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O PRÍNCIPE FELIZ
“Quando eu era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua —, não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no palácio de Sans-Souci, onde é vedado o acesso à dor. De dia brincava com os meus companheiros no jardim, e à noite dirigia a dança no grande salão de baile.
Em roda do jardim corria um muro muito alto, mas eu nunca pensei em perguntar o que estava para além dele. Tudo à volta de mim era belo. Os meus cortesãos chamavam-me o Príncipe Feliz, e eu era feliz, de facto, se o prazer é felicidade.”
Lá muito acima da cidade, numa alta coluna, erguia-se a estátua do Príncipe Feliz. Era todo revestido de finas folhas de oiro e tinha por olhos duas cintilantes safiras; no punho da sua espada cintilava um enorme rubi. Era de todos muito admirado.
- E belo como um catavento - observou um dos membros do Conselho da cidade, que pretendia passar por um homem de bom gosto artístico. - Só não é tão útil - acrescentou logo, com receio de que o tomassem por homem pouco prático, o que de facto não era.
- Por que não és tu como o Príncipe Feliz? - perguntou um dia uma mãe ao filho que lhe pedia a lua, chorando. - O Príncipe Feliz nunca se lembra de chorar por coisa nenhuma.
- Ainda bem que há no mundo quem seja inteiramente feliz - murmurou um desiludido, ao contemplar a admirável estátua.
- Parece mesmo um anjo - diziam os meninos das casas de caridade ao saírem da catedral com as capas de vivo escarlate e os bibes muito brancos.
- Como o sabeis? - observou o professor de Matemática. - Nunca vistes nenhuns.
- Ah, temo-los em sonhos - responderam as crianças. E o professor franziu o sobrolho e tomou um ar severo, porque não aprovava que as crianças sonhassem.
Uma noite, voou por cima da cidade uma Andorinha. As suas amigas tinham partido para o Egipto havia seis semanas; ela, porém, deixara-se ficar, enamorada como estava de um Junco formoso. Conhecera-o nos princípios da Primavera, no momento em que descia o rio atrás de uma grande borboleta amarela, e por tal forma a atraiu à sua cintura esbelta que parou para falar com ele.
- Queres que eu te ame? - perguntou a Andorinha, que não gostava de perder tempo com rodeios.
E o Junco fez-lhe uma profunda vénia. Voou, então, repetidas vezes à roda dele, tocando a água com as pontas das asas e produzindo mil ondulações de prata. Era este o seu modo de lhe fazer a corte e prolongou-se por todo o Verão.
- Que ligação tão ridícula! - chilreavam as outras andorinhas. - Ele não tem dinheiro e tem muitos parentes.
E, na realidade, o rio estava cheio de juncos.
Depois, quando o Outono chegou, todas as andorinhas se foram embora. Depois de elas partirem começou ela a sentir-se muito só e a enfastiar-se do seu amado.
- O Junco não sabe conversar - disse ela - e receio que seja um pouco leviano, porque está sempre a requestar a brisa.
E, de facto, sempre que a brisa soprava, o Junco fazia-lhe as mais graciosas cortesias.
- Reconheço que é caseiro - continuou - mas eu adoro viagens e o meu esposo deve, por consequência, gostar de viajar também.
- Queres vir comigo? - perguntou-lhe, por fim. Mas o Junco abanou a cabeça; era demasiado apegado ao seu lar para poder segui-la.
- Tens andado a brincar comigo - disse ela. - Vou partir para as Pirâmides. Adeus!
E começou a voar. Voou o dia inteiro e à noite chegou à cidade.
- Onde hei-de instalar-me? - disse. - A cidade deve estar preparada para me receber.
E viu então a estátua do Príncipe Feliz sobre a alta coluna.
- Vou-me instalar ali - murmurou. - Esplêndida situação e muito ar.
E foi pousar entre os pés do Príncipe Feliz.
- Tenho um quarto dourado - disse baixinho para consigo, enquanto olhava em redor e se preparava para dormir. Mas no momento preciso em que ia meter a cabecita debaixo da asa caiu-lhe em cima uma grande gota de água. - É extraordinário! - exclamou. - Não há uma só nuvem no céu, as estrelas cintilam e, contudo, está a chover! O clima do Norte da Europa é realmente horrível.
O Junco gostava de chuva, mas era apenas por egoísmo.
Então, caiu uma nova gota.
- Para que serve a estátua - disse -, se não é capaz de proteger da chuva? Tenho de procurar uma boa chaminé.
E dispunha-se a levantar voo. Mas, antes de abrir as asas, uma terceira gota caiu. Levantou os olhos e viu... Ah, que viu ela? Os olhos do Príncipe Feliz estavam cheios de lágrimas, e lágrimas lhe banhavam as faces de ouro. Tão belo era o seu rosto, batido pelo luar, que a Andorinha sentiu-se cheia de compaixão.
- Quem és tu? - perguntou-lhe.
- Sou o Príncipe Feliz.
- Por que choras, então? Encharcaste-me por completo.
- Quando eu era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua - não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no palácio de Sans-Souci, onde é vedado o acesso à dor. De dia brincava com os meus companheiros no jardim, e à noite dirigia a dança no grande salão de baile. Em roda do jardim corria um muro muito alto, mas eu nunca pensei em perguntar o que estava para além dele. Tudo à volta de mim era belo. Os meus cortesãos chamavam-me o Príncipe Feliz, e eu era feliz, de facto, se o prazer é felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora, que estou morto, colocaram-me nesta coluna, tão alto que posso ver toda a fealdade e miséria da minha cidade; e,embora o meu coração seja de chumbo, não posso deixar de chorar.
- Quê! Ele não é de ouro maciço? - disse consigo mesma a Andorinha, que era suficientemente educada para não fazer observações pessoais em voz alta.
- Lá longe - continuou a estátua numa voz baixa e musical -, numa pequena rua, há uma casa pobre. Uma janela está aberta e por ela vejo uma mulher sentada à mesa; tem as faces magras e cansadas, e as mãos vermelhas e feridas da agulha, pois é costureira. Está a bordar flores de martírio num vestido de cetim que a mais bela dama de honor da rainha há-de vestir no próximo baile da corte. Num leito, a um canto do quarto, está o seu filho doente; tem febre e pede laranjas. A mãe nada tem para lhe dar além de água do rio, e por isso ele chora. Andorinha, Andorinha, querida Andorinha, queres tu levar-lhe o rubi do punho da minha espada? Os meus pés estão soldados a este pedestal e não posso mover-me.
- Esperam-me no Egipto - respondeu a Andorinha. - As minhas amigas andam a voar pelo Nilo e a conversar com as grandes flores de lótus; em breve irão dormir no túmulo do Grande Rei. O próprio rei está lá ainda no seu caixão colorido, envolto em linho amarelo e embalsamado em especiarias. Ao pescoço tem um colar de jade verde-pálido e as suas mãos são como folhas secas.
- Andorinha, Andorinha, querida Andorinha - disse o Príncipe -, não queres permanecer comigo uma só noite e ser a minha mensageira? O pequenito arde em sede e a mãe está tão triste!
- Eu não simpatizo com os rapazes - replicou a Andorinha. - No Verão passado, quando eu voava pelo rio, havia dois rapazes malcriados, os filhos do moleiro, que estavam sempre a atirar-me pedras. É claro que nunca me acertaram porque nós, as andorinhas, voamos muito bem; demais, eu descendo duma família famosa pela sua agilidade; contudo, era uma falta de respeito.
Mas o Príncipe ficou tão triste que a Andorinha teve pena.
- Aqui está muito frio - disse ela -, no entanto, permanecerei contigo uma noite e serei a tua mensageira.
- Muito obrigado, querida Andorinha - disse o Príncipe.
A Andorinha arrancou então da espada do Príncipe o grande rubi, levando-o no bico por cima dos telhados da cidade. Passou junto da torre da catedral, onde estavam esculpidos anjos brancos de mármore. Passou pelo palácio e ouviu os sons de uma dança. Uma linda rapariga saiu para a varanda com o namorado.
- Como são belas as estrelas - disse-lhe ele - e quão forte é o poder do amor!
- Espero que o meu vestido esteja pronto para o baile de gala - respondeu ela. - Mandei que lhe bordassem martírios, mas as costureiras são tão preguiçosas!
Atravessou o rio e viu as lanternas que pendiam dos mastros dos navios. Passou sobre o gheto e viu os velhos judeus negociando entre si e pesando dinheiro em balanças de cobre. Por fim chegou à casa pobre e espreitou. O pequenino agitava-se febrilmente no leito e a mãe tinha adormecido de fadiga. Entrou e colocou o grande rubi sobre a mesa, ao lado do dedal. Depois voou docemente à roda da cama do pequenino, refrescando-lhe a fronte com as asas.
- Como me sinto fresco! - disse o pequeno. - Devo estar muito melhor.
E caiu num sono delicioso.
A Andorinha voltou para o Príncipe Feliz e contou-lhe o que tinha feito.
- É curioso! - observou. - Agora sinto calor, apesar de estar tanto frio.
- É porque praticaste uma boa acção - respondeu o Príncipe.
E a Andorinha começou a pensar e adormeceu. Pensar fazia-a sempre dormir. Ao romper do dia voou para o rio e tomou um banho.
- Que fenómeno tão raro! - disse o professor de Ornitologia que passava na ponte. - Uma andorinha no Inverno!
E escreveu uma longa carta para a gazeta local, sobre o assunto. Toda a gente a citava porque estava cheia de palavras que ninguém compreendia.
- Esta noite parto para o Egipto - disse a Andorinha muito alegre, com essa perspectiva.
Visitou todos os monumentos públicos e esteve muito tempo pousada no cimo do campanário da igreja. Por onde quer que passava chilreavam os pardais uns para os outros:
- Que estrangeira tão distinta!
E isso dava-lhe muito prazer. Quando a lua nasceu, voltou para o Príncipe Feliz.
- Tens algum recado para o Egipto? - perguntou. - Vou partir agora mesmo.
- Andorinha, Andorinha, querida Andorinha - disse o Príncipe -, não queres passar mais uma noite comigo?
- Esperam-me no Egipto - respondeu a Andorinha. - Amanhã as minhas amigas voarão para a Segunda Catarata. É ali que o Hipopótamo se deita entre os juncais, e o deus Memnon se senta num grande trono de granito. Toda a noite contempla as estrelas e, quando desponta a estrela da manhã, solta um grito de alegria e emudece de novo. Ao meio-dia leões descem à margem do rio para beber. Os seus olhos são verdes como os berilos e o seu rugido é mais forte que o rugido das cataratas.
- Andorinha, Andorinha, querida Andorinha - disse o Príncipe -, longe, muito longe, vejo um jovem numas águas-furtadas. Está debruçado sobre uma mesa cheia de papéis e num copo, a seu lado, há um ramo de violetas murchas. O seu cabelo é castanho e ondulado, os seus lábios são vermelhos como a romã e tem uns olhos grandes e sonhadores. Tenta acabar uma peça para o director do teatro, mas está muito frio para escrever mais. Não há lenha no fogão e a fome fá-lo desfalecer.
- Ficarei contigo mais uma noite - disse a Andorinha, que tinha realmente um bom coração. - Queres que lhe leve outro rubi?
- Ai! Já não tenho mais rubis - disse o Príncipe Feliz. - Só me restam os meus olhos. São duas raras safiras há mil anos trazidas da índia. Arranca-me um deles e leva-lho. Ele vendê-lo-á a um joalheiro, comprará comida e lenha e acabará a sua peça.
- Querido Príncipe - disse a Andorinha -, não posso fazer semelhante coisa.
E pôs-se a chorar.
- Andorinha, Andorinha, querida Andorinha - disse o Príncipe -, faz o que te mando.
Então a Andorinha arrancou um dos olhos do Príncipe e voou em direcção às águas-furtadas onde vivia o Estudante.
Era muito fácil entrar lá por um buraco do telhado. Entrou por ele e penetrou no quarto. O Estudante tinha a cabeça enterrada nas mãos e não ouviu o sussurro das asas da ave. Quando ergueu os olhos, encontrou a formosa safira sobre as violetas murchas.
- Começo a ser apreciado - exclamou. - Isto deve vir de algum grande admirador. Agora já posso acabar a minha peça. - E sentiu-se muito feliz.
No dia seguinte a Andorinha desceu ao porto. Pousou no mastro dum grande navio e viu os marinheiros tirarem arcas do porão por meio de cordas. “Upa-acima!”, gritavam eles a cada arca que subia.
- Vou para o Egipto - disse a Andorinha.
Mas ninguém lhe prestou atenção, e quando a lua nasceu voltou para junto do Príncipe Feliz.
- Venho dizer-te adeus - exclamou.
- Andorinha, Andorinha, querida Andorinha - disse ele -, não queres ficar mais uma noite comigo?
- É Inverno - retorquiu ela -, e a fria neve em breve chegará aqui. No Egipto o sol é quente sobre as palmeiras verdes e os crocodilos estendem-se no lodo, olhando em roda, preguiçosamente. As minhas companheiras constroem um ninho no Templo de Baalbec e as pombas brancas e cor-de-rosa seguem-nas com a vista e anulham sobre si. Tenho de te deixar, querido Príncipe, mas nunca te esquecerei. Na próxima Primavera hei-de trazer-te duas lindas jóias em lugar daquelas de que te desfizeste. O rubi será mais rubro que uma rosa vermelha e a safira será azul como o mar imenso.
- Lá em baixo na praça - disse o Príncipe Feliz - está uma rapariguinha que vende fósforos. Deixou cair os fósforos na valeta e estragaram-se; o pai bater-lhe-á se não lhe levar para casa algum dinheiro e por isso ela chora. Não tem sapatos, nem meias. Arranca-me o outro olho e leva-lho, e o pai não lhe baterá.
- Ficarei contigo mais uma noite - disse a Andorinha -, mas não posso arrancar-te o outro olho. Ficarias completamente cego.
- Andorinha, Andorinha, querida Andorinha, faze o que te mando - disse o Príncipe.
A Andorinha arrancou-lhe então o outro olho e partiu com ele. Ao passar junto da rapariga, deixou-lhe cair ajóia na palma da mão.
- Que bonito pedaço de cristal! - exclamou ela, e correu para casa, muito contente.
A Andorinha voltou para junto do Príncipe.
- Agora estás cego - disse ela - e ficarei sempre contigo.
- Não, querida Andorinha - respondeu ele -, tens que partir para o Egipto.
- Ficarei sempre contigo - disse a Andorinha, e adormeceu aos pés do Príncipe Feliz.
Todo o dia seguinte esteve pousada no ombro do Príncipe e contou-lhe histórias que tinha visto em terras estranhas. Falou-lhes dos Ibis vermelhos que param em longas fileiras pelas margens do Nilo e apanham com o bico peixes encarnados; da Esfinge, que é tão velha como o mundo, vive solitária no deserto e tudo sabe; dos mercadores que caminham vagarosamente ao lado dos seus camelos e trazem nas mãos contas de âmbar; falou-lhe do rei das Montanhas da Lua, que é preto como o ébano e adora um enorme cristal; da grande serpente verde, que dorme numa palmeira e que vinte sacerdotes alimentam com bolos de mel; e dos pigmeus, que navegam num grande lago, embarcados em largas folhas e andam sempre em guerra com as borboletas.
- Tu contas-me coisas maravilhosas, querida Andorinha - disse o Príncipe Feliz -, mas ainda mais maravilhoso que tudo é o sofrimento dos homens e das mulheres. Não há mistério algum tão grande como a miséria. Voa sobre a minha cidade, Andorinha, e dize-me o que lá vês.
Então, a Andorinha voou sobre a grande cidade e viu os ricos a divertirem-se nas suas moradias sumptuosas e os pobres sentados aos portões. Voou até ruelas escuras e viu as faces pálidas de crianças que morriam de fome, olhando distraídas para as ruas sombrias. Debaixo do arco de uma ponte estavam deitados dois rapazitos, abraçados um ao outro para se aquecerem.
- Temos tanta fome! - diziam eles.
- Não podem estar aqui - disse-lhes o Guarda. E eles saíram para a chuva.
A Andorinha voltou para o Príncipe e disse-lhe o que vira.
- Eu estou coberto de fino ouro - disse ele. - Tens de tirá-lo folha a folha e dá-lo aos meus pobres. Os vivos cuidam sempre que o ouro pode fazê-los felizes.
Folha após folha de fino ouro arrancou a Andorinha, até que o Príncipe ficou todo feio e negro. Folha após folha de fino ouro levou aos pobres, e as faces das criancinhas ganhavam cor e eles riam e brincavam nas ruas.
- Agora temos pão - diziam elas.
Por fim, chegou a neve e, depois da neve, o gelo. As ruas estavam tão brancas e brilhantes que se diriam feitas de prata. Compridos pingentes, como adagas de cristal, pendiam dos beirais dos telhados; toda a gente se vestia de peles, e os rapazinhos, com os seus barretes escarlates, patinavam no gelo. A pobre Andorinha tinha cada vez mais frio, mas não queria abandonar o Príncipe que tanto amava. Apanhava migalhas à porta do padeiro, quando ele não via e procurava aquecer-se batendo as asas. Por fim, contudo, reconheceu que ia morrer. Mal teve forças para voar mais uma vez para os ombros do Príncipe.
- Adeus, querido Príncipe - disse baixinho -, deixas-me beijar a tua mão?
- Ainda bem que partes, finalmente, para o Egipto - disse o Príncipe. - Estiveste aqui muito tempo; mas é nos lábios que deves beijar-me porque te amo muito.
- Não é para o Egipto que eu vou - respondeu a Andorinha. - Vou para a Casa da Morte. A Morte é irmã do Sono, não é verdade?
E, dizendo isto, beijou o Príncipe nos lábios e caiu morta a seus pés.
No mesmo instante, um estranho estalido soou dentro da estátua, como se alguma coisa se tivesse quebrado. E realmente o coração de chumbo tinha-se partido em dois. Estava, sem dúvida, um frio muito intenso.
Na manhã seguinte o presidente da cidade, em companhia dos conselheiros, passeava na praça. Ao passarem pela coluna, olhou para a estátua e exclamou:
- Santo Deus! Que miserável aspecto tem o Príncipe!
- Que miserável aspecto, na verdade - exclamaram os conselheiros, que eram sempre da opinião do presidente. E subiram a ver a estátua.
- Caiu-lhe o rubi da espada. Perdeu os olhos e todo o ouro desapareceu - exclamou o presidente. - Realmente, é pouco mais que um mendigo.
- Pouco mais que um mendigo - repetiram os conselheiros.
- E até com um pássaro morto aos pés! - continuou o presidente. - Temos de publicar um decreto proibindo às aves viver e morrer aqui.
E o secretário tomou nota da sugestão. E apearam então a estátua do Príncipe Feliz.
- Como já não é belo, já não é útil - disse o professor de História da Arte da Universidade.
Então fundiram a estátua num forno e o presidente convocou uma assembleia da Corporação para decidirem o que havia de fazer-se com o metal.
- Temos de fazer outra estátua, evidentemente - disse ele -, e será a minha.
- A minha - disseram todos os conselheiros, e discutiram.
Da última vez que ouvi falar deles discutiam ainda.
- Que coisa tão estranha! - disse o capataz da fundição. - Este coração de chumbo não funde no forno. Temos de deitá-lo fora.
E arremessaram-no para um montão de lixo onde se encontrava também a Andorinha morta.
- Traze-me as duas coisas mais preciosas que houver na cidade - disse Deus a um dos seus Anjos; e o Anjo levou-lhe o coração de chumbo e a Andorinha morta.
- Escolheste bem - disse Deus.- No meu jardim do Paraíso esta avezinha cantará eternamente e na minha Cidade de Ouro o Príncipe Feliz me adorará.
O ANIVERSÁRIO DA INFANTA
Era o dia do aniversário da Infanta. Doze anos completava ela e o sol brilhava nos jardins do palácio. Apesar de princesa real e infanta de Espanha, fazia anos apenas uma vez cada ano, tal como os filhos dos pobrezinhos, e era, portanto, altamente importante para todo o país que ela tivesse um belo dia para esse acontecimento. E era, com efeito, um belo dia. As altas tulipas raiadas estavam muito direitas nos seus altos caules, como longas filas de soldados, e olhavam, com ar de desafio, para as rosas, através da relva, dizendo: “Somos agora tão belas como vós outras.” As borboletas cor de púrpura adejavam, com pó doirado nas asas, visitando as flores uma a uma; as lagartixas saíam das fendas dos muros e ficavam a aquecer-se ao sol; e as romãs estalavam com o calor, mostrando os seus corações vermelhos, que sangravam. Até os pálidos limões amarelos, que pendiam em profusão das latadas em ruínas e ao longo das arcadas escuras, pareciam ter tirado uma cor mais rica do sol esplêndido, e as magnólias abriam as suas grandes flores esféricas de marfim e enchiam o ar com um perfume suave e quente.
A princesa passeava no terraço com os seus companheiros e jogava às escondidas em redor dos vasos de pedra e das velhas estátuas cobertas de musgo. Nos dias vulgares, só era autorizada a brincar com crianças da sua condição, de modo que tinha sempre de brincar sozinha. Mas o dia do aniversário era uma excepção e o rei tinha dado ordem para que ela convidasse os amiguinhos que desejasse para que viessem brincar com ela. Havia uma graça altiva naquelas esbeltas crianças espanholas, os rapazes com os chapéus emplumados e as curtas capas ondulantes, as raparigas segurando as caudas dos seus vestidinhos de brocado e protegendo os olhos contra o sol com grandes leques negros e prateados. Mas a infanta era a mais graciosa de todas e a que vestia com mais gosto, à moda um tanto incómoda daqueles tempos. O seu vestido era de cetim cinzento, com a saia e as largas mangas tufadas, pesadamente bordadas de prata, e o rígido corpete guarnecido de pérolas finas. Dois delicados sapatinhos, com grandes rosetas cor-de-rosa, espreitavam por baixo do vestido, quando ela andava. Cor-de-rosa e pérola era o seu grande leque de gaze; e no cabelo, que, como uma auréola de ouro pálido, emoldurava o seu pálido rostozinho, tinha uma linda rosa branca. Duma janela do palácio o triste e melancólico rei observava-os. Atrás dele, de pé, estava o seu irmão D. Pedro de Aragão, a quem odiava; e o confessor, o grande inquisidor de Granada, estava sentado a seu lado. Mais triste que de costume estava o rei, porque, quando via a infanta saudar, com infantil gravidade, os cortesãos que chegavam, ou rir, por detrás do leque, da feia duquesa de Albuquerque, que sempre a acompanhava, pensava na jovem rainha, sua mãe, que ainda há pouco tempo - assim lhe parecia - viera do alegre país de França e tinha mirrado no sombrio esplendor da Corte Espanhola, morrendo seis meses depois do nascimento da filha, e antes que tivesse visto as amendoeiras florescer duas vezes no pomar, ou colhido o fruto do segundo ano da velha figueira rugosa que estava no meio do pátio, agora coberto de relva. Tão grande fora o seu amor por ela que nem sofrera que o túmulo lha escondesse. Tinha sido embalsamada por um físico mouro, o
qual recebera, em troca, o prémio da sua vida, condenada pelo Santo Ofício, dizia-se, por heresia e suspeita de prática de magia. E o seu corpo jazia ainda numa urna coberta de tapeçarias, na capela de mármore negro do palácio, tal como os monges a tinham trazido naquele ventoso dia de Março, há cerca de doze anos. Uma vez por mês, o rei envolvido numa capa negra e com uma lanterna na mão entrava na capela e ajoelhava ao seu lado, gritando: “Mi reina! Mi reina!” E, algumas vezes, quebrando a etiqueta que, em Espanha, governa todas as acções da vida e põe limites até à tristeza de um rei, costumava agarrar as pálidas mãos cobertas de jóias e, numa doida agonia de dor, tentara despertar com os seus beijos quentes a face fria e pintada.
Hoje parecia-lhe vê-la de novo, como a vira pela primeira vez, no castelo de Fontainebleau, quando tinha apenas 15 anos de idade e ela era ainda mais nova. Tinha ficado noivo nessa altura, em presença do núncio papal, do rei de França e de toda a Corte, e ele voltara para o Escurial, trazendo consigo um anel do cabelo louro e a recordação de dois lábios infantis que se curvavam para lhe beijar a mão, quando ele entrava para a carruagem. Mais tarde, seguira-se o casamento, apressadamente celebrado em Burgos, uma pequena cidade na fronteira dos dois países, e a grande entrada pública em Madrid, com a habitual celebração da missa cantada na Igreja de La Atocha e um auto-de-fé mais solene que o habitual, em que cerca de trezentos herejes, entre os quais muitos ingleses, foram entregues ao poder secular, para serem queimados.
Sem dúvida a amara loucamente e, segundo pensavam muitos, para ruína do seu país, então em guerra com a Inglaterra pela posse do império do Novo Mundo. Quase nunca permitira que ela saísse da sua vista; por ela esquecera, ou parecera esquecer, os graves negócios do Estado; e, com essa terrível cegueira que a paixão leva aos seus escravos, não reparar que as complicadas cerimónias com que procurava agradar-lhe apenas agravavam a estranha doença de que sofria. Quando a pobre se fanou, ele esteve, por algum tempo, como privado da razão. E, na verdade, não há dúvida de que teria formalmente abdicado e retirado para o grande mosteiro trapista de Granada, se não receasse deixar a infanta à mercê do irmão, cuja crueldade - mesmo em Espanha - era notória, e que muitos suspeitavam de ter causado a morte da rainha, por meio de um par de luvas envenenadas com que a presenteara por ocasião da sua visita ao seu castelo de Aragão. Mesmo depois de expirados os três anos de luto público que ele ordenara em todos os seus domínios por édito real, não tolerava que os ministros lhe falassem de qualquer nova aliança; e, quando o próprio imperador mandou oferecer-lhe em casamento a mão da encantora arquiduquesa da Boémia, sua sobrinha, ordenou aos embaixadores que dissessem ao seu senhor que o rei de Espanha estava já casado com a Dor, e que, embora ela fosse uma noiva estéril, a amava mais que a Beleza. Esta resposta custou à sua coroa as ricas províncias dos Países Baixos que, a instigação do imperador, se revoltaram contra ele, sob a chefia de alguns fanáticos da Igreja Reformada.
Toda a sua-vida de casado, com as suas deslumbrantes alegrias e a terrível agonia do seu súbito termo, parecia voltar até ele nesse dia, ao ver a infanta brincar no terraço. Tinha toda a bela petulância de maneiras da rainha, o mesmo modo voluntarioso de sacudir a cabeça, a mesma curva altiva na boca formosa, o mesmo sorriso maravilhoso - vrai sourire de France, na verdade - quando, de vez em quando, levantava o olhar para a janela ou estendia a mãozinha para que os sumptuosos fidalgos espanhóis lha beijassem. Mas o riso agudo das crianças irritava-lhe os ouvidos, o sol brilhante e impiedoso troçava da sua dor e um cheiro pesado a estranhas especiarias, dessas que usam os embalsamadores, parecia viciar- ou seria fantasia? - o ar límpido da manhã. Enterrou a face nas mãos, e, quando a infanta voltou a olhar para cima, as cortinas tinham baixado e o rei havia-se retirado.
A pequena fez uma moue de desapontamento e encolheu os ombros. Sem dúvida, devia ter ficado com ela, no dia do seu aniversário. Que importavam os estúpidos negócios de Estado? Ou teria ido àquela lúgubre capela, onde as velas ardiam sempre e onde nunca a deixavam entrar? Que tolice, quando o sol estava tão lindo e toda a gente tão feliz! Além disso, perderia a tourada simulada para a qual a trombeta já soara, para não falar da representação de fantoches e outras coisas maravilhosas. O tio e o grande inquisidor eram muito mais ajuizados. Tinham saído ao terraço e dirigiam-se amabilidades. Ela sacudiu a bonita cabeça e, tomando D. Pedro pela mão, desceu lentamente os degraus em direcção a um longo pavilhão de seda cor de púrpura, que havia sido erigido ao fundo do jardim. As outras crianças seguiram-na em rigorosa ordem de precedência, indo à frente as que tinham nomes mais compridos.
Uma procissão de pequenos nobres, fantasticamente vestidos de toreadores, saiu ao seu encontro; e o jovem conde de Tierra Nueva, um belíssimo garoto dos seus 14 anos, descobrindo-se com a graça dum fidalgo de nascimento e grande de Espanha, conduziu-a solenemente a uma pequena cadeira de ouro e marfim, colocada num estrado, acima da arena. As crianças agrupavam-se à roda, agitando os grandes leques e segredando umas às outras, enquanto D. Pedro e o grande inquisidor riam à entrada. Até a duquesa - a Camarera-Mayor, como lhe chamavam -, uma mulher magra, de feições duras, com uma gargantilha amarela, não parecia de tão mau humor como de costume, e qualquer coisa como um fino sorriso esvoaçava pela sua face enrugada e lhe torcia os lábios delgados e exangues.
Era, sem dúvida, uma tourada maravilhosa e muito mais bonita, pensava a infanta, que a tourada verdadeira que a tinham levado a ver em Sevilha, por ocasião da visita do duque de Parma e seu pai. Alguns dos rapazes cabriolavam em cavalos de pau ricamente ajaezados, brandindo longas farpas donde pendiam vistosas fitas de cores; outros, a pé, agitavam as capas encarnadas diante do touro, saltando ligeiramente a barreira, quando este os atacava; quanto ao touro, era exactamente como um touro vivo, embora fosse apenas feito de vime e pele esticada, e insistia, por vezes, em dar a volta à arena nas pernas de trás, o que nenhum touro vivo jamais soube fazer. Fazia, também, um esplêndido combate; e as crianças,.de pé, em cima dos bancos, entusiasmavam-se tanto que agitavam os lenços de renda, gritando: Bravo, Toro! Bravo, toro!, tão sensatas como se fossem pessoas crescidas. Por fim, depois de prolongado combate, durante o qual vários cavalos de pau foram mais que uma vez escorneados e os seus cavaleiros apeados, o jovem conde de Tierra Nueva fez ajoelhar o touro e, depois de obter autorização da infanta para dar o coup de grâce, mergulhou com tal violência a sua espada de pau no cachaço do animal, que a cabeça se desprendeu, mostrando a face risonha do pequeno Monsieur de Loirai ne, o filho do embaixador francês em Madrid.
A arena foi, então, desembaraçada no meio de vibrantes aplausos, e os cavalos mortos solenemente arrastados por dois pajens mouros, com librés amarelas e pretas; depois de curto intervalo, durante o qual um mestre francês de ginástica se exibiu na corda tensa, alguns fantoches italianos apareceram na tragédia semiclássica de Sophonisba, no palco dum pequeno teatro, expressamente construído para aquele fim. Representaram tão bem, tão naturais eram os seus gestos, que, no fim da peça, os olhos da infanta estavam turvos de lágrimas. Algumas crianças choravam realmente e tiveram de ser confortadas com doces; e o próprio grande inquisidor estava tão perturbado que não pôde deixar de dizer a D. Pedro achar intolerável que homens feitos simplesmente de madeira e de cera colorida, e animados mecanicamente por fios, fossem tão infelizes e suportassem tão terríveis desgraças.
Seguiu-se um prestidigitador africano, que trouxe um grande cesto coberto com um pano encarnado e, depois de o colocar no meio da arena, tirou do turbante uma curiosa flauta de cana e começou a tocar. Dentro de poucos momentos, o pano começou a mexer e, à medida que a flauta se tornava mais aguda, duas serpentes douradas e verdes mostraram as suas cabeças cuneiformes e ergueram-se lentamente, começando a agitar-se com a música, como uma planta se agita na água. As crianças, contudo, assustaram-se um tanto com aquelas cabeças malhadas e aquelas línguas que não paravam, e ficaram muito satisfeitas quando o prestidigitador fez brotar da areia uma laranjeira que deu belas flores brancas e frutos autênticos; e, quando ele pegou no leque da filhinha da marquesa de Las-Torres e o transformou num pássaro azul que voou em roda do pavilhão e cantou, a sua admiração e entusiasmo não conheceram limites. Também o minuete solene, dançado por bailarinos da igreja de Nuestra Senhora Del Pilar, foi encantador. A infanta nunca tinha presenciado esta admirável cerimónia, que se realiza todos os anos, em Maio, em frente do altar da Virgem e em sua honra; e, na verdade, nenhum membro da real família de Espanha tinha entrado na Catedral de Saragoça, desde que um padre louco, que muitos supunham a soldo de Isabel de Inglaterra, tinha tentado ministrar uma hóstia envenenada ao príncipe das Astúrias. Assim, só de tradição ela conhecia a chamada “Dança a Nossa Senhora”, e que era sem dúvida um formoso espectáculo. Os rapazes usavam antigos trajes de corte, de veludo branco, e os seus curiosos tricornes tinham franjas de prata e grandes plumas de avestruz. Quando se moviam, ao sol, a brancura ofuscante do seu traje era ainda mais acentuada pela cor trigueira das faces e pelos longos cabelos negros. Todos estavam fascinados pela grave dignidade com que se moviam através das intrincadas figuras de dança e pela complicada graça dos seus gestos lentos e majestosas vénias; quando acabaram a sua representação e tiraram à infanta os seus grandes e belos chapéus emplumados, ela correspondeu à saudação com muita cortesia e fez promessa de que mandaria uma grande vela de cera para o relicário de Nossa Senhora del Pilar, em paga do prazer que Ela lhe havia concedido.
Um bando de formosos egípcios - como eram designados os ciganos nesses tempos - avançaram, então, pela arena; sentando-se em círculo, de pernas cruzadas, começaram a tocar suavemente as suas cítaras, movendo os corpos em cadência e trauteando muito baixinho uma ária de sonho. Quando lobrigaram D. Pedro, carregaram as sobrancelhas e alguns pareceram aterrados, porque, havia poucas semanas apenas, mandara enforcar por feitiçaria dois dos da sua tribo, no mercado de Sevilha; a formosa infanta, porém, espreitando por cima do leque, com os seus grandes olhos azuis, encantou-os e deu-lhes a certeza de que alguém tão belo como ela não podia jamais ser cruel para quem quer que fosse. Por isso continuaram a tocar muito suavemente, mal tangendo as cordas das cítaras com as longas unhas pontiagudas, e começaram a cabecear, como prestes a adormecer. De súbito, com um grito tão estridulo que as crianças se assustaram e a mão de D. Pedro apertou o cabo de ágata do seu punhal, puseram-se em pé dum salto e rodopiaram loucamente em volta da arena, batendo os pandeiros e entoando qualquer bárbara canção de amor, na sua estranha língua gutural. Depois, a outro sinal, todos de novo se lançaram por terra, muito quietos, e só o tom plangente das cítaras quebrava o silêncio. Depois de terem feito isto várias vezes, desapareceram por um momento e voltaram com um urso pardo, preso por uma corrente, e vários macaquinhos da Barbaria empoleirados nos ombros. O urso fazia o pino com a maior gravidade e os macacos faziam toda a casta de divertidas peloticas com dois garotos ciganos que pareciam ser os donos, lutavam com espadas de pau, disparavam canhões e faziam exercícios militares com a mesma perfeição que a própria guarda do rei. De facto, os ciganos foram um grande êxito.
Mas a parte mais engraçada do espectáculo foi, sem dúvida, a dança do anãozinho. Quando ele entrou na arena, bamboleando-se nas pernas arqueadas e abanando a grande cabeça disforme, as crianças soltaram um grito de prazer e a própria infanta riu tanto que a camarera se viu forçada a lembrar-lhe que, embora houvesse muitos precedentes em Espanha de a filha de um rei chorar perante os seus iguais, não havia exemplo de uma princesa de sangue real rir tanto perante aqueles que lhe eram inferiores por nascimento. Contudo, o anão era verdadeiramente irresistível; e nem na Corte espanhola, sempre notada pela sua paixão pelo horrível, jamais havia sido visto um monstrozinho tão fantástico. Era aquela, realmente, a sua primeira exibição. Tinha sido descoberto na véspera, enquanto corria pelo bosque, por dois fidalgos que caçavam numa parte afastada da grande floresta de sobreiros que rodeavam a cidade e trazido por eles para o palácio, para surpresa da infanta; e o pai, quê era um pobre fabricante de carvão, com grande prazer se desfizera de uma criança tão feia e tão inútil. O que havia nele de mais divertido era, talvez, a perfeita inconsciência do seu aspecto grotesco. Parecia, com efeito, inteiramente feliz e na melhor das disposições. Quando as crianças riam, ele ria também, tão franca e alegremente como qualquer delas; ao fim de cada dança, fazia a cada uma delas a mais divertida vénia, sorrindo-lhes e abanando a cabeça, tal como se fosse uma delas e não o ente-zinho disforme que a Natureza, com certo humor, tinha modelado para divertimento dos outros. Quanto à infanta, fascinava-o em absoluto. Não podia tirar os olhos dela e só para ela parecia dançar; e quando, ao fim da exibição, lembrando-se de ter visto as grandes damas da Corte atirarem flores a Caffarelli (o famoso soprano italiano que o papa mandara da sua própria capela a Madrid para que curasse a melancolia do rei com a doçura da sua voz), ela tirou do cabelo a formosa rosa branca e, em parte por graça, em parte para irritar a camarera, lha atirou para a arena, com o seu mais belo sorriso, o anãozinho tomou aquilo a sério e, levando a flor aos lábios grosseiros, pôs a mão no coração e o joelho em terra, e sorriu, num sorriso que lhe alargava a boca de orelha a orelha e lhe inundava os olhos de júbilo.
Tanto isto perturbou a gravidade da infanta que ela continuou a rir já muito depois de o anão ter deixado a arena e exprimiu ao tio o desejo de que a dança fosse repetida. A camarera, contudo, a pretexto de que o sol estava demasiado quente, decidiu que seria melhor que Sua Alteza voltasse sem mais detença ao palácio, onde uma festa maravilhosa havia sido preparada em sua honra, incluindo um bolo natalício com as suas iniciais desenhadas a açúcar e uma bandeira de prata no cimo.
A infanta levantou-se, pois, com muita dignidade e, tendo dado ordem para que o anão dançasse de novo para si, depois da hora da sesta, apresentou os seus agradecimentos ao jovem conde de Tierra Nueva pela sua encantadora recepção e retirou-se para os seus aposentos, seguida por todas as crianças, pela mesma ordem por que tinham entrado.
Ora o anãozinho, quando soube que dançaria de novo diante da infanta e por sua ordem expressa, ficou tão orgulhoso que correu para o jardim, beijando a rosa branca em absurdo êxtase de prazer e fazendo os mais grotescos e desajeitados gestos de puro deleite.
As flores ficaram muito indignadas com aquela ousadia de penetrar na sua formosa casa e, quando o viram cabriolar pelas áreas, agitando os braços por cima da cabeça de modo tão ridículo, não puderam por mais tempo reprimir os seus sentimentos.
- É, realmente, demasiado feio para que se permita brincar em qualquer local onde nos encontremos - gritaram as tulipas.
- Devia beber suco de dormideiras e ficar a dormir durante mil anos - disseram os grandes lírios escarlates; e fizeram-se muito vermelhos e irritados.
- É um verdadeiro horror! - disseram os cactos. - Céus! É torcido e atarracado e a sua cabeça está inteiramente fora de proporção com as pernas. Em verdade, faz-nos sentir picadas por todo o corpo. Se se aproximar de nós, trespassamo-lo com os nossos espinhos.
- E tem um dos meus formosos botões - exclamou a rosa branca. - Eu própria o dei à infanta esta manhã, como presente de anos, e ele roubou-lhe. - E gritou, com todas as suas forças: - Ladrão, ladrão, ladrão!
Até os gerânios vermelhos que, habitualmente, não se dão ares e se sabia terem muitos parentes pobres, se arrepiavam de nojo, ao vê-lo; e, como a violeta humildemente notasse que, embora ele fosse, sem dúvida, extremamente grosseiro, não era coisa que pudesse evitar, eles retorquiram, com boa dose de justiça, que não havia razão para que se admirasse uma pessoa pelo facto de ser incurável; e, com efeito, até algumas das violetas sentiam que a fealdade do anãozinho era quase ostensiva e que ele teria mostrado muito mais bom gosto se se mostrasse triste ou, pelo menos, pensativo, em lugar de saltar alegremente, tomando atitudes grotescas e disparatadas.
Quanto ao girassol, que era um indivíduo extremamente notável e dissera uma vez as horas do dia nada menos que ao imperador Carlos V em pessoa, ficou tão embaraçado pelo aparecimento do anãozinho que quase se esqueceu de marcardois minutos completos com o seu longo dedo sombrio e não pôde deixar de dizer ao grande pavão branco, que tomava sol na balaustrada, que toda a gente sabia que os filhos de fabricantes de carvão eram fabricantes de carvão e que era absurdo pretender que assim não era; afirmação com que o pavão inteiramente concordou, gritando “decerto, decerto”, com uma voz tão alta e tão áspera que o peixe dourado, que vivia no tanque da fresca fonte cantante, pôs a cabeça de fora da água e perguntou ao tritão de pedra que vinha a ser aquilo.
As aves, porém, gostavam dele. Tinham-no visto bastas vezes na floresta, a dançar, como um elfo, atrás das folhas que rodopiavam, ou aninhado no oco de algum velho carvalho, repartindo as suas nozes com os esquilos. Não se importavam nada que ele fosse feio. O próprio rouxinol, que tão suavemente cantava de noite nos laranjais, a ponto de a Lua, por vezes, se inclinar para o ouvir, não era, afinal, beleza que espantasse; e, além disso, ele fora bom para elas e, durante aquele Inverno terrivelmente áspero, em que não havia bagas nas árvores, a terra era dura como ferro e os lobos tinham descido até às portas da cidade em busca de alimento, nunca ele as esquecera, antes sempre lhes dera migalhas do seu pobre naco de pão negro e repartia com elas do seu magro almoço. Por isso elas voaram em roda dele, roçando-lhe as faces com as asas ao passar e pairando umas com as outras; e o anãozinho estava tão contente que não pôde deixar de lhes mostrar a bela rosa branca e de lhes dizer que a própria infanta lha dera, porque o amava.
As avezitas não compreendiam uma palavra do que ele dizia, mas isso não importava, porque inclinavam as cabecítas para o lado, com um ar sisudo, o que vale tanto como compreender as coisas e é muito mais fácil. Também os lagartos simpatizavam muito com ele e, quando se cansou de correr e se atirou para a relva, para descansar, eles começaram a trepar por ele a brincar, procurando diverti-lo o melhor que podiam.
- Nem todos podem ser belos como um lagarto - exclamaram. - Isso seria pedir muito. E, embora pareça absurdo dizê-lo, ele não é tão feio como tudo isso, com a condição, é claro, de se fecharem os olhos e não se olhar para ele.
Os lagartos eram filósofos por natureza e ficavam, muitas vezes, horas e horas a pensar, quando não havia mais nada que fazer ou quando o tempo estava de chuva e eles não podiam sair. As flores, porém, estavam extremamente enfadadas com aquele procedimento e com o procedimento das aves.
- Apenas mostram - diziam elas - o efeito ordinário destes voos e correrias constantes. As pessoas bem educadas estão sempre exactamente no mesmo lugar, como nós. Ninguém nos viu, jamais, aos saltos pelos caminhos ou galopando loucamente pela relva atrás dos insectos. Quando precisamos de mudar de ares, mandamos chamar o jardineiro e ele leva-nos para outro canteiro. Isto é que é digno e é assim que deve ser. Mas as aves e os lagartos não têm o sentido da calma e as aves, a falar verdade, não têm sequer morada certa. São meras vagabundas, como os ciganos, e devem ser tratadas exactamente do mesmo modo.
E, assim, levantaram os narizes para o ar, tomando uma atitude muito altiva, e ficaram muito satisfeitas quando, algum tempo depois, viram o anãozinho levantar-se da relva e dirigir-se, através do terraço, para o palácio.
- Deviam guardá-lo dentro de casa para o resto da vida - disseram. - Olhem para aquela corcunda e para aquelas pernas tortas!
E fungaram uns risinhos trocistas. Mas o anãozinho nada sabia de tudo isto. Adorava as aves e os lagartos e achava as flores as coisas mais maravilhosas do mundo, com excepção apenas - ocioso é dizê-lo - da infanta: mas essadera-lhe uma linda rosa branca e amava-o, o que fazia uma grande diferença. Quem lhe dera ter voltado com ela! Ela tê-lo-ia posto na sua mão direita, ter-lhe-ia sorrido, e ele nunca mais a teria abandonado, antes a teria feito sua companheira de brinquedos e lhe teria ensinado toda a sorte de coisas engraçadas. Pois, embora nunca tivesse estado num palácio, sabia muitas coisas maravilhosas. Sabia fazer gaiolinhas de cana, para cantarem as cigarras, e transformar um ramo de bambu na flauta que Pan gosta de ouvir. Conhecia o canto de todas as aves e sabia chamar os estorninhos do cimo das árvores e as garças dos pântanos. Conhecia o rasto de todos os bichos e sabia seguir a lebre pelas marcas delicadas das suas patas e o javali pelas folhas pisadas.
Todas as danças bárbaras ele conhecia: a dança louca, em traje vermelho, como o Outono; a dança leve, em sandálias azuis, por sobre as searas; a dança com grinaldas cor de neve, no Inverno; e a dança das flores, através dos pomares, na Primavera. Sabia onde as pombas do bosque faziam ninho e, duma vez em que um passarinheiro apanhara os pais no laço, ele próprio fora buscar os pequenitos e fizera-lhes um pequeno pombal no buraco dum ulmeiro. Eram muito mansos e costumavam vir comer-lhe às mãos, todas as manhãs. Ela havia de gostar deles, dos coelhos que corriam entre os altos fenos, dos gaios, com as suas penas de reflexos deaço e bicos pretos, dos ouriços-cacheiros, que sabiam fazer-se numa bola cheia de espinhos, e das grandes e sensatas tartarugas, que se arrastavam lentamente, meneando as cabecitas e mordiscando as folhas novas. Sim, não havia dúvida de que ela devia vir para a floresta brincar com ele. Dar-lhe-ia a sua própria caminha e ficaria a vigiá-la de fora da janela até romper a manhã, para que os animais cornudos não lhe fizessem mal nem se aproximassem demasiado da cabana os lobos esfaimados. E, quando a manhã rompesse, bateria à janela para a acordar e sairiam os dois, a dançar, todo o santo dia.
A verdade é que a floresta não era, de modo algum, um lugar solitário. Umas vezes, era um bispo que passava, montado na sua mula branca e lendo um livro em que havia formosas iluminuras. Outras vezes, eram os falcoeiros, com os seus bonés de veludo e gibões de pele de veado, levando empoleirados nos pulsos os falcões de olhos vendados. Pelas vindimas, vinham os pisadores, com os pés e as mãos cor depúrpura, grinaldas de hera lustrosa, e transportando os cascos, que gotejavam; e os fabricantes de carvão sentavam-se à noite em redor dos seus enormes braseiros, olhando as grandes achas secas que lentamente se carbonizavam e assavam castanhas nas brasas. Os ladrões saíam das cavernas e confraternizavam com eles. Uma vez, também, vira uma linda procissão, que calcorreava o pó da longa estrada, a caminho de Toledo. À frente iam os monges, entoando cânticos suaves e alçando flâmulas vistosas e cruzes de ouro; depois vinham os soldados, com armaduras de prata, escopetas e lanças, e no meio delas caminhavam três homens descalços, envergando estranhos trajes amarelos, todos pintados de figuras maravilhosas, com círios acesos nas mãos. Sem dúvida que havia muito que ver na floresta; e, quando ela estivesse cansada, ele arranjaria um fofo banco de musgo em que repousasse, ou levá-la-ia nos braços, porque era forte, embora soubesse que não era alto. Havia de fazer-lhe um colar de bagas vermelhas de briónia, que não seriam menos belas que as bagas brancas que ela usava no vestido e que ela poderia deitar fora quando delas se fatigasse, que ele lhe arranjaria outras. Havia de trazer-lhe cápsulas de bolota, anémonas húmidas de orvalho e pirilampos que seriam como estrelas no ouro pálido do seu cabelo.
Mas onde estava ela? Perguntou à rosa branca e não obteve resposta. Todo o palácio parecia adormecido e, até onde as portadas não haviam sido corridas, pesadas cortinas velavam as janelas para deter o fulgor do sol. Por ali vagueou, em busca dum lugar por onde pudesse introduzir-se e avistou, por fim, uma pequena porta de serviço, que haviam deixado aberta. Entrou à socapa e encontrou-se num vestíbulo magnificente, mais magnificente, ainda, que a floresta, pois havia muito mais dourados por toda a parte e o próprio soalho era feito de grandes pedras coloridas, que formavam uma espécie de desenho geométrico.
Mas a infanta não estava ali e só algumas admiráveis estátuas o olhavam dos seus pedestais de jaspe, com tristes olhos vazios e um sorriso estranho bailando nos lábios.
Ao fim do vestíbulo pendia uma cortina de veludo negro, ricamente bordada, salpicada de sóis e estrelas - as insígnias favoritas do rei, bordadas na sua cor preferida. Talvez ela se escondesse ali atrás...
O melhor era ver.
Avançou sorrateiramente e afastou a cortina. Não! Havia apenas outra sala, e mais bela ainda, parecia-lhe, que aquela que acabava de deixar. Das paredes pendiam belas tapeçarias de Arras, representando uma caçada, e em cuja composição manual alguns artistas flamengos haviam gasto mais de sete anos. Fora outrora a câmara de Jean le Fou, como lhe chamavam, esse rei louco que era tão apaixonado da caça, que muitas vezes tentava, no seu delírio, montar os grandes cavalos fogosos e derrubar o veado a que os cães saltavam, tocando a sua trompa de caça e apunhalando com a adaga o pálido e veloz veado. Era agora utilizada como sala de conselho e na mesa central estavam as pastas encarnadas dos ministros, gravadas com as tulipas douradas de Espanha e as armas e emblemas da casa de Habsburgo.
O anãozinho olhou em redor, maravilhado e meio receoso de prosseguir. Os estranhos cavaleiros silenciosos que galopavam velozmente pelos longos atalhos, sem fazerem o menor ruítlo, pareciam-lhe esses terríveis fantasmas de que ouvira falar aos carvoeiros - os comprachos - que só caçavam de noite e que, se encontravam um homem, o transformavam numa corça e o caçavam. Pensou, porém, na formosa infanta e recobrou o ânimo. Talvez ela estivesse na sala seguinte.
Correu pelos fofos tapetes mouriscos e abriu a porta. Não! Também não a viu aqui. A sala estava completamente vazia. Era uma sala de trono, usada para receber embaixadores estrangeiros, quando o rei - o que ultimamente raras vezes acontecia - consentia em dar uma audiência pessoal. Era a mesma sala em que, muitos anos antes, haviam aparecido emissários da Inglaterra para tratarem do casamento da sua rainha, então uma das soberanas católicas da Europa, com o filho mais velho do imperador. As paredes eram cobertas por couros dourados de Córdova e um pesado lustre dourado, para trezentos lumes, pendia do tecto branco e negro. Por baixo dum grande dossel de estofo dourado, em que estavam bordados a aljôfar os leões e as torres de Castela, ficava o trono, coberto por um rico pano de veludo negro, guarnecido de tulipas prateadas, franjado de pratas e pérolas. No segundo degrau do trono estava o genuflexório da infanta, com a sua almofada de tecido prateado, e mais abaixo, fora dos limites do dossel, a cátedra do núncio papal, o único que podia estar sentado diante do rei por ocasião de qualquer cerimónia pública e cujo barrete cardinalício, com as suas borlas escarlates, estava colocado defronte, sobre um pequeno tamborete de púrpura. Na parede, em frente do trono, havia um retrato de Carlos V em tamanho natural, envergando um traje de caça e tendo ao lado um enorme mastim, e um retrato de Felipe II a receber as homenagens dos holandeses ocupava o centro da outra parede. Entre as janelas, uma magnífica papeleira de ébano incrustado de marfim, em que as figuras da Dança da Morte, de Holbein, haviam sido gravadas, dizia-se, pela mão do próprio artista.
Mas ao anãozinho não impressionava esta magnificência. Não teria dado a sua rosa por todas as pérolas do dossel, nem uma só pétala branca da sua rosa pelo próprio trono. Tudo o que queria era ver a infanta, antes que ela descesse ao pavilhão, e pedir-lhe que viesse com ele, quando acabasse de dançar. Aqui, no palácio, o ar era denso e pesado, mas na floresta o vento soprava livremente e o sol afastava as folhas trementes com as suas mãos de ouro.
Também na floresta havia flores, não tão sumptuosas, talvez, como as do jardim, mas com um perfume, mais suave: jacintos, na Primavera, que inundavam de púrpura os frescos vales e os outeiros relvosos; primaveras amarelas que se aninhavam junto às raízes dos carvalhos; celidónias brancas, campainhas azuis e íris douradas e cor de lilás. Havia flores cinzentas nas aveleiras e as dedaleiras pendiam com o peso dos seus avéolos, infestados de abelhas. O castanheiro tinha as suas espirais de estrelas brancas e o espinheiro branco as suas formosas luas pálidas. Sim, ela viria, sem dúvida, se ele pudesse encontrá-la! Viria com ele para a floresta e todo o dia ele dançaria para seu prazer. Um sorriso lhe iluminou os olhos e este pensamento e ele passou à sala imediata.
De todas, esta era a mais resplandecente e a mais bela. As paredes eram cobertas de damasco de Lucca, salpicado de cravos, aves, delicadas flores prateadas. A mobília era de prata maciça, com grinaldas floridas, cupidos que se balouçavam; em frente dos dois grandes fogões, dois guarda-fogos bordados com papagaios e pavões, e o soalho, que era de ónix verde-mar, parecia perder-se na distância. E não estava sozinho. De pé, debaixo da sombra duma porta, no extremo da sala, viu uma figurinha que o observava. O seu coração tremeu-lhe, um grito de alegria lhe saltou dos lábios, e ele avançou para a luz do sol. Quando avançou, a figurinha avançou também e ele viu-a distintamente.
A infanta! Era um monstro, o monstro mais grotesco que ele jamais tinha visto. Não desempenado, como as outras pessoas, mas corcunda, de pernas tortas, com uma enorme cabeça indolente e juba de cabelo preto. O anãozinho franziu o sobrolho e o monstro também. Riu, e ele riu consigo, e afastou as mãos para os lados, tal como ele estava fazendo. Fez uma vénia escarninha e o cumprimento foi-lhe retribuído.
Avançou e ele veio ao seu encontro, copiando-lhe cada passo que dava e parando quando ele parava. O anãozinho gritou, divertido, correu, estendeu a mão, e a mão do monstro tocou a sua e era fria como gelo. Teve medo, afastou a mão, e a mão do monstro imitou-a. Tentou agarrá-la, mas qualquer coisa macia e dura o impedia. A face do monstro estava agora muito perto da sua e parecia aterrada. Sacudiu os cabelos dos olhos. O outro imitou-o. Bateu-lhe e ele respondeu-lhe, pancada por pancada. Aborreceu-se, e ele fez-lhe caras feias. Afastou-se, e o outro recuou.
Que era aquilo? Pensou um momento e olhou em redor para o resto da sala. Era estranho, mas cada coisa parecia ter o seu duplo naquela parede invisível, de água límpida. Sim, quadro por quadro era repetido, e sofá por sofá. O fauno adormecido, deitado junto à porta, tinha o seu irmão gémeo que dormitava, e a Vénus de prata, que se banhava na luz do sol, estendia os braços a uma Vénus tão bela como ela própria.
Seria o Eco? Tinha-o chamado uma vez, no vale, e ele tinha-lhe respondido, palavra por palavra. Poderia ele troçar dos olhos, como troçava da voz? Saberia fazer um mundo fictício, tal como o mundo real? Poderiam as sombras das coisas ter a cor e vida e movimento? Poderia ser que...?
Estremeceu. E, tirando do peito a rosa branca, voltou-se e beijou-a. O monstro tinha também a sua rosa, igual, pétala por pétala! Beijou-a com iguais beijos e apertou-a de encontro ao coração, com gestos horríveis.
Quando a verdade se fez luz para ele, soltou um grito de desespero e caiu por terra, soluçando. Assim, ele é que era disforme e corcunda, hediondo de ver e grotesco! Ele próprio era o monstro e era dele que todas as crianças riam e a própria princesa, que ele julgava amá-lo - também essa apenas troçara da sua fealdade e rira dos seus membros disformes. Por que o não tinham deixado na floresta, onde não havia espelhos para lhe dizerem como era hediondo? Lágrimas escaldantes lhe balhavam as faces e ele desfez em pedaços a rosa branca. O monstro, que também se havia deitado, fez o mesmo e atirou para o ar as pétalas delicadas. Depois, rojou-se pelo chão e, quando o anãozinho olhou para ele, também ele o espreitava com uma face marcada pela dor. Afastou-se, com receio de o ver, e cobriu os olhos com as mãos. Rastejou, como um animal ferido, para a sombra, e ali ficou, curtindo a sua mágoa.
Neste momento entrou a infanta com os seus companheiros e, quando viram o feio anãozinho deitado e batendo no chão com os punhos cerrados, do modo mais exagerado, soltaram longas risadas felizes e apinharam-se à sua volta, a olhá-lo.
- A dançar era engraçado - disse a infanta -, mas a representar é ainda mais engraçado. É quase tão bom como os fantoches, só um pouco menos natural.
E agitou o seu grande leque e aplaudiu. Mas o anãozinho nunca olhou para cima e os seus soluços cada vez se tornavam mais fracos. De repente, deu uma curiosa arfada e levou a mão ao peito. Depois, caiu de novo e ficou muito sossegado.
- Esplêndido - disse a infanta, depois duma pausa.
- Mas agora tens de dançar para mim.
- É verdade - exclamaram as outras crianças -, tens de te levantar e dançar, porque és tão hábil como os macacos da Barbaria e muito mais ridículo.
Mas o anãozinho não respondeu. E a infanta bateu o pé e chamou pelo tio, que passeava no terraço com o camareiro, lendo alguns documentos que acabavam de chegar do México, onde o Santo Ofício tinha sido recentemente estabelecido.
- O meu engraçado anãozinho está de mau humor - gritou -, quero que o acordem e lhe digam que dance para mim.
Eles sorriram um para o outro e entraram; D. Pedro curvou-se e bateu na face no anão com a sua luva bordada.
- Tens de dançar, petit monstra - disse. - Tens de dançar. A infanta de Espanha e das índias deseja que a divirtam.
Mas o anãozinho não se mexeu.
- Deviam mandar buscar um chicote - disse D. Pedro, enfadado.
E voltou ao terraço. Mas o camareiro tomou um ar grave, ajoelhou ao pé do anãozinho e pôs-lhe a mão no coração. E alguns momentos depois encolheu os ombros, levantou-se e, fazendo uma vénia à infanta, disse:
- Mia Bella Princesa, o vosso engraçado anãozinho não dançará mais. É pena, porque era tão feio, que talvez fizesse o rei sorrir.
- Mas por que não dançará ele mais? - perguntou a infanta, rindo.
- Porque o seu coração partiu - respondeu o camareiro.
E a infanta franziu o sobrecenho e os seus labiozinhos de pétala de rosa esboçaram um ar de desdém.
- Para o futuro, que aqueles que vêm divertir-me não tenham coração - exclamou.
E correu para o jardim.
Oscar Wilde
O melhor da literatura para todos os gostos e idades