– Essa é a nossa opinião – disse, inclinando a cabeça. – Não lhe posso dar uma garantia de cem por cento, à prova de erros. Nenhum médico ou cirurgião pode fazer isso. O senhor precisa compreender esse fato. Reconheço que será uma provação para a Sra. Delaney. A recuperação normal desse tipo de operação exige uma estada de uma semana a dez dias no hospital e várias semanas no leito, em casa. Não quero sugerir que seja de pouca importância. Trata-se de uma situação séria, que eu levo a sério, como tenho certeza que a senhora também. Mas como é basicamente sadia, querida senhora, nada vejo em sua história médica que indique outra coisa senão uma recuperação normal.
– E não há outra alternativa salvo cirurgia? – perguntou, novamente, Delaney.
– Não. Não há outra alternativa.
Bárbara Delaney soltou um pequeno grito, não mais alto do que um miado de gatinho. Estendeu a pálida mão para o marido, que a apertou na sua grande pata.
– Mas não temos nenhuma garantia? – insistiu ele, dando-se conta de que se repetia e de que havia uma nota de desespero em sua voz.
A película translúcida sobre os olhos de Bernardi aparentemente se tornara mais opaca. Naquele instante, era a película dos olhos de um cachorro cego.
– Nenhuma garantia – disse seco. – Nenhuma em absoluto.
O silêncio caiu como uma chuva fina no quarto pintado de cor pastel. Entreolharam-se, cabeças virando-se de um lado para outro, olhos faiscando. Ouviam os ruídos do hospital: alto-falantes grasnando, carrinhos rangedores passando, vozes murmuradas e, em alguma parte, um rádio tocando música de dança. Naquele quarto, porém, os três se entreolhavam nos olhos, envolvidos no silêncio.
– Obrigado, doutor – disse, secamente, Delaney. – Nós discutiremos o assunto.
Bernardi inclinou a cabeça e levantou-se rapidamente.
– Deixarei com o senhor estes documentos – disse, colocando a pasta sobre a mesinha de cabeceira. – Sugiro que os leia cuidadosamente. Por favor, não retarde sua decisão por mais de vinte e quatro horas. Não devemos deixar que a moléstia se desenvolva, e planos precisam ser feitos.
Saiu rapidamente do quarto, em passos leves para um homem tão corpulento.
Edward X. Delaney nascera católico e fora criado como católico. A comunhão e a confissão fizeram parte tão integral de sua vida como o amor e o trabalho. Casara na Igreja e seus filhos haviam freqüentado a escola paroquial. Possuía uma fé monolítica. Até 1945. . .
Em fins de uma tarde, em 1945, o sol escondia-se por trás de um céu negro de fumaça oleosa. O capitão comandava uma companhia de Polícia Militar que ia liberar um campo de concentração ao norte da Alemanha. Encontrou escancarado o portão de arame farpado. Não havia sinal de vida. Espalhou os seus homens pelo terreno. Ele mesmo, de pistola em punho, caminhou até as barracas sem pintura e abriu violentamente a porta.
As coisas olharam para ele.
Um gemido subiu-lhe do ventre. Esse único gemido, passando-lhe pelos lábios, levou consigo a Igreja e a fé, a oração e a confiança, a cerimônia, a panóplia, o hábito e a fé. Nunca mais pensou naquelas coisas. Era um policial e tinha seus motivos.
Naquele instante, sentindo o que havia à frente, anelou pela Igreja como um exilado voluntário pode ansiar pela terra nativa. Mas fugir em ocasião de necessidade era uma baixeza que seu orgulho não admitia. Iriam até o fim juntos, os dois, a força dela acrescida à sua. O total – graças à alquimia peculiar do amor que os unia – era maior do que a soma das partes.
Sentou-se à beira da cama, sorriu, acariciou-lhe os cabelos com a mão pesada. Uma ajudante de enfermeira havia-lhe escovado o cabelo até ficar macio e o prendera atrás com um fio de lã azul de tricô.
– Sei que você não gosta muito dele – disse ela.
– Isso não tem importância – respondeu ele, sacudindo a cabeça maciça. – O importante é que você confia nele. Não é?
– Sim!
– Bem. Mas mesmo assim quero conversar com Ferguson.
– Não quer resolver nada agora?
– Não. Deixe-me levar estes papéis e tentar compreendê-los. Em seguida, eu os mostrarei a Ferguson e pedirei a opinião dele. Hoje à noite, se possível. Voltarei amanhã e discutiremos o caso. Está bem assim?
– Sim – concordou ela. – Mary lavou as cortinas? – referia-se à empregada diarista que trabalhava para eles de segunda a sexta, de 8 às 16 horas.
– Sim, lavou. E espanou o tapete no quintal e arejou as cortinas da sala de estar. Amanhã ela limpará as cortinas da sala de estar, se o tempo continuar bom. Ela quer muito vir visitá-la, mas eu disse que não podia receber visitas. Disse a mesma coisa às suas amigas. Tem certeza de que é isso o que você quer?
– Sim. Não quero que ninguém me veja assim. Talvez, mais tarde, eu possa. O que foi que você tomou no café da manhã?
– Deixe-me ver. . . – disse ele, tentando lembrar-se. – Um pequeno copo de suco de laranja. Cereal sem açúcar. Torradas e café.
– Ótimo – disse ela com um ar de aprovação. – Você está seguindo o regime. E o que foi que comeu no almoço?
– Bom, o trabalho aumentou e tivemos de mandar buscar sanduíches fora. Comi um sanduíche de rosbife com pão integral e tomei um grande copo de suco de tomate.
– Oh, Edward, isso não é o suficiente. Você precisa prometer que hoje à noite... – Subitamente, ela fraquejou. As lágrimas inundaram-lhe os olhos e correram pela face. – Oh, Jesus – exclamou – por que eu?
Lançou-se para a frente e abraçou-o. Ele apertou-a, com o rosto úmido dela colado ao seu. Com os dedos grossos acariciou-lhe as costas enquanto repetia:
– Eu amo você. Eu amo você. Eu amo você – sem parar. Mas não lhe pareceu que fosse suficiente.
Voltou à delegacia levando a pasta clínica. Ao sentar-se por trás da escrivaninha, telefonou para o Dr. Sanford Ferguson, mas não conseguiu encontrá-lo. Tentou o gabinete do legista, o necrotério, e o consultório particular. Ninguém sabia onde ele se encontrava. Delaney deixou recados em todos esses lugares.
Pôs de lado a pasta e voltou ao trabalho. Dorfman e dois detetives da delegacia esperavam-no para tratar de casos separados. Havia uma delegação de homens de negócios locais que queriam um maior número de guardas na ronda a pé. Chegou um grupo de militantes negros para protestar contra a "brutalidade da polícia" ao dissolver uma passeata recente. Uma comissão de líderes judeus apareceu para discutir a ação policial contra as manifestações realizadas quase diariamente em frente à embaixada egípcia, localizada na zona da delegacia. Uma velha e influente senhora propôs uma "idéia espantosamente nova" para combater o vício dos tóxicos (pôr rapé na cocaína). E, pela segunda vez, foi trazido um velho rico, preso por exibir suas partes sexuais a crianças.
O Capitão Delaney ouviu a todos, inclinando gravemente a cabeça. Ocasionalmente, falava numa voz tão propositadamente baixa que os interlocutores eram obrigados a espichar o pescoço para a frente. Aprendera, com a experiência, que coisa alguma funcionava tão bem para acalmar a fúria e levar a pessoa, senão à razão, pelo menos ao que era possível e prático, quanto um tom de voz tranqüilo e ponderado.
Somente às oito horas da noite esvaziou-se a sala de espera. Ergueu-se e empurrou para trás os ombros maciços, espreguiçando-se fortemente. Descobrira que esse tipo de serviço era cem vezes mais cansativo do que fazer ronda a pé ou patrulhar de automóvel. Era o constante e controlado exercício da capacidade de julgamento e vontade, a necessidade de convencer, de persuadir, de tranqüilizar, de determinar e, quando necessário, de ceder durante algum tempo para recomeçar a luta no dia seguinte.
Limpou a mesa, lançando um olhar pesaroso para a papelada que se acumulara durante o dia e que teria de esperar até o dia seguinte. Antes de sair, visitou as celas e salas das turmas, as salas de interrogatório e os cubículos dos detetives. O prédio da delegacia tinha quase noventa anos. Era apertado, estalava, e cheirava da mesma forma que todas as antigas delegacias da cidade. Um novo edifício fora prometido por três diferentes governos da cidade. O Capitão Delaney fazia com que servisse. Deu uma espiadela final no livro de partes do Sargento de Serviço antes de dirigir-se para sua casa, ao lado.
Ainda mais antiga do que a delegacia, a residência fora construída originariamente como residência urbana de um comerciante. Deteriorara-se ao longo dos anos até que, quando Delaney a comprou com a herança recebida do pai ($28,000), fora transformada em pensão e dividida em apartamentos de um único cômodo, infestados de ratos. Delaney, porém, convencera-se de que o prédio era estruturalmente seguro. O olho vivo de Bárbara descobrira também as lareiras originais de mármore, o apainelamento de nogueira (pintado, mas capaz de ser restaurado), os quartos para as crianças, o pequeno quintal calçado, e o jardim cheio de ervas. Compraram-na, em vista disso, nunca sonhando que ele um dia seria o titular da delegacia contígua.
Mary deixara a luz acesa. Havia um recado pregado com fita no belo vidro do aparador. Deixara fatias frias de carneiro e uma salada de batata na geladeira. Havia sopa de lentilha, que ele podia esquentar, se quisesse, e uma torta de maçã como sobremesa. Tudo isso lhe parecia gostoso, mas precisava cuidar do peso. Resolveu ignorar a sopa.
Em primeiro lugar, telefonou para o hospital. Bárbara parecia sonolenta e sua conversa não fazia muito sentido. Perguntou a seus botões se lhe haviam aplicado um sedativo. Falou-lhe apenas durante momentos e achou que ela ficou aliviada quando lhe desejou boa noite.
Entrou na cozinha, tirou a túnica do uniforme e o cinto com a arma e pendurou-os nas costas da cadeira. Preparou um highball de uísque de centeio, a sua primeira bebida do dia. Bebeu lentamente, fumou um cigarro (o terceiro do dia) e especulou por que o Dr. Ferguson não havia acusado seus telefonemas. Subitamente lembrou-se que poderia ser o seu dia de folga, caso em que provavelmente saíra para jogar golfe.
Levando a bebida, dirigiu-se ao estúdio e procurou a caderneta de endereços na escrivaninha. Encontrou o número da casa de Ferguson e discou. Quase imediatamente, ouviu uma voz lépida:
– Dr. Ferguson.
– Aqui, o Capitão Edward X. Delaney.
– Alô, Capitão Edward X. Delaney aí – riu a voz. – Que diabo há com você. . . pegou uma blenorragía com alguma pequena de quinze anos?
– Não. É a respeito de minha esposa, Bárbara.
O tom de voz mudou imediatamente.
– Qual é o problema, Edward?
– Doutor, poderia vê-lo hoje à noite?
– Vocês dois, ou você somente?
– Eu, somente. Ela está no hospital.
– Sinto muito saber disso. Edward, você me pegou de saída. Fui chamado para fazer um retalhamento de emergência. (Gíria dos médicos para a autópsia.) Só estarei em casa lá pela meia-noite. Tarde demais?
– Não. Irei à sua casa a essa hora. Está bem?
– Claro. O que é que está havendo?
– Prefiro dizer-lhe pessoalmente. Há alguns papéis. Documentos. E algumas chapas de raios X.
– Compreendo. Muito bem, Edward. Esteja aqui à meia-noite.
– Obrigado, doutor.
Voltou à cozinha e à refeição de carneiro frio e salada de batata. Tudo aquilo lhe pareceu ter gosto de palha. Colocou os pesados óculos de aros pretos e, enquanto comia lentamente, leu um a um os documentos da pasta clínica de Bárbara e chegou mesmo a pôr as chapas contra a luz do teto, embora nada lhe significassem. Ali estava, em sombras, a mulher que significava tudo para ele.
Terminou a refeição e a leitura ao mesmo tempo. Todos os médicos pareciam concordar. Resolveu evitar a torta de maçã e o café. Mas preparou outro highball e, em mangas de camisa, vagueou pela casa vazia.
Era a primeira vez, desde a II Guerra Mundial, que ele e a esposa dormiam sob tetos diferentes. Sentiu-se abandonado e, em todos os cômodos, encontrou-lhe a presença e desejou tê-la a seu lado: a vista, a voz, o cheiro, o riso, o bater de pés em chinelas... ela.
As crianças estavam ali, também, nos ressonantes aposentos. Choros e gritos, brigas e quedas. Perguntas ansiosas. Lágrimas sentidas. A vida deles, que se havia embebido nas velhas paredes. Refeições em feriados. Triunfos e derrotas. O dia-a-dia de uma família. Tudo em silêncio naquele instante e tão escuro como as sombras numa chapa de raios X.
Subiu a escada para os quartos vazios e o sótão. A casa era grande demais para os dois. Quanto a isso, não havia dúvida. Mas, ainda assim. . . Ali estava a ombreira da janela, onde a altura de Liza fora marcada com riscos de lápis. Ali estava o lance de degraus de onde Eddie havia caído, cortando o queixo, mas sem emitir um som. Ali estava o próprio lugar onde um dos muitos cães que haviam possuído dera uma golfada final de sangue na hora da morte e onde Bárbara tivera um ataque histérico.
Não era muito, pensou. Nem alta tragédia nem baixa comédia. Nada de grandes alturas e insondáveis profundezas, mas, sim, um desgaste permanente dos anos. O tempo havia apagado o menor drama que ali pudesse ter sido encenado. O tempo amortecia as cores, os gritos morriam. Mas a monocromia dourada, a patina macia que ficara tinha significação para ele. Vagueou pelos corredores escuros de sua vida, entregando-se a profundos pensamentos, formulando desejos tolos.
O Dr. Sanford Ferguson, solteirão, era um homem alto, tornado ainda mais alto pelos ternos de tweed sem vinco que usava com coletes atravessados por uma corrente. Era largo de ombros e de peito. Não era corpulento, embora tivesse coxas da mesma grossura da cintura de outro homem e possuísse braços igualmente grossos e fortes.
Ninguém lhe punha em dúvida a inteligência. Em festas, podia contar piadas, uma atrás da outra, que faziam as pessoas se torcerem de rir. Conhecia perfeitamente numerosos dialetos e, quando estava um pouco alto, podia fazer um admirável sapateado. Era muito procurado como orador em jantares de associações profissionais. Jogava golfe com entusiasmo, embora não com muita proficiência. Cantava em agradável voz de barítono. Sabia fazer um soufflé. E, sem que ninguém soubesse (inclusive a velha irmã solteirona), tinha uma amante: uma negra de meia-idade que amava, e com a qual tinha três filhos. Era também, sabia Delaney, um experiente e cínico médico-legista. A morte violenta não o desalentava e não se deixava com freqüência enganar pelo óbvio. Em "mortes naturais" fungava à procura de arsênico. Em "mortes acidentais", sondava o ferimento fatal em um corpus reduzido a pedaços.
– Eis aqui seu uísque – disse entregando um copo de highball a Delaney. – Agora, sente-se, fique de boca fechada e deixe-me ler o resumo.
Passava de meia-noite. Encontravam-se na sala de estar do apartamento de Ferguson, em Murray Hill. A irmã solteirona havia cumprimentado Delaney e desaparecido, possivelmente a caminho da cama. O médico preparara um highball de uísque de centeio para a visita e se servira de uma forte dose de conhaque em um copo d'água.
Delaney sentara-se tranqüilamente em uma poltrona coberta com forro. O Dr. Ferguson sentou-se em uma cadeira de pernas finas, junto a uma pequena cômoda Queen Anne. O seu volume ameaçava esmagar cadeira e mesa. Pelo colarinho aberto, e por cima da gravata puxada para baixo, os pêlos do tórax cresciam luxuriantes.
– Foi linda a autópsia de hoje à noite – observou, olhando para os documentos que Delaney lhe entregara. – Um chofer de caminhão volta para casa depois do trabalho. Greenwich Village. Encontra a esposa caída no chão da cozinha. Com a cabeça dentro do forno. O local está cheio de gás. Está morta. Posso atestar isso. Andava deprimida, diz o motorista de caminhão. Vivia ameaçando cometer suicídio. Bem... talvez. Veremos, veremos.
– Quem é que está à frente do caso? – perguntou Delaney.
– Sam Rosoff. Assaltos e Homicídios. Conhece-o?
– Sim. Um veterano. Bom homem.
– Certamente que é, Edward. Descobriu uma ponta de cigarro no cinzeiro da mesa da cozinha. Uma guimba fria, mas com saliva ainda úmida. O que é que você teria feito?
– Pediria a você que procurasse uma contusão craniana sob o cabelo da morta e começaria a procurar a namorada do motorista.
O Dr. Ferguson riu.
– Edward, você é maravilhoso! Foi exatamente isso o que Rosoff sugeriu. Encontrei a contusão. Neste momento, ele está procurando a namorada. Sente falta do trabalho de detetive?
– Sinto.
– Você foi o melhor, até que resolveu tornar-se comissário. Agora, cale a boca, rapaz, e deixe que eu leia isto.
Silêncio.
– Oh, oh – disse Ferguson. – Meu velho amigo Bernardi.
– Conhece-o? – perguntou Delaney, surpreso.
– Conheço-o, quanto a isso não há dúvida.
– O que é que acha dele?
– Como médico? Excelente. Como homem? Um tolo satisfeito consigo mesmo. Nada mais de conversa.
Silêncio.
– Conhece os demais? – perguntou, finalmente, Delaney. – Os especialistas que ele chamou?
– Conheço dois dos cinco, o neurologista e o radiologista. Figuram entre os melhores da cidade. Isto deve ter-lhe custado uma fortuna. Se os três outros são capazes, sua esposa está em boas mãos. Posso verificar. Agora, fique calado.
Silêncio.
– Oh, bem. – Ferguson encolheu os ombros, ainda lendo. – Pedras nos rins. Isso não é grave.
– Teve alguns desses casos?
– Freqüentemente. Na maioria homens, naturalmente. Sabem quem costuma tê-las? Motoristas de táxi. Ficam saltando sobre o traseiro o dia inteiro.
– O que me diz de minha esposa?
– Bem, ouça aqui, Edward, poderia ser o regime alimentar, a tensão. Há tanta coisa que não sabemos.
– Minha esposa alimenta-se sensatamente, raramente toma uma bebida, e é a pessoa mais. . . mais serena que jamais conheci.
– É mesmo? Deixe-me acabar a leitura.
Leu atentamente todos os laudos, relendo ocasionalmente alguns para confirmar outros que já havia lido. Nem mesmo olhou para as chapas de raios X. Finalmente, deixou a mesa, serviu-se de um imenso copo de conhaque e colocou mais gelo no highball do capitão.
– Bem? – perguntou Delaney.
– Edward – disse Ferguson contraindo as sobrancelhas – não me meta nisto. Ou outro médico qualquer. Bernardi é um chato bombástico, egoísta. Mas como lhe disse, é um excelente médico. No caso de sua esposa, fez tudo exatamente da maneira certa. Tentou tudo, exceto cirurgia. Correto?
– Bem, tentou antibióticos. Não deram resultado.
– Não, não dariam em um caso de pedras nos rins. Mas não as localizaram até que a internaram em um hospital para radiografias e foi nessa ocasião que começou o problema da dificuldade de micção. Isso é recente, não?
– Sim. Somente nos últimos quatro ou cinco dias.
– Bem, neste caso...
– Você recomenda uma operação? – perguntou Delaney em voz abafada.
Ferguson virou-se para ele.
– Não recomendo coisa alguma – disse em voz seca. – Ela não é minha cliente. Mas você não tem alternativa.
– Foi o que ele disse.
– E teve razão. Coragem, meu rapaz.
– Quais são as possibilidades dela?
– Quer fazer uma aposta, não? Com cirurgia, muito boas, sem dúvida.
– E sem operação?
– Esqueça isso.
– Isso não é justo! – exclamou furioso Delaney.
Ferguson encarou-o de modo estranho.
– E que merda é?
Entreolharam-se durante um longo momento. Em seguida, Ferguson dirigiu-se até a mesa, folheou as chapas de raios X, escolheu uma e colocou sobre um abajur inclinado de mesa.
– Rins – murmurou. – Sim, sim.
– O que é, doutor?
– Ele lhe disse e eu confirmo: cálculos nos rins, comumente conhecidos como pedras.
– Não é a isso que me estou referindo. Há alguma coisa que o está preocupando.
Ferguson fitou-o.
– Seu safado – disse baixinho. – Você nunca deveria ter deixado a Divisão de Detetives. Nunca encontrei ninguém tão. . . tão sintonizado com as pessoas como você.
– O que é? – repetiu o capitão.
– Nada. Nada que eu possa explicar. Um palpite. Você os tem, não?
– Sem cessar.
– São pequenas coisas que não somam certo. Talvez haja uma explicação racional. A histerectomia recente. A febre e os calafrios que vêm ocorrendo desde então. Mas, só recentemente, dores de cabeça, vômitos, dor lombar e, agora, a dificuldade de micção. Tudo isso aponta para pedras nos rins, mas a seqüência dos sintomas está errada. Nos casos de pedras nos rins, a dor durante a micção geralmente ocorre desde o início. E às vezes é tão forte que a pessoa sobe pelas paredes. Não há anotações disso aqui. Ainda assim, as chapas mostram. . . Você me disse que ela não estava sob tensão?
– Não estava.
– Todos os casos que tenho visto são de pessoas que trabalham sob compulsão, tentando fazer coisas demais, afligidas pelo tempo, correndo de um lado para outro, roendo as unhas e gritando com a garçonete quando o café vem frio. Bárbara é assim?
– Não. É exatamente o oposto. Calma.
– Nunca se pode saber. Nunca sabemos. Ainda assim. . . – Suspirou. – Edward, já ouviu falar em infecção protéica?
– Bernardi falou nisso comigo.
Ferguson realmente cambaleou para trás, como se tivesse sido atingido por um murro no peito.
– Ele mencionou-a a você? Quando aconteceu isso?
– Mais ou menos há três semanas, quando me disse que Bárbara devia internar-se em um hospital para fazer os exames. Mencionou-a apenas e disse que queria estudar um pouco o caso. Mas não falou a esse respeito hoje. Devia ter perguntado a ele?
– Jesus Cristo! – exclamou, amargo, Ferguson. – Não, não devia ter-lhe perguntado. Se ele quisesse ter-lhe dito, ele o teria feito.
– Já tratou desses casos?
– Infecções protéicas? Oh, sim. Sem dúvida. Três em vinte anos. É o diabo.
– Que aconteceu aos seus pacientes?
– Aos três? Dois reagiram aos antibióticos e fumaram e beberam até morrer dentro de quarenta e oito horas.
– E o terceiro?
Ferguson aproximou-se, segurou Delaney pelo braço direito e quase o ergueu da cadeira. O capitão havia esquecido como ele era forte.
– Mande extrair as pedras dos rins de sua esposa – disse brutalmente o médico. – Ela viverá ou morrerá. O que se aplica a todos nós. Não há saída, meu rapaz.
Delaney tomou uma profunda respiração.
– Muito bem, doutor – disse ele. – Muito obrigado por ter-me concedido seu tempo... e paciência. Lamento tê-lo incomodado.
– Incomodado? – disse Ferguson, asperamente. – Idiota!
Acompanhou Delaney até a porta.
– Acho que darei uma passada no hospital para ver Bárbara – disse casualmente. – Apenas como amigo da família.
– Sim – respondeu Delaney, inclinando a cabeça. – Por favor, faça isso. Ela não quer visitas, mas sei que ficaria satisfeita em vê-lo.
No saguão, Ferguson segurou-o pelos ombros e virou-o para a luz.
– Você anda dormindo bem, Edward?
– Não muito bem.
– Não tome comprimidos. Tome um drinque forte. O conhaque é o melhor. Ou um cálice de vinho do Porto. Ou uma garrafa de cerveja forte pouco antes de ir para a cama.
– Sim. Muito bem. Obrigado. Farei isso mesmo.
Trocaram um aperto de mão.
– Oh, espere – disse Ferguson. – Você esqueceu seus papéis. Vou buscar a pasta.
Mas quando voltou, Delaney já havia saído.
Parou em casa para pôr uma suéter de lã sob a túnica do uniforme. Em seguida, caminhou para a delegacia, contígua à sua casa. Havia um carro particular estacionado bem em frente à entrada. Do lado de dentro do pára-brisa, no lado do passageiro, viu um grande cartaz: IMPRENSA.
Entrou em passos firmes na delegacia. Um homem conversava com o sargento de serviço. Interromperam a conversa e voltaram-se quando ele entrou.
– Aquele carro é seu? – perguntou ao estranho. – Em frente à delegacia?
– Sim, é meu. Eu estava...
– O senhor é repórter?
– Sim. Estava justamente...
– Tire-o dali. O senhor estacionou em local reservado exclusivamente a carros oficiais. Isso está claramente marcado.
– Eu simplesmente queria. ..
– Sargento, se aquele carro não for tirado dali dentro de dois minutos, faça uma advertência a esse homem. Se continuar ali depois de cinco minutos, chame um guincho e mande rebocá-lo. Está claro?
– Sim, senhor.
– Ouça aqui.. . – começou o repórter.
Delaney passou por ele e subiu para o seu gabinete. Tirou uma lanterna elétrica preta de três pilhas da gaveta superior do arquivo. Apanhou também um cassetete curto e duro de borracha e prendeu um par de algemas no cinto.
Ao sair novamente para a noite fria, o carro de imprensa fora estacionado do outro lado da rua. O repórter, porém, encontrava-se na calçada da delegacia.
– Qual é o seu nome? – perguntou ele furioso.
– Capitão Edward X. Delaney. Quer o meu número?
– Oh... Delaney. Ouvi falar no senhor.
– Ouviu?
– "Culhões de Ferro". Não é seu apelido?
O repórter olhou-o fixamente, riu de súbito e estendeu a mão.
– Meu nome é Handry, capitão. Thomas Handry. Sinto muito a respeito do carro. O senhor teve toda razão e eu errei redondamente.
Delaney apertou-lhe a mão.
– Aonde é que vai com essa lanterna, capitão?
– Simplesmente dar uma volta por aí.
– Importa-se que eu o acompanhe?
Delaney encolheu os ombros.
– Se quiser.
Subiram a First Avenue e, em seguida, viraram para o norte. A rua era ladeada por lojas, supermercados, bancos. A maioria possuía barras de um lado a outro de portas e janelas. Em todas havia luz acesa no interior.
– Está vendo isso? – perguntou Delaney apontando. – Enviei uma carta a todos os estabelecimentos comerciais sob a jurisdição de minha delegacia, pedindo que mantivessem pelo menos uma lâmpada de cem watts acesa durante a noite. E continuo insistindo. Agora estou com 98,2 por cento de atendimento. Uma coisa simples, mas que reduziu os casos de arrombamento em minha jurisdição em 14,7 por cento.
Parou em frente a um sapateiro que não dispunha de porta de aço. Delaney tentou forçá-la. Estava bem trancada.
– Um pouco estranho, não? – perguntou Handry, divertido. – Um capitão de polícia fazendo ronda? O senhor não dispõe de guardas para esse serviço?
– Naturalmente. Quando assumi a direção da delegacia, a disciplina andava muito frouxa. Iniciei, em conseqüência, inspeções de surpresa a pé, na maioria das vezes à noite. Funcionou. Os guardas nunca sabem quando, ou onde, vou aparecer. Permanecem alerta.
– Faz isso todas as noites?
– Naturalmente. Não posso cobrir toda a jurisdição, mas fiscalizo cinco ou seis quarteirões todas as noites. Não preciso fazer mais isso, compreenda. Meu pessoal anda alerta. Mas tornou-se um hábito. Acho que gosto de andar por aí. Para dizer a verdade, não consigo dormir até realizar a ronda. Minha mulher diz que sou igual a um dono de casa que precisa olhar todas as janelas e portas antes de ir dormir.
Um carro da radiopatrulha com dois guardas aproximou-se com o motor ronronando baixo. O guarda no assento do passageiro examinou-os, reconheceu o capitão e fez-lhe uma continência, que ele retribuiu.
Delaney tentou mais algumas portas sem barras e, em seguida, com a lanterna elétrica acesa subiu um beco, movendo o feixe de luz sobre latas de lixo e montes de refugo. Handry permaneceu bem junto dele.
Percorreram mais alguns quarteirões e viraram para leste na direção da York Avenue.
– O que estava fazendo em minha delegacia, Handry? – perguntou subitamente o capitão.
– Bisbilhotando. Estou escrevendo um artigo. Ou melhor, uma série de artigos.
– Sobre o quê?
– Por que um homem se torna policial e o que lhe acontece depois.
– De novo? – suspirou Delaney. – Já fizeram isso.
– Estou tentando descobrir o que acontece depois que o indivíduo é nomeado e todos os diferentes rumos que pode tomar. O senhor esteve primeiramente na Divisão de Detetives, não?
– Exato.
– Homicídios, não?
– Durante algum tempo.
– Falam ainda a respeito de alguns dos seus casos.
– Falam mesmo?
– Por que se transferiu para o serviço de vigilância, capitão?
– Eu queria obter experiência administrativa.
Dessa vez Handry suspirou. Era um jovem magro e vivo e parecia mais um corretor de seguros do que um repórter. Usava terno bem passado, os sapatos brilhavam e levava um chapéu de aba estreita enfiado reto na cabeça. Movia-se com passos leves e rápidos.
A face lhe traía certa tensão, uma paixão oculta, mantida sob rígido controle. Conservava os lábios apertados, a testa lisa, e os olhos deliberadamente sem expressão. Delaney notara as unhas roídas e o hábito de alisar o lábio superior para cima, com a segunda articulação do dedo indicador.
– Quando foi que raspou o bigode? – perguntou.
– O senhor devia ter ficado na Divisão de Detetives – respondeu Handry. – Sei que não consigo deixar de alisar o lábio. Diga-me uma coisa, capitão, por que os policiais não querem conversar comigo? Oh, conversam, mas realmente não se abrem. Não consigo penetrar neles. Se vou ser um escritor, é isso o que preciso aprender – como penetrar nas pessoas. Sou eu, eles têm receio de falar porque suas palavras podem ser publicadas, ou que diabo é?
– Não é você. . . não, pessoalmente. O que acontece é que você não é "tira". Não pertence à turma. Há um abismo separando-nos.
– Mas estou procurando compreender... Estou, realmente. Esta série vai tratar a Polícia com grande simpatia. Quero que seja assim. Não estou pensando em descer a lenha nela.
– É bom saber disso. Nós apanhamos um bocado.
– Muito bem, então me diga: por que um homem se torna policial? Quem, pensando bem, desejaria um emprego desses numa cidade como esta? O salário é miserável, os horários são péssimos, todo mundo pensa que os policiais vivem comendo bola, os garotos chamam-nos de "porcos" e lhes jogam sacos de papel cheios de cocô. Se é assim, qual, diabo, é a vantagem?
Passavam nesse momento por uma passagem de automóvel privativa, em frente a um luxuoso edifício de apartamentos. Delaney ouviu alguma coisa.
– Fique aqui – murmurou para Handry.
Subiu sem fazer ruído a passagem de automóveis, com a lanterna apagada. Levava a mão direita sob a aba da túnica, com os dedos na coronha da arma.
Voltou um minuto depois, sorrindo.
– Um gato nas latas de lixo – disse.
– Poderia ter sido um viciado em tóxicos com uma faca na mão.
– Sim – concordou Delaney – poderia ter sido.
– Bem, neste caso, por quê? – perguntou Handry, irritado.
Caminhavam lentamente para o sul, voltando à delegacia. O tráfego era leve àquela hora e os poucos pedestres vistos andavam apressados, lançando olhares nervosos sobre os ombros.
– Minha esposa e eu conversamos a esse respeito há algumas semanas – disse, meditativo, Delaney, lembrando-se daquela luminosa tarde no Parque. – Disse a ela que havia me tornado policial porque sou, basicamente, um homem ordeiro. Gosto de tudo bem feito e arrumado, e o crime ofende meu senso de ordem. Minha esposa soltou uma gargalhada. Disse que me tornei policial porque, no fundo, sou um artista e quero um mundo de beleza, em que tudo seja autêntico e coisa alguma falsa. Desde essa conversa, e em parte também devido ao que aconteceu depois, venho pensando no que ela disse e no que eu disse. E cheguei à conclusão de que não estamos muito distantes um do outro – somos os dois lados da mesma moeda, na verdade. Sabe, tornei-me policial, acho, porque há, ou devia haver, uma lógica na vida. E essa lógica é ordeira e bela, como toda boa lógica. Assim, eu estava com razão e minha esposa também. Quero que essa lógica perdure. É a lógica simples do nascimento natural, da vida natural, da morte natural. É a mortalidade de um de nós e a imortalidade de todos nós. É a continuação. Esta lógica é a vida do indivíduo, da família, da nação e, finalmente, de todas as pessoas, em toda parte, e de todas as coisas animadas e inanimadas. E tudo aquilo que interrompe o ritmo dessa lógica, pois toda boa lógica possui um belo ritmo, como sabe, bem, tudo aquilo que o interrompe é mau. O mal inclui a crueldade, o crime, e a guerra. Não posso fazer muito a respeito da crueldade dos demais. Grande parte dela é imoral, mas não ilegal. Posso pôr-me de sobreaviso contra a crueldade em mim, naturalmente. Não posso fazer muita coisa a respeito da guerra. Mas posso fazer algo a respeito do crime. Não muito, reconheço, mas alguma coisa. Porque o crime, todo crime, é irracional. É o oposto da lógica da vida e, portanto, é um mal. Foi por isso que eu me tornei policial, acho.
– Meu Deus! – exclamou Handry. – Isso é grande! Preciso usar isso. Mas prometo não mencionar seu nome.
– Por favor, não o mencione – disse, melancólico, Delaney. – Eu nunca conseguiria sobreviver a isso.
Handry deixou-o na delegacia. Delaney dirigiu-se lentamente ao seu gabinete e guardou o equipamento de ronda. Derreou-se em seguida em uma velha cadeira por trás da escrivaninha. Perguntou-se se jamais viria a dormir novamente.
Estava envergonhado de si mesmo, como sempre acontecia quando falava demais. E que absurdos dissera! "Lógica... ritmo... imortalidade... o mal". Só para satisfazer a própria vaidade, naturalmente, e assumir aquele ar de quem expressa "profundos pensamentos" para edificação de um jovem repórter. Mas o que todas aquelas bobagens tinham a ver com o preço do feijão?
Tudo aquilo era poesia bem arrumada. A realidade, porém, era uma mulher amedrontada, que nunca praticara nenhum mal na vida, e que naquele instante estava numa cama de hospital tomando coragem para o que lhe pudesse acontecer. Nas profundezas do ser daquela mulher havia animais que a roíam, e o seu mundo dentro em breve seria feito de sangue, vômito, pus e fezes. Nunca se esqueça disso, meu rapaz. E de lágrimas.
"Melhor ela do que eu", subitamente pensou, e ficou tão revoltado consigo mesmo, tão furioso por ter tido esse pensamento imoral sobre a mulher que amava, que gemeu em voz alta e bateu com o punho fechado na mesa. Oh, a vida não era uma alegria tão grande assim. Era um emprego em que se trabalhava, e nem sempre se obtinha êxito.
Ficou sentado ali na escuridão, de ombros encurvados, pensando em todas as coisas que precisava fazer e na ordem em que devia fazê-las. Meditativo, franzia o cenho, fechava a cara, ocasionalmente contraía os lábios; revelando grandes dentes amarelos. Parecia uma grande fera acuada.

3

No Museu Metropolitano de Arte há uma galeria de cabeças romanas. As faces de pedra estão lascadas e gastas. Mas possuem uma qualidade. Observando-se as órbitas vazias, os narizes quebrados, as orelhas esmagadas, os lábios rachados, percebe-se ainda o poder de homens há muito tempo desaparecidos. Mate o escravo que o traiu ou, se os seus sonhos ruíram, enfie uma espada curta nas próprias entranhas. Edward Delaney possuía aquele tipo de rosto: uma majestade em decadência.
Estava sentado naquele instante no quarto da esposa, no hospital, com o sol forte destacando-lhe o perfil. Bárbara Delaney fitou-o através da semi-escuridão induzida pelos sedativos e viu, pela primeira vez, como suas feições haviam se tornado duras pela violência e pelas responsabilidades do comando. Lembrou-se do jovem e vigoroso guarda que a havia cortejado com violetas e, certa vez, com um horroroso poema.
Os anos e o dever não o haviam destruído, mas haviam-no feito voltar-se para dentro de si mesmo, condensando-o. A cada ano que passava, menos falava, mais rareavam seus sorrisos e ele se retirava mais para um núcleo de ferro que era somente seu. Nem ela podia entrar.
Era ainda um homem bonitão, pensou contente, tinha boa postura, cuidava do peso, e nem fumava nem bebia muito. Mas atualmente havia uma sombria solidez em volta dele e, com freqüência demais, ele caía em profunda meditação.
– O que é? – perguntava. Lentamente, seus olhos se erguiam daquela visão interna, focalizavam-se nela e na vida, e ele respondia:
– Nada. – Será que ele se considerava inimigo de todo o mundo?
O caso dele não era tanto de velhice como de desgaste. Observando-o naquele momento, solidamente sentado à luz clara do sol, não conseguiu compreender por que nunca o chamara de "Pai". Era incrível que fosse mais moço do que ela. Com a presciência das pessoas condenadas, perguntou-se se podia continuar a viver sem ela. Concluiu que sim. Desolado ficaria, certamente. E desarvorado. Mas sobreviveria. Ele era completo.
À sua maneira metódica, ele havia tomado nota das coisas que achava que precisavam discutir. Tirou o caderninho de notas do bolso, virou as páginas e colocou os pesados óculos.
– Telefonei para as crianças ontem à noite – disse, sem erguer a vista.
– Eu sei, querido. Teria sido melhor que não tivesse feito isso. Liza telefonou esta manhã. Queria vir para cá, mas eu disse que não, em absoluto. Ela está quase no oitavo mês, e não quero que viaje. Quer menino ou menina?
– Menino.
– Besta. Bem, eu disse a ela que você telefonaria logo que tudo terminasse e que não havia necessidade de vir.
– Ótimo – comentou ele, inclinando a cabeça. – Eddie estava planejando vir dentro de duas semanas, de qualquer maneira, e eu disse a ele que seria bom não mudar os planos. Está pensando em entrar para a política lá no Sul. Querem que se candidate a promotor público. Acho que naquele Estado dão ao cargo o título de "acusador público". O que é que você acha?
– O que é que Eddie quer fazer?
– Ele não sabe ao certo. É por isso que quer vir aqui, discutir o assunto conosco.
– O que é que você acha disso, Edward?
– Preciso saber mais a respeito do caso. Quem é que vai fornecer os fundos para a campanha. O que ele deverá, e a quem. Não quero que se meta em complicação.
– Eddie não faria isso.
– Não, deliberadamente. Talvez por inexperiência. Ele é ainda um rapaz, Bárbara. A política é coisa nova para ele. Precisa ter cuidado. Os indivíduos que querem que ele se candidate têm as suas próprias ambições. Bem. . . discutiremos o caso quando ele chegar. Prometeu não tomar decisão alguma antes de conversar conosco. Agora – consultou as notas – o que acha de Spencer?
Referia-se ao cirurgião indicado, pelo Dr. Bernardi. Era um homem brusco, prático, sem calor humano, mas impressionara Delaney com suas perguntas diretas, decisões rápidas, e interrupções secas das efusões de Bernardi. A operação estava marcada para o fim da tarde do dia seguinte. Delaney seguira o cirurgião até o corredor.
– O senhor espera algum problema, doutor? – perguntou.
O cirurgião, Dr. K. B. Spencer, olhou-o friamente.
– Não – respondera.
– Acho que ele é bom – disse vagamente Bárbara. – O que foi que você achou dele, querido?
– Confio nele – respondeu imediatamente Delaney. – É um profissional. Pedi a Ferguson que tomasse informações e ele me disse que Spencer é um excelente cirurgião, e um homem rico.
– Ótimo – Bárbara sorriu levemente. – Eu não gostaria de um cirurgião pobre.
Ela parecia estar-se cansando e uma vermelhidão febril cobria-lhe o rosto. Delaney pôs de lado durante um momento o caderninho de notas. Dirigiu-se à pia, umedeceu uma toalha, espremeu-a e colocou-a ternamente sobre a testa da esposa. Ela já estava se alimentando por via intravenosa e recebera ordens para mover-se tão pouco quanto possível.
– Obrigada, querido – disse em voz tão baixa que quase não a ouviu. Ele passou apressado pelo resto das notas.
– Agora – disse – o que é que trarei amanhã? Quer o robe azul acolchoado?
– Sim – murmurou ela. – E os chinelos peludos. Os cor-de-rosa. Estão no lado direito do meu guarda-roupa. Meus pés estão inchando tanto que não posso usar os chinelos que trouxe.
– Muito bem – disse ele vivamente, tomando nota. – Alguma coisa mais? Roupas, maquilagem, livros, frutas. .. mais alguma coisa?
– Não.
– Quer que alugue um aparelho de televisão?
Ela não respondeu e, quando ele ergueu a cabeça para olhá-la, parecia dormir. Tirou os óculos, colocou o caderninho no bolso e começou a sair do quarto na ponta dos pés.
– Por favor – disse ela em voz fraca – não vá ainda. Fique comigo mais alguns minutos.
– Enquanto você quiser – disse ele.
Puxou a cadeira para junto da cama e curvou-se para ela, segurando-lhe a mão. Ficaram em silêncio durante quase cinco minutos.
– Edward – disse ela baixinho, com os olhos fechados.
– Sim. Estou aqui.
– Edward.
– Sim – repetiu ele. – Estou aqui.
– Quero que me prometa uma coisa.
– Qualquer coisa.
– Se alguma coisa me acontecer...
– Bárbara.
– Se alguma coisa...
– Querida.
– Eu quero que você case novamente. Se conhecer uma mulher. . . Alguém... Quero que se case. Você promete?
Ele não conseguiu respirar. Tinha algo preso no peito. Baixou a cabeça, emitiu um pequeno som, apertou-lhe mais os dedos.
– Promete? – insistiu ela.
– Prometo.
Ela sorriu, inclinou a cabeça e adormeceu.

4

O Capitão Delaney foi detido por nova manifestação diante da embaixada. Quando conseguiu dissolvê-la e encaminhar os manifestantes, que cantavam, para ruas laterais, a tarde chegava ao fim e era quase hora da operação de Bárbara. Em um dos carros da delegacia dirigiu-se apressadamente para o hospital. Sabia que aquilo era contra o regulamento, mas resolveu fazer depois um relatório completo sobre o caso, explicando as circunstâncias, e, se quisessem puni-lo, que o fizessem.
Subiu correndo para o quarto da esposa, suando dentro das longas ceroulas e da túnica do uniforme. Ela ia saindo em uma maca no momento em que chegou. Pôde apenas beijar-lhe o rosto pálido e sorrir-lhe. Envolvida em cobertores, tinha um tubo ainda preso ao braço e ligado ao vidro suspenso sobre uma barra na maca, por onde se alimentava.
Deixou-a no segundo andar, onde se localizavam as salas de operação. Havia nesse andar uma enfermaria de recuperação, gabinetes dos médicos e cirurgiões, um pequeno dispensário, e uma grande sala de espera pintada de verde, bilioso, mobiliada com sofás e cadeiras de plástico amarelo. Este brutal aposento era dirigido por uma bela enfermeira, uma mulher de mais ou menos quarenta anos, uma loura de seios grandes que incessantemente punha para trás os fios de cabelos sob o gorro engomado.
Delaney deu seu nome e ela conferiu uma lista apavorantemente grande que havia em cima da mesa.
– Sra. Bárbara Delaney?
– Exato.
– Capitão, ainda vai demorar meia hora antes do início da operação. Em seguida, a Sra. Delaney irá para a sala de recuperação. O senhor só poderá vê-la quando ela voltar para o quarto, se o médico concordar.
– Está bem. Esperarei. Quero falar com o cirurgião após a operação.
– Bem. . . – disse ela em dúvida, consultando a lista. – Não sei se vai poder. O Dr. Spencer tem mais duas operações marcadas, depois da operação de sua senhora. Capitão, se está com fome ou quer uma xícara de café, por que não vai até a lanchonete lá embaixo? O nosso sistema de comunicação tem ligação com a lanchonete e o senhor poderá ser chamado se for necessária sua presença.
– Boa idéia – disse ele, aprovando. – Muito obrigado. Farei isso. A senhora sabe por acaso se o Dr. Bernardi encontra-se no hospital?
– Não sei, não, senhor, mas vou ver se o localizo.
– Obrigado – disse ele novamente.
A comida da lanchonete do hospital era, como esperava, horrenda. Perguntou a seus botões quanto tempo precisavam fervê-la para conseguir aquela contextura esponjosa e a cor uniforme: o feijão era quase da mesma tonalidade brilhante do purê de batatas. E tudo aquilo tinha um gosto tão ruim como a aparência. Mesmo o uso liberal de sal e pimenta não podia fazer com que o bolo de carne tivesse outro gosto senão o de madeira úmida. Pensou no ensopado italiano feito pela esposa, perfumado e temperado com alecrim, e gemeu.
Finalmente, empurrou para o lado os pratos, mal tocados, e tomou uma xícara de chocolate com meio prato de pudim. Serviu-se de outra xícara e fumou um cigarro. Estava sufocado na lanchonete extremamente quente, mas nem por um momento pensou em abrir o colarinho. Não ficaria bem em público. Refletiu que era sempre possível identificar os velhos policiais, mesmo em uma sala cheia de homens nus. Os "tiras" antigos apresentavam um anel de tonalidade escura em volta do pescoço: o resto de uma vida inteira de uso daquele maldito colarinho duro.
Voltou à sala de espera no segundo andar. A enfermeira informou-lhe que localizara o Dr. Bernardi. Devidamente ataviado, assistia à operação de rins da Sra. Delaney. O capitão agradeceu a informação e foi até o telefone público instalado no corredor. Ligou para a delegacia. Estava de serviço o Tenente Rizzo, mas coisa alguma de insólito havia ou que requeresse sua atenção. Delaney deu o número da extensão da sala de espera, onde poderiam chamá-lo caso sua presença fosse necessária.
Voltou à sala, sentou-se e olhou em volta. Havia um casal de velhos italianos sentados a um canto, de mãos dadas e parecendo amedrontados. Viu um jovem de pé, encostado na parede, com uma expressão vazia no rosto. Fumava um cigarro que estava prestes a queimar-lhe os dedos. Sentada em uma cadeira de plástico, uma senhora idosa, vestida com um casaco de arminho, face ocre avermelhada, mostrava boas pernas e um pescoço pelancudo. Parecia estar fazendo um inventário do conteúdo de uma bolsa de couro de crocodilo.
Delaney sentou-se junto a uma mesa coberta de revistas. Apanhou um exemplar atrasado do Medical Progress, folheou-o, verificou que jamais poderia compreender o que o texto dizia, e deixou-o de lado. Sentado, impassível e silencioso, esperou. Aquela era a arte do detetive. Certa vez, em uma diligência, ficara sentado durante quatorze horas em um carro estacionado, urinando, quando tinha vontade, em uma embalagem cartonada de leite. Aprendia-se a esperar. Ninguém gostava de esperar, mas aprendia-se a fazê-lo.
Algumas pequenas coisas aconteceram. A enfermeira alta de grandes seios deixou o trabalho e foi substituída por uma colega de metade do seu tamanho: uma porto-riquenha surpreendentemente jovem, de olhos brilhantes, movimentos rápidos e jeito áspero de falar. Tomou o nome de todos e perguntou por que se encontravam ali. Arrumou as revistas nas mesas. Esvaziou os cinzeiros. Inesperadamente, borrifou a sala com uma lata de desodorante e abriu as janelas. A sala começou a esfriar. Delaney poderia tê-la beijado.
O jovem de expressão vazia foi chamado e saiu displicentemente, olhando para o teto. A mulher de meia-idade de casaco de arminho levantou-se de chofre, apertou fortemente o agasalho em volta do corpo e empurrou a porta de saída sem dirigir palavra à enfermeira. O idoso casal italiano continuou sentado no canto, chorando baixinho.
Os recém-chegados incluíam um espigado cavalheiro de cabelos brancos apoiado em uma bengala. Deu o nome à enfermeira, arriou-se numa cadeira, e caiu imediatamente no sono. Apareceu um casal de hippies, vestindo calças blue-jeans desbotadas, jaquetas com babados e faixas decoradas com contas em volta da cabeça. Sentaram-se de pernas cruzadas no chão e iniciaram um jogo com cartas de grande tamanho, cujos desenhos Delaney não conseguiu identificar.
Finalmente, olhou para o relógio da parede. Ficou chocado ao ver como era tarde. Dirigiu-se apressado à mesa e pediu à enfermeira informações sobre a esposa. Ela discou, perguntou, escutou, e desligou.
– Sua esposa encontra-se na sala de recuperação.
– Obrigado. Poderia dizer-me onde está o Dr. Spencer para que eu possa falar com ele?
– O senhor devia ter perguntado antes. Agora, terei que dar outro telefonema.
Deixou que ela o tratasse mal.
– Sinto muito – disse.
Ela telefonou, perguntou, desligou.
– O Dr. Spencer está operando e não pode atender.
– E o Dr. Bernardi? – perguntou teimosamente, em absoluto intimidado pelo olhar furioso da enfermeira.
Mais uma vez ela telefonou, perguntou, falou secamente com a pessoa no outro lado da linha e bateu violentamente o aparelho.
– O Dr. Bernardi já saiu do hospital.
– O quê? O quê?
– O Dr. Bernardi já saiu do hospital.
– Mas ele....
Nesse momento a porta da sala de espera abriu-se violentamente, batendo na parede com o som de um tiro de pistola. Pensando naquele fato mais tarde, Delaney chegou à conclusão de que a partir daquele momento a noite simplesmente explodiu e começou a transcorrer em um ritmo alucinante.
Era a senhora idosa de casaco de arminho. Tinha a face enrugada escarlate.
– Eles o estão matando! – gritou. – Eles o estão matando!
A pequena enfermeira saiu de trás de sua mesa. Estendeu a mão para a transtornada mulher, que ergueu um braço vestido de peles e derrubou-a com um soco.
As demais pessoas que se encontravam na sala levantaram a vista. Atônitas. Confusas. Amedrontadas. Delaney levantou-se rapidamente.
– Eles o estão matando! – gritou a mulher.
A enfermeira levantou-se com dificuldade e correu para a porta. Em passos muito lentos, Delaney dirigiu-se à histérica mulher.
– Oh, sim – disse em voz deliberadamente sem expressão, pausada. – Eles o estão matando. Oh, sim – e inclinou a cabeça.
A mulher virou-se para ele.
– Eles o estão matando! – repetiu, não gritando mais e sim puxando a pele frouxa sob o queixo.
– Oh, sim – continuou Delaney a dizer, inclinando a cabeça. – Oh sim.
Ele, para quem tocar em um estranho constituía um anátema, sabia por experiência como era importante o contato físico para se tratar com pessoas irracionais ou alucinadas.
– Oh, sim – continuou a repetir, inclinando a cabeça, mas sem sorrir uma única vez. – Compreendo. Oh, sim.
Ela olhou para a mão pousada em seu braço, mas não a sacudiu de si.
– Oh, sim – inclinou mais uma vez a cabeça. – Conte-me o que está havendo. Quero saber de tudo. Conte-me desde o começo. Quero ouvir tudo a respeito.
Naquele momento, passava o braço pelos ombros da mulher e ela se encostava nele. Foi então que um interno e um servente, vestidos de branco, entraram impetuosamente, seguidos pela furiosa enfermeira. Delaney, levando a senhora para o sofá, fez um gesto com a mão livre, mandando que se afastassem. O interno teve o bom senso de parar e deter os demais. O velho casal italiano, boquiaberto, e o casal hippie observavam em silêncio. O cavalheiro de cabelo branco continuou a dormir.
– Eles o estão matando! – gritou ela mais uma vez.
– Oh, sim – inclinou a cabeça e abraçou-a com mais força. – Conte-me tudo. Quero saber de tudo.
Conseguiu sentá-la no sofá de plástico, conservando o braço ainda em volta dos ombros dela. O interno e seus auxiliares observavam nervosos a cena, mas não se aproximaram.
– Conte-me – disse Delaney procurando tranqüilizá-la. – Conte-me tudo, desde o começo. Quero saber.
– Merda – disse inesperadamente a mulher, mexendo na bolsa de crocodilo à procura de um lenço. Assoou-se com um tremendo som explosivo, que sobressaltou todas as pessoas na sala. – O senhor é um homem muito bonito, sabe? O senhor não é igual aos outros sacanas deste açougue.
– Conte-me – repetiu ele em voz monótona – conte-me tudo.
– Bem – disse ela enxugando o nariz – tudo começou há seis meses. Henry chegou cedo do escritório e queixou-se de...
Delaney ouviu um arrastamento de pés e ergueu a vista. A sala parecia estar cheia de policiais. Oh, Deus, pensou em desespero, não me digam que essa enfermeira imbecil chamou os guardas por causa desta pobre, triste, amedrontada e histérica mulher.
Mas não podia ser. Lá estava o Capitão Richard Boznanski, da 188ª Delegacia, que ficava exatamente ao norte da sua. Reconheceu também um tenente e um funcionário da seção de Relações Públicas. Um sargento passava um braço em torno de Boznanski, sustentando-o em parte.
Delaney afastou-se da senhora idosa.
– Espere apenas um minuto – murmurou. – Voltarei. Prometo que voltarei.
O alto-falante berrava:
– Dr. Spencer, apresente-se no quarto 201, por favor. Dr. Ingram, apresente-se no 201. Dr. Gomez, apresente-se no 201, por favor. Drs. Spencer, Ingram e Gomez, apresentem-se no 201, por favor.
Delaney dirigiu-se a passos duros para Boznanski. Não estava gostando da aparência dele. Tinha a face lívida e coberta por uma leve película de suor. Os olhos pareciam mover-se incontroláveis. Notou o tremor no queixo do colega. Os lábios se tocavam e se abriam a cada segundo.
– Dick – perguntou Delaney – o que foi que houve? O que é que há?
Delaney voltou-se ao sentir uma mão no braço. Era Ivar Thorsen, Sub-inspetor, a cargo do pessoal da Divisão de Patrulha. Puxou Delaney para um lado. Começou a falar em voz baixa e seus olhos azuis não se desviaram nem por um momento dos olhos do colega.
– Foi uma emboscada, Edward. Recebemos uma chamada a respeito de um assaltante. Um carro da radiopatrulha com dois patrulheiros foi investigar. Jameson, preto, e Richmond, branco. Era um rebate falso. Em um conjunto residencial. Quando iam voltar para o carro, tiros de carabinas vieram das moitas. James levou um tiro na cabeça, e morreu. Richmond foi atingido no peito e no ventre.
– Alguma esperança? – perguntou Delaney com o rosto impassível.
– Bem. . . não, acho que não. Eu o vi. Acho que não. Mas estão reunindo este grupo de cirurgiões para operá-lo. Escute, Edward, se Richmond morrer, será o quarto homem que Boznanski perde este ano. Ele está arrasado.
– Eu vi.
– Pode ficar com ele? O corredor está cheio de repórteres e estão trazendo câmaras de TV. O Prefeito e o Comissário estão vindo para cá. Eu tenho um bocado de coisas a fazer, como você sabe.
– Sim.
– Simplesmente, fique ao lado dele. Você sabe como é.
– Certo.
Thorsen fitou-o curioso, estreitando-se os olhos gelados.
– O que é que você está fazendo aqui, Edward?
– Minha esposa foi operada hoje à noite. Pedras nos rins. Estou esperando para saber como ela se saiu.
– Jesus! – exclamou Thorsen baixinho. – Sinto muito, Edward. Eu não sabia. Como está ela?
– Estou tentando descobrir.
– Esqueça tudo a respeito do Boznanski. O sargento ficará com ele.
– Não – replicou Delaney. – Não tem importância. Ficarei aqui.
– Eles o estão matando! – exclamou a senhora idosa, segurando-lhe o braço. – Disseram-me que era uma operação simples e agora estão dizendo que há complicações. Eles o estão matando!
– Oh, sim – murmurou Delaney, levando-a de volta para o sofá. – Eu quero ouvir. Quero ouvir tudo.
Acendeu um cigarro para ela e saiu para o corredor. Mexeu nos bolsos e descobriu que tinha apenas um quarto de dólar. Ia pedir uns trocados a alguém, mas se deu conta de como isso era estúpido. Telefonou para o consultório do Dr. Bernardi. Foi atendido por um serviço automático de resposta. A máquina disse que transmitiria o recado.
Voltou à sala de espera. A agitada enfermeira encontrava-se novamente sentada à mesa. Perguntou-lhe se o Dr. Spencer continuava na sala de operações. Ela respondeu que iria verificar e, também, o estado da esposa na sala de recuperação. Agradeceu-lhe. Ela agradeceu também, amolecida e humanizada.
Voltou para junto do Capitão Richard Boznanski, já sentado, a cabeça caída para trás, respirando com dificuldade. Não tinha boa aparência. O sargento continuava de pé, com ares preocupados.
– Capitão – perguntou ele – será que existe por aqui algum uísque...?
Delaney olhou para o colega.
– Vou ver se acho.
– Ele chegou cedo do trabalho, mais ou menos há seis meses – disse ao seu lado a senhora coberta de peles – e queixou-se de uma dor no peito. Sempre fumou muito e eu pensei...
– Oh, sim – respondeu Delaney, segurando-lhe o braço. – E o que foi que disseram que era?
– Bem, os médicos não tinham certeza e queriam fazer essa operação exploratória.
– Oh, sim – Delaney inclinou a cabeça. – Espere um minuto só. Eu já volto.
Perguntou à enfermeira se tinha uísque ou onde podia encontrar um pouco. Ela explicou que o regulamento proibia servir bebidas a pacientes e visitantes. Delaney inclinou a cabeça e perguntou se ela podia descobrir o número do telefone da casa do Dr. Bernardi. Respondeu que tentaria. Indagou se podia trocar-lhe um dólar. Não podia, mas deu-lhe o trocado que tinha e recusou-se a aceitar a nota. Ele endereçou-lhe um sorriso grato. Telefonou para Ferguson, mas não o encontrou em casa. Compreendeu que havia acordado a irmã solteirona. Explicou a situação e pediu-lhe, caso Ferguson voltasse, que tentasse falar com Bernardi para saber do estado da Sra. Delaney. Em seguida, Ferguson devia telefonar-lhe para a sala de espera.
A passos duros, o capitão dirigiu-se para a extremidade do corredor do segundo andar. A porta de vaivém que dava para os elevadores estava guardada por dois patrulheiros. Eles abriram-na para deixá-lo entrar.
No momento em que saiu, foi cercado por repórteres, todos gritando ao mesmo tempo. Delaney ergueu a mão até que se fez silêncio.
– Quaisquer declarações terão que ser feitas pelo Subinspetor Thorsen ou outras autoridades. Não por mim.
– Richmond está ainda vivo?
– Sim, tanto quanto sei. Está sendo operado por uma equipe de cirurgiões. Isso é tudo o que sei. Agora, se me dão. . .
Abriu caminho à força pela multidão. Técnicos instalavam pequenas câmaras de TV em tripés nas proximidades dos elevadores. Nesse momento, Delaney viu Thomas Handry encostado numa parede. Era o repórter que o acompanhara na ronda da meia-noite. Puxou-o para um lado. Os olhos do repórter pareciam enormes e febris.
– Eu lhe disse, eu lhe disse – lembrou ele a Delaney.
– Você tem por acaso um pouco de uísque? – perguntou o capitão.
Handry fitou-o confuso.
– Tire o chapéu – ordenou Delaney.
Handry tirou-o rapidamente.
– Tem um pouco de uísque? - repetiu Delaney.
– Não, não tenho, capitão.
– Tudo de que preciso é uma dose. Pergunte aí em volta, sim? Veja se algum de seus amigos tem um frasco de uísque no bolso. Talvez um dos técnicos da TV tenha um quarto. Pagarei pela bebida.
– Perguntarei, capitão.
– Muito obrigado. Diga a um dos guardas que estão à porta para me chamar. Estarei na sala de espera.
– Se ninguém tiver o uísque, vou comprá-lo.
– Obrigado.
– Richmond morreu?
– Não sei.
Voltou à sala de espera.
– O Dr. Spencer continua operando – informou a enfermeira.
– Muito obrigado. O Dr. Ferguson telefonou?
– Não. Mas pedi informações à recuperação. Sua esposa está dormindo tranqüilamente.
– Muito obrigado.
– Uma exploratória – disse à senhora idosa, segurando-lhe o cotovelo. – Disseram que ia ser apenas uma exploratória. Agora, não querem dizer-me mais nada.
– Qual é o nome dele? – perguntou Delaney. – Talvez eu possa descobrir o que está acontecendo.
– Modell, Irving Modell. E meu nome é Rhoda Modell. Temos quatro filhos e seis netos.
– Tentarei descobrir alguma coisa – prometeu Delaney.
Voltou para junto da enfermeira. Mas ela ouvira a conversa com a mulher.
– Nenhuma chance – disse, baixinho. – Só tem algumas horas. Antes do amanhecer. Os médicos deram uma olhada e o costuraram de novo.
Ele inclinou a cabeça e olhou para o relógio. Será que o tempo havia acelerado? Passava de meia-noite.
– O que eu gostaria. . . – começou, mas viu ao lado um patrulheiro.
– Capitão Delaney?
– Sim.
– Há um repórter na porta. O nome do cara é Handry. Disse que o senhor o receberá.
– Sim, sim.
Delaney acompanhou-o. A porta abriu-se o suficiente para que Handry lhe entregasse um saco de papel pardo amassado.
– Obrigado – disse Delaney e estendeu a mão para a carteira. Handry, porém, sacudiu zangado a cabeça e foi-se embora.
Olhou para dentro do saco. Havia uma garrafa de bourbon de meio litro quase cheia. Apanhou vários copos de papel no bebedouro do corredor e voltou para a sala de espera. Boznanski ainda balançava a cabeça de um lado para o outro. Delaney encheu um copo com bourbon.
– Dick – disse.
Boznanski abriu os olhos.
– Um trago – pediu Delaney. – Dick, apenas um trago.
Levou o copo aos lábios do policial. Boznanski provou, tossiu, inclinou-se para a frente em vômitos secos e, em seguida, recostou-se. Delaney deu-lhe a bebida, gole por gole. A cor começou a voltar à face do capitão. Endireitou-se na cadeira. Delaney serviu um copo ao sargento, que o esvaziou, grato, de uma só vez.
– Oh, meu Deus – disse ele.
– Posso, senhor? – uma voz perguntou. Era o cavalheiro de cabelos brancos, finalmente acordado e estendendo uma mão trêmula que parecia forrada com papel de seda. E os dois hippies. E velho casal italiano. Apenas um gole para cada um: o cálice sacramental.
– Ele não vai conseguir, não é? – perguntou subitamente a senhora idosa, olhando para Delaney. – Eu sei que o senhor não me mentiria.
– Eu não mentiria – disse Delaney, inclinando a cabeça e servindo-lhe as poucas gotas que restavam na garrafa. – Ele não vai conseguir.
– Ah, Jesus – suspirou ela, rolando uma língua pálida pelo lado de dentro do copinho de papel encerado. – Que casamento triste foi o nosso. Mas todos são assim.
Ouviu-se um ruído do lado de fora, no corredor. O Subinspetor Thorsen entrou, tranqüilo como sempre. Dirigiu-se imediatamente ao Capitão Boznanski, que continuava sentado, e olhou-o fixamente. Em seguida, voltou-se para Delaney.
– Obrigado, Edward.
– O que me diz de Richmond?
– Richmond? Oh! Morreu. Tentaram, mas era um caso perdido. Todo mundo sabia disso. Cinco cirurgiões trabalharam nele durante quatro horas.
Delaney consultou o relógio da parede. Não podiam ser duas horas da manhã. O que havia acontecido com o tempo?
– O Prefeito e o Comissário estão aí fora – disse Thorsen em voz incolor – fazendo declarações a respeito da necessidade de leis sobre o porte de arma, e de um novo clima moral.
– Sim – disse Delaney, e dirigiu-se à mesa da enfermeira. – Onde posso encontrar o Dr. Spencer? – perguntou, áspero.
Ela fitou-o com olhos cansados.
– Tente a sala de estar. Vire à direita quando sair. Depois que passar pela porta de vaivém, há uma porta estreita à esquerda com o letreiro "Proibida a Entrada". É a sala de estar dos cirurgiões.
– Obrigado.
Seguiu-lhe as instruções. Ao empurrar sem bater a estreita porta, entrou em uma pequena sala com duas poltronas, um aparelho de TV, uma mesa de jogo e quatro cadeiras dobráveis. Encontrou cinco homens vestidos com jaquetas cirúrgicas, gorros na cabeça, e máscaras descidas até o peito. Três estavam vestidos de verde-claro e dois de branco.
Um deles olhava pela janela. Outro mexia nos botões da televisão, tentando dar maior definição à imagem. O terceiro aparava as unhas com um canivete. O quarto, sentado à mesa, tentava cuidadosamente construir um vacilante castelo de cartas. O quinto, estirado no chão, erguia e baixava as pernas em alguma espécie de ginástica.
– Dr. Spencer? – perguntou Delaney.
O homem da janela virou-se lentamente, olhou para o uniforme, e voltou a olhar para fora.
– Ele morreu – disse numa voz sem expressão. – Já lhes disse isso.
– Sei que ele está morto – respondeu o capitão. – Meu nome é Delaney. O senhor operou minha esposa no começo da tarde. Pedras nos rins. Quero saber como está ela.
Spencer voltou-se novamente para ele. Os demais continuaram em suas atividades.
– Delaney – repetiu Spencer. – Pedras nos rins. Bem. Fui obrigado a extrair um rim.
– O quê?
– Tive de extrair um dos rins de sua esposa.
– Por quê?
– Estava infeccionado, doente, podre.
– Infeccionado com o quê?
– O rim está no laboratório. Saberemos amanhã..
O médico que construía o castelo de cartas ergueu a vista.
– Pode-se viver com um só rim – disse mansamente a Delaney.
– Escute aqui – voltou Delaney, sufocando – escute, o senhor disse que não haveria problemas.
– E daí? – perguntou Spencer. – O que é que o senhor quer de mim? Não sou Deus.
– Bem, se não é – exclamou, furioso, Delaney – quem é?
Ouviu-se uma batida na porta. O homem espichado no chão, levantando e baixando as pernas, arquejou:
– Entre, entre, quem quer que seja.
Uma ajudante de enfermeira, negra, enfiou a cabeça coberta por um gorro pela fresta da porta e olhou ousadamente em volta.
– Algum dos senhores é o Capitão Delaney? – perguntou, insolente.
– Sou eu.
– Telefonema para o senhor, capitão. Na sala de espera. Dizem que é muito, muito importante.
Delaney lançou um último olhar em volta. Spencer olhava novamente pela janela e os demais faziam um esforço para parecerem ocupados. Saiu em passos duros, empurrando violento a porta de vaivém e batendo a da sala de espera. A pequena enfermeira entregou-lhe o telefone sem erguer a vista.
– Capitão Edward X. Delaney.
– Capitão, aqui é Dorfman.
– Sim, tenente, o que é?
– Sinto muito incomodá-lo, capitão. A esta hora.
– O que é?
– Capitão, houve um assassinato.

PARTE 3

A rua estava bloqueada por cavaletes amarelos, com a inscrição "Departamento de Polícia de Nova York" em um dos lados. Sob as barricadas queimavam candeeiros a óleo, globos pretos com pavios fumacentos. Pareciam bombas de anarquistas do século XIX.
O patrulheiro de serviço bateu continência e afastou um dos cavaletes para deixá-lo passar. O capitão desceu lentamente pelo centro da rua em direção ao rio. Conhecia bem aquele quarteirão, três anos antes comandara um grupo de guardas e uma equipe de especialistas da Força de Patrulha Técnica no esvaziamento de uma grande casa urbana que fora ocupada por uma quadrilha de bandidos e estava sendo sistematicamente saqueada. A casa ficava quase no meio do quarteirão. Algumas de suas luzes estavam acesas. Em um dos apartamentos, moradores, de pé à janela, olhavam para a rua.
Delaney parou um instante para examinar a cena silenciosa a frente. Compreendendo o que acontecia, tirou o quepe, fez o sinal-da-cruz e baixou a cabeça.
Cerca de doze veículos parados formavam um grosseiro semicírculo: carros de patrulha, uma ambulância, um caminhão-farol, uma camioneta do laboratório policial, três sedas sem marcas, e uma limusine preta. Uns trinta homens permaneciam de cabeça baixa, descobertos.
Aquele quarteirão havia recebido novo sistema de iluminação, que aspergia uma luz amarelada, sem sombras. Enchia umbrais de portas, vielas e esquinas como se fosse um líquido fino. Se não havia sombras, tampouco havia brilho, salvo uma espécie de luz berrante, sem calor.
Por esse nevoeiro metálico insinuava-se o nevoeiro matutino, depositando lágrimas nas capotas dos carros e no asfalto preto, umedecendo o cabelo e a face dos observadores silenciosos. Caía como uma mortalha sobre a trouxa amassada na calçada. O padre, ajoelhado, terminou a extrema-unção e ergueu-se. O grupo à espera recolocou os chapéus. Ouviu-se um murmúrio abafado de vozes.
Delaney olhou durante um momento para a litografia noturna e, em seguida, adiantou-se a passos lentos. Caiu sob o feixe forte do caminhão-farol. Os homens voltaram-se para olhá-lo. O Tenente Dorfman aproximou-se a passos rápidos e fisionomia contraída.
– É o Lombard, capitão – arquejou. – Frank Lombard, o vereador. O senhor sabe, aquele que anda falando de "crime nas ruas" e escrevendo aos jornais sobre a ineficiência da Polícia.
Delaney inclinou a cabeça. Olhou em volta para os circunstantes: patrulheiros, detetives da delegacia e da Divisão de Homicídios, especialistas do laboratório, um inspetor da Divisão de Detetives. E um Subcomissário, acompanhado de um dos secretários particulares do prefeito.
Naquele momento outra figura ajoelhou-se junto ao cadáver. O Capitão Delaney reconheceu o corpanzil do Dr. Sanford Ferguson. A despeito do brilho ofuscante dos faróis, o médico-legista usava uma caneta-lanterna e com ela examinava o crânio do morto. Afastou-se durante um momento; fotógrafos colocavam uma régua junto ao cadáver e tiravam mais fotos. Ajoelhou-se novamente na calçada úmida. Delaney dirigiu-se para ele. Ferguson ergueu a vista.
– Alô, Edward – sorriu. – Eu estava me perguntando onde se encontrava você. Dê uma olhada nisto.
Antes de ajoelhar-se, Delaney olhou durante um momento para a vítima. Não era difícil imaginar o que acontecera. O homem fora atacado por trás. A parte posterior do crânio parecia esmagada com o cabelo preto sangrento e emaranhado. Havia caído de bruços, esparramando-se pesadamente no chão. Ao cair, quebrara o fêmur da perna esquerda, que naquele momento se projetava em um ângulo estranho. Caíra com tal violência que a extremidade lascada do osso furara a calça.
Ao cair, devia ter batido com o rosto na calçada, pois escorria sangue do nariz quebrado, talvez de uma boca esmagada e de contusões na face. A poça de sangue, ainda não coagulada, fazia um pequeno círculo em volta da cabeça do morto e corria por uma rachadura no chão para uma árvore esquelética, plantada na calçada.
Delaney ajoelhou-se com cuidado, evitando tocar em uma carteira de couro, que se encontrava junto ao corpo. O capitão virou-se e estreitou os olhos para os holofotes.
– Já foi borrifada a carteira para a tomada de impressões digitais? – perguntou a alguém que não podia ver.
– Ainda não, senhor.
Delaney olhou para a carteira.
– Crocodilo. Não conseguirão muita coisa dela. – Tirou uma esferográfica do bolso da túnica e, suavemente, abriu-a, tocando em um dos lados apenas. O Dr. Ferguson virou para a carteira o feixe da lanterna. Viram ambos um grosso maço de notas verdes.
Delaney deixou a carteira meio aberta e voltou a olhar para o corpo. Ferguson dirigiu o feixe da lanterna para o crânio. Três homens em trajes de passeio aproximaram-se e ajoelharam-se em volta do corpo. Os cinco se curvaram, as cabeças quase se tocando.
– Porrete? – perguntou um dos detetives. – Talvez um cano?
– Acho que não – disse Ferguson sem erguer a vista. – Não há esmagamento ou depressão. Vocês estão vendo sangue e cabelos desgrenhados. Mas há uma penetração. Como se fosse uma perfuração. Um orifício de mais ou menos dois e meio centímetros de diâmetro. Parece redondo. Poderia enfiar o dedo por ele.
– Martelo?
Ferguson sentou-se sobre os tornozelos.
– Martelo? Sim, talvez. Depende da profundidade da perfuração.
– Quanto tempo, doutor? – perguntou um dos detetives.
– Parece que umas três horas. Não, digamos duas horas. Mais ou menos à meia-noite. Apenas um palpite.
– Quem o encontrou?
– Foi visto pela primeira vez por um motorista de táxi, mas ele estava embriagado e não parou. O motorista encontrou uma das patrulhas de sua delegacia na York Avenue, capitão, e ela veio até aqui.
– Quem eram?
– McCabe e Mowery.
– Mexeram no corpo ou na carteira?
– McCabe disse que não tocaram no cadáver. Acrescentou que a carteira estava aberta, com a parte interna para cima, aparecendo a carteira de identidade e os cartões de crédito nos bolsos plásticos. Foi assim que souberam que era Lombard.
– Quem fechou a carteira?
– Mowery.
– Por quê?
– Disse que estava começando a chuviscar e tiveram medo de que a chuva aumentasse e estragasse as impressões digitais que existissem nos bolsos plásticos da carteira. Explicou que viram que era uma carteira de couro áspero e que era mais provável que as impressões digitais estivessem no plástico do que no couro. Em vista disso fechou a carteira, usando um lápis. Disse que não tocou nela. McCabe confirmou o que ele disse e acrescentou que a carteira se encontra a uns cinco centímetros, no máximo, do lugar onde a achou.
– Quando foi que o motorista parou na York Avenue e lhes disse que havia alguém caído aqui?
– Há mais ou menos uma hora. Mais certo, cinqüenta minutos, talvez.
– Doutor – perguntou Delaney – podemos virá-lo agora?
– Tiraram as fotos? – rugiu um detetive para a escuridão,
– Precisamos de uma de frente – ouviu em resposta.
– Cuidado com essa perna – disse Ferguson. – Um de vocês segure-a junto da outra enquanto viramos.
Cinco pares de mãos seguraram cuidadosamente o cadáver e o puseram de costas. Os cinco afastaram-se enquanto dois fotógrafos tiravam fotos distantes e próximas da vítima. O círculo fechou-se novamente.
– Nenhum ferimento na frente, tanto quanto posso ver – comunicou Ferguson, passando a luz da lanterna pelo cadáver. – A perna quebrada e as contusões faciais são conseqüências da queda. Pelo menos a pele arranhada indica isso. Saberei com exatidão quando fizer a autópsia. A penetração foi a causa da morte.
– Morreu antes de cair?
– Talvez, se a perfuração for suficientemente profunda. Ele é. . . era um homem corpulento. Talvez cem quilos. Caiu pesadamente. – Apalpou as mãos, ombros e pernas do morto. – Sólido. Pouca gordura. Boa camada de músculos. Ele poderia ter reagido. Se tivesse tido oportunidade.
Ficaram silenciosos, olhando fixamente para o cadáver. Não fora um homem bonitão, mas suas feições eram bem marcadas e não desagradáveis: queixo forte, lábios cheios, nariz carnudo (naquele momento, quebrado), sobrancelhas pretas grossas, e um bigode pendente. Os dentes, intactos, eram grandes, brancos, quadrados, como lousas de túmulos. Olhos vazios fitavam o céu lacrimejante.
Delaney inclinou-se subitamente para a frente e aproximou o rosto do rosto do morto. O Dr. Ferguson agarrou-o pelo ombro e puxou-o para trás.
– O que é que você está fazendo, Delaney? – exclamou. – Beijando o pobre calhorda?
– Cheirando – explicou Delaney. – Cheirando o bigode. Alho, vinho, e mais alguma coisa.
Ferguson inclinou-se cuidadosamente e cheirou o grosso bigode.
– Erva-doce. Vinho, alho e erva-doce.
– Um jantar italiano – disse um dos detetives. – Talvez não tenha dado gorjeta ao garçom e o cara seguiu-o e matou-o.
Ninguém riu.
– Ele é italiano – disse alguém. – O nome não é Lombard, mas Lombardo. Abandonou o "o" quando entrou na política. O distrito dele em Brooklyn é habitado principalmente por judeus.
Ergueram a vista. Era o Tenente Rizzo, da 251ª Delegacia.
– Como é que sabe disso, tenente?
– Ele era. . . primo de minha mulher. Foi ao nosso casamento. A mãe mora por aqui, em algum lugar. Telefonei para minha mulher. Ela está chamando os parentes, procurando descobrir o endereço da mãe dele. Explicou que Lombard vinha aqui de vez em quando almoçar com a mãe. Dizem que ela é boa cozinheira.
Os cinco levantaram-se chocados e limparam a umidade dos joelhos. O Dr. Ferguson fez um sinal à ambulância. Dois homens aproximaram-se trazendo um saco de lona. O técnico do laboratório chegou com um saco plástico e uma pinça para apanhar a carteira.
– Edward – disse Ferguson – esqueci-me de perguntar. Como está indo sua esposa?
– Foi operada hoje à noite. Ou melhor, ontem à tarde.
– E...?
– Tiveram de extrair-lhe um dos rins.
Ferguson ficou silencioso durante um momento. Perguntou em seguida:
– Infeccionado?
– Foi o que Spencer me disse. Bernardi assistiu à operação, mas não consegui falar com ele.
– O salafrário complacente. Logo que conseguir um telefone, tentarei descobrir que diabo está acontecendo. Onde posso falar-lhe?
– Na delegacia, provavelmente. Teremos de reorganizar as escalas de serviço e verificar quantos guardas podemos destinar a interrogatórios de porta em porta. Vão nos tirar os detetives.
– Ouvi falar, Edward. Telefonarei, se descobrir alguma coisa. Se não telefonar foi porque não consegui falar com Spencer ou Bernardi.
Delaney inclinou a cabeça. O Dr. Ferguson tomou a ambulância, que partiu com a sirena aberta. O Tenente Dorfman aproximou-se-. O subcomissário, porém, saiu da escuridão e segurou o cotovelo de Delaney. O capitão não gostava de ser tocado. Suavemente, desvencilhou-se.
– Delaney?
– Sim, senhor.
– Meu nome é Broughton. B-r-o-u-g-h-t-o-n. Acho que nunca nos encontramos.
Haviam se encontrado sim, mas Delaney não mencionou o fato. Trocaram um aperto de mão. Broughton, um homem gordo e informe, fez um gesto para Delaney em direção à limusine preta. Abriu a porta traseira, indicou a Delaney que entrasse e sentou-se a seu lado.
– Vá tomar um café, Jack – ordenou ao motorista uniformizado.
Ficando a sós, Broughton ofereceu-lhe um charuto, que Delaney declinou. O subcomissário acendeu o seu, cuja ponta brilhou fortemente, enchendo o carro de fumaça.
– É uma merda – disse, irritado. – Por que diabo não podemos conseguir charutos de Havana? Estaremos, por acaso, derrotando o comunismo ao fumar merda de cavalo? Que tipo de loucura é essa?
Reclinou-se no assento, olhando pela janela para a calçada, onde alguém havia marcado com um giz a forma do cadáver antes de o removerem.
– Vai haver um bocado de barulho. O comissário cancelou um discurso que ia fazer em Kansas City – Kansas City, Deus – e está voltando de avião. O senhor provavelmente viu o secretário do prefeito. O homem já anda em cima da gente. E não acho que aquele maldito governador deixe de intervir. Conhece esse Lombard, o cara que foi assassinado?
– Li declarações dele aos jornais e o vi na televisão.
– Exato, ele obteve publicidade, Assim, o senhor sabe o que vamos enfrentar. "Crimes nas ruas. . . ausência de lei e ordem... criminosos e bandidos à solta. . . faça-se uma reforma no Departamento de Polícia... o comissário deve exonerar-se. . ." O senhor sabe. Aquele bosta ia candidatar-se a prefeito. Agora que ele foi liquidado, se não conseguirmos descobrir o assassino, isso provará que ele tinha razão. Compreende como é séria a situação, capitão?
– Eu considero assunto grave todos os homicídios.
– Bem. . . sim. .. claro. Mas com a política envolvida... Compreende isso?
– Sim, senhor.
– Muito bem. Isto é uma coisa. Agora, a outra. .. Esse assassinato não poderia ter sido cometido em pior ocasião. Recebeu o memorando do comissário sobre os detetives nas delegacias?
– Memorando quatro seis sete barra B, datado de oito de outubro. Assunto: Divisão de Detetives, Reorganização de. Sim, senhor. Recebi-o.
Broughton soltou uma curta risada.
– Ouvi falar a seu respeito, Delaney. Sim, é esse mesmo. – Arrotou subitamente, em um som cheio e líquido. Não se desculpou. Coçou a virilha. – Muito bem, vamos tirar os detetives das delegacias. A sua é a próxima. Recebeu a notificação?
– Recebi.
– Começa na segunda-feira. Os detetives serão organizados em unidades especializadas – homicídios, roubos e furtos, roubos em caminhões, roubos em hotéis, e assim por diante. O senhor terá que ministrar aos seus guardas um curso de emergência sobre o que devem procurar. Está tudo detalhado em um manual que vai receber. Os guardas apresentarão um relatório. Se for um grande roubo, digamos, de mais de $ 1,500 em dinheiro ou mercadorias, a unidade de detetives assumirá a responsabilidade do caso. Se for um pequeno crime ou assalto, o patrulheiro fará o que puder ou comunicará que o caso é insolúvel. Experimentamos o sistema em duas delegacias da zona oeste e achamos que vai dar certo. O que é que o senhor acha?
– Não gosto – respondeu imediatamente Delaney. – Tira os detetives das delegacias e da vizinhança. Às vezes, eles conseguem os melhores êxitos simplesmente porque conhecem a vizinhança – quem está desaparecido, os novos bandidos que surgiram, quem anda exibindo dinheiro. Da maneira como entendo a coisa, uma unidade especializada de detetives pode abranger quatro ou cinco delegacias. Gosto da idéia de guardas obtendo experiência em trabalho de investigação. Eles gostarão. Funcionarão como detetives – que é o que a maioria pensa que é o trabalho da polícia, em vez de levar velhos a hospitais e resolver brigas familiares. Mas enquanto estiverem investigando e fazendo aquele relatório preliminar, sairão da ronda e terei menos guardas visíveis e em patrulha. Não gosto disso.
Broughton enfiou uma ponta de dedo no nariz, tirou alguma coisa, rolou-a até formar uma bola entre o polegar e o indicador. Abriu a porta do carro e lançou-a fora.
– Bem, você terá de aceitar o sistema – disse ele friamente. – Pelo menos durante um ano, até obtermos estatísticas e vermos o que acontece às nossas taxas de solução de casos. Mas agora esse filho da mãe, o Lombard, morre no meio da mudança. Assim, temos ainda a Delegacia de Homicídios Norte, a nova unidade de homicídios, que inclui sua delegacia, e o senhor tem ainda seus detetives. Jesus Cristo, esses caras todos vão andar se acotovelando, cobrindo o mesmo terreno, e de quem é a responsabilidade? O troço vai dar uma complicação dos diabos. Tem alguma idéia de como resolver a situação?
Delaney ergueu surpreso os olhos. A pergunta final fora feita tão inesperadamente que, mesmo que estivesse se perguntando qual o motivo daquela conversa, não estava preparado para respondê-la.
– Pode me dar vinte e quatro horas para pensar no caso? Talvez eu possa sugerir alguma coisa.
– Nada feito – disse, impaciente, Broughton. – Agora mesmo vou ao aeroporto buscar o comissário e necessito de algumas sugestões sobre a maneira de resolver esta confusão. Ele vai querer ação. O prefeito e todos os vereadores farão pressão sobre ele. E se não produzir alguma coisa, provavelmente vão lhe tirar o couro. E se for o couro dele, é o meu também. Compreendeu?
– Sim.
– Concorda que a situação está agora completamente enrolada no tocante à organização?
– Sim.
– O senhor é um bocado falador, não? – Broughton soltou uma bem audível ventosidade e mexeu o traseiro sobre o assento do carro. – Andei ouvindo dizer que é esperto, capitão. Muito bem, eis sua oportunidade: dê-me um exemplo, agora mesmo.
Delaney encarou-o com antipatia, reconhecendo a grossa energia do homem, mas irritado com os seus ares intimidadores e enojado com seus hábitos pessoais.
– Tente uma organização horizontal, temporária – disse, com voz inexpressiva. – O Departamento, tal como o Exército e a maioria das empresas, é organizado verticalmente. As responsabilidades e a autoridade são investidas no homem que se encontra no topo. As ordens descem por uma cadeia de comando. Todas as divisões, delegacias, unidades, o que quer que seja, têm uma missão definida. Mas, às vezes, surgem problemas que não podem ser resolvidos por esse tipo de organização. É geralmente um problema de duração limitada, que talvez nunca mais ocorra. O assassínio de Lombard ocorre exatamente no meio da reorganização da Divisão de Detetives. Muito bem, faça o que o Exército e a maioria das empresas fazem quando enfrentam uma situação excepcional, que não requer uma organização permanente. Crie uma força-tarefa temporária. Chame-a "Operação Lombard", se quiser. Nomeie um comandante-geral. Dê-lhe plena responsabilidade e autoridade para requisitar, em qualquer unidade, o pessoal e o equipamento de que precisar. Detetives, patrulheiros, especialistas, todos os que possam ajudá-lo a cumprir a missão. O pessoal seria designado em base temporária. Toda a operação é temporária. Depois, e se o assassino de Lombard for descoberto, o pessoal volta para suas unidades.
Uma luz brilhou nos olhos sombrios de Broughton. Riu jubiloso e esfregou as mãos, uma na outra, entre os joelhos.
– Eles não estavam brincando, não, você é um cara inteligente, Delaney. Gosto da idéia. Acho que o comissário vai gostar também. Uma força-tarefa especial: "Operação Lombard". Isso mostrará que estamos agindo. Certo? Isso deve satisfazer ao prefeito e aos jornais. Quanto tempo acha que será necessário para solucionar o caso Lombard?
Delaney fitou-o, atônito.
– Como é que posso saber? Como pode alguém saber? Talvez alguém esteja confessando agora mesmo. Talvez o caso nunca seja solucionado.
– Por favor, nem diga isso.
– O senhor já leu por acaso as estatísticas de solução de homicídios? Se os casos não forem solucionados nas primeiras quarenta e oito horas, a probabilidade de solução cai verticalmente e continua a cair à medida que o tempo passa. Após um mês ou dois, a probabilidade de solução é praticamente nula.
Broughton inclinou sombriamente a cabeça, saiu do carro, e cuspiu na sarjeta o charuto frio. Delaney desceu e permaneceu ao lado enquanto o motorista uniformizado aproximava-se correndo. Broughton sentou-se no assento dianteiro, junto ao motorista. Ao afastar-se a limusine, o capitão bateu uma grave continência. O cumprimento, porém, não foi retribuído.
Durante um momento, Delaney inspecionou a rua. O primeiro contingente de guardas uniformizados de sua delegacia apareceu em grupos de dois e três e reuniu-se em volta do esboço riscado a giz na calçada. Aproximou-se, ouviu, as ordens dadas pelo sargento.
– Todos trouxeram lanternas? – perguntou. – Muito bem, vamos nos espalhar a partir daqui. Vagarosamente. Compreenderam? Vagarosamente. Inspecionaremos todas as latas de lixo. . . – Subiu um gemido coletivo dos guardas reunidos. – Houve coleta ontem nesta rua e, assim, a maioria das latas deve estar vazia. Todas as latas devem ser examinadas. Vamos pedir outra coleta hoje e as latas serão examinadas mais uma vez quando forem depositadas no caminhão de lixo. Além disso, toda a área e as vielas. Examinem esgotos e galerias pluviais. Trata-se de uma busca preliminar. Amanha, o pessoal da limpeza pública vai tirar as tampas de todas as bocas-de-lobo e grades e examinar a lama. Bem, vamos procurar alguma coisa que pareça uma arma. Pode ser um revólver ou uma faca. Mas, procurem especialmente um porrete, um pedaço de cano, uma barra de ferro, um martelo, ou talvez uma pedra suja de sangue. Qualquer coisa que contenha sangue. E isso inclui chapéu, roupa, lenço, talvez um farrapo. Se não tiverem certeza, chamem-me. Não ignorem coisa alguma. Vasculharemos em primeiro lugar este quarteirão. Depois, cruzaremos a avenida para o quarteirão seguinte. Voltaremos em seguida e faremos um bloco ao sul e um bloco ao norte. Compreenderam? Muito bem, movam-se.
Delaney observou as lanternas elétricas se espalharem a partir do ponto onde o sangue escuro ainda brilhava no nevoeiro matutino. Sabia que aquilo precisava ser feito, mas não invejava o trabalho dos homens. Era possível que encontrassem alguma coisa. Possível. Descobririam também, sabia, lixo de revolver o estômago, vômitos, um gato morto e, talvez, o corpo sangrento de um recém-nascido.
Pela manhã, mais homens fariam a mesma coisa, e mais outros, e mais outros. A busca se alargaria cada vez mais até cobrir toda a jurisdição de sua delegacia e, finalmente, a maior parte de Manhattan.
Naquele momento, observava atento os policiais iniciarem a busca. Inesperadamente, deu-se conta de que o cansaço havia desaparecido, ou talvez estivesse tão exausto que ficara embotado. Apertou as mãos atrás das costas e dirigiu-se para a balaustrada do rio. Ali, voltou-se, de frente para a York Avenue, e começou a pensar como poderia ter ocorrido o assassinato.
O corpo de Lombard fora encontrado sobre a calçada, a quase meio caminho entre o rio e a avenida. Se jantara com a mãe, era razoável supor que ela morava em um ponto entre o rio e o local onde fora encontrado. Caíra na direção da York. Estivera mais ou menos à meia-noite caminhando até um ponto de ônibus, uma estação do metrô, ou talvez para seu carro, a fim de iniciar a jornada de volta para sua casa em Brooklyn?
Caminhando lentamente, Delaney inspecionou os prédios entre o rio e o local onde fora descoberto o corpo. Eram casas de pedra cinzenta, algumas de cômodos. As frentes das casas eram desimpedidas: não havia local onde o assassino pudesse ter-se ocultado, embora fosse concebível que pudesse ter estado em um saguão, ostensivamente inspecionando campainhas, de costas para os transeuntes. Delaney, porém, duvidava disso. Correria o perigo de ser visto por um morador.
As entradas das casas de cômodos desciam três ou quatro degraus a partir da calçada. Havia altas moitas e canteiros de trepadeiras, ainda verdes, que poderiam ter oferecido alguma cobertura a um assassino ali agachado. Delaney, no entanto, não acreditava nisso. Nenhum assassino, mesmo que treinado e usando sapatos de crepe-sola, poderia saltar do esconderijo, subir rapidamente três ou quatro degraus, e atacar a vítima por trás sem fazer barulho. Lombard, nesse caso, se voltaria para o atacante, erguendo talvez um braço para proteger-se ou fazendo algum movimento para escapar. Apesar de tudo, aparentemente fora atacado sem aviso prévio, de surpresa.
Mal se movendo, Delaney olhou fixamente para as fachadas dos prédios do outro lado da rua. Era possível, reconheceu, que o assassino tivesse esperado em uma entrada externa de um edifício até que Lombard passasse.a caminho da York Avenue. Mas, novamente, Lombard o teria ouvido, sem dúvida, ou lhe sentido a presença. E nesse quarteirão, à meia-noite, permitiria um homem tão conhecedor dos crimes nas ruas, como Lombard, que alguém o seguisse sorrateiramente? O vereador poderia ter corrido em direção à movimentada York Avenue, ou mesmo disparado para o outro lado da rua a fim de abrigar-se em alguma casa de cômodos com porteiro.
Todas essas hipóteses, naturalmente, pressupunham que Lombard fora um alvo escolhido, que o assassino o seguira ou, pelo menos, sabia que ele viria àquela rua naquela ocasião. Mas a rapidez e o êxito completo do ataque eram os pontos que mais o interessavam no momento. Voltou sobre os próprios passos até a balaustrada do rio, virou-se, e começou novamente a caminhar em direção à York.
– O que é que o capitão está querendo, sargento? – perguntou um patrulheiro. Encontrava-se parado junto ao esboço traçado a giz na calçada, encarregado de afastar os curiosos.
O sargento olhou para a rua, que vinha sendo percorrida lentamente pelo capitão.
– Ora, está procurando pistas – explicou suavemente. – Vai encontrar com certeza um selo francês carimbado, uma luva de mão esquerda faltando o mindinho, ou talvez uma pena de peru. Resolverá em seguida o mistério e será promovido a inspetor. Que diabo pensa você que ele está fazendo?
O patrulheiro não sabia, nem tampouco o sargento.
Outra possibilidade em que Delaney pensava era que o assassino estivesse caminhando lado a lado com Lombard, que os dois fossem amigos. Mas poderia o assassino sacar da arma, colocar-se atrás da vítima e atacá-la diretamente por trás sem que Lombard se voltasse assustado, procurasse desviar-se, ou aparar o golpe?
O ponto nebuloso era ainda a rapidez do ataque e também o fato de que Lombard, homem forte e musculoso, aparentemente não oferecera resistência e permitira que o assassino o atacasse pelas costas.
Delaney parou durante um momento e pensou no caso. Estava correndo demais. Talvez o assassino não houvesse se aproximado pela retaguarda. Talvez houvesse caminhado diretamente para Lombard, vindo da York Avenue. Se estivesse bem vestido, andando rapidamente, como um morador do quarteirão ansioso por chegar em casa à meia-noite, as possibilidades eram de que Lombard o houvesse observado quando ele se aproximava. Se tivesse boa aparência, Lombard poderia ter-se desviado ligeiramente para deixá-lo passar.
A arma, naturalmente, deveria estar escondida. Mas se fosse um cano ou um martelo, de grande número de maneiras isso poderia ser feito – dentro de um jornal dobrado, sob um sobretudo conduzido no braço, mesmo em um pacote falso. Logo depois de ter passado por Lombard, estando a atenção da vítima concentrada na área à frente, o assassino poderia ter tirado a arma, girado, e lhe esmagado o crânio. Tudo isso em um instante. Lombard não teria tido aviso. Tombaria para a frente, já morto. O assassino recolocaria a arma no meio usado para disfarçá-la, e voltaria para a York Avenue ou mesmo continuaria até seu próprio apartamento, até o apartamento de um amigo, ou um carro estacionado em um ponto de fuga conveniente.
Delaney refez a cadeia de raciocínio. Quanto mais a estudava, mais forte parecia. Dava-lhe a sensação de que estava certa. Supondo que o assassino fora um estranho para Lombard. Mas, se estava bem vestido, tinha uma aparência "legítima" e, aparentemente, ia apressado para casa, era duvidoso que Lombard ou qualquer outra pessoa cruzasse a rua para escapar de um ataque. O capitão descartou a idéia de que, após o crime o assassino fora para seu próprio apartamento ou para o apartamento de um amigo. Indubitavelmente, desconfiaria de que todos os moradores do quarteirão seriam interrogados e seu paradeiro verificado à hora do crime. Não, o assassino voltara à York ou escapara em um carro estacionado nas proximidades.
Delaney voltou à balaustrada que fechava a East River Drive, cruzou a rua, olhou para a calçada onde fora encontrado o corpo, e tomou a direção em que a vítima estivera andando.
Bem, sou Frank Lombard e daqui a pouco estarei morto. Acabei de jantar com minha mãe. Saí do prédio de apartamentos onde ela mora à meia-noite. Estou com pressa de chegar à minha casa em Brooklyn. Caminho apressadamente, olhando constantemente em volta. Estou consciente da incidência de assaltos nas ruas e procuro verificar se há alguém escondido, esperando para atingir-me na cabeça ou dar-me um soco.
Olho para a frente. Um homem vem em minha direção, procedente da York Avenue. No brilho sem sombras da nova iluminação, vejo que está bem vestido, levando um sobretudo no braço. Caminha também apressado, ansioso para chegar em casa. Compreendo muito bem isso. Ao aproximar-se, nossos olhos se encontram. Sorrimos ambos tranqüilizadoramente. "Está tudo bem", diz o sorriso. "Nós dois estamos bem vestidos. Temos boa aparência. Não somos assaltantes". Afasto-me um pouco para deixá-lo passar. No instante seguinte, estou morto.
Delaney parou junto ao esboço desenhado na calçada. A situação começou a parecer-lhe real. Explicava por que Lombard aparentemente não fizera movimento algum para defender-se e por que não tivera tempo de fazê-lo. Lentamente, o capitão dirigiu-se para a York Avenue. Voltou-se e reiniciou a marcha em direção ao rio.
Agora sou o assassino, levando um sobretudo no braço. Sob o sobretudo, escondido, seguro o cabo de um martelo. Ando rapidamente, em passadas bem fortes. À minha frente, sob o fulgor amarelado das luzes, vejo o homem que tenho de matar. Dirijo-me para ele em passos vivos. Ao aproximar-me, inclino a cabeça, sorrio, e preparo-me para passar por ele. Nesse instante, ele olha diretamente para a frente. Passo, tiro o martelo, giro, ergo-o e ataco-o. Ele cai, de braços e pernas abertos. Escondo novamente o martelo, volto rapidamente para York Avenue e fujo.
O Capitão Delaney parou novamente junto ao desenho. Sim, poderia ter acontecido dessa maneira. Se o assassino tivesse coragem e determinação – e sorte, naturalmente. Sempre a sorte. Ninguém olhando pela janela. Ninguém na rua àquela hora. Nenhum táxi subitamente vindo da York, focalizando-o com os faróis no momento em que desferia o golpe. Mas, supondo a sorte do assassino, tudo aquilo... ah, Jesus! A carteira! Esquecera inteiramente a maldita carteira!
A carteira era do tipo de dobrar, dessas que o indivíduo leva geralmente no bolso traseiro da calça. Delaney notara que adquirira uma pequena curvatura, tomando a forma da nádega. Ele usava o mesmo tipo de carteira e ela começava a curvar-se após alguns meses de uso.
Lombard estava usando uma "jaqueta de automobilista", de três quartos, abotoada na frente com pinos de madeira. Nas costas, a jaqueta e o paletó por baixo haviam subido o suficiente para expor os bolsos da calça. Bem, por que havia parado o assassino para revistar a vítima e procurar a carteira, largando-a em seguida, aberta, ao lado do corpo, mesmo que estivesse cheia de dinheiro? Cada momento que demorasse, cada segundo, constituía um perigo mortal para ele. Ainda assim, revistou o cadáver e tirou-lhe a carteira. E deixou-a aberta ao lado do corpo.
Por que não tirou o dinheiro... ou levou a carteira? Não porque ficasse amedrontado com o aparecimento de alguém em uma janela ou na rua. Um homem com coragem suficiente para aproximar-se da vítima de frente teria coragem bastante para levar a carteira, mesmo que corresse perigo. Um homem pode correr tão depressa com uma carteira como sem ela. Não, ele simplesmente não queria o dinheiro. O que queria ele? Conferir a identidade da vítima... ou tirar algo da carteira, algo que a polícia ainda desconhecia?
Delaney voltou à York Avenue, fez a volta e foi até o fim da rua.
Bem, sou o assassino e estou levando um sobretudo no braço. Sob o sobretudo...
Delaney sabia, como qualquer outro homem do Departamento, quais eram as possibilidades de solucionar aquele homicídio. Sabia que, em 1971, Nova York tivera mais assassinatos do que baixas americanas em combate no Vietnã durante o mesmo período. Em Nova York, mais de cinco pessoas eram diariamente baleadas, esfaqueadas, estranguladas, atingidas por porretadas, queimadas vivas, ou atiradas de telhados. Em uma sangueira tão horrenda, o que significava mais uma morte?
Mas se isso se tornasse a atitude geral, a atitude aceita, a atitude da sociedade – "O que importa mais um?" – então, o assassinato de Frank Lombard era um incidente sem significação. Quando a peste ataca, quem se importa o suficiente para lamentar uma única alma?
Quando o Capitão Edward X. Delaney explicara ao jornalista por que se havia tornado policial, dissera o que pensava: que acreditava haver uma harmonia eterna no Universo, em todas as coisas animadas e inanimadas, e que o crime constituía uma dissonância na música das esferas. Era o que pensava.
Talvez fosse conseqüência de sua educação católica o desejo de consertar o mundo. Queria ser o procurador de Deus na Terra. Era, sabia, um desejo vergonhoso. Reconhecia o pecado. Era orgulho.

2

O que era aquilo? Não lhe podia decifrar nem a forma nem o significado. Uma coisa frágil sob o lençol branco e o cobertor azul, com os braços magros do lado de fora. Pálpebras pesadas, mais coladas do que abertas, olhos salientes no rosto, lábios pálidos repuxados no duro sorriso da morte, um corpinho tão frágil que lhe parecia ser achatado pelo cobertor. E tubos, ataduras, aço e plástico – novos órgãos estes – vidros e bolsas de drenagem. Freneticamente, procurou sinais de vida, olhou, olhou fixamente e, por fim, viu um cansado arfar do peito, não mais gordo do que o de um rapaz. Pensou no corpo de Frank Lombard e ficou em dúvida. Havia alguma ligação? Compreendeu que via ambos através de olhos úmidos e pesados.
– Ela está sob a ação de sedativos – sussurrou a enfermeira – mas está-se recuperando bem. O Dr. Bernardi espera-o na sala de estar dos cirurgiões.
Procurou algo que pudesse beijar, uma área nua de pele, livre de tubos, agulhas, correias e ataduras. Tudo o que queria era fazer um sinal, apenas um sinal. Curvou-se para beijar-lhe o cabelo mas sentiu arame sob os lábios.
– Eu mencionei a possibilidade – disse Bernardi, examinando as unhas. Ergueu a vista acusadora para Delaney, desafiando-o a negar o fato. – O senhor deve lembrar-se de que falei em uma infecção protéica.
O capitão permanecia sentado, impassível, ansiando pelo sono como um viciado. Sentavam-se nas extremidades opostas da mesa de jogo da sala de estar dos médicos. Havia cartas espalhadas pelo tampo, a maioria virada para baixo, mas viam-se descobertos uma rainha de copas e um nove de espadas.
– Infecção! – repetiu sombriamente Delaney. – Como é que o senhor sabe?
– É o que informa o laboratório.
– E acha que o laboratório sabe mais do que o senhor e seus colegas, que diagnosticaram a doença de minha esposa como pedras nos rins?
Mais uma vez, a película opaca desceu sobre os olhos faiscantes do médico. Endureceu-se-lhe o corpo e ele fez um gesto que Delaney nunca o vira fazer antes: colocou a ponta do indicador direito no ouvido direito e, com o polegar, prendeu o ar, exatamente como um homem que se assoa.
– Capitão – disse em sua voz untuosa – eu lhe garanto. . .
– Muito bem, muito bem. – Com um gesto Delaney ignorou o pedido de desculpas. – Evitemos perder tempo. O que é uma infecção protéica?
Bernardi animou-se, como sempre quando havia oportunidade de exibir a sua erudição. Naquele momento, fez o gesto habitual de juntar os indicadores e pressioná-los contra os lábios grossos.
– Proteu – cantarolou feliz. – Um deus grego do mar, que podia mudar à vontade de aparência. O senhor deve interessar-se por isso, capitão. Um milhão de diferentes formas e disfarces, à vontade. Isso complicaria a tarefa de um policial, hem?
Delaney grunhiu enojado. Bernardi não lhe deu atenção.
– E, assim, o nome foi dado a esse tipo especial de infecção. Uma infecção não é uma doença, mas não precisamos entrar nesse assunto. Seja suficiente dizer que a infecção protéica toma, freqüentemente, a forma, a aparência, a configuração e os sintomas de uma dúzia de outras infecções e doenças. Muito difícil de diagnosticar.
– Raras? – perguntou Delaney.
– Rara, a protéica? – disse o médico, erguendo as sobrancelhas. – Diria que não. Mas não comum demais. A literatura não é extensa no particular. Foi isso que andei pesquisando esta manhã. Li tudo o que pude sobre ela.
– O que é que a causa? – perguntou Delaney fazendo um esforço para ocultar o ódio na voz e ser tão impessoal e indiferente como macarrão.
– Eu lhe disse. O Bacilo Proteu. B. Proteu. Existe em todos nós. Geralmente, no trato intestinal. Temos todos os tipos de animais bons e maus mexendo-se dentro de nós, como sabe. Às vezes, geralmente em seguida a uma operação abdominal, o B. Proteu enfurece-se. Descontrola-se. Às vezes, no trato urinário ou em um órgão específico. Raramente na própria corrente sangüínea. Os sintomas habituais são febre alta, calafrios, dores de cabeça, ocasionalmente vômitos, que são – como tenho certeza que o senhor sabe – sintomas de uma dezena de outras infecções. O Proteu ocasiona certas mudanças no sangue, difíceis de se determinar com exatidão. O tratamento recomendado para essa infecção é o emprego de antibióticos.
– O senhor tentou isso.
– Exato. Mas asseguro-lhe, capitão, que não esgotei todo o espectro. Essas chamadas "drogas maravilhosas" não são absolutamente tão maravilhosas, assim. Uma delas pode liquidar determinado bacilo. Ao mesmo tempo, estimula o crescimento de outro, mais virulento. Os antibióticos não devem ser usados levianamente. No caso de sua esposa, acho que a infecção foi deflagrada pela histerectomia. Todos os sintomas, porém, apontavam para pedras nos rins, e coisa alguma havia nos exames ou chapas para contrariar esse diagnóstico. Ao chegar o Dr. Spencer ao órgão, vimos que um rim precisaria ser extraído. Tinha de ser. Compreende?
Delaney não respondeu.
– Vimos que havia ainda focos de infecção, pequenos e espalhados, que não podiam ser removidos pela cirurgia. Agora, precisamos recomeçar, na esperança de que a principal fonte da infecção tenha sido eliminada e possamos liquidar os focos restantes com antibióticos.
– Na esperança, doutor?
– Sim, na esperança, capitão.
Os dois se entreolharam.
– Ela está morrendo, não está, doutor?
– Eu não diria isso.
– Não. O senhor não diria.
Levantou-se arrastando os pés e saiu em passos cambaleantes da sala.
Agora, sou o assassino, o Bacilo Proteu. Estou nos rins de minha esposa. Eu sou...
Voltou à delegacia sob o sol forte da tarde. Pensou em como queria estar com ela. Não achou que devesse ou que fosse bom fazer-lhe companhia, mas queria. Sabia que não podia cuidar dela enquanto durasse a doença e continuar ainda a funcionar eficientemente como o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. Em sua máquina portátil, escreveu uma carta ao Inspetor Ivar Thorsen, Divisão de Patrulha, solicitando aposentadoria imediata. Preencheu o formulário de "Solicitação de Aposentadoria" e informou a Thorsen, em nota pessoal, que a solicitação se devia à doença da esposa. Solicitava ao velho amigo que apressasse a solução do caso. Fechou e carimbou o envelope, desceu até a caixa de correio da esquina e depositou-a. Voltou para casa e caiu na cama sem despir-se.
Dormiu talvez três minutos ou oito horas. A campainha estridente do telefone sobre a mesinha-de-cabeceira acordou-o instantaneamente.
– Falando o Capitão Edward X. Delaney.
– Edward, aqui é Ferguson. Conversou com Bernardi?
– Sim.
– Sinto muito, Edward.
– Obrigado.
– Os antibióticos podem resolver. A principal fonte da infecção foi removida.
– Eu sei.
– Edward, eu o acordei.
– Não tem importância.
– Pensei que você pudesse querer saber.
– Saber o quê?
– Sobre o assassinato de Lombard. Não foi um martelo.
– O que foi?
– Não sei. A penetração no crânio tinha mais ou menos uns dez centímetros de profundidade. Foi alguma coisa parecida com um cone afilado. O orifício externo, na entrada, tem mais ou menos dois e meio centímetros de diâmetro. Em seguida, afila-se até uma ponta aguda. Como um cravo. Quer uma cópia do meu relatório?
– Não. Acabo de solicitar aposentadoria.
– O quê?
– Não é mais assunto meu. Acabo de dar entrada aos papéis da aposentadoria.
– Oh, Edward, você não pode. É sua vida.
– Eu sei.
Delaney desligou e estirou-se na cama, com os olhos abertos.

3

Três dias depois, recebeu o telefonema que estivera esperando: o assistente do Inspetor Thorsen perguntava se podia ir visitar o chefe às quatro da tarde. Delaney dirigiu-se ao centro, via metrô, fardado.
– Entre logo, capitão – disse a bela secretária de Thorsen, ao dar-lhe o nome. – Eles estão à sua espera.
Perguntando-se quem poderiam ser "eles", Delaney bateu uma vez e empurrou a pesada porta de carvalho do gabinete de Thorsen. Os dois homens sentados em poltronas de couro ergueram-se e o inspetor aproximou-se, sorrindo.
Ivar Thorsen era o "'rabi" de Delaney no Departamento. Na gíria da polícia, a palavra significava um oficial superior, ou alta personalidade na Prefeitura, que gostava pessoalmente de um policial, interessava-se pela sua carreira e geralmente orientava-o e facilitava-lhe as promoções. Quando um "rabi" subia na hierarquia, cedo ou tarde seu protegido também subia.
O Inspetor Ivar Thorsen, um homem na casa dos 50, era chamado de "Almirante" pelos subordinados e facilmente se via por quê. De estatura relativamente baixa, possuía um corpo esguio e forte, feito todo ele de músculos e tendões; saltava ao andar. Tinha a pele lisa e sem manchas, feições classicamente nórdicas, mas sem moleza alguma. Os olhos azuis-claros podiam ser incomodamente penetrantes. O cabelo branco parecia nunca ter sido penteado, mas escovado rigorosamente até se colar ao crânio a partir de uma divisão no lado esquerdo, por onde se via um couro cabeludo rosado.
Apertou a mão de Delaney e voltou-se para o outro cavalheiro que se encontrava na sala.
– Edward, acho que conhece o Inspetor Johnson.
– Certamente. Prazer em vê-lo, inspetor.
– Igualmente, Edward – disse o sorridente Buda preto, estendendo uma mão enorme. – Como vai?
– Não posso me queixar. Bem... posso, mas ninguém quer ouvir.
– Eu sei, eu sei – disse com um risinho o corpulento indivíduo, movendo a barriga para cima e para baixo. – Gostaria que pudéssemos encontrar-nos com mais freqüência, mas eles me mantêm acorrentado àqueles malditos computadores, e não vou aos bairros com tanta freqüência como desejaria.
– Li a sua análise das percentagens de prisões e condenações.
– Leu? – exclamou Johnson com autêntico prazer. – Deve ser o único policial na cidade que a leu.
– Espere um minuto, Ben – protestou Thorsen. – Eu também li.
– O diabo que leu! – zombou o negro. – Talvez tenha começado e lido o último parágrafo.
– Juro que a li, palavra por palavra.
– Aposto e dou vantagem de cinco a um que não leu... e posso fazer perguntas para provar isso.
– Aceito a aposta.
– Contravenção – disse imediatamente Delaney. – Posso prendê-los. Por infração às leis de repressão do jogo.
– De maneira alguma. – Johnson sacudiu a grande cabeça. – Os tribunais resolveram que uma aposta entre dois cavalheiros não pode ser objeto das leis contra o jogo. Leia o caso Harbiner v. a Cidade de Nova York.
– Examine o caso Plessy v. Novick – retorquiu Delaney. – O tribunal sustentou que uma aposta não paga entre duas pessoas não pode ser motivo de decisão judicial apenas porque a aposta em si é ilegal.
– Vamos – gemeu Thorsen. – Não os convidei a vir aqui para discutir leis. Sentem-se. – Indicou a ambos as poltronas e sentou-se na cadeira giratória por trás da escrivaninha. Premiu o botão do intercomunicador. – Alice, não transfira para cá nenhum telefonema, salvo os de emergência.
O Inspetor Johnson voltou-se para Delaney e fitou-o curioso.
– O que foi que achou de meu relatório, Edward?
– As cifras constituíram um choque, inspetor. E o...
– Sabe, Edward, se me chamasse de Ben, acho que não mandaria prendê-lo por insolência e insubordinação.
– Certo, Ben. As cifras foram um choque. A análise é brilhante, mas não posso concordar com sua conclusão.
– Com o que é que não pode concordar?
– Suponhamos que cinco por cento de prisões por delitos graves terminem em condenações. Com base nesse fato, você argumenta que nós – o pessoal da ronda – devíamos efetuar menos prisões, embora melhores, prisões que se sustentassem nas cortes de justiça. Mas não estará ignorando o efeito desencorajador de prisões em massa, mesmo que saibamos que a evidência nunca se sustentará num tribunal? O suspeito talvez não seja condenado, mas depois que é identificado, e passa tempo na cadeia até conseguir pagar a fiança – se puder – e a despesa com o advogado pelo dia que passa no tribunal, talvez ele pense duas vezes antes de fazer outra bobagem.
– Talvez sim, talvez não – disse Johnson em sua voz grossa. – Eu não esqueci o ângulo do efeito desencorajador quando escrevi o relatório. Para dizer a verdade, concordo com ele. Mas se houvesse recomendado prisões em massa – capazes de se sustentarem ou não nos tribunais – se houvesse recomendado operações de arrastão contra prostitutas, vagabundos, homossexuais, jogadores, – sabe o que teria acontecido? Algum radical do Departamento enviaria cópia do relatório à imprensa e todos os grupos de defensores das liberdades civis cairiam sobre nós e seríamos chamados novamente de "porcos fascistas".
– Quer dizer que modificou suas convicções por causa das relações públicas?
– Exatamente – disse Johnson em voz suave.
– As relações públicas são tão importantes assim?
– Têm de ser. Para o Departamento. O seu mundo é a Delegacia. O meu é o gabinete do comissário e, por extensão, o do prefeito.
Delaney olhou fixamente para o gigantesco negro. O Inspetor Benjamim Johnson trabalhava na assessoria do comissário e era o encarregado da análise da estatística e produção. Era um homem enorme, antigo zagueiro, tido como o melhor do país, ex-jogador da Rutgers. Havia engordado demais, mas o resultado não era desagradável: ainda possuía boa postura e o volume dava-lhe uma dignidade adicional. Tinha um sorriso cativante, quase infantil – um disfarce perfeito para o que Delaney sabia que era uma inteligência aguda, complexa e viva. Um negro não conquistava a posição e reputação de Johnson em virtude de riso alegre e de uma boca cheia de dentes esplêndidos.
– Por favor – Thorsen ergueu a mão. – Reúnam-se os dois uma noite dessas para resolver o caso, com acompanhamento de um bife ou alimento espiritual.
– Bife para mim – disse Johnson.
– Eu aceito o alimento espiritual - sorriu Delaney.
– Vamos continuar com o nosso caso – tornou Thorsen à sua maneira prática. – Em primeiro lugar, Edward, como está Bárbara?
Delaney caiu na realidade. Gostava de conversar "polícia" e podia passar uma noite inteira discutindo crime e castigo. Mas só com outros policiais. Os "paisanos" simplesmente não sabiam. Ou talvez a situação fosse semelhante à de um ateu discutindo com um padre. Falavam de coisas diferentes em línguas diferentes. O ateu argumentava com a razão; o padre, com a fé. Neste caso, o policial era o ateu, e o paisano, o padre. Ambos tinham razão e ambos erravam.
– Não está passando bem. Não reagiu à operação da maneira como devia. . . ou pelo menos da maneira que esperei que reagisse. Começaram a aplicar-lhe antibióticos. Os primeiros não resolveram nada. Estão tentando outro. Vão continuar a tentar.
– Lamento saber que sua senhora está doente, Edward – disse, tranqüilo, Johnson. – O que é, exatamente?
– É chamada de infecção protéica. No caso dela, uma infecção do trato urinário. Mas os médicos não me dizem coisa alguma sobre a gravidade do seu estado e quais as possibilidades.
– Eu sei – Johnson inclinou com simpatia a cabeça. – A coisa que mais odeio nos médicos é quando vou consultar um deles com uma dor de barriga, explico exatamente quais são os sintomas, e ele diz: "Isso não me preocupa". Eu então digo: "Eu sei, diabos o levem, é a minha dor. Por que devia preocupá-lo?"
Delaney sorriu palidamente, sabendo que Johnson estava procurando animá-lo.
– Não gosto de falar em doenças que não conheço – disse Thorsen. – Há tantas coisas que podem se desarranjar no corpo humano que é um milagre que possamos continuar a viver. – Em seguida, compreendendo o que havia dito e vendo o triste sorriso dos colegas, acrescentou: – É isso mesmo. . . não sabemos, não é? Bem, Edward, tenho aqui seu pedido de aposentadoria. Em primeiro lugar, deixe-me confessar que não fiz ainda coisa alguma com ele. Está em perfeita ordem. Tem todo o direito de aposentar-se. Mas queríamos conversar antes com você. Ben, quer prosseguir?
– Não – replicou Johnson, sacudindo a cabeça maciça. – Você leva a bola.
– Edward, isto diz respeito ao assassinato de Lombard na jurisdição de sua delegacia. Sei que conhece a reputação da vítima, a publicidade que conseguiu, e como é importante para o Departamento solucionar rapidamente o caso e prender o culpado. E, naturalmente, isso ocorre no meio da reorganização da Divisão de Detetives. Recebeu o memorando sobre a força-tarefa especial, Operação Lombard, dirigida pelo Subcomissário Broughton?
Delaney esperou um momento antes de responder, perguntando-se o quanto devia dizer. Broughton, porém, era um tipo nojento – e que podia fazer agora que pedira a aposentadoria?
– Sim, sei – disse, inclinando a cabeça. – Na verdade, fui eu quem sugeriu a Operação Lombard a Broughton na manhã do crime. Tivemos uma conversa no carro dele.
Thorsen virou a cabeça para um rápido olhar a Johnson. Os dois se entreolharam durante um momento. Em seguida, o inspetor bateu fortemente com a palma da mão no braço da cadeira.
– Eu não disse? – começou irado. – Eu não disse que aquele filho da mãe não tinha cérebro suficiente para, ele mesmo, propor a idéia? Então foi você, Edward?
– Sim.
– Bem, não espere um agradecimento do irmão Broughton. Aquele calhorda é estritamente do bloco do "eu sozinho". Agora, ele está voando um bocado alto.
– Foi por isso que o convidamos a vir aqui, Edward – disse Thorsen. – Broughton está voando um bocado alto e nós gostaríamos de trazê-lo de volta ao chão.
Delaney olhou de um para o outro, compreendendo que estava sendo envolvido em algo que havia jurado evitar: as claques e cabalas que floresciam nos altos escalões do Departamento – e em todos os níveis do governo, nas forças armadas, nas grandes empresas e em todas as organizações humanas que contam com mais de dois membros.
– Quem são o "nós"? – perguntou cauteloso.
– O Inspetor Johnson e eu, naturalmente. E mais ou menos dez ou doze outros, todos de cargos superiores aos nossos, que, por motivos óbvios, não querem que seus nomes sejam mencionados nesta ocasião.
– Que cargos?
– Até o comissário.
– O que é que vocês estão tentando fazer?
– Em primeiro lugar, não gostamos de Broughton. Acreditamos que é uma desgraça – diabo, é uma catástrofe! – para o Departamento. Ele está acumulando poder, construindo uma máquina. Essa Operação Lombard é simplesmente mais um degrau para ele. Se puder solucionar o assassinato.
– O que é que o motiva? Ambição? 0 que ele quer? Ser comissário? Prefeito?
– Presidente – disse Johnson.
Delaney fitou-o, pronto para rir se Johnson estivesse sorrindo. Mas não estava.
– Ben não está brincando. Não é impossível. Broughton é um homem relativamente jovem. Possui um ego e uma fome de poder em que você nem acreditaria. Theodore Roosevelt não saiu do gabinete do comissário para a Casa Branca? Por que não Broughton? Mas mesmo que nunca chegue a presidente, governador, prefeito, ou mesmo comissário, nós ainda o queremos de fora.
– Bastardo fascista! – rouquejou Johnson.
– E daí. . . ? – perguntou Delaney.
– Temos um plano. Quer ouvi-lo?
– Pois não.
– Não falarei a respeito de discrição, que tudo isto é dito em rigorosa confiança, etcetera. Conheço-o bem para fazer isso. Edward, mesmo que se aposentasse, não poderia passar todas as horas ao lado de sua esposa. Ela vai ficar no hospital durante o futuro previsível, não?
– Sim.
– Se você se aposentasse, ficaria com um bocado de tempo livre. E eu o conheço. Após quase trinta anos no Departamento, enlouqueceria. Muito bem. . . passaram-se três. . . não, quase quatro dias desde a morte de Lombard. Transcorreram já quase três dias desde o lançamento da Operação Lombard. Desde então, Broughton vem requisitando homens e equipamentos em toda a cidade. Eu lhe disse que ele está sedento de poder. E posso adiantar também que Broughton e a Operação Lombard não conseguiram rigorosamente nada até agora. Nem uma única indicação, nem pista, nem uma única idéia sobre como o crime foi cometido, por que, e por quem. Acredite-me, Edward, não estão mais adiantados neste momento do que quando você viu o corpo estirado na calçada.
– Isso não significa que não possam solucionar o caso amanhã, hoje à noite, ou agora mesmo, enquanto estamos conversando.
– Certo. Mas se Broughton conseguir solucioná-lo, ele vai nos crucificar. Refiro-me a Ben, a mim, e aos nossos amigos. Broughton pode ser burro, mas é astuto. Sabe quem são seus inimigos. Digo-lhe que é capaz de queimá-lo simplesmente porque você lhe sugeriu a Operação Lombard, com a qual ele lucrou. É o tipo de homem que não pode suportar sentir gratidão. De alguma maneira... ele o derrubará.
– Não pode fazer nada contra mim. Estou pedindo a aposentadoria.
– Edward – disse Johnson em sua voz profunda e vibrante – suponhamos que não se aposente. Suponhamos que solicite uma licença por tempo indeterminado. Poderíamos conseguir isso.
– Por que deveria fazer isso?
– Tiraria de suas costas a responsabilidade da delegacia. Colocaríamos nela outro capitão para responder pelo expediente. Um "respondão". Você não seria substituído. Concorda que é possível que sua esposa se recupere com mais rapidez do que todos esperam e que você gostaria de voltar ao serviço ativo? Isso é possível, não?
– Sim, é possível.
– Muito bem – tornou Johnson, parecendo procurar as palavras, escolher o caminho. – Digamos que você está de licença. É aliviado da responsabilidade. Agora, o que queremos que faça. . . – Em seguida, as palavras saíram num jorro: – O que queremos que você faça é descobrir o assassino de Lombard.
– O quê?
– Você ouviu. Queremos que solucione o caso Lombard antes que Broughton e sua Operação Lombard o façam.
Delaney olhou de um para o outro, atônito.
– Vocês estão loucos? – perguntou finalmente. – Querem que eu, um policial isolado, nem mesmo no serviço ativo, trabalhe fora do Departamento como uma espécie de. . . uma espécie de detetive particular, e esperam que eu descubra o assassino de Lombard antes de quinhentos ou mil detetives, guardas e especialistas, tendo por trás deles todos os recursos do Departamento? Impossível.
– Edward – disse, paciente, Thorsen. – Achamos que há uma possibilidade. Uma pequena possibilidade, é fato, mas que vale a pena aproveitar. Sim, trabalharia sozinho. Não poderia solicitar nem pessoal nem equipamento ao Departamento. Mas estabeleceremos um contato e, através dele, providenciaremos para que você consiga tudo de que precisar: identificação de impressões digitais, análise de provas, trabalho de laboratório, folhas corridas de criminosos. Tudo de que precisar você terá. Ocultaremos as informações de alguma maneira, de modo que Broughton não saiba de coisa alguma. Se ele descobrir, entraremos todos pelo cano.
– Escutem – disse, em desespero, Delaney – são vocês dois apenas que querem o couro de Broughton ou há realmente uma dúzia mais até o gabinete do comissário?
– Há outros – respondeu Thorsen solene, e Johnson inclinou a cabeça com igual solenidade.
– Não dará certo. – Delaney levantou-se e começou a passear de um lado para o outro, com as mãos atrás das costas. – Sabe de quantos homens precisamos para uma investigação como esta? Gente para dar busca nos esgotos. Gente para esvaziar latas de lixo. Gente para tocar campainhas de portas e fazer perguntas. Gente para investigar a vida privada de Lombard, sua vida comercial, política. Gente para estudar-lhe a vida até o nascimento, procurando descobrir um inimigo. Como, em nome de Deus, poderia eu, ou qualquer outro, fazer tudo isso?
– Edward – disse suavemente Johnson – você não terá de fazer essas coisas. Isso a Operação Lombard já está fazendo agora, e juro-lhe que você receberá uma cópia xerox de todos os relatórios apresentados. Todas as vezes que um patrulheiro, um detetive ou um especialista escrever alguma coisa sobre o caso, você receberá uma cópia dentro de vinte e quatro horas.
– É uma promessa – garantiu Thorsen. – Simplesmente não me pergunte como faremos isso.
– Não aceitarei, não aceitarei – disse, apressado, Delaney. – Mas o que pensam que posso fazer além do que a Operação Lombard já está fazendo?
– Edward, deixe de modéstia. Lembro-me de uma vez em que fui jantar em sua casa e ficamos conversando sobre certas coisas que você fizera, deixando o comandante de sua divisão ficar com o mérito – você era tenente nessa ocasião – e como Bárbara ficou zangada e lhe disse que devia afirmar-se mais. Ela tinha razão. Edward, você tem talento, energia, gênio – chame-o do que quiser – para o trabalho de investigação. Você sabe disso, mas não quer reconhecer. Eu sei, e berro isso em todas as oportunidades que posso. Foi idéia minha metê-lo nisto, desta maneira. Se concordar, muito bem, vamos trabalhar. Se não aceitar e quiser ir até o fim com o pedido de aposentadoria, muito bem, e nada de rancores.
Delaney dirigiu-se a uma das janelas e olhou para a rua cheia. Pessoas corriam apressadas em meio a um congestionamento de tráfego e toques de buzinas. Era um movimento vivo, interminável. Ouviu as buzinas, uma sirena, o apito distante de um transatlântico fazendo-se ao mar, e o zumbido de um avião descendo para pousar no Aeroporto Kennedy.
– Nenhuma pista, absolutamente? – perguntou, sem voltar-se.
– Nenhuma, em absoluto – respondeu Thorsen. – Nada. Nem mesmo uma hipótese que faça sentido. Um vazio. Um vazio completo. Broughton está começando a dar sinais de nervosismo.
Delaney voltou-se com um sorriso gelado. Olhou para o Inspetor Johnson e dirigiu-lhe a palavra.
– Ben, dei a ele as cifras de probabilidades de solução de homicídios. Sabe como baixam após quarenta e oito horas?
– Sei – replicou Johnson com um aceno de cabeça. – Já se passaram quase quatro dias, diminuindo as possibilidades a cada minuto no caso de Broughton.
– No meu também. Se aceitar o caso – apressou-se a acrescentar.
Olhava pela janela com as mãos nos bolsos, e sentia um profundo desejo de discutir o assunto com Bárbara, como discutira todas as decisões importantes em sua carreira. Precisava da inteligência viva, prática, agressiva, feminina da esposa para sondar os motivos, as alternativas, as possibilidades, as garantias. Tentou, esforçou-se para se colocar no lugar dela, pensar como ela pensaria e resolver o que ela resolveria.
– Eu usaria trajes civis – disse ele, de costas para os colegas. – Poderia usar meu distintivo?
– Sim – respondeu imediatamente Johnson – mas tão pouco quanto possível.
Delaney começou a compreender com que minúcias haviam pensado no assunto. Tudo fora planejado antes de falarem com ele.
– Com que freqüência devo apresentar relatórios?
– Com tanta freqüência quanto possível. Uma vez por dia ou quando tiver descoberto algo ou precisar de alguma coisa.
– A quem devo prestar contas?
– A mim – respondeu imediatamente Thorsen. – Eu lhe darei um número de telefone seguro.
– Não me diga que acha que o telefone de sua casa está sob vigilância.
– Eu lhe darei um número seguro – repetiu Thorsen.
Delaney tomou uma decisão e disse o que pensava que Bárbara queria que dissesse.
– Se estou de licença, mas não aposentado, posso ser ainda punido pelo Departamento. Se Broughton descobrir, ele me liquidará para sempre. Conheço-o. Sei de que é capaz. Farei o que pedem se me derem uma carta assinada por um de vocês, ou ambos, autorizando a investigação.
Voltou-se para encará-los. Eles o fitaram e, em seguida, entreolharam-se.
– Edward... – começou Thorsen, mas interrompeu-se.
– Sim?
– Será o nosso couro.
– Eu sei. Mas, sem a carta, será o meu. Somente o meu. Se Broughton descobrir o que está acontecendo.
– Você não confia... – começou Thorsen.
– Espere um minuto. – Johnson ergueu a mão. – Não vamos nos enfezar agora e começar a falar a respeito de confiança e amizade, e dizer coisas de que nos arrependeremos depois. Deixe-me pensar apenas um minuto. Edward tem um bom argumento, Ivar. Algo em que não pensamos. Deixem-me pensar um pouco e ver se descubro algo que satisfaça a todos os interessados.
Olhou para o vazio enquanto os dois colegas fitavam-no, expectantes. Finalmente, Johnson grunhiu e ergueu-se. Esfregou o cabelo encarapinhado com os nós dos dedos e fez um movimento na direção de Thorsen. Os dois dirigiram-se para um canto da sala e começaram a conferenciar em voz baixa. Johnson falou a maior parte do tempo, acompanhando as palavras com gestos freqüentes. Delaney sentou-se novamente na poltrona e desejou estar com a esposa.
Finalmente, cessaram os sussurros. Os dois aproximaram-se e tomaram posição em frente à sua poltrona.
– Edward, se déssemos uma carta endereçada pessoalmente a você, autorizando a investigação extra-oficial, ou semi-oficial, da morte de Frank Lombard, e tal carta fosse assinada pelo comissário, isso o satisfaria?
Delaney ergueu atônito os olhos.
– O comissário? Por que, em nome de Deus, assinaria uma carta dessas? Acaba de nomear Broughton para dirigir a Operação Lombard.
O Inspetor Johnson suspirou profundamente.
– Edward, ele é um homem de certa habilidade. Mais ou menos um peso médio, acho. E é bem-intencionado e bondoso. Todo inclinado para o bem. Mas é a primeira vez que trabalha em Nova York. Nunca tivera antes de conservar-se flutuando em meio a um cardume de barracudas. Não do tipo que temos por aqui. Ele está aprendendo. Mas a questão é: quanto tempo lhe darão para aprender? Está começando a compreender que um bom executivo tem de passar tanto tempo defendendo o próprio couro quanto enfrentando os problemas que surgem. Nove em dez vezes, são esses fortes e eficientes assistentes executivos, de longos punhais nas mãos, que liquidam um homem em alta posição. Acho que o comissário pode estar começando a compreender o que Broughton está fazendo entre aquelas ventosidades e arrotos. Broughton, como sabe, tem bons amigos entre os assessores do prefeito. Há também outro fator. Trata-se de algo que nunca é mencionado nos manuais de administração de empresas, mas existe no Departamento, nos governos federal, estadual e municipal, nas empresas e nas forças armadas. Penso que o comissário tem medo físico de Broughton. Não posso provar, mas é o que penso. Isso foi a origem de grande parte do poder de Joe McCarthy. Muitos daqueles velhos e frágeis senadores sentiam medo físico de Joe. Bem, temos um indivíduo, um amigo – um verdadeiro tipo maquiavélico, um assistente em quem o comissário confia, que lhe poderia pôr uma pulga na orelha. "Olhe aqui, comissário, Broughton é um excelente sujeito – um pouco grosseiro para o meu gosto, mas que consegue resultados – e talvez possa realizar essa Operação Lombard e descobrir o assassino. Mas ouça, comissário, não seria prudente ter um trunfo na manga? Quero dizer, se Broughton fracassar, o senhor deve ter realmente um plano de reserva. Acontece que eu consegui a ajuda desse capitão esperto, que está de licença, e ele é o melhor detetive que esta cidade já viu. Se o senhor lhe pedir, comissário, e escrever-lhe uma carta polida, esse capitão sabido poderia andar farejando por aí até descobrir o assassino de Lombard. Sem que Broughton saiba de nada, naturalmente."
Delaney riu.
– Você acha que ele cairá nisso? Acha mesmo que lhe dará uma carta de autorização?
– Se a conseguirmos, topa?
– Topo.

4

Na noite seguinte, ao preparar-se para ir ao hospital, recebeu o envelope em casa, entregue por um mensageiro comercial. Continha uma carta assinada pelo comissário, autorizando o Capitão Edward X. Delaney a realizar uma "discreta investigação" sobre o assassinato dé Frank Lombard. Era acompanhada por uma carta assinada pelo Chefe do Serviço de Patrulhamento concedendo ao Capitão Delaney licença por tempo indeterminado, por "motivos pessoais". Delaney começou a apreciar a influência movimentada por Thorsen, Johnson e seus amigos.
Pensou em telefonar para Ivar Thorsen de casa, mas, após discar dois números, desligou e sentou-se, olhando para o telefone. Lembrou-se de que o inspetor salientara que era "seguro" o número que lhe tinha dado. Vestiu o sobretudo, caminhou dois quarteirões até uma cabina de telefone público, e fez a chamada. Verificou que o número "seguro" era de um serviço de respostas. Deu apenas o último nome e o número do telefone de onde chamava. Desligou e esperou pacientemente. Thorsen falava-lhe três minutos depois.
– Recebi os documentos – disse Delaney. – Trabalho rápido.
– Sim. De onde está falando?
– De um telefone público a dois quarteirões de casa.
– Ótimo. Continue a fazer isso. Use cabinas diferentes.
– Muito bem. Tomou alguma medida com relação ao capitão que responderá pelo expediente da delegacia?
– Ainda não. Alguma sugestão?
– Eu tenho um tenente, Dorfman. Conhece-o?
– Não. Mas um tenente? Não sei se posso conseguir isso. Essa jurisdição é de um chefe político, Edward. Deve ser dirigida por um capitão ou um inspetor. Acho que não há precedente de um tenente dirigir uma delegacia.
– Pense no caso, sim? Examine a pasta de Dorfman. Quatro elogios. Um bom administrador. Excelente advogado.
– Ele dará conta do recado?
– Nunca saberemos até que ele tenha uma oportunidade, não? Há outra coisa.
– O quê?
– Ele confia em mim. Mais do que isso, gosta de mim. Seria um contato perfeito. 0 homem para encaminhar minhas solicitações de registros, identificação de impressões digitais, pesquisas, análises de laboratório, coisas assim. Os pedidos poderiam ser encaminhados com o papel timbrado da delegacia. Ninguém descobriria nada.
– O quanto lhe diria você?
– O mínimo possível.
Houve um silêncio.
– Há outro fator – acrescentou, apressadamente, Delaney. – Dei a Broughton a idéia da Operação Lombard e o crime ocorreu na minha jurisdição. Seria natural pensar que estou irritado e enciumado. Ele desconfiaria de qualquer possível interferência de minha parte. Estou dando um palpite sobre a maneira como ele pensa, diante do que você e Johnson me disseram.
– Está dando um palpite certo.
– Bem, ele saberá que entrei de licença e se descontrairá. E se relaxará ainda mais se ouvir dizer que Dorfman foi nomeado para responder pelo expediente como capitão. Um tenente? E um homem sem nenhuma experiência de trabalho de detetive? Broughton eliminará a 251a Delegacia como ponto potencial de encrencas, e eu poderei usar Dorfman como contato, com muito pouca possibilidade de ser descoberto.
– É uma boa idéia – disse Thorsen. – É boa. Preciso discutir o caso... com os outros. Talvez possamos dar um jeito. Eu lhe informarei. Alguma coisa mais?
– Sim. Sei que Broughton subiu vindo do serviço de patrulha. Quem é o chefe dos detetives na Operação Lombard?
– Pauley.
– Oh, Deus. Ele é bom.
– Você é melhor.
– Continue a dizer isso. Preciso de todas as garantias que puder conseguir.
– Quando começará?
– Agora mesmo.
– Ótimo. Você receberá as cópias xerox amanhã. Compreendeu?
– Sim.
– Mantenha-me informado.
Os dois desligaram sem se despedirem.
Delaney tomou um táxi para o hospital, aconchegou-se a um canto e mordeu a unha do polegar. Começava a sentir a velha e conhecida excitação, a esquecer o raciocínio e as emoções sobre o trabalho policial. A reação de suas entranhas era óbvia: começara a caçada e ele era o caçador.
Entrou no quarto sorrindo confiante, tirando do bolso um pequeno presente que lhe comprara: um broche barato e reluzente, um pingüim de falsos brilhantes, que poderia pregar na camisola. Ela ergueu os braços e ele curvou-se para abraçá-la.
– Estava com esperança de que você viesse.
– Eu lhe disse que viria. Melhor?
Ela sorriu alegre, e inclinou a cabeça.
– Olhe aqui. – Entregou-lhe o pingüim. – Da Tiffany's. Custou um pouco mais de cem mil...
– Lindo – disse, rindo. – O que eu sempre quis.
Ajudou-a a prendê-lo na camisola. Em seguida, tirou o sobretudo, puxou uma cadeira para junto da cama, sentou-se, e segurou-lhe uma das mãos.
– Realmente melhor?
– Realmente. Acho que posso começar a receber visitas. Alguns amigos íntimos.
– Ótimo – disse ele, tomando cuidado para evitar uma falsa alegria. – Eddie deve chegar na próxima semana. O que me diz de Liza?
– Não, Edward. No estado em que ela está, não. Ainda não.
– Muito bem. Quer que telefone para suas amigas?
– Eu mesma faço isso. As que eu quero ver telefonam-me todos os dias. Direi que gostaria de vê-las. Sabe... duas ou três por dia. Não todas de uma vez.
Ele inclinou a cabeça, aprovando, e sorriu-lhe. A aparência da esposa, contudo, chocou-o. Estava tão magra! Os tubos e vidros haviam desaparecido, e tinha o rosto vermelho com a velha febre, mas a fraqueza dela era o que lhe dilacerava o coração. Ela que fora sempre tão ativa, forte, vibrante... Naquele instante, flácida, parecia lutar para respirar. A mão que ele segurava mexia debilmente nas franjas do cobertor.
– Edward, está-se alimentando bem?
– Otimamente.
– Continua fazendo dieta?
– Juro.
– E está dormindo regularmente?
Ele estendeu a mão, de palma para baixo, virou-a para cima e para baixo algumas vezes.
– Mais ou menos. Escute, Bárbara, há uma coisa que lhe preciso dizer. Eu quero. . .
– Aconteceu alguma coisa? As crianças estão bem?
– As crianças estão bem. Isto não tem nada a ver com elas. Mas preciso lhe falar durante mais ou menos uma hora. Talvez mais. Não a cansará, não?
– Naturalmente que não, seu tolinho. Dormi o dia inteiro. Vejo que você está excitado. O que é?
– Bem. . . há quatro dias – na verdade, no início da manhã que se seguiu à sua operação – houve um assassinato em minha jurisdição.
Descreveu-lhe, tão concisa e completamente quanto possível, a descoberta e a aparência do corpo de Lombard. Prosseguiu dizendo como era importante solucionar o caso em vista das críticas públicas que o morto havia feito ao Departamento, e como a reorganização atual da Divisão de Detetives prejudicava o trabalho eficiente no caso. Finalmente, descreveu a conversa particular com Broughton.
– Ele parece ser um indivíduo horrendo – interrompeu ela.
– Sim. . . De qualquer maneira, no dia seguinte, pedi aposentadoria.
Ela ergueu-se na cama com o choque e caiu sobre os travesseiros com os olhos cheios de lágrimas.
– Edward! Você fez isso?
– Fiz. Eu queria passar mais tempo com você. Pensei, na ocasião, que fosse a decisão correta. Mas o pedido não foi encaminhado. Aconteceu o seguinte...
Contou a reunião com Thorsen e Johnson. Detalhou o plano de ambos para que Delaney fizesse uma investigação independente do caso Lombard, numa tentativa de humilhar Broughton. Enquanto falava, viu a esposa animar-se. Apoiou-se sobre um cotovelo e inclinou-se para a frente, com os olhos brilhantes. Ela era a política da família e adorava ouvir histórias e fofocas sobre as lutas internas do Departamento, as intrigas e choques de ambições.
Delaney contou que exigira uma carta de autorização de uma autoridade superior antes de concordar em fazer a investigação.
– Bárbara, você acha que agi prudentemente?
– Você agiu exatamente certo – respondeu ela imediatamente. – Estou orgulhosa de você. Naquela selva, a primeira lei é "Salve o seu couro".
Falou-lhe, então, da carta que havia recebido do comissário, da concessão de uma licença por tempo indeterminado e de sua conversa mais recente com Thorsen.
– Estou satisfeita por ter recomendado Dorfman – disse ela, inclinando a cabeça. – Gosto dele. E acho que merece uma oportunidade.
– O problema consiste em fazer com que um tenente possa responder pelo expediente de uma delegacia. E, naturalmente, não podem promovê-lo subitamente sem alertar Broughton. Enquanto isso, receberei amanhã cópias de todos os relatórios sobre a Operação Lombard.
– Edward, parece que você não tem muita coisa com que começar.
– Não, não muito. Thorsen disse que, até agora, a Operação Lombard anda em brancas nuvens. Não têm a menor descrição de um possível assassino, não sabem como Lombard foi morto, ou por quê.
– Você diz "assassino". Não podia ter sido uma mulher?
– Possivelmente, mas as percentagens de probabilidade são contra. Mulheres assassinam com revólver, faca ou veneno. Raramente usam um porrete. E quando o fazem, geralmente a vítima está adormecida.
– Então está realmente começando do nada?
– Bem. . . Tenho duas coisas. Não importam muito e desconfio que o Chefe Pauley as conhece também. Lombard era um homem alto. Acho que um metro e noventa. Agora, olhe aqui. . . – Delaney ergueu-se e olhou em volta do quarto. Encontrou uma revista, enrolou-a fortemente e segurou-lhe uma das extremidades. – Bem, sou o assassino, usando um martelo, um cano, ou talvez um longo cravo. Desfiro um golpe no crânio da vítima. – Ergueu a revista acima da cabeça e desceu-a violentamente. – Viu? Vou fazê-lo novamente. Observe a posição do meu braço direito. – Mais uma vez ergueu a revista e desceu-a em um simulacro de golpe esmagador. – 0 que foi que você notou?
– Que seu braço não estava esticado. O braço direito estava dobrado. A parte mais alta da revista ficou a mais ou menos dez centímetros de sua cabeça.
– Correto. Esta é a maneira como um homem normalmente atacaria. Quando batemos um prego, não erguemos o braço em todo o seu comprimento acima da cabeça; conservamos o cotovelo dobrado para controlar melhor a exatidão do golpe. Erguemos o braço apenas a uma altura conveniente para produzir o que calculamos ser a força suficiente. É uma habilidade inconsciente, baseada na experiência. Para enfiar uma tacha de tapete, erguemos o martelo apenas uns dois ou cinco centímetros. Para enfiar um prego, erguemos o martelo ao nível da cabeça ou até mais alto.
– Lombard foi morto com um martelo?
– Ferguson acha que não. Mas foi evidentemente algo descido com força suficiente para penetrar no cérebro dele até a uma profundidade de sete e meio a dez centímetros. Não li ainda o laudo de Ferguson.
– O assassino poderia ser canhoto?
– Poderia. Mas as probabilidades são contra, a menos que a natureza e posição do ferimento indiquem o contrário, e isso se poderia dever à posição da vítima no momento do impacto.
– Há tantas possibilidades.
– Claro que há. Bárbara, está ficando cansada?
– Oh, não. Você não pode parar agora. Edward, não estou percebendo a importância do que acaba de me mostrar... como um homem bate com o cotovelo dobrado.
– Simplesmente que Lombard tinha mais ou menos um metro e noventa. Se o assassino ergueu a arma cerca de quinze centímetros acima da cabeça – que é mais ou menos o limite a que qualquer homem pode erguer uma ferramenta ou arma antes de descê-la, e a perfuração é baixa no crânio de Lombard (não tão baixa como seria na depressão em que a espinha se junta ao crânio, mas dali até a parte mais alta do crânio), então acho que o assassino deve ter aproximadamente a mesma altura de Lombard, ou talvez fosse alguns centímetros mais alto. Sim, é um palpite. Mas baseado na pouca evidência física disponível.
– Você disse que tinha duas coisas. Qual é a outra?
– Bem. . . tive essa idéia na manhã do assassinato. Enquanto me encontrava no local. Apenas para satisfazer minha curiosidade, acho. O que me intrigava, mais nesse assassinato era como um homem do tamanho e da força de Lombard, conhecendo a incidência de crimes nas ruas, sozinho numa rua deserta à meia-noite, deixou que um assaltante se aproximasse por trás e o derrubasse sem fazer o menor esforço aparente para defender-se. Penso que isso aconteceu da seguinte maneira...
Representou a cena para ela. Em primeiro lugar, foi Lombard. Vestiu o sobretudo, andando vivamente em volta do quarto, virando a cabeça de um lado para outro enquanto inspecionava entradas e saguões externos dos prédios da rua.
– Vejo, então, um homem aproximando-se de mim, procedente da York Avenue. Vindo na minha direção.
Delaney-Lombard, explicando enquanto representava, olhou para a frente, observando a figura que se aproximava. Diminuiu o passo, pronto para se defender ou correr para um lugar seguro, em caso de perigo. Mas sorriu em seguida, tranqüilizado pela aparência do desconhecido. Afastou-se para o lado para deixar passar o sorridente estranho e, então...
– Agora, sou o assassino – disse Delaney para a arregalada Bárbara. Tirou o sobretudo, dobrou-o no braço esquerdo. Sob o sobretudo, a revista enrolada na mão esquerda. O braço direito balançava livre enquanto andava em passos vivos pelo quarto.
– Vejo o homem que quero matar. Sorrio e continuo a caminhar rapidamente, como um morador do quarteirão ansioso para chegar em casa.
Delaney-assassino virou a cabeça ao passar por Lombard. Em seguida, a mão direita voou para baixo do sobretudo, apanhando a revista. Ao mesmo tempo, Delaney-assassino girou e pôs-se na ponta dos pés. Encontrava-se naquele momento atrás da vítima. A revista silvou no ar, descendo. A ação inteira durou apenas segundos, nada mais.
– Em seguida, curvo-me...
– Prenda-o! – exclamou Bárbara. – Edward, prenda-o! Prenda-o!
Ele endireitou-se, atônito, abalado pelo ódio e veneno na voz da esposa. Correu para a cama e tentou tomá-la nos braços, mas ela não queria ser consolada.
– Prenda-o! – repetiu, e aquelas palavras eram uma praga. – Você pode fazê-lo, Edward. Você é o único que pode prendê-lo. Prenda-o! Prometa-me, sim? Isso não é direito. A vida é preciosa demais. Prenda-o! Prenda-o!
Mesmo depois de tê-la acalmado, chamando uma enfermeira que lhe aplicou um sedativo, de ter Bárbara adormecido e ele deixado o hospital, ainda ouvia o virulento: "Prenda-o! Prenda-o!" Jurou que o faria.

5

As cópias xerox dos relatórios da Operação Lombard constituíam um maço de quase 500 páginas de papéis datilografados, formulários oficiais, cópias fotostáticas, transcrições de conversações gravadas, declarações assinadas, etc. Além disso, havia um envelope separado com mais de 30 fotocópias: fotografias do cadáver, da esposa e da mãe, de dois irmãos, de colegas políticos e de negócios e de amigos íntimos. O morto não tinha filhos.
O Capitão Delaney, impressionado com a massa de material espalhado sobre a escrivaninha do estúdio, e compreendendo a urgência com que se desenvolvia a Operação Lombard, começou a colocar os documentos dentro de envelopes pardos, intitulados Evidência Física, História Pessoal, Família, Negócios (Lombard fora membro ativo de um escritório de advocacia em Brooklyn), Política, Diversos.
Levou quase duas horas para colocar o material em uma espécie de ordem. Em seguida, preparou um highball, pôs os pés sobre a mesa e começou a ler. Às duas da manhã, havia lido todos os relatórios e examinado todas as fotos do arquivo. Ficou duplamente impressionado com o rigor da investigação feita por Broughton, mas no que tocava às primeiras impressões, Ivar Thorsen tinha razão: não havia realmente nada – indicações, pistas, mistérios – que apontassem para o assassino de Frank Lombard.
Começou a segunda leitura, mais lenta desta vez, tomando notas em um bloco de longas folhas amarelas de papel. Pôs de lado também alguns documentos para uma terceira leitura e estudo. O alvorecer iluminava as janelas do estúdio quando fechou a última pasta. Ergueu-se, espreguiçou-se, bocejou, pôs as mãos nos quadris e curvou o corpo para trás até a espinha estalar.
Dirigiu-se à cozinha, tomou um copo de suco de tomate com um pouco de sumo de limão. Encheu uma garrafa térmica com café solúvel, sem leite, e levou-a para o estúdio, juntamente com um pedaço de pão, seco e velho.
Consultou as notas e, bebericando o café, leu pela terceira vez o laudo do Dr. Ferguson. Fora uma das habituais autópsias meticulosas de Ferguson; o documento, em oito páginas, incluía dois desenhos, mostrando a parte externa do ferimento em tamanho real, e um perfil de um crânio humano com a localização e forma da penetração. O orifício parecia um triângulo isósceles alongado. O ferimento externo tinha uma forma aproximadamente circular. Ligeiramente maior do que uma moeda de um quarto de dólar.
O parágrafo essencial dizia:
"O golpe causou um ferimento penetrante, fraturando o osso occipital direito, lacerando a dura, e perfurando o lobo occipital direito. A laceração do cerebelo ocasionou hemorragia, com resultante ruptura para dentro da fossa posterior e do quarto ventrículo, produzindo aguda compressão da raiz do cérebro e morte subseqüente."
Delaney tomou várias notas adicionais sobre o relatório da autópsia. Tinha perguntas a fazer que somente poderiam ser respondidas em uma conversa pessoal com Ferguson. Como explicar ao médico seu interesse pelo caso Lombard era um problema que resolveria no momento oportuno.
As demais notas diziam respeito a entrevistas com a viúva, Sra. Clara Lombard. Fora interrogada cinco vezes por três diferentes detetives. Delaney inclinou a cabeça com um ar de aprovação ante o profissionalismo revelado pelo Chefe Pauley. É o procedimento padrão do detetive: enviam-se três detetives diferentes para os primeiros três interrogatórios. Em seguida, os três, em companhia do chefe, discutem a personalidade do sujeito e escolhem qual, entre eles, o que estabeleceu maior comunicabilidade com o depoente, aquele por quem ele sentiu maior simpatia. Este se encarrega, então, dos interrogatórios finais.
Delaney começou a formar uma imagem clara da viúva à medida que lia os relatórios datilografados. (Os três primeiros eram transcrições de fitas gravadas.) A Sra. Clara Lombard parecia ser uma mulher caprichosa, frívola, que se esforçava para parecer devastada pela trágica morte do marido, mas que era, ainda assim, capaz de riso infantil, piadas de gosto duvidoso, perguntas inesperadas sobre o pagamento do seguro, questões sobre a validação do testamento, ameaças ilógicas de processar o Estado e palavras que podiam ser interpretadas apenas como aberto namoro.
Isso não lhe interessava. Uma investigação cuidadosa demonstrara que Clara, embora fosse uma mulher muito sociável – uma feliz freqüentadora de festas, com ou sem o marido, não tinha namorado, e ninguém, nem mesmo as amigas, sequer insinuava que pudesse ser infiel.
A parte do depoimento dela que mais interessava dizia respeito à carteira de Frank Lombard. A maldita carteira irritava-o. . . a sua posição nas proximidades do corpo. . . o fato de ter sido deliberadamente tirada do bolso traseiro da calça... de ter estado aberta... ainda cheia de dinheiro...
Para surpresa de Delaney, somente em uma entrevista fora dada à Sra. Lombard uma descrição completa do conteúdo da carteira. O documento em causa estava incluído na pasta de "Evidência física". Clara fora perguntada se, tanto quanto sabia, havia falta de alguma coisa. Respondera que não, que pensava que estavam ali a carteira de identidade e todos os cartões de crédito do marido, e que a soma de dinheiro – mais de duzentos dólares – era o que ele habitualmente levava consigo. Até mesmo duas chaves, uma da casa e outra do escritório – em um "bolso secreto" da carteira – estavam ali.
Delaney recusou-se a aceitar tal declaração. Quantas esposas podem dizer exatamente o que o marido leva na carteira? Quantos maridos podem dizer com exatidão o que há nas bolsas das esposas? Na verdade, quantos homens sabem exatamente quanto têm na carteira? Para tirar isso a limpo, Delaney pensou um momento e achou que tinha cinqüenta e seis dólares na carteira naquele instante. Tirou-a e contou. Tinha quarenta e dois – e perguntou-se para onde estava indo seu dinheiro.
O outro único relatório da Operação Lombard de interesse era uma entrevista com a mãe da vítima. Delaney leu novamente a transcrição. Como esperara, a Sra. Sophia Lombard morava em uma casa entre o rio e o ponto onde fora encontrado o cadáver.
Fora interrogada – com grande habilidade, reconheceu, devia ser trabalho do Chefe Pauley – sobre as visitas do filho. Vinha todas as semanas? À mesma noite todas as semanas? À mesma hora todas as noites? Em outras palavras, era uma rotina regular e fixa? Telefonava antes? Como chegava ali, vindo de Brooklyn?
As respostas decepcionaram e deixaram perplexo o interrogador. Frank Lombard não observava uma rotina regular para jantar com a mãe. Vinha visitá-la quando podia. Às vezes, passavam-se duas semanas, ocasionalmente um mês, antes que lhe surgisse a oportunidade. Mas era um bom rapaz, garantiu a Sra. Sophia Lombard: telefonava todos os dias. No dia em que vinha jantar, telefonava antes do meio-dia para que a Sra. Lombard pudesse sair e comprar as coisas de que ele gostava.
Lombard não vinha de carro porque era difícil estacionar perto do apartamento da mãe. Tomava o metrô, ônibus, ou táxi a partir da estação. Não gostava de andar à noite pelas ruas. Sempre voltava para Brooklyn antes da meia-noite.
A Sra. Clara Lombard acompanhara alguma vez o marido naqueles jantares?
– Não – respondera secamente a Sra. Lombard.
Lendo a resposta, Delaney sorriu, compreendendo a discórdia que devia existir naquela família.
Guardou os relatórios nas pastas e colocou todo o material da Operação Lombard em um pequeno cofre num dos cantos do estúdio. Sabia muito bem que um arrombador experiente podia abrir aquele cofre em um minuto. E que dois ladrões inexperientes poderiam roubá-lo e abri-lo mais tarde.
Seus olhos ardiam e doíam-lhe os ossos. Eram quase sete horas da manhã! Derramou o café, subiu, despiu-se e caiu na cama. Algo o preocupava, insistentemente, algo que lera nos relatórios. Mas isso lhe havia acontecido antes com freqüência: a sensação de que existia uma pista, mas não sabia onde. O problema não o aborreceu; evitou pensar nele. Sabia por experiência que o assunto subiria eventualmente à tona, aparecendo inesperadamente na mente, como um nome lembrado ou uma música recordada. Acertou o despertador para oito e meia, fechou os olhos e adormeceu instantaneamente.
Chegou à delegacia pouco depois das nove horas. O policial de serviço era uma mulher, a segunda de seu posto em Nova York a ser designada para tal serviço. Leu com ela o livro de partes e fez perguntas. Era uma mulher alta e forte, com o que ele chamava, sem saber o motivo, um corpo tonitruante. Na verdade, intimidava-o, mas não podia negar-lhe a eficiência. O livro estava em ordem; coisa alguma que poderia ter sido feita fora negligenciada – uma triste e melancólica lista de bêbados, pessoas desaparecidas, esposas surradas, cheques roubados da previdência social, crianças maltratadas, roubos, exibicionistas sexuais, prostitutas, velhos e velhas moribundos, homossexuais, arrombamentos, espreitadores de pessoas despidas. . . Gente. Mas era lua cheia na ocasião, e Delaney sabia o que isso significava.
Subiu os degraus até o gabinete e, no patamar, encontrou o Tenente Jeri Fernandez, que estava ou estivera no comando dos detetives designados para a 251ª.
– Bom dia, capitão – disse sombrio Fernandez.
– Bom dia, tenente – respondeu Delaney. Olhou com simpatia para o interlocutor. – Um expediente duro, não?
–Se é! – explodiu Fernandez. – Metade do meu pessoal já foi embora. Os demais não tardam a fazer o mesmo. Isso é uma coisa. Mas a parte burocrática! Todos os casos pendentes terão de ser transferidos para a unidade que terá jurisdição sobre esta delegacia. Que confusão, meu Deus!
– O que foi que arranjou?
– Fiquei na Divisão de Cofres, Confecções e Caminhões no centro – explicou Fernandez. – Abrange quatro delegacias, incluindo o Centro de Roupas Feitas. O que é que o senhor acha disso? Vou ser o subchefe e receberemos detetives de toda Manhattan. Precisaremos de pelo menos um ano para organizar as escalas de serviço. Qual foi o grande cérebro que bolou essa idéia?
Delaney entendia como Fernandez se sentia. Era um detetive consciencioso, eficiente, embora sem imaginação. Fizera um bom trabalho na 251ª, treinando o pessoal, duro quando preciso e mole quando indicado. Agora dissolviam seu grupo e o distribuíam por divisões especializadas. E ele próprio seria o segundo sob as ordens de um capitão de detetives. Tinha o direito de espernear.
– Pensei que Broughton o tivesse requisitado para a Operação Lombard – disse.
– Eu, não – respondeu Fernandez com um sorriso azedo. – Não sou suficientemente branco.
Cumprimentaram-se com um aceno e se separaram. Delaney dirigiu-se ao gabinete, mistificado como os preconceitos e a fé de ofício de um policial se espalhavam rapidamente pelo Departamento. Broughton era ainda mais tolo, pensou; Fernandez poderia ter constituído uma grande ajuda. Talvez lhe faltasse imaginação, mas quando se tratava de rotina cansativa, exigindo exaustivo trabalho a pé, ele era excelente. O importante era saber como usar o pessoal, aproveitar-lhe os talentos especiais e o que de bom havia neles.
Ao chegar à sua mesa telefonou imediatamente para o hospital. A enfermeira-chefe do andar informou que sua esposa encontrava-se no laboratório tirando mais chapas de raios X, mas que ia "tão bem quanto se poderia esperar". Procurando disfarçar o desagrado com aquela frase, agradeceu e disse que ligaria depois.
Em seguida, telefonou para o Dr. Sanford Ferguson e, sem esperar, a chamada foi transferida de imediato para o gabinete do médico.
– É você, Edward?
– Eu mesmo. Podemos nos encontrar?
– Como está Bárbara?
– Está indo como seria de esperar.
– Parece que reconheço essas palavras. É sobre Bárbara que quer falar comigo?
– Não. A morte de Lombard.
– Hum? Fiquei satisfeito em saber que você não se aposentou. Agora é licença por tempo indeterminado.
– As notícias andam ligeiro...
– Foi dada no telex há dez minutos. Edward, que história é essa sobre Lombard? Pensei que o assunto estava sendo tratado por Broughton.
– Está. Mas quero falar com você. Pode dar um jeito?
– Bem. . . – Ferguson mostrou-se cauteloso e Delaney não o censurou. – Ouça, preciso ir hoje a 34th Street. É o aniversário de minha irmã e quero dar-lhe um pequeno presente. Comprado no Macy's. Alguma sugestão?
– Quando em dúvida, um certificado de compra de presente.
– Não dará certo. Conheço-a. Ela vai querer alguma coisa pessoal.
– Um xale de seda. É o que compro sempre para Bárbara. Ela tem tantos xales de seda que pode fazer um pára-quedas.
– Boa idéia. Bem, que tal almoçarmos juntos?
– Ótimo.
– Conheço uma boa churrascaria perto do Macy's. Gosta de costeleta de carneiro?
– Odeio.
– Idiota. Aquele gosto forte de caça... Não há coisa igual.
– Posso comer rim grelhado?
– Naturalmente.
– Então vamos à sua churrascaria.
– Ótimo. Chegue por volta de doze e meia. Deverei ter terminado as compras e estarei lá antes de você. Pergunte ao maître pela minha mesa. Ele me conhece. Ficará no bar e não no salão principal. Certo?
– Claro. Obrigado.
– Pelo quê? Não fiz ainda nada por você.
– Mas fará.
– Farei? Nesse caso, você paga o almoço.
– Feito – disse o Capitão Edward X. Delaney.
Ferguson deu-lhe o endereço do restaurante e desligaram.
– Ostras! – trovejou feliz Ferguson. – Recomendo, definitivamente, as ostras. O rábano silvestre, se fresco. Em seguida, pedirei costeletas de carneiro.
– Muito bem, senhor – disse o garçom.
– Ostras para mim, também – falou Delaney, inclinando a cabeça. – Depois, rim grelhado. Qual é o acompanhamento?
– Batatas à moda e salada.
– Não precisa trazer as batatas. Somente a salada. Azeite e vinagre.
– Quero todo o acompanhamento – exclamou Ferguson, e bebeu metade do martíni.
– O que foi que comprou para sua irmã?
– Um xale de seda, claro. Vamos, Edward, que é que há? Você está de licença.
– Quer realmente saber?
O Dr. Sanford Ferguson ficou subitamente sóbrio e calado. Fitou Delaney durante longo tempo.
– Não – disse finalmente. – Não quero realmente saber. Exceto. . . meu nome será envolvido no caso?
– Juro-lhe que não.
– Isso é suficiente para mim.
Foram trazidas as ostras e lhes pareceram boas. . . Temperaram-nas com molho de rábano e pimenta. Engoliram-nas, entreolharam-se, e grunhiram de prazer.
– Muito bem – disse Ferguson. – O que é que você quer?
– É a respeito de seu laudo sobre o caso Lombard...
– Como foi que recebeu meu laudo?
Delaney olhou-o firme.
– Você disse que não queria saber.
– Exato. Não quero. Muito bem, o que é que tem o laudo?
– Eu queria lhe fazer umas tantas perguntas sobre ele. – Delaney tirou uma lista do bolso do paletó, colocou-a sobre a mesa, armou-se com os pesados óculos, consultou-a, e inclinou-se para Ferguson.
– Doutor, seus relatórios oficiais são completos. Não nego. Mas estão vazados em linguagem médica. Como devem ser, naturalmente – acrescentou, apressado.
– E daí?
– Queria lhe fazer algumas perguntas sobre o que significam esses termos.
– Edward, você está zombando de mim.
– Bem... o que querem dizer mesmo?
– Isso é melhor. – Ferguson sorriu. – Você pode interpretar tão bem um laudo de autópsia como um estudante de medicina do terceiro ano.
– Exato. Acontece também, doutor, que o senhor inclui em seus laudos apenas aquilo que objetivamente observa e que pode ser confirmado por qualquer legista capaz que faça uma autópsia idêntica. Sei também que numa autópsia – em qualquer investigação – há impressões, sensações, palpites – chame-os o que quiser – que não podem jamais fazer parte de um relatório oficial porque não existe a evidência física. E são essas impressões, sensações e palpites que quero de sua parte.
Ferguson enfiou na boca uma ostra embebida em molho, engoliu-a e rolou os olhos.
– Você é um calhorda, Edward – disse amigavelmente. – É, realmente. Usaria qualquer pessoa, não?
– Sim, usaria – concordou Delaney com um aceno de cabeça. – Em qualquer ocasião.
– Vamos começar pela primeira palavra – tornou Ferguson, muito ocupado mexendo no molho das ostras. – Comecemos com os ferimentos na cabeça. Grande experiência no particular?
– Não, não muita.
– Edward, o crânio e o cérebro humanos são mais fortes do que você pode imaginar. Já leu algum romance policial ou viu um filme em que um homem leva um tiro na cabeça e morre instantaneamente? Isso é praticamente impossível. Tive casos de vítimas com cinco tiros na cabeça e que sobreviveram. Transformaram-se em mortos-vivos, é verdade, mas sobreviveram. Há três anos tive um quase suicida que deu um tiro na cabeça com um revólver de pequeno calibre. Um vinte e dois, acho. A bala ricocheteou da cabeça e atingiu o teto. Literalmente. Cometer suicídio dando um tiro na têmpora? Esqueça isso. A bala poderia atravessar a cabeça de um lado a outro e a pessoa não morrer. Poderia viver horas, semanas, ou anos. Talvez não pudesse mais falar, mover-se ou controlar as evacuações, mas poderia viver. Que tal então suas ostras, Edward?
– Ótimas. E as suas?
– Maravilhosas. Só há uma maneira de cometer suicídio inapelável, instantâneo, com um tiro na cabeça, e esta é mediante o uso de uma pistola ou revólver de um calibre razoavelmente grosso, digamos, pelo menos um trinta e oito – um fuzil ou uma espingarda serviriam também, naturalmente – colocando a boca da arma bem dentro da boca e atirando no fundo do crânio, com os lábios e os dentes firmemente em torno do cano, puxando o gatilho e espalhando os miolos pela parede oposta. Mais um pouco destas pequenas ostras, Edward?
– Sim, obrigado.
– Agora vamos ao caso Lombard. A penetração foi feita por trás, abaixo do cocuruto da cabeça. Mais ou menos a meio caminho da distância em que a coluna se liga ao crânio. O único outro local onde a morte poderia ser instantânea.
– Você acha que o assassino tinha conhecimentos médicos?
– Oh, Deus, não – disse Ferguson, fazendo sinal ao garçom para tirar os pratos vazios das ostras. – Bem, atingir deliberadamente aquele ponto exigiria a experiência de um cirurgião. Mas a vítima teria que estar deitada em uma mesa de operações. Nenhum assassino, usando violentamente uma arma, poderia ter esperança de atingi-lo. Foi sorte. Sorte do assassino, não de Lombard.
– A morte foi instantânea?
– Quase. Se não foi instantânea, em questão de segundos. Meia polegada para a direita ou para a esquerda e ele poderia ter vivido horas ou semanas.
– Tão perto assim?
– Eu lhe disse que o crânio e o cérebro humano são mais fortes do que a maioria das pessoas pensa. Sabe quantos ex-soldados andam por aí com fragmentos de balas no cérebro? Vivem normalmente, exceto por dores de cabeça ocasionais, mas não podemos operá-los. E eles levarão vidas normais e morrerão de fumar ou comer queijo demais.
Foram servidas as costeletas, o rim grelhado e a salada. Ferguson serviu-se das batatas à moda em um grande prato com bastante cebola. Após uma consulta ao maître, que tinha 343 anos de idade, pediram uma garrafa de borgonha forte.
– Voltando a Lombard – disse Delaney, atacando o rim grelhado – foi um ferimento realmente circular?
– Oh, você é sabido – respondeu Ferguson, sem rancor. – Você é danado de sabido. Meu laudo dizia que parecia circular. Mas tive a impressão de que poderia ser triangular. Ou mesmo quadrado. Ouça, Edward, você nunca sondou uma penetração craniana. Pensa que se assemelha a bater um espigão em barro de modelagem e, em seguida, puxá-lo e obter uma cavidade bem feita, perfeita? Não é nada disso. O ferimento enche-se. Matéria cerebral faz pressão para dentro. Há sangue. Pedaços de osso. Cabelos. Todos os tipos de porcaria. E espera que eu... Como está o rim?
– Delicioso. Estive aqui antes, mas havia esquecido a quantidade de bacon que servem.
– A costeleta está ótima – voltou Ferguson, tirando um pouco de molho de maçã. – Estou gostando, realmente. Mas, a respeito daquele ferimento em Lombard. .. Além da impressão que tive de que o orifício não era necessariamente circular, tive também outra, de que a penetração curvava-se para baixo.
– Curvava-se?
– Sim, como um cone mole. A ponta da arma é mais baixa do que o eixo. Uma curva. Como uma ereção que começa a amolecer. Compreendeu?
– Sim. Mas por que está tão indeciso quanto à forma do ferimento e da penetração? Sei o que foi que você escreveu, mas qual é o seu palpite?
– Eu acho, desconfio que Lombard caiu com tal força que na queda arrancou a arma da mão do assassino. E que o assassino curvou-se e torceu o instrumento, ou arma, para tirá-lo do crânio de Lombard. Se o espigão fosse triangular ou quadrado, o movimento giratório poderia produzir uma forma aproximadamente redonda.
– E isso significaria que a arma era valiosa para o assassino – comentou Delaney. – Deu-se ao trabalho de recuperá-la. Era intrinsecamente valiosa ou valiosa porque poderia conduzir até ele. Assassinos que usam um martelo, um cano ou uma pedra geralmente calçam luvas e deixam a arma.
– Belo! – disse o Dr. Ferguson, sorvendo o vinho. – Adoro ouvir você pensar.
– Estou satisfeito porque não foi um martelo – falou Delaney. – Nunca pensei realmente que fosse.
– Por que não?
– Tive três casos em que usaram martelos. Em dois deles, o cabo quebrou. No terceiro, a cabeça do martelo soltou-se.
– Então sabia como é duro o crânio humano? Mas deixou que eu falasse.
– Faz parte do jogo. Mais alguma coisa?
– O que mais? Nada mais. Tudo é vago. À vista da evidência, a penetração foi circular, mas poderia ter sido triangular. Poderia ter sido até quadrada. Atingiu um ponto que mataria instantaneamente a vítima. Se acho, por acaso, que o assassino tinha conhecimentos cirúrgicos? Não. Foi um golpe de sorte.
– Sobremesa? – perguntou Delaney.
– Apenas café para mim, obrigado.
– Dois cafés, por favor – pediu Delaney. – Alguma idéia, palpite, sugestão maluca sobre o que poderia ter sido a arma?
– Nenhuma, em absoluto.
– Havia dentro do ferimento alguma coisa que você não esperava encontrar? Alguma coisa que não constou de seu relatório?
Ferguson fitou-o severo durante um momento, relaxou-se, e riu.
– Você não desiste, não? Havia traços de óleo.
– Óleo? Que tipo de óleo?
– Não havia o suficiente para uma análise. Mas, indubitavelmente, óleo de cabelo. O resto do cabelo dele estava muito oleoso e presumo que o óleo do ferimento proveio do cabelo que foi impelido para dentro.
– Mais alguma coisa?
– Sim. Já que está pagando, vou tomar um conhaque.
Depois que Ferguson pegou um táxi para voltar ao gabinete, Delaney tomou vagarosamente a direção da Sixth Avenue. Lembrou-se de que estava a alguns quarteirões do mercado de flores e dirigiu-se lentamente para lá. Não tinha pressa. Sabia por experiência que todas as investigações desenvolviam-se em um ritmo próprio. Algumas tinham solução rápida e eram liquidadas em horas. Outras pareciam ser de crescimento lento e demandavam tempo. O caso Lombard era um desses. Consolou-se pensando que Broughton, que estava apressado, nada conseguira até então. Mas estaria ele saindo-se melhor? Como dissera o Dr. Ferguson, era tudo muito vago.
Encontrou o que procurava na terceira loja de flores: violetas, fora da estação. Eram as flores com que havia cortejado Bárbara. Naqueles dias eram vendidas nas ruas por senhoras idosas que se postavam junto de velhos que vendiam castanhas. Comprava um buquê para Bárbara e perguntava:
– Violetas recém-saídas do forno, moça? – Ela sempre tinha a bondade de rir. Naquele momento, comprou os dois últimos raminhos e tomou um táxi para o hospital.
Mas quando entrou no quarto, na ponta dos pés, ela dormia tranqüilamente. Não teve coragem de acordá-la. Desembrulhou as violetas e olhou em volta, procurando um vaso para colocá-las, mas não havia coisa alguma que servisse. Finalmente, sentou-se numa cadeira de espaldar reto, sobrando pelo lado seu corpanzil uniformizado. Segurou as tenras violetas na grande mão e esperou paciente, observando-a dormir. Lançou um rápido olhar para as janelas empoeiradas. O forte sol de novembro entrava, diluído e suavizado.
Talvez, matutou triste e encurvado, o casamento fosse como um daqueles vitrais que vira em uma modesta igreja de aldeia na França. Vistos do lado de fora, pareciam quase opacos com o sujo e a fuligem de séculos. Mas, quando se entrava na igreja e via-se a luz do sol passando pelo vidro, difundida pela poeira, as cores nos feriam os olhos e o coração com sua ousadia e pureza, juventude e vivacidade.
O seu casamento com Bárbara, pensou, devia parecer monótono e empoeirado para um estranho. Mas, visto de dentro, era brilhante e divertido e, finalmente, sagrado e misterioso. Observou-a dormir e quis que sua força se encaminhasse para ela, tomando-a saudável e risonha novamente. Logo depois, incapaz de suportar os pensamentos, ergueu-se e colocou as violetas sobre a mesinha de cabeceira, com um bilhete rabiscado ao lado: "Violetas recém-saídas do forno, moça?"
Ao voltar ao gabinete, Dorfman esperava-o com uma folha de papel arrancada do telex.
– Capitão – disse ele em voz estrangulada, e Delaney teve receio de que chorasse – isto é,..
– Sim, tenente, está correto. A partir de agora, estou de licença. Entre e vamos conversar.
Dorfman seguiu-o até o gabinete e tomou uma cadeira arranhada junto à escrivaninha de Delaney.
– Capitão, eu não tinha idéia de que sua senhora estava tão doente.
– Bem, tanto quanto posso saber, vai ser uma doença demorada e quero passar junto dela todo o tempo que me for possível.
– Posso fazer alguma coisa?
– Obrigado, não. Bem, talvez haja alguma coisa. Pode ir visitá-la. Acho que gostaria de vê-lo. Quando tiver um momento livre.
– Vou visitá-la imediatamente – exclamou Dorfman.
– Deixe passar algumas horas. Acabo de vir do hospital e ela estava dormindo.
– Eu a visitarei antes do término do meu serviço. Depois, se ela quiser me ver, posso ir lá sempre. O que é que devo levar. . . flores, balas?
– h, nada, obrigado. Ela tem tudo de que necessita.
– Talvez um bolo? – sugeriu Dorfman. – Um lindo bolo. Pode dividi-lo com as enfermeiras. Enfermeiras adoram bolos.
– Ótimo – sorriu Delaney. – Acho que ela gostará que lhe leve um bolo.
– Capitão – lamentou-se Dorfman, entristecendo-se novamente sua longa cara de cavalo. – Isso significa que teremos outro capitão respondendo pelo expediente?
– Sim.
– Tem alguma idéia de quem será, senhor?
Delaney pensou um pouco, envergonhado durante um momento de manipular um homem tão honesto e sincero. Mas era a coisa sensata a fazer para cimentar a confiança e afeição de Dorfman.
– Eu o recomendei para o cargo, tenente – disse tranqüilamente.
Os olhos azuis-claros de Dorfman arregalaram-se com o choque.
– Eu? – arquejou. Em seguida, novamente: – Eu? – repetiu com autêntico prazer.
– Espere um minuto – disse Delaney, levantando a mão. – Recomendei-o, mas não acho que vá conseguir o cargo. Não porque sua fé de ofício não seja excelente nem porque não possa dar conta do recado, mas porque seu posto o prejudica. Esta delegacia exige um capitão ou um subinspetor. Compreendeu?
– Certamente, capitão. Mas estou realmente grato por ter-me recomendado.
– Bem, como disse, não acredito que vá consegui-lo. Neste caso, se fosse você, não falaria disso a ninguém. Especialmente à sua esposa. Se o recusarem, será apenas decepção sua, e ninguém pensará que estudaram seu caso e o rejeitaram por um motivo ou outro.
– Não mencionarei o fato, senhor.
Delaney pensou um pouco se devia ou não insinuar a Dorfman os serviços como contato que ele poderia ser solicitado a prestar na sua investigação da morte de Lombard. Resolveu que não. A ocasião não era propícia e já dera ao subordinado o suficiente para lhe ocupar os pensamentos.
– De qualquer modo – continuou Delaney – consiga o cargo ou não, lembre-se que ainda continuo a morar ao lado e, se houver alguma maneira em que eu possa ajudá-lo, não hesite em me telefonar ou ir até lá em casa. Estou falando sério. Não meta na cabeça que vai me incomodar ou aborrecer. Não irá. Para falar a verdade, gostaria de saber o que está acontecendo por aqui. Esta é a minha delegacia e, com sorte, espero voltar a dirigi-la qualquer dia.
– Espero que sim, capitão. – Ergueu-se e estendeu a mão. – Felicidades, senhor, e desejo que a Sra. Delaney fique logo boa.
– Obrigado, tenente.
Após a saída de Dorfman, Delaney permaneceu ali, balançando-se para a frente e para trás na cadeira giratória. Seria um homem tão gentil e sensível como o tenente capaz de administrar uma movimentada delegacia do Departamento de Polícia de Nova York? O trabalho era daqueles que, ocasionalmente, exigia implacabilidade, certo volume de uma insensibilidade do tipo Broughton. Mas, refletiu Delaney, a inexorabilidade poderia ser um traço adquirido. Mesmo um traço fingido. Ele, de qualquer modo, esperava não ter nascido com esse traço. Dorfman podia aprender a ser duro quando necessário como ele, Delaney, havia aprendido. Era implacável, mas isso não lhe dava prazer. Talvez residisse aí a diferença fundamental entre ele e Broughton: não achava prazer naquilo.
Baixou a cadeira giratória para o nível horizontal com uma batida seca e enfiou a mão na gaveta de baixo para tirar um longo arquivo de cartões. A caixa de metal cinzenta apresentava mossas e arranhões. Delaney abriu-a e começou a procurar o que queria. Os cartões eram classificados por assunto. Pouco depois de o patrulheiro Edward X. Delaney ter sido promovido a detetive de terceira classe, havia mais anos do que gostava de lembrar, notou que, a despeito dos enormes recursos do Departamento de Polícia de Nova York, freqüentemente enfrentava problemas que só podiam ser solucionados por especialistas civis.
Havia, por exemplo, um detetive aposentado, sempre feliz em cooperar com os antigos colegas, que havia reunido e mantinha o que era provavelmente a maior coleção do mundo de marcas de lavanderia. Conhecia uma solteirona de 84 anos de idade que ainda dirigia sua loja na Madison Avenue. Ela lançava um olhar para um botão estranho e dizia de que era feito, sua idade, e origem. Um professor da Universidade de Colúmbia especializava-se em grilos e gafanhotos. Um arqueólogo amador fizera todas as suas "escavações" dentro dos limites da cidade. Examinando rochas ou amostras de solo, apontava-lhes a origem com uma margem de erro de apenas alguns quarteirões. Um indivíduo que vivia recluso em Bronx era uma das maiores autoridades mundiais em escrita antiga e lia hieróglifos com a mesma facilidade com que Delaney lia inglês.
Todos esses especialistas queriam, não, mostravam-se ansiosos para cooperar com as investigações policiais. O trabalho constituía uma agradável interrupção da rotina em que viviam e dava-lhes oportunidade de exibir conhecimentos em prol de uma boa causa. O único problema consistia em conservá-los calados. Parecia que todos eles falavam demais, como todas as pessoas cujo hobby é sua vocação. Mas, no fim, divulgavam a informação solicitada.
Delaney possuía os nomes deles todos no arquivo, cuidadosamente mantido e atualizado durante quase vinte anos. Folheou os cartões até encontrar o que procurava. Intitulava-se: "Armas, antigas e estranhas". O nome do indivíduo era Christopher Langley, conservador-assistente da Coleção de Armas e Armaduras do Museu Metropolitano. (O cartão que se seguia ao seu intitulava-se "Armas, modernas", e o especialista era um coronel aposentado dos Fuzileiros.)
Telefonou para o Metropolitano (o número que estava no cartão) e pediu a seção de Armas e Armaduras e, ao ser atendido, para falar com Christopher Langley.
– Sinto muito, senhor – respondeu uma jovem voz feminina. – O Sr. Langley não está mais conosco. Aposentou-se há três anos.
– Oh, lamento saber disso. Sabe por acaso se ele está residindo em Nova York?
– Sim, senhor, acho que sim.
– Neste caso, o nome dele deve estar no catálogo.
Houve um pequeno silêncio.
– Bem. . . não, senhor. Acho que o Sr. Langley tem um número privado.
– Poderia dar-me o número dele? Sou um velho amigo.
– Sinto muito, mas não podemos dar essa informação.
Teve vontade de dizer, "Fala aqui o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York, e o assunto é oficial". Ou podia facilmente obter o número com a companhia telefônica, solicitando-o oficialmente. Mas pensou melhor no caso. Quanto menos pessoas conhecessem as suas atividades, melhor.
– Meu nome é Edward Delaney – disse. – Poderia a senhora ter a bondade de telefonar ao Sr. Langley, dizer-lhe que telefonei, e que se ele quiser falar comigo pode fazê-lo ligando para este número? – Deu-lhe o número telefônico da delegacia.
– Sim, senhor. Posso fazer isso.
– Muito obrigado.
Desligou, perguntando-se que percentagem de suas horas de vigília eram passadas ao telefone, tentando completar uma ligação ou esperando uma chamada. Ficou pacientemente à espera, na esperança de que Langley estivesse em casa. Estava. O telefone de Delaney tocou cinco minutos depois.
– Delaney! – exclamou Christopher Langley em voz notavelmente jovem (ele estava na casa dos 70). – Puxa, pedi para falar com o Tenente Delaney e a telefonista disse-me que era agora Capitão Delaney. Parabéns! Quando foi isso?
– Oh, há alguns anos. Como está, senhor?
– Fisicamente, bem, mas como ando chateado!
– Ouvi dizer que se aposentou.
– Tive que me aposentar. Dar uma oportunidade aos jovens, hem? No primeiro ano, andei mexendo em bobagens. Tornei-me um cozinheiro maravilhoso. Mas, bolas, quantos Caneton à l'Orange pode um homem fazer? Estou entediado, entediado, entediado. Foi por isso que fiquei tão satisfeito em receber notícias suas.
– Bem, preciso de sua ajuda e gostaria de saber se pode me reservar umas poucas horas?
– Quantas quiser, meu querido rapaz, quantas quiser. É um caso importante?
Delaney riu, conhecendo o gosto de Langley pelos romances policiais.
– Sim, senhor. Muito importante. O mais importante de todos. Um assassinato praticado com requintes de perversidade.
– Puxa vida! – arquejou Langley. – Mas isso é maravilhoso! Capitão, quer vir jantar comigo hoje à noite? Depois do jantar, podemos tomar conhaque, conversar, e me conta tudo e como posso ajudá-lo.
– Oh, não gostaria de lhe dar todo esse trabalho...
– Não será trabalho algum! – exclamou Langley. – Será ótimo vê-lo novamente e poderei demonstrar-lhe minhas habilidades culinárias.
– Bem. . . – disse Delaney, pensando na visita da noite a Bárbara – terá que ser um pouco tarde. Nove horas é muito tarde?
– Em absoluto, em absoluto! Prefiro jantar tarde. Logo que desligar, vou sair para fazer algumas compras. – Deu a Delaney o endereço de sua casa.
– Ótimo – disse Delaney. – Então, até às nove, senhor.
– Puxa, isto é ótimo! – exclamou Langley. – Teremos pernas de rãs fritas na manteiga e alho, petite pois com uma pitada de bacon e cebolas, e gratin de pommes de terre aux anchois. E para sobremesa, talvez um creme plombières pralinée. Que tal?
– Ótimo – repetiu baixinho Delaney. – Simplesmente ótimo.
Desligou. Oh, pensou, lá se vai meu regime. Perguntou-se também o que aconteceria quando as pernas de rãs se encontrassem com o rim grelhado.
Uma jovem senhora dirigia-se para Central Park, empurrando um carrinho de criança. Subitamente, uma vara de madeira de mais ou menos 25 centímetros de comprimento apareceu no seu peito. Caiu sobre os joelhos, tombando de bruços, e somente uma corrida súbita dos transeuntes impediu que o carrinho saltasse para o meio do tráfego.
Delaney, que na ocasião era tenente de detetives, lotado na Homicídios Leste (como era então chamada), chegou ao local do crime pouco depois de a mulher morrer. Reuniu-se ao círculo de patrulheiros e enfermeiros de ambulância que olhavam incrédulos para ela, com um espigão de madeira cravado no coração, como alguma moderna vampira.
Dentro de uma hora, identificaram o míssil como uma flecha disparada por uma besta. Delaney dirigira-se ao Departamento de Armas e Armaduras do Museu Metropolitano de Arte, procurando descobrir mais alguma coisa sobre bestas, como funcionavam, o alcance e a velocidade dos dardos. Fora assim que conhecera Christopher Langley.
Pela informação fornecida pelo conservador-assistente, conseguiu solucionar o caso, para sua satisfação pelo menos, embora nunca tenha sido levado à justiça! O garoto que havia disparado o dardo contra uma estranha, da janela de uma casa do outro lado da rua, era filho de uma família rica. Os pais tiraram-no do país e o internaram em uma escola na Suíça. Ele nunca mais voltou aos Estados Unidos. O Promotor Público não julgou que a evidência circunstancial fornecida por Delaney fosse suficientemente forte para justificar um pedido de extradição. O caso continuava ainda pendente.
Delaney, porém, jamais esquecera a entusiástica cooperação de Chris-topher Langley e seu nome fora acrescentado ao "arquivo de especialistas" do detetive. Delaney recordava-se com freqüência de uma cena em que aparecia o magro homenzinho. Langley mostrava-lhe a galeria do Museu, deserta salvo pelo guarda sorridente, que evidentemente sabia o que esperar.
Inesperadamente, o conservador-assistente arrancou da parede uma espada, dessas de manejar com duas mãos, uma lâmina alemã do século XVI que tinha de comprimento a altura dele, e adotou uma postura de esgrimista. Girou a lâmina em volta da cabeça, em círculos de aço faiscante. Cortou, brandiu, aparou, deu estocadas.
– Era assim que faziam – disse ele calmo e entregou a longa lâmina a Delaney.
O detetive segurou-a e a espada quase caiu no chão. Calculou seu peso em aproximadamente 15 quilos. O magro e musculoso Christopher Langley havia-a manejado como se fosse uma pena.
No momento em que abriu a porta de seu apartamento, no quinto andar de um prédio, era exatamente a imagem que Delaney lembrava. Em outra era, teria sido chamado de peralvilho, ou almofadinha. Agora, era um solteirão bem conservado de uns 70 anos, alerta, vestido de modo refinado, com a pele de uma donzela e uma pequena margarida amarela na lapela da jaqueta de flanela cinzenta de Norfolk.
– Capitão! – exclamou feliz, estendendo ambas as mãos. – Puxa, que satisfação!
O conservador aposentado morava em um pequeno e confortável apartamento: sala de estar, quarto de dormir, banheiro, e uma cozinha extraordinariamente ampla. Satisfeito, Delaney notou que a sala de estar possuía clarabóia, mas que estava fechada por barras de ferro.
Langley tomou-lhe o chapéu e sobretudo e guardou-os.
– À paisana esta noite, capitão?
– Não. Para dizer a verdade, não estou atualmente no serviço ativo. Estou de licença.
– Oh? – perguntou curioso Langley. – Por muito tempo?
– Não sei.
– Bem... sente-se, por favor. Ali... aquela cadeira é mais confortável. O que lhe posso servir agora? Um coquetel? Um highball?
– Por favor, não...
– Tenho aqui um novo aperitivo italiano que vou tomar pela primeira vez. É muito seco. Muito bom com gelo e suco de limão.
– Parece bom. Vai tomar também?
– Naturalmente. Dê-me apenas um minuto.
Enquanto Langley corria para a cozinha, o capitão olhava curioso em volta. As paredes da sala de estar eram tomadas por estantes quase totalmente ocupadas, prateleiras altas para receber volumes sobre armas antigas, a maioria constituída de "livros de arte" de grande tamanho, ilustrados com gravuras em cores.
Notou apenas duas armas reais: um arcabuz italiano do século XVII, com refinados arabescos em prata, e uma maça de guerra africana. A cabeça desta última era de pedra intrincadamente esculpida. Delaney ergueu-se e foi examiná-la. Virava-a nas mãos quando Langley entrou com as bebidas.
– Tribo mongo – disse. – Do Congo. Um machado cerimonial nunca usado em combate. O equilíbrio da arma é mau, mas gosto dos baixos-relevos. . .
– É lindo.
– É, não? O jantar estará pronto em dez minutos. Enquanto isso, vamos nos relaxar um pouco. Quer um cigarro?
– Não, obrigado.
– Ótimo. O fumo embota o paladar. Sabe qual é o segredo da boa cozinha francesa?
– Qual?
– Paladar apurado e manteiga. Nada de óleo, só manteiga. A manteiga mais saborosa, mais cremosa que puder encontrar.
Delaney sentiu um peso no coração. O idoso cavalheiro notou-lhe a expressão e riu.
– Não se preocupe, capitão. Nunca pensei que seria preciso comer muito de um prato para apreciá-lo. Pequenas porções e vários pratos. . . Isso é o melhor.
Não mentia; as porções eram pequenas. Mas Delaney chegou à conclusão que fora um dos melhores jantares que já saboreara, e disse ao dono da casa. Langley ficou radiante.
– Um pouco mais de sobremesa? Há mais, como sabe.
– Não, obrigado. Mas tomarei outra xícara de café, se houver.
– Naturalmente.
Jantaram em uma mesa simples de carvalho, forrada com uma toalha preta, uma mesa que, tinha Delaney a certeza, servia também como escrivaninha. Afastaram-se naquele momento o suficiente para cruzar as pernas, fumar, tomar o café e bebericar o forte conhaque português servido por Langley.
– A respeito deste caso... – começou Delaney, mas, nesse exato momento, soou a campainha do apartamento no conhecido ritmo de dois toques. Surpreso, o capitão viu Langley empalidecer.
– Oh, meu Deus! – murmurou o velho. – É ela, novamente. A viúva Zimmerman! Ela mora no apartamento de baixo.
Levantou-se de um salto, atravessou rápido a sala, olhou pelo olho-mágico, puxou o trinco e abriu a porta.
– Ahhh. Boa noite, Sra. Zimmerman.
Delaney via-a claramente do local onde se encontrava. Tinha talvez uns 60 anos, era uns quinze centímetros mais alta do que Langley e, certamente, mais pesada uns vinte e cinco quilos. Equilibrava uma colméia de cabelo bem penteado, alourado, por cima do rosto gordo e seus braços nus pareciam cepos de açougueiro. Usava cinta tão apertada que o corpo parecia cortado em um único tronco de árvore. Ao andar, dava a impressão de que as pernas moviam-se apenas do joelho para baixo.
– Oh, espero que não o esteja incomodando – disse afetada, olhando audaciosamente para o capitão por cima do ombro de Langley. – Eu sabia que tinha visita. Ouvi-o sair para fazer compras e voltar. Ouvi também tocar a campainha e a chegada de seu convidado. Um de seus fantásticos jantares estrangeiros, tenho certeza. Bom, acontece que acabei de fazer um strudel de ameixas frescas e pensei que você e seu convidado poderiam querer um pouquinho, como sobremesa. Ei-lo.
Entregou a Langley um prato coberto por um guardanapo. Ele recebeu-o com as pontas dos dedos.
– Que gentileza, Sra. Zimmerman. Não quer...?
– Oh, não desejo interrompê-los. Eu nunca pensaria nisso.
Aguardou, expectante, mas Langley não repetiu o convite.
– Bem, vou indo – disse a viúva Zimmerman, fazendo beicinho para Delaney.
– Obrigado pelo strudel
– O prazer foi meu. Aproveite-o.
Endereçou-lhe um sorriso de menininha. Ele fechou firme a porta, passou o ferrolho e a corrente, encostou a orelha no painel e escutou enquanto os passos dela desciam as escadas. Voltou à mesa e sussurrou a Delaney:
– Uma mulher terrível! Vive trazendo comida. Pedi-lhe que não fizesse isso, mas ela continua. Sou perfeitamente capaz de cozinhar para mim mesmo. Faço isso há cinqüenta anos. E a comida que ela traz! Strudel e fígado moído, derma recheada, e arenque picado. Deus meu! Não posso jogá-la fora porque ela pode ver na lata do lixo e ficaria ofendida. Assim, sou obrigado a embrulhá-la como se fosse um presente e levá-la até três ou quatro quarteirões de distância e lançá-la em uma lata de lixo. Que problema, essa mulher.
– Acho que ela anda querendo conquistá-lo – disse solene Delaney.
– Oh, meu Deus! – tornou Christopher Langley, enrubescendo. – O marido dela. . . o falecido marido. . . era um homem tão bom e tranqüilo. Um peleteiro aposentado. Bem, deixe-me levar isto para a cozinha e você pode continuar o que estava dizendo.
– O senhor leu nos jornais alguma coisa a respeito do assassinato de Frank Lombard? – perguntou o capitão no momento em que Langley voltou.
– Claro que li. Tudo que pude encontrar. Um caso fascinante. Sabe, sempre que leio a respeito de um assassinato ou de uma tentativa, procuro uma descrição da arma. Afinal de contas, isso foi minha vida durante muitos anos, e estou ainda interessado. Mas, em todas as reportagens sobre o caso, foi muito vaga a descrição da arma. Não foi identificada ainda?
– Não, não foi. E por isso que estou aqui. Para lhe pedir ajuda.
– E, como sabe, terei o maior prazer em dar-lhe toda assistência que puder, meu querido rapaz.
Delaney ergueu a mão como se fosse um guarda de trânsito.
– Um momento. Quero ser franco com o senhor. Como lhe disse, não estou no serviço ativo. Tirei uma licença. Não faço parte da investigação oficial da morte de Frank Lombard.
– Qual é seu interesse no caso?
– Estou realizando uma... investigação particular do homicídio.
– Compreendo. Pode dizer-me mais alguma coisa?
– Preferia não dizer.
– Posso saber a finalidade dessa... ah... investigação particular?
– A principal finalidade é descobrir, com tanta rapidez quanto possível, o assassino de Frank Lombard.
Langley olhou-o durante outro longo momento, e bateu na mesa com a palma aberta da mão.
– Muito bem – disse vivamente. –Era uma arma de atacar de ponta ou de brandir? Isto é: imagina que seja uma faca, uma adaga, um punhal escocês, uma faca de ponta – algo desse tipo – ou uma espada, varapau, machado de guerra, porrete, maça, alguma coisa nessa linha?
– Eu diria que as percentagens seriam a favor de uma arma de brandir.
– As percentagens! – Langley riu. – Havia-me esquecido de você e suas percentagens. Para você isso é um negócio, não?
– Sim, é um negócio. E, às vezes, as únicas coisas que temos com que trabalhar são percentagens. Mas, com relação ao que o senhor disse sobre a arma usada – uma faca ou adaga – elas certamente não poderiam penetrar no crânio de um homem, não?
– Poderiam. E puderam. Se a lâmina e o cabo forem suficientemente pesados. A faca de combate dos fuzileiros na II Guerra Mundial podia rachar ao meio o crânio de um homem. A maioria das lâminas, porém, apenas o raspariam, ocasionando ferimentos superficiais. Além disso, Lombard foi atingido por trás na cabeça, não?
– Exatamente.
– Então isso excluiria, com toda probabilidade, uma arma de ponta. Um assaltante que usasse uma lâmina e viesse por trás, quase com certeza atacaria entre as espáduas, penetrando entre as costelas e cortando a espinha, ou tentaria os rins.
Delaney assentiu, maravilhando-se com o entusiasmo com que esse homem pequenino alinhava, sem dificuldade, esses argumentos, num entusiasmo tornado ainda mais incrível pela sua idade, físico diminuto, e aparência elegante.
– Muito bem – continuou Langley – suponhamos que foi uma arma de brandir. Com uma mão ou duas mãos?
– Acho que com uma única mão. Acho também que o assassino aproximou-se de Lombard pela frente. Ao passar, girou sobre si mesmo e derrubou-o. Durante a aproximação, a arma poderia ter ficado oculta sob um sobretudo no braço do assassino ou num jornal dobrado sob a axila.
– Bem, isso exclui certamente uma alabarda! Está falando a respeito de alguma coisa do tamanho de uma machadinha?
– Mais ou menos esse tamanho.
– Capitão, acredita que tenha sido uma arma antiga?
– Duvido muito. Mais uma vez, as percentagens são contra. Em toda minha vida, investiguei apenas dois homicídios em que foram usadas armas antigas. Um deles foi aquele da besta, no qual o senhor me ajudou. O outro, uma morte ocasionada por uma bala disparada por uma antiga pistola de duelo.
– Devemos supor, então, uma arma moderna?
– Isso mesmo.
– Ou uma ferramenta moderna. O senhor precisa compreender que numerosas ferramentas modernas evoluíram de antigas armas. O reverso é verdade também, naturalmente. Durante combates corpo-a-corpo na Coréia e no Vietnã houve vários casos de soldados americanos que usaram suas ferramentas de trincheira, pás e picaretas, como armas de ataque e defesa. Passemos agora ao ferimento em si. Foi um golpe de esmagamento, corte ou perfuração?
– Perfuração. Uma penetração de mais ou menos sete e meio a dez centímetros de profundidade.
– Oh, isso é interessante! E qual era a forma da penetração?
– Aqui vou me tornar um pouco vago – avisou Delaney. – O laudo oficial do legista que fez a autópsia declara que o ferimento externo era aproximadamente circular, de mais ou menos dois centímetros e meio de diâmetro. A penetração afilava-se quase imediatamente até uma ponta aguda, sendo toda a penetração arredondada, como disse, de cerca de sete e meio a dez centímetros de profundidade.
– Redondo? – exclamou Langley, e o capitão ficou surpreso com a expressão do interlocutor.
– Sim, redondo – repetiu. – Ora. . . há alguma coisa errada?
– O legista tem certeza disso? Quero dizer, de ser redondo o orifício?
– Não, não tem. Mas o ferimento foi de tal natureza que se tornaram impossíveis medições precisas e uma análise. O médico tem a impressão. . . apenas um palpite. . . de que o espigão que penetrou era triangular ou quadrado, que a arma ficou presa no ferimento, ou que a vítima, caindo, arrancou a arma da mão do assassino, e que este teve de torcê-la para tirá-la. E que esse movimento giratório, com um espigão quadrado ou triangular, resultaria em...
– Ah! Ah! – gritou Langley, batendo na coxa. – Foi exatamente isso o que aconteceu! E ele acredita que o espigão poderia ter sido triangular ou quadrado?
– Acredita que poderia ter sido. . . sim.
– Foi – disse categórico Langley. – Foi. Acredite-me, capitão. Sabe quantas armas existem com espigões redondos que se afilam e que poderiam causar o tipo de ferimento que descreveu? São tão poucas que eu poderia contá-las nos dedos da mão. O senhor encontrará espigões redondos em maças de guerra de certas tribos índias da costa noroeste. Há uma maça de guerra tlingit com uma cabeça de jade que se afila em ponta. Não é perfeitamente redonda, contudo. Os índios Thompson usavam uma maça com cabeça redonda e afilada, um cone perfeito. Os índios tsimshian utilizavam chifres e ossos, mais uma vez atilados. As tribos esquimós faziam maças com espigões de osso ou presas de narvais ou morsas. Compreende a importância do que estou dizendo, capitão?
– Receio que não.
– Os materiais usados em armas com espigões cônicos foram sempre materiais naturais, que se afilavam naturalmente tais como dentes ou presas – ou eram materiais moles – como madeira, que podiam ser afilados facilmente para tomar a forma de um cone. Mas passemos ao ferro e ao aço. As primeiras armas de metal foram feitas por armeiros e ferreiros que trabalhavam com malhos, batendo em um pedaço quente sobre uma bigorna. Era infinitamente mais fácil e mais rápido modelar um espigão chato, triangular ou quadrado do que um cone perfeito que se afilava em poata aguda. Não consigo me recordar de uma única alabarda, partison, ou couteau de brèche no Metropolitano que tenha espigão redondo. Ou qualquer martelo ou machadinha de guerra. Acho que me lembro de uma maça, no Museu de Roterdã, que tinha um espigão redondo, mas preciso checar isso. De qualquer modo, as armas primitivas quase invariavelmente eram modeladas com os lados chatos, geralmente triangulares ou quadrados, ou mesmo hexagonais. Um espigão perfeitamente redondo e proporcional era difícil de fazer. O mesmo continuou a ser verdadeiro depois que surgiu a forja e a estampagem do ferro e do aço. É mais barato, mais rápido e mais fácil fazer lâminas e espigões com lados chatos do que redondos, que se afilam em ponta. Acho que os "palpites" do seu legista foram corretos. Usando suas famosas "percentagens".
– Interessante – anuiu Delaney – e é exatamente o motivo por que vim procurá-lo. Mas há outra coisa que lhe devo dizer. Não sei o que significa, se significa alguma coisa, mas talvez o senhor descubra. O legista achava que a ponta aguda da penetração era mais baixa do que o ferimento inicial. Compreendeu? Não foi uma penetração reta, que se afilava, mas se curvava um pouco para baixo. Talvez seja melhor fazer um pequeno desenho.
– Puxa vida – casquinou Langley – isso não é necessário. Sei exatamente o que quer dizer. – Ergueu-se de um salto, correu até uma estante, passou o dedo pelas lombadas, puxou um grande livro e correu de volta à mesa. Consultou a Lista de Ilustrações, desceu o dedo pela página, encontrou o que procurava, e folheou as páginas. – Aqui – disse. – Dê uma espiada, capitão.
Delaney examinou a ilustração atentamente. Era uma maça, de uso com uma só mão. A cabeça possuía uma lâmina de machado de um lado e um espigão do outro. O espigão media mais ou menos dois centímetros e meio de largura na cabeça e afilava-se até uma ponta aguda e, enquanto se afilava, curvava-se para baixo.
– O que é isso? – perguntou.
– Uma machadinha de guerra iroquesa. Cabo de freixo. Isso aí são penas amarradas à extremidade do cabo. A cabeça é de ferro, provavelmente cortado de uma folha de metal quente com tenazes ou modelada a escopro e, em seguida, afiada. Os mercadores brancos levavam-nas e trocavam-nas por peles.
– O senhor está sugerindo... ?
– Céus, não! Mas, notou como o espigão chato se curva para baixo? Eu lhe poderia mostrar essa mesma curva em maças de guerra e machados e alabardas de praticamente todas as nações, tribos e raças da Terra. Muito eficiente, muito eficiente. Quando se ataca um homem para derrubá-lo, não se quer atingir-lhe o crânio com um espigão horizontal, que poderia passar de raspão. Quer-se um espigão que se curve para baixo, fure, penetre e mate.
– Sim – assentiu Delaney – acho que sim.
Os dois permaneceram em silêncio durante alguns momentos, olhando para a foto colorida da machadinha de guerra iroquesa. Quantos aquela arma havia matado? – perguntou-se Delaney. Em seguida, folheando lentamente o livro, entristeceu-se ao ver o esforço, a arte e o gênio que a raça humana havia despendido em ferramentas de destruição, em pólvora e chumbo, espada e estilete, baioneta e porrete, besta e tanque Centurion, zarabatana e canhão, azagaia e bomba de hidrogênio. Não havia, pensou, fim para aquilo.
Mas qual era a necessidade, ou o intenso desejo, de pôr tanto interesse e tanto engenho e energia no desenho, na fabricação de instrumentos de morte? O menino com o estilingue e o homem com o revólver, mostrando ambos um sombrio atavismo? Seria matar, então, uma paixão, desde a borra primeva, uma expressão tão válida da alma humana como o amor e o sacrifício?
Subitamente deprimido, Delaney ergueu-se e fez um esforço para sorrir para o dono da casa.
– Sr. Langley, agradeço-lhe a agradável noite, o jantar maravilhoso, e sua bondosa cooperação. O senhor me forneceu um bocado de material para pensar.
Christopher Langley parecia tão deprimido como o convidado. Ergueu apático os olhos.
– Eu não o ajudei, capitão, e o senhor sabe disso. O senhor não está mais perto da identificação da arma que matou Frank Lombard do que estava há três horas.
– O senhor realmente me ajudou – insistiu Delaney – pois confirmou as impressões do legista. E me deu uma idéia mais clara do que procurar. Num caso como este, todos os fragmentos de informação ajudam.
– Capitão...
– Sim, Sr. Langley?
– Nessa "investigação particular" sua, a arma não é a única coisa. Sei disso. O senhor vai interrogar pessoas, checar velhos registros, e coisas assim. Certo?
– Sim.
– Nesse caso, não pode gastar muito tempo tentando identificar a arma, não?
– Exato.
– Capitão, deixe que eu faça isso. Por favor, deixe-me tentar.
– Sr. Langley, não posso...
– Sei que o senhor não está no serviço ativo. Sei que é uma investigação particular. 0 senhor me contou. Mas, ainda assim. . . o senhor está tentando. Para lhe dizer a verdade, capitão, estou cansado de cozinha de gourmet. Minha vida inteira foi. . . Oh, Deus, o que é que devo fazer. . . Ficar sentado aqui, à espera da morte? Capitão, por favor, deixe-me fazer alguma coisa, alguma coisa importante. Esse homem, Lombard, foi assassinado. Isso não está certo. A vida é preciosa demais.
– Foi o que minha esposa disse – respondeu Delaney, em dúvida.
– Ela sabia – Langley assentiu, com os olhos brilhantes nesse instante. – Deixe que eu faça algum trabalho, algum trabalho importante. Conheço armas. 0 senhor sabe disso. Eu poderia ajudá-lo. Realmente. Deixe que eu tente.
– Não disponho de recurso algum – começou Delaney. – Não posso...
– Esqueça isso – o velho ignorou a ressalva com um aceno de mão. – Não lhe custará nada. Posso fazer a despesa com táxis e livros, ou o que quer que seja. Mas deixe-me trabalhar. Num trabalho importante. Compreendeu, capitão? Eu não quero simplesmente passar pela vida.
O capitão olhou-o fixamente, perguntando-se se o ex-conservador era presa de seus próprios sombrios pensamentos. Langley não tinha nada de estúpido, mas, como poderia um homem inteligente justificar uma vida inteira dedicada a instrumentos de destruição? Talvez fosse verdade, como dissera, que estava simplesmente entediado com a aposentadoria e quisesse trabalhar novamente. Mas sua insistência em algo "importante", em trabalho "importante", em uma função "importante" levou Delaney a especular se o velho, aproximando-se do ocaso da vida, não estava, em certo sentido, buscando uma espécie de expiação, ou pelo menos ansioso para fazer um gesto luminoso, afirmativo, após uma carreira que celebrava as sombras e o pântano.
– Certo – disse o Capitão Delaney, pigarreando. – Compreendo. Muito bem. Aprecio muito isso, senhor. Se descobrir mais alguma coisa com relação à arma, eu lhe informarei. Enquanto isso, veja o que pode descobrir.
– Oh! – exclamou Langley, borbulhante de novo. – Começarei imediatamente. Há algumas coisas que quero conferir em meus livros, hoje à noite, e amanhã visitarei os museus. Talvez me sugiram alguma idéia. E as lojas de ferragens. Procurar ferramentas. Capitão, sou agora detetive?
– Exatamente – sorriu Delaney – o senhor agora é detetive.
Dirigiu-se à porta. Langley correu para trazer-lhe o sobretudo e o chapéu, que estavam guardados em um armário. Deu-lhe o número privado do telefone. Delaney, cuidadosamente, copiou-o num caderninho de notas. Langley abriu a porta e inclinou-se bem para ele.
– Capitão, um último favor. . . Quando descer a escada, veja se passa na ponta dos pés pela porta da viúva Zimmerman. Não quero que ela saiba que estou sozinho.

6

A residência do falecido Frank Lombard ficava situada numa rua surpreendentemente bucólica da zona de Flatbush, em Brooklyn. Havia árvores, relvados, cachorros ganindo e crianças esganiçadas. A casa em si, de tijolos vermelhos e dois andares, tinha a feiúra disfarçada por uma sólida cobertura de hera, ainda verde, que subia até os beirais.
Uma passagem de automóvel asfaltada curvava-se até uma garagem, para dois canos. Havia quatro automóveis estacionados juntos na passagem, e outros em frente da casa, em fila dupla. O Capitão Delaney observou tudo isso do outro lado da rua. Notou também que um dos carros estacionados em fila dupla era um Plymouth de três anos, de quatro portas, levemente enferrujado, um pouco empoeirado, e com a aparência indefinível de um veículo policial, sem marcas. Dois homens à paisana ocupavam o assento dianteiro.
Delaney apreciou o fato de terem destacado uma guarda para proteção da viúva, Sra. Clara Lombard. Era possível, pensou, que houvesse também um guarda no interior da casa. O Chefe Pauley providenciaria isso. O problema, no momento, era o seguinte: se Delaney levasse a cabo a intenção de interrogar a viúva, seria possível que um dos guardas o reconhecesse e comunicasse a Broughton a visita?
Pensou no problema durante alguns minutos na esquina mais próxima, continuando a observar a casa. Com as mãos enfiadas profundamente nos bolsos do sobretudo, viu dois casais deixarem a casa, rindo, e do outro carro em fila dupla saírem duas mulheres e um homem, também risonhos.
Imaginou uma desculpa para despistar. Se os guardas o reconhecessem e Broughton o chamasse às falas, explicaria que, uma vez que o homicídio ocorrera em seu distrito, sentira-se compelido a expressar suas condolências à viúva. Broughton não lhe daria inteiro crédito; ficaria desconfiado e procuraria certificar-se com a viúva. Mas seria um direito seu. Delaney sentia-se na obrigação de dar os pêsames e o faria.
Ao tomar o caminho calçado de tijolos em direção à casa, ouviu música alta de rock, gargalhadas, e o som de vidro partido. Era uma festa, e bastante animada.
Foi atendido por um homem talvez bonito demais, de rosto afogueado, usando não um, mais dois anéis cor-de-rosa.
– Entre, entre – exclamou ele, fazendo um movimento comi o copo de highball e derramando metade do conteúdo sobre a frente do terno de seda azul-celeste. Há sempre lugar para mais um.
– Muito obrigado – disse Delaney – mas não sou convidado. Queria apenas falar com a Sra. Lombard por um momento.
– Ei, Clara! – berrou o homem por sobre o ombro. – Traga aqui seu magnífico traseiro. Seu amante a espera.
O homem olhou debochado para Delaney e mergulhou de volta na dança, bebida, risos, alarido. O capitão esperou paciente. Finalmente, ela surgiu, rebolando-se toda.
Era uma loura grandalhona que lhe lembrou o comentário de Oscar Wilde sobre uma viúva "cujo cabelo ficou louro-dourado de tanto sofrimento". Sobrava de um vestido de coquetel sem alças que parecia capaz de sustentar-se por si mesmo, tão pesadamente incrustado estava com sequilhos, pedras de imitação, debruns, um broche representando um pavão e, inexplicavelmente, um distintivo barato de latão, em forma de estrela, com a inscrição "Inspetora de Ligas". Fitou-o com olhos lacrimejantes.
– Sim?
– Sra. Clara Lombard?
– Sim.
– Meu nome é Delaney, Capitão Edward X. Delaney. Sou o antigo delegado da...
– Jesus! – exclamou ela. – Outro "tira"! Já não me incomodaram bastante?
– Gostaria de expressar minhas condolências pela morte...
– Cinco – disse ela. – Ou seis vezes. Perdi a conta. Que diabo é, agora? Não está vendo que estou com a casa cheia de gente? Querem deixar de me incomodar?
– Eu simplesmente queria dizer como sinto...
– Muito obrigada – atalhou ela, chateada. – Não me amolem mais, sim? Isto é uma festa de despedida. Vou deixar Nova York e vocês todos podem ir para aquele lugar.
– Vai sair de Nova York? – perguntou, espantado por Broughton deixá-la viajar.
– É isso mesmo, meu chapa. Vendi a casa, os carros, a mobília... tudo. No sábado, estarei na ensolarada e divertida Miami, começando vida nova. Uma vida novinha em folha. Nessa ocasião, vocês todos podem ir para aquele lugar – repetiu.
Deu-lhe as costas e voltou apressada para a festa. Delaney recolocou o chapéu na cabeça, e voltou em passos lentos até a esquina. Observou o tráfego, esperando que abrisse o sinal. Carros passaram em alta velocidade e o detalhe estranho que o preocupava desde que lera os relatórios sobre a Operação Lombard surgiu-lhe na mente, como sabia que aconteceria. No fim.
No interrogatório da mãe da vítima, Sra. Sophia Lombard, ela declarara que ele nunca vinha de carro de Brooklyn devido à dificuldade de encontrar lugar para estacionar perto do apartamento; tomava o metrô.
Delaney refez os passos e, desta vez, os guardas encararam-no. Tocou novamente a campainha da casa Lombard. A própria viúva atendeu-o com um sorriso de boas-vindas nos lábios inchados, sorriso que se desfez ao reconhecê-lo.
– Jesus, você novamente?
– Exato. A senhora disse que vai vender seu carro?
– Não o carro. . . os carros. Nós possuíamos dois. E esqueça, se tem alguma idéia de comprar uma pechincha. Foram ambos vendidos.
– Seu marido... seu falecido marido, guiava?
– Naturalmente. O que é que o senhor acha?
– Onde levava ele geralmente a carteira de habilitação, Sra. Lombard?
– Oh, Deus! – berrou ela e, imediatamente, o homem de anéis cor-de-rosa apareceu ao seu lado.
– O que é que há, doçura? – perguntou. – Está tendo problemas?
– Nenhum problema, Manny. Apenas um pouco mais dessa merda da polícia. Na carteira – disse, dirigindo-se a Delaney. – Levava a carteira de habilitação na carteira de notas. Certo?
– Obrigado – disse Delaney. – Sinto muito tê-la incomodado. Acontece que a carteira de habilitação não foi encontrada em poder dele quando o achamos. – Absteve-se de mencionar que ela declarara que coisa alguma faltava. – Provavelmente deve estar aqui em algum lugar da casa.
– Sim, sim – retrucou ela impaciente.
– Se a encontrar quando estiver fazendo as malas pode informar-nos? Precisamos dar-lhe a baixa no Estado.
– Certamente, certamente, vou procurar.
Sabia que ela não procuraria. Mas a omissão diferença alguma fazia. Nunca a encontraria.
– Mais alguma coisa? – indagou ela.
– Não, nada. Muito obrigado, Sra. Lombard, pela sua bondosa cooperação.
– Vá para aquele lugar – tornou a dizer ela, e fechou violentamente a porta.
Delaney voltou à sua residência e, metodicamente, conferiu o inventário de objetos de uso pessoal encontrados no corpo de Frank Lombard, e a declaração da mãe da vítima sobre os seus hábitos de visita. Em seguida, permaneceu durante longo tempo sentado na escuridão sempre crescente. De certa feita, levantou-se para preparar um highball, que fez durar, bebendo lentamente, pensativo.
Finalmente, envergou de novo o sobretudo e o chapéu e saiu à procura de outra cabina telefônica. Teve de esperar quase quinze minutos para que o Subinspetor Ivar Thorsen o atendesse, período durante o qual viu numerosos indivíduos, que queriam telefonar, irem embora desgostosos. Um deles, antes de afastar-se, deu um pontapé na cabina.
– Edward? – perguntou Thorsen.
– Sim. Descobri uma coisa. Algo que acho que Broughton desconhece.
– O que é?
– Lombard tinha carteira de habilitação. Possuía dois carros. A propósito, a esposa vendeu-os. Vai deixar a cidade.
– E daí?
– Sempre conduzia a licença na carteira de notas. Isso faz sentido. As percentagens são favoráveis no caso. A de habilitação não se encontrava na carteira de notas quando ela foi achada. Conferi o inventário.
Transcorreu um momento de silêncio.
– Ninguém mataria para roubar uma carteira de habilitação – disse finalmente Thorsen. – Pode-se comprar uma boa falsificação por cinqüenta dólares.
– Sei disso.
– Identificação? – sugeriu Thorsen. – Um assassino de aluguel. Tira a carteira para provar ao empregador que realmente matou Lombard.
– Para quê? O assassinato apareceu em todos os jornais no dia seguinte. O empregador saberia que o trabalho fora executado.
– Sim, é isso mesmo. O que você acha? Por que a carteira de habilitação?
– Identificação, talvez.
– Mas você acaba de dizer...
– Não, um assassino de aluguel, não. Tenho duas idéias. A primeira, o matador levou a carteira como uma lembrança, um troféu.
– Isso é loucura, Edward.
– Talvez. A outra é que a tirou para provar a uma terceira pessoa que cometera mesmo o assassinato. Não matou Lombard, matou alguém, qualquer pessoa. Se a notícia fosse publicada e pudesse apresentar a carteira de habilitação da vítima, provaria que ele fora o assassino.
O silêncio demorou mais dessa vez.
– Ora, Edward – disse finalmente Thorsen. – Isto é uma loucura.
– Sim. Uma loucura. – (Subitamente lembrou-se de seis assassinatos sexuais que investigara. As pálpebras das vítimas haviam sido costuradas com seus próprios grampos de cabelo.)
Thorsen retomou a palavra:
– Edward, está tentando dizer-me que estamos lidando com um louco?
– Sim. Acho que sim. Alguém como Whitman, Speck, Unruth, o estrangulador de Boston, Panzram, Manson. Alguém assim.
– Oh, Deus!
– Se eu tiver razão, saberemos antes de muito tempo.
– Como é que saberemos?
– Ele atacará novamente.

 

PARTE 4

1

Pensou que ela usava um vestido frouxo de crepe preto, com punhos brancos: Notou, depois, que os punhos eram realmente ataduras em volta dos pulsos. Mas estava tão agitado com o que lhe queria dizer que não as mencionou. Em vez disso, meramente lhe pôs diante dos olhos a carteira de motorista de Frank Lombard. Ela não quis olhá-la, mas lhe tomou o braço e puxou-o lentamente, passo a passo, até o quarto do alto, onde ele não conseguiu realizar o ato.
– Está tudo bem – tranqüilizou-o. – Eu compreendo. Acredite-me, compreendo-o e amo-o por isso. Eu lhe disse que o sexo devia ser um ritual, uma cerimônia. Mas um rito não tem consumação. É a celebração de uma consumação. Compreendeu? O ritual celebra o clímax, mas não o abrange. Está tudo bem, meu querido. Não pense que falhou. Isto é o melhor, o fato de que você e eu adoramos a realização... uma celebração contínua de uma finalidade inconcebível. Não é esse o fundamento da oração?
Mas não a escutava, tão lívido estava com a necessidade de falar. Ligou aquela cruel lâmpada suspensa, mostrou-lhe a carteira de habilitação e as manchetes dos jornais, dando prova de si mesmo.
– Para você – disse. – Fiz isso por você. – Riram ambos, sabendo que aquiío era mentira.
– Conte-me tudo – pediu ela. – Todos os detalhes. Quero saber de tudo o que aconteceu.
Os seus testículos moles estavam aconchegados na mão dela, qual pássaro morto. Contou-lhe, orgulhoso, o planejamento cuidadoso, as longas horas de demorada reflexão. A primeira preocupação, disse, fora a arma.
– Eu quereria por acaso uma arma que pudesse jogar fora? – perguntou, retórico. – Resolvi que não, que não deixaria uma arma que me pudesse denunciar. Assim, escolhi uma que poderia levar comigo quando saísse do local do crime.
– Para usar novamente?
– Sim. Talvez. Bem. . . Eu lhe contei que sou montanhista. Não especialista, apenas amador. Mas tenho esse machado de gelo. É uma ferramenta, naturalmente, mas também uma arma muito eficaz. Toda de aço temperado. Um martelo em um dos lados para cravar os grampos de segurança e um espigão de aço afilado no outro. Existem centenas deles. Além disso, possui também um cabo revestido de couro e uma correia pendurada na extremidade. Bastante pesado para matar, mas suficientemente pequeno e leve para levar escondido. Lembra-se daquele sobretudo que tenho, com aberturas nos bolsos, para que eu possa enfiar a mão e me apalpar?
– Como é que não me lembro! – sorriu ela.
– Exato. – Retribuiu o sorriso. – Achei que podia usá-lo com a frente desabotoada, pendendo frouxo. Minha mão esquerda estaria na abertura e eu poderia carregar o machado de gelo pela correia de couro, pendurado dos dedos, mas inteiramente escondido. Ao chegar o momento de usá-lo, poderia enfiar a mão dentro do sobretudo desabotoado, usando a direita, e segurá-lo pelo cabo.
– Brilhante!
– Um problema – disse ele, encolhendo os ombros. – Experimentei, treinei. Funcionou perfeitamente. Se ficasse calmo e frio, sem pressa, poderia transferir o machado para a mão direita em questão de segundos. Segundos! Um ou dois. Só isso. Depois, o machado desapareceria novamente por baixo do sobretudo. Seguro pela mão esquerda, através da fenda no bolso.
– Viu os olhos dele?
– Os olhos? – repetiu ele, vagamente. – Não. Mas preciso contar o caso à minha maneira.
Ela inclinou-se e beijou-lhe o bico esquerdo do peito. Os olhos dele se fecharam de prazer.
– Não quis afastar-me demais – continuou ele. – Quanto mais longe fosse, levando o machado oculto, maior o perigo. Teria que ser na minha rua. Perto. Por que não? O assassinato de um estranho. Um crime sem motivo. Que diferença faria se fosse na porta ao lado ou a duzentos quilômetros de distância? Quem poderia ligá-lo a mim?
– Sim – disse ela baixinho. – Oh, sim.
Contou-lhe como havia perambulado pelas ruas durante três noites, procurando quarteirões solitários, notando a iluminação, lembrando-se dos pontos de ônibus, estações do metrô, portarias com vigias, trechos desertos de lojas e garagens sem vigilância.
– Não podia planejar a coisa. Resolvi que seria obra do acaso. Puro acaso. "Puro". Essa palavra é engraçada, Célia. Mas foi "puro". Juro-lhe. Quero dizer, não houve questão de sexo no caso. Estou falando sério. Não andei por aí tendo uma ereção. Não tive um orgasmo quando o matei. Coisa alguma parecida. Acredita?
– Sim.
– Foi realmente puro. Juro. Foi religioso. Eu era a vontade de Deus. Sei que isso parece insano. Mas foi assim que me senti. Talvez tenha sido loucura. Uma doce loucura. Eu era Deus na terra. Quando olhava para pessoas nas ruas escuras. . . Será ele a vítima? Será ele? Deus, o poder!
– Oh, sim, querido, oh, sim.
Ele foi tão carinhoso com ela naquele horrendo quarto. . . tão terno. E, em seguida, a recordação das duas ocasiões em que fora infiel à esposa. . . Apreciara a aventura; ambas haviam sido superiores na cama à esposa. Mas não a amara menos por isso. Em vez disso, inexplicavelmente, a infidelidade lhe aumentara a afeição e carinho. Tocava-a, beijava-a, ouvia-a.
Naquele instante, contando o crime, sentiu o mesmo degelo: não um aumento da sexualidade, mas uma doçura maior porque possuía uma nova amante. Tocou o rosto de Célia, beijou-lhe as pontas dos dedos, murmurou, colocou-a em posição confortável e, em todas as coisas, agiu como o amante suave e parfait, amando-a porque amava ainda mais uma outra.
– Não foi alguém que fez aquilo – garantiu-lhe. – Você deve ter lido essas histórias em que o assassino põe a culpa em outro. Outro ele. Alguém que assumiu o comando, controlando-lhe a mente, e guiando-lhe a mão. Não foi nada disso, Célia, Nunca senti tal sensação de ser eu mesmo. Sabe? Foi uma sensação de unicidade, de eu mesmo. Compreende?
– Oh, sim. E depois?
– Abordei-o. Sorrimos. Inclinamos as cabeças. Passamos um pelo outro e transferi o machado para a mão direita. Exatamente como havia treinado. E atingi-o. Ouvi um som. Não posso descrevê-lo. Ele caiu de bruços, com tanta força que me arrancou o machado da mão. Eu não previra que isso podia acontecer. Mas não entrei em pânico. Fiquei frio. Gelado! Curvei-me e torci o machado para soltá-lo. Difícil. Tive de colocar o pé na nuca dele e puxá-lo com ambas as mãos para soltá-lo. Fiz isso! Procurei a carteira de notas dele e tirei a de habilitação. Para provar o que eu havia feito.
– Você não precisava fazer isso.
– Não?
– Sim, precisava.
Riram ambos e rolavam na cama suja, abraçando-se.
Ele tentou novamente penetrar nela e não conseguiu, mas não deu importância ao fato, pois já a havia superado. Mas não lhe diria isso, pois ela sabia. Ela tomou-lhe o pênis na boca, não o lambendo nem mordendo. Simplesmente tomou-o na boca, em uma cálida comunhão. Ele mal tomou conhecimento do gesto, que não o excitou. Ele era um deus. Ela adorava aquele momento.
– Outra coisa – disse ele sonhador – quando finalmente, naquela noite, olhei rua abaixo e o vi caminhando em minha direção através daquele brilho alaranjado, pensei, sim, agora é ele, amei-o tanto nessa ocasião, amei-o.
– Amou-o? Por quê?
– Não sei. Mas amei-o. Respeitei-o. Oh, sim. E senti uma gratidão tão grande por ele, que estava dando. Tanto. A mim. Então, matei-o.

2

– Bom dia, Charles – exclamou Daniel. O porteiro girou sobre os calcanhares, surpreendido pela voz cordial e pelo sorriso agradável. – Parece que vamos ter sol hoje.
– Oh, sim, senhor – respondeu Charles Lipsky. – Dia ensolarado: É o que diz o jornal. Táxi, Sr. Blank?
– Por favor.
O porteiro desceu à rua, chamou com o apito um táxi e veio nele até a entrada do prédio. Desceu e abriu a porta para Daniel.
– Desejo-lhe um bom dia, Sr. Blank.
– Para você também, Charles – retrucou e entregou-lhe o habitual quarto de dólar. Deu ao motorista o endereço do Edifício Javis-Bircham.
– Passe pelo parque, por favor. Sei que o percurso é maior, mas eu disponho de tempo.
– Certo.
– Parece que vai fazer hoje um lindo dia de sol.
– Foi o que o rádio acabou de anunciar – respondeu o motorista com um aceno de cabeça. – Parece que o senhor está satisfeito hoje.
– Sim – sorriu Blank – estou.
– Bom dia, Harry – disse ao cabineiro do elevador. – Uma bela manhã de sol.
– É mesmo, Sr. Blank. Espero que continue assim.
– Bom dia, Sra. Cleek – cumprimentou a secretária, pendurando o chapéu e o sobretudo. – Parece que vai fazer um belo dia.
– É mesmo. Espero que dure.
– Durará. – Examinou-a mais atentamente durante um momento. – Sra. Cleek, a senhora está um pouco pálida. Está sentindo-se bem?
Ela corou de prazer ao notar o interesse dele.
– Estou me sentindo otimamente.
– Como vai seu filho?
– Recebi carta dele ontem. Vai muito bem. Está em uma academia militar, como sabe.
Blank não sabia, mas inclinou a cabeça.
– Bem, a senhora parece um pouco cansada. Por que não tira algumas sextas-feiras de folga? Este inverno vai ser longo. Todos nós precisamos de relaxação.
– Ora... muito obrigada, Sr. Blank. É uma grande bondade sua.
– Simplesmente me avise com antecedência e procurarei alguém do departamento de administração para substituí-la. Que lindo vestido esse!
– Muito obrigada, Sr. Blank – repetiu ela, atônita. – O seu café está em cima da mesa. Chegou um relatório lá de cima. Está junto do café.
– A respeito de quê?
– Não o li. Está fechado, e é confidencial.
– Obrigado, Sra. Cleek. Eu a chamarei se quiser ditar alguma carta.
– Obrigada, mais uma vez, Sr. Blank. Pelos dias de folga, quero dizer.
Ele sorriu e acenou. Sentou-se à mesa nua, e bebericou o café, olhando fixamente para o pesado envelope de papel pardo, enviado pelo gabinete do presidente, com o carimbo de CONFIDENCIAL. Não o abriu. Levando a xícara plástica de café, foi até as janelas planas que davam para o oeste.
No dia extraordinariamente claro, o smog havia piedosamente se dissipado. Via rebocadores no Hudson, um transatlântico singrando as águas na direção do mar alto, tráfego na praia de Jersey, e colinas muito distantes. Tudo brilhava e faiscava, como em um novo mundo. Podia quase entrever um futuro distante.
Tomou o café e olhou para a xícara plástica. Era de espuma branca, suja naquele momento, e da consistência de requeijão. Ocupava toda sua mão e ele sentiu o sabão. Apertou o botão do intercomunicador.
– Deseja alguma coisa? – perguntou a Sra. Cleek.
– Pode fazer-me um favor?
– Naturalmente, senhor.
– Na hora do almoço. Bem, saia na hora habitual, naturalmente, mas pode demorar-se um pouco mais, tome um táxi até a Tiffany's ou a Jensen's – uma loja como essas – e compre-me um jogo de xícara de café e pires. Algo bom, em porcelana leitosa, delgada e branca. Pode comprar peças isoladas nas ofertas. Se for exclusividade, escolha alguma coisa bonita, algo de que goste. Não tenha receio de gastar dinheiro.
– Uma xícara de café e pires, senhor.
– Exato. E veja se encontra uma colher, uma dessas colheres francesas de prata. Às vezes, são esmaltadas com motivos azuis, de flores. Isso seria ótimo.
– Uma xícara, pires e colher. É tudo, senhor?
– Sim... não. Compre a mesma coisa para si. Compre dois jogos.
– Oh, Sr. Blank, eu não poderia...
– Dois jogos – disse ele firme. – E, Sra. Cleek, de agora em diante, quando a lanchonete entregar meu café, pode colocá-lo na nova xícara e deixá-la da mesma maneira em minha mesa.
– Sim, Sr. Blank.
– Tome nota do que gastar, incluindo as corridas de táxi de ida e volta. Eu lhe pagarei pessoalmente. Não se trata de caixa pequena.
– Sim, Sr. Blank.
Desligou e apanhou o envelope do presidente, sem grande curiosidade de abri-lo. Por fim, suspirando, abriu-o e leu rapidamente o memorando de duas páginas. Era mais ou menos o que esperara, considerando-se a falta de entusiasmo de sua proposta. A sugestão de que AMROK II computasse a razão entre páginas de texto e publicidade em todas as revistas da Javis-Bircham era aprovada da seguinte maneira: seria tentada em base experimental em dez revistas citadas no anexo, e limitada a um período de seis meses, depois do qual um consultor da gerência de produção seria chamado para fazer uma avaliação independente dos resultados.
Lançou para o lado o memorando, espreguiçou-se e bocejou. Não podia, deu-se conta, importar-se menos. Era um monte de merda. Apanhou novamente o memorando e saiu preguiçosamente do gabinete.
– Vou até a sala do computador – disse ao passar pela Sra. Cleek. Ela endereçou-lhe um sorriso alegre e esperançoso.
Passou pelo absurdo de vestir o gorro e o guarda-pó branco e reuniu a Força-Tarefa X-l em torno da mesa de aço inoxidável. Passou em volta a segunda página do memorando do presidente, julgando prudente, na ocasião, não informá-los da natureza experimental e da duração limitada do projeto.
– Temos a autorização – disse com o que esperou parecesse entusiasmo. – Estas são as revistas com que começaremos. Quero preparar uma escala de prioridades para a programação. Idéias?
A discussão começou à sua esquerda e deu a volta à mesa. Escutou-lhes as opiniões, observando-lhes as faces pálidas e assexuadas, sem ouvir a menor palavra.
– Excelente – dizia ocasionalmente. Ou: – Muito bom. – Ou ainda: – Farei uma verificação rápida nisso. – Quando não dizia: – Bem. . . não quero dizer não, mas. . . – Não fazia a menor diferença: o que dizia ou o que eles diziam. Não tinha significação.
A significação começou quando minha esposa e eu nos separamos. Ou quando ela recusou-se a usar óculos de sol na cama. Oh, provavelmente aconteceu muito antes, mas não percebi. Eu estava consciente dos óculos e das máscaras. Mais tarde, as perucas, os exercícios, as roupas, o apartamento. . . os espelhos. E ficar acorrentado de pé. Fiquei ciente disso. Quero dizer, fiquei consciente.
O que estava acontecendo comigo – e está acontecendo – é que estou sondando meu caminho – sondando, uma boa palavra – sondando no sentido de emoção e não de senso tátil – sondando meu caminho para uma nova percepção da realidade. Antes daquilo, antes dos óculos, percebia e raciocinava de modo masculino, rígido, vertical, exatamente como AMROK II. E agora. . . agora estou descobrindo e explorando uma percepção feminina e horizontal da realidade.
E o necessário para isso é negar a fria ordem – isto é, a lógica, a intelectual – e perceber uma ordem mais profunda, entrevista obscuramente agora, em alguma parte, uma ordem muito mais profunda e ampla porque... A ordem que conheci até agora foi estreita, restritiva, confinadora, disciplinada. Mas não podia explicar... tudo.
Mas será apenas emocional? Ou é espiritual? Pelo menos, exige a necessidade de aceitar o caos – um caos situado à margem da lógica rígida e disciplinada do homem e de AMROK II, e buscar uma ordem, uma lógica e ama significação mais profundas e fundamentais no caos. Significa um novo estilo de vida: a verdade das mentiras e a realidade dos mitos. Requer uma maneira inteiramente nova de perceber...
Não, não é isso. A percepção implica pôr-se de lado e observar. Mas este novo mundo em que ora me encontro exige participação. Preciso despir-me inteiramente e saltar. .. se quero ter esperança de conhecer a lógica final. Se tiver coragem. ..
Coragem. . . Quando falei a Célia sobre o poder que senti quando selecionava a vítima, e o amor por ela quando a escolhi – tudo isso foi verdade. Mas não falei no medo – um medo tão intenso que fiz tudo para não me urinar. Mas esse medo não faz parte da coisa? Quero dizer, emoção – sondar. E da emoção para uma exaltação espiritual, exatamente como quando Célia fala da cerimônia, ritual e da beleza do mal. Esta é a lógica final dela. Mas será a minha? Veremos. Veremos.
Preciso abrir-me para tudo. Fui criado numa casa de azulejos, copos Lalique e coleções de rochas. Agora preciso tornar-me cálido, carinhoso, e aceitar tudo. Preciso abrir-me para tudo no universo, para o bem e o mal, o amplo e o congestionado. Mas não apenas aceitar, porque, neste caso, eu seria uma vítima. Preciso mergulhar até o núcleo da vida e deixar que seu calor me creste. Preciso ser comovido.
Experimentar a realidade, e não apenas percebê-la. Essa é a maneira. E a resposta final pode ser terrível a ponto de chegar ao divino. Mas se puder dominar o medo, matar, sentir, aprender, tirarei um significado do caos do meu novo mundo, dar-lhe-ei uma lógica que poucos entreviram antes, e então saberei.
Deus existe?

3

Puxou a maçaneta da porta da casa, segurando o buquê de rosas de longas hastes, cor de sangue, sentindo-se tão idiota e desarvorado como qualquer namorado que se aproxima de seu último amor com um ramalhete, uma vaga esperança, e um desenxabido sorriso.
– Boa tarde, Valenter.
– Boa tarde, senhor. Queira entrar, por favor.
Entrou, a porta fechou-se sobre ele, enquanto o alto e pálido caseiro falava em tons que, Daniel tinha certeza, eram uma farsa, imitação de tristeza. A longa face entristeceu, os olhos turvos pareciam prestes a verter lágrimas, e a voz tornou-se apropriada a uma capela funerária.
– Sr. Blank, sinto informar-lhe que a Srta. Montfort viajou.
– Viajou? Para onde?
– Foi chamada inesperadamente. Pediu-me para lhe apresentar desculpas,
– Que merda!
– Sim, senhor.
– Quando voltará? Hoje?
– Não sei, senhor. Mas desconfio que demorará alguns dias.
– Merda! – repetiu Blank. Jogou as flores nos braços de Valenter. Coloque-as na água, sim? Talvez durem o suficiente para que ela as veja.
– Naturalmente, senhor. Tony encontra-se no estúdio e gostaria que o senhor fosse até lá.
– O quê? Oh, muito bem.
Era meio-dia de sábado. Imaginara um almoço demorado, talvez algumas compras, uma visita à Erótica, dos Mortons, local sempre movimentado e divertido nas tardes de sábado. Em seguida, talvez um cinema, jantar, e depois... Bem, qualquer coisa. As coisas desenvolviam-se melhor, pensou, quando não eram programadas com excessiva rigidez.
O rapaz estava languidamente reclinado em um sofá acolchoado -uma beleza!
– Dan! – exclamou ele, estendendo a mão.
Blank, porém, resolveu não atravessar a sala para apertar aquela mão mole. Sentou-se na poltrona envolvente e olhou para o jovem com o que acreditava ser uma divertida ironia. As rosas haviam-lhe custado vinte dólares.
– A respeito de Célia – disse Tony, examinando as unhas – ela me pediu que lhe apresentasse desculpas.
– Valenter já se encarregou disso.
– Valenter? Oh, pô! Tome um drinque.
Subitamente Valenter surgiu ao lado, inclinando-se ligeiramente a partir da cintura.
– Não, obrigado – respondeu Blank. – Ainda é muito cedo para mim,
– Ora, vamos – insistiu Tony. – Um martíni-vodca com gelo e uma rodela de limão. Certo?
Dan pensou um momento.
– Certo.
– O seu filho já escolheu? – perguntou o garçom, e ambos sorriram.
– Meu filho? – repetiu Blank. Olhou para Tony. – O que é que meu filho vai querer?
Encontravam-se em um restaurante francês, nem bom nem mau. Não se importavam.
Tony pediu ostras e pernas de rã, e uma salada temperada com molho de queijo. Blank escolheu um pequeno bife e chicória. Trocaram um sorriso. Tony estendeu a mão e tocou a sua.
– Obrigado – disse humilde.
Daniel pediu dois cálices de borgonha encorpado. Tony preferiu algo chamado de Shirley Temple. O joelho do rapaz tocava o seu. Não objetou, querendo seguir aquela trama até o fim.
– Gosta de café? – perguntou ele. Flertaram.
– Como está indo na escola? – perguntou, provocando em Tony um gesto de infinito cansaço.
Nessa ocasião, passeavam lentamente, tocando-se as mãos uma vez ou outra, subindo a Madison Avenue. Pararam e sorriram para uma exposição de roupas masculinas em uma butique.
– Oh – disse Tony.
Daniel fitou-o de relance. O rapaz estava à luz do sol, dourado. Reluzia como algo magnífico.
– Vamos dar uma olhada – sugeriu Blank. Entraram.
– Oh, muito obrigado – disse Tony mais tarde, dirigindo-lhe um sorriso enlouquecedor. – Você gastou tanto comigo.
– Gastei mesmo?
– Você é rico, Dan?
– Não, não sou. Mas não me queixo.
– Acha que aquele pulôver rosado assentou bem em mim?
– Claro. É a sua cor.
– Eu teria adorado aquelas cuecas furadinhas, mas sabia que mesmo um número pequeno seria grande para mim. Célia compra toda minha roupa de baixo numa casa de lingerie para mulheres.
– É?
Sentaram-se num banco do parque, inexplicavelmente plantado no meio de um pequeno prado. Tony acariciou o lóbulo do ouvido esquerdo de Dan. Observaram um negro idoso empinando, muito sério, um papagaio.
– Você gosta de mim? – perguntou Tony.
Daniel não se deu tempo para sentir medo. Voltou-se e beijou os lábios macios do menino.
– Naturalmente que sim.
Tony segurou-lhe a mão e fez calmos círculos na palma com o indicador.
– Você mudou, Dan.
– Mudei?
– Oh, sim. Quando você começou a visitar Célia, era tão rígido, tão fechado. Agora, tenho a impressão de que está-se abrindo. Às vezes, ri. Nunca fez isso antes. Você não me teria beijado há três meses, teria?
– Não, não teria. Tony, talvez seja melhor voltarmos. Valenter deve estar...
–Valenter – atalhou Tony em uma voz profundamente enojada. – Pô! Simplesmente porque ele... – Interrompeu-se.
Valenter, porém, não estava em casa e Tony usou a própria chave para entrarem. As rosas de Daniel estavam dispostas em um vaso chinês sobre a mesa do saguão. Além do odor adocicado de almíscar das rosas, sentiu outro, o perfume de Célia, um frágil e vago perfume orienta! Achou estranho que não o houvesse percebido ao meio-dia.
E o odor flutuava no quarto do alto, para o qual Tony levou-o pelamão, resoluto e cantarolando.
Havia jurado não apenas perceber, mas experimentar, despir-se e mergulhar até o ardente coração da vida. O assassinato de Frank Lombard foi um cataclismo que o havia deixado fraturado, da mesma forma que o terremoto fende a dura e sólida terra, aberta para o céu azul.
Naquele instante, sozinho e nu com o belo e rosado garoto, as emoções que procurava surgiram mais rápidas e fáceis e o medo de seus próprios sentimentos começou a transformar-se em curiosidade e ânsia. Sondou novos recessos de si mesmo, havia uma grande doçura e ternura, uma necessidade de sacrificar e desejo de amar. O que quer de que sua vida houvesse carecido até então, resolveu descobrir, prover, abastecer-se de coisas quentes e perfumadas, todas as emoções e sentimentos que poderiam iluminar a vida e revelar-lhe o mistério e a intenção.
O corpo do garoto era todo um cálido tecido: pálpebras veludosas, nádegas sedosas e a parte interior das coxas, um luminoso cetim. Lentamente, com deliberada ponderação, Daniel Blank colocou a boca e a língua naqueles tecidos, todos embebidos com a fragrância da juventude, doce e comovente. Usar a juventude, prová-la e dela tirar prazer pareceu-lhe tão importante como o assassinato, outro ato de vontade consciente para abrir-se largamente à vida.
O jovem mexeu-se, gemendo, sob suas carícias. Aquela carne incandescente excitou-o e provocou-lhe uma ereção. Ao entrar em Tony penetrando-lhe no reto, o garoto gritou de dor e deleite. Vagamente, muito distante, Blank pensou ouvir um breve cascatear de riso feminino e sentiu-lhe novamente o odor entranhado no colchão sujo.
Mais tarde, com o garoto nos braços, secando-lhe as lágrimas com beijos – um novo vinho aquelas lágrimas – julgou possível, mesmo provável, que eles o estivessem manipulando por uma razão que sequer podia imaginar. Mas não importava, porque, qualquer que fosse a razão, certamente seria egoísta.
Subitamente, soube: as palavras melosas dela, as aulas sobre ritual, o amor pela cerimônia e a apoteose do mal – possuíam o mau cheiro do egoísmo; não havia outra explicação. Ela procurava, de alguma forma, colocar-se à parte. À parte e acima. Queria conquistar o mundo e talvez o tivesse convocado para um plano tortuoso.
Mas, convocado ou não, ela o abrira e descobrira que ele se movia à frente dela. Qualquer que fosse o motivo egoísta, completaria sua própria missão: não conquistar a vida, mas tornar-se uno com ela, apertá-la bem junto ao peito, senti-la e amá-la e, finalmente, conhecer-lhe a beleza e o mistério. Não como AMROK II podia conhecê-la, mas no seu coração, entranhas e gônadas, tornar-se um participador secreto, uno com o universo.

4

Após arrancar o machado de gelo do crânio de Frank Lombard, caminhara em passos firmes até em casa, não olhando nem para a direita nem para a esquerda, com a mente resolutamente em branco. Inclinara cordial a cabeça para o porteiro de serviço e subira até o apartamento. Somente depois de entrar, com a bateria de correntes e fechaduras em posição, encostou-se à parede, vestido ainda com o sobretudo, fechou os olhos, e tomou uma profunda respiração.
Mas havia ainda trabalho por fazer. Pôs de lado durante um momento o machado. Despiu-se. Examinou o sobretudo e o terno, procurando manchas, de qualquer tipo. Não as viu. Fez uma trouxa do sobretudo e do terno para mandá-los à tinturaria, e colocou a camisa, meias e roupa de baixo em uma cesta de roupas sujas.
Voltou ao banheiro e pôs a cabeça do machado sob a descarga do vaso. Deu três descargas. Praticamente toda a matéria sólida – sangue coagulado e uma espécie de material cinzento, preso nos dentes da ponta da picareta – foi levada pelas águas.
Ainda nu, dirigiu-se à cozinha e pôs a ferver uma grande panela de água. Era a que costumeiramente usava para fazer espaguete e ensopado. Esperou paciente pela fervura, ainda sem refletir sobre o que fizera. Queria terminar o trabalho, sentar-se, relaxar-se, saborear as próprias reações.
Ao ferver a água, mergulhou a cabeça do machado e o espigão até o cabo de couro. O aço temperado ferveu até ficar limpo. Mergulhou-o três vezes, rodando-o, baixou a chama sob a panela e colocou a cabeça do machado em água fria para esfriá-lo.
Quando pôde segurá-lo, examinou-o cuidadosamente. Apanhou uma pequena faca de descascar batata e, suavemente, descolou a parte superior do cabo coberto por couro azul. Não viu manchas de sangue que pudessem ter escorrido para baixo. O machado cheirava a aço e a couro. Brilhava.
Apanhou uma pequena lata de óleo de máquina de costura no armário da cozinha e, com as mãos, esfregou-o nas superfícies expostas. Aplicou bastante óleo, friccionando-o com força, e tirou o excesso com uma toalha de papel. Ia colocar a toalha na caixa de lixo, mas pensou melhor e sacudiu-a no vaso, dando descarga. O machado foi deixado coberto por uma fina película de óleo. Pendurou-o no armário do corredor, juntamente com a mochila e os grampos de segurança.
Tomou um demorado banho de chuveiro em água muito quente, utilizando uma pequena escova para as mãos e unhas. Depois de seco, cobriu-se de água-de-colônia e talco e vestiu um quimono curto de algodão. Tinha, como motivos, leves garças azuis, andando em passos duros contra um fundo azul-escuro. Serviu-se de pequena dose de conhaque, dirigiu-se à sala de estar, sentou-se no sofá em frente da parede espelhada e riu.
Permitiu-se, naquele momento, lembrar-se e foi um belo sonho. Viu-se descendo a rua amarelada em direção à vítima. Sorria, o sobretudo dissolutamente aberto, a mão esquerda dentro do bolso de abertura, a mão direita balançando livre. Estivera estalando os dedos da mão direita? Era bem possível.
O sorriso. O aceno. A onda quente de sangue furioso quando girou e atacou. O som. Lembrava-se do som. O incrível mergulho da vítima, que lhe arrancou o machado das mãos, puxando-o para a frente. O rápido movimento para soltar o machado, a busca, a carteira e a caminhada firme de volta à casa.
Bem, nesse caso. . . o que sentia? Sentia, pensou, em primeiro lugar, uma imensa sensação de orgulho. Isso era fundamental. Fora, afinal de contas, trabalho extremamente difícil e perigoso, e o havia realizado. Não diferia muito de uma escalada difícil e perigosa sobre rochas, um trabalho técnico que requeria habilidade, força muscular, e, naturalmente, resolução inquebrantável.
Mas o que o deixara atônito, completamente, fora a intimidade! Ao falar a Célia sobre o amor pela vítima, apenas sugerira. Pois, como poderia ela compreender? Como poderia alguém compreender que, com um golpe de machado, ele havia saqueado outro ser humano, conhecendo, em uma única cutilada esmagadora, os seus amores, ódios, temores, esperanças – a alma dele.
Oh! Isso era alguma coisa. Aproximar-se tanto de outro ser humano. Não aproximar-se, mas estar em outro ser humano. Fundido. Dois transformados em um. Certa vez, sugerira à esposa, de maneira muito vaga, risonha, cheia de rodeios, que poderia ser divertido se procurassem outra mulher e os três ficassem juntos nus. Mentalmente, imaginara a outra como magra e morena, com bastante bom senso para conservar a boca fechada. A esposa, porém, não compreendera, não entendera o que ele sugerira. E se tivesse, teria atribuído a sugestão aos seus depravados apetites – um homem nu na cama com duas mulheres.
O sexo, porém, coisa alguma tinha que ver com o fato. Aí é que estava o ponto principal! Queria outra mulher que ele e a esposa pudessem amar porque isso seria uma intimidade nova e infinitamente doce entre eles. Se ele e a esposa tivessem ido para a cama com uma segunda mulher, e simultaneamente lhe sugassem os duros bicos dos seios, acariciassem-na, e os lábios de ambos, dele e da esposa, talvez se encontrassem em carne estranha, bem... bem, nesse caso teria havido uma intimidade tão profunda, tão comovente, que mal podia sonhar com a cena sem encher os olhos de lágrimas.
Mas naquele instante! Naquele instante! Recordando-se do que fizera, sentiu a sensação de intimidade aprofundada, de penetrar em outro ser, de fundir-se com ele, tão superior ao amor que nem mesmo uma comparação era possível. Ao matar Frank Lombard, havia-se tornado Frank Lombard, e a vítima, Daniel Blank. Juntos, desmaiando, haviam nadado pelos corredores intermináveis do universo como dois astronautas perdidos. Caindo lentamente. Dando voltas. Levados. Por toda a eternidade. Nunca apodrecendo. Nunca parando. Colhidos pela paixão. Para sempre.

5

Todas as vezes em que via Florence e Samuel juntos, Daniel Blank lembrava-se de um filme a que assistira sobre lontras marinhas. Os filhotes! Focinhavam-se, tocavam-se, davam cambalhotas, esfregavam-se. E os capacetes justos, pretos, de ambos lembravam exatamente pelagens. Não podia observá-los sem uma divertida indulgência.
Naquele momento, sentados no sofá de seu apartamento, insistiam em beber no mesmo copo o uísque com gelo – que ele havia enchido quatro vezes. Usavam macacões de couro, lustrosos como peles, e, nos olhos brilhantes e caras de fuinhas, transpareciam vivacidade e curiosidade.
Desde que estavam tão dispostos –dispostos? ansiosos! – a revelar detalhes íntimos de suas vidas privadas, supunham que todos os amigos sentiam o mesmo. Queriam saber como ia seu caso com Célia Montfort. Haviam tido intimidade física? Satisfazia ela, sexualmente? Descobrira algo mais sobre ela que eles deviam saber? Qual o papel de Anthony na casa? E de Valenter?
Respondeu em termos gerais e tentou sorrir misterioso. Após algum tempo, contrariados com seus modos reticentes, viraram-se um para o outro e começaram a discuti-lo como se estivessem sozinhos no apartamento. Ele suportara o mesmo tratamento antes (como todos os amigos caladões de ambos) e, às vezes, julgara-o divertido. Naquela ocasião, porém, sentiu-se contrafeito e, pensou, talvez temeroso. O que é que não poderiam eles descobrir por acaso?
–Geralmente – disse Sam, conversando com Flo – quando se pergunta a um homem como Dan se suas relações sexuais com determinada mulher são satisfatórias, ele responde mais ou menos assim: "Como é que posso saber? Não fui para a cama com ela". Isso significa: A, que ele diz a verdade e não foi mesmo para a cama. Ou, B, foi e mente para defender-lhe a reputação.
– Exato – anuiu solene Flo. – Ou, C, foi uma experiência tão desagradável que não quer mencioná-la porque fracassou, ou ela. Ou D, foi absolutamente maravilhosa, tão incrível que não quer referir-se e ela. Quer guardar para si a maravilhosa recordação.
– Ei, vamos – riu Dan. – Eu não sou...
– Ah, sim – interrompeu-o Sam. – Mas quando um homem como Dan responde à pergunta, "Que tal as relações sexuais com essa mulher", dizendo: "Foram boas", o que devemos deduzir daí? Que esteve na cama com a tal senhora, mas que a experiência foi mais ou menos?
– Deve ser isso que Dan quer que acreditemos – disse pensativa Flo. – Acho que está escondendo alguma coisa de nós, Samuel.
– Concordo – respondeu ele, inclinando a cabeça. – O que poderia ser? Que não fez ainda uma tentativa?
– Sim – assentiu Flo. – Faz sentido psicológico. Dan é um homem que esteve casado por vários anos com uma mulher que lhe era física e mentalmente inferior. Correto?
– Correto. E durante esse tempo, o sexo tornou-se rotina, hábito. Subitamente, separaram-se e se divorciaram, e ele procura outra. Mas sente-se inseguro. Esqueceu-se de funcionar.
– Exatamente – aprovou Flo. – Está inseguro de si mesmo. Teme ser rejeitado. Afinal de contas, o rapaz não é um maníaco sexual. E se for rejeitado, atribuirá o fracasso do casamento a si mesmo. Seu ego recusa-se a aceitar isso. Assim, estando ainda paquerando essa nova mulher, Dan cuida-se. Acautela-se. Já ouviu dizer que algum amante cauteloso seja bem-sucedido?
– Nunca – replicou categórico Sam. – O sexo bem-sucedido exige sempre agressão, ou ataque do homem ou rendição da mulher.
– E a rendição da mulher é método de agressão tão válido como o ataque do homem.
– Naturalmente. Lembra-se de ter lido...
Naquele momento, cansando-se do jogo de ambos, Daniel Blank foi à cozinha servir-se de outra vodca. Ao voltar à sala de estar, continuavam ainda a discussão, falando em voz mais alta naquele momento, quando a campainha da porta do saguão estrugiu com tal violência que, chocados, caíram em silêncio. Daniel Blank, para quem uma batida ou um telefonema inesperados provocavam um tremor no coração ou um espasmo nos intestinos, comportou-se, garantiu a si mesmo mais tarde, com fria indiferença.
– Quem, em nome de Deus, poderia ser? – perguntou a ninguém em particular.
Levantou-se e dirigiu-se à porta. Pelo olho-mágico, vislumbrou um cabelo de mulher – longo, louro – e um casaco com ombreiras. Oh, meu Deus, pensou, é Gilda. O que é que ela anda fazendo aqui?
Mas ao tirar a corrente e abrir a porta, viu seu engano. Era e não era. Encarou-a, tentando compreender. Ela retribuiu o olhar com igual firmeza. Ante seu ar de espanto, ela deu Uma gargalhada e só então reconheceu Célia Montfort.
Mas que Célia! Peruca loura até os ombros, com as pontas viradas para cima. A maquilagem com ruge escarlate. Terninho decorado com tachas e blusa de babados. Colar de pérolas enormes. Unhas pintadas de vermelho vivo. E, obviamente, soutien acolchoado.
Ela não conhecera sua ex-esposa, nunca vira uma foto dela, mas a semelhança era incrível. Reconheceu nela o volume físico, a boa saúde, as cores vivas, a maneira pesada de andar, um lançamento de cotovelos e ombros.
– Meu Deus! – exclamou Daniel, tomado de admiração. – Você é maravilhosa.
– Estou parecida com ela?
– Você não faz idéia! Mas, por quê?
– Oh. . . apenas para me divertir, como diz Tony. Achei que você gostaria.
– Gosto, realmente gosto. Você se parece tanto com ela! Devia ter sido mesmo era atriz.
– E sou. Durante todo o tempo. Não vai me convidar para entrar?
– Naturalmente. Ouça, os Mortons estão aqui. Eu a anunciarei como Gilda. Quero ver a reação deles.
Precedeu-a até a porta da sala de estar.
– É Gilda – disse alegre, afastando-se para o lado.
Célia chegou à porta, banhando os Mortons em um sorriso radiante.
– Gilda! – exclamou Florence. – Que bom que... – Interrompeu-se.
Célia e Daniel explodiram numa gargalhada e, um momento depois, os Mortons riam também.
Flo abraçou Célia e acariciou-lhe os ombros acolchoados do terno e o tweed por trás.
– Traseiro acolchoado – comunicou aos dois homens. – E seios de espuma de borracha. Doçura, você pensou em tudo.
– Acha que me pareço com ela?
– Se acho? – perguntou Sam. – Igual em tudo. Até mesmo na maquilagem.
– Perfeito – anuiu Flo. – Até as unhas. Como foi que fez isso?
– Por palpite – retrucou Célia.
– Pois palpitou certo – confirmou Daniel. – Gostaria de tirar o casaco e pôr-se à vontade?
– Oh, não. Estou gostando disto.
– Muito bem. Vodca?
– Por favor.
Foi à cozinha preparar bebidas para todos. Ao voltar, Célia havia apagado todas as lâmpadas, a não ser a de um abajur de pé, e, na escuridão, parecia-se ainda mais com sua ex-esposa. Era impressionante a semelhança, até mesmo na maneira como se sentava, espigada, na cadeira Eames, as costas retas, os pés firmemente plantados no chão, os joelhos levemente separados como se a grossura das coxas impedisse uma pose mais decorosa. Sentiu... algo.
– Por que o disfarce? – perguntou Flo.
– Qual é a idéia? – indagou Sam.
Célia Montfort puxou a peruca loura e entreabriu os lábios num misterioso sorriso.
– Nunca tiveram vontade de fazer uma coisa assim? – perguntou. – Todos querem. Afastar-se de si mesmo. Demitir-se do emprego, abandonar esposa, marido e filhos, deixar a casa e todas as posses, nu em pêlo, se possível, e mudar-se para outra rua, cidade, país, mundo e tornar-se outra pessoa? Novo nome, nova personalidade, novas necessidades., gostos e sonhos. Transformar-se em pessoa inteiramente diferente, inteiramente nova. Melhor ou pior, talvez, mas diferente. E a possibilidade de uma chance, apenas uma chance, na nova pele. Como nascer de novo. Concorda, Daniel?
– Oh, sim. – Ele inclinou vivamente a cabeça. – Concordo, realmente.
– Pois eu, não – disse Sam. – Gosto de mim como sou.
– E eu gosto também – apoiou-o Flo. – Além disso, ninguém pode mudar, realmente.
– Não? – perguntou indolente Célia. – Que pena!
Discutiram a possibilidade de uma mudança pessoal, essencial. Blank ouviu as negativas estridentes dos Mortons e sentiu a presença de um perigo obsceno: tentou-o o desejo de refutá-los, calmamente, com um frio e sardônico sorriso, dizendo: "Eu mudei. Matei Frank Lombard". Resistiu à tentação, mas brincou com o perigo durante um momento, saboreando-o. Contentou-se como um mudo, "Eu sei de algo que vocês desconhecem", e esse pensamento infantil, por motivos que não compreendeu, o deixou mais contente.
No fim, naturalmente, esgotaram o assunto. Daniel serviu-lhes café e bebida quase em silêncio. A um sinal invisível, levantaram-se ambos, agradeceram-lhe a agradável noite, deram os parabéns a Célia Montfort pela representação, e saíram. Blank aferrolhou a porta e colocou as correntes.
Voltando para a sala, encontrou-a de pé. Abraçaram-se e beijaram-se, colando-se sua boca no ruge espesso usado por ela. Apalpou-lhe o traseiro acolchoado.
– Quer que o tire? – perguntou ela.
– Não. Gosto assim.
Esvaziaram os cinzeiros e levaram os copos para a pia da cozinha.
– Pode ficar? – perguntou ele.
– Claro.
– Ótimo.
Dirigindo-se Célia ao banheiro, ele perambulou pelo apartamento, fechando as janelas, apagando as luzes, colocando a barra de ferro na porta do saguão. Ao cruzar a sala de estar, viu a própria imagem, fantasmagórica, saltar de espelho em espelho, em pedaços e fragmentos.
No quarto, encontrou-a tranqüilamente sentada na cama, olhando fixamente para a frente.
– O que é que você quer? – perguntou ela, levantando os olhos para ele.
– Oh, deixe a peruca no lugar. E o soutien e a cinta. Ou o que quer que seja. Mas precisa tirar o terninho e a blusa.
– E a combinação? E as meias?
– Sim.
– As pérolas?
– Não, deixe-as. Gostaria de um robe? Tenho um de seda.
– Ótimo.
– Está quente demais aqui?
– Um pouco.
– Vou diminuir o aquecimento. Sono?
– Mais cansada do que sonolenta. Os Mortons me cansam. Nunca param de mexer-se.
– Eu sei. Tomei um banho de chuveiro esta manhã. Quer que tome outro?
– Não. Deixe-me abraçá-lo.
– Nu?
– Sim.
Mais tarde, por baixo do cobertor, ele abraçou-a e, através do robe de seda, apalpou-lhe o soutien acolchoado e a cinta.
– Mãezinha – disse ele.
– Eu sei – murmurou ela. – Eu sei.
Enrodilhado nos braços dela, começou a chorar baixinho.
– Estou tentando – arquejou. – Estou realmente tentando.
– Eu sei – repetiu ela. – Eu sei.
O pensamento de possuí-la, ou de tentar, ofendia-o, mas não conseguiu dormir.
– Mãezinha – disse ele novamente.
– Vire-se – ordenou ela. Ele virou-se.
– Ahhh – disse ela. – Aí.
– Oh, Oh!
– Oh, sim! Sim.
– Sou Gilda agora?
– Sim. Mas ela nunca faria isso.
– Mais?
– Devagar. Por favor.
– Qual é o meu nome?
– Célia.
– O quê?
– Gilda.
– O quê?
– Mãezinha.
– Isso é melhor. Não é?
Ele adormeceu, finalmente. Pareceu-lhe ter acordado um momento depois.
– O quê? – perguntou. – O que é?
– Você teve um pesadelo. Gritou. O que foi?
– Um sonho – respondeu, achegando-se a ela. – Um pesadelo.
– Com que foi que sonhou?
– Foi tudo confuso.
Aproximou-se dela, pondo as mãos nos acolchoados de algodão e espuma de borracha.
– Quer que eu faça aquilo novamente? – perguntou Célia.
– Quero sim – disse agradecido. – Por favor.
Ao acordar de manhã, viu-a ao lado, dormindo nua, tendo se desvencilhado durante a noite da peruca, robe e costume. Mas usava ainda as pérolas. Moveu-se sorrateiro sob o cobertor até que, agachado e completamente coberto, cheirou-lhe a cálida doçura. Abriu-lhe suavemente as pernas. Bebeu então, em haustos, na fonte, faminto, até acordá-la. Continuou. Ela moveu-se, baixando as mãos sob o cobertor para pressionar-lhe a nuca. Ele gemeu, quase desmaiando, febricitante com o calor ali embaixo. Não podia parar. Depois ela lambeu-lhe a boca.
Mais tarde, já vestido e à mesa da cozinha, ela perguntou:
– Você fará aquilo novamente? – em tom mais de afirmação do que de pergunta.
Ele inclinou mudo a cabeça, entendendo-a, começando a compreender o perigo que ela representava.
– De frente? – perguntou. – Fará? E olhará dentro dos olhos dele e me contará?
– É difícil – respondeu.
– Você pode fazê-lo. Sei que pode.
– Bem. . . – Animou-se. – Precisarei de planejamento. E de sorte, naturalmente.
– Você criará sua própria sorte.
– Criarei? Bem, pensarei no caso. Constitui um problema interessante.
– Você faria uma coisa para mim?
– Naturalmente. Que é?
– Procure-me logo depois.
Ele pensou durante um momento.
– Talvez não imediatamente depois. Mas na mesma noite. Servirá?
– Eu posso não estar em casa.
Ele tornou-se imediatamente desconfiado.
– Quer saber qual vai ser a noite? Eu mesmo não sei. E não saberei.
– Não, não quero conhecer a noite ou o local. Apenas a semana. Ficarei em casa todas as noites, à espera. Pode dizer a semana?
– Sim, posso. Quando eu estiver pronto.
– Meu amor! – exclamou. – Os olhos!

6

Bernard Gilbert levava a vida a sério – e tinha todo o direito de se sentir pesaroso. Órfão desde cedo, schlepped de tio a tia, de primo a primo, seis meses com cada um, era sempre lembrado de que o alimento, a cama, as roupas – tudo isso fora custeado pelo trabalho de seus benfeitores.
Aos oito anos, lustrava sapatos na rua. Fez entregas para uma confeitaria, trabalhou como garçom, vendeu pequenas peças de tecidos e terminou como guarda-livros numa loja de terceira classe. Durante esse tempo freqüentava a escola, estudava, lia. Tudo isso sem alegria alguma. Às vezes, quando juntava dinheiro suficiente, procurava uma mulher. Isso, também, sem alegria. O que poderia fazer?
Na escola secundária, dois anos miseráveis no Exército, no colégio estadual, sempre trabalhando, dormindo quatro ou cinco horas por noite, estudando, lendo, fazendo empréstimos e pagando-os, nunca pensando realmente no porquê, obedecia a um instinto irrecusável. De súbito, tornou-se Bernard Gilbert, contador formado, enfiado em um terno preto novo, trabalhador esforçado, bom nos números. Isso era vida?
Um espinho perfurava-lhe a ilharga. Trabalho árduo não o amedrontava e, quando tinha de trabalhar, rastejava, e afastava o pensamento com um encolher de ombros. Um homem. Não o conquistador arrogante, de peito cabeludo, mas o sobrevivente. Um tipo especial de bravura, uma esperança eterna.
No trigésimo segundo ano, um primo distante inesperadamente convidou-o para jantar. E conheceu Mônica. "Mônica, gostaria de apresentar-lhe Bernard Gilbert. Contador formado."
E assim, casaram-se e começou a vida. Feliz? Ninguém acreditaria! Deus disse: "Bernie, venho cobrindo-o de nada há 32 anos. Você agüentou e é hora de ter uma oportunidade. Aproveite-a, menino, aproveite-a."
Acima de tudo, havia Mônica. Não bela, mais jeitosa e forte. Outra trabalhadora. Riam na cama. Vieram os filhos, Mary e Sylvia. Belas garotas! E saúde, graças a Deus. O apartamento não era lá grande coisa, mas era o lar. O lar! Seu lar, da esposa e dos filhos. Riam todos.
As más lembranças desvaneceram-se. Desapareceu tudo: as crueldades, as roupas usadas, os insultos, o rastejar. Começou, apenas começou, a compreender o que se chamava alegria. Era um dom e adorava-o. Bernard Gilbert, um homem melancólico de face encovada, sempre com a barba por fazer, ombros encurvados, olhos confusos, cabelo rareando e corpo magricela: um homem que, se outra oportunidade de vida lhe dessem, seria violinista. Bem...
Possuía um bom emprego numa grande firma de contabilidade, e lhe reconheciam o mérito. Nos últimos anos, iniciara trabalhos particulares, preenchendo o imposto de renda de profissionais autônomos, como médicos, dentistas, arquitetos, pintores, escritores. Avisou aos empregadores. Não objetaram, desde que trabalhava fora do expediente e o bico não conflitava com suas próprias contas comerciais.
Progrediu nos negócios privados. Era duro trabalhar oito horas, voltar para casa e mais duas ou quatro. Mas discutiu o assunto com Mônica – discutia tudo com ela – e concordaram em que se ele continuasse assim, dentro de cinco ou dez anos poderia demitir-se e iniciar seu próprio negócio. Era possível. Mônica, em conseqüência, fez um curso de contabilidade, estudou em casa e, depois de algum tempo, ajudava-o à noite, além de cozinhar, cuidar da casa e das crianças. Ambos esforçados, nunca pensavam nisso e teriam ficado surpresos se alguém lhes dissesse que trabalhavam muito. O que mais poderiam fazer?
Moravam no terceiro andar, de um prédio sem elevador. Não era apartamento de luxo. Mônica, porém, havia-o pintado bem e os cômodos incluíam dois quartos e uma grande cozinha, onde ela cozinhava um matzoh em que ele não podia acreditar, de tão bom, havia uma vitrola com todas as gravações de Isaac Stern, e uma mesa de jogos, onde trabalhava. Não era de luxo, reconhecia, mas não se envergonhava de sua residência e, às vezes, convidavam amigos ou vizinhos e riam. De raro em raro, chegavam mesmo a jantar fora com as crianças em um restaurante caro e comportavam-se com grande polidez, rindo baixinho.
Mas as melhores ocasiões eram aquelas em que ele e Mônica terminavam o trabalho noturno e se sentavam no sofá, depois de meia-noite, dormindo já as crianças, simplesmente ali, escutando Vivaldi, baixinho, simplesmente juntos. Gastaria os fundilhos pelo resto da vida apenas para ter momentos como aquele. E quando Mônica roçava os lábios pela sua face encovada... Oh!
Pensava em momentos como esse quando desceu do ônibus na First Avenue. Não era nem meia-noite ainda. Bem, talvez um pouco mais tarde. Estivera no centro, trabalhando na contabilidade de uma clínica médica. Era uma possível conta nova, boa e grande. A reunião com os médicos demorara mais do que o esperado. Pacientemente, explicou-lhes o que podiam ou não abater de acordo com as leis fiscais. Achou que os havia impressionado. Disseram-lhe que discutiriam o assunto e o avisariam dentro de uma semana. Satisfeito embora, resolveu não se mostrar otimista demais quando discutisse o assunto com Mônica. Apenas no caso.
Virou e entrou no próprio quarteirão. Não possuía ainda a nova iluminação urbana e bem distante, na escuridão, um homem caminhava em sua direção. Mas, ao se aproximarem, notou que tinha mais ou menos sua idade, vestia-se bem, com o sobretudo aberto. Andava elegantemente, a mão esquerda no bolso, e o braço direito pendendo livre.
Aproximaram-se mais. Bernard Gilbert notou que o estranho encarava-o. Mas sorria. Sorriu, por seu turno. Obviamente, o indivíduo morava por ali e queria ser cordial. Gilbert resolveu dizer "boa noite".
Estavam a dois passos de distância e ele disse:
– Boa. . . – quando a mão direita do estranho mergulhou rápida na aba aberta do sobretudo e saiu com algo seguro pelo cabo, algo com uma ponta, algo brilhante, mesmo à luz mortiça da rua.
Bernard Gilbert nunca chegou a dizer – "noite". Soube que parou e recuou. Mas a coisa reluzia no ar, descendo. Tentou erguer um braço em defesa, mas a coisa era pesada demais. Viu a face do homem, bonitona e terna, e não havia nela nem loucura nem ódio, mas uma espécie de ardor. Algo bateu na testa de Bernard Gilbert, derrubando-o, e ele teve certeza de que caía, sentiu o choque da calçada contra as suas costas, perguntou-se o que havia acontecido com sua recém-encontrada alegria e ouviu Deus dizer:
– Muito bem, Bernie, já basta.


PARTE 5

1

Três vezes por semana um mensageiro chegava à residência do Capitão Delaney com as cópias dos mais recentes relatórios da Operação Lombard. Notou que os documentos tornavam-se menos numerosos e mais resumidos e que o Chefe Pauley mandava os detetives conferirem assuntos já tratados: a vida privada e a carreira política de Lombard; possíveis ligações com o crime organizado; tentativas de agressão ou assassinatos semelhantes na jurisdição da 251ª Delegacia e em delegacias vizinhas e, finalmente, toda Manhattan e toda Nova York, passando em seguida a pedidos de informações ao FBI e às Polícias das grandes cidades, solicitando relatórios de homicídios de natureza idêntica.
Admirou a competência profissional de Pauley, chefe de uma equipe de quase 500 detetives, requisitados em toda a cidade. Muitos ele conhecia pessoalmente ou de reputação. Incluíam especialistas em agressões, técnicos em armas, conhecedores da selva política e outros que obtinham êxito com técnicas de interrogatório.
Resultado nulo: nenhum ângulo, nenhuma pista, nenhum motivo aparente. O Chefe Pauley, em memorando confidencial do Subcomissário Broughton, sugerira mesmo uma possibilidade considerada pelo próprio Delaney: o crime teria sido cometido por um policial irritado com os ataques de Lombard à ineficiência do Departamento. Pauley, no entanto, duvidava.
E o Capitão Delaney também. Um policial provavelmente usaria uma pistola. Mas a maioria dos policiais de carreira, que viram prefeitos, comissários e políticos de todos os calibres surgir e desaparecer, ignorariam as críticas de Lombard como simples onda publicitária e se dedicariam a seu trabalho.
Quanto mais Delaney pensava no assassinato e nos relatórios da Operação Lombard, mais firmemente se convencia tratar-se de um crime sem motivo. Não para o assassino, naturalmente, mas para qualquer indivíduo racional. Lombard fora uma vítima casual.
Esforçou-se para preencher as horas vagas. Visitava a esposa duas vezes por dia no hospital, ao meio-dia e em princípios da noite. Fez alguns interrogatórios por conta própria, visitando o colega de escritório de Frank Lombard, a mãe da vítima, e alguns correligionários políticos. Nessas entrevistas, usava uniforme e distintivo, arriscando-se a ter de enfrentar a fúria de Broughton, se ele por acaso descobrisse o que Delaney pretendia. Mas todo o esforço resultou em perda de tempo: coisa alguma de valor descobriu.
Certa noite, em desespero por não ter conseguido o menor progresso significativo, apanhou uma comprida folha de papel, amarela e pautada, e intitulou-a "O Suspeito". Riscou uma linha de alto a baixo no centro da página. Na coluna à esquerda escreveu "Físicas", na direita "Psicológicas".
Embaixo de "Físicas" escreveu:
"Provavelmente homem, branco."
"Alto, provavelmente de mais de um metro e noventa e dois."
"Forte e jovem. De menos de 35?"
"De aparência comum, ou boa aparência. Possivelmente bem trajado."
"Muito rápido, com boa coordenação muscular. Atleta?"
Sob "Psicológicas", anotou:
"Frio, determinado."
"Impelido por motivo desconhecido."
"Psicopata? Tipo Unruth?"
Ao pé da página abriu um cabeçalho geral, intitulado "Notas adicionais", sob o qual alinhou:
"Uma terceira pessoa envolvida? Em virtude da carteira de habilitação roubada como prova do homicídio?"
"Residente na jurisdição da 251ª Delegacia?"
Releu a lista. Era, reconheceu, tristemente vaga. Mas com o simples fato de anotar o que sabia – ou melhor, desconfiava, pois nada sabia – sentiu-se melhor. Situação vaga e obscura. Mas começou a sentir ali a presença de alguém. Alguém indistintamente vislumbrado...
Releu a lista uma vez, e mais outra, e novamente. Continuava a voltar à anotação "Impelido por motivo desconhecido".
Em toda sua experiência pessoal e em pesquisas sobre assassinos psicopatas nunca encontrara ou lera a respeito de um deles totalmente destituído de motivo. Por certo, o motivo podia ser irracional, mas, em todos os casos, especialmente nos que envolviam assassinatos múltiplos, o assassino tivera um "motivo". Motivo tão óbvio quanto o ganho pecuniário; e, com uma estrutura filosófica incrível, tão repugnante e barata como uma Torre Eiffel construída com palitos de dentes.
Por mais louco que fosse, o assassino mencionava razões: as desconsiderações da sociedade, palavras murmuradas por Deus, o mal existente no homem, as exigências do sectarismo político, o ardor do ego, o desprezo das mulheres, os terrores da solidão... o que quer que fosse. Mas proclamava razões. Em parte alguma, em sua experiência ou em leituras, encontrara o assassino totalmente sem motivo, o homem mau que matava com a mesma naturalidade e descaso com que um outro acendia o cigarro ou enfiava o dedo no nariz.
Não há homem inteiramente bom vivo na Terra e acreditava – esperava! – nem completamente mau. Não era um problema de ordem moral. Simplesmente homem algum era completo, de qualquer maneira. Em vista disso, o assassino esmagara o crânio de Frank Lombard por uma razão que transcendia a lógica e o bom senso; mas tal gesto significara algo para ele, distorcido e tortuoso como pudesse ser.
Sentado na escuridão do estúdio, lendo e relendo o "Retrato de um Assassino", achou que esse homem vivia, com toda possibilidade, não muito longe de onde se encontrava. Perguntou-se o que poderia estar ele pensando, sonhando, esperando, planejando.
Pela manhã preparou o desjejum. Fora combinado que a empregada diarista, Mary, iria diretamente de casa ao hospital levar camisolas limpas e um livro de endereços que Bárbara pedira. Tomou um copo de suco de tomate, comeu duas fatias de torrada de pão integral sem manteiga e bebeu duas xícaras de café simples. Passou os olhos pelos jornais enquanto comia. O caso Lombard havia caído para a página 14. Diziam, em essência, que não havia novidades.
Usando o sobretudo de inverno, pois fazia frio naquele dia de novembro e o ar anunciava neve, saiu de casa pouco antes de 10 da manhã. Dirigiu-se a uma cabina telefônica em uma confeitaria. Discou para o serviço de respostas do Subinspetor Thorsen, deu o número do telefone da cabina, desligou e esperou pacientemente. Thorsen chamou-o cinco minutos depois.
– Nada tenho a comunicar – disse Delaney em voz sem emoção. – Nada.
Thorsen deve ter percebido algo em seu tom de voz. Tentou tranqüilizá-lo.
– Calma, Edward. Broughton também não descobriu nada.
– Eu sei.
– Mas tenho algumas boas notícias para você.
– Quais?
– Conseguimos uma nomeação para o seu Tenente Dorfman. Responderá provisoriamente pelo expediente da 251ª Delegacia.
– Isso é ótimo. Obrigado.
– Mas será apenas por seis meses. Depois, ou você volta para o cargo ou teremos de colocar lá um capitão ou subinspetor.
– Compreendo. Mas está bem. Ajudará no problema da carteira de habilitação de Lombard.
– Qual é o problema?
– Estou de licença, mas continuo no Departamento. Preciso comunicar que a carteira desapareceu.
– Edward, você se preocupa demais.
– É verdade. Preocupo-me. Mas preciso comunicar o fato.
– Isso significa que Broughton saberá.
– Possivelmente. Mas se houver outro assassinato, e acho que haverá, e os rapazes do Chefe Pauley descobrirem que falta a carteira da vítima – ou algo parecido – conferirão o caso com a viúva de Lombard na Flórida. Ela lhes dirá que perguntei sobre a carteira e que não conseguiu encontrá-la. Neste caso, ficarei em maus lençóis. Broughton vai me crucificar por ocultar provas.
– Como é que você quer resolver o caso?
– Preciso consultar o regulamento, mas, segundo me lembro, as partes das delegacias sobre carteiras de habilitação perdidas ou roubadas são enviadas ao Departamento de Trânsito, que as encaminha ao Departamento de Veículos Automotores do Estado de Nova York. Falarei a Dorfman sobre o assunto e lhe pedirei para mandar o formulário usual. Broughton, porém, pode descobrir com o Trânsito. Se souberem que a carteira de habilitação de Frank Lombard está sumida, alguém começará a berrar.
– Não se preocupe. Temos um amigo no Trânsito.
– Pensei que tivesse.
– Diga a Dorfman para preencher o formulário habitual, mas para falar comigo antes de enviá-lo. Direi a ele a quem deve encaminhá-lo no Trânsito. Chegará ao Departamento, mas ninguém avisará Broughton. Isso satisfaz?
– Satisfaz.
– Você está jogando com muito cuidado, Edward.
– E você também, não?
– Sim, acho que estamos. Edward, diga-me...
– O quê?
– Está fazendo algum progresso? Mesmo que seja algo sobre o qual não quer falar ainda?
– Sim – mentiu Delaney – estou fazendo.
Voltou a pé para casa, de cabeça baixa, as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo, arrastando-se no dia úmido e sombrio. Deprimia-o a mentira que contara a Thorsen. Ficava sempre assim quando precisava manipular pessoas. Agiria assim, mas o fato não alegrava.
Por que seria necessário manter alto o moral de Thorsen? Porque... porque, concluiu, o caso Lombard era mais do que uma briga entre as forças de Broughton e as de Thorsen-Johnson. Na verdade, reconhecia, aceitara o oferecimento deles não porque instintivamente antipatizasse com Broughton e o quisesse ver por baixo, ou tivesse o menor interesse na política do Departamento, mas porque... porque...
Gemeu em voz alta sabendo que novamente roía um osso. Seria um desafio intelectual? A excitação atávica da caçada? A crença em que era o representante de Deus na Terra? Por que fazia aquilo? Por aquele universo de harmonia e ritmo que descrevera tão brilhantemente a Thomas Handry. Ora, merda! Sabia apenas, tristemente, que o tempo, o esforço mental, e a energia criadora despendida para sondar seus próprios e tortuosos motivos poderiam ser mais bem investidos na localização do homem que enfiara um espigão no crânio de Frank Lombard.
À porta, encontrou o Tenente Dorfman tocando a campainha. O tenente voltou-se no momento em que se aproximou, reconheceu-o, sorriu largamente, e desceu correndo os degraus. Segurou-lhe a mão e sacudiu-a entusiasticamente.
– Consegui, capitão! – exclamou. – Responsável pelo expediente durante seis meses. Muito obrigado!
– Ótimo, ótimo – sorriu Delaney, agarrando o ombro de Dorfman. – Entre, tome um café e conte-me tudo.
Sentaram-se na cozinha. Delaney notou que Dorfman já assumira as prerrogativas do novo posto: desabotoou a túnica e sentou-se com as pernas abertas e bem estendidas para a frente. Nunca se sentaria naquela posição no gabinete do capitão, mas Delaney entendia e até aprovava.
Leu o telex trazido por Dorfman, e sorriu novamente.
– Tudo o que posso dizer é o que lhe disse antes: estou aqui e terei prazer em ajudá-lo no que puder. Não tenha receio de pedir. Há muita coisa a aprender.
– Sei disso, capitão, e apreciarei o que o senhor puder fazer. Mas já fez muito, recomendando-me.
Delaney olhou-o atento. Lá estava ele novamente utilizando pessoas. Forçou a mão.
– Foi um prazer – disse. – Em troca, você pode fazer algo por mim.
– Qualquer coisa, capitão.
– Agora mesmo vou-lhe pedir dois favores. No futuro, provavelmente pedirei mais. Juro que não pedirei coisa alguma que possa prejudicar sua carreira. Se achar que minha palavra não é suficiente – e acredite-me, não o censuraria se pensasse assim – não insistirei. Certo?
Dorfman endireitou-se na cadeira com uma expressão confusa no princípio e séria depois. Fitou Delaney durante um longo momento, com os olhos presos um no outro.
– Capitão, nós trabalhamos juntos há muito tempo.
– Sim, trabalhamos.
– Não acredito que me peça para fazer alguma coisa que eu não deva.
– Obrigado.
– O que é que o senhor quer?
– Em primeiro lugar, que envie um formulário ao Departamento de Trânsito sobre uma carteira de habilitação desaparecida. Quero que fique claro no formulário que fui eu que levei o assunto à sua atenção. Antes de enviar o formulário, telefone para o Subinspetor Thorsen. Ele lhe dará o nome da pessoa no Trânsito a quem deve encaminhá-lo. Thorsen garantiu-me que o formulário será enviado ao Departamento de Veículos Automotores do Estado de Nova York da maneira usual.
Dorfman ficou confuso.
– Isso não é lá um grande favor, capitão. É simples rotina. Sua carteira?
– Não. De Frank Lombard.
Dorfman fitou-o novamente, e começou a abotoar a túnica.
– De Lombard?
– Sim, tenente. Se quer fazer perguntas, tentarei respondê-las. Mas por favor não fique zangado se eu lhe disser que, neste caso, quanto menos souber, melhor.
O alto e ruivo policial ergueu-se e começou a passear de um lado para o outro na cozinha, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. Contou as paredes mas não olhou para Delaney.
– Ando ouvindo coisas. Boatos.
– Acho que deve andar – respondeu Delaney, inclinando a cabeça, sabendo que dificilmente havia um homem no Departamento, até mesmo no nível do mais subalterno patrulheiro estagiário, que não soubesse vagamente das desavenças e cismas entre os comandantes do alto escalão. – Quer envolver-se nisso?
Dorfman parou e segurou a parte superior do espaldar de uma cadeira com as mãos vermelhas, sobressaindo os nós dos dedos. Olhou diretamente para Delaney.
– Não, capitão, não quero me envolver, em absoluto.
– O que lhe pedi é pura rotina, não? Estou pedindo para comunicar a perda de uma carteira de motorista. Só isso.
– Muito bem. Telefonarei a Thorsen, pedirei o nome da pessoa no Departamento de Trânsito e enviarei o formulário. Sabe o número da licença?
– Não.
– Qual é o segundo favor, capitão?
Soou algo na sua voz, algo triste. O capitão sabia que Dorfman faria o que lhe solicitasse. Mas, de alguma maneira, sutilmente, mudara a relação entre ambos. Dorfman pagaria sua dívida enquanto não se comprometesse. Mas, uma vez pago o que julgasse suficiente, não seriam mais professor e aluno, capitão e tenente. Não seriam mais amigos. Seriam colegas de profissão, cautelosos, agradáveis, mas reservados e vigilantes. Seriam rivais.
Delaney reconheceu que já destruíra a cordial amizade. De alguma maneira pequenina havia corrompido a fé e a confiança. Naquele instante, para Dorfman, ele era apenas outro "cara" que queria um favor. Mas não podia ser evitado o fato. É nem voltar atrás.
– O segundo favor – disse Delaney, acentuando a palavra "favor", algo ironicamente – e que eu apreciaria, tenente – mais uma vez deliberadamente frisou a palavra "tenente" – é que me mantivesse informado a respeito de quaisquer tentativas de agressão ou homicídios na 251ª Delegacia, nas quais as circunstâncias e, especialmente, o ferimento sejam semelhantes ao caso Lombard.
– Isso é tudo? – Dorfman perguntou, e dessa vez a ironia era sua.
– Sim.
– Muito bem, capitão.
Dorfman abotoou o colarinho e endireitou a túnica. Não a cobriam mais manchas e migalhas de pão. Era o responsável pelo expediente da 251ª Delegacia. Dirigiu-se à porta sem outra palavra. Com a mão na maçaneta, parou, voltou-se para Delaney e pareceu amolecer.
– Capitão, caso esteja interessado, já recebi ordens de comunicar qualquer tentativa de agressão ou homicídio como aquele ao Chefe Pauley.
– Naturalmente – anuiu Delaney. – Ele não poderia fazer outra coisa. Comunique a ele em primeiro lugar.
– E em seguida ao senhor?
– Em seguida a mim, por favor.
Dorfman inclinou a cabeça e saiu.
Delaney continuou imóvel na cadeira durante algum tempo. Estendeu a mão direita. Tremia um pouco. A situação não se desenvolvera tão bem como esperara nem tão má como temera. Mas, garantiu a si mesmo novamente, aquilo tinha que ser feito – e talvez tivesse acontecido no curso normal das coisas. Dorfman era um adorador natural, quase um parasita, e se queria fazer alguma coisa de si mesmo, teria finalmente que ser lançado ao largo, para nadar ou afundar. Delaney sorriu, melancólico, da própria generalização. Havia nele, reconheceu enojado, muito de Hamlet.
Quase hora de ir ao hospital. Consultou a pequena caderneta de notas e conferiu os artigos levados por Mary. Já de sobretudo, chapéu de feltro duro na cabeça e com a mão na maçaneta da porta, ouviu o telefone. Apanhou a extensão na entrada e atendeu:
– Falando o Capitão Edward X. Delaney.
– Capitão, aqui é Christopher Langley.
– Sr. Langley, que bom ter notícias suas. Como está?
– Muito bem. E o senhor?
– Otimamente. Estive pensando em telefonar-lhe, mas não quis que pensasse que o estava pressionando. Em vista disso, achei que era melhor nada dizer. Compreendeu?
Houve silêncio por alguns momentos, quebrado por Langley:
– Acho que compreendo Epa, isto é grande! Mas já passou uma semana desde que nos encontramos. Poderíamos almoçar juntos hoje, capitão? Há algo sobre o qual gostaria de ouvir sua opinião.
– Sim? – disse Delaney. – Lamento, mas hoje não é possível. Minha esposa está no hospital e vou visitá-la.
– Sinto ouvir isso, capitão. Nada sério, espero.
– Bem. . . não sabemos ainda. Mas demorará. Ouça Sr. Langley, o assunto sobre o qual quer conversar comigo... é importante?
– Pode ser, capitão – voltou a voz baixa e aflautada, excitada desta vez. – Não é grande coisa, mas já é um começo. É por isso. . .
– Sim, sim – interrompeu Delaney. – Sr. Langley, quer encontrar-se comigo no hospital? Preciso falar com o senhor. Infelizmente, não podemos almoçar juntos, mas teremos oportunidade de conversar e discutir o assunto.
– Excelente! – disse Christopher Langley, e Delaney teve a certeza de que ele apreciava a conversa do tipo misterioso. – Terei prazer em encontrá-lo lá. Espero que me possa ajudar. Pelo menos, isso me dará oportunidade de conhecer sua esposa.
Delaney deu-lhe o endereço, número do quarto e desligou. Ainda com a mão no telefone durante algum tempo, esperou, não pela primeira vez, que tivesse agido certo em confiar o trabalho importante da identificação da arma ao velhote. Começou a analisar seus motivos para solicitar-lhe ajuda: seus conhecimentos técnicos; a necessidade de recrutar um quadro de assessoria, embora de amadores; o pedido de Langley de realizar trabalho "importante", a necessidade dele, Delaney, de...
Fungou, chateado com os próprios resmungos. Queria progredir no caso Lombard e parecia que havia gasto um tempo injustificável interrogando a si mesmo, sondando os próprios motivos, como se fosse culpado... de quê? Prevaricação no cumprimento do dever? Resolveu acabar, pelo menos durante aquele dia, com tais inúteis sondagens. 0 necessário era fazer.
Bárbara, sentada em uma cadeira de rodas junto à janela, voltou-se e endereçou-lhe um fascinante sorriso. Ele, porém, havia começado a temer aquela aparência de boa saúde – os olhos brilhantes e rosto afogueado – sabendo o que disfarçava. Atravessou rápido o quarto, beijou-a no rosto e deu-lhe o que poderia ter sido a maior e mais vermelha maçã jamais colhida.
– Uma maçã para a professora.
– O que foi que lhe ensinei? – riu ela, tocando-lhe os lábios.
– Eu lhe digo, mas não quero que fique desnecessariamente excitada.
Ela riu novamente e virou a enorme maçã com os dedos finos, acariciando-a.
– É bonita.
– Mas provavelmente muito farinhenta. As grandes geralmente o são.
– Talvez não a coma. Talvez a deixe aí ao lado da cama para contemplá-la.
Ele ficou preocupado.
– Bem. . . sim – disse finalmente. – Por que não? Ouça, como está se sentindo? Já deve andar chateada de me ouvir perguntar isso, mas sabe que preciso perguntar.
–Naturalmente – respondeu ela, pondo a mão sobre a dele. – Começaram uma nova série de injeções hoje de manhã. Mas só daqui a dois dias saberemos os resultados. – Ela consolava-o.
Ele anuiu, sofredor.
– Está tudo bem? – perguntou ansioso. – Quero dizer, a comida? As enfermeiras?
– Está tudo ótimo.
– Pedi maçãs Temple na barraca. Estão esperando-as na próxima semana. Eu as trarei logo que chegarem.
– Isso não tem importância.
– É importante, sim. Você gosta das Temples e as terá.
– Muito bem, Edward – sorriu ela, acariciando-lhe a mão. – É importante e vou recebê-las.
Em seguida, ensimesmou-se. O desligamento ocorrera várias vezes nos últimos tempos e o fato amedrontava-o. 0 corpo dela parecia enrijecer e os olhos adquiriam uma dureza, como se olhassem para o vazio. Deixava de falar, embora movesse os lábios, fazendo beicinho, separando-os repetidamente, como uma criança a mamar, produzindo o mesmo som baixo e estalado.
– Escute – começou ele apressado. – Quando Eddie esteve aqui na semana passada, achei-o magro. Você não achou?
– Honey Bunch – disse ela.
– O quê? – perguntou ele, sem entender e com vontade de chorar.
– Os meus livros Honey Bunch – repetiu ela, ainda sem olhar para parte alguma. – Onde estão?
– Oh – ele entendeu logo. – Os seus livros Honey Bunch. Não se lembra? Quando Liza nos disse que estava grávida embrulhamos todos os livros infantis, e os enviamos para ela.
– Talvez ela os devolva – murmurou Bárbara, virando a cabeça para fitá-lo com os olhos cegos. – Os meus livros Honey Bunch.
– Comprarei outros para você.
– Não quero os novos. Quero os velhos.
– Eu sei, eu sei – disse ele em desespero. – Os velhos, de capa vermelha, com ilustrações. Eu os comprarei para você, Bárbara. Bárbara!
Aos poucos, estreitou-se-lhe o foco dos olhos. Ela voltou. Ele viu isso acontecer. Ela o fitava.
– Edward?
– Sim. Estou aqui.
Ela sorriu e segurou-lhe a mão.
– Edward – repetiu.
– Ouça, Bárbara, há uma pessoa que vem aqui para se encontrar comigo. Christopher Langley. É um ex-conservador do Metropolitano. Eu lhe falei a respeito dele.
– Oh, sim. – Ela inclinou a cabeça. – Você me contou. Ele está tentando identificar a arma no caso Lombard.
– Exatamente! – exclamou ele, contente, e inclinou-se para beijar-lhe o rosto.
– Por que isso? – riu ela.
– Por você ser você.
– Edward, quando Eddie esteve aqui na semana passada, não achou que ele estava um pouco magro?
– Achei – anuiu ele. – Pensei que estava um pouco magro.
Puxou a cadeira para perto dela, segurou-lhe as mãos, e falaram de coisas banais: as cortinas do estúdio, se deviam ou não retirar os dividendos acumulados da apólice de seguro para ajudar no pagamento das despesas hospitalares, o que ele tomara no café da manhã, um atendente grosseiro no laboratório de raios X, uma enfermeira que, inexplicavelmente, prorrompera em prantos ao tomar-lhe a temperatura. Ele falou na promoção de Dorfman. Ela falou de um pombo que pousava no peitoril da janela todos os dias, à mesma hora. Falavam em voz baixa, monótona, sem se ouvirem realmente, mas de mãos dadas, cantando um lindo dueto.
Saíram do êxtase ao serem interrompidos por uma batida tímida mas persistente na porta do quarto. Delaney virou-se a partir da cintura:
– Entre.
Rapidamente entrou no quarto o ágil Christopher Langley, sorrindo radiante. E atrás dele, como um couraçado na esteira de uma saltitante corveta, a maciça viúva Zimmerman, também radiante. Ambos conduziam embrulhos: sacos de papel pardo de forma curiosa.
Delaney levantou-se de um salto. Tomou a pequena mão de Langley e fez uma mesura à viúva. Apresentou-lhes a esposa. Bárbara animou-se imediatamente. Gostava de gente e, em especial, de gente que sabe quem é e pode viver com o que é.
Falaram, riram, houve confusão. Bárbara insistiu em voltar para a cama, sabendo que Edward gostaria de conversar em particular com Langley. A viúva Zimmerman plantou seu monumental traseiro em uma cadeira ao lado da cama e abriu o saco de papel. Geléia de peixe! E feita em casa, além do mais. Os dois homens ficaram de lado, inclinando a cabeça e sorrindo, enquanto a viúva expunha as qualidades nutritivas e terapêuticas da geléia de peixe.
Momentos depois, a boa viúva inclinou-se para a frente, segurou uma das mãos de Bárbara em suas carnudas patas e as duas mergulharam em profunda e murmurada conversação, de tal intimidade física que os homens apressadamente se retiraram para um canto do quarto, puxaram cadeiras e juntaram as cabeças.
– Em primeiro lugar, capitão – disse o homenzinho – quero dizer que não identifiquei a arma que matou Frank Lombard. Examinei meus livros, visitei museus e vi várias armas – antigas – que poderiam ter produzido aquela perfuração craniana. Mas concordo com o senhor: foi uma arma ou ferramenta moderna. Puxa, como pensei no caso! Finalmente, na última semana, descia a rua quando vi uma turma de conservação abrindo o calçamento. Para lançar novo cabo, acho. Fazem isso sem parar. De qualquer modo, abriam uma vala. Havia um homem na vala, um negro enorme, e mesmo com este tempo estava nu da cintura para cima. Um tórax magnífico. Heróico. Mas o que me interessou foi a ferramenta que ele usava. Uma picareta, capitão. Uma picareta comum. Um cabo de madeira do tamanho de um machado de lenhador. Grande demais para ser a arma, no caso Lombard, claro. E lembrei-me de que o senhor desconfiava de que o matador a levava oculta. É extremamente difícil esconder uma picareta.
– Exato – reconheceu Delaney. – Mas a idéia da picareta é interessante.
– A forma! – exclamou Langley, inclinando-se para a frente. – Foi isso o que me chamou a atenção. Uma picareta quadrada, afilando até uma ponta aguda. Cada cravo da picareta curvava-se para baixo, exatamente como o médico-legista descreveu o ferimento. Comecei, então, a matutar se aquela picareta, usada costumeiramente em trabalho de escavação e construção civil, não teria uma cópia menor. . . uma picareta de usar com uma só mão, com um cabo não maior do que o de uma machadinha.
Delaney pensou durante um momento.
– Não me lembro de ter visto uma ferramenta assim.
– Não acho que exista – concordou Langley. – Pelo menos, visitei seis lojas de ferragens e nenhuma delas tinha algo semelhante ao que descrevi. Mas, na sétima, descobri isto aqui. Estava na vitrina.
Do saco de papel pardo retirou a ferramenta: o mágico e o coelho. Entregou-a a Delaney. O capitão tomou-a nos dedos grossos, examinou-a atentamente, virou-a diversas vezes, sopesou-a, segurou-lhe o cabo, brandiu-a e examinou a cabeça. Cheirou o cabo de madeira.
– O que diabo é isso? – perguntou finalmente.
– É um martelo de pedreiro. Cabo de nogueira seca. Cabeça de aço forjado. Notou o martelo quadrado em um dos lados da cabeça? Isto é para colocar, com batidas, os tijolos na argamassa. Agora, olhe para o espigão. A superfície superior curva-se para baixo, mas o lado de baixo é horizontal. O espigão em si não se curva. Além disso, termina em uma afiada ponta de talhadeira, usada para partir os tijolos. Soube logo que não era a arma que procuramos. Mas é um começo, não acha?
– Naturalmente que sim – concordou prontamente Delaney. Brandiu o martelo em curtos e violentos golpes. – Meu Deus, nunca soube que tal ferramenta existisse. Pode-se facilmente partir um crânio humano com isto.
– Mas não é o que queremos, certo?
– Não – reconheceu Delaney – não é. O espigão não se curva para baixo e a extremidade transforma-se em ponta de talhadeira, hum. . . digamos a uns dois centímetros e meio ao longo do comprimento. Sr. Langley, há outra coisa que lhe deveria ter dito. Esta ferramenta tem cabo de madeira. Admito que Lombard poderia muito bem ter sido morto com uma arma de cabo de madeira, mas, por experiência, sei que implementos de cabo de madeira, especialmente velhos, quebram no cabo. Geralmente no ponto em que a madeira é comprimida para entrar na cabeça de aço. Eu me sentiria muito melhor se pudéssemos encontrar uma ferramenta ou arma feita inteiramente de aço. Isto é apenas um palpite e não quero que prejudique suas investigações.
– Não prejudicará, não prejudicará! – afirmou o homenzinho, pulando agitado na cadeira. –Concordo, concordo! Aço seria melhor. Mas ainda não lhe contei tudo. Na loja onde descobri o martelo de pedreiro perguntei ao proprietário por que os tinha em estoque e quantos vendia. Afinal de contas, capitão, quantos pedreiros existem neste mundo? E de quantos martelos eles necessitam? Examine a ferramenta. Não acha que um aprendiz de pedreiro, comprando uma ferramenta tão robusta como esta, usá-la-ia pelo resto de sua carreira profissional?
Delaney pegou novamente o martelo, brandindo-o experimentalmente.
– Exato – anuiu – acho que o senhor tem razão. O cabo poderia possivelmente quebrar mas esta coisa duraria uns cinqüenta, cem anos.
– Exatamente. Bem, o dono da loja disse, e é espantoso com que boa vontade e ansiedade os homens falam de seus trabalhos e especialidades...
– Eu sei – sorriu Delaney.
– Bem, ele disse que estocava esses martelos porque vendia de vinte a trinta por ano. E não apenas a pedreiros! Vendia-os também a "faiscadores de pedras." – expressão, explicou, que se aplica a pessoas que procuram pedras preciosas e semipreciosas – gemologistas e coisas assim. Além disso, vendia-a a arqueólogos amadores. Perguntei-lhe se conhecia um martelo semelhante no qual o espigão, em vez de terminar em ponta talhadeira, terminasse em ponta aguda e afilada. Disse que ouvira falar em tal martelo, mas que nunca o vira: era fabricado especialmente para faiscadores de pedras, garimpeiros e arqueólogos. E esse martelo tem um espigão, uma picareta, que se afina em ponta afilada. Perguntei onde poderia comprá-lo, mas ele não sabia, dizendo apenas que eu tentasse as lojas de hobbies e atividades ao ar livre. O que acha, capitão?
Delaney fitou-o.
– Em primeiro lugar, acho que o senhor se conduziu notavelmente bem. Muito melhor do que eu poderia ter feito. – Satisfeito, notou o sorriso de prazer de Langley. – E tenho esperança de que queira continuar até encontrar a ferramenta, isto é, descobrir um martelo de faiscador de pedras com um espigão que se curve para baixo e se afine em ponta.
– Queira? – exclamou deliciado Langley. – Queira?
As duas mulheres, que falavam baixinho na cama, interromperam a conversa e olharam-nos, interrogativas.
– Queira? – repetiu Langley em voz mais baixa. – Capitão, não posso parar agora. Nunca pensei que o trabalho de detetive pudesse ser tão fascinante.
– Oh, sim – disse Delaney, inclinando solene a cabeça – é fascinante.
– Bem, nunca me diverti tanto em minha vida. Depois que sairmos daqui, Myra e eu. . .
– Myra? – interrompeu Delaney.
– A viúva Zimmerman – explicou o velho, baixando os olhos e corando. – Ela possui qualidades admiráveis.
– Tenho certeza disso.
– Bem, fiz uma lista das lojas de hobbies, tirada das Páginas Amarelas. Vamos almoçar na área de Times Square e visitar todos os endereços, tentando localizar um martelo de faiscador de rochas. É assim que se faz, capitão?
– Exatamente assim – garantiu Delaney. – É exatamente o que faço. Não fique desanimado se não o encontrar nas primeiras quatro, cinco ou cinqüenta lojas que visitar. Continue a busca.
– Estou resolvido a fazer isso – disse Langley, empertigando-se na cadeira. – É importante, não, capitão?
Delaney olhou-o de modo estranho.
– Sim, é importante, Sr. Langley. Tenho um palpite sobre o senhor e o que anda fazendo. Acho muito importante.
– Bem – decidiu-se Langley – neste caso é melhor eu começar logo.
– Posso ficar com o martelo?
– Naturalmente, naturalmente. Não preciso dele. Eu o manterei informado de nosso progresso.
– Nosso?
– Bem. . . sabe, preciso levar a viúva Zimmerman para almoçar. Como o senhor sabe, ela tem sido muito bondosa comigo.
– Naturalmente.
– Mas não disse nada a ela, capitão. Nada, juro. Ela acha que procuro um machado de rocha para meu sobrinho.
– Ótimo. Continue assim. E preciso pedir-lhe desculpas pela minha conversação telefônica esta manhã. Provavelmente, estou sendo cauteloso demais. Duvido muito que meu telefone esteja sendo censurado, mas não é bom correr riscos. Quando quiser falar comigo, de agora em diante, disque o número lá de casa e diga algo inócuo. Eu me comunicarei com o senhor dentro de dez ou quinze minutos de um telefone externo. Será satisfatório isso?
O ex-conservador fez algo extremamente curioso. Repetiu um antigo gesto sobre o qual Delaney lera nos romances de Dickens, mas nunca vira. Colocou o indicador ao lado do nariz e inclinou a cabeça. O Capitão Delaney vibrou.
– Exatamente – concordou.
Saíram os dois visitantes, acenando para Bárbara e prometendo vir visitá-la novamente. Quando a porta se fechou, Bárbara e Edward entreolharam-se, simultaneamente, explodiram numa gargalhada.
– Gostei dela – disse Bárbara. – Fez um bocado de perguntas pessoais para um conhecimento tão curto, mas penso que foi por autêntico interesse, e não apenas por curiosidade ociosa. Uma mulher muito cordial, franca, de bom coração.
– Acho que ela quer pegar o Langley.
– E daí? O que tem isso de errado? Ela me disse que anda muito solitária desde a morte do marido, e ele é outro solitário. Não é bom viver só quando a pessoa envelhece.
– Olhe para isto – disse ele, mudando de assunto. – É um martelo de pedreiro. É o que Langley descobriu até agora.
– Foi o que matou Lombard?
– Não. Mas está perto. Coisa feia, não?
– Sim. E de aparência má. Guarde, por favor, querido.
Ele guardou a ferramenta no saco de papel pardo e colocou-o sobre o sobretudo dobrado para não se esquecer de levá-lo quando saísse. Puxou uma cadeira para junto da cama.
– O que é que você vai fazer com a geléia de peixe?
– Talvez prove um pouco. A menos que a queira, Edward.
– Não, obrigado!
– Bem, foi uma gentileza dela trazer o presente. É uma dessas mulheres que pensam que a comida soluciona todos os problemas e que ninguém pode ser infeliz de estômago cheio. Às vezes, com razão.
– É mesmo.
– Você está desanimado, não, Edward?
Ele levantou-se e pôs-se a caminhar de um lado para outro.
– Nada está acontecendo! – disse desgostoso. – Eu não estou fazendo nada!
– Está convencido de que o assassino é louco?
– É apenas uma idéia – suspirou ele. – Mas a única hipótese que faz absolutamente sentido. Mas, se estou certo, significa que teremos de esperar por outro assassinato antes de descobrirmos mais alguma coisa. Isso é que enfurece.
– O martelo que Langley trouxe não é uma pista?
– Talvez. Talvez não. Mas mesmo que Lombard tenha sido assassinado com um martelo exatamente igual a este, eu não estaria mais perto de encontrar o assassino. Deve haver centenas – milhares! – de martelos exatamente iguais, e mais são vendidos todos os dias. Neste caso, aonde isso me conduz?
– Venha até aqui e sente-se. – Indicou a cadeira ao lado. Ele derreou-se e tomou a mão da esposa. Ela ergueu as costas da mão do marido até o rosto, esfregou-a suavemente, e beijou-a.
– Edward – murmurou – pobre Edward.
– Eu sou um "tira" de quinta classe.
– Não. Você é um bom "tira". Não posso pensar em coisa alguma que pudesse fazer e que não tenha feito.
– A Operação Lombard fez tudo – disse ele desencorajado.
– Você descobriu que a carteira de habilitação estava desaparecida.
– Certo. O que quer que isso signifique.
Após 30 anos de vida em comum com aquele homem, ela conhecia quase tão bem quanto ele a rotina policial.
– Verificaram as placas dos carros estacionados? – perguntou.
– Naturalmente. O Chefe Pauley providenciou. O número das chapas de todos os carros estacionados em uma área de quatro quarteirões foi anotado durante três noites seguidas. Foram procurados os proprietários e indagados se tinham visto alguma coisa na noite do crime. Que trabalho imenso deve ter sido! Broughton, porém, tinha gente para fazê-lo, e precisava ser feito. Não conseguiram nada de positivo. Exatamente igual ao interrogatório dos moradores das vizinhanças. Zero.
– A Navalha de Occam – disse ela, e ele sorriu, sabendo o que ela pensava.
Anos antes, encontrara por acaso a estranha expressão "Navalha de Occam" na comunicação de um criminologista que tratava de percentagens e probabilidades em casos de homicídios na área de Boston. Delaney confiou nos achados desde que as percentagens citadas aproximavam-se muito das então correntes em Nova York: a maioria de homicídios era cometida por parentes ou "amigos" da vítima – mães, pais, filhos, maridos, esposas, tios, tias, vizinhos. . . em outras palavras, a maioria dos assassinatos envolvia pessoas que se conheciam.
Diante desses resultados, o criminologista de Boston declarara ser aconselhável que os investigadores se guiassem pelo princípio da "Navalha". Mais tarde, contou a Bárbara o que descobrira:
– Occam foi um filósofo do século XIV. A sua filosofia era o "nominalismo", que não sei o que é, embora pense que ele queria dizer que não há verdades universais. De qualquer modo, foi famoso pela sua teimosa abordagem da solução de problemas. Acreditava em "raspar" todos os detalhes estranhos. Por isso deram ao seu axioma o nome de "Navalha de Occam". Disse ele que quando há várias possíveis soluções, a certa é provavelmente a mais óbvia. Em outras palavras, deve-se eliminar todos os fatos desnecessários.
– Mas você vem fazendo isso durante toda sua vida, Edward.
– Acho que sim, mas chamo-a de "elimine as bobagens". De qualquer modo, é bom saber que um filósofo do século XIV concorda comigo. Gostaria de entender melhor sua filosofia.
– Você se incomoda mesmo por não entender?
– Não. . . não me incomodo, mas me faz compreender as limitações de minha inteligência. Não consigo pensar em termos abstratos. Você mesma sabe que tentei aprender xadrez três vezes e que acabei desistindo.
– Edward, você se interessa mais por gente do que por coisas ou idéias. Tem uma excelente inteligência no que toca a pessoas.
Naquele momento, no quarto do hospital, quando Bárbara mencionou a "Navalha de Occam", ele sabia no que ela pensava e sorriu melancólico.
– Bem – disse, esfregando a testa – gostaria de saber se o velho Occam tentou solucionar um problema irracional usando meios racionais. Gostaria de saber também se ele não começaria a duvidar do valor da lógica e do raciocínio quando tratamos de ...
Nesse exato momento, a porta do quarto foi aberta e o Dr. Louis Bernardi deslizou para dentro, brilhando-lhe a pele azeitonada e os pequenos olhos. Trazia um estetoscópio pendente do pescoço.
Ofereceu a Delaney uma mão lânguida e, com o indicador da esquerda, acariciou amorosamente a ridícula fita do bigode.
– Capitão – murmurou. E dirigindo-se a Bárbara: – Como está se sentindo hoje?
Bárbara começou a explicar que os pés continuavam a inchar e a incomodá-la, que a erupção reaparecera no lado interno das coxas, e que os ataques de vômitos aparentemente haviam piorado com a primeira injeção de antibiótico.
A cada queixa, Bernardi dizia: "Sim, sim", ou "Mas isso não me preocupa."
Por que haveria de preocupá-lo?, pensou irritado Delaney. Não está acontecendo com você, seu safadinho.
Enquanto isso, o médico tomava o pulso de Bárbara, auscultava-a, e suavemente erguia-lhe as pálpebras para examinar-lhe os olhos imóveis.
– A senhora está se recuperando muito bem da operação – garantiu. – E soube que seu apetite melhorou. Estou tão satisfeito, querida senhora.
– Quando é que o senhor pensa. . .? – começou Delaney, mas o médico ergueu a mão.
– Paciência – disse. – O senhor precisa ter paciência. E eu preciso de pacientes.
Delaney deu-lhe as costas, enojado, não compreendendo como Bárbara podia confiar nesse sujeito afetado.
Bernardi murmurou mais algumas palavras, bateu umas palmadinhas na mão de Bárbara, deu uma risadinha e virou-se para sair. Estava quase na porta quando Delaney o chamou.
– Doutor, gostaria de falar-lhe durante um minuto. – A Bárbara, avisou: – Já volto, querida.
No corredor, fechada a porta, encarou Bernardi seriamente.
– Bem? – indagou.
O médico abriu as mãos naquele conhecido e afável gesto que nada dizia.
– O que é que eu posso dizer? O senhor mesmo viu. A infecção continua. Estamos percorrendo todo o espectro de antibióticos. Isso leva tempo.
– Há algo mais.
– Oh? O quê?
– De uns dias para cá minha esposa vem exibindo sinais de... bem, sinais de irracionalidade. Os olhos assumem uma expressão fixa e estranha, ela parece subitamente retirar-se para dentro de si mesma, e diz coisas que não fazem muito sentido.
– Que tipo de coisas?
– Bem, ainda há pouco ela queria uns livros infantis. Quero dizer, livros que lia quando criança. Ela não está sob o efeito de sedativos, está?
– Agora, não.
– Opiatos? Comprimidos para dormir?
– Não. Estamos procurando evitar a menor possibilidade de mascarar ou afetar a ação dos antibióticos. Capitão, isso não me preocupa. Sua esposa sofreu uma grande operação. Está sob medicação. A febre está, reconheço, enfraquecendo-a. É compreensível que ela passe por curtos períodos de... oh, chame-os de devaneios. Sugiro que lhe faça as vontades enquanto for possível. A pulsação dela está regular, e forte o pulso.
– Tão forte quanto antes?
Bernardi fitou-o com expressão vazia.
– Capitão – disse suavemente, e Delaney sabia exatamente o que viria – sua esposa está indo tão bem quanto seria de esperar.
Inclinou a cabeça, deu-lhe as costas, e deslizou para longe, tão gracioso corno uma dançarina. Sozinho ali, impotente com a fúria que lhe queimava a garganta, convenceu-se Delaney de que o médico não sabia de nada ou então suspeitava de algo que não lhe queria dizer. Parecia-lhe estar bloqueado e contrariado de todos os lados: no trabalho, na vida pessoal. O que dissera a Thomas Handry sobre uma ordem divina no Universo? Naquele momento a ordem parecia desvanecer-se, sorrateira, e ele caía, derrotado por um maníaco assassino e por inimigos invisíveis que roíam o corpo da esposa.
Do patrulheiro de ronda ao Comissário de Polícia, todos os policiais sabiam o que esperar em época de lua cheia: sonâmbulos, mulheres que ouviam vozes, homens que se diziam bombardeados por feixes eletrônicos disparados do apartamento vizinho, loucos anunciando o fim do mundo, pessoas cambaleando nuas pelas ruas à meia-noite, urinando-se enquanto corriam.
Pensando na guerra, na violência insana, em doenças cruéis, em brutalidade, e nas palavras melosas de um médico satisfeito consigo mesmo, perguntou-se se não transcorria a Era da Lua Cheia, com o desaparecimento da ordem no mundo e o triunfo da irracionalidade.
Endireitou-se, deu às feições o esgar de um sorriso, e entrou no quarto da esposa.
– Compreendi de súbito por que é tão importante para mim solucionar o caso Lombard – disse-lhe. – O crime ocorreu na 251a Delegacia, o meu mundo.
– A "Navalha de Occam" – anuiu ela.
Mais tarde, já em casa, Mary preparou-lhe um sanduíche de presunto e levou ao estúdio uma garrafa de cerveja gelada. Apoiou o catálogo telefônico aberto sobre a mesa enquanto discava para sebos, perguntando se tinham as edições originais dos livros Honey Bunch, os ilustrados.
Todas pareciam saber o que ele queria: as edições Grosset & Dunlap publicadas em princípios da década de 20. De autoria de Helen Louise Thorndyke. Mas ninguém dispunha de um único exemplar. Um livreiro tomou nota do nome e endereço e prometeu tentar localizá-los. Outro sugeriu que ele procurasse nas boutiques de antigüidades chiques, que se especializavam nos nostálgicos tempos americanos.
Curiosamente, a ridícula tarefa pareceu acalmá-lo e, ao terminar as chamadas e o almoço, resolvera voltar ao trabalho e atirar-se a ele, resoluto e sem dúvidas, aproveitando o embalo.
Das estantes tirou todos os volumes que tratavam, mesmo superficialmente, de histórias, análises e detecção de assassinatos de massa. Não foi grande o número de livros que empilhou junto à espreguiçadeira e nem era extensa a literatura sobre o assunto. Afundou-se na cadeira, colocou no nariz os grossos óculos de leitura de aros de chifre e começou a lê-los laboriosamente, passando por cima, tanto quanto podia, o material sem aplicação ao caso Lombard.
Leu o que havia sobre Gille de Raix, Verdoux, Jack o Estripador e, em tempos mais recentes, Whitman, Speck, Unruh, o estrangulador de Boston, Panzram, Manson, e o garoto de Chicago que escreveu com o batom da vítima no espelho do banheiro: "Detenham-me antes que eu mate outros". Era uma triste, tristíssima crônica de aberração humana. O mais triste de tudo, porém, foi a impressão que formou do assassino como vítima, logrado por ânsias insuportáveis ou sonhos caóticos.
Não se formou um padrão, contudo, pelo menos nenhum que pudesse entrever. Os assassinos de massa, de dez, de sabidamente centenas de pessoas, autores isolados, aparentemente agiram baseados em um único motivo. Se padrão havia, limitava-se exclusivamente a cada um deles: o modus operandi permanecia idêntico e a arma era a mesma. E em quase todos os casos, o período entre os assassinatos diminuía progressivamente. O assassino agia num crescente: mais! mais! mais rápido! mais rápido!
Outro fato estranho: homem, invariavelmente. Em casos isolados, uma mulher matara diversas vezes: a "Porqueira" do Ohio, uma delas, e, outra, no caso Beck-Fernandez. Mas as poucas assassinas de massa pareciam motivadas pelo desejo de ganho financeiro. Anseios selvagens, fúrias insanas, paixões tresloucadas motivavam os homens.
Escureceu; acendeu a lâmpada de leitura. Mary entrou para despedir-se. Seguiu-a até a entrada, deu duas voltas na fechadura de dupla ação e colocou a corrente na porta. Voltou à leitura, tentando discernir um padrão ou uma causa-efeito repetida, procurando extrair percentagens.
Quase às seis da tarde, tocou a campainha da porta principal. Pôs de lado o artigo que lia – uma análise fascinante de Hitler como criminoso, e não como líder político – e voltou ao saguão. Ligou a luz do pórtico, olhou pelo vidro de visão única do painel ao lado da porta. Reconheceu Christopher Langley com uma elegante bolsa de compras na mão. Abriu a porta.
– Capitão! – exclamou Langley agitado. – Espero que não o esteja perturbando. Mas não quis telefonar, já que estava a caminho de casa. Pensei em me arriscar e...
– Não está me perturbando em coisa alguma. Entre.
– Puxa, que casa maravilhosa!
– Velha, mas confortável.
Entraram no estúdio iluminado.
– Capitão, consegui...
– Espere, apenas um minuto. Deixe-me preparar-lhe uma bebida. Alguma preferência?
– Xerez.
– No momento, não tenho. Mas tenho um bom vermute seco. Servirá?
– Oh, excelente. Sem gelo. Apenas um pequeno cálice, por favor.
No modesto bar, Delaney serviu um cálice de vermute e preparou um uísque para si mesmo. Entregou o vinho a Langley e ofereceu-lhe a espreguiçadeira de couro. Recuou alguns passos no círculo de luz lançado pela lâmpada de leitura, permanecendo de pé na escuridão.
– À sua saúde, senhor.
– E à sua. E de sua esposa.
– Muito obrigado.
Tomaram ambos pequenos goles.
– Bem – começou Delaney – como se saiu?
– Capitão, fui um idiota, e como fui! Não fiz o óbvio, o que devia ter feito em primeiro lugar.
– Eu sei – sorriu Delaney, pensando novamente na Navalha de Occam. – Muitas vezes fui culpado disso. O que foi que aconteceu?
– Bem, como disse no hospital, tirei das Páginas Amarelas os nomes das lojas de hobbies no centro, locais que poderiam vender martelos de faiscadores de rochas com um espigão afilado. A viúva Zimmerman e eu almoçamos – comi linguado recheado, maravilhoso – e começamos a peregrinação. Fomos a seis diferentes lojas e nenhuma delas vendia os tais martelos. Algumas nem mesmo sabiam do que se tratava. Vi que Myra estava cansando-se, coloquei-a num táxi e mandei-a para casa. Ela está preparando o jantar para mim. Por falar nisso, é péssima cozinheira. Resolvi tentar outras lojas antes de encerrar o dia. A seguinte na lista, a Abercrombie & Fitch, naturalmente possuía o machado de faiscador de rocha. Tão evidente! É a maior loja do gênero na cidade e eu devia ter ido lá em primeiro lugar. Foi por isso que disse que sou um idiota. De qualquer maneira, ei-lo aqui.
Inclinou-se, tirou a ferramenta da bolsa de compras e entregou-a ao Capitão Delaney.
O martelo continuava no seu envoltório de plástico fechado a vácuo. O rótulo de papelão declarava que a ferramenta, o "machado de garimpeiro", era recomendado para colecionadores de rochas e arqueólogos. Da mesma forma que o martelo do pedreiro, possuía cabo de madeira e cabeça de aço. Um dos lados da cabeça era um martelo quadrado. 0 outro, uma picareta de uns dez centímetros de comprimento. Começava quadrada e afilava-se até uma ponta aguda. O instrumento vinha completo, com bainha de couro, de modo a ser usado ao cinto. Tinha as dimensões de uma machadinha e podia ser usado com uma única mão.
– Note o afilamento do espigão – apontou Langley. – Termina em ponta, mas, ainda assim, o espigão não se curva para baixo. A superfície superior, sim, mas a inferior é quase horizontal, em ângulo reto com o cabo. E naturalmente, tem cabo de madeira. Ainda assim, aproxima-se bastante do que estamos procurando, não?
– Nenhuma dúvida quanto a isso – disse categórico Delaney. – Se tivesse um espigão curvo, diria que era ela. Posso tirar a cobertura plástica?
– Naturalmente.
– O senhor está gastando um bocado de dinheiro.
– Bobagem.
Delaney tirou o envoltório plástico e sopesou o martelo na mão.
– É quase – anuiu. – Um espigão afilado, terminando em ponta aguda. Mais ou menos dois e meio centímetros na base do espigão. E com peso suficiente para esmigalhar um crânio humano. Facilmente. Talvez seja mesmo a coisa. Eu gostaria de mostrar isto ao legista que fez a autópsia em Lombard.
– Não, não – protestou Christopher Langley. – Não lhe contei ainda toda a história. Foi por isso que passei por aqui esta noite. Comprei o martelo no departamento de campismo e fui tomar o elevador. Saindo, passei por uma seção onde vendem equipamento de esquiação e montanhismo. 0 senhor sabe, mochilas, cravos, grampos de segurança, e coisas assim. E ali, pendurado na parede, vi um instrumento muito interessante. Um que nunca vira antes. Tem mais ou menos sessenta centímetros e é feito para ser usado com as duas mãos. Exclui-o imediatamente como nossa arma: incômodo demais para esconder. E o cabo, de madeira. Na ponta do cabo há um afiado espigão de aço, de mais ou menos sete e meio centímetros de comprimento. Mas foi a cabeça que me interessou. É aparentemente de aço cromado. De um lado há uma picareta em miniatura, terminando em um gume afiado, um gume de talhadeira. O outro lado é exatamente o que andamos procurando! É um espigão, uma picareta, de mais ou menos dez a doze e meio centímetros de comprimento. Projeta-se da cabeça como um quadrado, mais ou menos de dois e meio centímetros de lado. Transforma-se em triângulo, com um gume afiado na parte superior e, na base, tem dois centímetros e meio. Logo depois, toda a coisa se afila, afina-se e curva-se para baixo. Capitão, todo espigão curva-se para baixo. Termina em uma ponta aguda, tão aguda, de fato, que está coberta por uma pequena luva de borracha para evitar danos quando não é usado. Tirei o protetor de borracha e notei na ponta, no lado de baixo, quatro pequenos dentes de serra. É serrilhado para cortar. Chamei um vendedor e perguntei-lhe o que era aquele espantoso instrumento. Respondeu que era um machado de gelo. Perguntei-lhe para que servia e ele...
– O quê? – exclamou Delaney. – O que foi que o senhor disse?
– Perguntei ao vendedor para que servia...
– Não, não – interrompeu-o, impaciente o capitão. – Como foi que o vendedor disse que se chamava?
– Machado de gelo.
– Jesus Cristo! – exclamou Delaney. – Leon Trotsky. Cidade do México. Mil novecentos e quarenta.
– Capitão, não estou compreendendo.
– Leon Trotsky. Um refugiado da Rússia de Stalin... ou talvez tenha fugido ou sido deportado. Não me lembro exatamente. Terei de conferir isso. Trotsky, Lenine e Stalin foram colegas em certa ocasião. Lenine morreu. Stalin quis ser o Número Um. Em vista disso, Trotsky conseguiu, de alguma maneira, sair da Rússia e chegar à Cidade do México. Conseguiram pegá-lo em mil novecentos e quarenta. Pelo menos se disse que o assassino era um agente da Polícia Secreta Russa. Não me recordo dos detalhes. Mas ele assassinou Trotsky com um machado de gelo.
– Mas o senhor certamente não acha que haja alguma relação entre isso e a morte de Lombard, acha?
– Oh, não. Duvido muito. Verificarei, naturalmente, mas não acredito que haja qualquer ligação.
– Mas pensa que Lombard pode ter sido morto com um machado de gelo?
– Vou servir-lhe outra bebida – ofereceu Delaney. Do bar voltou com dois drinques – Sr. Langley, não sei se ser detetive é emprego, carreira, profissão liberal, talento ou arte. Há algumas coisas que não sei. Primeiro, não se pode ensinar ninguém a ser um bom detetive, da mesma maneira que não se pode ensinar uma pessoa a ser recordista olímpico da milha ou um grande pintor. Segundo, por mais talento e energia com que comece o homem, nunca se tornará um bom detetive sem experiência. Quanto mais, melhor. Depois de trabalhar durante algum tempo, o indivíduo começa a distinguir padrões. As pessoas se repetem em motivos, armas, métodos de entrada e fuga, álibis. Encontra-se a mesma coisa, repetindo-se uma vez após outra: janelas arrombadas, facas de cozinha, telas rasgadas, ferros para soltar pneumáticos, fechaduras encrencadas, raticidas, qualquer coisa. Tudo isso se torna familiar. Bem, o que me irritou no assassinato de Lombard, o que realmente me atenazou desde o princípio, foi que nada havia de familiar no caso. Nada! A primeira reação, naturalmente, recorrendo às percentagens, foi que um parente ou conhecido o assassinara, alguém conhecido de Lombard. Negativo. A possibilidade seguinte apontava para tentativa de roubo e latrocínio.Negativo. Ninguém tocou no dinheiro dele. E o pior de tudo, não podíamos nem mesmo identificar a arma. Mas agora o senhor entra aqui e diz, "machado de gelo". Palavras mágicas! Clique! Trotsky foi assassinado com um machado de gelo. Subitamente, percebo alguma coisa familiar. A arma de um assassinato usada antes. É difícil de explicar, Sr. Langley, mas sinto-me melhor a respeito do caso, pela primeira vez desde que comecei. Acho que agora estamos progredindo. Graças ao senhor.
O velho ruborizou-se de prazer.
– Mas, desculpe – continuou Delaney – interrompi-o. O senhor dizia o que o vendedor da Abercrombie & Fitch lhe explicou quando perguntou para que servia o machado de gelo. Que foi que ele respondeu?
– Como? – perguntou Langley novamente, algo confuso. – Ah, sim, disse que era usado em montanhismo. Pode-se usá-lo como bengala, apoiando-se a pessoa na cabeça do instrumento. O espigão na ponta do cabo penetra em neve dura ou no gelo, se a pessoa caminha por uma geleira, por exemplo. Disse que se pode conseguir o machado de gelo com diferentes extremidades na ponta do cabo – um espigão, como o que vi, ou com uma pequena roda, como um bastão de esqui, para neve fofa, e assim por diante. Perguntei-lhe se havia um machado de gelo mais curto, um que fosse usado com uma só mão, mas com a cabeça modelada da mesma maneira. Ele tornou-se muito vago. Não tinha certeza. Mas achava que havia e pensava que toda a peça talvez fosse feita de aço. Pense nisso, capitão! Um instrumento para ser usado com uma única mão, todo de aço, com um espigão que se curva para baixo e se afila em ponta à medida que se curva. O que o senhor acha?
– Excelente! – gritou alegre Delaney. – Simplesmente excelente! É agora uma arma familiar, usada em um homicídio anterior, e me sinto muito bem a respeito de tudo. Sr. Langley, o senhor lavrou um tento!
– Oh! – sorriu o velho – foi principalmente sorte. Verdade.
– O senhor fez a sua própria sorte – garantiu Delaney. – E a minha sorte. A nossa sorte. O senhor explorou-a até o fim. O vendedor informou onde se pode comprar um machado de gelo usado com uma única mão?
– Bem. . . não. Mas disse que há várias lojas em Nova York que se especializam em campismo e montanhismo – machados, machadinhas, grampos de segurança, mochilas especiais, cordas de nylon e coisas assim. Deve haver uma lista delas em alguma parte. Provavelmente nas Páginas Amarelas. Capitão, posso continuar no trabalho?
Delaney avançou dois rápidos passos e deu palmadinhas nos braços do homem.
– Se pode? – repetiu: – Se pode? Claro que pode! O senhor está se saindo admiravelmente bem. Tente descobrir esse machado de gelo que pode ser usado com uma única mão, todo de aço, quem os vende e quem os compra. Enquanto isso, vou mergulhar no assassinato de Trotsky e, se possível, conseguir uma foto da arma. E preciso de mais informações sobre montanhistas. Sr. Langley, estamos progredindo. Estamos realmente fazendo, agora! Eu lhe telefonarei ou o senhor me telefonará. O diabo que leve a segurança. Eu sinto, eu sei que estamos caminhando na direção certa. Instinto? Talvez. A lógica nada tem a ver com o caso. A situação simplesmente parece certa!
Conseguiu que Langley finalmente saísse, borbulhante de entusiasmo e planos sobre a maneira como pretendia localizar o machado. Delaney inclinou a cabeça, sorriu concordando com tudo até que pôde acompanhá-lo à porta da rua e voltar ao estúdio. Lembrou-se de que era tempo de comer alguma coisa. Mas estava excitado demais. Caminhou de um lado para o outro em frente à escrivaninha, com as mãos no bolso, o queixo enfiado no peito.
Agarrou o catálogo telefônico, procurou um número e discou para o jornal de Thomas Handry. A telefonista transferiu a ligação para a Seção de Notícias Urbanas, onde lhe disseram que Handry já fora para casa.
Pediu em vão o número particular do repórter.
– É número privado? – perguntou.
– Sim, é.
– Aqui fala o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York – disse com voz exageradamente solene. – A chamada é oficial. Posso conseguir o número do telefone de Handry na Telefônica, se insistir. Mas economizaria tempo se o fornecesse. Se quer checar se estou falando a verdade, ligue para seu repórter na Centre Street. Quem é ele... Slawson?
– Slawson faleceu no ano passado.
– Sinto muito saber disso. Ele era um bom repórter.
– Era mesmo. Um minuto, capitão.
A telefonista voltou e deu o número da residência de Handry. Delaney agradeceu, esperou alguns segundos, levantou o aparelho e discou. Nenhuma resposta. Esperou dez minutos, e tocou novamente. Nada.
Não havia quase nada no refrigerador: metade do presunto assado do almoço e um pouco de salada. Cortou duas grossas fatias de presunto e pedaços de tomate e pepino. Passou mostarda no presunto e molho de salada no resto. Comeu rapidamente, acompanhado de um pão dormido. Lançou vários olhares ao relógio enquanto comia, ansioso para voltar ao hospital.
Colocou o prato e os talheres na pia, lavou as mãos e voltou ao estúdio para telefonar novamente a Handry. Desta vez a ligação foi completada.
– Alô?
– Thomas Handry?
– Sim.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
– Oh, alô, capitão. Como vai?
– Bem, obrigado, e você?
– Ótimo. Ouvi dizer que está de licença.
– É verdade.
– Soube que sua senhora está doente. Sinto muito. Espero que esteja melhor.
– Está. Muito obrigado. Handry, preciso de um favor seu.
– O que, capitão?
– Em primeiro lugar, quero algumas informações sobre o assassinato de Trotsky, no México, em 1940. Pensei que você pudesse obtê-las no arquivo do jornal.
– Trotsky, México, 1940? Capitão, isso aconteceu antes que eu nascesse.
– Eu sei.
– O que deseja saber?
– Nada de difícil. Apenas o que foi divulgado pelos jornais da época. Como foi morto, quem o matou, a arma usada. Se existir uma fotografia da arma e se puder conseguir uma cópia fotostática será ótimo.
– Isso tudo diz respeito a quê?
– O segundo favor – continuou Delaney, ignorando a pergunta – é que gostaria de saber o nome e endereço do melhor montanhista de Nova York, o cobra, o mais experiente, ou o mais hábil. Talvez possa obter tais informações na seção de esportes.
– Provavelmente. Mas quer fazer o favor de me dizer que diabo está acontecendo?
– Pode tomar um drinque comigo amanhã? Digamos, às cinco da tarde?
– Bem... certo. Acho que sim.
– Pode conseguir as informações por essa hora?
– Tentarei.
– Ótimo. Eu lhe contarei tudo na ocasião. – Deu-lhe o endereço da churrascaria onde havia almoçado com o Dr. Ferguson. – Está combinado, Handry?
– Certo. Até amanhã.
Saindo apressado de casa, tomou um táxi. Dentro de quinze minutos chegou ao hospital. Ao abrir suavemente a porta do quarto, viu que a esposa dormia. Dirigiu-se na ponta dos pés à espreguiçadeira plástica e apagou o abajur. Sentou-se tão silenciosamente quanto pôde.
Permaneceu na mesma posição, quase sem mover-se, durante duas horas. Talvez tenha cochilado alguns minutos, mas durante a maior parte do tempo olhou fixamente para a esposa. Ela dormia calma e profundamente. Ninguém entrou no quarto. Ouviu sons mortiços no corredor. Continuou sentado, mas sua mente não era um vazio: girava, saltava, dava cambalhotas sem ordem ou conexão: os filhos, Handry, Langley, Broughton, a viúva Zimmerman, o machado de gelo, Thorsen e Johnson, uma carteira de habilitação de motorista – uma seqüência de pensamentos, rápidas passagens de um curta-metragem, quase se fundindo, aparecendo em foco forte, esmaecendo. . .
Ao fim de duas horas, rabiscou um bilhete na caderneta de notas, arrancou a página e colocou-a ao lado da cama da esposa: "Estive aqui. Onde estava você? Amor e violetas. Ted". Furtivamente, saiu do quarto.
Voltou a pé para casa, certo de que seria assaltado. Não foi. Dirigiu-se ao estúdio e reiniciou a leitura das histórias, e dos motivos e métodos dos assassinos de massa. Não havia um padrão.
Guardou os livros e apagou a luz do estúdio pouco depois de meia-noite. Percorreu o porão e o primeiro andar, checando janelas e fechaduras de portas. Subiu cansadamente depois para o segundo andar, tomou um banho de chuveiro quente e barbeou-se. Vestiu um pijama limpo. A imagem do seu corpo nu no espelho do banheiro pouco animava. Tudo nele – rosto, pescoço, tórax, abdômen, nádegas, coxas – parecia em decadência.
Deitou-se, apagou a lâmpada de cabeceira e ficou acordado durante quase uma hora, virando-se de um lado para o outro. Finalmente acendeu a luz, enfiou os pés em chinelos de lã, desceu novamente ao estúdio. Tirou a lista, a intitulada "Suspeitos". Sob a coluna de "Físicas" onde anotara "Atleta?", riscou e escreveu "Montanhista?". No final da página, sob "Notas Adicionais", escreveu: "Possui um machado de gelo?"
Não era muito, reconheceu. De fato, era até ridículo. Mas quando apagou a luz do estúdio e subiu mais uma vez para o quarto vazio e caiu na cama, pegou no sono quase instantaneamente.

2

– O senhor não me deu muito tempo – disse Thomas Handry, abrindo uma maleta 007. – Achei que se interessaria mais pelo assassinato em si do que pelo fundo político, de modo que a maior parte da matéria trata do crime.
– Pensou certo. – O Capitão Delaney inclinou a cabeça. – Por falar nisso, li seus artigos sobre o Departamento. Excelentes, para um leigo.
– Muitíssimo obrigado.
– Gostaria de escrever poesia, não?
Handry ficou fisicamente chocado. Recuou na cadeira do reservado que ocupavam e, boquiaberto, arrancou seus óculos de leitura tipo Benjamin Franklin.
– Como é que soube?
– Palavras e frases que usou. O ritmo. E você estava tentando descobrir como é que os "tiras" trabalham. Foi uma boa tentativa.
– Bem... ninguém pode viver fazendo só poesia.
– Sim. Isso é verdade.
Handry ficou encabulado. Olhou em volta para as paredes de painéis, as cadeiras forradas de couro, as velhas gravuras de teatro, amarelecidas e cobertas por uma camada de poeira.
– Gosto deste lugar – afirmou. – Nunca tinha vindo aqui. Acho que foi inaugurado no ano passado e que jogaram pó em cima de tudo. Mas fizeram um bom trabalho. Parece realmente antigo.
– E é – garantiu Delaney. – Mais de cem anos. Não é do tipo moderno. Que tal a cerveja?
– Ótima. Muito bem, vamos começar. – Tirou as notas da maleta e começou a ler rapidamente:
"Leon Trotsky. Da-dah da-dah da-dah. Um dos líderes da Revolução Russa e depois. Teórico. Stalin expulsou-o da Rússia, mas continuou a desconfiar dele. Trotsky, mesmo no exterior, poderia estar conspirando. Trotsky chega à Cidade do México: Desconfiado, naturalmente. Muito cauteloso. Mas não podia viver dentro de uma redoma. Conhece um tipo chamado Jacson. O nome aparece escrito de duas maneiras nas reportagens: J-a-c-s-o-n e J-a-c-k-s-o-n. Branco, homem. Visita Trotsky durante uns seis meses. Amigos. Trotsky, porém, nunca recebe ninguém a menos que estejam presentes seus secretários e guarda-costas. Vinte de agosto, mil novecentos e quarenta. Jacson visita Trotsky, trazendo um artigo que escrevera e que queria mostrar-lhe. Não pude descobrir sobre o quê. Provavelmente, político. Jacson é convidado a ir ao estúdio. Pela primeira vez, os secretários não são avisados. Jacson disse mais tarde que Trotsky iniciou a leitura. Sentava-se à escrivaninha, tendo Jacson à esquerda. Levava uma capa de chuva e, no bolso, um machado de gelo, um revólver, e uma adaga. Disse ele...
– Espere um minuto, espere um minuto – pediu Delaney. – Jacson escondeu o machado de gelo no bolso da capa? Impossível. Não caberia.
– Bem, um repórter disse que foi no bolso da capa. Outro, que estava escondido na capa.
– "Escondido". Isso é melhor.
– Muito bem, então Trotsky está lendo o artigo de Jacson. Jacson tira o machado de gelo de sob a capa, ou do bolso, e com ele atinge-o na cabeça. Trotsky grita e lança-se contra Jacson, mordendo-lhe a mão esquerda. Cambaleia para trás. Os secretários chegam correndo e agarram Jacson.
– Por que o revólver e a adaga?
– Jacson disse que pretendia usá-los para suicidar-se depois de ter assassinado Trotsky.
– Isso cheira mal. Trotsky morreu na ocasião, no estúdio?
– Não. Sobreviveu por umas vinte e quatro horas. Morreu depois.
– Alguma referência à direção do golpe?
– No alto da cabeça, tanto quanto posso deduzir. Trotsky estava sentado e Jacson de pé.
– O que aconteceu a ele?
– Jacson? Foi preso. Falhou uma tentativa de fuga, aparentemente organizada pela GPU. Era assim que se chamava a Polícia Secreta russa na ocasião. Não sei onde se encontra hoje, ou mesmo se está vivo. Lançaram um livro sobre Trotsky no ano passado. Quer que examine esse detalhe?
– Não. Não é importante. Outra cerveja?
– Sim, por favor. Estou ficando com sede com toda essa leitura. Esperaram em silêncio até chegar a cerveja. Delaney bebia uísque com água.
– Voltemos à arma – disse.
Handry consultou as notas.
– Não conseguiu localizar uma foto, mas a velhota que dirige nosso arquivo, e que se lembra de tudo, disse-me que uma revista publicou, na década de 50, um artigo sobre o assassinato e uma foto do machado de gelo usado. Assim, aparentemente, há uma foto em algum lugar.
– Mais alguma coisa?
– Foi o tipo de machado usado em montanhismo. Inicialmente, Jacson disse que o havia comprado na Suíça. Nessa altura, o depoimento fica confuso. A amante de Jacson revelou que não vira o machado em Paris ou Nova York, antes da viagem de ambos para o México. Em seguida, Jacson declarou que gostava de montanhismo e que comprara o machado no México e que o usara em escaladas – espere um minuto, tenho isso aqui, em alguma parte – quando escalava o Orizaba e o Popo, no México. Mais tarde, porém, descobriu-se que ele residira durante algum tempo em um acampamento no México e que o filho do proprietário era montanhista. Ele e Jacson conversaram numerosas vezes sobre o esporte. Esse rapaz possuía um machado de gelo, comprado quatro anos antes. No dia seguinte à agressão sofrida por Trotsky e à prisão de Jacson, o proprietário do acampamento andou procurando o machado do filho e apurou que desaparecera. Confuso, não?
– Sempre é – concordou Delaney. – Mas Jacson poderia ter comprado o machado na Suíça, em Paris, Nova York, ou poderia tê-lo roubado no México. Certo?
– Certo.
– Bem – suspirou Delaney. – Eu não sabia que se podia comprar a maldita coisa como se compra uma barra de chocolate. Jacson era realmente agente da GPU?
– Aparentemente, ninguém sabe com certeza. Mas o ex-chefe do Serviço Secreto da Polícia mexicana afirma que sim. Pelo menos, é o que diz em um livro que escreveu sobre o assunto.
– Tem certeza de que Jacson atingiu Trotsky apenas uma vez?
– Esse é o único ponto em que parece que todos concordam. Um único golpe. Precisa de mais alguma coisa?
– Não. Handry, você fez um trabalho excelente em um espaço de tempo muito curto.
– Claro. Sou competente. Reconheço. Agora, passemos ao melhor montanhista de Nova York. Há dois anos – ou dezoito meses, para sermos exatos – teria sido uma pergunta fácil de responder. Calvin Case, de trinta e um anos de idade, casado, internacionalmente reconhecido como um dos mais hábeis, mais bravos e mais ousados alpinistas do mundo. No princípio do ano passado, era o último homem na linha de um grupo de quatro que subia o paredão norte do Eiger. Supõe-se que é a escalada mais difícil do mundo. O cara com quem falei na seção de esportes diz que o Everest é uma questão de pura tecnologia, mas que o paredão norte do Eiger requer pura coragem. Fica na Suíça, no caso de querer saber onde se situa, e é praticamente vertical. De qualquer maneira, Calvin Case era o cerra-fila do grupo na linha. Escorregou, uma projeção rochosa desfez-se em pedaços, ou soltou-se um grampo de segurança. Meu informante não se lembra dos detalhes. Mas lembra-se que Case ficou pendurado no ar, e que, finalmente, ele mesmo cortou o cabo e caiu.
– Jesus!
– Exato. Incrível como pareça, não morreu, mas teve a espinha esmagada. Agora é paralítico da cintura para baixo. Passa a vida na cama. Não pode controlar a bexiga ou os intestinos. Meu informante diz que vive na base do álcool. Não concede entrevistas. E recebeu algumas boas ofertas para escrever livros.
– Como é que ele vive?
– A mulher trabalha. Não têm filhos. Acho que vai levando a vida. De qualquer maneira, consegui o nome do outro cara ainda em atividade. No momento, encontra-se no Nepal preparando-se para alguma escalada. Quem é que o senhor prefere?
– Tenho acaso escolha? Aceito esse Calvin Case. Tem o endereço dele?
– Claro. Achei que ia querê-lo. Tomei nota. Aqui está.
Entregou a Delaney um pedaço de papel. O capitão lançou-lhe um breve olhar.
– Greenwich Village. — Baixou a cabeça. — Conheço bem o lugar. Um cara me deu um tiro de um telhado nessa rua há alguns anos. Foi a primeira vez que tentaram me balear.
– Acertou? – perguntou Handry.
– Não – sorriu Delaney. – Mas eu o acertei.
– Acertou-o?
– Acertei.
– Matou-o?
– Matei. Outra cerveja?
– Bem. . . muito bem. Mais uma. Vai tomar outro drinque?
– Claro.
– Mas quero ir ao banheiro antes. Meus molares estão flutuando.
Ao voltar, Handry deslizou para dentro do reservado e perguntou:
– Como soube que eu gostaria de dedicar-me à poesia?
Delaney encolheu os ombros.
– Eu lhe disse. Apenas um palpite. Não fique tão embaraçado a esse respeito. Afinal de contas, não é nada vergonhoso.
– Eu sei – replicou Handry, olhando para a mesa e dando volta ao copo. – Mas, mesmo assim. . . Muito bem, capitão, agora fala o senhor. Que diabo está acontecendo?
– Que diabo pensa que é?
– O senhor me pede um relatório sobre Trotsky, morto por um machado de gelo. Uma ferramenta de montanhista. Pergunta-me o nome do melhor montanhista de Nova York. É algo que diz respeito a montanhismo, evidentemente. O machado de gelo é a principal coisa. O que é?
Delaney, sabendo que a pergunta lhe seria feita, pensara com cuidado nas respostas. Preparara três possíveis, de franqueza crescente, ainda incerto sobre até que ponto podia confiar no repórter. Mas uma vez que Handry estabelecera a conexão Trotsky-machado de gelo-montanhista, partiu diretamente para a segunda.
– Não estou em serviço ativo – reconheceu. – Mas Frank Lombard foi assassinado em minha jurisdição. Você talvez ache tolice, mas considero o crime responsabilidade minha. A 251ª Delegacia é o meu lar. Assim, estou realizando o que poderia chamar de uma investigação extra-oficial. A Operação Lombard encarrega-se da oficial. Tenho certeza de que sabe disso. Tudo o que eu fizer, tudo que lhe pedir para fazer, é estranho ao Departamento. A partir da data da concessão de minha licença, não tenho posição oficial. O que fizer por mim será um favor pessoal.
Thomas Handry encarou-o durante longo momento. Encheu o copo de cerveja até a borda e bebeu-o pela metade. Pôs o copo na mesa, cobrindo-se de espuma branca seu lábio superior.
– O senhor é um safado. – informou ao Capitão Edward X. Delaney.
– Sou mesmo – concordou Delaney. – É verdade. Acho que Lombard foi assassinado com um machado de gelo. Foi por isso que lhe pedi informações sobre Trotsky e montanhistas. Isso é tudo que tenho. Pedi-lhe que verificasse porque confio em você. Tudo que lhe posso prometer é preferência na publicação da reportagem... se houver.
– O senhor tem assessoria?
– Assessoria? Não, não tenho. Conto com algumas pessoas que me ajudam, mas não fazem parte do Departamento.
– Conseguirei a reportagem? Com exclusividade?
– Conseguirá. Se houver reportagem.
– Eu poderia publicar agora mesmo uma delas. Capitão da Polícia, de licença, investiga, extra-oficialmente, um assassinato em sua antiga jurisdição. Acordeões e violinos. "Eu quero vingança", declara o Capitão Edward X. Delaney. É isso o que o senhor quer?
– Não. E o que é que você quer?
– Entrar na dança. Certo, capitão? Apenas saber o que está acontecendo. Pode usar-me tanto quanto quiser. Topo. Mas quero saber o que é que o senhor pretende.
– Talvez nada.
– Certo, nada. Aceito o jogo. Feito?
– Não publicará coisa alguma sem minha autorização?
– Não.
– Confio em você, Handry.
– O diabo que confia. Mas não tem alternativa.

3

Foi um sonho vago. Seguia um homem por uma rua nevoenta. Não um homem, na realidade, mas algo que ali havia, na escuridão dourada. Como na noite em que Frank Lombard fora assassinado: luz alaranjada e garoa.
A figura permanecia à frente, imprecisa, não importava com que rapidez caminhasse para identificar aquilo que perseguia. Nunca se aproximou o suficiente. Não sentiu nem medo nem pânico; apenas uma necessidade, uma ânsia pela sombra que se movia entre sombras.
Ouviu um toque, não a sereia de uma radiopatrulha nem o grasnado de um carro de bombeiros, mas o gemido de uma ambulância, aproximando-se mais, mais alto. Emergiu lentamente do sono e procurou às cegas o telefone.
Antes de poder dar o nome, reconheceu a voz de Dorfman.
– Capitão?
– Ele mesmo.
– Dorfman. Houve uma agressão na East Eighty-fourth. Mais ou menos a meio caminho entre a First e a Second. Parece coisa como no caso Lombard. Um homem, provisoriamente identificado como Bernard Gilbert. Não morreu. Espera-se a ambulância a qualquer momento. Estou indo para lá.
– Telefonou para o Chefe Pauley?
– Telefonei.
– Ótimo.
– Quer encontrar-se comigo no local do crime?
– Não. Você pode lidar com o caso. Siga o regulamento. Para onde vão levá-lo?
– Para o Mother of Mercy.
– Obrigado por ter telefonado, tenente.
– Não há de quê.
Acendeu a luz, enfiou os pés nos chinelos, e vestiu um robe. Desceu até o estúdio, acendendo interruptores de parede até finalmente ligar o abajur da escrivaninha. Achando a casa úmida e fria, vestiu o sobretudo sobre o robe. Consultou o folhinha de mesa: 22 dias desde a morte de Frank Lombard. Tomou nota do fato em uma folha de papel, e telefonou para o serviço de resposta do Subinspetor Thorsen. Deixou nome e número.
Thorsen chamou-o em questão de minutos, mas não zangado.
– O que é, Edward?
– Estou telefonando de casa, mas é importante. Houve uma agressão do tipo Lombard na dois-cinco-um. Homem, provisoriamente identificado como Bernard Gilbert. Está vivo ainda. Vão levá-lo para o hospital. Isso foi tudo o que soube.
– Jesus! – exclamou baixinho Thorsen. – Parece que você tinha razão.
– Não há consolo nisso. Não posso ir até lá?
– Não. Isso não seria prudente. Tem certeza de que é crime do tipo Lombard?
– Contei-lhe tudo o que soube.
– Muito bem, supondo que seja, o que fará Broughton?
– Se o ferimento for semelhante ao que matou Lombard, Pauley procurará estabelecer uma ligação entre Lombard e esse Bernard Gilbert. Se não puder, e não duvido que possa, a menos que seja pura coincidência, compreenderá que ambos são vítimas casuais e que tem pela frente um maníaco. Fará uma verificação em todos os asilos de alienados em uma área de cinco Estados. Mandará seus homens conversarem com médicos particulares, psiquiatras, e doentes mentais que tiveram alta recente. Cobrirá com interrogatórios todas as pessoas pertinentes na cidade. Fará o que tem de fazer.
– Acha que dará certo?
– Não. Broughton tem à sua disposição quinhentos detetives. Suponhamos que cada detetive disponha de um mínimo de três ou quatro contatos em seu serviço pessoal de informação. Isso significa cerca de dois mil informantes em toda a cidade, e eles contarão uma série de histórias malucas. Se há um maníaco à solta na cidade — um louco com ficha médica — alguém saberá alguma coisa a respeito, ou notará alguma coisa estranha ou ainda terá ouvido alguma conversa. O nosso homem é novo. Provavelmente, sem registro. Com toda probabilidade, de aparência normal. Já o tenho em minha lista como de boa aparência, possivelmente bem vestido.
– Que lista?
Delaney ficou silencioso durante um momento, amaldiçoando o lapso cometido. Aquela lista era sua.
– Uma lista estúpida que fiz de coisas que desconfio a respeito desse cara. Tudo muito vago. Eu não sei de coisa alguma.
Dessa vez foi Thorsen quem caiu no silêncio durante algum tempo. Em seguida...
– Acho que talvez seja melhor que você, Johnson e eu tenhamos um encontro.
– Muito bem – aquiesceu sombrio Delaney.
– E traga sua lista.
– Pode esperar até que eu leia os relatórios sobre a agressão a Bernard Gilbert?
– Certo. Posso fazer alguma coisa?
– Tem algum homem seu no local... ou envolvido na investigação?
– Bem... – Thorsen mostrou-se cauteloso: – Talvez.
– Se tem, duas perguntas... Falta alguma coisa na carteira da vítima? Em especial, algum tipo de identificação? E, em segundo, usa ele – ou usava – óleo para cabelo de algum tipo?
– Óleo para cabelo? 0 que diabo quer você dizer com isso?
Delaney olhou carrancudo para o telefone.
– Não sei. Honestamente, não sei. Com toda probabilidade, isso não tem importância. Mas pode verificar?
– Tentarei. Mais alguma coisa?
– Uma só. Se esse Bernard Gilbert morrer, e for provado que o crime se assemelha ao de Lombard, os jornais vão saber e, assim você precisa estar preparado para um "Maníaco Assassino à Solta", esse tipo de coisa. Vai ser apavorante.
– Oh, Deus! Acho que vai sim!
– A maior pressão será aplicada sobre Broughton.
– E sobre o comissário.
– Ele também, claro. Mas afetará principalmente o chefe Pauley. Ele receberá, sem dúvida alguma, centenas de pistas falsas ou falsas confissões. Todas terão de ser checadas. E há uma boa possibilidade de que ocorram agressões e homicídios parecidos em outras partes da cidade. Isso em geral acontece. Mas não se deixe assustar por eles.
Conversou um pouco mais com o Subinspetor Thorsen. Concordaram em que desde que Dorfman ficara responsável pelo expediente da 251ª Delegacia, e desde que Thorsen era o chefe de pessoal da Divisão de Patrulha, parecia de todo lógico e compreensível que fosse ao local do crime, ostensivamente para ver como Dorfman se desincumbia do problema. Thorsen prometeu-lhe telefonar logo que possível e, em pessoa, tentaria checar a questão da falta de identificação na carteira de Bernard Gilbert e se a vítima usava ou não óleo para cabelo.
No momento em que ele desligou, Delaney discou para a casa do Dr. Sanford Ferguson. O relógio aproximava-se de duas da manhã, mas encontrou o médico acordado e alegre.
– Edward! – cumprimentou-o. – Como vai? Acabo de chegar, e venho do exame local de uma saborosa jovem senhorita. Não podia ter mais de vinte e seis ou vinte e sete anos. Oh, tão linda!
– Morta?
– Oh, tão morta. Tudo indica parada cardíaca. Mas não lhe parece estranho, Edward? Uma pequena tão deliciosa com um coração defeituoso?
– Casada?
– Não na justiça.
– O namorado é médico ou estudante de medicina?
Caiu um breve silêncio.
– Seu calhorda – disse por fim Ferguson – você me apavora, sabe? No caso de estar interessado, o namorado dela é farmacêutico.
– Belo – opinou Delaney. – Bem, com toda probabilidade, ele conheceu uma pequena mais saborosa e mais jovem. Mas, doutor, liguei porque... Houve um agressão na 251ª. Esta noite. Os relatórios preliminares indicam que o ferimento e a arma usada assemelham-se ao caso Lombard. A vítima, neste caso ainda viva, é um homem chamado Bernard Gilbert. Foi levado, ou será, para o Mother of Mercy.
– Deus do céu!
– Gostaria de saber se foi designado para esse caso.
– Não, não fui.
– Será que o senhor poderia telefonar para os médicos encarregados do caso e tentar saber se é realmente uma penetração do tipo Lombard, se ele sobreviverá ou não, e – o senhor sabe – tudo mais que lhe disserem?
Mais uma vez, silêncio. Então...
– Sabe, Edward, você pede um bocado por um único e miserável almoço.
– Eu lhe pagarei outro miserável almoço.
Ferguson riu.
– Você trata todo mundo de modo diferente, não?
– Não fazemos todos nós a mesma coisa?
– Acho que sim. E quer que lhe telefone, transmitindo tudo o que conseguir saber?
– Se puder. Por favor. Além disso, doutor, se esse homem morrer, haverá autópsia?
– Naturalmente. Em todos os casos de vítimas de homicídio. Ou de suspeita.
– Com ou sem o consentimento do parente mais próximo?
– Exato.
– Se esse homem morrer, esse Bernard Gilbert, poderia o senhor fazer a autópsia?
– Não sou o Legista-Chefe, Edward. Sou apenas um dos seus escravos.
– Mas poderia conseguir isso?
– Talvez.
– Gostaria que pudesse. Se ele morrer.
– Muito bem, Edward. Tentarei.
– Mais uma coisa...
A gargalhada de Ferguson quase lhe despedaçou o tímpano. Delaney manteve o fone no ar até acabarem as explosões de riso do médico.
– Edward – confessou Ferguson – eu amo você. Amo, de verdade. Com você, é sempre "Quero duas coisas" ou "Gostaria de três coisas". Mas sempre diz, "Oh, apenas mais uma coisa". Você é grande. Muito bem. Qual é essa "mais uma coisa"?
– Se por acaso conversar com um médico ou cirurgião do hospital, ou se por acaso fizer a autópsia, descubra se a vítima usa óleo para cabelo.
– Óleo para cabelo? – perguntou Ferguson. – óleo para cabelo! – exclamou. – Jesus Cristo, Edward, você não esquece nada, não é?
– Às vezes – reconheceu Delaney.
– Nada importante, aposto. Muito bem. Procurarei não esquecer o óleo para cabelo se fizer o retalhamento. Certamente não irei incomodar os médicos na sala de emergência do hospital com uma coisa dessas, no momento.
– É suficiente. Telefonará depois?
– Se descobrir alguma coisa, Se não telefonar, é sinal de que nada consegui.
Delaney abandonou a idéia de voltar a dormir e foi à cozinha ferver água para o café solúvel. Enquanto a água fervia, voltou ao estúdio e, de um armário no canto, tirou um quadro de boletins de 75 cm por 1 m, no qual havia preso com percevejos um mapa urbano, em preto e branco, da jurisdição da 251ª Delegacia. Cobria-o uma aba transparente de plástico, que podia ser limpa sem dificuldade. No passado, quando em serviço ativo, Delaney o usara para mapear localizações de crimes de rua, arrombamentos, agressões com tentativas de roubo etc. O mapa reproduzia, em miniatura, o outro maior, que pendia da parede do gabinete do delegado.
Limpou a capa plástica com um guardanapo de papel, voltou à cozinha, preparou o café, trouxe-o ao estúdio e sentou-se à escrivaninha, com o mapa â frente. Fez a ponta de um lápis vermelho e, com cuidado, marcou dois grossos pontos: na East 73rd Street, onde fora assassinado Lombard, e na East 84th Street, cena da agressão a Gilbert. Ao lado de cada ponto, escreveu o sobrenome da vítima e a data do ataque.
Dois pontos vermelhos, reconheceu, dificilmente constituíam um padrão ou mesmo uma onda. Mas à vista da própria experiência e de leituras de relatórios de assassinatos de massa, convencera-se de que os assaltos adicionais seriam confinados a uma área limitada, com toda probabilidade a da 251a Delegacia, e que o assaltante era, provavelmente, residente na área. (Provavelmente! Provavelmente! Tudo se resumia em provavelmentes.) O êxito do assassino no caso Lombard, com toda certeza, lhe insuflaria confiança no território caseiro.
Recostou-se na cadeira e olhou fixamente para os pontos vermelhos. Deu ao Chefe Pauley cerca de três dias para reconhecer que não havia conexão entre as vítimas. Pauley, em vista disso, optaria por um assassino psicopata e faria tudo aquilo que Delaney mencionara ao Subinspetor Thorsen.
Além disso, pensava Delaney, Pauley, sem divulgação ou publicidade, colocaria nas ruas sob a jurisdição da 251ª Delegacia de 10 a 20 chamarizes, de dez da noite até o amanhecer. Em trajes civis, com jornais dobrados sob o braço, os detetives percorreriam rapidamente uma rua e desceriam outra, como supostos residentes correndo para casa na escuridão, mas, na verdade, cortejando um assalto. Era isso o que ele, Delaney, teria feito. Tinha certeza, conhecendo o rigor com que trabalhava Pauley, que ele faria o mesmo. Poderia dar certo. Ou talvez servisse apenas para afugentar o assassino para mais longe, se ele reconhecesse a natureza dos chamarizes. Mas tomavam-se riscos e nutriam-se esperanças. Era preciso fazer alguma coisa.
Continuou a olhar para os pontos vermelhos na capa do mapa, bebericando o café e tentando computar percentagens e probabilidades, quando tocou o telefone da mesa. Arrancou-o do gancho após um único toque.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
– Thorsen. Estou falando de um bar na Second Avenue. Já tinham levado Gilbert para o hospital quando cheguei. Broughton e Pauley foram com ele, na esperança de que recupere a consciência e diga alguma coisa.
– Claro.
– A carteira de Gilbert estava na calçada, perto dele, como no caso de Lombard. Há alguém na casa dele agora procurando descobrir se alguma coisa está faltando.
– Havia dinheiro na carteira?
– Dorfman disse-me que sim. Acha que uns cinqüenta dólares.
– Sem serem tocados?
– Tudo indica.
– Como está-se saindo Dorfman?
– Muito bem.
– Ótimo.
– Ele está um pouco nervoso.
– Algum prognóstico se Gilbert escapará?
– Nada a esse respeito. É um homem baixo, de um metro e sessenta e dois ou sessenta e quatro. Foi atingido de frente. A penetração ocorreu alta, sobre o crânio, mais ou menos a uns dois centímetros e meio acima de onde ficaria o início do cabelo na testa.
– Ficaria?
– Gilbert é quase inteiramente calvo. Dorfman disse-me que tem apenas uma franja de cabelo ralo e grisalho em torno do couro cabeludo, acima das orelhas. Mas não na frente. Usava chapéu e, assim, suponho que parte do material do chapéu foi impelida para dentro do ferimento. Edward, não gosto desse tipo de trabalho. Vi sangue e matéria cerebral no lugar onde ele caiu. Quero voltar para meu trabalho burocrático.
– Neste caso, não sabe se ele usava ou não óleo para cabelo?
– Não, nada. Sou um detetive de quinta classe, reconheço.
– Você fez o que podia. Por que não vai para casa dormir?
– Isso mesmo, vou tentar. Precisa de mais alguma coisa?
– Cópias dos relatórios da Operação Lombard, logo que possível.
– Vou aplicar pressão. Edward...
– Sim?
– Quando vi aquela poça de sangue na calçada, tive a impressão...
– De quê?
– Que esse negócio com Broughton é secundário. Compreendeu?
– Compreendi – respondeu suavemente Delaney. – Sei no que você está pensando.
– Precisa prender esse cara, Edward!
– Eu o farei.
– Tem certeza?
– Tenho.
– Ótimo. Vou para casa ver se durmo um pouco.
– Muito bem. Faça isso.
Após desligar, Delaney tirou a lista, "O Suspeito", da gaveta superior da mesa e releu-a, item por item. Nenhuma das anotações fora desmentida pelo que lhe dissera Thorsen. Pelo contrário, a suposição saíra fortalecida. Por certo, um golpe no cocuruto do crânio de um homem baixo indicaria um atacante de alta estatura. Mas por que de frente quando o ataque contra Lombard tivera tal sucesso? E não poderia ter Gilbert visto o golpe em andamento e erguido o braço para desviá-lo? Um enigma.
Estava quase a ponto de desistir naquela noite e tentar dormir algumas horas antes do amanhecer quando o telefone tocou. Estendeu a mão, perguntando-se quanto de sua vida fora gasto com aquela maldita coisa preta, pressionando-lhe, sebenta, a orelha.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
– Ferguson. Estou cansado. Com sono. Irritado. Portanto, vou acabar logo com o que tenho a dizer. E não me interrompa.
– Não interromperei.
– Acaba de interromper. Bernard Gilbert. Homem, branco. Mais ou menos quarenta anos de idade. Um metro e sessenta e dois ou sessenta e quatro. Mais ou menos 70 quilos. Em torno disso. Omitirei o jargão médico. Definitivamente, um ferimento do tipo Lombard. Atacado de frente. A penetração ocorreu a cinco centímetros da linha onde começaria o cabelo. Mas o homem é totalmente calvo. Isso responde à sua pergunta sobre óleo para cabelo.
– O diabo que responde. Simplesmente torna a questão mais complicada.
– Eu ignorarei isso. Matéria estranha no ferimento proveniente do chapéu de feltro que usava. Penetração de dez a doze e meio centímetros. Curvando-se para baixo. Está em coma profunda. Prognóstico: negativo. Alguma pergunta?
– Quanto tempo acham os médicos que ele dura?
– A partir de agora, uma semana mais ou menos. O coração dele não é muito forte.
– Recobrará a consciência?
– Duvidoso.
Delaney podia notar que a paciência de Ferguson chegava ao fim.
– Obrigado, doutor. O senhor me deu uma grande ajuda.
– Disponha – assegurou-lhe Ferguson. – A qualquer duas horas da manhã em que queira telefonar.
– Oh, espere um momento – pediu Delaney.
– Eu sabia – suspirou Ferguson. – Mais alguma coisa.
– Não se esqueça da autópsia.
Ferguson começou a praguejar, pragas de baixo calão – e Delaney desligou suavemente o telefone, sorrindo. Caiu na cama em seguida, mas não dormiu.
Todos os casos difíceis atingiam esse ponto de complexidade: arma, método, motivos, suspeitos, álibis, oportunidade. E precisava fazer prestidigitação com todos eles, apanhando-os, lançando-os no ar, observando-os durante todos os segundos, relaxado e risonho.
Segundo sua experiência, quando se chegava a tal ponto em uma investigação difícil e complicada, no momento em que o investigador se perguntava se podia conservar na mão todos os fios, nesse ponto, no momento da mais total confusão, se pudesse agüentar e absorver um pouco mais, algo no bloqueio se soltava, e via as coisas começarem a correr livres.
Naquele momento, era uma entaladela e todas as peças estavam presas umas nas outras e tortas. Mas começou a entrever peças importantes, peças que começavam a soltar-se. Em seguida, todas elas correriam. Bem, isso não o preocupava. Podia aceitá-las, e mais ainda. Empilhá-las! Não havia muita coisa que um homem fizesse que outro não pudesse desfazer. Era uma crença estúpida e arrogante, reconhecia. Mas, se não acreditasse nisso, deveria, na verdade, procurar outra profissão.

4

Quatro dias depois, morria Bernard Gilbert sem haver recuperado a consciência. A essa altura, o Chefe Pauley já se convencera de que não havia a menor ligação entre Lombard e Gilbert, exceto a natureza da agressão, e tomara todas as providências previstas por Delaney: verificação de fugas recentes de asilos de alienados, investigação de doentes com alta recente, interrogatórios de criminosos com histórias de instabilidade mental, e a colocação de chamarizes na jurisdição da 251ª Delegacia.
Delaney informou-se de todos esses detalhes através de cópias dos relatórios da Operação Lombard fornecidas pelo Subinspetor Thorsen. Mais uma vez os relatórios chegaram longos e numerosos. Estudou-os com cuidado, lendo-os várias vezes. Descobriu detalhes da vida de Bernard Gilbert. Soube que a esposa da vítima, Mônica Gilbert, declarara acreditar que a única peça que faltava na carteira do marido era um cartão de identificação.
A firma de contabilidade para a qual trabalhava fazia a auditoria de uma indústria de Long Island empenhada em trabalhos secretos para o governo dos Estados Unidos. Para poder entrar nos terrenos da indústria, Bernard Gilbert tinha de apresentar um cartão especial de identificação com fotografia. Era esse o cartão que faltava. O FBI fora alertado pelo Chefe Pauley, mas, tanto quanto Delaney podia deduzir, o organismo federal não tomava, no momento, parte ativa na investigação.
Em longo memorando ao Vice-Comissário Broughton, o Chefe Pauley especulava sobre o tipo de arma usada nos ataques a Lombard e Gilbert. Era mencionada "uma espécie de machado ou picareta" e Delaney teve certeza de que Pauley não estava muito atrás dele.
Por essa altura, os meios de divulgação ainda não ligavam um caso ao outro. De fato, o ataque a Gilbert só mereceu algumas linhas nas páginas internas. Mais outro crime de rua. Delaney pensou por um momento se devia ou não dar um aviso a Thomas Handry, mas pensou melhor. Ele saberia antes de muito tempo. Entrementes, Pauley ficaria livre das pressões de manchetes berrantes, de telefonemas de malucos, de falsas confissões e crimes semelhantes.
A sincronização das suas próprias atividades preocupava o Capitão Delaney. Queria manter-se a par da inundação de relatórios sobre a Operação Lombard. Desejava intensamente interrogar a Sra. Mônica Gilbert. Necessitava visitar Calvin Case, o montanhista acidentado, e descobrir o que pudesse sobre os machados de gelo. Queria controlar o progresso de Christopher Langley sem lhe dar a impressão de que ele, Delaney, dependia dele. E, naturalmente, as duas visitas diárias a Bárbara no hospital. Isso vinha em primeiro lugar.
Dois dias depois do ataque a Gilbert, enquanto a vítima flutuava em alguma desconhecida dimensão, entre a vida e a morte, mas respirando ainda, Delaney pensou durante muito tempo sobre a maneira de abordar Mônica Gilbert. Sem dúvida, ela passava numerosas horas à cabeceira do marido. E era certo que estaria sendo vigiada pelos detetives da Operação Lombard, com toda probabilidade uma dupla na rua, embora pudesse ser destacado um outro para o interior do apartamento.
Formulou e rejeitou vários planos complicados de um encontro clandestino com ela, sem ser observado pelos homens da Operação Lombard. Todos lhe pareceram tortuosos demais. Resolveu que a melhor solução seria a óbvia: pediria uma entrevista, daria seu nome e, em seguida, iria diretamente à porta da viúva. Se fosse detido ou reconhecido pelos detetives de Pauley, usaria a mesma justificativa que preparara quando fora interrogar a viúva de Frank Lombard: como ex-responsável pela 251a Delegacia, viera manifestar-lhe sua solidariedade.
O plano funcionou – até certo ponto. Telefonou, identificou-se, marcou uma entrevista em casa dela, às quatro da tarde, quando voltasse do hospital. Achou provável que ela repetisse a conversa com o detetive que a estivesse protegendo, como devia ter sido instruída a fazer. Ou talvez seu telefone estivesse sendo censurado. Tudo era possível. Ao dirigir-se a pé até lá, poucos minutos antes das quatro, um dos detetives sentados em um carro policial sem marcas, estacionado do lado de fora da casa de pedra cinzenta, baixou a janela, acenou e gritou, "Ei, capitão". Não ficou surpreso. Acenou em resposta, embora não o houvesse reconhecido.
Mônica Gilbert, mulher forte, bonitona, de vasta cabeleira, usava um desajeitado vestido preto que não lhe escondia muito bem os seios opulentos, os quadris largos, e as coxas grossas. Estivera fazendo um bule de chá, que Delaney aceitou satisfeito. Duas garotinhas espiavam por trás das saias da mãe. Foram-lhe apresentadas como Mary e Sylvia. Delaney levantou-se para cumprimentá-las gravemente. Elas saíram correndo da sala, aos risinhos. Não viu sinais de guarda no interior da casa.
– Açúcar? – perguntou ela. – Leite?
– Obrigado, não. Puro. Como está seu marido?
– Nenhuma alteração. Ainda em coma. Os médicos não têm muita esperança.
Disse tudo isso em um tom monótono, sem expressão, sem pestanejar, fitando-o diretamente. Admirou-lhe o controle, sabendo o que aquilo custava.
O cabelo abundante, um pouco oleoso, estava arrumado para trás a partir da testa larga e macia e descia quase até os ombros. Os grandes olhos pareciam ser azuis-cinzentos e eram seu melhor atrativo. Nariz comprido, embora proporcional. Tudo nela era grande. Não só grande como afirmativo. Não usava maquilagem e ele não viu sinais de depilação das grossas sobrancelhas. Era, concluiu ele, uma mulher completa, mas instintivamente teve certeza de que reagira bem à fala mansa e às maneiras gentis.
– Sra. Gilbert – começou em voz baixa, inclinando-se para ela. – Sei que deve ter passado muitas horas com a Polícia desde o ataque ao seu marido. Esta visita não é oficial. Não estou no serviço ativo. Estou de licença. Mas fui delegado desta jurisdição durante muitos anos e gostaria de expressar-lhe meu pesar.
– Muito obrigada – respondeu ela. – É muita bondade sua. Tenho certeza de que tudo está sendo feito. . .
– Garanto-lhe que sim – retrucou sério Delaney. – Grande número de policiais está trabalhando neste caso.
– Conseguirão prender o responsável por aquilo?
– Conseguirão. – Delaney inclinou a cabeça. – Conseguirão. Posso prometer-lhe isso.
Durante um momento, ela encarou-o de modo estranho.
– O senhor está envolvido na investigação?
– Não, diretamente, não. Mas aconteceu em minha jurisdição. O que era minha jurisdição.
– Por que está de licença?
– Minha esposa encontra-se doente.
– Sinto muito. O senhor mora por aqui?
– Exatamente na casa contígua à delegacia.
– Bem, neste caso sabe como são as coisas por aqui – roubos, assaltos e ninguém pode sair à noite.
– Eu sei – respondeu ele. – Acredite-me, sei e deploro isso mais do que a senhora.
– Meu marido nunca fez mal a ninguém – explodiu.
Delaney teve medo de que ela chorasse, mas não o fez.
– Sra. Gilbert, ficaria muito perturbada em falar a respeito de seu marido?
– Naturalmente que não. O que o senhor deseja saber?
– Que tipo de homem é ele? Não quanto ao trabalho ou formação. Sei de tudo a esse respeito. Apenas o homem em si.
– Bernie? O melhor e mais bondoso homem que jamais viveu. Não faria mal a uma mosca. Trabalhava muito por minha causa e das meninas. Sei que é tudo em que pensa.
– Claro, claro.
– Olhe este apartamento. Parece que somos ricos?
Obedientemente, Delaney olhou em volta. Apartamento modesto: linóleo no chão, mobília barata, cortinas de papel. Mas limpo e com alguns toques: um bom aparelho de alta-fidelidade, uma pintura abstracionista original onde havia cor e inspiração, e uma pequena escultura primitiva de madeira, transmitindo uma mensagem.
– Confortável – murmurou.
– Um paraíso – disse ela, categórica. – Comparando com o que Bernie e eu tínhamos. Não é direito, capitão. Simplesmente não é direito.
Ele baixou a cabeça, sem saber o que dizer para consolá-la. Nada havia a dizer. Prosseguiu, portanto, na missão que o levara até ali, falando ainda em voz pausada, suave, esperando tranqüilizá-la.
– Sra. Gilbert – perguntou, lembrando-se do comentário de Ferguson sobre o coração da vítima – seu marido era um homem ativo? – Dando-se conta de que usara o tempo passado, mudou imediatamente para o presente, esperando que ela não houvesse notado. A focalização dos olhos dela, porém, mudou. Compreendeu que havia notado e amaldiçoou-se. – Quero dizer, ele é fisicamente ativo? Faz exercícios? Toma parte em jogos?
Fitou-o sem responder. Inclinou-se para a frente e serviu-lhe outra xícara de chá. O vestido preto deixava-lhe nus os braços. Delaney admirou o jogo dos músculos e a textura da pele.
– Capitão – respondeu por fim – para um homem que não está envolvido na investigação o senhor faz muitas perguntas.
Compreendeu como ela era inteligente. Podia tentar mentir-lhe, mas convenceu-se de que ela descobriria.
– Sra. Gilbert, a senhora realmente se preocupa em saber quantos homens estão trabalhando neste caso, quem são, ou quais são os seus motivos? O principal é capturar o bandido que cometeu o crime. Não é verdade? Bem, juro-lhe que quero encontrar, mais do que a senhora, o homem que atacou seu marido.
– Não! – exclamou ela. – Mais do que eu, não. – Seus olhos brilhavam naquele instante e o corpo estava rígido. – Quero que seja preso e castigado o homem que fez aquilo!
Delaney ficou atônito com a fúria da mulher. Julgara-a controlada, mesmo fleumática. Mas naquele momento ela tremia, fremente.
– O que a senhora quer? Vingança?
Pousou nele os olhos em chamas.
– Sim! É exatamente isso o que eu quero. Vingança! Se responder às suas perguntas, o senhor me ajudará a consegui-la?
– Penso que sim.
– Não é suficiente, capitão.
– Sim, se a senhora responder às minhas perguntas. Elas ajudarão a encontrar o homem que fez aquilo com seu marido.
"Seu marido" eram as palavras decisivas, como havia esperado que fossem. Ela começou a falar.
O marido era fisicamente fraco. Tinha um sopro no coração, artrite no pulso esquerdo, dores intermitentes nos rins, embora exames e raios X nada indicassem. Olhos fracos e ataques periódicos de conjuntivite. Não fazia exercícios nem tomava parte em jogos. Levava uma vida sedentária.
Mas trabalhava muito, acrescentou em tom feroz. Trabalhava tanto!
Delaney inclinou a cabeça. Conseguira, naquele instante, um esclarecimento do detalhe que o vinha incomodando: por que não havia Bernard Gilbert reagido ao ataque frontal, se esquivado ou desviado o golpe? Parecia óbvio naquele momento: musculatura medíocre, reações físicas lentas, o cansaço profundo de um homem que trabalhava acima da capacidade física. Que oportunidade teria contra um '"psicopata forte, jovem, frio, dotado de boa coordenação muscular"?
– Muito obrigado, Sra. Gilbert – disse suavemente o Capitão Delaney. Terminou o chá e ergueu-se. – Aprecio muito ter-me recebido e manifesto-lhe minha esperança de que seu marido tenha uma breve melhora.
– Sabe alguma coisa a respeito do estado dele?
Desta vez ele mentiu.
– Tenho certeza de que a senhora sabe mais do que eu. Tudo que sei é que está gravemente ferido.
Ela inclinou a cabeça, sem olhá-lo. Compreendeu que ela já sabia.
Acompanhou-o até a porta. As duas lindas meninas apareceram correndo, olharam para ele, soltaram risinhos, e puxaram as saias da mãe. Delaney sorriu-lhes, lembrando-se de Liza naquela idade. Os amorecos!
– Quero fazer uma coisa – disse ela.
– O quê? – perguntou ele, distraído. – Não compreendi.
– Eu quero fazer alguma coisa. Ajudar.
– A senhora ajudou.
– Não há nada que eu possa fazer? O senhor está fazendo algo. Não sei o que pretende, mas confio no senhor. Sinto, realmente, que está tentando descobrir quem fez aquilo.
– Muito obrigado – respondeu Delaney, comovido. – Sim, estou tentando descobrir quem fez aquilo.
– Então, deixe-me ajudar. Qualquer coisa! Posso bater a máquina, sou estenógrafa. Sou muito boa com números. Farei qualquer serviço. Farei café. Darei recados. Qualquer coisa.
Ele não teve confiança na própria voz. Fez um esforço para inclinar a cabeça e sorrir. Saiu, puxando firme a porta às costas.
Na rua, o carro policial sem marcas continuava parado no mesmo local. Esperou um olhar fixo ou um aceno. Um dos detetives, porém, dormia, com a cabeça para trás e de boca aberta. O outro marcava um volante de apostas em corridas de cavalo. Nem mesmo o notaram. Se fossem seus subordinados, ele lhes teria arrancado o couro.

5

O dia seguinte começou bem, com um telefonema de um livreiro informando-lhe que conseguira dois volumes da série Honey Bunch original. O capitão ficou contente. Combinou que os livros lhe seriam enviados pelo correio acompanhados de uma fatura.
Considerou o inesperado achado como um bom augúrio, pois, como a maioria dos policiais, era supersticioso. Dizia a colegas seus: "Você faz sua própria sorte". Mas sabia que tal frase não exprimia a inteira verdade. Havia um tipo de sorte que surgia quando menos se esperava, às vezes mesmo sem ser desejada, e o importante era reconhecer quando ela aparecia, pois a sorte usa milhares de disfarces, incluindo as calamidades.
Sentado à escrivaninha do estúdio, reviu a lista "Coisas a Fazer", preparada antecipadamente. Dizia:
"Interrogar Mônica Gilbert".
"Calvin Case. Referência: machado de gelo".
"Ferguson. Referência: autópsia".
"Telefonar para Langley".
"Honey Bunch".
Cortou com um traço o item final. Ia riscar também o primeiro quando, por motivo que não compreendeu, deixou-o em aberto. Procurou e, por fim, encontrou o pedaço de papel que lhe fora dado por Thomas Handry com nome, endereço e número telefônico de Calvin Case. Notou que um número sempre maior de pessoas estavam sendo atraídas para a investigação e resolveu organizar uma espécie de arquivo de fichas, ou catálogo simples, de nomes, endereços e números telefônicos de todas as pessoas envolvidas.
Pensou na melhor maneira de levar a cabo a entrevista com Case. Resolveu não telefonar; uma visita inesperada seria melhor. Às vezes, é útil surpreender a pessoa, pegá-la com a guarda baixa, sem oportunidade de planejar a reação.
Foi a pé até a Lexington Avenue, com os ombros curvados para se defender do frio cortante, e tomou o metrô em direção ao centro da cidade. Pareceu-lhe que cada vez em que viajava no metrô – nas raras vezes – mais fuligem cobria as superfícies interiores dos vagões e as plataformas. Inscrições indecentes e racistas felizmente não apareciam com freqüência, mas latas de spray, e canetas de pontas de feltro haviam sido usadas para centenas de registros tais como "Tony 168, Vic 134, Angie 127, Bella 78, IronWolves 127". Sabia que eram os prenomes de indivíduos e os títulos de quadrilhas de delinqüentes juvenis, seguidos pelos números das ruas. Evidência. "Estive aqui".
Desceu dez minutos depois e caminhou para o sul, olhando constantemente em volta, notando como aquela zona mudara, e mudava, desde que fora detetive de segunda classe naquela jurisdição e pensara que, talvez, pudesse deixar o bairro um melhor local do que quando o encontrara. Naquele instante, se não o deixasse pior, considerar-se-ia satisfeito.
O lugar que procurava situava-se na West 11th Street, perto da Fifth Avenue. Os aluguéis por ali, sabia, eram altíssimos, a menos que Case tivesse a sorte de morar em apartamento de aluguel congelado. O prédio em si era uma bela e velha estrutura no estilo federal. Todas as janelas de frente exibiam floreiras pintadas de branco, com geráníos ou hera nos peitoris. As maçanetas externas e o número dos apartamentos brilhavam em bronze. As latas de lixo tinham tampas e a portaria fora varrida. Um pequeno cartaz pedia: "Por favor, controle seu cachorro". Sob ela, alguém escrevera: "E ele não satisfaz suas necessidades?"
Calvin Case residia no apartamento 3-B. Delaney tocou a campainha e inclinou-se para o intercomunicador. Esperou mas não obteve resposta. Tocou pela segunda vez em três longas chamadas. Desta vez, uma voz masculina, áspera, perguntou:
– Diabo. O que é?
– Sr. Calvin Case?
– Ele mesmo. O que deseja?
– Sou o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. Gostaria de falar-lhe durante alguns minutos.
– Sobre o quê? – A voz soou alta, empastada, e a mecânica do intercomunicador tornou-a rouca.
– Sobre uma investigação que estou realizando.
Silêncio. Durou tanto que Delaney ia tocar novamente quando a fechadura da porta zumbiu e ele agarrou apressado a maçaneta, abriu a porta e subiu os degraus atapetados para o 3-B. Havia outra campainha. Tocou e, mais uma vez, esperou pelo que lhe pareceu um tempo estranhamente longo. Outra campainha zumbiu. Espantado, não fez coisa alguma. Quando se toca a campainha de um apartamento, espera-se que alguém responda de dentro ou abra a porta. Naquela ocasião, apenas um zumbido.
Lembrando-se então de que o morador era inválido, e amaldiçoando a própria estupidez, tocou novamente. O zumbido de resposta deu a impressão de longo e irritado. Empurrou a porta e entrou no saguão escuro de ura apartamento pequeno e atravancado. Fechou firmemente a porta às costas, e ouviu o clique da fechadura elétrica.
– Sr. Case? – inquiriu.
– Aqui. – A voz era áspera, quase rangente.
O capitão atravessou a atravancada sala de estar. Alguém dormia ali em um sofá-cama ainda não forrado. Havia sinais de presença feminina: uma camisola lançada de lado, uma caixa de pó e um estojo de maquilagem numa mesa de canto, pontas de cigarro manchadas de batom, e exemplares espalhados de "Vogue" e "Bride". Havia plantas na janela, folhas de rododendro frescas e um vaso alto de latão. Alguém fazia um esforço.
Delaney cruzou toda aquela desordem em direção a uma porta aberta que dava para os fundos do apartamento. Curiosamente, o caixilho da porta, entre a sala de estar e o quarto mais adiante, recebera uma persiana, acionada por um cordão. A persiana, imaginou Delaney, podia descer quase até o chão, cortando a luz e permitindo certa atmosfera privada, mas não era uma porta à prova de som.
Passou, abaixando-se, pela veneziana e olhou para o quarto. Janelas empoeiradas, cortinas puídas, reboco rolando do teto, um tapete de retalhos manchado, duas boas cômodas de carvalho com as gavetas parcialmente abertas, jornais e revistas espalhados pelo chão, a cama e, na parede oposta, uma grande e chocante mancha, como se alguém houvesse lançado contra ela uma garrafa cheia, observando-a quebrar-se e escorrer o conteúdo.
O cheiro era... uma coisa. Uísque velho, roupas de cama sujas, carne humana mal lavada. Urina e fezes. Um minúsculo bastão de incenso queimava em uma panela de aço fundido, piorando ainda mais as coisas. O aposento apodrecia. Delaney já sentira cheiros piores do que aquele – e qual "tira" não o havia feito? – mas nunca se acostumara. Respirou pela boca e voltou-se para o homem sentado na cama.
Cama de casal ocupada outrora, pensou Delaney, por Calvin e esposa. Na ocasião, parecia que ela dormia no sofá-cama na sala de estar. A cama estava cercada de mesas, cadeiras, estantes de revistas, uma mesinha de telefone, um carrinho de rodas cheio de garrafas e um balde de gelo e, no chão, um urinol aberto e bicos-de-papagaio de plástico. Guardanapos de papel, um sanduíche pela metade, uma toalha úmida, cigarros e pontas, uma brochura com as páginas arrancadas às pressas, e mesmo as capas dobradas e parcialmente rasgadas, um copo quebrado e... tudo.
– Que é que o senhor quer?
Delaney olhou para o homem sentado na cama.
O lençol sujo, de um azul berrante, estava puxado até o queixo. Tudo que viu foi uma face e cabeça quadradas. O cabelo despenteado descia quase até os ombros. Eram retangulares o bigode e a barba ruiva, sem trato. Os olhos escuros ardiam. Lábios cheios, manchados e cobertos de crostas.
– Calvin Case?
– Eu.
– Capitão Edward X. Delaney, Departamento de Polícia de Nova York. Estou investigando a morte. . . o assassinato de um homem que acreditamos...
– Deixe-me ver sua identidade.
Delaney aproximou-se da cama. O mau cheiro era repugnante. Pôs a carteira de identidade sob o nariz de Case. Ele mal a olhou. Delaney recuou.
– Acreditamos que a vítima tenha sido assassinada com um machado de gelo. Um machado de montanhista. Em vista disso, vim...
– Pensa que fui eu que cometi o crime?
Os lábios rachados abriram-se e revelaram dentes amarelos: um grande sorriso de caveira. Chocado, Delaney respondeu:
– Naturalmente que não. Mas preciso de algumas informações sobre machados de gelo. Como era o melhor montanhista – seu nome me foi recomendado – pensei que...
– Vá para aquele lugar – disse cansadamente Calvin Case, virando a cabeça para o lado.
– Quer dizer que não vai cooperar para que descubramos o homem que.. .?
– Caia fora! – murmurou Case. – Simplesmente, caia fora.
Delaney deu-lhe as costas, caminhou dois passos e parou. Havia Bárbara, Christopher Langley, Mônica Gilbert, e toda aquela gente periférica: Thorsen, Handry, Ferguson, Dorfman, e lá estava esse. . . Tomou uma profunda respiração, odiando-se porque mesmo suas fúrias eram calculadas. Voltou a encarar o paralítico sentado na cama imunda. Não tinha nada a perder.
– Seu maldito chupador de pau, seu filho da mãe! – disse em voz calma e monótona. – Seu calhorda! Sou detetive e posso detetar você, seu marginalzinho castrado. Fique deitado nessa cama de merda. Quem lhe compra a comida? Sua mulher, certo? Quem tenta lhe dar um lar? Sua mulher, certo? Quem limpa sua bunda e derrama sua urina no vaso? Sua mulher, certo? E você fica aí se encharcando de uísque. Pude cheirá-lo no momento em que entrei, verme podre. É grande, deitar-se numa cama e curtir uma pena de si mesmo, não? Seu sacana! Vá, mije na cama, tome seu uísque e mande sua mulher trabalhar! E grite com ela, seu ordinário. Homem? Homem uma ova, seu nojento lambedor de rabo. Cuspo em você e esqueço o dia em que ouvi falar em seu nome, seu joão-ninguém comedor de excremento. Você não existe. Compreendeu? Você não é ninguém!
Deu-lhe as costas, quase fora de si, quando viu de pé, na porta do quarto, uma loura magra e frágil, com os cabelos roçando a persiana. Estava lívida e mordia os nós dos dedos.
Tomou uma profunda respiração, tentou endireitar os ombros, sentir-se maior. Mas sentiu-se muito pequeno.
– Sra. Case.
Ela inclinou a cabeça.
– Meu nome é Edward X. Delaney, Capitão, Departamento de Polícia de Nova York. Vim pedir a ajuda de seu marido em uma investigação. Se ouviu o que eu disse, peço desculpas pela linguagem que usei. Sinto muitíssimo. Por favor, perdoe-me. Não sabia que a senhora estava aqui.
Ela inclinou a cabeça outra vez, ainda mordendo os nós dos dedos, fitando-o com grandes olhos azuis.
– Bom dia – disse Delaney, e dirigiu-se para a porta a fim de passar por ela.
– Capitão – grasnou o homem da cama.
Delaney voltou-se.
– Sim?
– O senhor é um calhorda, não?
– Quando tenho que ser. – E balançou afirmativamente a cabeça.
– Usa todas as pessoas, não? Os aleijados, os bêbados, os inermes e os sem remédio. Usa-os todos.
– Exato. Estou procurando um assassino. Utilizarei qualquer pessoa que me possa ajudar.
Calvin Case usou a barra do lençol azul imundo para tirar a remela dos olhos.
– E tem uma grande boca – acrescentou. – Uma graaande boca. – Estendeu a mão para o carrinho de rodas e uma garrafa, pela metade, de uísque e um copo sujo. – Querida – disse para a esposa – temos um copo limpo para o capitão Edward X. Delaney; do Departamento de Polícia de Nova York?
Ela inclinou a cabeça ainda em silêncio. Correu do quarto e voltou com dois copos. Calvin Case serviu uma rodada e recolocou a garrafa no carrinho. Os três elevaram os copos em um brinde silencioso, embora, ao que bebiam, não soubessem.
– Cal, está com fome? – perguntou a esposa. – Preciso voltar logo para o trabalho.
– Não, eu não. Capitão, quer um sanduíche?
– Obrigado, não.
– Deixe-nos sozinhos, sim, querida?
Ela voltou-se para sair.
– Sra. Case. . . – disse Delaney.
Ela deu a volta.
– Por favor, fique. O que quer que seu marido e eu tenhamos a discutir não há motivo para que a senhora não ouça.
Ela ficou aturdida. Olhou de um para outro, sem saber o que fazer. Calvin suspirou.
– O senhor é uma coisa – disse. – É realmente uma coisa.
– É isso mesmo – concordou Delaney. – Sou uma coisa.
– Entra aqui sem ser convidado e assume o comando.
– Quer falar agora? – perguntou impaciente Delaney. – Quer responder às minhas perguntas?
– Em primeiro lugar, diga-me o que há.
– Um homem foi assassinado com uma arma estranha. Nós pensamos que foi um machado de gelo e...
– Quem são o "nós"?
– Eu penso que foi um machado de gelo Quero saber algo mais sobre essa ferramenta, e o seu nome me foi fornecido como sendo o mais experiente montanhista de Nova York.
– Fui – disse baixinho Case – fui
Bebericaram os drinques, entreolharam-se, impassíveis. Fora nesse mesmo quarteirão, lembrou-se Delaney, que uma bela casa subira acidentalmente pelos ares, provocado o acidente por um grupo de revolucionários blasonadores, que provavam seu amor pela raça humana fabricando bombas num porão.
– Um capitão investigando um crime? – perguntou tranqüilo Case. – Mesmo um assassinato? Não, não. Um guarda uniformizado ou um detetive, sim. Um capitão, não. O que está havendo, Delaney?
O capitão tomou uma profunda respiração.
– Estou de licença, não no serviço ativo. O senhor não tem obrigação de responder às minhas perguntas. Eu era responsável pela 251a Delegacia. Na zona residencial. Um homem foi assassinado lá há mais de um mês. Na rua. Talvez tenha lido nos jornais. Frank Lombard, um vereador. Há muita gente trabalhando no caso, mas sem resultado algum. Nem mesmo identificaram a arma usada. Comecei a investigar, utilizando meu tempo livre. Não é nada oficial. Como lhe disse, estou de licença. Bem, há três dias outro homem foi atacado não muito distante do local onde morreu Lombard. Está ainda vivo, mas vai morrer, com toda a probabilidade. O ferimento dele é parecido com o que sofreu Lombard: uma perfuração no crânio. Acho que feita com um machado de gelo.
– Por que pensa assim?
– A natureza, o tamanho e a forma do ferimento. E um machado de gelo foi usado antes como arma para matar Leon Trotsky na Cidade do México, em 1940.
– O que quer de mim?
– O que puder dizer-me sobre machados de gelo, quem os fabrica, onde são vendidos, e para que fins são usados.
Calvin Case voltou-se para a esposa.
– Quer ir apanhar meus machados, querida? Estão no armário da entrada.
Durante a ausência da mulher, nenhum dos dois falou. Case acenou para uma cadeira, que Delaney recusou, sacudindo a cabeça. Finalmente, a Sra. Case voltou, trazendo cinco machados, dois sob o braço e juntos os cabos dos três outros.
– Ponha-os em cima da cama – ordenou Case. Obedientemente, ela deixou-os deslizar para o lençol imundo.
Delaney aproximou-se, examinou-os rapidamente e, em seguida, agarrou um deles. Era uma ferramenta toda de aço, do tamanho de uma machadinha, com o cabo revestido de couro. Da extremidade do cabo pendia uma alça. A cabeça de um martelo de um lado e um espigão do outro. O espigão era exatamente igual ao descrito por Christopher Langley: mais ou menos doze centímetros e meio de comprimento, quadrado na parte superior, afilando-se em triângulo. À medida que se afilava, o espigão curvava-se para baixo e terminava em uma ponta aguda. Na parte de baixo, quatro pequenos dentes de serra. A cabeça era pintada de vermelho e o cabo coberto de azul forte. Entre eles, um eixo de aço polido. Havia uma gravação em um dos lados da cabeça, uma pequenina inscrição. Delaney pôs os óculos para ler: "Made in West Germany".
– Isto... – começou.
– Isso não é um machado de gelo – interrompeu-o Calvin Case. – Tecnicamente, é um martelo de gelo. A maioria das pessoas, contudo, chama-o de machado de gelo. Confundem essas coisas.
– Comprou-o na Alemanha Ocidental?
– Não. Aqui mesmo em Nova York. O melhor equipamento para montanhismo é fabricado na Alemanha Ocidental, Áustria e Suíça. Mas eles o exportam para todo o mundo.
– Onde o comprou em Nova York?
– No lugar onde trabalhava. Consegui o desconto dado aos empregados. Fica na Spring Street, uma loja chamada Outside Life. Vende equipamento para caça, pesca, campismo, safáris, montanhismo, excursionismo... coisas assim.
– Posso usar seu telefone?
– À vontade.
Estava tão animado, tão excitado, que não conseguiu lembrar-se do número do telefone de Christopher Langley e teve de procurá-lo na caderneta de notas. Mas não quis largar o curto machado de gelo: levou-o até o telefone e segurou-o com uma mão enquanto discava com a outra. Finalmente, conseguiu a ligação.
– Sr. Langley? Delaney.
– Oh, capitão! Devia ter-lhe telefonado, mas realmente não tenho nada para comunicar. Fiz uma lista de todas as possíveis fontes e visitei de seis a sete lojas por dia. Mas até agora...
– Sr. Langley, tem aí a sua lista?
– Tenho, capitão. Está aqui comigo. Ia sair quando o senhor telefonou.
– Há nela uma loja chamada Outside Life?
– Outside Life? Um minuto. . . Sim, está aqui. Fica na Spring Street.
– É essa mesmo.
– Tenho-a aqui. Dividi minha lista por bairros, e essa fica na zona do centro Não passei por lá ainda.
– Sr. Langley, tive um palpite que ela talvez tenha o que queremos. Pode ir lá hoje?
– Naturalmente. Vou diretamente para lá.
– Obrigado. Ligue para mim caso encontre ou não. Estarei em casa ou no hospital.
Desligou e voltou a fitar Calvin Case, segurando ainda o machado de gelo. Não queria soltá-lo. Vergastou-o com um golpe de corte. Ergueu-o bem alto e brandiu-o para baixo.
– Excelente equilíbrio.
– De fato – concordou Case. – E bastante peso. Pode-se, facilmente, matar um homem com ele.
– Diga-me alguma coisa sobre os machados de gelo.
Calvin contou-lhe tudo o que sabia, que não era muito. Pensava que o moderno machado de gelo evoluíra de um antigo Alpinestock, uma vara tão longa quanto um cajado de pastor. De fato, vira diversos em uso na Suíça. Possuíam nas extremidades espigões de ferro batido e eram usados para sondar a profundidade da neve, verificar a consistência do gelo, testar projeções rochosas e plataformas acima da cabeça do montanhista, sondar fendas, etc.
– Em seguida – continuou Case – foi criado o machado de gelo para uso com ambas as mãos. – Ergueu-se para a frente a partir da cintura e apanhou as peças ao pé da cama. Aparentemente, estava nu sob o lençol. O seu torso superior devia ter sido outrora largo e musculoso. Naquele momento parecia flácido: carne pálida, pêlos vermelhos eriçados, cheirando a azedo.
Mostrou os machados longos a Delaney, explicando como a ferramenta podia ser usada como bengala, enfiada no gelo como suporte de um cabo, sendo o lado de martelo da cabeça utilizado para abrir apoios para os pés e as mãos no gelo. Este podia suportar tão bem uma carga quanto o granito. A extremidade do cabo variava. Podia ser um espigão simples para se caminhar sobre geleiras, ou equipado com uma pequena roda para se caminhar sobre a neve fofa, quando não era simplesmente equipado com uma pequena tampa em aresta.
– Onde foi que conseguiu essas ferramentas todas? – perguntou Delaney.
– Estas duas na Áustria. Esta, na Alemanha Ocidental. E esta em Genebra.
– Pode-se comprá-las em qualquer lugar?
– Em qualquer parte da Europa, sem dúvida. O alpinismo é muito popular por aquelas bandas.
– E aqui?
– Deve haver uma dúzia de lojas em Nova York que as vendem. Talvez mais. E em outros locais também, naturalmente. Na Costa Oeste, por exemplo.
– E este? – Delaney enfiara no pulso a alça do cabo do machado curto. – Para que serve?
– Como lhe disse, tecnicamente é um martelo de gelo. Na pedra, pode-se abrir um buraco com o lado do espigão. E usa-se para pregar os grampos de segurança com o outro lado da cabeça. O grampo é um cravo de aço. Possui uma alça na parte superior, onde se pode amarrar uma linha ou passá-la pela abertura.
Delaney passou dois dedos sobre a cabeça do machado. Esfregou as pontas dos dedos no polegar e sorriu largamente.
– O senhor parece contente – disse Case, servindo-se de outro uísque.
– Estou. Oleado.
– O quê?
– A cabeça do machado está oleada.
– Oh. . . exato. Evelyn mantém todo meu material bem limpo e azeitado. Ela acha que ainda vou poder escalar montanhas novamente, algum dia. Não é, querida?
Delaney virou-se para fitá-la. Ela inclinou a cabeça sem falar e tentou sorrir. Ele sorriu, por sua vez.
– Que tipo de óleo a senhora usa?
– Oh.. . não sei. Óleo comum. Compro-o numa loja de ferragens.
– Um óleo fino – explicou Calvin Case. – Como óleo para máquina de costura. Nada de especial.
– Todos os montanhistas conservam limpas e azeitadas suas ferramentas?
– Os bons. E com cuidado.
Delaney concordou. Pesaroso, pôs no monte, juntamente com os demais, ao pé da cama de Case, o machado de gelo de cabo curto.
– O senhor disse que trabalhou na Outside Life, onde o comprou?
– Exato. Durante quase dez anos. Era encarregado do departamento de montanhismo. A firma me concedia todo o tempo de que precisava para as escaladas. Era boa publicidade para ela.
– Suponhamos que eu queira comprar um machado como este. Basta entrar, pedir e pagar? É isso?
– Claro. Este aí custou quinze dólares. Mas foi há cinco anos.
– Recebo um ticket da caixa registradora ou extraem nota de venda?
Case olhou-o atento. A sua face barbada abriu-se em um sorriso, e mostrou novamente os dentes manchados.
– Sr. Detetive – disse, alargando o sorriso – pensando sempre, não? Bem, no que interessa à Outside Life o senhor tem sorte. É extraída urna nota de venda, ou era, quando trabalhei lá. Pedia-se o nome e o endereço do freguês. Isso porque Sol Appel, o proprietário, faz grandes vendas pelo reembolso postal. Publica um Catálogo de Inverno e um de Verão, e está sempre interessado em aumentar a lista de destinatários. Na nota são enumerados os artigos comprados.
– Depois que o nome e o endereço do freguês são acrescentados à lista de mala direta, por quanto tempo são conservadas as cópias das notas de vendas? Sabe por acaso?
– Oh, Jesus, durante anos. O porão estava cheio delas. Mas não fique tão animado, capitão. A Outside Life não é a única loja em Nova York onde se pode comprar um machado de gelo. E a maioria só costuma dar os tickets da caixa registradora. Não tomam nota do nome, endereço ou das mercadorias compradas pelo cliente. E como disse, quase tudo é importado. Pode-se comprar machados de gelo em Londres, Paris, Berlim, Viena, Roma, Genebra, e nas cidades menores. E em Los Angeles, São Francisco, Portland, Boston, Seattle, Montreal e em uma centena de outros lugares. Neste caso, onde fica o senhor?
–Muitíssimo obrigado – disse Delaney, sem ironia. – O senhor me prestou uma grande ajuda, e apreciei muito sua colaboração. Peço desculpas pela maneira como falei.
Calvin Case fez um gesto, um aceno que Delaney não conseguiu interpretar.
– O que é que vai fazer agora, capitão?
– Fazer. . .? Oh, o senhor se refere à minha próxima providência. Bem, ouviu meu telefonema. Um cavalheiro que me ajuda está a caminho da Outside Life. Se puder comprar um machado como o seu, irei até lá, perguntarei se me deixarão examinar as notas de venda e farei uma lista das pessoas que os compraram.
– Mas haverá milhares de notas. Milhares!
– Eu sei.
– E há outras lojas em Nova York que os vendem sem registro dos compradores. E lojas em todo o mundo que os vendem, também.
– Eu sei.
– 0 senhor é um tolo – disse surdamente Case, desviando o rosto. – Pensei durante um momento que não o fosse, mas vejo agora que é.
– Cal – disse baixinho a esposa, mas ele não a olhou.
– Não sei o que o senhor pensa que seja o trabalho de um detetive – retrucou Delaney, olhando para o homem sentado na cama. – A maioria foi condicionada por romances, cinema e TV. Pensa que é feito de pistas exóticas ou raciocínio diabolicamente inteligente, quando não se compõe de caçadas pelos telhados, arrombamentos de portas e tiroteios nos trilhos do metrô. Tudo isso talvez constitua uns cinco por cento do que o detetive faz. Mas vou lhe dizer como em geral ele passa o tempo. Há uns quinze anos, uma menina foi seqüestrada numa rua de Long Island. Ia para casa, vindo da escola. Um carro parou e o motorista disse-lhe alguma coisa. Ela aproximou-se. Uma menininha. O motorista abriu a porta, puxou-a para dentro e partiu. Havia uma testemunha ocular, uma velha que disse "pensar" que o carro era preto, preto ou azul-escuro, verde-escuro ou marrom. E ela "pensava" que possuía chapa de Nova York. Não tinha certeza de coisa alguma. De qualquer modo, os pais receberam uma nota com pedido de resgate. Seguiram exatamente as instruções: não chamaram os "tiras" e pagaram. A garotinha foi encontrada morta três dias depois. O FBI, em vista disso, recrutou sessenta agentes de vários locais e lhes deu um curso de emergência sobre identificação grafológica. Grandes ampliações da nota de resgate foram coladas nas paredes. Três turmas, de vinte homens cada, começaram a examinar todos os pedidos de emplacamento de automóvel que tinham origem em Long Island. Trabalhavam vinte e quatro horas por dia. Quantas assinaturas? Milhares? Milhões, com certeza. Os agentes separaram as possíveis e, em seguida, especialistas em grafologia assumiram o comando para reduzir ainda mais a lista.
– Conseguiram prender o seqüestrador? – explodiu Evelyn Case.
– Claro – disse Delaney. – Prenderam-no. No fim. E se não o houvessem encontrado nos pedidos de emplacamento de Long Island, teriam examinado todos os requerimentos no Estado de Nova York. Estou contando isso para que o senhor saiba que o trabalho do detetive requer bom senso, compreensão de que se tem de partir de alguma coisa, e que é duro, exaustivo, rotineiro, exigindo emprego de percentagens. Isso é tudo. Mais uma vez, obrigado pela ajuda.
Encontrava-se quase na porta que dava para a sala de estar quando Calvin Case falou em voz baixa, sussurrada.
– Capitão?
Delaney voltou-se.
– Sim?
– Se o senhor encontrar o machado na Outside Life, quem examinará as notas de venda?
Delaney encolheu os ombros.
– Eu farei isso. Alguém fará. Elas serão examinadas.
– Às vezes, os artigos citados nas notas são anotados apenas pelo número de estoque. O senhor não os conhece.
– Conseguirei a identificação com o proprietário. Aprenderei o que significam os números do estoque.
– Capitão, disponho de todo o tempo do mundo. Não vou a lugar nenhum. Podia examinar essas notas de venda? Sei o que procurar. Poderia extrair as notas nas quais conste um machado com muito maior rapidez do que o senhor.
Delaney fitou-o durante um longo momento com o rosto impassível.
– Eu lhe avisarei – disse.
Evelyn Case levou-o até a porta da rua.
– Obrigada – disse baixinho.
Ao deixar a casa dos Case, dirigiu-se a pé diretamente para a Sixth Avenue e virou para o sul, procurando uma loja de ferragens. Nada. Voltou e seguiu para o norte. Ainda nada. Do outro lado da Sixth Avenue, na calçada leste, viu uma delas.
– Uma lata pequena de óleo – pediu ao vendedor. – Óleo para máquina de costura.
Foi-lhe dada uma pequena lata quadrada, com um longo pescoço, fechado por uma pequena tampa vermelha.
– Posso lubrificar ferramentas com isto? – perguntou.
– Naturalmente – garantiu o vendedor. – Ferramentas, máquinas de costura, ventiladores elétricos, fechaduras. . . qualquer coisa. É o óleo de múltiplas finalidades mais vendido no país.
"Muito obrigado", pensou melancólico Delaney. Comprou a lata.
Não devia ter tomado um táxi. Tinham ainda saldos consideráveis nas cadernetas de poupança e contas bancárias, possuíam ações (na maioria, títulos municipais, isentos de impostos) e, naturalmente, á casa de pedra cinzenta. Delaney, porém, não percebia mais salário e as contas médicas e hospitalares de Bárbara cresciam. Por isso mesmo, devia ter tomado o metrô e, ao saltar, passado para um ônibus. Mas sentia-se de tal modo animado, otimista, que resolveu tomar um táxi para ir ao hospital. A caminho do bairro residencial, tirou a pequena tampa vermelha da lata, e espremeu algumas gotas na ponta dos dedos. Esfregou-o contra o polegar. Óleo fino. A sensação era agradável, e sorriu.
Bárbara não estava no quarto. A enfermeira explicou que fora levada ao laboratório, embaixo, para mais chapas de raios X e testes. Delaney deixou um pequeno bilhete sobre a mesinha-de-cabeceira: "Alô. Estive aqui. Voltarei esta noite. Amo-a. Edward".
Correu para casa, tirou o sobretudo e o paletó, afrouxou a gravata, arregaçou as mangas e pôs os chinelos. Mary preparava um ensopado. Pediu-lhe que o deixasse esfriar depois de pronto. Tinha muito que fazer para pensar em comida.
Havia tirado o conteúdo das duas gavetas superiores de um arquivo de aço existente no gabinete. Na gaveta de cima, arquivara as cópias dos relatórios da Operação Lombard. Metodicamente, dividira o arquivo em duas seções: Frank Lombard e Bernard Gilbert. Sob cada título, classificara os relatórios nas categorias seguintes: Arma, Motivo, Ferimento, História Pessoal etc.
Na segunda gaveta, iniciou seu próprio arquivo: uma pasta fina que consistia na maior parte, nessa ocasião, de notas rápidas.
Nesse momento, começou a ampliar as notas e a transformá-las em relatórios, para quem ou para que fim, não sabia. Mas durante muitos anos trabalhara dessa maneira em investigações e, com freqüência, achara útil pôr em palavras suas reações e perguntas instintivas. Em épocas mais felizes, Bárbara datilografara as notas em sua máquina de escrever elétrica e isso fora uma grande ajuda. Ele, porém, nunca solucionara os mistérios da máquina elétrica e teria de contentar-se com relatórios manuscritos.
Começou com a muito adiada lista de todas as pessoas envolvidas no caso, endereços e telefones, se os possuíam ou se podia encontrá-los no catálogo. Redigiu relatórios sobre a reunião com Thorsen e Johnson, as entrevistas com a viúva Lombard, com a mãe da vítima e colegas, as conversas com Dorfman e Ferguson. Escreveu com a rapidez possível, transcrevendo garranchos feitos na caderneta de notas, em envelopes ou pedaços de papel arrancados de revistas e margens de jornais.
Mencionou os encontros com Thomas Handry, Christopher Langley e Calvin Case. Descreveu o martelo de pedreiro, o martelo de faiscador de rochas, o machado de gelo de Case, onde podiam ser comprados, o preço, e para que fim eram usados. Comentou o interrogatório de Mônica Gilbert, a compra da lata de óleo fino para máquina e a parte referente à carteira de habilitação perdida.
Devia ter feito tudo isso semanas antes e estava ansioso para recuperar o tempo perdido e continuar a atualizar o arquivo com anotações diárias. Talvez tudo isso nada significasse, mas lhe parecia importante ter um registro escrito do que fizera. Além disso, a crescente massa de papel era, de certa forma, tranqüilizadora. No fundo da segunda gaveta do arquivo colocou o martelo de pedreiro, o martelo de faiscador e a lata de óleo: evidência física.
Trabalhou ininterruptamente, parando apenas duas vezes para ir buscar cerveja gelada na cozinha. Mary encontrava-se no andar superior, fazendo a limpeza, mas havia desligado o fogo sob o ensopado. Levantou a tampa e cheirou-o. Pelo vapor, parecia saborosíssimo.
Escreveu com tanta clareza e rapidez quanto possível, embora admitisse que sua letra era uma infelicidade. Bárbara poderia lê-la, mas, quem mais? Ainda assim, cresceu a pilha de bem arrumados envelopes de papel pardo: "O Suspeito", Arma, Motivo, Interrogatórios, Oportunidade, Autópsias etc. Tudo aquilo parecia muito oficial e impressionante.
Em fins da tarde, escrevendo ainda com a rapidez possível, Mary despediu-se com a firme ordem de que comesse o ensopado antes de cair morto de desnutrição. Fechou a porta, voltou aos relatórios, mas minutos depois a campainha da porta tocou. Lançou para o lado, irritado, a caneta, pensou um pouco e disse em voz alta: "Por favor, Deus, que seja Langley. Com o machado".
Espiou pelos painéis laterais da porta e reconheceu Langley. Trazendo um embrulho de papel pardo. E radiante. Delaney abriu a porta de par em par.
– Consegui! – exclamou Langley.
O capitão não teve coragem de lhe dizer que tivera nas mãos a mesma ferramenta poucas horas antes. Não roubaria ao maravilhoso homenzinho o seu momento de triunfo.
No gabinete, inspecionaram juntos o machado. Era uma duplicata do que Calvin Case possuía. Estudaram-no juntos, apontando para cada um dos requisitos: o espigão afilado, a curva para baixo, a ponta aguda, a construção toda de aço.
– Oh, sim – concordou Delaney. – Sr. Langley, acho que é isso. Parabéns.
– Ora... – retrucou Langley com um gesto vago. – O senhor me deu a pista. Quem lhe falou sobre a Outside Life?
– Uma pessoa que conheci por acaso. Interessa-se por montanhismo e. acidentalmente, mencionou a loja. Pura sorte. Mas o senhor teria chegado lá.
– Equilíbrio excelente – comentou Langley, sopesando a ferramenta.
– Muito bem feita. Bem. . .
– O quê? – perguntou Delaney.
– Bem, acho que meu trabalho está terminado – lamentou-se o velho. – Quero dizer, encontramos a arma, não?
– O que pensamos que é a arma.
– Sim, naturalmente. Mas está aqui, não? Acho que o senhor não tem mais nada que eu possa fazer, não? Neste caso. . .
A voz morreu e ele virou repetidas vezes o machado nas mãos, olhando-o fixamente.
– Nada mais para fazer? – disse incrédulo Delaney. – Sr. Langley, tenho muito mais coisas para o senhor fazer. Mas já fez tanto. Tenho até receio de pedir.
– O quê? – interrompeu-o Langley. – O quê? Diga-me o que é. Não quero parar agora. Palavra, não quero. O que é que precisa ser feito? Por favor, diga-me, o que é?
– Bem... – comentou Delaney – não sabemos se a Outside Life é a única loja em Nova York que vende este tipo de machado. O senhor tem outros nomes de lojas em sua lista que ainda não visitou, não?
– Oh, Deus, sim.
– Bem, precisamos investigar e fazer uma lista completa de todos os estabelecimentos de Nova York que o vendem. Este ou outro parecido. Para isso é preciso descobrir quantas companhias americanas fabricam este tipo de machado, a quais atacadistas vendem, e a quem estes distribuem na área de Nova York. Em seguida. . . vê isto aqui? No lado da cabeça? Diz "Made in West Germany". Importado. E talvez da Áustria e Suíça, também. Precisamos, portanto, descobrir quem os importa e a quem os vende aqui. Sr. Langley, ainda há muito o que fazer e hesito em pedir. . .
– Eu faço isso! – exclamou Christopher Langley. – Meu Deus, não tinha idéia de que o trabalho do detetive era tão. . . tão complicado. Mas compreendo por que é necessário. Quer saber a origem de todos os machados como este, vendidos na área de Nova York, certo?
– Exatamente – concordou Delaney. – Começaremos com a área de Nova York e, em seguida, iremos mais longe. Mas é tanto trabalho. Não posso...
Christopher Langley levantou uma pequenina mão.
– Por favor, capitão, eu quero fazer isso. Nunca me senti tão vivo em minha vida. Bem, vou fazer o seguinte: em primeiro lugar, percorrerei as lojas da minha lista para ver se vendem o machado. Tomarei nota das que vendem. Em seguida, irei à Biblioteca e consultarei um catálogo de fabricantes de ferramentas. Pedirei informações a todos eles, ou escreverei, solicitando-lhes catálogos para verificar se fabricam uma ferramenta como esta. Ao mesmo tempo, consultarei embaixadas, consulados e missões comerciais estrangeiras e descobrirei quem importa tais ferramentas aqui nos Estados Unidos. Isso lhe parece certo?
Delaney fitou-o com uma expressão de respeito:
– Sr. Langley, gostaria de ter tido sua ajuda no passado em alguns dos meus casos. O senhor me entusiasma.
– Oh... – respondeu Langley, corando de prazer. – O senhor sabe...
– Acho excelente seu plano e, se quiser levá-lo adiante – e vai ser um bocado de trabalho duro e cansativo – tudo o que posso dizer é: "Muito obrigado", porque o que vai fazer é importante.
A palavra-chave.
– Importante! – repetiu Langley. – Sim. Obrigado. Concordaram em que Delaney poderia ficar de posse da ferramenta comprada na Outside Life. Colocou-a com cuidado no fundo da segunda gaveta do arquivo. As suas "provas" estavam aumentando em número. Levou Langley à porta.
– E como vai a viúva Zimmerman? – perguntou.
– Ahn? Oh, muito bem, obrigado. Tem sido muito bacana comigo. Como o senhor sabe...
– Naturalmente. Minha esposa teve excelente impressão dela.
– Teve?
– Teve sim. Gostou muito dela. Achou-a uma mulher muito calorosa, sincera, franca.
– Oh, sim, oh, sim. Ela é tudo isso. Comeu um pouco da geléia de peixe, capitão?
– Não, não comi.
– Vicia. Um gosto que se adquire, desconfio. Bem...
O homenzinho ia saindo, mas o capitão chamou-o:
– Sr. Langley, mais uma coisa – e ele voltou.
– O senhor recebeu uma nota de venda quando comprou o machado na Outside Life?
– Uma nota de venda? Oh, sim. Ei-la.
Tirou-a do bolso do sobretudo e entregou-a a Delaney. O capitão leu-a com grande interesse. Continha o nome e endereço de Langley, o artigo (Machado de montanha – 4B54C) e o preço, $ 18,95, o imposto de vendas municipal, e o total.
– O vendedor pediu meu nome e endereço porque a firma envia gratuitamente, duas vezes ao ano, catálogos e quer aumentar sua lista de mala direta. Dei o meu nome certo. Foi correto isso, não, capitão?
– Naturalmente.
– E penso que o catálogo deles pode ser interessante. Têm alguns artigos fascinantes.
– Posso guardar esta nota?
– Naturalmente.
– Está gastando um bocado de dinheiro, Sr. Langley.
Langley sorriu, lançou os braços no ar, e saiu em passos árdegos e com o ar de um boulevardier.
Fechada a porta, o capitão voltou ao gabinete resolvido a reiniciar a tarefa de completar os registros sobre a investigação. Mas hesitou. No fim, desistiu. Algo o incomodava. Foi à cozinha. A panela do ensopado continuava no fogão. Usando um garfo de cabo longo, em pé mesmo, comeu três pedaços de carne morna, uma batata, uma pequena cebola e duas fatias de cenoura. O gosto lhe pareceu de pó-de-serra, mas, conhecendo as habilidades culinárias de Mary, supôs que a culpa fosse sua.
Mais tarde, no hospital, contou a Bárbara o problema. Vendo-a deitada, calma, quase apática, não teve certeza de que ela o escutava e, neste caso, se o compreendia. Ela fitou-o com o que lhe pareceu olhos febris, arregalados e brilhantes.
Contou-lhe tudo o que havia ocorrido durante o dia, omitindo apenas o telefonema do livreiro sobre os livros Honey Bunch. Queria fazer-lhe uma surpresa. Mas disse-lhe que Langley havia comprado o machado de gelo e que ele, Delaney, estava convencido de que uma ferramenta análoga fora usada nos ataques a Lombard e Gilbert.
– Sei agora o que precisa ser feito – disse-lhe. – Langley já está trabalhando em outros locais onde o machado pode ser comprado. Vai fazer indagações junto a retalhistas, atacadistas, fabricantes e importadores. É muito trabalho para um homem só. Em seguida, preciso tentar obter uma cópia da lista da mala direita da Outside Life. Não sei que extensão terá, mas forçosamente será longa. Alguém precisará examiná-la e selecionar os nomes-e-endereços de todos os residentes na jurisdição da 251ª Delegacia. Tenho quase certeza de que o assassino mora no bairro. Em seguida, precisarei obter cópias de todas as notas de venda da Outside Life durante tantos anos quanto as guardem e, novamente, procurar os compradores de machados de gelo que residam na jurisdição. E essa conferência e reconferência terá de ser feita em todas as lojas que Langley descobrir que vendem a ferramenta. Tenho certeza de que algumas delas não possuem listas de mala direta ou notas detalhadas de vendas e. desse modo, a coisa inteira talvez seja uma monumental perda de tempo. Mas acho que isso precisa ser feito, não?
– Exato – concordou Bárbara. – Não há dúvida quanto a isso. Além do mais, é a sua única pista, não?
– A única – aquiesceu ele. – Mas vai consumir um bocado de tempo.
Ela fitou-o durante alguns momentos e sorriu.
– Eu sei o que o está incomodando. Edward. Você acha que, mesmo com a ajuda do Sr. Langley e de Calvin Case, o exame de todas as listas e notas de venda tomará tempo demais. Receia que alguém mais seja ferido ou morto enquanto mexe nessa papelada. Está-se perguntando se não deveria entregar tudo o que já tem à Operação Lombard e deixar que Broughton e seus quinhentos detetives façam o trabalho. Eles poderiam efetuá-lo em muito menos tempo.
– Isso mesmo – concordou ele, satisfeito porque ela estava pensando com clareza naquele instante, a mente sincronizada com a sua. – É isso, exatamente, o que me aborrece. O que é que você acha?
– Broughton daria prosseguimento às buscas se você lhe entregasse as provas?
– O Chefe Pauley daria, tenho certeza. Vou procurá-lo. Ele está ficando desesperado. E por um bom motivo... Agarraria meu material com as duas mãos e com ele faria um bom trabalho.
Caíram os dois em silêncio. Ele aproximou-se, sentou-se junto à cama e segurou-lhe a mão. Permaneceram calados durante vários minutos.
– É realmente um problema de ordem moral, não? – perguntou por fim Bárbara.
Ele inclinou a cabeça.
– É o meu orgulho, minha ambição, meu ego. . . E meu compromisso com Thorsen e Johnson, naturalmente. Mas se não fizer isso e alguém for morto, terei de responder por muita coisa.
Ela não perguntou perante quem.
– Eu poderia ajudá-lo com as listas – disse em voz baixa. – Passo o tempo quase todo deitada, lendo e dormindo. Mas tem dias que melhoro e poderia ajudar.
Ele apertou-lhe a mão e sorriu triste:
– Você pode ajudar-me mais dizendo o que devo fazer.
– Quando foi que lhe disse jamais o que fazer? – zombou ela. – Você faz o que quer e sabe disso.
Ele se abriu em um largo sorriso.
– Mas você ajuda. Classifica as coisas para mim.
– Edward, acho que não deve fazer nada imediatamente. Ivar Thorsen está profundamente envolvido neste episódio, assim como o Inspetor Johnson. Se procurar Broughton, ou mesmo o Chefe Pauley, e lhes contar o que descobriu e do que desconfia, eles vão querer saber quem o autorizou a realizar a investigação.
– Posso manter Thorsen e Johnson fora desta confusão. Não esqueça que tenho aquela carta do comissário.
– Mas seria, ainda assim, uma grande confusão, não? E Broughton, com toda probabilidade, descobriria o envolvimento de Thorsen. Vocês dois são amigos há muito tempo. Edward, por que não conversa com Ivar e o Inspetor Johnson? Diga-lhes o que pretende fazer. Discuta o assunto. Eles são homens sensatos. Talvez possam sugerir alguma coisa. Eu sei o quanto este caso significa para você.
– É verdade – confirmou ele – significa muito. Mais a cada dia que passa. E quando Thorsen esteve no local da agressão a Gilbert ficou realmente apavorado. Disse mais ou menos que esse negócio de reduzir a estatura de Broughton era secundário em relação à identificação do assassino. Sim, é a melhor coisa a fazer. Vou falar com Thorsen e Johnson e lhes dizer que desejo procurar Broughton com o que consegui apurar. Odeio fazer isso... Mas talvez tenha de ser feito. Bem, pensarei um pouco mais no caso. Tentarei conversar com ambos amanhã e, assim, talvez não venha aqui ao meio-dia. Mas virei à noite e lhe direi qual o resultado.
– Lembre-se, não perca a calma, Edward.
– Quando foi que eu jamais perdi a calma? – indagou ele. – Estou sempre perfeitamente controlado.
Ambos soltaram uma gargalhada.

6

Ele se barbeava com uma antiga navalha reta, de um jogo de duas com cabos de osso. Todas as manhãs, alternadamente, tirava uma delas da velha e gasta caixa forrada de veludo e afiava-a de leve numa correia de couro pendurada na maçaneta interna da porta do banheiro.
Bárbara jamais conseguira esconder sua antipatia pelo aço nu. Comprara-lhe um barbeador elétrico em certo Natal e ele o usara algumas vezes. Em seguida, levara-o para a delegacia, assegurando-lhe que, com freqüência, usava-o para um "retoque" quando devia comparecer a uma reunião à tarde ou à noite. Ela aceitava a história. Talvez desconfiasse de que ele usava as navalhas porque haviam pertencido ao pai, que adorara.
Naquela manhã, passando o aço lenta e cuidadosamente pelo queixo ensaboado, ouvia as notícias no pequeno rádio transistorizado do banheiro e soube, por uma curta nota, que Bernard Gilbert, vítima do ataque à meia-noite na rua, falecera sem haver recuperado a consciência. A mão não tremeu e Delaney terminou de barbear-se tranqüilamente. Limpou o excesso de espuma, passou loção no rosto, pôs uma leve camada de pó, vestiu a habitual camisa escura, deu o nó na gravata de listras e desceu à cozinha para o desjejum continuado por hábito. Parou no estúdio apenas para rabiscar uma pequena nota, lembrando a si mesmo para escrever uma carta de pêsames a Mônica Gilbert.
Cumprimentou Mary e aceitou suco de laranja, um ovo cozido com torrada sem manteiga e café puro. Conversaram um pouco sobre o tempo e o estado da Sra. Delaney. Ele aprovou a sugestão de Mary de tirar o forro da mobília do quarto de costura de Bárbara e enviá-lo à tinturaria.
Mais tarde, no estúdio, escreveu a lápis o esboço da carta de pêsames à Sra. Gilbert. Ao completá-la da maneira que queria – reconhecendo que era uma missiva formal, embora não houvesse meio de mudar isso – copiou-a a tinta, endereçou e selou o envelope, pensando em colocá-lo no correio quando saísse.
Quase 9:30 na ocasião. Telefonou para o gabinete do legista. Ferguson ainda não chegara, mas era esperado a qualquer momento. Delaney aguardou, paciente, fazendo garatujas circulares em um bloco de notas, com uma linha fina que se fechava em uma espiral sempre mais estreita. Telefonou novamente e entrou em contato com Ferguson.
– Já sei – disse o médico – ele morreu. Ouvi a notícia ao chegar.
– Vai fazer autópsia?
– Vou. O corpo está vindo para cá. O grande problema na minha vida, Edward, é se devo abri-lo antes ou depois do almoço. Resolvi, finalmente, que abrir antes é melhor. Vou provavelmente fazê-lo por volta de onze ou onze e meia.
– Gostaria de falar com você antes de começar.
– Não posso sair, Edward. De modo algum. Estou ocupado com outras coisas.
– Vou até aí. Pode conceder-me uns quinze minutos às onze horas?
– Importante?
– Acho que sim.
– Não me pode dizer pelo telefone?
– Não. É algo que preciso mostrar-lhe, dar-lhe.
– Muito bem, Edward. Quinze minutos, às onze.
– Obrigado, doutor.
Foi à cozinha. Tirou um quadrado de toalha de papel de um rolo, um retângulo de papel encerado de um embrulho e uma folha quadrada de alumínio. De volta ao estúdio, extraiu da gaveta do arquivo a lata de óleo fino e o machado de gelo comprado por Langley na Outside Life.
Tirou a tampa da lata e impregnou de óleo a toalha de papel. Dobrou-a cuidadosamente por dentro do papel encerado e embrulhou tudo na folha de alumínio, apertando bem as dobras para que o óleo não escorresse. Colocou o embrulho em um grosso envelope de papel pardo.
Fez a ponta num lápis, usando o canivete para raspar a grafita até conseguir uma ponta bem comprida. Colocou a cabeça do machado de gelo sobre uma folha de bom papel de carta e, com cuidado, desenhou-lhe a forma com o lápis, trabalhando devagar, tomando cuidado especial para incluir os quatro pequenos dentes serrilhados na parte interior da ponta.
Apanhou uma régua e mediu o tamanho do espigão na parte em que deixava, quadrado, a cabeça da ferramenta. Todos os quatro lados, tanto quanto pôde verificar, mediam uns 2,5 centímetros. Desenhou um retângulo dessas dimensões na mesma folha de papel onde havia traçado o contorno da picareta. Dobrou a folha e guardou-a no bolso interno do paletó. Apanhou o envelope com o papel impregnado de óleo e saiu do aposento. Vestiu o sobretudo e pôs o chapéu, gritando para Mary que saía naquele momento. Ouviu-lhe um grito em resposta. No último minuto, já na soleira da porta, lembrou-se da carta de condolências a Mônica Gilbert e voltou ao estúdio para buscá-la. Colocou-a na primeira caixa do correio.
– É melhor andar logo, Edward – disse o Dr. Ferguson. – Broughton vai mandar um dos seus auxiliares até aqui para acompanhar a autópsia. Quer um relatório verbal preliminar antes do laudo oficial.
– Não perderei tempo. Os médicos do Mother of Mercy disseram-lhe alguma coisa?
– Pouco. Como lhe disse, Gilbert foi atacado pela frente, disso resultando um ferimento de mais ou menos cinco centímetros, acima do início do cabelo. O golpe aparentemente derrubou-o para trás, soltando-se a arma quando ele caiu. Em conseqüência, a penetração é razoavelmente limpa e bem feita e poderei conseguir um perfil melhor do ferimento do que no caso de Lombard.
– Ótimo. – Delaney abriu a folha de papel. – Doutor, é com isto que acho que se parecerá o perfil da penetração. É difícil dizer olhando o esboço, mas o espigão começa como um quadrado. Neste pequeno desenho, encontram-se as dimensões, mais ou menos 2,5 centímetros de cada lado. Se eu tiver razão, este deverá ser o tamanho do ferimento externo, no couro cabeludo e no crânio. Em seguida, o quadrado transforma-se em picareta triangular e afila-se, curvando-se para baixo e terminando em ponta aguda.
– Isso é imaginação sua ou foi tirado de uma arma real?
– Foi tirado.
– Muito bem. Não quero saber de mais nada. O que é isto?
– Quatro pequenos dentes de serra na parte inferior da ponta. O senhor talvez encontre algumas abrasões ásperas na superfície inferior do ferimento.
– Talvez, hem? Como sabe, o cérebro não é feito de queijo duro. Quer que eu trabalhe com esse papel aberto sobre a mesa, ao lado do cadáver?
– Se o auxiliar de Broughton estiver presente, não.
– Acho que não estará.
– Poderia dar-lhe uma olhada, doutor? Apenas para descargo de consciência.
– Claro. – Ferguson dobrou o papel e enfiou-o no bolso de trás da calça. – Que mais conseguiu descobrir?
– Neste envelope existe um pacote dobrado, de folha de alumínio. No interior há um envelope de papel encerado e, dentro deste, uma toalha de papel embebida em óleo. Óleo fino para máquina.
– E daí?
– O senhor disse que havia vestígios de óleo no ferimento de Lombard. Achava que devia ser óleo de cabelo, embora houvesse muito pouco para uma análise.
– Mas Gilbert era calvo... pelo menos no local onde foi atingido.
– O ponto é justamente esse. Não poderia ter sido óleo para cabelo. Mas tenho esperança de que haja óleo no ferimento de Gilbert. Óleo fino para máquina.
Ferguson reclinou-se na cadeira giratória e fitou-o. Afrouxou a gravata de lã e desabotoou o colarinho da camisa de flanela.
– Você é um homem encantador, Edward – comentou – e o melhor detetive da cidade, mas o ferimento de Gilbert foi radiografado, sondado e lavado no hospital.
– Se tivesse havido óleo não haveria agora?
– Não disse isso. Mas, de qualquer modo, reduz muito as possibilidades.
– O que me diz do Indicador Analítico de Olfato?
– O IAO? O que é que você me diz?
– Que sabe a respeito desse instrumento, doutor?
– Mais ou menos tanto quanto você. Leu o último boletim, não?
– Li. Meio confuso, não é?
– Nem tanto. A idéia consiste em aperfeiçoar um aparelho olfativo não maior do que um aspirador de pó. Portátil. Poderia ser levado ao local do crime, aspirar uma amostra de ar e identificar imediatamente os odores, ou armazenar a amostra, que seria levada ao laboratório e analisada por uma máquina maior. Bem, estão ainda muito longe de conseguir isso. É uma enorme e monstruosa coisa nesta altura muito grosseira, mas um dia desses presenciei uma demonstração impressionante do aparelho. Identificou corretamente nove fumaças de quinze diferentes marcas de cigarro. Nada mal.
– Em outras palavras, precisa ter um meio de comparação? Como uma célula de memória num computador?
– Exato. Sei aonde você quer chegar. Muito bem, Edward. Deixe-me sua amostra de óleo para máquina. Tentarei conseguir uma interpretação em tecido retirado do ferimento de Gilbert. Mas não conte com isso. O IAO está ainda muito longe de ser perfeito. Atualmente é apenas um experimento.
– Sei disso. Mas não quero esquecer possibilidade alguma.
– Você nunca esqueceu – disse o Dr. Ferguson.
– Acha que devo ficar por aqui?
– De nada adiantaria. A análise levará pelo menos três dias. Com toda probabilidade, uma semana. No que interesse aos seus desenhos, eu lhe telefonarei hoje à tarde ou à noite. Estará em casa?
– Provavelmente. Ou talvez no hospital. Poderia telefonar para lá?
– Como está Bárbara?
– Vai resistindo.
Ferguson assentiu, levantou-se, tirou o paletó de tweed, pendurou-o num cabide e começou a vestir uma manchada bata branca.
– Conseguindo alguma coisa, Edward?
– Como é que posso saber? – resmungou o Capitão Delaney. – Simplesmente, continuo a tentar.
– Não é isso o que todos nós fazemos? – sorriu o corpulento interlocutor.
Delaney ligou para Ivar Thorsen de um telefone no saguão. O serviço de respostas respondeu minutos depois, informando que o Sr. Thorsen não podia atender, mas que pedia que o chamasse novamente às três da tarde.
Era a primeira vez que Thorsen não respondia, e isso incomodou-o. Talvez o subinspetor estivesse em uma reunião ou a caminho da delegacia, mas o capitão não conseguiu dissipar um vago sentimento de inquietação.
Consultou a caderneta de notas, onde havia anotado o endereço da Outside Life. Foi de táxi até a Spring Street, saltou, e passou alguns minutos subindo e descendo o quarteirão, observando. Era um local de altos edifícios] enegrecidos, aparentemente ocupado na maior parte por pequenos fabricantes, impressores e atacadistas de artigos de couro. Parecia uma estranha vizinhança para a Outside Life.
Ocupava a loja o segundo e terceiro andares de um edifício de dez pavimentos. Subiu as escadas até o segundo andar. Um cartaz em uma sólida porta dizia: "Escritórios e Expedição. Loja no terceiro andar". Subiu outro lance de degraus, querendo olhar em volta antes de falar com... com... Consultou novamente a caderneta: Sol Appel, o dono.
A "loja" era, na realidade, um imenso sótão de teto alto, com prateleiras de metal e algumas vitrinas de vidro. Não se viam sinais de que se tentasse transformar aquilo em um atraente local de vendas. A maior parte do estoque empilhava-se no chão, em prateleiras de madeira sem pintura, ou pendia de ganchos cravados nas paredes caiadas.
Como dissera Langley, era fascinante aquele amontoado de objetos: mochilas, botes de borracha, botas de excursão, grampos de segurança, comida desidratada, lanternas de querosene, baterias, machetes, facas de caça, caniços de pesca, molinetes, cestas para peixe, espigões, corda de nylon, equipamento de canoagem – uma profusão interminável de artigos que variavam de anzóis de cinco centavos a uma magnífica tenda vermelha de três cômodos, com janela panorâmica fechada por malha antimosquito e que custava $ 1,495.00.
A Outside Life parecia ter seus devotos a despeito da localização distante: Delaney contou pelo menos 40 fregueses circulando enquanto ocupados vendedores preenchiam notas. Foi ao departamento de montanhismo e inspecionou espigões, grampos de segurança, cintos trançados, arreios, linhas de nylon, mochilas revestidas de alumínio, e uma grande variedade de machados de gelo. Havia dois tipos de machados de cabo curto: o comprado por Langley, e outro, parecido, mas de cabo de madeira e sem serrilhamento no espigão. Delaney examinou-o e finalmente descobriu um "Made in U. S. A." gravado na extremidade do cabo.
Deteve o suficiente um vendedor apressado para perguntar-lhe pelo Sr. Appel.
– Sol está no escritório – disse por cima do ombro, afastando-se, o vendedor. – Lá embaixo.
Delaney empurrou a pesada porta do segundo andar e entrou numa pequena sala de recepção, de paredes de compensado, sem pintura. Uma porta de vidro transparente abria para um espaço mais além, aparentemente uma combinação de armazém e sala de despacho. Em um canto da sala de recepção, uma telefonista, usando fones, sentava-se ante um quadrado do tipo de botões de puxar e apertar que, sabia, deixara de ser produzido muitos anos antes. A Outside Life parecia uma empresa movimentada e próspera, mas saltava aos olhos também que os lucros não eram investidos em escritórios grã-finos e decoração elegante.
Esperou paciente até que a telefonista atendesse e cortasse uma meia-dúzia de telefonemas. Finalmente, em desespero, disse:
– O Sr. Appel, por favor. O meu nome é. . .
Ela enfiou a cabeça pela abertura que dava para a grande sala mais além e berrou:
– Sol! Tem um cara aqui que quer falar com você!
Delaney sentou-se em uma poltrona, uma peça raquítica forrada com plástico rasgado. Notou no chão um cinzeiro cheio de cinza e pontas de cigarro. A única decoração na sala era uma placa de compensado, testemunhando o trabalho do Sr. Solomon Appel em prol do Fundo de Socorro aos Judeus.
A porta de vidro foi puxada para trás com violência, entrando apressado um homem gordo e suado. Delaney formou uma impressão confusa de uma face gorda e redonda, um charuto apagado bastante mastigado, um suéter azul sem mangas, inesperadas calças jeans azuis, com pontos brancos, e uma mancha escura em uma perna, e mocassins decorados com contas.
– O senhor é da Benson & Hurst? – indagou, falando rapidamente sem tirar o charuto da boca. – Eu sou Sol Appel. Onde diabo estão as suas tendas? Vocês prometeram. . .
– Um momento, um momento – retrucou Delaney. – Não sou da Benson & Hurst. Eu sou. . .
– Gatters – disse Appel. – Os caniços de fibra de vidro. Vocês estão me metendo o caniço. . . e sabem onde. Vocês disseram. . .
– Quer esperar um minuto? – perguntou Delaney com um suspiro. – Eu não sou da Gatters. Sou o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. Eis aqui minha carteirinha de identidade.
Sol Appel nem mesmo a olhou. Ergueu as mãos com as palmas para cima em fingida rendição.
– Desisto! O que quer que tenha sido, eu fiz. Prenda-me. Agora. Por favor, tire-me desta casa de loucos. Faça-me o favor. A prisão será um prazer.
– Não, não – riu Delaney. – Nada disso. Sr. Appel, eu queria. ..
– Vão organizar um baile? Um jantar? Quer uns dólares? Naturalmente. Por que não? Sempre. Em qualquer ocasião. Diga-me... quanto?
Puxava já a carteira quando Delaney estendeu a mão e suspirou novamente.
– Por favor, Sr. Appel, não é nada disso. Não estou arrecadando dinheiro para coisa alguma. Quero apenas alguns minutos de seu tempo.
– Alguns minutos? Agora o senhor está pedindo algo valioso. Alguns minutos! – Voltou-se para a porta de vidro aberta. – Sam! – berrou. – Sam! Vá buscar o dinheiro. Nada de cheque. O dinheiro! Compreendeu?
– Há algum local reservado onde possamos conversar? – perguntou o capitão.
– Nós estamos conversando, não?
– Muito bem – respondeu em dúvida Delaney, olhando para a telefonista. Ela, porém, estava ocupada com fios e pinos.
– Sr. Appel, o seu nome me foi fornecido por Calvin Case e eu...
– Cal! – exclamou Appel. Aproximou-se e segurou o paletó de Delaney pela lapela. – Aquele querido e maravilhoso rapaz. Como é que está ele? – Pode me dizer?
– Bem... ele está. . .
– Não me diga. Está vivendo na base da bebida. Eu sei. Ouvi dizer. Queria que ele voltasse para cá. "Bem, você não pode andar", disse-lhe. "Grande coisa. Mas pode pensar, não? Pode trabalhar, não?" Isso é que é importante. . . certo, capitão. . . humm, capitão. . .?
– Delaney.
– Capitão Delaney. Irlandês, não?
– Exato.
– Claro. Eu sabia. O importante é trabalhar. Estou certo ou não?
– Está.
– Claro que estou – replicou irritado Sol Appel. Assim, quando ele quiser um emprego, tem. Aqui. Poderemos usá-lo. Diga-lhe isso. Vai dizer? – Inesperadamente, Appel bateu na testa com a palma da mão. – Devia ter ido visitá-lo – gemeu. – Que tipo de schumuck sou eu? Estou realmente envergonhado. Preciso ir visitá-lo. Diga-lhe isso, Chefe Delaney.
– Capitão.
– Capitão. Vai dizer a ele?
– Certamente que vou, se o vir novamente. Mas esse não é...
– Está fazendo uma coleta para ele? Está promovendo uma festa de benefício, capitão? Terei o maior prazer em comprar uma mesa para oito pessoas e eu. . .
Delaney por fim acalmou-o um pouco e sentou-se no sofá de plástico. Explicou que investigava um caso. Sol Appel, mastigando o charuto, não fez perguntas. Dentro de cinco minutos, Delaney descobrira que a Outside Life possuía uma lista de mala direta de aproximadamente 30 mil clientes, que recebiam os Catálogos de Inverno e Verão. O despacho era feito com chapas de metal e rótulos impressos. Havia igualmente uma lista mestra datilografada. Sol Appel teria prazer em fornecer uma lista ao Capitão Delaney quando ele o desejasse.
– Asseguro-lhe que o assunto será mantido sob absoluta reserva – disse fervorosamente Delaney.
– Quem dá bola para isso? – berrou Appel. – Meus concorrentes não podem vender aos meus preços. Ah!
Descobriu também Delaney que a Outside Life conservava, durante sete anos, as notas de venda. Eram arquivadas em caixas de papelão no porão do edifício, classificadas por mês e ano.
– Por que sete anos? – perguntou.
– Quem diabo sabe? – Appel encolheu os ombros. – Meu pai. . . Deus o tenha em sua guarda. . . morreu no ano passado. . . Eu queria viver como ele... Mike Appel... um mensch. Sabe o que é um mensch, capitão?
– Sim, sei. Meu pai foi um mensch irlandês.
– Ótimo. Bem, ele me disse: "Sol", e disse umas cem vezes, "guarde sempre durante sete anos as cópias das notas de venda". Quem, diabo, sabe por quê? Era assim que ele fazia, e é assim que eu faço. Sempre. Guardo-as durante sete anos. Acrescento o ano corrente, e jogo fora as mais velhas.
– Eu poderia examiná-las?
– Examiná-las? Capitão, há ali talvez umas cem mil notas.
– Se for preciso, poderei examiná-las?
– À vontade. Sarah! – berrou subitamente Sol Appel. – Você, Sarah!
Uma velha senhora judia enfiou a cabeça pela janela da telefonista.
– Chamou, Sol? – perguntou.
– Diga-lhe que "Não"! – gritou Appel e a senhora inclinou a cabeça, desaparecendo.
Delaney resolveu ir embora, mas Appel não o queria deixar partir. Apertou-lhe interminavelmente a mão e falou um bocado. . .
– Escolha o que quiser na loja. Mande o vendedor falar comigo antes de pagar. Conseguirá um belo desconto, acredite-me. Sabe, vocês irlandeses e nós judeus somos muito parecidos. Somos ambos poetas. . . certo? E quem é que sabe falar nos dias de hoje? Apenas os irlandeses e os judeus. Precisa-se de um "tira", e encontra-se um irlandês. Precisa-se de um advogado, e encontra-se um judeu. Pensa que entendo deste troço que vendo? Quanto a mim, faço campismo em Miami Beach ou Nassau. A gente bóia na piscina em um colchão plástico, tendo na mão um belo drinque em um copo alto e, em volta, aquelas pequenas em seus reduzidos biquínis. Para mim isso é que é vida ao ar livre. Capitão, gosto do senhor. Delaney. . . certo? Está no catálogo? Claro que está. No mês que vem, um Bar-Mitzvah para meu sobrinho. Vou dar-lhe um telefonema. Não traga coisa alguma, compreendeu? Nada! Vou visitar Calvin Case. Juro que vou. É preciso trabalhar. Sarah! Sarah!
Delaney conseguiu, por fim, deixar o local, rindo alto e sacudindo a cabeça, provocando olhares curiosos de pessoas estranhas encontradas na escada. Tomou a direção oeste na Spring Street. De súbito, atraído pelo cheiro de salsicha frita e pimenta, entrou numa fila de porto-riquenhos e negros no balcão de uma barraca aberta, e pediu pizza com salsicha e um copo de coca-cola, esquecendo resolutamente a dieta. Às vezes.
Tomou dois trens do metrô e um ônibus para voltar para casa. Bebeu café com Mary na cozinha, dizendo-lhe que já havia almoçado, mas não o quê.
– O que quer que tenha sido, era temperado com alho – fungou ela. Ele riu.
Trabalhou no estúdio até 3 da tarde, atualizando relatórios. O arquivo de sua própria investigação estava ficando agradavelmente gordo. Naturalmente, não se aproximava nem de perto da Operação Lombard, mas agora tinha volume, volume.
Às 3, ligou para o Subinspetor Thorsen. Desta vez, a telefonista do serviço de respostas mandou-o esperar enquanto verificava. Voltou minutos depois, dizendo-lhe que Thorsen pedia-lhe que tocasse novamente às sete da noite. Delaney desligou, convencido de que acontecia algo, algo muito estranho.
Afastou as preocupações e voltou às notas e relatórios. Se "O Suspeito" era realmente um montanhista – e acreditava que fosse – não haveria acaso outras possíveis pistas para sua identidade, com exceção da lista da mala direta da Outside Life? Não haveria, por acaso, um clube nacional ou local, uma associação de montanhistas cuja lista de sócios pudesse ser examinada no que interessava aos moradores da jurisdição da 251ª Delegacia? Não haveria uma news-letter ou revista dedicada ao montanhismo com uma lista de assinantes, que pudesse ser usada para o mesmo fim? E no tocante a livros sobre montanhismo? Não deveria acaso fazer uma pesquisa na biblioteca que servia à jurisdição da 251ª Delegacia e tentar verificar quem retirara livros sobre o assunto?
Tomou notas sobre essas questões com a mesma rapidez com que lhe ocorriam. O montanhismo era, afinal de contas, um esporte secundário. Poder-se-ia mesmo chamá-lo de esporte? Na verdade, parecia um passatempo ou diversão. Parecia mais uma espécie de... bem, a única palavra que lhe ocorreu foi "desafio". Pensou também, por algum motivo, em "cruzada", mas achou que isso não fazia muito sentido e resolveu conversar com Calvin Case a respeito. Cuidadosamente, tomou uma nota nesse sentido.
Por último, quase como um pensamento casual, voltou ao problema que o vinha preocupando nos últimos dias e resolveu entregar tudo o que possuía a Broughton e ao Chefe Pauley. Poderiam eles desenvolver as pistas com muito mais rapidez do que ele e, possivelmente, impedir outro assassinato. Gostaria de continuar a investigar sozinho, mas isso seria egoísmo, apenas egoísmo.
Escrevia um relatório minucioso sobre a reunião com Sol Appel quando tocou o telefone. Ergueu o aparelho e, distraído, respondeu:
– Alô.
– Alô? – riu o Dr. Sanford Ferguson. – Que diabo de cumprimento é esse, um simples "Alô"? O que foi que aconteceu com o "Fala o Capitão Edward X. Delaney"?
– Muito bem. Fala o Capitão Edward X. Delaney. Você está tocado?
– A caminho disso, rapaz. Parabéns.
– Quer dizer que o desenho estava exato?
– Em cima da marca. O ferimento externo – refiro-me agora ao crânio – era um quadrado aproximado, de mais ou menos dois centímetros e meio de cada lado. Na sondagem, usei fibra de vidro. Sabe o que é isso?
– Um feixe esguio de fios de vidro, flexível, e que transmite a luz produzida por uma bateria.
– Você entende de tudo, não, Edward? Sim, foi isso mesmo que usei. Afilando-se, curvando para baixo até uma ponta aguda. Encontrei mesmo evidência de abrasões mais fortes na superfície interna, talvez cortes. Poderiam ter sido causadas por aqueles dentes serrilhados. Não suficientemente definido para incluir no laudo oficial, mas uma possibilidade, capitão, uma possibilidade.
– Muito obrigado, doutor. E o óleo?
– Nenhum sinal claro do mesmo. Mas enviei aquele farrapo que você me deu e um espécime de tecido cerebral ao laboratório. Como lhe disse, o troço leva tempo.
– Eles falarão?
– Os caras do laboratório? Somente comigo. É apenas um trabalho para eles. Não sabem de coisa alguma. Feliz, Edward?
–Sim, felicíssimo. Por que é que você vai tomar um porre?
– Ele era tão baixote. Tão baixote, tão frágil, tão gasto! O coração dele não valia nada e tinha um membro do tamanho de um dedal. Por isso, vou tomar um porre. Alguma objeção?
– Não. Nenhuma.
– Prenda aquele calhorda, Edward.
– Vou prendê-lo.
– Promete?
– Prometo – disse o Capitão Edward X. Delaney.
Chegou ao hospital pouco depois das 5:30, mas a visita constituiu um desastre. Imediatamente, Bárbara começou a falar de um primo falecido vinte anos antes e, logo depois, "desta terrível guerra". Pensou que se referia ao Vietnã, mas ela falou em Tom Hendricks, um tenente dos Fuzileiros, e compreendeu que se referia à Guerra da Coréia, onde morrera o rapaz. Cantou um verso de "O preto é a cor do cabelo do meu único amor" e ele não soube o que fazer.
Sentado ao lado dela, tentou tranqüilizá-la. Mas ela recusava-se a ficar quieta. Disse coisas desconexas sobre Mary e as cortinas dos quartos do terceiro andar. Thorsen, violetas, um cão morto... e quem levara seus filhos? Ele amedrontou-se e esteve a ponto de chorar. Apertou a campainha, chamando a enfermeira. Não aparecendo ninguém, correu para o corredor e quase arrastou a primeira enfermeira que viu.
Bárbara tartamudeava ainda, de olhos fechados, com um semi-sorriso nos lábios. Esperou ansioso, enquanto a enfermeira saía para consultar a ficha de medicação. Ouviu uma torrente interminável de conversas sem sentido: Lombard e Honey Bunch e, de súbito, "Preciso de cem dólares", Eddie e Liza, o carrossel no parque, onde ela supostamente se encontrava, descrevendo-o e rindo, e os cavalos pintados que rodopiavam. A enfermeira voltou com uma bandeja coberta, tirou uma seringa e aplicou em Bárbara uma injeção no braço, perto do pulso. Minutos depois ela acalmava-se e dormia.
– Jesus Cristo – murmurou Delaney em voz baixa – que foi que aconteceu com ela? O que foi aquilo?
– Uma ligeira perturbação – sorriu mecanicamente a enfermeira. – Ela está bem agora. Dorme tranqüilamente.
– Tranqüilamente? – fez o capitão.
– Tranqüilamente – repetiu a enfermeira. – Se o senhor tem alguma pergunta a fazer, por favor faça-a ao seu médico pela manhã.
Saiu e Delaney ficou olhando-a, enquanto se perguntava se não havia um fim à loucura no mundo. Voltou-se para a cama. Bárbara, aparentemente, dormia tranqüila. Sentiu-se amedrontado, inerme, furioso.
Não eram 7 horas ainda e não podia telefonar para Thorsen. Voltou para casa a pé, na esperança de ser atacado. Não estava armado, mas não se importava. Dar-lhes-ia pontapés nos testículos, morder-lhes-ia a garganta... tal seu estado de espírito. Olhou em volta para as ruas escuras. "Experimentem comigo", queria gritar. "Venham. Estou aqui!"
Entrou, tirou o chapéu e o paletó e serviu-se de dois uísques puros. Aos poucos, acalmou-se. Que coisa fora aquilo! Estava em casa sem nenhum ferimento, pensando claramente. Bárbara, porém...
Sentou-se impassível, bebericando o uísque até 7 horas. Discou o número de Thorsen, não se importando realmente com coisa alguma. Thorsen respondeu quase de imediato.
– Edward?
– Sim.
– Algo importante?
– Penso que sim. Pode comunicar-se com Johnson?
– Ele está aqui ao meu lado.
Delaney notou o tom da voz do interlocutor, tenso, o caráter de urgência.
– Preciso vê-lo – disse o capitão. – Quanto mais cedo, melhor.
– Certo – concordou Thorsen. – Pode vir agora?
– Escritório ou em casa?
– Em casa.
– Vou tomar um táxi. Estarei aí dentro de vinte minutos no máximo.
Desligou e disse: "F. todos", em voz alta. Foi à cozinha, apanhou um saco de compras no armário sob a pia, trouxe-o ao estúdio e nele colocou os três martelos e a lata de óleo para máquina – toda a sua "evidência física". Saiu em seguida.
A Sra. Thorsen recebeu-o à porta, tomou-lhe o sobretudo e o chapéu e guardou-os. Era uma loura alta, quase encovada, mas possuidora de bons ossos e dos mais belos olhos que Delaney já vira. Conversaram durante alguns momentos. Ela perguntou sobre Bárbara. Ele, em resposta, murmurou alguma coisa.
– Você jantou esta noite, Edward? – perguntou ela de súbito. Ele tentou pensar, sem lembrar-se, e sacudiu a cabeça.
– Vou fazer uns sanduíches. Presunto e queijo, está bem? Ou rosbife?
– Ambos serão ótimos, Karen.
– E vou preparar uma salada. Dentro de uma hora, mais ou menos. Os outros estão na sala de estar. Você sabe onde é.
Havia três homens sentados na sala. Thorsen e o Inspetor Johnson ergueram-se para apertar-lhe a mão. O terceiro continuou sentado. Ninguém tomou a iniciativa de apresentá-lo.
Ele era baixo, gordo, moreno e possuía um imenso bigode. Conservava as mãos nos joelhos, numa imobilidade monumental. Só os olhos moviam-se de um lado para outro, revelando curiosidade e uma viva inteligência.
Somente depois de sentar-se soube Delaney quem ele era: o vice-prefeito, Herman Alinski. Era um político calado, inimigo da publicidade, com a reputação de ser o quebra-galho do prefeito e um dos seus mais íntimos confidentes. Em um curto esboço biográfico publicado no Times, o jornalista, especulando sobre os deveres de Alinski, chegara à conclusão seguinte: "Aparentemente, o que faz com maior freqüência é escutar, e todos que o conhecem concordam que o faz muito bem."
– Uma bebida, Edward? – perguntou Thorsen. – Uísque com gelo?
Delaney olhou em volta. Thorsen e Johnson tinham copos na mão. Alinski, não.
– Agora não, obrigado. Talvez mais tarde.
– Muito bem. Karen está preparando sanduíches. Edward, você disse que tinha algo importante para nós. Pode falar sem reservas.
Mais uma vez, Delaney sentiu a tensão na voz de Thorsen. Ao olhar para o Inspetor Johnson, pareceu-lhe que o grande negro estava rígido e sombrio.
– Muito bem – concordou Delaney. – Começarei do início.
Começou a falar, sentado ainda. Minutos depois, levantou-se e passou a andar de um lado para outro, quando não parava com o cotovelo sobre a cornija da lareira. Pensava e falava melhor quando de pé, e podia gesticular livremente. Nenhum dos três interrompeu-o, embora cabeças e olhos o seguissem por toda parte.
Começou com a morte de Lombard. A posição do corpo. Seus motivos para pensar que o assassino se aproximara de frente, e girara para atacá-lo pelas costas. A forma e natureza do ferimento. O óleo no ferimento. A carteira de habilitação de motorista, desaparecida. A crença de que ela constituía uma prova da prática do crime. Langley, seus conhecimentos técnicos, a descoberta do martelo de pedreiro, que levou ao martelo de faiscador e, finalmente, ao machado de gelo.
A essa altura, abriu a bolsa de compras e mostrou as ferramentas. Os três examinaram-nas atentamente, com as faces impassíveis; enquanto testavam com os polegares os gumes afiados, sopesavam-nas e verificavam o equilíbrio.
Prosseguiu Delaney: o ataque contra Bernard Gilbert. A carteira de identidade desaparecida. A certeza de que o atacante era um psicopata. Morador na jurisdição da 251ª Delegacia. E que mataria outra vez. A informação dada por Handry: o assassinato de Trotsky e o nome de Calvin Case. A entrevista com Case. O óleo nas cabeças dos machados de gelo. Mostrou a lata de óleo.
Havia-os conquistado e os três inclinavam-se atentos para a frente. Thorsen e Johnson esqueceram a bebida, enquanto os olhos agudos do vice-prefeito saltavam, brilhando, de um lado para outro. Nenhum som se ouvia de parte deles.
Narrou a entrevista com Sol Appel na Outside Life. A lista de mala direta e as notas de vendas detalhadas. O modo como traçara o perfil da cabeça do machado de gelo, a iniciativa de entregar uma mostra do óleo ao legista que fizera a autópsia de Gilbert. Como combinara o perfil com a forma do ferimento. E como o óleo seria analisado pelo IAO.
– Quem foi que fez o "post"? – perguntou o Inspetor Johnson.
A cabeça de Alinski girou vivamente e ele falou pela primeira vez.
– "Post"? – perguntou. – Que "post"?
– O "Post-mortem" – explicou Delaney. – Prometi conservar fora disto o nome do médico-legista.
– Nós poderíamos descobrir – disse suavemente Alinski.
– Naturalmente – respondeu o capitão, com igual suavidade. –Mas não por meu intermédio.
Tais palavras pareceram satisfazer Alinski. Thorsen perguntou-lhe o quanto ele dissera ao médico, a Langley, a Handry, a Case, à Sra. Gilbert e a Sol Appel.
Somente o que precisavam saber, garantiu Delaney. Sabiam apenas que ele estava empenhado em uma investigação particular das mortes de Lombard e Gilbert, e queriam ajudar.
– Por quê? – perguntou Alinski.
Delaney encolheu os ombros.
– Por motivos lá deles.
Caiu o silêncio durante alguns minutos. Em seguida, Alinski falou suavemente:
– O senhor não tem prova alguma, tem, capitão?
Delaney fitou-o, atônito.
– Naturalmente que não. Tudo isso é vago, teoria. Não lhes contei ou mostrei nada que possa ser levado, nesta ocasião, a um tribunal.
– Mas acredita na teoria?
– Acredito. Por um único motivo: não há coisa alguma mais em que possamos acreditar. A Operação Lombard tem algo de melhor?
Os três voltaram as cabeças e entreolharam-se, mudos. Delaney nada pôde deduzir das expressões fisionômicas.
– É realmente por esse motivo que me encontro aqui – disse, dirigindo-se a Thorsen. – Quero entregar o meu material.
Nesse momento ouviu-se uma batida na porta; não, na verdade, uma batida, mas três pancadas secas. Thorsen levantou-se de um salto, dirigiu-se à porta em passos duros e aliviou a esposa do peso de uma grande travessa.
– Obrigado, querida – sorriu ele.
– Há muito mais de tudo isto – disse ela aos visitantes. – Assim, não façam cerimônia se estiverem com fome. Simplesmente, peçam.
Thorsen colocou a bandeja sobre uma mesa baixa de coquetel, e todos os presentes se reuniram em torno dela. Havia sanduíches de presunto e queijo, de rosbife, pedaços de tomate, rabanetes, picles, rodelas de cebolas espanholas, um pote de mostarda, azeitonas, batatas fritas, e cebolinhas verdes.
Serviram-se de pé. Thorsen preparou novas bebidas. Desta vez Delaney aceitou uísque com água. Alinski preferiu uísque puro.
Não querendo sacrificar a impressão que, obviamente, causara, Delaney reiniciou a exposição, falando entre pedaços de sanduíches e cebolinhas verdes. Nessa ocasião, olhou diretamente para Alinski.
– Gostaria de entregar o que reuni ao Chefe Pauley. Admito que é tudo vago, mas é uma pista. Tenho três ou quatro pessoas inexperientes que podem checar as origens do machado, a lista de mala direta da Outside Life, e as notas de venda. Pauley, porém, dispõe de quinhentos detetives e somente Deus sabe de quantos funcionários burocráticos, se precisar. É uma questão de tempo. Acho que Pauley deve tomar a frente. Pode realizar o trabalho com muito maior rapidez do que eu. Esta medida talvez impeça outro assassinato, e eu estou convencido de que haverá outro, e mais outro, e mais outro, até prendermos esse louco.
Os três interlocutores continuaram a comer, bebericando seus drinques e fitando-o. Em certo momento, Thorsen começou a falar. Alinski, porém, ergueu a mão, silenciando-o. Finalmente, o vice-prefeito terminou o sanduíche, limpou os dedos em um guardanapo de papel, levou a bebida para a cadeira, sentou-se, suspirou, e olhou para Delaney.
– Um problema moral para o senhor, não, capitão? – perguntou macio.
– Chame-o o que quiser – retrucou Delaney, encolhendo os ombros. – Acho que o que possuo justifica o exame da possibilidade e o Chefe Pauley é...
– Impossível – disse Thorsen.
– Por que impossível? – exclamou irritado Delaney. – Se você. . .
– Calma, Edward – disse tranqüilo o Inspetor Johnson. Comia o terceiro sanduíche. – É sobre isso que queremos conversar com você. Evidentemente não andou ouvindo rádio nem vendo TV nas últimas horas. Não pode entregar o que tem ao Chefe Pauley. Broughton liquidou-o há algumas horas.
– Prendeu-o?
– O que quer que você quiser chamar à medida. Tirou-lhe o comando. Expulsou-o da Operação Lombard.
– Jesus Cristo! – explicou Delaney. – Ele não pode fazer isso.
– Fez – interveio Thorsen, inclinando a cabeça. – E de uma maneira especialmente. . . especialmente brutal. Nem mesmo comunicou ao chefe. Simplesmente convocou uma entrevista coletiva e anunciou que ia retirar de Pauley as responsabilidades de comando relativas à Operação Lombard. Afirmou que Pauley era ineficiente e que não vinha conseguindo resultado algum.
– Mas quem, inferno, é. . .?
– Broughton vai assumir a supervisão pessoal de todos os detetives designados para a Operação Lombard.
– Oh, Deus! – gemeu Delaney. – Isso líquida o caso.
– Você ainda não ouviu o pior – continuou Thorsen, fitando-o impassível. – Há coisa de uma hora, Pauley pediu aposentadoria. Depois disso, Broughton disse que Pauley sabe que sua carreira está encerrada, e quer cair fora.
Delaney afundou-se pesadamente numa poltrona, olhou para a bebida, e girou os cubos de gelo.
– O filho da mãe! – disse, amargo. – Pauley era um homem competente. Os senhores não têm idéia de como. Estava imediatamente atrás de mim. E isso apenas porque tive sorte, e ele não. Mas teria descoberto essa história sobre o machado dentro de uma semana, talvez menos. Sei que teria. Sei disso pelos relatórios. Diabo! O Departamento não pode perder homens como Pauley. Um bom cérebro e trinta anos de experiência entrando pelo cano. Tenho vontade de vomitar!
Nenhum dos presentes disse coisa alguma, dando-lhe tempo de acalmar-se. Alinski ergueu-se e dirigiu-se mais uma vez à bandeja de comida, de onde tirou alguns rabanetes e azeitonas. Parou em frente à cadeira de Delaney, mastigando.
– Sabe, capitão – disse em voz suave – esse fato não afeta realmente seu problema moral, não? Quero dizer, o senhor pode entregar o que tem a Broughton.
– Acho que não – retrucou Delaney. – Liquidando Pauley, pelo amor de Deus! Broughton está louco. Ele simplesmente queria um bode expiatório para defender a própria reputação.
– É o que pensamos – comentou o Inspetor Johnson.
Delaney ergueu os olhos para o Vice-Prefeito Alinski, ainda de pé à sua frente.
– O que está havendo? – indagou. – Querem, por favor, dizer-me o que diabo está acontecendo?
– Quer realmente saber, capitão?
– Sim, quero – grunhiu Delaney. – Mas não precisam me dizer. Eu mesmo descobrirei.
– Acho que sim – anuiu Alinski. – O senhor é um homem muito esperto.
– Esperto? Merda! Não consigo nem descobrir um assassino psicopata na jurisdição de minha própria delegacia.
– É importante para o senhor descobrir o assassino? A coisa mais importante?
– Naturalmente que é. Esse louco vai continuar a matar – sem parar. Serão mais curtos os intervalos entre os assassinatos. Talvez ele ataque à luz do dia. Quem, diabo, sabe? Mas posso garantir-lhes uma coisa: ele não se deterá agora. É uma febre queimando no sangue dele. Não pode parar. Esperem só até que os jornais descubram isso. E descobrirão. Nessa ocasião, a merda chegará até o ventilador.
– Vai levar o que tem a Broughton? – perguntou quase indolente Thorsen.
– Não sei. Não sei o que fazer. Preciso pensar no caso.
– Isso é prudente – interveio inesperadamente Alinski. – Pense no caso. Nada há igual ao raciocínio... um longo e profundo raciocínio.
– Mas quero que os senhores saibam de uma coisa – respondeu zangado Delaney, sem saber por que estava zangado. – A decisão é minha. Somente minha. O que eu resolver fazer, farei.
Eles lhe poderiam ter oferecido algo, mas foram prudentes. Johnson aproximou-se e colocou uma pesada mão sobre o ombro de Delaney. O grande negro sorriu.
– Sabemos disso, Edward. Sabíamos que você era obstinado desde o início. Não vamos fazer pressão sobre você.
Delaney esvaziou a bebida, levantou-se e pôs o copo vazio sobre a mesinha de coquetel. Recolocou no saco de compras de papel os martelos e a lata de óleo.
– Obrigado – disse a Thorsen. – Agradeça à Karen pela comida. Eu sei onde fica a saída.
– Você telefonará e me dirá o que resolveu, Edward?
– Certamente. Se resolver procurar Broughton, avisá-lo-ei em primeiro lugar.
– Muito obrigado.
– Cavalheiros – Delaney fez uma inclinação de cabeça geral e saiu. Olharam-no sair, todos de pé.
Precisou caminhar cinco quarteirões e perdeu dois centavos antes de encontrar uma cabina telefônica em funcionamento. Finalmente, conseguiu ligação com Thomas Handry.
– Sim?
– Aqui é o Capitão Edward X. Delaney. Estou interrompendo-o?
– Está.
– Trabalhando?
– Tentando.
– Como é que está indo a coisa?
– Nunca tão bem como a gente quer.
– Isso é verdade – disse Delaney, sem ironia ou malícia. – Verdade nos casos de poetas e de "tiras". Eu estava com a esperança de que você pudesse me dar um pouco de ajuda.
– A foto do machado de gelo que matou Trotsky? Não consegui encontrá-la.
– Não, é outra coisa.
– O senhor também é outra coisa, capitão... sabia disso? Tudo para o senhor e nada para mim. Quando é que vai se abrir?
– Dentro de um ou dois dias.
– Promete?
– Prometo.
– Muito bem. O que é que quer?
– O que sabe a respeito de Broughton?
– Quem?
– Broughton, Timothy A. Vice-comissário.
– Aquele salafrário? Viu-o na TV esta noite?
– Não, não vi.
– Ele dispensou o Chefe Pauley. Por ineficiência e, insinuou, prevaricação no cumprimento do dever. Um doce, aquele homem.
– 0 que é que ele quer?
– Broughton? Ele quer ser comissário, em seguida, prefeito, depois, governador e, finalmente, presidente deste país. Ele tem uma ambição e uma energia em que o senhor não acreditaria.
– Acho que não gosta dele.
– Acha certo. Fiz uma entrevista com ele. Sabe que a maioria dos homens usa fotos das esposas e filhos na carteira, não é? Broughton usa fotos dele mesmo.
– Ótimo. Tem algum poder? Poder político.
– Fortíssimo, sem dúvida alguma. Para começar, Queens e Staten Island. Fala-se que pretende candidatar-se às eleições primárias no ano que vem. Explorando uma plataforma de "lei e ordem". Sabe como é. "Precisamos acabar com o crime nas ruas, não importa o que isso nos custe".
– Acha que conseguirá?
– Talvez. Se conseguir levar avante com êxito a Operação Lombard, isto forçosamente ajudará. E se o assassino de Lombard for um negro viciado em heroína, que vive com uma hippie branca de quinze anos e cabelos louros, coisa alguma deterá Broughton.
– Acha que o prefeito está preocupado?
– Não deveria estar?
– Creio que sim. Obrigado, Handry. Você esclareceu um bocado de coisas.
– Não para mim. Que diabo está acontecendo?
– Pode me dar um dia... ou dois?
– Não mais do que isso. Gilbert morreu, não?
– Sim, morreu.
– Há uma ligação, não?
– Há.
– Dois dias – exigiu Handry. – Nada mais. Se não tiver notícias do senhor por essa ocasião, terei de começar a somar dois e dois. E na imprensa.
– Bastante justo.
Foi para casa a pé, com o saco de compras batendo-lhe no joelho. Podia compreender, naquele instante, algo do que ocorria – a tensão de Thorsen, os ares sombrios de Johnson, a presença de Alinski. Não queria realmente envolver-se em toda essa complicação política. Era um "tira", um profissional. Naquele momento, tudo o que queria era prender o assassino, mas parecia enredado e sufocado por esse labirinto de ambições, malquerenças e obrigações com outros homens.
O que acontecera, compreendeu, era que a busca do assassino de Lombard e Gilbert se transformara em algo muito pessoal para ele, algo privado, e ressentia a interferência de outros indivíduos, outras circunstâncias, outros motivos. Precisava de ajuda, naturalmente – não podia fazer tudo sozinho – mas, basicamente, o caso era um duelo, um combate entre dois homens, e deviam ser evitados os conselhos, as pressões e as influências externas. O indivíduo sabia o que podia fazer, respeitava a capacidade do adversário, não o menosprezava. Se era uma exibição de esgrima ou um duelo até a morte, cada um que pensasse o que quisesse.
Mas tudo isso era egoísmo, reconheceu, gemendo alto. Machismo estúpido, acreditando que coisa alguma importava salvo que o cara arriscasse a vida. E o fato não devia, não podia, afetar-lhe a decisão, a qual, como Bárbara e o Vice-Prefeito Alinski haviam reconhecido, era essencialmente uma opção moral.
Pensando dessa maneira, com o cérebro em turbilhão, entrou no seu próprio quarteirão de cabeça baixa, sonolento com o pesado saco de compras, quando ouviu uma voz áspera:
– Delaney!
Parou lentamente. Como a maioria dos detetives em Nova York – no mundo! – havia posto homens na "frigideira". Enviara-os para a morte, ou para longas ou curtas penas de prisão, quando não para hospícios. A maioria jurara vingança – no tribunal, em ameaças transmitidas ao telefone por amigos, em cartas. Muitos poucos deles, por sorte, levavam a cabo as ameaças. Mas havia alguns...
Naquele instante, ouvindo seu nome ser pronunciado dentro de um sedã escuro, estacionado em uma rua mal iluminada, e lembrando-se de que estava desarmado, voltou-se lentamente para o carro. Deixou o saco de compras cair na calçada. Ergueu devagar as mãos, com as palmas para a frente.
Viu, porém, o motorista uniformizado no assento dianteiro. E no traseiro, inclinado sobre a janela de vidro arriado, o volume e a face irritada do Vice-Comissário Broughton. O charuto, preso entre os dentes, queimava furiosamente.
– Delaney! – disse outra vez Broughton, mais em tom de comando do que de cumprimento. O capitão aproximou-se do carro. Broughton nenhum esforço fez para abrir a porta. Delaney, em conseqüência, teve de curvar-se da cintura para baixo a fim de falar-lhe. Tinha certeza de que aquilo era proposital da parte de Broughton, a fim de conservá-lo na posição de suplicante.
– Sim?
– Que diabo pensa que está fazendo?
– Não compreendo, senhor.
– Enviamos um homem à Flórida. E descobrimos que anda desaparecida a carteira de habilitação de Lombard. A viúva disse que você lhe falou a esse respeito. Você foi visto entrando na casa dela. Você sabia que a carteira de habilitação estava desaparecida. Eu podia liquidá-lo por esconder provas.
– Mas comuniquei o fato, senhor.
– Comunicou? A Pauley?
– Não. Não pensei que fosse tão importante assim. Comuniquei a Dorfman, que responde pelo expediente da Delegacia dois-cinco-um. Tenho certeza de que ele enviou um relatório ao Departamento de Trânsito. Verifique com o Departamento de Veículos Automotores do Estado de Nova York, senhor. Tenho certeza de que encontrará o registro do arquivamento do relatório.
Houve silêncio durante um momento. Uma nuvem acre de fumaça de charuto evolou-se grossa da janela e envolveu a face de Delaney. Ele continuava ainda curvado.
– Por que foi visitar a esposa de Gilbert? – indagou Broughton.
– Pela mesma razão que fui visitar a Sra. Lombard – respondeu imediatamente. – Apresentar minhas condolências. Como delegado e ex-delegado da jurisdição em que ocorreu o crime. Boas relações públicas para o Departamento.
Mais uma vez, fez-se o silêncio.
– Você tem resposta para tudo, seu calhorda sabido – disse furioso Broughton. Encontrava-se em semi-escuridão. Delaney, curvando-se, mal podia distinguir-lhe as feições. – Andou visitando Thorsen? E o Inspetor Johnson?
– Naturalmente que visito o Subinspetor Thorsen, senhor. Ele é meu amigo há muitos anos.
– É o seu "rabi", certo?
– É. E ele me apresentou a Johnson. Só porque estou de licença, isso não significa que tenho que deixar de visitar velhos amigos do Departamento.
– Delaney, não confio em você. Eu tenho um bom nariz para descobrir tipos estúpidos como você. E tenho a impressão de que pretende alguma coisa. Pois escute: você ainda faz parte da polícia e posso massacrá-lo no momento em que quiser. Sabe disso?
– Sim, senhor.
– Não me contrarie, Delaney. Posso fazer-lhe mais mal do que você a mim. Coppish?
– Sim, senhor, compreendi.
Até aquele momento mantivera o temperamento sob controle. Numa fração de segundo, tomou sua decisão. A sua fúria não era importante nem, tampouco, a nociva personalidade de Broughton. Aproximou o saco de compras da janela do carro.
– Senhor, tenho algo aqui que gostaria de lhe mostrar. Acho que poderia, possivelmente, ajudar...
– Não me interessa! – interrompeu-o rudemente Broughton, e Delaney ouviu o arroto. – Não preciso de sua ajuda. Não a quero. A única maneira de você me ajudar é rastejar para dentro de um buraco e desaparecer. Está claro?
– Senhor, venho...
– Que diabo! Como é que posso fazê-lo compreender? Vá para aquele lugar, Delaney. É tudo que quero de você. Simplesmente, vá para aquele lugar, seu idiota.
– Sim, senhor – respondeu o Capitão Edward X. Delaney, quase delirante de prazer. – Ouvi e compreendi.
Observou o carro preto afastar-se. Compreendeu? Preocupa-se, fica chateado, luta com "problemas morais" e bobagens desse tipo e, subitamente, um débil mental insolente resolve tudo por você. Voltou feliz para casa, telefonou para o Subinspetor Thorsen e, depois de contar o encontro com Broughton, disse-lhe que queria continuar, independentemente, a investigação.
–Espere um minuto, Edward – disse Thorsen. Delaney desconfiou que o Inspetor Johnson e o Vice-Prefeito Alinski ainda lá estivessem e que Ivar lhes repetisse a conversação. Thorsen voltou ao fone dentro de cinco minutos.
– Ótimo – disse. – Continue. E boa sorte.

7

Aparentemente, passava muito tempo desenhando garatujas. olhando para o espaço vazio, tomando notas quase incompreensíveis, esboçando programas que rasgava e abandonava tão logo eram concluídos. Mas estava, sabia, gradualmente desenvolvendo uma campanha sensata nas duas semanas que se seguiram à reunião na casa de Thorsen.
Sentava-se naquele momento em companhia de Christopher Langley no apartamento da viúva Zimmerman e, enquanto ela se atabalhoava, insistindo com eles para que aceitassem um pouco mais de chá e pudim de pão, passaram em revista o bem elaborado programa de Langley para a investigação de que estava encarregado. O homenzinho descobrira mais duas lojas em Manhattan que vendiam machados de gelo, nenhuma das quais possuía lista de mala direta ou mantinha registro das compras dos clientes.
– Não faz mal – disse sombrio Delaney. – Não podemos ter sorte o tempo todo. Faremos o que pudermos com o que temos.
Langley continuaria a procurar em Manhattan lojas onde o machado era vendido e, posteriormente, estenderia a busca a outros bairros. Em seguida, procuraria retalhistas e atacadistas de ferramentas e equipamentos para uso ao ar livre. Tentaria fazer uma lista de fabricantes americanos de machados. Organizaria uma lista de nomes e endereços de fabricantes estrangeiros de material de montanhismo que exportavam para os Estados Unidos, começando com a Alemanha Ocidental e Áustria, passando depois à Suíça.
– É um trabalho imenso – alertou-o Delaney.
Langley sorriu, aparentemente em nada apavorado com as dimensões da tarefa.
– Mais pudim de pão? – perguntou alegre a viúva Zimmerman. – É feito em casa.
Langley falara a verdade; ela era uma cozinheira horrenda.
Delaney teve outro encontro com Calvin Case, que orgulhosamente anunciou que somente tomava sua primeira bebida depois que o rádio de cabeceira anunciava o noticiário do meio-dia.
– A bebida fica preparada – explicou – mas não a toco até que ouço aquela sineta. Depois.. .
Delaney deu-lhe os parabéns e, quando Case repetiu o oferecimento de ajuda, começaram a discutir como solucionar o problema das notas de venda da Outside Life.
– Nós temos um problema – disse-lhe Case. – Será muito fácil retirar todas as notas que indicam a compra de um machado de gelo nos últimos sete anos. Mas, e se o criminoso comprou-o há dez anos?
– Neste caso, seu nome constará da lista de mala direta. Providenciarei para que alguém trabalhe nesse ângulo.
– Muito bem, e se comprou o machado em outro local, mas talvez tenha comprado outros equipamentos de montanhismo na Outside Life?
– Bem, você não poderia retirar todas as notas que indicam a compra de material de montanhismo, de qualquer tipo?
– Aí é que está o problema – observou Case. – Uma boa parte do material usado em montanhismo é usado também por excursionistas e um bocado de gente que nunca se aproximou de uma montanha. Quero dizer, material como mochilas, lanternas, alimentos congelados, luvas, cintos trançados e talabartes. Diabo, pescadores no gelo compram grampos de segurança e iatistas usam o mesmo tipo de linha que os montanhistas. Neste caso, onde isso nos deixa?
Delaney pensou durante alguns minutos.
– Ouça aqui – disse por fim – não vou lhe pedir que examine mais do que uma vez as cem mil notas de venda. Por que não separa as que tenham alguma coisa a ver com montanhismo? Quero dizer, qualquer coisa. Cordas, mochilas, aumentos, qualquer coisa. Será uma grande pilha de notas, certo. E incluirá um bocado de indivíduos que não são montanhistas. Isso não tem importância. Na mesma ocasião, você faz um arquivo separado de todas as notas que acusam a venda de machados de gelo. Depois de terminadas as conferências, examinaremos, em primeiro lugar, a pilha de machados de gelo e separaremos todos os compradores por moradores da jurisdição da dois-cinco-um, e os visitaremos. Se isso não funcionar, tiraremos do arquivo geral todo os moradores da jurisdição que compraram equipamento de montanhismo. E se isso também não der certo, nós nos dividiremos e examinaremos todas as pessoas do arquivo.
– Jesus Cristo! E se isso não funcionar, acho que o senhor investigará cada um dos cem mil clientes constantes do grande arquivo!
– O número não será tão grande assim. Forçosamente, há pessoas que fizeram compras várias vezes na Outside Life nos últimos sete anos. Note que Sol Appel calcula haver cem mil notas de venda arquivadas, mas apenas trinta mil em sua lista de mala direta. Eu confirmarei com ele, ou você, mas tenho o palpite de que manda alguém separar os compradores habituais, e somente novos clientes são acrescentados à mala direta.
– Isso faz sentido. Muito bem, suponhamos que haja trinta mil clientes individuais. Se não conseguir coisa alguma com as notas de venda, vai investigar os trinta mil?
– Se for obrigado – assentiu Delaney. –Mas cruzarei essa ponte quando chegar a ocasião. Enquanto isso, o que lhe parece a idéia de formar dois arquivos: o primeiro de compra de machados de gelo e o segundo de compras de equipamentos gerais de montanhismo?
– Parece boa.
– Neste caso, pode pedir a Sol Appel que mande para cá as notas de vendas?
– O senhor é louco. Sabia disso, capitão?
– Eu sei.
O encontro com Mônica Gilbert exigiu mais cautela e deliberação. Passou pela casa dela duas vezes, na calçada oposta, e não viu sinais de vigilância, patrulheiros uniformizados, ou carros policiais sem marcas. Mas mesmo que os guardas tivessem sido retirados, era provável que seu telefone continuasse sendo controlado. Lembrando-se da ameaça de Broughton de liquidá-lo, não sentia o menor desejo de arriscar-se a um contato que chegaria ao conhecimento do vice-comissário.
Lembrou-se, então, das duas filhinhas da viúva. Uma delas, a mais velha, estava seguramente em idade escolar – talvez ambas. Mônica Gilbert, se matriculara as filhas numa escola pública, e pelo que ouvira de sua situação financeira, provavelmente fizera isso, certamente as levaria à escola mais próxima, a três quarteirões de distância, e iria buscá-las à tarde.
Na manhã seguinte, em conseqüência, tomou posição no fim do quarteirão, na calçada oposta, e esperou, batendo os pés para combater o frio, desejando ter usado um protetor de orelhas. Dentro de meia hora, contudo, foi recompensado pelo aparecimento da Sra. Gilbert e das duas meninas, saindo do prédio de apartamentos. Seguia-as do outro lado da rua, guardando distância, até que deixou as filhas à porta da escola. Ela iniciou a volta, aparentemente a caminho de casa. Ele cruzou a rua, aproximou-se, e tirou o chapéu.
– Sra. Gilbert.
– Ora, é o Capitão... Delaney?
– Exatamente. Como está a senhora?
– Bem, obrigada. E obrigada por sua carta de pêsames. Foi uma grande bondade sua.
– Sim, bem. . . Sra. Gilbert, poderia falar-lhe durante alguns minutos? Não quer tomar uma xícara de café? Poderíamos ir a uma lanchonete.
Ela fitou-o durante um momento, em dúvida.
– Bem. . . estou indo para casa. Por que não volta comigo? Eu sempre tomo minha segunda xícara depois de deixar as meninas na escola.
– Obrigado, eu gostaria.
Tivera o cuidado de trazer a cópia xerox da lista de mala direta da Outsíde Life, três conjuntos de fichas de arquivo de 3x5, e um pequeno mapa, da jurisdição da 251ª Delegacia, mostrando apenas os limites.
– Bom café – disse.
– Obrigada.
– Sra. Gilbert, a senhora me disse que queria ajudar. Ainda pensa da mesma maneira?
– Sim, mais do que nunca. Agora.
– É apenas trabalho de rotina. Cansativo.
– Não me importo.
– Muito bem.
Contou-lhe o que queria. Ela teria de examinar os 30.000 nomes e endereços da lista e, quando encontrasse um deles na jurisdição da 251ª Delegacia, datilografar uma ficha para cada pessoa. Ao terminar a lista, deveria datilografar a sua própria lista, com duas cópias a carbono, das fichas dos residentes na jurisdição.
– Tem alguma pergunta a fazer?
– Eles precisam residir rigorosamente dentro dos limites dessa delegada?
– Bem... use sua própria capacidade de julgamento a respeito. Se ficar a apenas alguns quarteirões fora, inclua-os.
– Isso ajudará a encontrar o assassino de meu marido?
– Acho que sim, Sra. Gilbert.
Ela concordou.
– Muito bem. Começarei imediatamente. Acho que, atualmente, será melhor se eu tiver algo que me mantenha ocupada.
Ele lançou-lhe um olhar de admiração.
Mais tarde, perguntou-se por que se sentia tão satisfeito consigo mesmo após as reuniões com Calvin Case e a Sra. Gilbert. Deu-se conta de que isso acontecia porque estivera discutindo nomes e endereços. Nomes! Até então, tudo se resumira em ferramentas de aço e latas de óleo. Mas, naquele instante, tinha nomes – um reservatório, um oceano de nomes! E endereços! Talvez, disso tudo nada resultasse. Estava preparado para tal possibilidade. Mas, entrementes, investigava pessoas, e não coisas, e sentia-se satisfeito.
A entrevista com Thomas Handry foi delicada. Contou-lhe apenas o que achou que o repórter devia saber, julgando-o suficientemente inteligente para preencher os claros. Disse, por exemplo, que Gilbert e Lombard haviam sido mortos com a mesma arma – haviam sido aparentemente mortos com a mesma arma. Não mencionou o machado de gelo. Handry, tomando notas em furiosa pressa, assentiu sem fazer perguntas sobre a arma usada. Como jornalista, conhecia o valor de palavras como "aparentemente", "supostamente", "segundo se diz".
Assumiu responsabilidade completa pela investigação e nenhuma referência fez a Thorsen, Johnson, Alinski, ou Broughton. Confessou-se preocupado porque os crimes ocorreram em sua jurisdição e disse que sentia por eles responsabilidade pessoal. Handry ergueu a vista do bloco de notas e fitou Delaney durante longo tempo, mas não fez comentário. Delaney disse estar convencido de que o assassino era um psicopata e de que atacaria novamente. Handry tomou nota de tudo e, felizmente, não lhe perguntou por que não entregava aquele material à Operação Lombard.
A grande discussão centralizou-se sobre a ocasião em que Handry poderia publicar a história. O repórter queria divulgar imediatamente o que soubera; o capitão desejava que ele esperasse até dar-lhe autorização. A discussão passou aos berros, cada vez mais altos, a respeito de quem fizera mais por quem, e quem devia o que a quem. Finalmente, compreendendo no mesmo momento como isso era ridículo, explodiram em gargalhadas e o capitão serviu novas bebidas. Chegaram a um acordo: Handry esperaria duas semanas. Se não houvesse recebido a autorização ao fim das mesmas, poderia publicar o que quisesse, especular sobre o que desejasse, mas sem atribuir coisa alguma diretamente a Delaney.
A sua maior decepção durante o período ocorreu quando, feliz e orgulhoso, levou a Bárbara os dois livros Honey Bunch, recebidos pelo correio. Ela estava inteiramente racional, aparentemente em flamejante boa saúde. Ao examiná-los, soltou um grito alegre, olhando-os e sacudindo a cabeça.
– Edward – disse – por que, em nome de Deus?
Estava prestes a lembrar-lhe que ela os pedira quando compreendeu, de súbito, que não se lembrava. Ocultou a contrariedade.
– Pensei que gostaria deles. Exatamente iguais aos que você mandou para Liza.
– Oh, você é tão bonzinho – disse ela, erguendo o rosto para ser beijada.
Ele inclinou-se ansioso sobre a cama, na esperança de que a alegria constituísse um presságio de recuperação. Ao sair, os dois livros encontravam-se no chão, ao lado da cama. Quando voltou no dia seguinte, um deles estava aberto, com as páginas viradas para baixo, na mesinha-de-cabeceira. Sabia que o estivera lendo, mas não sabia se isso constituía bom sinal. Ela nenhuma referência fez ao livro e ele, tampouco.
Os seus dias, assim, eram passados principalmente em planos, programas, reuniões, entrevistas. Não havia absolutamente progresso a comunicar ao ligar para Thorsen duas vezes por semana. Tendo distribuído as tarefas pela sua "assessoria" de amadores, chamava-os dia sim, dia não, não para receber notícias, mas para conversar, garantir-lhes que o trabalho era importante, responder a perguntas, e para que soubessem que ele estava ali, que sabia que o trabalho consumiria tempo, e que não desanimassem. Era muito hábil nesse assunto porque gostava dessas pessoas e sabia, ou sentia, os motivos de cada um para ajudá-lo.
Mas logo que os planos e programas foram postos em andamento, e ocupados todos os amadores em suas tarefas, descobriu que coisa alguma tinha a fazer. Voltou a reler as próprias notas e relatórios e descobriu as sugestões sobre revistas de montanhistas, associações ou clubes de tais esportistas, e um lembrete para ir checar na biblioteca local a retirada de livros sobre o assunto.
Chegou à lista "O Suspeito". Não havia acrescentado dado algum em quase seis semanas. Olhou para o relógio. Voltara da visita noturna ao hospital. Eram quase 8 da noite. Jantara? Sim, jantara. Mary deixara uma caçarola de camarões, frango, arroz, e pequenos pedaços de presunto. E nozes. Não gostava de nozes, tirou-as, mas o resto estava bom.
Telefonou para Calvin Case.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney. Como está?
– Bem.
– E sua esposa?
– Ótima. O que é que há?
– Gostaria de lhe falar. Agora. Não é sobre as notas de vendas. Sei que está trabalhando nelas. É sobre outro assunto. Se encontrar um táxi poderei chegar aí em meia hora.
– Certo. Venha. Tenho algo importante para lhe mostrar.
– Vou imediatamente para aí.
Evelyn Case recebeu-o à porta. Estava corada, feliz, e parecia ter uns 15 anos, vestida com uma calça blue jeans descorada, sapatos rasgados e uma das camisas esporte do marido amarrada em volta da cintura. Inesperadamente, ergueu-se na ponta dos pés para beijá-lo no rosto.
– Ora! – disse ele. – Muito obrigado.
– Estamos trabalhando nas notas de vendas, capitão – disse ela, sem fôlego. – Nós dois. Todas as noites. E Cal me disse o que significam os números de estoque. Às vezes, venho para casa na hora do almoço e ajudo-o.
– Ótimo – sorriu ele, dando-lhe uma palmadinha no ombro. – Isso é ótimo. E a senhora está com um aspecto maravilhoso.
– Espere só até ver Cal!
O apartamento estava mais alegre na ocasião e exalava um razoável cheiro de limpeza. Haviam sido lavadas as janelas do quarto de Case, havia novas cortinas de papel, um vaso de flores no carrinho de bebidas, e um novo tapete no chão.
As caixas de notas de venda da Outside Life, porém, espalhavam-se por toda parte, empilhadas contra as paredes no corredor, sala de estar, quarto. Delaney teve de abrir caminho através de tudo isso, andando de lado em alguns locais, deslizando pela porta aberta do quarto, da qual, notou, fora retirada a persiana.
– Ei! – gritou Calvin Case, fazendo um gesto abrangente. – O que é que acha disto?
Indicava uma incrível engenhoca; uma estrutura de canos de ferro de duas polegadas, que cercava a cama e pendia sobre ela, como as longarinas de uma capota. E havia cabos de aço, pesos, polias, aparelhos.
Delaney olhou atônito para tudo aquilo.
– Que diabo é isso? – perguntou.
Case riu, satisfeito com o seu espanto.
– Um presente de Sol Appel. Ele veio me visitar. No dia seguinte, apareceu um cara para tirar medidas. Dias depois, três caras chegaram com tudo isso e simplesmente o aferrolharam. É um ginásio. Posso exercitar-me da cintura para cima. Olhe só para isto. ..
Ergueu as mãos, agarrou um trapézio que pendia de cabos de metal. Ergueu o corpo da cama. O lençol limpo desceu até a cintura. O tórax nu continuava flácido e os músculos moles tremeram com o esforço. Soltou-se e deixou-se cair sobre a cama.
– Isso é tudo – arquejou. – Até agora. Mas a força está voltando. O tono muscular. Posso senti-lo. Agora, olhe para isto...
Havia dois canos sobre sua cabeça. A eles estavam presos cabos de aço, que corriam sobre polias numa travessa em cima. Os cabos desciam por todo o comprimento da cama, pelas polias da travessa mais baixa e, então, para o chão. Nas extremidades, pesos de aço inoxidável.
–Está vendo? – disse Case e fez uma demonstração, puxando alternadamente os cabos: direita, esquerda, direita, esquerda. – No momento, estou erguendo apenas pesos de meio quilo – reconheceu. – Mas pode-se acrescentar dois quilos e meio a cada cabo.
– E quando começou, não podia nem mesmo erguer os pesos de meio quilo – disse, entusiasmada, Evelyn Case ao Capitão Delaney. – Na próxima semana, vamos passar aos pesos de um quilo.
–E olhe só – continuou Case, mostrando o que pareceu um gigantesco grampo de cabelo pendente em frente ao seu pescoço. – É para a empunhadura. Exercitar os bíceps e peitorais.
Agarrou o grampo de cabelo com ambas as mãos e tentou aproximar os dois braços, avermelhando-se sua face com o esforço. Mal conseguiu movê-los.
– Isso é ótimo – disse Delaney. – É simplesmente ótimo.
– O melhor é isto aqui – e mostrou um braço de aço com dobradiça, que podia girar para os lados do ginásio. – Falei com os caras que montaram isto. Eles são de uma organização de terapia física, que se especializa em troços como este. Bem, eles vendem uma cadeira de rodas com um vaso embutido. Quer dizer, a pessoa senta-se sobre um espaço aberto. Pode andar de um lado para outro sobre rodas e quando quer evacuar, evacua. Mas o cara adquire mobilidade. Sou pesado demais para que Eve me levante e me ponha em uma cadeira, mas quando recuperar a força, poderei mover esta barra e passar para a cadeira furada sem ajuda, e voltar para a cama quando quiser. Sei que conseguirei fazer isso. Meus braços e ombros sempre foram fortes. Fiquei pendurado pelas mãos dezenas de vezes e sempre consegui erguer-me.
– Isso é maravilhoso! – disse Delaney, cheio de admiração. – Mas não exagere. Vá aos poucos no início. Fortifique-se gradualmente.
– Oh, claro. Sei o que fazer. Encomendamos uma dessas cadeiras, mas só será entregue dentro de duas semanas. Por essa altura, espero poder sair e voltar para a cama sem esforço. A cadeira tem freio e não rola enquanto a pessoa passa para ela. Sabe o que isso significa, Delaney? Poderei sentar-me àquela mesa enquanto examino as notas de venda. Isso ajudará.
– Certamente que sim. Como é que está indo com o álcool?
– Bem. Não parei, mas reduzi, não, querida?
– Oh, sim – concordou feliz a esposa. – Sei porque estou comprando, apenas metade do número de garrafas.
Os dois homens riram e ela riu também.
– A propósito – disse Case – as notas de venda estão indo mais rapidamente do que eu esperava.
– Sim? Por quê?
– Eu não sabia quanto negócio a Outside Life faz em equipamento de pesca e caça, tênis, golfe, mesmo croquet, badminton e coisas assim. Mais ou menos setenta por cento, acho. Assim, basta-me um rápido olhar para a nota e ponho-a de lado se nada tem com montanhismo.
– Ótimo. É bom saber disso. Posso falar-lhe durante alguns minutos? Não sobre notas de venda. Outro assunto. Sente-se capaz de conversar?
– Certamente. Sinto-me muito bem. Querida, puxe uma cadeira para o capitão.
– Eu mesmo vou buscá-la – disse Delaney, e trouxe a cadeira de espaldar reto da escrivaninha para junto da cama, sentando-se onde podia observar a face de Case.
– Um drinque, capitão?
– Muito bem. Obrigado. Com água.
– Querida?
Ela dirigiu-se à cozinha. Os dois sentaram-se em silêncio durante alguns momentos.
– Sobre o que é? – perguntou por fim Case.
– Sobre montanhistas.
Mais tarde, em seu gabinete, o Capitão Delaney tirou a lista "O Suspeito", e começou a acrescentar o que Calvin Case lhe dissera sobre montanhistas, enquanto se recordava de tudo. Extrapolou o que Case lhe dissera, baseando-se no próprio instinto, na experiência e nos conhecimentos dos motivos por que os homens agem como agem.
Sob "Físicas", acrescentou notas sobre robustez, alcance das mãos, força dos braços e ombros, tamanho do tórax, resistência ao pânico. Era verdade que Case dissera haver montanhistas "de todas as formas e tamanhos", mas ressalvou a frase mais tarde, e Delaney estava disposto a usar percentagens.
Sob "Psicológicas", havia muita coisa a escrever: amor ao ar livre, aceitação de riscos como um vício, mente disciplinada, nenhuma compulsão óbvia para o suicídio, egoísmo total, coragem – o que fora que Case dissera? – para ir à beira dos limites da vida", sem coisa alguma entre a pessoa e a morte, mas apenas a força e a presença de espírito. E, por último, um sentimento profundamente religioso, fundindo-se com o universo – "uno com tudo". E comparado com isso, tudo mais era "simplesmente conversa fiada".
Sob "Notas Adicionais", anotou "Provavelmente bebedor moderado", "Nenhum vicio em drogas" e "Relações sexuais prováveis após o assassinato, mas não antes".
Leu e releu a lista, procurando algo que pudesse ter esquecido. Não encontrou nada. "O Suspeito" estava saindo da escuridão, despontando. Delaney começava a assenhorear-se do homem, compreendendo o que ele era, o que queria, por que era obrigado a fazer o que fazia. Era ainda uma sombra, fumaça, mas havia dele agora um esboço. Começou a existir, no papel e na mente de Delaney. O capitão possuía uma imagem mental aproximada da aparência física do assassino, e começava a entrever o que acontecia na mente do louco. "O pobre e triste merda", disse em voz alta, mas sacudiu em seguida a cabeça, irritado, perguntando-se por que devia sentir pena de tal bandido.
Continuava a trabalhar perto de uma da manhã quando tocou o telefone da escrivaninha. Deixou-o chamar três vezes, sabendo – sabendo – sobre o que era a chamada e temendo-a. Finalmente, pegou o aparelho.
– Sim? – perguntou cauteloso.
– Capitão Delaney?
– Sim.
– Dorfman. Outro.
Delaney tomou uma profunda respiração, abriu amplamente a boca, inclinou a cabeça para trás, olhou para o teto e tomou outra profunda respiração.
– Capitão? Está ainda aí?
– Estou. Onde foi?
– Na Seventy-fifth Street. Entre a Second e a Third.
– Morto?
– Sim.
– Identificado?
– Sim. O distintivo dele desapareceu, mas conservava ainda o revólver de serviço.
– O quê?
– Era um dos chamarizes de Broughton.


PARTE 6


1

– Eu não queria que ele sofresse – disse fervorosamente, mostrando-lhe o cartão de identidade de Bernard Gilbert. – Não queria, realmente.
– Ele não sofreu, querido – murmurou ela, acariciando-lhe o rosto. – Estava inconsciente, em coma.
– Mas eu queria que ele fosse feliz! – exclamou Daniel Blank.
– Naturalmente – tranqüilizou-o ela. – Eu compreendo.
Esperara a morte de Gilbert antes de correr para Célia, da mesma forma que correra para ela após a morte de Lombard. Mas desta vez fora diferente. Sentiu uma sensação de isolamento, de retirada. Pareceu-lhe que não precisava mais dela, de seus conselhos, de suas preleções. Desejava saborear sozinho o que fizera. Ela dissera que compreendia, mas naturalmente que não. De que modo poderia?
Estavam nus no horrendo quarto coberto de poeira, pairando por cima deles a casa silenciosa. Pensara que talvez pudesse ser potente com ela, não tinha certeza, mas não se importava. Não tinha importância.
– O erro consistiu em atacá-lo de frente – disse pensativo. – Talvez o crânio seja mais forte nesse local, ou o cérebro menos frágil, mas ele caiu e viveu ainda durante quatro dias. Não farei isso novamente. Não quero que ninguém sofra.
– Mas viu-lhe os olhos? – perguntou ela suavemente.
– Oh, sim.
– O que foi que viu?
– Surpresa. Choque. Reconhecimento. Compreensão. E então, no momento final, algo mais...
– O quê?
– Não sei. Não tenho certeza. Aceitação, acho. E uma espécie de calma, de quem sabe. É difícil de explicar.
– Oh! – disse ela. – Oh, sim! Finidade. É isso o que todos nós procuramos, não? A última palavra. Completamente. Catolicismo, Zen, comunismo, ou falta de sentido. O que quer que seja. Mas, Dan, não é verdade que precisamos disso? Todos nós precisamos e aviltaremos ou escravizaremos estranhos para consegui-lo. Mas será o mesmo para todos nós, ou diferente para cada um de nós? Não é esse o problema? Acho que é um absoluto para todos, embora pense que os caminhos diferem, e que cada um deva encontrar o seu. Já lhe disse que tem um corpo lindo, querido?
Enquanto falava, começava a acariciá-lo de leve, excitando-o lentamente.
– Você já se raspou um pouco aqui? E aqui?
– O quê? – perguntou ele vagamente, embriagado pelas carícias. – Não me lembro. Talvez tenha.
– Aqui você é seda, seda oleada. Adoro a maneira como suas costelas e os ossos dos quadris aparecem sob a pele, a profunda curva do peito à cintura, e o alargamento de seus quadris. Você é tão forte e duro, tão macio e mole. Veja só como são longos seus braços e largos seus ombros. Ainda assim, os bicos do peito se projetam e você tem nádegas lindas e macias. Como adoro a sua carne. Oh!
Ela murmurou, tocando-o ainda e, quase contra sua vontade, ele reagiu e aproximou-se dela. Depois, de costas, segurou-a em cima de seu corpo, abriu as pernas e ergueu os joelhos.
– Como seria lindo se você pudesse penetrar em mim – murmurou e, compreendendo, ela fez os movimentos que ele desejava. – Se possuísse um pênis também. . . Ou melhor ainda, se nós dois tivéssemos pênis e vaginas. Que melhoramento no desenho feito por Deus! Para que pudéssemos ficar um dentro do outro, simultaneamente, penetrando.
– Oh, sim – murmurou ela. – Maravilhoso!
Conservou-lhe o peso sobre o corpo, chamando-a de "Querida" e "Doçura" e dizendo, "Oh, amor, é tão boa a sensação que você produz", e pareceu-lhe que a tessitura de sua vida, qual lenço de linho lavado demais, estava simplesmente se esgarçando. Não apodrecendo, mas dividindo-se em fibras individuais, deixando entrar a luz.
No esforço que ela fazia, o suor gotejou de suas axilas cabeludas e porejou-lhe os ombros; ele virou a cabeça para lambê-lo, sentindo sabor de vida salgada.
– Você matará alguém por mim? – arquejou ela.
Ele puxou-a mais para si, erguendo as cadeiras, prendendo os tornozelos por trás das costas esguias de Célia.
– Naturalmente que não – disse-lhe. – Isso estragaria tudo.

2

Crescera naquela silenciosa e fria casa de azulejos brancos e, filho único, não possuía um sol para o qual voltar-se. Assim, voltou-se para dentro de si mesmo, tornando-se contemplativo, mesmo dissimulado. Quase tudo que pensava e sentia dizia respeito a si mesmo, seus desejos, medos, ódios, esperanças, desesperos. Estranhamente para um menino, estava consciente do próprio egoísmo e perguntava-se se todos eram assim. Não lhe parecia possível; havia meninos de sua idade que eram alegres e dados, que faziam amigos com rapidez e facilidade, que podiam arreliar as meninas, e rir. Mas, ainda assim. . .
"Às vezes parecia-me que eu podia ser duas pessoas: aquela que apresentava a meus pais e ao mundo, e a outra, a que eu era, girando em minha própria órbita. O eu externo era o menino ordeiro e organizado, bom estudante, que colecionava rochas e as guardava em bandejas com compartimentos, rotulando cuidadosamente cada espécime: 'Blank, Daniel: Bom menino'. "Mas desde a meninice – mesmo desde o tempo de bebê – eu sonhava quase todas as noites: sonhos loucos e desconexos, sem significação especial: coisas tolas, acontecimentos, pessoas, todas misturadas, fantasias, faces loucas, meus pais, crianças na escola, personagens históricas e literárias – todas misturadas.
"Então – quando tinha oito anos, mas pode ter sido mais tarde – comecei a perder-me em devaneios durante o dia, tão turbulentos e incríveis como os sonhos noturnos. Os devaneios não exerceram efeito sobre minha vida externa, sobre a imagem que apresentava ao mundo. Fazia com eficiência meus deveres escolares, correspondia nas aulas, rotulava as pedras que juntava, beijava obedientemente as faces frias de meus pais... e estava a um milhão de quilômetros de distância. Não, não longe, mas nas profundezas de mim mesmo, sonhando.
"Aos poucos, quase sem notar, as fantasias diurnas fundiram-se com as noturnas. Como isso surgiu, exatamente quando, não sei dizer. As fantasias diurnas, porém, transformaram-se em prolongamentos dos sonhos noturnos, e aconteceu que eu imaginava um 'enredo', que continuava dia e noite durante talvez uma semana. E tendo-o rejeitado em favor de um novo 'enredo', eu poderia voltar ao antigo durante um ou dois dias, simplesmente recordando-o ou, talvez, ornando-o com detalhes imaginosos.
"Por exemplo, poderia imaginar que não era realmente filho de minha mãe e de meu pai, mas filho de criação, entregue a eles por motivos românticos. Meu verdadeiro pai era, talvez, um conhecido estadista, e minha mãe, uma grande beldade que pecara por amor. Por várias razões, o que quer que tenha sido, eles não podiam reconhecer-me e haviam-me entregue a esse monótono, inexpressivo e estéril casal de Indiana. Mas chegaria o dia...
"Houve algo mais do que notei durante minha meninice, e isso talvez sirva para ilustrar a percepção de mim mesmo. Como a maioria dos meninos da mesma idade – eu tinha uns doze anos na ocasião – era capaz de certos atos de crueldade, mesmo de pequenos crimes: vandalismo gratuito, violência sem significado, 'os ardores da juventude' etc. No que diferia dos outros meninos da mesma idade, acho, era que, quando me descobriam e castigavam, eu não sentia culpa. Ninguém podia fazer-me sentir culpado. Minha única pena era ter sido descoberto.
"Será tão estranho assim que uma pessoa possa viver duas vidas? Não, honestamente acredito que a maioria as vive. A maioria, naturalmente, desempenha o papel público esperado: casam, trabalham, têm filhos, formam um lar, votam, tentam conservar-se limpos e razoavelmente cumpridores da lei. Mas todos – homem, mulher, criança – têm uma vida secreta da qual raramente falam e quase nunca exibem. E essa vida secreta, para todos nós, é repleta de fantasias ferozes, desejos incríveis, e ânsias sufocantes. Não vergonhosos em si, exceto na medida em que nos ensinaram que eram.
"Lembro-me de ter lido algo, escrito por um famoso escritor. Disse ele que se fosse anunciado como coisa certa que o mundo acabaria em uma hora, formar-se-iam longas filas em todas as cabinas telefônicas de pessoas à espera de telefonar a outras, dizendo-lhes o quanto as amaram. Não acredito. Acho que a maioria passaria a última hora lamentando-se: 'Por que não fiz o que desejei fazer?'
"Isto porque acredito que cada um de nós é uma ilha secreta (Nenhum homem é uma ilha? Que mentira!), e mesmo o mais profundo e intenso amor não pode lançar uma ponte entre indivíduos. Grande parte do que sentimos e aquilo com que sonhamos, que não podemos contar aos demais, é vergonhoso, se julgado pelo que a sociedade diz que devemos sentir e sonhar. Mas se os seres humanos são capazes de tais sentimentos, de que modo podem ser eles vergonhosos? É melhor agir como nossa natureza nos dita. Isto pode levar ao céu ou ao inferno – o que significam 'céu', ou 'inferno'? – mas o mais terrível dos pecados é negar.
"Quando tive relações com aquela moça na faculdade e, mais tarde, com minha esposa e todas as outras nos intervalos, achei as experiências excitantes e agradáveis, naturalmente. Satisfaziam o suficiente para me fazer ignorar os grunhidos, as tosses, as ventosidades, os arrotos, o mau hálito, o sangue e. . . outras coisas. Mas um momento depois voltava a lembrar-me de minha coleção de pedras semipreciosas ou da programação de AMROK II. Havia apreciado muito a masturbação e comecei a perguntar-me quanto do chamado 'sexo normal' é, realmente, masturbação à deux. Todos os gemidos e protestos de amor e êxtase constituem a 'face pública'; as reações secretas são escondidas do parceiro. Certa vez, tive relações com uma mulher e durante todo o tempo eu pensava em alguém que vira no clube de ginástica ao qual pertencia. Somente Deus sabe no que ela pensava. Vidas ilhadas.
"Célia Montfort foi a mulher mais inteligente que conheci. Muito mais inteligente do que eu, para dizer a verdade, embora eu pense que ela não possuía minha sensibilidade e capacidade de compreensão. Mas era complexa e eu nunca conhecera antes uma mulher complexa. Ou talvez tivesse conhecido, mas não podia suportar a complexidade. No caso de Célia, porém, a complexidade atraiu-me, fascinou-me, deixou-me perplexo. . . durante algum tempo.
"Não tinha certeza do que ela queria de mim, se queria absolutamente alguma coisa. Gostava das preleções dela, do jogo de sua mente, mas nunca pude inteiramente identificar quem ela era. Certa vez, quando a convidei para um jantar, disse:
– Quero lhe perguntar uma coisa.
– O quê?
"Houve uma pausa.
– Perguntarei hoje à noite – disse, finalmente. – No jantar.
"Assim, no jantar, eu disse:
– O que era que você queria me perguntar?
"Ela me olhou e disse:
– Acho que perguntarei melhor em uma carta. Eu lhe escreverei, perguntando.
– Muito bem – concordei, não desejando exercer pressão.
"Mas, claro, nunca me escreveu carta alguma perguntando a menor coisa. Ela era assim. Era de enlouquecer, de certa maneira, até que comecei a compreender...
"Compreender que era tão profunda e confusa como eu, e sujeita, como eu, a súbitos caprichos, paixões desvairadas, desejos incoerentes, sonhos tolos... toda a gama. Irracional, acho que poderão dizer. Se eu não mentisse a mim mesmo – e é extremamente difícil a pessoa não mentir a si mesma – teria de reconhecer que parte de minha hostilidade com ela – e reconhecia que começava a sentir certa hostilidade porque ela sabia – bem, parte disso tinha origem no fato de que eu era homem e ela mulher. Não sou grande admirador do movimento de liberação das mulheres, mas concordo que os homens são vítimas de um condicionamento difícil de reconhecer e analisar.
"Mas logo que deixasse de mentir a mim mesmo, reconhecia que ela me perturbava porque possuía uma vida secreta própria, uma inteligência maior do que a minha e, quando lhe dava na veneta, uma sexualidade mais intensa do que a minha.
"Compreendia isso e admitia-o para mim mesmo: era a primeira mulher com quem eu tivera relações íntimas que existia como indivíduo, e não apenas como corpo. A moça judia de Boston fora um corpo. Minha esposa, outro. Naquela ocasião, conheci uma pessoa – chame-a de 'alma' se isso lhe satisfaz – tão insondável como eu mesmo. E não era mais lógico eu esperar compreendê-la do que esperar que ela me compreendesse.
"Exemplo: saímos de uma cama suada onde havíamos estado tão juntos como um homem e uma mulher podem ser fisicamente íntimos. Eu a havia provado. Em seguida, vestidos e compostos, a caminho do jantar, segurei-lhe o braço e puxei-a da frente de um táxi em alta velocidade. Ela me olhou com asco: 'Você me tocou!', arquejou.
"Exemplo: havia-se mostrado carinhosa, simpática, mas algo desligada durante toda a noite. Voltamos para casa e, somente porque eu precisava ir ao banheiro, deixou-me entrar. Sabia que não haveria sexo naquela noite. Estava tudo bem comigo. Era um direito dela. Não sou um estuprador maníaco. Do banheiro, voltei ao estúdio. Encontrei-a sentada na poltrona de couro e, de pé atrás dela, Valenter, massageando-lhe suavemente o pescoço e os ombros nus em movimentos amorosos. Enrodilhado em um canto, Tony observava-os curioso. O que significava isso?
"Exemplo: ela desaparece freqüentemente e sem aviso durante horas, dias, uma semana de cada vez. Volta sem explicação ou desculpa, geralmente cansada e coberta de contusões, às vezes ferida e cheia de ataduras. Não faço perguntas: ela não informa coisa alguma. Temos um pacto tácito: não me intrometerei; ela não perguntará. Exceto sobre os assassinatos. Ela não consegue fartar-se disso!
"Exemplo: Ela compra um rebenque inglês, mas eu me recuso. De ambas as maneiras.
"Na verdade, ela é interminável.
"Exemplo: trata de modo vergonhoso um chofer de táxi por ter-nos desviado um quarteirão de nosso caminho e me diz, em voz alta, que não lhe dê gorjeta. Três horas depois, insiste em que eu dê dinheiro a um sujo e bêbado ambulante que cheira a urina. Bem...
"Acho que o que estava acontecendo era o seguinte: começamos em um nível, procurando encontrar um relacionamento satisfatório. Em seguida, saciados ou entediados, o sexo ardente acalmou-se e começamos a explorar-lhe a parte psíquica, na qual ela e eu acreditamos tanto. Depois disso – e verificado que não era inteiramente satisfatório – exploramos mais profundamente, inserindo-nos um no outro, embora permanecêssemos essencialmente estranhos.Tentei dizer a ela: para conseguir o relacionamento final precisamos penetrar. Não é assim?
"Não devo, em hipótese alguma, vê-la mais. Resolvia isso, incapaz de lidar com sua humanidade e, no último momento, quando estava certo de que nosso caso terminara, ela telefonava e dizia-me coisas. Assim, mais uma vez almoçávamos ou jantávamos juntos e, sob a toalha da mesa, sob nossos guardanapos juntos um do outro, ela me apalpava, fitando-me nos olhos. E tudo recomeçava.
"Devo a ela uma coisa: os assassinatos. Sabe, posso reconhecê-los abertamente. Os assassinatos. Daniel, eu o amo! Sei o que você fez, e o que fará, e não sinto culpa. Não é outra pessoa que os pratica. Sou eu, Daniel Blank, e não os nego, desculpo-me, ou lamento-me. E não o faço mais do que quando, nu em frente ao espelho escuro, apalpo-me outra vez. Negar o segredo, levar uma vida ilhada e morrer irrealizado – isso, sim, é o pior.
"Preciso, acima de tudo, mergulhar mais e mais em mim mesmo, arrancando camadas – a cebola humana. Estou em plena posse de minhas faculdades. Sei que a maioria das pessoas me julgaria cruel e mentalmente desequilibrado. Mas terá isso a menor importância? Acho que não. Acho que o importante é o indivíduo realizar-se. Se pode fazer isso, chega a uma espécie de completamente onde os dois, os dois indivíduos que existem na pessoa, se tornam unos e esse uno se funde, torna-se parte e acrescenta algo ao Ser Cósmico. O que isso pode ser, não sei – ainda. Mas começo a entrever-lhe os esboços, a glória que é, e penso que se continuar em meu curso, finalmente o conhecerei.
"Com toda esta introspecção, toda esta cuidadosa busca da verdade eterna, que pode provocar-lhe riso – você teria coragem de tentá-la? – a coisa incrível, espantosa, é que consegui manter intacta a imagem que apresento ao mundo. Isto é, eu funciono: acordo todas as manhãs, tomo banho e me visto de acordo com uma moda de elegância descuidada, tomo um carro para o meu emprego e lá trabalho de maneira eficiente e útil. É uma charada, naturalmente, mas represento bem. Com toda honestidade, talvez não como antes. . . Estarei dando a impressão, cumprindo os exercícios? É provavelmente minha imaginação, mas, algumas vezes, pensei que membros da minha equipe de computador, a X-l, olharam-me de um modo um pouco estranho.
"E certo dia, minha secretária, a Sra. Cleek, usava um terninho bem elegante – o que é permitido na Javis-Bircham – e cumprimentei-a pela boa aparência. Na verdade, era jovem demais para ela. Mais tarde no mesmo dia, porém, quando ela se encontrava ao meu lado, esperando que eu assinasse algumas cartas, estendi a mão para acariciar-lhe as paredes pudendas. Não agarrei ou apertei; simplesmente acariciei. Ela recuou, soltando um gritinho. Voltei a assinar as cartas; nenhum de nós dois falou no que aconteceu.
"Houve outra coisa, mas desde que resultou em nada, mal parece justificar menção. Tive um sonho, um sonho noturno que se fundiu com um devaneio diurno, de ter feito algo ao computador, AMROK II. Isto é, eu queria. .. bem, acho que, de certa maneira, queria destruí-lo. De que forma, não sabia. Foi apenas um pensamento passageiro. Não lhe dei nem mesmo atenção. Mas o pensamento me ocorreu. Acho que buscava mais humanidade, não menos. Mais humanidade, com todo seu terrível mistério.
"Agora precisamos considerar por que matei aqueles homens e por que (Suspiro! Soluço! Gemido!) acho que matarei novamente. Bem... novamente é humanidade, não? Chegar perto, tão perto quanto possível. Isto porque o amor – quero dizer o amor físico (sexo), ou o amor romântico –não é a resposta, certo? É substituto pobre e barato e nunca inteiramente satisfatório, porque, não importa o quanto pareçam bons nos amores, físico ou romântico, os parceiros têm ainda, ambos, suas vidas secretas, ilhadas.
"Mas quando matamos, o abismo desaparece, a divisão se desvanece, e somos unos com a vítima. Não creio que vocês acreditem em mim, mas é assim. Garanto que é. O ato de matar é um ato de amor, o amor final, e embora não haja orgasmo, nenhuma sensação sexual absolutamente – pelo menos no meu caso – penetramos, realmente penetramos, em outro ser humano, e através dessa conjunção violenta – dolorosa, talvez, mas apenas durante uma fração de segundo - entramos em todos os humanos, todos os animais, todos os vegetais, todos os minerais. De fato, tornamo-nos unos com tudo o que existe: estrelas, plantas, galáxias, a grande escuridão mais além, e...
"Oh, bem. O que isso é, o mistério final, é o que ando buscando, não? Estou convencido de que não se encontra em livros, camas, conversação, igrejas, ou súbitos relâmpagos de inspiração ou revelação. Precisamos esforçar-nos para descobri-lo, e a descoberta será feita em mim.
"O que estou dizendo é que quero entrar em mim, penetrar em mim, com tanta profundidade quanto possível. Sei que será um processo longo e doloroso. Talvez verifique, no fim, que é impossível – embora não acredite nisso. Acho que posso entrar profundamente em mim – e quero dizer profundamente! – e lá o encontrarei.
"Às vezes, pergunto-me se não é uma espécie de masturbação, como quando fico nu em frente do espelho de corpo inteiro, com correntes douradas em volta do punho e da cintura, olho para meu corpo, e apalpo-me. A maravilha! Mas volto, volto sempre, ao que procuro. E o que procuro coisa alguma tem a ver com Célia, Tony, os Mortons, meu trabalho ou qualquer outra coisa, mas somente comigo. Eu mesmo! É aí onde se encontra a verdade. E quem a pode descobrir senão eu mesmo? Continuo, portanto, a tentar, e a busca não é difícil, dolorosa ou cansativa demais. Exceto, para dizer a verdade, preciso dizer-lhe isso: Se eu tivesse a vida para viver novamente, gostaria de ficar espichado nu ao sol, observando mulheres passarem óleo no corpo. Isso é tudo o que jamais desejei."
Ele devia ter parado nesse ponto. Era uma conclusão lógica de suas elucubrações. Mas não queria, não podia. Pensou em Tony Montfort, no que haviam feito, no que poderiam fazer. O sonho, porém, foi passageiro, e ele o afastou como se afastasse um mosquito ou algo que pudesse picar. Pensou em Valenter, em um professor de sua faculdade que exalava cheiro de terra, e em ir a uma casa de roupa de baixo feminina para comprar calcinhas biquíni para si mesmo. Porque assentam melhor? Certa vez, em um ônibus, um homem sorrira para ele.
Continuava a ter os sonhos noturnos, as fantasias diurnas, mas notou que as imagens tornavam-se mais curtas. Isto é, não mais se tocavam do dia para a noite, os "enredos" eram abreviados, e as visões passavam rápidas e fugidias. Tinha a mente tão carregada, tão inquieta, que ficou ligeiramente alarmado; foi a um médico, e este lhe receitou um tranqüilizante. Funcionou no seu caso como uma pílula para dormir fraca. Mas a mente continuou agitada.
Não podia penetrar com suficiente profundidade em si próprio. Mentiu a si mesmo; reconheceu o fato; surpreendeu-se praticando-o. Era difícil não mentir a si mesmo. Precisava estar de guarda, não todos os dias ou todas as horas, mas durante todos os minutos. Precisava questionar todos os atos, todos os motivos. Sondando. Penetrando. Se queria descobrir. .. o quê?
Acalmou o pênis ingurgitado na mão suja de vaselina, sondou o próprio reto com um dedo indicador rígido apontando para o céu, abriu a boca vazia para o teto branco e esperou pela felicidade. Um calor vibrante engolfou-o, finalmente, mas não era o que procurava.
Havia mais. Sabia que havia mais. Havia-o experimentado e dispôs-se a procurá-lo novamente, banhando-se, empoando-se, perfumando-se, preparando-se para a missão. Todos nós – nós todos – precisamos levar ao completamento nossa vida ilhada. Oh, sim, pensou, precisamos. Erguendo o machado de gelo...
"O sangue é mais grosso do que a água", disse em voz alta, "e o sêmen é mais grosso do que o sangue."
Riu, sem ter idéia do que aquilo significava ou de se, realmente, significava alguma coisa.

3

Uma semana mais ou menos após a morte de Bernard Gilbert, Daniel Blank reiniciou suas sorrateiras rondas, o que não diferia muito de aprender a escalar montanhas. Era preciso dominar a técnica, testar a força e, naturalmente, pôr à prova a coragem, levando-a ao seu limite, mas não além. Não se aprende a matar lendo-se livros, da mesma forma que não se aprende a nadar ou andar de bicicleta estudando diagramas.
Já adquirira várias técnicas valiosas. O trabalho de esconder o machado de gelo sob o sobretudo, segurá-lo pela abertura do bolso com a mão esquerda e transferi-lo, rapidamente, para a direita através do casaco aberto – isso funcionava perfeitamente, sem movimentos perdidos. A morte de Lombard fora, pensava, instantânea, enquanto Gilbert ainda durara quatro dias. Deduziu daí que um golpe desferido por trás penetrava aparentemente em uma área mais sensível do crânio, e resolveu não desfechar mais ataques frontais.
Estava convencido de que era válido o seu método básico de aproximação: o passo rápido e vivo; o sorriso olho-no-olho; a aparência inteira de tranqüilidade e espírito de vizinhança. Em seguida, o giro rápido e o golpe.
Havia, naturalmente, cometido vários erros. Durante o ataque contra Frank Lombard, por exemplo, usara o habitual sapato de pele de bezerro preto com sola de couro. No momento do ataque, o pé direito escorregara na calçada, deslizando o couro no cimento. Não foi, por sorte, um erro grave, mas perdera o equilíbrio e, quando Lombard caiu de bruços, arrancara-lhe o machado da mão.
Assim, antes do assassinato de Bernard Gilbert comprara um par de sapatos leves, de crepe-sola. Aproximava-se o mês de dezembro, com chuva fria, granizo, neve, e sapatos de sola de borracha proporcionavam tração e estabilidade muito melhores.
Analogamente, no ataque a Lombard, o cabo de couro do machado havia girado em sua mão suada. Refletindo no caso, havia, antes do ataque contra Gilbert, tornado áspero o couro, esfregando-o suavemente com lixa fina. A medida funcionara muito bem, mas não o satisfez por completo. Comprou luvas pretas de camurça, certamente um artigo comum de vestuário durante o início do inverno. A empunhadura entre a luva de camurça e o couro áspero do cabo do machado era tudo o que poderia ter desejado.
Havia outros detalhes, naturalmente, e os que nunca escalaram montanhas os ignorariam, não lhes dando importância. Mas uma boa escalada depende exatamente desses detalhes. Pode-se possuir toda a coragem do mundo, mas se o equipamento for defeituoso, ou a técnica imprópria, morre-se.
Havia outras coisas a considerar: ninguém sai e mata o primeiro homem que encontra. Cancelou as noites chuvosas ou de granizo; precisava de uma calçada razoavelmente seca para aquele giro rápido depois de passar pela vítima. O melhor era uma noite nublada ou sem luar, sem vento forte para puxar a aba do sobretudo aberto. E conduzir tão poucos objetos e identificação quanto possível.
Freqüentava duas vezes por semana um clube de ginástica e fazia exercícios em casa todas as noites, e, assim, a força não constituía problema. Estava em excelente estado físico. Podia erguer-se, virar e curvar-se provavelmente melhor do que a maioria dos rapazes com metade de sua idade. Observava a dieta; eram ainda rápidas sua reações. Desejava continuá-las assim e pensou, com prazer, em escalar a Agulha do Diabo novamente na primavera, ou talvez fazer uma viagem aos Alpes Bávaros, com o intuito de realizar mais escaladas técnicas. Isso seria uma alegria.
Assim, havia a paixão – exatamente como na escalada de montanhas – e igualmente o planejamento cuidadoso, os detalhes mundanos – a arma, os sapatos, as luvas, o sorriso – da mesma forma que todas as grandes artes são, realmente, essencialmente, uma reunião de pequenos trabalhos. Picasso não misturava as próprias tintas?
Realizou a mesma cuidadosa e ponderada preparação nas sorrateiras rondas após a morte de Gilbert. Um assassino estúpido poderia voltar à casa após o trabalho e jantar, ou jantar fora e voltar para casa, e reiniciar a espreita todas as noites à mesma hora, fazer um reconhecimento, e voltar ao prédio de apartamentos na mesma ocasião. Cedo ou tarde, o porteiro de serviço do prédio notaria a rotina.
Daniel Blank, em conseqüência, variou as chegadas e partidas, evitando com todo o cuidado um horário regular, sabendo que o porteiro largava o serviço às 8 da noite, ocasião em que chegava seu substituto. Blank chegava e saía casualmente e, via de regra, as chegadas e partidas eram ignoradas por um porteiro ocupado com táxis, embrulhos e outras tarefas. Não saía todas as noites. Duas noites seguidas. Uma noite de intervalo. Três em casa, Nenhum padrão. Nenhum programa formal. O que lhe ocorria; a irregularidade era a melhor política. Pensava em tudo.
Havia, reconhecia, algo estranho no fato de que nessa atividade, que tanto lhe significava emocionalmente, ele empregasse todos seus talentos em análise detalhada, classificação cuidadosa, todas as frias e exangues habilidades de sua vida pública. O fato provava, pensou, que continuava a ser ainda um ser duplo, mas, neste caso, servia-lhe bem; nunca executava um ato sem prever-lhe as conseqüências.
Debateu consigo mesmo durante longo tempo, por exemplo, se devia ou não, durante o assassinato, concreto, usar chapéu. Nessa época do ano, com aquele tempo, a maioria dos homens o usava.
Mas poderia perdê-lo com o esforço. E supondo que fizesse uma tentativa e falhasse – possibilidade que precisava considerar – e a vítima escolhida sobrevivesse para prestar depoimento, ela, sem dúvida alguma, lembraria muito mais a presença do que a ausência de um chapéu.
– Cavalheiro, ele usava chapéu?
– Usava um chapéu preto. De feltro mole, com a aba descida na frente.
Esse reconhecimento seria mais provável do que se Blank não o usasse, em absoluto.
– Cavalheiro, ele usava chapéu?
– O quê? Bem. . . Não me lembro. Chapéu? Não sei. Talvez. Não notei, realmente.
Mas a sua fria cautela quase desmoronou quando começou os reconhecimentos noturnos, em seguida à morte de Bernard Gilbert. Na terceira noite das caminhadas sem destino, notou o que parecia um número inusitado de homens, a maioria de tipos altos e bem proporcionados, andando preguiçosamente pelas ruas escuras da vizinhança. Os pavimentos borbulhavam de vítimas potenciais!
Poderia ter cometido um engano, naturalmente. O Natal, porém, não estava longe e muitas pessoas faziam compras. Ainda assim... Seguiu alguns desses homens isolados, de uma grande distância e do outro lado da rua. Eles viravam uma esquina. Ele virava outra. Mas nenhum deles, nenhum dos três que seguiu cautelosamente de longe, jamais entrou em uma casa. Continuavam a andar sempre, nem depressa nem devagar, subindo uma rua e descendo outra.
Parou de súbito, com uma risada nos lábios, mas doente de medo. Chamarizes! Policiais! O que mais poderiam ser? Voltou imediatamente para casa, para pensar.
Analisou acuradamente o problema: 1) Podia interromper imediatamente suas atividades; 2) Podia continuá-las em outra rua, ou mesmo em outro bairro; 3) Podia continuá-las na própria vizinhança, satisfeito com o desafio.
Rejeitou imediatamente a possibilidade número 1. Poderia parar naquele instante, tendo ido tão longe, com o prêmio final dentro de um alcance reconhecível? A possibilidade número 2 requeria uma dissecação mais apurada. Poderia acaso levar a arma oculta – o machado de gelo – em um táxi, ônibus, metrô, seu próprio carro, por qualquer distância sem que fosse finalmente descoberto? Quanto à possibilidade número 3, deveria arriscar-se?
Pensou nas opções durante dois dias inteiros e quando a solução chegou deu uma palmada na coxa, sorriu, e sacudiu a cabeça, rindo da própria estupidez. Isto porque, compreendeu, estivera analisando, pensando, de uma forma vertical, em linha masculina – como se o problema pudesse ser solucionado dessa maneira!
Havia-se afastado tanto desse tipo de raciocínio, tanto de AMROK II, que teve vergonha de ter caído, mais uma vez, na mesma armadilha. O importante era confiar nos instintos, seguir as paixões, fazer o que era compelido a fazer, divorciado da lógica fria e da razão exangue. Se queria conhecer a verdade, ela viria do coração e das entranhas.
E além do mais, havia o risco – a doce atração do risco.
Viu no caso uma dicotomia que o deixou perplexo. No planejamento do crime estava disposto a usar a fria e formal razão: os sapatos, as luvas, a arma, a técnica – tudo isso resolvido com lógica e precisão. Mas ainda assim, quando se tratava da razão do ato, deliberadamente evitava o mesmo sistema de pensamento e procurava a resposta no "coração e nas entranhas".
Finalmente, chegou à conclusão de que a lógica poderia servir para o método, mas não para o motivo. Mais uma vez, usando a analogia das artes criadoras, lembrou-se que o artista pensava nas técnicas de sua arte ou aprendia-as com alguém, e, com paciência, transformava-se em hábil artesão. Mas,; na ocasião em que o artesanato terminava e a arte começava, o artista precisava valer-se das próprias emoções, sonhos, fervores e temores, penetrando profundamente em si mesmo a fim de descobrir aquilo de que necessitava para expressar sua capacidade.
O mesmo se poderia dizer a respeito de montanhismo. Um indivíduo poderia ser um montanhista imensamente talentoso e conhecedor do esporte. Mas isso constituiria apenas uma habilidade especializada se, no íntimo, não houvesse energia para levá-lo aos limites da vida, para conhecer mundos cuja existência os habitantes do vale nem podiam imaginar.
Passou várias noites observando as operações dos chamarizes. Tanto quanto pôde determinar, os detetives não estavam sendo seguidos por "gente de apoio", ou acompanhados por carros policiais. Parecia que a cada um deles fora designada uma zona de quatro quarteirões, subindo uma rua e descendo outra, indo de leste para oeste e, em seguida, de oeste para leste e mais tarde, circulando para cobrir as ruas no sentido norte-sul. Inesperadamente, passando por um que havia entrado no saguão de uma loja às escuras, notou que estavam equipados com pequenos rádios transmissores-receptores e, aparentemente, em comunicação com algum posto central de comando.
O fato, resolveu ele, de pouca significação se revestia.
Dezesseis dias após o ataque contra Bernard Gilbert, saiu do trabalho e voltou diretamente para casa. Fazia uma noite fria e seca e um quarto de lua mal se mostrava através de um céu nublado. Soprava um pouco de vento, e havia uma sugestão de chuva ou neve dentro de um ou dois dias. Mas, de modo geral, era uma noite silenciosa, suficientemente fria para provocar comichão no nariz, orelhas e mãos nuas. Havia outro fator: o cinema do bairro apresentava um filme que Daniel Blank vira um mês antes quando do lançamento em Times Square.
Serviu-se de um único drinque e assistiu ao noticiário da noite na TV. Americanos matavam vietnamitas. Vietnamitas matavam americanos. Judeus matavam árabes. Árabes matavam judeus. Católicos matavam protestantes. Protestantes matavam católicos. Paquistanenses matavam indianos. Indianos matavam paquistanenses. Nada de novo. Preparou um jantar simples, de fígado assado de vitela e uma salada de chicória. Levou o café para a sala de estar e tomou-o juntamente com um conhaque enquanto, ouvia, em fita, o Concerto Brandenburgo nª 3. Despiu-se, deitou-se e tirou um cochilo.
Acordou pouco depois das nove. Lavou o rosto com água fria, vestiu terno preto, camisa branca, e uma gravata de padrão discreto. Calçou os sapatos de crepe-sola. Vestiu o sobretudo, enfiou as mãos nas luvas pretas de camurça e segurou o machado de gelo com a mão esquerda, passada pela abertura do bolso do sobretudo. A alça de couro, amarrada à extremidade do cabo, foi colocada em torno do punho esquerdo.
No saguão, o porteiro Charles Lipsky, de serviço, ergueu-se para abrir e segurar a porta para Blank. A porta era fechada de 8 da noite, quando ocorria a mudança dos porteiros, às 8 da manhã seguinte.
– Charles – perguntou casualmente Blank – sabe por acaso que filmes estão passando no Filmways, na Second Avenue?
– Desculpe, mas não sei, Sr. Blank.
– Bem, talvez eu vá até lá. Pouca coisa na TV hoje à noite.
Saiu sem pressa. Tudo natural e fácil.
Foi realmente até o cinema e deu uma olhada no horário colado ao lado da janela da bilheteria. O filme começaria dentro de 30 minutos. Tinha o dinheiro no bolso direito da calça. Comprou um ingresso com a soma exata, sem receber troco. Entrou no cinema quase vazio e sentou-se na última fila sem tirar o sobretudo ou as luvas. Ao terminar o filme e saírem pelo menos cinqüenta pessoas, saiu com elas. Ninguém o olhou, e certamente não o vaga-lume, porteiro e bilheteiro. Nunca se recordariam de sua chegada ou partida. Mas, naturalmente, tinha no bolso o canhoto da entrada e já vira o filme.
Caminhou na direção leste, para o lado do rio, com ambas as mãos enfiadas nos bolsos de abertura do sobretudo. Num trecho deserto da rua, tirou cuidadosamente a alça de couro do punho esquerdo. Segurou o machado pelo cabo. Desabotoou o sobretudo, mas não permitiu que os lados abanassem muito, mantendo-os junto ao corpo com as mãos nos bolsos.
Começou nesse momento a parte de que mais gostava. Caminhada fácil, boa postura, cabeça alta no ar. Não uma caminhada apressada, mas tampouco um arrastar de pés. Quando via alguém aproximando-se, alguém que poderia ser ou não um chamariz da Polícia, atravessava casualmente para outro lado da rua, caminhava até a esquina e virava, sem olhar uma única vez para trás. Era cedo demais; queria que essa sensação durasse.
Sabia que ia ser naquela noite, da mesma forma que o indivíduo sabe quase desde o começo de uma escalada que ela vai ser bem-sucedida, e que não haverá volta. Estava confiante, alerta, ansioso para sentir mais uma vez o momento de exaltada felicidade em que o eterno penetrava nele e se fundia com o Universo.
Era experiente já e sabia o que sentiria antes do momento final. Em primeiro lugar, o poder: será você, ou você. A força e a glória de uma divindade fervendo nas veias. E, em segundo, o prazer da intimidade e do amor, que iria logo depois ser consumado. Não amor físico, mas algo muito mais delicado, tão delicado, de fato, que não podia exprimi-lo em palavras, mas apenas sentia-o, conhecia-o, e flutuava com ele em um momento de exaltação.
E naquele instante, pela primeira vez, havia algo mais. Sentira medo e fora cauteloso antes. Aquela noite, porém, com os chamarizes da Polícia nas ruas, exalava um senso de perigo quase tangível. Estava à sua volta, no ar, na luz, no vento leve. Podia quase cheirar o perigo, que o excitava tanto como o odor de neve recém-caída ou seu próprio corpo perfumado.
Deixou que essas sensações – poder, prazer, perigo – crescessem no seu íntimo enquanto caminhava. Abriu-se a elas, lançou fora toda cautela deixou que o inundassem e engolfassem. Certa vez, havia "descido as corredeiras" em uma canoa de borracha em um rio do Oeste, e uma e outra vez sentira a sensação, não desagradável, de impotência, abdicação, nas mãos da sorte ou de um deus desconhecido, varrido para aqui e para ali, o mundo em turbilhão. Tendo começado, não havia meio de deter-se, nenhuma maneira, até que a paixão esgotasse seu curso e o rio, finalmente, fluísse plácido entre largas margens e o perigo constituísse uma feliz recordação.
Virou para oeste na 76th Street. Mais ou menos a meio quarteirão, notou um homem que também caminhava para oeste, mais ou menos na mesma velocidade, sem correr mas tampouco arrastando os pés. Imediatamente parou, deu a volta e voltou à Second Avenue. O homem que vira à frente possuía a aparência física, o jeito de um chamariz policial. Se suas investigações e palpites fossem corretos, o detetive daria a volta ao quarteirão para tomar a direção leste na 75th Street. Blank, em conseqüência, tomou a direção sul na Second Avenue e parou na esquina, olhando para oeste no rumo da Third Avenue. Com absoluta precisão, a presa dobrou a esquina a um quarteirão de distância e veio em sua direção.
– Amo-o – disse Daniel Blank, baixinho.
Olhou em volta. Ninguém no quarteirão. Nenhum outro pedestre. Todos os carros estacionados. Lua pálida por trás das nuvens. Calçada seca. Oh, sim. Caminhe em direção do homem que se aproxima. Controle a marcha para que se encontrem a meio caminho entre a Second e Third Avenues.
O machado de gelo era levado sem esforço nas pontas dos dedos da mão esquerda, sob o sobretudo desabotoado. Braço direito e mão enluvada balançando livres. Passos vivos descendo a rua. O sorriso social. Aquele sorriso! E a inclinação cordial de cabeça.
– Boa noite.
Ele era de estatura média, de peito e ombros largos. Não bonitão, mas possuía uma espécie de boa aparência um tanto gasta. Surpreendentemente jovem. Uma percepção física, uma tensão, na maneira como andava. Braços um pouco afastados dos lados, dedos encurvados. Olhou para Blank fixamente. Viu o sorriso. O seu corpo inteiro pareceu relaxar-se. Inclinou a cabeça, sem sorrir.
Emparelharam-se. A mão direita mergulhou veloz no sobretudo aberto. A suave e treinada transferência do machado para a mão direita livre. O peso no pé esquerdo. O giro tão macio como um passo de balé. Uma forma de arte original. O assassinato como arte: toda a cinética sensual. Peso no pé direito naquele momento. Braço direito erguendo-se. O amante sentindo, ouvindo, parando, iniciando seu próprio giro nesse adorado pas de deux. j
E então. . . Oh, na ponta dos pés. O corpo arqueando no golpe. Tudo: | carne, corpo, tendões, músculos, sangue, pênis, rótulas, cotovelos e bíceps, o que quer que fosse. . . dando-se livre, completamente, todo ele. O esfacelamento e o doce som surdo que lhe fez vibrar a mão, o punho, o braço, o tórax, até as entranhas e os testículos. A penetração! E o êxtase! Na maravilha cinzenta e no mistério do homem. Oh!
Soltando o machado enquanto o corpo caía, sentiu a elevação da alma até o céu nublado. Oh, não! A alma penetrando em Daniel Blank, tornando-se una com a sua, as duas se fundindo, como imaginaram astronautas perdidos, abraçando-se, levados de arrastão por todo o tempo imensurável.
Inclinou-se rapidamente, sem olhar para o crânio esmagado. Não tinha espírito mórbido. Encontrou o distintivo e o cartão de identidade em uma carteira de couro. Não precisava mais provar a Célia suas façanhas. Aquilo era para ele. Não era um troféu, era uma dádiva da vítima. Eu também o amo.
Tão simples! Era incrível a sua sorte. Nenhuma testemunha. Nenhum berro, nem gritos ou alarmas. A lua espiou por trás das nuvens e escondeu-se novamente. Continuava a brisa. A noite. Em alguma parte, ocultas, estrelas giravam nos seus precisos cursos. E amanhã o sol poderia brilhar. Coisa alguma poderia deter as marés. O poderoso mundo...
– Bom filme, Sr. Blank? – perguntou Charles Lipsky.
– Gostei – respondeu Daniel Blank inclinando a cabeça. – Muito agradável. Você devia ir vê-lo.
Iniciou a rotina agora bem conhecida: lavagem e esterilização do machado de gelo e, em seguida, a lubrificação do aço exposto. Guardou-o com o restante do equipamento de montanhismo no armário do saguão. O distintivo policial representava um problema. Colocara a carteira de habilitação de Lombard e o cartão de identidade de Gilbert sob uma pilha de lenços, na gaveta superior da cômoda. Era extremamente improvável que a arrumadeira, ou qualquer outra pessoa, os descobrisse. Mas, ainda assim...
Vagueou pelo apartamento, procurando um esconderijo mais seguro. A primeira idéia foi pregar com fita gomada as identificações nas costas de três dos maiores espelhos da parede da sala de estar. A fita, porém, poderia secar, os presentes caírem, e então...
Voltou, finalmente, à cômoda do quarto. Puxou a gaveta superior e colocou-a sobre a cama. Havia um espaço sob a gaveta, entre o fundo e as corrediças. Todas as três identificações cabiam facilmente dentro de um grande envelope branco, que prendeu com fita ao fundo. Se a fita secasse e o envelope caísse, poderia tombar apenas na segunda gaveta. E enquanto estivesse preso, ocupava uma posição onde lhe poderia verificar a segurança todos os dias, se quisesse. Ou abrir o envelope e examinar os presentes.
Encontrava-se em casa, livre – arma limpa, evidência escondida, feito tudo o que a razão lhe dizia que podia ser feito. Guardou mesmo o canhoto da entrada do cinema do bairro. Chegara naquele instante o momento de reflexão e sonho, de ponderar importância e significação.
Banhou-se sem pressa, esfregando-se, e passou óleo perfumado na pele úmida. De pé sobre a esteira do banheiro, examinou-se no espelho de corpo inteiro. Inexplicavelmente, começou a fazer as evoluções de uma dançarina de strip tease: mãos cruzadas atrás da cabeça, joelhos um tanto curvos, pélvis projetando-se para a frente e para trás, quadris rebolando. Ficou excitado com a própria imagem no espelho. Teve uma ereção, não completa, mas o suficiente para aumentar-lhe o prazer. Ficou ali, movendo para cima e para baixo o membro túrgido, enquanto se fitava no espelho.
Seria um louco? – perguntou-se. E, rindo, pensou que era bem possível que fosse.

4

Na manhã seguinte tomava o desjejum – um pequeno copo de suco de maçã, uma tigela de cereal com leite desnatado, e uma xícara de café simples – quando ouviu no noticiário de nove horas, no rádio da cozinha, uma voz inexpressiva anunciando o assassinato de Roger Kope, detetive de terceira classe, ocorrido na noite anterior. Kope havia sido promovido duas semanas antes, de guarda uniformizado a detetive. Deixava viúva e três filhos menores. O Vice-Comissário Broughton, encarregado da investigação, declarara que várias pistas importantes estavam sendo seguidas e manifestara a esperança de fazer, antes de muito tempo, uma declaração importante sobre o caso.
Daniel Blank colocou os pratos vazios na pia, lavou-os com água quente, e saiu para o trabalho.
Ao deixar à tarde o escritório, comprou a edição vespertina do Post, embora mal olhasse para a manchete: "Assassino à Solta no East Side". Levou o jornal para casa e recolheu a correspondência na mesa do saguão. Abriu os envelopes no elevador: duas contas, um oferecimento de assinatura de revista, e o catálogo de inverno da Outside Life.
Preparou uma vodca com gelo e uma rodela de limão, ligou a televisão e sentou-se na sala de estar, tomando pequenos goles do drinque e folheando o catálogo enquanto esperava pelo noticiário da noite.
Achou decepcionantemente curta a cobertura do assassinato de Kope. Viu uma tomada da cena do crime, uma seqüência da ambulância afastando-se, e ouviu detalhes da morte do detetive Kope, que eram muito semelhantes aos ligados aos assassinatos de Frank Lombard e Bernard Gilbert. A Polícia acreditava que os três assassinatos eram obra da mesma pessoa. "A investigação continua".
Mais tarde, na mesma noite, Blank dirigiu-se à Seconde Avenue e comprou as primeiras edições matutinas do News e do Times. "Assassino Louco Ataca Novamente", berrava a manchete do News. O Times publicava uma reportagem em uma coluna, no fundo da página, intitulada: "Detetive Assassinado no East Side". Levou os jornais para casa, acrescentou-os ao Post matutino e acomodou-se para ler, com uma espécie de entediado medo, tudo o que fora publicado sobre a morte de Kope.
A reportagem mais detalhada e exata, reconheceu Blank, aparecia sob a assinatura de Thomas Handry. Handry, citando "um alto funcionário da Polícia que pediu não fosse citado seu nome", declarava inequivocamente que os três assassinatos haviam sido cometidos pelo mesmo homem, que usava como arma "uma ferramenta parecida com um machado, com um espigão alongado". Os outros jornais identificavam a arma como "uma pequena picareta ou algo semelhante".
Handry citava ainda seu informante anônimo, explicando como um chamariz da polícia, um homem experiente, podia ser atingido por trás sem ter aparentemente percebido a aproximação do atacante ou feito o mínimo esforço para se defender.
"Acredita-se", escrevia Thomas Handry, "que o assassino aproximou-se de frente, apresentando uma aparência ingênua e sorridente à vítima, e que, no momento de passar por ela, rodopiou e abateu-o. Acredita essa fonte, habitualmente segura, que o assassino levava a arma escondida em um jornal dobrado ou sob o sobretudo. Embora Gilbert tenha sido vítima de um ataque frontal, o método empregado no assassinato de Kope lembra muito de perto o usado no assassinato de Lombard."
A reportagem de Handry terminava declarando que seu informante temia que houvesse outro ataque, a menos que o assassino fosse preso. Outro jornal falava da designação de um número sem precedentes de detetives para o caso, ao passo que outro declarava estar sendo estudada a imposição de uma quarentena na jurisdição da 251ª Delegacia.
Blank lançou para o lado os jornais. Era inquietante, admitiu, que a expressão "uma ferramenta parecida com um machado" tivesse sido usada na reportagem de Handry. Fazia supor que a Polícia sabia exatamente qual era a arma, mas que não desejava divulgar a informação. Não acreditava que ela pudesse chegar à origem da compra do machado de gelo e à sua pessoa; o seu fora comprado cinco anos antes e centenas eram vendidos anualmente em todo o mundo. Mas indicava que seria prudente não subestimar o desafio que enfrentava. Perguntou-se que tipo de homem seria esse Vice-Comissário Broughton, que tentava tão arduamente agarrá-lo pelo pescoço. Ou se não era Broughton o "alto funcionário da Polícia" mencionado por Handry. Aquela história de aproximar-se de frente, girar e atacar – quem havia desconfiado daquilo? Havia, com toda possibilidade, outros fatos conhecidos ou suspeitados e não divulgados pela imprensa – mas o quê?
Blank passou em revista seus métodos e encontrou apenas dois elos evidentemente fracos. O primeiro, o recolhimento invariável da identificação da vítima. Mas, depois de pensar no caso, deu-se conta de que se jamais houvesse uma busca em seu apartamento, a Polícia já teria evidência suficiente para ligá-lo aos assassínios, e a identificação seria meramente a confirmação final.
O segundo problema revestia-se de natureza mais séria: Célia Montfort sabia o que ele fizera.

6

A Erótica, a butique especializada de Florence e Samuel Morton, localizava-se na alta Madison Avenue, entre uma loja de alimentos para gourmets e outro estabelecimento, velho de cem anos, que vendia selas e tacos de pólo. A fachada da Erótica fora projetada por um entusiasta da pop-art e consistia de centenas de polidas calotas de automóvel, cujas imagens refletidas distorciam a rua e os pedestres.
– Confunde a mente – concordou Flo.
– Explode o cérebro – assentiu Sam.
Os dois haviam concebido uma idéia absolutamente maravilhosa como decoração da única vitrina na temporada de compras do Natal. Haviam, com grande despesa, encomendado a uma casa de exposições a criação de um Papai Noel nu. Usava ele o necessário casaco vermelho orlado e exibia barba branca, mas, fora disso, seu corpo gorducho e rosado aparecia nu, exceto por um pequeno biquíni de verniz preto, equipado com um membro de plástico, um item de vestuário masculino que a Erótica tentava reviver em Nova York, embora com limitado sucesso.
O Papai Noel nu ficou em exibição na vitrina da Madison Avenue durante um dia. Em seguida, o Tenente Marty Dorfman, responsável pelo expediente da 251ª Delegacia, fez uma visita pessoal à Erótica e, delicadamente, pediu aos proprietários que o retirassem, citando certo número de queixas que havia recebido de igrejas, comerciantes e cidadãos indignados. Em vista disso, o Papai Noel de biquíni fora transferido para os fundos da loja e substituído na vitrina por uma grande variedade de presentes eróticos de Natal. Flo e Sam resolveram inaugurar o prolongamento do expediente de compras com uma open house: ponche sueco para velhos e novos clientes e um serviço estonteante que incluía pratos exóticos como gafanhotos fritos e formigas cobertas de chocolate.
Daniel Blank e Célia Montfort foram pessoalmente convidados para a festa de inauguração e para ir, mais tarde, ao apartamento dos Mortons saborear alimentos e bebidas de natureza mais substancial. Aceitaram.
O ar estava excessivamente quente – e perfumado. Dois antigos turíbulos bizantinos pendiam dos cantos; de suas conchas furadas evolava-se fumaça de um incenso almiscarado denominado "Orgasmo", um dos produtos mais vendidos pela Erótica. Os convidados entregavam os casacos e chapéus a uma morena, estranha e mal-humorada mocinha japonesa vestida com um transparente quimono das Mil e Uma Noites, sob o qual não usava porta-seios – apenas calcinhas decoradas com pequenas reproduções de Mickey Mouse. Incrivelmente, os seus pêlos púbicos eram louros.
Daniel e Célia afastaram-se para um lado, observando a agitada cena, bebericando pequenas taças de ponche sueco, temperado com especiarias. A loja estava repleta de clientes vociferantes, afogueados, na maioria jovens, usando os trajes ousados em voga. Não estavam vestidos; estavam fantasiados. O riso era estridente e os movimentos descontrolados, enquanto andavam pela loja examinando velas fálicas, volumes das gravuras de Aubrey Beards-ley, porta-seios de couro, e outros artigos da mesma natureza.
– Eles estão tão excitados – comentou Daniel Blank. – O mundo inteiro está excitado.
Célia ergueu a vista para ele e sorriu levemente. O longo cabelo preto, dividido no meio, emoldurava-lhe a face de feiticeira. Como sempre, não usava pintura, embora seus olhos parecessem nublados por um cansaço que subia dos ossos.
– Em que é que você está pensando? – perguntou, e ele deu-se conta, mais uma vez, de como as idéias, idéias abstratas, a provocavam.
– No mundo – disse ele, olhando em volta da sala. – No mundo rotineiro. Nas pessoas de hoje. Como estão, todas elas, estimuladas.
– Sexualmente estimuladas?
– Isso, naturalmente. Mas também de outras maneiras. Politicamente. Espiritualmente, acho, Violência. 0 novo. A terrível ânsia pelo novo, o diferente, o "estar por dentro". E o que está por dentro, durante semanas, dias depois está por fora. No sexo, na arte, na política, em tudo. E tudo parece acelerar-se cada vez mais. Nem sempre foi assim, foi?
– Não – concordou ela – não foi.
– O estar por dentro – repetiu ele. – Por que o chamam de "estar por dentro"? Penetração?
Nesse instante, ela fitou-o, curiosa.
– Você está bêbado?
Surpreso, respondeu:
– Com dois copos de ponche sueco? Não. – Riu. – Não estou bêbado.
Tocou-lhe a face com dedos quentes. Ela agarrou-lhe a mão, virou a cabeça para beijar-lhe as pontas dos dedos, enfiou o polegar dele na boca úmida, chupou-o, e tirou-o suavemente. Ele olhou rapidamente em volta da sala; ninguém estava olhando.
– Gostaria que você fosse minha irmã – disse em voz baixa. Silenciosa durante um momento, ela perguntou em seguida:
– Por que diz isso?
– Não sei. Não pensei no que disse. Simplesmente, disse.
– Está cansado de sexo?
– O quê? Oh, não. Não. Não, exatamente. Acontece apenas que... – Fez um gesto com a mão em direção à sala cheia. – Acontece apenas que eles não vão encontrá-la desta maneira.
– Encontrar o quê?
– Oh... você sabe. A resposta.
A noite apresentava aquele ritmo saltitante, caótico, que naquele tempo contaminava todas suas horas: vida acelerando-se em cenas desconexas, um filme vivamente cortado, imagens e distorções numa atmosfera febricitante e cada vez mais rápida: faces, lugares, corpos, falas e idéias aproximando-se da lente, ampliando-se, afastando-se, diminuindo e dissolvendo-se. Era-lhe difícil concentrar-se em uma experiência isolada; muito melhor seria abrir-se à sensação, deixar que ela o envolvesse.
– Alguma coisa está acontecendo comigo – disse. – Vejo essas pessoas aqui, nas ruas, no trabalho, e não posso acreditar que faço parte do mesmo grupo. Da mesma raça, quero dizer. Para mim, dão a impressão de cães, ou de animais no jardim zoológico. Ou talvez seja eu. Mas não posso relacionar-me com elas. Mas se elas são humanas, eu não sou. E se eu sou, elas não são. Eu simplesmente não as reconheço. Sou diferente delas.
– Você é diferente – disse ela suavemente. – Fez algo tão cheio de significação que isso o torna diferente.
– Oh, sim – respondeu ele, rindo feliz. – Fiz, não? Se elas soubessem...
– Qual a sensação que isso lhe dá? – perguntou. – Quero dizer... o fato de saber. Satisfação? Prazer?
– Isso também, naturalmente – assentiu ele, sentindo um arrepio de alegria por falar dessas coisas em uma sala cheia e barulhenta (ele estava nu, mas pessoa alguma podia ver isso). – Mas, sobretudo, uma sensação de... de gratificação por ter conseguido realizar tanto.
– Oh, sim, Dan – sussurrou ela, segurando-lhe o braço.
– Serei por acaso louco? Andei me fazendo essa pergunta.
– E isso é importante?
– Não. Na realidade, não.
– Olhe para essas pessoas – indicou-as com um gesto. – São criaturas sãs?
– Não – concordou ele. – Bem. . . talvez. Mas sejam sãs ou insanas, sou diferente delas.
– Naturalmente que é.
– E diferente de você – acrescentou, sorrindo.
Ela tremeu e aproximou-se mais dele.
– Temos de ir à casa dos Mortons? – indagou.
– Não temos obrigação. Mas acho que deveríamos ir.
– Poderíamos ir à sua casa. Ou à minha. Ao nosso lugar.
– Vamos até a casa dos Mortons – sugeriu ele, sorrindo novamente e sentindo o sorriso na face.
Esperaram até que Flo e Sam se aprontassem para sair. Juntos, tomaram um táxi para o apartamento dos Mortons. Flo e Sam chilreavam em altas vozes. Daniel Blank, sentado no banco sobressalente, sorria, sorria.
Blanche preparara pato assado com guarnição de pêssegos. Havia também pequenas batatas assadas e uma salada de alface e agrião. Ela trouxe o pato em uma tábua de trinchar para mostrá-lo e receber-lhes a aprovação antes de voltar à cozinha para esquartejá-lo.
O pato estava delicioso, concordaram, com a pele preta e quebradiça e o lustroso suco de pêssegos. Apesar de tudo, quando o prato cheio foi posto à frente de Daniel, ele fitou-o durante um momento: a comida ofendia-o.
Não podia dizer por que, mas o fato vinha acontecendo-lhe ultimamente com freqüência. Entrava em um restaurante conhecido, sozinho ou em companhia de Célia, pedia um prato que havia provado antes, do qual sabia que gostava, e, logo em seguida, ao lhe ser posto o prato em frente, perdia o apetite e mal conseguia engolir uns poucos bocados.
A comida era tão. . . tão física: aquela mistura quente, a ser cortada em pedaços, que pudessem caber no garfo, e enfiada no pequeno orifício que era a sua boca, para emergir, transformada em adubo, no dia seguinte, passando por outro orifício. Talvez o ofendesse a vulgaridade do processo. Ou sua animalidade. 0 que quer que fosse, ver comida, por mais bem preparada, deixava-o agora enjoado. Tudo que pôde fazer, para ser polido, foi comer um pedaço de pato, duas pequenas batatas, e provar a salada. Não se sentiu bem senão quando, finalmente, sentaram-se em sofás e cadeiras macias, com as xícaras de café na mão e os aperitivos de vodca.
– Ei, Dan – disse abruptamente Samuel Morton – tem algum dinheiro que queira investir?
– Sem dúvida – respondeu cordialmente Blank. – Não muito, mas um pouco. Em quê?
– Em primeiro lugar, quanto lhe custa esse clube de ginástica do qual é sócio?
– Quinhentos dólares por ano. Mas não inclui massagens e comida, caso o sócio as deseje. Servem sanduíches e saladas. Nada de muito refinado.
– Bebidas fortes?
– Podemos guardar uma garrafa no armário, se quisermos. Vendem refrigerantes.
– Piscina?
– Uma, pequena. E um pequeno solário. Um ginásio, naturalmente. E sauna. Por que me pergunta tudo isso?
– Pode-se nadar nu na piscina?
– Nu? Não sei. Acho que sim, se a pessoa quiser. 0 clube destina-se apenas a homens. Nunca vi ninguém fazer isso. Por que pergunta?
– Sam e eu tivemos uma idéia maravilhosa – explicou Florence Morton.
– Uma natural – concordou Sam. – Não pode falhar.
– Há um salão de ginástica numa rua aí perto – explicou Flo. – Começou como salão para emagrecimento, mas não está obtendo sucesso. Está à venda por uma ninharia.
– Bom preço – anuiu Sam. – E o reduzirão ainda mais.
– Tem uma grande piscina – assentiu Flo. – Um ginásio com todas as máquinas, duas saunas, sala de armários, banheiros. Tudo.
– E uma cozinha inteiramente equipada – acrescentou Sam. – Uma bela sala do tipo interno-externo, com mesas e cadeiras.
– A decoração é horrenda – aduziu Flo. – Horrenda. Mas existe o material.
– Vocês estão pensando em abrir um clube de ginástica? – perguntou Célia Montfort.
– Mas diferente – riu Flo.
– Totalmente diferente – gargalhou Sam.
– Para homens e mulheres – explicou Flo com um grande sorriso.
– Utilizando os mesmos armários e chuveiros – sorriu largamente Sam.
– Com banhos de sol, pelados, no telhado – observou Sam.
Blank fitou-os, sucessivamente.
– Vocês estão brincando?
Sacudiram ambos as cabeças.
– Vocês aceitariam como sócios apenas casais e famílias?
– Oh, não – replicou Flo. – Apenas gente solteira, da pesada.
– Aí é que está exatamente a idéia – disse Sam. – É deles que vem o dinheiro. Solteirões solitários. E não será barato. Calculamos admitir uns quinhentos sócios, a mil dólares por ano. Tentaremos manter o negócio na base de sessenta/quarenta.
– Sessenta por cento de homens e quarenta por cento de mulheres – explicou Flo.
Blank fitou-os e sacudiu a cabeça.
–Vocês acabarão na cadeia – sentenciou. – E todos os sócios.
– Qual nada! – retrucou Flo. – Nossos advogados examinaram o assunto.
– Há alguns precedentes encorajadores – animou-o Sam. – Há praias reservadas, na Califórnia, para os que desejam banhar-se nus. Todos os quatro sexos. Os tribunais sustentaram a legalidade desses locais. A lei é muito vaga aqui em Nova York. Ninguém jamais contestou o direito de banhos mistos, em pêlo, em um clube privado. Achamos que podemos nos safar.
– A coisa toda depende de sermos ou não um "incômodo público".
–Se for privado, bem dirigido, e não houver nudez em público, achamos que podemos levar avante a coisa – explicou Flo.
– Nenhuma nudez em público? – perguntou Daniel Blank. – Quer dizer, fornicação na sauna, nos armários, ou bolinagem sob a água serão permitidos?
– É tudo privado – disse Flo, encolhendo os ombros.
– Quem prejudica quem? – Sam encolheu os ombros. – São adultos que consentem.
Daniel virou-se para Célia Montfort. Ela estava imóvel, com a face sem expressão. Parecia esperar-lhe a reação.
– Vamos formar uma sociedade anônima – disse Flo.
– Achamos que necessitaremos de cem mil dólares – disse Sam – para arrendamento, hipoteca, conversão, seguro etc.
– Vamos vender ações – explicou Flo.
– Interessado? – perguntou Sam.
Daniel Blank acariciou levemente a peruca via-veneto.
– Oh – respondeu – não. Acho que não. Não é do meu gosto. Mas acho que se vocês conseguirem contornar os aspectos legais, a idéia é boa.
– Será que vai pegar? – perguntou Sam.
– Lucrativa? – indagou Flo.
– Nenhuma dúvida a esse respeito – garantiu Blank. – Se a lei não cair em cima de vocês, poderão ganhar uma fortuna. Passem pela Eighth Avenue, o que faço quase todos os dias. Está cheia de casas onde se pode conseguir uma mulher para nos dar massagem, ou pintar-lhe o corpo, ou assistir a filmes pornô, ou ser coçado com penas. E a prostituição comum, naturalmente. Banhos mistos em um clube privado? Por que não? Sim, acho que é uma idéia rendosa.
– Nesse caso, por que não quer investir? – perguntou Célia.
– O quê? Oh... Não sei. Eu já disse. . . não é o meu estilo. Estou cansado de tudo isso. Talvez esteja simplesmente entediado. De qualquer modo, perturba-me. Não gosto.
Olharam-no fixamente, os três, e esperaram. Mas como ele continuasse calado, Célia insistiu:
– Do que é que você não gosta? Da idéia de homens e mulheres nus nadando juntos? Acha imoral?
– Oh, Deus, não! – Riu em voz alta. –Não sou nenhum puritano. Acontece simplesmente que...
– Acontece simplesmente o quê?
– Bem – respondeu ele, mostrando os dentes – o sexo é tão... tão inconseqüente, não? Quero dizer, comparado com a morte e... bem, a virgindade. Quero dizer, estes são tão absolutos, não? E o sexo jamais é. É sempre algo mais. Mas, nos casos da morte e da virgindade, lidamos com absolutos. Célia, não foi a palavra que você usou? Finidade. Foi essa? Ou finalidade. Alguma coisa parecida. É tão bom... tão cálido... Sei que a vida é feita de problemas, mas, ainda assim... O que vocês estão planejando fazer é errado. Não no sentido moral. Oh, não. Mas vocês estão contornando o problema. Sabiam? Estão andando em círculos, não vêem a meta, nem mesmo a entrevêem. Oh, sim. Lucrativo? Certamente que será. Durante um ou dois anos. Diferente. Novo. Estar por dentro. Mas, em seguida, cairá de moda. Simplesmente morrerá. Isto porque vocês não lhes darão a resposta, compreendem? Ter relações sexuais sob a água ou numa sauna. E em seguida... Não, não! É tão... tão superficial. Eu lhe disse. Aquelas pessoas, hoje à noite. Bem, é isso. O que foi que elas aprenderam ou conquistaram? Talvez a masturbação seja a resposta. Já pensaram por acaso nisso? Sei que é ridículo. Peço desculpa por a ter mencionado. Mas, ainda assim... Porque neste mundo permissivo dizem pornô, "perv" e S-M. Significa tanta coisa que podem abreviá-las. É por isso. Ofende-me. A vulgaridade. Porque poderia ter sido um caminho, uma trilha, mas não é mais. Sexo? Oh, não. Tomamos outro martíni ou vamos para a cama? A importância é essa. Conheci uma moça... Bem, precisamos ir mais além. Eu lhes digo, não é suficiente. Afastando o sexo, precisamos decidir o que virá depois. Qual o número do ônibus para o absoluto. E assim, vocês.
Célia Montfort interrompeu-o rapidamente.
– O que Daniel está tentando dizer – explicou aos atônitos Mortons – é que numa sociedade totalmente permissiva a virgindade transforma-se na última perversão. Não era isso que você queria dizer, querido?
Ele inclinou a cabeça. Finalmente, saíram. Ela tremia, mas não ele.

6

Ele se apoiou no cotovelo esquerdo e, com a palma da mão direita, acariciou aquelas costas sedosas.
– Está acordado?
– Estou.
– Fale a respeito dessa mulher, a Célia Montfort. Risinho.
– O que é que você quer saber sobre "essa mulher", Célia Montfort?
– Quem é ela? O que é ela?
– Pensei que soubesse de tudo a respeito dela.
– Sei que é bela e ardente. Mas tão misteriosa e distante. Tão fechada dentro de si mesma.
– Bem, ela é amor. Muito profunda, a nossa Célia.
– Quando desaparece assim de supetão, para onde vai?
– Oh... a lugares.
– Para outros homens?
– Às vezes. Às vezes, para outras mulheres.
– Oh!
– Está chocado, querido?
– Na realidade, não. Acho que desconfiava. Mas volta tão cansada. Às vezes, até ferida. Ela quer ser ferida? Quero dizer, deliberadamente procura isso?
– Pensei que soubesse. Viu aquelas ataduras nos pulsos dela? Notei que as olhava fixamente. Tentou cortar os pulsos.
– Meu Deus!
– Ela tentou antes e, com toda probabilidade, tentará novamente. Pílulas, velocidade alta demais, ou, talvez, uma navalha.
– Oh, doçura, por que ela faz isso?
– Por quê? Ela realmente não sabe. Só se é porque para ela a vida não tem valor. Nenhum valor real. Disse isso certa vez.
Ele beijou os lábios macios e, com as pontas dos dedos, tocou-lhe suavemente os olhos fechados. O corpo ebúrneo aproximou-se dele e colou-se; ele, mais uma vez, sentiu o odor da carne preciosa, de uma pele tão fina e macia como seda molhada.
– Eu pensei que a fazia feliz.
– Oh, e faz, Dan. Tanto quanto um homem poderia fazê-lo. Mas não é o suficiente para ela. Ela viu tudo, fez tudo e, ainda assim, coisa alguma tem significação para ela. Passou por uma dúzia de religiões e crenças, tentou o álcool e todos os tipos de drogas, fez com homens, mulheres e crianças coisas em que você não acreditaria. Está esgotada agora. Não é óbvio isso? Célia Montfort. Pobre pequena.
– Amo-a.
– Ama-a? Acho que é tarde demais para ela, Dan. Ela está... está além do amor. Tudo o que quer agora é a libertação.
– Libertação de quê?
– De viver, acho, já que faz tanta força para suicidar-se.. Talvez o problema seja que é inteligente demais. Pintou e escreveu poesia. Era muito competente, mas não conseguiu tolerar o pensamento de ser apenas "muito competente". Se não possuía o dom do gênio, não se contentava com um segundo lugar. Quer sempre o melhor, o máximo, o final. Acho que o problema dela é que quer ter certeza. De alguma coisa, de qualquer coisa. Quer respostas finais. Creio que foi por isso que se sentiu atraída por você, querido. Sentiu que você buscava a mesma coisa.
– Você é tão velho para sua idade.
– Sou? Sou antigo. Nasci antigo.
Riram baixinho, juntos, e aproximaram-se, abraçando-se, beijando-se, beijando-se com amor mas sem paixão, lábios úmidos colados. Blank acariciou os cabelos emaranhados e, com a ponta do dedo, acompanhou as dobras da delicada orelha, a garganta esguia, a forma das costelas sob a pele de cetim.
Por fim, separaram-se e ficaram de costas sobre a cama, lado a lado, com as mãos mais próximas frouxamente entrelaçadas.
– O que é que você me diz de Valenter?
– O que é que você quer saber?
– Qual é o papel dele em sua casa?
– O papel dele? É um empregado, um caseiro.
– Ele parece tão... tão sinistro.
Zombando:
– Acha que ele está dormindo com o irmão ou a irmã? Ou com ambos?
– Não sei. É uma casa estranha.
– Talvez seja, mas garanto-lhe que Valenter é apenas um empregado. É imaginação sua, Dan.
– Acho que sim. Aquele quarto lá em cima... Existem vigias por onde outras pessoas possam olhar? Ou é um local com instalação sonora para se ouvirem conversas?
– Agora você está sendo ridículo.
– Creio que sim. Talvez estivesse acreditando no que queria acreditar. Mas por que aquele quarto?
– Por que o levei lá? Porque fica na parte superior da casa. Ninguém jamais vai lá. É privado e eu sabia que não seríamos interrompidos. É feio, sei, mas foi divertido não? Não achou divertido? Por que está rindo?
– Porque vi tantas coisas nele que não existem.
– Como o quê?
– Bem, essa mulher...
– Eu sei, "essa Célia Montfort".
– Sim. Bem, pensei que essa Célia Montfort estivesse manipulando-me, usando-me.
– Para o quê?
– Não sei. Mas sinto que ela quer algo de mim. Está à espera de alguma coisa. De mim. Está?
– Não sei, Dan. Simplesmente, não sei. Ela é uma mulher muito complexa. Não conheço muita coisa a respeito de mulheres; a maior parte de minha experiência foi com homens, como você sabe muito bem. Mas acho que Célia Montfort não sabe exatamente o que quer. Acho que sente a presença de algo e caminha às cegas nessa direção, empregando todos os tipos de falsos começos e retornos errados. Está sempre sofrendo acidentes. Escorregando, derrubando objetos, perturbando coisas, caindo, quebrando isto ou aquilo. Mas move-se na direção de alguma coisa. Não tem também a mesma impressão?
– Sim. Oh, sim. Descansou?
– Sim, querido, descansei.
– Podemos fazer amor outra vez?
– Por favor. Mas devagar.
– Tony, Tony, amo-o.
– Oh, pô – disse Tony Montfort.

7

O fato estranho, o estranho fato, pensou Daniel Blank, era que o mundo se expandia ao passo que ele se contraía, isso é, amava Tony, a Sra. Cleek, Valenter e os Mortons – todos os que conhecia e via nas ruas – amava-os a todos. Tão tristes. Eram todos tão tristes. Mas, como havia dito a Célia naquela noite na Erótica, sentia-se diferente deles. Ainda assim, podia amá-los. Era uma situação curiosa e sem solução.
Ao mesmo tempo que seu amor e espírito de compreensão se expandiam e abrangiam todas as coisas vivas – pessoas, animais, rochas, os céus turbilhonantes – ele se recolhia dentro de si mesmo, soltando um risinho para roer o próprio coração e saborear uma vida secreta. Estava condensando-se, enroscando-se sobre si mesmo, penetrando cada vez mais profundamente. Era uma vida fechada de sombras, perfumes, arquejos. Apesar de tudo, apesar de tudo. Girando em seu curso, uma música no traiçoeiro mundo.
Bem, a situação resumia-se no seguinte: devia ser ou não um eremita? Podia contorcer-se nu em frente à parede espelhada e abraçar-se envolvido em correntes douradas. Havia aí uma resposta. Ou poderia sair para a vida congestionada das ruas e misturar-se com os demais. Ligar-se. Penetrar e conhecê-los a todos. Amando.
Optou pelas ruas, as perversas ruas, e pela abertura. A resposta, resolveu estava nelas. Não em AMROKII; estava em Charles Lipsky e em todos os esforçados e derrotados imbecis. Odiava-os por suas fraquezas e seus vícios e pelos mesmos motivos os amava. Seria ele um Cristo? Era um pensamento errante. Ainda assim, reconhecia, podia ser. Possuía o amor de Cristo. Mas, naturalmente, não era religioso.
Nesse caso. . . Daniel Blank saiu em sorrateiras rondas. Sorrindo abertamente para o céu de inverno, resolvido a solucionar o mistério da vida.
Naquela noite banhou-se e perfumou o corpo esguio, vestiu lenta e cuidadosamente o terno preto, a camisa de gola rulê preta, os sapatos de crepe-sola, e o sobretudo com os bolsos abertos em fenda, com o machado de gelo pendente do braço esquerdo, dentro do agasalho. Saiu preguiçosamente em busca de seu amor demoníaco, um mongol tão feliz, tão feliz. Transcorria o décimo primeiro dia desde o assassínio do detetive de terceira classe Roger Kope.
A busca havia-se tomado crescentemente difícil, reconhecia. Desde a morte do detetive, as ruas eram patrulhadas à noite não apenas por chamarizes à paisana, mas por duplas de guardas uniformizados em quase todos os quarteirões e esquinas, cautelosos devido ao que acontecera a Kope. Além disso, era evidente a designação de mais carros de radiopatrulha para a área. Daniel Blank supunha também que carros policiais sem marcas estavam sendo igualmente usados.
Nas circunstâncias, teria toda razão se procurasse outro campo de caça, talvez em outro bairro. Mas considerava o fato mais um desafio do que um risco. Rejeita o montanhista a escalada difícil devido ao perigo? Se rejeitasse, então por que escalar? O ponto, o ponto importante, era distender-se, sondar os novos limites de seu talento e coragem. O espírito de resolução assemelhava-se a um músculo: exercitado, tornava-se maior e mais firme; não usado, tornava-se pálido e flácido.
A chave do sucesso, raciocinou, poderia ser o fator tempo. Os seus três crimes haviam ocorrido entre 11:30 e 12:30 da noite. A Polícia devia saber disso, naturalmente, e todo seu pessoal fora possivelmente alertado para redobrar a vigilância por volta da meia-noite. Poderia mostrar-se menos vigilante antes e depois. Precisava explorar todas as vantagens que pudesse descobrir.
Resolveu agir uma hora mais cedo. Corria a temporada de compras de Natal. Escurecia às sete horas, embora as lojas permanecessem abertas até às nove, e mesmo às dez horas eram vistas pessoas caminhando apressadas para casa, carregadas de embrulhos e sacos. Depois de meia-noite as ruas praticamente se esvaziavam, salvo pelos chamarizes e pelas patrulhas uniformizadas. Os moradores do bairro haviam lido as reportagens publicadas em seguida à morte de Kope; poucos se aventuravam a sair depois de meia-noite. Sim, mais cedo seria melhor: qualquer ocasião entre nove e dez e meia. Os montanhistas pesavam cuidadosamente os azares e as percentagens; não eram suicidas deliberados.
Precisava de uma camuflagem, pensou, e após madura reflexão, resolveu o que seria. Na noite anterior, ao voltar para casa, vindo do trabalho, parara em uma loja que vendia cartões de Natal, árvores artificiais, ornamentos, papel de embrulho, e enfeites. A loja abrira seis semanas antes do Natal e fecharia nas vésperas desse dia. Com freqüência, vira isso acontecer em toda a cidade.
Comprou duas caixas, uma do tamanho aproximado de uma caixa de sapatos e, a segunda, chata e comprida, destinada a acondicionar uma gravata de homem ou luvas. Comprou um rolo de papel de presente com motivos natalinos, o mais convencional que pôde encontrar: fundo vermelho e o desenho de renas puxando o trenó de Papai Noel. O rolo em si veio embrulhado em celofane. Comprou um pequeno pacote de selos natalinos e um rolo de barbante, com o comprimento de um rolo de lã para tricô, e que era enrolado em um quadrado de papelão.
Usou as luvas de camurça ao fazer as compras. A loja estava cheia; o empregado mal o olhou. Em casa, ainda calçando as luvas, preparou as duas caixas como presentes de Natal, pregando as extremidades com cabeças adesivas de Papai Noel e, em seguida, amarrando-as com barbante vermelho, com atraentes nós na parte superior. Terminada essa parte, possuía o que eram, aparentemente, dois presentes de Natal muito bem acondicionados. Tinha a intenção de deixá-los no local do crime; as possibilidades de que os embrulhos o denunciassem, acreditava, eram absolutamente mínimas. Enfiou o que sobrou, selos, barbante e papel, na lata de lixo, levou-a até a sala do incinerador, no fundo do corredor, e lançou todo o conteúdo pela abertura. Voltou ao apartamento e tirou as luvas.
Conforme esperara, o porteiro de serviço, ao sair na noite seguinte não era Charles Lipsky – mal ergueu a vista no momento em que passou carregando os dois pacotes de Natal vazios; estava ocupado demais assinando recibos de entregas e ajudando moradores a sair dos táxis com suas cestas de compras cheias de pacotes. E se o houvesse notado, que haveria nisso demais? Daniel Blank saíra para passar a noite com amigos, levando dois presentes vistosamente embrulhados. Belo.
Ficou tão jubiloso com a própria inteligência, tão surpreso com o número de compradores ainda nas ruas, que resolveu ir até ao The Parrot, tomar um drinque e matar um pouco o tempo. "Matar o tempo". Soltou um risinho, com o machado seguro sob o sobretudo, e os pacotes de Natal sob o braço direito.
The Parrot estava vazio. Havia um único freguês no bar, um homem de meia-idade, murmurando consigo mesmo e fazendo largos gestos. O garçom lia um tratado religioso sentado a uma mesa dos fundos. O garçom do bar preenchia um volante de corrida de cavalo. Eram os mesmos que haviam estado de serviço no dia em que tivera uma briga com o homossexual no ano anterior. Ambos ergueram a vista quando ele entrou, mas não lhes notou expressão de reconhecimento nas faces.
Pediu um conhaque. Ao lhe ser trazida a bebida, perguntou ao garçom se não queria tomar também alguma coisa.
– Obrigado – disse o homem com um frio sorriso. – Quando estou de serviço não posso.
– Noite tranqüila. Parece que todo mundo anda fazendo compras de Natal.
– Não é isso – explicou o indivíduo, inclinando-se na sua direção. – Em outros Natais, tínhamos uma multidão aqui quando fechavam as lojas. Neste ano, ninguém. Sabe por quê?
– Por quê?
– Aquele assassino louco à solta – disse irritado o homem, balançando suas bochechas avermelhadas. – Quem, diabo, quer sair para as ruas após o anoitecer? Espero que o prendam logo e lhe cortem a cabeça. O miserável está arruinando nosso negócio.
Blank assentiu, com a maior cara de pau, e pagou a bebida. O machado continuava sob o sobretudo. Sentado no bar, vestido com o casaco e luvas, embora a sala estivesse quente, bebericou com prazer a bebida. As caixas de Natal repousavam ao lado, sobre o balcão. O local era tranqüilo e tranqüilizador. E era divertido, de certa maneira, descobrir que o que fazia afetava tantas pessoas. Uma pedra lançada num tanque, os círculos se formando, espalhando-se...
Tomou um drinque, deixou uma gorjeta modesta e saiu com os embrulhos. Virou-se à porta, em dúvida se devia fazer um aceno ao garçom do bar ou ao do salão, mas ninguém o olhou. Riu por dentro; era tudo tão fácil. Ninguém se importava.
Rareava o número dos que faziam compras de Natal; os que se encontravam ainda nas ruas corriam para casa com os embrulhos sob os braços ou as cestas de compras balançando. Blank imitou-lhes a aparência: os dois presentes de Natal sob um braço, a cabeça e os ombros levemente curvados para defender-se do vento frio. Mas os olhos faiscavam em todas as direções. Se não pudesse- terminar o que pretendia antes das 11 horas, teria que deixar para outra noite. Havia resolvido isso.
Perdeu uma boa vítima em perspectiva quando o indivíduo mergulhou subitamente na escada de uma casa de pedra cinzenta e desapareceu, enquanto Daniel Blank ainda praticava o sorriso. Perdeu outro que parou para conversar com o porteiro de um prédio de apartamentos. Um terceiro pareceu promissor, mas tinha uma aparência acentuada demais de chamariz ou não estaria andando tão vagarosamente assim. Outro foi perdido porque uma patrulha uniformizada virou inesperadamente a esquina, depois dele, e veio em passos preguiçosos na direção de Blank.
Não admitia a frustração e fez um esforço para manter a fúria sob controle. Mas, ainda assim... o que estavam eles lhe fazendo? Puxou o pulso esquerdo do bolso do casaco para ver as horas sob um poste. Quase 10:30. Não tinha muito tempo. Teria, talvez, de deixar a tentativa para outra noite. Mas não podia. Não podia. Sentia a febre queimar-lhe o sangue, ardente. O diabo levasse. . . Calar baionetas, rapazes, e para a frente. . . Agora ou. . . Tinha que ser. Tinha tanta sorte. Um hábito de sorte. Sempre na crista do sucesso.
E assim foi, pois ali – incrivelmente, deliciosamente, livre de carros da patrulha e patrulhas uniformizadas – o quarteirão estava vazio e escuro. Em sua direção caminhava um homem, andando em passos apressados, trazendo sob o braço um embrulho com embalagem de Natal. E na lapela do seu sobretudo de tweed, uma pequena rosa. Um chamariz da Polícia levaria acaso um presente de Natal? Usaria uma rosa? Não era provável, concluiu Daniel Blank. Começou a sorrir.
O homem passou sob o poste. Blank notou que era jovem, esbelto, erecto, confiante, usava bigode e, na realidade, era bastante bonito. Outro Daniel Blank.
– Boa noite! – disse Daniel Blank a alguns passos de distância, sorrindo.
– Boa noite! – respondeu por sua vez o homem, sorrindo.
No momento da passagem, Blank transferiu o machado e iniciou o rodopio. Mas no exato momento em que o fazia, percebeu que a vítima havia subitamente parado e iniciado o seu próprio giro. Sentiu uma obscura admiração por um homem cujos instintos, cujas reações físicas eram tão corretas e rápidas, mas, depois disso, tudo mais tornou-se obscuro.
O machado foi erguido. Os pacotes de Natal caíram na calçada. Em seguida, duas mãos se fecharam em volta de seu punho direito. O pacote do indivíduo caiu também. Mas a sua empunhadura não afrouxou. Blank foi puxado fortemente para a frente. Três braços subiram altos no ar. Ficaram parados um segundo, esculpidos em doce abraço, respirando o vapor nos lábios abertos de cada um, muito perto. O contato físico era tão delicioso que Daniel ficou confuso e apertou-o mais. Calor. Adorável calor e força.
O bom senso voltou rapidamente. Passou um tornozelo por trás do joelho esquerdo do oponente, puxou para trás e empurrou. Não foi suficiente. O homem cambaleou, mas não caiu. A empunhadura sobre o punho de Blank, contudo, afrouxou-se. Blank aplicou novo gancho e puxou mais uma vez, todo o seu corpo contra o do adversário. Oh! Pensou que ouvira um distante apito, mas não tinha certeza. Caíram, então. Daniel, rolando, ouviu e sentiu o cotovelo esquerdo estalar contra a calçada e perguntou-se, indolente, se estava quebrado. Pensou que talvez estivesse.
Ficaram estirados no chão, Blank sobre o adversário, cujos olhos estavam enevoados por uma espécie de cansaço. Suas mãos soltaram o pulso de Blank, que subiu e desceu o machado de gelo, para cima e para baixo, vergastando furiosamente, em êxtase, aproximando-se mais, porque esta vítima era a melhor até então, mal sentindo os fracos dedos e unhas que lhe arranhavam a face. Algo quente ali.
O jovem ficou imóvel, com os olhos pretos ainda brilhantes. Blank pôs de lado, durante um momento, o machado para arrancar a rosa da lapela, recuperou o machado, ergueu-se com dificuldade, agachou-se rosnante, e olhou desvairado em volta. Havia apitos no ar naquele instante, quanto a isso não havia duvida. Um guarda uniformizado vinha correndo da esquina distante, levando já a mão ao quadril, enquanto seu colega, do outro lado da avenida, apitava tolamente. Blank observou-os durante alguns segundos, enrolando a alça do machado em torno do punho esquerdo sob o casaco.
Sentiu uma dor súbita no cotovelo esquerdo e na face sangrenta. Correu em seguida, prendendo junto ao corpo o cotovelo ferido, calculando possibilidades e probabilidades, mas sem pensar nem por um momento em lançar fora a rosa amarela.
O corpo na calçada devia detê-los durante um momento, pelo menos um deles. Ao virar para a First Avenue deixou de correr, enfiou a rosa no bolso direito do sobretudo, puxou um lenço do bolso interno do paletó e levou-o à face sangrenta, tossindo, tossindo. Entrou numa lanchonete, a duas portas da esquina. Ainda tossindo, com a face escondida pelo lenço, dirigiu-se em passos firmes para a cabina telefônica nos fundos. Prendeu o lenço com o ombro, tirou uma moeda do bolso direito para inserir na ranhura e chamou o serviço de previsão do tempo. Ouviu a voz desencarnada dizer que "Um aviso dirigido a pequenas embarcações foi irradiado com aplicação de Charleston a Block Island", quando, observando, viu um guarda uniformizado passar correndo pela lanchonete, levando o revólver na mão. Deixou imediatamente a lanchonete, ainda tossindo, com o lenço no rosto. Um táxi vazio parou no sinal da rua. Sorte. Não era sorte total?
Polidamente, pediu ao motorista que o levasse ao terminal de ônibus da zona oeste. A voz – as próprias lágrimas, pelo menos – era firme. Logo que se abriu o sinal e o táxi partiu, arrastou-se para o canto esquerdo mais distante, onde o motorista não poderia vê-lo pelo espelho retrovisor sem espichar o pescoço. Estendeu a mão direita, com os dedos abertos. Não parecia estar tremendo.
Durou quase vinte minutos a viagem até o terminal e ele usou-os todos, erguendo a vista com freqüência para certificar-se de que o motorista não o observava. Em primeiro lugar, abriu o sobretudo, desabotoou o paletó, e soltou o cinto. Em seguida, em movimentos suaves, tirou a alça do machado de gelo do punho esquerdo morto, pôs o cinto através da alça, e fechou-o novamente. A partir desse momento, o machado bateria na sua coxa quando ele caminhasse, mas estava em segurança. Abotoou o paletó.
Cuspiu no lenço e suavemente esfregou o rosto. Havia sangue, mas muito menos do que temera. Colocou o lenço ao lado no assento e, segurando a mão esquerda com a direita, vagarosamente dobrou o braço. Incomodou, doeu, mas a dor era suportável, o cotovelo parecia estar funcionando, e teve a esperança de que fosse uma forte contusão, e não uma fratura ou lasca. Dobrou o cotovelo esquerdo e pôs o antebraço dentro do paletó, descansando nos botões, como se fosse uma tipóia. Sentiu-se melhor dessa maneira.
Cuspiu mais no lenço, enxugou novamente o rosto. Mal havia sangue. Os ferimentos já estavam coagulando. Enfiou o lenço manchado de vermelho no bolso interno do paletó. Tirou a carteira com uma mão, lançou um olhar ao relógio do táxi, tirou três notas de um dólar, repôs a carteira no lugar, recostou-se no assento, tomou uma profunda respiração e sorriu.
A estação de ônibus estava cheia. Ninguém o olhou e ele nem mesmo se deu ao trabalho de cobrir a face com o lenço. Dirigiu-se diretamente ao lavatório dos homens. O local, igualmente, estava cheio, mas conseguiu dar uma boa olhada em si mesmo no espelho. A peruca estava fora de prumo, e a bochecha esquerda profundamente arranhada – haveria sem dúvida formação de um cascão – e a direita tinha um hematoma, mas não cortes. Somente o arranhão na bochecha esquerda sangrava ainda, mas pouco.
Outro homem lavava as mãos na pia ao lado. Viu os olhos de Blank no espelho.
– Espero que o outro cara esteja tão machucado como você – disse.
– Nem cheguei a pôr as mãos nele – disse melancólico Blank.
O homem soltou uma gargalhada.
Daniel molhou duas toalhas de papel sob a torneira e dirigiu-se a um dos toaletes pagos. Fechando a porta, usou uma das toalhas para enxugar novamente o rosto. Utilizou a outra para limpar o sobretudo e o paletó. Descobriu um arranhão no joelho esquerdo sob a calça; o tecido havia sido rasgado e a pele aparecia. Teria de jogar fora toda a roupa: embrulhá-la em papel pardo e colocá-la em uma cesta de lixo a caminho do trabalho. As possibilidades eram que um mendigo a levasse antes que o pessoal da limpeza pública chegasse. De qualquer modo, poderia arrancar as etiquetas da loja onde a comprara e queimá-las. Isso não tinha importância.
Experimentou novamente o braço esquerdo. A junta do cotovelo funcionava, embora doesse – quanto a isso não havia dúvida. Tirou o paletó e arregaçou a manga. Uma bela inchação ali, descolorida.Mas o cotovelo funcionava. Arrumou as roupas e vestiu o sobretudo de modo a pender dos ombros, à maneira européia, com ambos os braços para dentro, e o machado pendente do cinto. Cuidadosamente, passou papel higiênico no rosto e examinou-o. Levemente avermelhado. Sentiu uma súbita e incontrolável necessidade de defecar, o que fez. Deu descarga nas toalhas e no papel higiênico, arrumou com um puxão a roupa, e abriu a porta do toalete, sorrindo levemente.
No espelho sobre a pia arrumou a peruca e penteou-a lentamente com a mão direita.
Outro indivíduo, calvo e sem chapéu, enxugava as mãos ao lado. Olhou fixamente para Blank. Daniel olhou-o duramente por sua vez.
– Procurando alguma coisa? - perguntou.
O homem fez um gesto de pedido de desculpas.
– O seu cabelo – disse. – É peruca, não?
– Oh, sim.
– Estive pensando. . . – continuou o homem. – O senhor as recomenda?
– Com todo o empenho. Nenhuma dúvida a esse respeito. Mas consiga a melhor que puder. Quero dizer, não pense em fazer economia.
– Não cai com o vento?
– Nenhuma possibilidade. Eu nunca uso chapéu. Pode-se nadar com ela. E até tomar banho de chuveiro, se quiser.
– Acha realmente que sim?
– Sem dúvida alguma – anuiu Blank. – Pode mudar toda sua vida.
– O senhor não está brincando? – murmurou baixinho o homem, entusiasmado.
Tomou um táxi de volta ao prédio de apartamentos, com o sobretudo pendendo frouxamente dos ombros.
– Sr. Blank – disse o porteiro. – Outro cara foi morto hoje à noite. A menos de dois quarteirões daqui.
– Foi mesmo? – perguntou Daniel, e sacudiu a cabeça desanimado. – De agora em diante, irei de táxi a qualquer lugar.
– É a melhor maneira de agir, Sr. Blank.
Encheu a banheira de água quente, derramou bastante óleo perfumado de banho para provocar espuma e perfumar o banheiro. Despiu-se e entrou cauteloso na água, deixando para mais tarde a limpeza do machado de gelo. Sobre a superfície espumosa da água pôs a flutuar a rosa. Observou-a, imerso até o queixo na água quente, banhando o cotovelo ferido. Após algum tempo, ocorreu-lhe uma ereção e a cabeça vermelha do pênis surgiu sobre a água, enquanto a rosa saltitava em volta. Nunca se sentira tão feliz na vida. Sonhou.


PARTE 7

1

"Haviam parado em um molhe pintado de branco, Honey Bunch seguiu o pai e a mãe pelo molhe e chegaram ao pé da escada do mais lindo bangalô que ela jamais vira. Era pintado de branco, possuía as vergas da janela pintadas de verde e persianas também verdes, decoradas com pequenas bolotas de carvalho. Honey Bunch nunca vira uma bolota branca, mas achou que ficava muito bonita nas persianas. Num pequeno cartaz pendurado no alpendre do bangalô estavam escritas as palavras: 'Casa da Bolota'."
O Capitão Edward X. Delaney interrompeu-se. A pedido da esposa, estivera lendo em voz alta trechos de "Honey Bunch: O Seu Primeiro Dia no Campo", mas, quando lançou um olhar à cama, Bárbara parecia adormecida, respirando profundamente, com os braços magros e as mãos brancas repousando molemente sobre o cobertor. Ela não saía mais da cama, nem para sentar-se na cadeira de rodas.
Chegara a tempo de ajudá-la a tomar a refeição vespertina. Ela mordiscou um sonho, comeu um pouco de purê de batata e depois empurrou-lhe a mão, desviando o rosto. Ele não teve coragem de insistir.
– O que é que você anda fazendo, Edward? – perguntou, em voz fraca.
– Oh, você. sabe... tentando conservar-me ocupado.
– Houve alguma coisa de nova no caso?
– Que caso? – perguntou ele; ficou envergonhado e baixou os olhos. Não queria dissimular, mas parecia-lhe cruel, no estado dela, falar em morte violenta.
– O que é, Edward? – perguntou ela, desconfiando.
– Houve outro assassinato – respondeu em voz baixa. – Um detetive. Um dos chamarizes de Broughton.
– Casado?
– Sim. Três filhos pequenos.
Os olhos dela fecharam-se lentamente e sua face tomou um matiz de cera. Fora nesse momento que lhe pedira para ler em voz alta trechos do livro Honey Bunch, que ele havia trazido. Apanhou-o contente, satisfeito por mudar de assunto, abriu o livro ao acaso e começou a ler em voz alta, em um tom de voz resoluto e expressivo.
Mas naquele instante, após ler duas páginas, ela parecia adormecida. Pôs o livro de lado, vestiu o sobretudo, apanhou o chapéu e iniciou uma silenciosa retirada para a porta. Ela, porém, chamou-o:
– Edward!
Ao virar-se, notou que ela tinha os olhos abertos e lhe estendia a mão. Voltou imediatamente para o lado da cama, puxou uma cadeira, e sentou-se ali, segurando-lhe os dedos quentes e secos.
– Com isso, são três.
– Sim – concordou ele, infeliz. – Três.
– Todos homens – disse ela vagamente. – Porque só homens? Seria muito mais fácil matar mulheres. Ou crianças. Não seria, Edward? Não tão perigoso para o assassino.
Fitou-a, despontando em sua mente a importância do que ela dissera. Talvez não fosse coisa alguma, naturalmente. Mas podia ser. Inclinou-se e beijou-lhe levemente o rosto.
– Você é uma maravilha, é mesmo – murmurou. – O que é que eu faria sem você?
De volta ao estúdio, tendo um uísque com gelo na mão, esqueceu o bolo de galinha deixado por Mary na mesa da cozinha, e pensou na significação daquilo que lhe sugerira a esposa.
Certamente não era estranho que um assassino psicopata não sentisse interesse, ou sentisse medo do sexo antes de matar (ou fosse mesmo impotente) e que, durante ou após o assassinato, se transformasse em um sátiro incontrolável. Houvera muitos desses casos, mas todos eles, tanto quanto sabia, envolveram, como vítimas, mulheres ou crianças.
No caso que investigava, porém, as três vítimas tinham sido homens. Lombard e Kope eram indivíduos altos e musculosos, capazes de se defenderem se tivessem tido mesmo uma pequena oportunidade. Ainda assim, até então, o assassino escolhera apenas homens, matando-os com um machado de gelo. Como dissera Bárbara, era uma maneira perigosa de matar – perigosa para o assassino. Muito mais fácil seria atacar uma mulher ou usar uma arma de fogo contra um homem. Mas ele não escolhera tal curso. Somente homens. E com um machado. Significaria isso alguma coisa?
Poderia significar, pensou Delaney, bem que poderia. Naturalmente, se a vítima seguinte fosse uma mulher, a teoria cairia por terra, mas valia a pena pensar nela durante um momento. O assassino, homem, matara três outros homens, arriscando-se. Bancando o psicólogo amador, Delaney pensou no simbolismo sexual da arma usada: um machado de gelo com ponta, um machado com um espigão rígido. Seria isso exagero demais? Um machado de gelo com um espigão que caía! Mais exagerado ainda?
Tirou o "Arquivo de Especialistas" do fundo da gaveta da escrivaninha e encontrou o cartão que procurava: "PSIQUIATRA-CRIMINOLOGISTA, Dr. Otto Morgenthau". Havia notas adicionais no cartão, na caligrafia de Delaney, recordando os dois casos em que o Dr. Morgenthau ajudara o Departamento. Um deles dissera respeito a um estuprador e, o outro, a um atirador de bombas. Delaney discou o número telefônico indicado: o consultório do médico, na Fifth Avenue, na jurisdição da 60ª Delegacia, e não da 251a .
Uma voz feminina respondeu:
– Consultório do Dr. Morgenthau.
– Eu poderia, por favor, falar com o Dr. Morgenthau? Aqui é o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York.
– Sinto muito, capitão, mas o doutor não pode atender no momento. Isso significava que Morgenthau estava com um cliente.
– Poderia ele me telefonar quando tivesse um momento livre?
– Tentarei, senhor. Pode me dar seu número?
Deu-lhe o número, desligou e dirigiu-se à cozinha. Tentou comer um pedaço do bolo de galinha; estava bom mas não sentia realmente fome. Cobriu cuidadosamente os restos com um envoltório plástico, e colocou-os no refrigerador. Preparou outro uísque com gelo e sentou-se encurvado na cadeira giratória por trás da mesa do estúdio, bebericando o drinque e olhando com expressão vazia para o telefone. Ao tocar o aparelho, meia hora depois, deixou que a campainha soasse três vezes antes de erguer o fone do gancho.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
– Aqui é o Dr. Otto Morgenthau. Como vai, capitão?
– Muito bem, obrigado, doutor. E o senhor?
– Cansado. De que se trata, capitão?
– Eu gostaria de ir consultá-lo, doutor.
– O senhor, capitão? Pessoalmente? Ou assunto do Departamento?
– Departamento.
– Bem, o que é?
– É difícil explicar pelo telefone, doutor. Eu estava pensando...
– Impossível – interrompeu-o secamente Morgenthau. – Tenho clientes até as dez horas da noite. E, em seguida, precisarei...
– É sobre os três homens que foram abatidos a golpes de machado no East Side – interrompeu-o por sua vez Delaney. – O senhor deve ter lido a respeito do caso.
Houve um momento de silêncio.
– Sim – concordou lentamente Morgenthau. – Li a respeito. Interessante. Trabalho de um único homem?
– Sim, doutor. Tudo indica.
– Que material conseguiu reunir?
– Fragmentário. Eu estava com a esperança de que o senhor pudesse contribuir para preencher alguns dos claros.
O Dr. Morgenthau suspirou.
– Acha que precisa falar comigo imediatamente?
– Se possível.
– Esteja aqui exatamente às dez horas. Nessa ocasião, eu lhe concederei quinze minutos. Não mais.
– Sim, senhor. Estarei aí. Obrigado, doutor.
Delaney chegou cinco minutos antes da hora. A mal-humorada enfermeira de aspecto maternal vestia um feio casaco de pano, abotoado na frente com pinos de madeira.
– Capitão Delaney?
– Sim.
– Por favor, dê duas voltas na fechadura depois que eu sair – disse. – O doutor chamará quando puder atendê-lo.
Quando o médico por fim apareceu, saindo do consultório, Delaney levantou-se, chocado com a aparência do especialista. Na última vez em que o vira, Morgenthau era um indivíduo algo gordo, mas robusto, alerta, de postura erecta, tonalidade sadia de pele, e olhos claros e vivos. Naquele momento Delaney viu-se à frente de um homem lívido, encolhido dentro de roupas que pareciam três vezes maiores que seu número, e isso em todas as dimensões. Os olhos estavam empapuçados e o cabelo apresentava-se ralo e despenteado. Nas mãos trêmulas, Delaney notou unhas sujas e compridas.
Sentaram-se no consultório, Morgenthau derreado atrás da mesa e Delaney em uma cadeira ao lado.
– Serei tão breve quanto possível, doutor – começou. – Sei como o senhor é ocupado...
–Um momento – murmurou Morgenthau, segurando-se à borda da mesa para se levantar. – Sinto interrompê-lo, capitão, mas acabo de lembrar-me de um telefonema que devo dar imediatamente. Uma cliente em crise. Demorarei apenas alguns minutos. Espere aqui.
Saiu apressado, não para a saleta de recepção, mas para um consultório interno. Delaney entreviu armários brancos de suprimentos médicos e uma pia de aço inoxidável. Morgenthau demorou-se quase dez minutos. Ao voltar, caminhava rápida e vivamente e seus olhos brilhavam bem abertos no rosto. Esfregava as palmas das mãos, sorrindo.
– Bem, agora – disse cordialmente – o que é que nós temos, capitão?
Não tomara pílulas, pensou Delaney; a reação fora rápida demais para pílulas. Provavelmente, uma injeção de anfetamina. O que quer que fosse, fizera maravilhas pelo Dr. Otto Morgenthau; estava descontraído, seguro de si, ouviu atentamente e, ao acender o charuto, fê-lo com mãos calmas e firmes.
Delaney fez-lhe um relato completo: as mortes das três vítimas, o machado de gelo, o que havia aprendido sobre montanhistas, a maneira como julgava que os crimes haviam sido cometidos, os documentos de identificação desaparecidos –tudo aquilo que julgava que Morgenthau precisava saber, omitindo o fato, naturalmente, de que ele, Delaney, não se encontrava no serviço ativo nem fora encarregado da investigação oficial.
– E isso é mais ou menos tudo o que temos, doutor
– Alguma possível ligação entre os três homens?
– Não, senhor. Nada que tivéssemos sido capazes de descobrir.
– E o que é que deseja de mim?
– O que o senhor nos forneceu antes: um perfil psiquiátrico do criminoso. Eles foram de grande valia, doutor.
– Oh, sim – anuiu Morgenthau. – Estupro e lançamento de bombas. Mas são passatempos muitos populares, de modo que existe uma grande historia a respeito, numerosos casos semelhantes. Dessa maneira, é possível analisar e distinguir um padrão. Compreendeu? Dar um palpite bem razoável quanto à motivação, modus operandi, talvez mesmo a aparência física e hábitos. Mas, neste caso. . . impossível. Agora, estamos tratando de assassinatos múltiplos. Por sorte, eles são relativamente raros. Estou eliminando os assassinatos políticos que, acho, não se aplicam ao caso.
– Não, senhor. Não acho que se apliquem.
– Neste caso. . . a literatura sobre o assunto não é extensa. Escrevi uma pequena monografia a respeito, mas acho que não a leu.
– Não; doutor, não a li.
– Não é de espantar – disse com um risinho Morgenthau. – Foi publicada em uma obscura revista psiquiátrica alemã. Em vista disso, não posso, lamentavelmente, fornecer-lhe um perfil psiquiátrico do assassino de massa.
– Bem, ouça aqui – disse Delaney em desespero – não pode o senhor dar-me qualquer idéia? A respeito da motivação, quero dizer. Mesmo uma sugestão de natureza geral poderia ser útil. Por exemplo, acha que esse assassino seja um homem são?
O Dr. Morgenthau sacudiu irritado a cabeça.
– São. Insano. Essas palavras são termos legais. Não têm absolutamente sentido no mundo da saúde mental. Bem, tentarei. . . Minhas limitadas pesquisas levam-me a acreditar que os assassinos de massa pertencem a um de três tipos, amplos e indefinidos. Mas, aviso-lhe, as motivações freqüentemente se tocam. Nos casos de assassinos múltiplos lidamos com indivíduos. Como disse, não há padrão definitivo que eu possa discernir. Bem, neste caso... os três principais tipos... 0 primeiro: biológico. São os casos em que o assassinato de massa é deflagrado por um defeito físico, embora o assassino possa ter estado psicologicamente predisposto. Como um exemplo, aquele atirador de uma torre, no Texas, que matou... quantas pessoas? Ouvi dizer que tinha um tumor cerebral e que fora treinado como atirador perito e para matar no serviço militar. 0 segundo: psicológico. Nestes casos, o meio em geral não é culpado, mas pressões específicas – geralmente familiares ou sexuais – sobre o indivíduo são de tal natureza que o assassínio repetido constitui a única libertação. O Barba Azul pode ter sido um desses casos, Jack o Estripador, ou aquele jovem de Nova Jersey... qual o nome dele?
– Unruh.
– Sim, Unruh. E temos o terceiro caso: sociológico. Isso acontece quando o assassino, em um meio diferente, poderia ter chegado ao fim da vida sem ter praticado violências. Mas o meio é tão opressivo que só lhe resta o recurso de reagir, matando, contra um mundo que ele não fez, um mundo que o tritura e transforma em algo menos do que humano. Esta motivação sociológica envolve não apenas os moradores de guetos, mas as minorias brutalizadas. Houve um caso, há alguns anos – mais uma vez em Nova Jersey, acho – em que um "respeitável cidadão", um cavalheiro de classe média que trabalhava em um banco ou companhia de seguro – alguma coisa parecida – e que fazia coletas...
Transcorreram havia muito tempo os quinze minutos concedidos pelo médico a Delaney. O Dr. Morgenthau, porém, continuava a falar, como Delaney sabia que faria. É difícil interromper um homem que fala de sua vocação.
– ...e fazia coletas na igreja todos os domingos – dizia Morgenthau. – Certo dia, porém, esse cidadão decente, respeitável, mata esposa, filhos, e mãe. Observe isso – a mãe! E em seguida desaparece.
– Lembro-me do caso – concordou Delaney.
– Prenderam-no?
– Não, acho que não.
– Bem, de qualquer maneira, capitão, descobriu-se na investigação, pelo que li nos jornais, que esse pilar da comunidade morava numa casa muito maior do que podia pagar; a casa estava hipotecada e ele afundado em dívidas até o pescoço: seguros, carros, roupas, mobiliário, a educação dos filhos – todas as pressões sociais a levar em conta. Houve aqui obviamente uma motivação sociológica, mas, como lhe disse, os assassinos de massa não se enquadram em uma perfeita classificação. O que dizer da personalidade dele, seu meio, sua infância, os crimes que cometeu e são considerados como parte da história social da nação ou do mundo? Charles Manson, por exemplo. O que estou tentando provar-lhe é que, a despeito dessas três frouxas classificações, todos os casos de assassinatos de massa são específicos e diferentes dos demais. Homens que matam crianças e o homem que matou todas aquelas enfermeiras em Chicago parecem ter tido, todos eles, infâncias semelhantes: castigos físicos e contatos corporais quando muito jovens. Prazer sexual em nível infantil. Ainda assim, dos que acabei de mencionar, um mata crianças, outro mata moças e um terceiro mata rapazes – ou os estupra. Neste caso, onde é que se encontra o padrão? Bem, talvez haja um padrão superficial. A maioria dos assassinos de massa costuma ser composta de indivíduos tranqüilos, conservadores, bem arrumados. Não atraem a atenção até que se descontrolam. Amiúde usam o mesmo terno, a mesma cor durante dias seguidos.
Delaney havia estado tomando notas com furiosa pressa em sua caderneta. Nesse momento, ergueu olhos brilhantes para o médico.
– Isso é interessante, doutor. Mas Manson não foi assim.
– Exato! –exclamou triunfante Morgenthau. –É justamente o que lhe venho dizendo: neste campo é perigoso generalizar. Mas há algo mais interessante... Wertham diz que os assassinos de massa não são indivíduos destituídos de paixões; apenas dão essa impressão. Mas – e isto é o que é significativo – diz ele que quando termina a orgia de assassinatos, eles se tornam, mais uma vez, pessoas aparentemente sem paixões e são capazes de descrever atos de gelar o sangue nas veias em horrendos detalhes, sem pena ou remorso. Sabe, capitão, minha especialidade tem seu próprio jargão, exatamente como a sua. E a terminologia muda com freqüência, exatamente como a gíria. Há cinco ou dez anos falávamos dos "ICPs". Eles eram "Inferiores Constitucionalmente Psicopatas". Aparentemente normais, funcionando eficazmente na sociedade, os ICPs não sentem culpa, parecem nascer sem consciência, não têm remorso e não podem compreender o motivo de tanta bulha quando a lei os castiga por segurarem a mão de uma criança sobre uma chama de gás, atirarem um cachorrinho da janela de um décimo andar, ou darem uma maçã cheia de pedaços de lâminas gilete ou vidro partido a um visitante em uma festa do Dia de Ação de Graças. A maioria dos assassinos de massa é constituída de ICPs, acho. Esta conferência serviu de alguma ajuda, capitão?
– Foi uma grande ajuda – assegurou-lhe Delaney. – O senhor esclareceu muita coisa, doutor. Mas, doutor. .. bem, a culpa é minha, acho, em pedir-lhe a opinião sobre "motivos". O senhor falou principalmente em causas. Mas o que me diz dos motivos? Quer dizer, de que modo o assassino justifica perante si mesmo o que fez ou está fazendo?
O Dr. Morgenthau fitou-o durante um momento e soltou uma curta gargalhada. A exaltação aparentemente estava desaparecendo e parecia encolher-se o corpo que se derreava na cadeira giratória.
– Agora sei por que o chamam de "Culhões de Ferro" – disse. – Oh, conheço seu apelido. Durante nossa. . . ah. . . primeira cooperação... acho que foi no caso do estuprador de Chelsea. .. fiz certas indagações a seu respeito. O senhor me interessou.
– Interessei?
– Interessa ainda. O apelido assenta-lhe bem, capitão.
– Assenta?
– Oh, sim. O senhor é surpreendentemente inteligente e perceptivo para um homem em sua situação. Surpreende pela extensão das leituras e faz as perguntas certas. Mas sabe o que o senhor é, Capitão Edward X. Delaney? Quero dizer, por baixo da inteligência, vivacidade, compreensão. Sabe o que é na realidade?
– O que é que eu sou?
– O senhor é um "tira".
– Exato – concordou prontamente Delaney. – È exatamente isso o que sou, sem dúvida alguma. Um "tira". – O médico estava sendo arrastado para longe. Era melhor terminar prontamente com aquilo. – Voltemos ao problema dos motivos. Como o assassino justifica-se perante si mesmo pelo que faz?
– De modo altamente irracional. – explicou Morgenthau em voz pastosa. – Altamente. Extremamente fascinante. Todos fazem detalhadas racionalizações. Elas lhes permitem fazer o que fazem. Absolvem-nos. Elas não têm sentido para o denominado homem "normal", mas os alivia da culpa. O que fazem é necessário.
– Necessário?
– Bem, agora estamos entrando no terreno da metafísica, não? Tenho algumas idéias a respeito. Vou escrever um ensaio sobre o assunto, um destes dias. Capitão, o senhor me desculpará...
Começou a levantar-se da cadeira. Delaney, porém, ergueu um braço, com a palma da mão para baixo.
– Apenas alguns minutos – disse firme – e não o incomodarei mais.
Morgenthau tornou a sentar-se na cadeira e olhou para o capitão com olhos embaçados e cansados.
– Capitão, o assassino de massa procura impor ordem ao caos. Não o tipo de ordem que o senhor e eu queremos e receberíamos de bom grado, mas seu tipo de ordem. O mundo está em fermentação. Ele o organiza. Ele não pode lutar. Quer a segurança da prisão. A querida, conhecida prisão. "Prendam-me antes que eu mate novamente". Compreende? Ele quer o asilo. E senão isso, ordem no Universo. A humanidade é desordenada. Imprevisível. Por isso mesmo, ele precisa trabalhar em prol da ordem. Mesmo que seja preciso matar para consegui-la. Em seguida, encontrará paz, porque em um mundo ordenado não há responsabilidade.
Delaney não tomava mais notas nesse momento. Inclinado para a frente, ouvia atentamente. O Dr. Morgenthau fitou-o e, subitamente, bocejou, um bocejo que provocou estalidos em sua mandíbula. Delaney, incapaz de controlar-se, bocejou também.
– Ou – continuou o Dr. Morgenthau e bocejou pela segunda vez (e Delaney fez-lhe eco) – temos os artistas do lápis: Pico 137. Marv 145. Slinky 179. Maldito mundo, eu existo. Eu sou Pico, Marv, Slinky. Fui aprovado. Vocês precisam reconhecer minha existência. Seus sacanas, eu sou! E assim, ele mata quinze pessoas ou assassina o Presidente para que o mundo possa dizer: Sim, Pico, Marv, Slinky, vocês realmente existem!
Delaney perguntou a seus botões se aquele homem resistiria. Pálpebras intumescidas desciam sobre os olhos embaçados, a carne pendia e dedos inchados puxavam as dobras da pele, frouxa sob o queixo. A própria voz perdera o timbre e a firmeza.
– Ou – disse monotonamente Morgenthau – ou...
Os olhos rolaram para cima até que Delaney conseguiu distinguir apenas a esclerótica manchada. Mas, inesperadamente, erguendo-se em parte, o médico sacudiu violentamente a cabeça de um lado para outro e pequenas gotas de cuspo borrifaram o tampo de vidro da escrivaninha.
– Ou alienação – disse em voz espessa. – O indivíduo não pode relacionar-se. Pior ainda, não pode sentir. Quer travar intimidade. Quer compreender. Quer, realmente. Com outro ser humano e, através dele, com toda a humanidade e o segredo da existência. Capitão! Quer penetrar na vida. Isto porque emoções, sentimentos, amor, êxtase – tudo lhe foi negado. Eu falei em metafísica. Mas... É isso o que ele procura. E não pode encontrar, salvo matando. Encontrar o próprio caminho. E agora, capitão, eu preciso...
– Já vou indo – disse apressado Delaney, erguendo-se. – Muito, muito obrigado, doutor. O senhor me deu uma grande ajuda.
– Dei? – perguntou Morgenthau. Cambaleou para levantar-se, conseguiu-o na segunda tentativa, e tomou a direção do consultório interno.
Delaney parou com a mão na maçaneta da porta da saleta de recepção. Voltou-se.
– Doutor – disse secamente.
Morgenthau virou-se lentamente, vacilou e fitou-o através de olhos cegos.
– Quem? – perguntou.
– Capitão Delaney. Mais uma coisa... Esse assassino que vimos discutindo matou três homens. Nenhuma mulher ou criança. Mata com um machado de gelo de espigão afiado. Sei que estou falando agora como um amador. Mas poderia ser ele um homossexual? Latente talvez? Lutando contra a tendência. É possível?
Morgenthau fitou-o e, diante dos olhos de Delaney, derreteu-se ainda mais dentro de suas roupas frouxas, a face desmoronou e caiu, e a luz desapareceu de seus olhos.
– Possível? – murmurou ele. – Tudo é possível.

 

2

Delaney observou, enfurecido e desolado, o desmoronamento da Operação Lombard. A operação fora um conceito viável – uma organização horizontal, temporária, que se estenderia pelas jurisdições e cadeias de comando – e, sob a direção do Chefe Pauley, graças a seu talento organizador e gênio administrativo, teria uma boa possibilidade de sucesso. Pauley, porém, fora despedido, e sob a direção do Vice-Comissário Broughton a Operação começava a afundar.
Não por falta de energia; Broughton possuía-a em alto grau... talvez demais. Mas, simplesmente, faltava-lhe experiência para supervisionar uma caçada humana de tal vulto e complexidade. E não conhecia os homens que trabalhavam sob suas ordens. Enviava especialistas em armas a quase metade do país para interrogar um doente recapturado de um asilo de doentes mentais e usava especialistas em interrogatórios para examinar registros de nascimentos e casamentos em bolorentas bibliotecas. Despachava quatro homens num carro, com a sirena aberta, para interrogar um suspeito, quando um único homem a pé poderia ter obtido melhores resultados. E era atroz seu trabalho burocrático. Pela leitura dos relatórios, Delaney percebeu que a Operação Lombard escapava ao controle; Broughton designava homens para tarefas que haviam sido executadas semanas antes pelo Chefe Pauley. Os relatórios alusivos encontravam-se nos arquivos, se Broughton soubesse onde procurá-los.
Thomas Handry, que naquela ocasião telefonava para Delaney pelo menos duas vezes por semana, descreveu-lhe outro dos fracassos de Broughton: a inépcia nos contatos com os meios de divulgação. Broughton cometeu o erro fatal de, invariavelmente, prometer mais do que podia entregar, decepcionando os jornalistas com "Uma prisão é esperada a qualquer momento" ou "Farei amanhã uma declaração muito importante", ou ainda "Prendemos um suspeito que parece muito envolvido". Segundo Handry, poucos repórteres se davam atualmente ao trabalho de comparecer à entrevista diária de Broughton, que, aliás, ganhara o apelido de "vice-comissário de merda". O legista Sanford Ferguson telefonou também. Queria dizer a Delaney que fora inconclusivo o relatório do Indicador de Análise Olfativa sobre o tecido retirado do ferimento de Bernard Gilbert. Poderia ter havido traços de óleo fino de máquina, mas também de meia dúzia de outras substâncias. Ferguson tentava, mais uma vez, com raspagens do ferimento fatal do detetive Roger Kope.
– Disse a Broughton alguma coisa a esse respeito?
– Aquele filho da mãe? Não seja bobo. Ele causou-nos mais problemas... do que posso começar a dizer-lhe. Não é contra o trabalho que reclamamos, mas contra as maneiras do calhorda.
Ferguson detalhou, em seguida, algumas fofocas do Departamento. Broughton encontrava-se em situação realmente séria. Cresciam as exigências de ricos moradores da jurisdição da 251ª Delegacia. Queriam uma rápida solução dos assassinatos de rua. Fora formada uma comissão de cidadãos. O prefeito fazia pressão sobre o comissário e corria o boato de que o governador pensava em mandar abrir inquérito. O assassinato de Frank Lombard fora suficientemente grave – ele possuíra grande influência política – mas a morte do policial intensificara a exigência dos jornais de uma investigação mais produtiva. Broughton, disse Ferguson, tinha uma banana de dinamite acesa enfiada no rabo.
– Isso não poderia acontecer a uma melhor pessoa – acrescentou alegre o médico.
Delaney não perdeu tempo para saborear o castigo do Vice-Comissário Broughton. Tampouco se demorou muito a pensar na própria culpa pela morte do detetive Roger Kope. Fizera o possível para alertar Broughton sobre a arma usada e o método de ataque. Além disso, se a verdade fosse conhecida, ele culpava Kope; nenhum policial servindo de chamariz deveria ter-se deixado surpreender daquela maneira. Kope sabia o que enfrentava e o que estava em jogo. Pode-se sentir horror e simpatia por um homem abatido em uma emboscada. Kope, porém, falhara... e pagara por isso.
Delaney tinha mais que o suficiente nas mãos sem acrescentar sentimentos de culpa em relação ao detetive Kope. Os seus amadores precisavam de orientação constante: telefonemas, visitas pessoais e garantias repetidas e cordiais de que faziam algo valioso. Por isso mesmo, quando Christopher Langley telefonou, convidando-o para jantar com a viúva Zimmerman e discutir o progresso conseguido e suas futuras atividades, aceitou prontamente. Sabia que o trabalho de Langley podia ser resolvido naquela conversação telefônica, mas sabia também que sua presença física era importante para Langley, e reservou-lhe satisfeito o seu tempo.
O jantar, por sorte, fora preparado pelo pequenino e vivo gourmet e servido em seu apartamento, embora a viúva Zimmerman tivesse fornecido uma queijada incrivelmente gostosa. Delaney levou duas garrafas de vinho, branco e tinto, que foi consumido com o poulet en cocotte du midi, desde que ele lhe assegurou que essa história de tinto para as carnes e branco para os peixes constituía mera bobagem.
Após a refeição, a viúva tirou a mesa, movendo-se no apartamento de Christopher Langley como se já fosse a dona da casa – o que provavelmente já era, concluiu Delaney, tendo-lhes interceptado os olhares afetuosos, os toques furtivos, e as súbitas risadinhas ante comentários cujo humor não conseguiu descobrir.
Langley e Delaney sentaram-se à mesa limpa e bebericaram conhaque enquanto o ex-conservador apresentava listas, registros e notas, todos bem feitos e redigidos no belo cursivo de um erudito.
– Aqui – disse, entregando uma folha de papel a Delaney – encontra-se a lista de todas as lojas e armazéns na área de Nova York que vendem machados de gelo. Algumas chamam-nos de "machado de gelo" e outras, de "martelo de gelo". Acho que isso não tem importância, não?
– Não. Em absoluto.
– Das cinco, três extraem notas de vendas e, desse modo, a venda de um machado de gelo estaria registrada. Destas três, uma não vende pelo Correio e, assim, não possui lista de mala direta. As outras duas possuem-nas e enviam catálogos.
– Ótimo – concordou Delaney. – Tentarei conseguir cópias das listas de mala direta e as notas de venda.
– Mas preciso avisá-lo – disse Langley – de que nem todas essas lojas vendem o mesmo tipo de machado que encontrei na Outside Life. Os machados têm desenhos semelhantes, mas não são idênticos. Encontrei um, procedente da Áustria, um da Suíça e um feito nos Estados Unidos. Os outros dois eram idênticos ao machado da Outside Life, fabricado na Alemanha Ocidental.
– Excelente. Muito obrigado. Bem. . . o que faremos a partir de agora?
– Acho – disse pensativo Christopher Langley – que me devia concentrar inicialmente no machado da Alemanha Ocidental, o que a Outside Life vende. Essa loja é a maior vendedora de equipamento de montanhismo da área – e a mais barateira, por falar nisso. Procurarei identificar o fabricante, o importador, e todos os retalhistas no país que vendem esse tipo especial de machado. Que tal acha isso?
– Excelente. Exatamente certo. O senhor está fazendo um trabalho maravilhoso, Sr. Langley.
– Oh, bem, o senhor sabe...
Ao deixá-los, a viúva Zimmerman lavava os pratos enquanto Christopher Langley os enxugava.
Passou os dois dias seguintes conferindo a lista de Langley das lojas na área de Nova York que vendiam os machados e forneciam notas de venda detalhadas. A que não vendia pelo Correio e não possuía lista de mala direta estava disposta a cooperar e emprestar as notas ao Capitão Delaney. Combinou que fossem entregues a Calvin Case. Não estava otimista a respeito dos resultados: esse tipo especial de loja conservava as notas durante apenas seis meses.
Nas duas outras conseguiu obter as notas e as listas de mala direta de apenas uma. O proprietário da outra simplesmente recusou-se a cooperar, alegando que a mala direta era um segredo comercial cuidadosamente guardado, de valor para os concorrentes, e que Delaney não poderia obtê-la sem um mandado judicial. O capitão não fez pressão; poderia sempre voltar ao assunto mais tarde.
Possuía naquele instante, por conseguinte, mais dois carregamentos de notas de venda para Calvin Case e outra lista de mala direta para Mônica Gilbert. Resolveu procurar Case em primeiro lugar. Telefonou e dirigiu-se para sua casa utilizando o metrô, por volta de meio-dia.
A mudança ocorrida em Calvin Case era uma delícia para os olhos. Estava limpo, com o cabelo cortado e penteado, e a barba aparada. Encontrou-o de pijama, sentado à escrivaninha, na sua cadeira de rodas de alumínio e plástico, folheando as notas de venda da Outside Life. Delaney levou-lhe uma garrafa, a mesma marca de uísque que Case bebera quando o conhecera. O aleijado montanhista olhou para a garrafa e riu.
– Muito obrigado – disse – mas não bebo mais de dia. O senhor?
– Não. Obrigado. É um suborno. Tenho más notícias para você.
– Oh?
– Descobrimos mais duas lojas que vendem machados de gelo. Martelos de gelo, acho que os chamaria. De qualquer modo, essas lojas fornecem notas de vendas detalhadas.
Inesperadamente, Calvin Case sorriu.
– E daí? – perguntou.
– Gostaria de examiná-las?
– Isso ajudará?
– Pode ter certeza de que sim – respondeu seriamente Delaney.
– Mande-as vir – disse Case com um largo sorriso. – Eu não vou a lugar algum. Quanto mais, mais divertido.
– São poucos recibos – garantiu Delaney. – Quero dizer – acrescentou apressadamente – em comparação com a Outside Life. Uma loja guarda-os durante seis meses e a outra, durante um ano. Como é que vai indo a coisa?
– Muito bem. Mais três dias, acho. E depois o que é que vai acontecer?
– Você terá uma relação de todas as compras de machados de gelo feitas na Outside Life nos últimos sete anos. Certo? Depois, eu lhe darei um mapa da jurisdição da 251ª Delegacia, você checará sua relação e tirará todas as notas de venda de machados relativas à jurisdição.
Case fitou-o durante muito tempo e, em seguida, sacudiu a cabeça.
– Delaney, você não é um detetive. É um maldito guarda-livros. Sabia disso?
– Sabia – concordou prontamente o capitão. – Quanto a isso não há dúvida.
Descia a escada quando se encontrou com Evelyn Case. Tirou o chapeú, inclinou a cabeça, e sorriu. Ela depositou no chão a cesta de compras, abraçou-o e beijou-lhe o rosto.
– Ele está maravilhoso – disse, sem fôlego. – Exatamente como era antes. E tudo isso foi o senhor quem fez.
– Foi? – perguntou Delaney espantado.
O encontro seguinte seria com Mônica Gilbert, pois possuía outra lista que queria que ela examinasse. Ela, porém, chamou-o antes e disse-lhe que havia terminado a lista de mala direta da Outside Life, preenchera fichas referentes a todos os moradores da jurisdição da 251ª Delegacia, e datilografara o nome de todos eles, com original e duas cópias, da forma que ele havia determinado.
Delaney ficou atônito e satisfeitíssimo por ter ela completado o trabalho com tanta rapidez... e um pouco preocupado, com receio de que não houvesse sido tão meticulosa como queria. Mas era obrigado a trabalhar com o que dispunha. Combinou ir visitá-la na noite seguinte. Ela perguntou-lhe se gostaria de jantar lá, convite que ele declinou, com agradecimentos. Jantaria cedo (mentiu), antes de ir visitar a esposa no hospital, e a procuraria mais tarde, embora lhe escapasse o motivo de ter aceito o convite de Christopher Langley e de ter recusado o de Mônica Gilbert.
Comprou dois brinquedos de pelúcia para as crianças; poodles preto e branco. Quando eram apertados no estômago, emitiam um latido engraçado e esganiçado. Ao chegar ao apartamento, Mary e Sylvia já estavam enfiadas em suas pequenas camisolas. A Sra. Gilbert, porém, permitiu que saíssem do quarto para cumprimentar o visitante. Ficaram felicíssimas com os presentes e finalmente se retiraram (obrigadas) para o quarto, discutindo sobre que cachorrinho tinha expressão mais feroz. Durante meia hora ainda, ouviram os latidos dos cachorrinhos espremidos. Os sons tornaram-se gradualmente mais raros e cessaram. Mônica Gilbert e Edward Delaney ficaram a sós, em silêncio.
Finalmente:
– Muito obrigada por pensar nas crianças –disse ela, cordialmente.
– O prazer foi meu. São lindas.
– Foi uma grande bondade sua. Gosta de crianças?
– Muito. Tenho um filho e uma filha.
– Casados?
– Minha filha. Está esperando bebê. Para qualquer dia desses.
– O primeiro?
– Sim.
– Que maravilha. O senhor será vovô.
– Isso mesmo – riu ele feliz. – Serei vovô.
Serviu-lhe café e biscoitos com sabor de nozes, tão amanteigados que ele teve certeza de que haviam sido feitos em casa. Sua mãe fizera biscoitos como aqueles. Colocou os pesados óculos para verificar o trabalho feito enquanto bebia o café e mordiscava os biscoitos.
Notou imediatamente que não precisava ter duvidado da rápida eficiência de Mônica Gilbert. Havia 116 moradores da jurisdição da 251ª Delegacia na lista de mala direta da Outside Life. Ela extraíra uma ficha para cada um deles: em primeiro lugar, o sobrenome em maiúscula, seguido do prenome e inicial média. Abaixo do nome, datilografado, o endereço em duas linhas. Em seguida, preparara uma lista mestra com duas cópias baseada nas fichas, que se encontravam arquivadas em ordem alfabética em uma caixa de madeira.
– Muito bom – aprovou ele. – Excelente. Mas agora tenho uma má notícia para a senhora. Tenho outra lista de mala direta de outra loja. – Sorriu. – Disposta?
Ela sorriu por sua vez.
– Sim. Quantos nomes?
– Calculo em cerca de um terço do número da lista da Outside Life. Talvez menos. E a senhora provavelmente encontrará duplicatas, Se encontrar, não preencha uma ficha separada, simplesmente anote na ficha da Outside Life que o indivíduo figura também nesta lista. Certo?
– Certo. O que é que vai acontecer agora?
– Quer dizer, à sua lista datilografada? Conserve uma das cópias. Guarde-a em algum lugar, por medida de segurança. Eu conservarei a outra. O original será entregue a amigos no Departamento. Eles conferirão os nomes com os arquivos municipais, estaduais e federais para verificar se algum deles tem antecedentes criminais.
– Antecedentes?
– Claro. Se foi acusado ou condenado por algum crime. Se cumpriu pena de prisão. Se foi multado, se está em livramento condicional, ou se passou algum tempo detido.
Ela estava confusa e ele notou.
– Isso ajudará a encontrar o homem que matou meu marido?
– Ajudará – respondeu ele firme; parou um momento, fitou-a e perguntou: – O que é que a está incomodando?
– Isso parece tão... tão injusto – disse em voz baixa.
Ele se tornou subitamente consciente dela como mulher: o sólido e cálido corpo sob o vestido preto, os fortes braços e pernas, a firme expressão de finalidade. Não era uma mulher bonita, nem tão delicada e fina como Bárbara. Mas havia nela uma sensualidade rústica, e exalava um odor profundo e perturbador.
– O que é que é injusto? – perguntou tranqüilamente.
– Perseguir homens que cometeram apenas um engano. Vocês fazem isso o tempo todo, acho.
– Exatamente, fazemos isso o tempo todo. Sabe qual é a taxa de reincidência, Sra. Gilbert? Entre todos os homens que se encontram atualmente na prisão, cerca de oitenta por cento estiveram por trás das grades pelo menos uma vez antes.
– Mas ainda parece...
– Percentagens, Sra. Gilbert. Precisamos usá-las. Sabemos que se um homem estupra, rouba, ou mata uma vez, as possibilidades são de que fará a mesma coisa novamente. Nós não criamos essa situação, mas seríamos tolos se a ignorássemos.
– Mas a vigilância policial, a perseguição constante de indivíduos com antecedentes, isso não contribui para...
– Não – respondeu ele, sacudindo a grande cabeça. – Se um ex-presidiário quiser andar na linha, quiser realmente, pode andar. Não vou lhe dizer que nunca houve acusações falsas imputadas a ex-presidiários. Naturalmente que houve. Mas, de modo geral, quando o indivíduo repete o erro, ele quer voltar para trás das grades. Sabia disso? Nunca houve um estudo desse fato tanto quanto sei, mas meu palpite é que a maioria dos que tiveram duas ou três condenações estão pedindo por isso. Precisam de grades. Não sabem enfrentar a vida aqui do lado de fora. Tenho a esperança de que uma verificação na sua lista produza um homem ou homens como esses. Em caso contrário, talvez produza alguma coisa. Um caso semelhante, um padrão de violência, alguma coisa que nos dê uma pista.
– Isso significa que se receber um relatório dizendo que algum pobre homem dessa lista falsificou um cheque ou abandonou a esposa, o senhor cairá sobre ele e exigirá saber onde se encontrava nas noites em que meu marido e aquele homem foram assassinados?
– Naturalmente que não. Nada de parecido. Em primeiro lugar, criminosos podem ser classificados. Têm suas especialidades e raramente variam. Alguns se metem apenas em crimes burocráticos: desfalques, suborno, infração da lei de patentes, coisas assim. Crimes contra a propriedade, principalmente. Em seguida, há uma área cinza: falsificação, trapaças, fraudes, e assim por diante. Ainda crimes contra a propriedade, mas, neste caso, a vítima tende a ser um indivíduo, e não o governo ou o público. E, finalmente, temos a grande área dos crimes convencionais: homicídios, seqüestres, roubos, e assim por diante. São em geral atos de violência durante os quais o criminoso vê e tem contato físico com a vítima. Geralmente, resultam em ferimentos ou em morte. Ou, pelo menos, existe neles esse potencial. Procuro um homem com antecedentes nesta última classificação, um homem com uma ficha de violência, de violência física.
– Mas. . . de que maneira saberá o senhor? E se um homem dessa lista for preso por ter espancado a esposa? É certamente um ato de violência, não? Mas isso o transforma no assassino?
– Não necessariamente, embora eu certamente vá investigá-lo. Mas procuro um homem que se ajuste a um perfil.
Ela fitou-o, sem compreender.
– Um perfil?
Ele pensou um pouco se devia ou não dizer-lhe, mas sentiu necessidade impressioná-la, não pôde resistir ao desejo, e perguntou-se por que fazia isso.
– Sra. Gilbert, tenho uma idéia muito boa, uma visualização muito boa do homem que está cometendo esses assassínios. Ele é jovem – entre trinta e cinco e quarenta – alto e magro. Tem saúde e é forte. Suas reações físicas são muito rápidas. É provavelmente solteiro. Pode ser um homossexual latente. Veste-se bem, embora meio sobre o conservador. Roupas escuras. Se a senhora passasse por ele na rua, estaria em perfeita segurança. Provavelmente, tem um bom emprego e o desempenha bem. Coisa alguma há nele que leve os demais a suspeitar. Mas ama o perigo, gosta de assumir riscos. É um montanhista. É frio, resoluto, e tenho certeza de que mora neste bairro. Certamente, na jurisdição desta delegacia. E é alto. Disse que era alto? Sim, disse. Um metro e oitenta ou mais.
O espanto dela era tudo que ele poderia ter desejado e amaldiçoou o próprio ego por pavonear-se dessa forma.
– Mas como é que o senhor sabe de tudo isso? – perguntou, por fim.
Ele levantou-se e começou a juntar os papéis. Estava profundamente chateado consigo mesmo.
– Sherlock Holmes – disse azedamente. – São palpites, Sra. Gilbert. Esqueça-se disso. Eu estava simplesmente falando de improviso.
Ela seguiu-o até a porta.
– Sinto muito a respeito do que disse – afirmou, segurando-lhe o braço com uma mão forte. – Quero dizer, a respeito da crueldade de investigar homens com antecedentes criminais. Sei que o senhor precisa fazer isso.
– Exatamente – concordou ele. – Percentagens. Preciso fazer isso.
– Capitão, por favor, faça tudo o que achar que deve ser feito. Desconheço inteiramente o assunto. Tudo é novidade para mim.
Ele sorriu embora continuasse calado.
– Começarei a nova lista hoje à noite. E obrigada, capitão.
– Pelo quê?
– Por fazer o que está fazendo.
– Eu não fiz coisa alguma senão arranjar-lhe trabalho.
– O senhor vai prendê-lo, não?
– Escute – disse Delaney – não poderíamos nós...?
Interrompeu-se subitamente e ficou silencioso. Perplexa, ela perguntou:
– Poderíamos nós o quê?
– Nada – respondeu. – Boa noite, Sra. Gilbert. Obrigado pelo café e pelos biscoitos.
Foi a pé para casa, resolutamente afastando da mente o papelão que havia feito – a seus próprios olhos, mesmo que não aos olhos dela. Parou em uma cabina telefônica e discou para o Inspetor Thorsen. Esperou uns cinco minutos, até que Thorsen o chamou.
– Edward?
– Sim.
– Alguma novidade?
– Tenho uma lista de cento e sessenta nomes e endereços. Preciso que sejam conferidos com os dos arquivos municipais, estaduais e federais.
– Meu Deus!
– É importante.
– Eu sei, Edward. Bem... pelo menos, temos alguns nomes. Isso é mais do que Broughton conseguiu até agora.
– Ouvi dizer que ele anda em maus lençóis.
– Ouviu certo.
– Muito?
– Ainda não. Mas a coisa está aumentando. Todo mundo está fazendo pressão sobre ele.
– A respeito dessa minha lista... Enviá-la-ei a seu escritório amanhã por mensageiro. Certo?
– Melhor enviá-la para minha casa.
– Muito bem, e escute, por favor inclua o Departamento Estadual de Veículos Automotores, e a Seção de Serviços Especiais do Departamento de Polícia de Nova York. Pode conseguir isso?
– Teremos de conseguir.
– Sim.
– Está chegando mais perto, Edward?
– Bem... mais perto.
– Acha que ele está na lista?
– É melhor que esteja – replicou Delaney. Todo mundo estava também fazendo pressão sobre ele.
Cansado, nada queria senão um banho quente de chuveiro, um uísque com gelo, talvez um comprimido para dormir, e cama. Mas havia serviço burocrático a fazer, e obrigou-se a fazê-lo. O que fora que Case dissera a seu respeito – um maldito guarda-livros?
Terminou as anotações com o cérebro esgotado e arquivou as bem arrumadas pastas. Bebeu o drinque, aguado nessa ocasião, e pensou na melhor maneira de aproveitar os resultados da busca das folhas corridas desses 116 indivíduos, quando começassem a chegar, em formulários preenchidos pelos computadores da municipalidade, do Estado e do Governo Federal.
O que poderia fazer era o seguinte, resolveu: pediria a Mônica Gilbert que fizesse anotações de todos antecedentes criminais nas fichas individuais. Compraria cinco ou seis jogos de pequenas etiquetas plásticas coloridas, o tipo, que podia ser encaixado na borda superior de uma ficha. Imaginaria um código de cores: uma etiqueta vermelha presa à ficha indicaria uma violação do trânsito, uma azul, antecedentes criminais da cidade de Nova York... e assim por diante. Logo que recebesse os relatórios de todos os computadores, examinaria o fichário de Mônica Gilbert e, sem perda de tempo, folheando as 116 fichas, verificaria com um simples olhar quem possuía uma, duas, três ou mais etiquetas plásticas presas às bordas superiores. Pensou no caso e pareceu-lhe eficiente o plano.
A sua mente trabalhava com tal preguiça que passou algum tempo antes de perguntar-se por que não havia trazido consigo o fichário de Mônica e o conservado em seu próprio estúdio. Os formulários dos computadores que Thorsen obteria seriam entregues a ele, Delaney. Ele mesmo poderia fazer as anotações manuscritas e prender as etiquetas plásticas codificadas. Não seria necessário ir ao apartamento da Sra. Gilbert a fim de consultar o fichário toda vez que houvesse necessidade Nesse caso, por que ? Ainda assim... Ela era eficiente e ele não podia fazer tudo... Mas ainda assim Havia-a irritado?... Se ela... Bárbara...
Arrastou-se para a cama, não tomou banho de chuveiro nem comprimido para dormir, mas ficou acordado pelo menos durante uma hora, tentando compreender-se a si mesmo. Não conseguindo, mergulhou em um sono leve.

3

O caso começava a tomar forma. Lentamente. O que havia posto em movimento. O primeiro relatório sobre os 116 foi fornecido pelo Departamento de Veículos Automotores do Estado de Nova York: um formulário de computador, bem dobrado, com original e seis cópias. Delaney lançou um rápido olhar e notou que havia 11 indivíduos, arrancou uma cópia para seu próprio arquivo, e levou o relatório a Mônica Gilbert. Explicou-lhe o que queria.
– É fácil ler depois que a pessoa pega o jeito. Trata-se de uma impressão de computador – somente maiúsculas e nenhuma pontuação – mas não deixe que isso a atrapalhe. Bem, o primeiro nome na lista é AVERYJOHN H, residente na East Seventy-ninth Street. Tem a ficha dele?
Obedientemente, procurou e entregou-lhe a ficha.
– Bem. Avery foi acusado de ter passado por um posto de pedágio automático sem ter lançado os cinqüenta centavos na cesta. Confessando-se culpado, pagou a multa. Isso está impresso aqui, numa espécie de jargão oficial, mas tenho certeza de que a senhora pode compreendê-lo. Agora, gostaria de fazer uma anotação muito curta neste cartão. Se a senhora escrever, "Posto de Pedágio-Culpado-Multa", isso será suficiente. Gostaria também que anotasse o número da chapa e a marca do carro, neste caso um Mercury azul. Tudo claro?
– Acho que sim. Deixe-me tentar pessoalmente o nome seguinte. "BLANK DANIEL G, residente na Eighty-third Street; duas prisões por excesso de velocidade, culpado, multado. Corvette preto e, em seguida, a placa do carro". É isso o que o senhor quer na ficha?
– Exatamente. Caso ainda esteja em dúvida, não pretendo fazer pressão sobre essas pessoas. Este relatório é apenas matéria informativa geral. Os resultados importantes serão os dos arquivos dos governos municipal e federal. Mais uma coisa...
Mostrou-lhe as etiquetas plásticas coloridas que comprara em uma papelaria e explicou-lhe o código de cores que preparara para ela. Ela consultou-o e encaixou etiquetas vermelhas sobre as bordas superiores das fichas de AVERY e BLANK. O trabalho pareceu bastante eficiente e ele ficou satisfeito. Calvin Case telefonou para comunicar que concluíra o exame das notas de venda da Outside Life e que organizara um arquivo de 234 compras de machados de gelo, feitas nos últimos sete anos. Delaney levou-lhe um mapa da jurisdição da 251a Delegacia, e, no dia seguinte, Case já havia separado as compras feitas pelos residentes das vizinhanças. Havia seis deles. Delaney levou as notas das seis vendas, voltou para casa e fez duas listas. Uma para seu arquivo, e a segunda para que Mônica Gilbert pudesse fazer anotações nas fichas apropriadas e colocar nelas etiquetas plásticas verdes. Mal havia chegado em casa quando ela telefonou. Estava preocupada porque um dos seis compradores de machados não estava incluído em seu fichário geral de clientes da Outside Life. Deu-lhe o nome e o endereço. Delaney riu.
– Ouça – tranqüilizou-a – não deixe que isso a incomode. Não podemos esperar perfeição. Foi, com toda probabilidade, um erro humano. Geralmente é. Por algum motivo, esse cliente especial não foi incluído na lista de mala direta. Quem sabe, talvez tenha dito que não queria o catálogo e que não gosta de receber correspondência, que serve apenas para atravancar. Faça uma ficha para ele.
– Sim, Edward.
Ele ficou em silêncio. Era a primeira vez que usava seu nome. Ela deve ter compreendido o que fizera, porque imediatamente corrigiu, apressada:
– Sim, capitão.
– Edward é melhor – assegurou-lhe ele, e despediram-se. Agora podia chamá-la de Mônica.
Voltou aos relatórios, lembrando-se de iniciar uma nova lista para Thorsen encabeçada pelo único comprador de machado de gelo não incluído na lista original. Dois dias depois, Mônica Gilbert terminou a nova lista de mala direta que lhe havia dado. Trinta e quatro novos nomes foram acrescentados ao fichário geral e à nova lista destinada a Thorsen. Dois dias depois, Calvin Case completou o exame das notas de venda das duas outras lojas de Nova York que vendiam os machados, e os nomes de mais três compradores da jurisdição da 251ª Delegacia foram acrescentados ao fichário de Mônica, com etiquetas verdes. Os nomes foram também adicionados à nova lista de Thorsen. Delaney mandou entregá-la ao subinspetor.
Entrementes, começavam a chegar formulários de computador sobre os primeiros 116. Mônica Gilbert anotava as fichas e prendia as etiquetas coloridas para indicar a origem da informação. Enquanto isso, Calvin Case dividia seu grande arquivo de notas de venda da Outside Life, referente à venda de quaisquer tipos de equipamento de montanhismo, a fim de extrair as notas referentes a residentes na jurisdição da 251a Delegacia. Por seu lado, Christopher Langley visitava agências oficiais alemãs em Nova York a fim de identificar os fabricantes, importadores e retalhistas que vendiam o machado nos Estados Unidos. De sua parte, o Capitão Edward X. Delaney investigava pessoalmente os seis indivíduos que haviam adquirido machados na Outside Life e, depois, os três compradores adicionais de duas outras lojas. E lia Honey Bunch para a esposa.
Desde que fora promovido de guarda a detetive de terceira classe, Delaney, seguindo o conselho de seu primeiro parceiro – um velho e experiente detetive, alcoólatra, que o chamava de "Buddy Boy" – colecionava cartões comerciais. Se recebia um cartão de um banqueiro, vendedor de sapatos, papa-defuntos, agente de seguros, investigador particular – qualquer pessoa – acrescentava-o a um pequeno pacote preso por um elástico. Os cartões proporcionavam-lhe uma personalidade fictícia temporária. As pessoas ficavam impressionadas ao vê-los; amiúde eram toda a identificação de que necessitava para ser banqueiro, vendedor de sapatos, papa-defuntos, agente de seguros, investigador particular – qualquer coisa. Aquele pedaço pequenino de papelão constituía um passaporte; poucas pessoas lhe investigavam mais acuradamente a identidade. Ao passar por tipografias que anunciavam "100 cartões de visitas por $ 5.00" compreendia com que facilidade agiam ex-presidiários e escroques.
Naquele instante, fez uma seleção na sua coleção de cartões e partiu para investigar pessoalmente os nove moradores da jurisdição da 251a Delegacia que haviam comprado machados de gelo nos últimos sete anos. Havia organizado os nove nomes e endereços de acordo com a localização, para não ser obrigado a refazer os passos ou terminar o dia na outra extremidade da jurisdição. Travava-se de um trabalho de rigoroso pedestrianismo e, por isso mesmo, calçou um par de sapatos velhos que usara em missões semelhantes no passado. Eram macios e confortáveis, de couro de canguru, com lados altos que chegavam ao tornozelo, amarrados com cadarços.
Esperou até nove da manhã e começou a ronda, falando apenas com porteiros, administradores, proprietários, e vizinhos. . .
– Bom dia. Meu nome é Barret, da Acme Insurance. Eis o meu cartão. Mas não quero vender coisa alguma ao senhor. Estou procurando um homem chamado David Sharpe. Ele foi inscrito como beneficiário de uma de nossas apólices e tem algum dinheiro a receber. Mora aqui?
– Quem?
– David Sharpe.
– Não o conheço.
– Este é o endereço que temos.
– Não, eu nunca. . . espere. . . Qual é o nome?
– David Sharpe.
– Oh. sim. Ele mudou-se há quase dois anos.
– Oh. Será que deixou endereço para remessa de correspondência?
– Não. Tente o Correio.
– Boa idéia. Vou tentar.
Retomando o cartão comercial, Delaney continuava a ronda.
– Bom dia. Meu nome é Barret, da Acme Insurance. Eis meu cartão. Não estou querendo vender nada. Estou procurando um homem chamado Arnold K. Abel. Ele foi inscrito como beneficiário de uma de nossas apólices e tem algum dinheiro a receber. Ele...
– Que cara de azar! Ele morreu.
– Morreu?
– Morreu. Lembra-se daquele desastre de avião no ano passado? Desceu antes da pista e mergulhou na Jamaica Bay?
– É mesmo. Lembro-me.
– Ele estava no avião.
– Sinto muito ouvir isso.
– Sim, era um bom cara. Cachaceiro, mas sempre me dava dez dólares no Natal.
E aconteceu uma coisa que ele devia ter esperado.
– Bom dia – disse ele, iniciando o palavrório. – Eu sou...
– Diabo, eu o conheço, Capitão Delaney. Fiz parte daquela comissão de cidadãos que o senhor organizou. Não se lembra mais de mim? Meu nome é Goldenberg.
– Naturalmente, Sr. Goldenberg. Como está?
– Com saúde, graças a Deus. E o senhor, capitão?
– Não posso me queixar.
– Lamentei ouvir dizer que o senhor pediu aposentadoria.
– Bem... não me aposentei exatamente. Apenas uma licença temporária. Mas as coisas começaram a se acumular e estou passando algumas horas por dia ajudando o novo delegado.
– Oh, claro, ensinando a ele, não é?
– Certo. Bem, estamos procurando um homem chamado Simmons. Walter J. Simmons. Não está sendo procurado pela Polícia ou coisa parecida, mas foi testemunha em um caso de roubo há mais ou menos um ano e prendemos agora o cara, que achamos que cometeu o crime. Estávamos na esperança de que Simmons pudesse identificá-lo.
– Roosevelt Hospital, capitão. Está lá há uns seis meses. É um desses montanhistas, caiu e quebrou-se todo. Pelo que ouvi dizer, nunca mais será o mesmo.
– Lamento saber disso. Mas ele talvez ainda possa prestar depoimento. Darei um pulo ao hospital. Desculpe o incômodo.
– Foi um prazer, capitão. Diga-me uma coisa, o que acha do novo delegado, esse Dorfman?
– Ótima pessoa – disse prontamente Delaney.
– Com esses três assassinatos que tivemos nos últimos meses e o louco ainda livre por aí? O que é que esse Dorfman está fazendo?
– Bem, o assunto está fora da alçada dele, Sr. Goldenberg. A investigação está sendo dirigida pessoalmente pelo Vice-Comissário Broughton.
– Eu li, eu li. Mas aconteceu na jurisdição de Dorfman, certo?
– Certo – confirmou triste Delaney.
Assim passou o dia. Um desastre. Entre os nove compradores de machados de gelo. três tinham se mudado do bairro, um morrera, outro estava hospitalizado, e outro estava praticando alpinismo na Europa há seis meses.
As exclusões deixavam-lhe três possibilidades. Delaney fez uma apressada visita a Bárbara e passou a tarde investigando os três, desta vez interrogando-os pessoalmente, dando-lhes o nome e mostrando seu distintivo e identificação. Não lhes contou as razões das perguntas, nem eles perguntaram. Os esforços de Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York, não foram mais produtivos do que os de Barret, da Acme Insurance.
Um dos compradores era um octogenário que comprara o machado para dar como presente de aniversário a um bisneto de 12 anos.
O segundo era um jovem vivaz, quase maníaco, que garantiu a Delaney que havia desistido de montanhismo em troca do pára-quedismo. "Muito mais machismo, homem!" Por insistência de Delaney, tirou o machado de um armário dos fundos da residência. Estava empoeirado, manchado e coberto de ferrugem. O capitão perguntou-se se aquela ferramenta jamais havia sido usada para alguma coisa.
O terceiro era um jovem que, ao responder ao toque de campainha de Delaney, pareceu à primeira vista ajustar-se ao perfil: alto, magro, rápido, forte. Mas, por trás dele, observando nervosa e curiosa o visitante inesperado, a esposa, obviamente grávida. O apartamento deles era um amontoado de barris e caixas; Delaney os havia interrompido no meio de uma arrumação; iam mudar-se dentro de dois dias, desde que, com a chegada próxima do filho, precisariam de mais espaço. No momento em que o capitão falou na questão do machado de gelo, ambos riram. Aparentemente, uma das condições que ela impusera para casar fora que o marido renunciasse ao montanhismo. Ele concordara e, voluntariamente, mostrou o instrumento a Delaney. Estavam-no usando como martelo para finalidades gerais: a cabeça estava arranhada e lascada. Além disso, haviam tentado usar o espigão para abrir as persianas de uma janela recém-pintada e, inesperadamente, o espigão do machado simplesmente quebrou-se. E se supunha que fosse feito do melhor aço! Não era o diabo isso? – perguntaram. Delaney concordou melancólico que era a coisa mais diabólica que jamais ouvira.
Voltou a pé para casa, pensando que fora um tolo em achar que a investigação seria fácil. Ainda assim, o óbvio era procurar descobrir a origem do machado e, através dele, do comprador. O trabalho precisava ser feito e ele o fizera. Nada. Sabia quantos outros caminhos poderia tomar a partir daquele instante, mas era uma decepção, reconheceu. Havia nutrido a esperança – uma mera esperança – de que uma daquelas fichas com etiquetas verdes de plástico indicasse o assassino.
A sua maior preocupação era a questão do tempo. Toda essa investigação de notas de vendas, elaboração de listas, organização de fichários, interrogatórios de inocentes, tudo isso representava tempo! Tudo consumia dias e semanas e, enquanto isso, aquele louco vagueava pelas ruas e, como indicavam antigos registros de crimes semelhantes, os intervalos entre os assassinatos tornavam-se cada vez mais curtos.
Ao chegar em casa, encontrou um pacote cujo recibo Mary assinara. Reconheceu-o como enviado por Thorsen por intermédio de um mensageiro comercial. Abriu-o e, quando viu o que era, não olhou mais. Era um relatório da Divisão de Registros do Departamento de Polícia de Nova York, incluindo a Seção dos Serviços Especiais. Com esse documento completavam-se os antecedentes criminais dos 116 nomes iniciais.
Estivera fazendo uma coisa curiosa. À medida que os relatórios chegavam tirava uma cópia para seus arquivos e entregava as outras a Mônica Gilbert, para anotação em seu fichário geral. Não lia pessoalmente os relatórios; nem mesmo lhes lançava um olhar de esguelha. Dizia a si mesmo que o motivo disso era que não podia tratar de indivíduos com antecedentes criminais até que todos os relatórios houvessem sido recebidos e anotados no fichário de Mônica. Nessa ocasião, poderia ver com um simples olhar quantos homens haviam cometido quantos crimes. Era o que dizia a si mesmo.
Dizia também que estava mentindo – a si mesmo.
O motivo real de adotar esse procedimento era muito complicado e não tinha certeza de compreendê-lo bem. Em primeiro lugar, sendo um "tira" supersticioso, tinha a impressão de que Mônica Gilbert lhe trouxera e lhe traria sorte. De alguma maneira, através dos esforços dela, exclusivamente ou em parte, encontraria a pista de que precisava. A segunda razão era a esperança de que esses formulários com antecedentes criminais levassem-no ao assassino e, assim, provassem a Mônica que ele fora meramente lógico e profissional quando os havia solicitado. Vira aquela luz nos olhos dela quando lhe contara o que estava prestes a fazer; ela havia-o considerado... bem, um "tira" sem coração e insensível às fraquezas humanas. Esta impressão, garantia a si mesmo, não era verdadeira.
Desfazendo os nós das botas, tirando as meias suadas, parou por um momento, com uma delas na mão, e perguntou-se por que uma boa opinião de Mônica era tão importante para ele. Pensou nela, nos seus musculosos quadris movendo-se lentamente sob o vestido preto fino, e descobriu para vergonha sua que estava começando a ter uma ereção. Não cogitava de sexo desde a doença de Bárbara, e seu "sacrifício" parecia tão menor do que a dor da esposa que não podia acreditar que estava sonhando: a viúva recente de uma vítima de assassinato... enquanto Bárbara... e ele. Grunhiu de desgosto consigo mesmo, tomou um banho de chuveiro tépido, vestiu pijama limpo e pulou da cama uma hora depois, de olhos arregalados e nervoso, e tomou dois comprimidos para dormir.
Entregou-lhe o novo relatório na manhã seguinte e recusou o oferecimento de ficar para o café e biscoitos. Parecera ela ofendida? Pensou que sim. Suspirando, passou o dia inteiro – tempo! tempo! – fazendo o que precisava ser feito e que sabia que não teria absolutamente valor: investigou os compradores de machados de gelo que haviam mudado de residência, morrido, viajado ao estrangeiro, ou sido recolhidos a hospitais. Os resultados, como sabia que aconteceria, somaram zero. Haviam realmente se mudado, morrido, viajado, ou sido hospitalizados.
Mary deixara um bilhete dizendo que a Sra. Gilbert telefonara e que pedia ao capitão o favor de chamá-la. Telefonou imediatamente e não notou na voz dela a menor frieza que pudesse identificar. Disse-lhe que terminara a anotação de todos os antecedentes criminais comunicados e que pusera as etiquetas nas fichas. Delaney perguntou se queria almoçar com ele à uma da tarde do dia seguinte. Ela aceitou imediatamente.
Almoçaram em um restaurante local, especializado em frutos do mar, e pediram pratos idênticos: salada de caranguejo com um copo de vinho branco. Passaram uma agradável hora e meia juntos, conversando sobre os prazeres e as dores da vida na cidade. Ela falou-lhe do seu fracasso em conseguir que gerânios crescessem em floreiras de janela; ele lhe disse que, durante anos, Bárbara e ele haviam tentado cultivar flores e arbustos floridos no quintal, os quais terminavam por sucumbir à fuligem e ao solo ácido. Deixaram que a hera tomasse conta do local. No momento, constituía uma selva de hera e, surpreendentemente, muito bela.
Falou de Bárbara enquanto tomavam café. Ela escutou atenta e finalmente perguntou.
– Não acha que devia mudar de médico?
– Eu não sei o que fazer – confessou. – Ele sempre foi seu médico e Bárbara tem muita confiança nele. Não poderia chamar outro sem a sua permissão. Ele está fazendo tudo, tenho certeza. Especialistas foram também chamados para examiná-la. Mas não melhora. De fato, parece-me que está simplesmente fenecendo. Meu filho esteve aqui há algumas semanas e ficou chocado com a aparência da mãe. Tão magra, afogueada, encolhida. E às vezes torna-se irracional. Apenas durante curtos períodos.
– Isso poderia ser efeito de febre ou mesmo dos antibióticos que está tomando.
– Acho que sim – assentiu ele, infeliz. – Mas me apavora. Ela sempre foi tão... tão viva e consciente do mundo. Ainda é, quando não flutua em alguma terra de faz-de-conta... Bem, não a convidei para chorar em seu ombro. Fale a respeito de suas meninas. Como estão indo na escola?
Ela animou-se e falou das gracinhas e diabruras, das coisas que haviam dito e como eram diferentes as personalidades das duas. Ele ouviu interessado, sorrindo, lembrando-se dos dias em que Eddie e Liza cresciam e perguntando-se se, naquele momento, não pagava por aquela felicidade.
–Bem – disse, após ter ela terminado o café – podemos voltar à sua casa? Gostaria de dar uma olhada naquele fichário. Terminou todos os relatórios?
– Terminei. Tudo foi anotado. Receio que vá ficar decepcionado.
– Eu geralmente fico – replicou ele irônico.
– Oh, bem – sorriu ela – eles são apenas os criminosos que não tiveram sorte.
– Como? – perguntou ele, sem compreender que ela o estava arreliando.
– Bem, quando um homem tem uma folha suja isso prova que foi um criminoso ineficiente, não? Foi preso. Se tivesse sido competente, não teria ficha na Polícia.
– Exato – riu ele – você tem razão.
Dirigiram-se para o caixa. Delaney tirou a carteira. O gerente, porém, que estivera aparentemente esperando por esse momento, aproximou-se e disse ao caixa:
– Nada de conta para o Capitão Delaney.
Ele ergueu a vista, surpreso.
– Oh... alô, Sr. Varro. Como vai?
– Bem, graças a Deus, capitão. E o senhor?
– Ótimo. Obrigado pela gentileza, mas receio não poder aceitá-la. Não estou mais no serviço ativo, como sabe. Licença. E além disso – fez um gesto na direção de Mônica Gilbert, que observava atenta a cena – esta senhora é testemunha e não gostaria que pensasse que estou aceitando suborno.
Riram todos, um riso alegre.
– Vou dizer o que farei – continuou Delaney, pagando a conta – na próxima vez virei sozinho, pedirei a maior lagosta da casa, e deixarei que o senhor pague a conta. Certo?
– Certo – sorriu Varro. – O senhor me conhece. Quando quiser, capitão.
Dirigindo-se ao apartamento, Mônica olhou-o curiosa.
– Aceitará? – perguntou. – Aceitará uma refeição gratuita, quero dizer?
– Certamente – respondeu ele, alegre. – Ele ficaria ofendido se eu não o fizesse. Varro é um homem decente. O guarda da ronda pára lá quase todos os dias para tomar um café. O pessoal da radiopatrulha também. Nem todos aceitam, mas acho que a maioria o faz. Isso não significa coisa alguma. Acontece em centenas de restaurantes e bares, barracas de hot dogs e pizzas na jurisdição da delegacia. Diria você, "pequeno suborno"? Tem razão, mas a maioria dos "tiras" luta para custear os estudos dos filhos com o minguado salário que recebem e um almoço de graça uma vez ou outra é mais importante do que você pensa. Quando disse que isso não significa coisa alguma queria dizer que se algum desses generosos proprietários ou gerentes sair da linha, sofrerá pressão igual a qualquer outra pessoa. Uma xícara de café não lhes dá outro direito senão a um cordial alô. Além disso, Varro deve-me um favor. Há mais ou menos dois anos, ele descobriu que estavam desaparecendo coisas de seu depósito. Não era o tipo habitual de pequenos furtos – uma lata ou um pacote, uma vez por outra. O material estava desaparecendo em caixas. Bem, ele me procurou e eu chamei Jeri Fernandez, que era o tenente de nossa turma de detetives na ocasião. Jeri colocou dois homens de observação numa viela, nos fundos do restaurante. Na primeira noite em que ficaram, de vigia – na primeira noite! – um cara parou na porta dos fundos com uma camioneta, abriu a porta com a maior tranqüilidade e começou a tirar caixas, sacos e caixotes do porão e colocá-las na camioneta. Esperaram até que enchesse a camioneta e estivesse fechando a porta dos fundos. Caíram sobre ele nesse momento.
– O que foi que fizeram? –perguntou ela sem fôlego.
Delaney riu.
– Fizeram-no descarregar a camioneta e levar toda a pilhagem de volta para o porão e arrumá-la perfeitamente. Disseram que o homem arquejava como uma baleia quando terminou. Era um dos cozinheiros e possuía as chaves da porta do depósito. Não foi caso suficientemente importante para dar margem a um processo. O processo exigiria o arresto das mercadorias, um bocado de trabalho burocrático para todos os interessados, tempo perdido no tribunal, e o cara provavelmente teria sido multado e posto em livramento condicional se fosse seu primeiro crime. Assim, depois que terminou de botar tudo nos devidos lugares, os rapazes de Jeri deram-lhe uns cascudos. Nada de sério. Quero dizer, não precisou ir para o hospital ou coisa assim, mas acho que lhe provocaram algumas dores. E, naturalmente, ele foi dispensado. A história espalhou-se e Varro, desde então, não perdeu nem mesmo uma lata de óleo para salada. Foi por isso que quis dispensar nossa conta.
Olhou-a, sorrindo, e notou-lhe um súbito calafrio.
– É um mundo inteiramente diferente – disse ela em voz baixa.
– O que é que é?
Mas ela não respondeu.
Ela tivera razão. Os antecedentes criminais constituíram uma decepção. Esperara que, quando os formulários dos computadores fossem colecionados e registrados no fichário, houvesse algumas ou várias fichas, com uma autêntica floresta de etiquetas plásticas multicoloridas presas às suas bordas superiores, indicando vidas pregressas que pudessem mostrar um padrão de violência psicopata ou incontrolável.
Em vez disso, o fichário mostrava-se melancolicamente vazio. Havia um único cartão com três etiquetas, dois com duas, e 43 com uma. Nenhum dos compradores de machados de gelo, que Delaney já havia investigado, possuía folha corrida suja.
Enquanto folheava as fichas etiquetadas, lentamente, trabalhando na mesa da cozinha, Mônica trouxe material de costura, colocou um par de óculos sem aro e começou a fazer a bainha do vestido de uma das meninas, trabalhando com rapidez, dando pequenos pontos, com o dedal e a tesoura ao lado. Ao terminar as fichas, Delaney empurrou o fichário para longe. O som fê-la erguer os olhos. Ele endereçou-lhe um melancólico sorriso.
– Você tinha razão – disse. – Uma decepção. Um estupro, um roubo e uma agressão com arma letal. E, meu Deus, já viu na sua vida tantos casos assim de sonegação de impostos de renda?
Ela sorriu de leve e voltou à costura. Ele ficou ali, pensativo, batendo levemente na mesa com o seu lápis.
– Naturalmente, esta jurisdição é das boas – disse ele, pensando em voz alta quase tanto quanto lhe falava. – Quer dizer, "boa" no sentido de que é melhor do que Harlem e Bedford Stuyvesant. A renda per capita é a segunda mais alta de todas as delegacias da cidade e as taxas dos crimes de violência situam-se no terço inferior. Refiro-me a Manhattan, Bronx, e Brooklyn, agora. Não a Queens e Staten Island. Deveria esperar, por conseguinte, uma alta preponderância de crimes burocráticos. Notou as sonegações de impostos, as inescrupulosas estimativas de reparos, as trapaças com ações – coisas desse tipo? Mas, ainda assim...
"O que não pensei realmente foi que todas essas fichas, todos esses indivíduos – por falar nisso, notou que há apenas quatro mulheres em todo o fichário? – foi que todos esses indivíduos, presumivelmente montanhistas, comprassem presentes para montanhistas, ou gostassem da vida ao ar livre e a ela se entregassem de uma forma ou outra: são caçadores, pescadores, donos de barcos, excursionistas, campistas, e assim por diante. Isso significa gente que tem dinheiro suficiente para manter um hobby que lhes toma tempo. E a falta de dinheiro é quase sempre a causa de crimes violentos. Assim, o que temos aqui é uma jurisdição de gente abastada e uma relação de pessoas que podem gastar dinheiro, muito dinheiro, em suas diversões. Acho que foi tolice minha esperar que montanhistas e pescadores submarinos apresentassem a mesma percentagem de antecedentes criminais que os moradores dos guetos. Ainda assim... é uma decepção.
– Desanimado? – perguntou ela tranqüila, sem erguer os olhos.
– Mônica – fez ele e, ante seu tom de voz, ela levantou a vista e notou que ele sorria. – Eu nunca desanimo – disse. – Bem... quase nunca. Vou investigar o estupro, o roubo e o assalto. Se disso tudo nada resultar, há ainda um bocado de coisas que posso fazer. Estou apenas começando.
Ela concordou com um aceno de cabeça e voltou à costura. Ele tomou nota dos três casos de crime violento incluídos no fichário. Por cautela, embora julgasse nulas as possibilidades, acrescentou os nomes e endereços de homens condenados por atos de vandalismo, extorsão, ou arrombamento de cofre. Lançou um olhar ao relógio, um cebolão que pertencera ao avô, e verificou que dispunha ainda de tempo para checar três ou quatro dos indivíduos que apresentavam antecedentes.
Levantou-se, ela pôs de lado a costura, levantou-se também, ambos tiraram simultaneamente os óculos e riram juntos. Aquilo parecia tão estranho.
– Espero que sua mulher fique logo boa – disse ela, acompanhando-o até a porta.
– Obrigado.
– Eu... eu gostaria de conhecê-la – disse em voz baixa. – Isto é, se você achar que não há nada demais nisso. Disponho de tempo agora, o fichário está terminado, e poderia ir ao hospital fazer-lhe companhia...
Ele voltou-se vivamente para ela.
– Faria isso? Seria maravilhoso! Sei que vocês duas vão dar-se muito bem. Ela gostará de você e você gostará dela. Tento ir ao hospital duas vezes ao dia, mas às vezes não posso. Temos amigos que vão visitá-la. Pelo menos a visitavam no início. Mas agora não vão mais com tanta freqüência. Irei com você e a apresentarei e, depois, se você puder aparecer por lá de vez em quando...
– Naturalmente. Será um prazer.
– Obrigado. Você é muito bondosa. E obrigado por ter almoçado comigo. Foi um prazer.
Ela estendeu-lhe a mão. Ele ficou surpreso durante um segundo, agarrou-a e sacudiu-a. A empunhadura dela era seca, a carne firme, e a mão inesperadamente forte.
Saiu para a escura tarde de inverno e lançou um olhar à lista, selecionando o indivíduo que visitaria em primeiro lugar. Mas, curiosamente, não pensava na lista, nem em Mônica Gilbert nem em Bárbara. Alguma coisa roía a periferia de sua mente, alguma coisa que tinha ligação com os assassinatos. Era algo que ouvira recentemente; alguém dissera qualquer coisa. O que era não conseguia lembrar-se. Pairava por ali, atormentando-o, arreliando-o até que, por fim, sacudiu a cabeça, afastou o pensamento e começou a andar.
Chegou a casa pouco depois das dez naquela noite, com os pés doloridos (não usara os "sapatos de tira") e tão amargurado de frustração que assobiou e pensou em narcisos – qualquer coisa para evitar pensar em falsas pistas e tempo perdido. Tomou um demorado banho quente de chuveiro e lavou os cabelos. Sentiu-se um pouco melhor. Vestiu o pijama, pôs o robe, calçou os chinelos e desceu para o gabinete.
Durante a tarde e a noite investigara cinco dos seis da lista. O estuprador e o ladrão continuavam na cadeia. O indivíduo condenado por assalto a mão armada fora solto um ano antes, mas não residia mais no endereço dado. O assunto teria que ser conferido com o encarregado dos livramentos condicionais na manhã seguinte. Dos outros três, o arrombador continuava na prisão, o vândalo havia-se mudado dois meses antes para a Flórida e, atenciosamente, deixara o endereço para envio de correspondência. E Delaney estava cansado demais para procurar o extorsionário, o que faria no dia seguinte.
Apaticamente redigiu relatórios de todas essas atividades e acrescentou-os aos arquivos. Fez a inspeção noturna, experimentando fechaduras e ferrolhos em todas as janelas e portas externas. Apagou a luz e foi para a cama. Não era ainda meia-noite. Estava ficando realmente velho para esse tipo de absurdo. Não tomaria, naquela noite, comprimido para dormir. O sono abençoado viria facilmente.
Enquanto esperava, perguntou-se se seria prudente apresentar Mônica Gilbert à esposa. Dissera que iam dar-se bem e isso provavelmente aconteceria. Bárbara, sem dúvida, sentiria simpatia pela viúva da vítima de um assassinato. Mas pensaria ela. . . imaginaria ela. . .? Mas ela lhe pedira para... Oh, não sabia, não podia decidir-se. Ele as aproximaria, uma vez pelo menos, e veria o que aconteceria.
Pensou, então, no que o vinha atormentando desde que deixara o apartamento de Mônica naquela tarde. Acreditava na teoria de que se a pessoa vai dormir pensando num problema – uma palavra que se tenta recordar, um endereço, um nome, um dilema profissional ou pessoal – acorda renovado e com uma solução mágica, solucionado o problema pelo subconsciente enquanto dorme.
Acordou na manhã seguinte e descobriu que persistia o problema, atormentando-lhe a memória. Mas estava agora mais perto do mesmo; fora algo que Mônica dissera durante o almoço. Tentou recordar-se em detalhes da conversação: ela falara sobre gerânios e ele sobre hera; ela falara sobre crianças, e ele falara sobre Bárbara. Varro tentara dispensar a conta e ele, Delaney, lhe falara sobre o roubo no restaurante. Mas que diabo tinha tudo aquilo a ver com o preço dos ovos na China? Sacudiu desgostoso a cabeça e foi barbear-se.
Passou a manhã tentando descobrir o extorsionário, o último dos seis na lista de Mônica com antecedentes de crime violento, mesmo sem importância. Finalmente, encontrou-o passando calças a ferro em uma pequena alfaiataria da Second Avenue. O indivíduo mal tinha um metro e meio de altura, contava pelo menos 55 anos de idade, pesava uns oitenta e cinco quilos, tinha face lívida, mãos trêmulas e olhos lacrimosos. O que, em nome de Deus, havia ele jamais extorquido? Delaney murmurou alguma coisa sobre "erro de identidade" e saiu com tanta rapidez quanto possível, deixando o gordo homenzinho num paroxismo de tremores e lágrimas.
Dirigiu-se diretamente ao hospital, ajudou Bárbara na refeição do meio-dia e leu para ela durante quase uma hora trechos de Honey Bunch: Sua Primeira Pequenina Horta. Estranhamente, a leitura acalmou-o quase tanto quanto à esposa. Ao voltar para casa encontrava-se num estado de espírito sombrio, mas não deprimido – um estado de espírito apropriado para trabalhar ininterruptamente sem indagar os porquês e as razões.
Gastou uma hora em assuntos pessoais: cheques, investimentos, saldos bancários, estimativas de impostos, contribuições de caridade. Liquidou um mês de trabalho rotineiro acumulado, pagou o que tinha de pagar, escreveu uma carta ao seu contador, fez um depósito na conta de poupança e sacou um cheque da conta corrente para despesas miúdas.
Fechou os envelopes, selou-os e colocou-os na mesa do saguão, onde tinha certeza que os veria e apanharia para colocá-los no correio quando saísse na próxima vez. Voltou ao gabinete, puxou um bloco de papel para minutas jurídicas e começou a anotar suas opções.
1. Poderia começar a investigar pessoalmente todos os nomes constantes do fichário de Mônica. Calculou que houvesse uns 155 nomes.
2. Poderia esperar pelo relatório de Christopher Langley e,em seguida, entrar em contato, pelo correio ou telefone, com todos os retalhistas que vendiam o machado de gelo da Alemanha Ocidental nos Estados Unidos.
3. Poderia esperar pelo arquivo de Calvin Case, relativo às pessoas residentes na jurisdição da 251ª Delegacia que haviam comprado qualquer tipo de equipamento de montanhismo na Outside Life e naquela outra loja que fornecera a lista de mala direta e, em seguida, pedir a Mônica que conferisse novamente o fichário para certificar-se de que possuía uma ficha de cada cliente.
4. Poderia voltar à loja que se recusava fornecer as notas de venda e a lista de mala direta e fazer pressão. Se isso não desse certo, poderia perguntar a Thorsen quais as possibilidades de um mandado de busca.
5. Poderia conferir suas próprias investigações sobre os nove compradores de machados de gelo e os seis indivíduos do fichário que possuíam antecedentes de crime violento.
6. Poderia, finalmente, voltar à velha idéia de apurar se havia uma revista destinada a montanhistas e se poderia tomar-lhes de empréstimo a lista de assinantes; se havia um clube ou sociedade de montanhistas e se poderia conseguir a lista dos sócios; e se era possível verificar na biblioteca local quais os moradores da 251ª Delegacia que haviam solicitado livros sobre o assunto.
7. E, se fosse obrigado, investigaria pessoalmente cada maldito nome de cada maldito morador de Nova York naquela maldita lista da mala direta da Outside Life.
Mas estava apenas pensando em bobagens, e sabia disso. Se estivesse comandando os 500 detetives da Operação Lombard, poderia fazê-lo, mas sozinho levaria no mínimo uns cinco anos. Quantas vítimas de assassinato haveria a essa altura? Oh. . . provavelmente não mais do que mil, ou por aí.
Mas tudo isso era divagação. Uma coisa aborrecia-o e ele sabia o que era. Quando Mônica telefonara comunicando-lhe que um dos compradores de machados do arquivo de Calvin Case não estava incluído em sua lista da mala direta da Outside Life, ignorara o assunto com uma risada, considerando o caso como "erro humano". Ninguém é perfeito. As pessoas, na realidade, cometem erros. Na maior das inocências, naturalmente.
E se Calvin Case, tarde da noite, cansado, deixasse passar a nota de vendas de um comprador?
E se Christopher Langley tivesse ignorado uma loja em Nova York que vendesse os machados?
E se Mônica Gilbert houvesse omitido uma anotação de crime violento em um dos formulários de computador que anotara no fichário?
E se ele, o Capitão Edward X. Delaney, tivesse a solução de toda a maldita confusão imediatamente sob seu grande e aquilino nariz e não pudesse vê-la porque era estúpido, estúpido, estúpido?
Erros humanos. E os profissionais eram tão inclinados a eles como os amadores de Delaney. Fora por esse motivo que o Chefe Pauley mandara diversos policiais investigar os mesmos fatos, enquanto repetia os interrogatórios duas, quando não três vezes. Meu Deus, nem os computadores são perfeitos. Mas haveria acaso alguma coisa que pudesse fazer? Não.
O capitão releu a lista de opções e lançou-a para o lado. Um monte de merda. Telefonou para Mônica Gilbert.
– Mônica? Edward. Estou incomodando-a?
– Oh, não.
– Dispõe de alguns minutos?
– Quer vir até aqui?
– Não. Quero apenas falar com você a respeito de nosso almoço ontem. Você disse uma coisa, e não posso recordar-me do que foi. Tenho a impressão de que é importante, isso está-me atormentando, e não consigo de jeito algum lembrar-me.
– O que era?
Ele prorrompeu numa estrondosa e rouca gargalhada. Finalmente, explodiu.
– Se soubesse, não estaria telefonando, certo? Sobre o que foi que conversamos?
Ela não se ofendeu com a gargalhada.
– Conversamos? Deixe-me ver... Falei-lhe sobre meus vasos de janela e você falou de seu quintal. Você se referiu à doença de sua esposa e conversamos sobre minhas filhas. Na saída, o gerente quis dispensar a conta, e você não concordou. A caminho de casa, você contou a história do cozinheiro que estava roubando...
– Não, não! – interrompeu impaciente Delaney. – Deve ter sido alguma coisa ligada ao caso. Não discutimos por acaso os crimes quando estivemos almoçando?
– Nãããão... – disse ela em dúvida. – Depois que terminamos o café, você disse que viria à minha casa examinar o fichário. Perguntou se havia registrado todos os formulários nas fichas, e eu disse que sim.
– E foi tudo?
– Foi. Edward, o que é que isso...? Não, espere um minuto. Eu brinquei com você. Disse algo sobre formulários de computadores, que indicavam apenas criminosos ineficientes, porque se fossem competentes em suas especialidades não teriam antecedentes. Você riu e disse que era isso mesmo.
Ele ficou silencioso durante um momento.
– Mônica – exclamou, finalmente.
– Sim, Edward?
– Amo-a – disse, rindo e mantendo a coisa em tom de brincadeira.
– Quer dizer que era isso o que queria?
– É exatamente isso o que eu queria.
As recordações voltaram naquele instante, e lembrou-se de ter falado com o Tenente-Detetive Jeri Fernandez nos degraus que davam para o segundo andar da delegacia. Ocorrera isso na ocasião em que eram dissolvidas as turmas de detetives das delegacias.
– O que foi que você conseguiu? – perguntara Delaney.
– Consegui a Divisão de Cofres, Confecções e Caminhões, no centro – respondera desgostoso Fernandez.
Delaney telefonou para o Serviço de Informações da Polícia, identificou-se, e disse ao telefonista o que desejava: o número do telefone da Divisão de Cofres, Confecções e Caminhões, no centro de Manhattan. A sua chamada foi transferida duas vezes – numa operação que durou quase cinco minutos – mas finalmente conseguiu o número e, cruzando os dedos, discou e pediu para falar com o Tenente Fernandez. Estava com sorte: o detetive levantou o fone após oito chamadas.
– Tenente Fernandez.
– Aqui é o Capitão Edward X. Delaney.
Houve um segundo de silêncio e em seguida um jubiloso:
– Capitão! Jesus Cristo! Isso é grande! Como, diabo, está o senhor, capitão9
– Simplesmente ótimo, tenente. E você?
– Mergulhado até as orelhas nesta porcaria. Capitão, este novo sistema não funciona. É o que lhe digo. Pensa que sei o que está acontecendo? Que nada! Ninguém sabe. Temos aqui caras de todas as delegacias da cidade. Colocaram-nos aqui e acham que sabemos de tudo sobre o ramo de confecções. Pequenos roubos, assaltos a caminhões de transporte de roupas, fraudes, incêndios, arrombamentos de cofres, as quadrilhas. . . tudo. Capitão, isso é mau. Eu lhe digo, é mau!
– Acalme-se – tranqüilizou-o Delaney. – Dê um pouco de tempo ao sistema. Talvez no fim dê certo.
– Uma ova! – berrou Fernandez. – Ontem, dois de meus rapazes surpreenderam um cara tirando pacotes dos fundos de um caminhão dos Correios. Pode imaginar uma coisa dessas? Em plena luz do dia. O caminhão estacionado na esquina da Thirty-fourth com a Madison e esse biruta calmamente arrastando dois pesados pacotes e saindo tranqüilamente com eles. Dos Correios dos Estados Unidos!
– Tenente – disse paciente Delaney –estou telefonando porque preciso de sua ajuda.
– Ajuda? – exclamou Fernandez. – Ora, capitão, diga e recebe. O senhor sabe disso. O que é?
– Lembro-me de que você me disse, pouco antes da dissolução das turmas das delegacias, que esteve trabalhando em seus arquivos de movimento e enviando-os aos novos detetives dos distritos, dependendo da natureza do crime.
– Exatamente, capitão. Levamos semanas para fazer aquela limpeza.
– Bem, o que é que me diz do lixo? Você sabe, pequenos crimes, relatórios sobre brigas, pequenas informações, diários de partes, e assim por diante?
– Aquela porcaria toda? A maior parte foi jogada fora. O que é que íamos fazer com aquilo? Fomos distribuídos por toda a cidade e, talvez, um ou dois caras venham a trabalhar na dois-cinco-um. De qualquer maneira, era história antiga, certo? Assim, disse aos rapazes para botar tudo fora...
– Bem, muito obrigado – disse sombrio Delaney. – Acho que...
– ... exceto o do ano passado – continuou Fernandez, ignorando a interrupção do capitão. – Achei que o material novo podia significar alguma coisa para alguém, e assim guardamos a papelada que entrou no ano passado, mas o restante foi jogado fora.
– Ahn? – fez Delaney, ainda animado. – O que foi que fez com ela?
– Está no porão da delegacia. O senhor sabe, quando desce a escada, a caixa forte fica à direita, e as celas de detenção à esquerda. Bem, passe pelas celas e pelo depósito de bêbados e, então, dobre à direita. Há um corredor que leva a um lance de escada e à porta traseira.
– Sim, lembro-me disso. Sempre fechávamos aquele corredor durante as inspeções.
– Certo. Bem, ao longo do corredor há um depósito de vassouras onde guardam esfregões. baldes e essa coisa toda e, mais adiante, na direção da porta traseira, um pequeno depósito cheio de porcaria. Devia ser a câmara de tortura nos velhos dias.
– Sim – riu Delaney. – Provavelmente era.
– Certo, capitão. As paredes são grossas e a sala não tem janelas. Assim, quem é que podia ouvir os gritos? Quem sabe quantos crimes foram solucionados ali, certo? De qualquer modo, foi ali que lançamos o lixo. Mas apenas o referente ao ano passado. Isso ajuda em alguma coisa?
– Ajuda um bocado. Muito obrigado, tenente.
– O prazer foi meu, capitão. Ouça, posso pedir-lhe um favor agora?
– Naturalmente.
– É um favor de uma palavra só: SOCORRO! Capitão, o senhor tem influência e goza de boa reputação. Tire-me daqui, sim? Estou morrendo! Não gosto do lugar nem dos caras com quem trabalho. Folheio papéis o dia inteiro, como uma espécie de idiota, e pensa que sei o que estou fazendo? Nem sei mais a diferença entre minha bunda e meu cotovelo. Quero voltar para as ruas. As ruas que eu conheço. Pode dar um jeito, capitão?
– O que é que deseja?
– Agressões, Homicídios, ou Arrombamentos – respondeu imediatamente Fernandez. – Aceitarei mesmo Narcóticos. Sei que não posso esperar Prostituição. Não sou suficientemente bonito.
– Bem... – disse lentamente Delaney – não prometo coisa alguma. Mas vou ver o que posso fazer. Talvez consiga dar um jeito.
– Isso é suficiente para mim – replicou, mais alegre, Fernandez. – Muito obrigado, capitão.
– Obrigado a você, tenente.
Desligou e olhou para o telefone, pensando no que Fernandez acabara de lhe dizer. Era uma possibilidade remota, naturalmente, mas não deveria demorar mais de um dia e explorá-la seria melhor do que resignar-se a uma das sete opções de sua lista, a maior parte das quais nada oferecia senão trabalho duro e exaustivo sem a menor garantia de sucesso.
No momento em que Mônica Gilbert repetiu a zombeteira observação a respeito de criminosos bem-sucedidos, que não possuem antecedentes comprometedores, teve de reconhecer-lhe a verdade. Mônica, porém, não sabia que entre a liberdade completa do criminoso e as acusações oficiais contra ele existia um meio mundo de documentação: de acusações retiradas, de prisões nunca efetuadas por falta de provas adequadas, de processos resolvidos fora dos tribunais, de queixas abandonadas devido a suborno ou ameaças físicas, de ações retardadas ou encerradas simplesmente em virtude da existência de uma massa de casos atrasados e de carência de pessoal.
A maioria desses abortos judiciais, no entanto, possuía uma história, um registro escrito em alguma parte. E parte da mesma constava do trabalho burocrático dos detetives: as partes, queixas e livros de ocorrências, de "Desistência", "Recusou-se a formular acusação". ''Concordou em fazer a restituição", "Dispensado com uma advertência" – todos os circunlóquios que indicavam que o cansado detetive, utilizando paciente convencimento e com ou sem aprovação de seu superior, mantivera o caso fora da pauta da justiça.
A maioria dos acordos extrajudiciais era de pequena monta e constituíam produto da experiência e bom senso do investigador. Dois homens num bar, ambos bêbados, começam a brigar. A Polícia é chamada. Ambos os antagonistas querem que o adversário seja preso sob acusação de agressão não provocada. O que deve o "tira" fazer? Se for sabido, passa uma esfregadela nos dois, ameaça prendê-los por perturbar a paz, e manda-os embora, em direções opostas. Nenhuma dor, nenhuma tensão, nenhum trabalho burocrático com acusações formais, mandados, tempo perdido nos tribunais – uma chateação para os interessados. E o juiz, com toda probabilidade, escutaria incrédulo os querelantes durante cinco minutos e os mandaria embora do tribunal.
Mas se a questão é mais séria do que uma briga, se foi ocasionado dano à propriedade ou se alguém sofreu ferimento grave, o investigador pode conduzir-se de modo mais prudente. O problema ainda pode ser resolvido fora dos tribunais, agindo o "tira" como juiz e júri. É possível solucioná-lo por retirada voluntária da queixa, por pagamento imediato em dinheiro à parte ofendida pelo indivíduo que a prejudicou, por consentimento mútuo de ambas as partes quando ameaçadas pelo investigador de acusações mais graves, ou por suborno do policial.
Trata-se da "justiça das ruas" e para cada caso que vai a julgamento nas salas austeras, numerosos julgamentos de ruas são realizados durante todas as horas do dia, em todas as cidades do país. O magistrado é um "tira" – um detetive à paisana ou um guarda uniformizado. E, honesto ou venal, ele é a peça chave de todo o frágil, cambaleante e ridículo sistema de "justiça das ruas". Sem ele, as já congestionadas cortes de justiça oficiais da nação seriam inundadas, afogadas em um mar de casos banais e se tornariam incapazes de funcionar.
O policial consciencioso fará ou não um relatório escrito do caso, dependendo da maneira como lhe julga a importância. Mas se for um detetive e se o caso envolver pessoas de status social mais alto do que brigões de calçada, e se queixas formais foram formuladas por alguém, e uma ou mais visitas à delegacia forem feitas, o detetive quase com certeza redige um relatório sobre o ocorrido, quem fez o que, quem disse o que, e quais os resultados em termos de prejuízos e ferimentos. Mesmo que a confrontação simplesmente dê em nada – acusações retiradas, nenhuma expedição de mandado, nenhum julgamento – o detetive preenche os formulários, redige o relatório e guarda toda a papelada na pilha do entulho, a ser jogada fora quando o arquivo transbordar.
Sabendo de tudo isso, sabendo como eram remotas as possibilidades de encontrar algo de significativo no detrito deixado ao ser dissolvida a turma de detetives da delegacia, Delaney seguiu seu instinto de "tira'" e telefonou ao Tenente Marty Dorfman, na 251ª Delegacia, contígua.
A conversação preliminar de ambos foi cordial, mas fria. Delaney perguntou pela família de Dorfman e o tenente indagou sobre o estado de saúde da Sra. Delaney. Somente quando o capitão perguntou sobre as condições da delegacia a voz de Dorfman adquiriu um tom de angústia e irritação.
Descobriu que a Operação Lombard estava usando a 251ª Delegacia como posto de comando. O Vice-Comissário Broughton havia-se apossado do gabinete de Dorfman e seus homens ocupavam os escritórios do segundo andar, anteriormente utilizados pelos detetives da delegacia. O próprio Dorfman trabalhava naquele instante em uma mesa num dos cantos da sala do sargento.
Poderia ter suportado tal ignomínia, sugeriu a Delaney, e mesmo as desconsiderações de Broughton, que incluíam o fato de ignorá-lo completamente quando se encontravam no corredor e requisitar os veículos da delegacia sem consulta prévia a Dorfman. Mas o que na realidade o enfurecia era que, aparentemente, os moradores da jurisdição o culpavam, a ele, Dorfman, pessoalmente, por não ter descoberto o assassino. A despeito do que haviam lido nos jornais e visto na televisão sobre a Operação Lombard, dirigida pelo Vice-Comissário Broughton, sabiam que Dorfman dirigia a delegacia e acusavam-no por não tornar seguras as ruas.
– Eu sei – disse Delaney, cheio de simpatia. – Acham que o bairro está a seu cargo e que é sua a responsabilidade.
– É mesmo - suspirou Dorfman. – Bem, estou aprendendo. Aprendendo o que o senhor teve de tolerar. Acho que é uma boa experiência.
– Tem razão – disse categórico Delaney. – A melhor de todas as experiências. . . ficar na linha de fogo. Vai fazer o exame para capitão?
– Não sei mais o que fazer. Minha mulher acha que não devo. Ela quer que eu deixe a Polícia, que tente outra coisa.
– Não faça isso – interveio rapidamente Delaney. – Continue onde está. Pelo menos, por mais algum tempo. As coisas podem mudar antes que você se dê conta.
– Podem? – perguntou Dorfman, interessado, curioso, mas sem querer fazer pressão sobre Delaney. – O senhor acha que pode haver mudanças?
– Acho. Talvez mais cedo do que pensa. Não tome nenhuma decisão agora. Espere mais um pouco.
– Muito bem, capitão, se o senhor acha assim. . .
– Tenente, o motivo por que telefonei. . . Quero ir à delegacia amanhã por volta de oito ou nove da manhã. Quero ir àquele depósito no subsolo. Fica ao lado do corredor que dá para a porta dos fundos. Sabe, quando se passa pelas celas e o depósito de bêbados e se vira à direita. Preciso examinar alguns velhos arquivos depositados ali. É o lixo deixado pela turma de detetives. O trabalho provavelmente me tomará o dia inteiro e talvez retire algumas pastas. Quero sua permissão.
Fez-se o silêncio. Delaney pensou que a ligação talvez tivesse sido cortada.
– Alô? Alô? – disse.
– Estou aqui – respondeu Dorfman, em voz baixa. – Sim, o senhor tem minha permissão. Obrigado por ter telefonado antes, capitão. Não precisaria ter feito isso.
– É a sua delegacia.
– É o que estou aprendendo. Capitão...
– O quê?
– Acho que sei o que o senhor anda fazendo. Está conseguindo alguma coisa?
– Nada definido. Estou trabalhando.
– Os arquivos ajudarão?
– Talvez.
– Tire o que quiser.
– Obrigado. Se o encontrar, simplesmente incline a cabeça num cumprimento e passe por mim. Não pare para conversar. Os homens de Broughton não precisam. . .
– Compreendo.
– Dorfman...
– Sim, capitão?
– Não deixe de se preparar para os exames de capitão.
– Muito bem. Não deixarei.
– Sei que vai sair-se muito bem na parte escrita, mas na prova oral a junta faz algumas perguntas cabulosas. Há uma que fazem todos os anos, embora tome diferentes formas. É mais ou menos assim: o senhor é capitão e tem sob suas ordens um tenente, três sargentos e talvez vinte ou trinta guardas. Há um distúrbio de rua. Hippies, bêbados desembarcados de um barco de cruzeiro no rio Hudson, ou algum tipo de multidão maluca. Talvez cem pessoas berrando, quebrando janelas, fazendo o diabo. Como é que o senhor enfrentaria a situação?'
Houve silêncio. Dorfman respondeu em seguida, sem muita segurança:
– Eu disporia os homens em forma de cunha. E se dispusesse de um alto-falante diria à multidão para se dispersar. Se isso não funcionasse, diria aos guardas. . .
– Não – interrompeu-o Delaney. – Não é a resposta que querem. A resposta correta é: você volta-se para seu tenente e diz: "Disperse-os". Em seguida, dá as costas à multidão e afasta-se. Talvez não seja a maneira correta. Compreendeu? Mas é a resposta correta à pergunta. Querem saber se você sabe usar a capacidade de comando. Cuidado com perguntas dessa natureza.
– Obrigado, capitão – disse Dorfman, e Delaney teve a esperança de que estivessem voltando ao antigo e íntimo relacionamento.
Pensou com cuidado no caso, à sua maneira metódica. Usaria um terno velho, desde que era quase certo que o depósito do subsolo estivesse empoeirado. Com toda probabilidade, teria iluminação adequada, uma lâmpada pendente do teto, mas, apenas por segurança, levaria uma lanterna elétrica.
Bem, a sala talvez estivesse fechada e seria forçado a criar um caso até encontrar alguém que possuísse a chave. Mas ele nunca havia devolvido o seu molho de chaves que, como lhe assegurara o seu predecessor, abria todas as portas, células e o cofre da delegacia. Levaria, portanto, seu molho de chaves.
Não sabia de quanto tempo precisaria para examinar os velhos arquivos dos detetives, mas achava que talvez lhe consumisse o dia inteiro. Não desejaria sair para comer alguma coisa; quanto menor a possibilidade de ser visto pelo pessoal de Broughton, ou pelo próprio Broughton, melhor para todos. Precisaria, em vista disso, levar sanduíches, dois sanduíches, que pediria a Mary que lhe preparasse pela manhã, além de uma garrafa térmica com café. Levaria tudo isso, além da lanterna elétrica e das chaves, na pasta onde poria também as listas datilografadas das fichas do fichário de Monica Gilbert.
Mais alguma coisa? Bem, precisaria de uma espécie de justificativa, apenas por cautela, caso Broughton o visse e, o interpelasse, e quisesse saber o que estava fazendo ali. Diria, resolveu, que fora apanhar alguns documentos pessoais no depósito do subsolo. Conservaria a história tão vaga quanto possível; talvez fosse suficiente para safar-se.
Acordou na manhã seguinte resolutamente disposto a não nutrir esperanças, tentando encarar a busca como outro passo lógico, que teria que ser dado, produzisse ou não resultados. Tomou um desjejum inusitadamente abundante: suco de tomate, dois ovos cozidos com uma torrada de pão integral, um pouco de salsichas de porco e duas xícaras de café.
Enquanto Mary preparava os sanduíches e a garrafa térmica, dirigiu-se ao gabinete e telefonou para Bárbara a fim de explicar:lhe por que não iria vê-la naquele dia. Por sorte, ela estava num estado de espírito alegre e animado. Ao lhe dizer exatamente o que pretendia fazer, ela aprovou de imediato o plano e fê-lo prometer que telefonaria logo que a busca estivesse terminada, dando os resultados.
Entrou na 251ª Delegacia sem incidentes e com a maior facilidade. A ameaçadora mulher, a sargenta loura, encontrava-se de serviço, a cargo do livro de partes, no momento em que entrou. Curvada sobre a mesa conversava com uma chorosa negra. Ergueu a vista, reconheceu o capitão e fez-lhe uma meia continência. Ele acenou em resposta e continuou a andar, levando a pasta na mão como se fosse um vendedor. Desceu a velha escada de madeira e entrou na área de detenção.
O guarda de serviço – serviço limitado desde que seu braço direito fora quase decepado por um garoto de onze anos dopado – sentava-se numa cadeira de braços, inclinada contra a parede. Lia a última edição do Daily News. Delaney leu a manchete: "ASSASSINO MANÍACO AINDA À SOLTA". O guarda ergueu a vista, reconheceu o capitão, começou a levantar-se. Delaney, com um gesto, fê-lo sentar-se, envergonhado de si mesmo por não lembrar-se do nome do homem.
– Como vai? – perguntou.
– Muito bem, capitão. O braço está ficando bom. O médico disse que estarei em forma dentro de uma semana, mais ou menos.
– Ótimo. Mas não se apresse. Leve todo o tempo de que precisar. Vou ao depósito no corredor dos fundos. Há lá uns arquivos pessoais meus que quero retirar.
O guarda inclinou a cabeça. Não podia importar-se menos.
– Não sei quanto tempo vou levar nisso. Se não houver saído ainda quando você deixar o serviço, por favor diga a seu substituto que estou lá.
– Pois não, capitão.
Passou pelas celas de detenção: seis, quatro ocupadas. Não olhou nem para a esquerda nem para a direita. Alguém sussurrou na sua direção; alguém gritou. Havia três homens no depósito dos bêbados deitados sobre a sujeira recíproca, gemendo. Não era o ruído que o incomodava, era o cheiro. Quase se havia esquecido de como era desagradável: urina velha, fezes velhas, sangue velho, vômitos velhos, pus velho – noventa anos de dor humana embebidos no assoalho e nas paredes. E evolando-se através do miasma, como um golpe de faca, o odor acre e penetrante de fenol que lhe picou as narinas e provocou lágrimas.
O depósito estava fechado e levou quase cinco minutos para encontrar a chave certa no grande molho. Ao correr a lingüeta, parou alguns segundos, perguntando-se por que não entregara as chaves a Dorfman. Oficialmente, deviam estar de posse do tenente. A delegacia era dele.
Empurrou a porta, encontrou o interruptor de parede, acendeu a lâmpada do teto, fechou-a e olhou em volta. O lugar era tão desagradável como esperara.
A delegacia fora inaugurada em 1882 e, inspecionando o depósito, Delaney desconfiou que todos os livros de partes, de todos esses noventa anos, haviam sido cuidadosamente conservados e nunca mais abertos. Estavam empilhados até o teto. Um historiador poderia fazer maravilhas com eles. O capitão sentiu certo divertimento com um pensamento que lhe ocorreu, "Uma História do Crime em Nossos Tempos" – reconstruindo a maneira como nossos tataravós, avós e pais viveram, mediante a análise da evidência contida naqueles livros de partes. Poderia ser feito, pensou, e talvez fosse revelador. Não a história habitual, não as teorias dos filósofos, as descobertas dos cientistas, os programas de estadistas; não as guerras, as explorações, as revoluções, as novas religiões.
Simplesmente os pequenos delitos, as transgressões e os grandes crimes de uma humanidade fraca e pecadora. Estava tudo ali: mutilações, fraudes, espancamento de crianças, roubos, abuso de drogas, alcoolismo, seqüestros, estupros, assassinatos. Seria um registro fascinante e desejou que um historiador tentasse aproveitar aquele material. Talvez servisse de lição.
Tirou o sobretudo, o chapéu e o paletó e colocou-os no engradado menos empoeirado que conseguiu encontrar. A sala sem janelas contava com um único radiador, que sacolejava e silvava constantemente, lançando vapor e água. Delaney abriu um pouco a porta. O ar que entrava recendia a fenol, mas era um pouco mais fresco.
Colocou os óculos e verificou o que mais continha a sala. Na maior parte, caixas de papelão transbordando de pastas e papéis. As caixas tinham nos lados nomes de marcas de uísque, rum, gim etc. Sabia que tinham vindo da casa de bebidas da esquina. Havia também caixotes de madeira cheios do que parecia ser evidência física de crimes há muito esquecidos: uma luva tricotada de lã comida pelas traças; um machete enferrujado com o cabo quebrado: uma dentadura; uma boneca; uma bolsa de mulher, de verniz, escancarada; uma muleta quebrada; um peso de janela com manchas pretas; um chapéu de homem com um orifício de bala; envelopes grossos e fechados com o conteúdo anotado nos lados, uma peruca com manchas de sangue; e uma cinta, aberta por um golpe de faca.
Delaney voltou-se e viu uma caixa de fantasias de teatro. Mexeu nelas e pensou que talvez fossem os restos de alguma festa de Natal realizada na delegacia, por crianças da vizinhança, custeadas as fantasias pelos policiais. Mas por baixo do algodão barato – ordinário, para começar, e naquele momento, apodrecendo encontrou um antigo revólver Colt de pelo menos vinte e cinco centímetros de comprimento, enferrujado de tal modo que jamais poderia ser usado. No gatilho estava presa uma amarrotada etiqueta com uma inscrição desmaiada: "A arma de Malone, 16 de julho de 1902" Malone. Quem havia sido Malone – um policial ou um assassino? Não fazia diferença.
Finalmente, encontrou o que procurava: duas pilhas de caixas de papelão relativamente novas contendo o lixo do ano anterior dos arquivos da turma de detetives. Todas as caixas possuíam pastas em ordem alfabética, embora as próprias caixas tivessem sido empilhadas sem ordem. Delaney passou quase uma hora examinando-as. Nesse momento já passava do meio-dia. Sentou-se num caixão de madeira cheio de pregos (em cima a inscrição: "Para ser entregue ao Capitão Kelly") e comeu um dos sanduíches de salame, com grossas rodelas de cebola, em pão de centeio, e com uma ligeira cobertura de maionese – de que gostava muito – e bebeu metade do café da garrafa.
Apanhou a lista de nomes do fichário de Mônica e começou a trabalhar. Precisava comparar a lista com o arquivo e era obrigado a trabalhar ajoelhado ou agachado. Vez por outra, abria os braços e curvava para trás a espinha. Duas vezes saiu para o corredor e caminhou para cima e para baixo durante alguns minutos, tentando combater as cãibras nas pernas.
Não sentiu o menor júbilo ao descobrir a primeira pasta com um nome constante de sua lista. O endereço combinava. Simplesmente pôs de lado a pasta e continuou a trabalhar. Era um trabalho extremamente cansativo, como ficar de guarda ou "acampanar" uma pessoa durante 24 horas. O policial não parava para se perguntar o que estava fazendo; era algo que precisava ser feito, geralmente para provar o "não", e descobrir o "sim".
Ao terminar a última pasta no último caixote de papelão, o relógio marcava quase sete da noite. Muito tempo antes terminara o segundo sanduíche e o resto do café. Mas não estava faminto, apenas sedento. Parecia-lhe ter as narinas e a garganta cobertas de poeira, mas o radiador nem por um instante deixou de sacolejar, espirrar vapor e água. A camisa se lhe colava às axilas, peito e costas. Sentiu o cheiro do próprio suor.
Guardou com cuidado o material. Três pastas das pessoas constantes do fichário de Mônica haviam-se envolvido em casos de "justiça das ruas". Enfiou as pastas na maleta, e a elas acrescentou a garrafa térmica vazia e o papel encerado nos quais embrulhara os sanduíches. Vestiu o paletó e o sobretudo, pôs o chapéu na cabeça, e deu um olhar final em volta. Se voltasse a dirigir a dois-cinco-um, a primeira coisa que faria seria mandar limpar aquela sala. Desligou a luz, saiu para o corredor, e certificou-se de que correra a lingüeta da fechadura.
Passou pelo depósito de bêbados e pelas celas de detenção. Dois bêbados haviam desaparecido e havia apenas uma cela ocupada. Não viu guarda uniformizado por ali, mas ele poderia ter saído para tomar café. Subiu a escada raquítica e surpreendeu-se com o tremor dos joelhos, produto do cansaço. O Tenente Dorfman, de pé próximo à saída para a rua, conversava com um homem que Delaney não reconheceu. Ao passar por ele. o capitão inclinou a cabeça, sorrindo de leve. Dorfman, por sua vez, inclinou a cabeça, sem interromper a conversação.
No seu quarto, Delaney despiu-se com toda a rapidez possível, deixando as roupas sujas em uma pilha úmida no chão. Caiu sob um banho de chuveiro quente e lavou três vezes as mãos, mas não conseguiu tirar a sujeira dos poros e de sob as unhas. Descobriu uma lata de desinfetante no armário da cozinha. Isso resolveu. Depois de seco, usou água-de-colônia e talco, mas cheirava ainda a fenol.
Já de pijama, chinelos e robe. lançou um olhar para o relógio sobre a mesinha-de-cabeceira. Resolveu telefonar para Bárbara, de preferência a esperar até examinar as pastas. Mas quando ela respondeu, compreendeu que divagava. Talvez fosse sono ou efeito dos medicamentos, talvez da doença: ele não sabia. Ela continuou a repetir-lhe o nome rindo: "Edward!" Perguntando: "Edward''" Exigindo: "'Edward'" Amorosamente: "Ed-dw-ward. . ."
Finalmente, ele disse "Boa noite, querida", desligou, tomou uma profunda respiração e fez força para não chorar. No gabinete movendo-se mecanicamente, preparou um uísque duplo com gelo e abriu as pastas. A lanterna voltou para a gaveta do armário da cozinha. Colocou o papel encerado amassado na lata de lixo. A garrafa térmica foi lavada, enchida de água quente, e deixada em cima do mármore da pia. O molho de chaves foi posto na gaveta superior da escrivaninha, para ser entregue ao Tenente Dorfman. Delaney teve certeza, naquele instante, em sombria inspiração, de que nunca mais dirigiria a dois-cinco-um.
Arrumou as três pastas, uma sobre a outra, em cima do mata-borrão da escrivaninha. Com urna toalha de papel, removeu a poeira que as cobria e empilhou-as novamente. Lavou as mãos, sentou-se, e colocou os óculos. Ficou, então, simplesmente sentado ali, bebericou metade do forte uísque de centeio, olhando para as pastas. Inclinou-se para a frente e começou a ler.
O primeiro caso era divertido e o policial que dele tratara, o detetive de segunda classe Samuel Berkowitz, havia-o reconhecido como tal desde o início: o seu seco e irônico relatório, embora eufemisticamente, realçava o humor da situação. Um indivíduo chamado Timothy J. Lester fora detido pouco depois de ter jogado uma lata de lixo vazia na vitrina de uma loja especializada em roupas maternais. A loja era timidamente denominada de Esperando. Berkowitz dizia que o sujeito estava "aparentemente embriagado" – uma dedução razoável desde que, junto da Esperando, ficava um bar chamado de Ye Old Emerald Isle. O Detetive Berkowitz havia também apurado que o Sr. Lester, embora contasse apenas 34 anos, era pai de sete filhos e fora, naquela noite, informado pela esposa que o número subiria em breve para oito. Timothy fora imediatamente para o bar comemorar, comemorara e, a caminho de casa, parara para jogar a lata de lixo na vitrina da Esperando. Desde que Lester era, segundo as palavras de Berkowitz, "aparentemente um chefe de família exemplar", desde que possuía um bom emprego como compositor gráfico, e desde que se comprometera a pagar os prejuízos, o Detetive Berkowitz julgara que a causa da justiça seria melhor servida se fosse permitido ao Sr. Lester pagar os danos e se fossem retiradas as acusações.
O Capitão Edward X. Delaney, lendo a pasta e sorrindo, concordou com o julgamento do Detetive Berkowitz.
A segunda pasta era curta e triste. Dizia respeito a uma das poucas mulheres incluídas na lista de Mônica Gilbert. Contava 38 anos de idade e vivia em um elegante apartamento na Second Avenue. Aceitara como companheira de quarto uma jovem de 22 anos. Aparentemente, tudo correra bem durante quase um ano. Em seguida, a mais moça conhecera um homem, noivaram, anunciara a fato à companheira e recebera os parabéns. Mas quando voltou para casa na noite seguinte, descobriu que a companheira mais velha cortara todos seus vestidos com uma gilete e destruíra todas suas posses. Chamou a Polícia. Mas após consultar o noivo, resolveu retirar a queixa, deixou o apartamento, e o caso foi encerrado.
A terceira pasta, mais grossa, referia-se a Daniel G. Blank, divorciado, que morava sozinho na East 83rd Street. Estivera envolvido em dois incidentes separados num intervalo de seis meses. No primeiro, fora inicialmente acusado de agressão simples, em uma discussão com um morador de seu prédio de apartamentos que aparentemente estivera espancando o próprio cachorro. Blank protestara e o dono do cão saíra com um braço quebrado. O caso fora presenciado pelo porteiro, Charles Lipsky, que assinou um depoimento dizendo que Blank simplesmente empurrara a vítima depois de ter sido atingido por um jornal dobrado. O homem tropeçara no meio-fio, caindo e quebrando o braço. As acusações haviam sido finalmente retiradas.
O segundo incidente revestia-se de maior gravidade. Blank estivera em um bar, The Parrot, e fora aparentemente abordado por um homossexual de meia-idade. Blank, segundo o depoimento das testemunhas, atingiu a vítima duas vezes, quebrando-lhe o queixo com o segundo muno. Com o homem caído e inerme no chão, Blank havia-o repetidamente atingido a pontapés na virilha até ser arrastado do local e chamada a Polícia. O homossexual se recusara a apresentar queixa. O advogado de Blank aparecera e o ferido assinara uma declaração isentando-o de culpa pelo incidente.
O mesmo policial, detetive de primeira classe Ronald A. Blankenship, tratara dos dois casos. A sua linguagem nos relatórios era oficial, clara, concisa e não implicava julgamento.
Delaney leu lentamente a pasta e releu-a. Levantou-se, serviu-se de outra bebida, de pé junto à mesa, e leu-a pela terceira vez. Tirou os óculos e começou a passear de um lado para outro no frio gabinete com a bebida na mão, tomando goles ocasionais.
Vários anos antes, quando fora tenente de detetives, escrevera dois artigos para a revista mensal do Departamento. O primeiro intitulava-se "O Senso Comum e o Novo Detetive". Constituía uma análise simples e em linguagem concisa sobre a maneira como é solucionada a grande maioria dos crimes: bom julgamento, baseado em evidência física, e experiência – a capacidade de somar dois e dois e encontrar quatro, e não três ou cinco. Dificilmente aquilo constituía um argumento revolucionário.
O segundo artigo, intitulado "Palpite, Instinto, e o Novo Detetive", provocou mais comentários. Delaney argumentava que, a despeito dos grandes progressos nas análises de laboratório, na medicina legal, nos arquivos computadorizados e nas percentagens de probabilidade, o novo detetive ignorava os palpites e o instinto, com prejuízo seu, pois, com freqüência, não eram eles conseqüência de uma inesperada inspiração, mas resultado de observação, de evidência física e da experiência, das quais o policial talvez nem mesmo estivesse consciente. Mas, borbulhando em seu subconsciente, uma conclusão racional e razoável era alcançada, subia ao pensamento consciente, e nunca devia ser deixada murchar sem exame, desde que era, em numerosos casos, tão lógica e válida como o senso comum.
Delaney preparara um terceiro artigo para a série. Expunha sua teoria do "conceito do adversário", no qual estudava a relação dostoievskiana entre o detetive e o criminoso. Era um exame abstruso da afinidade "sensual" (palavra de Delaney) entre o caçador e a caça, da maneira como, em certos casos, era necessário que o detetive penetrasse no corpo e assumisse o espírito e a alma do criminoso a fim de levá-lo à justiça. (O trabalho, graças à suave persuasão de Bárbara, não fora entregue para publicação.)
Naquele instante, pensando nos fatos constantes da pasta de Daniel Blank, o Capitão Delaney admitiu que se encontrava a meio caminho entre o senso comum e o instinto. A inteligência e a experiência convenciam-no de que o indivíduo envolvido nos dois incidentes descritos merecia uma investigação ulterior.
O ponto importante no segundo incidente era a selvageria demonstrada por Blank. Um homem normal – bem, um homem comum – poderia ter respondido à primeira proposta do homossexual simplesmente sorrindo e sacudindo a cabeça, ou afastando-se para mais longe no bar, ou mesmo retirando-se. A violência revelada por Blank fora excessiva. Protestava demais?
O primeiro incidente – o caso do dono do cachorro – talvez não fosse tão inocente como parecia no relatório do detetive Blankenship. Era verdade que a testemunha – qual era o nome dela? Delaney conferiu. Charles Lipsky – era verdade que Lipsky declarara que Blank fora atingido com um jornal dobrado antes de empurrar o agressor. Mas testemunhas podem ser subornadas; isso dificilmente era novidade. Mesmo que Lipsky tivesse contado a verdade, Delaney ficou espantado ao notar como o incidente se ajustava a um padrão que aprendera a reconhecer com a experiência: homens inclinados à violência, homens prontos a usar os punhos, os pés, mesmo os dentes, de certo modo se envolviam em situações que não eram evidentemente culpa sua, mas que, ainda assim, resultavam em ferimentos ou na morte do antagonista.
Telefonou para Mônica Gilbert.
– Mônica? Edward. Sinto muito incomodá-la a esta hora. Espero que não tenha acordado as crianças.
– Oh, não. Para isso é preciso mais do que uma campainha de telefone. O que é?
– Você se importaria em verificar se tem em seu fichário alguma coisa sobre um homem chamado Blank, Daniel G.?
– Espere um minuto.
Esperou pacientemente. Ouviu-lhe o som dos movimentos pela casa. Logo depois, ela voltava ao telefone.
– Blank, Daniel G. – leu ela. – Preso duas vezes por excesso de velocidade. Confessou-se culpado e pagou multa. Quer a marca do carro e o número da chapa?
– Por favor.
Tomou rápidas notas enquanto ela lhe dava as informações.
– Obrigado – disse.
– Edward. . . descobriu alguma coisa?
– Não sei. Realmente, não sei. É uma possibilidade interessante. Isto é mais ou menos tudo o que posso dizer por ora. Saberei mais amanhã.
– Você telefonará?
– Sim, se você quiser.
– Por favor, telefone.
– Está certo. Durma bem.
– Obrigada. Você também.
Duas detenções por excesso de velocidade. Atos não significativos em si, mas dentro do padrão. A escolha do carro era, analogamente, sugestiva. Delaney ficou satisfeito porque Daniel Blank não guiava um Volkswagen.
Telefonou para Thomas Handry no jornal. Havia ido para casa. Chamou-o em casa. Nenhuma resposta. Telefonou para o Tenente Jeri Fernan-dez, na delegacia. Fernandez fora também para casa. Delaney sentiu uma súbita onda de fúria contra essas pessoas que não podiam ser alcançadas quando delas precisava. Mas compreendeu como tudo isso era infantil e acalmou-se.
Encontrou o número do telefone da casa de Fernandez na caderneta de notas, onde cuidadosamente anotara os telefones residenciais de todos os policiais da 251a Delegacia. Fernandez morava em Brooklin. O telefone foi atendido por uma criança.
– Alô?
– Posso falar com o Detetive Fernandez, por favor?
– Um minuto. Papai, é para você – berrou a criança.
No fundo, Delaney ouviu música, gritos, grandes risadas, o som de passos pesados de dança. Finalmente, Fernandez atendeu.
– Alô?
– Aqui é o Capitão Edward X. Delaney.
– Oh, como vai, capitão?
– Tenente, desculpe incomodá-lo a esta hora. Parece que vocês estão dando uma festa aí.
– Exato, é o aniversário de minha esposa e convidamos alguns amigos.
– Não lhe tomarei muito tempo, tenente. Quando trabalhou na dois-cinco-um conheceu um detetive chamado Blankenship, certo? .
– Certo. Ronnie. Bom sujeito.
– Como era? Não consigo lembrar-me dele.
– Certamente que se lembra, capitão. Um cara muito alto. Mais ou menos um metro e noventa. Magro como um palito. Nós o chamávamos de "Espantalho". Lembra-se agora?
– Oh, sim. Um grande pomo-de-adão?
– Ele mesmo.
– O que foi que aconteceu com ele?
– Foi transferido para uma turma da Agressão e Homicídios, no West Side. Acho que está lá para os lados das Ruas 60, 70 ou 80, por aí. Tenho o telefone dele. Quer?
– Certamente que sim.
– Espere um minuto.
Passaram-se quase cinco minutos, mas, por fim, Fernandez voltou com o número do telefone de Blankenship. Delaney agradeceu-lhe. Fernandez parecia disposto a conversar mais, mas o capitão cortou a conversação.
Discou o número da residência de Blankenship. Foi atendido por uma mulher. No fundo, Delaney ouviu um bebê chorando alto.
– Alô?
– Sra. Blankenship?
– Sim, quem é?
– Meu nome é Delaney. Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Poli.. .
– O que foi que aconteceu? O que foi que aconteceu a Ronnie? Ele está bem? O que . . .?
– Não, não, Sra. Blankenship – disse ele apressado, tranqüilizando-a. Tanto quanto sei, o seu marido está perfeitamente bem.
Compreendeu o medo da mulher. Todas as esposas de policiais viviam daquela maneira. Mas devia ter sabido que, se algo houvesse acontecido ao marido, não seria informada por um telefonema. Dois homens do Departamento tocariam a campainha da porta. Ela abriria e eles ficariam ali, com as faces contorcidas e expressões culpadas, e ela saberia.
– Estou tentando entrar em contato com seu marido porque preciso de algumas informações, Sra. Blankenship – continuou, falando em voz pausada e clara. Ela não era, evidentemente, uma mulher brilhante. – Acho que ele não está em casa. Está de serviço?
– Está. Trabalhará à noite nas próximas duas semanas.
– Poderia por gentileza me dar o número do escritório dele?
– Pois não. Apenas um minuto.
Ele poderia ter-lhe dito também que não devia dar informações sobre o marido a um estranho que telefona no meio da noite e alega ser um capitão do Departamento de Polícia da Cidade de Nova York. Mas, qual seria a vantagem? O marido provavelmente lhe dissera a mesma coisa uma dúzia de vezes. Um mulher estúpida.
Recebeu o número e agradeceu. Já eram quase onze horas. Perguntou-se se devia tentar agora ou esperar até a manhã seguinte. Discou. Blankenship havia-se apresentado, sim, mas não estava no momento. Delaney deixou seu número, sem identificar-se, e pediu ao telefonista que o chamasse quando ele voltasse.
– Por favor, diga-lhe que é importante.
– Importante? – perguntou o telefonista. – Como é que se escreve isso, Sr. Importante?
Delaney desligou. Um engraçadinho. O capitão se lembraria disso. O Departamento funciona de maneiras complicadas e, às vezes, misteriosas. Algum dia, aquele telefonista, naquela divisão de detetives, poderia ficar sob as ordens de Delaney. Lembrar-se-ia da voz aguda, alegre, risonha. Que estupidez agir dessa maneira.
Abriu nova pasta, intitulada BLANK, Daniel G., e nela colocou os relatórios de Blankenship, suas notas sobre as prisões de Blank por excesso de velocidade, a marca do carro que guiava e o número da chapa. Em seguida, procurou no catálogo telefônico de Manhattan o nome de Blank, Daniel G. Havia apenas uma pessoa com aquele nome na East 83rd Street. Tomou nota do número do telefone e colocou na pasta.
Preparava novo uísque com gelo – era o segundo ou o terceiro? – quando o telefone tocou. Pôs o copo e a garrafa de lado, com todo o cuidado, e correu para o telefone, atendendo na terceira chamada.
– Alô.
– Fala Blankenship. Quem é?
– Aqui é o Capitão Edward X. Delaney. Eu estava...
– Capitão! Que prazer ouvi-lo. Como está o senhor?
– Ótimo, Ronnie. E você? – Delaney nunca o chamara antes pelo primeiro nome, nem mesmo sabia qual era antes do telefonema a Fernandez. De fato, nem se lembrava de ter conversado pessoalmente com Blankenship, mas queria criar um ambiente favorável.
– Bem, capitão. Indo em frente.
– O que pensa da nova designação? Diga-me uma coisa, acha que essa reorganização vai dar certo?
– Capitão, é grande! – disse entusiasmado Blankenship. – Deviam ter feito isso antes. Agora posso passar algum tempo em casos importantes esquecendo todas aquelas pequenas baboseiras. Nossa taxa de prisões está alta e o moral é muito bom. O número de casos diminuiu e temos tempo para pensar.
O homem parecia inteligente. A voz era agradavelmente profunda, vibrante, ressoante. Delaney lembrou-se daquele grande e protuberante pomo-de-adão.
– É um prazer saber disso – disse. – Escute. Estou de licença, mas surgiu algo e concordei em dar uma ajuda no caso.
Deixou a questão nesse pé, conservando-a vaga, querendo verificar se Blankenship morderia a isca e faria perguntas. O detetive, porém, hesitou apenas um minuto e disse:
– Certo, capitão.
– Diz respeito a um homem chamado Daniel Blank, na dois-cinco-um. Esteve envolvido em dois pequenos casos no ano passado. Você tratou dos dois. Tenho seu relatório comigo. Bom relatório. Bem completo.
– Qual é mesmo o nome?
– Blank, B-1-a-n-k, Daniel G. Mora em East Eighty-third Street. O primeiro caso foi de empurrão em um cara que supostamente espancava seu cão. O segundo.. .
– Oh, claro – interrompeu-o Blankenship. – Lembro-me. Provavelmente porque o nome dele é Blank e o meu é Blankenship. Na ocasião, achei engraçado que fosse eu quem tratasse do caso. Dois pequenos casos em seis meses. No segundo, ele quase liquida um pederasta.
– Exatamente.
– A vítima, porém, não quis assinar a queixa. O que é que quer saber, capitão?
– A respeito de Blank. Viu-o?
– Claro. Duas vezes.
– Do que é que se lembra a respeito dele?
Blankenship recitou:
– Blank, Daniel G. Branco, homem, aproximadamente um metro e oitenta ou mais alto, mais ou menos. . .
– Espere, espere um minuto – disse apressado Delaney. – Estou tomando notas. Vá mais devagar.
– Muito bem, capitão. Tem a altura?
– Um metro e oitenta ou um pouco mais.
– Certo. Pesa mais ou menos oitenta quilos. Bom estado físico, pelo que pude notar. Nenhuma cicatriz ou defeitos visíveis. Moreno. Queimado de sol, acho. Rosto comprido. Uma espécie de aparência de chinês. Deixe-me ver... Mais alguma coisa?
– De que modo estava vestido? – perguntou Delaney, admirando a capacidade de observação e a memória do interlocutor.
– Roupa escura – respondeu imediatamente Blankenship. – Nada de vistoso, mas bem cortada e cara. Algumas coisas engraçadas, de que me lembro. Corrente de ouro no relógio de pulso. Como um bracelete. Na primeira vez em que o vi, ele usava o próprio cabelo. Na segunda, juro que era peruca. Usava também uma camisa amalucada, aberta até o umbigo, e uma espécie de colar. Sabe, essas coisas de hippie.
– Sotaque? – perguntou Delaney.
– Sotaque? – repetiu Blankenship. Pensou um momento e disse: – Não é natural de Nova York. Meio-Oeste, acho. Sinto se não posso ser mais específico.
– Você está-se saindo admiravelmente bem – assegurou-lhe, jubiloso, Delaney. – Pensa que ele é forte?
– Forte? Acho que sim. O cara que pode quebrar o queixo de outro com um murro tem de ser forte. Certo?
– Certo. Qual foi a sua reação pessoal a ele? Suspeito?
– Poderia ser, capitão. Quando um indivíduo castiga um homossexual declarado como aquele, isso deve significar alguma coisa. Certo?
– Certo.
– Tive vontade de enquadrá-lo, mas a vítima recusou-se a assinar a queixa. Neste caso, o que poderia ter feito?
– Compreendo – respondeu Delaney. – Acredite-me, isto que lhe estou perguntando não tem nada a ver com aquele caso.
– Acredito, capitão.
– Sabe onde ele trabalha, o que faz para ganhar a vida?
– Não está no relatório?
– Não, não está.
– Sinto muito. Mas o senhor tem o nome e o endereço do advogado dele, não?
– Oh, sim, tenho. Conseguirei a informação com ele – mentiu Delaney. Fora um pequeno erro de Blankenship, bem pequenino. Não havia vantagem em procurar o advogado. Ele se recusaria a dar a informação e, com certeza, informaria a Blank de que a Polícia andara fazendo perguntas a seu respeito.
– O que me disse resolve praticamente o caso – explicou Delaney. Muito obrigado pela ajuda. Em que é que você está trabalhando agora?
– Uma beleza de caso, capitão – replicou Blankenship à sua maneira entusiástica. Uma senhora idosa foi morta em seu apartamento. Estrangulada. Nenhum sinal de arrombamento no local. E tanto quanto pudemos descobrir, nenhum roubo. Um vizinho sentiu o mau cheiro do corpo. Por isso, fomos chamados. Um apartamento pobre e pequeno, mas parece que a velha era cheia da nota.
– Quem é que herda?
– Um sobrinho. Mas o investigamos de seis maneiras diferentes. Ele tem um álibi que resiste a tudo. Esteve na Flórida durante duas semanas. Verificamos isso. Estava realmente lá. Durante todos os minutos.
– Veja a conta bancária dele, retroagindo de seis meses a um ano. Verifique se houve alguma grande retirada, talvez cinco ou seis grandes retiradas.
– O senhor está sugerindo que pode ter contratado alguém? O filho da mãe! – disse, amargamente, Blankenship. – Por que não pensei nisso?
– Fique por aqui durante vinte e cinco anos – riu Delaney – e aprenderá. Obrigado mais uma vez. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, simplesmente diga.
– Olhe que posso aceitar, capitão – retrucou Blankenship em sua voz profunda e rouca.
– Faça isso – disse Delaney.
Desligou e terminou de preparar o uísque com gelo. Tomou um grande gole e sorriu largamente, largamente, largamente. Olhou em volta para as paredes, o teto, o assoalho, os móveis e sorriu para tudo aquilo. Sentiu-se bem. O caso transcendera seu primeiro artigo sobre o senso comum: o valor da evidência, pessoalmente observada, e da experiência. Transcendera mesmo o segundo artigo, o que exaltava o valor dos palpites e do instinto. Naquele momento, invadia o terreno do terceiro, o inédito, aquele que, a instâncias de Bárbara, jamais fora publicado. E com toda razão, também. Isto porque naquele artigo, estudando a natureza do relacionamento detetive-criminoso – a teoria do conceito do adversário – ele havia discorrido sobre o "júbilo" do detetive bem-sucedido.
E era o que sentia naquele momento – Júbilo! Abriu a nova pasta – BLANK, Daniel G. – acrescentando-lhe tudo o que Blankenship lhe comunicara e nenhuma coisa, nem uma única coisa, diferente em qualquer aspecto significativo do esboço de "O Suspeito". Ganhava, sim, mais força à medida que ampliava as notas. Era belo, belo, tudo tão belo. E da mesma forma que escrevera no artigo inédito, havia um prazer sensual – seria mesmo sensual? – na caçada. Tão absorvido ficou nas rápidas anotações no relatório, na nova e bela pasta, que o telefone tocou cinco vezes antes de atendê-lo. Na verdade, continuou a escrever enquanto respondia.
– Falando o Capitão Edward X. Delaney.
– Dorfman. Houve outro.
– Capitão.. . o quê?
– Tenente Dorfman, capitão. Sinto muito tê-lo acordado. Houve outro assassinato. O mesmo tipo, com extras.
– Homem?
– Sim.
– Alto?
– Alto? Acho que um metro e setenta e oito ou um metro e oitenta.
– Peso?
Caiu um silêncio e, em seguida, ouviu-se a voz monótona de Dorfman:
– Não sei quanto ele pesa, capitão. É importante isso?
– Extras? Você falou em "Extras". Que extras?
– Foi atingido pelo menos três vezes. Talvez mais. Há sinais de luta. Presentes de Natal, três, em volta do corpo. Marcas de arranhões na calçada. O casaco dele estava rasgado. Parece que resistiu.
– Identificado?
– Um homem chamado Feinberg. Albert Feinberg.
– Há falta de alguma coisa? Identificação de algum tipo?
– Não sabemos – respondeu Dorfman. – Estamos verificando atualmente com a esposa da vítima. A carteira não estava do lado de fora, como no caso Lombard. Nós simplesmente não sabemos.
– Muito bem – disse, baixinho, Delaney. – Obrigado por ter telefonado. Parece que você bem que poderia dormir um pouco, tenente.
– Sim, poderia. Se pudesse.
– Obrigado, e boa noite.
Olhou para a folhinha da mesa e fez uma cuidadosa contagem. Haviam decorrido onze dias desde o assassinato do detetive Kope. Suas pesquisas estavam sendo confirmadas pelos fatos; os intervalos entre os crimes tornavam-se cada vez mais curtos.
Apanhou um mapa da jurisdição com a capa plástica e, usando um lápis vermelho, marcou com cuidado o assassinato de Albert Feinberg, anotando o nome da vítima, data do crime, e local. As localizações dos quatro assassinatos formavam no mapa uma espécie de quadrado. Obedecendo a um impulso, usou lápis e régua para ligar os ângulos opostos do quadrado, formando um X. O ponto de interseção situava-se na esquina da 84th Street e Second Avenue, exatamente no meio do cruzamento das duas ruas. Verificou o endereço de Blank. Ficava na 83rd Street, a quarteirão e meio de distância. O mapa nem dizia sim nem não.
Foi para a cama gemendo de cansaço. O que queria, na realidade, fazer... que tolice... era procurar Daniel Blank... ir procurá-lo naquele exato momento... apresentar-se e dizer:
– Conte-me tudo.
Sim, era uma tolice... uma idiotice... mas tinha certeza... bem, talvez não certeza, mas era uma possibilidade, e a melhor... Pouco antes de cair no sono reconheceu, com um triste sorriso, que todo aquele fantasioso raciocínio sobre modelos, percentagens e perfil psicológico era simplesmente um bocado de merda. Seguiria Daniel Blank porque não tinha outra pista. A situação era tão simples e óbvia assim. A Navalha de Occam. Adormeceu.

4

O despertador tocou às oito horas da manha. Desligou-o com uma pancada, puxou as pernas de baixo do cobertor, colocou os óculos, e consultou um pedaço de papel que deixara sob o telefone. Ligou para a casa de Thomas Handry. O telefone tocou oito vezes. Ia desistir quando Handry atendeu.
– Alô? – respondeu, sonolento.
– Falando o Capitão Edward X. Delaney. Acordei-o?
– Que nada! – bocejou Handry. – Estou acordado há horas, andei passeando pelo reservatório de água da cidade, escrevi dois sonetos imortais e seduzi a senhoria do meu apartamento. Muito bem, o que é que o senhor quer, capitão?
– Tem aí um lápis?
– Um minuto... Muito bem, pode falar.
– Gostaria que procurasse saber o que há no arquivo de seu jornal sobre determinada pessoa.
– Quem?
– Blank, Daniel G. 0 sobrenome é Blank, B-1-a-n-k.
– Por que deveria ele constar de nosso arquivo?
– Não sei. Apenas uma possibilidade.
– Bem, o que foi que fez? Quero dizer, o nome dele apareceu nos jornais por algum motivo?
– Que eu saiba, não.
– Neste caso, por que, diabo, deve seu nome constar do arquivo?
– Eu lhe disse – respondeu, paciente, Delaney –é apenas uma possibilidade. Mas preciso cobrir todas as possibilidades.
– Oh, está bem. Tentarei. Eu o chamarei por volta das dez, qualquer que tenha sido o resultado.
– Não, não faça isso – disse o capitão. –Eu talvez tenha saído. Ligarei para o jornal a essa hora.
Handry resmungou qualquer coisa e desligou.
Após o desjejum, dirigiu-se ao estúdio. Queria conferir as datas dos quatro assassinatos e os intervalos entre eles. Lombard e Gilbert: 22 dias. Gilbert a Kope: 17 dias. Kope a Feinberg: 11 dias. Fazendo uma projeção, o assassinato seguinte deveria ocorrer durante a semana entre o Natal e o Ano-Novo, provavelmente alguns dias depois do Natal. Empertigou-se de súbito na cadeira. Natal! Oh, Deus!
Telefonou imediatamente para Bárbara. Ela disse que se sentia bem, dormira tranqüilamente e comera todo o almoço. Sempre dizia isso.
– Ouça – murmurou ele – é a respeito do Natal... Sinto muito, querida. Esqueci de comprar presentes e de mandar cartões. O que é que vamos fazer?
Ela riu.
– Eu sabia que você andava ocupado demais. Mandei presentes para as crianças. Li anúncios nos jornais e fiz os pedidos por telefone. Liza e John vão receber um belo balde de gelo, de cristal, da Tiffany's e mandei para Eddie uma suéter comprada na Saks. O que é que você acha?
– Você é uma maravilha – reconheceu o marido.
– É isso o que você continua a dizer, mas acredita, de verdade, nisso? Dê uma gratificação a Mary, como sempre, e talvez possa lhe dar também alguma coisa pessoal, uma lembrancinha, como um xale, um lenço, ou coisa parecida. E ponha o cheque dentro do presente.
– Muito bem. E os cartões?
– Bem, temos os que sobraram do ano passado – mais ou menos uns vinte, acho eu – que estão na gaveta dos fundos da escrivaninha da sala de estar. Se comprar mais umas três caixas, acho que serão suficientes. Vem hoje aqui?
– Vou. Sem falta. Ao meio-dia.
– Bem, traga os cartões e a lista. Sabe onde está a lista, não?
– Gaveta dos fundos, escrivaninha na sala de estar.
– Que detetive! – disse ela com um risinho. – Exato, é ali que está. Traga a lista e os cartões ao meio-dia. Sinto-me muito bem hoje. Começarei a escrever os cartões. Não tentarei preparar todos hoje, mas devo terminá-los dentro de dois ou três dias, e eles chegarão a tempo.
– Selos?
– Sim, precisarei de selos. Compre um rolo de cem. É mais fácil trabalhar com um rolo. Eu me atrapalho toda com as folhas. Oh, Edward, sinto muito... esqueci de perguntar. Encontrou alguma coisa nas velhas pastas?
– Eu lhe contarei tudo quando chegar aí ao meio-dia.
– As perspectivas são... boas?
– Bem... talvez.
Ela ficou silenciosa durante um instante e, em seguida, suspirou.
– Espero que sim – disse. – Oh, como espero!
– Eu também. Escute, querida. .. o que é que você quer como presente de Natal?
– Tenho escolha? – riu ela. – Sei o que vou ganhar... perfume de qualquer farmácia que você encontrar aberta na véspera do Natal.
Ele riu também. Ela tinha razão.
Desligou e lançou um olhar ao relógio. Passava um pouco das nove, um pouco mais tarde do que lhe agradava. Folheou apressadamente a pilha de cartões comerciais e encontrou o que procurava: Arthur K. Ames. Seguro de Automóveis.
O prédio de apartamentos onde Blank morava ocupava um quarteirão inteiro. Delaney conhecia o edifício e, do outro lado da rua, erguendo os olhos, pensou mais uma vez como a estrutura parecia institucional. Toda de aço e vidro. Um hospital ou um centro de pesquisas, não um lugar onde se morar. Mas gente morava ali e podia bem imaginar quais seriam os aluguéis.
Conforme esperara, homens e mulheres saíam ainda para o trabalho. Dois porteiros corriam sem parar pela passagem de automóveis para chamar táxis. Enquanto observava, um garagista trouxe até a entrada um Lincoln Continental, saltou, e correu de volta para a garagem subterrânea para trazer mais outro carro de morador.
Delaney subiu resoluto a passagem de automóveis, dobrou à direita e desceu um curto lance de degraus até a garagem. Um Jaguar azul-escuro passou rugindo por ele, dirigido pelo garagista. Delaney esperou paciente na entrada até que ele reapareceu, correndo.
– Bom dia – disse, exibindo o cartão comercial. – Meu nome é Ames, da Cross-Country Insurance.
O garagista lançou um olhar ao cartão.
– Escolheu uma péssima hora para vender apólices de seguro, homem.
– Não, não – respondeu rapidamente Delaney, sorrindo. – Não estou vendendo coisa alguma. Um dos carros que seguramos esteve envolvido em um acidente com um Chevy Corvette, modelo 1971. O Corvette fugiu. O carro que seguramos ficou amassado. O motorista está no hospital. Aconteceu isso na Third Avenue. Pensamos que o Corvette talvez seja daqui da vizinhança, de modo que estou correndo todas as garagens da zona. Simples rotina.
– Um Corvette modelo 1971?
– Exato.
– Que cor?
– Provavelmente azul-escuro ou preto.
– Quando foi que isso aconteceu?
– Há uns dois dias.
– Temos um Corvette. Sr. Blank. Mas não pode ser o dele. Não sai de carro há semanas.
– A Polícia encontrou no local pedaços de vidro e peças de fibra de vidro do pára-choque dianteiro esquerdo.
– Estou-lhe dizendo que não pode ser o Corvette do Sr. Blank. O carro não tem o menor arranhão.
– Importa-se se eu der uma olhada?
– À vontade – respondeu o garagista, encolhendo os ombros. – Está lá atrás, no canto mais distante, atrás do Caddy branco.
– Obrigado.
O garagista recebeu um telefonema, saltou numa perua Ford e começou a dar marcha à ré para o centro da garagem a fim de fazer a volta. Estava ocupado e fora justamente por isso que Delaney escolhera aquela ocasião. Dirigiu-se em passos lentos até o Corvette. O número da chapa era o de Blank.
A porta estava destrancada. Abriu-a e olhou para dentro, fungando. Um cheiro bolorento de janelas fechadas. Encontrou um raspador de gelo para o pára-brisas, uma lata de desembaciador, e um par de velhas luvas de motorista. Entre os dois assentos descobriu um desses mapas fornecidos pelas bombas de gasolina e que fora usado, dobrado e redobrado várias vezes. Delaney abriu-o o suficiente para dar um espiada. Estado de Nova York. Com uma rota marcada a traços grossos de lápis preto: da East 83rd Street para o outro lado da cidade, subindo até a West Side Highway, passando pela ponte George Washington e daí para Nova Jersey, reentrando em Nova York através de Mahwah e seguindo para as Montanhas Catskill, com ponto final numa cidade chamada Chilton. Dobrou o mapa e colocou-o no local onde o encontrara.
Fechou silenciosamente a porta do carro e Começou a afastar-se. Encontrou o garagista, de volta.
– É claro que não foi aquele carro.
– Eu lhe disse isso, homem.
Delaney perguntou-se se o garagista contaria o incidente a Blank. Achou provável e tentou imaginar qual seria a reação dele. Não o amedrontaria, mas se ele fosse culpado, o fato poderia levá-lo a pensar no caso. Havia aí uma idéia, reconheceu Delaney, mas não era ocasião para usá-la... ainda.
De volta ao estúdio, procurou Chilton no atlas. Dizia apenas: "Chilton, N. Y. Pop.: 3,146". Fez uma anotação sobre Chilton e acrescentou-a à pasta de Daniel Blank. Olhou para o relógio. Não eram dez ainda, mas quase. Telefonou para Handry na redação.
– Capitão? Sinto muito. Nada.
– Bem... era uma possibilidade remota. Muito obrigado pelo...
– Ei, espere um minuto. O senhor desiste depressa demais. Temos outros arquivos pessoais. A seção de esportes, por exemplo, tem um arquivo de personalidades vivas e o mesmo acontece com as seções de teatro e artes plásticas. O seu rapaz poderia estar numa delas?
– Talvez na de esportes, mas duvido.
– Bem, pode contar-me alguma coisa a respeito dele?
– Não muito. Mora em um apartamento de luxo e guia um carro caro. Em vista disso, deve ser cheio da nota.
– Muitíssimo obrigado – suspirou Handry. – Verei o que posso fazer. Se descobrir alguma coisa, telefonarei. Se não receber notícias minhas, foi porque não consegui nada. Certo?,
– Certo – disse Delaney, achando que aquilo era simplesmente uma maneira polida de despedi-lo.
Chegou ao hospital por ocasião do almoço de Bárbara e observou, radiante, que ela comeu quase tudo, servindo-se pessoalmente. Estava melhorando realmente, pensou feliz. Mostrou-lhe os cartões de Natal, que comprara em três diferentes faixas de preço: os mais caros para os amigos e conhecidos "importantes" e os mais baratos para... bem, gente. Além dos vinte cartões restantes do ano passado, a lista, e os selos.
Falou a respeito de Daniel Blank, andando espigado pelo quarto, com grandes gestos. Resumiu a história da vida dele, o que conseguira descobrir e do que desconfiava.
– O que é que você acha? – perguntou por fim, ansioso para ouvir-lhe a opinião, conhecendo sua aguda inteligência.
– Sim – respondeu Bárbara pensativa. – Talvez. Mas você não tem realmente coisa alguma, Edward. E sabe disso.
– Naturalmente.
– Nada definido. Mas não há dúvida de que a possibilidade merece ser explorada um pouco mais. Eu me sentiria muito melhor se você pudesse ligá-lo à compra de um machado de gelo.
– Eu também. Mas, no momento, ele é tudo o que temos.
– O que é que pretende fazer a partir daqui?
– Fazer? Verificar tudo. Charles Lipsky. The Parrot, onde ele teve a briga. Tentar descobrir quem é ele, o que é. Escute, querida, não poderei vir hoje à noite. Tenho muitas coisas a fazer. Está certo?
– Naturalmente – respondeu ela. – Continua fazendo dieta?
– Claro – redargüiu ele, dando uma palmadinha no estômago. – Engordei apenas um quilo e meio esta semana.
Riram e ele beijou-a nos lábios antes de sair. Beijaram-se novamente. Beijos macios, demorados.
Desceu o corredor, tirou a caderneta de notas do bolso, procurou um número, e discou para Calvin Case da cabina telefônica do saguão do hospital.
– Como é que está indo?
– Muito bem – disse Case. – Estou trabalhando no equipamento geral de montanhismo, retirando as notas de vendas dos moradores da jurisdição da dois-cinco-um.
Delaney achou graça no "jurisdição da dois-cinco-um" O amador estava adotando o jargão oficial.
– Meu trabalho está sendo de alguma utilidade? – quis saber Case.
– Está – garantiu-lhe Delaney. – Tenho uma pista. O nome é Daniel Blank. Conhece-o?
– Qual?
– Blank. B-1-a-n-k. Daniel G. Ouviu por acaso falar nele?
– É montanhista?
– Não sei. Poderia ser.
– Ei, capitão, há duzentos mil montanhistas neste país e o número cresce a cada ano. Não, não conheço nenhum Daniel G. Blank. O que é que significa o G?
– Gideon. Muito bem, deixe-me tentar esta possibilidade. Já ouviu falar em Chilton? É uma cidade no Estado de Nova York.
– Conheço-a. No alto das Catskills. Um pequenino lugar sonolento.
– Um montanhista iria até lá?
– Certamente. Não a Chilton em si, mas a uns três quilômetros da cidade existe um parque especial. Pequeno, mas bom. Bancos, mesas, churrasqueiras. .. bobagens assim.
– E a respeito de escaladas?
– O parque é mais para excursionistas. Há alguns belos afloramentos rochosos. É uma boa escalada, um monólito. A Agulha do Diabo. É uma escalada, em chaminé. Para dizer a verdade, deixei dois grampos de segurança lá para ajudar quem viesse depois de mim e quisesse chegar ao cume. Costumava ir lá fazer treinamento.
– A escalada é fácil?
– Fácil? Bem... não é para principiantes. Diria que é uma escalada intermediária. Se a pessoa sabe o que faz, é fácil. Isso ajuda?
– Nesta altura, tudo ajuda.
De volta a casa, acrescentou à pasta de Daniel Blank a informação dada por Calvin Case sobre Chilton e a Agulha do Diabo. Conferiu o endereço do The Parrot no relatório de Blankenship. Folheou a pilha de cartões comerciais e encontrou um que dizia: "Ward M. Miller. Investigações Particulares. Discrição. Confiança. Satisfação Garantida". Começou a inventar uma história de camuflagem.
Pensava ainda na trama uma hora depois, tão profundamente absorvido no logro que imaginava, que o telefone deve ter tocado várias vezes sem que o notasse. Mary, que atendera na extensão do corredor, entrou para dizer-lhe que o Sr. Handry queria falar-lhe.
– Consegui – disse Handry.
– O quê?
– Descobri-o. O seu Daniel G. Blank.
– Jesus Cristo! – exclamou excitado Delaney. – Onde?
Handry riu.
– A seção de finanças tem um arquivo de personalidades, principalmente de executivos. Recebem toneladas de notas e boletins de relações públicas todos os anos. Você sabe o tipo, Joe Blow acaba de ser promovido de vice-presidente para vice-presidente executivo, ou Harry Hardass foi admitido como gerente de vendas da Wee Tots Bootery, e coisas desse calibre. Geralmente, são notas de uma página, com uma pequena foto. Sabe o que a seção de negócios chama a esse material?
– O quê?
– O "Arquivo dos Indesejáveis". E se der uma olhada nas fotos, saberá o motivo. Nem acreditaria! Publicam mais ou menos uma de cada dez notas que recebem, dependendo da importância da companhia. De qualquer modo, foi aí que encontrei seu pássaro, Foi promovido há uns dois anos, há uma foto dele e alguns parágrafos de bobagens.
– Onde é que trabalha?
– Ohhhh, não – disse Handry. – O senhor não tem a mínima possibilidade de descobrir. Mandarei tirar uma xerox da nota e uma cópia da foto. Levá-los-ei a sua casa hoje à noite se me disser por que está tão interessado no Sr. Blank. Ligação com o caso Lombard, não?
Delaney hesitou.
– Sim – respondeu finalmente.
– Blank é suspeito?
– Talvez.
– Se levar a nota e a foto hoje à noite, conta-me o que há?
– Não há muita coisa a dizer.
– Deixe que eu julgue isso por mim mesmo. Feito?
– Feito. Mais ou menos às oito ou nove.
Delaney desligou, exultante. Informações e uma foto! Conhecia, por experiência, a seqüência habitual de um caso difícil. O começo era longo, lento, confuso. O meio começava a tomar impulso, reunindo-se as peças, ajustando-se os fragmentos. O final era geralmente curto, rápido, com freqüência violento. Achou que, no momento, estava no meio, que o ritmo se acelerava, e que as partes se encaixavam com um estalido. Era tudo sorte. Uma sorte danada,
The Parrot nem era pior nem melhor do que qualquer antigo bar que servia comida (sanduíches de rosbife, costeleta, picadinho, espaguete, batatas fritas, ervilhas e cenouras, torta de maçã, pudim de tapioca e bolo de chocolate), Com a expansão de prédios de apartamentos de altos aluguéis, diminuía de ano para ano o número desses estabelecimentos. Conforme esperara, o bar estava quase vazio. Dois homens de capacetes de segurança amarelos bebiam cerveja no bar, jogando basquete de bolso. Um casal numa mesa dos fundos, de mãos dadas, matava o tempo com uma garrafa de vinho ordinário. Um único garçom no salão a essa hora. Outro, no bar,
Delaney sentou-se ao bar, perto da porta, com as costas para a vitrina. Pediu um uísque com água. Ao ser servido, colocou uma nota de dez dólares sobre o balcão.
– Tem um minuto? – perguntou.
O homem fitou-o.
– Para quê?
– Preciso de algumas informações.
– Quem é o senhor?
Delaney empurrou o cartão "Ward M. Miller – Investigações Particulares" pelo balcão. O garçom apanhou-o e leu-o, movendo os lábios. Devolveu-o.
– Não sei de nada – disse.
– Claro que sabe – sorriu cordialmente o capitão. Colocou o cartão em cima da nota de dez dólares. – Trata-se de fato de conhecimento público. No ano passado houve uma briga aqui. Um cara deu uns violentos pontapés num pederasta. Você estava de serviço naquela noite?
– Estou de serviço todas as noites. Eu sou o dono. Pelo menos, sócio.
– Lembra-se da briga?
– Lembro-me. Como foi que o senhor soube disso?
– Tenho um amigo no Departamento. Ele me contou.
– O que é que isso tem a ver comigo0
– Nada. Não sei o seu nome e não quero saber. Estou interessado no cara que quebrou o queixo do outro.
– Aquele filho da mãe! – explodiu o garçom. –Aquele cara devia ser trancado num asilo e jogada a chave fora. Um maníaco.
– Ele chutou o pederasta quando caído?
– Exatamente. Era louco. Foram necessárias três pessoas para afastá-lo da vítima. Ele a teria matado. Eu quase que lhe dava uma porretada na cabeça. Tenho um cano serrado aqui, atrás do bar. Estava completamente possesso. Por que está interessado nele?
– Simplesmente investigando. O nome dele é Daniel Blank. Tem mais ou menos trinta e seis, trinta e sete anos; por aí. É divorciado. Agora anda paquerando uma pequena. Ela tem dezenove anos, está na faculdade. Esse Blank quer casar-se com ela, e ela topa. O velho dela é cheio da nota. Ele acha que Blank cheira mal. O velho quer que eu descubra o que houver sobre ele, que descubra tudo o que houver.
– Seria melhor que o velho desse um pontapé no rabo da pequena ou a tirasse do país antes de casar com esse Blank. Aquele cara é um mau-caráter.
– Estou começando a achar que é – concordou Delaney.
– Pois pode apostar que é – afirmou o garçom. Estava interessado naquele momento. Curvou-se sobre o balcão e cruzou os braços. – Ele é todo atravessado. Ouça, eu tenho uma filha. Se esse Blank se aproximasse dela, eu lhe quebraria os braços e as pernas. Como sabe, ele teve um caso antes com a justiça.
Delaney recolheu o cartão comercial e empurrou a nota de dez dólares para junto do cotovelo do interlocutor.
– O que foi que aconteceu? – perguntou.
– Teve uma encrenca com um cara que mora no edifício dele. Foi algo a respeito do cachorro desse cara. De qualquer modo, o cara saiu de braço quebrado e o tal Blank foi preso por agressão. Mas conseguiram, de alguma forma, resolver o caso antes de ir parar na justiça.
– Está falando sério? – perguntou o capitão. – É a primeira vez que ouço essa história. Quando foi que isso aconteceu?
– Mais ou menos seis meses antes da briga aqui. Aquele cara é um criador de casos.
– Parece mesmo. Como foi que descobriu isso, quero dizer, o caso da agressão?
– Foi meu cunhado quem me contou. O nome dele é Lipsky. É porteiro do prédio de apartamentos onde mora esse Blank.
– Isso é interessante. Acha que seu cunhado conversaria comigo?
O garçom olhou para a nota de dez dólares junto de seu cotovelo. Os dois operários de construção civil, na extremidade do bar, pediram mais cerveja. Ele afastou-se para atendê-los. Voltou.
– Claro – disse. – Por que não? Ele acha que esse Blank cheira mal, mesmo no gelo.
– Como é que posso falar com ele?
– Pode telefonar da cabina ali na entrada. Sabe onde mora o tal Blank?
– Sei sim. É uma boa idéia. Vou telefonar para Lipsky de lá. Talvez esse Blank tenha outra mulher, ou alguma coisa, e está brincando com a filha do meu cliente para se divertir ou talvez tenha farejado dinheiro.
– Pode ser. Outra bebida?
– Não. Escute, viu esse Blank depois da briga?
– Claro. O calhorda esteve aqui há algumas noites. Pensou que não o havia reconhecido, mas eu nunca esqueço um rosto.
– Ele se comportou bem?
– Oh, claro. Estava calmo. Não dirigi a mínima palavra a ele. Simplesmente servi-lhe uma bebida e deixei-o em paz. Ele levava alguns presentes de Natal e acho que andou por aí fazendo compras.
Presentes de Natal! Isso poderia ter acontecido na noite em que Albert Feinberg fora assassinado. Delaney, porém, não ousou aprofundar o assunto.
– Muito obrigado – disse, deslizando do tamborete. Dirigiu-se à porta, parou e voltou. A nota de dez dólares havia desaparecido.
– Oh – disse, estalando os dedos – mais duas coisas. Poderia telefonar para seu cunhado dizendo que vou visitá-lo? Quero dizer, seria melhor do que se eu simplesmente o procurasse sem uma apresentação. Pode dizer-lhe qual é o assunto e que haverá uns dólares para ele.
– Certo – assentiu o garçom. – Posso fazer isso. De qualquer modo, falo com ele quase todos os dias. Quando está trabalhando de dia, ele geralmente passa por aqui para tomar uma cerveja quando larga o serviço. Mas está no turno da noite esta semana. O senhor não conseguirá falar com ele antes de oito da noite. Mas telefonarei para a casa dele.
– Muito obrigado. Fico-lhe muito grato. A outra coisa é a seguinte: se Blank vier tomar um drinque, diga-lhe que estive aqui fazendo perguntas a respeito dele. Não precisa dizer meu nome; diga apenas que um detetive particular esteve fazendo perguntas. Pode descrever-me. – Sorriu largamente para o garçom. – Isso poderia fazê-lo ficar amarelo de medo. Compreendeu o que quero dizer?
– Compreendi – sorriu amplamente em resposta o interlocutor. – Compreendi perfeitamente o que o senhor quer dizer.
Voltou a casa e encontrou um pacote de relatórios da Operação Lombard, recebido por Mary. Deixou-os na mesa do saguão, dirigiu-se à cozinha, usando ainda o rígido chapéu de feltro e o pesado e desengonçado sobretudo. Estava tão faminto que se sentia mal. Lembrou-se de que não havia comido coisa alguma desde de manhã. Mary deixara no fogão uma panela de ensopado de vitela. De chapéu e sobretudo, tirou com garfo pedaços de vitela, uma batata, cebolas e cenouras. Apanhou no refrigerador uma lata de cerveja e nela mesma bebeu longamente, sem preocupar-se em procurar um copo. Bebeu todo o conteúdo da lata, arrotando uma ou duas vezes. Pouco depois, começou a sentir-se um pouco melhor; os joelhos deixaram de tremer.
Tirou o chapéu e o sobretudo, abriu outra lata de cerveja e levou-a juntamente com os relatórios da Operação Lombard para o estúdio. Colocou os óculos e sentou-se à mesa. Começou a escrever um relato da entrevista com o garçom do bar.
Arquivou o relato, abriu o pacote de relatórios da Operação Lombard, que tratava da quarta vítima, Albert Feinberg. Encontrou vagas declarações preliminares dos primeiros guardas que haviam chegado à cena do crime, relatórios mais longos dos detetives, laudo preliminar do legista (mais uma vez, o Dr. Sanford Ferguson) e uma relação dos objetos da vítima, a primeira entrevista com a viúva, fotografias do cadáver e do local do crime etc. etc.
Conforme dissera o Tenente Dorfman, havia "extras" em relação aos três homicídios anteriores. O Capitão Delaney anotou-os com todo o cuidado:
1. Sinais de luta. A lapela do paletó da vítima estava rasgada, torta a gravata e puxada a camisa para fora das calças. Marcas de arranhões de saltos (borracha) e de solas (couro) na calçada.
2. Três presentes de Natal nas proximidades. Um deles, contendo um negligée de renda preta, trazia as impressões digitais da vítima. Os dois outros estavam vazios – presentes falsos – e não continham impressão digital alguma, nem no papel de embrulho nem no interior das caixas.
3. Gotas de sangue na calçada a alguns centímetros do local onde repousara o crânio esmigalhado da vítima. Raspagem cuidadosa e análise mostravam que as várias gotas de sangue não pertenciam ao tipo de sangue da vítima e eram presumivelmente do assassino. (Delaney decidiu telefonar a Ferguson para saber exatamente que tipos sangüíneos estavam envolvidos.)
4. A carteira da vítima e o porta-cartão de crédito pareciam intactos nos bolsos. A esposa declarara que, pelo que lhe parecia, nenhuma identificação havia desaparecido. Contudo, atrás da lapela esquerda do sobretudo da vítima, e projetando-se pela botoeira, os investigadores haviam encontrado um curto talo verde. O pessoal técnico identificara o talo como do gênero Rosa, família Rosaceae, ordem Rosales. Continuavam as investigações a fim de determinar, se possível, exatamente que tipo de rosa a vítima levava na lapela do sobretudo.
Relia os relatórios quando ouviu a campainha da porta. Antes de responder, enfiou o material da Operação Lombard e suas próprias notas na gaveta superior da escrivaninha, fechando-a bem. Dirigiu-se à porta, escoltou Thomas Handry até o estúdio, e tomou-lhe o sobretudo e o chapéu. Serviu-lhe um uísque com gelo, esvaziou os restos quentes da cerveja, preparou para si outro uísque com água e sentou-se pesadamente por trás da escrivaninha. Handry instalou-se em uma confortável poltrona de couro e cruzou as pernas.
– Bem... – disse vivamente Delaney. – O que foi que conseguiu?
– O que foi que o senhor conseguiu, capitão. Lembra-se de nosso trato?
Delaney fitou durante um momento o elegantemente vestido jovem. Handry parecia cansado. Rugas cortavam-lhe a testa e linhas diagonais, que não notara antes, desciam dos cantos do nariz até a boca. Continuamente, roía a pele grossa em volta da unha do polegar.
– Trabalhando muito?
Handry encolheu os ombros.
– O habitual. Estou pensando em deixar o jornalismo.
– Por quê?
– Não estou ficando mais moço nem estou fazendo o que quero.
– Como vai a literatura?
– Não vai. Chego em casa tarde e tudo o que quero é tirar os sapatos, preparar uma bebida e ficar olhando para a máquina de fazer doidos.
Delaney inclinou a cabeça, concordando.
– Você não é casado, é?
– Não.
– Tem uma mulher?
– Tenho
– O que é que ela pensa de você deixar a imprensa?
– Está de pleno acordo. Ela tem bom emprego. Ganha mais do que eu. Disse que nos sustentará até que consiga publicar um livro ou arranje um emprego com que eu possa viver.
– Não gosta do trabalho jornalístico?
– Não mais.
– Por quê?
– Não sabia que havia tanto lixo no mundo. Não agüento mais. Mas não vim aqui para falar nos meus problemas.
– Problemas? – perguntou espantado o capitão. – Aí é que está a coisa. Alguns você terá de resolver. Quanto a outros, nada poderá fazer. Alguns desaparecem por si mesmos se esperamos o suficiente. Com o que é que você se preocupa há cinco anos?
– Quem é que sabe?
– Bem... aí tem você. Muito bem, eis o que consegui...
Handry estava informado sobre os amadores do capitão, as conferências das listas de mala direta e notas de venda, a organização do fichário mestre de Mônica Gilbert, e a investigação dos antecedentes criminais das pessoas nele incluídas.
Naquele instante, o capitão atualizou-o sobre Daniel Blank, contou-lhe como havia encontrado os arquivos do ano anterior no porão da delegacia, a busca no carro de Blank, e a entrevista com o garçom do bar, no The Parrot.
– ... e isso é tudo o que tenho – concluiu. – Até agora.
Handry sacudiu a cabeça.
– Muito vago.
– Eu sei.
– O senhor nem mesmo tem certeza se o cara é montanhista.
– Exato. Mas figurava na lista de mala direta da Outside Life, e aquele mapa no carro dele pode indicar o local onde faz escaladas.
– Vai procurar o Promotor levando esse material?
– Não seja tolo.
– O senhor nem sabe se ele possui um machado de gelo.
– Exato. Não sei.
– Bem, o que consegui não vai ajudá-lo muito mais.
Tirou um envelope do bolso interno do paletó, inclinou-se e empurrou-o por sobre a escrivaninha de Delaney. O envelope estava aberto. O capitão retirou uma foto lustrosa de 4x5 e uma cópia xerox, que desdobrou e alisou sobre o mata-borrão da mesa. Inclinou um pouco o abajur de leitura, para lançar um feixe mais forte de luz sobre a mesa, e ergueu a foto. Examinou-a durante longo tempo.
Era um close-up. Daniel Blank olhava diretamente para a câmara. Possuía ombros retos e largos. Um leve sorriso bailava-lhe nos lábios, mas não nos olhos.
Parecia notavelmente jovem, rosto liso, sem rugas. Orelhas pequenas, bem perto do crânio. Queixo forte. Malares salientes. Grandes olhos, muito espaçados, com uma expressão simultaneamente impassível e pensativa. Cabelo liso partido à esquerda, mas penteado para trás. Sobrancelhas grossas. Lábios cinzelados e surpreendentemente ternos, levemente curvos.
– Parece um índio – disse.
– Não – discordou Handry. – Mais eslavo. Quase mongol. Parece-lhe um assassino?
– Todo mundo me parece assassino – respondeu Delaney, sem sorrir. Voltou a atenção para a cópia da nota à imprensa.
Era datada de quase dois anos antes. Curta, de apenas dois parágrafos, dizia que Daniel G. Blank fora nomeado Diretor de Circulação de todas as publicações da Javis-Bircham e que assumiria imediatamente o novo cargo. Planejava modernizar o Departamento de Circulação da Javis-Bircham e seria o encarregado da instalação de AMROK II, um novo computador que ocuparia quase todo um andar do Edifício Javis-Bircham.
Delaney releu a nota e afastou-a para o lado. Tirou os pesados óculos, e colocou-os em cima da nota. Reclinou-se na cadeira giratória, cruzou as mãos por trás da cabeça e olhou para o teto.
– Eu lhe disse que não seria grande ajuda – lembrou Handry.
– Oh... não sei – murmurou sonhador Delaney. – Há certas coisas... Sirva-se de outra bebida.
– Obrigado. Quer mais uísque?
– Vá lá. Um pouco.
Esperou até que Handry se acomodasse mais uma vez na poltrona de couro. Empertigou-se, colocou os óculos no nariz e releu a nota. Descendo-os um pouco, olhou para Handry por sobre a borda da armação.
– Quanto acha que ganha o Diretor de Circulação da Javis-Bircham?
– Bem, no mínimo, trinta mil. E se chegar a cinqüenta mil não ficarei surpreso.
– Tanto assim?
– A Javis-Bircham é uma grande companhia. Verifiquei. Inclui-se entre as quinhentas maiores sociedades anônimas do país.
– Cinqüenta mil? Muito bom para um homem moço.
– Qual é a idade dele? – perguntou Handry.
– Não sei, exatamente. Mais ou menos em torno de trinta e cinco anos, acho.
– Jesus! O que será que faz com tanto dinheiro?
– Paga um alto aluguel. Tem um automóvel caro. Paga pensão à ex-esposa. Viaja, acho. Investe. Talvez tenha casa de campo. Não sei. Há muita coisa que ignoro a respeito dele.
Ergueu-se e pôs mais gelo na bebida. Começou a andar de um lado para outro na sala, com o copo na mão.
– O computador – disse. – Qual era o nome dele... AMROK II?
Handry permaneceu calado.
– Quer ouvir uma coisa engraçada? – perguntou Delaney.
– Claro. Estou mesmo necessitado de uma boa risada.
– Não se trata de coisa simplesmente engraçada. É um engraçado estranho. Fui detetive durante quase vinte anos, antes de ser transferido para a Divisão de Patrulha. Nesses vinte anos tive minha cota de casos envolvendo aberrações sexuais como motivos primários ou secundários de crimes. E sabe de uma coisa, muitos desses casos – muito mais do que as estatísticas médias poderiam explicar – envolveram especialistas em eletrônica, eletricistas, mecânicos, programadores de computador, e contadores. Homens que trabalhavam com coisas, máquinas, números. Esses indivíduos eram estupradores, abelhudos sexuais, molestadores de crianças, sádicos, ou exibicionistas. Isto é minha própria experiência, compreenda. Nunca li qualquer estudo que decomponha os delinqüentes sexuais de acordo com a sua ocupação. Acho que vou sugerir uma análise desse tipo ao Inspetor Johnson. Talvez seja valiosa.
– Como é que o senhor explica isso?
– Não posso explicar. Talvez minha própria experiência com delinqüentes sexuais seja pequena demais para ter significação. Mas parece-me que os indivíduos cujos trabalhos são... mecanizados ou automatizados, cujas relações diárias com pessoas são limitadas, inclinam-se mais para as aberrações sexuais do que aqueles que mantêm freqüentes e variados contatos humanos durante as horas de trabalho. Não sei se o delito sexual é devido à natureza do trabalho ou se o indivíduo inconscientemente procurou tal tipo de trabalho porque já é um delinqüente sexual em potencial e teme contato humano. Que tal ir ao escritório de Daniel Blank conversar com ele?
Handry ficou atônito. A bebida escorreu-lhe um pouco sobre a borda do copo.
– O quê? – perguntou incrédulo. – O que foi que o senhor disse?
Delaney começou a repetir a pergunta,mas, nesse momento, o telefone retiniu estridente.
– Delaney falando.
– Edward? Thorsen. Podemos conversar neste momento?
– Não muito bem.
– Pode escutar durante um momento?
– Sim.
– Boas notícias. Achamos que Broughton está a caminho da rua. O quarto assassinato resolveu o caso. O prefeito, o comissário e seus principais auxiliares vão reunir-se hoje à noite para discutir o assunto.
– Compreendo.
– Se souber de mais alguma coisa telefonarei.
– Muito obrigado.
– Como é que está indo você?
– Mais ou menos.
– Conseguiu um nome?
– Consegui.
– Ótimo. Espere mais um pouco. As coisas estão começando a acontecer.
– Muito bem. Obrigado por ter telefonado.
Desligou e voltou-se para Handry:
– Perguntei se gostaria de ir ao escritório de Blank conversar com ele.
– Oh, sem dúvida – anuiu Handry. – Entro lá e digo: "Sr. Blank, o Capitão Edward X. Delaney, da Polícia de Nova Yc/rk, pensa que o senhor abateu, a golpes de machado, quatro pessoas no East Side. Não tem nada a dizer a esse respeito?"
– Não, nada disso – interveio sério Delaney. – A Javis-Bircham tem um departamento de publicidade ou relações públicas, não?
– Forçosamente.
– Eu mesmo faria isso, mas você tem carteira de jornalista e a necessária identificação. A sua cobertura seria a seguinte: telefona ao encarregado de relações públicas da Javis-Bircham e identifica-se. Marca um encontro. O cara mais importante. Quando for visitá-lo, mostre-lhe a carteira. Diga que seu jornal está planejando uma série de perfis de personalidades jovens, de executivos futurosos sobre a....
– Ei, espere um minuto!
– A nova raça de jovens executivos que conhecem computadores, marketing, percentagens demográficas e tudo o mais. Peça ao cara das relações públicas que sugira quatro ou cinco executivos jovens e progressistas da Javis-Bircham que podem enquadrar-se no tipo que seu jornal procura.
– Agora, ouça aqui.
– Não – repito – não toque no nome de Blank. Simplesmente frise que procura um jovem executivo conhecedor do uso corrente e futuro dos computadores nas operações empresariais. Blank será, na certa, um dos quatro ou cinco nomes que ele sugerirá. Faça algumas perguntas a respeito de cada nome que ele sugerir. Escolha, então, Blank. Vê como é fácil?
– Fácil? – Handry sacudiu a cabeça. – É loucura! E se o relações-públicas da Javis-Bircham conferir a história com o editor do jornal e descobrir que não está sendo planejada série alguma de artigos desse tipo?
– As possibilidades são de que não fará isso. Ficará satisfeito em obter publicidade para a Javis-Bircham, não?
– Mas, e se conferir? Nesse caso vou meter-me numa enrascada.
– E daí? De qualquer modo, você está pensando em deixar o jornalismo, não? Dessa maneira, um de seus problemas pode ser logo resolvido.
Handry fitou-o, sacudindo a cabeça.
– O senhor sabe que é, realmente, um tipo especial de calhorda? – disse assombrado.
– Ou – continuou Delaney imperturbável – se preferir, pode contar ao editor de seu jornal uma desculpa. Diga-lhe que se trata de um caso policial – o que é – e se ele fizer perguntas, explique que envolve um grande desfalque, fraude, ou coisa parecida. Não mencione o caso Lombard. Ele provavelmente lhe dará cobertura se o relações-públicas da Javis-Bircham ligar para ele, e dirá, sim, o jornal está planejando ama série de artigos sobre executivos jovens e progressistas. Ele faria isso por você, não?
– Talvez.
– Então fará o que lhe peço?
– Apenas uma pergunta: por que diabo deveria eu fazê-lo?
– Há duas respostas a essa pergunta. Em primeiro lugar, se apurarmos que Blank é o assassino, você será o único repórter no mundo que teve uma entrevista pessoal com ele. Isso vale alguma coisa, não? Em segundo, você quer ser poeta, não? Ou algum tipo de escritor, e não apenas repórter. Como pode esperar ser um bom escritor se não compreende gente, se não sabe o que as faz agir como agem? Precisa aprender a entrar no íntimo das pessoas, a penetrar-lhes nas mentes, nos corações, nas almas. Que oportunidade esta: conhecer e conversar com um homem que pode ter abatido, como animais, quatro seres humanos!
Handry esvaziou a bebida de um gole. Ergueu-se, serviu-se de outra, e ficou de costas para Delaney.
– O senhor sabe realmente como achar a jugular, não?
– Sei.
– Nunca teve vergonha da maneira como manipula pessoas?
– Eu não as manipulo. Às vezes, dou-lhes oportunidade de fazer o que querem e que nunca tiveram oportunidade de fazer. Fará isso, Handry?
Caiu um silêncio. O repórter tomou uma profunda respiração. Voltou-se para Delaney.
– Muito bem – disse.
– Ótimo – assentiu o capitão. – Marque encontro com Blank da maneira que sugeri. Use a cabeça. Sei que você é inteligente. Um dia antes da data da entrevista, telefone-me. Nós nos encontraremos e lhe direi que perguntas fazer a ele. Em seguida, faremos um ensaio.
– Ensaio?
– Exatamente. Farei o papel de Blank para lhe dar uma idéia de como poderá reagir às suas perguntas e como você pode explorar coisas que ele pode ou não dizer
– Eu entrevistei pessoas antes – protestou Handry. – Centenas de vezes.
– Mas não tão importantes como esta. Handry, você é um mentiroso amador. Vou fazer de você um profissional.
O repórter inclinou sombrio a cabeça.
– Se alguém pode fazer isso, é o senhor. Não perde um único truque, não?
– Faço força para não perder.
– Espero que se eu cometer um crime o senhor não venha atrás de mim.
Parecia amargurado.
Depois que Handry saiu, Delaney ficou observando mais uma vez a foto de Daniel Blank. O homem era bonitão, quanto a isso não havia dúvida: moreno e magro. A face parecia afiada: sob a camada de carne fina, destacavam-se os ossos da testa, do rosto e queixo. O capitão, todavia, nada pôde interpretar naquela face: nem cupidez nem paixão, nem mal nem fraqueza. Era uma máscara fechada, escondendo segredos.
Obedecendo a um impulso e sem procurar analisar os motivos, tirou a pasta de Daniel G. Blank, folheou-a até encontrar o telefone do suspeito e discou. 0 telefone tocou quatro vezes, e então:
– Alô?
– Lou? – perguntou Delaney. – Lou Jackson?
– Não, acho que o senhor fez uma ligação para um numero errado – disse cordialmente a voz.
– Oh, desculpe.
Delaney desligou. A voz era agradável, com algo de musical, palavras claramente enunciadas, tom profundo, boa ressonância. Fitou novamente a foto, combinando o que os olhos viam com o que ouvira. Estava começando, apenas começando, a penetrar em Daniel Blank.
Trabalhou nas pastas e relatórios até quase onze da noite. Julgou que o momento era oportuno para falar com Charles Lipsky. Procurou no catálogo o telefone do prédio de apartamentos e ligou do gabinete.
– Portaria – disse uma voz esganiçada.
– Charles Lipsky, por favor.
– É ele mesmo. Quem fala? – Delaney percebeu a cautela na voz fina e anasalada. Perguntou a seus botões que golpe do destino o porteiro poderia esperar de uma chamada telefônica a essa hora da noite.
– Sr. Lipsky, meu nome é Miller, Ward M. Miller. O seu cunhado lhe falou a meu respeito?
– Oh, sim. Falou – Delaney percebeu uma nota de alívio, de catástrofe evitada ou pelo menos adiada.
– Estava pensando em procurá-lo, Sr. Lipsky. Apenas para uma pequena conversa.
– Bem, escute... – A voz baixou e adotou um tom conspiratório. – O senhor sabe que não devo conversar com pessoa alguma sobre os moradores. Temos instruções severas a esse respeito.
Delaney reconheceu no virtuoso lembrete o que era, realmente: um estratagema para subir o preço.
– Compreendo, Sr. Lipsky, e acredite-me: não terá que me dizer coisa alguma que não deva. Mas uma curta conversa seria de nosso interesse mútuo. Compreendeu?
– Bem... sim.
– Tenho uma verba de despesas.
– Oh, bem, neste caso, topo.
– Seu nome não será mencionado.
– Tem certeza?
– Absoluta. Quando e onde?
– Bem, quando é que quer conversar comigo?
– Quanto mais cedo, melhor. Onde quer que o senhor prefira.
– Bem, eu largo o serviço às quatro da manhã. Geralmente paro na lanchonete da esquina da Second e Eighty-fifth para tomar um café antes de ir para casa. Ela fica aberta a noite toda mas está geralmente vazia àquela hora, exceto por alguns motoristas de táxi e prostitutas.
Delaney conhecia o local mencionado por Lipsky, mas não disse.
– Esquina de Second Avenue e Eighty-fifth – repetiu. – Mais ou menos às quatro e quinze, quatro e meia da manhã.
– Sim. Mais ou menos a essa hora.
– Ótimo. Estarei usando um chapéu de feltro preto e um sobretudo do tipo jaquetão.
– Sim, muito bem.
– Então, até mais tarde.
Desligou, satisfeito. Lipsky parecia um comedor de bola, e barato, por falar nisso. Tomou nota para pedir a Thorsen que verificasse nos arquivos do Departamento se havia alguma coisa contra Charles Lipsky. Delaney estava quase disposto a apostar que havia.
Foi imediatamente para a cama, acertando o despertador para 3:30 da manhã. Por sorte, adormeceu dentro de meia-hora enquanto ensaiava na mente a maneira de tratar Lipsky e as perguntas que lhe faria.
A lanchonete possuía todo o encanto e ambiente de uma estação do metrô. As paredes e o balcão eram revestidos de quadrados de linóleo branco, embaciados de gordura. Plásticos desfigurados por queimaduras de cigarros cobriam o balcão e as mesas. As cadeiras e tamboretes eram de plástico moldado, sem forro, para reduzir as possibilidades de vandalismo. Gordura rançosa impregnava o ar como um lençol úmido e o cardápio, colado com fita durex à parede, teria feito as delícias de um gramático: "Peru e acumpanhamento: $2.25; Camarões freitados – $1.85, acumpanhada de batatas freitadas e salada cru". "Nossos ovos são regorosamente frescos".
No fundo do balcão, duas prostitutas, uma branca e uma negra, ambas de perucas cor-de-rosa, comiam bifes com ovos, conversando em voz baixa com tanta rapidez quanto comiam. Mais perto da porta três motoristas de táxi bebiam café e trocavam piadas com o garçom do bar e o cozinheiro negro, que raspava a gordura de uma larga grelha.
Delaney chegou cedo, alguns minutos antes das quatro. No momento em que entrou, toda a conversação cessou e as cabeças se viraram para examiná-lo. Aparentemente, ele não parecia um assaltante; logo que pediu café e duas roscas açucaradas, os demais fregueses voltaram à conversa e à comida.
O capitão levou o café e as roscas para uma mesa de fundos, para duas pessoas. Sentou-se de modo a poder olhar para a porta e pela janela envidraçada. Não tirou o chapéu, mas desabotoou o sobretudo. Sentou-se paciente, bebericando o café amargo no qual flutuava uma película oleosa. Comeu mais rosca e desistiu.
A pessoa que esperava entrou dez minutos depois. Baixo, quase anão, mas grosso na cintura e nos quadris, como um velho jóquei decadente. Os olhos vagueavam, parecendo flutuar na sala. Os demais clientes olharam-no de relance mas nem deixaram de comer nem de conversar. O recém-chegado pediu uma xícara de café fraco, uma fatia de torta de maçã e levou-os para a mesa de Delaney.
– Miller?
Delaney inclinou a cabeça.
– Sr. Lipsky?
– Eu.
O porteiro sentou-se em frente ao capitão. Usava ainda o sobretudo e uniforme de porteiro, mas, incongruentemente, tinha na cabeça um boné de equitação de uma horrenda fazenda quadriculada. Olhou rapidamente para Delaney e seus olhos amarelados correram o alimento, o chão, as paredes, o teto.
Um comedor de bola, teve Delaney certeza. E decadente. Sempre em má situação. Prontamente subornável. Uma folha corrida que talvez incluísse prisão por jogo, venda de narcóticos, receptação de artigos roubados, calotes, talvez uma tentativa de arrombamento. Tipo sujo e sórdido.
– Eu não tenho muito tempo – disse ele em voz baixa e esganiçada. – Começo a trabalhar novamente ao meio-dia. – Enfiou uma garfada da torta numa pequenina boca, surpreendentemente afetada. – Assim, preciso ir embora para ver se durmo um pouco. E depois, de volta à portaria ao meio-dia.
– Vida dura – comentou Delaney. – O seu cunhado lhe falou sobre o assunto?
– Falou – assentiu Lipsky, tomando um gole de café quente. – Esse Blank anda atrás de uma vagina jovem e o pai dela quer acabar com isso. Certo?
– Mais ou menos. O que pode me dizer a respeito de Blank?
Lipsky juntou com os dedos o resto da torta no prato, apanhou-os e lançou-os na garganta como um homem que toma uma bebida de um trago.
– Pensei que o senhor trabalhava com uma conta de despesas.
Delaney lançou um olhar aos demais fregueses. Ninguém os olhava.
Tirou a carteira do bolso traseiro da calça, e colocou-a no lado mais distante da mesa, onde somente Lipsky podia vê-la. Abriu-a e observou os olhos famintos de Lipsky deslizarem para ela e calcularem o total. O capitão tirou uma nota de dez dólares e passou-a sob a mesa. A nota desapareceu.
– Não pode fazer melhor do que isso? – choramingou Lipsky. – Estou correndo um terrível perigo.
– Depende – retorquiu Delaney. – Há quanto tempo Blank mora no apartamento?
– Não sei exatamente. Trabalho lá há quatro anos e ele já era morador quando comecei.
– Era casado nessa ocasião?
– Era. Uma loura grandalhona. Grande material. Depois, divorciaram-se.
– Sabe onde reside a ex-esposa dele?
– Não.
– Ele tem alguma mulher agora? Alguém que o visite regularmente?
– Tem. Como é essa garota? Quero dizer, a que o pai não quer que se encontre com Blank?
– Mais ou menos dezoito anos – disse tranqüilamente Delaney. – Cabelo louro comprido. Mais ou menos um metro e sessenta e dois ou sessenta e cinco. Olhos azuis. Alva e rosada. Seios grandes.
– Hummm, hummm – respondeu o porteiro, lambendo os beiços. – Não vi ninguém assim por lá.
– Mais alguém? Alguma mulher?
– Isso mesmo. Uma dona rica. Casaco de zibelina até os pés. Uns trinta ou trinta e cinco anos. Magra. Cabelo preto. Rosto branco. Nada de maquilagem. Esquisita.
– Sabe o nome dela?
– Não. Chega e sai de táxi.
– Dorme lá?
– Às vezes. O que o senhor acha?
– Isso é interessante.
– Sim? Como é que é interessante?
– Você está chegando lá – disse friamente Delaney. – Não seja ganancioso. Alguém mais?
– Outras mulheres, não. Um rapazola.
– Um rapazola?
– Isso mesmo. Mais ou menos onze, doze anos. Por aí. Bastante bonito para passar por menina. Ouvi Blank chamá-lo de Tony.
– O que acontece por lá?
– O que, diabo, o senhor pensa que acontece?
– Esse Tony dorme lá?
– Não sei. Um dos outros porteiros disse que sim. Uma ou duas vezes.
– Esse Blank tem amigos íntimos? No edifício, quero dizer?
– Os Mortons.
– Uma família?
– Casados. Sem filhos. O senhor quer saber um bocado de coisas por essa ninharia, não?
Suspirando, Delaney estendeu novamente a mão para a carteira. Ergueu a vista e viu um carro de patrulha parar do lado de fora da lanchonete. Interrompeu-se. Um guarda uniformizado desceu do carro e entrou. Os motoristas de táxi haviam saído. As duas prostitutas, porém, haviam terminado a refeição e palitavam os dentes. O guarda lançou-lhes um olhar e, em seguida, seus olhos passaram à mesa de Delaney.
Reconheceu o capitão. Delaney também o reconheceu. Handrette. Um bom homem. Talvez um pouco rápido demais com o cassetete, mas um guarda bom e corajoso. E bastante sabido para não cumprimentar um detetive ou superior à paisana em público, a menos que fosse interpelado em primeiro lugar. Desviou o olhar de Delaney. Pediu dois hamburgers com molho, dois cafés, e duas fatias de bolo. Delaney deu mais dez dólares a Charles Lipsky.
– Quem são os Mortons? – perguntou. – Amigos de Blank?
– Cheios da nota. Apartamento de cobertura. Têm uma loja na Madison Avenue que vende troços sexuais.
– Troços sexuais?
– Isso mesmo – disse Lipsky, com meloso deboche. – O senhor sabe, velas com forma de membros. Coisas assim.
Delaney anuiu. Provavelmente, a Erótica. Na época em que dirigia a 251 fizera indagações sobre a possibilidade de fechar a loja. O departamento jurídico lhe dissera que esquecesse o caso; não teria a menor possibilidade numa corte de justiça.
– Blank tem alguma distração predileta? – perguntou casualmente Delaney. – É maluco por beisebol ou futebol? Alguma coisa assim?
– Montanhismo – respondeu Lipsky. – Gosta de escalar montanhas.
– Escalar montanhas? – repetiu Delaney sem mudança de expressão. – Deve ser maluco.
– Isso mesmo. Sai sempre nos fins de semana durante a primavera e o outono. Leva toda aquela tralha no carro.
– Tralha? Que tralha?
– Ora, o senhor sabe, mochila, saco de dormir, corda, coisas que se amarram no sapato para não escorregar.
– Oh, sim – disse Delaney. – Agora estou compreendendo. E um machado para tirar lascas de gelo e rocha. Leva um machado nessas excursões?
– Nunca vi. Mas o que é que tem isso que ver com o negócio?
– Nada – respondeu Delaney, encolhendo os ombros. – Estou apenas tentando descobrir que tipo ele é. Ouça, voltando à tal mulher dele. A magra de cabelo preto. Sabe o nome dela?
– Não.
– Ela o visita com freqüência?
– Às vezes vem três noites seguidas. Depois, passa uma semana sem aparecer. Não tem programa regular, se é nisso que o senhor está botando as esperanças. – Olhou astuto para Delaney. Faltavam-lhe dois dentes na frente, e dois outros estavam lascados. O capitão perguntou-se em que tipo de encrenca havia ele se metido.
– Vem e volta de táxi?
– Exatamente. Ou saem andando, juntos.
– Na próxima vez em que estiver de serviço e ela chegar ou for embora de táxi, anote o número da chapa do carro, e data e a hora. Isso é tudo de que preciso – a data, a hora e a chapa do táxi. Ganhará outros dez quando me der essa informação.
– E, então, tudo o que o senhor terá que fazer é conferir os slips de viagem, certo?
– Certo – respondeu Delaney, sorrindo palidamente. – Você é mais vivo do que eu.
– Eu poderia ter sido detetive particular – disse Lipsky. – Seria um estouro de detetive. Ouça, preciso ir embora.
– Espere, apenas um minuto – insistiu Delaney, tomando uma resolução naquele momento. Viu o guarda pagar os hamburgers, o café, o bolo e sair com um saco em direção ao colega que ficara no carro. Indolentemente, pensou se o guarda insistira em pagar só porque ele, o capitão, estava ali.
– Vocês têm chaves mestras do prédio? – perguntou lentamente. – Ou cópias das chaves de todas as portas dos apartamentos e das fechaduras que eles mandaram instalar?
– Claro que temos cópias – respondeu Lipsky, franzindo o cenho. – O que o senhor acha? Quero dizer, em caso de incêndio ou emergência a gente tem de entrar, não é?
– E onde ficam guardadas essas chaves?
– Imediatamente do lado de fora do escritório do administrador-assistente. Nós temos... – Lipsky interrompeu-se subitamente. Encrespou os lábios, mostrando os dentes lascados. – Se está pensando no que eu penso que está pensando – disse – esqueça. Nenhuma chance. De jeito nenhum.
– Ouça, Sr. Lipsky – disse Delaney, sério, curvando-se sobre a mesa. – Não estou querendo assaltar o local. Não tirarei nada de lá, nem um cigarro. Quero apenas dar uma olhada.
– Sim? Por quê?
– É a respeito dessa mulher com quem ele anda dormindo. Talvez haja uma foto dos dois juntos. Talvez uma carta dela. Talvez ela deixe no armário algumas roupas. Preciso de alguma coisa que ajude meu cliente a convencer a filha de que Blank a vem enganando o tempo todo.
– Mas se não tirar coisa alguma, como...?
– Diga-me como – replicou Delaney. – O senhor disse que poderia ter sido detetive particular. Como resolveria este caso?
Lipsky fitou-o, confuso. Arregalou os olhos.
– Uma câmara fotográfica! – arquejou. – Uma câmara miniatura. Tiraria fotos.
Delaney deu uma palmada no tampo da mesa.
– Sr. Lipsky, tem toda a razão – riu. – O senhor seria um grande detetive. Levarei uma câmara miniatura. Tirarei fotografias de cartas, fotos, roupas, a menor evidência que prove que Blank vem dormindo com essa dona de cabelos pretos, ou mesmo com esse garoto Tony. Colocarei tudo de volta, como estava antes. Acredite-me, sei como fazer isso. Ele nunca saberá que alguém esteve lá. Ele sai mais ou menos às nove e volta às seis. Ou algo parecido. Correto?
– Correto.
– Nesse caso, o apartamento fica vazio o dia todo?
– Fica.
– Arrumadeira?
– Dois dias por semana. Mas chega cedo e sai ao meio-dia.
– Neste caso. . . qual é o problema? Precisarei apenas de uma hora. Não mais, juro. Alguém daria por falta das chaves?
– Não. O quadro tem um milhão de chaves.
– Então senhor vê como é. Entro no saguão. O senhor já está com as chaves no balcão. Passa-as para mim. Subo e desço dentro de uma hora. Provavelmente, menos. Devolvo-lhe as chaves. O senhor coloca-as no lugar. Vai começar a trabalhar de dia... a partir de hoje. não é? Pois bem. marcamos a coisa para mais ou menos duas ou três da tarde. Certo?
– Quanto? – perguntou Lipsky.
– Vinte dólares – respondeu o capitão.
– Vinte? – exclamou Lipsky, horrorizado. – Não faria isso por menos de cem. Se for descoberto, estou frito.
Cinco minutos depois, concordaram em cinqüenta dólares, vinte imediatamente, trinta quando Delaney devolvesse as chaves, e mais vinte se Lipsky conseguisse o número da chapa do táxi usado pela namorada de Blank.
– Se o conseguir – perguntou Lipsky – devo telefonar para seu escritório?
– Eu passo a maior parte do tempo fora – disse indiferente Delaney. – Neste tipo de negócio temos que nos conservar em movimento. Eu telefonarei dia sim, dia não para o telefone da portaria. Se voltar a trabalhar à noite, deixe o recado com seu cunhado. Verificarei com ele quando devo telefonar. Certo?
– Acho que sim – respondeu em dúvida Lipsky. – Puxa, se não precisasse tanto de dinheiro, eu lhe diria para ir tomar naquele lugar.
– Agiotas? – perguntou o capitão.
– Sim – disse espantado Lipsky. – Como é que soube?
– Um palpite – respondeu Delaney, encolhendo os ombros. Passou vinte dólares sob a mesa para o porteiro. – Irei procurá-lo às duas e trinta da tarde. Qual é o número do apartamento?
– Vinte e um-H. Está na etiqueta presa às chaves.
– Ótimo. Não se preocupe. Não haverá problemas.
– Espero que sim.
O capitão fitou-o atentamente:
– Você não gosta muito desse cara, não é mesmo?
Lipsky começou a dizer nomes feios, repolhudos, expressivos. Delaney escutou durante algum tempo, sério e interessado, mas depois levantou a mão para cortar a torrente de invectivas.
– Mais uma coisa – disse. – Dentro de alguns dias ou uma semana, a partir de agora, você pode mencionar casualmente a Blank que estive por lá fazendo perguntas a respeito dele. Pode descrever-me, mas não lhe diga meu nome. Esqueceu-o. Diga apenas que andei fazendo perguntas pessoais, mas que o senhor não me disse coisa alguma. Entendeu?
– Bem. . . certo – respondeu Lipsky. – Mas para que tudo isso?
– Não sei – replicou o Capitão Delaney. – Não tenho certeza. Apenas para botar uma pulga atrás da orelha dele, acho. Fará isso?
– Sim, certo. Por que não?
Deixaram juntos a lanchonete. Andavam já pelas ruas trabalhadores madrugadores. Ar frio e picante. O céu começava a clarear e prometia dia claro. O Capitão Delaney voltou a pé, sem pressa, para casa, enfrentando o vento de dezembro. Ao abrir a porta da frente, quase não sentia mais o cheiro da gordura rançosa.
A projetada invasão do apartamento fora uma inspiração repentina. Não havia planejado aquilo, nem mesmo pensado. Lipsky, porém, havia ligado Blank ao montanhismo e fora a primeira vez que o fato tivera plena confirmação. E isso conduzia ao machado de gelo. Aquele maldito machado! Até aquele momento, nada vinculara Blank à compra ou à posse de uma ferramenta dessas. Delaney gostava de coisas bem arrumadas. A posse seria suficiente; a compra poderia ser investigada mais tarde.
Não mentira quando dissera que não se demoraria mais de uma hora no apartamento de Blank. Por Deus, poderia encontrar um machado de gelo até na Grand Central Station nesse espaço de tempo. E por que deveria Blank escondê-lo? Tanto quanto ele sabia, não era objeto de suspeita alguma. Possuía mochila, cravos, grampos de segurança, e um machado de gelo. O que poderia ser mais natural do que isso? Era alpinista. Tudo o que Delaney queria com a busca no apartamento era descobrir o machado. O resto seria apenas o molho sobre o assado.
Redigiu os relatórios e notou, satisfeito, que a pasta de Daniel G. Blank engrossava. Mais importante, começava a penetrar no homem. Tony, um menino de doze anos, bastante bonito para passar por menina. Uma magrela de cabelos pretos e sem seios. Amigos que possuíam uma butique sexual. Havia muita, muita coisa ali. Mas se o machado de gelo não existisse no apartamento de Blank, tudo seria fumaça. O que faria, então? Começaria novamente – outra pessoa, outro ângulo, uma abordagem diferente. Estava preparado para isso.
Trabalhou nos relatórios até a chegada de Mary. Ela preparou café, torrada sem manteiga, e um ovo quente. Nada de gordura. Em seguida, foi para a sala de estar, puxou as cortinas, tirou os sapatos e o paletó e desabotoou o colete. Deitou-se no sofá com a intenção de cochilar durante uma hora. Mas, quando acordou, o relógio marcava quase 11:30 e ficou furioso consigo mesmo pelo tempo perdido.
Desceu até o banheiro para lavar o rosto com água fria e pentear o cabelo. O espelho confirmou-lhe o que já pressentira: bolsas azuladas sob os olhos, feições acinzentadas e doentias, linhas mais profundas, testa enrugada, lábios exangues, comprimidos, tudo velho e confuso. Quando tudo aquilo terminasse e Bárbara ficasse boa, iriam a alguma parte, se espichariam ao sol até que a pele ficasse rígida, os olhos claros, as recordações desvanecidas, e o sangue puro e estuante. E fariam amor. Foi o que disse a si mesmo.
Telefonou para Mônica Gilbert.
– Mônica, vou visitar minha mulher. Eu estava pensando se você... se não tivesse ocupada... se gostaria de conhecê-la.
– Oh, sim, gostaria. Quando?
– Dentro de quinze minutos mais ou menos. Cedo demais? Quer almoçar antes?
– Obrigada, mas já comi uma salada. É tudo que ando comendo nestes últimos dias.
– Dieta? – riu ele. – Não precisa disso.
– Preciso. Ando comendo muito desde... desde que Berrtie morreu. Acho que é uma questão de nervos. Edward...
– O quê?
– Você me disse que telefonaria a respeito de Daniel Blank, mas não telefonou. Algum resultado?
– Acho que sim. Mas gostaria que minha esposa ouvisse também a história. Confio no julgamento dela. Ela entende muito de gente. Contarei às duas ao mesmo tempo, certo?
– Naturalmente.
– Estarei aí dentro de quinze minutos.
Telefonou para Bárbara e disse-lhe que ia levar Mônica Gilbert, a esposa da segunda vítima. Bárbara disse que sim, naturalmente. Sentiu-se feliz em conversar com ele e pediu-lhe que não se demorasse.
Pensara longamente no caso – se devia ou não aproximar as duas. Reconhecia os perigos e as vantagens. Não queria que Bárbara pensasse, sequer desconfiasse, que ele estava tendo uma relação – mesmo inocente – com outra mulher enquanto ela, Bárbara, encontrava-se doente, confinada a um quarto de hospital, a despeito do que ela dissera sobre novo casamento, se algo lhe acontecesse. Aquilo fora meramente conversa, concluiu: uma explosão emocional de uma mulher perturbada por dores e temores quanto ao futuro. Bárbara, porém, apreciaria a companhia – e isso ele sabia. Na realidade, gostava de gente muito mais do que ele. Contou-lhe a história de um homem preso por molestar mulheres. Houve um desses casos. O maníaco introduzia-se sorrateiramente em quartos de dormir no bairro de Queens, entrando sempre por janelas abertas, beijava a mulher adormecida, e fugia. Em nenhuma ocasião pôs as mãos nelas ou as feriu fisicamente. Beijava-as, apenas. Ao narrar o caso a Bárbara, ela suspirou e disse: "Pobre-diabo. Como deve sentir-se solitário", e sua solidariedade encaminhava-se com freqüência para o suspeito, salvo quando havia violência.
Mônica Gilbert precisava também de uma confidente. O trabalho dela estava terminado, completado o fichário. Ele queria continuar a dar-lhe uma impressão de envolvimento. Finalmente, resolveu apresentá-las.
Não foi um desastre, como temera, mas não se desenvolveu a reunião maravilhosamente, como esperara. Ambas se mostraram cordiais, mas nervosas, em guarda, reservadas. Mônica levou uma pequena violeta africana, não comprada em florista, mas que ela mesma cultivara. Isso ajudou. Bárbara deu-lhe os pêsames em voz baixa pela morte do marido. Delaney ficou fora da conversação, longe da cama de Bárbara, escutando e observando-as nervosamente.
Começaram, então, a falar dos filhos, trocando fotografias e sorrindo. A conversa tornou-se mais alta do que o tom de voz ouvido em quartos de doente; riram com mais freqüência; Bárbara tocou no braço de Mônica. Ele concluiu, então, que tudo ia correr bem. Descontraiu-se, sentou-se numa cadeira longe delas, ouvindo-lhes o bate-papo, comparando-as: Bárbara tão magra e fina, devastada pela doença, mas elegante, uma mulher que era uma espada de prata. E Mônica, com seu pesado corpo de camponesa, robusta e forte explodindo de vida. Naquele momento, amou-as, ambas.
Durante algum tempo, inclinaram-se uma para a outra, conversando em voz baixa. Perguntou-se se estariam acaso falando sobre doenças de mulheres, sobre a parte hidráulica feminina – um mistério para ele – ou talvez, por olhares ocasionais que lançavam, se o estavam discutindo, embora o que nele houvesse para dar motivo a conversa não conseguisse imaginar.
Passou-se quase uma hora antes que Bárbara lhe estendesse a mão. Aproximou-se da cama, sorrindo para ambas.
– Daniel Blank? – perguntou Bárbara.
Contou-lhes a entrevista com o garçom do bar, com Handry, com Lipsky. Contou tudo, salvo o plano de invadir dentro de duas horas o apartamento de Blank.
– Edward, o caso está começando a tomar forma – disse Bárbara com um gesto de aprovação. Como sempre, ela tocou no âmago da questão. –Pelo menos agora já sabe que é montanhista. Acho que o passo seguinte consiste em verificar se possui um machado de gelo, não?
Delaney anuiu. Ela jamais pensaria em perguntar-lhe como iria descobrir isso.
– Não pode prendê-lo agora? – indagou Monica Gilbert. – Como suspeito ou por qualquer outro motivo?
O capitão sacudiu a cabeça.
– Nenhuma possibilidade – disse pacientemente. – Não tenho a menor prova. Nem um farrapo. Seria solto antes mesmo que a porta da cela se fechasse sobre ele, e a municipalidade poderia ser processada por prisão sem justa causa. Seria o fim do caso.
– Bem, neste caso o que pode fazer? Esperar até que mate. outra pessoa?
– Oh... – respondeu vago Delaney – há coisas. Como por exemplo provar além de qualquer dúvida sua culpa. No momento, é apenas suspeito. O único que temos. Mas ainda apenas suspeito. Mas quando eu não tiver mais dúvida... Bem, neste momento não sei ainda o que vou fazer. Mas farei alguma coisa.
– Tenho certeza de que fará – sorriu Bárbara, tomando a mão de Mônica. – Meu marido é um homem muito teimoso. E arrumado. Não gosta de pontas soltas.
Riram todos. Delaney lançou um olhar ao relógio e viu que precisava sair. Ofereceu-se para levar Mônica até em casa. Ela, porém, queria ficar um pouco mais e sairia quando chegasse o momento de ir buscar as crianças na escola. Delaney olhou para Bárbara e compreendeu que ela queria a companhia de Mônica por um pouco mais de tempo. Beijou a face da esposa, inclinou alegre a cabeça para ambas, e saiu pesadamente do quarto. No corredor, ajeitando o chapéu de feltro na cabeça, ouviu uma súbita explosão de gargalhadas no quarto, imediatamente abafada. Ficou em dúvida se estavam ou não rindo dele, de alguma coisa que dissera ou fizera. Mas estava acostumado a que o achassem divertido. Isso não o incomodava.
Nunca tivera, naturalmente, a menor intenção de levar uma câmara ao apartamento de Blank. O que provaria a fotografia de um machado de gelo? Mas levou um conjunto de ferramentas de arrombador, de fino aço sueco, acondicionadas no bolso em um delgado estojo de camurça. O jogo continha uma longa e esguia pinça. Colocou o estojo no bolso interno do paletó. No bolso esquerdo, prendeu uma caneta-lanterna de duas pilhas. No sobretudo, colocou um par de luvas de seda preta. Bárbara chamava-as de "luvas de papa-defunto".
As 2:30, o Capitão Delaney subiu tranqüilamente a passagem de automóveis e empurrou a porta do saguão do edifício. Lipsky viu-o quase imediatamente. Tinha o rosto pálido e lustroso de suor. Enfiou a mão no bolso esquerdo do paletó. Idiota quadrado, pensou Delaney. A idéia fora entregar as chaves durante um aperto de mão comum. Bem, não havia jeito a dar naquele instante...
Adiantou-se, estendendo a mão direita. Lipsky agarrou-a com uma palma úmida e só nesse momento deu-se conta de que tinha as chaves na mão esquerda. Soltou a mão de Delaney, mudou as chaves de mão, quase deixando-as cair. Delaney tirou-as suavemente dos dedos moles de Lipsky. Enfiou-as no bolso do paletó, ainda sorrindo levemente, e disse:
– Se houver qualquer encrenca, dê três toques rápidos no intercomunicador.
Dirigiu-se em passos descansados para a bateria de elevadores, virando à esquerda para os carros marcados 15-34. Duas outras pessoas esperavam: um homem a folhear uma revista e uma mulher com um transbordante saco de compras. A porta correu no elevador automático; saiu um casal com uma criança pequena. Delaney esperou um momento e entrou no elevador em seguida aos dois outros passageiros. O homem apertou o botão 16, a mulher o 21, o andar de Blank, e Delaney, o 24.
Ambos os cavalheiros tiraram o chapéu. Subiram em silêncio. O leitor de revista desceu no dezesseis, a mulher do saco de compras no 21. Delaney esperou alguns minutos, procurando a localização do apartamento H, supondo que fosse a mesma em todos os andares.
Voltou ao elevador e apertou o botão de descida. Por sorte, estava vazio o carro em que entrou. Apertou o botão 21 e deu-se conta inesperadamente de música suave. Não reconheceu a canção. A porta abriu-se no 21. Premiu o botão de "térreo" e saiu rapidamente antes que a porta se fechasse.
Estava vazio o corredor do 21º andar. Tirou as luvas de couro forradas de lã de ovelha, enfiou-as no bolso do sobretudo e calçou as "luvas de papa-defunto". Percorrendo o corredor atapetado, esfregou fortemente as solas e saltos, esperando remover qualquer indício de lama, poeira, ou areia que poderia ter-se acumulado no calçado e que possivelmente deixaria marcas no apartamento de Blank. E viu olhos mágicos em todas as portas.
Tocou duas vezes a campainha do apartamento 21-H e ouviu-a reunir baixinho do lado de dentro. Esperou alguns momentos. Nenhuma resposta. Começou a trabalhar.
Não teve problema com duas das chaves. A terceira, da fechadura da barra policial, deu-lhe um pouco mais de trabalho. Tinha mãos tão grandes que não podia enfiar os dedos por dentro da porta parcialmente aberta e desengatar a barra diagonal. Finalmente, tirou a pinça do estojo de arrombador e, trabalhando lentamente e com toda a calma, tirou a barra da ranhura. Abriu-se a porta.
Entrou, fechou-a suavemente às costas, mas não a trancou. Moveu-se em passos rápidos pelo apartamento, abrindo portas fechadas, olhando para o interior dos cômodos, fechando-as. Olhou por trás da cortina do banheiro, e pôs-se de joelhos para observar se havia alguma coisa sob a cama. Convencido de que o apartamento estava vazio, voltou à porta da frente, fechou-a e colocou a barra policial em posição.
O passo seguinte era tolo, mas fundamental. Mas talvez não tão tolo assim. Lembrou-se de um detetive que passara quatro horas dando busca no apartamento errado. Delaney começou a procurar revistas de assinaturas, cartas... qualquer coisa. Encontrou uma estante cheia de livros sobre tecnologia dos computadores. Todos eles exibiam uma etiqueta gravada, colada. Um rapaz nu, de arco e flecha na mão, saltando através de uma floresta lacustre. "Ex Libris: Daniel G. Blank". O bastante.
Voltou à porta de entrada mais uma vez, pôs as costas contra ela e depois começou a vaguear pelo apartamento. Apenas para absorvê-lo, tentar compreender que tipo de homem morava ali.
Mas morava alguém ali? Na verdade respiraria, dormiria, comeria, soltaria ventosidades, arrotaria, defecaria alguém naquelas salas de operação esterilizadas? Nenhuma ponta de cigarro, nenhum jornal jogado no chão, nenhum cheiro, nenhuma foto, nenhum símbolo de recordação, quinquilharia, souvenirs, nenhuma vidraça empoeirada, nenhum copo sujo, nenhuma pintura manchada, velhas queimaduras ou teto rachado. Era tudo tão limpo que mal podia acreditar no que via: a fria ordem e limpeza eram esmagadoras. Mobiliário de couro preto e aço cromado. Cinzeiros de cristal precisamente arrumados. Um candelabro de ferro com altas velas cuidadosamente consumidas em diferentes alturas.
Pensou no seu próprio lar, no seu lar, de Bárbara e dos filhos.
Aquela casa contava-lhes a história, quem eram, seus gostos ou falta de gosto, coisas usadas, gastas, raízes, odores de vida, recordações surgindo em toda a parte. Poder-se-ia escrever a biografia de Edward X. Delaney à vista de seu lar, mas quem era Daniel G. Blank? Aquela sala-exposição de decorador, aquele apartamento modelo, nada dizia. A menos...
Aquele pesado espelho do saguão com uma bela moldura. A longa parede da sala de estar ornamentada com, pelo menos, 50 pequenos espelhos de várias formas, individualmente emoldurados. Um espelho de corpo inteiro na porta do quarto. Outro, do lado de dentro da porta do banheiro. Um armário de remédios com ambas as portas corrediças espelhadas. Diria acaso aquela pletora de espelhos alguma coisa sobre o homem que ali vivia?
Havia outra segura indicação do estilo de vida de qualquer pessoa: o conteúdo do refrigerador, dos armários da cozinha e do banheiro No refrigerador, uma garrafa de vodca e três de sucos – de laranja, grapefruit e tomate. Temperos de salada. Maçãs, tangerinas, ameixas, pêssegos e ameixas secas. Nos armários, café, chá de ervas, especiarias, comidas de regime, cereais orgânicos. Carne em parte alguma. Nada de queijo. Nada de defumados. Nada de pão. Nada de batatas. Mas aipo em fatias e cenouras.
No banheiro, por trás das portas corrediças do armário, encontrou sabonetes perfumados, óleos, perfumes, colônias, loções, ungüentos, talco, desodorantes, sprays. Um vidro de aspirina. Um vidro de comprimidos de Librium. Um envelope de comprimidos que não conseguiu identificar. Um vidro de comprimidos de vitamina B. Aparelho de barbear. Fechou as portas com as pontas dos dedos enluvados. Seria perfumado o papel higiênico? Era. Lançou um olhar ao relógio. Mais ou menos dez minutos até aquele momento.
Mais uma vez, voltou à entrada, procurando pisar em passos leves para que o morador de baixo não lhe ouvisse os passos e se perguntasse quem se encontrava no apartamento do Sr. Blank àquela hora.
Acendeu a lâmpada do teto e abriu a porta do armário da entrada.
Na prateleira superior: seis caixas fechadas de chapéus e um chapéu de inverno de miliciano.
Nos cabides: dois sobretudos, três casacões, duas capas de chuva, um casaco militar de lona até as coxas, de cor verde-oliva, forrado de lã de ovelha, com capuz preso, uma jaqueta até a cintura e duas jaquetas leves de nylon.
No chão do armário: um saco de dormir enrolado e preso por correias, pesadas botas de alpinismo com solas denteadas, um conjunto de grampos de segurança de aço, uma mochila, um cinto trançado, uma corda de nylon, e...
Um machado de gelo.
Ali estava. Tão fácil assim. Um machado de gelo. Delaney fitou-o sem sentir júbilo. Apenas isso.
Olhou-o fixamente durante quase um minuto, não duvidando dos olhos, mas guardando na memória a posição exata da ferramenta. Equilibrado sobre a extremidade do cabo. A cabeça encostada contra duas paredes, no canto. A alça de couro, que saía da extremidade, curvava-se para a direita e, em seguida, dobrava-se de volta sobre si mesma.
O capitão estendeu a mão enluvada e agarrou-o. Examinou-o atentamente. "Made in West Germany". Semelhante aos vendidos pela Outside Life. Cheirou a cabeça. Aço oleado. Cabo manchado com placas de suor. Utilizando uma das gazuas, soltou suavemente, apenas um pouco, o couro que cobria o cabo de aço. Nenhuma mancha sob o couro. Mas tampouco havia esperado encontrá-las.
Ficou com o machado na mão, achando intolerável ter de deixá-lo ali. Mas o machado nada mais informava; duvidava muito que informasse também alguma coisa ao pessoal da Polícia Técnica. Recolocou-o com o possível cuidado no local, encostado no canto, no ângulo inicial, dando à alça de couro uma volta que se dobrava sobre si mesma. Fechou a porta do armário e olhou para o relógio. Quinze minutos.
O assoalho da sala de estar tinha uma decoração em forma de tabuleiro de xadrez, alternando ladrilhos pretos e brancos de 18 polegadas quadradas. Cobriam-no irregularmente seis pequenos tapetes, de cores vivas e desenho moderno. Escandinavos, pensou. Ergueu os tapetes, olhando embaixo de todos eles. Não esperava encontrar coisa alguma. Não encontrou.
Gastou alguns minutos examinando a longa parede espelhada, observando seu reflexo saltar de espelho a espelho à medida que se movia. Gostaria de ter dado busca por trás de cada espelho, mas sabia que isso consumiria tempo imenso. E nunca conseguiria recolocá-los na arrumação original. Voltou-se, em vez disso, para uma escrivaninha junto à janela. Era um móvel esguio e elegante, de aço inoxidável e vidro. Possuía uma gaveta central e uma funda gaveta-arquivo no lado esquerdo.
A gaveta superior estava maravilhosamente arrumada, com divisores de plástico branco: grampos de papel (dois tamanhos), lápis com ponta feita, selos, porta-fita colante, tesoura, régua, abridor de cartas, lente de aumento – tudo combinando. Delaney ficou impressionado. Não invejou, mas impressionado.
Encontrou três documentos. Um deles, o Catálogo de Inverno da Outside Life; o capitão sorriu, sem alegria. Outro, no fundo da gaveta, era obviamente um canhoto de cheque de salário, a metade que indicava os impostos, o pagamento de pensões, hospitalização, e deduções semelhantes. Delaney pôs os óculos para lê-lo. De acordo com seus cálculos, Blank ganhava cerca de $55,000 por ano. Que belo!
O terceiro documento era um envelope de papel pardo endereçado ao Sr. Daniel G. Blank, enviado por alguma instituição chamada Instituto de Examinadores Médicos. Delaney extraiu o relatório grampeado e leu-o rapidamente. Aparentemente, seis meses antes, Blank fizera um completo check-up médico. Acusava as habituais doenças da infância, mas a única operação anotada era uma remoção de amígdalas, aos nove anos de idade. A pressão arterial estava ligeiramente abaixo do normal e ele acusava uma diminuição de 20 por cento na audição do ouvido esquerdo. Fora disso, parecia encontrar-se em perfeitas condições físicas para um homem de sua idade.
Recolocou o documento no local onde o encontrara, mas, recordando-se de alguma coisa, tirou-o novamente. Na caderneta de notas, fez uma anotação do tipo sangüíneo de Blank.
A gaveta-arquivo continha apenas um objeto: uma caixa de documentos de metal. Delaney ergueu-a, colocou-a sobre a escrivaninha e examinou-a, Aço cinzento. Fechada, com a fechadura na parte superior. Alça branca e plástico na frente, mais ou menos trinta e cinco centímetros de comprimento por vinte de largura e dez de profundidade. Nunca pudera compreender por que as pessoas compravam tais caixas para guardar objetos valiosos. Era verdade que a caixa poderia resistir ao fogo, mas nenhum ladrão profissional perderia tempo forçando-a ou tentando abri-la; simplesmente a levaria, segurando-a pela elegante alça, ou a enfiaria numa fronha de travesseiro, juntamente com os demais objetos roubados.
Delaney lançou um olhar atento à fechadura. Cinco minutos no máximo, mas valeria a pena? Provavelmente, talões de cheques, cadernetas bancárias, talvez um pouco de dinheiro, o contrato de aluguel do apartamento, um passaporte, alguns documentos sem valor suficiente para serem depositados no cofre-forte de um banco. Tinha certeza de que Blank possuía uma caixa em um cofre-forte de banco. Era esse tipo de homem. Recolocou a caixa de documentos na escrivaninha e fechou firmemente a gaveta. Se tivesse tempo, voltaria a ela. Lançou um olhar ao relógio: quase vinte e cinco minutos.
Dirigiu-se ao quarto. Antes, porém, parou em frente a um armário de bebidas de ébano e alumínio. Não pôde resistir e abriu as duas portas. Cristais combinando de um lado: Baccarat e lindo. Que fora que Handry perguntara? O que Blank fazia com seu dinheiro? Poderia responder naquele instante: comprava cristal de Baccarat.
O estoque de bebidas surpreendia: uma garrafa de gim, uma de uísque escocês, uma de rye, outra de bourbon, outra de rum e pelo menos uma dúzia de garrafas de conhaques e cordiais. Cada vez mais curioso. O que era que um indivíduo crescido queria com um licor, cor de tinta, chamado "Fleur d'Amour"?
As boas buscas requeriam uma técnica; alguns detetives eram mais hábeis do que outros. Tratava-se de uma habilidade especial. Delaney sabia que era competente, no particular, mas reconhecia que havia outros melhores. Houve um velho detetive – o capitão pensou que provavelmente estava aposentado naquela ocasião – que podia dar, em uma hora, uma busca numa casa de seis cômodos e encontrar o selo que procurava, um brinco, ou um envelope. Simplesmente ninguém pode esconder algo com absoluta certeza de que nunca será encontrado. Com tempo e gente suficiente qualquer objeto pode ser encontrado, em qualquer parte. Engolir uma cápsula de metal? Enfiar um microfilme no ânus? Colocar um microponto em uma cavidade dentária e mandar fechá-la? Tatuar o crânio e deixar que o cabelo cresça? Qual nada! Tudo pode ser encontrado.
Esses métodos, porém, eram raros e exóticos. A maioria das pessoas que têm algo a esconder – documentos, dinheiro, provas – esconde-os em sua casa ou apartamento. Fácil de verificar-lhe a segurança. Fácil de destruir rapidamente em caso de emergência. Fácil de apanhar, quando necessário.
Mas em casa – como sabiam os policiais competentes em buscas – as pessoas exibiam em geral duas tendências: uma racional e outra emocional. No racional o indivíduo levava uma vida razoavelmente normal, recebia visitas, amigos e vizinhos, que às vezes apareciam inesperadamente, não escondia coisas no saguão, na sala de estar, ou na de jantar, ou seja, em lugares ocupados por outras pessoas em várias ocasiões, onde o objeto oculto poderia, acidentalmente, ser revelado ou descoberto por um convidado bêbado e/ou curioso. Escolhia-se, nesse caso, o banheiro e o quarto de dormir, os dois cômodos no lar que pertencem indisputavelmente à pessoa.
O motivo emocional para escolher banheiros ou quartos era o seguinte: tratavam-se de aposentos íntimos. Fica-se nu neles. Dorme-se neles, banha-se, executam-se as funções corporais. São os "lugares secretos" do indivíduo. Onde mais ocultar algo secreto, de grande valor apenas para a pessoa, algo que ela não pode compartilhar com os demais?
Delaney dirigiu-se diretamente para o banheiro e tirou a tampa do vaso. Um velho truque, mas ainda ocasionalmente usado. Nada ali, exceto, notou divertido, uma margarida de plástico e uma barra de desodorante sólido, que mantinha o vaso de Daniel Blank limpo e cheiroso. Belo.
Bateu rapidamente nos azulejos, ergueu o tapete de tufos do chão e olhou por baixo, fez uma inspeção mais atenta do armarinho de remédios e usou a caneta-lanterna para percutir em todo o comprimento a armação da cortina do chuveiro. Tudo oco. O que procurava ele? Sabia, mas não o reconhecia para si mesmo. Não nesse momento. Simplesmente procurava.
Entrou no quarto. Sob o tapete, outra vez. Uma boa sacudidela na cama para verificar as molas. Uma mão cuidadosa enfiada entre as molas e o colchão. Sob os travesseiros. Em seguida, a cama refeita na sua pura rigidez. Nada nas persianas. Base do abajur? Nada. Dois posters franceses emoldurados. Nada nas costas dos mesmos. O papel parecia intacto. Terminada essa parte, restava o guarda-roupa de parede a parede e duas cômodas de madeira dinamarquesa, claras. Olhou para o relógio. Quase quarenta minutos. Suava nesse instante: não tirara o chapéu ou o sobretudo ou coisa alguma dos bolsos que não recolocasse imediatamente no lugar.
Tentou, em primeiro lugar, o guarda-roupa. Duas portas largas, com dobradiças laterais que podiam ser inteiramente viradas para trás. Fez isso e olhou assombrado para o conteúdo do móvel. Considerava-se um homem arrumado, mas, em comparação com Daniel Blank, não passava de um relaxado. Delaney gostou de ver as roupas internas bem dobradas, empilhadas com o vinco para fora, recém-lavadas de cima a baixo. Mas essa exibição no guarda-roupa de Blank era. . . era mecanizada!
A prateleira superior continha roupas de cama: lençóis, fronhas, toalhas de praia, toalhas de banho, tapetes de banheiro, toalhas de rosto, de pratos, panos de limpeza, guardanapos, toalhas de mesa, coberturas de colchão e uma pilha de artigos pesados sobre cuja utilidade apenas pôde especular, embora pudessem ter sido forros para cobrir os móveis durante uma ausência prolongada.
Mas o espantoso era a precisão com que haviam sido organizadas essas pilhas. Teria sido uma arrumadeira ou fora o próprio Blank quem havia arrumado essas pilhas todas e as alinhado como se acompanhassem um barbante esticado? E as cores! Nada de lençóis e fronhas brancas ali, toalhas e panos de limpeza desgraciosos, mas cores brilhantes, berrantes, motivos florais, padrões abstratos, uma coleção de abalar a vista. De que maneira conciliar tal extravagância com a esterilidade branca e preta da sala de estar e a mobília arquitetônica? '
Encontrou no chão do guarda-roupa as sapateiras. Na da esquerda, sapatos de verão – brancos, multicoloridos – todos os pares embrulhados em sacos de plástico claro. Na outra sapatos de inverno, também nas fôrmas, mas não embrulhados. Praticamente todos pretos, a maioria sem cadarços, do tipo mocassim, dois pares de Guccis com fivela, três pares de botas, uma delas até o joelho.
Analogamente, penduradas nos cabides, roupas de verão à esquerda e de inverno à direita. As de verão estavam dentro de sacos plásticos, os paletós em cabides de madeira e as calças presas pelas bainhas. Os ternos de inverno eram quase todos pretos ou azul-escuro. Havia uma jaqueta esporte de camurça, quatro calças esporte: duas de flanela cinzenta, uma quadriculada, e outra de camurça verde-garrafa. Dois robes de seda, um deles com motivos de aves e outro com orquídeas púrpura.
Delaney fez o que podia em pouco tempo, apalpando entre e sob as pilhas de roupa de cama, sacudindo as solas dos sapatos para baixo, pressionando entre as palmas das mãos os fundos dos sacos plásticos que protegiam as roupas de verão. Foi até a sala de estar, removeu um pequeno espelho de metal do gancho na parede e, espichando o pescoço e usando espelho e caneta-lanterna, inspecionou a parte posterior das pilhas de roupas íntimas na prateleira superior. Era, conheceu, uma busca superficial, mas melhor do que nada. E foi isso o que encontrou – nada. Recolocou o espelho no gancho e equilibrou-o com todo o cuidado.
Terminada essa parte, restavam as duas cômodas. Faziam parte de um jogo e possuíam três longas gavetas embaixo e duas meias-gavetas na parte superior. Olhou para o relógio. Haviam decorrido 46 minutos. Prometera a Lipsky uma hora, não mais do que isso.
Começou pela cômoda mais próxima à janela do quarto. A primeira meia-gaveta continha jóias, soltas ou em pequenos estojos de couro: alfinetes de gravata, botões de camisa, prendedores de gravata, algumas coisas que não conseguiu identificar imediatamente – um cinto de elos dourados, por exemplo, e um bracelete de ouro, três braceletes de identificação obviamente caros, dois pesados colares masculinos, sete anéis, e um coração de ouro, batido a martelo e preso a uma fina corrente. Cautelosamente, olhou por baixo de tudo aquilo.
A outra meia-gaveta continha lenços, e quanto tempo havia passado desde que vira linho irlandês lavado a ponto de transformar-se em seda? Nada por baixo.
Gaveta longa superior: meias, no mínimo uns cinqüenta pares, desde a preta formal a modelos no padrão Argyle, tricotadas, até a altura do joelho. Tampouco coisa alguma aí.
Segunda e terceira gavetas longas: camisas. Obviamente, camisas sociais na segunda: brancas e azuis de corte conservador. Na terceira gaveta, camisas esporte, tonalidades malucas, estampadas, tricotadas, poliésteres. Enfiou com cuidado a mão entre e sob as pilhas bem arrumadas. Seus dedos cobertos de seda passaram por alguma coisa lisa. Puxou-a. Era, ou fora, originariamente, uma foto lustrosa de 8x10 de Daniel Blank nu. Não recente. Ele parecia mais moço. O cabelo era mais cheio. De mãos nos quadris, ria para a câmara. Possuía, reconheceu Delaney, um belo corpo. Não robusto, não especialmente musculoso. Mas belo: ombros largos, cintura fina, bons braços. Era impossível julgar-lhe as pernas desde que a foto fora cortada exatamente acima dos pêlos púbicos com tesoura, navalha ou faca. Blank estava ali olhando para Delaney, com as mãos nos quadris, com o membro e os testículos amputados e ausentes. Cuidadosamente enfiou a foto mutilada embaixo das camisas.
Passou à segunda cômoda, tendo certeza de que pouco acharia de importância, mas desejando compreender o homem. Já observara o bastante para ocupar-lhe o pensamento durante semanas, mas talvez houvesse mais. A meia-gaveta da segunda cômoda continha cachecóis, principalmente de foulard, quadrados, um cachecol formal de seda branca, e alguns lenços estampados. Na segunda achou grande variedade de coisas: dois chapéus de praia, moles, dois pares de óculos de sol, um vidro de loção bronzeadora, e prospectos de vôos de avião para a Flórida, índias Ocidentais, Grã-Bretanha, Brasil, Suíça, França, Itália, Suécia – todos presos por um elástico.
A gaveta superior estava cheia de roupa de baixo. Delaney olhou para o sortimento, estranhamente comovido. Era o mesmo sentimento que o assaltara antes quando dera busca em apartamentos de estranhos: a intimidade secreta. Lembrou-se de uma ocasião em que estivera descansando na sala de uma turma de detetives, simplesmente relaxando em companhia de dois colegas, bisbilhotando, contando histórias sobre seus casos e experiências. Um dos detetives falara da busca que dera na residência da uma prostituta que fora assassinada por um de seus clientes.
– Deus meu – disse ele – mexi em toda a roupa de baixo dela, naqueles babados todos, naqueles troços onde elas enfiam os guardanapos, no pijama baby-doll, sentindo cheiro daquilo tudo, e quase me urinei.
Os outros riram, mas sabiam ao que ele se referia. Não era apenas o fato de ter sido uma prostituta, cujas peças de renda cheiravam a sexo. Era a penetração na vida de outra pessoa como só um deus pode penetrar – sem ser visto ou sentido, mas penetrando no ser humano, e sabendo.
Foi algo parecido que o Capitão Edward X. Delaney sentiu ao olhar fixamente para as pilhas bem arrumadas de calcinhas, biquínis, calcinhas cavadas, calcinhas de tamanho único, peças íntimas enfeitadas e em cores que não podia acreditar que pudessem ser vendidas em outros estabelecimentos que não lojas de lingerie para mulheres. Apaticamente, apalpou sob cada pilha depois de sacudi-las, e recolocou tudo com meticuloso cuidado em seus lugares. Continuou.
A segunda gaveta comprida continha pijamas: paletó e calça de nylon, algodão, flanela. Robes de dormir. Mesmo uma camisola vermelha berrante.
A gaveta do fundo fora reservada a calções de banho – mais do que um homem poderia usar numa vida inteira: praticamente tudo, do menor biquíni a calções de surf compridos. Três suspensórios atléticos, um deles não maior do que uma venda. Além disso, inesperadamente, seis pares de luvas de inverno: finas, de couro preto; ásperas, forradas de lã de ovelha; camurça amarela brilhante; cinzas, formais, com pontos pretos ao longo dos dedos etc. Nada. Entre as peças ou sob elas.
Fechou a última gaveta e tomou uma profunda respiração. Olhou novamente para o relógio. Cinco minutos ainda. Poderia prolongar a busca por um minuto ou dois, mas não mais do que isso. Nessa ocasião, tinha certeza, ouviria três frenéticas chamadas no intercomunicador, acionado pelo apavorado Charles Lipsky.
Poderia abrir a caixa de documentos na escrivaninha da sala de estar. Dar uma olhada nos armários da cozinha, tentar várias coisas. Obedecendo a um impulso, nada mais, ajoelhou-se e apalpou o fundo de uma das gavetas da cômoda. Nada. Ainda de quatro, sondou o fundo de outra. Nada. Mas, enquanto apalpava, o painel de madeira fez ligeira pressão para cima.
Bem, isso era surpreendente. Em cômodas tão caras e elegantes, como aquelas pareciam ser, teria esperado encontrar uma peça sólida de madeira debaixo do fundo da gaveta e, entre cada par de gavetas, outra camada plana. Eram chamadas de '"protetores contra poeira". As boas mobílias as possuíam. Cômodas baratas não tinham essas folhas horizontais entre o fundo de uma gaveta e a parte superior aberta da outra.
Levantou-se, tirou pêlos de tapete do sobretudo, dos joelhos e da bainha da calça. Mas deixara fiapos: apanhou-os cuidadosamente e colocou-os no bolso no colete. Abriu então, ao acaso, algumas gavetas da cômoda. Era verdade; não havia separações de madeira entre elas; eram simplesmente empilhadas. Bem, levaria apenas um minuto.
Puxou a primeira gaveta inteira de uma cômoda, estendeu a mão e apalpou as superfícies inferiores das duas meia-gavetas superiores. Nada. Fechou a primeira gaveta comprida, abriu a segunda e passou os dedos sob o fundo da primeira. Nada. Continuou a agir da mesma maneira. Isso demorava apenas segundos. Segundos de nada.
Começou na segunda cômoda. Fechou a gaveta que continha as incríveis roupas de baixo de Blank e abriu a que continha os pijamas, enfiou a mão para apalpar a superfície inferior da gaveta em cima. Parou. Retirou a mão rapidamente, esfregou os dedos cobertos de seda no sobretudo e estendeu mais uma vez a mão, apalpando com cuidado. Havia alguma coisa ali.
– Por favor, Deus – disse em voz alta.
Lentamente, com infinita cautela, fechou a gaveta dos pijamas e tirou a de cima, a gaveta das roupas de baixo. Puxou-a pela metade para fora. Temeroso de que pudesse haver farpas de madeira nas corrediças, pó de serra, manchas, qualquer coisa, tirou o sobretudo e colocou-o sobre a cama de Daniel Blank, com a parte interna para cima. Cuidadosamente, tirou toda a gaveta da cômoda e colocou-a suavemente em cima do sobretudo. Não olhou mais para o relógio. Charles Lipsky que se danasse.
Removeu as pilhas de roupas de baixo, colocando-as sobre o outro lado da cama na ordem exata em que as tirava. Quatro pilhas na frente e duas atrás. Seriam devolvidas à gaveta na mesma ordem. Esvaziada a gaveta, virou-a de cabeça para baixo e colocou-a sobre o sobretudo aberto. Olhou fixamente para o envelope colado com fita. Compreendeu o raciocínio de Blank: se a fita secasse e o envelope caísse, poderia cair apenas na gaveta de baixo.
Fez ligeira pressão sobre o envelope com as pontas dos dedos. Sentiu coisas mais rígidas do que papel, e algo duro. Couro, talvez, ou madeira ou metal. O envelope estava preso no fundo da gaveta em todos os seus quatro lados. Colocou novamente os óculos e curvou-se sobre ele. Usou uma das gazuas para sondar os cantos do envelope, onde as fitas não se encontravam inteiramente umas com as outras.
Queria, se possível, evitar tirar completamente as quatro tiras da fita colante. Finalmente, resolveu, para sua satisfação, abrir a parte superior do envelope. Usando a gazua, levantou um pequeno canto da fita superior. Passou então a usar a pinça. Lenta, lentamente, com infinito cuidado, levantou a fita pregada à madeira, certificando-se de que não a tirava do envelope de papel. A fita desprendeu-se, pegajosa, da madeira áspera. Procurou enrolá-la para trás sem rasgá-la ou dobrá-la. Ouviu três toques rápidos no intercomunicador, mas não parou. Lipsky que fosse para aquele lugar. Que suasse pelos cinqüenta dólares que ia receber.
Logo que a fita superior descolou-se da madeira, voltou a usar a gazua de arrombador, fina como um bisturi de cirurgião. Sabia que a aba do envelope não estaria colada. Sabia! Bem, não foi apenas sorte ou instinto. Por que iria Blank fechar o envelope? Ele gostaria de olhar jubiloso para seus bens e a eles acrescentar outros.
Suavemente, abriu o envelope. Inclinou-se para cheirá-lo. Cheiro de rosas. Novamente, usando a pinça, cuidadosamente retirou-lhe o conteúdo, colocando-o sobre o forro do sobretudo na ordem em que havia sido colocado: a carteira de habilitação de motorista de Frank Lombard, o cartão de identidade de Bernard Gilbert, o distintivo e a identificação do detetive Kope. E quatro pétalas murchas de rosa. Da lapela de Albert Feinberg. Virou-as com a pinça. Deixou-as ali, foi até a janela, pôs as mãos no bolso e olhou para fora.
Fazia um belo dia. Seco, claro. Houvera previsão geral de um inverno suave. Esperava que fosse assim. Já estava cheio de neve, neve lamacenta nas ruas, nevascas, montes de neve cheios de lixo, toda aquela porcaria. Ele e Bárbara, quando ele se aposentasse, iriam para algum lugar quente, tranqüilo. Não a Flórida. Não gostava tanto assim do calor. Mas talvez as Carolinas. Um lugar assim. Pescaria. Nunca havia pescado na vida, mas poderia aprender. Bárbara teria um jardim decente. Ela adoraria isso.
Bolas, não eram os assassinatos! Tinha visto um número infindável de resultados de crimes de morte. Assassinatos a bala, a faca, por estrangulamento, porretadas, afogamento, picadas... tudo. Digam a forma. Ele a conhecia. E havia tratado de casos de latrocínio: dinheiro roubado, dedos cortados para serem retirados os anéis, colares arrancados de pescoços de mortos, mesmo sapatos levados e, em um caso, dentes de ouro arrancados.
Voltou-se para olhar os artigos estendidos sobre o sobretudo. Este era o pior. Não podia dizer exatamente o motivo, mas era uma obscenidade tão grande que não tinha mais certeza se queria continuar a viver, ser membro da raça humana. Havia ali lembranças de gente morta não por vingança, necessidade, cobiça, mas por... Pelo quê? Souvenir? Troféu? Escalpo? Havia algo ímpio no caso, algo que não podia tolerar. Não sabia. Simplesmente não sabia. Não naquele instante. Mas pensaria no caso.
Arrumou rapidamente as coisas. Colocou tudo no envelope com a pinça, na ordem exata na qual haviam sido arrumadas. A aba entrou no envelope sem dobra ou curva. A fita colante foi novamente pressionada sobre a madeira. Segurou-se. Desvirou a gaveta. A roupa de baixo voltou a ser arrumada em pilhas, na ordem original. A gaveta deslizou para dentro da cômoda. Inspecionou o forro do sobretudo. Um pouco de pó das corrediças da gaveta. Foi ao banheiro, umedeceu dois pedaços de papel higiênico na pia, voltou ao quarto e limpou o forro do casaco. Voltou ao banheiro, pôs o papel usado no vaso. Mas antes de dar descarga, usou mais dois pedaços de papel para enxugar a pia. Estes foram também para o vaso. Deu descarga e desapareceram. Ele teria, pensou sardonicamente – e não pela primeira vez – sido um assassino danado de eficiente.
Fez uma rápida inspeção no apartamento. Tudo limpo. Estava já à porta, com a mão na maçaneta, quando pensou em outra coisa. Voltou à cozinha e abriu os armários mais baixos. Encontrou um balde de plástico, detergentes, sprays contra baratas, cera de assoalho e polidor de móveis. E também o que esperara encontrar, uma pequena lata de óleo para máquina.
Arrancou uma toalha de papel de um rolo preso à parede da cozinha. Será que aquele homem media o comprimento dos pedaços de papel higiênico ou as toalhas de papel? Delaney não ficaria surpreso se o fizesse. Mas embebeu a toalha de papel no óleo da máquina, dobrou-a, e colocou-a dentro de uma de suas luvas forradas de lã de ovelha, no bolso do sobretudo. O óleo de máquina voltou para a posição original.
Chegou à porta da frente, abriu-a e deu uma rápida olhada para o corredor vazio. Saiu, fechou a porta e tentou a maçaneta três vezes. Segura. Encaminhou-se para os elevadores, tirando as luvas de seda preta e colocando-as em um bolso interno. Tocou o botão de descida e, enquanto esperava, tirou três notas de dez dólares da carteira, dobrou-as bem apertadas em volta das chaves e conservou-as na mão direita.
Havia seis outras pessoas no elevador. Afastaram-se polidamente para que ele entrasse. Insinuou-se lentamente até o fundo do carro. Ouvia-se uma música suave. No saguão, deixou que todos saíssem, saiu por sua vez, e olhou em volta à procura de Charles Lipsky. Finalmente viu-o do lado de fora do edifício ajudando uma senhora idosa a tomar um táxi. Esperou pacientemente até que voltasse para dentro. Lipsky viu-o e o capitão teve, por um momento, a impressão de que ele ia desmaiar. Delaney dirigiu-se para ele com a mão direita estendida. Sentiu a umidade da palma da mão ao transferir-lhe as chaves e o dinheiro.
Delaney inclinou a cabeça, sorrindo ainda, e saiu. Desceu a passagem de automóveis. Dirigiu-se para casa. Ocorreu-lhe um curioso pensamento: que sua transferência para a Divisão de Patrulha constituíra um erro. Não queria experiência administrativa. Não queria ser comissário. Aquilo era o que fazia melhor. E do que mais gostava.
Ligou para Thorsen de sua casa. Não era ocasião de preocupar-se com telefones controlados, se isso, para começar, houvesse tido qualquer validade. Thorsen, porém, não o chamou de volta, isto é, não durante quinze minutos. Delaney telefonou para o seu gabinete. O subinspetor estava "em conferência" e não podia atender.
– Chame-o – disse secamente Delaney. – Aqui é o Capitão Edward X. Delaney. Trata-se de uma emergência.
Esperou alguns minutos e, então:
– Jesus Cristo, Edward, o que é...?
– Preciso vê-lo. Imediatamente.
– Impossível. Você não imagina o que está acontecendo por aqui. Os demônios se soltaram. É o ajuste de contas final.
Delaney não perguntou que "ajuste de contas" era. Não estava interessado.
– Preciso vê-lo – repetiu.
Thorsen ficou calado durante um minuto. Voltou ao telefone:
– Pode esperar até seis horas? Temos outra reunião com o comissário às sete, mas poderei recebê-lo às seis. Pode esperar?
Delaney pensou durante um momento.
– Muito bem. Seis horas. Onde?
– Em minha casa. A reunião das sete vai ser no Palácio do Governo. Melhor na minha casa, às seis.
– Estarei lá.
Apertou o gancho do telefone apenas o suficiente para cortar a ligação e discou para o Dr. Sanford Ferguson.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
– Descuido, descuido, descuido – disse melancólico Ferguson. – Você não me telefona há semanas dizendo que tem "mais duas coisas". Está zangado comigo, Edward?
– Não – riu Delaney. – Não estou zangado com você.
– Como vão indo as coisas?
– Muito bem. Li seu laudo preliminar sobre o assassinato de Feinberg, mas não li o PM final.
– Completei-o hoje. O habitual. Nada de novo.
– O relatório preliminar dizia que o sangue encontrado na calçada não era da vítima.
– Exatamente.
– Que tipo era?
– Você está-me perguntando? Edward, você está perdendo o controle. Pensei que poderia me dizer.
– Espere um minuto. – Delaney tirou a caderneta de notas do bolso interno do paletó. – Muito bem, eu lhe digo. É AB-Rh negativo.
Ouviu um súbito arquejo do outro lado do fio.
–Edward, você está conseguindo alguma coisa, não? Tem razão. AB-Rh negativo. Um tipo raro. Quem é que tem esse tipo?
– Um amigo meu – respondeu Delaney em voz impassível. – Um amigo íntimo.
– Bem, quando o pegar, pegue-o bem, sim? – lembrou o legista. – Estou ficando cansado desse negócio de crânios esmigalhados. Uma única bala no coração seria excelente.
– Seria bom demais para ele – respondeu selvagemente Delaney.
Silêncio.
Finalmente:
– Edward, não está perdendo o controle, está? – perguntou Ferguson com uma nota de preocupação na voz.
– Nunca estive mais calmo em minha vida.
– Ótimo.
– Mais uma coisa. . .
– Agora você está normal.
– Estou-lhe enviando uma amostra de óleo fino para máquina. É de uma marca diferente da que lhe dei antes. Poderia tentar verificar se é o mesmo óleo encontrado em tecidos dos ferimentos de Feinberg?
– Tentarei. Parece que você está quente na pista, hem, Edward?
– Sim. Obrigado, doutor.
Olhou para o relógio. Quase duas horas ainda, antes do encontro com Thorsen. Sentou-se à escrivaninha do estúdio, colocou os óculos sobre o nariz, apanhou um lápis e puxou um bloco de notas. Começou escrever no alto da página "Relatório sobre. ..", mas parou, imerso em profundos pensamentos. Seria prudente redigir um relato daquela invasão ilegal de domicílio em sua própria letra? Empurrou para longe o bloco e o lápis, ergueu-se e começou a caminhar de um lado para outro, com as mãos enfiadas nos bolsos traseiros das calças.
Se por algum motivo, que não podia prever ainda, o caso chegasse a julgamento e houvesse a tomada de depoimentos sob juramento, seria a palavra de Lipsky contra a sua. Tudo o que Lipsky poderia dizer, nessas condições, era que lhe entregara as chaves. Não vira Delaney no apartamento de Blank. Não podia honestamente confirmar a ocorrência desse fato, mas apenas que entregara as chaves a Delaney, e presumia que ele dera uma busca no apartamento. Presunções, contudo, eram destituídas de valor. Ainda assim, concluiu o capitão, não faria um relato escrito da busca. Não naquele momento, de qualquer maneira. Continuou a andar de um lado para outro.
O problema, pensou – o problema fundamental – não era como prender Blank. Essa medida teria de esperar pela reunião com Thorsen às seis horas da tarde. O problema essencial era Blank, o homem em si, quem ele era, o que era, o que poderia fazer.
Aquele apartamento constituía um quebra-cabeça. Revelava uma dicotomia (o capitão conhecia bem a palavra) de personalidade difícil de decifrar. Havia aquele espírito de ordem incrível, uma arrumação quase fanática. E o mobiliário ultramoderno, preto e branco, aço e couro, nenhum calor, nenhuma suavidade, nenhuma "concessão" pessoal ao ambiente.
E havia a roupa de cama multicolorida, os luxuosos objetos de uso pessoal, o excesso de seda e tecidos macios, a roupa de baixo feminina, os perfumes, óleos, cremes perfumados, as jóias. Aquela fotografia com o nu mutilado. E acima de tudo, os espelhos. Espelhos em toda parte.
Foi até o arquivo, folheou a pasta de Daniel G. Blank, e puxou o grosso relatório que escrevera após sua entrevista com o Dr. Otto Morgenthau. Sentado à escrivaninha, virou as páginas até encontrar a seção desejada, onde Morgenthau, tendo discutido as causas, falara sobre os motivos, o modo como os assassinos de massa justificavam para si mesmos seus atos. O capitão tomou curtas e elípticas notas:
"Racionalizações complexas. Nenhuma culpa. Assassinatos necessários...
1. Impor ordem ao caos. Não pode suportar a desordem ou o imprevisível. Precisa das normas de uma instituição: prisão, exército etc. Encontra paz porque não tem responsabilidade em um mundo perfeitamente ordenado.
2. Exibicionista do lápis. Deixa sua marca com o assassinato. Eu existo! Uma declaração ao mundo.
3. Alienação. Não pode relacionar-se com pessoa alguma. Não pode sentir. Quer aproximar-se de outro ser humano. Amar? Através do amor, com toda a humanidade e o segredo da vida. Deus? Por que (na juventude?) foram-lhe negados emoções, sentimentos, amor? Não pode encontrá-los (sentir), salvo matando. Êxtase."
Releu as notas e recordou-se da advertência do Dr. Morgenthau de que, em casos de assassinos múltiplos, não havia classificações precisas. As causas se tocavam. O mesmo acontecia com os motivos. Não eram homens simples, que matavam por cobiça, desejo ou vingança. Constituíam um complexo emaranhado e não podiam reconhecer onde terminava a verdade e começava a fantasia. Mas talvez em suas loucas mentes não houvesse começos e fins. Simplesmente um turbilhão ardente, sem mais forma do que uma chama.
Guardou as notas, não se sentindo mais perto do coração de Dan. O curioso a respeito de Dan. . . Parou de súbito. Dan? Pensava nele agora como "Dan"? Não Blank ou Daniel G. Blank, mas Dan. Muito bem, pensaria nele como Dan. "Um amigo", dissera ao Dr. Ferguson. "Um amigo íntimo." Havia-lhe cheirado os sabonetes, manuseado as roupas de baixo, apalpado os robes de seda, ouvido sua voz, visto uma foto dele, nu. Descobrira-lhe os segredos.
O problema com Dan, o problema para compreender Dan, era a questão que propusera a Bárbara: seria possível solucionar um problema irracional utilizando métodos racionais? Não tinha resposta para essa pergunta. Até aquele momento. Lançou um olhar ao relógio, tirou rapidamente dos bolsos a caneta-lanterna, as luvas pretas de seda, o estojo de gazuas. Embrulhou o pedaço de papel embebido em óleo em uma folha de alumínio, introduziu-o num envelope, endereçado ao Dr. Sanford Ferguson, e colocou-o na caixa do Correio ao encaminhar-se para a casa do Subinspetor Thorsen.
Era estranho. Sentiu o cheiro de fumo de charuto na calçada da casa de pedra cinzenta de Thorsen. Subiu os degraus; o cheiro tornou-se mais forte. Teve a esperança de que Karen houvesse saído ou estivesse em cima, no quarto; ela odiava charutos.
Tocou a campainha. Mais uma vez. Finalmente, Thorsen abriu a porta.
– Sinto muito, Edward. Muito barulho.
Thorsen, notou, estava sob pressão. "Almirante" parecia agüentar, mas observou que ele não escovara o cabelo fino e prateado, que os olhos pareciam embaçados, com a esclerótica injetada de sangue, e que lhe sulcavam a face rugas que Delaney nunca percebera antes.
Estava fechada a porta da sala de estar. O capitão, porém, ouviu um vozerio alto e irritado. Notou uma pilha de sobretudos, pelo menos uma dúzia, atirados sobre as cadeiras da entrada. Casacos civis e militares, chapéus comuns e quepes de policiais. Uma bengala. Um guarda-chuva. O ar estava quente e turbilhonante. Thorsen não lhe tomou o sobretudo e o chapéu.
– Venha até aqui – disse.
Conduziu Delaney por um curto corredor até a sala de jantar e apertou um botão na parede. Um abajur da Tiffany pendia sobre a mesa de jantar de carvalho. Thorsen fechou a porta. O capitão, porém, continuou a ouvir as vozes e a sentir o cheiro de charutos baratos.
– O que é? – indagou Thorsen.
Delaney fitou-o. Podia perdoar aquele tom de voz; o amigo estava obviamente exausto. Algo acontecia, algo importante.
– Ivar – disse suavemente; era talvez a segunda ou terceira vez na vida que usava o nome do subinspetor – encontrei-o.
Thorsen olhou-o, sem compreender.
– Encontrou-o?
Delaney não respondeu. Thorsen, encarando-o fixamente, compreendeu de súbito.
– Oh, Jesus! – exclamou. – Agora, logo agora. Neste instante. Oh, Deus! Nenhuma dúvida a respeito?
– Não. Nenhuma dúvida. É absoluto.
Thorsen tomou uma profunda respiração.
– Não. . . – começou, parou, sorriu para o capitão. – Parabéns, Edward.
Delaney conservou-se calado.
– Não saia daqui. Por favor. Quero que Johnson e Alinski ouçam isso. Volto já.
O capitão esperou paciente. Ainda de pé, passou os dedos pela superfície encerada da mesa de jantar. Carvalho velho e riscado. Havia algo na madeira, algo que não se encontra no aço, no cromo, no alumínio, no plástico. A madeira viveu, pensou: aí está a resposta. A madeira fora semente, graveto, tronco pulsando de seiva, reagindo às estações, crescendo. Abatida finalmente, fora descascada, cortada em tábuas, trabalhada, lixada, polida. Mas o sentido de vida continuava ali.
O Inspetor Johnson parecia tão nervoso quanto Thorsen: o suor lhe cobria o rosto negro e Delaney notou que trazia as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Fazia-se isso para esconder o tremor. O Vice-Prefeito Herman Alinski, porém, continuava com a fisionomia sem expressão, havia compostura no seu corpo curto e grosso, e os olhos escuros e inteligentes moviam-se de um interlocutor para outro.
Permaneceram os quatro de pé na sala de jantar. Ninguém sugeriu que se sentassem. Fora do aposento, Delaney ouvia ainda o vozerio e sentia o cheiro acre de fumaça de charuto.
– Edward? – disse Thorsen em voz baixa.
Delaney fitou os dois outros indivíduos, mas dirigiu-se a Alinski.
– Descobri o assassino de Frank Lombard, Bernard Gilbert, do detetive Kope, e de Albert Feinberg – começou, falando em voz clara e distinta. – Não há possibilidade de erro. Conheço o homem que cometeu os quatro homicídios.
Caiu o silêncio na sala, e a vista de Delaney pousou sucessivamente em Alinski, Johnson e Thorsen.
– Oh, Jesus! – exclamou Johnson. – Isso liquida tudo.
– Não há possibilidade de erro? – perguntou suavemente Alinski.
– Não, senhor. Nenhuma.
– Podemos "abotoá-lo", Edward? – indagou Thorsen. – Agora?
– Não adiantaria. Ele sairia dentro de uma hora.
– Passá-lo no corredor? – perguntou Johnson em voz fraca.
Delaney: – Para quê? Perda de tempo. Ele sairia, no fim.
Thorsen: – Mandado de busca?
Delaney: – Nem mesmo de um juiz de paz.
Johnson: – Alguma coisa para o PP?
Delaney: – Nada em absoluto.
Thorsen: – Você juraria?
Delaney: – Não.
Johnson: – Invasão?
Delaney: – O que é que você acha?
Thorsen: – Deixou-a?
Delaney: – Que mais poderia ter feito?
Thorsen: – Mas estava lá?
Delaney: – Há três horas. Talvez tenha desaparecido agora.
Johnson: – Testemunhas da invasão?
Delaney: – Apenas presunção.
Thorsen: – Então, não temos coisa alguma?
Delaney: – Neste momento, não.
Johnson: – Mas pode "abotoá-lo"?
Delaney (atônito) – Naturalmente. No fim.
O Vice-Prefeito Herman Alinski acompanhara a rápida troca de palavras, sem interrompê-la. Naquele momento, levantou a mão. Os circunstantes calaram-se. Sem pressa e com cuidado ele reacendeu o charuto apagado que trouxera para a sala.
– Cavalheiros – disse – reconheço que sou um político medíocre apenas uma geração distante do gueto de Varsóvia, mas acho que aprendi a língua inglesa e as expressões idiomáticas americanas. Mesmo assim eu lhes ficaria muito agradecido se me informassem que diabo é isto que estão dizendo.
Riram. Quebrou-se o gelo – o que era, compreendeu Delaney, exatamente o que Alinski pretendera. O capitão voltou-se para Thorsen:
– Posso contar o caso à minha maneira?
Thorsen inclinou afirmativamente a cabeça.
– Senhor – disse o capitão, dirigindo-se ao vice-prefeito – eu lhe contarei o que puder. Outras coisas, não. Não para me proteger. Não dou a mínima importância a isso. Mas não acho prudente o senhor e estes outros cavalheiros tomarem conhecimento do culpado. Compreendeu?
Alinski, tirando baforada do charuto, anuiu. Os seus olhos aprofundaram-se ainda mais e fitou Delaney com curioso interesse.
– Conheço o homem que cometeu esses homicídios – continuou o capitão. – Vi a prova. Prova conclusiva, incontroversa. O senhor tem de aceitar minha palavra a esse respeito. A evidência existe, ou existia há três horas, no apartamento do homem. Mas é de tal natureza que não justifica uma prisão. E por quê? Porque está no apartamento dele, no seu lar. De que modo poderia eu jurar no tribunal sobre o que vi? Legalmente, nada vi. E se por acaso um juiz simpático expedisse um mandado de busca, o que aconteceria? Se o mandado fosse entregue quando o indivíduo estivesse em casa, ele poderia embromar o suficiente para destruir a prova. De alguma maneira. Neste caso, o quê? Prendê-lo sob uma acusação... qualquer acusação? E correr o risco de um processo por prisão sem motivo. Para quê? Passá-lo pelo "corredor"? Essa palavra, que faz parte da nossa gíria policial, o senhor provavelmente desconhece. Significa prender o suspeito, colocá-lo numa cela de delegacia, fazê-lo suar. .. obrigá-lo a falar. Ele chama o advogado. Por lei, somos obrigados a permitir que o faça. O advogado consegue uma ordem de soltura. Quando o advogado aparece com o mandado, nós já o transferimos para outra delegacia. Ninguém lá. Quando o advogado descobre, transferimo-lo novamente. Saímos valsando com ele "pelo corredor". Trata-se de um expediente pouco usado hoje em dia mas muito utilizado antigamente quando os "tiras" precisavam conservar detida uma testemunha importante, ou careciam de mais um ou dois dias para "abotoar" definitivamente o cara. Não funcionaria em nosso caso. O interrogatório violento, tampouco. Não me perguntem como sei. . . simplesmente sei. Ele não falará. Por que deveria? Ganha cinqüenta mil dólares por ano. É um executivo importante em uma grande firma da cidade. Não é um joão-ninguém. Não podemos fazer pressão sobre ele. Não tem antecedentes criminais. Possui um bom advogado. Tem amigos. Tem peso. Compreendeu?
– Sim. . . – respondeu pausadamente Alinski. – Agora compreendi. Obrigado, capitão.
– Cinqüenta mil por ano? – perguntou incrédulo o Inspetor Johnson. – Jesus Cristo!
– Outra coisa – voltou o vice-prefeito – o Inspetor Johnson perguntou se podia prendê-lo e o senhor respondeu que sim. De que forma se propõe a fazer isso?
– Não sei – reconheceu Delaney. – Não pensei ainda no caso. Mas não foi por isso que vim aqui esta noite.
– Por que veio?
– Esse louco vai cometer outro assassinato. Calculo que deve ocorrer na semana entre Natal e Ano-Bom. Talvez mais cedo. Não posso arriscar-me.
Estranhamente, ninguém perguntou como havia ele calculado a programação do assassino. Simplesmente deram-lhe crédito.
– Bem – continuou Delaney – vim aqui pedir três auxiliares, à paisana, e um carro sem marcas com dois policiais, para seguir esse cara hoje à noite. Ou consigo essa cobertura ou terei de entregar tudo que tenho a Broughton, para ele fazer o que quiser com as provas, e ficar com o mérito. Antes, eu tinha apenas uma pista a oferecer. Agora, tenho o cara pelo qual ele está sangrando.
O pedido foi feito de modo tão súbito, tão abrupto, que surpreendeu os três interlocutores. Entreolharam-se; o ruído e os cheiros vindos de fora, de homens falando, discutindo e fumando na sala de estar, pareciam invadir aquele local silencioso e envolvê-los.
– Ora – murmurou Thorsen em tom amargo – e teve de ser hoje.
– Você pode fazer isso – replicou impassível Delaney, fitando o subinspetor. – Não dou a mínima bola onde os conseguir. Traga-os da Staten Island. Esse cara precisa ser vigiado. Hoje e todas as noites até que eu descubra uma maneira de prendê-lo.
Silêncio mais uma vez na sala de jantar, permanecendo de pé os quatro homens. Somente Delaney tinha os olhos fixos em Thorsen; os olhos dos demais estavam virados para o chão.
Passou-se um minuto, cinco, ou dez? O capitão nunca soube. Por fim, o Vice-Prefeito Alinski suspirou profundamente, ergueu a cabeça e olhou para Thorsen e Johnson.
– Podem desculpar-nos por alguns momentos? – perguntou cortesmente. – Gostaria de falar em particular com o Capitão Delaney. Apenas durante alguns momentos. Querem esperar lá fora, por favor?
Sem uma palavra saíram, e Johnson fechou a porta. Alinski olhou para Delaney, e sorriu.
– Não poderíamos sentar-nos? Parece-me que estivemos de pé durante um tempo longo demais.
Delaney assentiu. Sentaram-se em cadeiras nas extremidades opostas da mesa de carvalho.
– O senhor fuma charutos? – perguntou Alinski.
– Não. Bem, uma vez ou outra. Mas não com freqüência.
– Hábito nojento – concordou Alinski. – Mas todos os hábitos agradáveis são nojentos. Examinei sua ficha. "Culhões de Ferro". Certo?
– Sim, senhor.
– Quando eu era moço chamavam-me de "Cabeça Oca".
Delaney sorriu.
– Boa ficha a sua – continuou Alinski. – Quantos elogios?
– Não sei.
– O senhor perdeu a conta. Muitos. Esteve no Exército na II Guerra Mundial. Polícia Militar.
– Exato.
– Conte-me tudo, capitão. O senhor acha que as forças armadas – o Exército, a Marinha e a Força Aérea – devem ficar sob o controle de uma autoridade civil – do Presidente, do Secretário da Defesa, e assim por diante?
– Naturalmente.
– E acredita também que o Departamento de Polícia de Nova York deve ficar, basicamente, sob controle civil? Isto é, que o comissário, o policial de mais alto posto, deve ser nomeado pelo prefeito, um político?
– Sim. . . acho que penso assim – respondeu lentamente Delaney. – Não tolero, mais do que qualquer outro policial, a interferência civil no Departamento. Mas concordo que deve ficar sujeito a alguma autoridade civil, e não ser um organismo totalmente autônomo. Alguma forma de controle civil é o menor de dois males.
Alinski sorriu irônico.
– Muitas decisões neste mundo se resumem nisso – assentiu. – O menor de dois males. Thorsen e Johnson me disseram que o senhor é apolítico. Isto é, tem pouco interesse pela política departamental, pelas fofocas, claques, choques de personalidade. Correto?
– Sim.
– Quer ser deixado em paz para fazer seu trabalho?
– Exatamente.
O vice-prefeito inclinou mais uma vez a cabeça.
– Nós lhe devemos uma explicação – disse. – Não será completa porque há certas coisas que não precisa saber. Além disso, o tempo urge. Devemos ir ao Palácio do Governo às sete horas. Bem, há mais ou menos três anos tornou-se claro que havia uma grave quebra de segurança no "Círculo íntimo" do prefeito. Trata-se de um grupo informal, composto de mais ou menos uma dúzia de indivíduos – os amigos mais íntimos, conselheiros, vários especialistas em meios de comunicação, contribuintes para a campanha, líderes trabalhistas e assim por diante – de quem o prefeito depende quando precisa de conselhos e idéias. As reuniões são realizadas uma vez por mês, ou com maior freqüência quando necessário. Bem, algum membro do grupo andava passando informações. Os jornais estavam ouvindo boatos que não deviam ouvir e alguns indivíduos tiravam proveito financeiro de planos ainda em fase de discussão, antes que fosse feito um anúncio público. O problema foi submetido à minha apreciação; uma das minhas responsabilidades é a segurança interna. Foi difícil descobrir o tagarela... O nome não tem importância para o senhor.
– Como conseguiu descobri-lo? – perguntou Delaney. – Estou interessado apenas na técnica que usou.
– A mais óbvia – replicou Alinski, encolhendo os ombros. – Vários documentos fictícios foram entregues a todos os membros do "Círculo Intimo". Apenas um deles veio a ser divulgado. Tão fácil assim. Mas antes de expulsarmos o calhorda a pontapés, pela escada, dando-lhe um cargo de inspetor de monumentos ou buracos na rua – não se despede um homem desses com essa facilidade toda; o escândalo não ajuda ninguém – coloquei-o sob uma vigilância de vinte e quatro horas por dia e descobri algo interessante. Uma vez por semana, ele jantava com cinco homens, sempre os mesmos cinco. Encontravam-se na residência de um deles, num quarto de hotel, ou alugavam uma sala de jantar privativa em um restaurante. O grupo era curioso: o presidente de um banco no centro da cidade, um especulador imobiliário, o editor de uma revista noticiosa, o vice-presidente de uma empresa, o nosso informante, e o Vice-Comissário Broughton. Não gostei do cheiro da coisa. O que teriam esses homens em comum? Nem mesmo pertenciam ao mesmo partido político. Assim, conservei-os de olho. Alguns meses depois, os seis haviam-se transformado em doze e, mais tarde, em vinte. E recebiam visitas ocasionais de Albany e, em certa ocasião, de um representante do Procurador-Geral, em Washington. Por essa altura, o grupo havia crescido e possuía quase trinta membros, que jantavam juntos todas as semanas.
– Incluindo o indivíduo que o senhor infiltrou no grupo – disse Delaney.
Alinski sorriu levemente, mas não respondeu à observação.
– Custou-me algum tempo compreender a situação – continuou. – Tanto quanto eu sabia, não possuíam nome, endereço, papel timbrado, nenhuma organização formal, ou funcionários. Era apenas um grupo informal que se reunia para jantar. Era assim que eu os designava em meus relatórios verbais ao prefeito – o "Grupo". Continuei a vigiá-lo. Era fascinante ver como crescia. Dividiram-se em 3 grupos: três jantares separados todas as semanas: um de endinheirados; outro de editores, escritores, donos de jornal, produtores de TV; e o terceiro de policiais – locais, estaduais e alguns federais. Começaram, em seguida, a recrutar adeptos. Nada óbvio, mas um quadro sólido. Ainda sem nome, endereço ou programa – nada. Mas coisas estranhas começaram a acontecer: certos editoriais, grandes contribuições a pequenas organizações políticas, pressão contra ou a favor de projetos de lei, algumas passeatas obviamente planejadas e extremamente bem organizadas, influências fortes que livravam certos indivíduos de processos por sonegação de imposto que os teriam metido nas grades por cinco anos. O grupo crescia rapidamente. E seus membros eram democratas, republicanos, liberais, conservadores – bastava pensar numa cor política, e ela estava representada no Grupo. Mas nada de declarações públicas, programa formal, ou declaração de princípios – coisa alguma parecida. E tornou-se crescentemente claro o que queriam: um governo municipal autoritário, "lei e ordem", que os "tiras" usassem seus cassetetes e todos andassem armados. Menos os negros. Mais músculo no governo. Dizer ao povo o que fazer, e não perguntar. Porque o povo precisa realmente receber ordens, não? Tudo que quer ou necessita é de um revólver de seis balas e uma quarta reapresentação de "I Love Lucy".
Alinski olhou para o relógio:
– Preciso resumir esta conversa – disse. – O tempo está-se esgotando. Mas deixei-me levar. Metade de minha família foi transformada em sabão em Treblinka. De qualquer maneira, o Vice-Comissário Broughton começou a fazer pressão por aí. Ele é competente; não nego. Astuto, forte, ativo. É garganta. Acima de tudo, garganta. Assim, quando Frank Lombard foi assassinado, a divisão de agitação-propaganda do Grupo lançou-se ao trabalho. Era natural. Afinal de contas, Frank Lombard fazia parte do Grupo.
Delaney fitou-o assombrado.
– O senhor quer dizer que essas quatro vítimas, afinal de contas, tinham algo em comum –um ângulo político? Os outros três eram também membros do Grupo?
– Não, não – falou Alinski, sacudindo a cabeça. – O detetive Kope não poderia ter sido membro porque o Grupo não recruta indivíduos de patente abaixo de tenente. E Bernard Gilbert e Albert Feinberg não podiam ter sido porque o Grupo não aceita judeus. Não, a morte de Lombard, constituiu, simplesmente, uma coincidência, uma morte casual, e desconfio que o homem que o senhor encontrou nunca ouviu falar no Grupo. Poucas pessoas ouviram. A morte de Lombard, contudo, constituiu uma maravilhosa oportunidade para o Grupo. Em primeiro lugar, era um advogado muito eloqüente da "lei e ordem". "Esmaguemos completamente o crime nas ruas de nossa cidade". Broughton viu aí a oportunidade. Conseguiu o comando da Operação Lombard. Organizando as pressões políticas do Grupo, conseguiu tudo o que queria – homens, equipamentos, recursos financeiros ilimitados. Conhece-o?
– Sim.
– Não o subestime. Ele tem a confiança do próprio demônio. Pensou que solucionaria o caso Lombard num tempo recorde. Um ponto para seu lado e passos importantes para ser o próximo comissário. Mas no caso de não descobrir o assassino de Lombard, o Grupo ficaria com os polegares enfiados no rabo. Perguntei, por isso, a Thorsen e Johnson quais eram os melhores detetives de Nova York. Indicaram seu nome e o do Chefe Pauley. Broughton aceitou Pauley. Thorsen e Johnson pediram-lhe que os ajudássemos e nós concordamos com eles.
– Quem são os "nós"?
– O nosso Grupo – sorriu Alinski. – Ou chame-o de "Antigrupo". De qualquer modo, é esta a situação no momento. Na reunião hoje à noite, achamos que podemos alijar Broughton da Operação Lombard. Não temos certeza, mas achamos que podemos consegui-lo. Mas não se o senhor for procurá-lo e entregar-lhe o assassino.
– Broughton que se dane! – disse áspero Delaney. – Não me interessam em absoluto suas ambições políticas ou não. Não o procurarei se o senhor me fornecer três detetives e um carro.
– Mas compreenda – explicou paciente Alinski – que não podemos possivelmente fazer isso. De que modo? Tirados de onde? O senhor não imagina como o Grupo cresceu, como se tornou poderoso. Está em toda parte, em todas as delegacias, em todas as unidades especiais do Departamento. Não os subalternos: os oficiais. Não podemos arriscar-nos a alertar Broughton de que conhecemos o assassino e que o queremos conservar sob vigilância. O senhor sabe exatamente o que aconteceria. Ele viria galopando, com as sirenas abertas, luzes faiscando, uma centena de policiais e, quando as câmaras de televisão estivessem em posição, traria algemado do apartamento o homem que o senhor descobriu.
– E o perderia nos tribunais – retrucou amargo Delaney. – Estou-lhe dizendo que, neste momento, nem mesmo poderia acusá-lo, quanto mais condená-lo.
O vice-prefeito consultou mais uma vez o relógio e fez uma careta.
– Vamos chegar atrasados, – disse; encaminhou-se para a porta e abriu-a. Thorsen e Johnson esperavam-no do lado de fora, já de chapéu e sobretudo. Alinski chamou-os com um gesto para a sala de jantar. Voltou-se para Delaney.
– Capitão – disse – vinte e quatro horas. Concede-nos isso? Apenas vinte e quatro horas. Depois desse prazo, se Broughton ainda for o Chefe da Operação Lombard, será melhor ir procurá-lo e dizer-lhe o que descobriu. Ele o crucificará, mas terá o assassino – e as manchetes dos jornais – seja ou não o indivíduo condenado.
– Não me vai dar os guardas?
– Não. Não posso impedi-lo de ir procurá-lo mas não contribuirei para o triunfo dele fornecendo-lhe os auxiliares que o senhor deseja.
– Muito bem – disse tranqüilo o capitão. Passou por Alinski, Thorsen e Johnson e abriu a porta. – O senhor pode dispor de vinte e quatro horas.
Percorreu o corredor, cheio naquele momento de indivíduos que vestiam casacos e se cobriam com chapéus. Não olhou para nenhum deles, nem lhes dirigiu a palavra, embora um deles o chamasse pelo nome.
Na sala de jantar, Alinski olhou assombrado para os dois policiais:
– Ele concordou com tanta facilidade – disse perplexo. – Talvez esteja exagerando. Talvez não haja perigo esta noite. Ele certamente não brigou muito pelos guardas que queria.
Thorsen fitou-o e, em seguida, estendeu a vista para o corredor, onde os demais esperavam-no.
– O senhor não conhece Edward – disse, quase triste.
– Exatamente – concordou baixinho o Inspetor Johnson. – Ele vai congelar o rabo hoje à noite.
Não estava furioso, nem mesmo zangado. Eles tinham suas prioridades, e ele, a sua. Eles tinham o "Grupo" e o "Antigrupo". Ele tinha Daniel G. Blank. Fora interessante ouvir o vice-prefeito e achava importante o assunto que os preocupava. Mas estava há muito tempo no Departamento e presenciara numerosas batalhas semelhantes entre os que estavam "dentro" e os que estavam de "fora", e era-lhe difícil envolver-se pessoalmente em choques políticos. De algum modo, o Departamento sobrevivera. No momento, interessava-lhe apenas Dan, seu íntimo amigo Dan.
Dirigiu-se logo para casa, ligou para a esposa. Mas foi o Dr. Louis Bernardi quem atendeu.
– O que foi que houve? – indagou. – Bárbara está bem?
– Excelente, excelente, capitão – tranqüilizou-o o médico. – Estamos apenas fazendo novo exame.
– O senhor pensa que a nova droga está ajudando?
– Vai indo – respondeu Bemardi evasivamente. – Ela está um pouco nervosa, mas isso é compreensível. 0 assunto não me preocupa.
Oh, seu calhorda, pensou outra vez Delaney. Coisa alguma o preocupa. Por que, inferno, deveria?
– Acho que vamos dar-lhe algo para ajudá-la a dormir hoje à noite – continuou Bernardi em voz pastosa. – Apenas um pouco. Talvez deva dispensar a visita hoje, capitão. Um bom e longo sono será melhor para a nossa Bárbara.
"Nossa Bárbara". Delaney poderia tê-lo estrangulado, e alegremente.
– Muito bem – disse, seco. – Vê-la-ei amanhã.
Olhou para o relógio: quase sete e meia. Não dispunha de muito tempo; já caíra a noite; as luzes da rua já estavam acesas, haviam estado desde as seis. Subiu até o quarto e despiu-se inteiramente. Sabia, por dolorosa experiência, o que devia usar no inverno numa missão de vigilância de uma noite inteira.
Roupa de baixo quente, duas. Um par de meias leves de algodão, cobertas por meias grossas de lã. Um velho uniforme de inverno, calças lustrosas, e túnica puída nos punhos e ao longo das costuras. Mas não havia ainda terno civil tão quente como aquela lã boa e grossa de cobertor. E o colarinho alto lhe protegeria o peito e a garganta. Os confortáveis "calçados de tira", cobertos por galochas, mesmo que as ruas estivessem secas e não houvesse previsão de chuva ou neve.
Abriu a gaveta do equipamento na mesinha de cabeceira. Possuía três armas: o revólver de serviço, calibre 38, um 32, com um cano de cinco centímetros, e uma pistola de calibre 45, que havia tirado do Exército em 1946.
Escolheu o pequeno 32, tirou-o do saco de flanela e, puxando o cilindro para um lado, carregou-o lenta e cuidadosamente com balas tiradas de uma caixa. Não se preocupou com um cinto extra para a arma. Esta foi colocada no cinto comum da calça, em um coldre de couro preto. Ajustou-o sob a túnica de modo que a arma pendesse sobre a virilha direita, apontando para os testículos: um feliz pensamento. Verificou novamente a trava.
Identificação no bolso interno do casaco. Um porrete coberto de couro em um bolso estreito especial, ao longo da perna direita. Algemas no bolso direito da calça e, no último minuto, um "venha comigo" de elos de aço – uma corrente de comprimento apenas suficiente para envolver um punho, com pesadas empunhaduras em ambas as extremidades.
Descendo, preparou um grosso sanduíche de salsicha apimentada e rodelas de cebola, embrulhou em papel encerado e colocou-o no bolso do sobretudo. Derramou num vidro um quarto de conhaque e enfiou-o no bolso interno do casaco. Apanhou os protetores de orelhas forrados de lã de ovelha e as luvas de couro. Estes foram postos no bolso interno do casaco.
Pouco antes de sair de casa, discou para Daniel Blank. Já sabia o número de cor. O telefone tocou três vezes e, em seguida, ouviu a voz conhecida.
– Alô?
Delaney desligou suavemente o aparelho. Pelo menos seu amigo estava em casa e o capitão não ficaria vigiando um buraco vazio.
Colocou na cabeça o chapéu de feltro duro, deixou a luz acesa, deu duas voltas à chave na porta da frente, e saiu para a noite. Movia-se rigidamente, calorento, suando sob as camadas de roupa. Mas sabia que aquilo não duraria muito.
Foi a pé até o prédio de apartamentos de Daniel Blank, parando apenas para transferir o "venha comigo" para o bolso esquerdo da calça, evitando assim que tilintasse contra as algemas. O pesado porrete batia-lhe na perna quando andava, mas ele estava acostumado a isso. Não havia muito que pudesse fazer a respeito do caso.
A noite estava nublada, não tão fria quanto úmida e picante. Calçou as luvas, sabendo que não passaria muito tempo antes que colocasse os protetores de orelha. A noite ia ser longa.
Muita gente ainda nas ruas; gente fazendo compras de Natal, carregadas de embrulhos e correndo para casa. Estavam acesas todas as luzes do prédio onde Dan morava. Dois porteiros de serviço naquele momento; um deles, Lipsky. Estavam atrás de gorjetas. Por que não? Era época de Natal, não? Táxis chegavam e partiam, carros particulares tomavam a direção da garagem subterrânea, moradores a pé tropeçavam sob o peso de sacos de compras e enormes embrulhos.
Delaney tomou posição do outro lado da rua, subindo e descendo o quarteirão. O saguão podia ser observado durante a maior parte do passeio para cima e para baixo, ou visto de relance sobre o ombro. Quando ficava às suas costas, voltava a cabeça freqüentemente para acompanhar as chegadas e partidas. Depois de cinco passagens para cima e para baixo, cruzou a rua e caminhou pela outra calçada, diretamente em frente do prédio, cruzou novamente a rua e recomeçou a vigília para cima e para baixo. Caminhava em passo regular, nem lento nem rápido, batendo levemente com os pés a cada passo, movendo mais os braços do que o faria ordinariamente.
Podia executar automaticamente o trabalho e aproveitou a oportunidade para pensar mais uma vez na conversa tida com Thorsen, Johnson e o Vice-Prefeito Alinski.
O que o perturbava era que não tinha certeza se fora inteiramente exato nos comentários sobre a possibilidade de obter-se um mandado de busca. Dez anos antes, teria tido certeza absoluta. Recentes decisões dos tribunais, porém, e em especial do Supremo Tribunal, haviam plantado a confusão em sua mente – e de todos os "tiras" – que não mais compreendiam as leis da prova e os direitos dos suspeitos.
Mesmo um advogado de Filadélfia, como o Tenente Marty Dorfman, havia admitido a própria confusão.
– Capitão – dissera – eles demoliram as velhas diretrizes sem as substituírem por um código novo e definido. Até o pessoal do Promotor Público caminha sobre ovos. Da maneira como entendo a coisa, até que tudo isso seja esclarecido e estabelecidos precedentes em número suficiente, todos os casos serão julgados de acordo com seus méritos, e teremos de correr nossos riscos. É a tal história: "O 'tira' propõe e o juiz dispõe." Acontece que agora temos juízes que não estão seguros de coisa alguma. É por isso que está aumentando a percentagem de apelações.
Bem, começando do princípio... A busca no apartamento de Dan fora ilegal. Nada que vira ou descobrira poderia ser usado numa corte de justiça. Quanto a isso, nenhuma dúvida havia. Se houvesse apanhado os "troféus" de Dan, o ato não teria servido a outra finalidade senão alertar Blank que seu apartamento fora vasculhado, e que ele estava sob suspeita.
Bem, e quanto a um mandado de busca? Com que fundamento? Que Dan possuía um machado de gelo de um tipo possivelmente usado no assassinato de quatro pessoas? E, naturalmente, de um tipo que centenas de pessoas possuíam em todo o mundo. Que sangue do tipo de Dan fora encontrado no local do homicídio mais recente? Quantas pessoas tinham o mesmo tipo de sangue? Que ele possuía uma lata de óleo de máquina, como milhares de outras pessoas? E todos esses fatos apurados apenas mediante invasão ilegal de domicílio. Ou dizer ao juiz que Daniel G. Blank era um conhecido montanhista e que desconfiava que ele levara dois presentes falsos de Natal na noite em que fora assassinado Albert Feinberg? Delaney podia imaginar a reação do juiz a um pedido de mandado de busca com base em tais fundamentos.
Não, ele se portara corretamente. A partir daquele momento, Dan era intocável. Nesse caso, por que não levara toda a confusão a Broughton e não a lançara nos braços dele? Porque Alinski fora absolutamente veraz, conhecendo aquele homem. Broughton teria dito "A lei que se dane", e teria chegado como um herói de histórias em quadrinhos, prendendo Blank e obtendo as manchetes e a cobertura de TV que queria.
Mais tarde, quando Blank fosse solto, como indubitavelmente seria, Broughton denunciaria a "justiça permissiva", "as frouxas leis contra o crime", "devido às quais os policiais ficavam de mãos atadas". O fato de Blank sair da prisão como homem livre pouco importaria a Broughton em comparação com a publicidade decorrente da libertação do suspeito, os protestos públicos, e a promoção de, exatamente, as finalidades que o Grupo desejava.
Mas se Dan não podia ser...
Delaney deixou de pensar e virou a cabeça sobre o ombro. Havia um homem em frente ao saguão iluminado falando com um dos porteiros. Era alto e usava sobretudo preto. Sem chapéu. Delaney parou em meio de uma passada, deu uma olhada a um relógio de pulso inexistente, fez um gesto de impaciência, e voltou sobre os próprios passos, caminhando na direção do saguão do prédio. Devia pedir inscrição no sindicato dos atores, pensou, devia, realmente.
Chegou à frente do saguão, na outra calçada, no momento em que Daniel Blank cruzou a porta de vidro e ficou parado por um momento. Era ele, sem dúvida alguma: ombros largos, quadris estreitos, feições bonitonas, vagamente orientais. A mão esquerda estava metida no bolso do sobretudo. Delaney observou-o por tempo suficiente para vê-lo aspirar o ar noturno, abotoar o casaco com a mão direita e virar para cima a gola. Blank desceu a passagem de automóveis e virou para oeste, na direção em que Delaney seguia.
Ah, ali, pensou o capitão. Saindo para um passeio, Danny Boy?
"Danny Boy". O nome divertiu-o; começou a cantarolar uma canção. Acertou seus passos com a velocidade de Dan e, quando ele cruzou para a Second Avenue, passou para o lado dele, conservando-se apenas um pouco atrás. Era bom nessa missão mas não tanto como, digamos, Jeri Fernandez, conhecido pela sua turma como "O Homem Invisível".
O problema resumia-se principalmente na aparência física. Delaney dava na vista. Era alto, corpulento, pesadão, usava um sobretudo informe e levava na cabeça um chapéu de feltro duro. Podia mudar a roupa, mas não o homem que era.
Fernandez era um homem comum. Altura mediana, peso mediano, sem feições características. Quando seguia alguém, usava as mesmas roupas que milhares de outros homens usavam. Mais do que isso, havia dominado o ritmo das ruas, truque que Delaney jamais aprendera. Mesmo em uma única cidade, Nova York, as pessoas moviam-se de modo diferente em ruas diferentes. No Distrito das Confecções, trotavam e se empurravam. Na Fifth Avenue andavam em ritmo mais lento, parando para olhar as vitrinas. Em Park Avenue e nas ruas laterais caminhavam preguiçosamente. Em todas as ocasiões em que seguia alguém, Fernandez absorvia o ritmo da rua, inconscientemente, e movia-se como um fantasma. Colocado em Bruxelas, Cairo ou Tóquio, estava convencido o capitão, o Tenente Jeri Fernandez daria uma rápida olhadela em volta e se transformaria em residente. Delaney gostaria de ser assim.
Mas fez o que pôde e executou todos os truques que conhecia. No momento em que Blank virou a esquina para entrar na Third Avenue, Delaney cruzou a rua para segui-lo. Aumentou a velocidade. Parou para olhar uma vitrina e viu a imagem no vidro quando Blank passou por ele. Começou a segui-lo novamente, permanecendo atrás de um casal, bem perto. Se Blank olhasse para trás, veria três pessoas.
Dan caminhava em passos lentos. O casal que dava cobertura a Delaney afastou-se. Continuou no passo regular, passando novamente pela presa. Sabia que Blank estava atrás e bem perto dele, mas não sentiu medo especial. A avenida era bem iluminada; havia gente em volta. Danny Boy podia ser louco, mas não era estúpido. Além disso, tinha certeza, ele sempre se aproximava das vítimas, indo ao encontro delas.
Delaney percorreu outro quarteirão e parou. Perdera-o de vista. Soube sem precisar voltar-se para olhar. Instinto? Atavismo? Diabos levassem a explicação. Simplesmente sabia. Voltou, procurou e amaldiçoou a própria estupidez. Devia ter sabido ou pelo menos desconfiado.
No meio do quarteirão havia uma loja de animais de estimação ainda aberta, com a vitrina brilhantemente iluminada. Por trás do vidro, viu cachorrinhos – fox terriers, poodles, spaniels – brincando com um jornal rasgado, lambendo-se uns aos outros, urinando, brigando, colando narizes e patas contra o vidro. Pelo menos uma dúzia de pessoas estava parada, rindo, batendo no vidro, chamando-os por nomes carinhosos. Daniel Blank era uma delas.
Devia ter imaginado, repetiu para si mesmo. Mesmo o mais imbecil dos detetives de terceira classe sabia que uma alta percentagem de assassinos é composta de amantes de animais. Possuem cães, gatos, periquitos, pombos, até peixinhos dourados. Tratam seus animaizinhos com ternura, cuidados amorosos, alimentando-os com grandes despesas, levando-os ao veterinário ao primeiro sinal de doença, falando-lhes, acariciando-os. Em seguida, matam um ser humano, cortando-lhes os bicos dos seios, abrindo-lhes o abdômen, ou enfiando uma garrafa de cerveja no ânus. O Capitão Edward X. Delaney não queria realmente saber qual a explicação dessa predileção pelo homicídio entre os amantes de animais. Era difícil, após anos de experiência, assimilar as coisas que aconteciam. Os fatos em si eram difíceis de aceitar; quem tinha tempo ou estômago para explicações?
Blank afastou-se e cruzou a rua, evitando os carros que vinham em sua direção. Delaney seguiu-o do seu lado da avenida. Quando Dan entrou em uma grande loja de bebidas, o capitão cruzou a rua e ficou olhando para a vitrina do estabelecimento. Não estava sozinho; havia dois casais examinando embalagens de Natal, cestas de vime com licores, caixas de vinho importado. Delaney examinou-as também, ou deu essa impressão. Conservava a cabeça inclinada para observar Daniel Blank no interior da loja.
Em nada surpreenderam os atos de Dan. Tirou um papel do bolso direito, desdobrou-o e entregou-o ao vendedor. Este lançou-lhe um olhar e inclinou a cabeça. Tirou uma garrafa de uísque escocês de uma prateleira e mostrou-a a Blank. Examinou-a e aprovou-a. O vendedor recolocou-a na prateleira. Blank tirou vários cartões fechados do bolso. Pareceram a Delaney, olhando da rua, cartões de Natal. O vendedor arrancou a fita de uma máquina de somar elétrica e mostrou-a a Blank. Dan tirou a carteira do bolso, extraiu algumas notas, e pagou em dinheiro. O vendedor entregou-lhe o troco e ficou com uma folha de papel e os envelopes. Trocaram sorrisos; Dan enviava garrafas de uísque, embrulhadas em papel de presente, a vários endereços. Deixou a lista e os cartões a serem enviados com cada presente. Pagou as bebidas e a taxa de entrega. E daí?
Delaney seguiu-o a partir da loja, na direção sul, durante três quarteirões, dois para leste e quatro para o norte. Dan caminhava em passos firmes, alertas; o capitão admirou-lhe a maneira de andar; colocava em primeiro lugar a planta do pé no chão, antes de descer os calcanhares. Mas não vagueava, aparentemente não inspecionava ou procurava alguma coisa. Estava simplesmente tomando um pouco de ar fresco. Delaney seguiu-o à retaguarda, à frente, do outro lado da rua, atrás, adiante, acompanhando-o como um bom cão de caça. Nada.
Em menos de meia hora, Dan voltou para casa, dirigiu-se para a bateria de elevadores e desapareceu finalmente. Delaney, do outro lado da rua, tomou um gole de conhaque e comeu metade do sanduíche de salsicha e cebola, enquanto ia de um lado para outro, observando. Arrotou inesperadamente. Compreensível. Salsicha, conhaque e cebola?
Teria Dan ido dormir? Talvez sim, talvez não. De qualquer modo, Delaney ficaria ali até o amanhecer. O passeio de Dan fora, bem... improdutivo. Fazia sentido, mas o capitão viu-se assaltado por uma persistente sensação de que perdera alguma coisa. O quê? Ele estivera sob sua observação direta durante... digamos, 75 por cento do tempo em que caminhara pelas ruas. Agira como qualquer outro, de maneira absolutamente inocente, um homem que saíra para comprar presentes de Natal para amigos, porteiros, conhecidos. E daí?
A sensação persistiu. Alguma coisa. Delaney embrulhou a metade do sanduíche e reiniciou os passeios de rotina. Bem, a coisa a fazer era recomeçar do início e lembrar-se de tudo que o amigo havia feito, todos os atos, todos os movimentos.
Recordou-se mais uma vez de tudo. A lenta caminhada pela Third Avenue, a parada de Blank diante da casa de bichos de estimação, a maneira. ..
Subitamente, um carro parou junto ao meio-fio, à sua frente. Um Plymouth azul-escuro, empoeirado, de quatro portas. Dois homens no assento dianteiro, em trajes civis. O mais próximo, não o motorista, focalizou uma poderosa lanterna elétrica sobre Delaney.
– Polícia – disse. – Pare onde está, por favor.
Delaney parou. Voltou-se lentamente para o carro. Ergueu levemente os braços, afastando-os do corpo, virando as palmas para cima. O homem da lanterna saiu do carro com a mão direita próxima ao quadril. O companheiro acariciava alguma coisa no colo. Delaney admirou a competência de ambos. Eram profissionais. Mas perguntou-se, e não pela primeira vez, por que o Departamento invariavelmente escolhia Plymouths escuros, de três anos, empoeirados, como seus carros sem marcas?
O detetive da lanterna deu dois passos à frente, mas conservou-se ainda a um largo passo de Delaney. A luz foi focalizada diretamente sobre os olhos do capitão.
– Mora por aqui? – perguntou-lhe o homem. A voz era como gim seco sobre gelo.
– Moro – anuiu o capitão.
– Tem identificação?
– Tenho – respondeu Delaney. – Vou erguer lentamente a mão esquerda, abrir meu casaco e, em seguida, o paletó. Vou tirar a carteira de identidade do bolso interno direito do paletó com a mão esquerda e entregá-la a você. Certo?
O detetive inclinou a cabeça.
Delaney, movendo-se lenta e meticulosamente, entregou-lhe o distintivo e carteira de identidade em uma capa de couro. Era longa a distância até o detetive. A lanterna iluminou o distintivo e a foto, e novamente a face de Delaney. Foi desligada.
– Sinto muito, capitão – disse o homem, com um tom de desculpa na voz. Devolveu a carteira de couro.
– Você agiu exatamente como devia – disse Delaney. – Operação Lombard?
– Sim – respondeu o detetive e não fez perguntas desnecessárias. – Vai ficar por aqui?
– Até o amanhecer.
– Não o incomodaremos novamente.
– Está tudo bem – tranqüilizou-o Delaney. – Qual é o seu nome?
– O senhor não vai acreditar, capitão, mas é William Shakespeare.
– Acredito – riu Delaney. – Houve um jogador de futebol chamado William Shakespeare.
– Lembra-se dele? – perguntou o detetive, espantado e feliz. – Vai ver que tinha os mesmos problemas que eu. O senhor precisa ver como me olham quando me hospedo em um motel com minha esposa.
– Quem é o seu colega?
O detetive virou a lanterna para o motorista. Era um negro sorridente.
– Um fantasma – disse o homem da calçada. – Adora galinha assada e melancia. Sam Lauder.
O motorista inclinou solenemente a cabeça.
– Não esqueça as costeletas de porco – disse em uma voz maravilhosamente profunda de baixo.
– Há quanto tempo são parceiros? – perguntou Delaney.
– Mais ou menos mil anos – disse o motorista.
– Nada disso – cortou o homem da calçada. – Um ou dois anos. Apenas parece ser mii anos.
Riram todos.
– Shakespeare e Lauder – repetiu Delaney. – Não esquecerei. Devo uma a vocês.
– Obrigado, capitão – disse Skakespeare. Voltou ao carro, que se afastou. Delaney ficou satisfeito. Gente competente.
Mas, voltando a Dan. . . Reiniciou a caminhada, nunca deixando passar mais de 30 segundos sem olhar para a entrada do edifício. O movimento diminuíra. Um único porteiro.
Após a parada em frente à casa de animais, Dan cruzara a rua, indo para a loja de bebidas, apresentara a lista de presentes de Natal, pagara as compras, e voltara lentamente para casa. Nesse caso, o que o incomodava? Enfiou a mão no bolso interno do sobretudo para pegar a garrafinha de conhaque. Introduziu a outra mão no bolso externo para tirar o resto do sanduíche. Estendeu...
Ah! Ah! Sabia o que era.
Blank conversava com o porteiro no interior do saguão ao ser visto por Delaney pela primeira vez. Casaco preto desabotoado, mão esquerda no bolso. Dan saíra, abotoando o sobretudo, virando a gola com a mão direita. Nenhum movimento com a mão esquerda até aquele momento... correto?
O passeio, em seguida. Ambas as mãos nos bolsos do sobretudo. O passeio, a parada em frente à casa de pequenos animais – tudo o que resultara em nada. Mas naquele instante, Delaney, sob a pala dura do chapéu de feltro, observava Blank no interior da casa de bebidas. A mão direita introduziu-se no bolso direito do sobretudo e tirou uma lista dobrada. A mão direita desdobrou-a sobre o balcão. A mão direita entregou-a ao vendedor. O vendedor mostrou-lhe uma garrafa de uísque escocês em embalagem de Natal. Dan recebeu-a com a mão direita, examinou-a, aprovou-a, devolveu-a ao vendedor. Ainda nenhum movimento com a mão esquerda. Estava morta. A mão direita voltou para dentro do bolso do sobretudo. Saiu com uma meia dúzia de cartões de Natal, a serem presos aos presentes. A mão direita apareceu novamente com uma carteira. O vendedor registrou as compras na máquina. Dinheiro pago. O troco foi posto no bolso direito do sobretudo. E a mão esquerda, onde estava?
O Capitão Delaney parou, lembrando-se, e riu inesperadamente. Era tão belo. Os detalhes sempre eram. Que homem levaria a lista de Natal, os cartões, a carteira no bolso interno do sobretudo? Resposta: homem algum. Delaney sabia porque possuía um belo sobretudo para uniforme, feito sob medida, que tinha fendas na parte interna dos bolsos, permitindo que alcançasse o equipamento no cinto da arma sem necessidade de abrir o casaco. Durante a II Guerra Mundial, possuíra uma capa de trincheira dotada da mesma conveniência e, num de seus aniversários, Bárbara lhe dera uma capa de chuva inglesa assim. Podia chover torrencialmente e a pessoa não precisava abrir o casaco, simplesmente enfiava as mãos pelas fendas e apanhava a carteira, bilhetes, identificação, qualquer coisa.
Sem dúvida. Fora assim que Dan pagara a compra de bebidas. Enfiara a mão através da abertura no bolso do sobretudo e retirara a lista do bolso do paletó. Através do bolso tirara a carteira do bolso traseiro da calça. Através do bolso do casaco recolhera os cartões de Natal, que seriam presos com fita colante às garrafas. Belo.
Belo, não porque fosse essa a maneira como Daniel G. Blank mandava presentes de Natal, mas porque era assim que Danny Boy matava gente. Bolsos com fendas. Mão esquerda no bolso através da fenda, segurando o cabo do machado de gelo. Casaco desabotoado. Mão direita balançando, livre. Em seguida, no momento do encontro, a transferência rápida do machado para a mão direita – aquela mão inocente, franca, oscilante – e o ataque. Oh, Deus, como funcionava macio.
Delaney continuou a ronda. Sabia, ele sabia. Blank não sairia mais naquela noite. Mas não tinha importância. Delaney rondaria até o amanhecer. A caminhada lhe daria tempo para esclarecer pontos obscuros.
Tempo para pensar no Caso da Mão Esquerda Invisível. Qual seria a solução? Duas possibilidades, pensou. Primeira: a mão esquerda passava pela fenda do bolso do sobretudo e segurava o machado de gelo, sob o casaco, pelo cabo ou pela alça de couro. O capitão, porém, não achava isso provável. O casaco de Dan estava aberto quando o vira pela primeira vez à luz brilhante do saguão. Correria o risco de deixar que o porteiro ou outro morador vislumbrassem o machado sob o casaco aberto? Daí em diante, o casaco fora abotoado. Por que levaria um machado sob um casaco abotoado? Obviamente, não estivera à espreita de uma vítima.
Possibilidade número dois: a mão esquerda estava ferida ou de alguma maneira incapacitada. Ou o punho, o braço, o cotovelo, ou o ombro. Como não podia usá-la normalmente, enfiava-a no bolso do sobretudo como se fosse uma espécie de tipóia. Sim, fazia sentido e seria fácil de apurar. Thomas Handry podia fazer isso na entrevista ou, melhor ainda, quando visitasse Charles Lipsky no dia seguinte, Delaney lhe perguntaria se notara algum sinal de ferimento no braço esquerdo de Blank. O capitão resolvera telefonar a Lipsky todos os dias, perguntando-lhe se conseguira obter a chapa do táxi que trouxera a morena amiga de Danny.
Todo o interesse de Delaney por um possível ferimento no braço esquerdo de Dan apontava, naturalmente, para a evidência de luta, briga, no local do seu homicídio mais recente. Albert Feinberg fizera o assassino sangrar um pouco na calçada. Poderia ter feito mais alguma coisa?
Que horas seriam? Quase meia-noite, pensou Delaney. Em longos trabalhos de vigilância como aquele, ele evitava consultar o relógio. Começava o indivíduo a olhar para o relógio e ficava liquidado. Parecia-lhe que o tempo andara para trás. Quando o céu se iluminasse, quando chegasse o amanhecer, iria para casa e dormiria. Não antes.
Variou o patrulhamento, simplesmente para conservar-se atento. Três quarteirões para cima e para baixo na calçada oposta e duas jornadas idênticas na calçada do prédio de apartamentos. Cruzamento em esquinas diferentes. Parada no meio do quarteirão para voltar sobre os próprios passos. Tudo para evitar caminhar em sonho. Mas observando sempre a entrada do edifício. Se o amigo saísse outra vez, viria por ali.
Terminou o sanduíche, mas deixou o resto do conhaque para mais tarde. A temperatura devia ter caído para uns 5 graus naquela hora: colocou os protetores de orelhas. Eram do tipo policial, presos por um elástico que dava uma volta completa na cabeça, e se ajustavam bem. Nada de fita de metal prendendo-os às orelhas. O grampo podia esfriar tanto que a pessoa pensava que a cabeça ia soltar-se do corpo.
Bem, o que significava todo esse negócio de mão direita e esquerda e bolsos com fendas? Sabia – não havia dúvida a esse respeito – que Daniel Blank era culpado de quatro homicídios. Mas aquilo de que precisava era evidência concreta, suficientemente convincente para poder levar ao Promotor Público, e esperar uma denúncia. Essa a razão da entrevista que Handry iria fazer, e o acompanhamento do caso teria de ser feito através da namorada de Blank, do menino Tony, e dos Mortons. Eram pistas que todos os detetives investigariam. Talvez dessem em nada – e, com toda probabilidade, aconteceria isso mesmo – mas uma delas poderia, simplesmente poderia, resultar em alguma coisa. Poderia, então, "abotoar" Danny Boy e levá-lo a julgamento. E então?
Delaney sabia exatamente o que aconteceria. O sabido e caro advogado de Blank insistiria em uma alegação de insanidade – "Este doente matou quatro pessoas sem motivo algum. Pergunto a Vossa Excelência: foram atos de um homem mentalmente são?" – e Dan seria internado no hospício durante alguns anos.
Isso aconteceria, e Delaney não poderia protestar demais; Blank era um doente, quanto a isso não havia dúvida. A hospitalização no seu caso era preferível à prisão. Mas ainda assim. . . Bem, o que era que ele, Delaney, queria? Apenas tirar aquele louco de circulação? Oh, não. Não. Mais que isso.
Não eram apenas os motivos de Dan que ele não conseguia compreender; eram também os seus. Tinha pensamentos nebulosos sobre o assunto e teria de pensar muito mais no caso. Mas sabia que nunca em sua vida sentira tal afinidade com um criminoso. Sentia que, se pudesse compreender melhor Dan, poderia conhecer-se também melhor.
Mais tarde, iluminando-se já o céu, Delaney continuou a ronda, sacudindo os braços e batendo com os pés, pois passara o efeito do conhaque e fazia um frio terrível. Voltou ao problema de Daniel G. Blank e aos seus próprios problemas.
A verdade chegou-lhe devagar, sem choque. Bem, era a sua "verdade": queria que aquele homem morresse.
O que havia em Daniel Blank, o que havia em si mesmo, que tinha a esperança de demolir, matando Dan, era o mal, um mal completo. Não era assim? A idéia pareceu-lhe tão irracional que não pôde enfrentá-la, pensar nela.
Ergueu outra vez os olhos para o céu; escurecera mais uma vez. Fora um falso alvorecer. Reiniciou a patrulha, balançando os braços para os lados e com eles batendo nos ombros, batendo com os pés na calçada, tremendo na escuridão.
O telefone acordou-o. Ao olhar para o relógio da mesinha-de-cabeceira notou que eram quase onze horas. Perguntou-se por que Mary não o havia levado para baixo e lembrou-se que era o dia de folga dela. E lhe deixara um bilhete na mesa da cozinha. Na verdade, não estivera funcionando muito bem ao terminar a ronda mas sentiu-se bem naquele momento. Devia ter dormido como "uma pedra" – como diziam no Exército; aquelas quatro horas haviam valido por oito.
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
– Aqui é Handry. Marquei uma entrevista com Blank.
– Ótimo. Quando?
– No dia seguinte ao Natal.
– Algum problema?
– Não... não exatamente.
– O que foi que aconteceu?
– Fiz o que o senhor mandou, e entrei em contato com o relações-públicas da Javis-Bircham. Ele topou logo. Fui visitá-lo. O senhor conhece o tipo: um grande sorriso e uma boca cheia de dentes. Mostrei-lhe minha carteira de repórter, mas ele nem olhou. Não vai conferir com o jornal. Não acredita que pessoa alguma possa enganá-lo. É inteligente demais... pensa.
– Nesse caso, o que foi que saiu errado?
– Nada saiu errado... exatamente. Ele sugeriu os nomes de quatro futurosos jovens executivos da J-B. . . Era assim que se referia à empresa, J-B, como se fosse a IBM, GE e GM. . . mas nenhum dos quatro era o de Blank.
–Você explicou que queria entrevistar alguém familiarizado com os usos e o futuro do computador no mundo dos negócios?
– Naturalmente. Mas ele não citou Blank. É esquisito. . . não acha?
– Hummm. Talvez. Como foi que você resolveu o caso?
– Disse a ele que estava especialmente interessado no AMROK II. Trata-se do computador mencionado na nota à imprensa sobre Blank, que tirei do arquivo. Lembra-se?
– Lembro-me. E que foi que ele disse?
– Bem, nessa ocasião ele mencionou Blank e concordou quando eu disse que desejava entrevistá-lo. Mas não me pareceu contente com a idéia, disso tive logo certeza.
– Talvez seja animosidade pessoal. Você sabe... política de escritório. Talvez odeie Blank e não queira que ele consiga qualquer publicidade pessoal.
– Talvez – disse Handry, em dúvida – mas não foi a impressão que tive.
– E qual foi, então?
– Apenas uma idéia maluca.
– Vamos, diga qual foi – insistiu Delaney.
– Que a cotação de Blank está caindo. Que talvez não esteja realizando um bom trabalho. Que talvez esteja circulando o boato de que a firma vai chutá-lo. Em tal caso, o relações-públicas não desejaria um artigo no jornal dizendo que grande gênio Blank é, e uma semana depois, a J-B o manda embora. Parece maluquice?
Delaney ficou silencioso, pensando no caso.
– Não – disse por fim – não é tão maluco assim. De fato, talvez faça um bocado de sentido. Quer almoçar comigo?
– Você paga?
– Claro.
– Neste caso, eu topo. Onde e quando?
– Que tal aquela churrascaria onde almoçamos antes?
– Certo. Grande cerveja.
– Mais ou menos às doze e meia?
– Estarei lá.
O capitão foi barbear-se. Enquanto raspava o queixo, pensou que a impressão de Handry poderia ser possivelmente correta. O sinistro hobby de Blank poderia estar-lhe afetando a eficiência durante o expediente, e isso não era difícil de compreender. Fora a maravilha da empresa quando ela distribuíra aquela nota à imprensa. No momento, ela não se sentia feliz com o fato de ser ele entrevistado pela imprensa. Interessante.
Tirando o excesso de espuma e passando água de barba no rosto, resolveu que seria melhor dar instruções a Handry, durante o almoço, sobre a próxima entrevista. Estava marcada para um dia após o Natal. Por essa altura, Handry poderia comunicar seus resultados a Broughton, se quisesse. Mas Delaney estava disposto a fazer o possível até o término do prazo fatal de 24 horas que lhe fora concedido por Alinski. Quando o capitão saiu, faltavam apenas seis horas para terminar o prazo.
Handry pediu costeleta de carneiro assada e cerveja. Delaney preferiu um uísque com gelo e um bolo de carne e rim.
– Escute aqui – disse o capitão – temos um bocado de coisas a conversar e, portanto, vamos começar imediatamente.
Handry fitou-o.
– O que é que está havendo?
– O que está havendo? – repetiu confuso Delaney. – O que é que você quer dizer com esse "O que está havendo"?
– Estamos aqui há cinco minutos, no máximo. O senhor já olhou duas vezes para o relógio e continua a brincar com os talheres. Nunca fez isso.
– Você devia ser detetive – rosnou Delaney – e andar por aí à procura de pistas.
– Muito obrigado. Detetives mentem demais e sempre respondem a uma pergunta com outra. Certo?
– Quando foi que respondi a uma pergunta com outra?
Handry sacudiu-se com uma gargalhada, engasgando-se. Por fim, ao acalmar-se, disse:
– Quando ia saindo do jornal, encontrei-me com um cara no corredor. Ele trabalha na editoria política. Municipalidade. Disse que houve uma reunião ontem à noite no Palácio do Governo. Gente importante. Circula o boato de que o Vice-Comissário Broughton está de saída. Devido ao fracasso da Operação Lombard. Sabe de alguma coisa a esse respeito?
– Não.
– O fato não o afeta?
– Não.
– Muito bem – suspirou Handry. – Seja como o senhor quer. Vamos conversar.
– Ouça – disse Delaney, inclinando-se sobre a mesa, apoiado nos cotovelos – não o estou enganando. Claro que há certas coisas que não lhe vou contar, mas elas não me pertencem. Você tem-me dado uma grande ajuda. Essa entrevista com Blank é importante. Não quero que pense que estou mentindo deliberadamente.
– Muito bem, muito bem – respondeu Handry, erguendo a mão. – Acredito no que me está dizendo. Bem, o que acho que gostaria mais de saber da entrevista com Blank é se ele é ou não montanhista, e se possui machado de gelo. Certo?
– Certo –respondeu imediatamente o capitão, não se importando em mencionar que já comprovara tais fatos. Era necessário que Handry continuasse a julgar importante a entrevista. – Quero saber também o que faz na Javis-Bircham, qual é seu trabalho, quantas pessoas trabalham sob as suas ordens, e assim por diante. Isso tem de constituir o grosso da entrevista ou ele ficará desconfiado. Mas o que me interessa realmente são os antecedentes, o ambiente em que cresceu, o homem em si. Pode descobrir isso?
– Certamente.
– Pode? Muito bem, suponhamos que sou Blank. Você me entrevista. Que tal uma tentativa?
Handry pensou durante um momento e começou:
– Pode dizer-me alguma coisa a respeito de sua vida pessoal, Sr. Blank? Onde nasceu, as escolas que freqüentou... coisas assim.
– Para quê? Pensei que esta entrevista dissesse respeito à instalação de AMROK II e às possibilidades dos computadores no mundo dos negócios.
– Oh, sim, sim. Mas nestas entrevistas, Sr. Blank, procuramos sempre incluir alguns tópicos pessoais. Isso aumenta o interesse do artigo e transforma o entrevistado em pessoa real.
– Bom, bom – anuiu Delaney. – Você teve a idéia certa. Existem milhões de leitores que querem saber a respeito dele, e não apenas a respeito do trabalho que faz.
Chegaram os pratos e as bebidas, atiraram-se a eles, mas Delaney não quis interromper o ensaio.
– O que quero saber a respeito dele é o seguinte — disse, tomando um grande gole. — Onde e quando nasceu, as escolas nas quais estudou, o serviço militar, os empregos anteriores, o status matrimonial. Muito bem... Vejamos o status matrimonial. Sou Blank novamente. Faça as perguntas.
– É casado, Sr. Blank?
– Isso é importante para o artigo?
– Bem, se o senhor prefere não...
– Sou divorciado. Acho que não é segredo.
– Compreendo. Filhos?
– Não.
– Planos de casamento no futuro próximo?
– Acha realmente que isso tem cabimento em seu artigo, Sr. Handry?
– Não. O senhor tem razão. Mas temos um bocado de leitoras, Sr. Blank, mais do que imaginaria, e coisas como essas sempre interessam.
– Você está se saindo admiravelmente – disse Delaney com um ar de aprovação. – Na realidade, ele tem uma namorada, mas duvido que a mencione. Ensaiemos agora a questão do montanhismo. Como abordaria o assunto?
– Tem alguns hobbies, Sr. Blank? Coleção de selos, esqui, canoagem, observação de pássaros... qualquer coisa assim?
– Bem. . . para dizer a verdade, sou montanhista. Mas amador, devo acrescentar.
– Montanhismo? Isso é interessante. Onde o pratica?
– Oh... aqui mesmo nos Estados Unidos. E na Europa.
– Na Europa? Onde?
– França, Suíça, Itália, Áustria. Não viajo tanto como desejaria, mas tento incluir o alpinismo em todos os lugares aonde vou.
– É um esporte fascinante... mas dispendioso, não, Sr. Blank? Quero dizer, as viagens ao exterior. Estou perguntando apenas por curiosidade pessoal, mas não precisa de um bocado de equipamento?
– Oh... nem tanto. Equipamento para o ar livre e de inverno, naturalmente. Uma mochila. Grampos de segurança. Uma corda de nylon.
– E um machado de gelo?
– Não – interrompeu em tom categórico Delaney. – Não diga isso. Se Blank não o mencionar, não o sugira. Se ele for culpado, não quero alertá-lo. Handry, essa entrevista pode ser importante, mas não diga ou sugira nada que indique que a conversação de ambos é qualquer outra coisa senão uma entrevista com um jovem executivo que trabalha com computador.
– Quer dizer que se ele desconfiar que não é o que parece eu posso correr perigo?
– Exato – anuiu Delaney, enfiando o garfo no bolo de carne. – Pode correr.
– Obrigado, capitão – disse Handry, tentando conservar descuidada a voz. – O senhor está me fazendo sentir muito melhor a respeito de tudo isso.
– Você vai sair-se bem – garantiu Delaney. – Toma notas taquigráficas nessas entrevistas?
– Minha própria taquigrafia. Notas muito curtas. Palavras isoladas. Ninguém mais pode lê-las. Transcrevo-as logo que chego a casa ou à redação.
– Ótimo. Simplesmente, acalme-se. Pelo que disse, não acredito que vá ter problemas com a história pessoal ou o meio formativo. Ou com o hobby de montanhismo. Mas não insista no machado de gelo ou nos seus casos românticos. Se ele quiser contar-lhe, ótimo. Se não, esqueça o assunto. Eu conseguirei de outra maneira.
Tornaram outra bebida e terminaram a refeição. Nenhum dos dois quis sobremesa, mas o Capitão Delaney insistiu em que tomassem café expresso e conhaque.
– Este conhaque é ótimo – disse Handry, tendo-o provado. – O senhor está-me estragando. Estou acostumado a um sanduíche de atum no almoço.
– Sim – sorriu Delaney. – Eu também. Por falar nisso, mais duas pequenas coisas.
Handry pôs sobre a mesa o cálice e fitou-o assombrado, sacudindo a cabeça.
– O senhor é incrível. Agora compreendo por que insistiu no conhaque. "Mais duas pequenas coisas". Tal como perguntar a Blank se ele é o assassino ou colocar minha cabeça na boca do leão no zoológico?
– Não, não – protestou Delaney. – Coisas realmente pequenas. Em primeiro lugar, veja se nota algum ferimento na mão esquerda dele. Ou no punho, braço ou cotovelo. Pode estar coberto por atadura ou numa tipóia.
– Não estou compreendendo.
– Simplesmente dê uma olhada, só isso. Verifique se ele usa normalmente o braço esquerdo. Se pode agarrar alguma coisa com a mão esquerda ou se a esconde sob a mesa. Observe. Isso é tudo.
– Muito bem – suspirou Handry. – Observarei. Qual é a outra "pequena coisa"?
– Veja se consegue uma amostra da letra dele.
Handry fitou-o atônito.
– O senhor é incrível – repetiu. – De que modo, em nome de Cristo, posso conseguir isso?
– Não tenho a mínima idéia – confessou Delaney. – Talvez possa surrupiar alguma coisa que ele tenha assinado. Não, isso não serve. Não sei. Pense no caso. Você tem boa imaginação. Apenas algumas palavras escritas por ele e a assinatura. Isso é tudo de que preciso. Se puder consegui-lo.
Handry não respondeu. Terminaram o conhaque e o café. O capitão pagou a conta e saíram. Na calçada, viraram as golas dos sobretudos para se defenderem do vento frio. Delaney colocou a mão sobre o braço de Handry.
– Preciso desse material – disse em voz baixa. – Preciso, realmente. Mas o que quero, acima de tudo, são suas impressões sobre ele. Você é sensível às pessoas, sei que é. Como poderia querer ser poeta e não ser sensível às pessoas, ao que elas são, ao que pensam, ao que sentem, a quem odeiam, a quem amam? É o que quero que faça. Converse com esse homem. Observe-o. Note todas as pequenas coisas que ele faz – se rói as unhas, enfia o dedo no nariz, alisa o cabelo, mostra-se nervoso, cruza as pernas para a frente e para trás – tudo e tudo mais. Observe-o. Absorva-o. Deixe que penetre em você. Quem é ele e o que é ele? Gostaria de conhecê-lo melhor? Ele o amedronta, enoja, diverte? É isso realmente o que quero. . . os seus sentimentoa respeito dele. Certo?
– Certo – respondeu Thomas Handry.
Logo que voltou para casa, Delaney ligou para Bárbara no hospital. Disse-lhe que havia dormido muito bem e que se sentia melhor. Monica Gilbert fazia-lhe companhia, estavam-se divertindo, e gostava muito de Mônica. O capitão replicou que isto o deixava satisfeito e que iria vê-la à noite, não importaria o que acontecesse.
– Um beijo para você – disse Bárbara, e produziu o som de um beijo ao telefone.
– E outro para você – respondeu o Capitão Edward X. Delaney, reproduzindo o mesmo som. Aquilo que sempre considerara tolo sentimentalismo não lhe parecia mais, em absoluto, tolo, mas cheio de significação e tão comovente que mal podia suportá-lo.
Telefonou a Charles Lipsky. O porteiro respondeu em voz baixa e cautelosa.
– Descobriu alguma coisa?
Durante um momento Delaney não entendeu sobre o que ele falava, mas compreendeu depois que Lipsky referia-se à busca da tarde anterior.
– Não – replicou. – Nada. A moça apareceu?
– Não a vi.
– Lembre-se do que eu disse: consiga a chapa do táxi e...
– Lembro-me – disse apressado Lipsky. – Vinte. Certo?
– Exato – retrucou Delaney. – Outra coisa: há algum problema com o braço esquerdo de Blank? Está ferido?
– Ele levou-o numa tipóia durante uns dois dias.
– Foi?
– Foi. Perguntei a ele. Disse que escorregou em um tapete da sala de estar. O assoalho acabava de ser encerado. Caiu sobre o cotovelo. E feriu o rosto na borda de uma mesa de vidro.
– Bem, dizem que a maioria dos acidentes acontece em casa.
– Isso mesmo. Mas os arranhões desapareceram e ele não está mais usando a tipóia. Isso vale alguma coisa?
– Não seja ganancioso – advertiu-o friamente Delaney.
– Ganancioso? – respondeu Lipsky. – Quem é que é ganancioso? Mas uma mão lava a outra... certo?
– Eu lhe telefonarei amanhã – disse o capitão. – Ainda está trabalhando de dia?
– Estou. Até o Natal. Sabe, quando passou lá em cima mais de uma hora, eu toquei o intercomunicador, e o senhor...
O capitão desligou. Mesmo um pouco de Charles Lipsky dava para encher, e muito.
Redigiu os relatos do encontro com Handry e da conversação com o porteiro. A única coisa que omitiu deliberadamente foi a conversa final com Handry na calçada do restaurante. Essa troca de palavras coisa alguma significaria para Broughton.
Passava das quatro da tarde quando acabou de transcrever todas as notas. Os relatórios foram arquivados na pasta de Blank. Perguntou-se se jamais veria aquela gorda pasta novamente. Alinski e o Antigrupo dispunham de mais duas horas. Delaney não queria pensar no que aconteceria se não recebesse notícias deles. Teria de entregar a pasta de Blank a Broughton, naturalmente, mas a maneira como o faria era algo em que somente pensaria no momento decisivo.
Dirigiu-se à sala de estar, tirou os sapatos, estirou-se no sofá, pretendendo apenas relaxar-se, descansar os olhos, pensar em momentos mais felizes. Mas o cansaço que não se havia dissipado ainda nem com o sono, os dois drinques e o conhaque no almoço tomou conta dele. Dormiu um sono leve e sonhou com a esposa de uma vítima de homicídio que interrogara anos atrás. "Ele estava pedindo aquilo", dizia ela, e não importavam as perguntas que lhe fazia, ela simplesmente respondia: "Ele estava pedindo aquilo".
Acordou em uma sala escura. Deu o nó nos cadarços dos sapatos e dirigiu-se até a cozinha antes de acender a luz. O relógio da parede indicava quase sete da noite. Bem, era tempo... Abriu o refrigerador, procurou uma lata de cerveja para arejar o paladar e os sonhos. Encontrou-a e estava puxando o grampo quando o telefone tocou.
Voltou ao gabinete, deixou o telefone tocar durante algum tempo enquanto acabava de abrir a lata e tomava um grande gole. Então:
– Fala o Capitão Edward X. Delaney.
Não houve resposta. Ouviu conversação em voz alta, de vários homens, riso, um berro ocasional, os estalidos de garrafas e copos. Parecia uma festa de bêbados.
– Fala Delaney – repetiu.
– Edward? – Era a voz de Thorsen, pastosa pelo efeito da bebida, cansaço, felicidade.
– Sim. Estou aqui.
– Edward, conseguimos! Broughton saiu. Acabamos com ele.
– Parabéns – replicou Delaney numa voz sem expressão.
– Edward, você precisa voltar à ativa. Assumir o comando da Operação Lombard. Terá o que quiser – homens, equipamentos, dinheiro. Diga o que quiser e o conseguirá. Certo? – berrou Thorsen; Delaney fez uma careta e afastou o fone do ouvidor Ouviu duas ou três vozes berrarem "Certo!" em resposta a pergunta de Thorsen.
– Edward? Está ouvindo?
– Estou.
– Compreendeu? Você volta ao serviço ativo. Chefe da Operação Lombard. Terá o que precisar. O que é que me diz?
– Sim – respondeu imediatamente o Capitão Edward X. Delaney.
– Sim? Você disse sim?
– Foi isso mesmo o que eu disse.
– Ele disse sim! – gritou Thorsen. Mais uma vez, Delaney afastou o fone do ouvido, ouvindo a algazarra de numerosas pessoas. Era uma festa do tipo fraternidade escolar, e desgostava-o.
– Meu Deus, isso é grande – exclamou o subinspetor no que, Delaney tinha certeza, Thorsen considerava uma voz sóbria e solene.
– Mas quero controle total – replicou impassível o capitão. – Sobre toda a operação. Nada de relatórios escritos. Apenas verbais, e a você. E. . .
– O que você quiser, Edward.
– E nada de entrevistas, notas à imprensa e nenhuma publicidade, a não ser de minha parte.
– Qualquer coisa, Edward, qualquer coisa. Simplesmente, termine logo a Operação. Compreendeu? Mostre que estúpido schmuck é Broughton. Ele é dispensado e, três dias depois, você soluciona o caso. Certo?
– Dispensado? – perguntou o capitão. – Broughton?
– . . . é quase a mesma coisa – riu Thorsen. – Pediu aposentadoria. Diz que vai candidatar-se a prefeito no ano que vem.
– Vai mesmo? – perguntou Delaney, falando em voz monótona e sem expressão. – Ivar, você entendeu bem o que eu disse? Aceito o comando, mas apenas com a condição de exercer controle absoluto, relatórios verbais apenas a você, escolherei minha própria gente, e cuidarei pessoalmente da publicidade. Compreendeu?
– Capitão Delaney – disse uma voz tranqüila – aqui é o Vice-Prefeito Herman Alinski. Peço desculpas, mas estava ouvindo na extensão. Há uma certa comemoração em andamento aqui.
– Eu ouvi.
– Mas garanto-lhe que suas condições serão aceitas. O senhor terá controle absoluto. Tudo de que precisar. E coisa alguma na imprensa ou na TV sobre a Operação Lombard será divulgada a não ser pelo senhor. Satisfatório?
– Sim.
– Grande! – explodiu o Subinspetor Thorsen. – O telex será despachado agora mesmo. Distribuiremos uma nota imediatamente – apenas para pegar as últimas edições – dizendo que Broughton pediu aposentadoria e que está assumindo o comando da Operação Lombard. Está certo assim, Edward? Uma nota curta, de um parágrafo. Certo?
– Sim. Certo.
– As suas ordens pessoais já foram datilografadas. O comissário vai assiná-las esta noite.
– Você deve ter tido muita certeza de minha reação – disse Delaney.
– Eu não tinha – riu Thorsen – nem Johnson. Mas Alinski tinha.
– Oh? – comentou friamente Delaney. – Está ainda aí, Alinski?
– Estou aqui, capitão – respondeu a voz.
– O senhor tinha certeza a meu respeito? Que eu aceitaria?
– Sim – replicou Alinski – tinha certeza.
– Por quê?
– O senhor não tem opção, tem, capitão? – perguntou suavemente o vice-prefeito.
Delaney desligou com igual suavidade.
Antes de mais nada, o capitão acabou a cerveja. Ajudou. Não apenas o amargor da bebida, o choque do frio na garganta, mas estimulou uma compreensão súbita da magnitude da tarefa que concordara em realizar, as prioridades, as grandes responsabilidades e os pequenos detalhes, e o fato de que "as primeiras coisas em primeiro lugar" seria o único guia que poderia ajudá-lo a levar avante a missão. Naquele momento, a primeira coisa consistia em terminar a cerveja gelada.
– O senhor não tem opção, tem, capitão? – perguntara suavemente o vice-prefeito.
O que havia querido ele dizer com aquilo?
Acendeu o abajur da mesa, colocou os óculos, puxou um bloco de papel de minutas jurídicas, amarelo, e começou a rabiscar – quadrados, círculos, linhas. Diagramas aproximados, muito aproximados, e idéias vagas expressadas em pontas de flechas, raios, espirais.
As primeiras coisas em primeiro lugar. A primeira das primeiras era uma vigilância de vinte e quatro horas sobre Daniel G. Blank. Dois detetives a pé, e dois carros sem marcas com dois homens poderiam fazê-la. Trabalhando em turnos de oito horas. Isso somaria 21 homens. Mas um comandante de polícia que tivesse alguma experiência não multiplicava suas necessidades de pessoal por três; multiplicava-as por quatro, no mínimo. Isto porque o pessoal tem direito a folgas, férias, licenças para tratamento de saúde, emergências familiares etc. Assim, a força básica para vigilância de Danny Boy somava 28 e Delaney perguntou-se se não havia sido otimista demais ao pensar que poderia reduzir em dois terços os 500 detetives designados para a Operação Lombard.
Mas aquilo constituía apenas uma divisão: a força externa que vigiaria Blank. A segunda divisão ficaria na retaguarda, mantendo registros, acompanhando os relatórios pelos rádios transmissores-receptores dos guardas de Blank. Isso implicava uma rede de comunicações. Transmissores e receptores. Em alguma parte. Não no prédio da 251a Delegacia. Delaney devia isso ao Tenente Dorfman. Tiraria de lá a Operação Lombard, estabeleceria em outro local o posto de comando. Isolaria seu pessoal. Isso ajudaria a reduzir as informações passadas à imprensa.
A terceira divisão encarregar-se-ia de pesquisas: a história do suspeito, meio formativo, classificação de crédito, contas bancárias, declarações de imposto de renda, folha de serviço militar – qualquer coisa que jamais houvesse sido registrada a respeito daquele homem. Além de entrevistas com amigos, parentes, conhecidos, colegas de trabalho. Justificativas para esse trabalho poderiam ser concebidas, e Blank não seria alertado.
(Mas, e se fosse? Aquela idéia indistinta no fundo da mente de Delaney começou a tomar forma definida.)
Uma possível quarta divisão poderia investigar a sombria e magrela amiga, o menino Tony, os amigos – qual era o nome deles? Mortons. Era isso. Eram donos da Erótica. Tudo podia requerer os serviços de outra turma. Todo aquele planejamento era aproximado, provisório. Apenas um esboço. Mas constituía um começo. Fez garatujas durante quase uma hora, começando a dar substância aos planos, pensando em que homens queria, e onde, a quem devia favores. Favores "Devo-lhe um". "Aquele você me deve". O sangue vital do Departamento. Da política. Do mundo dos negócios. Ou do violento, conspiratório e rude mundo. Não era aquilo o cimento que impedia a raquítica máquina de cair aos pedaços? Seja bacana comigo e eu serei bacana com você. Charles Lipsky: "Uma mão lava a outra – certo?"
Havia-se passado uma hora – mais do que isso – desde a conversa com Thorsen. O telex teria tiquetaqueado em todas as delegacias, divisões de detetives, e unidades especiais na cidade. O Capitão Delaney dirigiu-se ao quarto, ficou de cueca e tomou um "banho de prostituta", lavando mãos, rosto, e axilas com uma toalha, secando-se em seguida, passando talco, e penteando com cuidado o cabelo.
Vestiu o uniforme mais novo, usado até aquele momento apenas em cerimônias e funerais. Endireitou os ombros, puxou bem para baixo a camisa e certificou-se de que as condecorações estavam alinhadas. Tirou um novo quepe de um saco plástico na prateleira do guarda-roupa, limpou na manga da camisa o escudo, enfiou o quepe bem reto na cabeça, com a curta pala puxada bem sobre os olhos. O uniforme dava uma impressão brutal: gola justa no pescoço, olhos protegidos, ombros largos, cintura esguia. Havia ali ameaça. Fitou a própria imagem no espelho do saguão. Não era egoísmo. Se a pessoa nunca pertenceu a uma igreja, sinagoga ou mesquita, poderia assim pensar. Mas o traje era a continuação da tradição, um símbolo, um mito – o que se quisesse. O traje, as condecorações e as insígnias transcendiam o traje, as condecorações e as insígnias. Eram para os que acreditavam, a fé.
Resolveu não usar sobretudo; não iria longe. Dirigiu-se ao estúdio e demorou-se apenas o suficiente para apanhar a foto de Daniel Blank e rabiscar-lhe o endereço, mas não o nome, nas costas. Enfiou-a no bolso traseiro da calça. Deixou os óculos sobre a escrivaninha. Se possível, a pessoa não devia usar óculos quando exercia comando, ou exibir qualquer outro sinal de deficiência física. Era ridículo, mas assim era.
Fechou a porta e dirigiu-se para a 251a Delegacia, ao lado. O telex havia obviamente chegado; Dorfman encontrava-se ao lado da mesa do sargento, com os braços cruzados, à espera. Ao ver Delaney, adiantou-se imediatamente com o longo e feio rosto relaxando-se num largo sorriso. Estendeu vivamente a mão.
– Parabéns, capitão.
– Obrigado – disse, apertando-lhe a mão. – Tenente, vou tirar essa turma daqui logo que seja possível. Um dia ou dois, no máximo. O senhor poderá, então, ter sua casa de volta.
– Obrigado, capitão – disse grato Dorfman.
– Onde estão eles?
– Nas sala dos detetives.
– Quantos?
– Trinta, quarenta. . . por aí. Ouviram a notícia, mas não sabem o que fazer.
Delaney inclinou a cabeça. Subiu a velha e rangedora escada e passou pela sala do delegado. Encontrou fechada a porta de vidro fosco da sala dos detetives. Ouviu ruído no interior, muitos homens falando ao mesmo tempo, e um zumbido de irritada turbulência. Abriu a porta e postou-se na soleira.
Cabeças se voltaram para fitá-lo, seguidas de outras. Mais. Todas. A conversação morreu. Ele ficou simplesmente ali, olhando-os friamente sob a pala do quepe. Todos o fitaram. Alguns se ergueram, mal-humorados. Em seguida, mais alguns. Mais outros. Ele esperou, imóvel, observando-os. Reconheceu alguns, mas não alterou a expressão distante. Esperou até que todos se pusessem de pé e ficassem silenciosos.
– Eu sou o Capitão Edward X. Delaney – disse. – Estou agora no comando. Algum tenente por aqui?
Alguns dos homens olharam em volta, contrafeitos. Finalmente, do fundo, uma voz respondeu:
– Não, capitão, nenhum tenente.
– Algum sargento-detetive?
Uma mão ergueu-se, uma mão negra. Delaney dirigiu-se à mão erguida, afastando-se os homens para deixá-lo passar. Foi até o fundo da sala até pôr-se em frente do sargento negro, um homem baixo e troncudo, de feições bem definidas e com o que parecia um gorro de lã branca, bem justo, sobre a cabeça. Era, sabia Delaney, chamado de "Papai" e parecia um professor de literatura inglesa. Estranhamente, possuía talentos didáticos.
– Sargento-detetive Thomas MacDonald – disse em voz alta o Capitão Delaney para que todos pudessem ouvi-lo.
– Certo, capitão.
– Lembro-me. Trabalhamos juntos. Um caso de roubo de armazém no West Side. Mais ou menos há dez anos.
– Mais para quinze, capitão.
– Foi? Você levou um tiro no quadril.
– Mais na bunda, capitão.
Ouviram-se alguns risinhos. Delaney sabia o que MacDonald tentava fazer e forneceu-lhe material.
– Na bunda? – perguntou. – Espero que tenha sarado, sargento.
O professor negro encolheu os ombros.
– Apenas um buraco a mais, capitão – disse. Os homens explodiram em gargalhadas, relaxando-se.
Delaney fez um gesto na direção de MacDonald.
– Acompanhe-me. – O sargento seguiu-o até o corredor. O capitão fechou a porta, abafando a maior parte dos risos e ruído. Olhou para MacDonald. MacDonald olhou para ele.
– Foi realmente no quadril – disse suavemente.
– Claro, capitão – concordou o sargento. – Mas eu pensei...
– Eu sei o que você pensou – respondeu o capitão – e pensou certo. Pode trabalhar até oito horas da manhã?
– Se tiver que trabalhar.
– Terá – Delaney tirou a fotografia de Blank do bolso e entregou-a a MacDonald. – Este é o homem – disse em voz sem expressão. – O endereço está nas costas da foto. Não precisa saber seu nome. É um prédio de apartamentos que ocupa um quarteirão inteiro. Entrada e saída por um saguão. Um porteiro durante a noite. Quero três homens, à paisana, cobrindo o saguão. Se esse homem sair, quero que fiquem perto dele.
– Tão perto como?
– O suficiente.
– De modo que se ele der um peido a gente possa sentir o cheiro?
– Não tão perto assim. Mas não deixem o cara perder-se de vista. Nem por um segundo. Se ele os descobrir, muito bem. Mas eu não gostaria disso.
– Compreendo, capitão. Louco?
– Algo parecido. Não o levem na brincadeira. Ele não é um rapaz bonzinho.
O sargento assentiu.
– E dois carros. Dois homens cada, à paisana. Em ambas as extremidades do quarteirão. Para o caso de querer decolar. Ele tem um Chevy Stingray na garagem, ou pode tomar um táxi. Compreendeu tudo?
– Certamente, capitão.
– Conhece Shakespeare e Lauder?
– Os "Gêmeos Dourados"? Conheço Lauder.
– Gostaria que eles ficassem em um dos carros. Se não estiverem de serviço, quaisquer policiais competentes servirão. Isso soma sete homens. Escolha seis outros, três à paisana e três uniformizados, e deixe-os de reserva aqui até oito da manhã. Todos os demais podem ir para casa. Mas devem voltar às oito horas, bem como todos os que você puder alcançar por telefone.
– Onde quer que eu fique, capitão?
– Aqui mesmo. Preciso sair durante uma hora, mais ou menos, mas voltarei. Tomaremos café juntos e falaremos sobre aquele buraco extra na sua bunda.
– Parece que vai ser uma noite alegre.
Delaney fitou-o durante longo tempo. Haviam entrado no Departamento no mesmo ano, estado na mesma classe na Academia de Polícia. Naquele instante, Delaney era capitão e MacDonald, sargento. Não era uma questão de capacidade. Delaney não diria o que era e MacDonald tampouco.
– Em que é que Broughton o empregava? – perguntou ao sargento.
– Em prender tipos esquisitos na rua.
– Merda! – explodiu enojado Delaney.
– Exatamente meus sentimentos, capitão – comentou o sargento.
– Bem, tome as providências que pedi – ordenou o capitão. – Voltarei dentro de uma hora. Os seus homens devem estar a postos nessa ocasião. Quanto mais cedo, melhor. Mostre-lhes a foto, mas fique com ela. É a única que tenho. Mandarei tirar cópias amanhã.
– É ele, capitão? – perguntou o sargento-detetive.
Delaney encolheu os ombros.
– Quem sabe?
Deu-lhe as costas e afastou-se. Já se encontrava na escada quando o sargento o chamou.
– Capitão.
Virou-se para fitá-lo.
– É bom trabalhar novamente com o senhor.
Delaney sorriu de leve, mas não respondeu. Desceu a escada pensando na estupidez de Broughton em usar o sargento para prender tipos estranhos nas ruas. MacDonald! Um dos melhores professores do Departamento. Não era de espantar que aqueles quarenta homens estivessem amargurados e resmungando. Não porque Broughton os tivesse conservado ocupados, mas porque não soubera usar suas habilidades e seus talentos. Ninguém podia suportar aquilo durante muito tempo sem perder a energia, a ambição, até o interesse pelo que fazia. E o que era ele, Delaney? Quais eram suas habilidades e seus talentos? Respondeu com um aceno à continência do sargento de serviço e saiu. Sabia o que era. Era um "tira".
Teria requisitado um carro policial, mas não havia nenhum disponível. Dirigiu-se à Second Avenue, e tomou um táxi para o centro. Entrou no hospital e, pelo menos daquela vez, as paredes de azulejos brancos e o cheiro que saturava o local não o deprimiram. Imagine só quando Bárbara soubesse!
Empurrou a porta do quarto da esposa. Viu a enfermeira sentada ao lado da cama. Bárbara parecia dormir. A enfermeira fez-lhe um gesto, indicando para esperá-la no corredor.
– Ela teve uma tarde ruim – murmurou. – No início, foram necessárias duas enfermeiras para contê-la e tivemos que dar-lhe alguma coisa. O médico disse que tudo correria bem.
– Por quê? – perguntou o capitão. – O que aconteceu? A nova droga?
– O senhor terá de perguntar ao doutor – respondeu ela, empertigada.
Delaney pensou novamente em desespero por que sempre diziam "o doutor". Nunca "o médico". "O senhor terá de consultar o engenheiro". "Terá de conversar com o arquiteto". "Terá de discutir com o advogado". Fazia o mesmo sentido e tudo aquilo não fazia sentido algum.
– Eu ficarei sentado um pouco ao lado dela – disse à enfermeira. Ela era tão jovem; não podia censurá-la. A quem podia culpar?
Ela inclinou alegre a cabeça.
– Avise-me quando sair. A menos que ela adormeça antes.
– Não está dormindo agora?
– Não. Tem os olhos fechados, mas está acordada. Se precisar de alguma ajuda, toque a campainha.
Afastou-se rapidamente, deixando-o a pensar que tipo de ajuda poderia necessitar. Voltou sem ruído para o quarto, ainda de quepe na cabeça. Puxou uma cadeira para o lado da cama e ficou olhando para Bárbara. Ela parecia dormir; os olhos estavam fechados e respirava profunda e regularmente. Mas enquanto observava, as pálpebras tremeram, abriram-se e olhou fixamente para o teto.
– Bárbara? – chamou suavemente. – Querida?
Os olhos moveram-se, mas não a cabeça. Os olhos moveram-se para fitá-lo, sondá-lo, passar por ele. mas não vê-lo.
– Bárbara, sou eu, Edward, estou aqui. Tenho tanta coisa para lhe contar, querida. Aconteceu tanta coisa.
– Honey Bunch?
– Sou eu, Edward, querida. Tenho muita coisa para lhe contar. Aconteceu muita coisa.
– Honey Bunch? – perguntou ela novamente.
Encontrou os livros num banquinho de metal junto à cama. Apanhou o primeiro, nem mesmo olhando para o título, e abriu-o ao acaso. Não tendo trazido os óculos, era obrigado a conservar o livro quase à distância de um braço. Mas os tipos eram grandes e havia bons espaços brancos entre as linhas.
Sentado espigado no Uniforme Número Um, com o lustroso quepe firmemente plantado na cabeça, o comandante da Operação Lombard começou a ler:
"Honey Bunch colheu suas flores naquela manhã, e deu seu primeiro buquê. Esta é sempre uma encantadora experiência de jardinagem – dar o primeiro buquê a alguém. Naturalmente, Honey Bunch deu-o à Sra. Lancaster e a velhinha disse que levaria as flores para casa, colocá-las-ia na água e as faria durar tanto quanto possível.
– A senhora não tem jardim? – perguntou Honey Bunch. – Nem mesmo um pequenino?
– Nenhum jardim – respondeu triste a velhinha. – Este é o primeiro ano, que me lembre, que não tive um pedaço de chão para plantar..."


5

Ele dormia quando podia, mas não era muito; talvez quatro ou cinco horas por noite. Mas para sua surpresa e prazer, isso não lhe diminuía a energia. Dentro de três dias organizara toda a operação. Estava funcionando.
Tirou o Tenente Jeri Fernandez da Divisão do Centro de Confecção de Roupas, que ele odiava, e colocou-o no comando da turma que vigiava Daniel Blank. Delaney deixou-o escolher seus próprios agentes, o "Homem Invisível" quase chorou de gratidão. Era exatamente o tipo de trabalho que amava e que fazia melhor. Foi idéia dele pedir emprestado um caminhão coberto com um toldo da Consolidated Edison e fazer um buraco nas proximidades da passagem de automóvel que conduzia ao prédio de apartamentos de Blank. Os homens de Fernandez usavam macacões e capacetes de segurança e trabalhavam lentamente no buraco que haviam aberto na rua. Ele prejudicava o tráfego, mas o caminhão estava cheio de equipamentos de comunicação e armas e servia como posto de comando de Fernandez. Delaney ficou satisfeito. O diabo que levasse o congestionamento do trânsito.
Para a função de "St. de Dentro", o capitão requisitou o detetive de primeira classe Ronald Blankenship, o homem que tratara dos dois primeiros pequenos casos de Daniel Blank. Trabalhando em estreita cooperação, Delaney e Blankenship transferiram o posto de comando da Operação Lombard do prédio da 251ª Delegacia para a sala de estar da casa de Delaney, contígua. O cômodo não era tão espaçoso como queriam, mas tinha suas vantagens: o pessoal de comunicações podia puxar um fio pela janela, subir ao telhado de Delaney e cruzar para ligá-lo à antena do telhado da delegacia.
O Sargento-Detetive Thomas MacDonald, o "Papai", foi escolhido para dirigir a divisão de pesquisas. MacDonald ficou feliz. Tirava tanto prazer de uma tarde folheando documentos empoeirados como outro homem poderia obter num centro de massagens. Dentro de 24 horas, seu pessoal havia compilado um crescente dossiê sobre Daniel G. Blank, desmontando-o membro por membro.
O Capitão Delaney apreciava o trabalho de seus amadores, mas não podia negar as vantagens e privilégios de estar no serviço ativo, no comando oficial, tendo por trás de si todos os recursos do Departamento e promessas de pessoal, equipamentos e fundos ilimitados.
Exemplo: fora providenciada escuta do telefone do apartamento de Daniel Blank. A aparelhagem fora instalada na central telefônica que lhe atendia a linha.
Exemplo: o telefonema do dia seguinte a Charles Lipsky resultara na hora da partida e na chapa do táxi que apanhara a namorada morena no apartamento de Blank. Delaney disse a Blankenship o que queria. Dentro de três horas, a chapa fora identificada, verificada a que frota pertencia, e um detetive esperava na garagem a volta do motorista. O talão de viagem fora conferido e o capitão obtivera o endereço do local onde o táxi a deixara. Um dos agentes de Fernandez foi examiná-lo, descobriu-se que era uma casa na East End Avenue. Após consulta com o tenente, Delaney resolveu montar um esquema de vigilância; policiais à paisana durante vinte e quatro horas por dia. Fernandez sugeriu destacar uma dupla de detetives para passar um "pente fino" na vizinhança e descobrir o que fosse possível da casa.
– Trata-se de uma zona elegante – disse pensativo Delaney. – Muita gente importante mora por ali. Diga-lhe para andar com cuidado.
–Certamente, capitão.
– E há um bocado de empregadas. Você tem algum negro boa pinta que possa conversar com as empregadas e cozinheiras da rua?
– Tenho o tipo exato! – exclamou triunfante Fernandez. – Um grande e belo garanhão. Ele não anda, desliza. E é sabido como o quê. Nós o chamamos de "Sr. Cheiroso".
– Parece bom – assentiu o capitão. – Solte-o na rua e veja o que ele pode descobrir.
Exemplo: vestiu roupas civis e foi ao prédio de apartamento de Blank entregar os vinte dólares a Lipsky. O porteiro agradeceu-lhe profusamente.
Exemplo: uma hora depois, Blankenship entregou-lhe os antecedentes de Lipsky. Como havia desconfiado, tinha mesmo antecedentes. Na verdade, estava em livramento condicional, julgado culpado de haver cometido uma inconveniência na via pública, tendo "com deliberada e maliciosa intenção" urinado no capô de um Bentley estacionado na rua.
Exemplo: Christopher Langley telefonou para avisar que havia completado a lista das casas que vendiam, nos Estados Unidos, o machado de gelo alemão. Exercendo sua nova autoridade, Delaney mandou um carro oficial à casa de Langley para apanhar a lista e trazê-la ao seu posto de comando. A lista foi entregue a um dos pesquisadores do Sargento MacDonald que, usando o telefone, acertou logo na primeira. Daniel G. Blank comprara o machado cinco anos antes na Alpine Haven, uma casa de vendas pelo correio de Stanford, Conn., que se especializava em equipamento de montanhismo. Um policial foi enviado imediatamente a Stanford a fim de obter uma cópia fotostática da nota de venda, extraída em nome de Daniel G. Blank.
Exemplo: o pessoal de Fernandez, especialmente o "Sr. Cheiroso", obteve progressos sobre a casa da East End Avenue. Pelo menos sabiam naquele instante os nomes dos seus residentes: Célia Montfort, a morena e magra amiga de Blank; o irmão mais moço dela, Anthony; um caseiro chamado Valenter; e uma empregada de meia-idade. Os nomes foram entregues a MacDonald; o professor designou um grupo especial para conseguir informações sobre eles.
Durante esses dias e noites de febril atividade, na semana anterior ao Natal, o Capitão Delaney conseguiu encontrar tempo para efetuar vários trabalhos rotineiros de natureza pessoal. Deu o presente de Natal de Mary e, além disso, duas semanas de férias. Convocou um velho guarda, empregado em serviço limitado aguardando aposentadoria, disse-lhe para comprar uma cafeteira de vinte xícaras e conservá-la funcionando 24 horas por dia na cozinha; manter cheio o refrigerador com latas de cerveja, frios e queijo; e conservar um estoque suficiente de pão e bolos para que todos aqueles que terminassem uma missão da Operação Lombard numa fria noite de vigilância, ou simplesmente parassem durante o dia para fazer relatório, tivessem garantido um sanduíche e uma bebida.
Requisitou camas dobráveis, travesseiros e cobertores, que foram instalados na sala de estar, cozinha, sala de jantar – em toda parte, menos em seu gabinete. Policiais que moravam em Long Island ou Westchester preferiam às vezes dormir ali, em vez de fazer a longa viagem até em casa, comer, dormir algumas horas, e voltar novamente.
Arranjou tempo também para telefonar para seus amadores, desejar-lhes um feliz Natal e agradecer-lhes a ajuda e o apoio e dizer-lhes, com tanta gentileza quanto possível, que não mais precisava de seus serviços. Assegurou-lhes que a ajuda que lhe haviam prestado fora inestimável no desenvolvimento de uma "pista muito promissora".
Fez isso em telefonemas a Christopher Langley e Calvin Case. Levou Mônica Gilbert para almoçar e contou-lhe tanto quanto achava que ela devia saber: que, parcialmente graças aos seus esforços, tinha uma boa possibilidade de prender o assassino e que, em virtude da pressão do trabalho, não poderia telefonar-lhe ou vê-la com a freqüência que desejava. Ela mostrou-se compreensiva.
– Mas tome cuidado consigo mesmo – suplicou. – Você parece tão cansado.
– Eu me sinto otimamente – protestou. – Durmo como um bebê.
– Quantas horas?
– Bem... tantas quanto posso.
– E está fazendo refeições regulares e nutritivas, tenho certeza – disse ela ironicamente.
Ele riu.
– Não estou morrendo de fome. Com sorte, isso vai acabar logo. De uma maneira ou outra. Continua visitando Bárbara?
– Quase todos os dias. Sabe, somos tão diferentes, mas temos também tanta coisa em comum.
– Têm? Ótimo. Sinto-me culpado a respeito de Bárbara. Entro e saio às carreiras do quarto dela. Apenas o suficiente para dizer alô. Mas ela passou por isso antes. É esposa de policial.
– Eu sei. Ela me contou.
A voz triste provocou-lhe uma súbita e vaga dor, sobre algo que devia ter feito e que não fizera. Mas não podia pensar no assunto naquele momento.
– Obrigado por visitar Bárbara e gostar dela – disse. – Já lhe contei que nós agora somos avós?
– Bárbara me contou. Mazel tov.
– Obrigado. Um guri muito feio.
– Bárbara me contou – repetiu ela. – Mas não se preocupe. Dentro de seis meses ele será um lindo menino.
– Sem dúvida.
– Enviou-lhe um presente?
– Bem. . . Não tive realmente tempo. Mas falei com Liza e com o marido ao telefone.
– Não tem importância. Bárbara mandou presentes. Eu os apanhei para ela e fiz a remessa.
– Foi muita bondade sua. – Ele esfregou o queixo, sentiu os cabelos eriçados da barba e deu-se conta de que não se barbeara naquela manhã. Isso não era bom. Precisava apresentar uma imagem de comandante bem arrumado, impecavelmente uniformizado e confiante aos subordinados. Era importante.
– Edward – perguntou ela em voz baixa, realmente preocupada – você está bem?
– Naturalmente que estou bem – respondeu, impassível. – Passei por coisas iguais antes.
– Por favor, não fique zangado comigo.
– Não estou zangado, Mônica. Estou bem, juro. Poderia dormir e comer melhor, mas isso não vai me matar.
– Você parece tão. . . tão tenso. Este caso é importante para você, não?
– Importante? Prender aquele cara? Naturalmente que é importante para mim. Não é para você? Ele matou seu marido.
Ela encolheu-se.
– Sim – disse em voz baixa – é importante para mim. Mas não gosto do que este caso está-lhe fazendo.
Não pensaria no que ela dissera, ou no que ela tinha em mente. As primeiras coisas em primeiro lugar.
– Vou voltar ao trabalho – disse ele e, com um gesto, pediu a conta.
Durante aquela febril semana reservou tempo para mais dois serviços de natureza pessoal. Ainda sem saber por que agia assim, escolheu o cartão comercial de um certo J. David McCann, representante de uma empresa chamada Universal Credit Union. Usando o duro chapéu de feltro e o desengonçado sobretudo civil, entrou no perfumado salão da Erótica, Madison Avenue, e pediu para falar com o Sr. ou a Sra. Morton, esperando que não o reconhecessem como o antigo titular da delegacia em cuja jurisdição residiam e trabalhavam.
Falou com ambos no escritório, nos fundos da loja. Nenhum dos dois reconheceu-o: compreendeu que, com exceção dos membros de associações comerciais, gente importante, grupos comunitários e ativistas sociais, o nova-iorquino típico não tinha a menor idéia sobre o nome ou a aparência do homem que comandava as forças da lei e da ordem na jurisdição onde residia. Um pensamento desses era de esvaziar o ego de uma pessoa.
– Não estou vendendo coisa alguma – disse cativante. – Trata-se de uma investigação rotineira de crédito. O Sr. Daniel G. Blank solicitou-nos um empréstimo e deu seus nomes como referência. Queremos apenas nos certificar de que ambos o conhecem.
Flo olhou para Sam. Sam olhou para Flo.
– Naturalmente que o conhecemos – disse Sam, quase zangado. – É um bom amigo nosso.
– Há anos que o conhecemos – afirmou Flo. – Mora no mesmo prédio de apartamentos que nós.
– Hummm - assentiu Delaney. – Um homem de bom caráter, diriam os senhores? Digno de confiança? Honesto? Merecedor de crédito?
– Um escoteiro – garantiu Sam. – O que, diabo, significa tudo isso?
– O senhor falou em um empréstimo – disse Flo. – Que tipo de empréstimo? Em que valor?
– Bem. . . eu não devia, na realidade, revelar esses detalhes – replicou Delaney em voz baixa e confidencial – mas o Sr. Blank candidatou-se a uma hipoteca bastante grande, garantindo a compra de uma casa na East End Avenue.
Os Mortons entreolharam-se, atônitos. Logo depois e despertando o interesse de Delaney, abriram-se em sorrisos satisfeitos.
– A casa de Célia! – berrou Sam, dando uma palmada nas coxas. – Está comprando a casa dela!
– Está feito! – gritou Flo, apertando ambos os braços em volta do corpo. – Estão realmente combinando!
O Capitão Delaney inclinou a cabeça na direção de ambos, arrancou o cartão dos dedos de Sam, recolocou o chapéu de feltro na cabeça, e começou a dirigir-se para a porta.
– Espere, espere, espere – chamou Sam. – Podemos dizer ao Daniel que o senhor esteve aqui?
– Que andou fazendo uma verificação? – perguntou Flo. – Importa-se se brincarmos um pouco com ele a esse respeito?
– Naturalmente que não – sorriu Delaney. – Por favor, façam isso.
Na segunda visita, usou as mesmas roupas e o mesmo cartão. Mas, dessa vez, foi obrigado a ficar sentado em uma sala quente durante quase meia hora antes de falar com o Sr. René Horvath, Diretor de Pessoal da Javis-Bircham Corp. Finalmente, foi introduzido no gabinete, onde o Sr. Horvath inspecionou-lhe com certo desagrado as roupas. E bem que podia fazer isso; usava um terno de seda pura preto, camisa vermelha de quadrados, com colarinho e punhos brancos, e gravata preta tricotada. O que Delaney gostou mais, concluiu, foram os mocassins de verniz preto enrugado, com moedas brilhantes de cobre inseridas nas abas superiores. Refinado.
Delaney utilizou a mesma rotina que aplicara aos Mortons, variando-a apenas para omitir qualquer menção à compra de uma casa na cidade, dizendo apenas que o Sr. Daniel G. Blank solicitara um empréstimo e que ele, Sr. J. David McCann – "Meu cartão, senhor" – da Universal Credit Union, estava simplesmente interessado em verificar se o Sr. Blank, como alegava, era empregado da Javis-Bircham Corp.
– Ele é – respondeu o elegante Sr. Horvath, devolvendo o cartão com uma expressão que sugeria que aquele pedaço de papelão pudesse ser um transmissor de doenças venéreas. – O Sr. Daniel Blank é funcionário desta companhia.
– Em uma posição de responsabilidade?
– De muita responsabilidade.
– Suponho que não me daria uma idéia aproximada da renda anual do Sr. Blank?
– O senhor supõe corretamente.
– Sr. Horvath, asseguro-lhe que tudo o que me disser será tratado em base rigorosamente confidencial. Diria que o Sr. Blank é honesto, digo, de confiança?
O rosto contraído do Sr. Horvath fechou-se ainda mais.
– Sr. McClosky...
– McCann.
– Sr. McCann, todos os executivos da J-B são honestos e dignos de confiança.
Delaney assentiu, e enterrou o chapéu de feltro na cabeça.
– Muito obrigado por ter-me recebido, senhor. Aprecio muito a sua bondade. Estou simplesmente fazendo meu trabalho... Espero que compreenda.
– Naturalmente.
Delaney voltou-se para sair mas, subitamente, uma mão mole segurou-lhe o braço, agarrando-o firmemente.
– Sr. McCann...
– Sim?
– Disse que o Sr. Blank solicitou um empréstimo?
– Sim, senhor.
– Em que montante?
– Isso não posso informar. Mas o senhor foi tão prestativo que lhe posso dizer que se trata de um empréstimo vultoso.
– Oh? – fez o Sr. Horvath. – Hummm – disse ainda o Sr. Horvath olhando fixamente para as brilhantes moedas inseridas nas línguas do mocassim. – É muito estranho. A Javis-Bircham, Sr. McCann, tem seu próprio programa de empréstimos aos funcionários, do empregado da lanchonete ao Presidente. Podem retirar até cinco mil dólares, sem juros, e resgatar o empréstimo mediante deduções nos salários durante um período de vários anos. Por que o Sr. Blank não solicitou um empréstimo à companhia?
– Oh, bem – riu alegre Delaney – como sabe, todo mundo fica quebrado mais cedo ou mais tarde... certo? Acho que queria manter sigilo em torno do assunto.
Deixou um Sr. René Horvath muito preocupado e pensou que se a impressão de Handry fosse correta, e periclitante a posição de Blank na companhia, mais periclitante ficaria agora.
Naquela semana antes do Natal, enquanto a mobília da sala de estar de Delaney era empurrada até a parede, trazidas mesas de jogo e cadeiras dobráveis, instaladas camas e o pessoal de comunicações ainda mexia no equipamento, incluindo três linhas telefônicas extras, um "conselho de guerra" passou a ser realizado todas as tardes às três horas. Tinha lugar no gabinete do capitão, onde se podiam fechar as portas. Compareciam o Capitão Delaney, Jeri Fernandez, o detetive de primeira classe Ronald Blankenship, e o Sargento-Detetive Thomas MacDonald. O armário de bebidas de Delaney era aberto ou, se eles preferiam, havia cerveja gelada ou café quente na cozinha.
As primeiras reuniões concentraram-se principalmente em planejamento, organização, divisão de responsabilidades, escolha de pessoal, e formação da cadeia de comando. Em seguida, à medida que as informações começaram a chegar, passavam parte do tempo discutindo as Cartas de Emprego de Tempo, compiladas pela turma de Blankenship. Constituíam informações extremamente detalhadas da rotina diária de Daniel Blank: a hora em que saía para o trabalho, a rota seguida, a hora da chegada ao Edifício Javis-Bircham, a hora em que saía para o almoço, onde almoçava geralmente, a hora que voltava ao escritório, a hora da saída, a chegada em casa, a hora em que saía à noite, aonde ia, quanto tempo ficava fora. Por volta do quarto dia, o esquema de movimentos era bem conhecido. Daniel Blank parecia ser um homem ordeiro e disciplinado.
Problemas surgiam e eram solucionados. Delaney ouvia as opiniões de todos os presentes. Após o debate, tomava a decisão final.
Questão: devia um policial disfarçado, com a cooperação da administração, ser colocado no prédio de Daniel Blank como carregador, porteiro, ou em qualquer outra função? Decisão de Delaney: não.
Questão: devia um policial ser colocado na Javis-Bircham, tão perto do departamento de Blank quanto possível? Decisão de Delaney: sim. Foi atribuída a Fernandez a missão de inventar a melhor justificativa que parecesse plausível aos executivos da J-B com quem iria tratar.
Questão: devia uma Carta de Emprego de Tempo ser estabelecida no tocante aos moradores da casa da East End Avenue? Decisão de Delaney: não, com as opiniões solidárias de três de seus assistentes.
– É uma casa amalucada – reconheceu MacDonald. – Não podemos descobrir coisa alguma sobre os moradores. Esse Valenter, o mordomo – ou que outro nome tenha – tem ficha na polícia, por haver molestado rapazes. Mas nenhuma condenação. E isso é tudo que conseguimos descobrir até agora.
– Eu pouco mais tenho – confessou Fernandez. – A mulher – a tal Célia Montfort – foi internada duas vezes no hospital por tentativa de suicídio. Cortou os punhos e, certa vez, precisou de uma lavagem estomacal. Estamos verificando em outros hospitais, mas não temos nada definido ainda.
– O garoto parece ser pederasta – disse Blankenship – mas ninguém me informou ainda coisa alguma que constitua um padrão. Como disse "Papai", é uma organização esquisita. Acho que ninguém sabe o que acontece naquela casa. Nada que possamos reduzir ao papel. A mulher entra e sai a todas as horas do dia e da noite. Desapareceu durante dois dias. Onde se encontrava? Não sabemos, e não saberemos até colocar uma pessoa na pista dela. Capitão?
– Não – respondeu Delaney. – Ainda não. Continue a trabalhar.
Continue a trabalhar. Continue a trabalhar. Era tudo que ouviam dele, e continuavam firmes porque ele parecia saber o que estava fazendo, emitia uma aura de confiança, nunca parecia ter dúvida de que, se eles continuassem a trabalhar, acabariam por prender aquele psicopata, e terminariam os assassinatos.
Daniel C. Blank. O capitão sabia seu nome e, naquela ocasião, os outros também. Teriam que saber. Os policiais que trabalhavam na rua, no caminhão de toldo da Con Ed, e nos carros sem marcas, adotaram por consentimento comum o nome-código "Danny Boy" para o homem que vigiavam. Possuíam agora sua foto, reproduzida às centenas, conheciam o endereço da casa e fiscalizavam suas chegadas e saídas. Mas eram informados apenas de que era um "suspeito".
Num dia daquela semana, cuja data exata nunca pôde recordar-se, o capitão concedeu a primeira entrevista à imprensa. Foi realizada na sala, vazia naquela ocasião, da antiga turma de detetives da 251ª Delegacia. Havia repórteres de jornais, revistas, e da TV local. As câmaras foram trazidas e eram quentes as luzes. O Capitão Delaney, usando o uniforme Número Um, ditou de memória uma curta declaração que lhe tomara muito tempo na noite anterior
"Eu sou o Capitão Edward X. Delaney", começou, ereto, olhando para as câmaras e nutrindo a esperança de que não vissem o suor na sua face. "Fui designado para comandar a Operação Lombard. Este caso, como os senhores sabem, envolve os homicídios, aparentemente sem ligação, de quatro homens: Frank Lombard, Bernard Gilbert, o Detetive Roger Kope, e Albert Feinberg. Passei vários dias lendo os relatórios da Operação Lombard, durante o tempo em que foi dirigida pelo antigo Vice-Comissário Broughton. Não há nada nos relatórios que possa possivelmente levar a uma denúncia, condenação, ou mesmo identificação de um suspeito. É um registro de total e completo fracasso".
Ouviu-se um murmúrio dos repórteres ali reunidos; furiosamente, tomaram notas. Delaney permaneceu impassível, embora sorrisse por dentro. Será que Broughton pensava que podia falar a Delaney do jeito que falara e, no fim, não pagar por isso? O Departamento funcionava na base de favores. Funcionava também na base da vingança. Ia candidatar-se a prefeito? Boa sorte, Broughton!
"Dessa maneira", continuou Delaney, "uma vez que era tão completa a falta de evidência nos arquivos da Operação Lombard durante o tempo em que esteve sob o comando do antigo Vice-Comissário Brouhgton, estou começando do início, com a morte de Frank Lombard, e tenciono realizar uma investigação inteiramente nova sobre os quatro homicídios. Não lhes prometo nada. Prefiro ser julgado mais por meus atos do que por minhas palavras. Esta é a primeira e última entrevista à imprensa até que tenha prendido o assassino ou seja substituído no cargo. Não responderei a perguntas".
Uma hora após a curta entrevista, transmitida na íntegra nos programas noticiosos da TV local, o Capitão Delaney recebeu um pacote em casa. Foi levado ao estúdio por um dos guardas uniformizados, postado à porta de entrada – em vigilância de 24 horas por dia. Ninguém entrava ou saía sem exibir um passe especial que Delaney mandara imprimir e concedia apenas a membros de confiança de sua Operação Lombard. O guarda colocou o pacote sobre a mesa de Delaney.
– Não poderia ser uma bomba, capitão? – perguntou ele, nervoso. – O senhor apareceu na TV hoje à noite, como sabe.
– Eu sei – anuiu o capitão. Examinou o pacote e ergueu-o com cuidado. Inclinou-o suavemente para frente e para trás. Algo correu dentro do pacote.
– Não – disse ao nervoso guarda. – Não acho que seja uma bomba. Mas fez bem em sugerir a possibilidade. Pode voltar ao seu posto.
– Sim, senhor – disse o jovem guarda, bateu continência e retirou-se.
Bonitão, pensou Delaney, mas aquelas costeletas eram compridas demais.
Abriu o pacote. Era uma garrafa de um conhaque de vinte e cinco anos, com um pequeno envelope preso ao lado. Delaney abriu a garrafa e cheirou-a: primeiras coisas em primeiro lugar. Quis prová-lo imediatamente. Abriu em seguida o envelope fechado. Um cartão duro. Duas palavras: "Belo" e "Alinski".
O ambiente dos "conselhos de guerra" mudou imperceptivelmente nos três dias anteriores ao Natal. Era evidente que eles possuíam naquele momento uma organização eficiente. Danny Boy era seguido todas as vezes que saía de casa ou do escritório. O trabalho de controle interno e de comunicações de Blankenship nada deixava a desejar. Os homens do Sargento-Detetive MacDonald haviam organizado um arquivo em torno de Blank que ocupava três gavetas de um armário fechado no estúdio de Delaney. Incluía a história de sua recusa em comparecer ao enterro dos pais e uma reveladora entrevista com uma mulher casada de Boston, que concordou em dar suas impressões sobre Daniel Blank, quando ele se encontrava ainda na faculdade, ante a justificativa de que Blank estava sendo cogitado para um cargo de segurança de alto nível no governo. Os comentários dela foram condenatórios, mas coisa alguma continham que pudesse ser apresentada a um grande júri. A ex-esposa de Blank casara-se novamente e, no momento, fazia um cruzeiro de lua-de-mel pelo mundo.
Nos últimos três dias antes do Natal, cresceu entre os assistentes de Delaney – ele sentia a atmosfera – a impressão de que estavam reunindo grande volume de informações sobre Daniel G. Blank – um bocado de leitura fascinante e libidinosa – mas, na realidade, muito pouco significava. O homem tinha uma amante. E daí? Talvez estivesse ou não dormindo com o irmão dela, Tony. E daí? Saía ocasionalmente em horas estranhas, vagueava pelas ruas, olhava para as vitrinas, e parava no The Parrot para tomar uma bebida. E daí?
– Talvez saiba o que estamos fazendo – sugeriu Blankenship. – Talvez saiba que "chamarizes" saem todas as noites e que está sendo seguido.
– Não pode ser – rosnou zangado Fernandez. – Ele nem vê meus rapazes. Pelo que interessa a ele, nós não existimos.
– Não sei o que ainda podemos fazer – confessou MacDonald. – Nós o cortamos em fatias tão finas que posso ver através dele. Certidão de nascimento, diplomas, passaportes, conta corrente bancária. . . tudo. Vocês viram a pasta. O homem está ali, nu em pêlo. Leiam a pasta e o conhecerão. Claro, talvez seja um psicopata capaz de matar. É um frio e sabido filho da mãe. Mas levemo-lo para uma corte de justiça, e o que é que temos a apresentar? Hummm, humm. Nada. Esse é o meu palpite.
– Continuem no trabalho – dizia o Capitão Edward X. Delaney.
As coisas caíram de ritmo na véspera do Natal. Era natural; os policiais queriam passar a data em casa com as famílias. As turmas foram reduzidas ao mínimo (constituídas principalmente de solteiros e voluntários) e o pessoal recebeu ordens de ir para casa mais cedo. Delaney passou uma tarde tranqüila no estúdio, lendo mais uma vez a pasta original de Daniel G. Blank e a grande massa de material reunida por "Papai" e sua turma, que pareciam se excitar ao folhearem empoeirados documentos, folhas de serviço militar e declarações de imposto de renda.
Leu todo o material mais uma vez, bebericando lentamente em um cálice bojudo o maravilhoso conhaque enviado por Alinski. Teria de telefonar ao vice-prefeito para agradecer-lhe, ou, talvez, enviar-lhe uma nota de agradecimento, mas, enquanto isso, o envelope de Alinski foi acrescentado à pilha de cartões e presentes de Natal fechados que se acumulavam em um canto do estúdio. Iria examiná-los, finalmente, ou os levaria a Bárbara quando ela estivesse suficientemente bem para abri-los e apreciá-los.
Tomou conhaque através de uma longa véspera de Natal (fora cancelada a reunião habitual). Enquanto lia, formou a convicção de que a liquidação de Danny Boy ocorreria através da personalidade do suspeito, e não de qualquer inteligente trabalho policial, de descoberta de uma "pista", ou de alguma súbita revelação de um amigo ou amante.
Quem era Daniel G. Blank? Quem era ele? MacDonald dissera que ele fora cortado em fatias finas, que se encontrava nu em pêlo naquele arquivo. Não, pensou Delaney, estavam ali apenas os fatos da vida daquele homem. Mas pessoa alguma constitui uma simples compilação de documentos oficiais, de entrevistas com amigos e conhecidos, de Cartas de Emprego do Tempo. Continuava de pé a pergunta fundamental: quem era Daniel G. Blank?
Ele fascinava-o porque parecia ser constituído de duas pessoas. Menino frio e solitário, aparentemente crescera no que, tudo indicava, fora uma casa sem amor. Nenhum antecedente de delinqüência juvenil. Menino tranqüilo, colecionador de pedras e, até a faculdade, nenhum interesse especial mostrara pelas pequenas. Por essa ocasião, recusara-se a comparecer ao enterro dos pais. Isso pareceu-lhe significativo. Como poderia alguém, por mais jovem que fosse, fazer uma coisa dessas? Havia no ato uma brutalidade que apavorava.
Houve o casamento – e como fora que Lipski a chamara? Uma loura grandalhona – o divórcio, a amiga com um corpo de garoto e, possivelmente, o próprio garoto, Tony. E enquanto isso, o apartamento cheio de espelhos e anti-séptico, os biquínis e o papel higiênico perfumado. E segundo os belamente escritos e sardônicos relatórios de MacDonald, uma ascensão rápida na escala executiva.
Delaney voltou a ler uma entrevista realizada por um dos auxiliares de MacDonald com um indivíduo chamado Robert White, que fora superior imediato de Blank na Javis-Bircham. Ele fora, à vista de toda a evidência e declarações, esfaqueado pelas costas e expulso por Daniel Blank. A entrevista com White fora feita sob o pretexto de que Blank estava sendo cogitado para uma alta posição executiva em uma firma concorrente da J-B.
– Ele é um bom rapaz. – declarara Bob White ("Possivelmente sob a influência do álcool", notara cuidadosamente no relatório o detetive). – Tem talento. Muita imaginação. Demais, talvez. Mas consegue resultados. Digo isso por ele. Mas não tem sangue. Compreendeu? Nenhum maldito sangue.
O Capitão Delaney olhou fixamente para o teto. "Nenhum maldito sangue". O que significava isso? Quem era Daniel G. Blank? De tal complexidade. . . Repugnante e fascinante. Tinha coragem, quanto a isso não havia dúvida; escalava montanhas e matava. Bondoso? Naturalmente. Objetara quando vira um homem bater num cão e guardava lembranças sentimentais dos homens que matava. Talentoso e dotado de viva imaginação? Bem, seu antigo chefe dissera isso. Talentoso e com bastante imaginação para fazer amor com uma mulher de trinta anos e seu irmão de doze, mas Delaney achava que Bob White de nada sabia a esse respeito!
Quem era Dan?
O Capitão Delaney levantou-se, com o cálice de conhaque na mão, e ia propor um brinde, "A você, Danny Boy", quando ouviu uma batida à porta do estúdio. Sentou-se tranqüilamente à escrivaninha.
– Entre.
O Tenente Jeri Fernandez enfiou a cabeça pela porta.
– Ocupado, capitão? Dispõe de alguns minutos?
– Naturalmente, naturalmente – disse Delaney com um gesto. – Entre. Tenho aqui um excelente conhaque. Que tal?
– Já me viu recusar alguma vez? – perguntou Fernandez com zombeteira seriedade. Ambos riram.
Delaney sentou-se na cadeira giratória, balançando-se suavemente para a frente e para trás, enquanto Fernandez ocupava a poltrona de couro. O tenente tomou o conhaque, calado, mas seus olhos levantaram-se para o céu em silenciosa apreciação.
– Pensei que você estivesse em casa a esta hora – disse o capitão.
– Estou a caminho. Estou apenas me certificando de que tudo está como deve.
– Sei que lhe disse isso antes, tenente, mas repito: diga a seus rapazes para não relaxarem nem por um segundo a vigilância. Aquele macaco é rápido.
Fernandez curvou-se na poltrona, inclinando-se para frente, a cabeça baixa, girando o cálice de conhaque entre as palmas das mãos.
– Mais rápido do que um trinta e oito? – perguntou em voz tão baixa que Delaney não teve certeza de tê-lo ouvido.
– O quê? – perguntou.
– Esse tarado é mais rápido do que um trinta e oito? – repetiu. Desta vez levantou a cabeça e fitou diretamente Delaney, nos olhos.
O capitão ergueu-se imediatamente, foi até a porta do estúdio, fechou-a e voltou a sentar-se atrás da escrivaninha.
– Em que está pensando? – perguntou tranqüilo, encarando Fernandez.
– Capitão, estamos trabalhando nisto há. . . há quanto tempo? Mais de uma semana. Quase dez dias. Vigiamos esse Danny Boy de seis maneiras diferentes desde o domingo. O senhor continua a chamá-lo de "suspeito". Mas noto que não estamos procurando outros suspeitos, não estamos atrás de pessoa alguma. Tudo o que fazemos é a respeito desse tal Blank.
– E dai? – perguntou friamente Delaney.
– Daí – suspirou Fernandez olhando para o cálice – acho que talvez saiba de alguma coisa que não sabemos, alguma coisa que não nos diz. – Ergueu rapidamente a mão, com a palma para fora. – Este caso não é banal, capitão. Se há alguma coisa que não precisamos saber, isto é um direito e um privilégio seu. Eu apenas pensei que o senhor talvez tivesse certeza desse cara, mas que não pode "abotoá-lo". Por algum motivo. Não há testemunhas. Não há provas concretas. O que quer que seja. Mas acho que o senhor sabe que é ele. Sabe que é!
O capitão voltou a balançar-se para a frente e para trás na cadeira giratória.
– Suponhamos que você tenha razão e que eu saiba que Blank é nosso pássaro, mas que não podemos tocar nele. O que sugeriria você, nesse caso?
Fernandez encolheu os ombros.
– Supondo – disse, simplesmente – supondo que seja essa a situação, então não vejo maneira de "abotoarmos" Danny Boy a menos que o surpreendamos no ato. E se ele for tão ligeiro como o senhor diz que é, teremos outro cadáver antes de poder fazer isso. Certo?
Delaney inclinou a cabeça, concordando.
– Exato. Eu pensei nisso. Neste caso, qual a solução?
Fernandez tomou um gole de conhaque e ergueu a vista.
– Deixe-me pegá-lo, capitão – pediu em voz baixa.
Delaney colocou o cálice de conhaque sobre o mata-borrão da escrivaninha, serviu-se de outra pequena dose, levou a garrafa até onde se encontrava Fernandez e tornou a encher seu cálice. Voltou à cadeira giratória, depositou a garrafa ao lado, começou a tamborilar suavemente sobre a mesa com uma mão, enquanto observava o movimento dos dedos.
– Você? – perguntou a Fernandez. – Você sozinho?
– Não. Eu tenho um amigo. Nós dois...
– Um amigo? –perguntou secamente Delaney, erguendo a vista. – No Departamento?
O tenente fitou atônito.
– Naturalmente que no Departamento. Quem é que tem amigos fora do Departamento?
– Muito bem – assentiu Delaney. – Como é que resolveria o caso?
– Do modo habitual – respondeu Fernandez, encolhendo os ombros. – Vamos ao apartamento dele e o pegamos. Ele resiste à prisão, tenta fugir e nós o pomos no gelo. Uma coisa limpa, simples e arrumada.
O capitão suspirou e sacudiu a cabeça.
– Não dá – disse.
– Capitão, já fizemos isso antes.
– Diabos, não tente me ensinar minha profissão! – berrou furioso Delaney. – Sei que foi feito antes. Mas se fizermos isso como você quer, vamos todos nos enrascar.
Ergueu-se de um salto, abriu a túnica e enfiou as mãos nos bolsos traseiros da calça. Começou a andar de um lado para o outro no estúdio, e não olhou para Fernandez enquanto falava.
– Ouça, tenente – disse pacientemente – esse cara não é um gato de viela com o focinho cheio de merda, e que não importa a ninguém se vive ou morre. Queime um cara desses e ele é apenas um número no cemitério. Mas Danny Boy é alguém. É rico, mora em um apartamento de luxo, guia um carro, trabalha para uma grande empresa. Tem amigos influentes. Esfrie-o e vão começar a fazer perguntas. E será melhor que tenhamos respostas. Se for absolutamente feito, tem que ser bem feito.
Fernandez abriu a boca para falar. Delaney, porém, ergueu a mão.
– Espere um minuto. Deixe-me terminar. Vejamos agora o seu plano. Você e seu amigo vão pegá-lo. Como entrarão no apartamento? Acontece que eu sei que o cara tem mais fechaduras na porta do que há numa cela de eremita. Acha que vai bater e dizer "Polícia" e ele abrirá e o deixará entrar? O diabo que deixará! Ele é sabido demais para isso. Olhará para você pelo olho mágico e falará através da porta fechada.
– Um mandado de busca? – sugeriu Fernandez.
– Nenhuma possibilidade – disse Delaney, sacudindo a cabeça. – Esqueça isso.
– Então, que me diz do seguinte: um de nós dois sobe e espera do lado de fora da porta antes que ele entre em casa, vindo do trabalho. O outro espera no saguão até ele entrar e sobe no elevador com ele. Nesse caso, ele ficará no corredor entre nós dois.
– E então o quê? – indagou o capitão. – Agarram-no ali no corredor, enquanto está entre os dois, e alegam que tentou escapar ou resistir à prisão? Quem acreditará nisso?
– Bem... – disse Fernandez, em dúvida. – Acho que o senhor tem razão. Mas deve haver...
– Cale a boca durante um minuto e deixe-me pensar – interrompeu-o Delaney. – Talvez possamos resolver o caso.
O tenente ficou silencioso, bebericando o conhaque, com os olhos brilhantes seguindo os passos pesados do capitão pela sala.
– Ouça – disse Delaney – há um porteiro no prédio. Um cara chamado Charles Lipsky. Ele tem acesso a duplicatas de chaves de todos os apartamentos do edifício. Ficam penduradas em um quadro, do lado de fora do escritório do administrador. Esse Lipsky tem antecedentes criminais. Para dizer a verdade, está em livramento condicional, de modo que pode fazer pressão sobre ele. Bem... você ouve no rádio que Danny Boy saiu do trabalho e que volta para casa. Você e seu amigo conseguem as chaves com Lipsky e entram no apartamento de Blank. Fecham-no novamente por dentro. Quando ele abrir a porta e entrar, vocês já estão lá dentro.
– Gosto da idéia – disse Fernandez com um largo sorriso.
– Quando chegar a ocasião, desenharei uma planta do apartamento para que saibam onde ficar quando ele entrar. Nessa ocasião, vocês...
– Uma planta do apartamento? – interrompeu-o o tenente. – Mas como. . .?
– Não se preocupe com isso. Nem mesmo pense nisso. Quando chegar a ocasião, vocês terão uma planta do apartamento. Mas dê-lhe tempo para entrar antes de se mostrarem. Tempo para fechar a porta, a fim de que não possa fugir. É certo que vai fechar a porta, uma vez tenha entrado. Este é o tipo de cara que ele é. É aí que vocês aparecem. Agora é que a coisa começa a ficar engraçada. Pode conseguir uma arma que não possa ser identificada?
– Oh, certamente. Não há problema.
– Qual?
– Um "sábado à noite" especial.
O capitão tomou uma profunda respiração e soltou um audível suspiro.
– Tenente – disse suavemente – Danny Boy ganha cinqüenta e cinco mil dólares por ano, guia um Stingray e usa roupa de baixo de seda. Acha realmente que é o tipo de cara que possuiria uma porcaria dessas? O que mais pode conseguir?
O "Homem Invisível" pensou durante um momento, com os dentes cerrados.
– Uma Luger de nove milímetros – disse por fim. – Nova em folha. Saída das docas. Nunca foi usada. Ainda no envelope oleado.
– Que tipo de cabo?
– Madeira.
– Hummm – murmurou Delaney. – Ele poderia possuir uma arma dessas. Mas uma arma nova em folha não serve. Precisará ter, pelo menos, três pentes disparados com uma completa desmontagem e limpeza entre as descargas. Pode fazer isso?
– Não haverá problema, capitão.
– E precisa estar um pouco gasta. Não muito. Umas poucas lascas no cabo. Um pequeno arranhão aqui e ali. Compreendeu?
– Como se ele a possuísse há muito tempo?
– Exatamente. E a levou nessas escaladas de montanha para atirar em latas e coisas assim. Mas há outra coisa: conserve a caixa ou o envelope onde ela veio, consiga os instrumentos adequados para limpeza e alguns trapos sujos de óleo. Você sabe, os troços habituais. Você me entrega todo esse material.
– Ao senhor, capitão?
– Sim, a mim. Bem, agora você e seu colega estão no interior do apartamento e a porta está trancada. Ambos levam o revólver de serviço e um de vocês tem a Luger usada. Está carregada. Pente cheio. Logo que Danny Boy entrar no apartamento e fechar a porta, vocês aparecem. E pelo amor de Deus, conservem as armas na mão. Não se descuidem nem por um momento. Mantenham o cara coberto.
– Não se preocupe. Ele ficará coberto.
– Não digam uma palavra. Simplesmente façam-no recuar para a porta do quarto. Verão onde ela fica na planta do apartamento que desenharei para vocês. Bem, nesse momento é que vocês têm de trabalhar ligeiro. Logo que ele se encontrar junto à porta do quarto, ou perto dela, de frente para vocês, atirem. Ajam rapidamente – isso é importante – e certifiquem-se de que o liquidam. Não sei se é bom esse seu amigo, mas ambos têm de fazer isso. Compreendeu?
Fernandez sorriu ironicamente.
– O senhor é sabido, capitão.
– Sou. Bem, vocês trabalham rapidamente. Ele cai e, pelo amor de Deus, certifiquem-se que está mesmo morto.
– Haverá peso suficiente nele para afundar – assegurou o tenente. – Estará morto antes de cair no chão.
– Aceito sua palavra a esse respeito – grunhiu Delaney. – Bem, no momento em que ele cair, um de vocês – não me importo quem seja – coloca-se com os pés de ambos os lados do corpo, olhando na direção em que ele olhava imediatamente antes de morrer. E então...
– Damos dois ou três tiros com a Luger na parede oposta – disse rapidamente Fernandez. –Onde nós dois estávamos antes.
– Agora você está percebendo – disse com ar de aprovação o capitão. – Mas isso tem de ser feito rapidamente de modo que, se alguém ouvir os disparos, seja apenas um bocado de tiros, sem pausas. Testemunha alguma vai lembrar-se de quantos tiros foram disparados, quando, ou em que ordem. Mas apenas para jogar no seguro, a Luger deve atirar na parede oposta com a rapidez possível depois que vocês o liquidarem.
– Compreendi. Dois ou três tiros na parede. Não alto demais. Como se ele estivesse realmente atirando em nós.
– Exato. Quebrem uns dois espelhos, se puderem. A parede oposta está coberta de espelhos. Em seguida, o que é que vocês farão?
–Fácil – respondeu Fernandez. – Limpamos a Luger. Colocamo-la na mão dele e...
– Na mão direita dele! – atalhou Delaney. – Mão direita, não esqueça.
– Não esquecerei. Limpamos a Luger e a colocamos na mão direita dele.
– Tente – disse Delaney – mas não fique assustado se não funcionar. É mais difícil do que imagina fazer com que a mão de um cadáver segure uma arma, mesmo um cadáver recente. Simplesmente certifique-se de que consegue umas duas boas impressões digitais na arma. Elas provavelmente não aparecerão no cabo de madeira, especialmente se for quadriculado, mas ponha-as no metal. Em qualquer parte. A arma pode até ficar no chão, próxima à mão direita. Mas umas duas boas impressões digitais são tudo o de que precisamos. O que faz em seguida?
– Vejamos... – Fernandez franziu o cenho em profundo pensamento. Tomou um gole de conhaque. – Bem, temos ainda as chaves do apartamento do cara.
– Certo – disse imediatamente Delaney. – Assim, o seu amigo tem de descer ao saguão e entregar furtivamente as chaves a Lipsky. Diga-lhe para deixar aberta a porta do apartamento de Danny Boy ao sair. Não aberta de todo, mas sem ser trancada. E enquanto ele faz isso, o que faz você?
– Eu? Bem, acho que começo uma busca...
– Esqueça isso – avisou o capitão. – Não toque em coisa alguma. A primeira coisa que faz é telefonar-me do apartamento de Blank. Estarei à espera do telefonema. Reunirei uma turma e irei imediatamente para lá. Mas não faça nada até eu chegar. Nem mesmo se sente numa cadeira. Simplesmente, fique de pé ali. Se os vizinhos aparecerem, identifique-se, diga-lhes que mais detetives estão a caminho e mantenha-os no corredor. Muito bem, eu chego com a turma. Você nos conta o que aconteceu, falando tão pouco quanto possível. Eu faço as chamadas que terei de fazer – legista, polícia técnica, e assim por diante. Iniciamos neste momento a busca, e nessa ocasião eu plantarei em algum lugar o trapo oleado, as varetas de limpeza, os pentes extras da Luger, e assim por diante. Não sei como vou levá-los para lá, mas eu...
– Mas por que deverá o senhor fazer isso, capitão? – protestou Fernandez. – Poderíamos levar esse material conosco.
Delaney sorriu cinicamente.
– Em casos como esse, é melhor que todos sejam envolvidos, com tanta responsabilidade quanto possível. Trata-se de um seguro. É por isso que quero certificar-me de que você e seu amigo fornecem as pílulas a Danny Boy.
O tenente estudou, confuso, o assunto. A sua face se iluminou.
– Inteligente – assentiu. – Dessa forma, ninguém fala e sabe que ninguém vai dar com a língua nos dentes.
– Alguma coisa assim – concordou Delaney, sem sorrir. – Confiança mútua. Bem, a sua justificativa é a seguinte: a Operação Lombard descobriu que a arma usada nos quatro homicídios foi um machado de gelo. É uma ferramenta usada por montanhistas. Danny Boy é montanhista. Há prova evidente de tudo isso. Verificamos as compras de machados de gelo na jurisdição da dois-cinco-um, onde ocorreram todos os assassinatos, e você e seu amigo receberam uma lista de compradores de machados para interrogar. Para completar darei a vocês dois ou três nomes e endereços para irem checar antes de chegarem a Danny Boy. Dizem que se identificaram como policiais, que ele os deixou entrar e que vocês pediram para examinar o machado de gelo. Ele disse que estava no quarto, e foi buscá-lo. Está realmente no armário da entrada, mas ele entrou no quarto e saiu com a Luger, atirando. Errou os tiros. Vocês dois sacaram as armas e liquidaram-no. Que tal?
– Parece perfeito, capitão.
– Não – discordou Delaney – não está perfeito. Há alguns fios soltos que precisamos atar. Por exemplo, esse amigo seu... preciso conhecê-lo.
– O senhor já o conhece.
– Ele está na Operação Lombard?
– Está.
– Ótimo. Isso facilita as coisas. O que acabo de dizer foi apenas um rápido esboço, tenente. Nós três teremos de passar em revista o caso novamente, e mais outra vez, até que tudo fique perfeito e a sincronização acertada. Talvez pudéssemos mesmo fazer um ensaio para eliminar todas as falhas, mas, fundamentalmente, acho que é um plano lógico e prático.
– É sucesso na certa, capitão. Não pode falhar.
– Pode sim – disse sombrio Delaney. – Tudo pode falhar. Mas acho que vale o risco.
– Então está combinado, capitão? Definitivamente?
Delaney tomou uma profunda respiração, voltou a sentar-se à escrivaninha. Sentou-se espigado na cadeira giratória, e pôs as grandes mãos sobre o tampo da mesa.
– Bem... talvez não definitivamente – disse por fim. – Gosto dele porque me dá outra opção, e estou ficando praticamente sem elas. Mas tenho outra idéia que me vem atenazando. Ouça aqui: consiga a Luger. Dispare-a, limpe-a e arranhe-a um pouco. Mas não diga nada ao seu amigo. Se eu resolver ir em frente, avisarei. Compreendeu?
– Claro – anuiu Fernandez. –Farei o que o senhor disse com relação à Luger, mas ficarei de bico calado até receber um aviso seu.
– Exatamente.
Levantaram-se ambos. O tenente estendeu a mão; Delaney apertou-a.
– Capitão– disse sério o Tenente Fernandez – desejo-lhe um feliz Natal e um próspero Ano-Novo, para o senhor e os seus. Espero que a Sra. Delaney fique logo boa.
– Obrigado, tenente. O mais alegre dos Natais para você e sua família, e espero que o Ano-Novo lhe traga tudo o que deseja. È um prazer trabalhar com você.
– Obrigado, capitão. O prazer é mútuo.
Sentou-se à escrivaninha, desejou ter um charuto cubano e pensou no plano que havia discutido com o Tenente Fernandez. Não era à prova de erros; tais planos nunca o são. Havia sempre a possibilidade do inesperado, do que não foi imaginado: um grito em alguma parte, um visitante inesperado, um telefonema. Danny Boy poderia mesmo atacar os dois policiais, lançando-se contra as armas de ambos. Ele era capaz de tal ato de insanidade.
Mas, essencialmente, concluiu Delaney, era um plano lógico e funcional. Era uma solução. Havia um bocado de fios soltos: a maneira como levaria as ferramentas e equipamentos de limpeza da Luger para o apartamento quando recebesse o telefonema de Fernandez, onde os colocaria (no banheiro, obviamente), e o que fazer se as lembranças dos crimes não estivessem mais no fundo da gaveta da cômoda? Dezenas de perguntas poderiam ser feitas por jornalistas e por seus superiores. De que modo havia a Operação Lombard apurado que um machado de gelo fora a arma usada em quatro homicídios? Como é que haviam descoberto Daniel G. Blank? Haveria muitas, muitas dessas perguntas; teria de prevê-las todas e preparar as respostas com antecedência.
Olhou para o relógio. Quase 4:15; era uma longa tarde. Suspirou, levantou-se, abriu a porta do estúdio para a sala de estar e entrou neste último cômodo.
Os dois grandes transmissores-receptores estavam instalados sobre tábuas rústicas de pinho, colocadas em cima de cavaletes. Um guarda uniformizado sentava-se em frente de cada aparelho, curvado sobre o microfone. Uma mesa separada, não tão larga como a outra, abrigava os três novos telefones. Havia ali um policial de serviço, lendo um romance em brochura. Dois homens, de cuecas, dormiam em catres junto à parede. Um deles roncava alto. O detetive de segunda classe Samuel Wilding – um dos auxiliares de Blankenship – fazia, anotações em um mapa numa mesa de jogo. Delaney fez-lhe um aceno com a mão.
Parou um momento junto aos rádios, com as mãos cruzadas atrás das costas. Estava, com toda probabilidade, pensou pesaroso, deixando nervosos os operadores. Mas não havia jeito a dar.
A sala estava silenciosa. Não, não exatamente silenciosa, mas, salvo pelo leve ronco do homem adormecido, reinava o silêncio. A escuridão de fim de tarde insinuou-se pelas cortinas abertas e quando chegou... o quê? Uma doçura, reconheceu Delaney, rindo de si mesmo, mas era mesmo uma espécie de doçura.
Os guardas uniformizados haviam tirado as túnicas. Trabalhavam de suéteres ou camisetas, embora conservassem o cinto da arma. Somente o Detetive Wilding estava de paletó, mas era um traje de verão, sem lapelas. O que era aquilo? perguntou-se Delaney. Por que a doçura? Vinha, pensou, dos homens de serviço efetuando seus trabalhos incrivelmente monótonos, agüentando. A fraternidade. Do quê? (Delaney: "Um amigo? No Departamento?" Fernandez [atônito] "Naturalmente que no Departamento. Quem é que tem amigos fora do Departamento?) Uma espécie de irmandade.
Um telefone tocou na mesa de jogo. O policial de serviço pôs de lado o romance e ergueu o fone.
– Bárbara – disse.
Haviam criado um código radiofônico e telefônico tão simples como possível. Não porque Danny Boy poderia estar escutando, mas para despistar os malucos das ondas curtas que sintonizavam as freqüências da Polícia.
"Danny Boy" – Daniel G. Blank.
"Bárbara" – o posto de comando na casa de Delaney.
"Casa Branca" – o prédio de apartamentos de Blank.
"Fábrica" – o Edifício Javis-Bircham.
"Castelo" – a casa da East End Avenue.
"Bulldog Um" – o falso caminhão com toldo da Con Ed estacionado na rua em frente à Casa Branca. 0 posto de comando do Tenente Fernandez.
"Bulldog Dois, Três, Quatro etc." – nomes em código dos carros sem marcas de Fernandez e dos vigilantes a pé.
"Tigre Um" – o policial que observava a casa dos Montforts. "Tigre Dois" e "Tigre Três" eram os policiais que varriam a vizinhança.
Fora disso, os investigadores da Operação Lombard usavam seus verdadeiros nomes nas transmissões, mantendo as conversações, de acordo com ordens freqüentemente repetidas, informais e lacônicas.
Ao tocar o telefone, o policial atendeu e disse:
– Bárbara. – Escutou durante algum tempo e voltou-se para o Detetive Wilding. – Stryker, na Fábrica – comunicou. – Danny Boy pôs sobretudo e chapéu e parece que está prestes a sair. –Stryker era o agente colocado na Javis-Bircham. Era tabulador – e competente – no departamento de Blank.
O Detetive Wilding inclinou a cabeça. Voltou-se para o operador do rádio:
– Avise Bulldog Três. – Virou-se para Delaney. – Certo para Stryker cortar a ligação?
O capitão anuiu. O detetive chamou-o ao telefone:
– Diga a Stryker que pode decolar. Deve apresentar-se depois do Natal.
O policial falou ao telefone e abriu-se num grande sorriso.
– Esse Stryker... – disse aos presentes ali na sala. – Ele não quer decolar. Diz que está havendo uma festa no escritório e que não vai perdê-la.
– O maior garanhão do Departamento – comentou alguém.
O grupo dissolveu-se. O capitão sorriu levemente. Inclinou-se para ouvir um dos operadores dizer:
– Bulldog Três, aqui fala Bárbara. Está-me ouvindo?
– Sim, muito bem – respondeu uma voz entediada.
– Danny Boy está saindo.
– Certo.
Houve um silêncio de cerca de cinco minutos. Em seguida:
– Bárbara, aqui Bulldog Três. Ele está sob observação. Dirigindo-se para leste em um táxi amarelo. Chapa XB sessenta-e-um-barra-quarenta-e-nove-barra-três-barra-um. Recebeu?
– XB sessenta-e-um-barra-quarenta-e-nove-barra-três-barra-um.
– Certo.
Nada de excitante, simples rotina. As anotações eram feitas cuidadosamente e anotada a Carta de Emprego do Tempo. Mas coisa alguma estava acontecendo.
Delaney voltou em passos duros para o estúdio, colocou os óculos, e puxou o bloco de páginas amarelas. Preparou duas listas. A primeira consistia de cinco itens numerados:
1. Garagista.
2. Garçom do Parrot.
3. Lipsky.
4. Mortons.
5. Horvath, na J-B.
A segunda lista consumiu mais tempo, quase uma hora. No fim, consistia de quatro itens numerados.
Delaney colocou-a de lado, levantou-se e voltou pesadamente para a sala de estar. Dirigiu-se diretamente ao Detetive Samuel Wilding.
– Quando é que Blankenship voltará? – indagou.
– Amanhã ao meio-dia, capitão. Estamos nos dividindo por causa do Natal.
Delaney inclinou a cabeça.
– Diga-lhe, ou deixe-lhe uma nota, que quero ser imediatamente informado da menor alteração no padrão do emprego de tempo de Danny Boy. Compreendeu?
– Sim, senhor.
– Informado imediatamente – repetiu o capitão.
Foi até a sala de jantar, onde se encontrava o único auxiliar do Sargento-Detetive MacDonald que estava de serviço. O homem levantou a cabeça, surpreso.
– Quando deverá voltar MacDonald? – perguntou Delaney.
– Amanhã, às quatro da tarde, capitão. Estamos nos dividindo...
– Eu sei, eu sei – interrompeu-o Delaney. – Natal. Quero deixar um bilhete para ele. – O policial de serviço apanhou um bloco e um lápis. – Diga-lhe que quero uma fotografia do Detetive Kope.
O lápis do policial hesitou.
– Kope? O que foi assassinado?
– O detetive de terceira classe Roger Kope, vítima de homicídio – explicou sombrio Delaney. – Preciso de uma fotografia dele. De preferência com a família. Uma fotografia de toda a família Kope. Compreendeu?
Olhou para o bloco do policial. Estava coberto de garatujas.
– Sabe taquigrafia? – perguntou.
– Sim, senhor. Fiz um curso.
– Ótimo. Isso é valioso. Eu gostaria de saber. Mas acho que estou velho demais agora para aprender.
Começou a explicar ao policial que MacDonald faria melhor em mandar buscar a foto por um homem que conhecera Kope e que fora amigo da família. Mas interrompeu-se. O sargento era um velho policial; saberia como resolver o caso.
Voltou pesadamente ao estúdio e fechou a porta. Olhou para o relógio. Quase 7 da noite. Era tempo. Olhou para a lista sobre a escrivaninha e discou o número de Daniel G. Blank. O telefone tocou, e tocou. Ninguém respondeu. Voltou para a sala de estar e dirigiu-se ao radioperador que anotava o diário.
– Danny Boy está ainda na Casa Branca? – perguntou.
– Sim, senhor. Não saiu. Mais ou menos há meia hora Tigre Um chamou. A Princesa saiu do castelo em um táxi. ("Princesa" era o nome-código de Célia Montfort). Mais ou menos dez minutos depois, Bulldog Um comunicou que ela havia chegado à Casa Branca. Estão ambos ainda lá, tanto quanto sabemos.
Delaney inclinou a cabeça e voltou ao estúdio, fechando a porta. Ligou mais uma vez para a casa de Blank. Nenhuma resposta. Talvez Danny Boy e a Princesa estivessem tendo uma cena amorosa e não quisessem atender ao telefone. Ou talvez estivessem em uma festa de Natal. Na casa dos Mortons, possivelmente? Possivelmente. Foi até o arquivo das pastas e apanhou a fina pasta sobre os Mortons, obtida pelo pessoal de MacDonald. Havia o número do telefone do apartamento do casal.
Delaney voltou à mesa e discou-o.
– Residência dos Mortons – respondeu uma voz feminina à sétima chamada da campainha.
No fundo, Delaney ouviu vozes altas de várias pessoas, gritos e risos. Uma festa. Não sorriu.
– Estou tentando localizar o Sr. Daniel Blank – disse lenta e claramente – e deram-me este número de telefone. Ele está aí?
– Está sim. Um minuto, por favor. Ouviu-a gritar.
– Sr. Blank! Telefone! – Em seguida, a voz conhecida, curiosa e cautelosa. Delaney sabia que Danny Boy estava com a pulga atrás da orelha: de que modo havia alguém descoberto seu paradeiro numa festa natalina no apartamento dos Mortons?
– Alô?
– Sr. Daniel G. Blank?
– Sim. Quem é?
– Frank Lombard.
Ouviu um som na outra extremidade do fio: parte gemido, parte arquejo... alguma coisa doentia e inacreditável.
– Quem?
– Frank Lombard – disse Delaney em uma voz baixa e suave. – O senhor me conhece. Encontramo-nos antes. Eu simplesmente queria desejar-lhe...
O telefone foi desligado. Delaney desligou por sua vez, suavemente, sorrindo. Pôs o sobretudo e o chapéu e saiu para a noite escura a fim de procurar uma farmácia ainda aberta para comprar um vidro de perfume e levar ao hospital como presente de Natal à esposa.


PARTE 8


1

ALGO estava acontecendo. O que era?
Daniel Blank achava que tudo começara duas semanas antes. Ou talvez três; era difícil lembrar-se. Mas o garagista do seu prédio mencionara casualmente que um inspetor de seguros estivera por ali fazendo perguntas sobre o seu carro.
– Ele pensou que o senhor estivera envolvido num acidente – disse o homem. – Mas foi examinar seu carro e descobriu que não esteve. Eu havia dito isso a ele. Disse-lhe também que o senhor há meses não sai naquele carro.
Blank inclinou a cabeça e pediu ao homem que levasse o Stingray, verificasse a bateria, a gasolina, e o óleo. Não pensou mais no inspetor de seguros. O caso nada tinha a ver com ele.
Mas, certa noite, parou no The Parrot. O garçom serviu-lhe conhaque e perguntou se ele se chamava Blank. Assentindo Daniel – um pouco nervoso – o garçom do bar disse-lhe que um detetive particular ali estivera, fazendo perguntas a seu respeito. Não se lembrava do nome do homem, mas descreveu-o. Perturbado, Blank voltou ao garagista: a descrição que lhe deu do "inspetor de sinistros" combinava com a do "detetive particular" do garçom do bar.
Menos de dois dias antes, o porteiro Charles Lipsky comunicou-lhe que um homem estivera por ali "fazendo perguntas muito pessoais" a seu respeito. O indivíduo, explicou Lipsky, não havia dado nome ou ocupação, mas podia descrevê-lo, o que fez.
Pelas três descrições, Blank começou a formar uma imagem do homem que o seguia. Não tanto uma imagem, como uma silhueta. Figura morena e maciça, áspero como madeira talhada. Grande, com ombros curvados. Maciço. Usava um chapéu de feltro enterrado na cabeça, e um sobretudo antigo, do tipo jaquetão, desengonçado.
Em seguida, Flo e Sam Morton falaram-lhe da visita do investigador de crédito, e Dan – seu demônio! – por que não havia contado aos seus maiores amigos que estava pensando em casar-se com Célia Montfort e comprar-lhe a casa? Ele sorriu lividamente.
Em seguida, aquela murmurada conversação com René Horvath, Diretor de Pessoal da Javis-Bircham. Blank, finalmente, descobrira que um investigador de crédito andara fazendo perguntas; aparentemente, ele, Blank, havia solicitado "um vultoso empréstimo" – muito maior do que o oferecido pelo programa de empréstimo aos empregados da J-B. Horvath considerara seu dever comunicar a visita do investigador a seus superiores e recebera instruções para indagar de Daniel Blank qual a finalidade do empréstimo.
Blank conseguiu livrar-se da repugnante lesma, mas não antes de obter uma descrição do "investigador de crédito". O mesmo homem.
Sabia que estavam contados seus dias na Javis-Bircham, mas isso não tinha importância. A falsa investigação de crédito seria, simplesmente, a última palha. Mas isso não tinha importância. Seria despedido ou lhe permitiriam que se exonerasse e receberia generosa indenização. Não tinha importância. Sabia que nos últimos meses simplesmente não estivera desempenhando o cargo. Não estava interessado. Não tinha importância.
O importante naquele momento era o investigador de crédito-detetive particular-inspetor de seguros – uma figura composta que se transformara em algo mais do que uma silhueta, uma imagem vaga, mas que, naquele instante, ganhava substância, solidez, feições pesadas e gestos rudes, caminhar arrastado e olhos que nunca paravam de observar. Quem era ele? Deus em um rígido chapéu de feltro e sobretudo desengonçado?
Blank procurava-o em todos os lugares aonde ia, na rua, nos bares e restaurantes, à noite, sozinho em seu apartamento. Nas ruas observava o rosto de estranhos que se aproximavam e voltava-se subitamente para verificar se aquele homem corpulento e encapotado estava arrastando-se pesadamente atrás dele. Em restaurantes, ia ao banheiro dos homens, olhava casualmente para os que se encontravam ali, entrava na cozinha "por engano", lançava olhares para as cabinas telefônicas ocupadas e inspecionava os cubículos dos toaletes. Onde estava ele? Em casa, à noite, com a porta fechada a chave, aferrolhada e escorada, ficava acordado na escuridão e, inesperadamente, ouvia ruídos noturnos: batidas, golpes, um estalido seco. Levantava-se, acendia a luz, dava uma busca no apartamento, querendo vê-lo face a face. Mas ele não estava ali.
Chegou, finalmente, a véspera de Natal. A Javis-Bircham não o despediria senão depois dos feriados. Sabia disso. Aceitou, contente, um convite para a festa de Natal dos Mortons e pediu a Célia que o acompanhasse. Beberia um pouco, riria, enlaçaria a cintura esguia de Célia e, por certo, a sombra escura e misteriosa não poderia chegar até lá.
O telefonema abalou-o. Como podia alguém saber que ele se encontrava no apartamento dos Mortons? Aproximou-se cauteloso do telefone, e levantou-o como se esperasse que o aparelho explodisse em suas mãos. Em seguida, aquela voz macia: "Frank Lombard. O senhor me conhece. Encontramo-nos antes. Eu simplesmente queria... "
Saiu do apartamento, deixando Célia ali, sem despedir-se de pessoa alguma. O elevador demorou uma década; passou-se uma geração antes que chegasse à porta de seu apartamento e abrisse e a fechasse novamente; e transcorreu um século antes que puxasse a gaveta e a virasse de cabeça para baixo sobre a cama. Examinou o envelope cuidadosamente colado, mas tanto quanto pôde ver, não fora tocado. Abriu-o; estava tudo ali. Sentou-se na cama, alisando com os dedos suas lembranças. Notou que se havia urinado nas calças. Não muito. Mas algumas gotas. Era degradante.
Colocou o terno preto de veludo, a suéter branca de gola rulê e a cueca biquíni florida na cesta de roupas sujas do banheiro. Tirou a peruca via-veneto antes de meter-se sob um banho de chuveiro tão quente quanto pôde suportar. Ao ensaboar a cabeça, sentiu uma ligeira aspereza e chegou à conclusão de que precisaria mandar raspá-la brevemente.
Enxugou-se, passou água-de-colônia no corpo, talco, e recolocou a peruca firmemente no lugar. Vestiu um dos robes de seda, o do desenho de garças, e foi descalço para a sala de estar, onde serviu-se de uma bebida quente e acendeu um dos cigarros de folha de alface seca.
Notou que tocavam a campainha do apartamento e que o som se repetia havia algum tempo. Apagou cuidadosamente o cigarro e esvaziou o copo de vodca antes de ir até a entrada olhar para Célia Montfort pelo olho mágico. Abriu a porta para deixá-la entrar e aferrolhou-a novamente.
– Você não está doente, está, Dan?
– Você não fala dormindo, fala? – perguntou ele. Mesmo a seus próprios ouvidos, o riso soou desvairado e forçado.
Ela fitou-o, sem expressão no rosto.
Sentou-se no sofá da sala de estar, esperou pacientemente enquanto ele abria uma garrafa de bourdeaux, servia-a em um cálice de haste alta e preparava para si mesmo uma bebida no copo ainda úmido de vodca que acabara de terminar. Ela bebericou cautelosa o vinho.
– Ótimo – concordou. – Seco como poeira.
– O quê? Oh, sim. Eu devia ter comprado mais desse vinho. O preço quase duplicou. Disse alguma coisa a alguém sobre mim?
– Do que está falando, Dan?
– Do que eu fiz. Contou a alguém?
A resposta dela foi imediata, mas não constituiu em absoluto uma resposta:
– Por que faria eu uma coisa dessas?
Ela usava um vestido tubinho de jérsei preto, alto no pescoço, de mangas compridas, que descia até os sapatos altos pretos de cetim. Trazia em volta do pescoço o que parecia ser uma corda de um metro e oitenta de pérolas cultivadas, bem amarradas, dando voltas infindáveis, formando um lustroso colar que lhe mantinha a cabeça ereta e alto o queixo.
Ele teve a impressão – como aliás no primeiro encontro de ambos – de que nunca seria capaz de reconhecê-la, de lembrar-se com o que ela se parecia quando longe dele. O cabelo preto, longo, quase púrpura; a face tensa de bruxa; as mãos esguias e afiladas; mas os olhos: eram cinzentos ou azuis? Os lábios: cheios ou finos? O nariz: egípcio ou meramente arrebitado? E a compleição pálida, o cansaço ferido, a aura de corrupção, de carne branca castigada e transformada em barro amassado – de onde vinham essas fantasias? Constituía um mistério tão grande para ele naquele momento como quando se haviam conhecido. Acontecera isso há mil anos.
Ela continuou sentada no sofá, calma, remota, bebericando o vinho enquanto ele andava de um lado para outro. Nem por um momento desviou os olhos dela quando lhe falou a respeito do homem que o vinha perseguindo–o inspetor de sinistros-detetive particular-investigador de crédito – e as pessoas que tal indivíduo havia visitado, as perguntas que fizera, o que dissera.
Enquanto falava, fluindo as palavras com tal rapidez que gaguejava às vezes e a saliva formava espuma nos cantos da boca – bem, enquanto falava, viu-a cruzar lentamente as pernas, bem altas, na altura das coxas, escondidas pelo vestido longo. Mas abaixo do joelho dobrado projetava-se um tornozelo e dele pendia o sapato preto de cetim. Enquanto lhe contava o que acontecia, aquele pé solto, aquele sapato preto começaram a ir para cima e para baixo, com a perna mais baixa oscilando a partir do joelho oculto, lentamente no começo, inclinando-se em gracioso ritmo e, em seguida, movendo-se mais rápido, em sacudidelas mais fortes. A face dela continuava ainda sem expressão.
Observando o oscilante pé de Célia, balançando-se mais rapidamente a perna do joelho para baixo sob o vestido longo, pensou que ela devia estar-se masturbando sentada ali no seu sofá, as coxas nuas apertadas uma contra a outra sob o vestido. O ritmo daquele pé oscilante tornou-se mais rápido até que, quando lhe falou do telefonema que acabara de receber no apartamento dos Mortons, ela começou a arquejar, seus olhos se vidraram, e pérolas de suor, combinando com o colar, formaram-se em sua testa e lábio superior. Com os olhos fechados naquele momento, o corpo dela enrijeceu-se durante um momento. Ele parou de falar para observá-la. Quando ela finalmente se relaxou, trêmula, olhou em volta com os olhos vazios e descruzou as pernas, ele pensou que ela devia ter ficado sexualmente excitada ante o perigo que ele corria, mas, por que motivo, não sabia nem podia imaginar.
– Esse indivíduo poderia ser Valenter? – perguntou-lhe.
– Valenter? – Ela tomou um grande gole do vinho. – De que modo poderia ele saber? Além disso, Valenter é magrelo, um espantalho. Você disse que o homem que o está seguindo é corpulento, pesadão. Não pode ser Valenter.
– Não, acho que não.
– De que modo poderia esse homem, o que telefonou, saber a respeito de Frank Lombard?
– Não sei. Talvez tenha havido uma testemunha ocular – na morte de Lombard ou de um dos outros – que me seguiu até em casa, conseguiu meu endereço e, em seguida, meu nome.
– Por que motivo?
– É óbvio, não? Ele não procurou a Polícia e, neste caso, deve ser chantagem.
– Hummm, é possível. Está com medo?
– Bem... estou inquieto. – Disse-lhe o que havia feito desde que deixara o apartamento dos Mortons de forma tão abrupta; tentara fazer da mente um quadro-negro vazio, apagando os pensamentos com tanta rapidez quanto apareciam em riscos de giz.
– Oh, não – disse ela, sacudindo a cabeça, e na sua voz havia um tom de súplica que ele nunca ouvira antes – você não deve fazer isso. Abra inteiramente a mente. Deixe que ela se expanda. Deixe que ela se despedace em um milhão de pensamentos, sensações, recordações, medos. E assim que descobrirá a percepção. Não mate a consciência. Deixe que floresça à vontade. Tudo é possível. Lembre-se disto: tudo é possível. Algo acontecerá, algo que explicará o homem que o segue e o telefonema. Abra a mente; não a feche. A lógica não o ajudará. Você deve tornar-se cada vez mais perceptivo, crescentemente sensível. Tenho droga em casa. Quer usá-la?
– Não.
– Muito bem. Mas não se feche dentro de si mesmo. Abra-se para tudo.
Ela ergueu-se e bebeu o resto do vinho.
– Vamos para seu quarto – disse. – Passarei aqui a noite.
– Eu não servirei para nada.
A mão livre dela insinuou-se pela abertura do robe. Ele sentiu-lhe os dedos esguios e frios deslizar pela sua nudez, encontrá-lo, prendê-lo.
– Nós nos acariciaremos.
E fizeram isso.

2

No dia seguinte ao Natal, o Capitão Delaney trabalhou durante toda a manhã no seu gabinete, em mangas de camisa – o tempo estava absurdamente quente para a época e a casa aquecida demais – tentando preparar as estimativas das necessidades de mão-de-obra e veículos para a semana seguinte. A época dos feriados complicava as coisas; os policiais queriam ficar em casa com as famílias. Isso era compreensível mas significava que as escalas de serviço precisavam ser reformuladas e era impossível satisfazer a todos.
Os três comandantes de Delaney – Fernandez, MacDonald e Blankenship – haviam preparado escalas provisórias para suas turmas, acompanhadas de sugestões, perguntas, e solicitações. Da confusa massa de pessoal disponível para o serviço, gente de férias ou prestes a entrar de licença para tratamento de saúde, problemas pessoais, solicitações especiais (um dos vigilantes de Fernandez tinha consulta marcada com um pedicuro para lixar-lhe os calos), Delaney procurou elaborar uma escala para a Operação Lombard que, no mínimo, pudesse cobrir todos os postos importantes durante 24 horas por dia, mas, ainda assim, deixasse suficiente "espaço de manobra" para que substituições de última hora pudessem ser feitas. E precisava sempre haver alguns policiais jogando pôquer com palitos de fósforo na sala de rádio, de prontidão para serviços de emergência, se necessários.
Por volta de meio-dia havia preparado uma escala aproximada, e ficou chocado com o número necessário de policiais. A Prefeitura de Nova York estava gastando um bocado de dinheiro para acompanhar as atividades de Daniel G. Blank. O fato não o preocupava; ela gastava ainda mais dinheiro em projetos mais frívolos. Mas preocupava o capitão saber quanto tempo Thorsen, Johnson et al lhe dariam rédea livre e um orçamento ilimitado antes de começar a gritar, pedindo resultados. Não muito tempo, pensou sombrio; talvez outra semana.
Vestiu o paletó e o sobretudo, pôs o chapéu, e falou à saída com o guarda uniformizado que mantinha registro de entradas e saídas em uma mesa de jogo colocada imediatamente do lado de dentro da porta da frente. Delaney deu-lhe o seu destino e o número de telefone onde podia ser encontrado. Tomou um dos carros sem marcas estacionado do lado de fora da casa, e mandou o motorista seguir para o hospital. Outra quebra do regulamento, mas, pelo menos, dava aos dois detetives que se encontravam no veículo alguns minutos de alívio do tédio de ficarem sentados ali e esperar.
Bárbara parecia apática e respondeu às suas tentativas de conversação com apenas algumas palavras e um lívido sorriso. Ajudou-a a tomar a refeição do meio-dia. Terminada, ficou ali sentado durante mais uma hora. Perguntou-lhe se queria que lesse para ela, mas, quando sacudiu negativamente a cabeça, simplesmente ficou ali durante mais de uma hora, impassível, na esperança de que sua presença constituísse algum consolo, não ousando pensar em quanto tempo duraria a doença e como terminaria.
Voltou para casa de táxi, mostrou obedientemente seu passe da Operação Lombard na entrada, mesmo que o guarda uniformizado postado no lado de fora o houvesse reconhecido imediatamente e feito continência. Estava ansioso por um sanduíche e uma cerveja gelada. Encontrou, porém, a cozinha ocupada com, pelo menos, meia dúzia de policiais que aproveitavam a hora do almoço e tomavam café, cerveja, ou comiam um pouco de queijo com frios, para os quais cada um contribuía com um dólar por dia.
O velho guarda uniformizado viu o capitão entrar no estúdio e, minutos depois, bateu à porta levando-lhe uma cerveja e um sanduíche de presunto e queijo suíço em pão de centeio. O capitão sorriu, agradecido; era justamente o que queria.
Mais ou menos uma hora depois, um guarda bateu e lhe trouxe uma solicitação do detetive de primeira classe Blankenship: Poderia o capitão dar um pulo à sala de estar? Delaney levantou-se com esforço e saiu, seguido pelo guarda. Blankenship encontrava-se atrás dos operadores do rádio, curvado sobre as anotações de emprego do tempo nas atividades de Daniel Blank. Voltou-se, ao entrar Delaney.
– Capitão, o senhor pediu para ser informado de qualquer mudança nos hábitos de emprego do tempo de Danny Boy. Olhe só para isto. – Delaney inclinou-se para seguir o dedo de Blankenship, que apontava para os registros no diário. – Esta manhã Danny Boy saiu da Casa Branca dez minutos depois das nove. Foi observado por Bulldog Um. Nove e dez é normal; ele vem saindo para o trabalho todos os dias por volta de nove e quinze, mais ou menos alguns minutos. Mas, esta manhã, não saiu. Segundo Bulldog Um, voltou e foi diretamente para a Casa Branca. Saiu outra vez quase uma hora depois. Isso significa que não esqueceu alguma coisa... certo? Muito bem... tomou um táxi. Eis aqui: quase dez horas. Foi seguido por Bulldog Dois. Mas não foi diretamente para a Fábrica. O táxi circulou pelo Central Park durante quase quarenta e cinco minutos. A corrida deve ter saído bem cara! Em seguida, finalmente chegou ao escritório. Eram quase onze horas, quando Stryker foi verificar, quase duas horas de atraso. Capitão, sei que isso pode ser um montão de bobagens. Afinal de contas, estamos no dia seguinte ao Natal, e Danny Boy podia estar simplesmente se descontraindo. Mas pensei que era melhor o senhor saber.
– Foi bom que o fizesse – anuiu pensativo Delaney. – Foi bom que o tivesse feito. É interessante.
– Muito bem, agora chegue aqui e escute isto. É uma fita da voz de Stryker, gravada há meia hora. Eu não estava na ocasião e não pude falar com ele. Pediu ao operador que me entregasse a fita. Ponha-a a girar, sim, Al?
Um dos operadores da mesa telefônica ligou o gravador. As pessoas presentes na sala ficaram em silêncio para escutar.
– Ronnie, fala Stryker, na Fábrica. Como é que você está indo? Ronnie, acabo de voltar do almoço com a pequena com quem ando trepando. Um pouco ossuda, mas uma coisa! No almoço, levei a conversa para Danny Boy. Ele chegou atrasado quase duas horas para o trabalho. Essa minha pequena – ela é recepcionista no departamento de Danny Boy – disse-me que antes de encontrar-se comigo para irmos almoçar, esteve conversando com a Sra. Cleek. C-1-e-e-k. É a secretária particular de Danny Boy. Viúva. O primeiro nome dela é Martha, ou Margaret, branca, mulher, meados dos trinta, um metro e cinqüenta e sete, sei lá. Cabelos castanhos escuros, alva, sem cicatrizes visíveis, usa óculos o tempo todo. Bem, de qualquer maneira, no toalete, essa Sra. Cleek disse à minha garota que Danny Boy estava agindo de maneira muito esquisita esta manhã. Não ditou nem assinou cartas. Não leu coisa alguma. Nem mesmo quis atender a telefonemas importantes. Isso pode não significar nada, Ronnie, .. mas achei melhor comunicar o fato. Se achar que é importante, procuro jeitosamente a tal Cleek e vejo o que posso descobrir. Não há problema; ela está esfomeada, pelo que pude notar. Informe-me se quer que eu siga essa pista. Stryker na Fábrica, desligando.
Caiu um silêncio na sala após o término da fita. Alguém riu.
– Aquele Stryker – disse alguém em voz baixa – só pensa em trepar.
– Talvez – disse friamente o Capitão Delaney, sem dirigir-se a pessoa alguma em especial, como se falasse consigo mesmo – mas está fazendo um bom trabalho. – Voltou-se para Blankenship: – Ligue para Stryker. Diga-lhe para procurar a tal Cleek e conservar-nos informados... de qualquer coisa.
– Certo, capitão.
Delaney voltou em passos lentos ao estúdio, com a pesada cabeça curvada e as mãos nos bolsos traseiros das calças. O padrão de aproveitamento do tempo e o estranho comportamento de Danny Boy no escritório eram as melhores notícias que havia recebido durante o dia. Talvez a coisa estivesse funcionando. Poderia estar justamente funcionando.
Procurou a folha de papel amarelo onde havia anotado seu plano de nove pontos. Não estava na gaveta superior fechada da escrivaninha. Nem no arquivo. Onde estaria? A sua memória estava ficando realmente ruim. Encontrou-a finalmente sob o mata-borrão, junto à lista de mais-menos que usava para avaliar o desempenho do pessoal às suas ordens. Antes de examinar o plano, acrescentou o nome de Stryker à coluna do "mais" na lista de desempenho.
Examinando atento o plano por trás dos óculos, conferiu os primeiros seis itens: garagista, garçom do bar Parrot, Lipsky, os Mortons na Erótica, a visita à Fábrica, e o telefonema de véspera de Natal a Blank. O sétimo item era: "Telefonema de Mônica a Blank". Sentou-se na cadeira giratória, olhou fixamente para o teto, procurando descobrir a melhor maneira de enfrentar aquele problema.
Pensava ainda nas opções – o que ele diria e o que ela diria – quando o guarda externo bateu à porta do estúdio e aguardou o grito de Delaney.
– Entre! – O guarda informou-lhe que um repórter chamado Thomas Handry estava na calçada e alegava ter um encontro marcado com o capitão.
– É verdade – assentiu Delaney. – Deixe-o entrar. Diga ao guarda na entrada para anotar a entrada e a saída dele.
Foi à cozinha buscar alguns cubos de gelo. Ao voltar, encontrou Handry de pé em frente à escrivaninha.
– Obrigado por ter vindo – sorriu cordialmente Delaney. – Eu havia anotado a entrevista: no dia seguinte ao Natal, Handry entrevista Blank.
Handry sentou-se na poltrona de couro, ergueu-se imediatamente, tirou duas folhas de papel dobradas do bolso interno do paletó, e jogou-as sobre a mesa de Delaney.
– Informações sobre aquele cara – disse, derreando-se na macia poltrona. – O trabalho dele, suas opiniões sobre a importância dos computadores na indústria, biografia, vida pessoal. Mas acho que o senhor já descobriu tudo isso por essa altura.
O capitão lançou um rápido olhar às duas páginas datilografadas.
– A maior parte – reconheceu. – Mas você tem aqui algumas coisas que vamos explorar em profundidade... algumas pistas.
– Então minha entrevista foi simplesmente tempo perdido?
– Oh, Handry – suspirou Delaney. – Quando lhe pedi que fizesse isso, eu trabalhava sozinho. Não tinha a menor idéia de que voltaria ao serviço ativo e que contaria com o auxílio de detetives em número suficiente para descobrir tudo isso. Além do mais, estas informações não têm importância. Eu lhe disse isso no restaurante. Queria suas impressões pessoais a respeito dele. Você é sensitivo, inteligente. Como não podia entrevistá-lo pessoalmente, queria que você o conhecesse e me contasse as suas reações. Isso é importante. Agora, conte-me tudo, como foi que se desenrolou a entrevista, o que você perguntou e o que ele respondeu.
Thomas Handry tomou uma profunda respiração e exalou-a. Começou a falar. Delaney não o interrompeu uma única vez. Inclinou-se para a frente, colocou a mão em forma de concha no ouvido para ouvir melhor o relato de Handry, feito em voz baixa.
O relato foi bastante conciso. Chegara precisamente à 1:30 da tarde, conforme combinara com o Diretor de Relações Públicas da Javis-Bircham. Blank, porém, fizera-o esperar durante quase meia hora. Somente depois de dois pedidos à secretária, conseguiu entrar no gabinete.
Daniel G. Blank se mostrara polido, mas frio e remoto. Além disso, algo desconfiado. Pedira para ver a identificação de Handry – fato estranho em um executivo que dá uma entrevista combinada pelo seu próprio RP. Blank, porém, falara lúcida e longamente sobre o papel desempenhado por AMROK II nas atividades da Javis-Bircham. Sobre a sua formação pessoal, fora cauteloso, reservado e, com freqüência, perguntara a Handry o que tais perguntas tinham a ver com a entrevista. Tanto quanto o repórter pôde determinar, Blank era divorciado, não tinha filhos, nem fazia planos para casar outra vez. Levava uma vida de solteirão, achava-a agradável, e não tinha outra ambição senão servir à J-B na medida de suas forças.
– Muito bonito – concordou Delaney. – Você disse que ele se mostrou "remoto". Palavra sua. O que quer dizer com isso?
– Esteve nas forças armadas, capitão?
– Sim. Cinco anos. Exército dos Estados Unidos.
– Eu passei quatro anos nos Fuzileiros. Conhece a expressão "um olhar de mil metros"?
– Oh, sim. No polígono de provas. Referente à visão não focalizada.
– Exatamente. É isso o que Blank demonstra. Ou demonstrava durante a entrevista, há algumas horas. Ele olhava para mim, através de mim, e para alguma coisa mais além. Não sei que inferno estava ele focalizando. A maioria desses executivos empresariais é composta exclusivamente de dentes, um aperto de mão cordial, um sorriso sincero, focalizando a vista entre nossos olhos, sobre a ponta do nariz, dando a impressão que retribuem com franqueza nosso olhar. Mas esse cara tinha ido para algum lugar, estava longe, em alguma dimensão. Não sei em que inferno ele se encontrava.
– Ótimo, ótimo – murmurou Delaney, tomando rápidas notas. – Alguma coisa mais? Peculiaridades físicas? Hábitos? Rói as unhas?
– Não... mas usa peruca. Sabia disso?
– Não – disse o capitão aparentemente assombrado. – Peruca? Ele está ainda na casa dos trinta. Tem certeza?
– Absoluta – respondeu Handry, satisfeito com a surpresa do capitão. – Não estava nem mesmo bem alinhada. E ele não dava a mínima bola, se sabia disso. Passou o tempo todo enfiando um dedo sob a borda da peruca e coçando o couro cabeludo.
– Hummm. Talvez. Como era que ele estava vestido?
– "Elegância conservadora" é a frase. Terno preto, bem talhado. Camisa branca, colarinho engomado. Gravata de listras. Sapatos pretos com brilho baço, não lustroso.
– Você seria um detetive maravilhoso.
– O senhor já me disse isso.
– Cheirou bebida no hálito dele?
– Não. Mas cheirei água-de-colônia muito forte ou loção pós-barba.
– Isso combina. Coçou os culhões?
– O quê?
– Quero dizer, ele mexeu em si mesmo?
– Jesus, não! Capitão, o senhor está louco?
– Sim. Pareceu ele, por acaso, magro, contraído, emaciado? Como se não estivesse se alimentando bem ultimamente?
– Não que eu pudesse ver. Bem...
– O quê? – perguntou rapidamente Delaney.
– Sombras sob os olhos. Olheiras inchadas. Como se não estivesse dormindo bem ultimamente. Mas todo o resto da face estava certo. Ele é realmente um cara bonitão. E seu aperto de mão foi seco e firme. Parecia encontrar-se em boa forma física. Quando eu ia sair, com os dois já de pé, ele me entregou um folheto de promoção que a Javis-Bircham publicou sobre o AMROK II. Escorregou de minha mão. Culpa minha. Deixei-o cair. Blank, porém, curvou-se e apanhou-o antes que ele tocasse no chão. O cara é rápido.
– Oh, sim – concordou sombrio Delaney – ele é rápido. Muito bem, tudo isso foi interessante e valioso. Agora diga-me o que pensa dele, o que sente a respeito dele.
– Uma bebida?
– Naturalmente. Sirva-se do que quiser.
– Bem... – começou Thomas Handry servindo-se de uísque com gelo – o homem é um enigma. Não é uma coisa nem outra. É um ser intermediário, indo de A para B. Ou talvez de A para Z. Acho que isso não faz muito sentido.
– Continue.
– Ele está simplesmente com a coisa. Não está lá. A impressão que me deu foi de um cara que está flutuando. Está longe, em alguma parte. Quem, diabo, sabe onde? Aquele olhar de mil metros. E era evidente que não podia importar-se menos com a Javis-Bircham e AMROK II. Ele apenas dava a impressão: uma entrevista publicada não poderia interessá-lo menos. Não sei o que é que há na mente dele. Está perdido e flutuando, como eu disse. Capitão, aquele cara é um balão! Não tem âncora. Ele me confunde e me interessa. Não posso solucioná-lo. – Uma longa pausa. – O senhor pode?
– Estou indo para lá – disse, em voz pausada, Delaney. – Simplesmente, começando a chegar lá.
O silêncio caiu e prolongou-se enquanto Handry bebericava a bebida e Delaney olhava para uma mancha úmida na parede à frente.
– É ele, não? – perguntou finalmente Handry. – Não tenho dúvida a esse respeito.
Delaney suspirou.
– Exato. É ele. Não há dúvida a esse respeito.
– Muito bem – disse o repórter, surpreendentemente controlado. Esvaziou o copo, ergueu-se e dirigiu-se para a porta. Com a maçaneta na mão, voltou-se para fitar o capitão. – Quero estar presente no momento em que o liquidarem – disse em voz categórica.
– Muito bem.
Handry baixou a cabeça e deu-lhe as costas.
– Oh – disse em tom indiferente – mais uma coisa... Consegui uma amostra da letra dele.
Voltou à mesa de Delaney e jogou uma foto sobre o mata-borrão. Delaney apanhou-a lentamente e fitou-a. Daniel G. Blank: uma cópia da foto tirada do arquivo do jornal, a mesma foto que havia sido reproduzida centenas de vezes e se encontrava nas mãos de todos os indivíduos designados para a Operação Lombard. Delaney virou-a. Nas costas, escritas com uma caneta de ponta de feltro, leu as palavras: "Com os melhores votos. Daniel G. Blank".
– Como foi que conseguiu isso?
– Incensamento do ego. Disse-lhe que tinha um álbum de fotografias e autógrafos de gente famosa que eu entrevistava. Ele caiu por isso.
– Belo. Muito obrigado por sua ajuda.
Depois que Handry saiu, Delaney continuou a olhar para a dedicatória: "Com os melhores votos. Daniel G. Blank". Passou levemente os dedos sobre a assinatura. O gesto pareceu aproximá-lo mais daquele homem.
Olhava ainda fixamente para a foto, tentando ver além da mesma, quando o Sargento-Detetive Thomas MacDonald entrou de lado, introduzindo seu volumoso corpo pela porta semi-aberta, como fora deixada por Handry.
O negro deu um passo para dentro do estúdio e parou.
– Estou interrompendo-o, capitão?
– Não, não. Entre. O que é que há?
O baixo e troncudo detetive aproximou-se da mesa de Delaney.
– O senhor queria uma foto de Roger Kope, o policial que foi assassinado. Esta serve?
Entregou a Delaney uma pasta de papelão do tipo que abre do lado. Na frente, em letras douradas. Leu: "Votos de Natal". No lado de dentro, à esquerda, nas mesmas letras douradas, a inscrição: "Da Família Kope." No lado direito estava colocada uma fotografia colorida de Roger Kope, a esposa, e três filhos pequenos. Haviam posado, meio encabulados, ante uma árvore de Natal. O falecido detetive tinha o braço passado em volta da esposa. Não era uma boa foto; obviamente, trabalho de amador, um trabalho feito um ano antes, e mal reproduzido. As cores haviam desmaiado e a face de uma das crianças estava borrada. Mas estavam todos ali.
– Foi tudo o que conseguimos – disse MacDonald numa voz inexpressiva. –Fizeram umas cem delas há um mês, mas acho que a Sra. Kope não vai enviá-las este ano. Servirá?
– Servirá – respondeu Delaney inclinando a cabeça. – Excelente. – No momento em que MacDonald voltou-se para sair, disse: – Sargento, mais duas coisas... Quem é o melhor especialista em grafologia do Departamento?
MacDonald pensou durante um momento, com uma expressão calma no seu rosto de traços nítidos e bem cinzelados: uma máscara do Congo ou um desenho de Picasso.
– Grafologia – repetiu. – Deve ser Willow, William T., tenente-detetive. Ele trabalha em um pequeno escritório no centro.
– Já teve algum contato com ele?
– Há uns dois anos. O caso de uma quadrilha que falsificava bilhetes de loteria. Ele é um bom sujeito. Irritadiço, mas decente. Conhece bem a sua especialidade.
– Pode trazê-lo aqui? Não precisa pressa. Quando ele puder.
– Telefonarei a ele.
– Ótimo. Amanhã ou depois estará bem?
– Muito bem, capitão. O que é a outra coisa?
– Como?
– O senhor falou em duas coisas.
– Oh, sim. Quem está controlando os homens que fazem a escuta do telefone do apartamento de Danny Boy?
– Eu, capitão. Fernandez organizou-a; tecnicamente, os rapazes estão subordinados a ele. Mas me pediu para tomar conta da operação. Ele já tem coisa demais para fazer. Além disso, aqueles caras estão simplesmente sentados sobre o traseiro. Não conseguiram coisa alguma. Danny Boy dá um ou dois telefonemas por semana, geralmente para a Princesa, no Castelo. Talvez aos Mortons. E recebe ainda menos telefonemas. Até agora, nada.
– Hummm, hummm – assentiu Delaney. – Escute, sargento, seria possível acrescentar alguns estalidos ou zumbidos na próxima vez que Danny Boy fizer ou receber uma ligação?
MacDonald compreendeu de imediato o que o capitão queria.
– Para que pense que o telefone está sendo controlado?
– Exato.
– Certamente. Não haverá problema; podemos fazer isso. Estalidos, zumbidos, silvos, um eco... qualquer coisa. Ele compreenderá.
– Ótimo.
MacDonald fitou-o durante longo tempo, somando dois e dois. Finalmente:
– Amedrontando-o, capitão? – perguntou baixinho.
O capitão colocou as mãos, com as palmas para baixo, sobre o mata-borrão da mesa e baixou a cabeça maciça para olhá-las.
– Não, apavorando – disse em voz suave. – Quero parti-lo em dois. Abri-lo de par em par. Inteiramente. Até que ele esteja em pedaços, sangrando. E está funcionando. Sei que está. Sargento, como é que o senhor sabe que está bem perto da coisa?
– Fico com a boca seca.
Delaney inclinou a cabeça.
– Minhas axilas começam a suar horrivelmente. Agora mesmo, estão pingando como torneiras. Vou empurrar esse cara pela borda do precipício, lançá-lo lá embaixo, e observá-lo cair.
A expressão calma de MacDonald não se modificou.
– Acha que ele vai cometer suicídio, capitão?
– Suicidar-se... – disse, pensativo. Inesperadamente, naquele momento, começou a acontecer algo que esperara. Ele era Daniel G. Blank, penetrando profundamente no homem, alisando o corpo com óleos perfumados, empoando-se com talco perfumado, usando biquínis de seda e uma peruca da moda, vivendo em uma solidão esterilizada, possuindo uma mulher com corpo de menino, possuindo um verdadeiro menino, e saindo à noite em busca de amores que o ajudariam a libertar-se, a sentir, a descobrir o que era o significado.
– Suicídio? – repetiu Delaney em voz tão baixa que MacDonald mal conseguiu ouvi-lo. – Não. Não a bala, comprimidos, ou por defenestração. – Sorriu levemente ao pronunciar a última palavra. Defenestração, lançar-se de uma janela para transformar-se em geléia no concreto embaixo. – Não, ele não cometerá suicídio por maior que seja a pressão. Não é seu estilo. Ele aprecia o risco. Ele sobe montanha. Ele chega ao máximo de seus poderes quando se encontra em perigo. É como champanha.
– Então, o que é que ele vai fazer, capitão?
– Eu vou fugir – disse Delaney em voz estranha e suplicante. – Eu preciso fugir.

3

No segundo dia após o Natal, Daniel Blank chegou à conclusão de que a coisa pior – a pior coisa – era cometer esses atos irracionais, sabendo que eram irracionais, e não ser capaz de controlar-se.
Por exemplo, naquela manhã, inteiramente incapaz de chegar ao trabalho na hora habitual, permaneceu rígido na sala de estar, vestido para um dia normal na Javis-Bircham. Entre 9 e 11 da manhã, levantou-se da cadeira pelo menos três vezes para examinar fechaduras e ferrolhos da porta de entrada. Estavam fechados – ele sabia que estavam – mas foi obrigado a ir verificar. Três vezes.
Subitamente, correu pelo apartamento, abriu as portas do guarda-roupa e enfiou o braço entre os ternos pendurados. Ninguém ali. Sabia que era errado agir como agia.
Preparou uma bebida, uma bebida matutina, pensando que ela poderia ajudá-lo. Apanhou uma faca para cortar uma fatia de limão, olhou para a lâmina e deixou-a cair na pia. Não havia tentação nenhuma, mas não queria aquela coisa na mão. Poderia erguê-la para arrancar os olhos e...
E as sandálias? Isso era estranho. Possuía um par, de couro, feito sob medida. Lembrava-se ainda da loja em Greenwich Village e das mãos frias de uma mocinha chinesa traçando o contorno de seus pés nus numa folha de papel branco. Com freqüência, usava-as à noite, quando se encontrava sozinho em casa. As correias eram bastante frouxas e podia calçar as sandálias sem abri-las e fechá-las. Fizera isso durante anos. Naquela manhã, porém, as correias haviam sido abertas e as sandálias estavam ao lado da cama, com as correias bem abertas. Quem fizera aquilo?
E o tempo – o que estaria acontecendo com seu sentido de tempo? Pensou que haviam passado dez minutos, mas verificou que transcorrera uma hora. Calculou uma hora, e verificou que haviam-se passado apenas vinte minutos. O que era que estava acontecendo?
E o que era que estava acontecendo com seu pênis? Era imaginação, naturalmente, mas ele parecia estar-se encolhendo, recolhendo-se para dentro dos testículos. E não evacuava mais meia hora depois de acordar. Sentiu-se empanturrado e bloqueado.
Outras coisas... Pequenas coisas...
Indo de um cômodo para outro e, ao chegar lá, esquecendo por que fora até ali.
Ouvindo um telefone tocar em um programa de televisão e saltando para atender ao próprio telefone.
Finalmente, quando chegou ao escritório, as coisas não correram absolutamente bem. Não que não pudesse ter solucionado os casos. Pensava logicamente, lucidamente. Mas o que adiantava?
Perto do meio-dia, a Sra. Cleek entrou e encontrou-o chorando à escrivaninha, a cabeça curvada para a frente, segurando as têmporas com a palma das mãos. Os olhos dela também se encheram imediatamente de lágrimas.
– Sr. Blank, o que é?
– Desculpe – arquejou ele e disse a primeira coisa que lhe ocorreu: – Uma morte na família.
– Oh! – penalizou-se a Sra. Cleek. – Sinto muito.
Chegou finalmente a casa. Estava tão orgulhoso como um bêbado que sai do bar sem derrubar coisa alguma, firme, caminha lentamente pelo saguão sem tocar em nada, segue o risco da calçada lenta, cuidadosamente, a caminho de casa, sem vacilar por um único momento.
Era cedo ainda. Seis da tarde? Poderiam ser oito. Não quis olhar para o relógio de pulso. Não tinha certeza de poder confiar no relógio. Talvez não fosse o seu próprio sentido falho de tempo; talvez o relógio estivesse desregulado. Ou o próprio tempo poderia ter-se descontrolado.
Apanhou o telefone. Ouviu um eco curioso e vazio antes de escutar o ruído de discar. Ouviu-o tocar. Alguém ergueu o telefone. Blank ouviu dois secos estalidos.
– Residentia da Senonita Montfort – ouviu Valenter dizer.
– Fala aqui Daniel Blank. A senhorita Montfort está?
– Sim, señor. Vou chamá-la...
Daniel Blank, porém, ouviu mais alguns baixos estalidos, e um estranho silvo na linha. Desligou abruptamente. Devia ter sabido. Deixou imediatamente o apartamento. Que horas eram? Não importava.
– Ele está controlando meu telefone – disse indignado a Célia. – Ouvi claramente o som. Claramente.
Encontravam-se no quarto nos altos da casa; os sons da cidade insinuavam-se baixos até ali. Contou que havia seguido seu conselho, que abrira a mente aos instintos, a todos os temores e paixões primitivas que o haviam inundado. Contou como estivera agindo, os irracionais começos, as pausas e crises nas atividades diárias. Falou dos estalidos, dos silvos e do eco no telefone quando a chamara.
– Você acha que estou ficando louco? – perguntou.
– Não – respondeu ela, lenta e quase judiciosamente. – Acho que não. Durante este tempo em que o conheço, você vem-se transformando do homem que era para o homem que vai ser. O que será ele, não acredito que nós dois saibamos com certeza. Mas é compreensível que tal crescimento seja doloroso, mesmo apavorante. Você está deixando atrás de si tudo que é conhecido e empreendendo uma jornada, uma busca, uma escalada, que o está conduzindo. . . a alguma parte. Esqueça por um momento o homem que o vem seguindo e o telefonema que recebeu. Essas dores e deslocamentos nada têm a ver com a busca. Dan, você está renascendo e sente todas as angústias do nascimento, sendo arrancado da segurança do cálido útero para um mundo estranho. A maravilha de tudo é que você tenha suportado tão bem.
Como sempre, a torrente de palavras tranqüilizou-o; sentiu-se tão relaxado como se ela lhe estivesse acariciando a testa. Ela fazia sentido; era verdade que ele mudara desde que a conhecera, e que estava mudando. Os assassinatos faziam parte da mudança, naturalmente – ela se enganava em negar isso – mas não eram a causa, eram simplesmente efeitos da sublevação monumental que ocorria em seu íntimo, algo quente e borbulhante que lutava para subir até a superfície.
Fizeram amor lentamente, com mais ternura do que paixão, mais doçura do que alegria. Naquela luz sobrenatural da única lâmpada cor de laranja, aproximou-se dela, microscopicamente, pela primeira vez.
Os bicos dos seios, sob a insistência de sua língua, endureceram e, observando-os de mais perto, viu-lhes os topos planos, com ravinas e gargantas, qual minúsculo e pequenino mapa topográfico. E cortando os pequenos seios, uma rede de veias azuladas, emaranhadas como pele de seda.
Ao longo do quadril curvo brotava um trigal liliputiano de pêlos surpreendentemente dourados, e havia mais ainda na curva, com duas covinhas, do começo das nádegas. Estes tenros brotos pareceram-lhe secos e empoeirados sob a língua. Aquele umbigo retorcido retribuiu-lhe o olhar com uma piscadela lasciva. No interior do umbigo, experimentando, descobriu um forte sabor acre, que lhe picou a língua.
Bem acima, embaixo do longo cabelo, na nuca, havia um pântano de umidade e o aroma de lírios d'água. Olhou para a carne da perna e da virilha, tão perto que suas pestanas as tocaram, e ela soltou um gritinho. Havia pele dura e lustrosa nas solas dos pés e uma moleza quebradiça entre os dedos. Tudo aquilo tornou-se claro para ele, amado, e triste.
Esgrimiram com as línguas – ataque de ponta, parada de golpe, corte e ele começou a provar a cera cremosa do ouvido dela e, nas axilas, saboreou um doce licor que mordia a língua e derretia-se em seus lábios como neve. Atrás dos seus joelhos, mais veias azuis serpenteavam, perto de uma pele que dava a impressão de camurça e tremia levemente quando a tocava.
Abriu-lhe as nádegas; o botão de rosa fitou-o, fechando-se e expandindo-se – um filme em câmara lenta de uma flor a reagir à luz e às trevas. Pôs o pênis ereto na palma da mão macia de Célia e, lentamente, guiou-lhe os dedos para acariciá-lo, envolvê-lo, sondar-lhe suavemente a abertura, as mãos muito juntas para que pudessem compartilhar das mesmas sensações. Tocou com os lábios seus olhos cerrados e pensou que podia sugá-los e engoli-los como se fossem ostras, temperadas pelas lágrimas.
– Eu quero você dentro de mim – disse ela de súbito; deitando-se de costas, abriu bem os joelhos e guiou-lhe o membro para dentro dela. Envolveu-o com os braços e com as pernas e gemeu baixinho, como se estivessem fazendo amor pela primeira vez.
Mas não houve amor. Apenas uma doçura triste, quase insuportável. No mesmo momento em que a possuía sabia que aquilo era a tristeza da partida; nunca mais fariam amor; ambos sabiam disso.
Ela umedeceu-se toda, por dentro e por fora; agarraram-se um ao outro fortemente. Ele ejaculou com uma série de grandes e dolorosos movimentos e, atordoado, continuou a fazer os movimentos muito depois de estar esgotado e saciado. Não podia interromper o espasmo, não desejava fazê-lo, e sentiu-se gozar pela segunda vez. Vermes quentes estavam em suas coxas: na dele, na dela, na deles, molhando o colchão manchado.
Ela fitou-o através de olhos semi-abertos, vidrados; ele pensou que ela sentia o que ele sentia: a derrota da partida. Naquele momento, teve certeza de que ela havia contado, que o havia traído.
Mas sorriu, sorriu, sorriu, beijou-lhe a boca fechada e voltou cedo para casa. Tomou um táxi porque a escuridão amedrontava-o.
Era um dia de partida e de derrota para Daniel Blank; era um dia de chegada e de triunfo para o Capitão Edward X. Delaney. Ele não ousava sentir-se confiante, receoso de que isso desse azar, mas parecia que o caso se fechava.
Trabalho burocrático pela manhã: requisições, relatórios, faturas – toda a papelada inevitável. Foi para o hospital, sentou-se um pouco ao lado de Bárbara, leu para ela trechos de "Honey Bunch: o Seu Primeiro Jardim". Em seguida, fez uma refeição decente num daqueles restaurantes franceses do West Side: coq au vin com meia garrafa de borgonha forte para ajudar. Pagou a conta e, a caminho da porta, parou no bar para tomar um Kirsch. Sentiu-se bem.
Era bom; tudo era bom. Mal havia chegado em casa quando apareceu Blankenship a fim de mostrar o Padrão de Emprego do Tempo de Danny Boy. Era, na verdade, errático: chegada à Fábrica às 11:30. Omitiu inteiramente o almoço. Fez um longo passeio em ziguezague pelas docas. Sentou-se no cais durante quase uma hora – "Ficou simplesmente olhando os excrementos passarem, flutuando", de acordo com o relatório do homem que o seguira. Relatório de Stryker: levara a Sra. Cleek para almoçar e ela lhe dissera que encontrara Danny Boy chorando no escritório e que ele lhe contara que tinha havido uma morte na família. Danny Boy voltou à Casa Branca às 2:03 da tarde.
– Ótimo – concordou o capitão, devolvendo o registro a Blankenship. – Continue no trabalho. Fernandez já chegou?
– Chega às 4:00, capitão.
Após a saída de Blankenship, Delaney fechou a porta do estúdio e passeou lentamente pela sala, de cabeça baixa. "Uma morte na família". Era ótimo. Parou para telefonar a Mônica Gilbert e perguntou-lhe se poderia ir vê-la naquela noite. Ela convidou-o para jantar, mas ele desculpou-se; combinaram que ele chegaria às 7:00. Disse-lhe que a ocuparia apenas durante minutos; ela não perguntou o motivo. As filhas estavam em casa devido à semana de feriados escolares, explicou, e não pudera visitar Bárbara tanto quanto queria, mas tentaria ir ao hospital na tarde do dia seguinte. Ele agradeceu.
Mais passeios pela sala, calculando opções e possibilidades. Foi até a sala de rádio e disse a Blankenship para requisitar mais quatro carros, dois oficiais e dois sem marcas, e para conservá-los estacionados na rua ocupados por dois policiais. Não queria pensar no que acarretava esse aumento de mão-de-obra e voltou ao estúdio para reiniciar a caminhada. Havia alguma coisa que devia ter feito e que não fizera? Não podia lembrar-se de coisa alguma, mas tinha certeza de que haveria problemas nos quais não pensara. Nada podia fazer a respeito.
Tirou o plano da mesa e, ao lado dos três itens finais, preparou um horário aproximado. Trabalhava ainda no problema quando o Tenente Fernandez bateu à porta e entrou.
– Quer falar comigo, capitão?
– Espere um minuto, tenente. Isso não demorará muito. Como é que estão indo as coisas?
– Bem. Tenho a impressão de que as coisas estão começando a acontecer. Não me pergunte como é que sei. Apenas uma sensação.
– Espero que tenha razão. Tenho outra missão para você. Terá de requisitar mais gente. Consiga-a onde for possível. Se surgir algum problema com os chefes deles, diga-lhes para me telefonarem. Trata-se de uma mulher. . . Mônica Gilbert. Aqui está o endereço e o número do telefone. Ela é a viúva de Bernard Gilbert, a segunda vítima. Deve haver por aí uma fotografia dela e alguns relatórios sobre o emprego do tempo. Eu quero um controle de vinte e quatro horas sobre o seu telefone, dois homens em um carro sem marcas do lado de fora da casa, e dois guardas fardados à porta do apartamento. Ela tem duas filhinhas. Se sair com as meninas, ambos os guardas vão juntos, e quero que seja de perto. Se sair sozinha, um homem a acompanha e o outro fica com as crianças. Compreendeu?
– Certo, capitão. Vigilância de perto?
– Quero dizer, vigilância de perto. Bastante perto para tocar.
– Acha que Danny Boy vai tentar alguma coisa?
– Não, não acho. Mas quero que ela e as crianças fiquem protegidas nas vinte e quatro horas do dia. Pode providenciar isso?
– Sem problema, capitão. Começarei agora mesmo.
– Ótimo. Coloque seus primeiros auxiliares de serviço às oito da noite. Não, antes.
Fernandez inclinou a cabeça.
– Capitão.
– Sim?
– A Luger está quase pronta.
– Ótimo. Algum problema?
– Não, nenhum.
– Você está gastando dinheiro com isso?
– Dinheiro? – Fernandez fitou-o, incrédulo. – Que dinheiro? Há alguns caras que me devem certos favores.
Delaney assentiu. Fernandez abriu a porta para sair e viu um homem, de pé à sua frente com o braço curvado, os nós dos dedos em posição, prestes a bater à porta do capitão.
– Capitão Delaney? – perguntou ele a Fernandez
O tenente sacudiu a cabeça, com o polegar indicou sobre o ombro o capitão, deu a volta em torno do recém-chegado e desapareceu.
– Eu sou o Capitão Edward X. Delaney.
– Meu nome é William T. Willow. Tenente-detetive. Acho que o senhor queria me consultar.
– Oh, sim – respondeu Delaney, erguendo-se da cadeira. – Por favor entre, tenente, e feche a porta. Muito obrigado por ter vindo até aqui. O sargento MacDonald disse-me que o senhor é a maior autoridade em sua especialidade.
– Concordo – disse Willow, com um doce sorriso.
Delaney riu.
– Que tal um drinque? Alguma preferência?
– O senhor tem por acaso um pouco de xerez, capitão?
– Acontece que tenho. Meio seco. Servirá?
– Excelente, obrigado.
O capitão dirigiu-se ao bar e, enquanto servia a bebida, examinava o perito em grafologia. Um tipo esquisito. Tinha a pele e a ossatura de uma galinha pelada e vestia um felpudo terno de tweed tão pesado, que Delaney se perguntou como ombros tão frágeis como aqueles podiam agüentá-lo. No colo, colocara um boné quadriculado. Usava botas acima do tornozelo, de camurça marrom-escura. Meias Argyle, camisa de lã Tattersall, gravata de linho tricotada, presa com um broche em forma de ferradura. Um espetáculo para os olhos.
Os olhos azuis de Willow, porém, eram vivos e atentos e seus movimentos, ao aceitar o cálice de xerez entregue por Delaney, foram rápidos e seguros.
– A sua saúde, senhor – disse o tenente, erguendo o cálice. Bebericou-o. – Harvey's – comentou.
– Exato.
– E muito bom, também. Eu teria vindo mais cedo, capitão, mas estive no tribunal.
– Não tem importância. Não há pressa neste caso.
– De que se trata?
Delaney procurou na gaveta superior da escrivaninha e, em seguida, entregou a Willow a foto que Thomas Handry trouxera com a dedicatória nas costas: "Com os melhores votos. Daniel G. Blank."
– Que pode me dizer sobre o homem que escreveu isso?
O Tenente-Detetive William T. Willow nem mesmo a olhou. Fitou assombrado o capitão.
– Oh! – exclamou. – Receio que tenha havido um terrível mal-entendido, capitão. Eu sou um especialista em DD, e não um grafólogo.
Pausa.
– O que quer dizer DD? – perguntou Delaney.
– Documentos duvidosos. Todo meu trabalho diz respeito a falsificações ou suspeita de falsificações, a comparação de um espécime com outro.
– Compreendo. E o que é um grafólogo?
– Um homem que supostamente pode determinar o caráter, a personalidade, e mesmo doença física e mental de um homem pela sua letra.
– Supostamente? O senhor não concorda com os grafólogos?
– Digamos que sou neutro no assunto – sorriu Willow o seu doce sorriso. – Não concordo nem discordo.
O capitão notou que o cálice de xerez estava vazio. Levantou-se para tornar a enchê-lo e deixou a garrafa na mesinha ao lado do cotovelo de Willow. Sentou-se atrás da escrivaninha e fitou gravemente o visitante.
– Mas conhece as teorias e práticas da grafologia?
– Sem dúvida, capitão. Li tudo o que havia sobre o assunto de análise de caligrafia, em todas as fontes, contra e a favor.
Delaney inclinou a cabeça, cruzou os dedos sobre o estômago, e reclinou-se na cadeira giratória.
– Tenente Willow – disse com ar sonhador – vou pedir-lhe um favor muito especial. Vou pedir que finja que é grafólogo e não especialista em DD. Quero que examine este espécime e o analise como o faria um grafólogo. O que quero é sua opinião. Não uma declaração assinada pelo senhor. Não será chamado a testemunhar coisa alguma. Isto é completamente extra-oficial. Quero simplesmente saber o que pensa – colocando-se, naturalmente, no lugar de um grafólogo. O que me disser não sairá desta sala.
– Naturalmente – disse logo Willow. – Estou encantado.
De um bolso interno tirou um par de óculos de forma estranha: óculos de receita médica com um par adicional de lentes de aumento presas por dobradiças à borda superior da armação. Colocou os óculos e baixou as lentes extras. Aproximou tanto a dedicatória do rosto que quase a tocou com o nariz.
– Caneta de ponta de feltro – disse imediatamente. – Muito ruim. Perdem-se as nuanças. Hummm. Hummm. Interessante, muito interessante. Capitão, o homem sofre de prisão de ventre?
– Não tenho a mínima idéia.
– Oh, meu Deus, olhe só para isso – disse Willow, ainda examinando atentamente a letra de Blank. –O senhor acreditaria... Doente, doente, doente. E isto... As belas maiúsculas, simplesmente belas. – Ergueu a vista para o capitão. – Ele teria crescido em uma pequena cidade no Meio-Oeste – Ohio, Indiana, Iowa – por aí?
– Sim.
– Tem uns quarenta anos, ou mais?
– Meados dos trinta.
– Bem... sim, poderia ser. Método de Palmer. Ainda o ensinam em algumas escolas. Mas olhe só para isso. É interessante.
Inesperadamente, tirou os óculos, guardou-os, e ergueu-se pela metade para lançar a foto sobre a escrivaninha de Delaney. Reclinou-se em seguida e serviu-se de outro cálice de xerez.
– Esquizóide – começou, falando rapidamente. – Por um lado, temperamento artístico, sensível, imaginativo, suave, perceptivo, amante do ar livre, esforçado, simpático, generoso. As maiúsculas são trabalhos de arte. Florescem. Por outro lado, as minúsculas, rígidas, muito frias, perfeitamente alinhadas: a mente mecânica, ordenada, disciplinada, implacável, sem emoção, inumana, morta. São características muito difíceis de conciliar.
– Isso mesmo – concordou Delaney. – Ele é louco?
– Não, mas está a caminho de um colapso.
– Por que diz isso?
– O cursivo dele está-se despedaçando. Pode-se ver isso mesmo com uma caneta de ponta de feltro. São leves as ligações entre as letras. Entre algumas delas não há absolutamente ligação. E na assinatura, que deve ser o cursivo mais seguro de uma pessoa, ele começa a hesitar. Ele não sabe quem é.
– Muito obrigado, Tenente Willow – disse cordialmente o Capitão Delaney. – Por favor, fique mais um pouco e termine sua bebida. Conte-me alguma coisa sobre análise da escrita – do ponto de vista do grafólogo, naturalmente. O assunto parece fascinante.
– Oh, sim – disse o homem – é mesmo.
Mais tarde, naquela noite, Delaney foi até a sala de estar inspecionar o registro de emprego do tempo. Danny Boy voltara à Casa Branca às2:03.Às 5:28 telefonara para a Princesa, no Castelo, desligara abruptamente depois de falar apenas alguns minutos e, às 5:47, fora de táxi à residência dela. Ainda estava lá naquele momento, comunicava Bulldog Três.
Delaney dirigiu-se à mesa dos telefones.
– Gravou a fita da chamada de Danny Boy para o Castelo, às 5:28?
– Sim, senhor. O pessoal da escuta forneceu-nos a fita pelo telefone. Quer que a toque?
– Por favor.
Escutou a conversa de Daniel Blank com o ciciante Valenter. Ouviu os estalidos, os silvos e o eco que a Polícia introduziu na linha controlada. Sorriu quando Blank bateu violentamente com o telefone no gancho em meio da conversação.
– Perfeito – disse sem se dirigir a pessoa alguma em especial. Planejara a reunião com Mônica Gilbert com a habitual e meticulosa atenção aos detalhes, chegando mesmo a resolver permanecer de sobretudo. Isso a faria pensar que ele somente poderia ficar ali durante um momento, que tinha pressa, e que trabalhava arduamente para levar à justiça o assassino de seu marido.
Mas quando chegou à casa dela às 7:00 da noite, as crianças estavam ainda acordadas, embora de camisola, e teve de brincar com elas, ver seus presentes de Natal, e aceitar uma xícara de café. A atmosfera parecia descontraída, agradável, doméstica – tudo errado para o que queria. Ficou satisfeito quando Mônica mandou-as para a cama.
Voltou à sala de estar, sentou-se no sofá, extraiu do bolso uma folha de papel com a mensagem que queria que ela transmitisse.
Ela entrou e olhou-o preocupada.
– O que é, Edward? Você parece... bem, tenso.
– O assassino é Daniel Blank. Não há dúvida a esse respeito. Ele matou seu marido, Lombard, Kope e Feinberg. É um psicopata, um louco.
– Quando é que vai prendê-lo?
– Não vou prendê-lo. Não há prova que eu possa levar a um tribunal. Ele sairia livre uma hora depois da prisão.
– Não posso acreditar nisso.
– É verdade. Estamos vigiando-o durante todos os minutos e, talvez, possamos impedir outro assassinato e surpreendê-lo no ato. Mas não posso me arriscar.
Contou-lhe, então, o que vinha fazendo para esmagar Daniel Blank. Ao descrever-lhe o telefonema da véspera do Natal, como Frank Lombard, ela empalideceu.
– Edward, você não fez isso!
– Oh, sim, fiz. E funcionou. O homem está caindo aos pedaços. Sei que está. Mais uns dois dias, se continuar a aplicar pressão, e ele vai abrir-se em dois. Bem, eis aqui o que quero que você faça.
Entregou-lhe a folha do diálogo que preparara.
– Quero que telefone para a casa dele, identifique-se, e pergunte-lhe por que matou seu marido.
Ela fitou-o, chocada e horrorizada.
– Edward! – disse em voz estrangulada. – Não posso fazer isso.
– Claro que pode – insistiu suavemente. – São apenas algumas palavras. Eu as escrevi para você. Tudo que tem de fazer é lê-las. Estarei aqui a seu lado quando telefonar. Segurarei mesmo a sua mão, se quiser. Tudo isso levará apenas um minuto, mais ou menos. E então acabará. Você pode fazê-lo.
– Não posso, não posso! – Virou a cabeça e levou as mãos ao rosto. – Por favor, não me peça para fazer isso! – disse, com voz abafada. – Por favor, não peça! Por favor!
– Ele matou seu marido!
– Mas mesmo que...
– E três estranhos, inocentes. Esmigalhou-lhes o crânio com aquele fiel machadinho de gelo e deixou-os na calçada com os miolos escorrendo...
– Edward, por favor. ..
– Você é a mulher que queria vingança, não? "Vingança," disse você. "Eu farei qualquer coisa para ajudar," disse. "Baterei máquina, darei recados, farei café." Foi o que você disse. Quero apenas que diga algumas palavras pelo telefone ao homem que massacrou seu marido.
– Ele virá atrás de mim. Ele prejudicará as crianças.
– Não. Ele não fere mulheres e crianças. Além disso, você terá uma forte guarda. Ele não poderia aproximar-se, nem mesmo se quisesse. Mas não virá, Mônica. Você fará o que estou pedindo?
– Por que eu? Por que preciso fazer isso? Não pode arranjar um policial...?
– Para chamá-lo e dizer que é você? Isso não diminuiria as possibilidades de perigo para você e as crianças. E não quero que ninguém mais do Departamento saiba de nada a esse respeito.
Ela sacudiu a cabeça, com os nós dos dedos contra a boca. Tinha os olhos úmidos.
– Qualquer coisa, menos isso – disse em voz fraca. – Eu simplesmente não posso fazer isso. Não posso.
Ele levantou-se e fitou-a com o rosto contraído em um feio sorriso.
– Que os "tiras" tratem disso, hem? – disse em um tom de voz que mal reconheceu como seu. – Que os "tiras" limpem a merda, o vômito e o sangue do mundo. Você quer conservar as mãos limpas. Que os "tiras" façam tudo. Contanto que você não saiba o que eles estão fazendo!
– Edward, isso é tão cruel. Não pode compreender? O que você está fazendo é pior do que o que ele fez. Ele matou porque é um doente e não pode deixar de matar. Mas você está matando-o lenta e deliberadamente, sabendo exatamente o que está fazendo, com tudo planejado, e...
Inesperadamente sentou-se ao lado dela, enlaçou-lhe os ombros e falou-lhe bem junto do ouvido.
– Escute, seu marido era judeu e você é judia, certo? E Feinberg, o último cara que ele matou, era judeu. Quatro vítimas: dois judeus. Cinqüenta por cento. Quer que esse indivíduo continue solto matando mais gente de seu povo? Você quer...
Soltou-se bruscamente do braço dele, virou-se a partir da cintura e esbofeteou-o, uma pancada de mão aberta que atirou sua cabeça para o lado e fê-lo pestanejar.
– Desprezível! – cuspiu as palavras. – O homem mais desprezível que jamais conheci!
Ele ergueu-se subitamente e dominou-a com sua altura.
– Oh, sim – disse, sentindo a boca amarga. – Desprezível. Oh, sim. Mas Blank é um rapaz pobre e doente... certo? Certo. Esmigalhou o crânio de seu marido, mas estamos na semana do "Sejamos Bons para Blank". Certo. Deixe que eu lhe diga uma coisa. Deixa? – Gaguejava naquele instante tal a emoção, irresistível, de dizer o que queria. – Ele está morto. Compreendeu? Daniel G. Blank está morto. Neste instante. Você pensa... você pensa que vou deixar que ele se safe com o que fez simplesmente porque a lei...? Acha que vou encolher os ombros, dar as costas, e assistir? Eu lhe digo, ele está morto! Não há maneira, nenhuma maneira, de escapar de mim. Mesmo que tenha de dar-lhe um tiro na cabeça com meu revólver de serviço ao meio-dia, no meio da rua, eu o farei. Eu o farei! E espere por lá até que a Polícia chegue para me levar. Não me importo. O homem está morto! Será que essa idéia não pode entrar na sua cabeça? Se não me ajudar, eu o farei de outra maneira. Não importa o que você fizer, não importa, não importa. Ele está morto. Está simplesmente morto!
Ficou ali, tremendo de raiva, tentando respirar pela boca aberta. Ela ergueu tímidos olhos para ele.
– O que é que você quer que eu diga? – perguntou baixinho.
Sentou-se ao lado dela no sofá, segurou-lhe a mão livre e pôs o ouvido junto do telefone que ela segurava com a outra mão para ouvir a conversação. Pôs no colo dela o texto que preparara.
O telefone de Blank tocou várias vezes antes de atender.
– Alô? – perguntou ele cautelosamente.
– Daniel Blank? – perguntou Mônica, lendo o texto. Havia um ligeiro tremor na sua voz.
– Sim, quem é?
– Meu nome é Mônica Gilbert. Sou a viúva de Bernard Gilbert. Sr. Blank, por que o senhor matou Bernie? Meus filhos e eu queremos...
Mas foi interrompida por um selvagem urro, um grito de pânico e desespero que apavorou a ambos. Veio uivando pelo fio, numa altura suficiente para ferir-lhes os ouvidos, bastante agudo para penetrar-lhes até o coração e a alma e fazê-los tremer. Ouviu-se, então, uma pancada forte de um telefone largado no chão, uma batida violenta.
Delaney tirou o telefone da mão trêmula de Mônica, e colocou-o suavemente no gancho.
– Ótimo – disse suavemente. – Você se saiu muito bem.
Ela fitou-o.
– Você é um homem terrível! – murmurou. – O homem mais terrível que já conheci!
– Sou? – perguntou ele. – Terrível e desprezível, tudo isso numa noite só. Bem... sou um "tira".
– Nunca mais quero vê-lo, nunca mais.
– Muito bem – disse ele triste. – Boa noite, e muito obrigado.
Havia dois guardas uniformizados no lado de fora do apartamento.
Mostrou-lhes a identificação e verificou se haviam compreendido bem as ordens. Ambos haviam recebido reproduções da foto de Daniel Blank. Na rua, viu dois detetives em um carro sem marcas. Um deles reconheceu-o, e ergueu a mão em um cumprimento. Fernandez fizera um trabalho eficiente; era bom nesse tipo de trabalho.
O capitão enfiou as mãos nos bolsos do casaco fazendo um esforço para não pensar no que fizera a Mônica Gilbert, dirigiu-se em passos resolutos ao prédio de apartamentos de Blank e entrou no saguão. Felizmente, Lipsky estava de serviço.
– Tenho uma carta para Daniel Blank – disse ao porteiro. – Pode colocá-la na caixa dele? Não há pressa. Se a receber amanhã, está bem.
Delaney deu-lhe dois quartos de dólar e entregou os cumprimentos de Natal de Roger Kope e Família, fechados em um envelope branco, endereçado ao Sr. Daniel G. Blank.

4

Após o telefonema de Mônica Gilbert, Daniel Blank havia deixado cair o telefone e corrido pelos cômodos do apartamento de boca aberta, com o urro preso na garganta. Não podia terminá-lo. Finalmente, o urro transformou-se em gemidos, arquejos, soluços, tosse e lágrimas. Quando deu por si, estava no quarto, com a testa colada contra o espelho de corpo inteiro, olhando fixamente para a sua face, estranha e contorcida, desfigurada.
Ao acalmar-se, temeroso de que aquele uivo tivesse sido ouvido pelos vizinhos, dirigiu-se diretamente à extensão do quarto, tencionando telefonar a Célia Montfort e fazer-lhe uma única pergunta: "Por que me traiu?" Mas ouviu um som estranho na discagem e lembrou-se de que havia deixado cair o aparelho no gancho. Resolveu não telefonar para Célia. O que poderia ela possivelmente dizer?
Nunca sentira antes tal sensação de dissolução. Obedecendo ao instinto de autopreservação, despiu-se, verificou as fechaduras das janelas e portas, apagou a luz e foi deitar-se nu. Rolou para-frente e para trás até que o lençol de seda e o cobertor de lã se enrolaram fortemente em volta de seu corpo, mumificando-o, conservando-o íntegro.
Pensou, com a mente em turbilhão, que poderia ficar acordado para sempre, fitando a escuridão, pensando. Mas, curiosamente, adormeceu quase no mesmo instante: um sono pesado, sem sonhos, mais coma do que sono, pesado e deprimente. Acordou às 7:18 da manhã seguinte, cansado. Tinha as pálpebras coladas umas nas outras; compreendeu que chorara durante a noite.
O pânico do dia anterior, porém, fora substituído por letargia, um estado de ausência de pensamentos. Mesmo depois de ter feito automaticamente os movimentos de banhar-se, barbear-se, vestir-se, tomar café, encontrou-se em um mundo destituído de pensamentos, como se seu cérebro esgotado houvesse dito: "Muito bem! Já basta!" e teimosamente rejeitasse todos os receios, esperanças, paixões, visões, ardores. O próprio corpo estava apático: o pulso parecia bater pacientemente em velocidade reduzida, e sentia os membros lassos. Vestiu-se para o trabalho como um ator a esperar a deixa, sentou-se na sala de estar, e ficou olhando para a parede espelhada, contente meramente em existir, respirar.
O telefone tocou duas vezes, a intervalos de uma hora, mas não respondeu. Poderia ser o escritório, chamando-o. Ou Célia Montfort. Ou... ou alguém. Mas não atendeu. Sentou-se rigidamente, numa espécie de estado cataléptico, e somente os olhos vagueavam pela parede espelhada. Precisava desse intervalo de paz, de tranqüilidade, de ausência de pensamentos. Podia mesmo ter cochilado ali, na cadeira Eames, mas isso não tinha importância.
Despertou no começo da tarde e olhou para o relógio; parecia ser 2:18 da tarde. Era possível: estava disposto a aceitar a hora indicada pelo relógio. Pensou vagamente se não devia sair, dar uma volta, respirar um pouco de ar fresco.
Mas foi apenas até o saguão. Passou pelas caixas fechadas do correio. A correspondência fora entregue, mas não lhe deu importância. Cartões atrasados de Natal, provavelmente. E contas. E... bem, não valia a pena pensar nisso. Teria Gilda lhe enviado um cartão de Natal naquele ano? Ele não o fizera; quanto a isso, tinha certeza.
Charles Lipsky deteve-o.
– Mensagem para o senhor, Sr. Blank. – disse alegremente. – Em sua caixa. – E deu um passo para trás do balcão.
Blank lembrou-se subitamente que não dera coisa alguma de Natal aos porteiros, nem ao garagista e nem à arrumadeira. Ou tinha dado? Comprara um presente de Natal para Célia? Não conseguiu lembrar-se. Por que o havia traído?
Olhou para o envelope branco simples que Lipsky lhe enfiou na mão. "Sr. Daniel Blank." Era o seu nome. Sabia disso. Subitamente, achou que era melhor não dar o passeio – não naquele momento. Nunca o faria. Sabia que nunca o faria.
– Obrigado – disse a Lipsky. Nome curioso aquele – Lipsky. Voltou-se, tomou o elevador de volta ao apartamento, ainda movendo-se através de um sonho lento e letárgico, com os joelhos transformados em água, o corpo pronto para dissolver-se em uma poça escura e espumosa no tapete do saguão se o elevador não chegasse logo. Tomou uma profunda respiração. Conseguiria.
Ao fechar-se a porta, encostou-se na parede e abriu lentamente o envelope branco. Votos de Feliz Natal da Família Kope. Ah, bem. Por que o havia traído? Que possível razão poderia ter tido ela, desde que tudo o que fizera fora conseqüência de sua suave insistência e sábia tutela?
Dirigiu-se diretamente para o quarto, tirou a gaveta, virou-a sobre a cama, espalhando seu conteúdo. Arrancou violentamente o envelope. As lembranças haviam constituído um tolo engano, pensou indolentemente, mas nenhum mal fora feito. Ali estavam elas. Ninguém as levara. Ninguém as vira.
Trouxe da cozinha uma pesada tesoura e cortou em pedacinhos a carteira de habilitação de motorista de Lombard, o cartão de identidade de Gilbert, a identificação de Kope, com a carteira de couro, e as pétalas de rosa de Feinberg, reduzindo-os a fragmentos, cortando, cortando. Pôs todo o material no vaso e deu descarga, observando até ter certeza de que tudo havia desaparecido. Deu mais duas descargas.
Restara apenas o distintivo do detetive de terceira classe Roger Kope. Sentou-se à beira do sofá, sacudindo a placa de metal na palma da mão, perguntando-se, sonhador, de que modo poderia livrar-se dela. Poderia jogá-la no incinerador, mas ela poderia resistir, calcinada mas suficientemente legível para levar alguém a pensar no caso. Largá-la pela janela? Ridículo. Seria melhor jogá-la no rio – mas podia caminhar uma distância tão grande sem arriscar-se a ser visto por alguém? O óbvio era o melhor. Colocaria o distintivo em um pequeno saco de papel pardo, não precisaria caminhar mais de dois quarteirões, e o colocaria num depósito de lixo de esquina. Apanhado pelo Departamento de Limpeza Urbana, atirado nos fundos de um daqueles gigantescos caminhões, misturado com borra de café e caroços de grapefruit, o saco seria finalmente lançado em uma sapucaia ou em um aterro em Brooklyn. Perfeito. Riu baixinho.
Calçou luvas, limpou o distintivo com um trapo oleoso, e colocou-o em um pequeno saco de papel. Vestiu o sobretudo e pôs o saco no bolso direito. Pela venda do bolso esquerdo segurava o machado de gelo sob o casaco, embora, por que motivo, não soubesse.
Dirigiu-se à Third Avenue e virou para o sul. Parou na metade do quarteirão, notando um pequeno depósito de lixo na esquina próxima. Parou para olhar uma vitrina, examinando a horrenda exposição de bengalas, muletas, cadeiras de rodas, aparelhos protéticos, fundas para hérnia, almofadas, ataduras, garrafas de emergência de oxigênio, conjuntos de análise de urina no lar. Deu casualmente as costas à vitrina e observou o quarteirão. Nenhum guarda uniformizado. Nenhum carro de radiopatrulha ou coisa alguma que se parecesse com um carro da Polícia sem marcas. Ninguém que pudesse ser um detetive à paisana. Simplesmente os detritos casuais de uma rua de Manhattan – donas-de-casa e executivos, hippies e prostitutas, vendedores de narcóticos e padres; a colméia da cidade flutuando na corrente da rua.
Dirigiu-se rapidamente ao depósito de lixo na esquina, tirou o pequeno saco de papel com o distintivo do Detetive Kope, e lançou-o no meio do lixo acumulado: sacos de papel pardo exatamente iguais ao seu, jornais abandonados, um rato morto, todo o lixo cru de uma cidade viva. Olhou rapidamente em volta. Ninguém o observava; todos os circunstantes pareciam ocupados em suas próprias agonias privadas.
Deu a volta e foi para casa, sorrindo. O mais simples e óbvio era o melhor.
O telefone tocava no momento em que entrou no apartamento. Deixou-o tocar, sem responder. Pendurou o casaco e pôs o machado de gelo no lugar habitual. Preparou um belo martíni e vodca, mexendo-o sem cessar para gelá-lo tanto quanto possível e, cantarolando, levou-o para a sala de estar, onde se deitou ao comprido no sofá, com a bebida equilibrada sobre o peito. Perguntou-se por que Célia o havia traído.
Após algum tempo, depois de ter tomado vários goles da bebida, saindo ainda do transe, galgando a superfície como algo há muito tempo submerso e oculto e que sobe com a maré, tiros de canhão ou uma tempestade, o telefone tocou mais uma vez. Ergueu-se imediatamente, pôs o drinque com todo o cuidado e firmeza na mesa de coquetel de vidro, dirigiu-se à cozinha e escolheu uma faca, uma lamina afiadíssima, de dezoito centímetros, com um cabo confortável.
Estranho, mas as facas não o incomodavam mais. Davam-lhe uma sensação agradável. Voltou à sala de estar, quase cabriolando, inclinou-se e, com a afiada e confortável faca, cortou o fio enrolado que ligava o bocal e o fone ao aparelho. Pôs de lado a parte cortada, com toda suavidade e deixou-a pendente como se fosse um intestino.
Com o corte libertou-se. Sentiu a libertação. Sentiu-se livre do mundo, dos fatos, de toda a realidade.
O Capitão Delaney acordou com um sentimento de persistente inquietação. Irritou-se pensando que havia negligenciado alguma coisa. Havia omitido algum detalhe óbvio que permitiria a Danny Boy escapar de sua vigilância, fugir para a Europa, mergulhar no anonimato das ruas da cidade, ou mesmo cometer outro assassinato. Pensou na organização da guarda, mas não conseguiu descobrir como apertar ainda mais o cerco.
Mas estava mal-humorado quando desceu para tomar café. Pegou uma xícara na cozinha, voltou pela sala do rádio, sala de jantar, corredores e tornou-se consciente de algo. Não havia pessoal do serviço dormindo de cueca nos catres. Estavam todos acordados e vestidos; enquanto olhava em volta, viu três homens colocando o cinto da arma.
A maioria do pessoal da Operação Lombard era constituída de detetives, e eles usavam o padronizado Polícia Especial, calibre 38. Alguns felizardos possuíam um Magnum calibre 357, ou automáticas 45. Alguns tinham duas armas. Uns poucos levavam-nas ao cinto; outros, em frente, na cintura. Um deles, um coldre extra e um pequeno 32, às costas. Outro conduzia um 22, ainda menor, preso à panturrilha, sob a perna da calça.
Delaney não fazia objeção a essa exibição extra-oficial de armamento. Um detetive usa o que lhe dá mais conforto em um trabalho no qual a porta aberta seguinte pode significar a morte. O capitão sabia que alguns levavam porretes, soqueira, canivetes de mola. Estava tudo correto. Tinham direito a tudo o que lhes pudesse dar confiança extra e os levar a sobreviver.
Mas o estranho era vê-los fazer tais preparativos como se sentissem que a longa vigília aproximava-se do fim. Delaney podia imaginar o que pensavam, o que discutiam em voz baixa, erguendo para ele olhos nervosos quando passou pelas salas em passos duros
Em primeiro lugar, não eram estúpidos; ninguém era promovido de guarda a detetive passando por uma "prova de estupidez". Ao assumir o comando da Operação Lombard, concentrara os esforços de todos eles em Daniel G. Blank, suspendendo as investigações em torno dos demais suspeitos. Os detetives sabiam que o capitão sabia de algo que eles desconheciam: Danny Boy era o pássaro, Delaney era um policial velho e experiente demais para arriscar a própria pele se não tivesse certeza. Quanto a isso não havia dúvida.
Espalhou-se, então, a notícia de que ele havia solicitado a foto da família de Kope. O telefonista ouviu a fita gravada pelo colega que controlava o telefone de Danny Boy e gravou a fita do telefonema de Mônica Gilbert. Em seguida, uma guarda especial foi colocada em torno da viúva e das filhas. Tudo isso foi comentado na sala do rádio e nos carros de patrulha, nas longas vigílias noturnas e nas demoradas horas de ronda. Eles sabiam, ou desconfiavam, o que o capitão pretendia. Era uma maravilha, reconheceu Delaney, que tivesse conseguido manter aquilo em reserva durante tanto tempo. Pelo menos, era sua a responsabilidade. Somente sua. Se falhasse, ninguém mais sofreria com aquilo. Se falhasse...
Não houve comunicação de qualquer atividade de Danny Boy às 9:00, 9:15, 9:30, 9:45,10:00. Pouco antes de ser iniciada a vigilância, os policiais haviam descoberto uma entrada nos fundos do prédio de apartamentos, uma porta de serviço raramente usada e que se abria para um beco que desembocava na rua. Um carro sem marcas, com um único homem ao volante, foi estacionado nas proximidades, cobrindo a saída traseira, com ordens para fazer relatórios cada quinze minutos. Essa unidade recebeu o número de código Bulldog 10, embora fosse conhecida familiarmente como Dez-Zero. Naquele momento, indo de um lado para outro da sala de rádio, Delaney ouviu os relatórios de Dez-Zero e de Bulldog Um, o caminhão de toldo da Con Ed estacionado na rua em frente à Casa Branca.
Nada às 10:15, nada às 10:30. Nenhuma comunicação sobre Danny Boy às 10:45, 11:00,11:15,11:30. Pouco antes das 12:00, Deianey dirigiu-se ao estúdio e telefonou para o apartamento de Blank. O telefone tocou, tocou, mas não obteve resposta. Desligou; estava preocupado.
Tomou um táxi e foi ao hospital. Bárbara parecia encontrar-se em estado semicomatoso e recusou-se a tomar refeição. Sentou-se ao lado da cama, segurando-lhe a mão mole, pensando nas opções se Blank não aparecesse durante o resto do dia.
Poderia acontecer que ele estivesse no apartamento, simplesmente recusando-se a atender ao telefone. Era possível que houvesse se esgueirado pela rede de vigilância e desaparecido muito tempo antes. E poderia ter ocorrido também que houvesse cortado o gasnete após receber a foto de Kope e estivesse em casa, com o sangue escorrendo pelo assoalho polido. Delaney dissera ao Sargento MacDonald que Danny Boy não cometeria suicídio, mas afirmara isso baseado em padrões, em percentagens. Ninguém melhor do que ele sabia que as percentagens não constituíam certezas.
Voltou para casa pouco depois de uma da tarde. Dez-Zero e Bulldog Um haviam acabado de entrar em comunicação. Nenhum sinal de Danny Boy. Delaney chamou Stryker na Fábrica. Blank não chegara ainda. O capitão voltou ao estúdio e, novamente, telefonou para o apartamento de Blank. Mais uma vez o telefone tocou interminavelmente. Nenhuma resposta. Por essa altura, sem que tal fosse sua intenção, havia comunicado as apreensões ao pessoal; não era mais o único que passeava pelas salas com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa. Os policiais, notou, mantinham o rosto deliberadamente impassível, mas sabia que eles temiam o que ele temia: que o pombo tivesse batido asas.
Por volta de duas horas, havia elaborado um plano de emergência. Se Danny Boy não aparecesse dentro de uma hora, às 3:00 da tarde mandaria um guarda uniformizado à Casa Branca com uma história forjada de que o Departamento recebera uma ameaça anônima contra a vida de Daniel Blank. O guarda iria ao apartamento de Blank em companhia do porteiro e escutaria. Se ouvisse movimentos de Blank no interior do apartamento ou se ele atendesse à campainha, diria que fora um engano e iria embora. Se nada ouvisse, e se Blank não atendesse, solicitaria ao administrador ou ao porteiro que abrissem o apartamento com uma chave mestra, "apenas para me certificar de que tudo está bem."
Era um plano fraco, reconhecia. Havia nele centenas de buracos: e poderia pôr em risco toda a operação. Mas foi o melhor que conseguiu imaginar e ele precisava ser levado a cabo. Se Danny Boy houvesse desaparecido muito tempo antes, ou estivesse morto, não podiam continuar sentados, vigiando um buraco vazio. Ordenaria a ação exatamente às 3:00 da tarde.
Encontrava-se na sala de rádio às 2:48 quando ocorreu uma explosão de estática em um dos alto-falantes e, em seguida, o som ganhou clareza.
– Bárbara, chamando Bulldog Um.
– Estamos ouvindo, Bulldog Um.
– Fernandez – disse triunfante a voz. – Danny Boy acaba de sair.
Ouviu-se um suspiro na sala do rádio; o Capitão Delaney compreendeu que parte daquele suspiro saíra de seu próprio peito.
– O que é que ele está usando? – perguntou ao operador.
O operador começou a repetir a pergunta ao microfone, mas Fernandez ouvira a alta voz do capitão.
– Sobretudo preto – comunicou. – Sem chapéu. Mãos nos bolsos. Não está esperando táxi. Dirigindo-se para oeste. Parece que saiu para uma volta. Vou colocar Bulldog Três na pista dele, bem atrás, e duas sombras a pé: o guarda LeMolle, designado como Bulldog Vinte, e o guarda Sanchez, designado como Bulldog Quarenta. Compreendeu?
– LeMolle é Bulldog Vinte e Sanchez é Bulldog Quarenta.
– Certo. Vocês receberão comunicações deles pelo rádio logo que possível. Danny aproxima-se agora da Second Avenue, ainda caminhando na direção oeste. Desligando.
Silêncio durante quase cinco minutos. Um homem tossiu e olhou com ar de desculpa para os demais.
Em seguida, quase num sussurro:
– Barbara, chamando aqui Bulldog Vinte. Está-me ouvindo?
– Baixo, mas claro, Vinte.
– Danny Boy encontra-se entre a Second e a Third, na Eighty-third, dirigindo-se para oeste. Desligo. – Era uma voz de mulher.
– Quem é LeMolle? – perguntou Delaney a Blankenship.
– Policial Martha LeMolle. O disfarce dela é de dona-de-casa... Cesta de compras e tudo mais.
Delaney abriu a boca para falar, mas o rádio estalou novamente.
– Bárbara, chamando Bulldog Quarenta. Está-me ouvindo?
– Sim. Quarenta. Bem. Onde está ele?
– Virando para o sul na Third. Desligo.
Blankenship virou-se para Delaney sem esperar pela pergunta do capitão.
– Quarenta é o detetive de segunda classe Ramon Sanchez. Está vestido como rabi judeu ortodoxo.
Assim, no momento em que Daniel G. Blank depositou o saco de papel pardo no pequeno depósito de lixo, a dona-de-casa encontrava-se a menos de sete metros atrás dele e viu-o fazer aquilo. O rabi, do outro lado da avenida, viu-o também. Seguiram ambos Danny Boy de volta ao apartamento, mas, ao chegarem lá, haviam ambos já informado que ele jogara qualquer coisa no depósito do lixo cuja exata localização deram. Obedecendo a uma ordem de Delaney, Blankenship mandou que um carro sem marcas se dirigisse ao local a fim de apanhar o depósito e levá-lo para a casa de pedra. Delaney pensou que talvez fosse o machado de gelo.
Pelo menos vinte homens se aglomeravam na cozinha quando dois detetives trouxeram o pequeno depósito e o colocaram sobre o linóleo.
– Eu sempre achei que você acabaria na limpeza pública, Tommy – disse alguém... Ouviram-se alguns risos nervosos.
– Esvazie-o – ordenou Delaney. – Lentamente. Espalhe a porcaria no chão. Sacudam todos os pedaços de papel. Olhem dentro de todos os sacos.
Os dois detetives calçaram luvas. Começaram a sacudir os pacotes úmidos, os sacos bem dobrados, o rato morto (seguro pela ponta da cauda), o lixo solto, uma toalha higiênica suja de sangue. O mau cheiro encheu a cozinha, mas ninguém arredou pé: todos eles haviam cheirado coisas piores.
A operação transcorreu lenta, consumindo quase dez minutos, enquanto os sacos eram tirados e esvaziados no chão e cortados os barbantes e abertos os pacotes amarrados. Nesse momento, um dos detetives estendeu a mão, apanhou um pequeno saco de papel pardo, abriu-o, e olhou para dentro.
– Jesus Cristo!
O grupo em volta permaneceu calado, mas o círculo se apertou; o próprio Capitão Delaney sentiu que o empurravam para a frente até que sua coxa bateu na mesa da cozinha. Segurando o saco pelo fundo, o detetive lentamente deixou escorrer o conteúdo sobre o tampo da mesa. Um distintivo de policial.
Ouviu-se um som: um gemido coletivo, algo parecido com uma manifestação de angústia e medo. Olharam mais de perto.
– É o distintivo de Kope – exclamou alguém, com a voz tremendo de fúria. – Eu trabalhei com ele. É o número de Kope. Eu o conheço.
Alguém disse:
– Oh, aquele miserável...
Alguém mais repetiu sem cessar:
– Sacana, sacana.
Outro disse:
– Vamos pegá-lo agora mesmo. Vamos acabar com ele!
Delaney estivera curvado, olhando fixamente para o distintivo. Não era difícil imaginar o que havia acontecido: Daniel G. Blank destruíra a evidência, os cartões de identidade e as pétalas de rosa, lançando-os no vaso ou no incinerador. Mas aquilo era bom metal e ele pensou que era melhor livrar-se dele. Isso não fora sabido, Danny Boy.
– Vamos acabar com ele! – repetiu alguém em voz mais alta.
Surgia aí outro problema, um problema que ele esperara evitar conservando apenas para si mesmo o conhecimento da culpa definitiva de Daniel Blank. Sabia que quando um policial era morto, todos os policiais se tornavam sicilianos. Vira isso acontecer antes; um guarda era abatido a tiros e, imediatamente, sua delegacia se enchia de policiais de toda a cidade usando capas de chuva axadrezadas e ternos de passeio, com os escudos presos à parte interna da lapela, oferecendo-se para trabalhar nos momentos de folga. Havia alguma coisa que se pudesse fazer a respeito? Alguma coisa?
O sentimento era uma mistura de medo, fúria, angústia e mágoa. Ninguém podia compreender isso, a menos que fizesse parte da corporação. Porque a corporação era uma irmandade, e policiais corruptos, estúpidos e covardes nada tinha a ver com isso. Se o indivíduo era policial, o assassinato de qualquer policial o atingia. Ninguém podia suportar isso.
O problema era, reconhecia o Capitão Edward X. Delaney, que compreendia tudo isso em um nível intelectual, sem sentir o envolvimento emocional que abalava naquele momento o pessoal ali reunido, a olhar para o distintivo do colega assassinado. Não era tanto a falta nele de algo, garantiu a si mesmo, mas o fato de que encarava a situação de modo diferente daqueles homens furiosos. Para ele, todos os assassinatos, cometidos em plena sanidade ou em privações dos sentidos, exigiam julgamento, fosse um presidente o assassinado, uma criança lançada de um telhado, um bêbado esfaqueado em uma briga de bar, o que quer que fosse; quem quer que fosse, onde fosse. A sua irmandade era mais ampla, mais larga, mais extensa e abraçava todos, todos, todos...
Mas naquele momento estava cercado de homens sedentos de sangue. Sabia que precisava apenas dizer: "Muito bem, vamos pegá-lo", e eles ficariam ao seu lado, impetuosos, derrubariam portas, e que Daniel G. Blank se dissolveria em um milhão de buracos de bala, dilacerado, mergulhando nas trevas.
Ergueu lentamente a cabeça, olhou em volta para aqueles rostos: pétreos, contorcidos, ferozes.
– Faremos a coisa à minha maneira – disse conservando a voz tão inexpressiva quanto pôde. – Blankenship, mande tirar as impressões digitais desse distintivo. Mande limpar esta porcaria. Devolva o depósito de lixo à esquina. Os demais voltem aos seus postos.
Dirigiu-se ao estúdio e fechou todas as portas. Sentou-se impassível à escrivaninha e escutou. Ouviu os murmúrios, o arrastar de pés. Calculou que dispunha de mais 24 horas, não mais do que isso. Faria exatamente o que dissera a Mônica Gilbert. Mas por diferentes razões.
Mais ou menos às 7:30, vestiu uma roupa quente e deixou a casa, dizendo ao guarda à porta que ia ao hospital. Mas em vez disso iniciou as inspeções diárias de surpresa. Sabia que o pessoal de serviço conhecia essas visitas inesperadas e queria que soubessem. Resolveu caminhar – estivera sentado no interior da casa durante um tempo longo demais – e dirigiu-se em passos vigorosos para a East End Avenue. Verificou se Tigre Um – o homem que vigiava o Castelo – estava em posição, e não brincando. Constituiu um jogo descobrir Tigre Um sem ser visto por ele. Naquela noite ganhou, curvando os ombros, olhando para a calçada, passando mancando por Tigre Um sem dar sinal de reconhecimento. Bem, pelo menos o rapaz estava de serviço patrulhando na calçada oposta ao Castelo e, esperava Delaney, não perdia tempo demais para arranjar um café gratuito em algum lugar ou tomar uma dose de algo mais forte.
Foi em passos vivos até a Casa Branca e ficou do outro lado da rua, olhando para o prédio de Blank. Teve a esperança de que Danny Boy já se houvesse recolhido para a noite. O capitão olhou fixamente durante longo tempo para o prédio. Mais uma vez teve o desejo irracional de ir até o apartamento e tocar a campainha.
– Sou o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. Gostaria de falar-lhe.
Loucura. Blank não o deixaria entrar. Mas isso era justamente o que Delaney queria – simplesmente conversar. Não queria prender Blank ou feri-lo. Queria apenas conversar e, talvez, compreender. Mas não adiantava; teria de contentar-se em imaginar como seria o encontro.
Bateu à porta do caminhão da Con Ed; não estava trancada e foi aberta cautelosamente. O homem reconheceu-o e abriu-a inteiramente, fazendo uma meia continência. Delaney entrou; a porta foi fechada. Havia um homem armado com binóculo na aba oculta do toldo e outro na mesa de rádio. Três homens, três turmas. Contando o homem no buraco aberto na rua, o estacionado no beco do fundo do edifício e os extras, havia cerca de 20 policiais designados para Bulldog Um.
– Como está indo a coisa? – perguntou.
Garantiram-lhe que tudo ia bem. Olhou em volta e para a grelha que eles haviam instalado, a cafeteira e um pequeno refrigerador, conseguido em algum lugar.
– Todos os confortos do lar – concordou.
Eles concordaram, por sua vez, e ele desejou-lhes feliz Ano-Novo. Descendo, parou junto à escavação que haviam aberto no leito da rua expondo canalizações de vapor, tubulações de esgoto, cabos telefônicos. Havia um homem dentro do buraco vestido como o pessoal de conservação da Con Ed com um rádio transistorizado colado ao ouvido, sob o capacete de segurança. Tirou-o quando reconheceu Delaney.
– Já chegou à China? – perguntou o capitão, fazendo um gesto para a pá, encostada em um dos lados da escavação.
O guarda era um negro.
– Indo para lá, capitão – respondeu ele solene. – Indo para lá. Devagar.
– Muitas queixas dos moradores?
– Muitas, capitão. Não há falta delas.
Delaney sorriu.
– Continue no trabalho. Feliz Ano-Novo.
– O mesmo para o senhor. Muitas felicidades.
Dirigiu-se para oeste, desgostoso consigo mesmo. Fazia isso mal, reconhecia: falar informalmente com os subordinados. Tentava parecer à vontade, descontraído, jovial. Simplesmente não funcionava.
Um dos problemas era sua reputação. Mas não era apenas a sua folha de serviço; o pessoal sentia que havia algo nele. Todos os policiais são obrigados a traçar suas próprias fronteiras de heroísmo, estupidez, realidade, covardia. Numa situação difícil, o indivíduo podia agir de acordo com os regulamentos e ganhar um enterro de inspetor. O Capitão Edward X. Delaney compareceria usando seu uniforme Número Um e luvas brancas. Mas nem todas as situações exigiam sacrifícios. Algumas requeriam uma reação estudada. Outras, rendição. Todos os homens possuíam seus limites, traçavam suas próprias fronteiras.
Mas o que o pessoal sentia era que as fronteiras de Delaney eram mais estreitas, mais nítidas do que as deles. Era uma pena que não houvesse uma palavra para descrever aquele estado: "policialidade","policialismo", "policismo" – alguma coisa assim. "Marcial" aproximava-se do que queria, mas não contava toda a história. Havia necessidade de uma palavra "especial" para a qualidade "especial" de ser policial.
O que os homens percebiam, o motivo por que não conseguiria comunicar-se com eles em termos iguais, era que ele possuía tais qualidades em um grau apavorante. Era a quinta-essência do policial, e eles não precisavam de palavras para saber disso. Sabiam que os lançaria numa moenda com a mesma rapidez com que, ele mesmo, se lançaria entre as engrenagens.
Chegou a uma casa de flores no momento em que fechava. Não queriam deixá-lo entrar, mas ele garantiu que era uma encomenda para o dia seguinte. Descreveu exatamente o que queria: uma única rosa de talo alto, que devia ser colocada, sem folhas verdes, em uma longa caixa e entregue às 9 horas da manhã do dia seguinte.
– Entregar uma única rosa? – perguntou o florista espantado. – Oh, senhor, teremos de cobrar uma taxa extra.
– Naturalmente – assentiu Delaney. – Compreendo. Pagarei o que for preciso. Mas providencie para que seja a primeira coisa a chegar ao endereço pela manhã.
– Gostaria de incluir um cartão, senhor?
– Gostaria.
Escreveu em um pequeno cartão branco: "Querido Dan, eis aqui uma rosa fresca por aquela que você destruiu." Assinou "Albert Feinberg", enfiou o cartão em um pequeno envelope, fechou-o, e endereçou-o a Daniel G. Blank.
– Tem certeza de que chegará no endereço às nove da manhã?
– Sim, senhor. Tomaremos todo o cuidado. É muito dinheiro o que está gastando por uma única flor, senhor. Uma ocasião sentimental?
– Sim – sorriu o Capitão Edward X. Delaney. – Alguma coisa assim.

5

Na manhã seguinte, ao acordar, Delaney fitou sombrio o teto. Em seguida, pela primeira vez em muito tempo, saiu da cama, ajoelhou-se e mentalmente rezou por Bárbara, pelos falecidos pais, por todos os mortos, pelos fracos, pelos aflitos. Não pediu que lhe fosse permitido matar Daniel Blank. Não era o tipo de coisa que se pedisse a Deus.
Tomou uma chuveirada, barbeou-se, vestiu um velho uniforme, tão velho e lustroso que refletia a luz. Carregou também o 38 e colocou-o no coldre do cinto. Não o fez com a certeza de que aquele era o dia em que necessitaria da arma, mas era outra de suas velhas superstições: se o indivíduo preparava-se cuidadosamente para um acontecimento, ajudava a provocá-lo.
Desceu para o café. O pessoal de serviço notou o uniforme e o volume da arma. Naturalmente, ninguém comentou coisa alguma, mas alguns policiais verificaram suas armas e um deles afivelou um complicado coldre de axila de um lado a outro do tórax.
Fernandez encontrava-se na cozinha tomando café. Delaney puxou-o para um lado.
– Tenente, quando terminar, quero que vá ao Bulldog Um e fique lá até ser substituído. Compreendeu?
– Certo, capitão.
– Diga ao vigia que fique atento a uma entrega feita por um florista. Quero saber o minuto em que o entregador chegar.
– Muito bem – anuiu alegre Fernandez. – O senhor saberá no momento em que o virmos. Alguma coisa em andamento, capitão?
Delaney não respondeu e levou o café de volta para a sala do rádio. Colocou-o sobre a longa mesa. voltou ao estúdio e empurrou a cadeira giratória, colocando-a ao lado da mesa do rádio, de frente para os operadores.
Ficou lá a manhã inteira, tomando três xícaras de café e mastigando a ponta seca e velha de um pão italiano. As comunicações chegavam com quinze minutos de intervalo de Bulldog Um e Dez-Zero. Nenhum sinal de Danny Boy. Às 9:20, Stryker chamou da Fábrica dizendo que Blank não aparecera no trabalho. Minutos depois, Bulldog Um voltou no rádio.
Fernandez: – Diga ao Capitão Delaney que um rapaz, trazendo uma longa e branca caixa de florista, entrou no saguão da Casa Branca.
Delaney ouviu-o. Deixando tão pouco quanto possível ao acaso, dirigiu-se ao estúdio, procurou o número do florista, ligou e perguntou se a sua rosa vermelha fora entregue. Garantiu-lhe o florista que um mensageiro fora enviado e que provavelmente encontrava-se naquele momento no endereço. Satisfeito, voltou à cadeira junto a mesa do rádio. O pessoal à espera ouvira a comunicação de Fernandez, mas o que ele significava, não sabia.
O Sargento MacDonald inclinou-se para a cadeira de Delaney.
– Ele está se desmanchando, capitão?
– Vamos ver, vamos ver. Puxe uma cadeira, sargento. Fique perto de mim durante algumas horas.
– Certo, capitão.
O sargento negro puxou uma cadeira de madeira de espaldar reto, e sentou-se à direita de Delaney, ligeiramente atrás. Permaneceu tão impassível quanto o capitão, usando os óculos de aros de aço e conservando imóvel a face de traços nítidos.
Ficaram ali sentados, à espera. Os outros também sentaram-se e esperaram. Caiu um silêncio suficientemente profundo para ouvirem o rangido de um caminhão da limpeza pública que passava, o zumbido de um avião nas alturas, uma sirena distante, o apito de um rebocador, e os entediados chamados, de quinze em quinze minutos, de Dez-Zero e Bulldog Um. Ainda nenhum sinal de Danny Boy. Delaney perguntou a si mesmo se podia arriscar-se a uma visita rápida ao hospital.
Pouco depois de meio-dia, porém, ouviu-se um estalido bastante forte para galvanizá-los a todos. Bulldog Um falou:
– Ele está saindo! Vai levando uma tralha. Um porteiro atrás dele está carregando-a. O quê? Uma jaqueta, mochila. Hem? O que mais? Um rolo de cordas. Botas. Hem?
Delaney: – Jesus Cristo! Ligue-me com Fernandez.
Fernandez: – Fernandez aqui. Vestido de sobretudo preto, sem chapéu, mão esquerda no bolso do casaco, mão direita livre. Sem luvas. Mochila, rolo de corda, algumas peças de aço, como cravos, jaqueta, botas pesadas, gorro tricotado.
Delaney: – Machado de gelo?
Bárbara: – Bulldod Um, machado de gelo?
Fernandez: – Nenhum sinal. O carro está saindo da garagem. Chevy Corvette preto. O carro dele.
O capitão Delaney voltou-se ligeiramente para o Sargento MacDonald:
– Peguei-o! – disse.
– Sim! – assentiu MacDonald. – Está fugindo!
Fernandez: – Estão colocando a tralha no carro. A mão esquerda continua no bolso do casaco. Mão direita livre.
Delaney (a MacDonald): – Dois carros sem marcas, três homens em cada. Liguem os motores e esperem. Volte aqui.
Fernandez: – Carro carregado. Entrando no carro, assento do motorista. Ordens?
Delaney: – Fernandez, siga-o no Bulldog Dois. Mantenha-se em contato.
Fernandez: – Compreendi. Desligando.
O Capitão olhou em volta. O Sargento MacDonald retornava à sala nesse momento.
MacDonald: – Os carros estão prontos, capitão.
Delaney: – Serão chamados Farejador Um e Farejador Dois. Se ambos formos, eu irei no Um e você tomará o Dois. Se eu ficar, você levará os dois.
MacDonald inclinou a cabeça. Havia tirado os óculos.
Fernandez: – Bárbara, falando aqui Bulldog Dois. Ele está fazendo a volta em torno do quarteirão. Acho que vai para o Castelo. Desligando.
Delaney: – Alerte Tigre Um. Envie Bulldog Três ao Castelo.
Fernandez: – Bulldog Dois. É mesmo o Castelo. Está parando em frente à casa. Estamos na esquina, esquina sul. Danny Boy estacionou em frente ao Castelo. Está saindo. Mão esquerda no bolso, mão direita livre. A bagagem continua no carro.
Bulldog Três: – Bárbara, aqui Bulldog Três.
Bárbara: – Estamos ouvindo.
Bulldog Três: – Estamos em posição. Ele está-se dirigindo para a porta do Castelo. Está batendo agora à porta.
Delaney: – Onde está Tigre Um?
Fernandez: – Está aqui comigo. Danny Boy estacionou na contramão. Poderemos agarrá-lo.
Delaney: – Negativo.
Bárbara: – Negativo, Bulldog Dois.
Fernandez (rindo): – Achei que seria. Oh! Olhe para aquilo... Bárbara, aqui Bulldog Dois.
Bárbara: – Você está ainda ligado, Bulldog Dois.
Fernandez: – Há alguma coisa que não me cheira bem. Danny Boy bateu à porta do Castelo. Foi aberta. Ele entrou. Mas a porta continua aberta. Podemos vê-la daqui. Talvez seja bom eu ir até lá dar uma olhada.
Delaney: – Diga-lhe para ficar onde está.
Bárbara: – Fique onde está, Bulldog Dois.
Delaney: – Pergunte a Bulldog Três se está ouvindo nossa conversa com Bulldog Dois.
Bárbara: – Bulldog Três, falando aqui Bárbara. Está seguindo nossa conversa com Bulldog Dois?
Bulldog Três: – Afirmativo.
Delaney: – Para Bulldog Dois. Afirmativo para uma passagem pelo Castelo, mas ponha Tigre Um com um transmissor-receptor portátil na outra calçada. O rádio pode dar na vista.
Fernandez: – Aqui Bulldog Dois. Entendido. Estamos indo. Bulldog Três: – Aqui Bulldog Três. Entendi. Fernandez está saindo de Bulldog Dois. Tigre Um está descendo e cruzando a rua para a outra calçada.
Delaney: – Espere. Verifique o rádio de Tigre Um. Bárbara: – Tigre Um, falando aqui Bárbara. Como está-me recebendo? Tigre Um: – T-Um aqui. Muita interferência, mas estou ouvindo. Delaney: – Diga-lhe para fazer a cobertura. Entendido? Bárbara: – Tigre Um, proteja o Tenente Fernandez no outro lado da rua. Coppish?
Tigre Um: – Certo, entendido.
Delaney: – Chame Bulldog Três.
Bulldog Três: – Ambos estão caminhando em nossa direção. Fernandez está passando pelo Castelo, virando a cabeça, olhando para dentro. Tigre Um está na outra calçada. Nenhuma ação. Estão vindo em nossa direção. Andando lentamente. Fernandez está atravessando a rua em nossa direção. Quer provavelmente usar nosso microfone. Senhoras e senhores, a próxima voz que ouvirão será a do Tenente Jeri Fernandez.
Delaney (impassível): – Descubram o nome desse homem.
Fernandez: – Fernandez, em Bulldog Três. O capitão está aí?
Delaney curvou-se sobre o microfone.
Delaney: – Aqui. O que é, tenente?
Fernandez: – O troço cheira mal, capitão. A porta do Castelo está entreaberta. Alguma coisa a mantém aberta. Parece-me uma perna de homem. Delaney: – Uma perna?
Fernandez: – Do joelho para baixo. Uma perna e um pé, mantendo a porta aberta. Que tal eu olhar mais de perto?
Delaney: –Onde está Tigre Um?
Fernandez: – Aqui ao meu lado.
Delaney: – Voltem os dois a Bulldog Dois. Tigre Um está na outra calçada dando cobertura mais uma vez. Olhe mais de perto. Diga a Tigre Um para nos manter continuamente informados. Compreendeu?
Fernandez: – Certo.
Delaney: – Tenente...
Fernandez: – Sim?
Delaney: – Ele é rápido.
Fernandez (soltando um risinho): – Nem pense nisso, capitão.
Tigre Um: –Estamos indo para o sul. Lentamente. Fernandez está no outro lado da rua.
Delaney: – De arma na mão?
Bárbara: – Você está de arma na mão, Tigre Um?
Tigre Um: – Oh, está na minha mão nestes últimos quinze minutos. Ele está aproximando-se do Castelo. Está diminuindo os passos, parando. Fernandez ajoelhou-se sobre um joelho. Finge que está amarrando o cadarço do sapato. Está olhando para a porta do Castelo. Ele está... Oh, meu Deus!
Daniel Blank acordou em um estado de espírito brincalhão, rindo de uma piada com que havia sonhado, mas da qual não conseguia lembrar-se. Olhou para as janelas. O dia prometia ser lindo. Pensou que poderia ir até a casa de Célia Montfort e matá-la. Poderia matar Charles Lipsky, Valenter, e o garçom do bar de The Parrot. Poderia matar uma porção de pessoas, dependendo de como se sentisse. Era esse o tipo de dia.
O dia começou como um foguete: hesitante, quase imóvel, movendo-se e, em seguida, disparando para o céu. Foi assim a manhã e assim seria até que ele escapasse, livre, da atração da Terra. Não havia coisa alguma que pudesse fazer. Lembrou-se desse estado de espírito quando se encontrava no cume da Agulha do Diabo, semanas, meses, anos antes.
Bem, voltaria à Agulha do Diabo e reviveria aquele momento de êxtase. O parque fechava durante o inverno, mas era uma cerca de corrente, e o portão possuía apenas um cadeado enferrujado. Poderia facilmente quebrá-lo com o machado de gelo. Podia esmagar qualquer coisa com o machado de gelo.
Banhou-se e vestiu-se com todo o cuidado, ainda naquela euforia que, sabia, duraria para sempre.
Por isso mesmo, o toque da campainha não o perturbou em absoluto.
– Quem é? – perguntou.
– Um pacote para o senhor, Sr. Blank.
Ouviu passos que se retiravam, esperou alguns momentos e abriu a porta. Levou para dentro a caixa do florista e fechou novamente a porta. Levou a caixa para a sala de estar e olhou-a fixamente, sem compreender.
Tampouco compreendeu o que significava aquela única rosa que via no interior da caixa. Nem o cartão. Albert Feinberg? Feinberg? Quem era Albert Feinberg? Lembrou-se então, com saudade, do último assassinato: o apertado abraço, a respiração cálida em sua face, os grunhidos ardentes de ambos. Como desejaria fazer aquilo novamente. E Feinberg lhe enviara outra rosa! Mas isso não era uma doçura? Aspirou-lhe a fragrância, passou as pétalas aveludadas pelo rosto e, subitamente, esmagou a flor na mão. Ao abri-la novamente, as pétalas lentamente recuperaram a forma, movendo-se enquanto ele observava, tomando mais uma vez a florescência belamente formada, tão bela como fora antes.
Andou sem destino pelo apartamento, sonhando, mordiscando a rosa. Comeu as pétalas, uma a uma; eram macias, fortes, úmidas, com um travo e um sabor próprios. Comeu-as até o talo, sorrindo largamente e inclinando a cabeça. Engoliu-as todas.
Tirou o equipamento do armário de entrada: o machado de gelo, a mochila, a corda de nylon, os grampos de segurança, a jaqueta, o gorro tricotado. Pensou em sanduíches e numa garrafa térmica – mas para que queria comida e bebida? Transcendera tudo aquilo, estava além da gravidade do mundo e da ânsia de existir.
Era notável, pensou feliz, a eficiência com que agia: a chamada para a garagem no intercomunicador pedindo que levassem o carro à porta do edifício, a chamada de um porteiro – que por acaso era Charles Lipsky – para ajudá-lo a carregar a tralha. Fez tudo isso sorrindo. O dia estava claro, novo e aberto, como ele. Estava sob o sol cor de laranja, no interior do fino saco azul, cheio de fluido amniótico. Era uno com tudo. Cantarolou uma cantiga alegre.
No momento em que o mordomo abriu a porta e disse: "Sinto muito, senorr, mas a senorrita Montfort non. . ." - enfiou o punho na face de Valenter, sentindo o nariz dele quebrar-se sob o golpe, vendo o sangue, sentindo-o escorrer entre os nós dos dedos. Em seguida, entrando ainda mais na casa, atingiu-o novamente, procurando-lhe a garganta, esmagando-lhe aquele proeminente pomo-de-adão. Os olhos de Valenter rolaram nas órbitas e ele caiu.
Daniel Blank cruzou sem dificuldades a entrada, ainda cantarolando uma canção alegre. Que música era aquela? Alguma velha canção popular americana; não podia lembrar-se do título. Subiu firme a escada com o machado de gelo, transferido já para a mão direita. Lembrou-se da primeira vez em que a seguira por esses degraus até o quarto no quinto andar. Havia parado, voltando-se para ela, e a beijara entre o umbigo e a virilha, em alguma parte na maciez que cedia, em alguma parte... Por que o havia traído?
Antes de chegar à porta lascada, Anthony Montfort, nu, surgiu correndo, lançou a Daniel um alucinado e frenético olhar por sobre o ombro e correu pelo corredor de braços no ar. Olhando para aquele corpo jovem, despido, não formado ainda, tudo o que Blank conseguiu pensar foi numa menina vietnamita nua queimada pelo napalm correndo, correndo, presa de dor e terror.
Célia estava ali de pé. Nua também.
– Bem – disse, e na face dela havia uma curiosa mistura de medo e triunfo. – Bem.
Atingiu-a repetidas vezes. Mas após o primeiro golpe, o medo desapareceu da sua face e ficou apenas o triunfo. A certeza. Era isso o que ela queria?, perguntou-se ele, continuando a desfechar-lhe golpe sobre golpe. Fora esse o motivo? Por que o havia manipulado? Por que o havia traído? Teria de pensar no caso. Continuou a atingi-la muito depois de estar morta e até que o som do machado de gelo deixou de ser seco para tornar-se úmido.
Em seguida, ouvindo gritos em alguma parte da casa, transferiu o machado para a mão esquerda, sob o casaco, oculto novamente, e correu para fora. Desceu as escadas. Passou sobre o corpo de Valenter. Saiu para o brilhante, claro e picante dia. Os gritos seguiram-no: gritos, gritos, gritos.
Estavam todos de pé na sala do rádio ouvindo os berros furiosos de Tigre Um, um urro vindo de alguma parte, "Fernandez está"... tiros, o rugido de um motor de carro, o guincho de pneumáticos, um estridor metálico. O rádio de Tigre Um saiu do ar.
O Capitão Delaney ficou absolutamente imóvel durante uns 30 segundos com as mãos nos quadris, cabeça baixa, pestanejando lentamente, passando a língua pelos lábios. Os homens na sala olhavam-no, à espera.
Ele não estava hesitando, mas pensando. Passara por situações tão complicadas como aquela no passado. O instinto e a experiência poderiam levá-lo até o outro lado, mas sabia que alguns segundos de raciocínio ajudariam a estabelecer a devida seqüência de ordens. As primeiras coisas em primeiro lugar.
Ergueu a cabeça e prendeu nos seus os olhos de MacDonald.
– Sargento – disse em voz sem expressão, levantou a mão e fez um gesto com o polegar sobre o ombro – a caminho. Leve ambos os carros. Sirenas. Ficarei aqui. Comunique-se logo que for possível.
MacDonald saiu. Delaney alcançou-o antes que ele chegasse à porta saguão e segurou-lhe o braço:
– No toalete externo – murmurou – no armário sob a pia. Há uma pilha de toalhas brancas, limpas. Leve um bocado delas.
O sargento inclinou a cabeça e saiu.
O capitão voltou para o centro da sala do rádio. Começou a ditar ordens aos dois operadores e aos dois telefonistas.
– Bulldog Dois, permanecer em posição e ajudar.
– Bulldog Três, agarre Danny Boy. Cautela extrema.
Ambos os carros falaram simultaneamente. O pessoal à espera ouviu mais tiros, pragas, berros.
– Para Comunicações, no Centro. Operação Lombard, prioridade máxima. Quatro carros na entrada de Nova York da ponte George Washington. Detenham Chevy Corvette preto. Dêem-lhe o número da chapa e a descrição de Danny Boy. Extrema cautela. Armado e perigoso.
– Você e você. Levem uma turma até a ponte George Washington. Sirena e luzes. Agarrem um punhado dessas fotos de Danny Boy e distribuam-nas.
– À Comunicações. Policial precisando de assistência médica. Ambulância. Urgente. Dê o endereço do Castelo.
– Ao Subinspetor Thorsen: "Ele está fugindo. Mantê-lo-ei informado. Delaney."
– À Divisão de Agressões e Homicídios. Crime no Castelo. Dê o endereço. Urgente. Por favor, ajudem Operação Lombard.
– Bulldog Dez. Volte a Bárbara com o carro.
– Bulldog Um. Feche o apartamento de Danny Boy na Casa Branca. Vinte e um-H. Ninguém deve entrar nem sair.
– Stryker. Feche o escritório de Danny Boy. Ninguém deve entrar nem sair.
– Você e você, vá à Fábrica ajudar Stryker. Tomem o Carro de Dez-Zero quando ele chegar.
– À Operações Especiais. Necessidade, urgente, de três carros pesados. Seis homens com coletes, carabinas, granadas de gás, submetralhadoras, tudo. Três atiradores peritos inteiramente equipados, um em cada carro. Estarei aí logo que possível. Oh, sim... carros equipados com barras leves, se possível.
– Você e você, prendam os Mortons na Erótica, na Madison Avenue, para interrogatório.
– Você, prenda a Sra. Cleek na Fábrica. Você, prenda o proprietário do The Parrot na Third Avenue. Você, prenda Charles Lipsky, o porteiro da Casa Branca. Detenham todos eles para interrogatório.
– À Comunicações. Alerta a todas as Delegacias. Forneça descrição do carro e de Danny Boy. Fotos a serem distribuídas. Procurado por assassinatos múltiplos. Perigoso e armado. Informem ao Inspetor-Chefe.
Delaney parou, tomou uma profunda respiração e olhou em volta, estonteado. A sala esvaziava-se à medida que apontava para os policiais, dava-lhes ordens, eles prendiam as armas no cinto, vestiam casacos, punham os chapéus e saíam.
O rádio crepitou.
– Bárbara, falando aqui Farejador Um.
– Estamos ouvindo, Farejador Um.
– MacDonald. Do lado de fora do Castelo, Fernandez caído e sangrando muito. Tigre Um caído. Inconsciente. Pelo menos, perna quebrada. Bulldog Três está indo atrás de Danny Boy. Bulldog Dois e Farejador Dois bloqueando a rua. Envie auxílio. Vou entrar agora no Castelo.
Delaney ouviu e recomeçou a falar.
– À Comunicações. Repito, ambulância, urgente. Dois policiais feridos. Urgente. Dois policiais estão feridos.
– Senhor, o Subinspetor Thorsen está na linha – interrompeu-o um dos telefonistas.
– Diga-lhe que temos dois policiais feridos. Telefonarei depois para ele. Retire a guarda do apartamento de Mônica Gilbert. Diga-lhes para remover todo o equipamento e retirar-se. Não precisam mais comunicar-se conosco.
– Bárbara, chamando aqui Farejador Um.
– Entre na linha, Farejador Um.
– MacDonald aqui. Descobrimos um homicídio: mulher, branca, cabelo preto, começo da casa dos trinta, um metro e sessenta e cinco, esguia, crânio esmigalhado, correspondendo à descrição da Princesa. Branco, garoto, de mais ou menos doze anos, nu e histérico, correspondendo à descrição de Anthony Montfort. Homem, branco, sessenta e um ou sessenta e cinco anos, mais ou menos um metro e oitenta e seis de altura, correspondendo á descrição do caseiro Valenter, nariz quebrado, ferimentos no rosto, respiração difícil. Precisamos de duas ambulâncias e médicos. Fernandez está vivo, mas sangrando ainda. Não pudemos deter a hemorragia. Ambulância? Logo, por favor. Tigre Um quebrou a perna direita, braço, contusões, arranhões. Ambulâncias e médicos, por favor.
Delaney tomou uma profunda respiração e recomeçou.
– À Comunicações. Segundo pedido, repito, ambulâncias urgentemente. Uma vítima de homicídio, quatro ferimentos graves, um caso de histeria. Precisamos de duas ambulâncias e de médicos com a maior urgência.
– À Agressões e Homicídios. Segundo aviso, repito, necessitamos de ajuda urgente. Alguma notícia dos carros de Comunicações enviados para bloquear a ponte George Washington?
– Os carros estão em posição. Não há sinais de Danny Boy.
– Os nossos homens chegaram aí com as fotos?
– Ainda não.
– Continuem a tentar.
Blankenship aproximou-se do capitão, olhando para uma prancha de madeira com um pegador na parte superior. Estivera tomando notas. Delaney notou que suas mãos tremiam ligeiramente, mas a voz continuava firme.
– Quer uma recapitulação, senhor? – perguntou em voz baixa.
– Uma conferência? – perguntou satisfeito Delaney. –Eu poderia usá-la. O que é que temos ainda de sobra?
– Um único carro sem marcas e quatro homens. Mas os que foram retirados dos antigos postos devem chegar logo. O Tenente Dorfman, da delegacia ao lado, enviou dois guardas uniformizados para ficarem de prontidão. Disse também que está mantendo de reserva um carro de patrulha em frente à delegacia caso precisemos dele. Os três carros de Operações Especiais estão a caminho.
– Nenhum sinal de Danny Boy na ponte, senhor. O tráfego está começando a acumular-se.
– O quê? – disse secamente o outro operador. –Mais alto. Mais alto! Não estou ouvindo.
Ouviram então um rouco e agoniado sussurro:
– Bárbara... Bulldog Três... colisão e quebra... perdi-o.
– Onde? – rugiu Delaney ao microfone. – Diabos o levem, agüente! Onde está você? Onde o perdeu de vista?
– ... ao norte... Broadway... Broadway... Ninety-fifth... ferido...
– Você e você – disse Delaney, apontando – peguem o carro que está aí fora. Corram para a esquina da Broadway e Ninety-fifth. Comuniquem-se conosco logo que seja possível. Você, ligue para Comunicações. Que enviem para lá os carros e ambulâncias mais próximas. Policiais feridos em um acidente.
– Bárbara, chamando aqui Farejador Um.
– Estamos ouvindo, Farejador Um.
– MacDonald. Uma ambulância aqui. Fernandez está bem. Perdeu muito sangue mas vai salvar-se. O médico aplicou-lhe uma injeção. Obrigado pelas toalhas. Outra ambulância chegando. Carros de Agressões e Homicídios. Laboratório móvel...
– Espere um minuto, sargento. – Delaney voltou-se para o segundo operador. – Conferiu a chegada daqueles carros na ponte?
– Sim, senhor. As fotos estão lá, mas não houve ainda sinal de Danny Boy.
Delaney voltou a falar no primeiro rádio:
– Continue, sargento.
– As coisas estão começando a esclarecer-se. Fernandez e Tigre Um (qual é o nome dele?) estão a caminho do hospital. Pelo que entendi, Danny Boy saiu correndo do Castelo e pegou Fernandez quando ele se levantava e começava a puxar a arma. Desceu o machado sobre a cabeça do tenente, mas Fernandez desviou-se e recebeu o golpe no ombro esquerdo, no lado das costas, curvando-se para junto do pescoço. Danny Boy puxou o machado do ferimento e saltou no carro. Tigre Um correu para o carro, vindo da calçada oposta, atirando enquanto corria. Deu três tiros. Dois atingiram o carro, diz ele, um deles através da janela fronteira esquerda. Danny Boy, porém, aparentemente não foi ferido. Deu partida rápida, pegou Tigre Um com um dos lados do carro, derrubou-o e caiu fora. A maldita coisa aconteceu tão depressa! O pessoal em Bulldog Dois e Bulldog Três ficou boquiaberto.
– Eu sei – suspirou Delaney. – Permaneça no posto. Ajude Agressão e Homicídios. Ponha guardas em tomo do garoto e de Valenter até que possamos obter declarações deles.
– Entendido. Farejador Um desligando.
– Alguma palavra da ponte? – perguntou Delaney ao operador do rádio.
– Não, senhor. O tráfego está se acumulando.
– Capitão Delaney, os três carros de Operações Especiais estão aí fora.
– Ótimo. Mande-os esperar. Blankenship, venha até o estúdio comigo.
Entraram e Delaney fechou todas as portas. Procurou durante um momento e tirou de uma das estantes um mapa rodoviário da cidade de Nova York e do Estado. Espalhou o mapa da cidade sobre a escrivaninha e acendeu o abajur. Os dois curvaram-se sobre a escrivaninha. Delaney pôs o dedo na East End Avenue.
– Ele começou aqui – disse. – Seguiu para o norte e dobrou à esquerda para Eighty-sixth Street. É isso o que penso. Passou por Bulldog Três, que estava com os polegares enfiados no rabo. Oh, diabo, talvez eu esteja sendo rigoroso demais com eles.
– Nós ouvimos uma segunda série de tiros e berros quando alertamos Bulldog Três – recordou Blankenship.
– Sim. Talvez tenham feito alguns disparos. De qualquer modo, Danny Boy tomou a direção oeste.
– Para a ponte George Washington?
– Exato – disse o capitão e interrompeu-se. Se Blankenship queria saber por que havia enviado carros para bloquear a ponte, aquele seria o momento de perguntar. O detetive, porém, teve o bom senso de ficar calado.
– Neste caso, está agora no Central Park –continuou Delaney, traçando com o dedo grosso um caminho no mapa. – Acho que virou para o sul na direção de Traverse Three, passou pela Broadway e tomou a direção norte. Bulldog Três disse que ele estava indo para o norte. Provavelmente, virou à esquerda para chegar à West Side Drive.
– Ele poderia ter continuado para o norte e pegado a Drive mais em cima. Ou tomado a Broadway ou a Riverside Drive durante todo o caminho até a ponte.
– Bolas! – exclamou Delaney, chateado. – Ele pode ter feito um milhão de coisas.
Como todos os policiais, era atormentado pelo imprevisível. O caso pairava como uma nuvem negra e lhe amargurava as horas de vigília e lhe profanava os sonhos. Todos os policiais viviam em íntimo contato com o acaso: o manso e humilde prisioneiro que, inesperadamente, saca de uma faca, um tiro de carabina que responde a uma batida na porta durante uma busca de rotina, um tiro de rifle de um telhado. O inesperado. A única maneira de vencê-lo era viver de acordo com as percentagens, confiar na sorte e – se a pessoa precisava disso – rezar.
–Temos uma opção básica – disse, lento, Delaney. Blankenship era suficientemente inteligente para notar que o capitão dissera "Temos", e não "eu tenho". Estava sendo absorvido. Esse homem, refletiu o detetive, não perde um único truque.
– Podemos irradiar um alarma em cinco Estados, sentar-nos aqui sobre nossos traseiros e esperar que alguém o prenda, ou podemos ir prendê-lo.
– Para onde pensa que ele está indo, capitão?
– Chilton – respondeu imediatamente Delaney. – Trata-se de uma pequena cidade no município de Orange. A menos de dezesseis quilômetros do rio. Deixe-me mostrar-lhe onde fica.
Abriu o mapa do Estado de Nova York, desdobrou-o sobre as costa da poltrona de couro, e inclinou o abajur para espalhar mais a luz.
– É aqui – apontou imediatamente ao sul de Mountainville, a oeste da Academia Militar. Está vendo este pequeno trecho verde? É o Parque Estadual de Chilton. Blank vai lá praticar montanhismo. Ele é montanhista. – Fechou os olhos durante um momento, tentando recordar-se de detalhes do mapa que encontrara no carro de Danny Boy há um milhão de anos. Mais uma vez, Blankenship ficou calado e não fez perguntas. Delaney abriu os olhos e fitou o detetive: – Atravessa a ponte George Washington – recitou, feliz com o bom estado de sua memória – entra em Nova Jersey, passa à estrada 4, depois para a 17, reentra em Nova York à altura de Mahwah ou Suffern. Em seguida, pega a via expressa e deixa-a na estrada 32, que vai até Mountainville. Prosseguindo, toma o rumo sul para Chilton. O parque fica a alguns quilômetros da cidade.
– Nova Jersey? – exclamou Blankenship. – Capitão, talvez pudéssemos alertá-los.
Delaney sacudiu negativamente a cabeça.
– Não adianta. A ponte foi fechada antes que ele chegasse lá. Ele não poderia de modo algum ter passado antes do bloqueio. Não há a menor possibilidade. Não, ele contornou a ponte. Se não fosse assim, já o teríamos descoberto a essa hora. Mas continua a seguir na direção de Chilton. Eu preciso acreditar nisso. Como é que se pode cruzar o rio ao norte da ponte?
Curvaram-se novamente sobre o mapa estadual. O dedo inexplicavelmente elegante de Blankenship traçou um curso.
– Ele entra na Henry Hudson Parkway, digamos, na Ninety-sixth. Certo, capitão?
– Certo.
– Vai até a ponte George Washington, mas talvez note a barreira.
– Ou o tráfego engarrafado em virtude da busca.
– Ou do tráfego. Assim, continua na Henry Hudson Parkway, indo na direção norte. Bem, não pode estar muito longe. Talvez cruze a ponte aqui e entre na Spuyten Duyvil. Ou talvez ele se encontre em Yonkers, continuando a seguir para o norte.
– Qual é o cruzamento seguinte?
– A ponte Tappan Zee. Aqui. De Tarrytown para South Nyack.
– E se fechássemos esse ponto?
– E se ele continuasse a seguir para o norte, tentando cruzar o rio? A ponte seguinte é a Bear Mountain. Mas ele continua ao sul de Chilton.
–E se bloqueássemos a ponte Bear Mountain?
–Nesse caso, teria de seguir até a ponte Newburgh-Beacon. Nessa eventualidade, encontrar-se-ia ao norte de Chilton.
Delaney tomou uma profunda respiração e pôs as mãos na cintura. Pôs-se a andar de um lado para outro no estúdio.
– Poderíamos fechar todas essas malditas pontes até Albany – disse, falando tanto para si mesmo quanto para Blankenship. – Conservá-lo na margem leste do rio. Mas para que, inferno? Eu quero que ele chegue àquele buraco. Ele está indo para Chilton. Sente-se seguro lá. Ficará sozinho. Se não o deixarmos passar, ele continuará a fugir e somente Deus sabe o que fará.
Blankenship observou, quase timidamente:
– Há sempre a possibilidade de que tenha cruzado a ponte George Washington, senhor. Não deveríamos alertar Nova Jersey? Apenas por cautela?
– O diabo os leve.
– E o FBI?
– Que se dane!
– E a Polícia Estadual?
– Aqueles idiotas? Com os seus sombreros! Pensa que deixarei esses palhaços entrarem na valsa e conquistarem as manchetes? Nunca! Esse rapaz é meu. Tem o seu bloco aí?
– Sim, senhor, aqui mesmo.
– Tome algumas notas. Não... espere um minuto.
O Capitão Delaney dirigiu-se para a porta da sala do rádio, e abriu-a. Havia mais homens ali; os que haviam sido retirados dos seus postos e começavam a chegar. Delaney apontou para o primeiro que viu.
– Você. Venha cá.
Agarrou-o pelo braço, puxou-o para dentro do estúdio, e fechou estrondosamente a porta.
– Eu, senhor?
– Qual é seu nome?
– Javis, John J. Detetive de segunda classe.
– Detetive Javis, estou prestes a dar ordens ao detetive de primeira classe Ronald Blankenship. Quero que você fique aqui, não faça coisa alguma, a não ser escutar e, no caso de um inquérito no Departamento, preste testemunho honesto do que ouvir.
Javis empalideceu.
– Isso não é necessário, senhor – disse Blankenship.
Delaney dirigiu-lhe um sorriso extremamente doce.
– Eu sei que não é – disse suavemente. – Mas estou aparando arestas. Se a coisa funcionar, ótimo, se não, eu é que pagarei. Estive em enrascadas antes. Muito bem, vamos. Tome nota do que vou dizer. Ouça com atenção, Javis. Faça tudo isso através de Comunicações. À Polícia Estadual de Nova Jersey, ao FBI, à Polícia Estadual de Nova York, alerta sobre um fugitivo chamado Danny Boy. Complete a descrição dele e do carro. Fotografias serão enviadas a seguir. Detenham-no e conservem-no preso para interrogatório. Tomem cautela extrema. Procurado por homicídios múltiplos. Armado e perigoso. Compreendeu?
– Sim, senhor.
– Um alerta geral. O fugitivo pode encontrar-se em qualquer lugar. Compreende?
– Sim, senhor, compreendo.
– Telefonemas daqui para a Polícia de Tarrytown, Bear Mountain e Beacon. O mesmo alerta. Mas diga-lhes que não interfiram nos movimentos do suspeito. Deixem que ele fuja. Se cruzar essas pontes, que nos chamem. Deixem-no atravessar o rio, mas informem-nos imediatamente. Diga-lhes que ele matou um policial. Pegou isso?
– Sim, senhor – assentiu Blankenship, escrevendo rapidamente. – Se tentar cruzar as pontes Tappan Zee, Bear Mountain ou Newburgh-Beacon devem deixá-lo passar e avisar-nos. Correto?
– Correto – respondeu claramente Delaney. Olhou para Javis. – Ouviu tudo isso?
– Sim, senhor – respondeu o homem em voz trêmula.
– Ótimo – tornou Delaney inclinando a cabeça. – Fique do lado de fora, de prontidão.
Ao fechar-se a porta às costas do detetive, Blankenship repetiu:
– Não precisava ter feito isso, capitão.
– Mas fiz.
– Vai atrás dele?
– Vou.
– Posso ir também?
– Não. Preciso de você aqui. Despache esses avisos. Levarei os três carros de Operações Especiais e mais policiais. Não sei qual é o alcance dos rádios deles. Se apagarem, conferirei as coisas por telefone. – Pôs a mão sobre o telefone de escrivaninha. – Ponha um homem de serviço aqui. Nada de chamadas para fora. Mantenha-o desocupado. Eu continuarei a telefonar. Continue a conferir com Tarrytown, Bear Mountain e Beacon para saber se ele cruzou o rio. Compreendeu?
– Compreendi – respondeu Blankenship, ainda tomando apressadas notas. – Estou em dia.
– Chame MacDonald de volta a Bárbara. Vocês dois iniciam o trabalho burocrático. Você cuida da parte das substituições, horários, pessoal, carros, e assim por diante. MacDonald deve obter as declarações, interrogar todos os que prendemos. Limpe toda a sujeira. Ele sabe o que fazer.
– Está certo.
– Se o Subinspetor Thorsen ligar para cá, diga-lhe que estou seguindo o criminoso e que entrarei em contato com ele logo que seja possível.
Blankenship ergueu a vista.
– Devo telefonar para o hospital, senhor? – perguntou. – A respeito de sua esposa?
Delaney fitou-o, chocado. Quanto tempo havia passado?
– Pode – disse baixinho. – Muito obrigado. E a respeito de Fernandez, Tigre Um e Bulldog Três. Apreciaria isso. Eu me informarei com você quando telefonar... Mais alguma coisa? Alguma pergunta?
– Não poderia ir com o senhor?
– Na próxima vez – disse o Capitão Edward X. Delaney. – Despache agora mesmo aqueles avisos.
No momento em que a porta se fechou sobre Blankenship, Delaney levantou o telefone. Pediu o número da delegacia de Chilton, Nova York. Demorou até ser feita a ligação, mas não ficou impaciente. Se tinha razão, o tempo não importava. E, caso tivesse se enganado, tampouco.
Por último, ouviu os estalidos, as pausas, o zumbido e, finalmente, o toque da campainha.
– Departamento de Polícia de Chilton. Podemos servi-lo em alguma coisa?
– Poderia falar com o oficial-comandante, por favor?
Um riso rouco.
– O oficial-comandante? Acho que sou eu. Chefe Forrest. Em que posso servi-lo?
– Chefe, aqui é o Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. Cidade de Nova York. Eu tenho...
– Beeeem! –retrucou o chefe. – Isso é ótimo. Como é que vai o tempo por aí?
– Ótimo – replicou Delaney. – Não temos queixas. Um pouco frio, mas o sol está brilhando e o céu está azul.
– A mesma coisa por aqui – ribombou a voz – e o cara do rádio diz que vai continuar assim durante outra semana. Espero que tenha razão.
– Chefe – prosseguiu Delaney – preciso pedir-lhe um favor.
– Ora, pois não. Pensei mesmo que ia pedir.
Delaney parou durante um momento. Aquele homem não era nenhum matuto.
– Estou atrás de um fugitivo – disse rapidamente. – Cinco homicídios conhecidos, inclusive um policial. Usou um machado de gelo. Está num Chevy Corvette, dirigindo-se...
– Quem, quem? – perguntou o chefe. – Vocês da cidade falam tão depressa que quase não posso compreender. Fale um pouco mais devagar e conte toda a história.
– Estou atrás de um fugitivo – repetiu obediente e lentamente Delaney. – Matou cinco pessoas, inclusive um detetive. Esmigalhou-lhes os crânios com um machado de gelo.
– Montanhista?
– Sim – confirmou o capitão, começando a apreciar o Chefe Forrest. –É apenas uma leve possibilidade, mas penso que ele pode estar indo para o Parque Estadual de Chilton. Fica aí perto do senhor, não?
–Ficava, na última vez que olhei. Mais ou menos a três quilômetros da cidade. O que o leva a pensar que está indo para lá?
– Bem... é uma longa história. Mas ele esteve lá fazendo escaladas. Há uma certa rocha – esqueço o nome – mas aparentemente ele...
– A Agulha do Diabo – sugeriu Forrest.
– Exatamente. Ele esteve lá antes, e pensei...
– O parque fica fechado no inverno.
– Se quisesse entrar, poderia fazê-lo, chefe?
– Trata-se de um parque pequeno. Nada parecido com Adirondacks. Nada parecido. Uma cerca de corrente em volta de todo o parque. Um portão com cadeado. Acho que poderia derrubar o portão ou pular a cerca. Não seria um grande problema. Esse seu fugitivo... é louco?
– É.
– Provavelmente derrubará o portão. Bem, capitão, o que é que eu posso fazer?
– Chefe, estava pensando se o senhor não poderia mandar até lá um de seus homens. Apenas para observar. Compreendeu? Se esse louco aparecer quero apenas que seja observado. O que faz. Aonde vai. Não quero que tentem prendê-lo. Estou indo para aí acompanhado de dez policiais. Tudo o que quero é saber onde ele se esconde.
– Hummmm, hummm – disse o Chefe Forrest. – Acho que compreendo. Chamou a Polícia Estadual?
– O alerta está sendo despachado agora mesmo.
– Hummm. Um tanto fora de seu território, não, capitão?
Calhorda safado, pensou em desespero Delaney.
– Sim, é – confessou.
– Mas está trazendo dez homens?
– Bem... sim. Se pudermos ajudar de alguma maneira...
– Hummm. E o senhor simplesmente quer um vigia no portão do parque. Escondido, lógico. Só para saber aonde vai o louco e o que faz. Compreendi bem?
– Compreendeu exatamente – respondeu agradecido Delaney. – Se pudesse enviar um de seus homens...
Houve um silêncio que se prolongou por tanto tempo que o capitão viu-se obrigado a perguntar:
– Alô? O senhor ainda está na linha?
– Oh, estou, estou aqui. Mas quando o senhor fala em enviar um de seus homens, preciso dizer-lhe, capitão: não há homem algum. Eu sou o único. Chefe Forrest. O Departamento de Polícia de Chilton. Naturalmente, deve achar isso engraçado, uma Polícia de um homem só, e um cara chamando a si mesmo de "Chefe". Sei o que significa um "Chefe" em uma grande cidade.
– Não acho engraçado – retrucou Delaney. – Lugares diferentes têm títulos e costumes diferentes. Isso não significa que uma coisa seja melhor ou pior do que outra.
– Filho – ribombou novamente o Chefe Forrest – estou aguardando ansioso o momento de conhecê-lo. Você parece um rapaz realmente brilhante. Bem, venha com seus dez homens. Enquanto isso, vou-me esconder no parque e ver o que puder. O dia está mesmo muito chato.
– Muito obrigado, chefe – disse grato Delaney. –Mas talvez leve algum tempo.
– Tempo? – riu a voz profunda. – Capitão, tempo é o que não falta por aqui.
Delaney deu outro telefonema. Thomas Handry. O repórter, porém, não estava no jornal e, assim, deixou um recado. "Divulgue. Blank está fugindo. Estou indo atrás dele. Chame Thorsen. Delaney". Tendo pago sua dívida, afivelou o cinto da arma e prendeu as presilhas do colarinho duro. Dirigiu-se à sala do rádio e apontou para três homens; saíram todos para os pesados carros armados, à espera junto ao meio-fio.
Ainda jubiloso, parecendo-lhe o ar nos seus pulmões tão seco e picante como um bom gim, Daniel Blank desceu correndo a escadaria interna da casa de Célia Montfort, saltou sobre o caído Valenter e saiu para o fraco sol de inverno acompanhado pelos distantes gritos.
Viu um homem ajoelhado na calçada, entre ele e o carro. O homem viu-o saindo para a rua e sua face contorceu-se em uma expressão de maldosa ameaça. Começou a erguer-se, levando a mão para baixo do paletó. Blank compreendeu que aquele homem odiava-o e que queria matá-lo.
Transferiu o machado de uma mão para a outra durante a corrida. Atingiu o homem, que era muito rápido e desviou-se para um lado, de modo que a ponta do machado não lhe penetrou no crânio, atingindo-o apenas na parte traseira do ombro. Mas ele caiu. Daniel soltou o machado com um movimento da mão, correu para o carro, ouvindo berros do outro lado da avenida. Outro homem veio correndo, evitando os carros que passavam, apontando o dedo para Blank. Ouviu, em seguida, leves e secas explosões – estalos, realmente – e algo bateu e penetrou na carroceria do carro. Apareceu em seguida um orifício na janela esquerda e outro no pára-brisa. Sentiu uma lufada de ar passar pela sua face, leve como um beijo de anjo.
O homem vinha da esquerda e parecia resolvido a abrir violentamente a porta ou apontar o dedo novamente. Blank formou uma confusa impressão de um rosto negro, contorcido de medo e fúria. Nada havia a fazer senão acelerar, e atropelar o homem. Fez isso, ouviu um baque surdo quando o corpo ergueu-se, voando pelo ar, mas não olhou para trás.
Virou para oeste na 86th Street, viu um carro cheio de homens que procuravam descer apressadamente. Mais berros, mais explosões, mas ele percorria em alta velocidade a 86th Street, ouvindo o estridor crescente e em diminuição das buzinas, o chiado de freios enquanto passava por luzes vermelhas, tomava a contramão da rua para evitar um engarrafamento, entrava e aumentava a velocidade, ouvindo ao longe uma sirena, desfrutando de tudo isso, amando-o, porque havia cortado a linha telefônica que o prendia ao mundo e estava naquele momento sozinho, inteiramente sozinho, e ninguém poderia tocá-lo. Nunca mais.
Tomou a Via nº 3 através do Central Park, virou à direita na Broadway, e seguiu para o norte, dobrando à esquerda para entrar na Henry Hudson Parkway que todo mundo chamava de West Side Drive. Seguiu cantarolando para o norte na Drive, acompanhando o tráfego, nem mais rápido nem mais devagar, e riu porque tudo havia sido tão fácil. Ninguém poderia tocá-lo; nem mesmo os dois carros policiais que passaram com as sirenas abertas por ele poderiam destruí-lo ou estragar o encanto daquele dia brilhante e vivo, um novo dia.
Mas havia qualquer confusão na ponte – talvez um acidente – e o tráfego estava-se acumulando. Deixou-se ficar na Parkway e continuou a correr para o norte à medida que o tráfego escasseava, e cantou uma pequena canção – o que era? A mesma canção popular que estivera cantarolando baixinho antes. Bateu com as mãos em ritmo no volante do carro.
Ao norte de Yonkers, estacionou à beira da estrada e desdobrou o mapa. Poderia tomar a Parkway até a Thruway, cruzar a ponte Tappan Zee em direção a South Nyack. Faria a volta em torno do Palisades Interstate Park para a estrada 32 e a seguiria até Mountainville. Em seguida, para o sul e Chilton. Simples... e belo. Tudo estava belo naquele dia.
Dobrava o mapa quando um carro da Polícia parou na Parkway. O guarda no assento do passageiro indicou o norte com o polegar. Blank inclinou a cabeça e saiu do acostamento, postou-se atrás do carro de patrulha, mas conservou baixa a velocidade até que os policiais ficaram muito à frente e desapareceram. Eles nem mesmo haviam notado os orifícios na janela, no pára-brisas, na carroceria do carro.
Não teve problema, nenhum problema. Nem mesmo o menor pedágio a pagar – indo na direção oeste sobre a Tappan Zee. Se voltasse para leste, naturalmente teria de pagar pedágio. Mas não achava que voltaria. Continuou a guiar sem parar, um ou dois quilômetros acima do limite de velocidade, e quase antes de se dar conta, encontrava-se dentro de Chilton, a caminho do parque. Naquele instante, seu carro era o único na estrada de cascalho. Ninguém mais por ali. Maravilhoso.
Entrou na estrada de terra batida que conduzia ao Parque Estadual de Chilton, e viu o portão fechado à frente. Pareceu-lhe tolice parar e quebrar o cadeado com o machado de gelo e, assim pensando, acelerou o motor, desenvolvendo quase oitenta quilômetros horários no momento do impacto. Levou o antebraço à frente dos olhos quando bateu, mas o carro atravessou sem dificuldade a cerca, dobrando-se para trás as duas folhas do portão. Daniel Blank pisou subitamente no freio e parou. Estava dentro. Saiu do carro e espreguiçou-se, olhando em volta. Ninguém. Simplesmente uma paisagem de inverno: árvores nuas e pretas contra um céu azul-claro. Limpo e austero. A brisa era um vinho e o sol uma moeda amarela a brilhar suavemente.
Sem pressa, calçou as botas de alpinismo e vestiu a jaqueta de lona forrada. Jogou os mocassins pretos e o sobretudo no interior do carro; não necessitaria mais deles. No último minuto, tirou também a peruca formal ivy-league e deixou-a no carro. Enterrou o gorro tricotado na cabeça raspada.
Levou o equipamento para a Agulha do Diabo, uma caminhada em ascensão de menos de dez minutos, passando por uma trilha na floresta e por afloramentos rochosos. Era bom sentir novamente a pedra sob os pés. Era diferente do cimento da cidade. A calçada era uma camada, isolando o homem do mundo. Mas ele estava ali sobre rochas nuas, a espinha da Terra, onde podia sentir o planeta girando sob os pés. A pessoa aproximava-se tanto...
À entrada da chaminé, afivelou o cinto trançado, preso a uma das extremidades da corda de nylon, sacudiu cuidadosamente as voltas da corda e prendeu todo o equipamento à outra extremidade: a mochila, os grampos de segurança, a suéter de reserva, o machado de gelo. Calçou as luvas ásperas.
Começou a subir lentamente, perguntando-se se seus músculos haviam perdido a elasticidade. Mas a escalada correu sem tropeços; ganhou confiança à medida que aos poucos ia subindo. Chegou ao local onde estavam fincados os grampos e puxou-se para cima da superfície plana. Descansou durante um momento, respirando profundamente, levantou-se e recolheu o equipamento. Tirou o cinto, lançou tudo aquilo numa pilha. Empertigou-se, com as mãos apoiadas nos quadris, inalou profundamente e empurrou os ombros para trás. Olhou em volta.
Era um panorama diferente, um panorama de inverno que nunca descortinara daquela elevação. Era uma gravura feita a buril o que havia ali embaixo: árvores negras e esguias, trechos ocasionais de neve ainda sólida, sombras e brilhos, todos os pretos, os cinzentos, os marrons, um relâmpago de branco. Viu os telhados de Chilton e, mais além, o espelho do rio, parecendo um lago mas movendo-se lentamente em direção ao mar, ao largo mundo, a toda parte.
Acendeu um dos cigarros de alface e observou a fumaça evolar-se, penetrar no nada, e desvanecer-se. O rio fundiu-se ao mar e a fumaça ao ar. Todas as coisas se tornaram unas umas com as outras, penetraram-se, e fundiram-se até que a água transformou-se em terra e a terra em água, a fumaça transmutou-se em ar e o ar em fumaça. Por que havia ela sorrido triunfante? Naquele instante, podia pensar no caso.
Sentou-se na rocha nua, dobrou as pernas, pôs um lado da face sobre os joelhos. Desabotoou a jaqueta de lona, o paletó do terno, a camisa e enfiou uma mão por dentro do tecido para apalpar o tórax, não muito mais chato do que o dela. Acariciou lentamente o bico do peito e pensou que ela se sentira feliz quando erguera os olhos para focalizá-los naquela faiscante ponta de metal que descia para pingar um ponto final em seu cérebro. Ficara feliz. Ela queria a certeza. Tudo o que ela lhe havia dito confirmava a pesquisa árdua do absoluto. Em seguida, cansada das contorções infindáveis de uma inteligência viva e sensível – tão nua e desperta que devia ter sido tão dolorosa como uma ferida aberta – ela o enredara em seus planos, acicatando-o e, em seguida, traindo-o. Sabendo qual seria o fim, querendo-o. Sim, pensou, fora isso o que acontecera.
Ficou sentado ali durante longo tempo –escurecendo-se o céu e transformando-se em fim de tarde – sonhando sobre o que acontecera. Não triste pelo que havia ocorrido, mas sentindo, sim, uma espécie de alegria triste porque sabia que ela encontrara a verdade final e ele ainda teria de encontrar a sua. Assim, ambos... mas ouviu nesse instante o ruído de motores de automóvel e a batida de portas. Rastejou lentamente para a borda da Agulha do Diabo e olhou para baixo.
Descendo a escada de cascalho que começava em Chilton, viram o sinal, "Um quilômetro e meio para o Parque Estadual de Chilton", e viraram para a estrada de areia. Pararam do lado de fora da cerca. As bandeiras do portão inclinavam-se como dementes para os lados. Dentro do parque, viram o carro de Daniel G. Blank. Um homem corpulento, vestido com uma capa de lona cinza, com gola de lã de ovelha, suja, inclinava-se contra o carro e observava-os. Viram uma embalagem de seis latas de cerveja sobre o capô do carro; o homem bebia lentamente em uma delas.
O Capitão Delaney desceu, ajustou o quepe na cabeça e deu um puxão na túnica. Atravessou o portão destruído em direção ao cano de Blank, tirando a identificação do bolso. Aproximando-se, examinou o alto indivíduo à espera. Um metro e oitenta e sete, no mínimo; talvez um metro e noventa e um se ele se espigasse. Pelo menos 110 quilos de peso, talvez mais, principalmente no ventre. Devia andar por volta dos 65 anos de idade. Usava uma capa velha, calças manchadas, sapatos de sola de borracha amarrados em volta dos tornozelos, e um gorro de miliciano de alguma espécie de pele negra. Em torno do pescoço, pendendo de uma fita de couro, o que parecia ser um binóculo de campanha da I Guerra Mundial. Em torno da cintura, um cinto de couro, manchado com o suor de uma vida inteira, do qual descia um dos maiores coldres que Delaney vira até então, abotoado. Sobre o peito do homem, uma espécie de escudo ou estrela; era difícil identificar aquilo.
– Chefe Forrest? – perguntou, aproximando-se.
– O próprio.
– Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. – Abriu e mostrou-lhe a carteira de identidade.
O chefe recebeu-a numa mão que não tinha exatamente o tamanho e a cor de um presunto de piquenique, e examinou-a atentamente. Devolveu-a e estendeu a mão a Delaney.
– Chefe Evelyn T. Forrest – trovejou. –Prazer em conhecê-lo, capitão. Acho que pensa que "Evelyn" é um nome engraçado para um homem.
– Não, não acho. Meu pai se chamava Marion. Não é tão importante assim, não?
– Não... a menos que a pessoa o tenha.
– Vejo que o nosso rapaz chegou até aqui – disse Delaney, dando uma pancadinha no pára-choque do carro estacionado.
– Hum, hum – assentiu Fonest. – Chegou. Capitão, tenho uma embalagem de seis latas aqui. O senhor gostaria...?
– Claro. Muito obrigado. Cairá bem agora.
O chefe escolheu uma lata, puxou o grampo e entregou-lhe a cerveja. Ambos ergueram as latas em um brinde e beberam. O capitão verificou o rótulo.
– Não conhecia esta marca – confessou. – Quase igual a chope.
– Hum, hummm – concordou o Chefe Forrest. – Fabricação local. Não chega à área de Nova York, mas a fábrica vende tudo que consegue produzir.
Ele possuía, pensou Delaney, a face de um velho sabujo: bolsas de carne, pele de um púrpura avermelhado pendendo em rugas e dobras. Os olhos, porém, eram inesperadamente jovens, suaves, francos; a esclerótica, clara. Devia ter sido um rapaz e tanto há uns quarenta anos, pensou o capitão, antes de a cerveja tê-lo pegado, lhe arredondado a barriga e o tornado mais lento.
– Ouça, capitão. Um de seus homens conseguiu atingi-lo.
O chefe apontou para um buraco de bala na carroceria e outro na janela esquerda do assento da frente.
– Chegue aqui – continuou, apontando para um orifício em forma de estrela no pára-brisa.
Delaney parou para observar o buraco de entrada na janela e o de saída no pára-brisa.
– Se a coisa tivesse acontecido como devia, a bala teria levado o cérebro dele caso se encontrasse mesmo no assento do motorista. Aquele cara tem a sorte do demônio.
–Hummm, humm – concordou o Chefe Forrest. – Alguns deles têm. Bem, o que aconteceu foi o seguinte: Cheguei mais ou menos uma hora antes dele, saí da estrada e me escondi entre as árvores no lado oposto à entrada do parque. Não era lá um grande esconderijo, mas acho que ele estava olhando para a direita, para a entrada do parque, e não me viu.
– Isso faz sentido.
– Exato. Bem, eu estava do lado de fora de minha camioneta, tomando uma cerveja, quando ele veio à tona, uma beleza. Virou para a estrada de terra, viu o portão fechado, acelerou e abriu o portão à força, como faca quente em manteiga. Nesse momento, focalizei-o com o meu binóculo. Rapaz bonitão.
– Sim, é mesmo.
– Começou a trocar de roupa, botando trajes esportivos: jaqueta, botas, e assim por adiante. Tive um susto quando ele mergulhou no carro com uma cabeleira completa e saiu mais calvo do que um ovo.
– Ele usa peruca.
– Hummm. Encontrei-a no carro. Parece um rato almiscarado morto. Encontrei também o sobretudo e os sapatos de passeio. Em seguida, ele botou um gorro na cabeça, arrumou a tralha e partiu para a Agulha do Diabo. Atravessei a estrada e entrei no parque.
– Ele viu-o?
– Se me viu? – perguntou assombrado o chefe. – Ora, não. Eu ainda sei mover-me muito bem e conheço o terreno por aqui como a palma da mão. Não, não me viu. De qualquer modo, chegou lá, prendeu uma corda no cinto e no equipamento e entrou na chaminé. Subiu num tempo muito bom. Pouco depois, vi a linha sendo puxada. Em seguida vi-o no cume da Agulha do Diabo, vi-o durante apenas alguns segundos mas ele está mesmo lá, quanto a isso não há dúvida, capitão, nenhuma dúvida.
– Observou se havia alimento na mochila? Ou um cantil? Qualquer coisa assim?
– Não. Nada parecido. Mas levava uma mochila. Poderia haver alguma comida e bebida nela.
– Talvez.
– Capitão...
– Sim, chefe?
– O alerta que o senhor telefonou para a meninada estadual... Sabe, eles o retransmitem para todos nós, chefes locais e delegados, pelo rádio. Estava a caminho daqui quando ouvi a chamada. Não mencionava coisa alguma a respeito de Chilton.
– Hummm. .. bem, eu não mencionei Chilton. Foi apenas um palpite, não queria que viessem aqui à toda no que poderia ser simplesmente um bate falso.
O chefe fitou-o firmemente e durante um longo momento.
– Filho – disse baixinho – não sei o que tem contra os meninos do Estado, e não quero saber. Admito que podem ser um bocado chatos. Mas, capitão, quando o caso aqui for resolvido, você volta para casa. Esta é a minha casa e eu tenho que lidar com os meninos do Estado durante todos os dias da semana. Bem, se descobrirem que eu sabia que havia um maníaco homicida escondido em propriedade estadual e que não os avisei, ficarão um bocado zangados, capitão, apenas um bocado zangados.
Delaney limpou a areia da biqueira do sapato de passeio, olhando para baixo.
– Acho que o senhor tem toda razão – murmurou finalmente. – Acontece simplesmente... –Olhou para o chefe e sua voz morreu.
– Filho – disse Forrest em voz bondosa – estou neste negócio há mais tempo do que você e sei o que significa andar atrás de um homem, persegui-lo durante longo tempo, e acuá-lo. E a idéia de que alguém, a não ser você, prenda-o é suficiente para botar o cara subindo pelas paredes.
– Isso mesmo – anuiu infeliz Delaney. – Algo parecido.
– Mas percebe a minha situação, não, capitão? Preciso avisá-los. Farei isso de qualquer maneira, mas preferiria que você dissesse: "Está bem".
– Está bem. Entendo seu ponto de vista. Como é que vai chamá-los?
– Pelo rádio de minha camioneta. Posso falar com a milícia. Ela virá para cá imediatamente.
O chefe afastou-se, subindo a estrada de terra, caminhando com um passo notavelmente leve para um homem de sua idade e peso. Delaney permaneceu ao lado do carro de Blank, olhando pela janela para o sobretudo, os sapatos, e a peruca. Essas peças já tinham a aparência informe, empoeirada, de posses de um homem há muito tempo falecido.
Devia sentir-se exultante, sabia, por ter passado a perna em Daniel Blank. Em vez disso, porém, assaltava-o uma sensação de medo. Reação à excitação daquela manhã, pensou, mas parecia haver algo mais. O medo era do futuro, pelo que havia à frente. "Termine o trabalho", disse a si mesmo. "Termine o trabalho". Recusou-se a imaginar o que poderia ser o fim. Lembrou-se de que o coronel lhe dissera no Exército: "Os melhores soldados não têm imaginação".
Virou-se no momento em que o Chefe Forrest entrou pelo portão guiando uma velha e arruinada camioneta, onde se via pintada em letras amarelecidas a inscrição "Departamento de Polícia de Chilton". Parou junto ao carro de Blank.
– Estão a caminho – gritou para Delaney. – Chegarão dentro de uns vinte minutos.
Saiu com alguma dificuldade de trás do volante, grunhindo e arquejando, estendeu a mão e tirou mais duas embalagens de seis latas de cerveja. Entregou-as a Delaney.
– Para os seus rapazes – disse. – Enquanto esperam.
– Ora, muito obrigado, chefe. É muita bondade sua. Espero que isso não o deixe sem bebida.
A grande barriga de Forrest tremeu com uma gargalhada.
– Ainda está para chegar o dia – ribombou.
– É melhor descerem e estirarem as pernas – disse Delaney a seus homens. – Parece que vamos ter que esperar. Eis um pouco de cerveja, com os cumprimentos do Chefe Forrest, do Departamento de Polícia de Chilton.
Os policiais saltaram satisfeitos dos carros e aproximaram-se das caixas de cerveja. Delaney voltou a procurar o Chefe Forrest.
– Poderíamos dar uma olhada mais de perto da Agulha do Diabo? – perguntou.
– Ora, como não?
– Trouxe três atiradores exímios comigo e gostaria de escolher um local de onde possam cobrir a entrada da chaminé e o topo da rocha. Apenas por precaução.
– Hummmm, hummm. Esse seu fugitivo está armado, capitão?
– Apenas com um machado de gelo, pelo que sei. Quanto a arma de fogo, não posso garantir. Chefe, não precisa vir comigo. Simplesmente indique o caminho, que chegarei até lá.
– Merda! – exclamou chateado o Chefe Forrest. – Isso foi a primeira coisa estúpida que você disse, filho.
Partiu em passos leves e bem plantados no chão; o Capitão Delaney seguiu-o com dificuldade. Desceram por um caminho mal definido de areia que se esgueirava por entre árvores esqueléticas.
Chegaram finalmente aos afloramentos rochosos. As solas do Capitão Delaney escorregaram nas pedras enquanto o Chefe Forrest andava confiante, sem perder o equilíbrio, sem olhar para baixo, dando largas passadas, movendo-se como um gigantesco dançarino até a base da Agulha do Diabo. Quando Delaney se emparelhou com ele, resfolegando, o chefe já havia aberto o coldre e estava dobrando-o e colocando-o sob o cinto manchado de suor.
Delaney, com o queixo, indicou o coldre enorme:
– Que arma usa, chefe? – perguntou, como um profissional a outro.
– Um Colt quarenta e quatro. Cano de vinte e dois centímetros. Pertenceu a meu pai. Ele foi também policial. Substituí o percussor e o cabo, mas, fora isso, está em perfeitas condições. Uma excelente peça.
O capitão anuiu e virou os olhos para a Agulha do Diabo. Ergueu lentamente a cabeça. A chaminé de granito perfurava os céus, afilando-se ligeiramente à medida que subia. Lampejos de mica captavam os últimos raios do sol poente. Notou manchas de umidade. Uma touceira de musgos aqui e ali. A superfície parecia geralmente lisa e batida pelos ventos, mas notavam-se também pequenas rachaduras: um torso de pedra coberto de veias.
Apertou os olhos em direção ao cume. Era estranho pensar que Daniel G. Blank se encontrava ali. Perto e longe. Longe.
– Mais ou menos uns vinte e cinco metros? – calculou em voz alta.
– Mais perto de uns vinte metros, acho – disse em sua voz grossa o Chefe Forrest.
Em cima e embaixo. Estavam separados. Nunca, anteriormente, o Capitão Delaney sentira de forma tão acentuada a loucura do mundo. Por alguma razão, pensou em amantes separados por vidro ou por uma cerca, ou um homem e uma mulher, estranhos, trocando um olhar na rua, em um ônibus, num restaurante, com um muro de convenção a separá-los, mas, ainda assim, insuportavelmente próximos, e nunca mais tão próximos assim.
– Vamos lá dentro – disse em voz abafada e entrou, com todo o cuidado, na abertura da fenda vertical, a chaminé. Sentiu a umidade acre e o frio das sombras de pedra. Inclinou a cabeça para trás. Muito acima, na escuridão, viu uma nesga de céu azul-claro.
– Só pode subir um de cada vez – disse o Chefe Forrest em voz que soou inesperadamente alta na caverna. – A pessoa vai contorcendo-se para cima, usando as costas e os pés e, em seguida, as mãos e os joelhos à medida que a rocha se estreita. Ele está lá em cima com um machado de gelo e ninguém pode ir lá, a não ser que ele permita. O indivíduo deve usar ambas as mãos.
– O senhor já fez essa escalada, chefe?
Forrest grunhiu um pouco.
– Hummm, hummm. Muitas vezes. Mas isso foi há muitos anos, antes que minha barriga começasse a atrapalhar.
– Como é lá em cima?
– Oh, mais ou menos do tamanho de um lençol de casal. Plano, mas inclinando-se um pouco para o sul. Esburacado e brilhante. Alguns buracos rasos na pedra. Um panorama muito bonito dali de cima.
Saíram da chaminé e Delaney ergueu novamente a vista.
– O senhor calcula a altura em cerca de vinte metros, por aí?
– Mais ou menos.
– Poderíamos arranjar uma escada com o Departamento de Estradas de Rodagem, ou eu poderia trazer um caminhão-escada do Corpo de Bombeiros de Nova York. Elas alcançam até trinta metros. Mas não há maneira de aproximar o caminhão o suficiente. A menos que construamos uma estrada. E isso levaria um mês.
Ficaram ambos silenciosos.
– Helicópteros? – sugeriu finalmente Delaney.
– Sim – concordou Forrest. – Poderiam liquidá-lo de um helicóptero. Meio cabuloso nestas correntes cruzadas e com ar impelido para baixo, mas acho que poderia ser feito.
– Poderia – concordou numa voz sem expressão o Capitão Delaney. – Ou poderíamos trazer um avião de caça para reduzi-lo a pedaços com foguetes e metralhadoras.
Silêncio novamente.
– Mas isso não combina bem com você, não é, filho? – perguntou o chefe em voz suave.
– Não, não combina. E com o senhor?
– Não. Nunca senti vontade de dar tiro em peixe dentro de um barril.
– Vamos voltar.
No trajeto escolheram um local provisório para colocar os atiradores. Ficava no fundo de um bosque de pinheiros, oferecia apenas alguma proteção, mas também um campo claro de fogo, cobrindo a entrada da chaminé e o topo da Agulha do Diabo.
A Polícia Estadual ainda não chegara. Os homens de Delaney descansavam dentro e fora dos carros, fazendo render a cerveja. Os três pálidos atiradores permaneciam um pouco afastados dos demais, falando em voz baixa, com seus fuzis em sacos de lona.
– Chefe, tenho que dar uns telefonemas. Preciso ir a Chilton.
– Não há necessidade. Aqui mesmo. – Forrest indicou com a mão a cabana do porteiro. Apontou também para um fio telefônico que corria sobre postes de madeira até a estrada de cascalho, – Conservam essa linha aberta durante todo o inverno. Turmas de conservação de estradas, que removem a neve, usam-na, e também o pessoal do parque que chega cedo para iniciar o plantio logo que começa a primavera.
Foram até a velha e estragada cabana de madeira e subiram para o terraço. Delaney notou que a porta estava fechada com um pesado cadeado de ferro.
– Tem chave? – perguntou.
– Certamente – respondeu o chefe, puxando o enorme revólver do coldre. – Dê um passo para trás, filho.
O capitão recuou apressado, enquanto o Chefe Forrest, negligentemente, abria a bala o cadeado. Delaney notou que ele fez pontaria para a trava, e não para o corpo do cadeado, onde uma bala poderia apenas estragar o mecanismo. Começava a admirar o velho. A explosão estrugiu inesperada e alta. Ecos repetiram-na para frente e para trás; o pessoal de Delaney ergueu-se nervoso. Duas aves pardas levantaram vôo do mato rasteiro ao longo da estrada de terra e voaram para longe, soltando pios roucos.
O chefe empurrou e abriu a porta. A cabana cheirava a poeira e a coisa velha. Delaney viu um telefone preso à parede, operado por uma pequena manivela.
– Há anos que não vejo um desses – observou Delaney.
– Temos ainda alguns por aqui. O nome da telefonista é Muriel. Pode dizer a ela que estou aqui, no caso de ter alguma mensagem para mim. – Deixou-o sozinho na cabana.
O capitão girou a manivela; Muriel atendeu com agradável presteza. Delaney identificou-se e deu-lhe a mensagem do chefe.
– Bem, a mulher dele quer saber se deve atrasar a ceia – disse ela. – Diga-lhe isso,
– Darei o recado.
– O assassino está aí? – indagou ela severamente.
– Coisa parecida. Posso falar com Nova York?
– Naturalmente. O que é que o senhor pensa?
Ligou primeiro para Blankenship e descreveu a situação em palavras tão breves quanto possível. Disse-lhe para telefonar ao Subinspetor Thorsen e repetir a mensagem.
Telefonou, em seguida, para Bárbara no hospital. Foi um telefonema angustioso; a esposa chorava e ele não conseguiu descobrir a causa. Finalmente, uma enfermeira veio ao telefone e informou ao capitão que ela estava histérica; não achava que devia ser continuado o telefonema. Ele desligou, confuso e amedrontado.
Logo após telefonou para o Dr. Sanford Ferguson e conseguiu alcançá-lo no escritório.
– Falando o Capitão Edward X. Delaney.
– Edward! Parabéns! Ouvi dizer que conseguiu agarrá-lo.
– Não exatamente. Ele está no alto de uma pedra e não podemos chegar até ele.
– No alto de uma pedra?
– Alta, aproximadamente vinte metros de altura. Doutor, quanto tempo pode um homem viver sem alimentos e água?
– Alimento ou água? Mais ou menos dez dias, acho. Talvez menos.
– Dez dias? Isso é tudo?
– Claro. O alimento não é tão importante. A água é. O problema é a desidratação.
– Quanto tempo até que isso aconteça?
– Umas vinte e quatro horas.
– E em seguida?
– O que se poderia esperar. Os tecidos se encolhem, a força se esvai, os rins começam a falhar. Doem as juntas. Mas, por essa altura, a vítima não se importa mais. Um dos primeiros sintomas psicológicos é a perda de vontade, lassidão. Algo como congelar até a morte. Ele perderá um quinto ou um quarto do peso corporal. Tonteira. Perda de controle dos músculos voluntários. Fraqueza. Não pode enxergar mais. Imagens borradas. Provavelmente começa a ter alucinações no terceiro dia. A bexiga entra em colapso. Pouco antes da morte, o vente incha. Não é uma maneira agradável de morrer... mas, qual a que é? Edward, é isso que vai acontecer?
– Não sei. Obrigado pela ajuda.
Desligou e discou o número de Mônica Gilbert. Mas quando ela lhe reconheceu a voz, desligou; não tentou chamá-la novamente. Saiu da cabana para o terraço e disse a Forrest:
– Sua esposa quer saber se deve atrasar a ceia.
– Humm, humm – assentiu o chefe. –Eu a avisarei quando souber. Capitão, por que não...? – Parou subitamente e inclinou a cabeça. – Sirenas – disse. – Vindo em alta velocidade. Devem ser os milicianos.
Passaram-se cinco segundos antes que o Capitão Delaney as ouvisse. Finalmente, dois carros fizeram em derrapagem a curva para a entrada do parque, e deslizaram até pararem do lado de fora da cerca. Morreu lentamente o som das sirenas. Quatro homens em cada carro e, fechando a retaguarda, um sedã Ford muito surrado, com a inscrição "Orange County Clarion" pintada nos lados. Um homem apenas nesse carro.
Delaney desceu do terraço e observou os oito policiais descerem dos carros e levarem as mãos aos polidos coldres.
– Belo – disse em voz alta.
Um único miliciano, não muito alto, mais largo de quadris do que de ombros, passou pelo portão na direção deles.
– Oh, oh – murmurou o Chefe Forrest. – Lá vem Smokey, o Urso.
O capitão tirou a identificação do bolso, observando a aproximação do oficial. Usava ele o uniforme cinzento de lã de inverno da Polícia Estadual de Nova York. O cinto de couro e o coldre de sua arma brilhavam malignamente. Enterrado e bem equilibrado, trazia na cabeça um chapéu de cowboy de aba larga e copa reta e dura. Projetava bem para a frente o queixo, com os ombros estreitos para trás, inchando o peito como um pombo. Lançou um olhar ao Chefe Forrest e inclinou levemente a cabeça. Em seguida, encarou Delaney.
– Quem é o senhor? – perguntou.
O capitão examinou-o durante um momento e estendeu a identificação.
– Capitão Edward X. Delaney, do Departamento de Polícia de Nova York. E quem é o senhor?
– Capitão Wilfred Sneed, Polícia Estadual de Nova York.
– Como é que eu sei disso?
– Jesus Cristo. Com o que é que eu pareço?
– Oh, com um policial. Não há dúvida a esse respeito. Está usando um uniforme de policial. Mas quatro homens vestidos de policiais praticaram o massacre do Dia de São Valentino. Não se pode ter certeza. Eis aqui minha carteira de identidade. Onde está a sua?
Sneed abriu a boca enorme e fechou-a, em seguida, com um ranger de dentes. Abriu um botão da túnica de lã e tirou a identificação. Eles as examinaram reciprocamente.
Enquanto as examinavam, Delaney percebeu que os homens se aproximavam, os seus e os de Sneed. Haviam adivinhado uma confrontação entre os comandantes e não a perderiam por nada no mundo.
Sneed e Delaney receberam de volta as respectivas carteiras de identidade.
– Capitão – disse asperamente Sneed – temos aqui um problema de jurisdição.
– Oh? – disse Delaney. – O nosso problema é esse?
– Exato. Este parque é propriedade estadual, e está sob a proteção da corporação policial do Estado de Nova York. O senhor está fora de seu território.
O capitão Delaney guardou a identidade, deu um puxão na túnica, e endireitou o quepe.
– O senhor tem toda razão – sorriu cordialmente. – Vou tirar meus homens e cair fora. Foi um prazer conhecê-lo, capitão. Chefe, adeus.
Dava-lhe as costas quando Sneed chamou:
– Ei, espere um minuto.
Delaney parou.
– Sim?
– Qual é o problema que há aqui?
– Ora – disse inocentemente Delaney – é um problema de jurisdição. Como o senhor acabou de dizer.
– Não, não. Quero dizer, o que é que há? Onde se encontra esse fugitivo?
– Oh... ele. Bem, ele está sentado no cume da Agulha do Diabo.
O Chefe Forrest havia tirado um fósforo de madeira do bolso lateral e inserido o lado oposto no canto da boca. Parecia estar sugando-o, observando os dois homens com um sorriso benigno nas bochechas pendentes.
– Sentado no cume da pedra? – exclamou Sneed. – Isso é tudo? Temos alguns montanhistas em nosso grupo. Mandarei um ou dois homens subirem até lá e prendê-lo.
Delaney havia-se voltado mais uma vez e dado alguns passos. Tinha as costas para Sneed no momento em que se interrompeu, pôs as mãos na cintura, ficou parado durante um longo momento, baixou a cabeça, tomou uma profunda respiração, e voltou-se novamente. Aproximou-se de Sneed.
– Seu cabeça de merda, seu débil mental – disse em voz agradável. – Por todos os motivos, eu devia reunir minha gente e ir embora para deixá-lo cozinhar no seu próprio caldo, seu grandessíssimo imbecil. Mas quando fala em enviar um homem valente à morte por causa de sua estupidez, sou obrigado a falar. Não fez nem mesmo um reconhecimento físico do local. Trata-se de uma escalada de um único homem, capitão, e todos os que enviar até lá em cima terão o crânio esmigalhado. É isso o que quer?
A cara de boneco de Sneed havia empalidecido sob o açoite das invectivas de Delaney. Apareceram em seguida manchas vermelhas em seu rosto, discos de ruge, e suas mãos tremeram convulsamente. Os circunstantes ficaram silenciosos, como que congelados. Mas houve uma interrupção. Um pesado caminhão branco, coberto com um toldo, virou para o local, vindo da estrada de cascalho; cabeças se viraram para observá-lo. Era uma unidade móvel de TV de uma das redes nacionais. Viram-no estacionar do lado de fora do portão. Homens desceram e começaram a descarregar equipamento. Sneed voltou a fitar Delaney.
– Bem... inferno – disse, sorrindo triunfantemente – neste caso não enviarei homem algum lá em cima. Mas a primeira coisa que farei amanhã cedo será chamar um helicóptero para liquidá-lo. Isso será uma grande cena na TV.
– Sem dúvida – concordou Delaney. – Uma grande cena na TV. Naturalmente, esse homem é, no momento, apenas um suspeito. Não foi condenado por coisa alguma. Não foi nem julgado. Mas envie seu helicóptero e mande matá-lo. Posso ler agora mesmo as manchetes: "Policiais Estaduais Abatem a Tiros de Metralhadoras um Suspeito no Cume de uma Montanha." Boa publicidade para sua corporação. Boas relações públicas. Especialmente depois de Attica.
As últimas palavras tiveram o efeito de tornar rígido o Capitão Wilfred Sneed. Cortou-lhe a respiração e seus braços penderam como âncoras de cada lado do corpo.
– E há outra coisa – continuou Delaney. – Está vendo aquela unidade de TV lá fora? Ao amanhecer, haverá mais duas outras. E repórteres e fotógrafos de jornais e revistas. A notícia já foi divulgada pelo rádio. Se o senhor não fechar estas estradas com uma pressa danada, pela manhã terá por aqui cem mil idiotas e birutas, com esposas, filhos e cestas de piqueniques com galinha assada, todos correndo para presenciar a morte do suspeito. Exatamente como no caso de Floyd Collins na caverna.
– Vou dar um telefonema – disse, rouco, o Capitão Sneed. Olhou febrilmente em volta. O Chefe Forrest indicou com o polegar a cabana do porteiro. Sneed correu para lá. – Espere aqui um minuto – gritou sobre o ombro para Delaney. – Por favor.
Chegou ao terraço da cabana e viu a tranca arrebentada.
– Quem foi que arrombou a porta? – perguntou.
– Eu – respondeu tranqüilo o Chefe Forrest.
– Propriedade estadual! – exclamou indignado Sneed e desapareceu no interior da cabana.
– Oh, Senhor, minhas aflições nunca terminarão? – perguntou o chefe.
– Eu não devia ter falado com ele daquela maneira – disse Delaney em voz baixa. – Especialmente, na frente do seu pessoal!
– Oh, não sei, capitão – comentou o chefe, sugando ainda o palito de fósforo. – Eu já ouvi espinafrações piores do que aquela. Além disso, você não disse coisa alguma que o pessoal dele não venha dizendo há anos. Entre si, naturalmente.
– Para quem é que o senhor pensa que ele está telefonando?
– Sei exatamente para quem: o Major Samuel Barnes. Ele comanda a tropa de Sneed.
– Como é ele?
– Sam? Cortado em fazenda diferente. Um homenzinho duro como um rebenque. Conhece o negócio. Sam é das proximidades de Woodstock. Conheci o pai dele. Hy Barnes fazia a melhor aguardente de maçã desta região, mas Sam não gosta que lembrem esse fato. Smokey, o Urso, explicará a situação e o major ouvirá atentamente. Sneed se queixará de sua presença e contará a Sam o que você disse a respeito de metralhar o cara de um helicóptero e o que falou a respeito de uma multidão de birutas descendo sobre nós amanhã. Sneed dirá ao major que você disse isso porque é estúpido demais para assumir o crédito pelas palavras. Sam Barnes pensará alguns segundos e dirá: "Sneed, seu maldito simplório, tire logo o seu traseiro daí e pergunte àquele policial de Nova York, com tanta polidez de quanto for capaz, se vai ficar por aí e se lhe dirá o que fazer até que eu possa chegar. E se não esculhambou demais as coisas até eu chegar, você poderá viver – simplesmente poderá – para receber algum dia sua pensão, seu imbecil."' Agora fique por aqui alguns minutos, filho, e veja se não tenho toda razão.
Pouco depois, o Capitão Sneed saiu da cabana, calçando as luvas. Tinha a face ainda pálida e movia-se como um homem que havia levado uma joelhada na virilha. Aproximou-se deles com um lívido sorriso nos lábios.
– Capitão – disse – não vejo motivo para não cooperar neste assunto.
– Cooperação! – disse inesperadamente o Chefe Forrest. – É isso exatamente que faz o mundo girar.
Lançaram-se ao trabalho e por volta de meia-noite a situação estava sob controle, embora muitos dos homens e equipamentos que haviam requisitado não houvessem chegado ainda. Mas pelo menos haviam elaborado um plano provisório, preenchido os detalhes e o revisado à medida que o desenvolviam.
A primeira providência consistiu em colocar uma patrulha formada de quatro policiais em torno da base da Agulha do Diabo, armando-se sentinelas com carabinas e armas portáteis. As sentinelas davam quatro horas de serviço, com oito de descanso.
Os atiradores de Delaney tomaram posição no pequeno bosque de pinheiros, sentando-se de pernas cruzadas sobre cobertores dobrados. Haviam montado suas lunetas nos fuzis e vestido suéteres, calças, meias, sapatos e jaquetas pretas, além de luvas justas da mesma cor. No serviço, usavam coletes à prova de balas..
Os carros de patrulha foram levados tão perto quanto possível da rocha, utilizando-se seus faróis e holofotes para iluminar a cena. Lanternas portáteis foram colocadas em posição para dissipar as sombras. O Capitão Delaney telefonou para Operações Especiais e requisitou um caminhão-gerador e uma bateria de pesados holofotes, equipados com cabos de tamanho suficiente para que as luzes pudessem ser estendidas em volta de toda a Agulha do Diabo.
O Capitão Wilfred Sneed pedira um rádio receptor-transmissor de campanha; a companhia de energia elétrica local esteve estendendo uma linha temporária. A companhia telefônica ativara linhas extras e instalara telefones para atender à imprensa.
O Major Samuel Barnes não chegara ainda, mas Delaney falou com ele pelo telefone. Barnes era um homem seco e prático. Prometeu reorganizar as escalas de suas patrulhas e enviar mais vinte milicianos de ônibus, com a maior brevidade possível. Estava trabalhando nas barreiras rodoviárias e esperava ter a área de Chilton fechada até o amanhecer.
Ele e Delaney concordaram nuns pontos básicos. Delaney seria o comandante na área, atuando Sneed como substituto. O Major Barnes, porém, seria o comandante nominal quando fosse feita a primeira comunicação à imprensa, chamando o assédio à Agulha do Diabo de "operação conjunta da Polícia do Estado e da Cidade de Nova York." Todas as notas à imprensa teriam que contar com a aprovação de ambos os lados; nenhuma entrevista seria realizada ou concedida sem a presença de representantes de ambos os lados.
Antes de concordar, o Capitão Delaney chamou o Subinspetor Thorsen para explicar-lhe a situação e esboçar os termos do acordo verbal com o Estado. Thorsen disse que telefonaria depois; Delaney desconfiou que ele estava consultando o Vice-Prefeito Alinski. De qualquer modo, Thorsen ligou logo depois e deu autorização.
Pouco do que conseguiram teria sido possível sem a ajuda do Chefe Evelyn Forrest. Lacônico, indobrável, sempre descansado, o homem constituía um verdadeiro milagre de eficiência, zombando e escarnecendo dos executivos das companhias locais de luz e telefone para obrigá-los a "puxar" pelas suas turmas de operários.
Foi Forrest quem convocou uma turma de manutenção rodoviária para abrir as fontes fechadas de água do parque e instalar dois toaletes químicos portáteis. Conseguiu também que a Escola Secundária de Chilton, fechada devido aos feriados, abrisse o ginásio, para servir como dormitório dos policiais designados para a operação na Agulha do Diabo. Catres, colchões, travesseiros e cobertores foram trazidos do Arsenal da Guarda Nacional no município. Forrest lembrou-se mesmo de alertar a unidade de defesa civil de Chilton, que forneceu um caminhão equipado com lados que se dobravam para baixo e formavam balcões. Ele servia café e roscas no parque durante vinte e quatro horas por dia, com pessoal voluntário encarregado do serviço.
O Chefe Forrest ofereceu ao Capitão Delaney a hospitalidade de sua casa. O capitão optou por um catre da Guarda Nacional, instalado na cabana do porteiro do parque. Mas, como a noite esfriou inesperadamente, aceitou o casaco que lhe foi fornecido pelo chefe. Que traje aquele! Feito de tweed, era forrado de pele de guaxinim, com uma larga gola de pele de esquilo. Chegava até os tornozelos de Delaney e, as mangas, até os joelhos. O peso do casaco encurvava-lhe os ombros, mas era inegavelmente quente.
– O casaco de meu pai – disse orgulhoso o Chefe Forrest. – Feito na Filadélfia em 1901. Hoje não se encontra mais um casaco desses.
Trabalharam todos duramente e Delaney riu certo momento, temeroso, quando pensou que papel de palhaço fariam se verificassem que, de alguma maneira, Daniel G. Blank havia descido de seu poleiro e escapado para dentro da noite. Mas afastou o pensamento.
Pouco depois do anoitecer, iniciaram apelos ao fugitivo, por meio de alto-falantes, repetidos de hora em hora.
– Daniel Blank, aqui é a Polícia. Você está cercado e não tem possibilidade de fugir. Desça e não será molestado. Você terá julgamento justo, e será representado por um advogado. Desça agora e evite um bocado de problemas. Daniel Blank, não será molestado se descer agora. Você não tem possibilidades de escapar.
– Acha que vai dar resultado? – perguntou Forrest a Delaney.
– Não.
– Bem – suspirou o chefe – pelo menos atrapalhará o sono dele.
Por volta de 11:30, Delaney sentiu-se esgotado e embrutecido. Nada mais queria do que banho quente e oito horas de sono. Apesar disso, quando se deitou no catre, inteiramente vestido, apenas para repousar por alguns momentos, não conseguiu fechar os olhos. Permaneceu tenso e acordado, com a mente em turbilhão e os nervos esticados. Ergueu-se. Vestiu o maravilhoso casaco e saiu para o terraço.
Havia muita gente ainda por ali – detetives e milicianos, pessoal de manutenção das companhias de energia elétrica e telefônica, turmas de conservação rodoviária, repórteres, e técnicos de televisão. Delaney encostou-se ao corrimão e observou que todos eles, mais cedo ou mais tarde, olhavam para trás com ar culpado, preocupados em ver se alguém lhes havia notado a saída. Sabia o que eles estavam fazendo: iam à Agulha do Diabo olhar para cima e maravilhar-se.
Fez a mesma coisa, arrastado contra a vontade. Foi até os afloramentos rochosos e, em seguida, recuou para a sombra de um gigantesco e desfolhado bordo. Dali via os guardas fazendo as rondas circulares, o atirador perito sentado pacientemente sobre o cobertor com o fuzil aninhado em um braço. E aquelas pessoas que haviam vindo para olhar, com as cabeças para trás e as bocas abertas, olhos virados para cima.
E havia o maciço fracamente iluminado da Agulha do Diabo erguendo-se na noite como uma aparição cortada por veias. O Capitão Delaney, igualmente, ergueu a cabeça, abriu a boca, e olhou para cima. Bem alto sobre a pedra, obscuramente, distinguiu as estrelas em uma abóbada negra que existiria para todo o sempre.
Sentiu vertigem, não tanto corporal como espiritual. Nunca estivera tão inseguro de si mesmo. A vida lhe parecia estonteante e sem finalidade. Desmoronava-se tudo. A esposa estava morrendo e a Agulha do Diabo desmoronava. Mônica Gilbert odiava-o e aquele homem lá em cima, aquele homem... Ele sabia de tudo. Sim, pensou o Capitão Edward X. Delaney, aquele homem sabia de tudo, ou dirigia-se para a totalidade, transbordante de finalidade e deleite.
Tornou-se consciente de alguém ao lado. Ouviu então as palavras:
– ... logo que pude – disse Thomas Handry. – Obrigado pelo aviso. Fiz uma reportagem com os dados básicos e vim para cá. Estou hospedado em um motel um pouco ao norte de Chilton.
Delaney assentiu.
– Está se sentindo bem, capitão?
– Sim, estou muito bem.
Handry voltou-se para olhar a Agulha do Diabo. Como os demais, lançou a cabeça para trás, abriu a boca e rolou os olhos.
Inesperadamente, ouviram o trovejar do alto-falante. Era meia-noite.
O som morreu. Os vigilantes forçaram a vista, olhando para cima. Não notaram movimento algum no cume da Agulha do Diabo.
– Ele não vai descer, vai, capitão? – perguntou baixinho Handry.
– Não – respondeu pensativo o Capitão Delaney. – Não vai descer.

 

6

Acordou, naquela primeira manhã na Agulha do Diabo, e pareceu-lhe que estivera sonhando. Lembrou-se de uma voz chamando: "Daniel Blank... Daniel Blank..." Poderia ter sido sua mãe porque ela sempre o chamava pelo nome completo: "Daniel Blank, fez seus deveres de casa? Daniel Blank, quero que vá ao armazém. Daniel Blank, lavou as mãos?" Era estranho, compreendeu pela primeira vez – ela nunca o chamara de Daniel, Dan, ou meu filho.
Olhou o relógio. Marcava 11:43. Mas isso era absurdo, sabia, o sol começava a despontar naquele momento. Olhou com mais atenção e notou que havia parado o ponteiro dos segundos; esquecera de dar corda. Bem, poderia fazê-lo naquele momento, acertá-lo aproximadamente, mas o tempo, na realidade, não importava. Puxou a pulseira de ouro e jogou o relógio pela borda do penhasco.
Procurou na mochila. Ao descobrir que havia esquecido de trazer sanduíches e uma garrafa térmica não se sentiu perturbado. Não era importante.
Dormira inteiramente vestido, com os grampos de segurança sob as costelas e os cravos enfiados na rocha para não rolar da Agulha do Diabo durante o sono. Naquele momento, levantou-se cambaleante, sentindo rigidez nos ombros e quadris. Postou-se no centro do pequeno platô de pedra, de onde não podia ser visto do solo. Fez exercícios de estiramento, curvando-se para os lados a partir da cintura com as mãos nos quadris; em seguida, curvaturas para a frente, com os joelhos juntos, colocando as palmas das mãos na pedra fria e, finalmente, corrida estacionária, enquanto marcava tempo até cinco minutos.
Arquejava ao terminar e lhe tremiam os joelhos; não estava realmente em bom estado físico, reconheceu, e resolveu fazer pelo menos uma hora por dia de exercícios de estiramento e respiração profunda. Mas nesse momento ouviu seu nome ser chamado mais uma vez. Deitado sobre o estômago, aproximou-se cautelosamente da borda da Agulha do Diabo.
Sim, pediam-lhe que descesse, prometendo-lhe que não seria molestado. Não estava interessado nisso, mas surpreendeu-o o número de homens e veículos aglomerados ali embaixo. O trecho cercado de areia batida em volta da cabana do porteiro estava congestionado e todo mundo parecia ocupado com alguma coisa. Olhando diretamente para baixo, viu homens armados andando em volta da rocha, mas se eles protegiam os demais contra ele ou ele contra os demais, não sabia nem se importava.
Sentiu necessidade de urinar e urinou deitado de lado, fazendo-o de modo que o jato passasse por sobre a borda da rocha. Não foi muito e pareceu-lhe que a urina tinha uma brancura leitosa, e não absolutamente dourada. Havia um peso de coisa bloqueada em seus intestinos, mas as dificuldades de defecar ali, do que fazer com as fezes, como se limpar, eram de tal ordem que resistiu à vontade, e rolou de volta ao centro da pedra, deitou-se de costas e olhou para o sol que nascia.
Em ocasião alguma havia debatido consigo mesmo e chegado à decisão consciente de ir para ali, de morrer ali em cima. Fora algo que sua mente instintivamente aprendera e aceitara. Não foi levado por compulsão; naquele mesmo instante poderia descer, se quisesse. Mas não queria. Estava contente em ficar ali num estado de tranqüilidade quase sonolenta. E estava seguro; isso era importante. Possuía o machado de gelo e podia facilmente esmigalhar o crânio de qualquer montanhista que viesse à sua procura. Mas, e se algum deles subisse à noite, em silêncio, para matar Daniel G. Blank enquanto ele dormia?
Não achava provável que pessoa alguma tentasse uma escalada noturna, mas, para dificultar as coisas, apanhou o machado de gelo e, usando-o como martelo, arrancou os dois grampos que auxiliavam o rastejo final a partir da chaminé para o cume da Agulha do Diabo. A tarefa tomou-lhe longo tempo e foi obrigado a descansar por algum tempo depois de soltar os grampos. Lançou-os rasteiros pela pedra e observou-os desaparecer, caindo pela borda.
Chamavam-lhe novamente o nome em um grande trovejar metálico: "Daniel Blank... Daniel Blank..." Desejou que não continuassem a chamá-lo. Durante um momento pensou em berrar e dizer-lhes que acabassem com aquilo. Mas provavelmente não o fariam. O problema era que o som lhe perturbava as divagações, interferindo em seu isolamento. Estava apreciando a solidão, mas ela devia ser um isolamento silencioso.
Rolou sobre a face, que se aquecia naquele instante, à medida que subia o sol aquoso. Sob os olhos, bem perto, notou a rocha, a sua textura. Em todos seus anos de escaladas e formação de coleção de pedras, nunca olhara para uma rocha daquela maneira, vendo por baixo do gasto brilho superficial, penetrando até o profundo-coração. Percebeu então o que era a pedra, o seu próprio corpo, as árvores despidas pelo inverno e o sol vidrado: infinitos milhões de fragmentos multicoloridos, em movimentos ao acaso, uma dança selvagem que continuava interminavelmente ao ritmo de alguma canção silenciosa.
Pensou durante um momento que esses fragmentos poderiam ser semelhantes aos "fragmentos" armazenados por um computador, recuperados quando necessários para formar um padrão, solucionar um problema, produzir uma resposta significativa. Mas isso lhe pareceu uma solução fácil demais, pois, se existisse um computador cósmico, quem o teria programado, quem lhe proporia as perguntas e exigiria as respostas? Que respostas? Que questões?
Cochilou durante algum tempo e acordou com o eco da voz metálica, "Daniel Blank. . . Daniel Blank...", e foi forçado a lembrar-se de quem era. Célia encontrara sua certeza – qualquer que fosse ela – e achava que todas as pessoas no mundo procuravam a sua. Talvez a encontrassem ou, desapontadas, se contentassem com algo menos. Mas o importante, o importante mesmo era... O que era importante? A verdade estivera ali, estivera pensando nela, e ela havia desaparecido.
Sentiu uma súbita contração nos intestinos, e uma dor aguda fê-lo sentar-se espigado, arquejante e amedrontado. Massageou suavemente o abdômen. Finalmente a dor desapareceu, deixando um peso quase sufocante. Havia alguma coisa ali, algo nele... Dormiu finalmente ouvindo a voz fantasmagórica, chamando "Daniel Blank... Daniel Blank..." Poderia ser imaginação sua, reconhecia, mas pareceu-lhe que a voz se tornara mais aguda, possuía um timbre quase feminino, demorava-se carinhosamente sobre as sílabas de seu nome. Chamava-o alguém que o amava.
Seria aquele o segundo ou o terceiro dia? Bem... isso não importava. De qualquer modo, um helicóptero apareceu, mergulhou, descreveu um círculo em volta de seu castelo, inclinou-se para um lado. Estivera sentado com os joelhos recolhidos e a cabeça entre os braços cruzados. Erguera a cabeça para olhá-lo. Pensou que poderiam atirar nele ou jogar-lhe uma bomba. Esperou paciente, sonhando. Mas o aparelho simplesmente fez um círculo, baixou, três ou quatro vezes; viu rostos pálidos nas janelas, olhando-o. Baixou novamente a cabeça.
O helicóptero voltava todos os dias, tentou não lhe dar atenção, mas irritava-o a vibração pesada do motor. Era um ruído suficientemente lento para possuir um ritmo discernível, uma pulsação no céu. Certa ocasião, o aparelho baixou tanto que a corrente descendente levou o gorro tricotado que deixara em cima da pedra. O gorro saiu voando pelo espaço e caiu finalmente nos galhos altos das árvores desfolhadas pelo inverno. Observou-o cair.
Certa manhã – quando fora aquilo? – teve certeza de que iria defecar e que não podia controlar-se. Mexeu no cinto com dedos fracos, desafivelou-o e baixou as calças, mas não conseguiu tirar a tempo a calcinha florida, o biquíni, e teve que evacuar. Foi doloroso. Mais tarde, puxou a calcinha pelos pés – teve de tirar primeiro as botas – e sacudiu as fezes.
Olhou-as curioso. Eram pequenas bolas pretas, duras e redondas como bolinhas de gude. Deu-lhes um piparote, em uma depois da outra, com o indicador; elas rolaram pela pedra e caíram pela borda. Sabia que não tinha mais forças para vestir-se, mas podia tirar ainda as meias, o paletó e a camisa. Ficou nu, expondo o corpo encolhido ao pálido sol.
Não sentia mais sede, não sentia mais sede alguma. Mais espantoso ainda, o frio não o incomodava, saturando-o, em vez disso, um calor preguiçoso que lhe provocava formigamento nos membros. Estava, sabia, dormindo cada vez mais até que, no quarto dia – ou talvez fosse no quinto – não distinguiu mais o sono como estado separado. O sono e a vigília tornaram-se tão tênues que não eram mais óleo e água, mas um único fluido, cinzento e insípido, que subia e descia.
Passaram-se os dias, pensou, como passaram as noites. Mas não sabia quando terminava um e começava outro. Dias e noites, apagados todos os limites, tornaram-se partes daquela maré cinzenta, insípida, quente, leitosa às vezes, inodora naquela ocasião. Era um grande e plácido mar, infindável; sentiu vontade de ter de volta a sua força para levantar-se e ver mais uma vez aquele rio prateado que fluía para toda parte.
Mas não podia pôr-se de pé, nem mesmo fazer o esforço de enxugar o líquido fino e viscoso que lhe corria dos olhos, do nariz e da boca. Quando passava a mão sobre si mesmo, sentia secos os bicos dos peitos, juntas encalombadas, rugas, dobras na pele rangente. A dor desaparecera: a vontade estava desaparecendo. Mas dominou-a ainda durante algum tempo para pensar um pouco mais, com o cérebro lento e embotado.
"Daniel Blank. . . Daniel Blank..." chamou sedutoramente a voz. Ele sabia quem chamava.
No segundo dia, um jornal de Nova York alugou um helicóptero comercial; o aparelho sobrevoou a Agulha do Diabo e os repórteres tiraram fotografias de Daniel Blank sentado sobre a pedra, com os joelhos recolhidos. A foto, publicada na primeira página do jornal, mostrava-o com a cabeça erguida e a face pálida virada para o aparelho.
Delaney ficou aborrecido por não haver pensado antes em reconhecimento aéreo e, após consulta com o Major Samuel Barnes, proibiu todos os vôos comerciais sobre a Agulha do Diabo. O motivo dado à imprensa foi que a aproximação de um avião leve ou de um helicóptero poderia levar Blank a dar um mergulho suicida, ou a corrente descendente provocada pelo helicóptero poderia lançá-lo pela borda do penhasco.
Na verdade, o Capitão Delaney ficou aliviado com a publicação da fotografia famosa; Danny Boy estava lá em cima, quanto a isso não havia dúvida. Ao mesmo tempo, com a cooperação de Barnes, iniciou um programa de três vôos diários sobre o local com um helicóptero da Polícia Estadual de Nova York. Eram tiradas fotografias aéreas, ampliadas muitas vezes e analisadas por peritos da Força Aérea. Não foram encontrados sinais de alimentos ou bebidas. À medida que os dias transcorriam lentamente e Blank passava mais e mais tempo deitado de costas, olhando para o céu, tornou-se óbvia sua deterioração física.
Delaney participou do primeiro vôo, indo de carro para o norte em companhia do Chefe Forrest e do Capitão Sneed para se encontrarem com Barnes em uma base da Força Aérea, situada nas proximidades de Newburgh. Foi o seu primeiro encontro com Sam Barnes. O major lembrava a própria voz: duro, seco, mordaz. As maneiras eram frias e distantes e os gestos rápidos e curtos. Não perdeu tempo em formalidades e mandou que entrassem no helicóptero à espera.
No vôo para o sul só falou com Delaney. O capitão soube que o oficial estadual havia consultado o legista de seu departamento e sabia o que Delaney já sabia: sem alimentos ou líquidos Blank viveria cerca de dez dias, com uma folga de um ou dois para mais ou para menos. Tudo dependia de seu estado físico antes da subida e da natureza e extensão de sua exposição aos elementos. O major, como Delaney, acompanhava diariamente as previsões do tempo a longo prazo. De modo geral, esperava-se que o tempo bom continuasse, com temperaturas gradualmente mais baixas. Mas havia uma frente de alta pressão em formação ao noroeste do Canadá que precisava ser observada.
Discutiam opções quando o aparelho chegou à vista da Agulha do Diabo e inclinou-se para circular, em altitude mais baixa. Morreu a conversação; pelas janelas olharam para a rocha. A cabina esfriou subitamente quando um tripulante abriu a larga porta de carga e um fotógrafo da Polícia pôs em posição a sua câmara de lentes de longa distância.
A primeira reação do Capitão Delaney foi de choque ao ver o pequeno tamanho do refúgio de Daniel Blank. O Chefe Forrest dissera que tinha "o tamanho de um lençol de casal", mas visto do ar, era difícil compreender como Blank poderia sobreviver lá uma única hora sem rolar ou tropeçar na borda do penhasco.
Enquanto o helicóptero fazia círculos mais baixos, e o fotógrafo ocupava-se com a câmara, Delaney sentiu uma sensação de pavor. Olhando para os demais oficiais, desconfiou que experimentavam a mesma emoção. Daquela altitude, vendo Blank em seu poleiro de pedra e, embaixo, as faces brancas e viradas para cima dos homens que cercavam a Agulha do Diabo, o capitão sentiu um amedrontado espanto ante o austero isolamento daquele homem, e não conseguiu compreender como suportava aquilo.
Não era apenas a perigosa altura em que ele procurara refúgio, colocando-se no alto de um pilar que arremetia para o céu, mas, sim, a solidão absoluta daquele homem, isolando-se deliberadamente da vida e dos vivos. Blank parecia não estar sobre a pedra, mas flutuar de alguma maneira no ar, sem âncora, sem rumo.
Somente algumas vezes na vida Delaney experimentara o sentimento que o assaltou naquele momento. Uma vez, quando entrou naquele campo de concentração e viu os mortos-vivos. Outra, quando tomara suavemente uma faca de cozinha dos dedos moles de um homem, encharcado de sangue, que acabara de assassinar a mãe, a esposa, os três filhos, e que chamara em seguida a Polícia. A última vez ocorrera quando ajudara a dominar uma louca que tentava esmagar a cabeça contra uma parede. E naquele momento, Blank...
Era a loucura o que apavorava, a falta de um apoio, a flutuação. Era um terror primitivo que calava fundo, mergulhava em algo disfarçado pela civilização e pela cultura. Desnudava milhões de anos e dizia: "Olhe." Eram as trevas.
Mais tarde, ao lhe serem entregues cópias das fotografias aéreas, juntamente com curtas análises dos peritos da Força Aérea, apanhou uma delas e prendeu-a com um percevejo à parede externa da cabana do porteiro. Não o surpreendeu a atenção despertada pela foto, tendo desconfiado que os policiais compartilhavam de sua própria incerteza de que a presa estivesse realmente ali em cima, que um homem deliberadamente buscasse e aceitasse aquele tipo de imolação.
Notou também outras características estranhas nos homens de serviço: mostravam-se inexplicavelmente quietos, sem coisa alguma das conversações em voz alta, as bravatas e as brincadeiras que geralmente acompanhavam missões desse tipo. E não tinham pressa, quando substituídos, de voltar ao quente dormitório no ginásio da escola secundária. Invariavelmente, hesitavam e iam mais uma vez à base da Agulha do Diabo olhar, boquiabertos, para o homem oculto que ali se estirava em solidão.
Discutiu o assunto com Thomas Handry. O repórter fora até as barreiras na estrada para entrevistar algumas pessoas que estavam sendo mandadas de volta pelos milicianos.
– O senhor não acreditaria – disse Handry, sacudindo a cabeça. – São centenas e centenas de carros. De todo o país. Falei com uma família de Ohio, perguntei-lhes por que tinham vindo de tão longe e o que esperavam ver.
– O que foi que responderam?
– O homem disse que tinha uma semana de folga, que o tempo não era suficiente para ir até o Disneyworld e que resolvera trazer as crianças até ali.
As forças de vigilância estavam organizadas: turmas regulares, com escalas de serviço mimeografadas diariamente. Havia gente suficiente para cobrir todos os postos durante as vinte e quatro horas do dia, grandes holofotes e um caminhão-gerador, trazido de Nova York. A Agulha do Diabo era banhada de luz durante dia e noite.
O Capitão Delaney contava agora na cabana com um fogão a gás propano e um poderoso rádio, que fora instalado no balcão do porteiro. Os operadores tinham pouco a fazer e, assim, para matar o tempo, haviam instalado um alto-falante, um sincronizador e um gravador de fita que, de hora em hora, transmitia automaticamente a mensagem: "Daniel Blank... Daniel Blank... desça... desça..." Não deu resultado. Mas ninguém esperava que desse.
Todas as manhãs, o Chefe Forrest trazia sacos de correspondência, recebida nos Correios de Chilton. O Capitão Delaney passava horas lendo as cartas. Algumas continham dinheiro, enviado a Daniel Blank por motivos que não conseguiu compreender. Blank recebeu também um número surpreendentemente grande de propostas de casamento de mulheres, algumas incluindo fotos, nuas em pêlo. Mas a maioria das cartas continha sugestões sobre a maneira de agarrar Daniel Blank. Arranjem quatro helicópteros, cada um deles prendendo um canto de uma pesada rede de carga, e lancem-na sobre o cume da Agulha do Diabo. Convoquem um grupo de "pessoas sinceramente religiosas" e deixem-nas rezar para que ele desça. Instalem um gigantesco ventilador e soprem-no de cima da pedra. A maioria propunha uma solução que as autoridades já haviam rejeitado: enviar um avião de caça ou um helicóptero para matá-lo. Uma sugestão deixou-o intrigado: o lançamento de granadas de gás sobre o cume da Agulha do Diabo. Quando Daniel Blank ficasse inconsciente, enviariam um montanhista munido de máscara contra gases para trazê-lo de volta.
O Capitão Delaney saiu naquela noite dizendo a si mesmo que queria discutir a proposta da granada de gás com um dos atiradores. Desceu a gasta trilha em direção à Agulha do Diabo e virou para o posto do atirador. Os três pálidos indivíduos haviam melhorado as instalações. Tinham levado para lá uma mesinha de piquenique, com bancos presos à mesa, e conseguiram três sacos de aniagem, que haviam enchido de terra – o Chefe Forrest havia-os auxiliado naquilo, pensou Delaney – que usavam como suporte dos fuzis. O atirador sentava-se ali, protegido do vento por oleados de lona amarrados às árvores próximas.
O atirador de serviço ergueu a vista ao notar a aproximação do capitão.
– Boa noite, capitão.
– Boa noite. Como está indo a coisa?
– Tranqüila.
Delaney sabia que os três atiradores não mantinham grandes relações sociais com os demais policiais. Eram párias, mais ou menos como se fossem carrascos ou verdugos, mas, aparentemente, isso não os afetava, se é que notavam o fato. Todos os três eram altos, magros, dois de Kentucky e um da Carolina do Norte. Se Delaney sentia-se contrafeito ali, isso se devia ao laconismo deles e não à profissão que haviam escolhido.
– Feliz Ano-Novo – disse inesperadamente o atirador.
Delaney olhou-o fixamente.
– Meu Deus, é mesmo o dia?
– Hummm, humm. Véspera do Ano-Novo.
– Bem! . . Feliz Ano-Novo para você. Esqueci-me inteiramente do dia.
O homem ficou calado. O capitão olhou para o fuzil, equipado com luneta, apoiado sobre os sacos de areia.
– Springfield Zero-Três – disse. –Não vejo há anos um fuzil desses.
–Comprei-o dos excedentes do Exército – disse o homem, sem tirar por um momento os olhos da Agulha do Diabo.
– Exato – disse o capitão. – Da mesma forma que comprei meu Colt quarenta e cinco.
O homem emitiu um som. O capitão teve a esperança de que fosse uma risada.
– Escute aqui – disse Delaney – recebemos uma sugestão, pelo correio. Acha que há possibilidade de jogar uma granada de gás lá em cima?
O atirador ergueu os olhos para o cume da Agulha do Diabo:
– Fuzil ou morteiro?
– Um ou outro.
– Morteiro, não. Fuzil, talvez. Mas a granada não ficaria lá. Deslizaria ou ele a lançaria fora com um pontapé.
– Acho que sim – suspirou o Capitão Delaney. – Poderíamos evacuar a área e saturá-lo com o gás, mas o vento por aqui é forte demais.
– Hummm, hummm.
O capitão afastou-se em passos lentos e somente uma vez olhou para aquela catedral de pedra. Estaria ele realmente lá em cima? Vira as fotos do dia – mas podia confiar nelas? Voltou-lhe a inquietação.
Regressou à cabana e encontrou um pesado envelope cheio de relatórios que um policial de serviço trouxera de Chilton e deixara ali. Haviam sido enviados pelo Sargento MacDonald e eram cópias de todos os depoimentos e declarações das pessoas detidas durante a investigação, que ainda continuava. Delaney foi até o caminhão coberto pelo toldo, apanhou uma xícara de papel de café e levou-a à cabana. Sentou-se à improvisada escrivaninha, puxou para perto uma vela, colocou os pesados óculos e começou a ler lentamente os relatórios.
Isto porque, pensou irritado, se não havia explicação para aquilo, não havia explicação para coisa alguma.
O relógio marcava quase duas horas da manhã quando vestiu, mais uma vez, aquele casaco maluco e saiu novamente. O terreno cercado em volta da cabana estava feericamente iluminado. O mesmo acontecia com a trilha de terra batida ao longo das árvores negras e também com a coluna nua da Agulha do Diabo. Como sempre, havia homens acordados por ali, as cabeças lançadas para trás, de bocas abertas e olhos voltados para cima. Sem sentir a menor vergonha, o Capitão Delaney fez a mesma coisa.
Abriu-se à noite picante, ao vento suavemente murmurante, às estrelas que pareciam buracos abertos numa negra cortina, além da qual luzia uma ofuscante radiação. O eixo da Agulha do Diabo subia para o céu banhado de luz, amortecidos seus contornos pelo brilho. Estaria ele lá em cima? Estaria ele, realmente, lá?
Sentiu tal compaixão que foi obrigado a fechar a boca e morder o lábio inferior para não uivar em voz alta. Sem esforço de sua parte, mesmo contra sua vontade, compartilhou da emoção daquele homem, penetrou nele, sentiu-lhe o sofrimento. Era um laço que repelia, mas não podia negá-lo. O crime, o motivo, a razão – tudo aquilo parecia-lhe, naquele momento, destituído de importância. O que o torturava era aquele homem solitário, à deriva. Perguntou-se se era por esse motivo que pessoas se reuniam ali durante todas as horas do dia e da noite. Seria para consolar o aflito da melhor maneira que conheciam?
Alguns dias depois – haviam sido três dias? Poderiam ter sido quatro – em fins da tarde, foi-lhe entregue o envelope diário das fotografias aéreas. Daniel G. Blank era visto nu sobre a rocha, com os braços e mãos abertos, olhando para o céu. O capitão tomou uma longa e profunda respiração e desviou a vista. Sem olhá-las novamente, recolocou as fotografias no envelope. Não pregou nenhuma delas na parte externa da cabana.
Pouco depois, recebeu um telefonema do Major Barnes.
– Delaney?
– Sim?
– Falando Barnes. Viu as fotos?
– Vi.
– Acho que ele não vai durar muito mais.
– Não. Quer subir?
– Não. Faremos outra verificação pelo ar dentro de um ou dois dias. A temperatura está caindo.
– Eu sei.
– Não há pressa. Estamos conseguindo boa publicidade. Aqueles apelos no alto-falante estão contribuindo para isso. Todo mundo está dizendo que estamos fazendo o que é possível.
– Sim, tudo o que podemos.
– Claro. Mas o tempo está piorando. Há uma frente a caminho, vinda dos Grandes Lagos. Nuvens baixas, ventos e neve. Ponto de Congelamento. Se ficarmos ilhados, daremos a impressão de bobos. Sugiro o dia seis de janeiro. Pela manhã. Aconteça o acontecer. O que é que acha?
– Está bem comigo. Quanto mais cedo, melhor. Como é que pretende fazê-lo: escalada ou helicóptero?
– Helicóptero. Concorda?
– Sim. Será a melhor coisa.
– Muito bem. Vou começar o planejamento. Irei aí amanhã e conversaremos sobre o assunto. Merda, ele provavelmente já está morto.
– Sim – concordou o Capitão Delaney. – Provavelmente.
O mundo havia-se transformado em uma canção para Daniel Blank. Uma canção. Caaaanção... Tudo cantava. Não em palavras, nem mesmo em música. Era um zumbido interminável que lhe enchia os ouvidos, vibrava tão profundamente nele que células e partículas de células agitavam-se com aquele agradável ronronar.
Não sentia sede, nem fome e, melhor que tudo, nenhuma dor, nenhuma dor, absolutamente. Sentiu-se grato por isso. Olhou para o céu leitoso com olhos embaciados, quase fechados pelas pálpebras secas. A brancura e o zumbido mudo transformaram-se em uma única realidade: uma grande unidade que persistia para todo o sempre, estirava-o com um conteúdo de sonho. Estava feliz porque não berravam mais seu nome, feliz porque não via o helicóptero inclinando-se e descrevendo círculos em torno da rocha. Mas talvez houvesse imaginado essas coisas; havia imaginado tantas coisas: Célia Montfort esteve ali uma vez, usando uma máscara africana. Numa ocasião, falou com Tony. Em outra, viu uma forma maciça, encurvada, afastando-se pesadamente dele, diminuindo de tamanho. Em outra ocasião, abraçou um homem em uma dança em câmara lenta que se desfez em brancura leitosa antes que o machado de gelo o atingisse, embora ele o visse erguido no ar. Mas mesmo essas visões, todas elas desapareceram; sobrou apenas uma tela vazia. Ocasionalmente, discos, mais brancos do que o branco, apareciam flutuando e afastavam-se, desaparecendo. Eram belos de olhar, mas ficou satisfeito quando foram embora.
Apreendia lentamente cada vez menos a realidade, mas antes que a fraqueza lhe dominasse por completo a mente, sentiu a sua percepção expandindo-se no exato momento em que os sentidos desapareciam. Pareceu-lhe que passara por um mundo de sensação sabor-tato-olfato-audição e que havia emergido nessa suave pureza, ouvindo um som celestial, em um mundo em que tudo era verdade e coisa alguma era mentira.
Havia, reconheceu naquele momento, grato e deliciado, uma lógica na vida e essa lógica era bela. Não era a ordem lógica do computador, mas a lógica imprevisível do nascimento, vida e morte. Era a mortalidade de um e a imortalidade de todos. Eram todas as coisas, animadas e inanimadas, fundidas, juntas, em uma sussurrante brancura.
Constituía um êxtase conhecer a unicidade, compreender finalmente que era parte do lodo e parte das estrelas. Não havia Daniel Blank nem Agulha do Diabo, nem nunca haviam tido existência. Havia apenas um fluxo contínuo de vida em que os homens, as pedras, o lodo e as estrelas pareciam sementes, cresciam durante um momento, e eram recolhidas mais uma vez naquele todo imemorial, começando e terminando, interminavelmente.
Ficou triste por não poder transmitir essa compreensão final aos demais, descrever-lhes a sublime majestade da certeza que encontrara: um universo de acidentes e possibilidades onde uma gota de água não é menor do que a luz e uma paixão não é maior do que um grão de areia. Todas as coisas são nada, mas todas são tudo. No delírio, podia abraçar o paradoxo com o coração, prendê-lo junto a si, saber que era a verdade.
Sentia a vida esvaindo-se – sentia-a! Fluía suavemente dele, não mais do que um vapor invisível a subir da carne torturada, transformando-se, mais uma vez, em parte da unicidade de onde viera. Morria lentamente, cheio de amor, pois estava transmudando-se em outra forma; o processo era tão suave que se espantou, lembrando-se que o homem chorava e lutava.
Os discos de branco sobre branco apareceram novamente e passaram ante sua visão. Pensou vagamente que havia umidade em seu rosto, uma comichão momentânea; perguntou-se se acaso não chorava de alegria.
Era apenas neve, mas não sabia. A neve cobriu-o, aos poucos, amaciando a pele áspera, enchendo as depressões fundas do corpo, escondendo as juntas inchadas e os olhos imóveis.
Antes que a neve deixasse de cair, ele transformou-se em um montículo ternamente esculpido no cume da Agulha do Diabo. Sua mortalha era branca e não tinha manchas.
Tarde da noite, em 5 de janeiro, o Capitão Delaney teve uma reunião com o Major Samuel Barnes, o Chefe Forrest, o Capitão Sneed, a tripulação do helicóptero do Estado e o operador-chefe do rádio. Reuniram-se na cabana do porteiro do parque; um guarda uniformizado foi colocado à porta para afastar os repórteres curiosos.
O Major Barnes havia preparado um plano, do qual distribuiu cópias. – Antes de entrarmos no assunto – disse rapidamente – o último boletim de previsão do tempo é o seguinte: neve a partir de meia-noite, diminuindo ao amanhecer. Acúmulo total de três centímetros e meio a cinco. Temperatura de um a seis graus negativos. Em conseqüência, deveremos ter pela manhã tempo claro, com temperatura subindo para uns seis graus. Mais ou menos ao meio-dia, com uma folga talvez de uma hora, barômetro em queda, temperatura caindo, neve com chuva, granizo e ventos de vinte e cinco nós, subindo para rajadas de cinqüenta.
– Belo – disse um dos pilotos. – Adoro!
– Neste caso – continuou Barnes, ignorante à interrupção – teremos de cinco a seis horas para trazê-lo para baixo. Se não o fizermos, o tempo vai nos prender, talvez durante dias. Há uma forte tempestade vindo para esta zona. Muito bem, examinem agora seus horários. Decolamos do campo de Newburgh às nove. Eu irei em um dos helicópteros. O vôo até aqui e o reconhecimento aéreo final deverão ser completados por volta de nove e meia. Desceremos um homem por cabo e arreios às dez horas. Capitão Delaney, o senhor ficará aqui no comando das operações em terra. Esta cabana será a base local, com o código de rádio Chilton Um. O helicóptero será Chilton Dois. O homem que descer será Chilton Três. Compreenderam todos? Sneed, providencie para que o seu legista esteja aqui às nove horas. Forrest, pode trazer uma ambulância local com enfermeira e um saco para um corpo?
– Certamente.
– Acho que Blank está morto ou, pelo menos, inconsciente. Mas se não estiver, o homem que descer pelo cabo irá armado.
O Capitão Delaney ergueu a vista.
– Quem é Chilton Três? – perguntou. – Quem é que vai descer pelo cabo?
A tripulação do helicóptero, composta de três homens, entreolhou-se. Eram todos jovens, usavam jaquetas forradas de lã de ovelha sobre os uniformes marrons e tinham nos pés botas forradas também de lã.
Finalmente, o mais baixo de todos encolheu os ombros:
– Está bem, eu desço – disse, com a face de coelho contorcida em um tenso sorriso. – Sou o mais leve. Eu pegarei o sacana.
– Qual é o seu nome? – perguntou Delaney.
– Farber, Robert H.
– Você ouviu o que o major disse, Farber. Blank está provavelmente morto ou inconsciente. Mas não há garantia disso. Ele já matou cinco pessoas. Se você descer ali e ele fizer algum gesto ameaçador – qualquer gesto – liquide-o.
– Não se preocupe, capitão, se ele chegar mesmo a espirrar, passa a ser um sacana morto.
– O que é que você vai levar?
– O quê? Oh, o senhor se refere a armas? Meu trinta e oito, acho. Coldre na cintura. E eu tenho uma carabina.
O Capitão Delaney olhou diretamente para o Major Barnes.
– Eu me sentiria melhor se ele levasse alguma coisa mais pesada – disse. Voltou-se para Farber. – Sabe manejar uma quarenta e cinco? – perguntou.
– Claro, capitão. Estive com aqueles malditos fuzileiros.
– Pode levar a minha, Bobby – ofereceu-lhe um dos pilotos.
– E uma espingarda, de preferência uma carabina. Carregada com chumbo.
– Não há problema – disse o Major Barnes.
– O senhor pensa realmente que vou precisar de toda essa maldita artilharia? – perguntou Farber ao capitão.
– Não, acho que não – respondeu Delaney. –Mas ele era rápido. Tão rápido que não posso lhe dizer como. Bastante rápido para derrubar um dos meus melhores homens. Mas está lá em cima há uma semana, sem comida e sem água. Se ainda estiver vivo, não será mais rápido. As armas pesadas constituem apenas um seguro. Não hesite em usá-las se for obrigado. É uma ordem, Major Barnes?
– Sim – anuiu Barnes. – É uma ordem.
Discutiram mais alguns detalhes: informações à imprensa, colocação dos fotógrafos e cinegrafistas da televisão, estacionamento da ambulância, e a escolha do pessoal de prontidão quando Blank fosse descido da Agulha do Diabo.
Finalmente, quase à meia-noite, foi dissolvida a reunião. Houve trocas de apertos de mãos e os participantes afastaram-se em silêncio. Na cabana ficaram apenas Delaney e o radioperador. O capitão teve vontade de telefonar para Bárbara, mas achou que era tarde; ela provavelmente estaria dormindo. Queria muito falar com ela.
Passou alguns minutos reunindo o material, colocando os relatórios, os horários e os memorandos em envelopes de papel pardo. Se tudo corresse bem, estaria de volta a Manhattan ao meio-dia, levando para casa seu pequeno grupo de policiais.
Não havia compreendido como estava cansado, como ansiava pela sua própria cama. Parte era cansaço físico: horas demais de pé, músculos castigados, nervos estirados e tensos. Mas sentia também exaustão espiritual. O caso Blank demorara demais e o afetara profundamente.
Naquele momento, na última noite, colocou o casacão forrado de pele e o gorro e dirigiu-se pesadamente para um olhar final à Agulha do Diabo. Fazia mais frio, disso não havia dúvida, e pairava no ar o cheiro de neve. As sentinelas em volta da rocha usavam ponchos de borracha sobre as jaquetas forradas de lã; o atirador aconchegava-se sob um cobertor e somente a ponta brilhante de seu cigarro era vista na sombra negra. O capitão ficou um tanto distante dos poucos curiosos que ainda se encontravam ali, olhando para cima.
O brilhante pilar da Agulha do Diabo erguia-se sobre ele, sondando o céu noturno, parecendo fantasmagórico à luz dos holofotes. Em volta, pensou ter ouvido um vento levemente ululante, não mais alto do que o choro de uma criança, muito longe. Tremeu dentro do casacão: um calafrio de desespero, medo de alguma coisa. Teria sido fácil chorar naquele momento, mas, por que motivo, não teria sabido dizer.
Poderia ser, pensou embotado, desespero pelos seus próprios pecados, pois subitamente teve certeza de que pecara muito e que o pecado fora o orgulho. Era certamente o mais mortal dos pecados; comparado com o orgulho, os outros seis pareciam pouco mais do que excessos físicos. O orgulho, porém, era uma corrupção espiritual e, pior ainda, não tinha limites, podia consumir inteiramente um homem.
No íntimo, sabia que o orgulho não era simplesmente auto-estima, não apenas egoísmo. Conhecia suas deficiências melhor do que ninguém, salvo, talvez, a esposa. O seu orgulho transcendia o auto-respeito complacente consigo mesmo; era arrogância, a presunção de superioridade moral com que encarava fatos, pessoas e, supôs ironicamente, Deus.
Mas, naquele momento, o orgulho estava corroído pela dúvida. Como sempre, havia feito um julgamento moral – seria isso imperdoável em um policial? – e levara Daniel G. Blank àquela solitária morte em cima de uma fria rocha. Mas o que mais poderia ter ele feito?
Houvera, reconhecia com tristeza, diversos outros cursos que podia ter tomado se tivesse havido suavidade humana nele, tolerância pelos demais, mais fracos do que ele, desafiados por forças que não podiam enfrentar ou controlar. Poderia, por exemplo, ter procurado uma confrontação com Daniel Blank depois de ter descoberto a evidência condenatória na busca ilegal. Talvez pudesse ter convencido Blank a confessar: se o houvesse feito, Célia Montfort poderia estar viva naquela noite, e Blank, provavelmente, num asilo. A história que isso revelava poderia ter significado o fim da carreira do Capitão Delaney, supunha, mas isso não lhe parecia mais de suprema importância.
Ou poderia ter admitido a busca ilegal e, pelo menos, tentado obter um mandado de busca. Ou ter desistido inteiramente da missão e deixado o castigo de Blank a um policial mais jovem e menos introspectivo.
"Castigo." Esta era a palavra decisiva. O seu maldito orgulho havia-o levado a proferir um julgamento moral e, tendo-o proferido, teria que ser policial, juiz e júri. Havia bancado Deus; fora até aí aonde a arrogância o levara.
Anos demais como policial. Começava-se nas ruas, resolvendo brigas familiares, um Salomão fardado; terminava-se perseguindo e levando um homem à morte por saber que ele era culpado e querer que ele sofresse pela culpa. Era tudo orgulho, nada mais que orgulho. Não o humano e compreensível orgulho de realizar bem um trabalho difícil, mas uma jactância que levava o indivíduo a julgar, a condenar, e a executar. Quem julgaria, condenaria e executaria o Capitão Edward X. Delaney?
Pareceu-lhe naquele momento que alguma coisa saíra errada em sua vida. Não nascera com ele. Não provinha do gene, da educação e do meio, pelo menos não mais do que a mania homicida de Blank se originara do gene, da educação e do meio. Mas as circunstâncias e o acaso haviam conspirado para aviltá-lo, da mesma forma que Daniel Blank fora pervertido.
Não conhecia todas as coisas e nunca as conheceria. Percebeu isso naquele instante. Havia tendências, correntes, marés, acidentes de tal complexidade que somente o tolo diria: "Eu sou o senhor de meu destino." Vítima, pensou Delaney. Somos todos vítimas, de uma maneira ou de outra.
Mas, surpreendentemente, não achou que esse conceito fosse trágico, nem uma desculpa para comportamento imoral. Recebemos todos nós as cartas ao nascer e jogamos a nossa mão com tanta inteligência de quanto somos capazes, não perdendo tempo em lamentar se recebemos apenas um par em vez de um straight flush. Os melhores jogam uma boa partida com uma mão medíocre – blefando, talvez, quando são obrigados – mas apostam tudo, no fim, nas cartas que têm.
O Capitão Delaney pensou naquele momento que estivera jogando com uma mão medíocre. O seu casamento fora um sucesso e sua carreira também. Mas conhecia seus fracassos... conhecia-os. Em algum local, ao longo do caminho, a humanidade havia fugido dele, secara a compaixão, e murchara a piedade. Não sabia se era tarde demais para transformar-se em homem diferente. Poderia tentar – mas havia circunstâncias e possibilidades a enfrentar e, igualmente difícil, os hábitos e preconceitos de mais anos do que gostava de lembrar.
Incerto, abalado, olhou fixamente para o alto da Agulha do Diabo, o eixo que se desfazia, o mundo que oscilava sob seus passos. Estava preocupado e confuso, sentindo que havia perdido a certeza, que havia abandonado a fé que, certa ou erradamente, o apoiara.
Sentiu algo na face voltada para o alto: uma leve e fria comichão de umidade. Lágrimas? Apenas os primeiros e frágeis flocos de neve. Viu-os contra a luz: um frágil trabalho de renda. Naquele momento, quase ouvindo-a, teve a certeza de que a alma de Daniel Blank havia deixado a carne e que voava para o interior das trevas, levando consigo o orgulho do Capitão Delaney.
Pouco antes do amanhecer, a nevasca dissolveu-se em chuva gelada. Mas a chuva cessou também. Ao sair para o terraço às 8:30 da manhã, notou que todos os trechos pretos estavam cobertos de gelo, faiscando à luz do sol matutino.
Vestia o casacão no momento em que se dirigiu ao caminhão para apanhar uma xícara de café e uma rosca. O ar estava frio, claro, quase insuportavelmente picante – como acontece quando a pessoa aspira éter. Havia no dia uma imobilidade característica, mas, ainda assim, o mundo não estava claro: uma espécie de véu branco descia entre o sol e a terra, filtrando uma luz mortiça.
Voltou à cabana e deu instruções ao radioperador para ligar um microfone auxiliar, um tipo portátil com um fio comprido, de modo que pudesse colocar-se no terraço, ver o cume da Agulha do Diabo sobre os esqueletos das árvores e comunicar-se com Chilton Dois e Chilton Três.
A ambulância rolou lentamente pata o terreno cercado. O Chefe Forrest desceu, arquejante, para dirigir o estacionamento. Uma padiola e um saco corporal foram retirados do seu inferior; os dois atendentes voltaram para o calor da cabina da ambulância fumando cigarros. O Capitão Sneed apareceu com um pelotão de dez milicianos, dirigindo-os e desempenhando seus deveres com a solenidade de um oficial que providencia a defesa de Álamo. Delaney, porém, não interferiu; não fazia a mínima diferença. Finalmente, Forrest e Sneed aproximaram-se para lhe fazer companhia no terraço. Trocaram inclinações de cabeça. Sneed olhou para o relógio.
– Decolagem mais ou menos a esta hora – disse com ares importantes.
O Chefe Forrest foi o primeiro a ouvir o helicóptero.
– Está vindo – disse; levou aos olhos o vetusto binóculo e sondou o céu ao norte. Minutos depois, o Capitão Delaney ouviu o zumbido do helicóptero e, pouco depois, olhando para o local indicado por Forrest, viu-o descendo lentamente, iniciando uma volta inclinada em torno da Agulha do Diabo.
O rádio crepitou.
– Chilton Um, fala aqui Chilton Dois. Está-me ouvindo? – Era a voz seca e rápida do Major Samuel Barnes, parcialmente abafada pela vibração dos rotores no solo.
– Bem e perfeitamente, Chilton Dois – respondeu o radioperador.
– Estamos começando a descer e fazer o reconhecimento. Onde está o Capitão Delaney?
– De prontidão, com um microfone portátil. No terraço. Ele pode ouvi-lo.
– O cume da rocha está coberto de neve. Há um montículo mais alto no meio. Acho que é Blank, Não há movimento. Vamos descer.
Os homens que se encontravam no terraço protegeram os olhos contra o sol e olharam para cima. O helicóptero, uma borboleta ruidosa, desceu em círculos, reduziu a velocidade, deslizando um pouco para o lado, e pairou diretamente sobre a rocha.
– Chilton Um, fala aqui Chilton Dois.
– Estamos ouvindo, Chilton Dois.
– Nenhum sinal de vida. Nenhum sinal de coisa alguma. A corrente descendente que estamos produzindo não está movendo a camada de neve. Ela está provavelmente congelada. Vamos iniciar a descida.
– Entendido.
Observaram o helicóptero, quase imóvel no ar. Viram quando a grande porta de carga foi aberta. Pareceu decorrer um longo tempo antes que uma pequena figura aparecesse à porta aberta e descesse para o espaço, pendurada em um cabo, com arreios em torno do peito e sob os braços. Levava a espingarda na mão direita; a esquerda segurava o rádio, preso ao tórax.
– Chilton Um, aqui Chilton Dois. Chilton Três está descendo agora. Vamos parar a uns dois metros para uma verificação de rádio.
– Chilton Dois, falando Chilton Um. Delaney falando. Podemos vê-lo Algum movimento na parte superior da rocha?
– Nenhum, capitão. Apenas os contornos de um corpo. Ele está sob a neve. Verificação de rádio agora. Chilton Três, falando Chilton Dois: está me ouvindo?
Observaram o homem oscilando no cabo, sob o helicóptero. Balançava-se preguiçosamente, em lentos círculos.
– Chilton Dois, aqui Chilton Três. Estou ouvindo perfeitamente. – A voz de Farber soava arquejante, quase abafada pelo ruído do motor.
– Chilton Três, aqui Chilton Dois. Repito, como está me ouvindo?
– Chilton Dois, eu disse que estava ouvindo bem e perfeitamente.
– Chilton Três, aqui Chilton Dois. Repito, está me ouvindo?
O Capitão Delaney praguejou em voz baixa e levou o microfone para perto dos lábios.
– Chilton Três, aqui Chilton Um. Está me ouvindo?
– Cristo, sim, Chilton Um. Bem e perfeitamente. O que diabo é que está acontecendo? Você não me está ouvindo?
– Bem e perfeitamente, Chilton Três. Voltarei a falar com você. Chilton Dois, aqui Chilton Um.
– Chilton Dois aqui. Barnes falando.
– Delaney aqui. Major, estamos em comunicação com Chilton Três. Ele pode ouvir-nos e vice-versa. Podemos ouvi-lo, mas, aparentemente, o senhor não o está ouvindo.
– Filho da mãe! – disse amargamente Barnes. – Deixe-me tentar outra vez. Chilton Três, aqui Chilton Dois. Está me ouvindo? Acuse.
– Sim, ouço, Chilton Dois, e estou com um frio danado.
– Chilton Dois, aqui Chilton Um. Ouvimos Chilton Três acusar. Ouviu-o?
– Nem uma única palavra – disse sombrio Barnes. – Bem, não há tempo para içá-lo e verificar os malditos rádios. Darei todas as ordens por seu intermédio. Entendido?
– Entendido – repetiu Delaney. – Chilton Três, aqui Chilton Um. Você não está sendo ouvido por Chilton Dois. Mas eles nos recebem. Nós retransmitiremos todas as ordens através de Chilton Um. Entendido?
– Entendido, Chilton Um. Quem é que está falando?
– O Capitão Delaney.
– Capitão, diga-lhes para me descer na maldita pedra. Estou congelando o rabo aqui em cima.
– Chilton Dois, aqui Chilton Um. Desça-o.
Observaram a figura balouçante no cabo. Subitamente, ela desceu quase um metro e parou enquanto Farber oscilava violentamente.
– Diabos! – berrou ele. – Diga-lhes para me descer devagar. Eles quase me arrancaram os malditos braços.
Delaney não se deu ao trabalho de retransmitir aquelas palavras. Observou apenas e, em alguns minutos, o cabo começou a deslizar lenta e suavemente. Farber aproximou-se do topo da Agulha do Diabo.
– Chilton Três, aqui Chilton Um. Algum movimento?
– Não. Nenhum. Apenas neve. Um montículo no meio. A neve acumulou-se em um dos lados. Vou descer. Mais ou menos noventa centímetros. Diga-lhes para soltar devagar o cabo. Devagar com esse maldito guincho, diabos os levem!
– Chilton Dois, aqui Chilton Um. Farber está perto. Devagar com o guincho. Devagar, devagar.
– Entendido, Chilton um. Nós o estamos vendo. Ele está quase chegando. Um pouco mais. Um pouco mais...
– Aqui Chilton Três. Desci. Estou com os pés no chão.
– Quanta neve há por aí?
– Mais ou menos dois e meio a sete centímetros no local. Preciso de mais cabo para soltar estes malditos arreios.
– Chilton Dois, Farber precisa de cabo mais frouxo.
– Entendido.
– Muito bem, Chilton Um. Tirei os arreios. Diga-lhes para tirar esse maldito helicóptero daqui. Eles estão quase me soprando pela borda.
– Chilton Dois, arreios retirados. Pode decolar.
O helicóptero inclinou-se e descreveu um círculo, afastando-se, levando o cabo de arrastão. O cabo começou a contorcer-se em largos anéis em volta da Agulha do Diabo.
– Chilton Três, chegou aí? – perguntou Delaney.
– Estou aqui. Onde é que poderia estar?
– Algum sinal de vida?
– Nenhum. Ele está sob a neve. Espere até que eu tire estes malditos arreios.
– Ele ainda está respirando? Derreteu-se a neve sobre a boca dele? Há algum orifício?
– Não estou vendo coisa alguma. Ele está inteiramente coberto pela maldita neve.
– Tire-a.
– O quê?
– Tire a neve. Tire toda a neve de cima dele.
– Mas com o que, capitão? Eu não estou de luvas.
– Com as mãos... O que é que você está pensando? Use as mãos. Raspe a neve e o gelo.
Ouviram a respiração difícil de Farber, a batida da espingarda sobre a rocha e algumas pragas abafadas.
– Chilton Um, aqui Chilton Dois. O que é que está acontecendo?
– Ele está tirando a neve. Farber? Farber, como está indo a coisa?
– Capitão, ele está nu!
O capitão tomou uma profunda respiração e olhou para Forrest e Sneed. Eles, porém, tinham a vista presa na Agulha do Diabo.
– Sim, está nu – disse ao microfone com tanta paciência de quanto foi capaz. – Você sabia disso. Você viu as fotos. Agora, limpe-o de toda a neve.
– Jesus, ele está frio. E duro! Duro que nem pedra! Deus, ele está branco.
– Limpou-o inteiramente da neve?
– Eu... eu...
– Que diabo está acontecendo de errado aí?
– Acho que vou vomitar.
– Pois vomite, seu cabeça de merda! – rugiu Delaney. – Nunca viu um homem morto?
– Bem... claro, capitão – respondeu hesitante a voz abalada – mas nunca toquei em um deles.
– Pois, toque agora – berrou Delaney. – Ele não vai mordê-lo, pelo amor de Deus. Limpe-lhe em primeiro lugar o rosto.
– Sim. . . o rosto... certo. .. Jesus Cristo.
– Agora, o que foi que houve?
– Os malditos olhos dele estão abertos. Ele está olhando diretamente para mim.
– Seu imbecil! – trovejou Delaney ao microfone. – Quer deixar de se comportar como um molenga idiota e fazer seu trabalho como um homem?
– Chilton Um, aqui Chilton Dois. Barnes aqui. Qual é o problema?
– Farber está fazendo cena – rosnou Delaney. – Não gosta de tocar em cadáver.
– Você precisa ser grosseiro com ele?
– Não, não preciso – respondeu Delaney. – Poderia até cantar canções de ninar para ele. Quer aquele cadáver aqui embaixo ou não?
Silêncio.
– Muito bem – disse finalmente Barnes. – Faça como achar melhor. Quando eu descer, vamos ter uma conversa.
– Em qualquer tempo e em qualquer lugar – retrucou em voz alta Delaney, e notou que Forrest e Sneed olhavam-no fixamente. – Agora, saia de cima de minhas costas e deixe-me falar com aquele bebê. Farber, você está aí? Farber.
– Aqui – respondeu débil a voz.
– Tirou a neve?
– Tirei.
– Ponha os dedos no peito dele. Levemente. Veja se pode distinguir pulsação ou sentir algum sinal de respiração. Bem...?
Após um momento:
– Não, nada, capitão.
– Ponha o rosto junto dos lábios dele.
– O quê?
– Ponha! O Rosto. Junto. Dos. Lábios. Dele. Entendeu?
– Bem... claro. . .
– Verifique se há algum sinal de respiração.
– Jesus...
– Bem?
– Nada. Capitão, este cara está morto, mortinho da silva.
– Muito bem. Ponha os arreios em volta dele, em torno do peito e sob os braços. Certifique-se de que a conexão do gancho aponta para cima.
Esperaram, todos eles, ali no terraço, forçando a vista para ver o que se passava no cume da Agulha do Diabo. O mesmo faziam todos os homens que se encontravam no terreno cercado, sentinelas, atiradores peritos e repórteres. Câmaras fotográficas e de TV apontavam para a rocha. Era notável a falta de ruído, notou Delaney, e quase não havia movimento. Todas as pessoas pareciam estar paralisadas naquele momento, esperando...
– Farber? – chamou Delaney ao microfone. – Farber, está passando os arreios em volta dele?
– Não posso – disse trêmula a voz. – Simplesmente não posso.
– O que é que está errado agora?
– Bem. . . ele está com os braços e as pernas abertas, capitão. Os braços estão estirados para os lados e as pernas bem abertas. Jesus, ele não tem membro nenhum!
– O diabo leve o membro dele! – berrou furioso Delaney. – Esqueça-o. Esqueça os braços. Simplesmente junte-lhe as pernas, passe os arreios por eles e suba-os pelo corpo.
– Não posso – voltou a voz, e notaram nela uma nota de pânico. – Simplesmente não posso.
Delaney tomou uma profunda respiração.
– Escute aqui, seu calhorda de barriga cheia de merda, você se ofereceu para fazer esse trabalho. "Eu trarei aquele sacana", disse. Muito bem, você está aí cm cima. Agora traga o sacana para baixo. Junte os tornozelos dele.
– Capitão ele está frio e duro como uma tábua.
– Oh, não – retrucou o Capitão Edward X. Delaney. – Está frio e duro como uma tábua? Não é uma pena que não estejamos em meados de julho e você possa apanhá-lo com uma pá e um mata-borrão? Você é um policial, não? Para que diabo pensa que lhe pagam? Para limpar o lixo do mundo. . . certo? Agora ouça, seu covardão, comece a trabalhar nessas pernas e junte-as.
Fez-se o silêncio durante alguns momentos. Delaney notou que o Capitão Wilfred Sneed havia-se afastado para a outra extremidade do terraço. Apertava fortemente o corrimão e olhava em direção oposta.
– Capitão? – ouviu-se a voz fraca de Farber.
– Estou aqui. Como é que vai indo com as pernas?
– Não muito bom, capitão. Posso movê-las um pouco, mas acho que ele está colado ao chão. A pele dele está colada à maldita rocha.
– Claro que está – disse Delaney, em voz subitamente suave e encorajadora. – Está congelada e presa à rocha. Naturalmente que ficaria assim. Junte lentamente as pernas dele, filho. Não pense na pele. Mova as pernas para dentro e para fora.
– Bem... muito bem. .. Oh, Deus!
Esperaram. Delaney aproveitou a pausa para tirar o casaco. Olhou em volta e o Chefe Forrest recebeu-o de suas mãos. O capitão descobriu que estava coberto de suor; sentia-o escorrendo pelas costelas.
– Capitão?
– Estou aqui, filho.
– Parte da pele das pernas e da bunda soltou-se. Uns pedaços ficaram colados à maldita rocha.
– Não se preocupe com isso. Ele não está sentindo coisa alguma. Juntou os tornozelos?
– Juntei. Bem juntos. O suficiente para passar os arreios.
– Ótimo, você está se saindo muito bem. Agora mova todo o corpo para a frente e para trás e de um lado para o outro. Balance-o para que o corpo se solte da pedra.
– Oh, Jesus... – arquejou Farber e tiveram certeza de que ele estava chorando naquele momento. Não se olharam.
– Ele está todo enrugado – gemeu Farber. – Todo enrugado e com a barriga inchada.
– Não olhe para ele – aconselhou Delaney. – Simplesmente continue a trabalhar. Continue a movê-lo. Solte-o.
– Sim. Muito bem. Ele está solto agora. Não perdeu muita pele.
– Ótimo. Você está indo magnificamente. Agora, ponha aqueles arreios em volta dele. Pode suspender as pernas?
– Oh, certamente. Ele não pesa nada. É um esqueleto. Os braços estão ainda duros e abertos para os lados.
– Está bem. Não há problema ao particular. Onde estão os arreios?
– Estou passando-os pelo corpo. Espere um minuto. . . Certo. Está em posição. Sob os braços.
– Não há possibilidade de escorregar?
– Nenhuma. Os braços estão absolutamente retos.
– Está pronto para o helicóptero0
– Jesus, sim!
– Chilton Dois, aqui Chilton Um.
– Chilton Dois. Ouvindo bem e perfeitamente. Aqui, Barnes.
– Os arreios foram passados pelo corpo. Pode puxá-lo.
– Entendido. Vamos para lá.
– Farber? Farber, está ainda aí?
– Estou ainda aqui, capitão.
– O helicóptero está se aproximando para o recolhimento do corpo. Faça-me um favor, sim?
– O que é, capitão?
– Procure por aí sob a neve e veja se descobre um machado de gelo. É mais ou menos do tamanho de um martelo, mas tem um longo espigão de um dos lados da cabeça. Eu gostaria de tê-lo.
– Vou procurar por aqui. E faça-me um favor, capitão.
– O que é?
– Depois que o recolherem e depositarem em terra, certifique-se de que me vêm buscar. Não gosto deste maldito lugar.
– Não se preocupe – tranqüilizou-o Delaney. – Eles irão buscá-lo. Prometo-lhe isso.
Observou a cena até ver o helicóptero diminuir a velocidade, aproximando-se lentamente do cume da Agulha do Diabo. Entrou na cabana para colocar o microfone sobre o balcão do radioperador. Inalou profundamente e olhou espantado para as mãos trêmulas. Saiu novamente, desceu os degraus e penetrou no terreno cercado. Os fotógrafos, agitados naquele momento, apontavam as lentes para o helicóptero que pairava sobre a Agulha do Diabo.
Delaney permaneceu ali, o quepe enterrado reto na cabeça e o colarinho alto abotoado. Como os demais, tinha a cabeça inclinada para trás, os olhos para cima e a boca aberta. Esperaram. Ouviram o rugido poderoso do motor, o aparelho subiu rapidamente, inclinou-se, descreveu uma curva e veio na direção deles.
Na extremidade do cabo, Daniel G. Blank pendia dos arreios. A peça apertava-o sob os braços estirados. A cabeça pendia para trás numa posição de agonia. Os tornozelos estavam juntos e o corpo engelhado parecia branco como a água, todo coberto de protuberâncias e contusões.
O helicóptero desceu mais. Viram o crânio raspado, e as feridas cor de púrpura nos lugares onde a pele havia-se deslocado. O estranho pássaro flutuava, balançando-se. Subitamente, quando o corpo foi atingido pelo sol, já baixo no horizonte, formou-se um nimbo em volta de sua carne, uma radiação luminosa que brilhou rapidamente e, em seguida, desapareceu quando o corpo voltou à terra.
Delaney voltou-se e afastou-se. Sentiu uma mão no ombro, parou, virou-se e reconheceu Smokey, o Urso.
– Bem – disse Sneed num largo sorriso – pegamo-lo, não?
Delaney, com um movimento dos ombros, livrou-se da pesada mão e continuou a andar.
– Deus nos ajude a todos – disse em voz alta o Capitão Edward X. Delaney. Mas ninguém o ouviu.


Epílogo

Nos meses que se seguiram aos acontecimentos narrados aqui ocorreram os seguintes fatos:
Casaram-se Christopher Langley e a viúva Zimmerman em uma cerimônia a que o Capitão Delaney compareceu com grande prazer. Os recém-casados mudaram-se para Sarasota, Flórida.
Calvin Case, com a ajuda de um escritor profissional, escreveu um livro intitulado "Técnicas Básicas de Alpinismo". O livro teve uma venda modesta, mas encorajadora, e parece que está destinado a tornar-se um manual de alpinismo. Case escreve atualmente um segundo livro: "As Dez Mais Difíceis Escaladas do Mundo".
Anthony (Tony) Montfort reuniu-se aos pais na Europa. É desconhecido, no momento, o paradeiro de Valenter.
Charles Lipsky meteu-se com uma quadrilha de falsificadores de cheques da Previdência Social e está preso, aguardando julgamento.
Samuel e Florence Morton abriram o primeiro de uma cadeia de "clubes de saúde", onde é permitida a natação, nus em pêlo, dos dois sexos. Estão sob a acusação de "manterem uma inconveniência pública", mas encontram-se soltos, sob fiança, aguardando julgamento.
O antigo Vice-Comissário Broughton foi derrotado nas eleições primárias como candidato de seu partido a Prefeito de Nova York. Tenta, no momento, formar novo partido político, baseado na promessa de "lei e ordem".
O antigo Tenente Martin Dorfman passou nos exames para capitão e foi nomeado Procurador Jurídico da Divisão de Patrulha.
O Tenente Jeri Fernandez, o Sargento MacDonald e o Detetive Blankenship receberam elogios.
O repórter Thomas Handry, aparentemente renunciando à esperança de ser poeta, foi designado pelo seu jornal como correspondente em Washington.
O Dr. Sanford Ferguson faleceu em um acidente de automóvel, ao voltar de manhã cedo para casa, de uma visita à amante.
O Vice-Prefeito Alinski continua a ser Vice-Prefeito. O antigo Inspetor Johnson e o Subinspetor Thorsen foram promovidos um posto cada.
O Capitão Edward X. Delaney saltou para o cargo de Inspetor e foi nomeado Chefe da Divisão de Detetives. Mais ou menos um mês após a morte de Daniel G. Blank, Bárbara Delaney faleceu, vitimada pela infecção.
Após um período de luto de um ano, o Inspetor Delaney casou-se com a ex-Monica Gilbert. A Sra. Delaney está esperando bebê.

 

 

                                                                  Lawrence Sanders

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades