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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRÍNCIPE DA NÉVOA / Carlos Ruiz Zafón
O PRÍNCIPE DA NÉVOA / Carlos Ruiz Zafón

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PRÍNCIPE DA NÉVOA

 

Teriam que passar muitos anos para que Max esquecesse o verão em que descobriu, quase por acaso, a magia. Corria o ano 1943 e os ventos da Grande Guerra arrastavam o mundo pela corrente, sem remédio. Em meados de junho, o dia em que Max completou treze anos, seu pai, relojoeiro e inventor certos momentos, reuniu à família no salão e anunciou que aquele era o último dia em que passariam naquela em que tinha sido sua casa, nos últimos dez anos. A família se mudaria para a costa, longe da cidade e da guerra, para uma casa junto à praia de uma pequena aldeia à beira do Atlântico.

A decisão era definitiva: partiriam ao amanhecer do dia seguinte. Até então, deveriam empacotar todos os seus pertences e prepararem-se para a comprida viagem até seu novo lar.

A família recebeu a notícia sem surpreender-se. Quase todos já imaginavam que a idéia de abandonar a cidade em busca de um lugar mais habitável rondava a cabeça do bom Maximilian Carver fazia tempo; todos menos Max. Para ele, a notícia teve o mesmo efeito que uma locomotiva enlouquecida atravessando uma loja de porcelanas chinesas. Ficou branco, com a boca aberta e o olhar ausente. Durante esse breve transe passou porr sua mente a terrível certeza de que todo mundo, incluindo seus amigos do colégio, a turma da rua e a loja de quadradinhos da esquina, estava a ponto de desvanecer-se para sempre. Como uma pluma.

Enquanto os outros membros da família estavam concentrados e dispostos a prepararem a bagagem com ar de resignação, Max permaneceu imóvel olhando para seu pai. O bom relojoeiro se ajoelhou frente a seu filho e colocou as mãos sobre os seus ombros. O olhar de Max explicava melhor do que um livro.

Agora parece o fim do mundo, Max. Mas prometo que você gostará do lugar para onde vamos. Fará novos amigos, verá.

— É pela guerra? - perguntou Max.— É por isso que temos que ir?

Maximilian Carver abraçou seu filho, e logo, sem deixar de sorrir, extraiu do bolso de seu casaco um objeto brilhante, que pendia de uma cadeia, e o colocou entre as mãos de Max, um relógio de bolso.

—Tinha feito para você. Feliz aniversário, Max

Max abriu o relógio, lavrado em prata. No interior da esfera, cada hora estava marcada pelo desenho de uma lua que crescia e minguava ao compasso das agulhas, formadas pelos raios de um sol, que sorria no coração do relógio. Sobre a tampa, gravada em caligrafia, podia-se ler uma frase: “A máquina do tempo de Max".

Aquele dia, sem saber, enquanto contemplava a sua família perambular acima e abaixo com as malas e segurava o relógio que lhe tinha oferecido seu pai, Max deixou para sempre de ser um menino.

 

Na noite de seu aniversário Max não pregou olho. Enquanto os outros dormiam, esperou a fatal chegada daquele amanhecer que iria marcar a despedida final do pequeno universo que formou ao longo dos anos. Passou as horas em silêncio, estendido na cama com o olhar perdido nas sombras azuis que dançavam sobre o teto de sua habitação, como se esperasse ver nelas um oráculo capaz de desenhar seu destino a partir daquele dia. Segurava em sua mão o relógio que seu pai tinha feito para ele. As luas sorridentes da esfera brilhavam na penumbra noturna. Talvez elas tivessem a resposta a todas as perguntas que Max tinha começado a colecionar desde aquela mesma tarde.

Finalmente, as primeiras luzes da alvorada despontaram sobre o horizonte azul. Max saltou da cama e se dirigiu até ao salão. Maximilian Carver estava acomodado em uma poltrona, vestido e segurando um livro junto à luz de um candeeiro. Max viu que não era o único que tinha passado a noite em claro. O relojoeiro sorriu e fechou o livro.

— O que é? - perguntou Max, assinalando o grosso volume.

— É um livro sobre o Copérnico. Sabe quem é Copérnico? - respondeu o relojoeiro.

— Vou pensar - respondeu Max.

Seu pai tinha o hábito de lhe fazer perguntas como se acabasse de cair de uma árvore.

— E o que sabe dele? - insistiu.

— Descobriu que a Terra gira ao redor do Sol e não ao inverso.

— Mais ou menos. E sabe o que isso significou?

— Problemas - respondeu Max.

O relojoeiro sorriu amplamente e lhe entregou o grosso livro.

—Toma. É para você. Leia.

Max inspecionou o misterioso livro encadernado em pele. O livro parecia ter 1000 anos e servir de morada ao espírito de algum velho gênio encadeado em suas páginas por um maléfico centenário.

— Bom - atalhou seu pai, quer acordar suas irmãs?

Max, sem levantar a vista do livro, indicou com a cabeça que lhe cedia a honra de arrancar Alicia e Irina, suas duas irmãs de quinze e oito anos respectivamente, de seu profundo sono. Logo, enquanto seu pai se dirigia tocando a alvorada para toda a família, Max se acomodou na poltrona, abriu o livro de par em par e começou a ler. Meia hora mais tarde, toda a família cruzava pela última vez a soleira da porta, para uma nova vida. O verão tinha começado.

Max tinha lido, alguma vez num dos livros de seu pai, que certas imagens da infância ficam gravadas no álbum da mente como fotografias, como cenários que, não importa o tempo que passe, sempre voltam e você recorda. Max compreendeu o sentido daquelas palavras a primeira vez que viu o mar.

Viajaram mais de cinco horas de trem quando, de súbito, ao emergir de um escuro túnel, uma infinita lâmina de luz e claridade espectral se estendeu perante seus olhos. O azul elétrico do mar, resplandecente sob o sol do meio-dia, se gravou em sua retina como uma aparição sobrenatural. Enquanto o trem seguia seu caminho a poucos metros do mar, Max passou a cabeça pelo guichê e sentiu pela primeira vez o vento impregnado do aroma da maresia sobre sua pele. Voltou-se para olhar seu pai, que o contemplava, do extremo do compartimento do trem, com um sorriso misterioso, assentindo a uma pergunta que Max não tinha chegado a formular. Soube então que não importava qual fosse o destino daquela viagem nem em que estação se detivera o trem; desde aquele dia nunca mais viveria em um lugar no qual não pudesse ver em cada manhã ao despertar aquela luz azul e cegadora, que subia para o céu como um vapor mágico e transparente. Era uma promessa que tinha feito a si mesmo.

 

Enquanto Max contemplava o trem se afastar da plataforma da estação do povoado, Maximilian Carver deixou uns minutos a sua família ancorada com a bagagem em frente ao despacho do chefe de estação, para negociar com algum dos tranportadores locais um preço razoável para transportar volumes, pessoas e demais parafernália, até ao ponto final do destino. A primeira impressão de Max em relação ao povoado, ao aspecto que oferecia a estação e as primeiras casas, cujos tetos apareciam timidamente sobre as árvores circundantes, foi a de que aquele lugar parecia uma maquete, daqueles povoados construídos em miniatura por colecionadores de trens elétricos, onde se alguém aventurasse a caminhar mais do que a conta podia acabar caindo de uma mesa. Perante tal idéia, Max começava a contemplar uma interessante variação da teoria do Copérnico com respeito ao mundo, quando a voz de sua mãe, junto a ele, o resgatou de seus sonhos cósmicos.

— E então? Aprovado ou suspenso?

— É muito cedo para saber - respondeu Max. — Parece uma maquete. Como essas das vitrines das lojas de brinquedos.

— Talvez seja - sorriu sua mãe. Quando o fazia, Max podia ver em seu rosto um reflexo pálido de sua irmã Irina.

— Mas não diga isso a seu pai - continuou. — Aí vem.

Maximilian Carver chegou de volta escoltado por dois robustos transportadores com seus trajes estampados de manchas de sujeira, fuligem e alguma substância impossível de identificar. Ambos traziam frondosos bigodes e uma boina de marinheiro, como se tal fosse o uniforme de sua profissão.

— Estes são Robin e Philip - explicou o relojoeiro. — Robin levará as malas e Philip, a família. De acordo?

Sem esperar a aprovação familiar, os dois homens fortes se dirigiram à montanha de baús e carregaram metodicamente desde o mais volumoso sem o menor indício de esforço. Max extraiu seu relógio e contemplou a esfera de luas risonhas. As agulhas de seu relógio marcavam as duas da tarde. O velho relógio da estação marcava as doze e meia.

— O relógio da estação está errado - murmurou Max.

— Vê? - respondeu seu pai, eufórico. — Acabamos de chegar e já temos trabalho.

Sua mãe sorriu fracamente, como sempre, perante as amostras de otimismo radiante de Maximilian Carver, mas Max pôde ler em seus olhos uma sombra de tristeza e aquela estranha luminosidade que, desde menino, o tinha levado a acreditar que sua mãe via no futuro o que outros não podiam adivinhar.

— Tudo vai sair bem, mamãe - disse Max, sentindo-se como um bobo um segundo depois de pronunciar aquelas palavras.

Sua mãe lhe acariciou o rosto e sorriu.

— Claro, Max. Tudo vai sair bem.

Naquele momento Max teve a certeza de que alguém o olhava. Girou rapidamente o rosto e pôde ver como, entre os barrotes de uma das janelas da estação, que um grande gato listrado o contemplava fixamente, como se pudesse ler seus pensamentos. O felino pestanejou e deu um salto, que evidenciava uma agilidade impensável em um animal daquele tamanho, gato ou não gato, aproximou-se até a pequena Irina e esfregou seu lombo contra os tornozelos brancos de sua irmã. A menina se ajoelhou para acariciar o animal, que miava brandamente. Irina o agarrou nos braços e o gato se deixou acariciar mansamente, lambendo com doçura os dedos da menina, que sorria enfeitiçada perante o encanto do felino. Irina, com o gato em seus braços, aproximou-se até o lugar onde esperava a família.

— Não acabamos nem de chegar e você já agarrou um bichano. Ou seja lá o que levou em cima - sentenciou Alicia com evidente aborrecimento.

— Não é um bichano. É um gato e está abandonado - replicou Irina. — Mamãe?

— Irina, nem sequer chegamos a casa - começou sua mãe.

A menina forçou uma careta lastimosa, a que o felino contribuiu com um miado doce e sedutor.

— Pode ficar no jardim. Por favor...

— É um gato gordo e sujo - acrescentou Alicia. — Vai deixar que saia outra vez como a sua?

Irina dirigiu a sua irmã maior um olhar penetrante e acirrrado que prometia uma declaração de guerra, a menos que esta fechasse a boca. Alicia sustentou o olhar uns instantes e depois se voltou, com um suspiro de raiva, afastando-se até onde os transportadores estavam carregando a bagagem. Pelo caminho cruzou com seu pai, a quem não lhe escapou o semblante avermelhado de Alicia.

— Já estamos de briga? - perguntou Maximilian Carver. — O que é isto?

— Está sozinho e abandonado. Nos podemos levá-lo? Ficará no jardim e eu cuidarei dele. Prometo - se apressou a explicar Irina.

O relojoeiro, atônito, olhou para o gato e logo para sua esposa.

— Não sei o que dirá sua mãe...

— E o que diz você, Maximilian Carver? - replicou sua mulher, com um sorriso evidente que se divertia com o dilema que tinha passado a seu marido.

— Bem. Terei que levá-lo a um veterinário e além disso...

— Por favor... - gemeu Irina.

O relojoeiro e sua mulher cruzaram um olhar de cumplicidade.

— Por que não? - concluiu Maximilian Carver, incapaz de começar o verão com um conflito familiar .— Mas você se encarregará dele. Prometido?

O rosto da Irina se iluminou e as pupilas do felino se estreitaram até perfilarem-se como agulhas negras sobre a esfera dourada e luminosa de seus olhos.

— Venha! Andando! A bagagem já está carregada - disse o relojoeiro.

Irina levou o gato em seus braços, e correu para junto das caminhonetes. O felino, com a cabeça apoiada no ombro da menina, manteve seus olhos cravados em Max. "Estava-nos esperando", pensou.

Não fique aí pasmado, Max. Em marcha - insistiu seu pai a caminho das caminhonetes - dê a mão a sua mãe. Max os seguiu.

Foi então quando algo o fez voltar-se e olhar de novo para a esfera enegrecida do relógio da estação. Examinou-o cuidadosamente e percebeu que havia algo nela que não enquadrava. Max recordava perfeitamente que ao chegar à estação o relógio indicava meio-dia e meia. Agora, as agulhas marcavam onze e quarenta.

— Max! - soou a voz de seu pai, chamando da caminhonete. — Vamos!

— Já vou - murmurou Max para si mesmo, sem deixar de olhar a esfera.

O relógio não estava quebrado; funcionava perfeitamente, com uma só particularidade: o fazia ao reverso.

 

A nova casa dos Carver estava situada no extremo norte de uma larga praia, que se estendia frente ao mar como uma lâmina de areia branca e luminosa, com pequenas ilhas de ervas selvagens, que se agitavam ao vento. A praia formava um prolongamento do povoado, constituído por pequenas casas de madeira, de não mais de dois pisos, que, em sua maioria, estavam pintadas em suaves tons de pastel, com o seu jardim e cerca branca alinhada formosamente, reforçando a impressão de uma cidade de casas de bonecas, que Max havia tido à pouco ao chegar.

No caminho cruzaram o povoado, a ravina principal e a praça da prefeitura, enquanto Maximilian Carver explicava as maravilhas do povoado, com o entusiasmo de um guia local.

O lugar era tranquilo e estava possuído por aquela mesma luminosidade que tinha enfeitiçado Max, ao ver o mar pela primeira vez. A maioria dos habitantes do povoado, utilizavam bicicletas como transporte, ou simplesmente iam a pé. As ruas estavam limpas e o único ruído que se escutava, à exceção de algum ocasional veículo a motor, era a suave investida do mar rompendo na praia.

À medida que percorriam o povoado, Max pôde ver como os rostos de cada um dos membros da família refletiam os pensamentos do que lhes provocava o espetáculo, de qual viria a ser o novo cenário de suas vidas. A pequena Irina e seu aliado felino contemplavam o desfile ordenado de ruas e casas com serena curiosidade, como se já se sentissem em casa. Alicia, absorta em pensamentos impenetráveis, parecia estar a milhares de quilômetros dali, o que para Max confirmava a certeza do pouco ou nada que sabia respeito da sua irmã maior. Sua mãe olhava com resignada aceitação o povoado, sem perder o sorriso imposto, para não refletir a inquietação que, por algum motivo que Max não conseguia intuir, embargava-a. Finalmente, Maximilian Carver observava triunfalmente seu novo habitat, dirigindo o olhar a cada membro da família, que iam metodicamente respondendo com um sorriso de aceitação (o sentido comum parecia confirmar que qualquer outra coisa poderia romper o coração do bom relojoeiro, convencido de que tinha levado sua família ao novo paraíso).

À vista daquelas ruas banhadas de luz e tranquilidade, Max pensou que o fantasma da guerra era longínquo e inclusive irreal e que, talvez, seu pai havia tido uma intuição genial ao decidir mudar-se para aquele lugar. Quando as caminhonetes percorreram o caminho que levava até sua casa na praia, Max já tinha apagado de sua mente o relógio da estação e a intranquilidade que o novo amigo de Irina lhe tinha produzido, desde o princípio. Olhou para o horizonte e acreditou distinguir a silhueta de um casco de navio, negro e afiado, navegando como uma miragem entre a calmaria que espelhava a superfície do oceano. Segundos depois, tinha desaparecido.

 

A casa tinha dois pisos e se elevava a uns cinquenta metros da linha da praia. Rodeada de um modesto jardim demarcado por uma cerca branca, que pedia uma urgente mão de pintura. Estava construída em madeira e, à exceção do teto escuro, estava pintada de branco, mantinha-se em razoável bom estado, tendo em conta a proximidade do mar e o desgaste que o vento úmido, e impregnado de sal, a submetiam diariamente. Pelo caminho, Maximilian Carver explicou a sua família que a casa tinha sido construída em 1928 para a família de um prestigiado cirurgião de Londres, o Dr. Richard Fleischmann e sua esposa, Eva Gray, como residência do verão na costa. A casa tinha constituído na sua época uma excentricidade aos olhos dos habitantes do povoado. Os Fleischmann tinham um matrimônio sem filhos, solitário e mostravam-se pouco interessados no contato com as pessoas do povoado. Em sua primeira visita, o Dr. Fleischmann tinha ordenado claramente, que tanto os materiais como a mão de obra deveriam ser trazidos diretamente de Londres. Tal capricho resultou praticamente em triplicar o custo da casa, mas a fortuna do cirurgião podia permitir-lo. Os habitantes contemplaram com cepticismo e receio o ir e vir, durante todo o inverno de 1927, de inumeros trabalhadores e caminhões de transporte, enquanto o esqueleto da casa do final da praia se elevava lentamente, dia a dia. Finalmente, na primavera de 28, os pintores deram a última capa de pintura à casa e, semanas depois, o casal se instalou nela para passar o verão. A casa da praia logo se converteu em um talismã que haveria de mudar a sorte dos Fleischmann. A esposa do cirurgião, ao que parece tinha perdido a capacidade de conceber um filho em um acidente anos atrás, tinha ficado grávida durante aquele primeiro ano.

Em 23 de junho de 1928, a esposa de Fleischmann deu a luz, assistida por seu marido, sob o teto da casa da praia, um menino que haveria de levar o nome Jacob.

Jacob foi a bênção do céu que mudou o semblante amargo e solitário dos Fleischmann. Logo o doutor e sua esposa começaram a conviver com os habitantes do povoado e chegaram a ser pessoas populares e estimadas, durante os nove anos de felicidade que passaram na casa da praia, até a tragédia de 1936. Um amanhecer de agosto daquele ano, o pequeno Jacob se afogou enquanto jogava bola na praia frente à casa.

Toda a alegria e a luz, que o desejado filho havia trazido para o matrimónio, se extinguiu naquele dia para sempre. Durante o inverno de 36, a saúde do Fleischmann foi deteriorando progressivamente e logo seus médicos souberam que não chegaria a ver o verão de 1938. Um ano depois da desgraça. Os advogados da viúva puseram a casa à venda. Permaneceu vazia e sem comprador durante anos, esquecida no extremo da praia. Assim foi até que, por pura casualidade, Maximilian Carver teve notícias de sua existência. O relojoeiro voltava de uma viagem para comprar peças e ferramentas para sua oficina, quando decidiu passar a noite no povoado. Durante o jantar, no pequeno hotel local, conversou com o dono, a quem Maximilian expressou seu eterno desejo de viver em um povoado como aquele. O dono do hotel lhe falou da casa e Maximilian decidiu atrasar sua volta e visitá-la no dia seguinte. Na viagem de retorno, sua mente embaralhava cifras e a possibilidade de abrir uma oficina de relojoaria no povoado. Demorou oito meses a anunciar a notícia a sua família, mas no fundo de seu coração já tinha tomado a decisão.

 

O primeiro dia na casa de praia ficaria na lembrança de Max como uma curiosa recordação de imagens insólitas. Para começar, logo que as caminhonetes se detiveram frente à casa, Robin e Philip começaram a descarregar a bagagem, Maximilian Carver conseguiu inexplicavelmente tropeçar com, o que parecia, um cubo velho e, depois de percorrer uma trajetória vertiginosa dando tombos, aterrissou sobre a cerca branca, derrubando-a mais de quatro metros. O incidente resultou com as risadas alegres da família e um hematoma por parte da vítima, nada sério.

Os dois fortes transportadores levaram os volumes da bagagem até ao alpendre da casa e, considerando resolvida sua missão, desapareceram deixando à família a honra de subir os baús escada acima. Quando Maximilian Carver abriu solenemente a casa, um aroma de fechado escapou pela porta, como um fantasma que tivesse permanecido aprisionado durante anos entre suas paredes. O interior estava alagado por uma débil neblina de pó e luz ténue, que se filtrava das persianas descidas.

— Meu deus - murmurou para si a mãe do Max, calculando as toneladas de pó que havia por limpar.

— Uma maravilha - se apressou em explicar Maximilian Carver. — Já lhes tinha dito isso.

Max cruzou um olhar de resignação com sua irmã Alicia. A pequena Irina contemplava embevecida o interior da casa. Antes que algum membro da família pudesse pronunciar palavra, o gato da Irina saltou de seus braços e, com um potente miado, se lançou escada acima. Um segundo depois, seguindo seu exemplo, Maximilian Carver entrou na nova residência familiar.

— Ao menos alguém gosta - acreditou Max ouvir murmurar a Alicia.

A primeira coisa que a mãe de Max ordenou fazer foi abrir imediatamente as portas e janelas de par em par e ventilar a casa. Então, durante um espaço de cinco horas, toda a família se dedicou a tornar habitável o novo lar. Com a precisão de um exército especializado, cada membro empreendeu uma tarefa concreta. Alicia preparou os dormitórios e as camas. Irina, com o espanador na mão, fez saltar castelos de pó de seu esconderijo e Max, seguindo seu rastro, encarregou-se de recolhê-lo. Enquanto isso, sua mãe distribuía a bagagem e tomava nota mental de todos os trabalhos que muito em breve teriam que começar a realizar. Maximilian Carver dedicou seus esforços para conseguir que canalizações, luz e demais engenhos mecânicos da casa voltassem a funcionar depois de uma letargia de anos em desuso, o qual não resultou tarefa fácil. Finalmente, a família se reuniu no alpendre e, sentados nos degraus de sua nova moradia, concederam-se um merecido descanso enquanto contemplavam o tom dourado que ia adquirindo o mar com o cair da tarde.

— Por hoje já chega - concedeu Maximilian Carver, coberto completamente de fuligem e resíduos misteriosos.

— Algumas semanas de trabalho e a casa começará a ser habitável - acrescentou sua mãe.

— Nos quartos de cima há aranhas - explicou Alicia. — Enormes.

—Aranhas? Uau! - exclamou Irina. — E o que pareciam?

— Pareciam-se com você - respondeu Alicia.

— Não comecemos, de acordo? - interrompeu sua mãe esfregando a ponta do nariz .— Max as matará.

— Não é preciso matá-las; basta agarrara-las e colocar no jardim - aduziu o relojoeiro.

— Sempre me tocam as missões heróicas - murmurou Max. — Pode esperar para amanhã o extermínio?

— Alicia? - intercedeu sua mãe.

— Não penso dormir em um quarto cheio de aranhas e Deus sabe que outros insetos há soltos - declarou Alicia.

— Brega - sentenciou Irina.

— Monstro - replicou Alicia.

— Max, antes de que comece uma guerra, acaba com as aranhas - disse Maximilian Carver com voz lenta.

— As mato ou só as amanso um pouco? Posso-lhes retorcer uma pata... - sugeriu Max.

— Max - cortou sua mãe.

Max se despediu e entrou na casa disposto a acabar com seus antigos inquilinos. Subiu a escada que conduzia ao piso superior onde estavam os quartos. Do alto do último degrau, os olhos brilhantes do gato de Irina o observavam fixamente, sem piscar. Max cruzou frente ao felino, que parecia guardar o piso superior como uma sentinela. Logo que se dirigiu a um dos quartos, o gato seguiu seus passos.

 

O piso de madeira rangia muito fracamente sob seus pés. Max começou sua caça e captura de aracnídeos pelos quartos que davam para sudoeste. Das janelas se podia ver a praia e a trajetória descendente do sol para o ocaso. Examinou atentamente o chão em busca de pequenos seres peludos e andarilhos. Depois da sessão de limpeza, o piso de madeira tinha ficado razoavelmente limpo e Max demorou poucos minutos até localizar o primeiro membro da família aracnídea. De um dos recantos, observou como uma aranha de considerável tamanho avançava em linha reta para ele, como se se tratasse de um valentão enviado pelos de sua espécie para o fazer trocar de idéia. O inseto devia medir mais de um centímetro e tinha oito patas, com uma mancha dourada sobre o corpo negro. Max estendeu a mão para uma vassoura que descansava na parede e se preparou para catapultar o inseto para outra vida. "Isto é ridículo", pensou enquanto dirigia, com sigilo, a vassoura como uma arma mortífera. Estava começando a calibrar o golpe letal quando, de repente, o gato de Irina se equilibrou sobre o inseto e, abrindo sua boca de leão em miniatura, engoliu a aranha e a mastigou com força. Max soltou a vassoura e olhou atônito para o gato, que lhe devolvia um olhar malévolo.

— Vejam lá o gatinho - sussurrou.

O animal tragou a aranha e saiu do quarto, presumivelmente em busca de algum familiar de seu recente aperitivo. Max se aproximou da janela. Sua família continuava no alpendre. Alicia lhe dirigiu um olhar inquisitivo.

— Eu não me preocuparia, Alicia. Não acredito que veja mais aranhas.

— Se assegure bem - insistiu Maximilian Carver.

Max assentiu e se dirigiu para os quartos que davam para a parte detrás da casa, para o noroeste. Ouviu miar o gato nas proximidades e supôs que outra aranha tinha caído nas garras do felino exterminador. Os quartos da parte traseira eram mais pequenos que as da fachada principal. De uma das janelas, contemplou o panorama que podia observar dali. A casa tinha um pequeno pátio traseiro com um barraco para guardar móveis ou inclusive um veículo. Uma grande árvore, cuja copa se elevava para além das águas-furtadas do sotão, elevava-se no centro do pátio e, por seu aspecto, Max imaginou que levava ali mais de duzentos anos.

Depois do pátio, limitado pela cerca que envolvia a casa, estendia-se um campo de ervas selvagens e, uns cem metros mais à frente, levantava-se o que parecia ser um pequeno recinto rodeado por um muro de pedra esbranquiçada. A vegetação tinha invadido o lugar e o tinha transformado em uma pequena selva da qual emergiam, o que a Max pareciam ,figuras: figuras humanas. As últimas luzes do dia caíam sobre o campo e Max teve que forçar a vista. Era um jardim abandonado. Um jardim de estátuas. Max contemplou hipnotizado o estranho espetáculo das estátuas capturadas pelo mal e encerradas naquele recinto, que fazia pensar em um pequeno cemitério do povoado. Um portão de lanças de metal seladas com um cadeado franqueava a passagem para o interior. No alto das lanças, Max pôde distinguir um escudo formado por uma estrela de seis pontas. Ao longe, mais à frente do jardim de estátuas, elevava-se a soleira de um denso bosque que parecia prolongar-se durante milhas.

Fez alguma descoberta? - a voz da mãe em suas costas tirou-o do transe em que aquela visão o tinha abstraído -.Já pensávamos que as aranhas tinham acabado com você.

— Sabia que alí atrás, junto ao bosque, há um jardim de estátuas? — Max assinalou para o recinto de pedra e sua mãe se aproximou da janela.

Está anoitecendo. Seu pai e eu vamos ao povoado procurar algo para jantar, pelo menos até que amanhã possamos comprar provisões. Ficam sozinhos. Vigie a Irina.

Max assentiu. Sua mãe o beijou ligeiramente no rosto e se dirigiu ao corredor para descer a escada . Max fixou de novo o olhar no jardim de estátuas, cujas silhuetas se fundiam paulatinamente com a bruma crepuscular. A brisa tinha começado a refrescar. Max fechou a janela e se dispôs ele próprio a checar o resto da habitação. A pequena Irina se reuniu a ele no corredor.

— Eram grandes? - perguntou, fascinada.

Max duvidou um segundo.

— As aranhas, Max. Eram grandes?

— Como um punho - respondeu Max solenemente.

— Uau!

 

No dia seguinte, pouco antes do amanhecer, Max pôde ouvir algo, como se fosse uma figura envolta na bruma noturna e lhe sussurrou umas palavras ao ouvido. Encolheu-se de repente, com o coração pulsando com força e a respiração entrecortada. Estava sozinho em seu quarto. A imagem daquela silhueta escura murmurando na penumbra, como se tivesse sonhado, se desvaneceu em uns segundos. Estendeu a mão até a mesa-de-cabeceira e acendeu a lamparina que Maximilian Carver tinha reparado na tarde anterior.

Através da janela as primeiras luzes do dia despontavam sobre o bosque. Uma névoa percorria lentamente o campo de ervas selvagens e a brisa abria espaços através dos quais se entreviam as silhuetas do jardim de estátuas. Max tomou seu relógio de bolso da mesa-de-cabeceira e o abriu. As esferas de luas sorridentes brilhavam como lâminas de ouro. Faltavam uns minutos para as seis da manhã.

Max se vestiu em silêncio e desceu as escadas sigilosamente, com a intenção de não despertar o resto da família. Dirigiu-se para a cozinha onde os restos do jantar da noite anterior permaneciam na mesa de madeira. Abriu a porta da cozinha que dava para o pátio traseiro e saiu ao exterior. O ar frio e úmido do amanhecer mordia-lhe a pele. Max cruzou o pátio silenciosamente até a porta da cerca e, fechando-a em suas costas, entrou na névoa em direção ao jardim de estátuas.

O caminho através da névoa era mais comprido do que imaginava. Da janela de seu quarto, o recinto de pedra parecia encontrar-se a uns cem metros da casa. Entretanto, enquanto caminhava entre as ervas selvagens, Max acreditava ter percorrido mais de trezentos metros quando, de entre a bruma, emergiu o portal de lanças do jardim de estátuas.

Uma corrente oxidada rodeava os barrotes de metal enegrecido, selados com um velho cadeado que o tempo tinha tingido com uma cor mortiça. Max apoiou o rosto entre as lanças da porta e examinou o interior. As ervas daninhas tinham ganhado terreno durante os anos e conferiam ao lugar o aspecto de uma estufa abandonada. Max pensou que provavelmente ninguém tinha posto os pés naquele lugar durante muito tempo e que quem fora o guardião daquele jardim de estátuas há muitos anos tinha desaparecido.

Max olhou ao redor e encontrou uma pedra do tamanho de sua mão junto ao muro do jardim. Agarrou-a e golpeou com força o cadeado que unia os extremos da cadeia, uma e outra vez, até que o aro envelhecido cedeu às investidas da pedra. A cadeia ficou livre, balançando-se sobre os barrotes como tranças de uma cabeleira metálica. Max empurrou com força os barrotes e sentiu como cediam lentamente para o interior. Quando a abertura entre as duas folhas da porta foi suficientemente ampla para lhe permitir passar, Max descansou um segundo e entrou no recinto.

Uma vez no interior, Max advertiu que o recinto era maior do que tinha acreditado em princípio. A primeira vista tinha jurado que havia perto de uma vintena de estátuas semiocultas na vegetação. Avançou uns passos e entrou no jardim selvagem. Aparentemente, as figuras estavam dispostas em círculos concêntricos e Max se deu conta pela primeira vez que todas olhavam para o Oeste. As estátuas pareciam formar parte de um mesmo conjunto e representavam algo semelhante a uma troupe circense. À medida que caminhava entre elas, Max distinguiu as figuras de um domador, um faquir com um turbante e nariz aquilino, uma mulher contorcionista, um forte e toda uma galeria de personagens em fuga de um circo fantasma. No centro do jardim de estátuas descansava sobre um pedestal uma grande figura que representava um palhaço sorridente e de cabeleira arrepiada. Tinha o braço estendido, o punho embainhado em uma luva desproporcionalmente grande, e parecia golpear um objeto invisível no ar. A seus pés, Max distinguiu uma grande laje de pedra sobre a qual se percebia um desenho em relevo. Ajoelhou-se e afastou as ervas daninhas que cobriam a superfície fria para descobrir uma grande estrela de seis pontas rodeada por um círculo. Max reconheceu o símbolo, idêntico ao que havia sobre as lanças da porta.

Ao contemplar a estrela, Max compreendeu que, o que a princípio lhe tinham parecido círculos concêntricos no lugar das estátuas, era na realidade uma réplica da figura da estrela de seis pontas. Cada uma das figuras do jardim se elevava nos pontos de intercessão das linhas que formavam a estrela. Max se levantou e contemplou o espetáculo fantasmagórico em seu redor. Percorreu com o olhar cada uma das estátuas envoltas nos caules das ervas selvagens que se agitavam ao vento até deter-se de novo no grande palhaço. Um calafrio lhe percorreu o corpo e deu um passo atrás. A mão da figura, que segundos antes havia visto fechada num punho, estava aberta com a palma estendida, em sinal de convite. Durante um segundo Max sentiu que o ar frio do amanhecer lhe queimava a garganta e pôde escutar o palpitar de seu coração nas têmporas.

Lentamente, como se temesse despertar do sono perpétuo as estátuas, refez o caminho até a grade do recinto sem deixar de olhar em suas costas a cada passo que dava. Quando tinha cruzado a porta lhe pareceu que a casa da praia estava muito longe. Sem pensar duas vezes se lançou a correr e desta vez não olhou para trás até chegar perto do pátio traseiro. Quando o fez, o jardim de estátuas estava submerso de novo na névoa.

 

O aroma de manteiga e torradas alagava a cozinha. Alicia olhava sem vontade para seu café da manhã enquanto a pequena Irina servia um pouco de leite a seu gato, recém adotado, num prato que o felino se apressou a deixar intacto. Max contemplou a cena, pensando com seus botões que as preferências gastronômicas do animal iam para outros roteiros, tal como tinha comprovado no dia anterior. Maximilian Carver sustentava uma taça fumegante de café nas mãos e contemplava eufórico sua família.

— Esta manhã estive fazendo uma investigação na garagem - começou, adotando o tom de "aqui vem o mistério" que estava acostumado a utilizar quando desejava que outros lhe perguntassem o que tinha averiguado.

Max conhecia também as estratégias do relojoeiro que às vezes se perguntava quem era o pai e quem o filho.

— E o que encontraste? - concedeu Max.

— Não vai acreditar - respondeu seu pai, embora Max pensasse "com certeza que sim". — Um par de bicicletas.

Max arqueou as sobrancelhas inquisitivamente.

— Estão velhas, mas com um pelín gordo nas correias podem converter-se em um par de bólides - explicou Maximilian Carver. — E havia algo mais. Sabem o que encontrei também na garagem?

— Um urso formigueiro - murmurou Irina, sem deixar de mimar o seu companheiro felino.

Com apenas oito anos, a filha pequena dos Carver tinha desenvolvido já uma tática demolidora para minar a moral de seu pai.

— Não - respondeu o relojoeiro, - visivelmente molesto. — Ninguém se candidata a adivinhar?

Max advertiu pela extremidade do olho como sua mãe tinha estado observando a cena e, já que ninguém parecia muito interessado nas façanhas detectivescas de seu marido, lançava-se ao resgate.

— Um álbum de fotos? - sugeriu Andrea Carver no seu tom de voz mais doce.

— Quase, quase - respondeu o relojoeiro, animado de novo. — Max?

Sua mãe o olhou de soslaio. Max assentiu.

— Não sei. Um jornal?

— Não. Alicia?

— Rendo-me - replicou Alicia, visivelmente ausente.

— Bem, bem. Se preparem - começou Maximilian Carver. — O que encontrei foi um projetor. Um projetor de cinema. E uma caixa cheia de filmes.

— Que classe de filmes? - atalhou Irina, levantando pela primeira vez o olhar de seu gato por um minuto. Maximilian Carver encolheu os ombros.

— Não sei. Filmes. Não é fascinante? Temos um cinema em casa.

— Isso caso o projetor funcione - disse Alicia.

— Obrigado pelo ânimo, filha, mas se recorda que seu pai ganha a vida arrumando máquinas avariadas.

Andrea Carver colocou ambas as mãos sobre os ombros de seu marido.

— Me alegro de ouvir isso, senhor Carver - disse. — Porque conviria que alguém tivesse uma conversa com a caldeira do porão.

— Deixe-me ver isso - respondeu o relojoeiro, levantando-se da mesa.

Alicia seguiu seu exemplo.

— Senhorita - interrompeu Andrea Carver, primeiro o café da manhã. Você não tocou nele .

— Não tenho fome.

— Eu comerei - sugeriu Irina.

Andrea Carver negou tal possibilidade retundamente.

— Não quer engordar - sussurrou maliciosamente Irina a seu gato.

— Não posso comer com essa coisa abanando o rabo por aqui e soltando pêlos -atalhou Alicia.

Irina e o felino a olharam com idêntico desprezo.

— Brega - sentenciou Irina, saindo para o pátio com o animal.

— Por que sempre deixa que se saia com a sua? Quando eu tinha sua idade, não me deixava fazer nem metade das coisas - protestou Alicia.

— Vamos começar outra vez com isso? - disse Andrea Carver com voz calma.

— Não fui eu quem começou - respondeu sua filha maior.

— Está bem. Sinto muito! — Andrea Carver acariciou levemente a larga cabeleira de Alicia, que inclinou a cabeça, esquivando-se ao mimo conciliador. — Mas acabe o café da manhã. Por favor.

Naquele momento um estrondo metálico soou sob seus pés. Todos se olharam entre eles.

— Seu pai em ação - murmurou Andrea Carver enquanto tomava sua taça de café.

Rotineiramente, Alicia começou a mastigar uma torrada enquanto Max tratava de tirar da sua cabeça a imagem daquela mão estendida e o olhar exagerado do palhaço que sorria na névoa do jardim de estátuas.

 

As bicicletas que Maximilian Carver tinha resgatado do limbo da pequena garagem do pátio estavam em melhor estado do que Max tinha esperado. De fato, parecia que provavelmente não tivessem sido utilizadas. Armado de um par de camurças e um líquido especial para limpar metais, que sua mãe sempre levava consigo, Max descobriu que sob a capa de imundície e mofo ambas as bicicletas estavam novas e reluzentes. Com ajuda de seu pai, lubrificou a correia e os pinhões e encheu as rodas.

— É provável que tenhamos de trocar as câmaras - explicou Maximilian Carver, mas de momento já servem para ir andando.

Uma das bicicletas era menor que a outra e, enquanto as limpava, Max não deixava de se perguntar se o doutor Fleischmann teria comprado aquelas bicicletas anos atrás com a esperança de passear com o Jacob pelo caminho da praia. Maximilian Carver leu no olhar de seu filho a sombra da culpa.

— Estou seguro de que o velho doutor ficaria encantado se você levasse a bicicleta.

— Eu não estou tão seguro - murmurou Max.— Por que as deixariam aqui?

— As más lembranças o perseguem sem necessidade de levá-las consigo - respondeu Maximilian Carver. — Suponho que ninguém voltou a utilizar. Vamos ver, suba. Vamos experimentá-las.

Puseram as bicicletas em terra e Max ajustou a altura do selim, testando uma vez a tensão dos cabos do freio.

— Terei que pôr mais lubrificante nos freios - afirmou Max.

— Também acho - corroborou o relojoeiro e pôs mãos à obra. — Ouça, Max.

— Sim, papai.

— Não dê demasiada importância às bicicletas, de acordo? O que aconteceu aquela pobre família não tem nada que ver conosco. Não sei se lhe deveria ter contado, disse o relojoeiro com uma sombra de preocupação em seu semblante.

— Não importa - Max esticou o freio de novo. — Assim está perfeito.

— Pois vamos andando.

— Não vem comigo? - perguntou Max.

— Esta tarde, se ainda me restar ânimo, lhe pegarei a surra da sua vida. Mas às onze tenho de ver um tal de Fred no povoado, que me cederá um local para instalar a loja. Terei que fazer negócio.

Maximilian Carver começou a recolher as ferramentas e a limpar as mãos com uma das camurças. Max contemplou seu pai perguntando-se como devia ter sido Maximilian Carver na sua idade. O costume familiar dizia que ambos se pareciam, mas também fazia parte desse costume dizer que Irina se parecia com Andrea Carver, o qual não era mais do que um desses estúpidos tópicos em que avós, tias e toda a espécie de primos insuportáveis que aparecem nas ceias de Natal, repetiam ano após ano como galinhas poedeiras.

— Max em um de seus transes - comentou Maximilian Carver, sorrindo.

— Sabia que junto ao bosque atrás da casa há um jardim de estátuas? - disse Max, surpreso ao escutar-se formular a pergunta.

— Suponho que há muitas coisas por aqui que ainda não vimos. A mesma garagem está repleta de caixas e esta manhã vi que o porão da caldeira parece um museu. Parece-me que se vendermos toda a sucata que há nesta casa a um antiquário não terei nem que abrir a loja; viveremos da renda.

Maximilian Carver dirigiu a seu filho um olhar inquisitivo.

— Ouça, se não experimentar, essa bicicleta voltará a cobrir-se de imundície e se transformará em um fóssil.

— Já o é - disse Max, dando o primeiro golpe de pedal na bicicleta que Jacob Fleischmann nunca chegou a estrear.

 

Max pedalou pelo caminho da praia em direção ao povoado, aproximou-se da larga fileira de casas de aspecto similar à nova residência dos Carver, que desembocava junto à entrada da pequena baía, onde estava o porto dos pescadores. Apenas podiam contar mais quatro ou cinco navios ancorados no velho cais e a maioria das embarcações eram pequenos barcos de madeira, que não superavam os quatro metros de comprimento do navio, e que os pescadores locais utilizavam para bater com velhas redes a costa´por uns cem metros da praia.

Max ziguezagueou com a bicicleta o labirinto de barcos em reparação sobre o cais e as pilhas de caixas de madeira do mercado local. Com a vista fixa no pequeno farol, Max enfiou o espigão curvo que fechava o porto como uma meia lua. Quando chegou ao extremo, deixou a bicicleta apoiada junto ao farol e sentou para descansar sobre uma das grandes pedras, no outro lado do dique, esburacadas pelas investidas do mar. Dali podia contemplar o oceano estender-se como uma lâmina de luz cegadora até o infinito.

Estava há uns minutos sentado frente ao mar, quando pôde ver outra bicicleta conduzida por um moço alto e magro que se aproximava pelo cais. O menino, que Max calculou ter a idade de dezesseis ou dezessete anos, guiou sua bicicleta até ao farol e a deixou junto à do Max. Logo, lentamente, retirou a densa cabeleira do rosto e caminhou para o lugar onde Max descansava.

— Olá. Você é da família que se instalou na casa do final da praia?

Max assentiu.

— Sou Max.

O menino, de tez intensamente bronzeada pelo sol e olhos verdes penetrantes, estendeu-lhe sua mão.

— Roland. Bem-vindo a "cidade aborrecimento".

Max sorriu e aceitou a mão do Roland.

— Que tal a casa? Vocês gostam? - perguntou o moço.

— As opiniões estão divididas. O meu pai adora. O resto da família a vê diferente - explicou Max.

— Conheci seu pai faz uns meses, quando veio ao povoado -disse Roland.— Me pareceu um tipo divertido. Relojoeiro, certo?

Max assentiu.

— É um tipo divertido - corroborou Max, às vezes. Outras tem na cabeça certas ideias, como a de mudar-se para cá.

— Por que veio para o povoado? - perguntou Roland.

— Por causa da guerra - respondeu Max. — Meu pai pensa que não é um bom momento para viver na cidade. Suponho que tem razão.

— A guerra - repetiu Roland, baixando o olhar. — Me recrutarão em setembro.

Max ficou mudo. Roland observou o seu silêncio e sorriu de novo.

— Tem sua parte boa - disse. — Talvez seja meu último verão no povoado.

Max lhe devolveu timidamente o sorriso, pensando que daqui alguns anos, se a guerra não tivesse terminado, também receberia o aviso de alistar-se no exército. Inclusive num dia de luz deslumbrante como aquele, o fantasma invisível da guerra envolvia o futuro com um manto de trevas.

— Suponho que ainda não viu o povoado - disse Roland.

Max negou.

— Bem, novato. Agarre na bicicleta. Começamos a visita turística sobre rodas.

 

Max tinha que fazer um esforço extra para manter o ritmo do Roland e, mesmo assim, quando levava cerca de duzentos metros pedalados desde a ponta do espigão, começou a notar as primeiras gotas de suor deslizarem por sua frente e pelos flancos. Roland se voltou e lhe dirigiu um sorriso malicioso.

— Falta de prática, né? A vida da cidade tem feito você perder a forma - gritou, sem afrouxar a marcha.

Max seguiu Roland através do passeio que limitava a costa para logo instalar-se nas ruas do povoado. Quando Max começava a atrasar-se, Roland diminuia a velocidade, até se deter junto a uma grande fonte de pedra no centro de uma praça. Max pedalou até ali e deixou a bicicleta no chão. A água brotava deliciosamente fresca da fonte.

— Não o aconselho - disse isso Roland, lendo seus pensamentos . Flato.

— Max respirou profundamente e inundou a cabeça sob o jorro de água fria.

— Iremos mais devagar - concedeu Roland.

Max permaneceu sob a ducha da fonte uns segundos e logo se recostou contra a pedra, a água da cabeça escorrendo para a roupa. Roland sorria.

— A verdade é que não esperava que aguentasse tanto. Este - assinalou ao redor. É o centro do povoado. A praça da prefeitura. Esse edifício são os tribunais, mas já não se usam. Aos domingos há mercado. E nas noites, do verão, projetam filmes na parede da prefeitura. Normalmente velhas e com as bobinas mal ordenadas.

Max assentiu fracamente, recuperando o fôlego.

— Parece fascinante, né? - riu Roland. — Também há uma biblioteca, mas se houver mais de sessenta livros deixo cortarem-me uma mão.

— E o que você faz aqui? - conseguiu articular Max. — Além de andar de bicicleta.

— Boa pergunta, Max. Vejo que começa a entender. — Seguimos?

Max suspirou e ambos voltaram para as bicicletas.

— Mas agora "eu marco" o ritmo - exigiu Max.

Roland encolheu os ombros e pedalou.

 

Durante algumas horas Roland guiou Max para cima e para baixo do pequeno povoado e arredores. Contemplaram os escarpados do extremo sul, onde Roland lhe revelou que se encontrava o melhor lugar para mergulhar, junto a um velho navio afundado em 1918 e que agora se transformou em uma selva submarina com todo o tipo de algas estranhas. Roland explicou que, durante uma terrível tormenta noturna, o casco do navio encalhou nas perigosas rochas que jaziam a escassos metros da superfície. A fúria do temporal e a escuridão da noite apenas quebrada pelo clarão dos relâmpagos fizeram com que todos os tripulantes do navio perecessem afogados no naufrágio. Todos exceto um. O único sobrevivente daquela tragédia foi um engenheiro que, em reconhecimento à providência que quis salvar sua vida, instalou-se no povoado e construiu um grande farol no alto dos escarpados da montanha, que presidia ao cenário daquela noite. Aquele homem, agora já ancião, seguia sendo o guardião do farol e não era outro senão o "avô adotivo" de Roland. Depois do naufrágio, um casal do povoado cuidou do faroleiro até que este se restabeleceu completamente. Alguns anos mais tarde, ambos faleceram em um acidente de automóvel e o faroleiro tomou conta do pequeno Roland, que tinha um ano.. Roland vivia com ele na casa do farol, embora passasse a maior parte do tempo na cabana que ele mesmo tinha construído na praia, ao pé dos escarpados. Para todos os efeitos, o faroleiro era o seu verdadeiro avô. A voz de Roland revelava uma certa amargura enquanto relatava estes fatos, que Max escutou em silêncio e sem fazer perguntas. Depois do relato do naufrágio, andaram pelas ruas vizinhas à velha igreja onde Max conheceu alguns dos aldeãos, gente afável que se apressou a dar-lhe as boas-vinda ao povoado.

Finalmente, Max, exausto, decidiu que não era necessário conhecer todo o povoado numa manhã e que, como parecia, ia passar uns quantos anos ali, teria tempo para descobrir os seus mistérios, se é que os havia.

— Também é verdade - concordou Roland. — Ouça, quase todas as manhãs no verão vou mergulhar no navio afundado. Quer vir comigo amanhã?

— Se mergulhar como anda de bicicleta me afogarei - disse Max.

— Tenho óculos e barbatanas de sobra - explicou Roland.

A oferta soava tentadora.

— De acordo. Tenho que levar algo?

Roland negou.

— Eu trarei tudo. Bom,... bem pensado, traga o café da manhã. Recolho você às nove em sua casa.

— Nove e meia.

— Não adormeça.

Quando Max começou a pedalar de volta à casa da praia, os sinos da igreja anunciavam as três da tarde e o sol começava a ocultar-se por trás de um manto de nuvens escuras que pareciam pressagiar a chuva. Enquanto se afastava, Max voltou-se um segundo e olhou para trás. De pé junto a sua bicicleta, Roland o saudava com a mão.

 

A tormenta se abateu sobre o povoado como um sinistro espetáculo de feira ambulante. Em uns minutos, o céu se transformou em uma abóbada plúmbea e o mar adquiriu um tom metálico e opaco, como uma imensa balsa de mercúrio. Os primeiros relâmpagos vieram acompanhados de uma tempestade de neve que empurrava a tormenta desde o mar. Max pedalou com força, mas o aguaceiro o alcançou em pleno caminho, quando ainda ficava a uns quinhentos metros da casa de praia. Quando chegou a cerca branca, estava tão empapado como se acabasse de emergir do mar. Correu para deixar a bicicleta no barraco da garagem e entrou na casa pela porta do pátio traseiro. A cozinha estava deserta, mas um apetitoso aroma flutuava no ambiente. Na mesa Max localizou uma bandeja com sanduíches de carne e uma jarra de limonada caseira. Junto a ela havia uma nota escrita com a estilizada caligrafia de Andrea Carver. "Max, esta é sua comida. Seu pai e eu estaremos no povoado toda a tarde para tratar de assuntos da casa. Não utilize o banheiro do piso de cima. Irina vem conosco".

Max deixou a nota e levou a bandeja para seu quarto. A maratona ciclista daquela manhã o tinha deixado exausto e faminto. A casa parecia vazia. Alicia não estava ou havia se fechado em seu quarto. Max se dirigiu diretamente ao seu, trocou de roupa e estendeu –se na cama para saborear os deliciosos sanduíches que sua mãe tinha deixado para ele. Lá fora a chuva golpeava com força e os trovões faziam tremer as janelas. Max acendeu a pequena lamparina da sua mesa e pegou o livro sobre Copérnico que Maximilian Carver lhe tinha dado. Tinha começado a ler quatro vezes o mesmo parágrafo quando descobriu que morria de vontade de ir mergulhar no dia seguinte junto ao casco do navio afundado com seu novo amigo Roland. Engoliu os sanduíches em menos de dez minutos e logo fechou os olhos, escutando só o repico da chuva sobre o teto e o vidro. Gostava da chuva e o som da água escorregando pelas calhas que percorria o beiral. Quando chovia com força, Max sentia que o tempo se detinha. Era como uma trégua na qual alguém podia deixar de fazer algo que lhe ocupasse aquele momento e simplesmente se aproximava de uma janela para contemplar o espetáculo daquela infinita cortina de lágrimas do céu, durante horas. Deixou de novo o livro sobre a mesa e apagou a luz. Lentamente, envolto no som hipnótico da chuva, rendeu-se ao sono.

 

As vozes da família no piso inferior e a correria de Irina, escada acima e abaixo, o despertaram Max. Já tinha anoitecido mas Max pôde ver como a tormenta tinha passado deixando atrás de si um tapete de estrelas no céu. Jogou uma olhada em seu relógio e comprovou que tinha dormido perto de seis horas. Estava se levantando quando mãos golpearam sua porta. É hora de jantar, belo adormecido rugiu a voz eufórica de Maximilian Carver do outro lado. Por um segundo, Max se perguntou por que motivo se mostraria agora tão alegre seu pai. Logo recordou a sessão cinematográfica que tinha prometido naquele mesmo dia durante o café da manhã.

— Vou agora para baixo - respondeu sentindo ainda o sabor pastoso dos sanduíches de carne na boca.

— Mais vá - replicou o relojoeiro, já de caminho do piso inferior.

Embora não sentisse o mínimo apetite, Max desceu à cozinha e se sentou à mesa junto ao resto da família. Alicia olhava sem vontade para seu prato, sem tocá-lo. Irina devorava com vontade sua ração e murmurava palavras ininteligíveis a seu detestável gato, que a olhava fixamente, em seus pés. Jantaram com calma enquanto Maximilian Carver explicava que tinha encontrado um local excelente no povoado para instalar a relojoaria e começar o negócio de novo.

—E o que tem feito você, Max? - perguntou Andrea Carver.

— Estive no povoado - o resto da família olhou para ele, como se esperassem mais pormenores .— Conheci um menino, Roland. Amanhã vamos mergulhar.

— Max já fez um amigo - exclamou Maximilian Carver, triunfal. —Vêem o que lhes dizia?

— E como é o tal Roland, Max? - perguntou Andrea Carver.

— Não sei. Simpático. Vive com seu avô, o guardião do farol. Esteve me ensinando um montão de coisas do povoado.

— E onde você diz que irá mergulhar? - perguntou seu pai.

— Na praia do sul, ao outro lado do porto. Segundo Roland, ali estão os restos de um navio afundado faz muitos anos.

— Posso ir? - interrompeu Irina.

— Não - atalhou Andrea Carver. —Não será perigoso, Max?

— Mamãe...

— De acordo - concedeu Andrea Carver. —Mas vá com cuidado.

Max assentiu.

— Eu, quando jovem era um bom mergulhador - começou Maximilian Carver.

— Agora não, céus - cortou sua esposa. —Não ia você nos mostrar uns filmes?

Maximilian Carver encolheu os ombros e se levantou, disposto a vestir o uniforme de projetorista.

— Dê uma mão a seu pai, Max.

Por um segundo, antes de fazer o que seu pai pedia, Max olhou de soslaio para sua irmã Alicia, que tinha permanecido em silêncio durante todo o jantar. Seu olhar ausente parecia proclamar com urgência o quão longe estava dali, mas, por algum motivo que Max não conseguia compreender, ninguém mais entendia ou preferia não fazê-lo. Por um momento Alicia lhe devolveu o olhar. Max tratou de sorrir.

— Quer vir amanhã conosco? - ofereceu. —Você gostará de Roland.

Alicia sorriu fracamente e, sem pronunciar uma palavra, assentiu enquanto uma faísca de luz se acendia em seus olhos escuros e profundos.

 

— Tudo preparado. Luzes apagadas - disse Maximilian Carver enquanto acabava de enfiar a bobina do filme no projetor.

O aparelho parecia provir da era do Copérnico e Max tinha suas dúvidas a respeito se funcionaria ou não.

— O que vamos ver? - inquiriu Andrea Carver, embalando em seus braços Irina.

— Não tenho a menor ideia - confessou o relojoeiro. —Há uma caixa na garagem com dezenas de filmes sem nenhuma indicação. Agarrei umas quantas ao acaso. Não estranharia que não se visse nada. As emulsões dos filmes se danificam com muita facilidade e depois de todos estes anos o mais provável é que se desprendessem do filme.

— Isso significa o que? - interrompeu Irina. —Não vamos ver nada?

— Só há um modo de averiguá-lo - respondeu Maximilian Carver enquanto girava o interruptor do projetor.

Em uns segundos, o som de motocicleta velha do aparelho ganhou vida e o feixe de luz da objetiva piscou e atravessou a sala como uma lança de luz. Max concentrou o olhar no retângulo projetado sobre a parede branca. Era como olhar no interior de uma lanterna mágica, sem perceber a ciência que permitia que as visões pudessem escapar de tal invento. Conteve o fôlego e uns instantes depois, a parede se encheu de imagens.

Bastaram apenas uns segundos para que Max compreendesse que aquele filme não provinha do armazém de nenhum velho cinema. Não se tratava de uma cópia de algum filme famoso, nem sequer de um cilindro perdido de alguma série muda. As imagens imprecisas e riscadas pelo tempo mostravam a evidente condição de aficionado de quem as havia feito. Não era mais que um filme caseiro, provavelmente rodado anos atrás pelo antigo dono da casa, o Doutor Fleischmann. Max pensou que o mesmo poderia dizer do resto dos cilindros que seu pai tinha encontrado na garagem junto ao antigo projetor. As ilusões de cineclube particular de Maximilian Carver se desmoronaram em menos de um minuto.

O filme mostrava desajeitadamente um passeio pelo que parecia ser um bosque. A fita tinha sido rodada enquanto o operador caminhava lentamente entre as árvores e a imagem avançava aos tropeções, com bruscas mudanças de luz e enfoque que permitiam reconhecer o lugar em que se desenvolvia tão estranho passeio.

— Mas o que é isto? - exclamou Irina, visivelmente decepcionada, olhando para seu pai que contemplava perplexo o estranho e, à vista do primeiro minuto de projeção, o insofrivel e aborrecido filme.

— Não sei - murmurou Maximilian Carver, triste. —Não esperava por isto...

Max também tinha começado a perder interesse no filme quando algo chamou sua atenção na caótica cascata de imagens.

— E se você experimentasse outro cilindro, amor? - sugeriu Andrea Carver, tratando de salvar do naufrágio da ilusão de seu marido pelo suposto arquivo cinematográfico da garagem.

— Espera - cortou Max, reconhecendo uma silhueta familiar no filme.

Agora a câmara tinha saído do bosque e avançava para o que parecia um recinto fechado por altos muros de pedra e um alto portão de lanças. Max conhecia aquele lugar; tinha estado ali no dia anterior. Fascinado, Max contemplou como a câmara tropeçava ligeiramente para logo entrar no interior do jardim de estátuas.

— Parece um cemitério - murmurou Andrea Carver .—O que é isso?

A câmara percorreu uns metros pelo interior do jardim de estátuas. No filme, o lugar não oferecia o aspecto de abandono que ele tinha descoberto. Não havia índício das ervas selvagens e a superfície do chão de pedra estava limpa e polida, como se um cuidadoso guardião se ocupasse de manter aquele recinto imaculado dia e noite.

A câmara se deteve em cada uma das estátuas dispostas nos pontos cardeais da grande estrela que podia distinguir-se claramente ao pé das figuras. Max reconheceu os rostos de pedra branca e suas roupagens de feirantes de circo ambulante. Havia algo inquietante na tensão e na postura que adotavam os corpos daquelas figuras fantasmagóricas e na careta teatral de seus rostos mascarados depois de uma imobilidade que apenas parecia aparente.

O filme foi mostrando as figuras da banda circense sem corte algum. A família contemplou aquela visão espectral em silêncio, sem nenhum ruído além do lamuriante estalo continuado do projetor. Finalmente, a câmara se dirigiu para o centro da estrela riscada sobre a superfície do jardim de estátuas. A imagem revelou a silhueta a contraluz do palhaço sorridente, sobre o qual convergiam todas as demais estatuas. Max observou atentamente as feições daquele rosto e sentiu de novo aquele calafrio que lhe tinha percorrido o corpo quando tinham ficado frente a frente. Havia algo na imagem que não coincidia com o que Max recordava de sua visita ao jardim de estátuas, mas a deficiente qualidade do filme o impediu de obter uma visão clara do conjunto da estátua que lhe permitisse advertir o que era. A família Carver permaneceu em silêncio enquanto os últimos metros de filme corriam sob o feixe do projetor. Maximilian Carver parou o aparelho e acendeu a luz.

— Jacob Fleischmann - murmuro Max. Estes são os filmes caseiros do Jacob Fleischmann.

Seu pai assentiu em silêncio. Acabou-se a sessão de cinema e Max sentiu por uns segundos que a presença daquele convidado invisível que quase dez anos atrás se afogou a poucos metros dali, na praia, impregnava cada recanto daquela casa, cada degrau da escada, e o fazia sentir como um intruso.

Sem meditar mais nas palavras, Maximilian Carver começou a desmantelar o projetor e Andrea Carver agarrou Irina em seus braços e a levou escada acima para deitá-la.

— Posso dormir contigo? - perguntou Irina, abraçando sua mãe.

— Deixa isto - disse Max a seu pai. —Eu o guardarei.

Maximilian sorriu para seu filho e lhe bateu nas costas, assentindo.

— Boa noite, Max - o relojoeiro se voltou para sua filha, boa noite, Alicia.

— Boa noite, papai - respondeu Alicia observando como seu pai se dirigia para as escadas , do piso de cima, com um ar de cansaço e decepção.

Quando os passos do relojoeiro se perderam, Alicia olhou para Max fixamente.

— Prometa-me que não dirá a ninguém o que lhe vou contar .

Max assentiu.

— Prometido. Do que se trata?

— O palhaço. O do filme - começou Alicia. — Vi-o antes. Num sonho.

— Quando? - perguntou Max, sentindo que seu pulso acelerava.

— A noite antes de vir para esta casa - respondeu sua irmã.

Max sentou-se em frente a Alicia. Era difícil ler as emoções naquele rosto, mas Max intuiu uma sombra de temor nos olhos da moça.

— Explique-me isso - solicitou Max. —O que sonhou exatamente?

— É estranho, mas no sonho era, não sei como, diferente - disse Alicia.

— Diferente? - perguntou Max. —De que forma?

— Não era um palhaço. Não sei - respondeu encolhendo os ombros, como se tentasse retirar importância ao fato, embora sua voz tremula traísse seus pensamentos. — Acha que significa algo?

— Não - mentiu Max, provavelmente não.

— Suponho que não - corroborou Alicia. —O convite de manhã segue em pé? ir mergulhar...

— Claro. Você acorda?

Alicia sorriu a seu irmão menor. Era a primeira vez que Max a via sorrir em meses, talvez em anos.

— Estarei acordada - respondeu Alicia enquanto se dirigia para seu quarto. — Boa noite.

— Boa noite - respondeu Max.

Max ficou à escuta até que a porta do quarto de Alicia se fechasse e se sentou na poltrona do salão, junto ao projetor. Dali podia escutar seus pais falarem a meia voz em seu quarto. O resto da casa estava submersa pelo silêncio noturno, apenas perturbado pelo som do mar rompendo na praia. Max comprovou que alguém o olhava perto das escadas. Os olhos amarelados e brilhantes do gato de Irina o observavam fixamente. Max devolveu o olhar ao felino.

— Fora! - ordenou.

O gato sustentou o olhar durante uns segundos e logo se perdeu nas sombras. Max se levantou e começou a recolher o projetor e o filme. Pensou em levar de novo o material para a garagem mas a idéia de sair para fora em plena noite se tornou pouco sedutora. Apagou as luzes da casa e subiu até seu quarto. Espionou através da janela em direção ao jardim de estátuas, indistinguível no negrume da noite. Deitou-se na cama e apagou a lamparina da mesa de cabeceira. Ao contrário do que Max esperava, a última imagem que desfilou por sua mente naquela madrugada antes de sucumbir ao sono não foi o sinistro passeio cinematográfico pelo jardim de estátuas, mas aquele sorriso inesperado de sua irmã Alicia minutos antes no salão. Tinha sido um gesto aparentemente insignificante mas, por algum motivo que não conseguia compreender, Max intuiu que tinha aberto uma porta entre eles e que, a partir daquela noite, nunca voltaria a ver sua irmã como uma desconhecida.

 

Pouco depois do amanhecer, Alicia abriu os olhos e descobriu que, na parte de fora do vidro de sua janela, dois profundos olhos amarelos a olhavam fixamente. Alicia se levantou súbitamente e o gato de Irina, sem pressa, retirou-se do batente da janela. Detestava aquele animal, sua conduta altiva e aquele aroma penetrante que lhe precedia, detectava a sua presença antes que entrasse no quarto. Não era a primeira vez que o tinha surpreendido escrutinando-a furtivamente. Desde o momento em que Irina conseguiu trazer o odioso felino para a casa da praia, Alicia tinha observado que frequentemente o animal permanecia imóvel durante minutos, vigilante, espiando os movimentos de algum membro da família da soleira de uma porta ou escondido nas sombras. Secretamente, Alicia acariciava a idéia de que algum cão selvagem desse conta dele em algum de seus passeios noturnos.

No exterior, o céu estava perdendo a tonalidade púrpura que sempre acompanhava a alvorada, e os primeiros raios de um intenso sol se perfilavam sobre o bosque que se estendia mais à frente do jardim de estátuas. Ainda faltavam um par de horas para que o amigo de Max passasse para busca-los. Voltou a agasalhar-se na cama e, embora soubesse que não voltaria a dormir outra vez, fechou os olhos e escutou o som distante do mar rompendo na praia. Uma hora mais tarde, Max golpeou brandamente em sua porta com os nódulos dos dedos. Alicia desceu as escadas nas pontas dos pés. Max e seu amigo a esperavam lá fora, no alpendre. Antes de sair se deteve um segundo no vestíbulo e pôde escutar as vozes dos dois meninos conversando. Respirou fundo e abriu a porta.

Max, apoiado no corrimão do alpendre, voltou-se e sorriu. Junto a ele havia um menino de tez profundamente bronzeada e cabelo palha uns centpimetros mais alto que Max.

— Este é Roland - interveio Max. — Roland, minha irmã Alicia.

Roland assentiu cordialmente e desviou o olhar para as bicicletas, mas a Max não escapou o jogo de olhares que em questão de segundos se cruzou entre seu amigo e Alicia. Sorriu para seus botões e pensou que aquilo ia ser mais divertido do que esperava.

— Como fazemos? - perguntou Alicia. — Só há duas bicicletas.

— Eu acredito que Roland pode levar você na sua - respondeu Max. — Não, Roland?

Roland cravou a vista no chão.

— Sim, claro - murmurou. Mas você leva o material.

Max segurou o material de mergulho que Roland havia trazido com um tensor, na plataforma que havia atrás do banco de sua bicicleta. Sabia que havia outra bicicleta no abrigo da garagem, mas a idéia de que Roland levasse sua irmã o divertia. Alicia se sentou sobre a barra da bicicleta e se agarrou ao pescoço de Roland. Sob a pele curtida pelo sol, Max observou que Roland lutava inutilmente por não se ruborizar.

— Pronto - disse Alicia. — Espero não pesar muito.

— Andando - sentenciou Max e começou a pedalar pelo caminho da praia seguido de Roland e Alicia.

Aos poucos, Roland tomou a dianteira e, uma vez mais, Max teve que apertar a marcha para não ficar atrasado.

— Vai bem? - perguntou Roland a Alicia.

Alicia assentiu e contemplou como a casa da praia ia se perdendo na distância.

A praia do extremo sul do outro lado do povoado formava uma meia lua extensa e desolada. Não era uma praia de areia, mas estava coberta por pequenos calhaus polidos pelo mar e infestada de conchas e restos marinhos que a corrente e a maré deixavam secar no sol. Depois da praia, ascendendo quase em vertical, levantava-se uma parede escarpada em cujo topo, escura e solitária, se elevava a torre do farol.

— Esse é o farol de meu avô - assinalou Roland enquanto deixavam as bicicletas junto a um dos caminhos que desciam entre as rochas, até a praia.

— Vivem os dois ali? - perguntou Alicia.

— Mais ou menos - respondeu Roland. — Com o tempo construí uma pequena cabana aqui embaixo na praia e pode se dizer que é quase a minha casa.

— Sua própria cabana? - inquiriu Max, tratando de localizá-la com a vista.

— Daqui não a verá - esclareceu Roland. — Na realidade era um velho abrigo de pescadores abandonado. Arrumei-a e agora não está mal. Já a verão.

Roland os guiou até a praia e uma vez ali tirou as sandálias. O sol se elevava no céu e o mar brilhava como uma lâmina de prata fundida. A praia estava deserta e uma brisa impregnada de salitre soprava do oceano.

— Cuidado com estas pedras. Eu estou acostumado, mas é fácil cair se não tiver prática.

Alicia e seu irmão seguiram Roland através da praia até à sua cabana. Tratava-se de uma pequena cabine de madeira pintada de azul e vermelho. A cabana tinha um pequeno alpendre e Max observou o farol oxidado que pendia de uma cadeia.

— Isso é do navio - explicou Roland. — Tirei um montão de coisas ali de baixo e as trouxe para a cabana. O que lhes parece?

— É fantástica - exclamou Alicia. —Você dorme aqui?

— Às vezes, sobretudo no verão. No inverno, além do frio, eu não gosto de deixar o meu avô sozinho lá em cima.

Roland abriu a porta da cabana e cedeu a entrada a Alicia e Max.

— Adiante. Bem-vindos ao palácio.

O interior da cabana do Roland parecia um desses velhos bazares com antiguidades e marinheiros. A bota de cano largo que Roland tinha retirado há anos do mar reluzia na penumbra como um museu de misteriosos tesouros lendarios.

— Não são mais que bagatelas - disse Roland, mas as coleciono. Era bom hoje apanharmos algo.

O resto da cabana se compunha de um velho armário, uma mesa, umas quantas cadeiras e uma barra sobre a qual havia umas estantes com alguns livros e um abajur de azeite.

— Eu adoraria ter uma casa como esta - murmurou Max.

Roland sorriu, cético.

— Aceitam-se ofertas - brincou Roland, visivelmente orgulhoso perante a impressão que sua cabana tinha despertado em seus amigos. — Bom, agora à água.

Seguiram Roland até a borda da praia e uma vez ali Roland começou a desfazer o fardo que continha o material de mergulho.

— O navio está a uns vinte e cinco ou trinta metros da borda. Esta praia é mais profunda do que parece; aos três metros já não se faz pé. O casco está a uns dez metros de profundidade - explicou Roland.

Alicia e Max olharam um para o outro, o que se explicava por si só.

— Sim, a primeira vez não é recomendável tentar chegar até ao fundo. Às vezes, quando o mar é fundo, formam-se correntes e pode ser perigoso. Uma vez levei um susto de morte.

Roland entregou uns óculos e umas barbatanas a Max.

— Bom. Só há material para dois.Quem desce primeiro?

Alicia assinalou Max com o índicador estendido.

— Obrigado - sussurrou Max.

— Não se preocupe, Max - tranquilizou Roland. — O que importa é começar. A primeira vez que desci por pouco não me deu algo. Havia uma moréia enorme em uma das chaminés.

— Uma o quê? - saltou Max.

— Nada - respondeu Roland. —É uma brincadeira. Não há bichos ali em baixo. Prometo-lhe isso. E é estranho, porque normalmente os navios afundados são como um zoológico de peixes. Mas este não. Não gostam, suponho. Ouça, não vai ficar com medo agora, pois não?

— Medo? - disse Max. — Eu?

Embora Max estivesse colocando as barbatanas, observou como Roland fazia uma cuidadosa radiografia a sua irmã enquanto ela tirava o vestido de algodão e ficava com seu traje de banho branco, o único que tinha. Alicia entrou na água até que lhe cobriu os joelhos.

— Ouça - sussurrou, é minha irmã, não um bolo. De acordo?

Roland lhe dirigiu um olhar de cumplicidade.

— Você a trouxe, não eu - respondeu com um sorriso felino.

— À água - cortou Max ,fará bem a você.

Alicia se voltou e os contemplou mascarados de mergulhadores com uma careta zombadora.

— Que pintas! - disse sem conseguir reprimir a risada.

Max e Roland se olharam através dos óculos de mergulho.

— Uma última coisa - apontou Max, eu nunca tinha feito isto antes. Mergulhar, quero dizer. Nadei em piscinas, claro, mas não estou seguro se saberei...

Roland pôs os olhos em branco.

— Sabe respirar debaixo de água? - perguntou.

— Disse a você que não sabia mergulhar, não que era tolo - respondeu Max.

— Se sabe respirar na água, sabe mergulhar - esclareceu Roland.

— Vão com cuidado - apontou Alicia. — Ouça, Max, acha que isto é uma boa ideia?

— Vai correr tudo bem - assegurou Roland, voltou-se para Max de uma vez e lhe tocou no ombro. — Você primeiro, Capitão Nemo.

Max submergiu pela primeira vez em sua vida sob a superfície do mar e descobriu como este se abria perante os seus olhos atónitos, um universo de luz e sombras que ultrapassava tudo quanto tinha imaginado. Os raios do sol se filtravam em cortinas nebulosas de claridade que ondulavam lentamente e a superfície se converteu em um espelho opaco e dançante. Conteve a respiração uns segundos mais e voltou a emergir para respirar. Roland, a um par de metros dele, vigiava-o atentamente.

— Tudo bem? - perguntou.

Max assentiu, entusiasmado.

— Vê? É fácil. Nade junto a mim - indicou Roland antes de mergulhar de novo.

Max dirigiu um último olhar à borda e viu como Alicia o saudava, sorridente. Devolveu-lhe a saudação e se apressou a nadar junto a seu companheiro, mar adentro. Roland o guiou até um ponto no qual a praia parecia longínqua, embora Max soubesse que media uns trinta metros até a borda. Ao mesmo nível do mar, as distâncias cresciam. Roland lhe tocou no braço e assinalou o fundo. Max tomou ar e introduziu a cabeça na água, ajustando-as borrachas dos óculos de mergulho. Seus olhos demoraram alguns segundos a acostumarem-se a débil penumbra submarina. Só então pôde admirar o espetáculo do casco do navio no fundo, convexo sobre o flanco e envolto em uma mágica luz espectral. O casco do navio devia medir cerca de cinquenta metros, possivelmente mais, e tinha uma profunda brecha aberta da proa até a sentina. A fenda aberta sobre o casco parecia uma ferida negra e sem fundo inflingida por afiadas garras de pedra. Sobre a proa, sob uma capa acobreada de óxido e algas, podia-se ler o nome do navio, Orpheus.

O Orpheus tinha aspecto de ter sido em seu tempo um velho cargueiro, não um navio de passageiros. O aço rachado do casco do navio estava sulcado de pequenas algas mas, tal como Roland havia dito, não havia um só peixe nadando sobre o casco. Os dois amigos percorreram sua superfície, detendo-se cada seis ou sete metros para contemplar com detalhe os restos do naufrágio. Roland havia dito que o navio se encontrava a uns dez metros de profundidade, mas, para Max, aquela distância parecia infinita. Perguntou-se como tinha conseguido Roland recuperar todos aqueles objetos que tinha visto em sua cabana da praia. Seu amigo, como se tivesse lido seus pensamentos, fez-lhe um gesto para que esperasse na superfície e mergulhou batendo poderosamente as barbatanas. Max observou Roland, que descia até tocar o casco do Orpheus com a ponta de seus dedos. Uma vez ali, agarrando-se cuidadosamente as saliências do casco, foi-se arrastando até a plataforma que um dia tinha sido a ponte de comando. Desde sua posição, Max podia distinguir ainda a roda do leme e outros instrumentos no interior. Roland nadou até a porta da ponte, que jazia abatida, e entrou no navio. Max sentiu uma pontada de inquietação ao ver seu amigo desaparecer no interior do casco do navio afundado. Não afastou os olhos daquela porta enquanto Roland nadava pelo interior da ponte, perguntando-se o que poderia fazer se acontecesse algo. Em poucos segundos, Roland emergiu de novo da ponte e ascendeu rapidamente até ele, deixando para trás de suas costas uma grinalda de bolhas. Max voltou à superfície e respirou profundamente. O rosto do Roland apareceu a um metro do dele, com um sorriso de orelha a orelha.

— Surpresa! - exclamou.

Max comprovou que segurava algo na mão.

— O que é isso? - inquiriu Max, assinalando o estranho objeto metálico que Roland tinha resgatado da ponte.

— Um sextante.

Max arqueou as sobrancelhas. Não tinha nem idéia do que seu amigo estava dizendo.

— Um sextante é um instrumento que se usa para calcular a posição do mar - explicou Roland, com a voz entrecortada depois do esforço de manter a respiração durante quase um minuto. - Vou voltar a descer. Segure-me isso

Max começou a articular um protesto, mas Roland mergulhou de novo sem lhe dar apenas tempo para abrir a boca. Inalou profundamente e mergulhou a cabeça de novo para seguir a imersão de Roland. Desta vez, seu companheiro nadou da proa até a popa do casco do navio. Max bateu as barbatanas seguindo a trajetória de Roland. Contemplou seu amigo aproximar-se de um olho de boi e tratar de olhar no interior do navio. Max conteve a respiração até que sentiu que seus pulmões ardiam e soltou então todo o ar, preparado-se para emergir de novo e respirar.

Entretanto, naquele último segundo, seus olhos descobriram algo que o deixou gelado. Através das trevas submarinas, ondulava uma velha bandeira apodrecida e desfiada presa a um mastro na proa do Orpheus . O Max observou com mais detalhe e reconheceu o símbolo quase desvanecido mas que ainda pode ser distinguido: uma estrela de seis pontas sobre um círculo. Max sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Tinha visto aquela estrela antes, nas lanças da grade da porta de ferro do jardim de estátuas. O sextante de Roland escapou-se-lhe entre os dedos e se afundou na escuridão. Preso a um medo indecifrável, Max nadou atropelamente até a borda.

Meia hora mais tarde, sentados à sombra do alpendre da cabana, Roland e Max contemplavam Alicia enquanto ela recolhia velhas conchas entre as pedras da borda.

— Está seguro de ter visto esse símbolo antes, Max?

Max assentiu.

— Às vezes, sob a água, as coisas parecem ser o que não são - começou Roland.

— Sei o que vi - cortou Max. — De acordo?

— De acordo - concedeu Roland .— Viu um símbolo que segundo você, está também nessa espécie de cemitério que tem atrás de sua casa. E então?

Max se levantou e encarou seu amigo.

— E então? Quer que volte a repetir toda a história?

Max tinha passado os últimos vinte e cinco minutos explicando a Roland tudo que tinha visto no jardim de estátuas, inclusive o filme de Jacob Fleischmann.

— Não faz falta - respondeu secamente Roland.

— Então, como é possível que não acredite? - espetou Max. — Acha que inventei tudo isto?

— Não disse que não acreditava em você, Max - disse Roland sorrindo ligeiramente a Alicia, que havia voltado de seu passeio com uma pequena bolsa cheia de conchas .— Teve sorte?

— Esta praia é um museu - respondeu Alicia fazendo tilintar a bolsa com suas capturas.

Max, impaciente, pôs os olhos em branco.

— Então acredita em mim? - cortou, cravando seus olhos em Roland.

Seu amigo lhe devolveu o olhar e permaneceu em silêncio uns segundos.

— Acredito em você, Max - murmurou desviando a vista para o horizonte, sem poder ocultar uma sombra de tristeza em seu rosto. Alicia observou a mudança no semblante de Roland.

— Max diz que seu avô viajava nesse navio a noite em que se afundou - disse ela, colocando sua mão sobre o ombro do moço. — É verdade?

Roland assentiu vagamente.

— Foi o único sobrevivente - respondeu.

— O que aconteceu? - perguntou Alicia. — Me perdoe. Possivelmente não quer falar disso.

Roland negou e sorriu aos dois irmãos.

— Não, não me importo. Max olhava para ele, como espectador. — E não é que não acredite em sua história, Max. O que se passa é que não é a primeira vez que alguém me fala desse símbolo.

— Quem mais o viu? - perguntou Max, boquiaberto. — Quem falou a você sobre ele?

Roland sorriu.

— Meu avô. Desde que era um menino - Roland assinalou o interior da cabana .— Começa a refrescar. Entremos; explicar-lhes-ei a história desse navio.

 

A princípio Irina acreditou estar escutando a voz de sua mãe no piso inferior. Andrea Carver frequentemente falava sozinha enquanto perambulava pela casa e nenhum membro da família se surpreendia com o hábito maternal de dar voz a seus pensamentos. Um segundo depois, entretanto, Irina viu através da janela como sua mãe se despedia de Maximilian Carver enquanto o relojoeiro se dispunha a ir ao povoado acompanhado por um dos transportadores que os tinham ajudado a trazer a bagagem da estação, dias atrás. Irina compreendeu que, naquele momento, estava sozinha em casa e que, portanto, aquela voz que tinha acreditado ouvir devia ter sido uma ilusão. Até que voltou a ouvi-la, desta vez na mesma sala, como um sussurro que atravessava as paredes. A voz parecia provir do armário e soava como um murmúrio longínquo cujas palavras eram impossíveis de distinguir. Pela primeira vez desde que tinham chegado à casa da praia, Irina sentiu medo. Cravou os olhos na escura porta fechada do armário e comprovou que havia uma chave na fechadura. Sem pensar um instante, correu para o armário e girou atropeladamente a chave até que a porta estivesse fechada a “sete chaves”. Retrocedeu uns metros e respirou profundamente. Então escutou aquele som de novo e compreendeu que não era uma voz, mas várias vozes sussurrando ao mesmo tempo.

— Irina? - chamou sua mãe do piso de baixo.

A voz cálida de Andrea Carver a resgatou do transe em que estava abstraida. Uma sensação de tranquilidade a envolveu.

— Irina, se estiver aí em cima, desça para me ajudar um momento.

Nunca em meses Irina havia sentido tanta vontade de ajudar sua mãe, fosse qual fosse a tarefa que a esperava. Dispôs-se a descer a escada a correr quando, depois de sentir que uma brisa gelada lhe acariciava o rosto e atravessava repentinamente a casa, a porta do quarto se fechou de repente. Irina correu até ela e lutou com o puxador, que parecia encravado. Enquanto lutava inutilmente para abrir aquela porta, pôde escutar em suas costas como a fechadura do armário girava lentamente sobre si mesma e aquelas vozes, que pareciam provir do mais profundo da casa, riam.

 

— Quando era menino - explicou Roland, meu avô me contou tantas vezes esta história que durante anos sonhei com ela. Tudo começou quando vim viver para neste povoado há muitos anos, depois de perder meus pais em um acidente de automóvel.

— Sinto muito, Roland - interrompeu Alicia que intuía que, face ao amável sorriso de seu amigo, e como ele parecia disposto a lhes contar a história de seu avô e do navio, remexer naquelas lembranças era mais difícil do que queria mostrar.

— Eu era muito pequeno. Apenas os recordo - disse Roland evitando o olhar da Alicia, a quem aquela pequena mentira não poderia enganar.

— O que aconteceu então? - insistiu Max. Alicia o fulminou com o olhar.

— Meu avô se encarregou de mim e me instalei com ele na casa do farol. Ele era engenheiro e fazia alguns anos que era o faroleiro deste lance de costa. A prefeitura lhe havia concedido este posto vitalício, depois de ter construido com suas próprias mãos esse farol em 1919. É uma história curiosa, já vão ver. Em 23 de junho de 1918 meu avô embarcou no porto de Southampton a bordo do Orpheus, mas incógnito. O Orpheus não era um navio de passageiros, mas um cargueiro de má fama. Seu capitão era um holandês bêbado e corrupto até a medula, que utilizava o casco do navio como aluguel a quem lhe oferecesse o melhor preço. Seus clientes favoritos costumavam ser contrabandistas que queriam cruzar o Canal da Mancha. O Orpheus tinha tal fama que inclusive os soldados alemães o reconheciam e, por piedade, não o afundavam quando tropeçavam com ele. De qualquer forma, com o final da guerra, o negócio começou a afrouxar e o holandês errante, como o apelidava meu avô, teve que recorrer a outros negócios ainda mais turvos para pagar as dívidas de jogo que tinha acumulado nos últimos meses. Parece que, em uma dessas noites de má sorte, que era costume serem a maioria, o capitão perdeu até a camisa em uma partida com um tal Mister Caín. Esse Mister Caín era o dono de um circo ambulante. Como pagamento, Mister Caín exigiu ao holandês que embarcasse toda a "troupe" do circo e a transportasse incógnita para o outro lado do Canal. Mas o suposto circo do Mister Caín escondia algo mais que simples barracos de feira e lhe interessava desaparecer quanto antes e, supostamente, de forma ilegal. O holandês aceitou. Que outro remédio tinha? Ou o fazia ou perdia diretamente o navio.

— Um momento - interrompeu Max. — O que tinha seu avô a ver com tudo isso?

— Já lá vou - continuou Roland. — Como tinha dito, o tal Mister Caín, embora esse não fosse seu verdadeiro nome, ocultava muitas coisas. Meu avô vinha seguindo o rastro fazia muito tempo. Tinham uma conta pendente e meu avô pensou que, se Mister Caín e seus cumplices cruzassem o canal, suas possibilidades de caçá-los se evaporaria para sempre.

— Por isso embarcou no Orpheus? - perguntou Max. — Como um vagabundo?

Roland assentiu.

— Há algo que não entendo - disse Alicia. — Por que não avisou à polícia? Ele era um engenheiro, não um guarda. Que tipo de conta tinha pendente com esse Mister Caín?

— Posso acabar a história? - perguntou Roland.

Max e sua irmã assentiram outra vez.

— Bem. O caso é que embarcou - continuou Roland. — O Orpheus zarpou ao meio dia e esperava chegar ao seu destino em noite fechada, mas as coisas se complicaram. Uma tormenta se desencadeou por volta da meia-noite e arrastou o navio para a costa. O Orpheus se espatifou contra as rochas do escarpado e se afundou em apenas uns minutos. Meu avô salvou a vida porque estava escondido em um bote salva-vidas. Os outros se afogaram.

Max engoliu a saliva.

— Quer dizer que os corpos ainda estão aí em baixo?

— Não - respondeu Roland. — Ao amanhecer do dia seguinte, uma névoa varreu a costa durante horas. Os pescadores locais encontraram o meu avô inconsciente nesta mesma praia. Quando se dissipou a névoa, vários barcos de pescadores rastrearam a zona do naufrágio. Nunca encontraram sequer um corpo.

— Mas, então - interrompeu Max, em voz baixa.

Com um gesto, Roland indicou para que o deixasse continuar.

— Levaram meu avô ao hospital do povoado e esteve ali delirando durante dias. Quando se recuperou, decidiu que, em gratidão pela forma como o tinham tratado, construiria um farol no alto do escarpado para evitar que uma tragédia como aquela voltasse a repetir-se. Com o tempo, ele mesmo se converteu no guardião do farol.

Os três amigos permaneceram em silencio durante quase um minuto depois de escutarem o relato de Roland. Finalmente, Roland trocou um olhar com Alicia e depois com Max.

— Roland - disse Max, fazendo um esforço para encontrar palavras que não ferissem seu amigo, há algo nessa história que não encaixa. Acredito que seu avô não lhe contou tudo.

Roland permaneceu calado uns segundos. Logo, com um débil sorriso nos lábios, olhou para os dois irmãos e assentiu várias vezes, muito lentamente.

— Sei - murmurou. — Sei.

 

Irina sentiu como suas mãos tremiam ao tentar forçar o puxador da porta sem nenhum resultado. Sem fôlego, voltou-se e se encolheu com todas as suas forças contra a porta do quarto. Não pôde evitar cravar seus olhos na chave que girava na fechadura do armário. Finalmente, a chave deteve seu giro e, impulsionada por dedos invisíveis, caiu ao chão. Muito lentamente, a porta do armário começou a abrir-se. Irina tratou de gritar, mas sentiu que lhe faltava o ar para articular apenas um sussurro. Da penumbra do armário, surgiram dois olhos brilhantes e familiares. Irina suspirou. Era seu gato. Era tão somente seu gato. Por um segundo tinha acreditado que o coração lhe ia parar de puro pânico. Ajoelhou-se para levantar o felino e reparou então que por trás do gato, no fundo do armário, havia alguém mais. O felino abriu sua boca e emitiu um assobio grave e estremecedor, como o de uma serpente, para depois fundir-se na escuridão com seu amo. Um sorriso de luz se acendeu na trevas e dois olhos brilhantes como ouro candente se pousaram sobre os seus enquanto aquelas vozes, em uníssono, pronunciaram seu nome. Irina gritou com todas as suas forças e se lançou contra a porta, que cedeu ao seu impulso fazendo-a cair no chão do corredor. Sem recuperar o fôlego, equilibrou-se nas escada, sentindo o bafo frio daquelas vozes na nuca.

Em uma fração de segundo, Andrea Carver contemplou paralisada a sua filha Irina saltar do alto da escada com o rosto rubro de pânico. Gritou seu nome, mas já era muito tarde. A pequena caiu rodando como um peso morto até ao último degrau. Andrea Carver se lançou aos pés da menina e tomou a cabeça em seus braços. Uma lágrima de sangue rolava na frente. Apalpou seu pescoço e sentiu o pulso débil. Lutando contra a histeria, Andrea Carver elevou o corpo de sua filha e tratou de pensar o que devia fazer naquele momento. Enquanto os piores cinco segundos de sua vida desfilavam perante ela com infinita lentidão, Andrea Carver elevou a vista para o alto da escada. Do último degrau, o gato de Irina a escrutinava fixamente. Sustentou o olhar cruel e zombador do animal durante uma fração de segundo e depois, sentindo o corpo de sua filha pulsar em seus braços, reagiu e correu para o telefone.

 

Quando Max, Alicia e Roland chegaram à casa da praia, o carro do médico ainda estava ali. Roland dirigiu a Max um olhar interrogador. Alicia saltou da bicicleta e correu para o alpendre, consciente de que algo de mau se passava. Maximilian Carver, com os olhos frágeis e o semblante pálido os recebeu na porta.

— O que se passou? - murmurou Alicia.

Seu pai a abraçou. Alicia deixou que os braços do Maximilian Carver a rodeassem e sentiu o tremor de suas mãos.

— Irina teve um acidente. Está em coma. Estamos esperando a ambulância para levá-la ao hospital.

— Mamãe está bem? - gemeu Alicia.

— Está lá dentro. Com a Irina e o médico. Aqui não se pode fazer nada mais - respondeu o relojoeiro com a voz oca e lenta.

Roland, calado e imóvel ao pé do alpendre, engoliu a saliva.

— Ficará boa? - perguntou Max, pensando que a pergunta resultava estúpida naquelas circunstâncias.

— Não sabemos - murmurou Maximilian Carver, que tratou inutilmente de sorrir e entrou de novo em casa .

— Vou ver se sua mãe necessita algo.

Os três amigos ficaram cravados no alpendre, silenciosos como tumbas. Depois de uns segundos, Roland rompeu o silêncio.

— Sinto muito ...

Alicia assentiu. Passado pouco tempo a ambulância saíu da estrada e se aproximou da casa. O médico saiu para recebê-la. Em questão de minutos, os dois enfermeiros entraram na casa e colocaram Irina numa maca, envolta em uma manta. Max de relance teve uma visão do rosto branco como cal de sua irmã pequena e sentiu que o estômago lhe caía aos pés. Andrea Carver, com o rosto crispado e os olhos inchados e avermelhados, subiu para a ambulância e dirigiu um último olhar desesperado a Alicia e a Max. Os enfermeiros correram a seus postos. Maximilian Carver se aproximou dos dois irmãos.

— Eu não gosto que fiquem sozinhos. Há um pequeno hotel no povoado; talvez...

— Não nos vai acontecer nada, papai. Agora não se preocupe com mais nada - respondeu Alicia.

— Ligarei do hospital e lhes deixarei o número. Não sei o tempo que estaremos fora. Não sei, se houver algo que...

— Vá, papai - cortou Alicia, abraçando seu pai. — Tudo sairá bem.

Maximilian Carver esboçou um último sorriso entre lágrimas e subiu para a ambulância. Os três amigos contemplaram em silêncio as luzes da ambulância perderem-se na distância enquanto os últimos raios do sol adoeciam sobre o manto púrpura do crepúsculo.

— Tudo sairá bem - repetiu Alicia para si mesma.

 

Quando acabaram de procurar roupa seca (Alicia emprestou ao Roland umas calças e uma camisa velha de seu pai), a espera das primeiras notícias se tornou interminável. As luas sorridentes da esfera do relógio do Max indicavam que faltavam apenas uns minutos para as onze da noite quando soou o telefone. Alicia, que estava sentada entre Roland e Max nos degraus do alpendre, levantou-se de um salto e correu para o interior da casa. Antes que o telefone acabasse de tocar pela segunda vez, pegou no auricular e olhou para Max e Roland, assentindo.

— De acordo - disse, depois de uns segundos. — Como está mamãe?

Max podia escutar o murmúrio da voz de seu pai através do telefone.

— Não se preocupe - disse Alicia. — Não. Não faz falta. Sim, estaremos bem. Ligue amanhã.

Alicia fez uma pausa e assentiu.

— Farei-o - assegurou . Boa noite, papai.

Alicia pendurou o telefone e olhou para seu irmão.

— Irina está em observação - explicou. — Os médicos disseram que tem uma contusão, mas continua em coma. Dizem que se curará.

— Tem certeza que disseram isso? - perguntou Max. — E mamãe?

— Imagine. De momento passarão ali esta noite. Mamãe não quer ir para um hotel. Voltarão a ligar amanhã às dez.

— E agora, o que vamos fazer? - perguntou timidamente Roland.

Alicia encolheu os ombros e tratou de desenhar um sorriso tranquilizador em seu rosto.

— Alguém tem fome? - perguntou aos dois moços.

Max se surpreendeu a si mesmo ao descobrir que estava faminto. Alicia suspirou e esboçou um sorriso de cansaço.

— Parece-me que aos três seria bom jantar algo - concluiu. — Votos contra?

Em uns minutos, Max preparou uns sanduíches enquanto Alicia espremia uns limões para fazer limonada. Os três amigos jantaram na bancada do alpendre, sob a tênue claridade amarelada do lampião que ondulava à brisa noturna, envolta numa nuvem dançante de pequenas mariposas da noite. Frente a eles, a lua cheia se elevava sobre o mar e conferia à superfície da água a aparência de um lago infinito de metal incandescente. Jantaram em silêncio, contemplando o mar e escutando o murmúrio das ondas. Quando tinham dado conta de boa parte dos sanduíches e da limonada, os três amigos trocaram um olhar de cumplicidade.

— Não acredito que esta noite vou pregar o olho - disse Alicia, levantando-se e observando o horizonte de luz no mar.

—Não acredito que alguém pregue o olho esta noite - corroborou Max.

— Tenho uma idéia - disse Roland com um sorriso malicioso nos lábios. — Vocês alguma vez se banharam de noite?

— É uma brincadeira? - espetou Max.

Sem dizer uma palavra, Alicia olhou para os dois moços, com olhos brilhantes e enigmáticos, e caminhou tranquilamente para a praia. Max contemplou atônito como sua irmã entrava no areal e, sem olhar para trás, se desprendia do vestido de algodão branco. Alicia se deteve uns segundos à beira da margem, a pele pálida e brilhante sob a claridade evanescente e azulada da Lua, e depois, lentamente, seu corpo se inundou naquela imensa balsa de luz.

— Não vem, Max? - disse Roland, seguindo os passos de Alicia no areal.

Max negou em silêncio, observando como seu amigo mergulhava no mar e escutou as risadas de sua irmã entre os sussurros do mar.

Permaneceu ali em silêncio, pensando se aquela palpavel corrente elétrica que parecia vibrar entre o Roland e sua irmã, um vínculo que escapava a sua definição e ao qual se sentia alheio, o entristecia ou não. Enquanto os via brincar na água Max soube, provavelmente antes que eles mesmos o advertissem, que entre ambos se estava formando um estreito laço que os haveria de unir num destino irrebatível durante aquele verão.

Ao pensar nisso vieram a sua mente as sombras da guerra que se livrava há pouco e longe daquela praia, uma guerra sem rosto que muito em breve reclamaria seu amigo Roland e, talvez, a ele mesmo. Pensou também em tudo o que tinha acontecido durante aquele longo dia, da visão fantasmagórica do Orpheus sob as águas, o relato de Roland na cabana da praia e o acidente de Irina. Longe das risadas da Alicia e Roland, uma profunda inquietação se apoderou de seu ânimo. Sentia que, pela primeira vez em sua vida, o tempo corria mais rápido do que desejava e que já não podia refugiar-se no sonho dos anos passados. A roda da fortuna tinha começado a girar e, desta vez, ele não tinha atirado os dados do jogo.

 

Mais tarde, à luz de uma improvisada fogueira na areia, Alicia, Roland e Max falaram pela primeira vez do que estava rondando nas suas cabeça faziam horas. A luz dourada do fogo se refletia nos rostos úmidos e brilhantes de Alicia e Roland. Max observou-os atentamente e decidiu a falar.

— Não sei como explicá-lo, mas acredito que algo está acontecendo - começou. — Não sei o que é, mas há muitas coincidências. As estátuas, esse símbolo, o navio...

Max esperava que ambos o contradissessem ou que, com palavras de sensatez que ele não acertava em encontrar, o tranquilizassem e lhe fizessem ver que suas inquietações eram produto de um dia muito longo, que tinham acontecido muitas coisas que ele havia tomado muito a sério. Entretanto, nada disso aconteceu. Alicia e Roland assentiram em silêncio, sem afastar os olhos do fogo.

— Você sonhou com aquele palhaço, não é verdade? - perguntou Max.

Alicia assentiu.

— Há algo que não nos disse antes - continuou Max. — Ontem à noite, quando todos foram dormir, voltei a ver o filme que Jacob Fleischmann tinha rodado no jardim de estátuas. Eu estive nesse jardim faz dois dias. As estátuas estavam em outra posição, não sei,.é como tivessem se movido. O que eu vi não era o que mostrava o filme.

Alicia olhou para Roland, que contemplava enfeitiçado a dança das chamas no fogo.

— Roland, alguma vez seu avô falou de tudo isto?

O moço pareceu não ter escutado a pergunta. Alicia posou sua mão sobre a mão do Roland e este elevou o olhar.

— Sonhei com esse palhaço em cada verão desde os cinco anos - disse em um fio de voz.

Max leu o medo no rosto de seu amigo.

— Acredito que teremos que falar com seu avô, Roland - disse Max.

Roland assentiu fracamente.

— Amanhã - prometeu com uma voz quase inaudível. — De manhã.

 

Pouco antes do amanhecer, Roland montou de novo sua bicicleta e pedalou de volta à casa do farol. Enquanto percorria a estrada da praia, um pálido resplendor âmbar começava a tingir o céu com uma abóbada de nuvens baixas. Sua mente ardia de inquietação e excitação. Acelerou a marcha até o limite de suas forças, com a vã esperança de que o castigo físico aplacasse os milhares de interrogações e temores que o golpeavam interiormente.

Uma vez cruzada a baía do porto e depois de dirigir-se para o caminho ascendente que conduzia ao farol, Roland deteve a bicicleta e recuperou o fôlego. No alto dos escarpados, o feixe do farol fatiava as últimas sombras da noite como uma lâmina de fogo através da névoa. Sabia que seu avô permanecia ainda ali, espectador e silencioso, e que não deixaria seu posto até que a escuridão se desvanecesse completamente à luz da alvorada. Durante anos, Roland tinha convivido com aquela doentia obsessão do ancião sem questionar, nem a razão nem a lógica de sua conduta. Era simplesmente algo que tinha assimilado desde menino, uma faceta mais de sua vida diária que tinha aprendido a não dar importância.

Entretanto, com o tempo Roland tinha tomado consciência de que a história do ancião tinha algo secreto. Mas nunca até hoje tinha compreendido tão claramente que seu avô lhe tinha mentido ou, pelo menos, não lhe tinha contado toda a verdade. Não duvidava nem por um instante da honestidade do velho. De fato, com o passar dos anos seu avô lhe tinha desvendando pedaço a pedaço as peças daquele estranho quebra-cabeças cujo centro parecia agora tão claro: o jardim de estátuas. Umas vezes com palavras pronunciadas em sonhos; outras vezes, a maior parte, com respostas incompletas às perguntas que Roland lhe formulava.

De algum jeito intuía que se seu avô o tinha mantido à margem de seu segredo, era para o proteger. Aquele estado de graça, entretanto, parecia chegar ao fim e a hora de enfrentar a verdade estava cada vez mais próxima.

Empreendeu de novo a marcha enquanto tratava de apagar por um momento aquele tema de seu pensamento. Tinha acordado há muitas horas e seu corpo começava a acusar a fadiga. Uma vez que chegou à casa do farol, deixou a bicicleta apoiada sobre a cerca e entrou em casa sem incomodar-se em acender a luz. Subiu as escadas até seu quarto e desabou sobre a cama como um peso morto.

Da janela do quarto podia avistar o farol, que se elevava a uns trinta metros da casa, e, por detrás das vidraças de sua vigia, a silhueta imóvel de seu avô. Fechou os olhos e tratou de conciliar o sono.

Os acontecimentos daquela jornada desfilaram por sua mente, desde a descida submarina ao Orpheus ao acidente da pequena irmã de Alicia e Max. Roland pensou que era estranho e reconfortante uma vez comprovar como apenas umas horas juntos os tinham unido tanto. Ao pensar agora na solidão de sua habitação, nos dois irmãos, sentia como se eles fossem desde aquele dia seus dois amigos mais íntimos, os dois companheiros com os quais compartilharia todos seus segredos e suas inquietações. Comprovou que só o fato de pensar neles lhe transmitia uma sensação de segurança e companhia e que, em correspondência, ele sentia uma profunda lealdade e gratidão por aquele pacto invisível que parecia tê-los unido naquela noite na praia.

Quando finalmente o cansaço superou a excitação acumulada ao longo de todo o dia, os últimos pensamentos de Roland enquanto caminhava para um sono profundo e reparador não foram para a misteriosa incerteza que se abatia sobre eles nem para a sombria possibilidade de ser chamado a combater durante o outono. Aquela noite, Roland dormiu plácidamente nos braços de uma visão que teria que o acompanhar durante o resto de sua vida: Alicia, apenas envolta na claridade da Lua, sua pele branca submergia num mar de luz de prata.

O dia amanheceu sob um manto de nuvens escuras e ameaçadoras que se estendiam desde o ponto mais longinquo do horizonte e filtravam uma luz mortiça e nebulosa que fazia pensar em um frio dia de inverno. Apoiado no corrimão metálico do farol, Victor Kray contemplou a baía a seus pés e pensou que os anos no farol lhe tinham ensinado a reconhecer a estranha e misteriosa beleza murcha daqueles dias aborrecidos e vestidos de tormenta que pressagiavam a eclosão do verão na costa.

Da atalaia do farol o povoado adquiria a curiosa aparência de uma maquete cuidadosamente construída por um colecionador. Mais à frente, encaixada a norte, estendia-se a praia como uma linha branca interminável. Em dias de sol intenso, do mesmo lugar onde agora observava Victor Kray, o casco do Orpheus podia distinguir-se claramente sob o mar, como se se tratasse de um enorme fóssil mecânico parado na areia. Aquela manhã, entretanto, o mar balançava como um lago escuro e sem fundo. Enquanto escrutinava a superfície impenetrável do oceano, Victor Kray pensou nos últimos vinte anos que tinha passado naquele farol que ele mesmo tinha construído. Ao olhar para trás, sentia cada um desses anos como uma pesada laje em suas costas.

Com o tempo, a angústia secreta daquela espera interminável o tinha feito pensar que talvez tudo tenha sido uma ilusão e que sua obstinada obsessão o tinha convertido no sentinade uma ameaça que só tinha existido em sua própria imaginação. Mas, uma vez mais, os sonhos haviam voltado. Por fim, os fantasmas do passado tinham despertado de um sonho de longos anos e voltaram a percorrer os corredores de sua mente. E com eles, havia voltado o temor de ser já muito velho e débil para confrontar o seu antigo inimigo.

Fazia anos que tinha mais dedos numa mão do que as horas que dormia, apenas três horas diárias; o resto de seu tempo passava praticamente sozinho no farol. Seu neto Roland tinha por costume dormir várias noites por semana em sua cabana da praia e não era estranho que às vezes, durante dias, passassem juntos um par de minutos. Aquele afastamento de seu próprio neto ao que Victor Kray se condenou voluntariamente lhe proporcionava pelo menos uma certa paz de espírito, pois tinha a certeza de que a dor que sentia por não poder compartilhar aqueles anos da vida do moço era o preço que deveria pagar pela segurança e a felicidade futuras de Roland.

Apesar de tudo, cada vez que da torre do farol via como o moço mergulhava nas águas da baía junto ao casco do Orpheus, sentia que lhe gelava o sangue. Nunca queria que Roland tivesse percepção disso e desde sua infância tinha respondido a suas perguntas sobre o navio e sobre o passado tratando de não mentir e, ao mesmo tempo, de não lhe contar a verdadeira natureza dos fatos. No dia anterior, enquanto contemplava Roland e seus dois novos amigos na praia, se perguntou se aquele não teria sido um erro grave.

Estes pensamentos o mantiveram no farol durante mais tempo do que era costume passar em cada manhã. Habitualmente, voltava para casa antes das oito. Victor Kray olhou seu relógio e comprovou que já passavam das dez e meia. Desceu a espiral metálica da torre para ir para casa e aproveitar as escassas horas de sono que seu corpo lhe permitia. Pelo caminho, viu que a bicicleta do Roland estava ali e que o moço tinha vindo passar a noite. Quando entrou na casa, tentando não fazer ruído para não alterar o sono de seu neto, descobriu que Roland o esperava, sentado em uma das velhas poltronas da sala de jantar.

— Não podia dormir, avô - disse Roland, sorrindo ao ancião. — Dormi um par de horas como um tronco e depois despertei de repente sem conseguir voltar a dormir.

— Sei o que é isso - respondeu Victor Kray, mas conheço um truque infalível.

— Qual é? - inquiriu Roland.

O ancião exibiu seu maroto sorriso, capaz de lhe arrebatar sessenta anos de cima.

— Ficar cozinhando. Tem fome?

Roland considerou a pergunta. O certo é que a imagem de torradas com manteiga, geléia e ovos esquentados lhe produzia uma comichão no estômago. Sem dar mais voltas, assentiu.

— Bem - disse Victor Kray. — Você será o ajudante. Andando.

Roland seguiu seu avô até a cozinha e se dispôs a seguir as instruções do ancião.

 

— Como eu sou o engenheiro - explicou Victor Kray, eu fritarei os ovos. Você prepara as torradas.

Em questão de minutos, avô e neto conseguiram encher a cozinha de fumaça e impregnar a casa daquele aroma irresistível a café da manhã recém preparado. Logo, ambos se sentaram frente a frente à mesa da cozinha e brindaram com seus copos transbordantes de leite fresco.

— O café da manhã de pessoas que têm de crescer - brincou Victor Kray, atacando com voracidade fingida sua primeira torrada.

— Ontem estive no navio - disse Roland em voz baixa, baixando a vista.

— Sei - disse e continuou sorrindo e mastigando. — Alguma novidade?

Roland duvidou um segundo, deixou o copo de leite e olhou para o ancião que tratava de manter seu semblante risonho e despreocupado.

— Acredito que algo de mal está ocorrendo, avô - disse finalmente, algo que tem a ver com umas estátuas.

Victor Kray sentiu que lhe formava um nó de aço no estômago. Deixou de mastigar e abandonou a torrada meio comida.

— Este meu amigo, Max, viu coisas - continuou Roland.

— Onde vive seu amigo? - perguntou o ancião, com voz serena.

— Na velha casa dos Fleischmann, na praia.

Victor Kray assentiu lentamente.

— Roland, me conte tudo o que você e seus amigos viram. Por favor.

Roland encolheu os ombros e relatou as incidências dos últimos dois dias, desde que tinha conhecido Max até a noite que acabava de finalizar.

Quando tinha terminado seu relato, olhou para o seu avô, tratando de ler seus pensamentos. O ancião, imperturbável, dedicou-lhe um sorriso tranquilizador.

— Acabe seu café da manhã, Roland - indicou.

— Mas?... - protestou o moço.

— Logo, quando tiver acabado, vá procurar seus amigos e traga-os aqui - explicou o ancião. — Temos muito do que falar.

 

Às 11.34 daquela manhã, Maximilian Carver telefonou do hospital para comunicar a seus filhos as últimas novidades. A pequena Irina estava melhorando lentamente, mas os médicos ainda não se atreviam a assegurar que estivesse fora de perigo. Alicia comprovou que a voz de seu pai refletia uma certa calma e que o pior já tinha passado .

Cinco minutos mais tarde, o telefone soou de novo. Desta vez era Roland, que ligava do café do povoado. Ao meio dia, encontrariam-se no farol. Quando Alicia pendurou o telefone, o olhar enfeitiçado que Roland lhe dirigiu a noite anterior na praia voltou para sua mente. Sorriu para si mesmo e saiu ao alpendre, para comunicar a Max as notícias. Distinguiu a silhueta de seu irmão sentado na areia, olhando o mar. No horizonte, os primeiros riscos de uma tormenta elétrica acenderam uma fagulha de luz na abóbada do céu. Alicia caminhou até a borda e se sentou junto a seu irmão. O ar frio daquela manhã feria a pele e desejou ter trazido consigo um bom pulôver.

— Ligou Roland - disse Alicia. — Seu avô quer nos ver.

Max assentiu em silêncio, sem afastar o olhar do mar. Um raio que caía sobre o oceano quebrou a linha do céu.

— Você gosta de Roland, verdade? - perguntou Max, brincando com um punhado de areia entre os dedos.

Alicia considerou a pergunta de seu irmão durante uns segundos.

— Sim - respondeu. — E acredito que eu também sou do gosto dele . Por que, Max?

Max encolheu os ombros e lançou um punhado de areia até a linha onde rompia a maré.

— Não sei - disse Max. — Pensava no que disse Roland sobre a guerra e isso. Que seria melhor se o recrutassem depois do verão... É igual. Suponho que não é meu assunto.

Alicia se voltou para seu irmão pequeno e procurou o olhar evasivo de Max. Arqueava as sobrancelhas do mesmo modo que Maximilian Carver e seus olhos cinzas refletiam, como sempre, muito nervos sepultados ao mesmo nível da pele.

Alicia rodeou com os seus braços os ombros de Max e lhe beijou a face.

— Vamos para dentro - disse, sacudindo a areia que tinha colado ao vestido .— Aqui faz frio.

 

Quando chegaram ao pé do caminho que subia para o farol, Max sentiu que os músculos de suas pernas se converteriam em manteiga em questão de segundos. Antes de partir, Alicia tinha decidido pegar a outra bicicleta que ainda dormia na sombra do abrigo, mas Max tinha se desdenhado da idéia, oferecendo-se para levá-la tal como Roland havia feito no dia anterior. Um quilômetro depois, Max tinha começado a arrepender-se de sua bravura.

Como se seu amigo tivesse intuído seu sofrimento durante a longa marcha, Roland esperava com sua bicicleta na boca do caminho. Ao vê-lo, Max deteve a marcha e deixou que sua irmã descesse. Respirou profundamente e massageou as coxas, duras pelo esforço.

— Acredito que encolheste 4 ou 5 centímetros - disse Roland.

Max decidiu não desperdiçar fôlego respondendo à brincadeira. Sem dizer uma palavra, Alicia subiu à bicicleta de Roland e empreenderam de novo o caminho. Max esperou uns segundos antes de começar a pedalar outra vez, pela costa acima. Já sabia onde ia gastar seu primeiro salário: em uma motocicleta.

 

A pequena sala de jantar da casa do farol cheirava a café recém feito e a tabaco de cachimbo. O piso e as paredes eram de madeira escura e, à exceção de uma imensa livraria e alguns objetos marinhos que Max não pôde identificar, estava pouco decorado. Uma lareira para queimar lenha e uma mesa coberta com um manto de veludo escuro rodeada de velhas poltronas de pele descolorida eram todo o luxo com o que Victor Kray se rodeou.

Roland indicou a seus amigos que tomassem assento nas poltronas e se acomodou em uma cadeira de madeira entre ambos. Esperaram durante cinco minutos, sem pronunciar una palavra, enquanto escutavam os passos do ancião no piso de cima.

Finalmente, o velho faroleiro fez sua aparição. Não era tal e qual Max o tinha imaginado. Victor Kray era um homem de média estatura, tez pálida e um generoso arbusto de cabelo prateado coroava um rosto que não refletia sua verdadeira idade.

Seus olhos verdes e penetrantes percorreram lentamente o semblante dos dois irmãos, como se tratassem de ler seus pensamentos. Max sorriu nervosamente perante o olhar escrutinador do ancião. Victor Kray lhe correspondeu com um afável sorriso que iluminou seu semblante.

— São as primeiras visitas que recebo em muitos anos - disse o faroleiro, tomando assento em uma das poltronas. — Terão que desculpar minhas maneiras. De qualquer modo, quando eu era um pirralho, pensava que cortesia era uma soberana estupidez. E ainda penso.

— Nós não somos pirralhos, avô - disse Roland.

— Qualquer um mais jovem que eu o é - respondeu Victor Kray. — Você deve ser Alicia. E você, Max. Não é preciso ser muito esperto para deduzi-lo, né?

Alicia sorriu calidamente. Não fazia dois minutos que o tinha conhecido, mas o aspecto malicioso do ancião resultava encantador. Max, por sua parte, estudava o rosto do ancião, tentando imaginá-lo encerrado naquele farol durante décadas, guardião do segredo do Orpheus.

— Sei o que devem estar pensando - explicou Victor Kray. — É verdade tudo o que vimos ou acreditamos ter visto estes últimos dias? A verdade é que nunca pensei que chegaria o momento em que tivesse que falar deste tema com ninguém, nem sequer com Roland. Mas sempre acontece o contrário do que esperamos, não é assim?

Ninguém lhe respondeu.

— Está bem. Ao grão. Primeiro me contem tudo o que sabem. E quando digo tudo é "tudo". Incluindo os detalhes que lhes possam parecer insignificantes. Tudo. Entendido?

Max olhou para seus companheiros.

— Começo eu? - sugeriu.

Alicia e Roland assentiram. Victor Kray lhe fez um gesto para que iniciasse seu relato.

Durante a seguinte meia hora, Max relatou sem pausa tudo quanto se recordava perante o olhar atento do ancião, que escutou suas palavras sem o menor indício de incredulidade nem, como esperava Max, de assombro.

Quando Max tinha finalizado sua história, Victor Kray pegou seu cachimbo e o preparou metodicamente.

— Não está mal - murmurou. Não está mal...

O faroleiro acendeu o cachimbo e uma nuvem de fumaça com aroma adocicado alagou a sala. Victor Kray saboreou lentamente uma baforada e relaxou em sua poltrona. Logo, olhando nos olhos de cada um dos três moços, começou a falar...

"Este outono farei setenta e dois anos e, embora tenha o consolo de saber que não os aparento, cada um deles me pesa como uma laje às costas. A idade nos faz ver certas coisas. Por exemplo, agora sei que a vida de um homem se divide basicamente em três períodos. No primeiro, a gente nem sequer pensa que envelhecerá, nem que o tempo passa nem que, desde o primeiro dia quando nascemos, caminhamos para um único fim. Passada a primeira juventude, começa o segundo período, no qual nos damos conta da fragilidade da própria vida e aquilo que no princípio é uma simples inquietação vai crescendo no interior com muitas dúvidas e incertezas que nos acompanharão durante o resto de nossos dias. Por último, no final da vida, abre-se o terceiro período, o da aceitação da realidade e, consequentemente, a resignação e a espera. Ao longo de minha vida conheci muitas pessoas que ficaram ancoradas em algum desses estágios e nunca conseguiram superá-los. É algo terrível.

Victor Kray comprovou que os três moços o observavam atentamente e em silêncio, mas cada um dos seus olhares parecia perguntar-se do que ele estava falando. Deteve-se para saborear uma baforada de seu cachimbo e sorriu para a sua pequena audiência.

"Esse é um caminho que cada um de nós deve aprender a percorrer sozinho, rogando a Deus para que ajude a não extraviar antes de chegar ao final. Se todos fôssemos capazes de compreender no início da nossa vida isto, que parece tão simples, boa parte das misérias e penas deste mundo não chegariam a produzir-se jamais. Mas, e esse é um dos grandes paradoxos do universo, só nos concede essa graça quando já é muito tarde. Fim da lição. Perguntarão por que lhes explico tudo isto. Lhes direi isso. Às vezes, uma entre um milhão, ocorre que alguém, muito jovem, compreende que a vida é um caminho sem retorno e decide que esse jogo não vai com ele. É como se decidisse fazer armadilhas em um jogo que você não gosta. A maioria das vezes o descobrem e a armadilha se acaba. Mas outras, o trapaceiro se saí com a sua. E quando em vez de jogar com um jogo de dados ou naipes, se joga com a vida e a morte, esse trapaceiro se converte em alguém muito perigoso.

Faz muitíssimo tempo, quando eu tinha a vossa idade, a vida cruzou o meu destino com um dos maiores trapaceiros que pisaram neste mundo. Nunca cheguei a conhecer seu verdadeiro nome. Na favela onde eu vivia, todos os meninos da rua o conheciam como Caín. Outros lhe chamavam de Príncipe da Névoa, porque, segundo os falatórios, sempre emergia de uma densa névoa que cobria os becos noturnos e, antes da alvorada, desaparecia de novo nas trevas.

Caín era um homem jovem e de aparência agradável, cuja origem ninguém sabia explicar. Todas as noites, em algum dos becos do bairro, Caín reunia os moços esfarrapados e cobertos pela imundície e a fuligem das fábricas e lhes propunha um pacto. Cada um podia formular um desejo e ele o tornaria realidade. Em troca, Caín só pedia uma coisa: a lealdade absoluta. Uma noite, Angus, meu melhor amigo, levou-me a uma das reuniões de Caín com os meninos do bairro. O tal Caín vestia como um cavalheiro saído da ópera e sempre sorria. Seus olhos pareciam trocar de cor na penumbra e sua voz era grave e pausada. Segundo os meninos, Caín era um mago. Eu, que não tinha acreditado uma só palavra de todas as histórias que sobre ele circulavam no bairro, vinha naquela noite disposto a rir do suposto mago. Entretanto, recordo que, perante a sua presença, qualquer indício de brincadeira se pulverizou no ar. Assim que o vi, a única coisa que senti foi medo e, por isso, me contive de pronunciar uma só palavra. Naquela noite vários dos guris da rua formularam seus desejos a Caín. Quando todos haviam terminado, Caín dirigiu seu olhar de gelo ao recanto onde estávamos, meu amigo Angus e eu. Perguntou-nos se nós não tínhamos nada para pedir. Eu fiquei calado, mas Angus, perante minha surpresa, falou. Seu pai tinha perdido o emprego naquele dia. A fundição em que trabalhava a grande maioria dos adultos do bairro estava despedindo pessoal e substituindo-os por máquinas que trabalhavam mais horas e não abriam a boca. Os primeiros a ir para a rua tinham sido os líderes mais conflituosos entre os trabalhadores. O pai do Angus tinha quase todos os números naquela rifa.

Desde aquela mesma tarde, seguir com a vida adiante, de Angus e seus cinco irmãos, que se empilhavam em uma miserável casa de tijolo podre pela umidade, se converteu num fardo impossível. Angus, com um fio de voz, formulou sua petição a Caín, pediu: que seu pai fosse readmitido na fundição. Caín assentiu e, tal como me haviam dito, caminhou de novo para a névoa, desaparecendo. No dia seguinte, o pai de Angus foi inexplicavelmente chamado de novo para trabalhar. Caín tinha cumprido a sua palavra.

Duas semanas mais tarde, Angus e eu voltávamos para casa de noite depois de visitar uma feira ambulante que se instalou nos subúrbios da cidade. Para não nos atrasar demais da conta, decidimos tomar um atalho e seguir o caminho da velha via de trem abandonada. Caminhávamos por aquela paragem sinistra à luz da Lua quando descobrimos que, entre a névoa, emergia uma silhueta envolta em uma capa com uma estrela de seis pontas dentro de um círculo e gravada em ouro, caminhando para nós pelo centro da via morta. Era o Príncipe da Névoa. Ficamos petrificados. Caín se aproximou de nós e, com seu sorriso habitual, dirigiu-se a Angus. Explicou-lhe que tinha chegado o momento de lhe devolver o favor. Angus, visivelmente aterrorizado, assentiu. Caín disse que sua petição era simples: um pequeno ajuste de contas. Naquela época o personagem mais rico do bairro, o único rico na realidade, era Skolimoski, um comerciante polaco que possuía um armazém de comida e roupa em que toda a vizinhança se abastecia. A missão de Angus era pôr fogo no armazém de Skolimoski. O trabalho devia ser realizado na noite seguinte. Angus tratou de protestar, mas as palavras não lhe chegaram à garganta. Havia algo nos olhos de Caín que deixava muito claro que não estava disposto a aceitar nada mais que a obediência absoluta. O mago partiu como tinha vindo.

Corremos de volta e, quando deixei Angus na porta de sua casa, o olhar de terror que enchia seus olhos me encolheu o coração. No dia seguinte o procurei pelas ruas, mas não havia nem rastro dele. Começava a temer que meu amigo se havia proposto a cumprir a criminosa missão que Caín lhe tinha encomendado e decidi montar guarda em frente ao armazém de Skolimoski ao cair a noite. Angus nunca se apresentou e, naquela madrugada, a loja do polaco não incendiou. Senti-me culpado por ter duvidado de meu amigo e supus que o melhor que podia fazer era o tranquiliza-lo por que, o conhecendo bem, devia estar escondido em sua casa tremendo de medo perante a possível represália do fantasmagórico mago. Na manhã seguinte me dirigi a sua casa. Angus não estava ali. Com lágrimas nos olhos sua mãe me disse que tinha desaparecido toda a noite e me rogou que o procurasse e o levasse de volta a casa.

Com o estômago às voltas, percorri o bairro de cima abaixo sem deixar nem um só de seus pestilentos recantos rastreado. Ninguém o tinha visto. Ao entardecer, exausto e sem saber já onde procurar, uma estranha intuição me assaltou. Voltei ao caminho da velha via do trem e segui o rastro dos trilhos que brilhavam fracamente sob a Lua na escuridão da noite. Não tive que caminhar muito. Encontrei meu amigo estendido na via, no mesmo lugar onde duas noites antes Caín chegara emerso na névoa. Quis procurar seu pulso, mas minhas mãos não encontraram pele naquele corpo. Só gelo. O corpo de meu amigo se transformou em uma grotesca figura de gelo azul e fumegante que se fundia lentamente sobre os trilhos abandonados. Em torno de seu pescoço, uma pequena medalha mostrava o mesmo símbolo que recordava ter visto gravado na capa de Caín, a estrela de seis pontas envolta em um círculo. Permaneci junto a ele até que os rasgos de seu rosto se desvaneceram para sempre em um atoleiro de lágrimas geladas na escuridão.

Aquela mesma noite, enquanto eu comprovava horrorizado o destino de meu amigo, o armazém de Skolimoski foi destruído em um terrível incêndio. Nunca expliquei a ninguém o que meus olhos tinham presenciado naquele dia.

Dois meses mais tarde, minha família se mudou para o sul, longe dali e muito em breve, com o passar dos meses, comecei a acreditar que o Príncipe da Névoa era só uma lembrança amarga dos escuros anos vividos à sombra daquela cidade pobre, suja e violenta de minha infância... Até que o voltei a ver e compreendi que aquilo não tinha sido mais que o princípio”.

 

"Meu segundo encontro com o Príncipe da Névoa foi durante uma noite em que meu pai, que tinha sido promovido a técnico chefe de uma seção têxtil, levou-nos a todos a uma grande feira de atrações construída sobre uma plataforma de madeira que entrava no mar como um palácio de cristal suspenso no céu. Ao anoitecer, o espetáculo das luzes multicoloridos das atrações sobre o mar era impressionante. Eu nunca tinha visto nada tão formoso. Meu pai estava eufórico: tinha resgatado sua família do que parecia ser um futuro miserável no norte e agora era um homem de posição, considerado e com suficiente dinheiro nas mãos para que seus filhos desfrutassem das mesmas diversões que qualquer menino da capital. Jantamos logo e meu pai deu-nos umas moedas para que as gastássemos no que mais gostassemos, enquanto ele e minha mãe passeavam de braço dados com os aldeãos trajados e os turistas de prestígio.

Fascinava-me uma enorme roda que girava sem cessar em um dos extremos da plataforma e cujos reflexos se podiam ver desde várias milhas em toda a costa. Corri para a parte de trás da roda e, enquanto esperava, reparei em um dos barracos que havia a poucos metros. Entre tômbolas e barracos de tiro, uma intensa luz púrpura iluminava o misterioso barraco de um tal Dr.Caín, adivinho, mago e vidente, conforme escrito em um pôster onde um desenhista de terceira categoria tinha desenhado o rosto de Caín olhando ameaçadoramente para os curiosos que se aproximavam da nova guarida do Príncipe da Névoa. O pôster e as sombras que o lampião púrpura projetava sobre o barraco lhe conferiam um aspecto macabro e lúgubre. Uma cortina com a estrela de seis pontas bordada a negro velava a passagem para o interior.

Enfeitiçado por aquela visão, afastei-me do fundo da roda e me aproximei até a entrada do barraco. Estava tentando ver o interior através da estreita fresta quando a cortina se abriu de repente e uma mulher vestida de negro, pele branca como o leite e olhos escuros e penetrantes fez um gesto para me convidar a passar. No interior pude distinguir, sentado atrás de uma escrivaninha à luz de um candeeiro, aquele homem que tinha conhecido muito longe dali com o nome de Caín. Um grande gato escuro de olhos dourados se lambia a seus pés.

Sem pensar duas vezes, entrei e me dirigi até a mesa onde me esperava o Príncipe da Névoa, sorridente. Ainda recordo sua voz, grave e pausada, pronunciando meu nome sobre um murmúrio de fundo da hipnótica música de realejo de um carrossel que parecia estar muito, muito longe de ali"...

— Victor, meu bom amigo - sussurrou Caín. — Se não fosse um adivinho, diria que o destino deseja unir nossos caminhos de novo.

— Quem é você? - conseguiu articular o jovem Victor, enquanto observava pela extremidade do olho aquela mulher fantasmagórica que tinha se retirado das sombras da sala.

— O Dr.Caín. O pôster assim o diz - respondeu Caín. — Passando um bom momento com a família?

Victor tragou a saliva e assentiu.

— Isso é bom - continuou o mago. — A diversão é como o láudano; leva-nos a miséria e a dor, embora só fugazmente.

—Não sei o que é o láudano - replicou Victor.

— Uma droga, filho - respondeu Caín cansativamente, desviando a vista para um relógio que repousava em uma prateleira a sua direita.

Ao Victor pareceu que as agulhas corriam em sentido inverso.

— O tempo não existe, por isso não terá que perdê-lo. Já pensou qual é seu desejo?

— Não tenho nenhum desejo - respondeu a Victor.

Caín pôs-se a rir.

— Vamos, vamos. Todos temos não um desejo, mas centenas. E há poucas ocasiões em que a vida nos brinda para torná-los realidade - Caín olhou para a enigmática mulher com uma careta de compaixão. — Não é verdade, querida?

A mulher, como se se tratasse de um simples objeto inanimado, não respondeu.

— Mas há pessoas com sorte, Victor - disse Caín, inclinando-se sobre a mesa, como você. Porque você pode tornar realidade os seus sonhos, Victor. Já sabe como.

— Como fez com Angus? - respondeu Victor, que naquele momento reparou em um fato estranho que não podia afastar de seu pensamento: Caín não pestanejava, nem uma só vez.

— Um acidente, meu amigo. Um desgraçado acidente - disse Caín adotando um tom penalizado e consternado. — É um engano acreditar que os sonhos se tornam realidade sem oferecer nada em troca. - Não te parece, Victor? Digamos que não seria justo. Angus quis esquecer certas obrigações e isso não é possível. Mas o passado, passado está. Falemos do futuro, de seu futuro.

— É isso o que você fez? - perguntou Victor. Tornar realidade um desejo? Converter-se no que é agora? O que teve que dar em troca?

Caín perdeu seu sorriso de réptil e cravou seus olhos em Victor Kray. O moço temeu por um instante que aquele homem se equilibrasse sobre ele, disposto a despedaçá-lo. Finalmente, Caín sorriu de novo e suspirou.

— Um jovem inteligente. Eu gosto disso, Victor. Entretanto, tem muito para aprender. Quando estiver preparado, vê-me por aqui. Já sabe como me encontrar. Espero vê-lo logo.

— Duvido - respondeu Victor enquanto se levantava e caminhava de volta à saída.

A mulher, como uma marionete a quem súbitamente lhe tivessem esticado uma corda, começou a caminhar de novo, com a intenção de o acompanhar. A uns passos da saída, a voz do Caín soou de novo em suas costas.

— Uma coisa mais, Victor. Com respeito aos desejos. Pense. A oferta está de pé. Talvez a você não lhe interesse, mas talvez algum membro de sua flamejante família feliz tenha algum sonho inconfessável escondido. Esses são minha especialidade...

Victor não se deteve a responder e saiu de novo para o ar fresco da noite. Respirou profundamente e se dirigiu a passo rápido à procura de sua família. Enquanto se afastava, a risada de Dr. Caín se perdeu em suas costas como o canto de uma hiena, mascarada na música do carrossel.

 

Max tinha escutado enfeitiçado o relato do ancião até aquele ponto sem atrever-se a formular uma só das milhares de perguntas que buliam em sua mente. Victor Kray parecia ter lido seu pensamento e o assinalou com um dedo acusador.

— Paciência, jovem. Todas as peças irão se encaixando a seu tempo. Proibido interromper. De acordo?

Embora a advertência fosse dirigida a Max, os três amigos assentiram em uníssono.

— Bem, bem... - murmurou para si o faroleiro.

"Aquela mesma noite decidi me afastar para sempre daquele indivíduo e tratar de apagar de minha mente qualquer pensamento referido a ele. E não era fácil. Fosse quem fosse, o Dr. Caín tinha a estranha habilidade de cravar-se a nós como uma dessas lascas que, quanto mais tentamos tirar, mais fundo se introduzem na pele. Não podia falar daquilo com ninguém, a menos que quisesse que me tomassem por um lunático, e não podia ir à polícia, porque não saberia nem por onde começar. Como é prudente fazer nestes casos, deixei passar o tempo.

Ia bem em nosso novo lar e tive a ocasião de conhecer um indivíduo que me ajudou muito. Tratava-se de um reverendo que lecionava as matérias de Matemática e Física na escola. A primeira vista parecia andar sempre pelas nuvens, mas era um homem de uma inteligência que só podia se comparar à da bondade, que se esforçava em ocultar depois de uma muito convincente personificação de científico louco do povoado. Ele me incentivou a estudar a fundo e a descobrir a matemática. Não é estranho que, depois de uns anos a seu cargo, minha vocação pelas ciências se tornasse cada vez mais clara. Em princípio quis seguir seus passos e me dedicar ao ensino, mas o reverendo me cravou uma reprimenda imensa e me disse que o que tinha que fazer era ir para a universidade, estudar Física e me converter no melhor engenheiro que tivesse pisado o país. Ou isso, ou me retirava a palavra no ato.

Foi ele quem me conseguiu a vaga para a universidade e quem realmente encaminhou minha vida para o que eu viria a ser. Morreu uma semana antes de minha graduação. Já não me envergonha dizer que senti tanto ou mais o seu desaparecimento que o de meu próprio pai. Na universidade tive ocasião de contatar com alguém que me levaria de novo a encontrar Dr. Caín: um jovem estudante de medicina pertencente a uma família escandalosamente rica (ou assim parecia) chamado Richard Fleischmann. Efetivamente, o futuro Doutor Fleischmann que, anos mais tarde, viria a construir a casa da praia.

Richard Fleischmann era um jovem arrojado e muito dado a exageros. Estava acostumado que durante toda sua vida as coisas acontecessem tal e qual como ele as desejava e quando, por qualquer motivo, algo contradizia suas expectativas, ia às nuvens com o mundo. Uma ironia do destino quis que ficassemos amigos: apaixonamo-nos pela mesma mulher, Eva Gray, a filha do mais insuportável e tirano catedrático de Química do campus.

Ao princípio, saíamos os três juntos e fazíamos excursões aos domingos, quando o ogro de Theodore Gray não o impedia. Mas este arranjo não durou muito. O mais curioso é que Fleischmann e eu, longe de nos converter em rivais, fizemo-nos companheiros inseparáveis. Cada noite que devolvíamos Eva à caverna do ogro, fazíamos o caminho de volta juntos, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, um dos dois ficaria fora do jogo.

Até que esse dia chegou, passamos os dois melhores anos que recordo de minha vida. Mas tudo tem um fim. O fim de nosso trio inseparável chegou na noite da graduação. Embora tivesse conseguido todos os louros imagináveis, minha alma se arrastava pelo chão por causa da perda de meu velho tutor e, Eva e Richard decidiram que, embora eu não bebesse, aquela noite deveria me embebedar e afugentar a melancolia de meu espírito por todos os meios. Nem sei o que dizer sobre o ogro Theodore que, apesar de estar surdo que nem uma porta, parecia escutar através das paredes, descobriu o plano e a festa acabou com o Fleischmann e eu sozinhos, bêbados que nem uma pipa, em um pestilento botequim e nos entregamos a elogiar o objeto de nosso amor impossível, Eva Gray.

Aquela mesma noite, aos tombos de volta ao campus, uma feira ambulante pareceu emergir da névoa junto à estação do trem. Fleischmann e eu, convencidos de que uma volta no carrossel seria a cura infalível para nosso estado, entramos na feira e acabamos na porta do barraco de Dr. Caín, adivinho, mago e vidente, como seguia escrito o sinistro pôster. Fleischmann teve uma idéia genial. Entraríamos e pediríamos ao adivinho que nos revelasse o enigma: a qual dos dois escolheria Eva? Apesar do meu atordoamento, tinha os sentidos suficientemente despertos para não entrar, mas não a força suficiente para deter meu amigo, que entrou decidido no barraco.

Suponho que perdi os sentidos porque não recordo muito bem as horas seguintes. Quando recuperei o conhecimento, com a agonia de uma atroz dor de cabeça, Fleischmann e eu estávamos estendidos sobre um velho banco de madeira. Estava amanhecendo e os carros e material da feira tinham desaparecido, como se todo aquele universo de luzes, ruído e multidão da noite anterior tivesse sido uma simples ilusão de nossas mentes ébrias pelo álcool. Levantamo-nos e contemplamos o piso deserto ao nosso redor. Perguntei a meu amigo se recordava algo da madrugada anterior. Fazendo um esforço, Fleischmann me disse que tinha sonhado que entrava no barraco de um adivinho e, à pergunta de qual era seu maior desejo, tinha respondido que desejava obter o amor de Eva Gray. Logo riu, brincando sobre a ressaca monumental que nos castigava, convencido de que nada daquilo tinha acontecido.

Dois meses depois, Eva Gray e Richard Fleischmann se casaram. Nem sequer me convidaram para o casamento. Não voltara a vê-los em 25 longos anos".

 

"Um dia chuvoso de inverno, um homem envolto em uma gabardina me seguiu desde o escritório até minha casa. Da janela da sala de jantar, pude ver que o estranho ficou em baixo, me vigiando. Duvidei uns segundos e desci à rua, disposto a desmascarar o misterioso espião. Era Richard Fleischmann, tiritando de frio e com o rosto estragado pelos anos. Seus olhos eram os de um homem que tinha vivido açoitado em toda sua vida. Perguntei-me quantos meses fazia que meu antigo amigo não dormia. Convidei-o a entrar em casa e lhe ofereci um café quente. Sem atrever-se a olhar-me na cara, perguntou-me por aquela noite, enterrada anos atrás, do barraco do Dr. Caín.

Sem ânimo para cortesias, perguntei-lhe o que era que Caín lhe tinha pedido em troca de tornar realidade o seu desejo. Fleischmann, com o rosto embargado pelo medo e vergonha, ajoelhou-se frente a mim, suplicando minha ajuda entre lágrimas. Não fiz caso de seus lamentos e lhe exigi que me respondesse. O que tinha prometido ao Dr. Caín como pagamento de seus serviços?

"Meu primeiro filho", respondeu-me. "Prometi-lhe meu primeiro filho"...

"Fleischmann me confessou que durante anos tinha estado administrando a sua esposa, sem esta sabê-lo, uma droga que a impedia de conceber um filho. Entretanto, ao fim de alguns anos, Eva Fleischmann caiu em profunda depressão e a ausência da tão desejada descendência tinha convertido o matrimônio dos Fleischmann em um inferno. Fleischmann temia que, se Eva não concebesse um filho, logo enlouqueceria ou cairia numa tristeza tão profunda que sua vida se apagaria lentamente como uma vela sem ar. Disse-me que não tinha a quem recorrer e suplicou meu perdão e minha ajuda. Finalmente, disse-lhe que o ajudaria, não por ele, mas sim pelo vínculo que ainda me unia a Eva Gray e em memória da nossa velha amizade.

Aquela mesma noite expulsei Fleischmann de minha casa, mas com uma intenção muito diferente daquela que esse homem, que eu um dia tinha considerado meu amigo, pensava. Segui-o sob a chuva e cruzei a cidade atrás de seus passos. Perguntei a mim mesmo por que estava fazendo aquilo. Só a ideia de que Eva Gray, que me tinha me recusado quando ambos eramos jovens, teria que entregar seu filho para aquele miserável bruxo, me revolvia as vísceras e era suficiente para eu enfrentar de novo Dr. Caín, embora minha juventude já se evaporasse e cada vez era mais consciente de que talvez saísse em mau estado do jogo.

As aventuras de Fleischmann me levaram até ao novo covil de meu velho conhecido, o Príncipe da Névoa. Um circo ambulante era agora seu lar e, para minha surpresa, o Dr. Caín tinha renunciado a seu grau de adivinho e vidente para assumir agora uma nova personalidade, mais modesta, mas mais de acordo com seu senso de humor. Agora era um palhaço que atuava com o rosto pintado de branco e vermelho, embora seus olhos de cor mutavel denunciavam a sua identidade mesmo com dezenas de capas de maquiagem. O circo de Caín mantinha a estrela de seis pontas no alto de uma haste e o mago se rodeou agora de uma sinistra corte de comparsas que, sob a aparência de feirantes itinerantes, pareciam esconder algo mais escuro. Espiei durante duas semanas o circo de Caín e logo descobri que o toldo surrado e amarelado mascarava um perigoso bando de enganadores, criminosos e ladrões que praticavam o furto a quem ali passava. Averiguei também que a pouca elegância do Dr. Caín na hora de escolher seus escravos tinha levado a que deixasse atrás de si uma estridente pista de crimes, desaparecimentos e roubos que não escapava à polícia local, que farejava de perto o fedor da corrupção que se desprendia daquele fantasmagórico circo.

É obvio, Caín tinha consciencia da situação e por isso tinha decidido que ele e seus amigos deveriam desaparecer do país sem perder tempo, mas de um modo discreto e, preferivelmente, à margem dos incomodos trâmites policiais. Deste modo, aproveitando uma dívida de jogo que oportunamente lhe foi servida em bandeja pela estupidez do capitão holandês, o Dr. Caín conseguiu embarcar no Orpheus naquela noite. E eu, com ele.

O que aconteceu naquela noite da tormenta é algo que nem eu mesmo posso explicar. Um terrível temporal arrastou o Orpheus de volta para a costa e o lançou contra as rochas, abrindo uma brecha para a entrada de água no casco que afundou o navio em questão de segundos. Eu estava oculto num dos botes salva-vidas que saiu disparado quando o casco do navio encalhou na rocha e foi arrastado pela corrente até a praia. Só assim pude me salvar. Caín e seus comparsas viajavam na sentinela, ocultos sob caixas por temerem um possível controle militar no canal no meio da travessia. Provavelmente, quando a água gelada alagou as vísceras do casco, nem sequer entenderam o que estava acontecendo"...

Ainda assim - interrompeu finalmente Max, não encontraram os corpos.

Victor Kray negou.

— Frequentemente, em temporais desta natureza o mar leva consigo os corpos - apontou o faroleiro.

— Mas os devolve, embora dias mais tarde - replicou Max. — É o que tenho lido.

— Não acredite em tudo o que lê - disse o ancião, embora neste caso seja certo.

— O que pôde ter acontecido então? - inquiriu Alicia.

— Durante anos tive uma teoria que nem eu mesmo acreditava. Agora tudo parece confirmá-la...

 

"Fui o único sobrevivente do naufrágio do Orpheus. Entretanto, ao recuperar o conhecimento no hospital, compreendi que algo estranho tinha acontecido. Decidi construir este farol e viver neste lugar, mas essa parte da história já conhecem. Sabia que aquela noite não significava o desaparecimento do Dr. Caín, mas apenas um parênteses. Por isso permaneci aqui todos estes anos. Com o tempo, quando os pais de Roland morreram, eu me encarreguei dele e ele, em troca, foi a minha única companhia em meu exílio.

Mas isso não é tudo. Com os anos cometi outro engano fatal. Pus-me em contato com Eva Gray. Queria saber se tudo aquilo pelo qual havia passado fazia algum sentido. Fleischmann se adiantou a mim e, ao conhecer meu paradeiro, veio visitar. Expliquei-lhe o acontecido e aquilo pareceu libertá-lo de todos os fantasmas que o tinham atormentado durante anos. Decidiu construir a casa da praia e pouco depois nasceu o pequeno Jacob. Foram os melhores anos na vida de Eva. Até a morte do menino.

O dia que Jacob Fleischmann se afogou, soube que o Príncipe da Névoa não havia partido jamais. Tinha permanecido na sombra, esperando, sem pressa, que alguma força o trouxesse de novo ao mundo dos vivos. E nada tem tanta força como uma promessa"...

 

Quando o velho faroleiro tinha finalizado seu relato, o relógio de Max indicava que faltavam uns minutos para as cinco da tarde. Lá fora, uma débil garoa tinha começado a cair sobre a baía e o vento que vinha do mar golpeava com insistência as portinhas das janelas da casa do farol.

Aproxima-se uma tormenta - disse Roland, observando o horizonte plúmbeo sobre o oceano.

— Max, temos que voltar para casa. Papai chamará logo - murmurou Alicia.

Max concordou sem muita convicção. Precisava meditar cuidadosamente sobre tudo o que o ancião tinha explicado e tentar encaixar as peças do quebra-cabeças. O ancião, dado o esforço para recordar sua história, parecia ter sumido num silêncio apático, olhava para o vazio a partir de sua poltrona, ausente.

— Max... - insistiu Alicia.

Max se levantou e dirigiu uma saudação silenciosa ao ancião, que lhe respondeu com uma mínima saudação. Roland observou o velho faroleiro durante uns segundos e logo acompanhou seus amigos ao exterior.

— E agora ? - perguntou Max.

— Eu não sei o que pensar - afirmou Alicia, encolhendo os ombros.

— Não acredita na história do avô de Roland? - inquiriu Max.

— Não é uma história fácil de acreditar - respondeu Alicia. — Tem que haver outra explicação.

Max dirigiu um olhar inquisitivo a Roland.

— Você tão pouco acredita em seu avô, Roland?

— Quer que seja sincero? - respondeu o moço. — Não sei. Venha. Acompanho-vos antes que a tormenta nos caia em cima.

Alicia montou na bicicleta de Roland e, sem mais palavras, ambos percorreram o caminho de volta. Max se voltou por um instante para contemplar a casa do farol e tratou de imaginar se era possível que os anos de solidão naquele escarpado tivessem levado Victor Kray a urdir aquela sinistra história que ele parecia acreditar com convicção. Deixou que a garoa fresca lhe impregnasse o rosto e montou em sua bicicleta, pela encosta abaixo.

A história do Caín e Victor Kray permanecia viva em sua mente enquanto percorria a estrada que rodeava a baía. Pedalando sob a chuva, Max começou a ordenar os fatos do único modo que lhe resultava plausível. Caso tudo o que foi relatado pelo ancião estivesse certo, o qual não era fácil de aceitar, a situação ficava sem ser esclarecida. Um poderoso mago desaparecido numa grande letargia parecia voltar lentamente para a vida. Segundo esse princípio, a morte do pequeno Jacob Fleischmann tinha sido o primeiro sinal de seu retorno. Entretanto, havia algo em toda aquela história que o faroleiro tinha mantido oculta um longo tempo e que não encaixava na mente de Max.

Os primeiros relâmpagos pintaram de escarlate o céu e o vento começou a cuspir com força grossas gotas de chuva contra o rosto de Max. Apertou o passo, embora suas pernas ainda não se recuperassem da maratona matutina. Ainda faltavam um par de quilômetros de caminho até a casa da praia.

Max compreendeu que não seria capaz de aceitar simplesmente as explicações do ancião e supor que aquilo explicava tudo. A presença fantasmagórica do jardim de estátuas e os acontecimentos daqueles primeiros dias no povoado evidenciavam que um sinistro mecanismo se pôs em marcha e que ninguém podia prever o que ia acontecer a partir daquele momento. Com a ajuda de Roland e Alicia ou sem ela, Max estava determinado a seguir investigando até chegar ao fundo da verdade, começando pela única pista que parecia conduzir diretamente ao centro daquele enigma: os filmes de Jacob Fleischmann. Quantas mais voltas dava à história, mais se convencia que Victor Kray não lhes tinha contado toda a verdade. Nem mais ou menos.

 

Alicia e Roland esperavam sob o alpendre da casa da praia quando Max, empapado pela chuva, deixou a bicicleta no abrigo da garagem e correu a refugiar-se do forte aguaceiro.

— Já é a segunda vez esta semana - riu Max. — Por este caminho encolherei. Não pensa voltar agora, não é, Roland?

— Temo que sim - respondeu Roland observando a densa cortina de água que caía com fúria .— Não quero deixar sozinho meu avô.

— Leve ao menos uma capa de chuva. Vai apanhar uma pneumonia - indicou Alicia.

— Não necessito. Estou acostumado. Além disso, esta é uma tormenta de verão. Passará rápido.

— A voz da experiência - brincou Max.

— Pois é - arrematou Roland.

Os três amigos cruzaram o olhar em silêncio.

— Acredito que o melhor é não voltar a falar do assunto até amanhã - sugeriu Alicia. Uma boa noite de sono nos ajudará a ver tudo isto muito mais claro. Ou isso é o que se diz sempre.

— E quem vai dormir esta noite depois de uma história assim? - soltou Max.

— Sua irmã tem razão - disse Roland.

— Ora bolas - atalhou Max.

— Trocando de tema, amanhã pensava voltar ao navio para mergulhar. Talvez recupere o sextante que alguém deixou cair ontem... - explicou Roland.

Max estava articulando em sua mente uma resposta demolidora para deixar claro que não acreditava que fosse uma boa idéia ir mergulhar até Orpheus de novo, mas Alicia se adiantou.

— Ali estaremos - murmurou.

Um sexto sentido disse a Max que aquele plural era pura cortesia.

— Até manhã, então - respondeu Roland, com os olhos brilhantes para Alicia.

— Estou aqui - disse Max, com voz cantante.

— Até amanhã, Max - disse Roland, já a caminho da bicicleta.

Os dois irmãos viram Roland partir na tormenta e permaneceram sob o alpendre até que sua silhueta se desvaneceu na estrada da praia.

— Deveria vestir roupa seca, Max. Enquanto você se troca prepararei algo para o jantar - sugeriu Alicia.

— Você? - espetou Max. — Você não sabe cozinhar.

— Quem disse a você que penso cozinhar, senhorito? Isto não é um hotel. Para dentro - ordenou Alicia, com um sorriso malicioso nos lábios.

Max optou por seguir os conselhos de sua irmã e entrou em casa. A ausência de Irina e de seus pais acentuava aquela sensação de ser um intruso em um lar estranho que a casa da praia lhe tinha inspirado desde o primeiro dia. Enquanto subia a escada em direção ao seu quarto, reparou por um instante num fato, fazia alguns dias que não via o repelente felino de Irina. Não lhe parecia que aquela fosse uma grande perda e, tal como a idéia lhe tinha vindo à mente, depressa a esqueceu.

 

Fiel a sua palavra, Alicia não perdeu na cozinha mais um segundo do que o estritamente necessário. Preparou umas fatias de pão de centeio com manteiga, geléia e dois copos de leite.

Quando Max reparou na bandeja do suposto jantar, a expressão de seu rosto falou por si só.

— Nenhuma palavra - ameaçou Alicia. — Não vim a este mundo para cozinhar. - Não o jure - replicou Max, que de qualquer modo não tinha muito apetite.

Jantaram em silêncio à espera de que o telefone soasse a qualquer momento com notícias do hospital, mas a chamada não se concretizou.

— Talvez ligaram antes, quando estávamos no farol - sugeriu Max.

— Talvez - murmurou Alicia.

Max viu o semblante preocupado de sua irmã.

— Se algo tivesse passado - argumentou Max, teriam tornado a ligar. Tudo estará bem.

Alicia sorriu fracamente, confirmando a Max a sua inata habilidade para reconfortar os outros com argumentos que nem ele mesmo acreditava.

— Suponho que sim - confirmou Alicia. — Acho que vou dormir. E você?

Max levantou seu copo e assinalou para cozinha.

— Em seguida irei, mas antes comerei algo mais. Estou faminto - mentiu.

Assim que escutou a porta do quarto de Alicia fechar-se, Max deixou o copo e se dirigiu até ao abrigo da garagem, em busca de mais filmes da coleção particular de Jacob Fleischmann.

 

Max girou o interruptor do projetor e o feixe de luz alagou a parede com uma imagem imprecisa do que parecia ser um conjunto de símbolos. Lentamente, o filme adquiriu precisão e Max compreendeu que os supostos símbolos não eram mais do que cifras dispostas em círculos e que estava vendo a esfera de um relógio. As agulhas do relógio estavam imóveis e projetavam uma sombra perfeitamente definida sobre a esfera, o que permitia supor que o filme estava sendo rodado em pleno sol ou sob uma fonte luminosa intensa. O filme continuou mostrando a esfera durante uns segundos até que, muito lentamente no início e adquirindo uma velocidade progressiva, as agulhas do relógio começaram a girar em sentido inverso. A câmara retrocedia e a visão do espectador podia comprovar que aquele relógio pendia de uma cadeia. Um novo retrocesso de um metro e meio revelava que a cadeia pendia de uma mão branca. A mão de uma estátua.

Max reconheceu imediatamente o jardim de estátuas que já aparecera no primeiro filme de Jacob Fleischmann que tinham visto dias atrás. Uma vez mais, a disposição das estátuas era diferente da que Max recordava. A câmara começava a mover-se de novo através das figuras, sem cortes nem pausas, igual a do primeiro filme. Cada dois metros a objetiva da câmara se detinha frente ao rosto de uma das estátuas. Max examinou uma a uma os semblantes congelados daquela sinistra banda circense, cujos membros podia agora imaginar perecendo na escuridão absoluta da adega do Orpheus enquanto a água gelada lhes arrebatava a vida.

Finalmente a câmara foi aproximando lentamente da figura que coroava o centro da estrela de seis pontas. O palhaço. O Dr. Caín. O Príncipe da Névoa. Junto a ele, a seus pés, Max reconheceu a figura imóvel de um gato que estendia uma garra afiada no vazio. Max, que não recordava havê-lo visto na sua visita no jardim de estátuas, teria apostado “dobro ou nada” que a inquietante semelhança do felino de pedra com a mascote que Irina tinha adotado no primeiro dia na estação, não era fruto do acaso. Ao contemplar aquelas imagens enquanto o som da chuva golpeava os vidros e a tormenta se afastava terra adentro, resultava muito fácil dar crédito à história que o faroleiro lhes tinha relatado aquela mesma tarde. A sinistra presença daquelas silhuetas ameaçadoras bastava para silenciar qualquer dúvida por muito razoável que fosse.

A câmara se aproximou até o rosto do palhaço, deteve-se apenas a meio metro e permaneceu ali durante vários segundos. Max jogou uma olhada à bobina e comprovou que o filme estava chegando ao fim e que faltavam um par de metros por visionar. Um movimento na tela chamou a sua atenção. O rosto de pedra estava se movendo de um modo quase imperceptível. Max se levantou e caminhou até a parede onde se projetava o filme. As pupilas daqueles olhos de pedra se dilataram e os lábios de pedra se arquearam lentamente num sorriso cruel, até revelar uma larga fileira de dentes largos e afiados como os de um lobo. Max sentiu que se formava um nó em sua garganta.

Segundos depois, a imagem se desvaneceu e Max escutou o ruído da bobina do projetor girando sobre si própria. O filme tinha terminado. Max apagou o projetor e respirou profundamente. Agora acreditava em tudo o que Victor Kray havia dito, e isso não o fazia sentir-se melhor, mas justamente o contrário. Subiu para seu quarto e fechou a porta em suas costas. Através da janela, ao longe, podia vislumbrar o jardim de estátuas. Uma vez mais, a silhueta do recinto de pedra estava inundado por uma névoa densa e impenetrável.

Aquela noite, entretanto, as trevas dançantes não provinham do bosque, mas pareciam emanar de seu próprio interior.

Minutos depois, enquanto lutava por conciliar o sono e apagar de sua mente o rosto do palhaço, Max imaginou que aquela névoa não era senão o fôlego gelado do Dr. Caín, que esperava sorridente a hora de seu retorno.

 

Na manhã seguinte, Max despertou com a sensação de ter a cabeça cheia de gelatina. O que se adivinhava pela sua janela prometia um dia resplandecente e ensolarado. Levantou-se lentamente e pegou seu relógio de bolso na mesa. O que primeiro pensou foi que o relógio estava avariado. O levou ao ouvido e comprovou que o mecanismo funcionava na perfeição, logo era ele quem tinha perdido o rumo. Eram doze para o meio-dia.

Saltou da cama e se precipitou escada abaixo. Sobre a mesa da sala de jantar havia uma nota. Pegou e leu a caligrafia afiada de sua irmã.

Bom dia, belo adormecido. Quando ler isto já estarei na praia com o Roland. Peguei emprestada a bicicleta, espero que não se importe. Como vi que ontem à noite esteve "no cinema" não quis despertar você. Papai ligou na primeira hora e disse que ainda não sabem quando poderão voltar para casa. Irina está na mesma, mas os médicos dizem que é provável que saia do coma em uns dias. Convenci papai a não se preocupar conosco (e não foi fácil).

Por certo, não há nada para tomar no café da manhã.

Estaremos na praia. Felizes sonhos...

Alicia.

Max releu três vezes a nota antes de deixá-la de novo na mesa. Correu escada acima e lavou a cara a toda pressa. Vestiu um traje de banho e uma camisa azul e se dirigiu ao abrigo para pegar a outra bicicleta. Antes de chegar no caminho da praia, seu estômago pedia com urgência que lhe administrasse a sua dose matutina. Ao chegar ao povoado, desviou seu caminho e dirigiu-se para o centro da praça da prefeitura. Os aromas que inalava a cinquenta metros da padaria seguidos dos rangidos de aprovação de seu estômago lhe confirmaram que tinha tomado a decisão adequada. Três madelenes e duas barras de chocolate, mais tarde retomou o caminho para a praia com um sorriso de satisfação estampado no rosto.

 

A bicicleta de Alicia repousava sobre a encosta ao pé do caminho que conduzia à praia onde Roland tinha sua cabana. Max deixou a bicicleta junto à de sua irmã e pensou que, embora o povoado não parecia ser um centro de ladrões, não seria de mais comprar uns cadeados. Max parou para observar o farol no alto do escarpado e logo se dirigiu para a praia. Alguns metros antes de deixar o caminho de ervas altas que desembocava na pequena baía se deteve.

Na borda da praia, a uma vintena de metros do ponto onde se encontrava Max, Alicia estava estendida a meio caminho entre a água e a areia. Inclinado sobre ela, Roland, que tinha sua mão sobre o flanco de sua irmã, aproximou-se da Alicia e a beijou nos lábios. Max retrocedeu um metro e se ocultou atrás das ervas, esperando não ter sido visto. Permaneceu ali imóvel durante uns segundos, perguntando-se sobre o que deveria fazer agora. Aparecer caminhando como um estúpido sorridente e dar os bom dia? Ou ir dar um passeio?

Max não se era espião, mas não pôde reprimir o impulso de olhar de novo entre os caules selvagens para sua irmã e Roland. Podia escutar suas risadas e comprovar como as mãos de Roland percorriam timidamente o corpo de Alicia, com um tremor que indicava que aquela era, no máximo, a primeira ou segunda vez que se via em um lance de tamanha envergadura. Perguntou-se também se para Alicia seria a primeira vez e, para sua surpresa, comprovou que era incapaz de achar uma resposta a essa incógnita. Embora tivesse compartilhado toda sua vida sob o mesmo teto, sua irmã Alicia era um mistério para ele.

Vê-la ali, estendida na praia, beijando Roland, era desconcertante e completamente inesperado. Tinha a intuíção desde o começo que entre Roland e ela havia uma clara corrente recíproca, mas uma coisa era imaginá-la e outra, muito distinta, era vê-la com seus próprios olhos. Inclinou-se uma vez mais para olhar e sentiu de repente que não tinha o direito de estar ali, e que aquele momento pertencia só a sua irmã e a Roland. Silenciosamente, refez seus passos até a bicicleta e se afastou da praia.

Enquanto o fazia, perguntou a si próprio se estaria ciumento. Possivelmente fora apenas pelo fato de ter levado anos pensando que sua irmã era uma menina grande, sem segredos de nenhum tipo, e que, é obvio, não andava por aí beijando as pessoas. Por um segundo riu de sua própria ingenuidade e pouco a pouco começou a alegrar-se pelo que tinha visto. Não podia prever o que aconteceria na semana seguinte, nem o que traria consigo o fim do verão, mas naquele dia Max estava seguro de que sua irmã se sentia feliz. E isso era muito mais do que podia dizer dela em muitos anos.

Max pedalou de novo até ao centro do povoado e deteve sua bicicleta junto ao edifício da biblioteca municipal. Na entrada havia um velho mostrador de vidro onde se anunciavam os horários públicos e outros comunicados, incluindo o anúncio mensal do único cinema em vários quilômetros em redor e um mapa do povoado. Max centrou sua atenção no mapa e o estudou com atenção. A fisionomia do povoado correspondia mais ou menos ao modelo mental que tinha feito.

O mapa mostrava com todo o detalhe o porto, o centro urbano, a praia norte, onde os Carver tinham sua casa, a baía do Orpheus e o farol, os campos esportivos junto à estação e o cemitério municipal. Uma faísca se acendeu em sua mente. O cemitério municipal. Por que não tinha pensado antes nisso? Consultou seu relógio e comprovou que passavam dez minutos das duas da tarde. Tomou sua bicicleta e enfiou pela ravina principal do povoado, por um caminho do interior, para o pequeno cemitério onde esperava encontrar o Jacob Fleischmann.

 

O cemitério do povoado era um clássico recinto retangular que se elevava no final de um longo caminho ascendente flanqueado por altos ciprestes. Nada especialmente original. Os muros de pedra estavam moderadamente envelhecidos e o lugar oferecia o habitual aspecto dos cemitérios de pequenos povoados onde, à exceção de uns dias por ano, sem contar com os enterros locais, as visitas eram escassas. As grades estavam abertas e um quadro metálico oxidado anunciava que o horário público era das nove às cinco da tarde, no verão, e das oito às quatro horas, no inverno. Se havia algum vigilante, Max não conseguiu vê-lo.

No caminho dali, tinha especulado sobre a ideia de achar um lúgubre e sinistro lugar, mas o sol reluzente de princípio do verão lhe conferia o aspecto de um pequeno claustro, tranquilo e vagamente triste.

Max deixou a bicicleta apoiada no muro exterior e entrou no cemitério. O cemitério parecia estar povoado por modestos mausoléus que provavelmente pertenciam às famílias de maior tradição local e ao redor se elevavam paredes de nichos de mais recente construção.

Max tinha pensado na possibilidade de que talvez os Fleischmann tivessem preferido naquele momento enterrar o pequeno Jacob longe dali, mas sua intuição lhe dizia que os restos do herdeiro do Dro. Fleischmann repousavam no mesmo povoado que o tinha visto nascer. Max necessitou de quase meia hora para dar com a tumba de Jacob, em um extremo do cemitério à sombra de dois velhos ciprestes. Tratava-se de um pequeno mausoléu de pedra ao qual o tempo e as chuvas tinham outorgado um certo ar de abandono e esquecimento. A construção se erguia em forma de um estreito barraco de mármore enegrecido e imundo com um portão forjado em ferro flanqueado pelas estátuas de dois anjos que elevavam um olhar lastimoso para o céu. Entre os barrotes oxidados do portão ainda se conservava um molho de flores secas desde esse tempo imemorial.

Max sentiu que aquele lugar projetava uma aura patética e, embora se tornasse evidente que há muito tempo não tinha sido visitado, os ecos da dor e da tragédia pareciam ainda recentes. Max entrou no pequeno caminho de lajes que conduzia até o mausoléu e se deteve na soleira. O portão estava entreaberto e um intenso aroma de fechado exalava do interior. Ao seu redor, o silêncio era absoluto. Dirigiu um último olhar aos anjos de pedra que custodiavam a tumba de Jacob Fleischmann e entrou, consciente de que, se esperasse um minuto mais, partiria daquele lugar a toda pressa.

O interior do mausoléu estava escondido na penumbra e Max pôde vislumbrar um rastro de flores murchas no chão que acabava ao pé de uma lápide, sobre a qual o nome Jacob Fleischmann tinha sido esculpido em relevo. Mas havia algo mais. Sob o nome, o símbolo da estrela de seis pontas sobre o círculo presidia a laje que guardava os restos do menino.

Max experimentou um desagradável formigueiro nas costas e se perguntou pela primeira vez por que tinha ido aquele lugar sozinho. Atrás de suas costas, a luz do sol pareceu empalidecer fracamente. Max extraiu seu relógio e consultou a hora, embaralhado com a absurda idéia de que talvez se tivesse entretido mais que da conta e que o guardião do cemitério tivesse fechado as portas o deixando preso no interior. As agulhas de seu relógio indicavam que passavam uns minutos das três da tarde. Max inspirou profundamente e se tranquilizou.

Jogou uma última olhada e, depois de comprovar que não havia nada ali que contribuísse com uma nova luz sobre a história do Dr. Caín, dispôs-se a partir. Foi então quando advertiu que não estava sozinho no interior do mausoléu e que uma silhueta escura se movia no teto, avançando sigilosamente como um inseto.

Max sentiu como seu relógio escorregava entre o suor frio de suas mãos e elevou o seu olhar. Um dos anjos de pedra que tinha visto na entrada caminhava invertido sobre o teto. A figura se deteve e, contemplando Max, mostrou um sorriso canino e estendeu um afiado dedo acusador para ele. Lentamente, os rasgos daquele rosto se transformaram e a fisionomia familiar do palhaço que mascarava Dr. Caín aflorou à superfície. Max pôde ler uma raiva e um ódio ardentes em seu olhar. Quis correr para a porta e fugir, mas seus membros não responderam. Depois de uns instantes, a aparição se desvaneceu na sombra e Max permaneceu paralisado durante cinco longos segundos .

Uma vez recuperado o fôlego, correu para a saída sem olhar para trás até que, montado em sua bicicleta, tivesse percorrido cem metros de distância entre ele e a grade do cemitério. Pedalar sem descanso o ajudou a recuperar paulatinamente o controle de seus nervos. Compreendeu que tinha sido objeto de um truque, de uma macabra manipulação de seus próprios temores. Mesmo assim, a idéia de voltar ali para recuperar seu relógio, de momento estava fora de discussão. Recuperada a calma, Max empreendeu de novo o caminho para a baía. Mas desta vez não iria procurar por sua irmã Alicia e Roland, mas o velho faroleiro, para o qual tinha algumas pergunta reservadas.

 

O ancião escutou o que tinha acontecido no cemitério com redobrada atenção. Ao término do relato, assentiu gravemente e indicou a Max que tomasse assento junto a ele.

— Posso lhe falar com franqueza? - perguntou Max.

— Espero que o faça, jovem - respondeu o ancião. — Adiante.

— Tenho a impressão de que ontem não nos explicou tudo o que sabe. E não me pergunte por quê. Acredito nisso. É uma intuição - disse Max.

O rosto do faroleiro permaneceu imperturbável.

— Em que mais acredita, Max? - perguntou Victor Kray.

— Acredito que esse tal Dr. Caín, ou quem quer que seja, vai fazer algo. Muito em breve - continuou Max. — E acredito que tudo o que está acontecendo nestes dias não é mais do que sinais do que está por vir.

— O que está por vir - repetiu o faroleiro. — É um modo interessante de expressá-lo, Max.

— Olhe, senhor Kray - cortou Max, acabo de apanhar um susto de morte. Faz já vários dias que estão acontecendo coisas muito estranhas e estou seguro de que minha família, você, Roland e eu mesmo corremos algum perigo. Não estou disposto a aguentar mais mistérios.

O ancião sorriu.

— Assim eu gosto. Direto e contundente - riu Victor Kray sem convicção. — Verá, Max, se eu lhes expliquei ontem a história do Dr. Caín não foi para vos divertir nem para recordar velhos tempos. Fiz para que soubessem o que está acontecendo e andassem com cuidado. Você leva uns dias preocupado; eu levo vinte e cinco anos neste farol com um único propósito: vigiar essa besta. É o único propósito de minha vida. Eu também serei franco, Max. Não vou jogar fora vinte e cinco anos porque um guri recém-chegado pensa jogar detetive. Talvez não deviria ter-lhes dito nada. Talvez seja melhor que esqueça tudo quanto lhe disse e se afaste dessas estátuas e de meu neto.

Max quis protestar, mas o faroleiro elevou a mão, lhe indicando que não abrisse a boca.

— O que lhes contei é mais do que precisam saber - sentenciou Victor Kray. — Não force as coisas, Max. Se esqueça de Jacob Fleischmann e queima esses filmes hoje mesmo. É o melhor conselho que posso lhe dar. E agora, jovem, para longe daqui.

 

Victor Kray observou como Max se afastava caminho abaixo em sua bicicleta. Tinha proferido palavras duras e injustas para o moço, mas no fundo de sua alma acreditava que aquilo era o mais prudente que podia fazer. O menino era inteligente e não o podia enganar. Sabia que estava ocultando algo mas ele não poderia compreender a seriedade desse segredo. Os acontecimentos estavam se precipitando e, depois de cinco lustros (NT- o lustro é um período de 5 anos), o temor e a angústia pela nova vinda do Dr. Caín se materializavam perante ele, ao acaso em sua vida, quando mais débil e só se sentia.

Victor Kray tentou apagar de sua mente a amarga lembrança de toda uma existência unida aquele personagem sinistro, desde o imundo subúrbio de sua infância até sua prisão no farol. O Príncipe da Névoa lhe tinha arrebatado o melhor amigo de sua infância, a única mulher que tinha amado e, finalmente, tinha-lhe roubado cada minuto de sua longa maturidade, o convertendo em sua sombra. Durante as intermináveis noites no farol costumava imaginar como poderia ter sido sua vida se o destino não tivesse decidido cruzar em seu caminho aquele poderoso mago. Agora sabia que as lembranças que o acompanhariam em seus últimos anos de vida seriam só as fantasias da biografia que nunca viveu.

Sua única esperança agora estava em Roland e na firme promessa que tinha feito a si mesmo de o brindar com um futuro afastado daquele pesadelo. Já tinha passado muito tempo e suas forças já não eram as que o tinham movido anos atrás. Em apenas dois dias se cumpririam os vinte e cinco anos da noite em que o Orpheus tinha naufragado a escassos metros dali e Victor Kray podia sentir como Caín ganhava maior poder a cada minuto que passava.

O ancião se aproximou da janela e contemplou a silhueta escura do casco do Orpheus submerso nas águas azuis da baía. Ainda ficavam umas horas de sol antes que escurecesse e caísse aquela que podia ser sua última noite na atalaia do farol.

 

Quando Max entrou na casa da praia, a nota de Alicia seguia sobre a mesa da sala de jantar, o que indicava que sua irmã ainda não havia voltado e que estava ainda em companhia de Roland. A solidão que reinava na casa se adicionou aquela que sentia em seu interior, naquele momento. Ainda ressoavam em sua mente as palavras do ancião. Embora o tratamento que o faroleiro lhe tinha dispensado tivesse doído, Max não sentia ressentimento algum para com ele. Tinha a certeza de que o faroleiro ocultava algo; mas estava seguro de que, se procedia daquele modo, tinha uma poderosa razão para fazê-lo. Subiu até seu quarto e se estendeu na cama, pensando que aquele assunto era complexo e que, embora as peças do enigma estivessem à vista, sentia-se incapaz de encontrar a maneira de as encaixar.

Talvez devia seguir os conselhos de Victor Kray e esquecer todo aquele assunto, nem que fosse só por umas horas. Olhou na mesa de cabeceira e viu que o livro do Copérnico estava ali, depois de uns dias de abandono, como um antídoto racional para todos os enigmas que o circundavam. Abriu o livro no ponto em que tinha deixado sua leitura e tentou concentrar-se nas investigações sobre o rumo dos planetas no cosmos. Provavelmente, a ajuda do Copérnico o teria ajudado a desmontar a trama daquele mistério. Mas, uma vez mais, parecia evidente que Copérnico tinha escolhido a época equivocada para passar suas férias no mundo. Em um universo infinito, havia muitas coisas que escapavam à compreensão humana.

 

Horas mais tarde, quando Max já tinha jantado e apenas faltavam dez páginas para ler do livro, o som das bicicletas entrando no jardim dianteiro chegou até seus ouvidos. Max escutou o murmúrio das vozes de Roland e Alicia sussurrando durante quase uma hora debaixo no alpendre. Perto da meia noite, Max deixou o livro sobre a mesa de novo e apagou a lamparina. Finalmente, ouviu a bicicleta de Roland afastar-se pelo caminho da praia e os passos de Alicia subindo pausadamente a escada. Os passos de sua irmã se detiveram um instante frente a sua porta. Segundos depois, continuaram até o seu quarto. Escutou como sua irmã se deitava na cama e deixava os sapatos sobre o piso de madeira. Recordou a imagem de Roland beijando Alicia aquela mesma manhã na praia e sorriu na penumbra. Por uma vez, estava seguro de que sua irmã demoraria muito mais do que ele em conciliar o sono.

 

Na manhã seguinte, Max decidiu madrugar mais cedo que o sol e à alvorada já estava pedalando em sua bicicleta rumo ao centro do povoado, com a intenção de comprar um delicioso café da manhã e evitar que Alicia preparasse algo (pão com geléia, manteiga e leite) por sua conta. Pela manhã o povoado estava submerso numa calma que recordava às manhãs de domingo na cidade. Apenas alguns caminhantes silenciosos rompiam o estado narcótico das ruas, inclusive as casas, com as portinhas encostadas, pareciam adormecidas.

Ao longe, além da bocarra do porto, os poucos navios de pesca que formavam a frota local punha a proa mar adentro para não voltar antes do crepúsculo. O padeiro e sua filha, uma roliça jovem de bochechas rosadas que fazia três de sua irmã Alicia, saudaram Max e, enquanto lhe serviam uma deliciosa bandeja de pão-doce recém assado, perguntaram pelo estado de Irina. As notícias voavam e, ao que parece, o médico do povoado fazia algo mais do que pôr o termômetro nas suas visitas ao domicílio.

Max conseguiu voltar para a casa da praia enquanto o café da manhã ainda conservava o calor irresistível dos bolos ainda fumegantes. Sem seu relógio não sabia com o rigor da ciência que horas eram, embora imaginava que deveriam faltar poucos minutos para as oito. Perante indesejável perspectiva de esperar que Alicia despertasse para poder tomar o café da manhã, decidiu adotar um ardiloso esquema. Assim, com a desculpa do café da manhã estar quente, preparou uma bandeja com as iguarias que trouxe da padaria, leite e um par de guardanapos, e subiu até ao quarto da Alicia. Bateu na porta com os nódulos dos dedos até que a voz sonolenta de sua irmã respondeu num murmúrio ininteligível.

— Serviço de quartos - disse Max. — Posso entrar?

Empurrou a porta e entrou no quarto. Alicia tinha sepultado a cabeça sob um travesseiro. Max jogou uma olhada no quarto, a roupa pendurada sobre as cadeiras e a galeria de objetos pessoais de Alicia. O quarto de uma mulher sempre resultava num fascinante mistério para Max.

— Contarei até cinco - disse Max, e logo começarei a tomar o café da manhã.

O rosto de sua irmã apareceu sob o travesseiro, farejando o aroma da manteiga no ar.

 

Roland os esperava na borda da praia, vestido com umas velhas calças às quais tinha cortado as pernas e que faziam as vezes de traje de banho. Junto a ele havia um pequeno barco de madeira cujo comprimento do casco não devia alcançar os três metros. O barco parecia ter passado 30 anos ao sol encalhado numa praia e a madeira tinha adquirido um tom cinzento em que as poucas manchas de pintura azul, que ainda não se tinham desprendido, com muita dificuldade conseguiam dissimular. Contudo, Roland parecia admirar seu barco como se tratasse de um iate de luxo. E enquanto os dois irmãos atiravam as pedras da praia em direção à borda, Max pôde comprovar que Roland tinha escrito na proa o nome do navio, Orpheus II, com pintura recente, provavelmente daquela mesma manhã.

— Desde quando tem uma barco? - perguntou Alicia, assinalando o raquítico esquife para o qual Roland já tinha carregado o material de mergulho e um par de cestas com conteúdo misterioso.

— Há três horas. Um dos pescadores do povoado ia desmantelar o barco para fazer lenha, mas o convenci e ele me deu de presente, em troca de um favor - explicou Roland.

— Um favor? - perguntou Max. — Eu acredito que um favor fez você a ele.

— Pode ficar em terra se preferir - replicou Roland em tom zombador. — Venham, todo mundo a bordo.

A expressão "a bordo" resultava um tanto inapropriada para o navio em questão, mas passados quinze metros, Max comprovou que suas previsões de naufrágio instantâneo não se cumpriram. De fato, o barco navegava com firmeza ao comando de cada vaga de remo que Roland imprimia energicamente.

— Trouxe um pequeno invento que os vai surpreender - disse Roland.

Max olhou para uma das cestas tapadas e elevou a coberta uns centímetros.

— O que é isto? - murmurou.

— Uma janela submarina - esclareceu Roland. — Na realidade é uma caixa com um vidro na base. Se o apoiar na superfície da água, pode ver o fundo sem afundar. É como uma janela.

Max assinalou a sua irmã Alicia.

— Assim pelo menos poderá ver algo - insinuou, com tom zombador.

— Quem lhe disse que penso ficar aqui? Hoje desço eu - respondeu Alicia.

— Você? Mas não saber mergulhar! - exclamou Max, tratando de enfurecer a sua irmã.

— Se você chama de mergulhar o que fez no outro dia, não sei não - brincou Alicia, sem recolher a tocha de guerra.

Roland seguiu remando sem acrescentar semente à discussão dos dois irmãos e deteve o barco a uns quarenta metros da borda. Por baixo deles, a sombra escura do casco do Orpheus se estendia no fundo como a de um grande tubarão estendido na areia, exprectante.

Roland abriu uma das cestas e extraiu uma âncora oxidada unida a um cabo grosso e visivelmente desgastado. À vista de tamanho aviamento, Max supôs que todos aqueles apetrechos marinhos vinham com o lote que Roland tinha negociado para salvar o mísero bote de um fim digno e apropriado a seu estado.

— Cuidado, com os salpicos! - exclamou Roland lançando ao mar a âncora, cujo peso morto desceu na vertical e levantou uma pequena nuvem de bolhas, levando quase quinze metros de cabo.

Roland deixou que a corrente arrastasse o barco alguns metros e atou o cabo da âncora a uma pequena argola que pendia da proa. O barco balançou brandamente com a brisa e o cabo se esticou, fazendo ranger a estrutura do barco. Max deitou uma olhada suspeita às juntas do casco.

— Não vai se afundar, Max. Confia em mim - afirmou Roland, tirando a janela submarina da cesta e colocando-a sobre a água.

— Isso foi o que disse o capitão do Titanic antes de zarpar - replicou Max.

Alicia se inclinou para olhar através da caixa e viu pela primeira vez o casco do Orpheus descansando no fundo.

— É incrível! - exclamou perante o espetáculo submarino.

Roland sorriu agradecido e lhe estendeu uns óculos de mergulho e umas barbatanas.

— Pois espera até o ver de perto - disse Roland, colocando o seu material.

A primeira a saltar na água foi Alicia. Roland, sentado na borda do barco, dirigiu um olhar tranquilizador a Max.

— Tranquilo. A vigiarei. Não lhe vai acontecer nada - assegurou.

Roland saltou para o mar e se reuniu a Alicia, que esperava a uns três metros do barco. Ambos saudaram Max e, segundos depois, desapareceram sob a superfície.

 

Sob a água, Roland agarrou a mão de Alicia e a guiou lentamente sobre os restos do Orpheus. A temperatura da água tinha descido ligeiramente desde a última vez que mergulharam ali e o esfriamento se tornava mais evidente com a maior profundidade. Roland estava habituado a esse fenômeno, que se produzia eventualmente durante os primeiros dias do verão, especialmente quando as correntes frias que vinham do interior do mar fluíam com força por baixo dos seis ou sete metros de profundidade. Devido a essa situação, Roland decidiu imediatamente que naquele dia não permitiria que Alicia nem Max mergulhassem com ele até ao casco do Orpheus, já que haveria dias de sobra durante o resto do verão para tentar.

Alicia e Roland nadaram ao longo do casco do navio afundado. Detinham-se de vez em quando para subir e tomar ar e contemplar com calma o navio, que jazia na meia-luz espectral do fundo. Roland percebia a excitação de Alicia perante o espetáculo e não lhe tirava o olho de cima. Sabia que para mergulhar ao seu gosto e com tranquilidade, devia fazê-lo sozinho.

Quando se mergulhava com alguém, especialmente com novatos na matéria como eram seus novos amigos, não podia evitar assumir o papel de babá submarina. Contudo, estava satisfeito especialmente por compartilhar com Alicia e seu irmão aquele mágico mundo que durante anos tinha pertencido só a ele. Sentia-se como o guia de um museu enfeitiçado acompanhando seus visitantes em um passeio alucinante por uma catedral submergida.

O panorama submarino, entretanto, oferecia outros estímulos. Gostava de contemplar o corpo de Alicia a mover-se sob a água. A cada braçada, podia ver como os músculos do torso e as pernas se esticavam e sua pele adquiria uma palidez azulada. De fato, sentia-se mais cômodo observando-a assim, quando ela não advertia seu olhar nervoso. Subiram de novo para recuperar o fôlego e comprovaram que o barco e a silhueta imóvel de Max a bordo estavam a mais de vinte metros. Alicia lhe sorriu eufórica. Roland respondeu ao seu sorriso, mas interiormente pensou que o melhor seria voltar para barco.

— Podemos descer ao navio e entrar? - perguntou Alicia, com a respiração entrecortada.

Roland reparou que os braços e as pernas da moça estavam cobertos de pele de galinha.

— Hoje não - respondeu . Voltemos para o barco.

Alicia deixou de sorrir, percebendo uma sombra de preocupação em Roland.

— Passa-se algo, Roland?

Roland sorriu serenamente e negou. Não queria falar agora de correntes submarinas de cinco graus. Naquele momento, enquanto Alicia dava suas primeiras braçadas em direção ao barco, Roland sentiu que o coração lhe dava um tombo. Uma sombra escura se movia no fundo da baía, a seus pés. Alicia se voltou para olhar para ele. Roland lhe indicou que seguisse sem se deter e mergulhou a cabeça para inspecionar o fundo.

Uma silhueta negra, semelhante a de um grande peixe, nadava sinuosamente em redor do casco do Orpheus. Por um segundo, Roland pensou que se tratava de um tubarão, mas um segundo olhar lhe permitiu compreender que estava equivocado. Continuou nadando atrás de Alicia sem afastar o olhar daquela forma estranha que parecia segui-los. A silhueta serpenteava à sombra do casco do Orpheus, sem expor-se diretamente à luz. Tudo que Roland podia distinguir era um corpo alongado, semelhante ao de uma grande serpente e uma estranha luz a piscar que o envolvia como um manto de reflexos mortiços. Roland olhou para o barco e comprovou que ainda os separavam mais de dez metros. A sombra sob os seus pés pareceu trocar seu rumo. Roland inspecionou o fundo e comprovou que aquela forma estava saindo da luz e, lentamente, subia para eles.

Rogando para que Alicia não a tivesse visto, agarrou a moça pelo braço e se lançou a nadar com todas suas forças para o barco. Alicia, aflita, olhou-o sem compreender.

— Nada para o barco! Depressa! - gritou Roland.

Alicia não compreendia o que estava acontecendo, mas o rosto de Roland tinha refletido tal pânico que não parou para pensar ou discutir e fez o que ele lhe tinha ordenado. No barco, o grito de Roland alertou Max, que observou como seu amigo e Alicia nadavam desesperadamente para ele. Um instante depois viu a sombra escura subindo sob as águas.

— Meu deus! - murmurou, paralisado.

Na água, Roland empurrou Alicia até sentir que a moça havia tocado o casco do barco. Max se apressou em agarrar sua irmã pelos ombros e puxou-a para cima. Alicia bateu as barbatanas com força e com seu impulso conseguiu cair sobre Max no interior do barco. Roland respirou profundamente e se dispôs a fazer o mesmo. Max lhe estendeu a sua mão desde o barco, mas Roland pôde ler no rosto de seu amigo o terror perante o que vinha atrás dele. Roland sentiu como sua mão escorregava pelo antebraço de Max e teve a intuição de que não voltaria a sair com vida da água. Lentamente, um abraço frio lhe agarrou as pernas e, com uma força incontrolavel, arrastou-o para as profundidades.

 

Superados os primeiros instantes de pânico, Roland abriu os olhos e observou o que era aquilo que o levava consigo para a escuridão do fundo. Por um instante acreditou ser possuído por uma alucinação. O que via não era uma forma sólida, mas uma estranha silhueta formada pelo que parecia ser água concentrada a muito alta densidade. Roland observou aquela delirante escultura móvel de água que trocava constantemente de forma e tentou separar-se de seu abraço mortal.

A criatura de água se retorceu e o rosto fantasmagórico que tinha visto em sonhos, o semblante do palhaço, voltou-se para ele. O palhaço abriu uma enorme boca infestadas de presas largas e afiadas como facas de carniceiro e seus olhos aumentaram até adquirir o tamanho de um prato de chá. Roland sentiu que lhe faltava o ar. Aquela criatura, fosse o que fosse, podia moldar sua aparência a capricho e suas intenções pareciam claras: levar Roland para o interior do casco do navio afundado. Enquanto Roland se perguntava quanto tempo seria capaz de conter a respiração antes de sucumbir e aspirar água, comprovou que a luz tinha desaparecido em seu redor. Estava nas vísceras do Orpheus e a escuridão circundante era absoluta.

 

Max engoliu a saliva enquanto colocava os óculos de mergulho e se preparava para saltar à água em busca de seu amigo Roland. Sabia que a tentativa de resgate era absurda. À partida, ele apenas sabia que tinha de mergulhar e, caso soubesse algo mais, ele não queria nem imaginar o que aconteceria quando estivesse debaixo da água e aquela estranha forma aquosa, que tinha apanhado Roland, viesse atrás dele. Entretanto, não podia ficar tranquilamente sentado no barco e deixar morrer seu amigo. Enquanto colocava as barbatanas sua mente lhe sugeriu mil explicações razoáveis para o que acabava de acontecer. Roland tinha sofrido uma cãibra; uma mudança de temperatura na água lhe tinha provocado um ataque... Qualquer teoria era melhor do que aceitar aquela como real, que tinha visto algo arrastar Roland para as profundidades.

Antes de mergulhar trocou um último olhar com Alicia. No rosto de sua irmã se lia claramente a luta entre a vontade de salvar Roland e o pânico de que seu irmão corresse idêntica sorte. Antes que o senso comum dissuadisse a ambos, Max saltou e submergiu nas águas cristalinas da baía. Aos seus pés, o casco do Orpheus se estendia até onde a visão se nublava. Max bateu as barbatanas para a proa do casco do navio, para o lugar em que tinha visto perder-se a silhueta de Roland sob a água na última vez. Através das fissuras do casco, Max acreditou ver luzes a piscar que pareciam desembocar em um débil retiro de claridade que emanava da brecha aberta pelas rochas na sentinavinte e cinco anos atrás. Max se dirigiu para aquela abertura do navio. Parecia que alguém tinha aceso a chama de centenas de velas no interior do Orpheus.

Quando estava situado na vertical sobre a entrada do navio, subiu à superfície para tomar ar e mergulhou de novo sem deter-se até alcançar o casco. Descer aqueles dez metros era muito mais difícil do que tinha imaginado. A meio do caminho, começou a sentir uma dolorosa pressão nos ouvidos que o fez temer que seus tímpanos estalassem sob a água. Quando alcançou a corrente fria, os músculos de todo o corpo se esticaram como cabos de aço e teve que bater as barbatanas com todo seu empenho para evitar que a corrente o arrastasse como se fosse uma folha seca. Max se aferrou com força à borda do casco e lutou por acalmar seus nervos. Os pulmões ardiam e sabia que estava a um passo do pânico. Olhou à superfície e viu o diminuto casco do barco, imensamente longínquo. Compreendeu que se não atuasse agora, de nada teria servido ter descido até ali.

A claridade parecia provir do interior da adega e Max seguiu aquele rastro que revelava o fantasmagórico espetáculo do casco de navio afundado e o fazia aparecer como uma macabra catacumba submarina. Percorreu um corredor em que farrapos de lona puída flutuavam suspensos como medusas. No extremo do corredor Max distinguiu uma porta semi-aberta, depois da qual parecia ocultar a fonte daquela luz. Ignorando as repulsivas carícias da lona podre sobre a sua pele, agarrou a bracelete da porta e empurrou com toda as forças que foi capaz de reunir.

A porta dava para um dos depósitos principais da adega. No centro, Roland lutava por escapar do abraço daquela criatura de água que agora tinha adotado a forma do palhaço do jardim de estátuas. A luz que Max tinha visto emanava de seus olhos cruéis e desproporcionalmente grandes para seu rosto. Max irrompeu pelo interior da adega e a criatura levantou a cabeça e olhou para ele. Max sentiu o impulso instintivo de fugir a toda pressa, mas a visão de seu amigo preso o obrigou a enfrentar aquele olhar de raiva enlouquecida. A criatura trocou de rosto e Max reconheceu o anjo de pedra do cemitério local.

O corpo de Roland deixou de retorcer-se e ficou inerte. A criatura soltou-o e Max, sem esperar a reação da criatura, nadou até seu amigo e o agarrou pelo braço. Roland tinha perdido os sentidos. Se não o levasse a superfície em uns segundos, perderia a vida. Max levou o seu amigo até a porta. Naquele momento, a criatura em forma de anjo e rosto de palhaço com longas presas se lançou sobre ele, estendendo duas afiadas garras. Max fechou o punho e atravessou o rosto da criatura. Não era mais que água, tão fria que só contato com a pele produzia uma dor ardente. Uma vez mais, o Dr. Caín estava mostrando seus truques.

Max retirou seu braço e a aparição se desvaneceu e com ela, sua luz. Max, recuperando o pouco fôlego que ficara nos pulmões, arrastou Roland pelo corredor da adega até o exterior do casco. Quando chegaram ali, seus pulmões pareciam a ponto de estalar. Incapaz de conter um segundo mais a respiração, soltou todo o ar que tinha retido. Agarrou o corpo inconsciente de Roland e bateu as barbatanas para a superfície, acreditando que perderia os sentidos a qualquer momento pela falta de ar.

A agonia daqueles últimos dez metros ascendentes parecia eterna. Quando finalmente emergiu à superfície, tinha nascido de novo. Alicia se lançou à água e nadou até eles. Max inspirou profundamente várias vezes, lutando com a dor aguda que sentia no peito. Subir Roland no barco não foi fácil e Max pensou que Alicia, ao lutar para levantar o peso morto do corpo, iria rasgar a pele dos seus braços contra a madeira estilhaçada do barco.

Quando conseguiram içar o corpo para bordo, colocaram Roland de barriga para baixo e pressionaram suas costas repetidamente, obrigando seus pulmões a expirar a água que tinham inalado. Alicia, coberta de suor e com os braços sangrando, agarrou Roland pelos braços e tentou forçar a respiração. Finalmente, inspirou ar profundamente e, tapando os orifícios nasais do moço, exalou todo o ar energicamente na sua boca. Foi necessário repetir esta operação cinco vezes até que o corpo de Roland, com uma violenta sacudida, reagiu e começou a cuspir água de mar e a convulsionar-se, enquanto seu amigo tratava de o segurar.

Finalmente, Roland abriu os olhos e sua tez amarelada começou a recuperar muito lentamente a cor. Max o ajudou a levantar-se e a recuperar pouco a pouco a respiração normal.

— Estou bem - balbuciou Roland, elevando uma mão para tentar tranquilizar seus amigos.

Alicia deixou cair seus braços e rompeu a chorar, gemendo como nunca Max a tinha visto fazer. Max esperou alguns minutos até que Roland pudesse segurarar-se por si mesmo, pegou nos remos e pôs rumo à borda. Roland o olhava em silêncio. Tinha-lhe salvado a vida. Max soube que aquele olhar desesperado e cheio de gratidão sempre o acompanharia.

 

Os dois irmãos deitaram Roland na cama de armar da cabana da praia e o cobriram com mantas. Nenhum deles sentia o desejo de falar do que tinha acontecido, pelo menos no momento. Era a primeira vez que a ameaça do Príncipe da Névoa se tornava tão dolorosamente evidente e resultava difícil encontrar palavras que pudessem expressar a inquietação que sentiam naquele momento. O senso comum parecia indicar que o melhor era atender às necessidades imediatas, e assim o fizeram. Roland tinha um estojo mínimo de primeiro socorros preparado na cabana, Max começou a desinfetar as feridas de Alicia. Roland dormiu poucos minutos. Alicia o observava com o rosto decomposto.

— Vai ficar bom. Está esgotado, isso é tudo - disse Max.

Alicia olhou para seu irmão.

— E você ? Salvou-lhe a vida - disse Alicia, cuja voz transmitia os seus nervos a flor de pele .— Ninguém teria sido capaz de fazer o que você fez, Max.

— Ele teria feito o mesmo por mim - disse Max, que preferia evitar esse tema.

— Como se encontra? - insistiu sua irmã.

— A verdade? - perguntou Max.

Alicia assentiu.

— Acredito que vou vomitar - sorriu Max. — Em toda a minha vida não me encontrei pior.

Alicia abraçou seu irmão com força. Max ficou imóvel, com os braços cansados, sem saber se tratava de uma manifestação de carinho fraternal ou uma expressão do terror que sua irmã tinha experimentado minutos atrás, quando tentavam reanimar Roland.

— Gosto muito de você, Max - lhe sussurrou Alicia. — Me ouviu?

Max guardou silêncio, perplexo. Alicia o libertou de seu abraço fraternal e se voltou para a porta da cabana, lhe virando as costas. Max reparou que sua irmã estava chorando.

— Não o esqueça nunca, irmaozinho - murmurou. — E agora durma um pouco. Eu farei o mesmo.

— Se dormir agora, não volto a acordar - suspirou Max.

Cinco minutos depois, os três amigos estavam profundamente adormecidos na cabana da praia e nada no mundo teria podido despertá-los.

 

Ao cair do crepúsculo, Victor Kray se deteve a cem metros da casa da praia, onde os Carver tinham fixado seu novo lar. Aquela era a mesma casa onde a única mulher que tinha amado realmente, Eva Gray, tinha dado a luz a Jacob Fleischmann. Ao ver de novo a fachada branca da casa reabriu feridas em seu interior que acreditava estarem fechadas para sempre. As luzes da casa estavam apagadas e o lugar parecia vazio. Victor Kray supôs que os moços deviam estar ainda no povoado com Roland.

O faroleiro percorreu o caminho até a casa e cruzou a cerca branca que a rodeava. A mesma porta e as mesmas janelas que recordava perfeitamente reluziam sob os últimos raios do sol. O ancião cruzou o jardim até ao pátio traseiro e saiu para o campo que se estendia depois da casa da praia. Ao longe se elevava o bosque e, em sua soleira, o jardim de estátuas. Fazia muito tempo que não voltava aquele lugar e se deteve de novo a observá-lo de longe, temeroso do que se ocultava atrás de seus muros. Uma densa névoa se pulverizava em direção à moradia através dos escuros ferros da grade do jardim de estátuas.

Victor Kray estava assustado e se sentia velho. O medo que lhe corroia a alma era o mesmo que tinha experimentado décadas atrás nos becos daquele subúrbio industrial, onde ouviu pela primeira vez a voz do Príncipe da Névoa. Agora, o destino de sua vida, aquele círculo parecia fechar-se e, a cada jogada, o ancião sentia que já não lhe sobravam trunfos para a aposta final.

O faroleiro avançou com passo firme até a entrada do jardim de estátuas. Logo, a névoa que brotava do interior o cobriu até a cintura. Victor Kray introduziu a mão tremendo no bolso de seu casaco e extraiu seu velho revólver, carregado conscienciosamente antes de partir, e uma potente lanterna. Com a arma na mão, entrou no recinto, acendeu a lanterna e iluminou o interior do jardim. O feixe de luz revelou um panorama insólito. Victor Kray baixou a arma e esfregou os olhos, pensando que estava sendo vítima de alguma alucinação. Algo estava mal, ou ao menos, aquilo não era o que esperava encontrar. Deixou que o feixe da lanterna fatiasse de novo a névoa. Não era uma ilusão: o jardim de estátuas estava vazio.

O ancião aproximou-se e observou desconcertado os pedestais abandonados. Ao mesmo tempo que tratava de restabelecer a ordem em seus pensamentos, Victor Kray percebeu que o murmúrio longínquo de uma nova tormenta se aproximava e elevou a vista para o horizonte. Um manto ameaçador de nuvens escuras e turvas se estendia sobre o céu como uma mancha de tinta em um lago. Um raio dividiu o céu em dois e o eco de um trovão chegou à costa como o rufar premonitório de uma batalha. Victor Kray escutou a ladaínha do temporal que se forjava no interior do mar e, finalmente, recordando ter contemplado aquela mesma visão a bordo do Orpheus vinte e cinco anos atrás, compreendeu o que ia acontecer.

 

Max despertou empapado em suor frio e demorou uns segundos a perceber onde se encontrava. Sentia seu coração palpitar como o motor de uma velha motocicleta. A poucos metros dele, reconheceu um rosto familiar: Alicia, dormia junto a Roland; e recordou que estava na cabana da praia. Podia jurar que seu sono não tinha durado mais de uns minutos, embora na realidade tivesse dormido quase uma hora. Max se levantou sigilosamente e saiu para a exterior em busca de ar fresco, enquanto as imagens de um angustiante pesadelo de asfixia, em que ele e Roland ficavam presos no interior do casco do Orpheus se desvaneciam em sua mente.

A praia estava deserta e a maré alta levou o barco de Roland pelo mar adentro, onde muito em breve a corrente o arrastaria consigo e o pequeno esquife se perderia na imensidão do oceano, irremediavelmente. Max se aproximou até a borda e umedeceu a cara e os ombros com a água fresca do mar. Logo se aproximou até a curva que formava uma pequena baía e se sentou entre as rochas, com os pés submersos na água, com a esperança de recuperar a calma que o sono não tinha podido lhe proporcionar.

Max pensava que por trás dos acontecimentos dos últimos dias se escondia alguma lógica. A sensação de um perigo iminente se apalpava no ar e, se deteve a pensar nisso., Podia traçar uma linha ascendente nas aparições do Dr. Caín. A cada hora que passava, sua presença parecia adquirir maior poder. Aos olhos de Max, tudo formava parte de um complexo mecanismo que ia juntando suas peças uma a uma e cujo centro convergia em torno do escuro passado de Jacob Fleischmann, das enigmáticas visitas ao jardim de estátuas que tinha presenciado nos filmes do abrigo e na criatura indescritível que tinha estado a ponto de acabar com suas vidas naquela mesma tarde.

Com o que tinha acontecido naquele dia, Max compreendia que não podiam dar-se ao luxo de esperar por um novo encontro com o Dr. Caín para atuar: Era preciso anteciparem-se a seus movimentos e tratar de prever qual seria seu próximo passo. Para Max só havia um modo de averiguá-lo: seguir a pista que Jacob Fleischmann tinha deixado anos atrás em seus filmes.

Sem incomodar-se em despertar Alicia e Roland, Max montou sua bicicleta e se dirigiu para a casa da praia. Ao longe, sobre a linha do horizonte, um ponto escuro emergiu do nada e começou a expandir-se como uma nuvem de gás letal. A tormenta estava se formando.

De volta à casa dos Carver, Max enfiou o cilindro do filme na bobina do projetor. A temperatura tinha baixado consideravelmente enquanto fazia o trajeto na bicicleta e seguia descendo. Os primeiros ecos da tormenta podiam escutar-se entre as rajadas ocasionais de vento que golpeavam as portas da casa. Antes de projetar o filme, Max se apressou a subir a escada para vestir roupa seca . A estrutura de madeira envelhecida da casa rangia sob seus pés e parecia que estava vulnerável à perseguição do vento. Enquanto trocava de roupa, Max advertiu da janela de seu quarto que a tormenta que se aproximava estava cobrindo o céu com um manto de escuridão que antecipava o anoitecer em algumas horas. Fechou a janela e desceu de novo à sala para acender o projetor.

Uma vez mais, as imagens ganharam vida sobre a parede e Max se concentrou na projeção. Nesta ocasião a câmara percorria um cenário familiar: os corredores da casa da praia. Max reconheceu o interior da sala em que se encontrava agora mesmo, vendo o filme. A decoração e os móveis eram diferentes e a casa oferecia um aspecto luxuoso e opulento aos olhos da câmara, que traçava lentos círculos e mostrava as paredes e janelas da casa, como se tivesse aberto uma porta na máquina do tempo, que permitisse visitar a casa quase uma década atrás.

Depois de alguns minutos no piso inferior, o filme transportava o espectador ao piso superior.

Uma vez na soleira do corredor, a câmara se aproximava até a porta do extremo, que conduzia ao quarto ocupado por Irina até ao acidente. A porta se abria e a câmara penetrava no quarto consumido pela penumbra. A sala estava vazia e a câmara se detinha frente à porta do armário na parede.

Transcorreram vários segundos de filme sem que nada acontecesse e sem que a câmara registrasse movimento algum no quarto desocupado. Repentinamente, a porta do armário se abriu com força e golpeou a parede, balançando-se sobre as dobradiças. Max forçou a vista para perceber o que se entrevia no interior do armário escuro e observou que uma mão embainhada em uma luva branca emergia de entre as sombras, sustentando um objeto brilhante que pendia de uma cadeia. Max adivinhou o que vinha a seguir: o Dr. Caín saía do armário e sorria à câmara.

Max reconheceu a esfera que o Príncipe da Névoa tinha em suas mãos: era o relógio que seu pai lhe tinha oferecido e que ele tinha perdido no interior do mausoléu de Jacob Fleischmann. Agora estava em poder do mago e, de algum modo, tinha levado consigo o seu objeto mais apreciado, à dimensão fantasmagórica das imagens em branco e preto que brotavam do velho projetor.

A câmara se aproximou do relógio e Max pôde ver nitidamente como as agulhas da esfera retrocediam a uma velocidade inverossímil e crescente até que se tornou impossível as distinguir. Aos poucos, a esfera começou a desprender fumaça e faíscas e finalmente o relógio ficou em chamas. Max contemplou enfeitiçado a cena, incapaz de afastar seus olhos do relógio a arder. Um instante depois, a câmara se desloca bruscamente até a parede da habitação e foca uma velha penteadeira sobre a qual se distinguia um espelho. A câmara se aproxima dele e se detem para revelar com toda a claridade a imagem de quem segurava a câmara sobre a lâmina de vidro.

Max tragou a saliva; por fim enfrentava cara a cara com quem tinha filmado aqueles filmes anos atrás, naquela mesma casa. Podia reconhecer aquele rosto infantil e sorridente que estava filmando a si mesmo. Havia nele uns anos menos, mas as feições e o olhar eram as mesmas que tinha aprendido a reconhecer nos últimos dias: Roland.

O filme encravou no interior do projetor e o fotograma entupido frente à lente começou a fundir-se lentamente na tela. Max apagou o projetor e apertou os punhos para deter o tremor que se havia apoderado de suas mãos. Jacob Fleischmann e Roland eram uma mesma pessoa.

A luz de um relâmpago inundou a sala em sombras por uma fração de segundo e Max reparou que atrás da janela uma figura golpeava o vidro com os nódulos, fazendo gestos para entrar. Max acendeu a luz da sala e reconheceu o semblante cadavérico e aterrorizado de Victor Kray, que a julgar por seu aspecto parecia ter presenciado uma aparição. Max se dirigiu à porta e deixou entrar o ancião. Tinham muito que falar.

 

Max estendeu uma taça de chá quente ao velho faroleiro e esperou que o ancião se aquecesse.

Victor Kray estava tiritando e Max não sabia se deveria atribuir aquele estado ao vento frio que trazia a tormenta ou ao medo que o ancião parecia já incapaz de ocultar.

— O que estava fazendo aí fora, senhor Kray? - perguntou Max.

— Estive no jardim de estátuas - respondeu o ancião, recuperando a calma.

Victor Kray bebeu um pouco de chá da taça fumegante e a deixou repousar na mesa.

— Onde está Roland, Max? - perguntou o ancião nervosamente.

— Por que quer sabê-lo? - replicou Max num tom que não mascarava a desconfiança que lhe inspirava o ancião à luz de suas últimas averiguações.

O faroleiro pareceu intuir seu receio e começou a gesticular com as mãos, como se quisesse explicar e não achasse as palavras.

— Max, algo terrível vai acontecer esta noite se não o impedimos - disse finalmente Victor Kray, consciente de que sua afirmação não soava muito convincente.— Preciso saber onde está Roland. Sua vida corre grande perigo.

Max guardou silêncio e escrutinou o rosto implorante do ancião. Não acreditava numa só palavra do que o faroleiro acabava de dizer.

— Que vida, senhor Kray, a de Roland ou a de Jacob Fleischmann? - interpelou, esperando a reação do Victor Kray.

O ancião entreabriu os olhos e suspirou, abatido.

— Acredite que não entendo você, Max - murmurou.

— Eu acredito que sim. Sei que me mentiu, senhor Kray - disse Max cravando um olhar acusador no rosto do ancião. — E sei quem é Roland na realidade. Você nos esteve enganando desde o começo. Por que?

Victor Kray se levantou e caminhou até uma das janelas, jogando uma olhada ao exterior, como se esperasse a chegada de alguma visita. Um novo trovão estremeceu a casa da praia. A tormenta estava cada vez mais próxima da costa e Max podia escutar o som do fluxo rugindo no oceano.

— Me diga onde está Roland, Max - insistiu uma vez mais o ancião, sem deixar de vigiar o exterior. — Não há tempo a perder.

— Não sei se posso confiar em você. Se quiser que o ajude, primeiro terá que me contar a verdade - exigiu Max, que não estava disposto a permitir que o faroleiro o deixasse de novo a meia luz.

O ancião se voltou para ele e o olhou com severidade. Max sustentou seu olhar com dureza, indicando que não se intimidava absolutamente. Victor Kray pareceu compreender a situação e se sentou numa poltrona, derrotado.

— Está bem, Max. Contarei-lhe a verdade, se é isso que quer - murmurou.

Max se sentou frente a ele e assentiu, disposto a escuta-lo de novo.,

— Quase tudo o que lhes contei no outro dia no farol era verdade - começou o ancião

— Meu antigo amigo Fleischmann tinha prometido ao Dr. Caín que lhe entregaria seu primeiro filho em troca de conseguir Eva Gray. Um ano depois do casamento, quando eu já tinha perdido o contato com ambos, Fleischmann começou a receber as visitas do Dr. Caín, que lhe recordava a natureza de seu pacto. Fleischmann tratou por todos os meios evitar aquele filho, até ao extremo de destroçar seu matrimônio. Depois do naufrágio do Orpheus, acreditei que tinha a obrigação de lhes escrever e liberta-los da condenação que durante anos os tinha desgraçado. Eu confiava que a ameaça do Dr. Caín tinha ficado sepultada para sempre sob o mar. Ou pelo menos, fui tão insensato para convencer a mim disso. Fleischmann se sentia culpado e em dívida comigo e pretendia que os três, Eva, ele e eu voltássemos a estar juntos, como nos anos da universidade. Aquilo era absurdo, claro está. Tinham acontecido muitas coisas. Mesmo assim, teve o capricho de construir a casa da praia, na qual seu filho Jacob viria a nascer pouco tempo depois. O pequeno foi a bênção do céu que devolveu a alegria de viver a ambos. Ou assim parecia, porque na própria noite de seu nascimento, eu soube que algo ia mal. Naquela mesma madrugada voltei a sonhar com o Dr. Caín. Enquanto o menino crescia, Fleischmann e Eva estavam tão cegos pela alegria que eram incapazes de reconhecer a ameaça que se abatia sobre eles. Ambos estavam obstinados em procurar a felicidade do menino e em satistazer todos seus caprichos. Nunca houve um menino ou menina na Terra tão mimado e mimada como Jacob Fleischmann. Mas, pouco a pouco, os sinais da presença de Caín foram tornando-se mais evidentes. Um dia, quando Jacob tinha cinco anos, o menino se perdeu enquanto jogava no pátio por trás da casa. Fleischmann e Eva o procuraram desesperados durante horas, mas não havia sinal dele. Ao cair da noite, Fleischmann tomou uma lanterna e entrou no bosque, temendo que o pequeno se perdesse ou tivesse sofrido um acidente. Quando tinham construído a casa, seis anos atrás, Fleischmann recordava que na soleira do bosque existia um pequeno recinto fechado e vazio que parecia ter pertencido, muito tempo atrás, a um antigo canil derrubado no princípio do século. Era o lugar onde se encerravam os animais que iam ser sacrificados. Aquela noite, uma intuição levou ao Fleischmann a pensar que talvez o menino tivesse entrado ali e ficara preso. Sua intuição era em parte acertada, mas não só encontrou seu filho ali. O recinto que anos atrás tinha estado deserto, estava agora povoado por estátuas. Jacob estava brincando entre as figuras quando seu pai o encontrou e o tirou dali. Alguns dias depois, Fleischmann me visitou no farol e me explicou o acontecido. Fez-me jurar que, se algo acontecesse a ele, eu tomaria conta do pequeno. Aquilo foi só o princípio. Fleischmann ocultava a sua esposa os incidentes inexplicáveis que aconteceram em torno do menino, mas no fundo ele compreendia que não havia escapatória e que mais cedo ou mais tarde Caín voltaria a procurar o que lhe pertencia.

— O que aconteceu na noite em que Jacob se afogou? - interrompeu Max, intuindo a resposta, mas desejando que as palavras do ancião provassem que seus temores estavam errados.

Victor Kray baixou a cabeça e esperou uns segundos para responder.

— Tal dia, como o de hoje, 23 de junho, o mesmo dia em que o Orpheus se afundou, uma terrível tormenta desatou no mar. Os pescadores correram para proteger seus barcos e as pessoas do povoado fecharam portas e janelas, como tinham feito na noite do naufrágio. O povoado se transformou em uma aldeia fantasma sob a tormenta. Eu estava no farol e uma terrível intuição me assaltou: o menino estava em perigo. Cruzei as ruas desertas e vim aqui a toda pressa. Jacob tinha saído de casa e caminhava pela praia, para a borda, onde a rebentação das ondas rompia com fúria. Caía um forte aguaceiro e a visibilidade era quase nula, mas pude entrever uma silhueta brilhante que brotava da água e estendia dois longos braços ao menino, como tentáculos. Jacob parecia caminhar hipnotizado para aquela criatura de água e quase não a podia ver na escuridão. Era Caín, disso estava seguro, mas parecia que , por uma vez, todas as suas identidades se fundissem em uma silhueta cambiante... Custa-me muito descrever o que vi...

— Vi essa forma - interrompeu Max, economizando ao ancião as descrições da criatura que ele mesmo tinha visto tão somente umas horas antes. — Continue.

— Perguntei a mim próprio por que Fleischmann e sua mulher não estavam ali, tratando de tirar o menino e olhei para a casa. Uma banda de figuras circenses, que pareciam corpos de pedra móvel, os retinha sob o alpendre.

— As estátuas do jardim - corroborou Max.

O ancião assentiu.

— A única coisa que pensei naquele momento foi salvar o menino. Aquela coisa o tinha tomado em seus braços e o arrastava mar adentro. Lancei-me contra a criatura e a atravessei. A enorme silhueta de água se desvaneceu na escuridão. O corpo de Jacob se afundou. Mergulhei várias vezes até que o apalpei na escuridão e pude resgatar seu corpo para levá-lo de novo até a superfície. Arrastei o menino até a areia, longe das ondas e tratei de o reanimar. As estátuas tinham desaparecido com o Caín. Fleischmann e Eva correram para junto de mim para socorrer o menino, mas quando chegaram já não tinha pulso. Levamos-o para o interior da casa e tratamos de o reanimar, inutilmente: o menino estava morto. Fleischmann estava fora de si e saiu para o exterior, gritando à tormenta e oferecendo sua vida a Caín em troca da vida do menino. Minutos depois, inexplicavelmente, Jacob abriu os olhos. Estava em estado de choque. Não nos reconhecia e não parecia recordar nem seu próprio nome. Eva agasalhou o menino e o levou para cima, onde o deixou dormir. Quando voltou a descer, um momento mais tarde, se aproximou de mim e, muito serenamente, disse-me que, se o menino continuasse com eles, sua vida correria perigo. Pediu-me que tomasse conta dele e o criasse como se fosse meu próprio filho, como o filho que, se o destino tivesse tomado outro caminho, poderia ter sido o nosso. Fleischmann não se atreveu a entrar na casa. Aceitei o que me pedia Eva Gray e pude ver em seus olhos como renunciava a algo único, que tinha dado sentido a sua vida. No dia seguinte levei o menino comigo. Não voltei a ver os Fleischmann.

Victor Kray fez uma longa pausa. Max teve a impressão de que o ancião tratava de conter as lágrimas, mas Victor Kray ocultava seu rosto entre suas mãos brancas e envelhecidas.

— Soube um ano depois que ele tinha morrido, vítima de uma estranha infecção que contraiu através da mordida de um cão selvagem. E até agora, não sei se Eva Gray vive ainda em algum lugar do país.

Max examinou o semblante abatido do ancião e concluiu que o tinha julgado erradamente, embora tivesse preferido considerá-lo como um vilão em vez de enfrentar o que suas palavras punham em evidência.

— Você inventou a história dos pais de Roland, inclusive inventou seu nome... - concluiu Max.

Kray assentiu, admitindo perante um moço de treze anos que apenas tinha visto umas vezes o maior segreto de sua vida.

— Então, Roland não sabe quem é na realidade? - perguntou Max.

O ancião negou repetidamente e Max reparou que finalmente havia lágrimas de raiva em seus olhos, castigados por muitos anos vigiando no alto do farol.

— Quem está enterrado então na tumba de Jacob Fleischmann no cemitério? - perguntou Max.

— Ninguém - respondeu o ancião. — Nunca se construiu essa tumba nem se oficializou um funeral. A tumba que viu no outro dia apareceu no cemitério local na semana seguinte à tormenta. As pessoas do povoado acreditam que Fleischmann a mandou construir para seu filho.

— Não o entendo - replicou Max. — Se não foi Fleischmann, quem a construiu e para quê?

Victor Kray sorriu amargamente ao moço.

— Caín - respondeu finalmente. — Caín a colocou ali e a esteve reservando para Jacob.

— Meu deus - murmurou Max, compreendendo que talvez tenha desperdiçado um tempo precioso ao obrigar o ancião a confessar toda a verdade. — Terá que tirar Roland da cabana agora mesmo...

 

A rebentação das ondas que rompiam na praia despertou Alicia. Já tinha caído a noite e, a julgar pelo intenso repico da água sobre o telhado da cabana, uma forte tormenta se desencadeou sobre a baía enquanto dormiam. Alicia se levantou, aturdida ainda, e comprovou que Roland estava estendido na cama de armar, murmurando palavras ininteligíveis em seu sono. Max não estava ali e Alicia supôs que seu irmão estaria lá fora, contemplando a chuva sobre o mar; Max tinha fascinio pela chuva. Dirigiu-se até a porta e a abriu, jogando uma olhada para a praia.

Uma densa névoa azulada avançava desde o mar até à cabana como um espectro à espreita e Alicia pôde perceber dúzias de vozes que pareciam sussurrar desde seu interior. Fechou a porta com força e se apoiou contra ela, decidida a não se deixar levar pelo pânico. Roland, sobressaltado pelo ruído da porta, abriu os olhos e se levantou atrapalhado, sem compreender muito bem como tinha chegado até ali.

— O que se está se passando? - conseguiu murmurar Roland.

Alicia separou os lábios para responder, mas algo a deteve. Roland contemplou estupefato como uma densa névoa se filtrava por todas as juntas da cabana e envolvia Alicia. A moça gritou e a porta sobre a qual tinha estado apoiada saiu disparada para o exterior, arrancada das dobradiças por uma força invisível. Roland saltou da cama de armar e correu para Alicia, que se afastava em direção ao mar envolta naquela garra formada por névoa de vapor. Uma figura se interpôs em seu caminho e Roland reconheceu o espectro de água que o tinha arrastado às profundidades. O rosto do palhaço se iluminou.

— Olá, Jacob - sussurrou a voz por trás dos lábios gelatinosos. — Agora sim é que nos vamos divertir.

Roland golpeou a forma aquosa e a silhueta de Caín se desintegrou no ar, deixando cair no vazio litros e litros de água. Roland se precipitou para o exterior e recebeu o golpe da tormenta. Uma grande cúpula de espessas nuvens purpúras se formou sobre a baía. Desde seu topo, um raio cegador caiu sobre um dos picos do escarpado e pulverizou toneladas de rocha, provocando uma chuva de materiais sobre a praia.

Alicia gritou, lutando para escapar do abraço letal que a aprisionava e Roland correu sobre as pedras até a borda. Tentou alcançar sua mão até que uma forte sacudida do mar o derrubou. Quando ficou em pé de novo, toda a baía tremia sob seus pés e Roland escutou um enorme rugido que parecia subir das profundezas. O moço retrocedeu uns passos, lutando para manter o equilíbrio e pôde ver uma gigantesca forma luminosa que subia do fundo do mar para a superfície, levantando ondas de vários metros em todas direções. No centro da baía, Roland reconheceu a silhueta de um mastro emergindo de entre as águas. Lentamente, perante seus olhos incrédulos, o casco do Orpheus saiu da flutuação das ondas, envolto em uma aura espectral.

Sobre a ponte, Caín, envolto em sua capa, elevou uma fortificação prateada ao céu e um novo raio caiu sobre ele, iluminando com uma luz resplandecente todo o casco do Orpheus. O eco da cruel gargalhada do mago alagou a baía enquanto a garra fantasmagórica soltava Alicia a seus pés.

— É você quem eu quero, Jacob - sussurrou a voz de Caín na mente de Roland .— Se não quiser que ela morra, venha procurá-la...

 

Max pedalava sob a chuva quando um deslumbrante raio o sobressaltou e revelou a visão do Orpheus, ressurgido das profundezas e impregnado de uma luminosidade hipnótica que emanava do próprio metal. O velho casco do navio de Caín navegava de novo sobre as águas enfurecidas da baía. Max pedalou até perder o fôlego, temendo que, quando chegasse à cabana, já seria muito tarde. Tinha deixado para trás o velho faroleiro, que já não podia, se igualar a seu ritmo. Ao chegar à praia, Max saltou da bicicleta e correu para a cabana de Roland. Descobriu que a porta tinha sido arrancada das dobradiças e localizou a silhueta paralisada de seu amigo na borda, olhando enfeitiçado o casco do navio fantasma que navegava no fluxo das ondas. Max deu graças aos céus e correu para o abraçar.

— Está bem? - gritou contra o vento que açoitava a praia.

Roland lhe devolveu um olhar de pânico, como o de um animal ferido e incapaz de escapar de seu depredador. Max viu nele aquele rosto infantil que havia sido refletido pela câmara frente no espelho e sentiu um calafrio.

— Ele tem a Alicia - disse Roland finalmente.

Max sabia que seu amigo não compreendia o que estava acontecendo realmente e pensou que tentar explicar-lhe só complicaria a situação.

— Aconteça o que acontecer - disse Max, se afaste dele. Ouviu-me? Se afaste de Caín.

Roland ignorou suas palavras e entrou na água até que as ondas lhe cobriram a cintura. Max foi atrás dele e o deteve, mas Roland, mais forte que seu amigo, escapou facilmente e o empurrou com força antes de se lançar a nadar.

— Espere! - gritou Max. — Não sabe o que está se passando! Ele procura você!

— Já sei - replicou Roland sem lhe dar tempo de pronunciar uma palavra mais.

Max viu mergulhar seu amigo nas ondas e emergir uns metros mais à frente, nadando para o Orpheus. A metade prudente de sua alma pedia-lhe urgentemente para correr de volta à cabana e esconder-se sob a cama de armar até que tudo tivesse resolvido. Como sempre, Max escutou à outra metade e se lançou atrás de seu amigo com a certeza de que, desta vez, não voltaria para terra com vida.

 

Os longos dedos embainhados em uma luva de Caín se fecharam sobre o pulso de Alicia como uma tenaz, e a moça sentiu que o mago a atirava, arrastando-a sobre a coberta escorregadia do Orpheus. Alicia tentou livrar-se lutando com força. Caín se voltou e, elevando-a no ar sem nenhum esforço, aproximou seu rosto a escassos centímetros do rosto de Alicia, até que a moça pôde ver como as pupilas daqueles olhos ardentes de raiva se dilatavam e trocavam de cor, do azul ao dourado.

— Não repetirei - ameaçou o mago com voz metálica e carente de vida. — Esteja quieta ou se arrependerá. Entendeu-me?

O mago incrementou dolorosamente a pressão de seus dedos e Alicia temeu que, se não o detivesse, Caín lhe esmagava os ossos do pulso como se fossem de argila seca. Alicia compreendeu que era inútil opor resistência e assentiu nervosamente. Caín afrouxou a pressão e sorriu. Não havia compaixão nem cortesia naquele sorriso, só ódio. O mago a soltou e Alicia caiu de novo sobre a coberta, golpeando a frente do corpo contra o metal. Apalpou a pele e sentiu a ardência aguda de um corte aberto pela queda. Sem lhe conceder um instante de trégua, Caín a agarrou de novo pelo seu braço machucado e a arrastou para as vísceras do casco do navio.

— Se levante - ordenou o mago, empurrando-a através de um corredor que se estendia atrás da ponte do Orpheus e conduzia aos camarotes da coberta.

As paredes estavam enegrecidas e cobertas de óxido e uma capa viscosa de algas escuras. O interior do Orpheus estava submerso em um palmo de água lamacenta que desprendia vapores nauseabundos. Dezenas de despojos flutuavam e se balançavam com o forte vaivém do navio entre o fluxo das ondas. O Drº. Caín agarrou Alicia pelo cabelo e abriu uma das portas que dava para um camarote. Uma nuvem de gases e água poluida aprisionados no interior durante vinte e cinco anos encheram o ar. Alicia conteve a respiração. O mago esticou com força seu cabelo e a arrastou até a porta do camarote.

— A melhor suíte do navio, querida. O camarote do capitão para minha convidada de honra. Desfrute da companhia.

Caín a empurrou brutalmente para o interior e fechou a porta. Alicia caiu de joelhos e apalpou a parede atrás de suas costas, em busca de um ponto de apoio. O camarote estava praticamente consumido pela escuridão e a única claridade que conseguia vislumbrar provinha de um estreito olho de boi que pelos anos submerso nas águas haviam coberto com uma grossa crosta semitransparente de algas e restos orgânicos. As contínuas sacudidas do navio pela tormenta a empurravam contra as paredes do camarote. Alicia segurou-se a um tubo oxidado e escrutinou a penumbra, lutando por separar de sua mente o fedor penetrante que reinava naquele lugar. Seus olhos demoraram alguns minutos a habituar-se às mínimas condições de luz e então começou a examinar a cela que Caín lhe tinha reservado. Não havia outra saída à vista que aquela porta que o mago tinha selado ao sair. Alicia procurou desesperadamente uma barra de metal ou um objeto contundente para tentar forçar a porta do camarote, mas não pôde achar nada. Enquanto apalpava na penumbra tentando encontrar uma ferramenta que lhe permitisse libertar-se, suas mãos roçaram algo que tinha estado apoiado contra a parede. Alicia se afastou, sobressaltada. Os restos irreconhecíveis do capitão do Orpheus caíram a seus pés e Alicia compreendeu a quem se referia Caín ao falar da sua companhia. O destino não tinha jogado a favor do velho holandês errante. O estrondo do mar e o temporal afogaram seus gritos.

 

Por cada metro que Roland ganhava em seu caminho até ao Orpheus, a fúria do mar o arrastava para baixo da água e o devolvia à superfície na rebentação de uma onda, o envolvendo em um turbilhão de espuma cuja força não podia combater. Frente a ele, o navio se debatia com o embate da ondulação que o temporal lançava contra o casco.

À medida que se aproximava do casco do navio, e com a violência do mar, se tornava mais dificultoso controlar a direção em que a corrente o sacudia, e Roland temeu que um golpe repentino da onda pudesse empurrá-lo contra o casco do Orpheus e fazer-lhe perder os sentidos. Se isso acontecesse, o mar o engoliria vorazmente e jamais voltaria para a superfície. Roland mergulhou para se esquivar da crista de uma onda que se abatia sobre ele e emergiu de novo, comprovando que a onda se afastava para a costa formando um vale de água turva e agitada.

O Orpheus se elevava a menos de uma dúzia de metros de onde se encontrava e ao contemplar a parede de aço tingida de luz incandescente soube que seria impossível subir até a coberta. O único caminho viável era a brecha que as rochas tinham aberto no casco, provocando o afundamento do navio vinte e cinco anos atrás. A brecha se encontrava na linha de flutuação e aparecia e submergia sob as águas a cada movimento da ondulação. Os farrapos de metal da fuselagem que rodeavam o buraco negro eram semelhantes à boca de uma grande besta marinha. E só idéia de introduzir-se naquela armadilha aterrorizava Roland, mas era a sua única oportunidade de chegar até Alicia. Lutou para não ser arrastado pela seguinte onda e, quando a crista tinha passado sobre ele, lançou-se para o buraco do casco e penetrou nele como um torpedo humano para as trevas.

 

Victor Kray atravessou sem fôlego as ervas selvagens que separavam a baía do caminho do farol. A chuva e o vento caíam com força e freavam seu avanço como mãos invisíveis empenhadas em o afastar daquele lugar. Quando conseguiu chegar até a praia, o Orpheus se elevava no centro da baía, navegando em linha reta para o escarpado e estava envolto em uma aura de luz sobrenatural. A proa do navio rompia o fluxo das ondas que varria a coberta e levantava uma nuvem de espuma branca a cada nova sacudida do oceano. Uma sombra de desespero se abateu sobre ele: seus piores temores se tornaram realidade e tinha fracassado; os anos tinham debilitado sua mente e o Príncipe da Névoa o tinha enganado uma vez mais. Só pedia aos céus que não fosse muito tarde para salvar Roland do destino que o mago tinha reservado para ele. Naquele momento, Victor Kray teria entregue de boa vontade sua vida se com isso garantisse a Roland a mínima oportunidade de escapar. Entretanto, uma escura premonição o fazia suspeitar que tinha faltado à promessa que fez à mãe do menino.

Victor Kray se encaminhou para a cabana de Roland, com a vã esperança de o encontrar ali. Não havia rastro de Max nem da moça e a visão da porta da cabana derrubada na praia o fez albergar os piores augúrios. Então, uma faísca de esperança se acendeu ao comprovar que havia luz no interior da cabana. O faroleiro se apressou para a entrada, chamando o nome de Roland. A figura de um lançador de facas de pedra pálida e viva saiu para o receber.

— Um pouco tarde para lamentar-se, avô - disse, permitindo ao ancião reconhecer a voz de Caín.

Victor Kray deu um passo atrás, mas havia alguém em suas costas e, antes que pudesse reagir, sentiu um golpe seco na nuca. Depois, caiu na escuridão.

 

Max reparou que Roland penetrava no casco do Orpheus através do buraco na fuselagem e sentiu que suas forças fraquejavam a cada nova sacudida das ondas. Ele não era um nadador comparável a Roland e com muita dificuldade conseguiria manter-se flutuando durante muito tempo no meio daquele temporal, a menos que encontrasse um modo de subir a bordo do casco do navio. Por outro lado, a certeza de que o perigo os esperava nas vísceras do navio se tornava mais evidente a cada minuto que passava e compreendia que o mago os estavam levando para seu terreno como moscas ao mel.

Depois de escutar um estrondo ensurdecedor, Max contemplou como uma imensa parede de água se elevava pela popa do Orpheus e se aproximava com grande velocidade do casco de navio. Em poucos segundos, o impacto da onda arrastou o navio até o escarpado e a proa se incrustou nas rochas, provocando uma violenta sacudida em todo o casco. O mastro que sustentava os sinais luminosos da ponte desabou com o flanco do navio e seu extremo caiu a uns metros de Max, que mergulhou nas águas.

Max nadou afincadamente até ali, aferrou-se ao mastro e descansou uns segundos para recuperar o fôlego. Quando elevou o olhar, viu que a trajetória do mastro abatido lhe estendia uma ponte até a coberta do navio. Antes que uma nova onda o arrancasse dali e o levasse para sempre, Max começou a subir para o Orpheus sem reparar que, apoiada no corrimão de estibordo do casco do navio, uma silhueta o esperava imóvel.

 

O impulso da corrente empurrou Roland através da sentina alagada do Orpheus e o moço protegeu o rosto com os braços para evitar os golpes que seu avanço entre os restos do naufrágio assim previam. Roland se balançou a mercê da água até que uma sacudida no casco o lançou contra a parede, onde pôde agarrar-se a uma escada metálica que subia para a parte superior do navio.

Roland subiu pela estreita escada e cruzou uma escotilha que desembocava na escura sala das máquinas que albergava os motores destruídos do Orpheus. Atravessou os restos da maquinaria até o corredor que ascendia à coberta e, uma vez ali, cruzou a toda pressa o corredor de camarotes até chegar à ponte do casco do navio. Paradoxalmente, Roland reconhecia cada recanto da sala e todos os objetos que tantas vezes tinha observado quando mergulhava debaixo da água. Daquele posto de observação, Roland obtinha uma visão completa da coberta dianteira do Orpheus, onde as ondas varriam a superfície e morriam contra a plataforma da ponte. Súbitamente, Roland sentiu que o Orpheus era impulsionado para a frente com uma força imparavel e contemplou atônito como entre as sombras emergia o escarpado na proa do navio. Foram chocar contra as rochas em questão de segundos.

Roland se apressou a segurar-se na roda do leme seus pés escorregaram sobre o manto de algas que cobríam o piso. Rodou vários metros até ser golpeado pelo antigo aparelho de rádio e seu corpo experimentou a tremenda vibração do impacto do casco contra os escarpados. Passado o pior momento, levantou-se e escutou um som próximo de uma voz humana no fragor da tormenta. O som se repetiu e Roland o reconheceu, era Alicia gritando por ajuda em algum lugar do casco do navio.

 

Os dez metros que Max teve de subir pelo mastro até a coberta do Orpheus pareciam muito mais de cem. A madeira estava praticamente podre e tão estilhaçada que, ao alcançar finalmente a amurada do casco do navio, seus braços e pernas estavam infestados de pequenas feridas que lhe provocavam um forte ardor. Max julgou mais prudente não deter-se examinando seus machucados e estendeu uma mão até ao corrimão metálico.

Estava tão obstinado que saltou desajeitadamente sobre a coberta e caiu de bruços. Uma forma escura cruzou frente a ele e Max elevou o olhar, com a esperança de ver o Roland. A silhueta de Caín desdobrou sua capa e lhe mostrou um objeto dourado que se balançava do extremo de uma cadeia. Max reconheceu seu relógio.

— É isto que procura? - perguntou o mago, ajoelhando-se junto ao moço e balançando o relógio que Max tinha perdido no mausoléu de Jacob Fleischmann perante seus olhos.

— Onde está Jacob? - interrogou Max, ignorando a careta zombadora que parecia colada ao rosto de Caín como uma máscara de cera.

— Essa é a pergunta do dia - respondeu o mago, e você me ajudará a respondê-la.

Caín fechou sua mão sobre o relógio e Max escutou o rangido do metal. Quando o mago mostrou de novo a palma aberta, o que restava do presente, que seu pai tinha feito, era uma massa irreconhecível de parafusos e porcas esmagadas.

— O tempo, querido Max, não existe; é uma ilusão. Inclusive seu amigo Copérnico teria adivinhado isso se tivesse tido precisamente tempo. Irônico, não é?

Max calculou mentalmente as possibilidades que tinha de saltar pela amurada e escapar do mago. A luva branca de Caín se fechou sobre sua garganta antes que pudesse respirar.

— O que é o que vai fazer comigo? - gemeu Max.

— O que faria você se estivesse em meu lugar? - perguntou o mago.

Max sentiu como a presa letal de Caín lhe cortava a respiração e a circulação do sangue na cabeça.

— É uma boa pergunta, verdade?

O mago soltou Max sobre a coberta. O impacto do metal ferrugento contra seu corpo lhe nublou a visão por uns segundos e um espasmo de nauseas se apoderou dele.

— Por que persegue Jacob? - balbuciou Max, tratando de ganhar tempo para Roland.

— Negócios são negócios, Max - respondeu o mago. — Eu já cumpri minha parte do trato.

— Mas que importância pode ter a vida de um menino para você? - espetou Max. — Além disso, já se vingou matando Drº. Fleischmann, certo?

O rosto de Dr. Caín se iluminou, como se Max acabasse de formular a pergunta que ansiava responder desde que tinham iniciado seu diálogo.

— Quando não se salda a dívida de um empréstimo, terá que pagar juros. Mas isso não anula a dívida. É minha lei - vaiou a voz do mago. — E é meu alimento. A vida do Jacob e a de muitos outros como ele. Sabe quantos anos faz que percorro o mundo, Max? Sabe quantos nomes tive?

Max negou agradecendo cada segundo que o mago perdia falando com ele.

— Diga-me - respondeu com um fio de voz, fingindo uma temerosa admiração pelo seu interlocutor.

Caín sorriu eufórico. Naquele momento, aconteceu o que Max estava temendo. Entre o estrondo da tormenta, escutou-se a voz de Roland chamando Alicia. Max e o mago cruzaram um olhar; ambos o tinham ouvido. O sorriso se desvaneceu do rosto de Caín e recuperou a escura face de um predador faminto e sanguinário.

— Muito esperto - murmurou.

Max engoliu a saliva, preparado para o pior.

O mago desdobrou uma mão frente a ele e Max contemplou petrificado como cada um de seus dedos se transformavam em uma longa agulha. A poucos metros dali, Roland gritou de novo. Caín se voltou para olhar atrás de suas costas e Max se equilibrou para a amurada do casco de navio. A garra do mago se fechou sobre sua nuca e o fez girar lentamente, até enfrentar cara a cara o Príncipe da Névoa.

— Lamento que seu amigo não tenha nem metade de sua habilidade. Possivelmente deveria fazer uns acordos com você. Outra vez será - cuspiram os lábios do mago. — Adeus, Max. Espero que tenha aprendido a mergulhar desde a última vez.

Com a força de uma locomotiva, o mago lançou o Max pelo ar, de volta ao mar. O corpo de Max traçou um arco com mais de dez metros e caiu sobre o mar, mergulhando na forte corrente gelada. Max lutou para sair da ondulação e bateu os braços e pernas com todas suas forças para escapar da letal força de sucção que parecia o arrastar para a negra escuridão do fundo. Nadando às cegas, sentiu que seus pulmões estavam a ponto de estalar e finalmente emergiu a poucos metros das rochas. Inspirou uma baforada de ar e, lutando por manter-se flutuando, conseguiu que lentamente as ondas o levassem até a borda da parede rochosa onde conseguiu agarrar-se a uma saliência, subir e ficar a salvo. As arestas afiadas das rochas lhe morderam a pele e Max sentiu como abriam pequenas feridas em seus membros, tão entorpecidos pelo frio que apenas podia sentir a dor. Lutando para não desfalecer, subiu uns metros até encontrar uma curva entre as rochas fora do alcance da água. Só então pôde estender-se sobre a dura pedra e descobrir que estava tão aterrorizado que não era capaz de acreditar que tinha salvado sua vida.

 

A porta do camarote se abriu lentamente e Alicia, encolhida num canto das sombras, permaneceu imóvel e conteve a respiração. A sombra do Príncipe da Névoa se projetou sobre o interior da sala e seus olhos, acesos como brasas, trocaram de cor, do dourado a um vermelho profundo. Caín entrou no camarote e se aproximou dela. Alicia lutou por ocultar o tremor que se havia apoderado dela e encarou o visitante com um olhar desafiante. O mago mostrou um sorriso canino perante tal atitude de arrogância.

— Deve ser herança de família. Todos com vocação de herói - comentou amavelmente o mago. — Estou começando a gostar.

— O que quer? - disse Alicia, impregnando em sua voz trêmula todo o desprezo que pôde reunir.

Caín pareceu considerar a pergunta e descalçou as luvas com parcimônia. Alicia reparou que suas unhas eram longas e afiadas como as pontas de uma adaga. Caín a assinalou com uma delas.

— Isso depende. O que me sugere você? - ofereceu o mago docemente, sem afastar seus olhos do rosto de Alicia.

— Não tenho nada para lhe dar - replicou Alicia, dirigindo um olhar furtivo à porta aberta do camarote.

Caín negou com o índicador, lendo suas intenções.

— Não seria uma boa idéia - sugeriu. — Voltemos à nossa conversa. Por que não fazemos um trato? Uma entendimento entre adultos, por assim dizê-lo.

— Que trato? - respondeu Alicia, esforçando-se por fugir do olhar hipnótico de Caín que parecia sugar sua vontade com a voracidade de um parasita de almas.

— Assim eu gosto, falemos de negócios. Me diga, Alicia, você gostaria de salvar Jacob, perdão, Roland? É um moço charmoso, diria eu - disse o mago lambendo cada uma das palavras de sua oferta com infinita delicadeza.

— O que quer em troca? Minha vida? - respondeu Alicia, cujas palavras brotavam de sua garganta sem lhe dar tempo para pensar.

O mago cruzou as mãos e franziu o cenho, pensativo. Alicia reparou que nunca piscava.

— Eu tinha pensado em outra coisa, querida - explicou o mago, acariciando o lábio inferior com a ponta de seu dedo indicador .— O que diz da vida de seu primeiro filho?

Caín se aproximou lentamente dela e aproximou seu rosto ao da moça. Alicia sentiu um intenso fedor adocicado e nauseabundo que emanava de Caín.

Enfrentando seu olhar, Alicia cuspiu na cara do mago.

— Vá para o inferno - disse, contendo a raiva.

As gotas de saliva se evaporaram como se as tivesse derramado sobre uma prancha de metal ardente.

— Querida menina, dali venho - respondeu Caín.

Lentamente, o mago estendeu sua mão nua para o rosto da Alicia. A moça fechou os olhos e notou o contato gelado de seus dedos e as longas e afiadas unhas sobre sua a sua face durante uns instantes. A espera se fez interminável. Finalmente, Alicia ouviu como seus passos se afastavam e a porta do camarote se fechava de novo. O fedor da podridão escapou pelas juntas da escotilha do camarote como o vapor de uma válvula a pressão. Alicia sentiu o desejo de chorar e golpear as paredes até aplacar sua fúria, mas fez um esforço por não perder o controle e manter a mente clara. Tinha que sair dali e não dispunha de muito tempo para fazê-lo.

Foi até a porta e apalpou o contorno em busca de uma brecha ou alguma fresta que pudesse forçar. Nada. Caín a tinha selado em um sarcófago de alumínio oxidado na companhia dos ossos do velho capitão do Orpheus. Naquele momento, uma forte comoção sacudiu o navio e Alicia caiu de bruços contra o chão. Em poucos segundos, um som apagado começou a tornar-se audível das vísceras do navio. Alicia apoiou o ouvido na porta e escutou atentamente; era o vaio inconfundível da água fluindo. Grande quantidade de água. Alicia, presa pelo pânico, compreendeu o que acontecia; o casco se alagava e o Orpheus se afundava de novo, começando pelas adegas. Desta vez não pôde conter o alarido de seu terror.

 

Roland tinha percorrido todo o casco do navio em busca de Alicia sem êxito. O Orpheus se transformou em uma labiríntica catacumba submarina de intermináveis corredores e portas trancadas. O mago podia tê-la escondido em dezenas de lugares. Voltou para ponte e tentou deduzir onde poderia estar prisioneira. A sacudida que atravessou o navio o fez perder o equilíbrio e Roland caiu sobre o piso úmido e escorregadio. De entre as sombras da ponte apareceu Caín, como se sua silhueta tivesse emergido do metal rachado do piso.

— Afundamo-nos, Jacob - explicou o mago com parcimônia, assinalando em seu redor .— Alguma vez você teve o sentido de oportunidade, certo?

— Não sei do que está você falando. Onde está Alicia? - exigiu Roland, disposto a lançar-se sobre seu oponente.

O mago fechou os olhos e juntou as palmas das mãos como se fosse entoar uma oração.

— Em algum lugar deste navio - respondeu tranquilamente Caín. — Se você foi suficientemente estúpido para chegar até aqui, não estrague tudo agora. Quer lhe salvar a vida, Jacob?

— Meu nome é Roland - atalhou o moço.

— Roland, Jacob... Qual a diferença entre um nome e outro? - riu Caín. — Eu mesmo tenho vários. Qual é seu desejo, Roland? Quer salvar sua amiga? É isso, não?

— Onde a colocou? - repetiu Roland. — Maldito seja! Onde está?

O mago esfregou as mãos, como se tivesse frio.

— Sabe o tempo que demora um navio como este para afundar, Jacob? Não me diga. Uns minutos, quanto muito. Surpreendente, verdade? Diga-me - riu Caín.

— Você quer o Jacob ou como quiser que me chame - afirmou Roland .— Já o tem; não vou fugir. Solte ela.

— Que original Jacob - sentenciou o mago, aproximando-se do moço. — Acabou seu tempo. Um minuto.

O Orpheus começou a escorar lentamente a estibordo. A água que alagava o navio rugia sob seus pés e a debilitada estrutura de metal vibrava fortemente perante a fúria com que as águas abriam caminho através das vísceras do casco de navio, como ácido sobre um brinquedo de cartão.

— O que tenho que fazer? - implorou Roland. — Que espera de mim?

— Bem, Jacob. Vejo que vamos entrando na razão. Espero que cumpra a parte do trato que seu pai foi incapaz de cumprir - respondeu o mago. — Nada mais. E nada menos.

— Meu pai morreu num acidente, eu... - começou a explicar Roland desesperadamente.

O mago colocou sua mão paternalmente sobre o ombro do moço. Roland sentiu o contato metálico de seus dedos.

— Meio minuto, menino. Um pouco tarde para as histórias de família - cortou Caín.

A água golpeava com força o piso sobre o qual se sustentava a ponte e Roland dirigiu um último olhar suplicante ao mago. Caín se ajoelhou na frente de Roland e sorriu ao moço.

— Fazemos um trato, Jacob? - sussurrou o mago.

As lágrimas brotaram do rosto do Roland e lentamente o moço assentiu.

— Bem, bem, Jacob - murmurou Caín. — Bem-vindo a casa...

O mago se levantou e assinalou um dos corredores que partiam da ponte.

— A última porta desse corredor - assinalou Caín. — Mas escuta um conselho. Quando conseguir abri-la, já estaremos submersos na água e sua amiga não terá nenhuma gota de ar para respirar. Você é um bom mergulhador, Jacob. Saberá o que terá que fazer. Recorde seu trato...

Caín sorriu pela última vez e, envolvendo-se em sua túnica, desvaneceu-se na escuridão enquanto passos invisíveis se afastavam sobre a ponte e deixavam rastros de metal fundido no casco do navio. O moço permaneceu paralisado uns segundos, recuperando o fôlego, até que uma nova sacudida no casco do navio o empurrou contra a roda petrificada do leme. A água tinha começado a alagar o nível da ponte.

Roland se lançou para o corredor que o mago lhe tinha indicado. A água brotava das escotilhas aumentavam a pressão e alagava o corredor enquanto o Orpheus se afundava progressivamente no mar. Roland golpeou em vão a porta com os punhos.

— Alicia! - gritou embora tivesse consciente de que ela não poderia ouvi-lo do outro lado da porta de aço .— Sou Roland. Contém a respiração! Vou tirar você daqui!

Roland aferrou a roda da porta e tentou com todas as suas forças fazê-la girar, rasgando as palmas das mãos enquanto a água gelada o cobria por cima da cintura e seguia subindo. A roda cedeu alguns centímetros. Roland inspirou profundamente e forçou de novo a roda, conseguindo que girasse progressivamente até que a água gelada lhe cobriu o rosto e alagou finalmente todo o corredor. A escuridão se apoderou do Orpheus.

Quando a porta se abriu, Roland mergulhou no interior do camarote tenebroso apalpando às cegas em busca de Alicia. Por um terrível momento pensou que o mago o tinha enganado e que não havia ninguém ali. Abriu os olhos sob a água e tentou vislumbrar algo entre a névoa submarina lutando contra a ardência. Finalmente, suas mãos alcançaram um pedaço de tecido do vestido da Alicia que se debatia freneticamente entre o pânico e a asfixia. A abraçou e tentou tranquilizá-la, mas a moça não podia saber quem ou o quê a tinha agarrado na escuridão. Consciente de que sobravam apenas uns segundos, Roland a rodeou pelo pescoço e puxou-a para o exterior do corredor. O casco do navio seguia precipitando-se em sua descida inexorável para as profundidades. Alicia lutava inutilmente e Roland a arrastou até a ponte através do corredor em que flutuavam os despojos que a água tinha arrancado do mais lugar mais profundo do Orpheus. Sabia que não podiam sair do navio até que o casco tivesse tocado o fundo porque, se tentasse, a força de sucção os arrastaria pela corrente submarina sem remédio. Entretanto, não ignorava que tinham transcorrido pelo menos trinta segundos desde que Alicia tinha respirado a última vez e que, a esta altura e em seu estado de pânico, teria começado a inalar água. A ascensão à superfície provavelmente seria o caminho de uma morte segura para ela. Caín tinha planejado cuidadosamente seu jogo.

A espera para que o Orpheus tocasse no fundo parecia infinita e, quando chegou o impacto, parte do teto da ponte desabou sobre Alicia e Roland. Uma forte dor subiu por sua perna e Roland compreendeu que o metal lhe tinha aprisionado um tornozelo. O resplendor do Orpheus se desvanecia lentamente nas profundidades.

Roland lutou contra a aguda agonia que lhe atingia as pernas e procurou o rosto de Alicia na penumbra. Alicia tinha os olhos abertos e se debatia à beira da asfixia. Já não podia conter a respiração nem um segundo mais e suas últimas bolhas de ar escaparam entre seus lábios como pérolas portadoras dos últimos instantes de uma vida que se extinguia.

Roland tomou-lhe o rosto e tentou que Alicia o olhasse nos olhos. Seus olhares se uniram na profundidade e ela compreendeu imediatamente o que Roland se propunha. Alicia negou com a cabeça, tratando de afastar Roland de si. Roland assinalou o tornozelo aprisionado sob o abraço mortal das vigas metálicas do teto. Alicia nadou através das águas geladas para a viga abatida e lutou para libertar Roland. Ambos cruzaram um olhar desesperado. Nada nem ninguém poderia mover as toneladas de aço que retinham Roland. Alicia nadou de volta até ele e o abraçou, sentindo como sua própria consciencia se desvanecia pela falta de ar. Sem esperar um instante, Roland tomou o rosto da Alicia e, posando seus lábios sobre os da moça, expirou na sua boca o ar que tinha reservado para ela, tal e como Caín tinha previsto desde princípio. Alicia aspirou o ar de seus lábios e apertou com força as mãos de Roland, unida a ele naquele beijo de salvação.

O moço lhe dirigiu um olhar desesperado de adeus e a empurrou contra sua vontade para fora da ponte, onde, lentamente, Alicia iniciou sua ascensão a superfície. Aquela foi a última vez que Alicia viu Roland. Segundos depois, a moça emergiu no centro da baía e pôde ver que a tormenta se afastava lentamente mar adentro, levando consigo todas as esperanças que tinha posto no futuro.

 

Quando Max viu aflorar o rosto da Alicia sobre a superfície, lançou-se de novo à água e nadou apressadamente até ela. Sua irmã apenas podia manter-se a flutuar e balbuciava palavras incompreensíveis, tossindo violentamente e cuspindo a água que tinha tragado em sua ascensão desde o fundo. Max a rodeou pelos ombros e a arrastou até que pôde ficar em pé a alguns metros da borda. O velho faroleiro esperava na praia e correu a socorrê-los. Juntos tiraram Alicia da água e a estenderam sobre a areia. Victor Kray procurou o pulso da Alicia, mas Max retirou delicadamente a mão trêmula do ancião.

— Está viva, senhor Kray - explicou Max, acariciando a face de sua irmã. — Está viva.

O ancião assentiu e deixou Alicia aos cuidados de Max. Cambaleando, como um soldado depois de uma longa batalha, Victor Kray caminhou até a borda e entrou no mar até que a água lhe cobriu a cintura.

— Onde está meu Roland? - murmurou o ancião, voltando-se para Max . — Onde está meu neto?

Max o olhou em silêncio, vendo como a alma do pobre ancião e a força que o tinha mantido todos aqueles anos no alto do farol se perdiam tal como um punhado de areia entre os dedos.

— Não voltará, senhor Kray - respondeu finalmente o moço, com lágrimas nos olhos .— Roland já não voltará.

O velho faroleiro o olhou como se não pudesse compreender suas palavras. Logo assentiu, mas voltou a olhar para o mar à espera de que seu neto emergisse das águas para unir-se a ele. Lentamente, as águas recuperaram a calma e uma grinalda de estrelas se acendeu sobre o horizonte. Roland nunca voltou.

 

No dia seguinte à tormenta que assolou a costa durante a larga noite de 23 de junho de 1943, Maximilian e Andrea Carver voltaram para a casa da praia com a pequena Irina, que já estava fora de perigo, embora demoraria umas semanas para recuperar-se completamente. Os fortes ventos que tinham açoitado o povoado até pouco antes do amanhecer deixaram um rastro de árvores e postes elétricos derrubados, barcos arrastados desde o mar até ao passeio, janelas partidas em boa parte das fachadas do povoado. Alicia e Max esperavam em silêncio, sentados no alpendre, e no instante em que Maximilian Carver desceu do carro que os tinha conduzido da cidade, pôde ver em seus rostos e em suas roupas puídas que algo terrível tinha acontecido.

Antes que pudesse formular a primeira pergunta, o olhar de Max permitiu-lhe compreender que as explicações, se alguma vez chegassem a produzir-se, teriam que esperar algum tempo. Fosse o que fosse que tinha acontecido, Maximilian Carver soube, de uma maneira que poucas vezes na vida nos permite compreender, sem necessidade de palavras ou explicações, que atrás do olhar triste de seus dois filhos terminava uma etapa em suas vidas que nunca voltaria.

Antes de entrar na casa da praia, Maximilian Carver olhou no poço sem fundo dos olhos de Alicia, que contemplava ausente a linha do horizonte como se esperasse encontrar nela a solução a todas as suas perguntas, perguntas que nem ele nem ninguém poderiam responder. De repente, e em silêncio, deu-se conta de que sua filha tinha crescido e algum dia, não muito longínquo, empreenderia um novo caminho em busca de suas próprias respostas.

 

A estação do trem estava consumida pela nuvem de vapor que exalava da máquina. Os últimos viajantes se apressavam para subir nos vagões e se despedirem dos familiares e amigos que os tinham acompanhado até a plataforma. Max observou o velho relógio que lhe tinha dado as boas-vindas ao povoado e comprovou que, desta vez, suas agulhas pararam para sempre. O moço do trem se aproximou de Max e de Victor Kray, com a palma estendida e claras intenções de conseguir uma gorjeta.

— As malas já estão no trem senhor.

O velho faroleiro lhe estendeu umas moedas e o moço se afastou, as contando. Max e Victor Kray trocaram um sorriso, como se a anedota resultasse divertida e aquela não fosse mais que uma despedida rotineira.

— Alicia não pôde vir porque... - começou Max.

— Não é necessário. Entendo - atalhou o faroleiro. — Despeça-se dela por mim. E cuide dela.

— Assim farei respondeu - Max.

O chefe da estação fez soar seu apito. O trem estava a ponto de partir.

— Não vai me dizer onde vai? - perguntou Max, assinalando o trem que esperava nos trilhos.

Victor Kray sorriu e estendeu sua mão ao moço.

— Onde quer que eu vá - respondeu o ancião, nunca poderei me afastar daqui.

O apito soou de novo. Só nesse momento Victor Kray se preparou para subir no trem. O revisor esperava ao pé da porta do vagão.

— Tenho que ir, Max - disse o ancião.

Max o abraçou com força e o faroleiro o rodeou com seus braços.

— Certo. Tenho algo para ti.

Max aceitou uma pequena caixa das mãos do faroleiro. Max a agitou brandamente; algo tilintava em seu interior.

— Não vai abrir ? - perguntou o ancião.

— Quando você se for - respondeu Max.

O faroleiro encolheu os ombros.

Victor Kray se dirigiu para o vagão e o revisor lhe estendeu a mão para o ajudar a subir. Quando o faroleiro estava no último degrau Max correu súbitamente para ele.

— Senhor Kray! - exclamou Max.

O ancião se voltou e olhou para ele, com ar divertido.

— Gostei de conhecer você, senhor Kray - disse Max.

Victor Kray sorriu pela última vez e golpeou o peito brandamente com o índicador.

— Eu também, Max - respondeu. — Eu também.

Lentamente, o trem arrancou e seu rastro de vapor se perdeu na distância para sempre. Max permaneceu na plataforma até que se tornou impossível distinguir aquele ponto no horizonte. Só então abriu a caixa que o ancião lhe tinha entregue e descobriu que continha um molho de chaves. Max sorriu. Eram as chaves do farol.

 

As últimas semanas do verão trouxeram novas notícias daquela guerra, que segundo todos diziam, tinha os dias contados. Maximilian Carver tinha inaugurado sua relojoaria em um pequeno local perto da praça da igreja e, em pouco tempo, não tinha habitante do povodo que não tivesse visitado o pequeno bazar das maravilhas do pai de Max. A pequena Irina se recuperou completamente e não parecia recordar o acidente que tinha sofrido nas escadas da casa da praia. Ela e sua mãe costumavam fazer longos passeios pela praia em busca de conchas e pequenos fósseis com os quais tinham começado uma coleção, que naquele outono prometia ser a inveja de suas novas companheiras de classe.

Max, fiel ao legado do velho faroleiro, ia com sua bicicleta a cada entardecer até a casa do farol e prendia a chama do feixe de luz que teria que guiar os navios até o novo amanhecer. Max subia à atalaia e dali contemplava o oceano, tal e como fez Victor Kray durante quase toda sua vida. Durante uma dessas tardes no farol, Max descobriu que sua irmã Alicia costumada voltar à praia onde estava a cabana de Roland. Vinha sozinha e se sentava junto à borda, com seu olhar perdido no mar deixando passar as horas em silêncio. Já não se falavam mais como tinham feito durante os dias em que haviam compartilhado com Roland. Alicia, nunca mencionava o que tinha acontecido naquela noite na baía, Max tinha respeitado seu silêncio desde o primeiro dia. Ao chegar os últimos dias de setembro que pressagiavam o princípio do outono, a lembrança do Príncipe da Névoa parecia ter-se desvanecido definitivamente de sua memória como um sonho à luz do dia.

Frequentemente, quando Max observava sua irmã Alicia na praia, evocava as palavras de Roland quando seu amigo lhe tinha confessado o temor de que aquele fosse seu último verão no povoado, se fosse recrutado. Agora, embora os irmãos não cruzassem uma palavra a respeito, Max sabia que a lembrança de Roland e daquele verão em que descobriram juntos a magia, permanecia com eles e os uniria para sempre.

 

                                                                                Carlos Ruiz Zafón  

 

                      

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