Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Primo da Califórnia / Joaquim Manuel de Macedo
O Primo da Califórnia / Joaquim Manuel de Macedo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Primo da Califórnia

 

Ópera em dois atos 

Foi à cena na abertura do Ginásio Dramático, em 12 de abril de 1855. 

Imitação do francês

 

PERSONAGENS

ADRIANO GENIPAPO, jovem professor de música

 

PANTALEÃO, amigo taberneiro

 

FELISBERTO, alfaiate

 

ERNESTO, amigo de Adriano

 

CELESTINA

 

BEATRIZ, criada de Adriano

 

Dois amigos de Adriano

 

A cena passa-se no Rio de Janeiro

 

ATO PRIMEIRO

O teatro representa uma sala modestamente ornada; uma mesa com gavetas; um piano, um violão, papéis de música, etc.; uma porta ao fundo abrindo para a rua.

 

CENA PRIMEIRA

BEATRIZ (Em pé, engraxando um botim) – eis-me aqui pagando os meus pecados!... eu sou uma espécie de verbi-gratia das mudanças desta vida. No tempo do vice-rei chamavam-me a nenê da rua das Flores; quando o rei chegou, já eu era conhecida pela formosa Beatriz: depois que me apareceu o primeiro cabelinho branco, tiveram o desaforo de tratar-me por tia Beatriz; felizmente ainda a sorte me deparou um soldado inválido que quis casar comigo; mas veio a febre amarela, que deu baixa eterna ao meu querido Pancrácio, e eu fiquei viúva, e viúva sem filha, e sem vintém! Não tive remédio senão recorrer aos Diários, e anunciar uma criada para homem solteiro ou viúvo: tive a esperança de me tornar meia-dona de casa; mas por fim de contas fiquei simples criada, e criada muito ordinária: isto é, criada de um músico!... Eis aqui portanto a bota de um músico engraxada pelas mãos da formosa Beatriz!... Oh! Eu só conheço três coisas tão desprezíveis como as botas de um músico: uma barretina de soldado, um capote de estudante, e uma casaca de meirinho! E eu sempre a engraxar estas botas, botas de um músico, de um músico que tem a pouca vergonha de me estar a dever cinco patacas de despesas miúdas!... (Canta)

 

No tempo da ventura Chamavam-me formosa; E agora nem airosa Alguém, que eu sou, me diz!...

 

Engraxa, engraxa as botas, Engraxa, Beatriz!

 

Meus olhos, minhas faces Cobriam de louvores; E agora... adeus amores, Já torcem-me o nariz!

 

Engraxa, engraxa as botas, Engraxa, Beatriz!

 

CENA II BEATRIZ E CELESTINA

 CELESTINA – Bom dia, senhor Beatriz; o senhor Adriano não está em casa?... BEATRIZ – sumiu-se logo depois do almoço: também é provável que não esperasse pela sua visita, porque a senhora tem passado dois dias sem aparecer. CELESTINA – não me tem sido possível. BEATRIZ – Sim... sim... entendo isto às mil maravilhas! E, quanto a mim, minha menina, julgo que faz muito bem em ir pondo o anzol a outro peixinho. CELESTINA – O que quer dizer com isso, senhora Beatriz?... BEATRIZ – Eu nem de leve pretendo ofendê-la; minhas intenções são muito boas; e olhe, menina, tal como aqui me vê, já tive meus trinta e seis anos de idade, e então cometi a fraqueza de deixar o meu coração prender0me na patrona de um cabo-de-esquadra; oh! Quanta sedução que tinha!... CELESTINA – O que, senhora Beatriz?... a patrona?... BEATRIZ – Não, menina; o cabo-de-esquadra. CELESTINA – E deixou-se enganar por ele?... BEATRIZ – Também não, e a prova é que ele me desposou; mas passei uma vida de trabalho e pobreza, porque o triste Pancrácio apenas tinha de mais que os outros cabos-de-esquadra uma pequena pensão; mas também tinha de menos que os outros uma perna... era a direita; logo a direita!... a mais bonita de suas duas pernas!... CELESTINA – mas eu não compreendo que relação... BEATRIZ – Não compreende?... mas, minha menina, a moral da história está mesmo saindo pela ponta dos dedos! Em uma palavra, moça e bela, como a senhora é, não deve votar-se sem mais reflexão ao amor de um mancebo, que não tem aquilo com que se compram os melões; olhe, o senhor Adriano padece a moléstia mais feia e mais terrível deste mundo.. tem a tísica das algibeiras. CELESTINA – Ah! Era isso?... pois é precisamente porque Adriano é pobre, que eu gosto, quero e hei de amá-lo sempre e cada vez mais. (Canta)

 

Minh’alma foi sempre rude, Nunca aprendeu a contar; Não serve pra guarda-livros; O que sabe é só amar!

 

O meu Adriano é pobre, Mas não indigno de mim; Eu amo a sua pobreza; “Gosto bem de ser assim!”

 

BEATRIZ – Sim... sim... idéias romanescas, poesias, e pensamentos generosos; mas o diabo me leve se a senhora for capaz de fazer ferver uma panela no fogo com um soneto, ou com uma idéia generosa. CELESTINA – Mas bem que o senhor Adriano não esteja em muito boa posição: o que prova que ele seja tão pobre, como a senhor o diz?... BEATRIZ – Quando se está devendo cinco patacas a sua criada, minha menina... CELESTINA (à parte) Pobre moço!... (A Beatriz) Eis aí como se faz uma acusação injusta!... ele me havia encarregado de lhe entregar essa quantia, e eu não tendo vindo aqui há dois dias, deixei de cumprir tal comissão. (Dá dinheiro) BEATRIZ (recebendo) – É singular! Ainda ontem falei-lhe nesta continha, e ele nada me disse. CELESTINA – Poder-se-ia ter esquecido, ou não quereria falar no meu nome. BEATRIZ (À parte) – Aqui há coisa! Mas como já tenho nas unhas o meu dinheiro, fica o exame desta geringonça para depois. CELESTINA – E Adriano sem voltar!... BEATRIZ – Não pode tardar... foi dar lição de música à filha do senhor Pantaleão, o proprietário desta casa: isto basta para o fazer suar! A filha de um antigo taberneiro, ridículo, exigente, e vaidoso da sua fortuna! O ventas de mono não tem na boca senão – a sua fortuna!... – Porém... ouço os passos e a voz do senhor Adriano...

 

CENA III BEATRIZ, CELESTINA E ADRIANO

 ADRIANO (Que vem cantando)

 

Quem por não ter dinheiro Não vive com prazer, Não pode ter miolo, Quer cedo envelhecer!

 

É tolo, é tolo, é tolo: Eu não o quero ser.

 

Sou pobre como Job; Mas faço o que convém: Amar, e rir-me busco, E passo muito bem:

 

Patusco, e bom [Patusco, Como eu não há [Ninguém.

 

Bravo! Oh! Que boa companhia! Linda Celestina... é verdade, senhora Beatriz, queira fazer-me o favor de ir ver se eu estou escondido em algum canto do seu quarto.. BEATRIZ – E se não o encontrar lá?... ADRIANO – Terá a bondade de esconder-se atrás da porta para agarrar0me de improviso, quando eu lá entrar. BEATRIZ – Entendo... entendo... (À parte) Como é insuportável obedecer a um musicozinho de dó-ré-mi, quando já se foi mulher de um cabo-de-esquadra! ADRIANO – Então?... não julga conveniente ir procurar-me?... BEATRIZ (Indo-se) – Sim, senhor; pondo-me ao fresco. (à parte). É um músico desafinado!

 

CENA IV CELESTINA E ADRIANO

 ADRIANO – Bem; agora que a velha bruxa nos deixou em paz, permite que eu beije essa mãozinha de anjo. (Beija-a) Ah! Que louco que sou! Eu tinha assentado de pedra e cal que devia brigar contigo, e cometi a inconseqüência de te beijar a mão... veja só que tolo!

 

CELESTINA – Brigar comigo?... e por quê?...

 

ADRIANO – Porque de algum tempo a esta parte eu te vejo menos vezes. CELESTINA – Adriano, é preciso que eu te dê tempo para trabalhar.

 

ADRIANO – Mas, amiga de minh’alma, eu só trabalho bem quando estás presente: teu olhar me inspira, o sorrir de teus lábios enche de fogo minha imaginação, teu falar meigo derrama doçura angélica em minhas melodias, teu coração me exala o suspiro, que quando estou só, procuro debalde... e se para completar um pensamento, ou pôr o remate em uma harmonia, uma nota me falta, acho-a sempre nas covinhas de tuas faces. CELESTINA – Sim... sim... mas também tu me abraças muitas vezes e isso te faz perder o compasso.

 

ADRIANO – É possível. Conversemos, porém sobre outro assunto; por que motivo vejo eu em alta noite luz no teu quarto?...

 

CELESTINA – Luz?...

 

ADRIANO – Creio que não me enganei: dali descubro a tua janela: será, que me deixas de noite para ir celebrar um comércio clandestino com espíritos e duendes?... haverá feitiçarias em teu quarto?... hem, Celestina?... Celestina, fala; tira-me deste labirinto em que me vejo perdido.

 

CELESTINA – Ah!... sim... se tens visto luz no meu quarto... é porque... eu tenho medo de estar só de noite no escuro, e conservo acesa uma lamparina.

 

ADRIANO – Lamparina?... que má lembrança! Tens medo de ficar só de noite?... por que então me não chamas para te fazer companhia?...

 

CELESTINA – Que dizes, Adriano?... pois esqueces...

 

ADRIANO – é Verdade... é verdade... seria isso inconseqüente... inconveniente... prejudicial, e muito próprio para dar que fazer às más línguas: eu não sou assaz licencioso, Celestina, para brigar contigo por este motivo; e seu para ser teu inseparável companheiro não te ofereço já o meu nome, meus dois nomes até, Adriano Genipapo, é que não desejo que venhas partilhar comigo de pão mal amassado, o único que me concede este mundo patife!

 

CELESTINA – Mas quando se ajuntam dois, ajuda um ao outro a carregar a pobreza e reúne-se o pouco que cada uma ganha de sua parte.

 

ADRIANO – Sim... é isso... não há dúvida nenhuma; mas quando desses dois uma ganha somente – nada – e o outro de seu lado traz para o monte unicamente um – zero -, por mais que se somem as duas parcelas quinhentas vezes por dia, o resultado da operação dá sempre – coisa nenhuma – e isso é o diabo, Celestina!

 

CELESTINA (Suspirando) – Tens razão; é necessário esperar...

 

ADRIANO – Esperar... esperar... é exatamente o que eu recomendo aos meus credores; desconfio, porém, que tanto lhes recomendarei que esperam, que acabarei por não ter quem me fie um pão e uma gota d’água!...

 

CELESTINA – Coragem! Ninguém como eu tem mais direito a aconselhar a coragem: tu o sabes já; nasci no seio da riqueza; mas era filha natural, e quando meu bom pai morreu, os parentes dele e meus queimaram o testamento, e enxotaram-me para o meio da rua.

 

ADRIANO – E a vítima foi olhada como uma criatura desprezível! E os larápios, que queimaram o testamento, transformaram-se com a rica herança, que roubaram, em homens de bem e de gravata lavada!... É preciso confessar que o maior maluco deste mundo é o mesmo mundo!

 

CELESTINA – Fecharam-se-me todas as portas, e todos me repeliram; desanimava já, quando ouvi soar a meus ouvidos: “Eis uma mulher perdida!” Levantei a cabeça, e disse: “Não me perderei”: corri a uma igreja, e rezei por meu pais, e por mim; quando saí da igreja, tinha já o coração cheio de esperança e de coragem; trabalhei... sabia bordar, bordei; sabia desenhar, desenhei; cosi, copiei manuscritos, e música, e finalmente vi que podia com o meu trabalho viver independente de todos, e pura aos olhos de Deus; hoje desprezo os meus verdugos, amo-te, Adriano; mas amo-te honesta, casta e virtuosa para ser digna de ti quando me deres a mão de esposo, se o nosso amor for abençoado por Deus. Assim pois, Adriano, coragem! Coragem, e trabalho!

 

ADRIANO – Oh! Tu me animas sempre! E animemo-nos ainda mais agora, Celestina, porque aproxima-se o momento, que deve realizar nossos sonhos de ventura.

 

CELESTINA – Como então?...

 

ADRIANO – Meu editor me espera daqui a pouco para ajustar comigo o preço de uma composição que ontem lhe enviei, e ao mesmo tempo espero vender uma ópera ao teatro Provisório, e conto com um lugar na orquestra do teatro de S. Pedro.

 

CELESTINA – Se tudo isso se puder realizar... ADRIANO – Realizar-se-á, estou seguro; tenho todas as condições que se requerem. (canta)

 

A fortuna é Qual moça galante, Que nos traz em constante lidar; Já provoca, já foge, e já volta, Té que sempre se deixa apanhar

 

E contando já com o meu próximo adiantamento, receberei aqui visitas esta noite.

 

CELESTINA – E que visitas?...

 

ADRIANO – Alguns amigos camaradas de colégio: o que havia de ser, Celestina?... na última corrida de cavalos interessei-me por um maldito mouro de crinas brancas e de cauda preta; tinha-me esquecido que de um mau mouro não se pode fazer bom cristão, e ainda mais era um diabo de cavalo que pertencia a todos ao mesmo tempo, porque tinha todas as cores: era um cabalo que fazia furor, um cavalo da moda! Apostei por ele e perdi! Perdi um bolo inglês e doze garrafas de champanhe! Nunca mais confiarei em animais, que pertençam a todas as cores.

 

CELESTINA – E portanto pagas hoje o bolo inglês e o champanhe?...

 

ADRIANO – É verdade! Faço esse obséquio aos meus amigos: também eles têm-me recebido tantas vezes em suas casas, que hoje por minha parte quero também recebê-los: o pior é que os meus amigos são ricos, e eu pobre; oh!... não é inveja, é orgulho: quando eu vejo que eles se deitam sobre bilhetes do banco, e eu não possuo coisa nenhuma, Celestina, daria sem hesitar tudo, absolutamente tudo quanto possuo, para ter uma renda de cem contos de réis.

 

CELESTINA – Vou deixar-te em sossego para que te ocupes dos preparativos do teu bolo inglês; mas olha, toma cuidado em ti, Adriano; tu tens a cabeça muito fraca... não te adiantes muito pelo champanhe... FELISBERTO (Entrando) Ora graças, que uma vez o encontrei!...

 

CENA V ADRIANO, Que acompanha CELESTINA até à porta, e FELISBERTO

ADRIANO – Oh! Caro e preclaro amigo Felisberto!... (Acompanha Celestina).

 

FELISBERTO (à parte) – Exatamente... a nova rua, que a Câmara Municipal projeta abrir, deve passar por aqui, e se eu consigo comprar esta casa, hei de vendê-la com um lucro de trezentos por cento, pois que tenho bons padrinhos.

 

ADRIANO – Às ordens do meu amigo Felisberto!

 

FELISBERTO – o senhor adivinha sem dúvida os motivos que me trazem aqui...

 

ADRIANO – Oh! Incomparável alfaiate! Vem seguramente ver se tenho necessidade de alguma roupa; chega bem a propósito... a minha roupa mais nova mostra já os cordões diabolicamente, e exige a todo transe uma reforma.

 

FELISBERTO – E o senhor pensa...

 

ADRIANO – Em lhe encomendar roupa nova... pois que duvida?... tenho inteira confiança na sua tesoura magistral; o senhor é o alfaiate de minha confiança; não lhe pose retirar o meu voto.

 

FELISBERTO – Eu suponho; quando se é o alfaiate do corpo diplomático... ADRIANO – Ah!... então o senhor é o alfaiate dos diplomatas?... por que não mo disse há mais tempo?

 

FELISBERTO – Tenho essa honra; porém, voltemos ao que mais importa; o senhor diz que quer roupa nova?... bem; mas a respeito da velha, que lhe fiz...

 

ADRIANO – Já não presta para nada, meu querido Felisberto!

 

FELISBERTO – Estou por isso; é, porém, necessário que nos entendamos acerca de...

 

ADRIANO – Da cor provavelmente?... é verdade; qual é a do último gosto?...

 

FELISBERTO – Não há cor dominante agora; mas não é isso... o que eu quero é que...

 

ADRIANO – Já lhe disse que o senhor é o alfaiate da minha confiança; escolha portanto as fazendas, corte, cosa, vista-me! Eu me entrego em suas mãos... Que mais pode desejar?...

 

FELISBERTO – O que eu desejo é que finalmente falemos sobre...

 

ADRIANO – Sobre os botões, não é isso?... meu amigo, prefiro os de metal, porque o metal...

 

FELISBERTO – Exatamente é por causa do metal que eu aqui venho; o meu metal, meu senhor, é muito raro... não aparece nunca... o meu cobrador já cansou de o procurar, e agora venho eu próprio a ver se sou mais feliz: então?... (Canta)

 

Está perdendo o seu tempo, Se finge não me entender; Pague já o que me deve, Que eu tenho mais que fazer.

 

Não sou criado do povo; Quem trabalha, quer comer; Pague já o que me deve, Que eu tenho mais que fazer.

 

ADRIANO – Qué!... será possível que por alguns magros réis o alfaiate do corpo diplomático se abaixasse a subir a um terceiro andar?... o alfaiate do corpo diplomático!... que miséria!... que miséria!...

 

FELISBERTO – Mas é que o senhor chama magros réis a uma soma de.... ADRIANO – Pare... pare... não pronuncie o total... lembre-se que sou músico, e que o som produzido por um total é capaz de esfolar-me os ouvidos!...

 

FELISBERTO – Senhor, basta de gracejos; creio que devo ser pago, visto que não seria com o único fim de lhe obsequiar, que há dois anos o tenho vestido dos pés à cabeça; lembre-se que está coberto com os meus panos?

 

ADRIANO – Alfaiate do corpo diplomático! Sabe música?...

 

FELISBERTO – Não, senhor.

 

ADRIANO – Em tal caso lhe farei ouvir uma composição, que deve elevar-me à imortalidade! Compreendo perfeitamente que enquanto não chega a imortalidade é necessário ter de que viver; mas não é tarde... sim, caro, preclaro, e preclaríssimo Felisberto; eu vou estrear na minha arte... o senhor já esteou na sua... a única diferença está nas nossas divisas; o senhor tem a tesoura, e eu vou ter a batuta... o senhor entende isto suficientemente, não é assim?... eu sou rapaz de consciência... O senhor deve ser um homem de paciência... eu... não pretendo enganar a pessoa alguma... oh! Não... nunca!... porém, por ora... falemos sério... (Batendo nos bolsos) Estou a tocar matinas!... por conseqüência, caro e preclaro Felisberto em suma.... em uma palavra... em último resultado... para dizer tudo... agora?... não pode ser; amanhã... veremos, espere sempre; (À parte) é impossível... ninguém satisfaz um credor melhor do que eu!

 

FELISBERTO – Senhor! Se se acha em más circunstâncias, tanto piro para a sua pessoa, quanto a mim, nada tenho com isso, nem pretendo intrometer-me em negócios alheios.

 

ADRIANO – Todavia convém que fique sabendo, que me vão imprimir uma magnífica coleção de composições musicais.

 

FELISBERTO – Faço idéia... algumas valsinhas...

 

ADRIANO – Nada... nada... coisa mais alta; vou concluir o meu ajuste com o editor, e espero em breve pagar-lhe a insignificante continha, que o senhor teve a baixeza de julgar tão elevada.

 

FELISBERTO – Porém, quando, senhor? Quando?...

 

ADRIANO – Mais cedo do que talvez espera.

 

FELISBERTO – Juro que não será mais cedo do que desejo.

 

ADRIANO – Oh! Que semelhança em nossos pensamentos, caro e preclaro Felisberto!

 

FELISBERTO – Adeus, senhor; como não nasci para andar toda a minha vida correndo atrás do seu dinheiro, cá lhe enviarei outra vez o meu cobrador.

 

ADRIANO – Ele achará a porta da minha casa tão aberta e franca, como para o senhor o está sempre a porta do meu coração

 

FELISBERTO - Preciso é pagar; O triste credor Não pode esperar; Quem compra fiado, E quer ser honrado, De pagar os meios Calcula e prevê; Preciso é pagar, Arranje com quê.

 

ADRIANO – Preciso é pagar?... O duro credor Não pode esperar?... Eu comprei fiado, Quero ser honrado; Mas que os meios faltam O senhor bem vê; Preciso é pagar?... Não tenho com quê.

 

CENA VI ADRIANO (só)

Preciso é pagar... boa dúvida! Que é preciso pagar, sei eu; mas como é que um homem sem dinheiro pode pagar suas dívidas? É o segredo que eles me deviam ensinar. Dinheiro... dinheiro... os diabos me levem se eu não o desejo mais do que eles: ora é boa! Tenho eu culpa de não ter nada de meu?... a fortuna é uma rapariga a quem tenho namorado toda minha vida, e a ingrata teimado sempre em dar-me de tábua; mas agora espero ficar às boas com ela. Corramos à casa do meu editor... fica perto... ali defronte; e o bolo inglês?... ah! Chamamos a impagável Beatriz... ei-la que chega a propósito... senhor Beatriz! Senhora Beatriz!...

 

CENA VII ADRIANO e BEATRIZ

BEATRIZ – Aqui estou, senhor; mas por quem é, não me mande procurá-lo em parte nenhuma.

 

ADRIANO – Esta noite reúno aqui os meus amigos; vá ao hotel de França e receba lá um bolo inglês, e algumas garrafas de vinho, que lhe entregarão, e durante a minha ausência disponha tudo o que é necessário para esta solenidade um pouco extraordinária em minha casa. BEATRIZ – O que é isto pois?... bolo inglês e vinho?... então o senhor tirou a sorte grande no vigésimo, que comprou no outro dia? ADRIANO – Sim, modelo das criadas!... (Canta)

 

O diabo atrás da porta Não devia sempre estar.

 

BEATRIZ – Mas que fortuna foi essa?... ADRIANO – Minha sorte vai mudar.

 

Sinto já por tal ventura O juízo a me voltar; E a prova de que estou doido É que chego a te abraçar!

 

BEATRIZ (Sem recusar) – Senhor Adriano, não comece com essas graças.

 

ADRIANO – Não tenha receio... Oh! Certamente deve confiar em si mesma... adeus... não esqueça nada. (Vai-se)

 

CENA VIII BEATRIZ, e depois PANTALEÃO

BEATRIZ (Suspirando) – Sempre pensei que tivesse o atrevimento de me abraçar! Também de que me servia o abraço de um musicozinho das dúzias?... se eu não recuo tão depressa... mas deixemos estas asneiras. Uma ceia!... ainda trabalho... e depois deita-se a gente tarde... perde-se a noite... e isto acontece à Beatriz formosa, por causa de um músico de meia cara!... ora enfim vamos a ver o que se arranja. (Abre a gaveta) Bem... copos cinco, exatamente, e cada qual de sua qualidade: pratos... nove, entrando dois rachados: aqui há de tudo, desde a louça da China, até...

 

PANTALEÃO – Olhem lá em que ela se ocupa... dá de língua como deputado!... Velha rezingueira, é assim que cumpre o nosso contrato?... eu te pago meia moeda por mês, fora os caídos, para observares o procedimento da minha súcia de inquilinos, e entretanto um deles está pondo os trastes da porta para fora sem pagar o que legitimamente me deve, e eu nada sei do que se passa!... olha, que te suspendo o ordenado! BEATRIZ – E quem é que está fazendo esse desaforo?...

 

PANTALEÃO – O locatário do terceiro andar, que acaba de fazer descer as escadas a dois enxergões e uma esteira!...

 

BEATRIZ – já sei o seu destino, senhor; os enxergões vão se encher de novo e a esteira, que já está muito velha, mandaram-na atirar à praia.

 

PANTALEÃO – Aceito a explicação; mas sustento o que disse: eu quero que não durmas, e que de dia e de noite observes o que se passa na minha propriedade: olha... põe-te alerta principalmente de madrugada: quando eu tinha as minhas duas vendas era de madrugada que eu fazia o melhor negócio com os pretinhos: aquilo, sim! Hoje era um cordão de ouro por meia pataca, amanhã uma colher de prata por quatro vinténs, depois de amanhã um anel de brilhantes por um martelinho de infusão de gengibre, que eu chamava aguardente... oh! Tudo isso sem bulha, sem matinada, e muito honradamente, muito honradamente!...

 

BEATRIZ – Senhor Pantaleão, eu cumpre como posso as suas ordens; mas Vossa Senhoria bem sabe que eu sou também criada do musicozinho...

 

PANTALEÃO – Tudo isso mudará, e principiarei hoje por mandar pôr os quartos na rua a esse insuportável arranha-notas...

 

BEATRIZ – Olhe, não hei de ser eu que me ponha diante dele para lhe impedir a retirada: pois o insolente não quis ainda há pouco dar-me um abraço?... e se eu não recuo tão depressa...

 

PANTALEÃO – Enfim... devo proceder desse modo; pois o que é esse músico?... um habitante de um terceiro andar: somente farroupilhas moram em tais alturas: dever-se-ia proibir os terceiros andares... eles só servem para alojar inquilinos que nunca pagam ao senhorio.

 

BEATRIZ – Eis aí o que é falar bem: cá eu sempre fui inimiga de canalha.

 

PANTALEÃO – Sim... é isso mesmo: essa gente que não tem real de seu é uma verdadeira canalha!... Mas agora deixa-me só, que ouço os passos do meu inquilino farroupilha: anda, vai-te!

 

BEATRIZ – Eu sou uma criada sempre pronta a obedecer a Vossa Senhoria por cuja felicidade rezo sempre nas minhas bentas contas! (À parte) é um jagodes muito ordinário; mas é preciso fazer-lhe cortesias, porque dizem que tem dinheiro, como farinha! (A Pantaleão) Sou uma criada de Vossa Senhoria Excelentíssima... (Vai-se)

 

CENA IX PANTALEÃO e ADRIANO desesperado

PANTALEÃO – Usemos do meu direito de proprietário para tratar a este mequetrefe como convém.

 

ADRIANO (Atirando com o chapéu, e um rolo de músicas) – Estúpido editor! Falta-me à palavra! Recusa minhas músicas!... é necessário, diz ele, que eu tenha um nome... um nome!... um nome preciso eu para qualificar tão indigno procedimento!... e eu, que calculava com isso. (Sentidamente) obrigado a empenhar o meu relógio... a última lembrança de minha mãe! (põe uma clareza ou papel sobre a mesa) Porém, ele está seguro, e apenas puder tirá-lo do Monte de Socorro...

 

PANTALEÃO – Penso que, enfim, o senhor se resolverá a prestar-me dois minutos de atenção!

 

ADRIANO – Ah! É Vossa Senhoria, senhor Pantaleão?... perdoe-me, não o tinha visto... chegou muito a propósito...

 

PANTALEÃO – A propósito?... então está de maré cheia?...

 

ADRIANO – Sim; em maré cheia de tristeza... de angústias... de cólera... de...

 

PANTALEÃO – É moeda que não corre em minhas propriedades.

 

ADRIANO – Pois vejamos: o que quer o senhor de mim?...

 

PANTALEÃO – Duas coisas muito simples: primeira, despedi-lo de inquilino de uma das minhas propriedades; segunda, despedi-lo de mestre de música de minha filha Ifigênia Pantalôa.

 

ADRIANO (À parte) – Como via tudo a melhor! Queda!... em cima de queda, coice... em cima de coice... um dardo, que atravesse a esta súcia toda! Estou bonito! Estou mesmo a ver jurar testemunhas!... ( A Pantaleão) Suponho que tenho o direito de perguntar-lhe os motivos de duas despedidas tão súbitas, como intempestivas.

 

PANTALEÃO – Pois não! Eu lhe satisfaço: não me convém que o senhor continue a dar lições de música à minha filha, porque vejo que ela nenhum progresso faz; gasto em sua educação seiscentos mil réis por ano, e isto dura já há dez anos, o que perfaz a quantia de seis contos de réis, que com juros compostos, iam muito longe, e minha filha se vai tornando muito cara!

 

ADRIANO – E tenho eu a culpa de que Dona Ifigênia não tenha disposições para a música?...

 

PANTALEÃO – Quê! Pois a filha de um homem rico, de um homem que já teve duas vendas e que é hoje senhor de tantas propriedades, deixaria de ter disposições para a música?... ela tem habilidade... mesmo habilidade rara, o que lhe falta é um mestre de capacidade.

 

ADRIANO (À parte) – E ature-se lá um estúpido destes! (A Pantaleão) Então é este o único motivo por que sou despedido?...

 

PANTALEÃO – Além disso ela tem coração... esse coração tem suas fraquezas... e eu tenho reparado que minha filha quando olha para o senhor fica sempre vermelha como um camarão.

 

ADRIANO – Sim?... talvez aperte muito o espartilho.

 

PANTALEÃO – Em suas lições de desenho ela não faz um nariz, uma orelha, um olho, que eu não encontre o seu mesmo nariz, a sua mesmíssima orelha, e até o seu mesmíssimo olho!... em bom português: desconfio que minha filha está se apaixonando pelo senhor.

 

ADRIANO – É possível... e realmente isso não me faz mal nenhum.

 

PANTALEÃO – Mas a mim faz muito: eu, que já tive duas vendas, e que sou hoje senhor de tantas propriedades; eu que tenho uma certa posição, que sou capitão da guarda nacional, não havia de ir entregar minha linda filha a um pobre músico, que nem ao menos paga o aluguel da casa em que mora.

 

ADRIANO – Não briguemos por isso: pagarei o aluguel desta casa...

 

PANTALEÃO – Pagarei, pagarei, e pagarei, está o senhor a me dizer há três meses!... e eu devo afirmar-lhe que por este terceiro andar acabam de me oferecer mais quatro mil réis por mês, além do que o senhor me devia pagar, e portanto...

 

ADRIANO – Pois bem, eu cedo; dê-me um pequeno quarto, uma mansarda qualquer em relação com os meus poucos meios, e amanhã mesmo estarei mudado; pode crer: dou-lhe palavra de honra que em menos de um quarto de hora mudarei toda a minha mobília... a minha louça... os meus trastes de luxo... enfim, tudo... tudo...

 

PANTALEÃO – Devera?... eis aí um corretivo ao mau procedimento que tem tido comigo: há aqui por cima deste sobrado, um sótão em que o senhor se acomodará perfeitamente.

 

ADRIANO – Ah! É num buraco que fica aqui por cima?... pois está tratado; serve-me às mil maravilhas... vou transformar-me em rato... Que bom agouro... os ratos quando são grandes, são tão felizes e respeitados!...

 

PANTALEÃO – Mas insisto sempre no que lhe disse a respeito de minha filha, e quero que me pague o que me deve: preciso de dinheiro, senhor, e de muito dinheiro: vou entrar em negociações importantes; o monopólio da carne fresca e do toucinho é uma mina aberta, e os homens de bem não devem perder a pechincha; vou portanto abrir de novo as minhas vendas, e tornar a viver entre as pipas e os paios, e sobre as mantas de carne seca!

 

ADRIANO (À parte) – Donde nunca deveríeis ter saído, taberneiro de um figa!

 

PANTALEÃO – Não se esqueça do que acabo de lhe dizer; ficaremos amigos como dantes, logo que me pagar o que me deve! (À parte) minha filha apaixonada de um farroupilha: que humilhação!... (A Adriano) Jovem músico, locatário insolúvel, dinheiro quanto antes, e adeus... (Canta)

 

Da carne fresca e toucinho No monopólio me empenho; Chore o povo muito embora, Eu com isso nada tenho; Quero dinheiro e depressa, Que o monopólio começa.

 

ADRIANO

 

Da carne seca e toucinho No monopólio se empenha; Em tais biltres é preciso Que a polícia os olhos tenha; Polícia, acode depressa, Que o monopólio começa.

 

CENA X BEATRIZ e ADRIANO logo depois

ADRIANO – “É necessário pagar; eu quero o meu dinheiro!” Tal e qual como aquele indigno alfaiate: “Meu dinheiro!” Que gente estúpida! Só tem na boca uma palavra, não sabe dizer senão isto: “Meu dinheiro!” é fastidioso... maçante... diabólico... vai-te, miserável taberneiro.

 

BEATRIZ (Trazendo uma cesta e uma bandeja) – Senhor, eis aqui o que me entregaram no hotel... vim carregada como um preto do ganho.

 

ADRIANO (Examinando) – Muito bem: bolo inglês... champanhe... vinho de Reno... madeira seco... Experimentemos este; afoguemos os pesares em copos de vinho (Bebe); não está mau!...

 

BEATRIZ – Mas como o vejo triste, senhor: ah! Adivinho, que já lhe deram a notícia...

 

ADRIANO – Notícia de que, mulher?...

 

BEATRIZ (Arranjando a mesa) – Eu sou discreta... porém, como não é mais um mistério... o senhor Juca do armarinho o tem publicado por todo o quarteirão.

 

ADRIANO – O quê?... o quê! Diga de uma vez, ande...

 

BEATRIZ – Enfim, ele é suficientemente rico para fazer a fortuna de uma moça: olhe, só em consultas gratuitas, tem ganho rios de dinheiro!

 

ADRIANO – Mas então o que há?... desembucha, velha dos meus pecados.

 

BEATRIZ (À parte) – Velha! Pois espera, que eu te curo. (A Adriano) Eu me explico: o doutor Oliveira, médico homeopata, que, como todos sabe, está muito rico, e que vende cada vidrinho das suas feitiçarias a cinco mil réis, fez suas proposições à senhora Dona Celestina, que depois de algumas dúvidas acabou por dizer, que sim.

 

ADRIANO – Celestina?!!! É uma ignóbil mentira!

 

BEATRIZ – O senhor está no seu direito duvidando; mas a notícia é oficial; falta só aparecer no Jornal do Commercio, e nos fatos diversos do Mercantil.

 

ADRIANO – Senhora Beatriz, retire-se, deixe-me!...

 

BEATRIZ – Senhor!

 

ADRIANO – Retire-se... retire... aliás...

 

BEATRIZ – Está furioso: tal e qual como o meu defunto Pancrácio quando tinha ciúmes de sua formosa Beatriz! (Vai-se)

 

CENA XI CELESTINA e logo ADRIANO

ADRIANO – Esta velha mente! Mente por força! Mas não... deve ser verdade... as desgraças hão de continuar a cair sobre mim... todos devem abandonar-me... aborrecer-me: eu sou o mais vil dos homens, isto é... sou pobre!

 

CELESTINA – Meu Deus! Que tens?... ah! Eu o adivinho; o editor rejeitou tuas músicas...

 

ADRIANO – Sim, Celestina, ele faltou à sua palavra: é muito mal feito faltar à palavra que se dá, não é assim?...

 

CELESTINA – Sim, sim; é muito mal feito.

 

ADRIANO – Não é verdade, que quando se tem feito uma promessa, essa promessa se deve cumprir?...

 

CELESTINA – Sim, sempre; mas a que fim semelhantes perguntas?...

 

ADRIANO – Ah! Celestina! É que tu te condenas por ti mesma; tu me fizeste uma promessa sagrada... juraste que serias minha mulher à face da igreja, e agora?... oh!... mas não... tens razão... era necessário esperar... sabe Deus quanto tempo!... e ganhará com que dar-te belos vestidos de seda... que só teria para ti profusão de amor, e de ternos cuidados?!!! Pensas bem... é melhor um homem rico, que te encherá de brilhantes e de jóias preciosas; que te levará ao teatro, aos espetáculos, aos passeios em seu vistoso carro!... tens razão, Celestina; aceita o homem rico, esquece o pobre músico; somente uma coisa te peço: quando correres pelas ruas em tua carruagem, se encontrares o mísero artista, recomenda ao teu cocheiro, que o não salpique de lama... isso será um obséquio feito a quem morrerá pronunciando o teu nome.

 

CELESTINA (Chorando) – Adriano! Que acabas de proferir?... ah! Despedaçaste-me o coração.

 

ADRIANO (Cantando)

 

Não chores; podem no rosto Traços de pranto ficar, E esses sinais de amargura Teu novo amor desgostar.

 

Tem valor, porque bem cedo Para ti vindo a riqueza, Esquecerá, sem remorso, Quem te adora na pobreza.

 

CELESTINA – Ah!... Adriano... és muito cruel!

 

ADRIANO – Como?... ainda em cima sou eu que não tenho razão?... ora não falta mais nada!... tuas ausências, essa luz que em horas mortas vejo em teu quarto... esse maldito homeopata, que te faz propostas sedutoras: tudo isso será um sonho de minha imaginação?...

 

CELESTINA – Eu queria te ocultar a razão por que velo; mas já que me acusas, falo e provarei tua injustiça: essa luz que tens visto em horas mortas, esclarece minhas vigílias; eu aprendo a gravar música... se não me acreditas, posso mostrar-te os meus trabalhos...

 

ADRIANO – Celestina? É possível?...

 

CELESTINA – O meu bom Adriano... disse eu a mim mesma, merece ser feliz, e é desgraçado! Bem... eu não lhe serei pesada... ele tem talento; porém, não querem aceitar suas produções... pois eu as gravarei... nós as espalharemos pelo mundo... finalmente, far-lhe-ão justiça, e eu terei feito alguma coisa para lhe chegar mais cedo a glória e a fortuna, que por força deve ter um dia.

 

ADRIANO – Ah! Celestina! Tu tens tantas virtudes, como aquela jovem mulher que outrora conduzia pela mão a Belisário cego! Mas esse indigno homeopata...

 

CELESTINA – Ele quer casar comigo.

 

ADRIANO – Casar contigo?

 

CELESTINA (Dando uma carta) – Eis a minha resposta; eu lhe ia enviar; podes lê-la; a carta ainda não tem obreia.

 

ADRIANO (Depois de ler) – Recusas, Celestina?... tu recusas um brilhante futuro?...

 

CELESTINA – Sim; e queria também ocultar-te isso.

 

ADRIANO – Ah! Que eu não mereço um anjo, como tu és! Quanto mais sobre mim pesa a pobreza, mais tu te prendes à minha má fortuna: ah! Velha bruxa Beatriz de uma figa!

 

CELESTINA – Não falemos mais nisso.

 

ADRIANO – Ah! Que eu não mereço um anjo, como tu és! Julgado mal de ti, me oprime tão fortemente o coração, que me acho quase em termos de, por indisposto, transferir o bolo inglês, que ofereci aos meus amigos.

 

CELESTINA – Bolo inglês?... e o dinheiro?...

 

ADRIANO – Eu ainda tenho... uns... dezessete mil réis.

 

CELESTINA – Sim?... e como os arranjaste?...

 

ADRIANO – Como os arranjei?... sim... é verdade... foi... um caso muito engraçado; encontrei um amigo, que mos devia e que mos pagou; o procedimento certo que é pouco usado; mas... esta senhora Beatriz... (Indo à porta)

 

CELESTINA (Junto à mesa e vendo a clareza) – Uma clareza!... o seu relógio no Monte de Socorro!... ah! Eu compreendo tudo agora (Guarda a clareza)

 

ADRIANO – Sinto as pisadas da minha velha e insolente criada.

 

CELESTINA – Eu te deixo.

 

ADRIANO – Sem ressentimento, minha Celestina?...

 

CELESTINA – Oh! Sim! Amando-te mais ainda!

 

ADRIANO (Cantando)

 

Adeus, pois o meu ciúme Ofendeu teu coração; Mas do amor, que me consagras, Alcancei fácil perdão.

 

O ciúme é um pecado, Que sempre de amor provém: Sem ciúmes não se ama; Só quem não ama os não tem

 

CENA XII ADRIANO e BEATRIZ que acompanha CELESTINA até a porta

BEATRIZ (pondo no piano copos, pratos, etc.) – Creio, que esta sirigaitazinha olhou-me assim com um ar de desprezo... isto já me vai passando os limites da familiaridade!

 

ADRIANO (Voltando) – Senhora Beatriz, a senhora é uma velha Prosérpina!

 

BEATRIZ – Prosérpina! Prosérpina!... e o senhor é um... é um... é um Prosérpino! (À parte) Entendo isto perfeitamente... a menina untou-lhe mel pelos beiços, e ele caiu como um patinho... como é crédulo, coitado!...

 

ADRIANO – Então tudo está pronto?... mas faltam duas facas...

 

BEATRIZ – Foram essas as únicas que encontrei na gaveta da mesa: e note que uma já está desconjuntada.

 

ADRIANO – Não importa: os meus amigos são ricos, e estão acostumados ao luxo; é bom que vejam um dia e bem de perto como se passa na pobreza: divertir-se-ão ainda mais com isso.

 

BEATRIZ – Devo, porém, dizer, que o meu defunto Pancrácio era bem pobre, mas quando queria dar o seu banquete, mandava-me pedir louça emprestada à mulher do sargento Luizinho...

 

ADRIANO – Silêncio! Sinto que sobrem os meus amigos: limite-se às suas funções; e que se não perceba, que eu discuto com os meus criados.

 

BEATRIZ (À parte) – Criados! Vejam como é insolente este farroupilha.

 

CENA XIII  ERNESTO, EDUARDO, ADRIANO, BEATRIZ e dois amigos

 

Os Amigos

 

Eis-nos prontos para a súcia, Pra comer, beber, folgar; Queremos rir e brincar; Eis-nos prontos, bem o vês; Venha o vinho de Champanhe, Venha o nosso bolo inglês.

 

ADRIANO

 

Bem vinda seja esta súcia, Disposta a rir e folgar; Eu também quero brincar, E brincarei como três: Eis aqui o bom champanhe, Eis o nosso bolo inglês.

 

ERNESTO – Bem vês, que somos exatos!

 

ADRIANO – Eu vos agradeço... vamos, tratemos de sentar-nos. Senhora Beatriz, por ora dispensamos os seus serviços; retire-se...

 

BEATRIZ (À parte) – Há trinta anos passados esta súcia de brejeiros me convidaria a tomar parte na patuscada. (Vai-se)

 

CENA XIV Os Mesmos, menos BEATRIZ

ADRIANO – Sirvamo-nos de bolo inglês!...

 

ERNESTO – Proponho que se dê carta de naturalização a este bolo; parece estar tão gostoso, que vale a pena fazer-se dele uma conquista nacional.

 

ADRIANO – Os vossos copos, senhores...

 

EDUARDO – Eu cá tenho um copo de meio quartilho.

 

ERNESTO – E eu um de lavores dourados!...

 

ADRIANO – Perdoai-me, senhores, o meu aparelho se acha m pouco desprovido...

 

EDUARDO – Isto dobrará ainda o nosso prazer...

 

ADRIANO – Misturemos o champanhe como o Reno e o madeira; viva quem mais beber! (Bebe)

 

ERNESTO – Excelente bolo!... mandarei o meu groom aprender com Adriano a fazer bolo inglês.

 

EDUARDO – Ah! Tu tens um groom?

 

ERNESTO – Desta altura... (Fazendo sinal de pequeno tamanho) inglês de puro sangue...

 

ADRIANO (À parte) – E eu?... só tenho por groom a velha Beatriz!... nada... vou embebedar-me. (Bebe)

 

ERNESTO (A Eduardo) – A propósito: sabes, que comprei um cabriolé?... oh! Coisa encantadora.

 

ADRIANO (À parte) – E eu?!!! Eu cá tenho os ônibus ou as gôndolas em lugar do cabriolé... oh! Sorte endemoninhada!...

 

EDUARDO – Eu pretendo ter um carro magnífico, logo que herdar de meu tio, o conselheiro, trinta contos de réis de renda anual!... nada menos que isso.

 

ADRIANO – Então tu tens um tio com trinta contos de réis de renda?... (Bebe)

 

ERNESTO – Eu conto que minhas tias me deixarão muito mais do que isso... Florindo e Júlio têm igualmente belas heranças em perspectiva... oh! Que belo uso faremos de tanto dinheiro!..

 

ADRIANO (À parte) – Todos eles têm parentes milionários... e eu?... eu tenho as algibeiras em trapos, e nunca me acontece cair-me o dinheiro por elas abaixo! Nem passado, nem parente, nem futuro, sou um pinga na extensão da palavra! Ora isto faz ferver o sangue! (Bebe)

 

ERNESTO – E quem será tão desgraçado que não tenha tios, ou tias ricas?...

 

ADRIANO – Apoiado! Qual será, qual esse desgraçado?

 

ERNESTO – Então, tu também os tens?...

 

ADRIANO – Ora seguramente! (À parte) É boa! Então por que não posso ter também os meus parentes?

 

EDUARDO – Onde mora teu tio?...

 

ADRIANO – Eim?... (Bebe)

 

EDUARDO – Teu tio onde existe?

 

ADRIANO – Meu tio?... não é precisamente um tio... é um primo... oh! Um parente de desempenho! (À parte) Que mentira tão miserável!

 

TODOS – Um primo!...

 

ADRIANO – Sim... um primo, que habita na Califórnia... Paulo... Cláudio... Genipapo... tal qual... e eu que sou o seu único herdeiro. (À parte) todos eles têm tios ou tais, não é muito que eu arranje um primo para mim. (Bebe, e já meio tonto aos outros) Vocês bebem muito sofrivelmente!

 

ERNESTO (Aos outros) – Eis aqui um parente, cuja existência me parece contestável: (A Adriano) então teu primo é muito rico?... o senhor Paulo... Cláudio... Genipapo?...

 

ADRIANO – Oh! Imensamente rico! Foi há quatro anos para a Califórnia, e hoje possui nada menos que dois mil contos... cinco milhões. (À parte) Eu arranjo esta fortuna toda com a maior facilidade... é uma riqueza, que não me custa nada.

 

ERNESTO – E tu, sem dúvida, entreténs com ele a mais viva correspondência... Mostra-nos algumas de suas cartas.

 

ADRIANO – Nada... ele não me escreve há muito tempo; simples delicadeza de sua parte... não quer arruinar-me com os portes do correio.

 

ERNESTO (Aos amigos) – Vejam que desculpa! (A Adriano) Pode ser que teu primo já tenha morrido.

 

ADRIANO – Qual! Se ele tivesse morrido já me tinha mandado participar... ERNESTO – Pois então bebamos à sua saúde!...

 

ADRIANO (Bebendo) – Sim... bebamos! Isto não pode fazer mal nenhum a meu primo.

 

ADRIANO - Sofrido tenho até hoje As privações da pobreza; Mas em breve irei gozar Todo o luxo da riqueza.

 

TODOS - Oh! Vem depressa, Feliz herança! Tu nos prometes Grande folgança

 

TODOS – Viva! Viva!

 

ERNESTO – Oh! Que soberbo futuro!...

 

ADRIANO (Enfraquecendo) – Sim... o futuro... é meu, não tem dúvida; eu sou muito amido do futuro... oh! Que belo primo!

 

EDUARDO – A saúde das nossas namoradas!... viva!

 

TODOS – Hip! Hip! Hip! Urrha!

 

ADRIANO – Viva... meu primo... oh! Sim... meu rico primo...

 

ADRIANO - Morre já, querido primo, E deixai-me o teu dinheiro; Sobe p’ra o céu direitinho, Mas que eu seja o teu herdeiro

 

TODOS - Oh! Vem depressa Feliz herança! Tu nos prometes Grande folgança.

 

EDUARDO (Mostrando Adriano) – Oh! Ei-lo adormecido!

 

ERNESTO – Efeitos do champanhe! Pobre rapaz, não está habituado.

 

ADRIANO (Balbuciando) – Excelente... oh!... o que eu tenho... é... o que eu não tenho... ah! ah! como eles engoliram a história do primo da... Califórnia... ah!... ah!...

 

ERNESTO – O que é que ele está dizendo?

 

EDUARDO – Oh! Eis aqui como é a grande herança do nosso pobre Adriano!...

 

ADRIANO – Ah!... como é... doce... do... doce (Adormece)

 

ERNESTO – Meus amigos, uma idéia!

 

TODOS – Qual?...

 

ERNESTO – Vós sabeis que eu tenho amigos na redação de todos os jornais; pois bem, graças à imprensa, vou dar em um mesmo dia vida e morte a esse primo fantástico imaginado por Adriano; eu quero realizá-lo a fim de o poder matar.

 

TODOS – Excelente idéia!...

 

ERNESTO – Amanhã Adriano contará com esta herança imaginária; essa riqueza lhe durará talvez um dia: nós nos divertiremos com a sua surpresa e com a sua alegria; ele pretendeu divertir-se à nossa custa; pois bem, seremos nós que nos divertiremos à custa dele!

 

TODOS – Apoiado! Apoiado!

 

ERNESTO – Ele está profundamente adormecido: venha uma pena e papel... ides admirar a beleza do meu estilo. (Escreve) “Uma carta da Califórnia, datada de 25 de outubro próximo passado, anuncia com certeza a morte de um brasileiro... “ O nome e sobrenome do fabuloso primo?...

 

EDUARDO – Paulo Cláudio Genipapo.

 

ERNESTO (Escrevendo) – “De nome Paulo Cláudio Genipapo, estabelecido na Califórnia há quatro anos: morreu sem deixar filhos, ficando único herdeiro de sua fortuna, que sobe a cinco milhões, um primo – Adriano Genipapo – jovem músico estabelecido no Rio de Janeiro”.

 

TODOS – Muito bem! Muito bem!

 

ERNESTO – Amanhã esta notícia aparecerá publicada nos três jornais diários da Corte.

 

TODOS – Bravo!

 

ERNESTO – Ah! meu pobre Adriano!

 

EDUARDO – Ei-lo que abre a boca!

 

ERNESTO – ele sonha talvez com a sua pobreza; amanhã sonhará ainda, mas sonhará em completa vigília, então terá um verdadeiro sonho de ouro!

 

EDUARDO – Mais um copo de vinho!

 

ERNESTO – Sim, à saúde de Adriano, e da sua riqueza! (Enchem os copos)

 

ERNESTO - Em pobreza adormecido Há de rico amanhecer; Mas no fim de poucas horas Pobre outra vez há de ser.

 

TODOS - Que viva o herdeiro Dos cinco milhões, Milhões que não valem Nem cinco tostões!

 

TODOS - Hip! Hip! Hip! – Urrha!...

(FIM DO ATO PRIMEIRO)

 

ATO SEGUNDO

O teatro representa a saleta baixa, irregular e pobre de uma mansarda; os traste e mobília da sala do primeiro ato estão em desordem.

 

CENA PRIMEIRA  ADRIANO e BEATRIZ

ADRIANO – Eis-me aqui em uma mansarda! Por cima de um terceiro andar! Se vou neste subir continuado, em pouco tempo mandam-me morar nas montanhas da lua! Não pode haver dúvida nenhuma, eu me acho em uma alta posição! Brigam tanto por esse mundo por causa das altas posições... e eu me vejo sossegadamente de posse da que me concedeu o meu amigo do monopólio do toucinho!... Vamos, senhora Beatriz, acabemos com isto.

 

BEATRIZ – É necessário não ter muita pressa; já estou bastante moída, e fique sabendo, que se me não tivesse pago o mês adiantado, não era capaz de me obrigar a subir até este buraco.

 

ADRIANO – Pois a viagem não é das mais longas... do terceiro andar a este meu novo palácio não há senão uma escada.

 

BEATRIZ – Mas quando se tem já subido dez vezes!...

 

ADRIANO – Sempre lhe acho de mau humor, senhora Beatriz!

 

BEATRIZ – E queria que estivesse muito derretida?... é boa!... uma senhora, que era no outro tempo chamada a formosa Beatriz, e que depois foi casada com um cabo-de-esquadra, ver-se enfim reduzida a representar o papel de criada de um músico!

 

ADRIANO (À parte) – A maldita velha é mil vezes pior que uma maitaca! E eu forçado a sofrer seus maus modos, e suas insolências! Oh! Sorte de uma figa!...

 

BEATRIZ – Toda vossa mobília se reduz a isto, ou tendes mais alguma coisa lá embaixo?...

 

ADRIANO – Senhora Beatriz, no que diz respeito à mobília, dixit! Mas lá embaixo ainda está o que eu tenho de mais precioso, o meu violão e as minhas músicas.

 

BEATRIZ – As músicas?... assim mesmo talvez que algum fogueteiro as quisesse comprar para fazer bombas, e desse por elas duas ou três patacas; e se além disso o senhor vendesse estes trastes a algum belchior, poderia ser que...

 

ADRIANO – Silêncio! A senhora parece haver prometido aos santos de sua maior devoção o não abrir a boca hoje, que não seja para dizer parvoíces; fique pois grunhindo sozinha, que irei eu mesmo buscar aqueles inapreciáveis objetos. (Vai-se)

 

CENA II

BEATRIZ (Sentando-se) Havia de ter que ver, se eu me fatigasse por um músico tão ordinário: nada... vou ler o jornal, que o barbeiro da esquina me emprestou; já há de estar desesperado por ele: em quanto aos arranjos desta mansarda, o senhor musicozinho pode muito bem esperar. Vejamos. (Tira o jornal, põe os óculos e lê) “Guerra do Oriente... os Russos e os Turcos... “ Ah! quem me dera ver esta súcia de Turcos toda ela enforcada!... eu cá sou Russa... Russa até os cabelos!... não posso levar a paciência , que hajam homens, cada um dos quais se case com cinqüenta mulheres!... todas as senhoras devem ser Russas. (Lê) “Fala-se em mudança de ministério...” Que me importa?... para mim suba quem subir é sempre a mesma coisa! Quem vê um, viu todos. (Lê) “ontem estiveram expostos durante todo dia no campo da Aclamação um burro, dois cachorros, e três gatos mortos...” Ora que asneira! Pois o campo da Aclamação não é mesmo o lugar do despejo público?... (Lê) “Uma carta da Califórnia , datada de 25 de outubro próximo passado, anuncia com certeza a morte de um Brasileiro de nome Paulo Cláudio Genipapo...” Genipapo?... é o mesmo nome do tal musicozinho das dúzias. (Continua a ler baixo e espantada) Oh! Meu Deus!... será possível!... era seu primo!... e ele fica seu único herdeiro!... só se eu me engano... (Ergue-se e esfrega os óculos) Vejamos... vejamos... (Lê) Não... está aqui!... impresso!... em letra redonda!... o senhor Adriano milionário!... e eu chamá-lo musicozinho... não, língua danada! É um musicozão, maior que Rossini, que Donizetti, e que toda essa gente da casa da ópera! É maior que... que... é maior que tudo enfim: o senhor Adriano milionário, vai ter uma casa... criados... é bem capaz de me tomar para sua criada grave... Que inconseqüência havê-lo tratado sem o devido respeito... então eu... eu que sempre tive ao senhor Adriano a maior amizade... mesmo uma amizade que faria desconfiar, se eu já não fosse maior de cinqüenta... vamos pois... zelo... cuidado... trabalhemos com boa vontade... (Arruma os trastes com ardor)

 

Eu não sou velha enfezada, Menos beata fingida; Sou uma boa criada, Que gosta da vida.

 

E o amorzinho que eu tenho É bom como um serafim, É uma jóia, um tesouro, Um cupido de alfenim.

 

CENA III BEATRIZ e ADRIANO, trazendo o violão e as músicas

ADRIANO – Finalmente, eis aqui tudo.

 

BEATRIZ (Correndo a ele) – Oh! Senhor Adriano, meu amorzinho do coração da minha alma! Para que tomou o trabalho de ir buscar tanta coisa lá embaixo?... era eu quem devia ir... eu tinha obrigação disso...

 

ADRIANO (Espantado) – O que é isto, senhora Beatriz?... a senhora está deveras falando comigo?...

 

BEATRIZ – Certamente: por ventura não sou criada de Vossa Senhoria?

 

ADRIANO – Senhora?!!! Senhora Beatriz, diga, está em seu perfeito juízo?...

 

BEATRIZ – Nunca me senti melhor.

 

ADRIANO – Nada... a senhora não está no seu estado normal.

 

BEATRIZ – Sim, senhor... estou mesmo no natural da minha natureza!

 

ADRIANO – Todavia... esta esquisita urbanidade... os obséquios que agora me está fazendo... esta mudança do preto para o cor-de-rosa operada em um instante... tudo, tudo é um fenômeno em nossas relações quotidianas.

 

BEATRIZ – Talvez que, às vezes, eu me tinha achado de mau humor... é necessário perdoar os pesares internos que me atormentam: quando se tem recebido uma certa educação, e se chegou a ser...

 

ADRIANO – Ah! sim... sim...

 

BEATRIZ – É duro ver-se depois a gente reduzida a uma triste posição: tirando disto, eu não sou má, e, olhe, tive sempre por Vossa Senhoria a mais decidida predileção...

 

ADRIANO – Senhoria outra vez!... enfim, seja como for, antes como está, do que como estava.

 

CENA IV BEATRIZ , ADRIANO e CELESTINA, trazendo manuscritos de música e chapas de cobre.

 

CELESTINA – Bom dia, Adriano; trago-te as minhas chapas de música, para que admires os meus progressos.

 

BEATRIZ – Oh! Que calamidade! Mãos tão delicadas carregando semelhante peso! Dê-me isso, senhora, dê-me... ande... sente-se... eis aqui uma caixa... descanse...

 

CELESTINA (Admirada) – Obrigada... agradecida... senhora Beatriz; (A Adriano) Adriano, como se explica isto?...

 

ADRIANO (A Celestina) – Celestina, isto como se explica?...

 

CELESTINA – Senhora Beatriz, olhe bem para mim: a senhora está bem certa de quem eu sou?

 

BEATRIZ – Oh! Se estou! A senhora é a moça mais bela, mais modesta e mais perfeita das vinte províncias do Império do Brasil, e isto é o que eu tenho sempre dito e sustentado.

 

ADRIANO – Senhora Beatriz, pois que enfim a senhora acaba de fazer ponto, concluindo a oração com um sentido perfeito; aproveito o ensejo para pedir-lhe que vá lá para baixo procurar por mim, e ver se me descobre escondido em algum canto.

 

BEATRIZ – Pois não, meu senhor, eu deixo Vossa Senhora em liberdade; (À parte) vou em um pulo dar a notícia ao senhor Pantaleão.

 

CELESTINA (À parte, pondo uma caixa de relógio na gaveta) – Ele não me está olhando... aproveitemos o momento.

 

BEATRIZ – Se Vossa Senhoria tiver necessidade de mim, basta um simples aceno; estou e estarei sempre pronta a servi-lo com gosto; (A Celestina) sua serva... (A Adriano) senhor... (A Celestina) senhora... (A Adriano) senhor... (Vai-se fazendo mil cumprimentos, e sem jamais dar as costas)

 

CENA V ADRIANO e CELESTINA

CELESTINA – Eu não posso compreender isto...

 

ADRIANO – Consola-te comigo, minha amiga; é um prodígio, é um fenômeno estupendo para quem está no último apuro do infortúnio, como eu: sim... porque tudo o estás vendo, é impossível que eu desça mais abaixo, por quanto estou morando quase em cima do telhado.

 

CELESTINA – Fizeste algum presente à senhora Beatriz?

 

ADRIANO – Qual! Apesar do meu gênio um pouco extravagante, numa me veio ao pensamento semelhante asneira; mas, enfim, deixemos a minha grotesca criada; dize: como achas o meu novo domicílio?...

 

CELESTINA – Excelente.

 

ADRIANO – Muito pequeno, não é isso?...

 

CELESTINA – Não vejo razão para que te estejas lastimando (Canta)

 

No rico palácio De outro fulgente Nem sempre o vivente Encontra o prazer.

 

As vezes num rancho De palha formado Se vê, como o fado Dá grato viver.

 

Ah, sim, que se goza O néctar mais puro, Se no rancho escuro Dois podem caber.

 

ADRIANO – É assim, certamente que é assim; mas sempre com a condição de caberem dois no tal ranchinho; e este é o meu rancho... e se algumas economias me fossem possíveis, eu daria aqui mesmo um lugar a ti, como minha legítima mulher.

 

CELESTINA – Isso é verdade, Adriano?... bem verdade?... Ah! tu não compreendes como esse pensamento é doce para o meu coração!

 

ADRIANO – Não tenho te dito já, Celestina, que logo que as circunstâncias o permitam...

 

FELISBERTO (Dentro) – Mais acima?... obrigado.

 

ADRIANO – Ainda este maçante alfaiate!...

 

CELESTINA – Eu me retiro...

 

ADRIANO – Não, pelo contrário, demora-te: talvez que a tua vista lhe diminua a ferocidade; ah! que demônios seriam os que inventaram os credores!!!

 

CELESTINA – Sem dúvida, Adriano, foram os devedores.

 

CENA VI FELISBERTO, ADRIANO e CELESTINA

ADRIANO – Oh! Pois não! (À parte) Entra, diabo.

 

FELISBERTO – Eu estou desesperado por me ver obrigado a parecer importuno!

 

ADRIANO (À parte) – Mais desesperado do que eu não está, certamente ele.

 

FELISBERTO – Passando por acaso por diante desta casa...

 

ADRIANO (À parte) – Os credores passam sempre casualmente por defronte da porta dos devedores.

 

FELISBERTO – Meu caro amigo, ontem eu fui por demais apressado... não estava em mim... um negócio importante me preocupava tanto, que o deixei de repente e sem lhe tomar medida, ao acordar hoje, lembrei-me do meu bom amigo, como sempre me acontece, porque realmente e lhe tributo verdadeira estima; lembrei-me, pois, e disse comigo mesmo: o meu caro Adriano precisa de minha tesoura e... eis-me aqui... (Desdobrando a medida)

 

ADRIANO (À parte) – Ora esta agora ainda é melhor!... eu estou no mundo da lua!... (A Felisberto) Então o senhor diz...

 

FELISBERTO – Vestido preto, completo, não é assim?...

 

ADRIANO – Senhor Felisberto... então eu... e o senhor... sim... o senhor e eu... como ontem... era ontem... e hoje... (À parte) Eu não sei mesmo o que lhe hei de dizer... isto é uma charada indecifrável.

 

FELISBERTO – Mas o que pretende fazer-me entender?...

 

ADRIANO – Eu?... pois se exatamente sou eu, que não entendo nada, homem!

 

FELISBERTO (À parte) Ainda não sabe... tanto melhor; isto me fará honra... (A Adriano) Nada há mais inteligível; quero tomar-lhe medida.

 

ADRIANO – Contudo, ontem o senho negou-se a isso, e creio mesmo, que chegou a ameaçar-me.

 

FELISBERTO – Eu?... eu?... como?... o senhor me confunde com outro: eu ameaçar ao meu maior amigo?... a aquele, em cuja defesa eu me deixaria fazer em postas, morreria até, exclamando no momento de morrer – oh! Glória! Morro por um amigo! – amicus est alter ego!!!

 

ADRIANO (À parte) – Começo a me persuadir que estou com o juízo virado! Quem sabe se ainda me dura a mona de ontem?... porque é impossível, eu juro,que tudo isto que acontece esteja realmente acontecendo.

 

CELESTINA (À parte) – Aqui há mistério, seja ele qual for.

 

FELISBERTO – Nós dizíamos, pois – vestido preto...

 

ADRIANO – Nada: a roupa preta é muito cara, e estraga-se muito depressa; antes quero azul.

 

FELISBERTO – Por conseqüência, preta e azul; a azul em verdade tem seu lugar; atualmente, porém, o senhor Adriano há de precisar de preta.

 

ADRIANO (À parte) – Ah! entendo: este mequetrefe tem na loja alguma porção de pano preto velho, e como se vê em termos de mandá-lo atirar à praia, prefere fazer-me roupa com ele. (Felisberto toma a medida e canta).

 

FELISBERTO

 

Deixe que eu tome a medida...

 

ADRIANO

 

Sim, senhor...

 

FELISBERTO

 

Fique direito. Nunca vi moço mais lindo, Mais garboso, e mais bem-feito.

 

ADRIANO

 

Ora, até já sou bonito!

 

FELISBERTO

 

Sempre o foi

 

ADRIANO

 

Inda mais essa! Ou estou doido ou este amigo, Quer pregar-me alguma peça.

 

AMBOS

 

FELISBERTO

 

Fazer esta roupa Que gosto me dá! Que linda casaca Não lhe sairá!

 

ADRIANO

 

A tal roupa nova Cuidado me dá; Que cara casaca Não me sairá!

 

ADRIANO – Mas já de antemão lhe vou declarando que duvido muito, que lhe possa pagar, ouviu?... não sei se lhe poderei pagar, entendeu?...

 

FELISBERTO – Oh! E quem foi que lhe falou aqui em dinheiro, meu amigo?...

 

ADRIANO – Nada! Não posso mais viver com tal mistério! Senhor Felisberto, explique-se: ontem, eu não lhe merecia um ceitil de crédito e hoje...

 

FELISBERTO – Oh! Sim! Ontem, hoje, amanhã o senhor tem sido, é, e será sempre o meu amigo do coração: eis a única explicação, que pode dar uma alma sensível como a minha.

 

ADRIANO (A Celestina) – Celestina, vai pedir que me preparem um quarto no hospício dos alienados da Praia Vermelha.

 

FELISBERTO – Enfim, o meu caro amigo Adriano me dará a honra de tomar um lugar no meu caleche, e iremos juntos à minha casa escolher o mais finos panos.

 

ADRIANO – A melhor! Quer que eu lhe faça a honra de tomar um lugar no seu caleche!... então que me dizem a esta?...

 

FELISBERTO – Nada de cerimônias... verá como ele é elegante... talvez que lhe dê na cabeça comprar-mo... olhe... pode se quiser, ficar com ele, e com os cavalos, que são magníficos, por três contos de réis, é quase de graça...

 

ADRIANO – E esta?... pois o homem não quer me vender o caleche?!!!

 

FELISBERTO – Não percamos tempo... o seu chapéu. (Dá-lhe o chapéu) a sua bengala... pois não tem bengala?... é indispensável eu lhe cedo a minha... tenho outras em casa... esta custou-me sessenta mil réis; olhe, é de unicórnio, e tem rico castão de ouro; eu lhe cedo pelo custo...

 

ADRIANO – Então eu hei de dar sessenta mil réis por isto? Estou quase gritando ah! quem d’El-Rei!... esta gente quer pôr-me doido...

 

FELISBERTO – Oh! Sessenta mil réis... que vale isso?... o senhor não pode fazer caso de semelhante bagatela. (Canta)

 

Querido amigo, enfim, É tempo de pôr casa, Fazer não pode vasa Vivendo sempre assim Meu caro, eu já lhe acudo, Porquanto tenho tudo Que possa desejar; Oh! Venha me comprar Mobília nova e linda De França há pouco vinda, Cadeiras de lavores Quatorze aparadores, Divãs, sofás e mesas De formas e belezas Em tudo variadas: As mesas regulares Redondas, ou quadradas, E até triangulares; Por uma ninharia Lhe cedo a livraria, Que bem cara comprei! Também lhe venderei O meu melhor carrinho, E até o fardamento Pra um lindo joqueizinho, E tudo a bom contento; Sim, sim, venha comprar. Que em tudo que lhe vendo, Amigo, o que pretendo É só gosto lhe dar.

 

ADRIANO – Ora, louvada seja a Providência! Pois que, enfim, conheço que quem está doido não sou eu, é ele!

 

FELISBERTO – Vamos, vamos depressa, amigo do coração.

 

ADRIANO – Adeus, Celestina, eu me deixo levar para ver isto em que dá.

 

CENA VII Os mesmos, e PANTALEÃO que aparece apressado

PANTALEÃO (A Adriano) – Um instante!...

 

ADRIANO – O taberneiro monopolizador do toucinho! Agora sim, estou apertado... (Querendo sair) Desculpe, senhor Pantaleão...

 

PANTALEÃO – Não o posso deixar assim... tenho um negócio mais importante, do que o próprio monopólio da carne fresca.

 

FELISBERTO – Conclua os seus negócios, meu amigo; não lhe quero ser incômodo; vou esperá-lo em minha casa....

 

ADRIANO (Querendo sair) – Nada... já agora eu também vou

 

PANTALEÃO (Retendo-o) – De modo nenhum... os momentos são preciosos...

 

ADRIANO (À parte) – Como me safarei eu das unhas deste gavião!...

 

FELISBERTO (À parte)

 

A sós conferenciando, Ambos vão aqui ficar; Que tratada será esta?... Que irá disto resultar?...

 

ADRIANO

 

A sós conferenciando, Nós vamos aqui ficar; Que maldito taberneiro, Que maçada me vai dar!

 

PANTALEÃO

 

A sós conferenciando, Nós vamos aqui ficar; Não me escapa o milionário, Eu o hei de conquistar

 

CELESTINA

 

A sós conferenciando, Eles vão aqui ficar; Anda nisto algum mistério, Que eu não posso desnublar.

 

CENA VIII ADRIANO e PANTALEÃO

PANTALEÃO – Meu jovem e prezado amigo, agora que estamos sós, eu me posso desabafar...

 

ADRIANO (À parte) – Oh!... pis também o taberneiro?... Que diabo quer dizer isto?... estarei dormindo... ou... ou... querem ver que grassa na cidade alguma peste de loucura!...

 

PANTALEÃO – Mas, antes de tudo, consinta Vossa Senhoria...

 

ADRIANO (Estupefato) – Vossa Senhoria!!! Eles acabam hoje por dar-me excelência!...

 

PANTALEÃO – Consinta Vossa Senhoria que eu lhe abrace, e que faça correr por suas faces uma lágrima de dor, que Vossa Senhoria ajuntará àquelas que, sem dúvida, já tem derramado hoje!...

 

ADRIANO – Eu, senhor?... eu ainda não derramei hoje uma única lágrima!

 

PANTALEÃO (Chorando) – Isso depende dos temperamentos; cá eu choro como um bezerro!...

 

ADRIANO (À parte) – Há de ser conseqüência da profissão.

 

PANTALEÃO – Vossa Senhoria, sem dúvida, é duro para chorar...

 

ADRIANO – Mas, sou eu algum bobo para andar chorando à toa?... chorar por que, homem dos meus pecados?!

 

PANTALEÃO – Comigo é inútil o fingimento... eu sei tudo!...

 

ADRIANO – Está mais adiantado do que eu, que ainda não sei nada.

 

PANTALEÃO – Pois, vá que não saiba: mudemos de assunto, e tanto mais que vou propor-lhe um negócio importante. Senhor Adriano, estou decidido de pedra e cal a meter-me com unhas e dentes no monopólio do toucinho e da carne fresca; mas para isso é, como lhe dizia ontem, necessário dinheiro grosso.

 

ADRIANO (À parte) – Entendo agora: o maldito taberneiro untou-me mel pelos beiços para acabar pondo-me fora deste buraco!...

 

PANTALEÃO – Sou, portanto, obrigado a vender as minhas propriedades; ora, como Vossa Senhoria não o ignora, eu sou proprietário de uma filha muito bem edificada, e pai de uma casa perfeitamente educada... ora... quero dizer...

 

ADRIANO – Entendo... entendo... é isso mesmo, trocando a casa pela filha.

 

PANTALEÃO – Na nova posição em que Vossa Senhoria se acha...

 

ADRIANO – Que posição, senhor!... (À parte) eu creio que esta caçoada já vai passando a desaforo... e se me chega a mostarda ao nariz, eu caio de soco inglês nesta súcia toda.

 

PANTALEÃO – Basta de gracejar... falemos seriamente... Eu sou um homem sério, e muito honrado.

 

ADRIANO (À parte) – Oh, pois não! Etanto o é, que meteu-se com unhas e dentes no monopólio do toucinho.

 

PANTALEÃO – Na sua nova posição tem Vossa Senhoria necessidade de uma casa e de uma mulher: Vossa Senhoria meu amigo do coração, conhece minha filha, e esta casa; venho, pois, rogar-lhe que me compre a propriedade, e que se case com a rapariga...

 

ADRIANO (Estupefato) – A casa... e a moça?... ora isto só pelo diabo: é demais! É pouca vergonha! Senhor Pantaleão, o senhor supõe que deve divertir-se à minha custa?!! (À parte) estou quase atirando-me a ele!

 

PANTALEÃO – O que, senhor?... Pode Vossa Senhoria ficar certo, de que lhe ofereço um brilhante partido. (Canta)

 

Minha casa é um palácio; Minha filha é um peixão; Compre a casa, aceite a moça E verá como ambas são; E verá que eu dou-lhe provas Da mais ardente afeição.

 

Não rejeite este partido, Por quem é não dê um não; Se rejeita, cai a casa, Fica a moça em convulsão, E eu julgando que duvida Da minha ardente afeição.

 

ADRIANO – E ontem, Senhor Pantaleão?... e ontem?...

 

PANTALEÃO – Oh! Meu prezado amigo! Não falemos no dia de ontem... eu tinha tomado uma carraspana... ontem foi ontem, e hoje é hoje.

 

ADRIANO – Isso agora é a pura verdade: pode mesmo ir adiante, e declarar-me muito solenemente, que amanhã será amanhã.

 

PANTALEÃO – Ontem, já o disse, que estava eu fora de mim; mas despertando esta manhã, meu amigo, abri os olhos...

 

ADRIANO – É provável que o fizesse; eu lhe creio.

 

PANTALEÃO – E disse então com os meus botões: minha filha e minha casa podem cair em mãos desconchavadas; o senhor Adriano é um varão nobre e ilustrado, e portanto habitará bem a casa, e dará boa vida à rapariga.

 

ADRIANO – Nada! Não posso mais; agora ou há de explicar-se, ou eu atiro-me a ele como um danado (A Pantaleão) Senhor Pantaleão, peço a palavra.

 

PANTALEÃO – Oh! Vossa Senhoria pode falar tanto quanto desejar: quem seria tão atrevido, que ousasse cortar-lhe a palavra?...

 

ADRIANO – Pois vamos ver: escute-me:

 

PANTALEÃO – Sou todo ouvidos, para servir a Vossa Senhoria...

 

ADRIANO – Há uma boa hora que o senhor me fala de lágrimas, de casa e de casamento; desde hoje de manhã eu sou uma espécie de obelisco, envolvem-me em charadas... em logogrifo...

 

PANTALEÃO – Para que dissimular por mais tempo?... oh! Eu li, u li o jornal!...

 

ADRIANO – Que jornal, homem de todos os diabos?...

 

PANTALEÃO (Tirando o jornal) – Tenho-o ainda no meu bolso tome... tome... veja...

 

ADRIANO (Lendo) – O!... que é isto?... na Califórnia... um primo... Paulo Cláudio Genipapo... cinco milhões... eu Adriano seu herdeiro... que... que... que quer dizer isso?... (Interdito)

 

PANTALEÃO – Pois não o sabia?... Quanto sou feliz por ser o primeiro! Abracemo-nos, meu bom amigo do coração! (Abraça Adriano, que fica imóvel)

 

ADRIANO – Senhor Pantaleão... permita que eu me assente... (Pantaleão corre a buscar uma cadeira) por cinco minutos: quando se recebe uma notícia destas, a gente sempre se assenta por cinco minutos. (Enquanto Pantaleão fala, Adriano conta pelos dedos, falando consigo mesmo)

 

PANTALEÃO – Vossa ilustre senhoria vai saborear todos os prazeres da fortuna, todas as vantagens sociais, que ela facilita: se se quiser dar ao comércio, meu amigo do peito, vossa Senhoria tem fundos suficientes para meter-se sozinho no monopólio do toucinho, da carne fresca, da farinha, do milho e do feijão... Oh! Que feliz e felicíssimo mortal!

 

ADRIANO (Sem prestar atenção) – Cada milhão... quatrocentos contos... são cinco milhões... cinco vezes quatro, vinte... são vinte cem contos!... que são dois mil contos... dois mil contos são cinco milhões... cinco milhões são dois mil contos!... Isto faz andar a cabeça da gente à roda!... dois mil contos!...

 

PANTALEÃO – E se preferir a política, Vossa Senhoria será eleitor... juiz de paz... comandante da guarda nacional... deputado... e até barão!... isto é muito agradável ao amor próprio!

 

ADRIANO (Levantando-se) – Muito obrigado. (À parte) Am!... tudo agora se desembrulha! As delicadezas, as amizades, as senhorias, os oferecimentos... oh! Dinheiro!!! (A Pantaleão) Senhor Pantaleão, eu sou um rapaz muito bem criado para que me atreva a declarar que o senhor e este jornal faltam à verdade; mas...

 

PANTALEÃO – Eu não quero saber disso, vim aqui para perguntar a Vossa Senhoria se quer comprar esta casa.

 

ADRIANO – Eu ia dizendo que...

 

PANTALEÃO – Perdoe-me Vossa Senhoria: minha casa lhe convém?

 

ADRIANO – Certamente que sim. (À parte) Quanto à filha, nem pelo diabo! É uma maitaca que fala até pelas pontas dos dedos.

 

PANTALEÃO (Tirando um papel do bolso) – oh! Eu o adivinhava: acabemos portanto já com este negócio...

 

ADRIANO – Mas se eu não tenho real de meu, senhor.

 

PANTALEÃO – Oh! Não falemos em dinheiro... Vossa Senhoria tem crédito na praça: acabo de redigir este contrato, pelo qual Vossa Senhoria me compra esta casa, e se obriga a dar-me por ela doze contos de réis, pagos no fim de seis meses, e com o direito de desfazer o contrato no fim de um mês; e eu, pela minha parte, no caso de arrendamento, me obrigo a pagar-lhe para reaver o imóvel, dois contos de réis. Serve assim?...

 

(Adriano lê o contrato) Este mundéu não vale oito contos... e se ele aceita...

 

ADRIANO – Pois vá; assinarei este papel, que finalmente a nada me obriga: mas veja que é a pesar meu. (Assinam ambos dois papéis, cada um guarda o seu)

 

PANTALEÃO – Quanto a isto, estamos arranjados; a respeito da rapariga, brevemente falaremos: o meu amigo não se arrependerá destes dois negócios: uma mulher excelente... uma propriedade que não o é menos... ainda jovem e formosa... Vossa Senhoria a fará rebocar... a propriedade é deliciosa... cheia de talentos e de graças: e que nariz, senhor!!! A rapariga então é um portento! É toda feita de pedras de talha... ótimas madeiras... e finalmente... sim, amigo do coração, adeus! Eu sou um mortal imensamente afortunado! Oh! Sim!... Vossa Excelência aperta a mão de um mortal imensamente afortunado... (À parte) Oh! Ifigênia, tu serás milionária e eu entrarei no monopólio com o dinheiro do genro!... (A Adriano) adeus, amigo do peito, adeus!

 

ADRIANO – Oh! Dinheiro! (Cantam)

 

PANTALEÃO (À parte)

 

Eu também sou como os outros, Não é por ser marralheiro; Mas me derreto em ternuras Ao pé de quem tem dinheiro.

 

ADRIANO (À parte)

 

Este é como alguns que eu sei Adulador, marralheiro; Os favores, que me oferece, São foscas ao meu dinheiro.

 

CENA IX

ADRIANO (Só) – Agora sim, entremos em nós... conversemos um pouco com a consciência... estou em um perfeito juízo... estou, não há dúvida! Não me acho bêbado, nem doido! Tenho... ou tive um primo... na Califórnia... Paulo Cláudio Genipapo... na minha árvore genealógica, nos anais de minha família, eu encontro um tio, que enquanto vivo foi patrão de uma sumaca... chamava-se ele mestre Leonardo Genipapo... ora, quando se tem tido um tio, não é nenhum impossível, que depois a gente venha a ter não só um, como até cinqüenta primos... todos querem que eu seja o único herdeiro de um primo, que deixou milhões... a imprensa proclama isso por suas mil bocas... não é por conseqüência admissível, que todos se enganem... (Depois de um instante de silêncio) tolo, e muito tolo sou eu em não dançar, em não saltar por esta sala: é verdade! Sou rico! Tenho dinheiro! Sou milionário!... oh!... (Canta e dança)

 

Enfim, o senhor destino Ser justo quis uma vez; De suspirados milhões Feliz herdeiro me fez.

 

Sou rico! Sou rico! Já tenho outro rosto! Sou rico! Sou rico! Não caibo de gosto!

 

Vejam já quantos amigos Mal me deixam respirar! “que cambada de marrecos pega neles p’ra capar.”

 

Sou rico! Sou rico! Já tenho outro rosto! Sou rico! Sou rico! Não caibo de gosto!

 

CENA X CELESTINA e ADRIANO

ADRIANO – Ah! és tu, Celestina?... vem ajudar-me a gozar esta alegria desordenada! Eu sou rico, Celestina, eu sou milionário!...

 

CELESTINA – Já o sei.

 

ADRIANO – Leste algum jornal?...

 

CELESTINA – Não; foi a senhora Beatriz.

 

ADRIANO – É o mesmo; ela é a verdadeira gazeta do quarteirão; mas desta vez a senhora Beatriz falou a verdade, o que certamente é um pouco extraordinário. Sim, eis aqui o jornal, o bem-aventurado jornal!... Celestina, tu vais ser feliz.

 

CELESTINA – Eu feliz!... pois vê, como sou criança; tua inesperada riqueza quase que me tem causado aflição.

 

ADRIANO – Oh! Não sejas tu a primeira que maldigas a minha fortuna: tu vais deixar o teu pequeno quarto para morar num sobrado cheio de espelhos de doze pés de altura!

 

CELESTINA – não sou ambiciosa: esta modesta câmara me viu tão feliz com o teu amor, que jamais a poderei deixar sem saudades.

 

ADRIANO – Oh! Os espelhos de doze pés de altura nada será ainda: terás móveis de mogno, ricas porcelanas, vasos de Sèvres, fortes-pianos e pianos-fortes; vestidos de seda, chapéus de plumas, xales de toquim, adereços de brilhantes, jóias preciosas, ouro, coralinas, esmeraldas, o diabo, Celestina, terás o diabo a quatro: e quando te virem passear comigo de carruagem, eles... esses sujeitinhos todos que nos torciam ainda ontem o nariz, hão de abaixar os olhos, e dizer: “Aquela moça deve estar bem contente por ter um amante; que com extremo tal a adora!”

 

CELESTINA – Um amante!... mas ainda esta manhã, Adriano, tu dizias um marido! Não é a riqueza, é a verdadeira felicidade que eu aspiro, Adriano, estarás tu mudado?...

 

ADRIANO – Eu mudado?... oh!... não... não... mas... Celestina, isso é puerilidade: um amante... um marido... veremos... mais tarde... veremos é simplesmente uma mudança de palavra.

 

CELESTINA – mas essa palavra, senhor, é tudo para a mulher honesta; reconheço já que a vossa nova posição vos tornou outro: a pobre Celestina não é mais a mulher que se vos faz necessária...

 

ADRIANO – Eu não disse isso... todavia, falas de um modo que...

 

CELESTINA – Tendes razão, senhor, eu compreendo, eu adivinho tudo! (Canta)

 

Pobre me olhavas Digna de amor; Mas hoje rico, Mudas, senhor.

 

Eu sou a mesma, Não mudarei; Qual vos amava Vos amarei.

 

ADRIANO – Mas, Celestina, que motivo...

 

CELESTINA – (Canta e chorando vai-se)

 

P’ra vós mudar, No pobre quarto Me ireis achar.

 

Constante e pura Sempre serei, Pobre de novo Vos amarei.

 

ADRIANO – Que teima! Quem te disse que eu te desprezo?...

 

CELESTINA (Canta e chorando vai-se)

 

Rico vos deixo, Pura me ausento; Mas levo n’alma Cruel tormento

 

Vossa ventura Façam os céus. Adeus... eu parto; Senhor, adeus!

 

CENA XI ADRIANO e FELISBERTO

ADRIANO – Celestina! Celestina! Eis aqui como são as mulheres! Deitam-nos sempre água na fervura.

 

FELISBERTO – Ainda eu!

 

ADRIANO – Senhor Felisberto, eu lhe rogo que para outra vez se faça anunciar; não se entra na casa de um homem da minha hierarquia, como aí na espelunca de qualquer...

 

FELISBERTO – Perdão! Mil vezes perdão: porém, um negócio da maior transcendência... (Enquanto Adriano procura uma cadeira e senta-se, diz Felisberto à parte) Tenho presentemente a certeza de que esta casa se acha no alinhamento da rua projetada, e portanto ela me é necessária por todo preço.

 

ADRIANO (Sentado) – Então que temos?...

 

FELISBERTO – Senhor Adriano, Vossa Senhoria me faz um grande mal.

 

ADRIANO – Deveras?...

 

FELISBERTO – Sim: acabo de sair da casa do senhor Pantaleão, que me assegurou ter vendido esta propriedade a Vossa Senhoria.

 

ADRIANO – É certo; e que mais?...

 

FELISBERTO – Mas é que Vossa Senhoria não sabe, que eu tenho absoluta necessidade desta casa: eu a desejo ardentemente... certas recordações de família...

 

ADRIANO – Sim... sim... tudo isso é muito possível; mas também eu tenho aqui minhas recordações, e portanto conservarei a propriedade.

 

FELISBERTO – Quê! Pois Vossa Senhoria não quereria ceder-ma!

 

ADRIANO – O que há de ser! Veio-me o desejo de representar o papel de proprietário: despediram-me tantas vezes de casas onde morava, que tenho vontade de pôr também os outros no meio da rua; é mais agradável ter inquilinos do que sê-lo; e olhe, não se pode aturar inquilinos! Põem um homem doido... não pagam ao senhorio!

 

FELISBERTO – E se eu desse por esta casa quatorze contes de réis?...

 

ADRIANO – Quatorze contos?... o que são nesta vida quatorze contos de réis?...

 

FELISBERTO – Oh! É dinheiro, que se custa a ganhar!...

 

ADRIANO – Ah! ah! ah!... a quem diz o senhor isso?...

 

FELISBERTO – Está bem, darei dezesseis contos à vista...

 

ADRIANO – Dezesseis contos!... (À parte) É verdade que todos me falam de milhões, que eu possuo, mas confesso, que não me desagradaria ter já e quanto antes alguns bilhetes do banco no bolso... (A Felisberto) – Pois bem.... quero ser condescendente... aceito.

 

FELISBERTO – Dentro em meia hora trago-lhe o dinheiro; é negócio concluído.

 

ADRIANO – Eu lhe dou a minha palavra... também... olhe: por ora é a única coisa que eu tenho para dar.

 

FELISBERTO - Ela me basta, honrado amigo.

 

FELISBERTO (Canta)

 

Que bom negócio, Que vou fazer; Oh que ventura! Oh que prazer!

 

ADRIANO

 

Que chuva de ouro Está-me a chover! Oh que ventura! Oh que prazer!

 

FELISBERTO

 

Parto depressa Sem mais tardar, E o seu dinheiro Vou já buscar.

 

ADRIANO

 

Parta depressa Sem mais tardar E o meu dinheiro Vá já buscar.

 

CENA XII ADRIANO, só

Eu disse uma chuva... qual chuva! É uma inundação! É um dilúvio de prosperidade! Entremos na investigação das necessidades do nosso toilette, e primeiro que tudo ponhamos nossas antigas misérias no meio da rua! (Abre a gaveta e vê o relógio) oh! O que quer dizer isto!... o meu relógio?... o relógio, que eu havia empenhado no Monte de Socorro?... aqui anda obra do gênio do bem ou do pé-de-carneiro; mas... oh! Que raio de luz!... sim, é o gênio do bem... Celestina! Não há dúvida... foi ela... com o fruto do seu trabalho... sim, foi ela! E eu fiz chorar aqueles belos olhos! Ah! eu sou um rico orgulhoso e mau! Graças, porém a Deus, que tudo se pode ainda reparar. Senhora Beatriz! Senhora Beatriz! morta ou viva, e ainda que rebente no caminho, a senhora Beatriz irá buscar-me Celestina... senhora Beatriz! Ela me há de trazer a minha bela celestina! (Aparece Beatriz e Celestina, Adriano cai aos seus pés.)

 

CENA XIII CELESTINA, ADRIANO e BEATRIZ. – CELESTINA recua, ficando ADRIANO de joelhos aos pés de BEATRIZ

 

ADRIANO (De joelhos e com os olhos baixos) – E eu cairei aos seus pés pedindo-lhe o meu perdão, e lhe direi: Tu que és bela como um anjo, pura como um raio de sol, meiga como a pombinha do vale, perdoa-me!... esqueci por um instante que tu eras cheia de graças, e se sentimentos nobres, e que só querias, antes de tudo, um nome, o nome daquele a quem amas... oh! Bem... eu te ofereço o meu nome e a minha mão! (Toma a mão de Beatriz e beija-a) Ah! tu me perdoas!... (Levanta a cabeça) Ora... e esta! Com que estava eu falando!... (Vê Celestina) Ah! tu estás aí!

 

CELESTINA – E te compreendi bastante, Adriano.

 

BEATRIZ – E eu também, senhor Adriano, e se não fosse tão escrupulosa já teria abraçado a Vossa Senhoria excelentíssima! (À parte) Nunca ouvi tantas ternuras do meu defunto Pancrácio.

 

ADRIANO (Mostrando o relógio) – Minha Celestina, eu adivinhei tudo!

 

BEATRIZ – Consegui retê-la no meu quarto: suas lágrimas puseram-me o coração em cinco pedaços, e como sei por experiência própria que os namorados brigam e fazem as pazes trinta vezes por dia...

 

ADRIANO – Mas agora, Celestina, tu me desprezas?

 

CELESTINA – Não, não, meu amigo, tudo está esquecido.

 

ADRIANO – Eu te desposo, minha Celestina, e a felicidade entrará em nossa casa com o ato do nosso casamento.

 

CELESTINA – E ficará para sempre morando conosco.

 

BEATRIZ (Limpando os olhos) – E eu ainda a chorar... vejam só! E isto me fazia esquecer, que hoje o excelentíssimo senhor meu amo tem sido procurado por toda a cidade em peso: tenho lá dentro um balaio cheio de cartas e bilhetes de visita: eu vou buscar. (Entra e volta logo)

 

ADRIANO – Que nova miséria será esta?...

 

CELESTINA – Não é miséria, Adriano; são os milagres do dinheiro, que é o senhor onipotente de quase todos.

 

BEATRIZ (Trazendo um balaio cheio de cartas e bilhetes) – Eis aqui as provas de que Vossa Senhoria excelentíssima tem a seu favor a opinião pública.

 

ADRIANO – Vejamos: misericórdia! Um balaio de cartas e de bilhetes de visitas!... Oh! Dinheiro! Oh! Miséria da humanidade!... ora, comecemos pelas cartas: (Tira uma e lê) oh! A primeira é do tal editor, que rejeitou minhas músicas: (Lê) miserável! Vê, Celestina, agora, agora ele me envia uma escritura, pela qual se obriga a imprimir pelo preço que pedi as mesmas composições que ontem rejeitava, sob pena de uma indenização de um conto de réis pago por aquele que se arrepender!...

 

CELESTINA – Que ventura! Tuas composições vão, portanto, aparecer! Tu vais ser conhecido... todos te vão aplaudir, e te fazer justiça.

 

ADRIANO (Depois de ler outra carta) Esta também não é má! Sou admitido na orquestra o teatro de S. Pedro de Alcântara pelo competente diretor com todas as condições por mim propostas: eis aqui o contrato assinado! Havia de ser bonito se eu aparecesse agora tocando tímpanos ou ferrinhos!...

 

CELESTINA – E essa carta?... será ainda algum novo obséquio?...

 

ADRIANO (Depois de ler) – Oh! Lá se é! Nada menos do que a empresa do Provisório que me compra a propriedade da minha ópera por dois contos de réis, e que se obriga a pô-la em cena dentro de um ano!...

 

CELESTINA – Oh! Isto sim é que é uma grande felicidade! Todos apostaram sobre quem mais faria para te colocar a salvo da pobreza!

 

ADRIANO – Sim! Agora que já de nada disso preciso, curvam-se todos ante o meu dinheiro: oh! Sim! Abrem-me os braços, quando já estou acima de seus favores: este mundo, Celestina, tem uma alma de bilhetes de banco, e um coração de monjolo!

 

CELESTINA – Paciência... é preciso sofrê0lo, porque é o mundo que temos... e pela minha parte por ora não desejo mudar-me para outro.

 

ADRIANO (Vendo e atirando fora os bilhetes de visita) - E esta nuvem de bilhetes de visita! Oh! Que povaréu, que multidão veio visitar os meus cinco milhões!... vejamos sempre; (Tira um) comendador fulano dos anzóis carapuça... Não conheço, fora com ele; (Outro) O Deputado... Misericórdia! Deputado é uma coisa que custa muito cara à nação; (Outro) o brigadeiro... Fora, que pode brigar comigo; (Outro) o doutor... Pior está essa! Doutores longe de minha porta; (Outro) Mr. De tal, cabeleireiro, tem pomada de urso e água dos amantes... Ao fresco; (Outro) pílulas vegetais... E esta! Pois já tão depressa não me querem dar pílulas a engolir?... (Outro) trastes, mármores e porcelanas... entendo! (Outro) frei Laverno faz os seus cumprimentos... Ah! é um frade!... chegou a minha fama aos conventos... rua; (Outro) o barão de qualquer coisa... Irra! Não posso mais!... (Atira com todos os bilhetes fora) Eis ali rolando pelo chão não sei quantos diplomas da vergonha humana!... desprezavam o artista e vêm beijar os pés do milionário!... Miseráveis! Vândalos!... isto ou é para desesperar, ou para rir!

 

CELESTINA – Pois então é melhor rir... riamo-nos!

 

ADRIANO – Vá feito... riamo-nos!... (Canta)

 

Vejam já quantos amigos Mal me deixam respirar! “Que cambada d marrecos “Pega neles p’ra capar!”

 

Sou rico! Sou rico! Já tenho outro rosto! Sou rico! Sou rico! Não caibo de gosto!

 

CENA XIV EDUARDO, ERNESTO, ADRIANO, CELESTINA, BEATRIZ e os amigos.

 

ERNESTO – Oh! Muito bem, Adriano; como vamos de fortuna?...

 

ADRIANO – Vinde, meus amigos, vinde tomar parte da minha alegria: eu estou nadando em um mar de ouro!

 

EDUARDO – Nós sabemos tudo.

 

ERNESTO (Tristemente) – Teu primo é morto, não é assim?...

 

ADRIANO (Como querendo chorar) – Ah!... é verdade!...

 

BEATRIZ (O mesmo) – Ah! é verdade! Era muito bom moço!

 

EDUARDO – Então estás muito aflito?...

 

ADRIANO – Sim tenho chorado... este é já o terceiro lenço; os outros ficaram ensopadinhos de lágrimas; e contudo eu conhecia muito pouco a meu primo... apenas nos tínhamos visto, quando mamávamos: porém, a morte é sempre uma separação dolorosa.

 

ERNESTO – Escuta, Adriano; tu és sensível?...

 

ADRIANO – Ao menos tenho essa pretensão, e as minhas lágrimas sinceras...

 

ERNESTO – E eras muito amigo de teu primo?...

 

ADRIANO – Oh! O mais que é possível...

 

ERNESTO – Abraça-me, pois, meu amigo, enxuga o pranto; ele não está morto.

 

ADRIANO (Estupefato) – Não... não... não... não está morto?!!

 

BEATRIZ – Não está morto?... isso era o diabo agora!

 

CELESTINA – Como o sabe, senhor?...

 

ERNESTO – Não está morto, porque nunca esteve vivo.

 

ADRIANO – Isto não é brincadeira; creio que é negócio muito sério!

 

ERNESTO – Ontem, aquecido pelo champanhe, tu te gabaste de ter na Califórnia um primo senhor de milhões...

 

ADRIANO – Eu... eu disse isso?... é possível; porquanto não me lembro de coisa alguma!

 

ERNESTO – E querendo zombar de nós, apenas nos lembraste a idéia de uma caçoada.

 

ADRIANO – Uma caçoada!... como?... este artigo do jornal?...

 

ERNESTO – Não passa de uma invenção nossa!

 

ADRIANO – Pobre outra vez!... (Caindo numa caixa) Eu... morro agora por força!

 

CELESTINA – Meu Deus! Adriano não está bom!

 

BEATRIZ – E eu a gastar políticas com um musicozinho tão ordinário! com uma bisca, com um farroupilha desta qualidade!... Vou já participar ao senhor Pantaleão. (Vai-se)

 

ERNESTO – Que é isto, Adriano?... sê homem: se tivéssemos previsto, que sentirias tanto um simples gracejo de amigos...

 

ADRIANO – Ah! meus amigos, eis aqui uma comédia muito capaz de acabar em tragédia... Eu estava tão feliz!...

 

CELESTINA – Eis-nos de novo em nossa boa mediocridade.

 

ADRIANO – Não! Não posso suportar semelhante desgosto! Isto é um salto mortal! É muito melhor atirar-me de uma janela abaixo! (Corre e esbarra-se com Felisberto)

 

CENA XV FELISBERTO e os ditos

FELISBERTO – Oh! Que me rebenta o nariz!

 

ADRIANO (Submisso) – Eu lhe fiz mal... ofendi-o?...

 

FELISBERTO – Não foi nada... trago o dinheiro a Vossa Senhoria.

 

ADRIANO – A minha senhoria... a minha senhoria acaba de receber a sua demissão.

 

FELISBERTO – Não o compreendo, meu prezado amigo.

 

ADRIANO – Digo, que agora aparecem suas dúvidas a respeito do negócio.

 

FELISBERTO – Que, senhor Adriano! Vossa Senhoria quereria faltar a palavra!... (À parte) Diabo! E eu que já tratei a cessão da casa com vinte por cento de lucro!

 

ADRIANO – Não é isso, mas devo dizer...

 

FELISBERTO – Nada quero ouvir: tenho a sua palavra, e um homem honrado, senhor, não tem senão uma palavra: eis aqui o contrato de venda para assinar.

 

ADRIANO – Todavia...

 

FELISBERTO – Ah! senhor Adriano! É possível que tenha em tão pouco a sua palavra?...

 

ADRIANO – Senhor Felisberto!...

 

FELISBERTO – Esta hesitação me dá o direito de dizer o que disse.

 

ADRIANO – E o senhor não se arrependerá deste contrato?...

 

FELISBERTO – De modo nenhum.

 

ADRIANO – E aconteça o que acontecer não se queixará de mim?...

 

FELISBERTO – Eu queixar-me?... e de quê?... assine, tenha Vossa Senhoria a bondade de assinar.

 

ADRIANO (À parte) – Com efeito... posso bem fazer este negócio... a casa é minha, e eu ganho nesta venda quatro contos de réis; (Assinando) vamos, pois que o senhor o exige, eu assino.

 

FELISBERTO – Para lhe provar que o negócio me convém, ajuntei ao dinheiro, que lhe entrego, um recibo de conta que me devia, e portanto estamos quites.

 

ADRIANO (Recebe e conta o dinheiro) – Como?... minha conta também?... ah! Celestina, eis aqui um remorso de adversidade!

 

FELISBERTO – O que quer dizer com isso?...

 

CENA XVI Os ditos, PANTALEÃO e BEATRIZ

PANTALEÃO – Isso é um horror! É uma ladroeira!... uma infâmia!...

 

TODOS – Que aconteceu?...

 

PANTALEÃO – O senhor músico, meu locatário, é vítima de uma mistificação! Ele é tão rico, como aqui, a velha Beatriz!

 

FELISBERTO – Que diabo é isto?... quem me dará um fio para sair deste labirinto!

 

PANTALEÃO – O fio é que eu continuo a despedir desta casa e de mestre da minha filha ao tal senhor Adriano Genipapo!

 

ADRIANO – Senhor Pantaleão! O senhor tem um coração abjeto... o senhor é indigno do nome de homem que usurpa!

 

PANTALEÃO – Parece-me que o senhor me quer insultar!

 

ADRIANO – Sair desta casa! Sairemos dela ambos, miserável taberneiro! Porquanto acabo de vendê-la ao senhor Felisberto...

 

PANTALEÃO – Eu vou levá-lo já ao chefe de polícia!

 

ADRIANO – Oh! Pois não! Irei mesmo com prazer; tenho que referir ao chefe de polícia uma certa história de monopólio de toucinho e carne fresca... Ah! já se cala?... acabemos com isto: senhor Pantaleão, eu lhe pago a casa que lhe comprei, e o mais que lhe devo e por minha vez, senhor, ouvi todos, ouvi: senhor Pantaleão, rejeito a mão de sua filha que ainda há pouco me ofereceu!

 

PANTALEÃO – Ah! ah! ah! e pensava, que eu ainda tinha as mesmas disposições?...

 

ADRIANO – Celestina, esta gente não tem vergonha, não?... (Outro tom) – Eu não sei se me devo rir deles!... miseráveis! Vós que me desprezais, lembrai-vos, que abaixastes a cabeça diante de mim! Estúpidos! (Outro tom) Estúpidos?... estúpido sou eu... eles pensam e praticam, como quase todos, isto é a moda... é a época... é o mundo... atualmente o que melhor se sabe do padre-nosso, é o venha a nós!

 

CELESTINA – Senhores, vós o vedes, vosso gracejo teve boas conseqüências...

 

ERNESTO – Tanto melhor para ele nô-lo perdoar.

 

ADRIANO – De todo o coração, que até vô-lo agradeço.

 

FELISBERTO – Mas então o único, que aqui fica com cara de pau, sou eu?... juro, que ainda não compreendi nada desta moxinifada.

 

CELESTINA – Pois é muito simples... o primo da Califórnia...

 

FELISBERTO – Não está morto?...

 

ADRIANO – Nem nascido, mestre Felisberto!

 

FELISBERTO (À parte) – Ai que cabeçada!... e a conte que ele me devia!

 

ADRIANO – Mas graças a esta invenção, graças à só presunção, de que me achava rico, fui cercado de respeitos, de obséquios, e de amigos; ofereceram-me casa, mulher e dinheiro!...

 

CELESTINA – Obrigaram-se a imprimir suas músicas, contrataram-no para uma orquestra, e compraram-lhe uma ópera!

 

ADRIANO – Puseram-me a salvo das privações da pobreza...

 

BEATRIZ – Ora, o que tem isso?... lembremo-nos do adágio antigo: a água corre para o mar.

 

ADRIANO

 

O dinheiro é um feitiço Que a todo mundo enlouquece; Aos ricos todos festejam, O pobre nada merece.

 

CELESTINA

 

As senhoras melhor sabem Do dinheiro o valimento; Moça rica que tem dote, Nunca perde casamento.

 

PANTALEÃO

 

O rico nunca tem frio, Traz sempre a barriga cheia; E até por coisas que eu sei Jamais visita a cadeia.

 

FELISBERTO

 

Homem pobre é sempre feio Bicho mau e desprezado; Quem tem dinheiro é bonito, É sábio, sempre engraçado.

 

CORO GERAL

 

Dinheiro! Venha dinheiro! Dinheiro é tudo na terra; Dá prazeres, glória, amores, Faz a paz e move a guerra.

(FIM DO SEGUNDO E ÚLTIMO ATO)

 

                                                                                           Joaquim Manuel de Macedo

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa