Biblio VT
“Então, aquele homem alto, de olhos cinzentos, cabelos castanhos, era Benjamin Custis Stanton, que herdara o título de conde e a adorada propriedade da família! Harriet, a jovem lady inglesa, não tolerava o "selvagem" americano, mas aceitou casar-se com ele. Seria seu marido só no papei, voltaria para a América dentro de um ano e tudo seria dela. Mas ao terminar esse prazo, lady Harriet descobriu que só queria uma coisa na vida: o amor de Ben Stanton... porém, seria tarde demais?”
O homem passou a mão pela superfície do muro, avaliando-o, como se pretendesse transpô-lo. Sua cabeça quase alcançava o alto, e não precisou de muito esforço para espiar por cima dele e ver o que havia do outro lado: um denso bosque, com árvores altas, copadas, silencioso e deserto. Deixou-se cair no chão e esfregou as mãos empoeiradas.
O muro não apresentava problema. Era construído por pedras sobrepostas, sem argamassa, muito sólido e oferecia vários pontos de apoio para os pés de quem quisesse saltá-lo. Mas o sol ainda não chegara a aquecê-lo, embra já fosse meio-dia, e as pedras estavam escorregadias, levemente cobertas de geada. O homem sabia que não poderia ficar durante muito tempo ali, sem ser visto por alguém que estivesse voltando para casa, a fim de almoçar. Não queria que ninguém o visse, pois em lugares pequenos, no campo, uma pessoa estranha logo chama a atenção, tornando-se objeto de curiosidade e comentários.
Precisava agir sem demora, decidiu. Pulou, agarrou-se ncvtopo do muro e com um impulso passou as pernas compridas para o outro lado, caindo num emaranhado de urtigas secas e mato enegrecido pelo frio.
Sua chegada na outra banda não provocou reações de vulto. Um pássaro solitário levantou vôo e logo pousou num arbusto próximo, observando-o com olhos brilhantes e desconfiados. O homem ficou imóvel, tentando discernir algum ruído que anunciasse perigo, porém tudo estava calmo. Então, embrenhou-se no pequeno bosque, atravessando-o em pouco tempo. No lado oposto viu uma ponte de pedra sobre um córrego e, mais além, uma extensão ampla de gramado em aclive, que ia até um casarão de pedra cinza, a certa distância. A frente da casa tinha uma varanda e diante dela encontrava-se uma caleça puxada por uma parelha de cavalos. Esta parecia de aluguel, daquelas usadas por pessoas que não tinham carruagem e precisavam viajar. Isso demonstrava que havia visita e talvez se tratasse de negócios, pois a caleça esperando indicava que o visitante não iria demorar.
Viu um vulto feminino passar várias vezes diante de uma janela aberta. Franziu a testa e recuou, ocultando-se entre as árvores, para ver e esperar.
Harriet Stanton andava de um lado para outro da sala, nervosa, com as mãos entrelaçadas, dizendo com voz embargada:
— Pode ser legal, mas não é justo!
Seu interlocutor, um advogado, suspirou. Estava cansado; seus sessenta anos ressentiam-se da longa viagem na caleça alugada. Tinha vontade de se aposentar e poderia fazê-lo, porém sentia-se obrigado a concluir o caso da propriedade Stanton. Conhecia as duas irmãs desde a infância e gostava delas, principalmente de Harriet.
- Querida menina — tentou acalmá-la —, precisamos de um pouco de otimismo, não acha?
- Otimismo!O sol pálido de inverno entrava pela janela e punha um halo luminoso em seus cabelos castanho-acobreados.Olhou para o chicote em cima da mesa, ao lado do chapéu, como se estivesse tentada a castigar quem ia fazer tal coisa.No entanto o pai de Harriet não conseguira um filho, apenas duas filhas e, depois da segunda, os médicos tinham achado que lady Stanton não podia mais ter filhos. A situação tornara-se desagradável: o casal não tinha rendas a não ser as da propriedade, Monkscombe, que estava vinculada à família.Visitando a cadeia, em sua função de juiz de paz, apanhara uma febre infecciosa de um preso e falecera no ano anterior, deixando as filhas solteiras e sem meios para se sustentar. Monkscombe passara a ser propriedade do filho de seu irmão mais novo, que emigrara para as colónias americanas, nessa época elevadas a Estados Unidos da América.
- O mais novo dos Stanton emigrara devido a uma briga familiar, e os irmãos não haviam se correspondido. Investigações posteriores tinham revelado que ele se estabelecera em Filadélfia e se casara. Morrera havia alguns anos, deixando um filho, Benjamin Curtis Stanton, que jamais estivera na terra de seus antepassados ingleses. E Benjamin Curtis Stanton era, agora, o proprietário de Monkscombe.
- A sra. Stanton morrera antes do marido, que, embora contristado, chegara a pensar em um segundo casamento, para tentar ter um herdeiro direto. Desistira, porém, reconhecendo que o risco era grande Poderia vir a ter mais filhas e deixaria uma viúva, além das filhas, se viesse a falecer. Aí, decidira viver o mais possível, pelo menos até que as duas jovens se casassem. Mas também esse seu desejo fora frustrado.
- — A vinculação da propriedade... — murmurou o advogado. —Não há meio de se passar por cima dela, Harriet. Seu pai e eu discutimos muito esse assunto. Se existisse um meio, nós o teríamos descoberto. A propriedade, incluindo a casa, as terras e as rendas, deve passar ao herdeiro masculino mais próximo. Claro, se lorde Stanton tivesse tido a sorte de ter um filho, a situação seria diferente. O herdeiro seria o rapaz ou, então, ele e seu pai poderiam desvincular a propriedade por meios legais...
- — Como posso ser otimista se vão me enxotar da minha casa? — perguntou, mais nervosa ainda.
- A moça virou-se rápida, fazendo rodar a saia de sua roupa de montaria. Seu corpo era muito delgado, de linhas suaves, tão elegante que nessa época, em que se trocavam as anquinhas e o espartilho por vestidos leves, jnuitas mulheres passavam a fazer regime depois de ver Harriet.
- Por que Curtis? — perguntou Harriet, de repente.
- Pelo que sei — respondeu o sr. Ferrar, pigarreando —, Curtis era o sobrenome da mãe, e quiseram preservá-lo.
- Que falta de tato, considerando que a fortuna dele vem deste lado da família! — exclamou Harriet, amarga.
- Quem poderia imaginar tal coisa, na época? — censurou-a o senhor. — Pelo que soube, Monkscombe não é a única riqueza desse rapaz. Ele tem renda considerável de uma empresa fundada pelo pai. É isso que me dá esperança. Afinal, se o sr... bem, agora lorde, Benjamin Stanton não depende da herança inglesa, poderá estabelecer uma renda para as primas. Ele pode ser um colonial... creio que deveria dizer americano, porém sou muito velho para pensar naquelas terras como outra coisa que não uma colónia... mas podemos esperar que seja um cavalheiro. Seria decente que fizesse algo por você e Caroline.
- Estou preocupada com minha irmã. Pessoalmente, eu poderia arranjar como me sustentar, porém ela...— O senhor localizou-o afinal? — quis saber Harriet, aludindo ao primo.
- Olhava a ponte de pedra sobre o córrego, no qual, quando criança, remava em seu barquinho, enlameando o vestido. Era muito doloroso saber que não lhe pertencia mais. O desespero que sentia era tão grande, que seu estômago embrulhou-se.
- O sr. Ferrar entendia a preocupação de Harriet. Caroline Stanton, com seus dezenove anos, era a moça mais bonita em um raio de muitos quilómetros, e sabia disso. Não existia na região homem solteiro e aceitável que não tivesse se apaixonado por ela. Caroline estava acostumada a ser objeto de admiração e adulação, que aceitava com encantadora indiferença. Harriet tentara inutilmente ex-Plicar a irmã caçula que elas não tinham dote. Como morava em Monkscombe, com quinze pessoas para servi-la, Caroline não se dera por entendida. Mesmo agora, não queria compreender que em breve não seria a srta. Caroline Stanton, de Monkscombe, e sim apenas mais uma moça bonita sem fortuna, provavelmente morando em um quartinho de aluguel.
- Sei que ele está viajando pela Europa — respondeu o sr. Ferrar. — Mandei-lhe cartas para Viena, mas a cidade está ocupada pelos franceses, e é difícil receber resposta.
- Não entendo! — exclamou Harriet. — Estamos em guerra com a França, a Europa inteira está em guerra, e ele passeia!
- Os Estados Unidos não estão em guerra com a França, Harriet, e ele pode viajar para Viena, Haia ou Paris. Deve ter passaporte americano, e com este pode até ir visitar Napoleão, se quiser... — O advogado achou a ideia engraçada, e riu.— Não podemos recusar-lhe a entrada — disse o advogado, colocando um pouco de rapé nãs costas da mão e aspirando.— A solução, neste caso, será nos recomendar, a Caro e a mim, à caridade desse caipira colonial, para que nos deixe morar em um par de quartos, na ala menos usada da casa que foi nosso lar... Eu não aguentaria, acredite! E, quanto a Caroline... Bem, pensando nela, talvez me sujeitasse à humilhação de pedir a Benjamin Curtis Stanton que nos deixe morar aqui. Mas ela não compreenderia, continuaria a viver como sempre, como se fosse a dona,, e duvido muito que nosso primo colonial concorde com isso!— Um capitão de milícia está aqui e quer falar com a senhorita — anunciou.O capitão entrou, com passos enérgicos. Era jovem e ostentava expressão que era mistura de esperança, determinação e embaraço. Olhou em redor, como se esperasse ver alguém, e não conseguiu disfarçar o desapontamento. Curvou-se diante de Harriet e pediu desculpas pela interrupção._ Não, milady, embora eu creia que os contrabandistas têm algo que ver com o caso — respondeu ele. — Estamos procurando um espião francês.
- — O senhor é o capitão Murray, não? — Harriet estendeu-lhe a mão. — Já esteve aqui antes... Novamente atrás de contrabandistas?
- — Mande-o entrar — respondeu Harriet. — Espero que não se importe, sr. Ferrar. Serão apenas alguns minutos. A milícia está sempre perseguindo contrabandistas, e pede licença para revistar as nossas terras.
- O sr. Ferrar não chegou a responder, pois uma criad,a apareceu à porta.
- — De fato, quanto mais cedo vier, mais cedo será possível encontrar uma solução.
- — Esquisito isso — afirmou a jovem, pensativa —, porém entendo. Se ele quiser, virá à Inglaterra, até Monkscombe, reclamar sua herança.
- Santo Deus! — exclamou o advogado.
- Sim, senhor — confirmou o jovem capitão. — Sabemos que ele desembarcou neste litoral, ontem à noite, provavelmente auxiliado pelos contrabandistas. Devem ter marcado um encontro com o navio de guerra francês em alto-mar e trazido o espião para terra. Para eles, dinheiro é dinheiro, não importa de onde venha.
- Malditos traidores! — bradou o sr. Ferrar, irado.
- Sim, senhor! Só ficarei satisfeito quando todos eles forem enforcados, em Bristol... Oh, desculpe, srta. Stanton! Não queria chocá-la... Bem, de qualquer forma, o espião chama-se Lesage. A região está sendo vigiada, e não acredito que ele tenha saído daqui, embora não tenhamos conseguido apanhá-lo ontem à noite.— Capitão... — chamou Harriet.— Madame, ele está escondido em algum lugar por perto, e as terras de Monkscombe seriam o ideal para isso, ficando a apenas um quilómetro da enseada em que desembarcou. Meus homens estão a caminho. Vim na frente para preveni-las e pedir permissão para uma busca.— Sabemos pouco, porém é melhor do que nada. Tem aproximadamente trinta anos, é muito alto, mais ou menos um metro e oitenta, fala muito bem nosso idioma, talvez com um pouco de sotaque. E muito astuto, desprovido de escrúpulos e, se a senhorita ou a srta. Caroline o encontrarem, não se arrisquem!— Avisarei os criados — sussurrou a jovem. — Muito obrigada, capitão. Era uma despedida óbvia; contudo, o rapaz não se mexeu.
- — Considero como minha obrigação avisar também a srta. Caroline.
- o mencionar Caroline ele parecia angustiado, e o advogado observou-o, curioso.
- Mas é claro — declarou Harriet. — Tem uma descrição desse homem?
- O capitão Murray despertou do devaneio, enrubescendo.
- O capitão tinha a ambição de capturar o famigerado bandido, de preferência sozinho, transformar-se em herói, com o nome nos jornais, promoção garantida... e conquistar o coração dela. Ela ficaria impressionada com um herói.
- Transmito o aviso à minha irmã — afirmou Harriet.
- Mas... Eu deveria fazê-lo pessoalmente... — O capitão engoliu em seco. — Quero dize...
- Até que é uma boa ideia — interferiu o advogado, sentindo pena dele. — O capitão precisa esperar seus homens e, se conversar com Caroline, você e eu podemos concluir nosso assunto.No entanto, o capitão já ia saindo.
- — É verdade — concordou a jovem. — Minha irmã está na sala de música, capitão. Um dos criados poderá...
- Rapaz agradável — comentou o sr. Ferrar.
- Meu caro amigo — murmurou Harriet, secamente —, se o senhor julga que sou cega a ponto de não perceber que o pobre moço está apaixonado por Caroline, engana-se! Ele veio aqui duas vezes para avisar que havia contrabandistas pelos arredores. Uma vez para dizer que trancássemos bem portas e janelas, porque havia ladrões nas proximidades; outra vez para comunicar que haviam roubado cavalos nas propriedades vizinhas; e mais três vezes por motivos que não soube explicar... É malvadeza encorajá-lo. O senhor conhece bem a minha irmã. Ela só gosta de flertar. Há rapazes que não ligam para isso, mas ele, não. Esse capitão leva as coisas a sério, e Caro leva tudo na brincadeira...
- O advogado fez que sim com a cabeça, e ela continuou:
- E se Caroline começasse a levar esse rapaz a sério, seria muito pior. Duvido que ele tenha mais do que seu soldo, e ela, como nós dois sabemos, não tem nenhuma fortuna, além da beleza... O capitão não poderia dar a Caro a vida à qual está acostumada.
- Caroline vai ter de enfrentar a realidade — afirmou o advogado, com certa aspereza. — Precisa acostumar-se a viver dentro de certos limites.
- Ela não consegue. Imagine: Caro julga que encomendar dois vestidos de baile em vez de três, é fazer economia! Até se declarou disposta a usar renda de Nottingham, em vez da de Flandres, creio que por causa do capitão Murray. Ele deve ter-lhe dito que a de Flandres é de contrabando e só enriquece os franceses.
- Nesse caso, o rapaz exerce boa influência sobre ela. — O sr. Ferrar levantou-se, com dificuldade. — Pense seriamente nesse as sunto de espião. É um homem perseguido, e quando for preso será enforcado. É perigoso... — Fez um gesto em direção às janelas. —As terras de Monkscombe têm muitos bosques, trechos cheios de mata fechada, onde um fugitivo poderia se esconder.Nesse momento, o advogado enfiou a cabeça pela janelinha e declarou:Antes que Harriet retrucasse, segurou a mão que ela erguera e beijou-a.
- _ Você é uma moça muito mais atraente do que Caroline, e essa roupa de montaria fica-lhe muito bem. Desculpe minha visita inesperada, que a impediu de fazer a sua cavalgada de todos os dias.
- Harriet acompanhou-o até a caleça e ficou à porta, até que o velho senhor se acomodou. Sabia que aquela viagem era muito cansativa e sentia-se grata por ele ter vindo. Tinha sido muito amigo de seu pai, tratava-a como uma sobrinha e principalmente era um grande amigo.
- É isso mesmo. Você deve impressionar muito os homens mais moços do que eu... Não nego, Caroline é uma moça linda, mas de uma beleza superficial, que não dura muito. Ela impressiona à primeira vista, você atrai e cativa as pessoas quanto mais elas a conhecem. Você é a melhor das Stanton, minha menina!
- Deus o abençoe, sr. Jonas... Durante este último ano, desde que papai faleceu, tem sido nosso apoio.— Não... — bradou o velho senhor. — Você não precisa de mim. Precisa de um homem moço, que realmente lhe dê apoio e segurança, Harriet.Quanto a Caroline, precisava encontrar alguém que enfiasse um pouco de juízo naquela cabecinha em que os pensamentos piscavam como vaga-lumes, que a dominasse como se faz com uma potranca selvagem. Seria uma pena se a tendência dela de levar tudo na brinca eira afastasse os admiradores mais sérios. O jovem capitão esco escoses caurara boa impressão ao velho advogado, mas Harriet não o provava e, de fato, não havendo dinheiro dos dois lados, seria um péssimo casamento .Pena...Harriet ficou olhando enquanto a caleça se afastava. Depois voltou-se e olhou a casa. Como o nome indicava, Monkscombe, em outros tempos houvera um mosteiro naquelas paragens. Os Stanton viviam naquela propriedade desde a Idade Média. Haviam reconstruído e reformado várias vezes a casa, que apresentava uma mistura curiosa, bastante agradável, de estilos arquitetônicos. A última reforma datava da época da rainha Ana e, entre outras coisas, a casa ganhara o "Passeio da Viúva", uma estranha galeria externa, logo abaixo do beiral do telhado, de onde se via o mar quase a um quilómetro de distância. Era dali que as esposas de comandantes de navio esperavam a volta das embarcações que se atrasavam.— E tudo porque Caro e eu somos mulheres! — resmungou, furiosa. — Dizem que o lar de um inglês é seu castelo, porém isso só vale para os homens. A lei deste país não tem nenhum escrúpulo em deixar uma mulher sem lar!"Vou dar-lhes dez minutos", pensou, "e, se os milicianos não chegarem, entro e me sento entre os dois, interrompendo o namoro!"A ponte estava coberta de musgo, e a argamassa soltava-se em alguns pontos; precisava ser consertada. Havia muita coisa em Monkscombe esperando por conserto. Bem, a responsabilidade não era mais dela. Cedo ou tarde teria de entrar em contato com Benjamin Stanton, e seria necessário apontar-lhe esses fatos. Sem ele, não podia dar andamento a nada.Essa imagem lhe deu uma satisfação cruel. Atravessou a ponte e entrou no bosque. Parou junto ao tronco de um enorne teixo e ficou pensando em como tudo estava calmo em torno. Aos poucos, sua mente inquieta absorvia aquela paz.Harriet ajoelhou-se junto dele, sem pensar que ia sujar a roupa, e pôs a mão na testa do desconhecido. Ele gemeu, e ela retirou a mão, depressa. Pelo menos, estava vivo.A moça já recuperara a calma, levantou-se e se distanciou um pouco, enquanto ele sentava, apalpando o alto da cabeça.O homem gemeu, apertando os olhos para vê-la melhor. Pôs-se de pé com íim movimento brusco, e Harriet viu que era mais alto do que calculava. Parecia enorme, para uma mulher de um metro e sessenta, como ela. Prudente, recuou mais alguns passos.
- — O senhor está bem? — quis saber.
- Os cabelos do homem, um tanto compridos, caíam para trás, revelando uma testa alta, um rosto magro, bronzeado, de feições marcantes. Enquanto o observava, ele abriu os olhos, de um azul-acinzentado. Quando conseguiu focá-los e enxergá-la, o homem franziu as sobrancelhas.
- De súbito, um estampido ecoou, parecendo um tiro de rifle. Pulou instintivamente para trás, quase perdendo o equilíbrio, quando ouviu som de galhos se quebrando. Um corpo pesado caiu quase a seus pés. Harriet sufocou a metade do grito que lhe escapou da garganta, colocando a mão na boca. Fez-se silêncio total. Os pássaros haviam fugido e se mantinham calados. Um desconhecido jazia de costas no chão e parecia ter perdido os sentidos. Por instantes, em pânico, julgou que ele estava morto. Nunca o vira. Era alto e dava impressão de força mesmo ali, caído e inerte.
- — Também, esse homem poderia estar aqui, antes que Monkscombe caia em ruínas, em vez de estar se divertindo com os franceses, em Viena! — exclamou, sem notar que falava em voz alta, de tão zangada. — Mas ele vai chegar a hora que quiser, na certa com roupas de couro e mastigando fumo!
- Enfiou o chapéu na cabeça, amarrou o véu embaixo do queixo e se dirigiu para a ponte, sem saber por quê. Enquanto caminhava pelo gramado, erguendo a barra da saia, recordou as últimas palavras do advogado e corou, embora estivesse sozinha. Depois chegou à conclusão de que ele apenas quisera ser gentil. Sentiu-se até culpada por lembrar dos elogios.
- Não tinha vontade de entrar em casa. Claro, devia ir à sala de música e interromper o colóquio entre o capitão Murray e sua irmã.
- Monkscombe e a família Stanton eram parte integrante da região, de sua história e tradições. Agora, vinha vindo um Stanton diferente. Um americano. Um homem que não tinha relação pessoal alguma com a casa, sua história e sua importância.
- O Sr. Jonas Ferrar berrar ajeitou a manta sobre as pernas, firmou o chapeu e mandou o cocheiro tocar os cavalos.
- Pensou que era uma lástima aquela moça atraente não ter marido. Se ele tivesse trinta anos menos, ou mesmo vinte e cinco... Um mando daria conforto e apoio nessa hora difícil, trataria de resolver os problemas e proporcionaria a ela momentos agradáveis. E uma companhia masculina na certa suavizaria seu modo de agir sem rodeios, suas atitudes bruscas, próprias de quem necessita se defender.
- Ele sacudiu a cabeça, emocionado. Usava peruca, à moda antiga, e Harriet não lembrava de tê-lo visto sem ela.
- Quem é o senhor? — indagou, com calma aparente. — Invadiu uma propriedade particular!
- Que terras são estas? — perguntou o homem, em tom de desafio, e pronunciava as palavras com uma inflexão estranha.
- Dos Stanton, Monkscombe — esclareceu ela, zangada.
- E quem é você? — O tom do desconhecido era rude.
- Sou Harriet Stanton! — Ela quase gritava, tal sua irritação.— Quer me dizer o que faz aqui e por que subiu na árvore?
- A situação era ridícula, embaraçosa, e piorou quando ele se limitou a observá-la, coçando o queixo, como se pensasse no que responder. Nesse momento, uma ideia horrível passou pelo cérebro de Harriet e a paralisou. Ele devia ser o espião francês... Lesage ou algo parecido. Qual fora a descrição do capitão Murray? Um metro oitenta. Devia ser isso. Forte... é. Um leve sotaque... isso mesmo.
- Realmente, o senhor não devia estar aqui, mas levou um tombo muito feio... —. afirmou ela, cuidadosa. — Se me acompanhar até em casa, eu lhe darei um copo de vinho, para reanimá-lo.Harriet achava que teria dificuldade em atraí-lo até a casa; no entanto, ele dirigiu-se para a ponte, decidido, em passos rápidos e tão longos, que ela precisou quase correr para se manter ao lado dele.
- — Muito gentil... — murmurou ele. — Obrigado, madame.
- Por que o senhor estava em cima da árvore? — tornou a interrogar, deixando-se levar pela curiosidade.
- Porque, como Zaqueu, queria observar sem ser visto.
- A srta. Stanton tivera de estudar a Bíblia, como todos da família, e replicou:
- Zaqueu era muito pequeno, por esse motivo subiu na árvore. Imagino que ele não pesasse muito, porém, o senhor é pesado, muito alto, e principalmente, velho demais para andar subindo em árvores. Isso é perigoso e tolo — arrematou, severa.
- Já fiz muitas coisas perigosas, srta. Harriet, esta foi a menos perigosa de todas... — Chegavam a casa. — A caleça foi embora —bradou ele —, mas parece que há outra visita — e apontou o cavalo que um criado segurava pela rédea, diante da porta principal.Então, ele estivera mesmo de olho na casa! Esse era um pensamento desconcertante e até assustador. Por que o fazia?
- — Há mais alguém em casa? — indagou ele, com certa aspereza. Parecia uma pergunta importante e Harriet respondeu, enquanto o encaminhou para uma porta lateral, que dava no saguão.
- — Não se preocupe — Harriet apressou-se a dizer, e rezou para que ele não notasse a manta da milícia na sela. — É um rapaz que veio visitar a minha irmã.
- Apenas a criadagem. Contudo, se o senhor estiver machucado, posso mandar chamar um médico.
- Não! — foi a resposta pronta e decidida.
- O senhor é que sabe... — concordou ela, para tranquilizá-lo, e abriu a porta da sala de música.— Capitão Murray! — gritou e, enquanto ele se erguia de um salto, segurou o homem por uma das mangas, para que não fugisse.O capitão achava-se desarmado; seu cinturão, com a espada, fora pendurado no espaldar de uma cadeira, e ele se aproximou dela, num piscar de olhos. Empunhou a espada, e ordenou ao desconhecido, sem tomar fôlego:
- — Encontrei este homem no bosque... ele caiu de uma árvore. Tenho certeza que é Lesage, o espião que o senhor procura.
- O capitão Murray estava de joelhos, como se fosse fazer um pedido de casamento. Caroline, segurando uma partitura, olhava-o com leve interesse. Ambos ergueram a cabeça quando Harriet entrou.
- Explique-se, senhor, ou vou prendê-lo!
- Oh, James! — suspirou Caroline, quase impressionada. Satisfeito, o capitão Murray acreditou que as coisas caminhavam como planejara.Caroline observou o recém-chegado com seus enormes olhos azuis, lábios entreabertos e o rosto, lindo, emoldurado por cachos cor de cobre. Já não usava o cinza do luto, e sim um vestido lilás, que era a cor que lhe assentava melhor.
- — Não se mexa! — advertiu, aproximando-se do estranho com cuidado.
- Quem é o senhor? — perguntou, com um sorriso encantador.
- Espere, srta. Caroline! — interferiu o capitão Murray, zangado. — Deixe-me cuidar disso. Tem identificação, senhor?
- No meu bolso — respondeu o homem, com calma, e ia levando a mão ao bolso, mas parou. — Ah, não quero que pense que vou pegar uma arma!
- O capitão fez de conta que também pensara nisso.
- Mantenha as mãos onde eu possa vê-las! Srta. Stanton, poderia, por favor...?
- No bolso de dentro, srta. Harriet — explicou o prisioneiro, com familiaridade. — Há um monte de papéis.— Por favor, senhorita, leia-os — solicitou.
- Harriet apanhou um dos papéis, abriu-o, leu algumas linhas e soltou uma exclamação sufocada.
- Ela retirou-os, com cuidado, e entregou-os ao capitão James Murray, porém ele não podia manusear os papéis sem largar a espada.
- Que foi, Harriet? — gritou Caroline, vendo a irmã empalidecer.
- Não... — murmurou a moça, com voz apagada. — Isso é impossível! - Voltou-se para o homem e perguntou, nervosa: — De quem roubou estes papéis, seu miserável?
- Eles têm a minha assinatura — revidou o prisioneiro. — Vou tazer uma e a senhorita poderá comparar. Não os roubei, e não sou o espião trances. Srta. Harriet, por favor, mostre os papéis ao capitão. — Estes papéis indicam que o senhor é um Stanton...
- Ele obedeceu, o capitao Murray examinou-os e corou, enquanto dizia:
- De fato – confirmou o homem impassível. — Ben Stanton. Sei que esta é minha prima Harriet, então voce é – sorriu para Caroline, enfurecnedo o capitão -- a prima Caroline. E esta é a mina casa. Alguém vai me dar as boas-vindas?As palavras de Benjamin Stanton foram seguidas de absoluto silêncio. Afinal, Harriet, ainda sem conseguir acreditar nos documentos, resolveu enfrentá-lo:
- Mas o senhor não pode... — balbuciou. — Quer dizer, o senhor... ele está em Viena!
- Estava — corrigiu o rapaz. — É uma linda cidade, porém infelizmente está apinhada de franceses. Eles ocupajn todas as casas, os bares, cafés, teatros... Alguns até que são boa companhia, mas havia gente demais para meu gosto. O advogado, sr. Ferrar, não?, perseguiu-me pela Europa toda com cartas, então achei que era melhor vir para a Inglaterra e passar uns dias no campo. Claro, não imaginei que seria preso...— Não com o meu inimigo, capitão. Os Estados Unidos não estão em guerra com a França. Temos.ótima opinião dos franceses. La Fayette, lembra-se? Lutou ao lado dos rebeldes, na minha terra.— Mas que aventura! — exclamou, os olhos cintilando. — Viu o Exército francês, Bonaparte? E chegou, afinal! Estávamos à sua espera há tanto tempo! Imaginávamos como seria, e Harriet achava que era um homem primitivo, um caipirão colonial, com roupas de couro e...— Vejam! E nós, tão preocupados! Ele é gentil e completamente civilizado...— Sim, capitão, boa ideia! — respondeu ela, já controlada. —Obrigada. E, Caro, largue as mãos do... do sr. Benjamin Curtis Stanton, imediatamente!Lorde Stanton aproximara-se de uma janela e olhava para fora. A moça imaginou se deveria atacá-lo já ou esperar pelo sr. Ferrar. Antes que pudesse decidir, seu primo começou a falar, em voz baixa como se falasse consigo mesmo, e ela preo^ou esforçar-se para ouvi-lo.Descreveu-a tantas vezes, com tantos detalhes, que eu tinha impressão de conhecê-la. Pode lhe parecer esquisito, mas não me sinto deslocado aqui.— Não tinha certeza de como ia ser recebido. — Parecia inseguro e até um pouco embaraçado. — Acreditei melhor ver, primeiro, como estava a situação. Durante minha viagem pela Europa, sempre tive intenção de conhecer Monkscombe e pretendia vir incógnito, para o caso de não ser benquisto.— Sei que meu pai brigou com a família, e não sabia se essa briga fora esquecida ou não. Quando cheguei a Haia, recebi a primeira carta do sr. Ferrar e tomei conhecimento, surpreendido e meio assustado, de que herdara a propriedade e o título da família. Julgo-me um conde muito estranho!— Não respondeu à carta — disse, fria.— Não respondi, prima, porque se o fizesse o sr. Ferrar ia pensar que eu viria para a Inglaterra imediatamente. Mas não podia vir. Precisava de tempo para meditar...
- Ele se afastou da janela e fitou-a, as mãos atrás das costas.
- Harriet sentou-se e observou-o, desconfiada.
- Fez uma pausa e, diante do olhar interrogativo dela, continuou:
- — Nesse caso, não entendo por que não veio pela frente, como qualquer pessoa normal. Afinal, ele voltou-se para ela, hesitante.
- É estranho estar aqui... Meu pai falava muito desta casa.
- O capitão retirou-se, apressado, e Caroline largou as mãos de lorde Stanton a contragosto. Harriet, que não queria perder o controle da situação, pegou a irmã pelo braço e pediu-lhe que fosse dizer à governanta que preparasse os aposentos para o recém-chegado.
- — Não quero me intrometer em assuntos de família — o capitão falava com dificuldade —, porém, acredito que o advogado Ferrar não deve estar muito longe. Quer que tente alcançá-lo e o traga de volta, srta. Harriet?
- A esse ponto ela percebeu que sua indiscrição poderia ser desastrosa. Calou-se, fitou a irmã e o capitão sem largar as mãos do primo, e sorriu, dizendo:
- Foi Caroline quem agitou a situação. Levantou-se, e correu para o primo e, entusiasmada, segurou-lhe as mãos.
- — Senhor! — A voz do capitão soou rouca. — Confraternizou com o inimigo!
- Tempo?! — exclamou Harriet, ressentida. — Meu pai faleceu mais faz mais de um ano, e descobrimos que o senhor está na Europa há mais de seis meses! Sera que entende o que é cuidar de uma propriedade do tamanho de Monkscombe? Imaginou o que foi, uma vez que ninguem podia tomar nenhuma decisão, porque o proprietário estava passeando pela Europa? Compreende a responsabilidade de seu titulo e de ser dono destas terras? Pensou nos agricultores e pastores que vivem aqui? E nos criados? Durante este ano viveram na mais amarga insegurança!
- A casa me parece em boas condições, e os criados, pelo jeito, estão todos trabalhando! — ironizou.
- Lorde Stanton — explodiu a jovem, fora de si —, o senhor portou-se muito mal! O mínimo que devia fazer era avisar-nos a respeito de suas intenções. Creio que não tem ideia do que é ser conde de Monkscombe, não acredito na historinha sentimental sobre seu pai e no seu desejo de vir nos conhecer. Não sei por que se escondia nobosque, porém, a explicação não convence. Presumo que seja mesmo Benjamin Curtis Stanton, como alega, mas com certeza não é um cavalheiro! É um homem malcriado e vulgar!— Agora chega! — ordenou ele, com voz tão firme e sonora, que as palavras pararam na garganta dela.— Não estou brincando, Harriet. Sou uma pessoa sossegada quando se comportam bem, porém, se for ao contrário, logo descobrem que é péssimo ter-me como inimigo. Também não sou tolo: sei que você não me quer aqui. Sei que não quer que Monkscombe seja minha, e compreendo que não seria o conde e o dono se o seu pai tivesse tido um filho. — Viu que ela corava. — Ah, sim, cara srta. Stanton! Não sabia nada de mim, mas eu sei tudo de vocês. Durante todo esse tempo, amigos ingleses de meu pai mantiveram correspondência com ele e o informaram, depois a mim, das vicissitudes da família aqui...
- Harriet abriu a boca, porém ele a fez calar com um gesto.
- Os grandes olhos acinzentados brilhavam, ameaçadores, e o rosto moreno endurecera, tornando-se uma máscara irada. Até os cabelos castanho-avermelhados, como os dela, pareciam eletrizados. Apontou-lhe um dedo, com firmeza, enquanto dizia:
- Enquanto falava, Harriet sabia que ele ia se zangar; ainda assim a reação a surpreendeu.
- Compreendo o que sente, prima. Considera esta casa o seu lar, e vou levar em consideração o fato de que está triste e abalada. Estou mesmo disposto a pedir desculpa por assustá-la, caindo de uma árvore e chegando de maneira nada convencional. Resta, contudo, o fato de que estou aqui por ser o meu direito. Esta é a minha casa, sou o patrão e o chefe desta família. Vou tomar todas as decisões sobre o que deve ou não ser feito no futuro. Acredite, se eu resolver esvaziar a casa e fechá-la, vou fazê-lo.
- O senhor tem obrigação de administrar a propriedade da melhor maneira possível — revidou Harriet, pálida. — Tem essa responsabilidade.
- Eu vou assumi-la. Calculo que sei, melhor do que minhas primas inelesas, administrar uma empresa de forma lucrativa. Sabe? Nunca "dependi de dinheiro herdado. Nós, os Stanton americanos, ganhamos a vida sujando as mãos com trabalho!
- Lucro! — Pela expressão de Harriet, parecia que ela ouvira uma palavra indecente.
- Está escandalizada, não é? Pois vai ter de se acostumar com esse conceito desagradável, como terá também de se acostumar com muita coisa mais. Para resumir, srta. Harriet, farei o que bem entender, e nem Caroline nem você, ninguém terá o direito de interferir. Está claro?— Muito claro — respondeu ela, com voz controlada. — Vou providenciar para que eu e minha irmã saiamos daqui o mais depressa possível. Enquanto ficarmos, tentaremos não incomodá-lo. Pode dar suas ordens diretamente à governanta, a sra. Woods, que é muito competente. O sr. Ferrar, que deve estar chegando de volta, não é apenas nosso advogado, mas também o administrador da propriedade, por isso poderá explicar-lhe todos os pormenores.
- Lorde Stanton ergueu a mão em sinal de paz e suspirou.
- Ela levantou-se, tremendo da cabeça aos pés, mas tão decidida a manter a dignidade, que ele se admirou, apesar de estar furioso. A maioria das mulheres teria desatado a chorar e saído correndo. Sentiu uma ponta de arrependimento por ter falado de forma tão rude, porém decidiu não ligar para isso.
- Escute, eu perdi o controle... É claro que você e Caroline ficarão aqui o tempo que quiserem. Para onde iriam?
- Não é da sua conta, lorde Stanton.
- Pelo menos, pare de me chamar de "lorde Stanton''! — exclamou ele, irritado. - Somos primos, pelo amor de Deus!
- Quem afirma tal é o senhor — respondeu ela.
- Nao vamos discutir de novo! Espere o advogado chegar, e ele resolve tudo... _ Calou-se parecendo debater algo consigo mesmo, depois acrescentou, um tanto asperamente: - Harriet, sabe que não Posso entrar e começar, simplesmente, a dirigir a casa, com ou sem a excelnte sra. Woods. –respirou fundo -- Ficaria agradecido você permanecesse aqui e continuasse a fazer o que fez até agora.Harriet sentou-se de novo.
- Considerando as circunstâncias, aquela era uma confissão elegante de incapacidade, e era evidente que lorde Stanton se esforçara para fazê-la. Estavam num impasse e ambos sabiam disso. Se ela se retirasse, teria de enfrentar uma situação bastante complicada. Por outro lado, as duas não tinham para onde ir, e ele bem o sabia.
- Nesse caso — concordou —, vamos esperar pelo sr. Ferrar. Posso fazer-lhe uma sugestão a respeito dele?
- Claro, por favor — respondeu ele, frio.
- Trata-se de um senhor de idade, que sofre de reumatismo e deve estar muito cansado com a viagem até aqui. Já havia feito uma boa parte do caminho de volta e viu-se obrigado a vir de novo. Creio que nós... quero dizer, que o senhor não deve permitir que ele regresse para Bristol hoje. Isto é, o senhor poderia convidá-lo para passar a noite em Monkscombe.
- Obrigado — respondeu lorde Stanton. — Vou convidá-lo.Na manhã seguinte-, assim que acordara, o criado que levara água quente para o sr. Ferrar se lavar dera-lhe também um recado. Imediatamente depois de se aprontar, ele dirigiu-se para a sala de música, onde Harriet Stanton o esperava. Enquanto ajeitava a peruca, antes de entrar, o velho advogado imaginava se não seria melhor entregar o caso para um advogado jovem. Não que quisesse abandonar Harriet Stanton, mas a devoção da moça por Monkscombe e a preocupação com o futuro pareciam ter redobrado com a chegada do primo. Encontrou-a vestida de azul-marinho e notou que a moça abandonara o meio-luto. Monkscombe estava para enfrentar uma
- nova era.
- Ninguém dormiu bem naquela noite, em Monkscombe. Os criados tinham ficado nervosos com a chegada do novo patrão, e a permanência do advogado fora motivo de mil conjeturas.
- Então, querida? — arfou o advogado, pois o ar da manhã sempre o deixava sem fôlego.
- Sinto incomodá-lo tão cedo. Ele é mesmo Benjamin Curtis Stanton? — perguntou ela, desconfiada. — Tem certeza?
- Absoluta, minha querida. Além dos papéis, que estão em ordem, ele se parece demais com o pai, que você não conheceu. Recordo-me bem dele. Aliás, há um retrato do seu tio ali, naquela parede — disse o advogado, apontando.— Esse é o meu tio? Ninguém me contou isso...
- Harriet examinou o retrato, em uma moldura dourada, oval.
- Brigas de família... — declarou o sr. Ferrar. — Percebe a semelhança?
- Percebo — respondeu ela, a contragosto. — Mas não consegui dormír e fiquei pensando... Alguém poderia ter roubado os documentos. Ben Stanton estava em Viena, ocupada pelos franceses... que poderiam ter se apoderado dos papéis dele para serem usados por um de seus espiões.
- Harriet, acredite, ele é Ben Stanton!'— exclamou o velho senhor.
- Mesmo assim... — teimou ela. — ble gosta dos franceses e corresponde à descrição que o capitão Murray fez de Lesage. Não julga que poderiam ser a mesma pessoa? Ninguém encontrou o espião, e o sr. Murray acredita que está escondido aqui...
- Quer parar com isso, Harriet? — bradou o sr. Jonas Ferrar. — Compreendo o que sente por esta casa, que foi um choque ver seu primo de maneira tão inesperada, porém tire essas fantasias da cabeça. Benjamin Curtis Stanton chegou e precisa fazer um acordo com ele. Não vai conseguir nada hostilizando-o, fazendo acusações malucas, sem pé nem cabeça. Teve oportunidade de discutir seu futuro e o de Caroline com ele?
- _ Praticamente, não... Ele disse que podemos ficar aqui até quando quisermos. Mas não sei se quero ficar, se ele também ficar. Meu primo não tem a menor ideia de como administrar a propriedade. Parece que considera que ser um conde, proprietário de terras, é a mesma coisa que ter uma empresa. Nenhum Stanton jamais esteve no comércio, porém Ben Stanton parece muito orgulhoso disso. Afirma que pretende tirar lucros de Monkscombe, e eu creio que, se ficar por aqui, não vou conseguir manter a boca fechada. Na certa irá cortar as árvores, aumentar a contribuição dos nossos camponeses! E tem um génio horrível! — murmurou ela, ofegante.
- Achei-o muito agradável — confessou o advogado.
- E! Muito agradável, quando as coisas são como ele quer. Detesta ser contrariado.— Vou conversar com Ben Stanton depois do café — revelou ele, Por fim, levantando-se e respirando com dificuldade. — Deixe que eu trate de tudo, Harriet.— Não é um pouco cedo para isso? — perguntou o velho senhor, surpreso.
- — Fique sossegado, pois não pretendo interferir na conversa dos senhores — bradou a jovem, amuada. — Assim que terminar o cafe, vou sair para fazer umas visitas... muitas visitas! É melhor usar o cabriole, é mais rápido.
- O sr. Ferrar observou-a em silêncio, e não pôde deixar de ficar preocupado: Harriet não sabia lidar com um homem, era franca demais, sincera, e se atirava de cabeça contra os obstáculos. Caroline era muito diferente, e ele não duvidava que conseguiria tudo o que quisesse de um homem, num instante.
- Trata-se de uma missão importante: vou avisar a todos que o herdeiro de Monkscombe chegou. Minha ideia é começar pela igreja e terminar com assrtas. Drew. Vou ficar ausente o dia inteiro.
- Entendo... Vai levar Henderson para dirigir o cabriole?
- Sei perfeitamente manejar a rédea! — reagiu a moça, corando.Sentiu-se melhor ao ar livre e com a ideia de que o primo talvez logo se aborrecesse de bancar o cavalheiro inglês no campo, resolvendo voltar para os Estados Unidos. Aí, a propriedade ficaria nas mãos de um administrador, e todos sofreriam com isso. Não havia nada pior do que um proprietário ausente. Pronto, esse novo pensamento deixou-a aborrecida outra vez.— E ainda não entendi o que ele fazia trepado numa árvore! —disse em voz alta, sem perceber.O pastor encontrava-se em seu gabinete, preparando o sermão de domingo. Ficou surpreendido com a notícia, e prometeu que iria visitar o conde o quanto antes. Perguntou se por. acaso lorde Stanton se oporia ao tema do sermão que preparava: a volta do filho pródigo. E Harriet sossegou-o, informando que seria ótimo.— Eu disse que ele não aguentaria ficar na Pensilvânia. Lá só tem quacres, que não sabem nem o que é um vinho do Porto! Tinha certeza que voltaria.— Querida srta. Harriet! — exclamou a srta. Eleanor Drew, olhando-a por cima da cerca. — Que faz por aqui tão cedo? Aconteceu alguma coisa?
- Ela explicou, e as irmãs ficaram muito excitadas.
- Como era quase meio-dia, quando ela terminou de visitar as demais pessoas que deviam ser avisadas, imaginou se as srtas. Drew poderiam recebê-la. As duas eram muito pobres. Moravam em uma casa que pertencia a Monkscombe e pagavam um aluguel baixíssimo, simbólico até. O pai delas fora pastor e embora tivesse falecido havia trinta anos, as filhas ainda faziam o que o querido papai teria gostado que fizessem.
- A parada seguinte foi na casa do sr. Mortimer Fish, um cavalheiro muito idoso, surdo e um tanto vago. Depois de a jovem repetir tudo por três vezes, acabou confundindo o jovem Stanton com o pai e comentou, acompanhando-a até o cabriole:
- O vento frio levou as palavras e acariciou-lhe as faces, tornando-as rosadas. Os cabelos escaparam do chapéu, que só não voou por estar bem firme, preso pelo véu amarrado sob o queixinho voluntarioso. Quem a visse, concordaria com o sr. Jonas Ferrar: ela era, de fato, a mais bonita das Stanton.
- O primo não era o que ela esperava, porém na verdade não tinha muita certeza do que esperava... Ao vê-lo à mesa, no café da manhã, bem barbeado, vestido com bom gosto, tivera de admitir que era bastante respeitável, até mesmo distinto. Pelo jeito, tivera excelente educação, viajava muito, conhecia seus direitos legais e não hesitava em tomar uma decisão. Era um adversário temível. Talvez seria, melhor se ele fosse o caipirão que imaginara...
- Bem agasalhada numa capa de lã com gola de pele, Harriet dirigia o cabriole com muita classe. Tratava-se de um veículo mais esportivo do que a charrete, comumente usado pelas senhoras, e dirigi-lo era mais para homens. O cavalo, animal enorme, vistoso, castanho e com as patas brancas, chamava a atenção. Quase todos se voltavam para ver a srta. Harriet Stanton dirigindo um cabriole.
- Vamos lá, deixar nosso cartão, não é, Mary?
- Papai aprovaria — respondeu a outra velhinha.
- E mandaremos um pote de geléia de presente — tornou a srta. Eleanor.
- Será que o senhor conde gosta de geléia? — duvidou a srta. Mary.
- Então, vamos enviar carne em conserva. Que diz, srta. Harriet?
- Acho que ele vai adorar, srta. Eleanor.
- Bem, carne em conserva. Mas, não sei, talvez geléia seja melhor... — E olhou para a irmã, em dúvida.
- Papai gostava mais de carne, Eleanor!
- Espere um minuto, srta. Harriet. Vou pedir a Daisy que traga um pote de carne e um de geléia, assim poderá levar os dois. Entre um pouquinho!Imersa nos pensamentos, só notou o homem que ia andando a pé, na mesma direção que ela, quando chegou perto dele. Aí, reconheceu-se sentiu um nó no estômago. Era Aaron Pardy.Harriet tinha medo de Aaron, porém sempre escondera esse fato. Era um rapaz bem apessoado, de uns vinte e cinco anos, alto, forte, não se casara, e possivelmente uma ou duas das criancinhas imundas da família lhe pertenciam. Olhava para ela de um jeito diferente e às vezes até lhe piscava, atrevido, sem ligar que se tratasse da srta. Stanton, de Monkscombe.
- No ponto em que se encontravam, o caminho era muito estreito e Harriet precisou pôr o cavalo a passo. Esperava que Aaron se limitasse a um cumprimento insolente, como de hábito, mas, quando a cabeça do animal emparelhou com o seu ombro, ele segurou a rédea, junto ao freio, e o fez parar.
- Quase toda aldeia inglesa tem uma família de "maus", que vivem à margem da comunidade. Ali eram os Pardy. Um sobrenome bastante comum, e os Pardy resPeitáveis negavam qualquer parentesco com estes, que moravam em cabanas na praia, a certa distância da cidadezinha. Diziam-se pescadores, porém todos sabiam que eram contrabandistas. Era uma família numerosa, muito unida. Difícil discenir os graus de parentesco entre eles, e sempre havia um grande numero de bebês, que eram cuidados por todos, como se a todos pertencessem. Os homens eram bonitos, mas vulgares, briguentos e mulherengos. As mulheres, também bonitas, viviam de cara feia, eram relaxadas, submissas e geralmente estavam grávidas.
- Quando foi embora da casa das irmãs Drew, Harriet sentia-se um tanto triste. Imaginou que o futuro dela e o de Caroline poderia ser parecido, se não se casassem... Vivendo de favor numa casinha da propriedade, fazendo conservas e dedicando-se a obras de caridade.
- Largue meu cavalo, Aaron! — ordenou Harriet, furiosa ao ver que ele sorria.
- Oh, a srta. Stanton! Bonita como um quadro... Veio dar a notícia a todos? Então, há um patrão novo na casa?
- Meu primo, lorde Benjamin Curtis Stanton, chegou — disse ela, secamente. — Se é o que desejava saber, já sabe. Solte o cavalo e deixe-me passar.
- Aaron continuou segurando o cavalo com uma das mãos e afagando o focinho do animal com a outra.
- Imagino que não gostou de vê-lo — afirmou, por fim.
- Tal fato não lhe diz respeito! — esbravejou a moça. — E não é verdade. Ficamos muito contentes por ele ter vindo.
- Não foi o que ouvi... — ele riu. — A senhorita quis entregá-lo aos soldados. — O olhar de Aaron era astucioso.
- Como soube disso? — perguntou ela, desconcertada.
- Ouço muita coisa por aí. Gosto de saber o que a senhorita faz... Pode ser que um dia precise de mim.
- Duvido muito — replicou ela.— Um cavalo em disparada é de assustar... — murmurou Aaron, falando devagar e observando-a. — Uma moça delicada como a senhorita não conseguiria dominá-lo.Nos minutos seguintes Harriet sentiu um medo que nunca senti-Aaron estava certo: não tinha força para controlar o cavalo, e o veículo saltava devido à velocidade. Precisou agarrar-se para não cair e ficou à espera de que o cabriole tombasse. Mas não tombou. Dominando o medo, ela segurou a rédea, com firmeza, e puxou-a, sem resultado contudo. No meio da confusão, com o barulho das rodas, os gritos de quem assistia à cena e o pânico que se apoderava dela, viu que um cavaleiro, à frente, obrigava a montaria a ficar atravessada no caminho. O cavalo do cabriole também viu e ao se aproximar do obstáculo empinou, espalhando lama e pedregulhos. O cavaleiro segurou a rédea e o cavalo imobilizou-se, suado, bufando e espumando.— Machucou-se? — indagou ele, ansioso.
- Ela fez que não com a cabeça. Lorde Stanton desmontou, amarrou seu cavalo à traseira do cabriole, subiu no veículo e tirou a rédea das mãos da moça. O cavalo, cansado, obedeceu ao sinal e se pôs a andar.
- Harriet mostrou-se consternada ao reconhecer Ben Stanton.
- Ela ficou apavorada, porque sabia que aquele homem era capaz de qualquer coisa. Tirou o chicote do suporte, decidida a fazê-lo estalar no ar, para obrigar Aaron a soltar a rédea, porém, sua pontaria foi melhor do que esperava, e a trança fina de couro atingiu o rosto barbado do rapaz. A marca do chicote avermelhou a pele, ele praguejou, levantando a mão para evitar outra chicotada, e largou o animal, que, assustado com o estalido, saiu em disparada.
- Puxou a rédea, o cavalo ergueu a cabeça e recuou alguns passos, enquanto o cabriole balançava perigosamente.
- Quer me explicar — perguntou ele — por que saiu sozinha num veículo que não lhe serve?
- Sempre saio sozinha. O cabriole é meu e me serve muito bem — respondeu Harriet, que já recuperara o fôlego.
- Teve sorte de não quebrar o pescoço.
- E a primeira vez que tal coisa acontece — revelou, irritada.— E não teria ocorrido se... — parou, com vergonha, de falar em Aaron.
- Vi o que aconteceu. Quem era aquele sujeito?
- Aaron Pardy — declarou ela, contra a vontade. — Um joão-ninguém local.
- Para um joão-ninguém, julguei que a tratou com familiaridade demais! Pardy... Será que é daquela família que mora na praia?
- É. Eles moram em dois casebres. A faixa da praia não faz parte de Monkscombe, e nada podemos fazer.
- Pois é...o sr.Ferrar explicou-me. Aliás, ele já partiu para Bristol.
- Harriet desanimou ao saber que o velho amigo não estaria em casa para apoia-la. Então, percebeu algo rolando no chão do veículo. Apanhou era o pote de geléia. O de carne em conserva desaparecera.
- As srtas. Drew lhe mandaram isto — sussurrou, vendo que o primo a observava. -- Deram-me também um pote de carne em conserva, mas deve ter caído... Elas quiseram lhe fazer uma gentileza -- acrescentou, com ar desafiante.
- Elas são inquilinas da propriedade, não? Examinei os livros com o sr. Ferrar. Parece que pagam um nadinha de aluguel pela casa...
- Não podem pagar mais! — exclamou a jovem, indignada.
- Nada tenho com isso. Como você disse, devo administrar a propriedade de modo lucrativo. Vou estudar o caso do aluguel das srtas. Drew.— Não posso substituir a família que essas senhoras não têm, Harriet. A casa que ocupam é boa e merece aluguel maior.— Não sou um cavalheiro, minha cara. Sou um negociante. Aproximavam-se de Monkscombe, e ela se calou, mordendo os lábios. Quando entraram, vagarosamente, no pátio das cocheiras, lorde Stanton saltou agilmente e estendeu a mão, cortês, para ajudá-la— E mais uma coisa — bradou, com voz firme. — Quando sair de novo, leve um dos.criados para dirigir, entendeu?
- a descer.
- — Se você fosse um cavalheiro, saberia que há outras obrigações, além de ganhar dinheiro!
- — Lucrativo não significa desalmado — esclareceu Harriet. — As irmãs Drew são duas damas, o pai delas foi pastor da nossa igreja, e são muito idosas. Não pode pensar em despejá-las, porque elas não têm parentes, ninguém.
- Não é preciso — respondeu ela, fria.
- Creio que é. Com espiões franceses por aí, milicianos por toda a parte e sujeitos pouco recomendáveis pelos caminhos, essa é minha ordem.
- Não recebo ordens suas! — exclamou a moça revidando.
- Vai receber sim, em tudo o que disser respeito fora dessas paredes. Tem minha licença para continuar dirigindo Monkscombe, no que se refere a cardápios e organização da casa, como lavanderia, limpeza etc. Continuará orientando a sra. Woods nisso, que são coisas para mulheres. Preocupe-se apenas com o que acontece na cozinha e arredores. Mas comporte-se de maneira respeitável, principalmente quando sair. — Todas elas parecem estar dançando de camisola! — exclamou. Caroline riu, mas Harriet manteve os olhos fixos no prato. Uma ou duas vezes ele lançou-lhe olhares disfarçados, porém ela sempre se manteve alheia, mesmo quando a irmã manobrou a fim de conseguir de Bén consentimento para organizar uma reunião musical em Monkscombe, o que não acontecia desde a morte do pai.
- Mais tarde, durante o jantar, como Harriet não queria continuar a discussão na presença da irmã, limitou-se a tratar o primo com uma polidez glacial. Caroline não parou um instante de tagarelar, fazendo mil perguntas sobre as viagens dele, e Ben Stanton respondia com paciente boa vontade. Chegou a pedir desculpas por não entender nada a respeito de modas femininas e só poder informar que as mulheres francesas e vienenses eram muito elegantes, que pareciam preferir a cor branca para vestidos de baile. Pessoalmente, informou, achava que essa era uma cor sem graça.
- — Respeitável?! — repetiu ela, quase engasgando de tanta raiva. Ia dizer qualquer coisa, porém ele já se distanciara a passos largos.
- Desde que papai faleceu, não tivemos nenhuma reunião, mas, é claro, estávamos de luto — declarou Caroline, depressa, ao ver que a irmã a desaprovava. — Contudo, agora você está aqui, Ben, e seria uma ótima oportunidade para que conheça todo mundo.
- Creio que tem razão... — concordou ele.
- Caroline ficou radiante e bateu palmas, depois indagou:
- Quer dizer que posso organizar a reunião?
- Pode, prima, se isso lhe dá prazer.
- Harriet foi obrigada a reconhecer que Caroline encontrara a maneira certa de lidar com lorde Stanton, como o sr. Ferrar já previra. Ele não de ofendia quando a jovem cometia gafes, não perdia a paciencia quando ela exigia detalhes de penteados franceses ou pedia, pela sexta vez, que descrevesse Napoleão Bonaparte, que vira de perto em Viena.
- Ele tem boa aparencia, e é de estatura mediana e dono de um olhar inteligente — respondia, e numa das vezes acrescentara misterioso: -- Mas, se ele quisesse me vender um cavalo, eu não compraria...
- Admirava o Exercito francês e não fazia segredo disso.
- Tenho impressão — afirmou Harriet para provocá-lo — que um exército, no qual todo e qualquer soldado de infantaria pode se tornar general, deve ser muito maldirigido.
- Está enganada — contestou Ben Stanton. — É muito pior um exército que permite a qualquer um comprar patentes de oficial, sem outras qualificações que não a fortuna pessoal e um sobrenome de família antiga. Todos os oficiais franceses que conheci eram bem treinados. Evidente que entre eles deve haver patifes, porém esse tipo de homem existe em todo exército. Além disso, entre eles há muitos aristocratas franceses, porque nem todos estão se pavoneando no exílio, em Londres ou em São Petersburgo!No dia seguinte, depois de pensar muito, decidiu que o máximo que poderia fazer era ir falar com as duas irmãs e avisá-las do que provavelmente aconteceria. Não quis desautorizar lorde Stanton, por enquanto, e pediu a Henderson que saísse com ela no cabriole, na tarde do próximo dia.
- As srtas. Drew receberam-na com a costumeira alegria e agitação.
- Harriet não se deixou arrastar para outra discussão, e ficou calada. Na realidade, sentia-se muito preocupada com as srtas. Drew. Eram tão indefesas, confiantes, e nunca imaginariam que o novo senhorio poderia ser diferente do antigo. Precisava arranjar um jeito de interceder por elas, para que o aluguel não fosse aumentado. Mas não sabia como abordar o assunto com o primo.
- Imagine só! Duas visitas importantes no mesmo dia!
- Duas?! — admirou-se Harriet, sentando-se na velha poltrona, depois de desalojar o gato mal-humorado.
- Pois é! — confirmou a srta. Eleanor. — Lorde Stanton esteve aqui hoje de manhã e conversou muito conosco.
- Ele esteve aqui? — Harriet imobilizou-se, com um pedaço de bolo numa das mãos e a xícara de chá, muito fraco, na outra. —E o que ele disse?
- — Agradeceu o pote de geléia e contou que o de carne se perdeu, quando a senhorita voltou para casa. Ficamos surpreendidas com seu descuido, querida, e prometemos mandar outro pote para ele.
- Descuido? Ele afirmou que fui descuidada? — perguntou Harriet, quase engasgando com o bolo.
- Nós estávamos preocupadas... — murmurou a srta. Eleanor, sem responder à pergunta.
- ...por causa do aluguel — completou a srta. Mary.
- Isso... — confirmou a irmã. — Ele é muito baixo e...
- — Receamos que lorde Stanton quisesse aumentá-lo! Harriet voltava a cabeça de uma irmã para outra, à medida que falavam.
- Mas ele afirmou que não precisávamos nos afligir — bradou ta Eleanor, triunfante —, porque não pretende aumentá-lo. Disse ae notou o telhado estragado, meio desconjuntado, sabe, por cau-i das últimas tempestades, e que vai mandar alguém para consertar antes que a água comece a infiltrar.A jovem não sabia o que dizer, e então ouviu-se um grito. Henderson, que a esperava no cabriole, foi visto quando passou correndo diante da janela. As três foram, depressa, para a cozinha, onde Daisy, a criada-para-todo-serviço, berrava e gesticulava.
- — O conde parece muito com o querido pai dele — declarou a srta. Mary. — Era encantador, apesar de um tanto rebelde. Ficamos com muita saudade dele, quando viajou para os Estados Unidos... — sussurrou, com um suspiro.
- Eu o vi! Eu o vi! — gritava, sem parar.
- Deixe de fazer tanto estardalhaço, Daisy, e diga o que viu! —ordenou a srta. Eleanor Drew.
- Um daqueles demoniozinhos, um pequeno Pardy, furtando roupa do varal, bem diante do meu nariz! O sr. Henderson o apanhou!— Roubar é muito feio! — repreendeu a srta. Mary, agitando um dedo diante do moleque. — Se não tomar cuidado, você vai para o inferno!— Meu Deus! — exclamou Harriet. — Solte-o, Henderson, ele não pode sair daqui. Que vamos fazer?Ele foi se refugiar embaixo da mesa, chorando.
- — O magistrado que fica mais próximo é o sr. Mortimer — murmurou o criado, soltando o menino a contragosto.
- A resposta do menino foi aplicar violento ponta pé na canela de Henderson, que soltou um berro e deu-lhe um cascudo. O garoto rompeu em choro e gritos.
- Nesse momento, o criado surgiu à porta da cozinha, arrastando um garoto de oito ou nove anos, todo sujo.
- Não podemos mandar uma criança tão pequena para a cadeia -- afirmou Harriet, preocupada.
- Posso levá-lo para fora e dar-lhe uma boa surra — propôs Henderson. -- Ele quase me quebrou a canela!
- Nada disso, Henderson! – Opôs-se a jovem.
- Olhou para o menino. Era feinho, sujo, e alguém cortara muito mal seus cabelos: parecia um ouriço. Algo em sua fisionomia indicava que era um Pardy.
- Saia daí — encorajou-o a moça. — Ninguém vai machucar você. Como é seu nome?— Vou levá-lo até Monkscombe. Quem sabe no caminho ele resolva falar comigo.
- Henderson apressou-se a desentocar o menino e teve de se esforçar, pois ele lutava como um animalzinho acuado, contorcendo-se e esperneando.
- O moleque manteve-se mudo e imóvel. As srtas. Drew estavam muito nervosas. Então, ela decidiu:
- Olhem só! — exclamou o criado. — Alguém já lhe deu uma surra! — Virou a criança e levantou a camisa em trapos, para mostrar às senhoras as marcas nas costinhas magras. — Isto foi feito com uma cinta!
- Está resolvido, vamos levá-lo para Monkscombe! — declarou Harriet.
- O novo conde encontrava-se no pátio das cocheiras, quando chegaram. Observou-os em silêncio, enquanto desciam do cabriole. Fitou a criança, depois Harriet, e ela contou-lhe o que acontecera. Ele voltou-se para Henderson:
- Leve o menino para a cozinha, Joe, e faça-o comer, deve estar com fome. — Encaminhou-se com Harriet para a casa.
- Não sabia que o nome de Henderson é Joe... Nós costumamos chamar os criados pelo sobrenome — disse ela.
- — Pode ser. Eu não tenho esse costume. Sentindo o terreno perigoso, ela mudou de assunto:
- Gentileza sua visitar as srtas. Drew — entraram no hall e ela tirou o chapéu — e sossegá-las a respeito do aluguel.
- Elas me lembram duas tias solteiras de minha mãe — contou ele. — Produziam montanhas de tortas de abóbora e sabiam de coros nomes de todos os reis de Israel. — Depois, e em tom impessoal: — Aquela casa precisa de uns consertos. Quando estiver em ordem, vou pensar no aluguel.
- Ah! — fez Harriet, mas não se preocupou, sabendo que era apenas ameaça. — E o menino? Que vamos fazer? As autoridades são muito severas com crianças. Ele é tão pequeno e foi criado por gente dá pior espécie... Devem tê-lo mandado roubar e garanto que vai apanhar se voltar de mãos vazias...
- Mesmo assim, ele retornará para casa correndo, assim que o soltarmos — informou Ben Stanton. — Lar é lar, mesmo quando péssimo, e é muito triste ficar longe dos familiares. Não adianta explicar tal coisa a um inglês, pois todos mandam Os filhos para colégios distantes, em vez de criá-los em casa... — Suspirou e acrescentou:
- — Mais tarde levo o garoto para casa, e direi a eles que devem tratá-lo melhor.
- Ninguém vai ouvir — murmurou Harriet.
- Eles não ouviriam você, porém eu posso reforçar minha argumentação com os punhos, se for preciso.A porta abriu-se com estrondo e Aaron entrou. No ambiente refinado de uma casa, ele parecia bem mais selvagem. Numa das faces ainda se percebia a marca avermelhada da chicotada. Com as mãos enfiadas nos bolsos da calça, lançou olhares belicosos a Harriet, depois ao conde.
- Ao ouvir isso ela fitou-o, surpreendida, e ele percebeu que achava a ideia muito boa. Passaram a falar nos consertos que deveriam ser feitos na casa das srtas. Drew. Foram interrompidos bruscamente depois de alguns minutos.
- Vim buscar o moleque — rugiu. — Disseram-me, lá embaixo, que não poderiam entregá-lo a mim enquanto o conde não desse ordem. Acontece que não sou inquilino da propriedade Monkscombe, e não recebo ordens suas, sr. Stanton.
- Já sei quem é... — sussurrou o conde, com delicadeza. — Ontem provocou um acidente sério, que poderia ter vitimado a srta. Stanton.
- Os olhos escuros de Aaron brilharam, e ele voltou-se para Harriet, enquanto se encostava no umbral da porta, com ar insolente.
- Não pretendia prejudicar a srta. Stanton, e ela sabe disso. De certa forma, sou amigo dela.
- Você não é coisa alguma! — rebelou-se Harriet. — Quem surrou cruelmente aquele menino? Foi você?
- Não sei. Apenas sei que vou levá-lo para casa.
- Ele é seu filho? — quis saber o conde.
- Não. É uma das crias de Lucy. — respondeu Aaron.
- Qualquer um deles pode ser o pai... — murmurou Harriet para o primo. — Os Pardy são assim...
- O menino foi apanhado roubando — explicou lorde Stanton ao outro. — Desta vez, estamos dispostos a esquecer. Pode levá-lo, mas ele não deve ser maltratado, entendeu? Lembre-se, eu vou conferir isso!
- Aaron afastou-se do umbral e deu uns passos à frente, parando diante do conde. Tirou as mãos enormes dos bolsos e ficou imóvel, com as pernas abertas. Passou a língua nos lábios.
- Já disse — começou, com voz rouca —, não recebo ordens dos Stanton. Eles não têm a mínima importância para mim.
- É mesmo? — perguntou Ben Stanton, gentilmente. — Nesse caso, talvez isto tenha!
- Seu punho, ao chocar-se contra o queixo de Aaron, chegou a fazer barulho. Foi um soco tão rápido e potente, que o rapaz voou para trás e caiu estrondosamente no chão. Levantou-se imediatamente e ficou com os joelhos levemente dobrados, à maneira dos arruaceiros quando estão decididos a brigar. No entanto, algo na atitude ou na expressão de Ben Stanton fez com que ele hesitasse. Endireitou-se e esfregou o queixo dolorido.
- Entendi o recado — rosnou. — Posso levar o moleque, agora?
- Mas lembre-se do que eu disse — insistiu o conde. — Vou conferir o estado do menino. E, se resolver me importunar, pense duas vezes, porque vou metê-lo numa boa encrenca.
- Aaron... — interferiu Harriet, preocupada. — Cuide bem do menino... por mim!— Claro, srta. Stanton. Sabe que estou sempre pronto para fazer um favor para a senhoral
- Saiu, com seu andar gingado, e o conde voltou-se para a prima, irritado:
- — Harriet! Deixe-me cuidar disto! — zangou-se lorde Stanton. Aaron sorria, satisfeito, e respondeu:
- Não tenha mais nenhum contato com esse indivíduo! Não de ve encorajá-lo, de modo algum!
- Não o encorajei! — contestou a moça. — Só queria ter certeza, pelo menino!
- Eu já havia falado a respeito. Faça o que mandei: cuide dos menus, do rol das roupas, de recepções, festas, limpeza da casa, e deixe o resto comigo.O rapaz tocou o queixo que doía, depois a marca do chicote de Harriet. Estava acostumado a resolver diferenças de opinião com violência, e teria ficado surpreso se qualquer dos Stanton agisse de maneira diversa.Quando se afastaram o suficiente para não serem vistos da casa, parou, agarrou o garoto pelos ombros e sacudiu-o. Me largue! — berrou o menino. — Senão vou contar para a srta. Harriet e para o cavalheiro o que você esconde lá em casa!Em seguida, como acontece com homens do tipo e do temperamento dele, mudou de atitude. Soltou uma gargalhada e largou o menino; passou a mão pelos seus cabelos revoltos, sujos, num gesto rude, mas carinhoso.Pulou uma cerca e saiu andando depressa na direção da praia. O garoto o seguiu, trotando.Olhou para o espelho sem se ver. Reconhecia que perdera o controle do andamento de Monkscombe. Os menus, trabalhos de casa, providência de provisões, tudo isso continuava nas mãos da sra. Woods, como sempre estivera, e o conde devia saber disso. Na verdade, ela nada mais tinha que fazer, e sentia-se amargurada.Só que não sabia como chamar a atenção do primo para esse fato. Tinha consciência de não possuir o talento de se comunicar facilmente com os homens de sua geração. Sentia-se à vontade com Pessoas mais velhas. O sr. Jonas Ferrar era um deles. Demonstrava estar muito bem em sua companhia, conversava com animação e segurança. Já com rapazes apresentava-se desajeitada, sem saber o que dizer, como agir, e acabava sempre dizendo e fazendo as coisas erradas. A exuberância e a admiração dos jovens a irritavam. Só permitira a aproximação de admiradores mais velhos, calmos e sérios. Mas nem mesmo eles haviam conseguido despertar algum sentimento nela.Quando afinal desceu, sentia-se meio tímida. Conseguira fazer um penteado alto, utilizando uma fita azul, na qual prendera um pequeno broche de ouro e uma pluma discreta. Usava seu vestido mais novo, que mandara fazer dois anos atrás, antes do luto. Esperava, ardentemente, não estar com ar muito provinciano, pois o primo estivera em Paris e Viena. Jamais pensara nisso, porém Monkscombe era, realmente, um lugar muito afastado de tudo.Ele a fitou sem sorrir, e Harriet corou, começando a se arrepender de ter cedido à tentação de parecer na moda.Durante o jantar Harriet se manteve em silêncio. Teve impressão que Ben Stanton olhava para ela, de vez em quando, com certa curiosidade, e sentiu-se desajeitada, a ponto de deixar cair o guardanapo. Nervosa, sem perceber, massacrava o peixe no prato.
- Caroline, como sempre, conversava com animação.
- — É, está mesmo — respondeu ele, finalmente, e acrescentou, galante: — Tenho duas primas muito bonitas!
- — Você está linda hoje, Harriet! — exclamou Caroline ao vê-la e, como se não bastasse, voltou-se para o primo: — Não acha que ela está muito bonita?
- Então, perfilou-se no espelho e se examinou. O sr. Ferrar dissera que era bonita. Ergueu os cabelos e observou o rosto, de um lado e de outro. Enfeitar-se e chamar a atenção de Ben Stanton era uma ideia nova, e talvez não fizesse mal usar algumas das artimanhas de Caroline... Pegou uma revista de moda e folheou-a, pensativa.
- Lorde Stanton não pode fazer tudo sozinho, por mais que pense que pode, pensou. Ele precisa de mim.
- Enquanto se vestia para o jantar, Harriet pensava nos acontecimentos daquele dia, vendo-se obrigada a reformular a opinião que fazia do primo. Ele se comportava de um jeito que ela não considerava correto, porém, reconhecia que seus métodos eram eficazes. Até aquele dia ninguém enfrentara um Pardy. Alarmou-se ao pensar em Ben Stanton indo aos casebres para ver se o menino estava bem. Esperava que se fizesse acompanhar por Henderson ou por alguns criados mais robustos.
- É tarde — sussurrou. — Se quisermos encontrar ainda o que comer, é melhor irmos logo.
- — Você faria mesmo isso, fedelho? — rosnou Aaron.
- — Seu estúpido, idiota! Por que se deixou apanhar?
- — Eu devia te esperado por isso — resmungou. — Da próxima vez, estarei pronto.
- Aaron foi buscar a criança na cozinha, e foram embora. Entardecia, e nessa época escurecia rápido. O homem tinha pressa, porque durante a noite ia sair com dois de seus primos para se encontrarem com tripulantes de um navio francês, que portava um bom carregamento de conhaque e perfumes. O magistrado Mortimer, que não tinha escrúpulos de mandar para a forca um delinquente de menor importância fechava os olhos quando se tratava de conhaque francês, fornecido pelos Pardy.
- James contou-me que ainda não localizaram o espião francês, porém tem certeza que ele se encontra por aqui.
- Quando ele disse isso, e desde quando o chama de James? —indagou Harriet, esquecendo suas preocupações.
- Sempre o chamei assim, é o nome dele... Ele me contou quando veio me visitar, hoje à tarde.
- E quem deu licença a ele? — irritou-se Harriet, largando os talheres no prato. — Vir aqui a serviço é uma coisa, vir visitá-la é outra. Não devia encorajá-lo, Caroline.
- Eu permiti que viesse — interferiu lorde Stanton, calmo. — Ele pediu licença, de maneira apropriada.
- Você? — Harriet enrubesceu. — Você não é responsável por Caro!
- Mas sou, Harriet, de verdade. Sou o chefe desta família e desta casa... a minha casa... e digo quem pode vir aqui ou não. Murray é bem-vindo. É um rapaz com a cabeça no lugar, gosto dele, embora nunca pudesse imaginar que iria gostar de um miliciano! — afirmou, sorrindo.
- Discutiremos esse assunto mais tarde — retrucou Harriet, com um olhar furioso.Ele se encontrava sentado perto da lareira, com as pernas compridas esticadas, e parecia estar pensando. Harriet hesitou em perturbá-lo O gabinete achava-se pouco iluminado; havia apenas duas velas acesas e, naturalmente, o reflexo das chamas.— Venha, Harriet, e diga tudo o que pensa. Acomodou-se na poltrona diante da dele.
- Perguntou a si mesma por que o primo não mandava um criado trazer mais velas e distraiu-se a ponto de sobressaltar-se, quando ele ergueu os olhos e convidou-a a sentar-se.
- Por isso foi procurá-lo no gabinete que fora de seu pai e do qual Ben Stanton se apropriara. Sua reação foi confusa ao vê-lo utilizar objetos pessoais do falecido lorde.
- Quero falar sobre Caro. Você não conhece minha irmã como eu conheço. Ela tem ideias... muito românticas. Não creio que esteja apaixonada por James Murray, porém poderia se apaixonar se passarem a se ver com muita frequência. E não daria certo, de jeito nenhum. Não preciso explicar-lhe os motivos, não é?
- São principalmente financeiros, calculo — respondeu ele. — Ou será que você não gosta dos túnicas-vermelhas?
- Não desgosto de militares, mas julgo que todos sabem que eles ganham pouco. Por isso, um oficial do exército precisa de renda pessoal, além do soldo, se quiser viver razoavelmente, ainda mais se pretende se casar.
- Você não pode dirigir a vida de outra pessoa — declarou lorde Stanton.
- Recostou-se na poltrona. A pouca luz bruxuleante emitida pelas velas e pelas chamas da lareira tornava indefinidas as feições dele.
- Diga-me — continuou, com voz grave —, por que você resolveu se arrumar tão bem esta noite?
- Sabia que seria um erro... — murmurou Harriet, desanimada. — Imagino que você me considerou ridícula.
- Não foi o que eu disse. Aliás, acho que está mesmo muito bonita, porém não entendo por que nesta noite. Em geral, se me permite uma opinião, você parece não se interessar pela aparência...
- Mas me interesso! — contestou ela. — Tento estar sempre vestida de modo decente e agradável.
- Claro que sim, e tão despretensiosa quanto uma quacre! Verdade seja dita, quando uma mulher tem beleza esta aparece, porém gosto de ver uma moça bem-vestida e enfeitada.
- É, mesmo? — perguntou ela, sem jeito.
- Não pensara numa eventual vida particular do primo, em como seria o relacionamento dele com mulheres. Era um homem atraente, seguro de si. Talvez tivesse deixado um rastro de corações partidos pela Europa toda. Movimentou-se, seu pé encostou sem querer no tornozelo dele, e ela retirou-o, rapidamente. Sem que a moça visse, o conde sorriu de leve.
- Não quero que você e Caroline fiquem sem as coisas que precisam ou desejam — bradou ele, dobrando um pouco as pernas. — Vestidos, fitas, água-de-colônia, essas coisas todas... Acredito que as mulheres gostam de ter uma boa reserva de tudo. Encomendem o que quiser, eu pago.
- Eu... nós... não poderíamos fazer isso — declarou ela, atrapalhada. — Sei que você tem a melhor das intenções, mas o dinheiro é seu e não podemos gastá-lo, de jeito algum. E precisamos pensar nas conveniências, embora sejamos primos... Algumas pessoas poderiam achar que não está certo.
- Você pensa assim? — Ele pareceu ficar deprimido; depois de breve silêncio, continuou: — Gostaria de tê-la avisado antes que amanhã irei a Bristol e vou ficar por lá durante alguns dias. Talvez uma semana. Preciso esclarecer certo número de coisas com o sr. Ferrar, e não quero obrigá-lo ao sacrifício de vir até aqui. O tempo está piorando e pode até nevar. Portanto, se quer que eu traga algo de Bristol para você e Caroline... algo que não desperte o falatório do pessoal, é só pedir. Farei isso com o maior prazer.
- Obrigada — sussurrou Harriet.
- Andei dando uma espiada por aí... — Movimentou as mãos, indicando a sala toda. — Sabe, por acaso, se há um mapa da região?
- Harriet não gostou da ideia do primo remexendo os livros e os papéis, que haviam sido de seu pai. Um mapa! A desconfiança surgiu de novo.
- Claro. Há um mapa, e sei onde ele está. Mas para quê?
- Pretendo ir até Bristol a cavalo, e não quero me perder. Uma vez me perdi entre montanhas na minha terra, quando seguia pegadas de veados. Caiu uma violenta nevasca, e me refugiei numa velha cabana abandonada. Nevou a noite toda... Quando acordei e abria porta da cabana, defrontei com uma parede branca. Precisei cavar um túnel para sair.
- Você costuma fazer essas coisas? — indagou Harriet, hesitante. — Quer dizer, caçar sozinho, seguir pegadas de animais? Tenho impressão de que isso deve ser muito difícil e perigoso.
- Um velho índio me ensinou como se faz, como se descobre e segue pegadas. A região dos montes Apalaches é realmente muito bonita, selvagem... Fica-se sem ver pessoa alguma durante dias... às vezes semanas até.
- Pela primeira vez na vida Harriet sentiu vontade de viajar, de correr o mundo. Fora duas vezes a Londres e, além disso, conhecia apenas Bath e Bristol. Pensou, sonhadoramente, em tudo o que Ben Stan-ton já vira, nos diferentes povos que contatara, nos costumes curiosos que descobrira. Até aquele momento o mundo dela resumia-se em Monkscombe. Mas lá fora existia um mundo diverso, fascinante, do qual ela nada sabia.
- Imagino que Filadélfia deve ser uma cidade muito bonita —arriscou.
- Sim, é muito bonita, porém, eu não gosto de cidades grandes. Apreciaria muito mais viver a oeste das montanhas... — Na voz dele vibrava um entusiasmo que não havia antes, e Harriet esforçou-se para ver melhor o rosto do primo. — É um continente inteiro, Harriet, que pouquíssimos homens brancos conhecem... Uma região imensa, entre as montanhas e o litoral oeste, onde os espanhóis se estabeleceram. É habitada apenas por tribos de índios nómades, que seguem os búfalos, e por um ou outro branco, caçador de peles. Há terra suficiente para quem quiser. Um homem poderia se instalar ali e tomar posse de um pedaço tão grande, que se poderia colocar Monkscombe inteira num cantinho dele e nunca mais encontrá-la...
- Diante dessa descrição acredito que Monkscombe não pareça grande coisa para você — comentou ela, séria —, porém é tudo o que eu sempre tive, nela se resume a minha vida. Só saí daqui para viagens curtas. Passei uma temporada em Londres, e não gostei. As ruas cheiram mal, todos parecem estar sempre com pressa. Jamais conseguiria viver lá. Aqui é outra coisa. Bem, a verdade é que os Stanton se identificam com Monkscombe — complementou ela, sem jeito.— O que contei a respeito de meu pai, quando cheguei — afirmou Ben Stanton —, era verdade. Você não acreditou, porém ele sempre falava em Monkscombe. Creio que o coração dele ficou aqui, e sentia muita saudade. Não digo que desejasse voltar, mas nunca foi capaz de romper a relação. Papai nasceu inglês e jamais esqueceu isso. Eu, contudo nasci americano, no ano da Declaração da Independência, e me orgulho desse fato. Não consigo ver Monkscombe o jeito que você vê, porém tal coisa não quer dizer que não saiba apreciá-la.— Acho extraordinário uma família viver durante tantos séculos num mesmo lugar. Antes de você entrar aqui, eu pensava: "Meu avô sentava-se aqui, o avô dele também... e todos os outros, antes deles". Os móveis são muito antigos, e vi nessas estantes livros que têm duzentos anos. Nasci num país novo. A família de minha mãe estabeleceu-se lá no máximo há cem anos. Eram os não-conformistas, que saíram da Inglaterra no tempo de Cromwell, mas devem ser considerados uma exceção...— Aqui, na sua terra, Harriet, o povo respeita um objeto, uma família, até mesmo dinheiro, se forem antigos. Nos Estados Unidos tudo é novo, e isso não é nenhuma vergonha. Um homem pode apagar seu passado e recomeçar, como se nascesse naquele momento. O que vale é o que ele fizer daquele lado do oceano, não o que fez deste lado.A voz do novo conde despertou-a dos pensamentos, e ela estremeceu.
- Ouvindo a voz empolgante de Ben Stanton na calma daquele ambiente, ela soube que ele não ficaria ali para sempre. Mais cedo ou mais tarde, iria embora. Já previra isso, porém por motivos diferentes, por causa dos problemas que poderiam surgir em Monkscombe com a ausência do proprietário. Começava a considerar secundário tal fato, e passou a encará-lo do ponto de vista pessoal. Nãõ conseguia definir o que sentia a respeito. Tinha a impressão de estar diante de uma porta, ou de uma enorme janela, que se abrira deixando entrever um país estranho e envolvente. Não apenas um país de montanhas, rios e grandes planícies, mas também um mundo de experiências novas, das que existem apenas no coração e no espírito. E tinha a sensação de que naquela terra havia coisas para as quais não se encontrava preparada...
- Fez uma pausa, ficou pensativo por instantes, depois a voz grave e profunda fez-se ouvir de novo:
- Ele tornou a recostar-se na poltrona e seu rosto esfumou-se outra vez nas sombras. Em seguida, prosseguiu:
- O conde inclinou o corpo para a frente, entrelaçando as mãos que enganchou num joelho. Seu rosto de traços bem delineados foi para o círculo de luz, e a claridade bruxuleante iluminou-lhe o perfil. Har-net percebeu nele uma agitação interior, uma espécie de palpitação Que a levou a mexer-se na poltrona, procurando ajeitar-se melhor.
- Desculpe, eu não estava prestando atenção — justificou-se.
- Perguntei se posso deixar Monkscombe em suas mãos capazes, enquanto estiver ausente na semana que vem. Pode cuidar de tudo para mim?
- Claro que sim — respondeu Harriet.— Estou cansada... Se não se importa, vou dizer-lhe boa noite — despediu-se, um tanto nervosa.— Sim, vá descansar — bradou.Harriet ficou sem respiração e recuou, com o rosto e os lábios ardendo, ao mesmo tempo que esticava os braços para evitar que ele repetisse o gesto ou fizesse coisa pior.
- Depois, sem nenhum preâmbulo e antes que ela pudesse fazer qualquer coisa para evitar, inclinou a cabeça e deu-lhe um beijo rápido. Não foi na testa, nem na face, o que já seria uma ousadia, porém ainda tolerável. Foi na boca.
- Ele se levantou também educadamente.
- E com esforço conteve o impulso de acrescentar: "Se julgar que eu sirvo para algo mais do que controlar menus e rol de lavanderia..." Era claro que ele não pensava assim, senão por que iria pedir-lhe que tomasse conta de tudo? Levantou-se.
- Não! Não faça isso! — balbuciou, num fio de voz. — Você não pode... não deve!
- Por quê? — quis saber ele, um riso na voz. — Não somos "primos" que se beijam, como dizem nas montanhas? Quer dizer, pes soas que se compreendem, que se gostam?
- Oh, não! — tornou a negar a moça, com fervor. — Não so mos. Tenho certeza que não somos! No entanto, naquela manhã sua irmã não parecia despreocupada. Harriet, vendo-a inquieta, descartou logo que fosse por causa da viagem de Ben, e perguntou se ela se sentia bem. A jovem espreguiçou-se gostosamente, erguendo os braços, depois cruzou-os atrás da cabeça, numa atitude relaxante, porém pouco apropriada para uma dama.
- Na manhã seguinte lorde Stanton partiu tão cedo para Bristol, que, quando Harriet desceu para o café, ele já tinha saído. Sentiu-se aliviada. Não conseguia se livrar da ideia de se ter comportado como uma tola na noite anterior. Fora apenas um beijo entre primos, e ela reagira como uma corça assustada. Ben Stanton não tivera segundas intenções, e era muito embaraçoso saber que não conseguira enfrentar a situação com um mínimo de sangue-frio. Por outro lado, refletiu tristemente, não possuía a feliz disposição de sua irmã, que aceitava qualquer manifestação de atenção como a coisa mais natural do mundo. Caroline não teria ficado desconcertada por apenas um beijinho, provavelmente reagiria ao beijo com entusiasmo, afastando-se depois sem a menor preocupação.
- Virou as costas e, sem se preocupar com dignidade ou elegância, fugiu correndo.
- É que tudo parece muito tedioso por aqui, agora que o primo Ben foi para Bristol, onde ficará pelo menos durante uma semana. — Levantou os pés e ficou a observá-los. — Quero marcar a data do baile para logo depois da volta dele. Lady Williams tem uma orquestrinha ótima. Talvez poderia contratá-la, apesar de a festa não ser tão importante. Mas poderemos dançar a valsa, que é a última moda.
- Isso ficará muito caro! — opôs-se Harriet. — Para algumas danças campesinas, serão suficientes duas rabecas. Você se propõe a gastar o dinheiro do primo Ben, Caro, não o nosso. Não esqueça disso!
- O primo Ben afirmou que poderia ter o que eu quisesse — replicou Caroline, teimosa. — Disse que ia dançar comigo, e com muito gosto. Disse também para encomendar um vestido novo para a festa... Você também, Harriet.
- Já conversei com nosso primo sobre nossas despesas — esclareceu Harriet — e expliquei que não podemos permitir que pague nossas contas. Não estaria certo, Caro.Era inútil tentar raciocinar com Caroline quando estava com essa disposição, e Harriet não insistiu, sobretudo porque havia um outro assunto que ela desejava discutir, aproveitando a ausência de Ben.
- — Gostaria de falar sobre o capitão Murray, Caro. É um rapaz muito direito, e você deveria se comportar de modo que não o magoasse. Deveria também dizer a ele que não volte a vê-la. E, de qualquer forma, o capitão não poderá visitá-la na ausência de Ben. Não estaria certo.
- Você é uma desmancha-prazeres! — Caroline se levantou de chofre, petulante. — Sei que gostaria de um vestido novo! E eu também! Não ouviu o primo Ben dizer como você estava bonita ontem à noite? Gosta mesmo de parecer deselegante, Harriet, e não entendo por quê. Se o primo está disposto a pagar pelo meu vestido novo, vou deixar que o faça, ora!
- Não estaria certo, não estaria certo, não estaria certo! — cantarolou Caroline, caçoando. — Você é aborrecida, Harriet! Tem todas as qualidades para se tornar uma velha solteirona! Não admira que fique sempre enfurnada com as srtas. Drew! Tenho certeza que deve se sentir muito bem lá!
- Agora chega, Caro! — gritou Harriet, furiosa.Quando desceu, ficou contrariada ao ver Henderson pronto para pegar na rédea.
- Mas Caroline já tinha se afastado, volteando e cantarolando uma valsa. Harriet mandou um criado às cocheiras, para que preparassem o cabriole.
- Lorde Stanton disse que deveria acompanhá-la — respondeu, quando tentou explicar que iria sozinha.
- Sabe muito bem que sei dirigir, Joe! — exclamou Harriet mal-humorada.— Não posso discutir ordens, senhorita. Sei que dirige muito bem. Contudo, o conde é o patrão, e preciso fazer o que ele mandar.— Por favor, Joe, ajude-me a subir.Achou que não tinha sido gentil com o criado da estrebaria, porém dirigia aquele cabriole desde os dezesseis anos, e não concordava que um único, infeliz acidente, ou um quase-acidente, do qual não tinha culpa, fizesse qualquer diferença. Henderson não contaria nada a Ben, para não admitir a própria negligência.
- Depois de fazer as costumeiras visitas, voltou, satisfeita. E, quando se encontrava a uns duzentos metros do portão, ela segurava apenas molemente a rédea, deixando que o cavalo caminhasse por si só para casa. De repente, um homem materializou-se no caminho e segurou a rédea, perto do freio.
- O bom Henderson deu-lhe a mão; mas antes que ele também conseguisse subir, Harriet fez estalar a rédea, e o animal, surpreso, pulou para frente e saiu correndo fazendo o cabriole sacolejar pela alameda, deixando para trás Henderson, praguejando a plenos pulmões.
- Harriet ficou pensativa e finalmente murmurou tranquila:
- Começara a tratá-lo por Joe, porque Ben tinha introduzido essa moda, e já lhe parecia estranho tê-lo chamado pelo sobrenome no passado.
- Aaron! — ela exclamou, furiosa. — Espero que não faça outra estupidez das suas!
- Não precisa se zangar — ele respondeu calmo, aproximando-se da lateral do cabriole. — Não vou espantar o cavalo desta vez. Olhe, não quis assustá-la, então; e, para mostrar como sinto por aquilo, trouxe-lhe uma coisa.
- Ela viu que ele segurava um objeto pequeno, embrulhado em papel amassado. Aaron o colocou no veículo e se afastou com um sorriso.
- Não importa o que é, leve-o embora. Não quero presentes de você, Aaron Pardy!
- Mas é um bom presente — ele respondeu. — Todas as damas gostam disso! E não pense que não sei do que as damas gostam!Harriet desembrulhou o pacotinho com cuidado: era um pequeno frasco de perfume, muito caro, de contrabando. Ficou a contemplá-lo sem saber que fazer. Alguém poderia achá-lo se o jogasse fora e, se ficasse com ele, estaria na situação de ter aceito um presente de Aaron Pardy, logo dele! Colocou-o no bolso da capa, para devolvê-lo na primeira oportunidade.O conde chegou no fim da semana. Não parecia muito bem-humorado, e Harriet pensou que talvez tivesse recebido más notícias. Parecia preocupado e, apesar de ter lembrado de trazer romances recém-publicados e os cinco metros de renda Honiton, encomendados por Caroline, pouco contou da sua viagem a Bristol.
- Alguns dias depois de sua volta, Harriet ficou surpresa ao vê-lo entrar a passos decididos na saleta, onde estava ocupada em pregar a renda de Caroline, que em geral não tinha paciência com esses trabalhos miúdos.
- Quando chegou em casa, depois de pedir desculpas a Henderson, Harriet levou o perfume para seu quarto e o escondeu em seu porta-lenços. Não queria que Caroline o encontrasse. Desconfiava que sua irmã não teria o menor escrúpulo em usá-lo, apesar dos constantes sermões do capitão Murray sobre o crime do contrabando.
- Soltou uma gargalhada indecente e, antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele se afastou depressa, pulando uma cerca, e desaparecendo pelos campos esbranquiçados de geada.
- Se não estiver ocupada demais, Harriet, gostaria de falar com você. Precisamos discutir alguns assuntos. — E ficou de pé, com uma expressão truculenta, como se esperasse uma recusa.
- Mas é claro — ela declarou, e guardou o trabalho.— Isso é para você? — perguntou.
- Quando Harriet explicou que era para a irmã, ele bufou, com uma expressão contrariada, e pareceu ainda menos à vontade. Começou a dar passos pela saleta, o que não era do seu feitio. Alguma coisa devia ter acontecido em Bristol, para tirá-lo do seu jeito sempre tão relaxado e decidido. Finalmente Ben Stanton se aproximou da porta, que abriu, para ver se havia alguém no corredor, e voltou a fechá-la.
- Ele observou-a dobrar o lindo vestido em que colocava a delicada renda.
- Como você sabe, Harriet — bradou virando-se para encará-la —, encontrei-me muitas vezes com o sr. Jonas Ferrar, e ele não se poupou para me explicar todos os detalhes relativos a Monkscombe, à vinculação com a minha pessoa e a todas as minhas responsabilidades. — Parou e depois murmurou: — Sim, responsabilidades. — Franziu o cenho sem fitá-la e continuou: — Olhe, você é uma criatura racional e provavelmente já adivinhou o que vou lhe dizer, ou o que Ferrar me disse.
- Não — afirmou Harriet, com toda sinceridade.
- Diacho, Harriet, deve saber! Mas tanto faz! — Balançou a mão, irritado. — O sr. Jonas explanou para mim a situação, a sua e a de Caroline. Eu contei-lhe que ambas tinham um lar aqui mesmo, em Monkscombe, e era absurdo pensar que as mandaria embora. Ele não julgou que isso era suficiente. Contei-lhe também que estava disposto a pagar suas contas... mas que você achou isso inconveniente. Nessa altura, o sr. Jonas começou a espirrar, me cobriu literalmente de rapé e disse que o que estava em jogo era a reputação de uma dama. Primo ou não, eu chegara do outro lado do oceano, e, sob todos os pontos de vista, não passava de um estranho. Descreveu sua situação e a de Caroline, aqui em Monkscombe, como "nebulosa". Frisou que, na melhor das hipóteses, dependia apenas de minha boa vontade e, na pior das hipóteses, as pessoas poderiam pensar que... Ora, diacho! Ele me informou que eu deveria colocar as coisas numa base aceitável. Ao que parece, essas coisas costumam acontecer no caso de propriedades vinculadas... A maneira de arranjar tudo... — E neste ponto o coração de Harríet ficou apertado, porque já sabia o que ele iria dizer. — ...é através de um casamento. Em outras palavras, precisaria me casar com uma de vocês. Parou de andar de um lado para outro e encarou-a, agressivo.
- Sinto muito que Jonas tenha dito isso — sussurrou Harriet, quando se viu em condições de controlar sua voz trémula. — A intenção foi boa. Sabe, ele é um pouco antiquado.
- Não, ele está certo — teimou o conde. — Um casamento tornaria uma de vocês dona de Monkscombe, para todos os efeitos. Eu não poderia escorraçar nenhuma das duas, mesmo que quisesse. Vocês se sentiriam em segurança. Não haveria escândalo algum se eu, por exemplo, pagasse suas contas de costureira. O sr. Jonas vê as coisas por esse ângulo, e estou disposto a concordar.Se ele se casasse com Caro, e Harriet começou a gostar da ideia, o futuro da moça estaria assegurado. Continuaria a viver nas condições confortáveis às quais estava acostumada. Haveria dinheiro para tudo. E ela gostara de Ben desde o primeiro encontro, mostrando-se triste quando ele teve de ir a Bristol. Ben, por outro lado, parecia gostar da bela priminha, e estava sempre pronto a satisfazer os caprichos dela, a trazer suas encomendas e até a encher a casa de músicos e convidados. O noivado de Ben e Caro resolveria elegantemente o problema representado por James Murray, e este esqueceria logo a decepção. Sim, seria uma solução excelente. Harriet endireitou as costas e bradou com entusiasmo:Os olhos acinzentados que a observavam indicaram espanto.
- — Ficaria muito feliz se Caro se casasse. Creio que seria boa esposa e boa dona de Monkscombe. Pode parecer um pouco avoada, agora, porém é porque é muito nova... No fundo, é muito séria.
- Nesse ponto ele deixou-se cair numa poltrona. Esticou as pernas compridas e pôs-se a observar Harriet: era claro que esperava uma resposta. Ela refletiu, e sua reação inicial foi de achar a coisa impraticável, mas não se esforçou para considerar a situação pelo lado prático. Isso tinha acontecido muitas vezes, em outras famílias. O que ele dizia era verdade, na maior parte, e o arranjo seria especialmente vantajoso para Caroline.
- Caroline? E o que devo fazer com o túnica-vermelha apaixonado? Desafiá-lo a um duelo?
- Tenho certeza que o capitão Murray compreenderá que esse casamento é em benefício de Caroline — murmurou ela.Ela ficou branca com o impacto da proposta, e por um momento ele temeu que desmaiasse.
- Tem certeza, minha cara? Estou muito mais disposto a acreditar que chegaria correndo para me dar um soco no nariz! Além dis so, sou um homem com quase trinta anos, e não um garoto que começa a aprender a se barbear. Posso dispensar uma esposa de dezenove anos com uma cabecinha apinhada de romances, de parceiros de dança e de vestidos novos. Quero alguém que saiba dirigir Monkscombe, quando eu não estiver aqui. Como você fez na semana passada. Não. O que quis dizer é que deveria me casar com você, Harriet.
- Bom, posso não ser o noivo ideal de seus sonhos — declarou Ben em tom irritado —, mas não imaginei que esta perspectiva ia lhe parecer tão péssima.
- Como você sabe — murmurou Harriet com uma voz sufocada, que nem parecia dela —, sou apenas boa para me preocupar com cardápios e rol da lavanderia. O que aconteceria se você tivesse de se ausentar por mais de uma semana?
- Pare de se mostrar amuada, Harriet! Você é uma moça de bom senso. Sabe que eu estava apenas brincando, bom, não completamente, pelo menos não no começo. Queria ver até onde chegava sua capacidade, antes de passar-lhe o negócio...
- Negócio? — protestou Harriet, assustando-o. — Monkscombe não é um "negócio". E, ainda por cima, tem a ousadia de dizer que estava me experimentandoV. Está lembrado que dirigi Monkscombe por mais de um ano, desde que papai faleceu, enquanto esperávamos por você?
- Pelo amor de Deus, mulher! — exclamou Ben, enquanto gesticulava para apaziguá-la. — Será que não tem um pingo de senso de humor?
- Tenho um excelente senso de humor, muito obrigada! — A voz de Harriet era mordaz. — Me parece que é você que não sabe escolher o momento certo para brincar!
- Não estou brincando, ora essa, mulher! — Ele se colocou em pé de um salto. — Estou lhe propondo casamento! No entanto, não sou Murray e não tenho a menor intenção de me arrastar de joelhos sobre o tapete! E mais, você conhece o sr. Jonas há muitos anos, e pensei que respeitaria a opinião dele, apesar de fazer tão pouco da minha!
- Ele disse que eu deveria aceitar? — ela sussurrou, abismada.
- Sim. Disse também que sua cabeça estava no lugar certo, e que você veria que era a coisa mais lógica.— Só que eu... — balbuciou — eu não havia pensado nisso. Sabe, já estou com vinte e seis anos, tinha... tinha afastado qualquer ideia de casamento. Veja, Caro é tão mas bonita... e muito mais capaz de conversar com aquele jeitinho que os homens gostam. Eu... eu consigo um bom desempenho nas coisas práticas, mas... mas não tenho muito talento para nenhuma outra coisa.
- Boa parte da irritação dele pareceu se evaporar. Parou de considerá-la com embaraço, teimosia, e se aproximou dela com um ar mais relaxado, mais normal.
- Harnet começou a se sentir sufocada, acuada. Eles já tinham decidido tudo. O sr. Ferrar, apesar de ter as melhores intenções, tinha se tornado um traidor.
- Entenda, Harriet, é uma situação bastante peculiar para nós dois, porém não tenho vergonha de dizer que ficarei satisfeito se você concordar. É uma moça muito bonita, tem uma cabeça notável e, sabe, ficarei orgulhoso ao ouvir as pessoas comentarem: "Ali vai a sra. Ben Stanton!" — afirmou, sorrindo.
- Em vez de ouvir: "Ali vai a srta. Stanton" — ela ironizou, apertando os cantos da boca, e ambos caíram na gargalhada.— Pronto, está vendo? Creio que as coisas irão muito bem, você vai ver!— Oh, mas eu não...! — Harriet começou a balbuciar, porém sufocou o resto ao se lembrar que era a maneira de assegurar o futuro de Caroline.— A não ser que você se lembre de algum impedimento para tal— bradou, ainda de costas —, vou anunciar o noivado durante a festa que Caroline está organizando. Vamos reunir os vizinhos e mandá-los de volta para suas casas de orelha em pé e com assuntos para comentar... — Virou-se de chofre, e mais uma vez ficou a observá-la.—Essa notícia deixaria todo mundo alvoroçadoVou aceitar!, pensou. Teve uma dúvida repentina, ao olhar para cima e ver aquela figura alta a dominá-la. As coisas seriam diferentes... Ser a esposa de Ben significaria muito mais que ser apenas a dona de Monkscombe. Ela teria de se sujeitar às obrigações de uma esposa, ele exigiria isso, porque era seu direito. Só esperava que Ben se mostrasse compreensivo e não ficasse muito desapontado ao descobrir que ela não era uma amante satisfatória. Mordiscou o lábio e ficou a olhá-lo, enquanto ele se dirigia para a porta.
- É agora ou nunca, refletiu. Recuse ou deixe que ele acredite que você concorda. Precisa tomar uma decisão.
- — Sem dúvida — sussurrou Harriet, pensando em sir Mortimer, lady Williams, o pastor, as srtas. Drew e o resto da sociedade local.
- Ele se voltara para olhar alguma coisa^e parecia não ter ouvido a última frase inacabada.
- A sensação de claustrofobia de Harriet pareceu aumentar. A surpresa e o fato de se encontrar numa situação completamente estranha tinham afetado seu autocontrole. Por não ter ouvido uma violenta repulsa, ele acreditava que ela concordava.
- Ben bateu alegremente as mãos sobre os joelhos e, com grande consternação de Harriet, estendeu uma das mãos e beliscou-lhe familiarmente a bochecha.
- Ah! — voltou o conde a falar, como se só então tivesse lembrado. — O sr. Jonas me confessou que gostaria muito de acompanhá-la ao altar, se você aceitá-lo.
- Ah... sim! — respondeu Harriet.Concordaram em que o noivado não deveria ser mencionado antes da festa, especialmente, como o conde recomendou, na presença da própria Caroline.Intimamente, Harriet estava satisfeita com o fato de que ninguém soubesse. Todo adiamento era bem-vindo. Contudo, seu relacionamento com Ben, sob vários aspectos, era pior que antes. Ela sabia que muitos apaixonados escreviam bilhetes, gostavam de ficar de mãos dadas, sussurravam pelos cantos, trocavam olhares cheios de subentendidos. Harriet, porém, existia numa terra-de-ninguém. Estava secretamente noiva, comprometida a se casar com ele. Não podia recuar. Bom, até poderia, mas uma dama não fazia isso. Por conseguinte, sentia a obrigação de se mostrar satisfeita em vê-lo, de apreciar sua conversa e sua companhia. E na verdade, apesar de algumas reservas, tinha começado a prezar a companhia dele, porém teria gostado sem o insistente segredo do noivado. Receava sorrir para ele e parecer afetada ou convencida. Evitara qualquer familiaridade, para que não pensasse que era um convite ao namoro. Ficava aterrorizada de ficar a sós com ele, e inventava mil desculpas para sair de casa.Um dia, lorde Stanton resolveu visitar os Pardy, para ver como estava o pequeno protegido de Harriet. Levou Henderson para acompanhá-lo.
- Quando não se debatia entre esses pensamentos penosos, atormentava-se lembrando que o casamento não fora ideia do conde, mas do sr. Jonas Ferrar. Ele concordara, por uma questão de responsabilidade. Ela então deveria pelo menos se mostrar grata. Mas grata por receber a oportunidade de viver onde sempre vivera? Na ' realidade, não era uma oportunidade, e sim apenas uma pequena e sórdida barganha, e sentia-se envergonhada por isso.
- — Contar a Caro e pedir a ela que mantenha segredo — ele observou —, seria a mesma coisa que contar,tudo a Paul Revere, pedindo-lhe que notificasse a todos.
- Viu que ele parecia aliviado, por ter-se desincumbido da tarefa sem provocar ataques histéricos nem objeções sérias. O conde sorriu, inclinou a cabeça em sinal de despedida e saiu.
- Os Pardy — revelou o criado, enquanto seus cavalos trotavam em direção do litoral e das casinhas dos Pardy — são todos desprezíveis. Espero que não me considere impertinente, senhor, se digo que não deveria descer até aquelas taperas. Aliás, mais parecem pocilgas. Confesso que não entendo como há gente que consegue viver naquelas condições.
- Quero ver o moleque, Joe — declarou lorde Stanton.
- Nesse caso, ficaremos ao lado da cerca e chamaremos pelo menino.
- Não podemos fazer nenhuma outra coisa, Joe. A casa dos Pardy pertence a eles, e, se entrarmos à força, poderão dizer que estamos invadindo — bradou o conde, com calma. — Vamos permanecer ao lado do portão.
- "Portão" era uma denominação otimista do acesso a duas casinhas que caíam aos pedaços, e que eram o lar dos Pardy. Existia uma espécie de cerca, mas, o que antigamente devia ser um jardim, agora parecia apenas um depósito de toda espécie de lixo, incrustado na lama. Um vira-latas peludo e sujo, com uma orelha decepada, se adiantou rosnando, tentando morder as patas das montarias, e Henderson lhe aplicou uma chibatada. O cão se afastou e ficou a latir a prudente distância. Uma mulher jovem, maltrapilha, de cabelos ensebados, apareceu na porta, e, ao vê-los, voltou depressa para o interior. Depois de alguns momentos apareceu Aaron, que ficou parado diante da porta, com os polegares enfiados nas cavas do colete. Atrás dele se esgueirou uma personagem ainda mais repugnante, de ombros largos, curvos, e braços exageradamente compridos.
- Meu Deus, que é isso? — perguntou Ben, espantado.
- Isso é Nathan Pardy — respondeu Henderson. — Eu o conheço, é um delinquente. Se mete continuamente em brigas, e é um lutador traiçoeiro, se o senhor me entende. Já esteve muitas vezes diante do magistrado, porém como se trata do velho sir Mortimer, sempre consegue se safar.
- Como assim? — quis saber lorde Stanton.— Ora, senhor, sir Mortimer é um cavalheiro de idade, de gosto apurado, e prefere um copo de bom conhaque...
- ...Que os Pardy gentilmente contrabandeiam e levam para a casa dele, complementou Ben, em pensamento. E o velho cavalheiro inglês de gosto apurado não passa de um corrupto.
- Henderson mudou levemente de posição sobre a sela.
- Que o traz para estas bandas, sr. Stanton? — gritou Aaron.
- E se recusarmos, que acontece? Vai lutar para chegar até aqui, ajudado por Joe Henderson?— Fique aqui, Joe — murmurou o conde e avançou, empurrando o "portão".— A criança, Aaron! — exclamou lorde Stanton, amavelmente. Aaron o observou, pensativo.Nathan desapareceu e voltou arrastando o moleque por um braço.— Você está bem, Billy? — perguntou lorde Stanton. — Pode falar. Alguém maltratou você?
- Billy respondeu algo incompreensível, que foi interpretado de maneira positiva. Depois virou as costas e retornou correndo para o interior da casa.
- — Solte-o! — ordenou o cavaleiro. — Billy, chegou mais perto. O menino se mostrou lerdo e foi empurrado pelo tio.
- — Escute, sr. Stanton, espero que veja que sou educado. Não sou amigo do senhor, mas sou amigo da srta. Stanton. — Percebeu que o outro corava de raiva e sorriu ainda mais. — Assim, apenas como um favor para a srta. Stanton, e espero que o senhor lhe transmita isso, vou deixar que veja nosso Billy. Traga o moleque, Nathan!
- O cão deu um latido e se afastou mais um pouco. Ele chegou até a porta, e ambos os Pardy saíram de vez da frente.
- O primo de Aaron, Nathan, soltou uma gargalhada. Henderson praguejou.
- Espero que esteja satisfeito, sr. Stanton — bradou Aaron. —E vamos dispensar o prazer de sua companhia, daqui por diante.
- Isso depende — declarou Ben secamente, e fez voltar o cavalo até o portão.
- Os dois primos trocaram um olhar, enquanto os cavaleiros se afastavam.
- Talvez seja necessário cuidar dele — sussurrou Nathan.
- Não se preocupe — garantiu o outro. — O cavalheiro parece ter um ponto fraco, e eu acho que sei qual é.—Pode continuar, Joe — afirmou, com voz contida. — Não preciso mais de você.Harriet parou quando viu o cavaleiro à espera. Chegou a uma cerca baixa e passou por cima dela, sem auxílio, embora seu primo tivesse desmontado.— Com o pastor, que me deu uma lista de doentes, e depois fui ver a mulher de um camponês, que teve filho.— É, sim. O pastor é solteiro e não tem quem visite as mulheres doentes ou em resguardo de parto, por isso eu vou. O dr. Gray visita os doentes com febre...— Você não foi sozinho, espero! — ela exclamou, alarmada.Não, Joe me acompanhou, e calculei que tinha uma constituição suficientemente robusta para me cuidar. Sinto-me lisonjeado por você se preocupar por mim.
- — Não sei se gosto disso... — e apressou-se a continuar, ao ver a expressão de rebeldia nos olhos azuis de Harriet. — No entanto, eu também me dediquei a uma boa obra. Fui à casa dos Pardy, ver o menino.
- — Lista de doentes? Isso é necessário?
- — Onde esteve? — perguntou ele andando ao lado dela.
- —Sim, senhor — respondeu Henderson, olhando para o vulto distante, e se afastou rapidamente.
- Os dois cavaleiros passaram pela aldeia, ao se encaminharem para casa. Quando cavalgavam pela rua principal do pequeno aglomerado de casas e lojas, o conde vislumbrou a distância uma figura feminina vindo em sua direção, andando apressada por um trilho perpendicular.
- Não há nada de lisonjeiro nisto — ela declarou. — Me preocupei porque os Pardy são realmente perigosos e capazes de provocar brigas para se vingar. Você viu o menino?
- Sim, e aparentemente está bem, porém é uma lástima que uma criança tenha de viver em condições tão sórdidas. — Ambos começaram a se movimentar em direção da casa, lado a lado. — O vento está ficando mais forte e pelo jeito vai trazer chuva — ele acrescentou. — Seria uma boa ideia se você montasse na minha garupa. Chegaríamos muito mais depressa.
- Não me importo com um pouco de chuva. Pode ir na frente —Harriet se apressou a dizer.— Havia um tronco caído na beira da estrada. — Serve muito bem para você subir nele e montar.— Seria muito mais esquisito se nos vissem caminhando sob a chuva, tendo um cavalo à disposição. — Ele parou e montou. — Vamos, suba.— Está pronta? — perguntou por cima do ombro.
- O cavalo se movimentou e seus primeiros passos quase fizeram Harriet deslizar para o chão. Assustada, abraçou-o pela cintura. Felizmente não podia ver o rosto dele, porque o conde ria baixinho. Percorreram uns quinhentos metros dessa forma, e de repente a chuva desabou. Lorde Stanton apeou e a tirou da garupa; ambos correram até um barracão à beira da estrada, vazio e não muito bem-cuidado, que, contudo, podia abrigá-los. Ele fez o cavalo entrar e o amarrou. Quando olhou para Harriet, viu que passava as mãos no vestido e sacudia a saia molhada.
- Harriet subiu desajeitadamente no tronco e estendeu os braços. Ele se inclinou para a frente e a puxou para a garupa.
- Não, não posso! — gemeu Harriet, consternada. — Alguém poderia ver e achar muito esquisito!
- — Deixando você para trás, como se fosse uma mulher índia? Sei que não me considera um cavalheiro, mas até criaturas primitivascomo eu não abandonam uma dama nestas circunstâncias. Olhe só.
- Quando sair para visitas, srta. Stanton, carregue um guarda-chuva bem grande. E não entendo por que foi a pé, com o tempo ameaçador como estava.
- Porque você levou Henderson — ela respondeu, mal-humorada. — E eu não posso sair sozinha, se estiver lembrado...
- Hum! — Tirou o chapéu e sacudiu a água. — Talvez a chuva nos tenha feito um favor. Podemos ficar aqui, sentados, e conversar sossegados, até que passe o aguaceiro.
- Conversar sossegados?! — ela perguntou, retendo o fôlego. Afastou-se dele e ficou a observá-lo de olhos arregalados.— Sobre o quê?
- Afinal, somos um casal de noivos. Podemos discutir nossos planos de casamento. Pessoalmente gostaria de uma cerimónia discreta.
- Concordo — respondeu Harriet, com entusiasmo desnecessário.
- Ele encontrou um caixote vazio e o arrastou para perto dela. Limpou o pó com o lenço, sentou-se e indicou o lugar ao seu lado para Harriet. O espaço era reduzido e tiveram de se apertar, ficando mais próximos de quanto ela estava acostumada, em se tratando de homens. Ficou horrorizada e consternada quando ele segurou sua mão.
- Naturalmente — ele anunciou —, vou comprar uma casaca nova. Disseram-me que deve ser azul. E você, Harriet, se vestirá de branco?
- Sim — foi a resposta melancólica. — Mas pretendo pagar pessoalmente pelo vestido, porque seria um absurdo que você o comprasse.Harriet desvencilhou a mão.
- — Você é muito difícil em matéria de conveniências — ele declarou com um suspiro. — Do meu ponto de vista transatlântico, leve e livre, não me interessa absolutamente quem é que pagará pelo vestido.
- Primo Ben, começo a reconhecer seu nível de humor. Sei que está brincando comigo, compreendo que não pretende me magoar, porém eu não gosto disso e seria melhor que não o fizesse.
- Sinto muito — bradou Ben. — Não tive intenção alguma de perturbá-la.
- Não fez nenhuma tentativa de voltar a segurar a mão dela, mas suas coxas estavam muito próximas e não havia espaço para se distanciar.
- Fiquei pensando a respeito do casamento com você — disse Harriet, com a voz carregada de aflição.
- Pode mudar de ideia, é um privilégio que cabe a você. — A voz era indiferente, porém ele observava atentamente o perfil de Harriet.
- Não. — Ela sacudiu a cabeça. — Uma dama não pode fazer isso. Não posso fazê-lo. Se insistir, vou me casar com você. Mas realmente agradeceria muito se você me dispensasse do compromisso.
- Desta vez, o silêncio foi mais demorado. Ele se levantou e aplicou uma chicotada num monte de sacos velhos. Um rato assustado apareceu. O conde pisou imediatamente sua cabeça e depois chutou a carcaça para fora. O gesto violento do chicote e a eliminação cruel do animal indicavam claramente uma emoção reprimida, que ele não desejava expressar em palavras; Harriet se sentiu gelar e não conseguiu dizer mais nada. Ele se virou e a fitou. Seu rosto parecia de pedra.
- Por que concordou quando sugeri o casamento?
- Para... garantir um lar para Caro e para mim em Monkscombe — ela murmurou.
- Então, nada mudou. — Aproximou-se dela; porém, ao ver que ela se retraía, como se estivesse com medo dele, parou. — Este foi o motivo de minha proposta, e as circunstâncias ainda são as mesmas. Pode pensar que minha proposta foi pouco séria, mas garanto que não foi. Não estou acostumado.a ver minha generosidade recusada, Harriet. Não, não pretendo dispensá-la do compromisso. Desista você, se quiser. Eu não vou desistir.
- Já expliquei que não posso desistir — ela sussurrou. — Uma dama não pode fazê-lo.— Sim, é claro — ela murmurou. Foram até a casa em silêncio.A luz da vela provocava sombras irregulares nos cantos do quarto, que a assustavam quando era criança, mas não nesse momento, porque conhecia todos os meandros daquela casa, e a casa era uma amiga. Ou assim acreditara até agora.Teoricamente, ninguém dormia no andar de cima. Havia alguns quartos, porém eram pequenos e incómodos. E existia a porta que dava acesso ao Passeio da Viúva. Quando ela chegou à altura do fim da escada, sentiu uma corrente de ar frio. A porta para o Passeio da Viúva estava aberta. Alguém tinha feito isso, porque era impossível o vento fazê-lo. Silenciosa, deslizou pelo corredor, deixou a vela num canto e continuou andando, colada à parede.Ficou acordada até o dia clarear, procurando uma explicação plausível para a vigília noturna, solitária e secreta de Ben Stanton. Ben, Harriet e Caroline eram obrigados a comer numa salinha dos fundos, pouco usada e escura, e sobretudo abarrotada de móveis indesejáveis.
- Caroline dedicava-se de corpo e alma aos preparativos para a festa. Harriet ficou surpresa ao ver que a orquestra estava contratada, a lista de convidados pronta e os convites escritos e despachados. A sra. Woods foi consultada a respeito do jantar e foram preparadas enormes quantidades de sopa, muito indicada porque, com o frio, podia ser preparada bem antes. As portas entre a sala de visita e a sala de jantar foram abertas e os móveis removidos, alguns retirados, a fim de proporcionar mais espaço para o baile.
- Que estaria ele esperando?
- De súbito, viu a noite lá fora. A porta estava escancarada, e a silhueta de um homem alto se destacava contra o céu estrelado. Ele observava algo ao luar, servindo-se de uma luneta apontada para o mar. Ela prendeu a respiração, voltou-se e esgueirou-se sem o menor ruído; pegou a vela e correu para seu quarto.
- Levantou-se e saiu para o corredor, todo escuro e vazio. Virou-se para voltar para o quarto, quando ouviu um estalo muito nítido no andar superior. Alguém estava acordado e caminhava lá em cima. Durante um instante ficou gelada, e as velhas histórias de fantasmas voltaram à sua mente. Mas logo pensou que devia ser uma criada que dormia no sótão. Tornou a ouvir passos acima da cabeça. Cuidadosamente, chegou até a escada no fim do corredor e subiu, cautelosa, segurando a vela e a barra da camisola.
- Como era de esperar, Harriet dormiu muito mal naquela noite. A um certo ponto acordou, sem saber a hora, sem poder explicar por quê. Procurou a vela e o isqueiro às apalpadelas, e conseguiu acendê-la.
- Se é assim, vamos nos casar, Harriet — ele declarou bruscamente. — E fim da história. — Chegou até a porta. — Tenho impressão que a chuva parou. Vou colocá-la na sela e levar o cavalo pela rédea.
- Isso é muito desconfortável, Caro — observou Harriet, com doçura.
- Não atrapalhe, Harriet querida! É só por pouco tempo, e Ben, não se importa. Pelo menos, não falou nada.
- Ele, provavelmente, também estava impressionado com a atividade inesperada de Caroline. A sociedade local prometeu comparecer, em peso. Ninguém esperava festa alguma antes do Natal, e um baile no começo de dezembro foi recebido com entusiasmo, especialmente pela geração mais jovem. Harriet foi incumbida de arranjar alojamento para aqueles que moravam longe. No entanto, o entusiasmo de Caroline foi além dos meros preparativos. Aproximou-se da irmã com expressão decidida e um brilho no olhar.
- Entenda, Harriet, não vou permitir que você apareça com um vestido velho qualquer, parecendo um espantalho.
- Muito obrigada, Caroline. Nunca pensei que me parecia com um espantalho.
- Não há tempo suficiente para encomendar vestidos novos —continuou Caroline, sem se abalar. — Vou usar meu vestido de seda cor de marfim. Agora, vejamos o que você tem.
- Abriu a porta do guarda-roupa de Harriet e apanhou os vestidos um a um, jogando-os sobre a cama. Finalmente Caroline ergueu-se, despenteada e corada, segurando um modelo de tafetá cor-de-rosa, com laços de veludo em tonalidade mais escura.
- Esse não — protestou Harriet. — Jamais gostei dele. Escolhi mal. É muito sofisticado para mim.
- Tolice, Harriet. Vista-o. Quero ver se precisa acertar alguma coisa.— Como na outra noite, quando Ben gostou muito! — Sentada na cama, entre os vestidos descartados, Caroline explicou: — Que ro que a festa seja realmente um sucesso. Sinto que será uma ocasião muito importante.
- Harriet a olhou desconfiada. Estaria sabendo de alguma coisa? Contudo, a expressão de sua irmã era sonhadora.
- Harriet se colocou diante da lareira acesa e, pacientemente, deixou que Caroline puxasse, virasse e manipulasse o vestido em todos os sentidos, antes de declarar que estava perfeito e na última moda. Achou que só faltaria um lindo penteado.
- Você mandou convite ao capitão Murray? — perguntou Harriet.
- Claro que sim — Caro respondeu com ar ausente. — Mas só o vejo raramente. Vive cavalgando pelos campos em todas as direções, procurando um francês. Ele está convencido de que o homem está escondido perto daqui. Não sabe falar em outra coisa!— Gostaria — ela disse de repente — que James pudesse pedir demissão da milícia e não dependesse tanto do soldo. No entanto, ele tem dois irmãos mais velhos, e não há possibilidade alguma de ele se tornar o herdeiro. Creio que não deve ser agradável o casamento com um homem que está sempre preocupado com o dever. Não quero dizer que não o admiro, e tenho certeza que ele é muito corajoso. Mas suas conversas estão recheadas de mosquetes e de selas, se você entende o que quero dizer.Harriet, porém, não se deixava influenciar pelas circunstâncias. Quando chegou a noite do baile, foi se preparar da melhor maneira possível. Ficou satisfeita com o resultado de seus esforços. O traje de tafetá cor-de-rosa já não parecia exagerado numa casa cheia de mulheres em vestidos de gala. Os cabelos foram ajeitados num elegante penteado, com o auxílio de vinte e três grampos, e os brincos de pérola, herdados de sua mãe, completaram satisfatoriamente a toalete. Procurou um lenço bonito na gaveta, e seus dedos encontraram o frasco de perfume francês. Esquecera sua existência. Tirou a rolha e cheirou com cuidado. Era indubitavelmente autêntico, e muito caro. Quem sabe, Aaron realmente se arrependera de ter lhe dado um susto, porém ela precisava devolver o frasquinho... Por outro lado, se colocasse apenas duas gotas atrás das orelhas, ninguém perceberia. Esta noite haveria muitas senhoras e moças usando perfume francês, conseguido ilegalmente. Pingou uma gota atrás de cada orelha, tampou o frasco e o escondeu no mesmo lugar. Então desceu, para ver se tudo estava pronto.Ao passar pelo hall, Harriet sentiu uma corrente de ar frio e percebeu que o capitão Murray acabava de chegar. Foi cumprimentá-lo. O pobre capitão parecia preocupado.
- A casa já se encontrava cheia de gente, e as criadas corriam em todas as direções com ferros de ondular cabelos, agulhas e linhas, para acalmar os costumeiros pânicos da última hora. Sir Mortimer já dormia na saleta dos fundos. Na mesa havia uma garrafa e um copo, e um bilhete, apoiado na garrafa, pedia: "Me acordem na hora do jantar".
- Harriet não sabia como interpretar essa confidência. Por outro lado, seu noivado seria anunciado dentro de uma semana e imaginava que Ben não estaria disposto a adiar muito a data do casamento. Começara a juntar os vestidos que Caro deixara amontoados sobre a cama, e parou. Pensou em si mesma, deitada naquela cama, o que não era nem difícil nem alarmante. Depois tentou pensar em Ben deitado na mesma cama, e ficou perturbada. Quando tentou pensar em ambos, deitados juntos na cama, ficou tão horrorizada que teve ímpeto de fugir, para nunca mais voltar.
- Parecia aborrecida com a falta de atenção. Harriet esperava que o capitão fosse um péssimo dançarino. Isso não lhe traria nenhuma vantagem aos olhos de Caroline.
- Este não é meu tipo de festa, srta. Stanton — ele confessou. — Caroline disse que devia dançar a valsa, porém não consigo manter o compasso. E depois não me parece decente apertar uma moça entre os braços, assim em público!
- Não faz mal, capitão, faça o que puder — murmurou Harriet, com um tapinha amistoso em seu braço.Muito elegante e atraente, lorde Stanton se encontrava no outro extremo, junto da lareira, observando as chamas. Tomada pela timidez, Harriet parou ao lado da porta. Ele pareceu aliviado.
- O conde havia sumido, mas uma criada explicou que ele fora para o gabinete. Harriet bateu na porta e entrou.
- Finalmente chegou! — exclamou. — Quem são todas essas pessoas? Não posso ficar na porta, cumprimentando gente que não conheço.
- Compreendo, porém ficaremos juntos, para dar as boas-vindas, e vou explicar quem são — murmurou Harriet, reanimada.—Você está lindíssima — sussurrou simplesmente.
- Ele se aproximou e a examinou, com ar meio sombrio,
- Obrigada. O esforço foi sobretudo de Caroline, sabe?
- Estava pensando em nossa discussão do outro dia. Sei que minhas reações são, às vezes, um pouco apressadas, e não quis parecer tão brusco como fui.
- Está bem — ela respondeu abaixando as pálpebras. — Entendi. Você fez uma proposta muito generosa, e fui grosseira ao querer desmanchar o compromisso. Foi apenas... — parou sem saber como explicar-se, pois não encontrou as palavras certas.
- — Acho que você estava assustada... por ter assumido um compromisso.
- Sim — ela concordou, sem jeito.
- E continua assustada? — ele quis saber, muito sério.
- Ela queria responder que estava aterrorizada, mas não ousou. Deu uma resposta diferente:
- Já me acostumei com a ideia, obrigada.
- Nesse caso, creio que será na hora do jantar... — bradou ele e, quando viu a expressão de Harriet, acrescentou: — ...o anúncio de nosso noivado.— Então, podemos sair e desempenhar nossas funções de bons anfitriões.O conde percebeu a mudança de expressão e pensou que, quando ela não parecia assustada, o que acontecia sempre que ele aparecia, era realmente muito bela. Queria descobrir o que fazer para tranquilizá-la, mas sabia que, na ideia de Harriet, era um estranho e continuaria a ser um estranho. Como estavam a sós, a luz das velas era suave e íntima, e parecia a coisa mais natural do mundo, ele se abaixou e a beijou.Falou sem jeito, porque se sentia como um garoto que não soubesse o que dizer:
- Teve medo que, como da vez anterior, ela fugisse em pânico, porém isso não aconteceu: a moça apenas o fitou, com assombro misturado a timidez, sem saber o que fazer, e ele sentiu seu coração dar um pequeno sobressalto, que o deixou perturbado. Teve vontade de praguejar. A coisa não era tão simples e bem-arrumadinha como descrevera aquela velha raposa esperta, Jonas Ferrar, quando o convencera a entrar naquele arranjo. Estava começando a acreditar que teria feito melhor em responder às cartas do velho advogado, anunciando que era o herdeiro de Monkscombe, mas que não estava interessado. Nunca deveria ter vindo. Seria melhor ter ficado longe, cuidando de seus negócios, deixando as irmãs a viver em paz, sem o inconveniente de sua companhia.
- Harriet retribuiu com um sorriso um pouco trémulo, sentindo-se muito mais à vontade. Pôs-se a refletir que fora tola ao se entregar ao medo, e que, talvez, estar casada com ele poderia ser até bastante agradável...
- — Sim. — Harriet engoliu seco. — Julgo que é uma boa ideia. Ele sorriu, se curvou e ofereceu o braço.
- Se não me engano, esse é perfume francês.
- Sim, porém usei só um pouquinho... — ela murmurou, sobressaltada.
- Pensei que fosse difícil encontrá-lo aqui, na Inglaterra...
- O conde lembrou que sir Mortimer não dispensava seu conhaque importado e achou que provavelmente o perfume tinha a mesma origem. Franziu a testa: a ideia de que Harriet comprasse mercadoria contrabandeada lhe desagradava, não combinava com a personalidade dela, tão honesta e correta. Ficou curioso.
- De onde veio? — perguntou.
- Ganhei de alguém — ela sussurrou.Uma pessoa menos honesta teria respondido simplesmente: lady Williams ou um outro nome. Ele teria se dado por satisfeito. Mas ela era profundamente honesta. Respirou fundo, como uma criança a ponto de confessar grave travessura.Ele reteve o fôlego. Teve a impressão de um balde de água gelada no rosto, porém logo seu génio, de inegável pavio curto, incendiou o sangue em suas veias.— Tinha a intenção de devolver — ela balbuciou e arregalou os olhos de susto —, só que não o vi mais...
- O conde retirou o braço no qual ela se apoiava e parou.
- — Pardy? — perguntou com a voz dura. — Aquele rufião?
- — Foi Aaron.
- — Deve ter sido há pouco — ele bradou, erguendo uma sobrancelha. — Perfumes não recendem por muito tempo. — Uma ponta de ciúme o levou a perguntar com voz cortante: — Quem foi?
- Você está me dizendo que ele deu esse perfume para você? Você não o comprou?
- Não. Foi um presente. Sabe, eu o vi quando vinha chegando no cabriole e...
- Tinha dado ordens que só poderia sair de cabriole com Henderson dirigindo!
- Sei, porém não foi culpa de Joe. Eu o enganei. Não deveria ter feito isso, porque ele confiava em mim. Mas eu sempre dirigi meu...
- Eu disse que você não deveria dirigir! — ele rugiu, e Harriet ficou com medo que pudessem ouvi-lo no corredor. — Não me interessa o que você fazia antes! Agora é diferente! Não pode andar por aí sem uma escolta, e, por tudo quanto é sagrado, você não vai aceitar presentes de Aaron Pardy!
- Harriet era corajosa e não estava acostumada com gritos daquele jeito. Seus olhos assumiram um brilho belicoso, e ela parou de se desculpar.
- Não aceito presentes de Aaron Pardy, nem de nenhuma outra pessoa!
- Sei que não aceita nada de mim! — ele sibilou. — Nem pude pagar alguns metros de tecido, porque seria um escândalo! Mas um perfume contrabandeado, dado por um dos mais famigerados delinquentes da região, é diferente! Você tem uma ideia muito curiosa de decência. Poderia chamar-se hipocrisia!
- Não aceito presentes de Aaron! — repetiu Harriet furiosa, batendo o pé.
- Ele me pegou de surpresa, jogou o frasco no cabriole e fugiu. Não tenho culpa!
- Tem culpa sim, porque ficou com ele!
- Ele berrava, mais e mais furioso, sobretudo porque não conseguia se controlar. Os cabelos um pouco compridos, agitados, começaram a cobrir-lhe o rosto.
- Como queria que devolvesse o perfume? Indo até as cabanas dos Pardy? — ela bradou alto.
- Não! Deveria ter mandado Joe Henderson ou esperado minha volta, para que eu o devolvesse!
- Mas eu não queria que você soubesse! — exclamou Harriet, e depois silenciou, assustada por tê-lo admitido: era a verdade, porém parecia um tanto ambíguo.
- Não queria, não é mesmo? — ele perguntou, friamente. — Posso imaginar. Então, deixe-me explicar algo, para o presente e para o futuro. Até o casamento, e mais especialmente depois do casamento, você não terá mais nada que ver com Aaron Pardy. Não irá encorajá-lo. Não aceitará nada dele e nada lhe pedirá. Não irá nem se encontrar com ele. Entendeu?
- Vivo nesta região desde que nasci, e o mesmo vale para Aaron — ela arfou. — Não gosto dele e não gosto dos Pardy, não quero ver Aaron e não quero os presentes dele, mas não admito que medigam quem posso ver e quem não posso ver! E Aaron, apesar de suas muitas falhas, pelo menos é daqui, e você não é!
- Em toda a sua vida, Harriet jamais dissera algo que a deixasse mais arrependida, logo que as palavras saíram de sua boca. Contudo, era tarde. Lamentava ter dito aquilo, e observou Ben retendo o fôlego.
- Vá buscá-lo — ele disse, calmo.
- O perfume, diacho! Vá buscá-lo e o traga aqui. Agora!Ele fez que não percebera, e enfiou o frasco no bolso.
- Diante daquela cólera concentrada, ainda mais assustadora porque ele tinha parado de berrar e se controlava obstinadamente, Har-riet viu que só poderia obedecer. Foi até o quarto, apanhou o frasco e, quando o entregou a Ben, sua mão tremia um pouco.
- Que vai fazer? — ela arriscou.
- Vou devolvê-lo, naturalmente. Amanhã, porque hoje à noite não é possível. — Alisou os cabelos e ajeitou os punhos. — Agora, tome meu braço e vamos ver nossos convidados.Mandou um criado acordar sir Mortimer, e o jantar começou. Quando Ben anunciou o noivado, houve gritos de surpresa e de alegria. Foi necessário berrar duas vezes ao ouvido de sir Mortimer, que via todo o rebuliço mas não ouvia o motivo. Lady Williams desistiu com pesar dos planos que fizera para sua filha caçula Lavínia, que gostaria de ver dona de Monkscombe. Caroline soltou um grito e depois começou a cantarolar: "Eu sabia, eu sabia!", enquanto corria até a irmã e o primo.
- — Tudo isso é tão romântico — declarou com um suspiro. Harriet só queria que o chão se abrisse para engoli-la, ou que o teto desabasse. Nenhuma das duas coisas aconteceu, e ela teve de dançar com o noivo. Movimentava-se numa névoa pontuada de luzes, de vozes e de rostos sorridentes, que falavam coisas que ela não conseguia ouvir. Só via dentes: dentes bons, dentes ruins, dentes de ouro e dentes falsos. Todos a parabenizavam fazendo caretas. De chofre, viu o rosto de Ben Stanton muito perto. A voz dele parecia vir de uma grande distância.
- Espero nunca mais ter de passar por uma noite como esta, pensava Harriet. Ficar de braço com o conde, controlada e sorridente, foi um feito. Falar com os convidados, ficar de olho nos preparativos para o jantar e ter de se preocupar com mais uma dúzia de coisas, requeria calma e mente organizada. E ela carecia disso. Ele anunciaria mesmo o noivado? Os parabéns dos convidados, a necessidade de parecer feliz... receava não ter forças para tais coisas. Depois olhou para o primo e sentiu um pouco de pena: ele teria de anunciar o noivado e parecer o mais feliz dos homens. Talvez se considerasse o mais desafortunado. Mas dissera que ia se casar com ela, e iria se casar com ela.
- Você gostaria de se sentar?
- Sim, por favor — balbuciou, e ele a levou para um lado da sala. Alguém colocou uma taça de ponche em sua mão.— Estão vendo?! — exclamou Caro, toda feliz. — Eu não disse que minha festinha seria muito importante?Finalmente adormecera.Lorde Stanton movimentava-se na branca paisagem invernal. A fina e fofa camada de neve amortecia o ruído dos cascos.Aquela não era nem poderia ser a terra de Ben, mas ele percebera sua fascinação, seu encanto. Hoje, especialmente, não podia deixar de ver como era selvagem, desolada, varrida pelo vento. As legiões de César tinham atravessado aquelas colinas. Antes delas, as tribos celtas haviam executado ali seus ritos secretos e selvagens. O poder de suas divindades sinistras e mágicas ainda encharcava aquelas terras. Existiam estranhas pedras, cómodos esquisitos, curiosas trincheiras: o que significavam? A história escrita é apenas uma fração insignificante de quanto realmente acontecera. Aaron, de certa forma, representava o lado mais obscuro da região ocidental, e ele, Ben Staton, sempre seria um estranho ali.Lorde Stanton não achava que o interesse manifestado por Aaron fosse desprovido de importância. Provavelmente era mais importante de quanto Harriet julgava. Era evidente que ela desconhecia o lado físico dos homens e a possível ferocidade de seus desejos carnais; acreditava que podia cuidar de qualquer problema, em se tratando de Aaron. Mas não poderia...Percorria agora o alto do costão que beirava a praia. Conhecia aquele ponto por tê-lo examinado, do Passeio da Viúva, em Monkscombe. Através da luneta, num dia bem claro, vira o barco pesqueiro ancorado numa pequena angra.Um pouco mais adiante, um trilho estreito e íngreme, cavado na rocha, levava à praia. Estava escorregadio por causa da neve, mas bem cuidado: por esse caminho as mercadorias contrabandeadas eram levadas-até o alto da parede rochosa.cia do fim do trilho, o cavalo pulou na areia, e o cavaleiro quase saiu voando da sela. Quando se aproximou dos homens, eles o esperavam. A poucos metros deles, puxou a rédea e parou. Viu Aaron e Nathan, mas não reconheceu o terceiro; talvez fosse um parente dos Pardy.
- Aaron achegou-se a uma pequena distância, encarando o conde com insolência. Ainda segurava o martelo na mão, por acaso ou talvez não. Os outros dois homens trabalhavam, porém mais devagar, e estavam alertas.
- Ele fez o cavalo descer pelo caminho perigoso. Os cascos derrapavam, e pedras voaram para a praia. Os homens não podiam ignorar sua aproximação, porém continuavam a trabalhar. Ouvia seus martelos e as botas roçando sobre o casco. A uma pequena distân-
- Ventava muito, e o cavalo tentava abaixar a cabeça. Quando pararam, tentou se colocar de costas para o vento. Na praia, um barco sustentado por blocos de madeira era submetido à limpeza do casco. Três homens trabalhavam com afinco, apesar do frio.
- A parte difícil seria explicar a realidade da situação a Harriet, de uma forma que não a deixasse ainda mais apavorada diante de homens do que já estava, de uma maneira que ela conseguisse aceitar. E ele ainda não encontrara o meio, a não ser dando-lhe ordens que ela não obedecia e gritando com a prima.
- Aaron Pardy! O conde achava impossível que Harriet pudesse alimentar qualquer simpatia por aquele criminoso. No entanto, coisas estranhas aconteciam. Pelos relatos de Henderson, sabia que Aaron tinha muito sucesso com as garotas locais, mas ele, evidentemente, queria algo melhor e olhara para a srta. Stanton de Monkscombe. Por quê? Seria um desafio? Um senso de humor pervertido? A vontade de se vingar da sociedade que o declarava um bandido, porém o usava em segredo? Ou seria efetivamente por atração?
- Vários animaizinhos já tinham saído de suas tocas, como indicavam as pegadas. Não havia marcas de passagem de homens. Ele lembrou todas as histórias que seu pai lhe contava quando criança: dos marinheiros que saíam em aventura dos portos ocidentais; dos contrabandistas; da sublevação de Monmouth e a horrível derrota, seguida pela passagem sangrenta do juiz Jeffrey, quando em todos os cruzamentos de estrada surgiam forcas, e os restos dos esquartejados balançavam nas praças das aldeias; de Guilherme de Orange, cuja tentativa foi mais feliz, levando-o para Londres e a uma coroa. Aquelas colinas solitárias eram o ponto do encontro de bandidos, que originaram lendas. Na realidade, deviam ser rufiões ignorantes como Aaron Pardy. Aaron e seus parentes eram os descendentes di-retos daquela gente, e continuavam praticando o mesmo contrabando. Harriet estivera certa ao dizer que Aaron pertencia àquela terra, enquanto ele era um estranho.
- Harriet acordou quase ao meio-dia. A luz lhe pareceu estranha. Pulou da cama e chegou até a janela, descalça. A neve caíra durante a noite, e tudo era branco e bonito lá fora: uma paisagem nova e limpinha. Ficou sentada perto da janela, tremendo de frio em sua camisola. De repente, escutou som de cascos de cavalo. Ben Stanton apareceu, montado, trotando em direção da saída. Ia devolver o perfume. Harriet procurou se lembrar se alguma vez já se sentira tão infeliz.
- Quando Harriet pôde finalmente se deitar, estava exausta mas não conseguiu adormecer. Caroline fora dormir com ela, por ter cedido seu quarto às moças Williams, e ficara falando até o dia clarear.
- Caro apareceu com um leque de plumas de avestruz, emprestado por lady Williams, e começou a abaná-la.
- Então, sr. Stanton? — perguntou Aaron. — Que é que o senhor quer desta vez? Parece que gosta muito de me visitar!
- O que devo dizer é só para você, Aaron — respondeu Ben com voz suficientemente alta, para que os outros dois ouvissem. Colocou a mão no bolso e tirou o frasco de perfume. — Aqui, apanhe!— Você não dará mais nenhum presente à minha futura esposa, compreendeu?
- As feições grosseiras, porém atraentes, de Aaron denotaram surpresa. Teve um sorriso de mofa.
- E jogou o frasco em direção de Aaron, que levantou uma mão e automaticamente apanhou o objeto. Quando o examinou, seu rosto se fechou numa expressão ameaçadora. Fitou o conde, mas, antes que pudesse falar, este continuou:
- Então, é assim? — perguntou.
- É assim — respondeu Ben, friamente. — Fique afastado da srta. Stanton e tire da cabeça qualquer ideia que estiver alimentando. Não irá nem cumprimentá-la, Pardy.— Vamos ver, sr. Stanton vamos ver — sussurrou. — Ainda conhecemos por aqui alguns truques que você desconhece.Depois que todo mundo soube do noivado, Harriet-sentiu-se aliviada, e começou a aceitar mais facilmente a ideia do casamento. Pela lógica, deveria se sentir acuada, porém não era assim: sentia-se feliz por não ter mais um segredo. Caroline, obviamente, não parava de falar a respeito, achava tudo muito romântico e dizia que tinha previsto tudo. O capitão Murray, por sua vez, parecia muito feliz: pelo jeito, acreditava que, depois do casamento de Harriet, suas possibilidades de se casar com Caro aumentariam.A ideia de uma transferência de James para o exército deixava Harriet em pânico. A vida nas cidades que sediavam corpos militares era pouco confortável, a companhia era frequentemente grosseira: Caroline não estava preparada para isso. Seria até pior se a Inglaterra tranferisse suas forças para as frentes de batalha na Europa: as esposas dos oficiais costumavam acompanhar os maridos, mas Harriet não conseguia imaginar Caro dormindo numa tenda, num país estrangeiro, ou aboletada em alguma casa imunda, entre camponeses estrangeiros.O conde ouviu-a com atenção, enquanto ela explicava por que Caro não poderia seguir o marido durante uma campanha.
- Estava tão apavorada pela irmã, que tentou pedir ajuda ao conde. Afinal, era um homem, e James provavelmente estaria mais disposto a ouvir conselhos dele.
- Era impossível não gostar de James. Seria fácil até se afeiçoar muito a ele e recebê-lo com entusiasmo Ha família. Exercia boa influência sobre Caro e, apesar de estar perdidamente apaixonado por ela, costumava repreendê-la severamente pelos seus defeitos. Mas só dispunha de seu modesto soldo da milícia, e no campo as possibilidades de promoção eram escassas. Pensava até em tentar a transferência para o exército. Não seria difícil: a Inglaterra estava em guerra com a França, e durante algum tempo os combates tinham sido navais, com grande sucesso para os ingleses. No mês de outubro o país tinha se regozijado com a grande vitória em Trafalgar, seguida, porém, pelo profundo desespero por causa da perda do herói nacional, o almirante Nelson. O grande Exército francês, no entanto, avançava sem que as forças aliadas conseguissem detê-lo. Os exércitos europeus estavam desorganizados, e a Inglaterra via se aproximar o dia de ter de enviar suas tropas para lutar no continente.
-
- Virou o cavalo e trotou até onde sabia haver uma maneira mais fácil de subir. Aaron ficou a observá-lo.
- Murray é um homem confiável e honesto. Creio que cuidaria muito bem de Caroline, se as coisas chegassem a esse ponto. Outras mulheres seguem o marido. Ela é moça, forte e saudável. Ia sair-se muito bem.
- Ela é uma moça criada com o maior desvelo! — exclamou Harriet, irritada com tanta indiferença. — Sabia que seria inútil falar com você, que não iria compreender!
- Então, por que falou, Harriet? — ele perguntou friamente, e a fitou com seus calmos olhos acinzentados.
- Porque você se dá bem com o capitão Murray, e ele parece respeitá-lo. Imaginei que, se explicasse que isso não pode ser, ele o ouviria. Mas perdi meu tempo! — Ela lhe deu as costas, contraria da, fazendo rodar a saia.— Para lhe dizer a verdade, querida prima, concordo com você em que tal coisa não deveria acontecer.
- Surpresa, ela voltou a se aproximar e examinou o rosto dele, animada.
- Ele se distraiu olhando os bonitos tornozelos, e muito a contragosto desviou a atenção deles para continuar conversando com a noiva.
- Já falei. Disse que o considerava um candidato muito benquisto à mão de Caro, aliás, acredito que não há melhor. A situação dele, porém, deixa muito a desejar. Ele a ama e, se pudesse, daria a ela o mundo inteiro. Mas não pode, e, como é um rapaz prático, só oferece o que está dentro de suas possibilidades: a vida como esposa de um oficial do exército.
- Você quer me dizer — Harriet sussurrou estupefata — que ele já perguntou se poderia se casar com ela?
- De certa forma. Contudo, não se preocupe, não vou permitir que carregue Caroline para viver em acampamentos militares, com todos os seus pertences no lombo de um burro! — Observou Harriet com curiosidade. — Acha que você poderia fazer isso?
- Não sei — ela respondeu com franqueza. — Imagino que, se tivesse de acompanhar o homem que amo, poderia fazê-lo.O conde agora mostrava interesse pela propriedade. Trabalhava, muito, a ponto de Harriet admirá-lo. Passava os dias a cavalo, olhando tudo, não se deixava enganar, e ela viu que os meeiros começavam a respeitá-lo. Ele o percebia, e provavelmente isso contribuía para deixá-lo menos agressivo e menos teimoso. Parecia mais relaxado e mais feliz. Às vezes, quando seus olhos encontravam os de Harriet por acaso, Ben Stanton sorria levemente, o que provocava um sobressalto no coração dela. Finalmente, ela se decidiu a responder todas as vezes com um sorrisinho.— Pode me largar, estou bem!— Você não tem motivo de ter tanto medo de mim, Harriet — ele sussurrou com voz baixa e um pouco rouca. — Acha que eu a machucaria?O rosto dele estava muito perto. Podia ver as finas rugas nos cantos dos olhos. Seu olhar desceu até a boca, e algo a deixou ainda mais nervosa. O sermão do vigário sobre as tentações da carne parecera apenas oratória bíblica, porém, nesse momento assumia um sentido antes ignorado. Lorde Stanton estendeu a mão e tocou-lhe a face. As pontas dos dedos dele estavam úmidas de suor, apesar do dia frio. Ele podia senti-la tremer entre seus braços, como um potrinho assustado que quer se afastar do cheiro e do controle do homem.Isso pareceu acabar com o controle dele. Segurando-a pelos ombros, aprisionou-lhe a boca com seus lábios, muito embora ela se agitasse para se desvencilhar e batesse em suas costas com os punhos fechados. O coração de Harriet ressoava como um tambor, mas junto com o medo provava um estranho regozijo. Ninguém, jamais, a beijara assim! Percebeu que estava relaxando entre os braços do noivo. Seu corpo começou a se amoldar ao dele, até que pensou, consternada e surpresa, no que estava fazendo e entendeu que precisava parar imediatamente, ou chegariam a um ponto que os levaria ao inevitável. O medo disso e a consciência de algo diferente nele, o modo de segurá-la de um jeito que parecia exigir e não pedir, que se tornava sempre mais impaciente, a deixaram rígida.— Estava pensando — ele disse, passando as mãos nos cabelos e alisando-os para trás — que deveria falar com o pastor, para que leia logo os proclamas. Não há motivo para adiar o casamento.
- Parecia calmo e frio. Tinha recuperado seu controle, mas seu olhar era cauteloso.
- Ao perceber a tensão da noiva, o conde soltou-a e se afastou, porém continuou sentado no chão, fitando-a. Ela distanciou-se ainda mais dele, com um ar de animalzinho acuado.
- — Está tudo bem, Harriet — ele murmurou, curvando-se sobre ela, fazendo-a estremecer.
- — Não... não — ela admitiu.
- Virou a cabeça enquanto falava, e descobriu-se a poucos centímetros daqueles olhos acinzentados. Viu neles uma expressão diferente, nova e alarmante. Sentiu um calafrio na espinha.
- O Natal se aproximava. Grandes feixes de azevinho chegavam para a decoração. Henderson trouxe uma braçada até a biblioteca e, a pedido de Harriet, deixou-a no chão, enquanto ia buscar outra. Ela escolheu um galho cheio de frutos vermelhos e subiu numa escadi-nha diante de uma estante. Viu que não era fácil alcançar o ponto que queria, e esticou-se mais um pouco. Naquele momento ouviu a porta se abrindo e, pensando que era Henderson, virou-se para pedir ajuda. A brusca mudança de posição fez a frágil escadinha se desequilibrar e, com um grito, Harriet começou a cair de costas. Ao ver isso, o conde correu e segurou-a quase por milagre, mas ambos acabaram caindo. Durante alguns instantes tentaram recobrar o fôlego. Depois, vendo que estava entre os braços dele, Harriet entrou em pânico e pediu, com voz trémula:
- Nesse ponto enrubesceu furiosamente, e começou a falar muito depressa num outro assunto.
- Oh, não! — exclamou Harriet agitando um ramo de azevinho, como para afastar essa sugestão.
- E por que não? — ele perguntou com expressão de desafio e teimosia, que ela muito bem conhecia. '
- Porque é quase Natal!No entanto, não adiantou. O conde explicou que a cerimónia seria simples e particular, na presença do sr. Jonas Ferrar, que viria para acompanhar a noiva ao altar e ficaria para o Natal, de Caroline e do capitão Murray.— Julgo que não é um bom momento, pois há muito que fazer...protestou, Harriet agitada. Enquanto gesticulava apoiou uma mão no azevinho e se feriu com os espinhos. Soltou um gritinho de dor.~~ Harriet, creio que você faz essas coisas para me irritar. Dirige o cabriole com um cavalo que tem medo de sombras, anda sozinha Pelos campos, fica subindo em escadinhas não confiáveis. É... precisa de um marido ou de alguém que cuide de você. Pelo jeito, é melhor me apressar e ir falar com o pastor. Ela o encarou, de olhos arregalados, e viu que estava falando sério.Como o noivo não devia ver o vestido da noiva para que o casamento fosse feliz, a costura era feita no quarto de Harriet, e ela pouco o via. No entanto, certa manhã, quando deixavam a mesa, depois do café, ele lhe perguntou se não queria acompanhá-lo, dirigindo o cabriole, até uma das fazendas da propriedade. Surpresa, ela concordou, feliz por sair um pouco e dirigir o cavalo, coisa que adorava.
- Na manhã seguinte o conde foi até a igreja. Os primeiros proclamas foram lidos no domingo seguinte. A costureira local chegou para preparar o vestido de casamento, copiado de um modelo ilustrado no Ladies' Periodical. Harriet ajudava pregando rendas; até Caroli-ne fazia barras, cantando enquanto trabalhava. Talvez pensasse em seu próprio vestido de noiva. Sabia que ele não possuía dinheiro, mas tinha certeza que as finanças iam melhorar de algum modo, nem que fosse com James se transferindo para o Exército. Harriet não interferia mais nesses sonhos: não tinha muito sucesso nem com a própria vida, então era melhor não se intrometer nos planos da irmã.
- — Deixe-me ver isso — murmurou e se apoderou da mão dela. Gotas de sangue brotavam na palma. Lorde Stanton pegou um lenço e envolveu com ele a mão ferida com cuidado.
- — O capitão vai ser meu padrinho... Por que tenho de ficar sozinho, enquanto a noiva tem tanto apoio? Disse a Murray que qualquer dia faria o mesmo por ele.
- E começou a enumerar todas as coisas que aconteciam antes e durante o Natal, as festas, os almoços, os jantares que se sucediam nas casas de todos os vizinhos. Os doces e pudins e as tortas estavam já sendo preparados nas cozinhas de Monkscombe. Era um trabalho enorme...
- Não se importa de ir sentado a meu lado, enquanto dirijo? —perguntou, quando já estavam a caminho.
- Não... Por quê? Deveria me importar?
- Há homens que não gostam, acham que dirigir é uma ocupação masculina.
- Você deve estar falando de cavalheiros ociosos, jovens — declarou o lorde. — Não sou tão jovem, não sou ocioso e, como você disse, não sou cavalheiro...Ele resolveu rapidamente o que era preciso decidir na fazenda. Voltavam para casa, quando, ao passar por um trecho elevado do caminho, o conde disse, de chofre:Harriet puxou a rédea, e ele apontou para a casa que se via a distância.
- — Pare aqui, por favor.
- Harriet corou, sem jeito.
- Olhe bem para Monkscombe, Harriet. Daqui a alguns dias você vai ser a dona absoluta dela. É isso mesmo que quer?
- Claro que quero! — exclamou ela, imaginando se teria sido para perguntar aquilo que ele a fizera ir até ali.
- E mais nada? — indagou lorde Stanton, com um sorriso um tanto frio.Queria que ele gostasse de mim de verdade, disse a si mesma, que a ideia de casar comigo tivesse sido dele e não do sr. Ferrar... Lembrou-se do beijo e estremeceu, embora estivesse bem agasalhada na grossa capa de lã. Aquele impulso amoroso de Ben Stanton certamente nada tinha que ver com amor: ele era moço, saudável, com os instintos normais, e ela era uma mulher. Por isso o conde não se perturbava em casar-se com Harriet, pois em sua cabeça não existiam os pensamentos que a atormentavam.— Nesse caso — murmurou ele :—, está decidido.— Deixe-me levar o cabriole até em casa. Também sei conduzir um cavalo atrelado.Na véspera do Natal, saíram da pequena igreja medieval da cida-dezinha, declarados unidos pelo matrimónio. Foram cumprimentados pelas srtas. Drew, que lhes lançaram punhados do tradicional arroz, enquanto o coro das crianças locais cantava Sweet Lass of Richmond Hill, que a srta. Mary escolhera por considerar a canção mais apropriada.Todos achavam que os recém-casados queriam ficar a sós, e para isso arranjaram pretextos para se retirar, deixando-os na sala de visitas, sentados em extremos opostos, um de frente para o outro. Junto à lareira, com o vestido branco de noiva, Harriet aguardava que o marido dissesse alguma coisa. E ele parecia esperar por uma manifestação dela, que não houve.
- O almoço de casamento foi íntimo. Logo depois, chegou sir Mor-timer, o magistrado, que em seguida se retirou para a biblioteca com o sr. Jonas Ferrar, a fim de discutirem questões jurídicas. Caroline encaminhou-se para a sala de música, acompanhada pelo capitão Murray e a tentativa de dueto, com a jovem ao piano, não teve muito êxito. Pouco depois reinou silêncio na sala de música, mas se alguém apurasse os ouvidos, poderia ouvir sussurros e risinhos lá dentro.
- E não falaram mais naquilo.
- A voz dele soara indiferente, sem expressão, como se tivesse concluído o último detalhe de um contrato. Apanhou a rédea das mãos dela.
- Percebia que ele a estava encarando, à espera da resposta. Sem saber o que dizer, fez que não com a cabeça.
- Ela hesitou. Alguma coisa em seu interior sussurrava que havia algo mais. Contudo, como não sabia o que era, não podia dizer. Olhou para o noivo e pensou que gostaria que as coisas fossem diferentes, que não existisse a vinculação, que ele a tivesse convidado a sair apenas por gostar de sua companhia e não por querer saber o que ela achava de Monkscombe.
- Julguei o sermão do pastor muito bom — bradou ele, afinal. — E gostei do coro das crianças.
- A srta. Mary ensaiou-as para nos fazer uma surpresa — declarou ela, com voz abafada.— Vamos fazer um brinde ao nosso futuro... antes que sir Mortimer esgote a adega.— Já anoiteceu... vou fazer a ronda pela casa. Quero dar uma espiada também na estrebaria. Os criados andam com a cabeça no ar, por causa do Natal e do fim do ano. Embora confie em Joe, os outros não são como ele... — Fitou a esposa. — Deve estar cansada, Harriet. Por que não vai se deitar?
- O tremor aumentou, e o vinho quase derramou. Ela resolveu colocar o copo junto ao dele.
- Ela sorriu, insegura, e apanhou o copo, esforçando-se por dominar o tremor da mão e não derramar o vinho. Conseguiu tomar alguns goles, ao passo que seu marido colocou o copo vazio sobre o consolo da lareira, enquanto dizia:
- Começava a escurecer e foram interrompidos por um criado, que entrou com os candelabros e acendeu as velas. Quando ele saiu, o conde aproximou-se do aparador e serviu dois copos de vinho. Entregou um a Harriet.
- Sim, claro... — murmurou. — E você... você...
- Quer saber se irei ficar também no seu quarto? Não, Harriet. Não irei.
- A voz dele soava fria e decidida. Ela reteve a respiração e o encarou, confusa.
- Parece surpreendida! — exclamou ele. — Pensou que eu iria? — perguntou, erguendo as sobrancelhas.
- Sim... Pensei que... Acho que é costume — respondeu a moça, com esforço.
- Harriet — começou o conde e, agora, a voz era suave. — Você já tem o que queria: Monkscombe. Eu não sei se tenho o que queria... porém sei que você não me quer. Nunca me quis aqui. Deixou isso bem claro, demonstrou de várias maneiras que sou um intruso.
- Sinto muito... — sussurrou Harriet, num fio de voz. — Não era minha intenção...— Você está certa. Não digo que tenha sido agradável eu descobrir isso, mas nem por esse motivo está errada. É claro que sou um intruso, que não pertenço a este lugar. Como poderia pertencer? Não faz mal. Não pretendo ficar por aqui mais do que um ano. Depois, voltarei para Filadélfia.
- Ele sacudiu a cabeça, dizendo:
- E que vai acontecer comigo? — quis saber ela, horrorizada.
- Vai ficar aqui, dirigindo Monkscombe — respondeu ele. — Eu lhe disse que precisava de uma esposa capaz de fazer isso. Você vai ser sair bem, porque já tem prática.
- Harriet ficou apavorada com a reviravolta dos acontecimentos, que ela mesma provocara. Na realidade, estivera preocupada com os problemas pessoais, com as dificuldades da situação, a de Caroli-ne inclusive e não pensara sequer nos sentimentos de Ben Stanton. Lembrou que, de fato, desde o começo tratara o primo de modo desagradável. Ao ter de aceitá-lo como era, mostrara desdém por ele desconhecer os usos da terra, e nunca se preocupara em fazê-lo sentir-se bem-vindo à casa de seus antepassados. Deixara claro ao conde que se casara apenas por motivos práticos e lá estava o resultado de seu comportamento. Lorde Stanton cumprira sua parte no trato, tornando-a senhora de Monkscombe. Era tudo o que ele tinha obrigação de fazer.
- Bem — começou ela, hesitante —, sinto muito ter sido tão... tão pouco amiga. Mas julgo que sabe que foi por causa de minhas preocupações com a propriedade e porque nada sabia a seu respeito.
- Como não sabia nada — frisou ele —, você deveria ter espera do para me julgar e não pensar logo o pior.
- Harriet lançou-lhe um olhar súplice, porém não viu no rosto moreno, de traços marcados, nenhum sinal que a animasse. Imaginou o que Caroline faria em seu lugar. Correria a abraçá-lo, é claro, pedindo que lhe perdoasse. Contudo, Harriet não sabia fazer isso, e ele nem o esperava: na certa consideraria ridículo, refletiu ela.
- Não quero Monkscombe — murmurou, contendo a agitação. — Não era assim que pretendia me tornar dona da propriedade. Não posso aceitá-la sem... sem merecê-la. Quando disse que me casaria com você, minha intenção era ser realmente... sua esposa. Ou, pelo menos, tentar ser. Talvez não consiga ser uma boa esposa, talvez você ficasse desapontado comigo na... quando estivéssemos juntos, porém posso aprender, se você for paciente. Pode acreditar, eu tentaria!
- Não diga tolices, Harriet! — exclamou ele, severo. Estava afastado do fogo e das velas, seu rosto indefinido, na penumbra. — Que espécie de homem calcula que sou? Não imponho minhas atenções a uma moça quando ela não quer. Muito obrigado, mas não tenho vontade de me deitar com alguém que considera isso um sacrifício! Não pretendo participar de uma farsa, na qual fingiríamos que nos amamos e, principalmente, não quero fingimentos na cama. Tal se ria estupidez! Há situações em que não adianta fingir e esta é uma delas.
- Por instantes, ela voltou a ser a moça decidida que era.
- Estupidez, por quê? Se eu posso tentar, por que você não pode?
- Porque ninguém pode construir uma casa sem alicerce — ele quase gritou essas palavras, enquanto lhe dava as costas. — Entre nós não há uma base sobre a qual construir, Harriet. Um homem percebe a impressão que causa numa mulher. Vejo você fugir toda vez que entro aonde está. Você gela quando eu a toco. Entendo perfeitamente que não confia em mim.— Você fala em "tentar", mas tenho certeza que não conseguiria. É uma mulher bonita, inteligente e capaz, porém não tem um pingo de sensibilidade! Despreza os afetos dos outros. Julga, por exemplo, que os sentimentos de Caroline e Murray não têm importância. Acha que, se não se casarem, ele "vai se conformar". Contudo, não vai, Harriet, porque esse rapaz ama a sua irmã! Infelizmente, isso é algo que você não compreende!
- A essa altura o conde gritava de tal modo, que os copos de cristal vibravam em cima da lareira. Quando percebeu, ele se calou. Esforçou-se para se controlar, depois declarou:
- Fez uma pausa, ofegante, e continuou, antes que ela pudesse falar:
- Vou dar uma olhada na estrebaria.
- Dar uma olhada na estrebaria! — exclamou ela, erguendo-se. — Você não apenas me rejeita, mas também quer que riam de mim. Que os outros vão pensar disso?
- Esse é um assunto que diz respeito apenas a mim e a você. Não pretendo discuti-lo com ninguém. Você pode fazer o que quiser; aliás, sempre faz o que quer. A propósito, quero lembrá-la que deve se manter afastada de Pardy. Aos olhos dos outros, você é minha esposa. E minha esposa deve ficar acima de qualquer suspeita!
- Você está me insultando... — sussurrou ela, com voz rouca.
- Nesse caso, é apenas um insulto diante dos muitos que recebi de você. Boa noite, Harriet.Sentiu-se desesperada e lamentou a própria tolice, a falta de experiência. Todas as moças flertavam, sabiam namorar, só ela se tornava uma débil mental muda quando ficava a sós com um homem!O conde desceu quase correndo e foi para a estrebaria, enquanto pensava, com raiva, que sua esposa devia estar em lágrimas naquele momento. Disse a si mesmo que não era o culpado. Não pedira para herdar aquela propriedade. Ninguém podia censurá-lo pelo fato de o tio não ter tido um herdeiro. Começava a compreender o que afastara seu pai dali.O pátio das cocheiras estava às escuras e era varrido por um vento gelado, que começou a esfriar-lhe a raiva. Pendurou a lanterna que levara em um gancho e respirou fundo o cheiro familiar, acre e quente, dos cavalos. Cabeças ergueram-se à sua passagem e orelhas movimentaram-se, curiosas. Passou a mão no focinho do cavalo de Harriet e bradou:
- —Pois é, meu amigo... A sua linda dona e eu só sabemos brigar... O rangido de uma porta e o rumor de passos fizeram-no voltar-se. Joe Henderson perguntou quem estava lá.
- Aquela casa dominava os Stanton, alimentava-se deles, transformava-os em criaturas destituídas de qualquer outro pensamento que não fosse servi-la e mantê-la. Harriet fora criada para dedicar seus dias e suas noites a Monkscombe, desconhecendo tudo o mais. E, o que era mais triste, até agora não percebera que havia outras coisas importantes na vida. Talvez estivesse começando a perceber isso, porém era tarde...
- Era incapaz até de chamar a atenção do marido na noite de núpcias! Uma porta bateu em algum lugar da mansão. O som da voz aguda de Caroline acabou com a confusão e devolveu-lhe o bom senso. Eles vinham vindo e não deviam vê-la. Seria demais ter a irmã e o capitão Murray como testemunhas de sua humilhação. Rápida, saiu da sala e correu para a escada, subindo correndo. Entrou no seu quarto, trancou-se. Tirou o véu e o vestido de noiva e largou-os no chão. Jogou-se na cama, preparada com linho e rendas, enrodilhando-se e rompendo a chorar desconsoladamente.
- Ele saiu e bateu a porta. A agitação não deixava Harriet pensar. Suas pálpebras começaram a arder, mas estava decidida a não chorar. Teve vontade de correr atrás do marido e gritar que não precisava dele, porém refletiu e achou que ninguém deveria saber o que houvera. Seria humilhante demais, Harriet Stanton rejeitada na noite de núpcias, classificada de fria e calculista... a mulher que Ben Stanton não queria levar para a cama!
- Oh, milorde! — exclamou, ao ouvir a resposta. — Não esperava encontrá-lo aqui. — Aproximou-se devagar, entre as baias. —Os cavalos estão bem, não precisa se preocupar. Mesmo no Natal não fico longe dos meus animais.
- Você é casado, Joe? — perguntou o conde..
- Eu?! Não... — respondeu o criado. — Não preciso de uma mulher atrás de mim, dizendo o que devo ou não fazer. Os cavalos têm bom senso, mas as mulheres... — Lembrou-se que aquela não era uma observação ideal para um recém-casado e corrigiu, depressa: — Acredito, contudo, que as damas são diferentes.
- As mulheres, damas ou não, sempre provocam confusão, Joe — declarou o conde, afagando o cavalo de Harriet, que encostara o focinho em seu estômago e o empurrava. — O homem pensa que está fazendo a coisa certa com elas, porém erra sempre, não importa o que faça!
- É verdade, senhor — concordou o cavalariço. — Pode deixar, milorde, eu tranco tudo.Lorde Stanton deu um boa-noite ao criado e voltou para casa, indo para seu quarto de solteiro. Joe Henderson ficaria revoltado se visse isso, e Ben, enquanto se jogava de costas na cama e cruzava as mãos atrás da cabeça, pensou que a situação em que se encontrava era péssima, de qualquer ângulo que a encarasse.O senhor de Monkscombe participava de tudo, e ninguém ao vê-lo imaginaria que havia algo errado. Harriet também se esforçava para aparentar normalidade e o conseguiu, pois não houve quem demonstrasse alguma estranheza.Harriet chegou a imaginar que aquilo talvez normalizasse a situação, porque desde a noite de núpcias seu marido se mantinha fiel ao que se propusera. No entanto, agora, havia tido tempo para pensar, ela demonstrara arrependimento, ele poderia mudar de ideia sem perder a dignidade e, afinal, sozinhos no mesmo quarto, com uma só cama...
- Mas ela subestimará a firmeza daquele homem. Ao se acomodarem no luxuoso quarto, ele disse, em tom áspero:
- Por ocasião do baile de fim de ano de lady Williams, Harriet ficou preocupada. Não podiam recusar o convite e iriam ficar fora de casa, só os dois, por três dias. Evidente, ao organizar a lista dos convidados, lady Williams lembrou-se de que estavam casados havia menos de uma semana e designou-lhes um quarto de casal.
- As festas de Natal e de fim do ano sucediam-se, todo mundo ocupado em comer, brindar, beber, fazer visitas, dançar, brincar. Ninguém prestava atenção nos recém-casados.
- Era uma indireta clara. Mesmo solteiro, Joe tinha opinião inabalável sobre o que o amo deveria estar fazendo.
- Não se preocupe, eu durmo naquela poltrona.
- Não precisa fazer isso... — respondeu Harriet, suave.
- Eu prefiro — foi a resposta decidida.moda para dormir. Na primeira noite, ficou acordada por muito tempo, sabendo que ele também não dormia, à espera que mudasse de ideia.
- Na segunda noite, quando Ben apagou a vela, Harriet encheu-se de coragem e perguntou, baixinho:
- E ela olhou-o enquanto ele ajeitava travesseiros e cobertas na poltrona, depois deitou-se sozinha na enorme cama. O conde apagou a vela com um sopro, e Harriet pôde perceber que Ben Stanton se movimentava, desajeitado, à procura de uma posição menos incô-
- Perfeitamente — ele respondeu, bruscamente.Ben Stanton passou praticamente duas noites sem dormir, ouvindo a respiração regular de Harriet, refletindo como ela não tinha a menor sensibilidade, a ponto de dormir tranquilamente numa cama enorme, confortável, enquanto ele sofria de frio numa poltrona. De vez em quando cochilava e amanhecia com o corpo moído.Ao ouvi-lo dizer isso, a jovem tentou disfarçar a depressão e respondeu que estava contente por ele ter gostado tanto. Mas o contraste entre o que ela dizia e sua expressão era tão grande, que o cavalheiro não pôde ignorar. Suspirou, depois disse, com aquele seu jeito suave e amigo:Lembrou-se de que talvez a jovem estivesse com dificuldade de se adaptar à convivência com o marido. Não queria ser indelicado, porém era necessário reconhecer as irritantes circunstâncias que levavam ao nascimento de bebés. Não havia acontecido com ele e com sua falecida e saudosa esposa? A finada sra. Ferrar era uma excelente pessoa, mas não tinha atrativos que inspirassem esse tipo de entretenimento avaliado com muito exagero por algumas pessoas. E o sr. Ferrar nunca sentira vontade de...O bom cavalheiro não se preparava para ver suas palavras tomadas ao pé da letra, e assustou-se ao ver a moça desmanchar-se em lágrimas, segurando-lhe as mãos com desespero.
- Contudo, na certa lorde Stanton pensava de outra maneira, como a maioria dos jovens. E Harriet devia inspirar muito mais ardor do que a falecida sra. Ferrar... Era possível que o flamante marido estivesse exagerando um pouco, sem considerar que a... novidade e naturalmente também o... hum... choque costumavam deixar as moças um tanto... hum... desconcertadas. — Sei que agora você tem um marido com quem trocar ideias —afirmou o velho senhor, cauteloso —, porém talvez ainda possa oferecer-lhe meu ombro para chorar...
- — Querida menina, eu a conheço desde que nasceu. Que está acontecendo? Esperava vê-la feliz, mas... afinal...
- As festas de Ano-Novo terminaram, por fim, e o sr. Ferrar comunicou, a contragosto, que devia voltar para Bristol. Explicou, também, que não lembrava de ter tido um Natal e um fim de ano tão bons em toda a sua vida. A cozinheira de Monkscombe era uma artista, ouvir Caroline tocar e cantar era delicioso e, principalmente, estava feliz por ver Harriet casada.
- Ela enfiou o rosto no travesseiro, exasperada. Era impossível, pensou, conseguir alguma coisa de uma pessoa tão teimosa.
- Oh, sr. Jonas, nunca fui tão infeliz! — soluçou.
- Meu Deus! — exclamou o advogado, afagando-lhe o ombro, enquanto ela chorava com a cabeça apoiada em seu peito. — Foi tão ruim assim? — E, ao mesmo tempo que pensava o que aquele rapaz rude fizera com sua menina, acrescentou: — Querida, acredite, às vezes é preciso tempo para se aceitar certas coisas. No começo, pode parecer uma experiência embaraçosa e desajeitada... eu me lembro... Mas depois, acredite...
- Não! — gemeu a moça. — Não é isso...
- E, num impulso, contou a história toda, entre soluços. À medida que ouvia, o sr. Ferrar ia ficando cada vez mais consternado e aflito. Seus dedos procuraram automaticamente a caixinha de rapé, e ele ficou a apalpá-la, distraído.
- Minha querida menina — murmurou desolado, quando ela se calou. — Que posso dizer? Não podia imaginar... Um rapaz bonito, saudável... Afinal, que há com ele? — perguntou, desconfiado.
- Nada — e Harriet desatou a chorar outra vez. — A culpa é minha!
- Asneira — revidou o bom senhor. — Não pode ser... O culpado, na verdade, sou eu... — suspirou. — Esperava conseguir que todos ficassem satisfeitos, ele parecia tão recomendável e você é tão bonita, Harriet! Na minha opinião tinha de ser um ótimo casamento!— Entenda, filha, não há tolo pior do que um tolo velho! Esqueci que os jovens pensam diferente. O conde quis apenas garantir o futuro de duas moças desprotegidas, e devemos respeitá-lo por isso. Admito que eu sugeri o casamento. Não errei ao pedir-lhe que assumisse a responsabilidade, e sim quando esperei que ele empenhasse o coração, também. Benjamin Curtis Stanton é honesto, e tenho certeza que não quer despertar o seu carinho, minha querida, de maneira leviana. — Mas era o que devia fazer, pensou, impulsivo. —Bem, bem... Precisamos pensar numa maneira de resolver essa situação...
- Colocou a caixinha de rapé no bolso e prosseguiu:
- Acho que não tem jeito, meu amigo... — sussurrou ela, pesarosa.
- Escute, querida — bradou o velho senhor, ajeitando a peruca e assumindo pose militar. — As coisas começaram mal, porém podem terminar bem. Tente encorajá-lo, Harriet. Se ele tem sangue nas veias, você não vai precisar se esforçar...
- Entenda, sr. Ferrar — declarou ela, enxugando as lágrimas e tratando de se controlar —, feri o orgulho de Ben. Fui hostil quando o conde apareceu e disse-lhe coisas horríveis. Não sei por que fiz isso, e ele não me perdoa. É tão teimoso!
- Nildesperanduml — exortou-a o sr. Ferrar, em latim, vendo-a desesperar-se de novo. — Não desista! Nunca vi você desistir. Querque eu fale com ele?
- Não! — opôs-se ela, agitada. — De jeito nenhum!
- Está bem... Não posso dizer que volto para casa feliz.
- O senhor não tem culpa... Fez o que achava melhor... — Ela levantou-se e foi até a janela. — Sabe? Sempre acreditei que Monkscombe era mais importante do que qualquer coisa no mundo, exceto talvez a felicidade de Caroline. E, agora, Monkscombe não me parece assim tão importante. Esquisito, não?Eu, com a idade, esqueci demais uma coisa, pensou o velho senhor, com os olhos marejados de lágrimas. Esqueci quanto dói amar, estar apaixonado...O sr. Ferrar tinha ido embora. O azevinho usado na decoração natalina ardia na fogueira feita pelo jardineiro. Monkscombe voltara para sua aparência habitual, com a mesma rotina de ano para ano. A situação entre Harriet e o conde ia assumindo aspecto rotineiro, e ela até já se acostumava a ser chamada "lady Stanton". Os dois agiam de maneira polida, civilizada. Ele a consultava sobre problemas da propriedade, e ela acreditava que devia se considerar em situação cómoda.Apesar de ser muito cedo, ela foi para a escadaria da estrada principal e esperou que o marido saísse da cocheira, já montado, na manhã da viagem. Ao vê-lo, aconchegou mais o xale ao corpo e desceu os degraus. O conde fez o cavalo parar diante dela, apoiou os braços no arção da sela e inclinou-se. O cavalo, impaciente, movia a cabeça e batia os cascos nos pedregulhos gelados. Era um dia de inverno, cristalino e frio. A geada enfeitava os galhos como se fosse purpurina prateada, e as teias de aranha haviam sido transformadas em delicadas rendas de prata.Ela parecia muito frágil diante da escada e do pórtico enorme, miúda, esguia e triste. Lorde Stanton mudou de posição e olhou a casa, atrás dela. Na luz difusa da manhã parecia um enorme animal à espreita. Sentiu que odiava aquela casa.Aos seus próprios ouvidos o tom de voz e a frase pareceram brutais. Ela deu dois passos para trás, como se tivesse sido agredida, pensou o conde. Por um instante, sentiu vontade de esticar o braço e colocá-la na garupa, levá-la para Bristol, sentindo os seus braços ao redor do corpo, como já acontecera uma vez.— Vou escrever e informar onde ficarei hospedado.Durante alguns dias Harriet procurou agir como se tudo estivesse normal. No entanto, um pensamento não lhe saía da cabeça: Fiquei em Monkscombe, ouço reclamações de tetos que vazam, visito os doentes da lista do pastor e todo mundo pode perceber que meu marido me abandonou semanas depois do casamento. Imaginava que todos deviam estar curiosos para descobrir por que o conde se afastara. E mais, quando ele fosse definitivamente embora, dali a um ano, ela ficaria naquela vidinha até morrer. Como pudera achar que só queria viver em Monkscombe?
- Quase no fim da semana, ao voltar da cidadezinha para casa, ouviu o galope de um cavalo, aproximando-se, e seu coração bateu mais forte ao imaginar que seria o marido chegando. Contudo, era o capitão James Murray, que desmontou para cumprimentá-la.
- Assim que falou, ele puxou a rédea, assustando o cavalo e fazendo-o girar, e saiu a galope para o portão, com o cascalho prateado erguendo-se no ar sob os cascos rápidos.
- Mas o impulso se dissolveu e o momento mágico passou. Harriet não queria ir a lugar algum, só se interessava por Monkscombe.
- — Você pode apanhar uma friagem, volte para dentro — disse.
- — Só vim para lhe desejar boa viagem — disse Harriet, sem jeito.
- Mas, na verdade, o ambiente tornava-se cada vez mais intolerável. O prolongamento daquele estado de coisas tornava-o mais difícil de mudar. E Harriet julgou que o marido talvez achasse aquela vida impossível, pois de repente anunciou que ia para Bristol, onde ficaria por algum tempo. Viajaria no dia seguinte.
-
- Imagino que tenha vindo para visitar minha irmã... — disse, sorrindo resignada.
- Pedi licença a lorde Stanton — bradou o rapaz —, e ele gentilmente permitiu. — Fitou Harriet com a espontaneidade juvenil.—Mas sei que milady não aprova, que gostaria de alguém mais bem posto na vida para casar com Caroline, e não posso censurá-la.
- Nós gostamos muito do senhor — respondeu ela —, porém muitas vezes a vida se resume em continhas de pences e xelins. Minha irmã nunca soube o preço de nada que quisesse. Nosso pai era muito indulgente e meu marido assumiu voluntariamente todas as contas dela. Não duvido do carinho que Caro sente pelo senhor, mas imagino que não saberia viver no modesto alojamento de militares...O senhor já deve ter percebido.
- Sim, eu sei. No entanto, não posso oferecer mais nada. Preciso entrar para o Exército, se quiser melhorar. Minha família não é daqui e não há quem me recomende: ficarei eternamente capitão, até que o reumatismo me impeça de montar. Escrevi à minha família, na Escócia, dizendo que pretendo casar. Meu pai respondeu que não pode me ajudar, porque meu irmão mais velho casou-se há pouco e o do meio contraiu dívidas pesadas. Tenho de me arranjar sozinho, como puder...
- E se vocês casassem e Caroline ficasse aqui, até quando o senhor se firmasse na carreira militar? Seria por um ano ou dois... Poderia obter promoção nesse tempo, não?
- De modo algum! — respondeu o rapaz, fitando-a como que assombrado. — Desculpe, lady Stanton, sei que sua intenção é boa, porém, o que adianta casar se não pudermos ficar juntos?
- É verdade — concordou ela, desanimada. — Bem, vá, Caro o espera.Às vezes, o destino providencia uma ajuda, quando o desespero está no limite. Sir Mortimer Fish mandou um recado à lady Stanton, dizendo que iria para Bristol no dia seguinte e levaria qualquer encomenda ou bilhete para o conde.— Ben vai ficar surpreendido ao vê-la — afirmou Caroline. —Já deve estar com saudade. Eu detestaria ficar longe do meu marido, se fosse recém-casada!E ela não precisaria estar fazendo tal coisa, pensou, indignada, se ele tivesse se comportado dignamente, levando-a para Bristol ou explicando o motivo da viagem.À medida que se afastava de Monkscombe, ia se animando. Talvez longe de casa conseguisse se entender com ele. Seriam, então, apenas duas pessoas decididas a visualizar seus problemas, longe da propriedade e da influência que ela representava. Além disso, Susan estava casada havia mais de cinco anos e poderia aconselhá-la quanto ao modo de tratar o marido. Harriet chegou a Bristol cheia de otimismo.— Não tenho tempo para me entediar — declarou, segurando o filhinho mais velho pelos fundilhos, antes que mergulhasse na lareira. — Corro atrás das crianças o dia inteiro. É difícil conseguir uma boa pajem, e elas logo vão embora, para casar. O pequeno Tom completou quatro anos e nunca se sabe o que vai aprontar... Preciso ter olhos na nuca, como você acaba de ver! Lillian, a menina, conta dois anos e meio, e o nené começou a andar agora. O que me falta, quando Tom viaja, é ter alguém para conversar, depois que as crianças dormem. Espero que fique bastante tempo, Harriet!
- Naquela noite, depois de assistir às orações do pequeno Tom, para que Deus guardasse o pai das tempestades, dos monstros marinhos, dos canhões dos franceses, dos piratas e dos tubarões, as duas amigas desceram e, sentadas junto da lareira, esperaram que a criada servisse o chá, para então conversar. O relato que Harriet fez de seu casamento espantou Susan.
- Susan recebeu a amiga com alegria, principalmente porque seu marido, oficial da Marinha, estava em manobras.
- Para chegar a Bristol demorava meio dia, por uma estrada perigosa, principalmente no inverno. Ela margeava o canal de Bristol, e não era agradável fazer essa viagem em companhia de um senhor com oitenta anos, que de vez em quando tomava uns goles de uma garrafa, numa carruagem que de tempos em tempos atolava na lama. No entanto, Harriet aguentou tudo com paciência.
- Enquanto preparava uma valise, Harriet resolveu que não procuraria o marido imediatamente, mas iria para a casa de sua amiga Su-san, que na certa gostaria de vê-la. Preferia saber o que o conde fazia antes de ir encontrá-lo, pois dessa maneira ele não teria do que reclamar e poderia evitar a companhia dela, se assim quisesse. Não fora mais ou menos isso que ele fizera, ao chegar em Monkscombe? Subira numa árvore para espionar Monkscombe e seus moradores.
- Harriet decidiu no mesmo instante: respondeu ao magistrado que aceitaria de bom grado um cantinho na carruagem dele, se houvesse por bem levá-la.
- Foi bobagem me casar para garantir meu futuro e o de Caroline, imaginou ela ao ficar de novo só. Ben me disse que não se pode dirigir a vida dos outros... Ela vai casar com o capitão, terá de se adaptar a uma vida modesta, perderá a vivacidade e a beleza. Quanto a mim, que adianta ser dona de Monkscombe? O sr. Murray tem razão: não adianta estar casada, se não se fica com o marido.
- Como?! — exclamou, incrédula. — Nem uma vez? Nem na noite de núpcias?
- Nem uma única vez... — suspirou Harriet. — Ele acha que só me casei pela casa, e não posso me queixar: eu é que lhe disse isso. Ben acredita que tenho o que queria, e chega. Mas não chega, Susan. Agora sei que quero um lar como o seu, com filhos e Ben. Contudo, como vou conseguir isso, se meu casamento continuar apenas no papel?
- Tenho de reconhecer que o meu Tom não agiria desse modo... E, se quer saber, acredito que lorde Stanton não está gostando dessa situação. No entanto, ele se enfiou num beco sem saída com a atitude que tomou. Os homens são muito teimosos, Harriet. Não adianta esperar que confessem ter errado ou que fizeram tolices. —Pegou um brinquedo que estava no chão, partido, e juntou as duas partes, para ver se dava para colar. — Às vezes — acrescentou, pensativa —, podem ser consertados...
- O que eu gostaria de saber — disse Harriet, sombria — é se meu casamento pode ser consertado.
- Harriet, querida! — bradou a amiga, segurando-lhe as mãos. — Por que não? Isso não passa de um arrufo de namorados. Ele está contrariado porque pensa que você julga a casa mais importante. Um marido gosta de saber que a mulher o acha a coisa mais importante do mundo. Você precisa demonstrar isso ao conde!
- Mas ele não se importa comigo! — bradou a jovem, os lábios tremendo. — Não assim, pelo menos. É muito educado, casou-se comigo para ser gentil, e não me vê como mulher. Sou apenas Harriet, uma amolação!
- Homem nenhum se casa para fazer caridade! — sentenciou Susan, colocando mais uma torrada no prato da amiga. — Não interessa que você pense isso. Aposto que lhe mostraria que a ama, se você permitisse. E, se ele ainda não teve essa ideia, compete a vocêcolocá-la na cabeça dele!O conde se dirigiu ao cais, onde paravam carregadores e um ou outro marujo, fazia-lhes perguntas e anotava rápido algo num ca-derninho. Dava uma gorjeta ao homem que interpelava e, em seguida, dirigia-se a outro. Isso aconteceu umas cinco vezes. Depois ele passou a observar, por meio de uma luneta, navios que estavam mais distantes do cais.De repente, toda desconfiança e suspeita surgiu de novo na mente da jovem. Será que seu marido, um Stanton, o conde de Monkscom-be, era espião francês? Não podia confiar essa suspeita a Susan, casada com um oficial da Marinha. E se falasse com o sr. Ferrar? Mas ele já lhe dissera, uma vez, que sua desconfiança era tolice.Harriet ficou horrorizada ao vê-los sumir num beco. Seguiu-os, com cuidado, e olhou a viela ao chegar na esquina. Lorde Stanton dava dinheiro a um homem mal-encarado, parado diante de um portão. O homem colocou as moedas no bolso, Benjamin Stanton e a moça entraram. O portão bateu.Foi embora do cais trémula de raiva, imaginando que seu marido estaria desfrutando prazeres ilícitos.Seus pensamentos voltavam-se com estranha frequência para Monkscombe. Devia ter trazido Harriet, pelo menos para ter com quem conversar. Sentia saudade das duas irmãs, mas principalmente de sua mulher. Revirava-se na cama, a pior de todas as camas ruins que conhecera. Às vezes, esticava uma perna para o outro lado, e estremecia ao encontrá-lo vazio e frio.Toda essa frustração, que ele não conseguia explicar de modo racional, tivera o desfecho inevitável daquela tarde. Deixara-se levar pelos encantos vulgares de uma prostituta, que, por instantes, lhe parecera engraçada e até bonitinha. Depois de satisfazer a necessidade passageira, deveria sentir-se melhor, descontraído. No entanto, não fora assim. Estava pior e enojado. A moça fora competente, porém era vulgar e pouco asseada. O quarto dela era muito sujo, e ele saíra de lá querendo tomar um bom banho, quanto antes.— Lorde Stanton, aqui! — esganiçou-se sir Mortimer e desandou a tossir.— Eu o vi... — frisou sir Mortimer, arquejante. — Andar na rua faz mal, está muito frio... Tome um gole disto. — Procurou uma garrafa que tinha ao lado do assento. — Ganhei de um amigo que tenho na Jamaica, ele é plantador de cana.
- Ben tirou a rolha e cheirou. Rápido, seus olhos ficaram rasos de água.
- O conde atravessou a rua correndo e parou junto ao veículo. Sir Mortimer, arfando, indicou-lhe que subisse, e ele obedeceu, sentando-se diante do idoso senhor.
- Enquanto caminhava pela calçada apinhada de gente, ouviu que alguém o chamava pelo nome. Percebeu uma carruagem parada e um cavalheiro idoso quase despencando pela janelinha da porta, enquanto gritava e agitava a corneta acústica.
- Em geral, atribuía a irritação e a insónia ao jantar, que achava detestável. Acabava por revirar toda a cama de tanto se mexer. Levantava-se, esticava os lençóis, tornava a deitar e a pensar em Harriet. Confiava em que o maldito Pardy não ficasse à espera dela, quando fosse visitar os doentes do pastor. Lembrava-se do vulto esguio, elegante, envolto no xale, desejando-lhe boa viagem. Era uma lembrança quase tão insistente quanto sua preocupação de que a esposa se encontrasse com o grosseiro contrabandista. Essa ideia o deixava fora de si e, geralmente, socava os travesseiros, que lhe pareciam recheados de pedras. Inquieto, de novo ajeitava a cama, para se deitar mais uma vez e ver Harriet povoando seus pensamentos, alguns deles surpreendentes. Rolava de um lado para outro, desejando encontrar um outro corpo, muito especial, e por fim caía num sono agitado. Sempre acordava apertando o travesseiro entre os braços.
- Mais tarde, enquanto voltava para o hotel, lorde Stanton tinha uma expressão contrariada. Do ponto de vista de negócios, sua ida a Bristol estava sendo satisfatória, porém sentia-se deprimido pela falta de companhia naquela cidade grande, cheia de gente desconhecida e apressada. À noite não havia nada a fazer, a não ser dormir, e então ele ficava imaginando o que Harriet estaria fazendo.
- Que miserável!, pensou a moça, furiosa. Prefere ter aventuras com... com "aquilo"! Repele-me e vai com... com essa criatura vulgar. Espero que ela lhe roube todo o dinheiro!
- Enquanto se debatia consigo mesma, sem saber que fazer, ela ouviu vozes estridentes e gargalhadas. Viu duas moças de aspecto vulgar e viçoso, que avançavam pelo cais de braços dados. Após uma última inspeção de um navio com a luneta, lorde Stanton entrara numa taverna. As duas moças entraram lá, também. Harriet sentiu impulso de fazer o mesmo, porém obrigou-se a se satisfazer olhando através do vidro bastante sujo de uma janela, e não gostou do que viu. Uma das moças estava sentada a uma mesa com Ben Stanton, e afagava-lhe o rosto. Percebeu que ambos conversavam animadamente. De chofre, levantaram-se, e Harriet procurou um esconderijo, acabando por se enfiar atrás de uma pilha de caixotes de chá. A porta da taverna abriu-se, dando passagem ao conde, com a prostituta pendurada em seu braço.
- Harriet, sem que ninguém lhe prestasse atenção, pois estavam todos muito ocupados, sentou-se num rolo de corda. Que seu marido fazia? Por que se interessava tanto por navios? Não haviam conseguido apanhar o espião francês... Lesage, era isso. Ben Stanton chegara à Inglaterra vindo de um país ocupado por tropas francesas.
- Na manhã seguinte Harriet saiu cedinho, bem agasalhada, com um véu cobrindo-lhe o rosto. Não quis entrar no hotel onde o marido se hospedava e ficou andando pela mesma rua, olhando vitrinas, comprando ninharias. Quando viu lorde Stanton sair, seguiu-o. Ele caminhava depressa, porém graças à sua altura era fácil segui-lo.
- Céus! — exclamou. — Isto é o próprio Raio Branco!
- Espanta o frio — murmurou sir Mortimer, satisfeito. — Tome um bom gole, vamos!— Não aguento a vida de cidade — disse o ancião. — Muita agitação. Prefiro o campo.— Oitenta e seis — respondeu sir Mortimer, exultante. — Nasci quatro anos depois que o Velho Pretendente quis se apoderar do trono, e estava com vinte e seis quando o Jovem Pretendente desembarcou. Senhor, estive na batalha de Culloden. Naquele tempo, os homens sabiam beber. O lema de qualquer cavalheiro ou oficial era "Jamais sóbrio na sela". E quem se arriscaria a ficar sóbrio, tendo de enfrentar uma horda de escoceses loucos e seminus, que urravam ao atacar-nos com maças? Foi quando conheci a bebida escocesa chamada uísque. É muito boa, milorde, porém não se compara com o conhaque francês.— Acredite, lorde Stanton, alcancei a idade que tenho e mantive minha excelente saúde seguindo uma regra simples: nunca me deitei sóbrio!
- Sir Mortimer pigarreou, pensando na dificuldade de conseguir conhaque francês naqueles dias. Em seguida, continuou:
- O conde, então, perguntou-lhe quantos anos tinha.
- Ben tomou um pequeno gole, engasgou e recolocou a rolha. O velho senhor guardou a garrafa.
- Vou me lembrar disso, sir — sorriu o conde.
- Que faz aqui em Bristol? — perguntou o ancião.
- Estou interessado em navegação, em navios cargueiros para minha empresa. Resolvi ir ao cais e fazer perguntas, pessoalmente. Nem sempre se pode confiar em intermediários e em folhetos de agências de despacho. Eu quis ver como se faz carga e descarga de mercado rias, como nascem os transportes e...
- Nasce? — indagou o ancião surdo. — Já?! Bem, não será a primeira criança a nascer antes do tempo...— O quê? — sir Mortimer curvou-se, colocando a corneta acústica no ouvido. — Onde está sua gentil esposa? Aposto que foi às compras! As mulheres adoram gastar o dinheiro dos homens. Contudo, ela não deveria sê expor ao frio, nas suas condições; vamos apanhá-la — decidiu, pegou a garrafa e serviu uma generosa dose numa canequinha de prata. — À sua saúde, conde!
- — Lady Stanton está em Monkscombe! — urrou lorde Stanton. Sir Mortimer tossiu e enxugou os lábios.
- - — Não! Os transportes! — berrou o conde. — Nos navios!
- Não, senhor. Eu mesmo a trouxe para Bristol. Creio que o senhor a perdeu por essas ruas cheias de gente, milorde! Mas ela reaparece... É uma moça inteligente e vai encontrar o caminho de casa!
- Sir Mortimer! — berrou de novo o conde na corneta acústica, na esperança de que o Raio Branco não lhe tivesse dissolvido o cérebro. — Tem certeza que trouxe minha esposa para Bristol? Não foi em alguma outra vez?
- De jeito nenhum! — respondeu o ancião, com ar ofendido. — Lembro perfeitamente que a deixamos numa rua.
- Que rua? — rugiu lorde Stanton, desesperado.
- Como é que vou saber? Pergunte ao meu cocheiro.
- É o que vou fazer! — exclamou o conde, e saltou da carruagem.A certa altura, além dos berros de Tom e de Lillian, de sua concentração em alimentar o nené, Harriet teve impressão de ouvir vozes discutindo em outro ponto da casa. Ia levantar-se para ver o que acontecia, quando escutou uma voz familiar trovejar:A porta da sala abriu-se de súbito e Ben Stanton entrou, com o chapéu na mão. Parou, apontou para ela com o chapéu, num gesto acusador:
- — Diacho! Vim ver minha esposa!
- Harriet ouvia a confusão que acontecia no andar de cima. O pequeno Tom se recusava a tomar banho, apesar dos pedidos da babá e das ameaças da mãe. Lillian gritava junto com o irmão, imitando-o. Sentada diante da lareira, com o menorzinho no colo, ela tentava fazê-lo comer o mingau de aveia. Ele não gostava e cuspia, tranquilamente, as colheradas que Harriet colocava em sua boquinha. Com infinita paciência, ela voltava a dar-lhe outra colherada, e o nené mudava de tática: ia recebendo, guardando duas ou três colheradas na boca e, então, cuspia tudo longe, de novo.
- Posso saber o que faz aqui? — perguntou.
- Ora, estou ajudando Susan! — respondeu ela, calma. — Como me descobriu?
- Encontrei sir Mortimer na rua, e ele me contou. Pensei que estivesse bêbado, mas ele insistiu... Que veio fazer em Bristol?
- Vim visitar uma velha amiga — revidou Harriet. — Imagino que você não se oponha.— Livre-se dessa criança! — ordenou.— Não posso — declarou ela —, ele vai chorar. Está na hora de seu jantar.
- Harriet tentou colocar o nené no cadeirão, porém ele agarrou-se a ela com toda a força das mãozinhas rechonchudas.
- Ele fitou-a com insistência, um tanto perplexo. Não, não se opunha. Não havia nada demais em visitar uma amiga. E começou a achar que a raiva devia estar fazendo com que parecesse um tolo. Ajeitou-se e lançou um olhar severo à esposa. Escurecia, e o bruxulear dourado das chamas se refletia no rosto de Harriet. Estava linda, apesar de... ou então por... usar um avental e estar com uma criança gorducha no colo, cujo rostinho se encontrava todo sujo de mingau. O conde fez força para continuar sério.
- E não há uma pajem... ou algo assim? — irritado, ele sentou-se diante dela, esticando as longas pernas.
- Está lá em cima, ajudando Susan a dar banho nos outros dois... — Tornou a encher a colher de mingau. — Vamos, nené! — insistiu, carinhosa. — Uma só, para a titia Harriet...
- Se tivesse me dito que queria visitar uma amiga — bradou ele, mal-humorado —, eu a teria trazido.Ben resmungou algo, e o nené resolveu o problema do mingau adormecendo de repente, no colo de Harriet. Ela afastou o prato e passou a niná-lo suavemente. O conde agitou-se na poltrona e ficou a observá-la, em silêncio.
- Eu teria gostado de sua companhia — confessou, afinal.
- É, mesmo? — ironizou ela, com ar malicioso. — Essas palavras me surpreendem.
- Por quê? — perguntou ele, com olhar desconfiado.
- Ah! Acredito que deve estar muito ocupado em Bristol... Que faz aqui?
- Nada que possa lhe interessar — foi a resposta seca.
- Ou algo que você prefere não discutir...
- É a segunda insinuação que você faz — disse ele, com os olhos acinzentados fuzilando. — Que acha que estive fazendo?
- Nada tenho com isso — replicou Harriet, começando a ficar nervosa —, porém, não é agradável ver o marido de braço dado com uma mulher-da-vida, à luz do dia, quando todos podem vê-lo!
- Lorde Stanton ficou muito vermelho, e depois pálido.
- Ora, quero ser... — começou, com voz rouca. — Você andou me espionando?
- Nesse caso, recebeu de volta o que você também fez — rebateu ela, altiva.
- Não admito ser espionado ou interrogado! — gritou ele, levantando-se.
- O nené abriu os olhos, assustado, e rompeu num choro sentido.
- Olhe só o que você fez! — exclamou Harriet.
- Você vai voltar para Monkscombe! — sussurrou ele, com voz surda. — Faça essa criança parar! Vai para Monkscombe amanhã mesmo. Providenciarei uma carruagem para levá-la. Harriet, ponha essa criança em algum lugar!
- — Não vou e não ponho. Eu gosto do nené!
- Se queria tanto uma criança — a voz do conde era cortante —, devia ter dito quando lhe perguntei se queria algo mais além de Monkscombe. Teria providenciado para que você tivesse as duas coisas!
- Quem você pensa que é? — disparou Harriet, louca da vida. — Por ser um homem que jamais se aproximou da cama de sua esposa, é muito presunçoso!
- Para entrar na sua cama um homem precisaria ser surdo como sir Mortimer — fuzilou ele —, porque você fala sem parar e sempre ameaçadora! É tão meiga e aconchegante quanto um ouriço! Quando voltarmos para Monkscombe, talvez sir Mortimer me ceda uma garrafa de Raio Branco e, se eu conseguir me embriagar, talvez considere sua proposta!
- — Saia já daqui! — ordenou Harriet. O nené chorava em altos brados.
- Irá para casa amanhã, madame! — urrou o conde, pegando o chapéu e sacudindo-o. — Amanhã, entendeu?
- Santo Deus! — soou a voz agradável de Susan. — O senhor deve ser lorde Stanton! Que surpresa deliciosa, Harriet falou tanto no senhor!
- O conde voltou-se, e Harriet se assustou ao ver como estava pálido, uma linha cinza ao redor dos lábios apertados. Mas ele se controlou e pediu desculpas a Susan por ter invadido a casa dela.
- Não tem importância — disse a jovem senhora, aproximando-se de Harriet e pegando o nené. — Jane vai deitar meu filhinho, e vamos tomar um chá...
- Peço que me perdoe, madame — insistiu lorde Stanton, com a voz meio sufocada —, porém não posso ficar. Perdoe-me mais uma vez... Harriet, amanhã!
- Saiu, apressado, batendo a porta de entrada.
- Meu Deus! — bradou Susan. — Por que não me contou? Como é atraente!
- Ele está muito zangado... — suspirou Harriet, preocupada.
- Está, mesmo — concordou a amiga, satisfeita. — Só que ninguém vai me dizer que ele não se importa com você, Harriet! Importase sim e como! — riu, balançando um dedo diante do rosto dela.Harriet sabia que o marido era de palavra, e preparou a valise antes de se deitar. A carruagem chegou na manhã seguinte. Por uns momentos, ela ficou tentada em mandá-la embora, porém Susan aconselhou prudência.Ela não ficou muito convencida, mas reconhecia que a amiga tinha mais experiência, e decidiu voltar a Monkscombe.Mas não se sentia à vontade. Acreditou que sua decisão fora apressada, que a presença de Harriet até seria conveniente em Bristol, porque ele saberia que ela se encontrava a salvo, e o que fazia. Tinha a sensação de ter perdido algo e, quando chegou ao escritório do velho advogado, não estava de bom humor.— Preciso confessar-lhe uma coisa, Ben Stanton — informou, depois de espirrar.— Receio que, quando o aconselhei, esqueci de mencionar que o relacionamento num casamento é muito difícil. De fato, não posso me considerar um entendido — confessou, com certo pesar. —Enviuvei há trinta anos. Antes disso, não tive um mau casamento. Minha esposa possuía excelentes qualidades, porém carecia de paixão. Meu sogro fez fortuna com chá. Não quero dizer que me casei pelo dote, mas digamos que ele contribuiu para eu esquecer que ela era... insignificante. — Suspirou. — No entanto, Harriet é uma moça muito atraente...
- Lorde Stanton parou de andar e fixou os olhos no advogado.
- O sr. Ferrar ficou olhando, enquanto Ben andava de um lado para outro, no pequeno gabinete. Procurou a caixinha de rapé e ofereceu-a ao conde, que recusou. Então, ele se serviu.
- O conde estava vigiando, oculto na esquina. Esperava que ela se rebelasse, e ficou surpreso ao ver que obedecia. Na realidade, já se arrependera. De fato, Harriet não devia ter ido espioná-lo, porém ele também poderia ter se explicado. E sentia-se culpado por obrigá-la a deixar Susan, em companhia de quem ela parecia tão feliz. Resolveu sugerir que convidasse a amiga e as crianças para uma temporada em Monkscombe. Isso lhe acalmou a consciência, enquanto se dirigia para o escritório do sr. Ferrar.
- — Deixe-o ganhar esta batalha, Harriet, assim ele fica menos zangado. Logo vai começar a julgar que foi muito bruto e pensar em fazer as pazes.
-
- Sei disso — interrompeu o conde.
- Sente-se, por favor — solicitou o sr. Ferrar. — É difícil conversar com uma pessoa que não pára um minuto.
- Lorde Stanton deixou-se cair numa poltrona, murmurando desculpas.
- Gostaria de saber — continuou o advogado — se alguém lhe contou os motivos da briga que levou seu falecido pai a ir embora para os Estados Unidos.
- Não — respondeu o conde, não tentando esconder a surpresa.— Meu pai sempre falava em Monkscombe, na região, sua história, seus costumes, porém, nunca me disse por que foi embora. Gostaria de saber.Lorde Stanton fitou-o, erguendo as sobrancelhas, curioso.Observou o jovem conde e notou que ele não se sentia à vontade. No entanto, prosseguiu:Suspirou, ficou pensativo por instantes e continuou:
- — Mas o velho pastor, indignado ao saber do iminente namoro dos dois, foi falar com seu avô. O conde também não gostou, chamou o seu falecido pai e explicou que não admitia que ele destruísse a reputação de uma moça indefesa como Mary... Seu pai sentiu-se traído por todos, porque Mary era uma filha obediente e recusou-se a continuar a vê-lo. Jurou que iria embora para nunca mais voltar, e muito mais tarde soubemos que se encontrava nos Estados Unidos. A voz se calou e o silêncio pairou, pesado, até que o velho advogado tornou a falar:
- — Estávamos todos preocupados com o futuro do rapaz, quero dizer, do seu futuro pai. Conhece as srtas. Drew? — A pergunta era retórica, pois o velho advogado sabia que sim. — Mary Drew, que agora parece um camundongo ressequido, naquela época era uma mocinha linda. E bondosa, muito tímida, dominada pela irmã mais velha e pelo pai. Jamais teve um mau pensamento. Creio que foi por isso que cativou seu falecido pai. E acredito que, se ninguém tivesse interferido, ela poderia ter tido boa influência sobre ele.
- — Entre os dois irmãos, o primogénito e herdeiro era calmo, responsável e sério: foi o pai de Harriet. O outro era completamente diferente: rebelde, briguento e irascível, embora bondoso e sempre disposto a perdoar. Não era mau rapaz, apenas um tanto irresponsável, e vivia magoando a família. Arranjou más companhias e associou-se aos Pardy daquele tempo. É estranho como uma família, refiro-me aos Pardy, consegue perturbar um local por gerações... E, mais estranho ainda, eles sempre tentaram envolver um Stanton em suas façanhas, quando puderam...
- — Posso falar à vontade porque as pessoas envolvidas, menos uma, já faleceram. E sei que essa pessoa me perdoará.
- Calculo que por uns quatro anos Mary achou que seu pai voltaria para buscá-la, porém tal não aconteceu. Não sei se ele lhe prometeu voltar... às vezes o destino muda as intenções de uma pessoa. Seu avô nunca mais quis ouvir o nome do filho caçula. O mais velho, pai de Harriet, considerou o comportamento do irmão censurável, e sentiu-se obrigado a cuidar das irmãs Drew de um modo que não as ofendesse; por isso, elas continuaram pagando um aluguel ridículo pela casinha tão boa...
- O senhor não me disse nada quando pensei em aumentar o aluguel — interferiu lorde Stanton.
- Meu amigo, acreditei que depois de conversar com elas o senhor iria deixar tudo como estava.
- Não me conhecia — bradou o conde, seco. — Apenas imagi nou que eu tivesse bom caráter.
- E por que não teria? — perguntou o advogado, calmo. — Conheci seu pai. Era um rapaz turbulento, mas não malvado. Por que você seria diferente? Se insistisse em aumentar o aluguel, eu lhe contaria o que acabo de narrar.
- E por que me contou agora?
- Porque é fácil viajar e deixar as responsabilidades para trás — respondeu o velho senhor, firme. — A muitos mil quilómetros daqui, uma pessoa pode se consolar, imaginando que os problemas que deixou poderão ser resolvidos pelos outros. Bem, isso pode acontecer, porém não quer dizer que o responsável não devia resolvê-los.
- O conde levantou-se subitamente enfurecido, e, dedo em riste para o velho advogado, exclamou:
- Harriet andou conversando com o senhor!
- Sou muito afeiçoado a ela — retrucou o sr. Ferrar, começando a se alterar. — A moça está angustiada, e não gosto disso!
- Nesse caso, escute com atenção, sr. Ferrar! — O conde dobrou a alta estatura, apoiando as mãos no tampo da escrivaninha. — O senhor disse que eu devia casar com uma das minhas primas, e eu o fiz. Mas Harriet estava tão decidida a ficar com Monkscombe, que não conseguia pensar em outra coisa. Não me considerou digno de ser o conde de Monkscombe, e não escondeu isso. Então, casei-me com ela para que se tornasse a dona legítima. Fiz tudo o que vocês Queriam, agora me deixem em paz! Quero viver a minha vida! Também quero coisas, porém Monkscombe não está entre elas. Fiz o que devia fazer aqui, e ninguém tem o direito de me pedir mais.
- Diga-me, Ben Stanton — perguntou o sr. Ferrar, inclinando-se para trás, a fim de observar o rosto corado do rapaz—, que quer da vida?
- Ora, quero partilhá-la com uma mulher, e não com uma casa, uma propriedade! — respondeu ele. — Chega de discussão. Vou ficar por um ano, como prometi a Harriet, depois voltarei para Filadélfia. Agora, com licença, que sou um homem ocupado. Não quero perder tempo discutindo o que já está decidido. Bom dia, senhor! — e saiu quase correndo.Em Monkscombe, Harriet debatia-se entre emoções conflitantes. Ansiava pela voita do marido e, ao mesmo tempo, receava-a, porque brigariam de novo. Arrependera-se de ter voltado, pois sentira-se feliz com Susan. Quanto mais pensava nisso, mais zangada ia ficando. Jamais alguém gritara com ela daquele jeito, sempre fora tratada com delicadeza, suas opiniões eram respeitadas, e as ordens, obedecidas.O capitão James Murray fora jantar em Monkscombe duas vezes naquele meio tempo, e confessara-se frustrado: seus esforços para encontrar o francês Lesage esbarravam no silêncio dos camponeses.
- — E não são apenas os camponeses, sra. Stanton — desabafara.— Todo mundo me considera inimigo, pois não sou da região. Seria ótimo se tivéssemos um magistrado mais moço. E, toda vez que vejo sir Mortimer, lembro-me de quantos homens bons perderam a vida na charneca de Culloden... Sabe que o magistrado foi partidário de Billy, o Fedorento?
- Aí, voltou o ressentimento contra o primo que viera de lugar nenhum, e assim mesmo tomara conta de suas vidas. Voltou também a suspeita, porque havia muita coisa que ela não entendia e que Ben Stanton não queria explicar.
- — Esse rapaz trocou o cérebro com o de uma mula! — exclamou o velho senhor, sacudindo a cabeça. — Harriet também não quer a propriedade... quer você, seu idiota colonial teimoso e burro!
- James refere-se ao duque de Cumberland — explicara Caroline. — De fato, sir Mortimer não se importa muito com a possibilidade de Bonaparte atravessar o canal da Mancha, porém tem pavor que os escoceses desçam de novo do vale de Adriano.
- Ele é um homem muito difícil, que insiste em administrar justiça a seu modo — dissera o capitão — e que raramente está sóbrio.. Só viu a criança escondida na penumbra do espinheiro, quando quase tropeçou nela.Billy Pardy saiu do esconderijo e ficou a alguns passos de distância, pronto para fugir.
- — Você é William, não? — perguntou, surpreendida.
- Por onde andaria o espião Lesage? indagava-se Harriet naquela manhã, enquanto voltava para casa. Se o francês ainda estava por lá, era incrível que ninguém o tivesse visto. Um estrangeiro chamava a atenção... E se fosse um estrangeiro que não chamava a atenção e que tivesse motivo para se encontrar por ali? Alguém que se interessava muito por navios e os examinava do Passeio da Viúva? Um homem que ia para Bristol sem explicar por que e... observava navios também lá? Um homem que viajara pela Europa ocupada pelos franceses, e que não escondia sua admiração pelo Exército da França? Seu coração quase parou de bater. Mas o sr. Ferrar rira de suas suspeitas; então, era impossível. No entanto, e se ela estivesse certa?
- Estava esperando a senhora... — sussurrou, com a carinha suja e séria.
- Que foi, Billy? Maltrataram você outra vez?
- Eu falei! — exclamou o menino, com raiva. — Falei para o Aaron que, se me batessem de novo, eu fugia e contava! Queria contar para o cavalheiro ou para a senhora! O cavalheiro não está, nesse caso... Contudo não gosto da ajuda de mulheres!— Não — Billy sacudiu a cabeça. — Ele não me amola, só diz nomes feios. É o Nathan quem me bate, e-eu avisei que ia contar tudo! Mas o cavalheiro viajou... — queixou-se o menino. — Não gosto de lidar com mulheres!
- Billy Pardy não falava como a criança que era, e provavelmente jamais fora uma criança de verdade. Crescera em um ambiente promíscuo, que não tinha moral, não recebera noção do que era certo ou errado. Tivera de aprender cedo a se defender da violência. Principalmente, o menino era um Pardy: sabia qual o lugar e papel das mulheres; não se discutia assuntos sérios com elas, e Harriet compreendeu que ele se esforçava por fazer uma exceção.
- — Foi Aaron quem bateu em você? — perguntou Harriet. Era evidente que Billy queria vingar-se de alguém, e ela não tinha disposição para enfrentar Aaron.
- Que quer me contar, Billy? — perguntou, sentando-se numa pedra, enquanto notava que, apesar do frio, o menino estava des calço. — Dou o recado a lorde Stanton, assim que ele chegar.
- Há um homem escondido lá em casa — afirmou o garoto, depois de alguma hesitação. — É o francês.
- Tem certeza, Billy? É verdade?
- Tenho! Nathan e Aaron saíram com os outros, de barco... com Jethro e os outros... Trouxeram bebida, fumo... e o francês.
- Ele ainda está lá? — quis saber ela, duvidando. — Tal fato já aconteceu há algum tempo, não?
- O francês arrebentou a perna — disse Billy. — Os soldados esperavam, tiveram de se esconder, e ele se esborrachou todo. Está lá em casa... Agora sarou, consegue andar com um bastão... Declarou que ia embora daqui a dois dias.Não sabia o que fazer. O capitão Murray fora para Bath naquela manhã, voltaria dois dias depois e, nessa altura, o francês já teria ido embora. Sir Mortimer...? Bem, afinal era um magistrado, apesar de muito velho, surdo e quase sempre embriagado. Mas, antes de fazer qualquer coisa, precisava saber se o menino dizia a verdade.— Agora que pode andar, ele vai à privada — respondeu Billy, e quis explicar: — Antes, ele...Logo chegaram às cabanas dos Pardy. Harriet escondeu-se atrás de uns arbustos, e Billy seguiu pelo trilho até a porta de um dos barracões desconjuntados. O vento soprava frio, vindo do mar, e Harriet esperou, impaciente e tremendo. Concentrou-se tanto no exame das taperas, que esqueceu que podia ser vista por quem chegasse de trás. Subitamente, ouviu passos fortes e dois braços musculosos agarraram-na pela cintura.— Solte-me, Aaron! — ordenou ela, inutilmente. — Não estou bisbilhotando — e lutou para livrar-ser sem conseguir.
- Aaron soltou uma gargalhada ao ouvir aquilo.
- — Vejam só, a sra. Stanton! — exclamou a voz áspera de Aaron. —Veio me fazer uma visita, ou está bisbilhotando?
- — Está bem, Billy. Vamos logo, então.
- — Escute, Billy — bradou ela, cautelosa —, preciso ter certeza que ele está aqui, antes de começar a agir. Vamos até sua casa, e você fará qualquer coisa para obrigar o francês a sair, entendeu? Ele costuma sair, não?
- Então, era isso! Lesage se machucara e, sem a ajuda de um médico, o osso fraturado custara a soldar. Já conseguia ficar de pé. Os Pardy, que tinham ajudado o desembarque do espião, haviam tido obrigação de escondê-lo e, agora, ele ia fugir.
- Bom, nesse caso veio me ver! Eu esperava isso, apesar de você sempre ser altiva e desdenhosa. Sabia que era fingimento!
- Seu insolente! — berrou ela, apesar do medo que sentia.
- Você é briosa... — afirmou o homem, com ar satisfeito. — Gosto disso! Creio que as mulheres devem ficar em seu canto efalar só quando interrogadas, porém vou fazer uma exceção... Sabe que sempre gostei de você.Nesse momento, os olhos negros perderam o brilho divertido e se apertaram, formando duas fendas.Quando Harriet conseguiu se equilibrar e recuperar a presença de espírito, viu que se encontrava em uma grande cozinha, com um fogareiro aberto, sobre o qual pendia um gancho; havia uma mesa e bancos toscos. A fumaça do fogareiro evolava-se na cozinha e escapava por uma janela sem vidro. Lucy Pardy, a mãe de Billy, uma mulher gorda e desleixada, de cabelos engordurados, mexia o conteúdo do panelão que pendia sobre o fogo. Voltou-se com o olhar ausente. Não havia sinal do menino.O homem passou para outro aposento, do qual vinham vozes. Logo retornou com um homem alto, que coxeava penosamente, apoiado num bastão.Ele não se parecia nada com Ben. Era alto, devia ter mais ou menos a mesma idade, mas era só. Apesar do perigo e do medo, ela sentiu-se feliz, e seu coração bateu mais forte. Como fora boba e como se arrependia do que pensara!— Sra. Stanton? Sinto muito vê-la aqui. Entende que, agora que me viu, não poderá ir embora?
- Aaron apoiava-se no batente da porta de entrada, de braços cruzados, vigiando.
- Lesage aproximou-se, com esforço, e sentou-se diante dela.
- — Monsieur Lesage... — sussurrou Harriet. — Então, está mesmo aqui!
- — Sente-se aí, vamos! — ordenou Aaron, empurrando Harriet para um banco. — Lucy, fique de olho nela e não a deixe fugir, se não será pior para você, entendeu?
- — Ah, é isso! Nesse caso, minha querida, você vai comigo. Agarrou-a por um braço e arrastou-a pelo trilho até a porta de um dos barracões, que abriu com um chute. Empurrou-a para dentro, quase derrubando-a; depois, entrou e bateu a porta.
- — Eu sempre o julguei um patife, um rufião! — gritou ela, furiosa. — Mas não pensei que fosse mais do que isso. Agora, sei que além do mais é um traidor!
- Vão notar a minha ausência — afirmou Harriet, altiva. — Virão me procurar.
- Mas não aqui, chère madame. — Lesage aproximou-se um pouco e baixou a voz. — Milady, sinto vê-la, por dois motivos. Primeiro, porque é muito bonita e não gostaria que a magoassem. Segundo, e isso é muito importante, seu marido é cidadão dos Estados Unidos. A França tem ótimo relacionamento com esse país, e eu não gostaria de estragá-lo com um incidente desagradável. Se algo acontecesse com a senhora, ele se queixaria ao governo americano. Não acredito que se trate de um homem que aceite insulto ou injúria sem reagir.Imaginou se seria isso mesmo, porém tinha certeza da primeira parte. Lesage demonstrou que sua dúvida tinha fundamento.
- — Não — respondeu ela, com uma firmeza que sentia em parte. — Ele não aceitaria e faria o maior escândalo. Vocês não podem me prejudicar...
- Sra. Stanton, infelizmente não percebe como a situação é perigosa. Para essa gente, ser apanhada significa forca. Precisam livrar-se da senhora, e creio que o farão levando-a para alto-mar, a noite, e jogando-a fora do barco.
- Mentira! — interferiu Aaron, violento. Aproximou-se da mesa, com ar ameaçador. — E tem mais: não sou surdo como o velho Mortimer! Ouvi o que disseram, e não vou deixar que façam mal a essa dama!
- A senhora tem um admirador... — declarou Lesage, com uma careta. — Mas acho que não pode confiar no cavalheirismo dele. De qualquer jeito, Aaron é apenas um. A família é que decide.
- Antes que Aaron pudesse falar, Nathan entrou na cozinha e apontou para Harriet, zangado.
- Que essa mulher faz aqui?
- Estava espionando — respondeu Lucy, junto do telhado, enxugando o suor do rosto.
- Cale a boca! — gritou Aaron. — Senão eu a faço calar! —Voltou-se para Harriet, pegou-a por um braço e a fez levantar. —Você, espere aí!Vozes enfurecidas vinham através da porta. Jethro havia chegado, e os homens discutiam, furiosos. Não conseguia entender, pegava apenas palavras soltas, porém era o bastante. Nathan e Jethro queriam matá-la imediatamente. Lesage e Aaron eram contra. Quando os demais Pardy chegassem, haveria uma votação, e ela sabia qual seria o resultado...Entrou em pânico, não por si, e sim pelo marido. Eles iam matá-lo! Não podiam se arriscar deixando que descobrisse o espião francês.Contudo, não adiantava querer.— E daí, decidiram o que farão comigo? — perguntou ela, erguendo-se e encarando-o como se não tivesse medo.— É... Você não tem mesmo medo de falar — murmurou ele. — Mas quem sabe tem um pouco de medo de mim? — e sorriu, irónico. Harriet não deu sinal de timidez. Ergueu o queixo, num desafio.
- Aaron balançou a cabeça, e o coração de Harriet quase- parou. Contudo ele não respondia à sua pergunta, apenas confirmava algo que lhe passava pela cabeça.
- Por trás da porta agora reinava o silêncio. Harriet aproximou-se, pé ante pé, e mexeu no trinco, porém estava trancada. Tornou a sentar-se na cama, e algum tempo depois percebeu passos no outro cómodo. Alguém vinha vindo, para amarrá-la, amordaçá-la e levá-la para o barco, do qual seria jogada na água fria e escura... A trava da porta foi acionada, ela abriu-se, e Aaron entrou.
- Ben, meu querido, pensou, desesperada, caluniei você! Eu queria tanto...
- Considerou as possibilidades de fuga. Subiu na cama e olhou pelo buraco. Não era muito grande, mas calculou que poderia escapar por ele. Embaixo havia um chiqueiro, e o grunhido dos porcos encobriria os ruídos que porventura fizesse. No entanto, precisava esperar pela noite. Tornou a sentar-se na cama e pensou no que o marido faria ao descobrir que ela desaparecera. Lesage se enganara ao dizer que ninguém a procuraria ali. Era por aquele local que Ben iniciaria a busca, meditou. O instinto o levaria diretamente a Aaron.
- Arrastou-a até a porta do outro lado da cozinha e a empurrou para dentro de um quarto, batendo a porta. Ela percebeu que se tratava de um quarto, porque havia uma cama. Não tinha janela, apenas uma abertura rudimentar junto ao telhado, para deixar entrar um pouco de luz. Sentiu moles os joelhos e sentou-se na beirada da cama, tentando não pensar na sujeira dos lençóis, nas pulgas e em outros insetos que deviam morar nas cobertas e no colchão de palha.
- Não, Aaron. Não tenho medo de você, porque o conheço bem. Você é um vadio, um contrabandista. Meu pai foi juiz e condenou muitos dos Pardy... Lembra-se?
- É verdade. — Ele apertou os olhos. — Lembro-me dele. Era um homem muito rigoroso.— É por essa razão que me prendeu aqui? — sussurrou.— Imagina que estou me preocupando com tal fato? O homem que se deixa levar para diante de um juiz, é idiota! Ninguém me apanhou em flagrante... Eu sou esperto, sabe? — Piscou, malicioso. —No entanto, vejo que você está um pouco assustada. Não faz mal. Isso até torna mais divertidas as coisas, e as mulheres gostam de ser dominadas. Esperneiam, gritam, mas gostam.
- Começou a aproximar-se devagar e, embora sorrisse, algo nos olhos dele apavorou Harriet.
- Ele pareceu não entender, franziu a testa, depois deu uma risada.
- Será que Aaron tinha em mente vingar-se do pai dela?
- Você não ousaria...! — pronunciou baixinho.
- Seria uma troca justa... — declarou o canalha. — Não dê atenção ao que o francês disse. Um dia, eu disse que você ia precisar de mim, lembra? Isso está acontecendo agora. Não vou deixar que afoguem você. Uma mulher linda tem uso melhor do que virar isca para peixes... Por que não me mostra como pode agradecer por esse motivo?
- Estendeu a mão e brincou com as rendas do jabô de musselina sobre a blusa de Harriet.
- Esqueceu que eu tenho um marido?! — replicou ela, indigna da, e o homem gargalhou.
- E onde ele está? — perguntou. — Em Bristol, e ninguém sabe quando vai voltar. No entanto, você e eu estamos aqui, nascemos aqui, somos quase parentes...
- Ela deu um tapa na mão grosseira do homem, afastando-a.
- Você é um criminoso! Nunca o aceitaria!
- É melhor do que virar comida para peixes... — escarneceu ele, rindo. — Garanto que você vai gostar...
- Não! Não vou! Prefiro morrer afogada!
- Não precisamos ficar aqui, entende? — bradou Aaron. — Podemos ir para Devon, onde ninguém nos conhece. Nós vamos nos dar muito bem, milady...
- Harriet ficou horrorizada ao perceber que ele falava sério.
- Deve estar louco, se pensa que vou fugir com você!
- Por que não me experimenta, antes de recusar? — interrogou o homem, com voz suave. — Poderá mudar de ideia.O socorro chegou quando Harriet pensou que não teria mais salvação. Alguém agarrou Aaron por trás e o levantou. Ela sentou-se na cama, chorando, e viu Lesage com o bastão erguido.
- E, sem qualquer aviso, ele deu um passo à frente, empurrando-a e fazendo-a cair de costas na cama. Jogou-se por cima dela, que lutou desesperadamente para livrar-se, sem conseguir. Sentia-se esmagada pelo peso dele, respirava com dificuldade e teve a sensação que ia desmaiar ou vomitar, ou ambas as coisas. O hálito malcheiroso de Aaron queimava-lhe o rosto, e sua voz sussurrava sugestões obscenas, enquanto tentava rasgar-lhe a roupa.
- Deixe a senhora em paz! — gritou o espião. — A França não quer complicações com os Estados Unidos.
- Não me interessa o que a França quer! Sei o que eu quero e isso basta! — rosnou Aaron.
- Enquanto eu estiver aqui ninguém vai molestar milady e a advertência vale principalmente para você. Depois que eu for embora, faça o que quiser. Nesse ínterim, ninguém chega perto dela! Do outro lado da porta os Pardy comiam, fazendo barulho. Não esqueceram dela. Uma moça, chamada Cherry, levou-lhe uma tigela de comida, não muito apetitosa, entregou-a, depois limpou o nariz na saia. Harriet percebeu que a jovem estava no último estágio de gravidez e se movimentava com dificuldade. Mais um Pardy viria ao mundo.Não podia deixar de simpatizar com o francês. Ficara naquele barracão, talvez naquele quarto, durante semanas, sem poder se mexer, sem poder chamar um médico. A perna devia doer muito e provavelmente ele fora cuidado apenas por Lucy e Cherry, temendo ser descoberto, tendo de levar sua missão avante. Uma missão que fracassara no começo.Alguém se pôs a cantar uma balada indecente. Ouviu uma criança chorar. Felizmente, até agora ninguém havia relacionado sua vinda ali com Billy. Sentiu frio, então encolheu-se junto dos travesseiros, passou os braços pelos joelhos e se preparou para uma demorada espera.Meia hora depois avistou uma taverna na beira da estrada, de aparência pouco convidativa, mas que lhe pareceu um palácio. Entrou no pátio, deslizou pela sela molhada, entregou o cavalo a um criado e entrou.Aquecido, por fim, começou a cochilar, esperando pela comida. Foi acordado, sem cerimónia, pelo taverneiro, que recolheu o copo de conhaque, avisou que eram os soldados e sumiu nos fundos da sala. A porta da taverna abriu-se e um único túnica-vermelha, que era como chamavam os milicianos por ali, entrou. Quando ele tirou o chapéu encharcado, o conde ficou feliz ao reconhecer o amigo.O capitão Murray virou-se e, ao ver-lhe a expressão séria, tensa, lorde Stanton sentiu a alegria se esvair.
- — James! — exclamou. — Que bom vê-lo aqui!
- Lá dentro fazia calor, e a lareira acesa convidava ao descanso. Livrou-se da capa, sentou-se junto dela e pediu um almoço. Esqueceu-se de que se encontrava em um país parcialmente bloqueado para os franceses, e pediu um conhaque, para esquentar. Otaverneiro assumiu um ar furtivo e sumiu, voltando logo depois com o conhaque, colocando o copo na mão do conde, com uma piscadela. Enquanto a bebida descia, aquecendo-o por dentro, compreendeu as tentações de sir Mortimer e de outros que olhavam o contrabando com certa indulgência.
- O dia seguinte amanheceu nublado, porém Harriet não podia ver o tempo fora. Ben Stanton, ao contrário, via isso bem demais enquanto cavalgava pela estrada deserta. Saíra muito cedo de Bristol e a princípio andava rápido. Agora, a estrada estava cheia de sulcos, buracos, pois chovia e o vento cortava como navalha. Ajeitou a capa mais perto do corpo, abaixou a aba do chapéu e assobiou para animar o cavalo, que ia a passo, de orelhas baixas. Daquele jeito só chegaria em casa ao escurecer.
- E onde Ben estaria? Ainda em Bristol? Será que chegaria a tempo de salvá-la? Se ele chegasse, o que faria Lesage, empenhado em não ofender os Estados Unidos? Mas tudo dependia dos Pardy... E eles pareciam divertir-se. Deviam estar bebendo. Sentiu medo outra vez.
- Ela pegou a colher e mexeu o ensopado, julgando melhor não examiná-lo com atenção. Quando experimentou, percebeu que era de coelho, com muita cebola e batata. Imaginou se Lesage comia com os Pardy e tentou adivinhar, divertindo-se um pouco apesar de tudo, o que ele pensava daquilo tudo. O espião era um enigma. Não podia chamá-lo de amigo, porém ele pretendia protegê-la enquanto pudesse.
- Harriet pensou que a deixavam no escuro para intimidá-la. Aa-ron talvez achasse que assim ela se tornaria mais dócil, por isso respirou mais livremente quando uma criança, assustada, entrou com um toco de vela de sebo e fugiu, rápida. A chama dançava muito e produzia pouca luz.
- Os homens saíram, e a porta foi trancada. Ela olhou para o buraco na parede e viu que eles se haviam lembrado disso, pois estavam pregando uma tábua para fechá-lo, e o quarto ficou na completa escuridão. Não poderia fugir. Lesage a protegeria, porém por pouco tempo. Logo ficaria à mercê da proteção de Aaron, mas ele exigia um preço, que ela não podia e não queria pagar.
- Graças a Deus, o senhor voltou! — exclamou o capitão. — Vim por esta estrada na esperança de encontrá-lo. O tempo está tão ruim, que imaginei que o senhor pararia aqui.
- Que houve? — quis saber o conde, alarmado.
- Não há como não acreditar na Providência... — respondeu o miliciano, sentando-se e baixando a voz. — Eu deveria estar em Bath, mas saí para lá ontem de manhã. Meu cavalo começou a mancar e tive de voltar, pelo que dou graças a Deus. A sra. Stanton desapareceu e não conseguimos localizá-la.
- Desde quando? — perguntou lorde Stanton, forçando-se a manter a calma.
- Desde ontem de manhã. Foi visitar doentes, a pé, e pretendia atravessar os campos.
- Ela sabe que não quero que faça isso!
- Soubemos que a sra. Stanton fez as visitas — continuou o capitão, aflito. — Devia estar voltando. Chegou até um ponto onde há um espinheiro e uma pedra. Parou ali, onde encontramos a cesta dela. Parece ter evaporado. Buscamos por todo canto, bosques, capoeiras, valetas, e nada! Caroline está quase louca de aflição. Todos os homens válidos estão à procura dela. Caroline, desesperada, só queria que você voltasse, por isso vim pela estrada de Bristol e iria até lá se não nos encontrássemos. Não imagina como estou contente por vê-lo aqui!— Vai comigo, James? Tenho uma desconfiança sobre onde está minha mulher... Explico pelo caminho. — Jogou a capa ainda bem úmida sobre os ombros. — Maldição! Não devia ter deixado Harriet aqui, primeiro; e depois, não devia tê-la mandado voltar de Bristol. Sou um idiota bronco e teimoso, James! Lembre-se de que ouviu isso de mim e quando for preciso refresque a minha memória!— Esteve nos barracões dos Pardy? — indagou o conde, aos gritos, para o capitão que cavalgava a seu lado.
- Pouco depois, puseram-se a cavalo estrada afora, em velocidade perigosa.
- O conde gritou ao taverneiro que não ia comer e mandou preparar o cavalo.
- Para quê? — respondeu o outro, também aos berros, segurando o chapéu com uma das mãos.
- Porque Harriet está lá. Eu apostaria todos os meus bens nisso. Não me peça para explicar agora, que é uma história longa. Mas, se quiser pegar os contrabandistas, mande vigiar os Pardy.
- O caminho ficou mais difícil, e tiveram de se afastar um do outro.
- Que isso tem a ver com a sra. Stanton? — perguntou o miliciano, quando tornaram a se aproximar.
- Ela deve ter descoberto algo e foi atraída para lá, ou levada à força. Tenho certeza que está com os Pardy!
- Nesse caso, iremos libertá-la já! — declarou o capitão, entusiasmado. — Vou buscar o pelotão e...
- Não! Os milicianos seriam vistos a distância, apesar da chuva; então, eles se apressariam a livrar-se das provas e de Harriet, antes que você conseguisse entrar nas cabanas. Preciso de tempo. Devo chegar lá sozinho e tentar retirar Harriet antes que você chegue com a milícia.— Não. Quero que vá avisar sir Mortimer que fará umas prisões e que vai precisar dele. Ele voltou de Bristol, não? Logo depois reúna seus homens e vá para lá.
- O capitão puxou bruscamente a rédea, e seu cavalo parou. O conde também parou, voltou para junto dele, e fitaram-se em silêncio por momentos, debaixo da chuva.
- — Tal coisa é loucura! — exclamou o capitão Murray, horrorizado. — Não pode ir só! Pelo menos, deixe-me ir também!
- Aquele velho caduco? — perguntou o capitão, por fim. —Acredita que vai colaborar na prisão dos contrabandistas? Ele os ajuda! A mim só me cria dificuldades!
- Escute, sir Mortimer talvez tolere os contrabandistas, mas é patriota, embora amalucado. Diga-lhe que provavelmente os Pardy esconderam o espião francês, e ele mudará de opinião. Vai ver só!
- Reencetaram a marcha e chegaram a um bosque, cerca de um quilómetro distante dos barracões dos Pardy. As árvores bordejavam o caminho, ocultando-o. Detiveram os cavalos suados, sujos de lama, e desmontaram.
- Preciso de duas horas, James — afirmou lorde Stanton, arfando, enquanto levava o cavalo para junto de uma árvore e o amarrava. — Calculo que levará mais ou menos esse tempo para falar com sir Mortimer e reunir seus homens.
- Não gosto disso... — protestou o jovem capitão, teimoso. —Farei o que o senhor disse, porém contrariado. Nem sequer está armado, milorde!
- Se eu fosse você, não apostaria nisso — respondeu Ben Stanton, com um sorriso duro. — Vamos, túnica-vermelha, este americano precisa de sua ajuda!O conde olhou para o céu. Não chovia mais, o que era uma vantagem, pois a chuva manteria os Pardy dentro de casa. Queria que saíssem, principalmente um deles. Se Aaron visse a expressão de Ben Stanton nesse momento, ficaria preocupado.— Agora, Aaron Pardy, vai ver o que é mexer com Ben Stanton!— bradou para si mesmo.era. Chegou perto das cabanas, procurou um local adequado e agachou-se. Ficou oculto do lado contrário do vento, para não ser descoberto por algum cachorro, e pôs-se a esperar com a paciência do índio que lhe ensinara a perceber pegadas e armar tocaias... para apanhar animais ou homens.Cherry Pardy entrou no quarto para levar outra vela para Har-riet. Ela parecia mais lenta do que no dia anterior. Arfava, angustiada, e seu rosto estava coberto de suor. Curvou-se para colocar a vela no lugar da que se consumira; de chofre, soltou um grito lancinante e caiu sobre a cama, contorcendo-se. A barriga enorme apresentava movimentos convulsivos.A porta estava aberta, e ela correu para a cozinha. Jethro e Aa-ron, sentados à mesa, jogavam dominó. Jethro era repugnante, mais parecia um bicho, e talvez não soubesse contar mais do que os dedos que tinha. Aaron ganhava e assobiava, alegre. Ambos ergueram os rostos com a entrada da moça.
- — Oh, meu Deus! — exclamou Harriet.
- Dentro de um dos barracões estava para acontecer algo que Ben Stanton não podia prever, e que teria importância crucial nos acontecimentos.
- Afagou o pescoço do cavalo e saiu andando. Ia com cautela, aproveitando a proteção de todo arbusto e árvore. As botas não faziam o menor ruído na turfa encharcada, e quem o visse teria impressão que se tratava de uma sombra, não de um homem, tão silencioso
- Lorde Stanton colocou a capa sobre a sela, pendurou o chapéu num galho e tirou a gravata. Precisava de liberdade de movimentos. Enfiou a mão no cano alto da bota direita e apalpou o punhal, em sua bainha. Sabia como usá-lo, e em caso de necessidade não hesitaria.
- E o capitão tornou a montar, afastando-se entre respingos de lama.
- Cherry vai dar à luz! — gritou ela.
- Ganhei a partida! — declarou Aaron, juntando as peças. — É a quarta que ganho, em seguida! Você é burro!
- Ouviram o que eu disse? Cherry está em trabalho de parto —insistiu Harriet, nervosa.
- Que quer que a gente faça? — perguntou Jethro, mal-humorado. — O problema é dela, que se arranje!
- Vão buscar ajuda! — ordenou Harriet.
- Ela já teve uma cria, sozinha — murmurou Jethro, com indiferença. — Se quiser, ajude-a você.
- Eu não sei como fazer! — afligiu-se ela, ouvindo os gemidos da moça, cada vez mais altos.
- Então, vamos ter de lhe ensinar! — exclamou o homem, com uma gargalhada obscena. — Aaron cuida disso, não é?
- Eu já disse! Vão buscar alguém para ajudar! — vociferou a moça, batendo um pé no chão.
- Aaron fitou-a, boquiaberto depois levantou-se.
- Vou buscar Lucy... Jogar com você não tem graça, Jethro.
- Esse dominó é velho, e quase não se vê os pontos marcados! — resmungou Jethro, justificando-se. — E não ficarei aqui ouvindo uma mulher uivar. Vou levar os cães para a reserva de veados de sir Mortimer, para ver se conseguem perseguir um animal até cansá-lo...Harriet observou-o com repugnância e foi atrás de Lucy. Viu sobre a cama uma menininha, ainda presa à mãe pelo cordão umbilical. Estava roxinha, era mirrada, mexia vagarosamente as perninhas, os bracinhos e a boca, da qual não saía som. A criancinha, as roupas de Cherry, os lençóis, tudo estava ensanguentado. Não havia com que limpar a mãe e o nené. Harriet voltou à cozinha e se aproximou de Aaron.
- Saiu, arrastando os pés, chamou os cães com um assobio e foi embora com eles. Aaron postou-se na porta dos fundos, berrando por Lucy, que chegou correndo e enfiou-se logo no quarto. Ele tornou a entrar, sentou-se à mesa e encheu o cachimbo com fumo.
- Então vá e traga um balde cheio.
- Isso é trabalho de mulher — esquivou-se ele. — Vá dizer a Lucy que apanhe água.— Ora, seu grande vadio inútil! Uma pobre mulher acaba de dar à luz, outra tenta ajudá-la, um nenezinho recém-nascido pode morrer, e você fica sentado aí, com o cachimbo na boca, não querendo fazer nada?! Não tolero isso! Não vou tolerar, mesmo! Levante-se, animal estúpido, e vá buscar água!
- Aaron a fitava, estupefato, de queixo caído. Ela ficou ainda mais furiosa ao vê-lo parado. Deu um passo à frente e aplicou outra bofetada no rosto pasmo.
- Harriet sufocou uma exclamação e sentiu que fervia por dentro, esquecida de tudo: do medo, da humilhação e do nojo que tinha daquele lugar. Sua zanga transformou-se em fúria. Estendeu o braço e deu um tapa tão violento no rosto do homem que o cachimbo caiu no chão, espatifando-se.
- Não entendeu o que eu disse, Aaron Pardy?!
- Oh, ai! — exclamou ele, esfregando a face. — Não precisa ficar tão nervosa e tentar arrancar minha cabeça! Eu vou buscar água... Espere aqui. — Levantou-se e foi até a porta, onde parou, olhando para trás. — Você é uma mulher bonita — bradou, com seriedade —, mas fica muito bruta quando zangada!Assobiando, Aaron chegou ao poço e desceu o balde, recolhendo-o cheio. Apoiou-o na beirada do poço, para desenganchá-lo, e aí sentiu a ponta de um punhal cutucá-lo atrás da orelha. Uma voz sussurrou:Aaron largou o balde.
- — Ora essa! — afirmou, admirado. — Não ouvi você se aproximar.
- — Vire-se devagar, Pardy, e não faça barulho; caso contrário, corto a sua garganta como se fosse a de um daqueles porcos...
- O quintal estava deserto. Os outros Pardy não haviam saído do outro barracão, a não ser Cherry e Lucy. Os porcos fuçavam a lama furiosamente, parecendo satisfeitos. Galinhas encharcadas empoleiravam-se na lenha cortada e tinham um ar triste, ressentido.
- Pois é, Aaron, e agradeça por eu não querer o seu escalpo, mas vou arrancá-lo se fez algum mal à minha mulher. Onde está ela?
- Ninguém lhe fez mal... — Aaron voltou-se de frente para o conde e apontou o punhal. — Arma esquisita para um cavalheiro!
- Não sou inglês e não sou cavalheiro, Aaron. É bom que se lembre disso — alertou-o Ben Stanton, indicando-lhe que se distancias se do poço. — Mexa-se bem devagar e não tente nada.
- Você não iria chegar tão perto, se Jethro não levasse os cães embora — afirmou o contrabandista, com ar insolente.
- Foi muita sorte dos cães. Eu cuidaria deles, também. Agora, vamos buscar minha esposa, em silêncio.
- Por que imaginou que ela estava aqui? — perguntou Aaron, com ar zangado.
- Porque localizaram a cesta dela numa pedra perto das cabanas. Ela deve ter encontrado alguém lá, que a convenceu ou forçou a vir até aqui. Foi você?
- Não — respondeu o homem, ainda carrancudo. De repente, seus olhos brilharam, e ele disse: — Foi o moleque! Ele jurou que contaria tudo se Nathan o surrasse de novo. Vou esfolar aquele fedelho!
- Não vai fazer isso. Vai, apenas, buscar Harriet — intimou Lorde Stanton.
- E quem vai me impedir de dar o alarme, quando estiver dentro da cabana? — quis saber Aaron, rindo.
- Isso é entre nós dois — replicou o conde, com paciência. — Vim aqui por causa de minha esposa. Observo vocês há tempo, sei quando desembarcaram o contrabando e vi quando o trouxeram. Sei que o francês ficou escondido aqui... — Aaron olhava-o cada vez mais espantado. — Nunca contei a ninguém, porque não tenho nada com isso. Agora, vocês manterem minha esposa aqui... Com isso eu tenho que ver! Você me agrediu, Aaron. Vá buscá-la, já! Depois, acertaremos as contas, de homem para homem. Nós dois.
- Sim... — declarou o homem, calmo e sorrindo. — Isso mesmo. — Passou ao lado do conde, para retirar o balde do gancho.— Preciso disto, porque a sua dama poderá me agredir como uma gata selvagem se não levar água.— Como demorou! — bradou Harriet, irritada ao vê-lo entrar. — Ponha a água ali. Que foi, não sabe pegar um balde de água?
- Caminhou para o barracão e curvou-se para entrar pela porta baixa. Ben Stanton, cauteloso, colocou-se atrás da borda do poço, para o caso de alguém tentar atirar nele. Precisou esperar um pouco, porém não foi por culpa de Aaron.
- Sua língua é muito afiada, moça! — resmungou Aaron, deixando cair o balde e derramando quase metade da água. — Começo a achar que vou ficar contente por me ver livre de você. Lucy, venha pegar a água! E, sra. Stanton, venha comigo.
- Não posso — respondeu Harriet. — Estou ocupada.
- Nunca vi mulher tão teimosa! — exclamou o homem, com o rosto vermelho de raiva. — Primeiro queria ir embora, depois começou a dar ordens como se fosse a dona, aqui! Agora, diabo!, recusa-se a ir quando quero devolvê-la ao marido! Estou começando a sentir pena desse homem, se ficar com você!
- Ben?! — gritou Harriet. — Aaron, ele está aqui? Por favor, diga a verdade!
- É, o homem está lá fora e, se tivesse juízo, não viria buscá-la. Saia em silêncio. Se sair correndo, aos gritos, vai atrair todo mundo para o quintal.— Ben, meu querido, eu sabia que você vinha! Queria tanto que viesse e, ao mesmo tempo, tinha tanto medo que eles o matassem...Aaron, que saíra atrás dela, ficara parado, observando-os. Lorde Stanton afastou a esposa, com delicadeza.
- Ele abraçou o corpo esguio, trémulo, que se apertava contra o seu, e compreendeu que, apesar do que dissera ao velho advogado, jamais seria capaz de deixar a esposa. O senhor ganhou, velho sabido!, pensou emocionado.
- Mas Harriet já saíra na disparada. Atravessou o quintal e atirou-se nos braços do marido, agarrou-se a ele, chorando de alegria.
- Ainda não terminei o que vim fazer, Harriet. Vá para casa, eu a alcanço daqui a pouco.
- Que vai fazer? — sussurrou ela, angustiada.— Os milicianos vêm aí! Nathan encontrou-os do outro lado da aldeia. Eles vêm vindo!Harriet olhava-os, horrorizada, com as mãos na boca, abafando os gritos que lhe arranhavam a garganta a cada golpe violento. Afinal, os inimigos se imobilizaram junto do chiqueiro, Ben Stanton sentado sobre o peito de Aaron, apertando-lhe a garganta com uma das mãos.O conde, tão imundo quanto ele, levantou-se com esforço, erguendo o outro ao mesmo tempo. Quando ambos estavam de pé, lorde Stanton dobrou o braço para trás, fechou o punho e desferiu um soco devastador no queixo de Aaron, que desabou na lama.
- Então, Ben Stanton foi para junto de Harriet, tentando inutilmente limpar-se e ter melhor aparência. Não estava apenas sujo de lama: tinha um olho preto, inchado, e saía sangue de seu lábio cortado.
- — Saia! — resmungou Pardy, meio sufocado e coberto de lama.
- A reação foi surpreendente. Homens, mulheres e crianças surgiram do outro barracão e correram em todas as direções, desaparecendo num instante. Até os porcos se refugiaram num canto do chiqueiro. Só duas pessoas não sumiram: Lesage, que apareceu à porta com a pistola na mão; e Aaron, que se virou para fugir, mas foi barrado por Ben Stanton, que saltou, agarrou-o pelas pernas e o derrubou. Os dois homens rolaram na lama, lutando selvagemente, praguejando, numa briga em que valia tudo.
- No entanto antes que ele respondesse, Jethro chegou, correndo, abanando o chapéu e berrando:
- Você... você está horrível! — exclamou Harriet.
- Mas me sinto muito bem! — declarou ele, satisfeito.
- Nesse caso, pare onde está, lorde Stanton — bradou Lesage, cortês, e coxeando saiu da porta, de onde assistira à luta. Mantinha a pistola apontada para o conde. — Espero que possamos chegar a um acordo sem violência...
- Guarde a arma — afirmou o conde, cansado. — Eu sempre soube que o senhor estava aqui. Não tenho nada com isso, porém quero dar-lhe um conselho e creio que deve segui-lo.— Na minha opinião — prosseguiu Ben Stanton —, o senhor nada fez para ser preso. Se tinha intenção de espionar, não conseguiu fazê-lo e teve de ficar esse tempo todo com os Pardy, o que foi um castigo suficiente... Sugiro que fale com seus amigos contrabandistas, quando conseguir encontrá-los, e os convença a levá-lo para o primeiro navio francês que passe por aqui. Volte para seu país, monsieur. E que tenha mais sorte da próxima vez...—É lastimável conhecê-lo em circunstâncias tão desagradáveis, milorde. Mas é a guerra! Também lastimo por miladyter ficado presa aqui. — Curvou-se cumprimentando Harriet. — Como pode imagi nar, milady, estou feliz por dispensar a hospitalidade dos Pardy. A comida — acrescentou, com uma careta — está abaixo de qualquer crítica. E, meu caro lorde Stanton — murmurou ao ouvido dele —, já viu as mulheres desses homens?— Aaron Pardy! — esganiçou-se sir Mortimer. — Venha cá, seu patife!
- Aaron obedeceu e ajudou o magistrado a descer. O idoso senhor ficou ameaçando a todos com a bengala, mal se equilibrando nas pernas trôpegas. As conversas que se seguiram foram interrompidas pela má audição de sir Mortimer.
- Apareceu uma carruagem, precedida de grande estrondo. O barulho era tão grande, que parecia anunciar a desintegração iminente do veículo. Aaron ergueu-se com esforço, esfregando o queixo, e olhou desconfiado para a porta da carruagem, que se abria.
- Lesage sorriu e guardou a arma.
- O espião francês ergueu as sobrancelhas e pediu que ele continuasse.
- Imagino que ele bebeu Raio Branco — murmurou o conde.
- Que é isso? — indagou Harriet, baixinho.
- É aguardente de cana, que um amigo dele produz na Jamaica e manda para sir Mortimer aos tonéis.
- Aaron pegou o chapéu do magistrado de dentro da carruagem e colocou-o na cabeça do velho senhor. Foi recompensado com uma bengalada nos ombros.
- Você é um cão, rapaz! O pior dos vira-latas!
- Sim, senhor. Se o senhor o diz...
- Claro que digo! Leve-me até aquela pedra, que eu quero me sentar. Sou um magistrado e não admito que ninguém me diga como devo administrar a lei! Um sujeitinho, com farda de miliciano, foi à minha casa e fez muito barulho. Logo vi que era um escocês. E não preciso de um escocês para vir me dizer o que acontece na minha terra!
- Pobre James! — sussurrou Harriet.O velho magistrado ergueu a bengala e apontou para Lesage.
- Sir Mortimer, sentado na pedra, olhou em redor. A cena não era ridícula, como poderia parecer. Era impressionante. Na paisagem desolada, aquela estranha reunião fazia pensar num conselho tribal. Sir Mortimer parecia o ancião da tribo, com autoridade indiscutível. Até Aaron o reconhecia, imóvel, de cabeça baixa e remexendo os pés. Todos esperavam.
- Esse homem trouxe o conhaque — respondeu lorde Stanton, bem alto. — E vai voltar por onde veio.
- Muito certo — aprovou sir Mortimer, que não pretendia interferir na distribuição da preciosa bebida. — Diga-lhe que vá embora antes da chegada da horda de milicianos escoceses.
- Estou a caminho! — afirmou o francês, apressado. — Meus cumprimentos a todos... — e começou a afastar-se.
- Ah, lorde Stanton! — bradou sir Mortimer, mudando de tom. — Harriet, querida... — Tirou o chapéu. — Prazer em vê-la! Voltou-se de novo para o conde. — Pena que estejamos aqui e não em minha casa. Hoje de manhã meu mordomo desencantou um Porto muito bom, um vinho maravilhoso, mas que não pode viajar. Sabe, a carruagem sacode muito... Ah, voltemos ao que interessa, Pardy!
- Estou ouvindo — disse Aaron, desconfiado.
- Você é bom marinheiro, não?
- Sim, senhor — concordou o homem, mais cauteloso ainda.
- Preciso de homens para a Marinha — informou sir Mortimer, com ar astuto. — Ouvi dizer que há um grupo de recrutadores nas redondezas... — Bateu o indicador no nariz.
- Não ouvi nada a respeito — sussurrou Pardy.
- Não? — O magistrado pareceu confuso. — Então, eles virão na próxima semana. O capitão Lomas mandou-me uma caixa de rum e um bilhete... para eu não me intrometer se parentes dos rapazes recrutados começarem a reclamar. Aaron, você já fez muita coisa errada por aqui. Está na hora de servir ao príncipe regente, ao seu país! Vamos, apresente-se como voluntário!
- Não quero viver no mar, comendo carne de porco salgada! — protestou o rapaz, com medo nos olhos negros.
- Não tem escolha, meu jovem — disse o magistrado, seco. —É a Marinha, e vou cuidar para que você seja mandado para Botany Bay... Creio que não iria gostar disso: dizem que as coisas na Austrália são mais duras do que nos Estados Unidos. — Cutucou vigorosamente a barriga de Aaron com a ponta da bengala. — Suma antes que a milícia chegue e o leve para a forca. E não se esqueça: apresente-se como voluntário ou eu interfiro, hein?!
- É... Parece que sou obrigado a ir conhecer o mundo — resmungou Aaron, encolhendo os ombros e distanciando-se a passos rápidos.
- Parece que está tudo resolvido — murmurou o magistrado, com bom humor, esforçando-se para se erguer, sem conseguir.— Aquele Aaron Pardy é um bandido! — exclamou sir Mortimer, enquanto se encaminhavam para a carruagem. — Contudo, será bom marinheiro. É melhor que seja enforcado pela Marinha, se for necessário. Assim, ninguém aqui será obrigado a fazê-lo.— Foi um prazer revê-lo, lorde Stanton. E também a você, Harriet querida, embora no meu tempo uma mulher em resguardo de parto ficasse na cama. Mas, pelo jeito, você se recuperou depressa, uma vez que anda por aí, no campo, debaixo de chuva. Essas ideias modernas me parecem muito estúpidas, porém vocês é quem sabem! Meu caro conde, por favor, pegue sua linda e jovem esposa, leve-a para casa e coloque-a na cama!Era de tardezinha e o crepúsculo hibernal começava a apagar rapidamente a paisagem. Ben Stanton colocou a esposa na sela, abrigou-a com a capa, segurou a rédea e conduziu o cavalo para a estrada.O dr. Gray, caridoso, concordou em ir ver a pobre moça, imediatamente. Ben Stanton e Harriet prosseguiram, em direção de casa.Os Pardy também estavam em algum lugar, fugindo como os animais da floresta. Mas Harriet não tinha medo, porque se achava junto do marido. Começou a desejar que nunca chegassem a Monkscom-be, que continuassem caminhando para sempre na escuridão. Às vezes, o cavalo ficava inquieto com alguma sombra mais densa; então, o conde falava com ele, acalmando-o. No entanto, lorde Stanton não trocava palavra com Harriet, parecendo não ter o que conversar com ela, e isso a preocupava.A casa estava toda iluminada, e todos os esperavam, fora, para dar-lhes as boas-vindas. Caroline ria e chorava, abraçando a irmã, o cunhado e de novo a irmã, dizendo que ela, James e os criados quase tinham morrido de preocupação. A sra. Woods chorava, e a cozinheira, que era irlandesa e bebera um bocado de vinho para resistir à aflição, começou uma ladainha louvando todos os santos doContudo; logo as necessidades práticas sobrepujaram as emoções, e os criados se movimentaram, as moças subindo e descendo escadas, providenciando água quente para banho. Os senhores de Monks-combe precisavam com urgência de se livrar da sujeira acumulada durante o encontro com os Pardy.Haviam preparado uma mesa no gabinete, com uma refeição leve, diante da lareira. Lorde Stanton esperava a esposa, sentado numa poltrona diante das chamas. Olhava-as, pensativo, com as pernas esticadas, e ela lembrou-se de tê-lo visto naquela posição parecia que fazia tanto tempo! Tanta coisa havia acontecido... Ela já não era a Harriet daqueles dias e jamais voltaria a ser. Não sabia se Ben Stanton também tinha mudado ou se nunca o conhecera direito.
- Depois de tomar banho, com os cabelos ainda molhados, Harriet disse à sua criada de quarto que jogasse no lixo as roupas que usava, porque receava ter trazido pulgas. Vestiu-se, penteou-se e desceu para comer.
- calendário.
- A uns duzentos metros de casa encontraram um cavaleiro, o fiel Joe Henderson que, preocupado, saíra à procura deles. O conde mandou-o voltar ligeiro para dizer a Caroline que estavam bem e logo chegariam.
- Já era noite fechada e uma coruja voou por cima de suas cabeças, iniciando a caçada noturna. Eles se deslocavam observados pelos olhos atentos de animaizinhos empenhados na luta pela sobrevivência, o mato farfalhava quando eles passavam, velozmente. Unhas afiadas arrancavam a terra gelada; um guincho doloroso anunciou que um animalzinho fora apanhado pelas garras da coruja, em sua rápida investida.
- — Se não se importa — disse ela, hesitante —, gostaria de passar na casa do dr. Gray e pedir-lhe que venha ver Cherry Pardy... Ela acaba de dar à luz e teve assistência muito deficiente. Eu pago o médico.
-
- Se Aaron ficasse por algum tempo na Marinha, pensou o conde, provavelmente acabaria pendurado pelo pescoço numa das cordas dos mastros... se não desertasse no primeiro porto de seu agrado. Os três subiram na carruagem e chegaram, aos solavancos à árvore onde estava amarrado o cavalo do conde. Sir Mortimer despediu-se deles:
- Ben Stanton e Harriet foram ajudá-lo.
- Está tudo bem, agora? — perguntou ele, fitando-a.
- Sim... Só meus cabelos ainda estão úmidos. Espero que não se importe por eu não estar bem penteada.
- Sentaram-se à mesa, frente a frente, à luz das velas e das chamas na lareira. Mal comeram, parecendo que não estavam com fome. Afinal, ela não suportou o silêncio.
- Creio que está zangado comigo, porque me coloquei em situação de ser capturada... Fui até lá porque não acreditei em Billy. Não sabia quando você voltaria, e o capitão Murray também tinha viajado...
- Não faz mal, Harriet. Já passou. Não adianta discutirmos os porquês. Quando uma coisa foi feita e não pode ser mudada, é melhor não falar nela. Se quiser, no máximo pode tirar uma lição disso.
- Acredita que o capitão vai conseguir pegar algum Pardy? —indagou ela.
- Duvido... — respondeu ele, amassando miolo de pão. — Não vai encontrar os homens, e só com muita sorte localizará as mulheres e as crianças. Daqui a uns dias todos voltarão para casa, quando a milícia desistir de procurá-los. Todos menos Aaron, claro. E acho que sir Mortimer não fez grande favor à Marinha.
- Desde que ele nunca mais volte! — sussurrou ela, e o marido a observou.
- Sabe, Harriet? — declarou o conde, depois de hesitar um pouco. — Você não deve se censurar muito pelo que aconteceu. Conhece Aaron desde sempre, e dizem que o costume gera o descuido: esqueceu-se de ter medo dele.
- Sempre tive medo dele, sabia que era um homem ruim. Só esqueci o medo quando vi que ele não dava a menor importância para o sofrimento de Cherry...
- Não. Você esqueceu o medo antes disso — bradou lorde Stanton, balançando a cabeça. — Acostumou-se com o medo, e ele deixou de provocar em você o cuidado instintivo. Seu medo de Aaron tornou-se tão normal, que já não punha alerta. Esqueça isso, Harriet. O passado já passou.— Eu é que fui um tolo — continuou ele, pensativo, surpreendendo-a. — Não devia ter deixado você sozinha, sem primeiro acertar as contas com Aaron. Foi o meu grande erro. Sabe? Não consigo me expressar direito, porque nunca foi necessário... quero dizer, nunca precisei narrar minhas intenções a ninguém. Fazia o que queria, porque isso não interessava a ninguém, a não será mim mesmo.— Nunca me passou pela cabeça que você tinha direito de saber o que eu planejava. Devia ter me explicado desde o começo e não chegar daquele jeito, sem avisar... Devia ter lhe contado o que descobrira sobre os Pardy... o contrabando e o francês. Devia ter contado também porque ia a Bristol... queria me informar sobre a Marinha Mercante, por causa de meus negócios. Não estava preparando um relatório naval para Bonaparte...
- A voz dele assumiu um leve tom de zombaria, e Harriet enrubesceu, rezando para que ele não percebesse. Mas, em seguida, o conde mudou a tonalidade:
- Calou-se por instantes e fitou as chamas, com ar ausente, então prosseguiu:
- Ela queria dizer que jamais esqueceria sequer um detalhe daquilo tudo, porém ficou em silêncio.
- E sinto muito por você ter me visto com aquela moça... Fui com ela só uma vez.
- Não precisa me falar sobre isso — murmurou Harriet.
- Preciso, sim, porque me arrependo de tê-lo feito. Já me arrependera antes de vê-la e descobrir que você sabia. Foi... foi uma coisa à-toa. Não sei como dizer isso, Harriet. Julgo que os homens são assim mesmo.
- É, acho que sim... — balbuciou ela.Ia abrir a boca para fazer essas perguntas, porém houve uma interrupção. Exausto, sujo de lama e mal-humorado, o capitão Murray entrou no gabinete.
- Queria dizer: "E eu? Não desperto reações em você, nem mesmo seu instinto? Será que eu, Harriet Stanton, sou tão fria quanto uma estátua de mármore, a ponto de você jamais sentir atração alguma por mim?"
- Vim ver se a senhora está bem, milady... e o senhor, milorde! — Forçou a vista, tentando enxergar melhor na penumbra. — Oh! Parece que teve uma boa briga! — exclamou, admirado. — Eu gos taria de ter assistido a ela.
- De fato, foi uma boa briga — admitiu o conde, satisfeito —,e Harriet chegou à conclusão de que jamais entenderá os homens!
- Duas mulheres e cinco crianças, foi tudo o que encontrei — informou o capitão, desanimado. — Que beleza, depois de tanto trabalho! Soltei-os... As mulheres pareciam nada saber, ou fingem muito bem. Não sei e não me interessa! — Deixou-se cair numa poltrona e aceitou o vinho que Lorde Stanton lhe oferecia.
- Quer passar a noite aqui, James? — perguntou o conde.
- Obrigado... — O capitão Murray fez que não com a cabeça. — Não posso. Os milicianos estão aqui, comigo. Caroline mandou que lhes dessem vinho e sanduíches. Se não os levar logo de volta ao quartel, eles vão desaparecer por aí, como os Pardy. Querem saber de uma coisa? — indagou, sério. — Acho que não sirvo para esse trabalho...
- Tomou o vinho, depois agradeceu e foi embora.
- Pobre rapaz! — condoeu-se Harriet. — Que vai ser dele e de Caroline?
- É um homem muito consciencioso — declarou lorde Stanton. — Mas estou cansado demais para pensar nos problemas de James agora, e creio que você também. — Levantou-se. — Vamos, moça... vá para a cama. Amanhã é outro dia.Pouca coisa, pensou. Como dissera a ela, não se pode alterar o passado, mas pode-se aprender com o que aconteceu. Não havia vergonha nisso. Vergonha seria não aprender.Com frio, calculou que talvez a lareira do gabinete podia ainda estar acesa, e desceu. Antes de ir para o gabinete, passou por outras salas, observando tudo à luz trémula da vela. As partituras de Caroline no piano, o bordado da jovem sobre uma poltrona. Lembrou-se de Harriet sentada ali, costurando uma renda no vestido da irmã. Por que Caroline não podia costurar suas rendas? Fora no dia em que viera ali, com a proposta de casamento.— É... Por quê? — interrogou ele, sem perceber que falava em voz alta, revirando o bordado entre os dedos. — Por que ela não recusou?Sentou-se numa poltrona, enquanto pensava. Puxou a agulha, distraído, e enfiou-a de novo no tecido esticado pelo bastidor. Foi repetindo os movimentos sem perceber e quando notou dera pontos enormes, a linha tinha se emaranhado misteriosamente, formando um nó. Deixou o bordado cair, meditando na justificação que teria de dar no dia seguinte.Franziu as sobrancelhas, sacudiu os ombros e continuou, em di-reção de seu quarto. Ao chegar no extremo do corredor, parou mais uma vez e olhou para trás. A única vez que tinham estado no mesmo quarto havia sido na casa de lady Williams, aquelas duas noites terríveis com ele mal-acomodado numa poltrona. Pensou vagamente que talvez houvesse algum problema mental na família, algo hereditário, que começava a se manifestar nele. Via Harriet de camisola, com os lindos cabelos castanhos, compridos, caindo pelos ombros. Era uma visão encantadora, atraente. Ergueu a mão, seus dedos roçaram a maçaneta da porta e logo se retraíram.Harriet sonhava. Era um sonho assustador. Corria pela charneca entre os Pardy em fuga. Aaron segurava-lhe fortemente a mão e a arrastava consigo. Atrás deles, ouvia os cascos dos cavalos da milícia de James Murray e em outro ponto, bem distante, estava Ben, que ela queria alcançar e não podia. Acordou, ofegante e suada, o coração disparado. Por instantes, no escuro, imaginou ainda estar entre os Pardy, porém sua mão tocou a renda na beirada da fronha de linho e compreendeu que se encontrava em casa, em Monkscombe. Em sua casa, na sua cama... solitária.Deslizou para fora da cama e, às apalpadelas, procurou o penhoar. Não o localizou. Devia ter caído no chão. O corredor era frio, teria de atravessá-lo de camisola, apenas. Aproximou-se da porta, abriu-a e saiu.— Sou eu, Harriet... — apressou-se a dizer lorde Stanton, ao perceber que ela não o distinguia. — Não se assuste...
- Afinal, ela conseguiu vê-lo, percebeu a expressão preocupada. Seu marido estava no corredor, calçado apenas com meias, sem motivos aparentes.
- Não esperava ver ninguém parado no corredor, e soltou um grito, assustada. A luminosidade bruxuleante da vela cegou-a por um momento, e não conseguiu ver quem era. Durante alguns segundos ficou agoniada, imaginando que Aaron tivesse vindo buscá-la.
- Sentou-se e suspirou. O coração acalmara-se, mas em seu peito havia uma dor, muito vaga, que não desaparecia. Continuaria assim para sempre, se não arranjasse um jeito de dizer a ele que o amava. Situações desesperadas exigiam medidas desesperadas. Pelo visto, ele nunca iria procurá-la em sua cama: então, ela iria até a cama dele. Na pior das hipóteses, o conde a mandaria embora, e não iria se sentir pior, com isso, do que naquele momento.
- Harriet...
- Pegou a vela, já bem reduzida, e tornou a subir. Tinha de passar diante do quarto de Harriet, a caminho do seu. Parou, imaginando se ela estaria dormindo, teve vontade de entrar, lhe contar suas ideias a respeito de James e Caroline, teve vontade de...
- Não recusara, refletiu, porque não confiava em si. Porque se sentia responsável pela irmã, porque queria cuidar da casa e porque resolvera aceitar o conselho do velho amigo. Não tivera coragem de dizer não. Mais tarde, claro, tentara desfazer o compromisso, mas de um modo tão educado, que o irritara. Ele quisera obrigá-la, de qualquer jeito, a falar claramente, a dizer o que sentia... No entanto, a única vez que Harriet se manifestara com segurança, com firmeza, fora quando ele lhe perguntara sobre Monkscombe. Assim como tivera medo de Aaron só até o momento em que decidiu ajudar Cherry. Sempre pensava nos outros, nunca em si mesma. Exagerava no auto-sacrifício, no cumprimento do que julgava ser sua responsabilidade.
- Não. Não fora a sua proposta de casamento. Fora a proposta do sr. Ferrar! Que estupidez... que situação mais ridícula! Por que Harriet não recusara, não rira dele?
- Continuou inquieto e pôs-se a meditar em James e Caroline. Harriet indagara o que poderia fazer para ajudar o casalzinho. Tratou de examinar o problema e achou a solução. Era simples, óbvia, e ele se entusiasmou tanto que se sentou na cama. Então, considerou que não adiantava pensar nos detalhes, pois precisava expor a ideia a Harriet, porque sua solução exigia uma decisão dela. E não sabia se a esposa estava disposta a tomar tal decisão. Não podia pedir-lhe que a tomasse, porém poderia sugerir. Não... seria perda de tempo. Continuou a debater-se com os pensamentos e descobriu que não tinha a menor possibilidade de dormir. Levantou-se. O quarto estava gelado, porquanto o fogo na lareira se apagara. Levou algum tempo para acender uma vela, por causa de uma corrente de ar. A casa tinha uma porção de correntes de ar que, nas noites de vento, punham assobios e uivos nos desvãos do teto. Não podia ficar de ca-misolão com aquele frio. Vestiu calças, enfiando o camisolão para dentro e pôs as meias. Tentou reavivar as brasas que ainda restavam na lareira, mas não conseguiu.
- Embora cansado, Ben Stanton não conseguia dormir. Ficou revirando-se na cama, pensando no que conversara com Harriet. Era fácil dizer que se deviam tomar os erros como lição, porém como fazer isso com seus próprios erros? A que atribuí-los e, pior ainda, que fazer a respeito?
- Que faz aqui? — mal conseguiu interrogar.
- Para dizer a verdade... — começou ele e parou; depois de hesitar, murmurou de uma vez: — Para dizer a verdade, queria entrar no seu quarto.
- Harriet arregalou os olhos. Não sabia se ouvira direito, ou se aquilo era outro sonho.
- Verdade? — perguntou, baixinho.
- É. Verdade. — O tom dele era duro, como o de quem está decidido a não demonstrar seus sentimentos íntimos. Acrescentou, apenas: — Tive uma ideia, pensando em James e Caro, então julguei que devia... E você, que fazia aqui?
- Eu? — Ela respirou fundo. — Eu... Oh, fazia a mesma coisa: ia procurar você!Ela escondeu o rosto no peito largo do marido, enquanto murmurava:
- — Diacho, Harriet! Eu... — De repente, ele largou a vela, que caiu no chão, e abraçou-a.
- Eu te amo, mas não sei dizer isso de modo diferente...
- Não existem modos diferentes — sussurrou ele, mergulhando o rosto nos cabelos perfumados dela. — Perdoe-me, minha querida! Sou um idiota, um tolo teimoso! Se tivesse de escolher entre duas alternativas, tenho certeza que escolheria a errada. Harriet, não sabe como senti sua falta em Bristol! Queria você perto de mim, porém quando chegou mandei-a embora e senti uma raiva louca de mim mesmo, desejando que você voltasse... Acho que fiz uma grande confusão... — E, ouvindo-a fungar junto de seu peito, pediu: — Não chore...— Venha... — murmurou ele.— Não gosto mais desta casa, sabe? — bradou ela. — Só quero Monkscombe com você aqui. Quero um lar como o de Susan, com crianças, confusão, desordem e muita felicidade!E, a contragosto, soltou os braços dela de seu pescoço e a levou para a cama. Harriet enfiou-se depressa debaixo das cobertas, ouvindo, no escuro, os movimentos do marido que se livrava das roupas. As cobertas ergueram-se, o colchão de plumas afundou e ele estirou-se a seu lado. Colocou um braço em redor do corpo dela, que se aninhou pertinho dele, passando a mão no peito nu do marido.
- Sim — respondeu ele, com voz rouca. — Eu também quero isso. — Sentiu um corpo macio por baixo da camisola de algodão, leve, e percebeu que ele estremecia sob suas mãos. — Você vai apanhar uma friagem...
- Passou um braço pelos ombros da moça, pegou a vela e conduziu Harriet de volta para o quarto dela. Quando fechou a porta, a chama do toquinho de vela aumentou, tremeu e apagou. Ele largou o castiçal e segurou o rosto da esposa com ambas as mãos, inclinou-se e beijou-a. Ela ergueu os braços e passou-os pelo pescoço de Ben.
- — Não estou chorando, estou feliz! — protestou ela, com voz abafada.
- Queria tanto que você me amasse! — balbuciou ela.
- Eu amo você... já amava você! Harriet, eu te amo desde a primeira vez que a vi. Contudo, lutei contra isso. Como fui tolo! Se existisse um prémio para imbecilidade, eu teria ganho! "Olhe aqui, Ben Stanton", disse a mim mesmo, "você não precisa dela!"... Mas que nada! Como preciso de você! Não poderia ir embora e deixá-la. Sim, sei que disse que ia embora, porém creio que nunca o faria. O que mais me irritava era ver que você me considerava um selvagem. Doeu, sabe... mas acho que tinha certa razão...
- Não! Não tinha. Era apenas intolerante, teimosa e boba!
- E linda! — Ele procurou e encontrou os lábios dela. — E eu queria — continuou, depois de uns momentos — que você confiasse em mim e em você mesma.
- Agora, confio — disse ela, simplesmente.
- Acariciou o rosto dele com as pontas dos dedos. Não se sentia tímida ou desajeitada, como esperara. Parecia correto e natural estar ali com ele. Por que era seu marido, porque o amava e sabia que ele também a amava. De certa forma, era como se ambos fossem crianças e estivessem num mundo só deles. Um novo Adão e uma nova Eva no Jardim do Paraíso, fazendo a mesma antiga descoberta. As mãos deles tocavam o corpo do outro com certo assombro, até que os gestos dele foram se tornando mais arrebatados do que os dela, que, ao percebê-lo, murmurou:
- Oh, Harriet!... Eu jamais quis alguém como quero você! —suspirou ele.
- Num ponto qualquer da velha casa, o madeirame antigo reagiu à mudança da temperatura noturna, e estalou. Talvez a construção estivesse sentindo seus anos, talvez estivesse feliz por que um Stanton voltara e sentisse que provavelmente pequenos Stanton povoariam a casa com gritos e risos, a se esconder no sótão, a deslizar pelos corrimãos e a escorregar no soalho recém-encerado. Talvez percebesse que ganhara uma batalha e perdera outra. Não mais dominava Harriet, porém ganhara Ben, que assumia sua posição de direito. Algum tempo depois, nos braços de Ben e finalmente sua esposa, perguntou:
- Que queria me dizer sobre Caro e James?
- Ah, sim...! — Ele se ajeitou nos travesseiros, e ela apoiou a cabeça em seu ombro. — Foi uma ideia que eu tive, porém não interessa mais. Vou ficar aqui, agora, em Monkscombe.— Eu preferia que não ficássemos aqui — confessou. — Queria que você me levasse para Filadélfia. Gostaria de conhecer aquela terra selvagem que me descreveu, onde só há búfalos e índios. Poderíamos construir uma Monkscombe só nossa, lá...
- Ele abraçou-a com força e sua voz soou emocionada:
- Ela percebeu na voz dele algo que era uma aceitação, sem nenhum pesar, e compreendeu que deveria falar já ou nunca mais falaria.
- Realmente, você quer isso?
- Porque eu pensei... — ele hesitou antes de acrescentar: — pensei que, se conseguisse convencê-la a ir para os Estados Unidos comigo, poderíamos deixar James e Caroline administrando Monkscombe. Sei que ele é capaz, e que todos o aceitarão quando casar com uma Stanton. E Caroline ficaria aqui, onde é feliz...
- Seria perfeito! Sabia que o senhor meu marido é muito inteligente?
- Sou prático... Não sou um cavalheiro, mas entendo de outras coisas... Vamos falar só de você e de mim, agora?
- Só de nós dois — prometeu ela. — Agora e sempre!
Ann Hulme
Voltar à “Página do Autor"
O melhor da literatura para todos os gostos e idades