A ascensão de João Sem Terra ao trono inglês, após a morte de Ricardo Coração de Leão, desencadeou uma das piores crises da história da Inglaterra. O Príncipe das Trevas reconstitui os turbulentos anos de seu reinado, da coroação ao casamento com Isabella de Angoulême, provocando o rompimento das relações com a França e abrindo caminho à rebelião declarada dos barões, que o pressionaram a assinar a Magna Carta. Excomungado por Inocêncio III, João instituiu a injustiça e a crueldade, levando o povo a ansiar pelo fim da era de trevas.
EM UM TRANQUILO cómodo do château de Vandreuil, Guilherme Marechal, o mais respeitado de todos os cavaleiros do rei, cochilava prazerosamente depois de um excelente jantar de carne de veado assada. Entre acordado e dormindo, ele pensava na situação favorável vigente, agora que o rei retornara da Terra Santa e estava trazendo a lei e a ordem de volta aos seus domínios. A Inglaterra já estava em paz, e Ricardo recuperara grande parte das terras que Filipe Augusto, rei da França, aproveitando-se do fato de Ricardo estar longe, tomara dele na Normandia.
Guilherme Marechal, conhecido em sua juventude como o melhor cavaleiro de sua época, famoso pela integridade e como homem que não tinha medo de ofender o rei, mesmo que isso pudesse significar risco de vida - e, portanto, idolatrado por reis inteligentes como Ricardo e o pai de Ricardo antes dele -, estava, agora, na metade da casa dos cinquenta, mas ainda forte e com o peso da experiência em que se apoiar; parecia ter ganho, e não perdido, com o passar dos anos.
Ele deplorara a ausência do rei do país porque, embora aceitasse o fato de que Ricardo fizera um juramento de devolver Jerusalém à cristandade, acreditara que o primeiro dever de um rei era para com o seu reino; fora contra a excessiva tributação que tivera de ser cobrada a fim de levantar dinheiro para a cruzada, mas se mostrara incansável na arrecadação dos recursos necessários para o resgate do rei quando se descobrira que Ricardo estava em mãos inimigas no castelo de Diirenstein.
Agora, a tentativa do irmão, João, de tirar a coroa dele durante a sua ausência tinha sido frustrada, e Ricardo voltara ao seu povo. Na opinião de Guilherme, as perspectivas eram muito boas... ou tão boas quanto podiam ser, considerando-se a vulnerabilidade do ducado da Normandia situado, como era, exatamente na fronteira do território francês.
Isabella, mulher de Guilherme, entrou na sala e olhou para ele com afeição. Era uma boa esposa, e ele se casara com ela quando Ricardo subira ao trono. Ela lhe trouxera não apenas belos filhos homens, mas riqueza, pois seu pai fora Ricardo de Clare, conde de Pembroke e Striguel, e embora o rei ainda não tivesse confirmado Guilherme na "plena paz e no título de conde", ele tinha a posse do condado e aquela cerimónia seria realizada no momento oportuno. Antes do casamento, ele fora conhecido como "o cavaleiro sem terras" e tivera pouca coisa a recomendá-lo, a não ser seu berço nobre e suas habilidades sem rivais. Henrique II as reconhecera e o encarregara de seu filho mais velho, o príncipe Henrique (depois de cometer o engano de coroá-lo, de modo que o rapaz adquirira o título de rei enquanto o pai vivia, um dos mais graves erros que aquele monarca, em geral inteligente, cometera na vida, pois o rapaz, como era de se esperar, ficara arrogante, zombando desde logo do título e do pai, acabando por fazer guerra contra ele e, com os irmãos, levá-lo para o túmulo de tanta tristeza).
Sorrindo para Isabella, Guilherme disse:
- Eu tinha voltado ao passado, pensando na época em que Ricardo subiu ao trono.
Ela olhou para ele, séria.
- Naquela ocasião, Guilherme, você achava que suas esperanças de progredir no mundo haviam terminado para sempre.
Ele confirmou com a cabeça.
- E que meu destino seria a morte ou a prisão - falou ele. Guilherme ficou calado, pensando na época em que Ricardo era seu inimigo porque estava em guerra contra o pai, Henrique II, de quem Guilherme era o fiel ajudante de toda confiança, e em que ficara frente a frente com um Ricardo indefeso e poderia tê-lo matado. Não quisera fazer isso, mas se contentara em chamá-lo de traidor e em matar seu cavalo, fazendo com que Ricardo caísse ao chão. E pouco depois Henrique morrera, e Ricardo agora era o rei.
- Nunca me esquecerei disso, Isabella - disse ele, pensativo.
- Eu sei. Você me disse várias vezes que esperava que ele o mandasse para uma masmorra e que, em vez disso, ele lhe disse ter a certeza de que uma pessoa que tivesse servido bem ao pai dele iria servi-lo.
- Eu estava decidido a fazer com que ele nunca se arrependesse daquela decisão.
- E não se arrependeu. Ele nunca poderia ter tido um cavaleiro mais fiel, e ele sabe perfeitamente bem disso.
- Ele tem sido bom para nós, Isabella. É generoso para com os amigos. Aberto, honesto, sincero... um homem que eu aprovo. Eu sabia que ele queria bem à nossa família quando mandou que eu levasse o cetro de ouro em sua coroação e meu irmão João levasse as esporas, e bem que eu tinha razão!
- E ele permitiu que nós nos casássemos.
- O mais importante de todos os benefícios - respondeu Guilherme.
- Bem, você o tem servido bem desde então. Quando ficaremos sabendo do nascimento de um herdeiro?
- Não faz muito tempo que ele voltou para Berengária. Mas ele sabe qual é o seu dever e que a decepção que seus súditos sentem acabará quando ele der um herdeiro ao país. Ele é moço e ainda tem vigor.
- Mas eles estão casados há tanto tempo!
- Mas separados.
- Parece ter sido um casamento estranho.
- Não havia dúvidas de que seria assim. O rei gosta mais de batalhas do que de mulheres.
- Parece anormal um homem não querer filhos homens.
Guilherme lançou-lhe um sorriso carinhoso. Ela se sentia orgulhosa dos seus. Ele não queria dizer que Ricardo preferia a companhia de pessoas do seu sexo à de mulheres, e que só o seu encontro com um eremita numa floresta, que tanto falara em tom de condenação sobre a vida que levava e profetizara um desastre, fizera com que Ricardo pensasse em modificar seu modo de vida; e quando, pouco depois, ele caíra com uma febre que ameaçara acabar com a sua vida, decidira voltar para Berengária e cumprir o seu dever para com o país.
Era tarde, pensou Guilherme. Mas antes tarde do que nunca. Ricardo era um homem de uma força imensa e, fora a febre que periodicamente o atacava, muito saudável. Se pudesse ter um ou dois filhos homens e viver até que atingissem a maturidade, seria bom para a Inglaterra.
- Não tenho dúvidas - disse Guilherme em resposta à sua mulher - de que quando seu filho nascer ele ficará tão contente com isso quanto qualquer pai ficaria... e mais ainda, considerando a importância para o reino. Estou certo de que em breve ele estará me enviando a notícia de que a rainha está grávida.
- Pobre Berengária. Receio que a vida dela não seja muito feliz.
- É o destino das rainhas, minha querida. Ela suspirou.
- Chego à ousadia de jurar que uma pessoa deve ficar agradecida por não ter nascido com sangue real.
Era um prazer tê-la assim tão satisfeita com o seu destino. Isabella nunca se referia à riqueza e ao título que havia levado para ele, pois se considerava a mais feliz das mulheres, e Guilherme esperava que ela continuasse assim por muito tempo.
Enquanto os dois estavam ali sentados conversando, houve um súbito ruído de patas de cavalos no pátio. Guilherme se levantou apressado.
- Quem será? - quis ele saber. Isabella foi até a janela.
- Parece um mensageiro. - Voltou-se para ele, os olhos brilhando de excitação. - Será que... Parece tão estranho. Estávamos falando nisso há poucos minutos.
- Venha, vamos ver - disse Guilherme.
Os dois desceram às pressas para o pátio, mas um olhar para o rosto do mensageiro foi suficiente para dizer a Guilherme que a notícia que ele trazia não era boa.
O homem desmontara, e um pajem ficara com o seu cavalo. Guilherme bradou:
- Quais são as novas?
- Más notícias, meu senhor.
- Diga. Conte-me o pior.
- O rei foi ferido... há quem diga que mortalmente.
- Não é possível! Em que combate?
- Em Chaluz, contra Odamar de Limoges e Achard de Chaluz.
Para mim, isso não faz sentido.
- Meu senhor não estava sabendo que foi encontrado um tesouro nas terras de Achard de Chaluz. O rei recebeu a notícia da descoberta de umas figuras de ouro por um agricultor e, alegando que como suserano aquilo lhe pertencia por direito, foi exigir que o tesouro fosse entregue. Achard declarou que o que tinha sido achado não passava de um vaso com velhas moedas, mas o rei não acreditou nele e atacou o castelo. Durante o ataque, uma flecha penetrou no ombro do rei.
- Isso é impossível! - bradou Guilherme. - Uma discussão tola por causa de um vaso de moedas!
- É isso mesmo, meu senhor. O rei mandou me chamar. Ele está mortalmente doente e sofrendo uma grande angústia. Tentou arrancar a flecha do ombro, mas ao fazer isso a quebrou, e ela continua enfiada em seu corpo e está gangrenando. Ele me mandou até o senhor com instruções para que vá imediatamente para Chinon e, lá, assuma o controle do tesouro real.
- Ele vai se recuperar - disse Guilherme. - Tem de se recuperar.
O mensageiro meneou a cabeça.
- Vi o rosto dele, meu senhor. Havia morte em sua fisionomia.
- Entre o descanse. Deve estar exausto da viagem. Tenho de seguir para Chinon a toda velocidade.
Isabella veio para fora e, vendo o rosto do marido, perguntou que más notícias ele recebera.
Guilherme lhe contou. Ela ficou perplexa.
- O que vai acontecer?
- Ele já enfrentou a morte várias vezes. Sempre se recuperou. Devemos ter esperanças.
Enquanto Guilherme Marechal se preparava para partir para Chinon, outro mensageiro chegou a Vaudreuil com a notícia de que Ricardo Coração de Leão morrera do ferimento que recebera de uma flecha disparada por Bertrand de Gourdon, um nobre de Quercy que guardava rancor em relação a Ricardo e que depois do fato declarara que estava pronto a sofrer os maiores tormentos, se preciso fosse, pois morreria contente por ter visto Ricardo em seu leito de morte.
Com que então o rei estava morto. O que viria a seguir?
Chegando a Chinon e assegurando-se de que o tesouro real estava bem protegido, Guilherme pediu a Hubert Walter, o arcebispo de Canterbury, que por felicidade estava na Normandia na ocasião, que fosse vê-lo imediatamente. Percebendo a gravidade da situação, Hubert não perdeu tempo em atender ao pedido.
Guilherme abraçou o arcebispo e o levou para um aposento privado, onde os dois poderiam conversar sem que outras pessoas os ouvissem.
- O que acha da notícia? - perguntou Guilherme. O arcebispo meneou a cabeça, sério.
- Poderia ser um desastre.
- Tudo dependerá dos próximos meses.
- Se ao menos ele tivesse vivido com a mulher; se tivesse tido filhos homens...
- Qualquer filho dos dois ainda seria menor de idade.
- Isso não teria me perturbado. Ele poderia ser educado e teria havido um rei.
- Há um rei, agora - disse Guilherme.
- Quem? João, ou Artur?
- Tem de ser João - insistiu Guilherme.
- Não, meu amigo, o verdadeiro herdeiro do trono é o príncipe Artur.
- Na linha direta de sucessão, pode ser, mas eu, pelo menos, nunca poderia apoiar a reivindicação de Artur.
- Quer dizer que irá jurar fidelidade a João!
- Lamento que isso seja necessário, mas não há outro meio.
- Meu bom amigo, Artur é filho de Geofredo, e Geofredo era mais velho do que João. Portanto, segundo a lei de sucessão, Artur é o verdadeiro herdeiro.
- A seleção dos reis não depende necessariamente da sucessão direta. A conveniência deve ser levada em consideração, e Artur é apenas uma criança.
- Mas João é dissoluto e incapaz para usar a coroa.
- Os ingleses jamais iriam aceitar Artur.
- Iriam aceitar o fato de que ele é o verdadeiro herdeiro do trono; não há como contestar.
- Nada disso, senhor arcebispo. Henrique II indicou João como seu herdeiro... até mesmo na frente de Ricardo.
- Isso foi um erro. Ricardo era o irmão mais velho e mais apto a reinar. O povo nunca teria aceito Artur enquanto Ricardo vivesse.
- Com isso eu concordo, e Ricardo não tinha intenção de abrir mão em favor do irmão mais moço. Henrique percebeu isso em seus últimos momentos de vida, quando a verdadeira natureza de João foi revelada, e teria aprovado o que foi feito. Mas agora Ricardo morreu, e o herdeiro natural é João.
- O senhor está enganado, Marechal. Artur é o verdadeiro herdeiro.
- Um menino que nunca esteve na Inglaterra, que não fala inglês, criado em cortes estrangeiras! Os ingleses jamais irão aceitálo. Além do mais, João estaria decidido a ficar com a coroa, e haveria uma guerra contínua. Muitos iriam apoiar João. Eles estão preparados para vê-lo suceder ao irmão. Ele viveu na Inglaterra. É inglês.
Eles não vão aceitar um estrangeiro e, ainda por cima, pouco mais do que uma criança. Artur, pelo que ouvi dizer, é arrogante e orgulhoso e não tem amor pelos ingleses. O príncipe João é o que está mais perto do pai e do irmão Ricardo. João deve sucedê-lo.
- Marechal, é isso mesmo que deseja?
- É, eminência, porque me parece ser o bom senso. Um filho tem uma reivindicação mais íntima quanto à herança do pai do que um neto desse pai pode ter. O certo é João ficar com a coroa.
- Vai haver conflito sobre isso. Artur terá seus seguidores, e João os dele.
- Considero correto e no interesse do país que se ofereça a coroa a João - disse o Marechal, teimoso.
O arcebispo inclinou a cabeça.
- Assim será. Mas saiba de uma coisa, Marechal, e lembre-se do que lhe digo, pois chegará o dia em que o senhor irá questionar a sua decisão. Prometo-lhe que nada do que fez até hoje lhe dará tantos motivos para se arrepender quanto a isso.
- Se o senhor estiver certo - respondeu Guilherme, ponderado -, e bem pode ser que se venha a provar que esteja, ainda assim sei que é isso que deve ser feito e que estou apenas atendendo à vontade de meus senhores, o rei Henrique II e Ricardo Coração de Leão, ao proclamar o príncipe João rei da Inglaterra.
- Que assim seja - disse o arcebispo, mas continuou a menear a cabeça em sinal de pesar.
Apesar de suas firmes garantias de que havia feito o que era certo, Guilherme Marechal se sentia muito apreensivo; afinal, se havia uma discordância assim tão forte entre dois homens que desejavam à coroa e ao país a maior das felicidades - do que sem dúvida alguma o país iria precisar -, como era possível esperar que o povo fosse unânime em sua decisão?
De uma coisa todos podiam estar certos. Com dois pretendentes assim ao trono, haveria problemas sérios.
Oh, por que Ricardo tinha que morrer numa hora daquelas... e tudo por algumas moedas num vaso!
Joana, a irmã do rei, estava a caminho da Normandia. Decidira fazer a viagem antes que a gravidez a impedisse. Ela e o marido, Raymond de Toulouse, precisavam de ajuda, e ela acreditava que Ricardo podia e iria auxiliá-los; ele sempre fora um irmão delicado e generoso para com ela, exceto numa ocasião em que fizera planos, de casá-la com o sarraceno Malek Adel a fim de reforçar o seu tratado com Saladino, mas Joana sempre acreditara que ele nunca tivesse levado o caso muito a sério. De fato, quando ela, indignada, se recusara, Ricardo não fizera coisa alguma para coagi-la, e o acontecimento não interferira na devoção que havia entre eles.
Ricardo fora um herói para ela quando, ainda jovem, Joana viajara à Sicília para se casar com o rei daquela ilha e Ricardo a conduzira pelas terras da Aquitânia. Mais tarde, Joana se juntara a ele na Sicília quando a ilha fora ocupada por Tancredo; ela se tornara dama de companhia da mulher de Ricardo, Berengária, antes do casamento desta com Ricardo, e depois fora companheira constante de Berengária até casar-se com Raymond de Toulouse.
Muitas vezes Joana pensara em Berengária com pena, e ficara imaginando como era a sua vida. Sabia muita coisa a respeito da vida de casada da rainha da Inglaterra, pois estivera ao lado dela nos primeiros anos de seu casamento com Ricardo. Ele nunca fora indelicado com ela; simplesmente se portara como se a rainha não existisse. Talvez tivesse sido mais reconfortante ter vivido uma vida atribulada com ele; a aversão teria sido mais fácil de suportar do que a indiferença. Fora muito constrangedor, pois tanto Joana como Berengária sabiam que ele vivia procurando desculpas para evitá-la.
Joana teria gostado de explicar a Berengária: Não é a sua pessoa que não o agrada. É o fato de você ser mulher. Ricardo não gosta do seu sexo. É extraordinário que uma pessoa tão forte, tão vital, com todas as características de masculinidade tão firmes, se comportasse assim. As pessoas falavam, tanto quanto lhes permitia a ousadia, da amizade apaixonada que ele certa vez tivera pelo rei da França, de seus laços íntimos com cavaleiros favoritos, da devoção de rapazes como Blondel de Nesle, o menestrel que descobrira seu paradeiro ao entoar uma canção que os dois haviam composto juntos e que ninguém cantara, a não ser eles. Mas no início a pobre Berengária não soubera nada disso.
Quando se casara com Raymond, Joana se despedira de sua companheira de vários anos e partira para a nova vida. Raymond não a decepcionara e eles tinham um belo filho, chamado de Raymond como o pai, agora com dois anos de idade, e ela encontrara satisfação na vida de casada. A corte do marido apreciava a beleza; ele adorava música; e poetas e trovadores eram estimulados; nos grandes salões de seus castelos, canções eram compostas e julgadas; opiniões religiosas eram expressas, e havia uma grande liberdade de pensamento em todo o seu domínio. Infelizmente, isso tinha sido observado e comunicado a Roma, e como aos líderes da Igreja Católica parecia que algumas das doutrinas discutidas livremente eram subversivas e poderiam prejudicar aquele poderoso organismo, fora comunicado a barões rivais que se eles atacassem Raymond, Roma os estaria apoiando.
Essa informação deixara Raymond e Joana estupefatos; a princípio, houvera apenas uma ou duas escaramuças, mas agora a hostilidade estava ficando mais acentuada e então Joana decidira que devia procurar Ricardo e pedir seu conselho, pois não tinha dúvidas de que ele os ajudaria.
Joana e Raymond tinham decidido que ela exporia o caso a ele, que lhe daria atenção; além do mais, sempre fora homem de respeitar os laços familiares. Lembrava-se bem da indignação que ele sentira ao chegar à Sicília e encontrá-la prisioneira de Tancredo, e não fora apenas a ideia do rico dote de Joana que Tancredo havia confiscado que fizera com que ele adiasse sua viagem à Terra Santa para corrigir as injustiças a que ela fora submetida.
Enquanto viajava para a Normandia, Joana pensava no prazer de rever Berengária que, segundo soubera, agora vivia com Ricardo. Era uma boa notícia. Talvez, àquela altura, Berengária estivesse nas mesmas condições felizes dela; Joana esperava que sim. Como Berengária iria adorar um filho! E Ricardo tinha de entender que aquilo era necessário para estabelecer a sucessão.
A missão de Joana não era das mais felizes, e ela estava seriamente preocupada com Raymond, mas deveria haver compensações ao fim da viagem.
À frente dela estava o château Gaillard, e ela se encheu de orgulho ao contemplá-lo... aquele magnífico castelo que Ricardo declarara que deveria ser o mais bonito da França - e era. A grande fortaleza brilhava ao sol como que lançando o seu desafio ao rei da França e a qualquer pessoa que pudesse atacá-lo. Seus poderosos bastiões retangulares, suas dezessete torres, suas cortinas, seus batentes cortados na rocha proclamavam o poder do homem que seria sempre lembrado como o Coração de Leão, seu irmão Ricardo que nunca deixara de ajudá-la e que ela sabia que nunca deixaria enquanto vivesse.
Infelizmente, o consolo dela cairia em pedaços. Ricardo não se achava no castelo. Partira para Chaluz, pois ouvira rumores sobre um grande tesouro que teria sido achado lá, na terra de um de seus vassalos.
Joana partiu para Chaluz sem saber da tragédia que a aguardava lá.
A batalha terminara. O castelo de Chaluz fora tomado por Ricardo, que, apesar de se apoderar do vaso de moedas, perdera a vida ao fazê-lo.
Todos pareciam chocados com a notícia. Houvera, com relação a Ricardo, uma aura de invencibilidade. Muitas vezes, por ser vítima de uma febre virulenta que o perseguira a vida toda, ele se aproximara da morte, mas sempre se levantara de seu leito tão forte quanto estivera antes do ataque. Dessa vez, porém, a morte o apanhara através de uma flecha disparada por um tal de Bertrand de Gourdon.
Pelo menos Joana pôde voltar a estar com Berengária. As duas se abraçaram com calor, e Berengária levou-a para sua câmara particular a fim de que pudessem partilhar de sua dor em segredo.
- Ele era moço demais para morrer - foi tudo que Joana conseguiu dizer.
Berengária chorava em silêncio.
- Que desperdício de vida - disse ela. - Da minha também, pois agora a minha acabou.
- Vocês estavam juntos no final - disse Joana, tranquilizadora.
- De certa maneira. Ele nunca queria ficar comigo. Ricardo achava que devia cumprir com o seu dever.
- Berengária, você está grávida? Ela abanou a cabeça.
- É ainda mais lamentável - disse Joana.
As duas misturaram as lágrimas e encontraram alívio na companhia que uma fazia à outra. Cada qual pensava no que o futuro poderia estar lhe reservando. Berengária, uma rainha sem marido (na verdade, muitas vezes pensava
se algum dia tivera realmente um marido), sem um filho que lhe desse um motivo para viver. Seria uma volta ao velho padrão, vivendo inquieta, sem dúvida à custa da generosidade de parentes. Talvez pudesse ir morar com a irmã Blanche, que estava casada com o conde de Champagne. Em qualquer direção que olhasse, o futuro se mostrava cheio de inquietação. Enquanto Ricardo estava vivo, ela sempre tivera esperança de que a vida seria diferente, que uma centelha de afeto pudesse ser despertada. Se pudessem ter tido filhos, como dois filhos e uma filha, por exemplo, Ricardo se sentiria satisfeito e poderia ter havido uma certa paz entre eles. Era a relação física que o repelia; e porque era o rei e esperava-se que fornecesse um herdeiro, aquilo pairara como uma sombra entre os dois - algo que deve ser feito e que, sendo desagradável para ele, devia ser também desagradável para ela.
Os pensamentos de Joana eram sombrios. Pensava na morte de Ricardo causada por aquela flecha naquele cerco desnecessário, quando ele sobrevivera a cem batalhas com os ferozes sarracenos na Guerra Santa. Era um capricho irónico do destino o fato de ele, que era tão nobre e fizera jus ao título de Coração de Leão, ter acabado a vida numa causa tão banal. Além do mais, agora que estava morto, quem iria ajudá-la e a Raymond contra seus inimigos?
Berengária, em determinado momento, falou dos últimos dias da vida de Ricardo, da terrível agonia que tomou conta dele e disse que ele perdoara o homem que o matara.
- Foi um gesto nobre - disse Joana. - E eu esperaria isso dele. Bertrand de Gourdon irá bendizê-lo até o fim da vida.
- A vida dele acabou - retrucou Berengária. Ricardo perdoou, mas outros, não. Lembra-se de Mercadier?
- Não foi ele o general que comandou os mercenários de Ricardo? Sim, lembro-me de que Ricardo o tinha em alta estima e que os dois viviam juntos.
- Ele ficou fora de si de dor e raiva quando Ricardo morreu. Tanto assim que desafiou as ordens do rei e mandou que Gourdon fosse morto da maneira mais cruel que pôde imaginar.
- Mas Ricardo o perdoara!
- Isso mesmo, e o que foi feito não será atribuído a ele. Os olhos de Bertrand de Gourdon foram arrancados antes de ser esfolado vivo.
- Oh, meu Deus! - bradou Joana. - Será que essa violência não acaba? - Colocou a mão na protuberância de seu corpo e sentiu ali o movimento da criança. - Parece um mau augúrio. Fico imaginando o que será desta criança e de todos nós.
Berengária correu para ela e envolveu-a nos braços.
- Agradeça, Joana, o fato de você gerar um filho e levar o fruto do amor permanente de seu marido por você.
Joana ficou envergonhada e censurou a si mesma pelo seu egoísmo. Tragédia era a de Berengária. Não havia um filho para lembrála do amor do marido; não havia, na verdade, ninguém de quem se lembrar.
A rainha Eleanor estava em Chaluz; ela também seguira a toda velocidade quando soubera das condições em que se achava o adorado filho. A morte dele foi o maior golpe que o destino poderia ter-lhe dado. Ela estava com 77 anos de idade; ele tinha apenas 42. Desde que ele nascera e aquela época em que fora o seu defensor na ala infantil nas batalhas dela contra o pai, Ricardo tinha sido o ponto central de sua vida. Ela o amara como não pudera amar nenhum outro; com denodo, lutara para manter o reino do filho único quando ele estivera ausente nas cruzadas; e agora que ele estava de volta e parecia decidido a reinar por muitos anos e ela finalmente se retirara para o isolamento da abadia de Fontevrault, fora chamada para estar com ele durante as últimas horas dele no mundo.
A dor de Eleanor era tamanha que, como disse à filha Joana, a quem mais amava depois de Ricardo, e à nora Berengária, pela qual sempre sentira afeição, seu único consolo era que ela mesma não podia viver muito mais, porque um mundo que não continha seu adorado filho Ricardo tinha poucas alegrias para lhe oferecer.
Assim, as mulheres que o tinham amado lamentaram juntas e encontraram um pouco de consolo ao falar sobre ele - de sua grandeza, de sua bravura, de seu amor pela poesia e pela música, de seu talento para compô-las.
- Nunca houve alguém igual a ele - disse Eleanor. - Nem haverá.
Providenciaria para que os desejos dele fossem satisfeitos.
- Ele me disse que queria que seu coração, o grande coração de leão, fosse enterrado na sua adorada e fiel cidade de Rouen, cidade natal de seus ancestrais, os duques da Normandia, durante tantos anos. O corpo será enterrado em Fontevrault, aos pés de seu pai.
No fim da vida, Ricardo se arrependeu da rixa entre os dois. Deus sabe que a culpa não foi dele. Henrique fora o culpado pelo conflito entre ele e os filhos. Era um homem que jamais largava qualquer coisa que lhe caísse nas mãos, e não percebeu que seus filhos eram homens.
Eleanor sorriu, recordando-se dos anos turbulentos em que ela e Henrique Plantageneta tinham sido, a princípio, amantes apaixonados, e depois inimigos igualmente apaixonados.
Sim, os desejos de Ricardo seriam satisfeitos. Ela iria servir a ele na morte como sempre servira em vida.
Voltaria para Fontevrault e ali passaria o resto da vida e daria algumas demonstrações de ter-se arrependido de seus pecados, que intimamente não lamentava, pois sabia que, se por algum milagre pudesse recuperar a juventude e a vitalidade, iria cometê-los todos outra vez, e ela era realista demais, e sua mente ainda demasiado ativa e animada para que pudesse enganar a si mesma que teria sido diferente.
Eleanor examinou a filha, que estava evidentemente grávida.
- Cuide-se bem, minha querida filha - disse ela. - É trágico o fato de Ricardo não poder ajudar Raymond. Seu marido deve ser forte contra os inimigos, porque vocês praticamente não receberão ajuda de João. - Eleanor franziu o cenho. - João será o rei, agora. Não pode ser meu neto. Artur é moço demais. Ele é todo bretão, e os ingleses jamais o aceitarão.
- Mamãe - disse Joana -, a senhora acha que haverá quem tente colocar Artur no trono?
- Sempre há os que estão prontos para encontrar um motivo para um conflito. Na Inglaterra, porém, João estará a salvo. É aqui que ele precisa tomar muito cuidado. Filipe vive pronto para aproveitar um pretexto para atacar. Será sempre assim, pois os reis da França são inimigos naturais dos duques da Normandia. Oh, Deus, tenho medo com relação a João. Temo pelo que pode acontecer à Normandia e à Inglaterra... Isto é um trágico golpe não apenas para nós, minhas filhas, mas para o reino.
Então, com a energia característica, Eleanor fez planos para elas. Joana devia voltar para o marido sem a ajuda que fora pedir a Ricardo; quanto a Berengária, poderia ficar com Joana durante algum tempo e depois, talvez, juntar-se à irmã até que fizesse planos para o futuro. Seu irmão Sancho, o Forte, iria recebê-la de bom grado, sem dúvida, em sua corte; embora Eleanor nada comentasse, na mente lhe veio a ideia de que no tempo oportuno talvez fosse encontrado um marido para Berengária. Ainda estava em idade de ter filhos. Sim, bem poderia acontecer de ela ainda fazer um casamento que fosse mais verdadeiro do que aquele com o falecido rei da Inglaterra.
Agora, porém, nada havia a fazer, a não ser chorar a morte de Ricardo.
O corpo de Ricardo foi levado para Fontevrault, para que seus desejos fossem satisfeitos. O coração fora-lhe tirado do corpo e dizia-se que deixara assombrados todos os que o contemplaram, devido ao seu tamanho. Ricardo era realmente o Coração de Leão. Vestiram-no com as túnicas que ele usara ao ser coroado na Inglaterra; e assim o colocaram em seu túmulo. As mulheres que o haviam amado choraram por ele, e Hugh de Lincoln, com quem ele tivera muitas diferenças ao longo da vida e que muitas vezes o censurara pela vida que levava, realizou os últimos ritos da Igreja de corpo presente, e enquanto rezava pela sua alma chorava pelo falecimento de alguém que, apesar de todos os pecados, fora um grande rei.
UMA ATMOSFERA INQUIETA predominara na corte da Bretanha desde a chegada do visitante inesperado, príncipe João, conde de Mortain, irmão de Ricardo I da Inglaterra - homem cuja reputação era tal que levava o povo a acreditar na lenda de que o sangue do diabo infectara, certa vez, a casa de Anjou e o Príncipe das Trevas voltara à Terra na pessoa do príncipe João.
João fora culpado de quase todos os pecados conhecidos nos 32 anos que vivera para atormentar aqueles que o cercavam, de modo que parecia que ainda lhe restava bastante tempo para cometer mais; e ele dava todos os sinais de que pretendia viver segundo aquelas expectativas.
Sua altura era abaixo da média - um homem baixo numa família de irmãos altos. Ricardo era um gigante em comparação com ele, e João sempre estivera muito ciente da vantagem que aquilo dava ao irmão. A fim de que ninguém ficasse com a impressão de que uma falta de centímetros implicava faqueza, ele estava determinado a fazer com que todos à sua volta estivessem cônscios de sua importância, e por isso se cercava de companheiros que aplaudiam todos os seus atos, sabendo que se não o fizessem cairiam em desagrado, o que poderia resultar em consequências desastrosas para eles; João se vestia de forma vistosa; suas roupas tinham de ser do tecido mais caro, e ele gostava de adornar-se com jóias finas; andava pelos castelos que visitava como se fosse o dono, e era o senhor feudal de todos; era ganancioso e extravagante, dotado de um génio tão violento quanto fora o do pai, e no entanto Henrique II sempre procurara ser justo, mesmo quando tomado de raiva; João não se preocupava com justiça. A única coisa que tinha importância para ele era o seu prazer; e uma de suas maiores satisfações era ver as pessoas encolherem-se de medo à sua frente enquanto ele as censurava com o poder que detinha sobre elas. Por estar ciente de que o irmão Ricardo tinha poder sobre ele, estava decidido a lembrar a todos os demais que tinha poderes sobre eles.
Ele odiava Ricardo porque sentia inveja, e desejava intensamente o que era dele. Ricardo fora conhecido como o Coração de Leão, e no íntimo João sabia que era João, o Covarde. Ricardo fora o maior general de sua época; João não estava interessado em guerra, exceto quando fosse vitoriosa. Então gostava de saquear as cidades, pôr fogo nos prédios e estuprar as mulheres. Mas nem sempre isso acontecia; e como um de seus maiores prazeres era envolver-se com mulheres, ele reconhecia que podia fazer isso sem ter de enfrentar as preliminares de uma guerra que nem sempre poderia trazer os resultados que ele procurava.
De certo modo, estava satisfeito com o seu destino. Era o filho mais moço de um grande rei; e com frequência ria ao pensar como enganara o pai. Quase até o fim da vida, Henrique acreditara que seu adorado caçula era o único que o amava. Amava! Como se João alguma vez tivesse amado alguém que não a si próprio. Amar para ele era uma loucura. Como era possível uma pessoa conseguir o que quisesse, se era sempre levada por emoções que sentia por outrem e que poderiam resultar em prejuízo para ela? João sentira um prazer muito grande ao perceber a maneira pela qual enganara o pai. Henrique Plantageneta era tido como um rei inteligente, e no entanto seu filho mais moço o enganara por completo, e enquanto Henrique falava em deixar o reino para o único filho que o amava, João fazia os preparativos para abandoná-lo e unir-se a Ricardo, o que na época era mais conveniente.
Mas o pai havia descoberto, pouco antes de morrer, o filho traidor que tinha. Alguns diziam que aquilo apressara a sua morte. Tanto melhor, pensava João. O velho se acabara. Mas restara Ricardo.
Como João ficara contente quando o irmão partira para a Terra Santa! Não rezava com frequência, mas na época rezara... insistindo com Deus para que enviasse uma flecha envenenada para atravessar o coração do irmão. Não parecera um pedido absurdo, já que Ricardo vivia envolvido com sarracenos violentos e sanguinários. E como lhe era peculiar, Ricardo escapara!
João se congratulava consigo mesmo por ter estado muito próximo de apossar-se do reino. Teria sido bem-feito para Ricardo. Se um homem é rei, devia estar em seu reino, e não perambulando pelo mundo afora, tentando obter glória com a conquista de Jerusalém. O que, pensou João com grande satisfação, ele não conseguira; e, além do mais, fora feito prisioneiro de seus inimigos. Malditos aqueles que o salvaram, e em especial o jovem Blondel, que saíra cantando por toda a Europa até encontrá-lo e dando um tal toque de beleza à história que o povo considerara seu rei errante um herói de romance.
Muito bem, isso fora no passado, e era preciso pensar no futuro.
Ricardo, maldito fosse, estava de volta; forte e saudável, e acabando de fazer quarenta anos - dez anos mais velho do que João, mas o que eram dez anos? Todos diziam que ele parecia um deus e que era invencível. O rei da França, que estivera, enquanto Ricardo se achava nas mãos dos inimigos, preparado para agir contra ele até o ponto de colocar João no trono, tão logo Ricardo retornara, voltara atrás. Todo mundo parecia ter medo de Ricardo. Dizia-se que ele tinha uma qualidade mística. Ele era o grande herói - Coeur de Lion. No entanto, não tinha herdeiros e se mostrava pouco disposto a conseguir um.
João soltou uma gargalhada ao pensar nisso. O pai deles tentava conquistar todas as mulheres que via e era um rei que não se dispunha a negar a si mesmo o prazer da companhia delas, o que, naquelas circunstâncias, elas encontravam muita dificuldade em recusar; e ele, João, tinha uma natureza semelhante. Seu pai tinha um traço romântico; gostava de levar uma mulher para a cama com palavras bonitas e promessas, e dizia-se que ele tinha um dom sem igual para isso; com João, era diferente. Ele dispensava as preliminares. Gostava que uma mulher mostrasse medo; aquilo fazia com que a experiência lhe fosse muito mais excitante. Ora, ali estavam eles, seu pai e ele, e não tinha motivos para acreditar que os irmãos, já mortos, fossem diferentes e estava certo de que também tinham gostado daquele passatempo, tanto quanto de caçar cervos ou javalis. Mas Ricardo era diferente; Ricardo, o homem forte, o Coração de Leão, não gostava de mulheres, mas escolhia suas amizades adoradas entre os de seu sexo.
João não conseguia pensar nisso sem cair na gargalhada. Aquilo era o ponto fraco de Ricardo, tal como acontecia com a febre terçã; e para João aquilo parecia cómico, porque as duas fraquezas eram muito estranhas à imagem que Ricardo sempre apresentara ao mundo.
Era uma situação muitíssimo conveniente, pois Ricardo, por ser o que era, não parecia ter probabilidades de conseguir um herdeiro, e enquanto Ricardo não tinha inclinações para fazer isso e Berengária continuava sem dar frutos, a coroa da Inglaterra ficava ao alcance de João.
Era isso o que ele queria. Ansiava por ficar com a coroa. Era capaz de um acesso violento de paixão só em pensar nela. O pai a prometera a ele; isso fora quando ele lutara contra Ricardo. Sim, Henrique II o citara nominalmente como seu herdeiro. Mas Ricardo lá estivera para reivindicar o trono, e a mãe o apoiara. Ricardo sempre fora o favorito dela; no entanto, ela fora uma boa mãe para João, de modo que ele não podia reclamar demais... não que ele tivesse a coragem de fazê-lo. João sempre tivera medo dela, e não teria sido tão fácil enganá-la, como fizera com o pai. As pessoas tinham suas maneiras peculiares. Vejam a mãe dele, por exemplo. Uma mulher forte, uma realista como nenhuma outra, e uma governante de nascença, muito embora fosse mulher; no entanto, tinha uma fraqueza, que era o amor pelos filhos. Ela sabia que João agira contra Ricardo, fizera todo o possível para usurpar a coroa enquanto Ricardo estivera fora, e ela estivera decidida a defender a coroa para Ricardo e deixara claro quais eram suas intenções. Entretanto, quando Ricardo voltara e se pudera esperar que fosse matar João ou pelo menos trancafiá-lo numa prisão - o que, do ponto de vista deles, deviam ter percebido que era o sensato a fazer -, eles o haviam perdoado. João desconfiava que a mãe intercedera a seu favor junto a Ricardo, e o resultado fora o perdão e a afeição fraterna, pelo menos na aparência, entre eles.
Ricardo agira com desprezo, é claro, dizendo que João tinha sido desencaminhado e deixando claro que não o temia por não acreditar que ele fosse capaz de conquistas. Insultante... mas na época atendera aos objetivos de João.
João esperava agora que Ricardo morresse antes de plantar a semente fatídica em Berengária. Um bom e forte ataque daquela febre... e lá estaria Ricardo, sem herdeiros, ausente para sempre; e tudo o que João teria a fazer seria estender as mãos e apanhar a coroa. Mas havia outra consideração, e era por isso que João tinha ido à Bretanha.
Artur! Como ele odiava aquele garoto! Que ares de superioridade, os dele! Era arrogante ao extremo, e afrancesado, também, pois passara muitos anos na corte da França.
Era uma infelicidade o fato de Geofredo, pai de Artur, ter sido o irmão mais velho. Se ao menos o nascimento dos dois tivesse sido invertido... e se ele, João, fosse o pai de Artur! João sorriu com ironia, pensando libidinosamente na mãe de Artur, Constance. Apesar de não ser jovem - estava chegando aos quarenta -, ainda era uma mulher atraente que tivera suas aventuras. Geofredo se casara com ela para obter o controle de suas propriedades na Bretanha, e eles já tinham uma filha, Eleanor, quando ele morrera devido a ferimentos sofridos num torneio, esporte ao qual ele muito se dedicava. Ele deixara Constance esperando uma criança que, infelizmente, nascera menino e saudável e constituía o motivo da inquietação de João.
Artur! Só o nome já o deixava irritado. Seu avô Henrique quisera que o menino fosse balizado com o seu nome, mas Constance, apoiada pelos bretões, fora inflexível, e os dois tinham escolhido Artur devido às associações daquele nome. Ele tinha pretensões ao trono da Inglaterra, e portanto devia ser batizado com o nome do lendário rei.
João não gostava do nome do garoto, nem de nada a ele relacionado.
Diabinho arrogante, pensava ele. Era preciso dar-lhe uma lição. João gostaria de colocar as mãos em torno da garganta infantil e apertá-la até acabar com a vida daquela criatura. Nada lhe daria maior prazer; mas ele tinha de representar o papel de tio, ouvindo a conversa inteligente do menino e trocando sorrisos com a mãe superprotetora. De certo modo, aquele jogo o divertia. A trapaça sempre o estimulava; João tinha uma queda natural para isso. Assim, estava gostando de sua estada naquela corte, e o prazer aumentava porque ele sabia estar sendo olhado com desconfiança e que muita gente se sentiria aliviada quando ele partisse.
João ainda não pretendia ir embora. Havia muitas distrações ali. Ele levara em sua companhia alguns amigos que eram suficientemente ousados para participar de suas aventuras. Quando eles saíam a cavalo, ele combinava com eles para que o ajudassem a fugir do grupo e cavalgar ao lado de Artur. Quando ficava a sós com o garoto, ele perambulava pelos bosques e sempre gostava de voltar tarde ao castelo e ver o alívio no rosto de Constance quando ela via o filho, porque João sabia o quanto ela sofrera ao pensar que o filho estava sozinho, nos bosques, com o malvado tio.
O que deveria João fazer para se distrair naquele ensolarado dia de abril? Poderia chamar os amigos e então, juntos, entrariam nos bosques a cavalo... entrar à força em alguns chalés e procurar garotas e, encontrando-as, arrastá-las, enquanto berravam, para os bosques. Uma bela brincadeira, mas eles a faziam com tanta frequência que ela poderia perder o atrativo; além do mais, eles tinham de se lembrar de que estavam na Bretanha e que a arrogante Constance e seus amigos não hesitariam em reclamar ao rei da França ou, talvez, a Ricardo, e naquela fase João devia ser discreto, porque não fazia muito tempo que Ricardo o perdoara pela sua rebelião, com a condição de que ele corrigisse o seu modo de proceder.
Além disso, seus pensamentos eram sérios demais para serem distraídos por prazeres tão banais como o estupro de moças de aldeias. De uma janela, ele viu Constance indo para os jardins, e estava sozinha. João se apressou a descer para falar com ela.
Observou-a por alguns segundos antes que ela percebesse a sua presença - nos seus pensamentos, despindo-a de seus trajes e avaliando suas possibilidades como companheira de cama. Não seria uma mulher mansa... não como a sua pobre Hadwisa. Estava farto dela, e iria livrar-se daquela mulher. Estava decidido. Por que não? As terras dela estavam seguras sob o seu controle, e ele não fizera segredo de que aquilo era tudo a que seu casamento se resumira. João não tinha filhos - decidira que iria evitar aquela complicação, a fim de que quando chegasse o momento de livrar-se dela não houvesse a questão do fruto do suposto casamento. João ria ao pensar que a Igreja tinha sido contra e que com a conivência de Ricardo ele zombara da Igreja. A herança dos Gloucester valera um certo estorvo, porque o acréscimo dela às suas posses o tornara num dos mais ricos homens da Inglaterra. Mas havia um laço de sangue entre os dois. Eles eram aparentados através do bisavô dele, Henrique I, que também era bisavô de Hadwisa; no caso dela, o sangue real viera pela barra esquerda, mas sangue era sangue, e o velho e tolo arcebispo de Canterbury arengara sobre consanguinidade. João não se importara; e estava muito satisfeito, porque vira desde o início que Hadwisa não o interessaria, a não ser devido a suas posses.
Por isso, ele não precisava se preocupar com Hadwisa. Quando o momento chegasse, ela seria descartada como uma roupa velha que se dá a um criado quando não se quer mais usá-la.
Uma ideia vinha se formando em sua mente havia algum tempo. E se se casasse com Constance? Assim, se Artur fosse ao mesmo tempo seu enteado e sobrinho, estaria inteiramente em seu poder. De uma coisa estava certo: se surgisse a oportunidade e Ricardo morresse sem herdeiros, ele não seria tapeado por Artur.
Constance se voltou, levou um susto quando João se aproximou por trás dela... bem em silêncio, para sentir o prazer de vê-la momentaneamente perturbada. Era realmente uma mulher atraente e, por ser muito alta, dava a impressão de olhá-lo com desprezo. Em breve iria fazer com que ela parasse de dar essa impressão, se se casasse com ela.
- Como você está bonita, Constance. Eu sempre disse que meu irmão Geofredo era o mais feliz de todos nós com o casamento.
- É muita bondade sua - disse ela, com frieza. Os olhos demonstravam cautela; parecia uma tigresa desconfiada de algum ataque aos seus filhotes. E também não deixava de ter razão.
- Ah, é bom as famílias ficarem juntas - prosseguiu ele. Nem sempre é possível com gente da nossa categoria, mas esteja certa, Constance, de que pretendo procurar todas as oportunidades de estar com a minha encantadora cunhada. É um prazer ver minha sobrinha e meu sobrinho. Que pessoa encantadora está ficando a Eleanor. E o Artur! Você deve se orgulhar muito do garoto.
- Sinto-me feliz com meus filhos.
- E permita que lhe diga que fez um bom trabalho com Artur.
- Pode perfeitamente dizer isso, mas se posso reivindicar o crédito, é outra coisa. Você sabe que ele passou grande parte do tempo na corte do rei da França.
- E aquele velho patife tentou transformá-lo num francês completo.
- Tenho motivos para ser grata ao rei da França - disse Constance, rápido. - Não concordo que ele seja velho ou um patife.
- Você faz questão da exatidão, minha querida cunhada. Não há dúvida de que Filipe não é um velho, mas tem de admitir que é manhoso.
- O que fica bem num governante como ele.
- Meu irmão, o rei da Inglaterra, tem motivos para desconfiar dele.
Os lábios de Constance se contraíram.
- Dizem que certa vez houve uma amizade tão grande entre os dois, que as pessoas ficaram impressionadas.
João aproximou-se dela com um leve sorriso irónico.
- Ah, aquela amizade. O nosso irmão - seu pelo casamento, meu pelo sangue - é um homem de muitas facetas.
- Parece que sim.
- Ele não tem sido muito bom para você, minha cara Constance.
- A gente aprende a ser desconfiada.
- E você e eu temos muita coisa em comum.
- É mesmo?
- É, sim. Nós dois nos casamos... de certa maneira... e poderse-ia dizer que não estamos casados.
Ela ergueu a sobrancelha e estudou-o com frieza. João continuou.
- Você sabe que enfrentei uma forma de cerimónia com Hadwisa de Gloucester. Era o que meu irmão queria. Ele acabara de assumir o trono e pensava que as terras dela seriam uma maneira de sustentar o irmão dele sem fazer exigências sobre o erário dele.
- Você não queria a união?
- Você devia ver a Hadwisa.
- Deduzo que você não está contente com a sua mulher.
- Eu diria que ela é tão diferente de você quanto uma mulher pode ser diferente de outra.
- Isso pouco me diria.
- Exceto o fato de que sendo você tão atraente, ela teria de ser o oposto.
Constance deu de ombros, num gesto de impaciência. Ele prosseguiu:
- Foi uma tristeza para você, querida Constance, quando Geofredo morreu de forma tão inesperada. Quem iria acreditar que isso fosse possível, quando ele estava participando de uma justa?
- Aquelas justas eram realistas demais. Pareciam mais uma batalha de verdade do que um jogo.
- Isso mesmo, e Geofredo adorava. E a deixou com Eleanor ainda um bebé, e Artur a caminho.
- Meus filhos sempre foram um grande consolo para mim.
- E uma angústia. Admita.
- Quando há grandes heranças envolvidas, isso é inevitável.
- É uma tristeza para as mulheres. Mais do que para os homens.
Sei o quanto você sofreu nas mãos de Ranulf de Blundevill - falou João.
Viu a expressão passar pela fisionomia dela - uma expressão de ódio e mudança violenta; e João excitou agradavelmente seus sentidos ao pensar naquela bela mulher obrigada a se casar com um homem que odiava. Ficou imaginando o que acontecera entre os dois e pensou nele próprio com Hadwisa nos primeiros dias do casamento, quando ele incutira terror na pobre esposa e, assim, obtivera o único prazer que jamais sentira com ela.
Como Constance era diferente de Hadwisa! Depois da morte de Geofredo, ela fora forçada a se casar pelo sogro Henrique, que na época era rei; mas não tivera intenção alguma de se submeter à indignidade a que Ranulf a teria obrigado. Fugira dele e voltara para a Bretanha, onde o povo se colocara à sua volta e se mostrara disposto a protegê-la contra o homem que ela odiava; quanto ao rei da Inglaterra, na época estivera muito ocupado em outra parte para fazer cumprir sua vontade.
Constance era uma mulher forte. Governara o ducado de Artur durante quatro anos, com grande disposição, e durante esse tempo fizera com que os bretões gostassem dela, a ponto de estarem prontos a defendê-la assim como ao herdeiro deles contra todos os invasores.
- Sempre a admirei, Constance. Fiquei muito contente ao saber que você havia fugido da besta do Ranulf. Mas você não o considera como seu marido, certo? Comigo é a mesma coisa. Como vê, estamos numa situação semelhante.
- Duvido que Hadwisa algum dia lhe tenha causado a angústia que o conde de Chester me causou.
- Tenho a vantagem de ser homem, cara irmã. Você é mulher, e as mulheres precisam de homens... homens bons... para cuidarem delas.
- Algumas de nós não são tão mal preparadas assim que não possamos cuidar de nós mesmas.
- E você é uma dessas mulheres raras. Ah, Constance, como me alegro por sermos bons amigos! E você?
- Em um mundo cheio de perigos, é sempre bom ter amigos. Constance tinha a esperança de não ter revelado o temor que tomara conta dela. O que João estaria dando a entender? Por que fora até ali? Estaria Ricardo pensando em um casamento entre os dois?
Ideia aterrorizadora. Aquele monstro - pois sabia que era isso que ele era - perdia seu tempo trocando palavras bonitas com ela. Não havia um só de seus conselheiros que não tivesse ficado em estado de alerta desde o momento em que João chegara à sua corte. Ela ordenara que Artur deveria ser vigiado e que, se possível, nunca fosse deixado a sós com o tio. Se alguma coisa acontecesse a Artur enquanto João estivesse perto, João seria imediatamente suspeito, e isso não o ajudaria. Mas como poderia saber ela o quanto João seria louco? Ele não era conhecido pela sua sabedoria.
Claro que não era inconcebível Ricardo e seus conselheiros estarem com alguma ideia de casamento entre ela e João, já que não havia dúvida quanto a quem - João ou Artur - era o herdeiro de direito ao trono. Um casamento desses poderia significar que João governaria até que Artur atingisse a maioridade, ou que João se tornaria uma espécie de regente.
Nunca, pensou ela. Eu não confiaria meu filho a ele... nem por um instante.
O fato de estar casada com Ranulf de Blundevill, conde de Chester, e João com Hadwisa de Gloucester, não seria impedimento. Os casamentos poderiam ser desfeitos sem muitos problemas. Casar-se com João! Ele seria mil vezes pior do que Ranulf. Além do mais, havia Guy. A fisionomia dela assumiu uma expressão desanuviada quando pensou no amante. Ele poderia vê-la de uma das janelas do castelo, e se o fizesse iria salvá-la de seu odioso cunhado. Os dois haviam falado sobre o príncipe na noite anterior, e Guy dissera que se ele estava na Bretanha não era para fazer nada de bom, e que eles deveriam redobrar os cuidados com Artur.
Constance se voltou e se afastou de João, murmurando que precisava deixá-lo naquele momento, mas quando caminhava em direção ao castelo, ele estava a seu lado. Ela se dirigiu rapidamente a seus aposentos e, lá, pediu a uma de suas aias de confiança que levasse Guy de Thouars até ela. Quando ele chegou e os dois ficaram a sós, ela o abraçou.
- Oh, Guy, estou com medo... medo por causa de Artur.
- Artur está bem vigiado, meu amor, enquanto estamos aqui.
- Há alguma coisa na cabeça de João. Posso perceber isso. Ele foi me procurar nos jardins. Está tramando alguma coisa.
- Precisamos ter cuidado com ele, e estamos tendo. Sabíamos disso desde o começo.
- Eu o vejo observando Artur.
- Ah, sim, ele não se esquece de que Artur tem mais direito ao trono da Inglaterra do que ele.
- É isso que me deixa horrorizada. - Apoiou a cabeça nele, e Guy pousou os lábios nos cabelos dela. - Isto é paz - murmurou ela. - Paz, só por uns minutos.
- Nada disso, meu amor, mais longa do que isso. Artur está bem protegido. Seu fiel escudeiro dorme deitado em frente à porta do quarto dele.
- Isso é necessário enquanto João estiver aqui. Eu gostaria que ele fosse embora.
- Então, ele estaria em algum outro lugar tramando contra Artur.
- Pelo menos não estaria tão perto dele.
- Não. É melhor que esteja onde possamos ficar de olho nele. Vamos continuar vigilantes. Nem por um momento sequer iremos permitir que Artur fique a sós com ele.
- No entanto, na floresta...
- Ele é sempre seguido. Tomei providências para que isso aconteça. João procura apenas nos irritar. Ele não permitiria que alguma coisa acontecesse a Artur quando se soubesse que os dois tinham estado juntos. O povo da Bretanha iria matá-lo antes que ele tivesse tempo de fugir, e Ricardo não o perdoaria. João sabe perfeitamente bem que isso seria o fim de suas esperanças.
- A vida é tão cruel! - disse Constance, com veemência.
Estava pensando na vida curta que tivera com Geofredo; talvez não tivesse sido uma vida idílica, mas Geofredo era jovem e bonito, e tinha um certo charme, e o resultado foram seus dois filhos, Eleanor e Artur; depois da morte dele começara o pesadelo. Ranulf! Tremia ao pensar nele. Que direito tinha o rei da Inglaterra de dá-la a um homem que ela desprezava, porque interessava a ele? Aquilo não tinha sido um casamento. Ela lutara desesperadamente contra a sua consumação e fugira rapidamente de Ranulf, e o povo da Bretanha ficara ao lado dela e ela governara o ducado durante quatro anos e cuidara de Artur, educando-o a seu modo. Infelizmente, Ranulf, depois daquele período, a capturara e a mantivera prisioneira em seu castelo de St. Jean Beveron, mas não antes de ela conseguir, com a ajuda de bons amigos, mandar Artur para a corte do rei da França, onde ficaria em segurança.
Fora o bom povo da Bretanha que ajudara a libertá-la da prisão e, temendo que o rei da França usasse Artur em proveito próprio, ela o mandara voltar para o lado dela e, assim, os dois estavam outra vez juntos; mas nem por um momento Constance poderia esquecer o quanto seu filho era importante para os interesses da Europa. Havia o rei da França de um lado e o rei da Inglaterra do outro, ambos procurando usar Artur um contra o outro; mas o verdadeiro inimigo era João... o tio em cujo caminho ele poderia ficar, pois na cabeça de algumas pessoas Artur estava um passo à frente dele na sucessão do trono.
- Quase chego a desejar que Artur não fosse o herdeiro do pai - disse Constance. - Há momentos em que eu gostaria que pudéssemos ir embora juntos... você, eu e meus filhos, e esquecer a herança de Artur.
- É isso mesmo que você quer, Constance? - perguntou Guy, tristonho.
Ela não conseguiu responder com sinceridade, porque Artur era seu filho, e seu amor se misturava com as ambições que tinha para ele. Artur poderia ser o rei da Inglaterra, e disso Constance não poderia se esquecer.
- Se Artur estivesse seguro no trono da Inglaterra, no controle das possessões aqui, se ele fosse alguns anos mais velho...
- Enquanto Ricardo viver, o menino estará a salvo. Nada de mau lhe acontecerá. Vamos, meu amor, esqueça suas preocupações. O garoto está bem. Ninguém poderia estar mais protegido.
- Mesmo assim, temos de tomar cuidado com João.
Quando João se afastou de Constance, entrou na sala de aula, onde Artur estava sentado ao lado de seu tutor. A cabeça loura do menino estava debruçada sobre os livros, e João se divertiu ao ver que o tutor ficara alerta desde a sua chegada.
- Ah, sobrinho - disse João, em tom despreocupado. - Venho encontrá-lo estudando. Isso é bom. Nunca é demais um menino aprender o que puder. Não é assim, meu bom homem?
O tutor se levantara. Ele se curvou para João e respondeu que o saber era um bem admirável para todos.
- Então pensamos da mesma forma. - João fez um gesto com a cabeça. - Quero ficar a sós com o meu sobrinho.
O homem não teve outro recurso a não ser retirar-se; mas não iria longe, pensou João com um sorriso afetado de satisfação. As ordens que recebera teriam sido as seguintes: fique por perto e mande avisar que o príncipe João está sozinho com o jovem duque; e alguém estaria a postos para evitar que algum mal fosse causado a Artur. João faria o possível para colocá-los numa roda-viva.
- Está um dia tão bonito - disse João. - Não é para debruçar-se sobre livros.
- É preciso aprender as lições - retrucou Artur.
- Que aluno modelo você é! Eu nunca fui. Eu preferia a caçada e o bom ar livre a ficar mergulhado nos livros.
- Acredito muito bem nisso - replicou Artur. Cachorrinho insolente, pensou João com um repentino acesso
de raiva. Cuidado, aconselhou a si mesmo. Aqui, é necessário bancar o tio bom.
- Minha mãe acha que tenho de passar muito tempo estudando, e o rei da França pensava assim também.
- Aposto que você e o jovem Luís se divertiam bastante juntos.
- Nós caçávamos, lutávamos esgrima e estudávamos a arte da fidalguia...
- Tudo o que um príncipe deve saber, aposto... e mais ainda. Venha, vamos cavalgar juntos, eh... só nós dois. - Disse aquilo em tom muito alto, pensando no tutor que estava à escuta. Agora haveria pânico.
Como a maioria dos jovens, Artur adorava sentir um cavalo sob seu corpo; herdara do pai o amor dos Plantagenetas pela caçada; e embora não gostasse do tio - e por ser jovem e um pouco arrogante e bem cônscio de sua importância, pouco se esforçava para esconder o fato -, não podia resistir à sugestão de que os dois iriam cavalgar juntos.
- Vamos indo.
Artur se levantou. Ele seria alto e bem-apessoado, parecendose com o falecido tio Henrique, que era o mais bonito de todos os filhos de Henrique II. Sua temporada na corte da França tivera seus efeitos sobre ele; seus modos eram refinados e usava suas roupas com elegância. Mas a altivez estava ali; não havia dúvida de que Artur estava plenamente ciente de sua importância.
Os dois cavalgaram lado a lado, os acompanhantes à sua volta.
Constance, com Guy ao lado, observava-os de uma janela do castelo.
- Não tenha medo - disse Guy. - Há homens de confiança com eles.
- Você sabe o que ele faz. Ele dá um jeito de afastá-lo deles. Por quê?
- Porque sente um grande prazer em torturar você.
- Ele é um monstro.
- Já ouvi dizerem isso dele.
- Quisera Deus que ele fosse embora.
- Ele não pode ficar aqui para sempre. Mas quando se for, não vamos relaxar os nossos cuidados. É bem possível que Artur esteja mais seguro enquanto ele está aqui, porque se alguma coisa acontecesse a Artur, ele seria imediatamente acusado.
- Eu gostaria que ele quebrasse o pescoço.
- Creio que você não é a única pessoa que reza para esse acontecimento feliz. Não, meu amor, não se preocupe. Artur está com seus amigos e eles tomarão conta dele. Para João, isso é uma brincadeira. Um de seus maiores prazeres é causar medo às pessoas, e é isso que espera fazer agora.
- Mil pragas caiam sobre ele.
- Amém - disse Guy.
Como estava agradável na floresta! O rosto do garoto brilhava com o seu amor pela caça. João observou a limpidez de seus olhos e o frescor da pele. Era saudável demais para o gosto do tio.
Um menino, nada mais. Doze anos de idade, e atrapalhando-o tanto! O povo da Inglaterra nunca iria aceitá-lo, mas ali, sim. Normandia, Anjou... oh, sim, eles estariam bem preparados. E sem dúvida o rei da França iria gostar de ver um menor no trono da Inglaterra, se ele apoiasse Artur...
Quando pensava nisso, o seu mau génio começava a se manifestar, e precisava controlá-lo até certo ponto. Além do mais, aquilo ainda não acontecera. Ricardo ainda estava vivo.
Os dois saíram em perseguição a um belo cervo. A caçada era excitante; João adorava a maneira do animal amedrontado fugir; não gostava que a matança fosse feita cedo demais. Isso tirava a graça da caçada.
Não houve oportunidade, naquela ocasião, de pegar Artur sozinho; tão logo ele conseguia enganar um cavaleiro, outro surgia. Constance dera suas ordens. "Nunca percam Artur de vista quando ele estiver com seu tio João."
João soltou uma gargalhada. Supôs que Constance estivesse, àquela altura, muitíssimo ansiosa, e que ficaria naquele estado até que eles voltassem para o castelo. Iriam demorar-se só para mantê-la em suspense.
O cervo foi abatido; o carregador iria levá-lo para o castelo. Artur havia gritado.
- Vamos voltar, agora. Já chega.
Para você, já chega, meu pequeno sobrinho, pensou João. E para o seu tio?
- Está um dia tão agradável! - disse João. - Quem sabe que pode haver outro cervo melhor do que o que capturamos, espreitando aí por perto.
- Não - disse Artur. - Minha mãe não gosta que eu fique muito tempo fora de casa.
- Oh, mas nesta ocasião ela sabe que você está sob os cuidados de seu bom tio João.
Artur era jovem demais para disfarçar. Arregalou muito os olhos azuis e começou:
- Oh, mas... - Parou.
- O quê, sobrinho? - perguntou João, provocando-o.
- Nada - replicou Artur. - Mas para mim já chega de caçada. Quero ver o prazer de minha mãe quando ela vir o cervo.
- Não vamos embora por enquanto - disse João. - Um belo rapaz desses não vai querer ser governado por mulheres.
João esporeou o cavalo e começou a se afastar, certo de que Artur, depois daquela chacota, iria atrás. Artur gritou enquanto ele se afastava:
- Não se trata de mulheres. Trata-se de minha mãe. - E seguiu a galope em outra direção.
- Maldito seja - murmurou João. - Sujeitinho vaidoso. Eu gostaria de açoitá-lo até o sangue brotar.
Mas não havia coisa alguma que pudesse fazer. Seus próprios acompanhantes, sabendo muito bem por experiências anteriores que a partida de Artur iria significar que o mau génio angevino estava para se manifestar, estavam cientes de que seria prudente não ficar muito perto do seu senhor. Um talho provocado pelo chicote podia deixar uma cicatriz permanente como lembrete de uma palavra ou um ato mal escolhidos.
João seguiu para longe, seus homens a pouca distância dele, murmurando pragas contra Artur, o garoto, o pirralho, que poderia facilmente ficar entre ele e suas ambições.
Estava escurecendo quando João voltou ao castelo. Estava de mau humor. O pajem apressou-se a cuidar dele, e quando ele saiu dos estábulos viu um homem de pé, nas sombras. João parou. O homem parecia um mendigo, e uma das características contraditórias do violento príncipe Plantageneta era ser conhecido pela sua bondade para com os mendigos. Raramente passava por um deles sem dar uma moeda, o que era estranho porque, embora esbanjasse consigo mesmo, sabia-se que era parcimonioso com os outros. Mas uma moeda ou coisa parecida para um mendigo era pouco comparado com a gratidão que produzia, e gostava de distribuir dádivas àquela gente e merecer a sua gratidão. Era uma maneira barata de obter aprovação, e à qual raramente ele resistia.
De modo que mesmo naquele momento, no seu mau humor, ele fez uma pausa para procurar uma moeda para o mendigo.
- Meu senhor - disse o homem -, não sou um mendigo. Venho assim disfarçado para trazer-lhe grandes notícias.
- Notícias! - exclamou João. - Que notícias?
- O rei da Inglaterra morreu.
- Não!
- É verdade, meu senhor. João agarrou o braço do homem.
- Como foi isso?
- Foi em Chaluz. Disseram que foi encontrado um tesouro, e o rei Ricardo o queria.
- Típico dele - disse João. - Continue, homem.
- No cerco, uma flecha penetrou no ombro do rei. Ela não pôde ser retirada e infeccionou. Ele está morto. Viva o rei João.
- Você será recompensado.
- Que Deus o conserve, majestade. Vim sorrateiramente, para que ninguém ficasse sabendo do que aconteceu. Em breve a notícia estará no exterior... aqui... neste castelo... por toda parte.
- E o que aconteceria a mim, aqui? - perguntou João. Porque se soubessem, neste momento estariam colocando Artur no trono.
- Achei que o meu senhor fosse querer partir depressa para Chinon.
- Para Chinon e para o tesouro real! - bradou João.
No castelo, Artur falava com a mãe sobre o belo cervo que haviam trazido, e o cheiro de carne sendo assada estava no ar. Mas quando o grupo se reuniu no grande salão, descobriu-se que o príncipe João e seus seguidores não se achavam presentes.
- Será possível que eles tenham ido embora, afinal? - bradou Constance, com um tom de satisfação na voz.
- Parece que sim - disse Guy -, mas fico imaginando qual teria sido o motivo.
Iriam descobrir no dia seguinte.
Ricardo morto. Então, Artur deveria ser duque da Normandia, conde de Anjou e rei da Inglaterra.
Mas àquela altura João já chegara a Chinon e se apossara do tesouro real.
QUE EMOÇÃO, entrar em Chinon! Finalmente, aquilo pelo qual ele ansiara e rezara estava pronto a cair-lhe nas mãos. Ricardo morto! O homem que disparara a flecha deveria ser recompensado; não poderia ter causado um prazer maior ao seu novo rei. João soltou uma gargalhada. Qual seria a reação dos senhores cavaleiros e barões se dissesse: "Tragam esse homem à minha presença"? Eles levariam o homem, desgraçado e amedrontado, e João brincaria com ele durante um certo tempo e depois lhe daria terras e um título. "Você me serviu bem. Vá em paz."
Claro que não poderia ser assim. No início, ele teria de seguir um pouco as convenções. Mas pelo amor de Deus, pensou ele, quando eu for rei, com a coroa garantida na cabeça, farei o que quiser, e eles vão gostar ou sofrer por não gostarem.
Que futuro glorioso! Homem abençoado que atirou a flecha, você é meu bom e fiel servidor. O velho Coração de Leão já não existe mais. O terror dos sarracenos, o grande cruzado, que abandonou seu país para obter a glória na Terra Santa, agora é apenas um cadáver... morto, com toda a sua glória indo com ele. E o caminho está livre para João.
Artur... O que tinha ele a temer de Artur?
O castelo de Chinon nunca estivera tão bonito quanto naquela manhã de abril. João nunca se sentira tão feliz na vida.
Agora viria o primeiro teste. E se o zelador do tesouro se recusasse a entregá-lo a João? Mas não havia o que discutir sobre a atitude que João deveria tomar. Ele traspassaria o sujeito e tiraria o tesouro à força.
Entrou no castelo a cavalo. Não houve resistência. Ficou emocionado. Eles o reconheciam como duque e como rei.
O tesouro era seu.
Havia uma mensagem de sua mãe, que já dera ordens para que o tesouro lhe fosse entregue. Ela estava em Fontevrault, onde se processava o funeral. João, agora duque da Normandia, conde de Anjou e rei da Inglaterra, deveria ir a Fontevrault para prestar seus últimos respeitos ao irmão.
João hesitou. Ninguém deveria dar-lhe ordens. Depois, viu a tolice que seria resistir. Sua mãe conhecia os procedimentos e estava do seu lado, fato que deveria fazer com que ele exultasse. Qualquer resistência que Artur e os bretões pudessem opor seria rapidamente dominada. Sua mãe gozava de grande influência, e ele deveria ser humilde por algum tempo. Aquele era o papel a ser representado, e João sempre gostava de representar papéis que enganassem as pessoas. Representar o irmão triste agora, um pouco oprimido pela percepção de suas grandes responsabilidades, era um papel que podia fazer bem e sentir um grande prazer nisso.
De posse do tesouro angevino, João se preparou para seguir para Fontevrault. Primeiro, porém, a conselho da mãe, mandou chamar o bispo Hugh de Lincoln, o mais respeitado dos bispos ingleses, cuja presença, como dissera Eleanor, iria impressionar o povo.
João percebera isso e ficou satisfeito ao imaginar-se em companhia de um homem daqueles, pois no passado ele usara de uma grande leviandade com relação a pessoas como o bispo, e Hugh gozava de uma reputação imaculadíssima.
No entanto, por enquanto João precisava controlar sua alegria e mostrar ao povo uma fisionomia séria.
Hugh chegou e lhe deu a bênção. João percebeu, com certo grau de rudeza, que o bispo não estava disposto a tratá-lo com muito respeito, muito embora o reconhecesse como sendo o rei. Aqueles homens da Igreja pareciam considerar todo mundo como seus filhos. João não iria aturar seus sermões por muito tempo, e o bispo deveria ter cuidado com a maneira de tratar seu novo soberano. Ricardo não deixara que eles o intimidassem, embora tivesse prestado atenção ao velho eremita da floresta, que o censurara pela vida que levava. Ah, mas só quando ele estava caído, com risco de morrer!
Como todo mundo sabe, pensou João rindo, os leitos de morte são o lugar para o arrependimento; antes de chegar a eles, o indivíduo deveria cometer pecados em número suficiente para que a humilhação de pedir perdão valesse a pena.
- Que Deus o abençoe, majestade - disse Hugh, abraçando-o.
João agradeceu e sugeriu que voltassem para a Inglaterra a toda velocidade.
Estava ansioso pela cerimónia na abadia de Westminster, e só iria sentir-se inteiramente feliz quando a coroa estivesse em sua cabeça. Um rei não era considerado rei senão depois de realizada aquela importantíssima cerimónia. E com Artur nas sombras, quanto mais cedo ela acontecesse, melhor para João.
Hugh começou recusando-se a ir à Inglaterra. Naquele momento, isso seria impossível. Acompanharia o rei a Fontevrault, pois seria bom que João visitasse o túmulo do irmão.
Lá vamos nós, pensou João. A Igreja ditando à Coroa, logo no início. Muito bem, meu velho prelado. Só por enquanto... até que eu esteja firme na sela - e então você terá de sair da minha frente antes que eu o espezinhe.
Não demoraram muito a chegar a Fontevrault, a fim de prestar homenagens aos túmulos de Henrique II e Ricardo.
João se ajoelhou ao lado do túmulo do pai e pensou naqueles últimos dias da vida do velho, quando ele o abandonara porque era mais vantajoso ficar do lado de Ricardo naquele momento. Não podia deixar de se sentir um tanto constrangido num lugar solene como aquele; lembrava-se nitidamente dos olhos do pai seguindo-o, e o pai dissera que ele era o único filho em que podia confiar. João rira intimamente, na época, e congratulava-se consigo mesmo pela bela representação, dizendo para si mesmo que era um sujeito muito inteligente. Mas ali, na solene atmosfera da abadia, ele sentia uma pontada de algo que poderia ter sido a consciência, mas que era mais provável tratarse de medo das represálias que os mortos poderiam adotar. E havia, também, Ricardo, recém-colocado em sua tumba... Ricardo, por cuja morte ele rezara mais de cem vezes. Poderiam os mortos não deixar esta Terra ao morrer, e ficar aqui para assombrar os que os haviam enganado? Pensamentos mórbidos. Tudo por causa daquele velho bispo de espírito malévolo de pé ao lado dele, com ares de desaprovação, decidido a manter a guerra entre a Igreja e o Estado.
Era tudo fantasia. Os dois estavam mortos... liquidados... as glórias terrenas, para eles, tinham acabado; e a partida deles significava que João tinha aquilo pelo qual sempre ansiara.
Pôs-se de pé e, dirigindo-se à porta do coro, bateu. Uma freira surgiu por trás da abertura gradeada. Ela informara que a abadessa não estava, e a regra mandava que ninguém fosse admitido na ausência dela.
Graças a Deus, pensou João. Estava cansado daquelas peregrinações piedosas. Queria acabar logo com aquilo e seguir para a Inglaterra. Oh, a glória de sua coroação! Ele se lembrava da de Ricardo, que não tinha sido há tanto tempo assim, e do quanto sentira inveja por ser Ricardo que iria usar a coroa e portar o orbe e o cetro. Agora é a minha vez, pensou, exultante. Sentia-se grato à velha abadessa por estar ausente.
Voltou-se para Hugh e disse:
- Diga-lhes que prometo beneficências para a casa delas. Juro em meu nome. Talvez, em troca, elas rezem por mim.
Hugh fitou-o, cético. Não confiava na nova piedade de um homem a respeito do qual ele bem sabia que os rumores não haviam mentido.
- Eu não poderia prometer coisa alguma em seu nome enquanto não tivesse a certeza de que as promessas seriam cumpridas. O senhor sabe muito bem como detesto falsidade, e uma promessa feita e não cumprida é isso.
- Juro que aquilo que eu prometer vai acontecer! - bradou João.
- Então, darei às irmãs a sua mensagem, mas se faltar com a palavra, não se esqueça de que estará ofendendo a Deus.
João curvou a cabeça, num gesto de presumida piedade.
Quando saíram da igreja, o bispo começou uma pregação sobre a necessidade de governar bem. O novo rei teria de dar seriedade à sua tarefa; Deus lhe confiara uma grande missão. Era do seu interesse desempenhá-la da melhor maneira possível.
- vou manter a coroa - jactou-se João. Tirou da jaqueta um ornamento preso a uma corrente de ouro e mostrou-o ao bispo.
- Está vendo este amuleto? Foi dado a um de meus ancestrais e chegou até minhas mãos. Meu pai me deu. Isso foi quando ele queria que eu o sucedesse no trono. Diz a lenda que enquanto nossa família possuir esta pedra, nunca perderemos nossos domínios.
- Seria melhor confiar na mais alta Pedra Fundamental - retrucou o bispo, sobriamente.
João se afastou com uma careta.
Os dois ficaram por um instante no pórtico, em cujas paredes tinha sido esculpida uma cena do juízo final. Deus estava sentado no trono, e num dos lados estavam retratados os tormentos que aguardavam os pecadores, e no outro os anjos a caminho da ventura celestial.
- Eu lhe peço, majestade - disse o bispo -, que preste bem atenção a isso. Veja o que aguarda aqueles que ofendem as leis de Deus.
- Não olhe para eles, meu bom bispo - retrucou João. Veja, isso sim, os que estão do outro lado. Os anjos os estão levando para o céu. Este é o caminho que decidi ser o meu.
O bispo encarou-o, apreensivo. Aquela virtude chegara muito de repente para ser plausível.
Os dois seguiram viagem para Beaufort, onde a rainha Eleanor, com a pesarosa viúva Berengária e a irmã de João, Joana, esperavam para recebê-lo.
Sua mãe o abraçou com calor.
- Este é um dia triste para todos nós - disse ela. - Seu irmão, nosso grande rei, derrubado no auge da vida pela flecha daquele louco!
- Infelizmente, infelizmente - replicou João. - Ele, que sobreviveu à Terra Santa e à cruel prisão num castelo inimigo, acabar assim!
João estudava Berengária com intensidade. E se, no final das contas, estivesse grávida? O pensamento era horrível demais para ser alimentado. Seria preciso livrar-se dela antes que ela colocasse em cena outro rival. Já bastava a presença de Artur.
João se voltou para Joana, que estava evidentemente grávida.
- Minha queridíssima irmã. Este é um momento triste. Espero que não tenha causado nenhum dano à criança que você está gerando.
Joana se voltou para esconder as lágrimas.
- Ele era tão maravilhoso! - disse ela.
- Nós compartilhamos da nossa dor - murmurou João, forçando a voz para que tremesse. - E minha querida cunhada... que tristeza, para você! - Tomou as mãos de Berengária e olhou para ela. Não ouse estar grávida!, pensou. Não, não está. Ricardo jamais quis isso. Ele não queria ter um filho homem.
- Venham para meus aposentos privados - disse a mãe dele.
João tinha de admirá-la. Todos tinham achado que ela se retirara para ficar isolada, mas acontecimentos como aquele iriam sempre fazê-la sair para lutar pela família; João agradecia à sua boa fortuna o fato de a mãe ter decidido que ele deveria herdar o trono. O que teria acontecido se ela tivesse deixado a escolha recair sobre Artur? Não; com Eleanor, um filho vinha antes de um neto.
Quando ficaram sozinhos, ele viu logo que a mãe estava preocupada. Lamentava profundamente a morte de Ricardo.
- Isso foi um golpe muito triste para mim, filho. Nunca pensei que fosse possível ele se ir e me deixar aqui. Eu me preocupava com Ricardo quando ele estava na Terra Santa e durante aquela terrível fase quando não sabíamos onde ele se encontrava. Mas quando voltou... forte e bravo como sempre, nunca pensei que poderia ir antes de mim e me deixar sozinha.
Dominando o seu ressentimento, João tomou-lhe uma das mãos e a beijou.
- A senhora ainda tem o seu filho, mamãe - lembrou-lhe.
- Você, João... o mais moço de todos. E se tornou um rei.
- É uma grande responsabilidade.
- Fico contente por você perceber isso. - Lançou-lhe um olhar astuto. - Não vai ser fácil. Você sabe disso. Terá de enfrentar mais conflitos do que Ricardo jamais enfrentou.
- É - disse ele, os lábios se apertando. - Há o Artur.
- Guilherme Marechal acredita que você vem antes de Artur.
- Guilherme Marechal! - A alegria passou rapidamente pela fisionomia de João. Ali estava um dos homens mais influentes da Inglaterra, um homem famoso pela sua integridade. Outros iriam segui-lo.
- Eu o mandei à Inglaterra, a fim de preparar o povo para a sua recepção e instá-lo a aceitar você como o rei de direito.
- A senhora sempre foi a melhor das mães.
- Marechal, com Hubert Walter, irá convencer o povo de que você é o verdadeiro rei.
- Permita que eu diga que a Igreja deve ser envolvida.
- Hubert é o arcebispo de Canterbury. Ele realizará a coroação. A aprovação dele é essencial.
- E a senhora acha que ele a dará?
- Se ele se mostrar indeciso, Marechal irá convencê-lo. João, você vai ter de refrear sua veleidade.
- Tudo isso já passou. Reconheço as responsabilidades que tenho para com a minha coroa.
- Então está bem. Você deverá ser sempre justo. Pense em seu pai. Oh, ele tinha seus defeitos, mas, levando-se tudo em consideração, foi um governante bom e digno. O povo o aceitava porque ele era justo. Tente seguir o exemplo dele.
- Não vou seguir o exemplo de Ricardo, deixando meu país nas mãos de homens como Longchamp enquanto saio em busca da glória.
- Ricardo tinha uma missão. Ele jurara seguir numa cruzada. Considerava isso o seu primeiro dever.
João cerrou as mãos e ergueu os olhos, com ar piedoso, para o teto.
- Meu dever será para com o meu país. Eleanor olhou para ele com um olhar penetrante.
- João, esta é a fase mais importante de sua vida.
- Sei muito bem disso.
- Terá de caminhar com o maior cuidado.
- Também sei disso.
- Filipe deverá ser vigiado. Ele poderá tentar colocar Artur no seu lugar.
- A senhora acha que vou permitir?
- Temos de fazer com que isso não aconteça. João ficou calado por algum tempo. Depois, disse:
- Pobre Berengária. Ela parece fatigada.
- Ela sofreu muito. A morte de Ricardo foi um grande choque para ela.
- Eu estava pensando... será possível...? Se fosse, iria criar um problema...
Eleanor olhou para ele com um olhar penetrante.
- Você tem medo de que ela esteja esperando um filho de Ricardo.
- É uma possibilidade. Eleanor abanou a cabeça.
- Não é verdade.
- Mas é possível...
- Pensa que isso não me passou pela cabeça? Falei com ela. Não é possível.
João ficou profundamente aliviado.
- Então, nada há a temer... a não ser Artur - disse ele.
O bispo Hugh ficava cada vez mais apreensivo. Era de opinião que Artur teria sido a melhor escolha. Apesar de ser um bretão e ter sido criado, durante uma parte de sua fase de formação, na corte da França, ainda era um menino que podia ser moldado. Talvez João, como filho do falecido Henrique II, estivesse mais próximo do falecido rei Ricardo do que Artur... e no entanto, João era uma escolha incómoda.
O exame de seu passado devia fazer com que todos os homens da Igreja estremecessem. Deixando de lado suas proezas na Irlanda e sua traição ao pai, ainda restava a vida que levava. O afastamento, por parte do rei anterior, do ortodoxo em matéria de relações sexuais, era deplorável, mas não afetara seu reinado; ele nunca tivera favoritas que o influenciassem.
Hugh se mostrava surpreso com o fato de a rainha Eleanor, que era uma mulher muito sensata, e Guilherme Marechal, que sem dúvida alguma tinha o bem da Inglaterra no coração, pudessem ter deixado sua escolha recair em João. A linha de sucessão não era tão rígida que não pudesse ser alterada por conveniência. O filho de um rei era o seu sucessor natural, mas se o filho se mostrasse indigno, era perfeitamente aceitável escolher-se o candidato seguinte. Era um ponto discutível se o filho caçula de Henrique II ou o filho de um filho mais velho era o herdeiro do trono. Se Ricardo tivesse tido um filho homem, teria sido muito diferente. O que deixava Hugh alarmado era que o arcebispo de Canterbury acreditava que Artur teria sido uma escolha melhor e tinha sido vencido por Guilherme Marechal.
Claro que Guilherme Marechal era um homem com um forte senso de dever e servira o rei Henrique II muito de perto. Talvez se lembrasse de que o desejo de seu velho senhor era de que João fosse rei, e tivesse sido por isso que ele apoiava a reivindicação do filho mais moço, e não a do neto.
De qualquer modo, parecia que João seria o próximo rei, e eles deviam tentar tirar o máximo proveito da situação.
Hugh foi aos aposentos de João no castelo Beaufort e lá o encontrou com um ou dois de seus companheiros - jovens cujos gostos eram semelhantes aos dele.
O bispo perguntou se podia falar com João a sós. Os jovens lhe dirigiram um olhar insolente, e João hesitou; ele teria gostado de mandar o velho prelado embora, mas seu senso comum o avisou de que até aquela cerimónia de coroação era melhor mostrar-se cauteloso.
Fez um gesto com a mão e os jovens se retiraram.
- O que há? - perguntou João um tanto irritado.
- Amanhã é o Dia de Páscoa - disse o bispo. - O senhor, é claro, vai querer receber a comunhão.
- Eu, não! Não gosto disso.
O bispo ficou horrorizado, e João riu dele.
- Meu bom bispo, não comungo desde que pude me decidir quanto a esses assuntos, e não tenho intenção de comungar agora.
- O senhor agora é rei... - O bispo fez uma pausa e acrescentou, ominosamente: - Ou espera tornar-se rei. É necessário que o povo veja que é digno da coroa.
- E o que a comunhão tem a ver com a condição de rei?
- Acho que o senhor sabe. Para que governe bem, precisará da orientação de Deus.
- Eu não receio que não vá saber governar.
- Outros poderão ficar preocupados.
João semicerrou os olhos. Que insolência dos padres! Ele era rei, ou não? A resposta a esta pergunta era: "Não, ainda não."
Ainda não. Era disso que precisava se lembrar. Tinha de fazer com que aquela cerimónia se realizasse.
- Sei que tenho levado uma vida pecaminosa. Pretendo me modificar, agora que este grande fardo me foi colocado sobre os ombros, mas se depois de todos esses anos eu comungar, e são muitos os que sabem que me abstive disso durante anos, vão pensar que meu arrependimento foi muito repentino. Deixe-me voltar gradativamente à vida virtuosa. Se eu comparecer à missa solene, isso será o bastante, para começar. Mostrarei ao povo que estou começando.
- Deus saberá exatamente o que lhe vai no coração.
- Sem dúvida - respondeu João, de olhos baixos.
Não adiantava prosseguir na persuasão, refletiu o bispo. O tempo mostraria as atitudes que João iria tomar, e o povo iria aceitá-lo ou rejeitá-lo segundo elas.
Depois que o bispo se retirou, João tornou a chamar os amigos. Contou-lhes o que acontecera, imitando o bispo.
- Ele pensa que vai me governar. Vamos nos divertir com o senhor bispo, meus amigos.
Os amigos aplaudiram com estardalhaço; não teria sido prudente deixar de fazê-lo.
Eles estavam com ele na missa solene. João gostava de sua companhia, porque se sentia excessivamente ousado quando era necessário distraí-los com suas proezas.
Houve um detalhe que chocou profundamente Hugh, quando durante o ofertório João se aproximou sacudindo algumas moedas de ouro na mão e não as colocou no pires que ali estava para recebêlas, mas ficou parado olhando para elas.
Hugh disse, ríspido:
- Por que fica aí parado olhando para as moedas? João olhou para ele com desprezo.
- Eu estava pensando que há pouco tempo eu nunca as teria colocado em suas mãos. Elas estariam no meu bolso. Suponho que, agora, devo dá-las ao senhor.
Hugh ficou vermelho de indignação.
- Deposite-as no pires e vá embora - disse ele.
João hesitou por um instante e então fez como tinha sido solicitado, colocando as moedas, uma a uma, como se com a maior das relutâncias.
O bispo ficou zangado e profundamente perturbado com o fato de um futuro monarca poder portar-se daquela maneira na santa casa de Deus! Aquilo não era um bom agouro para o futuro, e ele se sentia indignado enquanto ia para o púlpito e se preparava para fazer o sermão. João estava sentado bem abaixo, e com ele estavam alguns de seus amigos dissolutos.
Seria possível, imaginou Hugh, fazer aquele jovem compreender que se não se portasse como um rei, nunca poderia ser um rei bem-sucedido? Ele cumpriria o seu dever e tentaria semear algumas ideias que poderiam dar frutos.
Hugh havia preparado um sermão para ser feito perante João, e pretendera fazer com que o ponto principal fosse o dever dos governantes para com o povo. Discorreu longamente sobre o assunto, salientando o desastre que poderia acontecer por causa de um comportamento descuidado e leviano. Um rei precisava ter um espírito elevado e tinha de colocar o bem do país acima de seus próprios prazeres. Nunca era demais salientar aquilo.
O bispo estava ciente dos murmúrios e das cutucadas que aconteciam nos bancos cativos, mas os ignorou, e quanto mais persistiam, mais ele tinha a falar sobre os deveres de um rei para com seus súditos.
- Um rei nunca deve esquecer que serve a seu povo sob a proteção de Deus...
Houve um muxoxo vindo do banco reservado de João, e quando um dos rapazes saiu em silêncio, Hugh ficou pasmo ao ver que ele estava se dirigindo para a parte traseira do púlpito.
- Senhor bispo - disse o jovem num sussurro audível -, o rei manda dizer que o senhor deve acabar imediatamente com o seu sermão. Ele está cansado dele e quer ir jantar.
Hugh, com a cor acentuada, continuou a pregar enquanto o jovem voltava para o seu banco.
Oh, Deus, pensou Hugh, o que será de nós?
Terminada a missa, Hugh saiu da igreja. Iria partir no dia seguinte. De nada adiantava ficar com o rei. Voltaria à Inglaterra e iria consultar o arcebispo de Canterbury e dizer-lhe que ele tivera razão quando sugerira que Artur seria um rei mais adequado.
No dia seguinte, o bispo de Lincoln se despediu de João.
João, os amigos ainda à sua volta, bradou:
- É uma despedida triste, bispo. Sempre me lembrarei do seu sermão dirigido a mim quando assumir a coroa.
Os rapazes riram com o riso sufocado, e João mal pôde conter uma gargalhada.
- Então, talvez ele não tenha sido em vão - disse o bispo com dignidade.
O bispo e seu séquito partiram a cavalo, e João entrou no castelo para saborear a carne de veado que estava sendo preparada para ele. À mesa, conversou com os amigos sobre as boas diversões que teriam. Eles veriam como era ser amigos fiéis de um rei.
Mas enquanto comemoravam, chegaram mensageiros ao castelo. Estava claro, pela aparência deles, que traziam más notícias. Foram levados imediatamente à presença de João, que teve um acesso de raiva ao ouvi-las.
Filipe estava a caminho; ele estava apoiando Artur e os bretões, e Constance, com o filho Artur e o amante Guy Thouars, estava chefiando um exército contra ele, João. Além do mais, ninguém oferecera qualquer resistência. Cidades tinham-se rendido; guardiães de castelos haviam se declarado em favor de Artur; e com o apoio do rei da França, a situação era perigosa. Evreux estava em poder de Filipe, e ele já estava no Maine. Além do mais, barões em lugareschave como Touraine e Anjou juravam fidelidade a Artur.
- O que posso fazer? - bradou João. - Que forças tenho aqui?
Precisava ir para a Normandia. Ergueu-se da mesa, deu ordens para que se preparassem e em pouco tempo seguia para Lê Mans, que ainda não caíra em mãos do inimigo.
João ficou surpreso por não receber as boas-vindas. O povo não o queria. Conhecia bem a sua reputação. Havia um garoto cujo pai vinha antes de João na sucessão direta
e era ele que o povo queria. Além do mais, o rei da França estava apoiando Artur. Não queriam João.
Foi uma noite intranquila que João passou em Lê Mans, e assim que rompeu a aurora ele estava pronto para sair dali, porque sabia como seria perigoso ficar. Filipe não estava longe dali, e o povo era hostil. Tornar-se prisioneiro de Filipe antes de ter sido coroado rei seria um desastre.
Artur, segundo João ficara sabendo, prestara fidelidade ao rei da França em relação a Anjou, Maine e Touraine. Que descaramento! Aqueles domínios lhe pertenciam. A Normandia estava a salvo. A Normandia tinha sido a orgulhosa possessão de seus ancestrais desde a época de Rollo.
O povo de lá seria fiel a João.
Ele devia seguir a toda velocidade para Rouen.
Como foi diferente em Rouen! O povo de lá o queria. Quando entrou na cidade, as pessoas foram saudá-lo. Aqueles eram seus súditos fiéis. Ali naquela cidade estava enterrado o bravo coração de Ricardo. Perto dali ficava o grande chateou Gaillard - o Castelo Atrevido de Ricardo. Era aquele território dos grandes duques que durante muitos anos haviam reinado, desafiando os francos. Todo rei da França queria tirar a Normandia dos normandos, e todo duque normando jurava que ele nunca iria toma-la. Aquela era a terra de Guilherme Longsword, Ricardo, o Destemido, e Guilherme, o Poderoso Conquistador. O povo da Normandia jamais apoiaria os que fossem apoiados pelos franceses.
O arcebispo de Rouen, Walter - ele tinha o mesmo nome do arcebispo de Canterbury -, foi imediatamente dar as boas-vindas a João.
- Majestade - disse ele -, é necessário que seja proclamado duque da Normandia sem demora. O povo está com o senhor. A última coisa que ele irá tolerar é o governo de um bretão, particularmente quando ele é, como muitos acreditam, o instrumento do rei da França. Aqui, vossa majestade é realmente bem-vinda e é o desejo de todos que a cerimónia tenha lugar sem demora.
João estava perfeitamente disposto a passar pela cerimónia tão logo quanto possível. O fato de Constance e seus amigos, inclusive o rei da França, estarem em marcha, o fizera levar o assunto a sério. Ele disse ao arcebispo, com uma seriedade que lhe era rara, que se colocava em suas mãos, ao que o arcebispo o abençoou e anunciou que a cerimónia teria lugar no domingo da Pascoela, que era o dia 25 de abril - dezenove dias depois da morte de Ricardo.
Na catedral, a pequena coroa decorada com rosas colocada na cabeça, João jurou sobre a Bíblia e as relíquias dos santos que iria defender os direitos da Igreja, que suas leis seriam justas e que ele acabaria com o mal.
O arcebispo prendeu a espada da justiça ao seu cinturão e apanhou a lança que tinha sempre sido usada pelos normandos em vez do cetro, como na Igreja da Inglaterra.
Enquanto a lança estava lhe sendo entregue, João ouviu os amigos soltando muxoxos perto dele e não pôde resistir e piscou para eles, a fim de garantir-lhes que ainda era o mesmo companheiro alegre e sem religião que havia compartilhado de suas brincadeiras e que estava apenas participando daquela solene cerimónia porque naquele momento tinha de satisfazer a vontade dos velhos; e porque sua cabeça estava virada, a lança que o arcebispo colocava naquele instante em suas mãos escorregou e caiu ao chão.
Houve um grito sufocado, de horror, de todos que presenciaram aquilo e um murmúrio suave espalhou-se pela catedral.
Naquele momento solene, a lança, o símbolo do poder normando que tinha sido passada e segura com firmeza por todos os duques da Normandia, caíra das mãos daquele.
Era um augúrio, e o que poderia ser senão um mau augúrio, com o rei da França em armas contra eles e alguns deles acreditando que Artur da Bretanha tinha mais direito à coroa ducal?
João se recusou a sentir-se deprimido pelo incidente. Mais tarde, iria rir-se dele com seus amigos.
Depois da cerimónia, houve boas notícias. A incansável Eleanor saíra de sua reclusão uma vez mais e se colocara à frente dos mercenários de Ricardo, chefiados pelo brilhante comandante Mercadier
- o que aplicara a terrível punição ao matador de Ricardo -, e estava fazendo com que os franceses e bretões recuassem do território que haviam conquistado. Enquanto isso, o povo da Normandia juntavase a João, e em breve ele estava pronto para marchar sobre Lê Mans.
João a tomou com facilidade e ficou exultante, lembrando-se da fria recepção que lhe haviam dedicado pouco tempo antes. Iria mostrar-lhes o que significava provocar a ira do rei João. Ele não era Ricardo, que só em raras ocasiões deixava o mau génio angevino assumir o controle. Iria mostrar às pessoas, desde o começo, o que deveriam temer se ficassem contra ele.
Queimou as casas. Todas deviam ser demolidas, berrava ele, e o castelo foi arrasado por completo, enquanto os cidadãos de destaque eram levados à sua presença.
- Os senhores foram muito inospitaleiros para comigo há pouco tempo - disse ele. - Foram muito arrogantes, pensando que o rei da França estava ao seu lado. Onde está ele agora? Digam-me. Ele os abandonou. Deixou-os à minha mercê. Agora, vão saber o quanto serei tolerante.
Os olhos se semicerraram.
- Coloquem-lhes os grilhões - rosnou ele. - Coloquem-nos nas masmorras mais escuras. Vamos deixá-los lá, onde poderão pensar no que significa rebelarem-se contra o rei João.
Os homens foram levados. Eles haviam ouvido histórias sobre a crueldade dele. Agora, iriam experimentá-la. Inflamado pelo sucesso, João bradou:
- O que fizemos com Lê Mans faremos com aqueles outros que se entregaram de livre e espontânea vontade à causa do rei da França e do pequeno Artur.
Mas seus conselheiros fizeram-no lembrar que a conquista de Lê Mans não tinha sido difícil porque o rei da França já havia partido, e se ele fosse marchar sobre Anjou, precisaria de um exército maior. Enquanto isso, devia ir à Inglaterra e, lá, deixar que fosse realizada a cerimónia de coroação, a fim de que pudesse mostrar ao mundo que ele era, de fato, o rei da Inglaterra.
João precisou de pouca persuasão. A guerra não o atraía. Sentia-se bem com a conquista. Gostara de aniquilar Lê Mans e de ter ficado com tanta raiva por causa da perfídia do povo para com ele, enquanto gostara intensamente de fazê-los pagar pela decisão de apoiar o lado errado.
Mas tornar a guerrear, fazer uma guerra que poderia arrastarse interminavelmente, pois Filipe era um adversário ardiloso, e Constance, ele sabia que iria encontrar muitos que apoiariam a causa de Artur, não o agradava.
Concordou em deixar a conquista de Anjou para o futuro. Partiria para a Inglaterra e para a sua coroação.
No dia seguinte à sua chegada a Londres, João foi coroado. Foi no dia 26 de maio. A abadia tinha sido decorada com panos coloridos. Dezesseis prelados, dez condes e um número enorme de barões abrilhantavam a cerimónia com a sua presença; como era o costume numa coroação, o arcebispo de Canterbury a presidiu. O bispo de York protestou, dizendo que a cerimónia não deveria ter lugar enquanto o arcebispo de York não pudesse estar presente; mas como ele não se encontrava ali, ficou decidido ofendê-lo, se preciso fosse, continuando a cerimónia sem ele.
O arcebispo falou aos presentes de um modo inesperado que pareceu uma justificativa da escolha de João e a exclusão de Artur.
- A coroa não é propriedade de ninguém - anunciou ele. Ela é a dádiva de uma nação que escolhe quem deverá usá-la. Pelo costume, em geral se trata de um membro da família reinante e um príncipe que seja muitíssimo digno de usá-la. O príncipe João é irmão do nosso falecido rei Ricardo, o único irmão vivo, e se ele fizer os juramentos que este alto cargo exige, este país irá aceitá-lo como seu rei.
João assegurou-lhes que estava pronto a fazer quaisquer juramentos que colocassem a coroa em sua cabeça.
- Jura manter a paz desta terra - perguntou o arcebispo -, governar com tolerância e justiça, renunciar aos maus costumes e ser guiado pelas leis daquele grande rei conhecido como Eduardo, o Confessor, leis que se mostraram benéficas para a nação?
- Juro.
O arcebispo preveniu João de que não deveria tentar fugir a suas responsabilidades e lembrou-o da natureza sagrada de seu juramento.
Assim, João foi coroado rei da Inglaterra, mas se recusou a receber a Santa Comunhão após a cerimónia de coroação, que era um costume daquele ato e era considerado como uma ratificação dos juramentos que o rei acabara de fazer.
Houve grandes festividades depois que eles saíram da abadia, e João e todos os convidados tiveram de fazer justiça aos vinte e um bois assados para a ocasião.
No dia seguinte, ele recebeu a homenagem dos barões.
Era, agora, realmente rei da Inglaterra e duque da Normandia.
CERCADO POR HOMENS sérios, um tanto intimidado pelas cerimónias de séculos, lembrando-se de histórias que ouvira de seus grandes ancestrais Guilherme, o Conquistador, Henrique, o Leão da Justiça, e mesmo das virtudes de seu próprio pai, Henrique II, João ficou temporariamente pronto a ser guiado.
Sua primeira tarefa foi receber Guilherme Marechal, para manifestar o seu agradecimento pelo que ele fizera e expressar a esperança de que Guilherme iria servi-lo da mesma maneira desinteressada com que servira seu irmão e seu pai.
Guilherme assegurou-o de sua lealdade, e João não pôde deixar de ficar impressionado na presença de um homem daqueles. Confirmou seu título de conde de Pembroke que passara a ele através de sua esposa, e mostrou-se pronto a ouvir os conselhos de Guilherme.
Guilherme estava satisfeito com o fato de a Inglaterra tê-lo aceitado; e de a Normandia também apoiá-lo. Iriam recuperar Anjou, prometeu a João. Quando um novo rei subia ao trono, sempre havia aqueles que achavam ter mais direito. O principal problema viria do continente, mas todos os reis, desde o Conquistador, tinham enfrentado aquela dificuldade.
Foi do norte da Inglaterra, no entanto, que veio a primeira ameaça.
Guilherme, o rei da Escócia, conhecido como Guilherme, o Leão, enviara mensagens dizendo que se João quisesse que ele mantivesse a lealdade que dera a Ricardo, ele, Guilherme, precisaria ser recompensado pela devolução de Northumberland e Cumberland à coroa escocesa. Diante do antagonismo de Filipe e dos exércitos sob o comando de Constance e Artur, João respondera em tom apaziguador a Guilherme, dizendo-lhe que se esperasse o seu retorno à Inglaterra, ele teria o prazer de atender a todas as suas reivindicações.
Agora que o rei voltara, Guilherme queria os territórios que reivindicara e enviou outra mensagem para dizer que se não fossem entregues imediatamente, ele ver-se-ia obrigado a toma-los.
Guilherme Marechal estava inclinado a achar que o rei da Escócia estava blefando e não tinha intenção de se envolver numa grande guerra, mas era importante que esta não acontecesse, pois a primeira tarefa de João era recuperar Anjou e a propriedade que Filipe lhe tirara.
- Ofereça-se para negociar com ele - aconselhou Guilherme.
- Mande-lhe um recado apaziguador, e enquanto o seu exército estiver se preparando para o continente, vossa majestade poderia encontrar-se com ele em algum lugar. O arcebispo de York poderia conduzi-lo através da fronteira, e vossa majestade poderia viajar até os condados centrais e vê-lo por lá. Vossa majestade não deve ceder. Converse com ele. Estabeleça condições. Seu pai era um adepto desse tipo de diplomacia.
João ficava irritado pelas referências frequentes que Guilherme fazia a seu pai, mas apesar disso tinha de aceitá-las. Não devia se esquecer de que Guilherme tinha sido útil à sua obtenção da coroa, e houvera oposição a isso. Não ousava ofender Guilherme Marechal... até que se sentisse mais seguro, é claro.
João escreveu ao rei da Escócia, como Guilherme Marechal recomendara, e foi combinado um encontro em Northampton. Quando João chegou àquela cidade, não havia sinal de Guilherme, mas uma exigência peremptória o aguardava, no sentido de que se os territórios não fossem devolvidos de imediato, o grande exército que estava nas fronteiras escocesas invadiria a Inglaterra.
João ficou num dilema. Como poderia assumir uma guerra no norte, quando tinha tanta coisa a recuperar no continente? Não era isso que ele pensara que fosse o papel de um rei. Guerras... guerras... guerras contínuas. Que prazer havia naquilo? Sempre pensara que o pai gostava de guerras... embora, pensando bem, Henrique II tivesse sido mais um diplomata do que um soldado. Certa vez, dissera que havia conseguido maiores honrarias negociando e vencendo o inimigo numa conferência do que jamais conseguira combatendo.
Era assim que João queria que fosse.
Ele teve um golpe de sorte, tão fora do comum que poder-se-ia desconfiar de que tinha sido inventado.
Guilherme da Escócia, pronto para invadir a Inglaterra, visitara um dos santuários de um santo escocês; e enquanto se ajoelhava nele, ouviu-se uma voz avisando-o de que não devia invadir a Inglaterra, pois aquilo iria levar a tristeza e o desastre à Escócia.
Aquilo teve o efeito desejado. Guilherme dissolveu seu exército e decidiu arquivar o assunto das províncias do norte. Aquilo não podia ter sido mais oportuno do ponto de vista de João, e ele pôde esquecer o problema na fronteira do norte e partir para o continente.
Joana, em companhia de Berengária, chegara a Rouen, onde pretendiam ficar algum tempo, já que a gravidez de Joana estava chegando ao fim. Foi uma época triste. As duas rainhas estavam dominadas pela dor pela morte de Ricardo, e sentavam-se juntas, conversando sobre as virtudes dele. Berengária se esquecia dos longos anos de desconsideração e só se lembrava do curto período depois do arrependimento dele, quando os dois tinham ficado juntos. Joana gostava de falar na época em que Ricardo atravessara com ela a Aquitânia quando ela estava a caminho da Sicília. Lembravase nitidamente do brilho do sol na armadura dele e do ar de nobreza com que ele montara seu cavalo.
- Parecia inevitável que Ricardo morresse jovem - disse Joana. - Não se podia imaginar Ricardo ficando velho.
- Talvez, com o tempo, eu tivesse tido um filho - disse Berengária. - Eu a invejo, Joana, por sua feliz condição.
- Amar nem sempre é uma condição feliz - consolou-a Joana. - Há angústias contínuas. Em Toulouse temos uma bela propriedade, terras férteis, criados fiéis e bons amigos. Mas há aqueles que nos perseguem porque não pensamos como eles, e por temermos que Roma esteja por trás dessas perseguições, temos medo. É por isso que estou aqui.
- Eu sei, Joana. Mas você tem seu marido, que a ama, o Raymond e o novo filho que em breve estará conosco.
- E Ricardo está morto. Meu adorado irmão... Jamais acreditei que ele não voltaria quando tanta gente pensava que estivesse morto. Que dia de júbilo quando Blondel voltou para nos dizer que o tinha encontrado! Desde que ele me levou para a Sicília, eu mantivera o pensamento positivo de que Ricardo estava ao meu lado. E que me protegeria. Entende, ele chegou à Sicília e eu sabia que assim que ele chegasse eu deixaria de ser prisioneira de Tancredo, e aconteceu. Meu adorado irmão e defensor! Ele nos teria salvo dos que agora nos perseguem... e ele se foi, e o que será de nós?
- Você tem o seu marido. Ele a protegerá.
- Ele é apenas o conde de Toulouse. Ricardo era o governante da Inglaterra e de seus domínios aqui. Às vezes, o peso dessa tragédia baixa sobre mim e sinto que a vida é mais do que posso suportar.
- Isso não é maneira de uma mãe falar - disse Berengária, num leve tom de reprovação.
- Tem razão, minha querida amiga e irmã. O que faria eu sem você?
- Nós estaremos sempre juntas. vou ficar com você, Joana, o tempo que você quiser.
- Sabe que irei sempre querer você, mas pode ser que encontrem um marido para você.
Berengária sacudiu a cabeça.
- Não quero mais saber de casamento.
Joana esteve a ponto de dizer que porque um casamento tinha sido um fracasso não significava que um segundo o seria, mas aquilo pareceria uma censura a Ricardo, de modo que ficou calada. Ele não fora tão bom marido para Berengária quanto um bom irmão para ela.
Naquela noite, as dores de Joana começaram. Continuaram o dia seguinte todo, quando ficou claro que nem tudo estava indo bem.
Os médicos ficavam sérios quando Berengária lhes fazia perguntas, ansiosa. A rainha Joana sofrera um grande choque quando da morte do irmão, e aquilo tivera um efeito adverso sobre a sua saúde. Ela devia ter descansado em Toulouse, em vez de viajar para Chaluz a fim de ver Ricardo.
Na manhã seguinte a criança nasceu, um pobre bebé doentio que evidentemente não estava destinado a viver mais do que alguns dias. Foi
batizado às pressas antes de morrer.
Joana resistiu algum tempo, mas em breve tornou-se evidente que não poderia ser por muito tempo.
Berengária ficou com ela durante o dia e a noite, pois Joana sentia um grande conforto com a sua presença.
- Estou morrendo, Berengária. Não, não negue. Sei muito bem. Vejo o anjo da morte me chamando. Podem me restar alguns dias, mas não mais do que isso. Tenho de me arrepender de meus pecados e me preparar para celebrar minha paz com o céu.
- Você teve uma vida virtuosa - confortou-a Berengária. Não precisa ter medo.
Mas Joana falava sobre sua mãe na paz de Fontevrault e disse ser de seu desejo que antes de morrer lhe fosse colocado um véu como se ela fosse uma freira de Fontevrault.
Joana tinha mais um pedido a fazer. Queria ser enterrada na abadia de Fontevrault, ao lado de seu adorado irmão Ricardo, a quem ela sobrevivera por um curto período. Os dois ficariam juntos, disse ela, aos pés de seu pai.
Assim, ela recebeu o véu no dia anterior à sua morte e depois seu corpo foi levado para Fontevrault, onde a rainha Eleanor o recebeu e atendeu aos desejos da filha.
Berengária, que foi ao enterro, sofria muito. A companheira de tantos anos, quando tinham estado juntas na Terra Santa e ela compreendera gradativamente a natureza do homem com quem se casara, partira para sempre. O futuro parecia triste à sua frente. Poderia ir para a corte do irmão ou para a da irmã. Nenhuma das duas lhe prometia grandes alegrias.
Quanto a Eleanor, ficara arrasada e pela primeira vez aparentava a sua avançada idade.
Não ficara amargurada como Berengária esperara; estava apenas resignada.
- Perdi os dois que eu mais amava - disse ela -, e isso no espaço de poucos meses. Minha vida acabou. O que me resta, agora, a não ser esperar a morte?
Ela adotaria um retiro completo. Ficaria em Fontevrault com os restos mortais do marido e de seus adorados filho e filha.
- Meu trabalho está feito - disse ela -, e nada mais me resta a não ser esperar a morte.
João, nesse ínterim, chegara à Normandia à frente de um enorme exército, e com uma ou duas escaramuças com o exército francês saiu-se vitorioso, o que levou a que se providenciasse um encontro entre ele e Filipe. O rei francês queria a Vexin para ele e Anjou, Maine, Poitou e Touraine para Artur, mas com um exército a apoiá-lo, João estava em condições de desprezar aquelas exigências. O resultado era a guerra. A grande sorte de João foi que Guilherme dês Roches, que comandava o exército bretão para Constance, Artur e Guy Thouars, não concordava com Filipe e houvera uma dissensão entre eles. Temiam tanto o rei da França e suas intenções quanto a Artur, que num momento de pânico decidiram colocar o menino temporariamente sob a proteção de João.
João ficou encantado. Achava-se em Lê Mans na ocasião e recebeu Guilherme dês Roches de braços abertos.
- Ah, meu bom senhor - disse ele -, agrada-me o fato de haver homens inteligentes no mundo. Este conflito com o meu sobrinho me parte o coração. Jamais desejei o mal do garoto. Quem dera que a mãe dele pudesse ser levada a compreender isso.
- Estou fazendo o possível para isso. O rei da França é traiçoeiro. Nunca confiei nele.
- Nem eu. Onde está Artur?
- Não longe daqui. Eu o trarei para vossa majestade, se me prometer protegê-lo até ele ficar a salvo do rei da França.
- Traga-o para mim bem depressa. Eu o protegerei com a minha vida.
No íntimo, João exultava. A loucura dos outros era sempre excitante. Iam mesmo colocar Artur sob a sua proteção! E Constance estaria com ele. Aquilo era muitíssimo divertido. Tinha de ser grato a Guilherme dês Roches por discutir tão violentamente com o rei da França a ponto de considerar Filipe a própria essência da vilania, comparado ao qual seus outros inimigos pareciam santos.
Da torre do castelo, João viu o grupo cavalgando em direção ao castelo: o jovem Artur entre a mãe e Guy de Thouars. Ele era o amante de Constance, claro. Aquilo era óbvio. Os olhos de João semicerraram-se ao pensar na diversão que ele poderia ter com aqueles dois, se surgisse uma oportunidade, mas sua preocupação principal devia, naturalmente, ser Artur, porque ele representava a grande ameaça à sua segurança e era o cerne do conflito entre eles.
Esfregando as mãos, João foi saudá-los.
- Minha querida, querida Constance! - bradou ele. - É um prazer vê-la. E Artur! Como você cresceu, sobrinho! Está um homem de verdade. E aqui está o visconde de Thouars, seu muito bom amigo. Eu lhe agradeço, senhor, por cuidar tão bem de minha cunhada e de meu adorado sobrinho.
Aquela mulher era desconfiada. Estavam ali contra a sua vontade, disso João estava certo. Constance jamais confiaria nele. Mas como ela ficara com medo do rei da França, a ponto de ter permitido que Artur fosse levado para ficar com João!
Artur era jovem demais para esconder o seu ressentimento. Sabia que João tinha sido coroado rei da Inglaterra, e o arrogante garoto achava que a honra deveria ter sido sua. Era de enlouquecer pensar que um número muito grande de pessoas concordava com ele. Garoto perigoso, esse!
Era por isso que João o receberia de muito bom grado.
- Nós desejamos ficar abrigados aqui por pouco tempo - dis, se Constance. - Nossa estada não será longa, mas se você nos der hospitalidade por uns tempos, ficaremos agradecidos.
- Não quero gratidão por aquilo que só pode me proporcionar um grande prazer. Entrem no castelo. Uma recepção está sendo preparada. Quero que saibam como estou feliz ao vê-los. Sempre deplorei o fato de haver conflito entre nós. Agora podemos falar como amigos sobre quaisquer diferenças que possam ter surgido entre nós.
Constance trocou olhares com Guy. Quaisquer diferenças! Só a usurpação de um trono! Como pôde ela ter permitido que Guilherme dês Roches a persuadisse a levar Artur para lá? Bastava ficar em companhia de João por instantes para que todas as suas suspeitas se manifestassem. Era evidente que Filipe da França teria sido a melhor escolha, muito embora houvesse discordâncias entre ele e Guilherme dês Roches. Ela tivera um grande receio de que Filipe fosse prender
Artur. Mas, e se João fizesse o mesmo? Constance ficou sabendo, então, que temia mais o rei da Inglaterra do que o rei da França.
Deram a ela um quarto magnífico, e Artur ficou com o quarto ao lado. Quando ficaram a sós, Artur disse:
- Meu tio parece muito delicado.
Ela sorriu com ironia.
- É quando ele fica mais delicado que eu menos confio nele.
Houve um arranhar na porta. Constance foi ate ela e abriu-a porta com cautela. Recuou, aliviada.
- Guy!
Guy levou um dedo aos lábios.
- Pode estar certa - sussurrou ele - de que haverá gente nos vigiando. Não gosto disso. Nunca deveríamos ter deixado que Guilherme dês Roches nos trouxesse até aqui.
- Mas estamos aqui agora - disse Constance -, e precisamos tirar o máximo de proveito disso.
Guy meneou a cabeça.
- Ouvi sussurros - disse ele. - João jamais deixará Artur sair daqui. A princípio, vai nos agradar com palavras doces, mas sua intenção é fazer com que Artur se torne seu prisioneiro.
- Isso não deverá acontecer, nunca! - bradou Constance.
- Também acho. Deus sabe o que aconteceria a Artur se ele caísse nas mãos daquele monstro.
Constance agarrou-se no braço dele.
- Oh, Guy, o que vamos fazer?
- Não vamos passar uma noite neste castelo. Dei ordens a homens em quem posso confiar. Hoje à noite, quando o castelo estiver tranquilo, vamos sair às escondidas para os estábulos, e os cavalos estarão prontos. Não vamos parar de cavalgar enquanto não amanhecer.
Constance encostou-se nele, os olhos semicerrados.
- Oh, Guy, como estou grata por você estar conosco!
A noite toda, eles cavalgaram em direção à Bretanha, onde poderiam sentir-se seguros por enquanto. com o alvorecer, foram descansar na residência de um cavaleiro em quem podiam confiar.
Antes de continuarem a viagem, Constance falou seriamente com Guy a respeito da perigosa situação em que Artur se encontrava.
- É estranho - disse ela - que tão logo vejo João, sinto o mal que há nele, enquanto que quando não estou junto dele posso ser levada a acreditar que ele não é tão mau quanto sei realmente que é.
- Nunca se esqueça - disse Guy - que ele receia que Artur tome o que ele quer, e que muitos acreditam que por direito pertence a Artur. Enquanto João viver, Artur jamais estará em segurança.
- Isso me deixa horrorizada. Quisera Deus que alguém o matasse, como mataram o irmão.
- Pode ser que isso aconteça, mas até lá, fiquemos em guarda.
- Não sei o que eu faria sem você, Guy.
- Você sabe que nunca precisará viver sem mim, Constance. Vamos nos casar.
- E o conde de Chester?
- Aquilo não foi casamento coisa nenhuma. Não há dúvida de que você poderia conseguir uma dispensa. Casamento que nunca foi consumado não é casamento.
- Guy, há um padre aqui. Ele nos casará. Então, saberei que nunca nos separaremos.
- É o que espero.
E assim, imediatamente após a fuga deles de Lê Mans, Guy e Constance participaram de uma cerimónia de casamento.
Quando João soube que Artur escapara, teve um tal acesso de fúria que ninguém teve coragem de se aproximar dele pelo resto do dia. Ele se jogou ao chão e rolou por entre os juncos, enfiando punhados deles na boca, rilhando os dentes de raiva e depois berrando para todo mundo o que faria com Artur e a mãe dele se tornassem a cair em suas mãos.
A rainha Eleanor sentia o peso da idade, o que não era de surpreender, considerando-se essa idade. Poucas pessoas tinham vivido tanto quanto ela. Dentro de dois anos, completaria oitenta anos. Houvera uma época em que pensara que seria imortal; mas desde a morte de Ricardo perdera aquela disposição e determinação de viver e perdera uma certa dose de força. Surpreendera-se com o fato de ter pensado em se instalar por algum tempo em Fontevrault e levar uma vida semipiedosa de reclusão. Como teria rido de si mesma, alguns anos atrás! Agora, aquilo parecia uma maneira muito interessante de passar o tempo que lhe restava.
Mas isso não aconteceria. A experiência a tornara sagaz, e ela era astuta por natureza. Vira de imediato a situação precária em que João se encontrava, em grande parte devido à existência de Artur. Ninguém podia estar mais cônscia das fraquezas de João do que ela, mas ele era seu filho e, na sua opinião, estava colocado à frente de seu neto. Portanto, iria fazer o possível para mante-lo no trono.
Seu dever lhe parecia claro. A vida pacífica em Fontevrault tinha de acabar, e ela precisava ir à Aquitânia, a fim de mante-la para João. Se não o fizesse, sabia muito tem que cairia nas mãos de Filipe.
O fato de chegar a relutar em ir à sua adorada terra natal a deixava assombrada; era só porque a fase de ser o centro das atenções acabara, e sabia que sentiria saudades de sua juventude... e até mesmo da época em que deixara bem para trás aquela atraente condição... e os jovens tinham composto suas canções em louvor à sua beleza com letra e música que vibravam de desejo pela dama da Aquitânia. Mas quem poderia, com toda honestidade, cantar canções desse tipo para uma mulher com quase oitenta anos?
Alguns poderiam, mas zombaria deles às gargalhadas, e eles logo iriam desistir.
A verdade era que Eleanor precisava voltar, jurar fidelidade a Filipe como vassala da França pela Aquitânia e tomar as rédeas uma vez mais... para ficar com elas até o momento em que pudessem ser passadas em segurança a João. Então, voltaria para Fontevrault, para aquela vida de tranquilidade e reclusão que de repente se tornara atraente para ela.
Eleanor andava muito aflita, pensando em como João conseguiria enfrentar o astuto e sutil rei da França, sobre o qual Ricardo exercera um certo encanto, e pensando, também, em como Filipe se sentia a respeito da morte de Ricardo. Como em todos os aspectos do relacionamento deles, deveria haver emoções contrastantes. Enquanto Ricardo vivera, não houvera chance alguma de Filipe recuperar aqueles territórios que tanto desejava; mas agora que João passara a ocupar o lugar de Ricardo...? Havia momentos em que era melhor não olhar demais para o futuro, em especial quando talvez não se estivesse vivo para ver a catástrofe. Mas a natureza de Eleanor era tal que, enquanto vivesse, faria tudo para evitá-la.
Chegaram mensageiros ao castelo, precursores de uma comitiva real à frente da qual estava seu filho João. De imediato, ela deu ordens para que se preparasse um banquete e subiu para uma torrinha a fim de ver a chegada. Não demorou muito e os viu aproximando-se e desceu para recebê-los.
Abraçou João com fervor, e juntos os dois entraram no castelo para que ela pudesse saber das notícias que o tinham levado até ali.
- Tive um encontro com o rei da França em Lês Andelys disse-lhe João - e há uma trégua entre nós. É isso que quero discutir com a senhora.
- Como é que achou Filipe? Mais tratável do que de costume, aposto - disse ela, um brilho nos olhos e uma emoção tomando conta dela ao se sentir uma vez mais no centro dos acontecimentos. Uma vida em reclusão para ela! Como iria suportar aquilo?
Eleanor se divertiu com os apuros em que Filipe estava. Que criatura complexa, ele; e o fato de ser filho do seu primeiro marido sempre fizera com que ela se interessasse por ele. Teria gostado de tê-lo como filho; e muitas vezes ficava pensando como um pobre monge como Luís conseguira fazê-lo. Filipe era inteligente; na verdade, Eleanor ficava imaginando se havia algum homem vivo que se comparasse a ele em agilidade mental. Era ambicioso, mas preferia fazer as conquistas pela diplomacia e por umas jogadas inteligentes do que através do combate, que no fim era a melhor maneira, se o resultado desejado pudesse ser obtido. Aquela fora a virtude do segundo marido de Eleanor. Henrique II tivera uma reputação de grande general e, no entanto, se pudesse evitar a batalha, a evitava. Isso Eleanor sempre vira como o segredo de seus sucessos na sua primeira fase. Filipe se parecia com ele nesse ponto. Ricardo... direto, vendo apenas um dos lados da questão... acreditara que a guerra era a arma decisiva. Muitas vezes era, e quando manejada pelo maior soldado do mundo, invariavelmente vitoriosa, mas só os astutos como Henrique II e Filipe com frequência atingiam seus objetivos com o mínimo de custo.
Como podia Filipe, que outrora amara Ricardo com tanta paixão, agora estar amando uma mulher? Mas devia estar apaixonado, para permitir que uma relação o afetasse politicamente.
Sua primeira mulher, Isabella de Hainault, morrera havia alguns anos, deixando-lhe um filho, Luís. Três anos depois da morte dela, Filipe se casara com Ingeburga, uma princesa da Dinamarca. Tão logo a cerimónia fora realizada, ele se tomara de violenta anti patia em relação a ela e recusara-se a viver ao seu lado. Como era o costume em casos assim com reis, Filipe armara imediatamente um caso de consanguinidade que tornaria o casamento nulo, e isso fora confirmado de imediato por um tribunal francês que não queria desagradar o rei.
Mas nem sempre era fácil livrar-se de uma princesa real, porque a família se unia em torno dela, e os papas, que com frequência eram cordatos quando um dos lados era importante e outro nem tanto, gostavam de ser um pouco mais cautelosos quando lidavam com realeza em ambos os lados. Assim, o papa Celestino impugnara a decisão do tribunal francês e proibira que Filipe tornasse a se casar. Duas princesas recusaram a honra de se tornar rainha da França por temerem não agradar a Filipe e terem um destino igual ao de Ingeburga; mas então ele conhecera Agnes de Meran, cuja beleza e graça o encantaram de tal maneira que ele se decidira, apesar do papa, a casar-se com ela. Fora o que fizera. Celestino poderia ter-se curvado diante de um fait accompli, mas seu sucessor, Inocêncio III, tinha princípios mais rígidos e, além do mais, estava decidido a exercer o seu poder. Escrevera a Filipe para dizer-lhe que sua conduta provocara sobre ele a ira de Deus e o trovão da Igreja, e se Filipe continuasse a viver com Agnes ele iria impor-lhe um interdito, o que significava que não haveria mais cerimónias e festivais religiosos na França.
Filipe ficara furioso e declarara que não daria importância ao papa. Dissera que havia pouco tempo estivera lutando na Terra Santa e que percebera que os sarracenos como o grande Saladino pareciam viver muito bem sem as bênçãos de Roma.
Era essa a situação na corte francesa, e Eleanor sabia que, embora Filipe pudesse aparentar fanfarronice, no íntimo sentia um certo receio... ainda que não exatamente sob o aspecto religioso; ele devia saber que entrar em combate sem a Igreja do seu lado teria o seu efeito sobre seus seguidores.
Por isso, agora Eleanor tinha um sorriso irónico, percebendo que Filipe estaria muito mais disposto a realizar uma conferência com João com o interdito ameaçando-o do que estaria se o caso fosse o contrário.
- Filipe estava pronto a ser razoável - disse João.
- Aposto que sim. No momento, ele tem o seu caso com o papa para ocupá-lo.
- Conversamos e chegamos a um acordo. Ele me aceitou como herdeiro de tudo que Ricardo possuía na França.
- Então devíamos festejar. Mas sem dúvida você teve de fazer concessões.
- Tive que abrir mão de Vexin.
- É uma pena, mas naturalmente ele iria querer alguma coisa.
- E concordei em pagar a ele vinte mil marcos.
Eleanor fez uma careta, mas uma expressão de astúcia surgira nos olhos de João. Concordar em pagar não era pagar, e ele não tinha intenção de cumprir aquela parte do trato. Filipe deveria estar bem preparado para isso, pois havia muito tempo já analisara o homem com quem estava negociando.
- E - continuou João - eis uma coisa que irá deixá-la satisfeita: minha sobrinha, sua neta Blanche, vai ficar noiva do jovem Luís.
Eleanor sorriu e fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- com que então a nossa pequenina Blanche vai ser a futura rainha da França.
- Eu sabia que isso iria deixá-la contente. Mas o melhor está por vir. Filipe reconhece que sou suserano de Artur.
- Ah! - disse a rainha. - Então você se saiu realmente bem.
- Há quem ache que dei coisas em demasia, e estão me apelidando de João Espada Doce. Pelo amor de Deus, se eu pegasse aqueles que zombaram de mim dessa maneira, eu os esfolaria vivos.
- Palavras não têm grande importância, e ao conseguir que Filipe concordasse com que Artur lhe prestasse vassalagem, você agiu muito bem. Blanche deve ser trazida de Castela antes que Filipe tenha oportunidade de mudar de ideia.
- vou mandar buscá-la.
- Não - disse a rainha. - Isso não é o suficiente. Viajarei até Castela e eu mesma irei trazê-la.
- A senhora... a senhora tem condições de fazer a viagem?
- O dia em que eu não for capaz de fazer o que sei que deve ser feito para manter o trono para meu filho, estarei pronta a me deitar no meu túmulo. Este dia ainda não chegou. vou me preparar para a viagem agora mesmo. - Os olhos dela brilharam de satisfação. - Ficarei muito contente ao ver sua irmã Eleanor. Só muito raramente vejo meus filhos, e assim mesmo por pouco tempo.
- A viagem será árdua.
- Meu filho, minha vida tem-se constituído em viagens árduas. Eleanor cumpriu a palavra. Fez preparativos imediatos para partir em direção a Castela e pouco depois estava a caminho.
João estava satisfeito consigo mesmo. Sabia que as pessoas o haviam comparado ao irmão Ricardo e sussurrado que lhe faltava a perícia do irmão para governar. Eles iriam ver. Ele já não fizera um trato com o rei da França? Não tinha conseguido dele a admissão de que ele, João, era o suserano de Artur?
Agora, era hora de se divertir, e nada melhor do que a caçada.
Reuniu os amigos íntimos, jovens ousados como ele, que aplaudiam todos os atos de João e faziam com que ele sentisse realmente que era o rei. Era bom cavalgar nas novas florestas e, depois da partida de Eleanor, ele passou dias caçando enquanto seguia para o norte, a caminho da Normandia. Tal como seus ancestrais, ele adorava a caçada, e participar do abate e ver um animal ofegante, encurralado, provocava-lhe um prazer tão intenso que só podia ser rivalizado por ver seres humanos num estado de terror semelhante.
João seguia na frente com um grupo nas florestas entre La Marche e a Angoumois, quando encontrou um grupo vindo na direção oposta. À frente se achava uma jovem muito bonita. Não podia ter mais de treze anos, mas ao olhar para ela aconteceu a João uma coisa que nunca ocorrera antes. Era a garota mais bonita que ele já vira, concluíra de imediato, opinião partilhada pelos demais; mas ela possuía mais do que beleza. Era elegante, arrogante, maliciosa... tudo da maneira mais atraente, e João sentiu um intenso desejo de agarrá-la e levá-la para longe.
Ordenou seu grupo a parar, e os cavaleiros se aproximaram dele.
- Digam-me - bradou ele -, de onde vêm e quem são vocês. O jovem que cavalgava ao lado da fascinante garota respondeu:
- Eu sou Hugh de Lusignan, filho do conde de La Marche, e devo perguntar o que estão fazendo no território de meu pai.
- Meu bom rapaz - disse João, luzes de raiva saltando-lhe para os olhos -, vou lhe dizer uma coisa: você pode ser o filho do conde de La Marche e dizer que esta terra é sua. Eu sou o duque de Aquitânia, sob cujo comando vocês detêm esta terra. Seria bom lembrar-se disso.
O rapaz saltou do cavalo e curvou-se acentuadamente para João, que recuperou o bom humor.
- Vamos, vamos - disse ele -, foi um engano fácil de cometer. Quem é essa senhora que você acompanha?
- Ela é minha noiva, meu senhor. Isabella, filha do conde de Angoulême, que está sendo criada em casa de meu irmão.
- Encantadora - disse João. - Encantadora, encantadora. Filho do conde de La Marche, diz você. Muito bem, um bom dia para vocês.
Com isso, seguiu em frente. Seus amigos ficaram assombrados. Eles tinham visto a expressão conhecida em seus olhos enquanto ele examinava a garota e tinham esperado que ele fizesse alguma coisa. Não teriam ficado surpresos se ele tivesse rechaçado os protetores dela e a raptado.
João estava pensativo... com uma intensidade fora do comum, e era claro que estava pensando na jovem.
Quando um dos amigos falou com ele, o rei não respondeu. Em vez disso, murmurou:
- O conde de La Marche. Quantos anos vocês acham que faltam para que o casamento se realize?
- A menina é muito jovem, majestade. Teria de ser, no mínimo, dois anos.
- Se um dia ele se realizar - disse João com um sorriso. Não conseguia tirá-la do pensamento. Sonhava com ela. Era ridículo, pois não passava de uma criança. E o olhara de maneira estranha, também. Não havia nada de infantil naquilo. Talvez estivesse excessivamente impressionada, pois devia saber que ele era não só o suserano de seu pai, mas o rei da Inglaterra.
Por que não podia parar de pensar nela? Via o rosto dela nitidamente, aqueles grossos cabelos encaracolados emoldurando o rosto oval e a expressão naqueles olhos maravilhosos, que era metade inocência e metade conhecimento. Que menina fascinante!
O instinto de João era levá-la para longe e seduzi-la sem demora. Estuprar, se necessário. Teria sido necessário?
Mas a filha do conde de Angoulême, a prometida do filho do conde de La Marche, não podia ser tratada como uma camponesa. Os Lusignan eram uma família poderosa. Poderiam levantar toda a Aquitânia contra ele, porque o povo não o queria, e ele sabia disso. Eles aceitavam sua mãe com satisfação, porque Eleanor era da região. Não fora criada lá como a herdeira da Aquitânia? Mas eles odiaram seu marido e seus filhos. Ricardo tivera de lutar de forma incessante para manter aquela terra rebelde. Por mais que deplorasse o fato de não ter agarrado a menina, João sabia muito bem que agira com prudência ao não fazê-lo.
Continuou pensando nela. Agora, nenhuma mulher poderia satisfazê-lo. Iria sempre ver a bela face obsedante da menina que parecia uma fada na floresta.
João não conseguia esquecer Isabella de Angoulême, e ocorreu-lhe que se já não tivesse uma esposa poderia fazer um casamento com Isabella. Havia certas justificativas para isso. Afinal, não havia dúvida de que o conde de Angoulême teria prazer em ver a filha ser a rainha da Inglaterra; e uma aliança daquelas iria, sem dúvida, alterar o antagonismo da Aquitânia para com ele, João. Claro que Isabella já estava noiva de um dos Lusignan, que eram uma grande família lutadora. Não ficariam satisfeitos, mas não era possível agradar a todos o tempo todo.
Quanto mais pensava em Isabella, mais João ficava decidido a se casar com ela, pois percebia que não podia raptá-la, levá-la embora e mante-la ao seu lado enquanto ela o agradasse, como se fosse uma menina sem uma família importante; e na verdade João jamais iria aproveitar os encontros sexuais com outras mulheres enquanto não satisfizesse o desejo por aquela menina.
Só havia um jeito de conseguir Isabella, e era pelo casamento.
Era verdade que estava casado nos últimos dez anos, já que pouco antes da coroação de Ricardo casara-se com Hadwisa de Gloucester a fim de apossar-se das ricas terras que ela possuía. Isso João fizera, e elas o transformaram num homem rico. Fazia muito tempo que não via Hadwisa; ela o abominava e isso tinha sido a única atração que João achara nela, e sentira um certo prazer ao impor suas atenções a ela só por aquele motivo. Se Hadwisa o tivesse desejado, João nunca a teria procurado. Mas, à medida que ela fora ficando mais velha e que o conhecera melhor, controlara a sua repulsa e isso não o agradara. Ela, no entanto, conseguira o que queria, porque ele raramente a vira nos últimos cinco anos.
Mas um rei tinha de pensar nos seus sucessores. João não queria ser como Ricardo e não deixar ninguém para segui-lo. Queria um filho homem, e a deliciosa e pequena Isabella deveria atendêlo... tão logo se livrasse de Hadwisa.
Como? Podia mandar envenená-la. Não, era melhor não mandar. Pareceria suspeito se se casasse com Isabella imediatamente depois, e João não queria demora no seu casamento. Afinal, ele e Hadwisa eram primos, e ela ficara muito preocupada com o parentesco e tentara evitar a consumação do casamento no início.
A maneira mais simples era um divórcio. Ou talvez mesmo isso não fosse necessário. João levantaria a velha acusação de consanguinidade. Isso não deveria ser difícil, porque afinal existia um forte parentesco entre os dois através de Henrique I, que era o bisavô de ambos, embora Hadwisa tivesse seguido pela linha ilegítima, pois a avó de João, Matilda, e o avô de Hadwisa, Robert de Gloucester, tinham sido meio-irmãos. Era um forte laço sanguíneo e, portanto, devia ser mais fácil dissolver o casamento.
Nenhum de seus ministros ousaria negar-lhe o divórcio. Mas o papa poderia causar embaraços, como estava causando em relação ao casamento de Filipe da França. Mas se Hadwisa concordasse, não deveria ser difícil. Então, ele estaria livre... livre para Isabella...
Assim que regressou à Inglaterra, dirigiu-se ao castelo de Marlborough, onde Hadwisa morava.
Ela desceu ao pátio para recebê-lo, como era o costume, e oferecer-lhe a última taça de bebida, que ele sempre fazia com que ela bebesse primeiro, para o caso de pensar em envenená-lo. Não que ele temesse realmente isso. Hadwisa não tinha ânimo; mas nunca se podia ter certeza quando se tratava de pessoas pacatas.
- Ah, Hadwisa! - bradou ele. - Espero que esteja bem.
Ela bebeu da taça sem que ele insistisse, e entregou-a a João.
Ele bebeu e jogou a taça fora. Ela bateu e rolou pelas pedras do chão enquanto João saltava do cavalo.
- Venha, Hadwisa. Tenho muita coisa a conversar com você - avisou.
Enfiou o braço no dela e gostou de senti-la tremer. Estaria ela pensando que ele fora para ficar e passar a noite com ela? Estava mais repulsiva do que nunca, agora que ele a comparava com Isabella. Mas João ainda podia sentir prazer em deixar que ela temesse o que a aguardava.
Poderia ser divertido atormentá-la só mais uma vez. Não, era melhor não fazer aquilo. E se ele a engravidasse? Não queria aquele tipo de complicação agora. Uma das desculpas para livrar-se dela seria a de que ela era estéril e era dever de um rei ter filhos homens.
Mesmo assim, seguiu na frente em direção ao quarto dela e esperou um pouco enquanto ela procurava se acalmar, fingir que não temia o sofrimento que a aguardava.
Mas João estava impaciente demais em relação a Isabella para sentir prazer em afligir Hadwisa. Seu único e grande desejo era, agora, livrar-se dela.
Sentou-se escarrapachado numa poltrona, as pernas esticadas, e olhou para as pontas das botas.
- Bem, Hadwisa, esse nosso casamento não foi grande coisa, certo? Você sabe por quê, não sabe? Para início de conversa, nunca deveríamos ter-nos casado. Os laços sanguíneos eram demasiado fortes. Nosso vigoroso bisavô deveria ter permanecido fiel à esposa e então, querida Hadwisa, você não teria nascido.
Ela curvou a cabeça. Não queria que ele visse as luzes da esperança que ela sabia que deviam estar brilhando em seus olhos.
- Quando me casei com você - prosseguiu João -, eu era apenas o irmão do rei. Parecia possível que Ricardo fosse ter filhos homens, que o povo fosse dizer que viriam na frente do irmão mais moço. Por isso, permitiram que eu me casasse com você que, embora tivesse um pouco de sangue real, o tinha adquirido de maneira dúbia.
- Eu era rica - lembrou-lhe ela com rispidez.
- Nisso você tem razão. Nosso bisavô foi generoso para com os seus bastardos.
- Pode ter acontecido que, como aconteceu com o neto dele, ele descobriu que eles o serviam bem, talvez até com uma lealdade maior do que os filhos legítimos.
No final das contas, ela possuía um certo espírito.
- Ora, eles tinham que ser assim. Seriam prejudicados se não fossem. Um filho legítimo tem direitos pelos quais um bastardo teria de bajular.
- Não posso acreditar que meu avô tivesse feito isso algum dia. Pelo que ouço falar dele, foi um cavalheiro muito nobre, e o rei sabia muito bem disso.
João fez um gesto de impaciência.
- Não vim aqui para falar sobre os méritos dos bastardos. Hadwisa, você conseguiu uma grande honra. Alguns poderiam dizer que você é uma rainha.
- A esposa do rei não é a rainha?
- Se ele decidir que sim. Lembre-se de que você nunca esteve na corte. Nunca esteve ao meu lado quando eu viajava. Não foi coroada comigo na minha coroação. É costume a rainha ser coroada com o marido. Será que isso lhe dá alguma ideia do que estou pretendendo?
Ele percebeu o coração dela bater com violência por baixo do corpinho. com esperança, acreditou ele. Oh, sim, ela queria livrarse dele. Ela o abominava. Poderia facilmente ter tentado envenenálo, se tivesse tido coragem. Hadwisa odiara, mais do que ele imaginava, as ocasiões em que voltava sua atenção para ela. João adoraria atormentá-la agora, mas estava demasiado impaciente para livrar-se dela.
- A verdade, Hadwisa, é que você não me deu um filho. Estou casado com você há dez anos e embora admita que você não tenha tido tantas oportunidades, houve algumas. Eu sou rei. Preciso de um herdeiro. Assim, já que não me pode dar esse herdeiro, me resta uma alternativa. Tenho de tentar com outra pessoa.
- Você quer declarar que o nosso casamento não existe - a voz dela era calma.
- Se isso não der certo, poderia haver um divórcio.
- Não haveria dificuldade alguma - disse ela, ansiosa. - O arcebispo de Canterbury foi muito contra o nosso casamento.
- Ah, sim, o velho Baldwin. Ele vociferou, não? O laço sanguíneo existe, Hadwisa.
- Neste caso, você deveria tornar a se casar, e quem sabe desta vez consiga herdeiros - falou Hadwisa.
Ela estava pensando: tenho pena de sua mulher. Mas o alívio devia, necessariamente, ser maior do que a piedade.
- Foi isso que vim lhe dizer. Creio que não haverá dificuldade em me liberar deste casamento. Já tomei as primeiras providências. Escolhi três bispos da Normandia
e três da Aquitânia. Não tenho dúvidas sobre qual será o veredicto deles. O papa não irá interferir, a menos que você faça um protesto contra a decisão.
- Pode confiar em mim - disse ela quase ofegante. - Não vou protestar. Ficarei feliz com a conclusão a que vocês chegarem.
- Então está tudo bem. - João se levantou e correu os olhos pelo quarto. Ele se divertira ali, mas não muito. Cansara-se logo do terror dela. - Adeus, Hadwisa.
- Adeus, João - respondeu ela num tom abafado, e nunca se sentira tão feliz por dizer adeus a uma pessoa.
João deixou o castelo muito bem-humorado. Isabella, Isabella, pensava ele. Em breve eu a terei.
Não devia ser óbvio demais. Tinha de esperar pelo veredicto dos bispos. João gostara de explicar-lhes, com hipocrisia:
- Pensei muito neste assunto. Hadwisa de Gloucester tem sido uma boa esposa, e me sinto hesitante em afastá-la de mim. Se eu não achasse que é vontade de Deus...
Os bispos o tinham olhado com um pouco de desconfiança, e ele viu que fora longe demais, e por isso prosseguira:
- Devo confessar que a sucessão é o que mais me preocupa. Preciso de um filho homem. O país precisa de um herdeiro. Quero cumprir meu dever para com o meu povo.
Os bispos pensaram no caso um pouco, mas não muito tempo. Era bom o rei acabar com o seu casamento estéril. Era verdade que quando um rei tinha um filho homem isso era a melhor coisa do mundo, pois o filho seguiria o pai no trono. Na ausência de um herdeiro direto, era invariável haver conflito. Acontecera havia muito pouco tempo, com João e Artur.
Os bispos decidiram - todos os seis - que seria bom para os súditos de João se ele se casasse com uma mulher que lhe desse um herdeiro.
João era um homem livre, e o papa, depois de toda a confusão que houvera quando ele se casara com Hadwisa e do fato de que os dois tinham sido proibidos pela Igreja de viverem juntos, não pôde fazer outra coisa senão concordar. O único detalhe que poderia fazer com que ele hesitasse teria sido se Hadwisa tivesse levantado alguma objeção.
João estava contente. Não havia perigo daquilo.
Ele agora se divertia ao fingir estar à procura de uma esposa. Não queria que ninguém soubesse que já encontrara. Iria descobrir, quando chegasse o momento, como seria bom para ele casar-se com Isabella de Angoulême.
Enquanto isso, João discutia com Guilherme Marechal a possibilidade de seu novo casamento.
- Ricardo fez bem ao se casar com Berengária de Navarra disse ele. - Navarra tem sido uma boa amiga de nossa casa. Eu gostaria de preservar essa amizade.
Guilherme Marechal concordou que aquilo era sensato.
- Mas Navarra está ameaçada por Castela e Aragão, porque as duas são aliadas do rei da França. Ora, pensei que seria uma boa política usar Portugal como aliado, o que poderia ser conseguido.
- Compreendo que vossa majestade está pensando na filha do rei português. Ela tem condições de se casar. É uma ideia excelente. Vamos enviar emissários a Portugal, imediatamente.
- Que se faça isso sem demora.
E assim foi; e quando ficou sozinho, João riu às gargalhadas ao pensar na agitação na corte portuguesa diante da perspectiva de uma aliança com o rei da Inglaterra, que possuía grandes domínios no continente.
- Não, minha princesa de Portugal - murmurou ele. - Não sirvo para você, e você não serve para mim. Só existe uma que servirá. Isabella.
FORA ALGUNS anos antes de João vê-la na floresta que Isabella se tornara noiva de Hugo de Lusignan. Ela nunca se esqueceria do dia em que os pais a mandaram chamar e explicaram que tinha sido encontrado um marido para ela e que a família dele queria que ela fosse morar com eles, para que pudesse ser educada segundo os modos que se esperava de uma Lusignan e aprender a amar o marido antes de se tornar sua esposa.
Na época, Isabella sabia muito pouco sobre o mundo fora da Angoumois, que seus pais governavam. De certo modo, ela os governava. Que era de uma beleza fora do comum tornara-se logo evidente para ela mesma. Isabella ouvia murmúrios sobre isso; via nos olhos das pessoas quando olhavam para ela; na verdade, ficava sempre um pouco chocada se as pessoas não reagiam à sua beleza, o que só em raras ocasiões acontecia. Talvez um velho bispo a considerasse uma criança comum. Pobre velho, pensava ela, acho que está um tanto cego.
Ela nunca perdia a chance de olhar a sua imagem refletida. Aquilo a deliciava, mesmo quando era muito jovem. Aqueles belos olhos compridos, com as grossas pestanas pretas; olhos que eram de um azul tão escuro que quase pareciam violeta; seus grossos cabelos pretos eram uma nuvem em torno do perfeito oval de seu rosto.
Ela nascera uma beldade, e continuaria assim até o fim de seus dias.
Era natural que houvesse um certo ar de arrogância. Sua mãe costumava lhe dizer:
- Nunca se esqueça de que descende dos reis da França e de que a corte francesa é a mais elegante e a mais intelectual do mundo.
Era natural que a mãe pensasse assim, porque era filha de Pedro de Courtenay, que era um jovem filho do rei Luís VI da França. Isabella sabia que a mãe se considerava em nível social mais elevado do que o do pai. Ele, no entanto, por ser conde de Angoulême, era um homem de influência e, por ser filha única dos dois, Isabella era muito importante para eles.
Quando era muito jovem, Isabella ficara sabendo que eles tinham tido a esperança de um filho homem; sentia-se contente por eles não conseguirem aquele filho, porque sabia que se conseguissem ela teria tido menos importância para os dois, e uma coisa que Isabella odiava era não ser o centro das atrações.
Acreditava que na corte de Angoulême ela era a figura mais importante, muito embora não passasse de uma criança. A mãe cuidava dela com o maior cuidado; o pai dava instruções a suas aias e governantas para que nunca a deixassem sozinha. Aquilo era um aborrecimento, mas como significava que estavam preocupados com ela, Isabella aceitava e ficaria desconcertada ao ver aquela vigilância reduzida.
Isabella estudava com afinco na sala de aula, porque tinha uma aptidão natural para aprender, e gostava que todo mundo soubesse como era inteligente. Queria ser a primeira em tudo. Não havia dúvida de que era a mais bonita menina que já se havia visto; mas também queria ser a mais inteligente. É verdade que precisava estudar um pouco mais para conseguir isso, mas era determinada e insistia em conseguir o que queria.
Falava-se muito de Ricardo Coração de Leão, que era duque de Aquitânia, da qual a Angoumois fazia parte. Isabella ficou sabendo que Ricardo era um grande soldado. Ele deixara seu país para ir à Terra Santa, numa tentativa de devolver Jerusalém aos cristãos, e o mundo parecia achar que ele era uma espécie de santo herói. O pai dela não pensava assim. Ele odiava Ricardo.
Isabella costumava ouvir a conversa entre o pai e a mãe, pois tinha permissão para entrar no quarto deles pela manhã e sentar-se na cama enquanto os dois se vangloriavam da bela filha. Aquilo a agradava muito; ela absorvia a admiração deles, mas ao mesmo tempo gostava de manter os ouvidos abertos a mexericos interessantes, e os dois não eram totalmente discretos em sua presença, achandoa criança demais para compreender. Mas, embora fosse criança, Isabella sempre podia arquivar aqueles comentários e pensar sobre eles mais tarde e fazer perguntas ingénuas que com muita frequência lhe davam a resposta de que precisava.
Isabella gostava de saber o que estava acontecendo.
Segundo seu pai, Ricardo era um suserano arrogante, e um rei que deixava seu reino para ir a outro país lutar, mesmo por uma causa santa, não era bom, e um mau rei não era um bom duque. Portanto, a Aquitânia era mal governada e o conde de Angoulême não iria jurar vassalagem a um homem daqueles. Ele preferia fazêlo ao rei da França.
Claro que a condessa concordava com o marido. Estava sempre pronta a se inclinar para o que fosse francês, o que era perfeitamente natural, já que se tratava do país em que nascera.
Sempre se falava muito sobre os Lusignan, uma família importante que vivia em Poitou, que fazia fronteira com a Angoumois. Em certa época, aquela família tinha sido um inimigo ferrenho dos duques da Normandia, mas seus membros eram grandes cruzados e na Terra Santa haviam tido contato com Ricardo Coração de Leão. Devido ao interesse comum, a inimizade desaparecera, e durante a Guerra Santa Guy de Lusignan e Ricardo Coração de Leão tinham ficado amigos tão íntimos, que Ricardo apoiara a pretensão de Guy de ficar com a coroa de Jerusalém, quando fosse recuperada, em oposição ao rei da França, que havia apoiado Conrad de Montferrat. Guy e Ricardo haviam lutado lado a lado, e em consequência a amizade se fortalecera, e isso se estendera a toda a família. Assim, os Lusignan de Angoulême estavam apoiando um lado diferente do de seu vizinho, na perene disputa entre os reis da França e da Inglaterra. Havia outra razão para a rivalidade e a discordância entre eles. As duas famílias visavam o rico território conhecido como La Marche, que ficava a leste da Angoumois.
Ricardo ficara intimamente satisfeito com o fato de que o desejo de possuir La Marche mantinha aquelas duas famílias poderosas desconfiadas uma da outra e, portanto, desviava seus pensamentos dos planos de incursões na vizinha Anjou.
Quando Ricardo morrera, Hugo de Lusignan, o filho mais velho da casa, conseguira, com grande temeridade, capturar a rainha Eleanor enquanto ela passeava a cavalo, e com uma ousadia ainda maior, declarar-lhe a intenção de mante-la prisioneira até que ela lhe desse La Marche.
com Ricardo morto e precisando de todo o seu tato e toda a sua habilidade para colocar João no trono, Eleanor havia cedido e comprara a liberdade em troca da entrega de La Marche.
O conde de Angoulême ficara zangado por Hugo de Lusignan ficar com aquilo que ele ambicionava; precisava ser acalmado, e os Lusignan tinham tido a inteligente ideia de que a melhor maneira de resolver as diferenças era por meio de um contrato de casamento.
Hugo estava na casa dos vinte anos, um jovem orgulhoso e forte, digno de ser o cabeça da família. O conde de Angoulême tinha uma filha. Ela ainda não fizera doze anos, era verdade, mas a sua falta de idade poderia ser remediada em breve. A cada semana que se passava, ela ficava mais perto da maturidade, e era apenas uma questão de esperar um ano, mais ou menos, para que estivesse pronta para o matrimónio.
Isabella sabia que alguma coisa se passava. Membros da família Lusignan se aproximavam a cavalo, e à sua frente estava Hugo. Isabella, observando de uma janela, viu-o chegar e, quando ele ergueu os olhos, sorriu para ele. Hugo ficou ali, de pernas separadas, encarando-a por alguns segundos, e ela ficou agitada porque sabia que ele estava pensando, como todo mundo, o quanto ela era bonita.
Sua mãe foi ao quarto de Isabella e dispensou as criadas.
- Tenho uma coisa a lhe dizer, Isabella - disse ela. - Ouça com cuidado. Uns senhores muito importantes estão nos visitando. Você vai conhecê-los e quero que seja muito amável para com eles.
- Por quê?
- Há um motivo muito especial.
- Que motivo?
- Você ficará sabendo quando chegar a hora.
- Mas se devo ser delicada de uma forma especial, quero saber agora.
- Você é muito criança para compreender.
Muito criança! Aquilo era absurdo. Não era muito criança para coisa alguma. Sabia de muita coisa. Ela ouvia; fazia perguntas; preparava armadilhas que levavam as pessoas a fazer admissões. Sabia a respeito das criadas que entravam no meio dos arbustos, quando escurecia, para se encontrarem com os criados. Ela mesma se escondera e ficara, a princípio, assombradíssima com as atividades deles, e embora as tivesse visto repetidas muitas vezes, aquilo sempre lhe agradava. Aquilo a excitava mais do que qualquer outra coisa que conhecesse. Por isso, não era, em absoluto, muito criança para saber por que devia usar de atrativos especiais para com os Lusignan.
- Tem alguma coisa a ver com o meu noivado? - perguntou, manhosa.
A mãe fitou-a, impressionada.
- Como soube?
- Porque a senhora disse que eu era muito jovem para compreender. Quando se é considerado jovem demais, em geral se trata de algo relativo a homens e mulheres juntos.
A menina é impressionante, pensou a mãe.
- O que você sabe a respeito dessas coisas, menina?
- Não tanto quanto gostaria de saber, é o que receio.
- Não há o que recear. Esse tipo de conhecimento chegará no devido tempo. Quando tiver um marido, saberá o que vale a pena saber.
- Então vou ter um marido? Quem é ele? Hugo de Lusignan? A condessa hesitou. Depois, disse:
- É. Você adivinhou. Isabella juntou as mãos e disse:
- Eu gosto dele.
- Então está bem.
- Ele é um homem bonito - bradou Isabella. - Ele olhou para a janela quando entrava no castelo e sorriu para mim. Acho que gostou de mim.
- Claro que gostou de você. Esperava que não gostasse?
- Claro que não.
- Agora você vestirá uma túnica que vou escolher e depois a levarei até o salão para apresentá-la a Hugo.
- Ele vai me levar com ele agora?
- É evidente que não, minha querida filha. Hugo irá conhecêla, e se gostar do que vir, haverá um noivado.
- E se eu não gostar do que eu vir?
- Você já disse que gosta dele.
- Mas, e se não tivesse gostado?
- Garotas nas suas condições devem casar-se com quem a família quiser.
- Então a senhora quer que eu me case com Hugo?
- Será bom para nossas famílias, se você se casar.
- É por isso que Hugo quer casar?
- Ele só vai querer casar se você for delicada para com ele e ele a achar bonita.
- Serei delicada e ele vai me achar bonita, porque todo mundo acha.
- Esse noivado vai agradar a seu pai. É muito importante que haja amizade entre nossas famílias.
- Então agora serei uma mulher casada - falou ela. Isabella estava pensando nos criados nos arbustos: agora, vou ficar sabendo. Suas observações a haviam ensinado que não eram só os criados que se portavam daquela maneira. Sua vez chegaria, e alguma coisa lhe dizia que iria achar o exercício altamente divertido e plenamente prazeroso, como era evidente que eles achavam. Mal podia esperar para dedicar-se àqueles prazeres.
- Minha queridinha, ainda vai faltar um ano ou dois.
- Um ou dois anos! Por que terei de esperar?
- Porque é apenas uma criança.
- Bess, a moça que trabalha na cozinha, é só uns meses mais velha do que eu...
- O que é que você está dizendo? Bess. Trabalha na cozinha! Querida Isabella, você não está prestando muita atenção em mim.
Mas era claro que estava, e Isabella sentia-se muito desapontada por ter de esperar pelo casamento.
Dedicou-se à tarefa de cativar Hugo. Era alto e parecia muito forte. Era maravilhoso. Um jovem muito bonito e, dissera sua mãe, um grande soldado. Ele a achou bonita; ela viu isso de imediato, pela maneira com que Hugo estava sempre olhando para ela. Ele colocou as mãos nos ombros de Isabella quando ela ergueu o rosto e deu-lhe um sorriso.
- Sua filha é realmente uma beleza, conde. Quisera Deus que fosse três anos mais velha - comentou Hugo.
Ela sentiu vontade de gritar: "Sou tão sabida quanto outras que são três anos mais velhas. Não sou uma criança... exceto na idade. Sei sobre o casamento e não quero esperar por ele. Esqueça que ainda não tenho doze anos."
Mas nem ela ousava dizer aquilo, com o pai e a mãe olhando.
A mãe lhe disse que podia ir para o quarto. Ela fez um muxoxo e perguntou se não podia ficar.
- Seu pai e nosso convidado têm negócios a discutir - foi a resposta.
Isabella tentou ficar por ali, mas a mãe a segurou pelo braço e a estava afastando delicadamente para longe dos dois homens, enquanto o pai e o futuro marido conversavam sobre a união entre Lusignan e Angoulême, o dote, quando o casamento seria realizado e o que aconteceria dali até o matrimónio.
Sua mãe foi até o seu quarto e sentou-se em sua cama. Isabella, corada pelo sono, ergueu-se. Como era bonita!, pensou a condessa. Não era de admirar que Hugo a tivesse achado irresistível e deplorado o fato de ser tão jovem.
- Você vai nos deixar, minha filha - disse a condessa com tristeza.
- vou me casar? - bradou Isabella.
- Quando chegar o momento. Primeiro, porém, vai sair de casa e passar para a de seu futuro marido.
- Quando, mamãe?
- Dentro de poucos dias. - A condessa sacudiu a cabeça, com ar triste. - com as filhas, é sempre assim. Elas têm de deixar a família com quem passaram a infância e ir para a que será delas o resto da vida. Você não vai nos esquecer, Isabella?
- Esquecer a senhora, mamãe! Como poderia eu fazer isso? E meu querido pai, também. Oh, não, nunca me esquecerei de vocês. - Atirou os braços em torno do pescoço da mãe, mas mesmo naquele instante estava pensando no corpo forte de Hugo de Lusignan e imaginando como seriam os abraços dele.
- Não deve ficar aborrecida, minha querida. Aborrecida! Ela era toda ânsia de ir.
- Verei a senhora e meu pai com frequência, certo, mamãe? Vamos ser vizinhos próximos.
- Temos de providenciar para que seja assim.
- Vamos, vamos. vou fazer questão.
A mãe de Isabella teve um sorriso carinhoso.
- Será como seu marido quiser - lembrou ela. Oh, não, pensou Isabella. Será como eu quiser.
Sorriu com complacência. Não tinha dúvidas de que conseguiria o que quisesse com Hugo, tal como fizera com os pais.
- Agora, temos de nos ocupar dos preparativos para sua partida. O inconveniente é haver tão pouco tempo.
Para Isabella, não havia inconveniente algum. Estava agitada.
Gostaria de saber quanto teria de esperar até que a considerassem com idade suficiente para se casar.
Em poucas semanas ela deixou o castelo do pai e foi escoltada pelos pais e alguns dos soldados até o castelo situado no coração do território dos Lusignan, entre Poitiers e Niort.
Os muros de pedra do castelo brilhavam ao sol, e embora Isabella tivesse visto outros castelos, havia naquele uma qualidade especial, porque ele iria ser o seu lar. Dentro daqueles muros, ela se tornaria esposa de Hugo de Lusignan, que também era conhecido como Hugo, o Moreno. Era rico, inteligente e forte. Isabella estava encantada com o noivo, e enquanto se dirigia ao castelo com os pais, estava decidida a provar a ele que, embora ainda não tivesse doze anos, sentia-se pronta para o casamento; podia ser inocente, mas não era ignorante. Podia ser virgem, mas estava ansiosa por se livrar daquele estado não muito excitante; e por já estar ciente de que as artes da sedução seriam uma segunda natureza sua, iria dedicarse à tarefa de fazer com que Hugo, o Moreno, esquecesse que ela não passava de uma criança, e estava esperançosa de que conseguiria.
A família de Angoulême teve uma recepção muito calorosa no lar ancestral dos Lusignan, e os presentes ficaram maravilhados com isso, uma vez que as duas sempre tinham sido inimigas naturais sempre lutando pela posse de La Marche, sempre tentando tomar um pequeno território uma da outra, procurando, ao que parecia, um motivo para brigas. E agora, por causa do noivado daquela bela criança com o filho do clã, tudo estava em paz.
Não havia dúvida de que era um momento para grande júbilo.
Isabella recebeu um pequeno grupo de aias só um pouco mais velhas do que ela; e Hugo declarou aos pais dela que naquela casa ela seria tratada com todas as honras. Ele ficaria ausente durante longos períodos, mas seu irmão Ralph tomaria o seu lugar na casa, e Ralph jurou à família que consideraria um dever pessoal fazer com que nada de mau acontecesse à noiva de seu irmão, cuja beleza e cujo encanto já haviam conquistado todos os corações.
A família de Isabella, embora triste por se separar da filha, partiu sem preocupações, sabendo que podiam confiar nos Lusignan naquele ponto de honra.
Enquanto seguiam de volta a Angoulême, os dois consolavam um ao outro.
- Isso tem de acontecer - disse o conde Aymer. - Todos os pais têm de enfrentar essa situação.
- Se tivesse havido outros, seria mais fácil suportar - replicou sua mulher Alice.
- Infelizmente, só tivemos uma filha.
- Mas isso a torna uma herdeira considerável - disse a mãe de Isabella - e se tivemos apenas uma, pelo menos a que tivemos deve ser a moça mais bonita do mundo.
- Você fala com um carinho de mãe que pode ofuscar ligeiramente a sua visão.
- Não, ouvi, dito por um dos Lusignan para outro... e não para que eu ouvisse: "Quando foi que você viu uma criatura mais perfeita? É assim que Helena de Tróia deve ter parecido aos que a cercavam."
Aymer soltou uma gargalhada.
- Espero que a nossa Isabella não cause tantos problemas quanto aquela mulher.
- Hugo já está encantado por ela. Estou certa de que ele vai querer apressar o casamento.
- Ele tem de esperar. Isabella não pode se casar aos doze anos.
- Nossa filha não é tão imatura quanto algumas crianças de doze anos.
- Não, minha senhora, não vou querer que ela seja forçada a ir ao leito matrimonial enquanto não estiver pronta para isso.
- Tem razão. Ainda deve haver uma espera de alguns anos. Mas talvez quando ela tiver quatorze.
- Veremos.
E assim cavalgaram de volta a Angoulême. Mas o castelo perdera algo com a partida de Isabella.
Isabella se dedicou a encantar sua nova família, e conseguiu de forma admirável. Hugo já estava apaixonado por ela e se impacientava contra a demora. Isso a encantava, mas não queria que ele soubesse. Achava uma centena de pequenos motivos para ficar perto dele, para apoiar-se nele, chamando atenção ao seu desamparo que, sabia ela, Hugo achava muito atraente; escolhia com cuidado as fitas para o seu cabelo que mais ficassem bem com a sua cor fora do comum e lhe destacassem a beleza de todas as maneiras. Não que uma coisa tão óbvia precisasse que chamassem a atenção para ela. Exultava por causa de seu belo rosto, seu pequeno corpo bonito, que a irritava um pouco porque lhe parecia muito lento no que se referia a atingir a maturidade.
Saltitava nua diante das garotas que a serviam e queria saber se já não estava um pouquinho mais crescida do que no dia anterior. Comparava-se com elas e queria saber se tinham amantes. Aquelas que tinham mereciam suas atenções; ela lhes dava fitas para adornarem os cabelos antes de mandá-las para seus encontros amorosos; e o pagamento desses favores significava que ela queria uma descrição detalhada de tudo que tivesse acontecido.
Era a adorada patroazinha delas; era diferente de todas as outras a que haviam servido.
- Que esposa a senhora será para o Sr. Hugo! - declaravam elas.
- Sim, sim - bradava ela, impaciente. - Mas é só espera, e já estou pronta.
Estava obcecada pelo assunto. Dizia às jovens que Hugo ficaria tão louco por ela que iria insistir para que o casamento se realizasse o mais rápido possível.
Elas riam e diziam que aquilo não seria difícil. Hugo já estava a meio caminho daquele estado e elas juravam que ele não insistia no casamento só porque tinha medo de ofender os pais dela.
Todo dia, Isabella dava um jeito de estar com Hugo; seus olhos se iluminavam ao vê-lo, e ela se atirava nos seus braços, o que não era muito apropriado, mas ele parecia esquecer-se disso. Apertavao bem pelo pescoço e comprimia o rosto no dele.
- Não é uma maravilha, Hugo, que um dia você e eu iremos nos casar?
- Nunca desejei tanto uma coisa - disse ele, empolgado.
- Você gostaria que eu não fosse tão criança?
- Acho que você está perfeita tal como está.
- Mas eu não estaria mais perfeita se estivesse em idade de casar?
- Não se pode melhorar a perfeição - lembrou-lhe Hugo. Isabella acreditava que a sua juventude fazia parte da atração que Hugo sentia por ela. De certa maneira, ele não queria que ela crescesse. Queria mante-la como estava - pura, pensava ele, intocada pelo mundo, o que significava que ainda não tivera relações com um homem. Que Hugo a desejava, Isabella não duvidava; e no entanto, queria que continuasse como era.
Que coisa contraditória! Talvez ela ainda tivesse alguma coisa a aprender sobre a maneira de ser dos homens.
Era essa a situação na época do encontro na floresta. Isabella não conseguia esquecer o homem que a olhara com tanta atenção. Que ele a achava bonita, era óbvio, mas aquela era uma reação bem comum. Houvera mais do que isso. Ninguém tivera aquele efeito sobre ela antes. Sabia por instinto que se estivesse sozinha na ocasião, se fosse, talvez, a filha de um madeireiro ou de um silvicultor, ele não teria hesitado um só momento. Tê-la-ia agarrado ali mesmo. Estava ciente de uma sensualidade avassaladora naquele homem, o que faltava a Hugo; era uma qualidade, ou talvez se devesse dizer vício, que compreendia perfeitamente porque agora sabia que ela mesma a possuía. Desejara, embora num pensamento fugaz, durante aqueles primeiros momentos na floresta, que tivesse sido uma humilde camponesa.
Aquele homem a desejara de uma maneira como Hugo jamais desejara, e as experiências que teria tido com ele seriam diferentes de qualquer outra que teria com Hugo.
Ele não era bonito como Hugo, que era alto, ombros retos, maxilar forte e olhar penetrante; era um lutador. Aquele homem era diferente. Não era muito alto; não devia ter mais de um metro e setenta. Havia muitos homens que não eram mais altos, mas o estava comparando com Hugo. Faltava-lhe a nobreza que ela admirara em Hugo; sua boca era sensual; os olhos, um tanto travessos; era moreno e trigueiro... não, de forma alguma bonito. Mas era rei... rei da Inglaterra, duque da Normandia, conde de Anjou... era um homem muito importante, muito mais do que Hugo, que tivera de saltar do cavalo e mostrar que estava na presença de alguém que se achava muito acima dele.
Rei da Inglaterra! E como olhara para ela! Hugo nunca a olhara daquele jeito, mesmo nos momentos em que o abraçava e se atirava contra ele, aparentemente sem malícia, mas no íntimo o desejando, ele nunca a olhara daquela maneira.
Ficara ali sentada sobre o cavalo, o capuz azul - a cor das verónicas era muito boa para ressaltar o azul de seus olhos - pendendo de seus cabelos, a capa flutuando à sua volta - um belo quadro, disso ela sabia.
Como o rei olhara para ela! Como ninguém o fizera até então.
Depois, ele se fora. Hugo ficara calado, e Isabella não conseguira tirá-lo daquele estado de espírito com todos os seus estratagemas.
- Fale-me sobre aquele homem - pediu ela.
- Ele é João da Inglaterra.
- E duque da Normandia e conde de Anjou.
- Ele tem muitos títulos.
- Ele não é exatamente bem-apessoado.
- Tem uma reputação terrível.
- Como assim?
- Ele fez coisas que estão além de sua compreensão.
- Você quer dizer... com mulheres?
- E outras pessoas.
- Ele foi cruel na guerra?
- Deve-se ter medo dele - respondeu Hugo. - Um homem deve pensar duas vezes antes de ofendê-lo.
Os dois ficaram em silêncio enquanto cavalgavam de volta para o castelo. Todo o interesse pela caçada os abandonara.
Isabella sonhou que havia se encontrado com João sozinha na floresta; em seus sonhos, via o rosto dele se aproximando mais e mais... faminto, exigente, lascivo.
Acordou com medo e desejou que tivesse continuado a sonhar.
Nunca mais voltarei a vê-lo, pensou, e não sabia se ficava contente ou triste.
Pensou em Hugo, tão bonito, tão forte. Seria um bom marido delicado, e não teria dificuldade em conseguir o que quisesse dele. Sorriu para si mesma ao perceber como iria mandar nele.
Por que Hugo não percebia que estava na hora de eles se casarem?
Contou a suas damas o encontro com o rei João. Elas sussurraram coisas sobre ele. Que histórias tinham ouvido a respeito dele! Quando era rapaz, tinha ido para a Irlanda. Mas tivera de sair de lá; passava o tempo zombando dos nacionais e estuprando as mulheres deles.
Isabella ouvia, com avidez.
- Se eu estivesse sozinha na floresta quando o encontrei... começou ela.
As damas soltaram gritos de horror e a fizeram calar-se.
- A senhora nunca deve ter permissão para sair sozinha; e mesmo o rei João teria de respeitar a sua posição.
Ela ficou em silêncio, imaginando a situação.
As jovens ficavam impressionadas com a obtusidade daqueles que a cercavam, em especial do conde Hugo.
Não viam que estava na hora de o casamento realizar-se? Ela era jovem, mas moças com o seu comportamento precisavam casar cedo.
UMA DELEGAÇÃO chegara de Portugal. João a recebeu com aparente ansiedade. Achou muita graça ao perceber como os membros da embaixada estavam agitados diante da perspectiva de uma união entre os dois países.
E com razão. A filha do rei de Portugal ser a rainha da Inglaterra, ou assim pensavam eles! Como iriam estar enganados! E as despesas com a recepção a eles oferecida e as do envio de uma missão a Portugal, em retribuição, valiam o prazer que ele obtinha com a situação. Era bom, também, ser procurado; mostrava que era temido, e ser temido era ser respeitado.
O rei da Inglaterra podia se casar; uma notícia daquela provocaria um tremor de excitação entre homens ambiciosos com filhas casadouras. Como sentiriam inveja do rei de Portugal... por enquanto.
- Meu senhor - bradou ele -, tenho uma enorme satisfação em recebê-los aqui. Creio que a filha do rei será uma admirável esposa para mim. Estou ansioso pelo dia em que irei recebê-la aqui, e por isso vamos tomar essas providências de imediato. Mandarei uma delegação a Portugal a fim de que as negociações possam prosseguir com toda a urgência.
A delegação preparou-se para voltar a Portugal acompanhada dos membros da comitiva de João que iriam complementar os acordos, a fim de que o casamento pudesse realizar-se dentro em pouco.
Enquanto isso, João mandou chamar Guilherme Marechal, para conversar sobre assuntos relativos à Aquitânia que o afligiam um pouco.
A rainha Eleanor voltara recentemente da Espanha, para onde viajara a fim de apanhar a neta Blanche. A viagem à Espanha tinha sido árdua, mas ela sentira um grande prazer ao rever a filha Eíeanor, rainha de Castela. Eles tinham ficado encantados ao entregar a jovem Blanche aos seus cuidados, pois o casamento da menina com o herdeiro do rei da França seria realmente uma glória.
Blanche era uma menina bonitinha e obediente; daria uma boa esposa, pensou Eleanor, que acreditava que Filipe iria gostar dela. Mas como Eleanor sentira os rigores da viagem! As dores reumáticas em seus membros haviam aumentado e aleijado-a, e ela estava zangada com os anos que se passavam e que lhe haviam levado a juventude. Durante aquela viagem, muitas vezes pensara na que fizera com Luís, seu primeiro marido, quando ela era jovem, atraente e muito ambiciosa. Um passado tão longínquo! Tanta coisa acontecera desde então! Ela não iria querer voltar e viver tudo outra vez; mas queria desfazer-se da rigidez dos membros e livrar-se daquele cansaço perpétuo.
Foi uma viagem difícil. Ela confiara muito em Mercadier, que estava encarregado de sua escolta; ela sempre gostara dele, porque ele admirara muito Ricardo, e durante a viagem os dois estavam sempre falando sobre o filho que ela mais adorara; ela cantava canções de Ricardo para ele e as acompanhava ao alaúde. Mercadier tinha outras tantas recordações de Ricardo e tinha histórias dele para contar que ela nunca ouvira antes.
Eleanor disse a ele:
- Oh, meu bom amigo, você não sabe o quanto aliviou essa viagem de grande parte do seu tédio. Quando me fala sobre Ricardo, sinto-me jovem outra vez. Posso vê-lo muito nitidamente ainda criança, na minha ala infantil. Ele sempre me defendia, não importava quem estivesse contra mim, e me lembro de uma ocasião em que correu para o rei, seu pai, os punhos cerrados, e socou-o porque achava que o pai me tratara com injustiça. Era esse tipo de filho que ele era para mim, naquela ocasião e sempre.
Mercadier contava-lhe alguma proeza em combate, e os dois ficavam tristes juntos.
E então um dia - foi na semana que começou com a Páscoa, quando eles estavam descansando em Bordeaux - Mercadier foi à rua e não voltou.
Eleanor se sentiu doente, velha e cansada quando lhe deram a notícia. Ele era um homem fanfarrão, um típico mercenário para quem a vida de soldado era o ganha-pão e o significado da vida. Envolvera-se numa briga com um cavaleiro que servia a outro capi tão mercenário. Os dois haviam bebido juntos, blasonado juntos e discutido juntos; e isso fora o fim de Mercadier. No calor da luta, seu oponente sacara a espada um instante antes de Mercadier. Este estava morrendo, esvaindo-se em sangue, sobre as pedras do pátio de uma estalagem.
- Meus velhos amigos estão morrendo à minha volta - bradou Eleanor. - É muito triste envelhecer.
Não sentia ânimo para a viagem. Veria a neta casada e voltaria para Fontevrault, e lá viveria o resto de seus dias, que não podiam ser muitos, e não ficou contrariada ao pensar nisso.
João fora encontrá-la em Bordeaux, onde Filipe e Luís se juntaram a eles e os dois jovens se haviam casado. Foi uma cerimónia emocionante. Blanche estava muito engraçadinha e mostrava todos os sinais de que iria se tornar uma mulher bonita, e Luís era um rapaz de porte nobre.
O casal voltou para a corte da França com Filipe, e havia amizade entre os reis da França e da Inglaterra.
- Não há nada que solidifique mais uma amizade entre dois países do que um casamento real. Estou muito velha para essas excursões, agora. Vou voltar para a abadia, para descansar um pouco.
- Vá - disse João -, e sou capaz de jurar que em pouco tempo a senhora estará com o vigor de sempre.
Ela teve um sorriso cético e os dois se despediram um do outro.
João estava pensando na partida de Eleanor para Fontevrault e chegou à conclusão de que aquilo poderia ser um motivo para fazer uma viagem passando pela Aquitânia, a fim de confirmar, ali, a fidelidade que os vassalos daquela área lhe deviam e fazer com que eles soubessem que ele estava de olho neles.
- Desconfio de que os Lusignan não são tão leais quanto eu gostaria que fossem - disse ele a Guilherme Marechal.
- Eles agora têm La Marche; devem estar contentes - replicou Marechal.
- Contentes! Quando é que gente como eles fica contente?
Além do mais, fizeram uma espécie de trégua com o conde de Angoulême. Pelos olhos de Deus, eles poderiam unir forças e atacar Anjou.
- Não tenho dúvidas de que nossos exércitos iriam dominálos em pouco tempo, se eles viessem com um truque desses.
- Talvez. Se os pegássemos a tempo. Mas é melhor evitar esses levantes e isso pode ser feito avisando-os de que estamos vigiando. Já é hora de eu percorrer a vizinhança e receber novos votos de vassalagem de homens como os condes de La Marche e Angoulême.
Guilherme Marechal concordou que nunca era um erro o suserano visitar seus vassalos, e, agora que havia uma trégua com Filipe desde o casamento do jovem Luís com Blanche, aquele parecia um bom momento para isso.
- A delegação deverá estar chegando a Portugal muito em breve - lembrou-lhe o Marechal. - Vossa majestade talvez queira ficar pronto para isso e talvez, depois de seu casamento, visitar aqueles estados.
- Acho que este é um assunto de certa urgência e um rei deve colocar o dever acima do prazer.
Quando João se tornava hipócrita, o Marechal ficava um pouco contrafeito. Mas não podia atinar com uma razão para que João quisesse passar pela Aquitânia, a não ser o dever de manter os barões de lá em perfeita ordem.
- Para falar a verdade - prosseguiu João -, é esta trégua entre Angoulême e La Marche que me deixa um pouco inquieto. Espero que essa amizade entre eles não dure muito. Prefiro vê-los brigando do que unidos.
- Pode ser uma amizade forte - disse Guilherme Marechal -, porque a filha de Angoulême está noiva de Hugo, o Moreno.
- É verdade, eu soube. Ela é uma criança, não é? Algo pode acontecer antes do casamento se realizar.
- Não falta muito para ela atingir a idade casadoura, e já está sendo criada com os Lusignan.
João sacudiu a cabeça e murmurou:
- Nunca se sabe. Às vezes, esses casamentos não se realizam. De qualquer modo, vou até lá e eles poderão fazer seus juramentos. Vai fazer com que eles se lembrem de que estou de olho neles.
- E quando vossa majestade voltar, não tenho dúvidas de que faremos os preparativos para o seu casamento.
- Eu também não - respondeu João, um sorriso curvando-lhe os lábios.
Isabella viu os mensageiros chegando ao castelo e ficou imaginando que notícias traziam. Desceu correndo para o pátio, acompanhada por duas de suas criadas. Elas
se mantiveram afastadas e ficaram vendo os cavalariços levarem os animais enquanto os mensageiros eram levados para o salão.
Hugo estava lá.
Isabella correu para ele e pegou-lhe a mão. Ele apertou a dela com afeição e, apesar de estar ansioso por ouvir as notícias, teve tempo de lhe dirigir um sorriso.
- Senhor de La Marche, o rei da Inglaterra está a caminho - anunciou o mensageiro. - Estará aqui antes do fim do dia. Ele quer assegurar-se de sua vassalagem e vai querer que o senhor faça os juramentos outra vez.
- Ele está vindo só a mim? - perguntou Hugo, assombrado.
- Não, meu senhor. Ele está visitando todos os castelos dessas redondezas. Para poupar o tempo dele, ele deseja que o senhor envie uma mensagem ao conde de Angoulême. O rei quer que ele faça o seu juramento aqui no seu castelo, para que o rei não precise fazer a viagem até ele.
- Assim será feito - disse Hugo.
Isabella tirou a mão da dele. Voltou-se e saiu do salão correndo e foi para o quarto, que ficava adjacente ao ocupado pelas damas. Elas foram correndo para lhe dar a notícia que ela já sabia.
- Senhora, senhora, o rei João está vindo para cá. Isabella não quis falar com elas, o que era estranho. Queria ficar sozinha.
O rei estava indo para lá. Ela tornaria a vê-lo... o homem que encontrara na floresta e do qual nunca se esquecera. Os dois iriam ver-se outra vez. Como seria ele, dessa vez? Iria lançar-lhe o mesmo olhar da floresta? Por que estava indo para lá? Para fazer Hugo prestar o juramento. Isabella teve a ideia de que poderia haver outro motivo. Poderia ele estar indo para vê-la?
Não, nem mesmo Isabella podia acreditar. Por mais que fosse bonita, ele era um rei e devia fazer com que seus vassalos jurassem fidelidade de vez em quando. Havia uma razão perfeitamente boa para a visita dele. O rei se lembraria dela, Isabella estava certa, mas bem poderia ter-se esquecido do encontro na floresta.
Independente do que fosse, mal podia esperar para vê-lo.
Correu para o alto do castelo, a fim de tentar ver um grupo se aproximando. Como ele viria? com pompa real, é claro, com bandeirolas tremulando. Estaria à frente dos homens; entraria no território, e Hugo teria de estar lá esperando. Pobre Hugo, tinha pouca importância comparado àquele homem. Ela gostara de ver como Hugo era senhor de seu castelo e da maneira de seu pai falar nele como se tivesse uma grande importância. Ficara emocionada ao pensar no poder que Hugo exercia sobre tanta gente. E com ela, era delicado e cordato, e conseguiria dele o que quisesse; o que quisesse, iria conseguir engabelando-o. Isabella sabia, e exultava com isso. E agora surgira aquele homem... aquele rei da Inglaterra, diante do qual Hugo tinha de se ajoelhar. Ele era o todo-poderoso, o senhor supremo.
Aquilo era excitante; aquilo era emocionante. Que fita ela devia usar nos cabelos? Ele chegaria lá à noite. Haveria uma festa no grande salão. Talvez ela tocasse o alaúde para ele e cantasse uma canção... seria uma canção de amor e ânsia, que Hugo dizia, delicado, que ela cantava como se soubesse tudo a esse respeito.
No castelo, comentava-se: "Lady Isabella está mais bonita do que nunca. Está muito agitada com a perspectiva de rever os pais."
Foi como Isabella pensara. O rei chegou com a maior das pompas. Os arautos anunciaram a sua chegada e o som de suas trombetas provocou arrepios de emoção no corpo de Isabella. Ela decidira não usar fitas nos cabelos e soltou-os pelos ombros; vestia um vestido longo de veludo azul, preso em sua pequenina cintura por um cinto de ouro.
Ela estava no salão quando ele entrou. Só pelos trajes, teria sabido que ele era o rei. João usava a costumeira túnica folgada, presa à altura do pescoço, com mangas largas em cima e presas no pulso, mas o tecido daquele traje era o mais fino que ela já vira. Era seda decorada com ouro. João vestia uma capa de púrpura real que, como a túnica de seda azul, era enfeitada com fios de ouro. O cinturão que segurava a túnica à cintura brilhava com magníficas jóias, e jóias ele usava nos dedos, na garganta e nos pulsos. Isabella nunca vira um homem brilhar tanto, e ficou encantada por aquelas belas pedras preciosas.
Hugo estava fazendo uma mesura para ele, mas Isabella viu os olhos do rei percorrerem o salão até irem pousar nela.
Ela se apressou a fazer uma mesura, abaixando os olhos, e quando os ergueu viu que os olhos dele estavam fixos nela e a expressão deles era a mesma que ele lhe dirigira na floresta. Isabella teve a noção, então, de que ele fora até lá não tanto para aceitar a fidelidade de Hugo e dos pais dela, mas para vê-la. Ela o ouviu dizer:
- Quem é aquela garotinha?
- Ela é Isabella - respondeu Hugo -, filha do conde de Angoulême, minha noiva, que está sendo criada neste castelo.
- Apresentem-na a mim - disse o rei.
Isabella adiantou-se; os olhos brilhando de emoção, as faces ligeiramente enrubescidas.
A mão de Hugo estava sobre seu ombro, pressionando para baixo, dando a entender que ela devia ajoelhar-se.
Isabella se ajoelhou e então sentiu as mãos do rei nela, erguendo-a.
- Ora - disse ele -, é uma menina muito bonita. Você é um homem muitíssimo afortunado, Hugo.
Os olhos dele a queimavam, dizendo algo que ela não compreendia por inteiro e, no entanto, ao qual podia responder.
Hugo empurrou-a delicadamente para o lado e conduziu o rei aos aposentos que tinham sido preparados para ele. Isabella foi para o quarto dela, suas aias agitando-se à sua volta.
- O que a senhora acha do rei? - sussurravam elas.
- A reputação dele não mente.
- Senti um arrepio quando ele olhou para mim.
- Não o vi olhando para você - disse Isabella, ríspida.
- Olhou, senhora, antes de achá-la. Depois ele não tinha olhos para ninguém, a não ser para a senhora.
Ela soltou uma gargalhada.
- Vocês acham que ele é tão maldoso quanto dizem?
- Mais ainda - foi a resposta.
- Venham me preparar para o banquete. Será um banquete como nunca tivemos antes. Não é muito frequente receber um rei aqui. - Mal podia esperar para tornar a vê-lo.
No salão de banquetes, ele se sentou ao lado de Hugo. Estava contente, disse ele, por Hugo estar, agora, de posse de La Marche.
- Oh, você nos desafiou, meu bom Hugo - disse o rei, em tom de brincadeira. - Como teve a ousadia de aprisionar minha mãe e depois obrigá-la a abrir mão de La Marche?
- Pareceu a única maneira de obter uma decisão, majestade.
E prometo que é melhor seus territórios viverem em paz do que lutarem uma guerra perpétua um com o outro.
- E o senhor tomará as providências para que haja paz aqui, senhor conde. Fez bem em fazer uma trégua com Angoulême. E onde estão o conde e a condessa? Não foram avisados de que eu queria que se apresentassem?
- Eles chegarão amanhã, majestade. É o mais cedo que podem chegar. Mandaram avisar que partiriam logo após receberem suas ordens.
- Então está bem. Posso descansar aqui e gozar de sua hospitalidade durante alguns dias, em vez de fazer a enfadonha viagem até Angoulême. Ah, vejo ali a sua pequena futura esposa. Ela é encantadora. vou mandá-la sentar-se ao meu outro lado, e isso mostrará a todos a alta estima em que o tenho. - Fez um gesto para Isabella e ela foi postar-se de pé à sua frente, curvando-se de uma maneira muitíssimo deliciosa. Ele tivera razão. Nunca vira uma garota como aquela. Doze anos. Como seria quando estivesse com dezoito? João sabia, por instinto, que ali estava uma garota que poderia dar prazeres que ele jamais conhecera antes. - Venha, minha queridinha, sente-se ao meu lado - disse ele.
Segurou-lhe a mão, os dedos ardentes apertando-a com firmeza. Atraiu-a para si e a manteve assim por um instante.
- Não deve ficar excessivamente impressionada com alguém que lhe deseje tão bem quanto eu. Venha, sente-se.
Suas mãos a tocaram enquanto ela se sentava.
O veado assado foi cortado. Como o nobre de mais alta categoria presente, Hugo ficou atrás da cadeira do rei para servi-lo. Aquela cerimónia agradou ao rei, porque havia momentos em que Hugo tinha realmente que se ajoelhar diante dele. Era bom a pequenina ver o homem que tinham escolhido para seu marido ajoelhar-se diante de alguém que era tão superior. João sabia que o poder era um dos mais potentes ingredientes da atração sexual com certas mulheres. Muitas, que de outro modo eram virtuosas, tinham-se rendido a ele porque era o filho do rei, irmão do rei e, mais tarde, o rei. A posição podia ser um poderoso afrodisíaco. Ele apanhava guloseimas de seu prato e as dava à bela criança ao seu lado. De vez em quando, olhava para Hugo.
- Vê, meu caro senhor, como estou decidido a homenageá-lo. Terminada a refeição, os menestréis tocaram. Isabella tinha sido ensinada a gostar de música e aprendera a cantar e tocar, e quando perguntaram a João se gostaria de ouvi-la cantar para ele, o rei respondeu que aquilo lhe daria um grande prazer.
E assim, Isabella cantou para ele uma canção de amor e ânsia. Pelos ouvidos de Deus, pensou ele, eu não iria querer sair nunca da cama se ela fosse colocada nela.
Doze anos. Que idade deliciosa! E ainda não conhecera um homem. Ele seria o primeiro. Tinha de ser. Estaria pronto a dar muita coisa em troca daquela garota.
Quem dera que fosse filha de um cavaleiro pobre que ele estivesse visitando, para que pudesse dizer: "Sua filha me agrada. Ela partilhará minha cama esta noite."
Aquilo era diferente. E se a raptasse? Teria toda a Aquitânia levantando-se contra ele. Angoulême iria unir-se aos Lusignan e seria o caos completo. Teria de possuí-la, e iria possuí-la, mas teria de ser mais sutil.
A canção terminara.
- Espero que lhe tenha agradado, majestade - disse Isabella.
- Raramente me deliciei tanto - foi a resposta.
É verdade, pensou ele. E ela está excitada. Que paixão existe naquele corpinho delicado, que começa a despertar. Tarefa minha, meu bom Hugo, não sua. Essa menina será minha companheira de cama... e em breve, pois vou ficar louco se houver uma demora muito longa. Eu a quero agora, enquanto está com doze anos, intocada e, no entanto, ansiosa por ser tocada. Que combinação de prazer me aguarda!
Os pais dela estariam lá no dia seguinte. João teria uma proposta a lhes fazer.
Outras pessoas cantaram. Elas o deixaram enfadado. Ele observava Isabella. De vez em quando, os olhos dos dois se encontravam; sorria para ela e era retribuído.
Como a espera era maçante!
João se retirou para dormir, e Isabella foi para o quarto dela. Praticamente não dormiu. Ficou pensando nele a noite toda.
No dia seguinte, Isabella caminhou pelos jardins do castelo com suas aias. Ergueu os olhos e o viu numa janela, observando-a. Sentiu um arrepio, muito embora estivesse fazendo calor e sol.
Quando subiu a escada de pedra em direção a seus aposentos, o rei estava esperando, junto à porta. Não havia mais ninguém à vista.
- Isabella - murmurou ele.
- Majestade!
João estendeu a mão, e ela colocou a sua na dele. Então, foi agarrada e apertada de encontro ao rei. Quando as mãos dele acariciaram seu corpo, Isabella começou a tremer.
- Você me excita como nunca me senti excitado antes. Eu a excito?
- Excita, majestade.
João a beijou, então, repetidas vezes. Ela estava ofegante, mas não fazia tentativa alguma de protestar ou fugir.
- Você é afetuosa. Eu sinto isso. Está ansiosa por experimentar as doçuras da vida.
- Oh, estou, majestade! - murmurou ela.
- Até agora, nenhum homem a conheceu. - Então, ele riu e sussurrou: - Não vai demorar muito. O prazer a aguarda.
- Majestade, estou ouvindo alguém na escada.
- Está, mesmo? - respondeu ele. - Então, temos de nos separar... e você será minha, não se esqueça.
- Estou noiva de Hugo.
- Lembre-se disso. É costume os reis terem o que desejam, querida. E este rei está mais determinado do que a maioria a ter o que deseja.
João a soltou, e então ela correu para o quarto. Olhou para as marcas na pele onde ele a beijara.
Sabia que algo de muito excitante estava para acontecer.
Os pais de Isabella chegaram no dia seguinte. Ficaram muito encantados ao vê-la.
A mãe quis saber se ela estava feliz na família Lusignan.
- Muito feliz, mamãe. Todos são bons para mim.
- E você está se portando como gostaríamos que se portasse, filha?
- Acho que sim, mamãe. O pai a abraçou.
- Os Lusignan estão encantados com você - disse-lhe ele. Hugo me contou. Você é uma boa filha.
- Sim, papai. O rei da Inglaterra está aqui.
- É por isso que fazemos esta visita.
- É, Hugo me disse.
- Deixaram você ver o rei?
- Deixaram. Sentei-me ao lado dele no jantar. Depois, cantei para ele. Ele foi muito encantador.
- Isso é bom. Espero que não tenha sido muito ousada.
- Parece que o rei não achou isso.
Os pais visitaram os aposentos dela e falaram com as jovens que a serviam. A condessa quis se assegurar de que eram adequadas a servirem a filha.
Depois, dirigiram-se para o salão onde vários outros chefes de famílias nobres estavam reunidos para que pudessem jurar fidelidade ao rei seu suserano.
Quando a cerimónia terminou, João disse que gostaria de caminhar nos jardins e convidou o conde e a condessa de Angoulême para acompanhá-lo.
Disse que estava encantado com a amizade entre a casa deles e a dos Lusignan.
- É sempre bom ver terminadas essas disputas entre famílias - comentou ele.
- Foi uma excelente ideia unir as famílias através do noivado de Hugo, o Moreno, e nossa filha - concordou o conde.
- Ah, sua filha. Ela é encantadora. A condessa sorriu.
- Ela tem sido admirada pela beleza desde quando era mais ou menos um bebé.
- Ela é uma pequena feiticeira. Eu lhes digo: sua filha me lançou um feitiço.
Os pais sorriram deliciados, mas as palavras seguintes de João desfizeram rapidamente o sorriso.
- Tanto assim que eu a quero para mim, e não vou descansar enquanto ela não for minha.
O conde e a condessa pareciam ter ficado mudos, porque não conseguiam encontrar palavras que expressassem o choque e o assombro.
- Os senhores estão perplexos com a honra que eu lhes faria. Sua filha é a criança mais encantadora que já vi. Está pronta para o casamento. Nunca vi outra tão madura e pronta para ser colhida. Meus caros conde e condessa, os senhores irão abençoar o dia em que mandei que viessem à fortaleza dos Lusignan. Pois ali vi sua filha e no instante em que bati os olhos nela... o que aconteceu num encontro anterior, na floresta... me apaixonei por ela. Eu a quero e irei tê-la, e os senhores irão dá-la para mim com o máximo de prazer.
Foi o conde que falou primeiro. Parecia-lhe que o rei tinha ficado louco. Ele ouvira histórias sobre o seu terrível mau génio, sobre como agredia as pessoas ou qualquer coisa que estivesse em seu caminho, animada ou inanimada, sobre como ele se atirava de um lado para outro e era capaz de causar dano a si próprio se não houvesse outra pessoa em quem pudesse descarregar sua fúria. Aquilo devia ser um prelúdio para a loucura. Mas agora o rei parecia bem calmo.
- Sim, eu quero Isabella. Quero tanto que estou disposto a enfrentar tudo e todos para obtê-la. Ela será a rainha da Inglaterra. O que pensa disso, senhor conde?
- É uma grande honra, majestade, mas minha filha está noiva de Hugo, o Moreno.
- Hugo, o Moreno! O inferior conde de Lusignan! Eu estou oferecendo uma coroa à sua filha. Duquesa da Normandia, condessa de Anjou, rainha da Inglaterra. O senhor não é bobo, conde.
- É uma honra com que nunca sonhamos - disse a condessa.
- A senhora conhece uma boa perspectiva quando a vê. Estou tão enamorado de sua filha que arriscarei tudo para conseguila, pois assim que a vi fiquei sabendo que tinha de tê-la para mim.
- Mas ela ainda não passa de uma criança, majestade.
- Isabella não é uma criança comum. Existe uma mulher naquele adorável corpo imaturo. Minha mulher.
- Isabella sempre foi muito admirada. Sabemos que possui uma beleza excepcional. Vossa majestade nos dá uma enorme honra, mas o noivado dela...
- Bah! Isso não é nada. Os senhores irão levá-la hoje... de volta a Angoulême. Irei com os senhores e lá me casarei com ela sem demora.
- Os Lusignan jamais permitirão que ela vá.
- Os senhores têm de pedir a permissão deles para o que fazem peio bem de sua própria filha?
- Nessas circunstâncias, teríamos de pedir. Majestade, sua admiração por ela foi observada, e estamos no coração do território dos Lusignan. Parece certo que eles jamais permitiriam que a levássemos hoje.
João ficou calado por uns instantes.
- Já sei - disse, depois. - Vamos partir hoje, deixando Isabella aqui. Então, daqui a uma semana, os senhores irão perguntar aos Lusignan se eles permitem que sua filha os visite por alguns dias. Os senhores estiveram com ela e se sentem muito saudosos. Eles não podem fazer objeção a que pais desejem uma visita da filha.
- E depois, majestade?
- Eu irei a Angoulême e lá me casarei com Isabella. Como sabem, posso fazer isso. Então, em vez de ser a condessa de La Marche, sua filha será a rainha da Inglaterra. Vamos, bons conde e condessa, os senhores verão que é muito mais lucrativo aliarem-se à casa de Anjou e Plantageneta do que aos Lusignan. Sua filha jamais os perdoaria se tentassem estragar suas chances.
- É em minha filha que estou pensando - disse a condessa.
- Ela é uma criança. Já se acostumou a Hugo de Lusignan e já se resignou com o fato de que vai casar-se com ele.
- A senhora verá que sua filha está contente com a mudança.
- João soltou uma gargalhada. - Posso lhes prometer isso.
Então, eles entraram no castelo juntos e o conde e a condessa de Angoulême disseram a seu anfitrião que precisavam partir. Havia negócios reclamando sua atenção em Angoulême.
Despediram-se da filha e partiram.
No dia seguinte, o rei deixou o castelo e saiu na direção oposta. Ele se despedira rapidamente de Isabella. Ela ficara à sua frente no salão, e de repente João a erguera e a beijara na boca. E sussurrara:
- Voltaremos a nos ver em breve.
Depois, a recolocara no chão e, num comentário para aqueles que se achavam a seu lado, dissera que achava as crianças encantadoras. Como, pensou Isabella momentaneamente zangada, se fosse uma criança a ser acariciada. Mas se lembrava das palavras dele e do breve abraço que tinham tido no dia anterior, e percebeu que ele estava fingindo para aqueles que os observavam.
O rei se afastou a cavalo, e ela estava com a multidão que, nos portões do castelo, ficou observando; depois, subiu a uma torrinha para a última visão da comitiva.
O castelo parecia muito enfadonho depois que os convidados partiram. Estava ele sendo sincero quando disse que os dois voltariam a se encontrar em breve?
Todos, no castelo, pareciam estar falando nele. Isabella desceu à cozinha para ouvir a conversa de lá. Os criados sabiam de muita coisa.
Ficou sabendo que o rei fora chamado de João Sem Terra pelo pai, ao nascer, porque havia muitos irmãos mais velhos para dividirem as possessões do rei. João tinha ido para a Irlanda, onde chocara os nacionais de lá com o seu comportamento alucinado. Tinha vários filhos ilegítimos. Sua fraqueza eram as mulheres, e para ele nunca havia mulher suficiente. Tinham percebido as roupas dele? Todas aquelas jóias! O pai dele jamais fizera questão de roupas bonitas; tinha as mãos de lacaio, porque se recusava a usar luvas; comia em pé, de modo que ninguém ia saber que era o rei. João era diferente. Vestia-se com finas roupas e jóias. Sempre queria que ninguém tivesse dúvidas, a partir do momento em que o visse, de que ele era o rei.
A visita tinha sido a mais emocionante que a família já recebera. O rei Ricardo fora amicíssimo da família, devido às cruzadas; agora, era bom pensar que o rei João mantinha excelentes relações com ela.
Mas ouvir falarem sobre ele era um fraco consolo para sua ausência.
E o que iria acontecer, agora? Ele iria embora e se esqueceria dela. Iria mesmo? A maneira de olhar para ela e de segurá-la devia significar alguma coisa. Mas ele gostava de todas as mulheres.
Os dias se passaram. Nada de divertido acontecia.
Pouco depois da partida do rei, Hugo teve que sair para resolver uma revolta na fronteira de seu território. Despediu-se de Isabella e a beijou com ternura.
- Dentro em breve nos casaremos - disse ele. - Começo a pensar que apesar de sua idade poderemos realizar a cerimónia. Quanto à consumação...
Hugo não completou, e ela não procurou lembrá-lo, como fizera em outras ocasiões, de que não era tão criança quanto todos pensavam.
- Meu irmão Ralph vai assumir minha posição no castelo. Diz ele que seu primeiro dever será protegê-la.
Isabella ficou vendo Hugo se afastar, sentindo muita tristeza, pois apesar da impressão que João lhe causara, ainda se sentia profundamente atraída por Hugo. Na verdade, ocorrera-lhe desejar que Hugo fosse o rei. Que belo rei ele teria sido!
Poucos dias depois da partida de Hugo, chegou uma mensagem do conde e da condessa de Angoulême. Estavam com saudades da filha e gostariam de saber se Hugo permitiria que ela lhes fizesse uma curta visita.
Com Hugo ausente, Ralph não viu motivos para não conceder aos pais de Isabella o que pediam.
Dentro de poucos dias, cercada por uma comitiva considerável, Isabella cavalgava para Angoulême.
Isabella recebeu com prazer a mudança. Seria agradável estar em casa por um curto período. Sentia-se um pouco deprimida, pois suas damas viviam falando sobre João desde a sua visita, e ela ouvira bastante a respeito de suas muitas amantes.
Seria possível que o rei tivesse se portado com ela como se portava com todas as mulheres atraentes? Seria realmente verdade que ela, por ser tão jovem e inexperiente em relação ao mundo, tivesse acreditado que havia algo de especial no tratamento que João lhe dispensara?
Em pouco tempo iria descobrir a verdade. Ao se aproximarem de Angoulême, ela viu um grupo de cavaleiros a distância e reconheceu o rei à frente deles. A excitação tomou conta dela enquanto João galopava em sua direção.
Ele conduziu o cavalo até perto do dela e encarou-a.
- Eu receava ter imaginado tanta beleza - disse ele. - Mas não, você é ainda mais bonita do que nos meus sonhos.
- Majestade, fico satisfeita por lhe causar prazer...
- Nunca houve um prazer como o que nós dois vamos ter juntos - disse-lhe ele. - Quem dera que o sacerdote tivesse murmurado suas palavras em relação a nós. Mas em breve isso será feito. Você e eu iremos continuar até o castelo de seu pai, e enquanto seguimos lhe direi que futuro estou planejando para você.
João fizera a volta com o cavalo e se colocara ao lado dela. Acenou para que o resto dos dois grupos ficasse para trás. Depois, ele e Isabella cavalgaram juntos um do outro, a uma certa distância à frente dos demais.
- Não consigo tirar os olhos de você. Desde o dia na floresta, você tem partilhado de meu leito... mas só em pensamento. vou tornar isso uma realidade. vou acordar de manhã e encontrá-la nele. Minha rainhazinha.
- O que é que meu pai diz?
- O que pode ele dizer? O que pode ele fazer, a não ser agradecer a Deus pela sua boa fortuna e se pôr de joelhos e abençoar o dia em que o rei João viu a mais bonita donzela do mundo antes que ela fosse atirada fora, para um conde que não a merece?
- Hugo é um ótimo homem - disse ela, e ficou surpresa por sentir um certo ressentimento ao ouvir falarem mal dele.
- Esqueça-o, querida. Você não é nenhuma condessa. Vai ser rainha. vou me casar com você. Sim, querida. Nós vamos nos casar. Seus pais estão transbordando de alegria por essa grande fortuna que chegou a eles por seu intermédio. Tive uma esposa que não era esposa para mim. Eu a odiava tanto quanto vou amar você. Tenho de rir ao falar dela ao seu lado. Era tão diferente de você quanto uma mulher pode ser diferente de outra. Ela não me deu filhos. Eu dei a ela poucas chances disso. Conosco, vai ser diferente. Mas não vou fazer com que você tenha filhos muito cedo. É jovem demais para isso. Não quero que esse corpinho perfeito se deforme. Não, vamos mante-lo como está, não vamos... por um ou dois anos? E então, vamos começar a ter nossos filhos. Por que você não fala, Isabella?
- Eu não fazia ideia de que isso iria acontecer.
- Não sabia, quando eu a apertava contra mim... e falava com você? Será que não adivinhava com que urgência eu precisava de você?
- Eu não sabia...
- Minha querida inocente, você não passa de uma criança. Não faz mal. vou ensiná-la a ser mulher. Haverá uma calorosa recepção para você em Angoulême, e depois o sacerdote nos casará e eu a levarei para a minha casa.
No castelo, os pais estavam esperando por ela. Estavam muito sérios, mas ela viu logo que estavam resignados com a troca de noivo.
Quando Isabella se achava em seus aposentos, os dois foram falar com ela e dispensaram todas as suas aias.
- Você percebe, Isabella, que grande honra isso é para você, para a família e para Angoulême? - perguntou o pai.
- vou ser rainha.
- Rainha... duquesa... condessa... sua posição será uma das mais elevadas da Europa.
- O senhor está satisfeito comigo, papai?
- Não há um pai na terra que não ficaria satisfeito ao ver a filha ser transformada em rainha.
- Há uma pessoa que não vai ficar contente ao me ver rainha - lembrou ela. - E Hugo?
- Ele terá de aceitar o inevitável.
- Nós ficamos noivos, papai.
- Graças a Deus o casamento foi adiado.
- O senhor achava que eu era jovem demais para o Hugo. Não sou jovem demais para o rei?
- O rei acha que não. Ele gosta de sua juventude. A mãe de Isabella parecia aflita.
- Há questões que você deve tentar compreender.
- Sua mãe precisa conversar com você - disse o conde. Isabella riu para eles.
- Sei do que iriam me falar. Tenho olhado à minha volta e sei bem o que acontece entre homens e mulheres. Sei o que o rei quer de mim.
- Você é mais madura do que seria para a sua idade, minha filha - disse a condessa -, e talvez isso seja bom.
Isabella não conseguia parar de pensar em Hugo... tão alto e tão delicado. Ela tentara levá-lo a se esquecer da sua pouca idade, mas ele não cedia à tentação. Havia algo de honrado e nobre em relação a Hugo; ficava um pouco triste ao pensar como ele ficaria zangado ao saber que os pais dela a tinham tirado dele e dado ao rei João.
- Você deve se preparar para partir para Bordeaux imediatamente - disse a mãe. - Será casada lá, pelo arcebispo. O rei não quer saber de demora, pois está muito ansioso pela cerimónia.
- Hugo não devia ser avisado?
- Minha queridinha, é evidente que não! O grande detalhe é realizar o casamento antes que alguém possa tentar impedi-lo. O rei vai ficar muito zangado se nós todos não fizermos o que ele quer. Portanto, você tem de se preparar logo.
Era emocionante, um casamento. Isabella imaginou-se usando uma coroa. Ficaria muitíssimo bem. Poucos dias depois, eles estavam seguindo para Bordeaux, e lá o arcebispo os casou.
Houve festa no castelo naquela noite, mas João e a esposa saíram cedo.
- Estou ansioso só por uma única festa - disse ele à sua companheira.
Era muito jovem, uma criança, na verdade, mas a sensualidade ali estava, como João sabia que estaria. Raramente se enganava a respeito das mulheres.
Jovem como era, ela podia responder paixão com paixão. João abençoou o destino que o levara a ir à floresta naquele dia. Suas esperanças quanto a Isabella tinham sido muitas, e não foram nem um pouco desapontadas.
Durante os dias de lua-de-mel, que foram passados em sua maior parte no quarto, pois ele só se levantava na hora do almoço, João ficou ainda mais fascinado pela sua esposa-criança.
QUANDO o REI de Portugal soube que mesmo enquanto a delegação da Inglaterra estava a caminho a fim de providenciar o casamento de sua filha, João se casara com Isabella de Angoulême, ficou furioso. Aquilo era um insulto. Não houvera aviso algum. Eles estavam se preparando para receber a delegação com todas as honras quando a notícia chegou. A princípio, parecera incrível; mas quando ficou óbvio que era realmente verdade, o rei concluiu que nada havia a fazer senão mandar a delegação de volta a toda velocidade. Não iria perder a dignidade reclamando daquele insulto a ele e à sua filha, mas não iria esquecê-lo.
Hugo de Lusignan ficou perplexo quando voltou e descobriu que Isabella tinha sido levada embora. Ralph explicou que tinha recebido um pedido dos pais dela que não pareceu fora de propósito. Claro que era natural que os pais quisessem ver a filha de vez em quando.
Hugo teve de admitir que se ele estivesse no castelo teria atendido ao pedido.
- Você sabia que aquele devasso estava lá esperando por Isabella? - perguntou Hugo.
- Como é que eu podia saber disso? - bradou Ralph. - Ele não viera aqui e mandara que o conde de Angoulême também viesse para poupar-lhe a viagem a Angoulême?
106
- Fomos enganados pelo rei e pelo conde de Angoulême bradou Hugo, angustiado. - Isabella não estava solenemente prometida a mim?
- Isso não se pode contestar.
- Então, isso não pode ser.
- Infelizmente, irmão, pode.
- E o rei já se casou com ela! Mas Isabella não passa de uma criança.
- Acho que ela era mais madura para a idade dela.
- Oh, Deus do céu! Pensar nela com aquele devasso!
- Irmão, você tem de tirá-la da cabeça.
- O que é que você pode saber disso? Ela é tão delicada! Eu a tratei com ternura e carinho... Adiara o casamento só por ela ser criança. Não queria que ela tivesse
medo. Eu a amava muito, Ralph. Tinha planejado nosso futuro juntos... e agora volto assim e vejo que ela se foi... e se foi para o
rei. Você conhece a reputação dele.
Como acha que agirá com ela?
- Você tem de tirá-la da cabeça - repetiu Ralph. - Você a perdeu. Ela estará indo para a Inglaterra dentro em pouco, para ser coroada rainha.
- Ela me foi roubada. - bradou Hugo.
- Você tem de enfrentar a realidade, irmão, de que ela pode ter ido com o máximo de boa vontade.
- Como pode ter sido isso?
- Há um certo resplendor com relação a uma coroa. Pois eu lhe digo, Hugo, que havia nela uma certa lascívia. Você ficou embriagado por ela. Deus sabe que Isabella é uma criatura delicada. Nunca vi uma garota ou mulher que se comparasse a ela. Pode muito bem acontecer de você vir a ter ocasião de se regozijar porque o desfecho foi dessa forma.
- Você fala de uma coisa de que não entende - disse Hugo, com rispidez. - Isabella era minha noiva. Eu a amo. Nunca vou amar outra mulher enquanto viver, e a verdade é essa.
Ralph sacudiu a cabeça.
- Quisera Deus que tivesse sido outra pessoa, que não eu, que a tivesse deixado ir embora.
- Não, Ralph, qualquer um teria achado normal deixar que ela fosse ver a família. Nós fomos totalmente enganados. Mas não vou deixar isso passar. Eu lhe digo uma
coisa, Ralph, vou me vingar de João.
- O que você pode fazer?
- vou matá-lo - declarou Hugo.
- Não, não se precipite. Não fale sem tomar cuidado. Quem sabe o que pode ser transmitido ao rei?
- Espero que minhas palavras sejam, mesmo, levadas a ele. Eu o desprezo. Eu o desprezo por ser tapeador, mentiroso e devasso. Nunca deveriam ter dado a coroa a João. Ela devia ter sido de Artur. E por Deus, juro que nunca esquecerei essa infâmia. Ele vai morrer por isso, e vou mandar logo alguém procurá-lo para levarlhe o meu desafio para um combate mortal.
- Acha que o rei vai concordar em enfrentá-lo?
- Tem de aceitar... por uma questão de honra, tem. Ralph balançou a cabeça.
- Você não pode falar em honra com quem não tem nenhuma e não sabe o significado da palavra.
- Já me decidi. vou desafiá-lo a um combate mortal.
Os criados não ousavam perturbar João em seu quarto, e já era hora do almoço, todos os dias, quando ele saía de lá e assim mesmo com grande relutância.
Estava vivendo em um mundo de sensualidade, onde nada tinha o mínimo de importância para ele, a não ser Isabella.
Ele verificara que não se enganara a respeito de Isabella. Ela era sexualmente insaciável, tanto quanto ele, e nesse ponto os dois combinavam perfeitamente. Reconhecera aquela qualidade nela; estava na própria essência de sua tremenda atração. Era realmente a criatura mais bonita que ele já vira; o corpo imaturo de criança começava a desabrochar como mulher e podia ser comparado à mais perfeita das esculturas, exceto pelo fato de estar vivo. João se deliciava com ela. Orientá-la, ensinar-lhe as artes eróticas, era a maior das alegrias; e ela praticamente não precisava de instruções. Sua sensualidade era tal que ela reagia por instinto. Durante algum tempo, ela andara tentando romper as comportas de seus desejos voluptuosos. Tentara com Hugo, cujos instintos honrados o haviam contido; João não tinha esse tipo de escrúpulo, e por algum tempo Isabella ficou contente com isso.
Assim, os dois se retiravam cedo e se levantavam tarde. O leito matrimonial era mais importante do que qualquer outra coisa naquelas primeiras semanas.
João dizia, naqueles dias de sua lua-de-mel:
- Eu agora possuo tudo o que poderia desejar. As coroas da Inglaterra e da Normandia... e minha possessão mais adorada de todas: Isabella.
Certo dia, quando ele saiu do quarto para o almoço, que estava esperando a sua chegada à mesa e que foi servido depois do meiodia, disseram-lhe que haviam chegado mensageiros vindos da parte de Hugo de Lusignan.
- Hugo de Lusignan? - bradou ele. - O que é que esse sujeito quer comigo? - Fez uma careta. - Será que é alguma coisa relacionada com a rainha? vou mandar chamá-lo quando estiver disposto a recebê-lo.
Voltou para o lado de Isabella, que se levantara langorosamente da cama e estava envolta numa túnica azul forrada de pele, os belos cabelos caindo em desordem sobre os ombros.
- Está aí um sujeito que veio me ver - disse ele. - Vem a mando de Hugo de Lusignan. Que insolência, mandá-lo aqui
- O que ele quer? - perguntou Isabella.
- Isso, temos de descobrir. - João ergueu o rosto dela à altura do seu e fitou-a nos olhos. Depois, baixou a túnica de seus ombros e olhou maravilhado para a beleza de Isabella. Ela o estudou com os olhos velados, e pensava em Hugo, que era tão alto e bonito, e ficou zangada com ele por ter resistido a todas as insinuações que ela lhe fizera. Ficou imaginando, por um curto espaço de tempo, o que teria acontecido se ele não tivesse resistido.
Mas era uma rainha agora, e estava encantada por isso. João recolocou a túnica sobre os ombros dela. Tomou-lhe a mão e fez com que ela ficasse de pé.
- Não vou olhar para você agora, amor, porque senão não haverá almoço para nós. Sei disso. Você é mais atraente do que mil almoços. - Dirigiu-se à porta e bradou: - Tragam-me o mensageiro de Lusignan, agora!
Depois, voltou-se para Isabella e, levando-a até a cama, sentouse com ela. Manteve uma das mãos dela apertada contra sua coxa, quando o mensageiro entrou.
- com que então você vem me perturbar quando estou ocupado com a rainha - disse ele. - Qual é a sua mensagem?
- Venho a mando de Hugo de Lusignan, que desafia vossa majestade para um combate mortal.
- Oh, não! - exclamou Isabella, involuntariamente. João apertou-lhe a mão.
- Seu senhor é insolente, meu homem, e você é bem valente para me trazer um recado desses. Não gosto desse tipo de mensagem, nem de quem as traz. Já pensou que eu poderia tratá-lo de tal maneira que nunca mais você pudesse levar mensagem alguma?
Isabella viu o suor aparecer na testa do homem. Lembrou-se de que ele era um dos escudeiros de Hugo no castelo.
- Ele não tem culpa por trazer uma mensagem dessas - falou ela.
João sorriu. Tudo a respeito dela o encantava; até mesmo sua interferência. Ela não queria que o homem fosse punido. Portanto, não seria.
- Não, a rainha está certa - disse João. - A insolência vem de seu senhor. Você apenas obedece às ordens dele. Vá e diga a seu senhor que se ele estiver tão ansioso por morrer, nomearei um campeão para lutar com ele.
O homem, satisfeito por escapar, curvou a cabeça, e João fez um aceno dispensando-o.
Depois que o homem saiu, João se voltou para Isabella.
- Sujeito insolente! Me convidar para um combate mortal. Será que ele pensa que eu me rebaixaria para lutar com ele? Não, ele terá a sua luta. Haverá muita gente que ficará contente em me fazer a honra. - Tirou a túnica dos ombros dela e pressionou o rosto contra a pele dela. - Acha que ele vai dizer ao patrão dele que nos viu assim? Espero que diga. - João começou a gargalhar. - Talvez o mestre Hugo fique mais ansioso do que nunca por um combate mortal quando perceber tudo o que perdeu na vida.
Não houve uma risada de resposta por parte de Isabella. Estava pensando em Hugo, cuja beleza lhe causara tanto prazer, jazendo frio e imóvel com sangue na roupa. Mas isso não iria acontecer. Ela achava que em combate não seria Hugo o derrotado.
Mas perdera temporariamente o apetite, tanto para o almoço quanto para as emoções sexuais.
Quando Hugo recebeu a mensagem, ficou furioso.
- Que covarde! - bradou ele. - Claro que está com medo de um combate. Sabe muito bem qual será o resultado. Ele acha que ficarei satisfeito com algum capitão mercenário que ele pague para assumir o seu lugar? Você viu o rei? - perguntou ao mensageiro.
- Vi, meu senhor.
- E a rainha?
- Vi, senhor.
- Juntos?
O mensageiro confirmou com a cabeça.
- Como achou a rainha?
O mensageiro pareceu confuso.
- Contente com o seu destino? - sugeriu Hugo.
- Sim, meu senhor.
Uma criança, pensou Hugo, e ficou imaginando o que seria dela. Foi procurar o irmão e disse-lhe que o rei havia se recusado a enfrentá-lo em pessoa.
- Você esperava que ele aceitasse? - perguntou Ralph.
- Não. Sempre soube que ele era um covarde.
- Homens assim sempre são. O melhor, irmão, é esquecer esse insulto. Arranje uma esposa... uma boa e bonita mulher que lhe dê filhos homens. Há muitas que ficariam contentes em se casar com os Lusignan.
Hugo sacudiu a cabeça.
- Não, meu irmão - disse ele. - Pelo menos, por enquanto. Só existe uma coisa que estou comprometido a fazer, e é me vingar de João da Inglaterra.
- Como assim?
- Você pergunta? Você, um Lusignan, que compreende a situação deste território. O rei da França fez uma trégua com ele, mas é uma trégua incómoda. O duque da Bretanha, que tem muita gente que o apoia, acredita ser o verdadeiro herdeiro de tudo que João tomou. Raramente uma coroa ficou em situação tão precária sobre uma cabeça. vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deslocá-la. Eu lhe juro, Ralph, que dentro em pouco a Normandia não irá pertencer ao seu duque atual, mas ao rei da França, de quem serei vassalo. Ricardo era amigo de nossa família. João é inimigo. Não descansarei enquanto não tiver me vingado desse voluptuário que me roubou a noiva.
- Palavras ousadas, irmão.
- E sinceras, Ralph, sinceras, do fundo do coração. Você vai ver.
Mesmo João teve de perceber que estava na hora de partir. Além do mais, Isabella estava extasiada diante da perspectiva de ser coroada rainha da Inglaterra. Estava emocionada ao pensar em atravessar o mar, porque ainda não o conhecia. Sua emoção a respeito da nova vida aumentava o sabor dos dias de João. Ele começava a ver coisas sob um novo aspecto através dos olhos de uma jovem, e achava a experiência estimulante.
Assim, partiram em sua viagem.
Pararam primeiro na abadia de Fontevrault, onde a rainha-mãe os recebeu.
Ela ficou encantada com Isabella. Viu na jovem esposa do filho algo do que ela fora havia tantos anos. Um frescor, uma perspectiva jovem de vida, e aquela avassaladora sexualidade que estava na raiz do segredo do poder que ela possuía de emocionar tanto a João.
A jovem fez com que Eleanor sentisse de forma mais aguda o peso dos anos. A viagem a Castela tinha sido demais para ela, e sentira prazer em voltar para Fontevrault, onde podia visitar diariamente os túmulos do marido, do filho Ricardo e da filha Joana.
- Minha vida já acabou - disse a Isabella. - Às vezes se vive demais. Talvez o destino pudesse ter sido mais bondoso para comigo se tivesse me levado quando Ricardo morreu.
Mas lhe restavam alguns prazeres. Pensar no passado era um deles; e às vezes podia recuar no tempo com tal nitidez que tudo se tornava tão vivo como se estivesse acontecendo naquele momento.
- Viva intensamente, minha filha - disse ela -, este é o segredo. Eu aproveitei meu tempo... cada minuto; e agora posso olhar o passado e me recordar. Houve anos em que estive presa, e mesmo assim aproveitei ao máximo todas as horas.
Eleanor pensava muito em João e se sentia inquieta. Conheciao bem e achava ter sido a maior das tragédias Ricardo ter morrido tão precocemente. Como fora irónico que, justamente quando ele voltara da Terra Santa e fora libertado de sua prisão em Diirenstein, aquele malvado tivesse atirado uma flecha nele e o matara, de modo que só restara João.
Ela sabia o que João fizera. Tirara Isabella de Hugo de Lusignan por meio de uma tapeação, pois eles nunca teriam deixado Isabella partir se tivessem sabido que
ela estava indo para o lado do rei. João achava que isso seria esquecido? Haveria uma retaliação, disso ela sabia. Estaria João, tão fascinado pela esposa, vivendo em estado de euforia, pensando só em cama e em Isabella, incapaz de perceber que tempestade seus atos bem poderiam ter provocado, ou estava simplesmente ignorando isso? Os Lusignan ficariam contra ele. João poderia ter conquistado o conde de Angoulême como aliado, mas isso não era uma conquista assim tão boa se comparada à inimizade dos Lusignan. E o rei de Portugal, tratando de sua dignidade ferida? E havia Artur e a mãe com o novo marido, Guy de Thouars, esperando uma chance de se levantar. E o que era mais importante, Filipe da França. O que estaria ele pensando naquele momento? Rindo, sem dúvida, ao pensar na irresponsabilidade com que João jogava com um reino.
Mas estou muito velha para me preocupar, pensou Eleanor. Minha vida se acabou. E mesmo assim, o que poderia eu fazer? Poderia prevenir João. Como se ele fosse dar atenção! Ele não ouve coisa alguma, a não ser o riso daquela sua criança; não vê coisa alguma, a não ser a figura convidativa dela, e não consegue ver o risco a que se expôs enquanto se distrai com sonhos de novas maneiras de fazer amor.
Talvez ela pudesse avisar a menina. Voluptuosa, sem dúvida que ela era, e instruída com um conhecimento com o qual as mulheres do seu tipo nasciam. Eleanor sabia, pois ela mesma fora assim. Mas o que Isabella sabia do mundo fora do quarto?
- O rei está profundamente enamorado de você, mas é bem possível que nem sempre seja assim - avisou-lhe Eleanor.
Isabella pareceu assustada. Não podia acreditar que alguém deixasse de estar apaixonado por ela.
- Os homens gostam de mudança, minha querida - disse a rainha.
- A senhora quer dizer que João não vai gostar mais de mim?
- Eu não disse isso. Ele sempre verá em você a beleza que você tem; é uma beleza que está sempre presente. A idade não pode destruí-la. Você tem esse tipo de beleza, Isabella. vou deixar de falsa modéstia e dizer que eu também tenho. Quando me casei com o pai de João, ele estava apaixonado por mim. Foi um casamento inadequado sob vários aspectos. Ao contrário de você e João, eu era uns doze anos mais velha do que ele. Isso não nos deteve. Éramos amantes... tal como vocês são agora. Mas o primeiro ano de nosso casamento mal acabara de passar quando outra mulher estava grávida de um filho dele.
Isabella recuou, horrorizada.
- É verdade. Só fui descobrir quando ele trouxe o filho dela para a minha ala infantil. Nunca o perdoei, e aquilo corroeu-nos o coração. Nosso amor se transformou em ódio. Mas se eu tivesse sido mais inteligente, poderia ter dito a mim mesma: os homens são assim. Ele tinha de partir para suas batalhas, e nós nos separávamos, e por isso ele pegava mulheres. Tivesse eu percebido que suas brincadeiras com as mulheres levianas que encontrava em suas viagens não alteravam o que ele sentia por mim, não teríamos sido inimigos tão ferrenhos. Talvez, então, nossos filhos não teriam aprendido a odiá-lo e a lutar contra ele. Penso muito nisso, agora que estou velha. vou até o túmulo dele e converso com ele como se ele estivesse lá. Recordo-me de nossa vida juntos e digo a mim mesma: ah, se eu tivesse feito isso... ou aquilo... poderíamos ter seguido em direções diferentes. Poderíamos ter sido amigos, em vez de inimigos, pois sempre houve algo entre nós. Muitas vezes chamávamos de ódio, mas com pessoas como nós o amor está próximo do ódio. Ah, vejo que a deixo cansada. Você está se perguntando do que é que esta velha está falando. Por que, pensa você, ela me diz isso? Não tenho um marido que me adora, que me acha o ser mais perfeito do mundo? Ele não disse que possui tudo o que poderia desejar? Sim, foi a mesma coisa comigo e com Henrique no começo. Minha filha, o que vai fazer se João a trair com outras mulheres?
Ela pensou por um instante e seus belos olhos semicerraram-se. Então, disse de forma muito deliberada:
- Irei traí-lo com outros homens.
- Espero que isso jamais aconteça - disse Eleanor, delicada.
Como Isabella ficou agitada ao ver o mar! Ela quis entrar nele correndo e pegá-lo com as mãos.
Ficou olhando para ele, assombrada. João a observava com complacência.
- Há tanta coisa que tenho para lhe mostrar, meu amor disse ele.
Subiram a bordo de seu navio, e João teve dificuldade em afastála do convés, de tão extasiada que estava. Ficou tão excitada que não conseguiu falar ao ver os rochedos brancos de seu novo reino.
- Você será coroada em breve - disse-lhe João. - A rainha mais bonita que a Inglaterra já conheceu.
Sentia-se emocionado por estar na Inglaterra, que sempre lhe parecera mais o seu lar do que qualquer outro país. A Inglaterra o aceitara quando aqueles que viviam em seus domínios ultramarinos tinham estado dispostos a aceitar Artur. Fora porque a Inglaterra jamais teria aceito Artur que homens como Guilherme Marechal tinham ficado a seu favor. Assim, ele devia muito à Inglaterra; e agora iria homenagear aquela terra dando-lhe a mulher mais bonita do mundo para ser a sua rainha.
Convocou um conselho em Westminster e ali, demonstrando um grande orgulho, apresentou Isabella. Os membros do conselho não podiam deixar de se emocionar com tamanhos charme e beleza, e o infeliz caso da delegação portuguesa parecia ter sido esquecido, como acontecia com a maneira dele roubar Isabella do homem de quem ela estava noiva. Afinal, os problemas de Hugo de Lusignan não eram algo com que os ingleses devessem se preocupar.
Haveria uma coroação para a rainha, e o povo adorava uma coroação. O povo ficara imaginando qual teria sido o motivo pelo qual a mulher anterior do rei não fora coroada com ele. Tinham corrido rumores, na ocasião, de que ele estava pensando em se descartar dela. Poder-se-ia ter sentido pena dela, mas ali estava uma nova esposa e haveria comemorações nas ruas, dança, fogueiras e, talvez, vinho grátis. Portanto, era motivo de alegria; e quando o povo viu a refinada menina que seria a sua nova rainha, ficou encantado. Os vivas a Isabella ressoavam pela cidade toda.
Hubert Walter, arcebispo de Canterbury, foi a Westminster realizar a cerimónia. O rei dera ordens no sentido de que espalhassem pela abadia ervas e juncos frescos, no grande dia, e um certo Clarence Fitz William recebeu 33 xelins para fazer isso. Havia um cantor do coro cuja voz era considerada a mais bonita que se ouvira em muitos anos. Era conhecido como Ambrose, e o rei mandou que lhe dessem 25 xelins para cantar Christus vicit.
João queria que seu povo soubesse que aquela coroação era tão importante para ele, João, quanto a sua. Queria que o país inteiro recebesse bem Isabella, que a visse em toda a sua juventude e beleza e aplaudisse o seu rei por se apossar de um tesouro daqueles.
O povo estava disposto, e assim Isabella, em meio a grandes comemorações, foi coroada rainha da Inglaterra.
Ninguém podia duvidar da alegria que João sentia em relação à sua rainha e de sua determinação de honrá-la.
João e Isabella eram felizes. Ela continuava a deliciá-lo; João estava certo de que jamais se cansaria dela, nem olharia para outra mulher, a não ser para compará-la com Isabella, para sua grande desvantagem. Isabella era suprema; com seu corpo de menina e os grandes apetites sexuais de uma mulher experiente, e ele pouco se importava com outra coisa a não ser com os momentos em que pudessem ficar a sós. Quanto a Isabella, tudo o que acontecia era uma grande novidade para ela; e sem falar na sua sensualidade, era uma inexperiente criança de doze anos. As novidades a encantavam, e ela as tinha muitas; ser o centro de um círculo de admiradores não era novidade, mas aquilo nunca deixava de encantá-la; e verificar que ingleses estranhos ficavam tão encantados com ela quanto o povo de Angoulême era uma descoberta deliciosa. Às vezes, pensava no pobre do Hugo, o Moreno, e imaginava se ele estaria muito triste. Esperava que sim, porque não podia admitir que ele a esquecesse. Às vezes, pensava em como teria sido se tivesse se casado com ele. Como ele teria sido diferente de João! Hugo era muito bonito, e nunca compreendera o que ela realmente era, como acontecera com João desde o momento em que os dois se encontraram. Alguma coisa dentro dela ainda ansiava por Hugo, mas a vida era excitante demais para ficar se lamentando. Adorava a sua coroa de ouro e a homenagem do povo. A coroação a deixara encantada. Poderia ter suportado muita coisa para obter o título de Isabella, a Rainha, de modo que gostava de viajar pelo interior com João, o que fizeram logo após a coroação.
Ela adorava roupas bonitas... e João também; ela não podia ter esperanças de vestir esplêndidas roupas incrustadas de jóias como as que pertenciam a ele, mas João lhe dava ricos presentes. Para a viagem no inverno, ele encomendou para ela uma pelisson com cinco tiras de pele para evitar a entrada do vento. Depois da coroação de Isabella, foram-lhe enviadas cinco varas de tecido verde e outras cinco varas de tecido marrom, a fim de que ela pudesse encomendar à sua costureira um vestido a ser feito com eles, O rei também lhe deu jóias, e ela gostava muito de aparecer com ele à cabeceira de uma mesa enquanto todos os presentes olhavam assombrados para suas jóias brilhantes e sua beleza.
Isabella não podia se lamentar de coisa alguma enquanto a vida prometia tamanha emoção.
A viagem dos dois pelo interior foi feita com vagar, pois eles ficavam nos castelos da nobreza e, lá, João recebia a homenagem de seus barões, que seriam estendidas a Isabella.
No Natal, chegaram a Guilford, e a celebração da data foi feita com grandes comemorações e diversões. Jogaram-se jogos nos quais a rainha teve o papel principal e pelo menos naquela vez João esteve disposto a ficar de lado e deixar o foco luminoso cair sobre outra pessoa. Os dois dançavam, cantavam, comemoravam e bebiam; e o rei só saía da cama na hora do almoço.
Seguindo para o norte da Inglaterra, eles passaram por Yorkshire, indo para Newcastle e Cumberland, até a fronteira da Escócia. Em março, tinham atingido os Peninos e, com grande ousadia, seguiram por aquela cadeia de montanhas infestadas de lobos. A vida era plena de aventuras para a jovem rainha que, até ter conhecido João, nunca se afastara para muito longe de Angoulême - a única viagem que fizera tendo sido ao castelo daqueles que na ocasião ela acreditava que seriam sua nova família.
Já era Páscoa quando chegaram a Canterbury. Ali, foram saudados por Hubert Walter, o arcebispo, e durante a missa na catedral ele colocou as coroas na cabeça deles, de acordo com um velho costume, de modo que foi como serem coroados outra vez.
Depois da cerimónia, foram para o castelo do arcebispo, onde fora preparado um banquete. João ficou encantado.
- É raro um rei da Inglaterra manter um relacionamento assim tão bom com o seu arcebispo - disse ele a Isabella.
Eles iriam voltar para Westminster, disse-lhe ele, e lá iriam presidir a corte e ela iria aprender mais o que significava ser a rainha da Inglaterra.
Isabella ficou encantada com o interior - embora o inverno tivesse sido mais rigoroso do que aquele ao qual estava acostumada, mas ela era jovem, seu sangue era quente e ela contava com a sua pelisson com as cinco tiras de pele para protegê-la dos fortes ventos.
Infelizmente, o agradável vaguear pela Inglaterra estava chegando ao fim.
Nem bem haviam acabado as festividades da Páscoa, quando chegou um mensageiro enviado por Eleanor. Parecia impossível ela se afastar da vida ativa, pois não resistia a observar de perto o que se passava nos domínios do filho. Estivera mais cônscia do que João sobre o problema que ele estava provocando quando mais ou menos raptara a noiva de Hugo de Lusignan.
Agora, ela tinha notícias inquietantes para o filho. Se ele fosse inteligente, iria preparar-se para deixar imediatamente a Inglaterra. Em suma, o que acontecera fora que, depois do casamento de João, os Lusignan tinham, naturalmente, ficado furiosos com o conde de Angoulême, que eles achavam tê-los enganado cruelmente ao ficar favorável ao casamento da filha com o rei depois de a terem prometido em casamento a Hugo, e aquela rixa, sanada pelo noivado, voltara a estourar. João deveria se lembrar de que o irmão de Hugo, Ralph, era senescal do castelo de Eu na Normandia, de modo que os problemas poderiam espalhar-se para o ducado.
Os Lusignan, cheios de ódio para com João, tinham declarado que haviam anulado sua vassalagem a ele e procurado o rei da França, pedindo a ele que os aceitasse como seus vassalos. Filipe, como uma aranha ardilosa, instalado em sua teia à espera de uma presa incauta, congratulava-se consigo mesmo pela guinada que os acontecimentos tinham dado.
- Só há uma coisa a fazer - escreveu Eleanor. - Reúna um exército e venha já.
João ficou um tanto mal-humorado diante da perspectiva de ter o seu prazer estragado, mas a mãe estava sendo insistente, e no fundo ele sabia que algo daquela natureza iria acontecer em breve.
Enquanto digeria a notícia mandada pela mãe, chegou outro mensageiro.
Este último vinha a mando do conde de Angoulême, que tinha a mesma história a contar.
Os Lusignan estavam em marcha, jurando vingança. Além do mais, o padrasto de Artur, Guy de Thouars, estava se mostrando um inteligente estrategista. Em nome de Artur, estava reunindo um exército. Havia problemas, então, não apenas vindos dos poderosos Lusignan e do rei da França, mas de Artur.
Artur não devia sair vitorioso.
João tomou uma decisão. Devia se preparar para deixar a Inglaterra. Iria precisar de um grande exército, de modo que enviou emissários por todo o país, ordenando aos barões que fossem a toda velocidade para Portsmouth com seus seguidores, pois ele planejava atravessar para o continente sem demora.
Seguiu-se o primeiro estalar de um trovão de uma tempestade que iria se tornar violenta.
Muitos dos barões tinham estado trocando ideias e rememorando os bons tempos anteriores ao reinado de Henrique II, quando tinham sido realmente governantes de suas propriedades. Nenhum deles podia se lembrar daquela época, mas as histórias lhes tinham sido transmitidas pelos avós e pais. Na época de Estêvão, um barão era um barão. Ele era o rei de suas próprias terras e mantinha jurisdição sobre todo aquele que as atravessasse. Eles se esqueciam de que naquela época não era seguro viajantes caírem na estrada e que muitos daqueles que o faziam eram capturados por barões cruéis e avarentos, e ou eram mantidos prisioneiros para serem trocados por resgate, ou roubados e torturados para diversão de outros barões convidados. Era uma situação intolerável para todos os homens de bem, e o reinado de Henrique II acabara com aquilo, para grande alívio de quase todos os habitantes do interior, exceto os inescrupulosos que haviam lucrado com aquele barbarismo.
As leis rigorosas mas justas de Henrique II haviam tornado o interior seguro outra vez, e o rei era uma pessoa contra a qual ninguém ousaria ficar; mas quando Ricardo chegara ao trono e impusera uma tributação para pagar sua cruzada, o povo ficara inquieto. Mas o reconhecimento de que o rei estava envolvido na Guerra Santa o deixava pouco inclinado a se revoltar contra aqueles impostos, porque os indivíduos, por superstição, temiam ofender a Deus se o fizessem e, em consequência, sofrer mais do que se entregassem o dinheiro. Por isso, pagaram; e quando Ricardo fora feito prisioneiro e voltara como herói, o povo se sentira orgulhoso dele. Todos os que o viam declaravam que mesmo no fim da vida ele tinha a aparência de um deus.
E então ele morrera e ali estava João. Em primeiro lugar, faltavam a João aquela beleza impressionante, aquele porte de rei e a reputação de âmbito mundial. A imagem de João fora empanada antes dele chegar ao trono. Todos tinham ouvido falar de suas proezas na Irlanda, e quando ele, como conde de Mortain, irmão do rei, atravessara a aldeia deles, eles tinham escondido as filhas. Era do conhecimento geral que quando Ricardo estivera ausente, João tramara contra ele sem grande visão e inteligência e, em consequência, fora forçado a humilhar-se e implorar perdão quando o irmão retornara. O povo sabia que o perdão fora concedido e havia quem tivesse ouvido Ricardo dizer que seu jovem irmão tinha sido levado para o mau caminho e, de qualquer modo, não se deveria temê-lo, porque ele nunca teria capacidade para fazer uma conquista e, se por um lance de sorte, um reino lhe caísse nas mãos, não conseguiria defendê-lo contra um inimigo.
Isso indicava claramente o desprezo de Ricardo por João. Pode ter sido por isso, raciocinavam agora os barões, que ele certa vez citara Artur como seu herdeiro.
E agora, havia problemas no continente. Os barões pouco ligavam para o continente. Eles agora eram ingleses, porque embora muitos tivessem ancestrais normandos, a Normandia agora parecia estar longe; era com suas propriedades na Inglaterra que eles se preocupavam e não tinham vontade alguma de pagar com o seu dinheiro e talvez com a vida para ajudarem o rei a manter territórios no continente enquanto seus negócios na Inglaterra eram negligenciados.
Alguns dos mais ousados entre eles reuniram todos aqueles que haviam recebido a convocação do rei, e eles se reuniram em Leicester, onde decidiram opor resistência às ordens do rei.
Não iriam acompanhá-lo na guerra a que ele se propunha, a menos que em troca ele fizesse algo por eles.Queriam, devolvidos a eles, os antigos privilégios de que os barões seus ancestrais tinham gozado.
João estava em Portsmouth à espera deles quando recebeu a mensagem. Imediatamente, teve um acesso de raiva. Isabella estava com ele e aquela foi a primeira vez que ela viu um de seus acessos. Ele estivera tão encantado com o casamento, tão absorto por Isabella, que nada o aborrecia; estivera disposto a pôr de lado tudo o que fosse desagradável e dedicar-se inteiramente a aproveitar o casamento.
Mas aquilo era demais. Eles tinham ousado desafiá-lo, como nunca teriam desafiado Ricardo ou seu pai! Recusavam-se a ir, a menos que ele concordasse com as condições por eles impostas.
- Antes disso, eu os mando para o inferno! - berrou ele e se atirou ao chão.
Isabella ficou olhando, os olhos arregalados, enquanto ele rolava de um lado para o outro agarrando os juncos, rasgando-os com os dentes e cuspindo-os enquanto esperneava como um louco.
- João! - bradou ela. - Por favor... por favor, não faça isso. Vai se machucar.
Daquela vez, ele não a ouviu. Ficou deitado, chutando violentamente tudo que ficava ao seu alcance e quando, amedrontada, ela saiu da sala correndo, ele nem percebeu.
Quando sua fúria amainou um pouco, ele mandou chamar o mensageiro. O homem chegou pálido e tremendo, pois a notícia de que o rei estava tendo um de seus acessos de raiva havia chegado até ele.
- Vá falar com esses bandidos - berrou ele - e diga-lhes que se não estiverem em Portsmouth dentro de uma semana, vou me apossar de seus castelos e terras, e ficará por conta deles adivinhar o que será feito deles.
O mensageiro partiu a toda velocidade, com o único desejo de colocar entre ele e João a maior distância possível.
- Qual é o castelo desses barões rebeldes que fica mais perto? - bradou o rei.
Descobriu que o castelo pertencia a um certo Guilherme de
Albini.
- Eles vão ver que estou sendo sincero. Vamos tomar esse castelo, arrasá-lo por completo e enforcar todos aqueles que se meterem no nosso caminho, como uma lição para os demais.
João partiu, Isabella temporariamente esquecida. Sua boca estava fechada com força, formando uma linha firme; os olhos estavam ligeiramente iojetados; havia nele uma força de propósito que todos os que o cercavam reconheceram e ficaram imaginando se não teriam feito um juízo errado de João.
Aquilo foi uma vitória, pois antes de chegarem ao castelo que pretendiam atacar, Guilherme de Albini enviou um grupo de homens com seu filho oferecendo-o a João como refém até que ele, Guilherme de Albini, pudesse reunir suas forças e apresentar-se ao rei em Portsmouth.
João soltou uma gargalhada. Ganhara o dia. Isso, pensou, é o fim da insignificante revolta desses barões. Isso irá mostrar-lhes quem é que manda neles.
Todos acreditavam que ele estava certo, pois os barões agora chegavam a Portsmouth com seus homens e com o dinheiro pedido por João.
Sendo João, ele tinha de zombar deles.
Arrecadou o dinheiro que os barões levaram e que deveria sustentá-los e a seus soldados durante a longa estada no continente. Os olhos de João brilhavam enquanto o dinheiro era contado.
Depois, ele disse.
- Cavalheiros, os senhores me desapontaram. Mostraram-me que o seu coração não participa desta luta. Os senhores vivem isolados e contentes em suas terras, aqui... terras que, não fosse o meu nobre ancestral conhecido por Guilherme, o Conquistador, nunca teriam sido suas. Esquecem a terra de seus pais que pertence à minha família desde que o Grande Rollo chegou e tomou-a dos franceses. Ela está em perigo, cavalheiros, e os senhores preferem ficar para trás e viver com tranquilidade e conforto. Que as maldições do Conquistador caiam sobre os senhores! Fiquem aqui. Acham que quero homens covardes a meu serviço? Voltem para suas terras. Vou levar apenas o seu dinheiro. Ele dará para que eu compre soldados cuja profissão seja lutar e que irão me servir melhor do que os senhores.
com aquilo, João os dispensou.
Gargalhou, muito bem-humorado. Sentia-se forte, invencível; e, com esse estado de espírito, atravessou o canal.
Filipe ponderava sobre os novos acontecimentos. Nunca, por um momento sequer, se afastara de seu objetivo máximo, que era levar a Normandia de volta à França, e não apenas a Normandia. Estava decidido a levar para a coroa da França todos os acres de terra que estivessem nas mãos de João. Sob o aspecto político, nada poderia tê-lo agradado mais do que a ascensão de João, embora sempre fosse pensar em Ricardo com tristeza. Nunca se esqueceria da amizade dos dois, pois nada, em sua vida, tinha sido tão importante quanto ela; mas agora que Ricardo tinha morrido, ele poderia dedicar-se à sua grande tarefa, que sempre deixara claro ser tornar a França tão grande quanto fora sob o reinado de Carlos Magno.
João era um fraco. Oh, ele podia pavonear-se e assumir ares de superioridade, mas no íntimo não era um homem ousado. Era um fanfarrão, e os fanfarrões eram covardes; era vaidoso ao máximo; não era estrategista. Todas as esperanças de Filipe estavam depositadas em João. Por isso, iria esquecer seu pesar por Ricardo e alegrar-se pelo fato de o destino lhe ter dado João como adversário.
Não queria, àquela altura, envolver-se em outra guerra. As guerras raramente eram decisivas, e com um homem como João não deveria ser impossível conseguir o resultado desejado sem que houvesse muito derramamento de sangue e muita destruição desnecessários.
Agir no momento certo era da máxima importância, e naquele momento em especial era melhor concordar com João e não deixar que suas verdadeiras intenções fossem reveladas.
Claro que aquela tolice de João ao raptar a noiva de Hugo Lusignan devia ser plenamente explorada. Os Lusignan, considerandose vergonhosamente injuriados, ansiavam por vingança. Isso era bom. Mas não naquele exato momento. Filipe manteria o ferimento aberto e gangrenando; mas ainda não estava pronto para entrar numa guerra contra João. A hora chegaria. Então, ele teria a ajuda de Artur e dos que o apoiavam; Artur deveria jurar vassalagem a ele; e ele iria oferecer-lhe sua filhinha Marie como noiva. Era verdade que ela ainda não tinha seis anos de idade, e que Artur tinha ficado, por decisão de Ricardo, noivo da filha de Tancredo da Sicília; isso não importava. Então Filipe poria as mãos na Normandia e nas possessões de João no continente e, quem sabe, talvez pudesse no devido tempo, estender-se até a coroa da Inglaterra. Afinal, Guilherme, o Conquistador, fizera exatamente isso quando era apenas um duque da Normandia.
Mas ainda não era chegada a hora. Como o verdadeiro estrategista que era, Filipe sempre soubera quando devia esperar e quando agir. Poderia haver quem dissesse que ele tinha sido excessivamente cauteloso, mas pessoas esclarecidas sabiam que ele estava invariavelmente certo.
Portanto, quando João chegou a Rouen, foi recebido por mensageiros tranquilizadores, enviados por Filipe, que o informaram de que o rei da França instara com os Lusignan para que acabassem com a sua rebelião até que ele e o rei da Inglaterra se tivessem encontrado e chegado a algum tipo de acordo.
Inflado de orgulho depois da recente escaramuça triunfante com os barões, João acreditou, erradamente, que Filipe estava com medo dele e concordou em se encontrar com o rei francês em Lês Andelys.
Quando a reunião aconteceu, Filipe foi delicado e convidou João e sua bela mulher a irem a Paris.
Isabella maravilhou-se com o luxo da corte da França. Filipe foi muito cortês e estava decidido a fazer com que eles aceitassem sua amizade.
- Vocês têm de ficar com o melhor de todos os aposentos disse Filipe. - Sim, não quero ouvir falar em outra coisa. Meu irmão João e sua bela mulher terão meu palácio real e eu, com a minha corte, irei me deslocar para uma de minhas outras residências.
Aquilo deixou João encantado. Estava ansioso por exibir Isabella ao seu rival, que se confessava dominado pelos encantos dela. A rainha da França, de quem Filipe estava profundamente enamorado, já que estava enfrentando a ira do papa ao ficar com ela, pareceu a João uma pobre criatura em comparação com Isabella, embora sem aquela estrela brilhante ela fosse bem bonita.
Isabella, desfrutando da admiração dos franceses, vendo coisas novas todos os dias, levando uma vida de completa agitação, deixou de pensar em Hugo, o Moreno, só para se lembrar, de vez em quando, de como a vida seria insípida se tivesse se casado com ele.
Ela adorou Paris com seus prédios imponentes, seu rio, seu povo que não era diferente do de sua Angoulême natal. Havia banquetes no palácio quase todos os dias; e ela dançava e cantava sob o aplauso de todos.
O rei da França a lisonjeava e cumprimentava João por ter conseguido uma esposa tão bonita. João envaidecia-se e, rindo, explicava como havia ludibriado os Lusignan e dizia que, tendo visto Isabella na floresta, ficara decidido a se casar com ela.
- Está claro que você não ficou desapontado - disse o rei da França.
- Jamais conheci uma mulher capaz de tamanha habilidade
- disse-lhe João. - Jovem assim... e virgem quando me casei com ela... e no entanto é tão bem versada na arte quanto uma prostituta experiente... mas com inocência original, se é que me compreende.
- Todos nós compreendemos que é preciso uma habilidade excepcional para mante-lo na cama até o meio-dia - disse o rei da França.
João soltou uma gargalhada.
- com que então estão comentando sobre isso, não?
- Ouvi falar - disse Filipe.
- Por que não? Não conheço maneira melhor de passar o tempo.
Filipe fez um gesto afirmativo com a cabeça e pensou: por quanto tempo você vai manter as suas possessões, João? Não estou prevendo muitos anos. Então vai aprender, irmão, que um rei precisa ter outras maneiras de passar o tempo que não na cama.
Filipe estava encantado. A cada dia que passava, via seu objetivo mais perto.
À mesa, conversava com João sobre assuntos sérios. Isabella estava presente, e João estava ciente de pouca coisa mais, segurando-lhe uma das mãos num determinado
momento, acariciando-lhe a pele macia... lançando-lhe mensagens com os olhos, às quais ela respondia, lânguida.
bom, pensava o rei da França. Vai ser como eu quero. Ele não vai se importar, desde que possa ir para a cama com a mulher.
- É um erro entrar em combate contra os Lusignan - disse ele. - As guerras desnecessárias devem ser evitadas.
João concordou, sonolento.
- Eles se levantaram contra mim.
- com razão - disse Filipe. - Dificilmente você poderia esperar que ficassem passivos quando uma jóia valiosa como essa lhes foi roubada. João riu.
- Essa jóia valiosa seria desperdiçada com Hugo, o Moreno.
- É bem possível - disse Filipe. - Por que não leva os Lusignan a um julgamento? Eles fomentaram uma rebelião. Reabriram sua disputa com Angoulême. Ralph causou problemas na Normandia. Leve-os a julgamento por se esquecerem do juramento de vassalagem a você e causarem problemas que poderiam ter resultado numa guerra.
João odiava que alguém lhe dissesse o que fazer. Ele tinha capacidade para governar sem a ajuda de Filipe, e iria fazer com que Filipe soubesse disso. Mas ir à guerra não era o que ele queria. Isso iria significar que Isabella não poderia acompanhá-lo. Aquilo era inconcebível.
Por isso, iria concordar com Filipe; e quando tivesse os Lusignan sendo julgados, providenciaria para que fossem declarados culpados de traição e iria sentenciá-los a provar sua inocência lutando num duelo com adversários que deveriam ser escolhidos. Aquele era um método perfeitamente legal de se resolver disputas. Acreditavase que, se um homem fosse inocente, Deus estava do seu lado. Se ele fosse culpado, seria derrotado, porque Deus estaria do lado do adversário. João mantinha um grupo de duelistas experientes que nunca tinham sido derrotados, e se quisesse livrar-se de um inimigo, fazia cem que ele fosse condenado a um desses duelos, sabendo que era invariavelmente uma boa maneira de se livrar dele, pois por mais habilidoso que fosse com a espada, parecia muito difícil que pudesse ser melhor do que um homem que passava o tempo todo treinando a arte pela causa do rei.
A sentença do duelo era preservada para homens de alto nível. Havia outros métodos menos aristocráticos de aplicar o mesmo princípio - como mergulhar a mão do acusado num balde de água fervendo para apanhar um objeto qualquer que tinha sido colocado no fundo do balde. Se a mão avariada gangrenasse depois, o homem era considerado culpado. Havia outro castigo, no qual um homem nu, com mãos e pés amarrados, era atirado num rio ou em qualquer local próximo que contivesse água. Boiar naquelas circunstâncias significava que ele estava sendo apoiado pelo demónio, e o homem era imediatamente retirado da água e executado; afundar significava que ele não estava recebendo aquele tipo de ajuda, e ele era resgatado. Se a tempo, tudo muito bem; caso contrário, ora, morria de qualquer maneira. Aqueles castigos existiam desde a velha era pagã, mas ninguém achara necessário mudá-los.
Assim, quando João concordou com o rei da França em levar Hugo, o Moreno, aos tribunais, onde ele próprio estaria ao lado dele para que a causa dos dois fosse julgada, não tinha intenção alguma de comparecer; e havia decidido que iria condenar Hugo e certos membros da família a enfrentarem duelistas que seriam escolhidos para isso.
A DUQUESA Constance estava deitada na cama, sentindo-se exausta. Dera à luz uma filha, a princesa Alice, e desde que a criança nascera sentia suas forças esvaindo-se lentamente.
Estava apática, imaginando o que o futuro lhe reservava, e com ela estava a certeza de que não estaria ali para vê-lo. A criança estava no berço, uma garotinha saudável; o terceiro de seus filhos. O que seria daquela pequenina? Não haveria, a respeito de sua herança, a tempestade que houvera em relação à de Artur - sim, e até de Eleanor, pois Eleanor era neta de Henrique II, e como tal, em certas circunstâncias, poderia ser a herdeira da Inglaterra, da Normandia e de Anjou.
Constance agitou-se, inquieta, e a filha, que estivera sentada junto à janela, aproximou-se logo da cama.
- Precisa de alguma coisa, mamãe? - perguntou ela.
- Não, filha. Mas se sente e converse comigo um pouco.
- A senhora não devia poupar suas forças?
- Para quê, minha filha... para a morte?
- Não fale assim, mamãe. A senhora vai ficar boa. Foi apenas um parto difícil que a esgotou.
- Sempre acreditei que se deve enfrentar a verdade, por mais desagradável que seja. Espero que você faça isso, Eleanor.
- Vou tentar, mamãe.
- Fico aqui deitada e penso em como vai terminar. Tenho temores terríveis em relação a Artur. Às vezes, minha mente mergulha em melancolia. Não sei exatamente por quê, mas é como uma previsão terrível.
- É por estar fraca, mamãe, que a senhora se sente assim.
- Não, não é isso. É como se eu pudesse dar uma olhadela no futuro e ver o horror lá.
- Se falar sobre seus temores a deixa aliviada, mamãe, pode falar.
- Como posso falar daquilo que não compreendo? Eu o vejo ali, e você e João estão no centro. Talvez seja o castigo pela minha ambição. Fiquei tão encantada quando me casei com seu pai, porque ele era filho de um rei e eu esperava que um dia Artur fosse ocupar o lugar dele.
- Pode ser que ocupe. Constance balançou a cabeça.
- Mamãe, o que foi que aconteceu com a senhora? Sempre acreditou que um dia Artur teria aquilo que era dele por direito.
- Sim, eu acreditava nisso e trabalhei nesse sentido. Seu padrasto Guy trabalhou por isso. Ouça os conselhos dele, Eleanor, depois que eu tiver ido embora.
- A senhora não vai morrer - disse Eleanor, com firmeza. Constance sorriu.
- Quem dera que você e Artur fossem um pouco mais velhos. Eu gostaria de ter vivido mais cinco anos. Isso era tudo o que eu pediria.
- A senhora ainda é jovem e está recém-casada. O que acha que seu marido iria dizer se a ouvisse falar assim?
- Ele vai sofrer muito por mim, Eleanor. Ele me ama de verdade.
- Claro; como eu e Artur.
- Eu sei. E é porque eu os amo todos muito que me dói tanto deixá-los. Eleanor, ouça os conselhos de Guy. Tome conta de seu irmão. Oh, eu sei que ele é um duque e se considera um homem. Mas tenho muito medo de João.
- Sim, mamãe, eu sei. Nós também.
- João é um monstro. Ele tem suas loucuras, mas não as subestime, minha filha. Neste exato momento ele está com o rei da França. O que acha que estão tramando?
- Filipe é nosso amigo, mamãe, e não de João.
- Você não deve confiar em reis, filha. Filipe é nosso amigo hoje, e de João amanhã. O desejo de Filipe é tomar para si o que João agora possui e que por direito pertence a Artur. É este o papel de Filipe nisso tudo.
- Ele tem sido bom para Artur.
- Só para atender a seus propósitos. Eu gostaria de ver Artur sozinho, com exércitos poderosos atrás dele. Gostaria de ver ele e Guy cavalgando juntos para a vitória.
- Ela virá.
- Eleanor, proteja seu irmão. Não o deixe ficar demasiado confiante, em especial com relação ao seu tio João.
Eleanor jurou que faria tudo ao seu alcance para cumprir o desejo da mãe, mas insistiu que Constance estaria em breve se levantando da cama e fazendo tudo como antes. Ela estava simplesmente sofrendo da depressão que muitas vezes se segue ao parto.
Durante mais ou menos uma semana, parecia que era isso mesmo, e então um dia o estado de Constance mudou para pior. Ela mandou chamar Artur, Eleanor e Guy.
- Isto é mesmo o fim. Meus queridos, cuidem uns dos outros - pediu ela.
Eles se ajoelharam ao lado da cama: Artur, que tinha apenas treze anos, Eleanor, que não era muito mais velha, e Guy, que a amara durante anos e se casara com ela havia muito pouco tempo.
Assim morreu a mãe de Artur, e naquele dia o jovem duque perdeu sua melhor amiga e conselheira.
João estava em Chinon com Isabella. Divertia-o pensar em como os Lusignan deviam estar angustiados por tê-lo tão perto deles assim. Comentou isso com Isabella, rindo, enquanto os dois se achavam juntos na cama.
- Aposto que vão manter uma vigilância atenta na torre. Imagine, querida, eles não vão saber se de um dia para outro estarei atacando-os com uma força vingadora. Hugo estará tremendo de medo.
Isabella franziu o cenho.
- Ele não costuma tremer - disse ela.
- Oh, então você o defende?
- Eu digo a verdade - respondeu ela um pouco desafiadora.
- Você não passa de uma criança. O que sabe sobre essas coisas?
- Conheço o Hugo melhor do que você. Você se esquece de que vivi no castelo dele por uns tempos.
- Não me lembre disso, senão posso ter um acesso de raiva. Você já viu a minha raiva... uma vez. Antes de ter você, eu estava sempre tendo esses acessos.
- Então eu lhe trouxe algum bem, pois confesso que quando você se deita no chão e se debate, parece estar... louco.
Ela se ajoelhara na cama, os cabelos caindo-lhe pelos ombros. Ele ficou deitado, deleitando-se com a visão. Agarrou o pulso dela.
- Está tentando me irritar, minha pequena Isabella?
- Tenho de dizer a verdade - retrucou ela.
- Mulherzinha virtuosa. Também vou dizer a verdade e lhe dizer que não gosto de ouvi-la defendendo Hugo.
- Não o defendo. Digo que ele não é covarde. Pergunte a quem quiser. Vão lhe relatar a mesma coisa. Ele não tem medo de homem algum, nem de você nem do rei da França, e se você acha que ele está tremendo de medo, eu lhe digo que não acredito.
João a puxou para deitar-se a seu lado.
- Se você não fosse tão bonita, eu poderia ficar zangado com você.
- Por que eu iria me preocupar com isso, quando sou bonita o suficiente para distrair a sua raiva? vou lhe dizer uma coisa: mesmo que não fosse bonita, ainda assim eu diria o que penso.
- Esta rainha da Inglaterra tem espírito.
- Gostaria que ela fosse diferente? - perguntou ela, inclinando-se sobre ele e encostando o rosto macio no dele.
João a colheu num abraço apertado.
- Eu não gostaria que ela fosse diferente do que é.
- Foi o que pensei.
Mais tarde, porém, ele se lembrou de que ela falara com um entusiasmo excessivo em favor de Hugo, e não ficou satisfeito.
Haveria uma visita a Chinon. Era a rainha Berengária. Ela soubera que o rei estava repousando lá e iria visitá-lo e à sua rainha.
- Pobre Berengária! - disse João a Isabella. - Ela teve uma vida triste com Ricardo. Ele era um homem estranho. Não ligava para mulheres. Você não teria gostado disso, minha Isabella, teria?
- Talvez ele tivesse sido diferente se eu tivesse sido a sua rainha.
- Que vaidade! Não, Ricardo escolhia seus amores entre os rapazes menestréis. Você conhece a história de Blondel. Andei desejando que lhe tivessem cortado a língua antes que saísse cantando pelos castelos da Europa.
- Você não gostava de seu irmão?
- Gostar de Ricardo, que me tirou o trono quando meu pai o havia prometido a mim!
- E Ricardo o prometeu a Artur, em determinado momento. Pobre João, você foi maltratado.
- Ah, mas me saí bem, não acha?
- Saiu-se.
- E garanti o maior prémio do mundo... tirei-o bem de baixo do nariz daquele Hugo de que você fala tão bem. Por quê? O que aconteceu para que o defenda com tanto entusiasmo? Por Deus, se ele tocou em você alguma vez, mando esfolá-lo vivo.
Ela riu para ele, provocante.
- Não se esqueça de que eu era noiva dele.
- E ele se aproveitou disso? Você era virgem quando veio para mim, isso eu juro.
- Ah, era. Eu era virgem, mas uma virgem um tanto contra a vontade.
- Quer dizer... que tentou seduzi-lo e ele não quis saber de coisa alguma?
- Ele é um homem que você não poderia entender, João.
- E você compreendia?
- Sim, compreendia. Ele me achava criança demais e nunca me tocou.
- Diferente de mim, eh?
- Tão diferente quanto possível.
- E agora eu o tenho nas mãos, Isabella. Ele será levado ao tribunal e lá será sentenciado a lutar um duelo, e providenciarei para que ele não seja o vencedor.
- Você tem medo dele?
- Medo de um conde menor! O que quer dizer?
- De que eu possa gostar mais dele do que de você.
Ela se excedera. Havia visto as luzes vermelhas nos olhos dele. Correu os lábios pelo rosto dele e murmurou:
- Será que você seria tão bobo assim? Pobre Hugo, se ele pu desse ouvi-lo agora.
Ela sabia como excitá-lo, e assim o fez.
Houve uma ligeira alteração no relacionamento dos dois. Isabella já não era a criança que se maravilhava com tudo que lhe acontecia; estava considerando como ponto pacífico grande parte da pompa e do luxo, e da excitação sexual. Tinha vontade própria e nunca se vira diante de uma oposição séria.
Mas sabia que João era capaz da maior crueldade. No momento, ele nada queria, a não ser Isabella; no entanto, quando falara de Hugo e acreditara por um instante que ela estava mais interessada em seu ex-noivo do que ele gostaria que estivesse, houvera uma tal crueldade doentia momentaneamente revelada em sua fisionomia expressiva que ela sentiu um tremor de alarma.
Foi um prazer receber Berengária.
Isabella a chamava de "Pobre Berengária". Que vida triste, a dela! João zombava de seu relacionamento com Ricardo, quando Berengária sempre estivera observando e tendo esperanças, e Ricardo a ignorando.
Ela também estava triste, mas ficou nitidamente impressionada com a extraordinária beleza de Isabella.
As duas conversavam nos aposentos de Isabella, e Berengária disse estar muito satisfeita ao ver João tão feliz no casamento.
- É maravilhoso sentir uma felicidade como a que você deve estar sentindo - disse Berengária, pensativa. - É óbvio que o rei está profundamente apaixonado por você. Você é muito jovem. É possível que ainda não tenha feito quatorze anos?
- É verdade - respondeu Isabella. - Mas acredito que estou adiantada para a minha idade.
- Teria de ser... tão jovem e já casada. Eu era muito mais velha do que você quando me casei.
Isabella ficou imaginando como ficaria quando tivesse a idade de Berengária.
Era agradável desfrutar da admiração dela. Ao mesmo tempo, havia algo de deprimente em relação à rainha de Ricardo. Era evidente que se tratava de uma mulher infeliz, e ela gostava demais de falar no passado. Estava sempre trazendo a irmã de João, Joana, à baila, e Joana estava morta - morrera de parto. Aparentemente, ela e Berengária tinham sido grandes amigas.
Falar de mulheres morrendo de parto não era um assunto agradável para uma jovem esposa, embora João tivesse dito que não queria filhos por enquanto, porque eles iriam estragar o corpo de Isabella e ele gostava dele tal como era.
Berengária explicou a João a situação desesperadora em que se encontrava. Ela se instalara em Lê Mans, que fazia parte de seu dote, mas possuía terras na Inglaterra e esperava que João a recompensasse por elas.
João foi amável: como sempre, estava muito pronto a prometer, porque jamais considerava necessário honrar as promessas.
- Minha querida irmã, pode estar certa de que farei o que puder para ajudá-la - disse ele. - Vejamos o que posso fazer. Você ficará com Bayeux e há dois castelos em Anjou que serão seus. É muito justo que sejam. Ricardo teria desejado isso - acrescentou ele, piedoso.
Berengária chorou um pouquinho.
- Eu gostaria que Ricardo pudesse ouvi-lo falar agora - disse ela. - Acho que ele não pensava que você fosse ser tão bom para mim.
- Eu estou acostumado a ser difamado - replicou João. Claro que fui rebelde na juventude. Qual o homem que se diz homem que não o foi? Mas com as responsabilidades, a pessoa muda. Resolvi dar a você mil marcos por ano.
Berengária beijou-lhe a mão e lhe disse que Deus iria recompensá-lo.
- Porque, se não fosse você, eu seria pouco mais do que uma pobre miserável e não teria outra alternativa senão atirar-me à mercê de minha família. Eu tinha pensado em ir morar com Blanche, minha irmã, mas por mais que a ame, iria odiar aceitar a subvenção dela.
- Pode confiar que providenciarei para que sua subsistência esteja garantida.
Quando saiu de Chinon, Berengária se despediu com carinho de João e sua jovem rainha.
- Eu gostaria de saber o que será dela - disse Isabella, enquanto os dois a viam se afastando.
- Ela irá morar com a irmã, Blanche de Champagne - disse João com um sorriso, pois não tinha intenção alguma de dar a ela o que prometera. Por que iria dar?, raciocinava ele. Que a irmã a sustentasse.
- Ricardo nunca foi um marido para ela - disse Isabella. Ela deve ter sido muito infeliz.
João agarrou-lhe os braços, aproximando bem o rosto do dela.
- O que você teria feito, minha desejosa e desejável criatura, se tivesse se casado com Ricardo?
- Arranjado amantes - respondeu ela de imediato.
Ele soltou uma gargalhada, mas se lembrou disso mais tarde.
Quando chegou o dia de João se encontrar com os Lusignan num tribunal montado pelo rei da França e presidido por ele, João não compareceu.
Era exatamente isso que Filipe esperava que acontecesse. Ele se aproveitara da trégua entre eles e estava preparado para entrar em ação. Ao não comparecer, João estava dando a Filipe a desculpa de que ele precisava para atacá-lo. Como vassalo de Filipe por causa da Normandia, ele insultara o rei ao desprezar seus desejos.
João, disse Filipe, tinha de receber uma lição.
Mandou um emissário à Bretanha pedindo que Artur comparecesse à sua presença, para que Filipe o ordenasse cavaleiro e aceitasse sua fidelidade como conde de Anjou, duque da Bretanha e de todas as terras, com a exceção da Normandia, que agora estava nas mãos de João.
Guy de Thouars, percebendo que isso significava que Filipe estava agora disposto a ajudar Artur contra João, viajou na maior alegria com seu jovem enteado para se encontrar com Filipe.
Aquele foi o sinal para que os inimigos de João se levantassem; e os Lusignan foram se encontrar com Artur em Tours, e ali juraram seu apoio a ele em seus esforços no sentido de tirar de João não apenas suas possessões continentais, mas também a coroa da Inglaterra.
Na abadia de Fontevrault, a idosa Eleanor descansava depois da cansativa viagem a Castela. Ela podia se congratular consigo mesma pelo fato de que, embora a viagem tivesse prejudicado ainda mais a sua saúde, tinha sido um sucesso e sua neta estava realmente casada com o filho do rei da França. Ela jamais deixara de perceber que era naquela direção que estava o verdadeiro perigo.
João estava mais ou menos firme no trono da Inglaterra; se pudesse manter uma mão forte sobre suas possessões continentais, iria atravessar aquele perigoso período que se seguia à ascensão ao trono. Estava casado com uma bela mulher jovem, e se tivessem filhos homens o povo ficaria feliz ao ver a sucessão garantida. A ameaça vinha de Artur, é claro; mas agora que Constance havia morrido, ele devia ter perdido um certo apoio. Eleanor não podia se lamentar pela morte de Constance, uma mulher pela qual sempre tivera antipatia. Talvez Constance fosse demasiado enérgica, e parecida com ela, Eleanor. Olhando o passado, era fácil compreender que ela quisesse que o filho tivesse aquilo que ela considerava serem direitos dele, e havia muita gente que teria concordado com Constance. Afinal, o filho dela era filho de um primogénito. Constance cometera um erro de julgamento quando se recusara a permitir que Artur fosse educado na Inglaterra.
Cometera ela um erro? Estaria Artur vivo se ela tivesse permitido?
Eleanor sempre se orgulhara de nunca fazer vista grossa para a realidade. O que fazia agora? Estaria sendo como Henrique, recusando-se a ver o óbvio? Ela dera seu apoio a João porque ele era seu filho e representava mais para ela do que o neto - e além do mais, lá no fundo havia sua antipatia por Constance. Prometera a si mesma que nunca deixaria aquela mulher governar; e como Artur era menor de idade, sob a influência da mãe, parecia uma conclusão provável que se algum dia ele se tornasse rei, Constance seria realmente o poder por trás do trono.
Ora, Eleanor dera seu apoio a João, e o mesmo fizera Guilherme Marechal; e com dois adeptos desse porte, ele ganhara a coroa. Agora, era sua responsabilidade mante-la; e Eleanor fizera por merecer um descanso.
Era estranho que a sua ideia de prazer, agora, fosse ser ficar até tarde na cama, ouvir os sinos tocando, participar da vida da abadia, comparecer às orações, entregar-se à meditação, recolher-se cedo, ler, repousar, dormir. Era a isso que se chegava aos oitenta anos.
Não que ela se tivesse tornado piedosa. Sempre fora demasiado honesta consigo mesma para isso. Ela podia dizer: "Sim, levei uma vida pecaminosa, e teria sido melhor para outros e para mim mesma, também, se eu tivesse praticado a virtude." "Mas Deus", dizia ela, "o Senhor me fez tal como sou. Não devia reclamar. Se o Senhor quisesse que eu fosse diferente, não deveria ter me enviado para o mundo com o físico com que vim."
Tentando encontrar alguma virtude em si mesma, ela poderia dizer com sinceridade que tinha adorado os filhos e trabalhado de forma inabalável para o bem deles. Muito embora Ricardo tivesse sido seu favorito, ela jamais faltara a nenhum dos outros. E pensar que ela viveu mais do que tantos deles, de modo que de cinco filhos homens adorados, só restara João!
João, rei da Inglaterra, estava bem casado e profundamente enamorado de uma jovem esposa; em breve, os dois iriam dar-lhe um neto. Ela podia descansar em paz.
Mas isso não aconteceria. Era por culpa dela mesma, Eleanor seria a primeira a admitir. Embora quisesse viver tranquilamente, devia saber o que estava acontecendo, e despachou algumas de suas criadas com a tarefa de descobrir o que as pessoas comentavam ou se havia uma revolta em algum lugar, e voltar para dar-lhe as informações.
Foi assim que soube que os Lusignan estavam se revoltando. Isso já era esperado. Tratava-se de uma família orgulhosa e que por natureza não iria aceitar com docilidade uma ofensa. Que eles iriam causar problemas para o conde de Angoulême era certo, mas isso era uma questão sem importância que deveria ser fácil de resolver. Havia mais do que isso.
O rei da França havia reverenciado Artur, o que significava que ele o estava convidando a pegar em armas contra João. Filipe estava em marcha; já assaltara as fronteiras da Normandia e um ou dois castelos haviam caído diante de suas forças. Os Lusignan estavam unindo forças a Artur e Guy de Thouars, e estava se formando uma poderosa revolta contra João.
Chegaram outras notícias. Filipe estava avançando Normandia adentro, estando a dezesseis quilómetros de Rouen.
Como poderia Eleanor permanecer em Fontevrault quando tamanho desastre ameaçava seu filho? Perspicaz, com o discernimento nascido de uma longa experiência, sabia que havia trabalho para ela. Precisava defender a Aquitânia para João, caso contrário os Lusignan e Artur iriam toma-la.
Os dias de paz haviam acabado. Não importava que estivesse velha, as juntas endurecidas, e que seu corpo clamasse por um descanso. Não teria sido Eleanor se não tivesse se preparado para uma viagem, e naquele dia partido para Poitiers.
Lá, ela se propunha a fortificar o castelo e defendê-lo contra os invasores.
Esqueceu-se de que estava velha. O espírito de luta permanecia forte como sempre, e no íntimo sentia-se feliz por estar outra vez no centro dos acontecimentos.
Artur, com o padrasto, Guy de Thouars, e um formidável exército atrás de si, tinha chegado à cidade de Tours, onde passou a noite descansando no castelo. Desde que a mãe morrera, ele se tornara mais autoconfíante. Agora tinha de tomar suas próprias decisões sem ter a mãe para lembrá-lo de que, afinal, não passava de um garoto. As pessoas que o cercavam tinham-se tornado mais respeitosas; dirigiam-se a ele, enquanto que antes se dirigiam à sua mãe, e Artur estava percebendo o quanto era importante e sentia prazer com a nova posição.
Por ser muito jovem, tinha tendência a se dar uma aura de autoridade para lembrar as pessoas de sua importância, para evitar que se esquecessem. Até a atitude de Guy para com ele mudara depois da morte de sua mãe. Era grande a sua herança, que lhe fora roubada pelo tio malvado.
- Mas vamos recuperar o que foi roubado - declarou Artur.
- Fique certo de que é esta a nossa intenção - bradou Guy.
- Prometi a sua mãe servir você com a própria vida, e é isso o que farei.
A irmã de Artur, Eleanor, ainda lamentando a morte da mãe, uniu-se a eles e perguntou se havia alguma notícia.
- Minha querida irmã, você não devia estar conosco - disse Artur. - Isto aqui não é lugar para mulheres.
- Bobagem, Artur - retrucou Eleanor -, quero ficar com você e Guy, e vou ficar.
- Podíamos proibi-la de ficar - lembrou-lhe Artur.
Ela sorriu e lhe disse que embora ele pudesse ser o duque da Normandia, conde de Anjou e rei da Inglaterra, bem como duque da Bretanha, ainda era seu irmão.
Artur franziu o cenho, contrariado. Todos deveriam compreender como ele havia deixado a infância para trás. Todos, enfatizou ele.
Eleanor passou o braço pelo dele.
- Que ares de importância você tem assumido ultimamente, irmão!
- Artur está ficando mais cônscio de sua posição a cada dia que passa - disse Guy. - Daqui seguiremos para Poitiers. Eleanor, Artur tem razão. Você não devia estar com o exército.
- Para onde eu iria? - perguntou Eleanor. - Para a Bretanha? Para ficar lá imaginando o que está acontecendo a todos vocês? Eu não suportaria. Agora que mamãe se foi, quero ficar com você e Artur.
- Nós a mandaremos embora se houver quaisquer sinais de luta - disse Artur. - Não quero minha irmã correndo perigo.
Guy sorriu para ela. Deixe o menino fazer o que quiser, deu ele a entender. Está certo que ele sinta a sua posição, pois um dia será um governante e deve se preparar para isso.
Enquanto conversavam, chegaram mensageiros com a notícia de que a rainha Eleanor partira de Fontevrault e estava a caminhe de Poitiers.
- Não se deve deixar que ela chegue lá - bradou Artur porque, se chegar, a Aquitânia inteira se levantará para
ajudá-la. Ela pode ser minha avó, mas não é minha amiga.
- É difícil ser amiga de um neto se isso significa ser inimig de um filho - lembrou-lhe Eleanor. - Que pena que tenha de haver essas rixas nas famílias!
- Não adianta ficar sentimental - disse-lhe Artur, ríspido. Voltou-se para Guy: - O que vamos fazer a respeito de minha avó?
- Como você diz, temos de evitar que ela chegue a Poitiers, e isso significa que não podemos perder tempo e temos de correr atrás dela.
- Então, por que estamos perdendo tempo? - perguntou Artur, imperioso.
Foi uma viagem difícil. com muito poucos auxiliares, tudo o que conseguira reunir num prazo tão curto como aquele, a rainha Eleanor cavalgara de Fontevrault com a velocidade possível. Sentiu-se exausta no fim do dia, e quando lhe levaram a notícia de que Artur a estava perseguindo de um lado e os Lusignan estavam chegando pelo sul para unir-se a ele, ela disse que precisavam refugiar-se imediatamente e, se possível, defender-se. O castelo de Mirebeau ficava perto.
- Vamos seguir para lá - disse Eleanor - e mandar avisar meu filho João de que estou sendo perseguida. Estou certa de que então ele virá me salvar sem demora.
Foi recebida no castelo por amigos leais, e ao perceberem o perigo se prepararam para um cerco. Eleanor não estava muito perturbada.
- Sinto-me velha demais para entrar em pânico - disse ela.
- Se me matarem, eu morro, que é o que eu esperava fazer em breve, embora na minha cama. E se me fizerem prisioneira, ora, será uma prisão por pouco tempo. Mas sei que meu filho virá a toda velocidade quando souber da dificuldade em que me encontro.
Foi para a torre de menagem e ficou olhando de uma janela. Não demorou muito e viu o exército que se aproximava, chefiado pelo neto.
Eleanor sabia que o castelo não poderia resistir por muito tempo porque era mal defendido e não estava preparado para um cerco, e num espaço de tempo muito curto os homens de Artur haviam penetrado no pátio.
Ela localizou o neto. Como é jovem, pensou. Um menino! Não podia ter mais de quinze anos. É muito pouco para ter de tomar decisões, ter de lutar por uma coroa, pensou ela.
Mas era um menino de aspecto nobre - um menino do qual uma avó podia se orgulhar. Um pouco imperioso, talvez. Isso era natural, pois uma responsabilidade demasiado grande lhe havia sido atirada aos ombros numa idade muito tenra, e ele fingia bem ser capaz de arcar com ela.
O filho de Geofredo! Como se parecia com o pai! E agora estava órfão. Pobre Artur, qual seria o seu destino?
Ele era o inimigo, claro. A qualquer momento, seus homens irromperiam na torre de menagem e ficariam frente a frente com ela. Esperava que eles a deixassem falar com Artur, e tentaria explicar-lhe que não guardava animosidade alguma para com ele; estava simplesmente seguindo um princípio, porque achava que seu filho João tinha mais direito ao trono.
Artur ergueu o olhar e a viu à janela. Sua respeitável avó, da qual tanto ouvira falar! Ficou pensando no que iria dizer-lhe quando derrubassem a última porta, e ele se visse diante dela.
Sentiu-se indeciso. Talvez fosse pedir a Guy que a fizesse prisioneira. Seria melhor, partindo de Guy; e a prenderiam num lugar onde não pudesse mais trabalhar em favor de João e fazer com que o povo da Aquitânia se levantasse para apoiá-la.
Mandou que cessassem a luta. Hugo de Lusignan e Guy perguntaram quais eram as suas ordens, agora que estavam no momento de alcançar seu objetivo.
- Capturamos a rainha-mãe - disse ele. - Mas se arrombarmos a porta da torre de menagem, o que faremos com ela?
- Poderíamos seguir em frente - disse Hugo - para um de meus castelos, e mante-la lá, pois devemos manter sua prisão em segredo.
- Vamos fazer isso amanhã - disse Artur. - Os homens estão cansados. Vamos passar a noite aqui e partir ao amanhecer.
Os dois homens concordaram que aquilo parecia uma boa ideia, e os soldados ficaram muito satisfeitos com a decisão. Poderiam servir-se de alimentos da cozinha e de vinho das adegas. Haviam cavalgado uma grande distância e lutado com violência, e o objetivo tinha sido alcançado, com a rainha-mãe sua prisioneira. Mereciam gozar de algumas horas de descanso antes de voltarem ao serviço.
E assim a noite passou.
Na torre de menagem, Eleanor esperava, a princípio na expectativa de ficar frente a frente com o neto, ou com Hugo ou Guy, e receber instruções para se preparar para a viagem para onde quer que a fossem levar.
Será, pensou ela, que vou ser presa outra vez? Pensando bem, era uma ironia. Primeiro, o marido, e agora, o neto. Ela teria gostado de ter uma palavra com Artur. Talvez isso lhe fosse concedido.
Não conseguiu dormir, o que era de se esperar naquelas circunstâncias. De qualquer maneira, lembrou-se de que os velhos não precisavam dormir muito.
Onde estava João? Será que recebera o pedido de ajuda que ela lhe enviara? Será que ele viria a toda velocidade, ou seria incapaz de se afastar de Isabella? Se ela estivesse com ele, a resposta seria "não".
Seria interessante descobrir. A vida era sempre cheia de interesses, ou pelo menos era o que Eleanor pensava; aquele era o segredo de sua capacidade de gostar de estar viva enquanto era suficientemente filosófica para estar preparada para morrer.
Artur ficou acordado, mas só por pouco tempo. Aquilo era uma vitória. O ato de capturar uma pessoa tão importante quanto sua avó iria mostrar ao mundo que, apesar de ser apenas um garoto, ele era também um general. Iria fazer planos e usar seus exércitos com eficiência. Tinha de mostrar-lhes que sabia agir, porque as pessoas não lhe davam muita importância, considerando-o apenas um menino. Muito em breve ele entraria em seu reino e seu tio perverso seria derrotado para sempre. Artur tinha amigos muito bons - seu futuro sogro, Filipe da França; Guy, seu padrasto, a quem sua mãe amara e que prometera servi-lo fielmente; e Hugo de Lusignan, que tinha seu ressentimento próprio contra João.
Artur dormiu em paz.
Hugo de Lusignan estava pensando em Isabella. Ela nunca se achava muito longe de seus pensamentos. Recordava-se repetidas vezes daquele dia terrível em que soubera do casamento dela com João. Hugo ficara perplexo, incapaz de acreditar que pudesse haver tamanha perfídia. E Isabella, que devia estar disposta, era na verdade apenas uma criança, e o pai devia tê-la forçado a cometê-la. Ela não podia ser condenada. Hugo pensou nos modos encantadores, na demonstração de afeto, na maneira sem jeito dela se agarrar a ele. Hugo se contivera contra o jeito encantador, lembrando-se do quanto ela era criança, e então aquele devasso a tirara e, apesar de se tratar de uma menina, casara-se com ela. Ele é que não tivera respeito algum pela tenra idade dela. As insinuações maliciosas haviam chegado até ele. Sabia que os dois ficavam na cama metade do dia.
Isabella! Jamais a esqueceria - sua juventude, seu charme, e a promessa que havia nela; jamais esqueceria, tampouco, que João o enganara e a tirara dele.
Sempre amaria Isabella, mas nunca iria culpá-la. E sempre iria odiar João.
Eles acordaram com o alvorecer.
- Não pode haver demora - disse Hugo. - Eu teria preferido ter partido ontem à noite.
- Assim que acabar o desjejum, partiremos - prometeu Artur.
Os criados entraram trazendo torta de pombo, que daria um excelente desjejum.
- Vamos comer depressa e partir - disse Hugo.
- Quando eu acabar - disse Artur -, vou procurar minha avó e dizer-lhe para se preparar para partir e que ela será nossa prisioneira.
Mas não fez isso, porque enquanto ainda estava à mesa veio um grito lá de fora. Um exército estava se dirigindo para o chateou Mirebeau.
Quando João soube que a mãe, que estava indo para Poitiers a fim de defender a Aquitânia para ele, estava sendo perseguida por Artur e Hugo de Lusignan, agiu com uma presteza que lhe era rara.
Viu logo a importância daquilo. Se Eleanor fosse capturada, ele poderia perder a Aquitânia, e que ânimo aquilo daria a seus inimigos! Filipe penetrando na Normandia com Artur e Hugo no sul, iria colocá-lo numa situação muito incómoda.
Tinha de salvar a mãe de qualquer maneira.
A noite toda, cavalgou com o seu exército e quase ao amanhecer chegaram a Mirebeau. Foi grande a sua satisfação ao descobrir que o inimigo ainda estava lá.
Tomaram o castelo de assalto. Foi uma vitória fácil, pois as forças de João eram muito superiores às de Artur e Hugo. Para seu regozijo, Artur, sua irmã Eleanor e Hugo, entre outros, foram feitos prisioneiros, e o próprio João subiu ao alto da torre de menagem para escoltar a mãe a um lugar seguro.
Os olhos da velha rainha brilhavam de satisfação. Finalmente, João estava se portando como filho dela. Sentiu-se orgulhosa dele.
Aquela foi a maior vitória de João. Guilherme Marechal, que o havia acompanhado, perdeu grande parte da angústia que sentira desde que insistira em apoiar a reivindicação do trono por parte de João. Afinal, João estava provando que era um rei. Não poderia ter havido um resultado melhor. Dois dos mais importantes líderes da revolta contra ele estavam em suas mãos.
- Não podemos perder tempo. Temos de fazer com que Filipe saiba logo que Artur é seu prisioneiro - disse ele.
- Filipe será informado imediatamente.
- E Ralph de Lusignan deverá ficar sabendo que seu irmão Hugo está em suas mãos.
João lambeu os lábios de satisfação ao pensar naquilo.
- O trabalho do dia de hoje nos poupou muitas batalhas, disto não tenho dúvidas - disse o Marechal.
João sentia-se orgulhoso. Era o tipo de batalha de que gostava - rápida e decisiva, e trazendo a vitória no final.
Abraçou a mãe, que o cumprimentou pela rapidez com que agira. O elogio dela o encantou, replicou ele. E se estava orgulhosa dele, João estava duplamente orgulhoso dela. Porque ela procurara salvar o seu ducado, e ele sabia que a mãe estava cansada e ansiava por um descanso.
- Pode estar certo de que se precisassem de mim, eu me levantaria de meu leito de morte - respondeu Eleanor.
Eleanor se despediu de João; aquilo que se dispusera a fazer já não precisava ser feito. A Aquitânia estava salva, porque Artur e Hugo já não tinham condições de ameaçá-la.
- Daqui a pouco, todo mundo ficará sabendo - disse João. Eleanor voltou a Fontevrault para descansar, pois agora que a penosa experiência acabara, ela percebia o quanto aquilo a exaurira.
Depois que ela partiu, João se preparou para voltar à Normandia.
Estava animadíssimo. Havia dois prisioneiros sobre os quais ele queria tripudiar: um era seu sobrinho Artur, e o outro, Hugo de Lusignan.
Primeiro, mandou chamar Artur. Preparou-se com muito cuidado para a entrevista, e vestiu um manto de cetim vermelho decorado com ricas pedras preciosas; usou uma faixa na cintura incrustada de pérolas e diamantes, e o talabarte que segurava sua espada brilhava com esmeraldas. João estava uma figura impressionante.
Sentou-se esparramado numa cadeira. Não se importou em ficar de pé, pois estava bem ciente de sua baixa estatura e sempre se sentia melhor quando estava sentado.
Artur, que foi levado por dois guardas, fingiu indiferença, mas não conseguiu esconder o nervosismo.
João examinou-o com um olhar malévolo.
- Ah, meu jovem sobrinho que gostaria de ser rei. Como está a situação, Artur?
- Para mim, má, mas não será sempre assim.
João ergueu as sobrancelhas e, com calma, tirou as luvas, uma adornada com um enorme rubi, a outra com uma safira. Atirou-as, como quem não quer nada, sobre um banco.
- Você fixou suas esperanças um pouco alto, meu sobrinho.
- Acho que não.
- Bem, sem dúvida poderá meditar sobre o assunto na prisão.
- Então vai me mandar para a prisão.
- Para onde acha que devia mandá-lo? Para Westminster, para ser coroado rei?
- Não pensei nisso.
- Nisso mostrou algum senso. Por que não podia ser um bom menino contente com o seu muito agradável ducado da Bretanha?
- Porque tenho direito a outras possessões.
- Está se referindo às minhas? Tome cuidado, menino. Posso não gostar dessa conversa.
- Então, por que me traz até aqui, se não for para falar comigo?
- Espero que demonstre humildade, que caia de joelhos, que admita seu erro e peça clemência.
- Isso eu jamais farei.
- Não, se eu mandasse arrancar essa língua, você nunca poderia fazer isso.
Aquilo fez o garoto empalidecer. Não havia dúvida de que ouvira histórias sobre os métodos do perverso tio.
João gostou do medo dele. Semicerrou os olhos.
- Tome cuidado, garoto. Não gosto de quem tira o que é meu. Você será meu prisioneiro, ficará à minha mercê. Saiba de uma coisa: que seja qual for a ordem que eu der aos meus criados, eles a cumprirão... não ousam fazer outra coisa.
- Eu preferiria que me matasse a... - começou o garoto, e sua voz estava esganiçada de terror.
- Há muitas maneiras de castigar a sua arrogância, meu sobrinho, e eu poderia usar todas elas. Poderia arrancar esses olhos arrogantes, cortar essa língua. - Os olhos de João correram pela figura esguia do menino. - Você mal é um homem, e eu poderia lhe fazer uma coisa que significaria que você jamais conheceria a condição de homem. O que diz a isso?
Onde estava o arrogante rei presuntivo, agora? Era uma criança amedrontada que estava à frente dele.
- Eu... eu...
- Vamos, fale, rapaz. O que diz sobre essas sugestões? Vamos, fale. Gosto de respostas quando faço perguntas, e meu génio não é dos mais brandos. Você deve ter ouvido falar nisso.
- Eu diria que o senhor não faria essas coisas, ainda que tivesse poderes para isso.
- Tenho poderes para isso. Você devia saber.
- Mas... o senhor seria censurado. O mundo todo se levantaria contra um tio que fizesse uma coisa dessas com o sobrinho que tinha apenas quinze anos de idade.
- Eu lá ligo para a opinião do mundo? Não, meu sobrinho, faço o que quero. Mas falei só para amedrontá-lo e fazer com que saiba que preciso de obediência. Se você
fizer o que mandarem, pode ser que nenhum mal lhe aconteça. Levem-no - disse João aos guardas.
- E, Artur, pense no que eu disse. Pergunte a si mesmo como seria ficar sem aquilo que uma palavra minha lhe poderia roubar.
Artur foi levado embora.
Não vai ser fácil ele dormir esta noite, pensou João, rindo.
E agora, Hugo.
Era um homem bem-apessoado. Ficou ali de pé, sem dar sinal de medo, de modo que era difícil acreditar que sentisse algum medo. Isabella dissera que ele jamais sentia medo. Seria possível que ela sentisse uma atração por Hugo?
João ficou contente por estar sentado. Iria parecer muito baixo ao lado de Hugo de Lusignan. Acariciou o manto vermelho; o toque das pedras preciosas era tranquilizador.
Hugo podia ter um ar de nobre, mas ele, João, tinha um ar de real.
- com que então você é meu prisioneiro. Hugo se curvou.
- Vocês deviam ter partido ontem à noite. Um erro de julgamento.
- É verdade - concordou Hugo.
- E agora, você é meu prisioneiro. Você, que causou problemas em meu reino e fez todo o possível para provocar uma revolta.
Hugo ficou em silêncio.
- Você sabe o que fazemos com os traidores.
- Não sou traidor, majestade.
- Não é traidor quando provoca agitações no meu reino?
- Eu não era obrigado a servi-lo e não fazia segredo de meus motivos de queixa.
- Você recebeu ordens de enfrentar um duelista em combate e se recusou.
- Eu não teria me recusado a enfrentá-lo, majestade. Foi só um de seus mercenários que me recusei a enfrentar.
- Vocês, os Lusignan, têm a si mesmos numa conta demasiado grande.
- Peço-lhe perdão, majestade, mas somos uma grande família.
- Não me fale em grandeza na minha presença. Nós somos inimigos, Hugo, o Moreno.
- É verdade, majestade.
- E você é meu prisioneiro.
- Feito numa batalha honrosa.
- Quando vocês estavam no ato de se apossarem de minha real mãe!
- Que estava participando da guerra e, portanto, era perfeitamente justo.
- Bah! Não discuta comigo.
- Como quiser, majestade.
João se recostou na cadeira e semicerrou os olhos. Ficou pensando o que faria com Hugo. Podia pensar em várias formas de tortura; mas sabia que fosse qual fosse ela, aquele homem iria manter aquela calma aparente, aquela indiferença.
Não havia prazer com gente assim. Não poderia ter, com ele, o prazer que tivera com o pequeno Artur.
Mas iria humilhá-lo. Era a melhor maneira. Tirar um pouco do orgulho dele.
Teve uma ideia.
- Levem o prisioneiro - disse.
Levaram Hugo, e João ficou ali sentado sozinho por um curto espaço de tempo enquanto suas sobrancelhas se uniam num franzido. Estava pensando em Isabella e imaginando até que ponto ela gostara de Hugo. Será que sentira realmente alguma afeição por ele? Era um homem bonito, e Isabella estava, claro, no que João chamaria de "ponto". Hugo não tinha percebido isso; se tivesse... quem sabe o que teria acontecido. Hugo era um tolo, melhor na guerra do que no amor, sem dúvida, e se tornara um prisioneiro mesmo na guerra.
João não tinha razão alguma de sentir ciúme de Hugo. Mas mesmo assim iria humilhá-lo.
Levantou-se e berrou. Seus criados vieram correndo.
- Não há razão para ficarmos aqui - bradou ele. - Vamos nos preparar a fim de partir imediatamente para a Normandia.
Ele estava animadíssimo. Tivera uma ideia brilhante. Mandara os criados à procura de carroças usadas em fazendas - aquelas nas quais o gado ou o feno tinha sido transportado, e nelas, firmemente agrilhoados, colocou os prisioneiros. Soltou uma gargalhada ao vê-los - o arrogante jovem Artur, o rei presuntivo, seguindo ali como uma vaca sendo levada ao mercado. Hugo, o Moreno, marido presuntivo de Isabella, como um touro orgulhoso seguindo para ser inspecionado e leiloado.
Havia outros, naturalmente, mas aqueles eram os dois que lhe davam maior prazer.
O jovem Artur estava dominado pela vergonha.
Isso, pensou João, melífluo, vai ser bom para Artur. Estava sendo muito arrogante.
Era maravilhoso cavalgar daquele jeito, um conquistador. Tinham dito que ele nunca seria o rei que o pai e o irmão tinham sido. Riam um riso abafado do fato de ele ficar na cama até tarde com a esposa. Qualquer um deles teria ficado na cama se pudesse ter ficado com Isabella. Tinham dito que ele iria perder os seus domínios, pois o rei da França era astuto demais para ele, e em pouco tempo Artur estaria no trono.
João provara que estavam errados.
Filipe devia estar muito inquieto, coberto de vergonha ao saber que seu protegido estava nas mãos do inimigo. E Hugo de Lusignan também. Aquilo mostraria aos presunçosos barões o que acontecia quando eles se opunham ao rei.
Oh, sim, João estava muito contente consigo mesmo, atravessando a Normandia a caminho de Caen. Iria mostrar seus prisioneiros a Isabella. Àquilo seria divertido. Ela deveria estar sentada ao lado dele enquanto eles passassem nas carroças. Seria um espetácu Io e tanto, e os prisioneiros iriam contorcer-se de vergonha. A tortura mental era, com frequência, mais compensadora do que a física, João começava a perceber isso.
Artur não iria gostar de ser visto numa carroça de fazenda, acorrentado como um animal.
E o destemido e bravo Hugo? O que será que Isabella vai pensar de você?
Isabella estava em Caen esperando para recebê-lo. João levou-a imediatamente para o quarto.
Isabella riu dele. Tinha sido o período mais longo em que os dois tinham estado afastados.
Depois, ele jactou-se de sua vitória.
- Velocidade, é o que é necessário, Isabella. Se eu tivesse me atrasado, a vitória teria sido deles. Teriam levado minha mãe como prisioneira. Imagine só. Que atrevimento, o deles!
- Mas você estava lá e evitou que fizessem isso.
- É, e os prendi. Tenho uns belos prisioneiros para lhe mostrar.
Ela fez um leve beicinho.
- Não ligo muito para prisioneiros.
- Quero que veja esses. Há o jovem Artur em pessoa.
- Ele é apenas uma criança.
- Vejam só quem está falando! Ele é mais velho do que você!
- Eu gostaria de ser sua prisioneira.
- Não - disse João, sentimental. - Eu sou seu prisioneiro.
- É um pensamento bonito.
- E agora quero mostrá-los a você.
- Mas eu disse que não queria vê-los.
- Mas vai ver, para me agradar.
- Pensei que você é que sempre quis me agradar.
- Quero, quando o seu prazer for o meu.
Os dois riram juntos; mas ele dera a entender que ia insistir para que ela visse os prisioneiros.
Ela não queria. Odiava coisas desagradáveis, e a visão de homens acorrentados não lhe dava prazer - particularmente se se tratasse de homens bonitos. Estava começando a ser prudente em relação a João. Vira a vermelhidão em seus olhos e aquilo lhe causara apreensão. Nunca se esquecia de como ele rolara no chão e metera os juncos na boca.
Se quisesse conseguir as coisas à sua maneira, teria de ser com sutileza; e nunca deveria dar a impressão de estar contra ele.
Assim, viu-se sentada ao lado dele no pátio, enquanto as carroças passavam.
Pobrezinho do Artur; parecia muito triste, e amedrontado, também. Era tão criança! Sabia que ele era um pouco mais velho do que ela, mas não muito; e tremeu ao pensar em ser agrilhoada numa carroça de fazenda, prisioneira de João.
E havia outro. Isabella teve um estremecimento ao vê-lo. Hugo! Ele estava em pé na carroça, a cabeça erguida como se estivesse inteiramente sem saber onde estava. O coração de Isabella deu um salto ao vê-lo, e sentiu uma grande emoção. Oh, Hugo, não!, pensou, e teve medo de que tivesse falado em voz alta, já que sabia que João estava ciente de todos os seus movimentos e estava observando-lhe a expressão do rosto.
Hugo voltara a cabeça e estava olhando diretamente para ela. O que era aquilo que via nos olhos dele? Tentou responder. Oh, Hugo, Hugo, sinto muito. Na verdade,
a culpa não foi minha. Eles me obrigaram.
Eu queria ser rainha, pensou ela. Queria, sim. Gostei da cerimónia e das roupas, das jóias, do povo aclamando e dizendo que eu era bonita. Gosto de minhas noites com o João... mas às vezes ele me dá medo. Oh, Hugo, se isso não tivesse acontecido...
A carroça havia passado; ela não a acompanhou com o olhar, mas olhou para a seguinte.
- O que achou de seu ex-noivo? - perguntou João. Isabella hesitou. Não podia se deixar falar com petulância.
- Achei que ele se portava como um bravo.
João ficou calado. Pensava: se ela tivesse gostado dele, nunca teria ousado falar dele dessa maneira.
Não, ela está bem contente. Será que suas reações não bastam para me dizer isso?
Deu ordens para que Artur fosse enviado, sob rigorosa vigilância, para Falaise; ali, deveria ficar preso com o máximo de segurança. Se o deixassem escapar, comentou João, ele não sentiria inveja daqueles que estiveram encarregados de vigiá-lo. A irmã Eleanor deveria ir para Bristol. Era apenas uma moça, e João não tinha medo dela. Que fosse tratada com cortesia.
Enviou outros ao castelo Corfe, em Dorset.
- Ainda não decidi para onde vou mandar Hugo, o Moreno
- disse ele a Isabella. - Mas para esse, será uma prisão forte. Um homem destemido e valente assim bem poderia tentar escapar.
Ela não respondeu.
- Já sei. Será aqui, em Caen. Temos ótimas masmorras aqui... úmidas e frias. Você poderá pensar nele quando estivermos nos divertindo juntos... mas não, seus pensamentos devem ser todos para mim. Não quero que seja de outra maneira. - Brincando, ele colocou as mãos em torno do pescoço dela. - Você não vai me desapontar, querida.
- Como poderia desapontá-lo?
- Sentindo pena do pobre do Hugo, o Moreno.
- De que isso adiantaria para ele?
- De nada, meu amor. Absolutamente nada.
Eles continuaram em Caen durante o outono, e João declarou que iriam passar o Natal ali.
Foi o que fizeram. Houve muita alegria, comemoração, cantoria, dança; e o rei e a rainha, percebia-se e comentava-se, só saíam da cama na hora do almoço.
CAVALGANDO EM meio aos guardas de João, Artur estava calado e carrancudo. Sentia falta da mãe; imaginava o que estaria acontecendo a Hugo; se ao menos a irmã Eleanor estivesse com ele, teria havido um certo consolo, mas se achava ali sozinho com estranhos, estranhos inimigos.
Estava sempre repassando os acontecimentos que haviam levado àquela humilhante captura. Se ao menos tivessem apanhado a avó e saído de Mirebeau com ela, a vitória teria sido deles. Como tinham sido tão estúpidos a ponto de se demorar? Artur devia admitir que tinha sido vontade sua e que ele insistira muito para que se fizesse o que ele queria. Sabia que os soldados tinham querido ficar, e ouvira dizer que quando homens estavam lutando não se devia exigir demais deles o tempo todo. E que depois de uma batalha deveriam receber uma espécie de recompensa. Tinha sido muito maravilhoso tomar Mirebeau com a avó assistindo à batalha e, como Artur acreditara, desejando ter dado o seu apoio ao neto Artur, em vez de ao inútil João.
E então, de repente, tudo mudara. Eles eram os derrotados e Artur tivera de andar naquela terrível carroça... uma degradação que jamais esqueceria.
À sua fremte estava o castelo de Falaise - famoso porque foi naquela cidade que nasceu seu grande antepassado Guilherme, o Conquistador. Por que João o havia mandado para lá, a fim de que fosse mantido prisioneiro na velha moradia daquele grande ancestral? Guilherme de Braose e sua mulher Matilda, que estavam esperando para recebê-lo, saíram para o pátio, e Guilherme segurou o estribo de Artur enquanto ele desmontava.
- Espero que a viagem tenha sido confortável, meu senhor disse ele num tom tranquilizador e respeitoso que deixou Artur reconfortado.
- Seria difícil eu me sentir à vontade nessas circunstâncias replicou Artur.
- Minha mulher e eu faremos o possível para o senhor, enquanto estiver aqui.
Matilda de Braose adiantou-se, então, e fez uma mesura para Artur. Era uma mulher alta, com traços firmes e uma voz profunda e ressonante.
Disse que mandara preparar os aposentos dele e ela mesma se certificara de que nada lhe faltaria para o seu conforto.
Foi uma recepção melhor do que a que Artur esperara, depois do tratamento que recebera do tio.
Foi levado para dentro do castelo, e Guilherme de Braose subiu na frente por uma escada em espiral. Artur subiu em seguida, e Matilda foi atrás.
Lá estava o seu quarto. As barras que cruzavam a estreita janela eram a única indicação de que se tratava de uma prisão.
Guilherme de Braose olhou para elas como que pedindo desculpas.
- Infelizmente, meu senhor, temos de mante-lo em reclusão, e as ordens do rei são no sentido de que deve haver guardas do lado de fora de sua porta, e um guarda deverá dormir em seu quarto. Lamento muito ser obrigado a executar essas ordens, pois sei o quanto isso é maçante.
- Queremos que compreenda - disse Matilda - que o nosso desejo é tornar sua estada em Falaise tão confortável quanto possível. Se precisar de qualquer coisa, por favor peça, e se estiver ao nosso alcance dá-la, isso será feito.
Artur agradeceu a eles, acrescentando:
- Eu não esperava uma recepção tão cortês. É diferente daquilo que até aqui tenho recebido de meu tio.
- Há, entre nós, quem lamente a necessidade disso, meu senhor - disse Guilherme -, mas aconteceu e é claro que temos de obedecer ordens.
- Eu me lembrarei de sua bondade para comigo - prometeulhes Artur.
Certificando-se de que ele estava com conforto, o casal o deixou. Ele se jogou no catre e ficou pensando no que o futuro lhe reservava.
Sonhou que havia fugido de Falaise e que estava marchando à frente de seus exércitos. A mãe estava com ele, e Eleanor também, e elas estavam dizendo: "Eu sabia que você não iria ficar preso muito tempo. Em breve será solto, Artur."
Então, ele acordou e se sentiu um pouco melhor. Claro que não iria ficar ali por muito tempo. O povo da Bretanha jamais permitiria. Era muito fiel ao seu pequeno duque. Não fora numa batalha de verdade que fora derrotado; acontecera por um azar. Se tivesse saído de Mirebeau na noite anterior, a Europa estaria comentando sua vitória, e Artur estaria a meio caminho de recuperar tudo aquilo que lhe pertencia por direito. Artur supôs que mesmo o Conquistador tivesse tido períodos embaraçosos como aquele.
Não, não podia se desesperar. Estava nas mãos de gente boa que não iria se aproveitar de sua condição. Gostava de Guilherme de Braose e sua mulher.
Guilherme e Matilda conversavam sobre o prisioneiro.
- Ele é uma criança - disse Matilda.
- Apesar disso, João tem medo dele, e você sabe como João fica quando está com medo. Ele é capaz de tudo.
- Você não acha que ele vai lhe dar instruções para matar a criança?
- Eu não mataria, Matilda, se ele mandasse. Mas aqui entre nós, eu diria num sussurro que ele é capaz de dar uma ordem dessas.
- O mundo inteiro iria vilipendiá-lo.
- João não pensa nas consequências quando certas disposições tomam conta dele.
- Eu gostaria que Ricardo estivesse vivo.
- É isso, você está falando por nós dois.
Guilherme ficou pensativo. Era um dos homens mais ambiciosos da época. Seus antepassados tinham sido barões menores que haviam instituído a família na cidade de Braose, na Normandia, e haviam ido com o Conquistador e adquirido terras em Sussex, Devon e Gales. Ele mostrara ser um magnífico soldado na fronteira galesa, onde merecera a aprovação de Ricardo e os dois haviam-se tornado amigos. Guilherme estivera com Ricardo no continente quando ele encontrara a morte em Chaluz.
Guilherme de Braose era um homem decidido a progredir; sua ambição era ser o mais destacado dos barões da Inglaterra. Pensara cuidadosamente, com a morte de Ricardo, de que lado iria ficar e escolhera João, não porque gostasse de João - não o admirava tanto quanto admirara Ricardo -, mas porque acreditava que João tinha forças mais poderosas por trás dele; e quando Guilherme Marechal se colocara ao lado de João, aquilo tinha sido o sinal para que homens como Guilherme de Braose fizessem o mesmo. Ele concordava com o Marechal que Artur teria pouca chance na Inglaterra. João fora, de longe, a melhor escolha; e ter ido contra ele e fracassado teria sido o fim de todos os seus sonhos de riqueza. Matilda estivera com ele. Uma mulher forte e muito ativa, era a esposa de que ele precisava.
João confiava nele, pois ele se mostrara um bom cavaleiro para Ricardo; e fora por isso que colocara Artur sob seus cuidados em Falaise.
Aquilo era uma honra, e no entanto Guilherme de Braose tinha a esperança de que não durasse demais. Não queria passar a vida como carcereiro. Tinha outros planos. Mas àquela altura o fato de ser nomeado para a tarefa mostrava a confiança de João nele, e por isso se sentia contente. com um homem como João, podia-se descer do favor à desgraça num só dia. Guilherme tinha de fazer com que aquilo não acontecesse com ele.
Ao mesmo tempo, apenas levando em conta a possibilidade de João ser derrotado, ele iria tratar Artur com uma deferência especial, de modo que se chegasse o dia em que Artur ficasse numa posição de conceder honrarias não fizesse um juízo muito mau de Guilherme de Braose.
E foi assim que a estada de Artur em Falaise foi bem agradável, e seus guardas eram o único sinal exterior de que ele era um prisioneiro.
Guilherme jogava xadrez com ele e Matilda o tratava como uma mãe, de um modo muito dominador que às vezes, quando ele se sentia jovem e solitário, não o desagradava.
Enquanto João estava em Caen, Guilherme dês Roches se apresentou.
João o recebeu com indiferença, como se não se importasse se falasse ou não com ele, mas Guilherme dês Roches era bem cônscio de sua importância, ainda que João não fosse.
João ainda estava inflado de orgulho com o sucesso em Mirebeau. Iria desfrutar daquela glória enquanto pudesse. Aquilo fora um sucesso, Guilherme admitia, mas não era um sucesso que afetasse a vida toda de João e fizesse com que suas possessões continentais ficassem a salvo para sempre. Tinha sido apenas uma escaramuça bem-sucedida. Mas João parecia ter tornado a cair numa vida de voluptuosidade com base naquele modesto sucesso.
Tal como Guilherme de Braose, Guilherme dês Roches era um homem ambicioso. Os dois percebiam a importância de estar do lado vencedor, mas se o vencedor não demonstrasse tendência a honrar Guilherme dês Roches, este procuraria à sua volta outros meios de usar o seu talento.
Guilherme dês Roches tinha sido o chefe do exército de Artur quando esse exército unira forças com Filipe da França; mas não demorara muito e dês Roches estava discutindo com Filipe, pois este destruíra um dos castelos que pertencera a Artur porque rebeldes contrários a ele tinham-se protegido lá.
Guilherme dês Roches protestara junto a Filipe, dizendo que a propriedade de seu jovem senhor não devia ser destruída de forma injustificada, ao que Filipe retrucara com rispidez que o que devia ou não ser destruído era um assunto que cabia a ele decidir.
Evidentemente, dês Roches achara que Filipe não era um aliado para ele.
No calor de sua indignação, fora procurar João e dissera que iria convencer Artur e Constance a chegarem a um acordo com ele e abandonarem a sua reivindicação; mas faria aquilo sob uma única condição: a de que ele, Guilherme dês Roches, iria decidir como agir.
João, satisfeito com a rixa entre Guilherme dês Roches e Filipe, concordara com prazer, e a paz entre Artur e João fora realizada - uma paz incómoda, é verdade, porque Constance estivera muitíssimo desconfiada das intenções de João em relação a seu filho.
Guilherme dês Roches trabalhara, então, intimamente com João. Quando este soubera que o jovem duque estava em Mirebeau, fora Guilherme dês Roches um dos primeiros a chefiar o ataque.
- Se capturarmos Artur - dissera ele a João -, vossa majestade deverá se lembrar de sua promessa de que terei o direito de opinar sobre o futuro do jovem duque.
João prometera.
E agora, enviara Artur para Falaise, onde seu carcereiro seria Guilherme de Braose.
Guilherme dês Roches estava furioso quando se apresentou a João, embora fizesse o possível para esconder seu estado de espírito.
- Majestade, é uma boa notícia a de que Artur é seu prisioneiro.
João riu.
- Você devia ter visto a cara do garoto quando ameacei castrálo. Sabe, ele acreditou. Seria divertido tirar dele a oportunidade de saborear aquilo que, creio eu, ele ignora no momento. A mãe o manteve sob um controle rígido, e duvido que ele tenha tido qualquer oportunidade de testar seus talentos.
- Espero que o jovem duque esteja bem - disse Guilherme.
- O pretenso rei se tornou um garotinho amedrontado.
- Pobre criança. Vim para obter a sua permissão para assumir a função de tomar conta dele.
João ergueu as sobrancelhas.
- Ele está sendo bem cuidado. Não precisa se preocupar.
- Fico satisfeito ao saber disso. Pelo que sei, ele está em Falaise, com de Braose.
- Um bom homem, o de Braose, e uma pessoa em quem eu sempre confiaria. Ele foi um bom amigo de meu irmão e tem sido a mesma coisa para mim. Gosta de lucrar com o seu serviço, mas o que importa se o seu lucro for também meu?
- Estou pronto a me dirigir a Falaise imediatamente.
- Não é preciso, meu caro.
- Majestade, eu acho que é necessário. Vossa majestade se esqueceu de nosso pacto. Eu fiz a paz entre vossa majestade e Artur; lutei por vossa majestade e deve se lembrar de que minha recompensa foi a de que eu seria encarregado de tomar conta de Artur,
- Recompensa! - bradou Artur. - Em geral, os homens não pedem recompensas quando me servem.
- Mesmo assim, pensam nelas, isso eu ousaria jurar - disse dês Roches, ousado.
Luzes de aviso brilhavam nos olhos de João. Guilherme dês Roches estava ciente delas, mas acreditava ser importante ignorá-las.
- Eles são demasiado corteses... ou talvez demasiado medrosos... para mencioná-las - disse João, em tom significativo.
- Então talvez eu deva ser o mesmo - disse dês Roches.
- Você sempre foi um sujeito inteligente, Guilherme. Sempre soube para que lado pular antes que fosse tarde demais.
- Obrigado, majestade, por esse cumprimento.
- Não há de quê - João confirmou com um gesto da cabeça para dar a entender que estava cansado do assunto.
Guilherme dês Roches aproveitou a oportunidade para se retirar.
- Tenha cuidado - avisou João enquanto Guilherme saía. Veja lá para onde pula.
Ele se enganara a respeito de dês Roches, que estava em condições de causar muitos danos e estava decidido a fazê-lo.
Naquele dia, ele abandonou João e logo formou uma liga dos senhores da Bretanha, iniciou a marcha e tomou certos castelos, cortando, assim, os meios de comunicação de João com o sul.
A ferrugem se instalara. O sucesso de Mirebeau era considerado trivial. com o rei francês pronto a aproveitar qualquer oportunidade, com os Lusignan cheios de disposição para vingarem o insulto ao chefe de sua casa, além do rapto de Isabella, e com todos aqueles que odiavam João - e eram inúmeros - esperando pelo momento em que pudessem levantar-se contra ele com sucesso, o controle de João sobre seus territórios continentais enfraquecia a cada dia que passava.
João não percebia, pois ainda se deleitava com o casamento que, depois de uma curta separação, lhe parecia um novo começo.
Seus adeptos começaram a ficar angustiados. Era como se a beleza e os atrativos de Isabella tivessem sido dados a ela pelo diabo, que estava decidido pela destruição de João, porque quando ele se levantava da cama - quando o dia já ia avançado - se sentia lânguido depois do desempenho da noite e sem disposição para outra coisa que não esperar que a noite tornasse a chegar.
Isabella pensava muito em Hugo na sua masmorra, e imaginava se alguma vez ele pensava nela. A culpa não era sua; esperava que ele compreendesse isso. Ela não dera sua opinião sobre o assunto. Seus pais e o rei haviam decidido por ela.
Tremeu de horror quando ouviu rumores do que acontecera aos prisioneiros do castelo Corfe. Estavam todos mortos, pois a alimentação lhes fora cortada, e assim morreram de fome nas masmorras.
Murmurava-se que aquilo não era maneira de tratar prisioneiros distintos que tinham simplesmente seguido um líder e lhe tinham sido fiéis.
Eles tinham se revoltado e tentado escapar, e fora então que João dera a ordem cruel:
- Deixem que passem fome. Isso lhes ensinará a não se levantarem contra mim.
Isabella ficava deitada na cama e pensava nas coisas terríveis que estavam acontecendo à volta deles, no quanto João era poderoso e no quanto ele era terrível quando ficava com raiva. Ele nunca ficava zangado com ela, embora houvesse ocasiões em que quase chegasse a isso. Ela costumava se perguntar o que aconteceria se algum dia arranjasse um amante. Tinha de admitir que gostaria de arranjar. Sua natureza era tal que ela nunca podia ver um homem bonito sem imaginá-lo como amante. Às vezes, via um deles olhando para ela e um lampejo de certa compreensão era trocado por eles. Seria tão fácil... uma tentação momentânea, e eles poderiam sucumbir a ela. E se João descobrisse?
O que faria ele? Em seus momentos mais alucinados, às vezes achava que estava tão ansiosa por saber que iria correr o risco de descobrir. Aquilo seria uma loucura, percebia Isabella nas ocasiões em que via o mau génio dele.
Ficava pensando nele. Os mesmos pensamentos deveriam passar pela cabeça dele.
João estava ficando apreensivo agora, porque corriam murmúrios entre seus cavaleiros. Guilherme dês Roches não só o abandonara, mas estava levantando forças contra ele. O homem era tão poderoso que o espírito complacente que se seguira a Mirebeau tinha de mudar, mesmo para João. Ele tinha de ver o que estava acontecendo, pois sabia que a qualquer momento poder-se-ia esperar que Filipe se aproveitasse da situação.
João foi finalmente convencido de que precisava deixar Isabella durante alguns dias e ver o que estava se passando em seus domínios. com relutância, concordou em fazer isso e mandou Isabella para Chinon.
Seus inimigos, que tinham zombado de sua obsessão com a esposa, que era maior do que a obsessão pelo país, concluíram que aquela era uma oportunidade boa demais para ser perdida. E se capturassem Isabella? O que poderiam exigir de João pela liberdade dela?
Assim, quando Isabella estava chegando a Chinon, ouviu dizer que um grupo de barões rebeldes estava esperando para fazê-la prisioneira. A notícia foi levada a João ao mesmo tempo. Ele ficou desvairado. Ela devia ser levada para perto dele imediatamente; nunca mais ele iria permitir que ela se afastasse de seu lado.
Foi aconselhado a não ir salvá-la, pois bem parecia que se tratava de uma armadilha para capturá-lo. Em vez disso, um forte grupo de seus mercenários cavalgou a toda velocidade para Chinon, e no caminho encontrou Isabella que fugia.
Levaram-na de volta para João.
Ele chorou de alívio ao vê-la, erguendo-a nos braços e levando-a para o quarto.
Ela riu das apreensões dele.
- E se eles tivessem me capturado? O que é que você teria feito?
- Eu não teria descansado enquanto não a tivesse trazido de volta para onde tem de ficar.
- E o seu país, João? Dizem que ele está correndo o perigo de ser tirado de você.
- Dizem! Ninguém ousaria! De qualquer modo, eu o recuperaria em pouco tempo.
- Você está perdendo muita coisa.
- vou recuperar tudo.
- Quando?
- Quando achar que está na hora.
- Quando será isso?
- Quando você não desviar minha atenção de tudo o mais.
- Acha que alguma vez isso vai acontecer?
- É possível - admitiu ele. - Mas não por enquanto.
- Você não tem certeza a meu respeito.
- Isso eu nego. Você me deseja tanto quanto eu a desejo. Sou tão importante para você quanto você é para mim.
- Sim, é verdade, mas você parece não pensar assim.
- Como assim?
- Ora, para começar, sua atitude para com Hugo, o Moreno.
- Não entendo.
- Ele está acorrentado, não está?
- Está, onde merece estar.
- Você o mantém prisioneiro como mantém Artur. Tem motivos para temer Artur. Que razão tem para temer Hugo?
- Temer Hugo!
- Bem, você o mantém acorrentado. Faz isso porque um dia ele ousou me amar?
- Faço isso porque ele é um inimigo.
- Dizem que você tem medo dele... de que ele poderia tentar tirar-me de você.
- Quem diz isso? Mando cortar-lhes a língua.
- Isso é murmurado aqui e ali. Poderiam ser muitas as línguas. Vai querer uma criadagem sem língua? Você poderia dar um basta nessa conversa boba pondo-o em liberdade.
- Libertar Hugo de Lusignan?
- Por que não? Isso mostraria o seu desprezo por ele. João ficou pensativo.
- Um senhor menor - disse ele. - Não teria coragem de ficar contra mim. Ele não gostou de andar de carroça, Isabella. Aquilo o feriu mais do que cem chibatadas.
- Em nenhum momento duvidei disso. Se você o soltasse, ele perceberia logo a humilhação. Diria: "João me despreza. Se não me desprezasse, jamais teria me libertado."
João soltou uma gargalhada.
- Isso é o raciocínio de uma mulher.
- É verdadeiro.
- Por que se importa com o que possa acontecer a ele? - perguntou João, desconfiado.
- Não me preocupo. Só me preocupo com que as pessoas parem de dizer que você tem medo dele. - Isabella bocejou. - Estou cansada daquele homem - disse ela, e o beijou.
Ele reagiu como sempre, mas ainda estava pensando em Hugo.
E se o pusesse em liberdade? As pessoas iriam dizer: "Ele não guarda rancor." Mas por que iria guardar rancor? Isso cabia a Hugo. E se ele mandasse Hugo de volta para Lusignan? Seria o mesmo que dizer que o que um barão menor fazia não lhe dizia respeito.
Guilherme Marechal pediu uma audiência. João o recebeu com entusiasmo. Devia sempre se lembrar de que fora o Marechal que lhe facilitara o caminho para o trono.
- É realmente verdade, majestade, que fez certas propostas aos Lusignan? - indagou Guilherme.
- É verdade - confirmou o rei.
João ficou desconcertado pela incredulidade nos olhos do Marechal e apressou-se a justificar seu ato.
- Há problemas no sul. Tenho inimigos demais por lá. Preciso de amigos. Se os Lusignan trabalhassem para mim, todo o aspecto seria mudado.
- Eles são os seus piores inimigos, majestade.
- Inimigos podem ser transformados em amigos, Marechal. Sabe muito bem disto.
- Então, eles mal valem o esforço.
- Os Lusignan já foram amigos de minha casa. Meu irmão e eles tiveram muitas coisas em comum.
- Majestade, seu casamento torna impossível que um dia os Lusignan sejam amigos verdadeiros de sua casa.
- Eu acho que não. É por isso que estou soltando Hugo, o Moreno, e os outros que são meus prisioneiros. Estou exigindo certos privilégios em troca de minha clemência. com eles defendendo o sul para mim, irão deter a penetração inimiga. vou exigir garantias por parte deles... um castelo ou dois... algumas terras. Eles podem defender La Marche para mim, e minha situação ficará muito melhor.
- Majestade, rogo-lhe que pense no que está fazendo.
- Já pensei.
- Esses homens vão ficar em uma das mais importantes posições estratégicas de seus domínios.
- Exatamente.
- E acredita que irão trabalhar para vossa majestade?
- vou tirar garantias deles. Mostrarei a todos que não tenho medo deles. De certa maneira, isso é um ato de desprezo para com Hugo, o Moreno.
- Receio que ele não vá pensar assim.
- Você é muito inflexível, Marechal.
- Acho que vai se arrepender disso, majestade.
- Aposto que irei fazer com que engula essas palavras.
- Espero em Deus que sim. Nada me faria mais feliz.
- Vai engolir, Marechal. Vai engolir.
- Está firmemente decidido, majestade?
- Estou.
Guilherme Marechal se afastou, pesaroso. Seria verdade que a mente de João estava enfraquecendo? E estariam aquelas noites voluptuosas solapando suas forças - tanto mentais como físicas? Muita gente dizia que sim, e parecia que aquelas pessoas tinham razão.
Ficou provado, claro, que o Marechal estava certo. Tão logo Hugo de Lusignan ficou livre e voltou para suas propriedades, começou a romper seus compromissos e armar problemas para João.
- Juramentos feitos a um homem desses de nada significam
- declarou ele. - João é mau, e se for necessário fingir para vencêlo, que se finja. Não vou descansar enquanto João da Inglaterra não voltar para o título com que nasceu - João Sem Terra. Pois só quando tivermos nos livrado dele esta terra ficará feliz.
João teve um acesso de raiva. Percebia que bancara o bobo. Começou a dizer aos gritos o que faria com Hugo de Lusignan se este tornasse a lhe cair nas mãos. Obscenidades saíam aos borbotões de sua boca, e os olhos pareciam querer saltar.
Fora um tolo, disso ele sabia. Dera ouvidos às palavras macias de Isabella. Por que ela estivera tão interessada em Hugo? Mas podia ter funcionado. Se Hugo tivesse sido um homem em quem ele pudesse confiar, poderia ter defendido o sul para ele.
Mas Hugo não passava de um traidor, e com a sua agitação no sul e com Filipe começando a surgir com um grande exército por trás, João estava ficando preocupado.
Pensou em Artur no castelo de Falaise. E se o salvassem e o colocassem no lugar de João? Era atrás disso que andavam.
João devia ter pensado mais em Artur. Agora, Guilherme dês Roches estava trabalhando contra ele, e os Lusignan estavam em pé de guerra, e a situação estava se tornando cada vez mais angustiante.
Mas Artur era a grande ameaça.
Alguma coisa tinha de ser feita com relação a Artur. Pensar que aquele garoto bobo pudesse lhe causar tanta preocupação! Pelo menos havia alguma coisa em favor de João: Artur era seu prisioneiro. Se ele tivesse menos importância, seria muito fácil eliminá-lo, mas se desaparecesse haveria tamanho clamor que a Europa toda iria se revoltar de indignação. O fato de Artur ser pouco mais do que uma criança seria explorado; era possível imaginar o ardiloso Filipe aproveitando ao máximo esse fator. Mesmo assim, João precisava fazer alguma coisa.
A preocupação com Artur intrometeu-se entre ele e seus prazeres; pensava no garoto durante a noite, imaginando alguém resgatando-o de Falaise e raptando-o, levando-o para a Bretanha ou Para a corte da França, e com tantos inimigos prontos para entrarem em ação por todos os lados, isso era motivo de apreensão.
Ficou pensando, à procura de alguém em quem pudesse confiar, e seus pensamentos recaíram em Hubert de Burgh. Hubert era sobrinho do lorde de Connaught, que fora intendente de Henrique II e merecera favores dele por bons serviços. Assim, Hubert tinha sido notado por Ricardo I e quando João chegara ao trono e fingia estar pensando em casamento com a filha do rei de Portugal, Hubert fizera parte da delegação enviada àquele país.
O comportamento de João em relação àquela delegação tinha sido, para dizer o mínimo, cínico, pois enquanto seus emissários se achavam em Portugal ele se casara com Isabella, o que poderia ter significado que o rei ultrajado pudesse ficar tão irritado a ponto de descarregar a raiva sobre os funcionários de João. Tal comportamento não era desconhecido, e os membros da delegação estavam bem cientes disso. Mas o rei de Portugal, por mais furioso que estivesse com aquele insulto, o que era natural, era demasiado civilizado para, apenas por um capricho, colocar a culpa onde esta não cabia, e a delegação teve permissão para voltar para a Inglaterra sã e salva.
Hubert de Burgh não mostrara estar ressentido por causa daquele procedimento, pelo que João percebera, o que era estranho, já que Hubert não era um homem submisso. Era um homem que se preocupava com o bem-estar do país e acreditava ser seu dever salvar o seu rei, mas se discordasse em algum ponto não hesitava em mostrar sua desaprovação. O pai de João, Henrique II, e o irmão Ricardo I tinham admirado muito homens assim, e no íntimo João sabia que tinham razão. O Marechal era outro. Não concordara em dar liberdade a Hugo de Lusignan, e tivera razão. João percebia isso agora, mas só de certo modo. Aquilo tinha mostrado ao mundo que ele não guardava rancor em relação a Hugo e com isso se sentia seguro quanto a Isabella. O fato de ter desfilado Hugo diante dela, acorrentado, fizera com que as pessoas ficassem pensando se ele não sentiria um pouco de ciúme de um homem tão bonito. Pelo menos, consolava-se ele, ao libertar Hugo acabara com aquele rumor. Marechal iria dizer que fora loucura permitir que seus sentimentos pessoais afetassem o controle de seus domínios. Mas o Marechal jamais conhecera - pobre homem - o encanto de uma mulher como Isabella.
Mas ele precisava parar de pensar em Isabella e se concentrar em assuntos do Estado. Onde estava ele? Hubert de Burgh! Sim, era ele o homem. Hubert iria fazer o que achasse certo para o bem do seu rei e de seu país.
Mandou chamar Hubert de Burgh, e certificou-se de que os dois estavam absolutamente a sós e que não havia possibilidade de alguém ouvir a conversa.
- Hubert, meu bom homem, é um prazer vê-lo.
- E é um prazer vê-lo, majestade. Espero que esteja bem de saúde.
- Como pode ver - disse João. - Mandei chamá-lo porque estou perturbado e você irá me servir agora como serviu a mim e a meu irmão no passado. Sei que é um homem em quem posso confiar.
- Obrigado, majestade.
- Terá de cumprir minhas ordens e saber que ao fazer isso irá servir bem a mim e ao seu país.
- Este é o meu objetivo constante - disse Hubert, com sinceridade.
- Você sabe muito bem que a situação aqui não é boa.
- Não é, mas... - Hubert se deteve. Não podia dizer ao rei: sempre foi difícil manter o controle dos domínios continentais, mas se o rei se mexesse, se estivesse com os seus soldados em vez de ficar na cama a noite toda e metade do dia com a mulher, poderia ser diferente.
- Há uma pessoa cuja presença constitui uma ameaça constante à nossa segurança aqui - prosseguiu João. - Ele é um ponto de reagrupamento para meus inimigos. O rei da França o usou da mais desavergonhada das maneiras. Eu me refiro ao duque da Bretanha.
- Realmente, majestade. Existem essas facções rivais. Mas ele agora é seu prisioneiro, e Sir Guilherme de Braose e sua esposa são, estou certo, seus fiéis servidores e irão vigiá-lo com o máximo de cuidado.
- Eu sei. Eu sei. Mas preciso de sua ajuda, Hubert. Quero que vá a Falaise e assuma a guarda de Artur.
- Vossa majestade está descontente com Guilherme de Braose?
- Não, não. Mas creio que é a sua vez de me servir lá. Hubert ficou intrigado. Não compreendia por que devia ser um carcereiro tão melhor do que os Braose. João disse com voz pausada:
- Quero Artur fora do meu caminho.
Hubert ficou assustado, e João apressou-se a continuar:
- Não, não quero que mate o garoto. Isso seria uma loucura.
- Também seria assassinato, majestade.
João franziu o cenho. Com que então ele iria ter escrúpulos. Havia nos olhos dele, agora, um olhar piedoso. João disse:
- Você já matou alguém alguma vez, não?
- Em combate. Isso foi diferente. Eu não cometeria um assassinato a sangue-frio.
- Isso é uma coisa que eu nunca permitiria - disse João com um leve tom de piedade. Ele aprendera a não agir de maneira tão ultrajante
como no passado, porque agora,
com sua reputação, as pessoas ficavam logo desconfiadas. Agora ele tinha de se mostrar como um homem com defeitos, mas que no íntimo não era mau.
- Ora, meu bom Hubert, você e eu não teríamos descanso à noite se assassinássemos a sangue-frio um menino... e ainda por cima meu sobrinho.
Hubert pareceu um pouco mais aliviado.
- Majestade, se quiser que eu vá assumir a tutela em lugar de Sir Guilherme de Braose, irei imediatamente.
- É isso que eu quero. Então, já resolvemos esse detalhe. Hubert, essas batalhas que estão sempre acontecendo me atormentam. Você pode ter pensado que tenho sido omisso. Oh, não negue. (Hubert não fizera tentativa alguma de negar, porque acreditava muitíssimo enfaticamente naquilo.) - Não suporto pensar em homens mortos só porque estão a serviço de um certo senhor que quer um certo castelo... Penso nas esposas, nos filhos deles... O fantasma deles me atormenta, Hubert.
Hubert pensava, em silêncio: e os prisioneiros do castelo Corfe? Eles também o atormentavam?
- E por isso, quero acabar com essas guerras - prosseguiu João. - Quero viver em paz com o meu povo. Quero que meus domínios prosperem. Você é um bom homem, Hubert. Estou certo ao pensar que também deseja isso?
- Desejo, sim, majestade, como deve acontecer com todo homem de bom senso.
- Então pensamos a mesma coisa. Mas essa situação feliz não pode existir enquanto Artur puder fugir a qualquer momento, e se ele fugisse... pense nos inimigos que se arregimentariam em torno dele. Guerra... guerras... A coisa continuaria durante anos.
Hubert confirmou com a cabeça, num gesto de lamentação.
- Se Artur não existisse mais... - João viu os lábios de Hubert se fecharem com firmeza numa linha teimosa. Ele não mataria o garoto. Teria medo, e de certo modo tinha razão, porque haveria um grande protesto. Seria quase que como uma repetição da morte de Thomas Becket. No íntimo, João teve um sorriso afetado ao se imaginar cumprindo a penitência que seu pai cumprira. Não haveria hipótese, pensou João. Primeiro, eu mandaria todos para o inferno. Mas prosseguiu: - Artur existe, e enquanto existir haverá esse perigo. Meu plano é minimizar o perigo, e nisso você vai me ajudar. Vai, porque quer paz e prosperidade para o meu povo, tanto quanto eu.
- Farei qualquer coisa para conseguir isso, majestade.
- Meus agradecimentos, Hubert. Você me deu sua palavra e sei que é um homem honrado que não vai faltar a ela. Por isso... irá para Falaise. Vai proteger Artur, e quando chegar o momento irá torná-lo incapaz de me tirar o trono, restaurando a paz às nossas perturbadas terras.
- De que maneira, majestade?
- Arrancando-lhe os olhos e castrando-o. Ninguém iria querer um rei cego, e um rei que não pudesse ter herdeiros não seria bem recebido. Portanto, vamos reduzir Artur a.... nada...
Hubert ficou pálido.
- Isso é tudo, Hubert. Pode ir. Vá para Falaise, assuma a tutela e... não imediatamente... mas no devido tempo... dentro de cinco ou seis semanas, digamos, vai me mandar uma mensagem. Missão cumprida. Então, terá servido bem ao seu país.
- Majestade, eu...
- Você não deixará de ser recompensado... de qualquer maneira. - João soltou uma gargalhada. - Você me conhece bem. Pode estar certo de que irei recompensá-lo... por seus serviços.
Hubert parecia um homem em transe. Retirou-se, cambaleando, da presença do rei.
Hubert de Burgh dirigia-se a Falaise.
O que posso fazer?, perguntava a si mesmo. Cinco ou seis semanas. Graças a Deus que não é agora. Há tempo para pensar, para ver o que pode ser feito.
A expressão hipócrita nos olhos de João quando falara em recompensa! O rei queria dizer que quem não trabalhasse por ele, estaria trabalhando contra ele. Que monstro tinham colocado no trono!
É verdade que se Artur não existisse o trono estaria mais seguro para João. Todos aqueles que se levantavam contra ele usavam Artur como pretexto. Se Artur não existisse, haveria paz. Milhares de vidas seriam salvas, todas pelo preço de uma.
Mas Artur devia viver. Hubert pensou num pobre garoto cego andando às apalpadelas por uma cela; e seria ele a dar as ordens para que aquilo fosse feito.
Como posso fazer isso?, perguntava-se enquanto seguia em seu cavalo. E então: como poderei não fazer isso?
Acabou chegando ao castelo.
Foi recebido por Sir Guilherme de Braose e sua mulher que falava sem rodeios.
- Por que o rei decidiu mudar o carcereiro de Artur? - perguntou Matilda.
- Não sei - respondeu Hubert, pois estava pensando por que, se uma ordem daquelas lhe tinha sido dada, não devia também ter sido dada a Guilherme de Braose. Gostaria de saber qual teria sido a reação de Sir Guilherme, mas não teve coragem de perguntar. Não ousava falar no assunto. Não que quisesse falar. Aquilo o enojava tanto que ele queria tirá-lo da cabeça.
- Mas o senhor está satisfeito por ser dispensado do dever?
- perguntou Hubert.
- Não gosto de ser o carcereiro de um menino de sangue real - disse Sir Guilherme.
- No fundo, ele é uma criança - disse Matilda, com muita ternura. - Estou começando a sentir que parece ser meu filho. Esse menino precisa de afeto. Acho que ele poderia ser feliz se ninguém lhe tivesse falado sobre um trono e tivesse deixado que ele brincasse e aprendesse a ser um cavaleiro, como alguém de berço mais simples.
- Posso ver que os senhores têm sido bons para ele.
- Quem sabe quando as mesas poderão ser viradas - disse Sir Guilherme.
Mas não fora só esse pensamento, Hubert sabia, que fizera com que eles cuidassem do menino. Havia, na maioria das pessoas, uma ternura em relação aos jovens.
Hubert foi levado para os aposentos em que Artur estava confinado, e Sir Guilherme o apresentou.
- Este é Hubert de Burgh, que está vindo nos substituir. O garoto recebeu Hubert com um toque de altivez. Pobre menino, pensou Hubert, você nem sabe o destino que o aguarda. Apesar de toda a sua dignidade, o jovem Artur estava analisando seu novo carcereiro, e o coração de Hubert o golpeava, porque por trás dos modos reais se encolhia um menino amedrontado. Como vou fazer aquilo?, estava sempre se perguntando. Como posso fazer aquilo a um menino como este...? Será que poderia fazê-lo ao maior dos vilões? Talvez. Mas a um menino! Deus me ajude. Dois dias depois, os Braose partiram.
Hubert achava que se chegasse a conhecer o seu prisioneiro poderia avisá-lo de algum modo; poderia descobrir algo de sua natureza. Sentava-se com ele e conversava, e com frequência se descobria olhando para aqueles belos olhos azuis e imaginando como ficaria aquele rosto sem eles.
Entre Artur e Hubert começou a crescer uma amizade que Artur não tinha sentido pelos Braose. Matilda tinha sido muito mandona, Sir Guilherme muito indiferente. com Hubert não era assim. Havia nele uma tristeza que se igualava à de Artur, e a voz de Hubert muitas vezes era muito delicada, embora algumas vezes fosse áspera como se estivesse zangado com Artur simplesmente porque ele existia; depois, parecia arrepender-se e tornar-se quase efeminado em sua atitude. Artur achava isso intrigante, e pela primeira vez desde que fora preso esqueceu-se de sua infelicidade.
Hubert percebeu que ele ria com maior facilidade; que muitas vezes esquecia durante horas que estava preso. Certa vez, ele disse:
- Como estou contente por você ter vindo, Hubert.
- Por quê? - perguntou Hubert, caindo de repente em um de seus momentos de rispidez. - Sir Guilherme de Braose não era um bom castelão?
- Você é mais do que um bom castelão, Hubert. Você é um amigo. Sabe, Hubert, nunca tive isso antes. Um amigo. É difícil, para alguém na minha posição, ter um amigo de verdade. Nunca se pode ter certeza de que eles não vão querer alguma coisa. Mas o que é que você pode querer de mim? Aqui estou, seu prisioneiro... e desde que você chegou, Hubert, tem havido momentos em que me sinto feliz por estar aqui.
Oh, Deus, me ajude, rezou Hubert. Nunca poderei fazer aquilo.
- Ora, há lágrimas nos seus olhos, Hubert. Eu nunca esperaria isso de você.
- É uma espécie de reuma que me ataca.
Artur soltou uma gargalhada e, de repente, deu-lhe um grande abraço.
- Está mentindo, Hubert de Burgh. Você é um homem emotivo, e está contente... sim, está contente... por você e eu termos tido essa chance de nos tornarmos amigos. Confesse.
- Bem, talvez esteja, mas... Artur riu.
- Não diga mais nada. Venha, vou derrotá-lo no tabuleiro de xadrez. Tenho de me vingar, sabe, da última vez.
Juntos, debruçaram-se sobre o tabuleiro de xadrez.
Como seus olhos são claros, pensava Hubert, e lembrava-se de homens horrivelmente mutilados que tinham ofendido seus reis ou seus senhores de alguma maneira.
Isso é necessário para a paz do país, refletiu ele.
- Não, não - disse ele em voz alta. - Jamais farei isso.
- Tem razão - bradou Artur. - No próximo lance eu o pego. - Ele erguera olhos claros e límpidos para Hubert.
Quando ele me olha dessa maneira, sei que jamais farei aquilo, pensou Hubert de Burgh.
Os dois conversavam. Artur lhe falou sobre a sua infância, contou como era levado às pressas de um lugar para outro.
- Em pouco tempo passei a perceber que era importante e que parecia estar em perigo perpétuo. Eu costumava pensar que teria sido melhor não ser tão importante.
- É sempre melhor não ser importante demais - concordou Hubert.
- Há sempre gente tentando tirar o que lhe pertence. O que pensa do meu tio João?
- Ele é o rei.
- Muitos dizem que não devia ser. Mas você é homem da confiança dele, Hubert, eu sei, e por isso não tentaria levá-lo a cometer uma traição para com ele. O que pensa dele como homem?
- Só o conheço como rei.
- Dizem que o rei tem um génio terrível. Devo confessar que sentia um pouco de medo dele quando estava ao seu lado. Eu não admitiria isso a ninguém, exceto a você. Ouvi histórias terríveis sobre ele, Hubert.
- Num acesso de raiva, o rei pode agir impulsivamente, mesmo contra si próprio - disse Hubert.
- Talvez um dia ele se machuque - disse Artur, esperançoso. - Espero que nunca venha até aqui. Acha que virá?
- Não sei.
- Eu gostaria de poder ver minha irmã. O que terá ele feito com ela? Acha que está presa como eu?
- Ouvi dizer que ela se acha no castelo de Bristol, na Inglaterra, e que está sendo muito bem tratada.
- Fico contente ao saber disso. Claro que ele não iria ter medo dela, a menos que eu estivesse morto. Oh, Hubert, acabei de pensar nisso. Se eu morresse, por direito ela seria a próxima herdeira do trono. O que é que isso iria significar?
- O senhor é jovem demais para falar em morte.
- No entanto, estou numa situação em que ela pode me acontecer a qualquer momento.
- Não comigo aqui para protegê-lo.
- Isso é tranquilizador, Hubert. Às vezes digo isso a mim mesmo. Fico acordado, e à noite, com a escuridão à minha volta, vêm os temores. Às vezes, penso: "E se uns homens se esgueirarem para dentro da prisão a fim de me matar por ordem do rei João?" Isso poderia acontecer, pois ele não gosta que eu esteja vivo. Sou uma ameaça para ele. São muitas as pessoas que prefeririam me ver no lugar dele. Então, penso: "Está tudo bem. Hubert está aqui e vai me proteger!"
Hubert fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Sim - disse ele -, eu o protegerei.
- E então vou dormir e na manhã seguinte acho graça dos meus temores noturnos. É à noite que gosto de me lembrar de que você não está longe. Mas penso muito em Eleanor. Ela é mais velha do que eu, sabe?, e quando éramos pequenos tomava conta de mim. Eu gostava de estar com ela. Gostaria de que tivessem nos colocado juntos. Teria sido bom se nós dois pudéssemos estar aqui em Falaise com você, Hubert. Você iria gostar de Eleanor. Ela é tranquila... mais do que eu, acho, mas sem dúvida que isso se deve ao fato de ela ser mais velha. Ela jamais sentiu ciúme por eu merecer maiores atenções... por ser menino. Minha mãe estava sempre salientando o quanto eu era importante. Mas realmente me preocupa um pouco ela ser a segunda na linha de sucessão. Se houvesse justiça, é claro, ela estaria realmente à frente de João.
- A sucessão direta não é considerada tão importante - salientou Hubert. - Embora o povo goste que o filho de um rei o suceda, se esse filho não for digno, o povo preferiria ficar com o próximo da linha. E como sua irmã é mulher, não acho que alguém pensaria em colocá-la no trono.
- Não, acho que não. Eu sou o verdadeiro herdeiro, e meus filhos serão os seguintes. Eu adoraria ter filhos homens. Como seriam meus filhos?
Hubert fechou os olhos. Jamais farei aquilo, pensou ele. A cada dia que passa, isso se torna mais difícil.
- O que o aflige, Hubert? Está cansado, hoje?
- Não. Não estou cansado.
- Está num de seus momentos de tristeza. Alegre-se. Gosto de vê-lo animado, Hubert.
E assim por diante; e a cada dia eles pareciam ficar mais chegados um ao outro.
Não era provável que os bretões ficassem passivos enquanto o seu duque estivesse preso. Ficou-se logo sabendo que ele se achava no castelo de Falaise, e chegaram ao castelo notícias de que grupos de bretões estavam entrando na Normandia, cada qual com o objetivo de ter a honra de salvar o seu duque.
Artur ficou agitado, pois Hubert não resistiu e deu-lhe a notícia. Os dois ficavam à janela, olhando para a estrada.
- Ora, Hubert, eu acho que você torce para que eles cheguem e tomem o castelo - comentou Artur.
- Como pode dizer uma coisa dessas?
- Eu o conheço bem. Conheço seu estado de espírito. Quase que posso sentir a sua excitação. O que aconteceria se eles chegassem aqui?
- Haveria um cerco.
- E você estaria de um lado e eu do outro... você evitando que eles entrem, e eu ansiando por que eles invadam. Oh, Hubert, que pena! Você e eu devíamos estar juntos... do mesmo lado. Espero que um dia estejamos. Quando eu receber o que é meu por direito, talvez você seja meu principal assessor. Estaremos sempre juntos. Você será meu melhor amigo, e sempre me lembrarei desta fase, Hubert, porque desde que você chegou tudo está diferente.
Hubert não teve coragem de falar. Fingiu estar correndo os olhos pelo horizonte.
Mas nenhum bretão chegou ao castelo. Foi uma das ocasiões em que João realmente se levantou e entrou em ação para fazer com que fossem expulsos da Normandia.
Enviou uma mensagem ao castelo, e quando Hubert soube que o emissário do rei havia chegado e queria falar com ele a sós, seu coração afundou, porque imaginou quais seriam as ordens.
Recebeu o emissário em seu quarto e fechou a porta, para que ninguém pudesse ouvir.
- Quais são as novas? - perguntou ele.
- As ordens do rei são apenas para o senhor. O duque da Bretanha deve ser agrilhoado.
- Agrilhoado! Ele já está bem seguro aqui. Tenho guardas. Eu mesmo o vigio.
- Ordens do rei. Há uma outra. O rei diz que o senhor deve cumprir com o seu dever, tal como ordenado por ele. Ele espera notícias logo.
Hubert curvou a cabeça. Como ele temia, chegara a hora.
- Tenho de usar esses grilhões, Hubert?
- São ordens do rei.
- Mas não usei antes.
- Não, mas de lá para cá, como sabe, seus seguidores têm tentado chegar até o senhor.
- Quer dizer que o rei tem medo deles?
- Parece que sim.
- Ser agrilhoado dessa maneira! Para um príncipe, isso é humilhante.
- Para todos os homens - replicou Hubert. - Eles têm seus sentimentos, tal como os príncipes.
- Mas quanto mais alta a categoria de um homem, maior a humilhação.
- vou lhe dizer uma coisa. Quando o senhor e eu estivermos juntos, vou abrir os grilhões.
- Como eu, você também não gosta de me ver acorrentado, Hubert.
- Claro que não.
- Porque no íntimo, Hubert, você se importa com o meu bemestar, não? Creio que você tinha a esperança de que meus amigos viessem me buscar.
Havia um bolo na garganta de Hubert.
- Esperava. Esperava - bradou Artur. - Confesse.
- Para o seu bem, sim.
- Oh, meu caro, caro Hubert. E deixe-me dizer o seguinte. Eu pensei: se eles me levarem, o que será de Hubert? João vai ficar muito zangado. O que fará ele com Hubert? Porque irá pôr a culpa nele. Eu não suportaria isso, Hubert. Ele é um homem muito mau. Faz coisas terríveis com quem o irrita. Eu levaria você comigo, Hubert. Levaria, sim. Já tinha resolvido isso. Iria dizer a eles: amarrem Hubert de Burgh. Façam dele meu prisioneiro. Era isso que eu iria fazer. Eu teria alterado nossas posições... e então continuaríamos amigos.
- Mas não aconteceu - disse Hubert.
E pensou: Oh, Deus, eu gostaria que tivesse acontecido.
Chegou outro mensageiro a Falaise. Vinha também a mando do rei. Queria saber se Hubert de Burgh tinha alguma mensagem para o rei.
- Ainda não chegou a hora - disse Hubert.
- Mandaram que eu dissesse que o rei espera notícias em breve. Ele fica impaciente com a demora.
- Ele terá notícias em breve - disse Hubert, e ficou a uma janela da torrinha vendo o mensageiro se afastar.
Sabia, agora, que chegara o momento. Tudo que tinha a fazer era dar a ordem e simplesmente ficar perto para vê-la ser executada.
Trancou-se no quarto. Ajoelhou-se e bradou a Deus que lhe mostrasse uma saída para aquela terrível situação em que se encontrava. Mas não havia saída. Tentou convencer-se. Até certo ponto, João tinha razão. Não poderia haver paz enquanto Artur vivesse... mas se ele fosse uma pobre criatura mutilada, ninguém, nem mesmo os bretões, iriam querer vê-lo no trono.
Para o garoto, era melhor morrer, mil vezes melhor.
Não havia saída. Isso era evidente. Ele não tinha outro recurso a não ser cumprir as ordens do rei.
Mandou chamar dois criados, homens rudes que fariam qualquer coisa por dinheiro. Sabia que eles tinham sido usados antes para tarefas brutais e sentiam um certo prazer em realizá-las.
Os dois deveriam fazer o trabalho, e depressa, o que era melhor.
Hubert falou com eles e transmitiu-lhes as ordens do rei.
- Então é isso, senhor - bradou um deles. - E não estou surpreso. Estava esperando por isso.
- Quando o trabalho tiver sido feito, vocês irão embora daqui - disse Hubert. - Não dirão uma só palavra sobre o fato. Sabem qual é o castigo para aqueles como vocês que resolvem dar com a língua nos dentes.
- Ficaremos mudos como um túmulo, senhor. Quando o trabalho deve ser feito?
- Em breve - disse Hubert com firmeza. - Vamos acabar com isso.
- Vamos agir com os ferros, senhor. Hubert estava tremendo.
- Vão buscá-los - disse ele, afastando-se. - Fiquem prontos e esperem meu chamado.
Dirigiu-se ao seu quarto; ajoelhou-se e rezou pedindo forças.
- Eu preferia ter morrido antes de ser chamado para fazer isso - murmurou ele. Depois, levantou-se e entrou no quarto que agora era uma cela de prisão e que receava que dentro em pouco seria a cena da maior tragédia de sua vida. Aquilo iria persegui-lo para sempre e fazer com que desejasse nunca ter nascido para representar um papel nela.
- Hubert, então é você. Seja bem-vindo. Vamos, tire meus grilhões. Vai ser xadrez? Ora, o que que você tem?
- Meu menino, hoje não me sinto bem.
- Está doente? O que é? Diga-me. Aconteceu alguma coisa terrível. Vão levá-lo embora. Nunca mais tornarei a vê-lo.
Hubert sentou-se e cobriu o rosto com as mãos.
- É verdade - bradou Artur. - Não vou permitir isso, Hubert. Vamos fugir daqui, juntos. Fugiremos para a Bretanha. Altas honrarias serão suas. Não vamos nos preocupar com a coroa, João e tudo o mais. Seremos apenas amigos, como temos sido.
Hubert não respondeu.
- Hubert, Hubert, olhe para mim.
Tirou as mãos de Hubert do rosto dele e fitou-o, consternado.
- Nunca vi tamanha tristeza numa fisionomia - disse Artur. Hubert afastou-o dele e ficou de pé. Bateu as mãos e os dois homens entraram com o braseiro e os ferros.
- O que significa isso? - bradou Artur em voz esganiçada. Hubert não respondeu. As lágrimas tinham começado a escorrer-lhe pelas faces.
- Oh, Deus, tenha piedade de mim. Oh, Deus, me ajude. Hubert, eles vão queimar meus olhos.
Um dos homens disse:
- Pronto, meu senhor?
- Ainda não - disse Hubert, rápido. - Esperem um momento.
Artur havia caído ao chão; agarrou-se às pernas de Hubert.
- Hubert, meu amigo Hubert - bradou ele. - Você não pode deixar que me façam isso. Você é meu amigol
- Artur...
- O que é, Hubert, o que é?
- São ordens do rei. Eu trabalho para ele. Tenho de obedecer.
- Isso não, Hubert. Você nunca poderia fazer isso. Se fizesse, mataria a si mesmo, porque não poderia suportá-lo. Saltaria da torre e me levaria com você... porque
nenhum de nós dois poderia suportar viver... desse jeito.
- Talvez tenha razão. Eu não iria suportar... mas tenho de fazê-lo.
- Não pode... Hubert. Não pode.
- Os ferros estão fervendo, senhor - disse um dos homens.
- Vamos amarrá-lo agora? Fica difícil fazer isso quando eles se debatem.
Hubert ergueu uma das mãos para fazê-los calar. Ajoelhou-se ao lado de Artur no chão. Artur segurou-lhe a mão e ergueu o rosto.
- Olhe nos meus olhos, Hubert. Não se esquive. Olhe para eles e lembre-se de que gostamos um do outro. Não pode deixar que façam isso. Eu nunca deixaria que fizessem
isso com você. Prometo. Se tentassem, eu os mataria antes. Meus olhos, não, Hubert... tudo, menos meus olhos. Já pensou alguma vez como seria nunca mais tornar a
ver o céu, a relva, e os muros de um castelo, a pederneira brilhando ao sol? Já pensou como seria nunca mais olhar o rosto de um amigo, vê-lo sorrir, ver os olhos
dele se animarem ao vê-lo? Não pode me roubar isso, Hubert, pode?
- Eu preciso - bradou Hubert. - Eu preciso.
- Não poderia. Eu o conheço bem. Não vai fazer isso, Hubert.
Como pareceu longo aquele silêncio. Então, Hubert se levantou. Sua voz soou nítida e forte.
- Levem essas coisas embora. Não vamos usá-las.
Os homens, treinados a obedecer sem discutir, começaram imediatamente a retirar o braseiro.
Eles haviam ido embora, e o silêncio continuava, e de repente Artur e seu carcereiro soluçavam um nos braços do outro.
- Temos de pensar, agora, na melhor maneira de agir - disse Hubert.
- Oh, você é realmente meu amigo - bradou Artur.
- Estamos em perigo; o senhor deve saber muito bem disso. Graças a Deus fui eu que recebi essa tarefa torpe. Fiquei triste quando ela me foi atribuída, mas se tivesse sido dada a outro...
Artur estremeceu.
- Ninguém, a não ser você, teria sido tão bravo a ponto de desafiar João - disse Artur, orgulhoso.
- Vamos esquecer que o desafiamos. Ele não deve saber. Artur se agarrou nos braços de Hubert.
- Tenho medo dele, Hubert. Banquei o valente e disse que não. Mas tenho. Creio que Satã é mais bondoso do que ele e todos os demónios do inferno menos cruéis.
- É possível que tenha razão. Terei de dizer a ele que a tarefa foi cumprida, pois dentro em pouco ele vai querer notícias.
- E se ele vier dar uma olhada em mim? Ele virá. Sei que virá. Não vai conseguir resistir a zombar de mim.
- Já pensei nisso. Tenho de dizer que o senhor morreu enquanto se executava a tarefa. Precisamos encontrar um esconderijo para o senhor, onde viva em paz até o momento em que possa ser livre.
- Onde, Hubert, onde?
- Seria mais seguro neste castelo, por algum tempo. Se eu puder continuar aqui... como zelador... e por que não?... poderemos manter o nosso segredo.
- Vamos mante-lo, Hubert.
- E direi que o senhor está morto e enterrado.
- Onde é que eu deveria ser enterrado?
- Preciso pensar nisso. Mas, por enquanto, tenho de subornar aqueles rufiões.
- Pode confiar neles?
- Pagando bem e ameaçando-os com o que mandarei fazer a eles se nos traírem. Não oferecerão perigo, porque ninguém vai saber que estiveram aqui. O plano é bom, e acho que vai funcionar. Tenho bons amigos numa abadia cisterciense que não fica longe daqui. Eles irão me ajudar nisso, e vou dizer ao rei que mandei enterrálo lá sem que ninguém soubesse.
- Podemos fazer isso, Hubert - bradou Artur, excitado.
- Temos de fazer isso - replicou Hubert.
Em um dos cómodos inferiores do castelo do qual só Hubert tinha a chave, Artur passava os dias. Hubert o visitava com frequência e só uns poucos de seus amigos de confiança sabiam que o menino ainda vivia.
Um caixão que se dizia conter o corpo do jovem duque da Bretanha fora levado do castelo para a abadia cisterciense e ali enterrado num local secreto.
Hubert concluiu que não podia confiar uma narrativa do que acontecera ao mensageiro, e quis falar pessoalmente com o rei.
João o recebeu com entusiasmo.
- Quais são as novas? - bradou ele. - Então a tarefa está cumprida?
- Está cumprida, majestade.
- Então agora ele está sem os olhos e sem o sinal externo de masculinidade.
- Majestade, durante a operação o menino morreu. João levou um susto.
- Como foi isso? Os homens foram desajeitados?
- O menino se debateu. Muitas vezes isso acontece... Ele não sobreviveu.
João fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- O destino interferiu, então! E o corpo dele?
- Enterrado, majestade, num túmulo secreto.
- Muito bem.
- Majestade, sugiro que seria melhor que eu voltasse para Falaise e vivesse tranquilamente lá por uns tempos, até que acabe o barulho que isso vai causar, inevitavelmente.
João concordou com um gesto da cabeça.
- Volte para Falaise. Seria bom manter a morte de Artur em segredo, por enquanto.
- vou voltar, majestade, a toda velocidade.
Até aqui, tudo bem. Por quanto tempo poderei manter a verdade em segredo?, pensou ele. E depois, o que será de mim? Por estranho que parecesse, não se importava. Estava num estado de exultação que não conhecia desde o dia em que João lhe ordenara arrancar os olhos de Artur.
A NOTÍCIA de que Artur estava morto estava se espalhando pela Bretanha, e os bretões estavam formando um exército para atacar João, que desconfiavam ter assassinado o duque.
Artur fora prisioneiro de João; tinha ficado sob a guarda de homens de João; e agora se dizia que ele estava morto, e eles queriam saber de que modo isso ocorrera.
No castelo de Falaise, Hubert ouviu a notícia, e no quarto secreto em que Artur agora vivia contou a ele. A excitação da aventura estava desaparecendo, e Artur estava tendo que enfrentar as dificuldades de viver em aposentos apertados. Só podia sair do quarto à noite, quando podia chegar até o parapeito, sempre com o cuidado para que não fosse visto. Hubert não podia visitá-lo com a frequência que teria desejado, pois temia chamar atenção se agisse assim. Por isso, os dias eram longos para Artur, e as noites eram horríveis, porque muitas vezes ele sonhava estar bem amarrado enquanto homens cruéis se aproximavam dele com ferros em brasa nas mãos.
Ansiava pela vinda de Hubert, e sabendo disso, Hubert não podia resistir a correr certos riscos e ia com uma frequência maior do que sabia ser aconselhável.
Disse a Artur que o povo da Bretanha estava enfurecido e se mostrava decidido a vingá-lo.
- Eu sabia que ficariam - bradou Artur. - Vão marchar contra João... e que alegria haverá quando souberem que estou vivo e não fui mutilado. Nunca esquecerei o que lhe devo, Hubert.
- Vamos rezar - replicou Hubert - para que um dia o senhor esteja em paz com o seu povo.
- Nunca me esquecerei do que meu tio mandou que me fizessem. Ele é um homem mau, Hubert. Que ele tire a minha coroa, eu compreendo, porque muitos homens ambiciosos têm feito isso, mas dar ordens para me arrancarem os olhos... isso eu nunca esquecerei. Ele vai para o inferno, sem dúvida, Hubert, e Deus queira que as portas daquele lugar se abram em breve para recebê-lo.
- Vamos pensar no seu futuro, e não no dele. Se os bretões obtiverem sucesso, não há dúvida de que o rei da França irá juntarse a eles. Então, pode muito bem acontecer que o senhor fique livre.
- Liberdade. Sonho com ela quando não estou sonhando com... outras coisas. Ela me parece a coisa mais bonita sobre a Terra... melhor do que uma coroa... mas não melhor do que os olhos da gente. Eu trocaria tudo por eles, até mesmo a liberdade. Agora vejo as coisas de maneira diferente, Hubert. Presto atenção aos pássaros e às árvores. O céu estava encantador ao amanhecer, e enquanto via o sol nascer eu disse: não fosse o Hubert, e eu não teria visto isso. Tudo se tornou precioso para mim, Hubert. Vejo coisas que nunca teria percebido antes.
- Não fale nisso. O senhor me fragiliza.
- Eu gosto de você frágil, Hubert, porque acho que você fica um homem melhor do que poderia ser se fosse frio, forte e no controle de suas emoções.
Assim falavam, e toda vez em que Hubert o trancava em seu quarto e colocava com cuidado as chaves no cinturão que nunca o deixava, pensava: mas quanto tempo isso pode durar?
Quando ficava sozinho, mitigava sua consciência, porque no íntimo era um homem leal e havia desobedecido ao rei. Nunca teria pensado em desobedecer a Ricardo, mas João não era Ricardo. João se convencera de que os bretões, acreditando que Artur estivesse morto e que eles estavam sem um líder, não teriam ânimo para lutar. Prometera a si mesmo que eles iriam raciocinar da seguinte maneira: Artur morreu e, portanto, a causa para o conflito foi eliminada. Sem Artur, a reivindicação do trono por João é a correta.
Como se fossem fazer aquilo. Eles queriam vingança por um assassinato. Por esse motivo, estavam em marcha. O rei da França manifestou-se ultrajado pela morte do duque da Bretanha - muito oportuna para alguns - e queria saber como isso ocorrera. Ali estava uma desculpa para marchar
contra João. Filipe levantava os inimigos de João contra ele. Havia usurpado a coroa da Inglaterra e o diadema da Normandia, dizia Filipe, mas esses eram crimes de um homem ambicioso; ao passo que o assassinato do próprio sobrinho - pouco mais que uma criança - era obra de um criminoso bárbaro.
João afastou as ameaças com um dar de ombros. Estava seguindo a sua prática de passar metade do dia na cama.
Havia modos mais excitantes de passar o tempo do que envolver-se em guerras dizia ele.
Havia momentos, porém, em que seus acessos de raiva levavam a melhor, e então ele amaldiçoava Artur. Por que o garoto tinha de morrer?, perguntava-se. Que fraco ele devia ter sido. Mesmo num momento daqueles, quando estava fora de controle, não mencionava a operação que mandara ser executada e durante a qual ele presumia que o garoto tivesse morrido.
Se Artur estivesse vivo, dizia ele, não haveria toda aquela confusão.
Percebendo isso, Hubert concluiu que poderia salvar sua consciência dizendo ao rei que Artur estava vivo e bem de saúde. Se isso pudesse ser conhecido, se Artur pudesse ser visto, o problema acabaria. Hubert sabia que não poderia manter a existência de Artur em segredo para sempre, e aquela era uma boa maneira de revelá-lo.
Partiu de Falaise e foi falar com o rei, que na época estava residindo no chateou Gaillard, a grande fortaleza não muito longe de Rouen. Sem dúvida que João se sentia bem ao estar ali naquela fase, pois aquele castelo construído por Ricardo Coração de Leão tinha sido a menina dos olhos dele; dizia-se que era a mais formidável fortaleza da Europa. João estaria a salvo nele, não importava quem o atacasse.
Hubert foi recebido imediatamente por João, que se lembrou de que da última vez em que os dois tinham-se encontrado Hubert recebera instruções de arrancar os olhos de Artur.
Berrou para Hubert:
- Criaturas desajeitadas! O que foi que fizeram? Será que não podem fazer uma simples operação... sem provocar isso?
- Tenho notícias para vossa majestade - disse Hubert. Quero que saiba que tudo que fiz foi a serviço de vossa majestade
Suas ordens não foram cumpridas no castelo de Falaise. Artur ainda vive.
João arregalou os olhos, e um sorriso irónico passou-lhe pelo rosto.
- Então é verdade. Agora posso mostrá-lo a meus inimigos... Oh, mas...
João estava pensando no aspecto que Artur teria... dois horríveis buracos inflamados onde existiam seus olhos. Seu pobre corpo castrado mandado de volta à Bretanha. Aquilo seria pior do que a morte.
- Majestade - disse Hubert -, eu sabia que vossa majestade iria precisar mostrar Artur e que se não pudesse fazer isso haveria problemas, de modo que pensando em suas necessidades não mandei arrancar os olhos dele nem mexer no corpo dele de qualquer maneira. Ele ainda é seu prisioneiro... e no estado em que estava quando vossa majestade o prendeu.
Houve um momento de hesitação. Hubert não sabia qual seria o seu destino. O rei poderia ordenar que ele fosse arrastado e que fizessem com ele o que João mandara em relação a Artur. Aquilo pareceria a João uma recompensa justa e, para o rei, divertida. Mas João ficara com medo dos exércitos que se levantavam contra ele e a ideia de que podia mostrar um Artur que não sofrera dano algum era exatamente o que ele precisava.
- Você agiu certo, Hubert. Espalhe a notícia de que o garoto está são e salvo. Onde está ele?
- Ainda está no castelo de Falaise - disse Hubert. - Mas vivendo escondido.
- Escondido? - João soltou uma gargalhada. - Sua raposa esperta, Hubert!
Hubert se permitiu um sorriso.
- E espero que sempre seja assim a seu serviço, majestade. João ainda estava rindo.
- Volte para Falaise. Apresente o garoto. Faça com que todos vejam que ele está são e salvo. Vá até a cidade com ele, providenciando para que ele esteja bem guardado. Quero que o mundo todo saiba as calúnias que os bretões e aquele velho bandido Filipe disseram contra mim.
Hubert não perdeu tempo para voltar a Falaise.
Artur ficou encantado. Cavalgou pelas ruas de Falaise com Hubert a seu lado, rindo e conversando animadamente com o amigo.
- Não receie que eu vá tentar fugir - disse ele. - Eu não partiria sem você. vou esperar o dia em que você e eu, Hubert, possamos escapar juntos para a Bretanha.
Hubert não achava que aquilo pudesse vir a acontecer, mas não disse a Artur; estava tão satisfeito ao ver o garoto desfrutar a liberdade, apontando para as belezas da natureza que antes ele mal notara, de vez em quando colocando as mãos sobre os olhos quando Hubert sabia que ele estava fazendo uma oração em silêncio, agradecendo a preservação deles.
João e Isabella, na cama durante as manhãs no chateou Gaillard, conversavam ociosamente sobre assuntos banais, embora às vezes João mencionasse questões do Estado.
Por mais que ainda estivesse apaixonado por ela, ele não lhe fora fiel. Nas ocasiões em que os dois não tinham estado juntos que não eram muitas -, ele encontrara oportunidades de se envolver com outras mulheres. Lembrara-se que na qualidade de rei tinha o direito de fazer o que quisesse, e se Isabella se opusesse, aquilo deveria ser dito a ela. Mas quando estava com ela, preferia que aqueles pecadilhos fossem mantidos em segredo em relação a ela, e avisava a seus seguidores de que aquele que bisbilhotasse sobre eles poderia se ver sem a língua para repetir a ofensa.
Isabella sabia, claro, o que ele planejara fazer com Artur, e deplorara o fato. Artur era um rapaz simpático, e ela não gostava de pensar em homens bonitos sendo mutilados de qualquer forma. Gostava de viver e de pensar que os outros estivessem fazendo o mesmo. Isabella tinha um bom coração, desde que sendo assim não cerceasse seus prazeres. Não gostava daquela depravação que estava descobrindo cada vez mais em João, e muitas vezes pensava na vida diferente que poderia ter tido com Hugo de Lusignan.
Agora, enquanto se achavam na cama, João mencionou Artur e contou que Hubert desobedecera suas ordens.
- E fez muito bem - disse Isabella.
- Não tenho certeza quanto a isso. É verdade que estou contente por ele não as ter cumprido, mas quando dou ordens espero que sejam obedecidas.
- E fica contentíssimo quando não são... já que são ordens erradas.
João enroscou um pedaço do cabelo dela no dedo.
- Não sei se devo mostrar a ele que não gosto de que zombem de mim.
- Ele agiu dessa maneira para o seu bem. Achou que era o certo, e foi mesmo.
- Você parece muito preocupada com o destino dele.
- Gosto de que os agradecimentos sejam dirigidos a quem os merece.
- E você não se esquece de que ele é um homem bonito e o jovem Artur é um menino bonito, hein?
- Não acho que isso venha ao caso.
- Não acha? Eu acho. Você gosta de homens atraentes.
- Isso não é evidente, já que me casei com o rei?
João enrolou uma mecha de cabelos dela em torno de sua garganta.
- Não goste demais de outros.
- Por que iria gostar, se já tenho um?
- Há quem goste de variedade.
- Como você?
Ele ficou cauteloso. O que é que ela descobrira? Nada, tinha certeza. Todos teriam medo demais de contar a ela. E se soubesse, ficaria zangada e não hesitaria em demonstrá-lo. Ele não queria isso. A rainha ainda era a melhor, a única que ele queria de verdade. Era estranho que depois de tanto tempo ela ainda o excitasse. João supunha que os dois deveriam ter filhos em breve. Aquilo era uma medida de como seus sentimentos estavam mudados em relação a ela. No início, não queria que o corpo dela fosse alterado; queria manter aquele aspecto virginal que tanto o excitava. Mas a natureza começava a alterá-la. Estava bonita como sempre - a maioria diria que estava mais bonita ainda. Mas já não era a menina que fora no primeiro ano.
- Encontrei a amante perfeita, e o fato de ela ser minha esposa me dá uma satisfação plena.
- Então, está tudo bem - disse ela.
- Bem? Só bem?
- Isso quer dizer que não tenho que descarregar minha raiva em você.
- Acha que eu teria medo disso?
- Teria, João.
- Não - disse ele, repentinamente zangado. - Eu faria com que você soubesse que sou o rei e faço o que quero.
- Poderia muito bem acontecer de eu fazer com que você soubesse que eu sou a rainha - respondeu ela.
- O que quer dizer com isso?
- Que aquilo que o rei pode fazer, a rainha também pode.
- Não é assim. Por Deus, se você me fosse infiel, eu faria com que se arrependesse.
- Como eu faria se você me fosse infiel.
- Como poderia fazer isso?
- Há cem maneiras que não estão além da capacidade de uma mulher descobrir. Mas não vamos nos preocupar com o que não existe.
João ficou aliviado. Ela não sabia.
Ele começou a falar em Artur e de repente lhe ocorreu que seria uma boa ideia se fosse a Falaise ver o garoto.
Quando um mensageiro chegou ao castelo de Falaise para dizer a Hubert que o rei estava a caminho, Hubert ficou muito apreensivo. Foi imediatamente procurar Artur e contou-lhe. Artur empalideceu.
- Por que ele viria aqui, Hubert?
- Vamos saber em breve - replicou Hubert. - Enquanto isso, temos de nos preparar para recebê-lo.
- Eu o odeio - disse Artur, com veemência.
- Mantenha o controle de seus sentimentos.
- vou tentar, Hubert. Mas não é fácil, quando se odeia alguém como eu odeio o rei. Quando penso no que ele teria me feito.
- Não pense nisso.
- Não posso deixar de pensar, Hubert. Estou sempre pensando.
- Ele não lhe causará mal... por enquanto. Pode muito bem estar vindo em paz. Talvez queira que o senhor cavalgue com ele para mostrar ao povo que está vivo e bem de saúde.
- Jamais cavalgarei em harmonia com ele.
- Peço-lhe que tome cuidado.
Mas quando João chegou ao castelo, Artur fora dominado por um frenesi de apreensão e ódio. Como poderia evitar isso em relação a uma pessoa que quisera roubar-lhe os preciosos olhos e chegara mesmo a mandar que se fizesse aquilo?
Vou odiá-lo para sempre, pensava Artur.
O rei chegou ao castelo e entrou nele com ar arrogante. Havia algo em relação a Falaise que ameaçava dominá-lo. Ele supunha que isso se devesse ao fato de ter sido em Falaise que seu grande ancestral o Conquistador nascera. Naqueles frios cómodos de parede de pedra, o jovem Guilherme brincara nas saias da mãe de origem modesta. Durante toda a vida de João, Guilherme, o Conquistador, tinha sido considerado um exemplo. Até seu pai falara nele com respeito e admiração. Em consequência, João jamais gostara de Falaise. Parecia sentir a censura do velho e imaginava o que ele diria se pudesse ver a situação da Normandia naquele momento e saber que João ficava metade da manhã na cama com a sedutora mulher. O grande Guilherme jamais compreendera essas emoções. Teria ficado muito impaciente com elas.
Mas por que João pensava tanto em alguém que havia morrido fazia muito tempo? Ele estava vivo e era o rei da Inglaterra e duque da Normandia, e assim pretendia continuar, e se não era o grande soldado que seu antepassado fora, talvez se mostrasse mais sutil.
Ele fora ver Artur e falar com ele. Tentaria fazer com que o menino usasse o bom senso. Era aquele o objetivo da visita.
Hubert de Burgh o recebeu. Um bom servidor, embora fizesse a lei com as próprias mãos. João queria repreendê-lo por causa disso, mas Hubert diria que fizera aquilo para servi-lo e ele teria de aceitar a justificativa, porque não havia dúvida de que era verdade. -Se Artur estivesse realmente morto, haveria conflitos por toda a Europa. Se tivesse sido cegado e castrado, que uivos de raiva teria havido! Não, não era de boa política ter ordenado que aquelas coisas fossem feitas - embora devesse ter sido bem-feito para o ambicioso menino se aquilo lhe tivesse acontecido.
- Bem, Hubert - disse João -, cheguei e vou passar a noite aqui antes de seguir meu caminho. E enquanto estou aqui, devo ver o garoto, esse meu sobrinho que está me causando tantos problemas, e ver se posso convencê-lo a ter juízo.
- Ele está vindo agora para saudá-lo - disse Hubert.
E ali estava Artur. Ficou parado, por um momento, olhando para o tio. Oh, Deus, rezou Hubert, não mostre seu ódio com tanta clareza, Artur.
João percebeu, porque soltou uma gargalhada e se adiantou com os braços estendidos.
- Não, meu sobrinho, não se ajoelhe.
Artur ergueu sobrancelhas bem desenhadas, porque não pretendera se ajoelhar para uma pessoa cuja posição considerava, apesar da usurpação, não ser igual à sua. Porque em sua opinião ele, Artur, era rei e duque, enquanto que João, se perdesse a coroa que havia usurpado, seria um simples conde.
- Preciso conversar com você, meu sobrinho - prosseguiu João. - Temos muita coisa a dizer um ao outro. Mas falaremos mais tarde. Depois de comermos, pois sinto o cheiro de carne de veado e estou com fome. Vejo que o bom Hubert, sabendo que eu vinha, preparou para mim.
Hubert disse que mandaria o pessoal da cozinha se apressar, para que o rei não tivesse de esperar muito pela refeição.
Ele mesmo conduziu João ao melhor dos quartos e deixaram Artur no salão vendo o tio se afastar, com um ódio não disfarçado.
No quarto, João se voltou para sorrir para Hubert.
- Acho que meu sobrinho se dá uns ares de importância disse ele.
- Ele é muito jovem, majestade, e tem muito a aprender.
- Esperemos que tenha o bom senso de aprender as lições.
João se banqueteou no salão e cumprimentou Hubert pela carne de veado. Bebeu à vontade o vinho e correu os olhos à sua volta à procura da mais atraente das mulheres, com a qual iria passar a noite.
Mas primeiro precisava falar com Artur, pois não queria se demorar em Falaise.
Finalmente, ele e Artur ficaram a sós. O coração de Artur batia loucamente. Tudo em que pensava era: ele deu a ordem. Mandou que me arrancassem os olhos.
Sabia que iria se lembrar sempre daquilo, quando estivesse na presença do tio João. Pensar que aquele homem era irmão de seu pai e ordenara que se fizesse aquilo com ele! O ódio tomava conta do coração de Artur. Hubert o avisara: tome cuidado. Não o ofenda. Pense antes de falar. Mas tudo em que Artur conseguia pensar era: ele ordenou que me arrancassem os olhos, e se não fosse Hubert, isso teria sido feito.
- Agora, meu sobrinho, chegou a hora de você e eu compreendermos um ao outro - disse João.
- Acho que o compreendo bem - replicou Artur, com frieza.
- Então, poderemos falar de maneira sensata. Não adianta você pensar que tem o direito ao que é meu. Você não passa de um menino. Precisa crescer.
- Eu cresci nos últimos meses.
- Ficou um pouco mais velho, mas quero que pare esse conflito bobo. Milhares de homens morreram e mais irão morrer por causa de sua obstinação, a menos que você retire a sua reivindicação à Inglaterra, Normandia e tudo o que é meu. Prometa que vai retirar. Se fizer isso, seremos bons amigos.
- Existe uma coisa entre nós, tio, que impede isso.
- Então, pelos ouvidos de Deus, vamos removê-la.
- Isso não é possível.
- E por que não? Por que não?
- Porque o que o senhor tem é meu e não vou parar de eivindicá-lo.
- Você fala como se fosse um bobo. Não viu o que lhe aconteceu quando fez guerra contra mim? Pensou em capturar sua avó, e veja a que isso o levou - lembrou-lhe o rei.
João viu o estremecimento percorrer o corpo do garoto e teve um sorriso sinistro.
- Sabe, meu querido sobrinho, você tem muito que aprender. Dê-me sua palavra de que vai desistir de sua reivindicação da coroa. vou mandar redigir um tratado e nós dois iremos empenhar nossa palavra solene. Quando o tratado for assinado e selado, você voltará para a Bretanha. Que tal?
- Não poderia desistir de meu direito de nascença com uma assinatura.
João suspirou com requinte. Sentia-se sonolento demais para perder a calma; estava pensando na mulher que estaria esperando por ele no quarto se não quisesse contrariá-lo e achava que ela não faria isso. Queria estar com ela e sentia-se impaciente com garotos bobos.
- Se eu não tiver um filho homem legítimo, a coroa passará para você - disse João. - Não é justo?
- É muitíssimo injusto o senhor ficar com o que é meu. João bocejou.
- Pense no que isso significa, meu sobrinho. Lembre-se do que lhe aconteceu em Mirebeau. Você se tornou meu prisioneiro, lá. Não vai querer ficar nessa situação a vida toda, certo?
- Isso não aconteceria. Meu povo jamais o permitiria.
- Vejo que está sendo teimoso e estou perdendo meu tempo ao tentar fazer com que perceba o que é sensato. Vou sair daqui amanhã. - Artur não pôde deixar de demonstrar o seu alívio, e João sorriu. - Vejo que este fato não lhe causa muita pena – prosseguiu ele. - Mas quando eu partir, quero que pense de forma bem clara. Você foi meu prisioneiro. Isso não representou uma experiência muito feliz para você.
- Sei muito bem o que o senhor pretendia fazer comigo bradou Artur.
Por um instante, a preguiça deixou João. Seus olhos faiscaram, e ele bradou:
- Lembre-se disso. Pense nisso quando analisar o que eu lhe disse esta noite. Seria bom para você, meu sobrinho, pôr de lado sua reivindicação do que é meu e se contentar com o seu ducado da Bretanha. Eu o deixo, agora, com os seus pensamentos. - João se levantou e dirigiu-se a seu quarto.
Esqueceu-se de Artur, mas no dia seguinte se lembrou.
Uma semana depois da visita de João a Falaise, chegaram mensageiros do rei ao castelo. Havia ordens para Hubert de Burgh.
O rei estava satisfeito com o seu trabalho de zelador do castelo e queria que ele ficasse lá. Tinha vontade, porém, de deslocar o sobrinho, e pouco depois da chegada daquele mensageiro, viriam guardas ao castelo a fim de levar Artur para outro castelo escolhido pelo rei.
Quando Hubert leu a mensagem, sentiu um aperto no coração. Então ele e Artur iriam ser separados. Até que ponto João havia adivinhado? Teria ele acreditado que Hubert poupara os olhos de Artur porque achasse que serviria melhor o rei fazendo isso, ou teria sido por afeição ao garoto? Artur não escondia bem seus sentimentos. Hubert sabia que ele havia mostrado seu ódio e medo em relação a João; com toda certeza, devia ter traído sua afeição por Hubert. Seria essa a razão que João acharia para que o garoto continuasse com os olhos.
Seria um prazer para João separá-los. Ele não via por que, se Artur não ia fazer o que ele queria, fazer alguma coisa por Artur.
- O que é? - perguntou Artur, receoso. - São ordens de João?
Hubert sabia que não podia esconder a notícia dele por muito tempo, e de qualquer maneira seria melhor que Artur estivesse preparado.
- São más notícias, realmente. Ele vai nos separar.
- Não, Hubert, não. Não quero ouvir falar nisso.
- Não vai ser por muito tempo.
- Para onde eu vou, Hubert?
- Não me disseram. Mas ele está mandando uma guarda para você. Ela pode chegar a qualquer momento.
- Oh, Hubert, vamos fugir daqui. Partamos para a Bretanha.
- Não podemos, Artur. O rei colocou guardas para vigiarem você. Ele sabe que tenho afeição por você e tem medo do que eu possa fazer. Nunca nos deixariam fugir daqui. Seríamos apanhados, presos e depois pode imaginar o que nos aconteceria.
- Quem dera que pudesse matá-lo - bradou Artur.
- Shh... não fale assim. O melhor plano é ir calmamente com os guardas dele. vou descobrir onde você está.
- E fugiremos para a Bretanha.
- Quem sabe? - murmurou Hubert, pois não poderia haver mal algum em deixar que o garoto alimentasse esperanças.
- Sei por que ele está me mandando embora - disse Artur.
- Ele tentou fazer com que eu prometesse desistir de minhas reivindicações, e quando me recusei e mostrei a ele que o odiava e desprezava, ele me disse que pensasse nisso e me lembrasse de minha prisão. Ele estava pensando nos meus olhos, Hubert. Pude ver isso nos dele.
- Tenha cuidado, Artur.
- Vou ter.
- Ele não vai ter coragem de lhe fazer mal - disse Hubert, em tom tranquilizador. - Já vimos isso. Ele aprendeu a lição. Sabe o que aconteceria se causasse. Assim, você estará a salvo... embora prisioneiro dele.
- vou ficar à sua espera, Hubert. Você tem de ir me buscar.
- vou tentar.
Poucas horas depois, os guardas chegaram a Falaise.
De uma torrinha, Hubert ficou observando a partida até não conseguir vê-los mais. Depois, voltou-se e se dirigiu, tristonho, para o quarto.
Meu pobre menino infeliz, pensou ele. Quem dera que tivesse nascido um criador de ovelhas ou de suínos. O que será de você, agora?
Artur não sabia para onde o estavam levando. Mantinha a cabeça bem erguida, mas no íntimo estava abatido. Não tivera coragem de olhar para Hubert ao partir. Teria sido muito vergonhoso se tivesse rompido em lágrimas. Ele sabia, também, que Hubert - aquele querido e bom salvador - sentia o mesmo, de modo que Artur tentou pensar no ódio que tinha ao tio e abafar a emoção que sua grande amizade por Hubert provocava nele.
Eles seguiram margeando o rio... e ali estava o chateou Gaillard, um castelo como ele nunca vira igual. Nunca houvera uma fortaleza igual àquela. Como parecia inconquistável e imponente à luz do sol!
- Veja, meu senhor, o Castelo Ousado do rei Ricardo - disse o homem que cavalgava a seu lado. - Ninguém pode toma-lo. Era essa a intenção do rei.
Eles o estavam lembrando, claro, do poder do rei João. Eu o odeio, eu o odeio, pensava ele. Ele tentou me tirar os olhos.
E por fim chegaram a uma cidade que, de uma certa distância, parecia um enorme castelo, pois estava cercada por um forte muro de pedra, e o rio passava por ele a caminho do mar.
Artur sabia que tinha chegado a Rouen, a capital da Normandia, que deveria, lembrou-se, ser sua se ele exercesse seus direitos.
Tinha de se lembrar das palavras de Hubert. Não podia ofender aquela gente. Nunca, nunca devia se esquecer do que poderia ter facilmente acontecido a ele no castelo de Falaise.
Foi levado para o castelo - o bastião de reis normandos desde a época em que Rollo se instalara na Normandia. Foi tratado com respeito. Seus aposentos não se pareciam com uma prisão, mas havia guardas do lado de fora da porta. Ainda assim, era um consolo ter uma certa liberdade. Poderia ir até as ameias no topo da torre e de lá olhar para a cidade, para os telhados das casas, o rio e os muros da cidade. Se Hubert estivesse aqui, isso seria tolerável, pensou.
Todos os dias ele ia àquelas ameias e olhava esperançoso para ver se havia cavaleiros vindo naquela direção. Sonhava com planos que pudessem ser executados - com a ida de Hubert para apanhálo e levá-lo num saco, como ouvira dizer que o senescal de Ricardo, o Destemido, fizera havia muitos e muitos anos, muito antes do nascimento de Guilherme, o Conquistador.
A vida só era suportável se ele passasse os dias sonhando com a fuga. Às vezes pensava que um grupo de bretões atacaria o castelo. Haveria um cerco, e ele escaparia sorrateiramente para os homens que faziam o cerco e se colocaria à frente deles. Como seria grande o prazer de voltar e se unir ao seu povo! Mas o que mais gostava era de imaginar que era Hubert que ia salvá-lo.
Mas os dias se passavam, e nem os bretões nem Hubert chegavam a Rouen.
Um belo dia chegou realmente um visitante ao castelo de Rouen.
João não conseguia tirar da lembrança aquele garoto que estivera no castelo de Falaise e agora estava em Rouen. A maneira dos olhos dele faiscarem, o jeito arrogante dele se portar mostravam que estava perfeitamente ciente do que tinha sido planejado para ele no castelo de Falaise. Artur iria se lembrar pelo resto da vida; aquilo seria comentado. Não havia dúvida de que se ficasse em liberdade encontraria algum meio de comunicar a Filipe da França o que acontecera. João bem podia imaginar o uso que Filipe faria de uma informação como aquela.
Artur era uma ameaça - a maior de sua vida, mesmo. Que pena ele não ter morrido ao nascer.
João ficou pensando em quantas pessoas sabiam que ele dera a ordem de arrancar os olhos do garoto e de castrá-lo. Hubert sabia. Por estranho que parecesse, João acreditava poder confiar em Hubert. Havia uma nobreza em relação a ele que João reconhecia; havia lealdade, também, e Hubert não agiria contra a coroa, mesmo apesar de não concordar com o que estava sendo feito. De alguma maneira, aquele garoto o comovera e fora por isso que ele lhe salvara a vida. Mas Hubert não trairia seu rei... a menos que pensasse que era pelo bem do país. O pai de João sempre dissera: se tiver um homem bom, respeite-o, mesmo que às vezes ele possa não concordar com você, pois se ele falar com honestidade e honra, será um homem que você deve ter junto a si, porque ele vale todos os bajuladores do reino. Embora João odiasse ser contrariado e isso lhe provocasse um acesso de raiva, quando ficava mais calmo percebia a verdade que havia no ato. Por isso, não acusaria Hubert de Burgh de coisa alguma.
Mas estava contente por tê-lo separado de Artur. Precisava chegar a algum tipo de acordo com o garoto. Se ao menos pudesse induzi-lo a assinar um documento no qual renunciasse a todas as reivindicações das possessões que agora estavam nas mãos de João, este poderia, com umas poucas penadas, privar os bretões do motivo para fazerem guerra contra ele.
Ele estava cansado de guerras. Parecia que a vida de um rei devia ser passada naquela fútil ocupação. A vitória de hoje era a derrota de amanhã, e castelos passavam de mão em mão à medida que a batalha oscilava de um lado para o outro.
Havia maneiras mais interessantes de passar o tempo. Era irritante sair da cama de madrugada para se pôr em marcha, estar preparado para atacar alguns castelos, correr em defesa de outro. Aquilo o deixava exausto. E havia a possibilidade de ser atingido por uma flecha. Três reis da Inglaterra tinham caído assim: Haroldo em Hastings, Rufus na floresta, e Ricardo em Chaluz - e todos os três em menos de 150 anos. Por que iria um homem se expor a um perigo daqueles, quando podia levar uma vida muito confortável? Na opinião de João, um rei devia viajar pelos seus domínios sendo respeitado e homenageado aonde quer que fosse; deveria haver festanças, cantoria, danças nos vários castelos que ele visitasse; e também mulheres muitíssimo ansiosas por compartilharem de seus prazeres. Ele iria preferir, claro, ter Isabella a seu lado, e os dois ficariam na cama até a hora do almoço, como costumavam fazer. Não era pedir muito, só o que ele considerava como sendo uma vida de rei. Mas havia aqueles que se colocavam em seu caminho para impedi-lo de gozá-la.
O principal era Filipe da França: ele jamais deixaria de tentar tornar-se senhor de todo o território francês. Fazia trezentos anos que Rollo havia tomado a Normandia, e no entanto Filipe ainda sonhava retomá-la, e continuaria tentando, como tinham feito os reis franceses durante todo aquele tempo. Não havia coisa alguma que João pudesse fazer com relação a Filipe; mas podia fazer algo a respeito de seu sobrinho, e se pudesse evitar que ele estivesse sempre insistindo em suas reivindicações, se pudesse deixá-lo impotente, teria removido uma das causas de conflito.
Decidiu que agora que Artur estava em Rouen e Hubert de Burgh não estava lá para adverti-lo e assessorá-lo, iria vê-lo. E assim partiu para Rouen.
Foi no dia 1º de abril que ele começou a viagem, atravessando as terras férteis da Normandia. Pensava no sobrinho e tomou a decisão de só deixar Rouen depois de
ter conseguido dele o juramento de que iria desistir de suas reivindicações. Sentia-se irritado com a necessidade de ter de ir a Rouen sem Isabella, pois decidira de uma hora para outra não levá-la junto. Não queria que coisa alguma afastasse seu pensamento daquela questão de chegar a um acordo com Artur, mas quando a deixava ficava sempre pensando no que ela estaria fazendo. O fato de nunca ser fiel a ela durante as separações fazia com que pensasse se ela lhe era fiel, e embora considerasse suas aventuras como sendo naturais e que se devia esperá-las, a ideia das dela podia lançá-lo à beira de um de seus acessos de raiva, de modo que ficava exposto a deixar que a raiva caísse sobre quem quer que se aproximasse dele e o desagradasse da maneira mais branda possível.
Precisava manter a mente clara a fim de lidar com Artur, de modo que não queria que ela fosse perturbada por influências externas. Talvez devesse ter levado Isabella. Não, não podia ter certeza alguma do que iria acontecer em Rouen, e era melhor estar sozinho.
Ficou satisfeito com a recepção que teve no castelo. Houve uma grande agitação à sua chegada, e criados e criadas corriam em todas as direções. Artur foi recebê-lo emburrado, e João lhe disse, em tom chistoso, que viera para conversar com ele e agir como um bom tio.
O estado de espírito de Artur foi dominado e os dois banquetearam-se juntos.
Amanhã, pensou João, vou conversar com Artur.
Ele conhecia o castelo. Ficara lá várias vezes. Lembrava-se de ter ido, com um grupo de homens, até os degraus de pedra onde havia barcos atracados, porque o rio ficava perto. Haviam remado rio acima até Lês Andelys, que o chateou Gaillard protegia. João sempre se emocionara com o castelo e desejava ter sido o seu construtor, e não Ricardo. Aquele castelo ofuscava todos os demais. Ele sabia que Filipe da França rangia os dentes de inveja quando o via; parecia um sentinela montando guarda para proteger Rouen, a cidade favorita de todos os duques. Quando Artur tivesse assinado o documento em que admitiria não reivindicar as possessões da Inglaterra, João iria jurar que, se morresse sem herdeiros, tudo seria de Artur. Os dois subiriam o rio até Rouen e, lá, percorreriam a cidade a cavalo, e todos ficariam sabendo da amizade existente entre eles. E depois de ter assinado aquele documento proclamando que Artur deveria ser seu sucessor se ele morresse sem herdeiros, João deveria ter filhos logo.
Aquilo seria o certo. A primeira etapa de suas relações com Isabella passara. Ele adorara o corpo de menina, mas ela já não era mais uma criança e devia cumprir o seu dever de lhe dar filhos. Aquilo iria evitar que ela se comportasse mal. De modo que ele precisava fazer com que Artur assinasse, e depois engravidaria Isabella. E a assinatura daquele documento era o objetivo de sua ida a Rouen.
Foi no anoitecer do dia seguinte que ele e Artur ficaram a sós.
Sente-se, por favor, meu sobrinho - disse João. - Tenho
algo muito importante para lhe dizer. Você e eu temos de chegar a um acordo. Quero que sejamos bons amigos.
- Então o senhor vai abrir mão daquilo que tirou de mim? - perguntou Artur.
- Eu disse que devíamos chegar a um acordo.
- Rogo-lhe que me diga as condições que tem em mente.
- Você deverá desistir de todas as reivindicações relativas a minhas possessões. Ah, espere. Não fique amuado, como uma criança boba. Se eu morrer sem herdeiros, você será meu sucessor.
Artur abanou a cabeça.
- Quero o que é meu agora.
- Não deve agir como uma criança mimada, Artur. Eu tenho a coroa da Inglaterra e as terras daqui também são minhas. Fui aceito pelo povo. O que acha que o povo da Inglaterra iria dizer se lhe pedissem para aceitar você?
- Sem dúvida diria que sou o rei por direito, já que meu pai era seu irmão mais velho.
- Você é um estrangeiro, Artur. Nunca esteve na Inglaterra. Não conhece os ingleses.
- Sei quem é o rei deles por direito.
- Eles também sabem, meu sobrinho, e é João.
- João usurpou a coroa. Ricardo me indicou como seu herdeiro. O rei da França me proclama.
- E eu uso a coroa - disse João em tom sarcástico. Estava desejando que tivesse a coroa com ele, para que pudesse usá-la naquela ocasião. Teria sido divertido. - Poderá poupar a nós e a si próprio muitos problemas se aceitar o que existe. Agora, vou mandar redigir um documento que você irá assinar, e depois que tiver assinado, nós dois seremos bons amigos.
- Isso é uma coisa que jamais acontecerá.
- Já tomou uma decisão quanto a isso?
- Já, eu me decidi quando o senhor mandou ordens para me cegarem e me tirarem a masculinidade.
- Que conversa é essa?
- É uma exposição de fatos reais. Sei o homem mau que o senhor é, e se está pensando que algum dia vou fazer qualquer acordo com o senhor, está enganado.
- Acho que vai, Artur.
- Por que iria pensar isso?
- Há coisas piores a perder do que a sua herança, como esteve perto de descobrir.
- O senhor é um demónio.
- Sou um homem que consegue o que quer.
- E eu nada mais tenho a lhe dizer.
Artur se levantou e se dirigiu para a porta, mas antes de chegar até ela João o havia agarrado.
- Tire suas mãos de mim... mentiroso, covarde, devasso... Eu o odeio. vou lutar contra o senhor até o fim de meus dias.
- Quer dizer que toda a minha delicadeza para com você de nada adianta.
- Delicadeza... - Artur jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
Um golpe súbito o fez cambalear. Caiu contra a parede e por alguns instantes olhou para um rosto que estava distorcido pela raiva. O mau génio de João se apossara dele, e ele não tentou controlá-lo.
Outro golpe fez com que Artur fosse ao chão, o sangue jorrando-lhe da boca. João apanhou um banco e o agrediu repetidas vezes... na cabeça e no corpo.
Artur gemeu em agonia e então ficou em silêncio.
João lhe deu um pontapé, rindo de forma demoníaca.
- E agora, meu bravo frangote, e agora? O que diz, hein? O que diz, rei da Inglaterra, duque da Normandia, conde de Anjou... Devia ter ficado contente por ser duque da Bretanha.
João espumava pela boca; os olhos estavam esbugalhados; o sangue pulsava com a excitação enquanto continuava a chutar Artur.
E então percebeu que não havia reação por parte de Artur. Ele já não gemia mais; jazia simplesmente relaxado e quieto como se estivesse insensível à dor que lhe era infligida.
João parou de repente, a raiva diminuindo.
Ajoelhou-se.
- Artur! - gritou ele. - Pare de fingir. Levante-se, ou eu o mato a pontapés.
Não houve resposta.
- Artur! - gritou João, com voz esganiçada, mas o garoto ficou imóvel.
Está morto, pensou João. Eu matei Artur. E agora?
Tinha de agir depressa. Se Artur fosse encontrado daquela maneira, haveria uma gritaria de protesto. Iriam saber quem o matou, e aquilo seria usado contra ele. Imaginou uma informação daquelas em mãos de Filipe.
Maldito Artur! Tinha sido uma praga para ele desde que nascera.
O mau génio começou a dominá-lo, e ele chutou o menino outra vez.
Não devia chutar. Precisava ficar calmo. Tinha de pensar com clareza. O que iria fazer? Tinha de se livrar do corpo de Artur. Como? Seria óbvio, para qualquer observador, o que teria acontecido, e seria espalhada a informação de que ele estivera em Rouen e ficara a sós com o garoto. Aquilo não devia ter acontecido. Ele devia ter controlado a raiva. Devia ter mandado assassinar Artur à maneira real tradicional - veneno, por exemplo, ou um perfeito estrangulamento, mas ter matado o menino de pancada...
Maldito fosse ele.
Havia sangue no chão. Precisava de ajuda. Havia um de seus criados - um homem forte que tivera a língua cortada. João o usava de vez em quando, devido ao que considerava ser essa qualificação. Certa vez, João dissera a ele: "Você é um homem feliz, pois sem a língua pode servir bem ao seu rei." Tivesse a língua sido retirada por ele, João poderia ter de se preocupar, porque aquelas criaturas podiam alimentar pensamentos de vingança durante anos, quando se teria pensado que o assunto poderia ser esquecido por homens sensatos. Mas aquele homem nada tinha contra João, e ele decidira, matreiramente, que devido à sua inutilidade o criado devia ser tratado com carinho.
Após trancar a porta do quarto em que jazia o menino morto, João saiu à procura do homem silencioso. Encontrou-o nos estábulos, pois ele adorava cavalos e em geral estava lá quando não executava seus deveres. João o levou de volta à câmara da morte. Bastou apontar para Artur e o homem compreendeu... a perda da língua aguçara o que restava dele.
- Ele precisa ser tirado daqui. Vamos jogá-lo no rio - disse João.
O criado fez um gesto afirmativo com a cabeça e indicou que precisariam colocar pesos no corpo para que ele afundasse.
- Vamos colocar pesos nele e levá-lo até o rio - disse João.
- Então iremos jogá-lo na água. Há barcos ancorados lá. Como iremos levá-lo?
O homem foi até a janela, indicando que iria jogar o corpo.
- Muito bem - disse João. - A resposta é esta. Mas espere... até mais tarde. Aí, o castelo estará calmo.
João deixou o mudo para vigiar o corpo por trás de portas trancadas enquanto desceu para juntar-se ao castelão e sua mulher. Estava agitado. Livrara-se do garoto. com o tempo, Artur seria esquecido, e aquela ameaça fora eliminada.
Já passava da meia-noite quando o corpo de Artur foi jogado pela janela. Eles amarraram uma pedra ao pescoço e o levaram até um barco, que remaram pelo rio em direção ao mar. Atiraram o corpo na água e voltaram para o castelo.
Na manhã seguinte, um botão adornado com jóias, que se sabia pertencer a Artur, foi encontrado nas pedras que ficavam abaixo de sua janela. Havia respingos de sangue naquele ponto... o mudo retirara todos os vestígios do quarto em que o assassinato acontecera.
Comentava-se: "Artur fugiu. Deve ter descido da janela; e se machucou ao cair, daí o sangue."
Esperava-se que em breve houvesse uma triunfante notícia vinda dos bretões, de que o duque deles estava entre seu povo.
Mas não chegou notícia alguma.
Dois pescadores que saíram de barco certa noite ficaram perplexos ao levantarem uma carga e, horrorizados, verem que o que haviam colhido era o corpo de um rapaz com uma pedra firmemente atada ao pescoço.
Na dúvida do que fazer, remaram para a margem, deixaram o corpo no barco e se dirigiram imediatamente ao senhor do castelo que ficava perto. Quando ouviu o relato dos pescadores, ele acompanhou-os até o barco, e examinando as feições do menino morto desconfiou de quem se tratava, e quando percebeu os botões adornados com jóias em seus trajes, adivinhou.
Artur estivera no castelo de Rouen. Já circulavam rumores de que ele tinha desaparecido. Não podia haver dúvida de quem se tratava.
- Não digam nada sobre isso - disse o senhor do castelo. Sob pena de perderem a vida, fiquem calados.
Os pescadores, amedrontados, prometerem de imediato que ficariam.
Todos sabiam que comentar aquilo poderia custar-lhes a língua. Num segredo muito grande, o corpo de Artur foi enterrado na igreja de Notre Dame dês Prés, perto de Rouen, mas não havia indicação da identidade do corpo. Ninguém queria que o rei João soubesse da sua participação na remoção do corpo. A segurança estava no segredo, pois ninguém podia prever para que lado se voltaria a raiva do rei.
Assim, Artur foi enterrado, mas não era provável que pudesse ser esquecido tão facilmente assim.
Os bretões perguntavam onde estava Artur, e o rei da França juntava sua voz à deles. Queriam saber por que o sobrinho do rei João desaparecera de repente.
O DESASTRE ameaçava por todos os lados, e João era perseguido pelas recordações de Artur. Não que sentisse remorso pelo que fizera, mas o medo lá estava. Se algum
dia soubessem que assassinara Artur com as próprias mãos, ele ficaria desacreditado no mundo inteiro, e havia muita gente esperando para se aproveitar dele.
Voltou para o lado de Isabella e mergulhou numa vida de prazer voluptuoso que nem mesmo os dois já tinham experimentado. João ficava na cama, recusava-se a receber mensageiros, sempre temeroso das notícias que trariam. Seus generais e ministros ficavam consternados. Não entendiam aquele homem que num momento estava ansioso por tomar tudo e em outro se portava da melhor maneira para perder tudo.
Filipe foi o primeiro a se aproveitar daquela situação. Artur morrera na Quinta-Feira Santa; duas semanas depois, Filipe havia tomado Saumur. Hugo de Lusignan e o exército bretão haviam-se juntado a ele. Os sussurros sobre o paradeiro de Artur estavam se tornando, agora, iradas exigências.
Guilherme Marechal foi procurar João e pediu-lhe que se mexesse.
- Filipe está nos solapando em todos os pontos estratégicos - assinalou Guilherme.
- Ainda não estou disposto a ir à guerra - replicou João.
- Filipe está exatamente com essa disposição - retrucou Guilherme com seriedade.
- Deixa para lá. Deixa para lá - resmungou João. - Mande uma delegação procurar Filipe e perguntar se ele está disposto a uma trégua.
- Majestade, por que iria estar? Filipe está com seu exército em marcha. Tem aliados com ele. Por que iria concordar em fazer uma trégua apenas para atender à conveniência de vossa majestade?
- Vá perguntar a ele - bradou João.
Ao ver os sinais do acesso de raiva que brotava, Guilherme não pôde fazer outra coisa a não ser retirar-se e executar as ordens do rei.
Como ele sabia que ia acontecer, Filipe riu da proposta. Se João podia se humilhar tanto assim a ponto de pedir uma trégua agora, devia estar num estado lastimável, e o resultado daquela tola estratégia foi fazer com que Filipe planejasse invasões mais intensivas ao território de João.
Os barões que não gostavam de João, embora tivessem jurado vassalagem a ele como seu suserano, mostravam-se indecisos quanto à lealdade. De que adiantava um rei fraco que passava metade do dia na cama com a mulher, quando o poderoso rei da França marchava contra seus castelos? Filipe capturou muitos deles; e alguns se renderam, contentes por mudarem sua vassalagem.
Guilherme, o Marechal, apresentou-se uma vez mais.
- Majestade, majestade, peço-lhe que dê atenção ao que está acontecendo. O rei da França tomou seus senescais. Sabe que há quem não queira se render à França?
- É de esperar que seja assim - disse João. - Não juraram vassalagem a mim?
- Devido à sua lealdade, muitos deles têm sido amarrados ao rabo de seus cavalos e arrastados para a prisão.
- Fico satisfeito por serem homens bons e leais.
- Eles são prisioneiros do rei da França, majestade. Será que isso não o faz entrar em ação? Filipe está se tornando senhor de suas terras, de seus bens. Está lhe tirando sua herança pouco a pouco.
João deu uma risada desagradável.
- Não se excite tanto, Guilherme. Deixe que o rei da França se divirta. vou recuperar todos os castelos, todos os acres de terra que ele me tirou.
- Quando vai começar, majestade? Quando tiver perdido a Normandia toda?
Guilherme se retirou, deixando o rei.
João hesitou um instante antes de gritar enquanto ele se retirava:
- Volte, seu cão insolente!
Mas Guilherme Marechal fingiu não ouvir, e João sabia que ali estava um homem que tinha de manter trabalhando para ele. Naquele momento, sentiu uma pontada de medo. Estava perdendo o pulso, disso ele sabia. E ali estava ele em Falaise, justamente o castelo mais associado ao seu poderoso antepassado. Estaria Guilherme observando das sombras, naquele momento? Estaria Artur com ele? O que iria o Conquistador pensar do assassinato de Artur? Pelo menos, pensou João com cinismo, não iria condenar tanto o assassinato de Artur quanto condenaria a perda dos castelos normandos.
João precisava se mexer. Pensou no papa. Filipe não vinha tendo boas relações com Roma desde o seu desafio com relação a Ingeburga da Dinamarca, com quem ele se casara e que abandonara. No lugar dela, tomara como sua rainha a princesa austríaca Agnes de Meran. O papa protestara, e Filipe dissera algumas palavras ríspidas a respeito de Roma que não seriam logo esquecidas.
Se Inocêncio interviesse em seu favor, talvez João conseguisse uma trégua. Portanto, João reclamou junto ao papa que Filipe estava fazendo guerra contra ele da maneira mais injusta, e implorava ao papa que o ajudasse a manter a paz.
Aquela era sempre uma boa maneira de fazer com que as hostilidades tivessem pelo menos uma parada temporária; porque haveria delegações de Roma a serem recebidas e discussões que se seguiriam. João achava que isso lhe daria uma oportunidade de continuar vivendo como queria, sem que seus generais e homens como Guilherme ficassem agitados com a agressão de Filipe.
Filipe, no entanto, era esperto demais para ser ludibriado daquela maneira. Independente do que o papa dissesse, ele continuaria com a sua guerra. Era verdade, como João previra, que ele havia ofendido a delegação papal dizendo a seus membros que não tinha intenções de receber ordens de Roma e que sua atitude para com um vassalo seu - como era João, duque da Normandia - era assunto que só lhe dizia respeito.
João percebia que o subterfúgio de Roma de nada lhe adiantaria, porque Filipe iria ignorá-lo por completo. Era inevitável, portanto, que ele se pusesse em movimento.
Mas chegou atrasado. Filipe já voltara a atenção para aquele bastião da força normanda, o grande castelo construído pelo Coração de Leão, o chateou Gaillard, que se caísse abriria o caminho para Rouen e toda a Normandia para Filipe e, assim, permitiria que ele se congratulasse consigo mesmo por estar a caminho de realizar sua grande ambição: tornar a França tão grande quanto na época de Carlos Magno.
Finalmente acontecera. Os franceses estavam cercando o chateou Gaillard, o último bastião dos duques da Normandia. Por quanto tempo ele aguentaria?, imaginava João. Ele estava no castelo de Rouen, o cenário do assassinato de Artur. Não queria ir até aquele castelo, mas isso era a única coisa que lhe restava fazer.
Sabia que seus generais e assessores, homens como Guilherme Marechal, estavam aborrecidos com ele. Hugo de Lusignan devia estar exultante, agora; e também os bretões. Esperavam eles descobrir o seu duque e colocar o diadema ducal da Normandia na sua testa? João riu. Artur não ficaria bem com ele.
O chateou Gaillard, orgulho e alegria de Ricardo, o castelo que havia proclamado os duques da Normandia senhores da terra... prestes a cair frente aos franceses.
João sabia que estavam lançando a culpa sobre ele. Estavam murmurando que ele ficara na cama com a mulher enquanto seus castelos caíam um atrás do outro em mãos do rei da França.
- Deixe-os - bradou ele em voz alta. - vou recuperá-los.
Mas sabia, no fundo do coração, que não poderia. Às vezes tinha fantasias que se pareciam com pesadelos, com todos os duques da Normandia anteriores reunidos em torno de sua cama: Rollo, Guilherme Longsword, Ricardo, o Destemido, o Conquistador em pessoa, o mais intimidativo de todos; e até Rufus, que não teria nada do que se jactar, Henrique I, o rei advogado, Estêvão, que também não era grande coisa, embora fosse um grande soldado, indulgente em combate, embora por motivos diferentes dos de João; e seu pai, Henrique II. Como ele ficaria zangado! E Ricardo... bem, Ricardo, o quanto se preocupava você com suas terras, quando deixou tudo para partir nas cruzadas?
Está indo depressa, murmurou João. A Normandia está indo. Ora, ainda tenho Anjou, Poitou e a Inglaterra, claro. Ainda sou o rei da Inglaterra.
Gostaria de estar na Inglaterra, longe de tudo aquilo. Iria em breve. Teria de ir quando Gaillard caísse, e Gaillard iria cair. Como poderiam resistir por muito mais tempo aos sitiadores?
Guilherme Marechal foi procurá-lo, profundamente desgostoso e triste.
- Majestade, é um dia triste para a Normandia.
- Eles não podem resistir lá em Gaillard? Guilherme Marechal abanou a cabeça.
- Filipe cercou o lugar. Não há meios de romper o cerco. Tudo foi deixado para quando já era tarde demais.
- Anime-se, Marechal. Tenho bons amigos e tudo o que for perdido será recuperado.
- Majestade, acho que devo dizer-lhe, há muito tempo tem havido descontentamento entre os barões normandos.
- Traição! - bradou João.
- Eu não diria isso, majestade. Eles dizem que vossa majestade não se interessou por protegê-los. Têm visto muitos serem capturados pelos franceses e mantidos prisioneiros, com suas terras e castelos sendo tomados. Dizem que se vossa majestade não tem condições de defendê-los, eles se vêem obrigados a procurar outro senhor.
- Filipe? - perguntou João com rispidez.
- Isso mesmo, majestade. Filipe envia espiões para o meio deles. Dá-se a entender que se eles quiserem viver em paz devem jurar vassalagem a ele e aceitá-lo como seu suserano, o que por direito ele é... é o que ele diz. Porque vossa majestade, o duque, é vassalo dele por causa da Normandia, e eles, por serem seus vassalos, são, na verdade, vassalos do rei da França. Filipe está oferecendo isenção de conquista se passarem para o lado dele.
- Eles não podem fazer isso. Se o fizessem, seriam traidores da Normandia.
- Eles dizem que a Normandia não tentou defendê-los e irão se oferecer à França.
- Meu Deus, então a coisa chegou a esse ponto?
- Chegou, majestade. O comandante de Gaillard informou a Filipe que se vossa majestade não for em seu auxílio dentro de um mês, ele se renderá, pois já não pode mais resistir.
- E então?
- Não temos condições de ajudá-los, e todos os castelos de Bayeux a Anet prometeram a Filipe que tão logo ele passe a ser o senhor de Rouen eles se renderão a ele.
- Se Gaillard cair...
- Rouen estará perdida, e com Rouen, a Normandia.
- Vamos recuperar tudo... tudo - bradou João. Ergueu a cabeça, os olhos subitamente brilhando de excitação. - vou à Inglaterra. Falarei com os meus barões lá. vou levantar um grande exército. Voltarei e tomarei de Filipe tudo o que ele tirou de mim... sim, e mais do que isso.
Guilherme Marechal o olhou com tristeza.
- Então - continuou João -, vou partir para a Inglaterra mas estarei de volta em breve.
Depois que Guilherme Marechal se retirou, João foi procurar Isabella e lhe disse que eles estavam partindo para a Inglaterra imediatamente.
- Estou cansado deste lugar cercado, como estou, por traidores. Vamos voltar para a Inglaterra. Lá teremos paz.
- E o que vai ser da Normandia? - perguntou ela.
- Filipe irá toma-la por enquanto... mas por pouco tempo. Ela não comentou nada, e João disse, de repente:
- Por que está fazendo essa cara? Você é igual a todos os outros. Acha que a culpa é minha.
Ainda assim, Isabella continuou em silêncio, e ele a sacudiu.
- Fale - bradou ele. - Fale. Ela o fitou sem medo.
- Quem sabe se você tivesse sido mais soldado...
- A culpa foi sua. Você me mantinha acorrentado à sua cama.
Aquilo a fez rir.
- Onde estão as correntes?
- Você é uma bruxa. Você me enfeitiçou.
- Não, foram seus apetites que o acorrentaram.
- Você os saciava bem.
- Era meu dever.
Os dois começaram a rir e uma vez mais ela pensou em Hugo, que teria sido muito diferente.
- Vamos para a Inglaterra - disse João. - Vamos ter filhos. Isso irá agradá-los. Já é hora de você me dar filhos homens.
- Estou pronta.
- Vamos para longe deste lugar maldito. Para mim já chega. Estou com saudades de Westminster.
- Quando partimos?
- Já mandei a bagagem. Sairemos de manhã bem cedinho, antes do pessoal acordar.
- Por quê?
- Porque vão me recriminar. O velho Marechal acha que devo ficar aqui e lutar. Sou capaz de jurar que ele está dizendo para si mesmo que é isso que Ricardo teria feito.
- vou ficar contente por ir embora.
- É bom estarmos longe. Quando Gaillard cair, Rouen cairá logo depois, pode estar certa.
- E não queremos estar aqui quando isso acontecer?
- Nisso você está falando a verdade. Assim... dentro de muito pouco tempo estaremos na Inglaterra.
Os criados do castelo acordaram certa manhã para descobrir que o rei e a rainha tinham ido embora. Guilherme Marechal explicou que o rei voltara à Inglaterra para levantar os barões de lá e comunicar-lhes a necessidade de organizar um exército para salvar a Normandia.
Mas ninguém acreditava que o rei fizesse isso; e todos raciocinaram que se ele havia levado a rainha junto, não pretendia voltar logo.
Pouco depois, o chateou Gaillard caiu em mãos dos franceses e ficou claro que a Normandia seria perdida em breve.
A rainha Eleanor, na abadia de Fontevrault, sabia que seu fim estava próximo. Estava com 82 anos... uma idade bem avançada. Pouca gente vivera tanto. Ela gozara a vida em toda a sua plenitude e tivera muitos filhos. Muitas vezes seu pensamento recuava, e ela sonhava que era jovem outra vez. Supunha que não podia reclamar; tinha sido uma vida emocionante.
Não conseguia isolar-se do mundo exterior como faziam as freiras. Tinha a sua família, justificava-se consigo mesma; ainda se preocupava com eles e tinha de saber o que estavam fazendo, para que pudesse rezar por eles.
Ainda lamentava a morte de Ricardo. Tinham-se passado apenas cinco anos de sua morte, e ela o amara tanto... era o melhor de todos. Ele nascera para ser rei - com
todas as virtudes de um rei, exceto uma. Era uma pena ele gostar tão pouco de mulheres e tê-la desapontado, e ao povo também, por não ter um filho homem. Então Eleanor pensou na pobre Berengária, cuja vida tinha sido tão diferente da dela, e imaginou o que Berengária estaria fazendo. Ainda se recordaria ela da época em que ela e Joana estiveram na Terra Santa? Se se recordasse, estaria lamentando a morte de Joana.
A morte, pensou Eleanor, está sempre conosco... e agora chegou a minha vez.
Um de seus mensageiros foi até a abadia, porque muitas vezes ela lhes dava pequenas missões, já que precisava saber o que acontecia no mundo exterior.
Não pôde acreditar. Não era possível. O mensageiro garantiulhe que era.
O chateou Gaillard caído em mãos dos franceses!
O castelo adorado de Ricardo. Lembrou-se de quando ele o construíra. Ele o chamara de sua filhinha querida e o amara como nunca teria amado um filho. Era o castelo perfeito, a fortaleza inexpugnável, a entrada para Rouen. E se rendera aos franceses!
Oh, Ricardo, pensou ela, quase chego a ficar contente por você não ter vivido para ver esse dia chegar.
E as outras novidades? O rei partira para a Inglaterra. Rouen estava pronta para cair e o mesmo acontecia em toda a Normandia. Em pouco tempo ela estaria toda nas mãos gananciosas de Filipe.
Oh, meu filho João, pensou. Chegar a esse ponto! Isso nunca poderia ter acontecido. Artur, talvez. Mas não. Ele era apenas uma criança e os ingleses não o aceitariam.
Será que não? Até que ponto gostavam de João? E onde estava Artur? Ele desaparecera misteriosamente. Estava em Rouen, e João fora a Rouen. Poderia João dizer a eles onde estava Artur?
Se ele havia fugido saltando de uma janela, como alguns acreditavam, onde estava agora?
Sentia-se velha e cansada. E a Normandia estava praticamente nas mãos dos franceses. O que poderia ela fazer? Ricardo não estava ali para consolá-la. Se você tivesse vivido, meu Coração de Leão, isso nunca teria acontecido. Você nunca teria deixado que o arrogante do Filipe triunfasse. Mas tudo o que resta é João...
Oh, João, meu filho, o que será da Normandia, da Inglaterra, com você à frente?
Como as coisas tinham mudado. Antigamente, ela teria ido a Poitou. Teria declarado sua intenção de defendê-la para João, de organizar um exército, de entrar em combate pela Normandia.
Mas agora estava muito velha, e nada havia a fazer exceto voltar o rosto para a parede.
E assim, no seu octogésimo terceiro ano de vida, ela morreu em Fontevrault, e a enterraram ao lado do marido que ela amara e odiara; e fizeram uma estátua dela, que colocaram sobre o seu túmulo. Serenamente, a figura de pedra olhava o mundo - os fortes traços fisionómicos nitidamente assinalados, usando a touca de freira, sobre a qual ficava o diadema real. Nas mãos tinha sido esculpido um livro, e ali ficou aquela estátua para lembrar ao mundo que Eleanor de Aquitânia vivera um dia a sua vida turbulenta.
E assim João perdeu não só a Normandia, mas também a mãe.
SUA MÃE morrera. Pelo menos, ela não poderia recriminá-lo, e teria recriminado, comparando-o com Ricardo, com grande desvantagem para ele. Uma praga para todos eles! Para aqueles barões normandos que haviam passado para o lado de Filipe, para aqueles barões ingleses que o criticavam por ter perdido a herança da família!
- vou recuperá-la - jactava-se João com Isabella. - Isso são apenas os fados da guerra.
Não queria ouvir o que estava acontecendo na Normandia, embora soubesse que um castelo atrás do outro caía diante de Filipe.
- Que caiam - berrava ele. - Velhacos. Traidores. Quando eu recuperar meus territórios, eles vão sofrer por isso.
Estava jogando xadrez quando lhe levaram a notícia de que Rouen havia caído. Rouen! A Torre de Rollo, a maior de todas as cidades normandas, nas mãos dos franceses! Nenhum duque da Normandia teria acreditado que um dia aquilo seria possível.
O mensageiro chegou e se postou ao seu lado. João não olhou; limitou-se a fazer um gesto afirmativo com a cabeça e continuou olhando as peças no tabuleiro. Então, muito deliberadamente, moveu o bispo.
- É melhor estabelecerem as condições que puderem e, com isso, preservarem os velhos privilégios e costumes - murmurou. Depois, berrou para o barão com quem estava jogando: - É a sua vez, homem! O que é que está olhando assim embasbacado?
Seu adversário fez a jogada com aparente descuido que era, na realidade, calculado. Ele sabia que João não iria suportar perder o jogo e a Normandia.
João não podia ficar indiferente ao que estava acontecendo. Comentava-se: "Então a Normandia está caindo. E Anjou e Poitou? Será que ele vai perder cada acre de seus territórios ultramarinos?"
João decidiu que iria fazer uma trégua com Filipe; mas quando Filipe soube disso, soltou uma gargalhada. Não haveria trégua, disse ele, enquanto João não entregasse Artur; vivo ou morto, acrescentou ominosamente.
Então o fantasma do sobrinho se levantava para perseguir João. Filipe parecia desconfiar de que Artur estava morto, e se não diretamente assassinado por João, por ordens suas. No entanto, sabia muito bem que João não deveria apresentar o garoto nem confessaria a culpa; mas Filipe estava decidido a se aproveitar ao máximo do embaraço de João quanto a esse assunto. Filipe voltou a atenção para alguns dos barões notáveis, como Guilherme Marechal e o conde de Leicester, que tinham terras na Normandia. Aqueles barões, naturalmente, não queriam sofrer desapropriações nem desejavam jurar vassalagem ao rei da França. Era uma situação delicada, pois talvez a Normandia só tivesse passado temporariamente para as mãos do rei da França. Filipe sugeriu, portanto, que eles pagassem a importância de quinhentos marcos cada um pelo privilégio de ficarem com aquelas terras por um ano, e no fim daquele prazo, se João não tivesse recuperado a Normandia, deveriam jurar vassalagem a Filipe e se declararem vassalos da França.
Aquilo pareceu uma solução bem justa, e os barões concordaram em aderir a ela.
Sendo quem era, assim que chegou à Inglaterra Guilherme Marechal dera conhecimento a João do que tinha feito. João recebeu a notícia com tranquilidade.
- Compreendo muito bem - disse ele. - Você é leal a mim, e essa é a melhor maneira de poder ficar com suas terras. Esteja certo, antes do fim do ano voltarei à Normandia.
Guilherme Marechal não estivera certo disso, mas ficou muito aliviado com a aceitação, pelo rei, do que havia feito.
Algumas semanas se passaram enquanto todo mensageiro vindo do continente era aguardado com suspense sufocante, e de repente João acordou certa manhã de ânimo alterado. Toda a sua indolência o abandonara.
Mandou chamar Guilherme Marechal.
- Chegou a hora - disse ele - de fazer o ataque. Filipe vai tomar a Aquitânía se não agirmos. vou percorrer o país de um lado a outro, levantando tropas e dinheiro para que possa mostrar ao rei da França que agora estou pronto para combatê-lo.
- Já é tarde, majestade.
- O quê, não tem coragem para a luta?
- Estou sempre pronto para uma boa causa.
- E acha que esta não é? Está tão ansioso assim por jurar vassalagem ao seu senhor francês?
- Vossa majestade me conhece muito bem para fazer uma acusação dessas com seriedade.
João conhecia, sim, e não podia passar sem o Marechal. Sabia muito bem disso, também. Mas havia uma crescente insolência entre aqueles barões. Ela era evidente até na atitude de Guilherme Marechal agora. Criticavam João pelo que acontecera na Normandia. Ele queria gritar com o Marechal, mas estava obcecado, no momento, pelo desejo de entrar na luta, e não podia discutir com homens como aquele numa hora daquelas.
Guilherme Marechal estava pensando no quanto João era imprevisível. Aquela explosão de energia era, agora, tão compulsiva quanto fora a displicência. O que se poderia esperar de um rei como aquele? Às vezes, pensou o Marechal, parecia ser bom para a Inglaterra se ela fosse conquistada pela França. Era melhor ser governado pelo inteligente Filipe do que por esse rei que às vezes dava a impressão de estar à beira da loucura.
- Então não acha que devemos lutar pelos nossos direitos?
- Deveríamos ter feito isso mais cedo, majestade.
Sim, era insolência. Mas fique calmo, avisou João a si mesmo.
- Há um momento - disse o Marechal - em que a atitude deve ser tomada, e se as oportunidades forem perdidas, às vezes é uma imprudência tentar toma-la mais tarde.
- Você tem seus pontos de vista, Marechal, e eu tenho os meus. Vou começar a viagem pelo país hoje, para reunir meu exército.
O ano que Filipe concedera aos barões para que mantivessem a posse de terras na Normandia havia passado e foi necessário que voltassem lá e mostrassem vassalagem ao rei da França e jurassem "respeito feudal no lado francês do mar". Filipe ficou encantado com aquela solução, pois ela significava que vários dos principais barões da Inglaterra não poderiam, por princípio, pegar em armas contra ele no continente.
Como era possível servir a um senhor de um lado do mar e a outro do outro, era algo difícil de harmonizar, mas Guilherme Marechal percebera que era a única maneira de poder manter suas propriedades na Normandia, e como ele, entre outros barões, estava sentindo sua lealdade a João diminuir a cada dia, pelo menos tomara a decisão que representava a única saída para o seu dilema.
Enquanto isso, João passara o inverno percorrendo o país levantando dinheiro - o que nunca era uma atividade popular - e avisando que estava se criando uma desavença entre ele e seus barões. Ele iria levar um exército para a França; iria recuperar o que o rei francês havia tomado, e estava decidido a fazê-lo. O povo precisava perceber que se encontrava numa situação perigosa. Com Filipe na Normandia, era possível que ele pudesse estar pensando numa invasão da Inglaterra. Permitiria o povo que o seu país fosse conquistado pelos franceses, pois era esse o perigo?
Aquele tipo de profecias atraía gente para sua bandeira, e ele não ficou decepcionado com o resultado de seu trabalho. As condições estavam contra ele, pois o rigoroso inverno tornara escassos e caros os alimentos, e surgiram os primeiros sinais de rebelião entre os barões. Eles o enfureceram ao se recusar a jurar vassalagem a ele, a menos que mantivesse os direitos do reino. João rangera os dentes de raiva, mas a necessidade de formar um exército era tão desesperadora que João prometera o que eles pediam.
Confiscou mantimentos, ordenando que homens se juntassem a ele, e quando a Páscoa chegou contava com uma das melhores armadas que o pais já vira esperando na baía de Portsmouth para partir. João se dirigiu a Porchester, que ficava perto, para as providências finais.
Chegaram notícias do continente, dizendo que Filipe não estava, naquele momento, concentrando seu exército na costa da Normandia. Era evidente que decidira que uma conquista da Inglaterra era um empreendimento perigoso; em vez disso, estava se voltando para atacar Poitou.
- Por Deus! - bradou João. - Estava na hora de eu estar lá.
Agora não havia a incansável rainha-mãe para correr em defesa da Aquitânia. Estava sozinho, concluiu João com amargura, em quem poderia confiar? Havia muitas pessoas que tentavam convencêlo a não fazer aquilo.
- Traidores! - bradava ele. - Traidores, todos!
Dois homens, em particular, eram terminantemente contra a expedição: um deles era Hubert, o arcebispo de Canterbury, e o outro, Guilherme Marechal.
Hubert, por ser arcebispo, devia, quase que com toda a certeza, ser olhado com desconfiança por João. As relações entre os dois não tinham sido nada fáceis, em especial desde o retorno de João à Inglaterra, pois o arcebispo, como outros membros da comunidade, estava começando a perceber que João era um tirano.
Hubert era mais do que um arcebispo; era um estadista, e muitos poderiam acusá-lo de ser mais o segundo do que o primeiro; tratava-se de um homem astuto, com o bem da Inglaterra no coração, e durante os anos de ausência de Ricardo conseguira levantar dinheiro para o seu rei tal como aprendera com seu tio Ranulf de Glanville. Quando se fizera necessário levantar as cem mil libras de que se precisava para a libertação de Ricardo da prisão, ele trabalhara intimamente com a rainha Eleanor para arranjar o dinheiro e conseguira aquele feito quase sobre-humano, o que muito o recomendava; e seguindo os métodos de Henrique II, ele conseguira realizar uma tarefa tão penosa para o povo da Inglaterra de tal maneira que o povo ficara muito menos contrariado do que seria de esperar.
Claro que ele havia discutido com João, mas num momento de bom senso João percebera que teria muito pouco a lucrar com uma discussão e fizera as pazes com o arcebispo.
Agora, em Porchester, Hubert pregava contra levar um exército para a França. A invasão tinha sido adiada demais, declarou ele. Aquilo poderia acabar em fracasso, e se aquele exército fosse derrotado, como poderia a Inglaterra ser defendida se Filipe decidisse dirigir suas forças contra ela?
João esbravejava e vociferava, estando tão ansioso agora por entrar em combate quanto pouco tempo atrás estivera decidido a evitar aquilo.
Guilherme Marechal acreditava, muito firmemente, que a expedição seria um fracasso, mas tinha outra razão para não querer ir para a França.
Os barões, perdendo cada vez mais a confiança em João, tinham sido enganados e levados a pensar que iriam defender a Normandia.
Agora tinham descoberto que não era essa a intenção de João. Ele iria lutar contra Filipe por Poitou e Anjou. Embora os barões estivessem interessados na
Normandia, onde tantos deles tinham propriedades, não se interessavam tanto pelos outros domínios. Começaram a murmurar entre si e quando descobriram que o arcebispo de Canterbury e Guilherme Marechal também estavam relutantes, tomaram coragem e disseram que não queriam ir.
Guilherme Marechal, com alguns dos barões, foi conversar sobre o assunto com João.
- Eu mesmo não poderia ir à França lutar - disse ele.
- Eu não o compreendo, Marechal - bradou João.
- Majestade, sabe que eu e outros fizemos um pacto com Filipe. Fizemos isso com a sua aprovação, como deve se lembrar. Pagamos a ele para que pudéssemos ficar com as terras durante um ano, prometendo que se vossa majestade não conquistasse a Normandia até lá iríamos jurar vassalagem a ele. O tempo passou, majestade, e a vassalagem foi jurada.
- Seu... traidor! - bradou João. - Então jurou vassalagem ao meu inimigo.
- com o seu conhecimento, majestade.
Os olhos de João começaram a ficar esbugalhados e seus lábios começaram a se mexer, embora ele não falasse de imediato. Todos viram os sinais do notório mau génio.
- Prendam este homem! - berrou ele. - Não quero traidores do meu lado.
Houve um silêncio. Os barões continuaram impassíveis. Não havia um só deles que levantasse a mão contra o Marechal.
João começou a berrar. Apontou para Guilherme Marechal com um dedo trémulo.
- Eu lhes digo que este homem é um traidor - berrou ele.
- Fez pactos com o rei da França pelas minhas costas. Ele é homem de minha confiança e não pode lutar contra o rei da França porque jurou servi-lo. Este é um homem que permiti que privasse de minha intimidade. Dei-lhe minha confiança e ele me traiu. Prendam-no. Levem-no daqui. Levem-no para uma masmorra. Deixem-no lá à espera de que eu manifeste o meu desejo... e o meu desejo não será o seu, Marechal, isso lhe prometo.
Seus olhos varreram o grupo silencioso.
- O que é isso? O que é isso? - bradou ele. - Então nenhum de vocês se mexe? Ficam aí parados. Eu lhes dou ordens e vocês não fazem nada... nada... nada! - Sua voz se transformara num grito. Então, de repente, ele pareceu se acalmar. - Entendo- disse ele, pausadamente. - Entendo perfeitamente. Estão todos contra mim. Todos vocês. Traidores... todos vocês. Isso é uma coisa terrível. - Deu as costas a eles e se retirou.
O Marechal estava contra ele. O arcebispo estava contra ele. E havia um ressentimento latente entre os barões.
- Eles não vão me impedir - gritou ele para Isabella. - vou fazer o que quero. Fique certa de que vou. Nada me impedirá- nada... nada... nada.
E continuou com os preparativos.
Guilherme Marechal foi procurá-lo. Parecia triste e contrito,e Por um momento o coração de João saltou de esperança, porque ele achou que Guilherme fora pedir perdão.
O Marechal, não. João pensou: ninguém pensaria que ele é meu súdito. Eu poderia prendê-lo e arrancar-lhe os olhos. Será que ele se esquece disso?
Não, não poderia, sussurrou o bom senso. Se fizesse isso, o país inteiro se levantaria contra você. Esse homem é amado pelos barões e pelo povo. Não se iluda. Você
precisa da amizade dele.
Mesmo assim, fez uma careta para o Marechal.
- Bem - bradou ele -, por que vem me ver? Por que não vai para o senhor que preferiu servir?
- Há um senhor a quem sirvo nestas plagas - disse Guilherme Marechal. - Há um senhor que eu sempre teria o desejo de servir. Fui obrigado a jurar vassalagem ao rei da França quando na terra que ele agora domina, e sou homem de cumprir promessas.
- Então com um juramento você trocou a honra pelas suas terras.
- Eu nunca trocaria a honra por um juramento, majestade. Será que já percebeu que se... e pela graça de Deus que seja em breve... recuperar a Normandia terá lá bastiões daqueles que o servem bem? Eu sou um deles.
- Você espera que eu acredite nisso? - perguntou João com escárnio.
- Pode acreditar no que quiser, majestade. Os fatos continuarão tal como são. Venho pedir-lhe que dissolva o seu exército.
- Porque você não quer lutar contra o seu amigo?
- Se se refere ao rei da França, devo dizer-lhe que não quero. Mas a minha razão para enfrentar a sua ira e vir falar com vossa majestade é pedir que reflita. Os fatos são os seguintes: Filipe está, agora, controlando imensos territórios; pode colocar mais homens no campo do que vossa majestade. Vossa majestade conhece muito bem a traição dos poitevinos. Pode confiar neles? Eles seriam seus amigos um dia e, se fosse vantajoso para eles... como pode muito bem acontecer... iriam passar para a França. E enquanto vossa majestade estivesse envolvido lá com a nata de seu exército, deixaria esta terra exposta ao invasor. Sua presença é necessária aqui. O povo está perturbado. Não gostou da tributação que foi cobrada para formar esse exército. Os barões estão à beira da revolta. Majestade, pode servir melhor seus interesses dissolvendo o seu exército e ficando aqui, para defender com firmeza o que lhe resta.
- Você me desaponta, Marechal. Pensei que pudesse confiar em você.
- Pode confiar em mim como sempre. Nada fiz de desleal. Tive o seu consentimento para pagar a Filipe a fim de que pudesse ficar com as minhas terras na Normandia, e vossa majestade sabia muito bem a condição de que se vossa majestade não recuperasse a Normandia em um ano eu deveria jurar vassalagem a ele. Foi o que fiz, como deve saber que tinha de fazer. E porque fiz o juramento de vassalagem ao rei da França, não posso, por uma questão de honra, acompanhar vossa majestade à França... se decidisse ir... o que espero que não decida.
João cerrou os punhos e praguejou, mas não podia deixar que seu mau génio estourasse. Vira a expressão nos olhos dos barões e ficou imaginando o que iriam fazer em seguida.
- vou convocar os barões e conversar com eles - falou João. O Marechal pareceu aliviado.
João correu os olhos pelo grupo. Estavam todos contra ele... todos! Ele tinha seus mercenários; eles o seguiriam. Mas não, não podia ir contra seus barões e seus ministros.
- Os senhores me aconselham a não ir - bradou ele. Digam-me, então, o que devo fazer.
Alguns barões achavam que uma pequena companhia de cavaleiros poderia ser enviada a Poitou, a fim de ajudar àqueles que lhe fossem leais.
- Uma companhia de cavaleiros! Isso irá defender Poitou? Isso vai recuperar a Normandia? - João se tornara piegas. Estava em lágrimas. Não podia confiar em ninguém. Estavam todos contra ele. Ninguém se manifestou.
- Muito bem - berrou ele. - vou dissolver o meu exército. Mas os senhores não vão impedir que eu vá. Irei levando comigo alguns de meus leais seguidores.
Os barões foram de opinião que ele não devia sair do país. Era imperioso que durante aquela situação duvidosa ele permanecesse na Inglaterra.
- Não tentem me dizer o que devo fazer e o que não devo berrou ele, esquecendo-se de que pedira o conselho deles. - Os senhores não irão comigo.
Retirou-se e se dirigiu ao porto, onde seu navio estava ancorado.
- Preparem-se! - bradou ele. - Vamos partir imediatamente. Seu capitão ficou assombrado ao saber que só aquele navio iria atravessar o canal, com todos os demais sendo dispensados.
- Ninguém quer me seguir - bradou João. - Então, eu vou sozinho.
Fez-se ao mar em seu navio enquanto o resto da frota era dissolvido e os soldados que se haviam reunido voltavam para casa.
Mas João não pretendia ir para a França. À medida que sua raiva esfriava e a terra recuava, ele concluía que seria ridículo se fosse à França com apenas a companhia de um navio.
Deus ordens para que o capitão aportasse em Wareham, onde desceu, reclamando amargamente que estava cercado por traidores. Partira para a França a fim de recuperar sua herança, e seus súditos o tinham abandonado. O fracasso no exterior era devido a eles. Estão vendo, João estivera pronto para lutar. Mas eles eram covardes. Tinham prestado juramento ao rei da França, esquecendo-se de seus deveres para com o rei da Inglaterra na determinação de salvarem suas terras. Aquilo seria sempre lembrado contra eles.
João chegara a uma situação lastimável, não pelo que havia perdido, mas pelo que havia descoberto - a traição daqueles que mais o deviam ter amado!
Filipe, naturalmente, aproveitou-se da situação e num curto espaço de tempo tinha toda a Poitou em suas mãos, com a exceção de Rochelle, Thouars e Niort.
Hubert Walter, arcebispo de Canterbury, sentia o peso dos anos quando saiu de Canterbury em direção à cidade de Boxley, onde iria resolver um desentendimento entre o bispo de Rochester e alguns de seus monges.
Ele estava ficando velho demais para aquelas viagens, e sofria de um incomodativo carbúnculo no pescoço, que lhe provocava muitas dores. Naquela manhã, ao acordar, sentira-se febril e pensara se devia adiar a viagem, mas nunca era prudente deixar que aquelas desavenças supurassem. Era muito melhor, sempre dizia, encontrar uma solução rápida. Já havia problemas suficientes no país. Hubert andava muito preocupado ultimamente, particularmente desde que estivera com o rei em Porchester, quando ele ali estivera reunindo seu exército para levar ao outro lado do canal. Que ataques violentos de raiva João tivera! Hubert conhecia bem o mau génio angevino; João não era o único da família que o tinha, pois ele estivera presente em quase todos os membros daquela família. Bem poderia ser verdade que ele fora introduzido no sangue deles pela feiticeira com quem se dizia que um dos duques de Anjou se casara. Henrique II o tivera, o mesmo acontecendo com Ricardo até certo ponto, mas ninguém o tivera a um grau tão louco quanto João. Ele parecia à beira da loucura quando o mau génio explodia, e estar possuído pelo diabo em pessoa. Era alarmante considerar que um homem daqueles estava no trono da Inglaterra.
O arcebispo pensava muito no rei, e imaginava o que acontecera ao jovem Artur, que desaparecera tão súbita e misteriosamente. Ele estivera em Rouen; João fora até Rouen; e isso era significativo. O arcebispo rezava para que João não tivesse sido culpado de algum ato torpe que só poderia provocar a sua desgraça e, através dele, da Inglaterra.
Os dois agora eram bons amigos, mas a qualquer momento poderia surgir um conflito entre eles. Todos os monarcas tinham ressentimentos para com a Igreja, mas João os tinha mais do que a maioria, e não era do tipo de tentar agir com diplomacia.
Muitas vezes o arcebispo ficava pensando se não teria sido melhor ter levado Artur para a Inglaterra e tê-lo treinado para se tornar o rei.
Tudo isso ele estava pensando enquanto seguia a meio trote em seu cavalo. O calor era intenso - ou seria a sua febre? A dor do carbúnculo ficava mais insistente; ele ficaria contente por passar a noite descansando. Quando ele e sua comitiva chegaram à cidade de Tenham, sentia-se exausto e pronto a se meter numa cama. Não conseguiu comer coisa alguma, e seus criados, pelo que ele podia ver, estavam aflitos por sua causa.
- Por favor, deixem-me descansar - disse ele. - Depois de uma noite bem dormida, estarei em plenas condições para a viagem de amanhã, e queira Deus que tenhamos resolvido o nosso assunto em breve e estejamos de volta a Canterbury.
Mas pela manhã ele não estava em condições de tornar a partir. O carbúnculo latejava dolorosamente, e a febre havia aumentado. Estava um pouco delirante e concordou que devia ficar descansando ali por alguns dias.
À medida que o dia avançava, a febre tornou-se pior. Tampouco havia melhorado no dia seguinte; e no terceiro dia depois de sua chegada a Tenham, ele estava morto.
Era necessário informar o rei, imediatamente, da morte de seu arcebispo; e um mensageiro partiu de Tenham tão logo se soube o que acontecera.
João estava em Westminster com a rainha quando o mensageiro chegou. Foi levado direto à presença do rei, porque era evidente que a notícia era da máxima importância.
- Majestade - bradou o mensageiro -, o arcebispo de Canterbury morreu.
João se levantou, e um sorriso de desprezo cortou-lhe o rosto.
- É verdade, então? - perguntou ele.
- É verdade, majestade. Morreu de uma febre e um carbúnculo em Tenham.
João se voltou para Isabella com um sorriso.
- Ouviu isso? Ele está morto. Hubert Walter, arcebispo de Canterbury, morreu. Agora, pela primeira vez, eu sou realmente rei da Inglaterra.
Quando chegou a Canterbury a notícia da morte do bispo, os monges de St. Augustine convocaram um conclave, no qual discutiram a nomeação de um novo arcebispo. Aquilo seguia uma longa tradição, pois os monges de Canterbury tinham o direito, que estavam muito ansiosos por manter, de eleger seu arcebispo.
O abade salientou que a morte de Hubert era uma grande tragédia que todos tinham a lamentar, mas que poderia ser uma tragédia ainda pior se fosse eleito um arcebispo que não tivesse como propósito o bem da Igreja. Eles deviam, portanto, chegar a uma decisão de escolher um digno sucessor de Hubert e, sem muita demora, mandar pedir ao papa a permissão para que o homem por eles selecionado pudesse assumir o cargo que era tão importante para a Igreja.
Eles se separaram e combinaram voltar a se reunir dali a uma semana. Mas antes disso, João chegou a Canterbury.
Viera, disse ele, para prestar seus últimos tributos ao arcebispo, seu querido amigo e conselheiro. Exaltou, então, as virtudes de Hubert, divertindo-se no íntimo enquanto transformava as diferenças entre eles em demonstrações de amizade. Uma situação daquelas invocava o seu senso de humor.
- Temos de ter a certeza de que nomearemos um digno sucessor de nosso bom Hubert - disse ele ao abade. - Ele ficaria triste, olhando lá do céu, se nomeássemos o homem errado. É claro que é impossível encontrar alguém com o valor dele, mas temos de garantir que quem o suceder é capaz de usar o manto tão tragicamente tirado de Hubert.
- Temos pensado seriamente no caso - disse o abade. João ficou alerta. Então têm pensado, não é?, pensou ele. E gostariam de colocar um homem seu, alguém que se curvasse diante de Roma. Eu conheço vocês, homens da Igreja! Não, meu velho abade, o próximo arcebispo de Canterbury vai ser homem da minha confiança, já que o velho Hubert nunca foi.
- Este é um assunto que todos aqueles que têm o bem da Igreja... e da corte... em primeiro lugar no coração, têm de examinar a fundo. Eu mesmo tenho refletido, e me parece que não poderia encontrar um homem melhor do que João de Grey, bispo de Norwich, que tem sido um amigo muito bom de seu país.
O abade ficou consternado. João de Grey era homem do rei. Dizia-se que Hubert era mais um estadista do que um homem da Igreja, mas pelo menos sempre tivera em vista o bem da Igreja. João de Grey iria trabalhar inteiramente para o rei, e era evidente que fora esse o motivo pelo qual o rei se decidira em favor dele.
O abade não respondeu, e João continuou a exaltar as virtudes de Hubert.
- Infelizmente... infelizmente nunca teremos outro igual a ele - disse ele, e pensou: graças a Deus.
Esteve presente à cerimónia de enterro do arcebispo e se demorou seis dias em Canterbury, sendo agradável para com os monges, nunca tornando a mencionar que estava decidido em favor da eleição de João de Grey mas, apesar disso, tomando a decisão de que assim que voltasse para Westminster enviaria emissários ao papa. O fato de que aquilo era preciso o deixava enfurecido, como deixara os reis antes dele. O jugo de Roma nunca era muito confortável para um pescoço real. Era por isso que sempre existia um mal-estar entre Igreja e Estado, e portanto era imperativo para o rei que aquele cargo importantíssimo fosse ocupado por um homem que trabalhasse para ele. João de Grey era esse homem.
Tão logo João deixou Canterbury, o abade convocou outra reunião.
- Está claro que o rei decidiu apresentar o bispo de Norwich. Ele é homem do rei; vai fazer exatamente o que for mandado, e isso significa que se o rei exigir a abolição dos privilégios da Igreja, o arcebispo do rei fará o que mandarem. Isso não será bom para a Igreja.
Um dos monges lembrou ao abade que era privilégio deles eleger um arcebispo e pedir ao papa a sanção para a nomeação.
- É exatamente isso que sugiro que façamos.
- Contra a vontade do rei? - perguntou um deles.
- Isso não é assunto do Estado - replicou o abade com firmeza. - Cabe à Igreja escolher, e como é nosso privilégio eleger o arcebispo, assim o faremos. Depois, o mandaremos em pessoa a Roma, a fim de solicitar ao papa a aprovação, mas não antes de o termos colocado na cadeira do arcebispo.
Alguns dos monges mais tímidos falaram na contrariedade do rei, mas o abade salientou que não só a Igreja precisava ficar contra o Estado quando necessário, mas que eles, que eram os monges de Canterbury, onde o mártir S. Thomas Becket mostrara seu desafio à coroa, deviam inspirar seus conterrâneos a cumprirem com o seu dever, e que este dever estava com a Igreja. Poderiam, em segredo à noite, eleger seu arcebispo, realizar a cerimónia de colocá-lo no trono do primaz, e depois mandá-lo a Roma. Quando a sua eleição fosse conhecida, ele teria o consentimento do papa, e quando este fosse dado, o rei nada poderia fazer.
Os monges perceberam que, a menos que fossem aceitar servilmente o nomeado pelo rei, era assim que teriam de agir, de modo que compareceram ao conclave secreto e elegeram seu vice-prior Reginald - homem piedoso e erudito que provara sua dedicação à Igreja. Realizaram a cerimónia no altar e colocaram-no no trono. Depois, concordou-se que ele devia partir para Roma imediatamente e dizer ao papa que tinha sido eleito pelos monges de Canterbury e que tudo de que precisava era da aprovação papal de seu cargo.
- É imperativo - disse o abade - que ninguém saiba o que aconteceu aqui esta noite até que você tenha a sanção papal, de modo que vou pedir-lhe que faça um juramento de que vai manter segredo.
Reginald declarou que nada arrancaria a informação dele e, animado, fez um juramento de segredo absoluto.
Então partiu para Roma.
Assim que João deixou Canterbury, mandou chamar João de Grey, seu bispo de Norwich.
O rei estava de bom humor. com de Grey à frente da Igreja na Inglaterra, ele podia esperar pouca interferência naquela direção e se congratulava consigo mesmo por ter o homem indicado para o cargo.
- Meu caro bispo - disse ele -, é um prazer vê-lo. Tenho planos para o senhor. O que tem a dizer sobre Canterbury?
- Canterbury, majestade!
- Oh, isso lhe faz arregalar os olhos, hein?
- Majestade, eu sei que Hubert morreu...
- Um velho metido. A ideia dele era fazer o Estado subserviente em relação à Igreja. Não dizia isso, mas a insinuação lá estava. Bem, ele agora já não existe, e precisamos encontrar um outro para ocupar o seu lugar. Como sei que o senhor tem sido meu amigo e continuará a sê-lo, decidi nomeá-lo arcebispo de Canterbury.
- Majestade! - João de Grey estava de joelhos beijando a mão de João.
- Meu caro bispo - disse João. - Estou certo de que me servirá bem, como serviu no passado. Tem sido um bom secretário e amigo, e sei que, com o senhor no trono do primaz, terei acabado com aqueles velhos irritantes e metidos que iriam ter a presunção de me dizer qual é o meu dever.
- Irei servi-lo com todo o meu coração e toda a minha alma
- garantiu-lhe o bispo.
- Sei muito bem disso, e agora vou enviar emissários imediatamente a Roma, embora isso me irrite, mas é preciso. Depois, meu caro amigo, quando for arcebispo, poderemos trabalhar juntos pelo bem do país e manter a Igreja no lugar que lhe cabe.
Ganhei o dia, pensou João quando se despediu do bispo de Norwich.
O papa Inocêncio III, nascido Lotario de Segni, era um homem de grande força intelectual. Fora destinado a se tornar papa desde a época - uns dezesseis anos antes - em que se tornara cardeal sob seu tio, o papa Clemente iII. Altamente instruído, tinha a mente de um advogado e estava profundamente interessado nas questões mundiais. Não se contentava em ser o chefe nominal a quem a Igreja no mundo inteiro estava subordinada. Considerava todos os reis e governantes sujeitos à lei da Igreja, e portanto eles estavam tão sob o seu controle quanto o clero.
Todo papa estava ciente do conflito que parecia ter de surgir inevitavelmente entre chefes de Estado e a Igreja, e se mostrava mais decidido do que a maioria de seus antecessores a manter todos submissos a ele.
Hubert Walter tinha sido um arcebispo de Canterbury ideal; um homem forte que fora tanto um estadista quanto um religioso; era homens assim que Inocêncio queria ver à frente da Igreja no mundo inteiro.
Ficou surpreso, portanto, quando Reginald chegou a Roma para pedir sua sanção à nomeação dele para arcebispo de Canterbury. Ele nunca ouvira falar em Reginald, e como o homem chegara um pouco às ocultas, percebeu que devia haver na Inglaterra quem não estivesse ansioso por vê-lo como primaz. Soube que Reginald já havia sido eleito pelos monges de Canterbury, embora nem o rei nem os bispos tivessem aposto sua aprovação àquela escolha. Iria fazer investigações cuidadosas.
Enviou emissários a Reginald e disse que queria ver suas credenciais. Reginald garantiu-lhes que tinha sido eleito pelos monges de Canterbury, a quem uma velha tradição permitia escolher seu arcebispo. Em seu apelo ao papa, ele se assinava Arcebispo Eleito.
O papa não ficou muito impressionado e pôs o assunto de lado, enquanto Reginald ficava muito impaciente em Roma. Muita gente sabia por que ele estava ali, e a essas pessoas ele falava com maior liberdade do que discrição, insistindo que tinha sido corretamente eleito e chegara até a ser entronizado na cadeira do primaz. Assinava todos os documentos como Arcebispo Eleito, e dentro de muito pouco tempo o objetivo de sua missão ficou conhecido por toda Roma.
Era difícil esperar-se que ninguém pensasse que valia a pena comunicar a situação à Inglaterra. João estava em Westminster quando recebeu um visitante que chegara de Roma com notícias que achava que deviam ser submetidas ao rei.
João, que havia arquivado o assunto da eleição do arcebispo porque enquanto não houvesse arcebispo o tesouro da Sé, que era respeitável, ficava à sua disposição, ficou furioso.
Os monges de Canterbury tinham ousado tentar passar-lhe a perna. Tinham eleito o homem de sua preferência e o enviado a Roma, a fim de obter a aprovação do papa. A perfídia daquele ato o enfureceu.
Chamou os criados aos berros.
- Preparem-se para uma viagem. Parto imediatamente para Canterbury.
Quando o rei viajava - o que acontecia com frequência -, ninguém podia deixar de perceber. Ele seguia à frente do cortejo, com a rainha cavalgando a seu lado, e não muito atrás dele seguiam liteiras e seus carregadores, para o caso de os dois se cansarem de cavalgar. Atrás deles iam os ministros, cavaleiros, cortesãos, músicos, artistas de variedades e os demais; depois, iam os carroções cheios de roupa de cama e utensílios de cozinha e, talvez, um móvel pelo qual o casal real tivesse uma preferência especial. Criados de todos os tipos seguiam atrás dos carroções, e à medida que o grupo avançava, a ele se juntariam pedintes, meretrizes, atores ambulantes, todos dispostos a lucrar alguma coisa daquele golpe de inesperada sorte de poderem unir-se à comitiva real em viagem.
Assim, os monges de Canterbury souberam que o rei estava indo para lá, e quando isso aconteceu eles adivinharam o motivo e entraram em pânico. O primeiro ato do abade foi enviar imediatamente um mensageiro a Roma para repudiar Reginald. Ele fora indiscreto e não cumprira a sua parte do trato e, portanto, eles tinham motivos para renegá-lo.
Enquanto isso, João e sua comitiva chegaram a Canterbury, e João fez logo uma visita à abadia e exigiu que o abade e seus principais subordinados ficassem de pé à sua frente. Eles se intimidaram diante de seu crescente mau génio.
- Eu devia saber o que isso significa - bradou João num tom que ecoou pela sala abobadada. - Seus traidores, seus vigaristas! Então elegeram seu arcebispo, hein? Seus patifes maquinadores! Mentiram para mim. Aceitaram João de Grey e o tempo todo andaram escondendo o fato de que elegeram um homem para o trono do primaz.
- Não é verdade, não é verdade - bradou o abade, tremendo. - Não, vossa majestade foi mal informado.
João pareceu um pouco mais calmo.
- Como é, então, que me dizem que vocês elegeram o seu vice-prior Reginald? Mandaram-no a Roma para obter a sanção do papa. Ele se jacta de que vocês já o entronizaram. Quero que saibam que em breve irei desentronizá-lo.
- Não é verdade. Não é verdade - era tudo o que o abade conseguia dizer.
João agarrou-o quase que de brincadeira pelos ombros e encarou-o. Em momentos assim, João era aterrorizante; o sangue manchava o branco dos olhos e as pupilas ficavam inteiramente expostas; os dentes ficavam à mostra, e expressões de crueldade e sadismo surgiam em seu rosto.
- Não, não é verdade, não é verdade - imitou ele. - Porque sei de uma coisa, senhor abade: o senhor não seria tão tolo a ponto de me enganar dessa maneira. Não vim aqui dizer-lhe que eu tinha nomeado João de Grey?
- Vossa majestade disse que acreditava que ele daria um bom arcebispo.
- E os senhores concordaram comigo, e por isso é inconcebível que possam ter me enganado. Não fariam uma coisa dessas. Como pôde o senhor, um homem religioso, mentir dessa maneira e num assunto desses? O céu inteiro se levantaria contra o senhor... o mesmo acontecendo com o seu senhor terreno, abade. Nenhum castigo seria severo demais para uma pessoa capaz de tal perfídia. Fico satisfeito com o fato de o senhor estar inocente nisso: eu não me importaria de ser levado a cumprir com o meu dever no seu caso. Este dever teria de ordenar que essa língua fosse cortada... já que foi capaz de dizer tamanhas mentiras.
O abade, àquela altura, junto com os monges, estava reduzido a tal estado de terror que seu único desejo era acalmar o rei.
- Majestade... majestade... - balbuciou ele.
- Vamos, vamos - disse João. - Fale. O senhor é um homem inocente e os homens inocentes nada têm a temer de mim. O que deseja me dizer?
- Que... que vamos eleger um arcebispo agora, enquanto vossa majestade está conosco, a fim de que não tenhamos o receio de ofendê-lo.
- Bem dito - disse João. - Vamos eleger João de Grey. Depois, teremos de enviar um emissário a Roma, para obter a confirmação do papa. Um fato que me incomoda, mas mesmo assim precisa ser feito. Venham, meus amigos, vamos agir, pois vejo que estamos plenamente de acordo sobre isso.
Assim, antes de João deixar Canterbury, seu protegido, João de Grey, tinha sido eleito arcebispo, e ficou combinado que uma delegação seria enviada a Roma para informar o papa sobre a eleição e obter a sua sanção.
Quando Reginald soube que o grupo chegara a Roma, ficou furioso. O fato de a delegação ter ido com o peso da autoridade do rei era realmente desconcertante, mas ele era um homem decidido a conseguir os seus direitos. Tinha sido eleito arcebispo, passara até pela cerimónia, e não iria ser jogado para o lado, se pudesse evitá-lo. Enviou mais provas de sua eleição ao papa, que àquela altura já recebera a delegação enviada pelo rei.
Enquanto isso, os bispos tinham ficado sabendo que havia dois candidatos ao cargo de arcebispo, e nenhum daqueles homens tinha o apoio deles. Os que estavam em Roma mandaram imediatamente seus protestos ao papa.
Inocêncio ficou irritado. Aquilo tudo era muito heterodoxo. Primeiro, a eleição secreta era muitíssimo lamentável, e ele estava suficientemente bem informado sobre questões do Estado para perceber que João de Grey era um homem do rei e que seria insignificante o apoio à Igreja que podia esperar dele. Embora, como todos os papas, ele se considerasse o líder supremo, só os tolos correriam o risco de alienar reis poderosos, muito embora Inocêncio acreditasse que a Igreja devia ter o controle de governantes temporais; não podia, portanto, insultar abertamente João. Mas ficou decidido que o preferido dele não se tornaria arcebispo de Canterbury.
Inocêncio acreditava que quando surgia uma dificuldade daquele tipo havia muito a ganhar com um adiamento, mas por fim chegou a uma decisão.
A eleição de Reginald não fora conduzida de maneira adequada e, portanto, ele não poderia dar o seu consentimento. Apesar de tudo, houvera uma eleição, e Canterbury tinha, de fato, um arcebispo quando João de Grey fora eleito. Portanto, sua eleição não valia. O arcebispado de Canterbury estava, na verdade, vago.
Isso pareceu a Inocêncio uma excelente oportunidade para apresentar seu candidato, e tinha exatamente o nome na cabeça. Tratavase de um certo Estêvão Langton. Não deveria haver objeção a Langton, deduzia o papa, pois era considerado como o mais ilustre e culto religioso da época. Além do mais, era inglês, tendo nascido naquele país. Era verdade que vivera muito pouco lá, tendo estudado na Universidade de Paris, onde vivera até um ano atrás. Lá, havia ensinado teologia e conquistado a reputação de um dos homens mais intelectuais de seu tempo.
O rei Filipe, percebendo sua capacidade, lhe dedicara uma grande amizade; além do mais, ele era um homem de alto nível moral.
Cerca de um ano antes, Inocêncio havia decidido que um homem daqueles devia ter o seu valor reconhecido e mandara chamálo para Roma, onde o fizera cardeal de St. Chrysogonus. Ele dera aulas de teologia em Roma e se tornara amigo do papa, que via nele um homem que poderia prestar um grande serviço à Igreja.
Inocêncio ficara sabendo que quando Estêvão Langton fora convidado para Roma o rei João escrevera para parabenizá-lo, como cidadão inglês, pela promoção. João dissera que ele próprio estivera a ponto de convidá-lo para a corte inglesa, pois acreditava que um inglês tão ilustre assim devia morar no país em que nascera, para que pudesse levar crédito a ele. Mas já que estava em Roma e perto do papa, sem dúvida que não deveria se esquecer de que era inglês.
O papa achou divertido. Então João pensava que tinha um advogado perto do papa, não? Ele teria de compreender que Estêvão Langton não era um homem de ser subornado ou intimidado. Era um indivíduo que defenderia seus princípios em quaisquer circunstâncias, e também um fiel defensor da Igreja, e iria sempre apoiá-la contra quaisquer governantes temporais.
Inocêncio convocou, portanto, uma assembleia de monges e bispos e lhes disse que sua escolha havia recaído sobre Estêvão Langton e que deviam concordar com ele que não havia ninguém mais indicado para o cargo e que ele, portanto, propunha a sua eleição para arcebispo de Canterbury. A Sé estava vaga, situação causada pela morte do bom arcebispo Hubert. A eleição secreta de Reginald era nula, por ter sido conduzida de maneira heterodoxa, e a de João de Grey estava na mesma situação, porque tivera lugar antes do afastamento de Reginald. Nenhum daqueles homens parecia ter condições de ser eleito, e todos deviam concordar com Inocêncio que Estêvão Langton estava altamente qualificado.
Os monges ficaram com medo, mas o papa estava ali perto deles e o rei estava longe, e o papa sabia ser intimidativo. Em suas mãos estava o poder da excomunhão, que todos os homens temiam, porque morrer com aquela terrível sentença significava a exclusão do céu e a condenação eterna.
Apesar disso, os monges ficaram aflitos. Teriam de voltar para a Inglaterra e enfrentar a ira do rei. Por outro lado, era ou aquilo ou enfrentar a ira do papa. Como homens da Igreja, deviam temer mais o seu líder espiritual do que o temporal.
Houve apenas uma exceção. Elias de Brantfield absteve-se de votar. Os demais elegeram Estêvão Langton arcebispo de Canterbury.
JOÃO TINHA outros assuntos com que se preocupar naquele momento. Para não perder todas as possessões continentais para FiliPe tinha de fazer alguma coisa. Consultou seus generais e ministros e ficou decidido que se uma pequena força pudesse ser levada a La Rochelle, que ainda lhe era leal, poderia ser possível começar uma ofensiva e recuperar uma parte das terras perdidas para Filipe- Além do mais, La Rochelle não conseguiria aguentar muito tempo se Filipe fizesse um ataque decidido contra ela. João poderia contratar mercenários para lutarem por ele. Declarou que muitas vezes eles eram mais confiáveis do que seus próprios cavaleiros; um mercenário estava em combate pelo que pudesse conseguir, e se houvesse muitos espólios, para ele isso bastava. Homens de princípio, como o Marechal, nem sempre eram tão úteis quanto poderiam ter sido.
Foi em junho, enquanto a controvérsia sobre a eleição do arcebispo se desenvolvia em Roma, que João e sua pequena força fizeram-se ao mar em direção a La Rochelle; e para grande alegria sua, quando ele chegou lá descobriu que a Aquitânia estava pronta para ficar do seu lado, pois era evidente que Filipe estava lançando olhares cobiçosos para aquele ducado que não queria ser governado por ele.
Depois de assegurar sua posição em La Rochelle, João seguiu para Niort, outro bastião que lhe permanecera fiel. Começou a obter alguns sucessos que, apesar de nada terem de decisivos, tiveram o efeito de fazer com que o precavido Filipe reconsiderasse a situação e decidisse que naquele momento ainda não estava pronto para uma grande ofensiva.
O resultado foi que ele ficou inteiramente disposto a concordar com uma trégua, que deveria durar dois anos. João ficou muito satisfeito. Não esperara tamanho sucesso, e uma das condições do tratado foi a de que Isabella, devido à morte do pai, devia ser declarada condessa de Angoulême. Isso significava que João contava com aliados que não tinha ao partir naquela expedição; e, além do mais, ele tinha dois anos para se preparar para a guerra com a França e recuperar tudo o que perdera.
Ele voltou para a Inglaterra muito animado, rindo intimamente de todos aqueles cavaleiros que o haviam criticado por ficar na cama metade do dia e negligenciar seus deveres. Aquilo serviria de resposta. Quando ele agia, saía vitorioso. Prometera a eles que iria recuperar tudo o que havia perdido para Filipe, e iria mesmo.
Quase que imediatamente após o seu regresso, recebeu notícias sobre o que acontecera em Roma.
O papa tivera a ousadia de rejeitar o seu preferido e eleger Estêvão Langton.
A fúria do rei foi tal que ameaçou sufocá-lo. Ele só conseguiu falar atabalhoadamente, desanimado, e todos os que o cercavam sabiam que iriam enfrentar um de seus grandes acessos de raiva. Desapareceram da sua frente, temendo que ele pudesse desabafar seus sentimentos em cima de quem estivesse por perto.
Foi procurar Isabella e lhe disse o que acontecera. Lágrimas de raiva saltaram-lhe dos olhos e ele puxava os botões adornados com jóias de sua capa, arrancando-os e jogando-os pelo quarto.
Languidamente, Isabella perguntou o que o afligia.
- O que me aflige? - berrou ele. - Aquele bandido de Roma colocou um homem dele no arcebispado.
- Que homem?
- Um homem chamado Estêvão Langton. Um grande erudito, diz ele. Eu não quero eruditos. vou arrancar os olhos desse sujeito e ver como ele vai fazer seus estudos. Dizem que é muito inteligente, pois lhe digo que também sou. Também sou.
- Nós sabemos, e sabemos também que você é o rei. Como ousa o papa colocar um homem de sua preferência, e ele pode fazer isso se você for contra? Acho que pode, por ser o papa. João espumava pela boca.
- Não, não pode. Não vou aceitar. Estêvão Langton pode ficar em Roma, onde já está integrado, pois se tentar vir para cá estará, em pouco tempo, numa masmorra sem algum órgão vital, isso eu lhe digo.
- Fique calmo, João.
- Calmo! Quando minha autoridade é desacatada? Sou ou não sou rei deste reino?
- Não há dúvida de que é, portanto comporte-se como tal. Por um instante, a raiva dele se voltou para ela.
- Não me provoque demais. Tenho sido delicado acima do normal com a senhora porque a senhora se porta bem na cama, mas não está na cama agora.
Aquilo a fez soltar uma gargalhada, e João se aproximou dela e agarrou-a com raiva. Ela passou os braços pelo seu pescoço e apertou o corpo contra o dele. Imediatamente, ele sentiu a conhecida onda de desejo. Era estranho o quanto Isabella ainda podia estimulálo. Aquilo o deixava impressionado. Ela era incomparável. Era uma certa qualidade... diziam que era feitiço. Se fosse, João não se importava. Gostava. Ainda assim, estava contente com as mulheres que de vez em quando a substituíam. Se ela ficasse sabendo a respeito delas, ficaria revoltada. João guardava aquilo contra ela. Ela estava mais em poder dele do que ele em seu poder.
Mas aquele era um assunto importante demais para ser posto de lado por prazeres aos quais não podia se dedicar à vontade. No momento, estava furioso com o papa e iria comunicar o fato ao mundo inteiro.
Afastou Isabella e berrou:
- Se eu cedesse, o mundo todo iria rir de mim. Nomeio um arcebispo e o papa não o aceita e nomeia outro. Nenhum rei aceitaria isso... e eu tampouco. Por que você fica aí sentada, sorrindo?
- Porque você quer nomear um homem que trabalhe para você, e o papa quer nomear outro que trabalhe para ele. O mais forte vencerá.
- E você sabe quem é o mais forte.
- Você, meu rei. Você, é claro.
João não seria desviado de seus objetivos por palavras suaves. Iria mostrar a Roma e à Inglaterra que era o rei que governaria seu país, e que isso incluía a Igreja dentro dele. Não ia aceitar que o papa se colocasse acima do rei.
Partiu imediatamente para Canterbury, e uma vez mais o abade e os monges entraram em pânico quando souberam que o rei estava para chegar.
Ele os convocou para uma reunião, e embora sua raiva fosse grande, àquela altura se achava um pouco sob controle.
João gritou para a assembleia:
- Aqui há traidores. Há mentirosos e inimigos do rei. Não me esqueço de que vim aqui e me disseram que Reginald não tinha sido eleito. Depois, parecia que tinha. E no entanto, sabendo que tinham eleito Reginald, vocês o negaram e elegeram João de Grey. E diz o papa que isso torna ambas as eleições inválidas, e ele colocou um homem de sua preferência. Não vou aceitar esse homem. Eu... e só eu, irei escolher o meu arcebispo. vou ter uma pessoa de minha escolha, que trabalhe para mim e não para si mesma ou para o papa. Vocês tentaram me enganar. Não neguem. Conheço muito bem sua covardia. Em segredo, colocaram a pessoa de sua escolha no trono do primaz. Uma praga para todos vocês. Já não são mais meus monges. Saiam! Esta abadia não é mais de vocês. Retirem-se, retiremse... retirem-se! Não... amanhã, não... nem depois de amanhã... tal como estão... agora, a menos que queiram ser atirados em masmorras, que bem merecem! Fico imaginando qual seria o melhor castigo para vocês... privá-los dos olhos que presenciaram aquela traiçoeira cerimónia, ou das línguas que a aplaudiram.
Ficava satisfeito ao ver o terror surgir na fisionomia das pessoas diante da perspectiva daqueles castigos terríveis. Ameaçá-las com a morte não poderia provocar a mesma preocupação.
- Assim será - bradou ele. - Se não estiverem a caminho hoje mesmo. Para onde?, poderão vocês perguntar. Vão para onde quiserem. Voltem rastejando para o mestre a que pensavam servir melhor do que a mim. Vão procurar Reginald e pedir-lhe que cuide de vocês. Vocês lhe deram apoio... desafiando o seu rei... que ele os sustente, agora.
A raiva estava sendo controlada. Aquilo era mais agradável... castigar os outros em vez de a si mesmo, porque quando os acessos de raiva fugiam ao seu controle, ele chegava quase a se machucar. Como era muito mais divertido provocar o terror nos corações deles!
Naquele dia, 67 dos monges deixaram Canterbury e seguiram para o continente. João ficou satisfeito, pois agora estava de posse das terras deles.
Não tinha pressa em resolver a disputa - ou mesmo de empossar João de Grey - porque, até que houvesse um arcebispo de Canterbury, os tesouros daquela sé muito próspera continuavam em suas mãos.
João sentou-se para escrever ao papa. Não iria controlar a raiva. Queria que Inocêncio soubesse que ele não tinha intenção de se submeter à sua vontade. Não iria aceitar Estêvão Langton como seu arcebispo e compreendia bem as razões de Inocêncio para tentar impor-lhe aquele homem. Ele queria impor-lhe doutrinas papais que, na qualidade de rei da Inglaterra, João não podia aceitar. Causavalhe assombro o fato de que um papa pudesse ter tão pouca consideração pela amizade do rei da Inglaterra a ponto de tratá-lo com tamanha falta de respeito, como um homem cujos desejos foram de tão pouca consequência. João lamentava ser obrigado a salientar a sua santidade que não podia - nem iria - aceitar aquele tipo de tratamento; e se o papa lhe dedicava tão pouca consideração, o mesmo não acontecia com outras pessoas. Ele nada sabia a respeito daquele homem, Estêvão Langton, exceto que tinha sido especialmente bem recebido na corte do rei Filipe da França - um homem que mostrara não ser amigo de João, e de fato João teria dificuldade em citar alguém que fosse mais inimigo. E era aquele o homem que o papa - sem a sanção do rei da Inglaterra - escolhera para ser o primaz da Inglaterra. João não conseguia compreender aquilo.
Bastante irritado por receber uma carta daquelas, o papa escreveu com grande dignidade, lembrando ao rei, em todas as linhas, sua supremacia sobre governantes temporais.
"O servo dos servos de Deus informa ao rei da Inglaterra que, no que fez, não havia motivo para aguardar o consentimento do rei, e tal como começara, ele iria continuar segundo os rituais canónicos, sem se desviar para a direita nem para a esquerda..."
João correu os olhos pela carta com uma impaciência crescente.
"Não iremos, para atender a quem quer que seja", prosseguia o papa, "procrastinar a finalização dessa nomeação, e tampouco poderemos fazê-lo sem mácula da honra e perigo da consciência."
João rangia os dentes de raiva.
- Maldito seja! Maldito seja! - bradou ele. - Deus amaldiçoe todos os meus inimigos... e a ninguém mais do que esse que se intitula servo de seus servos.
"...aceite, portanto, a nossa vontade, o que será para seu louvor e glória, e não pense que sairia incólume ao resistir a Deus e à Igreja numa causa pela qual o glorioso mártir Thomas derramou seu sangue."
Qualquer referência a Thomas Becket sempre deixava João constrangido. Becket tinha sido a causa da humilhação pública de seu pai em Canterbury. Ele jamais deveria se ver obrigado a fazer o tipo de penitência que seu pai fizera. Malditos todos os religiosos que se transformavam em santos!
O papa prosseguia dizendo que não acreditava que João fosse tão ignorante quanto dava a entender a respeito das qualidades de Langton. Era verdade que Estêvão passara pouco tempo na Inglaterra e tinha sido admirado pelo rei da França, como um homem de tão notável capacidade deve ser admirado por todos com quem entrou em contato. O próprio João devia estar a par de seu trabalho - ainda que fosse só a revisão da Bíblia. Não fora só em Paris que Langton gozara de grande fama. O papa ouvira falar disso em Roma e sabia que João também ouvira na Inglaterra, pois não tinha ele mencionado o fato ao próprio Estêvão Langton quando o cumprimentara por ter sido eleito cardeal? João devia ficar satisfeito por um homem como aquele estar levando sua grande intelectualidade para a Inglaterra.
João deu pulos de raiva quando leu a resposta do papa.
- Será que ele pensa que não temos aqui homens de estatura intelectual? Temos nossos eruditos aqui. Será que ele pensa que a Inglaterra é habitada por ignorantes? - falou ele.
Sentou-se e, no calor da raiva, escreveu uma vez mais ao papa. Não queria Estêvão Langton em Canterbury. Havia decidido em favor de João de Grey, e tinha de ser João de Grey. Se o papa não concordasse com ele, se mantivesse sua sanção, que fosse. Por que iria João ser governado por Roma? Estava disposto a se separar, se o papa assim o desejasse. Que o papa fizesse todo o mal que quisesse. João estava preparado para enfrentá-lo, mas primeiro era preciso deixar que ele pensasse o quanto seria prejudicado em relação a todos os benefícios vindos da Inglaterra que ele perderia, pois se João rompesse com Roma, não iria permitir que seus clérigos viajassem de um lado para outro levando ricos presentes, o que ele sabia que faziam no momento. Não seria a Inglaterra que iria sofrer; seria Roma.
Aquela vituperação foi recebida com frieza por Roma.
O papa se limitou a responder que João devia pensar no que poderia lhe acontecer se continuasse a ofender a Santa Igreja. Aquilo era uma insinuação de que poderia haver excomunhão para ele e um interdito sobre a Inglaterra.
João estalou os dedos num gesto de desprezo e afastou o caso do pensamento. Outro evento acontecera - um evento muito mais agradável. No princípio do ano, Isabella descobrira que estava grávida.
Isabella ficou encantada. Estava com quase 21 anos e fazia sete que era mulher de João. Começara a ficar muito preocupada com o fato de não ter concebido naquele período. Era verdade que João não quisera que ela engravidasse nos primeiros anos de casamento e podia muito bem ter acontecido que a sua extrema juventude a tivesse impedido de fazê-lo. Naqueles primeiros anos nenhum dos dois quisera filhos, e mesmo depois a paixão entre os dois e a satisfação sexual que lhes era tão necessária era muito mais importante do que qualquer outra coisa.
E agora ela tinha certeza. Estava grávida.
Tinha de ver seu belo corpo - do qual ela muito se orgulhava
- tornar-se disforme. Pouco importava; iria voltar à beleza anterior quando a criança nascesse. Seria interessante ter um filho, e esperava que fosse homem.
João ficou maravilhado quando soube.
- As pessoas andavam murmurando - disse ele. - Diziam que não podíamos ter filhos e que isso era o castigo de Deus porque gostávamos demais do ato preliminar. -
Soltou uma gargalhada.
- Eles riam às escondidas de nós, meu amor, quando ficávamos na cama até a hora do almoço. Lembra-se daquela época?
- Eu me lembro muito bem.
- E sem filho algum para mostrar como resultado! Diziam que era estranho. Agora não podem mais dizer isso.
- Acha que será menino?
- com toda certeza - disse João. - O primeiro de muitos.
- Não demais - lembrou-lhe Isabella. - Seu pai teve filhos demais e veja o que aconteceu a alguns deles... - Ela lhe lançou um olhar astuto. - E aos filhos deles...
João ficou rubro com uma raiva súbita. Não gostava de lembrarse daquela cena no castelo de Rouen, quando olhara para a figura imóvel de seu sobrinho rival; tampouco gostava de pensar nele e o mudo carregando o corpo para o rio. Poderia ele confiar no mudo? O que diria o homem, quando tinha sido privado de sua língua de forma tão conveniente, o que fora o motivo pelo qual João utilizara seus serviços naquela ocasião?
Por mais cuidadosa que uma pessoa fosse, notícias como aquela às vezes vazavam. Onde está Artur? era uma pergunta que iria ser feita por algum tempo, e havia alguém que estaria determinado a encontrar a resposta verdadeira: Filipe de França.
Isabella não deveria tê-lo lembrado. Ela sempre fora muito atrevida, talvez porque ele estivera muito apaixonado por ela, mas agora já não se sentia tão envolvido assim. Outras mulheres também podiam agradá-lo, embora, por estranho que parecesse, ainda preferisse Isabella. Mas não iria tolerar insolência alguma por parte dela.
- As pessoas devem aprender suas lições - resmungou ele. Isabella entrelaçou os dedos e ergueu um olhar piedoso para o teto.
- Seria bom nós todos fazermos isso - observou ela com humildade mas com insinuações maliciosas.
Por enquanto, não importa, pensou João. Ela era graciosa; e ele ainda podia dizer que estava bem contente com o casamento. Se lhe desse um filho homem, ele ficaria encantado.
Sucesso no continente - porque nem mesmo seus piores inimigos podiam dizer que ele não tinha feito progresso - e finalmente um herdeiro!
Isabella estava com apenas 21 anos de idade. Havia anos de gestação à sua frente.
Sim, João estava encantado como sempre com Isabella.
Isabella estava grávida de seis meses quando chegou a notícia de que Inocêncio havia consagrado Estêvão Langton como arcebispo de Canterbury.
João teve um riso de desprezo quando soube e disse a Isabella que Inocêncio poderia ter evitado o trabalho, pois a eleição não iria ser reconhecida na Inglaterra. Não deixaria que Langton pusesse os pés nas suas terras, e ele iria colocar João de Grey na cadeira de primaz.
A coisa foi diferente quando o papa enviou instruções aos principais religiosos da Inglaterra e do País de Gales lembrando-lhes seu dever primeiro para com a Igreja; e nomeou três deles, Guilherme, bispo de Londres, Eustace, bispo de Ely e Mauger, bispo de Worcester - três dos mais importantes - para se aproximarem do rei e lembrá-lo também de seu dever.
Eram três bispos muito apreensivos que se achavam diante de João.
- Vamos, meus bons bispos, os senhores vieram falar comigo - gritou João para eles. - Estão vindo enviados diretamente pelo seu senhor, e acredito que sejam muito audazes quando não estão na minha presença. O que têm agora, por que tremem?
- Majestade - disse Guilherme, de Londres -, viemos por ordem do papa.
- O papa - berrou João. - Ele não é meu amigo, nem o são aqueles que dão mais valor à amizade dele do que à minha.
- Nós lhe imploramos, majestade, que atenda às ordens de sua santidade - disse Eustace, de Ely.
- É um rei que manda neste país, bispo - retrucou João.
- Em todas as questões temporais - lembrou-lhe Mauger, de Worcester.
- Em todas as questões - disse João, ríspido.
- Majestade - disse o bispo de Ely -, se receber Estêvão Langton e der aos monges permissão para voltar...
- O senhor está louco - bradou o rei. - Acha que vou deixar que me tratem dessa maneira? Os senhores vieram me ameaçar. Não é isso?
- Não, não - bradaram os bispos em uníssono. - Viemos apenas transmitir-lhe os desejos do papa.
- Que ele vai impor um interdito ao meu país. É isso que querem dizer?
- Receio, majestade - disse o bispo de Londres -, que se não aceitar Estêvão Langton como arcebispo de Canterbury e permitir que os monges voltem para lá, o papa vá submeter o país a um interdito.
- Foi o que eu disse, foi o que eu disse. E deixem-me dizerlhes uma coisa - João semicerrou os olhos e sua aparência era maligna. - Se qualquer padre sob o meu governo ousar obedecer ao papa neste assunto, confiscarei sua propriedade e o mandarei, como um pedinte, ao seu senhor, o papa, já que estará claro, para mim, que ele não é meu servo e o certo é ir para o lado de seu senhor.
- Sua santidade não vai deixar o assunto morrer - começou Eustace.
- Não, ele vai enviar seus emissários com ameaças terríveis, eu sei. E vou fazer com que ele saiba quem é que manda aqui. Não é ele, isso ele tem de compreender, mas o rei. Digam-lhe isso... os senhores que o servem tão bem... que se eu pegar quaisquer de seus emissários nas minhas terras, irei mandá-los de volta ao seu senhor... sim, e não exatamente nas mesmas condições em que chegaram. Vão voltar tateando, porque não vão ter olhos para ver, e para completar vou cortar um ou dois narizes.
- Majestade, peço que se lembre de que esses mensageiros estariam vindo a mando de sua santidade.
- Lembrar-me. Lembrar-me. Acham que eu iria esquecer? É por isso que farei com que lamentem muito terem vindo aqui. Quanto aos senhores aqui presentes, já suportei demais a sua companhia. Ela me deixa enfurecido. Ela me enoja. Saiam... enquanto ainda possuem seus órgãos, porque, se não tiverem saído de minha frente em poucos
minutos, chamarei meus guardas e os senhores verão o que acontece neste reino a homens que me desafiam.
Os bispos viram que o rei estava sendo sincero, pois o mau génio estava começando a transbordar. Curvaram-se e saíram depressa. João estourou numa gargalhada enquanto os via sair.
- Adeus, meus bravos bispos - gritou ele.
Isabella estava nos trabalhos de parto no castelo em Winchester, que tinha sido construído pelo Conquistador.
Era outubro, e as folhas das árvores estavam ficando castanhoavermelhadas, vermelhas e bronze. Ela estava na cama e aguardava o nascimento da criança, receosa mas esperançosa de que fosse um menino.
Isabella preferiria um menino, claro, mas seria divertido ter uma filha. Como iria gostar de vestir uma menina! Seria bonita como Isabella, ou parecida com João, que nada tinha de bonito?
João estava envelhecendo, agora, aos quarenta anos. Isso pouco importava. Ela estava só com vinte. Talvez fosse bom ter um filho, porque já não estava tão ansiosa pela companhia de João quanto antes. Sensual ao extremo, ela ainda era - mas não por João. Durante a gravidez, estivera pensando muito na criança e, como a maioria das mulheres, mudara um pouco. Mas, uma vez nascida a criança, os desejos que tinham sido tão importantes para ela voltariam... mas não seriam dirigidos a João.
Mas agora, a criança era a única preocupação. Ali estava Isabella naquela velha cidade de Winchester, onde era apropriado que nascessem os herdeiros ao trono - Winchester, uma das cidades mais antigas do país. Os primeiros bretões a haviam chamado de Caer Gwent, ou Cidade Branca; depois, os romanos chegaram e a chamaram de Venta Belgarum, e foram os saxões que depois disso a chamaram de Witanceaster, que se tornara Winchester.
O castelo original, segundo se dizia, tinha sido construído pelo rei Artur, e foi nessa cidade que, quando o povo se cansou da ocupação dinamarquesa, foi dada uma ordem para que todas as boas mulheres saxônias arranjassem um amante dinamarquês e numa determinada noite cada qual, enquanto o amante estivesse na cama ao seu lado, cortasse-lhe a garganta ou os tendões do jarrete. Tinha sido essa a ordem de Ethelred, o Irresoluto. Isabella imaginava João dando uma ordem daquelas.
Quando as dores começaram, ela não pôde pensar em outra coisa que não em passar bem por sua experiência dolorosa. Havia bastante gente à volta de seu leito para ajudá-la, e os trabalhos de parto não foram nem demorados nem demasiado penosos.
- Vossa majestade vai ter um parto fácil - ouviu alguém dizer. E foi mesmo, pois não muito depois de ter sido levada para a cama a criança nasceu.
Foi um momento da maior satisfação quando ela ouviu as palavras:
- Um menino. Um menino belo e saudável.
A criança foi batizada com o nome de Henrique, em homenagem ao avô, Henrique II, e houve uma alegria geral, muita gente expressando a esperança de que o bebé fosse se parecer com o rei do mesmo nome, comentando que dificilmente poderiam ter expressado tais sentimentos se ele tivesse o mesmo nome do pai.
O nascimento dele alterara sutilmente o relacionamento entre seus pais. Isabella recuperara logo a boa aparência, e sua principal atração sempre seria aquela inerente sexualidade que ficara aparente quando era criança e continuaria com ela até a morte, mas a gravidez e o parto haviam feito com que João fosse para outras paragens e ele continuou a viajar de propósito.
Isabella ficou, durante algum tempo, absorvida pela criança, e como percebera a satisfação da maternidade, decidiu que devia haver mais filhos; o Henriquinho precisava de um irmão ou de uma irmã, e era sempre prudente um rei ter vários filhos.
Depois da tempestuosa entrevista com os bispos, João previu que a resposta do papa não demoraria a chegar. Estava certo. Logo depois da Páscoa do ano seguinte, foi pronunciado o interdito de Roma, que iria cobrir a Inglaterra e o País de Gales.
Aquilo significava que não deveria mais haver adoração pública nas igrejas, e não era permitido administrar sacramentos. Podia haver pregações - mas só aos domingos - e não nas igrejas, pois as portas delas deviam ser mantidas fechadas. Deviam ter lugar nos cemitérios. As mulheres tinham de ser recebidas, depois dos partos, no alpendre da igreja, e não deveria haver rituais em enterros, tampouco poderia qualquer pessoa ser enterrada em campos santos.
Aquilo procovou uma grande angústia no povo, que temia que aquela última vergonha de ser enterrado numa vala pudesse prejudicar suas esperanças de uma recepção celeste.
Ciente dos murmúrios do povo contra ele por ter provocado aquela disputa com o papa, a determinação de João em combater o inimigo aumentou.
- O papa tirou de meu povo o direito ao conforto religioso
- bradou ele. - Muito bem, vou mostrar ao papa o que posso fazer com os seus servos. Qualquer padre que fechar sua igreja ao povo irá perder imediatamente suas propriedades, pois não deixarei que as possua quando vira a cara às necessidades do povo.
Os padres ficaram num dilema. O que fazer? Perder seus bens ou, segundo pensavam, a alma? Muitos deles decidiram contra seus bens, o que deixou João muito satisfeito.
- Por Deus - declarou ele -, esse interdito me faz ficar rico. Não sei se devo, ou não, ser grato ao papa Inocêncio, no final das contas.
O clero estava em dificuldades, não importava para que lado se voltavam. Se obedecessem ao papa, perdiam suas possessões para o rei; se se recusassem a obedecer ao papa, eram excomungados. Muitos deles, inclusive os três bispos que haviam avisado o rei, fugiram do país.
- Que vão - berrou o rei. - Desde que deixem seus bens, por que iria eu me importar? Espero que Inocêncio perceba o quanto está me enriquecendo.
Começou a procurar meios de ganhar mais com a situação. Sabia muito bem que alguns dos religiosos ricos mantinham amantes secretas, e o senso de humor de João fazia com que ele gostasse de arrancar dinheiro através delas. Mandou que seus homens percorressem o país, a fim de investigar as vidas amorosas secretas daqueles que aparentavam seriedade. Quando uma amante era descoberta, João providenciava para que fosse raptada.
Depois, mandava mensageiros aos religiosos dizendo-lhes o quanto deveria ser pago em multas para a devolução das amantes.
Isso divertiu muito o rei, e apesar do interdito ele gostava da vida que levava.
Tinha um filho saudável que estava com quase um ano de idade, e Isabella estava grávida outra vez.
O segundo filho homem nasceu em Winchester pouco mais de um ano depois de Henrique ter surgido, de modo que agora ela estava com dois filhos saudáveis, como que para compensar os anos improdutivos.
O pequeno Henrique estava se mostrando muito inteligente e interessante, e Isabella descobriu que gostava de ficar com os filhos. O segundo menino foi batizado em homenagem a seu tio, Ricardo Coração de Leão, o que agradou ao povo, e os dois garotinhos contribuíram muito para aumentar a popularidade do rei e da rainha.
Os dois não estavam juntos com muita frequência, e Isabella sabia que João tinha amantes. Não iria aceitar isso sem um certo protesto, mas como não desejava muito a sua companhia, decidiu não tocar no assunto com ele.
Descobriu-se olhando à sua volta e admirando alguns dos jovens mais atraentes; eles a olhavam com uma ânsia receosa, sem dúvida cônscios do convite nos seus olhares
e sonhando com as fortes emoções que poderiam partilhar com ela, enquanto que ao mesmo tempo deviam pensar nas terríveis consequências de serem descobertos por um marido enfurecido - e tão poderoso como aquele.
O perigo aumentava a excitação, e Isabella sabia que num determinado momento aquilo se tornaria irresistível. Ela também pensava nas consequências. E se um encontro daqueles resultasse num filho? Seria tão importante assim? Tinha dois filhos homens que eram, sem dúvida alguma, de João. Ele tivera vários bastardos, mas isso antes do casamento. Poderia ter havido outros mais tarde, dos quais ela não ouvira falar, mas durante os primeiros anos de casamento não havia dúvida de que ele lhe tinha sido fiel. Nenhum outro homem poderia ter sido mais dedicado em suas atenções, e ele não tivera nem tempo nem disposição para se divertir em outro lugar.
Mas agora havia uma mudança. Algumas mulheres poderiam ter achado necessário agir com um cuidado especial, acalmá-lo, bancar a humilde. Mas a natureza de Isabella não era assim. Seu poder ainda estava ali, tão potente quanto estivera quando ela estava com treze anos - e mais ainda, porque agora era muito experiente, e nenhum homem podia estar em sua presença sem ficar profundamente afetado por ela; poderiam ser muito poucos aqueles que ela não conseguisse levar ao desejo com muito pouco esforço. Quanto aos jovens e vigorosos, estavam prontos a arriscar quase tudo pelos favores dela. Tudo. Sim, eles tinham de pensar nisso. Isabella ficava imaginando que castigo João iria inventar para um de seus amantes.
Ela brincava com a ideia; seus olhares, seus gestos eram cheios de convite. Queria um amante que estivesse disposto a correr riscos enormes por um breve momento com ela.
O inevitável tinha de acontecer. Como foi emocionante! O encontro secreto, deixando que ele entrasse no seu quarto, imaginando o tempo todo se alguém teria visto. Foi a mais excitante aventura que tivera havia anos.
Por que se contentara com que aquele homem que envelhecia, com um génio violento, quando havia jovens bonitos que a adoravam e estavam prontos a correr o risco de mutilação por sua causa? Mutilação que seria a mais terrível que a mente distorcida de João pudesse conceber, disso estava certa.
A vida adquirira um novo sabor para Isabella.
João estava contente com o erário muito aumentado. A cidade de Londres também estava contente, porque a nova ponte que levara 33 anos para ser construída tinha ficado pronta. Tinha 305 metros de comprimento e treze de largura, sustentada por vinte vãos desiguais. Era realmente uma visão imponente e foi um benefício para o povo. Este se sentia orgulhoso dela.
Mas mesmo os cidadãos de Londres estavam contrafeitos e falavam sem parar no interdito.
O enterro em campo não santo era apenas uma das causas de apreensão. Ser privado do conforto que a Igreja podia oferecer era intolerável para muita gente, e, além do mais, as pessoas temiam a ira dos céus sobre os ateus que, como as portas da Igreja lhes tinham sido fechadas, parecia que eles deviam ter-se tornado. Se o povo tivesse ido para a guerra, o que era muito provável, não teria havido um só soldado no exército que não teria tido uma sensação de angústia e ficaria convencido de que Deus não poderia estar do lado de homens que eram vítimas do interdito do papa.
Estava tudo muito bem, ter desafiado Roma por um certo tempo, mas aquilo não devia continuar. João decidiu, portanto, que se os monges de Canterbury retornassem à Inglaterra, ele deixaria, e que estaria pronto a se encontrar com Estêvão Langton para uma conversa.
Aquilo era um passo na direção certa, disse o papa, e foi combinado que Estêvão Langton iria à Inglaterra em companhia de vários dos bispos exilados. O papa insistia que se o interdito devia ser retirado, João deveria obedecer a todas as condições estabelecidas por Roma, e se isso não acontecesse, sua santidade não teria outra alternativa senão excomungar João.
No devido tempo, os três bispos chegaram com Estêvão Langton. João recebeu-os na costa e houve logo uma discussão entre eles.
João disse que readmitiria os monges; aceitaria Estêvão Langton como arcebispo, mas não iria recebê-lo nem lhe concederia privilégios.
Os bispos responderam que a menos que João aceitasse todas as condições do papa, seria excomungado.
- Uma das cláusulas do acordo tem de ser cumprida disseram-lhe eles -, e é a de que vossa majestade deve devolver aos donos legítimos todas as propriedades confiscadas.
A ideia de perder tudo o que ganhara e de ceder humildemente deixou João enfurecido.
- Vão embora - bradou ele. - Digam a Inocêncio para me excomungar, se quiser. Não ligo para ele nem para suas ameaças. vou ficar com o que é meu e a principal de minhas possessões é o direito de governar o país do qual sou rei. Voltem para o seu senhor antes que eu fique tentado a lhes dar o que merecem, seus traidores.
A comitiva partiu logo, e o resultado foi a excomunhão do rei da Inglaterra.
Quando o efeito da excomunhão começou a se fazer sentir, o rei ficou revoltado. Ela demonstrava, mais claramente do que qualquer outra coisa, o poder do papa. O fato de a terra que ele governava sentir tanto medo e tremer por causa de um governante distante o enfurecia mais do que qualquer outra coisa; e ele olhava à sua volta, à procura de vítimas sobre as quais descarregar a sua ira.
O edito do papa decretava que todos aqueles que tivessem contato com o rei estavam contaminados. Quem o obedecesse era inimigo de Roma e iria sofrer um castigo correspondente. O que poderiam os homens fazer?
Quando Jeffrey, arcediago de Norwich, se levantou à Mesa do Tesouro em Westminster e declarou que como o rei estava excomungado a Igreja proibia qualquer ato em seu nome, o rei ordenou a sua prisão.
Jeffrey foi colocado numa masmorra, e João não resistiu à tentação de ir visitá-lo.
- Você serviu ao senhor errado, Jeffrey de Norwich - disse João. - Devia ter pensado duas vezes antes de fazer isso.
- Minha consciência está limpa - respondeu Jeffrey com ousadia.
- Deixe que lhe diga uma coisa, traidor do seu rei, não terá por muito tempo uma consciência para estar limpa ou não.
- Vossa majestade não pode me forçar a aceitar aquilo que o Senhor mais alto do que vossa majestade me diz que é pecado.
- Suas relações com Ele devem ser melhores do que comigo. Vejamos como Ele irá cuidar de você na sua situação - disse João.
Retirou-se da cela e ordenou que carregassem o arcediago de correntes.
- Quero um manto de chumbo, grande e pesado, e ordeno que seja enfiado por sobre a cabeça do piedoso arcediago. Deixem que ele o esmague e o sufoque enquanto ele reflete sobre suas grandes virtudes e sua traição ao seu rei.
Assim foi feito, e o fato foi comentado com estupefação. Todos os bispos e amigos de Estêvão Langton deveriam ser levados para a prisão e suas terras e bens confiscados.
- Esses religiosos trabalharam bem para eles mesmos - disse João. - E agora estão trabalhando muito bem para mim. Esta excomunhão, tal como o interdito, tem suas utilidades.
Mas havia naquilo um certo grau de bravata, porque o povo estava se voltando contra ele. Os barões sempre estiveram à procura de uma razão para se revoltarem, e eram muito poderosos; João os temia mais do que à Igreja.
Se eles se voltassem contra ele agora e se aliassem à Igreja, a sua situação poderia ficar muito difícil. Decidiu, então, exigir que cada barão enviasse um de seus filhos ao rei para servirem de reféns. Quando os rapazes estivessem em seu poder, ele poderia ter certeza quanto à fidelidade dos pais.
Enquanto sua ordem estava sendo executada, João fazia uma viagem pelo país para se assegurar de que o povo percebia o seu poder e que ele não estava preocupado demais com a excomunhão. Passando pelo interior, ele chegou a um grupo muito grande de pessoas agredindo um homem cujas mãos estavam amarradas às costas.
- O que se passa aqui? O que foi que esse homem fez? - bradou o rei.
- Ele é um assassino, majestade. E ladrão, também - foi a resposta. - Tocaiou um homem na estrada, roubou-o e o matou. Foi pego em flagrante.
O homem tremia. Um castigo terrível o aguardava. Não havia dúvida de que seria enforcado num patíbulo. Talvez suas mãos fossem decepadas. Mas talvez isso fosse um castigo muito suave para um assassinato. Ele esperava que fosse a árvore, porque ter os olhos arrancados era pior do que a morte.
- Quem era o homem que o bandido assassinou? - perguntou João.
- Um padre, majestade.
O rei estourou numa gargalhada.
- Desamarrem as mãos dele - disse ele. Eles obedeceram.
- Venha cá - ordenou o rei.
O homem ficou diante dele, erguendo para o rei olhos que refletiam medo.
- Siga o seu caminho - disse o rei. - Você é um homem livre. Matou um de meus inimigos.
O homem fez uma curvatura bem acentuada e bradou:
- Deus o abençoe, senhor meu rei. E saiu correndo o máximo que podia.
A multidão recuou, estupefata; houve um murmúrio de desaprovação.
- O que é isso? O que é isso? - bradou o rei. - Se alguém tem alguma coisa a dizer, que fale.
Ninguém ousou responder. Sabiam que línguas poderiam ser arrancadas por levantarem uma palavra contra o rei.
O incidente era comentado. Um assassino fora libertado, perdoado pelo rei, porque a sua vítima tinha sido um padre.
A família de Braose havia caído das graças junto ao rei desde a época em que Guilherme de Braose tinha sido o zelador de Falaise e ficara responsável por Artur aates de Hubert de Burgh assumir aquela tarefa. Guilherme, homem de grande espírito com uma tradição de poder, sempre defendera seus direitos, e os governantes haviam percebido que aquela era uma família que não podia ser desprezada. Quando um Braose tinha sido morto pelos galeses, fora Guilherme que convidara um grupo de galeses ao seu castelo e, depois de eles desfrutarem de sua hospitalidade com membros de sua família, matara todos eles como uma lição para quem quer que se sentisse inclinado a ser seu inimigo.
Ele estivera na companhia do rei em Rouen logo depois da morte de Artur, e tinha uma noção muito arguta sobre o que acontecera ao jovem duque da Bretanha. O mesmo acontecia com sua mulher, Matilda. Ela era uma mulher resoluta; na verdade, dizia-se que só havia uma pessoa no mundo de quem Guilherme de Braose tinha medo. Embora os dois soubessem que tinham ocorrido coisas horripilantes em Rouen, não tinham certeza de como o assassinato tinha sido executado; e apesar de impetuosa, Matilda tinha fortes instintos maternais, e quando ela e Guilherme estiveram encarregados da guarda de Artur no castelo de Falaise, ela passara a gostar muito do garoto.
- Não gosto e não confio em João desde que Artur desapareceu - declarou ela.
Por maior que fosse a insistência com que Guilherme a avisasse que tomasse cuidado com a língua, Matilda falava quando queria e pensar na morte do garoto - talvez em circunstâncias horríveis - podia fazer com que ela ficasse com raiva.
Quando houve uma desavença entre a família dela e o rei, ela não ficou de todo contrariada. Não era mulher de disfarçar os sentimentos, e, intimamente - embora soubesse que era perigoso -, preferia que os termos de relacionamento com João fossem de hostilidade, e não de amizade. Pelo menos podia ser honesta e, por ser uma mulher sincera, aquilo a agradava.
Quando João cobrara impostos de seus barões, Guilherme fora contra e não pagara, e perto do fim do ano de 1207 João expressou sua contrariedade pelo fato de Guilherme lhe dever certas quantias e exigiu que ele entregasse seus castelos de Hay, Brecknock e Radnor como garantia da dívida.
Havia outro fato que deixara João com raiva. O filho mais moço dos Braose, Giles, era bispo de Hereford, e quando João fora excomungado, saíra da Inglaterra com outros bispos, indicando sua objeção a aceitar o domínio de João e também seu desejo de ficar do lado do papa.
A reação de João a isso foi ficar com raiva da família toda. Já não podia confiar neles. Guilherme de Braose já fora um homem muito poderoso, e João estava decidido a reduzir aquele poder; o fato de ter sido obrigado a abrir mão de três de seus castelos seria um grande golpe para ele, e João fazia muxoxos ao pensar como Guilherme ficaria indignado.
- Não confio nesses Braose - disse ele. - Estou decidido a mostrar-lhes quem manda aqui.
Eles deviam mandar reféns imediatamente, pois só quando João tivesse alguns membros da família sob sua guarda iria sentir que detinha um certo poder sobre eles. Matilda de Braose adivinhou que alguma coisa daquele tipo poderia acontecer. Discutiu o assunto com o marido e quis saber o que ele achava que iria acontecer a seus netos se fossem colocados sob a guarda do rei como reféns.
- Ele terá a obrigação moral de tratá-los com dignidade disse Guilherme.
- Quando é que esse rei se sentiu moralmente obrigado?
- Mesmo assim, não teremos outra alternativa. Matilda falou tão alto que vários criados ouviram:
- Jamais vou permitir que um filho ou um neto meu vá ser refém do rei... e tenho meus motivos... motivos muito bons.
- Você está sendo indiscreta - disse o marido, alarmado.
- Às vezes é bom que certos assuntos sejam divulgados - retorquiu ela.
Ele tornou a implorar que ela fosse discreta, mas Matilda era uma pessoa que sempre dizia o que pensava.
No momento devido, mensageiros do rei chegaram ao castelo e pediram para falar com Guilherme e sua esposa. Explicaram que o rei não estava satisfeito com a maneira pela qual eles estavam se portando, e precisava que dois de seus netos partissem imediatamente sob a guarda dos mensageiros. Os meninos seriam levados para o rei, num lugar em que seriam tratados de acordo com a sua posição; e a presença deles iria garantir o bom comportamento da família.
Antes que o marido pudesse detê-la, Matilda bradou:
- Vocês acham que eu entregaria meus netos ao seu senhor? Eu jamais faria uma coisa dessas. Entregar meus meninos a um homem que matou o próprio sobrinho!
Houve um breve silêncio. Os olhares de todos os presentes estavam fixos em Matilda. Ela manteve a cabeça erguida em desafio e, olhando para o marido, bradou:
- É verdade. Nós sabemos. Outros também sabem. Com o tempo, o mundo todo vai saber. E não vou colocar meus netos nas mãos de um assassino desses.
Guilherme tentou silenciá-la. Colocou a mão no braço dela e disse:
- Por favor, não fale assim contra o rei. Se eu o ofendi, pagarei pelos meus erros sem a entrega de reféns.
- As ordens do rei são para que o senhor entregue seus netos em nossas mãos.
- Nunca! - bradou Matilda, corajosa. - Jamais os entregarei a ele. Podem ir dizer isso a ele.
Os mensageiros partiram. Guilherme os viu afastarem-se, balançando a cabeça, desconsolado.
- Você nunca devia ter falado com tanta franqueza - disse ele.
- Não vou entregar meus netos àquele assassino - reiterou sua mulher.
Quando os mensageiros voltaram à presença do rei, este quis saber onde estavam os reféns dos Braose. Os mensageiros responderam que Matilda se recusara a entregá-los.
- Então ela me desobedeceu deliberadamente - bradou João.
- Ela disse, majestade, que nunca entregaria suas crianças a quem assassinara o próprio sobrinho.
João empalideceu; um horrível presságio tomou conta dele.
O fantasma de Artur havia voltado depois daquele tempo todo, para zombar dele. Por uns momentos, não conseguiu achar coisa alguma para dizer. Então, a raiva o dominou.
- Eles vão pagar por isso, especialmente Matilda! - falou com veemência.
Trancou-se no quarto; atirou-se ao chão. Queria bater com a cabeça na parede, mas se conteve. Nas sombras, parecia ver um menino magro sorrindo para ele. Pensou naqueles olhos sem vida quando eles haviam erguido o corpo para atirá-lo no Sena.
Oh, sim, Artur realmente voltara para persegui-lo.
Ele agora estava preocupado. Matilda de Braose havia reanimado o rumor. Agora haveria gente falando naquilo pelo país inteiro; os rumores iriam espalhar-se para o continente. Filipe iria recomeçar a usá-los. Filipe, na realidade, nunca os deixara esmorecer, mas ele estava muito longe e as pessoas, na Inglaterra, não tinham tido um interesse especial no jovem duque da Bretanha. Mas agora, estariam falando. João perdera a Normandia; um interdito fora imposto à Inglaterra e ao País de Gales; ele fora excomungado; e agora, se aquele terrível fantasma se levantasse, haveria mais outra acusação a ser levantada contra ele. Era exatamente daquilo que seus inimigos precisavam.
Mil pragas para Matilda de Braose. Ela deveria pagar por isso; e se estivesse espalhando rumores sobre Artur, estava na hora de ser eliminada.
Percebendo que os mensageiros deveriam ter repetido para João as palavras de Matilda, Guilherme adivinhou a providência que João tomaria e que só lhe restava um caminho. João tentaria destruí-los, de modo que era melhor fazerem uma tentativa de ficar com o que lhes restava. Juntamente com os filhos, Guilherme decidiu tentar recuperar os castelos que dera a João como caução até que liquidasse as dívidas; mas João desconfiara de que ele tentaria aquilo; portanto, declarou que ele era um traidor e que qualquer pessoa que o ajudasse também seria assim considerado.
O resultado foi que Guilherme achou necessário recuar para suas propriedades galesas, mas quando ficou claro que João estava decidido a persegui-lo, foi para a Irlanda com a família.
Uma de suas filhas havia se casado com Walter Lacy, lorde de Meath, o filho mais velho de Hugh Lacy, um dos conquistadores da Irlanda. De vez em quando, ele tinha uma desavença com João, mas naquela época mantinha relações muito boas com ele.
Na Irlanda, Guilherme sentiu-se relativamente seguro, mas estava apreensivo quanto ao destino de suas propriedades na Inglaterra e no País de Gales. Quando João soube o que ele fizera, exigiu sua extradição. Os Lacy prometeram mandá-lo de volta, mas os dias se passaram, e Guilherme e sua família continuavam na Irlanda.
Mas João não conseguia esquecer as ameaças por trás das palavras de Matilda. A família o odiava; eles eram seus maiores inimigos; e Matilda o acusara abertamente de ter assassinado Artur. Não poderia sentir-se em paz enquanto não se livrasse daquela mulher espalhafatosa. Ele gostava de prometer a si mesmo o que faria com ela quando a tivesse em seu poder. Ela não devia saber o quanto o perturbara; não havia nada que Matilda pudesse ter dito que lhe tivesse provocado maior angústia. com o passar dos anos, ele se esquecera de Artur; as pessoas pareciam ter considerado um fato normal ele ter desaparecido e aceitavam esse fato como sendo um mistério. Agora, aquela mulher tinha de revelar aos berros o seu rancor. Se eu pudesse pôr as mãos nela!
E eles estavam na Irlanda. Estava na hora de se acabar com o poder dos Lacy lá. Mas ele precisava ter cuidado. Às vezes sentia que seus barões estavam se unindo contra ele. Nenhum homem de seu reino devia ter tanto poder. Por que deviam aqueles Lacy se portar como se fossem reis da Irlanda? Como ousavam dar abrigo a um rebelde, quando ele ordenara que o homem lhe fosse entregue?
Ele iria à Irlanda. Iria tirar o poder que os Lacy haviam assumido; mostraria ao povo quem era o seu soberano de direito; estabeleceria a supremacia da coroa por lá; e traria de volta os Braose. Não descansaria enquanto não tivesse feito daquela mulher sua prisioneira.
Quando Guilherme de Braose soube que o rei chegara à Irlanda, ficou muitíssimo perturbado.
- Deus nos ajude - disse ele a Matilda - se cairmos nas mãos dele.
- Temos de fazer tudo para não cairmos - respondeu ela com firmeza.
João, no entanto, chegara com um poderoso exército, e os chefes irlandeses dirigiram-se em grande número para Dublin, a fim de homenageá-lo; ele não teve dificuldade alguma em tomar grande parte das terras que os Lacy tinham considerado deles; ele os depôs e colocou seu velho amigo João de Grey em seu lugar. Ele não conseguira fazer dele o arcebispo de Canterbury, mas pelo menos podia mostrar de alguma maneira o seu reconhecimento.
Se havia uma coisa de que João gostava era o triunfo fácil, e havia conseguido o que queria com o máximo de facilidade. Claro que não poderia demorar-se. Precisava voltar para a Inglaterra; foi por isso que mandou chamar João de Grey.
- Não quero que você fique aqui - disse ele. - Só o suficiente para deixar que o povo veja que este é o fim do domínio dos Lacy. Não pode demorar muito para os Braose estarem em nosso poder, e quando você os pegar, quero que os leve para mim na Inglaterra. Tenho planos para essa família arrogante.
Ele podia confiar em João de Grey, que sempre fora um bom amigo e agora tinha mais um motivo para lhe ser leal - a promessa do arcebispado de Canterbury quando acabasse a controvérsia com o papa.
João foi otimista um pouco demais. Matilda não era mulher de se entregar com facilidade. Soube-se que ela estava morando no castelo de Meath, e os homens de João cercaram o castelo, com a intenção de capturá-la. Ela foi muito astuta para eles, pois já havia saído do castelo e seguira para a Escócia.
Enfurecido por causa disso, João prendeu Guilherme e disse que iria levá-lo pessoalmente para a Inglaterra.
João percebeu que ainda não tinha encerrado o problema com a família criadora de caso. Quando seguiam para a Inglaterra, Guilherme fugiu para um de seus bastiões no País de Gales e lá declarou guerra ao rei. João ficou alucinado. Era a mulher que ele queria. Era ela que iria espalhar o escândalo pelo mundo inteiro. Era ela que ia dizer ao mundo que ele havia assassinado Artur.
Foi uma viagem árdua que Matilda e o filho mais velho, Guilherme, fizeram, e aos dois parecia que tinham escapado de um perigo para cair em outro muito maior. Agarrando-se às bordas do barco, eles se achavam pouco inclinados a pensar em outra coisa a não ser na sobrevivência imediata, mas quando o barco chegou finalmente à segurança de Galloway, os primeiros pensamentos dela foram sobre o que poderia ter acontecido com Guilherme.
- Ele foi menos feliz do que nós - disse ao filho. - Eu tremo ao pensar no que acontecerá a ele nas mãos daquele tirano.
- Papai é esperto - disse o Guilherme mais moço. - Talvez ele consiga enganar o rei.
- João tem tanta coisa do seu lado. Não vai ser sempre assim, Guilherme. A rebelião está aumentando em todo o país. Ele é visto com maus olhos por toda parte. Os barões já estão prontos para se levantarem contra ele. Seu pai é um dos primeiros dentre muitos. Vai chegar o dia, você vai ver, em que João será obrigado a fazer a vontade daqueles que ele chama de seus súditos.
- Esperemos que sim, mamãe.
- Tem de ser assim. Eu só gostaria que eles se reunissem agora e aderissem a seu pai. Que líder ele daria!
Ficou imaginando para onde os dois poderiam ir, agora. Tinham chegado à Escócia, mas não parecia uma terra muito hospitaleira.
Um grupo de pescadores que tinha visto a chegada deles se aproximou para ver quem eram eles, e quando perceberam que se tratava de pessoas de alta classe, levaram-nos para suas casas e lhes deram comida.
Um dos membros do grupo foi dizer a Duncan de Carrick que eles estavam lá, e ele foi saudá-los e oferecer-lhes uma hospitalidade digna de sua categoria. Eles aceitaram com prazer.
Matilda disse-lhe quem eram e contou-lhe o motivo de terem fugido com tanta pressa da Irlanda; ele ouviu com atenção, fazendo com a cabeça um gesto de solidariedade, mas, quando eles se recolheram para dormir e, por estarem exaustos, caíram logo num sono profundo, enviou um mensageiro à Inglaterra perguntando o que se deveria fazer com eles.
A resposta voltou de imediato.
Foi assim que, enquanto Guilherme, percebendo que sua posição no País de Gales era insustentável, fugira para a França, Matilda e o filho mais velho foram entregues nas mãos de João.
Eles os estavam levando para Windsor. Ela sabia muito bem disso.
O que fariam a ela lá? Prendê-la numa masmorra? Ela manteve a cabeça erguida. Independente do que ele fizesse, não iria intimidá-la. Não tinha medo dele. Ele era um covarde, disse ao filho Guilherme, que cavalgava ao seu lado, e era sempre um erro demonstrar medo aos covardes.
Windsor, pensou ela, onde os saxões tinham construído um palácio, e que naquela época era conhecida por Windlesofra ou Windleshora devido à maneira pela qual o Tamisa serpenteava pelo interior! Havia quem dissesse que o nome surgira porque os viajantes tinham de atravessar o rio numa balsa com uma corda e uma vara e as pessoas diziam: "Wind us over the river." ("Levem-nos para o outro lado do rio.") Era um lugar descampado, e Matilda achava que a verdadeira origem do nome bem poderia ser "Wind is Sore" ("O vento é doloroso"), referindo-se ao frio provocado pelos vendavais que assolavam a área no inverno.
Eduardo, o Confessor, costumava instalar a corte ali, mas quando Guilherme, o Conquistador, chegou, colocou sua marca na cidade como fizera em toda a Inglaterra, e lá estava a Torre Redonda para proclamá-la. Foi o seu filho, Henrique I, que construiu uma capela e fez do castelo uma residência.
João viu às escondidas a chegada deles, rindo à socapa de alegria. Agora, minha orgulhosa senhora, pensou, a senhora será um pouco menos ousada, um pouco menos inclinada a espalhar calúnias a meu respeito.
A boca se apertou. De uma coisa ele precisava se certificar. Matilda jamais deveria sair dali viva.
Mandou buscá-los, e quando ficaram à sua frente percebeu que ela estava arrogante como sempre, embora o filho Guilherme parecesse um tanto abatido. João gostaria que fosse o marido dela que ele tivesse ali. Ele havia fugido com inteligência. Pouco importava, era a mulher que João mais queria. Era ela que tinha criado problemas e, ele não duvidava, envolvido o marido naquilo.
Dispensou os guardas, pois não queria que ninguém ouvisse qualquer referência a Artur, que ele receava que ela pudesse fazer. Algumas mulheres poderiam ficar um pouco humildes na situação desesperadora em que ela se encontrava, mas não era possível ter certeza quanto a Matilda de Braose.
João a olhou com desprezo, mantendo-a de pé enquanto ele se esparramava na sua cadeira que parecia um trono.
- Quer dizer que finalmente nos encontramos - disse ele. Achei que nunca nos encontraríamos. Primeiro, a senhora está no País de Gales, depois na Irlanda e por fim na Escócia. A senhora leva uma vida de nómade.
- Não foi por vontade minha, majestade, que vaguei tanto. Eu teria preferido ficar no castelo de Hay, que é meu de direito, ou no de Brecknock ou de Radnor.
Que petulância da mulher! Se não tivesse medo dela e do mal que pudesse lhe causar, poderia tê-la admirado.
- E agora veio descansar em Windsor. Fico satisfeito por vêla aqui como minha convidada.
João saboreou a última palavra. Ele é um demónio, pensou Matilda. Vai nos matar como matou Artur.
- Espero que sinta o mesmo prazer - acrescentou ele com um sorriso sardónico; e quando ela continuou calada, prosseguiu:
- A senhora não me responde. Devo lhe dizer que quando falo espero ser respondido.
- Achei que não quisesse uma resposta que seria óbvia.
- Sei que não gosta de ser minha convidada. Mas a senhora, que em geral fica muitíssimo ansiosa por dizer o que pensa, devia dizer isso.
- E espero ser sempre assim. Nunca fui de dizer uma coisa e pensar outra.
- Sei muito bem disso, e creio que seu marido também sabia. A senhora é uma mulher vigorosa.
Ela curvou a cabeça.
- E agora está à minha frente, sabendo que andou falando mal de mim. Isso lhe deveria dar motivos para tremer.
- Eu digo apenas a verdade.
- Isso é que vamos decidir.
- Não, majestade, o mundo é que deverá decidir.
- A senhora é uma mulher insolente - bradou ele.
Ela sabia que estava encarando a morte, mas deu de ombros num gesto quase de quem não desse importância.
- Eu disse aquilo que o ofendeu, e não me importo, porque sei que é verdade. Se não for, onde está Artur da Bretanha?
- A senhora não veio aqui para me interrogar. Lembre-se de que é minha prisioneira. A senhora está aí com o seu filho. Seu marido a abandonou.
- Não, nós nos separamos em circunstâncias adversas. Ele não é homem de abandonar a mulher.
- A senhora me contradiz a todo momento.
- Eu lhe disse que vou falar a verdade.
- Muito brava, muito brava. Poupe a sua bravura, minha senhora. Vai precisar dela.
- Sei muito bem disso. Eu tenho dito o que tem estado na cabeça das pessoas todos esses anos... na verdade, desde a noite em que Artur desapareceu do castelo de Rouen. Vossa majestade não pode manter o seu pecado em segredo para sempre.
- Guardas! Guardas! Levem este homem e esta mulher - começou João a gritar. - Coloquem-nos em uma das masmorras. vou decidir o que deverá ser feito com eles.
Os guardas entraram. Matilda saiu, ainda de cabeça erguida, os olhos lançando desprezo ao rei, e embora não falasse, seus lábios formaram a palavra "assassino".
De que forma poderia castigá-los? Quando pensava naquela mulher, a raiva quase escapava ao seu controle. Mas precisava ter cuidado. Guilherme de Braose ainda estava em liberdade. O que faria ele se João mutilasse sua mulher - arrancasse-lhe os olhos ou, o que seria mais apropriado, cortasse a língua? O fantasma de Artur parecia muito verdadeiro naquele instante. Será que ele nunca se esqueceria de Artur? Os barões estavam ficando cada vez mais rebeldes. Cautela, sussurrava o seu bom senso.
De uma coisa estava certo. Matilda de Braose nunca deveria sair de Windsor.
- Levem esses dois para uma masmorra - disse ele. Coloquem-nos em grilhões. Mantenham-nos na mesma masmorra.
Sorriu consigo mesmo. Lá, eles poderiam observar o sofrimento um do outro, o que seria um tormento a mais.
Seus desejos foram imediatamente cumpridos.
Todos os dias, ele ficava imaginando como estavam eles. Como poderiam estar vivendo naquela cela, da qual não havia como fugir? Não recebiam comida, e mesmo a valente Matilda não poderia viver para sempre sem alimento.
Pensava nela com prazer todas as manhãs, quando acordava e se sentava à mesa. Carne suculenta, massas ricas... deliciava-se muito com elas, mais ainda porque sabia que a orgulhosa Matilda e seu filho estavam passando fome.
Depois de duas semanas, mandou os guardas descerem à masmorra para ver o que acontecera. Os dois estavam mortos. O filho morrera primeiro, e na sua agonia a mãe havia roído sua carne no ponto extremo da fome.
João soltou uma gargalhada quando soube.
Assim morrera a orgulhosa Matilda! Aquilo serviria de lição para quem quer que achasse que podia acusá-lo do assassinato do sobrinho.
Mas aconteceu o contrário, e depois da morte de Matilda de Braose, os sussurros recomeçaram com o vigor da época da morte de Artur.
No CASTELO de Gloucester, Isabella deu à luz seu terceiro filho. Dessa vez foi uma menina, e foi batizada com o nome de Joana. Tendo gerado três filhos no espaço de três anos, Isabella achou que podia se dar um descanso no que se referia a partos. Adorava os filhos, mas sua natureza a tornava mais interessada no lado sexual do casamento do que no maternal.
Estava ficando cada vez mais desencantada com João. Ainda podia atraí-lo de certo modo, embora naturalmente a tremenda atração que sentira por ele arrefecera um pouco. Ele gostava de acrescentar temperos diferentes a suas atividades, e à medida que ficava mais velho, seu desejo não diminuía.
Era sempre uma aventura ousada uma rainha arranjar amantes, devido à possibilidade de filhos. Filhos reais deviam ser os do rei, pois os rebentos ilegítimos podiam causar problemas intermináveis. Isabella era suficientemente um membro da realeza para saber disso. Mas depois de presentear João com três filhos, achava que fazia jus a uma pequena trégua, e havia um ou dois homens atraentes aos quais ela lançara olhares especulativos.
Sua fascinação nata pelo sexo oposto tinha de ser realmente grande para que eles corressem os riscos que a descoberta representaria. Como cavalheiros da corte, eles já deveriam ter experimentado de vez em quando, a louca ira do rei, e embora ele pudesse achar que fosse perfeitamente natural arranjar uma amante sempre que quisesse, estava claro que não daria à rainha a mesma liberdade.
Portanto, para uma pessoa com o caráter de Isabella, a ideia de infidelidade era irresistível. João ficava muito ausente, e as oportunidades apareciam.
Havia um ou dois homens que estavam prontos a correr o risco, descobriu Isabella quando procurou pela corte prováveis parceiros com quem pudesse passar as noites. Não precisavam ser de alta linhagem; suas únicas qualificações eram a capacidade sexual e a coragem.
A vida, para Isabella, era temperada com aventuras excitantes.
João estava ficando um pouco desconfiado de Isabella. Havia algo de arrogante nela. Quando os dois se encontravam, eram tão amorosos quanto antes, e não importava quais as mulheres que ele encontrasse, nenhuma poderia realmente se comparar a Isabella. Ele colocara espiões para vigiá-la, em lugares em que ela menos esperasse encontrá-los, mas nada ainda fora descoberto sobre os amantes que o rei desconfiava que ela arranjava.
Às vezes, ria consigo mesmo ao pensar nela com eles, mas em outras ocasiões a ideia o levava a ficar irado. Iria depender muito de seu estado de espírito no momento, embora soubesse, claro, que se um dia tivesse uma prova real da infidelidade dela, ficaria furioso.
Enquanto isso, procurava damas para diverti-lo. Às vezes, elas ficavam dispostas - na verdade, quase sempre - graças ao medo do mau génio dele ou à obsessão pela honra de ser percebida pelo rei. Mas eram as relutantes que começavam a atraí-lo cada vez mais.
Quando foi ao castelo de Dunmow, para ser recebido por um de seus principais barões, Robert FitzWalter, o senhor baronial do castelo de Dunmow e Baynard, ficou conhecendo a filha de Robert, Matilda. A jovem era virgem, bastava olhar para ela de relance, porque era muito criança e a mãe a protegera bem. Além disso, era a criatura mais bonita que ele já vira havia muito tempo e bem o tipo de atenuar aquelas incómodas dúvidas a respeito da fidelidade de Isabella que o perturbavam de vez em quando.
Robert FitzWalter era um dos mais importantes barões, e sua posse do castelo de Baynard incluía o cargo hereditário de portaestandarte da Cidade de Londres, e isso significava que era tido em alta conta pelos cidadãos. Era um grande comerciante e tinha vários navios; dedicava-se, também, ao comércio de vinhos, e, devido à sua importância como barão, o rei lhe concedera vários privilégios considerados úteis em seus negócios.
E agora, ao ver aquela bela filha do barão, João estava disposto a prestigiar ainda mais Robert FitzWalter.
Enquanto cavalgavam juntos na caçada na floresta de Dunmow, João aproximou seu cavalo do de Robert FitzWalter e disse:
- Por Deus, Walter, você tem uma bonita filha.
Aquelas palavras, acompanhadas pela malícia no olhar de soslaio no rosto de João, eram suficientes para deixar qualquer pai aflito.
- Majestade, Matilda não passa de uma criança.
- Uma bela criança, sem dúvida.
- Sim, a mãe dela criou-a com muito cuidado.
João lambeu os lábios. Naquela época, ele gostava muito de virgens.
- Estou vendo, e ela merece elogios. A senhora sua esposa ficará contente ao saber que o rei a admira.
Robert FitzWalter não respondeu, sabendo perfeitamente que aquilo era a última coisa que a esposa queria ouvir. Lady FitzWalter era uma mulher de caráter forte e moral rígida, que havia criado a filha firmemente à luz de suas crenças.
- vou dizer a ela - disse Robert, com tranquilidade.
- Faça esse favor. Eu talvez prolongue minha visita a Dunmow, Robert. Gosto daqui. O local me agrada... e o mesmo acontece com sua filha.
Quando o rei falava daquele jeito, só havia uma coisa a fazer. Robert FitzWalter procurou imediatamente a mulher e contou-lhe o que o rei dissera.
Ela empalideceu.
- Isso é terrível. O que podemos fazer?
- Não sei.
- Jamais darei minha filha a esse devasso.
- É impossível.
- Eu preferiria morrer defendendo-a.
- Lembre-se do que aconteceu a Matilda Braose. Morreu de fome numa masmorra.
- Esse homem é um tirano desprezível, Robert.
- Sei muito bem disso. Os barões sabem disso há anos. Eles não vão suportar suas torpezas por muito mais tempo.
- Mas não a tempo de salvar Matilda. Nossa filhinha, Robert! Fico doente ao pensar nisso.
- Eu sei. Eu sei.
- vou levá-la embora. Vamos partir imediatamente. Você precisa dizer a ele que a levei para fazer uma visita... e que fui sem a sua permissão. Na verdade, é melhor que fale, pois ele poderá descarregar a raiva sobre você se ficar em silêncio. Diga-lhe que levei a menina e que você não sabia de nada. Que faço isso com frequência, que sou uma esposa desobediente e arrogante. Diga isso e que não sabe para onde fomos.
- É a única saída - disse Robert. - Quem sabe, se ela ficar fora do alcance de seus olhos, uma outra pobre mocinha possa atraí-lo.
Lady FitzWalter não perdeu tempo. Mandou chamar a filha e disse-lhe que se preparasse para uma viagem imediatamente, e que de forma alguma mencionasse a alguém para onde estava indo.
Assim Lady FitzWalter tirou a filha do castelo de Dunmow.
Ao jantar, naquela noite, João perguntou onde estavam a esposa e a filha de Robert.
- Elas foram fazer uma visita.
- Enquanto estou aqui? - bradou João.
- Majestade, minha esposa é uma mulher muitíssimo controversa.
- Por Deus, Robert, isso é um insulto à minha pessoa.
- Espero que não o tome como tal, majestade.
- Partir quando o rei está aqui! Por quê, homem, por quê?
- Parece que minha mulher havia combinado essa visita e não quis deixar que nada... nem mesmo a sua presença... impedisse a sua partida.
- Você se casou com uma rabugenta, Robert FitzWalter.
- Receio que sim, majestade.
- No entanto, eu não o teria considerado um homem submisso.
- Usamos caras diferentes, majestade, na intimidade.
- É verdade. Já vi homens muitíssimo valentes ficarem covardes diante das esposas.
- Pois então aqui vê mais um.
João riu em voz alta. Parecia estar de bom humor. Robert ficou encantado. O ardil de sua mulher funcionara, e João já estava olhando para outras mulheres.
Ele não sabia que homens de João o tinham avisado da partida de Lady FitzWalter e da filha e que ele fizera planos para que fossem interceptadas no caminho. Deveriam deixar que Lady FitzWalter voltasse para o senhor que declarara ter medo dela, mas a encantadora filha devia ser levada para um lugar escolhido por João, onde poderia aguardar a sua chegada.
No dia seguinte, João partiu de Dunmow e pouco depois de sua partida Lady FitzWalter voltou. Estava tão perturbada que mal pôde contar ao marido o que acontecera. A filha tinha sido raptada, e ela estava com um medo terrível do que estivesse acontecendo a ela. As duas não tinham se afastado muito do castelo quando encontraram um grupo de homens vindo em sua direção. Os homens pararam e perguntaram se estavam perto do castelo de Dunmow.
- Eu disse a eles que estavam muito perto - disse Lady FitzWalter - e perguntei o que desejavam. O líder dos homens se curvou e disse que sabia que tinha o prazer de se dirigir a Lady FitzWalter e sua bela filha. Aquele foi o sinal. Foi terrível, Robert... um pesadelo. Dois deles agarraram o cavalo de Matilda e começaram a arrastá-lo para longe. Ela gritou, mas àquela altura eu estava cercada por eles e o cavalo de nossa filha se afastava a galope com ela, com dois daqueles bandidos. Alguns de nossos homens saíram em perseguição, mas foram seguidos por outros membros do grupo cujos cavalos eram mais ligeiros do que os nossos. Houve luta e vários deles ficaram feridos. Oh, Robert, eles levaram Matilda.
- Oh, Deus - bradou Robert -, isso não pode significar que o...
Os dois se entreolharam horrorizados.
- Como ficou ele... quando soube que tínhamos partido? perguntou Matilda, temerosa.
- Calmo, brincalhão. Não parecia aborrecido.
- Seria possível que ele...
Eles não ousavam responder àquela pergunta.
Era um de seus menores castelos, não muito distante do de Dunmow. João achou interessante o castelo ficar tão perto do lar dos pais dela e eles não saberem disso. Esperava que a menina estivesse aterrorizada. Como reagiria ela quando soubesse quem havia ordenado que fosse levada para lá? Elas podiam dizer o que quisessem, mas todas as mulheres, no íntimo, estavam prontas a satisfazer o rei. Para elas, significava algo arranjar um amante real. Matilda poderia ficar relutante no início, mas não por muito tempo.
A mãe dela ficaria enfurecida. Que mulher tola! Não sabia que o rei estava fazendo uma homenagem à sua filha?
Enquanto cavalgava em direção ao castelo para ficar frente a frente com a menina, ele pensava na mãe dela. Que petulância ter levado a garota daquela maneira porque sabia que ele a desejava. Teria ela se esquecido do que acontecera a Matilda de Braose? Só porque era a esposa de um homem poderoso e às vezes vigoroso, podia agir contra ele com impunidade? Matilda de Braose tinha sido esposa de um homem muitíssimo influente - embora tivesse decaído muito - e Lady FitzWalter devia pensar nela.
Iria humilhar aquela mulher no ponto que mais a fizesse sofrer. Iria mostrar-lhe que sua dócil filhinha iria procurá-lo por espontânea vontade. Faria com que a menina ficasse ansiosa por ele. Exibiria a lascívia dos dois diante daquela mulher inflexível. Era a melhor maneira de lidar com ela. Assim, enquanto seguia para o castelo, decidiu que não iria forçar aquela jovem Matilda. Iria fazer com que ela o procurasse de livre e espontânea vontade. Depois, diria isso à mãe dela e, de fato, a perspectiva da aflição da mãe iria dar-lhe tanto prazer - senão mais - do que deflorar a filha.
Com essa firme resolução, ele chegou ao castelo e foi logo ao aposento onde haviam colocado a menina. Era numa das torrinhas - a que se chegava por uma escada em espiral de pedra -, um refúgio seguro para ela. Não conseguiria escapar com muita facilidade daquele lugar. Aquilo era a última coisa que deveria fazer. Se fugisse, eles a esconderiam em algum lugar no exterior, o mais provável sendo um refúgio na França. Não seria difícil, pois Filipe era o senhor do outro lado do canal, agora, e sentiria um grande prazer com um novo escândalo sobre seu velho inimigo! Tiraria o maior proveito possível do fato, homenagearia a menina, a levaria para a corte, sem dúvida arranjaria um marido nobre para ela e a exibiria como um exemplo da maldade de João; iria reviver o assassinato de Artur. Revivê-lo! Ele jamais o deixara morrer!
Mas João não iria pensar em Artur agora. Os anos estavam passando, e já ia longe o dia em que o garoto morrera. Quem teria pensado que o escândalo poderia ter durado tanto tempo? Mas agora ele estava interessado naquele saboroso petisco, a virgem Matilda.
Ela se levantou quando João entrou. É uma bela menina, pensou ele. Os olhos eram grandes, e estavam arregalados pelo terror.
Não havia dúvida de que ela devia ter ouvido histórias do monstro que se dizia que o rei era. Entrelaçou as mãos à sua frente, como se para proteger o corpo contra ele, ou talvez tentar esconder o fato de que estavam tremendo. Que criatura bobinha, amedrontada! Era tão graciosa! Como uma corça assustada com a aproximação dos caçadores, em posição para fugir. Mas para onde, minha belezinha? Pela janela? Caindo, caindo até o chão lá embaixo, aquele belo corpo ferido e dilacerado pelas ásperas pedras das paredes enquanto caía? Não, eu tenho outros planos para ele.
- Não precisa ter medo, Matilda - disse ele, sorrindo. Para ela, foi um sorriso malévolo, embora a intenção dele tivesse sido tranquilizá-la.
- Não precisa ficar com medo de mim porque sou o seu rei. Ela continuou a olhar fixo para ele, muda de medo.
- Deve falar comigo quando me dirijo a você, Matilda. Não é educado fazer o contrário... em especial quando está diante do seu rei.
Ela engoliu e gaguejou:
- Eu... nada tenho a dizer, exceto pedir que me deixe ir para casa.
- Tudo na hora certa - disse ele. - Mas vou dizer uma coisa, Matilda. Chegará o dia em que você vai me implorar para que não a mande embora. Vai me pedir para não mandá-la de volta para a enfadonha casa de seu pai, onde sua mãe mantém uma guarda permanente sobre você. Você dirá: eu amo o meu rei. Quero servir o meu rei de todas as maneiras. Quero ser uma alegria e um consolo para ele. - João colocou as mãos nos ombros dela e sentiu o tremor percorrer-lhe o corpo.
Que menina boba!, pensou. Era uma pena ser tão bonita. Ele gostaria de ter gritado: volte para a casa de sua mãe, sua tolinha. Há mulheres mil vezes mais atraentes do que você que me recebem com prazer.
Era a juventude dela que o atraía. Estava mais ou menos com a idade que Isabella tivera quando estivera com ele pela primeira vez. Como tinha sido diferente! Essa menina nada sabia sobre a paixão de homens como ele, exceto que devia desconfiar e ter medo dela; como era diferente de sua alegre e aventurosa Isabella, que ansiara por experimentar tudo o que fosse novo.
Um grande anseio pela época em que conhecera Isabella tomou conta dele. Ser jovem com Isabella. Recomeçar. Oh, ele teria agido da mesma maneira. Quando o Marechal e os barões o avisassem de que estava perdendo seus domínios, ele ainda teria ficado na cama com Isabella.
Nunca haveria alguém que substituísse Isabella. Essa virgem boba amedrontada, o que tinha ela? Fora criada por aquela mulher rigorosa cujo principal desejo tinha sido protegê-la. Que prazer poderia haver nessa menina... exceto o estupro da inocência? Já estava farto disso.
Queria Isabella. Queria ser jovem com ela outra vez. O que estava fazendo agora? Teria arranjado amantes? Ela não era do tipo de mulher que viveria sem eles. E aquela dissimulação... aquela aceitação das infidelidades dele, que no início a deixavam com raiva?
Mas por que estava ele pensando em Isabella ali, com aquela adorável menina à sua frente?
Não se tratava de querer a menina mais do que desejava se vingar da mãe dela.
- Ora, Matilda, você e eu vamos ser amigos. vou lhe mostrar como tirar o máximo de prazer da vida. Você gostaria disso, não, minha querida?
A menina fechou os olhos, e ele achou que ia desmaiar.
- Por favor... - começou ela. - Por favor, deixe-me ir embora.
João envolveu-a nos braços e beijou-a rudemente na boca. Ela soltou um grito de angústia.
Veio o impulso de estuprar a menina e acabar com aquilo, mandá-la de volta para a mãe e esperar que não a tivesse engravidado, pois com uma mãe daquelas, nasceria uma criança fraca.
Sacudiu-a com violência.
- Sua boba. Está com medo de uma coisa que não conhece. Os olhos dela, amedrontados, fitavam a porta. Não havia ninguém lá. Ela estava pensando em fugir.
- Não adianta, Matilda, não há saída - disse ele, em voz baixa. - Há um guarda à porta e outros na escada.
Então, ela mostrou um lampejo de espírito.
- Eles não estariam lhe prestando melhor serviço protegendo suas possessões?
- Você é minha possessão, pequena Matilda. Como são todos os meus súditos. Súditos, lembre-se! Isso significa que estão sujeitos à minha vontade.
- Meu pai...
- Seu pai, oh, ele é um barão muito poderoso, mas ele e sua mãe vão aprender que não existe ninguém mais poderoso do que o rei.
Os olhos dela imploravam-lhe para que a libertase. Mas, por bonita que ela fosse, com os olhos grandes como os de uma corça, ela não o excitava. Como era diferente dos olhos alongados e lânguidos de Isabella! Matilda não tinha formas - de certo modo, era atraente. Como Isabella conseguira ser voluptuosa na imaturidade?
Por que ele não possuía a menina e acabava com aquilo? Porque não estava interessado. Queria vingar-se da mãe dela. O desafio daquela mulher a ele podia provocar mais paixão em João do que os encantos óbvios daquela menina.
Iria cortejá-la; depois, faria com que a mãe ficasse sabendo da depravação da filha.
- Você não devia ter medo, Matilda. Gosto de você, é verdade. Mas você andou dando ouvidos a histórias maldosas a meu respeito. É uma tristeza o fato de que um rei muitas vezes é caluniado. Há rumores sobre ele, seus atos são exagerados. Você tem medo de mim porque ouviu sussurros, não foi? Confesse, queridinha.
Ela confirmou com a cabeça.
- Tenho de convencê-la de que foi enganada, não? Terei de lhe mostrar o quanto sou diferente do homem que a levaram a acreditar que sou. Conversemos, agora, sobre sua casa e sua família. Você vai me dizer o que mais gosta de fazer.
- O que eu gosto mais é de estar com minha mãe.
- Isso é conversa de criança. Ficamos no colo de nossa mãe quando somos crianças, mas à medida que crescemos percebemos que não podemos passar o resto da vida ali. Você vai descobrir interesses longe de sua mãe, e eu vou ensiná-la.
Tomou a mão dela e conduziu-a a um banco. Sentou-se a seu lado e envolveu-a nos braços. Sentiu o corpo todo dela se encolher e aquilo lhe deu vontade de gritar que não bancasse a boba, caso contrário lhe daria um motivo para ficar com medo. Mas se conteve ao pensar na insolência da mãe dela ao levá-la para longe dele como fizera. Ninguém iria tratá-lo daquela maneira. Estaria ela pensando que porque Filipe da França o humilhara seus súditos poderiam fazer o mesmo?
Fique calmo, aconselhava a si mesmo. Você vai se vingar plenamente daquela mulher.
Falou com Matilda calmamente, sobre suas viagens pela Inglaterra.
Não tinha certeza de que ela estivesse ouvindo, e quando se levantou para ir embora, acreditou que a menina deixara de ter tanto medo dele quanto tivera quando ele chegara.
Era uma tarefa difícil aquela que João estabelecera para si mesmo, mas uma vez começada, decidiu prosseguir. Ficou no castelo para estar perto dela, esperando que em pouco tempo a tivesse levado a aceitá-lo por sua livre e espontânea vontade como amante. Era isso que ele queria. Diria à mãe dela: aqui está sua filha. Minha amante por vontade própria. Não é, minha querida Matilda? E ela iria ruborizar-se e gaguejar, pois fora educada para nunca dizer uma mentira... e aquilo seria o máximo de triunfo.
Tinha de acontecer daquela maneira. Ele estava decidido.
Havia momentos em que perdia a paciência com ela.
- Matilda, você gosta de mim, não gosta? A resposta boba foi:
- O senhor é o meu rei.
- O que quer dizer isso?
- Que seria traição não gostar.
- E sabe o que acontece com aqueles que cometem traição, minha filha?
Ela baixou a cabeça.
Oh, era uma tola. João imaginava Isabella numa circunstância daquelas. Como apreciaria um jogo daqueles!
No dia em que tentou possuí-la, ela começou a gritar por socorro.
Mais tolice. Como se alguém fosse acorrer em seu auxílio, quando se sabia quem era o assaltante. Se não fosse pela mãe dela, João a deixaria ir embora.
O medo a modificara um pouco. Fizera com que amadurecesse. Ela podia ter sentimentos, desejos. Devia perceber que havia aventuras excitantes fora de seu lar tranquilo. João imaginava o casamento que seria planejado para ela. Um poderoso nobre com propriedades, escolhido cuidadosamente pela mãe; alguém que desse riqueza à querida filha e que a tratasse com delicadeza. Não faria mal ela ser, primeiro, amante do rei. Iria para o marido sabendo mais e sendo mais capaz de aproveitar a vida de casada.
Todas as vezes em que a visitava, Matilda o evitava. Jamais se entregaria a ele por vontade própria. Precisava decidir se a possuía à força ou desistia. Devolvê-la àquela mulher. A virtude triunfante. Nunca!
Tentou falar com ela de maneira razoável.
- Como posso ser tão monstruoso assim, quando sou tão paciente?
Aquilo causou uma certa impressão, pois ela sabia bem o que ele poderia ter feito.
- Veja como procuro conquistá-la! Sou carinhoso e delicado. Já lhe disse que cheguei ao castelo de seu pai, vi você e gostei de você pela sua beleza. É uma menina muito bonita, Matilda. Raramente vi outra tão bonita. Mas ainda não está formada, é uma criança. Sua beleza precisa amadurecer. Você precisa de um amante... precisa de um rei como amante.
Mas de que adiantava?
Ela estava inflexível.
Um dia, ficou em pé ao lado da janela e disse:
- Se se aproximar de mim, eu me atiro lá fora.
João olhou para ela alarmado, e sabia que estava falando a verdade.
Não adiantava. Ela jamais cederia de boa vontade. Á família devia estar à sua procura. João não confiava em FitzWalter. Era muito poderoso; era o tipo de homem que levaria os barões a se revoltarem. Mesmo assim, João não iria deixar que a mulher de FitzWalter lhe desse ordens.
E se eles descobrissem o paradeiro da filha? Não seria difícil, na presente situação, eles chefiarem os barões para resgatá-la.
João imaginou o quadro com desânimo. Todos aqueles que tinham andado murmurando contra ele por tanto tempo, partindo contra ele. Poderia haver uma guerra civil.
Já estava farto de Matilda. Ela jamais cederia por vontade própria. João não queria simplesmente mais um estupro. Já estava farto de estupro, que deixara de atraí-lo como antes.
O que fazer, então? Devolvê-la aos pais? Nunca.
Mas precisava livrar-se dela.
Mandou chamar um dos cozinheiros, um bom sujeito que ele sabia que faria muita coisa se fosse recompensado; e com uma tarefa daquelas, estava-se relativamente seguro, porque embora tivesse dado a ordem, o ato fora cometido por outra pessoa que estava tão envolvida quanto ele.
Foi muito fácil. Uma sugestão que foi imediatamente aceita.
Durante o dia, a jovem Matilda adoeceu. Antes de chegar a noite, estava morta.
Mais tarde, foi comentado por aqueles que a atenderam que ela ficara doente depois de comer um ovo.
João mandou o corpo de volta para Dunmow, e a garota foi enterrada na Igreja de Little Dunmow. A mãe chorou lágrimas amargas de angústia, e não conseguia deixar de recordar aquele momento na estrada, em que a filha lhe tinha sido arrancada das mãos.
O que poderia eu ter feito?, perguntava-se ela. Eu devia ter ido com ela. Eu devia ter morrido, a deixar que minha filha se fosse.
Mas não adiantava chorar. Matilda jazia na sepultura, pobrezinha, e não havia lágrimas que a trouxessem de volta.
- Nunca vou me esquecer disto - bradou Robert FitzWalter. - vou me vingar de João. Ele vai pagar por isto. Vai desejar nunca ter ousado ferir minha família.
- O que podemos fazer? - bradou a mulher. - Nada trará Matilda de volta.
FitzWalter podia fazer muita coisa. O ódio queimava tanto dentro dele que se tornou uma inspiração.
JOÃO NÃO PODIA deixar de estar ciente de que a posição do rei da Inglaterra se deteriorara de maneira alarmante durante o seu reinado. O grande espantalho era Filipe Augusto da França, que depois de se apossar da Normandia e de grande parte das possessões de João além-mar, agora lançava olhares para a própria Inglaterra, e tanto quanto Guilherme, o Conquistador, olhara com cobiça para o outro lado do canal antes da invasão, agora Filipe Augusto da França fazia o mesmo.
Ele raciocinava que João não era um grande adversário. Teria sido muito diferente enfrentar Ricardo ou o pai dele, Henrique II. Não tinha esses receios com relação a João. Um rei que se divertia na cama quando o reino corria perigo, que perdera a herança de seus grandes ancestrais, cujo país estava submetido a um interdito, e que ele mesmo estava excomungado, parecia ter-se colocado numa posição da qual seria loucura os inimigos não se aproveitarem.
Assim, Filipe começou a arregimentar um exército com a ideia de que quando chegasse a hora iria atravessar o canal e tirar a coroa inglesa de João.
Até João devia estar alarmado com aquela perspectiva. A perda de possessões continentais significava um descanso quanto a combates perpétuos, mas a perda da Inglaterra seria intolerável. Não seria mais rei.
Ele não poderia, agora, ficar ocioso e passar metade do dia na cama. Não queria isso. Percorria o país a maior parte do tempo, possuindo mulheres quando se sentia atraído por elas, e desfrutando da variedade.
Fez um acordo com cinco dos principais portos comerciais do país para que lhe fornecessem navios. Os portos eram Dover, Romney, Hythe, Hastings e Sandwich, que eram
conhecidos como os Cinque Ports. Mais tarde, Rye e Winchelsea foram adicionados aos cinco primeiros. João exigiu de Dover 21 navios, de Romney cinco, de Hythe e
Sandwich cinco de cada, e de Hastings, vinte. Como com os navios seguiam os homens para tripulá-los, aquilo lhe era de grande importância. Em apoio à frota de navios, João se dispunha a conceder certos privilégios.
Foi um acordo razoável, e privilégios especiais foram concedidos às cidades, e seus comerciantes eram conhecidos como barões.
Mas João precisava urgentemente de recursos, e dispôs-se a consegui-los através do que chamava de "multas". Se um homem era acusado de uma contravenção, era possível pagar para não sofrer a punição justa. "Subornos" teria sido uma maneira melhor de descrever aquelas iniquidades.
Os judeus sempre tinham sido perseguidos, e por terem talento para juntar dinheiro, tornaram-se um dos principais alvos de João. Ele deu ordens para que todos os judeus fossem presos, a fim de que, mediante o pagamento de certas quantias, pudessem ser postos em liberdade. Compreensivelmente relutantes em abrirem mão de seus bens materiais, muitos deles se recusaram, o que provocou tanto a ira do rei que ele mandou que fossem torturados. Deixou claro que eles poderiam poupar-se daqueles horrores com o pagamento de determinadas quantias. De um rico judeu de Bristol, o rei pediu um pagamento de dez mil marcos - uma grande fortuna, que era tudo o que o homem possuía. Quando o judeu se recusou a pagar a João, o rei ordenou que todos os dias um de seus dentes deveria ser arrancado, até ele pagar. O judeu aguentou sete dias, mas ao fim daquele período decidiu que seria melhor perder a fortuna do que suportar as brutais extrações.
João estava sempre pensando em novas maneiras de conseguir dinheiro. Se duas pessoas brigassem por uma área de terra, o que acontecia com muita frequência, aquela que desse o maior presente ao rei ficava com a terra. Não era só dinheiro que passava para o rei daquele jeito; ele recebia cabeças de gado, jóias, qualquer coisa de valor.
Muitas vezes era necessário obter o consentimento do rei para um casamento, se a noiva fosse uma herdeira, e isso constituía uma valiosa fonte de renda para ele. Geofredo de Mandeville quis se casar com Hadwisa, a primeira esposa de João que ele descartara; ela, ainda uma mulher rica, era um bom partido, e o pretendente deu ao rei vinte mil marcos pela permissão. com frequência acontecia uma troca lucrativa, e no caso da viúva de um certo Estêvão Falconbridge, Ricardo de Lee deu ao rei oitenta marcos pela permissão de se casar com ela, o que João aceitou com entusiasmo. Mas a viúva tinha outros planos e ofereceu a João mil libras esterlinas se ele retirasse a permissão, o que João, ao receber o dinheiro, fez de bom grado. Se soubesse que uma determinada viúva não tinha vontade de se casar, procurava um marido para ela, a fim de que ela pudesse oferecer uma certa quantia para ser dispensada do matrimónio. A condessa de Warwick lhe deu mil libras e dez palafréns para que a pudessem deixar em paz.
Não havia desculpa mais absurda que não fosse usada para extrair dinheiro. Cidades deviam pagar subornos para que pudessem realizar seus negócios como melhor lhes aprouvesse. A própria Londres deu quarenta marcos para poder vender tecido de um determinado comprimento; e o bispo de Norwich que, a título de suborno, presenteou o rei com um anel de esmeraldas, foi multado por entregálo num momento inconveniente, quando havia outras pessoas presentes.
Todo aquele que possuísse alguma coisa que pudesse beneficiar o rei via-se roubado, e João sentia um prazer cínico ao imaginar métodos de extorsão.
Não seria de esperar que o povo fosse suportar docilmente aquela situação. Os barões estavam ficando inquietos, e um número cada vez maior de pessoas se perguntava e perguntava às outras se haviam cometido uma imprudência ao dar as boas-vindas a João como rei, quando poderiam ter tido o jovem Artur; e aquilo levantava a pergunta: onde está Artur? E havia uma crescente convicção de que João sabia a resposta àquele enigma e, de fato, participara e representara um papel brutal no desaparecimento do jovem duque.
João, apesar de não desconhecer o ressentimento que aumentava à sua volta, mantinha-se indiferente. Ele era o rei. Todos precisavam lembrar-se disso. Além do mais, havia uma ameaça à Inglaterra vinda de além-mar, e ele precisava de dinheiro para se preparar para enfrentá-la. Recusava-se a se deixar perturbar pelos ressentimentos que cresciam em seu redor.
Sua arrogância estava se tornando intolerável para muita gente, e os barões conversavam em segredo sobre o estado a que ele estava reduzindo o país. Seus ímpetos de energia eram desconcertantes, já que eram seguidos de longos períodos de indolência. Ele era imprevisível; podia ser divertido e espirituoso em determinado momento, mas o violento mau génio podia dominá-lo de repente, a ponto de ninguém se sentir realmente seguro em sua companhia por muito tempo.
Sua licenciosidade não diminuíra com a idade, e no seu novo estado de espírito ele não hesitava em exigir concordância de quem quer que o atraísse. Podia ser uma criada ou, com a mesma facilidade, a mulher de um de seus barões de alta categoria - para ele, não fazia diferença; se desejasse uma mulher, esperava que todos se lembrassem de que ele era o rei, e que não podia ser contrariado.
Foi assim quando seus olhos bateram na esposa do barão de Vesci.
Eustace de Vesci servira bem a Ricardo e o acompanhara em sua cruzada; depois da morte de Ricardo, prestara sua vassalagem a João e estava ficando cada vez mais horrorizado ao descobrir o quanto ele era diferente do irmão e do pai.
Vesci era um daqueles barões que, em segredo, fora contra o governo de João; mas era um homem corajoso e não pretendia continuar aceitando tal conduta por parte do rei.
Ele exercia uma grande influência na Escócia, porque sua mulher Margaret era filha ilegítima de Guilherme, o Leão, e Vesci atuara muitas vezes como embaixador de João lá, onde, tendo em vista os laços matrimoniais, era bem recebido.
Agora, a mesma Margaret provocava uma atração por parte de João, e Eustace estava louco de raiva - embora não demonstrasse - com o fato de João ousar presumir que podia fazer o que quisesse com as esposas dos outros enquanto os maridos ficavam humildemente de lado.
Mas ele estava bem ciente do violento mau génio do rei, e naquele momento todos os súditos estavam à sua mercê, situação que Eustace, junto com outros barões, estava decidido a não permitir que continuasse.
Fingiu tratar o assunto como uma brincadeira, dando a entender que o rei não podia estar falando sério de suas intenções quanto à sua esposa e à filha do rei da Escócia.
- Vossa majestade é gentil ao admirar minha mulher - disse Eustace, com cautela.
- Ela é atraente - replicou João. - É uma mulher do tipo que eu muito admiro. Tive prazeres com muitas delas. Conheço as potencialidades de uma mulher quando as vejo. Tenho tido muita prática, barão.
- Sei muito bem disso - foi a resposta. - Minha mulher parte hoje para uma visita ao pai dela. - Eustace dava a entender que Margaret não era apenas sua esposa, mas filha do rei da Escócia.
- Ela não partirá esta noite - disse João - porque hoje à noite ela e eu vamos dormir juntos.
Eustace teve de se conter para não aplicar no rei um golpe que o teria derrubado. Mas sendo um homem de raciocínio rápido, percebeu qual seria o resultado daquilo. De que serviria ele para Margaret, como iria salvá-la daquele devasso se estivesse preso numa masmorra e privado das mãos ou, talvez, dos olhos?
Disse, com voz pausada:
- Vossa majestade está tão decidido assim?
- Nunca estive mais decidido em outra coisa - replicou João. Sorriu com ironia. Conhecia Eustace - um homem de gostos muito limitados. O tipo que teria considerado pecado divertir-se fora do leito matrimonial. E Margaret pensava a mesma coisa. João sabia que ela tinha medo dele. Aquele era um dos motivos da atração dela para ele. Duvidava que ela alguma vez tivesse conhecido outro homem que não o marido. Iria achá-la muitíssimo interessante.
- Não se pode esperar que um marido veja um projeto desses com bons olhos - sugeriu Eustace.
João admitiu que sim.
- Se fosse um barão que desejasse sua esposa, poderia se opor. Tal como se ele quisesse um castelo que fosse seu. Você lutaria por ele com tudo o que possui, meu bom Eustace. Mas se o seu rei decidisse que queria um castelo que fosse seu, seria prudente, como bem sabe, por ser um homem prudente, dar o castelo a ele. O mesmo acontece com a sua esposa.
Você é um monstro, pensou Eustace. Acha que vou lhe fazer a vontade? De hoje em diante, irei lutar contra você e não descansarei enquanto não tiver provocado a sua ruína.
Mas não demonstrou a raiva. João, entretanto, compreendia seus sentimentos até certo ponto, e achou interessante que aquele homem probo não tivesse a coragem de se opor a ele. Interessava-se pela virtude da mulher, mas a sua liberdade e seus membros lhe eram mais importantes.
- Ora, Eustace - prosseguiu o rei -, decidi homenageá-lo. Depois de amanhã, você poderá jactar-se de que sua esposa agradou tanto ao rei que ele a levou para a cama. Pode até acontecer que eu plante nela uma semente real. Que acha disso, barão? Que tal se houvesse um principezinho ou uma princesinha em seu berçário?
Foi difícil Eustace se conter, mas conseguiu. Mostrar sua raiva enojada não era a maneira de lidar com aquela situação. João estava se tornando mais torpe, ainda mais libertino do que na juventude; era capaz de qualquer ato cruel, e quanto mais cínico, melhor.
Eustace curvou a cabeça e pediu permissão para se retirar. Já não podia suportar ficar em companhia do rei.
Dirigiu-se ao quarto da esposa, onde ela o aguardava temerosa. Ela dispensou as aias e depois que elas saíram correu para ele e atirou-se em seus braços.
Ele acariciou-lhe os cabelos, pensativo.
- Você esteve com o rei - disse ela. - Quando é que ele parte?
- Só amanhã.
Ela começou a tremer.
- Tenho medo dele, Eustace.
- com bons motivos - respondeu o marido, sério. - Ele pediu você grosseiramente.
- Pediu-me!
- Hoje à noite, ele vai mandar que você durma com ele.
- Não posso fazer isso, Eustace.
- Você o conhece bem. Ele irá obrigá-la. Este castelo está cercado pelos soldados dele, que fariam o que ele mandasse. Não vai adiantar recusar a proposta. Mas escute uma coisa. Tive uma ideia. Alguém tem que ir para a cama dele hoje à noite, mas precisa ser você?
- O que é que você tem em mente?
- Há muitas mulheres fáceis no castelo. Há muitas, disso eu não duvido, que dariam muito pelo que acham ser a honra de partilhar da cama do rei. Por que uma delas não toma o seu lugar?
- Você acha que ele iria concordar?
- Não. Mas por que não iria ele acreditar que a sua companheira de cama seja você quando é outra mulher?
- Oh, Eustace, como você é inteligente!
- Ainda não está feito. Não nos apressemos, mas vamos pensar bastante no assunto. Se pudéssemos escolher a mulher, dar-lhe um banho, penteá-la, perfumar-lhe o corpo... será possível, a seu ver, enganá-lo?
- Ele me viu muito pouco - disse Margaret - e acho que esse desejo louco é, em parte, para perturbar você e provar a meu pai que nem mesmo a filha dele ousa recusá-lo. Estou certa de que ele poderia ser enganado.
- Ele tem de ser enganado - declarou Eustace. - Vamos escolher uma das prostitutas, vesti-la e mandá-la ir para a cama com ele. Não há tempo a perder. Ela vai precisar de algumas instruções. Mas pretendo fazer com que o rei fique tão bêbado de vinho, coma tanto, que seus poderes de observação vão ficar amortecidos; e de madrugada, você precisa partir para uma viagem. Não deve haver demora quanto a isso. E você irá ficar esperando por perto daqui até que ele tenha ido embora do castelo.
A própria necessidade deles parecia dotá-los de habilidades especiais. Encontraram a substituta, que escolheram porque os cabelos eram muito parecidos com os de Margaret. Eles foram lavados e perfumados, e presos da mesma maneira que os dela. Deram um banho na mulher e a vestiram com uma túnica de Margaret, e ensinaram-lhe bem o papel que tinha a representar.
Aquilo a divertiu, e disseram-lhe que se fosse bem-sucedida seria bem recompensada pelo trabalho noturno, de modo que ela ficou decidida a representar o seu papel com o máximo de sua capacidade.
Naquela noite, João jantou bem e bebeu bastante. Margaret, à sua direita, e Eustace, à sua esquerda, encheram-no de vinho. Ele ficou encantado com Margaret, e aguardava a aventura da noite com excitação. Olhava de um para o outro com um prazer que não disfarçava.
Quando a noite ia avançada, Margaret sussurrou que iria para o quarto dele e ficaria à sua espera. Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça e se voltou para sorrir para Eustace.
- Depois desta noite, meu amigo - disse ele -, você e eu teremos compartilhado nossas experiências. Sei que a senhora vai me agradar como o tem agradado.
Eustace o conduziu até a porta do quarto. Lá, a substituta de Margaret esperava por ele. Havia um pouco de luar penetrando por uma janela estreita. Não era o suficiente para mostrar a ele o rosto da companheira. Ele não duvidou, nem por um instante, que se tratava de Margaret, pois estava vestida exatamente como a esposa do barão no jantar, e os cabelos estavam penteados de maneira parecida.
O rei fechou a porta com um pontapé e caiu sobre ela.
Se estivesse um pouco mais sóbrio, poderia ter ficado surpreso com a reação dela, que não era a que teria sido se a mulher fosse a esposa de Eustace.
Ficou satisfeito e exultante. Aquilo mostraria aos seus barões que deviam curvar-se diante dele, não importava o que ele pedisse.
De madrugada, Margaret deixou o castelo e a companheira noturna de João esgueirou-se para fora da cama, o dever cumprido, e tudo o que era necessário, agora, era cobrar sua recompensa. Tinha sido uma noite lucrativa, e um dia poderia jactar-se de que tinha dormido com o rei.
João acordou tarde pela manhã. Lembrou-se da noite anterior. soltou uma gargalhada.
Não se demoraria no castelo. Precisava seguir adiante.
Estava de bom humor quando prosseguiu viagem.
A CADA SEMANA que passava, a sina de João parecia mais funesta. Os barões resmungavam juntos sobre ele e perguntavam-se por quanto tempo mais iriam suportar o governo de um rei que acreditava poder fazer o que quisesse com suas esposas e cobrar deles as multas mais ridículas que eram, na verdade, subornos e imposições.
Os membros da família Braose jamais se esqueceriam do destino de Matilda e seu filho. Colocar uma mulher da idade dela numa masmorra e deixar que morresse de fome era monstruoso, quando a única falta que ela cometera fora recusar-se a entregar o dinheiro que era exigido de sua família e desrespeitar o rei naquela questão de mandar membros da família como reféns. Muito compreensível, era o veredicto, quando se pensava no destino de Artur. E parece que todo mundo estava pensando, agora, no destino de Artur. Filipe da França estava exigindo que o jovem duque fosse apresentado, sabendo muito bem que isso jamais poderia ocorrer. Ele iria usar tudo aquilo que pudesse reunir para desmoralizar João.
Eustace de Vesci estava levantando os barões contra ele; não que precisassem de muito estímulo. Estavam muitíssimo prontos para acusar o rei, e muitos deles se encontravam para discutir o que poderia ser feito.
Havia um que lamentava o curso que os acontecimentos estavam tomando e que decidiu fazer mais um esforço no sentido de salvar a monarquia. Era Guilherme Marechal, e ele foi procurar João.
O rei, que começava a perceber o quanto carecia de amigos e que aquela falta de amigos poderia significar que estava correndo o sério perigo de perder o reino, recebeu calorosamente o Marechal.
- Majestade - disse Guilherme -, venho falar com uma franqueza que vossa majestade pode não achar de seu agrado. No entanto, preciso falar, pois, se alguma coisa não for feita com rapidez, vejo o desastre dominando este país e sua casa real.
- Pode falar como quiser - disse o rei.
- Então, vou dizer que é loucura permitir que essa situação continue como está. Os barões estão contrariados.
- Uma praga para os barões - murmurou João.
- Vossa majestade pode desejar uma praga para eles, mas não se esqueça de que essa praga iria infestar o país inteiro, tal como eles estão começando a infectá-lo com o seu desagrado.
- Quem são eles, para mostrarem desagrado? - perguntou João. - Sou o rei deles, ou não sou?
- Neste momento, é - disse o Marechal com franqueza -, mas quem dirá por quanto tempo, se os problemas seguirem na direção em que estão indo?
- O senhor é muito ousado, Marechal, pois parece que está me criticando.
- Eu lhe avisei que era ousado demais. Sempre fui, e se vossa majestade não estiver preparado para minha ousadia, seria melhor para nós dois se eu me retirasse.
- Não - disse João -, continue.
- Pense na situação em que estamos. Interdito! Excomunhão! Agitação interna, e talvez o que seja mais grave, Filipe à espera de uma oportunidade.
- Por Deus, eu acabaria com Filipe se ele pusesse os pés neste país.
- Majestade, ele tem a Normandia toda. Pouco resta a vossa majestade além-mar. Pelo amor de seus ancestrais, não deixe que a Inglaterra lhe saia das mãos.
João ficou com medo. Havia um homem em quem podia confiar, e esse homem era o Marechal. Precisava dar atenção a ele. Ele sabia. Tinha de aceitar o seu conselho, pois sabia que seria sensato e que o Marechal não desejava coisa alguma, a não ser o bem da Inglaterra.
- Os problemas aumentaram com a briga com Roma - disse o Marechal. - Majestade, o seu primeiro passo é acabar com essa briga.
- Como assim?
- Aceite Estêvão Langton.
- Jurei que não o aceitaria.
- Pode ser, mas, majestade, há uma coroa em perigo. Se não fizer as pazes com Roma, em pouco tempo um rei francês irá tomar a coroa da Inglaterra. Há muita gente aqui que receberia Filipe de bom grado.
- Então não há dúvida de que são traidores.
- São homens que estão lutando contra a maneira pela qual a Inglaterra está sendo governada. Há muita coisa de que eles não gostam. Esteja preparado para a traição, majestade, de onde menos espera.
- Do senhor, Marechal?
- Estou aqui para salvar seu reino para vossa majestade, para lhe dar meu apoio, que não é de se desprezar. Aqueles que murmuram contra vossa majestade amam este país. Eles o serviriam bem. Mas reclamam contra a tributação injusta, o interdito e a excomunhão, e a maneira pela qual vossa majestade governa. Portanto, acreditam que seria para o bem do país aceitar Filipe como rei. Isso devolveria a Normandia à coroa, e com tudo isso e com a França, Filipe seria o governante mais poderoso do mundo.
- E o senhor me pede que procure humildemente Inocêncio?
- Estou convencido de que agora é o momento de fazer as pazes com Roma.
- Mas isso vai significar não cumprir com a minha palavra. Jurei que jamais aceitaria Estêvão Langton aqui.
- Há momentos, majestade, em que é prudente e muitíssimo útil não cumprir com a palavra. Este é um deles.
- O que pensarão de mim?
Os lábios do Marechal se franziram.
- Não será pior - disse ele, com franqueza - do que já pensam.
- E o senhor insiste comigo para que eu me aproxime do papa, que admita minha disposição de aceitar Langton aqui?
- Eu faria isso de todo o meu coração, pois se vossa majestade não o fizer, não irá continuar sendo rei da Inglaterra por muito tempo.
O Marechal esperava que ele tivesse um acesso de raiva. O fato de não ter tido indicava que estava realmente com medo da situação em que se encontrava.
- vou mandar imediatamente uma delegação para falar com Inocêncio - disse o rei. - vou até aceitar Langton.
Houve uma grande agitação em Yorkshire na época, porque um velho conhecido como Peter de Pontefract alegara ter tido uma visão. Peter era um eremita que vivia numa caverna, em cuja entrada as pessoas deixavam alimentos para ele; dizia-se que era um homem de poderes fora do comum.
Ele havia previsto que antes do Dia da Ascensão o rei João teria deixado de reinar. Tendo em vista as condições em vigor, aquilo não parecia uma profecia despropositada, e ela foi repetida por todo Yorkshire e começou a penetrar em outros condados com tanta insistência, que Peter de Pontefract agora ficara conhecido no país inteiro.
Cercado de dificuldades, pensando nos avisos do Marechal, João estava cheio de pavores supersticiosos, e durante suas viagens pelo Norte mandou que Peter fosse levado à sua presença.
O velho não deu sinal algum de que temia o rei. Ficou de pé à sua frente sem respeito ou desrespeito. Simplesmente mostrou indiferença.
João bradou, com jeito de valentão:
- Que conversa é essa que você espalhou pelo país a meu respeito?
- Eu apenas disse o que me veio à cabeça - respondeu Peter.
- Se as pessoas repetem, não tenho nada a ver com isso.
- Eu tenho algo a ver com isso - bradou o rei. - Você diz que não estarei reinando depois do Dia da Ascensão.
- Não fui eu que disse. Foram as vozes.
- E a quem você acha que essas vozes pertencem?
- A Deus, talvez, ou aos poderes.
- E diga, por favor, como é que vou perder o meu reino.
- Isso não sei - foi a resposta. - Só que vai perdê-lo.
- Creio que está mentindo.
- Não estou, majestade.
- Sabe o que é feito com os mentirosos? Peter voltou os olhos para o céu e respondeu:
- O que será, será, e o que vossa majestade vai fazer comigo não foi revelado.
- Você devia estar tremendo todo, Peter de Pontefract.
- Não, majestade, apenas falo o que devo falar e o que os espíritos me dizem. Eles dizem que vossa majestade não irá reinar mais depois do Dia da Ascensão, e que uma pessoa mais agradável a Deus será colocada em seu trono.
De repente, João perdeu a paciência.
- Levem este homem daqui - berrou ele. - Atirem-no numa masmorra em Corfe.
Peter estava tranquilo enquanto o levavam embora.
- Você vai saber do seu destino no Dia da Ascensão - berrou João enquanto ele se afastava. - Deve começar a rezar pela sua alma agora, companheiro. Porque não vai ser bom para você, então.
Peter limitou-se a sorrir e juntou as palmas das mãos enquanto era levado às pressas.
Inocêncio fora avisado sobre a situação na Inglaterra. Os barões estavam prontos para se revoltarem, e se se deixasse que a Inglaterra continuasse por muito mais tempo sob o interdito com um rei excomungado, parecia que a ira de Roma perderia a força. Ele não podia permitir que a situação continuasse, e por isso mandou chamar Estêvão Langton, a seu ver arcebispo de Canterbury, e lhe disse que queria que fosse imediatamente falar com o rei da França.
- Não se pode permitir que João continue a reinar na Inglaterra - disse ele. - Pretendo depô-lo, e vou pedir ao rei da França que me ajude nesse sentido. Sei muito bem que ele estará ansioso por isso.
Estêvão Langton ficou surpreso, porque não achava que Inocêncio quisesse aumentar o poder de Filipe, mas entendeu o ponto de vista do papa. João não se importava com Roma, ao continuar a aceitar o interdito e a sua excomunhão como se não representassem nada para ele e não fazendo esforço algum para revogá-los.
O arcebispo partiu para Paris e acabara de sair quando a delegação de João chegou a Roma com mensagens urgentes para o papa, proclamando que iria aceitar Estêvão Langton. Em consequência disso, Estêvão foi rapidamente chamado de volta a Roma. O papa declarou, então, sua disposição de retirar a ameaça de depor João se este ratificasse suas promessas.
Filipe, nesse ínterim, reunira um exército com uma frota de navios pronta para levá-lo à Inglaterra. Estava decidido a invadir e, como João era nitidamente incapaz de usar a coroa, toma-la para si. Nenhum monarca francês havia governado a Inglaterra. Filipe realizara sua ambição ao recapturar a Normandia. Conseguira outros sucessos, mas capturar a Inglaterra iria consagrá-lo para sempre como um herói, como acontecera com Guilherme, o Conquistador.
Era impressionante como as pessoas se uniam sob a bandeira de João. Aqueles que haviam relutado em juntar-se a ele para combater além-mar pensavam de modo muito diferente a respeito de seu próprio país. Se os franceses estavam esperando para atacar, encontrariam os ingleses prontos para o combate. Eles nunca aceitariam o rei francês como rei. Preferiam o inglês João, apesar de todos os defeitos. Ele conseguiu reunir uma boa frota de navios. Os Cinco Portos tinham cumprido suas promessas. O país inteiro estava aderindo às bandeiras de João, havia muito tempo que ele não se sentia tão confiante.
Em vez dos franceses, foi o legado do papa que chegou a Dover. Viera de Roma a toda pressa, com despachos especiais para o rei da Inglaterra.
O legado papal era Pandulph, um romano, que se tornara clérigo da corte papal de Inocêncio e que estava acompanhado por um Cavaleiro de São João chamado Irmão Durandus. João estivera com eles numa ocasião anterior, quando os dois tinham ido para tratar de assuntos do papa, e dessa vez os recebeu com um entusiasmo maior do que o anterior.
João havia discutido com o Marechal as condições que o papa poderia oferecer, e o conselho de Guilherme fora de que seria prudente aceitá-las, muito embora pudessem parecer um tanto drásticas.
Na opinião do Marechal, não era possível confiar nos barões, e apesar de terem aderido à bandeira de João diante da perspectiva de uma invasão francesa, no íntimo estavam cansados do governo de João, e se achassem que a situação seria melhor sob o governo de Filipe, poderiam resolver mudar de lado. Ver o exército reunido, os navios prontos para lutar contra os franceses, era um prazer. Mas o Marechal conhecia a extensão da impopularidade de João e não confiava naqueles que se haviam reunido para ajudá-lo. Por isso, parecia-lhe que João devia, se possível, fazer as pazes com o papa.
As primeiras palavras de Pandulph indicaram a João como era importante, para ele, fazer as pazes com Roma.
- Na minha vinda para cá - disse-lhe Pandulph -, passei pela França e pedi uma audiência com o rei. Em nome do papa, proibi-o de tentar a invasão da Inglaterra antes de eu ter falado com vossa majestade. Muita coisa vai depender de sua atitude agora. Se aceitar as condições do papa, não haverá invasão francesa, pois a Santa Sé não vai permitir e o rei da França não ousaria realizar uma operação tão arriscada assim, na qual Deus estaria contra ele, já que ele foi proibido por Roma.
- Eu gostaria de conhecer suas condições - disse João.
O Marechal estivera certo quando dissera que as condições seriam drásticas. Não poderia haver nenhuma outra mais drástica, pois o papa insistia que João entregasse a coroa ao papa, que então a devolveria a ele, tornando-o um feudo da Santa Sé. O rei da Inglaterra se tornaria vassalo do papa.
Vassalo do papa! Como ele havia decaído! O que diria o grande Guilherme, o Conquistador, se estivesse olhando lá do céu naquele momento? A terra que ele havia conquistado e mantido com grande sacrifício ser passada para o papa, e seu rei tornar-se um vassalo!
A raiva que tomou conta de João foi amarga - não a raiva violenta que ele conhecia tão bem. Na sua raiva havia tristeza por aquela situação ter acontecido.
O mundo inteiro está contra mim, pensou ele.
- Se vossa majestade não concordar - disse Pandulph -, sua santidade dará a Filipe permissão para invadir. Ele tem um poderoso exército reunido do outro lado do mar. O papa dará a ele a ajuda de que precisar, e o rei da França usará a coroa da Inglaterra sob o controle de Roma.
João ficou calado. Preparara-se para aceitar Estêvão Langton, o que precisava fazer; permitiria que o clero exilado voltasse, e iria compensar a Igreja pela perda que sofrera quando ele confiscara grande parte de suas terras e bens. Mas não tinha pensado em se tornar um vassalo de Roma.
Conversou com Guilherme Marechal, um homem que estava tão triste quanto ele diante daquela perspectiva. Mas o Marechal acreditava - e João também - que ceder ao papa era a única saída de uma situação perigosa.
- Se ceder - disse Guilherme -, vossa majestade obterá certas vantagens. Filipe pode não obedecer à ordem do papa para se retirar, mas se tentasse a invasão contra a vontade do Santo Padre, haverá muita gente que não estará ansiosa por segui-lo. Os barões daqui, que estão prontos para se revoltarem contra vossa majestade, não terão o apoio do papa. O interdito será revogado, e os benefícios da Igreja voltarão à Inglaterra. Pense nisso. Haverá enterros decentes e a recepção de mulheres depois do parto com orações e bênçãos, e as portas das igrejas voltarão a se abrir para o povo. Vossa majestade precisa concordar. É uma situação triste, mas esta é a melhor saída para as nossas dificuldades.
- Penso muito no eremita no castelo de Corfe - disse João.
- Ah, a profecia. Quando é que ela deveria se cumprir?
- No Dia da Ascensão.
- Que chegará em breve.
Os dois homens se entreolharam, sérios. Então, João falou.
- Vou concordar - disse ele. - vou me tornar vassalo do papa.
- É melhor isso - concordou Guilherme Marechal - do que se tornar o inimigo derrotado do rei da França.
Assim seguiu-se a cerimónia de tirar a coroa da cabeça de João, o que simbolizava a sua submissão ao papa, e depois recolocá-la imediatamente, para indicar que o papa a outorgara prazerosamente a ele outra vez. Ele ainda era o rei da Inglaterra, mas usava a coroa como vassalo do papa, o que era motivo de júbilo, disse João, porque significava que a Santa Roma era a protetora do rei e do país.
João estava exultante. Saíra-se bem de suas dificuldades. Era verdade que tivera que aceitar Estêvão Langton, mas iria fazer com que as garras do arcebispo fossem aparadas quando ele chegasse à Inglaterra, e João não estava mais disposto do que seus antecessores a deixar que a Igreja interferisse no Estado, mas por enquanto podia soltar um suspiro de alívio, ter um sorriso sardónico ao pensar no exército que Filipe reunira para invadir a Inglaterra, e congratular-se consigo mesmo por ter saído em triunfo de uma situação muito alarmante.
Era hora de regozijo, disse ele ao seu povo. O interdito acabara, e os sinos das igrejas voltariam a tocar. Havia amizade entre a Inglaterra e Roma; havia mais do que isso: havia uma grande aliança, e a Santa Sé lançara suas asas protetoras por sobre todo o país. Que se erguessem pavilhões no interior do condado de Kent; que houvesse cantos e danças nas ruas de Dover. Em vez de guerra, havia comemorações. Em vez de um invasor estrangeiro, o rei deles ali estava para governá-los. Tudo ia bem com a Inglaterra.
O povo estava sempre pronto a festejar alguma coisa. Ouvia os sinos das igrejas tocando e aquilo parecia um som muito melodioso; as pessoas falavam com carinho do rei João, que habilmente as salvara dos invasores franceses; elas dançaram e cantaram, e havia fogueiras nas colinas de Kent.
Aqueles que haviam proclamado sua fé em Peter de Pontefract acreditavam que a profecia dele se tornara realidade. João perdera a coroa antes do Dia da Ascensão, mas o que Peter não vira era que ele a recuperara. Alguns salientavam que a profecia tinha sido de que João perderia a coroa e alguém mais do agrado de Deus iria usá-la. Bem, eles podiam até fazer com que essa explicação se encaixasse. O João que recuperara a coroa era um vassalo do papa e, portanto, um homem mudado. Aos olhos de Deus, uma pessoa sob a proteção do Santo Padre agradaria mais a Deus.
Assim, todos podiam ficar felizes, e era fácil ser levado a esquecer a tributação elevada, os acessos de raiva do rei que podiam significar desastre de tantas maneiras a quem quer que o desagradasse. Só por um dia, iriam ceder à alegria e à fé cega no futuro.
João não estava inclinado a se esquecer de Peter de Pontefract. O homem lhe causara muita inquietação. João ficara furioso com a maneira pela qual ele ficara de pé à sua frente, com aquele olhar fanático, como se fosse um mensageiro de Deus.
E o que estariam as pessoas dizendo agora? Elas distorceriam a profecia para transformá-la em verdade. João tivera ódio do homem quando ele ficara à sua frente e, de maneira ofensiva, declarara que seu lugar seria ocupado por alguém mais merecedor aos olhos de Deus.
Um rei não devia deixar que homens falassem com ele daquele jeito. Peter de Pontefract não poderia ter direito a viver e fazer mais profecias como aquela. Porque era isso que o homem faria, João tinha certeza. E suas opiniões teriam um certo peso. Homens assim incómodos deviam ser eliminados.
João deu ordens para que Peter fosse retirado de sua masmorra em Corfe e enforcado. Mas primeiro, como um aviso para outros que pudessem achar que tinham o dom da profecia e com isso acreditassem que podiam tramar contra o rei, ele devia ser amarrado ao rabo de um cavalo e arrastado até o local da execução, onde deveria ser enforcado bem alto num patíbulo, a fim de que todos pudessem ver o destino que aguardava aquele que agisse da mesma forma.
As ordens do rei foram cumpridas, e tão volúvel era o povo que aqueles que haviam apoiado Peter e declarado que ele era, de fato, um grande profeta e um homem de Deus, temendo ofender o rei, agora o insultavam.
Do OUTRO LADO do canal, Pandulph estava em reunião com Filipe da França.
- Vossa majestade deve dissolver sua frota e seus exércitos disse ele a Filipe. - A invasão da Inglaterra é, agora, inadmissível. A Inglaterra agora é um feudo papal, e atacar a Inglaterra é atacar Roma.
Filipe ficou furioso. Ele havia visto a Inglaterra no ponto para ser invadida, um rei fraco, barões insatisfeitos que ao primeiro sucesso dele estariam prontos a abandonar João e passar para o seu lado; e agora, graças àquele astuto golpe de João ao entregar a coroa ao papa e recebê-la de volta na condição de vassalo, seu fraco inimigo se tornara poderoso.
- Gastei muito dinheiro e meses de preparação - bradou Filipe. - Terá sido tudo em vão?
- Vossa majestade não poderia esperar obter sucesso se Roma estivesse contra - foi a resposta.
Havia uma certa verdade naquilo. Filipe viu seu sonho evaporarse. Era de enlouquecer. A vida toda, ele ansiara por conseguir a glória de um Carlos Magno. Estivera ansioso por ficar na história como o homem que havia tornado a França forte como antigamente; e se pudesse ter levado para ela a coroa da Inglaterra, teria sobrepujado todos os demais. E aquilo estivera ao seu alcance. Ele estava certo disso.
Mas ele era um realista e percebeu logo que aquilo era um sonho que teria de ser arquivado... mas talvez não por muito tempo. Manteria sua frota de prontidão; aumentaria o efetivo de seus exércitos. Não iria abandonar o sonho de conquistar a Inglaterra. Aquilo era apenas um adiamento.
Pandulph partiu sentindo que podia voltar a Roma e comunicar ao papa que sua missão tinha sido cumprida de maneira satisfatória.
Depois que ele partiu, Filipe ficou refletindo sobre a situação em que se encontrava. Seus soldados estavam inquietos. Tinham recebido a promessa de uma conquista, e conquista sempre significava espólios. Sabiam que quando o Conquistador fora para a Inglaterra, homens que tinham sido muito modestos na Normandia haviam-se tornado donos de terras, ricos e poderosos. Era isso que eles esperavam conseguir com uma invasão da Inglaterra. E agora que ela não ia acontecer, como se sentiriam?
Filipe precisava garantir não apenas a si mesmo, mas a eles, que aquilo não passava de um adiamento.
Enquanto isso, eles não deviam ficar ociosos. Todo general sabia que um exército ocioso era um perigo para o seu comandante. Motins, rebeliões, todos tinham suas sementes na ociosidade, e quanto maior ela fosse, mais eles floresciam.
Filipe convocou seus generais e lhes disse que, embora a invasão da Inglaterra tivesse de ser adiada, não estava abandonada. Enquanto esperavam, eles iriam voltar a atenção àquela velha inimiga da França, Flandres, que se mostrara muito indiferente naquele último empreendimento.
Os generais entenderam. Era necessário manter o exército ocupado.
Assim, deixando os navios fundeados, o exército partiu e pouco depois marchava sobre Ghent.
A decisão de Filipe deu sorte a João. Parecia que o Destino decidira tratá-lo com carinho. Primeiro, ele fizera as pazes com Roma no momento exato, de modo que tornara insensato os franceses o atacarem, mas aquilo também servira de aviso aos barões, porque ao se rebelarem contra João estariam se rebelando contra o papa. Os flamengos, como inimigos de Filipe, deviam ser amigos de João; e quando perceberam que a fúria francesa iria ser dirigida para eles, pediram ajuda a João.
João examinou o pedido com muito cuidado, junto com o Marechal e outros em quem confiava. Parecia uma oportunidade para enfraquecer os franceses, e Guilherme Marechal achava que como João havia reunido um exército para deter os invasores franceses, seria uma boa ideia enviá-lo em auxílio dos flamengos.
Os ingleses partiram, e nisso a sua boa fortuna continuou, pois ao chegarem ao local em que estava a frota francesa, encontraram um número enorme de navios equipados para a invasão da Inglaterra, cheios de alimentos e armas que seriam necessários; havia armaduras e belos trajes... tudo o que se pudesse imaginar que fosse possibilitar aos invasores um sucesso antes e depois da conquista.
O fato de haver apenas poucas pessoas para protegê-los fez com que os ingleses rissem em tom de escárnio enquanto decidiram aproveitar ao máximo a boa sorte. Esqueceu-se a expedição a Flandres. Ali estava uma outra, muito mais lucrativa.
Dominaram rapidamente os defensores, carregaram seus próprios navios com os tesouros que os franceses haviam levado, e depois atearam fogo à frota de Filipe.
Foi um grande momento para João. Riu às gargalhadas. Sua sorte mudara. Agora era a sua vez de não dar importância a Filipe.
Depois de danificar a frota francesa de modo que uma invasão da Inglaterra passasse a ser inteiramente inadmissível, ainda que Filipe decidisse desafiar o papa e tentá-la, João decidiu ir em socorro dos flamengos. Infelizmente, o acesso de sorte acabara, pois Filipe, ao saber do desastre que seus navios haviam sofrido, seguiu depressa para a costa e interceptou o exército de João, derrotando-o, de modo que foi necessário fazer uma apressada retirada para a costa.
Lá, o exército de João embarcou rápido e partiu de volta à Inglaterra. Mas a aventura podia ser classificada de altamente vitoriosa, já que resultara na quase aniquilação da frota francesa e tornara a invasão impossível durante muito tempo.
Foi num mês quente de julho que Estêvão Langton chegou à Inglaterra. João foi recebê-lo a cavalo, e as duas comitivas ficaram frente a frente em Porchester.
O rei, faiscando de jóias, o manto de cetim decorado com pérolas e rubis, seu cinturão de safiras e diamantes, e as luvas adornadas com pérolas, tinha um aspecto magnífico montado em seu cavalo. Era mais importante do que nunca que se apresentasse a caráter, já que renunciara à sua independência. Em torno dele seguiam seus cortesãos, esplendidamente trajados mas propositadamente menos do que ele, porque João não teria ficado satisfeito se estivessem mais luxuosos do que ele.
Quando as duas comitivas se encontraram, João desceu do cavalo magnificamente ajaezado e, aproximando-se de Estêvão Langton, ajoelhou-se diante dele; depois, levantou-se e trocou beijos com ele.
- Seja bem-vindo, padre - disse ele.
Estêvão Langton não era um homem vingativo, e estava encantado com o fato de que afinal João estava disposto a recebê-lo. Estava ansioso para que o passado fosse esquecido, e esperava poder trabalhar em harmonia com o rei.
Entraram em Winchester cavalgando lado a lado, aclamados pelo povo enquanto seguiam pela estrada.
Paz entre a Igreja e o Estado! Era aquilo que o povo esperava. O interdito fora revogado. O rei deles já não estava mais excomungado - embora a proibição tivesse que ser revogada formalmente - e todos poderiam voltar à vida normal.
Eles entraram na cidade de Winchester, e lá, na casa do cabido da catedral, o arcebispo de Canterbury absolveu João e celebrou uma missa na presença dele.
Quando tudo aquilo acabou, para que todos vissem, o arcebispo e o rei trocaram o beijo da paz.
João, o cético ateu, o devasso, o rei que desafiara a Igreja como nenhum de seus antecessores desafiara, era agora o querido amigo do arcebispo de Canterbury e protegido do papa.
Havia uma ironia naquela situação, e homens como o Marechal abanavam a cabeça, sérios, e pensavam quanto tempo iria durar aquela amizade.
ISABELLA estava apaixonada. Ele era jovem e bonito. Muitas vezes, ela o comparava com João e ficava impressionada com as diferenças que havia entre os dois. Ele a fazia lembrar-se de Hugo, o Moreno, e depois que ele saía ela ficava na cama e pensava: com Hugo, teria sido assim.
A princípio, em seus pensamentos, ela o chamara de Hugo; e mais tarde, contara isso a ele. "O nome fica muito bem em você. Para mim, você será Hugo", e a partir de então o chamava por aquele nome.
Isabella temera o que poderia acontecer a ele, embora quando começara a arranjar amantes gostasse de testar a coragem deles, dizendo-lhes que o castigo seria terrível se um dia o rei descobrisse. Às vezes, quando estavam com ela, sentia o medo deles; a princípio, aquilo tornava o seu desejo mais saboroso.
Sentia prazer em esconder suas aventuras de João, mas às vezes lhe ocorria que o rei sabia e que estava esperando para pegá-la numa armadilha. Ser mais esperta do que ele era um exercício agradável. Ela o odiava. Talvez sempre tivesse odiado, embora se divertisse muito nos primeiros anos do relacionamento. Tinha sido lisonjeiro João negligenciar seus deveres para com o Estado por não conseguir sair da cama e saber que corriam pelo mundo histórias que diziam que ele estava perdendo o reino debaixo da colcha da cama.
Que cumprimento aos seus poderes de atração! Durante muito tempo, ele fora um marido fiel, o que por si só parecia um milagre. E ela tornara isso possível... ela, com o seu grande fascínio. Ficava imaginando se agora Hugo pensava nela alguma vez. Será que ele se recriminava por sua preguiça em possuí-la quando ela estava ali, pronta e disposta, esperando por ele antes de João chegar?
A princípio, tinha sido muito emocionante. Ser uma rainha e ser tão desejada. Mas já era rainha havia muito tempo, e era desejada por muitos. E havia no mundo homens mais bonitos do que João.
Seus pensamentos, agora, eram para o belo jovem, o Juventude Dourada, como ela o chamava, o Sombra de Hugo - Hugo já não devia ser mais jovem, como acontecia com ela também, mas as mulheres iguais a ela eram eternamente atraentes, e homens como ele mantinham o encanto.
O amante estava indo ao seu quarto, agora, com uma frequência maior. Estava tão apaixonado por ela que arriscava a vida... ou coisa pior, com prazer. Ela falava, muitas vezes, no perigo terrível que ele enfrentava, e o jovem não ligava. Valia a pena... qualquer coisa que lhe acontecesse valia a pena em troca daquilo.
Ele era um bom amante. Não poderia haver melhor. Era carinhoso como João jamais fora, nem mesmo no começo, quando Isabella era criança. Aquela adoração, aquela idolatria, eram deliciosas. Ela se deleitava com aquilo. Adorava o seu Juventude Dourada.
Quando estavam na cama alta madrugada, antes do amanhecer - pois ele tinha de ir embora quando amanhecesse, já que seria fatal ser visto à luz do dia -, ela lhe perguntou enquanto torcia uma mecha dos cabelos louros dele em seus dedos:
- Amor, por quanto tempo você vai continuar a me procurar? Ele respondeu como Isabella sabia que responderia:
- Sempre.
- E se o rei vier aqui?
- Nesse caso, terei de esperar até que ele saia.
- O que é que você sabe a respeito do rei, Hugo?
- Todos sabem sobre os acessos de raiva dele.
- Nunca houve um mau génio igual. Dizem que chega até a ser mais violento do que o do pai, e este era muito temido pelos homens. João nunca deverá ficar sabendo, Hugo, nunca.
- Se ele descobrisse, teria valido a pena.
- Você pensaria assim enquanto os criados dele estivessem fazendo coisas terríveis com você?
- Pensaria.
- Não, meu adorado, você pensa assim agora. Mas quais são os sentimentos de um homem ao ser privado de sua masculinidade? Pois eu acho que é isso que João faria com quem tivesse me possuído.
- Eu preferiria morrer.
- Se João soubesse disso, não o deixaria morrer. A vingança dele deve se encaixar no seu estado de espírito, e os caprichos dele são diabólicos. Talvez lhe arrancasse os olhos. Ele quis fazer isso com Artur, sabe? O pecado de Artur era ser filho do irmão mais velho de João e haver algumas pessoas que achassem que ele tinha mais direito ao trono.
- Ele não pode pensar assim a meu respeito.
- Não, mas iria odiá-lo mais do que odiava Artur. Às vezes eu tremo de medo pelo que possa lhe acontecer.
- Então eu me alegro, porque isso mostra que você me ama.
- Quero que saiba o risco que corre, meu Hugo. Pense nessas coisas.
- Passar uma hora com você vale uma vida de agonia.
- Palavras juvenis ditas pelos jovens na hora do êxtase. O que diria você durante a vida de sofrimento?
- Isso não vai acontecer - disse ele, beijando-a. Embora Isabella adorasse a imprudência dele, queria que ele soubesse o que estava arriscando.
O jovem tinha conseguido chegar até Isabella. Os dois tinham inventado vários esconderijos onde ele pudesse ser metido as pressas. Ela poderia levantar as tábuas do assoalho e ele poderia ficar agachado ali embaixo. Ela confirmara aquela possibilidade e trancava a porta do quarto quando o amante ia vê-la.
Ela faria com que o jovem saísse em segurança, prometia a si mesma, se ele corresse o perigo de ser apanhado de surpresa.
Mas Isabella contava com muitos criados, e eles conheciam seus segredos.
João chegou ao castelo. Isabella desceu aos portões para recebê-lo.
Assim que olhou para ela, João ficou tão enamorado quanto sempre estivera, percebendo outra vez que Isabella possuía aquela qualidade de sensualidade mais forte do que qualquer outra mulher que ele conhecia.
O rei sabia que ela havia arranjado um amante. Fora por isso que chegara até ali. A princípio, pensara em ir em segredo e pegá-la no ato; mas teve uma ideia melhor.
- Ora, você está viçosa como uma flor depois da chuva - disse ele. - É por causa da minha chegada?
- Por causa de que outra coisa poderia ser?
- Você é uma boa esposa... sempre esperando pelo marido.
- Sempre, embora ele venha com uma frequência menor do que antes.
- Assuntos de Estado, meu amor.
- Então é isso? Eu receava que fossem assuntos de outro tipo.
- com que então você está com ciúme?
- Sempre, sem parar.
- Não é preciso. Não importa com quem eu tenha dormido, sempre vou preferir e voltar para você.
- Isso é uma pequena compensação quando outras estão tomando o meu lugar.
- Está aborrecida, minha mulher?
- Não, sei muito bem como os homens agem. Nenhum deles é fiel.
- São as esposas que devem ser fiéis - disse ele, com um toque de veemência na voz.
- Pobres esposas! Por que não recebem um pouco do que os maridos conseguem com tanta liberdade?
- Você sabe muito bem. E para uma rainha, infidelidade é traição. Traição, Isabella! Pense em traição ao rei. Isso poderia ser punido com a morte.
- Isso mesmo.
- E você pensa nisso com frequência.
- Estou sempre com isso na cabeça.
- E no caso de ficar tentada, a ideia disso irá salvá-la.
- O senhor não aceitaria que eu fosse virtuosa por ter medo, majestade, eu sei. Não devia ser só por amor?
- Só por amor.
E ele pensou: vou vê-lo hoje. Sei que é bonito. Dentro em pouco ele vai estar desejando nunca ter nascido.
Eles jantaram juntos com fausto, e Isabella cantou e tocou para ele, os cabelos caindo pelos ombros, pois os soltara, sabendo que João gostava deles assim. Aquilo o fez recordar a época em que se casaram e ele não conseguia se afastar dela nem por uma hora.
- Amanhã iremos para Gloucester - disse João.
- E eu devo acompanhá-lo?
- Preciso de você ao meu lado.
Isabella sorriu; acreditou que ele estivesse tão enamorado dela quanto sempre.
João correu os olhos pelo salão e o localizou. Sem dúvida que era jovem e bonito. Tinham-lhe dito que se parecia com Hugo de Lusignan. Isabella ainda morreria de saudades daquele homem? João sabia que a rainha pensava nele; vira a expressão nos olhos dela quando ela falava nele. Teria ela passado todos aqueles anos lamentando a perda de Hugo? Não teria a coroa da Inglaterra compensado aquilo? Será que durante aqueles momentos de paixão ela estivera substituindo-o por Hugo? O pensamento o deixava louco. E aquele rapaz tinha um ar de Hugo. Era uma forte semelhança. E, noite após noite, estivera na cama dela. Arriscara tudo por ela. Pois bem, iria pagar por isso.
Isabella teria uma surpresa.
Ela disse que iria se retirar para o seu quarto. João tomou-lhe as mãos e a beijou, primeiro com calma, depois com paixão. Isabella iria para o quarto e esperaria por ele.
Oh, Isabella, você vai ficar muito surpresa, pensou João.
Ela foi para o quarto. Suas aias pentearam-lhe os cabelos e os perfumaram. Estava bonita como sempre, as gordurinhas que começavam a surgir só faziam aumentar sua atratividade.
Ficou deitada na cama, à espera. O que acontecera para fazer com que João se atrasasse? Esperava que ele chegasse logo, motivo pelo qual insistira com as aias para que se apressassem.
Que estranho! O que estaria o rei fazendo? Teria achado alguma mulher no castelo mais a seu gosto do que ela? Parecia muito estranho, pois não havia dúvida de que seus beijos tinham dado a entender que ele iria vê-la logo.
Isabella acabou dormindo, e era madrugada quando acordou. A luz penetrava no quarto. Ao abrir os olhos, se lembrou e abriu os braços, tateando à procura de João a seu lado. Não havia ninguém. Então ele não viera. Ela se sentou na cama. Havia uma sombra escura aos pés da cama. Olhou com atenção. Ficou olhando, horrorizada, sem querer acreditar no que via, e então colocou a mão sobre a boca para impedir o grito, enquanto caía para trás enjoada e desmaiando na cama.
Pendurado na viga mais alta do dossel, como se fosse de uma forca, estava o corpo nu e mutilado de seu amante.
A rainha estava muda. Cavalgava ao lado dele a caminho de Gloucester, fingindo não perceber a sua presença. Sabia que havia um sorriso malicioso nos lábios dele, mas João não dissera coisa alguma sobre o que havia feito.
Ela pensava: espero que tenha sido rápido. Espero que não tenham se demorado no ato. Quem dera que eu nunca o tivesse visto, para não ter feito com que ele chegasse àquele ponto. Dizem que João é o diabo em pessoa, e é verdade. Ninguém, a não ser o diabo, poderia ter pensado numa atrocidade daquelas. Nunca mais vou me esquecer da aparência dele ali pendurado. Todas as lembranças dele serão assim. Por que fui deixar que ele me procurasse? Eu devia ter sabido o que ia acontecer.
Haviam chegado ao castelo de Gloucester, que tinha sido construído na época do Conquistador. No grande salão, Guilherme Rufus dera festas cercado por seus amigos favoritos. O pai de João, Henrique II, realizara muitas assembleias consultivas ali, quando de suas incursões ao País de Gales. Ali, nas águas do Severn, eram encontradas lampreias deliciosas. O primeiro Henrique gostava muito de uma lampreia ensopada e morrera, segundo diziam, de tanto se empanturrar com elas. E para aquele castelo, João levara Isabella. com que finalidade?, ficou ela imaginando.
Que João tinha uma finalidade era evidente. Ele nada lhe dissera, ainda, mas pretendia dizer, disso ela sabia, porque o sorriso enigmático continuava a curvar-lhe os lábios; ele estava pensando na cena entre os dois que estava por vir.
Jantaram. Não que ela conseguisse comer, pois só pensar em comida a deixava enjoada; não podia tirar da cabeça o pensamento no corpo do amante. Será que João havia ficado olhando enquanto faziam aquilo com ele? Isabella acreditava que sim. Podia ouvir as palavras cruéis saindo daquela boca ainda mais cruel.
Eu o odeio!, pensou ela. Como o odeio!
João disse que a levaria para o quarto dela. Agora Isabella ficaria sabendo o que a aguardava.
- Esta é a sua prisão - disse ele.
- O que quer dizer com isso? - perguntou ela, quase apática.
- Você está detida. Está claro que não se pode confiar em você. É culpada de traição. Meu pai manteve minha mãe presa durante dezesseis anos. Talvez eu a mantenha como minha prisioneira pelo mesmo período.
Ela deu de ombros, e aquilo o enlouqueceu.
Queria que se enfurecesse com ele, mas a rainha se recusou, embora visse o sangue vermelho nos seus olhos.
- Então não se importa? - berrou ele.
- De que adiantaria, se é isso que você quer?
- Você parece não ligar para o fato de ter perdido a liberdade. Sua bruxa! Sua feiticeira! O que achou de seu belo amante, quando foi para a sua cama a noite passada?
Isabella lhe deu as costas, para que ele não visse o horror que não podia evitar enquanto o quadro vívido lhe voltava à mente.
- Que bela visão. Ele gritou, sabe? Gritou de terror. Você devia ter ouvido...
- Pare! - bradou ela.
- Ah, finalmente você se emociona. Um rapaz bonito, isso eu admito. Mas no fim, não valeu a pena para ele... nem para você.
- Você não tem sido o mais fiel dos maridos - acusou ela.
- E daí?
- Por que iria eu ser uma esposa fiel?
- Porque eu sou o rei.
- Não se esqueça de que sou a rainha.
- Se você tentar atribuir o bastardo dele a mim...
- Não haverá bastardo algum. O privilégio de produzi-los é seu.
João se aproximou dela de repente, e agarrando-a pelos ombros, sacudiu-a com violência.
- Que tal era ele? Era bom? Você sentia prazer com ele? Ela o encarou com atrevimento.
- Ele era bom - respondeu, desafiadora.
João a empurrou para longe, num acesso de raiva.
- vou mandar o corpo dele para você aqui, para fazer-lhe companhia na sua prisão.
- Isso não vai magoá-lo.
- Não haverá ninguém mais. Você pode ficar aqui e pensar em mim... com outras que me agradam mais do que você.
- Espero que se divirta com elas.
- Você não é velha, Isabella, e tem muita saúde. Não sabemos disso? O que é que vai fazer sem amantes, Isabella?
- Se não tiver que aturá-lo, estarei feliz.
- Você vai aturar o que eu disser.
- Por que não me mata, também? Eu sei. Tenho amigos e família. O rei da França iria dizer: ele matou a esposa como matou o sobrinho.
- Nem uma palavra sobre isso.
- Ele o persegue, não é, João? Pobre Artur. Como foi que ele morreu? Tanta gente gostaria de saber! Você, o assassino, poderia dizer.
- Você está me provocando.
- Por que não me machuca?
- Porque ainda não acabei de lidar com você. Eu não machucaria o corpo que ainda tem muito a me dar.
- Oh, então eu não vou ser exilada?
- No que se refere a mim, não. vou pensar em você esperando por mim aqui. Ainda vamos ter filhos. Só temos três. Quero mais de você. Se estiver grávida de um bastardo, vou mandar matá-lo. Você me acusa de assassinato; pois saiba de uma coisa: se alguém me ofender, será eliminado. Você também, se estiver no meu caminho.
- E não estou?
- Claro que não. Quando estiver, vai ficar sabendo. Eu me satisfaço quando quero, e não quero outra esposa. Tenho meus herdeiros e uma bela filha. vou ter mais com você. E você vai esperar com paciência, aqui, que eu venha procurá-la, e se tornar a infiltrar um amante em seu quarto, o que aconteceu ao seu belo rapaz será pouco em comparação com o que farei com o próximo.
- Compreendo. Sou sua prisioneira aqui. Tive um amante. Não nego. Você o matou da maneira mais cruel e tem me atormentado tanto que serei sempre perseguida pela lembrança do corpo dele pendurado ali na minha cama. Odeio você por isso.
- Ódio e amor. Eles são próximos. Isabella, não há ninguém, a não ser você. Saiba de uma coisa: eu não queria feri-la fisicamente. Foi por isso que tive de fazer aquilo com ele. O seu amante nunca mais vai tomar o lugar que é meu... meu. Pode ter havido outras mulheres, mas não uma como você. Onde existe uma outra igual a você?
Os braços dele a envolviam; ergueu-a e levou-a para a cama. Que estranho, a paixão surgir dentro dela numa hora daquelas; mas ali estava entre eles, forte como sempre. Pela manhã, João lhe disse:
- Se gerar um filho, essa criança não viverá. Sabe disso. Ainda que eu tivesse o coração mais bondoso do mundo, o que você pode duvidar que eu tenha, como eu mesmo duvido, ela não poderia viver. Ah, Isabella, você sabe que nunca houve brincadeiras como as que nós dois fazemos juntos. Só vai ter filhos meus. vou voltar aqui, e nós vamos fazer um filho... mas só depois que soubermos que aquele corpo pendurado não é pai.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não há filho algum. Eu sei. Mas João riu dela.
E quando ele partiu, Isabella ficou presa.
Ele voltou depois, e os dois ficaram juntos dois dias e duas noites, e ele praticamente não saiu da cama naquele período. Isabella sabia que ele estava sempre pensando no seu amante, e que no seu estilo perverso ele sentia um certo prazer em pensar naquilo que o enraivecia.
Quando João partiu, ela estava grávida e no devido prazo deu à luz uma menina. Batizou-a com o seu nome, Isabella.
E continuou prisioneira do rei.
Com A FROTA de Filipe em desordem e uma quantidade muito grande de suas armas e seu equipamento de campanha em mãos inglesas, pareceu a João que chegara a hora de atacar a França e tentar recuperar suas possessões. Um de seus lampejos de energia tomou conta dele e ficou ansioso por entrar em ação. Tinha um exército reunido, mas precisava do apoio dos barões, e por isso expediu ordens para o país todo a fim de que levassem seus seguidores e se juntassem a ele.
A rebelião fervilhava abaixo da superfície. Os barões não confiavam em João. A família Braose, juntamente com Robert FitzWalter e Eustace de Vasci, haviam espalhado a discórdia pelo país. Eles tinham dado a entender que não se podia deixar que um tirano daqueles governasse, a menos que fizesse grandes modificações, e embora João percebesse que muitos barões estavam inquietos, não sabia até que ponto iam as raízes daquela determinação de provocar uma crise.
Os barões do Norte, que estavam em melhores condições do que os do Sul para desafiar o rei, recusaram-se a fornecer a João o que ele precisava. Alegaram que João se mostrara um comandante ineficiente; as perdas na França tinham sido humilhantes; era verdade que tinham tido sorte havia pouco tempo, mas só porque tinham pegado a frota francesa de surpresa. Não confiavam em João e em suas missões no exterior; tampouco forneceriam homens e dinheiro para mante-las. Preferiam continuar na Inglaterra e mantela a salvo de um invasor, pois não era inconcebível que quando Filipe tivesse tempo de reunir suas forças fosse fazer um ataque ao país. Então, não iam fazer a vontade de João.
Quando João soube da recusa, teve um violento ataque de raiva. Descarregou-o da forma usual, e quando ficou exausto decidiu que não iria à França, mas ao Norte, a fim de mostrar aos barões o que achava de seus súditos que lhe desobedeciam.
Ele sabia que FitzWalter e seu amigo Vesci tinham feito o máximo para fermentar a agitação. Algo lhe dizia que FitzWalter iria fazer o possível para tirar-lhe a coroa em troca da filha. Ele fora um tolo com relação a FitzWalter; devia tê-lo matado quando tivera a chance, e agora, simplesmente porque a filha tinha sido uma bobinha e resistira às investidas de seu rei, o pai estava ajudando a criar problemas. Na igreja do priorado de Little Dunmow, para manter viva a história, os FitzWalter tinham mandado fazer uma estátua de Matilda e a colocado sobre o seu túmulo. Não havia dúvida de que faziam todo tipo de juramentos profanos sobre ele.
Se FitzWalter me cair nas mãos, será o fim dele, pensou João.
Mas enquanto isso, ele precisava de homens para atacar Filipe, e seus barões do Norte estavam se recusando a ajudá-lo, e iria mostrar-lhes quem era o chefe. João sempre mantinha um bom exercito de mercenários, e foi com ele que partiu, não para a França, mas para o Norte, para dar uma lição aos barões.
O fato de que o rei estava a caminho não podia ser mantido em segredo, e quando o novo arcebispo de Canterbury soube, apressou-se a ir ao encontro de João com sua comitiva.
João ficou zangado por ter o arcebispo mostrado sua intenção de se intrometer assim tão no começo. Quis saber por que achara necessário encontrar-se com ele daquela maneira.
- Majestade - salientou o arcebispo -, ao atacar os barões do Norte, vossa majestade iria provocar uma guerra civil neste pais, e não pode ter esquecido tão depressa que detém a coroa da Inglaterra como um feudo do papa.
- vou governar meu país da maneira que for de meu agrado
- resmungou João.
- Se contrariar o nosso senhor, o papa, estará rompendo seus votos. Se vossa majestade provocasse uma guerra civil neste país, seria necessário revigorar o interdito e excomungá-lo.
João sabia que isso poderia acontecer. Sua submissão ao papa o tirara de uma situação muito incómoda, pois se não tivesse cedido a Roma, Filipe da França poderia, àquela altura, estar de posse da sua coroa. Malditos fossem todos os papas e arcebispos! Eles sempre tinham sido pedras nos sapatos dos reis.
João teve vontade de gritar: levem este homem daqui! Matemnos nos degraus de sua catedral, como os cavaleiros leais a meu pai assassinaram Becket. Não vou ser governado pela Igreja.
Mas ele fizera seus votos junto ao papa e jurara vassalagem; dera a Roma um poder sobre a Inglaterra maior do que qualquer monarca antes dele.
A sorte estava contra João. Ele perdera a Normandia. Perdera a maior parte de suas possessões na França. A maneira mais fácil de aliviar seus sentimentos era ter um acesso de raiva.
Mas naquele momento, precisava controlar-se.
Como fora se meter numa confusão daquelas? A culpa era de Isabella. Ele se divertia com ela quando devia estar cuidando dos assuntos de Estado. Quando disseram que o rei perdera o reino embaixo da colcha, estavam certos.
Ela era uma bruxa. Uma feiticeira. E arranjava amantes.
Ficava mais tranquilo ao pensar no destino do amante que tinha sido descoberto.
Precisava ludibriar o papa. Era a única maneira. Os barões de um lado, Filipe do outro, e mandando em tudo, Estêvão Langton, o homem do papa que, por causa disso, tinha mais poderes na Inglaterra do que o próprio rei.
Teve uma conversa confidencial com Estêvão Langton. Não deveria haver guerra, mas um rei não podia governar com tanta rebelião em suas fileiras. Iria marchar para o Norte, mostrar aos barões sua força e seu descontentamento. Mas não haveria derramamento de sangue.
- Lembre-se, majestade - avisou Estêvão -, que se houver, sua santidade tomará providências.
- vou me lembrar - respondeu João, mal-humorado.
E assim, a viagem ao Norte foi apenas um aviso aos barões; e depois de fazê-la, João voltou para o Sul, para fazer os preparativos a fim de seguir para a França, sem aqueles que se recusavam a acompanhá-lo.
Quando João chegou a La Rochelle, foi aclamado pelo povo. Como aquele era um grande porto comercial e fazia bons negócios com a Inglaterra, seus habitantes não queriam ser dominados pelo rei da França, o que teria sido prejudicial ao comércio. Além do mais, a Aquitânia sempre temera o domínio de Filipe. Assim, com a chegada de João, este se viu com aliados de porte.
Seu ânimo se levantou, e depois de tomar um castelo ou dois, ficou excitado com o sucesso e se viu recuperando tudo que havia perdido.
A sorte estava do seu lado e contra Filipe, naquela ocasião, pois os flamengos - eternos inimigos dos franceses - aproveitaram a oportunidade para atacá-lo. Filipe não teve alternativa senão voltarse para Flandres, deixando seu filho Luís para enfrentar os invasores ingleses.
Excitado, certo do sucesso, João percebeu que havia uma família que poderia atrapalhá-lo, uma família que guardava quase tantos ressentimentos contra ele quanto os FitzWalter. Eram os Lusignan, e Hugo, de quem ele havia roubado Isabella, era o chefe.
A João parecia que sua vida era perseguida pelos fantasmas do passado. Artur, Vesci, FitzWalter e Lusignan. Será que nenhum dos erros que ele cometera seria esquecido um dia?
Ia tentar acabar logo com o fantasma dos Lusignan. Precisava fazer isso, se quisesse afastar dele a ira daquela poderosa família.
Tivera uma ideia que o divertira muito. Hugo de Lusignan, o homem de quem ele sempre tivera ciúme porque sabia que Isabella se lembrava dele aqueles anos todos, continuara solteiro. Seria porque estivera tão apaixonado por Isabella que não podia pensar em casar com outra mulher? Era bem possível. A família de Hugo era ambiciosa, e se uma isca saborosa fosse pendurada à sua frente, ela não resistiria à ideia de pegá-la. João ficou muito satisfeito. Iria se aproveitar bem da brincadeira e os Lusignan iriam ajudá-lo a recuperar o que perdera na França.
Enviou mensageiros a Hugo de Lusignan, oferecendo-lhe uma noiva; esta noiva seria a filha legítima de João - ele tinha várias ilegítimas -, Joana, filha da Isabella que Hugo amara e perdera com tanta relutância.
João não conseguiu conter o riso quando os mensageiros voltaram.
O velho amor de Isabella, Hugo, concordara em se casar com a filha dela.
Que aquilo foi um brilhante golpe de estratégia ficou provado quando Filipe, ao ficar sabendo da proposta aliança entre o rei da Inglaterra e a família Lusignan, ofereceu um de seus filhos como noivo para a pequena Joana. Sem dúvida que se tratava de uma proposta melhor! O filho do rei da França para a princesa da Inglaterra... não um simples barão.
- Isso não, isso não - bradou João. Salientou que o rei da França se casara com sua sobrinha e aquilo não evitara os conflitos entre os dois. O casamento de sua filha com os Lusignan era, a seu ver, o ideal. Além do mais, estava ansioso por dizer a Isabella que Hugo iria se casar com a filha dela.
Agora podia marchar pelo território dos Lusignan sem ser molestado e, assim, prosseguir no seu ataque ao rei da França. Isso ele fez com algum sucesso, mas contava com aliados irrequietos. Eles observavam com cuidado para que lado a batalha estava indo e não pretendiam ser apanhados no lado perdedor. Cara a cara com os franceses, decidiram que seria melhor ficarem neutros; e mesmo quando a batalha estava prestes a começar, decidiram desertar.
A fúria de João, quando viu suas fileiras se reduzindo, foi tão grande que ele chorou. Gritou e berrou, mas de nada adiantou. Os franceses, sabendo o que tinha acontecido, perceberam que aquela era a hora de atacar, e João e suas forças, pouco depois, recuavam às pressas.
Foi o começo do fim. Os franceses eram fortes demais; os aliados de João o haviam abandonado; e seus homens, que não acreditavam em sua capacidade de atingir seus objetivos, queriam voltar para casa. Lembravam-se do que fora dito a respeito de João o rei que perdera as possessões francesas. Lembravam uns aos outros de que houvera uma hora em que Filipe ameaçara invadir a Inglaterra. A única coisa que evitara aquilo tinha sido a intervenção do papa. Que rei era aquele? Não era um líder. No seu país, as pessoas reclamavam dele. Os barões ameaçavam levantar-se contra ele. Qual a vantagem que poderia ter ali na França? Não havia coisa alguma, a não ser a derrota. Estava na hora de voltarem para a Inglaterra, a fim de protegerem suas possessões lá, antes que os franceses fossem toma-las.
Zangado, frustrado, João voltou para a Inglaterra. Alguma coisa lhe dizia que nunca teria condições de recuperar as possessões francesas.
Seu único prazer ao voltar para casa foi ir a Gloucester visitar Isabella.
Estava grávida mais uma vez, o que o deixou satisfeito. Achou muito bom mantê-la isolada e cercá-la de guardas para que tivesse a certeza de que ela não seria visitada por amantes e então ir vê-la quando quisesse.
Permitiu que ela ficasse com as crianças. O jovem Henrique, agora com oito anos, Ricardo, um ano mais moço, Joana, a futura noivinha com quase cinco, e a pequenina Isabella. Era um prazer pensar que em breve haveria mais um.
João sabia que Isabella ficava contente ao vê-lo e já não se referia a suas infidelidades, mas as aceitava como uma coisa natural, o que a ele parecia correto e apropriado. Imaginava quantas vezes ela pensava no amante pendurado, morto, sobre a cama. Ah, pensava ele, se tivesse vivido, o rapaz de nada serviria para ela.
Aquilo sempre o divertia; e podia dizer que estava tão satisfeito com o casamento como antes, e embora tivesse ficado louco de raiva quando descobrira a infidelidade da rainha, ela sempre o excitava mais do que qualquer outra mulher que já conhecera.
Agora, podia escarnecer dela.
- Eu tive aventuras além-mar - disse ele.
- E nenhuma, creio eu, que lhe tenha sido vantajosa.
- Oh, vou cruzar os mares dentro em pouco, e então vou zombar do rei da França.
- Esperemos que ele não zombe de você primeiro. Então você perdeu tudo além-mar?
- Não. É só um revés temporário. Fiz uma trégua com um velho amigo seu.
- Que velho amigo é esse?
- Hugo de Lusignan. Creio que você o tinha em alta conta em certa época.
Isabella ficou alerta e observadora. O que significava aquilo?
- Ele é um homem bravo e nobre - retrucou, desafiadora.
- Fico satisfeito por você pensar assim, porque ele vai se tornar membro da nossa família.
- Como assim?
João ficou contente por ver que o coração dela começara a bater depressa, por causa da apreensão. Isabella pensou que ele lhe fosse contar alguma tortura que tivesse sido aplicada em Hugo. João iria deixar que ela temesse por ele durante algum tempo antes de esclarecê-la com a informação que, segundo ele, iria chocá-la. Ele pigarreou.
- vou dar a nossa filha a ele.
- Dar... a nossa filha... a ele? - repetiu ela como se fosse
um eco.
- Quero dizer, é claro, que Joana vai ficar noiva do seu antigo amor, Hugo, o Moreno.
- Mas... ela é uma criança.
- As princesas se casam quando são jovens, como você sabe. Que idade você tinha? Doze. Se Joana se parecer um pouco com a mãe, dará a Hugo uma vida muito feliz.
- É impossível - disse ela, ríspida. - A menina tem apenas cinco anos.
- Daqui a sete anos... talvez antes, estará pronta. Ele terá condições de esperar. Nisso, ele é bom.
- Ele... ele vai estar velho.
- Já houve noivos mais velhos. Hugo ficou animado com a perspectiva. E com isso conseguimos salvo-conduto através de seu território. Isso poderia ter-me dado uma campanha vitoriosa, não fossem os traidores. Eu pensei: Isabella vai gostar disso. Ela gostava muito do homem. Muito bem, terá o prazer de recebê-lo como um filho!
João começou a rir. Isabella teve vontade de matá-lo. Entrelaçou as mãos com força para evitar que elas agissem.
Ela o odiava. João estava com quarenta anos e parecia mais velho. Estava gordo demais e ficando careca, e era inevitável que a vida de devassidão começasse a apresentar seus sinais.
- Venha - bradou ele, estendendo as mãos -, mostre-me sua gratidão. Consegui o casamento para sua filha com um homem que, tenho motivos para pensar, você tem em alta estima.
E então a estreitou nos braços, e ela sabia que o fato de saber que a tinha perturbado aumentava o desejo dele. A crueldade sempre lhe causara um prazer extra.
JOÃO NÃO percebeu o problema que o aguardava. Enquanto estivera na França, os barões que se haviam recusado a acompanhá-lo participaram de reuniões para se perguntarem por quanto tempo iriam suportar o governo de um tirano ineficaz.
Estêvão Langton, que devia obediência ao papa, compreendia muito bem o rumo que os acontecimentos estavam tomando e estava certo de que teria de se chegar a um meio-termo. Nos arquivos de Canterbury, ele havia descoberto uma cópia de um documento chamado A Carta de Henrique Primeiro. Ela estabelecia certas liberdades que, quando de sua coroação, Henrique I tinha sido obrigado a conceder ao povo. Só existiam poucas cópias, porque Henrique se esforçara muito por destruir todas aquelas em que pudesse pôr as mãos.
Ao descobrir aquele documento no mês de agosto, o arcebispo reuniu os barões na catedral de St. Paul, onde o exibiu, salientando que muitos dos direitos ali expressos tinham sido postos de lado por sucessivos reis.
A luta entre o rei e seus barões avançou mais uma etapa depois daquela reunião em St. Paul. Eles agora decidiram entrar em ação.
O dia 20 de novembro era dia de festa, e sob o pretexto de comemorá-lo, os barões voltaram a se reunir, dessa vez em Bury St. Edmunds.
Ali, fizeram um juramento solene diante do altar-mor. Iriam insistir para que João renovasse a Carta de Henrique I; e se ele se recusasse, estavam decididos a ir à guerra.
A época escolhida para apresentar a exigência ao rei foi a do Natal, que ele estaria celebrando em Worcester. Decidiram, porém, que o período da boa vontade poderia não ser o mais indicado, e por isso mudaram o local de encontro para Londres e enviaram uma delegação para falar com o rei em Worcester e dizer-lhe que os barões estavam reunidos em Londres, onde precisavam conversar com ele sem demora.
Ciente da tempestade que se armava à sua volta, João partiu de Worcester e viajou para Londres; e lá encontrou os barões à sua espera.
Eles formavam uma assembleia impressionante, pois haviam se armado como se fosse para a guerra, e o porta-voz deles informou o rei de que eles insistiam para que ele mantivesse as promessas e as leis estabelecidas na Carta de Henrique I.
A princípio, João ficara arrogantemente inclinado a acusá-los de insubordinação, mas quando viu o grau de ameaça que havia no comportamento deles, viu que precisava ir com cuidado.
- Os senhores estão me pedindo muito - disse ele. - Não lhes posso dar uma resposta de imediato. Precisam me dar um pouco de tempo para examinar essas questões. Esperem até a Páscoa, e então terei a minha resposta aos senhores.
Os barões resmungaram, mas acabaram concordando em esperar o tempo aprazado.
João enviou imediatamente emissários ao papa, pedindo ajuda contra os recalcitrantes barões, instruindo-os para que dissessem a sua santidade que ele era seu humilde servo e que precisava de ajuda contra seus súditos rebeldes. Na qualidade de fiel vassalo, apelava para ele e confiava em que ele mandaria instruções aos rebeldes para que se submetessem, por intermédio de João, a sua santidade.
O resultado disso foi uma carta do papa aos líderes dos barões e a Estêvão Langton, proibindo que insistissem na perseguição do rei. Mas Estêvão Langton era homem de altos princípios e se colocara ao lado dos barões. O papa não entendia a verdadeira situação da Inglaterra; tal como combinado, na Páscoa os barões se reuniram em Stamford, em Lincolnshire, e o arcebispo estava com eles.
Com eles chegaram dois mil homens, armados para combate, para mostrar ao rei o grau de sua seriedade.
João estava em Oxford, e com ele se achava Guilherme Marechal. Todos os esforços de João foram feitos no sentido de controlar a fúria que sentia. O fato de súditos seus, que antes tinham ficado horrorizados e prontos para se esconder aos primeiros sinais do seu mau génio, estarem agora trazendo forças armadas para intimidá-lo o deixava louco de raiva.
Guilherme Marechal se mantinha fiel como sempre, mas estava muito sério, ciente da infeliz situação de João e da justiça das queixas dos barões.
- vou procurá-los, majestade - disse ele -, e descobrir a natureza dessas exigências. Depois, sou de opinião de que vossa majestade deveria examiná-las com muita atenção.
- Alguma vez um rei já esteve num estado tão lamentável assim? - bradou João.
- Raramente - respondeu o Marechal, um tanto ríspido. Ele concordava que os atos de João o haviam levado àquele estado, e só a sua inerente crença em que a monarquia precisava ser defendida a todo custo fazia com que ele se decidisse a servir a João até o fim, por ser ele, em sua opinião, o verdadeiro soberano do reino.
Marechal voltou para o lado de João em companhia de Estêvão Langton, com as exigências dos barões por escrito.
João ficou rubro de raiva ao lê-las:
- Por Deus - bradou ele -, por que eles não exigem o meu reino?
- Estão sendo muito insistentes, majestade - avisou o Marechal.
João atirou o documento no chão e o pisoteou.
- Eu jamais concederia liberdades que me tornassem um escravo - declarou ele. Acrescentou, manhoso: - Vamos pedir ao papa para intervir neste assunto. Isso interessa a sua santidade, pois eu governo este reino sob as ordens dele. Vão, digam aos barões que eles devem apelar ao papa.
Os barões se recusaram a fazer isso, e o papa enviou a Pandulph, que na época estava na Inglaterra, instruções no sentido de excomungar os barões porque eles, ao se rebelarem contra o rei da Inglaterra, estavam desafiando a Santa Sé.
Estêvão Langton mandou chamar Pandulph e lhe disse que podia ver a situação com uma clareza maior do que um estranho, por estar no centro dela. O país não podia mais existir sob a tirania de seu rei, e os barões não reivindicavam nada mais do que seus direitos ao exigir o cumprimento do que dizia a Carta.
- Em vez de excomungar os barões - declarou ele -, é o exército de mercenários do rei que devia ser excomungado. Sem eles, ele ficaria impotente contra o povo.
João, profundamente alarmado diante daquele observação, foi para a Torre de Londres a fim de que pudesse tomar posse de sua capital.
Aquilo pareceu o equivalente a um estado de guerra, e os barões resolveram eleger um marechal.
Foi uma ironia o fato de o homem que eles escolheram ser Robert FitzWalter, o inimigo do rei e um homem que tinha contas a ajustar com o assassino de sua filha.
Todos aqueles que haviam sofrido com a tributação injusta do rei se reuniram e juntaram-se aos barões. Um exército marchou sobre Londres e lá foi bem recebido pelo povo. O país inteiro estava se levantando contra o rei, e João sabia disso.
Percebeu que só havia um caminho para ele. Tinha de se prontificar a atender aos desejos dos barões. Eles deveriam encontrar-se com o rei numa conferência, e esta seria realizada no dia 15 de junho, num lugar chamado Runnymede.
E assim, na campina entre Staines e Windsor, as partes se encontraram. João levara apenas poucos assistentes, mas os barões acharam por bem reunir o maior número de adeptos possível. Estavam com seus cavaleiros armados, e o povo, estando a par do objetivo deles, unira-se a eles enquanto marchavam para Runnymede, de modo que foi uma multidão que chegou à bela campina.
A conferência durou doze dias. Houve alterações das cláusulas e uma discussão permanente, enquanto João ficava olhando e via seu poder diminuir.
A Igreja seria livre, com seus direitos e liberdades incólumes; o mesmo acontecia com os súditos do rei; as viúvas não deveriam ser obrigadas a se casarem contra a vontade; não seria possível sequestrar bens para a liquidação de dívidas se o devedor tivesse condições de pagá-las; o rei não poderia cobrar o scutage (imposto com a finalidade de fornecer fundos para a guerra), a menos que aprovado por um conselho comum.
Na verdade, nenhuma tributação poderia ser cobrada sem o consentimento do conselho. Todas as liberdades e todos os costumes antigos das cidades seriam preservados. Havia várias cláusulas concernentes à justiça. Ninguém poderia ficar preso por um longo período sem que fosse investigada sua culpa ou sua inocência.
Essas foram apenas algumas das cláusulas com que João foi obrigado a concordar, e à medida que as lia, via o que sempre considerara seus privilégios reais sendo reduzidos. Haveria uma nova liberdade no país depois da assinatura da Magna Carta, e o rei perderia muito de seu poder.
Os barões, com seu líder Robert FitzWalter, não iriam deixar João escapar.
Assim, ele teve de apor seu nome à grande carta de Runnymede.
Isabella, tendo dado à luz outra filha, a quem deu o nome de Eleanor, ouviu falar nos importantes acontecimentos que estavam aba lando as próprias fundações do trono.
Ela sabia que aquilo teria de acontecer. O próprio João provocara o que estava sofrendo. Fizera muitos inimigos. O desaparecimento de Artur jamais seria esquecido; e eram muitas as famílias cujos membros ele prejudicara de alguma maneira.
Isabella pensava muito em Matilda FitzWalter, por quem se dizia que João havia se apaixonado, e ficava imaginando por que ele não forçara a menina, se estivera tão ansioso como asseguravam os boatos. Era estranho ele ter mandado envenená-la porque a menina não se entregara. Mas eram tantas as estranhas distorções de sua natureza que nunca se podia estar inteiramente certo do que ele estivesse pensando.
Ultimamente João lhe pregara muitas surpresas. Primeiro, o corpo de seu amante por sobre a sua cama, e depois a entrega da pequenina Joana a Hugo. Então, ela passou a imaginar por que Hugo não se casara e se isso tinha alguma coisa a ver com a dedicação a ela, Isabella. Como ele se sentiria em relação a se casar com a sua filha? Mas isso ainda iria demorar muito. Quem poderia ter certeza do que aconteceria até lá?
João não a visitara ultimamente. A rainha supunha que ele estivesse preocupado demais com os barões e suas exigências.
Quem teria acreditado, no início do reinado dele, que tanta coisa seria perdida? Quem, a não ser João, poderia perdê-las?
O rei não estava gozando de boa saúde. Já fazia algum tempo que ela percebia isso. As angústias dos últimos anos não iriam fazer coisa alguma para atenuar aquela situação, e ela sempre afirmara que um dia aqueles terríveis acessos de raiva iriam matá-lo.
Assim, enquanto amamentava o bebé, perguntava a si mesma o que seria dela quando João morresse, pois achava que aquele dia poderia não estar muito longe.
Depois de assinar a Carta, João deu vazão à raiva, e aqueles que estavam à sua volta pensaram que ele fosse realmente se matar. Parecia um louco; rangia os dentes e rasgava a roupa; deitou-se no chão e chutou móveis e todo aquele que se aproximasse dele; agarrava punhados de junco, enfiava-os na boca e mastigava, parecendo encontrar um certo alívio com isso. Balbuciava, falando sozinho, e os que se encontravam a uma distância que lhe permitia escutá-lo ouviram as ameaças terríveis que ele lançava sobre o que iria fazer com seus inimigos. Os acessos de raiva amainavam e depois voltavam a explodir. Parecia que o único alívio que ele conseguia era através deles.
Berrou que lhe haviam colocado correntes. Aqueles presunçosos! Queriam matá-lo. Queriam tirar-lhe o reino. Tinham sido contra ele a vida inteira. Um dia iriam aprender o que acontecia aos seus inimigos. Não haveria piedade... nenhum...
Quando ficou mais calmo, decidiu que iria apelar uma vez mais ao papa. Não era ele um feudo do papa? Não tinha entregue a coroa ao papa, e não tinha o papa devolvido a coroa a ele? Momentaneamente, pareceu-lhe ouvir os suspiros de seus ancestrais. Que vergonha amarga! Mas estavam todos contra mim, bradou. Mas não o Santo Padre. Ele o apoiaria. Um sorriso ligeiro tocou os lábios de João. Era muito irónico pensar na Igreja ficando ao lado dele. Em sua mensagem ao papa, ele mencionou o fato de que estava pensando em partir numa cruzada, pois ultimamente, desde que se voltara inteiramente para a Igreja, sentia que os pecados cometidos pesavam muito sobre ele. Só uma missão à Terra Santa poderia livrá-lo daquele ónus, e se ele levasse a paz ao seu reino, iria fazer seus planos.
Aqueles barões - os barões cruéis - haviam-no levado àquela situação; os Braose, que estavam decididos a se vingar porque aquela sua virago recebera o castigo justo; Vesci, que fizera tanta confusão porque João admirara a mulher dele; e FitzWalter, cuja filha bobinha se recusara a entregar-se ao seu rei.
Vesci lhe dissera, quando os barões estavam reunidos, que ele estava enganado se pensasse ter desonrado sua mulher.
- Vossa majestade dormiu com uma prostituta comum. Estava muito bêbado para perceber que não se tratava de minha esposa.
- Mentiroso! - bradara João, e quisera berrar para alguém que levasse aquele homem e lhe cortasse a língua.
Vesci foi ousado, com o poder dos barões a apoiá-lo.
- Muitas vezes eu e minha mulher rimos da maneira pela qual vossa majestade foi enganado.
Ele devia estar certo de que João jamais recuperaria o poder, para ter falado daquele jeito.
João tentara se lembrar daquela noite, mas não conseguia com muita clareza, e o prazer que tivera com aquele episódio viera mais tarde, quando pensara no insolente Vesci que, segundo pensara, tivera de entregar a mulher.
E o haviam enganado, porque no fundo do coração ele acreditava que tinha sido isso mesmo - colocando uma prostituta comum no lugar da dona do castelo; e tinham rido dele. Tinham-no tapeado como todos os barões se haviam reunido para fazer.
E o mais estranho de tudo... seu amigo era o papa.
João sabia que estava certo ao achar que o papa o apoiaria. Não era ele um feudo do papa?, perguntava-se repetidas vezes. Portanto, o Santo Padre não ia querer vê-lo derrotado.
Inocêncio leu os despachos muito sério, e chegou à conclusão de que os barões estavam tentando depor João. Por quê? Porque tornara a Inglaterra vassala de Roma? O papa não queria que o rei perdesse a coroa. E se a Inglaterra mergulhasse numa guerra civil e um novo rei fosse coroado? Como ficariam as obrigações da Inglaterra para com Roma?
O papa enviou ordens a Estêvão Langton para pronunciar a sentença de excomunhão dos barões.
A resposta de Langton foi informar o papa de que ele não estava plenamente ciente da verdadeira situação na Inglaterra. O rei se portara como um tirano, e os barões estavam apenas pedindo justiça e se achavam decididos a consegui-la. O caso era muito diferente da versão que João apresentara.
O papa ficou zangado com a resposta do arcebispo cuja eleição provocara aquela tempestade. Não compreendia o que se passava. Parecia-lhe que João se portara de uma maneira corretíssima. Reconciliara-se com a Igreja; reintegrara o clero em suas funções; estava fazendo planos de seguir numa cruzada. E os barões estavam se portando de modo a dar a entender que planejavam depor um rei daqueles. Deviam estar ajudando-o a se preparar para a cruzada. A Terra Santa precisava de líderes cristãos. Ao provocarem aqueles distúrbios agora, os barões estavam desagradando a Deus, tal como acontecera com os sarracenos.
Como explicar ao papa que João era realmente um tirano, que era um rei inútil, que tinha perdido suas possessões além-mar e estava à beira de perder a Inglaterra? Como explicar que ele não tinha intenção alguma de partir numa cruzada?
O papa terminou dizendo que a menos que Estêvão Langton cumprisse as suas ordens, seria exonerado do cargo.
João saiu de seu acesso de raiva e enfrentou a situação de frente. Se não agisse depressa, iria perder o reino. Precisava organizar um exército para lutar contra aqueles barões. Precisava mostrar-lhes que não iria entregar a coroa com facilidade.
Ao amanhecer de determinado dia, João partiu com muito poucos seguidores e seguiu em direção a Dover. Já despachara um de seus agentes, Hubert de Boves, para o continente, a fim de recrutar um exército de mercenários. Iria ficar escondido até que aquele exército estivesse pronto.
Poucos sabiam onde ele estava, e esses tinham sido obrigados a jurar que manteriam segredo. Os barões ficaram confusos, e não havia nada que pudessem fazer a não ser esperar notícias sobre o paradeiro do rei.
João sorriu com ironia ao pensar nas especulações que haveria a seu respeito. A princípio, houve rumores de que tinha ido à França conversar com Filipe e pedir ajuda. Aquilo teria sido uma manobra perigosa, mas João era capaz de uma loucura daquelas. Outros diziam que ele havia, na verdade, partido na cruzada em que dissera que partiria, mas também ninguém acreditava nisso. Todos os que lhe eram próximos sabiam que ele não tinha intenção alguma de seguir na cruzada e que quando falara naquilo tinha sido de brincadeira. A ideia de João numa cruzada era ridícula. Uma fonte dizia que ele estava morto, que fora assassinado por um daqueles que lhe guardavam rancor, e havia muitos para escolher como suspeitos. Outros diziam que havia se cansado da vida de rei e se tornara um pescador numa parte isolada do país.
João ria dos rumores, e aos poucos começaram a chegar homens do continente.
Ele marchou sobre Rochester e sitiou o castelo de lá, que estava em mãos dos barões. O castelo acabou sendo tomado, mas não antes de os habitantes terem sido reduzidos a um tal estado de fome que tinham comido seus cavalos.
João, furioso com o fato de mercenários testemunharem a rebeldia de seus próprios súditos, ordenou que todos os homens do castelo fossem enforcados, mas antes dessa ordem ser cumprida o capitão dos mercenários conseguiu persuadi-lo a revogá-la. Não queriam dar ao inimigo uma desculpa para retaliações, disse o capitão. Que o rei mostrasse a sua complacência e se lembrasse de que aqueles eram súditos seus que talvez tivessem sido desencaminhados ou obrigados a tomar posição contra ele.
Eufórico com a vitória, João estava pronto a pôr de lado a raiva, e os defensores do castelo de Rochester não perderam a vida.
Quando os emissários de Roma chegaram para excomungar os barões, estes perceberam que forças poderosas estavam sendo liberadas contra eles. Nunca era prudente estar em desavença com a Igreja quando havia batalhas a serem enfrentadas, pois era muito fácil os soldados se convencerem de que Deus estava contra eles e atribuírem o menor revés ao descontentamento divino, o que iria solapar uma ação futura.
Se João tinha o papa como aliado, eles também deviam procurar um aliado tão poderoso - ou talvez mais poderoso ainda; e a resposta para isso não podia deixar de ser Filipe da França.
Não havia dúvida de que o astuto e manhoso monarca observava os acontecimentos na Inglaterra com o maior interesse. Ele derrotara João por completo no continente; estava esperando, agora, que os barões fizessem o mesmo na Inglaterra. Ele próprio, não fazia muito tempo, lançara olhares cobiçosos à coroa, e fora impedido de tentar toma-la pela intervenção do papa. O fato de a ajuda a João estar vindo novamente daquele setor lhe dava sérios motivos para pensar. Filipe, no íntimo, achava divertido que o mais pecaminoso dos reis tivesse encontrado um amigo no mais santo dos padres. Os papas, refletiu Filipe, podiam ser levados a agir tanto por oportunismo - na verdade, mais - como por santidade; e como o próprio Inocêncio havia tirado a coroa de João - e cortesmente a recolocara nele, mas na condição de vassalo - era natural que tendesse a apoiar o seu fantoche.
Agora chegaram mensageiros dos barões da Inglaterra. Tinham uma proposta a fazer. Se Filipe os ajudasse a depor João, eles estariam dispostos a colocar a coroa no filho de Filipe, Luís.
Os olhos de Filipe faiscaram. Então, afinal, a coroa da Inglaterra podia passar para a França!
Fingiu estar indeciso.
- Como iria o povo da Inglaterra resignar-se e aceitar um rei francês? - quis ele saber.
- Majestade, Luís tem um certo direito ao trono por intermédio de sua esposa.
Filipe confirmou com a cabeça. Uma pretensão muito ténue. Eleanor, filha de Henrique II e Eleanor de Aquitânia, casara-se com Alfonso, rei de Castela. Os dois tinham tido uma filha, Blanche, que era esposa de Luís. Por isso, podia-se dizer que os filhos que Luís e Blanche tivessem seriam descendentes da casa real inglesa.
Um elo ténue, pensou Filipe, mas que valia a pena examinar. Se desse errado, ele poderia lavar as mãos e dar a entender que aquilo era assunto que interessava a Luís. Filipe nunca ligara muito para o ato da guerra em si; preferia ganhar suas batalhas graças à estratégia; gostaria muito de ficar sentado e observar como Luís se arranjava. Seria uma grande vitória se a coroa da Inglaterra passasse para a França.
Ele sabia que os barões não estavam tão ansiosos quanto pareciam por colocar um rei francês no trono deles, mas desde a intervenção do papa eles precisavam de uma solução com urgência. João estava reunindo um grande exército de mercenários vindos do continente, e esse exército seria composto, em sua maioria, por franceses - súditos de Filipe. Bem poderia acontecer que os barões, à medida que o exército de João aumentava, acreditassem estar sendo forçados a uma situação desesperadoramente desfavorável. Fora um golpe inteligente de estratégia pedir o auxílio de Luís, filho de Filipe.
Enquanto os franceses discutiam a maneira de agir, o papa ameaçou excomungar Estêvão Langton, que não estava obedecendo às ordens enviadas de Roma e defendia a justa causa dos barões.
Langton percebeu que a sua única esperança de convencer o papa era ir pessoalmente a Roma e defender sua causa junto a ele.
Quando João soube que Langton havia partido para Roma, ficou apreensivo. Langton era um homem eloquente; podia expor o caso a Inocêncio de maneira tal que não seria favorável a João. Até aquele momento, suas chances pareciam boas. Seu exército estava crescendo e embora se tratasse de mercenários que lutariam qualquer batalha desde que as recompensas fossem boas, eram soldados treinados, experientes e bem preparados, de todas as formas, para o combate. Enquanto isso, os barões não eram soldados treinados; faltavam-lhes líderes. Um homem decidido a se vingar, como Robert FitzWalter, poderia levantar as pessoas pela força de sua eloquência, mas isso não o tornava um bom líder.
- Por Deus - bradou João -, vou dominar esses barões. Farei com que achem que deviam ter pensado duas vezes antes de levantarem a mão contra mim.
Então a sorte começou a virar contra ele. O primeiro golpe veio com a morte de Inocêncio, e embora tivesse exposto imediatamente seu caso ao sucessor, Honório II não se interessou. O apoio de Roma desmoronara. Depois, Luís chegara à Inglaterra e fora muito bem recebido pelos barões.
- Então eles convocaram os franceses! - bradou João. Nunca pensei em ver uma coisa dessas. Nada de bom me aconteceu desde que me voltei para a Igreja.
O fiel Marechal estava a seu lado, insistindo para que não se desesperasse. Ele tinha seus mercenários, soldados treinados, e quem defendia a sua pátria levava vantagem contra os invasores. Ficavam possuídos de um espírito de luta especial; sua determinação era lutar até o fim.
- E o Conquistador? - bradou João. - Ele chegou e tomou a terra. Será que os franceses vão fazer comigo o que ele fez com os saxões?
- Se vossa majestade for forte, não.
- Forte! E eu não sou forte? E quanto a esses malditos barões? O Marechal sacudiu a cabeça, triste. Não era hora de dizer ao
rei que seus atos tirânicos tinham transformado em inimigos ferrenhos homens que poderiam, não fosse isso, ter sido seus amigos.
- Aqueles que foram fiéis à coroa lutarão até a morte para mante-la onde está.
- E os malditos traidores trouxeram os franceses.
- Traidores, realmente - concordou o Marechal.
- Trouxeram estrangeiros para o país.
Como ele levara, pensou o Marechal, com seus mercenários.
Soldados estrangeiros para combater ingleses em seu próprio país!
Guilherme Marechal jamais pensara que se chegaria a esse ponto.
Os barões estavam exigindo justiça; tinham apresentado a sua carta e João fora forçado a colocar sua assinatura nela. Aquele grande e sábio rei Henrique I havia concedido uma carta - não porque quisesse reduzir o seu poder, mas porque queria fortalecê-lo. Mas ele fora um rei sábio.
O verão estava passando. Era uma situação incómoda, com um inimigo em solo inglês. Até mesmo aqueles que os haviam levado para o país estavam apreensivos. Será que queriam ser vassalos da França? Será que queriam Luís como seu rei?
Quando Luís chegara, a maioria dos barões o recebera muito bem; agora, não tinham tanta certeza assim. Muitos dos que a princípio o apoiaram voltaram agora para o lado de João. Ele não os recriminava; tinha o máximo prazer em vê-los.
João soube que Eustace de Vesci fora morto no cerco ao castelo de Barnard.
Riu em voz alta ao pensar no homem que ficara à sua frente com insolência, contando como havia enganado o rei. Ele fora um dos principais líderes dos rebeldes, instigado por ideias de vingança. E agora era Vesci que jazia rígido e frio, não João.
O rei da Escócia havia acorrido em auxílio dos rebeldes e estava saqueando o Norte; mas o fato de tantos barões estarem agora lamentando a chegada dos franceses dava novo ânimo a João.
Ele fez planos de infiltrar suas forças entre as dos escoceses no Norte e os barões no Sul, e isso o levou à cidade de Lynn - uma cidade leal, cidade comercial que, como os Cinco Portos, gozava de certos privilégios.
Em Lynn, ele foi bem recebido e passou o tempo em festas, bebendo e ouvindo música enquanto planejava o movimento seguinte.
Talvez tivesse comemorado demais em Lynn; talvez tivesse bebido demais o vinho deles, mas começou a se sentir mal e teve uma disenteria que dificultava a viagem.
Mas precisava seguir em frente, e de Lynn viajou para Wisbech. Levou consigo muitos pertences, tudo de que fosse precisar para uma estada sempre que fosse necessário, e como o rei devia sempre ser cercado de objetos dignos de sua posição - e nunca tanto quando corria o risco de perdê-la -, sua bagagem era considerável. Continha suas jóias das quais João gostava demais, e à medida que ia ficando mais velho e que talvez precisasse mais de adornos para disfarçar a pele sarapintada e o rosto maltratado, gostava de deixar perplexos com o brilho delas todos que o contemplassem.
Além das jóias, ele levara outros bens preciosos, inclusive sua baixela ornamental, jarras e copos de pé de ouro e prata, as insígnias reais - tudo o que fosse necessário manter ao seu lado por medo de que fosse roubado pelo inimigo.
Ele queria passar para o lado norte do Wash e seguir com o exército, deixando os carroções contendo seus bens para seguir uma rota mais direta - já que o avanço deles era necessariamente lento - pelo estuário. Aquela viagem tinha de ser feita quando a maré estivesse baixa, pois significava atravessar areia que podia ser traiçoeira, e era imprescindível levar guias que, cutucando as areias com varas compridas, pudessem detectar qualquer sinal de areia movediça.
João se separou deles para seguir a rota mais longa, com instruções de que iria esperar em Swineshead, ao norte do Wash, a chegada da bagagem.
O pesado cortejo seguiu em direção às areias. O guia se atrasou um pouco e era impossível partir sem ele. Portanto, teriam de andar depressa para fazer a travessia. O nevoeiro baixou, e eles partiram. Antes de chegarem à metade do estuário, as rodas dos carroções atolaram na areia e se tornou impossível movimentá-los. A maré começou a subir, e apesar dos frenéticos esforços dos condutores dos veículos, eles continuaram presos.
As águas cobriram as areias e os carroções foram tragados com tudo que levavam.
João, esperando em Swineshead, percebeu o que tinha acontecido e soltou um uivo de raiva.
Sentia-se mal, exausto pelos rigores da viagem em suas condições; e aquilo pareceu a gota dágua.
Logo depois ficou sabendo que havia perdido as jóias, a preciosa baixela, tudo que constituía sua riqueza.
O que fazer? Sentia-se doente e aniquilado. Estava derrotado. Os franceses se achavam em solo inglês. Seus barões estavam se rebelando contra ele. O novo papa mostrava-se indiferente à sua situação difícil. Aquilo devia ser o fim.
A raiva era intensa, mas mais moderada porque ele não tinha a força física para dar vazão a ela.
Era por isso que ansiara tanto na época em que Ricardo era rei? Tinha sido para isso que assassinara Artur? Tinha havido bons momentos, devia reconhecer. Os primeiros tempos com Isabella.
Onde estava Isabella, agora? O que estaria pensando? Como se sentiria quando ele morresse?
Ele queria vingança... vingança!
A caminho da abadia de Swineshead, eles passaram por um convento e pararam para tomar refrescos. Eles lhes foram levados por uma freira que a ele se parecia, em seu estado febril, com Isabella. Pensar em Isabella em trajes de freira era engraçado. Mas era assim, pensou, que ela teria ficado anos atrás se a tivessem vestido daquele jeito.
João falou com a freira, que se esquivou dele, e ele sentiu o ferver da raiva e um desejo de pegá-la à força. Foi apenas uma sombra dos sentimentos que tivera no passado. Enquanto bebia o refresco que ela lhe levara, o rei meditava. Há poucos anos, não menos do que isso, eu teria feito algum plano para raptá-la. Teria me divertido bem com ela.
Mas não estava com boa disposição para se divertir. Pensou em suas belas jóias em algum lugar nas areias movediças do Wash. Pensou nos franceses em seu solo e em seus súditos pegando em armas contra ele. E uma raiva tomou conta dele, uma raiva fútil, porque se sentia fraco demais para expressá-la.
Eles deixaram o convento e seguiram para Swineshead. Ali iriam descansar à noite.
João sentou-se no refeitório. Comeu e bebeu e tentou recuperar a juventude e o ânimo. Tentou esquecer o que estava acontecendo; queria ser jovem outra vez. O vinho entorpeceu-lhe os sentidos, atenuou as dores do corpo e soltou-lhe a língua.
Falou sobre a freira que havia visto.
- Por Deus, vamos voltar para lá. Eu vou possuí-la... à força, se necessário. Ela tinha uma expressão no olhar... talvez não tão formalista, hein?
Um de seus homens sussurrou-lhe:
- Ouvi dizer que a freira é irmã do abade daqui. Aquilo fez com que ele risse.
- Tanto melhor. Tanto melhor. Oh, a que ponto este país está chegando? Súditos desleais. vou fazê-los morrer de fome. Talvez não fiquem tão ansiosos por pedir socorro aos franceses quando eu lhes tiver ensinado o que significa passar fome. vou tornar escassos os alimentos... vou queimar os celeiros. Eles vão conhecer a fome... e eu irei conhecer a irmã do abade.
- Majestade - disse um dos monges -, creio que gosta de pêssegos.
- É verdade.
- Temos alguns pêssegos excelentes. Tenho sua permissão para trazer-lhe alguns?
- Dou minha permissão - bradou João.
Pouco depois, o monge chegou com três pêssegos num prato. João os comeu com apetite. Quase que imediatamente depois, foi atacado por dores violentas.
A noite toda ele sofreu, e pela manhã seguiu viagem, mas quando chegou ao castelo do bispo de Lincoln, não conseguiu ir adiante.
- Acho que estou morrendo - disse ele.
O bispo levou o abade de Croxton para vê-lo, pois diziam que ele era perito na arte de curar; mas não havia nada que o abade pudesse fazer.
João jazia na cama pensando no passado e implorando que o abade de Croxton ouvisse sua confissão.
Por onde começar? Eram tantos os pecados mortais, que se esquecera da metade. O maior deles fora quando, numa noite no castelo de Rouen, ele matara Artur e levara o corpo para fora, com uma pedra servindo de peso para que pudesse afundar nas águas do Sena.
- Perdão, Senhor meu Deus... - murmurou ele. Mas sabia que estava pedindo muito.
- Que barulho é esse? - quis saber João.
- É o vento, majestade. Está muito forte esta noite.
Disseram que a tempestade que soprou naquela noite de outubro do ano de 1216 foi provocada pelas portas do inferno ao se escancararem para receber o Príncipe das Trevas em seu verdadeiro reino.
Ele morreu às primeiras horas do décimo oitavo dia daquele mês, e como era de seu desejo que seu corpo fosse enterrado em frente ao altar de S. Wulfstan na catedral de Worchester, o cadáver foi levado para lá num cortejo fúnebre protegido pelo exército mercenário que João recrutara para lutar por ele.
A MORTE do rei teve um grande impacto sobre o sentimento em todo o país. Ninguém queria um governante estrangeiro. Só desejavam derrubar o tirano que era o rei João. Deus havia feito aquilo por eles, e agora o país queria ficar em paz.
Isabella, não sendo mais prisioneira, agiu de imediato. Assim que soube da morte de João, decidiu mandar que seu filho Henrique, de nove anos, fosse logo coroado.
Ela não precisava recear por isso. Um grupo de partidários do rei e dos barões dirigiu-se imediatamente para Winchester. Não havia dúvida na mente de ninguém de que Henrique precisava ser coroado logo rei da Inglaterra. A cerimónia foi celebrada pelo bispo de Winchester.
Agora, a Inglaterra toda estava unida para expulsar os franceses. Isso foi conseguido com rapidez, e a Inglaterra ficou em paz - o tirano morto e um jovem rei no trono, com ministros para orientá-lo.
Isabella, com uma energia impressionante aos 34 anos de idade, ainda possuía uma grande beleza, e embora fosse mãe de cinco filhos, não perdera nada de sua atração.
Decidiu cruzar o mar, levando com ela a filha Joana, que estava noiva de Hugo de Lusignan, para que fosse seguido o costume de criar uma criança na casa do noivo.
O resultado final assombrou a maioria das pessoas, mas talvez não Isabella, pois assim que Hugo a viu percebeu que era com a mãe que ele queria se casar, não com a filha.
Assim, os dois se casaram, e Isabella lhe deu muitos filhos enquanto continuava com sua vida tempestuosa.
Enquanto isso, seu filho Henrique in sentava-se no trono da Inglaterra e a linha real que começara com o Conquistador continuava.
Jean Plaidy
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