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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRÍNCIPE DAS MARÉS - P.2 / Pat Conroy
O PRÍNCIPE DAS MARÉS - P.2 / Pat Conroy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Segunda Parte

 

Não foi o branco puro, entretanto, que vimos quando a toninha voltou à superfície a 20 metros de distância do barco. Pequenos pon­tos coloridos tremulavam em suas costas enquanto ela passava rapi­damente pela água, um breve luzir de prata em suas nadadeiras, uma cor evanescente que não podia durar. Ela jamais aparecia duas vezes seguidas com a mesma cor.

Observamos ela rodear o bote, vimos quando passou por baixo dele fluindo como leite na água. A toninha se levantava, ficava suspensa no ar, mostrando reflexos cor de pêssego, e caía outra vez na água, alva como leite... Esses são momentos rápidos de minha infância que não consigo reviver por inteiro. Voltam apenas em fragmentos, irresistíveis, emblemáticos, e em tremores do coração. Há um rio, uma cidade, meu avô dirigindo o bote pelo canal, minha irmã presa àquele arrebatamento que mais tarde traduziria em seus mais fortes poemas, o perfume metálico das ostras recém-colhidas, as vozes das crianças na margem... Quando a toninha branca vem, existe tudo isso e também uma transfiguração. Em sonhos, a toninha reina nas águas da memória, uma divindade opaca que alimenta o fogo e o frio mais profundo das águas de minha história. Entre as muitas coisas erradas de minha infância, o rio era uma exceção - a riqueza inestimável que ele concedia não pode ser negociada ou vendida.

Ao cruzarmos a ponte, olhei para trás e vi as sombras das pessoas que se reuniam para assistir à passagem de Snow. Dezenas de cabeças juntas, acima da balaustrada da ponte, a intervalos, lembravam as contas de um rosário danificado. Uma menina implorava a Snow para passar outra vez sob a ponte. Homens e mulheres juntavam-se no cais flutuante que se balançava com a água, todos apontando para o últi­mo lugar onde a toninha aparecera.

Quando ela veio, foi como se meu avô tivesse visto o sorriso de Deus vindo do fundo até ele.

- Obrigado, Deus - murmurou atrás de nós em uma daquelas preces não ensaiadas que brotavam naturalmente de seus lábios quan­do estava muito comovido com o mundo. - Muito obrigado por isso.

Mais tarde, muito depois de sua morte, eu iria lamentar por ja­mais ter sido o tipo de homem que ele fora. Apesar de adorá-lo quan­do criança e de me sentir atraído pela segurança de sua suave masculinidade, nunca o apreciei por inteiro; pois não sabia como cuidar da santidade, não tinha uma maneira própria de reverenciar, de dar voz ao louvor de uma inocência tão natural, de tanta simplicidade generosa. Agora, sei que uma parte de mim gostaria de ter via­jado pelo mundo como ele viajara, um palhaço cheio de fé, um tolo e um príncipe da floresta transbordando de amor a Deus. Gostaria de ter andado por seu mundo sulista, agradecendo a Deus pelas ostras e pelas toninhas, louvando-o pelo canto dos pássaros, pelo relâmpago, e vendo Deus refletido nas águas dos riachos e nos olhos dos gatos. Gostaria de ter conversado com cachorros nos quintais e com sanhaços, como se estes fossem amigos e companheiros de viagem ao longo das rodovias torturadas pelo sol, intoxicado pelo amor a Deus e cheio de caridade como um arco-íris, na mistura impensada de seus matizes, ligando dois campos distantes em seu glorioso arco. Gostaria de ter visto o mundo com olhos incapazes de qualquer outra coisa que não fosse admiração, e com a língua fluente apenas no louvor.

Enquanto a toninha branca subia o rio em sua solidão de intrusa, associei-me a seu isolamento. Mas meu avô - ah! eu sempre soube o que ele sentia ao ver Snow subindo o rio. Ele via a toninha desaparecer seguindo as águas profundas em torno de alguma curva do canal, apa­recendo mais uma vez, antes de seguir para trás de um istmo verde no lugar onde o rio segue para a direita.

Luke estava no cais, esperando por nós. Com o sol a oeste, nos fitava como se não tivesse rosto, um remoto claro-escuro, um pilar de luz e sombra. Quando vovô desligou o motor, Luke guiou o bote com o pé ao longo do cais e agarrou a corda que lhe joguei.

Vocês viram Snow? - perguntou.

Ela estava traquinas como um cachorro - respondeu meu avô.

Tolitha nos convidou para jantar.

Trouxemos ostras suficientes para todos - eu disse.

Papai trouxe 2 quilos de camarão. Tolitha vai fritá-los.

Você parecia um gigante parado no cais quando estávamos no rio, Luke - disse Savannah. - Acho que você ainda está crescendo.

Estou, irmãzinha, e não quero anões subindo pelo meu pé de feijão.

Juntei as ostras e joguei-as sobre o cais, onde Luke as colocou numa bacia. Amarramos o bote e subimos para a casa, passando sobre a relva.

Savannah, Luke e eu ficamos na varanda dos fundos, para cuidar das ostras e pô-las na tigela que vovó nos deu pela porta da cozinha. Abrindo uma ostra enorme, chupei-a de sua concha. Segurei-a por um momento na boca, senti seu sabor sobre a língua, inalei seu perfu­me e a deixei deslizar pela garganta. Nada é mais perfeito para mim que o frescor e o buquê de uma ostra crua. É o sabor do oceano trans­formado em carne. De onde estávamos, ouvi a voz de minha mãe e a de vovó conversando na cozinha, as vozes eternas de mulheres que preparavam comida para suas famílias. Vênus era uma pepita de prata subindo a leste. As cigarras iniciavam sua assembléia noturna nas ár­vores. Alguém ligou a televisão dentro de casa.

Hoje conversei com o treinador Sams - comentou Luke, abrin­do uma ostra com um movimento gracioso de pulso. - Ele me disse que um menino negro vai realmente entrar em nossa escola.

Quem é ele? - perguntou Savannah.

Benji Washington. O menino do papa-defunto.

Pois eu nunca o vi.

Ele é negro - informei.

Não diga essa palavra, Tom - censurou Savannah, olhando-me de modo penetrante. - Não gosto dela. Nem um pouco.

Posso falar o que quiser. Por que lhe pedir permissão para dizer alguma coisa? Ele vai criar problemas e arruinar nosso último ano.

É uma palavra nojenta, indecente. E faz com que você pareça malvado quando a usa.

Ele não quer dizer nada com isso, Savannah - interrompeu Luke suavemente. - Tom sempre tenta parecer mais durão do que realmente é.

O cara é um negrinho. Qual o problema de eu chamá-lo de negro? - rebati, com mais ênfase ainda.

As pessoas gentis não usam essa palavra, seu filho-da-puta - retrucou minha irmã.

Essa é boa! Pelo jeito, as pessoas realmente gentis usam "filho-da-puta" como um termo carinhoso.

É hora do jantar - lembrou Luke com tristeza. - Está na hora de outra discussão. Meu Deus, vocês dois, parem. Sinto muito ter tocado nesse assunto.

Não repita essa palavra, Tom. Estou avisando - ameaçou Savannah.

Puxa, não percebi o momento exato em que você se tornou rainha da beleza da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas Negras!

Vamos comer ostras e escutar as rãs - propôs Luke. - Detesto quando vocês discutem desse jeito.

Não diga aquilo perto de mim, Tom. Está entendido? Detesto a palavra e odeio as pessoas que a usam.

Papai a usa o tempo todo.

Ele tem uma desculpa. É um idiota. Você, não.

Não tenho vergonha de ser sulista, Savannah. Como algumas pessoas que conheço que lêem The New Yorker toda semana.

Você devia ter vergonha de ser o tipo de sulista que é, escória barata.

Desculpe, alteza.

Silêncio, vocês dois - exigiu Luke, olhando para a janela da co­zinha. O aroma dos biscoitos de minha avó enchia o ar da noite. - Mamãe não nos permite usar aquela palavra, Tom. E você sabe disso.

Você não tem o direito de pensar como a pior parte do Sul pen­sa. Não vou permitir esse tipo de atitude desagradável em você. Eu o faço desistir a tapa, se for preciso - continuou Savannah.

E eu posso dar uma bela surra em você - repliquei, olhando-a de maneira desafiadora.

Está certo, durão, você pode. Mas, se tocar um dedo em mim, o Grande Luke aqui presente parte você ao meio. E você é fraco como um bebê comparado a ele.

Olhei para meu irmão, que sorria para nós. Ele acenou com a cabeça.

É isso aí, Tom. Não vou permitir que você machuque minha menina.

Ei, espere um pouco. Foi ela quem começou a discussão ou não foi? Eu só falei inocentemente alguma coisa sobre os negrinhos.

Pois é, ela começou e está vencendo a discussão, irmãozinho. - Ele sorriu.

Você está cheio de preconceitos!

Eu sou grande. Só isso.

Um príncipe - disse Savannah, abraçando Luke e beijando-o nos lábios. - Meu príncipe caipira.

Sem entrar na parte física, Savannah. - Ele corou. - O corpo está além dos limites.

Vamos supor que eu batesse em Savannah. É só uma suposição. Que eu batesse no rosto dela para me defender, Luke. Você faria algu­ma coisa? Você me ama tanto quanto ama Savannah, não é verdade.

Amo você tanto que até dói. Você está cansado de saber. Mas, se algum dia você tocar em Savannah, quebrarei seu pescoço. Vai doer muito mais em mim do que em você, mas não lhe deixarei um osso inteiro.

Não tenho medo de você, Luke!

Sim, você tem. E não é motivo para se envergonhar. Sou muito mais forte que você.

Você se lembra de quando mamãe leu para nós O diário de Anne Frank, Tom? - perguntou Savannah.

Claro que sim.

Você chorou quando o livro terminou, não foi?

Isso não tem nada a ver com o que estamos falando. Não havia um único negrinho em Amsterdã, tenho certeza.

Sim, mas havia nazistas que usavam a palavra judeu do mesmo modo que você usa negro.

Dá um tempo, Savannah.

Bem, quando Benji Washington entrar na escola no primeiro dia de aula do ano que vem, quero que você se lembre de Anne Frank.

Pelo amor de Deus! Quero comer minhas ostras em paz.

Savannah acaba de lhe dar umas palmadas na bunda, Tom. Adoro escutar quando vocês discutem. Você começa como se fosse tomar conta do mundo e, no fim da discussão, não consegue dizer uma palavra.

Acontece que eu não gosto de discutir. É essa a grande diferen­ça entre Savannah e eu.

Mas não é a principal diferença entre nós, Tom - declarou Savannah, indo até a porta da cozinha.

Então qual é? - perguntei, voltando-me para ela.

Quer saber mesmo? Não se preocupa com seus sentimentos?

Você não pode me magoar. De qualquer modo, sei tudo o que pensa. Somos gêmeos, lembra-se?

Disso você não sabe.

Então, diga.

Sou muito mais inteligente que você, Tom Wingo. - Dito isso, ela entrou na cozinha, deixando-nos a comer as ostras restantes na escuridão. A risada de meu irmão ecoou pela varanda.

Ela lhe deu umas palmadas na bunda, maninho!

Tive algumas interferências boas na discussão.

Nem uma. Nem uma única.

Anne Frank não tem picas a ver com isso.

Ela mostrou que tinha.

 

Ao meio-dia da Sexta-feira Santa, meu avô levantou a cruz de madei­ra e a colocou no ombro direito. Vestia um manto branco e usava um par de sandálias compradas numa loja barateira em Charleston. Luke fez alguns ajustes de última hora na roda, usando um alicate.

O sr. Fruit, atento ao tráfego, esperou o sinal de que a caminhada ia começar. Como ele dirigia o trânsito e conduzia os desfiles, precisava cumprir as duas funções na Sexta-feira Santa. Por razões que somente ele conhecia, considerava a caminhada de meu avô um desfile. Um pe­queno desfile, não muito divertido, mas, apesar de tudo, um desfile.

No momento em que meu avô fez um aceno com a cabeça, o sr. Fruit apitou. Empertigado, subiu então a rua das Marés a passos lar­gos, como um tambor-mor, levantando os joelhos tão alto que quase lhe chegavam ao queixo. Meu avô o seguia a dez metros de distância. Ouvi algumas pessoas rirem ao ver a roda. Meu pai, postado na mer­cearia de Baitman, filmava a primeira pane da caminhada.

Mais ou menos na metade do trajeto, meu avô caiu pela primeira vez. Uma queda espetacular, que o fez bater com força no chão, a cruz despencando sobre ele. As quedas eram o ponto mais alto daquele espetáculo de três horas. Surpreendiam a multidão e constituíam um show à parte. Meu pai fazia um zoom com a câmera, ficando evidente que os dois haviam combinado um sistema de sinais sempre que os pontos altos da caminhada estavam por acontecer. Amos, também es­pecialista em cambalear, viu seus joelhos se dobrarem ao tentar se levantar. Meu avô nada sabia sobre o teatro do absurdo, mas conseguira inventá-lo para si mesmo, ano após ano.

Depois da primeira hora, a roda se quebrou, tendo de ser jogada fora. O delegado Lucas apareceu no semáforo próximo à ponte e pre­encheu a multa anual por obstrução do tráfego. O sr. Fruit parou de marchar e dirigiu a passagem dos carros pelo cruzamento enquanto uma parte da multidão vaiava o delegado. O sr. Kupcinet, diácono da igreja de meu avô, leu em voz alta um trecho da Bíblia que falava da caminhada de Jesus pelas ruas de Jerusalém, sua crucificação no Calvário, ladeado pelos dois ladrões, a escuridão sobre a cidade, o grande grito de agonia "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" e o centurião dizendo a frase que seria imortalizada ao longo dos séculos: "Este é verdadeiramente o filho de Deus."

Amos Wingo ia e vinha entre as lojas de sapatos, lingerie, agências imobiliárias, o suor porejando de seu rosto, mas os olhos serenos, de quem sabia estar servindo a Deus da melhor maneira que podia. Savannah e eu vendíamos limonada em frente à butique de Sarah Poston, enquanto Luke encarregava-se de parar meu avô em meio à caminhada e forçá-lo a beber um copo de vinagre. Em seguida, representando o papel de Simão, o cireneu, ele o ajudava a carregar a cruz durante uma volta inteira pela rua. A altura da terceira hora, meu avô cambaleava de verdade. Quando caiu pela última vez, não conseguiu levantar-se até que Luke o alcançou e o livrou do peso da cruz que lhe machucava o corpo. Havia um fio de sangue correndo ao longo do manto. Vovô ergueu-se, sorriu e agra­deceu a Luke, prometendo cortar seu cabelo no dia seguinte. E continuou a descer a rua, balançando de um lado para o outro.

Eu não sabia naquela época e continuo sem saber até hoje o que fazer do imenso amor de meu avô pela palavra de Deus. Durante a adolescência, considerava sua caminhada humilhante. Mas Savannah escreveria sobre ela em seus poemas com uma beleza incomum, lou­vando "a tímida representação do barbeiro itinerante elevado sobre um obelisco de fé".

Naquele dia, quando a caminhada de Amos Wingo terminou, nós o erguemos do chão e o levamos à barraca de limonada, onde esfrega­mos seu rosto com gelo e o fizemos tomar um copo de suco. Foi quan­do tive a sensação de que a santidade era a doença mais assustadora e incurável do mundo.

Trêmulo, o velho delirava quando o deitamos sobre a calçada. As pessoas se acotovelavam para lhe pedir um autógrafo em suas bíblias, enquanto meu pai filmava seu colapso.

Luke e eu o levantamos e, com seus braços em nossos ombros, sustentamos seu peso e o conduzimos para casa, enquanto Luke dizia durante todo o trajeto:

Você é lindo, vovô. Você é tão lindo!

 

O porteiro que tomava conta da entrada do prédio em que morava a dra. Lowenstein observou minha chegada com olhos desconfiados. Examinou-me como se soubesse que eu nutria intenções criminosas, embora fizesse parte de seu trabalho enxergar o mundo sob esse prisma. Forte, vestindo uma pomposa farda antiquada, pediu formalmente meu nome e ligou para o apartamento. O saguão repleto de móveis de couro rachado tinha o ar de elegância sombria de um clube masculino cujos membros não votaram pela entrada de mulheres em seu quadro de sócios.

O porteiro acenou com a cabeça em direção ao elevador e voltou à leitura do New York Post. Apesar de estar carregando duas enormes sacolas de compras, consegui apertar o botão certo. O elevador estre­meceu na hora da partida e subiu tão vagarosamente que me senti como se estivesse subindo pela água do mar.

Bernard esperava-me na porta do apartamento.

Boa noite, Bernard - cumprimentei.

Olá, treinador! O que tem aí nas sacolas?

O jantar e mais algumas coisinhas. - Ao entrar no apartamen­to, olhei em torno e assobiei. - Meu Deus! que casa. Parece uma ala do Metropolitan Museum.

O hall era decorado com cadeiras cobertas de veludo, vasos cloisonné, mesinhas laterais, um pequeno candelabro Waterford e dois austeros quadros do século XVIII. Havia um piano na sala e um retra­to de Herbert Woodruff tocando violino.

Detesto isso aqui - declarou Bernard.

Não me admiro que sua mãe proíba você de levantar pesos em casa.

Ela mudou as regras ontem à noite. Agora posso levantar peso quando meu pai não estiver em casa, mas só no meu quarto. Preciso escondê-lo embaixo da cama para ele não os ver.

Se ele quiser - comentei, olhando o retrato sobre a lareira -, posso matriculá-lo num programa de levantamento de peso. Vocês poderiam praticar juntos.

Herbert Woodruff era um homem bonito, com boa compleição e lábios estreitos que sugeriam refinamento ou crueldade.

Meu pai? - admirou-se Bernard.

Está bem, vamos andando. Deixe que eu leve a comida para a cozinha. Em seguida, me mostre seu quarto. Quero que você esteja bem arrumado quando sua mãe chegar.

O quarto de Bernard ficava no outro lado do apartamento. Era decorado com bom gosto e de maneira tão cara quanto os outros cô­modos pelos quais passamos. Não possuía os enfeites espalhafatosos típicos dos rapazes, nenhum pôster de astros do rock ou de esportis­tas, nenhuma desordem ou excesso.

Abrindo a sacola, falei:

Bem, rapaz, vamos fazer a coisa completa. Arranque fora essas roupas.

Para quê, treinador?

Porque gosto de ver os rapazes ficarem nus.

Não vou fazer isso. - Ele estava profundamente envergonhado.

Será que vou ter de ensiná-lo a tirar a roupa? Isso não está no meu contrato.

Você é bicha, treinador? - perguntou ele com a voz nervosa. - Quer dizer, tudo bem. Não me incomoda. Se você for, é claro. Acho que as pessoas devem fazer o que querem.

Sem responder, tirei um lindo par de ombreiras Wilson de dentro da sacola.

São para mim? - Bernard quis saber.

Não. Mas eu queria que você as experimentasse antes de dar para sua mãe.

Por que ela iria querê-las? - perguntou ele, enquanto eu passa­va as ombreiras por sua cabeça e começava a amarrá-las.

Bernard, precisamos treinar seu senso de humor em vez de treinar seus passes. Com apenas duas horas por dia, posso ensinar a você o que é uma piada.

Desculpe ter perguntado se você é bicha, treinador. Você en­tende, não é? Fiquei um pouco confuso, nós dois aqui sozinhos e tudo mais...

Certo, certo. Agora, tire a roupa. Tenho um jantar a fazer, mas antes vou lhe mostrar como um jogador de futebol se veste.

 

Mais tarde, sentei-me numa poltrona da sala, olhando para o Cen­tral Park enquanto o sol se punha sobre o rio Hudson às minhas cos­tas. O aroma da perna de cordeiro assando no forno enchia a casa com um perfume maravilhoso. Meu reflexo era difuso na janela panorâmi­ca, sob a luz barroca dos candelabros que iluminava delicadamente os cômodos atrás de mim. Naquelas condições, a janela transformava-se em espelho e também num fabuloso retrato de uma cidade às escuras. Com a descida do sol, os enormes edifícios adquiriam tons de safira, de rosa, e respondiam à escuridão com sua própria luz interna. A ci­dade estendia-se à minha frente como uma floresta de esplêndida ar­quitetura transfigurada. O sol do fim da tarde envolveu um edifício inteiro em sua última aparição, dando-lhe as cores de um recife de coral. A luz deslizou pelo prédio, passando por cada janela, perdendo-se na metade do caminho. Afinal, a cidade se levantava como um flamingo na noite movimentada e sacudia os restos do crepúsculo; passando além do êxtase, transformava-se num maravilhoso candela­bro de luzes assimétricas. De onde eu estava, agora em completa escu­ridão, a cidade parecia formada de velas votivas de vidro, de claridade e de brasas incandescentes. Na beleza daquelas formas geométricas fabulosas e transformadas, dava a impressão de aumentar o crepúscu­lo e torná-lo ainda mais bonito.

Desculpe meu atraso - disse Susan Lowenstein, entrando pela porta da frente. - Houve um problema com um paciente no hospital. Você encontrou o armário de bebidas?

Eu estava à sua espera.

O cordeiro está cheirando divinamente! - Então, olhando para a cidade, ela exultou: - Agora, me diga se isso não é uma das coisas mais lindas que você já viu na vida. Quero ver você falar mal de Nova York quando tem diante dos olhos o melhor que ela pode oferecer.

É formidável. Acontece que não tenho oportunidade de ver isso com freqüência.

Eu vejo todas as noites e ainda acho absolutamente extraordi­nário.

Aqui é um ótimo lugar para se assistir ao outro lado do crepús­culo. Você e seu marido têm um gosto sofisticado, e um bocado de dinheiro.

Mãe - chamou uma voz atrás de nós.

Era Bernard, que, com todo seu equipamento de futebol, entrava suavemente na sala, calçando meias esportivas. Carregava nas mãos os novos sapatos com travas brilhantes. Sob aquela luz estranha, parecia enorme, disforme, renascido para algo diferente daquilo para que fora programado.

O treinador Wingo me trouxe isto hoje. Um uniforme completo.

Meu Deus - foi a única coisa que a atordoada Susan Lowenstein conseguiu dizer.

Ah, não é possível que você não tenha gostado. Vamos lá, diga que não ficou bom. Tudo me serve, exceto o capacete. Mas o treinador Wingo disse que poderia ajustá-lo.

Doutora Lowenstein - interrompi -, gostaria de lhe apresentar seu filho, Matador Bernard.

Seu pai vai pedir o divórcio se vir você vestido desse jeito. Você tem de jurar que ele nunca vai vê-lo com esse uniforme, Bernard.

O que você achou, mamãe? Que tal estou?

Você parece deformado. - E ela riu gostosamente.

Tudo bem, Bernard - eu disse. - Vá se vestir para jantar. Vamos comer como reis daqui a 45 minutos. Você levantou peso hoje?

Não, senhor. - Ele continuava irritado com a mãe e respirava profundamente.

Tente forçar 35 quilos. Você já está pronto para isso.

Sim, senhor.

E, quando vier jantar, meu nome será Tom. Não gosto de ser chamado senhor quando estou comendo.

Você está um bocado diferente, Bernard - declarou Susan. - Eu não quis magoá-lo de maneira alguma. Mas vai levar um bom tempo até eu me acostumar com essa aparência feroz.

Então você acha que eu pareço feroz? - perguntou ele, um ar de felicidade no rosto.

Você parece absolutamente brutal.

Obrigado, mamãe! - Ao vê-lo correndo pelo tapete oriental em direção ao quarto, ela não se conteve:

Puxa, os elogios às vezes tomam formas tão estranhas! Vou fa­zer um drinque para nós.

 

O jantar transcorreu maravilhosamente, sem nenhum incidente no início. Bernard conversava sem parar sobre futebol, seus times e jogadores favoritos. A mãe o olhava como se tivesse um estranho à mesa. Fez muitas perguntas, revelando um desconhecimento tão sur­preendente sobre o esporte que me deixou sem palavras quanto tentei lhe responder.

Percebi que ficavam apreensivos um com o outro e pareciam con­tentes por terem alguém ali para suavizar a tensão entre os dois. Essa tensão me estimulava de tal forma que logo me descobri no papel de mestre-de-cerimônias, de bobo da noite, com cartas nas mangas e uma piada pronta para preencher cada intervalo de silêncio. Odiei a mim mesmo nesse papel, mas me sentia incapaz de recusá-lo. Nada me tornava mais impaciente e neurótico que a hostilidade silenciosa de duas pessoas que se amavam. Assim, passei o tempo inteiro con­tando piadas, trinchando a perna de cordeiro com o talento de um cirurgião, servindo o vinho como um sommelier e misturando a sala­da ansiosamente. Na hora em que servi o creme brülée e o café, estava exausto, esgotado com aquela representação teatral. Enquanto comía­mos a sobremesa, os velhos silêncios entre mãe e filho retomaram o controle da situação e ouvi o tilintar mortífero dos talheres contra os pequenos potes de vidro.

Por que você aprendeu a cozinhar, treinador? - perguntou fi­nalmente Bernard.

Bem, quando minha mulher foi para a faculdade de medicina, comprei um bom livro de culinária e, durante três meses, realizei coi­sas indescritíveis com bons pedaços de carne. Fiz pães que nem os passarinhos quiseram comer. Mas aprendi que, quando se sabe ler, sabe-se cozinhar. E me surpreendi gostando disso.

Sua mulher nunca cozinhou?

Ela era uma grande cozinheira, mas durante o curso não tinha tempo. Aliás, não tinha tempo nem para estar casada. As coisas não mudaram muito desde que ela se formou e tivemos nossas filhas.

Suas filhas também não viam a mãe quando eram pequenas? - indagou o rapaz, olhando para a mãe.

Isso só durante algum tempo, Bernard. Ela jamais seria feliz se tivesse de se contentar com um avental e o fogão. É uma pessoa inteli­gente e ambiciosa, e adora a medicina. Isso a faz melhor como mãe.

Quantas refeições você prepara por dia?

Todas elas. Perdi meu emprego há mais de um ano.

Quer dizer que você não é um treinador de verdade? - Havia uma nota de desconfiança na voz dele. - Minha mãe nem ao menos contratou um treinador de verdade para mim?

A dra. Lowenstein interveio, com a voz mal controlada:

Já chega, rapaz.

Por que você não está trabalhando como treinador agora? - insistiu Bernard.

Fui despedido do emprego - respondi, tomando um gole de café.

Porquê?

É uma longa história, Bernard. Uma história que geralmente não conto para crianças.

Tudo falso! - exclamou o garoto, virando-se para a mãe. - Ele finge que é treinador.

Peça desculpas imediatamente, Bernard - retrucou Susan.

Por que eu? Ele fingiu o tempo todo, por isso é ele quem me deve desculpas.

Então peço desculpas, Bernard - falei, enquanto remexia a so­bremesa com a colher. - Não percebi que você precisava de um treina­dor empregado.

Os adultos me matam. Realmente me matam. Espero nunca vir a ser adulto.

Com certeza você nunca será, Bernard. Você já deve ter chega­do ao máximo como adolescente.

Pelo menos eu não minto a respeito do que sou!

Ah, é? Não esqueça que você contou a seus pais que estava no time de futebol na escola, quando não estava. É uma mentira pequena, mas ajuda a definir os termos desta discussão.

Por que você sempre faz isso, Bernard? - perguntou a doutora, quase em prantos. - Por que sempre dá coices em quem tenta se apro­ximar ou ajudar você?

Sou seu filho, mãe. Não um de seus pacientes. Não precisa falar comigo como psiquiatra. Por que não tenta simplesmente con­versar comigo?

Não sei como conversar com você, Bernard.

Eu sei - interrompi, vendo o menino se voltar furioso para mim, ofegante e com suor se formando no lábio superior.

Você sabe o quê? - perguntou ele.

Como conversar com você. Se sua mãe não sabe, eu sei. Porque compreendo qual é seu problema. Você está se odiando por arruinar a noite, mas não pode evitar. Afinal, é a única maneira que você tem de magoar sua mãe. Tudo bem. Só que isso é assunto entre vocês dois. Ain­da sou seu treinador, Bernard. E amanhã de manhã você vai se encon­trar comigo no campo, usando todo o seu equipamento de batalha.

Por que eu devo aceitá-lo como treinador se você acaba de ad­mitir a fraude?

Você vai descobrir se isso é verdade ou não, amanhã - retru­quei, encarando aquele homem triste e insatisfeito.

O que você quer dizer com isso?

Amanhã vou saber se você tem medo de entrar na luta. Esse é o verdadeiro teste. Ver se você entra na luta para valer ou se tira o corpo fora. Pela primeira vez em sua vida, você vai entrar num jogo de verdade.

Ah, sim, e quem eu vou atingir? Uma árvore, um arbusto ou algum bêbado que esteja passando pelo parque?

Você vai disputar comigo. Vai tentar me agarrar. E eu farei o mesmo com você.

Acontece que você é muito maior do que eu.

Não precisa se preocupar comigo, Bernard. Não sou nada além de uma fraude, concorda?

Grande coisa! - resmungou ele.

Está com medo porque eu disse que vou agarrá-lo?

Não. Nem um pouco.

Sabe por que você não está com medo, Bernard?

Não.

Vou lhe dizer. Porque você nunca jogou futebol. Se tivesse joga­do, saberia que há motivo de sobra para ter medo. Mas eu sei também que você quer jogar futebol, mais que qualquer coisa no mundo, não é verdade?

Acho que sim...

Se você aprender a me segurar, a se livrar quando eu pegá-lo, poderá entrar em qualquer time no ano que vem.

Tom, você é muito grande para agarrar Bernard.

Mãe, por favor, você não entende nada de futebol.

Então me ajude a tirar a mesa, Bernard - disse eu, levantando-me. Enquanto empilhava os pratos, acrescentei: - Em seguida, vá para a cama e descanse o máximo que puder.

Não vou tirar a mesa. Nós temos uma empregada para isso.

Escute aqui, Bernard, não me responda novamente. E, por fa­vor, não faça outra cena igual à que fez agora à noite. Agora, pegue os pratos e leve-os para a cozinha.

Tom, esta é a casa de Bernard e a empregada vem amanhã.

Fique calada, Lowenstein. Por favor, cale a boca - pedi, exaspe­rado, indo para a cozinha.

Depois de dizer boa-noite a Bernard, voltei para a sala, um ambiente solitário e obsessivamente arrumado. Tudo ali era caro, mas não havia nada pessoal. Até o retrato de Herbert parecia uma representação idealística do homem, em vez de ser o próprio homem. Nele, Herbert tocava violino. E, apesar de não se poder julgar o caráter e a profundidade do homem com base em uma foto, sentia-se o arrebatamento de sua arte. A porta corrediça de vidro que dava para a varanda estava aberta. Foi ali que encontrei a dra. Lowenstein, que havia preparado dois copos de co­nhaque. Sentei-me e aspirei o perfume do Hennessy: ele floresceu em meu cérebro como uma rosa. Tomei o primeiro gole. A bebida deslizou por minha garganta, meio seda, meio fogo.

Bem - começou a dra. Lowenstein -, gostou do show da dupla Bernard e Susan?

Vocês sempre fazem esse espetáculo?

Não. No geral, tentamos nos ignorar. Mas a situação crítica está sempre ali. Até nossa polidez é mortífera. Fico com nós no estômago quando temos de jantar a sós. É terrível, Tom, ser odiada pelo único filho.

Como são as coisas quando Herbert está aqui?

Bernard tem medo do pai e raramente faz uma cena como a de hoje. É claro, Herbert não permite conversas durante a refeição.

O quê? Não entendi bem...

Susan sorriu e tomou um longo gole de conhaque.

É um segredo de família. Uma cerimônia doméstica. Herbert gosta de relaxar à mesa de jantar. Ouve música clássica durante a refei­ção como forma de descomprimir depois de um dia de trabalho. Eu costumava discutir com ele por causa disso, mas acabei me acostu­mando. Fiquei até aliviada desde que Bernard entrou nesse novo está­gio de agressividade.

Espero que você esqueça que a mandei calar a boca na frente de seu filho - disse eu, olhando sua silhueta na penumbra. - Fiquei com essa obsessão enquanto estava na cozinha. Imaginei que acabaria de arrumar os pratos e você me diria para cair fora daqui e nunca mais voltar, assim que eu terminasse de enxugar os talheres.

Por que você me mandou calar a boca?

Eu tinha restabelecido o controle sobre Bernard e não queria quebrar o encanto, conseguido a duras penas, só porque você não agüenta ver alguém magoá-lo.

Ele é muito sensível. Sua expressão dava dó quando você lhe falou com rudeza. Meu filho se magoa com facilidade.

Você também, doutora. Mas tivemos de agüentar o fogo cerra­do durante dez minutos e não gostei nem um pouco disso.

Ele tem o caráter igualzinho ao do pai. O que mais o incomo­dou foi perceber logo que nós éramos amigos. Isso também deixaria Herbert aborrecido. Meu marido sempre despreza os novos amigos que faço sozinha. Costuma tratá-los tão mal, com tanto desdém, que parei de convidá-los para jantar e até de vê-los socialmente. É claro que Herbert tem um fascinante círculo de amizades, que também se tornou meu. Mas a lição foi clara. É ele quem descobre as novas ami­zades e as traz para nosso círculo. Isso lhe parece estranho, Tom?

Não. Parece um casamento.

Você faz isso com Sallie?

Coloquei as mãos na nuca e olhei em direção às estrelas de Manhattan, apagadas como botões acima da luz da cidade.

Acho que sim... Eu detestava alguns médicos e suas esposas, que durante vários anos ela trouxe para minha casa. Se ouvir mais uma vez um médico falar sobre imposto de renda ou medicina socia­lizada na Inglaterra, sou capaz de fazer uma destruição ritual de mim mesmo diante deles. Então, comecei a convidar amigos treinadores, que passavam a noite desenhando jogadas nos guardanapos de papel e falando sobre a vez em que venceram algum time importante. Os olhos de Sallie ficavam faiscantes de tão farta que ela estava daquelas histórias. Assim, reunimos um grupo de amigos que sobreviveram ao escrutínio de ambos. Há um treinador de escola secundária que Sallie adora. E dois médicos que considero ótimos sujeitos. Um deles agora é o amante de Sallie. Talvez eu mude o sistema quando voltar para casa. Comecei a gostar do sistema de Herbert.

O amante de Sallie é seu amigo?

Era. Eu gostava daquele filho-da-puta e, apesar de ter agido como se estivesse chateado por ela escolher tamanho imbecil, entendi perfeitamente a opção. É um cara bonito, fez sucesso, é inteligente e divertido. Coleciona motocicletas inglesas e fuma cachimbos cheios de frescura, dois defeitos que apontei quando Sallie me contou sobre seu relacionamento. Mas eu não podia ser duro demais com ela.

Por quê?

Porque entendo a razão pela qual ela o prefere. Jack Cleveland é o tipo que eu teria sido se tivesse me mantido em meu caminho. É o homem que eu tinha potencial para me tornar.

Quando foi que você parou?

Tudo começou quando escolhi pais absolutamente errados. Talvez você não acredite que os filhos possam influir nesse assunto. Não sei. Tenho a intuição de que escolhi nascer exatamente naquela família. Assim, passa-se a vida inteira fazendo suposições falsas e mo­vimentos errados até ter início a catástrofe. A gente se descobre em perigo por causa das escolhas que fez e percebe que o destino tam­bém trabalha para nos arrasar, para nos levar a lugares nos quais ninguém deveria ser obrigado a entrar. Quando se toma conhecimento disso, já se tem 35 anos e se pensa que o pior ficou para atrás. Não, não é verdade. O pior está à frente por causa do horror do passado. A gente sabe que precisa viver com a lembrança do destino e da própria histó­ria para o resto da vida. Essa é a Grande Tristeza e, infelizmente, nosso destino.

Você acha que Savannah tem essa Grande Tristeza?

Veja onde ela está agora, doutora. Numa casa de loucos, cheia de cicatrizes pelo corpo, latindo para cães que somente ela pode ver. Sou o irmão imprestável que tenta lhe contar histórias para jogar luz em seu passado, a fim de que você ponha a biruta em ordem nova­mente. No entanto, quando penso no passado, chego a espaços em branco, a buracos negros da memória. Não sei como entrar nessas regiões escuras. Posso lhe contar a maioria das histórias que estão por trás daqueles fragmentos dolorosos que você gravou na fita. Sou até capaz de explicar de onde vêm. Mas, e as coisas que ela esqueceu? Os espaços em branco? Tenho a impressão de que há muito mais a dizer.

Você teria medo de me contar essas coisas, Tom? - perguntou Susan, sem que eu visse seu rosto. Só avistava as partes mais elevadas da cidade, subindo em grandes pilares de luz.

Vou lhe contar tudo, doutora. O que eu estou tentando dizer é que não sei se será o suficiente.

Até agora, você tem sido extremamente útil. Esclareceu muitas coisas que eu não conseguia entender em Savannah.

O que está errado com Savannah? - perguntei, inclinando-me em sua direção.

Com que freqüência você a viu nos últimos três anos?

Raramente... - Em seguida, admiti: - Nem uma vez.

Porquê?

Ela disse que ficava deprimida quando estava com a família. Até comigo.

Mas eu estou contente por você ter vindo neste verão, Tom. - Susan levantou-se, com as luzes da cidade às suas costas, e aproximou- se de mim.

Deixe-me encher seu copo novamente...

Observei-a entrar no apartamento e a vi relancear os olhos pelo retrato do marido para, em seguida, desviá-los rapidamente. Pela pri­meira vez, experimentei a tristeza daquela mulher controlada e cautelo­sa, que exercia uma função tão crucial e necessária em minha vida durante aquele verão melancólico. Refleti sobre seu papel de ouvinte, de protetora, de médica - imaginei as manhãs em que ela se levantava e se vestia, sabendo que iria enfrentar a dor e o sofrimento daqueles que a tinham buscado por acaso ou por indicação de alguém. No entanto, perguntei-me se as lições que juntava aos poucos, trazidas pelos pacien­tes, poderiam ser aplicadas com sucesso em sua vida pessoal. O domí­nio da doutrina de Freud poderia lhe assegurar a própria felicidade? Eu sabia que não, mas por que seu rosto inexpressivo me comovia tanto, sempre que ela não tinha consciência de que eu a observava? Aquele rosto adorável, com o formato da lua, parecia refletir cada caso grotesco que ela escutara, os testemunhos de histórias muito tristes. Ela ficava bem mais relaxada no consultório, protegida pela fortaleza de seus di­plomas. Ali, entre os estranhos, não tinha responsabilidade sobre as his­tórias horríveis que haviam levado alguns pacientes ao limite de suas capacidades. Mas em casa, os próprios fracassos e tristezas se moviam com ela em legiões de espectros. Ela e o filho aproximavam-se um do outro como conselheiros de nações inimigas. O poder da presença do marido e as conseqüências de sua fama manifestavam-se por toda parte. Eu não tinha uma imagem clara de Herbert Woodruff pelo que a esposa ou o filho falaram a respeito. Ambos enfatizaram que era um gênio;

ambos temiam seu desamor e suas represálias, mas sem entender qual a forma que a reprimenda tomaria. Ele ouvia música clássica durante as refeições, em vez de conversar com a família... Só depois de escutar o grito de guerra de Bernard e de sua mãe entendi aquela posição. Por que a dra. Lowenstein me contara sua suspeita de que o marido estava tendo um caso com aquela mulher atordoante e atormentada que eu encon­trara em seu consultório?

Sexo, o velho nivelador e destruidor, espalhando suas sementes per­niciosas até nas casas cultas e privilegiadas - e quem saberia que híbridos monstruosos ou que orquídeas mortíferas floresceriam naqueles salões silenciosos? As flores do meu jardim, uma variedade sulista raquítica e sem originalidade, eram suficientemente horríveis. Eu achava que nunca mais pensaria em sexo depois que tivesse me casado ou, mais precisamen­te, que só pensaria nele em relação à minha esposa. Mas o casamento fora apenas uma iniciação para um assustador mundo da fantasia, alarmante por causa de sua ignição furiosa, suas tradições secretas, seu desejo incontrolável por todas as mulheres bonitas do mundo. Eu passava pelo mundo ardendo de amor por mulheres desconhecidas, e não conseguia evitá-lo. Em minha mente, dormi com mil mulheres. Nos braços de mi­nha mulher, fiz amor com mulheres bonitas que nunca falaram meu nome. Vivia, amava e sofria num mundo que não era real, mas existia em algum reino selvagem próximo aos olhos. A lascívia, a devassidão e o ins­tinto rugiam em meus ouvidos. Eu odiava esse meu lado; tremia ao ouvir a risada lúbrica de outros homens quando admitiam ter as mesmas fe­bres. Eu equiparava a foda ao poder e odiava a parte de mim na qual morava essa verdade perigosa e imperfeita. Tinha saudade da constância, da pureza e da indulgência. Eu trouxera um talento assassino ao sexo. Todas as mulheres que me amaram, que me colocaram em seu seio, que me sentiram por inteiro, enquanto me movia dentro delas, murmurando seus nomes, gritando com elas na escuridão, todas elas foram traídas por mim, que as transformei vagarosamente, gradativamente, em amigas em lugar de amantes. Começando como amantes, eu as transformei em ir­mãs e lhes transmiti os olhos de Savannah. Certa vez, transando com uma mulher, ouvi horrorizado a voz de minha mãe. Apesar de minha amante gritar "sim, sim, sim", seu grito não era tão forte quanto os frios "não, não" de minha mãe. Eu levava mamãe para a cama todas as noites e nada podia fazer para evitá-lo.

Esses pensamentos chegaram sem se anunciar e sem nenhum convite. Enquanto observava Susan Lowenstein voltando para a va­randa com dois copos de conhaque, pensava que sexo era o ponto principal de minha masculinidade conflituada e infeliz.

Ela me entregou o copo, tirou os sapatos e se sentou numa cadeira de vime.

Tom, você se lembra da conversa a respeito do homem fechado que você é?

Mudei de posição na cadeira e olhei para o relógio.

Por favor, Lowenstein, lembre-se de meu genuíno desprezo pe­los psicoterapeutas. Você não está em horário de trabalho agora.

Desculpe. Pensei nisso enquanto enchia os copos. Sabe, confor­me você me conta histórias de sua família, Savannah vai emergindo lentamente. E Luke. E seu pai. Mas ainda não conheço nem entendo sua mãe. E você permanece o mais obscuro de todos. Não revela quase nada sobre si mesmo.

Isso deve acontecer porque nunca tenho certeza de quem sou realmente. Nunca fui apenas uma pessoa. Sempre tentei ser outro, vi­ver a vida de outro. Posso me transformar em outro com muita facili­dade. Sei o que é ser Bernard, doutora. Por isso que o sofrimento dele me afeta tanto. Acho fácil ser Savannah. Sinto quando os cães estão sobre ela. Quero livrá-la da doença e colocá-la em minha própria alma. Não acho fácil ser eu mesmo, porque esse estranho cavalheiro me é desconhecido. Essa revelação nauseante satisfaz até ao terapeuta mais escrupuloso.

Você pode ser eu, Tom? Você sabe o que é ser eu?

Não. - Inquieto, tomei um gole de conhaque. - Não tenho idéia do que é ser você.

Você está mentindo. Você consegue saber muita coisa a meu respeito.

Eu a vejo no consultório e tagarelo durante uma hora. Ou en­tão tomamos alguns drinques. Jantamos juntos três vezes, mas não houve tempo suficiente para fazer uma imagem clara de você. Pensei que você a tivesse feito. É uma mulher linda, médica, casada com um músico famoso, rica e vive como uma rainha. Naturalmente, Bernard tem uma imagem um pouco nublada, mas, acima de tudo, você está entre aquele um por cento da população mundial que tem sucesso.

Você continua mentindo.

Você é uma mulher triste, doutora. Não sei por quê, e tenho muita pena. Se pudesse, eu a ajudaria. Mas sou um treinador, não um padre ou um médico.

Agora você não está mentindo. Obrigada. Você é o primeiro amigo que tenho em um longo período.

Bem, admiro o trabalho que está fazendo por Savannah. Real­mente aprecio. - Eu me sentia terrivelmente envergonhado.

Você tem se sentido só?

Lowenstein, você está falando com o príncipe da solidão, como Savannah se refere a mim num de seus poemas. Esta cidade exacerba esse sentimento em mim, do mesmo modo que a água faz o Alka-Seltzer efervescer.

Ultimamente, a solidão vem me matando - Susan tinha os olhos fixos em mim.

Não sei o que dizer.

Você me atrai bastante, Tom. Por favor, não vá embora. Escute...

Não diga nada, doutora. - Levantei-me para sair. - Sou incapaz de pensar nisso agora. Faz tanto tempo que me considero inútil para o amor que o simples pensamento me aterroriza. Vamos ser amigos. Bons amigos. Eu seria um péssimo acréscimo a sua vida sentimental. Sou um Hindenburg ambulante. Desastre puro e simples sob qualquer ângulo que se olhe. Estou em busca da fórmula para salvar um casa­mento que não tem chance de se salvar. Não posso nem pensar em me apaixonar por uma mulher tão linda e tão diferente de mim. É perigo­so. Preciso ir agora, mas quero lhe agradecer pelo que me disse. Foi ótimo que alguém me dissesse isso justamente aqui em Nova York. É bom me sentir novamente atraente e querido.

Não sou muito convincente nisso, não é, Tom? - perguntou ela, sorrindo.

- Você é ótima, Lowenstein. Você tem sido ótima em tudo. - Dito isso, deixei-a na varanda enquanto ela olhava novamente para as luzes da cidade.

 

Era quase verão quando os estranhos chegaram de barco a Colleton e começaram sua longa e inexorável busca à toninha branca. Minha mãe estava assando pães, cujo aroma, misturado ao perfume das ro­sas, transformava a casa em uma espécie de frasco do incenso sazonal mais harmonioso que existia. Ao tirá-los do forno, ela os cobriu com manteiga e mel. Em seguida, nós os levamos até o desembarcadouro, sentindo o mel amanteigado escorrer pelos dedos. Atraímos a atenção de todas as vespas que havia no quintal - foi preciso coragem para deixá-las andar em nossas mãos, enquanto se empanturravam com o creme que gotejava do pão. As abelhas pareciam estar nos jardins, nos pomares e nas colméias. Minha mãe encheu com água açucarada a tampa de um vidro de maionese para satisfazê-las a fim de que pudés­semos comer em paz.

Estávamos quase acabando com o pão quando vimos o barco, o Amberjack, que portava registro da Flórida, passando pelos canais do rio Colleton. Nenhuma gaivota o seguia, o que indicava não se tratar de um barco pesqueiro. Nem de um iate, pois lhe faltavam as linhas puras e suntuosas. Mas a tripulação visível de seis homens bem bron­zeados parecia de veteranos marinheiros. Descobriríamos mais tarde que aquela era a primeira embarcação a entrar nas águas da Carolina do Sul com a missão de manter os peixes vivos.

A tripulação do Amberjack não fez segredo a respeito do que que­ria e, naquela mesma tarde, seu plano nas águas de Colleton era co­nhecido em toda a cidade. O capitão Otto Blair contou a um repórter da Gazeta que o Seaquarium de Miami recebera uma carta de um cidadão de Colleton, o qual desejava permanecer anônimo, dizendo que uma toninha albina freqüentava as águas ao redor da cidade.

O capitão planejava capturá-la e transportá-la para Miami, onde ela serviria como atração turística e objeto de pesquisa científica. A tripu­lação do Amberjack fora até ali no interesse da ciência, como biólogos marinhos, motivada pela notícia de que a criatura mais rara dos sete mares era uma visão diária para o povo das terras baixas.

Eles talvez soubessem absolutamente tudo sobre toninhas e seus hábitos, mas tinham feito uma péssima análise do caráter das pessoas que encontrariam na parte mais baixa da Carolina do Sul. Os cidadãos de Colleton estavam para lhes dar uma bela lição a esse respeito, sem cobrar nada. Com um arrepio coletivo de fúria, toda a cidade se tor­nou vigilante e assustada. A trama para roubar Carolina Snow era, para nós, um ato inqualificável e aberrante. Por acidente, eles trouxeram o raro sabor da solidariedade ao nosso litoral e sentiriam o peso de nossa discordância. Para eles, a toninha branca era uma curiosi­dade da ciência; para nós, significava a manifestação da inefável beleza e da generosidade de Deus entre nós, a prova da magia e o êxtase da arte. A toninha branca era algo pelo qual valia a pena lutar.

O Amberjack, imitando os hábitos dos pescadores de camarões, saiu cedo na manhã seguinte, mas seus tripulantes não avistaram a toninha nem soltaram as redes. Os homens voltaram para o cais com expres­são soturna no rosto, ansiosos para ouvir os rumores sobre recentes aparições de Snow. Foram recebidos com o silêncio da população.

Após o terceiro dia, Luke e eu encontramos o barco deles e ouvimos a tripulação conversar a respeito dos dias longos e infrutíferos sobre o rio, tentando avistar a toninha branca. Estavam sentindo o peso eloqüente da reprovação da cidade e pareciam loucos por conversar conosco, a fim de extraírem todas as informações que pudessem.

O capitão Blair levou-nos a bordo do Amberjack e mostrou-nos o tanque no convés principal, onde os espécimes eram mantidos com vida até chegarem aos aquários de Miami. Vimos também os 800 metros de rede que seriam usados para rodear a toninha. A mão de um homem passaria facilmente por suas malhas. O capitão era um homem cordial, de meia-idade, o rosto marcado por linhas pro­fundas criadas pelo sol, como se fossem entalhes. Com voz suave e quase inaudível, ele nos contou como treinavam as toninhas para comer peixe morto depois de uma captura. Uma toninha jejuaria durante duas semanas ou mais antes de se dignar a comer presas que ignoraria na natureza. O maior perigo durante a captura era o de que o animal se enredasse na rede e se afogasse. A caça aos golfinhos exigia uma tripulação esperta e experiente para assegurar que não ocorressem afogamentos. Em seguida, o capitão nos mostrou os col­chões de espuma de borracha nos quais deitavam as toninhas assim que elas subiam a bordo.

Por que vocês não as jogam na piscina, capitão? - perguntei.

Em geral fazemos isso, mas às vezes temos tubarões na piscina. Além disso, a toninha pode se machucar ao se agitar com violência num espaço tão pequeno. É melhor deixá-las sobre os colchões e jogar água sobre elas para evitar que a pele seque. Nós a movemos de um lado para outro a fim de que a circulação não pare. Isso é praticamente tudo o que podemos fazer.

Quanto tempo elas sobrevivem fora da água? - Luke quis saber.

Não sei exatamente. O máximo que mantive uma fora da água foi cinco dias, até levá-la a Miami. São criaturas resistentes. Qual foi a última vez que vocês viram Moby nestas águas?

Moby? O nome dela é Snow. Carolina Snow.

Moby foi o nome que lhe deram em Miami. Moby Toninha. Alguém do departamento de publicidade saiu com essa.

É o nome mais idiota que já ouvi! - exclamou Luke.

Mas vai fazer os turistas aparecerem correndo, filho - explodiu o capitão Blair.

Ah, por falar nisso, os passageiros de um barco avistaram a to­ninha ontem no porto de Charleston, quando se dirigiam para Fort Sumter.

Você tem certeza disso? - Naquele instante, um dos membros da tripulação chegou mais perto para ouvir o restante da conversa.

Eu não a vi - afirmou Luke mas ouvi a notícia pelo rádio. - No dia seguinte, o Amberjack zarpou para Charleston, percorrendo os rios Ahley e Cooper à procura de sinais da passagem da toninha bran­ca. Durante três dias, pesquisaram as águas em torno de Wappoo

Creek e Elliot Cut antes de se darem conta de que meu irmão havia mentido. De qualquer modo, eles também tinham ensinado a Luke como manter uma toninha com vida...

 

A convocação às armas entre o Amberjack e a população de Colleton não foi feita a sério até a noite do mês de junho, quando a tripulação do barco tentou caçar a toninha à vista de toda a cidade. Eles haviam avistado Snow em Colleton Sound, um lugar de águas profundas demais, para serem bem-sucedidos com suas redes, e a ti­nham seguido durante todo o dia, permanecendo a uma distância razoável, espreitando-a com paciência até que ela se dirigira aos riachos e rios mais rasos.

Desde o momento em que os intrusos haviam descoberto a toni­nha, os pescadores da cidade começaram a passar relatórios sobre a posição do Amberjack em seus rádios de ondas curtas. Sempre que o barco mudava de rumo, os olhos da frota camaroneira o percebiam e as ondas de rádio se enchiam de vozes de pescadores, que passavam mensagens de um barco a outro até a cidade. As esposas dos pescado­res, monitorando seus próprios rádios, iam então até o telefone e es­palhavam as notícias. O Amberjack não passava pelas águas do município sem que sua posição exata fosse relatada a um regimento de ouvintes secretos.

Amberjack entrando no córrego Yemassee - ouvimos certo dia no rádio que mamãe mantinha sobre a pia da cozinha. - Pelo jeito não encontraram Snow hoje.

Miami Beach acaba de sair do córrego Yemassee e parece que vai bisbilhotar em Harper Dogleg, para os lados da ilha Goat.

A população ouvia com cuidado esses relatórios freqüentes dos pescadores. A toninha branca não apareceu durante uma semana e, quando finalmente voltou, foi um dos pescadores que alertou a cidade.

Aqui fala o capitão Willard Plunkett. Miami Beach avistou Snow. Estão subindo o rio Colleton, atrás dela, e preparando as redes no convés. Parece que Snow vai fazer uma visitinha à cidade.

A notícia atravessou Colleton com a velocidade de um boato e acabou por levar todo mundo à margem do rio. Os olhos fixos no rio, as pessoas falavam em voz baixa. O delegado colocou seu carro no estacionamento do banco e pôs-se a monitorar os relatórios dos pesca­dores. A cidade inteira estava atenta à curva do rio onde o Amberjack apareceria. Aquela curva ficava a 1,5 quilômetro do ponto em que o rio se juntava a três de seus afluentes e vicejava, tornando-se um estreito.

Esperamos durante vinte minutos até que o Amberjack surgisse ali. Então, um gemido coletivo elevou-se em todas as gargantas. O bar­co vinha pelo pântano, junto com a maré que subia. Um dos tripulan­tes, em pé na coberta da proa, olhava através de binóculo para a água à sua frente. Com o corpo imóvel, duro como uma estátua, o homem parecia completamente absorto pela tarefa.

Luke, Savannah e eu observávamos da ponte, ao lado de centenas de pessoas que haviam se reunido para testemunhar a captura do sím­bolo vivo da sorte da cidade. De início, estavam todos apenas curiosos, até que Carolina Snow fez sua aparição luxuriante na última curva do rio, e começou seu passeio fabuloso ao redor da cidade. A toninha brilhava como prata quando o sol batia em sua nadadeira que passava pela crista de uma onda. Em suas visitas à cidade, ela alcançara uma grandeza frágil pela inconsciência que tinha de sua vulnerabilidade. Com o corpo lustroso, deslumbrou-nos mais uma vez com sua beleza completa. A nadadeira dorsal emergiu novamente como uma divisa branca cada vez mais próxima da ponte. Para nossa surpresa, a cidade aplaudiu espontaneamente a apoteose da toninha branca. A bandeira da indignação de Colleton soltou-se sob ventos secretos e nosso status de observadores passivos se transformou imperceptivelmente em um grito de guerra, desconhecido de todos, que se formou em nossos lá­bios. Todos os lemas e palavras de ordem apareceram como grafites ferozes nos arsenais do inconsciente dos cidadãos. A toninha sumiu e em seguida reapareceu, nadando com rapidez em direção ao aplauso que saudava sua chegada. Era misteriosa e lunar. Seu colorido, uma mistura delicada de lírio e madrepérola, passando sob as águas ilumi­nadas pelo sol como se fosse de prata. Foi então que vimos o Amberjack ganhar terreno e a tripulação colocar as redes no pequeno bote que ia baixar para a água. A cidade precisava de um guerreiro, e fiquei surpreso ao descobri-lo a meu lado.

O trânsito se congestionara na ponte porque todo mundo parara seus carros para ir até a amurada, a fim de assistir à captura da toni­nha. Um caminhão carregado com tomates de uma fazenda de Reese Newbury encontrava-se ali, e o motorista tocava em vão a buzina, chamando os outros motoristas para voltarem a seus carros.

Ouvi Luke resmungar baixinho:

- Não, isso não é direito. - Em seguida, saindo de onde estava, ele subiu na carroceria do caminhão e começou a jogar caixotes de toma­tes no meio da multidão. De início, tomei-o por louco, mas logo en­tendi do que se tratava. Junto com Savannah, abri um engradado e distribuí os tomates às pessoas que estavam ao longo da amurada. O motorista do caminhão saiu da cabine gritando para que Luke paras­se, mas meu irmão o ignorou e continuou a passar os caixotes de madeira para os braços de seus amigos e vizinhos. A voz do motorista tornava-se cada vez mais furiosa à medida que as pessoas pegavam ferramentas em seus carros para abrir os engradados. Naquele instan­te, o carro do delegado deixou o estacionamento, dirigindo-se para a estrada de Charleston, no outro lado da cidade.

Quando o Amberjack aproximou-se da ponte, duzentos tomates verdes atingiram o convés numa fuzilaria que fez o homem do binó­culo cair de joelhos. Um dos tripulantes que trabalhava nas redes le­vou a mão ao nariz, próximo à popa do barco, com o sangue fluindo entre seus dedos. A segunda salva de artilharia aconteceu logo depois, obrigando a tripulação a se arrastar com dificuldade, confusa e ator­doada em direção à segurança da cabine. Quando uma ferramenta de troca de pneus de automóvel bateu com força em um dos botes salva- vidas, a multidão aplaudiu com entusiasmo. As pessoas continuavam pegando tomates nas caixas, o motorista ainda gritava, mas ninguém ouvia suas súplicas.

O Amberjack sumiu sob a ponte e duzentas pessoas correram para a outra amurada numa investida impetuosa, delirante. Quando o barco reapareceu do outro lado, nós o cobrimos com uma chuva de tomates, como arqueiros de uma colina soltando flechas sobre uma infantaria desorganizada. Savannah atirava-os com força, boa pon­taria e um bom ritmo em seus movimentos, descobrindo um estilo próprio e gritando de puro prazer. Luke jogou um engradado fechado, que se espatifou no convés traseiro, arremessando tomates que desli­zavam como bolas de gude em direção ao porão.

O barco saía do alcance de quase todos os braços, exceto dos mais fortes, quando a toninha, num gesto de auto-preservação, reverteu seu curso e rumou para a cidade, passando a estibordo da embarcação que a perseguia. Voltara para nosso aplauso e nossa proteção. Nós a vimos mover-se sob as águas embaixo da ponte, cruzando as ondas como um sonho abstrato de marfim. Quando o barco deu meia-volta pelo rio, mais caixas de tomates foram passadas entre a multidão. A essa altura, até o motorista do caminhão se rendera à euforia que se apossara de todos e fora para o lado da amurada, com o braço levanta­do, segurando um tomate e esperando ansiosamente a volta do Amberjack. Este vinha em direção à ponte, mas de repente alterou seu curso para o rio Colleton, ao norte, enquanto Carolina Snow, a única toninha branca do planeta, retornava ao Atlântico.

 

No dia seguinte, o Conselho da cidade baixou uma resolução conce­dendo a Carolina Snow direitos de cidadania no município e tornando sua remoção das águas da cidade um ato de traição. Ao mesmo tempo, o legislativo da Carolina do Sul baixava uma lei similar, que também condenava o apresamento da espécie Phocaena ou Tursiops nas águas de nosso município. Assim, em menos de 24 horas, Colleton tornou-se o único lugar do mundo onde era proibida a captura de toninhas.

Tão logo o Amberjack aportou no desembarcadouro dos camaroneiros, o capitão Blair dirigiu-se ao gabinete do delegado para exigir que o xerife Lucas prendesse todos os que tinham atirado toma­tes sobre seu barco. Por infelicidade, não pôde fornecer um único nome do qual pudesse fazer a queixa. Mas o xerife, depois de vários telefonemas, apresentou-lhe quatro testemunhas que poderiam jurar num tribunal que não havia ninguém na ponte quando o Amberjack passara sob ela.

- Então como é que recebi centenas de quilos de tomates em meu convés? - perguntou o capitão. E, numa réplica lacônica que foi muito bem recebida em todas as casas de Colleton, o xerife disse:

Estamos na estação dos tomates, capitão. Essa planta cresce em toda parte.

Os homens de Miami, no entanto, recobraram-se rapidamente e desenvolveram um novo plano para a captura do animal. Mantendo-se longe das vistas da cidade e sem entrar no canal principal do rio Colleton, passaram a freqüentar os limites externos do município, es­perando o momento perfeito em que Snow perambulasse fora das águas de Colleton e da proteção daquelas leis recentemente baixadas. Só que o Amberjack era seguido de perto pelas lanchas da Comissão de Caça e Pesca da Carolina do Sul e por uma pequena frota de barcos de recreação comandados por mulheres e crianças da cidade. Sempre que os intrusos descobriam a toninha, essas embarcações manobra­vam para ficar entre eles e diminuíam a velocidade de seus motores. O Amberjack tentava desviar-se, mas as mulheres e as crianças de Colleton, que lidavam com barcos pequenos desde muito cedo, inter­rompiam-lhes o trajeto até que a toninha branca deslizasse nas ondas da enseada de Colleton.

Diariamente, Luke, Savannah e eu pegávamos a baleeira e entrá­vamos nos canais interiores para nos unirmos à flotilha de resistência. Luke conduzia o barco até a frente do Amberjack e, ignorando a buzi­na de advertência, diminuía pouco a pouco sua velocidade, de modo que, por mais hábil que fosse o capitão Blair no manejo do leme, não conseguia ultrapassá-lo. Savannah e eu amávamos o equipamento de pesca e colocávamos iscas para a cavala espanhola enquanto a baleeira navegava entre o Amberjack e a toninha branca. Freqüentemente, a tripulação aparecia na proa do navio para nos ameaçar e insultar.

Ei, garotos, caiam fora do caminho antes que a gente fique de saco cheio! - gritava um dos marinheiros.

Só estamos pescando, moço - respondia Luke.

Pescando o quê?

Ouvimos dizer que há uma toninha branca nestas águas. - E Luke reduzia a velocidade com um delicado movimento do pulso.

É mesmo, espertinho? Pois se você for pegá-la, não estará fa­zendo um bom serviço.

Estamos fazendo um serviço tão bom quanto o de vocês.

Se aqui fosse a Flórida, passaríamos por cima dessa droga de baleeira!

Mas aqui não é a Flórida, moço. Ainda não perceberam? - Luke puxou a alavanca de aceleração e começamos a nos arrastar sobre a água. Ouvimos os motores do Amberjack diminuindo a velocidade enquanto a proa do barco assomava sobre nós. - Ele nos chamou de caipiras - comentou meu irmão.

Eu, caipira? - perguntou Savannah.

Isso me deixa magoado - acrescentei.

Mais à frente, a toninha branca entrou no riacho Langford, o bri­lho de alabastro de sua nadadeira desaparecendo por trás da borda verde do pântano. Havia três barcos esperando na boca do riacho, prontos para interceptar o Amberjack se este ultrapassasse Luke.

 

Após trinta dias de protelação e impedimentos, o Amberjack deixou os limites ao sul de Colleton e voltou à sua base em Miami, sem levar a toninha branca. O capitão Blair deu uma amargurada entrevista fi­nal à Gazeta, arrolando os vários obstáculos que os cidadãos de Colleton haviam levantado com a finalidade de fazer fracassar sua missão. Aquela atitude, disse ele, não podia ser permitida porque sola­pava a investigação científica. Além do mais, em seu último dia, a tripulação recebera tiros de um franco-atirador da ilha Freeman e ele, como capitão, decidira suspender a caçada. A frota de barcos camaroneiros observou o Amberjack passar pelas últimas ilhas, mano­brar pela arrebentação e voltar-se para o sul, fazendo uma curva em direção ao mar aberto.

Só que, em vez de ir para Miami, o Amberjack distanciou-se umas 60 milhas, entrou na boca do rio Savannah e aportou no cais dos ca­marões em Thunderbolt. Permaneceu ali durante uma semana para reabastecer e deixar esfriar os ânimos em Colleton, monitorando ain­da o rádio de ondas curtas, seguindo as viagens da toninha branca por meio dos relatórios minuciosos dos camaroneiros de lá. Após uma semana, o barco deixou o porto no meio da noite e se dirigiu para o norte, além do limite de 3 milhas. Navegando confiantes, fora das vis­tas das traineiras de pesca de camarão que se postavam perto da costa, esperavam um sinal que viria pelo rádio. Depois de três dias ao largo, eles ouviram afinal as palavras que tanto esperavam:

Pessoal, acabo de prender a rede numa tora submersa no ria­cho Zajac. Tenham cuidado se vierem para este lado. Câmbio.

De qualquer modo, não há camarões no riacho Zajac - respon­deu alguém de outro barco camaroneiro. - Você está um bocado longe de casa, hein, capitão Henry? Câmbio.

Eu pesco camarões onde puder encontrá-los. Câmbio - res­pondeu meu pai, observando Carolina Snow que induzia um cardu­me a se aproximar de um banco de areia.

De imediato o Amberjack rumou para o riacho Zajac, que era fora de Colleton, com a tripulação preparando as redes enquanto o litoral da Carolina do Sul enchia os olhos do capitão Blair pela última vez. Um camaroneiro de Charleston testemunhou a captura da toninha branca às onze e trinta daquela manhã. Viu Carolina Snow entrar em pânico e arremeter contra as redes que a cercavam; diante daquela cena admirou a rapidez e a habilidade com que os homens passaram as cordas em torno dela, seguraram sua cabeça acima da água para impedi-la de se afogar e a colocaram dentro de uma de suas lanchas.

Na hora que a notícia chegou a Colleton, o Amberjack já estava longe dos limites de 3 milhas, navegando para o sul, numa rota que o levaria a Miami em 58 horas. Os sinos da igreja tocaram em sinal de protesto, refletindo nossa impotência e fúria. Era como se o rio tivesse sido conspurcado, expurgado de seus direitos de magia.

 

"Tora submersa" era o código que meu pai combinara com o capitão Blair e a tripulação do Amberjack. Ele concordara em pescar nas águas limítrofes de Colleton até avistar a toninha branca entrando nas águas territoriais do município de Gibbes. Era ele o cidadão anônimo que escrevera ao Seaquarium de Miami informando sobre a presença da toninha albina em nossa cidade. Duas semanas após o rapto de Snow e uma semana depois que sua foto saiu na Gazeta de Colleton, sendo colocada no tanque de sua nova casa de Miami, meu pai recebeu do capitão Blair uma carta de agradecimento e mil dólares a título de recompensa por sua ajuda.

Tenho vergonha pelo que você fez, Henry - disse minha mãe esforçando-se para se controlar enquanto ele acenava com o cheque à nossa frente.

Ganhei mil dólares, Lila. Foi o dinheiro mais fácil que já faturei até hoje. Gostaria que todas as toninhas que encontro fossem albinas. Eu passaria o resto da vida comendo do bom e do melhor!

Se alguém dessa cidade tivesse culhões, iria a Miami e libertaria aquele animal. É melhor que ninguém saiba que você foi o responsá­vel por isso, Henry. O pessoal continua louco de raiva!

Como é que você se atreveu a vender nossa toninha, pai? - per­guntou Savannah.

Olhe, meu bem, ela vai ficar numa cidade ótima, comendo ca­valas como um gourmet e saltando no meio de arcos para a alegria das crianças. Snow não precisará se preocupar com tubarões pelo resto da vida. Ela está aposentada em Miami. Você tem de encarar isso de modo positivo.

Acho que você cometeu um pecado que Deus não perdoa - declarou Luke, com ar sombrio.

Você acha, é? Pois eu nunca vi a frase "Propriedade de Colleton" tatuada nas costas dela. Simplesmente escrevi para o Seaquarium, contando que aqui existia um fenômeno natural que poderia atrair multidões. Eles apenas me recompensaram pela infor­mação.

Eles não teriam encontrado Snow se você não os avisasse pelo rádio cada vez que a avistava no rio - disse eu.

Claro, eu era o oficial de ligação deles na área. Vejam bem, não está nada boa a estação de pesca. Esses mil dólares vão garantir a co­mida na mesa e roupas para cada um. Daria para pagar um ano inteiro de faculdade para um de vocês.

Eu não daria uma única garfada na comida comprada com esse dinheiro. E não usaria uma só cueca comprada com ele - garantiu Luke.

Fazia mais de cinco anos que eu observava Snow - acrescentou minha mãe. - Uma vez, você castigou Tom por matar uma águia care­ca, Henry. Há muito mais águias no mundo que toninhas brancas.

Eu não matei a toninha, Lila. Apenas a enviei a um porto segu­ro onde ela estará livre de qualquer temor. Eu me vejo como um herói neste caso.

Você vendeu Snow para o cativeiro - retrucou ela.

Eles vão transformá-la em toninha de circo - emendou Savannah.

Você traiu a si mesmo e às suas origens - acusou Luke. - Se fosse um negociante, um sujeitinho bem arrumado e de cabelo lustroso, eu entenderia. Mas um camaroneiro! Um camaroneiro vendendo Snow por dinheiro?

Eu vendo camarões por dinheiro, Luke - gritou meu pai.

Não é a mesma coisa. Não se vende o que não se pode repor.

Vi vinte toninhas no rio hoje.

Sou capaz de apostar que nenhuma era branca. Nenhuma delas era tão especial.

Nossa família é a razão pela qual capturaram Snow - interveio Savannah. - Sinto-me como se fosse filha de Judas Iscariotes. Aliás, eu teria preferido ser filha dele.

Você não devia ter feito o que fez, Henry - disse minha mãe. - Isso vai lhe dar azar.

Não posso ser mais azarado do que já sou. Em todo caso, o assunto terminou. Não há nada que se possa fazer agora.

Eu vou fazer alguma coisa - declarou Luke.

 

Três semanas mais tarde, na escuridão da noite, quando ouvíamos o ronco de meu pai, Luke sussurrou seu plano para nós. Era algo que não deveria nos surpreender... No entanto, anos mais tarde, Savannah e eu conversamos, tentando estabelecer a hora exata em que nosso irmão mais velho se transformara de um menino idealista e impetuo­so num homem de ação. Ficamos amedrontados e, ao mesmo tempo, muito alegres com a audácia de sua proposta. Só que nenhum de nós quis tomar parte nela. Luke continuou a argumentar, até que nos des­cobrimos aprisionados pela originalidade magnética de sua eloqüência. Ele já se decidira e passou metade da noite alistando-nos como recrutas em sua primeira passagem pelo lado selvagem da vida. Desde a noite em que o vimos enfrentando o tigre no celeiro, sabíamos que Luke era corajoso; agora, encarávamos a probabilidade de que tam­bém fosse temerário.

Três manhãs mais tarde, depois de Luke fazer muitos preparati­vos, estávamos na Auto-estrada 17, em direção ao sul, com meu irmão pisando firme no acelerador e o rádio tocando a todo volume. Ray Charles cantava "Hit the Road, Jack", e nós cantávamos com ele. Tomávamos cerveja gelada e o rádio estava ligado na Big Ape de Jacksonville, enquanto disparávamos pela ponte Eugene Talmadge Memorial, em Savannah. Diminuímos a velocidade ao passar pelo pedágio. Luke entregou um dólar ao velho que distribuía os tíquetes.

Vão fazer umas comprinhas em Savannah, crianças? - pergun­tou o homem.

Não, senhor - respondeu meu irmão. - Estamos indo até a Flórida para roubar uma toninha.

 

Durante aquela estranha e impetuosa viagem para a Flórida, meus sentidos ardiam como incêndios de verdade. Sentia-me como se pudesse atear fogo em uma palmeira apenas apontando com o dedo. Estava elétrico, carregado, extático e aterrorizado. Cada canção que escutava no rádio parecia ter sido feita expressamente para meu pra­zer. Apesar de possuir uma voz execrável, imaginava estar cantando maravilhosamente enquanto rodávamos pela auto-estrada costeira e pelas estradas cercadas de carvalhos da Geórgia, com Luke mudando as marchas da caminhonete apenas quando diminuíamos a velocida­de ao passar por alguma cidade. Como se a velocidade estivesse no sangue de meu irmão, atravessamos a fronteira do estado da Flórida duas horas depois de sairmos da ilha Melrose. Sequer paramos para tomar suco de laranjas grátis oferecido no posto de recepção.

A cidade de Jacksonville nos obrigou a diminuir o ritmo da via­gem, pois o rio St. Johns era algo incrível, além de ser o primeiro rio que víamos que corria para o norte. Uma vez na auto-estrada A1A, novamente queimamos o asfalto e fizemos os pneus cantarem sobre o macadame. O mar aparecia a intervalos à esquerda e, quando o vento morno passou rapidamente por dentro do carro, sentimos que ele corria conosco para o sul, ciente de nossa missão. Sim, ciente, apro- bativo e partidário!

Fomos para o sul com coração de ladrões e sensibilidade de pres­critos, cada um alimentando a energia desnorteada do outro. Ao ver Luke rindo de algum comentário que Savannah fizera, senti os cabelos dela voarem em meu rosto com um doce perfume. Enchi-me de um amor inefável e perfeito pelos dois, um amor vivido e poderoso cujo sabor eu sentia na língua e cujo calor glorioso queimava profunda­mente em meu peito. Inclinando-me, beijei Savannah no pescoço e apertei o ombro de Luke com a mão esquerda. Ele alcançou minha mão e a apertou, surpreendendo-me então ao levá-la aos lábios num gesto de ternura insuperável. Recostei-me novamente e deixei o aro­ma do estado da Flórida inundar meus sentidos à luz pálida daquele domingo.

 

Depois de dez horas de viagem cansativa e duas paradas para encher o tanque, a cidade de Miami surgiu do mar quando passamos pela tabuleta que indicava a pista de corridas de Hialeah. Os coqueiros se agitavam ruidosamente à brisa morna e o perfume dos jardins domi­nados por bougainvilleas passava pelas largas avenidas. Nunca havía­mos ido à Flórida e, subitamente, estávamos atravessando as ruas de Miami, à procura de um lugar onde armar nossas barracas sob laranjeiras e abacateiros.

O que vamos fazer agora, Luke? - perguntei. - Não podemos sair por aí e dizer "Olá, viemos até aqui para roubar a toninha branca. Vocês se incomodam de fazer as malas dela?"

Vamos primeiro dar uma olhada. Tenho um plano preliminar. Mas precisamos estar preparados. Antes de mais nada, vamos reco­nhecer o terreno. Deve haver um guarda noturno, algum babaca para vigiar e garantir que as crianças não entrem de fininho durante a noite para tentar pescar o bicho com um caniço.

O que vamos fazer com o guarda? - indagou Savannah.

Não quero ser eu a matá-lo - retrucou Luke calmamente. - Que tal vocês dois?

O quê? Você perdeu a cabeça? - perguntei.

Isso é apenas um plano para um caso de emergência.

Se for assim, não conte conosco, Luke - declarou Savannah.

Ora, eu só estava brincando. Aqui tem ainda uma baleia assas­sina presa. Podemos tirá-la de lá também.

Não viemos aqui para isso, mano. Conheço esse seu tom de voz. A baleia assassina está fora da jogada.

Talvez pudéssemos soltar todos os peixes desse maldito lugar. Promover uma verdadeira fuga em massa.

Por que a chamam baleia assassina? - perguntei.

Deve ser porque eles adoram surpreender - explicou Luke. Pega­mos o elevado que leva a Key Biscayne e passamos pelo Seaquarium à nossa direita. Luke diminuiu a velocidade da caminhonete ao entrar no estacionamento, observando a única luz que brilhava na sala do guarda. O homem veio até a janela e olhou para fora. Seu rosto emoldurado por um halo de luz elétrica parecia absurdo e sem feições. Uma cerca de 2,5 metros, encimada por arame farpado, impedia a entrada de intrusos. Atravessamos o estacionamento, espalhando cascalho à nossa passa­gem. Descobrimos que estávamos num zoológico ao passarmos por um certo lugar na estrada que cheirava como a jaula de César ampliada cem vezes. Um elefante guinchou em algum lugar na escuridão e Luke lhe respondeu com um ruído semelhante.

Não soou como um elefante, Luke - disse Savannah.

Pensei que estivesse bastante bom. Com que animal pareceu?

Com uma ostra peidando no óleo de cozinha - emendou mi­nha irmã.

Com uma gargalhada gostosa, Luke passou o braço pelos ombros de Savannah, apertando-a contra o peito. Naquela noite, dormimos num banco de jardim em Key Biscayne. O sol já estava alto quando acordamos na manhã seguinte. Juntamos nossos pertences e fomos fazer uma visita ao Seaquarium.

Pagamos os ingressos e passamos pela catraca. Durante a primei­ra meia hora, demos a volta no parque, seguindo a parábola formada pela cerca e o feio topete de arame farpado que a coroava. Quando estávamos ao lado de um grupo de palmeiras contíguo ao estaciona­mento, Luke comentou:

Vou trazer a caminhonete até essas árvores e cortar um buraco na cerca bem aqui.

E se nos pegarem? - perguntei.

Somos simples estudantes de Colleton e viemos libertar Snow porque fomos desafiados pelos colegas. Vamos agir como caipiras e fingir que a coisa mais insolente que já fizemos foi cuspir sementes de melancia nos lençóis pendurados no varal.

O guarda do portão estava armado - informou Savannah.

Eu sei, meu bem, mas nenhum guarda vai atirar em nós.

Como é que você sabe?

Porque Tolitha me deu um vidro de pílulas para dormir. Aque­las que ela chama de diabinhos vermelhos.

Então vamos mandar o guarda dizer "ah" e depois enfiar uma pílula na boca dele? - perguntei, temendo que o plano de Luke se mostrasse falho na hora da execução.

Ainda não pensei nisso, irmãozinho. Acho que descobri o lugar onde abrir o buraco.

E como vamos tirar Snow da água?

Do mesmo modo. Com pílulas para dormir.

Estou vendo que vai ser uma barbada. Pulamos na água, nada­mos até cansar, tentando agarrar uma toninha que os especialistas leva­ram um mês para pegar quando tinham um equipamento completo. Quando a pegarmos, enfiaremos algumas pílulas entre seus lábios. Ex­celente plano, Luke!

Muitas pílulas, Tom. Precisamos ter certeza de que Snow ficará completamente dopada.

Vai ser a primeira toninha da História a morrer de overdose de drogas - ironizou Savannah.

Não. Imagino que Snow pese mais ou menos 180 quilos. Tolitha pesa 45 e toma pílula todas as noites. Vamos dar a Snow uns quatro ou cinco comprimidos.

Onde já se viu toninhas tomando remédio para dormir, Luke? Tom é que está certo.

Acontece que eu ouvi falar em toninhas comendo peixe. Se esse peixe estiver cheio de soníferos, imagino que a toninha estará pronta para umas belas horas de sono.

As toninhas dormem? - perguntei, desconfiado.

Não sei - respondeu Luke. - Vamos descobrir muita coisa a respeito de toninhas nessa pequena expedição.

E se não funcionar, Luke? - indagou Savannah. Ele deu de ombros.

Não tem problema. Pelo menos, tentamos fazer alguma coisa. Já nos divertimos bastante até agora, não? Está todo mundo em Colleton chorando porque perderam a toninha e nós aqui em Miami planejando sua fuga. Teremos o que contar para nossos filhos. Se con­seguirmos tirar Snow daqui, haverá desfiles, confetes e passeios em conversíveis. Vamos falar sobre isso até morrer. Mas, em primeiro lu­gar, temos de visualizar. Nenhum de vocês fez isso até agora. E é muito importante. Vou ajudá-los. Fechem os olhos...

Savannah e eu fechamos os olhos. Então Luke continuou:

Muito bem. Tom e eu estamos com a toninha na água. Nós a levamos até o lugar em que Savannah espera com a padiola. Coloca­mos cordas em torno de Snow, a tiramos delicadamente da água e a amarramos à padiola. O guarda está dormindo porque drogamos a Pepsi dele duas horas antes. E aí, conseguem visualizar? Colocamos a toni­nha no caminhão e damos o fora. Agora, o mais importante. Escutem bem. Estamos sobre a rampa dos barcos em Colleton; desamarramos Snow e a libertamos no rio onde nasceu e ao qual pertence. Conse­guem enxergar? Conseguem enxergar tudo?

Com o eco daquela voz hipnótica, nós dois abrimos os olhos e fizemos que sim com a cabeça, um para o outro. Havíamos visua­lizado tudo. Continuamos nossa caminhada pelo parque e vimos o Amberjack atracado no lado sul do Seaquarium. Não havia sinal da tripulação pelos arredores, mas evitamos qualquer aproximação com o barco. Voltando em direção à casa da toninha, atravessamos uma ponte de madeira suspensa sobre um fosso profundo, onde enormes tubarões se moviam com indolência num círculo infinito. Nadavam a cerca de 15 metros um do outro, porém não parecia que desejassem fazer ultrapassagens. Observamos um tubarão-martelo realizar sua passagem letárgica sob nós enquanto a multidão assistia maravilhada. O movimento das caudas era monótono, a liberdade de movimentos tão proibida que pareciam privados de toda a sua grandeza feroz.

Sob os olhares de turistas, eram tão dóceis e inócuos quanto qualquer peixinho de aquário.

Seguimos a multidão grande e bem-humorada, quase todos usando bermudas e sandálias de borracha, rumo ao anfiteatro onde a baleia assas­sina, Dreadnought, se apresentaria ao meio-dia. A partir daquele breve contato com a Flórida, o estado nos parecia um lugar em que multidões amigáveis se encontravam para exibir braços brancos deselegantes e qui­lômetros de pernas depiladas e sequiosas de um pouco de sol. O calor ressecara a grama, tornando-a de um verde muito pálido, e os sistemas automáticos de irrigação trabalhavam nos canteiros, fora dos caminhos de cascalho, enquanto os beija-flores de papo vermelho zumbiam entre os lírios. Ao chegarmos perto do anfiteatro, vimos um cartaz que dizia: Visite a toninha Moby na hora em que é alimentada.

- Acho que eu vou - disse Luke.

Os turistas falavam sobre a toninha branca enquanto se acomoda­vam nas fileiras de assentos que rodeavam o vasto tanque de 8 milhões de litros de água. Quando estávamos todos sentados, um rapaz loiro, ombros cor de cobre, caminhou por uma prancha de madeira que se projetava sobre a água e acenou para a multidão. Uma apresentadora contou a história de Dreadnought. A baleia assassina fora capturada no meio de um bando de 12 baleias perto do Queen Charlotte Straight, ao largo da ilha Vancouver, e dali despachada para Miami num vôo especial. O Seaquarium pagara 60 mil dólares pela compra e necessitara de um ano para treiná-la. Ela não podia ser incorporada ao show das toninhas porque estas eram a alimentação favorita da Orcinus orca.

Enquanto a apresentadora falava, um portão se abriu discreta­mente sob as águas e a passagem de algo assustador remexeu suas profundezas opacas. O rapaz bronzeado olhou atentamente para bai­xo, vendo algo que subia em sua direção. A prancha ficava 6 metros acima do nível da água. A intensidade com que se concentrava era visível através das inúmeras rugas em sua testa. Então ele se inclinou para a frente segurando uma cavala pela cauda. Girou o peixe no ar e, como resposta, a água se tornou subitamente agitada, com ondas que partiam do centro do aquário. Em seguida, a baleia foi até o fundo do tanque, mantendo a velocidade e o ímpeto, e saiu da água como um edifício que tivesse sido lançado das profundezas. Mas arrebatou o peixe delicadamente, como uma menina aceitando uma pastilha de hortelã. Depois, caiu de volta ao tanque, fazendo um longo arco. Sua sombra bloqueou o sol por um momento e, ao atingir a água, foi como se uma árvore tivesse caído do alto de um morro dentro do mar.

Uma onda poderosa quebrou sobre a amurada e encharcou a multidão, da primeira até a vigésima terceira fileira. Podia-se assistir à exibição de Dreadnought e tomar banho ao mesmo tempo, com a água salgada escorrendo pelos cabelos e cheirando a baleia.

Enquanto o animal fazia novo circuito em torno da piscina, prepa­rando-se para outro pulo em que mostraria sua beleza bicolor ao sol da Flórida, elevando-se até os fortes aromas de cítricos e de bougainvilleas, vimos sua imagem impressionante dentro da água e a iridescência sur­preendente de sua cabeça negra; sua cor lembrava um par de sapatos preto e branco. A nadadeira dorsal estava colocada como uma pirâmide negra em suas costas e se movia pela água como uma lâmina passando pelo náilon. As linhas de seu corpo eram simples e flexíveis; os dentes tinham o tamanho de uma lâmpada. Eu nunca vira tanto poder contido e sugerido em um só corpo.

Dreadnought saltou mais uma vez e tocou um sino suspenso sobre a água. Em seguida, abriu a boca e deixou o rapaz loiro escovar-lhe os den­tes com uma vassoura. Para a cena final, saiu da água a toda velocidade, a cauda brilhando e espalhando centenas de litros de água salgada; agarrou uma corda com os dentes e hasteou uma bandeira americana no alto de um mastro que ficava acima do aquário. Sempre que a baleia atingia o apogeu de um de seus saltos ágeis, a multidão aplaudia e ela voltava a mergulhar na água, cobrindo-nos mais uma vez com uma onda prodigiosa.

Puxa, isso é que é animal! - exclamou Luke.

Você imagina o que é ser caçado por uma baleia assassina? - perguntou Savannah.

Se esse bicho estiver atrás de você, Savannah, só há uma coisa a fazer. Submeter-se. Você teria de se render ao destino.

Eu adoraria ver uma baleia como esta em Colleton - comen­tei, rindo.

É assim que deveriam executar os criminosos - declarou Luke de repente. - Bastaria dar-lhes um calção de banho, enfiar algumas cavalas dentro da sunga e deixá-los atravessar o tanque a nado. Se con­seguissem, teriam a liberdade. Se não, diminuiriam os gastos de ali­mentação do Seaquarium.

Bastante humanitário, Luke - ironizou Savannah.

Eu falo sobre os criminosos realmente maus. Os assassinos de grandes massas, tipo Hitler. Os verdadeiros bandidos do planeta. Não me refiro aos bandidos pés-de-chinelo.

Que morte horrível - disse eu, observando a baleia saltar por um arco de fogo e apagar as chamas com a água que se espalhou à sua descida.

Ora, poderiam fazer isso como parte do espetáculo. Papai seria ideal para dirigi-lo. A baleia assassina pularia e tocaria o sino; como recompensa, comeria um criminoso.

A última queda livre de Dreadnought cobriu-nos com uma onda colossal. Juntamo-nos a centenas de turistas encharcados e nos dirigi­mos para a casa da toninha. Depois da baleia assassina, a toninha pare­cia diminuta e irrelevante. Seu espetáculo, apesar de muito mais animado e completo, pareceu insignificante depois da atuação de Dreadnought. Eram truques excitantes, claro, mas sem a grandio­sidade vista nas baleias. No entanto, constituíam um grupo homogê­neo e animado ao pularem fora da água como balas de canhão, saltando 6 metros no ar, exibindo corpos bonitos, da cor do jade. Com uma espécie de sorriso perpétuo nos rostos, emprestavam sinceridade àquelas exibições bem-humoradas. Jogaram beisebol, boliche, dança­ram sobre as próprias caudas em todo o comprimento do aquário, atiraram bolas por aros de metal e tiraram cigarros acesos da boca do treinador.

Encontramos Carolina Snow em uma piscina fechada, isolada da companhia das outras toninhas. Uma multidão curiosa circundava o tanque em que ela nadava de um lado para o outro, desorientada e algo aborrecida. Ainda não aprendera um único truque, mas com cer­teza estava valendo a pena mantê-la como curiosidade. O apresenta­dor descreveu sua captura dando a entender que a aventura fora mais perigosa e exótica que a descoberta da Passagem Noroeste. Às três horas, vimos o tratador levar um balde de peixes para alimentá-la. Quando ele jogou um dos peixes no lado oposto ao que Snow estava, ela se voltou e, num movimento de surpreendente delicadeza, acele­rou através da piscina e pegou-o na superfície da água. Escutamos quando os turistas tentaram descrevê-la. Nós, seus salvadores, fica­mos cheios de orgulho ao ouvir estranhos falarem sobre sua beleza pálida e luminosa.

Enquanto a toninha era alimentada, percebemos que o tratador alternava os lugares onde atirava os peixes - aquilo era parte do difí­cil treinamento de Snow. Uma vez que ela adquirisse ritmo na tra­vessia da piscina, ele invertia o procedimento, trazendo-a cada vez mais perto, até que o animal saltasse para agarrar o último peixe de sua mão. Vibrando com aquele homem paciente e habilidoso, a multidão aplaudiu ao ver a toninha branca saltar para fora da água. Quando ele pôs o último peixe na boca de Snow, pareceu-me estar vendo um padre administrando a eucaristia a uma jovem com véu na cabeça.

Precisamos ir ao mercado de peixes - sussurrou Luke. - Savannah, entre em contato com o guarda noturno antes da hora do fechamento. Aqui só fecha às oito horas.

Que bom! Eu sempre gostei do papel de vilã sedutora - retru­cou ela.

Você não vai seduzir ninguém. Basta tentar fazer amizade com ele. Em seguida, vai fazer o filho-da-puta dormir.

 

Em coconut Grove, compramos meia dúzia de merluzas e um fran­go frito. Quando retornamos ao Seaquarium, faltava meia hora para o fechamento. Encontramos Savannah conversando com o guarda que acabava de chegar à sala da segurança para seu turno de trabalho.

Irmãos - disse ela -, quero apresentar o homem mais simpáti­co que já vi.

Ela está incomodando o senhor? - replicou Luke. - Savannah está em seu dia de licença no hospício.

Incomodando? De jeito nenhum. Não é sempre que converso com uma moça tão bonita. Sou o cara que geralmente fica aqui quan­do todos vão para casa.

O sr. Beavers é de Nova York - informou Savannah.

O senhor aceita um pouco de frango frito? - ofereceu meu irmão.

Se não se incomodar, aceito um pedaço. - E o guarda pegou uma coxa.

Que tal uma Pepsi?

Sou um homem que só toma café... Ei, está chegando a hora de fechar... Vocês precisam ir embora. Esse emprego deixa a gente muito só. É a única desvantagem. - O sr. Beavers tocou a buzina de aviso, seguida imediatamente por uma mensagem gravada, pedindo que os visitantes deixassem o Seaquarium e informando a hora de abertura no dia seguinte. Depois, o guarda saiu à porta da sala e tocou um apito, andando entre o anfiteatro da baleia assassina e a casa das toninhas. Savannah encheu a xícara dele de café, jogou dentro duas pílulas para dormir e mexeu com a colher até que os comprimidos se dissolvessem por completo.

Luke e eu seguimos o sr. Beavers, que, ao longo do parque, avisava aos turistas para voltarem no dia seguinte. Diante do tanque em que Snow se movia incansavelmente de um lado para outro, o homem comentou:

É uma aberração da natureza. Mas uma linda aberração. - Ao se voltar, ele avistou um adolescente atirando um invólucro de picolé no gramado. - Meu jovem, na grama é um crime contra quem criou esta terra verde.

Enquanto o guarda caminhava em direção ao menino, Luke jo­gou uma merluza dentro do aquário de Carolina Snow. A toninha passou duas vezes por ela antes de abocanhá-la.

Quantas pílulas você colocou nesse peixe? - perguntei, baixinho.

O suficiente para matar qualquer um de nós - sussurrou ele. Pouco depois, ao sairmos do parque, deixamos o sr. Beavers bebe­ricando um café. Durante o trajeto até a caminhonete, murmurei para Savannah:

Belo trabalho, Mata Hari.

Luke, que vinha atrás de nós, comentou:

Estou com calor. Que tal nadar um pouco em Key Biscayne?

A que horas vamos voltar para pegar Snow? - perguntei.

Lá pela meia noite...

 

A lua se elevava como uma pálida marca-d'água contra o céu do les­te, enquanto o sol ainda se punha em um Atlântico tão diferente da­quele que banhava nossa parte da Costa Leste, que não parecia o mesmo. O mar na Flórida, muito limpo e azul, permitia que eu visse meus próprios pés ao caminhar com água na altura do peito, algo que jamais acontecera na Carolina.

Essa água até parece outra coisa - disse Luke, expressando exa­tamente o que eu sentia.

O mar sempre fora feminino para mim, e a Flórida suavizara suas bordas e domesticara com limpidez as profundezas azuladas. O mistério daquela terra se aprofundara quando comemos mangas pela primeira vez em nossas vidas. A fruta tinha um sabor diferente, como se tivesse merecido todos os raios do sol. Éramos estranhos a um mar em que podíamos confiar, cujas marés eram imperceptíveis e delicadas, cujas águas tinham a transparência da água-de-colônia e se mostravam translúcidas e calmas sob as palmeiras. A lua emitiu filamentos de prata, que atravessaram uma centena de quilômetros sobre a água antes de se aninharem nas tranças do cabelo de Savannah. Então, Luke se levantou e tirou o relógio do bolso do jeans.

Se formos pegos esta noite - declarou -, deixem que eu fale. Meti vocês nessa história e é minha responsabilidade tirá-los se tiver­mos problemas. Agora, vamos rezar para que o sr. Beavers esteja con­tando carneirinhos.

 

Pela janela da salinha do guarda, vimos o sr. Beavers com a cabeça sobre a mesa dormindo profundamente. Luke deu marcha à ré na ca­minhonete até o pomar que ladeava a cerca. Trabalhando rapidamen­te, fez nela um grande buraco, usando cortadores de arames. Depois de entrar por ali, caminhamos pelas sombras, passando sobre o fosso de tubarões que se moviam pela água num circuito infinito. Estáva­mos correndo pelo anfiteatro quando ouvimos o barulho da respira­ção da baleia assassina.

Esperem um minuto - pediu Luke, tirando da sacola um dos peixes reservados para Snow, no caso de que ela quisesse comer algo a caminho do norte.

Não - retruquei, alarmado. - Não temos tempo para nenhuma bobagem.

Luke, entretanto, já estava subindo a escada do anfiteatro. Assim, Savannah e eu não tivemos outra escolha senão segui-lo. A luz do luar, vimos meu irmão alcançar a plataforma e a grande nadadeira apare­cer sobre a água abaixo dele. Em seguida, Luke caminhou até a ponta da prancha e, imitando os gestos do treinador que tínhamos visto na­quele dia, fez um movimento circular com o braço. Dreadnougth mergulhou para o fundo do tanque fazendo com que a água batesse nas laterais, ao mesmo tempo em que reunia forças para saltar. Com a merluza na mão direita, Luke se inclinou sobre a água.

A baleia precipitou-se para o alto e tirou-lhe a merluza da mão, quase sem tocar em seus dedos. Então, caiu de forma majestosa, mos­trando a barriga branca e encharcando 23 fileiras de assentos ao entrar novamente na água, com uma imensa onda.

Burro, burro, burro - murmurei quando Luke se juntou a nós.

Lindo, lindo, lindo - replicou Savannah, animada.

Corremos ao Amberjack e dali até o depósito no qual a tripulação guardava o que iríamos precisar. Luke pegou as cordas e a padiola. Jogamos os colchões de espuma para Savannah, que os agarrou e le­vou para a caminhonete, a fim de ajeitá-los na carroceria. Luke e eu seguimos para a casa das toninhas, onde ele usou o cortador de arame para entrar na área do tanque de Snow.

Chegamos bem a tempo. O animal estava quase imóvel na parte mais rasa e talvez tivesse se afogado se demorássemos mais uma hora. Quando entramos na água, estava tão drogada que nem se mexeu. Nós a agarramos por baixo da cabeça e da barriga e a levamos para o lado da piscina onde havíamos deixado a padiola. Sua brancura fazia com que minha mão parecesse marrom em contato com seu corpo.

Snow emitiu um som suave, quase humano, quando a fizemos flutuar pela piscina. Com a volta de Savannah, nós três passamos a padiola sob a toninha dentro da água e a amarramos com as cordas em três pontos.

Mais uma vez, passamos embaixo das palmeiras e laranjeiras, Luke e eu segurando a padiola como oficiais médicos em uma zona de guerra, mantendo-a baixa e andando rapidamente. Cruzamos a abertura na cerca arrebentada, desamarramos a toninha e rolamos delicadamente seu corpo sobre os colchões. Savannah e eu derra­mamos sobre ela a água de Key Biscayne que havíamos recolhido em baldes e na geladeira portátil. Luke fechou a parte traseira da caminhonete, correu para a cabine, ligou o motor e saiu do esta­cionamento, dirigindo pelo elevado em direção às luzes de Miami. Acho que essa foi a hora em que estivemos mais próximos de ser agarrados. Porque, ao descer aquela estrada praticamente deserta, os três irmãos Wingo da Carolina do Sul gritavam e gritavam sem parar.

Em pouco tempo, deixamos Miami para sempre. Luke manti­nha o acelerador pisado até o fundo e o ar cálido corria por nossos cabelos, enquanto cada quilômetro que passava nos levava mais per­to da fronteira da Geórgia. No início, a respiração de Snow estava agitada, como papel sendo rasgado, e uma ou duas vezes pareceu parar por completo. Então soprei em seu orifício de expiração, ao que ela reagiu com rapidez, embora o efeito das pílulas só diminuís­se quando paramos para reabastecer em Daytona Beach. A partir dali o animal se revigorou e permaneceu animado pelo restante da viagem.

Depois de completar o tanque, Luke dirigiu a caminhonete para a praia. Savannah e eu enchemos os baldes e a geladeira portátil com água salgada e voltamos à estrada.

- Estamos conseguindo. Estamos conseguindo! - gritou meu ir­mão na janela traseira. - Daqui a cinco horas estaremos em casa.

Molhamos a toninha com água salgada e a massageamos da cabe­ça até a cauda para manter sua circulação. Falamos com ela, usando aquelas frases carinhosas que as crianças geralmente usam com os cachorros. Snow era flexível, maleável, e sua pele, acetinada. Canta­mos cantigas de ninar, recitamos poemas infantis e sussurramos que a estávamos levando para casa e que ela jamais voltaria a comer peixes mortos. Quando entramos na Geórgia, Savannah e eu dançamos na traseira da caminhonete e Luke teve de diminuir a velocidade porque achou que acabaríamos caindo.

Ao chegarmos a Midway, na Geórgia, um patrulheiro rodoviário parou meu irmão por estar dirigindo 65 quilômetros acima do limite de velocidade. Luke sussurrou através da janela traseira:

Cubram a cabeça de Snow com um desses colchões.

O sol já se havia levantado. O patrulheiro, jovem e magro como uma lâmina, tinha a arrogância enlouquecedora de um recruta. Mas Luke saltou da cabine sem demonstrar nenhum temor.

Senhor guarda - disse, enquanto Savannah e eu cobríamos a cabeça de Snow -, sinto muito, sinceramente. Eu estava excitado por ter pego esse tubarão e precisava levá-lo rapidamente para que meu pai o visse ainda vivo.

O patrulheiro veio até a camionete e assobiou ao olhar para dentro.

É bem grande - comentou. - Mas isso não é motivo para você correr tanto.

Entenda bem, meu senhor. Esse aí é um recorde mundial. E o pesquei com vara e carretilha. É um tubarão branco, o verdadeiro comedor de gente. Pesquei perto do píer da ilha Saint Simons.

Que isca você usou?

Camarão vivo, por incrível que pareça. No ano passado, pega­ram um tubarão branco na Flórida e encontraram uma bota e a tíbia de um homem no estômago do bicho.

Serei obrigado a multá-lo, rapaz.

É verdade... Eu corria demais por estar muito excitado. Você já pescou um peixe tão grande?

Eu sou de Marietta. Uma vez, peguei um peixe de 6 quilos no lago Lanier.

Então sabe exatamente como eu me sinto. Bem, vou lhe mos­trar os dentes do bicho. São como lâminas de barbear. Meus irmãos estão mortos de tanto segurar esse miserável. Deixe o guarda dar uma olhada, Tom.

Obrigado, não gosto de ver tubarões. Agora, vá embora e dimi­nua a velocidade. Você tem todo o direito de estar eufórico. O peixe que pesquei foi o maior que saiu do lago Lanier naquele dia. Mas meu gato o comeu antes que eu o mostrasse a papai.

Bem, o senhor tem certeza de que não quer ver os dentes dele? É uma boca poderosa.

Eu preferiria estar dirigindo a ficar sentado sobre esse mons­tro - disse o patrulheiro a Savannah e a mim enquanto olhava para seu carro.

 

Minha mãe estava pendurando roupas no varal quando chegamos pela estrada de terra. Luke deu algumas voltas triunfantes no grama­do e parou a caminhonete. Mamãe veio até nós fazendo um peque­no sapateado de alegria pela grama, com os braços levantados. Luke levou o carro em marcha à ré até o mar e então rolamos a toninha outra vez sobre a padiola. Em seguida, entramos todos na maré alta, indo em direção à parte mais funda. Seguramos Snow nos braços, deixando-a acostumar-se com o rio. Fizemos com que flutuasse so­zinha, mas o animal parecia desequilibrado e inseguro. Luke segurou-lhe a cabeça sobre a água até que senti a cauda poderosa abanando. Então Snow começou a nadar vagarosa e hesitante. Du­rante 15 minutos, pareceu estar morrendo. Era doloroso vê-la sofrer. Ficamos parados no desembarcadouro, rezando por ela, minha mãe puxando um rosário sem contas. A toninha lutava para sobreviver, tinha dificuldade para respirar e o senso de equilíbrio e de ritmo aparentemente não funcionava. Logo, porém, tudo mudou perante nossos olhos. O animal mergulhou, demonstrando vigor e elegân­cia. Em seguida, voltou à tona após um longo minuto, já a 200 metros de distância.

Ela conseguiu! - exclamou Luke. E nós nos juntamos, abraçan­do uns aos outros. Eu estava exausto, suado, faminto, mas nunca me sentira tão bem em toda minha vida.

Snow veio à tona mais uma vez e, voltando-se, passou por nós no desembarcadouro. Aplaudimos, gritamos e choramos. E ensaiamos uma nova dança no cais flutuante da ilha mais linda do mundo, no melhor, realmente no melhor dia da vida de Tom Wingo.

 

Quando Benji Washington começou a freqüentar a Escola Secundária de Colleton, as equipes de televisão de Charleston e Columbia registra­ram o momento exato em que ele desceu do Chevrolet verde-lima dos pais e iniciou sua caminhada solene em direção a quinhentos estudantes brancos que o observavam em silêncio. Naquele dia, a atmosfera da escola era alienada, perigosa e tensa. Os corredores estavam magnetizados como o ar marítimo antes do furacão. O ódio perambulava por todas as salas. A palavra negrinho aparecia em grafites raivosos, feitos às pressas, em todas as classes em que o aluno negro teria aulas, até que os professores, nervo­sos e sem graça, entrassem e apagassem com rápidas passadas do apagador. Em cada sala, Benji escolheu a última carteira próxima à janela e passou a maior parte do tempo fitando impassivelmente o rio. As cartei­ras ao redor ficaram vazias, uma zona proibida em que nenhum aluno branco poderia ou queria entrar. Os boatos correram e se fortaleceram no banheiro masculino, onde os meninos mais durões fumavam escondidos no intervalo das aulas. Ouvi um deles dizer que dera um empurrão no negrinho na fila do refeitório; outro alegava tê-lo cutucado com um gar­fo. Ele não reagira a nenhuma das provocações, como se não tivesse emoções, como se tivesse sido treinado para nada sentir. Planos para levá- lo sozinho para trás do ginásio de esportes foram murmurados pelo pá­tio. Correntes e bastões apareceram nos armários do corredor principal. Havia boato de que alguém tinha uma arma. E Oscar Woodland, jogador do time de futebol, jurou que o mataria antes que terminasse o ano letivo. Percebiam-se canivetes automáticos delineados nos bolsos traseiros dos alunos encrenqueiros, que usavam brilhantina no cabelo. Jamais tive tanto medo em minha vida.

Meu plano era simples, como o são todos os meus planos. Eu iria ignorar a existência de Benji Washington, seguir meu próprio cami­nho e perambular indiferente por entre o público maldoso que se le­vantara na escola secundária. Podia falar mal dos negrinhos com os melhores entre eles e desfiar um glossário de piadas sobre negros para entreter os colegas, caso minha lealdade à tribo viesse a ser questiona­da. Porém, o racismo brotava mais de minha necessidade de ser igual aos outros do que de um credo sério ou um sistema de vida. Seria capaz de odiar com ardor, desde que tivesse certeza de que esse ódio ecoaria nos sentimentos da maioria. Sem possuir nenhum tipo de co­ragem moral, achava isso ótimo para mim. Por azar, minha irmã gê­mea não partilhava do mesmo modo de pensar.

Só descobri que Benji Washington estava em minha classe de inglês quando vi o grupo sombrio que o seguira durante todo o dia reunir-se à frente da porta da sala. Olhei em torno, à procura do professor, que não estava em nenhum lugar a vista. Abri caminho por entre o pessoal como um xerife passando por uma multidão pronta a linchar alguém num filme vagabundo de faroeste.

Benji olhava pela janela, sentado na última e abandonada carteira da classe. Oscar Woodland estava no batente da janela, murmurando algo para ele. Acomodei-me na primeira fileira e fingi escrever num caderno. Ouvi Oscar dizer:

Você é um negrinho feio. Ouviu, menino? Um negrinho de merda. Mas isso é natural. Todos os negrinhos são feios, não são?

Não vi Savannah entrar na classe e só soube que ela estava lá ao ouvir sua voz atrás de mim.

Alô, Benji - cumprimentou com sua voz mais eloqüente. - Meu nome é Savannah Wingo. Bem-vindo à Escola Secundária de Colleton. - E lhe estendeu a mão.

O menino, que sem sombra de dúvida era a pessoa mais perplexa daquela sala, apertou sua mão com relutância.

Ela o tocou - gritou Lizzie Thompson, perto da porta.

Se tiver algum problema, conte para mim, Benji - continuou Savannah. - Se precisar de ajuda, basta me chamar. Esses caras não são tão maus quanto parecem. Vão se acostumar com sua presença em alguns dias. Essa carteira está ocupada?

Apoiei a cabeça sobre os braços e gemi baixinho.

Durante o dia inteiro, as carteiras ao redor de mim ficam vazias - esclareceu Benji, olhando outra vez para o rio.

Agora, uma está ocupada - declarou minha irmã enquanto co­locava os livros na carteira ao lado dele.

Ela se sentou ao lado do negrinho - disse Oscar, em altos bra­dos. - Não posso acreditar!

Então, Savannah chamou do fim da classe:

Ei, Tom. Traga seus livros para cá. Estou vendo você. Sou eu, Savannah. Sua irmãzinha querida. Venha para cá.

Furioso, sabendo que não adiantava discutir com ela na frente de todo mundo, levei meus livros para o fundo da sala enquanto a turma me observava.

Eu não deixaria uma menina falar comigo desse jeito - provo­cou Oscar.

Nenhuma menina falaria com você, seu bobo - respondeu Savannah como se estivesse dando um tiro. - Porque você é burro e tem mais espinhas na cara do que camarões no rio.

Mas você não se incomoda em conversar com negrinhos, hein? - replicou o menino.

Por que você não vai ao departamento de orientação educacio­nal e não faz um teste de QI para ver qual é o resultado, idiota? - Savannah levantou-se de sua cadeira.

Não se preocupe comigo, Savannah - disse Benji suavemente. - Eu sabia que ia ser assim.

Seu negrinho, você ainda não sabe como vai ser! - exclamou Oscar.

Por que você não arruma um emprego de vendedor de espi­nhas para adolescentes, Oscar? - retrucou minha irmã, aproximando-se dele com os punhos cerrados.

Você é uma puta que gosta de negrinhos!

Aquela foi a minha deixa. Entrei com cuidado na arena, temeroso e rezando pela chegada do sr. Thorpe, que era notório por se atrasar na sala dos professores.

Não fale assim com minha irmã, Oscar - eu disse sem firmeza, mais parecendo um eunuco pós-operado.

E o que você vai fazer, Wingo? - resmungou ele, agradecido por ter finalmente um antagonista masculino.

Eu conto a meu irmão Luke.

Você já é um bocado grandinho para estar se confiando nos outros!

Você é muito maior do que eu, Oscar. Eu levaria desvantagem se nós lutássemos. De qualquer modo, Luke viria atrás de você e lhe quebraria a cara. Só estou pulando o degrau em que você me daria uma surra.

Então diga à sua irmã tagarela para calar a boca!

Cale a boca, Savannah - disse eu.

Dane-se - replicou ela docemente.

Eu lhe disse, Oscar.

Nós não gostamos que as meninas brancas conversem com negrinhos - continuou o menino.

Eu converso com quem bem entender, meu querido.

Você sabe que não adianta dizer nada a ela, Oscar - comentei.

Venha cá, Tom - chamou Savannah.

Estou ocupado, conversando com meu amigo Oscar. - E eu sorri para ele.

Venha cá! - repetiu minha irmã.

Caminhei até ela, sem entusiasmo, e apertei a mão de Benji Washington.

Ele segurou a mão do negrinho - uivou Lizzie Thompson per­to da porta. - Prefiro morrer a tocar num negrinho!

Você prefere morrer a pensar, Lizzie - replicou Savannah. Em seguida, voltou-se para mim. - Puxe aquela carteira para perto de Benji. É aí que você vai se sentar.

Estou lá na frente, Savannah. Você não vai dizer onde devo me sentar. E não estou a fim de criar caso com todos os caipiras da escola só porque você leu Anne Frank quando era pequena.

Puxe aquela carteira, Tom - murmurou ela entredentes. - Não estou brincando.

Não vou me sentar ao lado de Benji. E você pode me envergo­nhar quanto quiser.

Você vai sair para jogar futebol, Benji? - perguntou ela, voltan­do as costas para mim.

Sim - confirmou ele.

Nós vamos te matar no campo, menino - ameaçou Oscar.

Onde está a droga do professor? - perguntei, olhando para a porta.

Você não vai matá-lo coisa nenhuma, Oscar - zombou Savannah.

Você pode ser forte, mas Tom disse que você é titica de galinha dentro do campo.

Você disse isso, Wingo?

Não, claro que não - menti. Oscar era do tipo marginal, que não sabia evitar que o temperamento violento e anti-social interfe­risse no esporte. As escolas sulistas estavam repletas de malandros de rua e de manejadores de canivetes que não jogavam de maneira limpa.

Tom vai tomar conta de você no treino, Benji - anunciou Savannah.

Estarei muito ocupado cuidando de mim mesmo - respondi. Savannah agarrou-me os pulsos, ferindo-os com as unhas e tirando sangue em quatro lugares diferentes.

Sim, você vai, irmão.

E então, aconteceu: Oscar aceitou o desafio.

Ela é uma vagabunda, Wingo. Sua irmã é uma vagabunda que gosta de negrinhos.

Retire o que disse, Woodland.

De jeito nenhum. E se quiser fazer alguma coisa a respeito, en­contre-me atrás da sala de música depois das aulas.

Ele estará lá - afirmou minha irmã. - E vai fazer picadinho de você, Oscar.

Savannah! - censurei.

Não vai sobrar muita coisa de você para alimentar um caran­guejo - continuou ela. - Ei, Lizzie, corra e chame o pronto-socorro. Diga que Oscar vai precisar de uma cirurgia de emergência no rosto hoje à tarde.

Ele não é de lutar. Vejo pela cara dele que está se cagando de medo. - Oscar avaliou-me corretamente.

Ele e Luke se tornaram mestres em caratê. Faixa preta ainda por cima. Ele quebra tábuas com as mãos, Oscar. Dê uma olhada nes­sas mãos. Estão registradas oficialmente. Eis por que ele não quer lu­tar. Pode ir para a cadeia se bater em você com elas.

Levantei as mãos mortíferas e as observei com ar pensativo, como se estivesse avaliando duas pistolas de duelo.

Isso é como judô? - perguntou Oscar, desconfiado.

O judô aleija - disse Savannah. - Caratê mata. Tom aprendeu com um mestre em Savannah durante o verão. Um mestre oriental.

Negrinhos e orientais. Os Wingo ainda convivem com os brancos? Vejo você atrás da sala de música, Wingo. Leve suas mãos registradas.

 

Uma enorme multidão se reunia atrás da sala de música quando cheguei com minhas mãos registradas naquela tarde. Eu me concen­trava em respirar, dizendo a mim mesmo que me divertia e que senti­ria falta daquilo depois que Oscar me matasse. Quando fiz minha trêmula aparição, um súbito grito de encorajamento partiu da multi­dão. Savannah, comandando nove animadoras de torcida, veio então em minha direção. Cercado pelas meninas, caminhei até Oscar com dez grandes pompons agitando-se em torno de minha cabeça en­quanto as meninas iniciavam o hino da vitória da escola:

 

"Lutar, lutar, lutar por Colleton

Que a vitória nos faça corajosos

Lutaremos toda a noite com todas as nossas forças

Lutaremos pelo verde e dourado."

 

Nos olhos de Oscar brilhava a expressão mais brutal e fria que se possa imaginar. Ele estava rodeado por um grupo de filhos de camaroneiros, meninos que eu conhecia há muito tempo, todos com as mangas arregaçadas no alto dos braços e olhando para mim num círculo solidário, rostos sombrios e os lábios apertados. Luke estava parado em frente a Oscar. Caminhei na direção dele, os pompons se movendo comigo como um incansável mar de crisântemos. Eu espe­rara ser massacrado diante de apenas alguns meninos do rio e não contara com a atitude de minha irmã transformando meu assassinato numa concentração esportiva.

Ouvi dizer que você chamou minha irmã de puta, Woodland - questionou Luke.

Ela estava conversando com o negrinho - respondeu Oscar, olhando sobre os ombros de meu irmão, em direção a mim.

Ela não precisa de permissão para conversar com ninguém. Portanto, peça desculpas a minha irmã.

Eu sei qual é sua tática, Luke. - Oscar era cuidadoso e respeito­so com ele. - Você quer puxar briga comigo para que a bicha do seu irmãozinho possa fugir da parada.

Não. Tom vai bater em você. E se, por algum motivo, você o machucar, aí terá de lutar comigo e isso vai acabar com sua tarde. Quero que você peça desculpas a minha irmã por chamá-la de puta.

Desculpe tê-la chamado de puta que gosta de negrinhos, Savannah - gritou Oscar para a multidão. Os pompons estacaram e os meninos do rio riram nervosamente.

Quero um bom pedido de desculpas, Woodland. Algo sincero. Se não for assim, vou arrancar fora sua cabeça.

Desculpe aquilo que eu disse, Savannah - emendou o menino com voz humilde. - Sinto muito por ter dito aquilo.

Não achei nada sincero, Luke - declarei, num tom que inspira­va pena.

Você simplesmente não quer lutar - desafiou Oscar.

Quer que eu lute com ele, Tom? - perguntou Luke, fitando os olhos do outro.

Bem, posso esperar pela minha vez...

A luta é sua, Wingo - lembrou Artie Florence, um dos filhos de camaroneiros, olhando em minha direção.

Vou conversar um minuto com Tom - anunciou Luke. - De­pois, ele vai arrebentar sua bunda, Oscar.

Luke levou-me para longe dos outros, com o braço passado em torno de meu ombro direito. Savannah continuava com as amigas, dirigindo todos os seus movimentos, animando a torcida.

Tom - começou Luke -, você sabe quanto é rápido?

Você quer que eu fuja? - perguntei, incrédulo.

Não, estou falando de outra coisa. Você sabe quanto é rápido com as mãos?

O que você quer dizer com isso?

Oscar só vai te atingir se você cometer algum erro. Ele é forte, mas é lento. Mantenha-se longe, dance em torno dele. Divirta-se. Não se aproxime. Bata quando vir uma abertura e afaste-se de novo. Quan­do puder, soque os braços dele.

Os braços?

É. Quando os braços dele se cansam, eles caem. E vai ser difícil levantá-los. Quando perceber isso, aproxime-se.

Estou com medo, Luke.

Todo mundo tem medo numa luta. Ele também está com medo.

Ele não está nem com a metade do medo que eu estou sentin­do. Cadê o Earl Fodido Wren agora que preciso dele?

Você é rápido demais para perder essa parada. Não se deixe agarrar e procure não cair. Senão ele prende seus braços e mete a mão na sua cara.

Meu Deus... Posso dar um soco em Savannah, só um, antes de começar a luta? Foi ela que me meteu nisso. Por que diabos nasci na única família de Colleton que adora negros?

Pense nisso depois. Por enquanto, derrote Oscar Woodland. Mantenha-se longe porque ele bate forte.

O público afastou-se e abriu espaço assim que pisei na grama para enfrentar Oscar Woodland. Eu ia me arrebentar por causa da decisão da Suprema Corte de 1954, por causa da integração racial, por causa de Benji Washington e por causa da minha irmã tagarela. Sor­rindo, Oscar levantou os punhos e avançou para mim. O primeiro soco pegou-me com a guarda aberta. Foi um direto que quase atingiu meu queixo e me fez cambalear. Ele chegou mais perto, os punhos socando o ar, um uivo animal escapando de sua garganta enquanto me perseguia na grama.

Dance! - gritou Luke.

Fui para a esquerda, longe do alcance de sua terrível direita. Um soco passou de raspão em minha cabeça. Bloqueei outro com o braço. Girei em círculo, afastando-me, e durante três minutos saltei de um lado para o outro, percebendo a frustração crescente de meu adversário. Então, inconscientemente, passei a observá-lo. Seguindo com atenção seus movimentos, fitando seus olhos, descobria o momento exato em que ele ia me golpear. Ao contrário de mim, Oscar não fazia idéia de quando eu iria bater, já que até então eu sequer havia tentado atingi-lo.

Fique quieto e lute, seu titica de galinha - resmungou ele, ofegante.

Parei por um instante e esperei. Quando ele atacou, o esporte mu­dou e entrei num campo que conhecia e no qual era muito melhor. Afinal de contas, durante três anos, treinara contra quarterbacks de ti­mes adversários que avançavam sobre mim em movimentos disciplina­dos. Desviei-me do caminho de Oscar e, quando ele passou por mim, surpreendi-me dando-lhe um violento soco na orelha. O ímpeto da corrida levou-o ao chão. A multidão aplaudiu, enquanto as líderes de torcida, comandadas por Savannah, recomeçavam o hino da vitória.

Mas, em um instante, Oscar levantou-se furioso, e veio ao meu encontro. A respiração pesada demonstrava sua necessidade de termi­nar rapidamente aquela luta. Escapei de outros seis socos, ou, para ser mais explícito, simplesmente saí do caminho, dando voltas e saltando para trás. Então, passei a atingi-lo nos braços, usando toda minha for­ça contra seus pulsos e bíceps. Avancei de repente e esse movimento o surpreendeu e o fez retroceder; livrando-me de outra salva infrutífera contra meu rosto, procurei apoio no ruído da multidão enquanto continuava golpeando-lhe os braços.

Oscar acalmou-se um pouco e tentou se posicionar para que eu ficasse de costas para a parede. Selecionando os golpes com mais cuidado, atingiu- me com um direto sob o olho que me amorteceu o lado direito do rosto.

Dance! - Ao ouvir o grito de Luke, fingi que ia para a esquerda, mas fui para a direita. Nesse instante, ergui a mão direita e dei-lhe um lateral no rosto. Oscar cambaleou para trás e abaixou a guarda.

Agora! - comandou Luke.

Avancei com firmeza e comecei a atingi-lo com golpes de esquer­da. Woodland tentou proteger o rosto, mas não conseguiu. Seus bra­ços caíram ao longo do corpo enquanto o sangue escorria de seus lábios e do nariz. Quem o agredia era eu, embora essa atitude nada tivesse a ver comigo, por mais que eu sentisse o movimento de minha mão esquerda, a firmeza ao machucar o corpo do adversário. Então, Luke entrou em meu campo de visão e eu parei de lutar.

Caí de joelhos, chorando de alívio, de medo e por causa da dor que amortecia meu olho esquerdo.

Você se saiu muito bem, irmãozinho - murmurou Luke.

Nunca mais vou fazer isso - garanti, as lágrimas inundando meus olhos. - Odiei essa briga. Odiei por completo. Diga a Oscar que sinto muito.

Mais tarde você diz. Agora precisamos ir para o treino. Não lhe disse que você era rápido?

Savannah sacudiu um pompom franjado em meu rosto e per­guntou:

Pelo amor de Deus, o que aconteceu, Tom? Você venceu a luta.

Conheço Oscar desde que era pequeno.

Mesmo pequeno ele era idiota!

Não gostei dessa briga. - De repente, fiquei envergonhado ao perceber que sessenta pessoas me viam chorar.

Jogadores de futebol não choram - interveio Luke. - Vamos lá, precisamos ir para o treino.

 

Naquele dia, o primeiro treino terminou como sempre acontecia com o treinador Sams - com pequenas corridas de 50 metros. Os jo­gadores da defesa eram os primeiros, partindo do local da chegada em direção ao treinador que tocava o apito do outro lado do campo. Em seguida, foi a vez dos atacantes. Luke passou com facilidade à frente de seu grupo, enquanto eu me alinhava com os últimos jogadores e des­cobri que estava ao lado de Benji Washington.

Ouvi dizer que você é rápido - comentei. - Eu era o mais veloz do time no ano passado.

Era - respondeu ele.

Ao som do apito, pus-me a correr. Fiz uma boa largada e conti­nuei a toda velocidade, ouvindo as travas dos sapatos esportivos revol­vendo a terra atrás de mim. Avancei o mais rapidamente possível, com a confiança de um menino que sempre fora o vencedor, desde o pri­meiro dia da primeira série do colégio, mas Benji Washington me pas­sou pela esquerda e ganhou a corrida com uma vantagem de 5 metros.

Na prova seguinte, corri com a confiança de alguém que sabe que é o segundo mais veloz da classe. O treinador verificava seu cronôme­tro. No ano anterior, ele fora o membro da equipe que mais vociferara e o mais intransigente contra a integração racial. O cronômetro agora servia para alargar seus horizontes sociais. Benji percorria 35 metros em 4,6 segundos. Meu melhor tempo era 4,9, e isso com ventos de furacão às minhas costas. O apito tocou pelo campo mais uma vez e, novamente, parti a toda velocidade em direção ao treinador. De novo, Benji Washington me passou com uma elegância extraordinária e sem esforço, quase voando baixinho.

Aquele negrinho sabe correr - ouvi um dos jogadores comen­tar. Sua expressão era de admiração, não de malícia.

Houve dez corridas e Benji Washington ganhou todas elas. Terminei em segundo lugar dez vezes seguidas. Na hora que o treinador Sams so­prou o apito para que o time fosse ao vestiário, os sentimentos dos joga­dores em relação ao campeonato haviam mudado. Teríamos um bom time de futebol apenas com a volta dos veteranos do ano anterior. No entanto, agora contávamos com o ser humano mais veloz da Carolina do Sul no backfield. Foi quando comecei a pensar no campeonato estadual.

 

E o mês de setembro de 1961, na ilha Melrose, no ano mais profun­damente vivido de nossas vidas. Os camarões estão por toda parte e o barco de meu pai se aproxima do desembarcadouro todas as noites transbordando de peixes e camarões. É a melhor estação de pesca para ele desde 1956, e sua alegria revigorante e cheia de animação presta uma homenagem silenciosa à generosidade do mar. Com o preço do camarão fixado em meio dólar por quilo, ele age como um ricaço ao verificar as balanças rangedoras do desembarcadouro dos camarões. A noite, fala em possuir uma frota de camaroneiros. Diz à minha mãe que viu Reese Newbury no banco e que este contou a um grupo de homens que Henry Wingo era casado com a mulher mais bonita do município. Mamãe cora, satisfeita, e comenta que é ape­nas uma mulher de meia-idade que faz o melhor que pode com o que Deus lhe deu.

Savannah emerge de seu quarto vestida com o uniforme de líder de torcida para o primeiro jogo. Quase não consegue esconder a satis­fação. Com sua beleza pálida, cria um campo de energia e de comoção. É uma beleza pouco convencional, que nos impressiona suavemente quando nos voltamos para assistir à sua entrada. O aplauso está pre­sente nas margens de nosso silêncio, na delicadeza de nossa admira­ção. Ela tem se desabrochado diante de nós numa maturidade despercebida e, ao parar na sala aguardando algum comentário, gira num círculo vagaroso, bonita nos lugares onde as mulheres são boni­tas, com uma compleição pura como fruta fresca, os cabelos escova­dos, lustrosos e loiros como a crina de um palomino. Luke se levanta e começa a aplaudir. Eu faço o mesmo, aclamando-a com idêntico en­tusiasmo. Levantando os braços, ela se aproxima, pensando que estamos nos divertindo à sua custa, mas pára ao perceber nossa since­ridade. Seus olhos se enchem de lágrimas. É uma menina cheia de sonhos, que nunca ousou sonhar que algum dia seria linda. Entre nós, existe uma perfeita administração de sentimentos. Mais uma vez, eu estava dominado pelo amor que sentia por meus irmãos e pelo amor deles por mim. Minha mãe desvia os olhos do fogão, sabendo que não faz parte daquele momento. Aquele é o início de uma longa e extraor­dinária estação na casa dos Wingo. Vai haver honra e decência e serão testadas as qualidades de nossa natureza humana - ou a falta delas. Vai haver uma única hora de horror que mudará nossas vidas para sem­pre. Vai haver massacre, assassinato e ruína. Quando terminar, vamos todos pensar que sobrevivemos ao pior dia de nossas vidas, que suportamos o enredo mais aterrorizante que o mundo poderia ter preparado para nós. E estaríamos errados. Mas esse enredo começa com minha irmã girando numa pirueta encantadora para seus ir­mãos. Começa com um momento de beleza inocente. Três horas mais tarde, disputaríamos nosso primeiro jogo de futebol. E é setembro novamente na ilha Melrose.

Meu pai logo estabeleceu uma ligação entre os Tigres da Escola Secundária de Colleton e o tigre de Bengala que rugia do lado de fora de nossa casa à noite. Alugou o animal ao Booster Club da escola a 10 dólares por jogo, uma quantia irrisória que mal cobria o preço dos pescoços de galinha por uma semana. Mas a transação o encorajou a pensar em ganhar dinheiro à custa de César.

E então, garotos? - perguntou antes de sairmos para o jogo. - Posso alugar César para festas de aniversário, Dia das Bruxas etcétera. Seria interessante fotografá-lo comendo um pedaço de bolo de ani­versário. Ou tirar uma foto de uma criança montada nele. Que tal se fizermos uma sela para ele?

César não come bolo - cortou Luke.

Mas ele gosta de crianças. Poderíamos fotografá-lo comendo uma criança em sua última festa de aniversário. Em seguida, tiraría­mos fotos da mãe histérica tentando arrancar o tigre de cima de seu único filho. Depois, fotografamos César devorando a mãe - sugeri.

Tom! - reclamou Savannah enquanto lixava as unhas.

A melhor coisa a fazer com o tigre é colocá-lo para dormir - propôs minha mãe. Aquele assunto a enfurecia. - Mal podemos man­ter um peixinho dourado, quanto mais um tigre.

César conseguiu 10 dólares por jogo do Booster Club. Seis jo­gos feitos aqui, vezes dez, e temos 60 dólares extras de puro lucro. Acrescente-se a isso os 20 dólares que me pagam para filmar o jogo e temos uma verdadeira grana entrando.

Por que você não monta em César? - perguntei.

Sou o homem das idéias - responde meu pai, ofendido com a sugestão. - Além disso, eu quebraria as costas daquela pobre criatura. Não tenho corpo de jóquei. Pensando bem, Savannah é a pessoa mais leve da família.

Esqueça isso - disse ela. - Eu monto o elefante. Deixe Tom montar o tigre.

Que elefante? - perguntou minha mãe.

Tenho certeza de que, logo, logo, papai vai comprar um elefan­te - explicou Savannah. - Daqueles que servem para levantar fundos para a campanha republicana. Esse tipo de coisa.

Ainda acho que devemos nos livrar de César - continuou ma­mãe. - É a coisa mais humana que poderíamos fazer.

Nós não estamos matando César - replicou Luke.

Vou pensar em mais alguma coisa - prometeu meu pai. - Essa idéia de usá-lo em festas de aniversário não é lá grande coisa. Está na hora de sairmos para o jogo. Preciso enganchar a jaula à caminhonete.

Vou com as crianças - avisou minha mãe.

Porquê?

Porque ainda me resta um pouco de dignidade. Não irei a to­dos os jogos arrastando um tigre atrás de mim. Já damos muito moti­vo para riso nesta cidade.

E só para levantar o ânimo da escola, Lila. Para ajudar os meni­nos a derrotar a North Charleston.

Você se lembra do nosso jogo contra eles quando éramos ca­louros, Tom? - perguntou Luke.

Claro que sim. Eles nos bateram por 72 a zero.

No fim da partida, a banda tocou a "Valsa de Tennessee" e to­dos os jogadores deles começaram a dançar, enquanto nós nos enco­lhíamos num canto.

Está pronto, capitão? - perguntei.

Estou pronto, capitão. Quero ser um dos que vão valsar quan­do o jogo terminar.

Eu estarei aplaudindo com todas as minhas forças, rapazes - declarou Savannah, socando Luke no ombro. - No papel inferior con­cedido às mulheres no mundo inteiro.

O time, quarenta pessoas inteiramente uniformizadas, passou pelo comprido corredor que levava do vestiário à sala da concentra­ção. Os cravos dos sapatos esportivos se arrastavam ao longo da su­perfície cimentada e soavam como a aproximação de uma manada de bisões atravessando uma planície pedregosa. As lâmpadas suspensas iluminavam nossas blusas brancas; enormes sombras criadas pela luz estranha dançavam na parede enquanto caminhávamos vestidos com aquele disfarce inumano de nosso violento esporte.

Ao entrar na sala de concentração, sentamo-nos sem pressa nas cadeiras dobráveis. Lá fora, a multidão murmurava no longo crepús­culo, a banda tocava um pot-pourri de canções de luta. Então, ouvi­mos César rugir e, com Luke liderando os aplausos, imitamos o som. Em seguida, o treinador começou a falar.

Hoje, eu e toda a cidade vamos saber quem são meus jogado­res. Até agora, vocês provaram que sabem colocar suas ombreiras e arranjar meninas para a balada depois da partida. Mas, até vê-los em ação, não terei certeza de que são verdadeiros batedores. O verdadeiro batedor é um caçador de cabeças que agride o peito do oponente e jamais fica feliz se o sujeito ainda estiver respirando depois do jogo. O verdadeiro batedor não sabe o que é o medo, exceto quando o vê nos olhos do adversário que leva a bola e que ele está para partir em dois. O verdadeiro batedor adora a dor, os gritos, o suor, o clamor e o ódio que existem na vida das trincheiras. Gostar de estar no lugar certo quando o sangue flui e os dentes são arrancados. Este esporte é isso, homens. E guerra, pura e simples. Esta noite, vocês devem arrebentar todos naquele campo. Se alguma coisa se move, atinjam-na. Se algu­ma coisa respira, atinjam-na. E se alguma coisa tiver tetas, fodam-na.

Houve algumas risadas na sala, mas não muitas. Aquele era o quarto ano consecutivo que Sams pronunciava exatamente o mes­mo discurso antes do jogo. Até a piada obrigatória era igual. Ele sempre falava sobre futebol como se estivesse nos estágios finais da hidrofobia.

Então, temos alguns batedores de verdade? - gritou ele, as veias latejando em suas têmporas.

Sim, senhor! - respondemos em coro.

Tenho alguns batedores do cacete?

Sim, senhor.

Tenho alguns malditos caçadores de cabeças?

Sim, senhor.

Vou ver sangue?

Sim, senhor.

Vou ouvir os ossos deles se quebrando pelo campo?

Sim, senhor - gritamos felizes.

Vamos rezar. - E ele conduziu o time na recitação do Pai Nos­so. Então, passou a palavra a Luke, saindo para esperar o time no lado de fora.

Meu irmão levantou-se imenso com as ombreiras. Seu olhar va­gou por toda a sala. Com 108 quilos, Luke era um dos maiores ho­mens do município e, certamente, o mais forte. Sua presença reconfortava; sua calma nos tornava calmos.

Os mais jovens do time - começou ele não se preocupem demais com o treinador Sams. Ele gosta de exagerar. As coisas nunca vão tão longe. E ele se esqueceu de dizer algo fundamental para to­dos nós: a razão pela qual jogamos é para nos divertir. Pura e sim­plesmente isso. Vamos lá fora para aproveitar, bloquear, atacar e correr o máximo que pudermos, e para trabalhar juntos. Quero falar sobre a equipe de uma maneira específica. Deveríamos ter conversado sobre isso desde o começo da temporada. Precisamos discutir sobre Benji Washington.

Com um murmúrio de descontentamento, todos olharam ao re­dor até descobrir o negro que se sentava sozinho na última cadeira da sala. Benji encarou seus companheiros de time com a mesma dignida­de resoluta e silenciosa com que flutuava pelos corredores da escola. Depois olhou impassível para Luke.

Bem, nenhum de nós queria que Benji viesse para nossa escola. Mas ele veio. Também não queríamos que jogasse em nosso time. Mas ele veio. Nos treinos, tentamos pegá-lo de todos os modos. Nós o blo­queamos, socamos, batemos, procuramos machucá-lo, fizemos o im­possível para que deixasse o time. Eu também fiz. Ele agüentou tudo. E agora, quero que você saiba, Benji, que é um membro deste time de futebol, e me orgulho de que esteja conosco. Você o transformou num time muito melhor do que teria sido. E eu quebro a cara de qualquer pessoa aqui que pense de maneira diferente. Benji, venha cá e sente-se na fileira da frente.

O rapaz hesitou por um instante, depois levantou-se e caminhou pelo corredor central. Todos o encaravam, enquanto que ele tinha os olhos fixos nos de Luke.

Daqui a pouco, North Charleston vai partir no encalço de Benji. Vão chamá-lo de negrinho e de muitas outras coisas, e não há nada que possamos fazer para que parem. Mas quero que vocês saibam que, de­pois que passarmos por aquela porta, Benji é apenas mais um compa­nheiro de time. Não há palavras mais lindas do que "companheiro de time". Ele não é negrinho agora e não será pelo restante do ano. É um Tigre da Escola de Ensino Médio de Colleton, como todos nós. E, se o adversário pegá-lo, nós os pegaremos. E assim que encaro a coisa. Benji, espero não tê-lo envergonhado, mas isso não podia ficar sem ser dito. Eu precisava acertar nossos ponteiros. Alguém aí discorda?

Ouviu-se o som da banda, da multidão, a batida nervosa dos cra­vos no chão, mas nenhuma voz discordante.

Tom, você tem alguma coisa a dizer ao time?

Levantei-me, voltei-me para os companheiros da equipe e disse, a voz ofegante e excitada:

Vamos vencer!

Sempre carrego comigo as recordações de meu tempo de atleta e das noites exultantes em que entrava no campo e media força, veloci­dade e caráter com os outros meninos. Vivi para o louvor das multi­dões reunidas, para as excitantes músicas da banda, o burburinho das líderes de torcida que se exibiam ao ritmo dos tambores, entoando as banalidades imperativas do esporte com erotismo e convicção religio­sa ao mesmo tempo. A visão do time oponente, com capacetes negros e ar sério, provocou-me um calafrio de prazer pela espinha. Escutei as cadências de sua vigorosa preparação para o jogo como um cego en­costado a uma janela repleta de pássaros. Jogos, jogos, jogos, cantei enquanto meu irmão e eu comandávamos os exercícios calistênicos do time. Naquele campo verde de Colleton, eu provaria o sabor da imortalidade pela primeira e última vez na vida. Senti o cheiro do ar salgado que vinha do rio, o gosto picante daquela infinita extensão de terras das marés familiares, temperado com a lembrança de safras amadurecendo nas ilhas marítimas. Meus sentidos se aprofundaram, tornaram-se chamas, e eu me eletrizei por completo, como uma figu­ra super-humana fitando os olhos de Deus no primeiro dia do Éden. Senti a respiração de Deus correndo como luz em minha corrente sangüínea. Gritei, exortei meus companheiros, dancei na grandeza de ser talentoso no jogo que escolhera, até que o apito do juiz cortou o ar e Luke e eu fomos para o centro do campo para jogar a moeda. O juiz atirou a moeda no ar e Luke pediu "cara". E lá estava "cara". Escolhe­mos receber a bola.

Naquela noite, levantei meu punho num gesto de concordância com Benji Washington quando tomamos posição como zagueiros e aguardamos o pontapé inicial dos Demônios Azuis da North Charleston. O chutador aproximou-se e logo o outro time correu en­quanto a bola girava alto entre as luzes. Ouvi minha própria voz gritar:

Você pega, Benji!

De fato, ele a agarrou perto do gol e correu desabaladamente para a linha de 35 jardas. Mas foi derrubado e atingido com força por dois adversários e desapareceu sob uma pilha de jogadores vestidos com blusas azuis. O time oponente, enfurecido, fora de controle, levantou-se em peso, xingando Benji. Quinhentos torcedores de North Charleston haviam feito a viagem até Colleton para assistir ao jogo e um cântico de "negrinho, negrinho, negrinho" se elevava no lado do campo destinado aos visitantes.

Vamos matar você, negrinho - gritou o número 28, um joga­dor da defesa, para Benji, que se levantava lentamente.

Correram para ele e o seguiram até quase cercá-lo num grupo violento e ameaçador.

Negrinho! Negrinho! Negrinho fodido - berravam para ele.

Continuavam gritando quando comecei a primeira jogada da­quela temporada. Meus companheiros de time estavam abalados. Benji, em estado de choque.

Ao nos alinharmos, parte dos Demônios Azuis desceu para seu campo em fila, gritando:

Matem o negrinho.

Quando me inclinei sobre o centro do campo, o sujeito da defesa berrou para mim:

Quero o maldito negrinho.

Levantei-me, apontei o dedo para o cara e gritei, num tom falsa­mente agradável:

Foda-se, seu chupa-caralho.

O apito soou e o bandeirinha assinalou um pênalti contra nós por conduta pouco esportiva. Ele disse conduta pouco esportiva com uma pronúncia anasalada que o fez soar como um membro da Ku-Klux-Klan. Claro, eu não iria encontrar juizes da Suprema Corte entre os árbitros de futebol da parte rural da Carolina do Sul.

Ei, juiz - falei -, que tal fazê-los parar de gritar com o número 44?

Não estou ouvindo gritarem com ninguém - respondeu o juiz.

Então não deve ter me ouvido gritar "Foda-se, seu chupa-caralho" para aquele sujeito com cara cheia de espinhas.

O apito soou pela segunda vez e o juiz determinou a metade da distância até a linha de gol. Assim, meu papel de comandante da ofen­siva nos fez perder 20 jardas e eu ainda teria de receber a bola que vinha do centro.

Calem a boca e joguem! - ordenou o juiz.

Venha buscar a bola, negrinho - provocou o jogador da defesa para Benji. - Vou estourar seus bagos. Vou matar um negrinho hoje. Comer carne de negrinho!

A torcida visitante continuava com a palavra de ordem "negri­nho", e a gritaria tornava-se cada vez mais forte. O pessoal de Colleton estava silencioso e apenas observava. Os pais de Benji sentavam-se iso­lados no alto das arquibancadas. A mãe desviara o rosto do campo. O pai assistia estoicamente. Descobri aí de onde se originava o olhar im­passível e majestoso de Benji.

Pedi tempo, e então meus companheiros se juntaram, como ca­chorros vadios que vivem do lixo. Eu, o quarterback sempre previden­te, reconheci que a equipe ainda não se definira bem. Sua letargia se equiparava à minha fúria crescente. Eu queria fazer um gol ou amas­sar a cara dos adversários. Do outro lado do campo, ao longo da pista de atletismo, vi a jaula em que César dormia, sem tomar conhecimen­to da malevolência daquele linguajar. Ajoelhei-me e disse:

Tudo bem, rapazes. Sou eu, Tom. O menino de ouro fodido. O velho Tom Wingo vai lhes dar algumas palavras de estímulo.

Negrinho... Negrinho... Negrinho... - o grito ecoava na parede da escola enquanto os cidadãos de Colleton observavam num silêncio sinistro.

Agora, quero que vocês se divirtam. Benji, sei que é duro para você. É duro para todos nós. É assustador. Mas antes que a gente mos­tre a eles que você é o negro filho-da-puta mais rápido do mundo, vamos cuidar de uma coisinha. Vocês, rapazes, estão parecendo mor­tos. Quero um pouco de vida. Quero algum barulho.

Um murmúrio de encorajamento, absolutamente tênue, escapou da garganta do pessoal.

Luke - continuei, pegando meu irmão pelas ombreiras e ba­tendo na lateral de seu capacete com a mão aberta. - Faça César rugir.

O quê?

Faça César rugir.

Luke deixou o grupo reunido e caminhou em direção ao time de North Charleston, olhando para a jaula que estava estacionada na es­curidão. Avançou até quase a linha de ataque, olhou a distância e gri­tou, mais alto que o ruído da multidão, para o tigre da família Wingo, que, entediado com as luzes e o futebol, dormia em meio a espinhas de peixe e restos de pescoço de galinha. Até que ouviu a voz poderosa do ser humano de que mais gostava:

Ruja, César, ruja!

O tigre chegou às barras da jaula, não como um animal de estima­ção, não como brincadeira nem como mascote, mas como um verda­deiro tigre de Bengala, e rugiu num cumprimento de afirmação e constância ao maior meia-direita, de todo o Estado. Luke lhe respon­deu com carinho, imitando o mesmo som.

O segundo rugido de César atravessou o campo de futebol como um avião, sobrepujou o coro insignificante de "negrinho, negrinho", diminuiu a voz da multidão, cruzou a linha dos 45 metros, varreu nossos ouvidos, chegou ao estacionamento, bateu na parede de tijolos do ginásio e ecoou de volta como se um segundo felino tivesse nascido atrás de nós. César respondeu a seu próprio eco e então eu gritei para meus companheiros.

Agora, putada! Respondam a César.

Juntos, eles rugiram como tigres em direção à jaula, várias vezes, até que o animal, acostumado às luzes, nascido para fazer espetáculos e com vocação para o picadeiro central, reagiu com aquela magnífica voz de fera que tinha sua origem nas florestas nevoentas da índia. Fi­lho de pais que haviam acordado tribos no meio da noite e agitavam a adrenalina dos elefantes, César mandou uma mensagem à alma de meu time. E a multidão de Colleton ferveu, recuperando o espírito do jogo. Quando o tigre se moveu através das fileiras da arquibancada, o campo inteiro tremeu com seu rugido.

Corri para a linha lateral e pedi ao sr. Chappel, regente da banda, para tocar "Dixie". Quando a melodia começou, César ficou ainda mais selvagem. O time de North Charleston fitava o imenso animal que rosnava, enlouquecido, grudado às barras da jaula, as patas dian­teiras balançando para o lado de fora, as garras completamente esten­didas como uma amostra dos limites de sua ferocidade. Luke veio furioso em minha direção.

Por que você fez isso, Tom? Você sabe que essa canção deixa ele louco!

Ele está procurando uma daquelas focas de merda - retruquei, inchado de orgulho. - Aproveite a cena, Luke. Essa é a maior interfe­rência na história do futebol. - Aproximei-me do time de North Charleston, que observava abobalhado enquanto seus torcedores se tornavam silenciosos e perplexos. - Ei, meninos, se encherem meu saco novamente, vou soltar o tigre no campo.

O apito soou e fomos penalizados por atrasar o jogo. Então, o time se reuniu e algo de mágico acontecera. Nos olhos de meus com­panheiros havia o brilho sagrado da unidade, da solidariedade, da fraternidade, o brilho que é a maior glória no reino do esporte. Vive no coração, mas se mostra nos olhos. A equipe se juntava, refazia-se outra vez.

Negrinho, Negrinho. (Rugido, rugido.) - O som nos envolveu enquanto eu falava:

A primeira jogada ofensiva dos Tigres de Colleton é esta: infil­tração do beque. Ninguém deve me bloquear. Enquanto esses panacas estiverem no meu rabo, quero que todo mundo, exceto Benji, caia em cima do pentelho da defesa. Só vou correr um pouco pelo campo de­les para lhes dar tempo de pegá-lo.

Negrinho, negrinho (rugido, rugido) - dizia a massa.

Ao receber o arremesso, fiz um pequeno sapateado deselegante em direção a uma pequena abertura no bloqueio esquerdo. Foi quan­do 220 quilos de carne humana me atingiram ao mesmo tempo, fa­zendo com que me estatelasse no chão, o rosto amassado na grama de nossa própria linha de 5 jardas. O apito soou e, quando me levantei, vi o jogador da defesa deles deitado de costas, as mãos no rosto e no joelho. Nosso time recebeu outra falta de 15 jardas por dureza desnecessária do jogo e o juiz caminhou metade da distância da linha do gol. Eu arquitetara habilmente aquela retirada que nos deixou 32 jardas atrás de nossa linha de ataque original. Mas assisti com prazer ao transporte do jogador para fora do campo, sangrando por todos os orifícios do corpo, como Luke descreveria mais tarde com alegria.

O negrinho vai pagar por isso - ameaçou um dos adversários. Reunindo minha equipe, elogiei:

Vocês foram ótimos. Adoro quando vocês escutam o tio Tom. Agora, na próxima jogada, vamos tentar marcar um touchdown.[1]

Aí entra o Benji - alegrou-se Luke.

Ainda não. O mestre da estratégia ainda não vai usar Benji. Mas ele será a isca. Vou mandá-lo para o meio, Benji. Depois de contar a eles que você vai pegar a bola, vou lhes mostrar o buraco por onde você vai passar.

Ai, meu Deus! - exclamou Benji.

Isso é burrice, Tom - emendou Luke.

Mas eu não vou passar a bola. Vou contrabandeá-la pela es­querda. Arrumem alguns bloqueadores para a parte de baixo do cam­po. E mandem brasa nos dois.

Enquanto me aproximava da linha, antes de pôr as mãos sob o traseiro cheiroso de Milledge Morris, caminhei mais uma vez em dire­ção ao coro monótono "negrinho, negrinho". Disse em voz alta para o time de North Charleston.

Vocês querem o negrinho? Vou mandá-lo por ali. - E apontei para o buraco entre o centro e a guarda esquerda. - Só que nenhum de vocês vai ter peito para pará-lo.

Alguns jogadores da defesa mudaram ligeiramente de posição, che­gando mais perto do buraco enquanto a cadência era dada por mim.

Preparar, 14, 35, 2.

Parti, segurando a bola embaixo do braço. Os capacetes e as ombreiras do pessoal da defesa se quebravam atrás de mim. Abaixei-me e grudei a bola na barriga de Benji quando este passou a toda velocida­de. Ele seguiu em direção ao buraco e puxei rapidamente a bola quan­do ele desapareceu nos braços dos brancos do Sul.

Com a bola no quadril, olhei para trás, fingindo diminuir a velo­cidade ao ver a pilha de blusas azuis empurrando Benji para o chão. Então, cheguei ao comer e corri pela linha lateral, passando em frente aos torcedores de North Charleston, que, de repente, lembraram-se de que também havia brancos no time de Colleton. Na linha de 20 jardas, Luke juntou-se a mim e ambos corremos com um dos olhos sobre um jogador da defesa que tinha um talento especial para não acreditar em mentirosos. O sujeito tentou bloquear minha passagem pela linha la­teral. Fiz de conta que ia para a direita, como se estivesse voltando para meu próprio campo, e ele diminuiu a velocidade. Então Luke o derru­bou enquanto eu saltava sobre os dois sem diminuir meu passo, e en­trava na zona vazia de nossa linha de 25 jardas.

Guardei o filme que meu pai fez daquele jogo e assisti àquela cor­rida de 97 jardas pela linha lateral uma centena de vezes. E ainda assis­tirei outras tantas vezes antes de morrer. Vejo o menino que um dia fui e me maravilho com sua velocidade enquanto ele avança na imagem granulada e surreal do filme, e passo os dedos pelos cabelos que agora se tornam ralos. Tento recapturar o momento em que corri em dire­ção à linha de fundo, entrando em meu próprio território, agora per­seguido em vão por rapazes furiosos com blusas azuis. A multidão se deu conta de mim na linha das 50 jardas; senti-o nas pernas - o mur­múrio de vozes humanas me estimulava, rumo aos mais altos portais daqueles dias extáticos. Ao correr, era o menino de Colleton que fizera a cidade ficar de pé. E não há nada mais feliz no mundo que um meni­no correndo, nada tão inocente ou intocado. Eu era dotado e jovem, incapaz de ser agarrado quando avançava loucamente pela linha late­ral, seguido de longe por um juiz que havia deixado na poeira. Rápido e brilhante, corri através da luz, passei por meu pai que gritava, que seguia meu avanço por uma abertura de vidro; passei por minha irmã gêmea que saltava e girava na linha lateral, feliz com aquele momento porque se importava comigo; passei por minha mãe, cuja beleza não podia disfarçar a vergonha de ser quem era e de onde viera. Mas, na­quele instante - mítico e elegíaco ela era a mãe de Tom Wingo, e dera ao mundo aquelas pernas e aquela velocidade como um presente. Atravessei a linha de 40 jardas e, no instante seguinte, a de 30, passan­do a toda velocidade em direção à linha de fundo. No entanto, assis­tindo ao filme, freqüentemente penso que aquele menino não sabia realmente para onde ia, que não era a linha de fundo que o aguardava. Em algum momento daquela corrida de dez segundos, o garoto se transformava em metáfora e o homem mais velho podia vê-lo onde o menino não podia. No futuro ele seria um ótimo corredor e sempre fugiria das coisas que iriam machucá-lo, das pessoas que iriam amá-lo e dos amigos autorizados a salvá-lo. Mas para onde corremos quando não há multidões, nem luzes ou linha de fundo? Para onde corre um homem?, pergunta o treinador, estudando seus próprios filmes quan­do menino. Para onde um homem corre quando não tem a desculpa dos jogos? Onde pode se esconder quando olha para trás e vê que é perseguido apenas por si mesmo?

Cruzando a linha de fundo, atirei a bola 15 metros para o ar. Jo­guei-me para a frente e beijei a grama. Depois corri para a jaula de César e passei os dedos pelas barras.

- Alegre-se, seu filho-da-puta amarelo! - Evidentemente, ele me ignorou.

Então Luke agarrou-me nos braços, levantou-me do chão e girou comigo duas vezes. Tínhamos, finalmente, nossa valsa. No reinicio da partida, soube, pela maneira como corremos em massa ao redor do jogador que levava a bola, que aquela seria nossa noite. Em sua pri­meira jogada a partir da linha de ataque, Luke pegou um dos beques ali estacionados e o fez andar vários metros para trás sobre a grama. Toda a parte direita da linha estava no bloqueio ao tentarem uma revi­ravolta. Só que nosso time estava dando tudo o que podia. Batíamos nas ombreiras e nos capacetes uns dos outros, nós nos abraçávamos depois de cada jogada e demos gritos de encorajamento ao atacante que fez o primeiro ponto. Havia fogos incontroláveis soltos pelo cam­po, um senso de reconhecimento, de retribuição e de destino.

Agora, eu planejava soltar Benji. Enquanto eu estava marcando o touchdown, Benji estava sob uma pilha de gente, levando dedo nos olhos, mordidas na perna, e ficando puto da vida.

- Benji, vamos ensinar a esses caras os méritos de Brown versus o Comitê de Educação.

Sempre tive pena do garoto que jogasse diante de Luke, do outro lado da linha. No início do jogo, poderia ser um menino simpático e saudável e, no fim, um paraplégico por, no mínimo, um dia. Com tamanho notável e com sua elegância, não era por acaso que Luke des­cobrira afinidades naturais com os tigres.

Quando me aproximei da linha, a palavra negrinho já desaparece­ra havia algum tempo do vocabulário dos Demônios Azuis de North Charleston.

Joguei a bola para Benji Washington - era a primeira vez que um branco passava a bola para um negro naquela parte do mundo. Ele atravessou o bloqueio, livrou-se com um giro de corpo do beque de linha que se atirara contra ele, derrubou o quarterback que tentou prendê-lo pelo braço e, numa série de movimentos extremamente rá­pidos e enganadores, dançou na área adversária saltitando, frenético e inatingível, e cortou contra o fluxo de jogadores, revertendo seu campo. Em seguida, disparou como um raio pela defesa direita, voltando à linha lateral, de onde partiu a toda velocidade, desviando-se de todo o time de North Charleston rumo à linha de fundo. Três jogadores par­tiram em seu encalço, mas calcularam mal sua velocidade. Enquanto nós, corredores mais vagarosos o seguíamos para a linha do gol, mar­camos o segundo touchdown em menos de dois minutos. Era visível a ambivalência da torcida de Colleton. Durante um minuto, não houve nada além de um polido aplauso perplexo. Aquela era uma multidão branca, sulista até os ossos, atolada em tradições desumanas. Em par­te, queriam que Benji fracassasse mesmo que isso significasse a derro­ta do time. Alguns provavelmente até gostariam que Benji morresse. Mas, em certo momento daquela corrida de sete segundos, a resistên­cia à integração racial se enfraqueceu um pouco na cidade de Colleton. E, nas vezes em que Benji Washington carregou a bola ao longo da partida, o imenso amor dos sulistas pelo esporte venceu a triste história que trouxera o mais rápido ser humano do Sul para nosso campo.

Quando o time cercou Benji, quase matando-o com socos e tapas, ele disse a Luke:

Meus Deus, como esses caras são lerdos.

Não é isso - respondeu ele. - Acontece que você estava com medo de ser pego.

Naquela noite, aprendi que, com Benji Washington em campo comigo, eu era um quarterback muito melhor do que originalmente devia ser. Durante o jogo eu o mandei através da linha trinta vezes. Perto do fim, disparei para a direita numa jogada de opção. Fingi pas­sar a bola lateral para Benji. Corri pelo buraco que havia no bloqueio esquerdo e parti em direção à linha lateral até ser atingido por um beque de linha. Ao cair, passei a bola para Benji, que a agarrou e, numa pura celebração da velocidade, disparou pela linha lateral por 80 jardas, sem ser tocado por mãos humanas.

Logo depois, o North Charleston se organizou para fazer dois touchdown, mas foram pontos furiosamente contestados. Nas duas ve­zes, fizeram pontos após longas marchas exaustivas pelo campo e, em ambos os casos, o jogador que os marcou partiu da linha de uma jarda depois de ser repelido duas vezes anteriormente. Com os ponteiros do relógio correndo e nosso time liderando por 42 a 14, a banda tocou a "Valsa de Tennessee". Enquanto o time visitante se reagrupava, nós dan­çamos na linha de ataque com a multidão cantando nas arquibancadas.

Quando o apito soou, indicando o fim da partida, a cidade delirou conosco. Todos entraram correndo no campo e voltamos para o vestiário cercados, espremidos e aplaudidos por mil estudantes e tor­cedores. Ao me encontrar, Savannah beijou meus lábios, rindo quan­do corei. Luke agarrou-me pelas costas e lutamos sobre a grama. Três jogadores de North Charleston abriram caminho entre a multidão e apertaram a mão de Benji. Um deles pediu desculpas por tê-lo cha­mado de negrinho. César recomeçou a rugir e foi acompanhado pela multidão. Meu pai filmou toda a cena. Minha mãe pulou nos braços de Luke, que a carregou como uma noiva até o vestiário, ouvindo-a dizer que o achava maravilhoso e se sentia orgulhosa.

No vestiário, a equipe jogou o treinador Sams no chuveiro, com­pletamente vestido. Oscar Woodland e Chuck Richards carregaram Benji quase respeitosamente para o chuveiro, onde o batizaram nas águas rituais da vitória. Luke e eu também fomos carregados até que todo o pessoal, extático e triunfante, parou com o corpo pingando água sobre os ladrilhos enquanto os fotógrafos batiam fotos e nossos pais, do lado de fora, acendiam cigarros e discutiam o jogo.

Depois do banho, sentei-me no longo banco de madeira ao lado de meu irmão, vestindo-me sem pressa, sentindo a agradável dor pos­terior ao jogo percorrer meu corpo como uma droga que fizesse efeito lento. Ao vestir a camisa, tive dificuldade em levantar o braço para fechar o botão de cima. Meus companheiros estavam vestindo terno e a sala tinha uma mistura aromática de vapor, suor e loção pós-barba. Jeff Galloway, um dos jogadores do time, aproximou-se de mim, esco­vando os cabelos para trás.

Você vai ao baile, Tom? - perguntou.

Talvez a gente dê um pulo lá.

Você vai vestido desse jeito? - E ele olhou para minha camisa.

Não, minhas roupas estão penduradas na jaula de César, Jeff... É claro que vou com esta roupa.

Vocês têm o pior gosto em matéria de roupas que já vi. Por que não entram na onda e compram camisas melhores? Vocês são os úni­cos caras na escola que não usam sapatos modernos. Cara, todo mun­do no time usa.

Não gosto desses sapatos que estão na moda - respondeu Luke.

Sim, aposto que você prefere aqueles velhos tênis de chutar merda - comentou Jeff, rindo, enquanto eu amarrava os sapatos.

- Que tipo de camisa é essa que você está usando, Tom? - Puxou meu colarinho e leu a etiqueta. - Belk's - zombou. - Uma camisa pólo Belk's. Meu Deus! Que coisa embaraçosa. Vou sugerir vocês dois como os alunos mais bem-vestidos da turma. Você está usando a mes­ma calça há duas semanas, Tom.

Não, não estou. Tenho duas calças cáqui. Eu as uso alternadamente.

É uma pena. Sinceramente. Não é bom de jeito nenhum. Não serve para a imagem.

Você não gosta de nossas roupas, Jeff? - perguntou Luke.

Não há por que gostar. Vocês obviamente não dão bola para a aparência. Todo mundo se veste bem depois do jogo. A gente não só joga um bom futebol, como também dita moda na escola. Quando passamos pelos corredores, as meninas e os caras da banda dizem: "Aí vem o time, aí vem o time e eles estão bonitos." Droga, até Benji sabe se vestir. E ele é apenas...

Um negrinho - concluiu Luke. - Ele já foi embora, não se preocupe. Ele acaba de ganhar o jogo para nós, mas você pode voltar a chamá-lo de negrinho.

Benji é negro - corrigiu Jeff. - É apenas um menino negro que foi assim a vida inteira e se veste como um príncipe comparado a vocês dois. E embaraçoso que nossos capitães comprem suas roupas na loja de departamentos Belk's.

Onde você compra suas roupas? Em Londres? - perguntou Luke.

Claro que não. Eu e mais alguns meninos vamos de carro para Charleston e passamos o dia fazendo compras na Berlin's e na Krawchek's. Lojas de roupas de homem, especializadas, caras. Qual­quer pessoa confirma isso. Lá têm tantos cintos de crocodilo pendura­dos no mostruário que até parece um país tropical. Vocês deviam ir conosco dar uma olhada naquelas lojas. Precisam desenvolver seu gosto.

Estou contente por não ter o mesmo gosto que você, Jeff - cor­tou Luke, fechando a porta de seu armário. - Você não precisa usar nossas roupas, por isso pare de falar delas.

Estou só dando um conselho amigável. Afinal, sou obrigado a olhar para elas, portanto tenho direito a opinar, concordam? Vocês sabiam que o treinador determinou que a gente usasse paletós esporte na escola nos dias de jogo? Não é uma ótima idéia? Terno com colete pela manhã, suadouro no campo durante o jogo, chuveiro, um pouquinho de água-de-colônia e, em seguida, matar as meninas do coração com ternos de três peças no baile. Comprei este aqui na Krawchek's por menos de 100 dólares.

Parece uma merda - resmungou Luke, parando um momento para olhar o terno azul-claro de Jeff.

É o melhor terno que havia por esse preço. Talvez vocês achem essas calças maltrapilhas mais elegantes.

Eu gosto delas - disse Luke secamente.

A gente se encontra no baile, seus lançadores de moda. Vocês com certeza não vão me ver, pois estarei cercado de gatinhas tentando colocar as mãos em mim. Mas vocês fizeram um ótimo jogo - con­cluiu, ao sair do vestiário.

Fechei meu armário e coloquei o cadeado no lugar. Luke fez o mesmo.

Você quer ir ao baile, Luke?

Você quer?

Não faço muita questão.

Nem eu. Principalmente agora que todos vão olhar para mim e dizer: "Ali está o pobre coitado usando uma camisa pólo Belk's."

Isso pouco importa. O problema é que não sei dançar.

Nem eu.

O treinador Sams pôs a cabeça na porta, avisando:

Hora de apagar as luzes, pessoal. Ei, Tom e Luke, pensei que vocês estivessem no baile. Vocês vão ser estuprados depois do que jo­garam hoje.

Já estamos indo - respondi.

Onde estão seus paletós esporte? Eu disse a todos para se vesti­rem bem após o jogo. Vocês são os capitães, pelo amor de Deus!

Esquecemos, treinador - desculpou-se Luke. - Estávamos exci­tados demais por causa do jogo.

Que partida, rapazes, que partida!

Fomos com Sams até a porta dos fundos do vestiário e o vimos desligar a chave que apagava as luzes do campo. Depois, Luke e eu seguimos em direção à música.

 

Quando recordo a voz de minha mãe no meu tempo de criança, ela é sempre elevada num lamento sobre nossa situação econômica. As canções e os contrapontos demonstravam sua crença arraigada de que nossa vida era marcada pela mais horrenda pobreza. Eu não seria ca­paz de afirmar se éramos pobres ou não. Tenho dúvidas se minha mãe era miserável ou apenas frugal. Só sei que eu teria preferido pedir para sugar seu seio a lhe pedir 10 dólares. O assunto dinheiro causava nela o nascimento de uma nova mulher; e isso também a diminuía aos olhos dos filhos. Não porque ela não o tivesse; mas por causa do modo como nos fazia sentir quando o pedíamos. Sempre suspeitei de que havia mais dinheiro do que ela dizia, e temi que ela simplesmente amasse mais o dinheiro que a mim. Mas nunca soube com certeza.

A falta do paletó esporte passou a me obcecar. Tanto que na ma­nhã seguinte ao jogo contra o time de North Charleston procurei-a depois do café.

Mãe, posso falar com você?

Claro, Tom - disse ela, enquanto pendurava a roupa lavada no varal do quintal. Comecei a ajudá-la nessa tarefa. - Quero que você sempre se sinta livre para falar comigo.

Posso fazer algum trabalho aqui em casa?

Você já tem suas funções designadas.

Bem, eu gostaria de ganhar um dinheirinho extra.

Eu não recebo pelo trabalho que tenho aqui em casa, Tom. Pense nisso. Se eu fosse paga para cozinhar, limpar a casa, cuidar das roupas de todo mundo, não sobraria dinheiro para comprar comida para nós. Mas eu jamais pensaria em receber dinheiro em troca do meu trabalho. Faço tudo por amor à família.

Eu também amo a família...

Você sabe que estamos em dificuldades, não sabe? - Sua voz adquiriu aquele tom íntimo e conspirador que buscava fazer do ou­vinte um defensor das mesmas opiniões que ela. - Mesmo com a pes­ca de camarões rendendo bem, a compra do posto de gasolina e do tigre nos colocaram em péssima situação. Não gosto de falar isso por­que sei que você se preocupa muito comigo. Mas podemos falir a qualquer momento. Estou procurando convencer seu pai. Mas que posso fazer?

Preciso comprar um paletó esporte.

Isso é ridículo - exclamou ela, a boca cheia de pregadores de roupa. - Você não precisa de um paletó esporte.

Preciso, sim. - Senti-me como se tivesse pedido um veleiro. - O treinador quer que todo mundo use paletó esporte nos dias de jogo. É uma regra. Luke e eu éramos os únicos do time que não se vestiam assim ontem.

Bem, essa regra é ridícula e nós não a seguiremos. Você se lem­bra da má estação de pesca do ano passado, Tom. Além disso, seu pai perdeu um dinheirão com aquela história do posto de gasolina. Você sabe tudo isso e ainda assim não se incomoda de me deixar cons­trangida por ter de recusar. O que você não sabe é como venho lutan­do para manter nossas cabeças fora da água. O problema não é a falta de dinheiro, mas uma questão de prioridades. Seu pai subiria pelas paredes se você lhe pedisse um paletó esporte agora. É egoísta de sua parte pensar nisso, Tom. Para ser sincera, estou surpresa com você, mais do que desapontada.

Todo o pessoal da escola tem paletó esporte. Poderíamos comprá-los de segunda mão.

Você não é igual aos outros. Você é Tom Wingo e está muito acima do restante. Eles podem se vestir melhor, mas meus filhos são os capitães do time.

Por que Savannah sempre tem boas roupas e Luke e eu sempre nos vestimos como se fôssemos trabalhar no barco?

Porque Savannah é uma menina e é importante para as jovens parecer o melhor possível. Não me sinto nem um pouco culpada por sacrificar-me para vestir minha filha de maneira apropriada. Fico sur­presa por você se ressentir com isso e não entender por que é necessário.

Por que é necessário? Diga-me.

Se ela for se casar com um jovem bem-posto, precisa se vestir com distinção. Os cavalheiros das famílias finas não pensariam em cortejar uma moça que não soubesse se vestir. As roupas são a primei­ra coisa que o homem vê na mulher. Bom, talvez não seja a primeira, mas é uma das primeiras.

Qual é a primeira coisa que uma moça procura num rapaz?

Certamente não é a roupa - zombou minha mãe. - Roupas não significam nada num homem até que ele esteja trabalhando ou se as­socie a uma firma de advocacia. Uma jovem procura num homem o caráter, suas perspectivas de futuro, família e ambições.

Era isso que você procurava quando se casou com papai?

Pensei que estivesse me casando com um homem diferente. Fui burra e me vendi por pouco. Não quero que Savannah cometa o mesmo erro.

Será que uma moça não vai se preocupar com minha aparência?

Claro que não, a não ser que ela seja insensível, superficial e sem importância.

Então por que o homem deveria se importar com as roupas da mulher?

Porque eles são diferentes das mulheres, muito mais superfi­ciais por natureza.

Você realmente acredita nisso, mãe?

Eu sei que é verdade. Vivi muito mais tempo que você.

Você vai me dar algum dinheiro para eu dar de entrada?

Nem um centavo. Você tem de aprender a trabalhar para con­seguir o que quer. Tudo o que realmente quer. Você vai gostar muito mais do paletó quando tiver suado sangue para consegui-lo. Mereça o paletó, Tom. Você vai se respeitar mais se não receber as coisas numa bandeja de prata.

Nunca recebi nada em bandeja de prata.

Tem toda razão. E nunca vai receber. Pelo menos de mim. Sei que você acha que estou sendo pão-dura.

E isso mesmo que eu penso.

Não me incomoda. Porque eu sei algo que você não sabe: mais tarde, todos os meninos do time vão relembrar este ano e não vão ser capazes de dizer nem a cor de seus paletós esporte.

E daí?

Eles não saberão o valor das coisas. Mas você, Tom, quando recordar este ano, sempre se lembrará do paletó esporte que não ti­nha. Você conseguirá vê-lo, senti-lo e até saber como era seu cheiro.

Não entendo seu ponto de vista, mãe.

Você vai gostar do paletó esporte quando finalmente possuir um. E sempre se lembrará de sua mãe quando usá-lo. Sempre se recor­dará de que me recusei a comprá-lo e terá de se perguntar por quê.

Estou perguntando agora.

Estou ensinando você a valorizar o que não pode possuir, o que está fora de seu alcance.

Que burrice.

Pode ser burrice, Tom. Mas você certamente vai adorar seu pri­meiro paletó esporte. Juro.

Mãe, esta é a melhor estação de pesca de camarões desde 1956. Nós temos dinheiro.

Não para comprar paletós, Tom. Estou economizando para o próximo investimento idiota de seu pai. Se não fosse por ele, você teria tudo o que quisesse. Todos nós teríamos.

 

No apartamento de Savannah, comecei a procurar pistas que me possibilitassem conhecer um pouco da vida secreta que ela levava an­tes de cortar os pulsos. Sua ausência me permitia o tempo necessário para adquirir a intimidade de um voyeur com sua vida diária. Os si­nais de negligência eram testemunhos vividos de seu declínio em di­reção às fronteiras da loucura. Encontrei correspondências fechadas, incluindo uma pilha de cartas de minha mãe, de meu pai e minhas. O abridor de latas não funcionava. Havia dois vidros de pimenta-de-caiena na prateleira, mas não tinha manjerona nem rosmaninho. No quarto, encontrei um par de tênis de corrida Nike que ela nunca usara. No banheiro, faltavam aspirina e creme dental. Quando cheguei, havia uma única lata de atum na despensa e o freezer não era descongelado havia anos. Apesar de obcecada por limpeza, Savannah deixara cama­das de poeira se acumularem sobre as prateleiras. Aquele era o aparta­mento de alguém que queria morrer.

Mas existiam ali mistérios que eu poderia descobrir caso fosse paciente o suficiente para procurá-los. Assim, treinei-me para ter cal­ma e estar atento a qualquer insinuação que pudesse jogar alguma luz sobre a sintaxe de sua loucura.

No domingo à tarde, em minha sexta semana em Nova York, li e reli várias vezes os poemas de minha irmã, tanto os publicados como os que descobri na ocasião. Procurei pistas, segredos superpostos em seus iambos luxuriantes, mas, apesar de conhecer os acontecimentos centrais e os traumas de sua vida, senti que faltava algo essencial em sua história - ela vivera uma existência desesperada e provisória nos três anos em que estivera longe de mim, três anos em que me negara acesso à sua vida.

Quando criança, Savannah desenvolvera o hábito de esconder seus presentes, que nunca estavam sob a árvore na manhã do Na­tal, ainda que ela nos fornecesse mapas detalhados que nos ajuda­vam na busca. Certa vez, pegou um anel de opala que daria para minha mãe, jóia que comprara com a ajuda de minha avó, e o escondeu no pântano de águas negras perto do centro da ilha. Colo­cou-o no ninho de um pássaro, cercado de talos de plantas e musgo, no oco de uma árvore. Mas suas instruções incoerentes e imprecisas jamais poderiam conduzir minha mãe até o ninho. As­sim, as opalas passaram a significar, para minha irmã, natais roubados. E, depois de perder o anel, Savannah voltou a dar presentes da maneira tradicional.

Tempos mais tarde, ao escrever sobre o anel perdido, ela o mos­traria como o presente perfeito, o mais puro dos presentes. Um pre­sente perfeito - escreveu ela - está sempre muito bem escondido, mas nunca se oculta da poetisa. E, como uma chave para a com­preensão desse pequeno cânone, chamou a poetisa de "senhora das corujas". Quando a poetisa fechava os olhos, a envergadura da grande coruja de chifres lançava uma sombra fulva sobre as imensas flo­restas verdes. A ave voltava aos ninhos abandonados dos pássaros migradores, entrava no círculo perfeito do coração do cipreste e en­contrava a opala perdida, da cor do leitelho tingido com violetas esmagadas. A coruja fêmea, rainha cheia de garras, de instinto ingovernável, pegava o anel no bico cruel, manchado com o sangue de coelhos atordoados, e voava através de rendilhados de sonhos fabulosos, pelo ar espiralado e perfumado pela linguagem, e o entre­gava à poetisa, várias vezes seguidas, poema após poema. As coisas nunca eram perdidas para Savannah; ela transformava tudo em mis­teriosos jardins sensuais da linguagem. E preservava o amor pelos jogos em sua poesia, escondendo seus presentes por trás de uma treliça de palavras, fazendo buquês de suas perdas e pesadelos. Não ha­via poemas obscuros no trabalho de Savannah, apenas lindas frutas cercadas por flores capazes de fazer dormir quem as provasse, com seus espinhos cobertos de cianeto - até mesmo suas rosas vinham com espinhos assassinos.

Todos os poemas tinham enigmas, erros de orientação, estrata­gemas e eixos. Savannah nunca declarava uma coisa diretamente; não podia quebrar o hábito de uma vida inteira de esconder seus presentes. Mesmo quando escrevia sobre a própria loucura, torna­va-a atraente, um inferno destruído pelo paraíso, um deserto em que estavam espalhadas a fruta-pão e a manga. Era capaz de escrever sobre um sol mortífero e sair dele triunfante, orgulhosa de seu bron­zeado. Sua fraqueza como poeta era singular e profunda: ela podia caminhar ao longo da borda dos Alpes, sua pátria, mas não podia con­sertar as asas que a fariam voar em direção às correntes elevadas. O anel sempre voltava para ela quando deveria dá-lo por perdido. Até mesmo seus gritos eram postos em surdina, suavizados até a pálida harmonia, como o murmúrio do mar aprisionado nas conchas. Ela simulava ouvir música naquelas conchas, mas sei que não ouvia. Ouvia os lobos, todas as notas negras de sua voz, todos os madrigais satânicos. Mas como eram bonitos quando escrevia sobre eles com a ajuda de sua fantasmagórica coruja e seus sonhos de opala! Savannah louvou os lírios d'água que flutuavam como almas de cis­nes nos tanques dos pátios cercados dos asilos de lunáticos. Minha irmã se apaixonara pela grandeza da loucura. Seus últimos poemas, que encontrei espalhados em lugares secretos do apartamento, eram obituários de requintado encanto. A nostalgia pela própria morte tornara seu trabalho grotesco.

Enquanto morava em seu apartamento, paguei o aluguel, as contas e recolhi a correspondência. Com o auxílio de Eddie Detreville, pintei o apartamento num tom quente, da cor da fibra do linho, Arrumei a vasta biblioteca de acordo com o assunto dos li­vros. Essa biblioteca teria sido valiosa para um bibliófilo não fosse a maneira execrável como Savannah tratava os livros. Eu raramente abria um volume que ela não tivesse conspurcado ao sublinhar suas partes favoritas com caneta esferográfica. Certa vez, eu lhe dissera que preferia ver um museu bombardeado a ver um livro sublinhado. Só que ela descartou meu argumento como sendo mero sentimenta- lismo: fazia anotações nos livros para que as idéias e imagens que a atordoavam não se perdessem. Havia uma troca frutífera entre suas leituras e seus escritos. Ela desenvolvera o simpático hábito de cole­cionar livros sobre assuntos dos quais não sabia nada. Encontrei um livro, pesadamente sublinhado, sobre o ciclo de vida das samambaias, e um outro, chamado The Sign Language of the Plains Indians [A linguagem de sinais dos índios das planícies, tradução livre]. Ha­via seis outros sobre vários aspectos da meteorologia, três sobre des­vios sexuais do século XIX, um sobre o cuidado e a alimentação das piranhas, um exemplar de Mariner's Dictionary [Dicionário do ma­rinheiro, tradução livre] e um longo tratado sobre as borboletas da Geórgia. Uma vez, ela escrevera um poema sobre as borboletas que vinham ao jardim de minha mãe na ilha Melrose e, por meio das anotações nas margens do livro, descobri como adquirira conheci­mento sobre as espécies ali citadas. Savannah usava bem seu acervo e nenhum fato era obscuro demais para escapar a seu apaixonado escrutínio. Se precisasse de uma joaninha em sua poesia, comprava dez tratados de entomologia para descobrir a joaninha absoluta­mente adequada. Criava mundos misteriosos com as informações inestimáveis que recolhia nos livros negligenciados durante longo tempo. Pela marca que sua passagem deixava nos volumes, segui a história de suas leituras, notando quais livros estavam assinalados e quais estavam completamente limpos. Era um modo autêntico, pensei, de aprender sobre minha irmã, folheando sua biblioteca e tomando notas sobre os assuntos que ela comentava ou sublinhava. Era também um abuso de confiança, porém eu estava tentando co­brir a distância de três anos durante os quais nem uma única palavra fora trocada entre nós.

Comecei o verão lendo os poetas amigos de Savannah, que lhe haviam dedicado exemplares de seus livros. Com base no tom das de­dicatórias, alegres, apesar de formais, percebi que a maioria deles ad­mirava o trabalho de minha irmã, embora não a conhecessem bem. Quase todos viviam numa obscuridade orgulhosa, que só entendi de­pois de lê-los. Eram todos trovadores das microscópicas manifestações divinas. Escreviam sobre cálices de flores e romãs, mas seus versos eram inexpressivos. Savannah nunca esteve tão feliz como no dia em que admiti não entender um de seus poemas, pois tomou isso como um sinal seguro de que fora fiel a seu talento. Depois de ler os amigos dela, pensei que todos os poetas modernos deveriam ser imu­nizados contra a obscuridade. Mas as linhas que ela sublinhara pos­suíam uma beleza sombria e incongruente. Anotei-as em meu caderno enquanto reconstruía a vida de minha irmã baseado em suas jornadas pelos livros.

Em seus poemas, descobri que Savannah despedia-se do Sul como um de seus assuntos. Encontrei ainda vislumbres de seu pas­sado, mas minha irmã estava conseguindo tornar-se aquilo que mais desejara ser - uma poetisa de Nova York. Achei uma série de poemas sobre o metrô, que davam uma simetria decorosa ao pesa­delo da cidade após a meia-noite. Havia versos sobre o rio Hudson e o Brooklyn. Ela já não assinava os poemas assim que os termina­va. Deixava-os em pilhas anônimas por todo o apartamento. Res­tava apenas a magia intocável do talento para designar o trabalho como sendo indiscutivelmente seu. Nos últimos anos, sua poesia se tornara mais forte, mais melancólica e ainda mais linda. No en­tanto, alguma coisa teria permanecido pouco clara e confusa para mim se eu não tivesse encontrado o livro de recordações azul e branco sob a Bíblia em sua mesa-de-cabeceira. Em um diamante verde centrado sobre uma listra branca, li as palavras "Seth Low J. H. S.". Abri um zíper enferrujado e virei a primeira página. Apare­ceu a fotografia de uma menina da oitava série chamada Renata Halpern. O nome me era vagamente familiar mas não consegui localizá-lo com exatidão. Tinha o rosto bonito, acanhado, e um in­feliz par de óculos lhe desfigurava a aparência. Em vez de natural, o sorriso era forçado - quase pude ver o fotógrafo idiota careteando o som da letra "xis", revelando uma desagradável boca cheia de dentes. Suas professoras, ela registrara na página seguinte, eram as sras. Satin, Carlson e Travers. Renata Halpern se diplomara em Seth Low no dia 24 de junho de 1960. Não era líder da classe, mas Sidney Rosen fora grandemente elevado no cargo de presidente da turma. Sidney escrevera em seu livro de recordações: "Para Renata, até o fim dos tempos. Tome a condução que quiser, mas não parta até que tenha alcançado o sucesso." A melhor amiga de Renata, Shelly, que era abençoada com uma letra que parecia seda dobra­da, escreveu: "Para Renata, até a eternidade. Brilha, brilha, estre­linha, pompom e pote de creme evanescente, lápis de sobrancelha e também batom - vão fazer de você uma beleza. Parabéns à Rai­nha dos Corações de Seth Low."

Que maravilha, pensei, que minha nova amiga, Renata Halpern, tenha sido certa vez a Rainha dos Corações da Escola de Ensino Mé­dio Seth Low. Mas fiquei curioso por saber como sua vida se cruzara com a de Savannah. Minha irmã tinha uma prateleira repleta de li­vros do ano, que recolhera em lojas de sebos pela cidade. Ela adorava relancear o olhar pelas vidas de pessoas completamente estranhas. Mas o nome reverberava em meu cérebro e eu estava certo de tê-lo conhecido antes.

Voltei à sala e procurei nas sobrecapas dos livros de todos os seus amigos poetas. Então, notei a pilha de cartas que minha irmã recebera e lembrei-me de ter visto ali aquele nome.

A Kenyon Review enviara seu último exemplar para uma Rena­ta Halpern, e a revista fora mandada para o endereço de Savannah.

Quando verifiquei a correspondência pela primeira vez, pensei em afanar a revista, mas tive medo de melindrar alguma amiga de mi­nha irmã que estivesse usando seu apartamento para receber cor­respondência. Abri o envelope pardo e encontrei uma carta do editor da Kenyon Review, para Renata, colocada entre as páginas da revista.

 

Prezada srta. Halpern,

Quero lhe dizer que estou orgulhoso pela honra que a Kenyon Review teve de publicar seu primeiro poema. Também gostaria de enfatizar que teremos muito prazer em ver seus trabalhos no futu­ro. Queremos publicar o máximo que pudermos antes que uma das "grandes" a roube de nós. Espero que seu trabalho esteja pro­gredindo bem.

Atenciosamente

Roger Murrell

P.S. Mazeltov pela publicação de seu livro infantil.

 

Esquadrinhei o conteúdo da Kenyon Review e fui até a página 32, onde estava o poema de Renata Halpern. Eu havia lido oito linhas quando percebi que fora escrito por minha irmã.

 

Filha, pegue todas as palavras de sangue e lavanda e tempo,

Traga-as limpas e brilhantes para a luz.

Examine-as cuidadosamente à procura de defeitos

Saiba que o tigre se confunde com a astúcia das armadilhas bem colocadas

e suas narinas se enchem com o incenso da morte.

Assiste sem medo quando os estranhos se aproximam com facas.

Como vai parecer arrogante e solene a mulher que usar este casaco.

 

Moldo com minhas próprias mãos os pródigos casacos

e os envio como cartas de amor de Sigmund Halpern

àquelas mulheres delgadas e amorosas que louvam meu ofício

cada vez que se movem na luxúria insuperável das peles.

Para você, escolhi meu melhor trabalho, filha,

o único poema do peleteiro.

Este presente é a escritura sagrada que levantei da espinha da marta

ao buscar palavras para louvar as longitudes de tua imagem cuidadosa.

 

Minhas peles são as curadoras de tua beleza.

Antes que a poetisa sonhe com casacos, deve dominar a fundo

a heráldica das peles e aprender a fazer arte

a partir do sangue de irmãos e tigres.

 

Ao terminar a leitura, disse a mim mesmo que aquilo podia ser explicado, que existia uma solução simples e que esta se apresentaria a mim no devido tempo. Até onde eu sabia, minha irmã pouco conhe­cia sobre judeus e sobre peleteiros. Entretanto, eu tinha certeza de que ela escrevera aquele poema. O tigre denunciava seu segredo; sem falar do inimitável ritmo de sua poesia. Reabri o livro de recordações de Renata e olhei novamente as primeiras páginas. Não tardou que des­cobrisse. Ocupação da mãe: dona de casa. Ocupação do pai: peleteiro.

Desconfiei de que tocava em algo essencial da vida de minha irmã, mas não sabia exatamente o que aquilo significava. Tinha algo a ver com a feroz rejeição que ela sentia pela Carolina do Sul. O peleteiro redirecionara a voz da poetisa de volta à ilha e à infância, e suas ima­gens eram claras e emocionantes para mim. Ela estava abordando a história que nenhum de nós podia contar. Entretanto, a desonestidade enfraquecera sua arte, que não era fraudulenta, mas abrangente e oblí­qua. Sugeria um tema, porém sem desenvolvê-lo a fundo. Se você vai escrever sobre um tigre, Savannah, então escreva sobre a merda do tigre, pensei. E não se esconda por trás do ofício de peleteiro, Savannah. Recuse-se a cobrir seus poemas com pelicas luxuriantes e peles de animais invernais mortos pelas mandíbulas de cruéis armadi­lhas. Um peleteiro aquece; uma poetisa ferve em seus próprios elixires delicados. Um peleteiro faz um casaco a partir de pedaços combina­dos de pele de marta e de leopardo; uma poetisa ressuscita a marta e coloca um peixe meneando-se em sua boca, devolve o leopardo à este­pe, enchendo suas narinas com o aroma dos babuínos no cio. Você está se escondendo atrás de peles e casacos bem-feitos, Savannah. Está tornando o terror uma coisa quente, linda ao envolvê-lo suavemente em arminho, merino e chinchila, ao passo que ele deveria estar nu e inexperiente no frio. Mas você o abordou, querida irmã. Está chegan­do lá e eu estou chegando com você.

Voltei ao post-scriptum do editor da Kenyon Review. Reli-o cuida­dosamente: "Mazeltov pela publicação de seu livro infantil." Estaria ele falando sobre uma obra da verdadeira Renata Halpern ou teria minha irmã escrito livros infantis sob o mesmo pseudônimo que usara para publicar seus poemas? Durante uma hora, verifiquei atentamente as estantes do apartamento, procurando um livro infantil de Renata Halpern. Ao não encontrar nenhum ali na biblioteca, perguntei-me como Savannah poderia ter planejado escrever um livro daquele tipo. Frustrado, eu estava para cessar a procura quando lembrei que a Kenyon Review sempre publicava pequenos esboços biográficos de seus autores no fim da revista. Virei as páginas rapidamente e, sob a letra "H", li a breve descrição de Renata Halpern:

Renata Halpern vive em Brooklyn, Nova York, e trabalha na biblioteca do Brooklyn College. O poema que aparece neste nú­mero é seu primeiro poema publicado. Seu livro infantil O estilo sulista foi lançado pela editora Random House no ano passado. Atualmente ela está preparando uma coletânea de poemas.

 

Quando o vendedor me entregou o livro no setor infantil da livra­ria Scribner, tremi apenas ligeiramente. Não havia fotografia da auto­ra na quarta capa e a ilustração da frente mostrava três garotas sobre um desembarcadouro alimentando gaivotas. Atrás das meninas ao longe, no meio de um horizonte de árvores, uma pequena casa branca idêntica àquela onde cresci. Até a localização do celeiro era a mesma, assim como o número ímpar de janelas na fachada.

Abri o livro, li a primeira página e soube, sem sombra de dúvida, que o texto fora escrito por Savannah.

 

Que eu tropeçara em algo inestimável e essencial eu não tinha dúvi­da; mas a descoberta me deixou muito mais aturdido que esclarecido. A fusão de Savannah com Renata me parecia outra forma de evasão, outra maneira de circunavegar a ilha, em vez de reunir os materiais necessários para uma barcaça de desembarque aportar rapidamente. Fui direto ao apartamento de Eddie Detreville e bati com força à por­ta. Ao abri-la, Eddie disse:

O jantar é às oito, meu bem. Você está apenas quatro horas adiantado. Mas entre, por favor.

Tudo bem, Eddie - respondi, ao entrar na sala e sentar pe­sadamente num sofá vitoriano. - Você esteve escondendo coisas de mim.

Ah, é? Vou lhe preparar um drinque e então você me contará os segredos que o tio Eddie está escondendo. Que tal um martíni?

Quem é Renata, Eddie? - perguntei enquanto ele ia até o barzinho. - E por que você não me falou dela antes?

Há uma razão muito boa pela qual nunca te falei a respeito. Nunca ouvi falar de nenhuma criatura chamada Renata.

Você está mentindo. E uma amiga de minha irmã cujo nome Savannah usa para assinar seu próprio trabalho.

Então apresente-me a ela, por favor. Gostaria de conhecê-la. Aqui está seu drinque, Tom. Sugiro que tome um bom gole, deixe o álcool entrar em sua corrente sangüínea e então explique por que está tão furioso comigo.

Porque é impossível que você não conheça Renata. Ela deve ter vindo visitar minha irmã. As duas devem se freqüentar e tenho certeza de que Savannah lhe contou algo a respeito dessa maravilhosa amizade. Ela não usaria um novo nome sem uma poderosa ligação com a pessoa.

Savannah e eu achamos desnecessário partilhar nossas privacidades. Por razões que até você pode entender.

Abri o livro de recordações de Seth Low na página com a foto de Renata e perguntei:

Você nunca viu esta mulher, Eddie? Na caixa do correio ou es­perando o elevador?

Ele observou a fotografia por algum tempo e então sacudiu a cabeça.

Não, nunca vi em minha vida. Mas é engraçadinha. Pena que seja mulher.

Essa foto foi tirada há mais de vinte anos. Pense bem, Eddie. O rosto dela está mais velho agora. Talvez ela tenha cabelos grisa­lhos. Ou rugas.

Não conheço ninguém com essa cara, Tom.

E isto aqui? - Entreguei-lhe o livro infantil. - Foi Savannah quem o escreveu. Ela mostrou esse livro a você?

Não costumo ler literatura infantil, Tom. Você pode não ter percebido, mas tenho 42 anos. Sei que pareço mais jovem com essa luz suave. Agradeço a Deus pelos reostatos.

Então você está alegando que sua melhor amiga não lhe mos­trou esse livro?

Sim, Sherlock. É isso que estou dizendo.

Não acredito, Eddie. Simplesmente não acredito.

Para mim pouco importa. Por que eu mentiria para você, Tom?

Para proteger minha irmã.

Protegê-la de quê, meu querido?

Bem, talvez ela esteja tendo uma relação homossexual com Re­nata e você ache que sou incapaz de aceitar esse tipo de coisa.

Tom, eu ficaria encantado, absolutamente encantado se ela ti­vesse alguma relação homossexual. E não ligaria a mínima se você não aceitasse isso. Mas faça o favor de acreditar em mim quando lhe digo que não sei nada sobre Renata ou esse livro.

Tudo bem. Só pensei que você poderia me explicar essa histó­ria. Estou tão acostumado a ver Savannah fodida que morro de medo quando desconfio que ela esteja ainda pior.

Esses últimos três anos têm sido horríveis para ela. Até a mim ela evitou durante esse tempo. Sinceramente, quase não temos nos encontrado, a não ser quando meu amante parte em busca de corpos mais jovens. Então ela é uma princesa. Sempre foi maravilhosa com os amigos em crise.

Você também, Eddie. Voltarei às oito. Que há para o jantar?

Tenho lagostas deprimidas e tremendo de frio na geladeira. Serei forçado a assassiná-las; então, estarei obrigado a comer o que matei.

Obrigado, Eddie. E desculpe ter gritado com você.

Serviu para colocar um pouco de tempero num dia que teria sido chato.

 

De volta ao apartamento de Savannah, peguei o telefone e disquei o número de informações. Quando a telefonista atendeu, perguntei:

Gostaria de saber o número do telefone de uma família Halpern que reside, ou residia, no número 2.403 da rua 65, no Brooklyn.

O senhor tem o primeiro nome?

Sinto muito, não tenho. É uma velha amiga do colégio. Não sei nem se ela ainda mora lá.

Há um Sigmund Halpern nesse endereço. O número é 232-7321.

Pouco depois, disquei o número. Ao quarto toque, uma mulher atendeu.

Alô, é a sra. Halpern?

Pode ser. Mas também pode ser que não - respondeu ela num tom desconfiado e com sotaque do Leste Europeu. - Quem está falando?

Sra. Halpern, aqui é Sidney Rosen, não sei se a senhora se lem­bra de mim. Eu era o presidente da turma de Renata no curso secundário.

Claro que me lembro de você, Sidney. Renata costumava falar bastante a seu respeito. Tinha uma atração por você, mas, como sabe, era muito tímida.

Estou ligando para saber como ela vai, sra. Halpern. Estou pro­curando o velho pessoal da escola e fiquei curioso para descobrir o que aconteceu a Renata. - Não houve resposta, absolutamente nenhu­ma. - Sra. Halpern, a senhora continua aí?

A mulher estava chorando e demorou algum tempo até se recompor.

Então você não ouviu falar, Sidney?

Sobre o quê?

Ela está morta. Há dois anos, Renata se matou, jogando-se na frente de um trem do metrô no East Village. Ela andava muito depri­mida. Tentamos ajudá-la, mas nada funcionou. Ficamos arrasados.

Ela era uma menina maravilhosa, sra. Halpern. Sinto muito.

Obrigada. Ela admirava você, Sidney.

Por favor, transmita ao sr. Halpern os meus pêsames.

Farei isso. Você foi muito gentil em telefonar. Renata teria fica­do muito feliz. Você foi o único da turma que ligou. É o suficiente.

Adeus, sra. Halpern. E boa sorte. Sinto muito. Renata era uma pessoa tão doce!

Mas tão triste, Sidney, tão triste...

Desliguei o telefone e liguei de imediato para o consultório de Susan Lowenstein. Depois de três toques, ela atendeu.

Dra. Lowenstein, amanhã não vamos conversar sobre minha família.

Por quê, Tom? O que aconteceu?

Amanhã você vai me contar tudo sobre a Rainha de Copas, Renata Halpern.

Tudo bem. Conversaremos sobre isso.

Depois de colocar o fone no gancho, abri mais uma vez o livro infantil. Desta vez, li devagar e tomei notas escrupulosamente.

 

O Estilo Sulista

Por R. Halpern

 

Em uma ilha da costa da Carolina do Sul, uma mãe de cabelos negros vivia sozinha com suas três filhas de cabelos castanhos. A mãe se chama­va Blaise McKissick e era linda, de uma beleza silenciosa que agradava às crianças pequenas. Blaise passara generosamente essa dádiva para as fi­lhas, cujos rostos pareciam três variedades da mesma flor.

O marido de Blaise, Gregory, se perdera no mar durante uma tem­pestade no início de junho. Ele fora até a corrente do golfo para pescar albacora e golfinhos e simplesmente não retornara. Ao ver que ele não chegava, Blaise alertou a Guarda Costeira e a vizinhança, que partiram numa grande lancha à procura de seu marido. Durante duas semanas, todos os barcos do condado vasculharam o Atlântico, em todos os abri­gos, baías e braços de mar, tentando encontrar algum sinal de Gregory McKissick ou de sua embarcação. A noite, as três meninas aguardavam a mãe no desembarcadouro, com tempo bom ou com chuva, até vê-la emergir do nevoeiro que se elevava do ar fresco.

Depois do décimo quarto dia de busca infrutífera, não havia mo­tivo para ter esperança. A procura foi abandonada e Gregory, declara­do morto. Houve uma cerimônia fúnebre e, como era costume entre os pescadores do povoado, enterraram Gregory McKissick num cai­xão vazio sob o carvalho próximo à casa branca. A cidade inteira pa­rou para o enterro. As pequenas cidades têm bom coração. Mas, após o enterro, os amigos, com esposas e filhos, voltaram a sua vida e suas tarefas. A casa branca da ilha, que fora certa vez uma casa de risadas, ficou silenciosa. Todas as noites, as meninas viam a mãe sair para visi­tar o túmulo. O ar em volta da cova tinha o aroma da penteadeira em que ela guardava frascos de cristal e perfumes misteriosos. Ela sempre se sentava ali antes de ir ao túmulo do marido. Sua passagem pela casa era perfumada e triste. Porém, mais preocupante para as crianças era o fato de que ela perdera a voz depois da morte do pai. Quando lhe dirigiam a palavra, ela sorria e tentava falar, mas não conseguia.

Em pouco tempo, acostumaram-se ao silêncio, sofrendo pelo pai do mesmo modo. Quando conversavam entre si, apenas murmura­vam, certas de que suas vozes lembravam à sua mãe o tempo em que o pai vivia. Assim, os dias se passavam cada vez mais silenciosos.

As três garotas eram absolutamente diferentes umas das outras. Rose McKissick, além de mais velha, era a mais bonita e mais tagarela. O silêncio da casa a perturbava mais que às outras, o mesmo aconte­cendo com relação à perda do pai. Por ter sido a que o conhecera por mais tempo, fora sua favorita; afinal, nascera em primeiro lugar. E lhe era difícil silenciar a respeito das coisas que lhe vinham à cabeça. An­siava por conversar sobre o pai, determinar exatamente onde ficava o céu e o que ele estaria fazendo lá: queria saber se ele tivera tempo de dialogar com Deus e sobre o que teriam conversado. Mas não havia ninguém a quem perguntar, e isso a amedrontava. Tinha 12 anos, seus seios começavam a crescer e ela gostaria de discutir sobre esse fato espantoso com a mãe, para entender o que aquilo significava. Além disso, queria lhe perguntar por que era tão fácil esquecer o rosto do pai, pois já não conseguia recordá-lo exatamente... Às vezes, quando dormia, podia vê-lo com clareza. Ele ria e a abraçava, fazia uma de suas brincadeiras tolas e lhe coçava as costelas. Por trás dele, Rose en­xergava nuvens de tempestade movendo-se em sua direção e sabia que uma delas continha a terrível espada de luz que o mataria. Nuvens escuras transformaram-se em inimigas das crianças McKissick, que agora viviam numa casa na qual se temiam tempestades. Mas, para Rose em particular, era difícil ser feliz numa casa de silêncio.

Já Lindsay McKissick não tinha problema em se manter em silên­cio. Recebera esse dom desde o nascimento e o alimentara com sabe­doria durante seus 10 anos. Da mesma maneira que a mãe, media as palavras antes de abrir a boca. O que não chegava a ser um hábito. Como ela explicou depois de pensar por um longo tempo: "É apenas o tipo de garota que sou." Além disso, continuou: "Em todo caso, quem pode falar quando Rose está por perto?" Mesmo quando era bebê, não chorava com freqüência. Tinha uma serenidade que tanto preocupava os adultos como os atraía. As pessoas mais velhas suspeitavam de que ela as estava julgando e achando ridículas. Geralmente estavam certas. Ela considerava os adultos não só grandes demais, como também muito barulhentos. Sentia-se perfeitamente feliz como criança e espe­rando pelos acontecimentos. Preocupava-se ao imaginar que esperara muito e que o pai falecera sem saber quanto ela o amava. Isso a pertur­bava e a ajudava a se tornar, além de silenciosa, ainda mais retraída e introspectiva. Deitada na rede do jardim, Lindsay fitava o rio. Os olhos azuis mostravam uma expressão feroz e pareciam queimar com a fúria da água pura, ou das flores silvestres na tempestade. Mas não havia fúria ali. Apenas amor por um pai que nunca mais veria, que não a conhecera e jamais conheceria.

Sharon McKissick tinha 8 anos e sentia o peso de ser a mais jo­vem. Pensava que ninguém na família a levava a sério por ser tão pe­quena e frágil. Todos a haviam chamado Baby McKissick até ela fazer 6 anos e lembrar-lhes que possuía um nome, que era Sharon. Ninguém perdera tempo em lhe explicar a morte do pai porque achavam que era muito pequena para entender. No dia do enterro, sua mãe fora a seu quarto e lhe dissera com voz trêmula que seu pai se fora para dormir. Ela fizera a mãe chorar, perguntando:

- Por quanto tempo?

Em virtude disso, tivera medo de fazer outras perguntas. Sharon observara a grama crescer sobre o túmulo do pai. No início, apenas algumas folhas que saíam da terra; um dia, porém, tudo estava verde como uma bela colcha que cobrisse o lugar em que ele dormia. Conse­guia ver o túmulo da janela do quarto e se perturbava à noite, imagi­nando que o pai poderia se sentir só. Quando o vento se levantava do rio, ela subia na cama e olhava pela janela em direção à cova, à luz do luar. Podia vê-lo, apesar de a figura nada ter a ver com seu pai. Então imaginava anjos reunidos em torno da lápide, ajudando-o a so­breviver à solidão da noite varrida pelo vento. Mas isso de nada servia. Assim, jurou a si mesma que, se algum dia tivesse um filho de 8 anos, a criança saberia tudo sobre a vida, a morte e as relações entre elas. Iria lhe mostrar tudo quando a criança tivesse 9 anos. Nessa idade, os pe­quenos a escutariam e ela certamente teria coisas a dizer.

A ilha chamava-se Yemassee, nome tirado da tribo de índios que lá vivera antes de o homem branco chegar e tomar posse do lugar. Antes de morrer, Gregory McKissick contara às filhas histórias da tribo fantas­ma que perambulava à noite pelas florestas. Ainda se podia ouvir o che­fe lamentar-se quando a coruja piava nas árvores. As mulheres tagarelavam enquanto as cigarras emitiam seus sons estridentes na flo­resta que circundava a casa. As crianças índias montavam nos veados que andavam sem destino pela ilha em hordas silenciosas. Só que não havia índios ali, apenas pontas de flechas que apareciam na terra a cada primavera quando o pai das garotas arava as terras férteis no centro da ilha. Eram como orações pelos mortos espalhadas ao acaso. Cada meni­na tinha uma coleção particular de pontas de flechas, símbolos da extinção reunidos pelos cara-pálidas. Mas o pai lhes dissera que as tri­bos tinham sobrevivido nas terras baixas da Carolina do Sul por meio das palavras. Parte da linguagem indígena permanecera em fragmentos, em formas simétricas, como pontas de flechas, como poemas afiados. "Yemassee", o pai dissera. "Yemassee e Kiawah. Combahee", ele murmurara. "Combahee e Edisto e Wando e Yemassee." As garotas cresceram na ilha sabendo tudo sobre pontas de flechas e palavras perdidas das tribos.

Cada uma pensava no pai quando observava a própria coleção de pontas de flechas. As tribos estavam extintas, e seu pai também. Ele não lhes deixara pontas de flechas pelas quais recordá-lo. Somente se fizes­sem bastante silêncio ouviriam sua voz novamente. Ele viria como uma coruja, ou um sabiá da praia, ou um falcão. Elas o escutariam novamen­te. Elas o veriam. Estavam certas disso. Sabiam. Os pajés tinham feito magia naquelas ilhas, o pai lhes contara. Elas procurariam pelo pai montado nos cervos ou sentado nas costas dos grandes golfinhos verdes que brincavam nas marés que fluíam ao lado da ilha.

Aquelas meninas acreditavam em magia, e a encontraram. Cada uma delas, sozinha, em seu próprio tempo, em seu próprio mundo, a encontrou. Porque eram atentas e silenciosas.

Rose encontrou-a no dia em que recuperava a asa de um passari­nho em seu hospital de animais. Ela fundara o hospital ao descobrir os filhotes de um cachorro-do-mato, morto certa noite, atropelado pelo caminhão de seu pai. Pegara os filhotes, alimentara-os com um conta-gotas e os criara para serem animais de estimação bem-educados. Quando tinham idade suficiente, ela os distribuiu em outras casas para viverem com pessoas que apreciavam cães treinados. Isso foi ape­nas o começo. Com o tempo, descobriu que a Natureza inteira parecia requerer seus serviços. Esquilos bebês e pássaros recém-nascidos caí­am constantemente de seus ninhos. Os caçadores, atirando fora de estação, matavam mães gambás e guaxinins, abandonando os filhotes para morrerem de fome em lugares escondidos. Algo sempre a dirigia àquelas árvores e tocos nos quais os órfãos aguardavam o retorno dos pais. Ela caminhava pela floresta e ouvia vozes que a chamavam:

Um pouco mais para lá, Rose. Um pouco para a esquerda, Rose. Perto da lagoa, Rose. - Ela seguia aquelas vozes. Não podia evitá- lo. Sabia o que era sentir-se abandonado. Descobrira que possuía um dom para a cura, para acalmar o medo das pequenas criaturas, para confortar os feridos. Nada disso a surpreendia. O que a deixava per­plexa era o fato de poder conversar com todos eles quando estavam sob seus cuidados. Ela viu uma raposa no rio, ferida, perseguida pelos cães, nadando em direção à ilha Yemassee. O sangue do animal man­chava a água e deixava um rastro vermelho como uma bandeira. Os cães quase a alcançavam quando a raposa levantou os olhos e viu Rose, que assistia da margem.

Ajude-me - pediu.

Houve um estranho murmúrio na garganta de Rose, algo inumano e não-natural.

Parem - ordenou ela aos cães. Estes, espantados, levantaram os olhos.

E nosso trabalho.

Hoje não. Voltem a seu senhor.

É Rose - disse um dos cães.

A menina. A menina de cabelos castanhos. A que nos salvou quando nossa mãe foi morta.

Ah, Rose - falou o segundo cão.

Obrigado, Rose - emendou o terceiro. - Cuide da raposa. Foi bom você ter vindo.

Por que vocês caçam?

- É nossa natureza, Rose - explicou o primeiro cão enquanto os três nadavam para a margem oposta.

A raposa lutou para chegar à margem e caiu aos pés de Rose, que a carregou para o celeiro, limpou seu ferimento e cuidou dela durante a noite. Era o qüinquagésimo animal que vinha até ela. O animal lhe contou sobre a vida das raposas. Rose achou aquilo interessante. Em casa, ficava solitária e triste; mas, no celeiro, nunca.

 

Na casa sem palavras, Lindsay vivia alerta, procurando ouvir a canção dos campos. Cuidava do gado que perambulava pelo lindo pasto no lado sul da ilha. Ia na parte traseira da caminhonete da mãe, jogando fardos de feno a intervalos de 30 metros, cada vez que o veículo fazia uma parada. O rebanho movia-se em torno da caminhonete, com suas caras brancas, serenas e agradáveis - exceto a do grande touro, Intrépido, que a observa­va a distância, avaliando-a com olhos escuros e selvagens. Intrépido era forte, perigoso, mas Lindsay sustentava seu olhar. Mesmo sabendo que ele era o senhor daqueles campos, queria que o animal compreendesse que nada tinha a temer da parte dela. Lindsay ama o rebanho, diziam seus olhos. Você não é das nossas, respondiam os dele. Não posso evitar ser quem sou, o olhar dela replicava. Nem eu, dizia o dele.

Ela andava sozinha pelos pastos, brincando com os bezerros, dan­do-lhes belos nomes que faziam cócegas em seus ouvidos: Petúnia e Cásper, Belzebu e Alcachofra de Jerusalém, Rumplestiltskin e Washing­ton, D.C. Lindsay sempre mantinha distância de Intrépido, que certa vez quase matara um intruso numa fazenda perto de Charleston. Ela trancava o portão de seu pasto e caminhava entre as vacas e os bezerros, sem medo e sentindo-se bem-vinda. Toda vez que uma vaca tinha um bezerrinho, ela esperava no campo a seu lado, murmurando-lhe algo e, quando necessário, ajudando no parto. Admirava a resignação daqueles animais enormes e pacientes. Eram boas mães e organizavam suas vidas com simplicidade. Mas Lindsay sentia-se atraída pela presença majesto­sa de Intrépido. Como seu próprio pai, ele era silencioso. Apenas seus olhos falavam. Até a noite em que a magia mudou sua vida.

Ela estava dormindo e a chuva cantava de encontro ao telhado de zinco. Sonhava que era um bezerro cambaleando para a luz do sol em seu primeiro dia de vida. Sua mãe era uma vaca com uma bela cara branca; e o pai que a observava, um Intrépido mais gentil e suave. Ouviu uma voz, que não a surpreendeu. O que a surpreendeu foi sua resposta, um som murmurante e adorável que subia do sonho como fumaça e se elevava no quarto na linguagem secreta das manadas.

Você deve vir - disse uma voz profunda. - Há necessidade.

Quem me pede?

O rei do rebanho. Você deve se apressar.

Lindsay abriu os olhos e viu a cabeça feroz de Intrépido através da janela, as feições terríveis borradas pela chuva. Os olhos frios do touro encontraram os seus. Ela se levantou da cama, foi até a janela e abriu-a. A chuva morna batia de encontro a seu rosto quando pulou para fora e montou no dorso de Intrépido. Passando os braços em torno do pescoço do touro, agarrou-lhe a pele com os dedos. E segurou com força quando o animal saiu em disparada do jardim rumo à estrada de terra que levava aos pastos. Ao passar sob a sombra dos carvalhos, o musgo molhado que pendia dos galhos tocou-a como se fosse a lavanderia secreta dos anjos da floresta. Na medida em que se distanciavam, ela viu a estrada entre os chifres do animal curvar-se para longe do pântano. Enterrou os pés nos flancos do bicho. Então sua carne se moveu com a dele e sentiu chifres brotarem entre seus cabelos. Percebeu que se tornava parte do touro, me­tade com cascos e perigoso, metade senhor das pastagens. Lindsay correu com Intrépido e, por um miraculoso quilômetro, avançou como se fosse ele. Chegando ao pasto, diminuiu a velocidade. Logo, ele parou ao lado das três palmeiras gigantes que formavam o limite oriental da pastagem. Uma vaca nova, Margarita, estava dando à luz seu primeiro bezerro. Era prematuro e algo parecia errado. Intrépido ajoelhou-se e Lindsay pulou de seu dorso, correndo para Margarita. A posição do bezerro não estava correta - suas pernas se projetavam para fora num ângulo errado. E a mãe estava em desespero. Lindsay segurou as pernas do filhote e começou a puxá-lo delicadamente. Durante mais de uma hora forçou-o para fora da mãe. Com os cabelos molhados de suor, percebia a presença de Intrépido às suas costas; sentia a força de seu poder. Apesar de não entender o que estava fazendo, notou que, afinal, as coisas se acertavam e o bezerro corri­gia sua posição. Pouco depois, uma pequena fêmea descansava sobre a relva, exausta, porém viva. Margarita lambeu a novilha com sua língua prateada e a chuva caiu. Lindsay batizou-a como Bathsheba e aninhou o rosto de encontro ao animal.

Intrépido ajoelhou-se novamente e Lindsay montou em suas cos­tas, girando a mão em torno do chifre direito como se este fosse um mastro. Voltou em triunfo para casa e todas as vacas aplaudiram sua saída do pasto, reverenciando-a com um mugido suave. O grande touro estava em silêncio ao correr pela estrada, mas Lindsay não ligou. Encostou o nariz nele e inalou sua força úmida. Lambeu a água da chuva no pescoço do animal e retornou para sua casa como uma nova criança, alguma coisa nova, selvagem e linda. Subiu de novo pela jane­la do quarto, enxugou-se com cuidado e nada disse à família.

O poder chegara para ela e Lindsay não abusaria dele. Falar sobre ele seria traí-lo. E isso seria fácil numa casa silenciosa, numa casa sem palavras.

No dia seguinte, Lindsay caminhava pela mesma estrada rumo ao pasto em que passara na noite anterior. Enxergava as marcas dos cas­cos de Intrépido nos lugares em que se fincaram na terra macia. Fizera uma coroa de flores para colocar em volta do pescoço de Margarita, mas, ao passar pelo brejo, ouviu um grito áspero e lúgubre, um som que nunca escutara na ilha. Sentiu então aquela estranha aura retornar e um som sair de sua própria garganta em resposta ao primeiro grito. Desta vez, não ficou surpresa, mas confiante. Experimentava uma ligação com o mundo selvagem que a deixava invulnerável, viva e alerta a todas as coisas. Um som assustador escapou de seus lábios, um grunhido demoníaco que a espantou. Mas era apenas a resposta à voz abafada que a havia chamado.

- Por favor - gritava a voz. Então Lindsay penetrou na parte do bosque que seu pai proibira que as filhas entrassem. Manteve-se sobre a (erra firme, saltou sobre a água, evitou o terreno escorregadio. Enquan­to avançava, as cabeças dos water moccassins se elevavam da água como pcriscópios negros. Eles não lhe falavam; não faziam parte de sua magia.

No centro do pântano, ouviu um ruído violento e, rodeando um cipreste, encontrou o javali, Dreadnought, enterrado até o pescoço na meia movediça. Seu pai o havia caçado durante anos e nunca estivera frente a frente com ele. Quanto mais o javali lutava, mais a areia o engo­lia. Aquilo lembrava o salvamento da novilha que lutara para nascer. As presas de Dreadnought brilhavam intensamente à luz do sol. Seus olhos eram amarelos e o pêlo negro de suas costas estava eriçado como uma fileira de espinhos. Lindsay agarrou um galho morto de um sicômoro e, deitando-se de bruços, avançou pelo terreno instável até sentir que es­corregava para dentro da terra. Equilibrou-se e continuou a avançar, impelindo o galho em direção a Dreadnought.

Por favor - veio o pedido novamente.

Ela se adiantou mais um pouco, até que o galho atingisse o focinho do porco-do-mato. Este o agarrou com seus dentes selvagens. Ela retrocedeu lentamente.

Tenha paciência - ordenou. - Flutue como se fosse na água.

O porco selvagem relaxou os músculos e o pêlo de suas costas

abaixou. Ele flutuou na lama assassina e sentiu a pequena pressão que a menina de 10 anos fazia em suas gengivas. Paciente, ela o movia ape­nas alguns centímetros de cada vez. Atrás dela, todos os porcos selva­gens da ilha estavam reunidos para assistir à morte de seu rei. Lindsay puxava quando podia e descansava quando era necessário. Seu corpo doía, mas há deveres quando se está a serviço da magia. Finalmente, Dreadnought pôs um casco sobre um toro caído. Seu corpo estreme­ceu na luta para sair da lama, e ele urrou de alívio ao se libertar para a floresta. Caminhando devagarinho pelo toro, não dava um passo sem testar cuidadosamente a terra que estava à sua frente. Lúcifer, o croco­dilo de 4,5 metros, moveu-se pela água rasa e observou o porco-do-mato quando este atingiu a terra firme.

Muito tarde, Lúcifer - gritou o porco selvagem.

Haverá outra vez, Dreadnought. Comi um de seus filhos na semana passada.

E eu comi os ovos de mil de seus filhos.

Então, Dreadnought voltou-se para Lindsay. Uma leve passada de sua presa poderia abri-la da cabeça aos pés. Cercada por porcos selva­gens, ela estava quase perdendo a crença na magia. Mas o porco-do-mato a confortou com estas palavras, antes de ir embora com seu feroz grupo negro:

Estou lhe devendo, filha. Obrigado por minha vida.

Os porcos selvagens se dissolveram como sombras na floresta e todas as cobras da ilha tremeram e sibilaram à sua aproximação. Lindsay tentou falar com Lúcifer, mas ele se afundou na água negra sem agitá-la, a 10 metros de onde ela estava. Então não posso conver­sar com crocodilos, pensou ela. Grande coisa! Foi a primeira vez que ela notou que seu dom era limitado.

 

O silêncio na casa incomodava Sharon, a caçula das três, mais que às outras. Ela queria conversar sobre o pai, contar suas histórias favoritas a respeito dele. E lhe seria mais fácil recordá-lo se a mãe e as irmãs revelas­sem o que mais gostavam nele. Quando tivesse 9 anos, elas a escutariam. Tinha certeza. Sendo do tipo que mantém os olhos voltados para o chão ou elevados para fitar o céu, ela ligava pouco para o que estava no meio. Chocava-se com freqüência contra as árvores enquanto caminhava olhando para o alto à procura de patos voando para o norte pela rota sulista. A liberdade dos pássaros a atraía e Sharon considerava um des­cuido de Deus não ter posto asas em Adão e Eva. A cada pôr-do-sol, ela caminhava até o fim do desembarcadouro, carregada de pão e sobras de comida para alimentar as gaivotas. Jogava os pedaços de pão para o alto e as gaivotas os agarravam em pleno vôo. Ficava cercada pelo frenético bater de asas e pelos gritos impacientes das aves. Centenas de pássaros a esperavam todas as noites. A mãe e as irmãs a observavam nervosamen­te da varanda cercada de tela. Com freqüência, ela desaparecia no meio da agitação de asas e penas. Mas todos os pássaros a faziam feliz.

E os insetos também. Na criação de abelhas, era a única que ajudava a mãe a recolher o mel das colméias. Para Sharon, uma abelha era uma criatura perfeita. Não apenas voava, como tinha um trabalho maravilhoso: visitar flores e jardins durante o dia, e voltar para tagarelar com as amigas e fazer mel à noite. Mas, uma vez que percebera as abelhas, co­meçou a estudar e a admirar seus vizinhos. O quarto fervilhava com pequenas caixas de insetos, besouros surpreendentes, louva-a-deus, ga­fanhotos que cuspiam o sumo do tabaco em suas mãos, uma colônia inteira de formigas atrás de vidros, e borboletas. Sharon amava a maravilhosa organização dos insetos. Se eles não faziam muita coisa, o que faziam era bem-feito. Aquele hobby merecia o desprezo de suas irmãs.

Argh! insetos - dissera Rose certa vez ao entrar em seu quarto.

Qualquer pessoa, qualquer um pode gostar de um cachorro ou de uma vaca - Sharon respondera. - É preciso ser especial para gos­tar de insetos. - A irmã rira.

O fenômeno aconteceu quando Sharon caminhava pelo bosque perto de sua casa, à procura de novas colônias de formigas. Carregava uma sacola cheia de biscoitos de chocolate. Sempre que encontrava uma colônia, colocava um biscoito próximo ao formigueiro e sentia prazer quando as operárias topavam com aquele banquete e enviavam uma formiga ao formigueiro com a agradável notícia. As formigas então corriam alegremente para fora da toca, demoliam o biscoito migalha por migalha e levavam todos os pedacinhos para baixo da terra. Sharon encontrara dois novos formigueiros naquele dia e procurava mais um quando ouviu uma voz débil chamando seu nome.

Olhou na direção de onde viera o som. Viu uma vespa enredada na imensa teia prateada de uma aranha de jardim. A aranha caminha­va pela teia em direção à vespa, deslizando com a facilidade de um marinheiro mastreando um navio. A vespa gritou outra vez e girou com desespero na teia. Sharon sentiu palavras estranhas se formarem em sua língua. Só que não eram palavras, mas sons secretos que a as­sustaram quando ela ouviu a si mesma expressando-se num idioma jamais falado pelos humanos sobre a terra:

Pare!

A aranha parou com uma de suas pernas negras já subindo no abdome da vespa.

As coisas são assim - disse a aranha.

Não desta vez. - Sharon tirou um grampo do cabelo e soltou a vespa. A teia, intrincada como uma renda, caiu em pedaços entre as árvores. Então, ouviu a vespa cantando uma canção de amor dedicada a ela enquanto voava acima das árvores. - Sinto muito - disse Sharon à aranha.

Isso não está certo - respondeu ela, amuada. - Esse é o meu papel. - Procurando entre as folhas, Sharon achou um gafanhoto morto, que colocou no que sobrara da teia. Esta estremeceu como uma harpa quando ela a tocou.

Sinto ter rompido sua teia. Não podia deixar você fazer aquilo. É terrível demais.

Você já viu uma vespa matar? - replicou a aranha.

Sim.

Não é mais bonito que isso. A vida é assim.

Gostaria de ajudá-la a consertar a teia.

Você pode. Agora você pode.

Sharon sentiu um tremor nas mãos, um poder que nascia. O san­gue em seus dedos encheu-se de seda. Ao estender as mãos para a teia danificada, linhas prateadas fluíram de suas unhas. No início, não conseguiu fazê-lo. Dava laçadas quando deveria seguir em linha reta. Mas a aranha era paciente e, em pouco tempo, Sharon teceu uma bela teia que pendia como uma rede de pescador entre duas árvores. Então, ouviu da aranha informações sobre sua vida solitária; havia um lagar­to que vivia sob um toco de carvalho próximo que quase a comera duas vezes. Sharon sugeriu que a aranha se mudasse para mais perto de sua casa, de modo que pudesse visitá-la com maior freqüência. A aranha concordou e caminhou por seu braço até o ombro. Enquanto a levava em direção à sua casa, ela ouviu as colônias de formigas cantan­do sob a terra, louvando-a e elogiando seus biscoitos de chocolate. As vespas voavam e lhe beijavam os lábios, fazendo cócegas em seu nariz com as asas. Ela nunca fora tão feliz.

Encontrou uma nova casa para a aranha, sem lagartos por perto. A aranha foi colocada entre dois arbustos de camélias e, juntas, as duas tece­ram uma teia ainda mais linda que a última. Sharon disse adeus ao sol quando este se pôs. Ouviu os gritos das gaivotas no desembarcadouro.

As gaivotas a esperavam, planando nas correntes de ar sobre o rio como uma centena de pipas presas a fios de diversos comprimentos. Sharon saiu de casa carregando uma sacola com restos de comida que a mãe guardara para ela. Correndo, ouviu as vozes dos grilos e dos besouros que sobre a relva lhe diziam para ter cuidado onde pisava. Ela quase não podia andar até o desembarcadouro sem pôr em perigo a vida de alguma pequena criatura.

Chegando ao cais, jogou para o ar um punhado de migalhas de pão. Cada pedaço era agarrado antes de cair na água. Mais uma vez, ela atirou o pão para o alto e, mais uma vez, o ar ficou cheio de asas. Ela não se surpreendeu por entender o que as gaivotas diziam umas às outras. Eram briguentas, impacientes e reclamavam que alguns pássa­ros recebiam mais pão que os outros. Perto dali, uma águia-pescadora planava acima do rio, esperando por um peixe. Quando um pequeno mugem faiscou na superfície, ela ouviu a águia-pescadora gritar "Agora", enquanto mergulhava em direção à água. Em seguida, a ave levan­tou vôo com o peixe debatendo-se em suas garras.

Havia uma gaivota estranha observando-a. Maior do que as ou­tras, tinha o dorso preto e era carrancuda. Uma ave acostumada às longas distâncias do mar, que pairava sobre o rio avaliando Sharon. Esta lhe disse olá, mas não houve resposta. Quando terminou de ali­mentar os pássaros, desejou-lhes boa-noite. A gaivota de dorso negro voou até o fim do desembarcadouro e bloqueou sua passagem. O can­saço da longa viagem aparecia nos olhos do animal.

O que você quer? - perguntou Sharon.

Seu pai está vivo.

Como é que você sabe?

Eu o vi - disse a gaivota, cansada.

Ele está em perigo?

Sim, está em grande perigo.

Volte, gaivota. Por favor, ajude-o.

A gaivota bateu as asas demonstrando cansaço, depois elevou-se no ar e se voltou para o sul. Sharon observou-a até ela desaparecer. Os grilos cantavam na relva e Sharon entendia cada palavra.

De volta à casa, encontrou a mãe ao fogão, fazendo o jantar. O cheiro das cebolas tornando-se ouro na manteiga enchia a casa. Sharon quis contar à mãe o que a gaivota lhe dissera, mas não sabia como explicar seu dom. No entanto, sentia-se feliz em saber que o pai estava vivo. Ajudou as irmãs a pôr a mesa. O rádio estava ligado na cozinha. Blaise mantinha-o ligado o dia inteiro para o caso de haver notícias sobre seu marido. Infelizmente não houve novida­des importantes para ela: o preço da carne de porco estava caindo; as chuvas haviam danificado a safra de tomates; e três homens tinham fugido do instituto correcional de Columbia depois de matarem um guarda. Pensava-se que se dirigiam para a Carolina do Norte.

 

NO fim da tarde do dia seguinte, a floresta estava silenciosa e três homens observavam a casa do meio do bosque. Seus rostos haviam esquecido como se sorria. Observavam o movimento das meninas e da mulher entrando e saindo. Ao não perceberem sinal de nenhum homem, começaram a se mover sorrateiramente em direção à casa. Mas foram vistos: a aranha assistiu à aproximação deles de seu lugar entre os arbustos de camélias; uma porca selvagem, filha de Dreadnought, também percebeu a chegada; uma gaivota observava cada movimento do grupo; uma vespa voou entre as árvores, acima dos três; um cachorrinho no celeiro, que mal podia andar, encontrado recentemente por Rose, farejou o ar e ficou curioso com o cheiro dos estranhos; era cheiro de maldade que chegava aos lugares tranqüilos. Os três homens se dirigiram para a casa. Entraram nela por três portas diferentes e o fizeram de maneira violenta, sem deixar espaço.para fuga. Rose gritou ao vê-los armados de pistolas. As três meninas corre­ram para a cadeira em que a mãe estava sentada lendo um livro. O homem baixo correu até o suporte das armas e tirou dali três espin­gardas, jogando as caixas de munição num saco de papel. O gordo se dirigiu para a cozinha e pôs-se a encher um saco de lixo com comida enlatada. O maior deles apontou a pistola para a mãe e as filhas, sem conseguir tirar os olhos daquela.

O que você quer? - perguntou Blaise. As garotas perceberam o terror em sua voz.

Vamos - gritou o gordo da cozinha. - Temos de continuar. Ain­da fitando Blaise, o homem replicou:

Antes de matá-las, quero levar a mulher ao quarto dos fundos.

Não temos tempo para isso - choramingou o gordo.

O homem grande dirigiu-se a Blaise, agarrou-a rudemente pelo pulso e puxou-a para si. Rose o atacou, súbita e furiosamente. Foi até ele com a mão em garra e lhe feriu o rosto com ás unhas, tirando sangue. Ele a esbofeteou com força, fazendo-a cair de joelhos. Com lágrimas nos olhos, ela encostou a cabeça no chão. Nesse instante, uma voz estranha saiu de sua garganta em ondas de fúria e terror. Era algo sobre-humano, que provocou riso nos desconhecidos.

O cachorrinho no celeiro, no entanto, não riu. Ele fora trazido por Rose naquela manhã, depois de ter sido abandonado nos degraus da escola. O pequeno animal saiu do galpão e desceu em direção ao rio. Tropeçou uma vez por causa das orelhas desengonçadas e dos pés muito grandes. Ofegando, chegou ao desembarcadouro e parou para respirar. Olhando para o rio, elevou a voz em um agudo pedido de socorro. Seus gritos foram levados ao longo do rio, mas não houve resposta. Tentou mais uma vez. Nada ainda. Mas a raposa que Rose salvara certa vez dos cachorros ouviu o filhotinho. E começou a dar sinal perto de sua toca. Um cão de fazenda do outro lado do rio ouviu e passou a mensagem, que seguiu de fazenda a fazenda até alcançar a cidade. Rose continuava gritando no chão, certa de que ninguém a escutara.

Naquele exato momento, porém, todos os cães da cidade entra­ram em algazarra por uma vasta região. Cavaram buracos sob as cer­cas que os prendiam, escaparam dos canis, quebraram as janelas das casas de seus donos... As estradas do município ficaram congestiona­das pelo movimento dos animais que migravam por terra. No depósi­to onde os cães condenados aguardavam a execução, um cachorro mordeu a cerca de arame, fez um buraco e cinqüenta companheiros, que estariam mortos em uma semana, juntaram-se à corrida até a ilha. Formavam um bando feroz e unido, possuído de uma estranha ânsia. Um homem malvado maltratara Rose, a amante dos bichos, a que perdera seu tempo para aprender a linguagem deles. O bando se movia rapidamente. Partilhava uma missão.

Lindsay, ao ver a irmã chorando no chão, pegou um cinzeiro, atirou-o no homem alto e, de cabeça baixa, investiu contra as per­nas dele.

- Não vou deixar você machucar minha mãe!

O sujeito levantou o rosto dela e o esbofeteou, fazendo com que seu corpo girasse pela sala, o sangue escorrendo do nariz. Mas Lindsay não chorou como os homens esperavam. Em vez disso, gritou de pura agonia, numa língua de perplexidade e fúria que ninguém entendeu. Não havia delicadeza em sua voz trêmula: era um idioma de chifres, cascos e presas. Ela gritava para o gado que pastava perto dos velhos campos de arroz e para os porcos-do-mato que perambulavam no centro da ilha.

Próxima à casa, Bathsheba, que Lindsay ajudara a trazer ao mun­do, afastara-se da mãe. A novilha pouco conhecia daquela língua; sa­bia apenas algumas palavras desse dialeto secreto que encerrava todos os mistérios do mundo das pastagens e da relva. Mas sabia que alguma coisa estava errada na casinha branca, e correu sobre as pernas finas e pouco firmes pela estrada principal que cortava o centro da ilha. Avançou com rapidez, até sair da floresta e ver o rebanho pastando. Dirigiu-se imediatamente ao touro Intrépido, que pastava sozinho, isolado do rebanho.

O touro a olhou, zangado.

O que significa isso, filha? Volte para sua mãe.

Menina - respondeu o bezerro, sem fôlego.

Menina? Que menina? - indagou o touro, batendo o pé na relva.

A menina de olhos azuis.

Você quer dizer a nossa Lindsay? A menina do rebanho?

Sim. Ela mesmo.

Que aconteceu com ela? Fale logo.

Socorro.

Socorrer o quê, filha? Socorrer quem? Quando?

A menina diz socorro. Diz que precisa do rebanho.

Ao ouvir um grito de angústia no rebanho, Intrépido levantou os olhos a tempo de ver o porco-do-mato, Dreadnought, vindo rapida­mente em direção à novilha. O touro colocou-se na frente do rebanho, abaixando os chifres como advertência.

Suíno! - alertou.

O velho javali parou, medonho e cruel, menosprezado pelas va­cas. Atrás dele, saindo do meio das árvores, apareceu seu bando, as presas brilhando como lanças ao sol.

O que foi isso que eu ouvi? O que há com a menina?

Ela é nossa menina. Pertence ao rebanho - disse o touro.

Ela adora os suínos - garantiu Dreadnought.

Ela adora o gado - replicou o touro ferozmente.

Ambos - disse o bezerro. - Foi isso que ela falou. Ama a ambos. Ela disse socorro.

Então a linguagem dos suínos e a do gado se misturaram e os animais perfilaram-se em terrível simetria rumo à casa. Dreadnought e Intrépido marchavam à frente daquele formidável regimento. Mais adiante, ouviram o latido grave dos cães que se atropelavam sobre a ponte que levava à ilha.

Blaise olhou para Lindsay, que sangrava no chão, relanceou o olhar pelos três homens armados e sentiu o cheiro da maldade na sala, como se fosse uma flor aviltada. Do lado de fora, viu o rio fluir pacifi­camente como sempre fluíra.

Vou para o quarto com vocês se deixarem minhas filhas em paz. Se não nos machucarem - declarou ela.

Você não tem escolha, dona - disse o homem grande, agarrando-a pela blusa e rasgando-a no ombro. Então, a menina menor, Sharon, avançou para ele.

Saia da minha casa - gritou, antes de começar a balbuciar numa língua estranha, recém-aprendida, ininteligível aos humanos que estavam na sala.

A aranha no jardim passou pela teia brilhante como uma dançari­na, subiu ao parapeito de uma das janelas e olhou para dentro da sala. Ao ouvir as palavras de Sharon, logo deu o alarme. Naquele instante, a teia tremeu abaixo de si: eram as asas amarelas de uma borboleta mo­narca adejando de encontro à rede invisível. A aranha aproximou-se do inseto, que entoou sua canção da morte para os ares. Mas, em vez de liquidá-la, apenas tocou-a com suas pernas negras, libertando-a delica­damente. A borboleta elevou-se no ar, confusa e maravilhada.

Mande um alarme, monarca. A menina está em perigo.

A borboleta voou alto sobre a ilha e murmurou a melodia da des­graça da floresta. A aranha gritou de sua teia, um grito de alarme. As formigas ouviram. As cigarras ouviram. Um milhão de abelhas deixa­ram sua colméia e seu trabalho nas flores e voaram em direção à casa. Uma gaivota ouviu o aviso da monarca e respondeu com o grito dos pássaros. O ar ao redor da ilha escureceu com as asas agitadas das aves marinhas.

Os porcos selvagens, o gado e os cães avançavam velozmente para a casa, e todos perceberam que as folhas se moviam cheias de vida, que as árvores estavam repletas de insetos, que o chão da floresta fervilha­va com o fluxo incontável de insetos que seguiam como um rio em direção à casa. A floresta se mexia; a terra se mexia.

O homem grande empurrou Blaise rudemente para os fundos da casa. As três meninas gritaram para que parasse. Os outros riram. Ri­ram muito. Até que ouviram o ruído do lado de fora. A princípio era como um murmúrio, baixo e sinistro, mas logo aumentou em volume e furor. Os homens se entreolharam, confusos. Aquilo soava como se fosse o dia da criação do mundo, como se todas as criaturas estives­sem experimentando a voz pela primeira vez. O temor e a glória do Éden explodiam numa canção de vingança ao redor da casa à beira do rio. Ágeis cervos, montados pelos fantasmas de meninos índios, pa­trulhavam a margem do rio. O céu estava negro com as asas. A relva, coberta de insetos de todos os matizes. O rebanho urrava. Os suínos estrondavam. Pássaros gritavam.

Os homens na casa ficaram paralisados. E as meninas continua­ram a falar em suas novas línguas.

Matem-nos - era a tradução do que diziam. - Matem-nos.

O homem grande, segurando a pistola para o alto, arrastou-se até a janela e olhou para fora. Olhou e gritou. O grito era facilmen­te traduzível. Puro medo. Os outros dois se juntaram a ele e lhe fizeram eco.

Eies são meus - trovejou Intrépido, o touro.

Deixe que fiquemos com eles - ordenou Dreadnought, o javali.

As abelhas e as vespas farão um trabalhinho neles - zumbiu uma vozinha.

Os cães vão estraçalhá-los — garantiu um cão.

Os pássaros vão usá-los para alimentar os raios - disse uma velha gaivota, planando.

O que os homens viram da janela foi todo o reino animal apare­cendo à luz do sol para encontrá-los. Não perceberam o exército silen­cioso das formigas que se moviam através das rachaduras das portas, subindo por suas pernas e para dentro de suas camisas. Não avistaram as aranhas que caíam do teto como pára-quedistas e invadiam seus cabelos, ou as vespas que se grudavam como pregadores nas costas de suas camisas.

Estavam perplexos com a proximidade da morte. O ar explodia com a temível linguagem das feras, o bater de asas, as pisadas dos cas­cos, o estrépito dos chifres, o roçar dos insetos, a ira das colméias, a chegada dos cães assassinos. Nos últimos momentos, foi-lhes permiti­do entender, traduzir, mas não reagir. Não há misericórdia. Esse não é o estilo da floresta.

A aranha do jardim andou pela camisa do homem grande, subiu por sua espinha. Alcançando o pescoço, escolheu um lugar macio, abaixo da orelha. Disse adeus a Sharon e atirou seu veneno na corrente sangüínea do homem. Ele gritou e matou a aranha com um único tapa. Mas então as vespas, percebendo o sinal, perfuraram-lhe a carne e as formigas o encheram de fogo. Os três cambalearam pela sala, ba­tendo em seus próprios corpos. Correram para a porta da frente, em direção ao surpreendente ruído, e tropeçaram em cascos e presas, asas e mandíbulas.

Blaise e as filhas sentaram-se no sofá e escutaram os gritos dos homens. Blaise não permitiu que as meninas se aproximassem da ja­nela. Por serem humanas, sentiam pena dos homens. Mas não havia nada que pudessem fazer, exceto recusar-se a assistir. Depois de algum tempo, os gritos cessaram. A ilha voltou a ser silenciosa.

Quando Blaise olhou pela janela, viu apenas relva e água e céu. Não havia um único vestígio dos homens, nenhuma peça de roupa, uma lasca de osso ou mecha de cabelo.

Naquela noite, enterraram a aranha no cemitério dos animais. Rezaram por sua alma e pediram que suas teias subissem centenas de quilômetros, ligando planetas e estrelas, para que os anjos dormissem sobre a seda e a trama agradasse a Deus.

Dois dias mais tarde, o barco de Gregory McKissick foi levado pela correnteza até a ilha Cumberland, na Geórgia. Ao voltar para casa, ele contou a história das semanas em que flutuara à deriva no mar. Teria morrido, disse, se não fosse por uma gaivota de dorso negro que sempre deixava cair um peixe dentro do barco.

Após seu retorno, a casa tornou-se completa de novo. As meninas cresceram e perderam pouco a pouco os seus dons. Nunca falavam so­bre o dia em que os três homens apareceram. Rose continuou a cuidar de cães perdidos pelo resto da vida. Lindsay jamais perdeu a afeição pelo gado e pelos suínos. Sharon manteve seu amor aos pássaros e insetos até o fim da vida. Amavam a natureza e amavam a família. Ouviam a mãe cantar novamente. E todos viveram vidas boas. Era como devia ser.

 

Sempre que estou furioso, a raiva aparece escrita em código em mi­nha boca, na forma de lábios apertados e voltados para baixo. Tenho um perfeito controle do restante do rosto, mas a boca é o renegado que transmite minha irritação e cólera ao mundo exterior. Os amigos que aprenderam a arte de lê-la podem mapear o clima emocional de minha alma com uma estranha precisão. Por causa disso, nunca sur­preendo amigos ou inimigos, não importa quanto seja vital o assunto entre nós. Eles decidem sozinhos se devem recuar ou avançar em rela­ção a mim. Na raiva, minha boca é uma coisa medonha.

Mesmo quando eu estava calmo, entretanto, jamais me igualei à pose impenetrável de Susan Lowenstein. Ela era capaz de apaziguar mi­nha raiva com uma retirada estratégica para a indiferença de sua educa­ção impecável. Sempre que eu atacava, ela recuava para os vastos limites de sua inteligência. Podia me debilitar com seus olhos castanhos, que serviam como janelas róseas que iluminavam as recordações de tempos pré-históricos. Quando eu perdia o controle, eles me fitavam como se eu fosse uma aberração da natureza, um furacão que se aproximava de uma cidade costeira batida pelo mar. Calmo, eu me considerava capaz de encará-la como um igual; quando provocado, sabia que ela podia me lazer sentir como um perfeito sulista imbecil.

Minha boca se contorceu em sinal de desprazer quando me de­frontei com a dra. Lowenstein e atirei o livro infantil sobre a mesa de centro.

Muito bem, Lowenstein - disse, sentando-me. - Vamos deixar de lado as pequenas cortesias formais do tipo "Passou um bom fim de semana?" e vamos direto ao assunto. Quem é Renata e o que ela tem a ver com minha irmã?

Passou um bom fim de semana, Tom? - ela perguntou.

Vou dar queixa de você às autoridades, e você terá sua licen­ça suspensa. Você não tem o direito de me esconder nada sobre minha irmã.

Certo.

Então fale. Ponha-me a par de tudo e talvez salve sua carreira.

Tom, você sabe quanto gosto de você em situações normais. Mas você fica repulsivo quando se sente ameaçado ou inseguro.

Eu me sinto ameaçado e inseguro 24 horas por dia, doutora. Mas não é esse o problema. Quero saber quem é Renata. Ela é a chave de tudo, certo? Se eu compreendê-la, entenderei por que estou passan­do este verão em Nova York. Você sabia sobre ela desde o começo, não é, Susan? Sabia e preferiu não me contar.

Savannah é que decidiu isso, Tom. Eu simplesmente fazia a vontade dela.

Mas isso me ajudaria a entender o que está errado com Savannah, não é verdade?

Pode ser que sim. Não tenho certeza.

Então você me deve uma explicação.

Savannah lhe explicará tudo quando chegar a hora. E eu pro­meti a ela não falar a você sobre Renata.

Isso foi antes que eu soubesse que Renata tinha alguma ligação com minha irmã. Estamos falando sobre uma ligação esquisita, dou­tora. Savannah está escrevendo livros e poemas que são publicados sob o nome de Renata.

Quem lhe contou sobre o livro infantil, Tom? Ignorando a per­gunta, continuei:

Liguei para a casa de Renata no Brooklyn e descobri que ela se atirou nos trilhos do trem há dois anos. Isso permite várias conclu­sões. Ou Renata fingiu o suicídio e adora torturar a mãe, ou alguma coisa estranha está se passando na cabeça de minha irmã.

Você leu o livro infantil? - perguntou Lowenstein.

Claro que li.

O que você acha?

Que diabos você pensa que eu acho? É sobre a droga da minha família.

Como é que você sabe?

Porque não sou idiota. Sei ler e sei ver mil coisas naquela histó­ria que ninguém além de Savannah poderia escrever. Agora eu enten­do por que ela usou um pseudônimo para publicá-la; minha mãe teria um ataque se lesse aquela coisa. Savannah nem precisaria se suicidar. Minha mãe comeria o fígado dela com o maior prazer. Mas quem é Renata? Quero saber qual é a relação dessa mulher com minha irmã. São amantes? Pode falar. Savannah já teve outros casos com mulheres antes. Eu as conheci e lhes servi sanduíches de broto de feijão e sopa de casca de batata. Ela se atrai pelos homens e pelas mulheres mais chatos do continente. Não me importo com quem ela esteja trepando, Susan. Mas exijo uma explicação. Faz semanas que você não me deixa vê-la. Por quê? Tem de haver um motivo. Foi Renata quem magoou Savannah? Se foi, vou encontrá-la e dar um chute no rabo dela.

Você bateria numa mulher, Tom? Que coisa surpreendente!

Se ela estiver magoando minha irmã, eu parto a cara dela.

Renata era amiga de Savannah. É tudo o que eu posso dizer.

Não minta, Susan. Eu não mereço isso de você. Fiz todas as coisas que você pediu. Contei as histórias de que me lembrava sobre minha família...

Você está mentindo, Tom.

O que você quer dizer com isso?

Você não me contou tudo. E omitiu as coisas que realmente interessam. Você me deu a versão que gostaria de recordar e preservar: vovô era uma verdadeira personalidade; vovó, uma verdadeira excêntrica; papai, um sujeito estranho que nos surrava quando estava bêba­do; mamãe, uma princesa que nos manteve unidos com seu amor...

Não cheguei ao fim da história. Susan. Em nosso primeiro en­contro, você me deu um monte de fitas em que Savannah grita uma série de bobagens. Algumas coisas não têm sentido para mim. Estou tentando pôr ordem naquilo, mas ainda não posso lhe adiantar o fim, a não ser que você conheça as origens.

Você está mentindo até sobre o início da história.

Você tem certeza, Susan? Uma coisa da qual me sinto seguro é saber o que aconteceu com minha família muito mais que você.

Você apenas conhece melhor uma das versões. Só isso. É uma versão instrutiva, que tem sido útil, mas as coisas que você deixa de lado são tão importantes quanto o que você diz. Fale menos sobre os Huckleberry Finns que você e seu irmão eram e conte um pouco mais sobre a menina que passou a vida pondo a mesa. É sobre ela que eu quero saber, Tom.

Ela está falando. Savannah está falando e você não me deixa vê-la.

Você sabe que ela tomou a decisão de não vê-lo, Tom. De qual­quer modo, suas histórias sobre a infância de vocês têm sido excep­cionalmente úteis para ela. Ajudaram-na a recordar coisas que ela bloqueara há muito tempo.

Ela não ouviu nenhum desses casos que eu contei sobre nossa infância.

Ouviu, sim. Gravei todos eles e reproduzo algumas partes quando vou vê-la no hospital.

Watergate! - gritei, começando a andar de um lado para o ou­tro sala. - Chame o juiz Sirica ao telefone. Quero essas fitas apagadas, Lowenstein, ou usadas para tocar fogo no carvão na próxima vez que você fizer churrasco em seu terraço.

Eu geralmente gravo minhas sessões, Tom. Não há nada anormal nisso. E você me disse que faria qualquer coisa para ajudar sua irmã. Acre­ditei em sua palavra. Então, por favor, sente-se e pare de me intimidar.

Não estou fazendo isso. Estou pensando em lhe dar uma surra!

Sente-se e vamos resolver com calma nossas diferenças.

Deixei-me cair na cadeira macia e fitei mais uma vez o semblante

sereno de Susan Lowenstein.

É seu ego masculino cheio de autopiedade o que eu mais temo quando você for rever sua irmã, Tom.

Sou um homem completamente derrotado, doutora. - Eu esta­va irritado. - Não precisa se preocupar. Fui neutralizado pela vida e pelas circunstâncias.

De maneira nenhuma. Nunca vi um homem que não fosse do­minado pela necessidade de aparecer como tal a qualquer custo. E você é um dos piores que já encontrei.

Você não sabe nada a respeito dos homens, Susan.

Ela deu uma risada.

Diga tudo o que você sabe. Tem dez minutos para isso.

E algo feio para se falar. E não é fácil ser um homem da maneira como você pensa, Susan.

Ah, já ouvi essa música antes. Metade dos meus pacientes ho­mens tenta ganhar minha solidariedade murmurando os compassos dessa melodia. Meu marido usa a mesma estratégia sem saber que eu a escuto cinqüenta vezes por semana. Agora, você vai me contar sobre a velha agonia do comando? Sobre a pavorosa responsabilidade de ser chefe da família? Já ouvi isso antes.

Só existe uma única dificuldade em ser homem. É algo que a mulher moderna não entende. Savannah e suas amigas feministas radicais com certeza não entenderam. As amigas dela costumavam berrar com Luke e comigo quando vínhamos a Nova York para visitá-la. Pelo jeito, minha irmã pensava que seria bom para seus irmãos caipiras ouvir alguns gritos sobre as desgraças de se ter um pênis no mundo moderno. Feministas radicais... Deus me livre! Por causa de Savannah, ouvi mais gritos delas que qualquer outro sulista vivo. Elas acreditavam que, depois de gritar a seu bel-prazer por até 4 8 horas, ficaríamos tão grato pelas lições que, de boa vontade, colo­caríamos o pênis no liqüidificador e apertaríamos o botão de alta velocidade.

Na nossa primeira conversa você me disse que era feminista.

E eu sou feminista. Sou um homem imprestável e impotente que aprendeu a bater suflê e a fazer um bom molho bearnaise, en­quanto a esposa abria cadáveres e consolava pacientes com câncer.

Digo isso sabendo que um homem que se declara feminista é a figura mais ridícula de nosso tempo. Quando toco no assunto com meus .imigos, eles disfarçam uma risadinha e me contam alguma piada suja. Quando falo a respeito com as mulheres sulistas, a maioria delas me olha com desdém e me garante que gosta de ser mulher e de ter al­guém que lhes abra a porta do carro. Quando converso com as femi­nistas, elas são as mais malévolas de todas. Interpretam minha posição como um gesto melífluo e condescendente de um espião peludo, infiltrado entre elas pelo inimigo. Mas eu sou feminista, Lowenstein. Sou Tom Wingo, feminista, conservacionista, liberal branco, pacifista, agnóstico e, por causa de tudo isso, não posso levar a mim e nem os outros a sério. Estou pensando em pedir uma vaga como membro vitalício dos caipiras, para ver se adquiro pelo menos um pouco de auto-respeito.

Você ainda é um caipira, Tom. A despeito de todos os seus pro­testos.

Não. Um caipira tem integridade.

Mas você ia me contar alguma coisa a respeito de ser homem. O que era?

Você riria de mim.

Provavelmente.

Bem, a dificuldade em ser homem é apenas uma. Ninguém nos ensina a amar. É um segredo que escondem de nós. Passamos a vida inteira tentando encontrar alguém que nos ensine isso e nunca desco­brimos. As únicas pessoas que podemos amar são outros homens, porque entendemos a solidão engendrada por essa coisa que nos foi negada. Quando uma mulher nos ama, somos dominados por esse amor, ficamos temerosos, desamparados e fracos diante dele. O que as mulheres não entendem é que jamais poderemos retribuí-lo. Não te­mos com que retribuir. Não recebemos essa dádiva.

Quando vocês falam sobre a agonia de ser homem, nunca se livram do tema recorrente da autopiedade.

E quando vocês falam sobre ser mulher, nunca se livram do tema recorrente de culpar os homens.

Não é fácil ser mulher em nossa sociedade.

Deixe-me lhe contar uma coisa, Susan. Ser homem é foda. Es­tou tão cheio de ser forte, confiável, sábio e nobre que seria capaz de vomitar se tivesse de fingir novamente que sou algo nesse estilo.

Não percebi nenhuma evidência de que você fosse alguma des­sas coisas - declarou a imperturbável dra. Lowenstein. - Na maior parte do tempo, não sei o que você é, o que representa ou o que pre­tende. Às vezes, você é um dos homens mais doces que já conheci. Em outras ocasiões, sempre imprevisíveis, torna-se amargurado e distan­te. Agora, você me diz que não sente amor. Depois, alega amar todas as pessoas a seu redor. Já declarou seu amor por Savannah repetidas ve­zes e, em seguida, fica furioso comigo quando tento fazer o que está a meu alcance para ajudá-la. Não posso confiar em você, Tom, porque não sei quem você é. Se conto alguma coisa sobre sua irmã, não sei como vai recebê-la. Assim, o que eu peço é que aja como um homem. Que seja forte, inteligente, responsável e calmo. Preciso disso e Savannah também.

Eu comecei esta discussão simplesmente perguntando sobre o relacionamento entre minha irmã e Renata. Achei que fosse uma per­gunta justa. Por alguma manobra retórica, você conseguiu me colocar na defensiva e fazer com que eu parecesse um perfeito idiota.

Você iniciou a discussão entrando feito um raio na sala e jogan­do aquele livro sobre minha mesa. Gritou comigo e eu não sou paga para ouvir gritos de ninguém.

Cobri o rosto com as mãos e senti o olhar de Susan sobre elas, firme e crítico. Deixei-as cair e enfrentei seus olhos castanhos. Aque­la beleza morena, sensual e perturbadora agitou-me como sempre acontecia.

Eu gostaria de ver Savannah, doutora. Você não tem o direito de nos separar. Por nada nesse mundo.

Sou a médica de sua irmã, e a manteria afastada de você para o resto da vida se achasse que isso a ajudaria. E talvez isso realmente ajude.

Sobre o que você está falando?

Savannah acredita, e eu começo a entender o motivo, que deve cortar todo e qualquer laço com a família se quiser sobreviver.

Isso é a pior coisa que ela poderia fazer!

Não sei. Tenho minhas dúvidas.

Sou o irmão gêmeo dela, doutora. E você é apenas a psiquiatra. Agora, quem é Renata? Eu gostaria de saber e tenho o direito de Naber.

Renata foi uma amiga muito especial de Savannah. Era uma pessoa frágil, sensível e muito raivosa. Era lésbica, feminista radical e judia. Ela não gostava muito de homens...

Meu Deus! Parece com metade das imbecis amigas de mi­nha irmã.

Cale a boca, Tom, ou não continuo.

Desculpe. Foi sem querer.

Savannah teve um episódio psicótico há pouco mais de dois anos. Renata cuidou dela. Elas se conheceram num seminário de poe­sia em que sua irmã deu aulas. E, quando ela teve o esgotamento ner­voso, Renata não permitiu que fosse para um hospital psiquiátrico e prometeu-lhe cuidar dela até o fim. Savannah estava mais ou menos do mesmo jeito que você a viu no hospital. Mas Renata a fez sair da depressão. Segundo Savannah, ter Renata a seu lado era como ter o próprio anjo da guarda. Três semanas depois que Savannah voltou a seu apartamento, Renata se atirou na frente do trem.

Mas por quê?

Quem sabe? Pela mesma razão pela qual todos cometem suicí­dio. A vida se torna intolerável e essa parece ser a única saída. Renata também tinha um histórico de tentativas de suicídio. Depois que ela morreu, Savannah passou por outro longo período de crise. Cami­nhava pelas ruas, desorientada e fora de controle. Acordava em portas estranhas depois de passar a noite perambulando a esmo. Não se re­cordava desses estados de fuga. Ao se recuperar um pouco, voltou para o apartamento e tentou escrever. A inspiração não veio. Quis se lembrar da infância, e não conseguiu. Só tinha pesadelos sobre essa fase. Certa noite, sonhou que três homens chegavam à ilha. Sabia que o sonho era importante, essencial. Desconfiava de que alguma coisa semelhante acontecera, mas não recordava os detalhes. A história das crianças saiu diretamente do sonho. Savannah decidiu pôr o nome de Renata no livro como uma homenagem à memória de sua amiga. En­viou o texto a um agente que não era o seu para ver se seria publicado. Então, chegou ao que seria a grande idéia de sua vida, à idéia que a salvaria.

Tremo só de pensar no que é - murmurei.

Ela decidiu tornar-se Renata Halpern. - A dra. Lowenstein in­clinou-se ligeiramente em minha direção.

Desculpe, não entendi...

Ela decidiu tornar-se Renata.

Vamos voltar um pouco no assunto, doutora. Está me faltando alguma coisa.

Na primeira vez que me procurou como paciente, Savannah disse que se chamava Renata Halpern.

Você sabia que ela era na verdade Savannah Wingo?

Não. Como eu ia saber?

Você tem os livros dela na sala de espera.

Também tenho os livros de Saul Bellow, mas não o reconhece­ria se ele entrasse no consultório e dissesse que era George Bates.

Meu Deus! Sinto-me nauseado. Você poderia me dizer quando foi que descobriu que Savannah era Renata, ou que Renata era Savannah, ou que Savannah era Saul Bellow ou seja lá o que tenha descoberto?

E difícil me enganar quando a pessoa diz que é judia.

Ela lhe disse que era judia?

Ela se apresentou como Renata Halpern. Descreveu os pais, afirmando que ambos tinham sobrevivido ao Holocausto. Lembrou-se até dos números tatuados que possuíam nos braços. Disse que o pai trabalhava como peleteiro no distrito das confecções.

Não estou entendendo nada, Susan. As pessoas geralmente vêm fazer terapia à procura de ajuda, certo? Então, por que ela veio até aqui fingindo ser outra pessoa? Por que se recusou a obter ajuda par­tindo de sua própria história e agiu como alguém que inventara?

Ela queria experimentar sua nova identidade para ver se a his­tória que criara tinha fundamento. Além disso, o problema era grave, fosse ela quem fosse. Savannah estava se desintegrando e não fazia diferença se dissesse que era outra pessoa. Estava numa situação desesperadora. Chamar a si mesma de Renata era apenas uma parte da perturbação.

Quando foi que ela lhe contou que não era Renata?

Comecei a questioná-la sobre o passado e ela não soube res­ponder. Perguntei qual shul freqüentara e ela não sabia o que era um shul Perguntei o nome do templo e o nome do rabino de sua infância. Savannah falou que a mãe possuía uma cozinha kosher, mas não me entendeu quando perguntei se ela já provara comida trayf. Conhecia poucas palavras em iídiche, apesar de dizer que os pais vinham de um shtetl na Galícia. Finalmente, declarei que não acreditava em sua his­tória e que, se ela queria que eu a ajudasse, precisava me contar a ver­dade. Disse também que ela não parecia judia.

Você é racista, Lowenstein. Descobri isso assim que bati os olhos em você.

Sua irmã tem um clássico rosto shiksa, um rosto não-judeu - replicou ela, sorrindo.

Isso é um insulto imperdoável?

Não. Simplesmente um fato inegável.

O que ela fez depois que você a desafiou?

Levantou-se e saiu do consultório sem se despedir. Faltou à ses­são seguinte, mas ligou para cancelá-la. Quando nos vimos, na vez seguinte, confessou que se chamava Savannah Wingo, mas que plane­java assumir uma nova identidade, mudar-se para a Costa Oeste e vi­ver o resto da vida como Renata Halpern. Além do mais, disse que cortaria o contato com toda a família, porque era doloroso ver qual­quer um de vocês. Já não suportava as lembranças e aos poucos perdia cada uma das recordações do passado. Recusava-se a viver cercada por tanta dor. Ela já sofrerá por muito tempo. Como Renata Halpern, acreditava ter uma chance de sobrevivência. Como Savannah Wingo, estaria morta em um ano.

Com uma exclamação de dor, fechei os olhos, tentando me lem­brar de nós como crianças, loiros e esbeltos ao sol da Carolina. Uma visão do rio apareceu diante de mim: pássaros do pântano pescavam nos estuários, enquanto as três crianças nadavam no rio, com a maré cheia e as águas paradas. Havia um ritual que cumpríamos quando éramos pequenos e que nunca revelamos a ninguém. Sempre que nos sentíamos magoados ou tristes, sempre que nossos pais nos castiga­vam ou batiam, íamos para a ponta do desembarcadouro flutuante, mergulhávamos na água ensolarada, nadávamos 10 metros pelo canal e dávamos as mãos, formando um círculo. Flutuávamos juntos, dedos entrelaçados num círculo indestrutível. Quando Luke dava o sinal, respirávamos fundo e mergulhávamos até o fundo do rio, sempre com as mãos dadas. Permanecíamos sob a água do rio até que um de nós apertasse as mãos dos outros. Então, subíamos para a superfície, para a explosão de luz e ar. Mas, no fundo do rio, eu abria os olhos e via as imagens turvas de meus irmãos flutuando a meu lado como embriões. Experimentava a deslumbrante ligação que havia entre nós, um triângulo de amor que aparecia sem palavras ao emergirmos, nos­sas pulsações se igualando, em direção à luz e ao terror de nossa vida. Mergulhando, conhecíamos a segurança e o silêncio de um mundo sem pai nem mãe; somente quando nossos pulmões nos traíam, su­bíamos rumo à destruição. Os lugares seguros só existiam para serem visitados; apenas para dar uma vaga idéia de santuário. Sempre che­gava o momento de retornar à verdadeira vida e encarar as feridas e a tristeza intrínsecas à nossa casa à beira do rio.

Agora, no consultório da dra. Lowenstein, eu ansiava pelo abrigo das lentas correntes, dos lugares escuros, do fundo dos rios. Gostaria de estar com minha irmã, abraçá-la contra o peito e afundar no mar azul segurando-a junto a mim. Como um novo homem, eu destruiria qualquer coisa que se aproximasse para prejudicá-la. Ao pensar ou sonhar com Savannah, sempre tinha um arsenal com os melhores ar­mamentos para defendê-la. Na vida real, porém, era incapaz de prote­ger as veias delicadas de seus pulsos contra suas próprias guerras interiores.

Eu disse a Savannah - continuou a dra. Lowenstein - que faria o possível para ajudá-la. Mas para isso precisava conhecer as coisas do passado de que ela tentava fugir. Não haveria chance para Renata Halpern, exceto se ela resolvesse os problemas de Savannah Wingo.

Você ajudaria alguém a se tornar outra pessoa, Susan? Qual é a ética disso, ou, pelo menos, as estatísticas terapêuticas com as quais você conta? E como saber se isso seria o melhor para Savannah? Você pode estar errada, Susan!

Nunca tive um caso como esse, por isso não disponho de nenhu­ma literatura específica a respeito, Tom. E eu não concordei em ajudar Savannah a se transformar em Renata Halpern. Eu simplesmente me propus a ajudá-la a se tornar uma pessoa integrada. Ela precisava fazer opções difíceis. Eu a ajudaria nas escolhas mais acertadas.

Você não tem esse direito, dra. Lowenstein. Você não tem o di­reito de transformá-la numa pessoa que não vai voltar a ver a família. Não me conformo com esse tipo de terapia que transforma minha irmã sulista numa escritora judia. Isso que você está fazendo não é ciência. É magia negra, feitiçaria, todas as artes tenebrosas combina­das. Se Savannah quer ser Renata Halpern, isso nada mais é que a ma­nifestação de sua loucura, Susan.

Ou talvez uma manifestação de sanidade, Tom. Não sei ainda, não sei. - Subitamente exausto, exaurido no fundo da alma, descansei a cabeça no espaldar da cadeira, fechando os olhos e tentando aclarar a mente. Lutei para alinhavar alguns argumentos razoáveis para usar contra Susan Lowenstein, mas me sentia ofuscado demais para ser sensato. Por fim, reuni forças suficientes e declarei:

Essa é a razão pela qual detesto o século XX. Por que diabo fui nascer no século de Sigmund Freud? Desprezo o discurso dele, seus seguidores fanáticos, os encantamentos misteriosos da psique, as so­nhadoras teorias improváveis, as classificações infinitas de todas as coisas humanas. Quero fazer uma declaração, e vou fazê-la depois de muito pensar e de muita deliberação. Foda-se Sigmund Freud. Foda-se sua mãe, o pai, os filhos e os avós. Foda-se seu cachorro, gato, papagaio e todos os animais do zoológico de Viena. Fodam-se seus livros, idéias, teorias, sonhos, fantasias e a cadeira em que ele se senta. Foda-se este século, ano a ano, dia a dia, hora a hora e junte-se tudo nesse miserável aborto do tempo, jogue-se na privada perfumada de Sigmund Freud e dê-se a descarga. Por último, foda-se, Susan, foda-se Savannah, foda-se Renata Halpern e foda-se qualquer pessoa que minha irmã queira ser no futuro. Assim que eu puder me mexer, vou sair deste consultó­rio arrumadinho, reunir meus pertences e pedir a um desses indes­critíveis taxistas daqui para me levar ao aeroporto de La Guardia. O velho Tom vai voltar para casa, onde sua mulher está de caso com um cardiologista. Por mais terrível que seja isso, ao menos faz sentido para mim, enquanto que nada a respeito de Savannah e Renata faz.

Acabou, Tom? - perguntou Susan.

Não. Estou pensando em algo realmente insultuoso para lhe dizer em outro discurso.

Pode ser que eu tenha errado em não lhe contar tudo desde o começo, Tom. Foi minha decisão. Afinal de contas, eu tinha sido alertada a seu respeito... Savannah o conhece muito bem e diz que, embora você finja querer ajudar, na verdade está envergonhado dos problemas dela. Você tem medo e faria qualquer coisa para se ver livre deles, para negá-los, lançá-los no esquecimento. Por outro lado, ela sabe que você possui um forte senso de família e de dever. Meu traba­lho era equilibrar esses dois contrapesos. Se eu pudesse fazer isso sem você, teria feito. Fiquei apavorada com a perspectiva de você um dia descobrir a verdade; temia sua hipocrisia e sua fúria.

Como é que você queria que eu reagisse? Já pensou se eu tivesse feito a mesma coisa com Bernard? Se tivesse pego aquela criança infe­liz e, em vez de treiná-la, sugerisse a ele fugir de sua desgraçada famí­lia? Mude de nome, Bernard. Venha comigo para a Carolina do Sul. Eu coloco você no time de futebol e lhe arranjo uma família simpática com quem você possa começar tudo de novo...

Não é a mesma coisa, Tom. Meu filho não tentou se matar.

Tenha calma, Lowenstein. Dê-lhe apenas um pouco de tempo.

Seu filho-da-puta! - Sem que eu percebesse, ela pegou o dicio­nário American Heritage da mesinha de centro e, com notável ponta­ria, arremessou-o contra mim. O livro atingiu-me no nariz, caiu em meu colo e foi parar no chão, aberto na página 746, no tópico load displacement. Então meu sangue manchou o verbete que descrevia o matemático russo Nicolai Ivanovich Lobachevski. Ao pôr a mão no nariz, o sangue escorreu por meus dedos.

Oh, Deus! - exclamou Susan, horrorizada com sua própria perda de controle. Ela entregou-me um lenço. - Dói?

Sim. Está um bocado doloroso.

Eu tenho Valium. - E ela abriu a bolsa.

Ensaiei uma risada, que fez com que o sangue corresse mais rápido.

Você acha que vou parar a hemorragia enfiando dois Valium nas narinas? O mundo teve sorte por você não ser uma clínica.

Pode ajudar a acalmá-lo.

Não estou agitado, Lowenstein. Estou sangrando. Você me feriu. Isso daria um belo processo por tratamento inadequado do paciente.

Você me levou aos limites da tolerância. Jamais tive um mo­mento de violência em toda minha vida.

Agora você teve. Foi um bom arremesso.

Ainda está sangrando.

Você quase arrancou meu nariz. - Deitei a cabeça no espaldar da cadeira. - Se você sair e fechar a porta silenciosamente, de boa von­tade sangrarei até morrer.

Acho que você deveria ir a um médico.

Eu estou com uma médica.

Você sabe a que me refiro.

Não quer ir até o hospital psiquiátrico pegar um catatônico para mim? Eu apenas o pressionarei de encontro ao nariz durante uma hora ou duas. Olhe, doutora, não se preocupe. Já tive hemorra­gias nasais antes. Esta também vai passar.

Sinto muito, Tom. Estou profundamente envergonhada...

Não a perdoarei jamais - repliquei, e a tolice daquela cena me levou mais uma vez ao ponto de dar risadinhas. - Santo Deus, que dia! Sou atingido por um dicionário e descubro que minha irmã está trei­nando para ser uma judia do Brooklyn.

Quando você parar de sangrar, por favor, aceite meu convite para almoçar.

Vai sair caro, Lowenstein. Não estou a fim de cachorro-quente no Natham, nem de pizza de queijo. Será no Lutèce, no La Côte Basque ou no Four Seasons. O que eu pedir virá para a mesa imediata­mente. Você vai gastar um bocado de dinheiro!

Durante o almoço, quero conversar seriamente com você, Tom. Preciso lhe dar mais explicações sobre Savannah, Renata e eu... - Ela se interrompeu. Minha gargalhada a fez parar.

 

Quando passei pelas portas do Lutèce, senti que me movia em meu próprio estado de fuga, de tão tonto e exaltado que estava depois da hemorragia e da elucidação do mistério de Renata. Madame Soltner cumprimentou Susan pelo nome. As duas conversaram num francês coloquial durante um minuto, enquanto eu me maravilhava diante da facilidade com que Susan lidava com os costumes e a fluida cortesia de sua vida encantadora e civilizada. Era uma mulher equilibrada e ins­tintivamente correta - uma criatura ilustre, treinada em todas as artes que se podiam cultivar, com acesso aos círculos influentes e cheios de dinheiro. Era a primeira pessoa que eu via em Nova York que não se diminuía nem se tornava ridícula sob a autoridade plenipotenciária da cidade. Nativa daquelas avenidas, tinha gestos discretos e seguros. Para mim, sua auto-confiança parecia um dom exorbitante; mas, até então, eu só encontrara imigrantes. Susan Lowenstein era a primeira pessoa que eu conhecera que se beneficiava daquela grande ilha, mi­nha primeira "manhatense". Eu aprendera que havia um substrato de paixão sob a impassibilidade de seu exterior - meu nariz latejante era testemunha disso.

Fomos conduzidos a uma boa mesa depois de madame Soltner lançar um olhar preocupado ao lenço de papel que eu enchumaçara em minha narina esquerda. Era pouco provável que ela tivesse conduzido muitos clientes que sofressem de hemorragia nasal ao interior silencioso do Lutèce. Desculpando-me, fui ao toalete para remover aquele horrível lenço de papel. Em seguida, aliviado por não estar mais sangrando, lavei o rosto e voltei ao salão principal. Meu nariz inchara como uma bolha. Eu não estava bonito, mas sen­tia fome.

Um garçom, que parecia ter sido engomado em arrogância, to­mou nossos pedidos para os drinques. Inclinei-me sobre a toalha branca e sussurrei:

Quando a bebida chegar, Susan, você vai se envergonhar se eu colocar o nariz no copo por um minuto ou dois? O álcool vai desinfe­tar o machucado.

Ela acendeu um cigarro e soprou a fumaça em minha direção.

Felizmente você está brincando a respeito disso. Ainda não acredito que o agredi com um livro. Mas você às vezes é exasperante!

Às vezes, sou um perfeito idiota. Eu lhe disse algo imperdoável sobre Bernard e mereci ter o nariz achatado por um dicionário. Devo- lhe desculpas, Susan.

Meu fracasso em ser uma boa mãe é uma tortura constante, Tom.

Você não é uma mãe ruim. Bernard é um adolescente. E os adolescentes são, por definição, impróprios para a sociedade humana. É função deles agir como imbecis e tornar os pais infelizes.

Quando o garçom trouxe os cardápios, estudei o meu com aten­ção e ansiedade. Era a primeira vez que eu almoçava a poucos metros de um cozinheiro de fama internacional e não queria desperdiçar a oportunidade com um pedido impensado e sem imaginação. Caute­loso, interroguei Susan Lowenstein sobre as refeições que ela fizera no Lutèce e admiti que teria meu almoço arruinado caso pedisse alguma coisa maravilhosa, que fosse ofuscada por seu pedido de algo ainda mais delicioso e fora de série. Por fim, ela se ofereceu para cuidar dos pedidos. Recostei-me enquanto ela encomendava ao garçom uma musse de pato guarnecida com bagas de zimbro como entrada. Para o prato seguinte, escolheu uma soupe de poisson au crabe e, com uma piscadela, garantiu-me que era excelente. Senti-me feliz enquanto ela listava as entradas que considerava perfeitas. Pouco depois, Susan pe­diu um râble de lapin.

Coelho! - surpreendi-me. - Este restaurante é descrito pelas melhores revistas de culinária como um templo gastronômico, e você vai me humilhar pedindo um simples coelhinho?

Será a melhor refeição que você já comeu - retrucou. - Confie em mim.

Você se incomoda se eu disser ao garçom que sou o crítico de culinária do New York Times? Gostaria de pressionar André para que ele capriche realmente bem lá na cozinha.

Prefiro que você não faça isso, Tom. Vou pedir o vinho e, em seguida, quero conversar um pouco sobre Savannah.

Posso pedir ao garçom para tirar da mesa todas as coisas que sirvam para ser atiradas contra mim? Ou você me permite usar uma máscara de apanhador de beisebol?

Tom, seus amigos e sua família nunca consideram suas brinca­deiras exageradas?

Sim, eles acham minhas brincadeiras repulsivas. Ficarei calado pelo restante da refeição, doutora. Prometo.

O vinho, um Chateau Margaux, foi trazido à mesa, junto com a musse de pato. O vinho era tão encorpado e atraente que me deleitei de prazer ao levar o copo aos lábios. Seu sabor permanecia na boca, vivido como um acorde no ar. E a musse me fez feliz por estar vivo.

Meu Deus, Lowenstein, esta musse é fabulosa! Sinto um bata­lhão de calorias marchando para minha corrente sangüínea! Gostaria de ter um emprego como ganhador de peso neste restaurante.

Savannah suprimiu boa parte de sua infância, Tom.

O que isso tem a ver com musse de pato, doutora?

Há períodos inteiros da vida dela que foram simplesmente apagados. Ela os chama de "intervalos brancos". Que coincidem com os períodos em que as alucinações ficam fora de controle. Parecem existir fora do tempo, do espaço ou da razão.

Ela sempre teve dificuldade para recordar as coisas...

Ela me disse que isso sempre foi um problema, mas um pro­blema não mencionável. Um segredo terrível. Savannah se sentia di­ferente, insegura e solitária por causa disso. Tornou-se prisioneira do tempo perdido, dos dias não lembrados. Posteriormente, isso co­meçou a afetar sua poesia. Ela sentiu que a loucura a alcançava, che­gando sob a forma de forças dominadoras. E o que ela mais temia era entrar num desses períodos em que a memória sumia e não se recuperar mais.

Enquanto Susan falava seu rosto se suavizava imperceptivelmente, por causa de seu amor pela profissão. Aquela foi uma das poucas vezes em que percebi o zelo que ela levava para o consultório, o espírito que invocava em seu papel de visitante passageira entre almas magoadas e desiludidas. Sua voz tornou-se mais animada ao relatar os primeiros meses de terapia de Savannah, quando minha irmã lhe contava sua vida, sua juventude, seu trabalho, mas sempre com incríveis espaços em branco, dispersões da memória e obstácu­los que a levavam repetidamente à frustração e a becos sem saída. A Iguma coisa no fundo do subconsciente lhe censurava o período da juventude. Ao mencionar a infância, ela só recordava fragmentos, todos eles vinculados a um vago e debilitante senso de terror. Houve vezes em que, ao rememorar uma imagem solitária da infância - um pássaro do pântano em vôo langoroso, a partida do motor do barco de pesca de camarões, a voz da mãe na cozinha -, ela entrara no reinado da escuridão, da eternidade, numa vida que não era a sua. Isso acontecera durante dois anos e, com muita força de vontade, Savannah lutara para se concentrar apenas em sua fase nova-iorquina. O ciclo de poemas "Pensando em Manhattan" foi comple­tado num período febril de três meses, durante os quais seus poderes retornaram - o velho peso da linguagem -, quando então se viu mais uma vez como o centro do mundo, irradiando canções de amor e réquiens.

A criação do livro infantil a enviou de volta à leve harmonia de sua loucura. A história lhe veio num pesadelo, que ela transcreveu numa explosão de criatividade de oito horas, colocando no papel exatamente o que havia sonhado. Ao fazê-lo, percebeu que estava descrevendo um dos interlúdios perdidos de sua vida. Sentia que faltavam elementos na história, e sabia que eram muito mais pode­rosos do que os que incluíra. Os três homens tinham tocado uma corda particularmente mordente nela e a aproximação deles à casa fizera com que algo soasse dentro de Savannah, ao longe, como um sino de uma igreja repicando ao vento. Assim, ela estudou a narrati­va como se estivesse diante de um texto sagrado que continha alu­sões inescrutáveis aos mistérios de sua própria vida. Leu-a e releu-a várias vezes, convencida de que era uma parábola ou um esboço de implicações muito mais sérias. Algo lhe acontecera, mas, pelo que havia escrito, apenas um elemento estava faltando: a imagem do Menino Jesus de Praga que o pai trouxera da Segunda Guerra Mun­dial e que ficava sobre uma mesa perto da porta de entrada da casa. Mesmo sem descobrir que papel a imagem tivera em sua história, sabia que ela deveria estar ali. Após a morte de Renata, a imagem fez uma horrível aparição nas alucinações que sempre lhe vinham em períodos de sofrimento. O Menino Jesus de Praga se juntava ao coro de vozes dentro dela, ligado aos cães negros do suicídio e aos anjos da negação. Mais uma vez, aparições entoavam a ladainha destruidora que ela ouvira desde a infância, insultando-a com sua inutilida­de, regalando-a com hinos e cânticos assassinos, exigindo sua morte.

Savannah começou a enxergar cães pendurados em ganchos de me­tal nas paredes do apartamento, os corpos retorcidos em agonia. Centenas de cães crucificados gritavam, com vozes sibilantes e irreais, dizendo-lhe para se matar.

"Não são reais. Não são reais", Savannah repetia para si mesma, mas sua voz era abafada pelos uivos dos animais empalados. Ela se le­vantava da poltrona da sala e ia para o banheiro, tentando fugir deles. Ali, encontrava os anjos sangrentos presos na barra do chuveiro e no teto, os pescoços quebrados, gemendo em intenso sofrimento. Suas vo­zes, delicadas e suaves, pediam-lhe que subisse até eles, para os lugares seguros, com grandes paisagens, para os corredores do sono infinito, para a longa noite do silêncio em que os anjos eram inteiros, imaculados e gentis. Levantavam os braços para ela, num gesto de solidariedade e possessividade. Suas órbitas eram buracos negros de onde fluía pus. Acima deles, Savannah via os pequenos pés do Menino Jesus de Praga, que pendia do teto com o rosto desfigurado e machucado, falando com a voz de sua mãe, exigindo que ela mantivesse silêncio. Sempre que pe­gava as lâminas de barbear e começava a contá-las, percebia o prazer dos cães que reviravam nos ganchos, o êxtase dos anjos desfigurados com suas vozes esganiçadas e envolventes. Todas as noites, contava as lâminas e escutava aquela nação violada clamando as leis da tormenta, murmu­rando odes ao suicídio.

Encontrei Savannah durante dois meses antes de sua tentativa de suicídio - declarou Susan Lowenstein. - Só que eu não tinha perce­bido a dimensão de sua insistência em se matar. O tratamento estava tão empolgante! Um terapeuta não devia sentir esse tipo de contenta­mento. É preciso permanecer calmo, distante e profissional. Mas Savannah era uma poetisa que me falava e me deslumbrava com pala­vras e imagens. Cometi um erro, Tom. Queria ser conhecida como a terapeuta que tornou possível a uma poetisa escrever novamente. Foi muita arrogância de minha parte.

De jeito nenhum, Susan - retruquei, enquanto cortava o coe­lho em meu prato. - Simplesmente foi estranho para você, do mesmo modo como foi para mim.

Não estou entendendo.

Vamos partir de minha experiência. Ouço falar que minha irmã cortou os pulsos aqui, na feliz ilha de Manhattan. Venho corren­do para cá, representar meu papel ritual de salvador, de Cristo do sé­culo XX. Um papel que, por falar nisso, posso representar dormindo, marchando na banda ou com as mãos amarradas nas costas. Porque me faz sentir necessário. Me faz sentir superior. O gêmeo de ouro monta em seu cavalo de batalha para salvar sua adorável irmã, poetisa, louca, suicida malsucedida.

E se eu tivesse contado em nosso primeiro encontro que Savannah estava pensando em desaparecer de Nova York e ir para uma cidade estranha para viver como Renata Halpern?

Eu teria me borrado de tanto rir.

Claro que sim, Tom. Você não fez segredo de seu desprezo pela terapia no dia em que nos conhecemos.

Cresci numa cidade sortuda, doutora. Ali, a gente nem sabia o que era um psiquiatra.

Ah, sei... Uma cidade muito sortuda. Pela sua descrição, Colleton parece que sofria de alguma psicose coletiva.

Bem, atualmente já não sofre de mais nada. - Voltei minha atenção ao coelho antes de continuar: - Você ainda não me explicou por que Savannah não lhe conta as mesmas histórias que eu conto.

Quando tentei explicar, ou você não estava escutando ou não acreditou em mim. Há grandes espaços em branco na memória de sua irmã, áreas de repressão que às vezes abrangem anos seguidos. Foi ela quem me disse certa vez que você poderia contar essas histórias. Você sempre me falou sobre a estranha intimidade que tiveram como gê­meos. De início não levei isso em consideração porque pensei que você fosse parte do problema dela. Mas você me induziu a acreditar no contrário.

Obrigado.

Você teve papel valioso na vida de Savannah quando estavam crescendo, Tom. Você e Luke a protegeram do mundo, principal­mente do mundo dela mesma. Apesar de Savannah ser diferente desde o início, vocês lhe deram uma aparência de normalidade. E a conduziram através de uma infância muito difícil. Você, Tom, repre­sentou um papel crítico. Ela iniciou cedo o processo de bloquear as lembranças, de subtrair as lembranças mortíferas. Eu chamaria isso de repressão, mas sei quanto você se incomoda quando recorro à terminologia freudiana. Assim, muito cedo na vida de vocês ela lhe deu um emprego. Você se tornou a memória de Savannah, sua ja­nela para o passado. Você sempre lhe contava o que acontecera, onde ela estivera e o que dissera, quando ela emergia de um desses perío­dos sombrios.

Se ela não tinha memória, como pôde ser poetisa?

Porque tem um enorme talento, e a poesia vem da dor de ser humana, da dor de sobreviver como mulher em nossa sociedade.

Quando você acha que ela passou o dever da memória para mim?

Ela se recorda da primeira infância muito mais que você, Tom. Lembra-se da brutalidade de sua mãe quando vocês eram bem pequenos.

Bobagem. Minha mãe não era perfeita, mas também não che­gava a ser brutal. Savannah está confundindo ela com meu pai.

Como é que você sabe?

Eu estava lá, Lowenstein. Testemunha ocular, pode-se dizer.

Mas você percebeu que começou sua narrativa com seu nasci­mento durante uma tempestade, um fato que não pode recordar? Você simplesmente recitou uma fábula familiar que lhe foi repetida várias vezes, o que é perfeitamente natural. Em seguida, você pulou seis anos, indo direto ao seu primeiro dia de aulas em Atlanta. O que aconteceu durante os primeiros seis anos?

Nós éramos bebês. Vomitávamos, fazíamos cocô, mamávamos em nossa mãe, crescíamos. Como espera que eu me recorde disso tudo?

Savannah se lembra. Ela se lembra de muita coisa dessa época.

Tudo besteira, doutora. Besteira completa - disse, enquanto me lembrava de uma única cena daquele período de minha vida, a lua elevando-se no leste, chamada por minha mãe.

Pode ser, mas tem um eco de verdade para esta velha psiquiatra.

Não me venha com essa conversa, Lowenstein, por favor. Que­ro sair desta cidade mantendo intacta minha repugnância por essa maldita profissão.

Tom, seu ódio pela terapia está perfeitamente claro para mim. Tanto que já não me incomoda mais. Na verdade, começo a achar você repetitivo e burro quanto a esse assunto.

Proponho discutir isso mais tarde. - Apontei para a sala do restaurante e continuei: - Estamos no Lutèce, Susan. Eu sempre quis comer aqui. Já li bastante a respeito deste restaurante. É descrito no New York Times como um paraíso gastronômico. Eu gosto de me sentar em paraísos gastronômicos e gemer de satisfação com a co­mida. Esse vinho foi o líquido de melhor sabor que já passou por minha boca. O ambiente é maravilhoso. Elegância sofisticada. Claro, eu preferiria elegância exagerada porque meu passado de caipira sulista não se desenvolveu o suficiente socialmente para preterir a variedade sofisticada. Mas é bonito. Realmente bonito. Agora, quan­do se come no Lutèce pela primeira e última vez na vida, a gente gosta de falar sobre arte, poesia, boa comida, talvez até um pouco de filosofia. O encanto se quebra quando o assunto são as visões de Savannah, com anjos gotejando pus da órbita dos olhos. Entende o que eu quero dizer, Susan? Estou num paraíso gastronômico, meu nariz ainda dói e preciso de um pouco de tempo para absorver tudo isso. Até três horas atrás, eu achava que minha irmã era apenas a velha Savannah biruta. O restante é difícil, muito difícil de aceitar, Lowenstein. Encare isso sob meu ponto de vista. Pela manhã, você me apresentou à minha irmã gêmea, a quem eu conhecia bastante bem há 36 anos. Mas havia uma surpresa para o velho Tommy: esta não é sua verdadeira irmã, cara, é Renata Halpern. Ei, espere, Tom, seu viciado sulista, ainda não disse tudo. Ela planeja mudar-se e não o ver nunca mais. E, quando fico zangado por ter sido mantido na ignorância por tanto tempo, a terapeuta altamente treinada e profis­sional me atira um dicionário no nariz e perco um litro de sangue. Este almoço é seu ato de contrição pelo derramamento de meu pre­cioso sangue. Portanto, quero mudar o assunto para o último filme em cartaz ou a seleção alternativa do Clube do Livro do Mês.

Vamos conversar sobre a história infantil de Savannah - suge­riu Susan.

Ah! A pedra de Roseta. Savannah tentou escrever sobre a mal­dade, mas não conseguiu. Ela a tornou linda. Traiu-se e traiu seu ta­lento fazendo-a tão bonita.

É ficção, Tom. É um conto.

Mas não deveria ser. Ela deveria ter escrito como um fato con­creto. Savannah é bastante competente para escrever essa história de modo que se dirija ao mundo todo. Aquele fato não merecia ser embelezado e lido para crianças na hora de dormir. Ele devia ter posto homens e mulheres adultos de joelhos, tremendo de dó e de raiva. Savannah não manteve a integridade do episódio. E é um crime apresentá-lo de maneira falsa e com final feliz. Era para as pessoas chorarem depois de lê-lo. Amanhã, vou lhe contar essa história, Susan. Sem aranhas tagarelas, cães engraçadinhos, bezerros balbuciando mensagens ao rei dos touros ou qualquer outro artifício.

Não se exige que um artista conte a verdade, Tom.

Ao diabo com as exigências!

Você sabe o que eu quero dizer. Os artistas contam as coisas a seu modo.

Ou mentem a seu modo, Susan. E Savannah está mentindo na­quela história.

Talvez ela tenha contado a verdade que podia.

Bobagem, doutora. Eu sempre soube que algum dia Savannah escreveria sobre isso. Minha mãe, tenho certeza, vive sob o medo constante de que ela a coloque no papel. Mas nenhum de nós jamais mencionou em voz alta o que aconteceu na ilha naquele dia. Quando comecei a ler o livro, pensei que, finalmente, ela iria contar tudo. Então, percebi o momento em que perdeu a coragem. Foi quando as crianças adquiriram os dons mágicos. Nunca tivemos mágica para nos proteger.

Tom, ela contou verdades suficientes no que escreveu, tanto que isso a levou ao ponto de tentar se matar.

É, você tem razão... Agora, você dá a ela um recado meu? Diga-lhe que, se ela decidir se tornar Renata Halpern, eu a visitarei em São Francisco, Hong Kong ou em qualquer lugar que ela decida morar, e nunca darei a ninguém o menor indício de que sou seu irmão. Serei apenas o amigo do Sul que ela conheceu num encontro de poesia ou num vernissage. A pior coisa para mim seria que ela desaparecesse. Eu não suportaria, Susan. Eu simplesmente não agüentaria, e ninguém melhor do que Savannah sabe disso. Quero que ela viva. Quero que seja feliz. Posso amá-la mesmo que não a veja e apesar de tudo o que ela fizer.

- Eu lhe direi, Tom. E, se você continuar me ajudando, prometo devolver sua irmã. Ela está trabalhando para se salvar. Está muito em­penhada nisso.

Susan Lowenstein tomou minha mão entre as suas e mordeu de leve. Isso é o que mais me recordo daquela refeição no Lutèce.

Na noite do mesmo dia em que almocei no Lutèce, telefonei para a casa de minha mãe, em Charleston. Bastaram duas doses de uísque para que eu conseguisse discar a combinação de números que traria sua voz para o presente e me enviaria rumo ao passado, numa espiral fora de controle. Ao atender, minha mãe levou nada mais que dois minutos para revigorar suas faculdades e se empenhar com seriedade em arruinar minha vida.

Eu passara a tarde lendo alguns relatórios sobre psicóticos que a dra. Lowenstein me emprestara. Retratavam almas tristes e feridas, danificadas desde a infância, que tinham criado elaboradas paliçadas para se defenderem das intoleráveis violações de suas vidas. Ha­via ali uma feira de alucinação e dor. Eram todos sortudos o suficiente para terem nascido dentro do círculo cálido de famílias monstruosas. Um espírito de autocongratulação enobrecia o texto e os comentários dos psiquiatras que os relatavam. Os médicos apare­ciam como entes maravilhosos e milagreiros, que pegavam seres di­vididos e os preparavam para plantar grama de Bermuda nas almas suburbanas e, em seguida, nos próprios subúrbios. Aquela literatura de triunfo e afirmação, uma orgia de confirmações, deixou-me enjoado. Mas entendi o ponto de vista da dra. Lowenstein. Por mais chocante que me parecesse a condição de Savannah, havia motivo para ter esperança. Se minha irmã tivesse sorte, se a terapeuta fosse realmente boa e se todas as cartas fossem postas na mesa, Savannah poderia se recuperar, deixando para trás toda a repugnante demonologia de sua vida.

Tomei outra dose de uísque ao ouvir o telefone tocar em Charleston.

Alô - disse minha mãe.

Oi - respondi. - Aqui fala Tom.

Oh, Tom, querido. Como está Savannah?

Melhorando. Acho que logo ficará boa.

Acabo de ler que tem havido um progresso espantoso no trata­mento das doenças mentais. Recortei alguns artigos e gostaria que você os entregasse à psiquiatra.

Tudo bem. Eu entrego.

E quero que você fique de olho para ter certeza de que ela vai lê-los com atenção. Já posso ligar para Savannah?

Só daqui a algum tempo. Pelo menos é o que espero.

Bem, o que você tem feito aí o verão inteiro? Sinceramente, acho que você está negligenciando sua mulher e suas filhas.

Sim, você tem razão. Mas logo, logo voltarei para casa... Olhe, estou telefonando para dizer que vou contar à psiquiatra o que acon­teceu na ilha naquele dia.

Nada aconteceu naquele dia - respondeu minha mãe com fir­meza, embora calmamente. - Nós fizemos uma promessa, Tom. E es­pero que você a cumpra.

Foi uma promessa idiota. E isso é uma das coisas que está inco­modando Savannah e que poderia ajudá-la e ajudar a médica se fosse esclarecida. Vai ser um negócio confidencial. É tudo passado.

Não quero ouvir você falar disso.

Bem, eu tinha certeza de que você tentaria me culpar... Eu não precisava avisá-la do que ia fazer. Bastava ter contado à dra. Lowenstein. Mas acredito que ajudará todos nós, incluindo você, se o caso for divulgado.

Não! Você não pode contar isso. O que aconteceu quase arrui­nou nossas vidas.

Quase, não. Realmente arruinou boa parte de nossas vidas. Nunca pude falar em voz alta sobre o que aconteceu naquele dia. Sallie não sabe nada a respeito. Luke tampouco tocou no assunto. Savannah nem sequer o recorda. No entanto, aquilo repousa dentro de nós, feio e tenebroso, e está na hora de cuspi-lo.

Você está proibido de fazer isso.

Pois eu vou contar.

Houve um silêncio, ao longo do qual eu soube que minha mãe reunira suas forças.

Tom... - Ao ouvir a velha ameaça lamuriosa em sua voz, retesei-me para o ataque. - Odeio ser eu a lhe dizer isso, mas Sallie está tendo um caso bastante indiscreto com um médico do hospital. É a grande fofoca da cidade.

Sei que você adorou ser a pessoa a me contar isso e lhe agrade­ço pelo delicioso petisco. Só que Sallie já tinha me contado tudo antes. O que eu posso dizer? Somos um casal moderno. Gostamos de ba­nheiras, comida chinesa, filmes estrangeiros e de trepar com estra­nhos. Isso é problema de Sallie, mãe. Não seu.

E o que você quer revelar é problema meu. Se você falar a Savannah sobre aquilo, mais cedo ou mais tarde ela vai escrever a respeito.

Então é isso o que a preocupa?

Não. Estou preocupada com a possibilidade de se abrirem no­vas feridas, Tom. Já esqueci o que se passou. Não quero voltar a pensar no assunto. E você prometeu nunca mais falar sobre aquele dia.

Não vai fazer mal a ninguém.

A mim, sim. Poderia perder tudo o que tenho, incluindo meu marido, se ele descobrisse.

Vou contar assim mesmo. Bem, gostei de conversar com você. Como estão as meninas? Você as tem visto?

Elas parecem bem, para o que se espera de três crianças adorá­veis que foram abandonadas pelos pais. Quer que eu converse com Sallie e lhe diga como estou enojada com o comportamento dela?

Pelo amor de Deus, não faça isso. Seria a pior coisa no momen­to. Deixe que o caso siga seu caminho. Não tenho sido um bom mari­do nos últimos dois anos.

Você está igualzinho a seu pai.

Eu sei, e a tradução disso é que sou uma merda sem nenhum valor. Mas ficarei imensamente grato se você não disser nada a Sallie.

Quem sabe podemos fazer um trato? Eu fico calada deste lado e você se cala por aí.

O que eu vou fazer é para ajudar Savannah. Você não acredita e pensa que estou querendo magoá-la. Mas não é verdade.

Não sei no que acreditar quando se trata de meus filhos. Fui magoada tantas vezes por vocês que não acredito quando estão sendo gentis comigo. Só penso no que estarão querendo e como vão me trair. Se eu soubesse que iriam ser assim, teria matado todos vocês enquan­to ainda eram bebês.

Levando em conta o que foi nossa infância, teria sido um ato de misericórdia. - Senti o sangue latejar nas têmporas e tentei segu­rar minha língua, sem sucesso. - Mãe, estamos perdendo o controle. Vamos parar por aqui antes que comecemos a tirar sangue um do outro. Só liguei porque achei que lhe devesse uma explicação. Aquilo aconteceu há quase vinte anos. Não reflete em nenhum de nós. Foi um ato de Deus.

Do diabo, é o que você deveria dizer. Aconselho você a conti­nuar como se nunca tivesse acontecido. Seria muito melhor para Savannah. E para você e para mim também.

De onde você tirou essa idéia de que, se a gente simplesmente fingir que algo não aconteceu, essa coisa perde o poder sobre nós?

E apenas o senso comum. Se eu fosse você, Tom, não daria tan­ta importância ao passado. Olharia para o futuro. É o que eu faria. Jamais olho para trás. Sabe que não pensei uma única vez em seu pai nos últimos dois anos?

Você foi casada com ele por mais de trinta anos. Tenho certeza de que ele aparece pelo menos como o conde Drácula em algum pesadelo.

De maneira nenhuma. Quando digo adeus a alguma coisa do passado, fecho a porta e nunca mais penso nela.

E em relação a Luke?

O quê?

Você pensa em Luke alguma vez? - De imediato arrependi-me da crueldade daquelas palavras.

Você é um homem mau, Tom - disse minha mãe, a voz fraquejando antes de colocar delicadamente o fone no gancho.

Pensei em ligar de novo, no entanto havia muitas histórias não digeridas flutuando entre nós. A conquista da boa vontade de minha mãe seria um processo árduo, que iria requerer delicadeza e tato im­possíveis de se ter por telefone. Há muito tempo não nos encarávamos como amigos. Fazia anos que ela não podia emitir uma única palavra sem que eu não a interpretasse como parte de uma estratégia habili­dosa para que eu me sentisse desamparado diante de seus ataques sua­ves à minha alma. Havia uma dignidade ansiosa, até mesmo adoração, em meu ódio por ela. Por não conseguir entendê-la, encarava todas as mulheres do mundo como estranhas e adversárias. Por não com­preender seu amor feroz e traiçoeiro por mim, nunca fui capaz de aceitar o amor de uma mulher sem sentir um profundo temor. O amor sempre aparecia para mim disfarçado em beleza, desfigurado pela suavidade. O mundo pode fazer coisas piores do que tornar nossa mãe uma inimiga, mas não tanto.

Disquei novamente o número. Tocou quatro vezes e ouvi Sallie atender do outro lado.

Oi, Sallie. Aqui é Tom.

Alô, Tom - respondeu ela num tom fraternal. - Recebemos sua carta hoje e as meninas sentaram-se à mesa da cozinha para lhe escrever.

Ótimo, Sallie, minha mãe acaba de ameaçar ligar para você a fim de expressar sua afronta moral. Ela descobriu sobre você e seu amigo doutor.

Você contou a ela, Tom? Oh! Deus, era só o que faltava!

É claro que eu não contei.

Você lhe disse que deveria ser apenas um boato maldoso e que você confiava em minha virtude?

Não. Aliás, gostaria de ter pensado nisso. Agi como se fôssemos adeptos de troca de casais que trepassem como coelhos nos subúrbios. Disse que sabia tudo a respeito.

Como foi que ela reagiu?

Ficou como que em êxtase por saber que o filho se reduzira ao status de corno manso. Em seguida, ameaçou ligar para você e lhe fazer um discurso moral. Achei melhor preveni-la. Ela diz que todos em Charleston estão sabendo do caso. - Sallie não disse nada. - Você já chegou a alguma decisão? - perguntei, encostando a cabeça na cadeira favorita de minha irmã. - Sobre nós dois, sobre você, sobre ele. Sobre o fim desse mundo de merda que eu conheço.

Tom, pare com isso.

Ele já contou à esposa, Sallie? Esse é o grande momento de qualquer caso parecido.

Ele está pensando em contar na semana que vem.

Então é melhor eu voltar para casa.

Não seria conveniente, Tom.

Se eu for, você pode se mudar para o hotel Francis Marion. Mas quero que fique aí. Quero você como minha mulher. Quero namorar você, trepar na praia, na mesa da cozinha, no capô dos automóveis, pendurado na ponte Copper River. Vou sapatear, cobrir seu corpo com creme e lambê-lo devagarinho. Vou fazer o que você quiser. Pro­meto. Descobri um bocado de coisas aqui e uma delas é que amo você e vou lutar para segurá-la.

Não sei, Tom...

Você não sabe? - gritei.

Tom, isso soou maravilhoso. Mas seria bom se você o dissesse sem sua esperteza e sem brincadeiras. Creio que você nunca declarou que me amava sem fazer alguma piadinha com isso.

Não é verdade, Sallie. Sempre lhe disse que a amava durante a noite, com grande timidez e embaraço. Fiz isso uma série de vezes.

Jack me diz isso o tempo inteiro, Tom. Ele nunca é tímido nem fica envergonhado. Ele fala com simplicidade, doce e sinceramente.

E difícil conversar por telefone... Dê um grande abraço nas meninas por mim.

Ligue amanhã cedo para que elas possam falar com você.

Vou ligar. Cuide-se, Sallie. Por favor, vá com calma. Pense mui­to no que vai fazer.

Não tenho pensado noutra coisa, Tom.

Tchau, Sallie. - Ao desligar o telefone, murmurei: - Amo você, Sallie. - Disse com simplicidade, doce e sinceramente na escuridão daquela sala vazia sem nenhuma esperteza, sem piadinhas.

 

Na noite da formatura, minha mãe presenteou a Luke e a mim com duas grandes caixas, enquanto nos vestíamos para a cerimônia. Savannah ganhou um pequeno pacote elegantemente embrulhado.

Se eu fosse rica, haveria Cadillacs estacionados no gramado - murmurou mamãe com voz lacrimosa e nostálgica. - E eu lhes daria apenas as chaves.

Por falar em ficar rico, tive uma idéia luminosa outro dia... - começou meu pai, mas se calou de imediato ao perceber o olhar desmoralizador da esposa.

Savannah abriu seu presente em primeiro lugar, tirando do em­brulho uma caneta-tinteiro folheada a ouro, que levantou até a luz.

Isso é para você usar quando escrever seu primeiro livro. Em Nova York - declarou minha mãe, enquanto Savannah a abraçava com força.

Muitíssimo obrigada, mamãe. É linda.

Era muito cara, mas consegui uma que estava em oferta. Ima­ginei que você escreveria poemas mais bonitos se usasse uma caneta mais bonita.

Escreverei lindos poemas com ela. Prometo!

Escreva um sobre o paizão - disse meu pai. - Um grande poe­ma requer um tema realmente grande. Como eu.

Que idéia boba, Henry - resmungou minha mãe.

Tenho certeza de que vou escrever muitos poemas sobre vocês - anunciou Savannah, sorrindo para nós.

Abram seus presentes - ordenou minha mãe a Luke e a mim. Juntos, Luke e eu desembrulhamos nossas caixas. Na minha, havia um belo casaco esporte azul-marinho que minha mãe fizera. Luke tirou de seu embrulho um idêntico, muito maior. Provamos e ambos servi­ram com perfeição. Durante meses, minha mãe se sentara à máquina de costura, enquanto estávamos na escola, preparando aquele mo­mento. Fui até o quarto dela e me olhei no espelho. Pela primeira vez na vida, eu me sentia bonito.

Ela surgiu atrás de mim, irreal, silenciosa como um movimento das nuvens e murmurou:

Eu lhe disse uma vez que você sempre se lembraria de seu pri­meiro paletó esporte.

Que tal estou?

Se eu fosse uma mocinha, lhe daria uma cantada.

Não diga bobagens - retruquei, corando.

Estou falando a verdade. Você é muito mais bonito do que seu pai foi, mesmo no melhor dia da vida dele.

Eu ouvi tudo - gritou meu pai da sala. - É mentira.

 

A formatura foi realizada na quadra esportiva. Os formandos en­traram pela porta da frente, em fila dupla, ao som de "Pompa e cir­cunstância." Quando o nome de Savannah foi anunciado como oradora da turma, minha mãe, meu pai, meu avô e minha avó se le­vantaram e aplaudiram ruidosamente enquanto ela caminhava até o pódio para fazer o discurso de despedida. Meu pai postou-se próximo ao palco e filmou o discurso inteiro para a posteridade. Ela começou a falar, citando o trecho:

 

"Fomos criados pela música dos rios, simples e sincera, e passa­mos nossos dias de infância ao lado daquelas águas, seduzidos pe­los encantos da cidade mais adorável das terras baixas da Carolina."

 

O discurso era impressionista e ardia com uma série de imagens indeléveis, comuns a todos nós. A poetisa ia a público pela primeira vez, impudente com a majestade das palavras, que usava como um pavão abanando as penas da cauda suntuosa pelo simples prazer da ostentação. Savannah tinha um talento especial para o ato final e para o gesto de adeus. Despediu-se do mundo que deixávamos para trás e o fez a seu modo: inimitavelmente, inesquecivelmente.

O inspetor da escola, Morgan Randel, entregou os diplomas um a um e nos desejou sorte no mundo. Houve um modesto aplauso da multidão suarenta para cada um de nós, mas um murmúrio perpas­sou pelas arquibancadas quando Benji Washington aproximou-se para receber o diploma. Foi então que a turma em peso levantou-se e o aplaudiu de pé. Benji recebeu solenemente o diploma e, com a mes­ma intolerável dignidade solitária, atravessou o palco, voltando para sua cadeira. Mas, surpreso e envergonhado com o rebuliço, ergueu os olhos e viu a mãe, que pressionava o rosto de encontro ao ombro do marido, com o alívio sincero de quem percebia que a longa provação do filho havia terminado. Era a História que estávamos aplaudindo, pensei, enquanto o aclamava. História, mudança e uma coragem tão sobre-humana que eu nunca veria nada igual, nunca sentiria aquela chama ardendo com tanto brilho subjugada a um ideal. O aplauso aumentou quando ele se aproximou de sua cadeira. Em silêncio, perguntei-me quantos Benji Washington haveria naquela noite no Sul, filhos e filhas negros de ar majestoso, que provaram suas habilidades no meio amargo de alunos brancos, treinados desde o berço para amar a Deus e odiar os negros de todo o coração.

Quando a música recomeçou, marchamos ao calor de junho. Eu suava profusamente porque insistira em usar meu novo paletó espor­te sob a beca de formatura.

 

Era meia-noite e estávamos sentados na ponte de madeira que liga­va nossa ilha e nossas vidas à parte continental dos Estados Unidos. A lua tremula sobre a água como um disco pálido flutuando na cor­rente. No alto do céu, as estrelas estão no meio de seu trânsito perfei­to pela noite e as constelações renascem no espelho luminoso das marés. Em ambos os lados, o pântano aceita a aproximação das marés com uma paciência vegetal, um velho aroma de luxúria e renova­ção. Nas terras baixas, o cheiro dos pântanos desagrada aos visitantes, mas para os nativos é a essência perfumada do planeta. Nossas nari nas tremem com o incenso do lar, a sutil vela aromática de nossa terra natal. As palmeiras cerram fileiras na ponta de cada península e o riacho se divide em riachos menores como uma veia abrindo-se em capilares. Um raia nada abaixo da superfície como um pássaro num pesadelo. O vento se levanta da ilha como um mensageiro por­tando o odor da madressilva e do jasmim. Em um instante, o cheiro penetrante da noite se modifica, diminui, aprofunda-se, diminui novamente.

Savannah senta-se entre os dois irmãos, adorável com seu corpo frágil. Passo o braço por seus ombros e seguro o pescoço forte de Luke com a outra mão, apenas encostando. Luke toma um gole de Wild Turkey e passa a garrafa para nós. Ele havia comprado o uísque, não porque fosse caro, mas porque o associava a caçadas de perus selva­gens em frias manhãs de inverno.

Agora terminou tudo - disse Savannah. - O que diabos isso significou?

Era apenas algo por que tínhamos de passar antes que nos deixassem ir - sugeriu Luke.

Aliviado pelo uísque eu opinei:

Não foi tão mau assim. Aposto que ainda encararemos esse período como a melhor época de nossas vidas.

Foi horrível - replicou Savannah.

Ora, vamos. Veja o lado melhor. Você sempre dá importância ils coisas ruins. - Passei a garrafa para ela. - O céu pode estar perfeita­mente azul e você logo anuncia que vai haver um furacão.

Sou realista. - Ela me deu uma cotovelada na cintura. - E você não passa de um pobre atleta burro. É a única pessoa que eu conheço que realmente gostou do ensino médio.

E isso me torna detestável, é?

Nunca confiarei em alguém que tenha gostado do ensino mé­dio - continuou Savannah, ignorando-me. - Nunca confiarei em quem pelo menos o pareça ter tolerado. E vou me recusar a conversar com qualquer um que tenha jogado futebol durante esse período.

Eu joguei futebol - comentei, magoado pelas observações de minha irmã.

Tiro meu time do campo - disse ela, jogando a cabeça para trás numa gargalhada.

Não entendo esse seu ódio por esse período, Savannah. Você se saiu tão bem! Foi oradora da turma, líder de torcida, monitora da turma do último ano e eleita como a personalidade marcante.

Personalidade marcante! - gritou ela para o pântano, já meio alta por causa da bebida. - Evidentemente não houve muita competi­ção por esse título. Eu era uma das poucas pessoas naquela escola com alguma personalidade.

Eu tenho uma personalidade maravilhosa.

Você sabe é jogar futebol. Não vai iluminar o mundo com sua personalidade.

É isso aí, Tom - intrometeu-se Luke. - Você tem uma personalidadezinha de merda.

Quem é esse grandalhão sentado à sua esquerda, Savannah? - Dizendo isso, apertei o pescoço de Luke. - É grande demais para um ser humano e muito burro para ser um hipopótamo. Agora, diga se não fui brilhante. Diga se não está lidando com uma personalidade de primeira classe.

Eu gostaria de ser um hipopótamo - continuou Luke. - Só para me sentar no fundo dos rios, assustando as pessoas de vez em quando.

Por que não tenta descobrir quem você é na faculdade, Tom? - perguntou Savannah. - Por que não procura saber quem mora nessa alma que está por baixo das ombreiras?

Sei exatamente quem eu sou. Sou Tom Wingo, nascido e criado no Sul, um sujeito comum que vai viver uma vida comum, casar-se com uma mulher comum e ter filhos comuns. Apesar de ser ligado a essa família de loucos e possuir um irmão que não se incomodaria em ser um hipopótamo.

Você é tão superficial que vai se casar com a primeira moça de tetas grandes que aparecer - completou Savannah.

É uma ótima idéia - emendou Luke, dando um gole no uísque.

E você, Luke? - indagou Savannah. - O que há aí para você?

Aí onde?

Na vida. Hoje foi a noite da nossa formatura, por isso devemos conversar sobre o futuro e fazer planos.

Vou ser capitão de barco camaroneiro, como papai. Ele vai ao banco no fim do verão para me ajudar a financiar um barco de pesca.

Papai deve ter uma ficha ótima no banco - repliquei. - Aposto como não lhe financiariam uma tarrafa ou uma vara de pesca.

Ele precisa livrar-se de algumas dívidas antes de ir lá.

Você poderia ser algo mais, Luke - insistiu Savannah. - Muito mais. Você escutou e acreditou em tudo o que disseram a seu respeito.

Por que você não liga para os treinadores da universidade de Clemson ou da Carolina, oferecendo-se para o time deles? - sugeri. - Eles iriam vibrar de alegria se você jogasse futebol.

Você sabe que não consigo ter boas notas na faculdade, Tom. Eu não teria concluído o curso secundário se vocês dois não tivessem me ajudado. Não preciso da faculdade para me lembrar de que sou burro.

Você não é burro, Luke - garantiu Savannah. - Essa é uma das mentiras com que o alimentaram, e você a engoliu inteirinha.

Obrigado por dizer isso, mana, mas vamos encarar os fatos. Deus se esqueceu de me dar inteligência junto com os músculos. Fi­quei em penúltimo lugar na turma. Só Viryn Grant teve notas mais baixas.

No fim do ano, eu estava trabalhando no departamento de orientação educacional, ajudando o sr. Lopatka a registrar as notas dos alunos nos documentos escolares. Um dia, quando ele saiu para almoçar, descobri quais eram os nossos QIs - disse Savannah.

Não brinca! - exclamei. - Isso é informação supersecreta.

Pois eu vi. E foi muito interessante. Principalmente no caso de I uke. Você sabe que tem um QI mais elevado do que Tom, Luke?

O quê? - retruquei, ofendido.

Oba! - gritou Luke, assustando uma galinha do pântano que saiu do ninho sobre o capim mais alto. - Passe o uísque para Tom. Isso vai estragar a formatura dele.

Ora, por que estragar a formatura dele? Todo mundo sabe que o teste de QI não significa nada.

Qual foi seu resultado, Savannah? - perguntei.

Cento e quarenta, o que me coloca nas alturas, junto com os gênios. Imagino que isso não seja uma surpresa para meu querido irmão.

Quanto foi o meu? - perguntou Luke, num tom de triunfo in­suportável.

Cento e dezenove. Tom alcançou 115.

Sou seu irmão gêmeo - gritei, com raiva. - Exijo uma recontagem.

Sempre achei que Tom era um pouco obtuso - comentou Luke, com uma risadinha.

Vá se danar, Luke! - xinguei, furioso e preocupado. - Eu pensa­va que gêmeos tivessem automaticamente o mesmo QI.

Nem os gêmeos idênticos têm o mesmo QI, Tom - explicou Savannah, divertida. - Mas você realmente saiu em desvantagem.

Imaginem só. Sou mais inteligente que Tom - exultou Luke. - Vou beber a isso.

Só que eu uso a inteligência muito melhor do que você - re­pliquei.

Sim, claro, irmãozinho. Você se saiu muito bem com esse QI mixuruca que tem. - Luke deitou-se na ponte, ao lado de Savannah, dando risada.

Bem, decidi ser treinador de futebol. Portanto, não preciso de um supercérebro.

Você não vai precisar de cérebro nenhum para isso. Que des­perdício, Tom! - criticou Savannah.

Por que você diz isso?

Se eu pudesse arranjaria um time de assassinos para matar todos os treinadores do mundo. Torturaríamos todos os homens e mulheres acima dos 21 anos que estivessem usando agasalho espor­tivo e apito.

Como você os torturaria? - perguntou Luke.

Em primeiro lugar, eu os faria ouvir música clássica. Em segui­da, obrigaria eles a freqüentarem aulas de balé por uma semana. Va­mos ver... Depois, faria com que lessem as obras completas de Jane

Austen. E para terminar, submeteria cada um a uma cirurgia de mu­dança de sexo, sem anestesia.

Quanta violência, Savannah! - disse. - E que pensamentos es­tranhos passam por sua bonita cabecinha.

Se Tom quer ser treinador, deixe-o ser treinador - interveio Luke. - Por que ele não pode ser o que deseja?

Porque ele poderia ser muito mais. Ele está se vendendo ao Sul por uma miséria. Sinto muito, Tom. Você é uma vítima da Doença Sulista e não existe vacina para salvá-lo.

Imagino que você Vá ser muito importante na maldita Nova York...

Vou ser estupenda!

Mamãe ainda quer que você aceite a bolsa de estudos do Con­verse College - informou Luke. - Eu a ouvi conversando com Tolitha sobre isso outro dia.

Prefiro morrer a ficar na Carolina do Sul um dia além do ne­cessário. Você sabe o que mamãe sonha para mim? Ela quer que eu me case com algum médico ou advogado que conheça na faculdade, que me estabeleça numa cidadezinha do Estado e que tenha quatro ou cinco filhos. Se forem meninos, ela espera que eu os eduque para serem médicos ou advogados. Até os sonhos dela têm o cheiro da morte para mim. Mas eu não vou entrar nessa. Vou ser o que eu quiser. Em Colleton, o pessoal espera que a gente siga um caminho determinado e a cidade inteira nos vigia para que não nos desviemos dele. As moças são todas bonitas e petulantes e os rapazes, uns garanhões. Não, estou cheia de esconder quem eu realmente sou e o que sinto. Vou para Nova York, onde não sentirei medo de descobrir o que há para ser descoberto em mim.

De que você tem medo? - perguntou Luke, enquanto uma garça noturna, tímida como uma mariposa, levantava vôo sobre o pântano.

Tenho medo de que, se permanecer aqui, termine como o sr. Fruit. Louca ou idiota, mendigando sanduíches na porta dos fundos dos restaurantes e bares. Quero estar num lugar onde, se eu enlou­quecer por algum tempo, isso passe despercebido. Colleton me dei­xa meio pirada pelo simples esforço que eu faço diariamente para fingir que sou igual a todo mundo. Eu sempre soube que era dife­rente. Nasci no Sul e, no entanto, não fui sulista um único dia da minha vida. Isso quase me matou. Sou doente, doente mental desde pequena. Vejo coisas e ouço vozes. Tenho pesadelos horríveis. Quan­do eu contava isso à mamãe, ela dizia: "Tome duas aspirinas e não coma sobremesa depois do jantar." Fiz um esforço terrível para che­gar até aqui.

Por que você não nos contou? - perguntou Luke.

O que vocês poderiam ter feito?

Teríamos dito para você tomar três aspirinas e cortar a sobre­mesa depois do jantar - disse eu.

Sabem o que eu vejo na água aí embaixo? - Savannah apontou para a maré iluminada pela lua. - Há centenas de cães afogados com os olhos abertos, olhando para mim.

Olhei para baixo e só vi água.

É. Talvez você deva mesmo se mudar para Nova York.

Cale a boca, Tom - exigiu Luke, olhando para Savannah de maneira protetora. - Não há nenhum cão lá no fundo, meu bem. É só sua cabeça brincando com você.

Às vezes, eu vejo o Menino Jesus de Praga, aquela imagem que papai trouxe da Alemanha. O menino Jesus tem pus nas órbitas dos olhos e acena para que eu o siga. Às vezes, papai e mamãe estão nus, pendurados em ganchos de carne, rosnando um para o outro, dando-se dentadas com suas presas e latindo como cachorros.

É o diabo ter um QI de 140, não é, Savannah? - ironizei.

Cale a boca, Tom - insistiu Luke, com mais firmeza, e eu me calei. O silêncio caiu sobre nós; um silêncio embaraçoso e descon­fortável.

Meu Deus! Isso é um verdadeiro mistério. Me dê o uísque, Luke. Sugiro que você beba metade dele quando passar pelas suas mãos, Savannah. Na verdade, se eu ouvisse essas vozes e visse todas essas coisas, ficaria bêbado o tempo inteiro. Acordaria pela manhã, tomaria um trago, depois ficaria bebendo até perder a consciência.

Por que você não vai ser médico em vez de treinador, Tom? - questionou Luke. - Nossa irmã está com problemas e você fica aí sen­tado, fazendo piadinhas. Precisamos ajudá-la, e não rir dela.

Vocês não podem fazer nada, Luke - interrompeu Savannah. - Tenho passado por isso sozinha durante muito tempo. Pedi à mamãe que me levasse a um psiquiatra em Charleston, mas eles cobram 40 dólares a hora.

Quarenta dólares a hora! - assobiei, admirado. - Eles teriam de me fazer uma massagem e me dar uma caixa de charutos para justifi­car tanta grana. Pô, talvez eu faça psiquiatria. Digamos que eu traba­lhe dez horas por dia, seis dias por semana. Em cinqüenta semanas por ano, ajudando pessoas que vêem as mães penduradas em ganchos de açougueiro, vou faturar 120 mil dólares, antes dos impostos. Eu não sabia que se podia enriquecer ajudando os louquinhos!

Você está bêbado, Tom - censurou Luke. - Cale essa boca ou jogo você no rio, para curar a bebedeira.

Você acha que consegue me jogar nesse riacho? - Eu ri, fora de controle. - Você está falando com um cara que é muito homem .Muito homem. Está falando com um jogador de futebol universitário, Luke. Não com um atletazinho do ensino médio com penugem no rosto.

Desculpe, benzinho. - Luke beliscou Savannah de leve na face. - Preciso ensinar meu irmãozinho a respeitar os mais velhos.

Não o machuque, Luke. Ele simplesmente não sabe beber.

Eu não sei beber? - gritei, divertindo-me muito e tomando ouIro gole na garrafa. - Desafio qualquer homem deste país em maté­ria de bebida. Sente-se, Luke. Não quero embaraçá-lo na frente das mulheres.

Quando Luke se levantou, eu fiz o mesmo, sentindo as pernas bombas. Enquanto avançava para desafiá-lo, sentia em torno de mim uma aura de invencibilidade alcoólica. Dando um bote, tentei prendê- lo numa "gravata", mas Luke me ergueu no ar e me atirou com facili­dade dentro do rio. De pé, engasgado e cuspindo água, ouvi a risada de Savannah ecoar pelo pântano.

Vocês, jogadores de futebol de faculdade, são o diabo - gritou Luke, enquanto eu lutava com a maré e nadava de volta para a ponte.

Espero que você não tenha estragado meu casaco esporte novo, Luke, do contrário vamos brigar neste verão.

Você não devia estar usando o paletó com este calor - respon­deu ele antes de pular para dentro do rio. Lutamos na água e ele me afundou muitas vezes até eu admitir que fora derrotado. - Ei, Savannah - chamou Luke. - Tire os sapatos e vamos nadar de volta para casa como fazíamos quando crianças.

Tirei os sapatos, a calça e o paletó e os entreguei a Savannah. Ela se livrou do vestido de algodão e ficou em pé, só de calcinha e sutiã, como uma linda estátua à luz do luar. Erguendo a garrafa de uísque, gritou:

Vamos fazer nossos brindes finais ao futuro. Em primeiro lu­gar, eu brindo a Tom. O que você quer da vida, quarterback?

Boiando de costas, olhei para seu rosto iluminado pelo luar.

Vou ser um cidadão comum.

Então vamos brindar ao cidadão comum. - E tomou um gole da bebida. - Agora, Luke, vamos brindar a você.

Eu sou um camaroneiro. Vou ser um homem estável.

Um brinde à estabilidade!

E quanto a você, Nova York? - perguntei. - Podemos lhe fazer um brinde?

Pretendo escrever poesias e fazer a vida. Planejo não apenas viver desenfreadamente, como levar uma vida cheia de pecado... Ficar nua, desfilar pela Quinta Avenida, ter casos com homens, mulheres e animais. Vou comprar um papagaio e ensiná-lo a xingar. Como papai, vou filmar tudo e mandar para vocês verem.

Passe a bebida - pediu Luke, nadando em direção à ponte. Pe­gou a garrafa, tomou um gole e veio até onde eu estava. - A turbulên­cia - disse, passando a garrafa para mim, por cima da água.

A Savannah Wingo - gritei. - A mulher mais desenfreada a pas­sar pelo túnel Holland.

Adeus, Colleton - gritou ela em direção ao Atlântico. - Adeus, Sul. Adeus, futebol. Adeus, caipiras sulistas. Adeus, mamãe. Adeus pa­pai. E olá, Nova York.

Enquanto eu esvaziava a garrafa, ela deu um mergulho perfeito, entrando na água quase sem agitá-la. Então deixamos que a maré sua­ve nos levasse para casa.

 

Aquele foi o melhor verão que tive na ilha. Preparando-me lenta­mente para a partida, surpreendi-me ao descobrir que não sabia viver sem contar com a família em volta de mim. Poucas vezes antes eu dormira longe dos ruídos de minha família adormecida. Ainda não estava preparado para abandonar o único estilo de vida que conhecera até então. E não havia um antídoto para o crescimento. O terror da partida me dominava, insinuando-se no ritmo de meus tênues gestos de despedida, e eu não conseguia formular as palavras secretas que latejavam em meu peito com uma emoção silenciosa e desarticulada. Um banquete de luzes e tristeza, que durara 18 anos, chegava ao fim e eu não suportava sequer exprimir como me sentia. A família é um dos elementos solúveis da natureza: dissolve-se no tempo como sal na água da chuva.

E verão novamente. O silêncio e o calor são reis que lutam entre si ao longo das margens dos rios. Lemos no jornal que as saúvas atraves­saram o rio Savannah e estabeleceram uma colônia na Carolina do Sul. Próximo à ilha Kiawah, Luke capturou seu primeiro tarpão, de­pois de uma luta que durou uma hora. O peixe saltou, dançou pelas ondas, vigoroso como um cavalo. Quando finalmente conseguimos colocá-lo dentro do barco, Luke beijou-o e o libertou, num gesto de reverência e gratidão. Savannah passou o verão pintando aquarelas e escrevendo poemas, numa imitação de Dylan Thomas. Os dias termi­navam silenciosamente e os vaga-lumes agitavam o crepúsculo com suas luzes errantes.

Tentei pôr em ordem os fragmentos de sabedoria que apren­dera como criança de ilha e arranjá-los como uma espécie de ar­quipélago ao qual pudesse retornar quando quisesse. Contei a lenta passagem dos dias como se fossem contas de um rosário que se dissolviam em minhas mãos. Acordava cedo pela manhã e via meu pai sair em direção ao barco camaroneiro. A noite, os vagalumes flutuavam pela escuridão num zodíaco acidental inconstante. Tensos e constrangidos, éramos delicados uns com os outros naquele verde verão de junho.

Nos olhos de minha mãe, interpretamos um texto sombrio que traduzimos como medo da meia-idade, uma perda de sentido na vida. Ela não sabia encarar o mundo exceto como mãe. Com nossa nova liberdade, perdera o senso de definição. Estávamos preocupados em deixá-la para enfrentar sozinha uma vida com meu pai. Zangada conosco, ela tomava nosso crescimento como uma traição imperdoá­vel. Naquele verão, não nos deixou trabalhar uma única vez no barco de papai. Exigiu que fôssemos seus filhos em período integral para marcar o último verão de nossa juventude. Tinha 37 anos ao terminar sua vida como mãe e não tolerava a idéia de dirigir uma casa sem o riso e as lágrimas dos filhos. Passamos quase todo o tempo em sua companhia, enquanto os camarões enchiam os riachos, e as garçotas, como pilares de sal fresco, formavam pequenas colunatas nos campos da parte central da ilha. Tudo estava como sempre fora, mas logo iria mudar, de maneira horrível, irrevogável. Aproximávamos do momento em que as liturgias do hábito se desmontariam num conflito singular que transfiguraria nossas vidas.

No dia 19 de julho, minha mãe comemorou seu trigésimo sétimo aniversário e nós lhe fizemos uma festa. Savannah preparou um bolo de chocolate e Luke e eu fomos de barco até a cidade para comprar o maior vidro de Chanel n° 5 que Sarah Poston vendia na butique. A sra. Poston nos assegurou que só as mulheres "três elegante" usavam Chanel. Apesar de sua habilidade como vendedora ser muito melhor do que seu francês, compramos o perfume, que ela embrulhou para presente com papel cor de lavanda.

À noite, minha mãe soprou três vezes até apagar todas as velinhas do bolo. Enquanto a família caçoava, ela se preocupava achando que tinha alguma doença no pulmão causada pela idade avançada. A luz dourada das velas, seu rosto irradiava uma beleza incomum. Quando sorriu para mim, senti-me purificado no recanto secreto de sua mais elevada afeição, Ao me beijar, aspirei o aroma de Chanel que perfuma­va seu pescoço. Durante nosso abraço, desejei chorar com toda a impetuosidade e a ternura que um menino colocava na tarefa de amar sua mãe, mas permaneci em silêncio, a cabeça recostada em seu om­bro, sentindo a maciez de seus cabelos.

Naquela noite, Luke nos surpreendeu ao perder o controle en­quanto ouvia Savannah e eu conversarmos a respeito de ir embora da ilha no fim de agosto. Como minha mãe, ele se recusava a reconhecer

fato de que nossas vidas seriam diferentes e que a infância não volta­ria mais - era um trecho de música perdido no correr do tempo, ine­fável e emudecido. Trêmulo, Luke chorava num suave adágio de sofrimento, embora seu pesar fosse impregnado de força. Ao vê-lo em lágrimas, aprendia-se algo sobre a melancolia dos reis, a solenidade de um leão banido do lugar de honra. Desejei abraçá-lo e sentir seu rosto de encontro ao meu. Mas não consegui. Foi Savannah quem o abraçou e lhe jurou que nada mudaria. Luke pertencia à ilha. Savannah e eu simplesmente havíamos nascido ali, mas não fazíamos parte dela. Pelo menos, esse era o mito que nos sustentava, que alimentava nosso so­nho de partir para além dos limites da família.

Por que essa choradeira toda? - perguntou meu pai.

Luke está triste porque vamos deixá-lo - explicou Savannah.

Ah, essa não, meu rapaz. Agora você é um camaroneiro. Camaroneiros não choram.

Fique quieto, Henry. Deixe o menino em paz - pediu minha mãe.

Realmente eu criei uma família sensível. Não há nada que eu odeie mais que uma família sensível.

 

Mais tarde, nós nos deitamos sobre o cais flutuante enquanto o rio se enchia com o esplendor da totalidade ao se aproximar do mar. A luz escassa da lua nova, avistamos todas as estrelas que Deus quisera que o olho humano pudesse ver naquela parte do mundo. A Via Láctea era como um rio claro de luz, mas, simplesmente levantando a mão na frente do rosto, eu aniquilava metade daquelas estrelas. A maré estava descendo e os caranguejos tinham saído das tocas de lama. Os machos acenavam com as pinças em sincronismo com as marés, as estrelas e os ventos. Comunicavam com seus braços de marfim que o mundo estava como fora programado para ser. Milhares deles mostravam a Deus, por meio de gestos, que a maré havia descido, que Pégasus bri­lhava com a magnitude exata, que as doninhas cantavam nas águas velozes, que a lua fora fiel a seu pacto. Aquele movimento era uma dança, um certificado de fé, uma cerimônia de afirmação divina. Como um caranguejo, ergui o braço e acenei para Órion, que passava sem pressa, em formação de batalha. A constelação estava a milhões de quilômetros e, no entanto, parecia mais próxima que as luzes de minha casa.

No dia 3 de agosto, dormi outra vez no desembarcadouro sob um ventó que se elevava de sudeste. Ao meio-dia, a maré estava cheia e, quando se inverteu, os ventos impediram que as águas vazassem. Uma luta titânica aconteceu, com o vento espalhando devastação entre os pomares e as plantações de feijão. Após o almoço, Luke convidou Savannah e a mim para acompanhá-lo ao extremo sul da ilha, onde planejava passar a tarde adubando o bosque de pecãs que não dera frutos durante dois anos. Descontraído, eu lhe disse que pouco me importava se os pés de pecãs de Melrose não produzissem uma única noz nos próximos cinqüenta anos, e que não pretendia andar pela ilha com um tempo tão esquisito. Savannah e eu ficamos com mamãe en­quanto ele saía de casa e caminhava pela estrada que atravessava o pântano, com o vento às suas costas.

Sintonizamos uma estação de rádio da Geórgia e fizemos coro, na tentativa de criar um ambiente agradável, a cada vez que tocavam uma música de que gostávamos. Quando a canção favorita de minha mãe começou a tocar, cantamos ruidosamente, cada um fazendo pose de crooner de orquestra, em microfones invisíveis para o prazer das mul­tidões extasiadas. No fim da música, aplaudimos uns aos outros e nos revezamos em reverências, curvando o corpo, jogando beijos para nossos fãs exaltados.

Estávamos conversando quando o noticiário interrompeu nosso recital. A parte nacional do jornal falado logo deu lugar ao noticiário local: o governador da Geórgia pedira ao governo federal fundos para evitar erosões posteriores em Tybee Beach; três homens haviam fugi­do da prisão Reidsville, na Geórgia central; acreditava-se que estives­sem armados e que se dirigissem para a Flórida; tinham assassinado um guarda da prisão durante a fuga. A Sociedade Histórica de Savannah emitira um protesto contra a concessão de licença para a construção de um hotel no distrito histórico. Um homem fora preso por vender bebida alcoólica a um menor num bar de River Street. A voz alegre de minha mãe e a do locutor do rádio misturavam-se na­quela hora.

A chuva caía quando o Homem do Tempo anunciou que havia 40% de chance de que isso ocorresse naquela tarde. No fim do noti­ciário, o som do conjunto Shirelles ecoou pela sala. Com um grito de alegria, minha mãe pôs-se a dançar o shag da Carolina com Savannah. Como a maioria dos atletas da escola secundária de minha geração, aprendi os passes de futebol antes de aprender a dançar. Assim, obser­vei seus movimentos sensuais com uma sensação de alegria e ao mes­mo tempo de vergonha. Uma timidez inata me impedira de pedir à minha mãe ou à minha irmã para que me ensinassem. Eu me envergo­nhava só em pensar em segurar-lhes as mãos. Enquanto isso, mamãe conduzia Savannah pela sala com elegância e firmeza.

Sem saber que a casa estava sendo observada, mãe e filha dança­vam felizes enquanto eu cantava junto com os Shirelles e batia palmas ao ritmo da música. Apesar dos trovões sobre o rio, nossa casa era um lugar de música, dança e de tamborilar suave da chuva no telhado. Estávamos prestes a aprender que o medo é uma arte tenebrosa que requer um professor perfeito. Estávamos prestes a escrever com san­gue nossos nomes nas páginas indiferentes do livro das horas. Os pro­fessores perfeitos haviam chegado. E tudo começou com música...

Ao ouvirmos uma batida à porta, nós nos entreolhamos, porque não havíamos escutado nenhum carro se aproximar da casa. Dando de ombros, fui ver quem era. Assim que abri a porta, senti o aço frio da arma de encontro à minha têmpora. Olhei para o homem. Mesmo sem barba eu conhecia muito bem aquele rosto. Através da janela do lempo, recordei a crueldade e o magnetismo de seus olhos pálidos.

- Callanwolde - disse eu, e ouvi minha mãe gritar às minhas costas. Nesse instante, dois homens irrompiam pela porta dos fundos e, mais uma vez, a rádio alertava que três homens armados haviam fugi­do da prisão Reidsville e se dirigiam para a Flórida. Anunciaram seus nomes: Otis Miller, aquele que certa vez chamamos de Callanwolde;

Floyd Merlin; Randy Thompson. Dominado pela impotência, pelo medo, por uma covardia profunda, caí de joelhos e balbuciei palavras incoerentes.

Nunca esqueci você, Lila - declarou o gigante. - Em tantos anos na prisão, era de você que eu me lembrava. Guardei isto para me lembrar de você. - E mostrou os fragmentos manchados da carta que minha mãe escrevera em Atlanta para meu avô durante a Guerra da Coréia, aquela carta que jamais fora entregue na ilha.

O homem gordo segurava Savannah pelo pescoço e a forçava em direção à porta do quarto. Minha irmã lutava e gritava, mas o sujeito a agarrava rudemente pelos cabelos e a obrigava a entrar.

Está na hora de a gente se divertir - disse ele, piscando para os outros antes de bater a porta.

A mulher é minha! - Callanwolde fitava minha mãe com um olhar tão libidinoso que parecia encher de veneno o ar da sala.

Tom, ajude-me, por favor.

Não posso, mamãe... - Entretanto, dei um salto repentino em direção ao lugar onde se penduravam as armas na parede. Callanwolde interceptou-me e me empurrou para o chão. Depois, aproximando-se de minha mãe, a arma apontada para ela, disse algo que não entendi:

O menino é seu, Randy. Me parece razoável.

Carne fresca - disse Randy, olhando para mim. - Não há nada que eu mais goste do que carne fresca.

Tom - repetiu minha mãe -, você tem de me ajudar.

Não posso... - Fechei os olhos enquanto Randy encostava a faca em minha jugular e Callanwolde empurrava mamãe para o quar­to e a jogava na cama em que fui concebido.

Randy cortou-me a camisa nas costas, arrancou-a e me disse para soltar o cinto. Obedeci, sem saber o que ele queria, e minha calça caiu ao chão. Natural da zona rural da Carolina do Sul, eu não sabia que um menino poderia ser estuprado. Mas meu professor vie­ra até minha casa.

Hum, muito bom. Qual é o seu nome, menino bonito? Diga a Randy seu nome. - Randy pressionava a faca de encontro a meu pes­coço, enquanto os gritos de minha mãe e de minha irmã ecoavam pela casa. O hálito dele tinha um cheiro acre e metálico. Seus lábios encos­tados em minha nuca sugavam minha pele, e sua mão livre acariciava meus órgãos genitais. - Diga seu nome, menino bonito, antes que eu corte sua garganta de merda - murmurou ele.

Tom - respondi, numa voz irreconhecível.

Você já teve homem antes, Tommy? - Naquele instante Savannah chorava no quarto. - Não, claro que não. Eu serei o primei­ro, Tommy. Vou foder você gentilmente, antes de cortar sua garganta. - Randy apertava meu pescoço com a mão esquerda com tanta força que pensei que fosse perder a consciência. A lâmina da faca roçou-me a cintura quando ele cortou minha roupa de baixo. Então, fui agarra­do pelos cabelos e forçado a ficar de joelhos. Eu não sabia o que ele estava fazendo até que senti seu cacete em meu traseiro.

Não - implorei.

Randy puxou-me os cabelos com força e me feriu com a faca en­quanto sussurrava:

Vou te foder e você vai sangrar até a morte, Tommy. Não me importa.

Quando fui penetrado tentei gritar, mas não pude. Sentia-me in­capaz de expressar tanta degradação, tanta vergonha. O cacete enorme me machucava ao forçar caminho para dentro. Senti um fluido correr pela coxa e pensei que ele tivesse gozado. Mas era meu próprio sangue que corria. Randy continuava a forçar mais fundo enquanto minha mãe e minha irmã gritavam meu nome, implorando ajuda.

Tom, Tom! - era Savannah, com voz exausta. - Ele está me machucando, Tom.

Com os olhos cheios de lágrimas, eu mal sentia os movimentos de Randy, que murmurava:

Diga que está adorando, Tommy. Diga que está achando deli­cioso...

Não - sussurrei.

Então vou cortar sua garganta, Tommy. Vou gozar no seu rabo enquanto você estiver sangrando até a morte. Diga que adora isso.

Adoro isso.

Diga bonitinho, Tommy.

Adoro isso - repeti, agora com falsa doçura.

Humilhado e impotente, experimentei uma transformação si­lenciosa dentro de mim enquanto o homem gemia e pressionava mais fundo. Randy não percebeu o momento sutil em que uma fúria assassina tomou meu corpo. Levantei o rosto e tentei afastar o terror de minha cabeça. Meus olhos percorreram a sala e chegaram ao espelho biselado sobre a viga da lareira. Emoldurado ali, vi o rosto de meu irmão, olhando pelas janelas da parte sul da casa. Sacudi a cabeça de leve e fiz com os lábios a palavra '"não". Afinal todos os rifles estavam dentro de casa e nossa melhor chance es­tava em que Luke corresse para pedir ajuda. Quando olhei de novo, ele não estava mais lá.

Converse comigo, Tommy - murmurou Randy. - Diga alguma coisa doce, meu bem.

Então, escutei através do vento o som de algum lugar do passado, que não pude identificar de imediato. Parecia o grito de um coelho sendo levantado do campo, empalado pelas garras de um falcão. O vento soprava com força por entre as árvores e os galhos batiam de encontro ao telhado da casa. Escutei o ruído mais uma vez, sem conse­guir localizá-lo nem saber de onde vinha. Será que os homens ouvi­riam?, perguntei-me. E gemi alto encobrindo o som.

Adoro quando você geme, Tommy - disse Randy Thompson. - Gosto mesmo.

Por favor, por favor - minha mãe gritava. Então ouvi de novo o som que vinha do lado de fora e, desta vez, reconheci-o. Era o barulho de uma roda girando em torno de um eixo não lubrificado; o som do verão anterior, dos inebriantes dias de disputa em que Luke e eu ini­ciamos nossa preparação para a última temporada de futebol. Era o som da vida metódica do início de agosto, quando Luke e eu pusemos as ombreiras e sapatos especiais e inauguramos um método pessoal de robustecer o corpo para os jogos de setembro. Ele e eu tomávamos posição atrás da jaula do tigre e, juntos, a empurrávamos para cima e para baixo na estrada até cairmos de exaustão. Naqueles exercícios de condicionamento físico, forçávamos o corpo até os limites extremos da resistência humana, para nos tornarmos mais fortes do que qual­quer dos meninos ferozes que se arremeteriam sobre nós em campo. Diariamente, nós nos machucávamos no esforço inflexível para pre­parar o físico com uma disciplina cruel inventada por nós mesmos. Empurrávamos a jaula pela estrada, indo e voltando até que não nos agüentávamos de pé sem que os joelhos se dobrassem sob nosso peso. Na primeira semana, deslocávamos a jaula apenas alguns metros por vez; na época dos treinos, porém, já podíamos levá-la por 400 metros antes de cairmos tontos com o calor de agosto.

Agora, eu imaginava a luta de meu irmão ao empurrar a jaula sozinho em direção à casa, as rodas afundando-se na terra molhada, os movimentos dele traídos pelo ranger do eixo da roda esquerda.

Gritei quando o homem gozou dentro de mim, seu sêmen misturando-se com meu sangue. Quando ele se levantou, apertou a faca com mais força contra meu pescoço.

E agora, como é que você quer morrer, Tommy? Do que você tem mais medo? De faca ou de arma de fogo? - E Randy encostou-me na parede, apontando a pistola para minha cabeça e a faca de encontro à minha virilha. - Da faca, não é, Tommy? Eu imaginei. Vou cortar suas bolas fora e entregá-las a você. Está de acordo? Vou fatiar você, pedacinho por pedacinho. Acabo de te foder no rabo, Tommy. Agora você me pertence. Vão te encontrar com minha porra no rabo, Tommy.

Fechando os olhos, estendi imperceptivelmente os braços para os lados. Quando Randy me beijou e eu senti sua língua dentro da minha boca, minha mão direita pousou num pedaço de mármore. Os olhos dele permaneciam abertos enquanto me beijava; mesmo assim, meus dedos envolveram lentamente o pescoço da imagem do Menino Jesus de Praga que meu pai roubara da igreja do padre Kraus, na Alemanha, depois da guerra. Savannah e minha mãe ainda gritavam de seus quartos.

Tom! - O desespero de suas vozes me partia o coração. En­quanto isso eu escutava a roda mover-se, até que algo encostou na porta dos fundos. De repente, houve uma batida forte ali, como se alguém estivesse chegando.

Não se mexa, Tommy. Não diga uma palavra, do contrário eu te mato - murmurou Randy Thompson.

Callanwolde saiu do quarto, ainda fechando o zíper da calça. Mi­nha mãe jazia nua sobre a cama, o braço cobrindo os olhos. Callanwolde juntou-se ao estuprador de minha irmã, que veio do quarto apenas de cueca, mal disfarçando a ereção de poucos instantes atrás. Ambos tomaram posição em volta da sala e apontaram as armas para a porta.

Corra, Luke, corra - gritou minha mãe, do quarto. Callanwolde abriu a porta com um solavanco, quase no mesmo instante em que a jaula se abria ali. Ele acabara de estuprar e sodomizar minha mãe e agora estava face a face com um tigre de Bengala.

Randy Thompson ficou imóvel, os olhos fixos na porta da jaula, enquanto César rugia e avançava para a luz da sala.

O tigre deu um salto, vindo das sombras. Um tiro ecoou no ar junto com o grito de Callanwolde, que cambaleou para trás, o rosto preso entre os dentes do animal. Quando Randy Thompson levantou sua arma eu peguei a imagem de mármore entre as mãos, como se fosse um taco de beisebol. Enquanto César destruía o rosto do sujeito que estuprara minha mãe, pedaços da cabeça de Randy Thompson atingiam a parede do outro lado da sala. Quase o decapitei com a fúria de meu impulso, sentindo o gosto de sua língua ainda fresco em minha boca. Montando nele, alheio ao tigre, ao terceiro homem e aos gritos, continuei a golpeá-lo com fria pontaria, enterrando fragmen­tos do seu crânio para dentro de seu cérebro. Floyd Merlin gritava e atirava a esmo, mas uma bala atingiu o flanco de César, fazendo o sangue fluir. Callanwolde gemia sob o peso do tigre até que este bran­diu a pata e rasgou-lhe a garganta, expondo a espinha. Floyd Merlin retrocedeu, berrando desesperado. O pandemônio se instalara na casa. O cheiro de morte, de sangue fresco e o rádio tocando uma can­ção de Jerry Lee Lewis fizeram Floyd Merlin descobrir, antes de mor­rer, que haviam cometido um erro ao escolherem a casa dos Wingo. Ainda recuando, ele deu o último tiro em direção ao tigre e logo me viu levantar com a imagem nas mãos. Corri para a esquerda e impedi sua retirada pela porta dos fundos. Savannah fora até o armário, carregara sua espingarda com incrível concentração e saíra do quarto rugindo, como a mulher mais perigosa do mundo. A garota que Floyd Merlin estuprara encostou o cano da espingarda na virilha dele e pu­xou o gatilho. O sangue e as vísceras do sujeito quase me cegaram. Então Luke passou correndo por mim e agarrou uma cadeira da sala de jantar, com a qual enfrentou o tigre.

Parem todos - ordenou meu irmão. - Preciso colocar César de volta na jaula.

Se ele não voltar para a jaula, eu o mando para o outro mundo - declarou Savannah, chorando. Sangrando, o animal cambaleava. Seus dentes respingavam sangue e ele estava ferido e desorientado. Mas, com uma patada forte, quebrou uma das pernas da cadeira que Luke segurava para dirigi-lo à porta dos fundos.

Vamos lá, menino. Volte para a jaula. Você foi ótimo, César.

Ele está morrendo, Luke - disse minha mãe.

Não, não diga isso. Por favor, não diga isso, mãe. Ele nos salvou. Agora precisamos salvá-lo.

Deixando para trás pegadas sangrentas no chão, como rosas gro­tescas impressas na madeira de granulação fina, o tigre rumou para a porta. Ainda girou a cabeça uma vez, e depois caminhou com esforço até a segurança da jaula. Luke abaixou a porta e trancou-a.

Então, a família inteira se desmoronou, gritando como anjos feri­dos ao som do vento que soprava forte de encontro à casa do rádio que continuava a tocar. Choramos copiosamente, com o sangue dos ata­cantes em nossas mãos e rosto, nos móveis e no chão. A imagem do Menino Jesus de Praga jazia a meu lado, também ensangüentada. Em questão de minutos, havíamos matado os três homens que tinham trazido a destruição e o massacre ao nosso lar e estabelecido sua posse com o ritual negligente do pesadelo. Em nossos sonhos, eles se ergueriam milhares de vezes da poeira do terror e do estupro. Num esplen­dor imortal, reconstruiriam seus corpos desmantelados e entrariam com ímpeto em nossos quartos como guerreiros da maldade, saqueadores e conquistadores; e nós, mais uma vez, sentiríamos o há­lito deles no nosso e as roupas sendo arrancadas de nossos corpos. O estupro é um crime contra o sono e a memória; sua imagem consecu­tiva se imprime num negativo irreversível na câmara escura dos so­nhos. Pelo resto de nossas vidas, aqueles três homens mortos e massa­crados nos ensinariam repetidamente a terrível constância que acompanha o ferimento do espírito. Apesar de nossos corpos ficarem curados, nossas almas experimentaram um dano além de qualquer compensação. A violência envia raízes profundas para dentro do cora­ção; essas raízes não têm estações, estão sempre maduras, verdejantes.

Eu tremia por inteiro enquanto chorava. E, ao levantar as mãos para esconder o rosto, sem perceber cobri-me com o sangue de Randy Thompson. Seu esperma ainda escorria por minhas pernas. Ele me dissera uma verdade antes de morrer; alguma coisa em mim sempre lhe pertenceria. Aquele homem hipotecara uma porção de minha adolescência, roubara minha certeza de que o mundo era ministrado por um Deus que me amava e que criara o céu e a terra como um ato de divina alegria. Randy Thompson aviltara minha imagem do uni­verso e me instruíra extraordinariamente bem na futilidade de se manter uma fé infinita no Éden.

Durante 15 minutos, ficamos prostrados no chão daquele mata­douro que fora nossa casa e esconderijo. Luke foi o primeiro a falar.

Vamos chamar o delegado, mãe.

Não ouse fazer isso - respondeu ela, furiosa. - Nós somos Wingo. Temos orgulho demais para confessar o que aconteceu aqui hoje.

Mas não há outra saída. Três homens estão mortos em nossa sala. Precisamos explicar isso a alguém.

Isso não são homens, Luke. São animais. São feras. - E ela cus­piu no corpo do homem que estuprara Savannah.

Temos de levar Tom ao médico - propôs meu irmão. - Ele está ferido.

Onde é que você se feriu, Tom? - A voz minha de mãe era in­tangível, metafórica, e ela falava num tom indiferente como se estives­se se dirigindo a estranhos.

O homem estuprou Tom. Ele está sangrando - informou Luke.

Ela deu uma risada fora de lugar, lunática, e então declarou:

Um homem não pode ser estuprado por outro, Luke.

Bom, ninguém disse isso para aquele cara. Eu o vi fazer algo com Tom...

Quero esses corpos fora daqui. Vocês vão levá-los para as profundezas do bosque e enterrá-los de modo que ninguém os encon­tre. Savannah e eu lavaremos a casa com a mangueira. Não quero que haja aqui o menor sinal desses animais quando seu pai voltar. Fique calma, Savannah. Tudo terminou. Concentre-se em alguma coisa agradável, como comprar um vestido novo. E ponha uma roupa. Você está nua na frente de seus irmãos. Tom, vista-se também. Imediata­mente. Depois, arrastem essas carcaças para fora daqui. Pare de cho­rar, Savannah. Estou falando sério. Controle-se. Pense numa coisa bonita, um passeio romântico pelo rio Mississippi. A música está to­cando. Há bastante vinho e a brisa sopra fresca de encontro ao seu rosto. Um milionário sai para o luar e a convida para uma valsa. Você já viu o rosto dele nas colunas sociais e sabe que ele pertence a uma das famílias mais ricas de Nova Orleans. Ele cria cavalos puro-sangue, come ostras, bebe champanhe...

Mãe, você está falando como uma louca - interrompeu Luke suavemente. - Deixe-me ligar para o delegado e ele saberá o que fazer. Preciso também falar com o veterinário e ver se ele pode ajudar César.

Você não vai telefonar para ninguém - cortou ela, furiosa. - Não aconteceu nada. Seu pai nunca mais me tocaria se soubesse que tive relações sexuais com outra pessoa. Nenhum homem de bem se casaria com Savannah se se espalhasse a notícia de que ela não é mais virgem.

Oh, Deus - gemi, incrédulo, olhando para os corpos nus de minha mãe e minha irmã gêmea. - Meu Deus, por favor, diga que isso é uma brincadeira.

Vista-se, Tom. Já - ordenou minha mãe. - Temos muito traba­lho a fazer.

Devemos contar isso a alguém - insistiu Luke. - Vocês preci­sam ir a um médico, e temos de ajudar César. Ele salvou nossas vidas, mãe. Esses homens iam matar vocês.

Estou pensando na posição de nossa família na cidade. Não pode­mos expor Tolitha e Amos, nem ficar expostos aos comentários dos outros. Eu me recuso a caminhar pela rua com todo mundo pensando que escrevi aquela carta para esse monstro na prisão. Vão usar essa carta contra mim e dizer que recebi o que merecia. Eu não vou passar por isso.

Mãe - disse eu - meu rabo está arrebentado.

Não permito que essa linguagem seja usada em minha casa. Simplesmente não vou tolerar vulgaridades por parte de meus filhos. Criei vocês para serem cidadãos decentes e refinados.

 

Luke e eu carregamos os três corpos e os empilhamos na parte tra­seira da caminhonete. Minha mãe me deu um absorvente higiênico, que coloquei embaixo da cueca para estancar o sangue. Quando saí­mos de casa, Savannah e ela estavam jogando baldes de água com sa­bão no piso de madeira. Antes minha mãe fizera uma fogueira no quintal para queimar dois tapetes e uma poltrona que se haviam man­chado com sangue. Ela parecia estranha, vulnerável e louca ao gritar ordens para nós. César, gravemente ferido, não deixava Luke se apro­ximar da jaula para cuidar de seus ferimentos. Savannah chorava e não dissera uma palavra desde que a provação terminara.

Enterramos os homens em cova rasa, nas profundezas da floresta, junto a uma árvore coberta de hera. Sabíamos que no próximo verão a hera já estaria cobrindo as sepulturas, com as raízes verdes se entre­laçando entre as costelas dos homens. Acanhado ao lado de meu ir­mão, com vergonha de que ele tivesse visto o que vira, os dois trabalhamos em silêncio. A medida que o choque daquela tarde dimi­nuía, um cansaço tão dominador quanto um sedativo tomou conta de meu corpo. Sentei-me ao lado das covas e estremeci, frágil e exaurido. Luke teve de me levantar e carregar de volta para a caminhonete.

Sinto muito que tenham machucado você, Tom. Lamento não ter chegado antes. Eu havia esquecido algo, senão não teria voltado para casa. Nem lembro mais o que foi. Vi as pegadas deles na estrada.

Mamãe está louca, Luke.

Não, não está. Ela simplesmente está com medo. Precisamos ficar do lado dela.

Ela está agindo como se tudo fosse culpa nossa. Ninguém nos cul­paria. As pessoas teriam pena de nós, se soubessem. Elas nos ajudariam.

Mamãe não admite que alguém sinta pena dela, Tom. Você sabe disso. E ela não aceitaria ajuda de ninguém. Ela é assim. Devemos nos ajudar e ajudar Savannah.

Isso não está certo. Por que essa maldita família idiota nunca faz nada certo?

Não sei. Nós somos esquisitos.

A família inteira é violentada, e nós matamos os três caras que nos violentaram. E matamos para valer, espalhamos suas tripas pela casa toda, e ela obriga a gente a fingir que não aconteceu nada.

É esquisito...

É loucura. Piração, doença. Só porque mamãe e papai são loucos, vamos foder nossas vidas e as de nossos filhos. E a coisa vai ser assim até o fim dos tempos. Isso foi muito ruim para Savannah, Luke. O que vai ser dela? Me diga. Ela vê cães enforcados em ganchos de açougueiro simples­mente por viver o dia-a-dia com nossos pais. O que vai acontecer com ela?

Ela vai fazer o que tiver de fazer, Tom. Como todos nós.

E eu? O que será de mim, Luke? - perguntei, recomeçando a chorar. - A gente não passa por um dia como o de hoje sem pagar um preço. Duas horas atrás, havia um cara trepando comigo, enquanto encostava uma faca na minha garganta. Pensei que ia morrer. Pensei que ele ia me abater como a um porco no meio da sala. Ele me beijou, Luke. Mas estava planejando me matar. Você pode imaginar matar alguém que acabou de beijar?

Não. Não imagino.

Não podemos fazer como mamãe quer, Luke. Não está certo.

Já fizemos, Tom. Acabamos de enterrar todas as provas. Agora, teríamos de explicar muita coisa.

As pessoas entenderiam. Nós estávamos em estado de choque.

Daqui a um mês, você não vai nem se lembrar do que aconteceu.

Vou recordar isso, mesmo que viva quinhentos anos.

É melhor não conversar sobre isso. Aconteceu e pronto. Agora quero ver como posso ajudar César.

Quando voltamos para casa, o tigre estava morrendo. Respirando com dificuldade, seu corpo amarelo e preto estava esticado de encontro às barras da jaula. Luke acariciou-lhe a cabeça, depois encostou o rosto no animal, enquanto lhe alisava o pêlo deslumbrante ao longo da espinha.

- Você foi bom, César - sussurrou meu irmão. - Tão bom que nós não tínhamos o direito de mantê-lo trancado nessa jaulinha cheia de merda. Mas você conseguiu finalmente ser um tigre. Pro­vou ser um tigre de verdade, menino. Você foi infernal, e eu vou sen­tir muito a sua falta. E você foi o tigre mais valente que já houve. Juro que foi. - Em seguida, Luke levantou o rifle até a cabeça de César e, com lágrimas escorrendo pelo rosto, atirou. Assistindo à cena, inca­paz de consolar meu irmão, eu soube que nunca mais veria um me­nino da Carolina do Sul chorar a morte de um tigre de Bengala.

 

À noite quando meu pai voltou para casa, já havíamos queimado o cor­po do tigre, removido os indícios da matança ocorrida à tarde e apagado todos os sinais daquele acontecimento singular que mudaria nossas vidas. Eu tinha coberto com o trator os rastros deixados pelos homens na terra molhada ao longo da estrada da ilha. Encontramos o carro que haviam roubado na Geórgia e um mapa onde a ilha Melrose aparecia no meio de um círculo feito à caneta esferográfica no banco dianteiro. Luke e eu empurramos o automóvel do alto da ponte e ele afundou no canal de 4,5 metros de profundidade. A casa reluzia com a ânsia de minha mãe por apagar todos os vestígios da passagem daqueles homens por lá. Seus joe­lhos sangravam, refletindo o empenho com que usara a escova de arame no piso de carvalho. A imagem do Menino Jesus de Praga estava de molho numa tina cheia de amoníaco sangrento. Savannah tinha permanecido no chuveiro por mais de uma hora, lavando-se obsessivamente, tentando ti­rar aquele estranho de seu corpo. Minha mãe orientou-nos quando colo­camos a mobília no lugar. Nada deveria ficar como era naquela manhã. Lavamos as janelas, as cortinas e esfregamos as manchas de sangue que haviam secado no tecido dos estofados e nas franjas dos tapetes.

Um drinque esperava por meu pai quando ele entrou em casa na­quela noite. A casa recendia a amoníaco e produtos de limpeza, mas meu pai cheirava, como sempre, a peixe e camarão, e nada percebeu, pois o mundo possuía apenas um cheiro para ele. Deixando um balde de peixes na pia da cozinha para que Luke e eu limpássemos, ele foi tomar banho.

Minha mãe preparou os peixes e, durante o jantar, a conversa de meus pais foi tão pouca que quase não resisti ao impulso obsessivo de gritar e virar a mesa. Savannah ficou no quarto e minha mãe contou casualmente que ela parecia estar um pouco gripada. Meu pai não de­tectou nada fora do comum. Estava exausto depois de um longo dia no barco camaroneiro, lutando contra o vento que viera estranhamente do sudeste. Apelei à sua reserva de disciplina para não contar tudo. Não creio que o estupro tenha me afetado tanto quanto minha lealdade às leis do segredo que mamãe estabelecera. Enquanto durou aquela refei­ção, aprendi que o silêncio pode ser a forma mais eloqüente da mentira, li eu nunca mais comeria linguado sem pensar no sangue de Randy Thompson em minhas mãos ou em sua língua em minha boca.

Antes da chegada de meu pai naquela noite, minha mãe nos reu­nira na sala e exigira de cada um a promessa de jamais contar a al­guém o que acontecera conosco. Com uma voz que era, ao mesmo tempo, inexpressiva e inflexível, ela dissera que deixaria de ser nossa mãe se quebrássemos a promessa. Jurara não voltar a falar conosco se revelássemos um único detalhe daquele dia. Pouco lhe incomoda­va se entendíamos ou não seus motivos. Conhecendo a natureza das cidades pequenas, sabia quanto as pessoas se compadeciam e des­prezavam as mulheres violentadas, e ela não queria passar por aqui­lo. Nenhum de nós quebrou a promessa. Sequer conversávamos entre nós sobre o que acontecera. Era um acordo íntimo que nos unia, estabelecido por uma família notável por sua imbecilidade e com uma incrível vocação para o desastre. Em silêncio, reverencia­ríamos nossa vergonha particular e a tornaríamos inexprimível.

Apenas Savannah quebrou o acordo, mas o fez com uma grandiosidade terrível e sem palavras. Três dias mais tarde, ela cortou os pulsos pela primeira vez. Minha mãe criara uma filha capaz de ficar em silêncio, mas não de mentir.

 

Quando terminei de contar esse episódio, olhei para Susan Lowenstein, que estava do outro lado da sala. Após alguns instantes de silêncio, eu disse:

- Está vendo por que a história infantil de Savannah me deixou com raiva? Não acredito que ela não se recorde daquele dia e não que­ro que escreva sobre isso de maneira embelezada.

A família inteira poderia ter sido morta...

Talvez essa não fosse a pior coisa que poderia acontecer.

O que você acaba de descrever é a pior coisa que já ouvi aconte­cer a uma família.

Eu também pensava assim, Susan. Mas estava errado. Essa foi só a preliminar.

Não estou entendendo, Tom. Você se refere a Savannah e sua doença?

Não, Susan. Ainda não lhe contei a respeito da mudança para a cidade. Ainda não lhe contei sobre Luke.

 

Um treinador ocupa um lugar de destaque na vida de um menino. Esse é o grande componente de minha questionável vocação inútil. Com um pouco de sorte, os bons treinadores podem se tornar os pais perfeitos com que os jovens sonham e raramente encontram em casa. Os bons treinadores moldam, aconselham e estimulam. E algo lindo observar o processo do esporte. Passei quase todos os outonos de minha vida colocando em movimento multidões de meninos ao longo de grandes extensões de grama. Sob o sol do fim de agosto, escutei os cânticos repetitivos dos exercícios calistênicos, percebi a falta de jeito ini­cial de meninos que haviam crescido muito, os olhos dos pequenos re­freando o medo, e controlei a violência das jogadas. Posso avaliar minha vida pelos times que coloquei em campo - lembro o nome de cada joga­dor que já treinei. Com muita paciência, esperava a cada ano pelo mo­mento em que conseguia combinar as habilidades e fraquezas dos meninos sob meus cuidados. Sempre esperei por essa síntese miraculosa. Quando ela acontece, olho em torno do campo, para meus meninos, e, num ímpeto de onipotência criativa, tenho desejos de gritar para o sol:

- Por Deus, eu criei um time!

O menino é precioso porque está no limiar de sua geração e sem­pre tem medo. O treinador sabe que a inocência é sagrada, mas o medo não. Por meio do esporte, ele oferece ao menino uma maneira secreta de penetrar no mistério que é a masculinidade.

Passei o verão com Bernard Woodruff ensinando-lhe todos os métodos secretos. Transmiti-lhe tudo o que sabia sobre o jogo de fute­bol naquelas sessões de duas horas no meio do Central Park. Ele aprendeu a deter o oponente enganchando-se em mim, e o fez muito bem. Bernard não era um atleta talentoso, porém não se incomodava cm machucar o oponente. Machucou-me várias vezes durante os trei­nos e eu o machuquei muitas vezes mais. Era necessário ser muito ousado para, com apenas 63 quilos, atirar-se na frente de um homem adulto. Jogávamos para uma platéia de grandes edifícios que se eleva­vam da cidade em torno do parque.

Nossa temporada, no entanto, terminou abruptamente no dia em que ensinei a Bernard a arte do bloqueio de passes. No meio do par­que alinhei-me diante dele na posição defensiva.

Aquela árvore atrás de você é o lançador, Bernard. Tente me impedir de tocá-la.

Ele me encarava, vestido com o uniforme completo, mas eu exce­dia seu peso em 27 quilos.

Cuidado com seus pés. Mantenha o equilíbrio e me impeça de chegar perto do seu lançador - continuei.

Quero jogar como lançador.

Estou lhe ensinando a avaliar seus atacantes. - Então, atravessei a linha, dei um tapa em seu capacete e o joguei no chão. Toquei a árvore e disse: - Acabo de fazer seu lançador ficar louco.

Você acaba de fazer papel de atacante. Vamos tentar de novo.

Desta vez, Bernard encostou o capacete em meu peito quando se ergueu para me encontrar. Procurei fugir pela esquerda, mas ele continuou me pressionando enquanto recuava ligeiramente, cuidando de seu centro de gravidade com uma flexão de joelhos e mantendo os pés em movimento. Quando tentei correr, ele me surpreendeu, separando meus pés e passando-me uma rasteira. Caí com força no chão e fiquei sem fôlego.

Acabo de deixar o lançador feliz, não é, treinador Wingo? - perguntou ele, triunfante.

Você apenas machucou seu treinador. - Ofegante, lutei para me levantar. - Estou ficando velho para essa merda de jogo. Mas foi ótimo, Bernard. Você acaba de conquistar o direito de jogar como lançador.

Acertei você naquela jogada, treinador - zombou ele. - Por que você está mancando?

Porque me machuquei - respondi, caminhando com cuidado, tesido meu joelho esquerdo.

Os bons jogadores não se preocupam com pequenos machu­cados.

Quem lhe ensinou isso?

Você. Corra um pouco, treinador. Foi o que você disse que eu deveria fazer quando torcesse o pé.

Você está me irritando, Bernard.

Então vamos ver você tocar naquela árvore. - Bernard sorria com uma arrogância intolerável.

Alinhei-me na frente dele e, com nossos rostos muito próximos, eu disse:

Desta vez, vou matar você, Bernard.

Ele tentou o primeiro contato, mas, novamente, eu o fiz perder o equilíbrio empurrando-o com a palma da mão. Bernard recobrou-se e cortou minha arremetida em direção à árvore. Forcei o corpo de encontro ao dele e senti-o cambalear sob meu peso. Eu estava prestes a escapulir pelo lado quando ele me surpreendeu dando um mergu­lho rumo a meus tornozelos. Caí novamente, com Bernard dando risadinhas embaixo de mim. Deitamos juntos no chão, lutando bem- humorados.

Acho que você se tornou um jogador de futebol, seu safado! - elogiei.

Realmente - confirmou uma voz masculina atrás de nós.

Papai! - exclamou Bernard.

Voltei-me e vi Herbert Woodruff, que observava nossa luta im­provisada com um ar que não podia ser classificado como de encanta­mento. Seus braços estavam cruzados sobre o peito de maneira tão meticulosa quanto duas lâminas num canivete suíço. Ele tinha a pose e a elegância de um dançarino de flamenco e sua beleza morena estava de acordo com isso. No rosto, porém, uma expressão fria e reservada.

Então é assim que sua mãe permite que você desperdice o ve­rão! - disse rispidamente para o filho. - Você está ridículo.

Pouco à vontade, Bernard não tentou responder ao pai, que fazia absoluta questão de me ignorar.

O professor Greenberg ligou-me para dizer que você já faltou a duas aulas esta semana. Ele só o aceitou como aluno como um favor especial para mim.

Ele é mau - murmurou Bernard.

Ele é apenas rigoroso. Os grandes professores são sempre exi­gentes. O que lhe falta em talento, Bernard, você precisa compensar com dedicação.

Olá - interrompi, estendendo a mão. - Meu nome é Tom Wingo, sr. Woodruff. Sou o treinador de futebol de Bernard.

Não dou apertos de mão. - Ele levantou as mãos longas e bonitas à luz do sol e completou: - Minhas mãos são minha vida. Sou violinista.

Então, que tal esfregar o nariz como os esquimós? - brinquei, esperando em vão desviar sua atenção de Bernard.

A empregada me disse que você estava aqui. Vá para seu quarto e treine durante três horas, depois de ligar para o professor Greenberg e pedir desculpas.

O treino de futebol ainda não terminou - argumentou Bernard.

Terminou, sim. Terminou para o resto da vida. Isso é mais uma de suas sabotagens com sua mãe.

Vamos parar por agora, Bernard - ponderei. - Vá para casa e treine como seu pai disse. Talvez a gente descubra se dá para resolver isso. - O rapaz correu para o Central Park West, deixando-me a sós com Herbert Woodruff. - Ele é um bom jogador de futebol - comen­tei enquanto Bernard atravessava a rua em meio ao tráfego intenso.

Herbert Woodruff se voltou para mim e retrucou:

E quem liga para isso?

Bernard liga. - Eu lutava para controlar meu gênio. - Sua espo­sa me pediu para treiná-lo durante este verão.

Ela não discutiu esse assunto comigo. Aliás, imagino que isso já lhe seja óbvio, sr... Como é mesmo seu nome?

Wingo. Tom Wingo.

Minha esposa fala muito a seu respeito. Você é o amigo sulista que ela arranjou, não?

Vi você no Festival Spoleto, em Charleston. Você esteve ótimo.

Sim, obrigado. Conhece a Chaconne de Bach, sr. Wingo?

Conheço pouca coisa sobre música; e tenho vergonha de ad­mitir...

É uma pena. Quando eu tinha 10 anos, tocava a Chaconne sem nem um erro. Bernard mal a incorporou a seu repertório este ano e o melhor que se pode dizer de sua interpretação é que é mal­feita.

Como é que você jogava futebol aos 10 anos?

Sempre odiei esportes e as pessoas ligadas a eles, sr. Wingo. Bernard sabe muito bem disso. Ele devia considerar o futebol uma coisa exótica comparada às salas de concerto em que cresceu.

Não creio que o futebol vá lhe causar um dano permanente.

Pode causar um dano permanente em seu desejo de ser violi­nista.

Susan disse que você ficaria aborrecido quando soubesse que estou treinando seu filho.

Minha mulher é sentimental a respeito de Bernard. Eu não. Também passei por uma adolescência difícil, mas meus pais não me fizeram as vontades. Eles acreditam que a disciplina é a mais elevada forma de amor. Se Bernard precisa de atividade física, a Chaconne é um ótimo exercício.

Pegando a bola que estava sobre o gramado, perguntei:

Por que você não vem aqui de vez em quando com Bernard para jogar um pouco de bola antes do jantar?

O senhor tem um senso de humor maravilhoso, sr. Wingo!

Estou falando a sério, sr. Woodruff. Por enquanto, o futebol é apenas uma curiosidade passageira, mas Bernard adoraria se você de­monstrasse algum interesse. Isso talvez até acelere seu processo de desinteresse pelo esporte.

Já dei alguns passos nesse sentido. Vou mandá-lo para um acampamento de músicos nos Àdirondacks durante o restante do verão. Minha mulher permitiu que ele desviasse a atenção da música.

Não é da minha conta, senhor, mas essa não é a maneira como eu lidaria com o problema.

O senhor está perfeitamente certo, sr. Wingo. Não é da sua conta.

Se for mandado para o acampamento, Bernard nunca será o violinista que você deseja.

Sou o pai dele e lhe asseguro que ele será o violinista que eu desejo que seja - garantiu Herbert, voltando-se e caminhando para seu edifício.

E eu sou o treinador dele - retruquei, às suas costas. - Você acaba de criar um jogador de futebol!

 

O telefone tocava quando cheguei ao apartamento de minha irmã. Não me surpreendi ao ouvir a voz de Bernard.

Papai jogou fora meu uniforme - lamentou-se ele.

Você não devia ter matado suas aulas de violino - respondi.

Depois de alguns instantes de silêncio, ele perguntou:

Você já ouviu meu pai tocar violino, treinador?

Claro. E sua mãe vai me levar para outro concerto na semana que vem.

Ele é um dos 15 melhores do mundo. Pelo menos, é o que diz o professor Greenberg.

E o que isso tem a ver com suas faltas às aulas de violino?

Eu não estarei nem entre os dez maiores violinistas do acampa­mento, treinador Wingo. Entende o que eu quero dizer?

Sim, entendo. Quando é que você vai para o acampamento?

Amanhã.

Posso levá-lo à estação?

Sim, seria ótimo.

 

No dia seguinte, fomos de táxi para a estação Grand Central. Depois que Bernard comprou a passagem, caminhamos pela plataforma por onde o trem ia chegar, ele transportando a caixa do violino, e eu, a mala.

Você cresceu neste verão - comentei, enquanto nos sentáva­mos num banco.

Quatro centímetros. E engordei 4 quilos.

Escrevi para o treinador de futebol de Phillips Exeter.

E daí?

Contei-lhe que passei o verão ensinando você a jogar. Reco­mendei você como um provável integrante do time do segundo ano.

Papai me proibiu de voltar a jogar futebol.

E uma pena. Você teria se tornado um ótimo jogador.

Você acha mesmo?

Você é durão, Bernard. Quando me derrubou ontem, eu lutava com todas as forças para passar por cima de você.

Diga isso de novo, treinador.

Dizer o quê?

Que sou durão. Ninguém nunca me disse isso antes.

Você é um rapaz durão, Bernard. Achei que seria fácil derrubá-lo e você me surpreendeu. Aprendeu tudo o que ensinei e ainda pediu mais. Os treinadores adoram isso.

Você é o melhor treinador que já tive.

Sou o único treinador que você teve.

Eu quis dizer professor. Tive professores de música desde os 5 anos de idade. Você foi o melhor de todos, treinador Wingo.

Comovido, por alguns instantes não pude falar. Depois agradeci:

Obrigado, Bernard. Faz tempo que ninguém me diz isso.

Por que você foi despedido?

Tive um esgotamento nervoso.

Desculpe. Eu não devia lhe perguntar nada.

Ora, por que não?

Como é que a pessoa se sente ao ter um esgotamento nervoso? Se não quiser responder, tudo bem.

Não foi nada agradável - disse eu, evasivo, procurando pelo trem.

Por que aconteceu?

Meu irmão morreu, Bernard. - E voltei-me para encará-lo.

Sinto muito... Vocês eram muito íntimos?

Eu o adorava.

Vou escrever uma carta.

Para quem?

Vou escrever uma carta declarando que você é um ótimo trei­nador. Diga apenas para onde devo enviá-la.

Eu sorri.

Não se preocupe com isso, Bernard. Mas há uma coisa que eu gostaria que você fizesse.

O quê?

Gostaria de ouvir você tocar violino.

Claro - disse ele, abrindo a caixa do violino. - O que você gos­taria de escutar?

Que tal a Chaconne?

Bernard concordou e executou a peça maravilhosamente bem, com uma emoção que me surpreendeu. Quando terminou, eu de­clarei:

Se eu tocasse violino tão bem, Bernard, jamais tocaria numa bola de futebol.

Qual é o problema de fazer as duas coisas?

Nenhum. Mas me escreva. Gostaria de ter notícias suas no ano que vem.

Vou escrever, treinador.

Enquanto ele guardava o violino na caixa, entreguei-lhe uma sa­cola da Macy's.

O que é isso?

Uma nova bola de futebol. Mantenha-a sempre cheia no acam­pamento. Procure um companheiro com quem possa jogar. E se es­force para ser um cara legal. Faça amizades. Seja simpático com os professores. Seja atencioso.

Meu pai odiou você, sabia?

Mas ele ama você. Adeus, Bernard.

Obrigado, treinador - despediu-se ele, abraçando-me na plata­forma. De volta ao apartamento, recebi um telefonema de Herbert Woodruff, que me convidava para jantar depois do concerto do sába­do. Não entendi por que ele queria que alguém a quem odiava jantasse em sua companhia, mas eu era da Carolina do Sul e jamais entenderia como a cidade grande funcionava.

 

Susan lowenstein já estava em seu lugar quando a encontrei minu­tos antes da hora programada para o início do concerto. Usava um longo preto e se inclinou para me beijar quando me sentei. A cor preta acrescentava um toque de sensualidade à sua tímida beleza.

Tom, estes são nossos amigos Madison e Christine Kingsley - disse ela, apresentando-me a um dos mais famosos teatrólogos do país e à sua esposa.

Quem mais você conhece que seja famoso, Susan? - sussurrei pouco depois. - Quero conhecê-los todos, para fazer o maior alarde quando voltar para a Carolina do Sul.

Esse casal mora no terceiro andar de nosso prédio. Madison freqüentou a escola preparatória com Herbert. Por falar nisso, Herbert me contou que interrompeu você e Bernard no parque.

Ele não parecia nem um pouco satisfeito.

Tenha cuidado perto dele, Tom - aconselhou ela, apertando-me o braço. - Ele pode ser encantador ou caprichoso. E impossível prever.

Terei cuidado, Susan. Você ficou surpresa por ele ter me convi­dado?

Ela se voltou para mim, os cabelos negros caindo sobre os ombros alvos. Sua pele possuía um brilho todo especial, apesar da palidez. No consultório, Susan disfarçava sua beleza com um guarda-roupa extre­mamente discreto, algo que em absoluto não ocorria naquela noite. O preto sobre o corpo de uma mulher bonita fazia todas as outras cores parecerem triviais. Seus olhos encerravam a melancolia ambígua com a qual eu já me acostumara e me observavam à luz suave da sala onde ela aparecia na amplitude de sua feminilidade generosa. Seu perfume me embriagava de desejo; senti um pouco de vergonha, mas não mui­ta, por experimentar aqueles maravilhosos ímpetos de luxúria pela psiquiatra de minha irmã.

- Sim - confirmou Susan. - Fiquei chocada. Ele deve ter gostado de você.

O ar estava cheio com os obstinados solilóquios dos instrumen­tos que eram afinados. Por fim, quando a cortina subiu, Herbert Woodruff apareceu com um ar majestoso, agradecendo os aplausos e acenando aos músicos para que se levantassem e fizessem a reverência inicial.

Eu me esquecera por completo da existência da flautista loira e aflita que conhecera no consultório de Susan, até que a vi levantar-se junto com os outros músicos para agradecer a ovação. Lembrei que nunca vira uma mulher mais bonita - seu nome era Monique, eu lhe havia mentido dizendo ser advogado e Susan achava que ela estava de caso com Herbert. Ela se sentou e ergueu a flauta até os lábios, num fluido movimento prateado. Inspirou profundamente e, ao expirar, uma explosão alegre de notas trouxe Vivaldi recriado para a sala. Herbert, por sua vez, fez um emocionado movimento de braço, res­pondendo-lhe na mesma linguagem. Juntos, eles moldavam a afinida­de erótica entre a flauta e o violino. Herbert tirava música de seu instrumento como se levantasse a seda da mesa de uma costureira. Queixo pousado no violino com formato de corpo de mulher, sua música parecia ressoar por seus músculos e seu sangue. Emanando poder dos braços e pulsos, durante toda a apresentação ele foi um pouco dançarino e um pouco atleta. A música harmonizava-se, aglutinava-se em perguntas em frases de leite e mel; em seguida, ele respondia em tumulto a essas mesmas perguntas. O conjunto de câmera transformava a sala de concertos num lugar em que as borbo­letas e os anjos deveriam vir para nascer. Durante duas horas, ouvi­mos o diálogo entre os instrumentos afinados. E, com Herbert Woodruff, aprendemos muito sobre a amplitude invisível de um ho­mem de talento. Cada movimento seu com o violino era algo sagrado, uma técnica eclesiástica, que comovia a platéia com seu ardor e sua reserva. Nunca senti tanto ciúme de um homem em toda minha vida. Certa vez, conseguira atirar uma bola à distância de 45 metros; era meu único talento, que nunca me pareceu tão desprezível e insignifi­cante como naquele momento. Ninguém de minha família sabia ler uma única nota musical, pensei, enquanto a sonata de Bach se encerrava com um belo floreio.

Nós nos levantamos e ovacionamos Herbert Woodruff e os três músicos cuja perícia estabelecera o contraste que realçara a transcendência pródiga de seu talento. Ao aplaudir, eu sabia que aque­la seria sempre a minha carga - não a falta de talento, mas a consciên­cia total dela.

 

Havia algo errado e preocupante em minha inclusão no círculo ín­timo que ia se reunir para jantar no apartamento dos Woodruff. Susan e eu fomos para lá de táxi, junto com os Kingsley. Só então per­cebi quanto aquela reunião seria restrita e seleta. Com ar distraído, Susan passou a maior parte do tempo dando instruções na cozinha, enquanto eu preparava os drinques para Christine e Madison. Eu lhes contava sobre a vida na Carolina do Sul quando Herbert entrou, de braço dado com Monique. Seu corpo forte ainda vibrava como na apresentação e a adrenalina porejava em suas veias. Eu conhecia aque­la torrente superestimulada de alegria e exaustão do atleta depois de jogar a melhor partida de sua vida. Herbert também, como um atleta, tentava imortalizar aquele momento que não se repetiria; um brilho de êxtase dava luz a seus olhos.

Ele me fitou com um surpreendente sorriso de encanto.

Menino sulista, estou feliz por você ter vindo.

Você esteve maravilhoso - eu disse.

Nós nunca tocamos juntos tão bem - declarou Monique antes de Hebert apresentá-la a mim. - Já nos conhecemos - acrescentou, num tom de voz que revelava que o assunto deveria terminar ali.

Posso lhes preparar um drinque? - perguntei.

Uísque com gelo para mim, Tom - pediu Herbert. - E vinho branco para a encantadora Monique. Agora, enquanto prepara as be­bidas, vou tocar algo só para você. Diga o que gostaria de escutar. Não quero ainda aposentar o Stradivarius por hoje.

Conheço pouco música clássica, Herbert. Qualquer peça está bem para mim.

Nosso amigo Tom é treinador de futebol na Carolina do Sul, Monique - explicou ele, segurando o violino sob o queixo.

Pois eu pensava que fosse advogado!

Eu não entendia por que Bernard não progredia como violinis­ta, até que descobri que Tom estava treinando meu filho na arte varo­nil do futebol!

Madison Kingsley acrescentou:

Eu imaginava que Bernard nem sequer soubesse o formato de uma bola de futebol.

Mas é ótimo que ele demonstre interesse por alguma coisa - emendou Christine Kingsley.

Senti tensão em torno de mim. Mesmo assim, sorri e entreguei a Monique o copo de vinho branco, e coloquei o uísque de Herbert so­bre a mesinha de centro. Os sulistas sempre cometem o erro de acredi­tar que podem ressuscitar as velhas cortesias e se tornar invisíveis em qualquer festa comprometida por sua presença. Era perigo o que de­monstrava o olhar de Herbert sobre mim. Percebi de repente que er­rara ao aceitar seu convite. Só que era tarde demais para fazer alguma coisa a não ser mergulhar bem-humorado na diversão que se seguia ao recital. Eu tinha poderes de camaleão, ou pensava que os tivesse, poderes de mimetismo e de sublimação. Imaginava-me um ouvinte heróico, um grande apreciador do humor alheio, e trazia comigo a sabedoria instintiva dos sulistas de conhecer seu próprio lugar. Notei a importância daquele momento no instante exato em que entrei em águas profundas demais para mim.

Sob esses presságios, jazia um reinado de sentimentos grandio­sos. Uma rara expansividade se insinuara em minha consciência. Quantas noites eu passara sozinho no apartamento de Savannah. A solidão se estendera além dos limites, alimentada à força em doses semanais. O simples som de vozes humanas ali na sala, abafado e agra­dável, atingia-me como uma música recém-composta e suavizava a couraça de solidão que a cidade grande sempre deixava em volta do meu coração. Eu possuía a curiosidade do intruso nos assuntos que as celebridades conversavam em particular enquanto comiam uma sala­da mista. E queria fazer parte daquela noite, ganhando o apoio daque­las pessoas ao envolvê-las nas cortesias simples de minha educação.

Herbert Woodruff executou "Dixie" em seu Stradivarius. Nunca "Dixie" fora tocado com tanta perfeição ou com intenção tão irônica. Herbert exagerava os movimentos para salientar seu efeito. Ao termi­nar, ele me olhou dando uma risadinha maliciosa. Então Susan voltou para a sala, parecendo assustada e irritada.

Bem, Tom, o que você acha? - perguntou Herbert.

Beethoven realmente fez algumas canções bonitas.

Em meio à risada que se seguiu, Susan nos acompanhou à sala de jantar, instruindo-nos que levássemos nossos drinques. Herbert esva­ziou seu copo e encheu mais um antes de se juntar a nós. Sentou-se à cabeceira da mesa, com Monique à sua esquerda e Christine à direita. A comida estava cuidadosamente disposta em pratos de porcelana Limoges. Parecia ter sido arrumada de acordo com as cores e era mais bonita que gostosa. O vinho, em compensação, era de Bordeaux - de­licioso e encorpado. Para meu alívio, a noite readquiriu um pouco do equilíbrio perdido. Como se tivesse me esquecido, Herbert dedicou-se a conversar em particular com Monique na ponta da mesa. Assim, Nova York me mostrava aquilo que tinha de melhor. Logo houve entre Herbert e Madison Kingsley um diálogo animado e petulante.

Era uma conversa irreverente, quase indelicada, na qual cada pala­vra parecia ter sido escolhida, salpicada de espontaneidade, mordaz e bem dirigida. Ri meio exageradamente diante dos comentários jocosos de Madison a respeito de outros autores teatrais que tinham a metade de sua fama. As mulheres falavam pouco, em geral comentários alegres ou acréscimos picantes aos assuntos introduzidos pelos homens. A des­peito de minhas melhores intenções, vi-me memorizando, ou tentando memorizar, trechos da conversa entre o teatrólogo e o músico. Quando Herbert mencionou algo sobre uma apresentação beneficente com Yehudi Menuhin, a sala inteira ficou em silêncio ouvindo ele descrever cada modulação e sutileza daquele encontro. Herbert era um homem sério quando discutia sua arte. Depois, Madison Kingsley contou a res­peito dos problemas técnicos que estava enfrentando na montagem de sua nova peça. Os dois começaram a se divertir e a conversa se tornou imperceptivelmente competitiva. Ambos sabiam muito bem como car­regar a aura do sucesso e entendiam serem os únicos de quem se espera­va uma boa conversa, deslumbramento e entretenimento. Enfim, eram homens de substância e distinção. Portanto, aproveitei bem meu papel de satélite e observador enquanto a refeição se desenrolava. A certa altu­ra, meu olhar encontrou o de Susan; sorri quando ela piscou para mim. Eu não estava preparado para o momento em que Herbert Woodruff voltaria a ser mau.

Madison Kingsley resumia o enredo de sua nova peça, The Weather in a Dry Season [O tempo na estação da seca, tradução livre], sobre o anti-semitismo em Viena antes da Segunda Guerra Mundial. Explicava o problema de como dramatizar a vida de um homem bom que também era um nazista convicto. Estava no meio de uma frase quando Herbert o interrompeu e me dirigiu uma pergunta.

Há muito anti-semitismo em Charleston, Tom?

Toneladas! Mas os esnobes de lá geralmente não discriminam. Apenas odeiam a todos.

Não imagino o que seja viver no Sul - comentou Monique. - Nem por que alguém o faria.

A gente se habitua depois que nasce lá - repliquei.

Nunca me acostumei com Nova York - disse Christine. - E nunca morei em nenhum outro lugar.

Herbert, que ainda não terminara o assunto comigo, perguntou-me:

Como você lida com o racismo, quando ele se mostra, quando empina a cabeça? Como você reage quando um amigo faz um comen­tário que sugere ódio contra os judeus?

Herbert - falou Susan, colocando o garfo no prato -, pare de incomodar Tom.

É uma boa pergunta - intrometeu-se Madison. - É o tipo de coisa que estou tentando esclarecer nessa nova peça. O personagem, Horst Workman, não é anti-semita apesar de ser nazista. O que você faz, Tom?

Antes que eu pudesse responder, Monique declarou:

Eu sempre saio da sala quando percebo qualquer manifestação de racismo.

Mas eu quero saber sobre Tom - insistiu Herbert. - O que Tom Wingo faz? Como é que nosso convidado, o treinador de futebol da Carolina do Sul, reage?

Às vezes, faço a mesma coisa. - Olhei nervosamente para Susan. - Ou então parto para cima deles. Pego eles de surpresa. Aí, atiro-os ao chão e, antes que outros anti-semitas venham em sua defe­sa, rasgo a garganta deles com os dentes e cuspo tudo pela sala. Sou muito duro com os anti-semitas.

Que maravilha, Tom! - exclamou Christine. - Você mereceu essa, Herbert.

Bastante espirituoso. - Ele bateu palmas num gesto de escár­nio. - Agora que o show terminou, diga o que você realmente faz. Estou interessado nisso, Tom.

E eu estou interessada em que você cale a boca, querido - re­trucou Susan.

Apoiado na mesa, parecendo um louva-a-deus, Herbert tinha nos olhos a concentração do predador. Eu não enxergava nada com clare­za, mas ocorreu-me que entrara em alguma velha rixa de marido e mulher. Era insaciável a maneira como Herbert manobrava a conver­sa. Eu estava certo de que todos ali já o haviam visto realizar aquele ritual em outras refeições. Uma tensão violenta magnetizava o ar em volta da mesa enquanto eu pensava num modo de me retirar educadamente da disputa. Nos bonitos lábios de Monique, apareceu um indício de sorriso quando ela percebeu minha aflição. Qual seria o sentido de tudo aquilo? Por que um homem levaria a amante para sua mesa de jantar e por que a esposa permitiria isso? Por que Herbert estaria atacando? Eu cometera o erro imperdoável de treinar seu filho e fazer amizade com sua mulher, mas era inexperiente naquela dança e Herbert iria me ensinar todos os passos.

O gato comeu sua língua, Tom? - provocou Monique, para quebrar o silêncio.

Preciso ir embora, Susan - disse eu, levantando-me.

Não, Tom. Por favor - pediu Herbert. - Não leve as coisas para o lado pessoal. Você é um treinador de futebol. Pense nisso como um esporte para depois do jantar. O esporte dos desagradavelmente es­pertos nova-iorquinos. Nunca tivemos um treinador ou um sulista jantando conosco, e é natural que perguntemos sobre sua maneira de pensar. Minha mulher é judia, Tom. Você deve ter percebido isso. Não é fascinante que ela preserve sua identidade judia, apegando-se a seu nome dissonante de solteira? Eu disse a ela que suspeito de que você seja anti-semita. Não há nada de incomum nisso. Tenho certeza de que o Sul está abarrotado de racistas.

De onde você é, Herbert? - perguntei, voltando a me sentar.

Da Filadélfia, Tom. É gentil de sua parte querer saber isso.

Chega, Herbert - implorou Christine.

Oh, por favor, Chris. Precisamos fornecer material para Madison ou então ele vai ficar desatualizado. - Herbert deu uma risada.

Não sou anti-semita, Herbert - declarei -, mas tenho aversão pelas pessoas da Filadélfia.

Ótimo, treinador Tom! - Ele parecia realmente satisfeito com minha resposta. - Devo ter subestimado nosso rapaz sulista. Mas va­mos lá de novo para a pergunta dolorosa que você está evitando. O que você faz quando ouve um comentário anti-semita?

Nada. Do mesmo modo como não faço nada quando estou com pessoas que odeiam sulistas. Apenas fico sentado e escuto.

Eu sinto pelo Sul o mesmo que pela Alemanha nazista, Tom. Penso no Sul como uma coisa má. É isso que o torna interessante para mim. Por falar nisso, participei da marcha de Selma. Sei como é o Sul. Tomei a resolução de mudar o Sul.

Eu sorri.

E nós sulistas, pretos e brancos, lhe seremos eternamente gra­tos, sr. Woodruff.

Sugiro que mudemos de assunto - propôs Susan, num tom cada vez mais desesperado.

Por quê, querida? - indagou Herbert. - É um assunto fascinan­te, muito superior à tagarelice da maior parte dos jantares de Nova York. Vocês concordam? E nós devemos isso a você. Foi você quem descobriu o pequeno Tom e o trouxe para cá; ele proporciona tensão e verdadeira hostilidade, sentimentos reais, como diria minha esposa, a psiquiatra. Estamos tendo sentimentos reais e devemos isso a nosso amigo Tom. Vamos ser sinceros, a festa estava um pouco chata antes que ele começasse a falar livremente. Quem sabe a que profundezas de mediocridade não teríamos caído?

Faça Herbert parar com isso, Madison - pediu Christine.

Eles são adultos, querida - respondeu o marido, com algo da luxúria secreta do voyeur em seu rosto, o que me fez saber que ele já encorajara cenas como aquela antes. - Eles podem parar por conta própria.

Por que você está tão furioso, Herbert? - perguntou Monique, sem sequer olhar para mim.

Porque Tom é fascinante. - Comecei a enfraquecer sob a hosti­lidade de seu olhar. - Minha mulher praticamente não fala sobre ou­tro assunto. Conta suas frases cheias de espírito, seus casos domésticos que o fazem parecido a um Mark Twain de nossos dias. E eu gosto da atuação dele. Do orgulho tipo E o vento levou. De sua irascibilidade.

Ignore-o, Tom - aconselhou-me Susan em meio àquele clima assassino, na obscuridade criada pela luz das velas. - Tom é um convi­dado em nossa casa, Herbert. Quero que você o deixe em paz. Você me prometeu que não faria isso.

Tudo bem, querida. Ah, como eu sou insensível! Tom está em Nova York por causa da irmã, a famosa poetisa feminista caipira que tentou se matar enquanto estava sob os cuidados de minha esposa.

Desculpe-me por ter revelado essa informação, Tom - disse Susan. - Às vezes, a gente comete erros. Principalmente quando acre­dita que pode confiar no próprio marido.

Susan - repliquei -, comparado com o restante da noite, isso não tem a menor importância.

Não seja melodramática, querida. - Herbert inclinou-se em direção à esposa. - Todos nós sabemos que você sente orgulho de sua clientela de psicóticos literários. Minha mulher é a terapeuta mais procurada no meio dos artistas famosos de Nova York, Tom. Ela cita constantemente os nomes deles e, em seguida, finge que foi acidental. Isso é encantador!

Susan é uma psiquiatra maravilhosa - declarou Monique. - Sei disso por experiência própria.

Não precisa me defender, Monique - cortou Susan. - Herbert é daqueles maridos que esperam por uma situação em que haja um grupo para humilhar e atacar a esposa. Isso é muito mais comum do que se imagina. Escuto isso constantemente durante as terapias. As­sim, Tom, peço desculpas pelo modo como meu marido está agindo. Você é meu amigo, o que representa o maior crime aos olhos de Herbert. O filho dele também adora você.

Não acredito que vocês dois sejam realmente amigos - conti­nuou Monique, agitando o dedo elegante num gesto de negativa.

Cale essa boca de merda, Monique! - gritou Susan, levantando-se.

O quê? - A flautista estava perplexa. - Eu simplesmente expres­sei minha opinião.

Mantenha essa maldita boca fechada - repetiu Susan, ainda aos gritos. - E você, Herbert, se você disser uma única palavra contra Tom, vou atirar todos os pratos desta mesa na sua cabeça feia.

Minha querida. - Ele sorriu. - As pessoas vão achar que temos problemas conjugais. E não convém dar uma impressão errada.

Monique - continuou a ultrajada dra. Lowenstein -, tire a mão do pau do meu marido. Discretamente, por favor. Finja que não esteve trabalhando com as mãos embaixo da mesa enquanto ele insultava meu amigo. Já vi você fazer esse truquezinho nauseante umas vinte vezes e estou cheia! É por isso que eu sempre sugiro para você se sentar o mais distante dele que puder. Porque eu tolero que você trepe com ele em particular, mas é demais para mim ver você boliná-lo em público.

Monique levantou-se, olhou em primeiro lugar para Susan e, em seguida, para Herbert. Arrastou-se então para fora da sala rumo ao corredor. Tive a impressão de que Herbert perdera o controle do jan­tar. Quando ele olhou para mim, eu ironizei:

A maré se inverteu, rapaz.

Sem me responder, ele se dirigiu à esposa:

Vá pedir desculpas a Monique imediatamente, Susan. Como é que você ousa humilhar uma con...

Continue! Diga o que ia falar - desafiou ela. - Uma convidada em nosso maldito lar feliz. Você acaba de humilhar Tom em minha frente. E já humilhou todos os meus amigos que eu trouxe a esta casa. Nem Christine, nem Madison e nem eu jamais tivemos coragem de mandar você parar porque tínhamos medo de que se voltasse contra nós. Vá você e peça desculpas àquela rameira barata.

É você quem deve fazer isso - retrucou ele.

Estão se divertindo com a festa? - perguntei a Madison e a Christine, que olhavam para seus pratos.

Você não pode se levantar, não é, Herbert? - Susan riu. - Diga a eles por quê. Eu sei o motivo. Porque você ainda está de pinto duro depois do trabalhinho dela sob a mesa. Levante-se, Herbert. Deixe que a gente veja. Monique tem muito talento para tocar flauta ou qualquer outra coisa de formato parecido. Todos aqui sabem que você está de caso com ela há dois anos. Todos, menos Tom. Nós somos um grupinho fechado, compreensivo. Tão compreensivo que Christine e Madison receberam vocês na casa de Barbados no inverno passado.

Nós não sabíamos que ela estaria lá, Susan - desculpou-se Madison.

Conversaremos sobre isso mais tarde - propôs Herbert.

Vamos conversar quando você terminar seu caso com ela!

É um simples namorico, minha querida - insistiu ele, recupe­rando a pose. - Mas podemos comparar nossos gostos em matéria de amizade a qualquer hora.

Há uma pequena diferença, Herbert. Tom e eu não estamos trepando.

Até você tem bom gosto para isso.

Por Deus, Herbert - censurou Madison.

Cale a boca, Madison - respondeu ele. - Pare de parecer tão ofendido e tão certinho. Não é a primeira vez que você me vê discutir com Susan. - Então, voltando-se para a esposa, prosseguiu: - O que você gosta é de ser a sra. Herbert Woodruff. A fama é sua fraqueza, querida. Está vendo, Tom, eu analiso o caráter de minha mulher. Ela se sente atraída pelos ricos e famosos. Você não é nada. Mas sua irmã, essa sim, torna você valioso. Mas eu repito: você não é nada. Agora, Susan, vá pedir desculpas a Monique.

Só vou depois que você se desculpar com Tom!

Não tenho nada a dizer a seu amiguinho.

Aproveitei um breve intervalo entre eles, dizendo:

Posso fazer Herbert pedir desculpas a nós dois, Susan.

Você ainda está aqui? - ironizou Herbert. - Que pena. Como é que você planeja me fazer pedir desculpas?

Bem, acabo de passar em revista minhas opções, Herbert. Em primeiro lugar, pensei em lhe chutar a bunda para cima e para baixo na escada do prédio. Mas rejeitei esse plano. Ele só provaria que sou o bárbaro pelo qual você me toma. Apesar de ser gratificante dar-lhe uma surra, seria socialmente deselegante. Assim, imaginei outro pla­no, que demonstra mais espírito e muito mais cultura.

Herbert nunca pediu desculpas por nada - avisou Christine, enquanto eu ia até o aparador, no outro lado da sala, e me servia de uma boa dose de conhaque.

Para fazer isso, preciso estar um pouco bêbado. - Então, virei a bebida na garganta. Senti o sangue correr mais rápido nas veias. Em seguida, saí da sala de jantar e fui até a sala de estar. Passei rapidamente pelo piano e abri os fechos da caixa que continha o Stradivarius do anfitrião. Bom, pensei, estou suficientemente bêbado.

Herbert! - chamei. - O menino sulista passou a mão na sua rabeca. É melhor você vir correndo.

Quando o pessoal me encontrou na varanda, eu estava segurando o violino sobre a mureta, oito andares acima da Avenida Central Park West.

Isso é um Stradivarius, Tom - alertou Madison.

Pois é. Ouvi esse fato ser mencionado umas cinqüenta ou ses­senta vezes durante o jantar. É bem bonitinho, não?

Ele vale 300 mil dólares, Wingo - explicou Herbert, com uma ligeira hesitação na voz.

Mas perderá o valor se eu o deixar cair, certo? Então, não vai valer nem um centavo.

Tom, você perdeu a cabeça? - questionou Susan.

Sim, várias vezes. Mas agora, não. Peça desculpa à sua mulher, Herbert. Eu a amo e ela poderia ser a melhor amiga que já tive na vida.

Você está blefando, Tom. - A voz dele denotava um pouco da antiga força.

Talvez. Mas é um blefe poderoso, não é, seu idiota? - Joguei o violino para o ar e o agarrei em pleno vôo, inclinando-me sobre a mu­leta do terraço.

Ele tem seguro contra tudo - informou Herbert.

E daí? Você nunca terá outro Stradivarius se eu deixar este cair lá embaixo.

É uma obra de arte, Tom - ponderou Christine.

Peça desculpas à sua esposa, idiota - eu disse a Herbert.

Sinto muito, Susan - ele falou. - Agora, me dê o violino.

Ainda não, violão. Peça desculpas a seus simpáticos amigos por ter levado Monique para Barbados.

Sinto muito por ter feito isso, Christine e Madison...

Com sinceridade, Herb. Quero sinceridade. Deixe a ironia de lado ou então sua rabeca vai pular como uma bola de praia lá embai­xo, no meio dos táxis.

Lamento ter feito aquilo, Christine e Madison - declarou ele, sem ironia.

Desculpas aceitas. Obrigada - disse Christine.

Assim está melhor, Herbert. A sinceridade lhe cai bem. Agora é minha vez. Peça desculpas pela sua imperdoável falta de etiqueta à mesa. Sinto muito por você não permitir que sua esposa tenha ami­gos. O problema é de vocês, mas você não tinha o direito de me tratar daquele modo, seu chupa-caralho. Nenhum direito, entendeu?

Ele olhou para Susan e, em seguida, para mim.

Desculpe, Tom.

Ainda não foi convincente, Herbert. Tente agüentar a humilha­ção com um pouco mais de elegância. Mais um breve momento de humildade e logo eu sairei por aquela porta para sempre. Caso contrá­rio, os bêbados da rua vão usar pedaços da sua rabeca para palitar os dentes.

Sinto muito, Tom. Sinto muito mesmo. - Em seguida ele acrescentou: - Susan, eu diria isso ainda que ele não estivesse me ameaçando.

Você é um bom menino, Herb. - Entreguei-lhe o violino. - Sin­to profundamente se a ofendi, Susan. - Saí pela porta da frente, direto para o elevador, sem me dar o trabalho de me despedir. Eu estava es­perando um táxi na Central Park West quando ouvi a voz de Susan Lowenstein atrás de mim.

É por isso que você sempre está triste, Susan - comentei, quan­do ela se aproximou. - E eu pensava que você fosse um sucesso!

Você já fez amor com uma psiquiatra? - perguntou ela.

Não. E você, já fez amor com um treinador de futebol?

Não. Mas pretendo ter uma resposta diferente amanhã de manhã.

Beijei Susan Lowenstein, que estava linda de preto, enquanto ficá­vamos ali na rua, no início da mais bela noite que passei em Manhattan.

 

Quando acordei no domingo de manhã, fizemos amor outra vez, com o sol batendo em minhas costas enquanto nos movíamos juntos na cama de minha irmã. Então, dormimos até as dez horas, aninhados nos braços um do outro. Fui o primeiro a levantar. Caminhei até a janela da sala onde gritei para as ruas lá embaixo:

Eu amo Nova York!

Como ninguém olhou para cima, fui para a cozinha fazer uma omelete perfeita para Susan Lowenstein.

O que fez você mudar de idéia a respeito de Nova York, Tom? - gritou Susan, do quarto.

Seu corpo vil e pecador. Seu corpo deslumbrante e a maneira como me excita me fizeram enxergar melhor. Nunca estive apaixona­do em Nova York. E essa a diferença. Sinto-me absolutamente bem, e nada vai me perturbar hoje.

Susan entrou na cozinha e nós nos beijamos enquanto o bacon crepitava no fogão.

Você beija gostoso - murmurou ela.

Depois que provar minha omelete, você nunca vai me abando­nar. Você me seguirá por toda parte, suplicando para que eu ponha os ovos batidos na panela aquecida.

Você gostou de fazer amor comigo, Tom?

Lembre-se de que sou católico, Susan. Gosto de sexo, desde que seja no escuro e eu não tenha de me explicar mais tarde. Vou me sentir culpado o dia inteiro porque foi incrível e fantástico.

Foi fantástico mesmo?

Por que é tão difícil de acreditar, Susan?

Porque você estava fazendo amor comigo. E eu sempre recebi reclamações dos homens de minha vida a esse respeito. Além do mais, sou neurótica e preciso ter muita segurança a respeito de sexo.

Então, quando o telefone tocou na sala, resmunguei:

Qual será o horror que me aguarda quando eu atender essa droga? - Em seguida, ao tirar o fone do gancho, quase caí de joelhos ao ouvir minha mãe dizendo "alô".

Oh, Deus. É você, mãe.

Estou em Nova York. Vou pegar um táxi para ir ao apartamen­to de Savannah. Quero ter uma conversa com você.

Não! Pelo amor de Deus! O lugar está uma bagunça e eu ainda nem me vesti.

Sou sua mãe. Não me incomodo se você está vestido ou não.

Por que você veio a Nova York?

Quero conversar com a psiquiatra de Savannah.

Jesus do céu! Você quer conversar com a psiquiatra de Savannah...

Diga a ela que só preciso colocar as meias - murmurou Susan, da porta da cozinha.

Mãe, hoje é domingo. Os médicos costumam ir para suas casas de campo nos fins de semana. Não há um único psiquiatra na cidade hoje.

Desculpe, cavalheiro - sussurrou Susan. - Por acaso, eu sou psiquiatra.

Quero conversar com você hoje, Tom - retrucou minha mãe. - Nunca vi o apartamento de Savannah e gostaria de conhecê-lo.

Me dê trinta minutos para dar uma limpada aqui.

Não há necessidade de se incomodar.

Ouvi uma batidinha na porta do apartamento.

Tchau, mãe. Vejo você em meia hora.

Susan abriu a porta. Eddie Detreville estava parado no hall, com sua sacola de croissants frescos.

Olá, Sallie - disse ele. - Sou o vizinho aqui do lado, Eddie Detreville. Tom e Savannah já me falaram muito a seu respeito.

Olá, Eddie. Meu nome é Susan.

O homem virou-se para mim, furioso.

Não há nada que eu odeie mais que a heterossexualidade bara­ta, Tom!

 

Quando minha mãe entrou no apartamento, beijou-me no rosto e foi logo dizendo:

Você está cheirando a perfume de mulher.

O vizinho aí do lado é homossexual. Ele veio aqui agorinha pedir emprestada uma xícara de açúcar.

E como isso explica o perfume? - perguntou ela, desconfiada.

Você sabe como são os homossexuais. Sempre esvoaçando, enchendo-se de perfume e comprando Afghan Hounds.

Sei que você detesta me ver em Nova York...

Au contrairei - brinquei, grato por ela deixar de lado o assunto do perfume. - Estive dançando pelas ruas desde que ouvi essa fabulo­sa notícia. Quer que eu lhe faça uma omelete?

Já tomei o café-da-manhã no St. Regis.

Seu marido veio com você? - perguntei, da cozinha. - Ou ele foi comprar a Indonésia ou algo parecido?

Ele sabia que você não queria vê-lo. Ficou no hotel.

Um homem de bom senso. - Levei uma xícara de café para ela. - Enxerga direto no fundo da minha alma.

Por quanto tempo você vai castigá-lo por algo que sabe que é meu pecado? Hum, o café está bom.

Provavelmente eu o perdoarei em seu leito de morte. Perdôo a todos na hora da morte.

Até a mim?

Já perdoei você há muito tempo.

Claro que não. Você me trata de maneira abominável. Tem tan­ta raiva de mim que mal pode me olhar nos olhos.

Isso não acontece só com você. Tenho raiva de todos. Tenho essa raiva titânica e devoradora por tudo neste planeta.

Eu não devia ter tido filhos. A gente faz tudo por eles, sacrifica a vida inteira pelo bem-estar deles e no fim eles se voltam contra nós.

Eu devia ter ligado as trompas quando tinha 12 anos. É o que eu reco­mendaria a qualquer moça de hoje.

Toda vez que você me vê, parece que gostaria que um médico rea­lizasse um aborto retroativo - disse eu, cobrindo o rosto com as mãos. - Bom, vamos acabar com essa conversa mole. Que razão monstruosa a traz a Nova York? Por qual arena você planeja me fazer passar desta vez?

Você sabe o que está falando, Tom? Quem lhe ensinou a ser tão cruel? Tudo o que você diz é com a intenção de me magoar.

Minha única defesa contra você, a única arma que trago para o combate, é uma amarga sinceridade.

Imagino que não faça diferença o fato de que eu ame meus filhos mais que qualquer coisa no mundo, não é, Tom?

Eu acredito. Aliás, se não acreditasse nisso do fundo do cora­ção, eu a estrangularia com minhas próprias mãos.

E você acaba de dizer que me ama!

Você está pondo palavras em minha boca novamente. Eu disse que a perdôo. Não mencionei amor. No seu entender, o perdão e o amor são a mesma coisa. Para mim, não.

Você diz as coisas mais cruéis, Tom. - Lila tinha lágrimas nos olhos.

Isso é apenas modernamente cruel. De qualquer modo, eu lhe peço desculpas. Mas admita que temos uma história juntos e que essa história me tornou consciente de que você com certeza tem alguma coisa ruim escondida na manga.

Você se incomoda se eu fumar? - Ela tirou um maço de Vantages da bolsa.

Claro que não. Não me incomoda ter câncer de pulmão por causa de minha própria mãe.

Você pode acender meu cigarro?

Oh, não! Estamos assistindo ao início da liberação das mulhe­res. Seria falta de tato de minha parte acender seu cigarro quando sei que você não acredita que as mulheres devam votar.

Não é verdade! Mas eu sou antiquada em outras coisas. Adoro ser mulher. Gosto que as portas sejam abertas quando passo e que algum cavalheiro segure a cadeira enquanto me sento. Não sou queimadora de sutiãs nem acredito na Emenda dos Direitos Iguais. Sempre achei as mulheres muito superiores aos homens e nunca fiz nada que levasse um homem a pensar que poderia ser meu semelhan­te. Agora, por favor, acenda meu cigarro.

Depois que lhe atendi o pedido, minha mãe continuou:

Conte-me sobre Savannah.

Ela fica muito bem com camisa-de-força.

Se você deseja se tornar comediante, Tom, eu ficaria feliz ao vê- lo arranjar qualquer tipo de emprego. Por favor, deixe que eu alugue um teatro ou uma boate, em vez de testar suas piadas comigo.

Savannah está em péssimo estado. Só consegui vê-la uma vez desde que cheguei aqui. Contei à dra. Lowenstein sobre a vida dela, dando todos os detalhes terríveis de nossa infância.

E, é claro, achou que era necessário contar a respeito daquele dia na ilha.

Sim, achei que sim. Era um dado extremamente significativo.

Será que a dra. Lowenstein merece confiança estando de posse dessa informação?

Bem, depois que eu conto a ela algum segredo tenebroso, ele aparece misteriosamente no New York Times do dia seguinte. Ora, mãe, é lógico que ela merece confiança. É uma profissional.

Tenho orgulho demais para revelar um episódio tão vergonho­so a uma pessoa estranha.

Pois eu não me dou bem com a subserviência. Prefiro contar tudo sobre aquilo a pessoas que são perfeitas estranhas para mim. "Oi, meu nome é Tom Wingo. Fui comido no rabo por um prisioneiro foragido, mas, em seguida, matei-o com uma imagem do Menino Jesus!" Isso estabelece uma intimidade imediata.

Minha mãe observou-me calmamente e, então, perguntou:

Você admitiu seus próprios problemas à dra. Lowenstein? Você é especialista em revelar os segredos da família; eu gostaria de saber quanto você revela de seus próprios problemas.

Não tenho nada para revelar. Todos podem ver que sou um resto desesperado de um homem infeliz. Os detalhes iriam apenas aborrecê-los.

Você contou que Sallie e eu tivemos que internar você no déci­mo andar da faculdade de medicina no ano passado?

Não, não contei - menti. - Achei melhor fazer a dra. Lowenstein pensar que eu adquirira meu ódio por sua profissão atra­vés de leituras, e não por experiência própria.

Ela precisa saber que as histórias que está ouvindo são narradas por alguém que já esteve internado num asilo de loucos.

Prefiro descrevê-lo como unidade psiquiátrica de uma facul­dade de medicina - declarei, cerrando os olhos. - É muito melhor para minha auto-estima. Sei que você ficou envergonhada por eu ter passado uma semana ali. Aquilo me constrangeu ainda mais. Eu esta­va deprimido. Que mais posso dizer? Continuo deprimido. Mas estou melhorando. Apesar de Sallie e de seu amigo doutor, este verão tem sido bom para mim. Fiz um balanço de minha vida e da vida da famí­lia, e é um privilégio raro um homem ter esse tipo de regalo nesses tempos terríveis. De vez em quando, começo a gostar de mim nova­mente.

Vou alertar a doutora de que você mentiu a respeito do estupro e de tudo o mais que lhe contou. Ela vai saber que tiveram de usar eletricidade para seu cérebro se endireitar.

Recebi dois tratamentos de eletrochoque. Levei muito tempo para recuperar a memória.

Vou contar à dra. Lowenstein que isso confundiu sua memória e que você vive inventando histórias - afirmou minha mãe, apagando o cigarro.

Bem... - Acendi o segundo cigarro para ela. - As pessoas são es­tupradas diariamente neste país. Os homens que fazem isso são pirados. Meninos são estuprados nas prisões a três por quarto. É uma coisa violenta, horrível, e modifica a pessoa para sempre. Mas não faz bem fingir que isso não aconteceu.

Eu não fui estuprada! - garantiu minha mãe.

O quê?

Você não viu o que aconteceu no quarto. - Ela começou a cho­rar. - Ele não me estuprou. Você não tem provas.

De que prova preciso? A razão pela qual eu acho que você não estava discutindo filmes de Humphrey Bogart é simples: você saiu correndo nua de lá. Isso é uma prova bastante forte.

Minha mãe chorava cada vez mais. Entreguei-lhe um lenço.

Nós mostramos a eles, não mostramos, Tom?

Claro que sim. Mostramos tudo o que podíamos.

Foi horrível o que ele me fez naquele quarto - ela soluçou.

A última vez que vi aquele sujeito vivo, ele estava descobrindo se o tigre tinha mau hálito. Isso estragou o dia dele. Naquela mesma noite, havia hera nascendo no meio de seus olhos.

É estranha a maneira como as coisas funcionam. Nós estaría­mos mortos agora se seu pai não tivesse comprado o posto de gasoli­na. Ter um tigre em casa foi o que nos salvou naquele dia.

Luke teria descoberto outra forma de nos ajudar. Ele sempre descobria.

Nem sempre... Savannah vai me ver?

Ela não quer ver ninguém da família no momento. E não sabe se deve nos ver algum dia novamente.

Você sabe que faz três anos que ela não fala comigo?

Comigo também. E é a mesma coisa com papai. Aconteceram algumas coisas ruins em nossa família, mãe.

O que nos torna exatamente iguais a todas as famílias do mundo...

Savannah também acha que nossa família é uma das mais fodidas de todos os tempos.

É difícil encarar Savannah como uma pessoa imparcial. Ela está num asilo de loucos.

Isso só reforça o argumento dela. Ah, por que você veio a Nova York, mãe?

Porque quero que vocês comecem a me amar novamente... - Por um instante, sua voz se partiu. Esperei até que ela se recuperasse. Minha mãe parecia insegura e profundamente magoada. Era difícil para mim voltar a adorar alguém de quem desconfiava tanto. - Não posso fazer nada para modificar o passado - suspirou. - Mudaria cada minuto dele se pudesse, mas isso não está ao meu alcance. Não vejo motivo para passarmos o resto da vida como inimigos. Descobri que não suporto o desprezo de meus filhos. Quero contar com sua boa vontade novamente; quero seu amor, Tom. Acho que eu mereço.

Eu estava zangado com você. Mas nunca deixei de amá-la. En­sinei a mim mesmo que até os monstros são gente. Isso foi brincadei­ra, mãe.

Foi uma péssima brincadeira!

Quero ser seu amigo novamente, mãe. Agora não estou brin­cando. Talvez eu precise mais disso que você. Sei que tudo o que eu digo a deixa puta da vida. Tentarei não falar mais coisas desagradáveis. Juro. A partir deste momento, vou recuperar meu status de filho ma­ravilhoso.

Você quer jantar conosco hoje? Isso significaria muito para mim.

Conosco? Oh, Deus, você está pedindo demais. Será que eu não posso apenas amar você e manter meu desprezo por seu marido? Isso não deve ser tão incomum. Sou um enteado. Faz parte do meu papel odiar meu padrasto. Aliás, isso é um conceito literário que aprendi ao longo de minha vida. A partir de Hamlet, Cinderela, todo esse pessoal.

Por favor, Tom. Estou lhe pedindo um favor. Quero que você faça amizade com meu marido.

Tudo bem. Será um prazer encontrá-los para jantar.

Senti muito a sua falta, Tom - disse ela ao se levantar para sair.

Eu também senti sua falta. - Nós nos abraçamos por um longo tempo. Era difícil dizer qual dos dois chorava mais. O peso de tantos anos perdidos nos incitava a tocar um no outro.

Não seja boba de novo, mãe - comentei, por fim.

Ela sorriu por entre as lágrimas.

Tenho todo o direito de ser boba. Sou sua mãe.

Perdemos alguns bons anos, não?

Mas vamos recuperá-los. Sinto muito a respeito de Luke, Tom. Sei que era por isso que você me odiava. Choro por ele todos os dias.

Luke nos deu algo por que chorar...

Sallie quer que você lhe telefone. Conversei com ela antes de vir aqui.

Ela vai me deixar. Estou treinando para viver sem ela desde que cheguei a Nova York.

Talvez não, Tom. Acho que ela levou um fora.

Por que ela não pega o telefone e me liga?

Não sei. Ela pode estar com medo. Disse que você está come­çando a parecer o velho Tom, tanto por telefone como por carta.

O velho Tom... Odeio esse sujeito. Também odeio o novo Tom.

Eu amo o velho Tom. E o novo vai jantar comigo e com meu marido. E eu o amo por isso.

Seja paciente comigo, mãe. A maior parte do que você diz ain­da me deixa puto da vida.

Nós prometemos nos amar, Tom. O restante virá com o tempo.

Quero que seu marido me alimente muito bem. Essa reconci­liação tem de custar um bocado de dinheiro. Tomara que a pressão sangüínea dele suba e que sua expectativa de vida caia quando ele re­ceber a conta.

Fizemos reservas no Four Seasons. Para três pessoas.

Você é uma pilantra. Sabia que eu cairia por seus encantos per­versos.

 

Encontrei minha mãe no bar do hotel St. Regis. Quando ela pôs os olhos na porta, virei-me para ver seu marido entrando no bar. Levan­tei-me para cumprimentá-lo.

Olá, Tom - disse ele. - Estou muito grato por você ter vindo.

Tenho sido um perfeito imbecil. Desculpe-me. - E apertei a mão de meu padrasto, Reese Newbury.

 

No fim de agosto de 1962, apresentei-me cedo ao treino de futebol dos calouros da Universidade da Carolina do Sul, tornando-me o pri­meiro membro da família a se matricular numa faculdade. Na história das famílias, até esses pequenos progressos adquirem dimensões mo­numentais. No mesmo dia em que eu chegava à universidade, Luke percorria as águas de Colleton, no novo barco camaroneiro que bati­zara como Miss Savannah, e já pescava mais camarões que meu pai. Savannah iria para Nova York em novembro, a despeito dos veemen­tes protestos dos meus pais, que a queriam em Colleton até que "endi­reitasse a cabeça". Mantendo o voto de silêncio que fizera a mamãe, iniciei o treino com a sensação de ser o único rapaz do time que tivera a sorte de ser estuprado por um prisioneiro foragido. Tornei-me aca­nhado no chuveiro, temeroso de que minha nudez revelasse algum indício daquela vergonha a meus companheiros de time. Prometi a mim mesmo recomeçar a vida, recuperar o entusiasmo ansioso que perdera durante o ataque à minha casa e me destacar em todos os aspectos da vida universitária. Só que minha sorte já se modificara, e a faculdade me ensinaria que eu era um daqueles que passam pela vida ávidos por sobressair-se, mas sem os dons necessários para isso.

Na primeira semana de treino, o treinador me disse que eu não tinha talento suficiente para ser lançador do time. Fui designado para uma posição de defesa, na qual estava destinado a viver o sonho de um atleta. Durante três anos, devolvi lances e mais lances. No último ano, interceptei quatro passes e fui mudado de posição. Mas nunca atirei um único passe nem fiz sequer uma jogada ofensiva a partir da linha de ataque. Os limiares de meu talento eram modes­tos, e meu desejo, muito maior do que minha habilidade. Conhecido como uma pessoa incansável, com o passar dos anos os treinadores gostavam cada vez mais de mim. Quando os corredores atravessa­vam a linha defensiva, eu os obrigava a se lembrarem de mim. Agar­rava-os com um atrevimento, uma ferocidade determinada, que não dependiam do talento. Somente eu sabia que aquela ferocidade era produto do terror. Nunca perderia o medo visceral do jogo, mas esse segredo eu jamais partilharia com o mundo. Transformei o medo na ferramenta que me ajudaria a me definir enquanto passava os qua­tro anos de aprendizado sob sua lânguida jurisdição. Embora jogasse com medo, não me desonrei. Era o pavor que me fazia amar tanto aquele esporte, e amar a mim mesmo por transformá-lo em um ato de fé, quem sabe até de adoração.

Antes de entrar na faculdade, eu não fazia idéia de quanto parecia rústico e ingênuo aos olhos dos outros. O pessoal do time dos calou­ros vinha dos quatro cantos do país. Assim, com algo que se aproxi­mava da perplexidade, escutei os quatro alunos de Nova York conver­sarem. Eu não suspeitava de que tanta autoconfiança, tanta bazófia e segurança natural coubessem em rapazes da minha idade. Para mim, eram exóticos como os turcos, e sua conversa viva e rápida soava como uma linguagem alienígena e perniciosa.

Eu estava tão dominado pela novidade da vida universitária, pela magnitude da mudança de condição de menino de ilha para aluno de faculdade, que fiz poucas amizades no primeiro ano. Rápido e vigilan­te, procurei não mostrar o que sentia, guardei tudo para mim e tentei me adequar, imitando aqueles gloriosos e confiantes rapazes das cida­des sulistas que admirava tanto. Os rapazes do terceiro e do quarto anos, vindos de Charleston, caminhavam como reis - tentei copiar suas maneiras elegantes, a sofisticação desembaraçada e seu espírito ágil e civilizado. Meu companheiro de quarto era de Charleston e se chamava Boisfuillet Gailliard, ou Bo, como preferia ser chamado. Ele exalava boa educação e superioridade. Seu nome me soava como um prato francês e um de seus ancestrais huguenotes fora governador da colônia antes da grande revolta contra o rei Jorge. Se fiquei satisfeito com minha boa sorte ao receber um colega de quarto como aquele, minha mãe quase entrou em êxtase ao saber que um Wingo associara seu destino a um Gailliard da Carolina do Sul. Sei, agora, que Bo se assustou ao se ver obrigado a morar com um colega tão pouco ilustre; no entanto, fiel às regras do bom comportamento sulista, jamais de­monstrou seu desapontamento para mim. Na verdade, após o choque inicial, ele deu a impressão de me colocar sob sua asa como se tivesse em mente algum projeto de recuperação social. E só estabeleceu uma regra: a de que eu não deveria, sob hipótese alguma, pedir emprestado suas roupas. Com o armário repleto de ternos bem-feitos e paletós esporte, ele pareceu chocado com meu desprezível guarda-roupa. Mas, novamente, nada disse, limitando-se a aparentar uma leve sur­presa quando lhe mostrei orgulhosamente o paletó azul que minha mãe fizera para a formatura. Bo alegrou-se ao descobrir que eu jogava lutebol e logo me perguntou se era fácil conseguir para sua família alguns ingressos gratuitos para o jogo de Clemson. Declarei que fica­ria feliz em fazê-lo e lhe dei ingressos grátis pelos quatro anos seguin­tes, época em que ele já não era mais meu colega de quarto. Não perce­bi na época, mas com Boisfuillet Gailliard encontrei pela primeira vez a típica espécie nativa da cultura sulista, o político natural. Em nossa primeira semana juntos, ele me contou que seria governador do esta­do aos 40 anos... não me surpreendi ao vê-lo assumir o cargo dois anos antes dessa data. Ele me pediu para ficar atento a qualquer moça no campus que servisse como uma boa primeira-dama do estado. Prometi manter os olhos abertos. Eu jamais encontrara alguém como Bo Gailliard antes. Menino do campo, eu não era bom na arte de fare­jar imbecis.

Bo convenceu-me a participar de uma irmandade. Segui-o, de associação em associação, durante a semana em que estas escolhiam seus novos membros. Via-o desaparecer do meu lado assim que en­trávamos nas salas enfumaçadas e barulhentas, cheias de rapazes vestidos como gregos, que sempre pareciam as pessoas mais amigá­veis que eu já encontrara. Adorei todas as irmandades e todos os irmãos, mas Bo me persuadiu que a SAE era a melhor e a única que eu precisava levar a sério. Entretanto, jantei em todas as casas onde os calouros eram convidados, ri de todas as piadas, entrei em todas as conversas que pude e ofereci minha opinião sobre tudo o que existe sob o sol.

Quando chegou a hora de preencher o cartão de compromisso, pensei durante muito tempo e acabei por colocar as cinco irmandades mais populares do campus como minhas opções. Os convites eram feitos por eles às cinco da tarde. Uma enorme multidão de moças e rapazes aglomerava-se na agência do correio onde seriam entregues. Gritos de alegria cortavam o ar quando alguém recebia um convite da irmandade que escolhera. O clima era de tanta alegria e festividade que eu estava ofegante de expectativa ao espiar através da janelinha da minha caixa de correspondência.

Às sete horas, eu continuava lá, ainda atento à caixa vazia, pen­sando se teria havido algum engano. Bo encontrou-me no correio às oito horas, confuso e irritado, ainda esperando na semi-escuridão.

Recebi cinco convites, mas já nasci SAE. Vamos sair. Eu pago a cerveja para comemorar - propôs ele.

Acho que não, Bo. Ainda vão entregar algum convite amanhã?

Claro que não. O pessoal ficaria louco se tivesse de esperar até amanhã.

Pois eu não recebi nenhum convite...

E você está surpreso, Tom?

Sim, e muito!

Bem, eu ia lhe prevenir, mas não queria magoá-lo. Você se tor­nou a piada da turma. Todo mundo fala a seu respeito.

Porquê?

Você usou o mesmo paletó esporte em todas as festas, reu­niões e atividades do campus. Alguém descobriu que foi sua mãe quem o costurou, e então o pessoal enlouqueceu. Algumas moças acharam isso a coisa mais adorável que tinham ouvido. Em com­pensação, esse fato torna você inadequado para qualquer irmanda­de. Realmente já pensou num homem de irmandade andando para cima e para baixo com um paletó feito em casa? Isso ficaria bem numa pintura de Norman Rockwell, mas não se encaixa na ima­gem de nenhuma associação do campus. Os Dekes também te re­jeitaram?

Imagino que sim.

Se você não foi aceito nem pelos Dekes, então perca as esperan­ças, Tom. Mas há muitos rapazes verdadeiramente inteligentes que não querem nada com as irmandades.

Eu queria ter sido esperto o suficiente para ser um deles.

Vamos tomar uma cerveja.

Não, preciso ligar para minha casa.

Fui até os telefones públicos perto da entrada da agência do cor­reio e sentei-me na escuridão da cabine para pôr os pensamentos em ordem antes de fazer a ligação. Dominado pela dor e pela vergonha, revi mentalmente meu comportamento naquela vertiginosa série de festas a que comparecera. Será que eu rira exageradamente, falara com muitos erros de gramática ou parecera ansioso demais para agradar? Eu sempre contara como certo que as pessoas gostariam de mim. Isso era algo com que eu nunca me preocupara, embora, naquele momento, estivesse tremendamente abalado. Se eu pudesse conversar com alguns dos rapazes das irmandades e contar-lhes a história do paletó, talvez eles reconsiderassem a decisão... Mas até eu percebi a futilidade de um gesto tão lastimável. Na verdade, não entendera a natureza do meio em que procurara entrar. Tentara participar de uma irmandade e encontrara a Liga de Colleton blo­queando meu caminho. E eu não aprendera com minha mãe os pe­rigos de querer ir tão longe.

Foi minha irmã quem atendeu o telefone.

Olá, Savannah, tudo bem? Aqui é Tom.

Alô, universitário. - Sua voz fraca e rouca traía a provação pela qual ela passara. - Estou bem, Tom. Estou melhorando a cada dia. Não se preocupe. Vou superar tudo isso.

Mamãe está aí?

Está na cozinha.

Não fui aceito por nenhuma irmandade, Savannah.

Você se importa com isso, Tom?

Claro que me importo. É impossível ficar indiferente. Gostei de todo mundo, e pensei que fossem o grupo mais simpático que já en­contrei.

São um bando de idiotas, Tom. Se não aceitaram você é porque não passam de idiotas. - Savannah baixara a voz para que mamãe não ouvisse.

Devo ter feito alguma coisa errada. Só não descobri o que foi. Vários caras que pensei que não teriam chance receberam convites. A faculdade é estranha, Savannah.

Sinto muito, Tom. Quer que eu vá aí no fim de semana? Os cortes em meus pulsos já cicatrizaram completamente.

Não. Mas gostaria que você soubesse quanto sinto sua falta e a de Luke. Não vivo bem sem vocês. O mundo não é o mesmo.

Você não está sem mim, Tom. Lembre-se sempre disso. Mamãe está aqui.

Acho que não vou contar nada a ela, Savannah.

Eu entendo, Tom. Amo você. Estude bastante.

Tom! - exclamou minha mãe. - Hoje é o grande dia. Você deve estar tão excitado!

Bem... tenho pensado muito desde que cheguei aqui e decidi não entrar em nenhuma fraternidade este ano. Acho melhor esperar um ano ou dois.

Não creio que seja uma boa idéia. Afinal, os rapazes que você conhecer na irmandade são aqueles que irão ajudá-lo na vida profis­sional quando você se formar.

Na verdade, a irmandade nos afasta dos estudos. Tenho ido a tantas festas que andei negligenciando os estudos.

Isso parece muito amadurecido de sua parte. Na realidade, acredito que o melhor é entrar numa irmandade logo no primeiro ano. Mas se isso atrapalha seus estudos...

Sim, fui mal em duas provas na semana passada e o treinador me chamou para conversar sobre isso.

Se você perder a bolsa, não teremos dinheiro para pagar seu curso, Tom.

Eu sei, mãe. Po.r isso que a irmandade vai ter de esperar. Preciso dar prioridade aos estudos durante algum tempo.

Bem, você agora é um homem e pode tomar suas próprias de­cisões. Savannah está melhorando, mas eu queria que você lhe escre­vesse uma carta tentando convencê-la a não ir para Nova York. É muito perigoso para uma menina sulista andar por aquelas ruas.

Não é mais perigoso que morar na ilha - retruquei, che­gando o mais próximo do assunto do estupro do que já chegara com minha mãe.

Conte-me sobre seus cursos - disse ela, mudando o rumo da conversa.

Pouco depois, ao desligar o telefone, sentei-me na cabine por um instante, pensando em como encarar novamente os rapazes que ha­viam votado de maneira tão esmagadora pela minha exclusão. Será que não seria melhor transferir-me para uma faculdade menor e mais próxima de casa?, perguntei-me, fazendo hora antes de voltar ao dor­mitório, para não ter de enfrentar a compaixão dos colegas que sabe­riam que eu não recebera um único convite.

Não percebi a moça que passou por mim e entrou na cabine tele­fônica ao lado. Ouvi quando colocou a moeda no aparelho e pergun­tou à telefonista se poderia fazer uma ligação a cobrar. Antes que eu pudesse me afastar, escutei uma exclamação que demonstrava tanta angústia que fiquei paralisado, sem me mexer, para que a moça não sou­besse que alguém ouvira por acaso aquele seu momento de desolação.

Oh, mãe - ela chorava. - Ninguém me quis. Ninguém me con­vidou para participar de uma irmandade.

Encostando a cabeça na cabine ao lado, ouvi seus soluços.

Não me quiseram, mãe. Elas não me quiseram. Não, você não está entendendo. Não fiz nada contra ninguém. Fui simpática com todas. Você sabe como eu sou. Oh, Deus, estou me sentindo tão mal...

Durante dez minutos, a moça falou, chorou e escutou a mãe, que tentava consolá-la. Ao desligar, reclinou a cabeça sobre o aparelho e continuou a chorar. Apareci em frente à porta da cabine e disse:

A mesma coisa aconteceu comigo hoje. Quer tomar uma Coca-Cola?

Ela levantou os olhos, espantada, as lágrimas ainda rolando pelo rosto.

Eu não sabia que havia alguém aí.

Acabo de ligar para minha mãe para contar a mesma coisa. Só que menti. Não tive coragem de dizer que fui barrado em todas as irmandades.

Você não entrou? - Ela me olhou, incrédula. - Mas você é tão simpático...

Corei, surpreso diante de sua sinceridade.

Aceita aquela Coca-Cola? - gaguejei.

Gostaria muito, mas preciso lavar o rosto.

Meu nome é Tom Wingo.

O meu é Sallie Pierson - disse ela em meio às lágrimas. - É um prazer conhecê-lo. - E foi assim que conheci minha esposa.

 

Iniciamos nossa convivência num momento de derrota e autopiedade que deixou uma marca indelével nos dois. A rejeição me disciplinou, me fez conhecer meu lugar no grande esquema das coisas. Aquela foi a últi­ma vez em que fiz um movimento que exigisse ousadia ou um salto de imaginação. Tornei-me hesitante, desconfiado e chato. Aprendi a refrear a língua, a conhecer o caminho de volta e a olhar em direção ao futuro com olhos cuidadosos. Por fim, foram-me roubados um certo otimis­mo, a despreocupada aceitação do mundo e toda a força que me condu­ziria pelo caminho. Apesar de minha infância e do estupro, eu achava que o mundo era um lugar maravilhoso... até que a SAE decidira não me incluir entre seus membros.

Sallie Pierson era feita de material diferente. Filha de operários de Pelzer, na Carolina do Sul, a rejeição fora apenas mais uma de uma longa série de catástrofes que se abatera sobre ela desde crian­ça. Uma medida de sua inocência social era o fato de ela considerar uma família de pescadores de camarão exótica e rica. Viera para a universidade com uma bolsa de estudos que a tecelagem em que seus pais trabalhavam conferia todos os anos ao filho de operário que tivesse o melhor desempenho escolar. Ela nunca tivera uma nota abaixo da máxima no ensino médio, e teria apenas duas na faculdade. Quando Sallie Pierson estudava, ouvia a música dos teares da fábrica em sua cabeça, e via a figura dos pais, desfigura­dos por anos de trabalho exaustivo para que a filha tivesse a chance que lhes fora negada. Na noite em que nos conhecemos, contou que queria ser médica e ter três filhos. Ela planejara sua vida como uma operação militar. Em nosso segundo encontro, disse que, apesar de não querer me assustar, decidira se casar comigo. Ela não me assustou.

Eu nunca encontrara uma moça como Sallie Pierson. Todas as noites, nós nos víamos na biblioteca e estudávamos juntos. Ela le­vava a faculdade muito a sério e passava essa seriedade para mim. Das sete às dez da noite, exceto aos sábados, trabalhávamos na mesma mesa, atrás da seção de literatura. Ela me permitia que eu lhe escrevesse um único bilhete de amor por noite, e isso era tudo. Aprendera na escola que a dedicação aos estudos tinha recompen­sas especiais, que só nos caberiam se fôssemos diligentes. Nunca me escrevia bilhetes de amor, mas sim listas de coisas que esperava de nós.

 

Querido Tom,

Você vai ser Phi Beta Kappa, vai pertencer ao "Quem é Quem" das faculdades e universidades americanas, capitão do time de futebol e primeiro aluno do departamento de inglês.

Com amor

Sallie

 

Querida Sallie (respondi e passei o bilhete por sobre a mesa),

O que é Phi Beta Kappa?

Com amor,

Tom

 

Querido Tom,

É a única fraternidade em que você pode entrar, menino do campo. Agora, estude. Chega de bilhetes.

Com amor,

Sallie

 

Como Savannah, Sallie compreendia a importância de saber escre­ver. Foi uma noite de assombro para mim quando fui convidado pela Phi Beta Kappa dois anos depois. Eu descobrira, com enorme surpresa, que era o único aluno na classe dos calouros que ouvira falar de William Faulkner. Adorava as aulas de inglês e não acreditava na sorte que tinha de levar uma vida em que meu trabalho era ler os maiores livros já escri­tos. Iniciei um longo caso de amor com o departamento de inglês da Universidade da Carolina do Sul, cujos membros não acreditavam que um jogador de futebol pudesse escrever uma sentença simples sem cau­sar algum dano à língua. Não sabiam que eu crescera na mesma casa em que crescera aquela que se tornaria a melhor poetisa do Sul, ou que eu estudava três horas por noite com a menina que escrevera uma única palavra em sua lista de objetivos: oradora.

Minha mãe ficou desapontada ao descobrir que eu estava namo­rando uma filha de operários e fez o que pôde para desencorajar esse relacionamento. Escreveu-me uma série de cartas sobre o tipo de mulher que eu deveria procurar quando estivesse interessado em me casar. Li essas cartas para Sallie, que concordou com minha mãe.

Não posso apagar a cidadezinha industrial de meu organismo, Tom.. Jamais lhe darei o que outras moças daqui podem oferecer.

Eu também não posso tirar os camarões do meu modo de ser - respondi.

Eu gosto de camarões.

E eu gosto de algodão.

Então vamos mostrar o que somos, Tom - disse ela, beijando-me. - Vamos mostrar a todo o mundo. Não teremos tudo e sempre faltará algo para nós, mas nossos filhos terão tudo. Nossos filhos terão tudo no mundo.

Aquelas eram as palavras que eu esperava ouvir a vida inteira. E eu soube ali que a mulher certa entrara em minha vida.

 

No campo de futebol, lutei durante três anos contra meu próprio senso de inadequação. Estava cercado de ótimos atletas que me davam lições diárias sobre as deficiências que eu trouxera para o jogo. Mas, quando não estávamos em campeonato, passei longas horas na sala de musculação, desenvolvendo o corpo como parte de um plano delibe­rado. Ao entrar na universidade, eu pesava 75 quilos. Quatro anos mais tarde, ao sair de lá, pesava 95. Como calouro, fazia exercícios com pesos de 55 quilos. No último ano, alcancei a marca de 145. Bloqueei no time dos chutadores e fui beque de defesa no primeiro e no segun­do anos, até que Everet Cooper, o restituidor dos chutes, machucou-se durante o jogo contra Clemson quando eu estava no segundo ano.

Quando o Clemson marcou um ponto, ouvi o treinador Bass chamar meu nome. A partir daí, meus anos na faculdade se torna­ram dourados. Ao voltar para receber o chute, ninguém na platéia sabia meu nome, exceto Sallie, Luke e meus pais. O chutador do Clemson aproximou-se da bola. Percebi o temível movimento de capacetes alaranjados pelo campo e o murmúrio de sessenta mil vozes enquanto a bola se elevava ao sol da Carolina e percorria 55 metros pelo ar, até que eu a agarrasse na linha de fundo e a levasse para onde ela deveria estar.

O nome, senhores e senhoras, é Wingo - gritei ao enfiar a bola embaixo do braço e correr pelo lado esquerdo do campo. Fui agarrado na linha de 25 jardas, mas saí com um rodopio dos braços do médio esquerdo. Atravessando o campo, um jogador do Clemson tentou me atingir, porém não conseguiu. Continuei minha trajetó­ria, saltei sobre dois companheiros de time que haviam derrubado dois adversários e corri na diagonal pelo campo inteiro até encon­trar um bloqueador defensivo. Naquele momento, vi a abertura pela qual eu lançara orações aos céus. Por meio dela, cheguei a campo aberto e senti alguém mergulhar sobre mim pelas costas; cambaleei, mas recuperei o equilíbrio, apoiando-me com a mão esquerda. Ao me levantar, vi o chutador adversário na linha de 30 jardas, o último jogador do Clemson com chance de me pegar em sua área. No en­tanto, havia sessenta mil pessoas que não sabiam meu nome, quatro que eu amava estimulando-me ao longo do estádio chamado Vale da Morte e eu não planejava ser agarrado por um chutador. Abaixei a cabeça e meu capacete o pegou na altura dos números do uniforme. O rapaz se derreteu como neve perante o olhar de Deus, achatado pelo único jogador em campo que sabia o nome de Byron ou uma única linha de sua poesia. Quando dois jogadores do Clemson me agarraram, ofereci-lhes um passeio gratuito ao entrar em sua área aos trambolhões no fim da jogada que mudaria minha vida para sempre.

A contagem estava a 36 e ainda havia um quarto de jogo pela fren­te quando ouvi aquelas doces palavras pronunciadas pelo locutor:

O jogador de número 43, Tom Wingo, cobriu 103 jardas e esta­beleceu um novo recorde da Associação da Costa Atlântica.

Voltei para as linhas laterais e fui cercado pelos companheiros de time e seus treinadores. Passei pelo banco e acenei como um louco para o lugar no alto das arquibancadas em que sabia que Sallie, Luke e meus pais estariam em pé me aclamando.

George Lankier chutou o ponto extra. Estávamos seis pontos atrás do Clemson Tigers quando entramos em campo para a última parte do jogo. Faltando dois minutos para o fim, detivemos o adversá­rio em sua própria linha de 20 jardas. Um dos treinadores assistentes gritou para o treinador Bass:

Deixe Wingo fazer essa jogada.

- Wingo - chamou-me Bass. - Faça aquilo novamente.

Naquele dia, tornei-me um menino de ouro. O treinador pro­nunciara palavras mágicas, que eu já ouvira em algum lugar distante de minha vida. Tentei recordar onde, antes de tomar posição em nossa linha de 10 jardas, abstraindo por completo o extraordinário barulho da multidão. Enquanto via o zagueiro passar a bola para o lateral, lembrei-me do crepúsculo distante quando, com apenas 3 anos, minha mãe nos levara ao cais flutuante e trouxera a lua para nossa ilha. Minha irmã gritara com voz extática: "Oh, mãe, faça isso novamente."

"Faça isso novamente", murmurei ao ver a bola que se elevara em espiral sobre o campo iniciar sua longa descida até os braços do meni­no que se tornara de ouro por um único dia em sua vida. Agarrei-a e relanceei o olhar pelo campo. Em seguida, dei o maravilhoso primeiro passo da corrida que me transformaria no mais famoso jogador de futebol da Carolina do Sul durante um ano que eu lembraria com prazer enquanto vivesse. Saindo com a bola da linha de 15 jardas, corri pela lateral direita, avistando apenas um mar cor de laranja que se movia em minha direção. Três jogadores do Clemson chegavam para me agarrar pela esquerda, quando parei por completo, correndo en­tão em sentido oposto, de volta à nossa própria linha de gol, na tenta­tiva de alcançar o outro lado do campo. Um lateral do Clemson quase me pegou na altura das 17 jardas, mas foi derrubado por um bloqueio maldoso de um de nossos beques de linha, Jim Landon. Dois deles corriam passo a passo comigo quando voltei a me dirigir para seu campo. Ao olhar para as linhas laterais, deparei com algo espantoso: nosso bloqueio se desmantelara depois do último ponto, mas meus companheiros de time viram quando mudei de direção, seguido por 11 jogadores de Clemson. Eu via naquele instante uma fila de bloqueadores que se estendia por 50 jardas pelo campo. Cada vez que um jogador do Clemson estava para me agarrar, um jogador da Caro­lina do Sul colocava-se entre nós e o atingia na altura do joelho. Era como se eu estivesse correndo dentro de uma colunata viva. Naquele dia maravilhoso, eu me sentia o rapaz mais rápido, mais doce, mais elegante que já respirara o ar puro de Clemson. Quando atingi a linha de 30 jardas, mais rápido do que jamais pensara ser possível, não havia um único adversário em pé sobre o campo. Ao atravessar a linha do gol, caí de joelhos e agradeci a Deus, que me fez tão veloz, pelo privilé­gio de sentir a bondade do mundo por um glorioso e inigualável dia de minha jovem vida.

Depois, George Lanier fez o ponto extra, detivemos o avanço do Clemson na linha de 23 jardas e afinal o apito soou. Então, pen­sei que seria morto pela investida dos torcedores da Carolina do Sul sobre o campo. Um fotógrafo registrou o momento exato em que Sallie, furando o bloqueio da multidão, pulou em meus braços e me beijou na boca. Essa foto apareceu na primeira página das seções de esporte de todos os jornais na manhã seguinte, até em Pelzer.

A meia-noite, entramos no restaurante Yesterday's, em Five Points, onde meus pais nos levaram para jantar. Senti-me diminuído quando aquele dia maravilhoso terminou.

Na semana seguinte, apareceram colantes de pára-brisas em toda a extensão da Carolina do Sul, dizendo: "Chute para Wingo, Clemson." No domingo seguinte, Herman Weems, do jornal Caroli­na State, escreveu uma coluna a meu respeito, chamando-me de atleta-bolsista e de maior arma secreta da história do futebol da Ca­rolina do Sul. "Ele não é um jogador de futebol tão incrível - era uma citação do treinador Bass -, mas será difícil convencer alguém de Clemson desse fato."

No último parágrafo, Herman dizia que eu namorava a moça de melhor aproveitamento escolar da turma e que, além disso, era bo­nita como uma pintura. Essa foi a parte favorita de Sallie em todo o artigo.

Algumas semanas mais tarde, fui procurado por um contin­gente de SAEs, incluindo Bo Gailliard, que me perguntaram se estaria interessado em tomar parte da irmandade. Declinei edu­cadamente, do mesmo modo como recusei os convites de outras sete irmandades no mesmo ano. Nunca a palavra não teve uma beleza tão etérea para mim. As Tri Deltas enviaram um grupo composto pelas moças mais bonitas e benquistas do campus para convidar Sallie. Numa frase que adorei, ela lhes disse que pode­riam puxar seu saco à vontade.

 

EU jamais teria outro dia de tão completa transfiguração. Joguei um bom futebol durante o restante de minha carreira na universidade e aprendi que a natureza é extremamente parcimoniosa na distribuição do ouro. Se fosse muito mais talentoso, eu teria vivido outros dias como aquele. No ponto mais baixo de minha história na faculdade, eu encontrara a mulher que amaria pelo resto da vida; no mais alto, esca­lara as alturas de meu talento como atleta e, por um único dia, soubera o que é ser famoso. A fama não me pareceu grande coisa; e isso me surpreendeu.

Após a formatura, Sallie e eu nos casamos em Pelzer, tendo Luke como meu padrinho e Savannah como dama de honra. Fizemos nossa lua-de-mel na ilha Melrose, na pequena casa que Luke construíra para si nos 8.000 metros quadrados que meu pai lhe dera em um ponto próximo à ponte. Savannah passou uma semana com meus pais e Luke ficou no barco enquanto eu mostrava a Sallie o que sabia sobre a vida nas terras baixas.

À noite, quando me deitava em seus braços, Sallie murmurava:

- Depois que eu terminar o curso de medicina, vamos fazer belos bebês, Tom. Nosso trabalho agora é desfrutar.

Naquele longo verão, repetimos o capítulo mais delicado da his­tória do mundo nos braços um do outro. Com imensa ternura, desco­brimos os segredos e mistérios que nossos corpos haviam timidamente escondido. Fazíamos amor como se estivéssemos escre­vendo um longo poema com línguas de fogo.

Após a lua-de-mel, trabalhei como ajudante no barco de Luke. Sallie e eu acordávamos antes do nascer do sol e o encontrávamos no cais dos camarões. Luke seguia o barco de meu pai e eu me assegura­va de que as portas de madeira se abrissem com cuidado para não emaranhar as cordas. Quando o porão se enchia de camarões cober­tos de gelo, eu limpava o convés enquanto Luke dirigia o Miss Savannah de volta à cidade. Recebendo 20 centavos por cada quilo de camarão que colocávamos nas balanças, eu tinha dinheiro no banco quando me iniciei como professor e treinador na Escola Se­cundária de Colleton.

No fim de agosto, o Saturday Review publicou o primeiro poema de Savannah em um número especial que apresentava jovens poetas. A revista chegou no mesmo dia em que Luke recebeu pelo correio a notificação de que sua categoria no recrutamento fora modificada para 1-A. Savannah escrevera um poema contra a guerra no exato momento em que esta se abatia sobre nossa família. Em nossa casa, na noite seguinte, Luke perguntou:

O que vocês acham desse negócio do Vietnã?

Sallie me obrigou a abandonar o Corpo de Treinamento dos Oficiais da Reserva assim que a guerra começou a esquentar - respon­di, entregando-lhe uma xícara de café preto.

Maridos mortos são péssimos pais - acrescentou Savannah. - Tom não tem o que fazer lá.

Eles não vão me deixar fora - continuou Luke. - Liguei ontem para Knox Dobbins, no conselho de recrutamento, e soube que não vão adiar a ida dos camaroneiros. Ele disse que, de qualquer modo, há camaroneiros demais aqui.

Então ele descobriu a maneira segura de diminuir a quantida­de de pescadores no rio - disse eu, irritado.

Vão recrutar você também, Tom? - perguntou Luke.

Não, não recrutam professores na zona rural da Carolina do Sul. Simplesmente nos tratam como escravos e esperam que nunca procuremos empregos de verdade.

Você conheceu alguém do Vietnã?

Conheci um sujeito que dirigia um restaurante chinês em Columbia.

Ele era chinês, Tom - informou Sallie. - Não é a mesma coisa.

Para mim, é a mesma coisa.

Mamãe diz que devo ir porque amamos os Estados Unidos - prosseguiu Luke.

E o que isso tem a ver com fazer qualquer coisa?

Eu respondi que não amo o país. Disse que amo Colleton. Por mim, os vietnamitas podem ficar com o restante. O pior de tudo é que vou ter de vender o barco.

Não, Tom pode resolver isso para você, Luke - propôs Sallie. - Assim que a escola entrar em férias no próximo verão, ele cuidará da pesca, pelo menos para continuar pagando as prestações.

Tom foi para a faculdade justamente para não ser pescador de camarões, Sallie - replicou meu irmão.

Não. Eu fui para a faculdade para ter condições de decidir se seria pescador ou não. Eu queria ter uma opção, Luke, e considero uma honra manter o barco funcionando até sua volta.

Eu apreciaria muito isso, Tom. Gostaria de saber que ele está aqui esperando por mim.

Não vá, Luke - aconselhou Sallie. - Diga que se recusa a tomar parte nessa guerra. Arranje qualquer pretexto.

Eles me poriam na cadeia, Sallie. Prefiro morrer a ir para a cadeia.

 

Enquanto nosso dia-a-dia em Colleton começava a se desdobrar nos fragmentos sonolentos da vida de professor sulista, Luke foi dali retirado para representar seu pequeno papel na única guerra com que o país brindou nossa geração. Ao mesmo tempo em que eu ensinava e treinava o time de futebol no campo onde Luke e eu fôramos capitães, Savannah participava de manifestações contra a guerra na Costa Leste, e Luke patrulhava os rios do Vietnã depois de ter sido convocado para a divisão mais secreta e elitista da Mari­nha, o SEAL.[2] Pelo jeito, a Marinha não estava a fim de desperdiçar o talento dos jovens mais fortes e inteligentes que tinham se apre­sentado naquela temporada nauseante de auto-investigação ame­ricana. Enquanto eu mandava os meninos treinarem bloqueios no campo, e Savannah escrevia poemas que entrariam em seu primei­ro livro, Luke aprendia a fazer demolição subaquática, saltar de pára-quedas de aviões em vôo baixo, lutar na guerra antiguerrilha e matar silenciosamente quando operasse por detrás das linhas inimigas. Havia uma inquietante oposição entre as vidas que levá­vamos, uma harmonia complexa que se realizaria quando o mun­do girasse fora de controle e as estrelas se alinhassem em formas fabulosas, sensuais, e conspirassem para levar minha família até a calmaria de nosso rio sem águas e nos cortasse em pedaços para servir de isca.

SEAL, (escreveu Savannah em uma carta para mim quando soube a respeito da divisão da Marinha a que Luke se incorporara.)

Um mau presságio, Tom, um péssimo presságio e muito peri­goso na mitologia da família Wingo. Você se recorda de quando me escreveu a respeito do jogo contra Clemson, aquele em que você marcou os únicos dois pontos de sua carreira universitária? Havia uma palavra mágica funcionando para você naquela oca­sião. Essa palavra era tigre. Você estava jogando contra os Clemson Tigers. A palavra "tigre" sempre foi um símbolo de sorte para nós. Você se lembra do que aconteceu àquela foca no circo? Lembra-se do que os tigres fazem às focas? Acho que Luke está entrando como foca num país de tigres, e isso me apavora, Tom. Poetas encaram as palavras como sinais e símbolos. Perdoe-me, mas não acredito que Luke sobreviva a essa guerra.

Acompanhei a guerra pelas cartas que Luke me escrevia, ende­reçadas ao escritório do treinador na Escola Secundária de Colleton. Ele escrevia outras cartas para meus pais, avós e Savannah - cartas alegres, cheias de mentiras bonitas. Nelas, falava dos crepúsculos sobre o mar do sul da China, das refeições que comera em Saigon, dos animais que avis­tava nas margens das florestas e das brincadeiras que ouvia dos amigos. Nas cartas que me escrevia, parecia um homem prestes a se afogar. Rela­tava operações militares para explodir pontes no Vietnã do Norte, ata­ques noturnos às posições inimigas, missões de salvamento para libertar americanos capturados e emboscadas nas trilhas por onde pas­savam os suprimentos. Certa vez, depois de nadar mais de 6 quilôme­tros subindo um rio, ele cortara a garganta de um chefe de aldeia que se associara aos vietcongues. Fora o único sobrevivente de um destaca­mento que tentara tomar de surpresa uma coluna do exército regular norte-vietnamita que fugia. Seu melhor amigo morrera em seus braços depois de pisar numa mina de solo. Foi Luke, e não a mina que o matou. O amigo lhe implorara por uma injeção de morfina, dizendo que prefe­ria morrer a viver como um vegetal, sem pernas ou bolas. Teria morrido de qualquer modo, mas sua morte foi mais rápida porque meu irmão o amava. "Eu não sonho mais à noite, Tom", ele me escreveu. "É quando acordo, quando tenho os olhos bem abertos, que convivo com o pesade­lo. Há apenas uma coisa errada quando se matam pessoas. Vai ficando cada vez mais fácil. Isso não é terrível?"

Sempre que matava alguém, Luke me contava tudo, numa prosa sem emoção, e me pedia para acender uma vela pelo repouso da alma do homem quando eu passasse pela catedral de Savannah. Tínhamos sido batizados ali e esse era o lugar favorito de meu irmão para rezar. Antes de Luke voltar para casa, acendi 35 velas aos pés da imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e recitei a oração pelos mortos em meio a uma aura de luz trêmula, para aquele pelotão de homens desconhecidos. Para o restante da família, ele manteve a ficção de que não participava de nenhum tipo de ação. As cartas para meus pais pareciam de um agente de viagens tentando seduzir turistas relutantes para um passeio a algum lugar exótico do Oriente. Colhendo orquí­deas na floresta, Luke colocou-as entre as páginas da Bíblia que meu avô lhe dera como presente de despedida e a enviou como presente de Natal para minha mãe. Ao chegar a seu destino, a Bíblia cheirava como um jardim, e as orquídeas secas, como cabeças de dragões tímidos, apareciam a intervalos de cem páginas. Minha mãe chorou pelo pri­meiro Natal que Luke passava fora da ilha.

Flores mortas - comentou meu pai. - Luke ficou mesmo pão-duro lá no Vietnã.

Meu doce menino - murmurou minha mãe em meio aos solu­ços. - Graças a Deus, ele não está em perigo.

 

Em Colleton, eu entrara na rotina metódica de professor. Ensinava literatura e composição durante cinco horas por dia, treinando os alu­nos na arquitetura traiçoeira da gramática inglesa e forçando-os a marchar pelos atalhos emaranhados de Silas Marner e Júlio César. Em meu primeiro ano na escola, como castigo por ter-me formado em inglês, o diretor me designou a turma do segundo ano. Esses alunos, inundados de hormônios e cercados pelas modificações ainda in­compreensíveis em seus corpos, sentavam-se embasbacados, a boca aberta, ouvindo eu explicar os prazeres da voz ativa, os perigos da gra­mática ou a perfídia de Cássio. Como conferencista, usei exageradamente palavras como perfídia, naquele primeiro ano inseguro. Eu possuía mais coisas em comum com um dicionário de sinônimos do que com o ensino, e os alunos sofreram com minha inépcia.

Na hora do almoço, eu comia na sala dos professores, ao mesmo tempo em que corrigia os péssimos trabalhos de meus alunos, que eram bastante talentosos para destruir todos os vestígios de beleza e elegância da língua inglesa. Depois das aulas, vestia o uniforme, pren­dia o apito em torno do pescoço e treinava o time do segundo ano até as seis da tarde. Às sete horas, eu estava em casa, preparando o jantar. Sallie chegava mais tarde, exausta pela longa viagem, pois estudava em Charleston. Alugávamos uma pequena casa a um quarteirão da resi­dência de meus avós. Luke queria que morássemos em sua casa na ilha, mas Sallie avaliara corretamente a personalidade de minha mãe e decidira que Melrose deveria ser dirigida por uma única mulher. Nos­sa casa ficava próxima de um riacho onde se podia nadar com a maré cheia. Pela manhã, eu colocava uma armadilha para caranguejos antes de sair para o trabalho.

Fui a um baiünho depois de um jogo na mesma noite em que minha irmã esteve numa manifestação contra a guerra no Central Park e meu irmão ajudou a minar os acessos a um rio no Vietnã do Norte.

Durante os feriados de Páscoa, meu pai e eu colocamos o Miss Savannah sobre os suportes da doca seca e o retiramos da água. Esfre­gamos o fundo para tirar as cracas e a tinta, depois passamos uma nova camada de pintura sobre a madeira que começava a estragar. Arrumei as redes que utilizaria no verão e trabalhamos no motor até que este ronronasse como um gato. Então conduzimos o barco até o canal para uma viagem de teste.

Naquele verão, saí para o rio como capitão de barco pela primeira vez na vida, um novato naquela irmandade rija e forjada pelo sol.

O Miss Savannah estava amarrado próximo à embarcação de meu pai e eu tinha de atravessar seu convés para chegar até ele.

Bom dia, capitão - dizia meu pai.

Bom dia, capitão.

Aposto uma cerveja como porei mais camarões nas balanças que você.

Odeio roubar cerveja de um velho.

Aquilo é barco demais para você, capitão - retrucava meu pai, olhando para o Miss Savannah.

Pelas manhãs, eu repetia os rituais inconscientes da infância, quando via meu pai conversar sem cessar sobre os planos que tinha para fazer um milhão de dólares, enquanto movia o barco com a in­tenção de interceptar os cardumes de camarões que floresciam nas baías. Só que, agora, era eu quem estava atrás da roda do leme - mo­vendo a embarcação pelos canais que conhecia como a palma da mão, interpretando as informações dos marcadores que lampejavam por 1.500 quilômetros ao longo dos canais interiores, e mantendo o olho nervoso no marcador de profundidade sempre que pescava em águas que me eram pouco familiares. Na verdade, eu seguia o barco de meu pai, e pescávamos lado a lado.

Ao nascer do sol, depois de concordar a respeito de nossas posi­ções, reduzíamos a potência do motor e ouvíamos a música do guincho quando Ike Brown, o ajudante que eu contratara, preparava o lançamento das redes. Quando as redes se abriam sob a água, eu sentia que quase faziam o barco estacar por completo. Então, ajustava os controles para a velocidade apropriada para o arrasto.

No primeiro verão, pesquei 13.500 quilos de camarão, paguei um bom salário a Ike, outro ainda melhor a mim mesmo e liquidei todos os pagamentos do barco de meu irmão. Quando tive de iniciar os trei­namentos de verão, no dia 20 de agosto, já havia preparado Ike para ser capitão de barco. Ele trouxe para bordo seu filho, Irvin, como aju­dante. Mais tarde, quando voltou do exterior, Luke foi fiador de Ike quando este comprou seu próprio barco e o batizou como Mister

Luke. Em se tratando de dar nome aos barcos, havia sempre um senti­do de honra em jogo.

Naquele mês de agosto, quando voltei a ser treinador de futebol, Savannah já fizera a primeira leitura pública de seus poemas e Luke estava para pôr um fim em sua carreira militar - voltando ao rio ao qual pertencia. De maneira invisível, todas as redes colocavam-se em seus lugares ao longo dos silenciosos canais que rodeavam a família dos camaroneiros.

 

Era noite no mar do sul da China. Os aviões retornavam ao porta-aviões depois de várias incursões ao Vietnã do Norte, quando o centro de controle de rádio recebeu uma mensagem urgente de um piloto que estava fazendo um pouso de emergência numa plantação de arroz a menos de 1,5 quilômetro do mar. O piloto deu as coordenadas exa­tas de sua posição antes de perder o contato. Houve uma rápida as­sembléia na ponte do porta-aviões e decidiu-se enviar uma equipe até a praia para tentar o salvamento do piloto.

O tenente J. G. Christopher Blackstock, escolhido para liderar a missão, ao ser solicitado pelo comandante para escolher os outros membros da equipe, disse apenas uma palavra: "Wingo."

Após o anoitecer, foram colocados no mar, dentro de um bar­co salva-vidas negro. Remaram sob o clarão da lua cheia por 3 mi­lhas de mar agitado até a praia. A lua podia significar azar, mas chegaram sem incidentes, esconderam o barco sob um coqueiral, verificaram suas posições e, em seguida, iniciaram seu caminho para o interior.

Demoraram uma hora para descobrir o avião, que estava afunda­do no centro de um arrozal que espelhava a lua em milhares de pisci­nas de água fresca. Mais tarde, Luke me contaria que um campo de arroz formava o mais lindo casamento entre a água e a plantação que ele já vira.

O campo de arroz inspirou-lhes admiração e sensação de perigo enquanto se arrastavam ao longo de um dos sulcos que o dividiam em trêmulas piscinas simétricas. O jato perdera uma asa e jazia reluzente, caído de lado, com o arroz alto chegando até a fuselagem. A plantação se movia com o vento e lembrou a Luke os pântanos salgados da Caro­lina, embora o cheiro fosse mais delicado e sensual.

Aquilo era arroz de verdade, Tom. Não aquela merda de Uncle Ben. Havia fazendeiros muito bons dormindo naquela parte do mundo.

Você pensou que o piloto poderia estar vivo? - perguntei.

Não depois que vimos o avião.

Por que vocês não deram meia-volta e retornaram ao barco? Um ano mais tarde, quando estava de volta a Colleton, Luke riu.

Nós éramos SEALs, Tom.

Tolos - disse eu.

Blackstock foi o melhor soldado que encontrei em minha vida. Eu teria rastejado até Hanói se ele pedisse.

Quando chegaram ao avião abatido, Blackstock fez um gesto, pedindo que Luke o cobrisse. Então, subiu pela asa intacta e olhou para dentro da cabine do piloto. Ao perceber um movimento numa linha de árvores a 400 metros de distância, Blackstock mer­gulhou na terra inundada enquanto a primeira salva de artilharia dos AK-47 despedaçava a fuselagem do avião. Luke viu cinco sol­dados norte-vietnamitas correrem em sua direção, abaixados em meio aos altos feixes de arroz. Esperou que o vento vergasse nova­mente o arroz e, quando isso aconteceu, apontou a submetralhadora, atirou, e os cinco caíram pesadamente no arrozal. A partir daí, foi como se todo o Vietnã do Norte se levantasse para desafiar o retorno deles ao mar.

Os dois se lançaram por uma barragem sob o fogo dos morteiros que fazia em pedaços o avião danificado. Correram para o sul, ao lon­go de uma faixa de terra sólida, ao mesmo tempo em que ouviam ordens em vietnamita sendo gritadas na escuridão. Tentaram abrir o máximo de distância entre eles e o avião, antes de se voltarem e raste­jarem ao longo de um daqueles sulcos retos e vulneráveis que divi­diam o arrozal em desenhos congruentes. Ouviram os soldados caminhando em direção ao lugar de onde haviam saído, concentran­do seu poder de fogo. Uma granada de mão explodiu a 100 metros de distância.

Eles são apenas uns cem - sussurrou Blackstock ao ouvido de Luke.

Por um momento, pensei que estivéssemos em desvantagem - respondeu meu irmão.

Esses filhos-da-mãe não sabem que somos SEALs.

Isso não parece incomodá-los muito, senhor.

Vamos correr até as árvores. Eles terão de nos descobrir na es­curidão - concluiu Blackstock.

Mas, enquanto se arrastavam para as sombras indistintas da flo­resta, os norte-vietnamitas já haviam cercado a área em torno do avião, percebendo que os americanos tinham escapado da embosca­da. Luke escutou passos de homens correndo e sons de pés chapinhando pelo arrozal. Entretanto, o campo de arroz era vasto e suas divisões de água e longas pontes de terra que se cruzavam tornavam impossível a busca disciplinada. Quando um esquadrão inimigo saiu correndo da escuridão, movendo-se impetuosa e descuidadamente, Luke e Blackstock rolaram por instinto para lados opostos do quadra­do cheio de água e, deitados submersos, esperaram até que os homens vestidos de preto estivessem quase em cima deles. Mataram sete no espaço de três segundos, e depois saíram em disparada pela plantação, com as balas debulhando o arroz atrás de si. Alcançando a fileira de árvores, Blackstock procurou cobertura na floresta. Luke ouviu a res­posta solitária de um AK-47 vindo das árvores. Percebeu que Blackstock atirava com sua submetralhadora em direção ao ponto de onde tinham vindo os tiros e logo depois vi-o cair. Então saiu de onde estava, espalhando tiros em todas as direções. Agachou-se e atirou até a munição acabar. Agarrou a arma de Blackstock e continuou a atirar. Quando já havia esvaziado a submetralhadora, começou a arremessar granadas à esquerda e à direita. Aquilo era inútil, ele concordou mais tarde, mas servia para que o inimigo tivesse alguma coisa com que se ocupar.

Sem armas, Luke levantou o corpo de Blackstock, colocou-o no ombro e partiu em direção ao Pacífico, perseguido por um grande contingente de forças inimigas. Uma vez na floresta, redobrou sua atenção. Sempre que ouvia seus perseguidores, simplesmente para­va onde estivesse até deixar de ouvi-los. Encarava aquela retirada como uma longa caçada na qual usou o conhecimento que adquirira no contato de uma vida inteira com o veado de cauda branca. O movimento podia causar a morte ou o salvamento do veado, depen­dendo da sabedoria da escolha que o animal fizesse quando o cheiro dos caçadores atingisse a floresta. Durante uma hora, Luke escon­deu-se sob as raízes de uma árvore derrubada que produzia uma fruta estranha que ele nunca vira. Escutou vozes, passos e tiros de rifle próximos e muito distantes. Mais uma vez, levantou Blackstock nos ombros e o carregou em direção ao ruído das ondas que se quebravam na praia. Levou três horas para caminhar 800 metros. Mas não entrou em pânico. Atento ao que ocorria em torno de si mesmo assegurou-se de que, ao se mover, não houvesse ninguém por perto para ouvir seus passos. Estava na terra do inimigo, pensava, e esse tinha enorme vantagem por causa da familiaridade com o terreno. Por sorte a região não era muito diferente da zona costeira da Caro­lina do Sul, sobre a qual aprendera algumas coisinhas quando crian­ça. Além disso, estava escuro e ninguém poderia seguir um rastro na escuridão.

Às quatro horas da manhã, Luke alcançou as margens do Pací­fico. Viu uma patrulha passar, dirigindo-se para o norte, com os rifles travados e carregados. Esperou que se distanciassem algumas centenas de metros antes de seguir em linha reta para o oceano, sem olhar à esquerda ou à direita. Sabia que, se alguém visse sua caminhada arrojada para a água, seria um homem morto. Mas, se esperasse pela luz do dia, não teria nenhuma chance. Assim, pouco depois atirou Blackstock sobre uma onda, mergulhando em segui­da sob ela. Levou 15 minutos para passar a arrebentação e entrar em mar aberto. Ali, percebeu que, finalmente, estava em seu ele­mento; não havia ninguém no Vietnã do Norte capaz de pegá-lo na água salgada.

Em mar aberto, conferiu as estrelas e tentou se localizar. Nadou 4.500 metros, rebocando o tenente J. G. Christopher Blackstock em suas costas. Foi encontrado por uma patrulha americana às onze da manhã, depois de ficar na água durante seis horas e meia.

Luke foi chamado perante o almirante da frota do Pacífico para prestar contas. Relatou que o piloto não estava nos destroços do avião e que o tenente Blackstock confirmara isso visualmente. Não sabiam se o piloto fora morto, capturado ou se saltara de pára-quedas antes da queda do avião. Em seguida, haviam encontrado forte resistência inimiga e foram envolvidos num tiroteio a caminho da praia. O te­nente Blackstock fora morto por tiros de rifle. Luke obedecera às or­dens e retornara à base.

Marinheiro - perguntou o almirante -, por que você trouxe o corpo do tenente Blackstock se sabia que estava morto?

Nós aprendemos isso durante o treinamento, almirante - disse Luke.

Aprenderam o quê?

Que os SEALs não abandonam seus mortos.

 

Quando Luke voltou a Colleton, ao fim de seu tempo de serviço, nós nos sentamos na mesma ponte de madeira onde havíamos come­morado a formatura da escola secundária. Luke ganhara uma estrela de prata e duas de bronze.

Você aprendeu a odiar os norte-vietnamitas, Luke? - pergun­tei, enquanto lhe passava a garrafa de Wild Turkey. - Você odiava os vietcongues?

Não. Eu os admirava. Eles são bons fazendeiros e bons pesca­dores também.

Mas mataram seus amigos. Mataram Blackstock.

Quando entrei no campo de arroz, Tom, imaginei ser o primei­ro homem branco a pisar ali. Eu estava armado com uma submetra­lhadora. Eles estavam certos ao tentar me matar. Eu não tinha nada que fazer lá.

Então por que você estava lutando?

Apenas porque vivo num país onde colocam na cadeia quem disser que não vai lutar. Eu estava ganhando meu direito de voltar a Colleton. E nunca mais vou sair da ilha. Adquiri o direito de ficar aqui para o resto da vida. - Nós temos sorte nos Estados Unidos. Pelo menos não precisamos nos preocupar com guerras em nosso próprio solo.

Não sei, Tom. O mundo é um lugar muito fodido.

Nunca acontece nada em Colleton.

Por isso gosto de Colleton. É como se o mundo inteiro esti­vesse acontecendo pela primeira vez. É como se a gente tivesse nasci­do no Éden.

 

Embora o casamento de meus pais pudesse servir como roteiro so­bre a arte do casamento errado, eu pensava que a simples força do hábito o tivesse tornado indestrutível. Adulto, começando a criar mi­nhas filhas, parei de perceber a erosão constante de qualquer tipo de respeito que minha mãe houvesse sentido por meu pai. Com os filhos já crescidos, ela voltou suas formidáveis energias para projetos fora de casa. Crescendo, nós havíamos cometido o crime de ocultar as carac­terísticas pelas quais minha mãe se definia; também lhe fornecemos a alforria da estreiteza daquela autodefinição imperfeita. Minha mãe esperara a vida inteira pelo momento oportuno em que seus desejos de poder e intriga seriam testados no recanto de uma cidade pequena. Quando sua vez se aproximou, ela não ficou esperando. Apenas com sua beleza, Lila Wingo poderia ter perturbado os sonhos licenciosos de todos os parentes; mas, com sua beleza e astúcia, poderia ter inspi­rado anarquistas e regicidas, que lhe trariam as cabeças de uma dúzia de reis, adornadas com salsa e rosas, sobre travessas Wedgewood de colorido azul-pálido.

Mais tarde, iríamos especular se mamãe planejara durante anos sua espetacular ruptura com o passado ou se agira com espírito libe­ral, agarrando a oportunidade conforme os acontecimentos se desdo­bravam ao seu redor. Por longo tempo, suspeitamos de que ela fosse uma mulher brilhante; Savannah foi a única a não se surpreender quando ela provou ser descarada e inescrupulosa. Minha mãe jamais se desculpou ou se explicou. Fez o que nascera para fazer e nunca foi uma pessoa que se deixasse levar por súbitos ataques de honestidade ou introspecção. Possuindo um impressionante domínio da tática, mostrou ser a terrorista da beleza, rainha do auto-de-fé mais cruel e, nesse processo, engoliu Henry Wingo vivo. Mas o preço que pagou foi elevado.

Na hora de seu maior triunfo, quando todas as honras, glórias e riquezas lhe haviam finalmente chegado, quando ela provara a todos que seu valor e importância tinham sido subestimados, meu pai foi para a cadeia, num último gesto que visava à sua admiração, enquanto levavam para ela a cabeça de seu filho mais velho sobre uma travessa. Seria o destino de minha mãe conhecer o pó, e não o sabor, das preces atendidas.

 

Certo dia, em 1971, eu pescava com Luke na parte oceânica de Coosaw Flats quando chegou o chamado de minha mãe.

Capitão Wingo, capitão Luke Wingo. Responda, capitão. Câm­bio - disse ela.

Alô, mãe. Câmbio - respondeu ele.

Diga a Tom que ele está para se tornar pai. Parabéns. Câmbio.

Já estou indo, mãe. Câmbio - gritei ao microfone.

Isso também significa que estou para me tornar avó. Câmbio - respondeu ela.

Parabéns, vovó. Câmbio.

Não acho nada divertido, filho. Câmbio.

Parabéns, Tom - repetiram outros dez capitães de barcos en­quanto eu lutava para reunir as redes e Luke voltava o barco em dire­ção a Colleton.

Quando passamos pelo hospital, que ficava à beira do rio, ao sul da cidade, Luke pilotou o barco até a margem e eu mergulhei na água. Nadei até a beirada, subi o barranco com dificuldade e corri para a maternidade, respingando água do mar pelo caminho. Uma enfer­meira me deu uma toalha e um roupão de banho do hospital. Depois, segurei a mão de Sallie até o dr. Keyserling dizer que já estava na hora de a levarem para a sala de parto.

Somente às onze e vinte cinco da noite Jennifer Lynn Wingo nas­ceu, pesando 3,260 quilos. Os pescadores do rio enviaram flores, e todos os professores da escola vieram ver a criança. Na manhã seguin­te, meu avô levou-lhe uma Bíblia de presente e preencheu a árvore genealógica na metade do livro.

Na mesma ala em que estava Sallie, minha mãe encontrou Isabel Newbury, doente e assustada, que se internara para fazer exames, após ter evacuado sangue. A sra. Newbury estava apavorada e sem conse­guir comer a comida do hospital. Assim, minha mãe levava-lhe refei­ções sempre que visitava Sallie e o bebê. Somente ao ser transferida para Charleston confirmou-se o diagnóstico preliminar de câncer in­testinal. Foi minha mãe quem a acompanhou durante os testes e quem a consolou durante a terrível provação da cirurgia. Entre mi­nhas três filhas, mamãe sempre preferiu Jennifer, não por ser a pri­meira, mas porque seu nascimento conduziu-a diretamente à grande e fortuita amizade com Isabel Newbury.

 

Ninguém sabia ao certo em que momento os bandos silenciosos de agrimensores, com suas trenas e teodolitos, invadiram o município para o longo estudo de suas dimensões e limites. Entretanto, a maioria dizia que fora no mesmo verão em que meu avô tivera a carta de mo­torista suspensa pelo Departamento de Trânsito. Amos sempre fora um motorista ruim, mesmo quando jovem. Mas, ao envelhecer e ter as habilidades diminuídas, tornou-se uma ameaça para todo ser vivo que pisasse uma superfície asfaltada do município. Em razão de uma vaidade incomum, ele se recusava a usar óculos e achava injusto ser considerado responsável por atravessar sinais vermelhos que não en­xergava.

Eles ficam muito no alto - explicava a respeito dos semáforos. - Nunca olho para os pássaros quando estou dirigindo. Tenho os olhos no caminho e a mente no Senhor.

Você quase atropelou o sr. Fruit na semana passada - repliquei. - Ele teve de saltar fora do caminho para não ser atropelado.

Não vi nenhum sr. Fruit. Em todo caso, ele nunca serviu para dirigir o tráfego. Só devia haver homens gordos fazendo esse serviço. O sr. Fruit deve se especializar, agora que está ficando velho, e dedicar-se apenas a liderar desfiles.

O guarda Sasser disse que pegou você na estrada para Charleston dirigindo na pista errada, vovô.

Sasser! - encolerizou-se meu avô. - Eu já dirigia automóveis a gasolina antes que ele nascesse. Eu lhe disse que estava à procura de um campo cheio de pássaros pretos e que estava contemplando o mundo que Deus colocara ali para que o homem apreciasse. Além disso, não vinha ninguém por aquele lado da estrada. Então, por que tanta confusão?

Eu devia criar coragem e colocá-lo num asilo - opinou minha avó. - Ele ainda vai matar alguém com esse automóvel, Tom.

Tenho o corpo de um homem com a metade de minha idade - retrucou o velho, magoado.

Estamos falando sobre matéria cinzenta, Amos. Até parece que estou vivendo com Matusalém, Tom. Pela manhã, ele não lem­bra onde deixou a dentadura à noite. Outro dia, eu a encontrei na geladeira.

Bom, querem que você devolva sua carta voluntariamente, vovô - informei.

Está começando a haver muito controle em Colleton - res­mungou ele. - Nunca ouvi falar de uma coisa dessas.

Você vai me dar a carta, vovô? Se não for assim, o guarda Sasser virá até aqui para pegá-la.

Vou pensar nisso. Vou discutir com o Senhor.

Está vendo, Tom? - disse Tolitha. - Serei obrigada a colocá-lo num asilo.

Após uma longa discussão sobre o assunto, para o assombro de todos, Jesus permitiu que meu avô mantivesse a carta de motorista, com a condição de que usasse óculos. Para Amos, o Senhor era tudo: controlador de tráfego, mediador e oculista.

Dois dias mais tarde, Amos atropelou o sr. Fruit na mesma esqui­na. Usando os óculos, ele se voltara para observar a equipe de agrimensores que media os limites da propriedade adjacente às ruas Baitery e das Marés. Sem ver o sinal vermelho nem ouvir o toque fre­nético do apito do sr. Fruit, só pisou no freio quando o homem se estatelou sobre o capô de seu Ford 1950.0 sr. Fruit teve apenas alguns ferimentos leves, mas a Patrulha do Estado já não se divertia com as travessuras do velho atrás da direção de um automóvel.

O guarda Sasser confiscou-lhe de imediato a carta de motorista e a cortou em pedaços com a tesoura de um pequeno canivete suíço.

Eu já dirigia antes de você nascer, jovem Sasser - reclamou meu avô.

E eu quero viver o suficiente para ser um velho, assim como o senhor - replicou Sasser. - Mas não vai sobrar ninguém na cidade se eu não tirá-lo das ruas. Encare os fatos, sr. Wingo. O senhor está fraco e é uma ameaça para a sociedade.

Fraco! - exclamou meu avô, indignado, enquanto o sr. Fruit gemia de pavor e a equipe da ambulância partia, com a sirene ligada.

Estou lhe fazendo um favor, sr. Wingo - continuou Sasser -, e protegendo o bem-estar público.

Fraco uma ova! Vamos fazer uma queda-de-braço e ver quem é o fraco. A cidade toda vai poder julgar.

Não, senhor - disse Sasser. - Vou ao hospital para me assegurar de que o sr. Fruit esteja bem.

Minha mãe se dirigia à Long's Pharmacy, onde iria aviar uma receita para Isabel Newbury, quando notou a discussão entre meu avô e o guarda. Assim que escutara os gritos do sr. Fruit e o guinchar do Ford de Amos ao parar, ela entrara rapidamente na loja Woolworth's. Não gostava de ser testemunha quando um Wingo fazia papel de idiota em público. Mais tarde, descobrimos que ela fora a única pessoa na rua das Marés a saber, naquele dia, que havia equipes de agrimensores em toda a extensão do município de Colleton.

Na semana seguinte, Amos escreveu uma carta para a Gazeta de Colleton, queixando-se do tratamento arrogante que recebera do guarda, de seu ultraje ao ter a carta de motorista destruída publica­mente por um canivete suíço e falando de sua intenção de provar a Sasser e a Colleton que não era "fraco". Anunciou que iria esquiar ao longo dos 65 quilômetros de canal interior que se localizava entre Savannah e Colleton e desafiou o "rapazola" Sasser a esquiar a seu lado. Se completasse a jornada, exigiria um pedido público de descul­pas do Departamento de Trânsito e o imediato restabelecimento de sua carta de motorista.

Minha avó prontamente começou a pesquisar a respeito da dis­ponibilidade de vagas nos asilos em todo o estado. Mas Luke e eu aproveitamos o fim de semana para colocar a baleeira em condições de fazer a viagem. Meu avô era um homem simples cujas opiniões gloriosas o impediam de ser considerado um chato. Ele trouxera o primeiro par de esquis aquáticos para o município e, aos 50 anos, fora o primeiro homem da Carolina do Sul a esquiar sem esquis. Durante dez anos, manteve o recorde de salto em esquis, até que um campeão viesse de Cypress Gardens, na Flórida, para o festival aquático. Entre­tanto, quando lançou sua proclamação pelo jornal, fazia dez anos que não esquiava.

Você vai colocar rodas neles, vovô? - zombou Luke enquanto guardávamos um par de esquis novos em folha dentro do barco, antes de rebocá-lo até Savannah.

Foi isso que levou o pessoal a pensar que estou enfraque­cendo - lamentou-se Amos. - Eu não devia ter posto aquela roda na cruz.

Posso levá-lo a qualquer lugar que você queira, Amos — inter­veio minha avó. - Não há necessidade de provar ao mundo inteiro que é um idiota. Todos sabem que você não dirige direito, mas muitos não sabem que tem o miolo mole.

Preciso me concentrar melhor na direção, Tolitha. Sei que co­meto alguns erros atrás do volante, mas estou sempre ocupado, ou­vindo as palavras do Senhor.

O Senhor lhe disse para esquiar de Savannah até aqui?

De onde você acha que tirei essa idéia?

Só estou perguntando, Amos. Tomem conta de seu avô, me­ninos.

Tomaremos, Tolitha - respondi.

Apostei cem pratas em você - disse meu pai, dando um tapi- nha nas costas de vovô.

Sou contra as apostas - retrucou Amos.

Com quem você apostou, pai? - perguntou Luke.

Com o filho-da-puta do Sasser. Ele disse que está esperando no cais com uma nova carta de motorista pronta, pai, porque acha que você só agüentará, no máximo, até Stancil Creek.

Stancil Creek é na fronteira, a mais ou menos 1,5 quilômetro de Savannah - admirou-se Amos.

Você devia ter ido ao dr. Keyserling para fazer um check-up - observou minha avó. Depois, completou: - Ele nunca fez um exame na vida.

Você vai conseguir, Amos - garantiu Sallie. - Eu sinto que você vai conseguir.

Veja este braço, Sallie - falou o velho com orgulho, flexionando o bíceps. - O Senhor não fez os homens Wingo muito espertos, mas certamente os fez fortes e os abençoou com um excelente gosto em matéria de mulheres.

Eu gostaria que Ele tivesse me dado um gosto melhor em maté­ria de homens - provocou Tolitha. - Você está fazendo papel de bobo novamente, Amos. Lila vive envergonhada para sair à rua.

Ela está cuidando de Isabel Newbury - informou meu pai. - Tem sido uma santa desde que Isabel adoeceu. Quase não a vejo mais.

Luke tirou cinco notas de 20 dólares da carteira e as entregou a meu pai.

Pegue essa grana. Aposte com quem quiser como Amos Wingo vai esquiar por todo o percurso, de Savannah até Colleton.

Sua irmã me telefonou de Nova York ontem à noite, meninos - comentou o velho. - Disse que faria um poema para mim se eu conse­guisse.

Você vai parecer um bobo com calção de banho, Amos - disse Tolitha quando entramos no caminhão.

Mas não quando eu tiver a carta de motorista novinha na mão. Aí eu vou me pôr bem elegante e levar você para um longo passeio.

Vou prevenir o sr. Fruit.

 

Esses são os momentos de surpresa e preservação que me prendem para sempre às recordações que trago da vida sulista. Tenho medo do vazio na vida, da vacuidade, do enfado e da falta de esperança de uma vida pobre em acontecimentos. É a morte em vida da classe média, que envia calafrios primitivos através dos nervos e dos poros abertos de minha alma. Se pesco um peixe antes de o sol nascer, eu me associo ao murmúrio do planeta vivo. Se ligo a televisão porque não suporto uma noite a sós com a família ou comigo mesmo, estou admitindo minha ligação com os mortos-vivos. A parte sulista de alguém é a mais requintadamente viva nessa pessoa. Há recordações profundamente sulistas que cercam a estrela-guia da autenticidade de qualquer coisa que eu mostre. Por causa de nossa autenticidade, pertenci a uma família com fatal atração pelo gesto extraordinário. Sempre havia um caráter excessivo em nossa reação a pequenos acontecimentos. A rutilância e o exagero eram a plumagem que se pavoneava sempre que um Wingo se encontrava ofuscado à luz de um mundo hostil. Como família, éramos instintivos, não previden­tes. Nunca éramos mais espertos que os adversários, mas podíamos surpreendê-los com a imaginação usada em nossas reações. Funcio­návamos melhor como grandes conhecedores do risco e do perigo. Não ficávamos verdadeiramente felizes, a não ser que estivéssemos engajados em nossa guerra particular Com o restante do mundo. Até nos poemas de minha irmã sentíamos a tensão do risco que se aproximava. Eles soavam como se fossem feitos de gelo fino e rochas que caíam. Tinham movimento, peso, deslumbramento e arte. E se mo­viam pelas correntes do tempo, selvagens e violentas, como um ve­lho entrando nas águas limítrofes no rio Savannah, planejando esquiar por 65 quilômetros para provar que ainda era um homem.

Está um pouco mais frio do que pensamos, vovô - gritei, en­quanto soltava a corda atrás do barco. - O sol se escondeu e parece que vai chover. Podemos adiar.

O pessoal está esperando no desembarcadouro público - res­pondeu Amos, segurando a barra na ponta da corda.

Tudo bem. A maré está alta, de modo que não precisamos nos preocupar com bancos de areia. Iremos em linha reta sempre que pu­dermos e a velocidade será a máxima deste barco.

Você acha que eu devo usar o esqui durante todo o percurso?

Você vai precisar de dois esquis antes de terminar.

Eu poderia mostrar-lhes um pouco do meu estilo ao terminar.

Não, vovô. E, lembre-se, vou lhe atirar laranjas durante a viagem.

Nunca ouvi falar em se chupar laranjas enquanto se esquia.

Não se trata de um esqui normal - gritei, mais alto que o ruído do motor. - Você vai percorrer 65 quilômetros e precisará de um pou­co de líquido. Mas tome cuidado com as laranjas. Se uma delas atingir sua cabeça, teremos de enterrá-lo no mar.

Parece divertido...

Ouça seu treinador. - Acenei-lhe com os polegares voltados para cima. - Está pronto, velhão?

Não me chame de velhão!

Só se você ainda estiver de pé quando chegarmos a Colleton - repliquei, enquanto ele posicionava os esquis voltados para o alto.

Como você vai me chamar então, Tom?

Vou chamá-lo de velho dos diabos. - Nesse instante, Luke ace­lerou o barco, dirigindo-o para o sul, ao longo da margem, onde uma pequena multidão se reunira, assistindo ao início da viagem. Todos aplaudiram quando Amos se levantou suavemente da água e, deixan­do o sulco formado pela embarcação, voltou-se na direção deles e os cobriu com uma onda ao fazer um deslumbrante giro para retornar rumo ao barco.

Sem truques - alertei, quando ele começou a saltar as bordas do sulco e, mantendo a corda esticada, correu ao longo da água até quase emparelhar com a lancha.

O menino ainda está craque - gritou ele, animado.

Amos não esquiou a sério até darmos a volta em Stancil Creek e entrarmos nas águas da Carolina do Sul. Então posicionou-se bem atrás do barco e deixou que este fizesse a maior parte do trabalho. Enquanto eu vigiava meu avô, Luke observava os marcadores dos canais ao passar­mos por ilhotas com árvores nas costas onde não batia sol. A água mu­dava de cor, passando do jade pálido para o cinza metálico. Percebia-se o sol que tentava encontrar uma abertura nos cúmulos amontoados, mas também se viam nuvens de chuvas, com formato de colméias agou­rentas, reunindo-se de modo sombrio ao norte.

Meu avô mantinha-se ereto nos esquis, os braços e as pernas finos e funcionais, como um conjunto de lápis. Sem possuir partes macias no corpo, ele demonstrava aquela força surpreendente que as pessoas associam ao arame enrolado. Seus antebraços e bíceps se esticavam num baixo-relevo gráfico de encontro à tensão da corda. O rosto, o pescoço e os braços eram escuros; os ombros, tímidos e pálidos. À medida que o dia escurecia e a temperatura caía, sua pele adquiria uma tonalidade levemente azulada como a dos ovos dos pássaros. Após 16 quilômetros, estava esquálido, trêmulo e velho. Mas continuava de pé e maravilhoso.

Ele parece que está mal, Tom - comentou Luke. - Tente man­dar-lhe uma laranja.

Com a ajuda de um canivete, cortei a parte superior de uma la­ranja e fui até a popa do barco. Segurei-a para que Amos visse e ele acenou com a cabeça, demonstrando ter entendido.

Atirei-a em sua direção, mas calculei mal a altura. A laranja pas­sou muito acima de sua cabeça, fazendo com que Amos quase caísse ao saltar para agarrá-la.

Não pule, vovô - gritei. - Espere que ela chegue até você.

Atirei outras três laranjas antes de calcular com precisão a distân­cia e a velocidade. O velho agarrou a quarta como um jogador que se debruçasse sobre a cerca para diminuir a velocidade do adversário durante uma jogada. Luke fez um gesto de vitória enquanto vovô chu­pou a laranja até o bagaço, antes de deixá-la cair na água. Então, pare­cendo reviver, ele pulou o sulco da água várias vezes e sentou-se sobre os esquis, segurando a barra da corda com uma das mãos, sem que tivéssemos como contê-lo.

Quilômetro vinte e cinco - anunciou Luke ao passarmos pela bóia que marcava a entrada do canal Hannah.

Há ocasiões em que se pode ver de que material uma família é feita; aquela foi uma dessas oportunidades. Nos olhos de Amos, bri­lhavam a coragem e a resolução transmitidas à cadeia de genes dos Wingo - tive orgulho de ser filho de seu filho. Na marca de 32 quilô­metros, o velho tremia e seus olhos profundos estavam anuviados como alfazema. Mas os esquis ainda cortavam a água como lâminas que ferissem a superfície do esmalte. Apesar de trêmulo e exausto, ainda se dirigia a Colleton.

Amos não se dobrou até alcançarmos o estreito de Colleton, onde as águas estavam agitadas com a tempestade que se aproximava e os raios cortavam as nuvens mais ao norte.

Ele caiu, Luke! - avisei.

Entre na água, Tom! - Luke manobrou a lancha, deixando o motor em ponto morto enquanto nos aproximávamos de Amos.

Saltei na água a seu lado, segurando uma laranja recém-aberta acima da cabeça, tomando cuidado para que a água salgada não a molhasse.

Como você está, vovô? - perguntei, aproximando-me dele.

Sasser está certo - sua voz era quase inaudível. - Estou com cãibras.

Onde você está com cãibras? Não se preocupe. Poucos esquiadores aquáticos levam massagista a seu lado.

Sou uma grande cãibra... Sinto dedos que nunca senti antes e eles me doem demais. Até os dentes estão com cãibras. E eles nem são naturais.

Chupe esta laranja, deite-se e deixe-me trabalhar em seu corpo.

Não adianta. Estou derrotado.

Luke manobrara o barco para ficar a nosso lado. Ouvi o ruído macio do motor em ponto morto quando comecei a massagear os braços e o pescoço de meu avô.

Ele diz que vai parar, Luke - disse eu.

Não, não vai!

Estou liquidado - murmurou Amos.

Então você está com um problemão, vovô.

Que problema, Luke? - Meu avô gemia enquanto eu tentava suavizar os músculos cheios de nós de seus braços.

Calculo que seja mais fácil esquiar os 15 quilômetros que fal­tam para chegar a Colleton que nadar essa distância - respondeu Luke, ao mesmo tempo em que exibia sua própria carta de motorista. - Há uma destas esperando por você logo acima no rio, vovô. Quero mesmo ver a cara do veadinho do Sasser quando chegarmos rasgando a água com seus esquis.

Trabalhe as pernas, Tom. E me dê mais uma dessas laranjas, Luke. Juro que nunca imaginei que uma laranja pudesse ser tão gostosa.

Tire os esquis, vovô - pedi. - Vou massagear seus pés.

Sempre tive os pés mais bonitos...

E fortes, também. Fortes o bastante para agüentar mais 15 qui­lômetros.

Pense em Jesus subindo o Calvário - tentou Luke, com a voz forte. - Pense no que teria acontecido se ele tivesse abandonado tudo. Onde estaria o mundo agora? Ele era forte quando precisava ser. Peça a Ele para ajudá-lo.

Ele não esquiou até o Calvário, meninos - ofegou meu avô. - Os tempos eram diferentes.

Mas teria esquiado se fosse necessário - encorajou Luke. - Te­ria feito qualquer coisa para redimir a humanidade. Ele não desistiria.

Massageie de novo meu pescoço, Tom - pediu o velho, com os olhos fechados e a laranja na boca. - Dói muito, filho.

Relaxe, vovô - disse eu, massageando-lhe as têmporas e o pescoço. - Flutue com o colete salva-vidas e deixe os músculos des­cansarem.

Você sempre agüentou três horas na Sexta-feira Santa - conti­nuou Luke. - Nunca fugiu da parada. Amanhã vai poder levar sua família para passear no Ford.

Jogue o cantil para que eu possa dar um pouco de água para ele - pedi a meu irmão. Amos estava quieto, parecendo adormecido, até ouvir Luke dizer:

E melhor entrar no barco, vovô. Você acaba de fazer Sasser o homem mais feliz da Carolina do Sul.

Traga-me a corda, filho. - Ele abriu os olhos de repente. - Não quero mais ouvir baboseiras de meus netos.

A água está agitada daqui para a frente - avisei.

Vai ficar mais suave quando vocês me puxarem por ela.

Voltei à embarcação e soltei a corda, pedaço por pedaço, até deixá-la esticada como se estivesse ligada ao umbigo de meu avô. Quando vi os esquis surgirem de cada lado da corda, gritei "Já". Luke acelerou, fazendo a lancha partir pelas águas agitadas. Desta vez, Amos levantou-se como quem estivesse à morte, um homem trêmulo e alterado, esbranquiçado pela água salpicada e pela exaustão. Lutava com a corda, as ondas, a tempestade e consigo mesmo. A tempestade despencou com tanta força que Amos sumiu em contornos indistin­tos, como num negativo mal focalizado. Os raios açoitavam as ilhas, os trovões recortavam o rio com a espantosa voz da negação. A chuva inundava meus olhos e Luke dirigia o barco às cegas, mas com um perfeito conhecimento das profundidades e das marés, enquanto eu observava a imagem obscurecida do velho, que travava uma guerra contra o tempo e a tempestade.

Você quer matá-lo, Luke? - gritei.

Ele vai morrer se não conseguir chegar.

Caiu novamente... - Amos pegara uma onda de mau jeito e perdera o equilíbrio ao ser atingido pela onda seguinte.

Luke fez novamente a volta, e eu mergulhei ao lado do velho, lu­tando contra as águas turbulentas. Enquanto nadava a seu lado, mais uma vez massageei-lhe o pescoço e os braços. Ele gemeu quando to­quei seus músculos doloridos ao longo dos ombros e sob os braços. A cor de sua pele lembrava um merlim arruinado pela arte da taxidermia. O corpo estava flácido, exaurido, e seus pensamentos vagueavam enquanto eu trabalhava suas pernas e pés.

Devíamos levá-lo para o barco, Luke - sugeri, quando meu ir­mão se aproximou.

Não - reagiu meu avô num sussurro. - Quanto falta?

Onze quilômetros - informou Luke.

Que tal pareço? - perguntou ele.

Está horrível - respondi.

Você está ótimo. Não ouça o que ele diz, vovô.

Eu sou o treinador - afirmei.

Eu ensinei você a esquiar, filho. - Amos flutuava virado de cos­tas, com o colete salva-vidas balançando como uma cortiça na água.

E você me ensinou a nunca esquiar com um tempo como este - repliquei, massageando-lhe as coxas.

Então fui um ótimo professor, Tom. Ensinei muito bem mesmo.

Volte para o barco. Você fez o melhor que pôde. Ninguém vai dizer que não tentou.

O Senhor quer que eu continue.

Ouça o trovão, vovô. Ele está dizendo "não".

Ele está dizendo "Não, não pare, Amos". É isso que estou ouvindo.

Tom nunca foi bom em língua estrangeira, vovô - arrematou Luke ao trazer o barco para perto e me içar para cima enquanto o velho recolocava os esquis.

Sou contra isso, Luke - resmunguei.

Daqui a l1 quilômetros, você vai adorar.

Naquele instante, Amos agarrou a barra da corda e se aprontou para a etapa final até Colleton. Luke acelerou e, mais uma vez, meu avô lutou para se erguer contra a chuva. Acabou conseguindo, além dos limiares do desejo ou do entusiasmo. Ardendo com a ânsia por termi­nar com aquilo, a antiga luxúria do esporte e da competição lhe vitalizava a alma com a chama que nem as águas do céu ou do Atlântico poderiam tocar ao bater em seu corpo.

Três quilômetros antes de chegarmos à cidade, vimos os automó­veis que se enfileiravam na margem do rio e entupiam o desembarcadouro, aguardando nossa chegada. Quando o pessoal avistou Amos sobre os esquis, explodiram buzinadas e os cidadãos de Colleton celebraram seu triunfo acendendo os faróis dos carros. Amos agradeceu com um aceno garboso e, ao fazermos a volta na curva do rio, recomeçou a se exibir, fazendo alguns truques, mostran­do um pouco do velho estilo. O barulho das buzinas diminuía quando passamos ao longo da rua das Marés, e competia com os trovões. A ponte, cheia de gente e de guarda-chuvas, aplaudiu quando vovô pas­sou, acenando e se exibindo, sob suas grades. Luke guiou-nos para o desembarcadouro público, onde outra multidão estava reunida. Diri­gindo o barco a toda velocidade, voltou-o de repente para o outro lado, fazendo com que meu avô fosse para a margem com extrema rapidez. O velho soltou a corda e flutuava magicamente, como se esti­vesse andando sobre a água direto para o desembarcadouro, onde meu pai o agarrou nos braços.

Testemunhamos ao lado do público o momento solene em que Amos Wingo recebeu sua nova carta de motorista do guarda Sasser, que estava comovido e benevolente. Perdemos o instante perturbador em que Amos desfaleceu no estacionamento. Meu pai teve de carregá- lo para o pronto-socorro do hospital. O dr. Keyserling deixou-o confinado ao leito durante um dia para que tratasse a exaustão e a exposição ao mau tempo.

Um ano mais tarde, Tolitha mandou Amos comprar meio quilo de farinha e um frasco de molho para bifes. Antes de alcançar o cor­redor do supermercado onde estava o molho, o velho se deteve subi­tamente, soltou um pequeno grito e se precipitou para a frente, caindo sobre um mostruário de latas de nabos com carne de porco. Estava morto ao atingir o chão, embora o guarda Sasser tentasse revivê-lo inutilmente com respiração boca a boca. Disseram que Sasser chorou como uma criança quando a equipe da ambulância saiu para o hospital levando o corpo de meu avô. E Sasser foi apenas o primeiro a chorar em Colleton naquela noite. A cidade inteira per­cebeu que perdera alguém admirável e insubstituível. Nada afeta tanto uma cidade pequena como a perda de seu melhor e mais extraordinário homem; nada afeta tanto uma família sulista como a morte do homem que lhe empresta equilíbrio e fragilidade, num mundo retorcido com valores corrompidos. Sua fé sempre fora uma forma de esplêndida loucura; e seu caso de amor com o mundo, um eloqüente hino de louvor ao cordeiro que o fizera. Já não haveria cartas para a Gazeta de Colleton, com transcrições palavra por pala­vra das tagarelices do Senhor. A partir de então, aqueles diálogos seriam face a face, enquanto Amos estivesse cortando o cabelo do Senhor numa mansão, ao som do doce trinado dos anjos. Essas fo­ram as palavras do padre Turner Bali, que ressoaram pela igreja de tábuas brancas no dia do funeral do velho.

Naquele dia, o Sul morreu para mim; ou, pelo menos, perdi seu lado mais elevado e ressoante, a mágica jovial que associava à incon­gruência merecida. Amos colocara moscas e mosquitos em frascos e os soltara no quintal porque não suportaria matar nenhuma das cria­turas de Deus.

- Eles fazem parte da colônia - dissera. - Fazem parte do es­quema.

Sua morte forçou-me a reconhecer a sabedoria secreta que ema­nava da vida contemplativa. Ele vivera distante do material e do temporal. Criança, eu me envergonhava com o ardor que ele coloca­va em sua adoração. Adulto, invejaria para sempre a simplicidade e a grandeza de sua visão do que deveria ser um homem completo e contributivo. Toda a sua vida fora de submissão e doação a uma fé. Ao chorar em seu funeral, não o fazia apenas por minha própria perda. A gente carrega um homem como Amos no coração, uma lembrança de rosa imorredoura no jardim do ego humano. Não! Chorei porque minhas filhas jamais o conheceriam e porque pos­suía a consciência de ser pouco versátil em qualquer língua para des­crever a solidão e a caridade perfeitas do homem que acreditava e vivia todas as palavras do livro que vendia de porta em porta ao lon­go do Sul dos Estados Unidos. A única palavra para bondade é bon­dade; e isso é o suficiente.

Em meio aos gritos de "Aleluia" e "Louvor a Deus", os homens começaram a bater as bases das cruzes de encontro ao piso da igreja, em uníssono, criando um toque de recolher entorpecido e impene­trável, a música sombria dos crucifixionistas. Meu pai levantou-se, com Tolitha a seu lado, e a levou pelo corredor central onde ela enca­rou Amos pela última vez. No caixão aberto, com os cabelos pentea­dos para trás e um sorriso ligeiramente enfeitiçado no rosto (marca indelével do papa-defunto, Winthrop Ogletree), Amos parecia um menino do coro destinado a virar semente. Uma Bíblia branca esta­va aberta na página em que Jesus falava: "Eu sou a Ressurreição e a Luz." O organista tocava Abençoado seja o laço que une e a congrega­ção cantava enquanto Tolitha se inclinava e beijava os lábios de meu avô pela última vez. Caminhamos da igreja até o cemitério, eu segu­rando a mão de Sallie, e Luke ao lado de minha mãe. Savannah aju­dava meu pai a controlar Tolitha. A cidade inteira, negra e branca, movia-se em silêncio atrás de nós. Os homens arrastavam as cruzes pelo centro da rua. O sr. Fruit liderava o séqüito, soprando o apito com lágrimas correndo pelo rosto. O guarda Sasser era um dos que carregava o caixão.

Amos foi enterrado à luz escassa de um dia de céu carregado. De­pois de baixarem o corpo na sepultura, Luke, Savannah e eu ficamos para trás para cobri-lo com terra. Levamos uma hora para completar o trabalho. Ao terminar, sentamo-nos sob o carvalho que sombreava o túmulo da família Wingo. Choramos e contamos histórias a respeito do papel de Amos em nossa infância. Vovô, num sono sem sonhos embaixo da terra, falava-nos da colméia cantante da memória. Há uma arte da despedida, mas éramos jovens demais para dominá-la a fundo. Simplesmente, contamos histórias sobre o homem que cortara nossos cabelos desde crianças e que transformara sua vida num salmo incorruptível ao Deus que o fizera.

No fim, Savannah comentou:

Ainda digo, com o devido respeito, que vovô era louco.

Isso é com o devido respeito? - questionou Luke.

Ora, Luke, ele conversava com Jesus diariamente. Os psiquia­tras nunca se referem a isso como um comportamento normal.

E você não conversa com cães e anjos diariamente? - replicou ele, com raiva. - Acho muito mais normal conversar com Jesus.

Isso foi maldade de sua parte, Luke - retrucou Savannah, os olhos baixos e sombrios. - Não reduza a importância de meus proble­mas. Estou passando por um período difícil. Sempre vou passar.

Ele não quis magoá-la, Savannah - interferi.

Eu não devia ter vindo - disse ela. - Me faz mal ficar com a família. É perigoso.

Por que é perigoso? - perguntei. - É por isso que quase não a vemos?

A dinâmica desta família é medonha. Vai dominar vocês como me dominou.

Sobre o que você está falando, Savannah? - perguntou Luke. - Estávamos muito bem, conversando sobre o vovô e você estragou tudo falando da última besteira do clube do psiquiatra do mês!

Você é o próximo, Luke - disse ela. - Está escrito em você.

Próximo para quê?

Nenhum de vocês encarou o que realmente nos aconteceu na infância. E, por serem homens sulistas, há uma grande chance de que nunca encarem.

Peço desculpa por ser um homem sulista - reagiu Luke. - O que você quer que eu seja? Um esquimó, um japonês pescador de pé­rolas?

Quero que olhem em torno e vejam o que está ocorrendo. Você e Tom não têm consciência do que está acontecendo neste exato mo­mento.

Você tem de nos desculpar, Savannah - intervim, meu mau humor crescendo junto ao de Luke. - Somos apenas homens sulistas.

Por que você odeia as mulheres, Luke? - perguntou ela. - Por que nunca sai com moças? Por que nunca se envolveu seriamente com uma mulher em toda sua vida? Você já se fez essas perguntas?

Não odeio as mulheres, Savannah - a dor estava presente em sua voz -, simplesmente não as entendo, não sei o que pensam ou por que pensam assim.

E você, Tom? Como é que se sente a respeito das mulheres?

Eu as odeio! As mulheres são a escória do mundo. Eis por que me casei e tive três filhas. O ódio é a força central por trás de tudo.

Eu entendo por que você é tão defensivo, Tom - retrucou Savannah, com perfeito controle de si mesma.

Não estou sendo defensivo! Luke e eu só reagimos contra sua insuportável piedade, Savannah. Todas as vezes em que a vemos, te­mos de ouvir discursos sobre como desperdiçamos nossas vidas aqui, enquanto você está em Nova York, vivendo uma existência fa­bulosa, fértil e auto-atualizadora entre as mentes mais talentosas de nossa era!

Isso não é verdade - afirmou ela. - Simplesmente tenho uma perspectiva melhor, já que só venho para casa a cada dois anos. Vejo de imediato coisas que vocês não percebem porque estão muito próxi­mos. Algum de vocês tem conversado com a mamãe?

Sim - respondeu Luke. - Todos os dias.

Você sabe o que ela está pensando? - questionou Savannah, ig­norando a ironia na voz dele. - Tem idéia do que ela está planejando?

Ela perde todo seu tempo cuidando daquela cadela da Isabel Newbury. Está tão exausta quando chega em casa que praticamente não faz nada a não ser cair na cama.

Sallie parece infeliz, Tom - comentou Savannah. - Parece exausta.

Ela é médica e mãe... Se já é duro ser uma coisa só, imagine as duas. Principalmente quando o pai é professor da escola e treinador de três esportes diferentes.

Bem, pelo menos, ela não será dona de casa para o resto da vida.

O que você tem contra as donas de casa?

Fui criada por uma. E isso quase estragou minha vida.

Fui socado por um camaroneiro quando era pequeno - ironizou Luke. - Mas nunca culpo os camarões.

Mamãe vai se divorciar - informou Savannah. - Foi o que ela me disse ontem à noite.

Quantas vezes ela já não disse isso antes?

Não foram muitas - repliquei. - Creio que não passaram de 68 milhões de vezes.

Quantas vezes - continuou Luke - mamãe nos colocou no car­ro, dirigiu para fora da ilha e jurou que não passaria outra noite na casa dos Wingo?

Não foram muitas - repeti. - Isso só aconteceu umas vinte ou trinta vezes quando éramos pequenos.

Para onde ela iria? - indagou Savannah. - Como iria se alimen­tar e vestir? Como sobreviveria sem um homem? Mamãe foi presa numa armadilha pelo Sul e isso a tornou um pouco má. Só que, desta vez, ela vai abandoná-lo. Vai pedir o divórcio na semana que vem. Já contratou um advogado, que está tratando da papelada.

Ela já contou a papai? - perguntei.

Não.

Calma, Tom, as coisas mais importantes em primeiro lugar - brincou Luke.

Vocês não acham estranho que mamãe tenha tomado uma de­cisão tão importante e que nenhum de vocês saiba nada a respeito? - questionou Savannah. - Isso não diz algo sobre a forma como essa família se comunica?

Savannah - disse Luke por que sempre que você vem para a Carolina do Sul insiste em dizer a Tom e a mim como devemos viver nossas vidas? Ainda não ouvimos uma palavra sobre como você vive, mas você arranja mil coisas para falar a respeito do que fazemos. Estávamos nos despedindo de vovô e você transformou isso numa sessão de terapia de grupo. Se mamãe vai abandonar papai, isso é problema deles - cabe a Tom e a mim ajudá-los em tudo o que pudermos. Você estará em Nova York, ligando para nós e reclamando de tudo o que estivermos fazendo.

Odeio a comunicação, Savannah - acrescentei eu. - Sempre que nos comunicamos com você atualmente, terminamos brigando. Sempre que percebo que estou me comunicando com alguém da fa­mília, acabo descobrindo mais do que quero... ou menos.

Vocês não se importam se mamãe está se divorciando de pa­pai? _ perguntou ela.

Sim, eu me importo - respondi. - Agora que papai não me bate mais nem tem o menor poder sobre mim, eu o acho simplesmente patético. Cresci odiando ele, porque tinha medo e porque é difícil perdoar alguém que roubou nossa infância. Mas eu o perdoei, Savannah. E também perdoei mamãe.

Não perdôo nenhum dos dois - declarou ela. - Eles fizeram muito estrago. Preciso lidar com seus erros diariamente.

Eles não fizeram isso de maneira intencional. - Luke passou o braço em torno de Savannah e puxou-a contra o peito. - Eram dois idiotas e nem sequer souberam ser bons idiotas. Eles apenas não ti­nham jeito para a coisa.

Eu não queria cair de pau em cima de vocês - desculpou-se ela. - Mas tenho medo de que essa cidade os arraste.

Não é pecado amar Colleton - replicou Luke. - O único peca­do verdadeiro é não amá-la o suficiente. Era isso que vovô costuma­va dizer.

Olhem até onde isso o levou. - E Savannah acenou com a cabe­ça em direção à sepultura.

O céu não é um lugar tão mau - disse meu irmão.

Ora, você não acredita no céu!

Sim, claro. Acontece que eu já estou lá, Savannah. Essa é a gran­de diferença entre nós dois. Colleton é o que eu sempre quis e tudo de que preciso.

Aqui não há excitação, nem deslumbramento, nem movimen­to de multidões, nem estímulo - retrucou ela.

O que você pensou durante o enterro de vovô quando os seis diáconos bateram as cruzes no chão enquanto você fazia o elogio fú­nebre? - perguntei.

Achei que eles eram birutas - respondeu Savannah.

Mas era um bocado estimulante, não era? - indagou Luke.

Não, era pura birutice. Fiquei louca de vontade de correr para fora da cidade o mais rápido que pudesse.

Pois eles estavam mostrando ao mundo quanto gostavam de vovô, Savannah. Estavam contando a todos que o amavam.

Isso daria um bom poema - observou ela, pensando alto. - "Os batedores de cruzes", eu o chamaria assim.

Você terminou aquele poema sobre a viagem de esquis de vovô? - perguntei.

Quase. Ainda precisa ser trabalhado.

Por que está demorando tanto? - Luke quis saber.

Não se pode apressar a arte - disse ela.

Claro - reforcei eu. - Seu burro filho-da-puta. Não se pode apressar a arte!

Savannah deu de ombros, levantou-se e disse:

Temos de dizer adeus ao vovô.

Ali está o lugar onde vamos ser enterrados. - E Luke seguiu rumo a um lote de relva nua. - Este espaço é meu. Aqueles são para vocês. Há lugar para nossas esposas e filhos.

Que coisa mórbida e deprimente, Luke - reclamou Savannah.

Eu acho confortador saber onde vou terminar depois de bater as botas - respondeu ele.

Quero ser cremada e que minhas cinzas sejam espalhadas so­bre o túmulo de John Keats, em Roma - declarou minha irmã.

Um desejo modesto - comentei.

Não, irmãzinha - falou Luke cordialmente. - Vou trazer você para Colleton e plantar sua bundinha aqui, para poder vigiá-la.

Que coisa grotesca - resmungou ela.

Vamos voltar para casa - sugeri. - O pessoal já deve ter ido embora.

Adeus, vovô - sussurrou Savannah, mandando um beijo em direção à terra recém-mexida. - Se não fosse por você e Tolitha, não sei o que teria acontecido conosco.

Se você não estiver no céu, vovô - disse Luke enquanto saíamos do cemitério -, então é tudo besteira.

 

EU vivia numa terra que não tinha neve nem azaléias. Passei meus 20 anos como treinador de meninos desajeitados e ágeis. Di­vidi as estações do ano de acordo com a fluência dos esportes. Ha­via a música das bolas de futebol que faziam espirais no céu, em direção às nuvens de outono; o guinchar da borracha contra a ma­deira quando os meninos mais altos giravam em torno de si mes­mos em direção à cesta de basquete no inverno; e a pancada dos tacos Hillerich and Bradsby de encontro às bolas de beisebol no fim da primavera. O trabalho de treinador não era uma paixão fora de lugar, mas a arte de dar sentido à infância de um menino. Não fui o melhor dos treinadores; tampouco fui prejudicial. Não apareci com realce nos pesadelos de nenhum menino. Nunca con­segui derrotar os times de futebol extremamente disciplinados do grande John McKissick, de Summerville. Ele era um criador de di­nastias e eu, um treinador limitado em competência e espaço. Não brigava com a vitória, mas também não era viciado nela. Jogara em times que tinham feito as duas coisas, e, apesar de a vitória ser melhor, faltara-lhe aquela frágil sublimidade, aquela ligeira sabe­doria que se adquiria em um jogo no qual se tivesse atuado com todo o coração, e em que os esforços não tivessem tido êxito. Ensi­nei a meus meninos que saber perder é um dom, mas saber ganhar é o que produz a masculinidade autêntica. Perder, eu lhes disse, é bom para nosso senso de proporção.

Tentei viver bem naquela terra sem neve nem azaléias. Comecei a observar os pássaros, tornei-me um colecionador de borboletas amador, coloquei redes para pegar a passagem anual das savelhas e colecionei discos de Bach e de músicas da Carolina do Sul. Tornei-me um daqueles americanos anônimos que têm a mente aguçada e inquisitiva enquanto realizam todos os rituais humilhantes da classe média. Fiz assinaturas de cinco revistas, usando a taxa de desconto para professores: The New Yorker, Gourmet, Newsweek, The Atlantic e The New Republic. Imaginava que minhas escolhas em matéria de revistas demonstrassem um homem atento e liberal, com uma gran­de variedade de interesses. Nem uma única vez me passou pela cabe­ça o fato irrefutável de que eu era, ao mesmo tempo, uma piada e um clichê da época. Savannah me enviava caixas de livros que comprava na livraria Barnes & Noble. Acreditava que eu vendera minha alma ao decidir permanecer no Sul. Tinha uma grande fé nos livros; afi­nal, podiam ser trocados como selos de desconto do supermercado e constituíam excelentes presentes. Sei que ela se preocupava comigo e com a fatal atração que eu tinha pelo convencional e o seguro. Mas estava errada a meu respeito; minha doença era muito mais estra­nha. Eu trouxera para a vida adulta a nostalgia por uma infância devastada. Desejava criar minhas filhas em um Sul que me fora rou­bado por minha mãe e meu pai. O que eu mais queria era uma vida excelente. Possuía algum conhecimento para passar para minhas fi­lhas e não tinha nada a ver com as grandes cidades. Savannah não entendia que eu tinha uma necessidade ardente de ser apenas um homem decente, e nada mais. Quando morresse, queria que Sallie dissesse ao me beijar pela última vez: "Escolhi o homem certo." Era esse fogo que me sustentava, a idéia que eu reservara como primeiro princípio de minha vida como homem. O fato de eu ter fracassado, pensava, tinha menos a ver comigo do que com a crua obliqüidade das circunstâncias. Quando escolhi retornar a Colleton, não fazia idéia - e teria rido se isso tivesse sido sugerido - de que Colleton deixaria de ser um município incorporado à Carolina do Sul. Eu es­tava para aprender muito a respeito de meu século... Não iria gostar de nada do que iria saber.

 

Três semanas após o funeral de meu avô, vi o caminhão de meu pai estacionado em frente à minha casa ao voltar de um treino de futebol. Havia um colante de pára-choque na parte traseira do caminhão que mostrava o símbolo da paz seguido destas palavras: "Esta é a pegada da galinha americana." Quando entrei em casa, encontrei meu pai sentado na sala; conversando com Sallie. Jennifer estava em seu colo e Sallie trocava a fralda de Lucy no sofá.

Oi, pai - disse eu. - Quer que eu lhe prepare um drinque?

Aceito. O que você fizer está bom para mim.

Sallie entrou na cozinha enquanto eu preparava a bebida. Pergun­tei-lhe:

Quer alguma coisa, Sallie, ou você prefere esperar até pôr as meninas na cama?

Algo aconteceu - sussurrou ela. - Há um minuto atrás, ele esta­va chorando.

Meu pai? Chorando? — perguntei, em voz baixa. - É impossível. Só os seres humanos choram quando estão emocionalmente pertur­bados. Meu pai nasceu sem emoções, como algumas pessoas nascem sem o dedinho.

Seja gentil com ele, Tom, por favor. Vou levar as meninas para a casa de Tolitha. Ele quer conversar a sós com você.

A gente pode ir a algum lugar, Sallie. Seria mais fácil para nós.

Ele precisa conversar já. - E ela saiu para reunir as crianças.

Ao voltar para a sala, encontrei meu pai descansando a cabeça no encosto da poltrona. Respirava pesadamente e estava mais perturbado do que eu jamais o vira. Parecia atado a uma cadeira elétrica. As mãos tremiam e as articulações estavam roxas.

Como vai indo o time? - perguntou quando lhe entreguei o drinque.

Está indo bem. Acho que temos uma boa chance contra Georgetown.

Posso conversar com você, filho?

Claro.

Sua mãe saiu de casa há alguns dias. - Ele pronunciava cada palavra com dificuldade. - No início, não fiquei preocupado. Afinal, temos altos e baixos como qualquer casal, mas logo depois fazemos as pazes. Só que hoje fui intimado por um oficial de Justiça. Ela quer divórcio.

Sinto muito...

Ela falou com você sobre isso? Você sabia que isso ia acontecer, Tom?

Savannah comentou alguma coisa depois do enterro de vovô. Não pensei muito nisso, papai.

Por que você não me contou? - Sua voz estava cheia de mágoa. - Eu teria lhe comprado flores ou a convidado para algum restaurante bacana em Charleston.

Não achei que fosse da minha conta. Era um caso para ser re­solvido por vocês dois.

Como que não era da sua conta? Sou seu pai e ela é sua mãe. Se isso não for da sua conta, então o que é? Que vai ser de mim sem sua mãe? Por que você acha que trabalhei tanto a vida inteira? Eu queria dar a ela tudo com que sempre sonhou. As coisas não funcionaram como eu esperava, mas sempre tentei.

Realmente você tentou. Ninguém pode negar isso.

Se eu tivesse acertado apenas uma vez, ela não teria me aban­donado. Você não faz idéia de quanto sua mãe ama o dinheiro.

Eu imagino...

É por isso que ela vai voltar. Não sabe o que é ganhar a vida e está velha demais para aprender a essa altura do jogo.

Mamãe é uma mulher inteligente. Se ela abandonou você, com certeza tem algum plano.

Ela pode ter todos os planos do mundo. Mas não tem grana para levá-los adiante. Por que ela fez isso, filho? Por favor, ajude-me. Por que ela foi embora? - Meu pai colocou as mãos sobre o rosto e chorou tanto que as lágrimas rolaram entre seus dedos, descendo pe­las mãos e os pulsos.

Não era tristeza o que eu testemunhava; era a agonia de um ho­mem que sabia que teria de pagar por sua tirania, prestar contas por um reinado de trinta anos de terror. E ele não possuía o dom da contrição.

Eu a tratei como uma rainha, Tom. Esse foi o problema. Fui gentil demais com ela. Dei-lhe tudo o que queria. Deixei-a bancar a grã-fina e fingir ser algo que nunca foi. Aceitei tudo isso em vez de lhe dar uma dura.

Você batia nela, pai. Do mesmo modo como batia em todos nós.

Ele tentou responder, mas não conseguiu falar. Soluços partiam de seu peito como ondas que se quebrassem de encontro a uma praia. Por um momento, cheguei a ter pena dele, até que recordei meu tem­pestuoso aprendizado de 18 anos em sua companhia. Chore por mi­nha mãe, desejei dizer-lhe. Chore por meu irmão e minha irmã. Derrame uma lágrima por mim, pai. Só que não haveria lágrimas su­ficientes para absolvê-lo dos crimes impensados que cometera como marido e pai. Eu não podia anistiar o homem que não me tocara quando criança, exceto para me dar bofetões. Mas fiquei abismado quando ele afinal recuperou a voz e disse:

Nunca encostei a mão em sua mãe. E nunca toquei em meus filhos.

O quê? - gritei e, mais uma vez, ele soluçou descontrolado. Quando se acalmou, ajoelhei-me a seu lado e sussurrei: - É isso que me enlouquece em nossa família. Não me importo se você nos ba­teu. Realmente não me importo. É coisa passada e não há nada que se possa fazer a respeito. O que não suporto é quando cito um sim­ples fato ocorrido conosco e você ou mamãe dizem que não aconte­ceu. Mas você precisa saber, e estou falando como um filho que o ama: você foi uma merda com mamãe e uma merda para seus filhos. Não durante todos os dias, nem todos os meses. Mas nunca sabía­mos o que o faria estourar. Nunca sabíamos quando o mau humor explodiria e o camaroneiro mais forte do rio começaria a nos espan­car pela casa. Então, aprendemos a ficar quietos, a andar nas pontas dos pés a seu redor. Aprendemos a ter medo sem emitir um som. E mamãe foi uma esposa leal: nunca nos deixou contar a ninguém que você nos batia. Na maior parte do tempo, ela era como você e sim­plesmente nos dizia que as coisas não haviam acontecido como nos recordávamos.

Você é um mentiroso, Tom - declarou ele de repente. - É um mentiroso desgraçado e deixou que sua mãe o envenenasse contra mim. Fui bom demais. Esse foi meu único erro.

Agarrei seu braço direito, desabotoei a manga e levantei-a até o cotovelo. Quando ele voltou a palma da mão para cima, localizei a cicatriz roxa, com o formato de uma garra, impressa no músculo de seu antebraço. Olhei aquele braço com grande ternura. Um tra­balho imenso moldara os braços dele, transformando-os em obje­tos de lírica beleza. As veias apareciam como raízes de árvores enormes ao longo de margens erodidas. Meu pai começara a usar chapéu e camisa de mangas compridas no barco porque minha mãe admirava a palidez dos homens que não faziam trabalho braçal. As mãos de meu pai eram rudes e manchadas de graxa. Uma lâmina de barbear poderia perfurar um calo que havia em seu po- legar e penetrar por vários milímetros antes de tirar sangue. Aque­las mãos me bateram, mas também trabalharam por mim - eu era professor por causa delas.

De onde vem essa cicatriz? - perguntei. - Seu filho mentiroso, seu filho que o ama, quer saber como você conseguiu essa cicatriz no braço.

Como é que vou saber? Sou um camaroneiro. Tenho cicatrizes pelo corpo inteiro.

Sinto muito pai. Isso não explica nada.

O que você está tentando me fazer?

Você não vai se modificar se não admitir o que tem sido. Pensei nisso. Onde arranjou essa cicatriz? Vou ajudá-lo. Savannah e eu estamos sentados à mesa de jantar. É nosso décimo aniversário. Há um bolo sobre a mesa. Não, desculpe, há dois. Mamãe sempre fez questão de que cada um tivesse seu próprio bolo.

Não sei do que você está falando. Eu devia ter ido conversar com Luke. Você quer me convencer de que eu sou podre.

Eu só lhe perguntei sobre essa cicatriz. Você me chamou de mentiroso e estou tentando lembrar cada detalhe da história dessa cicatriz. Tive pesadelos a respeito dela.

Então, mate-me. Não me lembro. Não é crime se esquecer de alguma coisa!

Às vezes é. Deixe-me contar o que aconteceu naquela noite. É importante. É apenas uma noite em dez mil, mas vai ajudá-lo a enten­der por que mamãe o está abandonando agora.

Não vim aqui para isso. Só queria sua ajuda.

É o que estou fazendo. - E comecei minha história enquanto ele chorava com as mãos no rosto.

Tudo começou como sempre acontecia, sem aviso prévio nem tempo para uma retirada. Meu pai saíra cedo da mesa de jantar e assis­tia ao Ed Sullivan Show. Era o fim de uma estação de pesca ruim, o que sempre o tornava perigoso e imprevisível. Não conversara durante o jantar e levara uma garrafa de uísque para a sala de estar. Mas nada em sua atitude implicava uma ameaça. Talvez seu silêncio fosse benigno e decorrente da exaustão física, em vez de ser uma consolidação secreta de sua fúria. Minha mãe acendeu as dez velas de cada bolo e Savannah bateu palmas de satisfação, dizendo:

Já estamos com dois dígitos, Tom. Teremos dois números até completarmos 100 anos.

Venha para a mesa, Henry - chamou minha mãe. - As crianças vão apagar as velinhas.

Teriam os dois brigado na noite anterior? Haveria alguma discus­são inacabada entre eles? Não sei, e isso não importa.

Henry, você ouviu? - repetiu mamãe caminhando em direção à sala. - Está na hora de cantar "Parabéns para você" para Savannah e Tom.

Meu pai não se mexeu na cadeira nem deu sinal de tê-la escutado.

Deixe para lá, mãe - pedi, por detrás das pequenas chamas das velas.

Levante-se e ajude seus filhos a comemorar o aniversário - ordenou ela enquanto se dirigia até a televisão para desligá-la.

Não vi os olhos dele, mas seus ombros se enrijeceram e ele levou o copo aos lábios e o esvaziou.

Nunca mais faça isso, Lila - disse ele. - Eu estava assistindo a esse programa.

Seus filhos vão pensar que você não os ama o suficiente nem para lhes desejar feliz aniversário.

Você vai se arrepender de ter nascido se não ligar a televisão - retrucou ele, a voz sem expressão.

Está tudo bem, mãe - interveio Savannah. - Ligue a televisão, por favor...

Não ligo. Seu pai pode ver o que quiser depois que cortarmos o bolo.

Então, senti que todas as engrenagens de sua intrincada desarmonia pulsavam. Com olhos impotentes vi-o levantar-se, na esteri­lidade taciturna de uma vida derrotada, e empurrar minha mãe em cima do televisor. Agarrou-a pelos cabelos e a forçou a ficar de joe­lhos, enquanto os filhos gritavam à luz das velinhas do bolo.

Ligue a televisão, Lila! E nunca mais diga o que devo fazer dentro de minha própria casa. A casa é minha e eu apenas deixo você viver nela.

Não!

Ele esmagou-lhe o rosto de encontro à tela e eu fiquei assombra­do porque o vidro não se quebrou com o impacto.

Não - repetiu minha mãe, o sangue escorrendo pelas narinas.

Faça o que ele quer, mãe! - gritei.

Savannah correu até o televisor, abriu caminho entre os dois e, mais uma vez, a voz de Ed Sullivan encheu o cômodo.

Ela o ligou - gemeu minha mãe. - Não fui eu.

Meu pai esticou o braço e desligou-o novamente, com uma ter­rível mágoa reprimida naquele gesto silencioso.

Eu lhe disse para ligá-la, Lila! Você está dando mau exemplo às crianças. Elas devem aprender que a mulher precisa respeitar o homem em sua própria casa.

Savannah voltou a ligar o aparelho, mas, desta vez, aumentou tanto o volume que Ed Sullivan apareceu gritando dentro de casa.

Meu pai deu-lhe um tapa que a fez voar por cima da mesa de centro. Ali, ela se encolheu em posição fetal sobre o tapete.

Minha mãe correu para socorrê-la e as duas choraram, uma nos braços da outra, enquanto meu pai se dirigia vagarosa e implacavel­mente para elas. Quase as alcançava quando seis tiros rápidos de re­vólver calibre 38 destruíram o televisor. Foi uma espetacular explosão de madeira e vidro. Voltei-me e vi Luke na porta de nosso quarto, recarregando calmamente o revólver. A fumaça saía em espiral do cano da arma.

A televisão está quebrada - disse meu irmão. - Agora vocês podem cantar "Parabéns pra você" para seus filhos.

Meu pai voltou-se para Luke, os olhos pálidos, brutais e reluzen­tes, com um brilho sombrio e animal. Aproximava-se como um arqui-inimigo, um espancador dos filhos e da esposa, lúcido em sua fúria agitada. Luke havia recarregado a arma, fechado o tambor, e a apontava para o coração de meu pai.

O que faz um homem agir como você? - desafiou Luke. - Por que alguém tão grande bate na esposa ou na filhinha? Por que você é tão mau?

Meu pai continuou a avançar, enquanto Luke recuava em direção à cozinha, ainda lhe apontando o revólver. Seguiu-se o ruído da fusão das vozes de minha mãe, de minha irmã e a minha, gritando com ter­ror mortal.

Então meu pai agarrou o pulso de Luke, arrebatou-lhe a arma e deu-lhe um soco no rosto, com o punho cerrado. Luke caiu de joelhos, mas ele o levantou pelos cabelos e o atingiu novamente.

Quando dei por mim, estava montado nas costas de meu pai, com sua orelha esquerda entre meus dentes. Logo fui arremessado sobre o aparador da cozinha, aterrissando no fogão. Rolei para o chão e, ao levantar os olhos, vi minha mãe arranhando o rosto dele com as unhas. Corri e tentei separá-los, quando ele começou a golpear-lhe as faces. Bati em sua barriga e no peito, no entanto recebi uma panca­da na cabeça. Atordoado com as vozes, o barulho e a luz forte, notei que a faca de açougueiro, com a qual minha mãe iria cortar o bolo, saía do foco da lâmpada e penetrava rapidamente num braço que descia. Um jorro de sangue atingiu-me e me cegou, deixando-me sem saber se tinha sido minha mãe ou meu pai quem fora esfaqueado. Savannah, eu e minha mãe gritávamos. Devíamos sair de casa, mas eu não conse­guia limpar os olhos, nem saber qual era minha posição, cego com o sangue de um de meus pais.

Luke empurrou-me em direção à porta e, através de um nevoei­ro vermelho, vi meu pai cambaleando de encontro à porta de seu quarto, o sangue jorrando de um machucado no antebraço. Minha mãe segurava a faca ensangüentada nas mãos e lhe dizia que a enter­raria em seu coração se ele tocasse em nós novamente. Luke nos pu­xou para fora pela porta da frente e disse que devíamos ir para o caminhão.

Se vocês virem papai saindo de casa, corram para o bosque - recomendou, correndo para ajudar minha mãe.

Juntos, Savannah e eu seguimos aos trambolhões para o cami­nhão, ao mesmo tempo em que nossas vozes se elevavam num agudo uivo de angústia. Mais tarde, eu iria descobrir que Savannah pensara que eu tinha sido esfaqueado no rosto. O sangue de meu pai cobria-o como uma máscara grotesca. Minhas mãos pareciam esponjas usadas em sala de cirurgia.

À luz que vinha da casa, avistei Luke e minha mãe saindo pela porta da frente. Logo atrás, cambaleando e gemendo com uma sinis­tra constância, meu pai apareceu. Minha mãe entrou na cabine do caminhão, e Luke saltou na parte traseira enquanto ela procurava as chaves na bolsa.

Depressa - gritou Luke. - Ele está chegando.

Meu pai cambaleava pela grama, perdendo sangue a cada passo, mas com uma malevolente teimosia. Minha mãe, por sua vez, atrapa­lhava-se com as chaves.

Ele está quase aqui, mãe - gritou Savannah. Em seguida o mo­tor foi ligado, e saímos a toda velocidade do quintal, para longe daque­le homem.

Enquanto íamos pela estrada de terra que levava à ponte, minha mãe jurou:

Nós nunca voltaremos, crianças. Prometo. Nunca voltaremos para ele. Que tipo de mãe eu seria se deixasse meus filhos crescerem com esse homem?

Ficamos durante dois dias na casa de Tolitha e Amos; depois, vol­tamos à nossa vida na ilha. Antes, porém, minha mãe nos reuniu e recomendou que jamais comentássemos com alguém sobre o que acontecera naquela noite. Disse que a maior virtude do mundo era a lealdade familiar e que só as melhores pessoas a possuíam. Na noite em que retornamos, nossos pais foram entranhamente carinhosos um com o outro. Isso aconteceu seis meses antes que ele a espancasse novamente ou que pusesse a mão em algum dos filhos.

 

- ATÉ HOJE - disse eu a meu pai, que continuava em prantos -, sem­pre pensei que você teria matado todos se não tivéssemos chegado ao caminhão.

Não é verdade - choramingou ele. - Nada do que você disse é verdade. Como é que você diz uma coisa dessas do seu próprio pai?

Acho muito fácil dizer isso.

Não me lembro de nada do que você falou. Se aconteceu real­mente, eu devia estar bêbado. Não sabia o que estava fazendo. Devia estar tão bêbado que perdi a noção das coisas. Admito que eu não era dos melhores quando se tratava de beber.

Savannah também não se lembra. Uma vez eu lhe perguntei a respeito. E Luke não conversa sobre isso comigo.

Então, poderia ser apenas sua imaginação brincando com você. Sim. É isso aí. Você sempre gostou de inventar histórias com as pes­soas. Aposto que você e sua mãe se juntaram e bolaram isso para con­tar ao juiz, não foi?

De onde vem essa cicatriz, pai? - insisti.

Já lhe disse que sou camaroneiro. Faço um trabalho perigoso. Pode ter sido o guincho, ou a vez em que os cabos se partiram...

Foi a faca de açougueiro - retruquei calmamente. - E o apare­lho de televisão? Você se recorda de ter comprado um novo? Já que éramos uma família sulista idiota, que preferia passar fome a viver 24 horas sem um televisor, nós a substituímos rapidamente. Aliás, já havia outro aparelho quando retornamos à casa. E não apareciam quaisquer vestígios de sangue, violência ou discórdia. Como sempre, nós entramos e fingimos que nada acontecera.

Bem, talvez seja isso que a gente deva fazer agora. Fingir que nada aconteceu. Mesmo porque nada do que eu lhe diga fará você acreditar em mim.

Mas agora algo aconteceu. Finalmente, você vai enxergar o tipo de homem que tem sido porque mamãe o abandonou. Podemos fin­gir que isso não aconteceu? Nunca! A família afinal chegou ao mo­mento em que não pode fingir que as coisas não são reais.

Por que você me odeia tanto, Tom? - perguntou ele, com lágri­mas nos olhos.

É fácil odiar alguém que nos bate quando somos pequenos. Mas só o odeio quando sou forçado a relembrar essas coisas.

Se realmente fiz isso, sinto muito, Tom. - Ele levantou os olhos para mim. - Sinceramente, não me lembro de nada. Não sei o que fazer para voltar a ser seu amigo.

Pode começar dando-me uma grande quantia de dinheiro, de preferência em notas de vinte. - Ele me olhou, confuso, e eu emendei: - Uma mera tentativa de fazer humor, querido pai. Agora, o que você gostaria que eu fizesse? O que posso fazer para ajudá-lo? Eu sei uma coisa... você não pode evitar ser um idiota sulista. Está acostumado a isso desde que nasceu.

Você poderia conversar com sua mãe e ver o que ela deseja? Diga-lhe que farei qualquer coisa para que volte. O que ela quiser, terá. E isso é uma promessa.

E se ela simplesmente não quiser voltar?

O que farei então, Tom? O que seria de mim sem sua mãe?

Você continuaria sendo o melhor camaroneiro do rio. E ainda possuiria a mais linda ilha do mundo.

Mas teria perdido a mulher mais bonita do mundo.

Quanto a isso não há dúvida. Mas faz tempo que você vem trabalhando duro para perdê-la. Onde está ela? Vou procurá-la para conversar.

Ela está no lugar de sempre, cuidando daquela cadela Newbury. Não entendo por que sua mãe é tão boa com alguém que sempre a tratou como se ela fosse merda.

Eu entendo perfeitamente. Mamãe esperou a vida inteira pelo dia em que Isabel Newbury precisasse dela.

Mas eu preciso dela - choramingou meu pai.

Você já lhe disse isso?

Não precisava dizer. Casei-me com ela.

Ah, sei... É até uma grosseria eu ter feito um pergunta tão óbvia. - Ele recomeçou a chorar e eu não interferi, imaginando que a tristeza talvez fosse a emoção que iria provocar a redenção de Henry Wingo. Além disso, parte de mim achava que minha família merecia cada uma daquelas lágrimas, que haviam demorado demais para chegar.

Ao se controlar, ele disse:

Você sabe que Tolitha abandonou seu avô quando eu era pe­queno?

Sei.

Nunca aprendi como um marido devia tratar a esposa. Pensava que Tolitha o abandonara porque meu pai era um fraco. Ele não me parecia muito homem. Eu não queria que isso aconte­cesse comigo.

Minha mãe não abandonou você - eu disse, bem próximo a ele. Aprendi a tratar uma esposa observando como você lidava com ela. Aprendi que é normal que um homem bata nos filhos, brutalize a família inteira quando bem quiser, apenas porque é mais forte que todos e porque os outros não podem revidar nem têm para onde ir. Aprendi tudo sobre ser homem com você, e quero lhe agrade­cer por isso. Porque me levou a desejar ser um homem como Amos. Quero ser fraco, delicado e gentil com todas as criaturas do mundo. E prefiro morrer a ser do tipo que você me ensinou a ser.

Você acha que é melhor do que eu. Sua mãe também, mes­mo que os pais dela fizessem os caipiras parecerem gente de alto nível.

Não me considero melhor do que você. Apenas sou mais amável...

Eu deveria ter ido conversar com Luke, em vez de vir para cá. Luke não diria coisas tão terríveis sobre o próprio pai.

Mas ele não teria concordado em conversar com mamãe.

Você ainda está disposto a conversar com ela?

Sim. Estou vendo a chance de você aprender algo pela primeira vez na vida. Quem diria que o velho gorila da montanha choraria ao ser abandonado pela esposa? E, mesmo que ela o deixe, vejo uma oportunidade para você sair disso tornando-se um bom pai. Eu não me incomodaria de ter um pai pela primeira vez na vida.

Não gosto de pedir nada a ninguém.

Isso dificulta a gente dar alguma coisa a você.

Só não se esqueça de que fui eu quem lhe deu o dom da vida.

Eu lhe agradeço imensamente - repliquei.

 

Parado na varanda da mansão dos Newbury, observei o luar ilumi­nar o pântano até que Reese Newbury atendeu à porta. O clarão da lua teve um efeito surpreendente em seu rosto, tornando-o mais suave que da última vez em que eu estivera diante daquela porta. As bolsas sob seus olhos tinham aparência ruim, mas as pupilas ainda brilha­vam de maneira incomum, ainda eram a fonte do tremendo poder daquele homem pálido.

Preciso falar com minha mãe, sr. Newbury - disse.

Ele pestanejou à luz do terraço e da lua, antes de me reconhecer.

Ela tem sido um anjo, Tom. Não sei o que teria feito sem ela. Sua mãe é uma mulher incrível. Espero que você saiba disso.

Sim, senhor. Eu sempre soube disso. Seria possível lhe dizer que estou aqui?

Claro. Entre, por favor. - Quando chegamos à sala, o sr. Newbury murmurou: - Ela está com Isabel. Quase não sai do lado dela, até mesmo para comer. O médico diz que essa agonia não vai demorar muito. O câncer se espalhou por todo...- Incapaz de conti­nuar, engasgou-se com as palavras que estava para pronunciar. En­quanto tentava recuperar o controle, ouvi os grandes relógios dando badaladas metálicas. Anunciavam nove horas. Na penumbra do am­biente as batidas sombrias de cada um deles, em cada cômodo da mansão, fizeram-me perguntar a mim mesmo se seria apenas nas ca­sas de pessoas que estavam morrendo que se ficava tão consciente da presença de relógios.

Você quer esperar em meu escritório no andar superior? - per­guntou Reese. - Lá é fechado. Você e sua mãe podem conversar...

Sei onde é - respondi, enquanto o seguia pela escadaria acarpetada.

Ao me sentar, questionei-me se ele me haveria levado para lá de propósito. Logo, porém, lembrei que Reese Newbury fizera tantas coi­sas execráveis na vida que provavelmente não se recordaria de ter esbofeteado um menino de 12 anos que brigara com seu filho. Esta­vam ali as mesmas fileiras estéreis de livros nunca lidos e o mapa do município guarnecido com alfinetes que marcavam as terras que ele possuía.

Ao entrar na sala, minha mãe sussurrou:

Isabel gostaria de vê-lo, filho. Está tão satisfeita por você ter vindo visitá-la! Não é uma coisa gentil?

Por que Isabel estaria satisfeita era um grande mistério para mim. De qualquer modo, minha mãe parecia encantada pelo simples fato de Isabel saber que eu habitava o mesmo planeta. Tomando-me pela mão, ela me levou ao longo do corredor escuro e silencioso.

É aqui - murmurou, esquecida de que eu, certa vez, ajudara Luke a carregar uma tartaruga de 90 quilos para aquele quarto.

Quaisquer maus sentimentos que eu tivesse em relação a Isabel Newbury, porém, dissolveram-se quando vi seu corpo esquálido en­costado na pilha de travesseiros sobre a cama. Eu poderia odiar al­guém durante toda a vida, mas ainda assim rezaria para que essa pessoa não tivesse uma morte igual àquela. Com o corpo definhado, ela brilhava de tanta febre. Um cheiro masculino de morte enchia o quarto, uma mistura de remédios, flores e água-de-colônia destilados, formando uma fragrância de vinho barato.

Sua mãe tem sido a única, Tom - declarou a enferma. - Todas as outras têm medo de me ver.

Não é bem assim, Isabel - observou minha mãe. - Só faço o que qualquer amiga faria. E você tem recebido muitos cartões e flores.

Fui má com você e sua família, Tom - Isabel pronunciava lentamente as palavras. - Já pedi desculpas à sua mãe centenas de vezes.

E eu repito que não há nada de que se desculpar - replicou minha mãe. - Sempre fomos boas amigas. O problema é que estáva­mos tão ocupadas criando nossos filhos que nunca conseguimos nos ver muitas vezes.

Suas desculpas estão aceitas, sra. Newbury - disse eu. - É muito gentil de sua parte pedir desculpas.

Tom, que coisa rude! - exclamou minha mãe.

Obrigada, Tom - continuou a mulher. - Nas últimas duas se­manas, fiquei deitada aqui, pensando em minha vida. Fiz coisas que não consigo entender. Não reconheço a pessoa que fez essas coisas. Em nada parece comigo. É uma vergonha que a gente tenha de estar morrendo para perceber isso.

Ora, quem diz que você está morrendo, Isabel? - exclamou minha mãe. - Garanto que você derrota essa doença e ainda vai fazer um longo cruzeiro com Reese.

Meu único cruzeiro será para a Casa Funerária Ogletree...

Não fale assim, Isabel. Não desista. Você tem de lutar.

A morte é apenas a fase final da vida, Lila. Todos passaremos por ela. Certamente não é minha fase favorita. Isso eu garanto.

Como vai Todd, sra. Newbury? - perguntei.

Todd está como sempre esteve. Egoísta e corrompido. Casou- se com uma boa moça. Uma Lee, da Virgínia. Passa o tempo todo incomodando-a. Só veio me ver duas vezes desde que adoeci. Mas telefona uma vez por mês, seja isso conveniente ou não.

Ele esteve aqui no último fim de semana, Tom - acrescentou minha mãe. - Dá para ver que a doença da mãe lhe parte o coração. Ele a ama tanto! É igual a todos os homens; só não sabe como expressar seu amor.

Ele o expressa com eloqüência, Lila - ironizou Isabel. - Não vindo me ver.

Você está cansada, minha querida. Diga boa-noite a Tom. De­pois eu a acomodo para dormir.

Você poderia me trazer um pouco de água gelada? - pediu ela, fazendo um gesto em direção à jarra vazia sobre a mesa-de-cabeceira. - Estou com muita sede.

Volto já - disse minha mãe.

Ao ouvir seus passos na escada, Isabel Newbury voltou os olhos mortiços para mim e disse as palavras que mudariam minha vida para sempre:

Meu marido está apaixonado por sua mãe, Tom. E eu aprovo.

O quê? - sussurrei, perplexo.

Reese necessita de alguém que cuide dele. Duvido de que ele conseguisse sobreviver sozinho por muito tempo. - Isabel falava como se estivesse conversando sobre o tempo. - E sua mãe tem sido tão boa para mim! Aprendi a gostar dela imensamente.

Bem, e isso é ótimo? A senhora já pensou em meu pai?

Lila me contou tudo sobre ele. Imagino que você o odeie tanto quanto ela.

De jeito nenhum. Gosto um milhão de vezes mais dele que de Reese Newbury.

Por enquanto é amor platônico, Tom. Eu lhe asseguro. Sua mãe na certa nem percebeu.

Sra. Newbury, como você deixa deitar na cama de seu marido uma mulher que nem sequer fez parte daquela merda de livro de culinária?

Não gosto de vulgaridades - disse ela, irritada e com a voz fraca.

A senhora tem coragem de me chamar de vulgar, depois que se faz de alcoviteira para seu marido no leito de morte?

Estou apenas cuidando de minhas obrigações. Achei que você devesse saber. Eu não queria que isso o apanhasse de surpresa.

Sim, eu odeio surpresas. Minha mãe sabe algo a respeito?

Não. Mas Reese e eu já conversamos sobre isso. Não temos se­gredo entre nós.

Então lhe avise que ele só se casará com minha mãe depois que passar por cima de meu cadáver. Posso aceitar muitas coisas neste mundo, menos ser enteado de Reese Newbury. E também me recuso a ser meio-irmão de Todd. O que aconteceu com a senhora? Esteve jo­gando merda em minha família desde que nasci. Essa é a jogada final? É seu último gesto de desprezo?

Naquele instante, ouvimos minha mãe aproximando-se da porta. A sra. Newbury pôs um dedo sobre os lábios quando ela entrou com a jarra de água gelada.

Bateram um bom papo enquanto eu estava fora? Contei a Isa­bel tudo a seu respeito, Tom. Ela disse que nunca encontrou uma mãe mais orgulhosa dos filhos. E eu acho que é verdade. Meus filhos sem­pre foram a razão de minha vida.

Obrigada por ter vindo, Tom - disse a enferma, apertando mi­nha mão. - Por favor, volte logo para fazer outra visita.

Espero que a senhora melhore. Mande me avisar se houver algo que eu possa fazer. Boa noite.

 

Sentado diante de minha mãe, no escritório, eu refletia sobre a pos­sibilidade de fingir que estava tudo bem. Se ela e Reese se faziam decla­rações de amor sobre o corpo da esposa dele que morria, isso não era da minha conta, principalmente quando a tal esposa parecia encan­tada em seu generoso papel de casamenteira.

Por que Isabel não está no hospital? - perguntei, evitando falar de outros problemas naquele momento. - Ela obviamente está mor­rendo.

Ela quer morrer na casa em que seus antepassados morreram. Decidiu passar os últimos dias em sua própria cama.

De que tipo de câncer ela sofre?

Está espalhado pelo corpo inteiro. Começou no reto.

Puxa! Eu não sabia que Deus possuía um senso de humor tão agudo!

Isso foi uma das coisas mais cruéis que já ouvi alguém dizer. - Minha mãe levantou-se para se assegurar de que não havia ninguém escutando à porta. - Isabel e eu somos amigas íntimas, Tom, e não admito essa falta de respeito. Ela já está bastante magoada porque suas melhores amigas praticamente a abandonaram. É verdade que elas vêm uma ou duas vezes por mês, ficam durante uma hora, mas se pode ver que estão ansiosas para ir embora.

O que é realmente surpreendente, mãe, é que Lila Wingo, uma de suas piores inimigas, esteja cuidando dela em tempo integral.

Eu sempre disse que passado é passado. Nunca fui de me pren­der a rancores. Essa situação tem sido difícil para o pobre Reese. Ele está tão perturbado...

Ótimo. Fico satisfeito por ele estar perturbado. Sempre achei que se podia medir a profundidade do humanitarismo das pessoas pelo tamanho do ódio que sentissem por Reese Newbury.

Ele é um homem incompreendido.

Ao contrário! Ele é muito bem compreendido! Agora, se ele tiver câncer no reto, saberemos que Deus possui um plano divino de­senvolvido para cada um de nós.

Não admito que você fale assim dos Newbury, Tom! Não ad­mito mesmo. Eles são meus melhores amigos em Colleton. Por mais que lhe pareça estranho, eles têm sido muito gratos pelo auxílio que tenho dado. Não sou de aceitar gratidão apenas por fazer meu dever de vizinha. Sempre me dei livremente e nunca pedi nada em troca. Mas, desde que comecei a vir aqui, percebi como são solitários. Não possuem verdadeiros amigos, como você e eu entendemos esse termo. Há apenas pessoas que estão em torno deles para tirar vantagem do dinheiro e da posição social que têm. E claro que, sendo um casal so­fisticado, eles percebem um impostor a 1 quilômetro de distância.

Também acho. Os espelhos devem deixá-los loucos! Mas eu vim até aqui porque papai esteve lá em casa hoje.

Eu sei que foi por isso que você veio. Eu estava esperando você.

Papai lamenta e fará qualquer coisa para você voltar para casa. - Eu me sentia mal ao usar as frases desajeitadas do velho.

Desperdicei tempo demais de minha vida com seu pai. Você percebe que eu não o amava desde que nos casamos?

Hoje ele foi intimado pelo oficial de Justiça. Os papéis que re­cebeu o convenceram de que você está agindo a sério.

Reese e Isabel me deixaram usar uma casa que têm na rua Lanier. Não estão nem cobrando aluguel. Isso não é simpático da par­te deles?

Bem, o que você quer que eu diga a papai?

Diga-lhe que lamento muito tê-lo conhecido e ter concebido filhos com ele. E que o dia mais feliz da minha vida será quando me livrar dele para sempre.

Tem certeza de que não quer comunicar isso de maneira mais forte?

Que direito você tem de condenar minha decisão, Tom? Você vivia dizendo que eu devia me divorciar. O que mudou para você?

Ele se tornou uma figura patética para mim. Não posso evitar essa sensação. Todas as vezes em que o vejo, desperta em mim a mais profunda piedade. Por causa da aura de fracasso em torno de si, da qual nunca conseguiu se livrar. Nem parece ser meu pai. É como um tio aleijado e desfigurado que visito uma ou duas vezes por ano.

Você não acha que eu deveria abandoná-lo? - perguntou mi­nha mãe.

Você deve fazer exatamente aquilo que deseja - retruquei quando nossos olhares se encontraram. - Você deve fazer o que a tor­ne feliz.

Você realmente acredita nisso?

Talvez não. Mas são as palavras que eu devo dizer.

Então posso contar com seu apoio?

Vocês dois têm todo o meu apoio.

Você concorda em testemunhar em meu favor no tribunal?

Não, não vou testemunhar por nenhum dos dois.

E isso que você considera apoio total? - perguntou ela, com um dos lados do rosto escurecido pela sombra do abajur.

Mamãe, quero que você ouça uma coisa. Já fui machucado o suficiente por esta família, tendo você e ele como pais. Agora sou adul­to e, se você não se incomoda, gostaria de ver esse casamento terminar sem que meu sangue fosse borrifado no processo de divórcio. Você e papai têm idade para se divorciar sem envolver os filhos. Eu a encorajo a fazer isso.

Você não vai testemunhar que ele me batia quando você era criança?

Não, vou dizer que não me lembro disso.

Não entendo seu esquecimento, Tom. Essas coisas ocorriam justamente quando eu estava tentando tirá-lo de cima de você ou de Luke.

Ora, eu sei que isso tudo aconteceu. O que estou querendo di­zer é para você nos livrar disso só mais uma vez. Vai ser ruim para nós se formos testemunhar contra ou a favor de um de vocês.

Bem, não preciso de você, Tom. Savannah prometeu testemu­nhar se fosse necessário. Disse que sou uma das mulheres mais mal­tratadas e exploradas que conheceu. E fará qualquer coisa para me ajudar a começar uma nova vida.

Lamento não poder fazer o mesmo. Mas alguém precisa estar lá para ajudar papai a recolher os pedaços de si mesmo quando você for embora.

Assim como tive de recolher os meus quando ele batia em você, que era apenas uma criancinha, não é?

Mãe, por que você me culpa pelo fato de Henry Wingo ser meu pai? Por que sempre alega isso contra mim?

Só tenho uma coisa contra você, Tom. Nunca me esquecerei de que, na única vez em que lhe pedi ajuda, você se omitiu. Tenho uma chance de ser feliz pela primeira vez na vida e você não quer me ajudar a conquistar essa felicidade.

A sra. Newbury acaba de me contar que o marido está apaixo­nado por você - comentei, fechando os olhos.

Ela está delirando. Vive dizendo bobagens, coisas loucas que não fazem o menor sentido. Mas é por causa da doença. Reese e eu damos risada quando ela diz essas tolices. Não ligamos a mínima para o assunto.

O que você faz é só da sua conta. E qualquer coisa que a deixe feliz me fará feliz. Mas gostaria que você me prometesse que não vai massacrar papai no processo.

Só desejo aquilo que mereço. O que ganhei com o casamento.

É disso que tenho medo... Bom, enquanto estivemos aqui, meus olhos não pararam de se dirigir para aquele mapa sobre sua cabeça. Eu o vi há muitos anos, quando você me trouxe para pedir desculpas depois da briga com Todd. Os alfinetes verdes marcavam as propriedades que Reese possuía e os vermelhos indicavam as ter­ras que tentava comprar. Há uma série de boatos por aí, dizendo que o governo tem um grande projeto para Colleton. Os especuladores de terras estão por toda parte. Parece que há um bocado de dinheiro em jogo.

Não sei do que você está falando, Tom - minha mãe respondeu com frieza.

Pela quantidade de alfinetes verdes que existem naquele mapa, dá para perceber que Reese comprou quase todo o município.

Todo mundo sabe que ele é o maior proprietário de terras de Colleton. - Havia um estranho orgulho em sua voz.

Pois diga a ele que é um pouco vergonhoso para ele colocar um alfinete verde sobre nossa ilha antes de possuí-la. E acho preocupante que você converse a respeito de dá-la de presente, antes que ela seja legalmente sua. Porque, se você obtiver a ilha, isso significa que Reese a roubou para você. E nós sabemos que ele pode fazer isso nesta cida­de. Ele muitos bajuladores em torno de si. E metade deles são os juizes do tribunal.

Não ligo a mínima para a ilha. Quase morri de solidão lá e fica­rei feliz se nunca mais puser os pés nela.

Papai era mestre em abusar de seu poder. Não gostaria que você cometesse o mesmo erro.

Meu único erro na vida foi ter sido boa demais com todos!

É engraçado... Papai diz a mesma coisa.

Acontece que, no meu caso, é verdade.

Levantei-me para ir embora.

Acho que você está fazendo a coisa errada, mãe. Ele nunca foi o homem adequado para você.

Eu poderia ter sido uma primeira-dama - afirmou ela, a pro­pósito de nada.

O quê?

Eu acredito que possuo todas as qualidades para ser uma digna e valiosa primeira-dama deste país. Teria sido muito útil como aju­dante do presidente ou talvez do governador. Tenho verdadeiro talen­to como anfitriã, que ninguém conhece. E adoro encontrar pessoas de influência. Ah, eu poderia ter sido tantas coisas se não tivesse encon­trado seu pai em Atlanta!

Não vou apoiar ninguém nessa história - repeti, ao me dirigir para a porta. - Sei que vocês dois vão me odiar por isso, mas é assim que vou jogar.

Você é um perdedor, Tom. Um perdedor igualzinho a seu pai. Durante muitos anos tentei me enganar, dizendo que você era igual a mim. Você tinha muito potencial.

Quem é mais parecido com você agora?

Luke. Ele luta pelo que quer. Nasceu lutador, igual à mãe.

Antes que eu abrisse a maçaneta da porta, ela disse:

Por favor, não conte a ninguém sobre o que Isabel lhe disse esta noite. Ninguém pode ser responsabilizado pelo que diz quando está morrendo.

Não direi nada, prometo.

Depois de beijá-la no hall de entrada, segurei-a com os braços estendidos e observei seu rosto. Sua beleza me tocou profundamente. Fez-me ter orgulho de ser seu filho. E essa beleza também me causou preocupação quanto ao futuro de minha mãe.

Venha ver uma coisa - pediu ela, levando-me para a sala. - Há oito móveis aqui dignos de um museu. Oito!

Isso torna o lugar ruim para se relaxar, não?

Estou preocupada com seu pai, Tom - disse ela, de repente. - Tenho medo de que ele me machuque se eu levar adiante esse divórcio.

Isso não vai acontecer. Pode ficar tranqüila.

Como é que você tem tanta certeza?

Porque Luke e eu o mataríamos se tocasse em você. Não se preocupe com isso. Luke e eu não somos mais menininhos.

Minha mãe parecia não me escutar. Seus olhos brilhavam de pra­zer e se empenhavam num lento inventário de tudo o que havia na­quela sala.

- Quer tentar adivinhar quais são as peças dignas de museu, Tom? - perguntou-me enquanto eu deixava a casa.

 

Isabel Newbury morreu durante o sono, depois de um período de intenso sofrimento. Minha mãe sentou-se ao lado da família durante o funeral.

Dias depois, meu pai contestou o divórcio baseado no fato de ser católico e de que sua igreja não reconhecia a separação. No entanto, o Estado da Carolina do Sul reconhecia. Savannah viera de Nova York na véspera do julgamento para exercer seu papel de testemunha-chave do processo. Ela chorou durante o depoimento, do mesmo modo que Lila e Henry Wingo. O juiz Cavender era sócio de Reese Newbury há muito tempo. Houve tristeza, mas não surgiu nenhuma surpresa du­rante o julgamento. Minha mãe e meu pai passavam um pelo outro nos corredores sem dar o menor sinal de que se conheciam. Tinham começado a dura tarefa de se tornarem estranhos. O julgamento foi um velório, uma abstração, e os símbolos da falta de afeto eram os três filhos que assistiam em agonia enquanto davam fim naquele casa­mento que, todos concordávamos, fora terrível. Os punhos e o tempe­ramento de Henry Wingo de nada serviam diante do desprezo que a lei dedicava aos maridos que maltratavam as esposas. No banco das testemunhas, ele choramingou, mentiu e tentou bajular o juiz. Foi bastante humano e seu desempenho me partiu o coração. Minha mãe foi adorável, controlada e digna. Mas algo soava artificial e pouco con­vincente em sua voz. Ela parecia estar recitando um texto para algum ouvinte secreto junto à janela, em vez de se dirigir aos advogados ou ao juiz Cavender.

Ao fim dos testemunhos, o juiz de imediato concedeu o divórcio. Em seguida, dividiu os bens. Henry Wingo manteve a posse do barco de pesca, da casa e da mobília, do dinheiro que havia em poupança e em conta-corrente, dos veículos e dos equipamentos para o cultivo da terra e de todo o ativo de qualquer tipo. Além disso, ficava isento de pagar pensão e não seria considerado responsável por qualquer dívida que a esposa tivesse feito desde que se mudara de sua casa. No mo­mento em que parecia que minha mãe fora desamparada, o juiz emi­tiu a parte final e mais surpreendente de sua decisão: concedeu-lhe a posse exclusiva da ilha Melrose.

Um ano mais tarde, minha mãe se casou com Reese Newbury, numa cerimônia íntima, presenciada pelo governador da Carolina do Sul. Na mesma semana, ela compareceu à sua primeira sessão como membro da Liga de Colleton.

Certa manhã, após o casamento de minha mãe, meu pai dirigiu seu barco para além do limite de 3 milhas e embicou-o em direção ao sul. Durante seis meses, não tivemos nenhuma notícia dele, até que Luke recebeu um cartão-postal de Key West, na Flórida. Henry dizia estar vendo uma tonelada de camarões e que finalmente descobrira uma maneira de ganhar muito dinheiro. Não falou em mamãe nem nos deu qualquer previsão de quando o veríamos de novo. Ele estava em alto-mar, a oeste da Jamaica, quando os agentes do governo federal anunciaram seus planos para Colleton.

Em Columbia, em uma reunião na sede do governo, na qual esta­vam presentes minha mãe e Reese Newbury, a Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos anunciou que suas novas usinas seriam projetadas, construídas e operadas pela Companhia Y. G. Mewshaw, de Baltimore, Maryland, e se localizariam dentro das fronteiras do município de Colleton, na Carolina do Sul. A região inteira seria desa­propriada para o que seria conhecido dali por diante como Projeto do Rio Colleton. As novas usinas iriam produzir materiais para fabricação de armas nucleares e combustíveis essenciais à operação de usinas atômicas. O Congresso destinara 875 milhões de dólares para o início das obras.

O porta-voz da comissão declarou que a região fora selecionada após exaustivo estudo de mais de trezentas áreas espalhadas por toda a parte continental dos Estados Unidos. Enfatizou também que, para abrir espaço para a zona de segurança que as fábricas re­queriam, seria imperativo que aproximadamente 304 famílias se mudassem ao longo dos 18 meses seguintes. As Secretarias de Agricultura Federal e Estadual estavam se organizando para dar assistên­cia às famílias forçadas a mudar de residência. Era a primeira vez na história da República que o governo se apossava de uma comunida­de estabelecida. As fábricas entrariam em funcionamento dentro de três anos e a bela Colleton lideraria a produção mundial de plutônio, produzindo mais bombas de hidrogênio que qualquer outro lugar fora da União Soviética.

- Não me importo de abrir mão de minha cidade natal para sal­var o país dos comunistas russos - declarou Reese Newbury, perante as câmeras de televisão.

A propaganda em torno do assunto dizia que o projeto era o maior e mais caro empreendimento do governo federal ao sul da linha Mason-Dixon. Traria bilhões de dólares à economia da Carolina do Sul e geraria empregos de Charleston até Savannah. Senhor de um grande domínio, o governo federal desapropriava as terras dentro das fronteiras de Colleton, que, enfatizava, era o município mais pobre e mais esparsamente povoado de todo o estado. Agentes seriam envia­dos para avaliar as terras e adquiri-las a preços justos de mercado. E entraria em funcionamento uma corte especial de apelo para julgar as disputas entre os avaliadores e os proprietários. Também foram pro­metidas mudanças das casas à custa do governo, desde que fossem para terrenos situados num raio de 320 quilômetros de distância de Colleton. Já que era publicamente reconhecido o fato de que a cidade tinha alguma importância histórica, o governo pretendia manter par­te dela intacta, e começara a limpar 3.200 hectares de terra na região sul do município de Charleston. Ali seria erguida a Nova Colleton e a terra seria gratuita para os cidadãos despossuídos da "velha" Colleton. Os jornais do estado começaram a falar a respeito de Colleton usando verbos no passado. Os editoriais aplaudiam a decisão oficial de im­plantar um complexo industrial tão grande na Carolina do Sul e lou­vavam o povo de Colleton por seu sacrifício em prol da defesa nacional. Todos os políticos do Estado davam veemente apoio ao pro­jeto. Foi uma época em que se ouviram os chavões mais irritantes e as mentiras mais deslavadas. O prefeito respaldava por completo o Pro­jeto do Rio Colleton, assim como a Câmara dos Vereadores e os fun­cionários públicos. Reese Newbury os avisara antes que o anúncio fosse feito e todos tinham tido tempo de especular com as várias ex­tensões de terra disponíveis no município.

Havia reuniões e discussões acaloradas entre os funcionários públicos e outros moradores, mas a temível máquina governamen­tal já fora posta em movimento, de modo que não podíamos sequer desacelerar o que estava acontecendo. Embora os nativos de Colleton escrevessem cartas aos jornais e aos seus congressistas, os que estavam no poder entendiam que, passada a tempestade, a bela e atrasada cidade de Colleton seria substituída por uma tropa fervilhante de operários e cientistas experimentados. Apenas 8.200 pessoas perderiam suas casas; por outro lado, o governo prometia ser solícito e generoso na ajuda aos moradores de Colleton para fa­zerem a transição. Não houve voto, referendum, nem uma só pes­quisa de opinião entre os cidadãos. Acordamos aquela manhã para descobrir que a cidade desapareceria sem deixar vestígios. Não havia como inverter aquela decisão, já que nos era negada qualquer re­paração se nos recusássemos a aceitar a premissa básica do governo - a de que Colleton tinha de ser mudada em nome do sacrossanto progresso.

O governo promoveu uma reunião, e apenas uma, para explicar como a diáspora funcionaria. Foi realizada no ginásio de esportes da escola de ensino médio sob o debilitante calor de agosto. A multidão lotou o ginásio e a rua que ficava em frente. Por isso, instalaram alto- falantes para que quem não tinha entrado pudesse escutar. Um repre­sentante da Comissão de Energia Atômica faria a palestra e responderia às perguntas. Chamava-se Patrick Flaherty e era magro, bonito e bem-vestido. Dava a impressão de ser intocável e obstinado. Falava com voz sem sotaque e atonal. Representava o governo, a ciên­cia e os estranhos que entravam no município num fluxo incessante. Todos os seus lemas eram desfigurados, e a linguagem, violentada, para suavizar o fato de que estavam matando nossa cidade.

Patrick Flaherty era a perfeita manifestação do americano mo­derno. Escutei-o com estupefação, anestesiado por seu heróico domí­nio de todos os clichês da língua inglesa. Sua boca era a ermida da banalidade. Cada movimento que fazia, cada palavra que dizia era azeitada com a condescendência. Estava ali a quinta-essência do ho­mem de organização, cujos "i" eram pontuados e cujas frases eram marcadas por uma portentosa vacuidade. Limpo, servil e distante de qualquer vestígio de compaixão, Patrick Flaherty postou-se diante de nós como um espinho no olho deste século XX aberrante e alucinante. Sua voz enchia o ginásio com um elenco completo de esta­tísticas. Num timbre que lembrava o cobre, suas palavras pareciam empoeiradas com mortíferas e brilhantes moléculas de sílica. Em si­lêncio, ouvimos que nossa cidade iria mudar-se, casa por casa, tijolo por tijolo. Então, ele concluiu:

- Na minha opinião, os habitantes de Colleton são os que têm mais sorte nos Estados Unidos. Vocês receberam a oportunidade de provar ao mundo inteiro seu patriotismo e estão fazendo isso com a consciência de que o país estará mais seguro por causa desse sacrifí­cio. Necessitamos de plutônio, de submarinos nucleares e de mísseis MIRV porque amamos a paz. Pode-se soletrar plutônio como P-A- Z. Sabemos que muitos estão tristes por deixarem seus lares, porém não há ninguém envolvido nesse projeto que não sinta por vocês. Felizmente nós sabemos que, além de amar Colleton, vocês também amam os Estados Unidos. E, amigos, se vocês pensam que amam Colleton, esperem só o que lhes reservamos em Nova Colleton; um novo posto de bombeiros, tribunal, delegacia, escolas, parques, tudo novo. Prometemos que Nova Colleton será uma das mais belas comunidades do país quando estiver pronta. Se vocês amam real­mente o velho lar ancestral, ficaremos felizes em mudá-lo para Nova Colleton, à nossa custa. Estamos aqui para fazê-los felizes. Porque, quando o país precisou de ajuda, vocês se levantaram e disseram "presente" ao programa Átomos para a Paz, da Comissão de Energia Nuclear. Todos agora deveriam se levantar e dar a si mesmos uma ovação.

Ninguém se mexeu. Não se escutou um único som no ginásio, exceto o das palmas que Flaherty batia sozinho. Enervado com aquele silêncio, ele perguntou se alguém desejava dizer algo em nome de seus concidadãos. Foi quando Luke levantou-se do meu lado e caminhou ao longo do ginásio, observado por todos os presentes. Houve certa inquietação à sua passagem. Movia-se com segurança e seu rosto exi­bia a sombria inexpressividade de quem tinha o espírito ferido.

Postando-se diante do microfone, não tomou conhecimento da pre­sença de políticos às suas costas, nem deu sinal de reconhecer a mãe, que estava sentada sobre uma plataforma, junto aos convidados de honra. Espalhou com cuidado algumas folhas de papel amarelo na tribuna e então começou:

- Depois de lutar na Ásia, fui enviado ao Japão para me recupe­rar e descansar. Lá, visitei duas cidades: Hiroshima e Nagasaki. Con­versei com pessoas que tiveram a sorte de ver os "Átomos para a Paz" em ação. Gente que esteve presente nessas cidades quando as bom­bas foram jogadas em 1945. Um homem me mostrou a foto de um bebezinho sendo comido por um cão faminto nas ruínas. Vi mulhe­res com cicatrizes horrendas. Fui a um museu em Hiroshima e senti o estômago embrulhado por ser americano. O plutônio não tem nada a ver com a paz. É uma palavra em código para apocalipse, para a Besta do Sião. E fará pelo mundo inteiro o que está fazendo agora em Colleton. Em pouco tempo, vão transformar nossa linda cidade num lugar dedicado à destruição do universo. E não ouvi um único homem ou mulher desta cidade dizer "Não". Então me pergunto: quantas ovelhas esta cidade possui? Onde estão os leões? Onde eles estão dormindo?

"Desde que o governo anunciou a tomada de minha cidade, fiz o que qualquer sulista faria: li a Bíblia à procura de consolo e força, tentando descobrir ali alguma mensagem de conforto nessa hora de infortúnio. Procurei a história de Sodoma e Gomorra para ver se encontrava algum termo de comparação entre aquelas cidades peca­minosas e Colleton. Confesso que nada encontrei. Colleton é uma cidade de jardins, barcos de lazer e sinos de igrejas aos domingos. Não é permissiva sob nenhum ponto de vista. Seu único erro foi produzir pessoas que não a amaram o suficiente, pessoas que a ven­deriam a estranhos por trinta moedas de prata. Mas continuei a ler a Bíblia, buscando agora uma mensagem de Deus que me desse socor­ro durante a vingança dos filisteus. Porque, se eu não tentar salvar a única cidade que verdadeiramente amei neste mundo, quero que Ele me transforme em uma coluna de sal, porque não olhei para trás. Prefiro ser uma coluna de sal a ser um Judas Iscariotes coberto de ouro e do sangue de sua cidade natal em qualquer outra parte do mundo.

Enquanto Luke falava, parecia que a consciência da cidade levan­tava-se dos mortos com o murmúrio de revolta que ondulava pela multidão. A voz dele colocava em funcionamento o repicar da coali­zão que batia no peito dos homens, das mulheres e das crianças que se deixavam tocar pelo grito apaixonado da terra natal. Até seu tom de voz delicado era uma acusação à letargia que se abatera sobre a cidade como um pó invisível. E, ao mencionar o nome de Judas Iscariotes, houve no público o crepitar dos fogos da dissensâo.

— Ao não descobrir o que queria, resolvi retornar ao início. Ali, Deus dizia algo que consegui entender. Muitos acreditam na inter­pretação literal da palavra de Deus. Eu também. Mas todos sabem que Deus fala de dois modos diferentes. Temos de fazer uma distin­ção entre eles. Há os livros da revelação e os da profecia. Os da reve­lação são os que nos contam as ocorrências históricas, como o nascimento de Jesus, a crucificação, a morte na cruz. O próprio Li­vro da Revelação é um trabalho de profecia em que o evangelista prediz o julgamento final e a chegada dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Isso não aconteceu ainda, mas vai acontecer porque foi escrito em nome do Senhor.

"Foi quando estava lendo sobre a Criação que concluí que o Gênesis não é um livro de revelação, mas de profecia. Ele prevê o futu­ro e não fala do que aconteceu no passado. É difícil para quem cresceu às margens do rio Colleton e conheceu a beleza das estações e dos pântanos; é difícil para nós imaginar que ainda estamos no paraíso, e que o jardim do Éden está para nos ser negado? É difícil imaginar que Adão e Eva ainda esperam para nascer e que estamos vivendo no paraíso sem saber?

"Todos sabem que Jesus falava por meio de parábolas. É possível que o livro do Gênesis seja apenas outra parábola, a maneira que Deus usou para nos prevenir contra os perigos do mundo. E, se vocês con­cordarem por um momento que o Gênesis pode ser uma parábola, pensem no seguinte: quando Eva estica o braço e toca o fruto proibi­do, perde o paraíso e é forçada a abandonar a felicidade perfeita do Éden; será que Deus não está se dirigindo a nós aqui em Colleton, hoje? O que vai destruir nossa cidade natal? O que nos forçará a aban­donar o paraíso e ir para terras desconhecidas? O que vai nos privar de tudo o que conhecemos, amamos e agradecemos a Deus todos os dias de nossas vidas?

"Meus amigos e vizinhos, eu li o Gênesis e sei a resposta. Rezei para que Deus me desse sabedoria e Ele a concedeu. O Gênesis é a parábola pela qual Deus tenta chegar ao povo de Colleton para ad­verti-lo e advertir o mundo inteiro contra aquilo que vai nos des­truir o paraíso. Não foi a maçã que Eva tocou... O fruto proibido é o plutônio."

Lucy Emerson, a florista, levantou-se atrás de mim nas arquiban­cadas e gritou:

Amém, irmão. - E a multidão soltou um murmúrio de solida­riedade.

Patrick Flaherty subiu ao pódio e tentou tirar o microfone de Luke. A resposta de meu irmão foi ampliada pelos alto-falantes:

Sente-se, cientistazinho. Eu ainda não terminei. - Diante da multidão impaciente, modificada pelo poder da palavra, Luke continuou:

Temos em Colleton o que todos estão procurando. E uma ci­dade pela qual vale a pena lutar. Aliás, pela qual vale a pena morrer. Fiquei surpreso, meus amigos, por termos recebido entre nós estra­nhos que prometem destruí-la, remover nossas casas e desenterrar nossos mortos. Pensei que fôssemos sulistas e que nosso amor à ter­ra nos tornasse diferentes dos outros americanos. Então, lembrei- me de que foram os sulistas, cidadãos de Colleton, que trouxeram os estranhos para nossa cidade e a venderam por um punhado de di­nheiro. - Ele se voltou e encarou minha mãe, os políticos e os ho­mens de negócios que estavam na plataforma. Fez um gesto com o braço e continuou:

Esses são os novos sulistas cujos corações e almas estão à venda, os que podem ser comprados com o dinheiro dos estranhos. Podem ir morar na Nova Colleton ou no inferno. Não são meus irmãos e irmãs. Não fazem parte do Sul que eu amo. Tenho uma única sugestão a fa­zer, nascida do desespero, porque já estão derrubando as árvores da ilha em que nasci. Vamos nos lembrar de que somos descendentes de homens que enfrentaram os céus porque não aceitavam render-se ao governo federal. Nossos ancestrais morreram em Buli Run, Antietam e Chancellorsville. Lutaram por um motivo ruim, e eu não quero nin­guém como escravo. Mas também não desejo ser escravo nem permi­tirei que nenhum homem me ponha para fora da terra que Deus me deu quando nasci. Disseram que Luke Wingo terá de fazer as malas e sair de Colleton dentro de um ano, ou estará sujeito às punições da lei da terra. - Ele se deteve por um momento e então, com voz calma e fria, declarou: - Eu lhes prometo isto: Luke Wingo não vai. E juro que eles terão de vir e me atirar para fora desta terra. Só que eu garanto que não vai ser fácil. Conversei com muitos de vocês e sei que estão insatisfeitos, apesar de jogarem com nossa consciência dizendo-nos que é um dever patriótico ir embora como cães servis e atravessar a ponte rumo a terras desconhecidas. O governo sabe que vocês são su­listas e crê que são burros. E seria burrice mesmo se saíssem sem lutar. Falam que essas bombas, esses submarinos e mísseis serão usados para matar os russos. Alguém neste ginásio já viu um russo? O que vocês fariam se uma droga de um russo entrasse em suas casas hoje e dissesse: "Vamos evacuar os habitantes desta cidade e transferi-los para um lugar a 65 quilômetros daqui. Vamos arrasar as escolas e as igrejas, dividir as famílias e profanar os túmulos de seus entes queri­dos?" Haveria russos mortos pelo município inteiro, com toda certe­za. Tanto eles poderiam me mandar para a Nova Colleton como para a Rússia. Não conheço nenhuma Nova Colleton.

Diga-nos o que fazer, Luke - gritou uma voz.

Diga, Luke - reforçaram outras vozes na multidão.

Não sei o que fazer - admitiu ele. - Mas tenho algumas suges­tões. Não sei se vão funcionar, mas podemos tentar. Amanhã, vamos encaminhar uma petição exigindo a destituição de todos os funcioná­rios públicos da cidade, para nos livrar desses gananciosos. Em segui­da, exigiremos que seja aprovada uma lei proibindo as novas construções do governo federal no município. É claro que o governo criará leis para se opor às nossas medidas. E todo o peso do estado será jogado sobre nós. Neste caso, sugiro que o município de Colleton redija um projeto de secessão do Estado da Carolina do Sul. A luz da história, nenhum estado entenderia mais a necessidade de separar-se que a Carolina do Sul. Tomaremos o destino em nossas mãos, decla­rando Colleton livre da fabricação de plutônio até a eternidade. Va­mos proclamar, se for necessário, que somos um estado soberano. Daremos trinta dias ao governo federal para que desista do Projeto do Rio Colleton e da desapropriação das terras. Repetiremos as palavras de Thomas Jefferson na Declaração de Independência, quando vie­rem à nossa porta: "Sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva a qualquer uma destas coisas: vida, liberdade e procura da felicidade, é um direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo." Caso se recusem a nos ouvir, acredito que se deva de­clarar estado de guerra. Seríamos facilmente derrotados, mas sairía­mos de nossas casas com a dignidade intacta. Dentro de cem anos, alguém cantaria canções louvando nossa coragem. Ficaria a lição, o poder de dizer "Não". Se os agentes do governo continuarem com seu assédio, com a remoção forçada dos cidadãos de Colleton, aconselho a todos vocês, amigos e vizinhos que conheci durante toda a vida: lutem contra eles, lutem contra eles. Quando chegarem às suas portas, usem uma braçadeira verde para mostrar que fazem parte de nosso grupo. Esse será o símbolo de nosso descontentamento. Peçam gentilmente para que eles saiam de suas propriedades. Caso se recusem, ponham uma arma em seus rostos. Peçam que saiam novamente. Se insistirem na recusa, dêem-lhes um tiro no pé. Li, certa vez, que o conceito de lei comum começou na Inglaterra, onde o próprio rei não podia passar pela porta da casa do camponês mais pobre se não tivesse sua permis­são. Estou clamando para que o rei não atravesse nossas portas. Esse filho-da-puta não foi convidado.

Nesse instante, o delegado Lucas aproximou-se de Luke por trás e fechou uma algema em torno de seu pulso. Depois, junto com dois ajudantes, empurrou-o em direção à porta. A reunião se encerrou sem que nenhuma das milhares de pessoas que lotavam o ginásio emitisse um som. Havia fúria e sedição embutidas naquele silêncio, mas não eram suficientes.

Luke foi fichado, obrigado a deixar suas impressões digitais e acu­sado de fazer ameaças terroristas contra funcionários federais e esta­duais, além de instigar atos sediciosos contra o Estado da Carolina do Sul. Ele declarou que não reconhecia a autoridade do governo e que se considerava prisioneiro de guerra em meio às hostilidades existentes entre Colleton e o governo federal. Deu seu nome, posto militar e nú­mero de série. E, citando os tratados da Convenção de Genebra concernentes ao tratamento de prisioneiros de guerra, recusou-se a responder a qualquer pergunta.

No dia seguinte, o Charleston News and Courier publicou um ar­tigo irônico, contando que o delegado interrompera a primeira reu­nião secessionista na Carolina do Sul em mais de cem anos. Não houve petições passadas nas lojas da rua das Marés, nem braçadeiras verdes usadas em desafio ao Projeto do Rio Colleton. O único homem que levara a sério as palavras de Luke era o que estava preso numa cela com vista para o rio.

A guerra de Luke se iniciara.

 

Relutante, fui com minha mãe visitar Luke na cadeia na noite seguinte. Ela me segurava o braço enquanto caminhávamos pela cidade à luz das lâmpadas das salas de jantar das casas. Para mim, as mansões que outrora eram eternas pareciam agora frágeis e fáceis de desaparecer, como cartas de amor escritas na neve. Uma escavadeira estava estacionada sob um poste de iluminação, marcando o destino de Colleton com seu silêncio longo e sufocado. Parecia parte inseto, parte samurai, e a terra de minha cidade manchava suas mandíbulas. Nas ruas úmidas pela chuva, sentía­mos o aroma dos jardins partindo de longos galhos de glicínias e dos disciplinados medalhões de rosas. Pensei então: o que acontecerá a esses jardins? Uma sensação de perda irreparável me apertava o peito. E eu so­fria ainda por não dizer uma única palavra à minha mãe. Se fosse corajo­so, eu a abraçaria e lhe diria que entendia tudo. Mas, quando se lida com Tom Wingo, já se sabe que ele sempre acha uma forma de empobrecer e depreciar quaisquer virtudes que uma masculinidade confiante poderia fornecer. Havia um brilho espúrio em minha masculinidade, como a ar­dente artilharia de um município que se rendera sem luta.

Antes de entrarmos na cadeia, mamãe apertou minha mão e disse:

Por favor, Tom, apóie-me agora. Sei que você está com raiva de mim, mas tenho medo do que Luke possa fazer. Eu o conheço melhor do que ninguém. Luke passou a vida inteira procurando uma boa cau­sa pela qual morrer e pensa que a encontrou. Se nós não o detivermos, vamos perdê-lo.

Luke fitava o rio quando aparecemos à porta de sua cela para con­versar. A lua batia em seus cabelos e a sombra das barras emprestava a seu rosto um aspecto diferente. Ao vê-lo ali, soube que nunca encon­traria um corpo masculino mais bonito que aquele. Seus músculos longos e enxutos assentavam-se ao longo dos ossos em perfeita articu­lação e simetria. Ele possuía uma aura de fria substancialidade. Era quase material a sua fúria, que tinha expressão nos ombros tensos. Ele não se virou para nos cumprimentar.

Olá, Luke - disse minha mãe, hesitante.

Oi, mãe. - Os olhos dele estavam fixos no rio de águas brilhantes.

Você está furioso comigo, não está? - continuou ela, ansiosa por esclarecer as coisas.

Sim, claro. Há quanto tempo você sabia dessa trama? Quando foi que Newbury lhe deu a grande notícia? Quando foi que você pla­nejou roubar a única coisa que papai possuiu na vida?

Eu merecia ser dama da ilha. Dei meu sangue por aquele peda­ço de terra.

Você o roubou pura e simplesmente! Só não espere que seus filhos a amem depois disso.

Não há nada que se possa fazer a respeito, Luke. A ilha se foi. Colleton se foi. Temos de começar tudo de novo.

Recomeçar? Como é que se recomeça quando não se pode olhar para trás? O que acontece quando um homem olha por cima do ombro para ver de onde veio, para saber quem ele é, e o que vê é um cartaz que diz: "Entrada proibida"?

Quem escreveu aquele discurso que você leu ontem à noite?

Eu mesmo. Ninguém mais pensa como eu.

Graças a Deus as outras pessoas têm mais juízo. Mas quem o ajudou a escrevê-lo?

Mãe, a vida inteira você pensou que eu fosse burro. Nunca entendi por que, mas você me convenceu disso. Tanto que eu me sentia idiota na escola, ou mesmo quando estava com Savannah e Tom. Eu simplesmente vejo as coisas de maneira diferente da maioria das pessoas. Tenho um ângulo de visão diferente. Os outros são espertos em centenas de coisas. Eu sou esperto em quatro ou cinco. Você tem razão em um aspecto. Não foi minha a idéia de que o Gênesis era um livro de profecias. Ouvi isso num sermão de Amos, que me impressionou realmente.

E você quer me dizer que Amos achava que o plutônio era o fruto proibido? - perguntou minha mãe, com voz ácida.

Não, eu mudei essa parte. Para Amos, o fruto proibido era o ar condicionado. Isso não se encaixava no que eu queria dizer.

O governo sabe mais que você, meu filho. Precisam dessa fábri­ca para a defesa nacional.

Desde quando o governo sabe mais do que eu? E sabe mais a respeito de quê? Você também me disse isso quando fui para o Vietnã. A mesmíssima coisa. Então, lá fui eu, para matar campone­ses, nada além de camponeses, tão pobres que fariam você chorar. Matei seus búfalos, as pessoas e seus filhos, tudo o que se movia em minha frente. Matei até alguns soldados. Mas não muitos. Fiz isso porque o governo sabia mais do que eu. Agora, mãe, quero lhe dizer que o governo não sabe picas. O governo é mau. Não importa de que tipo seja. Descobri isso sozinho. Se alimentam um pobre, só o fazem porque sabem que esse pobre pode se levantar e cortar suas gargan­tas. Depois vêm com essa conversa a respeito dos russos! Quer saber o que eu acho da Rússia? Acho que é uma merda. E os Estados Uni­dos também são uma merda. O governo do Vietnã que ajudei a de­fender era outra merda. O norte-vietnamita também é merda. Sabe por que lutei no Vietnã, mãe? Porque, se não lutasse, me colocariam na cadeia. É uma senhora escolha, concorda? É por isso que eu pago os impostos. Porque, se não pagar, me colocam na cadeia. Agora mesmo, se eu quiser voltar ao lugar em que nasci, o governo vai me atirar na cadeia. Ontem, eu citei frases da Declaração de Indepen­dência e meu fabuloso governo me jogou na prisão.

Você não pode ir contra a lei, meu filho...

Por que não? Se lutei contra os vietcongues, por que não posso lutar contra a lei?

Luke, você está querendo que o mundo funcione à sua maneira - replicou minha mãe, encostando a cabeça nas barras da grade. - Você é cabeça-dura, teimoso e...

Burro? - Ele se adiantou alguns passos para nos encarar. - Eu sei que é isso que você está pensando.

Não, burro não é a palavra que eu estava procurando. Eu ia dizer puro. Mas sua pureza não leva à sabedoria. Só faz você se apaixo­nar por causas perdidas.

Não considero isso uma causa perdida, mãe. Só estou dizendo não. E tenho todo o direito a isso. Afinal, sou ou não um americano? Lutei numa guerra para poder dizer não. Conquistei esse direito. Meu país meteu-se numa merda de guerra contra uma merda de país e eu disse sim a isso. E o motivo que deram à nossa luta foi o de preservar o direito das pessoas de escolher como queriam viver. Disseram isso mi­lhares de vezes. É claro, estavam mentindo. Mas preferi acreditar neles. Não lutei na guerra pensando que, em seguida, meu próprio governo fosse roubar meu lar. Teria apoiado os vietcongues se houvesse imaginado essa possibilidade. Savannah e Tom disseram não à guerra. Lutei para que eles tivessem esse direito. Porque, no fundo, não passo de um burro: acreditei em tudo o que me foi ensinado sobre os Estados Unidos. Nin­guém ama mais este país do que eu. Ninguém! Não o país inteiro, claro; não ligo a mínima para Idaho ou Dakota do Sul. Nunca estive lá. Minha cidade é meu lar. É o que posso ver dessa janela. Apenas 65 quilômetros quadrados de nosso planeta. Mas é o que amo e pelo que luto.

Mas é o lugar que você vai ter de deixar, Luke - disse minha mãe. - Você soube do pobre sr. Eustis? Ele se recusou a permitir que os agentes olhassem sua fazenda no rio Kiawah. Parece que ele levou a sério seu discurso. O velho Jones tentou fazer a mesma coisa, embora morasse em um trailer. Os dois receberam voz de prisão.

Pois eu não vou abandonar minha casa quando sair daqui - declarou Luke, com firmeza.

Você fala só da boca para fora. Se tentar permanecer na ilha, os agentes irão lá e farão com você o que fizeram com o sr. Eustis e o sr. Jones.

Eu não sou o pobre Eustis nem o velho Jones!

Você foi criado para ser um cidadão respeitador das leis.

O lugar onde fui criado não existe mais. Seu marido e aqueles malditos políticos conspiraram para roubar minha casa.

Reese não conspirou coisa alguma. E eu me ofendo por você falar assim do meu marido!

Faz anos que ele compra terras e força os pobres fazendeiros a sair do campo. Ele sabia disso há muito tempo. A população do muni­cípio diminuiu nos últimos dez anos porque ele vem desalojando as pessoas de suas terras. Ele se casou com você apenas para obter uma extensão de terra que não conseguiria de outro modo.

Passando a mão pela grade, mamãe esbofeteou Luke com força.

Ele se casou comigo porque adora até o chão em que piso. E, mesmo que meus filhos não percebam, eu mereço essa adoração.

Sim, claro, você merece - concordou Luke. - Sempre acreditei nisso. Sempre achei você maravilhosa e sentia muito o fato de você e papai viverem tão mal. Estou contente por você agora estar feliz. Com­preendo que fez o que tinha de fazer. Assim, quero que você entenda que também tive de agir a meu modo. Pensei com muito cuidado nessa his­tória. Não me preocupei com outra coisa desde que foi feito o anúncio.

O que você acha que eu posso fazer, Luke? - perguntou mi­nha mãe.

Você pode detê-los.

Você está maluco, Luke - intervim, pronunciando minhas pri­meiras palavras naquela noite. - Eu fiz um acordo com o delegado. Ele relaxa a prisão se você concordar em ir para um hospital psiquiátrico e se deixar ficar sob observação durante duas semanas. E o que você deve fazer.

Por quê, Tom?

Porque você está falando muita bobagem, Luke. É impossível alterar o projeto aprovado. E um fato consumado. Você tem de pensar em recomeçar sua vida.

Todo mundo diz que nada pode ser feito... Os seres humanos adoram rolar de barriga para cima, como cachorrinhos.

O que está planejando, Luke? - perguntei.

Registrar um pequeno protesto.

Não vai fazer nenhum bem a você.

Isso é verdade, Tom.

Então, por que você vai fazê-lo?

Para ficar bem comigo mesmo. Você não quer me acompa­nhar? Nós dois juntos poderíamos virar o jogo às avessas. Ninguém conhece esses bosques e águas melhor do que nós. Faríamos os vietcongues parecerem recrutas.

Eu tenho família, Luke. Ou será que você não percebe? Estou numa situação diferente da sua.

Você tem razão, Tom. Sua situação é diferente.

Não gostei de seu tom de voz...

Isso não muda nada. Quer saber de uma coisa? Você era o que mais prometia entre nós, Tom. Mas, em algum momento ao longo do caminho, você se transformou de algo em quase nada. E pelo jeito vai evoluir para nada de nada. Um homem possui apenas alguns "sim" dentro de si, e precisa tomar cuidado para não gastá-los todos.

Estou dizendo não a você, Luke.

De jeito nenhum, irmãozinho. Você apenas está dizendo sim aos outros.

Você não pode parar o governo, Luke - interveio minha mãe. Ele voltou seus olhos tristes e luminosos para ela; pareciam os olhos de uma pantera obediente.

Eu sei, mãe. Mas posso ser um adversário respeitável.

 

E Luke Wingo tornou-se um adversário respeitável.

Falo agora não como testemunha, mas como o atormentado catador de fragmentos. Escutei muito e consolidei as brumas dos boa­tos e insinuações durante o ano em que minha família e minha cidade se dissolveram. Mantive o inventário da destruição em dia. Agradável era a cidade à beira do rio cheio de curvas que foi desmantelada no espaço de um ano. Linda era Colleton em sua última primavera ao espalhar azaléias como uma menina que jogasse arroz num casamen­to desesperado. Em deslumbrante profusão, Colleton amadurecia na névoa de jardins perfumados e sofria sob um dossel de promissora fragrância. Garças se projetavam da relva do campo como pequenas torres, ágeis em sua quase imobilidade etérea. Uma família de lontras nadava pelas cristas das ondas nos destroços próximos à ponte, e as árvores ao longo do rio estavam repletas de vida com o movimento das tímidas colônias de garçotas. As águias-pescadoras traziam trutas agitadas para os filhotes que permaneciam nos ninhos em formato de chapéu, no alto dos postes telefônicos. Doninhas dançavam nos ca­nais. Os camarões entravam nos riachos para desovar. Mas não havia nenhuma frota camaroneira para encontrá-los e nenhuma rede lhes interrompia a passagem rumo ao imenso pântano. As águas de Colleton, por questões de segurança, tornaram-se proibidas aos camaroneiros e pescadores. Aquela era a primavera em que a cidade se mudaria.

Assisti às mudanças das grandes mansões da rua das Marés. Cen­tenas de homens com guindastes e vastas plataformas inclinadas sol­tavam as casas de suas fundações e, com destreza e conhecimento dos mistérios da física, empurravam-nas em direção às imensas barcaças que as aguardavam no rio. Amarradas com cabos de aço, as casas su­biam o rio em direção a Charleston. A casa de minha mãe, flutuando sobre a água, lembrava o bolo de casamento de um rei. No terraço, ela e Reese Newbury acenavam para as pessoas que se encontravam na margem. Depois encheram de champanhe finas taças de cristal, brin­daram à cidade e atiraram as taças na água amarelada. Então, a ponte se abriu e minha mãe, sua nova casa e seu novo marido flutuaram miraculosamente entre os vãos, num rio subitamente fervilhante com uma armada de mansões brancas. Nas semanas seguintes, sempre que se olhava para o rio, via-se alguma casa conhecida movendo-se com estranha dignidade sobre o pântano, navegando para longe de seu posto majestoso.

As estradas também ficaram congestionadas com o tráfego dos enormes caminhões que levavam as casas para diferentes lugares da Carolina do Sul. Certo dia, espantei-me ao ver uma casa passar e, so­mente vários minutos depois, percebi ter testemunhado a viagem de estréia da casa de minha avó. A torre da igreja batista, parecendo um míssil reclinado, passou minutos depois. Tirei algumas fotos com mi­nha Minolta e enviei-as a Savannah, que escreveu um longo poema sobre a destruição da cidade. Através do visor da câmera, assisti à mudança da igreja episcopal, que passava com tanta elegância pelo crepúsculo que parecia transportada pelo ar. Fotografei os operários suados que escavavam os túmulos e os deportavam em sacos plásticos para os novos cemitérios sem grama, construídos ao longo da rodovia interestadual entre Charleston e Columbia. Se um edifício não podia ser movido ou vendido, era destruído e vendido como sucata. Os cães vadios eram mortos por caçadores que tinham licenças especiais. Os gatos, capturados em armadilhas e afogados no desembarcadouro público. Os tomateiros cresciam selvagens e inúteis. Os melões apo­dreciam no pé, ao lado de cabanas abandonadas. A escola e o tribunal foram dinamitados, e derrubadas as lojas que existiam ao longo da rua das Marés. No dia 1o de setembro, a cidade de Colleton estava tão extinta quanto Pompéia ou Herculano.

Pela terra que expropriou, o governo pagou quase 100 milhões de dólares, dos quais minha mãe recebeu cerca de 2% pela perda da ilha Melrose. Atenta às nuances dos sentimentos da família ela preparou quatro cheques de 100 mil dólares. Savannah e eu aceitamos agradeci­dos os nossos. Com aquele dinheiro, Savannah deixaria de estar apri­sionada ao desprezível papel de artista faminta. No meu caso, o dinheiro serviria para liquidar os empréstimos feitos para pagar a fa­culdade de Sallie e nos permitiria comprar a casa da ilha Sullivan. Meu pai não fora visto desde o casamento de mamãe, de modo que ela depositou o cheque numa conta de poupança até que ele aparecesse para receber sua parte.

Luke ateou fogo ao cheque na frente de minha mãe. Enquanto ela chorava, ele a fez lembrar-se de que era Luke Wingo, um me­nino do rio, da cidade de Colleton, e que ela o criara com a cons­ciência de que um menino do rio não poderia ser comprado por dinheiro algum.

Em junho, o administrador do projeto enviara uma equipe de demolição à ilha Melrose, para destruir a casa onde eu crescera. Uma equipe de 12 homens com três caminhões e duas escavadeiras com­pletariam o serviço. Quando um dos homens chegou com um pé-de-cabra à porta da frente, um tiro veio da floresta, lascando a madeira a 5 centímetros de sua cabeça. Tiros de rifle começaram a pipocar pelo jardim. Três balas furaram os pneus dos três caminhões e a equipe saiu correndo pela estrada que levava à cidade.

Quando já se encontravam longe, Luke saiu da floresta e, usando os coquetéis molotov que escondera no celeiro, explodiu os caminhões e as escavadeiras que haviam sido enviados para derrubar sua casa.

A luta começara para valer.

No dia seguinte, a equipe retornou, acompanhada por um bata­lhão da Guarda Nacional que fez uma varredura do bosque em torno da casa antes de avisar que havia segurança para começar a demolição. Sobre uma árvore, do outro lado do rio, Luke os viu arrasar a casa onde crescera. Posteriormente, disse-me que era como se estivesse vendo a família morrer diante de seus olhos.

Desse modo, minha cidade se transformou em ruínas, mas, ao con­trário dos restos eternos e sólidos das civilizações antigas, Colleton de­sapareceu sem deixar sinal de sua existência. Até mesmo a terra foi desnudada, revolvida e, sob os auspícios do Departamento de Agricul­tura dos Estados Unidos, foram plantados pinheiros. Todos os dias, seis mil operários com adesivos especiais nos automóveis e caminhões pas­savam pelas pontes que levavam às construções. No dia 1o de outubro, o acesso ao município de Colleton se tornou proibido a qualquer cidadão que não fosse empregado da Comissão de Energia Atômica, e também os aviões não podiam voar acima das áreas secretas. O trabalho progredia rapidamente nos quatro locais onde se faziam construções.

O governo da Carolina do Sul anunciou que todos os cidadãos de Colleton haviam sido transferidos com sucesso para outras cidades do estado e que o Projeto do Rio Colleton estaria em pleno funciona­mento dentro de três anos.

Nós, o povo de Colleton, saímos de lá como ovelhas dóceis, bani­das para indescritíveis cidades recém-criadas, sem o eco sombrio da memória para nos suster. Caminhamos pelas terras da Carolina sem a sabedoria e o sofrimento acumulado de nossos ancestrais para nos instruir em tempos de perigo e insensatez. Postos à deriva, flutuamos para os subúrbios à margem das cidades. Saímos, não como uma tri­bo derrotada, mas como uma tribo varrida, coberta com os véus ne­gros da extinção. Isolados ou aos pares, deixamos o arquipélago de ilhas verdes que tinham sido testemunhas das piores desfigurações de nossa época. Como cidade, cometemos o erro de permanecer pe­quena - e não há crime mais imperdoável nos Estados Unidos.

Atônitos, fizemos tudo o que nos ordenaram. Fomos louvados por nossa abnegação. E eles nos destruíram com generosidade e aspereza. Fomos espalhados e obrigados a viver entre desconhecidos. Ras­tejamos por aquelas pontes, choramingando de gratidão por qualquer pitada de louvor que jogassem na terra para lambermos. Éramos ame­ricanos, sulistas e, que Deus nos ajude, éramos heróica e irrevogavelmente burros e submissos. Os mansos ainda podem herdar o reino da Terra, mas não herdarão Colleton.

Apenas um de nós permaneceu lá para lançar um pequeno pro­testo. Luke vendera seu barco de pesca a um camaroneiro de Saint Augustine e preparara uma base de operações a partir da qual tentaria conter o avanço da construção. Planejou uma ação de retaguarda que se mostraria exasperante para a Companhia Mewshaw e seus ope­rários. E seus sonhos de insurreição cresceram depois dos primeiros triunfos. Suas missões contra os projetos tornaram-se cada vez mais arrojadas. Quanto mais ousava, mais conseguia. Criara uma perigosa equação a partir do sucesso inicial.

No primeiro mês de implantação do Projeto, o chefe da seguran­ça percebeu que faltavam quatro toneladas de dinamite no principal canteiro de obras, no extremo oeste do município. Percebeu também que essa dinamite fora removida aos poucos, durante longo tempo. Os automóveis de sessenta operários tiveram seus pneus cortados a faca no estacionamento próximo ao principal canteiro de obras. Dez escavadeiras foram destruídas pelo fogo numa só noite. O trailer do engenheiro chefe foi dinamitado. Quatro cães de guarda foram mor­tos a tiros enquanto patrulhavam o perímetro dos terrenos das obras.

Alguém, armado e perigoso, estava no bosque, e os trabalhadores se mostravam inquietos ao atravessarem as pontes para trabalhar pela manhã.

Durante esse período, meu pai retornou em grande estilo aos por­tos obscuros da Carolina do Sul. Enquanto pescava em Key West, foi abordado por um homem bem-vestido que usava relógio Accutron e anel de brilhantes. O desconhecido perguntou-lhe se estava interessado em ganhar muito dinheiro. Três dias mais tarde, meu pai estava a cami­nho da Jamaica, onde teria um encontro num bar pretensioso de Montego Bay com um sócio do homem do anel de brilhantes. Meu pai não deixou de notar que o segundo homem também usava anel de brilhantes no dedo mínimo da mão esquerda. Henry Wingo demorara uma vida inteira até encontrar homens bastante ricos e sem gosto para cobrir as mãos com jóias femininas. Nunca soube seus sobrenomes; confiou apenas no modo de vestir daqueles homens.

- Classe - diria ele mais tarde. - Apenas alta classe.

Dois jamaicanos carregaram o barco de meu pai com 700 quilos de maconha de primeira qualidade, dos quais meu pai sabia, e 14 qui­los de heroína pura que os desconhecidos se esqueceram de mencio­nar. Um dos jamaicanos ganhava a vida como ajudante de garçom num hotel, mas carregava remessas de maconha sempre que a oportu­nidade se apresentasse. O outro, Victor Paramore, trabalhava como informante para o Departamento do Tesouro americano e foi a pri­meira testemunha a ser chamada quando o caso de meu pai entrou em julgamento em Charleston. Quando meu pai atracou em um pon­to entre as ilhas Kiawah e Seabrook, a maior parte dos agentes de dele­gacias de narcóticos estava lá, pronta para assistir à atracação. Aquilo serviu para derrubar a última tentativa de meu pai de conhecer a fun­do as nuances da especulação capitalista.

Quando ele foi a julgamento, não ofereceu nenhuma defesa nem escolheu um advogado para representá-lo. O que fizera estava errado, disse ao juiz, não tinha desculpas para seus atos e não inventaria ne­nhuma. Merecia o castigo de acordo com a lei, porque trouxera vergo­nha para si e sua família. Recebeu uma sentença de dez anos e uma multa de 10 mil dólares.

Mamãe pagou a multa com o dinheiro que reservara para ele, re­sultante da venda da ilha. No espaço de um ano, eu vira meu irmão e meu pai se tornarem prisioneiros. Na época em que meu pai foi envia­do para a prisão em Atlanta, eu tinha pouca esperança de ver Luke com vida novamente.

 

- SONHE alto. Sonhe alto - dizia Luke a si mesmo enquanto perambulava pelo município à noite. Era o único remanescente de Colleton e prometera a si mesmo que faria seus perseguidores suarem um bo­cado antes de o agarrarem.

Uma coisa trabalhou muito a seu favor durante os primeiros me­ses de rebelião: o governo não estava seguro de que Luke fosse o sabotador que vivia nos bosques. Era o principal suspeito, claro, mas ninguém o vira nem poderia identificá-lo. Como os vietcongues que tanto admirava, Luke possuía as longas horas da escuridão da noite para encher de terror a vida dos guardas mal remunerados. Movia-se à noite nas terras que já não lhe pertenciam, evitando os barcos de patrulha nos rios e os carros da polícia que percorriam as estradas abandonadas. Conforme as semanas se passavam, um sentimento de sacerdócio o obcecava durante as caminhadas pelos bosques de sua infância. Ouvia vozes e via os rostos dos familiares se materializarem nos galhos das árvores. Todas as alucinações - ou visões, como prefe­ria chamá-las - estavam cheias de aplausos e aquiescência pela eficácia de sua missão, aquela caminhada sagrada pela zona de guerra em que servia como exército de libertação de um só soldado. Ficou preocupa­do quando começou a falar sozinho.

Mas, em suas primeiras semanas de guerra contra o Estado, era o pedinte que exigia seus direitos inatos e estava seguro de seu conheci­mento de todos os mistérios das terras baixas. Estavam caçando um filho daquela terra, alguém que se apropriara dos segredos que os rios articulavam durante uma vida. Ele inspecionava a vasta propriedade que jurara manter aberta. Circunavegava o município inteiro com um pequeno veleiro ou a pé. Anotava o fluxo do tráfego nos rios e nas pontes e o número de vagonetes que traziam carvão pelos trilhos que cortavam o norte do município. Estabeleceu uma moradia em Savannah e outra em Brunswick, na Geórgia. Após cada ataque, saía de Colleton por três semanas, até que os homens que o perseguiam se cansassem de seguir pistas falsas. Escondia contrabando, armas e co­mida por todas as ilhas, em poços abandonados ou sob as fundações de casas destruídas.

Seus primeiros atos foram de simples vandalismo, mas de alto grau. Luke desenvolvera bons hábitos ao longo dos anos e estudara sua tarefa, tornando-se cada vez mais experiente. Examinava os erros e as pequenas vitórias, reunindo dados para operações futuras, corrigindo técnicas e aperfeiçoando-as. O isolamento, o retraimento e a necessi­dade de concentração o tornaram cauteloso e terrível. Nas profun­dezas dos bosques próximos aos grandes pântanos, caçava cervos com arco e flecha, maravilhando-se com a capacidade de permanecer imó­vel enquanto esperava sobre as árvores, acima dos locais onde o sal estava depositado. Sentia-se vegetal e mágico, em perfeita comunhão com as árvores, os cervos e as ilhas. Caçava com o assombro de alguém que se refugiara durante mil anos e entrara nos domínios limpos e infinitos onde as tribos Yemassee haviam caçado cervos do mesmo modo. Grato aos animais que o sustinham, Luke descobriu por que os homens primitivos adoravam os cervos como deuses, pintando-os nas paredes das cavernas num ato de êxtase e oração. Nunca se sentira tão vivo, autêntico e necessário. Sempre tivera visões, mas estas pos­suíam a suave intensidade dos sonhos. Dormia durante o dia e cantava em seu sono. Sonhava com coisas deslumbrantes e miraculosas. Fica­va feliz ao acordar à luz das estrelas, porque os sonhos não se apa­gavam, retendo a forma em afrescos pintados com luz e sangue no céu. Ardia com um zelo revolucionário. As idéias partiam dele, jorran­do como flores silvestres.

De certo modo, sentia-se como se fosse o último homem sensato do país. Sempre que tinha dúvidas a respeito da própria vocação, recitava em voz alta estatísticas sobre Hiroshima e Nagasaki. Se conseguisse evitar a construção de mil armas nucleares, poderia, em tese, ser responsável pela salvação de cem milhões de vidas humanas. Ouvia o veemente apelo de uma voz insistente dentro de si, que pensou ser a voz da consciência, ditando leis de comportamento, metas de longo alcance e métodos de guerrilha. E a escutava em êxtase, enquanto perambulava livre e cheio de vida por aquelas terras sem dono, descobrindo com prazer que era fácil tornar-se um bandido. Roubava suprimentos, algum barco veloz que encontrasse por acaso, rifles e munição. Seus atos eram uma defesa inflexível da terra amada e posta em perigo. Não tinha culpa se a visão ampliava-se para incluir não apenas Colleton, mas o planeta inteiro.

Entrava com freqüência na surrealista cidade devastada de Colleton, caminhando pelas ruas que já não existiam e falando em voz alta os nomes das famílias que haviam morado em cada recanto da­quele lugar. Perambulava por aquela terra de ninguém, constituída pelos antigos cemitérios, e via os buracos deixados pelas escavadeiras nos locais onde seus concidadãos tinham sido enterrados. Descia a rua das Marés, silenciada para sempre do burburinho dos vizinhos, para sempre privada dos aromas deliciosos do café ou da escaramuça educada do tráfego. Sentia a presença vital da cidade sob seus pés, e essa presença lutava para se levantar da terra, saudável e florescente, com a aura esperançosa da ressurreição. Sonhando mais uma vez, ou­viu a cidade gritando para ele, recitando as longas elegias de sua afli­ção, cantando um hino de subversão e perda, exigindo restituição, rouca de tanto repetir as poderosas litanias da extinção. À luz do luar, Luke se dirigiu para a casa de vovó e ficou furioso por não encontrar os 2 mil metros quadrados de terra ao lado do rio. Os limites dos ter­renos tinham sido destruídos e, somente ao descobrir o carvalho onde ele, Savannah e eu havíamos gravado nossos nomes num domingo de Páscoa, teve certeza de estar no lugar certo. O capim e a hera cresciam na terra onde Tolitha e Amos haviam vivido. Voltou para o desembarcadouro flutuante e tropeçou em algo no meio da relva cres­cida. Voltando alguns passos, já sabia o que era - levantou a cruz de meu avô nos ombros e, como uma homenagem, levou-a para a rua das Marés, por cuja extensão caminhou, num alegre arremedo de meu avô. O peso da cruz cortava-lhe um dos ombros e a madeira imprimia uma verdade de textura ilesa sobre sua carne, marcando-o, ferindo-o, lembrando-o da retidão de sua missão.

Enquanto caminhava pela rua com a cruz nos ombros, vozes vie­ram através do ar, estimulando-o, o menino do rio, o camponês das terras baixas, o campeão de todos. Aclamaram-no quando ele jurou que não permitiria que aquilo acontecesse, que não estava resignado com a morte da cidade que mais amava. Jurou a si mesmo e àquelas vozes guerrilheiras e penetrantes que faria o solo violado recuperar a vida da cidade, ressuscitaria Colleton como Lázaro se levantara da terra.

Eles vão me conhecer - gritou Luke. - Vão aprender meu nome. Vão me respeitar. Vou fazê-los reconstruir esta cidade exata­mente como era.

Ao se deter, as vozes o abandonaram. Deitou-se na terra e sentiu a melodia da libertação jorrando dentro de si. Dançou pela rua das Marés, girando e gritando. De repente, parou e disse:

Aqui, vou construir a loja de roupas do sr. Danner. Ao lado dela, a mercearia do sr. Scheins e, vizinhas a ela, a butique de Sara Poston, a floricultura de Bitty Wall e a Woolworth.

Sentia a terra tremer à sua passagem e as velhas lojas orgulhosas lutando para nascer. Ouvia a cidade inteira aclamá-lo do alto dos te­lhados das lojas que não mais existiam. De memória, recriou a rua, exatamente como a recordava. Quando saiu da rua das Marés naquela noite, meu irmão olhou para trás, viu todas as lojas iluminadas, os enfeites de Natal pendurados nos postes, um menino colocando as letras na marquise do Breeze Theater e o delegado Lucas saindo do restaurante do Harry depois de uma refeição, afrouxando o cinto e arrotando.

Ele finalmente se tornara, pensou, um homem essencial, um ho­mem que se originara da primavera, um homem em fogo. Olhou or­gulhoso para a cidade que criara.

De repente, ouviu algo atrás de si e virou o corpo, sacando a pisto­la. Em seguida, o barulho se repetiu. Era um apito. Viu a figura de um homem que se dirigia para ele, ao longo do rio, com uma alegria indescritível. Era o sr. Fruit.

 

Em março, Luke oficializou sua pequena escaramuça, expandido-a e transformando-a numa guerra de guerrilha amadurecida, por meio de um ato puramente simbólico para ele, mas não para o Estado. Às três da manhã do dia 14 de março, quatro bombas poderosas explodi­ram as pontes que ligavam as fronteiras norte e leste de Colleton ao continente. Uma hora mais tarde, outras duas bombas destruíram os pontilhões que permitiam a chegada dos trens de carga da Southern Railway ao município.

Um dos trens, trazendo um grande carregamento de carvão para o canteiro de obras, veio de Charleston vinte minutos depois da des­truição dos pontilhões. O maquinista entrou a toda velocidade no pontilhão e o trem voou 50 metros antes de se espatifar nas águas negras do rio Little Carolina. O maquinista e três ajudantes morreram imediatamente, e aquele sangue foi o primeiro a ser derramado na guerra que os jornais começaram a chamar de Guerra de Secessão de Colleton.

Luke escreveu uma carta para 15 jornais da Carolina do Sul, de­clarando a área em torno de Colleton, num raio de 65 quilômetros - área que incluía 30 ilhas marítimas e 19 mil hectares de terra no con­tinente -, livre da manufatura do plutônio. Pediu desculpas às famílias dos quatro homens que haviam morrido no trem e disse que seria capaz de qualquer coisa para trazê-los de volta à vida. Sua tarefa era preservar a vida, não destruí-la nem confiscá-la. A carta era uma versão reduzida do discurso que fizera aos cidadãos de Colleton, na noite em que Patrick Flaherty lhes dissera que a cidade seria demolida. Lan­çou um manifesto, declarando que a porção de terra anteriormente conhecida como Colleton seria, dali por diante, um Estado soberano do qual ele era governador, chefe de polícia, comandante das forças armadas e, até que conseguisse recrutar uma população, seu único habitante. O governo federal decretara que a terra pertencia ao povo dos Estados Unidos e Luke concordava, mas o modo de governá-la seria debatido. Aquele novo estado, vinte vezes menor que Rhode Island, deveria se chamar Colleton. Dava trinta dias ao governo fede­ral para suspender a construção do Projeto do Rio Colleton e devolver as terras que tinham sido desapropriadas dos moradores. Se o projeto não fosse cancelado, o Estado de Colleton se separaria formalmente da União e a guerra seria declarada. Todos os operários da construção seriam considerados membros do exército invasor, tornando-se alvo de fogo das hostilidades.

Luke também convocou voluntários para servir como tropa irre­gular na proteção das fronteiras de Colleton contra a incursão de agentes federais. Ordenou que entrassem sozinhos no território, usando braçadeiras verdes para serem identificados, e estabelecessem pontos de escuta e postos avançados em todas as direções. Quando houvesse gente suficiente espalhada pelos campos e pelas florestas, ele faria contato e começariam a operar como um pequeno exército. Mas, no início, cada homem ou mulher trabalharia sozinho, numa ação de guerrilha, para deter o fluxo de materiais e paralisar a construção das fábricas.

A carta foi notícia de primeira página no estado inteiro. Havia uma foto minha e de Luke segurando um enorme troféu quando ven­cemos o campeonato estadual de futebol no último ano do curso se­cundário e uma foto de Savannah tirada da sobrecapa de seu livro A filha do pescador de camarões. A Guarda Nacional recebeu a incum­bência de proteger as pontes que levavam ao município e iniciou-se de imediato o trabalho de reparação das pontes e dos pontilhões danificados. A segurança foi reforçada nos canteiros de obras e emitiu-se uma ordem de prisão contra meu irmão. Conheci praticamente todos os tiras e agentes da lei da Carolina do Sul depois que a carta apareceu. Luke foi declarado perigoso, armado e, provavelmente, louco. Houve editoriais histéricos nos principais jornais e o senador Ernest Hollings era citado, dizendo no News and Courier: "O menino deve estar louco mas, certamente, não há muitas outras pontes que levem a Colleton." A divisão KA da Universidade da Carolina do Sul fez uma festa das braçadeiras verdes para levantar dinheiro para as crianças defeituosas. Uma carta ao editor apareceu no jornal Columbia State, chamando Luke de "o último dos grandes carolinianos do Sul".

Três semanas após a publicação da carta de Luke, um homem de 70 anos chamado Lucius Tuttle, um antigo caçador, foi agarrado e pre­so na área próxima ao principal canteiro de obras do Projeto do Rio Colleton. O News and Courier noticiou o incidente, mas não revelou que o homem fora preso usando braçadeira verde e resistira à prisão, mantendo vinte policiais a distância com tiros de rifle até sua munição terminar. Dez mulheres, todas membros da Women Strike for Peace, deitaram-se na frente de um ônibus que levava operários das constru­ções para o trabalho. Também usavam braçadeiras verdes e gritavam "Chega de armas nucleares" ao serem levadas para a cadeia.

Nos círculos conservadores, Luke era tido como assassino e malu­co. Mas havia alguns homens e mulheres, reconhecidamente poucos, que o encaravam como o grande defensor do meio ambiente - o úni­co homem na história da República que pensara numa resposta ra­zoavelmente sensata para os absurdos da era nuclear. No exato momento em que a reação do público à insurreição de Luke estava mudando, o governo federal se tornava mais rígido em seu propósito de acabar com a guerra de meu irmão contra o Estado. Como guerri­lheiro, ele provara ser excelente e perito; porém, como símbolo, te­mia-se que pusesse em perigo todo o Projeto do Rio Colleton. Luke se tornara um risco, um embaraço na área de relações públicas. Ao ex­plodir seis pontes, demonstrara um refinado senso tático por trás de seu talento para a destruição. Os agentes do FBI andavam aos bandos em Colleton e uma equipe especial do Forte Bragg, Carolina do Norte, treinada em táticas de guerrilha, passou a fazer varreduras noturnas na ilha. Luke calculava o tempo que lhe sobrava pelo prestígio daque­les que eram enviados para detê-lo. Notava o crescente número de vôos de reconhecimento sobre os pântanos. A Guarda Costeira au­mentou o número de patrulhas no rio: sua entrada em cena foi consi­derada uma homenagem por meu irmão. Apreciou o alto nível dos homens incumbidos de prendê-lo e levá-lo perante a Justiça e, apesar da extraordinária habilidade que tinham em seu trabalho, meu irmão conservava a vantagem de uma vida inteira de familiaridade e conhe­cimento do terreno.

 

Aprendi a identificar um agente do FBI a uma distância de 100 metros ou mais, sem a menor margem de erro. Suas marcas eram tão características quanto as de uma cascavel. Pareciam ter assistido a fil­mes demais e lido livros demais sobre seus poderes de investigação. Acreditavam nas bobagens com que o FBI os alimentava em doses liberais. Sempre odiei homens de queixo largo e apertos de mão fir­mes, que imitavam atores de filmes classe B. Os agentes do FBI davam a impressão de ter comprado os mesmos ternos desinteressantes na mesma seção da mesma loja de roupas baratas para homens. As insíg­nias eram a parte mais atraente de seu guarda-roupa. Fui entrevistado por vários agentes no primeiro ano do compromisso de meu irmão com os bosques de Colleton e o prazer que tive com essas entrevistas foi pequeno. Consegui ser bastante ofensivo ao conversar com aqueles homens que poderiam algum dia matar meu irmão. O FBI me consi­derou hostil e essa avaliação alegrou meus dias.

Isso aconteceu quase um ano antes de J. William Covington ser designado para o caso Luke. Covington apareceu durante um treino de futebol de primavera, enquanto eu tentava estabelecer uma ofensi­va de retaguarda para tirar vantagem de um quarterback que corria como um cervo. Bob Marks, o treinador de linha que eu acabara de contratar, avistou Covington sentado em seu Chevrolet quando fazía­mos o time correr no fim do treino.

Outro tira, Tom - disse ele.

Acho que no ano que vem vou pagar meus impostos, Bob - brinquei, caminhando em direção ao carro.

Quando viu que eu me aproximava, J. William saiu do carro e demonstrou ser mais um exemplar da raça. Mesmo que estivesse completamente nu, dançando num campo de lírios, ainda assim ele poderia ser identificado como agente do FBI.

Desculpe, senhor - falei. - Não deixamos os Hare Krishna ven­derem livros no campo de futebol. O aeroporto fica a 25 quilômetros a leste daqui.

Ele riu e fiquei surpreso ao ver que parecia sincero.

Ouvi dizer que você tem muito senso de humor, Tom - comen­tou, estendendo-me a mão.

Isso não é verdade. Você ouviu dizer que sou metido a espertinho.

Na sua pasta do arquivo, você é descrito como pouco coopera­tivo... Meu nome é J. William Covington. Meus amigos me chamam de Cov.

E como seus inimigos o chamam?

Covington.

É um prazer conhecê-lo, Covington. Agora, para continuar minha carreira de não-cooperação, vou lhe dizer tudo o que sei. Não sei onde Luke se esconde. Não sei nada a respeito dele. Ele não tem escrito nem ligado ou mandado telegramas. Não estou fornecendo comida, abrigo ou ajuda de qualquer espécie. E não vou ajudá-lo em sua investigação de modo algum.

Eu gostaria de ajudar Luke a sair dessa, Tom - declarou Covington. - Gosto de tudo o que ouvi a respeito dele. Talvez eu possa conseguir um acordo com o promotor e apelar por uma sentença de apenas três ou cinco anos.

E os quatro homens que foram mortos no trem?

É óbvio que ele não sabia que o trem estava chegando. Quando sua família morava em Colleton, nenhum trem passava durante a noi­te por aquele pontilhão. Podemos chamar aquilo de homicídio involuntário.

Ele poderia receber mais de cinco anos por explodir as pontes... Por que o promotor iria concordar com uma diminuição da pena?

Eu poderia convencê-lo a fazer um trato que salvaria todas as pontes da parte sul do município - retrucou Covington.

E por que você me diz isso? Não vejo como posso ajudá-lo.

Li cuidadosamente a pasta sobre Luke. Descobri três pessoas que poderiam encontrá-lo caso se decidissem a isso. Seu pai, que, como você bem sabe, atualmente está indisposto.

Indisposto... Gosto do modo como você usa as palavras, Covington.

Os outros dois são você e sua irmã. Ela escreve uma poesia excelente. Sou seu grande fã.

Ela vai vibrar com isso.

Posso contar com sua ajuda?

Não, não pode, Cov. Você não me ouviu na primeira vez. Não vou ajudar sua investigação.

A Companhia Mewshaw oferece uma recompensa de 25 mil dólares a qualquer um que consiga neutralizar seu irmão, Tom. E ne­cessário que eu traduza a palavra neutralizar para você? Eles começa­ram a colocar na região caras que são páreo para seu irmão. Dois boinas-verdes que receberam medalha de honra estão no município, caçando-o. Podem não encontrá-lo amanhã ou depois de amanhã, mas, com certeza, alguém vai matar Luke. Eu queria evitar isso. Admi­ro muito Luke e gostaria de salvar a vida dele. Não posso fazer isso sem sua ajuda.

Você é a primeira pessoa do FBI, sr. Coveington, que não me deixa puto da vida. Entretanto, isso me enerva. Por que você decidiu ser agente do FBI? E por que, pelo amor de Deus, você se chama J. William?

Meu primeiro nome é Jasper. Mas prefiro morrer a ver alguém me chamar pelo primeiro nome. Minha mulher inventou essa idéia de falar J. William, já que trabalho para uma organização fundada por J. Edgar. Ela imaginou que isso poderia ter algum valor subliminar quando se pensasse numa promoção. Fui trabalhar no FBI porque era um péssimo atleta e, como todos os péssimos atletas, passei por uma dolorosa experiência no ensino médio e tinha dúvidas quanto à mi­nha hombridade. Nós, agentes do FBI, não passamos por dúvidas quanto à nossa masculinidade.

Você dá boas respostas, Jasper. Ao contrário de seus compa­nheiros, você passa a sensação de que estou lidando com uma pessoa vagamente humana.

Estudei sua pasta com cuidado, Tom. Percebi que, se não esta­belecesse alguma base de confiança, você não cooperaria nem um pouco comigo.

Não disse que confiava em você, Jasper. E já falei que não vou cooperar.

Isso não é verdade, Tom. Porque você está falando com o único homem no mundo que tem interesse em salvar a vida de seu irmão, em vez de matá-lo.

Estudei o rosto de J. William. Era um rosto bonito, sensível e no­bre, do tipo que sempre me inspirava grande desconfiança. Seus olhos me encaravam com franqueza - outro ponto contra ele. Eram olhos límpidos e despreocupados.

Talvez eu possa encontrar meu irmão para você, Jasper - afir­mei. - Mas quero fazer um acordo por escrito.

Você terá o acordo por escrito e terá minha palavra de que to­dos vão agir dentro desse acordo.

Farei isso, mas nunca vou gostar nem confiar em você - disse. - E não gosto do seu terno.

Nem eu estou interessado em descobrir o nome de seu alfaiate, Tom - retrucou ele, apontando para minha calça cáqui e minha malha esportiva.

 

NO início das férias, Savannah tomou um avião até Charleston e passamos vários dias reunindo suprimentos e fazendo planos para nossa expedição ao município perdido. À noite, Sallie, Savannah e eu estudávamos a carta náutica de Colleton. Os rios e riachos foram cobertos com números precisos, dando a profundidade das águas rasas. Nossos dedos se moviam pelos pântanos e canais, na longa e plana geografia de nossa infância. Tentamos nos colocar no lugar de Luke e enxergar o mundo do modo como ele o enxergava naquele momento. Achei que ele deveria estar vivendo no pântano do rio Savannah, ao sul do município, fazendo breves incursões de sabota­gem e destruição à noite e voltando ao pântano impenetrável antes do amanhecer.

Savannah discordava. Dizia que Luke possuía um único refúgio dentro do município, a partir de onde baseava suas operações, e que esse lugar todos nós conhecíamos. Lembrou-me de que ele era uma criatura metódica, que não moveria uma guerra para libertar Colleton se não tivesse a possibilidade de viver ali.

Você seria uma guerrilheira terrível - disse eu.

Acrescentei que estavam caçando Luke com cães por toda exten­são e largura das ilhas, e que me parecia improvável que ainda não tivessem descoberto algum acampamento dele.

Então deve haver um lugar que eu não conheço, Tom - disse Savannah. - Um lugar do qual apenas Luke sabe.

Eles conhecem todos os lugares que Luke conhece, Savannah. Pode-se comprar este mapa em qualquer porto dos Estados Unidos. O país é muito bem mapeado.

Se é assim, por que não conseguem achá-lo?

Ele tem tomado o cuidado de se esconder muito bem - falei, olhando para o mapa.

Que lugar é aquele de que você me falou na faculdade, Tom? - interrompeu Sallie. - Seu pai costumava pescar lá ou algo assim.

A ilha Marsh Hen - gritamos, simultaneamente, Savannah e eu.

Quando pequeno, meu pai caçara galinhas selvagens nos vastos pântanos ao longo do rio Upper Estill. Um de seus amigos remava o pequeno bote através do pântano, com a maré alta, fazendo as aves levantarem vôo de seus esconderijos no meio da vegetação. Ele matara uma dúzia de pássaros quando viu um grupo de árvores baixas, elevando-se do pântano. A maré se invertera enquanto remavam em di­reção à pequena ilha desconhecida e quase não conseguiram alcançar a terra, até que perceberam que teriam de esperar pela próxima maré para voltar ao canal principal. Estavam a 20 quilômetros da moradia mais próxima e haviam descoberto, por acaso, um dos santuários se­cretos que proporcionam arrebatamento e sensação de segurança a meninos pequenos. Era uma ilha de 1 hectare de terra não mapeada, um grupo de palmeiras e um delgado carvalho. Eles haviam chegado por acaso a uma ilha abandonada, numa extensão infinita de pântano salgado, quase invisível de ambos os lados do rio. Limparam as gali­nhas que haviam caçado e as cobriram com água salgada. Armaram uma barraca, fizeram uma fogueira e refogaram cebolas em três colheres de gordura de bacon; em seguida, passaram as aves na farinha e as fritaram até ficarem escuras como chocolate. Acrescentaram água à panela e as deixaram cozinhar vagarosamente. Apanharam mariscos e os comeram crus enquanto esperavam que as galinhas aprontassem. Estavam convencidos de terem chegado a um lugar onde nenhum homem pisara antes. Reivindicaram a posse daquela terra para si e gravaram seus nomes no tronco do carvalho. Antes de irem embora, na maré seguinte, batizaram sua descoberta como ilha Marsh Hen.

Certa vez, depois que minha avó abandonou o marido e se mu­dou para Atlanta, meu pai fugiu de casa e seus amigos o encontraram em Marsh Hen, chorando pela mãe que perdera. A cada primavera, quando as savelhas entravam nos rios para desovar, meu pai passava uma semana em sua ilha, pescando, pegando siris e acampando sob as estrelas. Na primeira vez em que ele levou os filhos em sua viagem anual de pesca, eu tinha 7 anos. Na época, ele já havia construído uma cabana para fugir da chuva. Naquela primeira vez, pesquei uma cobra de 13 quilos, usando como isca uma enguia viva, depois colocamos uma rede para pescar as savelhas. Durante uma semana, comemos peixe na brasa e ovas de savelha cobertas com grossas fatias de bacon. Sempre que eu pensava no refúgio de meu pai, tinha visões de grandes banquetes de frutos do mar e da risada dele ao dirigir o barco pelas grandes extensões de pântano denso, enquanto as marés nos levavam para aquele insignificante pedaço de terra que nos separava do restan­te do planeta. Somente quando meu pai descobriu que seu acampa­mento fora usado por outros pescadores suspendemos a peregrinação anual à ilha Marsh Hen. Ao deixar de ser um segredo, a ilha perdera sua aura de magia e, conseqüentemente, seu valor. Ao permitir a en­trada de estranhos, Marsh Hen traíra seu descobridor. Na relação dos detalhes da filosofia de meu pai, um lugar era inviolável apenas uma vez. Ele nunca mais voltou à ilha e, ao sentirmos algo de genuíno em sua desilusão, também não voltamos.

Mas Savannah e eu sabíamos que se podia viver toda uma vida em Colleton, passar todo o tempo de lazer pescando e pegando carangue­jos nos riachos mais escondidos e nem uma vez sequer imaginar a existência daquele pedaço de terra em forma de coração engastado como uma safira no meio do maior pântano salgado ao norte do con­dado Glynn, na Geórgia. As únicas pessoas que partilhavam o conhe­cimento daquele pedaço de terra eram meu pai, meu irmão e alguns anônimos pescadores cujas pegadas solaparam a raridade da ermida secreta de meu pai.

Sobre o mapa, numa faixa de 50 quilômetros de pântano, mar­quei um "xis" no ponto em que calculei que estivesse a ilha de Marsh Hen. Sabia que o termo ilha era uma designação incorreta para um pedaço de terra que passava pelo processo de dominação do pântano.

Na noite anterior à nossa partida para Colleton, li uma história para as meninas e as coloquei na cama. Depois que Sallie saiu para o plantão no hospital, Savannah e eu preparamos drinques e os levamos para o terraço. As luzes de Charleston se entrelaçavam pelo porto em meio a uma névoa suave. Minha mãe jantara conosco e a tensão fora insuportável. Ela culpava meu pai e nós pela deserção de Luke. Disse-nos que Reese se oferecera para contratar os melhores advogados da Carolina do Sul e ficou furiosa quando Savannah disse que essa provi­dência podia não contar com a aprovação de Luke. Minha mãe não reconhecia que Reese dominava a arte obscura de humilhar por meio da gentileza. Mas não sentimos prazer por ela estar chorando ao ir embora.

Mamãe vai ser a verdadeira figura trágica na história, não im­porta o que aconteça a Luke - comentou Savannah enquanto fitáva­mos Fort Sumter.

Ela merece isso. Não agiu de boa-fé...

Você não sabe como é difícil ser mulher, Tom - disse Savannah, ríspida. - Depois da vida que ela levou, tudo o que fizer está bom para mim.

Então por que você age como se a odiasse quando ela está por perto? Por que não fala civilizadamente com ela nem a faz se sentir amada quando está presente?

Porque é minha mãe. É uma lei natural e um sinal de saúde mental quando uma mulher reúne força suficiente para odiar a mãe. Meu analista diz que é um estágio importante pelo qual devo passar.

Seu analista! Por quantos psiquiatras, analistas, terapeutas e idiotas do tipo você já passou desde que saiu da Carolina do Sul?

Estou tentando ter uma vida, Tom - defendeu-se Savannah, magoada. - Você não tem o direito de falar assim da minha terapia.

Já existiu alguma pessoa que morasse em Nova York sem ter ido a um terapeuta? Bem, deve ter havido algum cretino que mudou de planos no aeroporto de La Guardia e não teve tempo de ir ao Upper East Side para uma sessão de cinqüenta minutos.

Você precisa de um terapeuta mais do que qualquer pessoa que conheço, Tom. Bastaria que ouvisse sua própria voz, para saber como soa raivosa.

Não sei lidar com alguém a quem amo e que tem todas as res­postas. Até parece uma endemia entre as mulheres de nossa família. Você nunca se sente incomodada por dúvidas?

Sim. Tenho grandes dúvidas a seu respeito, Tom. Sérias dúvi­das sobre as escolhas que você fez. Não vejo direção em sua vida, nem ambição, nem desejo de mudar e ter novas chances. Vejo você flutuan­do, ligeiramente alienado de seu trabalho, sem saber o que quer ou aonde ir.

É isso que me torna um americano, Savannah. Não há nada de estranho nisso.

Você volta para casa depois de treinar, prepara um drinque e se senta em frente à televisão até ficar cansado ou bêbado para ir dormir. Não lê livros, não conversa, você apenas vegeta.

Estou conversando agora. E é por isso que odeio conversar.

Você odeia olhar para si mesmo, Tom - disse Savannah, esti­cando o braço e apertando o meu. - Você está envolvido por uma vida negligenciada, e isso me preocupa.

Por que você força todas as pessoas que encontra a admitirem insanidade e infelicidade? Por que a loucura é a única resposta ao mundo que você reconhece como válida?

Já ouvi falar de pessoas mentalmente saudáveis, mas nunca es­tive perto de alguém dessa tribo. São como os incas. Pode-se ler a res­peito deles e estudar as ruínas, mas não se pode entrevistá-los para saber os motivos de seu comportamento.

Savannah, vão matar Luke se nós não o encontrarmos. E se o matarem, não sei o que será de mim.

Então vamos achá-lo e trazê-lo de volta.

Contrataram homens para caçá-lo como se ele fosse um cervo ou um outro animal qualquer.

Tenho mais medo por eles do que por Luke. Nós sabemos do que ele é capaz no meio de um bosque. Tudo sempre funcionou para Luke. Se ele tivesse fracassado apenas uma vez, não estaria lá agora. Se tivéssemos sido surpreendidos quando salvamos a toninha; se não ti­véssemos colocado a tartaruga na cama dos Newbury; se Luke não tivesse nadado com o corpo do comandante no Vietnã... Ele sempre acredita que tudo vai funcionar e sempre teve razão.

Mas agora é insensato. Luke não tem a menor chance de conse­guir algo.

Ele certamente atraiu a atenção de todos, Tom. Você pensa sempre nele?

Tento não pensar. Tento não pensar em Luke nem em papai. Há ocasiões em que finjo que nunca fizeram parte de minha vida.

A velha técnica de mamãe - disse Savannah, dando risada. - A verdade é apenas aquilo que você lembra.

Escrevo a papai uma vez por semana. Sinto-me como se esti­vesse escrevendo a um correspondente da Estônia, alguém que nunca conheci. Ele me responde com cartas amorosas e inteligentes. Como é que posso me relacionar com um pai amoroso? É ainda mais difícil relacionar-me com um pai inteligente. Nós quase estabelecemos uma amizade por correspondência. Entretanto, quando penso na infância, sinto a maior ternura e gratidão por mamãe. Encho-me de amor por ela e, apesar disso, não tolero ficar perto dela. O problema com Luke a está matando e não posso ajudá-la em nada.

Por que você está tão ansioso com Luke?

Porque acho que ele é um idiota. Ê um egomaníaco, inflexível e egoísta. Tem algo mais, que não entendo. Invejei nele a liberdade de se deixar levar pela fúria de suas crenças, armado com uma emoção que jamais vou conhecer ou sentir. Tenho inveja do fato de Luke alarmar todo o país com o frio arrebatamento que coloca em sua maldita fé. O motivo pelo qual preciso detê-lo, Savannah, é porque, no mais pro­fundo do meu ser, acredito na integridade de sua guerra particular contra o mundo. Por acreditar tão profundamente nela, o compromisso dele é um constante lembrete de tudo o que já cedi. Fui domado por hipotecas, prestações de automóveis, planos de aulas, crianças e uma esposa com sonhos muito mais ambiciosos que os meus. Estou vivendo numa comunidade, assistindo ao noticiário das sete e fazen­do as palavras cruzadas do jornal, enquanto meu irmão come peixe cru e trava uma guerra contra um exército de ocupação que roubou o único lar que tivemos. Não sou um fanático ou um sabotador, sou um bom cidadão. É isso que digo a mim mesmo. Tenho deveres e respon­sabilidades. Mas Luke me provou alguma coisa. Mostrou que não sou um homem de princípios, de fé ou mesmo de ação. Tenho a alma de um colaborador. Tornei-me exatamente o tipo que mais odeio no mundo. Tenho um belo gramado e nunca recebi uma multa por ex­cesso de velocidade.

Penso em Luke como um Dom Quixote dos dias atuais. Quero escrever um longo poema sobre isso.

Tenho certeza de que ele se enxerga do mesmo modo. Mas não vejo como isso possa ajudá-lo ou a qualquer outra pessoa. Quatro homens estão mortos por causa de Luke e, não importa quanto eu tente racionalizar, o assassinato não me atrai.

Ele não assassinou aqueles homens. Foi um acidente.

Você gostaria de explicar isso às viúvas e aos filhos deles?

Você é um sentimental, Tom.

Imagino que aquelas esposas e filhos também sejam.

Luke não é um assassino!

Então que diabo ele é, Savannah?

É um artista e um homem completamente livre. Duas coisas que você nunca vai compreender.

 

Havíamos esperado por uma noite calma e uma lua que nos ajudas­sem a navegar. Na marina de Charleston, Sallie nos beijou e desejou boa sorte quando embarcamos para Colleton.

Tragam Luke de volta com segurança - pediu ela. - Digam-lhe que é amado por um número enorme de pessoas e que as meninas precisam de um tio.

Eu direi, Sallie - falei, abraçando-a. - Não sei quanto tempo vamos demorar.

Temos todo o verão. Minha mãe virá amanhã para me ajudar com as meninas. Vai levá-las à ilha Pawleys no mês que vem. Estarei trabalhan­do feito louca, salvando vidas e fazendo o bem para a humanidade.

Reze por nós, Sallie - disse Savannah enquanto eu dava a parti­da no motor e dirigia o barco para o rio Ashley. - E reze por Luke.

Pensei que você não acreditasse em Deus - comentei com mi­nha irmã quando passávamos lentamente pela Guarda Costeira no fim da península de Charleston.

Não acredito. Mas creio em Luke e ele crê em Deus. Além disso, sempre acredito em Deus quando estou necessitada dele.

Fé circunstancial.

É isso aí, cara - respondeu ela, alegre. - Não é maravilhoso, Tom? Estamos juntos em outra aventura. É igualzinho a quando fo­mos a Miami para salvar a toninha branca. Nós vamos encontrar Luke. Sinto isso, sinto em cada parte do corpo. Olhe para cima, Tom.

Olhei na direção que ela apontava e disse:

Órion, o caçador.

Não. Preciso ensiná-lo a pensar como poeta. Aquele é o reflexo de Luke escondendo-se nas terras baixas.

Savannah, vou acabar vomitando se você continuar a se referir a Luke como assunto de seus poemas futuros. Não estamos no meio de um poema. Isto é uma expedição, a última chance para salvar nosso irmão.

É uma odisséia - zombou ela.

Há muita diferença entre a vida e a arte, Savannah - respondi, enquanto entrávamos no porto de Charleston.

Você está errado, Tom. Sempre esteve errado a respeito disso.

 

Guiei O barco passando pelas luzes de Mount Pleasant, pelas som­bras solitárias de Fort Sumter, pelas luzes de minha casa na ilha Sullivan, pelos faróis e pelo murmúrio do motor de uma barcaça de piloto do porto encontrando-se com um navio de carga do Panamá. Enquanto dirigia pelo quebra-mar, as ondas, cheias de fósforo e plâncton, batiam suavemente na proa. Segui sempre em frente, em direção à corrente do golfo, até não enxergar mais as luzes da Carolina do Sul. Em seguida, virei a embarcação rumo ao sul e estabeleci uma rota até minha terra natal. Fiz uma oração, pedindo a Deus para livrar meu irmão da tirania de uma visão absoluta. Pedi força para lhe ensi­nar a arte do compromisso e da submissão a uma autoridade mais elevada. Eu queria lhe ensinar a não ser Luke, a se domar e ficar mais parecido comigo.

Savannah e eu demos as mãos enquanto eu forçava o barco na direção de Colleton, e o vento levantava os cabelos de minha irmã como um véu. Por duas horas observei as estrelas e o compasso, até ver o marcador verde do canal que indicava a entrada do estreito.

Entrávamos agora, como invasores, nas águas proibidas onde viemos ao mundo, durante o furacão de 1944.

Passava da meia-noite quando lançamos a âncora a sotavento da ilha Kenesaw e esperamos pela mudança da maré. Calculamos que ne­cessitaríamos de, pelo menos, 60 centímetros de água para nos aproxi­marmos da ilha Marsh Hen. Quando a maré mudou, sentimos o barco esticar a corda da âncora. Às três da manhã, liguei o motor e naveguei lentamente pelos riachos mais desconhecidos do município. O mur­múrio do motor parecia uma interrupção obscena no completo silên­cio que nos envolvia. Levamos uma hora para chegar à vasta extensão do pântano salgado que tinha a ilha Marsh Hen em seu centro secreto. Tentei passar por três riachos que levavam a becos sem saída. Tive de voltar ao rio para me reorientar e começar novamente. Seguimos por mais dois insignificantes fios de água que levavam ao pântano, com o mesmo resultado. Somente quando a maré estava bastante alta e o sol já se levantava no leste, no momento de nosso mais profundo desespero, entramos num riacho que pensei já ter explorado naquela noite e nos deparamos com a ilha que procurávamos.

Enquanto eu levantava o motor de popa, tirando-o da água, Savannah correu para a proa e pulou para a terra firme. Prendi o mo­tor no lugar e ouvi Savannah dizer na penumbra:

Ele esteve aqui, Tom. Meu Deus, ele esteve aqui.

Precisamos esconder o barco, Savannah. Não podemos deixar que nos avistem do ar.

Luke facilitou as coisas para nós.

Sob o carvalho golpeado pelo vento e o denso bosque de palmei­ras, Savannah estava no centro da base de operações de Luke. Ele colo­cara redes de camuflagem nas árvores e, sob elas, armara uma grande barraca à prova d'água. Encontramos caixas de dinamite cobertas com oleado, tambores de gasolina, rifles, caixas de munição e de sopa enlatada. Havia um pequeno veleiro e uma pequena chata motoriza­da. Savannah encontrou trinta galões de água fresca. Luke reformara o pequeno abrigo de pesca que meu pai havia construído. Seu saco de dormir estava no canto, ao lado de uma cadeira de madeira e de uma mesa ao centro da sala. Uma garrafa meio vazia de Wild Turkey estava sobre a mesa, próxima de um prato e de talheres para uma pessoa. Ao lado do prato, um exemplar de A filha do pescador de camarões, auto­grafado por Savannah.

Luke sempre teve bom gosto em literatura - brincou Savannah.

Estou surpreso por ele não estar lendo o Livro vermelho de Mao Tsé Tung- retruquei.

Luke não precisa desse livro. Ele o está vivendo.

Descarregamos o barco rapidamente e o arrastamos para baixo

da rede de camuflagem. O amanhecer se aproximava do pântano e a maré continuava a subir, apagando a marca deixada na terra macia pela quilha do barco. Colocamos nossos sacos de dormir ao lado do de Luke, e fiz um café quando o sol já havia levantado por completo.

Faz algum tempo que ele não vem aqui - comentei.

Onde você o procuraria se ele não tivesse estado aqui? - per­guntou Savannah.

Não sei. Este parecia o lugar ideal. Colleton é péssima para guerrilha. É muito fácil cair numa armadilha em alguma destas ilhas.

Ele parece bem.

O agente do FBI, Covington, me disse que pensaram tê-lo cap­turado na semana passada. Eles o encurralaram, no terreno onde an­tes existia a cidade, com cem homens e seis cachorros, e tentaram fazê-lo sair do bosque.

E como Luke conseguiu fugir?

Era noite. Ele não se mexe a não ser que o sol esteja baixo. Covington diz que os homens não foram rápidos o suficiente. Acha que Luke conseguiu chegar ao pântano, arrastou-se até o rio e dei­xou que as águas o levassem, evitanto os barcos que eles tinham po­sicionado.

Bom para ele. Sempre gosto de filmes em que o mocinho con­segue fugir.

Ainda há discussão a respeito de quem são realmente os moci­nhos. Ele acendeu um bastão de dinamite quando parecia que os caras estavam chegando perto demais. Isso enervou os cães e irritou os per­seguidores.

Feriu alguém?

Transformou uma árvore em palitos, mas, por milagre, nin­guém se machucou.

O que você vai dizer a Luke quando ele vier, Tom? - indagou Savannah, enquanto eu lhe dava uma xícara de café. - Você sabe que ele acredita no que está fazendo e pensa estar fazendo a coisa correta, a única coisa que realmente significa algo. Sendo assim, como você pen­sa fazê-lo desistir da luta?

Vou descrever com detalhes o modo como você e eu ficaremos chateados no enterro dele. Vou falar sobre a esposa que ele nunca teve, os filhos que não vai ter e a vida de que vai se privar se continuar com essa bobagem sem sentido.

Luke nunca teve uma namorada. Não vejo como essa conversa sobre a esposa, fogo na lareira, um par de chinelos e algumas crianças vai fazê-lo sair dos bosques. Para alguns de nós, Tom, a vida de classe média americana é uma sentença de morte.

Quer dizer que minha vida é uma sentença de morte, Savannah?

Para mim, seria, Tom. E pode ser para Luke também. Entenda, não quero magoar você...

Graças a Deus! Eu nem imagino a brutalidade que viria caso você se dispusesse e me magoar. Mas nós, americanos que vivemos nossas sentenças de morte de classe média e somos chatos e insensí­veis, sobrevivemos e não nos magoamos com facilidade.

Tocante, tocante...

Eu me reservo o direito de ficar irritado quando alguém se re­fere a mim como um morto-vivo.

Não tenho culpa se você é infeliz com a vida que leva, Tom.

Não é sua condescendência que eu acho difícil de agüentar, Savannah. É esse ar pedante de superioridade que você assume quan­do discutimos nossas escolhas. É a doença de Nova York que você pe­gou quando se congratulava com outros migrantes de cidades pequenas que se dirigiram alegremente para Manhattan.

Para ser sincera com você, Tom, os melhores e mais inteligentes sulistas que conheço só se encontraram em Nova York. O Sul exige que você desista de muita coisa para pensar em viver aqui.

Não quero conversar sobre isso.

É claro que não, Tom. O assunto deve ser bastante doloroso para você.

Não é nem um pouco doloroso. Só não tolero sua aura de autocongratulação. Você está cheia de merda quanto a esse assunto e é um pouquinho malvada.

Como sou malvada, Tom?

Gosta de me dizer que estou desperdiçando minha vida.

De maneira nenhuma, Tom. Me dói muito dizer isso. Quero apenas que você e Luke tenham tudo, estejam abertos a tudo, não dei­xem que lhes roubem a alma e os transformem em sulistas.

Está vendo o sol, Savannah? - perguntei, apontando por sobre o pântano. - Existe um sol da Carolina que nos queimou. Por mais que eu more em Nova York, essa coisa não sai mais.

Agora estamos falando sobre outra coisa. Eu me preocupo, com medo de que o Sul seque o que há de bom em você. Tenho medo de que isso mate Luke, porque ele foi seduzido por uma visão na qual o Sul é uma espécie de paraíso fatal.

Quando Luke vier, Savannah, por favor, ajude-me a convencê-lo a voltar conosco. Ele sabe se defender e é romântico como o diabo. E um fanático. Ele arde com essa maldita luz romântica interior, seus olhos ficam estranhos e ele não quer nem discutir nossos argumentos. A poetisa que há em você vai adorar o guerrilheiro que há em Luke.

Estou aqui para ajudar, Tom. Vim para ajudá-lo a levar Luke para casa.

Ele vai dizer que está em casa.

Ele vai discutir um bocado, não vai, Tom? - Savannah esticou o braço para pegar o bule de café.

Se vai!

Prometo não representar meu papel de crítica nova-iorquina.

E eu não banco mais o caipira. Isto também é uma promessa.

Apertamos as mãos e iniciamos a longa tarefa de esperar por Luke.

 

Durante uma semana, Savannah e eu vivemos sozinhos no meio do grande pântano salgado. Passamos o tempo renovando os frágeis e tê­nues vínculos que são, ao mesmo tempo, o enigma e a glória de encarar o mundo como gêmeos. Durante o dia, ficávamos escondidos na cabana e nos distraíamos contando e recontando histórias de nossa família. Tentamos avaliar os danos e as forças que havíamos trazido para nossa vida adulta depois de criados por Lila e Henry Wingo. Nossa vida na casa à beira do rio fora perigosa e prejudicial, no entanto, nós a conside­rávamos de certo modo magnificente. Ela produzira crianças extraordi­nárias e ligeiramente exóticas. Nossa casa fora o meio de cultura da loucura, da poesia, da coragem e de uma inefável lealdade. Nossa infân­cia fora cruel, mas também extremamente interessante. Apesar de po­dermos fazer pesadas acusações a nossos pais, tínhamos de reconhecer que eles, em troca, nos haviam livrado do tédio e do enfado. Para nossa surpresa, Savannah e eu concordamos em que havíamos nascido dos piores pais possíveis, mas que não poderíamos escapar disso. Enquanto esperávamos por Luke, começamos a perdoar nossos pais por serem exatamente o que se esperava que fossem. Iniciávamos nossas conversas com as recordações da brutalidade e da traição e as terminávamos rea­firmando nosso amor autêntico por Henry e Lila. Finalmente, estáva­mos grandes o bastante para perdoá-los por não serem perfeitos.

À noite, Savannah e eu nos revezávamos arremessando a rede nas águas que subiam. Os camarões chegavam aos milhares à superfície da água. Pescamos mais do que conseguíamos comer. Cozinhei pratos maravilhosos e experimentamos um prazer infinito em comê-los.

Antes de dormir, nós nos sentávamos sob a luz das estrelas, to­mando vinho francês enquanto Savannah recitava seus poemas. A maioria deles era de canções de amor às terras baixas. Ela homenagea­va a língua inglesa com palavras que flutuavam sobre o pântano como borboletas que se alimentassem do néctar secreto do tempo, da luz das estrelas e do vento do Atlântico. Quando escrevia poesias sobre as Carolinas, Savannah impunha respeito às suas palavras ao usar os no­mes corretos das coisas. Seu conhecimento da região era inato e bas­tante visível. Sentada na escuridão, ela recitava alguns de seus poemas com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Não recite os que a deixam triste, Savannah - pedi, abraçando-a.

São os únicos que valem alguma coisa.

Você devia escrever sobre coisas absolutamente maravilhosas, coisas que trouxessem alegria e felicidade a todo o mundo. Devia es­crever poemas a meu respeito.

Estou escrevendo sobre Nova York.

Esse, sim, é um assunto alegre.

Sem bancar o caipira, Tom - repreendeu-me Savannah. - Você prometeu. É pelo fato de eu amar tanto Nova York que você a odeia?

Não sei, Savannah. - Parei por um instante, ouvindo as cigarras cantarem, chamando umas às outras, de ilha em ilha. - Cresci num lu­gar de seis mil habitantes onde não era sequer a pessoa mais interessante da cidade. Não estava preparado para uma cidade de oito milhões de almas. Entrei em cabines telefônicas lá e disquei o número de telefonis­tas que tinham mais personalidade que eu. Não gosto de cidades que rugem para mim que não sou um merda, quando estou a caminho de um bar para comprar um sanduíche. Lá, tudo é excessivo. Posso me adaptar a qualquer coisa, exceto ao titânico e ao colossal. Isso não me transforma numa pessoa ruim.

Mas é uma reação muito previsível para um provinciano. E isso que me preocupa, Tom. Você nunca foi previsível.

Errado, querida irmã. Você tem de se lembrar de nossas raízes mutuamente partilhadas. Papai é o protótipo do sulista. Mamãe, o protótipo da sulista levada ao ponto ou do gênio ou da paródia. Luke também é o protótipo do sulista. Diabos, Luke se separou da União. Não há idéias no Sul, apenas churrasco. Meus pés estão presos ao bar­ro vermelho, mas consigo comer todo o churrasco que desejo. Você tinha asas, Savannah. E tem sido um dos prazeres de minha vida ver você voar nessa merda de céu.

Mas a que custo, Tom?

Pense no custo que seria se você tivesse ficado em Colleton.

Eu estaria morta. O Sul é uma sentença de morte para mulhe­res como eu.

Por isso que nós enviamos vocês, moças, para Manhattan. Isso diminui os gastos com enterros.

O primeiro poema do ciclo de Nova York se chama Étude: Sheridan Square - anunciou ela, a voz mais uma vez lançando anapestos na noite.

Durante o dia, nós nos mantínhamos escondidos e Savannah tra­balhava obsessivamente em seu diário, registrando as histórias que eu lhe contava sobre a infância. Pela primeira vez percebi as enormes la­cunas que havia em sua memória sobre nossa vida em Colleton. A repressão era, ao mesmo tempo, um tema e uma carga em sua vida. Sua loucura era um censor implacável que não se contentava com ar­ruinar apenas a qualidade de sua vida atual em Nova York, mas tam­bém apagava o passado e o substituía pelo esquecimento. Os diários preservavam os detalhes da vida de minha irmã, que os preenchia so­mente com os fatos mais difíceis. Eram sua janela para o passado, uma das técnicas que ela desenvolvera para salvar a própria vida.

Todo Natal, me enviava um dos lindos diários de couro que ela própria usava e me encorajava a registrar os detalhes cotidianos de minha vida. Os volumes marrons enchiam uma prateleira sobre mi­nha escrivaninha e eram notáveis apenas porque eu nunca fizera um registro nem escrevera neles um pensamento qualquer. Em meu pró­prio livro da vida, por razões pouco claras para mim, jamais quebrei o voto de silêncio. Eu tinha uma prateleira acusatória, repleta de diários que não revelavam absolutamente nada a respeito de minha vida inte­rior. Cultivei o dom da autocrítica, apesar de saber que essa presunção era a mais imperdoável das minhas deficiências, convencido de que só deveria escrever em meus diários quando tivesse alguma coisa interes­sante e original para dizer. Não queria ser um mero biógrafo de meu próprio fracasso. Desejava dizer algo. Aqueles volumes vazios eram uma metáfora eloqüente de minha vida como homem. Vivi com a terrível consciência de que um dia seria velho e ainda estaria esperan­do que minha vida começasse. No fundo já sentia pena daquele velho.

Na sexta noite que passamos na ilha, tomamos banho no riacho quando a maré subiu à meia-noite. Nadamos para dentro do pântano e ensaboamos nossos corpos nus, sentindo a água agitar nossos cabelos. Em voz alta, discutimos sobre quanto tempo ainda podíamos esperar por Luke antes de precisar voltar a Charleston para buscar suprimentos. Nós nos enxugamos na cabana e tomamos um copo de conhaque antes de dormir. Savannah vaporizou o interior da cabana com inseticida e lhe passei o frasco de repelente contra insetos depois de besuntar meu corpo. Os mosquitos impediam que aquelas férias fossem perfeitas. Savannah chegou à conclusão de que o mundo seria um lugar muito melhor se os mosquitos fossem tão gostosos quanto os camarões e pu­dessem ser recolhidos por um barco que puxasse uma rede. Um vento fresco se levantava do oeste quando fomos dormir.

Acordei com o cano de um rifle em minha garganta. Em seguida, uma lanterna me cegou. Levantei-me do saco de dormir. Então, ouvi Luke dando risada.

Che Guevara, eu presumo - ironizei.

Luke! - gritou Savannah. E os dois lutaram para se encontrar na escuridão. Suas sombras se abraçaram à luz do luar. Eles giraram em círculos, empurrando a cadeira de madeira para a parede.

Estou tão contente por não ter matado vocês - disse Luke. - Vocês me surpreenderam.

Você está satisfeito por não ter nos matado, Luke? - indagou Savannah.

Meu Deus, Luke! Por que você pensaria em nos matar? - reforcei.

Se os homens encontrarem este lugar, irmãozinho, não vai ha­ver tempo para nada. Não pensei que vocês se lembrariam daqui.

Viemos para convencê-lo a voltar conosco, Luke - disse Savannah.

Vocês nunca conseguirão isso, meus queridos.

Saímos da cabana e o vimos puxar o caiaque até a barraca. Savannah trouxe a garrafa de Wild Turkey e preparou uma dose para ele. Sentamo-nos na pequena varanda, sentindo a brisa que vinha do pântano. Durante dez minutos, nenhum de nós disse uma palavra. Ten­távamos pôr em ordem nossos argumentos e nossas declarações de amor mútuas. Eu desejava dizer as palavras que salvariam a vida de meu irmão, mas não sabia quais seriam. Minha língua era como uma pedra dentro da boca. Minha cabeça estava cheia de ferocidades, afirmações e exigências que giravam descontroladas em órbitas de colisão.

Você está bonito, Luke - comentou Savannah. - A revolução combina com você.

Ele riu.

Não sou grande coisa como revolucionário, Savannah. Você está falando agora com o exército revolucionário inteiro. Preciso fazer um pouco de recrutamento.

O que você está tentando provar? - perguntei.

Não sei, Tom. Talvez apenas que existe um ser humano no mundo que não é cordeirinho. De qualquer modo, foi assim que co­mecei. Eu estava tão bravo com mamãe, com a cidade e o governo que me meti nisso sem ver nenhuma saída. Uma vez que explodi as pontes e aqueles quatro caras foram mortos, não havia volta para mim. Ago­ra, passo a maior parte do tempo me escondendo.

Você pensou em desistir? - perguntou Savannah.

Não. Eles precisam saber que o projeto tem alguma oposição. Não me arrependo de nada que fiz, exceto da morte daqueles homens. Gostaria de ter sido mais eficiente.

Puseram gente caçando você por todas as ilhas, Luke - informei.

Eu sei. Já os vi.

Ouvi dizer que são bem treinados. Têm dois ex-boinas verdes que comem bebês no café-da-manhã.

Eles não conhecem o terreno, Tom. Isso dificulta tudo. Pensei em caçá-los, mas meu problema não é com eles.

Você não tem problema com os homens que foram contrata­dos para matá-lo? - perguntou Savannah.

Esse é o trabalho deles. Do mesmo modo que meu trabalho era pescar camarões. Como é que vão mamãe e papai?

Papai está fazendo placas de automóveis para pagar sua dívida com a sociedade - expliquei. - Mamãe fica envergonhada quando vai ao correio e vê a fotografia do filho mais velho em cartazes de "Procu­ra-se". Mas agora ela é uma Newbury. Está peidando através da seda e há sempre uma lembrança de caviar em seu hálito.

Os dois estão tremendamente preocupados com você, Luke - acrescentou Savannah. - Querem que desista e volte conosco.

Tudo estava claro para mim quando comecei essa luta - retru­cou ele. - Pensei que essa fosse a coisa certa a ser feita, a única reação sensata que uma pessoa poderia ter. Fiz o que me veio naturalmente à cabeça. Acho difícil pensar que agia como um completo imbecil. Vocês sabem que tenho dinamite guardada nesta ilha que daria para explodir a metade de Charleston? Só que, agora, não posso me aproxi­mar de um canteiro de obras o suficiente sequer para explodir a mar­mita de um operário. Quase me pegaram nas três últimas vezes em que tentei. Explodi um canil cheio de cães de guarda um mês atrás.

Meu Deus! - exclamei. - Você deixou de ser o sr. Bonzinho, não é, Luke?

Os cães são uma séria ameaça, Tom. Eles me perseguem com cães.

Você tem o apoio de todos os preservacionistas - informou Savannah. - Eles não aprovam as suas táticas, mas concordam que foi o seu protesto que os mobilizou.

Os membros da Audubon Society e do Sierra Club usam bra­çadeiras verdes em suas reuniões - acrescentei.

Ótimo - disse Luke. - Estudei tudo cuidadosamente. Sei que vocês pensam que nunca abri um livro em minha vida, mas estudei esse problema direitinho. Sempre que o dinheiro se levanta contra o meio ambiente, o dinheiro ganha. E uma lei americana, como o direi­to à livre reunião. Alguém vai ganhar milhões de dólares produzindo plutônio em Colleton. Esse é o único fato que faz diferença. Alguém vai ganhar milhões de dólares transformando o plutônio em armas nucleares. Não aceito a idéia dessas armas. Não está em mim fazê-lo. Os políticos, os generais, os soldados e os civis que constroem essas armas não são seres humanos para mim. Pouco importa se alguém concorda comigo ou não. Esse é meu modo de ser. Estou falando da única coisa que tem significado para mim. Terem vendido Colleton é algo que eu admito. Realmente admito. Isso se a transação estivesse proporcionando seis mil empregos e colocando as pessoas para plan­tar tomates, criar ostras ou gardênias. Droga, eu faria esse sacrifício! Se fosse uma siderúrgica ou uma companhia química, eu não gosta­ria, mas poderia aceitar. Mas profanar a memória de Colleton com plutônio! Sinto muito. Não faz meu gênero.

Luke, a maioria das pessoas pensa que você é louco - afirmei. - Acham que você é um assassino e que está maluco.

Tenho dores de cabeça terríveis. Essa é a única coisa errada comigo.

Eu também tenho enxaquecas. Mas não matei quatro pessoas.

Isso não fazia parte do meu plano, Tom. Aquele trem não esta­va programado.

Você ainda é procurado por assassinato.

É engraçado... Eles constroem bombas de hidrogênio e me cha­mam de assassino. - Ele tomou um longo gole de uísque. - O mundo está fodido, essa é que é a verdade.

Não é sua função fazer o mundo deixar de construir bombas de hidrogênio - interveio Savannah.

Então, de quem é essa função?

Sua perspectiva é muito simplista, Luke - repliquei.

Então me ensine a ser mais complexo. Minha atitude faz pouco sentido para mim. Mas o que você e os outros estão fazendo não tem nenhum sentido.

De onde é que vem essa espantosa sensibilidade moral, Luke? Por que ela não funcionou quando você foi para o Vietnã e participou festivamente de missões de destruição e ficou puto da vida porque Savannah e eu entramos em manifestações contra a guerra?

Disseram-me que estávamos lutando para que os vietnamitas pudessem ser livres. Isso me pareceu uma boa idéia. Não vi nada erra­do nisso. Eu não sabia que lutava para que pudessem roubar minha casa quando eu voltasse.

Por que você não fez um protesto não-violento contra o Proje­to do Rio Colleton? - perguntou Savannah.

Pensei que brigando teria mais chance de atrair a atenção, que seria mais eficiente. Imaginei também ser competente a ponto de pôr os caras para correr. Eu os subestimei e superestimei a mim mesmo. Não consegui nem ao menos diminuir o ritmo das construções.

Derrubando as pontes, você diminuiu bastante a velocidade das obras - disse eu. - Desviou um monte de caminhões.

Você não percebe... Eu pensei que poderia acabar de vez com toda a operação.

Como assim? - indagou Savannah.

Porque eu visualizara isso acontecendo. Desde pequeno, se eu visse alguma coisa em minha cabeça, eu poderia fazer com que aquilo acontecesse. Antes de irmos buscar a toninha branca, eu já tinha feito a viagem mentalmente umas cem vezes. Quando estávamos em Miami, não aconteceu nada que me surpreendesse porque eu já vira como seria.

Pois eu fiquei surpresa - afirmou Savannah. - Não acreditava que era eu mesma que estava vindo pela estrada costeira, deitada so­bre uma toninha.

Pensei que deixaria os operários com tanto medo que eles nun­ca mais colocariam os pés em Colleton - continuou Luke.

Você conseguiu - disse eu. - Eles estão apavorados, mas têm famílias para sustentar.

Tudo faz mais sentido quando estou aqui sozinho. - Ele sorriu. - Posso me convencer de qualquer coisa. Vocês se lembram de quando mamãe leu O diário de Anne Frank para nós quando éramos crianças?

Ela nunca deveria ter lido aquele livro para nós - retruquei. - Durante anos, Savannah teve pesadelos com nazistas que arrebenta­vam as portas.

Você se lembra de quando Savannah nos levou até a sra. Regenstein, depois de leitura do livro?

Não me lembro disso, Luke - ela apressou-se em dizer.

Nem eu - garanti. - Nós éramos pequenos quando ela nos leu aquele livro.

A sra. Regenstein era uma refugiada alemã que morava com a família de Aron Goldberg. Perdera todos os parentes em campos de concentração.

Ela nos mostrou uma tatuagem - disse eu, começando a recordar.

Não era uma tatuagem - interrompeu Luke. - Ela nos mostrou o número que puseram em seu antebraço no campo de concentração.

Qual é o problema dessa história, Luke?

Não há problema. Simplesmente foi a primeira vez que percebi a grandeza de Savannah.

Fale-me a respeito disso, Luke - pediu ela, abraçando-o. - Ado­ro histórias em que sou a personagem principal.

Você guarda saquinhos para vomitar no acampamento, Luke? - brinquei.

Depois que mãmãe leu sobre Anne Frank, Savannah passou três dias fazendo um esconderijo no celeiro. Colocou comida, água e tudo mais. Até um quadro de avisos no qual se poderiam afixar figu­ras de revistas como Anne Frank fizera.

Que ridículo! - exclamei.

Sim - concordou Luke. - Mas foi um gesto. Foi alguma coisa. A maior parte da Europa não fez nada quando soube do que estava acontecendo com os judeus. Nós tínhamos uma irmã de 8 anos que construiu um esconderijo no celeiro para o caso de acontecer alguma coisa. Mas essa não é a história de que mais me recordo.

Estou certa de que fiz algo heróico - declarou Savannah, divertindo-se.

Não tanto, minha querida. Você fez Tom e eu irmos com você para visitar a sra. Regenstein. Ela me assustava porque falava inglês com um sotaque muito forte. Eu não queria ir, mas você nos obrigou. Tom e eu estávamos atrás de você quando a sra. Regenstein abriu a porta. Ela disse: Guten morgen, Kinder. As lentes de seus óculos eram grossas e ela era muito magra. Você se lembra do que lhe disse naquele dia, Savannah?

Eu nem me lembro daquele dia, Luke!

Você falou: "Nós vamos escondê-la. A senhora não precisa ter medo de que os nazistas venham para Colleton, porque meus irmãos e eu estamos aqui para escondê-la. Fizemos um ótimo esconderijo no celeiro e vamos levar-lhe comida e revistas."

O que a sra. Regenstein respondeu? - Savannah quis saber.

Ela se desmoronou. Chorou até não poder mais. Você pensou que tinha feito uma tremenda bobagem e então lhe pediu desculpas. A sra. Goldberg veio até a porta e acalmou a amiga. Antes de sairmos, a sra. Regenstein nos deu leite e biscoito e passou a nos adorar a partir daquele dia.

Eu sabia que era uma criança maravilhosa - brincou Savannah. - Obrigado por ter contado essa história, Luke.

Posso contar outras trinta em que você foi uma merda, Savannah - disse eu.

Quem convidou esse cara para vir a esta ilha? - E ela apontou para mim.

Eu é que não fui - disse meu irmão.

Bem, Luke, viemos lhe trazer uma proposta. As forças do mal estão querendo fazer um acordo.

Não me diga! Se eu for até eles, vão me deixar com todo o esta­do da Carolina do Sul?

Talvez a gente não esteja longe disso - repliquei. - Mandaram um sujeito chamado Covington.

Durante dois dias, revigorados pela presença de Luke, deixamos que ele contasse a história de sua modesta rebelião contra o país. Uma sensação de injustiça o levara, armado e vingativo, para a terra natal que lhe fora furtada. O malogro de sua tentativa de mudar qualquer coisa transformara seu compromisso em devoção - por ter fracassado de maneira tão visível, não podia se retirar de sua própria convocação às armas. Ele se tornara a primeira vítima de sua própria bravata. De início, Luke pensara que havia retornado a Colleton porque era o úni­co homem de princípios que a cidade produzira. Mas, na longa soli­dão de sua luta particular, percebera que a vaidade transformara uma simples decisão política num caso de honra. Sem saber como se deso­brigar daquela luta, havia ocasiões em que ainda sentia estar fazendo a única coisa que se poderia esperar de um homem com sua natureza. Não se convencera de que estava errado; simplesmente havia agido sozinho, e esse fora seu erro mais doloroso.

Com voz sonora e musical, ele relatou suas caminhadas vaga­rosas pela região devastada, os encontros com os guardas armados, as desaparições em suas casas na Geórgia depois de algum ataque bem-sucedido, o paciente roubo de dinamite dos canteiros de obras e os perigos que enfrentava cada vez que punha o barco no rio. Aprendera com os vietcongues a agir na escuridão e a eficácia da paciência quando se lidava com um inimigo numericamente superior. Surpreendera-se com a fragilidade da guarda das pontes - fora fácil colocar poderosas bombas-relógios para explodir si­multaneamente às duas da manhã e voltar para Marsh Hen antes de o dia clarear. Depois disso, houve uma grande melhoria na se­gurança das pontes que levavam ao município, mas a morte dos homens do trem modificara a natureza de seu protesto. Após aquele derramamento de sangue, sua guerra contra a propriedade do Estado perdera a ressonância moral. Se tivera que matar, espe­rava não haver desperdiçado aquelas mortes.

Eu ia atirar nos três engenheiros-chefes da companhia Mewshaw que estão dirigindo o projeto. Observei-os através da mira da arma e pensei em matá-los. Então, lembrei-me de suas esposas e filhos que ficariam arrasados quando soubessem que os pais haviam levado um tiro no meio dos olhos. Acabei abaixando o rifle. Aí percebi que estava travando a guerra mais idiota do mundo. Não tinha sequer o apoio da população porque não havia mais cidade. Agora existem cicatrizes no chão, nos lugares onde antes se localizavam as casas. As­sim, explodi alguns tratores e caminhões e apavorei os poucos guar­das. Minha única vitória, se é que se pode falar assim, é que ainda não me agarraram. Mas eles tentaram como o diabo!

Luke não se sentia derrotado, apenas empatado. As crenças que o haviam sustentado nos primeiros dias da disputa tinham perdido o vigor e a potência. Na solidão, ele descobrira que não havia base filosófica para sua dissensão. Era impossível forçar o século a ter um sentido e difícil encontrar um lugar onde se colocar dentro dele. Tentando conduzir-se como um homem honrado que não podia ser comprado ou vendido, ele acordara certa manhã para descobrir que era um homem com um preço por sua cabeça. E, do mais profundo de si mesmo, não entendia por que os americanos não haviam se juntado a ele ao saberem da natureza de seu desencantamento com o governo. Pensando entender a alma americana, aprendera que se­quer podia medir a profundidade de sua própria alma. Jamais ima­ginara que a venda da terra natal e dos direitos adquiridos por nascimento fossem o esporte dos grandes do país. De acordo com nossos pais, os sulistas tinham a terra na mais alta estima. Era a terra e o apego a ela que definiam a separação entre nós e os outros ame­ricanos. Luke cometera um erro: acreditara na sublimidade da ma­neira de ser dos sulistas.

Assim que cheguei aqui, enxerguei a mim mesmo como o últi­mo sulista - declarou ele. - Mas ultimamente tenho pensado em mim como o último idiota sulista.

Temos uma combinação de genes como Loch Ness, Luke - dis­se Savannah. - Vamos ter monstros aparecendo na superfície antes que tudo termine.

Se você não acredita mais no que está fazendo - perguntei então por que diabos continua aqui brincando de guerra?

Pouco importa quanto eu esteja errado, Tom; não estou tão errado quanto eles. E minha presença aqui faz com que se lembrem de que o roubo de uma cidade pode ser perigoso para a saúde. Até pensei em atacar um dos canteiros de obras em plena luz do dia. Sei como lutar numa guerra desse tipo; o que me falta é coragem para lutar como esperam que eu lute.

Teriam mandado fuzileiros navais se você tivesse matado guar­das e operários, Luke.

Agindo sozinho, sou incapaz de matar gente inocente. Fiz isso no Vietnã porque tinha o país mais forte do mundo me apoiando. Mas, a não ser que se queira matar os inocentes, não se consegue ven­cer. Não se é nem percebido.

Você nunca foi bom em assumir compromissos.

O quê? Onde é que estava o maldito compromisso? Não nos disseram que iriam construir as fábricas num dos cantos do municí­pio e que continuaríamos a morar onde sempre havíamos morado. Falaram: "Vão embora, seus fodidos, vão embora!" E eu entendo por que fizeram isso. Se algum dia houver um acidente nas fábricas, tudo o que está rio abaixo, camarões, polvos, siris, tudo vai arder na escuri­dão durante duzentos anos. Se fizerem uma bobagem que seja, podem matar todas as formas de vida marítima num raio de 80 quilômetros. O pântano pode se transformar num deserto.

Desde quando você se tornou radical, Luke? - perguntou mi­nha irmã. - Foi no Vietnã?

Não sou radical, Savannah. Odeio todo tipo de radicais, sejam liberais ou conservadores. Não ligo a mínima para políticos ou mani­festantes.

Errado, meu querido. Você é o melhor manifestante que já vi.

Então Luke falou de suas voltas freqüentes à ilha Melrose durante as quais perambulava pelo mato crescido no lugar onde antes ficavam nossa casa e o celeiro. Certa noite, ele dormiu no lugar onde era nosso quarto. Depois, tirou mel das colméias abandonadas que as equipes de demolição haviam deixado para trás quando destruíram a casa.

Colheu azaléias, rosas e dálias no antigo jardim de minha mãe e as colocou sobre o túmulo do tigre. Matou com arco-e-flecha um javali que procurava pecãs na parte sul da ilha.

Na segunda noite, Luke nos contou sobre sua volta ao lugar onde se localizara a cidade, e da extraordinária visão de Colleton se elevan­do milagrosamente da terra devastada. Com certo temor, falou-nos sobre a crescente freqüência dos monólogos que mantinha consigo mesmo. Essas meditações solitárias o assustavam, ao mesmo tempo em que o dotavam de um renovado senso de determinação e honra­dez. Recordou-se da dificuldade que tivera para localizar o terreno da casa de meus avós, do encontro da cruz na escuridão e de seu trans­porte até a rua das Marés sob a luz estranha de uma lua escura. Então, ele vira o sr. Fruit, que descia a rua em sua direção, louco e desnortea­do, ainda fazendo sua dança lunática na esquina onde passara toda sua vida. O velho soprava o apito e dirigia um trânsito fantasma na muda simplicidade e grandeza de sua arte. Mas, quando o sr. Fruit se mate­rializou, a cidade que ressurgira perante os olhos de Luke desapareceu no pesadelo e no pó.

A cidade esteve lá por um momento - contou Luke, maravilha­do. - Não sei como explicar. Por um minuto senti cheiro de tinta fres­ca e de café, ouvi a voz dos lojistas e o ruído das vassouras varrendo as calçadas. Era tudo tão lindo e real.

Savannah segurou-lhe a mão e a beijou suavemente.

Você não precisa me explicar isso, Luke. Tenho visto coisas du­rante toda minha vida.

Mas eu não estou louco - protestou ele. - Estava tudo ali, na minha frente. Vi as lojas, cartazes anunciando liquidações, e até ouvi a arara dizer "bom dia" na loja de sapatos. Os semáforos estavam fun­cionando. Vocês têm de acreditar. Não foi um sonho.

Eu sei que não foi um sonho - continuou Savannah. - Foi ape­nas uma bela alucinação. Sou a rainha das alucinações. Posso lhe falar tudo sobre elas.

Você está dizendo que eu enlouqueci. Mas você sempre foi a louca da família, Savannah.

Não, Luke. Simplesmente sou a única que sabia disso.

O que eu senti foi religioso. Era como se tivesse sido tocado por Deus e Ele me permitisse visualizar o que aconteceria no futuro se eu permanecesse leal à minha missão.

Você ficou sozinho nos bosques por mais tempo do que deve­ria - comentei.

Mas eu não inventei o sr. Fruit!

Essa é a parte mais estranha da sua alucinação - afirmou Savannah.

Não. Ele estava lá. Na certa, ficou esquecido quando mudaram a cidade. E deve ter ficado com medo ao ver a derrubada das casas. Escondeu-se na floresta e viveu como pôde. Estava faminto e vestia trapos quando o encontrei na esquina onde dirigia o tráfego. Como é que se vai explicar ao sr. Fruit a respeito do plutônio? Ele estava quase morto de inanição. Levei-o para uma Missão Católica em Savannah, apesar da dificuldade de tirá-lo da esquina e enfiá-lo no barco. Foi mandado depois para um hospital psiquiátrico em Milledgeville. Ninguém lhe deu ouvidos quando ele explicou que só precisava de uma nova esquina onde pudesse se sentir à vontade. Mas é necessário nascer em Colleton para entender o sr. Fruit. Ninguém o escutaria. Não consegui explicar-lhes a importância do sr. Fruit no grande es­quema das coisas.

Você também precisa de ajuda, Luke - disse minha irmã. - Do mesmo modo que o sr. Fruit, você também é uma vítima da mudança da cidade.

Minha visão da cidade foi um momento de clarividência, Savannah. Quando você se senta para escrever, deve ser capaz de en­xergar um poema escondido em algum lugar de uma página em bran­co. Vi nossa cidade num pedaço de terra escura. Estou falando de imaginação, não de insanidade.

Você precisa voltar conosco, mano. Está na hora de começar vida nova.

Luke enterrou o rosto entre as mãos, mostrando uma qualidade primitiva em sua tristeza. Seu rosto era leonino, majestoso, mas os olhos eram suaves e assustados como os de um cervo.

Você confia no tal agente do FBI, Tom?

Tanto quanto posso confiar em qualquer homem que esteja caçando meu irmão.

Ele disse que eu pegaria três anos de prisão?

Disse que você pegaria cinco anos. Foi esse o acordo que ne­gociou.

Talvez eu possa ficar na mesma cela que papai...

Papai também quer que venha, Luke - disse Savannah. - Ele está muito preocupado. Mamãe também.

Talvez daqui a cinco anos possamos fazer uma reunião de fa­mília - respondeu ele.

Vamos parando por aí - propôs Savannah.

Tom, diga a Covington que vou me entregar na ponte Charleston. Quero me render a um oficial da Guarda Nacional. Gos­taria de me render como soldado.

Por que você não volta conosco ainda hoje? Eu poderia ligar para Covington lá de casa.

Gostaria de passar algumas noites aqui, sozinho, para dizer adeus a Colleton. Encontro vocês na ponte Charleston na sexta-feira.

A maré está subindo, Savannah. Precisamos ir embora.

Deixe que eu fique com você, Luke - pediu ela, preocupada. - Estou com medo de deixá-lo aqui sozinho.

Sei cuidar de mim mesmo, irmãzinha. Vou ficar bem. Tom está certo. Se vocês não pegarem a maré na próxima hora, não conseguirão sair esta noite.

Luke ajudou-me a arrastar o barco até a água. Abraçou Savannah e a apertou contra o peito por um longo tempo, enquanto ela chorava em seu ombro. Depois, ele se voltou em minha direção. Perdi o con­trole assim que me tocou.

Acabou, Tom - disse, abraçando-me. - Daqui a três anos, va­mos rir muito dessa história. Vamos transformar a merda em algo bom, maravilhoso. Vou sair da cadeia, comprar um belo barco de pes­ca e vamos pescar mais camarões do que qualquer pessoa na Costa Leste. Seremos famosos e esvaziaremos todos os bares de marinheiros, bebendo quanto quisermos.

Savannah e eu entramos no barco e Luke empurrou-o para den­tro da água. Savannah mandou-lhe beijos. Vimos sua figura ilumina­da pela luz suave de uma linda lua. Nós o deixamos e entramos pelas alamedas atraentes do pântano salgado. Saímos de nossa terra natal pela última vez em nossas vidas. Enquanto dirigia o barco pelo canal estreito, lancei uma prece aos céus. Uma prece de agradecimento. Apesar de Deus ter me sobrecarregado com pais estranhos e magoa­dos, concedera-me a presença de irmãos extraordinários para equili­brar a balança. Eu não teria continuado minha jornada sem eles. Aliás, nem teria preferido fazê-lo.

 

A caminho do encontro marcado na ponte de Charleston, Luke fez uma visita sentimental à ilha onde havíamos crescido numa casa branca à beira do rio Colleton. Ele caminhava pelas fundações da casa quando foi morto por um tiro de rifle, disparado por um dos boinas-verdes contratados para matá-lo. J. William Covington levou a notícia à minha casa na ilha Sullivan no sábado, depois de Luke não ter aparecido para se render ao coronel Bryson Kelleher na ponte Charleston.

Após os funerais, Savannah e eu transportamos o corpo de Luke para além do limite de 3 milhas e o jogamos ao mar, na corrente do golfo que ele tanto amava. Ao levantarmos o pesado caixão para deixá-lo cair na água, Savannah leu o poema que acabara de escrever para despedir-se de Luke. Chamava-se O príncipe das marés.

Em seguida, voltamos a Charleston, sabendo que tínhamos o res­tante de nossas vidas para aprender a viver sem Luke. Anos e anos para aprender a fazer isso de uma maneira serena.

 

Há ainda algumas coisas a dizer. Quando contei a Susan Lowenstein a história de Luke, as palavras vieram-me com dificul­dade... Ainda que tenha sido mais fácil contar o episódio à mulher que eu amava e que murmurava todos os dias que também me ama­va. Agora eu sentia a volta da paixão, o retorno da esperança e o fim dos avisos de tempestade nas zonas perigosas da memória. Eu não conversara com ninguém sobre a morte de Luke, como Sallie me dissera na noite anterior à minha partida para Nova York, e me es­quecera de chorar.

Passei o verão escrevendo canções de amor para minhas filhas e cartas amorosas para minha esposa. Com saudade atroz de minhas filhas, a simples menção de seus nomes era capaz de me ferir. Mas elas não iriam sair de minha vida - era Sallie que eu pensava ter perdido para sempre. Minhas cartas para ela tinham sempre o mes­mo tema: ninguém entendia melhor do que eu a razão pela qual ela buscara amor fora de casa. Triste e amargurado, eu a imaginava como uma estranha, uma invasora e, mais cruel que tudo, uma viú­va que dirigia uma casa repleta da mais autêntica tristeza. O menino da ilha, Tom Wingo, afastara-se de todos os que o amavam e se lan­çara flutuando às águas de uma longa destruição. Eu lhe disse que seu caso com o dr. Cleveland me ensinara que eu ainda me machu­cava nos mesmos lugares atingidos pela morte de meu irmão. Aque­le romance detivera minha longa queda rumo à auto-piedade e me fizera sentir que o lutador dentro de mim ansiava por ser reconheci­do novamente. Eu sabia que a redenção exige freqüentemente o bei­jo de Judas como prelúdio; há vezes em que a própria traição se torna um ato de amor. Eu tirara Sallie de meu coração e Jack

Cleveland a recebera no seu. Não gostei disso, mas garanti a ela que entendia perfeitamente. Suas cartas para mim refletiam uma mu­lher magoada e desnorteada. Ela pedira tempo, que eu lhe dei, fican­do à espera de sua decisão. Não me ocorreu que a decisão partiria de mim ou que eu iria sentir uma emoção que não fosse alegria quando saísse de Nova York.

Nas duas últimas semanas de agosto, Susan Lowenstein alugou um chalé na costa do Maine. Foi ali que lhe contei sobre a morte de Luke enquanto via um Atlântico muito mais bravio e frio golpear os rochedos. Relatei tudo e lhe afirmei então que não valorizava nenhum tipo de vida que não incluísse meu irmão. Naquela região que todos os anos se purificava sob vastos lençóis de neve, louvei o espírito de Luke e lamentei sua morte, contemplando a beleza verde do verão do Maine. Era incalculável o preço de um amor tão profundo e agressivo por uma família.

Quando mencionei o enterro de Luke no mar, Susan apertou-me nos braços, acariciou-me os cabelos, secou minhas lágrimas. Não era como psiquiatra de minha irmã que ela me escutava, mas como mi­nha amante, companheira e melhor amiga. Durante duas semanas, fizemos amor como se tivéssemos esperado a vida inteira para cair nos braços um do outro. Todos os dias, andávamos quilômetros à bei­ra do mar, colhíamos flores silvestres e amoras, até que ela se voltava para mim, passava as unhas em minhas costas e dizia:

Vamos voltar para casa, fazer amor e contar um ao outro tudo o que há no mundo. - Era um prazer desfrutar com Susan Lowenstein momentos tão intensos.

Em nossa última noite no Maine, nós nos aconchegamos sobre uma rocha, com o cobertor nos ombros. A lua espalhava um manto prateado sobre o oceano e o céu estava estrelado e limpo.

Você não está louco para voltar à cidade, Tom? - perguntou ela, beijando-me o rosto. - Estou cansada de tanta paz, silêncio, beleza, comida maravilhosa e sexo delicioso.

Dei uma risada e retruquei:

Se ficarmos juntos, Lowenstein, terei de me tornar judeu?

Claro que não. Herbert não é judeu.

Olhe, eu não me incomodaria. Todo mundo na minha família está fazendo isso. Não se esqueça de Renata.

Essa estada aqui não deu uma ótima idéia do que seria nossa vida se ficássemos juntos? Uma prévia das próximas atrações?

Demorei um pouco para responder e a imagem de minha mu­lher e minhas filhas apareceu na escuridão, vivida como um vagalume.

Antes de conhecer você, eu estava num sono profundo. Era um homem morto e não sabia. Posso chamá-la de Susan agora, Lowenstein?

De jeito nenhum. Adoro quando você diz "Lowenstein", princi­palmente quando fazemos amor. Estou me sentindo linda outra vez. E absolutamente maravilhosa.

Preciso ver Savannah quando voltarmos.

Está na hora, Tom - concordou ela. - Para vocês dois.

Preciso contar alguma coisa a ela. Aliás, a várias outras pessoas também.

Tenho medo do que vai acontecer quando Sallie ligar e quiser você de volta.

Como você sabe que ela vai me querer de volta?

Você me deu uma amostra da mercadoria, menino sulista - brincou ela. - Mal posso esperar a volta para casa para tirar a roupa e contar tudo o que há no mundo.

Lowenstein - disse eu, voltando-me para beijá-la -, você tem de aprender um bocado sobre a vida ao ar livre. - E comecei a desabotoar sua camisa.

 

Savannah surpreendeu-se ao me ver quando um funcionário do hospital a trouxe para o salão dos visitantes. Parecia pouco à vontade ao me beijar, mas me abraçou com força.

Deixaram você entrar, Tom!

Lowenstein permitiu que você passasse o dia fora. Serei consi­derado responsável se você der um mergulho do Empire State Building.

Tentarei me controlar. - E ela esboçou um sorriso.

Levei-a ao Museu de Arte Moderna, onde havia uma exposição de fotografias de Alfred Stieglitz e da arte de Geórgia O'Keefe. Falamos pouco durante a primeira hora em que estávamos juntos, mas perambulamos lado a lado pelas galerias. Muito tempo e sangue ocupavam os pântanos de nosso passado compartilhado. Havíamos perdido muitos anos para as piratarias de um destino implacável e nenhum dos dois parecia disposto a falar disso. Porém, sua primeira pergunta me pegou desprevenido.

Você sabe a respeito de Renata Halpern? - Savannah observava uma fotografia de uma cena de rua em Nova York.

Sim.

Essa história me ajudou naquela época. Eu não estava bem.

Você precisava de uma fuga. Qualquer um entende isso. Princi­palmente eu.

Você entende, Tom? - Havia um toque de raiva em sua voz. - Você ficou no Sul.

Você sabe o que o Sul significa para mim?

Não - disse ela, mentindo.

É o alimento da alma, Savannah. Não posso evitar. É o que eu sou.

O Sul é mau, inferior e retrógrado. A vida sulista é uma senten­ça de morte.

Virei-me de costas para a foto de uma jovem e bela Geórgia O'Keefe e retruquei:

Sei que é assim que você se sente, Savannah. Já conversamos mil vezes sobre isso.

Ela tomou minha mão e a apertou.

Você se vendeu muito barato. Poderia ter sido mais que um professor e treinador.

Escute, Savannah. Não existe palavra que eu reverencie mais que professor. Nenhuma. Meu coração bate mais forte quando uma criança se refere a mim como professor. Sempre foi assim. Honrei a mim mesmo e a todo o sexo masculino quando me tornei professor.

Então por que você não é feliz? - Savannah olhou-me dentro dos olhos.

Pela mesma razão pela qual você também não é. Caminhamos até a sala de Monet. Contemplamos as grandes telas cheias de lírios e lagos. Aquele era o lugar favorito de Savannah, para onde ela ia sempre que desejava levantar seu moral.

Lowenstein vai lhe dar alta logo, logo, Savannah.

Acho que já estou pronta - respondeu ela.

Se você decidir ir embora, deixe-me ajudá-la, por favor.

Talvez eu ainda precise ficar longe de vocês por um bom tempo.

Eu a amo em qualquer circunstância, não importa o que você faça. Mas não suportaria o mundo sem você.

Às vezes penso que o mundo seria muito melhor sem mim. - A tristeza em sua voz tocou-me fundo na alma.

Nunca pronunciamos o nome de Luke desde que ele morreu - disse eu, segurando-lhe a mão.

Savannah deitou a cabeça em meu ombro e, com voz exausta e temerosa, pediu:

Ainda não, Tom. Por favor.

Já é tempo. Nós amamos tanto Luke que esquecemos quanto nos amamos.

Alguma coisa se despedaçou em mim. Algo que não pode ser consertado.

Eu sei o que pode consertá-la. - E apontei para as flores imemoráveis de Monet, que flutuavam nas águas frescas de Giverny. Savannah levantou os olhos para a enorme pintura em sua sala favori­ta de Manhattan enquanto eu continuava: - A arte pode consertá-la. Você pode escrever lindos poemas sobre nosso irmão. Você é a única pessoa capaz de trazer Luke de volta.

Ela começou a chorar, mas eu sentia seu alívio.

Só que ele está morto, Tom.

Está, porque você não escreveu sobre ele. Faça com Luke o que Monet fez com as flores. Use sua arte. Devolva-o para nós. Permita que o mundo inteiro ame Luke Wingo.

 

NO fim daquela tarde, recebi o telefonema de Sallie, aquele que eu começara a temer. Ela mal conseguia falar. Então perguntei:

Alguma coisa errada, Sallie?

Ele estava tendo casos com outras duas mulheres, Tom. Eu es­tava planejando abandonar você e chamá-lo para morar comigo e com as meninas. E ele estava trepando com mais duas mulheres!

É por causa da coleção de motocicletas inglesas. Os cachim­bos eram simples fingimento; mas, quando um médico começa a colecionar motocicletas, é sinal de alguma coisa enviesada em seu ego masculino.

Eu o amava, Tom. Não vou mentir para você sobre isso.

Seu gosto em matéria de homens sempre foi meio suspeito... - brinquei.

Estou me sentindo usada, violada e repugnante. Eu não sabia como me portar ao ter um caso. Era tudo novo para mim e tenho certeza de que fiz papel de idiota.

Você foi ótima, Sallie. Ninguém sabe a maneira certa de agir.

Ele foi rude quando o confrontei com as outras mulheres. Dis­se-me coisas terríveis.

Quer que eu quebre a cara dele?

Não. Claro que não. Por quê?

Eu gostaria de quebrar a cara dele. E deixaria você assistir.

Ele disse que eu era muito velha para pensar em casar. Uma das namoradas dele tem 19 anos!

Ele nunca se preocupou muito com profundidade.

E nós, Tom? Para onde vamos nós? Suas cartas têm sido lindas, mas, se eu fosse você, nunca me perdoaria.

Preciso lhe contar a respeito de Lowenstein, Sallie.

 

Esperei que Lowenstein saísse do consultório. Estava tentando achar as palavras apropriadas quando a vi descer a escada da casa. Ela me viu na outra calçada, encostado a um poste. Sua beleza me comoveu, como sempre acontecia, mas era sua bondade que, naque­le momento, me partia o coração. Quando tentei falar, as lágrimas inundaram meus olhos. Ainda não fora inventada a maneira ade­quada de se dizer adeus. Lowenstein viu as lágrimas e gritou en­quanto atravessava a rua:

Não, não, Tom. Não é justo! - Ela deixou cair a pasta na calça­da e passou os braços ao redor de meu pescoço. A pasta se abriu, espalhando os papéis pela rua e embaixo dos carros estacionados. Lowenstein enxugou uma lágrima em meu rosto e me beijou. - Sa­bíamos que esse dia chegaria. Já conversamos sobre isso. Uma das coisas de que mais gosto em você, Tom, é que sempre volta para a família. Mas, maldita família! Maldita Sallie por ter amado você an­tes de mim.

Suas palavras me atingiram como um soco. Chorei ainda mais, deitando a cabeça em seu ombro. Ela acariciou-me os cabelos e disse:

Preciso encontrar um judeu simpático. Vocês, os não-judeus, estão me matando. - E, apesar das lágrimas, estouramos numa garga­lhada.

 

Sentada em seu apartamento, olhando a rua pela janela, com os ca­belos descoloridos e manchados, ela não se voltou quando entrei na sala. Eu fizera as malas na noite anterior e as deixara perto da porta da cozinha. Em uma floricultura da Oitava Avenida, comprara um pé de gardênia florido. Peguei uma das flores, caminhei até ela e a coloquei entre seus cabelos. Então, fiz a velha pergunta:

Como foi sua vida familiar, Savannah?

Hiroshima - respondeu ela.

E como foi sua vida desde que abandonou sua maravilhosa família?

Nagasaki. - Ela ainda não se voltara para me fitar.

Dê o nome do poema que escreveu em homenagem à sua família.

A história de Auschwitz. - Savannah deu a impressão de que ia sorrir.

E aqui está a pergunta mais importante. - Inclinei-me, sentin­do o perfume da gardênia em seus cabelos. - Quem você mais ama neste mundo?

Ela encostou o rosto no meu e, entre lágrimas, murmurou:

Amo meu irmão, Tom Wingo. Meu sensacional irmão gêmeo. Sinto muito por tudo, Tom.

Está tudo bem, Savannah. Conseguimos voltar um para o ou­tro. Temos muito tempo para restaurar as ruínas.

Abrace-me, Tom. Abrace-me bem apertado.

Mais tarde, pronto para ir embora, levei as malas para o corredor, onde Eddie Detreville esperava para me ajudar a carregá-las. Abracei-o e o beijei no rosto, dizendo-lhe que raramente encontrara um ho­mem tão generoso e afetuoso. Depois, voltei-me e me despedi de minha irmã. Ela me olhou da cadeira em que estava sentada, avaliou-me e perguntou:

Você acha que nós somos sobreviventes, Tom?

Acho que eu sou. Não tenho certeza quanto a você.

Sobrevivência... Então esse é o dom que nossa família legou a você.

Eu a beijei, abracei e fui para a porta. Segurei a mala e disse:

Sim, mas nossa família legou algo muito maior a você.

Ah, é? O quê?

Talento. Legou a você talento.

 

Naquela noite, Susan Lowenstein levou-me para um lugar acima da cidade, onde comemos uma ótima refeição, no restaurante Windows of the World. Quando chegamos, o sol já havia baixado, deixando ape­nas uma leve sugestão de rubi em meio às nuvens que se juntavam ao longo do horizonte. Nova York jamais seria sempre a mesma cidade; dependia do ângulo sob o qual era contemplada. Nada neste mundo de Deus era tão lindo quanto a ilha de Manhattan vista do alto durante a noite.

Tomando um gole de vinho, perguntei:

O que você está com vontade de comer, Lowenstein?

Ela me observou em silêncio por um momento e, então, disse:

Estou planejando pedir uma comida bem ruim, Tom. Não quero uma refeição maravilhosa na noite em que você vai me dizer adeus para sempre.

Estou voltando para a Carolina do Sul, Lowenstein. É o lugar ao qual pertenço.

Você poderia pertencer a qualquer lugar que quisesse. - Ela voltou os olhos para a cidade. - Você simplesmente escolheu não per­tencer a Nova York.

Por que você torna tão difícil nossa separação como amigos?

Porque quero que você fique comigo, Tom. Você me ama e te­nho certeza de que o amo. Temos a chance de fazer a felicidade um do outro para o resto de nossas vidas.

Eu não faria ninguém feliz para o resto da vida.

Tudo o que você diz, Tom, é apenas uma desculpa para me dei­xar- continuou ela, abrindo de repente o cardápio e estudando-o cui­dadosamente para que nossos olhos não se encontrassem. - Qual é o pior prato deste cardápio? É isso que quero pedir.

Alguém me recomendou ânus de porco ao molho tártaro.

Nem tente me fazer rir - pediu ela, escondendo o rosto atrás do cardápio. - Esta é a noite em que você está me abandonando por outra mulher.

Acontece que essa outra mulher é minha esposa.

Por que você deixou que fôssemos tão longe, se sabia que, no fim, iria voltar para Sallie?

Eu não sabia, Susan. Pensei que poderíamos ficar juntos para sempre.

O que aconteceu?

Minha personalidade veio à tona. Não tive coragem para abandonar minha mulher e minhas filhas e construir uma nova vida com você. Você vai ter de me perdoar, Lowenstein. Parte de mim a quer mais que a qualquer coisa no mundo; a outra parte morre de medo de qualquer grande mudança. Essa é a parte mais forte.

Mas você me ama, Tom!

Eu não sabia que era possível amar duas mulheres ao mesmo tempo.

Entretanto, você escolheu Sallie.

Escolhi honrar minha própria história, Susan. Se fosse mais corajoso, faria diferente.

O que eu poderia fazer para que você ficasse? Diga, por favor. Não sei implorar, mas tentarei aprender as palavras e os gestos para isso. Ajude-me, por favor.

Fechei os olhos e segurei suas mãos entre as minhas.

Faça com que eu nasça em Nova York. Apague meu passado. Apague tudo o que conheci e amei em minha vida. Faça com que eu não tenha encontrado Sallie e que não tenhamos filhos juntos. Faça com que eu não ame Sallie.

Ela sorriu e disse:

Pensei que você ficaria se se sentisse bastante culpado, se eu o fizesse se sentir responsável por mim.

Vocês, psiquiatras, são uma raça sem-vergonha!

Se as coisas não funcionarem entre você e Sallie...

Se isso acontecer, você vai me encontrar latindo como um ca­chorro em frente ao seu prédio no Central Park West. É estranho, mas, neste momento, amo você muito mais do que jamais amei Sallie.

Então fique comigo, Tom.

Preciso reconstruir algo lindo a partir das ruínas, Lowenstein - declarei, fitando seus olhos. - Não sei se vou conseguir, mas preciso tentar. Foi o que eu disse a Savannah hoje à tarde.

Por falar em ruínas, Herbert me telefonou hoje. - Depois de dispensar o garçom que viera receber os pedidos, ela continuou: - Está implorando para eu lhe dar uma nova chance. Disse até que rom­peu com Monique.

Você, por acaso, tem o telefone dela aí?

Não vejo graça nenhuma, Tom.

A atmosfera está tão pesada que parece feita de titânio. Tentei torná-la um pouco mais leve.

Não quero torná-la mais leve. Estou infeliz e tenho todo o di­reito de chafurdar em minha infelicidade.

Gosto de pensar em Herbert implorando, Lowenstein. Esse pa­pel deve ficar muito bem nele.

Ele não sabe fazer isso bem. Contei-lhe a respeito de nosso caso. Ele acha inimaginável que eu esteja ligada a alguém como você.

Conte ao filho-da-puta a respeito da minha genitália elefantina - disse eu, ligeiramente irritado. - Ou sobre meus truques pecaminosos durante a relação sexual.

Eu lhe disse que nos dávamos maravilhosamente bem na cama - comentou ela, fitando abstratamente a cidade. - Disse também que somos muito "quentes".

Muito quentes... Você nos faz parecer tarados.

Fico impressionada ao ver quanto gosto de magoar Herbert hoje em dia. Você contou a Sallie sobre nós?

Não, não contei. Pensei em contar, mas não vi motivo para magoá-la se estava voltando para a Carolina do Sul.

Então você me usou, Tom.

Claro, eu usei você, mas não antes de começar a amá-la.

Se você gostasse muito de mim...

Não, Lowenstein, eu adoro você. Você mudou minha vida. Vol­tei a me sentir inteiro. Atraente. Sensual. Você me fez enfrentar tudo, pensando que estava ajudando minha irmã.

É assim que a história termina?

Creio que sim.

Então vamos fazer nossa última noite ser perfeita. - Ela beijou minha mão e cada um dos dedos, enquanto um vento forte sacudia o edifício.

Após o jantar, fomos ao Rainbow Room, no Rockefeller Center, e brindamos um ao outro com champanhe. Seguimos então ao hotel Plaza, onde nos registramos para passar a noite. Ficamos acordados a noite inteira, fazendo amor e conversando. Já que não tínhamos pla­nos a discutir, havia apenas oito horas no mundo à nossa frente. Mas eu me recusara. Eu dissera não.

Quando nos despedimos, no aeroporto de La Guardia, eu a bei­jei mais uma vez, depois caminhei rapidamente para o portão, sem olhar para trás. Mas, quando ela gritou meu nome, voltei-me e a ouvi dizer:

Tom, lembra-se do sonho que tive em que nós dois dançáva­mos no meio de uma nevasca?

Nunca o esquecerei!

Ao vê-la chorar, senti-me como se fosse morrer.

Prometa uma coisa. Quando chegar à Carolina do Sul, tenha um sonho por mim. Tenha um sonho por Lowenstein!

 

UM ano depois de meu verão nova-iorquino, dirigi sozinho até Atlanta para pegar meu pai no dia em que ele seria solto da Peniten­ciária Federal. Queria dar-lhe algum tempo para se recompor, antes de enfrentar o amor culpado de uma família que não sabia como recebê-lo em casa. Nenhum de nós sabia como seria sua vida, agora que ele perdera tanto tempo e vigor. Ele emagrecera e seu rosto esta­va pálido e encovado. Eu estava presente quando ele recebeu seus objetos de uso pessoal. O diretor assinou seus papéis de soltura e disse que a prisão sentiria sua falta, que precisava de prisioneiros iguais a Henry Wingo.

A única coisa que fiz direito na vida — declarou meu pai. - Fui um grande presidiário.

Assistimos a um jogo do Braves e passamos a noite no hotel Hyatt Regency. No dia seguinte, saímos cedo para Charleston, pas­sando por estradas secundárias, dirigindo vagarosamente, dando tempo para nos conhecermos de novo, tentando achar as palavras certas, as palavras seguras, evitando cuidadosamente os assuntos difíceis.

Meu pai parecia mais velho, mas eu também. Em seu rosto, eu via o rosto de Luke. No meu, enquanto ele me observava timidamente, percebi que estava vendo o rosto de minha mãe. Se isso o magoava, nenhum de nós poderia evitá-lo. Conversamos sobre esportes, trei­nos, sóbre as longas temporadas de futebol, basquete e beisebol que dividiam os anos de nossas vidas ao mesmo tempo em que propor­cionavam a únk a linguagem de amor permitida entre nós.

Os Braves estão a quatro pontos do primeiro lugar - comentei ao atravessar o rio Savannah.

Se Niekro jogar bem, eles podem ter alguma chance. Nenhum jogador dos grandes times consegue pegá-lo quando está em forma. - Escondido sob essa resposta, ouvi o grito inarticulado, que vinha de seu esforço frustrado para expressar seu amor. Ouvi esse grito e isso foi su­ficiente. - Você vai ter um bom time este ano? - perguntou ele.

Acho que vamos surpreender algumas pessoas. Talvez você pudesse me ajudar a treinar alguns jogadores.

Eu gostaria muito.

Savannah já chegara de Nova York quando estacionei no quintal de minha casa, na ilha Sullivan. Minhas filhas saíram de casa e se apro­ximaram timidamente do avô.

Tenham cuidado, meninas - brinquei -, ele bate.

Não, não bato, crianças. Venham aqui dar um beijo no vovô - pediu ele, com voz exausta.

Lamentei ter dito o que disse.

Sallie veio até a porta, magra e de cabelos escuros, bronzeada e séria. Correu para meu pai, passou os braços em seu pescoço. As lágri­mas inundaram seu rosto quando ele a girou, abraçando-a.

Seja bem-vindo, pai - disse ela.

Então, Savannah saiu da casa. Algo que não sei explicar ocorreu quando se encaminharam um para o outro. Senti-o no mais fundo de meu ser, num lugar intocado que tremia com um sentimento instintivo e enraizado na origem das espécies - um lugar sem nome, mas que eu sabia que teria nome se fosse sentido. Não foram as lágrimas de Savannah ou de meu pai que causaram essa ressonância dentro de mim. Foi a beleza e o medo do parentesco, os inefáveis laços de família que acendiam terror, reverência e amor dentro de mim. Ali estava meu pai, a fonte de todas aquelas vidas, de todas aquelas lágrimas. Ele chorava, chorava muito e não se envergonhava disso. As lágrimas lembravam-me o oceano, a ponto de eu sentir seu cheiro. O mar que existia dentro de mim agora se derramava. A vida de minha família era uma história de água salgada, barcos e cama­rões, lágrimas e tempestade.

E minha irmã gêmea, minha linda irmã, com os pulsos cheios de cicatrizes em torno do pescoço de meu pai, com os olhos obscurecidos por uma vida inteira de visões e um poder para usar a linguagem e transformar a tristeza em beleza. E minha esposa, que entrara para essa família e aprendera a tolerar um grande elenco de demônios fa­miliares, que o fazia porque me amava, apesar de eu ser incapaz de reagir ao amor de uma mulher, e que nunca se sentiria amada e desejada, embora fosse isso o que eu mais ansiasse por lhe dar no mundo. E minhas filhas, minhas três filhas, a quem eu amava com um amor intenso que não parecia ser meu, porque eu queria tanto torná-las diferentes de mim em tudo, porque eu queria me certificar de que nunca teriam uma infância igual à minha, nunca apanhariam de mim, nunca precisariam ter medo de se aproximar do pai. Com elas, eu ten­tava recriar minha própria infância como achava que ela deveria ter sido. Com elas, eu tentava modificar o mundo.

No fim da tarde, carregamos a perua com uma geladeira portátil e uma cesta de piquenique e rumamos para Charleston. Fomos até o cais dos camarões em Shem Creek. Estacionei o carro à vista do único barco camaroneiro que ainda estava no cais.

Você sabe lidar com um barco desses? - perguntei a meu pai.

Não. Mas aposto que poderia aprender rapidamente.

Está registrado sob o nome do capitão Henry Wingo. É um presente de boas-vindas de mamãe.

Não posso aceitar isso.

Você escreveu dizendo que gostaria de voltar para o rio. Ma­mãe queria fazer um gesto de boa vontade. Acho que foi um ótimo gesto.

É um barco excelente... Estão pegando muitos camarões nesta estação?

Os bons pescadores, sim. Falta um mês para eu começar os treinos de futebol. Posso trabalhar como seu ajudante até você contra­tar alguém.

Pago 3 centavos por quilo - disse meu pai.

De jeito nenhum, seu pão-duro miserável. Vai me pagar 5 cen­tavos por quilo. O preço da mão-de-obra subiu.

O velho sorriu e disse:

Agradeça à sua mãe por mim, Tom.

Ela gostaria de vê-lo. Você tem todo o tempo do mundo, pai. Agora vou levar vocês ao rio Wando.

Entramos no canal principal do porto de Charleston uma hora antes do pôr-do-sol. Os sinos da igreja de São Miguel repicavam através da luz esmaecida e do ar úmido e perfumado da velha cidade.

Meu pai pilotava o barco sob as enormes vértebras de ferro das duas pontes Copper River. Passamos por um cargueiro branco, carrega­do, que vinha do cais do norte de Charleston e se dirigia para o mar. Quando acenamos, o capitão tocou a buzina, cumprimentando-nos. Entramos no rio Wando com a maré tão alta que meu pai não preci­sou recorrer às cartas de navegação. Subimos o rio durante algum tempo, até nos aproximarmos de um vasto pântano onde não se via uma única casa.

Está quase na hora, Tom - avisou Sallie, entrando na cabine do leme.

Hora de quê? - perguntou meu pai.

Uma surpresa de boas-vindas para você e Savannah - infor­mou, verificando o relógio.

Conte o que é, mãe - pediram minhas filhas.

Não. Se eu contar, deixa de ser surpresa.

Nadamos na água morna e opaca, mergulhando da proa do barco. Depois, jantamos e brindamos a meu pai com champanhe. Savannah se aproximou dele e vi quando caminharam para o barco de mãos dadas.

Pensei em alguma coisa para dizer, mas não me ocorreu nada. Eu ensinara a mim mesmo a ouvir os sons pesados do coração e aprendera algumas coisas que me seriam úteis. Chegara àquele momento, com minha família em segurança em torno de mim, e rezava para que todos sempre estivessem seguros e para me contentar com o que possuía. Fui feito sulista e domesticado como sulista, Deus, mas eu lhe imploro que permita que eu mantenha o que tenho. Senhor, sou professor e treina­dor. Isso é tudo e é suficiente para mim. Mas os sons pesados, os sons negros, Senhor, quando soam dentro de mim, deixam-me capaz de reverenciar e me maravilhar. Eu os escuto e sinto vontade de colocar meus sonhos em músicas. Quando eles vêm, percebo um anjo em meus olhos, como se fosse uma rosa, e cânticos do mais meticuloso louvor se elevam das profundezas submarinas do êxtase secreto.

A toninha branca se aproxima de mim durante a noite, cantando no rio do tempo, com um séqüito de mil golfinhos, trazendo os carismáticos cumprimentos do Príncipe das Marés, gritando nosso nome: Wingo, Wingo, Wingo. Isto é suficiente, Senhor. Isto é suficiente.

Está na hora, Tom - disse Sallie, levantando o rosto para me beijar os lábios.

Toda a família se reuniu na proa do barco para ver o dia terminar. O sol, vermelho e enorme, descia no céu do oeste e, simultaneamente, a lua elevava-se no outro lado do rio com um glorioso matiz escarlate, subindo entre as árvores como uma garça. O sol e a lua pareciam co­nhecer-se e se moviam em oposição e concordância, numa dança maravilhosa entre carvalhos e palmeiras.

Meu pai assistiu a tudo e pensei que fosse chorar novamente. Ele voltara da prisão para o mar; seu coração pertencia às terras baixas. As crianças gritavam, apontando para o sol, voltando-se então para olhar a lua que subia, gritando ora para ela, ora para o sol.

Vai ser bom poder pescar amanhã - disse meu pai.

Savannah veio para meu lado e passou o braço em minha cintura.

Caminhamos juntos para a parte traseira do barco.

Uma surpresa maravilhosa, Tom - sussurrou ela.

Imaginei que você gostaria.

Susan lhe manda seu amor. Está saindo com um advogado.

Ela me escreveu contando. Você está com boa aparência, Savannah.

Vou conseguir, Tom. - Então, olhando novamente para o sol e a lua, acrescentou: - Totalidade, Tom. Tudo volta. É tudo um círculo.

Ela se voltou e, encarando a lua que agora estava mais alta e pra­teada, levantou-se na ponta dos pés, elevou os braços para o ar e gri­tou com uma voz insegura:

Oh! mãe, faça isso de novo!

 

Essas palavras de Savannah deveriam ser o fim da história, mas não são. Todas as noites, quando termina o treino e volto para casa pelas ruas de Charleston, dirijo com a capota de meu Volkswagen conversí­vel abaixada. Sempre está escuro, e o ar fresco e o vento passam por meus cabelos. No alto da ponte, com as estrelas brilhando sobre o porto, olho para o norte e penso mais uma vez que deveria haver duas vidas para todos os homens e mulheres. Atrás de mim, a cidade de Charleston está mergulhada nos elixires de sua própria beleza incalculável e, à frente, minha esposa e minhas filhas estão me esperando em casa. É nos olhos delas que reconheço minha verdadeira vida, meu destino. Mas é a vida secreta que me conforta. Ao chegar ao alto da­quela ponte, deixo escapar um murmúrio, como uma prece, como arrependimento e como louvor. Não sei por que o faço ou o que signi­fica; mas, todas as noites, enquanto me dirijo para minha casa sulista e minha vida sulista, murmuro estas palavras:

- Lowenstein, Lowenstein.

 

[1] Jogada em que se ganha seis pontos quando se chega era cima ou atrás do gol adver­sário, mantendo a posse da bola. (N. do T.)

[2] Foca, em inglês. (N. do T.)

 

                                                                                Pat Conroy  

 

                      

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