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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRÍNCIPE PLAYBOY / Nora Roberts
O PRÍNCIPE PLAYBOY / Nora Roberts

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PRÍNCIPE PLAYBOY

 

Quando se tratava de mulheres, o prín­cipe Bennett Bisset, de Cordina, jamais recu­sou um desafio. Assim, ao conhecer lady Hannah Rothchild, o playboy arrojado e des­truidor de corações decidiu usar todo o seu charme e encanto para conquistá-la. O amor sempre foi um jogo para Bennett... Mas, com Hannah, ele sabe que as apostas aumentam a cada rodada...

 

O garanhão se lançou sobre o cume da colina, revolvendo a terra e levantando uma nuvem de poeira. Em seguida, empinou e movimentou as poderosas patas dianteiras no ar. Por um momento, a silhueta de cavalo e cavaleiro destacaram-se contra a luminosidade do céu da tarde. Um parecia tão peri­goso quanto o outro.

Ao mesmo tempo em que os cascos do animal tocavam o solo, os calcanhares do cavaleiro pressionavam seus flancos, conduzindo a ambos em um galope imprudente, rumo ao ca­minho mais íngreme. Aquele trecho da trilha era regular, mas nem um pouco suave, marcado, de um dos lados, por rochedos imponentes e, do outro, por um enorme penhasco. Percorriam-no imprimindo intensa velocidade, o que proporcionava imen­sa sensação de prazer.

Só um louco cavalgaria com tanta displicência e arrogância pela vida. Só um louco ou um sonhador.

— Avant, Drácula. — O comando foi dado em um tom de voz baixo e desafiador, assim como a gargalhada que o acom­panhou. Era o tom de um homem que considerava o medo um banquete e a velocidade o vinho.

Pássaros, assustados com o som do estrondoso tropel e com a poeira, revoaram de árvores e arbustos no precipício, for­mando frenéticos círculos em direção ao infinito. A barulheira das aves logo se dissipou. Quando o caminho serpenteou à esquerda, o garanhão o contornou, sem diminuir o ritmo. A es­trada terminava em um despenhadeiro com mais de 20 metros de altura, que se debruçava sobre as pedras brancas da orla do mar azul. Seixos eram erguidos com a poeira, para em seguida caírem silenciosamente no espaço vazio.

O cavaleiro olhou para baixo, mas não reduziu o galope. Jamais consideraria tal possibilidade.

Daquela distância, não podia sentir o cheiro da maresia. Até mesmo o estrondo das ondas batendo de encontro às rochas não podia ser claramente ouvido, era como um trovão distante e inofensivo. Mas, daquela altura, o mar parecia envolto em uma atmosfera de perigo e mistério. Todos os anos reivindicava seu tributo pelas vidas dos homens. O cavaleiro compreendia, aceitava, porque assim fora desde o início dos tempos. E assim continuaria sendo. Em ocasiões como aquela, ele se colocava nas mãos do destino e apostava tudo na própria habilidade.

O garanhão não precisava ser açoitado, nem pressionado com esporas para ser conduzido mais rápido. Como sempre, a excitação e a confiança do mestre eram suficientes. Ambos desceram o sinuoso caminho até poderem ouvir o barulho do mar e o grito das gaivotas.

Para um expectador, poderia parecer que o cavaleiro estava fugindo do diabo ou correndo para os braços de um amor Mas qualquer um que fitasse seu rosto saberia que não se tratava de uma coisa nem outra.

Se havia um brilho nos olhos escuros, não era de medo ou de antecipação. Era de puro desafio. Viver o momento e para o momento, apenas. A velocidade fazia seus cabelos pretos voa­rem livres ao vento, bem como os pêlos da crina do cavalo.

O garanhão, negro como carvão, exalava pura energia, com seu peito largo, pescoço poderoso. A pele brilhava com o suor, mas sua respiração continuava ritmada. No seu lombo, o cava­leiro se mantinha ereto. A face, estreita e bronzeada, excitada. A boca cheia e esculpida, curvada em um sorriso que expres­sava, ao mesmo tempo, negligência e prazer.

Quando o caminho se tomou mais plano, as passadas do cavalo se alongaram. Ali, os dois passaram por cabanas caia­das de branco, com varais de roupas secando à brisa marinha. Flores cobriam os jardins bem cuidados, e as janelas descorti­nadas estavam abertas. O sol, ainda alto no céu, lançava seus raios brilhantes sobre a terra. Sem diminuir o ritmo, sem preci­sar das mãos leves do cavaleiro em suas rédeas para guiá-lo, o garanhão correu para uma cerca viva tão alta quanto a cintura de um homem.

Juntos, saltaram a cerca.

Ao longe avistavam-se os estábulos. Da mesma maneira que havia perigo e atração mortal nos despenhadeiros, que ficaram para trás, havia paz e ordem no cenário à frente. Vermelhas, brancas e bem cuidadas, como o gramado que as cercava, as construções acrescentavam charme à paisagem de colinas e à vegetação. Cercas cruzadas formavam paddocks, nos quais cavalos eram exercitados, com menos intensidade que o Drácula.

Um dos cavalariços parou de conduzir uma jovem égua em círculos quando ouviu o garanhão se aproximar. Louco como um mergulhão, pensou o homem, mas não sem alguma ad­miração. Cavalo e cavaleiro, voando juntos naquele galope frenético, eram uma visão comum. Mesmo assim, dois outros cavalariços aguardaram atentos, até o animal reduzir a velo­cidade e parar.

— Alteza.

Sua Alteza, o príncipe Bennett de Cordina, deslizou do lom­bo de Drácula com uma risada que expressava imprudência.

— Cuidarei dele pessoalmente, Pipit.

O velho cavalariço deu um passo à frente com um leve co­xear. Apesar da expressão serena na face enrugada, o homem passou os olhos pelo principie e pelo garanhão, conferindo al­gum sinal de ferimento.

— Perdoe-me, senhor, mas chegou uma mensagem do pa­lácio enquanto estava fora. O príncipe Armand deseja vê-lo.

Com um pouco de pesar, Bennett entregou as rédeas ao cavalariço. Parte do prazer da cavalgada era a hora em que, normalmente, se dedicava a caminhar com o garanhão e esco­vá-lo. Mas se o pai o mandara chamar, não tinha escolha a não ser renunciar ao prazer em prol do dever.

— Cuide bem dele, Pipit. Fizemos uma longa corrida.

— Sim, senhor — disse o cavalariço, que passara três quar­tos da vida com os cavalos. Um dos seus deveres fora ensinar Bennett a montar em seu primeiro pônei. Aos 60 anos, com uma perna prejudicada por causa de uma queda, lembrava-se da energia e da paixão da mocidade. Batendo de leve no pes­coço de Drácula, achou-o úmido.

— Vou cuidar dele pessoalmente, Alteza.

— Faça isso, Pipit. — Mas Bennett demorou a soltar as cilhas. — Obrigado.

— Não precisa agradecer, senhor. — Com um suspiro aba­fado, Pipit suspendeu a sela do lombo do garanhão. — Não há outro homem aqui com nervos para lidar com o diabo. — O estribeiro murmurou algo em francês quando o cava­lo começou a se remexer Em segundos, Drácula voltou a se acalmar.

— E não há outro homem em quem eu o confiaria. Uma concha extra de ração hoje à noite não faria mal a Drácula.

Pipit encarou o elogio como se nada fosse além do seu dever.

— Como quiser, senhor.

Ainda agitado, Bennett virou-se, afastando-se dos está­bulos. Podia ter gasto a hora extra para se acalmar Galopar velozmente, sem se preocupar, satisfazia apenas parte de sua sede. Precisava de movimento, de velocidade, mas, acima de tudo, precisava de liberdade.

Há quase três meses estava preso ao palácio e ao protocolo, às pompas e aos procedimentos. Como segundo na linha de sucessão ao trono de Cordina, seus deveres, às vezes, eram menos públicos que os do irmão, Alexander, mas raramente menos árduos. Deveres, obrigações, faziam parte da sua vida desde o nascimento, e, normalmente, eram encarados como algo natural. Bennett não sabia explicar para si mesmo, muito menos para qualquer outra pessoa, por que desde o ano ante­rior começara a se revoltar contra isso.

Gabriella havia percebido. Bennett imaginou que talvez ela entendesse o que se passava com ele. A irmã também sempre tivera sede de liberdade e privacidade. E conseguira isso dois anos antes, quando Alexander se casara e o peso da responsa­bilidade saíra um pouco dos seus ombros.

Mesmo assim, nunca se esquivara dos seus deveres, pensou Bennett enquanto atravessava as portas do jardim do palácio. Se precisassem, podiam contar com ela. Ainda dedicava seis meses, todos os anos, à Associação de Ajuda às Crianças Defi­cientes, sem descuidar do seu casamento e dos filhos.

Bennett enfiou as mãos nos bolsos enquanto subia os de­graus que o levariam ao escritório do pai. O que havia de erra­do com ele? O que acontecera nos últimos meses que o fizera desejar sair na calada da noite do palácio e fugir para qualquer lugar?

Não pôde livrar-se daquele estado de espírito, mas conse­guiu acalmá-lo quando bateu à porta do escritório.

— Entrez.

Armand não estava atrás da escrivaninha como Bennett imaginara, mas sentado ao lado de uma bandeja de chá junto à janela. Em frente a ele, uma mulher, que se ergueu ao ver o principie entrar.

Como um homem que costumava apreciar as mulheres, de qualquer idade e forma, fez uma leve inspeção, antes de se virar para o pai.

— Sinto muito interrompê-los, mas fui informando que o senhor desejava me ver.

— Sim. — Armand tomou um gole de chá. — E já faz al­gum tempo. Príncipe Bennett, gostaria de lhe apresentar lady Hannah Rothchild.

— Alteza. — A mulher baixou o olhar, enquanto se curvava em uma reverência formal.

— É um prazer conhecê-la, lady Hannah. — Bennett segu­rou-lhe a mão, fazendo-a erguer-se em segundos. Atraente de um modo suave. Gostava de mulheres mais chamativas. Britâ­nica, a julgar pelo sotaque. Preferia as francesas. Esbelta e asseada. Com freqüência, sentia-se atraído pelas mais voluptuosas.

— Seja bem-vinda a Cordina.

— Obrigada, Alteza.

O sotaque era de fato britânico, culto e reservado. Por um breve instante, seus olhares se cruzaram e ele percebeu que os olhos dela eram de um verde profundo e brilhante.

— Seu país é muito bonito.

— Por favor, sente-se, minha querida — sugeriu Armand, apontando para a cadeira, enquanto vertia outra xícara de chá. — Bennett.

Hannah, com as mãos entrelaçadas sobre o colo, percebeu que o jovem príncipe olhou com antipatia para o bule. Mas sentou e aceitou a xícara.

— A mãe de lady Hannah é uma prima distante sua — co­meçou Armand. — Eve e ela se tomaram muito amigas quando seu irmão visitou a Inglaterra recentemente. A convite de Eve, concordou em ficar conosco para lhe fazer companhia.

Bennett só esperava que não quisessem que ele escoltasse a moça. Era muito bonita, entretanto se vestia como uma freira. O vestido cinza de gola alta cobria-lhe os joelhos. A cor do traje não destacava em nada a pele clara.

Os olhos livravam-lhe a face de se tomar pálida, mas os cabelos louro-escuros, presos para trás de modo tão austero, lembravam as velhas acompanhantes ou governantas vitoria­nas. Entediante, pensou ele. Mas lembrou-se de seus modos e deu-lhe um sorriso breve e sociável.

— Espero que aprecie sua permanência tanto quanto nós, em tê-la conosco.

Hannah lançou-lhe um olhar solene e desejou saber se o príncipe estava ciente, e por certo estava, do quão viril parecia com aquele casual traje de equitação.

— Tenho certeza de que apreciarei imensamente, senhor. Sinto-me lisonjeada pelo convite da princesa Eve para que per­maneça aqui enquanto ela aguarda o nascimento do segundo filho. Espero lhe proporcionar a companhia e a ajuda que ela necessita.

Embora estivesse prestando atenção à conversa, Armand ofereceu um prato de biscoitos glaçados.

— Lady Hannah foi muito generosa concedendo-nos seu tempo. É uma verdadeira literata e está trabalhando atualmen­te em uma série de composições.

Entediante, pensou Bennett e tomou um gole do odioso chá.

— Fascinante!

O mais breve dos sorrisos tocou os lábios de Hannah.

— Costuma ler Yeats, senhor?

Bennett se remexeu incomodamente na cadeira e percebeu que desejava voltar para os estábulos.

— Não muito.

— Meus livros devem chegar aqui no final da semana. Por favor, sinta-se à vontade para me pedir emprestado qualquer título que lhe interesse. — Hannah se ergueu mais uma vez, mantendo as mãos entrelaçadas. — Se me der licença, Alteza, gostaria de desfazer o restante da minha bagagem.

— Claro! —Armand se ergueu para conduzi-la até a porta.

— Nós a veremos no jantar. Chame os criados se precisar de algo.

— Obrigada, senhor. — Ela fez uma respeitosa reverência e, em seguida, estendeu a cortesia a Bennett. — Boa tarde, Alteza.

— Bonjour, lady Hannah. — Bennett esperou até que a porta se fechasse atrás dela, antes de se sentar sobre o braço da cadeira. — Bem, ela vai enfadar Eve até as lágrimas em uma semana. — Deixando o chá de lado, pegou um punhado de pequenos biscoitos. — O que deu na cabeça de Eve?

— Sua cunhada ficou muito amiga de Hannah durante as duas semanas que passou na Inglaterra. — Armand caminhou até um gabinete e, para alívio de Bennett, retirou uma garrafa de bebida. — Hannah é uma jovem culta e de excelente famí­lia. Seu pai é um importante membro do Parlamento britânico.

— O conhaque era concentrado e rico. Armand verteu o líqui­do no copo frugalmente.

— Isso é bom, mas... — Bennett calou-se de repente, en­quanto pegava um copo. — Santo Deus, papai, não está pen­sando em formar um casal aqui. Ela não faz meu tipo.

A boca firme de Armand se suavizou com um sorriso.

— Sei muito bem disso. Mas posso lhe assegurar de que lady Hannah não foi trazida até aqui para tentá-lo.

— Ela não teria essa possibilidade. — Bennett rodou o copo de conhaque, então tomou um gole. — Yeats?

— Muitas pessoas acreditam que a literatura é algo que trans­cende os manuais de equitação. — Armand tirou um cigarro do maço. Havia um nó de tensão na base do seu pescoço. Forçou-o a permanecer lá em vez de permitir que se alastrasse.

— Prefiro ler algo útil em vez de poesia sobre amores não correspondidos ou a beleza de um pingo de chuva. — Quando aquilo o fez sentir-se pequeno e sem graça, Bennett cedeu.

— Mas, em todo caso, farei o possível para proporcionar uma boa estada à nova amiga de Eve.

— Nunca duvidei disso.

Com a consciência mais tranqüila, Bennett abordou assun­tos que julgava mais importantes.

—A égua árabe deve parir por volta do Natal. Estou apostan­do que é um potro. Drácula criará filhos fortes. Tenho três cava­los que devem estar prontos para serem exibidos na primavera e outro que penso em aproveitá-lo em provas olímpicas. Gostaria de organizar isso dentro de poucas semanas, de modo que os cavaleiros possam ter mais tempo para trabalhar com o cavalo.

Armand fez um aceno displicente e continuou rodando o copo de conhaque.

Bennett sentiu o familiar sentimento de impaciência surgir e lutou para controlá-lo. Sabia que os estábulos não estavam na lista de prioridades do pai. Mas como poderiam estar, com negócios internos, relações exteriores e trapaças políticas no Conselho da Coroa?

Ainda assim, tinha que haver algo mais? Os cavalos não apenas proporcionavam prazer, mas também acrescentavam certo prestígio, já que a Casa Real de Cordina possuía um dos melhores estábulos da Europa.

Bennett considerava sua única contribuição verdadeira para a família e para o país.

Trabalhara árduo e servilmente nos estábulos como qual­quer cavalariço. Durante anos, estudara tudo que podia sobre criação. Para sua satisfação, descobrira um dom natural que acrescentara estímulos a sua educação. E em curto espaço de tempo transformara um bom estábulo, no melhor. Em mais outra década, tinha certeza, não existiria outro igual.

Mas havia horas em que precisava discutir sobre os cavalos e suas ambições com alguém que não fosse um cavalariço ou outro criador. Mas sabia, e sempre soubera, que essa pessoa dificilmente seria seu pai.

— Acho que não é hora para discutirmos esse assunto. — Bennett tomou outro pequeno gole de conhaque e esperou que o pai revelasse tudo que se passava em sua mente.

— Sinto muito, filho. Receio que não seja mesmo. — Ar­mand experimentou uma sensação de pesar Um principie não podia se dar a esse luxo. — Como está sua agenda para a pró­xima semana. Importa-se de me colocar a par?

— De fato, não. — Ele ficou inquieto outra vez. Erguendo-se, Bennett começou a caminhar de um lado para o outro. Das janelas, o mar parecia tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante, pensou. Então, ansiou pelo momento em que estaria a bordo de um navio novamente, a milhas de distância de qual­quer terra, com uma tempestade se formando no horizonte. — Sei que tenho de participar do Le Havre no fim da semana. O Independance está chegando. Há uma reunião com a Coo­perativa dos Fazendeiros e alguns almoços. Cassell preenche todas as minhas manhãs. Se for importante, posso pedir-lhe que datilografe as prioridades para o senhor. Tenho certeza de que estou cortando pelo menos alguma amarra.

— Está se sentindo preso?

Encolhendo os ombros, Bennett bebeu rapidamente o últi­mo gole de conhaque. Então, o sorriso fácil retomou-lhe aos lá­bios. Afinal, a vida era muito curta para viver se lamentando.

— As amarras é que fazem isso. O resto, pelo menos, pare­ce que vale a pena.

— Nosso povo exige de nós bem mais do que as tarefas de simples governantes.

Bennett se virou da janela. Atrás dele o sol alto e luminoso no céu. O fato de ter nascido na família real, às vezes, mascarava os desejos mais secretos de seu coração.

— Eu sei, papai. O problema é que não tenho a paciência de Alexander, a serenidade de Brie ou seu controle.

— Você pode precisar de tudo isso muito em breve. — Ar­mand pousou o copo e encarou o filho. — Deboque será liber­tado da prisão dentro de dois dias.

Deboque. A simples menção daquele nome fazia o estômago de Bennett se agitar François Deboque. O homem que dera ordens para seqüestrar Gabriella. O homem que planejara as­sassinar Armand e Alexander. Deboque!

Bennett pressionou um dedo sobre a cicatriz em seu ombro esquerdo. Levara um tiro naquele lugar, e o gatilho fora puxa­do pela amante de Deboque. Para Deboque. Por Deboque.

A bomba colocada dois anos antes na Embaixada de Pa­ris tinha como objetivo atingir seu pai. Em vez disso, matara Seward, o leal assistente, que deixou viúva e três crianças órfãs. Deboque também estava por trás disso.

E por todos aqueles anos, agora quase dez, desde que Ga­briella fora seqüestrada, ninguém conseguira provar o envol­vimento de Deboque no seqüestro, nas conspirações ou nos assassinatos. Os melhores investigadores da Europa, inclusive o cunhado, Reeve McGee, trabalharam no caso, mas nenhum conseguiu provar que Deboque era o responsável.

Agora, em poucos dias, estaria livre.

Não havia dúvida na mente de Bennett que Deboque conti­nuaria tentando se vingar. A Família Real era sua inimiga, se não fosse por outra razão, pelo fato de ter ficado trancafiado em uma prisão de Cordina por mais de uma década. E também não havia dúvida que durante todo o tempo ele continuara ne­gociando drogas, armas e mulheres.

Nenhuma dúvida e nenhuma prova!

Aumentaria o efetivo de guardas. A segurança seria refor­çada. A Interpol continuaria seu trabalho, bem como o Sistema de Segurança Internacional.

Mas tanto a Interpol quanto o SSI, durante anos, vinham tentando incriminar Deboque por assassinato e conspiração. Mas até ele ser mantido sob controle e os fios de sua organi­zação cortados, Cordina e o restante da Europa ficariam vul­neráveis.

Enfiando as mãos nos bolsos, Bennett saiu para o jardim. Pelo menos tinham jantado en famille aquela noite. Aliviado um pouco da tensão, embora muito pouco pudesse ter sido dito na frente da nova amiga de Eve. Duvidava que alguém tão reservado e empertigado teria percebido alguma tensão duran­te o jantar. A mulher apenas respondera o que lhe fora pergun­tado e tomou uma única taça de vinho ao longo da refeição.

Teria desejado que ela voltasse para a Inglaterra uma dúzia de vezes se não tivesse testemunhado o modo carinhoso com que de fato a moça tratava Eve. A cunhada estava grávida de três meses do segundo filho e não precisava de um estímulo adicional que uma conversa relacionada a Deboque suscita­ria. Dois anos antes, ela quase morrera tentando proteger Ale­xander. Se lady Hannah conseguisse manter a mente de Eve afastada de Deboque, mesmo que por algumas horas no dia, a inconveniência de tê-la no palácio valeria a pena.

Precisava conversar com Reeve. Bennett enfiou as mãos crispadas nos bolsos. Reeve MacGee era mais que o marido da irmã. Como chefe de segurança, o cunhado teria algumas respostas. E ele, certamente, teria dúzias de perguntas. Preci­sariam fazer mais do que colocar guardas extras. Recusava-se a passar as próximas semanas às cegas, enquanto outros traba­lhavam para proteger sua família.

Blasfemando baixinho, olhou para a lua em um céu sem nuvens. Em outra ocasião, com o perfume do jardim flutuando ao seu redor, teria desejado uma mulher a seu lado para con­templarem a beleza do infinito. Agora, sentindo-se frustrado, preferia a solidão.

Ao ouvir os cachorros latindo, seu corpo enrijeceu. Imagi­nou que estivesse só. Estava quase certo disso. Em todo caso, seus velhos cães de caça jamais latiam para a família ou para os criados. Na expectativa de um confronto, Bennett cami­nhou devagar na direção do barulho.

Naquele instante, ouviu a risada dela e o som o pegou de surpresa. Não era reservado e afetado, mas rico e encantador Enquanto a observava, Hannah se curvou para acariciar os cães, que se esfregavam em suas pernas.

— Mas, vejam, que casal adorável vocês formam. — Sor­rindo, ela se curvou mais ainda para afagá-los. A luz do luar iluminou-lhe a face e o pescoço.

De imediato, os olhos de Bennett se estreitaram. Não pare­cia desbotada e sem graça naquele momento. O luar acentua­va-lhe as reentrâncias e os contornos da face, enriquecendo a pele inglesa acetinada e aprofundando ainda mais seus olhos verdes. Poderia jurar que vira força e paixão naquele olhar. E era um homem capaz de reconhecer ambos em uma mulher A risada dela flutuou novamente, tão rica quanto a luz do sol, tão abafada quanto à névoa.

— Não, não devem saltar — disse ela aos cachorros que a circulavam. — Jogarão lama em cima de mim, e como vou explicar isso?

— Normalmente, é melhor não explicar nada.

Hannah ergueu a cabeça ao ouvir a voz de Bennett. Ele viu surpresa em sua expressão, ou pensou ter visto. Quando a jo­vem se endireitou, voltou a ser a calma e discreta lady Hannah. Ele atribuiu a paixão, que pensara ter visto, a um efeito de luz.

— Boa noite, Alteza. — Por um momento, Hannah se amaldiçoou por ter sido pega distraída.

— Não sabia que havia mais alguém no jardim.

— Nem eu. — E ela deveria saber — Peço que me des­culpe.

— Não se preocupe. — Bennett sorriu para deixá-la à von­tade. — Sempre achei que estes jardins não são desfrutados como deveriam. Não conseguiu dormir?

— Não, senhor. Sempre fico muito agitada quando viajo.

— Os cachorros a abandonaram por Bennett. Ela permaneceu ao lado do jasmim em flor e o observou acariciar os animais com aquelas mãos fortes e hábeis. Sabia que inúmeras mu­lheres haviam desfrutado daquele mesmo toque carinhoso.

— Avistei os jardins da minha janela e imaginei que pudesse fazer uma caminhada. — Na verdade, fora o perfume, exótico e atraente, que a levara a parar repetidas vezes após ter obser­vado o layout do espaço.

— Prefiro-os à noite. As coisas parecem diferentes à noite — continuou ele, estudando-a. — Não acha?

— Naturalmente. — Ela uniu as mãos abaixo da cintura. O príncipe era maravilhoso de se olhar, tanto à luz do sol quanto ao luar. Quando ele adentrara o escritório do pai naquela tar­de, ela achou que o traje de equitação valorizava a aparência dele. Os cachorros voltaram a pressionar os focinhos contra as mãos dela.

— Eles gostam de você.

— Sempre fui apaixonada por animais. — Hannah separou as mãos para acariciar os cães. Bennett notou, pela primeira vez, que as mãos dela eram delicadas, longas e finas como o restante do corpo. — Como eles se chamam?

— Boris e Natasha.

— Nomes adequados para cães de caça russos.

— Ganhei-os ainda filhotes. E lhes dei esses nomes por causa de um desenho animado norte-americano. Espiões.

As mãos dela hesitaram por um segundo.

— Espiões, Alteza?

— Espiões russos ineptos que estavam sempre às voltas com um alce e um esquilo.

Bennett teve a impressão de ter visto, outra vez, o flash de humor dar um colorido especial à face de Hannah.

— Compreendo. Eu nunca fui à América.

— Não? — ele se aproximou, mas não viu nada além de uma jovem com uma boa estrutura óssea e maneiras reservadas.

— É uma nação fascinante. Cordina ficou mais unida a esse país quando dois membros da família Real se casaram com norte-americanos.

— Um fato que desapontou vários europeus esperançosos, tenho certeza. — Hannah relaxou bastante para curvar os lá­bios num sorriso cauteloso. — Conheci a princesa Gabriella vários anos atrás. Ela é uma mulher muito bonita.

— Sim, ela é. Sabe, estive várias vezes na Inglaterra. É estranho nunca termos nos encontrado.

Hannah permitiu que seu sorriso se prolongasse um pouco mais.

— Mas nós nos encontramos, Alteza.

— Boris, sente — Bennett ordenou ao cachorro que colo­cou uma pata no vestido de Hannah. — Tem certeza?

— Claro, senhor. Mas não é de admirar que não se lembre. Foi em um baile de caridade oferecido pelo príncipe de Gales, vários anos atrás. A rainha mãe o apresentou a mim e a minha prima, lady Sara. Creio que Vossa Alteza e Sara se tomaram... amigos.

— Sara? — ele tentou se lembrar Sua memória, sempre tão boa, era impecável quando se tratava de mulheres. — Sim, claro. — No entanto, lembrava de Hannah apenas como uma vaga sombra ao lado da fascinante e glamourosa prima. — Como está Sara?

— Muito bem, senhor — Se havia sarcasmo no tom de voz, foi encoberto pelo modo educado de falar — Alegremente casada pela segunda vez. Devo lhe transmitir lembranças suas?

— Se desejar... — Bennett enfiou as mãos novamente nos bolsos e continuou a estudá-la. — Você estava usando um ves­tido azul, azul-claro quase branco.

Hannah ergueu as sobrancelhas. Ninguém precisava lhe di­zer que o príncipe mal a notara. E o fato de não tê-la notado e ainda assim se lembrar da cor do vestido que ela usara a fez pensar por um momento: uma memória assim poderia ser conveniente ou muito perigosa.

— Isso me deixa lisonjeada, Alteza

— E uma política minha nunca esquecer uma mulher.

— Sim, acredito.

— Minha reputação me precede. — O rosto se contraiu para em seguida ceder lugar a um sorriso displicente. — Não fica preocupada em estar no jardim, sozinha, ao luar com...

— O Libertino Real? — concluiu Hannah.

— Você lê — Bennett murmurou.

— Incessantemente. E não, Alteza, sinto-me bastante con­fortável, obrigada.

Bennett abriu a boca e riu, e a fechou outra vez.

— Lady Hannah, raramente fui colocado em meu lugar com tanta clareza.

Então ele era rápido, outro detalhe que ela não podia es­quecer.

— Perdoe-me, Alteza. Não tive essa intenção.

— Claro que não, mas foi bem-feito. — Ele segurou a mão dela e a achou fria e firme. Talvez ela estivesse se revelando uma pessoa interessante e não a estúpida que ele imaginara. — Eu é quem deveria implorar seu perdão por tentar seduzi-la, mas não vou fazê-lo já que, obviamente, você se defende muito bem. Estou começando a entender por que Eve a quer aqui.

Hannah aprendera a bloquear qualquer forma de culpa mui­to tempo atrás. E usou do artifício naquele momento.

— Tornamo-nos muito amigas em pouco tempo e fiquei en­cantada com a oportunidade de passar alguns meses em Cor­dina. Confesso que já estou apaixonada pela pequena princesa Marissa.

— Com apenas um ano de idade já está regendo o palácio.

Os olhos de Bennett se suavizaram ao pensar na primeira filha do irmão.

— Talvez seja porque se parece com Eve.

Hannah afastou a mão. Os rumores davam conta de que Bennett fora meio apaixonado ou possivelmente mais do que meio apaixonado pela esposa do irmão. Não precisava de muito talento para uma observadora como ela perceber o afeto na voz do príncipe. Disse a si mesma para registrar aquilo. Poderia ou não ter utilidade no futuro.

— Se me dá licença, senhor, vou voltar para o meu quarto. — Ainda é cedo. — Bennett relutou em deixá-la partir Não esperava achar tão fácil conversar com ela ou sentir prazer em falar com aquela mulher.

— Tenho hábito de me deitar cedo.

— Vou acompanhá-la até o palácio.

— Por favor, não se preocupe. Sei o caminho. Boa noite, Alteza.

Hannah desapareceu depressa em meio às sombras, en­quanto os cães ganiam e abanavam as caudas contra as pernas dele.

O que havia de estranho com aquela mulher?, desejou saber Bennett ao se abaixar para acalmar os animais. A primeira vista, parecia bastante insípida para se confundir com o pa­pel de parede, entretanto agora... Ele não sabia. Mas enquanto caminhava de volta ao palácio, com os cachorros em seu en­calço, resolveu descobrir. Se não conseguisse refletir sobre as maneiras reservadas de lady Hannah, pelo menos evitaria que pensar em Deboque.

Hannah não esperou para ver se o príncipe a seguia. Ain­da assim, caminhou depressa através dos portões do jardim. Nascera com o talento de se mover furtivamente e passar tão despercebida que sua falta poderia não ser notada em um gru­po de três pessoas. Era um talento que transformara em habi­lidade e que lhe servia muito bem.

Subiu os degraus sem fazer barulho, sem olhar para trás. Se tivesse que conferir se estava sendo seguida, já estaria em difi­culdade. Dentro do quarto, fechou a porta e retirou as práticas sandálias. Porque a mulher que ela pretendia ser jamais deixa­ria suas roupas espalhadas. Hannah as apanhou e, com apenas um breve olhar de insatisfação, colocou-as no armário.

Certificando-se de que as cortinas estavam fechadas, reti­rou o desagradável vestido de noite.

Embora pensasse que merecia ser jogado no lixo, pendu­rou-o cuidadosamente em um cabide decorado.

Estava parada agora: uma mulher com curvas discretas, pele clara e pernas longas em uma minúscula camisola renda­da. Retirando os grampos dos cabelos, deixou-os cair pesada­mente até a cintura com um suspiro de puro prazer

Qualquer pessoa que conhecesse lady Hannah Rothchild fi­caria boquiaberta com aquela transformação total, tão conhe­cido era o papel que ela representava há quase dez anos.

Lady Hannah tinha paixão por sedas e rendas bretãs, mas as restringia às roupas de dormir e às lingeries. Linhos e tecidos de lã eram mais adequados à imagem que trabalhara ardua­mente para criar.

Lady Hannah gostava de ler livros de suspense, em uma banheira de espuma, mas mantinha uma cópia de Chaucer na mesa-de-cabeceira, e, se questionada, poderia citar e discutir um punhado de passagens da obra.

Não era uma questão de dupla personalidade, mas de ne­cessidade. Se pensasse mais profundamente no assunto, diria que se sentia confortável com ambos os egos. Na realidade, gostava mais da insípida, educada e marginalmente bela Han­nah. Caso contrário, jamais poderia tolerar os incômodos sa­patos por períodos tão longos.

Mas havia outra parte de lady Hannah Rothchild que era apenas a filha de lorde Rothchild, neta do conde de Fenton.

Essa parte não era reservada e modesta, mas astuta e, às vezes, estouvada. E mais: essa parte adorava o perigo e sua mente absorvia e armazenava os mínimos detalhes.

Combinadas, essas duas partes de lady Hannah Rothchild formavam uma excelente e altamente qualificada agente.

Ignorando o roupão, abriu a gaveta superior e retirou uma caixa comprida e fechada. Dentro havia um colar de pérolas que pertencera a sua bisavó, bem como um par de brincos que o pai restaurara para o 21º aniversário da filha. Nos compartimentos da caixa haviam várias outras peças adequadas a uma jovem de sua classe.

Hannah retirou um bloco do fundo falso, levou-o até a escrivaninha de pau-rosa e começou a escrever seu relatório diário. Não fora ao jardim apenas para sentir o perfume das rosas, embora tivesse se demorado um pouco mais por causa delas. Agora tinha o esquema completo e não precisaria mais contar com as informações que chegavam até ela. Aproveitara o tempo para fazer um esboço do palácio, inclusive das portas e janelas de fácil acesso. No dia seguinte, ou em dois dias no máximo, teria uma relação de todos os guardas.

Não levara muito tempo para se tomar amiga de Eve. Con­seguir um convite para se hospedar no palácio em Cordina fora muito fácil. Eve sentia falta da irmã e da familiaridade do próprio país. Precisava de uma amiga. Alguém com quem pudesse conversar, com quem pudesse compartilhar o prazer que sentia com a filha.

Hannah lhe fizera um favor

Outra vez, sentiu uma pontada rápida de culpa, mas a ig­norou. Trabalho era trabalho, lembrou-se. Não podia deixar o afeto que sentia por Eve interferir no projeto no qual começara a trabalhar dois anos atrás.

Sacudindo a cabeça, fez as primeiras anotações sobre Ben­nett. O príncipe não era exatamente o que ela esperara, pensou. Oh, na verdade era encantador e tão atraente quanto seu dossiê informava, mas dispensara à insípida lady Hannah seu tempo e atenção.

Um mulherengo egoísta, lembrou-se. Chegara a tal conclu­são após fazer uma pesquisa sobre ele. Talvez estivesse um pouco entediado e quisesse estimular os pensamentos, distraindo-se com uma mulher vulnerável e acessível.

Estreitando os olhos, recordou o modo como Bennett sorriu para ela. Um homem com aquela aparência, posição e expe­riência sabia como usar um sorriso ou uma palavra agradável para encantar uma mulher de qualquer idade ou classe. O fato é que fazia isso com surpreendente regularidade, como estava documentado. Talvez quisesse acrescentar outra jóia à sua coroa, seduzindo-a.

Hannah lembrou-se da silhueta máscula banhada pelo luar, o brilho ardente nos olhos escuros, quando ela o provocou. A mão firme e forte que segurou a sua... Era a mão de um ho­mem que fazia mais do que acenar para seu povo.

Meneando a cabeça mais uma vez, forçou-se a ser prática. Não adiantaria considerar um flerte com Bennett por prazer, mas por sua utilidade. Pensativa, bateu com a ponta do lápis no bloco. Não, um romance com Bennett só conduziria a com­plicações, não importava o quão vantajoso poderia ser no final das contas.

Abaixando o olhar, cruzou as mãos. Com cuidado, Hannah escondeu o caderno novamente e reposicionou o fundo falso. A caixa foi fechada, mas deixada à vista de qualquer um que mexesse em sua cômoda.

Ela estava ali dentro, disse a si mesma com um crescen­te sentimento de antecipação, enquanto olhava ao redor do quarto.

Quando Deboque saísse da prisão, dentro de dois dias, ficaria muito contente.

 

— Oh, Hannah, estou tão feliz por você ter concordado em ficar por algum tempo. — De braço dado com a nova ami­ga, Eve contornou o cenário de fundo do teatro. Seu corpo permanecia tão esbelto quanto nos primeiros meses de gra­videz, mas o vestido fora habilmente confeccionado de modo a disfarçar o menor ganho de peso. — Alex não precisa me paparicar tanto agora que você está aqui. Ele a acha muito sensata.

— Eu sou uma pessoa sensata.

O riso de Eve inundou seu sotaque lento do Texas.

— Reconheço a importância da preocupação dele, mas você nem sempre fica me dizendo para sentar e pôr os pés para cima.

— Os homens, às vezes, pensam que a gravidez e o parto são uma doença traumática em vez de encará-los como um fato da vida.

— É exatamente isso. — Encantada com a inteligência prática de Hannah, Eve a conduziu até o escritório. Com Ga­briella a maior parte do tempo na América e sua própria irmã visitando-a raramente, de fato ansiava pela companhia de ou­tra mulher para relaxar um pouco. — Alex continua me pou­pando de tudo achando que vou desmaiar ou me emocionar demais. Nunca me senti tão bem em toda a minha vida, exceto talvez quando estava esperando Marissa.

Jogando a cascata escura de cabelos para trás, Eve sentou-se na extremidade da escrivaninha. Ali, pelo menos, ainda po­dia desfrutar um pouco da privacidade que perdera quando se casara com um príncipe. Embora nunca lamentasse o sacrifício, às vezes gostava de ficar um pouco sozinha.

— Se você não tivesse vindo, eu teria de lutar com unhas e dentes para continuar trabalhando. Alex só concordou porque achou que você ficaria de olho em mim quando ele estivesse ocupado.

— Então não vou desapontá-lo. — Hannah fez uma ins­peção rápida no escritório. Nenhuma janela, nenhum acesso externo. Com um sorriso, escolheu uma cadeira. — Sabe, Eve, realmente a admiro. O Centro de Belas Artes sempre teve uma boa reputação, mas, desde que você o assumiu, este teatro se tomou um dos mais importantes da Europa.

— Foi o que sempre desejei. — Eve olhou para a aliança de diamantes em seu dedo. Mesmo passados dois anos, às vezes ainda se surpreendia ao vê-la. — Sabe, Hannah, al­gumas manhãs quase tenho medo de acordar e ver que tudo não passou de um sonho. Então, olho para Alex e Marissa e penso: eles são meus. Realmente meus. — Seus olhos nu­blaram por um momento num misto de medo e determina­ção. — Não deixarei que nada ou qualquer pessoa lhes faça mal.

— Ninguém fará isso. — Os pensamentos de Eve estavam em Deboque, imaginou Hannah. A princesa se esforçava para manter seus medos para si. — Agora, sem querer paparicá-la, acho que poderíamos tomar uma xícara de chá, e em segui­da você pode me mostrar o tipo de trabalho que posso fazer aqui.

Eve se esforçou para se recuperar Pesadelos com Deboque, um homem que ela nunca vira, continuavam a atormentá-la.

— Chá é uma idéia maravilhosa, mas não a trouxe ao Cen­tro para trabalhar. Achei que gostaria de conhecê-lo.

— Eve, você mais do que ninguém deveria entender que preciso fazer algo ou morrerei de tédio.

— Mas pensei que sua estada aqui pudesse representar umas férias para você.

Hannah sentiu uma pontada de culpa.

— Algumas pessoas não são feitas para tirar férias.

— Certo então. Por que não assiste aos ensaios comigo por uma ou duas horas e me dá uma opinião honesta?

— Eu adoraria.

— Ótimo. Estou preocupada com a estréia. Só nos restam mais duas semanas e tive muitos problemas com esse drama­turgo.

— Oh, quem é ele?

Eve respirou fundo. — Eu.

Hannah bebeu o chá e permaneceu no fundo do palco. Não levou muito tempo para perceber que Eve era respeitada não apenas como a esposa do herdeiro do trono, como também por seu conhecimento sobre teatro. Também notou que havia guardas, não muitos, sempre por perto, vigiando-a.

Quando a princesa estava no teatro, todas as entradas eram bloqueadas, a segurança duplicada em todas as portas. Tam­bém estava ciente de que uma unidade especial de segurança checava o Centro diariamente à procura de explosivos.

Sentada ao lado de Eve, Hannah assistiu ao ensaio. Sem­pre tivera afeto e respeito pelos atores, porque estava a par do esforço e da habilidade que lhes eram exigidos para atuarem. Agora, enquanto as falas eram ensaiadas e o cenário montado, ela relacionava os membros da equipe com as informações que compilava sobre cada um deles.

Eram de fato talentosos, pensou Hannah enquanto estava envolvida com o ritmo e a emoção da peça da amiga. Os cená­rios ainda estavam inacabados, mas os atores não precisaram de mais do que as palavras de Eve e a própria habilidade para montarem uma cena. Cada um deles tinha uma reputação no teatro e passara por uma completa investigação.

Afinal, fora um ator, Russ Talbot, quem quase levara a cabo a vingança de Deboque dois anos atrás. Hannah não podia es­quecer que havia uma forte possibilidade de que, assim como ela, alguém poderia ter se infiltrado. Deboque era conhecido por cobrir suas apostas.

— Ela é maravilhosa, não é?

Deixando as conjecturas de lado, Hannah olhou para Eve.

— Desculpe, não estava prestando atenção.

— Chantel O’Hurley. Ela é primorosa. — Remexendo-se na cadeira, Eve curvou-se sobre o espaldar do assento à sua frente. — Raramente faz peças de teatro, logo temos sorte de tê-la conosco. Tenho certeza de que já a viu atuando em filmes na Inglaterra.

— Sim. — Hannah concentrou toda sua atenção na loura curvilínea no centro do palco.

Chantel O’Hurley! Ela fez uma pausa para lembrar de tudo que leu no arquivo da atriz. Vinte e seis anos. Estrela de ci­nema norte-americano. Residência, Beverly Hills. Filha de Francês e Margaret O’Hurley, artistas ambulantes. As irmãs, Abigail e Madeleine. Irmão, Trace.

Hannah fez uma careta e continuou assistindo. Tinha muita informação sobre a família inteira de O’Hurley, exceto sobre o irmão. Aí suas fontes minguaram. Em todo caso, Chantel O’Hurley era uma atriz talentosa, com uma lista impressio­nante de filmes em seu currículo e nenhuma ligação conhe­cida com qualquer grupo político. No entanto, ficaria de olho nela.

— Ela interpreta com o coração — murmurou Eve. — Ter­minei a peça e estava tentando encontrar coragem para produ­zi-la quando a vi em seu último filme. Então, soube imedia­tamente que ela seria a atriz perfeita para interpretar a Julia.

— Respirando fundo, Eve reclinou-se para trás novamente, num movimento relaxado não condizente com uma princesa.

— Mal posso acreditar que ela está aqui, recitando meu texto. Não há uma emoção que essa voz não consiga extrair.

— Tenho certeza que ela deve se sentir honrada por estar interpretando uma peça escrita e produzida pela princesa Eve de Cordina.

Com um meio sorriso, Eve sacudiu a cabeça.

— Se a peça fosse ruim, eu podia ser a imperatriz da Eu­ropa, mas Chantel não aceitaria participar. Foi isso que mais me animou.

— Um membro da Família Real não escreve peças ruins. Ao ouvir o som da voz atrás dela, Eve estremeceu.

— Alexander! O que está fazendo aqui?

— Também tenho interesses no Centro. — O príncipe herdei­ro beijou a mão da esposa, antes de se virar para Hannah. — Por favor, mantenham-se sentadas, não pretendia perturbá-las.

— Não. — Eve suspirou e olhou para trás, onde os ensaios continuavam. — Só pretendia me controlar.

Aquilo era de fato verdade, mas Alexander apenas encolheu os ombros. Sob a luz tênue, Hannah percebeu o olhar dele se dirigir aos guardas colocados em vários pontos estratégicos.

_Esquece-se, ma mie, que ainda sou o presidente do Centro.

Além disso, a peça da minha esposa está sendo ensaiada. Te­nho um pouco de interesse nisso, também.

— E veio para se certificar se eu não estava ficando de pé por muito tempo. — O amor falou mais alto que a frustração e Eve se ergueu para beijá-lo. — Obrigada. Hannah, diga a Sua Alteza que tomei cuidado durante as quatro horas e quarenta minutos desde que ele me viu pela última vez.

— Alteza — começou Hannah com submissão —, a prince­sa tem se cuidado muito bem.

Um sorriso suavizou as feições do príncipe, que continuou de pé, protetoramente, ao lado da esposa.

— Obrigado, Hannah. Tenho certeza de que foi graças a você.

Com um riso baixo, Eve comprimiu a mão no abraço de Alexander

— Hannah, como você pode ver eu não estava brincando quando disse que Alex pensa que preciso de um guardião. Se você não tivesse vindo, não duvidaria que ele contratasse um lutador com mais de 100 quilos e cheio de tatuagens para me proteger

— Fico feliz por salvá-la de tal constrangimento. — Mas o que era aquilo?, Hannah desejou saber. Uma pontada de inveja? Mesmo achando ridículo, reconheceu a emoção en­quanto estudava Alexander e Eve. Bastante apaixonados, pensou. O poder daquele amor criava uma aura ao redor dos dois. Será que percebiam como era raro o que haviam encontrado?

— Agora que já as interrompi — disse Alexander —, gos­taria de convidá-las para almoçarem comigo e com o senador norte-americano.

— O ianque do Maine.

Com um sorriso, Alexander acariciou a face da mulher.

— Minha querida, continua a me fascinar o modo como o país se divide em seções. Mas, sim, é o ianque do Maine.

 

Devemos terminar o almoço antes das 15h e estaremos de vol­ta ao palácio quando Marissa despertar do cochilo.

— Mas você tem uma reunião esta tarde.

— Cancelei. —Alex levou a mão dela aos lábios. — Quero passar algum tempo com minha família.

O brilho de prazer iluminou o teatro.

— Dê-me cinco minutos para pegar minhas coisas. Han­nah, vai conosco?

— Se não se importarem, eu realmente gostaria de ficar e assistir ao restante do ensaio. — Sua mente já estava traba­lhando à frente. Sozinha, poderia fazer uma excursão casual pelo complexo. Se houvesse qualquer ponto vulnerável, ela o acharia.

— Claro, fique quanto tempo desejar. — Eve se curvou e beijou-lhe a face. — Deixaremos um carro à sua espera na porta do teatro. Cinco minutos — repetiu ao marido antes de sair apressada.

— O que acha da peça? — Alexander perguntou a Hannah, enquanto se acomodava ao seu lado.

— Não sou expert em teatro, Alteza.

— Quando estivermos a sós, por favor me chame de Ale­xander

— Obrigada — murmurou ela, atenta ao fato de que aquilo lhe conferia uma intimidade concedida a poucos. — Há uma intensidade, uma imediação no diálogo que faz a pessoa se concentrar profundamente nos personagens. Não sei como termina, mas estou torcendo para que Julia ganhe, mesmo re­ceando que isso não aconteça.

— Eve deveria ouvir isso. A peça e... outras coisas a estão deixando muito tensa.

— Está preocupado com ela. — Num gesto de puro instin­to, Hannah colocou a mão sobre a dele. — Ela é muito forte.

— Eu sei disso, melhor que ninguém. — Mas Alex jamais fora capaz de esquecer como o corpo dela enrijecera em seus braços quando uma bala a atingiu. — Ainda não tive oportunidade de lhe dizer o quanto estou grato por ter vindo para ficar com ela. Eve precisa de amigos. Mudei a vida dela, por egoísmo, talvez, porque não sei viver sem ela. Então, tudo que eu possa fazer para dar uma sensação de normalidade e paz à vida dela, farei. Você conhece as obrigações da realeza. As limitações. Até mesmo os riscos.

— Sim, conheço. — Hannah deixou a mão sobre a dele um pouco mais e depois afastou-a. — E reconheço uma mulher feliz quando vejo uma.

Quando o príncipe se virou para encará-la, Hannah notou a forte semelhança entre ele e o pai. A face estreita, quase sábia, as linhas aristocráticas, a boca firme.

— Obrigado, Hannah. Acho que sua permanência aqui fará bem a todos nós.

— Assim espero. — Ela olhou de novo para o palco, para os atores e para o desempenho deles. — De fato, é o que es­pero.

Sozinha, Hannah assistiu ao ensaio por mais meia hora. Sim, a peça era boa, decidiu, fascinante, mas ela tinha outros assun­tos a tratar.

Os guardas permaneceram em seus lugares, mas sem a pre­sença da realeza estavam ali mais com a finalidade de manter os outros do lado de fora, monitorando os que se encontravam no interior. Lady Hannah já ficara conhecida como a confiden­te e companheira da princesa. Pessoa de confiança do príncipe Armand. Portanto, não foi seguida quando se levantou e saiu por uma porta lateral.

Havia uma minimáquina fotográfica escondida em um porta-batom dentro da sua bolsa, mas Hannah não a usaria ainda. O treinamento lhe ensinara a confiar em seus poderes de ob­servação, primeiro, depois, nos equipamentos.

Um prédio do tamanho do Centro não era fácil de ser con­trolado pelos seguranças. Hannah acenou com respeito para Reeve MacGee enquanto caminhava. Havia sensores e câmeras escondidas. Mas os sensores só eram ativados quando o Centro era fechado.

Os membros do elenco e os funcionários usavam crachás de segurança. Nas noites de espetáculo, porém, a entrada era franqueada com a simples compra de um ingresso. Deboque deixaria a prisão em um dia.

Enquanto caminhava, passando de um corredor a outro, Hannah repassava a planta baixa do Centro, que estudara, mas preferia percorrê-lo, vê-lo, tocar as paredes e o piso.

Muitos cantos fechados, pensou. Muitas salas pequenas usadas para armazenamento. Muitos lugares para se esconder Mesmo com a perícia de Reeve, a edificação poderia se tomar vulnerável a um plano bem elaborado de ataque. Entretanto, qualquer prédio poderia ser, concluiu Hannah.

Ela se virou para o vestiário, fingindo interesse casual pelas fantasias. Será que o guarda na porta conhecia todos apenas de vista? Seria fácil substituir um dos técnicos? O crachá tinha uma foto do portador, mas maquiagem e apliques poderiam resolver o problema. Com que freqüência ela, ou outra pessoa como ela. obteria acesso a um lugar falsificando credenciais ou usando um disfarce inteligente?

Uma vez no interior, um homem poderia desaparecer facil­mente. E se um homem no painel de segurança fosse subornado ou substituído, tanto melhor

Sim, anotaria aquela opção no relatório e deixaria seus su­periores ruminando sobre aquilo durante algum tempo. Acres­centaria o fato de que ninguém conferira a bolsa dela. Um ex­plosivo de plástico pequeno podia ser carregado e posicionado com extrema facilidade.

Entrou no vestiário em um corredor cercado de espelhos. Um tanto surpresa, contemplou seu reflexo de todos os lados.

Então, como fizera no jardim, deixou escapar uma risada baixa e leve.

Oh, Hannah, pensou desgostosa, como está sofrível. Virando-se de lado, meneou a cabeça. Não, definitivamente, mar­rom não combinava com ela, e o casaco de gola alta com seu cinto grosso só a fazia parecer demasiado magra. A saia, bem abaixo dos joelhos, escondia-lhe as pernas. Trançara os cabe­los firmemente, aquela manhã, e, em seguida, o enrolara num coque na base do pescoço.

Ser parte dela mesma era o melhor disfarce que poderia ter concebido. Fora uma criança muito magra, com cabelos maltratados e joelhos sempre machucados. Os ossos faciais sempre foram proeminentes, mas no rostinho de uma menina pareciam muito evidentes, muito angulosos.

Então, quando as outras meninas da sua idade começaram a florescer e a exibir curvas, seu corpo teimava em permanecer esguio. Era brilhante, atlética e alegre. Os meninos lhe davam tapinhas nas costas e a chamavam para praticar esportes, mas jamais se interessavam em levá-la para dançar

Aprendera a montar, nadar, praticar tiro ao alvo e acertar uma flecha no olho de um búfalo a cem passos de distância, mas não a namorar. Aprendera a falar russo, francês e cantonês o suficiente para impressionar o próprio pai, mas fora sozinha ao próprio baile de formatura.

Ao completar 20 anos, seu corpo mudou, mas preferiu es­conder as curvas tardias sob roupas sombrias. Já havia traçado um caminho para sua vida. Beleza virava cabeças e na sua área era melhor passar despercebida.

Agora, olhando para os resultados nos espelhos, ficou sa­tisfeita. Nenhum homem a desejaria. Fazia parte da natureza humana valorizar mais o aspecto físico do que o intelecto ou a alma. Nenhuma mulher a invejaria. A insípida estava segura, afinal de contas.

Ninguém suspeitaria que uma mulher erudita, com aparên­cia comum, excelente criação e maneiras sociais reservadas, seria capaz de fingir ou ser violenta com alguém. Apenas um seleto grupo sabia que a mulher oculta era capaz de ambos.

Por uma razão que não saberia dizer, aquele pensamento a fez deixar as reflexões de lado. Fingir sempre fizera parte da sua vida adulta, mas, mesmo assim, não podia deixar de sentir uma pontada de culpa sempre que Eve a fitava como amiga.

Era seu trabalho, Hannah lembrou-se. Nenhuma ligação emocional, nenhum envolvimento era permitido. Esta era a primeira e a mais importante regra do jogo. Não podia se permitir gostar de Eve, pensar na princesa até como alguém além de um ícone político. Caso contrário, tudo que lutara para con­seguir estaria perdido.

Também não podia sentir inveja, lembrou-se Hannah. Era uma atitude perigosa permitir-se contemplar o amor entre o príncipe e Eve e desejar algo semelhante para si. Não havia lugar para o amor em sua profissão. Apenas metas, compro­missos e riscos.

Não haveria nenhum príncipe para ela, real ou imaginário. Mas, antes que pudesse evitar, seus pensamentos direcionaram-se a Bennett e para o modo como ele lhe sorriu ao luar.

Idiota, disse a si mesma, e começou a ajeitar alguns gram­pos soltos. Ele era a última pessoa no mundo com quem devia pensar em se envolver. Se não por outra razão, havia o dossiê do príncipe e a surpreendente lista de mulheres que haviam feito parte da sua vida.

Usá-lo, sim, prosseguiu pensando, mas não pensar em Ben­nett como algo mais do que um meio para chegar um fim. Suas fantasias românticas haviam terminado aos 16 anos. Dez anos depois, em meio ao seu mais importante trabalho, não era hora de começar a revivê-las.

Faria tudo para se lembrar que a séria lady Hannah jamais olharia para Sua Alteza Real, o príncipe Bennett de Cordina, com um brilho romântico no olhar.

Mas a mulher em seu interior sonhava, e por um momento se apoiou nas paredes que construíra a seu redor.

Hannah se virou a fim de olhar para trás, para os espelhos, quando ouviu passos.

Imediatamente alerta, baixou o olhar e saiu do vestiário.

— Ah, aí está você.

Ao ouvir a voz de Bennett, Hannah blasfemou em pensa­mento, mas fez uma reverência respeitosa.

— Alteza.

— Fazendo uma excursão? — ele se aproximou, desejando saber por que ela parecia tão sem graça quanto uma tia solteirona e mesmo assim continuava a intrigá-lo.

— Sim, senhor. Espero que não haja problema.

— Claro que não. — Bennett segurou-lhe a mão, desejando que ela o encarasse. Havia algo nos olhos dela... Ou talvez fosse sua voz, o frio e sereno sotaque britânico. — Vim tratar de negócios na cidade. Alexander sugeriu que quando eu ter­minasse viesse ver se você estava pronta para voltar.

— É muita gentileza da sua parte. — Oh, como ela teria preferido um motorista silencioso, anônimo, que lhe desse a oportunidade de redigir seu relatório no trajeto de volta ao palácio.

— Eu estava aqui perto. — Bennett sentiu uma onda de inquietação dominá-lo quando ela afastou a mão. — Se quiser ver mais, eu ficaria feliz de mostrar-lhe o restante do Centro.

Hannah ponderou os prós e os contras em questão de se­gundos. Outra inspeção rápida poderia acrescentar algo, mas ela já havia passado pelo teatro principal duas vezes: uma, com Eve; a outra, sozinha. Podia começar a parecer estranho, se voltasse lá com Bennett.

— Não, obrigada. É um lugar fascinante. Nunca vi um tea­tro por esse lado.

— O território de Eve. Confesso que prefiro vê-lo das fi­leiras do meio. — Bennett segurou o braço de Hannah e co­meçou a conduzi-la ao longo do corredor. — Se permanecer muito tempo perto dela, ela logo achará algo para você fazer. Comigo, normalmente, é carregar caixas. Caixas pesadas.

Rindo, Hannah inclinou a cabeça e o fitou.

— É uma das melhores utilidades que uma mulher pode achar para um homem.

— Agora entendo por que Eve se identificou tanto com você. — Ele viera para fazer um simples favor à cunhada, mas agora se sentia contente. Aparências à parte, lady Hannah era qualquer coisa, menos entediante. Talvez pela primeira vez na vida Bennett estivesse começando a enxergar algo além do corpo em uma mulher. — Já visitou muitos lugares em Cor­dina, Hannah?

Ela percebeu que ele a chamou apenas pelo nome, mas de­cidiu não dar importância.

— Não muito, senhor. Quando estiver um pouco mais fa­miliarizada com a rotina de Eve, planejo explorar um pouco mais. Ouvi dizer que seu museu tem excelentes exposições. O próprio prédio por si só tem fama de ser um bom exemplo de arquitetura pós-renascentista.

Bennett não estava interessado em exposições, mas nela.

— Gosta do mar?

— Claro. Ar marinho é muito benéfico para o corpo.

Com um meio sorriso nos lábios, o príncipe fez uma pausa no topo dos degraus.

— Mas você gosta do mar?

Bennett tinha um estranho talento de olhar para uma mu­lher, como se a estivesse vendo pela primeira vez. E de fitá-la como se de fato se importasse com ela.

Apesar do seu treinamento, Hannah sentiu o pulso acelerar

— Sim. Minha avó tem uma casa perto de Cornwall. Passei vários verões lá quando criança.

O príncipe desejou saber qual seria a aparência dela com os cabelos soltos, livres, ao sabor da brisa. Ela riria como a ouvi­ra rir no jardim? Veria aquele flash de luz flamejar novamente nos olhos dela? Então percebeu que não era importante a apa­rência dela. Num impulso, continuou, sabendo que poderia vir a se lamentar mais tarde.

— Tenho que estar em Le Havre dentro de dois dias. O motorista percorre toda a costa. Venha comigo.

Se Bennett lhe tivesse pedido para entrar na sala de arma­zenamento e beijá-lo, ela teria ficado menos surpresa. Mas a surpresa transformou-se depressa em cautela e a cautela em conjectura. Mas, antes de tudo, havia o simples prazer de sa­ber que o príncipe desejava sua companhia. Era o prazer que a preocupava.

— É muita gentileza da sua parte, Alteza, mas Eve pode ter outros planos.

— Então, vamos perguntar-lhe primeiro. — Ele queria que ela fosse. De repente, viu-se desejando passar algumas horas com ela, longe do palácio. Talvez fosse por puro desafio, o de descobrir o que havia por trás daquela aparência tão peculiar. Fosse qual fosse a razão, Bennett não questionou. — Você gostaria de ir?

— Sim, gostaria. — Hannah disse a si mesma que era por­que isso lhe daria oportunidade de estudá-lo mais de perto, por motivos profissionais. Assim teria a chance de ver como a segurança trabalhava longe do palácio e da capital.

Mas a verdade era tão simples quanto sua resposta: que­ria ir.

— Ótimo, então vamos combinar isso e você poderá ficar a meu lado durante a longa e entediante cerimônia de boas-vindas.

— Detesto me sentir entediada sozinha, você também?

Rindo, Bennett segurou a mão dela novamente.

— Sim, agora sei exatamente por que Eve a trouxe para o palácio. — A mão de Hannah estava a alguns centímetros dos lábios dele quando um murmúrio de vozes invadiu no recinto. Olhando para baixo, um pouco aborrecido, Bennett avistou Chantel.

— A raiva deve ser expressada — insistia ela, caminhando tão depressa que o diretor precisou alongar o passo para alcan­çá-la. — Julia não é uma mulher passiva. Não esconde o que sente, não importa as conseqüências. Droga, Maurice, farei isso de maneira sutil. Conheço meu trabalho.

— Claro que sim, chérie, não estou questionando isso. E que simplesmente...

— Mademoiselle. — Do topo dos degraus, Bennett olhou para baixo. Pela primeira vez Hannah teve uma breve amostra de como o príncipe sorria para uma mulher verdadeiramente bela. Sem pensar, ela afastou a mão e entrelaçou os dedos.

Chantel, erguendo a mão para afastar os cabelos louro-claros do rosto, jogou a cabeça para trás. Mesmo uma observadora imparcial como Hannah tinha de admitir que poucas mulheres eram capazes de reunir tal combinação de beleza, fascinação e sensualidade. Os lábios da atriz se curvaram. Os olhos, de um azul profundo e sonhador, pareciam sorrir.

— Alteza — disse Chantel num tom de voz suave e melodio­so, enquanto se inclinava em uma mesura formal. Ela começou a subir os degraus e Bennett a descer. Na metade da escadaria os dois pararam, então ela lhe segurou o rosto, antes de puxá-lo mais para si e lhe aplicar um longo beijo. No topo da escada, Hannah sentiu os dentes rangerem. — Quanto tempo!

— Muito. — Bennett segurou-lhe as mãos entre as dele. — Está maravilhosa como sempre. É surpreendente!

— São os genes — Chantel comentou, e sorriu. — Meu Deus, Bennett, que homem lindo você é. Se eu não fosse cíni­ca, o pediria em casamento.

— Se não tivesse medo de você, eu aceitaria. — Os dois se abraçaram novamente com a camaradagem de amigos de lon­ga data. — Chantel, que bom vê-la outra vez. Eve estava qua­se arrancando os cabelos até você concordar em participar.

— É uma boa peça — disse ela, encolhendo os ombros.

— Embora eu o adore, não teria vindo aqui para encenar um fiasco. Sua cunhada é uma mulher talentosa. — Chantel lan­çou um olhar por sobre o ombro ao diretor, que esperava res­peitosamente no último degrau. — Não esqueça de lhe dizer que estou lutando para preservar a integridade da Julia dela.

— Ao se virar, ela avistou Hannah no alto da escada. — Sua amiga?

Olhando para trás, Bennett estendeu uma das mãos.

— Hannah, venha conhecer a incomparável Chantel.

A rigidez dos seus movimentos combinava com suas fei­ções, Hannah disse a si mesma, enquanto começava a descer a escada. Todas as mulheres comuns ficavam tensas quando confrontadas com uma grande beldade. Ela parou ao lado de Bennett, mas manteve boa distância entre ambos.

— Lady Hannah Rothchild, Chantel O’Hurley.

— Como vai? — formal e respeitosa, Hannah ofereceu-lhe a mão.

Chantel manteve a face passiva, mas aceitou o cumprimento.

— Bem, obrigada. — Como mulher e como atriz que co­nhecia ângulos e encenações, desejou saber por que alguém com um físico magnífico e uma aparência sem defeitos fazia questão de disfarçá-los.

— Lady Hannah fará companhia a Eve durante alguns meses.

— Que bom. Cordina é um bonito país. Tenho certeza que vai gostar.

— Sim, já estou gostando. E também gostei de assistir ao seu ensaio.

— Obrigada, mas agora temos que ir. — Chantel bateu um dedo no corrimão e desejou saber por que sentira tal descon­fiança imediata.

Usando o excesso de trabalho como desculpa para partir, a atriz se dirigiu a Bennett.

— Tenho que me apressar. Veja se arruma algum tempo para mim, meu bem.

— Claro. Você virá no sábado para jantar com o restante do elenco?

— Oh, não perderia por nada. Eu a verei lá, lady Hannah.

— Adeus, Srta. O’Hurley.

Depois de dar um tapinha rápido na face do príncipe, Chan­tel desceu os degraus novamente e deixou o diretor correndo atrás dela.

— É uma mulher maravilhosa — murmurou Bennett.

— Sim, ela é muito bonita.

— Também. — Sem fitá-la, ele segurou o braço de Hannah novamente. — Sempre admirei a força de vontade e a ambição de Chantel. Quer ser a melhor e não tem medo de trabalhar para isso. Toda vez que a vejo na tela, fico fascinado.

Hannah enterrou os dedos na bolsa e lembrou a si mesma que deveria parecer modesta.

— Admira ambição, Alteza?

— Nada muda para melhor ou pior sem isso.

— Alguns homens ainda acham essa característica desagra­dável em uma mulher ou, pelo menos, incômoda. — Alguns homens são idiotas.

— Concordo plenamente. — O tom seco foi o suficiente para fazê-lo erguer as sobrancelhas e lançar um olhar em sua direção.

— Por que nunca tenho certeza se está me insultando ou não, Hannah?

— Perdoe-me. Estava apenas concordando com o senhor. Bennett parou novamente. Do palco vinha um murmúrio de vozes, mas o corredor estava deserto. Bennett segurou-lhe o queixo, ignorando o tremor que a sacudiu e a observou.

— Hannah, por que, quando a olho, tenho a impressão de não a estar vendo por inteiro?

Sinos de alarme soaram na cabeça dela. Sua face empa­lideceu um pouco. Ela percebeu, mas pensou, esperou, que ele julgasse aquilo natural. Nem por um segundo demonstrou qualquer sinal de preocupação.

Não sei o que está querendo dizer.

— Tenho pensado... — murmurou ele, deslizando o dedo pelo rosto macio de Hannah, traçando o contorno do queixo e descendo para onde a pele era mais sensível e morna. — Sim, tenho pensado em você mais do que deveria. Tem uma respos­ta para isso?

Pontos ambarinos salpicaram os olhos dele, transformando o tom castanho claro em algo fulvo e atraente. Ele tinha a boca de um poeta e as mãos de um fazendeiro. Hannah desejou sa­ber como era possível combinar os dois enquanto seu coração, sempre tão firme, disparou.

— Alteza... — foram ambas as mulheres dentro dela que balbuciaram.

— Tem, Hannah?

Bennett viu os lábios dela se abrirem. Estranho, não ter re­parado antes o quanto eram atraentes... femininos... um pouco cheios e formosamente delineados sem cosméticos. Desejou saber como seriam se os provasse, frios como a voz ou tão encantadores quanto os seus olhos?

Precisava colocar um fim naquilo, ali e agora, pensou Han­nah. Aquele sentimento crescente dentro dela podia ser destru­tivo. Mesmo desejando desafiá-lo, ela baixou o olhar.

— Não, senhor, exceto que muitas vezes os homens ficam intrigados com uma mulher apenas porque ela não é igual às outras as quais eles estão acostumados.

— Veremos. — Bennett se afastou e ficou surpreso pelo grande esforço que isso lhe custou. — Vou levá-la de volta agora, Hannah, e ambos teremos tempo para refletir sobre o assunto.

 

Hannah tinha acesso irrestrito ao palácio e aos jardins. Era só pedir e seu banho era providenciado ou sua cama feita. Se tivesse vontade de tomar um chocolate quente às três horas da manhã, podia pegar o telefone ao lado da cama e pedir. Como convidada da Família Real, dispunha de todos os confortos que o palácio poderia oferecer.

E como convidada da Família Real dispunha de guardas para sua própria segurança, o que considerava um pouco in­cômodo. Era bastante simples, para alguém com seu talento, fazê-los pensar que estava segura em seus aposentos, enquan­to se encontrava em algum outro lugar. Porém, o fato de estar sendo observada tomava difícil entrar em contato com seus companheiros no exterior

Usar o telefone do palácio estava fora de questão. As várias extensões existentes punham em risco até mesmo uma conver­sa codificada. Considerara brevemente a hipótese de usar um transmissor, mas rejeitara a idéia em seguida. Transmissões podiam ser localizadas.

Gastara dois anos da sua vida para chegar àquele ponto e ver tudo ruir por causa de algum descuido. Em todo caso, preferia que reuniões de tal importância fossem realizadas pessoalmente.

Dois dias após chegar a Cordina, enviara uma carta. A mis­siva fora endereçada a um velho amigo da família em Sussex que não existia.

Seu destino era uma das muitas facções de Deboque ao lon­go da Europa. Se por qualquer motivo a carta fosse intercepta­da e aberta, o leitor não encontraria nada mais interessante do que algumas linhas descrevendo Cordina e o tempo.

Se alcançasse seu destino e fosse decodificada, seria lida com uma conotação diferente. Hannah fornecera seu nome, sua posição na organização e pedido uma reunião, detalhando o tempo, a data e o local. As informações seriam confirmadas pelo contato em Cordina.

Tudo que precisava fazer era chegar lá, sozinha.

Uma vez a carta a caminho, restaria uma semana, pensou ela. Em uma semana começaria o que de fato começara muito tempo atrás. Tinha muito o que fazer para se manter ocupada durante esse tempo.

A princesa Gabriella e a família chegariam ao palácio naque­la noite. Os empregados passaram boa parte do dia alvoroçados, mais, imaginou Hannah, por causa das crianças do que por qual­quer outro motivo. Ouvira-os dizer que a inestimável coleção de ovos de Fabergé seria posta fora do alcance dos meninos.

Passara o dia bastante tranqüila, visitando Eve e Marissa no quarto das crianças, almoçando com vários membros da Sociedade Histórica e, no final da tarde, explorando os porões em busca de locais vulneráveis.

Agora, estava fechando o colar de pérolas e se preparando para se unir à família na sala de estar principal. Seria interessante vê-los todos juntos, pensou. Desse modo, poderia julgar o relacionamento entre eles, bem como as personalidades de cada um. Antes que se passasse muito tempo, tinha que conhe­cer todos tão bem quanto a si mesma. Um engano, um erro de julgamento e tudo estaria perdido.

— Venha já aqui, seu diabinho!

Hannah ouviu um riso alto, um baque, então passos apres­sados. Antes que tivesse chance de sair para ver o que estava acontecendo, a porta do seu quarto se abriu.

Um menino pequeno com vastos cabelos escuros, que apa­rentava não ter sido penteado na última semana, entrou apres­sado. A criança lhe deu um sorriso surpreendente, mostrando a falta de alguns dentes, antes de se refugiar embaixo da cama.

— Cachez-moi, s'il vous plait! — a voz foi amortecida pela barra da colcha antes de a pequena figura desaparecer.

Hannah abriu a boca novamente apenas para ver Bennett parado junto à entrada.

— Viu um menino pequeno e endiabrado andando por aqui?

— Eu, ah... não — ela decidiu, parada no mesmo lugar com as mãos cruzadas. — Tive a impressão de ouvir alguém cor­rendo no corredor. O que está...

— Obrigado. Se o vir, prenda-o em um armário ou algo parecido.

O príncipe voltou a caminhar pelo corredor

— Dorian, pequeno ladrão sórdido, não pode se esconder para sempre.

Hannah caminhou até a entrada e avistou Bennett contor­nando uma quina, antes de ela fechar a porta novamente. Diri­gindo-se à cama, agachou-se e ergueu a barra da colcha.

— Acho que está seguro agora — disse ela em francês.

Os cabelos escuros surgiram primeiro, então um pequeno menino robusto vestido com short e uma camisa de linho bran­ca suja. Se Hannah não tivesse visto sua foto antes, pensaria tratar-se do filho de um dos criados. Mas ele era um membro da Família Real.

— Você é inglesa. Eu falo inglês fluente.

— Estou vendo.

— Obrigado por me esconder do meu tio. — O jovem príncipe Dorian inclinou a cabeça em sinal de respeito. Embora ainda não tivesse completado 5 anos, executou a reverência com perfeição. — Ele estava bravo, mas não fica assim muito tempo. Sou o príncipe Dorian.

— Alteza — Hannah se curvou em uma mesura. — E um prazer conhecê-lo. Sou lady Hannah Rothchild. — Então, incapaz de resistir, ajoelhou-se para ficar na mesma altura da criança. — O que você roubou?

Dorian olhou para a porta fechada atrás de Hannah e depois sorriu. Enfiando a mão no bolso da parte de trás do short, retirou um ioiô. O objeto podia ter sido azul, mas agora era o cinza da madeira velha com algumas fachas de pintura brilhantes que predominava. Hannah estudou-o com apropriado respeito.

— Isto é de Bennett, Alteza?

— Merveilleux, n'est-ce pas? Ele o tem desde que tinha 5 anos.

Dorian virou o brinquedo sobre a mão, admirando a peça que um dia foi nova e brilhante, quando o tio contava com a idade que ele tinha agora. — Ele fica bravo quando entro no quarto dele e brinco com isto, mas como posso fazer isto funcionar?

— Bem pensado. — Hannah resistiu ao desejo de arrepiar os cabelos do príncipe. — E qualquer um duvidaria que ele brinca com isso freqüentemente.

— Ele o guarda em uma estante. Não é que meu tio se im­porte que eu brinque com o ioiô — explicou Dorian, com uma expressão nobre. — É que toda vez que tento fazê-lo funcio­nar a corda se enrosca e fica toda embolada.

— Precisa de um pouco de prática.

— Eu sei. — O menino sorriu novamente. — E só posso praticar se o roubar.

— Sua lógica é bem fundamentada, Alteza. Posso vê-lo? Dorian hesitou apenas um instante, então lhe entregou o brinquedo de modo gracioso.

— Meninas normalmente não se interessam por tais coisas. — A criança fez uma careta, pura atitude masculina. — Mi­nhas irmãs brincam com bonecas.

— As pessoas tem gostos diferentes. — Hannah acariciou o ioiô, desejando saber quanto tempo se passara desde que a mão de Bennett tocara o brinquedo. A corda não parecia tão velha quanto o próprio brinquedo. Supôs que fora substituí­da mais de uma dúzia de vezes em todos aqueles anos. Num impulso, deixou o ioiô deslizar para baixo, e, então, o ergueu habilmente.

— Oh, excelente manobra! — fascinado, Dorian a assistiu de olhos arregalados.

— Obrigada, senhor Eu tinha um. Era vermelho — lem­brou-se Hannah com um meio sorriso. — Até meu cachorro mastigá-lo.

— Sabe fazer algum truque? Tentei fazer a Volta ao Mundo uma vez e quebrei uma lâmpada. Tio Bennett brigou comigo, mas jogou os cacos fora, para ninguém ficar sabendo.

Porque podia imaginar a cena com clareza, Hannah sorriu. Muito barulho para pouca ação, decidiu ela, e desejou não ad­mirá-lo mais por causa disso.

— Um truque? — enquanto considerava, moveu o ioiô para baixo e para cima. Então, com um estalido rápido do pulso o fez dar a Volta ao Mundo. Quando o brinquedo voltou para a palma da sua mão, Dorian riu e subiu em cima da cama.

— Faça outro, por favor.

Tentando se recordar, Hannah fez a manobra do cachorrinho e deixou o jovem príncipe pulando no colchão e pe­dindo bis.

— Excelente, lady Hannah! — disse Bennett junto à entra­da. — Obviamente, tem escondido seus talentos.

Hannah teve que conter um xingamento enquanto impul­sionava o ioiô de volta.

— Alteza! — com o brinquedo na mão, curvou-se em uma reverência formal. — Não o ouvi bater á porta.

— Não bati. — Bennett se afastou do batente da porta, onde estava apoiado, e caminhou em direção à cama. Nem um pou­co arrependido, o menino sorriu para o tio.

— Ela não é maravilhosa, tio Bennett?

— Discutiremos os atributos de lady Hannah mais tarde.

— Ele deu um puxão de orelhas em Dorian antes de se virar.

— Isto é meu, se não se importa em devolvê-lo.

Lutando para manter uma expressão séria, Hannah lhe de­volveu o ioiô.

— Isto pode não parecer nada além de um simples brinque­do de criança — começou Bennett enquanto enfiava o ioiô no bolso —, mas na realidade é uma peça de herança tradicional.

— Compreendo. — Ela pigarreou, tentando não rir, mas o riso escapou. Esperando parecer arrependida, olhou para o chão. — Sinto muito, senhor

— Sente coisa nenhuma. E ele estava aqui o tempo todo, não é?

Bennett jogou o sobrinho na cama, fazendo o cair na gar­galhada.

— Você me deixou procurar este pequeno ladrãozinho por toda parte do palácio quando ele estava aqui, escondi embaixo das suas saias.

— Embaixo da cama para ser mais honesta, senhor. — Hannah teve que pigarrear mais uma vez, mas conseguiu falar calmamente. — Pela sua descrição, tão vaga, não imaginei que estivesse procurando o príncipe Dorian.

— Admiro uma pessoa que sabe mentir bem — Bennett murmurou enquanto se aproximava. Pela segunda vez, ele lhe segurou o queixo. Mas pela primeira vez ela percebeu toda a altivez que ele emanava e toda a atração desse ato. — E isso só me deixa mais intrigado.

— Lady Hannah sabe fazer a Volta ao Mundo.

— Fascinante! — Bennett deslizou a mão lentamente en­quanto se virava para o sobrinho. Se tivesse prestado atenção, poderia ter ouvido o suspiro de alívio de Hannah. — Pensei que tivéssemos um acordo, Dorian.

A cabeça do menino se inclinou, mas ela não notou que o brilho em seus olhinhos desapareceu.

— Só queria vê-lo. Perdoe-me, tio Bennett.

— Claro. — Bennett ergueu-o pelas axilas, fez uma careta e, então, deu-lhe um beijo prolongado na testa. — Sua mãe está lá embaixo. Não escorregue nos corredores a caminho da sala de estar

— Certo. — No chão outra vez, Dorian se curvou na frente de Hannah. — Foi um prazer conhecê-la, lady Hannah.

— O prazer foi meu, senhor

A criança brindou-a com um sorriso largo, antes de sair cor­rendo.

— Fala doce — murmurou Bennett. — Oh, pode pensar que é um encanto, mas é um diabinho.

— Por incrível que pareça, ele me faz lembrar você. Com uma sobrancelha erguida, Bennett balançou nos cal­canhares.

— Incrível mesmo, milady.

— Ele é um diabinho, sem dúvida. E você o ama.

— Muito. — Bennett enfiou a mão no bolso. — E quanto ao ioiô...

— Sim, senhor?

— Espere até eu estar a uns cinco metros de distância antes de começar a rir de mim.

— Como quiser, Alteza.

— Foi um presente de minha mãe em um verão que eu estava doente. Já comprei uma dúzia deles para o diabinho, mas ele continua roubando o meu. Dorian sabe que se eu não tiver um filho até ele completar 10 anos, lhe darei o ioiô de presente.

— Tenho uma boneca ruiva que minha mãe me deu quando quebrei o pulso em um outono. Guardei-a até me tomar adulta. — Só quando Bennett lhe segurou a mão, ela percebeu que ha­via lhe contado algo que o príncipe não precisava saber, uma coisa que nunca contara a ninguém. E enquanto se advertia de que tais lapsos podiam ser perigosos, os lábios do príncipe roçaram-lhe os dedos.

— Você, lady Hannah, tem um coração amável, bem como uma língua afiada. Venha, desça comigo para encontrarmos o restante da família.

Reeve MacGee seria um enorme obstáculo. Hannah pensara nisso antes, mas ao vê-lo com a família teve certeza. Estava a par da sua vida desde que ele entrara para a polícia como recruta até seu trabalho menos divulgado para o governo dos Estados Unidos.

Seu envolvimento com Cordina e com a Família Real tinha uma aura de romance, mas Reeve não era poeta. Deixara uma auto-imposta aposentadoria, a pedido do príncipe Armand, quando Gabriella fora seqüestrada. Embora tivesse escapado, o tempo que passara no cativeiro deixara sua marca. A prince­sa sofria de amnésia e Reeve fora designado para protegê-la e investigar.

É claro que Deboque estava fazendo seus contatos, mas, embora sua amante tivesse sido capturada e presa, nunca o implicou. Como outros homens poderosos, ele inspirava leal­dade. Ou medo!

Durante o tempo em que Gabriella lutava para recuperar a memória, ela e Reeve se apaixonaram. Embora Reeve tivesse se recusado em aceitar um título quando se casaram, concor­dou em ser o chefe de segurança de Cordina. Mesmo com a experiência e com a habilidade de Reeve, uma vez mais o pa­lácio sofreu invasões.

Dois anos antes, Alexander quase fora assassinado. Desde então, Reeve conseguira bloquear todo e qualquer atentado aos membros da Família Real. Mas Deboque estava prestes a sair da prisão. Com a liberdade, ganharia mais poder.

Hannah observou Reeve, um homem tranqüilo e introspectivo que adorava a esposa e os filhos. Ele faria tudo que estivesse ao seu alcance para protegê-los de qualquer mal. Tanto melhor

Depois de alisar a saia, Hannah entrelaçou as mãos, sentou-se e ouviu.

— Todos nós sabemos que sua peça será um sucesso ma­ravilhoso.

Gabriella, com a mão sobre a de Reeve, sorriu para Eve. Os magníficos cabelos ruivos penteados de modo casual ao redor de uma face que permanecia delicada e adorável.

— Mas isso não significa que não entendamos que você tenha motivos para estar preocupada.

— Estou naquela fase em que desejo ver tudo terminado. — Eve pegou Marissa no colo.

— Mas está se sentindo bem?

— Estou me sentindo ótima. — Eve deixou a filha descer novamente. — Entre os mimos de Alex e os olhos de águia de Hannah, quase não posso erguer um dedo sem um atestado médico.

— Foi muito bom você ter vindo. — Gabriella sorriu para Hannah, antes de tomar um gole de água mineral. — Sei o quanto é reconfortante ter uma amiga por perto. Nós a estamos tratando bem o suficiente para que não se sinta nostálgica?

— Estou muito feliz em Cordina. — Hannah reclinou-se no sofá.

— Espero que vá até a fazenda enquanto estiver aqui.

— Ouvi falar maravilhas do lugar. — Gabriella havia sido seqüestrada lá, enquanto ainda não passava de uma porção de terra meio abandonada. — Adoraria visitá-la.

— Então, vamos combinar isso — disse Reeve num tom tranqüilo, enquanto acendia um cigarro. — Está aproveitando bem sua visita?

— Sim, estou. — Seus olhares se encontraram e se prende­ram. — Cordina é um país fascinante. Tem uma aura de conto de fadas, mas é muito real. Estou particularmente interessada em visitar o museu.

— Vai ver que temos algumas exposições muito incomuns — comentou Armand.

— Sim, senhor. Fiz alguma pesquisa antes de deixar a Inglaterra. Não tenho dúvidas de que vou ter boas surpresas durante minha permanência em Cordina.

Marissa andou com passos incertos, um pouco instáveis para suas perninhas de um ano de idade e ergueu os bracinhos. Hannah colocou a menina no colo.

— Seu pai está bem? — perguntou Reeve através da fuma­ça do cigarro.

Hannah sacudiu as pérolas do colar para entreter o bebê.

— Sim, obrigada. Parece que quanto mais envelheço, mais jovem ele fica.

— Famílias, não importa se grandes ou pequenas, são sem­pre o foco de nossas vidas — disse Reeve num tom suave.

— Sim, isso é verdade — murmurou Hannah enquanto brin­cava com Marissa. — É uma pena que as famílias e a vida não sejam tão simples quanto parecem quando somos crianças.

Bennett sentou-se relaxado na cadeira e desejou saber por que tinha a impressão de que, se pudesse ler nas entrelinhas, descobriria algo mais do que simples conversa fiada.

— Eu não sabia que você conhecia o pai de Hannah, Reeve.

— Apenas casualmente. — Quando se reclinou, um leve sorriso curvou-lhe os lábios. — Ouvi dizer que Dorian roubou seu ioiô outra vez.

— Eu deveria tê-lo colocado no cofre quando soube que ele viria. — Bennett bateu de leve na protuberância em seu bolso. — Eu teria dado uma lição no diabinho, mas ele tinha uma cúmplice.

Ele virou a cabeça para fitar Hannah.

— Peço desculpas pelo meu filho. — Os lábios de Gabriella se encurvaram, enquanto ela erguia o copo novamente. — Por envolvê-la nesse crime, lady Hannah.

Pelo contrário, eu adorei. O príncipe Dorian é um en­canto.

Nós o chamamos de outras coisas em casa — murmurou Reeve. A mulher era um mistério, pensou ele. Por mais que procurasse alguma falha, não a encontrava. — Pensando nisso, acho que vou sair para procurar a turminha. Adrienne está na idade em que não se pode ter certeza se ela vai cuidar deles ou jogá-los no poço.

Bennett olhou para as portas do terraço.

— Deus sabe que devastação eles podem ter causado nos últimos vinte minutos.

— Espere até ter seus próprios filhos. — Eve se ergueu para pegar Marissa do colo de Hannah. — Vai estragá-los de tanto mimo. Se me dão licença, quero subir para alimentar Marissa.

— Vou com você. — Gabriella pôs de lado o copo. — Acho que poderíamos discutir os planos para o baile de Natal. Sabe que quero ajudar no que puder.

— Graças a Deus não precisei implorar. Não, Hannah, por favor, sente-se e relaxe — disse Eve quando Hannah começou a se levantar. — Não vamos demorar.

— Não demorem mesmo. — Bennett tirou o ioiô para pas­sá-lo de uma das mãos para a outra. — O jantar será servido em uma hora.

— Todas nós conhecemos suas prioridades, Ben. — Eve curvou-se para beijar-lhe a face, antes de deixar a sala.

— Também vou dar uma volta. — Erguendo-se, Alexander acenou com a cabeça para Reeve. — Vou ajudá-lo a reunir as crianças. — Eles estavam atravessando as portas do terraço quando um criado surgiu à entrada.

— Perdoe-me, Alteza. Um telefonema de Paris para o se­nhor.

— Sim, eu estava esperando essa ligação. Vou atender no escritório, Louis. Se me dá licença, lady Hannah. — Seguran­do a mão dela, Armand se curvou. — Tenho certeza de que Bennett pode entretê-la por alguns momentos. Bennett, talvez lady Hannah apreciasse conhecer a biblioteca.

— Se gosta de olhar paredes de livros — Bennett disse quando o pai saiu. — Não poderia haver lugar melhor.

— Sou mesmo apaixonada por livros. — Em seguida, Han­nah levantou-se.

— Certo, então. — Embora pudesse ter pensado em pelo menos uma dúzia de modos melhores para passar uma hora, Bennett segurou-a pelo braço e a conduziu pelos corredores.  

É difícil acreditar que o museu possa ter pinturas ainda melhores do que as que vocês têm aqui no palácio, príncipe Bennett.

— Le Musee d'Art tem 152 exemplares de pinturas impressionistas e pós-impressionistas, incluindo dois Corots, três Monets e um Renoir particularmente belo. Adquirimos recentemente um Childe Hassam dos Estados Unidos. Em troca, minha família doou seis Georges Complainiers, artista cordiniano que pintava na ilha no século XIX.

— Entendo. Notando a expressão dela, Bennett sorriu.

— Faço parte da diretoria do museu. Posso preferir cavalos, Hannah, mas isso não me impede de ter atração pela arte. O que acha disto? — o príncipe parou em frente a uma pequena aquarela. O Palácio Real fora de um modo muito especial, quase místico, retratado. Suas paredes brancas e torres erguiam-se por trás de uma névoa rosa, que encantava mais do que ocultava I o próprio imóvel. Deve ter sido pintado ao amanhecer, pensou ela. O céu, de um azul delicado, em contraste com o tom mais profundo do mar. Hannah podia ver a antigüidade, a fantasia e a realidade. Em primeiro plano, os portões de ferro altos e as sólidas paredes de pedra que protegiam os jardins do palácio.  

— Muito bonita. Revela amor, bem como um toque de encantamento. Quem a pintou?

— Minha tataravó. — Satisfeito com a reação de Hannah, Bennett colocou a mão dela sobre seu antebraço. — Ela pintou centenas de aquarelas e as jogou fora. Em sua época, as mulheres pintavam ou desenhavam apenas como passatempo, não como profissão.

— Algumas coisas mudam — murmurou ela e então olhou outra vez para a pintura. —, outras, não.

— Alguns anos atrás, achei o trabalho dela em um baú em um dos sótãos. Muitos estavam deteriorados. Isso partiu meu coração. Então achei este. — Bennett tocou a moldura, com reverência, percebeu Hannah. Então, ela olhou para a mão dele e, depois, para a face, e se sentiu atraída por aquele homem. — Foi como voltar gerações no tempo e descobrir a si mesmo.

Poderia ter sido pintado hoje, e teria a mesma aparência.      

Hannah podia sentir o coração batendo mais forte por ele. Que mulher era imune à dignidade e sensibilidade? Em sua defesa, ela deu um pequeno passo atrás.

— Na Europa, entendemos que algumas gerações represen­tam apenas um piscar de olhos no tempo. Nossa história nos antecede, séculos antes. É nossa obrigação deixar a mesma herança para as gerações seguintes.

Bennett a fitou e achou seus olhos quase impossivelmente profundos.

— Temos isso em comum, não é? Na América, há uma urgência que pode ser excitante, até mesmo contagiosa, mas aqui sabemos quanto tempo leva para construir e adquirir. Po­líticas mudam, governos são substituídos, mas a história pros­segue firme.

Hannah precisava se afastar dele. As coisas ficariam confusas se pensasse no príncipe como um homem preocupado e sensível, em vez de encará-lo como uma simples peça de um trabalho.

— Existem outros? — perguntou ela, indicando o quadro.

— Poucos, infelizmente. A maioria não pôde ser recupera­da. — Por razões que não estava muito seguro, sentia neces­sidade de compartilhar com Hannah coisas que achava serem importantes para ele. — Há um na sala de música. O restante está no museu. Aqui, venha dar olhada. — Pegando-a pela mão novamente, Bennett conduziu-a através do corredor que levava à próxima ala, o som de seus passos ecoando sobre a cerâmica de mosaico.

Passando por uma outra porta aberta, levou-a até uma sala que parecia ser um abrigo especial para o piano de cauda bran­co que ocupava o centro do lugar.

Havia uma harpa em um dos cantos que poderia ter sido tocada uns cem anos atrás, ou na semana anterior. Em um compartimento de vidro estavam alguns instrumentos de so­pro antigos e uma frágil lira. Vasos com flores frescas, como no restante dos cômodos do palácio, perfumavam o recinto. O cheiro de jasmim derramava-se sobre as umas vermelhas de porcelana chinesa. Em uma das paredes, havia uma pequena lareira de mármore, varrida e limpa, com uma pilha de madei­ra empilhada ao lado, como um convite a acendê-la.

Ao lado de Bennett, Hannah caminhou até o outro lado de um tapete de Aubusson e sentiu-se voltar no tempo. A pintura reproduzia um baile festivo, com cores luminosas e pinceladas arrojadas. Mulheres, gloriosamente femininas, com trajes do século XIX, giravam ao redor de um reluzente piso de en­contro aos seus pares. Espelhos refletiam os dançarinos e os duplicavam, e três magníficos lustres brilhavam sobre suas cabeças. Ao contemplar a obra, Hannah quase pôde ouvir o som da valsa.

— Que adorável! Este salão é aqui no palácio?

— Sim. Quase não mudou. Faremos um baile de Natal lá no mês que vem.

Apenas um mês, pensou ela. E havia muito a ser feito. Em questão de horas Deboque estaria livre e logo ela saberia se a sua base fora bastante inteligente.

— É um salão muito bonito. — Hannah virou-se. Mante­nha a conversa e a mente leve, por enquanto, advertiu-se em pensamento. — Em nossa casa de campo há uma pequena sala de música. Nada que se compare a isso, é claro, mas sempre a achei muito relaxante. — Ela se dirigiu ao piano, não apenas para examiná-lo, mas para se distanciar um pouco do príncipe. — Toca algum instrumento, Alteza?

— Hannah, estamos a sós. Não é necessário ser tão formal.

— Sempre considerei o uso de títulos mais apropriado do que formal. — Não desejava aquele grau de intimidade entre eles.

— Sempre o considerei irritante entre amigos, — Bennett caminhou até ela a tocou de leve em seu ombro. — Pensei que fôssemos amigos.

Hannah sentiu o toque da mão dele através do linho do vestido, da alça fina do sutiã, até atingir-lhe a pele. Tra­vando uma guerra particular, manteve-se de costas para o príncipe.

— Fôssemos o quê, senhor?

Ele riu. E, então, segurou-a com ambas as mãos, virando-a de frente para si.

— Amigos, Hannah. Acho você excelente companhia. É uma das primeiras exigências para se começar uma amizade, não é?

Ela o fitava de maneira solene, com um rubor lânguido tingindo-lhe as maçãs do rosto. Os ombros pareciam fortes sob as mãos dele, contudo Bennett se lembrou de como a pele fe­minina era delicada ao longo da mandíbula.

O vestido que ela usava era marrom e sombrio. A face sem maquiagem e sem nada para emoldurá-la. Nem um fio de ca­belo fora do lugar e, assim mesmo, ele a imaginou rindo, com os cabelos soltos e os ombros nus. E estava rindo só para ele.

— Que diabo há com você? — murmurou Bennett.

— Como?

— Espere. — Impaciente e aborrecido consigo mesmo, e com ela, Bennett se aproximou ainda mais. Ao vê-la enrijecer, ergueu as mãos, com as palmas para fora como se quisesse demonstrar que não lhe faria mal algum. — Espere apenas um momento, está bem? — ele pediu enquanto curvava a cabeça e lhe roçava os lábios com os seus.

Não corresponda, não corresponda, Hannah repetiu várias vezes em sua mente, como uma ladainha. Bennett não pres­sionou, não persuadiu ou exigiu. Apenas provou, com uma suavidade que ela não imaginou que um homem fosse capaz de ter. E seu sabor a penetrou até ela se sentir totalmente em­briagada.

Os olhos do príncipe permaneceram abertos, observando os dela. Estava tão próximo que ela podia sentir o perfume de sabonete exalando de sua pele. Algo que lhe trazia lembranças do mar. Hannah cravou as unhas nas palmas das mãos, lutando para que ele não percebesse o tumulto que lhe provocara. Deus. ela o queria. Como o queria!

Bennett não sabia o que havia esperado. Mas o que achou foi suavidade, conforto, doçura, sem calor ou paixão. Embora tivesse visto ambos nos olhos de Hannah. Não sentia necessi­dade de tocá-la ou aprofundar o beijo. Não o primeiro. Talvez já soubesse que haveria outros. Mas aquele primeiro lhe mos­trou uma facilidade, um relaxamento que ele jamais procurara em uma mulher antes.

Era homem suficiente, bastante experiente, para saber que havia um vulcão dentro daquela mulher. Mas, estranhamente, não tinha desejo de provocar-lhe uma erupção, ainda.

Bennett finalizou o beijo com um simples passo para trás. Hannah não moveu um músculo.

— Não fiz isso para assustá-la — disse o príncipe num tom de voz calmo, pois estava falando a verdade. — Foi apenas um teste.

— Você não me assusta. — Que ele não a tinha assustado era fácil perceber, mas a mulher dentro dela estava apavorada.

Aquela não era a resposta que ele desejava.

— Então, o que eu lhe provoco?

Lenta e cuidadosamente, Hannah relaxou as mãos.

— Receio não ter entendido o que está querendo dizer, Al­teza.

Ele a estudou por um momento, então respondeu.

— Talvez, não. — Bennett esfregou a nuca, desejando sa­ber por que uma mulher simples e plácida o deixava tão tenso. Ele conhecia o desejo. Deus sabe como sentira isso antes. Mas não como agora. — Droga, Hannah, você não tem nada por dentro?

— Claro que sim, senhor, um grande número de coisas.

O príncipe teve que rir. Devia ter se lembrado que ela o rejeitaria com um pouco de lógica.

— Chame-me apenas pelo meu nome, por favor.

— Como quiser.

Bennett virou-se. Ela estava de pé em frente ao brilhante piano branco, com as mãos entrelaçadas, fitando-o com um olhar calmo. Ele achava ridículo, mas sabia que estava muito próximo de se apaixonar.

— Hannah...

Não dera mais que dois passos em direção a ela quando Reeve entrou na sala.

— Bennett, com licença, mas seu pai gostaria de falar com você antes do jantar.

Dever e desejo. Bennett quis saber se um dia acharia um meio de conciliar os dois.

— Obrigado, Reeve.

— Acompanharei lady Hannah de volta à sala de estar.

— Certo. — Bennett fez uma pausa e olhou outra vez para ela. — Gostaria de falar com você mais tarde.

— Claro. — Hannah tentaria por todos os meios evitar que aquilo acontecesse. Ela permaneceu onde estava quando o príncipe saiu.

Reeve olhou por sobre o ombro, antes de se aproximar.

— Há algum problema, lady Hannah?

— Nenhum. — Ela respirou fundo, mas não relaxou. — Por que deveria haver?

— Bennett pode ser... uma distração.

Dessa vez, quando seus olhares se encontraram, ela teve certeza que havia um brilho de divertimento nos olhos de Ree­ve. Uma camada, a mais fina das camadas do seu disfarce ex­terior se desfizera.

— Não me distraio facilmente, principalmente, quando es­tou trabalhando.

— Assim fui informado — disse Reeve num tom bastante calmo. Ainda estava à procura de falhas e receava ter encon­trado a primeira pelo modo como ela olhava para Bennett. — Mas nunca trabalhou em uma missão como esta.

— Como agente sênior do SSI, sou capaz de cumprir com qualquer missão. — Sua voz soou afiada outra vez, não a voz de uma mulher quase terrivelmente excitada por um beijo. — Terá um relatório meu amanhã. Agora acho que é melhor nos unirmos aos outros. — Ela ia começar a se mover, mas Reeve a segurou pelo braço, fazendo-a parar.

— Há muitas coisas em jogo que dependem de você. Hannah apenas acenou com a cabeça.

— Eu sei. Você pediu a melhor, e eu sou a melhor.

— Talvez. — Porém, quanto mais o tempo passava, mais Reeve ficava preocupado. — Tem excelente reputação, Han­nah, mas nunca se envolveu em uma tarefa contra alguém como Deboque antes.

— Nem ele com alguém como eu. — Ela olhou para o cor­redor novamente e então baixou o tom de voz. — Sou membro permanente da organização dele agora. Levei dois anos para conseguir isso. Evitei que ele perdesse 2,5 milhões evitando que aquele negócio das munições não fosse arruinado seis me­ses atrás. Um homem como Deboque aprecia iniciativa. Nos últimos meses, tenho plantado sementes que desacreditarão seu segundo homem no comando.

— Ou terá sua garganta cortada.

— Isso é problema meu. Em uma questão de semanas, serei seu braço direito. Então o servirei a você em uma bandeja.

— Autoconfiança é uma excelente arma, se não for em ex­cesso.

— Não costumo me exceder. — Hannah pensou em Ben­nett e fortaleceu sua resolução. — Nunca falhei em uma mis­são, Reeve. Não pretendo começar com esta.

— Certifique-se de manter contato. Tenho certeza que en­tenderá quando eu digo que não posso confiar em ninguém.

— Entendo perfeitamente, porque penso do mesmo modo. Podemos ir?

 

Os planos de Hannah para evitar o passeio com Bennett até Le Havre foram completamente destruídos. Justificara sua decisão convencendo-se de que poderia obter informações mais úteis concentrando-se no palácio. Com o objetivo de ficar para trás, aplicou a pouco original desculpa de uma dor de cabeça.

Esperara deliberadamente até Alexander terminar o desjejum com a família de forma que ela pudesse falar a sós com Eve.

Eve levou menos de dez minutos para pôr a culpa em si mesma.

— Não é de admirar que não esteja se sentindo bem. — Eve tomou um gole de chá no berçário ensolarado, enquanto exa­minava sua agenda. — Eu a tenho monopolizado desde que chegou.

— Não seja tola. O palácio é do tamanho de uma cidade pequena. Não posso me sentir presa.

— Embora seja grande, ainda tem paredes. Um passeio agradável ao longo da costa é o que você precisa, Bernadette. — Ela olhou para a jovem babá que estava se preparando para levar Marissa a um passeio matinal. — Não se esqueça de pôr um chapéu na princesa Marissa. Está ventando lá fora.

— Sim, senhora.

Eve estendeu os braços para a filha.

— Divirta-se, querida.

— Flores — disse Marissa, e riu da própria voz.

— Sim, escolha algumas flores. Nós as colocaremos aqui em seu quarto. — Eve beijou as bochechas de Marissa e a dei­xou ir. — Fico aborrecida por não poder levá-la para passear esta manhã, mas tenho uma reunião no Centro dentro de uma hora.

— Você é uma mãe maravilhosa, Eve — murmurou Han­nah quando percebeu a preocupação nos olhos da amiga.

— Eu a amo tanto! — exalando um longo suspiro, ela pe­gou a xícara de chá novamente. — É estranho, mas quando não estou com ela penso em dúzias de coisas que poderiam acontecer.

— Eu diria que isso é normal.

— Talvez. Mas sendo quem somos, e o que somos, tudo fica mais complicado. — Inconscientemente, descansou a mão sobre o ventre, onde seu próximo filho dormia. — Queria tanto passar a Marissa a sensação de uma vida normal, mas...

— Eve sacudiu a cabeça. — Há um preço para tudo. Hannah lembrou-se de Alexander, que dissera quase a mes­ma coisa, referindo-se à esposa.

— Eve, Marissa é uma criança adorável, saudável e feliz. Creio que não precisa de mais nada para se sentir normal.

Eve a encarou por um momento, então envolveu-lhe o queixo com a palma da mão

— Oh, Hannah, não sei como pude passar os dois últimos anos sem você. O que me remete ao início da nossa conversa.

— Animada, ela tomou a encher a xícara de Hannah. — Veio aqui para nos fazer uma visita e não lhe dei mais um minuto de sossego, algemando-a o tempo todo a mim. Isso faz com que eu me sinta muito egoísta.

— O motivo pelo qual estou aqui é para lhe fazer compa­nhia — lembrou-a Hannah, enquanto sentia que estava per­dendo terreno.

— O motivo pelo qual está aqui é porque somos amigas. Como um favor, tire o dia para relaxar e desfrutar o ar mari­nho. Posso lhe assegurar que Ben é uma companhia maravi­lhosa. Garanto que após cinco minutos dentro do carro dele sua dor de cabeça desaparecerá.

— Alguém está com dor de cabeça? — perguntou Bennett, entrando no berçário. Usava um uniforme branco com uma insígnia vermelha referente à sua patente como oficial da Ma­rinha de Cordina. No bolso do lado esquerdo havia o brasão real que indicava ser ele príncipe. Hannah sempre considerara a afirmativa de que as mulheres se apaixonavam por homens fardados uma grande tolice. Até aquele momento.

Ele parecia tão... viril, admitiu, embora seu lado prático procurasse uma palavra menos enfática. O casaco branco-neve realçava a pele bronzeada e contrastava com os cabelos escuros. Bennett sorriu para ela. Hannah percebeu que ele sa­bia o efeito que causava. Automaticamente, ela se ergueu para se curvar em uma mesura.

— Bennett, eu havia esquecido como fica estonteante com esse uniforme branco. — Eve inclinou a face para ele lhe dar um beijo. — Talvez seja melhor eu aconselhar Hannah a tomar uma aspirina e sentar-se no banco de trás.

— Acho que lady Hannah pode tomar conta de si mesma. Não é mesmo, chérie?

Naquele instante, Hannah decidiu que, se tivesse que se de­fender daquele homem, teria de afiar sua lâmina muito bem.

— Sempre consegui.

— Está um pouco pálida — comentou ele, tocando-lhe a face com a ponta dos dedos. — Não está realmente se sentindo bem?

— Não é nada. — Hannah desejou saber se ele era capaz de sentir o sangue dela fluir mais rápido nas veias graças ao simples contato. — E Eve me assegurou de que um passeio ao longo da costa é exatamente o remédio que preciso.

— Bem, eu a trarei de volta com as faces coradas.

— Se me dá um momento, preciso pegar minha bolsa.

— Bennett. — Eve o parou antes que ele pudesse seguir Hannah. — Estou errada ou percebi algo entre vocês?

Ele demonstrou certa duvida.

— Não tenho certeza.

— Hannah vive uma vida muito reclusa. Creio que não pre­ciso lhe dizer que... bem, seja cuidadoso.

Embora a luz do sol brilhasse atrás dele, os olhos escuros esfriaram.

— Não, não tenho que ser lembrado com quem um homem na minha posição pode ou não ter um caso.

— Não disse isso para aborrecê-lo. — De imediato, Eve se ergueu e segurou-lhe as mãos. — Éramos amigos bem an­tes de sermos parentes, Ben. Só perguntei porque gosto muito dela e sei como você pode ser irresistível.

Bennett amoleceu, como sempre acontecia, em se tratando de Eve.

— Você sempre conseguiu resistir.

— Você sempre me tratou como uma irmã. — Eve hesitou novamente, dividida entre duas lealdades. — Adiantaria se eu dissesse que ela não é seu tipo habitual?

— Não, ela não é. Talvez seja isso que está me deixando confuso. Pare de se preocupar. — O príncipe curvou-se para beijar-lhe a testa. — Não farei nenhum mal a sua amiga bri­tânica.

— Acho que estou mais preocupada com você.

— Então não fique. — Apertando-lhe a face com um gesto descontraído, ele caminhou até a porta. — Diga a Marissa que lhe trarei algumas conchas.

Tranqüila e resignada com sua decisão, Hannah o encon­trou no topo dos degraus.

— Espero não tê-lo feito esperar muito.

— Temos bastante tempo. Posso garantir que o passeio compensará a pompa e os discursos que temos de enfrentar.

— Não tenho nada contra pompa e discursos.

— Então, estamos com sorte. Claude. — Bennett acenou com a cabeça para um homem alto e forte que aguardava ao lado das portas principais.

— Bom dia, Alteza. Lady Hannah. Seu carro está pronto, senhor.

— Obrigado, Claude. — Bennett a conduziu sabendo que a simples declaração significava que a segurança na estrada entre Cordina e Le Havre fora reforçada.

Hannah avistou o carro no momento em que saíram. O pe­queno e potente conversível francês estava estacionado próxi­mo à escadaria, flanqueado por dois sólidos sedãs.

— Você dirige isso?

— Não gosta de carros velozes? — Bennett tocou o re­luzente capô vermelho com afeto. — Este desliza como um sonho. Consegue fazer 140 km por hora numa reta.

Hannah imaginou como se sentiria, acelerando, perto do mar... a liberdade... o vento na face. Então rejeitou tais desejos e tentou parecer intranqüila.

— Espero que não pretenda quebrar seu recorde hoje. Com um sorriso, Bennett abriu a porta para ela.

— Por você, vou dirigir como um velhinho. Hannah deslizou no assento e quase suspirou de prazer.

— É muito pequeno.

— Bastante grande para dois. — Bennett levantou a capota. Claude já havia aberto a porta para o príncipe.

— Mas, por certo, não viaja sem sua segurança ou um as­sistente.

— Sempre que possível. Meu secretário estará no carro atrás de nós. Vamos fazê-los correr um pouco? — ele ligou a ignição. Ao ouvir o som forte sob o capô, Hannah teve certeza de que aquela era uma supermáquina. Antes que ela pudesse tomar fôlego, Bennett acelerou o carro pelo longo e tranqüilo passeio. Dirigia do mesmo modo que montava um garanhão: a toda velocidade.

— Já devem estar resmungando, imagino. — Ele fez uma leve saudação aos guardas dos portões. — Se dependesse de Claude, eu jamais passaria de 30 km. E também só sairia em uma limusine à prova de balas, de armadura.

— O trabalho dele é protegê-lo.

— É uma pena ele ter tão pouco senso de humor. — Ben­nett reduziu a velocidade e contornou uma curva.

— Seu avô viveu uma vida longa e frutífera?

— O quê?

— Seu avô — Hannah repetiu enquanto dobrava as mãos sobre o colo. — Gostaria de saber se ele teve uma vida longa. Parece improvável, se dirigia como você.

O vento revolvia-lhe os cabelos ao redor da face quando Bennett se virou para ela com um sorriso nos lábios.

— Acredite-me, ma belle, conheço as estradas.

Hannah não queria que ele reduzisse a velocidade. Era a primeira vez, em meses, que sentia uma verdadeira sensação de liberdade. Quase se esquecera de quão doce aquilo podia ser. O mar brilhava, azul e branco, às margens da estrada, en­quanto desciam a parte mais alta da capital.

Palmeiras contorciam-se de encontro ao céu, envergando-se e balançando ao sabor da brisa constante. Luxuriantes flores vermelhas pendiam dos arbustos ao longo das plantações que margeavam a estrada. O ar cheirava a maresia e eterna primavera.

— Você esquia? — Bennett perguntou ao vê-la observar um homem praticando wakeboard.

— Nunca tentei. Deve ser maravilhoso. Mas acho que é para tipos mais atléticos. Sou mais de ficar em casa, nas bibliotecas.

— Ninguém pode ficar lendo o tempo todo.

Hannah assistiu o esquiador dar uma cambalhota na água.

— Acho que eu consigo.

Bennett sorriu e contornou uma longa curva em S.

— A vida não vale a pena sem alguns tombos. Nunca sentiu necessidade de um pouco de aventura, Hannah?

   Ela pensou nos últimos dez anos da sua vida, nas missões que a levaram dos castelos para os guetos.

Ruelas francesas. Terras à margem da costa italiana. Ela pensou na pistola de baixo calibre que carregava na bolsa e no estilete comprimido como um amante contra sua coxa.

— Acho que sempre preferi livros em vez de aventuras.

— Nenhum sonho secreto?

— Algumas pessoas são exatamente o que parecem. — Re­pentinamente incomodada, Hannah mudou de assunto. — Não sabia que você era oficial da Marinha. — Outra mentira, pen­sou. Mas sua profissão exigia muitas.

— Servi durante vários anos. No momento, é mais um tí­tulo honorário. Segundos filhos costumam ir para o Exército. É uma tradição.

— Então você escolheu a Marinha.

— Cordina é cercada pelo mar. Nossa frota é menor que a sua, certamente, mas é forte.

— E vivemos tempos difíceis.

Algo brilhou nos olhos dele e desapareceu em seguida.

— Em Cordina, aprendemos que todas as horas são difí­ceis. Somos um país calmo, e porque queremos permanecer assim, estamos sempre preparados para a guerra.

Hannah pensou no belo palácio branco, com seus jardins exóticos e torres de contos de fadas. Inacessível através do mar, com sua visão deslumbrante do alto de um penhasco, de onde se podia avistar milhas e milhas a olho nu. Reclinou-se no as­sento, enquanto as ondas batiam contra a orla rochosa. Nada nunca era tão simples quanto parecia.

Le Havre era encantador. Aconchegado na base de uma longa colina, misturava-se aos pequenos prédios brancos e cabanas de madeira. Veleiros e barcos pesqueiros flutuavam tranqüilos em docas limpas em uma das curvas do porto. Ao redor do velho dique, flores azuis cresciam entre as fendas. Havia armadilhas para lagosta e redes estendidas, secando ao sol. O cheiro de peixe era forte e estranhamente agradável no ar de começo da manhã.

A primeira vista, poderia ser tida como qualquer cidade que sobrevivia da pesca e do mar. Mas, à medida que contornavam o porto, as docas se tomavam mais extensas e os edifícios, maiores. Navios cargueiros com homens rebocando carrega­mentos flanqueavam a linha do oceano. Como outros lugares em Cordina, Le Havre era mais do que aparentava.

Graças à localização e à habilidade de seu povo, era um dos melhores portos de escala no Mediterrâneo. Também era o centro da base naval de Cordina.

Manobrando por ruas estreitas e sinuosas, Bennett passou por diversos portões, só reduzindo a velocidade o suficiente para ser reconhecido pelos guardas com saudações breves. Ali havia bangalôs pintados em um tom de rosa-claro que a fez lembrar o interior de uma concha. Palmeiras e flores cresciam em profusão, mas ela reconheceu a estrutura e a ordem de uma instalação militar. Momentos depois, o príncipe se aproximou de um edifício de estuque onde marinheiros, de uniformes brancos, mantinham-se de pé, de guarda.

— Durante as próximas horas — murmurou ele a Hannah —, somos oficiais.

Bennett pegou seu quepe no assento de trás. Enquanto o colocava sobre os cabelos desalinhados pelo vento. Um dos marinheiros alcançou a porta do veículo e a abriu. Com a aba de brim cobrindo parcialmente seus olhos, o príncipe retribuiu as saudações. Sabia que o sedã já havia estacionado atrás dele, mas não olhou para trás enquanto conduzia Hannah ao interior do prédio.

— Primeiro, teremos que participar de algumas formalida­des — advertiu ele, colocando o quepe embaixo do braço.

As formalidades eram um grupo de oficiais, de almirante para baixo, e suas esposas e diplomatas, que aguardavam para cumprimentar e serem cumprimentados por Sua Alteza Real.

Hannah passou pelas apresentações e fingiu não perceber os olhares de especulação. Não faz o tipo do príncipe. Podia ler isso de forma nítida nos olhos que encontravam os seus. E concordava plenamente.

Tomaram chá e fizeram uma excursão pelo edifício, por causa dela.

Hannah fingiu desconhecer os equipamentos que lhe foram mostrados, fazendo perguntas peculiares e se comportando adequadamente com a simplicidade das respostas. Não pode­ria mencionar que o radar e o sistema de comunicação eram tão familiares para ela quanto para os treinados operadores. Em caso de emergência, poderia usar o equipamento para con­tatar a base do SSI fora de Londres ou a sede de Deboque em Atenas.

Ela caminhou ao longo das estantes que exibiam miniatu­ras, ouvindo com aparente fascinação um almirante explicar-lhe a diferença entre um navio torpedeiro e um porta-aviões.

As formalidades continuaram enquanto eram escoltados para fora, a fim de aguardar o Independance ancorar. Os mú­sicos da banda, com seus uniformes brancos banhados pelo sol, tocavam uma marcha entusiasmada. Bennett parou sobre a doca. Muitas pessoas se aglomeravam atrás da barreira mi­litar. Bebês e crianças pequenas eram erguidos por seus pais, para que pudessem ver o príncipe.

Hannah contou mais de uma dúzia de seguranças na multidão, além de dois homens que nunca se distanciavam mais de um palmo do cotovelo de Bennett.

Deboque estava livre, pensou ela. Tudo era um risco.

O torpedeiro cinza manobrou, posicionando-se, enquanto a multidão aplaudia e a banda continuava tocando. Marinheiros na doca bem como no deque do navio mantinham-se atentos. Depois de seis meses no mar, o Independance voltava para casa.

A prancha foi arriada. As cometas soaram. O capitão des­ceu para saudar os oficiais e curvar-se diante do príncipe.

— Bem-vindo à casa, capitão. — Bennett estendeu a mão e a multidão exultou novamente.

Havia, como era costume em tais ocasiões, um discurso a ser proferido. Hannah manteve a fisionomia atenta, enquanto esquadrinhava lentamente a multidão.

Não foi surpresa encontrá-lo lá. O homem franzino, ligeira­mente corcunda, estava em uma das extremidades da multidão com uma pequena bandeira de Cordina. Com suas roupas de trabalho simples e face serena, jamais seria notado ou lembra­do. Era um dos melhores seguidores de Deboque.

Não haveria nenhum atentado ao príncipe Bennett naquele dia, pensou ela, embora tivesse sentido um arrepio na nuca. Ter se infiltrado no palácio com tanta facilidade fora uma das suas melhores contribuições à organização de Deboque. As ordens, agora, eram cautela e inteligência, em vez de uma ten­tativa precipitada de assassinato.

Em todo caso, sabia que Deboque não estava tão interessa­do em Bennett quanto em Alexander, e não tanto em Alexan­der quanto em Armand.

Não se conformaria com o segundo na linha de sucessão ao trono, depois de uma espera tão longa.

Contudo, Hannah fechou a mão sobre o fecho da bolsa. Moveu-se apenas alguns centímetros, mas o corpo de Bennett agora estava quase todo protegido pelo seu.

O homem teria sido enviado com uma mensagem para ela?, Hannah desejou saber.

Ou simplesmente lhe ordenaram que ficasse próximo e assis­tisse? O instinto lhe dizia que era a segunda opção. Casualmen­te, ela esquadrinhou a multidão novamente. Seu olhar encontrou o do sujeito e o sustentou por apenas uma fração de segundo.

Houve um reconhecimento, mas nenhum sinal. Hannah desviou o olhar, sabendo que se encontrariam dentro de alguns dias, no museu.

A bonita cerimônia com a música militar viva e bandeiras continuou com uma excursão ao navio e uma revista da tripu­lação.

Hannah caminhou com a esposa do almirante, enquanto Bennett foi conduzido à frente da fila de oficiais e marinhei­ros. De vez em quando, parava para comentar algo ou fazer uma pergunta pessoal a um dos homens. Ela via mais do que ele escutava as respostas. Até mesmo um observador casual teria notado que ele recebia mais que o respeito devido a seu título pelos homens que cumprimentava. Havia amor, o tipo que ela sabia que só homens poderiam dar a outros homens.

Embora Hannah tivesse certeza que Bennett já vira navios suficientes por uma existência, visitou a ponte, os alojamen­tos dos oficiais e a cozinha com fascinação aparente. O navio estava tão limpo quanto uma sala de estar, utilitários limpos e esfregados, sem sinal de pintura descascando ou ferrugem.

Bennett moveu-se depressa pelo navio, sem parecer correr sobre os deques. Havia perguntas e elogios a serem feitos, mas ele sabia que também havia malas esperando para serem des­feitas. Ele cumprimentou novamente o capitão, ciente de que o homem tinha todo o direito de estar orgulhoso do navio e dos seus homens. Quando o príncipe arriou a prancha, a aclama­ção da multidão recomeçou. Bennett desejou saber se era por sua causa ou porque a cerimônia estava chegando ao fim e os homens iriam desembarcar.

O protocolo exigia que ele fosse escoltado de volta à sede. Foi nesse momento que Hannah começou a sentir a impaci­ência de Bennett para se livrar de tudo aquilo. Embora fosse cortês, distribuindo apertos de mão, beijando mãos, trocando um último gracejo. Isso até estar novamente sentado no pró­prio carro e deixar escapar um xingamento.

— O que disse, senhor?

O príncipe bateu de leve na mão dela, antes de ligar o motor.

— Quatro horas foi tempo demais para mantê-la de pé. Obrigado por ser tão paciente comigo.

— Pelo contrário, achei tudo fascinante. — Nada era mais maravilhoso do que sentir o vento batendo na face outra vez, à medida que o conversível ganhava velocidade. — A excursão ao navio foi particularmente cultural. Não foi inteligente da parte do cozinheiro do navio preparar uma receita para crepes onde a farinha estava medida em libras em vez de xícaras?

— Comida se toma uma prioridade depois de alguns me­ses no mar. — Bennett a fitou surpreso por ela ter ficado tão entretida com um navio e vários discursos pomposos. — Se soubesse que estava de fato interessada, não teria apressado tanto as coisas. Pensei que já estivesse entediada. Também pensei nos homens. Tudo que eles realmente desejavam era desembarcar e abraçar suas esposas ou namoradas, ou ambas.

— Ele estava rindo quando virou a cabeça na direção dela.

— Você não pode imaginar o que são quatro meses no mar, quando a única mulher que vê é uma brilhante fotografia com marcas de clipes no meio.

Os lábios de Hannah se contraíram, mas ela conseguiu con­ter um sorriso.

— Não, de fato não posso. Mas penso que você desfrutou seu tempo no mar, Bennett. Isso ficou claro pelo modo como falava com os homens e inspecionava o navio.

O príncipe permaneceu calado por um momento, surpreso e não descontente por ela ter entendido aquilo tão depressa.

— Lá eu era mais do que um oficial e menos do que um príncipe. Não posso dizer que tenho o mar em meu sangue como o capitão Dumont, mas não é algo que esquecerei.

— Do que jamais se esquecerá? — perguntou ela, antes que pudesse evitar.

— Ver o sol nascer no mar, ou melhor, navegar de encontro a uma tempestade. Deus, nós enfrentamos uma na saída de Creta. As ondas tinham uns 15 metros de altura. O vento era como a ira de Deus, tão violento, tão colossal que você podia gritar ao ouvido de alguém e ele não ouvir. Nenhum céu, ape­nas imensas paredes de água, uma após outra. Uma experiên­cia assim faz um homem mudar.

— Como?

— Faz com que ele perceba que não importa o que ou quem você é, há algo maior, muito maior. A natureza é um podero­so nivelador, Hannah. Olhe para ela agora. — Com uma das mãos, ele gesticulou para o mar, enquanto manobrava o veícu­lo em outra curva. — Calma, quase impossivelmente bela. Um furacão não a faz menos bela, só mais perigosa.

— Soa como se preferisse o perigo. — Ela entendia aquela predileção, talvez muito bem.

— Às vezes. O perigo tem sua própria sedução. Hannah não podia contradizê-lo. Era algo que aprendera

por si mesma, anos antes. Com um breve sinal ao carro de trás, Bennett parou o conversível.

— No momento, prefiro a calma. — Ele desceu do auto­móvel, ignorando o guarda que já se encontrava ansioso pró­ximo ao capô do carro. — Venha caminhar comigo na praia, Hannah. — Ele abriu a porta para ela e estendeu-lhe a mão. — Prometi levar algumas conchas para Marissa.

— Seu segurança não parece muito contente. — Nem ela tampouco, quando percebeu o quanto ficariam expostos.

— Eles só ficam satisfeitos se sentar, imóvel, em uma redo­ma à prova de balas. Agora venha, Hannah. Você não me disse que o ar marinho faz bem para o corpo?

— Sim. — Ela pôs a mão sobre a dele. O príncipe estava a salvo, contanto que ela executasse bem seu papel. — Terá que achar conchas bem grandes, que não possam ser engolidas. Na idade de Marissa, crianças tendem a colocar na boca as coisas mais estranhas.

— Sempre prática. — Com um riso leve, Bennett a ergueu pela cintura e a colocou sobre o pequeno dique. Ele a viu olhar por cima do ombro dele e soube que um guarda os estava se­guindo a uma distância discreta.

— Devia tirar seus sapatos, Hannah. Vão ficar cheios de areia.

Era a coisa mais prática a fazer, é claro. A coisa mais lógica. Hannah tentou se convencer de que não estava revelando parte do seu disfarce.

— Vocês devem ter algumas formações de corais fascinan­tes nestas águas.

— Você mergulha?

— Não — mentiu ela. — Não sei nadar muito bem. Fui a uma exposição da Marinha em Londres alguns anos atrás. Até então, não fazia idéia da variedade incrível de conchas que existe ou o quanto podem ser valiosas.

— Por sorte Marissa tem gostos simples. — De mãos dadas com ela, o príncipe a conduziu até a beira da água. — Basta um par de cascas de mariscos para deixá-la feliz.

— É muito amável da sua parte, pensar em sua sobrinha.

— Ele era amável, pensou Hannah. Isso, por si só, era uma das coisas mais difíceis de não perceber. — Você parece ser o grande favorito entre seus sobrinhos e sobrinhas.

— Oh, suponho que seja porque não me incomodo de ban­car o bobo de vez em quando em uma brincadeira. Que tal esta aqui? — curvando-se, Bennett apanhou um longo espiral que se rompera de uma concha maior e fora amaciada pelo fluxo e refluxo do mar. No topo da curva havia uma espécie de quepe, que lembrava uma coroa.

— Bastante adequada — Hannah comentou quando ele passou a concha às mãos dela.

— Marissa não se preocupa se são adequadas. Prefere as bonitas.

— Esta é bonita. — Com um sorriso, ela correu um dedo ao longo da curva que ia do âmbar claro ao rosa brilhante. — Ela devia colocá-la no peitoril da janela onde o sol a iluminaria. Oh, veja! — distraída, ela entrou na rebentação e pegou uma concha de vieira intacta. Tinha o formato de um leque, acinzentada de um lado, rosa opalino no interior da tigela rasa.

— Pode lhe dizer que as fadas servem biscoitos nisto enquanto tomam chá.

— Então lady Hannah acredita em fadas — murmurou ele. Pega em flagrante, ela lhe entregou a concha.

— Não, mas acho que Marissa sim. Bennett colocou a concha no bolso.

— Seus pés estão molhados.

— Secarão rapidamente. — Ela começou a se afastar, mas o príncipe a segurou pela mão outra vez, mantendo-a na espu­ma da rebentação.

— Já que estamos aqui, deveríamos tentar achar mais algu­mas conchas. — Sem esperar por uma resposta, ele começou a caminhar ao longo da costa.

Hannah sentiu a água morna e macia acariciar-lhe os pés e os tornozelos, mas não tão morna e macia quanto o ar que os envolvia. Através das águas cristalinas, podia ver a camada de areia branca e o reluzente cintilar das conchas que haviam sido esmagadas pelas ondas. A rebentação ali era serena, apenas suspiros e sussurros.

Não havia nada de romântico naquilo, advertiu-se. Não podia permitir que houvesse. A linha em que caminhava ago­ra era mais fina e mais perigosa que qualquer uma pela qual caminhara antes. Um passo em falso poderia significar uma tragédia, ou uma guerra, na pior das hipóteses. Determinada a se manter em seu lugar, concentrou-se nos guardas alguns metros de distância atrás deles.

— A cerimônia de hoje foi adorável. Agradeço por ter me convidado.

— O motivo pelo qual a convidei foi puramente egoísta. Desejava sua companhia.

Lutando para não se deixar influenciar, Hannah tentou no­vamente.

— Na Inglaterra fazem muita sátira com a Família Real, fora as críticas, mas sob tudo isso há um verdadeiro afeto. Vi esse mesmo tipo de amor e respeito pela sua família aqui.

— Meu pai lhe diria que governamos bem. Ele dá ao povo solidez e confiança. Alex, esperança para o futuro. Uma con­tinuação da tradição. E Brie, glamour, inteligência e humani­dade.

— E você?

— Entretenimento.

Aquilo a aborreceu. Não saberia dizer por que, mas a des­crição displicente de si mesmo a fez parar e encará-lo com o rosto contraído.

— Você se subestima.

Surpreso, Bennett ergueu a cabeça e a estudou. Estava lá novamente, algo, aquele algo indefinível nos olhos dela que o atraíram desde o início.

— Para ser franco, não. Estou ciente de que cumpro com o meu dever. Meu pai nos criou para entender que não herdamos simplesmente um título ou uma posição. Tivemos que con­quistá-los. — Ele a puxou para trás um pouco de modo que os respingos da rebentação não molhassem sua saia.

— Não serei o regente. Graças a Deus! É uma tarefa para Alex e, depois, para o filho que Eve está esperando. Portanto, não tenho que levar a vida tão a sério quanto Alex. Mas isso não significa que não tenho respeito por Cordina ou pelas mi­nhas responsabilidades.

— Não pretendi criticá-lo.

— Tenho certeza que não. Eu apenas quis dizer que, além dos meus deveres e da minha posição oficial, proporciono às pessoas algo... para falarem quando estão bebendo uma taça de vinho ou durante um jantar. Sou perseguido pelo título de príncipe playboy desde a adolescência. — Bennet sorriu e afastou uma mecha de cabelo do rosto de Hannah. — Não posso dizer que não fiz o possível para merecer esse título.

— Prefiro literatura à fofoca — disse Hannah enquanto re­começava a caminhar.

— A fofoca tem seu lugar. — Alegre, Bennett a fez parar novamente.

— Você parece gostar disso.

— Não. — Os olhos do príncipe escureceram quando olhou para o mar além dela. — Apenas estou acostumado. É difícil, quando se tem 20 anos, saber que toda vez que se olha para uma mulher, com um pouco mais de interesse, isso vai ser manchete nos tablóides, incluindo fotos. Tenho um fraco por mulheres. — Dessa vez ele sorriu e a fitou. — Já que não quero mudar esse aspecto da minha personalidade, decidi con­viver com a especulação pública. Se pequei, foi por falta de discrição.

— Muitos diriam que foi pela quantidade.

Bennett hesitou apenas alguns instantes, antes de jogar a cabeça para trás e dar uma gargalhada.

— Oh, Hannah, que pedra preciosa você é. Então perdeu tempo lendo algo além de Yeats.

— Posso ter folheado algumas manchetes.

Rindo novamente, ele a rodopiou no ar, antes que ela pu­desse evitar.

— Engraçado. Muito engraçado. — Os olhos escuros esta­vam cintilando quando a colocou de volta no chão. — Adoro quando me aniquila com tanta habilidade.

Com um gesto automático, Hannah alisou a saia para baixo.

— Tenho certeza que está equivocado. Não foi minha in­tenção.

— Claro que foi. É isso que me deixa encantado.

O olhar frustrado que ela lhe lançou não tinha nada a ver com o papel que estava desempenhando. Encantá-lo jamais fizera parte do plano. Estava ali para observar, consolidar sua posição e levar a cabo um plano que há anos vinha sendo ela­borado. Nunca antes lady Hannah precisara se preocupar por despertar o interesse de um homem.

Enquanto calculava como evitar tal coisa, Bennett a alcançou.

— Seu cabelo está se soltando. — Com um movimento casual ele arrancou um grampo solto que balançava junto ao ombro dela.

— A culpa foi minha por tê-la rodopiado.

— Devo estar parecendo ter sobrevivido a um furacão. — Hannah pegou o grampo para refazer o prático penteado. Nesse instante, outros grampos caíram na sua mão, soltos pelo vento e pelo peso das mechas. Enquanto blasfemava em silên­cio, os cabelos caíram-lhe livres, descendo pelos ombros até alcançarem cintura.

— Mon Dieu. — Antes que ela pudesse torcer os cabelos para trás, Bennett enchera ambas as mãos com os fios bri­lhantes, que entrelaçaram seus dedos macios como seda. Ele a contemplou fulminado pela transformação. A cascata, louro-mel, rebelava-se livre ao redor da face dela, acentuando-lhe o desenho das maçãs do rosto que aparentavam ser ainda mais firmes e angulares com a moldura. Sua face já não parecia magra e ossuda, mas exótica.

— Cest magnifique. C'est la chevelure d'un ange.

Com o coração acelerado, Hannah tentou ignorar o que viu nos olhos do príncipe. Não era deleite inocente ou atração ca­sual, havia desejo de homem para mulher, primitivo, poderoso e tão perigoso quanto o mar em um dia de tempestade. Não podia se afastar, porque as mãos de Bennett estavam em seus cabelos. Foi difícil negar a força do próprio desejo, quando ele a puxou para si.

Aquilo não devia estar acontecendo. Não devia, repetiu Hannah a si mesma. Mesmo assim, desejava sentir-se envolvi­da por aqueles braços, ser confortada, e, embora a palavra pa­recesse ridícula em sua mente, ser apreciada por ele. Desejada, querida, amada. Todas essas coisas eram contra as regras, mas não conseguia afastá-las da mente.

— Cabelos de anjo — Bennett repetiu, sussurrando. — Por que uma mulher esconderia tamanha beleza, prendendo-os?

Não, ela não era capaz de negar o que estava acontecendo em seu interior, mas podia, como fora treinada, dizer não a si mesma.

— É mais prático usá-los presos. — Hannah ergueu as mãos para afastar os cabelos dos dedos do príncipe e encon­trou resistência.

Sim, estava certo desde o início, pensou Bennett. Havia mais, muito mais sobre lady Hannah do que ela se permitia mostrar. Talvez fosse isso que continuava a atraí-lo, fazendo-o desejá-la e querê-la de um modo como jamais se interessara por outra mulher. Se tivesse sido possível, a teria tomado nos braços. Não foram os guardas que o impediram, mas o traço de ansiedade que viu nos olhos dela.

— Se isso fosse verdade, minha prática Hannah, por que simplesmente não os corta?

Quantas vezes pensou em cortá-los, mas se arrependera no último minuto? Respirando fundo, ela resolveu dizer a verda­de, porque, em geral, era o melhor disfarce de todos.

— Até uma pessoa como eu tem um pouco de vaidade.

— Eles a fazem parecer mais bela. — Bennett deslizou as mãos pelos fios sedosos novamente, achando difícil acreditar que pudessem ser contidos por um punhado de grampos.

— Apenas diferente. — O sorriso de Hannah escondia a tensão que a estava levando em duas direções.

— Qualquer homem aprovaria tal diferença. — Ela enrije­ceu ao contato das mãos dele. O príncipe percebeu, e a liber­tou com alguma relutância. — Embora não esteja preocupada com a aprovação de um homem, não é?

— Nunca achei isso necessário. — Com alguns movimen­tos hábeis, Hannah arrumou os cabelos novamente na altura da nuca. Os grampos foram colocados um a um, até os fios ficarem seguros. Então, quase pôde se sentir segura. — É me­lhor voltarmos. Eve pode estar precisando de mim.

Com um aceno de cabeça, Bennett começou a caminhar de volta ao carro com ela.

Haveria outro tempo e lugar. De repente, percebeu algo em si que raramente experimentara, em particular com uma mu­lher: paciência.

— Pode prendê-los, Hannah. Mas agora que sei como eles ficam soltos, eu a verei desse modo sempre que olhar para você. — Quando ambos alcançaram o dique, Bennett a ergueu de novo, mas dessa vez parou, as mãos ao redor da cintura dela, seus olhares se prendendo.

— Conhecendo esse segredo, me faz desejar saber quantos outros esconde e quanto tempo levarei para descobri-los.

Ansiedade e desejo eram uma combinação poderosa. Han­nah sentiu seu coração batendo com ambos.

— Acho que vou desapontá-lo, Bennett. Não escondo ne­nhum segredo interessante.

— Veremos — disse ele, antes de saltar com um movimen­to ágil para cima do dique.

 

Hannah quase nunca ansiava parecer bela. A beleza da sua profissão residia no fato de ser pouco notada, passar quase despercebida. À medida que os anos passavam, ressentira-se uma vez ou outra, mas apenas quando pensava em cores suaves e vestidos vaporosos. Sempre era possível libertar esse desejo, quando tirava folga ou saía do país. Então, podia mudar a aparência com uma escolha mais detida de cores e cortes e lançar mão de um pouco de maquiagem.

Mas no momento não podia se dar a esse luxo.

Sabia que todos estariam maravilhosos para o jantar de Eve. Os eventos no palácio eram sinônimo de elegância, até mesmo de extravagância.

Não tinha dúvida que todas as mulheres naquela noite se esforçariam para estar à altura da ocasião. Todas as mulheres, menos ela, é claro.

Hannah tivera a oportunidade de ver o brilhante traje de Eve, com sua saia vaporosa da cintura ao tornozelo e a ousada parte de trás drapejada. Gabriella usaria algo delicado, sem dúvida, que acentuaria sua aparência frágil e feminina.

E havia Chantel O’Hurley. Tinha certeza que a atriz estaria deslumbrante, trajasse seda ou aniagem. Lembrou-se de como Bennett fitara a loura, enquanto descia a escadaria do Centro rapidamente.

Isso não importava.

Importava muito.

Dissertando sobre si mesma, Hannah escolhera o melhor dos piores, usando um vestido cor de lavanda clara com um corpete exagerado que depunha contra suas curvas.

Os cabelos soltos lhe conferiam a aparência de uma puri­tana atrevida. Uma imagem que não passaria despercebida, pensou. Com um pequeno suspiro, reuniu os cabelos para co­meçar a laboriosa tarefa de prendê-los em uma trança.

Quando estavam aninhados na base do seu pescoço, Han­nah sentiu-se satisfeita por ter subjugado qualquer traço de sexualidade. Agora, sim, estava perfeitamente apresentável.

Não podia haver pesar, disse a si mesma enquanto ocultava a pistola na bolsa de noite. O dever vinha primeiro que o dese­jo pessoal, e, por certo, muito à frente da vaidade.

Ele a aguardava. Os convidados se encontravam na Salle des Miroirs, onde garçons com sobretudos curtos serviam aperitivos.

Ambos, o elenco e a equipe de funcionários da produção de Eve, foram convidados, de forma que a conversa era um burburinho excitado.

Embora impaciente e distraído, Bennett cumpria seu de­ver sem hesitação. Havia sempre perguntas educadas a serem feitas, uma mão a ser beijada e uma piada da qual rir. Em circunstâncias habituais, a festa o estaria divertindo e o man­tendo entretido, mas...

Onde estava ela? O príncipe sentiu-se sufocado dentro das roupas de noite que normalmente usava sem se incomodar. Ao seu redor, as mulheres brilhavam. Seus perfumes se comple­mentavam, misturando-se em uma fragrância exótica, que não conseguia tentá-lo. Desejava um momento a sós com Hannah. Não fazia a menor idéia de por que aquilo era tão importante, mas desejava essa chance desesperadamente.

Mantinha um olho na entrada enquanto conversava com a figurinista do elenco. Seu olhar se fixou brevemente no reló­gio de ouropel, enquanto ouvia o diretor falar sobre o poten­cial da peça de Eve.

— Procurando por mim? — a voz provocante soou ao seu ouvido, acompanhada de uma nuvem de perfume.

— Chantel. — Bennett beijou-lhe a face antes de se afastar para admirá-la melhor. — Encantadora, como sempre.

— Faço o que sei fazer de melhor. — Sorrindo, ela acei­tou um copo de um garçom que passava. O ousado decote do vestido branco deixava-lhe os tentadores ombros à mostra, antes de fechar seguindo até a cintura e acentuando suas sutis curvas. — Sua casa é tudo que dizem ser. — Ela ergueu o copo aos lábios, enquanto seu olhar passeava sobre dúzias de espe­lhos antigos que decoravam as paredes. — E que inteligente da parte de vocês escolher este salão para entreter um grupo de atores narcisistas.

— Também temos nossos momentos. — Bennett olhou além da atriz, por um momento, mas não percebeu sinal de Hannah. — Assisti ao seu último filme. Estava magnífica.

Para uma mulher acostumada a absorver toda a atenção de um homem, Chantel percebia, quase instintivamente, quando tinha apenas parte disso. Mesmo assim, sorriu e especulou:

— Ainda estou esperando que volte a Hollywood.

— Você parece estar muito ocupada no momento. — Ele retirou um isqueiro do bolso para acender o cigarro dela. — Como consegue dividir seu tempo entre estrela de tênis, negociante do ramo de petróleo e produtora?

Chantel inclinou a cabeça enquanto exalava uma pequena baforada de fumaça.

— Oh!, do mesmo modo, imagino, que você divide o seu entre condessas, marquesas e... era uma garçonete em Chelsea?

Rindo, Bennett colocou o isqueiro de volta no bolso.

— Ma chère amie, se nós desfrutássemos de todos os incríveis e incontáveis romances que a imprensa nos atribui, esta­ríamos hospitalizados.

Com um afeto verdadeiro que sentia por poucos homens, Chantel tocou a face do príncipe.

— Para qualquer outra pessoa, eu diria fale por si mesmo. Porém, já que nunca fomos amantes, embora as manchetes de jornais afirmem o contrário, eu lhe pergunto como vão as coisas para você, romanticamente falando.

— Confusas — naquele instante, através do espelho oval aci­ma do ombro de Chantel, ele viu Hannah entrar no salão. Parecia uma pomba perdida em meio a um grupo de pavões. — Muito confusas. Poderia me dar licença por um momento, amor?

— Claro. — Ela percebeu a direção que o olhar de Bennett tomara. — Boa sorte.

Uma vida inteira de experiência lhe permitia deslizar por entre os grupos de pessoas, trocando uma palavra rápida, um sorriso ou uma desculpa murmurada, sem deixar para trás qualquer ofensa. Em menos de um minuto, após Hannah se estabelecer em um canto, ele estava a seu lado.

— Bonsoir, lady Hannah.

— Alteza. — Ela usou o título dele e o reverenciou como o protocolo exigia.

Bennett segurou-lhe as mãos e a fez assumir a postura nor­mal, dispensando a formalidade.

— É comum, quando uma mulher está atrasada, ao entrar em um lugar, mostrar-se, em vez de ficar escondida em um canto.

Maldição, aquele homem fazia seu pulso acelerar. Mesmo tentando se acalmar, Hannah percebeu que mais de uma ca­beça virara na direção dos dois. Depois de tanto esforço para passar despercebida!

— Prefiro observar em vez de ser observada, senhor.

— Eu prefiro observá-la. — Bennett sinalizou a um gar­çom, então pegou um copo da bandeja e o ofereceu a ela. — Você se move bem, Hannah. É capaz de andar em uma sala vazia sem fazer ruído.

Aquilo tinha muito a ver com seu treinamento de tae kwon do e as lições de balé na infância.

— Aprendi a não provocar distúrbios. — Ela aceitou o copo porque dessa forma livrava uma das mãos. — Obrigada. Que salão adorável. — As palavras foram proferidas num tom casual, como o olhar de relance que ela lançou sobre os convi­dados. Seu reflexo no espelho foi lançado de volta uma dúzia de vezes. O seu e o de Bennett, juntos.

— Sempre fui parcial com isso. — Agora que Hannah esta­va ali, ele estava feliz. Quase sempre ouvia o clique de coisas se encaixando em seus próprios lugares, quando estavam de mãos dadas. — Como já lhe disse, foi outro Bennett, algu­mas gerações atrás, que começou a coleção. Parece que ele era miseravelmente vaidoso, sem muito motivo, e continuou comprando espelhos com a esperança de que um lhe contasse uma história diferente.

Hannah não foi capaz de conter o riso. Por um momento, sentiu como se pertencesse àquele lugar, com vestidos, espe­lhos e glamour.

— Eu diria que você acaba de inventar essa história, mas soa bastante tola para ser verdadeira.

— Tem a risada mais atraente que já ouvi — ele murmurou. — É uma risada que me lembra como você fica com os cabelos soltos e os olhos obscurecidos.

Não podia permitir tal coisa, pensou Hannah. Então, disse a si mesma que era tola por se deixar comover, sabendo o quan­to ele era experiente com mulheres. E mais tola ainda por se deixar apanhar com a guarda baixa, quando sabia que o jogo que estavam jogando era demasiado perigoso. Dessa vez sua voz soou fria e formal:

— Não deveria estar dando atenção aos seus convidados?

— Eu estava. — Bennett deslizou o dedo polegar suave­mente sobre as juntas da mão dela. Era um gesto pequeno e íntimo que a fez desejar uma vez mais ter se arrumado me­lhor para ele. Que pudesse, mesmo simples, ter sido para ele. — Enquanto esperava por você.

Ele se aproximou. Pelo fato de ter se colocado em um can­to, não havia como fugir.

— Seu perfume é delicioso.

— Bennett, por favor. — Ela quase espalmou a mão no tórax dele, antes de se lembrar que estavam sendo observados. Em sua defesa, ergueu o copo e o levou aos lábios.

— Hannah, não posso deixar de lhe dizer o quanto me agra­da vê-la nervosa. As únicas vezes que fica insegura é quando me aproximo de você.

Era verdade, e uma pílula amarga de engolir para uma mu­lher que sobrevivia graças à segurança que depositava em si mesma.

— As pessoas estão nos observando.

— Então venha me encontrar nos jardins, onde podemos ficar a sós.

— Não acho que seja uma boa idéia.

— Tem medo que eu a seduza?

Havia diversão e arrogância no tom do príncipe, mas quan­do Hannah o fitou, também percebeu um brilho de desejo em seu olhar. Ela tomou um gole da bebida novamente para umedecer a garganta seca.

— Não tenho medo. Pouco à vontade parece um termo mais adequado.

— Eu sentiria um grande prazer em deixá-la pouco à von­tade, Hannah. — A voz do príncipe soou baixa, uma carícia acompanhando o roçar dos seus lábios sobre os dedos dela. — Quero fazer amor com você em algum lugar escuro, tran­qüilo, de modo lento e suave.

Uma onda de desejo a invadiu, fazendo-a lutar para conter um tremor de antecipação. Poderia ser assim, com ele, poderia ser. Se pelo menos...

Não podia haver "se" em sua vida, Hannah pensou. Isso significaria incerteza, e incerteza era letal. Esforçando-se para controlar o nervosismo, ela o encarou. Em seus olhos havia desejo... mas também uma bondade, uma doçura que pode­riam acabar por destruí-la. Podia se maravilhar pelo fato de o príncipe sentir algo real por ela e, de alguma maneira, enxer­gar além da superfície e se interessar.

Podia desejar tal coisa, mas não aceitar. Só havia um modo de parar o que nunca deveria ter começado: teria que magoá-lo, e faria isso naquele momento.

— Estou certa de que deveria sentir-me lisonjeada. — A voz soou fria e calma outra vez. — Mas, se me perdoa, senhor, sei que seus gostos não são muito seletivos.

Os dedos de Bennett enrijeceram antes de libertar-lhe a mão. Hannah pôde perceber pelo olhar dele que a seta acertara seu alvo.

— Apreciaria uma explicação para isso.

— A explicação parece óbvia. Por favor, deixe-me passar, ou vai provocar uma cena.

— Já provoquei outras antes.

Havia algo novo em sua voz agora. Era raiva, por certo, mas uma raiva despreocupada, negligente. Hannah sabia que se não jogasse com precisão imediatamente veria seu nome es­tampado nas manchetes por brigar com Bennett em público.

— Muito bem. — Colocando o copo sobre uma mesa próxima, cruzou as mãos no seu jeito habitual. — Sou mulher e, portanto, posso despertar algum interesse. Para ser franca, tal interesse não é recíproco.

— É mentira.

— Não. — Ela o cortou num tom firme. — Embora seja difícil para um homem como você entender, sou uma mulher simples, com valores simples. Como você mesmo me disse, sua reputação o precede. — Ela fez uma pausa bastante longa para vê-lo estremecer. Oh, Bennett, sinto muito. Sinto muito.

— Não vim a Cordina para distraí-lo — murmurou, dando um passo para o lado.

O príncipe ergueu a mão de repente para detê-la e ela esperou.

— Você não me distrai, Hannah.

— Então, imploro que me perdoe. — Sabendo que parecia mais um insulto do que uma cortesia, ela se curvou em uma mesura. — Se me dá licença agora, senhor, eu gostaria de falar com Eve.

Bennett a impediu de se afastar. Hannah podia sentir a fúria dele através das pontas dos dedos e queimando-lhe a carne. Então, de um momento para o outro, virou gelo.

— Não vou segurá-la aqui. Aproveite a noite.

— Obrigada.

Desprezando-se, Hannah passou pela multidão. As luzes pareciam brilhantes, disse a si mesma. Talvez fosse porque seus olhos estavam marejados de lágrimas.

— Lady Hannah, boa noite. — Reeve aproximou-se e to­mou-a pelo braço. — Gostaria de um pouco de vinho?

— Sim. obrigada. — Acompanhando os passos dele, acei­tou o copo que ele lhe ofereceu.

— Já viu esta coleção de espelhos? Sempre achei estes três particularmente impressionantes. Você está bem? — acrescen­tou a meia voz.

— Sim, são adoráveis. E estou bem.

Reeve fechou a mão ao redor da ponta de um cigarro, olhan­do ao redor casualmente para se certificar de que ninguém os estava ouvindo.

— Parece que andou tendo alguns problemas com Bennett.

— Ele é insistente. — Hannah tomou um gole do vinho, pasma porque seus nervos ainda não haviam se acalmado.

— Por certo, este aqui data do século XVIII.

— Hannah. — Reeve lhe mostrou outro espelho enquanto caminhavam, mas seu tom de voz ficou mais suave. — Tra­balhei com seu pai quando passei pelo SSL Isso me faz sentir quase como da família. Você está bem?

— Eu ficarei. — Respirou fundo e sorriu como se ele tivesse dito algo divertido. — Eu o magoei, e não gostei do que fiz.

Reeve afagou-lhe a mão num gesto casual. O toque era reconfortante como um abraço.

— É difícil levar a cabo uma missão sem ferir alguém.

— Sim, eu sei que os fins justificam os meios. Não se preo­cupe, farei meu trabalho.

— Não estou preocupado.

— Ajudaria bastante se você cuidasse para manter Bennett ocupado durante a próxima semana ou mais. As coisas podem se agravar e eu não preciso dele...

— Distraindo-a?

— Interferindo — corrigiu Hannah. Em seguida, olhou atra­vés de um dos espelhos e viu Bennett com Chantel. — Embo­ra eu possa muito bem cuidar disso sozinha. Com licença.

Bennett conduzia o cavalo velozmente, mas mesmo assim não conseguia o nível de satisfação que buscava. Blasfeman­do, mergulhou no caminho sinuoso, mas nem alegria nem ex-citação cavalgavam ao seu lado. A raiva não deixava espaço para tal.

Estava sofrendo por ela. Amaldiçoou-a inúmeras vezes, mas continuava sofrendo por ela. Nos dias que se seguiram desde aquele em que ela o evitara, a dor não aliviara. Agora estava encoberta com autodesprezo e raiva, mas não diminuíra.

Tentou se convencer de que aquela mulher era uma purita­na fria, sem sentimentos, sem generosidade ou coração. Então, lembrou-se dela na praia, com uma concha na mão, os olhos brilhando alegremente com o vento soltando os grampos que lhe prendiam os cabelos.

Disse a si mesmo que ela era dura como uma pedra, e in­sensível! Então, lembrou-se da maciez dos lábios dela sobre os seus quando os provara. Amaldiçoou-a mais uma vez e galopou mais rápido.

O céu estava carregado de nuvens negras, mas ele as igno­rou. Era a primeira vez em dias que pudera se livrar das obri­gações por tempo suficiente para sair com Drácula e cavalgar mais do que o exercício básico. O vento assobiou e revolveu o oceano, provocando ondas altas que açoitavam a costa.

Desejava a tempestade. Deus, como desejava o vento, a chuva e os trovões! E desejava Hannah.

Imbécile! Só um tolo desejaria uma mulher que não lhe oferecia nada em troca. Só um louco pensaria em maneiras de obter o que já lhe fora negado. Já se dissera isso antes, mas mesmo assim se pegava sonhando em como pegá-la e levá-la para algum lugar até que encontrasse o jeito certo de lhe mostrar... De lhe mostrar o quê?, perguntou-se. Mostrar-lhe que era diferente com ela?

Que mulher acreditaria naquilo?

Dúzias, pensou, e a própria risada ecoou, amarga. Podia até provar tal coisa. Mas agora que era verdade, quando era importante para ele, aquela mulher não acreditaria.

Tudo porque agira como um idiota. Puxando as rédeas, fez o garanhão parar na beirada de um precipício e contemplou o mar. Fora insistente e precipitado. Era simples admitir que agira dessa forma porque nunca encontrara muita resistência antes. As mulheres se atiravam aos seus pés por causa do seu título e da sua posição.

Não era tão convencido ou tão tolo a ponto de não reconhe­cer isso. Mas também as atraía porque as apreciava. Gosta­va da suavidade, do humor e das vulnerabilidades femininas. Também era verdade que não tivera tantos casos quanto lhe atribuíram, mas muitas mulheres passaram pela sua vida para ele entender que os romances não eram nada simples.

Hannah era jovem, sem experiência, fechada. O termo "lady" não era somente um título, mas um estilo de vida. Até onde os homens estavam envolvidos, era de se duvidar que ela tivesse afastado os olhos dos livros tempo suficiente para manter um relacionamento sólido.

Com outro xingamento, Bennett deslizou os dedos por en­tre os cabelos desalinhados pelo vento. E o que fizera? Ten­tara seduzi-la durante o jantar de Eve. Como podia esperar que uma mulher da estirpe e sensibilidade de Hannah não se sentisse insultada? Fizera a mais desajeitada e talvez a mais grosseira das proposições.

Drácula começou a se mover impaciente, mas ele o contro­lou com pulso firme, enquanto observava a tormenta se formar lentamente no horizonte.

Não lhe contara, jamais tentara lhe contar o que sentia por ela. Só o fato de conversar com ela, olhar aquela face solene e de modos serenos o excitava mais do que qualquer mulher exótica ou extravagante antes. Era algo mais profundo. Nunca lhe dissera que com ela estava a ponto de acreditar no amor, que não julgara existir.

Agora não poderia mais fazer nada disso, depois que a insultara. Mas podia fazer qualquer outra coisa. Um sorriso curvou-lhe os lábios no instante em que as primeiras gotas de chuva caíram no mar. Poderia tentar um novo recomeço.

Bennett girou o cavalo quando o primeiro raio cortou o céu. Ambos estavam correndo de volta para casa.

Uma hora depois, com roupas secas e os cabelos gotejando, foi ao berçário. Bernadette o impediu de entrar.

— Perdão, Alteza, mas está na hora de a princesa Marissa cochilar. A princesa está descansando com o bebê.

— Estou procurando lady Hannah. — Ele se curvou para perscrutar o quarto, mas Bernadette se manteve firme em sua posição.

— Lady Hannah não está aqui, senhor. Acho que foi visitar o museu esta tarde.

— O museu. — Bennett ponderou por um momento. — Obrigado, Bernadette.

Antes que a mulher pudesse concluir sua mesura, ele havia partido.

O Musee d'Art era pequeno e adorável como o restante de Cordina. Parecia um minipalácio, com seus pisos de mármore e colunas esculpidas. No salão de entrada principal, um teto alto com clarabóia de vidros coloridos e uma sacada circular davam a ilusão de mais espaço. A partir desse centro, as salas se situavam como raios de uma roda. No andar inferior havia um restaurante com preços modestos, onde os clientes podiam desfrutar da vista dos jardins através de uma ampla parede envidraçada.

Hannah chegara cedo, a fim de fazer o levantamento do prédio inteiro. A segurança era reforçada, mas as pessoas que descansavam nos bancos próximos às exposições eram total­mente ignoradas. Grupos escolares eram conduzidos por seus professores, a maioria das crianças mais impressionada pela tarde longe da sala de aula do que com as pinturas e escul­turas. Turistas, com panfletos nas mãos, se misturavam em uma confusão de sotaques: francês, italiano, inglês britânico e americano.

Em uma tarde chuvosa de um dia de semana, o museu era um passatempo agradável. Um bom número de pessoas en­trava e saía. Hannah decidiu que não poderia ter planejado melhor sua tarefa.

No momento em que pediu sua mensagem, caminhava em direção a uma marinha de Monet. Parou tempo suficiente para ler a placa e estudar o trabalho do pintor. Fosse quem fosse que iria encontrar, provavelmente estaria ali, fazendo o pró­prio estudo do prédio e dela. Com um andar vagaroso, ela foi de pintura a pintura.

Então, viu a aquarela, e seu coração e mente voltaram à sala de música do palácio e a Bennett.

Na placa lia-se: "Sua Alteza Sereníssima Princesa Louisa de Cordina." Mas, em letras minúsculas, no canto da pintura, havia a assinatura: Louisa Bisset.

A obra recebera o título simples de La Mer. De fato, era o mar, mas de um ângulo que Hannah ainda teria que ver em Cor­dina. Havia uma queda denteada de penhascos que se estendiam até a orla rochosa. De lá, a areia branca se esparramava até a beirada azul do oceano. Mas as águas não estavam calmas. Na­quela pintura, a artista capturara o poder e o perigo. A espuma das ondas se erguia bem alto e no horizonte se formava uma tempestade.

O príncipe achara aquela aquarela guardada em um baú, lembrou-se ela, e teve de resistir ao desejo de tocar a mol­dura como ele, provavelmente, tocara. Bennett a encontrou, pensou outra vez, e talvez tivesse visto nela uma parte de si mesmo.

— Um tema interessante.

A voz a seu lado tinha forte sotaque francês. O contato fora feito.

— Sim, a artista era muito hábil. — Hannah deixou cair seus panfletos. Quando se abaixou para pegá-los, olhou ao redor e ficou satisfeita por ninguém estar bem próximo para ouvi-los ou até mesmo notá-los.

— Tenho informações.

— Passe-as para mim.

Hannah sorriu como se ambos estivessem trocando algu­mas observações agradáveis sobre a pintura. O homem de es­tatura mediana tinha uma tez morena, e não possuía cicatrizes. Avaliou que ele estivesse na casa dos 50, embora pudesse ser mais jovem. Certas profissões tendiam a fazer as pessoas en­velhecerem mais rapidamente. Não era francês de nascimento. O sotaque germânico era leve, mas ela percebeu, e registrou em sua mente.

— Há certos aspectos de algumas das minhas informa­ções que eu me sinto no dever de revelar pessoalmente ao homem que me paga.

— É contra a política da organização.

— Assim me informaram. Porém, estou ciente do que qua­se aconteceu seis meses atrás por causa da política. Não pare­ceu desfavorável quando usei minha própria iniciativa e salvei a organização, digamos, de certos embaraços.

— Mademoiselle, estou aqui apenas para receber sua in­formação.

— Minha informação é esta. — Antes de falar outra vez, Hannah se dirigiu à outra pintura. Novamente, se deteve al­gum tempo estudando a obra. Ergueu uma das mãos como se fosse mostrar ao seu companheiro uma certa combinação de cores. — Tenho acesso livre ao palácio. Nem eu nem meus pertences são revistados. Já compilei as estatísticas completas do sistema de segurança em ambos, o palácio e o Centro de Belas Artes.

— Isso será muito útil.

— E será passado ao homem que me paga. Esta é minha política, monsieur.

— Você é paga pela organização.

— E a organização é dirigida por homens. Sei para quem trabalho e por quê. — Ela se virou para ele com um sorriso frio nos lábios, porém bastante calma. Poderiam estar discu­tindo sobre o tempo. — Não sou boba. A... organização tem certos objetivos. Assim como eu. Estou mais do que satisfeita por saber que esses objetivos se combinam, para nossa mútua satisfação. Quero me encontrar e conversar com a autoridade máxima. Veja se consegue isso o mais rápido possível.

— Algumas pessoas dão um passo e se vêem despencando de um precipício.

— Meus pés estão bem firmes. Pegue isto, s'il vous plaîl. O que sei é de grande valor. O que posso descobrir vale ainda mais. Vai encontrar o bastante para provar o que estou dizen­do aqui. — Hannah deixou o panfleto cair, mas dessa vez não o pegou de novo. — Bonjour, monsieur. — Com estas palavras, virou-se, sabendo que tal demanda a levaria para a próxima fase da sua missão ou terminaria sumariamente descartada.

Com os nervos formigando, começou a caminhar em dire­ção à saída. Seu coração parou quando Bennett entrou.

Dúzias de pensamentos passaram por sua mente em ques­tão de segundos.

Deus, teria sido enganada? Estaria sendo usada para atrair o príncipe a um lugar público? Eles a teriam procurado porque Deboque já havia atacado alguém em algum lugar?

Levou apenas mais um segundo para classificar tais pensa­mentos como irracionais.

Fora uma simples coincidência, e azar, Bennett aparecer por ali.

— Espero que não se incomode se eu lhe fizer companhia — disse Bennett antes que ela pudesse pensar em uma abor­dagem plausível.

— Claro que não. — Contudo, Hannah não ousou olhar para trás para ver se o seu contato ainda estava lá. Sorriu, não muito certa de como se comportar, já que ela e Bennett haviam feito um excelente trabalho, evitando um ao outro por vários dias. — O museu ainda é mais bonito do que me disseram.

— Já viu tudo? Ficaria feliz em mostrar-lhe o que faltar.

O príncipe segurou-a pela mão de um modo casual e ami­gável, que a fez perceber que isso poderia reforçar sua posição se o homem de Deboque os estivesse observando.

Permitindo que seus dedos se entrelaçassem, odiou-se por usar a generosidade de Bennett contra ele.

— Poderia passar dias olhando, mas estou um pouco can­sada.

Então, ela o viu. O homem passara pela sua visão perifé­rica. Tinha o panfleto que ela lhe dera nas mãos, e embora estivesse de costas para eles, sabia que ele estava ouvindo.

Bennett não notou a presença do homem.

— Vamos tomar uma xícara de café no meu escritório. Gos­taria de falar com você.

Hannah sentiu as lágrimas embaçarem-lhe os olhos. Tudo o que ele dizia, e o modo como dizia, só tomava suas reivindi­cações mais plausíveis.

— Adoraria um pouco de café. — Ela o deixou conduzi-la pelo braço, sabendo que todos os detalhes seriam relatados a Deboque.

Acompanhados de um guarda-costas silencioso e carrancudo, eles pararam na porta de um elevador. Bennett usou uma chave para entrar e a levou ao terceiro andar.

Cruzaram um tapete cinza-claro, passaram por guardas uni­formizados em direção a um conjunto de salas. Duas secretá­rias, uma controlando uma mesa de telefones e outra traba­lhando no computador de arte estadual, levantaram-se quando Bennett entrou.

— Janine, poderia nos trazer um pouco de café, por favor?

— Sim, Alteza. Imediatamente.

Ainda segurando o braço de Hannah, com a outra mão Ben­nett abriu uma porta. No momento em que a fechou, depois que passaram, os murmúrios começaram. Sua Alteza não costumava levar mulheres ao escritório.

Era uma sala que demonstrava pertencer a um homem que amava coisas belas. Cinza e azul se misturavam suavemente às paredes de marfim. Cadeiras acolchoadas convidavam a longas permanências e conversas agradáveis, enquanto um li­moeiro ornamental prosperava em um dos cantos. Estantes de vidro abrigavam pequenos tesouros, como uma tigela de por­celana, um cavalo de T'ang, um punhado de conchas, que ela imaginou que o príncipe juntara para si mesmo, e uma xícara pequena lascada que podia ter sido adquirida em um mercado de pulgas.

Embora houvesse uma escrivaninha e uma cadeira antiga bastante eficientes, a essência da sala era relaxante. Hannah desejou saber se era ali que ele se isolava quando precisava escapar do palácio e das obrigações do seu título.

— Sente-se, Hannah. Se passeou pelo museu inteiro, deve estar em pé há horas.

— Sim, mas adorei. — Ela escolheu uma cadeira em vez do confortável estofado e dobrou as mãos sobre o colo. — Sem­pre amei o Louvre, mas este é bem mais pessoal.

— O Conselho Diretor e a Câmara de Comércio adorariam ouvir isso. — Bennett permaneceu parado, com as mãos nos bolsos, desejando saber como começar a falar. — Se tivesse me dito que viria hoje aqui, eu teria apreciado lhe mostrar o museu pessoalmente.

— Não quis incomodá-lo. Em todo caso, prefiro ficar perambulando a esmo.

Bennett estava nervoso, ela percebeu. Isso poderia tê-la agradado em algum recanto do seu ser, se não tivesse desco­berto que também estava nervosa.

Fora o encontro com o homem de Deboque, disse a si mesma. Não, era por causa de Bennett. Era uma tola em negar tal fato.

— Costuma trabalhar aqui com muita freqüência?

— Quando é necessário. É mais conveniente trabalhar fora do meu escritório em casa. — Bennett não queria falar sobre o museu. Enfiou as mãos mais fundo nos bolsos. Desde quan­do tinha dificuldade para falar com uma mulher? Desde que Hannah aparecera em sua vida, pensou aborrecido, e tentou novamente. — Hannah...

A batida na porta o fez murmurar um xingamento, enquan­to a abria para Janine e a bandeja de café. O bule era prateado e as xícaras de porcelana fina cor de violeta com bordas dou­radas, ela observou.

— Sim, deixe isso ali, Janine. Eu mesmo servirei.

— Sim, senhor. — A secretária pousou a bandeja sobre a mesa em frente à poltrona e se curvou em uma reverência.

Ciente de ter sido conciso, Bennett sorriu para a funcionária.

— Obrigado, Janine. O aroma está maravilhoso.

— Obrigada, senhor. — A porta se fechou atrás dela com um discreto clique.

— Parece que estamos com sorte. — Bennett ergueu o bule e verteu o líquido escuro nas xícaras.

— Estes docinhos são do restaurante do primeiro andar. São deliciosos. Creme?

— Sim, obrigada. Sem açúcar. — Quanta cortesia entre os dois, pensou ela, à medida que a tensão começava a se espa­lhar por seu pescoço e ombros. Como dois estranhos em um encontro casual.

— Poderia se sentar aqui se eu prometer me comportar? Embora o tom de Bennett soasse brando, Hannah podia

sentir a tensão no ar. Ela abaixou a cabeça e olhou para as mãos. Ele não saberia dizer se por vergonha ou timidez.

— Claro. — Erguendo-se, uniu-se a ele, acomodando-se no sofá. Sem, porém, esquecer do café, enquanto o príncipe deixara o dele de lado.

— Hannah, peço que me desculpe pelo meu comportamen­to naquela noite. Não é de admirar que tenha ficado ofendida.

— Oh, por favor, não se preocupe. — Com uma angústia que sequer os anos de treinamento eram capazes de sufocar, colocou a xícara na mesa e começou a se erguer. A mão de Bennett a tocou e deteve. — Não quero desculpas. — Lutando para manter o controle, ela se forçou a encará-lo. — Para ser franca, não fiquei ofendida. Apenas fiquei...

— Assustada, então? Isso é da mesma maneira imperdoável.

— Não... quer dizer, sim... — Qual das duas respostas era a certa? Por fim, ela se rendeu. — Bennett, a coisa mais ver­dadeira que posso lhe dizer é que ninguém jamais me deixou tão confusa.

— Obrigado.

— Isso não é um elogio, mas uma reclamação.

— Hannah, graças a Deus que está de volta. — Rindo, o prín­cipe tomou-lhe ambas as mãos e as levou aos lábios. Ao senti-la enrijecer, soltou-as, mas continuou sorrindo. — Amigos?

Ainda cautelosa, ela assentiu com a cabeça.

— Está bem.

— Amigos, então. — Satisfeito por ter superado a primeira barreira, Bennett sentou-se outra vez. Esperaria e seria bem mais cauteloso, antes de tentar a segunda investida. — Do que mais gostou no museu?

Hannah não confiava nele. Era muito boa no jogo do disfar­ce para perceber quando alguém estava em ação.

— A atmosfera etérea e sem limites, acho. A maioria dos museus é um lugar sério e solene. Oh, vi outra das pinturas da sua tataravó. Uma marinha. Formidável.

— É uma das minhas favoritas. — Bennett estava se poli­ciando para não tocá-la novamente. — Fiquei tentado a colo­cá-la em meu quarto, só para mim, mas... — encolhendo os ombros, apanhou a xícara de café — não me pareceu justo.

— E você é justo — murmurou ela, sabendo que o havia usado.

— Tento ser — rebateu ele, sabendo que usaria meios jus­tos ou violaria as regras para ganhá-la. — Hannah, você sabe montar, não é?

— Sim.

— Cavalgue comigo amanhã de manhã. Tem de ser bem cedo porque o resto do meu dia está cheio. Mas já faz bastante tempo que não tenho companhia para um passeio a cavalo.

— Não sei se posso. Eve...

— Estará ocupada com Marissa até as 10h — concluiu Bennett.

Deus, como ela amaria um passeio. Uma hora de liberdade e movimento.

— Sim, mas prometi ir com Eve ao Centro. Ela tem com­promissos lá às 11h.

— A essa hora já estaremos de volta, se estiver disposta a sair bem cedo. — E ele não pretendia perder aquela oportunidade. Bennett viu hesitação nos olhos dela e administrou sua vantagem. — Ora, vamos, Cordina é ainda mais bela de manhã bem cedo.

— Certo. — Estava agindo por impulso, pensou Hannah, mas poderia desfrutar de uma hora de relaxamento.

Em questão de dias, se encontraria com Deboque. Erguendo a xícara outra vez, tomou um gole do café. Ou estaria morta.

 

Bennett não mentira. Hannah achava Cordina bonita, mas no início da manhã era simplesmente primorosa. Com a luz do amanhecer, lembrava uma jovem vestida para seu primeiro baile. As cores eram suaves, diáfanas. Tons brandos de rosa e azul se misturavam no leste, enquanto eles montavam.

Acomodando-se sobre sua própria sela, Hannah olhou para o Drácula de Bennett num misto de inveja e ansiedade. Os estábulos do pai incluíam alguns dos melhores cavalos da In­glaterra, mas não tinham nenhum que se comparasse àquele garanhão preto. Parecia veloz, destemido e um pouco bravio. Ao mesmo tempo em que se imaginava sentada em seu lom­bo, ela também podia imaginar Bennett sendo arremessado no chão.

— Uma montaria assim deve ter uma mente própria — co­mentou ela quando o velho cavalariço pisou atrás do príncipe.

— Claro. — Bennett firmou o garanhão no lugar. Então, entendendo mal o comentário dela, sorriu confiante. — Seu Quixote é forte, mas totalmente cavalheiro. Brie costuma montá-lo quando está aqui.

Hannah só ergueu uma sobrancelha, reconhecendo as pala­vras tranqüilizadoras pelo que significavam.

— Obrigada, senhor. Alivia-me saber que me reservou uma montaria que é uma lady.

Bennett teve a impressão de captar uma ponta de sarcasmo, mas, quando a fitou, viu apenas um par de olhos tranqüilos e um sorriso cortês.

— Pensei em cavalgarmos na beira do mar.

— Eu adoraria.

Com um aceno, Bennett virou o cavalo e começou com um trote suave.

— Está se sentindo confortável?

— Sim, obrigada. — Enquanto estabeleciam um ritmo leve, Hannah tentou não ansiar por um galope selvagem. — Foi muito amável da sua parte me convidar. Disseram-me que seus passeios matutinos são sagrados.

O príncipe sorriu, contente por ela montar o cavalo bem e confiante.

— É verdade que preciso de uma hora sobre o lombo de um cavalo antes de cumprir meus deveres civis. Mas algumas vezes prefiro fazer isso acompanhado.

O que não vinha acontecendo nos últimos tempos. Desde que Deboque fora solto, Bennett sentia que não podia estirar os braços sem bater em um guarda. E ainda nada! Seus olhos se nublaram com raiva e impaciência. Queria que Deboque se movesse. Apre­ciava a idéia de poder lidar pessoalmente com o facínora e dar-lhe um fim merecido. Num gesto instintivo, tocou o ombro, onde uma bala o atingira. Sim, apreciaria demais tal oportunidade.

O olhar de Bennett a deixou intranqüila. Havia algo nele que a fazia pensar em defender-se. O homem ao seu lado não era o príncipe calmo e suave que ela imaginava. Em que ou em quem pensava parecia se comunicar diretamente com Drácula, fazendo-o recuar nervoso. Hannah percebeu a facilidade com que ele controlou o garanhão, apenas flexionando um múscu­lo. Podia ser amável ou austero, suave ou rude. Ela sentiu as palmas das mãos umedecerem sobre as rédeas.

— Há algo errado?

— O quê? — ele a fitou. Por um momento, o olhar estava lá, imóvel, severo e escuro o suficiente para fazê-la enrijecer. Então, desapareceu, e o príncipe sorriu outra vez. Não haveria nenhum Deboque naquela manhã, disse Bennett a si mesmo. Ficava irritado por ter sua vida e a vida da sua família ligadas àquele nome. — Não, nada. Conte-me o que costuma fazer em casa, Hannah.

— Levamos uma vida tranqüila em Londres. — Em parte era verdade. Ela desejou saber por que pensava naquilo como sendo parcialmente mentira. — Faço a maior parte do meu trabalho em casa, porque é mais conveniente para mim. Dessa forma posso administrar a casa para o meu pai.

— Seu trabalho — repetiu ele. — Suas peças literárias? — Bennett a estava conduzindo por uma rota mais fácil, onde a inclinação era mais suave.

— Sim. — Novamente Hannah sentiu uma pontada de des­conforto. — Espero tê-las publicadas em um ou dois anos.

— Eu gostaria de lê-las.

Ela o fitou, surpresa, então quase que de imediato seus mús­culos se enrijeceram. Não tinha nada a ver com medo. Mesmo que o príncipe lhe pedisse para ver seus trabalhos, teria mate­rial suficiente para satisfazê-lo. Não, não era medo, mas uma certeza de que se continuasse mentindo para Bennett por mais tempo ficaria fisicamente doente.

— Oh, é claro, mas não acho que tenha muito interesse em minhas obras.

— Está enganada. Tudo que diz respeito a você me interes­sa demais.

Hannah baixou o olhar, mas não por timidez, pensou ele. Uma vez mais parecia envergonhada.

— Isso é adorável — ela comentou após alguns instantes. — Costuma cavalgar aqui com freqüência?

Não permitiria que ele se aproximasse muito. Bennett lutou contra a frustração e lembrou-se que teria de ser paciente.

— Não, de fato só venho aqui de vez em quando. — Quan­do alcançaram o topo da colina, ele parou. O capão de Hannah parecia satisfeito, desfrutando da grama à margem do cami­nho. Ao seu lado, Drácula, impaciente, exalava energia. Ela pensou sentir a mesma impaciência por parte de Bennett.

— Um pouco de distância muda as coisas — murmurou ele.

Seguindo o olhar do príncipe, ela olhou para trás, para o palácio. Dali parecia um primoroso brinquedo, uma magnífica casa de bonecas que uma criança mimada podia achar de ma­nhã perto da árvore de Natal. Para o leste via-se o mar, embora um pouco encoberto pelos penhascos e árvores, e apenas ouvi­do. Assim como o palácio, parecia simplesmente real.

— Precisa tanto se afastar de lá? — perguntou Hannah, num tom de voz tranqüilo.

— As vezes. — O fato de Hannah interpretar seu humor já não o surpreendia. Com uma mão firme nas rédeas, controlou o garanhão e continuou olhando para o palácio. — Passei um tempo em Oxford e outro no mar. Quando estava longe, sentia tanta falta de Cordina que chegava a doer. Nos últimos seis meses, no último ano, senti uma inquietação, aguardando que algo acontecesse.

Ambos pensaram em Deboque.

— Com freqüência, na Inglaterra, especialmente nesta época do ano, me queixo da umidade e do frio. — Ela se remexeu na sela e sorriu ao se lembrar de casa. — Olho através da jane­la e penso que venderia a alma por uma semana de dias momos e ensolarados. Então, quando estou fora, começo a sentir falta da névoa e dos cheiros de Londres. — Os dois começaram a cavalgar novamente, enquanto Hannah continuava a pensar na Inglaterra. — Tem um homem que vende castanhas assadas em uma esquina perto da nossa casa. Você pode comprar um saquinho delas para aquecer as mãos nelas e cheirá-las, antes de comê-las. — Lembrar-se daquilo a fez sorrir outra vez, mas ela não fazia idéia da melancolia que lhe invadiu a face. — Às vezes, me pego desejando saber como seria estar em outro lugar na época de Natal sem castanhas assadas.

— Não sabia que você sentia tanta falta da Inglaterra. Nem ela, até aquele momento.

— As pessoas sempre sentem falta de seus lares. Nossos corações estão sempre lá. — E tudo que ela era, tudo aquilo que fizera, sempre fora, primeiro, pela Inglaterra.

— Muitas vezes, imaginei como deve ter sido difícil para Reeve — disse Bennett. Os sons do mar tomaram-se mais au­díveis à medida que se aproximavam do leste. — Embora ele e Brie passem quase seis meses todos os anos na fazenda deles nos Estados Unidos. Sei que para Brie lá também é sua casa, tanto quanto Cordina.

— Para muitos, a real satisfação vem com aclimação. Não foi assim para ela, durante toda a vida adulta?

— Para Eve ainda foi mais difícil. Ela só passa algumas semanas com a família nos Estados Unidos.

— Alguns amores são maiores que outros. Algumas neces­sidades, mais fortes. — Ela estava começando a entender isso verdadeiramente. — Eve viveria em qualquer lugar, contan­to que Alexander estivesse com ela. E acho que seu cunhado pensa do mesmo modo.

Sim, era verdade. Talvez isso fosse parte da inquietação que sentia, pensou Bennett. Durante os últimos anos, vira como um compromisso e sentimentos verdadeiros podiam ser belos e fortes. De alguma maneira, sempre pareceram remotos e inacessíveis para ele. Mas agora havia Hannah.

— Por amor, você deixaria a Inglaterra?

Hannah teve a primeira visão rápida do mar quando alcan­çaram um ponto mais alto. Procurou se concentrar na bela pai­sagem, mas em sua mente lembrou-se do charme sinuoso do Tâmisa.

Deixaria? Toda a sua vida e os seus deveres estavam li­gados à Inglaterra. Até mesmo sua missão atual fora aceita, muito mais com a intenção de proteger seu país de Deboque do que assegurar a integridade da Família Real de Cordina.

— Não sei. Você, especialmente, devia entender como al­guns laços podem ser fortes.

As árvores escassearam. As poucas restantes envergavam sob a força do vento que vinha do mar. O caminho tomou-se mais acidentado, de modo que Bennett se colocou entre a beirada do penhasco e Hannah, que permaneceu calada. O príncipe não podia saber que ela seria capaz de descer aquele caminho sem sela ou rédeas. Mas, afinal, ela estava saborean­do a sensação pouco comum de se sentir protegida.

Sem as árvores para quebrar sua força, o vento açoitava o topo da colina, carregando rastros de sal. Até mesmo os cabe­los de Hannah tão firmemente presos não foram capazes de resistir a tanta impetuosidade. Mechas finas escaparam para dançar ao redor da face dela. Enquanto observava, uma gaivota aproveitou a corrente e planou pacificamente no ar. Outra, ao longe, mergulhou na água, à procura de alimento.

— E de tirar o fôlego. — Ela relaxou bastante para suspirar. Bennett viu o que sempre existira no coração dela, mas que seus olhos raramente exibiam: o amor pela aventura, poder e risco. Isso a fazia ainda mais bela, excitante e misteriosa. A necessidade de tocá-la era tão forte que ele precisou apertar os dedos nas rédeas para mantê-los no lugar.

— Queria trazê-la aqui, mas fiquei preocupado que a altura pudesse aborrecê-la.

— Não, eu amo isto. — O cavalo de Hannah recuou um pouco e ela o controlou com a facilidade de uma longa expe­riência. — Há tantos lugares lindos no mundo, mas poucos são especiais. Este é especial. Acho que eu poderia... — as palavras morreram em sua garganta assim que o impacto a golpeou. — Este é o cenário da pintura! Não há nenhuma tormenta se formando no horizonte, mas é, não é?

— Sim. — Bennett não fazia a mínima idéia de que aque­le reconhecimento significaria tanto para Hannah. Tampouco sabia o que fazer com a súbita e inevitável constatação de que estava completamente apaixonado por ela. Jogando a cabeça para trás, afastou os cabelos que o vento lhe jogara nos olhos. Queria uma visão clara dela e daquele momento, que talvez fosse o mais importante da sua vida.

Hannah se endireitou sobre a sela, seus olhos escureceram, apreciando o cenário à frente e abaixo deles. Seu perfil era acentuado, esculpido. A camisa e a calça de equitação marrom-claro não lhe enfatizavam a pele clara. Mas quando Ben­nett a fitou, achou-a ainda mais bela, a coisa mais preciosa que ele já encontrara. E pela primeira vez na vida se viu sem palavras diante de uma mulher.

— Hannah. — Ele esticou a mão e esperou.

Ela se virou. O príncipe era o homem mais magnífico que já vira. Mais estonteante que a paisagem local e mais perigoso que uma queda daquele penhasco. Sentado sobre o enorme ga­ranhão, ereto como um soldado, tão sofrido quanto um poeta! Nos olhos escuros, havia paixão e compaixão, necessidade e generosidade.

O coração a traiu, entregando-se a Bennett, antes mesmo que ela pudesse se convencer de que era impossível. Enquanto o dever e a emoção lutavam entre si, Hannah permitiu que sua mão se unisse à dele.

— Sei o que você pensa de mim.

— Bennett...

— Não. — Seus dedos apertaram os dela. — Você não está muito errada. Eu poderia mentir ou prometer mudar, mas não mentirei nem farei promessas.

Antes que pudesse evitar, Hannah amoleceu. Apenas aque­le momento, prometeu a si mesma. Havia algo de mágico no ar, impossível de resistir.

— Bennett, não quero que você mude.

— Continuo pretendendo conseguir o que lhe disse. En­tretanto, não me expressei direito naquela noite. Eu a dese­jo, Hannah. — Assim como ela, o príncipe olhou para o mar. — Também entendo que seria difícil para você acreditar que eu jamais disse isso a outra mulher.

Mas ela acreditava nele. Era emocionante, terrificante e proibido, mas acreditava. Por um momento glorioso, se per­mitiu ter esperanças. Então, lembrou-se de quem era. O dever vinha em primeiro lugar. Sempre.

— Por favor, acredite-me, se pudesse lhe dar o que você quer, eu daria. Mas não é possível. — Ela afastou a mão, por­que o contato a estava deixando fraca, fazendo-a sonhar.

— Sempre acreditei que qualquer coisa é possível desde que se queira.

— Não, algumas coisas permanecem fora do alcance. — Hannah virou o cavalo. — Devemos voltar.

Antes que ela pudesse se mover, Bennett havia se inclinado o suficiente para segurar as rédeas do seu cavalo. Seus bra­ços e pernas roçaram. O rosto dele estava tão próximo, quanto suas montarias, em direções opostas.

— Diga-me o que você sente em relação a mim — exigiu ele. A paciência se esvaiu, dissolvida em necessidade e frus­tração. — Pelo menos isso, droga.

— Pesar — disse ela num fio de voz.

Bennett libertou-lhe as mãos apenas para segurá-la pela nuca e puxá-la para si.

— Diga-me novamente o que sente — murmurou ele, inclinando-se em sua direção.

O beijo foi como um sussurro, macio, sedutor, provocante. Hannah apertou as rédeas com as mãos, depois as deixou cair, flácidas, enquanto a emoção a envolvia. Não era para ser as­sim, tão abrangente, tão precipitado, tão bom. O vento serpen­teou ao redor deles. Abaixo, as ondas batiam com violência nas rochas. Apenas por um momento, todos os pensamentos racionais desapareceram, deixando apenas desejo e paixão.

— Bennett. — Hannah murmurou o nome dele e começou a se afastar. Ele a segurou com firmeza.

— Fique mais um pouco. — Precisava daquilo. Precisava de qualquer coisa que ela estivesse disposta a lhe ofertar. Ja­mais sentira desejo de implorar o que uma mulher poderia lhe dar ou negar. Não era apenas paixão que queria, não só desejo físico, queria o coração de Hannah, com um desespero que jamais experimentara antes.

Fora aquele desespero que o fizera manter o beijo suave, que o fizera recuar, antes que seu desejo por ela estivesse sa­tisfeito. Se desejava ganhar seu coração, teria de agir com cal­ma. Sua Hannah era delicada e tímida.

— Nada de pesar, Hannah — ele disse num tom de voz calmo e depois sorriu. — Não vou magoá-la ou pressioná-la. Confie em mim. Isto é de fato tudo que quero, por enquanto.

Hannah sentiu vontade de chorar. O príncipe estava lhe de­dicando uma bondade, uma sensibilidade, que ela não merecia. Mentiras eram tudo que ela lhe contara. Mentiras eram tudo que continuaria lhe contando. Para mantê-lo vivo, lembrou-se, enquanto as lágrimas ameaçavam saltar-lhe dos olhos. Para manter o príncipe e as pessoas que ele amava incólumes.

— Nada de pesar — repetiu ela, deixando as palavras ecoa­rem em sua mente.

Erguendo a cabeça, cutucou os flancos do capão e iniciou um galope. A primeira reação de Bennett foi de surpresa. Não esperava que ela soubesse montar tão bem ou com tanto vigor. Aguardou um momento, observando-a descer a colina, antes de sorrir e deixar Drácula fazer seu serviço.

Embora Hannah tivesse alcançado uma boa distância, viu Drácula ganhar terreno atrás dela. Encantada, curvou-se sobre o pescoço do cavalo, beijou-o e incitou-o a prosseguir.

— Não podemos disputar com eles — disse à montaria. — Mas podemos passá-los para trás.

O desafio era empolgante. Incentivada por isso, Hannah contornou a trilha por entre às árvores. O caminho era estreito e irregular, mas o que sacrificava em velocidade, ganhava em mobilidade.

O príncipe imprimia um galope veloz, mas ela se mantinha no meio, não lhe deixando espaço para ultrapassá-la. Abrindo passagem pelas árvores, Hannah alcançou uma campina, com apenas dois metros de distância à frente. O instinto a fez mu­dar de direção à esquerda e subir outra colina, de modo que Bennett precisou conter seu ímpeto ante a inesperada mano­bra. Contudo, continuou se aproximando, de forma que quan­do os estábulos entraram em seu raio de visão os dois estavam quase pescoço com pescoço. Rindo, ela mudou de direção à esquerda mais uma vez, em direção a uma cerca viva.

O pânico ameaçou dominá-lo, por um momento, ao imagi­nar Hannah voando da montaria e caindo no chão. Então, sem despender muito esforço, ambos ultrapassaram o obstáculo, lado a lado.

Pés para baixo, joelhos pressionados nos flancos dos ani­mais, os dois se dirigiram para os estábulos.

Pipit os observava com as mãos nos quadris. Eles os olhava desde que despontaram no topo da colina, com o capão na dianteira. No instante que saltaram a cerca, Drácula passara à frente, com passadas largas e leves. Era de se esperar, pensou Pipit, enquanto esfregava as mãos nas pernas da calça. Não havia outro cavalo em Cordina ou na Europa, até onde ele sabia, que pudesse fazer frente ao garanhão.

Mas enquanto observava a mulher se manter bem próxima, concluíra que o príncipe, por fim, encontrara um competidor à altura.

Bennett puxou as rédeas do cavalo e deslizou da sela, com a excitação ainda tocando tambor em sua cabeça. Hannah vinha apenas alguns segundos atrás. Sua risada soou baixa e um pou­co ofegante, quando ziguezagueou o animal para desmontar.

Bennett a pegou pela cintura, antes que ela pusesse os pés no chão.

— Onde aprendeu a montar dessa maneira? Ela espalmou as mãos sobre o tórax dele, mais para manter distância do que para se equilibrar.

— É uma coisa que eu amo, além da literatura. Havia es­quecido o quanto perdi estes últimos meses.

O príncipe não conseguia tirar os olhos dela. Agora era puro desejo, básico e vital. A cavalgada que poderiam fazer juntos seria tão selvagem e inconseqüente quanto a que haviam aca­bado de completar. De alguma maneira ele sabia disso, podia até sentir o gosto. Não saberia dizer por quê, mas tinha a im­pressão de estar segurando duas mulheres: uma, calma; outra, impetuosa. Não tinha certeza qual das duas o atraía mais.

— Vamos cavalgar amanhã novamente.

Uma cavalgada fora um risco e um prazer. Duas, Hannah sabia que seria um erro tolo.

— Acho que não será possível. Com a peça de Eve prestes a estrear, há muito a ser feito no teatro.

Não a pressionaria, decidiu Bennett. Prometera a si mes­mo que lhe daria tempo para se acostumar a tê-lo por perto. Naquele instante, na colina, quando percebera o que aquilo significava para ele, ficara ainda mais determinado a cortejá-la corretamente.

Um ponto para o libertino real, pensou, enquanto se afasta­va a fim de beijar-lhe a mão.

— Os estábulos estão à sua disposição sempre que tiver tempo para usá-los.

— Eu agradeço. — Hannah levou uma das mãos aos cabelos para se certificar de que os grampos estavam no lugar. — Adorei o passeio, Bennett.

— Eu também.

— Bem, Eve está à minha espera.

— Vá em frente. Pipit e eu cuidaremos dos animais.

— Obrigada. — Ela estava protelando. No momento em que percebeu isso, Hannah se forçou a partir — Adeus, Ben­nett.

— Hannah. — O príncipe fez um gesto com a cabeça e a observou caminhar de volta ao palácio. Um sorriso curvou-lhe os lábios, enquanto batia de leve no pescoço do cavalo.

— Ela vai ser minha, mon ami — murmurou ele. — E só uma questão de tempo.

O tempo passou muito rápido. Trancada em seu quarto, Han­nah segurou a carta de Sussex. Dentro, acharia a resposta de Deboque a seu pedido, feito alguns dias antes no museu. Tinha as mãos trêmulas quando se sentou à escrivaninha. Com um abridor de cartas, com cabo de marfim, que lhe fora fornecido, abriu o envelope. No interior havia uma carta casual, até mes­mo pouco inspirada, de um conhecido da Inglaterra. Foram precisos menos de 15 minutos para decodificá-la.

Pedido concedido. Dia 3 de dezembro, às 23h30. Café Du Dauphin. Sozinha. O contato perguntará as horas em inglês, então comentará sobre o tempo em francês. Certifique-se de que suas informações justificam o inusitado procedimento.

Naquela noite! O próximo passo seria dado naquela noite! Hannah dobrou a carta e a colocou de volta no envelope, mas a deixou à vista sobre a escrivaninha. Ao lado, havia uma rosa branca que Bennett lhe enviara naquela manhã. Ela hesitou, então se permitiu o prazer de tocar as pétalas.

Se pelo menos a vida fosse tão doce e simples!

Momentos depois, estava batendo à porta do escritório do príncipe Armand.

A porta foi aberta pelo secretário, que se curvou diante dela em uma reverência cortês e, em seguida, anunciou-a ao prín­cipe.

Armand ergueu-se atrás da escrivaninha, enquanto lhe con­cedia permissão para entrar.

— Alteza — Hannah fez uma mesura. — Peço que me perdoe por incomodá-lo.

— Não se preocupe, Hannah.

— Mas vocês estão ocupados. — Ela se manteve junto à soleira da porta, com as mãos dobradas. — Eu apenas queria lhe pedir um conselho sobre algo. Mas se não for conveniente, poderei voltar mais tarde.

— Nada disso. Por favor, entre e sente-se. Michel, se puder cuidar desses assuntos agora, quero ter uma conversa particu­lar com lady Hannah.

— Claro, Alteza. — Michel se curvou e deixou a sala.

Quando a porta se fechou, Hannah deixou os braços caírem ao longo do corpo. Com passos largos e firmes, caminhou até a escrivaninha.

— Tivemos um imprevisto. Terá que chamar Reeve imediatamente.

— Não estou me sentindo muito confortável com isso — disse Armand algum tempo depois, quando o genro se encontrava sentado à sua frente. — Como podemos ter certeza que Debo­que será enganado pela informação que Hannah lhe passará?

— Porque é muito próxima da verdade. — Reeve terminou sua segunda xícara de café. — A menos que Hannah possa lhe dar algo importante, algo que ele não tenha nenhum outro modo de conseguir, jamais poderá se aproximar dele.

— Mas ele vai acreditar nela?

— É meu trabalho fazê-lo acreditar — disse Hannah, num tom de voz tranqüilo. — Alteza, sei que tem objeções contra essa operação desde o início, mas até agora tudo tem saído exatamente conforme planejado.

— Até agora, sim — concordou Armand, erguendo-se da cadeira. Ele gesticulou para que ambos permanecessem em seus assentos de forma que ele pudesse caminhar de um lado para o outro em paz. — Mas agora estou a ponto de permitir que uma mulher, uma mulher por quem, ambos, eu e minha família, nos afeiçoamos, vá se encontrar sozinha com um ho­mem que mata tanto por prazer quanto por lucro.

— Ela não estará só.

Ao ouvir a declaração de Reeve, Hannah se endireitou na cadeira.

— Tenho que estar. Se Deboque ou um dos seus homens tiver a mais leve desconfiança de que não estou, a operação inteira irá por água abaixo. — Ela se ergueu. — Dediquei dois anos da minha vida a isso.

— E pretendemos fazê-la viver um pouco mais — rebateu Reeve, num tom suave. — Suspeitamos que Deboque tem sua sede em uma pequena vila a aproximadamente cinco milhas daqui. Teremos homens vigiando.

— E eles terão os homens de Deboque vigiando-os.

— Deixe essa parte comigo, Hannah, e faça o seu trabalho. Você tem as cópias heliográficas e as especificações dos siste­mas de segurança?

— Sim, claro. — Aborrecida, ela se sentou novamente.

— E sei que não devo dá-las a ninguém a não ser Deboque.

— E também sabe que ao primeiro sinal de que algo não vai bem deve sair de cena.

Hannah assentiu com a cabeça, entretanto não tinha qual­quer intenção de agir daquele modo.

— Sim.

— Haverá dois homens dentro do café.

— Por que não coloca logo um batalhão? — Hannah se reclinou para trás no assento.

Reeve entendia sua frustração, mas somente tomou uma terceira xícara de café.

— Ou isso ou terá que levar uma escuta. O último agente que tentou entrar com escuta na organização de Deboque foi mandado de volta ao SSI em três caixas. — Reeve encolheu os ombros. — Fica a seu critério.

Hannah se ergueu novamente.

— Não estou acostumada a adivinhar o que vai acontecer, Reeve. — Quando ele não disse nada, ela rangeu os dentes.

 

— Sei que é meu superior nesta missão, então acho que não tenho muita escolha.

— Contanto que continuemos a nos entender. — Ele se er­gueu e segurou-lhe a mão. — Hannah, conheço sua reputação. Por que não dizer que não quero me arriscar a perder uma das melhores agentes? — Deixando-a, virou-se para o príncipe.

— Tenho que dar andamento em algumas coisas. Manterei contato.

Armand esperou até que a porta se fechasse outra vez.

— Espere um momento, por favor — disse ele a Hannah.

— Quer se sentar?

Ela queria ficar sozinha, planejar cada detalhe cuidadosa­mente. Só lhe restavam poucas horas. Mas a educação era tão importante quanto o treinamento, então ela se sentou.

— Gostaria de revisar as coisas comigo outra vez, senhor?

— Não. — Os lábios dele se curvaram apenas ligeiramente.

— Acho que entendi muito bem a situação. Tenho uma pergunta pessoal para lhe fazer e peço de antemão para não se sentir ofendida. — Armand sentou-se na frente dela com sua postura rígida de militar. — Estou enganado, ou meu filho está apaixonado por você?

Hannah uniu as mãos imediatamente, ao mesmo tempo em que seu corpo inteiro ficou em alerta.

— Se está se referindo ao príncipe Bennett, senhor, ele tem sido muito gentil.

— Hannah, por favor, dispense as evasivas e a cerimônia. Quase sempre o dever interferiu no tempo que posso passar com minha família, mas isso não significa que não conheça bem os meus filhos. E acredito que Bennett esteja apaixonado por você.

Ela ficou pálida.

— Não. — Precisou engolir, mas a palavra saiu pela se­gunda vez da sua boca no mesmo tom veemente. — Não, ele não está. Talvez esteja um pouco intrigado, mas apenas porque não sou o tipo de mulher com quem está acostumado a passar o tempo.

— Hannah. — Armand ergueu uma das mãos, antes que ela pudesse continuar sua tortuosa negação. — Não perguntei para deixá-la transtornada. Quando comecei a suspeitar de tal fato, fiquei preocupado apenas porque Bennett desconhece o verdadeiro propósito de você estar aqui.

— Entendo.

— Não sei se entende. Bennett é mais parecido com a mãe do que os irmãos. É muito... bondoso. Tem um temperamento impulsivo, mas seus sentimentos são mais facilmente alcan­çados. Só estou lhe perguntando isto, porque, se a resposta à minha próxima pergunta for não, devo pedir-lhe que não o magoe. Você o ama, Hannah?

Os olhos falaram por ela. Ciente disso, Hannah desviou o olhar, depressa.

— Tudo que sinto por Bennett e pela sua família não inter­ferirá em meu trabalho.

— Tenho experiência suficiente para reconhecer uma pes­soa que fará o que tem de ser feito. — Armand sentiu uma forte emoção, um misto de pena e empatia. — Mas você não me respondeu. Ama o meu filho?

— Não posso amá-lo. — Dessa vez, sua voz soou fraca e embargada. — Menti para ele desde o início e vou continuar mentindo. Não se pode amar e mentir. Por favor, peço que me dê licença, Alteza.

Armand a deixou ir. Por um momento, reclinou-se na cadeira e fechou os olhos. Nas próximas horas não poderia fazer mais nada a não ser rezar por ela.

O café não era um dos pequenos pontos turísticos de Cordina. Era um bar à beira-mar freqüentado pelas tripulações dos barcos pesqueiros e cargueiros. O interior era espasmódico. com muitas mesas vazias e o cheiro de fumo e bebida. Não tão ruim quanto costumavam ser, Hannah pensou, enquanto entra­va, mas não era um lugar para uma mulher sozinha freqüentar, a menos que estivesse procurando problemas.

Contudo, não provocou muita agitação quando entrou. Usando suéter cinza e calça comprida folgada, quase se confundia com as paredes. As mulheres que já se encontravam no local eram bem mais interessantes. Se pudesse acabar logo com aquilo, não teria necessidade de desencorajar quaisquer dos freqüentadores.

Hannah escolheu um banco no bar e pediu um uísque puro. Quando a bebida foi servida, ela já havia avaliado o salão. Se Reeve realmente tivesse plantado dois agentes ali, eram de fato bons. Era raro não conseguir identificá-los.

Ficou bebendo em silêncio durante dez minutos quando um dos homens se ergueu de uma mesa e caminhou em sua dire­ção. Hannah continuou bebendo, enquanto todos os seus mús­culos enrijeciam. Quando ele falou, o sotaque francês soou inarticulado devido ao uísque.

— É muito triste para uma mulher beber sozinha. Hannah relaxou apenas o suficiente para se sentir incomo­dada. Então, lançou mão do afetado tom britânico.

— É mais triste ainda para uma mulher não poder permane­cer sozinha quando quer.

— Uma mulher tão comum não deveria ser tão exigente — murmurou o homem, mas se afastou. Hannah quase sorriu, então outro homem entrou no café.

Trajava roupas de marinheiro, com o quepe puxado para baixo. A face era bronzeada e magra. Dessa vez, ela ficou ten­sa porque tinha certeza.

Todavia, ergueu o copo, tentando parecer à vontade, en­quanto o sujeito caminhava para o banco ao seu lado.

— Pode me dizer as horas, mademoiselle?

— Sim, faltam 15 minutos para a meia-noite.

— Obrigado. — Ele sinalizou pedindo uma bebida. Outro minuto se passou até que o homem voltou a falar.

— Il fait chaud ce soir.

— Oui, un peu.

Os dois se calaram. Atrás deles um grupo começou a cantar, desafinado, uma canção em francês. O vinho fluía livremente e a noite estava começando para eles. O homem terminou sua bebida e deixou o bar. Hannah aguardou apenas alguns instan­tes, então, levantou-se e o seguiu.

Ele a aguardava na extremidade das docas. O local era pou­co iluminado, de forma que a silhueta masculina parecia mais uma sombra do que um homem. Hannah caminhou em sua direção, sabendo que aquilo poderia ser seu começo ou seu fim.

— Você tem a informação. — Ele falou em inglês nova­mente. Um tom insípido e sem sotaque, da mesma maneira como falara em francês. Deboque escolheu bem, ela pensou, e apenas assentiu com a cabeça.

— Nós vamos de barco. — O sujeito indicou o pequeno barco a motor.

Hannah sabia que não tinha escolha. Poderia recusar ou ir em frente. Embora soubesse que não teria como voltar, no mar, jamais consideraria a primeira opção. Deboque era o destino.

Era a linha de fundo.

Sem hesitar, entrou no barco e sentou-se na popa. Em silên­cio, o contato acomodou-se a seu lado, desamarrou a corda e ligou o motor. O barulho parecia um trovão no mar aberto.

Hannah respirou fundo. Estava a caminho.

 

Reeve ficaria furioso. Hannah pousou a mão no assento para manter o equilíbrio à medida que o barco aumentava a velo­cidade. Não sem razão, pensou ela, porém tinha de se manter firme.

Então Deboque não estava em terra, seguro em uma casa de campo como imaginavam. A menos que o barco mudas­se repentina e dramaticamente de direção, ele estava no mar. A partir daquele momento não havia como retomar. Hannah inspirou fundo mais uma vez, observando a água agitada atrás deles. Preferia trabalhar sozinha em qualquer missão.

Aquela noite, encontraria Deboque. A sensação era quase palpável. Sua pulsação era lenta e cadenciada, e a respira­ção, regular. Gotas d'água, provocadas pelo movimento do barco, lhe atingiam a pele, enquanto ela mantinha a expres­são plácida. O nervosismo, ou o que restara dele, não podia ser demonstrado. A travessia pelo Mediterrâneo à meia-noi­te a aproximava do objetivo que perseguia há mais de 24 meses.

Excitamento, não medo, crescia dentro dela. E até mesmo aquela sensação tinha de ser controlada. Qualquer coisa que lhe fizesse a pulsação disparar ou distraísse sua mente era pe­rigoso. Não poderia cometer um erro sequer. Nos últimos dois anos, abrira caminho na organização de Deboque dependendo quase que totalmente de sua própria perícia. Com o apoio do SSI, levara a cabo várias missões: venda de armas, tráfico de diamantes e drogas.

O fim justificava os meios.

Degraus de uma escada, pensou. Se conseguisse continuar a subir, em breve aquele reinado de destruição desabaria na cabeça de Deboque.

O mais delicado degrau fora fazer com que o conceitua­do Bouffe parecesse incompetente. O mais antigo tenente de Deboque não era tolo. Custara-lhe muita fraude e risco para fazer com que muitas de suas atribuições nos últimos meses malograssem, sem atrair suspeitas para si mesma. A maior de­las fora o acordo de fornecimento de armas para um grupo terrorista conhecido pela baixa tolerância.

Fora difícil, porém, a cronometragem, perfeita. Hannah conseguiu fazer parecer que Bouffe quase estragara o acordo até que ela entrasse no circuito e salvasse as negociações.

Os terroristas conseguiram as armas — tivera de deixar que o SSI lidasse com aquilo. E Deboque ficara com os cinco mi­lhões de francos. O prazer seria dela em lidar com aquilo. O mais rápido possível.

Avistou o brilhante iate branco majestosamente ancorado na água escura. Um arrepio de antecipação percorreu-lhe o corpo. No leme, seu contato acenou com uma lanterna elétri­ca. De imediato, uma luz, proveniente do barco, surgiu, em resposta. O motor foi desligado, imergindo a noite em com­pleto silêncio, enquanto deslizavam na direção do iate.

Hannah esticou a mão para tocar a escada, sentindo o metal frio e duro contra a pele. Características que teria de aparentar. Sem olhar para trás, subiu os degraus rumo ao desconhecido.

— Lady Hannah.

Um homem alto e de pele negra a aguardava. Ele lhe tomou a mão e inclinou-se em uma mesura. Hannah o reconheceu como o contato que lhe forneceria as últimas instruções. Diria que seu sotaque era jamaicano.

Chamava-se Ricardo Batemen, um insulano de 26 anos, graduado em medicina em uma das universidades de maior prestigio do país. Ainda manejava o bisturi, mas preferia utili­zá-lo em pessoas saudáveis, e sem anestesia.

Transformara-se em um dos favoritos de Deboque.

— Sou Ricardo. — A face jovem e delicada se iluminou em um sorriso. — Seja bem-vinda ao Invencível.

— Obrigada, Ricardo. — Hannah deslizou o olhar ao re­dor de maneira casual e contou cinco homens e uma mulher no convés. Os homens trajavam temos pretos e portavam me­tralhadoras. A mulher vestia um sarongue sobre o biquíni e parecia entediada.

— Podem me servir um drinque?

— Claro. — Os olhos do jovem, notou Hannah, eram páli­dos. De um verde quase translúcido, e não pareciam piscar. A voz era como creme espesso sobre café quente. — Mas, por hora, terá de desculpar nosso excesso de precaução. A bolsa, lady Hannah.

Ela ergueu uma sobrancelha e o fitou diretamente nos olhos.

— Confiarei em você para assegurar que o conteúdo esteja intacto antes de devolvê-la a mim.

— Tem a minha palavra. — Ricardo se curvou em uma mesura, enquanto ela lhe entregava a bolsa.

— Agora, se fizer a gentileza de seguir Carmine, ela lhe mostrará sua cabine. Talvez queira se refrescar, enquanto Car­mine se certifica de que não plantaram nenhum dispositivo eletrônico em você.

Uma revista íntima, pensou Hannah, resignada.

— Ninguém plantou nada em mim, Ricardo, mas admiro um homem cauteloso. — Cruzou o convés na direção de Car­mine como se estivesse a caminho de um chá da tarde.

Momentos depois, Ricardo colocou a bolsa de couro de crocodilo preto sobre a lustrosa mesa de mogno.

— Carmine a está revistando. Ela possui uma pistola de pe­queno calibre, o passaporte, identidade e mais ou menos três mil francos além de cosméticos. Há um envelope lacrado.

— Obrigado, Ricardo. — A voz era profunda e decidida, com traços de francês. — Pode trazê-la até mim dentro de dez minutos. E, então, não deveremos ser incomodados.

— Oui, monsieur.

— Diga-me suas impressões.

— Um tanto atraente, mais do que na foto. E fria, muito fria. As mãos, secas e firmes.

— Ótimo. — A voz apresentava um tom de divertimento. — Em dez minutos, Ricardo. — Ele pegou o envelope e que­brou o lacre.

Pouco tempo depois, Hannah ajustava o suéter. Achara a revista mais aborrecida do que humilhante. Carmine retirara-lhe o sapato de salto fino, porém ela esperava aquilo. Ricardo ficara com sua arma. Por enquanto, encontrava-se só e desar­mada no meio do mar. Mas ainda lhe restava a inteligência.

Hannah estava parada no meio da cabine quando Ricardo abriu a porta.

— Peço-lhe desculpas mais uma vez pelo inconveniente, lady Hannah.

— Um pequeno incômodo, Ricardo. — Ele não trouxera a bolsa de volta, mas Hannah não fez qualquer menção ao assunto. — Espero que não haja muitos outros.

— Absolutamente. Se puder me seguir.

Hannah obedeceu, caminhando com facilidade pelo barco que balançava com o movimento das águas do mar. Era do ta­manho de um pequeno hotel, ela notou. E haviam rotas de es­cape se fosse necessário. O carpete sobre o qual caminhavam era de um vermelho intenso. Na cabine, onde fora revistada, havia um espelho antigo com vidros chanfrados, e a cama era coberta com colcha de veludo.

Existia também uma portinhola pela qual uma criança ou uma mulher magra poderiam passar com facilidade.

Ricardo parou em frente a uma lustrosa porta de carvalho e bateu duas vezes. Sem esperar resposta, girou a maçaneta e gesticulou para que ela entrasse. Hannah obedeceu e ouviu a porta se fechar.

O aposento era opulento, elegante, até mesmo irreal. A França do século XVIII parecia voltar à vida. Ali, o tapete era da cor azul brilhante e profunda da realeza, e as paredes, po­lidas a ponto de darem a impressão de espelhos. Candelabros extremamente delicados e brilhantes espalhavam luz sobre a madeira antiga e o estofamento felpudo. Brocados haviam sido utilizados em abundância para cobrir e circundar a cama talhada para um rei. Todas as cores eram vividas, quase cho­cantes.

O aroma de algo floral e alguma coisa envelhecida se fun­diam em uma fragrância estranhamente atraente mas descon­fortável. Com o balouçar suave do barco, a coleção de animais de cristal estremecia como que ganhando vida.

Levou apenas segundos para Hannah perceber aquilo. Não obstante a magnificência e extravagância do aposento, o homem sentado atrás da mesa Luís XVI dominava o ambien­te. Não percebeu o ser demoníaco que esperava. Diante dos perversos, pensou Hannah, costumava-se sentir arrepios ou temor.

O que viu foi um homem esguio e atraente, aparentando 50 anos, com a cabeleira grisalha emoldurando uma face aris­tocrática de traços bem definidos. Ele trajava preto, e a cor parecia acentuar a palidez quase poética do rosto dele. Os olhos eram negros também, como os de uma ave de rapina, e a estudavam naquele momento, enquanto os lábios carnudos e belos se curvavam em um sorriso. Hannah vira fotos da­quele homem. Estudara cada informação referente a ele dos últimos vinte anos. E ainda assim... não estava preparada para a onda de sensualidade que emanava de Deboque.

Era o tipo de homem pelo qual as mulheres poderiam mor­rer. E, naquele momento, entendia por que era a espécie que outro homem mataria sem questionar. Conseguia compreen­der aquilo também, enquanto a três metros de distância podia sentir o poder que desprendia dele.

— Lady Hannah. — Ele se ergueu de modo lento e gracio­so. O corpo era bem talhado, quase delicado. A mão, estendida em direção a Hannah, estreita e bela, com um trio de anéis de diamantes ornando os dedos longos.

Hannah não podia hesitar, embora sentisse que se tocasse a mão oferecida seria arrancada do seu mundo de certezas e atirada ao desconhecido e amedrontador.

Ela sorriu e deu um passo à frente.

— Monsieur Deboque. — Ficou satisfeita ao perceber a sutil expressão de surpresa do homem ante a referência de Hannah a seu nome. — É um prazer.

— Por favor, sente-se. Aceita um conhaque?

— Sim, obrigada. — Hannah escolheu uma cadeira macia de espaldar alto postada defronte à mesa. Chopin reverberava através de caixas de som ocultas.

Ela ouviu as notas musicais enquanto Deboque cruzava o aposento na direção de um armário laqueado do qual retirou uma garrafa.

Havia um quadro atrás da ampla mesa. Um dos seis que Hannah sabia terem sido roubados de uma coleção particular no ano anterior. Ela mesma ajudara a executar o roubo.

— Aprecio a beleza — disse Deboque ao lhe oferecer o co­nhaque. Em seguida, em vez de se acomodar na cadeira atrás da mesa, sentou-se ao lado dela. — A sua saúde, mademoiselle.

— E a sua — retrucou Hannah, dando-lhe um sorriso antes de sorver um gole da bebida.

— Talvez possa me esclarecer como descobriu meu nome.

— É um hábito saber para quem estou trabalhando, mon­sieur Deboque. — Hannah meneou a cabeça em negativa, quando ele apanhou um estojo de cigarros e lhe ofereceu um. — Devo congratulá-lo por sua segurança e funcionários. Des­cobrir quem... digamos... controlar, não é tarefa fácil.

Deboque soltou uma baforada de fumaça lentamente, como um homem que apreciava o bom gosto.

— Muitos achariam impossível.

Os olhos de Hannah o fitavam frios e divertidos.

— Não acredito no impossível.

— Outros achariam fatal. — Como Hannah apenas sorriu, ele esqueceu o assunto. Como dissera Ricardo, aquela era uma mulher muito fria. — As informações que tenho sobre a senhorita são bastante lisonjeiras, lady Hannah.

— Claro.

Foi a vez de Deboque sorrir.

— Admiro sua confiança.

— Eu também.

— Ao que parece, estou em débito com você por facilitar uma troca com nossos vizinhos mediterrâneos alguns meses atrás. Teria ficado, no mínimo, aborrecido se tivesse perdido aquele contrato.

— O prazer foi todo meu. Eu diria, monsieur, que havia alguns elos frágeis na corrente.

— Sim, havia — murmurou ele. Ponderara entregar Bouffe a Ricardo para que fosse eliminado. Uma pena, pensou De­boque.

Bouffe fora leal e valioso por mais de uma década.

 

— Está gostando de sua estada em Cordina?

Hannah sentiu o coração falhar, mas continuou a bebericar.

— O lugar é adorável. — Movimentou os ombros, enquan­to deixava o olhar vagar pelo aposento. — Eu também aprecio a beleza. Compensa o fato de os Bisset serem um tanto entediantes.

— Não se sente impressionada com a Família Real, lady Hannah?

— Não sou facilmente impressionável. São pessoas muito belas, porém muito... dedicadas. — E emprestando um sutil tom de escárnio à própria voz. — Prefiro me dedicar a algo mais tangível do que a honra e o dever.

— E quanto à lealdade, lady Hannah?

Ela lhe voltou o olhar outra vez. Deboque a fitava com in­tensidade, tentando ver dentro e através dela.

— Posso ser leal — começou, tocando com a língua a borda do copo. — Conquanto me seja lucrativo. — Aquilo era um risco, sabia. Deslealdade era punida com a morte na organiza­ção de Deboque. Aguardou, impassivelmente fria, apesar de uma gota de suor lhe descer pelas costas.

Deboque a estudou por alguns instantes e em seguida jo­gou a juba grisalha para trás, gargalhando. Hannah sentiu cada músculo de seu corpo relaxar de alívio.

— Uma mulher sincera. Admiro isso. Sim, aprecio essa qualidade muito mais do que juras e promessas. — Tragou o cigarro francês e em seguida expeliu a fumaça. — Seria vanta­joso para eu continuar a ser lucrativo para alguém com suas habilidades e ambições.

— Não esperava menos de você. Dou preferência ao ramo executivo, se me entende, monsieur Deboque, mas estou abrin­do meu próprio caminho. Delegar e organizar não é tão recompensador quanto executar, não acha?

— De fato. — Ele a estudou mais uma vez, pensativo. Ela parecia ser moderada, educada e com recursos. Preferia a apa­rência externa calma e despretensiosa em uma mulher. Pensou em Janet Smithers, a qual usara e descartara há quase uma década.

Lady Hannah, pensou, talvez provasse ser bem mais inte­ressante e competente.

— Está conosco há dois anos?

— Sim.

— E nesse tempo provou ser bastante útil. — Deboque se ergueu e retirou um envelope da mesa.

— Trouxe-me isto, suponho.

— Sim. — Hannah girou o copo de conhaque. — Embora tenha achado o método como ele foi entregue irritante.

— Peço-lhe desculpas. É uma informação interessante, lady Hannah, porém temo que incompleta.

— Uma mulher que escreve tudo que sabe em um pedaço de papel perde o valor rapidamente. O que não está aí, está aqui. — Hannah apontou um dedo para a têmpora.

— Entendo — ele admirava um colaborador que conhecia seu próprio valor e o protegia. — Se partirmos da premissa que estou interessado nos sistemas de segurança do palácio real, do Centro de Belas Artes e do museu com o propósito de utilizá-los a meu favor, seria capaz de preencher essas la­cunas?

— Claro.

— E se eu lhe questionasse como conseguiu tal in­formação?

— Esse é o propósito de minha estada em Cordina.

— Um deles. — Intrigado, Deboque bateu com o envelope na palma da mão. — Foi de grande valia se tomar amiga da princesa Eve.

— De grande valia, mas não difícil. Ela ansiava por uma companhia feminina. Sou talhada para o papel. Brinco com sua filha, escuto-a desabafar sobre os medos e queixas que a atormentam. Por lhe aliviar a carga de trabalho, adquiri tam­bém a gratidão do príncipe Alexander. Teme que a esposa se esforce enquanto está grávida.

— Eles confiam em você?

— Sem restrições. E por que não haveriam de confiar? — acrescentou ela. — Sou de família respeitável e minha forma­ção dispensa comentários. O príncipe Armand me vê como a jovem prima da mulher falecida. Com meu perdão, monsieur, não foram essas as razões pelas quais me escolheu para infil­trar no palácio?

— Sim, foram. — Deboque se recostou no assento da ca­deira. Aquela mulher o agradava, mas estava longe de lhe des­pertar total confiança. — Ouvi dizer que o jovem príncipe está interessado em você.

Algo dentro dela congelou.

— Sua rede de informações é admirável. — Hannah volveu o olhar ao copo vazio e o inclinou em direção a Deboque, que se ergueu imediatamente para repor a bebida.

Foi o tempo que Hannah precisou para se recompor.

— Bennett está, estou certa de que é de seu conhecimento, interessado em qualquer mulher que se encontrar ao alcance de suas mãos. — Emitiu uma risada baixa, tentando não se odiar por aquilo. — É apenas um menino mimado. Concluí que o modo mais simples de lidar com ele é mostrando de­sinteresse.

Deboque anuiu de modo lento.

— Para que ele a persiga.

— Alguns homens são mais cômodos se mantidos sob cer­tas circunstâncias.

— Desculpe-me se pareço muito pessoal, mas o que quer dizer com "cômodo"?

— Ele é um tanto entediante e incauto. A franqueza do jo­vem príncipe pode ser útil. Acredito que algumas informações interessantes podem ser extraídas dele. Foi ele quem me levou ao Centro de Belas Artes e à base naval em Le Havre. — Han­nah sorveu outro demorado gole do conhaque. Deboque já deveria estar ciente de seu tête-à-tête com Bennett no museu. Portanto, usaria o conhecimento de seu oponente e distorceria a verdade. — Foi apenas uma questão de fazer perguntas e expressar interesse no modo como os museus guardam seus tesouros. Com isso, fui apresentada aos sistemas, alarmes, monitores e sensores. — Fez outra pausa, deixando a infor­mação penetrar na mente de Deboque. — Quanto mais uma mulher demonstra ignorância, mais aprende.

Ele aqueceu o conhaque nas mãos.

— Hipoteticamente, se me compreende, a segurança do pa­lácio pode ser burlada?

Até que enfim, pensou Hannah, estavam chegando ao pon­to crucial.

— Hipoteticamente, qualquer segurança pode ser violada. Eu diria que Reeve MacGee desenvolveu um admirável siste­ma, porém, não invencível.

— Interessante. — Deboque pegou um objeto de porcelana em forma de falcão, e o observou. O aposento imergiu em silêncio por tempo suficiente para que Hannah concluísse que ele estava tentando deixá-la nervosa. — Tem alguma teoria de como minar aquele tal sistema?

— De dentro — retrucou ela, sorvendo outro gole do co­nhaque. — É sempre possível, do interior.

— E quanto ao Centro? — A mesma coisa.

— A peça que a princesa escreveu será encenada dentro de alguns dias. Seria divertido causar uma certa perturbação.

— De que natureza? Ele apenas sorriu.

— Oh!, estou apenas falando teoricamente, você entende. Ao que parece, a Família Real se sentiria desconfortável se algo atrapalhasse a estréia. Detestaria perder isso. Estará lá?

— Minha presença é esperada. — Precisava pressioná-lo a algo definitivo. — Prefiro saber por que porta entrar, mon­sieur.

— Então deve ser esperta o suficiente para permanecer na platéia. Não gostaria de perdê-la agora que nos aproximamos.

Hannah tinha ciência daquilo, porém, sabendo que ele soli­citaria as demais estatísticas e em seguida a dispensaria, mu­dou de estratégia.

— Apenas por curiosidade pessoal, posso lhe perguntar por que tanto interesse na Família Real? Intriga-me, pois vejo muito de mim em você. Uma pessoa mais interessada nos lu­cros do que em vantagens pessoais.

— O lucro é sempre desejável. — Deboque colocou o falcão de porcelana na mesa. Possuía mãos que pareciam capazes de tocar violino ou escrever sonetos. Raramente matavam. Apenas gesticulavam para que outros o fizessem. — Vantagens pessoais podem ter muitas variáveis, n'est-ce pas?

— Conquanto que satisfatórias — concordou ela. — Usar o seqüestro da princesa Gabriella ou as ameaças aos Bisset para alavancar sua liberdade foi justificável. Mas não está mais na prisão. — Mais uma vez Hannah deixou o olhar admirado vagar pelo aposento. — Pensei que iria se dirigir a águas mais promissoras.

— Todo negócio deve ser concluído. — Pela primeira vez Hannah percebeu um reflexo de emoção, quando os dedos longos apertaram o copo. — Todos os débitos devem ser pa­gos. A importância de dez anos é muito alta. Os juros de dez anos são bastante altos. Não concorda?

— Sim. Vingança, ou retribuição, se preferir. Entendo que isso é tão doce quanto diamantes. — Volvendo-lhe o olhar, Hannah percebeu que nada o impediria de seguir com ela. — Monsieur, providenciou para que eu fosse infiltrada no pa­lácio. Pretendo continuar lá até que dê uma ordem contrária, mas prefiro fazer isso com certa orientação. — Gesticulou com a palma da mão para cima. — A vingança é sua, não mi­nha. E não costumo trabalhar às cegas.

— Um homem que põe todas as cartas sobre a mesa perde a vantagem.

— Concordo. Assim como um homem que não afia suas ferramentas e não as usa onde seriam mais vantajosas. Estou dentro, monsieur. Possuir algum esquema seria útil.

Pretendia utilizá-la. E bem. Recostando-se ao espaldar da cadeira mais uma vez, Deboque juntou as mãos, formando uma torre. Os diamantes emitindo faíscas. Fracassara duas vez antes ao usar os Bisset para seus propósitos. Não conseguira fazer Armand se dobrar diante dele. Não obstante o que deves­se ser feito, quem quer que tivesse de usar, não falharia dessa vez. Encontrara o instrumento para alcançar seu objetivo em Hannah.

— Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: se um homem preten­de destruir outro, o que deve fazer?

— O mais simples é acabar com a vida do outro.

Deboque sorriu, e naquele momento Hannah viu o ser de­moníaco. Revestido de vidro, disfarçado de elegância, porém real.

— Não sou um simplista. A morte é terminal e, mesmo quando lenta, logo acaba. Para destruir um homem, a alma, o coração, é necessário mais do que uma bala no cérebro.

— Hannah sabia que ele estava se referindo a Armand. Não era o momento de pedir para que citasse nomes ou revelasse seus planos. Deboque nada diria, e desconfiaria dela. Pensan­do assim, pousou o copo e tentou pensar como aquele homem.

— Para destruí-lo verdadeiramente tem de tomar o que é mais precioso para ele.

O coração de Hannah começou a bater na garganta, suscitando-lhe uma onda de náusea. Ainda assim, quando falou, aparentou fria admiração.

— Os filhos?

— É tão inteligente quanto graciosa. — Inclinando-se, De­boque pousou a mão sobre a dela, fazendo-a sentir o movi­mento obscuro e vil da morte. — Para fazer um homem sofrer, destruir-lhe a alma, tem de privá-lo do que mais ama e deixá-lo viver sem aquilo. Os filhos e os netos mortos e o país imerso em caos não lhe deixará nada a não ser a miséria. E um país sem um herdeiro se toma instável — e lucrativo — para alguém perspicaz.

— Todos — murmurou Hannah. Pensou na pequena Marissa, tão bela e meiga e em Dorian, com seu rosto sempre sujo e seu sorriso luminoso. De repente, o temor por eles se tomou tão intenso e vital que Hannah pensou estarem refletidas em seus olhos. Baixou-os, fitando a mão que cobria a dela e o bri­lho dos diamantes. — Todos eles, monsieur? — Quando jul­gou poder confiar em si mesma outra vez, ergueu o olhar para fitá-lo. Deboque estava sorrindo. À luz tênue dos candelabros parecia tão pálido quanto um fantasma, porém infinitamente mais amedrontador. — Não será uma tarefa fácil, mesmo para alguém com o seu poder.

— Nada valioso é simples, minha querida. Porém, como você mesma disse, nada é impossível. Especialmente com al­guém confiável e por perto.

Ela ergueu a sobrancelha. Não estremeceu ou se retraiu. Negócios, disse a si mesma. Lady Hannah era toda negócios. Ele estava lhe oferecendo um trabalho, o mais vital que po­deria.

— Foi cuidadosamente escolhida, lady Hannah. Por mais de dez anos acalentei um sonho. Acredito que seja o instru­mento para tomá-lo realidade.

Ela comprimiu os lábios, como que considerando o assun­to, enquanto a mente trabalhava adiante. Deboque lhe apre­sentava um contrato de grande magnitude. Enquanto Hannah permanecia calada, os dedos longos deslizavam sobre os dela, suaves. Como uma aranha, pensou ela, uma bela e inteligente aranha.

— Tal responsabilidade é pesada para alguém em minha posição dentro da organização.

— Isso pode ser revisto. Bouffe está... se aposentando — afirmou Deboque em tom suave. — Precisarei de um substi­tuto.

Hannah deixou a mão parada sob a dele, enquanto com a língua tocava o lábio superior.

— Uma garantia, monsieur.

— Minha palavra.

Ela exibiu um breve sorriso.

— Monsieur.

Com um gesto de cabeça, Deboque anuiu e se ergueu, pres­sionando um botão em sua mesa. Em segundos, Ricardo apareceu.

— Lady Hannah substituirá Bouffe. Tome as providências necessárias. E discretamente.

— Claro. — Os olhos verdes pálidos se semicerraram de­monstrando certa satisfação.

Hannah esperou até a porta se fechar. A vida de um homem fora descartada.

— Chegará o dia em que decidirá me substituir com a mes­ma casualidade.

— Não, se continuar a me agradar. — Deboque ergueu a mão dela mais uma vez e a beijou. — E tenho o pressentimen­to de que o fará.

— Devo lhe dizer, monsieur, que não me agrada matar crianças.

Os dedos longos se apertaram em tomo da mão de Hannah de modo sutil, mas ela não se incomodou.

— Acredito que serão necessários cinco milhões de dólares para superar essa aversão.

Hannah podia ver refletido nos olhos negros: ele poderia lhe quebrar os dedos com a mesma facilidade com que os bei­java. Sendo assim, fitou-o com firmeza, esperando que não tivesse abusado da sorte.

— É o dinheiro que a seduz, ma petite?

— Não seduz. Agrada. E gosto de me sentir agradada.

— Tem duas semanas para me agradar, lady Hannah. E, então, poderei lhe devolver o favor. — Deboque manteve a mão dela nas suas, enquanto a ajudava a se levantar. -— Agora, como uma demonstração de confiança, o que deixou de notar neste aposento?

Omitindo os detalhes, Hannah se preparou para mentir.

Sentia-se exausta. Em uma década de missões, nada a deixara tão vazia e suja. Enquanto guiava o carro através dos portões do palácio, tudo em que conseguia pensar era em um banho quente, onde poderia eliminar quaisquer traços da colônia de Deboque.

Reeve estava a trinta metros do portão. Hannah parou o carro e esperou que ele deslizasse para dentro.

— Demorou muito. — Ele a estudou demorada e detalha­damente. — Não estava nos planos ficar inacessível por mais de uma hora.

— Estava nos meus planos chegar até Deboque.

— E conseguiu?

Hannah abriu um pouco mais a janela do carro.

— Encontrei-o em um iate, o Invencível. Está ancorado a cinco milhas a noroeste. Tem pelo menos seis seguranças armados, porém arriscaria dizer que deve ter o dobro. Está de posse da informação que queríamos lhe passar. Estou substi­tuindo Bouffe.

As sobrancelhas de Reeve se ergueram.

— Deve tê-lo impressionado.

— Era o objetivo. — Hannah imaginou quando conseguiria se livrar do sabor do conhaque de Deboque que permanecia em sua boca. — Está planejando algo para o dia da estréia da peça. — Percebendo Reeve tensionar, continuou. — Acho que não será nada diretamente contra a Família Real. Deboque pensa que será divertido criar confusão. É muito cauteloso com o que fala. Não menciona nada de forma direta. Mesmo que eu testemunhe contra ele, seria difícil condená-lo por conspira­ção. Ele faz suposições e conjecturas o tempo inteiro.

— Deu-lhe alguma idéia onde pretende dar a cartada fi­nal?

Por um momento, Hannah escutou o canto triste de um pás­saro.

— Seu maior interesse parece ser o palácio. É o maior de­safio. Temos duas semanas.

— Agirá dentro de duas semanas?

— Foi o prazo que me deu para matar sua família. — Ela se voltou para Reeve e percebeu a palidez na face dele. — To­dos vocês, menos Armand. As crianças, todo mundo. Deboque quer destruir a alma de Armand e deixar Cordina sem herdei­ro. Se confia em meu julgamento, parece-me que ele busca nisso mais satisfação pessoal do que os lucros que poderá ob­ter quando Cordina estiver imersa no caos.

Reeve retirou um cigarro do bolso, mas não o acendeu.

— Confio em seu julgamento.

— Temos duas semanas para impedi-lo, ou convencê-lo de que fiz o que ele desejava.

Era de sua família que ela estava falando. Seu coração. Ainda assim, sabia que tinha de pensar de modo frio como Hannah.

— Estará ele preparando uma armadilha para você?

Ela pensou por alguns instantes e meneou a cabeça em ne­gativa.

— Acho que não. É mais provável que queira me eliminar depois que eu conclua o trabalho, mas acho que continuará me usando. Fizemos um bom trabalho, plantando informa­ções sobre mim, e nos últimos dois anos o poupei de muitos problemas e despesas. Se Deboque acredita que sou capaz de cumprir a missão, esperará sentado que eu o faça.

— Teremos de informar Armand sobre isso.

— Eu sei. — Mas não Bennett. Apenas Armand.

— Por enquanto, continue a agir normalmente. — Reeve gesticulou para que ela continuasse a dirigir. — Precisaremos de algum tempo.

— A estréia da peça de Eve acontecerá dentro de alguns dias.

— Conseguiremos. Precisa dormir. Tão logo tenhamos ins­truções, entrarei em contato com você.

Hannah saltou do carro. Em seguida, como Reeve perma­necia parado do outro lado, estacou.

— Eu o quero. Desejo eliminá-lo sozinha. Sei que não é profissional e é estúpido, mas, se tiver chance, se encontrar um modo, vou tirá-lo de cena sozinha.

Reeve permaneceu em silêncio enquanto ela subia a esca­da. Fizera o mesmo juramento para si mesmo.

 

— Não quero que vá esta noite.

— Sabe que tenho de ir. — Eve continuava, amargurada e teimosa, encarando o marido. — É minha peça, elenco e pro­dução. Não tenho escolha, Alex.

— Podemos arranjar uma desculpa. — Ele fitou a espo­sa, em um vestido azul escuro, que planava sobre os ombros e serpenteava até os tornozelos. Os cabelos, apanhados para trás, caíam em cascata sobre um dos ombros como ébano. Mesmo depois de todos aqueles anos, o simples ato de fitá-la fazia-lhe a pulsação acelerar. — Sabe o quanto pode ser perigo­so. Com a informação de que dispomos agora, podemos estar certos de que haverá um incidente esta noite. Não quero vê-la envolvida nele.

— Estou envolvida. — Eve estava assustada. Desde que Reeve lhes contara que recebera uma dica de que haveria con­fusão na estréia da peça, seus nervos estavam em frangalhos. Sim, estava temerosa, mas não menos determinada. Cruzou o aposento até o espelho chanfrado sobre a cômoda como se verificar o penteado naquele momento fosse crucial. — Eu escrevi a peça, a produzi, e, mais importante do que tudo isso

— continuou, antes que o marido a interrompesse —, meu lugar é naquele teatro esta noite, pois sou sua esposa.

O fato de os argumentos de Eve serem válidos não signifi­cava nada. Queria-a no palácio, segura e intocável. Seu cora­ção só ficaria em paz se soubesse que a esposa estava ali, nos aposentos que ela mesma decorara, guardada no lugar que fora o lar de sua família por gerações. Nada poderia lhe acontecer ali. E qualquer coisa poderia lhe suceder lá fora.

— Meu amor, Reeve quase nunca se engana. Se afirmou que haverá confusão esta noite, eu a quero longe dela. A gra­videz é um ótimo motivo para inventarmos uma desculpa. Sei que a peça é importante para você, mas...

— Sim, é — interrompeu-o Eve. — Mas você é mais im­portante.

— Então faça isso por mim. Fique em casa esta noite.

Ela ergueu a cabeça, tentando controlar os nervos e a têm­pora.

— Alexander, ficaria comigo?

— Se fosse possível, sim. — A impaciência o levou a des­lizar uma das mãos pelos cabelos. Aquele era um artifício que Eve costumava usar e que o deixava sem argumentos. — Não posso me trancar toda vez que há um rumor relacionado a De­boque.

— Por Cordina — declarou ela em tom calmo. — E Cordi­na agora é meu país, também.

— Eve. — Alex pensava amá-la tanto quanto era possível amar. Porém, todos os dias aprendia que aquele sentimento se intensificava. — Você é o que há de mais precioso para mim no mundo. Quase a perdi uma vez.

Ela cruzou o aposento em direção a ele, sabendo que tinha de dar o primeiro passo e o primeiro toque. Quando ambas as mãos do marido se encontravam nas dela, Eve o fitou nos olhos.

— E eu a você, Alex. Vou me sentar a seu lado no camarote, onde é meu lugar.

Do lado de fora da porta, Hannah escutava a conversa cla­ramente. Eram momentos como aquele que tomavam difícil pensar no que estava fazendo, ou no que teria de fazer, como apenas mais um trabalho. Do outro lado da porta, estavam pes­soas às quais se afeiçoara. Os Bisset não se limitavam mais a nomes e símbolos, tomaram-se seus amigos. Após dez anos de lances perigosos, sabia o quanto era arriscado fazer amizades.

Fechou os olhos e inspirou profundamente antes de bater.

— Entrez! — Era a voz de Alex, demonstrando im­paciência.

Hannah abriu a porta, porém não ultrapassou a soleira.

— Desculpe. Eu os estou incomodando?

— Claro que não. — Com um afeto que fazia parte dela, Eve sorriu e gesticulou para que ela entrasse. — Vejo que está pronta para o evento — comentou, sentindo uma pontada de pesar pelo vestido bege e o austero penteado da amiga. Espera­va que em pouco tempo pudesse convencer Hannah a suavizar a própria imagem. Aquela noite, no entanto, tinha problemas mais prementes em que pensar.

— Estávamos prestes a descer.

Hannah observou Eve tomar a mão do marido mais uma vez.

— Pensei que precisasse de ajuda.

— Não, está tudo bem. — Porém, a nuvem de preocupa­ção nos olhos de Eve não se dissipou. — Hannah, não quero que se sinta obrigada a nos acompanhar, sabendo que have­rá a possibilidade de um... incidente — começou a princesa.

— Bem, poderia ser mais confortável para você ficar.

— Claro que irei. — Com o odioso segredo guardado em seu íntimo, mexeu no agasalho que lhe cobria os bra­ços. — E acho que tudo sairá bem. Se não precisa de mim, vou descer.

— Por favor, não falemos mais sobre isso. — Manifestou-se Eve, quando a amiga fechou a porta. — Vamos desejar boa-noite a Marissa, antes de partirmos.

— Eve — Alexander a puxou para si. Podia sentir o abaulado discreto, onde outra criança se desenvolvia. — Eu a amo.

— Falar é fácil — murmurou ela, forçando uma risada.

— Prometa que provará mais tarde, depois do espetáculo. Ele deixou o queixo descansar sobre os cabelos macios.

— Tem a minha palavra.

Bennett já estava aguardando no hall principal. Mesmo com a distância que os separava, Hannah podia sentir a im­paciência dele. E a tensão, pensou ela, que os trajes de noite elegantes não conseguiam disfarçar. Ele estava procurando confusão, percebeu, até mesmo a esperava.

— Ai está você. — Embora Bennett sorrisse, a mente já se encontrava na noite que teriam pela frente. Em um gesto ins­tintivo, tomou-lhe a mão, segurando-a quando ela alcançou o pé da escada. — Não precisa ir conosco, Hannah. Ficaria mais feliz se não fosse.

O sentimento de culpa a atingiu tão prontamente que a fez apertar a mão do príncipe antes que fosse capaz de evitar.

— Agora você falou como Eve — redargüiu ela em tom jovial. — Quero estar lá. Uma vaga informação de fonte anô­nima não é razão para perder uma noite no teatro.

Bennett tocou a pérola na delicada orelha.

— É isso que chamamos de determinação britânica?

— É o que se costuma chamar de bom senso.

— Seja qual for o nome, quero que se mantenha por perto. Haverá seguranças suficientes para nos proteger, mas prefiro mantê-la ao alcance dos meus olhos.

Antes que ela o pudesse impedir, Bennett a estava guiando na direção das portas.

— Eve e Alexander estão quase prontos. Disse que espera­ria por eles.

— A segurança prefere que nos dividamos. — O príncipe cumprimentou Claude com um aceno de cabeça. — Irá comi­go. Meu pai irá atrás de Alexander e Eve.

— Está bem. — Hannah saiu para a noite estrelada, calma­mente portando a arma calibre 22 que se encontrava dentro da bolsa de contas que carregava.

Todas as entradas haviam sido vendidas. Muito antes de as cortinas se abrirem, os acentos estavam todos ocupados, de modo que o burburinho da conversação se erguia até o cama­rote real. Aplausos entusiasmados explodiram à entrada dos Bisset.

Ao fundo, enquanto as reverências eram feitas, Hannah prendeu a respiração, estudando o mar de rostos.

Se Deboque estivesse ali, sabia que o teria encontrado.

— Foram feitas duas varreduras no Centro — murmurou Reeve em seu ouvido. — Não encontraram nada.

Hannah prestou atenção e se acomodou em seu assento, en­quanto a cortina se erguia.

A peça demonstrou ser tudo o que Eve esperava, embo­ra Hannah duvidasse que algum dos ocupantes do camarote dedicasse total atenção ao drama e à emoção no palco. Por mais de uma vez, fitou Bennett de soslaio para encontrá-lo vasculhando a platéia.

Deboque não estava presente. Hannah não o esperava. O que quer que acontecesse, e quando acontecesse, ele estaria longe do local da ação, com um álibi tão sólido quanto os ro­chedos de Cordina.

Então, só lhes restava esperar. E observar.

Quando as luzes se acenderam para o primeiro intervalo, Hannah pôde quase sentir Eve relaxar. Um alarme falso? Não. Embora preferisse que a princesa acreditasse naquilo, não era ingênua a tal ponto. Sentiu uma comichão entre as escápulas. Vaga, porém persistente. Alguns chamariam aquilo de pres­sentimento. Outros, de instinto. Hannah estava no jogo há tempo suficiente para saber quando esperar e quando seguir em frente.

— Gostaria de beber algo?

Ela se virou para Bennett, pronta para recusar. Por motivos pessoais, ela o queria a seu alcance.

— Sim — ouviu-se responder, sabendo que aquela seria mais uma farsa. — Adoraria algo gelado.

No instante em que ele transpôs a porta atrás deles, Hannah inclinou-se para Reeve.

— Vou explorar o local.

— Se fosse você, ficaria... estou com um pressentimento. — Reeve o sentia nas entranhas.

Não permitiria que Gabriella se afastasse mais do que a distância de um braço.

— Eu também. Deboque mandou-me permanecer na pla­téia. Portanto, vou até os bastidores.

Reeve fez menção de objetar, porém Gabriella tomou-lhe a mão, dando a Hannah os poucos segundos de que necessitava para escapar. Encaminhou-se em direção à sala de estar femi­nina até se certificar de que ninguém a observava.

Com a destreza da longa experiência, esgueirou-se para a escada e começou a descer. Dispunha de apenas dez minutos, pensou, consultando o relógio de pulso, antes que alguém sen­tisse sua falta.

Havia muita troca de roupas e tensão nos bastidores, quan­do Hannah cruzou o corredor. A maioria dos atores se encon­trava por demais ocupada para notar sua presença. Nada pa­recia fora do lugar ou de sincronia. Ainda assim, a comichão entre as escápulas persistia.

A porta do camarim de Chantel estava meio aberta. A atriz percebeu Hannah, hesitou e então a chamou.

— Lady Hannah.

Por não lhe restar outra alternativa, ela parou em frente à porta.

— Srta. O’Hurley. Sua Alteza não conseguiu descer, mas gostaria que soubesse que está maravilhada com sua perfor­mance.

— Obrigada. — Chantel descansou o lápis de maquiagem que utilizava para realçar os olhos. — E o que achou da peça?

— Emocionante. Sua interpretação de Julia é de tirar o fô­lego.

Anuindo, Chantel se aproximou dela. A maquiagem exage­rada necessária ao teatro só a tomava ainda mais exótica.

— Nasci no show business. Está no sangue, se compreende o que quero dizer. E sempre achei que um inveterado ator re­conhece outro facilmente.

Extremamente fria e exibindo um sorriso, Hannah a encarou.

— Suponho que tenha razão.

— Talvez seja por isso que não estou certa se gosto de você. Sei apenas que não confio em você. — Chantel ajustou os pu­nhos do vestido que usaria na cena seguinte. — Minha afeição por Bennett é antiga. Uma mulher como eu conhece poucos homens a quem pode chamar de amigo.

Havia algo forte e honesto na mulher que a encarava. Han­nah lançou mão de toda a sinceridade que podia.

— Posso lhe garantir que Bennett é um homem especial do qual gosto muito.

Chantel se manteve em silêncio por alguns instantes.

— Não sei por que, mas acredito em você. — E meneando a cabeça: — Não consigo entender por que está fazendo o pa­pel de Jane Eyre, mas suponho que tenha suas razões.

— Está na hora, Srta. O' Hurley — gritou um assistente.

Chantel conferiu a própria imagem mais uma vez no es­pelho, e erguendo o queixo em um ângulo diferente transformou-se em Julia.

A voz adotou o súbito arrastar e eco do sotaque dos sulistas, enquanto se voltou para passar por Hannah.

— Querida — começou como que representando —, devia saber que bege é a cor que menos combina com você. — Em seguida, piscou, e caminhou para os bastidores.

Hannah deixou escapar um longo suspiro. Não vira nada fora do lugar, ninguém que não pertencesse ao local e levara um sermão. Seu disfarce não era tão prefeito quanto pensara.

Caminhou de volta ao longo do corredor, girou em direção à escada e começou a subir. Ouviu os aplausos quando a cor­tina se ergueu.

E, então, escutou o som distante, o estrondo de uma explosão.

As luzes se apagaram.

Gritos assustados reverberavam, enquanto o teatro mergu­lhava na escuridão.

De onde se encontrava, o alarme não podia ser ouvido. No camarote real, uma parede formada por seguranças empu­nhando armas se formou.

— Fique onde está — ordenou Reeve. Apertou a mão de Gabriella de modo confortante. — Dois de vocês venham co­migo.

Ele se moveu pelo corredor com os dois seguranças atrás dele.

— Precisaremos de luz. — Xingando, enfiou a mão no bolso à procura de um fósforo. — Precisaremos de alguém que suba ao palco e oriente a platéia a não entrar em pânico. — Enquanto acendia o fósforo e lançava uma luz fraca e bruxuleante contra a própria face, a voz de Chantel ecoou calma e firme nos alto-falantes.

— Mesdames et messieurs, pedimos para que se mante­nham sentados por alguns momentos. Estamos tendo algumas dificuldades com as luzes. Porém, se quiserem aproveitar a oportunidade para conhecer melhor seu vizinho...

— Boa garota! — murmurou Reeve, enquanto escutava as risadas nervosas. — Vamos descer à sala de força.

Hannah não voltara. Aquilo continuava a ecoar na mente de Bennett, enquanto escutava as palavras de conforto que o irmão dizia à esposa. Encontrava-se lá fora em algum lugar, sozinha, no escuro. Sem hesitar, dirigiu-se para a porta.

— Alteza. — A figura gigantesca de um segurança assomou à frente dele. — Se puder se manter sentado.

— Deixe-me passar.

— Bennett — a voz do pai cortou a escuridão. — Por favor, sente-se. Isso acabará em minutos.

— Hannah não está aqui. Houve um breve silêncio.

— Reeve dará conta da situação.

Havia o dever e a honra que nunca questionara. E, no pre­sente, existia o amor. Bennett disparou pela porta à procura de Hannah.

Ela empunhava o revólver enquanto permanecia parada na escadaria.

Não se movia, quase não respirava, enquanto decidia se subia para verificar como estavam os Bisset ou descia para conferir a energia elétrica. Se tivesse sido uma bomba, poderia facilmente haver outra.

A mente lhe dizia que os Bisset estariam bem protegidos e seu trabalho seria procurar a fonte do problema. O coração queria apenas se certificar da segurança e bem-estar de Ben­nett. Seguindo-o, Hannah subiu a escada. Escalou não mais do que três degraus quando ouviu o som de uma porta se fechar no andar térreo.

Com os dedos em tomo do gatilho, apontou o cano da arma e começou a descer de novo. Viu o reflexo da lanterna antes de escutar os passos cautelosos e baixos. Como uma sombra, Hannah se recostou em um canto e esperou.

Reconheceu-o do museu. Estava trajado com o uniforme azul escuro da equipe de manutenção e carregava uma peque­na caixa de ferramentas. Hannah quase aprovou o homem: qualquer pessoa que o visse presumiria que ele fora designado para sanar o problema elétrico.

O flash de luz passou por seus pés antes que ela desse um passo à frente e encostasse a arma no flanco do homem.

— Fique quieto — ordenou em voz baixa. — Peço-lhe des­culpas por saudá-lo dessa maneira, mas não quero um buraco de bala na minha cabeça antes que me reconheça.

— Mademoiselle — Hannah percebeu a fúria controlada na voz do interlocutor. Nenhum homem gostava de ser pego de surpresa. — Fui informado que a senhorita ficaria fora do caminho esta noite.

Hannah afastou a arma, mas a manteve firme na mão.

— Prefiro uma visão em primeira mão dos acontecimentos. Uma distração dramática — ela acrescentou. — Mais algum plano para esta noite? — estava certa de que aquele homem havia se preparado para matar. Mas estaria armado? Sabia que se o detivesse por muito tempo ou o pressionasse demais, seu disfarce correria risco.

— Apenas se a oportunidade surgir. Pode me dar licença?

— Certamente. — Seu único pensamento era vê-lo fora do teatro e longe das oportunidades. O local estava lotado. A Fa­mília Real, presente. Aquele não era o momento ideal para um confronto. — Posso ajudá-lo em uma retirada discreta?

— Isso foi arranjado.

— Muito bem. Diga a seu patrão que não serei tão dramá­tica, porém eficiente. — Ela se voltou em direção à escada, quando ouviu a porta superior se abrir.

— Hannah?

Sentiu o sangue congelar ao som da voz de Bennett. Ao mínimo movimento do homem a seu lado, ela lhe segurou o braço. Sabia, mesmo sem ver, que o empregado de Deboque esticava a mão para pegar uma arma.

— Não seja tolo — sussurrou. — Na escuridão poderia fa­cilmente errar e estragar tudo. Desligue essa lanterna e dei­xe-me cuidar disso. — Sentiu a resistência do homem, porém girou rapidamente e começou a subir a escada. — Bennett. — Não precisava fingir o tom de medo na voz. O jovem prín­cipe não passava de uma silhueta na porta, mas ela deslizou os braços em tomo dele e deixou que o próprio corpo o pro­tegesse.

— O que está fazendo aqui embaixo? — indagou ele.

— Perdi-me quando as luzes se apagaram.

— Pelo amor de Deus, Hannah. Como conseguiu descer toda essa escadaria?

— Não sei ao certo. Por favor, vamos voltar.

— Poderia ter quebrado o pescoço na escada. — Quando ele a apertou de modo suave e começou a guiá-la pelo cami­nho de volta, Hannah mudou de posição para protegê-lo de maneira mais eficaz.

— Beije-me — pediu ela em um sussurro.

Feliz por encontrá-la em segurança, Bennett ergueu o quei­xo dela. À luz tênue podia apenas divisar o vago perfil da face de Hannah e o brilho dos olhos verdes.

— Se insiste.

Mesmo com os lábios quentes e macios sobre os dela, Han­nah girou a maçaneta atrás dele, preparando-se para empurrá-lo através da porta.

E, então, os dedos de Bennett se espalmaram em sua face, gentis. A boca tentadora se insinuava, confortadora, pedindo quase nada em troca. Os dedos de Hannah apertaram a ma­çaneta tanto em resposta quanto em temor por ele. Uma das mãos do príncipe estava em suas costas, acariciando-a. Han­nah sentiu o coração partir. Amava aquele homem, apesar de saber que não podia. Desejava que o beijo fosse exatamente como era, uma imersão de lábios, a simbologia do sentimento. Mas o que tinha de ser era uma ferramenta para que o homem abaixo deles tivesse tempo de escapar.

E, então, Bennett estaria salvo. Por segundos apenas, co­locou todo o seu coração naquele beijo. Ele estaria seguro e Hannah poderia voltar a respirar.

Bennett percebeu a mudança e sentiu o coração gritar de felicidade. Imaginou-a sozinha na escuridão, necessitan­do de conforto e contato físico. Pensando assim, descartou as próprias necessidades e a beijou como um amigo o faria, com afeição e compreensão. A resposta de Hannah foi avassalado­ra. Os dedos de Bennett se apertaram contra a face delicada, enquanto murmurava o nome dela.

As luzes voltaram a ser acesas.

E, então, tudo aconteceu muito rápido, porém Bennett re­cordaria por toda a vida, cada movimento e cada som. Não havia tempo para o medo, apenas para surpresa e, em seguida, desilusão.

Quando as luzes se acenderam, ele ficou tenso. Hannah soube, naquele instante, que o homem de Deboque não havia se retirado do teatro, como ela esperara, permanecera, para tirar vantagem da oportunidade que surgiu. Sem hesitar, ela se desprendeu dos braços de Bennett e o empurrou através da porta. A arma do homem estava empunhada, mas a dela tam­bém. E Hannah era muito rápida.

Bennett vira o homem e a arma. Forçou caminho através da porta para protegê-la, mesmo depois de ela ter atirado. Por um instante, ele se limitou a fitá-la, atordoado ao ver o homem cair morto. Então, percebeu a arma na mão de Hannah. A sur­presa chegou e partiu. A face do príncipe se tomou impassível. Quando falou, o tom de voz era neutro.

— Que tipo de jogo está fazendo e para quem?

Hannah nunca matara antes. Fora treinada para aquilo, cla­ro, mas nunca dera fim a uma vida com as próprias mãos. En­quanto continuava a olhar para baixo, a arma parecia estranha e pegajosa em seus dedos. Sua face estava extremamente páli­da, os olhos, muito escuros, quando os volveu para Bennett.

— Terei de explicar, mas não é a hora. — Escutou o som de passos apressados e lutou para se controlar. — Por favor, confie em mim.

— É um pedido interessante a essa altura. — Bennett se moveu para passar por ela, em direção ao homem que jazia no chão.

— Bennett, por favor — segurando-lhe o braço, ela se pos­tou ao lado do príncipe. — Contarei tudo que puder, mais tar­de. Pode confirmar tudo com Reeve e seu pai.

Sentiu os músculos de Bennett ficarem rígidos.

— Meu pai?

— Por favor, pela segurança dele e de sua família, encene essa farsa comigo. — Empurrou a arma para a mão do príncipe, enquanto Reeve chegava com cinco seguranças em seus calcanhares. Hannah reagiu imediatamente. Mais uma vez, a verdade era o melhor disfarce.

— Ele tentou atirar no príncipe. — Hannah forçou a voz a tremer, enquanto se apoiava nele. — Iria matá-lo se Ben­nett não... — estacando, enterrou a face contra o ombro de Bennett.

Ele não se moveu, embora não a contradissesse. Não ha­via mão confortadora naquele momento, nenhuma palavra de consolo. Reeve se inclinou sobre o corpo e em seguida ergueu o olhar para encontrar o do príncipe.

— Foi uma sorte ser rápido... e preciso. — A pistola calibre 45 que jazia ao lado do corpo não fora disparada. O olhar de Reeve se moveu para encarar Hannah. — Lidaremos com isso de forma discreta.

Os lábios de Bennett se curvaram, mas não estava sor­rindo.

— Claro.

— Se puder voltar ao camarote. — Reeve gesticulou para que dois dos guardas o acompanhassem. — Não contaremos nada disso à família antes de nos encontrarmos em local pri­vado. — Com um lápis, ergueu a pistola automática pelo pro­tetor do gatilho. — A polícia entrará pelos fundos.

Bennett dispensou os guardas com um gesto. Fora a pri­meira vez que Hannah o viu lançar mão da autoridade e da arrogância real. — Quero falar com você a sós. Agora.

— Está bem. — Reeve estava ciente de que ele presenciara muita coisa. Porém, teria de lidar com aquilo rapidamente. — Vamos nos encontrar no escritório de Eve. Se me der alguns minutos para resolver isto primeiro.

— Tem dez minutos — declarou Bennett, voltando as cos­tas a todos.

— Gostaria de voltar ao palácio. — Hannah estava para­da nos degraus sozinha. As mãos, esbranquiçadas nas juntas, agarradas à bolsa. — Não estou me sentindo bem.

— Providenciem um carro e um motorista — ordenou Ree­ve a um dos guardas. Para outro, entregou a arma do homem morto, antes de subir a escada e deslizar um braço sobre o ombro de Hannah. — Vou acompanhá-la até a saída. — No instante em que se encontravam fora do alcance dos ouvidos dos outros, o tom de Reeve voltou a ser seco e profissional. — O que aconteceu?

Os joelhos de Hannah tremiam, porém ela manteve a voz no mesmo tom. De maneira sucinta, relatou o ocorrido.

— A cena não durou mais que cinco minutos. — Parecia ter sido horas.

— Foi falta de sorte Bennett tê-la encontrado. Ainda assim, a história será convincente. Ele tem reputação de ser excelente atirador. Tudo que tenho a fazer é acalmá-lo. — Reeve deixou escapar um longo suspiro. Conhecia bem seu cunhado, assim como todos os Bisset. Uma vez que perdessem a têmpera, era difícil recuperá-la. — Passaremos todos os acontecimentos pela manhã de modo que a história que contará a Deboque | seja a mais vantajosa para nós.

— Ele nunca me perdoará.

Reeve era intuitivo o suficiente para saber que naquele mo­mento ela não estava se referindo a Deboque.

— Bennett não é injusto. Tampouco tem um coração duro. A princípio ficará furioso, por ter sido mantido no escuro, mas não a culpará.

— Será? — Hannah saiu para o ar da noite sem olhar para trás.

Sentou-se próximo à janela, observando o jardim. Havia se passado uma hora e depois duas, enquanto contemplava o luar. O palácio estava mergulhado no silêncio. Talvez os ou­tros tivessem chegado, porém Hannah não se deu conta, já que seus aposentos ficavam localizados na parte posterior Os convidados eram sempre agraciados com as mais agradáveis paisagens e os locais mais silenciosos.

Podia imaginar qual fora a reação de Bennett ante as reve­lações de Reeve. Mas não seria o cunhado a quem culparia. Hannah sabia que aquele ônus seria dela, e o aceitaria. Pela manhã, provavelmente, iria querer uma conversa privada en­tre ambos.

Não se desculparia. Ergueu o queixo alguns centímetros. Aceitaria a raiva e a frieza de Bennett, porém não se desculpa­ria por ser quem era.

Amava Bennett. Embora apostasse que ele nunca acredi­taria naquele sentimento, mesmo que Hannah tivesse o di­reito de confessá-lo. Naquela noite, estava disposta a morrer no lugar dele. Não apenas por dever ou honra, mas por amor. No momento, Bennett não compreenderia ou aceitaria aquilo. Talvez fosse melhor daquela forma. Se seus sentimentos pelo príncipe haviam fugido do seu controle, seria mais inteligente e seguro que os dele tivessem morrido.

Ainda tinha uma missão a cumprir e dois anos de trabalho para finalizar.

Hannah recostou a cabeça ao peitoril e desejou estar em Londres, onde a noite seria fria e úmida e sentiria o aroma do rio.

Ele não bateu à porta. O tempo da educação, da formali­dade e do mínimo de gentileza havia passado. Hannah estava encolhida em frente à janela, com os braços cruzados sobre o peitoril e a cabeça apoiada neles. Soltara os cabelos, de modo que lhe caíam em cascata sobre os ombros e desciam pelo robe branco. Um homem poderia facilmente pensar que se tratava de uma mulher perdida na noite. Bennett não mais acreditava no que via e muito pouco daquilo restara. Quando fechou a porta, depois de entrar, ela se ergueu em um impulso.

Não o esperava aquela noite. Fitando-lhe a face, Hannah percebeu que deveria tê-lo aguardado. Sabia reconhecer o pior quando o encarava.

— Conversou com Reeve?

— Sim.

— E com seu pai?

Bennett ergueu a sobrancelha. Embora tivesse se livrado do temo formal, podia parecer um príncipe quando queria.

— Conversaremos amanhã, embora isso não seja da sua conta.

Hannah aceitou a afirmação com um leve aceno de ca­beça.

— Contanto que isso não afete minha posição no momento.

— Embora, obviamente, pense o contrário, não sou idiota. Sua posição será mantida. — Bennett retirou a pequena pistola do bolso, e após cruzar o aposento até o criado-mudo, deposi­tou-a lá. — Isto é seu.

Não seria perdoada. Pensou estar pronta para aceitar aquilo, mas se enganara.

— Obrigada.

Aparentando tanta frieza quanto ele, Hannah caminhou até o criado-mudo e guardou a arma na gaveta.

— Tem excelente pontaria, lady Hannah. Ela fechou a gaveta com um estalido baixo. — Fui bem treinada.

Bennett ergueu o queixo dela sem gentileza.

— Sim, por Deus! Foi mesmo. Que outros talentos possui, eu me pergunto? Farsa, por certo, é o mais acurado de todos, Em quantas mulheres pode se transformar?

— Quantas forem necessárias para fazer meu trabalho. Se me der licença, estou muito cansada.

— Oh, não. — Com a outra mão, ele pegou um punhado de cabelos dela. — Pensou no que aquela mulher o fizera passar em uma única noite: a ansiedade sobrepujando o terror e a traição. — Acho que não me encantarei com isso mais uma vez. Para mim, a calma e bem educada dama inglesa acabou. Coloquemos as cartas na mesa, Hannah.

Era o medo que lhe revirava o estômago. Não temor de que ele lhe causasse algum dano físico. Tampouco que fizesse, por causa da ira, e colocasse em risco a operação, mas o medo, mortal e frio, de que Bennett passasse a vê-la como naquele momento.

— Acho que não tenho muito a acrescentar ao que Reeve já lhe contou. A operação teve início há dois anos. O SSI precisava de uma agente infiltrada, então...

— Fui colocado a par dos detalhes básicos. — Ele a sol­tou, deixando as mãos caírem ao lado do corpo. E cerrou os punhos. — Um tanto tardia, a informação foi absolutamente completa. Após se estabelecer na organização de Deboque, fingiu afeição por Eve para que pudesse obter acesso ao palá­cio. — Bennett percebeu um lampejo de emoção perpassar a face dela àquela menção, mas não estava preparado para in­terpretá-la. — Dessa forma, Deboque seria levado a acreditar que possuía um dos seus dentro do castelo. Através do jogo duplo, ficaria a par de seus planos, uma vez que ele fizesse um movimento, as autoridades seriam capazes de cercá-lo e destruir sua organização. Disseram-me que eu deveria agradecer o fato de ser tão competente no que faz.

— Não preciso de sua gratidão, apenas cooperação.

— Então talvez devesse tê-la requisitado desde o começo. Hannah ergueu a cabeça. Não pediria desculpas.

— Tinha ordens a cumprir, Bennett. Não preciso lhe expli­car o significado da palavra "dever".

— Não, mas também estou familiarizado com a palavra honra. Você jogou comigo.

A ira quebrou o gelo, fazendo-o segurá-la pelos braços.

— Usou meus sentimentos por você.

— Não era esperado que os tivesse — ela disparou.

— Nem sempre se pode escolher o que sentir. Mas existem outras escolhas. Precisava usar meu sentimento, Hannah?

— Tinha uma missão a cumprir. — A voz de Hannah falha­va no momento pelo fato de ela não estar certa de que fizera aquilo por frieza ou por suas próprias necessidades. — Tentei desencorajá-lo.

— Sabia que eu gostava de você, que a desejava.

— Contra minha vontade.

— Continua mentindo.

— Não. — Hannah tentou se desvencilhar, mas ele a man­teve cativa. — Não fiz nada para seduzi-lo. Mas, ao que pare­ce, talvez seja necessário apenas que uma mulher exista para você se sentir atraído. — Percebeu a fúria brilhar nos olhos negros, mas a ignorou. — Talvez pelo fato de ter recusado dormir com você tenha me tomado um desafio. Milhares de mulheres adorariam dormir com alguém da nobreza.

— Acredita de fato que se tudo que desejava era levá-la para a cama você não teria estado lá meia dúzia de vezes?

— Não vou a nenhum lugar que não deseje. — Hannah inclinou a cabeça para trás. A voz dele se mantinha baixa e precisa, mas Hannah não se importava. — O fato de estar aborrecido por eu não ser quem você pensou se deve a seu orgulho ferido.

O restante do que diria e o fôlego lhe foram roubados, quando caiu de costas na cama sob o corpo de Bennett. Antes que pudesse reagir, sentiu os braços presos ao lado do corpo. Fora prevenida sobre a impetuosidade de Bennett.

Havia alusões àquela característica no dossiê do jovem príncipe.

Mas nada do que estava escrito se assemelhava a experimentá-la.

— Orgulho ferido? — rangeu ele entre os dentes, com a face quase colada à dela. — Então para você ainda sou apenas um texto que leu e as informações que lhe deram. — Aquilo o feria, de modo inexorável. Podia sentir o sentimento vibrando dentro dele até que só lhe restasse transformá-lo em raiva. — Pois não vou desapontá-la.

Hannah armou as pernas em tesoura e quase conseguiu golpeá-lo. Porém, o príncipe lutou até subjugar o corpo dela, com uma das mãos colocada perigosamente na garganta de Hannah. Dava-lhe certa satisfação sentir a pulsação acelerada da mulher que mantinha cativa sob seus dedos.

— Isso não provará nada — objetou ela, conseguindo liber­tar um dos braços, mas ele lhe segurou o punho. Lá, a pulsação também estava disparada. — Está apenas humilhando a nós dois.

Aquilo não importava. Bennett esquecera os conceitos de certo ou errado, verdade ou mentira.

— Houve um tempo em que pensei que fosse uma mulher tímida e preciosa. Alguém a quem desejava mostrar apenas ternura. A ela devotava sentimentos doces e pacientes. Mas, para você, podemos dispensar tais predicados, não?

— Bennett, não faça isso — pediu Hannah em tom calmo, sabendo que era tarde demais.

— Por que não? — A impaciência estava de volta, com for­ça total, instigada pela traição. — Esta é uma noite de mentiras e desejo.

Hannah se preparou para reagir, por ela e por Bennett.

— Não permitirei que me force.

— Não farei isso. Mas a terei.

 

Seria uma batalha de sagacidade. Uma contenda por controle. Era mais fácil para Hannah pensar daquela forma quando os lábios de Bennett pressionaram os dela. Ele não queria fa­zer amor, mas puni-la. Até mesmo subjugá-la. Era raiva, não desejo que os levara até aquele ponto. Não poderia se dar ao luxo de pensar de outra forma, nem por um instante sequer. Ainda assim, o beijo era cruel. Quentes e intensos, os lábios de Bennett se moviam sobre os dela, mais escarnecedores do que insistentes. A mão que se encontrava em sua garganta tanto ameaçava quanto controlava. Os dedos calejados pro­vavam a força que possuíam, mesmo quando a tocavam para excitá-la e seduzi-la.

Hannah forçou o corpo a permanecer inerte e sem vida sob o dele, esperando não apenas uma chance de se desvencilhar, mas de lutar e vencer.

Porém, o sangue começava a se agitar em suas veias.

Ele percebia aquilo. Era um homem familiarizado com a paixão, com o desejo e com a vulnerabilidade, bem como com a arte de despertá-los. Usara tais artifícios antes, sempre com bom humor, para dar tanto quanto receber.

Naquele momento, os utilizaria para ferir tão fundo quanto fora machucado.

Mulheres o haviam frustrado, divertido, confundido e fas­cinado. Porém nenhuma o havia ferido, antes de Hannah.

O fato de ela tê-lo feito tão inadvertidamente, não no ímpeto da ira, mas com frieza e sem paixão, tomava o pecado imperdoável. Pela primeira vez na vida, tomava uma mulher em seus braços com a única intenção de feri-la.

Ou assim pensava.

Não havia apenas carne sob o robe. Sabia, antes de fazê-lo escorregar pelos ombros delgados. Havia força ali. Sentira-a vez. Naquele momento, desfrutava também da maciez.

Ambos o incitavam a continuar. Da mesma forma, perce­beu, seu toque a estimulava. Quando Hannah esboçou os pri­meiros sinais de luta, ele se moveu, fazendo com que o robe se abrisse ainda mais.

Hannah não era ingênua a ponto de entrar em pânico, mas o coração e o desejo a traíam. No momento em que Bennett deslizou a palma da mão sobre a pele desnuda, uma chama ardente de prazer abriu as portas ao temor, à excitação e à paixão. A reação de Hannah os fez rolar pela cama, em atitude de combate. A estrutura esguia do príncipe e os movimentos experientes tomaram a força intensa que Hannah descobriu nele surpreendente e excitante ao mesmo tempo. A muscula­tura firme, tensa, sob a camisa, a atraía, à medida que Bennett contrapunha tentativas de luta e a levava aonde queria. Mais uma vez, Hannah descobriu-se cativa sob o corpo dele, com os braços presos pelo robe que escorregara pelas suas costas.

Sem fôlego, ela o fitou nos olhos. Estava subjugada, mas não se rendia. O luar lançava reflexos sobre a face pálida, fazendo a pele parecer cremosa. Os olhos verdes, escuros e brilhantes. O medo neles refletido havia se transformado em condenação. Em uma massa disforme, os cabelos macios e espessos se espalhavam sobre a cama, fazendo-o lembrar de sereias e feiticeiras.

— Eu o desprezarei por isso.

Algo se partiu em silêncio dentro de Bennett. O coração ou talvez a alma. Ele ignorou aquilo e se fixou no desejo de puni-la por fazê-lo se apaixonar por uma ilusão.

Bennett baixou os lábios mais uma vez, porém ela virou o rosto. Uma pequena defesa, mas não inteligente, já que os lábios quentes e tentadores encontraram a curva vulnerável do delicado pescoço. Hannah prendeu a respiração e em seguida a expeliu, com um gemido. O som fez o coração do príncipe disparar, enquanto provava o sabor tão único e perigoso quan­to seus sentimentos por ela.

Desejava amá-la e odiá-la. Confortá-la e puni-la. Ferir e dar prazer. Em meio ao turbilhão que lhe agitava a mente, Bennett se esqueceu de tudo, com exceção daquela mulher.

Ásperas pelo trabalho, gentis por natureza, as mãos dele se moviam pelo corpo de Hannah. Com a ponta da língua, traçou linhas de fogo, tentadoras e torturantes, sobre a pele sedosa. Podia sentir o calor sob o próprio corpo, que aumentava ain­da mais o sabor e a maciez de Hannah. Ela se contorcia para um lado e para o outro, mas os movimentos só aumentavam a excitação deles.

De repente, o corpo dela se tomou inerte, quase como sem respiração. E então o tremor começou.

Hannah nunca se sentira tão consciente da própria femini­lidade e mais distante dos pensamentos racionais. Queria se lembrar do motivo que o levara a estar ali, as razões pelas quais não podiam estar fazendo aquilo, mas tudo que conse­guia era sentir. As razões não mais importavam. As conseqüên­cias foram esquecidas. Ambos desejavam. Certo e errado per­tenciam aos racionais.

Quando o príncipe lhe tomou os lábios mais uma vez, Han­nah o aguardava, ansiosa.

Bennett não encontrou docilidade ou pânico, mas a paixão da qual Hannah abrira mão a maior parte de sua vida. Liber­tava-a para aquele homem, e em um breve momento concluiu que nunca mais a conseguiria disfarçar.

Impaciência. Desespero. Juntos, rolaram na cama mais uma vez, porém, em um tipo diferente de combate. O robe fora ti­rado, deixando os braços de Hannah livres para envolvê-lo. Com um movimento que deveria dizer tudo a Bennett, ela o puxou contra o próprio corpo.

Fique comigo. Ame-me. Compreenda-me.

E, então, até aquilo foi esquecido, em uma torrente de calor que os deixou ofegantes.

Uma vez, percebera um vulcão preso dentro daquela mu­lher. Naquele momento, quando ele entrou em erupção, Ben­nett foi agitado pelo poder e pela violência oculta daquele fe­nômeno. A brisa que agitava as cortinas era fria e moderada, porém, no centro da cama havia uma labareda de fogo que ambos faziam aumentar cada vez mais.

Frenética por desfrutar mais daquele homem, Hannah pu­xou-lhe o tecido da camisa, espalhando os botões pela cama e pelo chão. A risada que ela deixou escapar era baixa e ardente como Bennett ouvira antes, porém, no momento, tinha uma nuança de algo parecido com triunfo. E, então, ela suspirou, ao deslizar as mãos pelo peito musculoso. O beijo era famin­to quando os corpos expostos se encontraram. Como aman­te, Bennett sempre fora hábil, generoso e carinhoso. Nunca encarara o sexo como um jogo. Tampouco uma competição. Era sempre resultado de afeição ou a culminação natural de desejos mútuos.

No entanto, nunca sentira um desejo tão intenso.

A ternura fora totalmente esquecida, bem como a vingança, enquanto enterrava as mãos na massa de cabelos macios e a puxava em sua direção. Os dentes do príncipe se cravaram no lábio inferior de Hannah, emitindo fagulhas inebriantes de prazer pelo corpo dela excitado. E, então, ele começou a mover os lábios, ligeiro, deixando os dela ansiando, enquanto torturava e dominava todos os pontos em que tocava.

O pânico a atingiu mais uma vez, entretanto, tomada de uma excitação arrebatadora, Hannah não o reconheceu. Te­mor. Desejo. Tentou afastá-lo, quando, com uma intensidade que a deixou ofegante, ele a levou às alturas. O corpo dela se contraiu, quase em defesa, para em seguida experimentar uma onda de calor que lhe fez o sangue ferver. A satisfação plena a atingiu em uma torrente, enquanto gritava o nome dele, com a certeza de que ninguém mais seria capaz de levá-la àquele limite, a não ser Bennett.

Sentia-se frágil e trêmula. As mãos que haviam se cravado nos lençóis, relaxaram. Por um instante, pensou flutuar. E, en­tão, Bennett reacendeu a labareda.

Era aquilo que o príncipe desejara, para ela e dela. A pele sedosa estava úmida sob as mãos dele. Os músculos estavam flácidos, quando Hannah começou a se mover outra vez. Ao luar prateado, Bennett observou o rosto pálido, tonto de prazer e corado pelo esforço. Espalmando as mãos em concha so­bre os quadris curvilíneos, Bennett traçou uma linha de beijos quentes e demorados pelo corpo delgado. Podia sentir o mo­mento em que a força voltou a fazê-lo vibrar.

Ainda trêmula e ofegante, ela desceu a calça de Bennett. Tivera uma amostra, porém desejava mais. Queria tudo. En­quanto Hannah o despia, o príncipe deslizou a ponta dos dedos pelo interior das coxas macias, atrasando-lhe o progresso e a excitando ao máximo. Observou os olhos verdes se arregala­rem, abalados pelo iminente clímax, enquanto o corpo dela arqueava de encontro à fonte de prazer. Em seguida, quando os músculos de Hannah relaxaram, os lábios do príncipe toma­ram os dela mais uma vez, guiando-a para a próxima jornada.

Aquele homem era como uma droga viciante. Era como se os braços de Hannah pesassem como chumbo quando tentou erguê-los para envolvê-lo mais uma vez. A cabeça rodopiava pela torrente de sensações. A fragrância característica da pai­xão os envolvia, tomando a pele de ambos pegajosa e quen­te. Hannah podia ouvir a própria respiração entrecortada por suspiros e gemidos enquanto lutava para contemplar a face de Bennett.

Os olhos dele haviam adotado uma tonalidade marrom-amarelada, como um gato antes de saltar. Recordou a imagem de Bennett sobre o cavalo, atrevido e perigoso. Ela estreme­ceu e então se rendeu. De olhos abertos e o coração desejoso, puxou-o para si.

Hannah se abriu. Ele a preencheu.

A cavalgada era rápida e intensa. Colados, ambos dispara­ram. Sem diminuir o passo, escalaram a colina.

O silêncio parecia perdurar para sempre. Ela se aninhou na­quela reação e esperou que Bennett partisse. Embora a mente não estivesse totalmente fria, parte da razão voltara. Abriga­da na escuridão, podia admitir em seu íntimo que nunca mais seria a mesma. Aquele homem conseguira quebrar o verniz polido e conquistado a mulher que pulsava sob a superfície. A mesma que ele odiava. Não podia lhe confessar seu amor. Já lamentava a perda de algo que nunca possuíra e pelo qual passaria o resto da vida ansiando.

Bennett desejava esticar o braço e a puxar para si. Acari­ciar-lhe os cabelos ao luar. Porém, não seria possível tocá-la outra vez. Tomada no momento da ira, algo que um dia ansiara possuir com ternura. O sentimento de culpa estava presente, real e ácido, apesar da sensação de ter sido traído.

A mulher pela qual se apaixonou não existia. Fora uma mentira, mais do que uma ilusão. E, então, acabou por fazer o que, mesmo em seus momentos mais indômitos, evitava: fize­ra amor com uma estranha. E, Deus o ajudasse, apaixonara-se da mesma forma por ela.

Será que a ferira? Queria perguntar, porém deteve-se. Não podia se dar ao luxo de sentir remorso ou acabaria por fazer papel de tolo na frente dessa nova Hannah também. O orgulho seguiu-se da honra.

Desde que sacrificara o primeiro em nome da ira e da dor, se agarraria firmemente ao segundo.

Enquanto se levantava, passou as mãos pelos cabelos. Como podia amá-la, se sequer a conhecia? Como podia amar a mulher que sabia nunca ter existido?

Bennett se vestiu em silêncio, enquanto ela permanecia dei­tada inerte como uma pedra na cama.

— Acho que agora usamos um ao outro — murmurou ele. Hannah descerrou as pálpebras. Não havia lágrimas em seus olhos. Agradecia a Deus por ainda lhe restar forças para não chorar. Ele estava de pé ao lado da cama, nu da cintura para cima, segurando a camisa rasgada em uma das mãos.

— Podemos nos considerar quites.

— Podemos? — As juntas dos dedos de Bennett se tor­naram brancas, enquanto ele apertava a camisa. Ensaiou um passo na direção dela, mas girou nos calcanhares e partiu, dei­xando-a sozinha.

Hannah permaneceu deitada ouvindo o silêncio até o dia amanhecer.

— Você tem perguntas a fazer — começou Armand, enquan­to encarava o filho mais novo. A luz da manhã invadia forte através das janelas abertas e mostrava claramente os sinais da noite insone em ambas as faces. — Prefiro que as guarde para quando eu terminar.

Armand se preparara para a raiva e para os questionamen­tos. As linhas de desgaste e cansaço faziam o pai, de repente, parecer mais velho e vulnerável. Mais uma vez, era o amor, em vez do dever, que o guiava.

— Está bem. — Necessitando de café, Bennett se serviu da bebida pura.

— Quer se sentar?

— Não.

O olhar de Armand se estreitou ante o tom do filho. E, en­tão, ele, também, deixou que o amor falasse mais alto.

— Pois eu sim. — Uma vez acomodado, colocou a xícara de café intocada de lado. — Há dois anos, reuni-me neste es­critório com Reeve e Malori. Você e Alexander também esta­vam presentes. Lembra-se?

Bennett caminhou até a janela e olhou para fora.

— Sim. Conversávamos sobre Deboque e o que podería­mos fazer em relação a ele.

— Então deve se lembrar que Reeve, naquela época, ti­nha um agente em mente para infiltrar na organização de Deboque.

— Sim, lembro-me também que o nome dessa pessoa não seria dito a mim ou a Alex. — A pontada de ressentimento que sentira na época havia se transformado em amargura em apenas uma noite. — E que Malori não se mostrou muito sa­tisfeito com a escolha de Reeve.

— Malori sempre foi um dos mais confiáveis membros da segurança em Cordina. Porém, é antiquado. — Armand não achou necessário acrescentar que ele também tivera suas dúvi­das. — Estava preocupado em designar uma mulher.

Bennett sorveu metade do conteúdo da xícara de café.

— Na ocasião achei, como agora, que eu e Alexander tínha­mos o direito de saber o que estava sendo feito. Mais que isso, todos nós tínhamos o direito de saber que a mulher que estáva­mos acolhendo como amiga era uma agente do SSI.

— Na ocasião da opinião, como agora... — O tom de voz de Armand, embora baixo, soava cheio de autoridade. — ... nenhum de vocês precisava saber. Se eu tivesse adoecido, Alex, claro, seria informado. No entanto...

— Acha que porque não governarei, Cordina é menos im­portante para mim? — disparou Bennett. A fúria estampada no rosto do jovem príncipe era definitiva. — Durante toda a minha vida fui o irmão caçula. Alex nasceu para governar Cordina depois de você. Foi moldado para isso, assim como o filho dele o será. Acha que por isso me importo menos, amo menos ou ofereceria menos?

Armand permaneceu em silêncio por alguns instantes, sa­bendo que teria de escolher as palavras com cuidado, mesmo ditas pelo coração.

— Bennett, eu o vi crescer e se transformar em um homem e sempre esperei por um sinal de que se ressentia de sua posi­ção. Algumas vezes, você se mostrou indômito, outras, negli­gente, e quase sempre indiscreto, mas nunca vi nada além de amor e devoção a seu país e a sua família.

— Então, por que, quando algo ameaça os dois, oculta seus planos de mim?

Armand sentia a cabeça latejar. Fechou os olhos por alguns instantes, mas não ergueu a mão para massageá-la.

— Há dois anos, lady Hannah Rothchild foi escolhida entre 12 dos mais altamente qualificados agentes para se infiltrar e destruir a organização de Deboque. Estávamos cientes, assim como ela, de que isso envolveria riscos, tempo e exigiria perí­cia para obter sucesso.

— Por que ela? — Bennett descobriu que aquela era a res­posta que mais ansiava para que pudesse lidar com as outras.

— Reeve percebeu que o talento de Hannah era perfeito para a operação. Ela está no SSI há dez anos.

— Dez anos? — Bennett caminhou pela sala outra vez, en­quanto tentava absorver a informação. — Como isso é possí­vel? Ela é tão jovem!

— E da segunda geração — explicou Armand em tom gen­til. — O pai a treinou pessoalmente, enquanto ela ainda cursa­va a escola. Lorde Rothchild, embora quase aposentado agora, é um dos mais valiosos agentes do SSL É responsável, em parte, pelo treinamento inicial de Reeve, o que foi mais uma razão para que seu cunhado confiasse a operação a Hannah.

— Dez anos! — repetiu o jovem príncipe. Quantas mulhe­res fora? Quantas mentiras contara?

— Ao que parece, ela tem um dom natural para esse tipo de trabalho. — Armand percebeu a mandíbula do filho se contrair, porém continuou. — Após ler o relatório de Reeve sobre ela, tive de concordar que era a mais bem talhada para o que tínhamos em mente.

— Deboque quase sempre usa mulheres — murmurou Bennett.

— Acha que elas podem ser mais perspicazes e mais cruéis que os homens. — Armand lembrou de Janet Smithers e da bala que tivera de ser retirada do corpo do filho. — Essa pre­ferência se resume a um certo tipo: reservado, educado e de linhagem imaculada.

— Hannah.

— Sim. Foram tais qualidades que pesaram na decisão a favor dela. Com a cooperação do SSI, foi criado um detalhado pano de fundo para ela. As credenciais que lhe foram forneci­das tomaram possível sua entrada na companhia de Deboque. Em dois anos, Hannah passou de mensageira ao topo da or­ganização.

— Ao topo? — O medo o atingiu então, como algo que o sufocava. — O que quer dizer com isso?

— Ela se encontrou com Deboque pessoalmente, conse­guindo desacreditar um de seus mais confiáveis colaborado­res, e no momento o está substituindo. Reeve lhe explicou que até onde Deboque sabe, ela está aqui no palácio como seu instrumento.

A amargura era mais palpável do que o medo e Bennett se concentrou naquele sentimento.

— Ela joga muito bem.

— Uma agente na posição dela tem de fazê-lo ou perde a vida. Sabe melhor que ninguém que Deboque não hesita em matar. O nome dela, bem como toda a operação, foi mantido em estrito sigilo, não para protegê-lo ou à nossa família, mas para salvaguardá-la.

Bennett pousou a xícara e parou de caminhar.

— De que forma?

— Três outros agentes foram mortos tentando fazer o que Hannah quase conseguiu. O último foi cruelmente assassinado. — Armand observou a palidez do caçula. Como pai, gostaria de poupá-lo daquilo. Porém, como príncipe, não po­deria fazê-lo. — Trazendo-a para cá dessa forma, deixando que todos vocês acreditassem no que Deboque quer que acre­ditem, Hannah possuía a única proteção que podíamos ofere­cer. Se for descoberta, nem mesmo o SSI poderá protegê-la. Agora que sabe de toda a história, o risco que ela corre é maior do que nunca.

Em silêncio, Bennett cruzou o escritório e sentou-se à fren­te do pai. Embora um turbilhão de emoções lhe fustigasse o íntimo, a expressão do jovem príncipe era calma.

— Eu a amo.

— Sim. — Armand se recostou no espaldar da cadeira.

— Eu temia isso.

— Não vou cruzar os braços e observar Deboque ferir as pessoas que amo.

— Bennett, há momentos, e muitos, em que os sentimentos pessoais não podem influenciar em nossas ações.

— Para você. — A voz de filho caçula permanecia calma, porém, um pouco mais fria. — Talvez para Alex, mas não para mim. Prefiro matá-lo com minhas próprias mãos.

Armand sentiu uma onda de medo, bem como um lampejo de orgulho, mas controlou ambos.

— Se fizer qualquer coisa para interferir na operação a essa altura, poderá ser responsável pela morte de Hannah, não de Deboque.

Levado ao limite, Bennett se inclinou para a frente.

— Entende que estou apaixonado por Hannah? Se estivesse em meu lugar, conseguiria se omitir?

Armand estudou a expressão do filho e lembrou da única mulher que amou.

— Tudo que posso dizer é que faria o que fosse necessário para garantir a segurança dela. Mesmo que isso significasse me omitir.     O príncipe se ergueu e caminhou até a mesa.

— Leia isto — ordenou, erguendo um pequeno maço de re­latórios com o selo da segurança máxima. — Eles contêm informações anteriores de Hannah, alguns de seus próprios relatórios sobre variadas operações e, mais recentemente, o progresso que fez com Deboque. Deixarei aqui para que possa lê-los. Não devem sair desta sala.

Bennett se ergueu e pegou os relatórios.

— Onde ela está agora?

Armand esperava que o filho não perguntasse.

— Hannah recebeu uma mensagem bem cedo pela manhã. Foi ao encontro de Deboque.

Teria de ser muito cuidadosa desta vez. Hannah sentou-se com as mãos cruzadas sobre o colo no elegante salão da chá­cara alugada por Deboque. Embora daquela vez o encontro ocorresse em terra firme, sabia que se seu disfarce tivesse sido descoberto estava tão sozinha quanto estivera no iate.

Se ele desconfiasse do papel que desempenhara nos even­tos da noite anterior, teria a garganta cortada antes que pu­desse negar. Um risco que todos os agentes secretos corriam, lembrou. Para testar a si mesma, ergueu o bule de porcelana colocado sobre a mesa em frente a ela e se serviu de café. A mão estava firme.

Era imperativo que a mente se mantivesse atenta, concen­trada naquela missão. Todos os outros pensamentos perten­ciam a Bennett.

— Lady Hannah. — Deboque entrou no salão e fechou a porta dupla. — Que prazer revê-la.

Ela adicionou uma colher de creme ao café quente em um gesto calmo.

— A mensagem que recebi esta manhã não me deixava ou­tra opção.

— Ah, fui rude! — Deboque cruzou o aposento, tomou-lhe a mão e roçou os dedos delicados com os lábios. — Peço-lhe desculpas. O evento da noite passada me deixou um pouco confuso.

— A mim também. — Hannah puxou a mão. O instinto lhe dizia que se fingir aborrecida seria a melhor estratégia. — Fi­quei imaginando se você havia feito uma escolha inteligente.

Deboque optou por se sentar ao lado dela. Em seguida, sem pressa, retirou um cigarro de uma cigarreira de cristal. Naque­le dia, usava esmeraldas.

— O que quer dizer com isso?

— Há apenas alguns meses me vi na posição de ter de lim­par o caminho de um de seus empregados. — Ela sorveu um gole do café. Era forte e procedente da Turquia. — Na noite passada, um outro quase arruinou cada passo cuidadosamente estudado que dei em direção aos Bisset.

— Devo lembrá-la, mademoiselle, que foi avisada para fi­car fora do caminho?

— Então terei de lembrá-lo, monsieur, que não alcancei mi­nha posição atual negligenciando meus próprios interesses. Se não tivesse seguido Bennett, nós dois poderíamos estar senta­dos em aposentos bem menos confortáveis.

Deboque soltou uma baforada de cigarro.

— Explique-se.

— Bennett estava se sentindo entediado com a peça e pen­sou em esperar no camarim da atriz norte-americana até o fi­nal do espetáculo. Já que estava ciente de que havia planos para aquela noite, decidi que seria melhor me manter próxima a ele. Quando as luzes se apagaram, tive de decidir entre voltar ou manter o jovem príncipe ao alcance de minhas mãos. Se tivesse decidido pela primeira opção, monsieur, Bennett a esta hora poderia estar morto.

— E por que espera minha gratidão?

— Ele poderia estar morto — repetiu Hannah. — E um membro da sua organização, mantido sob custódia. Quer que lhe sirva café?

— Merci. — Ele esperou pacientemente, enquanto Hannah enchia uma segunda xícara. Ante sua anuência, ela acrescen­tou creme.

Hannah recostou-se no espaldar da cadeira mais uma vez e cruzou as mãos sem anéis.

— MacGee e os seguranças já estavam a caminho. Avistei | seu homem. — Hannah fez uma expressão de desgosto. — Consegui distrair Bennett, bancando a mulher histérica, mas o idiota não aproveitou a oportunidade para escapar. As luzes se acenderam. O jovem príncipe o viu empunhando a arma. De­via se sentir lisonjeado, pois desde sua soltura Bennett carrega uma pequena pistola com ele. Não hesitou em usá-la, e por motivos pessoais sinto-me agradecida que o tenha feito, pois homens mortos não revelam nomes. — Continuando a repre­sentar, Hannah se levantou. — E agora lhe pergunto: aquele homem tinha ordem de matar um dos Bisset? Você confia ou não confia em mim para cumprir nosso acordo? Diga-me!, ordenou em silêncio.

— Diga em voz alta, e de uma voz por todas, para que pos­samos acabar com isso.

Uma espiral de fumaça se ergueu para o teto, quando Debo­que apagou o cigarro no cinzeiro.

— Por favor, minha querida, acalme-se. O homem ao qual se refere pode ter sido orientado a ter iniciativa, mas não rece­beu uma ordem específica. Claro que confio em você.

— Concordamos que eu iria eliminar os Bisset em troca de cinco milhões de dólares.

Deboque sorriu como um tio generoso.

— Concordamos que se isso acontecer haverá uma certa recompensa.

— Estou cansada de jogos. — Como se para provar o que estava dizendo, Hannah pegou a bolsa. — Se não quer con­versar francamente ou honrar nosso acordo, não há razão para continuarmos.

— Sente-se! — A ordem soou áspera e clara, enquanto Hannah se encaminhava para a porta. Ela parou, girou, mas não voltou. — Esqueceu-se: ninguém que trabalha para mim sai até que seja dispensado.

Hannah sabia que haveria homens do lado de fora da porta para detê-la ou eliminá-la a um simples gesto de Deboque. Porém, apostava que aquele tipo de homem admiraria sua audácia.

— Talvez seja melhor eu encontrar outro emprego, en­tão. Não estou acostumada a ter acesso apenas à metade do baralho.

— Lembre-se que só eu tenho acesso completo. Vou lhe pedir mais uma vez: sente-se.

Dessa vez Hannah obedeceu. Deixou que a impaciência aflorasse, apenas para que ele lhe observasse seu autocontrole.

— Muito bem.

156 Nora Roberts

— Diga-me como os Bisset estão lidando com o assunto esta manhã.

— Com dignidade, claro. — Fingiu achar divertido. — Bennett está cheio de si. Armand, preocupado. Eve ficará con­finada ao leito o resto do dia. Gabriella está lhe fazendo com­panhia. MacGee está trancado com Malori... sabe quem é?

— Sim.

— Arriscaria dizer que estão tentando atinar com o pro­pósito da confusão da noite passada. Seu homem fez um ex­celente trabalho na sala de força, embora tenha achado que ele exagerou com a quantidade de explosivo. — Hannah deu de ombros, como se tivesse visto um chapéu ornado com um exagero de penas. — De qualquer forma, ligaram o gerador pelo resto da noite e colocaram uma equipe no Centro de Be­las Artes para reparar os danos. Eles acreditam que a energia elétrica foi interrompida para que o assassino chegasse até o camarim real.

— Uma suposição natural — afirmou Deboque, enquanto voltava a atenção à xícara de café. E exatamente a que espe­rava. — Embora esse tipo de ação seja confusa e démodé. E você, minha querida? Como reagiu depois de presenciar um assassinato?

— Resolvi parecer chocada e fragilizada com os eventos. Porém, corajosa, naturalmente. Nós ingleses o somos.

— Sempre admirei essa qualidade. — Ele lhe deu um sorri­so mais uma vez. — Tenho de congratulá-la por sua habilida­de. Parece que não pregou os olhos a noite toda.

Era um erro recordar, pensar em Bennett sequer por um instante.

— Tomei café suficiente para me manter acordada até de madrugada — mentiu, com facilidade, sentindo um nó no estômago. — No momento, julgam que estou fazendo uma caminhada para clarear a mente. — Para desviar a atenção de Deboque do assunto, acrescentou o que ela e Reeve haviam combinado.

— Tem noção de que a Família Real inteira estará reunida no baile de Natal?

— Assim manda a tradição.

— Com Eve em estado interessante, a princesa Gabriella trouxe toda a família para permanecer no palácio por vários dias durante os preparativos para a festa. Os MacGee dividem uma ala com Alexander e Eve, para que possam estar próxi­mos das crianças.

— Que interessante!

— E cômodo. Precisarei de artefatos para três explosivos plásticos.

Deboque anuiu.

— O jovem príncipe não reside na mesma ala.

— Ele será mortalmente ferido ao tentar salvar os outros membros da família. Deixe isso comigo. Apenas providencie para que os cinco milhões de dólares estejam à minha dispo­sição. — Hannah se ergueu mais uma vez e inclinou a cabeça, esperando permissão para partir.

Deboque se levantou também e, em seguida, surpreendeu-a, tomando-lhe ambas as mãos nas suas.

— Pensei em tirar umas longas férias após os feriados nata­linos. Porém, vou me sentir entediado sem companhia.

Hannah sentiu o estômago revirar. Rezou para que a repul­sa não se refletisse em seu rosto sequer por um instante.

— Sempre fui fã do sol. — Ela não ofereceu resistência quando Deboque se aproximou, porém sorriu. — Tem reputação de se descartar das mulheres com tanta facilidade quanto as atrai.

— Quando elas me entediam. — Ele deslizou uma das mãos pela nuca de Hannah. Os dedos eram leves, macios, mas ainda a faziam lembrar de aranhas. — Tenho um pressenti­mento que com você não será assim. Não me deixo seduzir pela aparência, mas por cérebro e ambição. Juntos, acredito, poderíamos nos dar muito bem.

Se os lábios de Deboque tocassem os dela, seria capaz de vomitar. Pensando isso, Hannah inclinou a cabeça para o lado apenas alguns milímetros.

— Talvez... depois que nosso negócio for concluído.

Os dedos em sua nuca se contraíram e relaxaram. As marcas que deixaram desapareceriam em minutos. — É uma mulher cautelosa, Hannah.

— O suficiente para querer cinco milhões de dólares antes de dormir com você. Agora, se me der licença, tenho de voltar antes de levantar suspeitas.

— Claro.

Ela caminhou até a porta.

— Precisarei dos suprimentos até o final da semana.

— Espere um presente de sua tia de Brighton. Concordando com um gesto de cabeça, Hannah se retirou com graciosidade.

Deboque voltou a se sentar e concluiu que admirava aquela mulher. Era uma pena que ela teria de morrer!

 

No meio da tarde Bennett foi ao encontro dela. Lera cada palavra que constava nos relatórios que o pai lhe entregara. Embora algumas o tivessem fascinado, outras o assustaram e aborreceram. Ainda assim, não estava certo de que conhecia aquela mulher.

Agora, ele também fazia parte daquela farsa, pensou en­quanto subia em direção aos aposentos de Eve. Nada do que lera ou lhe contaram poderia ser confidenciado ao irmão. Não podia confortar a irmã ou Eve quanto ao fato de que cada mo­vimento de Deboque estava sendo monitorado. Não lhe res­tava, assim como a Hannah, outra opção a não ser continuar com aquele jogo. Sendo assim, foi procurá-la, sabendo que a conversa não seria amena.

Encontrou Eve e Gabriella sentadas à mesa com pilhas de listas e um bule de chá.

— Bennett — Gabriella lhe estendeu a mão. — Chegou bem a tempo. Precisamos do ponto de vista de um homem sobre o baile de Natal.

— Certifique-se de que haverá vinho em abundância. — Ele se inclinou e beijou a face da irmã. Embora Gabriella sorrisse, percebeu sinais de tensão, assim como em Eve. — Hannah não está com vocês?

— Não. — Eve soltou o lápis, enquanto erguia a face para receber um beijo do cunhado. — Disse-lhe que ela devia des­cansar o resto do dia. Ontem à noite... — Ela apertou os dedos nos dele. — Deve ter sido aterrorizante para ela. E para você.

Bennett deu de ombros, lembrando claramente o modo como a deixara encolhida e relaxada na cama.

— Pode-se dizer que não foi uma noite entediante.

— Pare de brincar, Ben. Poderia ter sido morto. Tudo em que consigo pensar é que já é a segunda vez no teatro. A se­gunda vez que uma de minhas peças...

Tomando as mãos de Eve nas dele, Bennett se agachou.

— Não fui ferido e não quero que dê asas a sua fértil ima­ginação. Ficaria muito aborrecido se meu sobrinho nascesse com rugas de preocupação. Onde está Marissa?

— Cochilando.

O jovem príncipe roçou o polegar sob os olhos de Eve.

— Deveria fazer o mesmo.

Como Bennett esperava, a tensão deu lugar à irritação.

— Está falando como Alex.

— Deus me livre! E onde está ele, afinal?

— Reuniões — Eve deslizou os dedos nervosamente sobre os papéis. — Quase o dia todo. Tudo foi transferido para o escritório dele aqui no palácio por sugestão da segurança.

— Então, deve relaxar. — Bennett cobriu a mão dela com a dele. — Deveria saber que os Bisset são indestrutíveis. Ao menos, agradecer o fato de ele estar ocupado por um tempo, do contrário, estaria aqui a cercando de cuidados.

Eve conseguiu sorrir.

— De fato, tem razão.

Erguendo-se, Bennett sorriu para Gabriella.

— Acho que podemos confiar em você para mantê-la na linha... embora não esteja com a melhor das aparências tam­bém.

— O cavalheirismo está sempre presente com você por perto.

— Para que servem os irmãos? — Desejava abraçar a am­bas e lhes dizer que nada nem ninguém tomaria a machucá-las. Em vez disso, puxou os cabelos da irmã.

— Agora vou deixá-las voltar ao que, estou certo, represen­ta um trabalho fascinante.

Bennett apenas colocara o pé na escada quando Gabriella o alcançou.

— Ben.

Ele se voltou e a expressão da irmã impediu o sorriso que começava a lhe curvar os lábios.

Gabriella olhou por sobre o ombro para se certificar de que estavam a uma distância segura de Eve e pôs a mão sobre a dele, que estava sobre o corrimão.

— Reeve me revelou pouco sobre certos fatos. — Uma nuança de irritação lhe perpassou o olhar para ser rapidamente apagada. — É algo com que tenho de conviver. Porém, parti­cularmente, desde que perdi tudo em uma ocasião, tenho for­tes pressentimentos quando se trata de minha família.

— Sei que está preocupada — começou o irmão caçula. __Todos estamos.

— É mais que isso, embora tudo se resuma a Deboque e sua obsessão em nos destruir. Ainda tenho sonhos, mesmo depois de todos esses anos. — Podia lembrar da cabana, do escuro e do medo.

— Brie — Bennett pousou as mãos na face alva da irmã. — Nada disso voltará a acontecer.

Gabriella fechou os dedos sobre o punho do príncipe.

— E me recordo de você ferido e sangrando no terraço. Lembro-me de sentar na sala de espera do hospital, enquanto Eve oscilava entre a vida e a morte. Deboque. — A face de Brie exibia uma palidez intensa. — Tudo obra de Deboque. E esse assunto ainda não está encerrado.

— Mas estará. — Algo perigoso surgiu na voz de Bennett e lhe perpassou o olhar. — Eu prometo.

— Quero que tenha muito cuidado. Ele sorriu, afastando o perigo.

— Como não, com uma dúzia de seguranças me cercando?

— Você foi muito cuidadoso — repetiu a irmã. — Não sa­bia que havia levado uma arma para o teatro.

Brie sabia que aquilo fora uma mentira. Bennett não preci­sava ouvi-la verbalizar, bastava observar seus olhos. Ela sabia, mas não compreendia. E por se tratar de Gabriella, sabia que não descansaria até descobrir.

— Esqueça isso por enquanto.

— Reeve me aconselhou a fazer o mesmo — retrucou Brie, com um gesto impaciente. — Trata-se de minha família. Como posso esquecer?

— Tudo que sei é que esse transtorno acabará em breve. Enquanto isso, temos de nos unir. O assunto está sendo estu­dado com atenção, Brie. Confie.

— É o que tenho feito. — Ela sabia que estaria sendo injus­ta em pressioná-lo, portanto, deixou-o seguir em frente.

— Quero que me prometa que não tomará nenhuma atitude tresloucada.

— Que reputação tenho!

— Ben, por favor

— Está bem, eu prometo. — Ele a beijou outra vez. — Eu a adoro, mesmo que tenha sido você a trazer Dorian ao mundo para me atormentar. — E deu uma última palmadinha na mão da irmã, antes de subir a escada. — A bientôt.

Brie o observou afastar-se, mas a preocupação continuava a lhe assombrar o íntimo.

— A bientôt.

Hannah não estava em seus aposentos. Bennett sentiu-se frustrado mais uma vez, quando os encontrou vazios. Teria saí­do outra vez?, imaginou. Estaria ela, naquele exato momento, se colocando em perigo para proteger sua família?

Odiava aquilo. O pensamento de Hannah colocar a vida em risco, proteger seu corpo com o dela, como fizera na noite an­terior, era inconcebível. Quando se tratava da família, amigos e país, Ben era protetor. Como poderia ser diferente com a mulher que amava?

Vagando pelos aposentos de Hannah, dirigiu-se ao armá­rio. Havia uma pequena caixa esmaltada com um pavão na tampa. Bennett deslizou o dedo sobre ela, imaginando como Hannah a adquirira. Um presente? De quem? Comprara em uma pequena loja de Londres? Tinha necessidade de saber até mesmo aqueles inconseqüentes detalhes. Teria Hannah noção de que para ter certeza dos próprios sentimentos ele precisava conhecer a mulher para qual os entregara?

Bennett ergueu o olhar e viu refletida no espelho a cama onde haviam lutado e se amado na noite anterior. Se permane­cesse imóvel, podia quase sentir os ecos da paixão e da desco­berta ainda no ar. Estaria ela o odiando por aquilo? Embora o ato de amor tivesse sido intenso e tão arrebatador para Hannah quanto para ele, conseguiria perdoá-lo por tê-la forçado a der­rubar certas barreiras?

Ele fora rude... Bennett fitou as próprias mãos, girando-as de um lado para o outro e esticando os dedos. E não se impor­tara em sê-lo. Durante toda sua vida, fora cauteloso em nunca ferir uma mulher. E quando encontrou a única que amou, fez exatamente aquilo que sempre evitara.

Caminhando até a janela, Bennett observou a paisagem, tentando ordenar seus sentimentos. Ainda estava ressentido com Hannah. Não obstante o que o cérebro lhe dissesse, o coração ainda estava ferido pela farsa. Mais ainda, não con­seguia se livrar da certeza de que se apaixonara pelas duas mulheres e não conseguia confiar em nenhuma.

E, então, a avistou no jardim embaixo.

Precisava de tempo, disse Hannah a si mesma. Apenas uma hora sozinha para clarear a mente e acalmar os nervos. Sabia que conseguira lidar com Deboque tão tranqüilamente quanto possível naquela manhã. Se nada saísse errado, o apanhariam em uma armadilha dentro de uma semana. E, então, teria obti­do sucesso. Em seu currículo constaria outra menção favorá­vel. Uma missão de dois anos concluída com sucesso poderia significar uma promoção. Sabia que estava a centímetros de distância de um cargo de comando. Então, por que tal perspec­tiva não a excitava como no passado?

Tempo, respondeu Hannah em seu íntimo. Precisava de tempo.

Tiraria as tão desejadas e merecidas férias. Talvez, final­mente, viajasse para a América do Norte — Nova York, São Francisco.

Não seria interessante ficar incógnita nesses lugares por algum tempo?

Ou talvez voltasse para a Inglaterra. Podia passar um tempo em Comwall, caminhando pelos campos ou cavalgando à beira-mar. Na Inglaterra, não poderia se perder, mas talvez pu­desse se encontrar outra vez.

Para onde quer que fosse, deixaria Cordina. E Bennett.

Glicínias cresciam em um arco, projetando sombras em um banco e a convidando à longa contemplação. Hannah se sen­tou e fechou os olhos, tentando acalmar a mente.

Quem era, afinal? Pela primeira vez em anos era forçada a perguntar a si mesma, e não sabia a resposta. Uma parte dela era a mulher reservada que apreciava ler um livro durante lon­gas horas à tarde e de se dedicar à literatura e arte. A outra, era a mulher que mantinha a arma sempre ao alcance e escutava passos fortuitos ameaçadores.

Até então, o fato de conseguir ser as duas sempre fora uma vantagem e não, como no presente, um doloroso quebra-ca­beça. Desejava conversar com o pai, ao menos por uma hora. Ele entendia o que era viver duas vidas e encontrara alegria c desafio nas duas.

Porém, não poderia arriscar fazê-lo. Naquela situação, bem como na missão que a trouxera até ali, estava sozinha.

Ele a detestava. Era Bennett quem desencadeara a dor e as dúvidas que a atormentavam. Quem a forçara a questionar o que sempre acreditou como verdade absoluta. Na noite ante­rior, ele lhe usurpara a mente, o coração e o corpo, apenas para humilhá-la. E conseguira! Nunca ninguém havia lhe mostrado o quanto existia para desfrutar, o quanto ela poderia dar. Tam­pouco a deixado tão vazia e solitária.

Bennett não podia imaginar o quanto a ferira. Não podia saber, pensou Hannah, enquanto as lágrimas que sufocara durante toda a noite começaram a cair. Porque nunca saberia como eram fortes e sem esperança seus sentimentos por ele.

Escolhera seu caminho, relembrou a si mesma, e teria de percorrê-lo. Em questão de dias ele não mais cruzaria o de Bennett.

O príncipe estaria seguro. A Família Real, também. E ela partiria.

Ele a encontrou sentada no banco, com as mãos cruzadas harmoniosamente sobre o colo. Os olhos estavam fechados e úmidos de lágrimas. Uma miríade de sentimentos o assolou, incapacitando-o de separá-los: arrependimento, desorienta­ção, amor e culpa.

Ela queria ficar sozinha. Bennett pensou entender bem o que estaria sentindo. Ainda lhe restava amargura suficiente para querer deixá-la sozinha. Porém, não podia abandoná-la ali, da mesma forma que não deixaria um cachorro ferido na beira da estrada.

Quando ele se aproximou, Hannah se ergueu num impulso. Bennett percebeu a surpresa e a humilhação na face pálida. Por um instante, pensou que ela fosse girar nos calcanhares e correr. Mas Hannah se manteve firme.

— Pensava estar sozinha. — A voz soou fria, enquanto ela lutava contra a ira e a vergonha.

Bennett tirou um lenço do bolso e o ofereceu. No momento, era o único conforto que podia lhe dar, ou Hannah aceitar.

— Desculpe se a incomodei. — O tom do príncipe soava tão tenso quanto o dela. — Acho que precisamos conversar.

— Já não o fizemos? — Hannah secou os olhos e em segui­da dobrou o lenço de linho nas mãos.

— Gostaria de se sentar?

— Não, obrigada.

Bennett enfiou as mãos nos bolsos. Ela não dormira, pen­sou quando viu as sombras sob os olhos azuis.

— Conversei com meu pai esta manhã. Você encontrou com Deboque hoje.

Hannah fez menção de interrompê-lo, mas desistiu. O jar­dim era tão seguro quanto o castelo — por hora.

— Não devo falar sobre isso com você, Alteza.

A irritação o fez estreitar os olhares e cerrar os punhos, mas quando falou a voz soou calma:

— Não, mas tomei conhecimento da situação. Li os rela­tórios.

Hannah sentiu o coração disparar em um acesso de raiva. Nada do que era ou fizera pertencia apenas a ela?

— Muito bem, suas perguntas foram respondidas e a curio­sidade satisfeita. Sabe tudo que há para saber sobre mim. Es­pero que tenha se divertido.

— Não os li para me entreter — rebateu Bennett. — Diabo, Hannah! Tenho direito de saber.

— Não tem direito algum sobre mim. Não sou sua criada nem subordinada.

— É a mulher que levei para a cama ontem à noite.

— Isso está esquecido. Não faça isso! — Todo o corpo de Hannah ficou tenso quando ele deu um passo em sua direção.

— Não me toque nunca mais.

— Muito bem. — O príncipe se contraiu, tal como ela.

— Porém, ambos sabemos que certas coisas não podem ser esquecidas.

— Erros podem — disparou ela. — Estou aqui como agen­te do SSI para protegê-lo e à sua família, impedir os planos de Deboque para destruir Cordina e evitar as repercussões disso na Europa. Farei o que for necessário para conseguir isso, mas não deixarei que me humilhe outra vez. — As lágrimas volta­ram com força total, cegando-a. — Oh, droga! Não pode me deixar sozinha? A noite passada não foi uma desforra suficien­te para você?

Aquilo derrubou o último vestígio de controle de Bennett. Ele a segurou pelo braço, fechando os dedos sobre o músculo firme do braço delgado.

— Foi isso que significou para você? Uma desforra? Pode me fitar e dizer que não sentiu nada, que não sente nada? O quanto pode mentir?

— Não importa o que senti. Você queria me punir, e con­seguiu.

— Queria amá-la, e foi o que fiz.

— Pare! — Aquilo doía, mais do que podia suportar. Han­nah o empurrou, apenas para ser mantida cativa bem próximo a ele. O movimento brusco suscitou uma chuva de flores de glicínia. — Acha que não percebi o quanto me odiava? Fitou-me nos olhos e me fez sentir vil. Durante dez anos orgulhei-me do que fazia e até mesmo isso você conseguiu destruir.

— E quanto a você? — Bennett mantinha o tom de voz baixo, porém irritado. — Tem coragem de me dizer que não sabia que eu estava apaixonado por você? — Hannah fez men­ção de menear a cabeça negando, mas o príncipe aumentou a pressão dos dedos que a seguravam. — Sabia que eu estava apaixonado por uma mulher que sequer existe. Serena, tímida e honesta, para quem eu queria demonstrar ternura e paciên­cia. Pela primeira vez em minha vida encontrei uma mulher a quem poderia entregar meu coração e confiar, mas ela era apenas uma miragem.

— Não acredito em você. — Porém Hannah desejava fazê-lo e não pôde conter o movimento acelerado do coração.

Você é inconstante e entediado. Eu lhe servi como uma diversão.

— Eu a amei. — Bennett ergueu as mãos e tomou-lhe a face, mantendo-a cativa e muito próxima. Ela percebeu os olhos negros como na noite anterior: marrom-amarelados e cheios de paixão. — Terá de viver com isso.

— Bennett...

— E quando fui até seu quarto ontem à noite, encontrei outra mulher, a que mentira e me usara. — O príncipe deslizou a mão para cima, envolvendo-a com os cabelos louro-escuros e fazendo os prendedores afrouxarem. — A que parecia uma feiticeira — murmurou, enquanto a massa de cabelos caía pe­sada sobre as mãos dele. — E a desejei da mesma forma, po­rém sem aqueles temos e doces sentimentos. Deus me ajude, ainda a quero!

Quando Bennett lhe tomou os lábios em um beijo profundo, ela não protestou. Percebera a sinceridade naqueles olhos tam­bém. Ele a amara. Ou à pretensa Hannah. Se desejo era tudo que aquele homem podia lhe oferecer, aceitaria. Sacrificara o amor ao dever, porém, até mesmo por dever não sacrificaria as migalhas que restaram.

Pensando assim, deslizou os braços em tomo do pescoço de Bennett. Talvez, se pudesse corresponder a sua paixão, algum dia ele a perdoasse.

Com que facilidade Bennett podia se perder naquela mu­lher! A paixão era aguda e dolorida, mas parecia não ter im­portância. Os lábios quentes, o corpo esguio e tenso. Se não fosse amor que Hannah sentia por ele, ao menos sentia desejo. Em sua vida pregressa, procurara apenas aquilo.

— Diga que me quer — ele pediu, enquanto movia os lá­bios, sôfrego, por toda a extensão da delicada face.

— Sim, eu o quero. — Hannah não sabia que era possível sentir derrota e triunfo ao mesmo tempo.

— Venha comigo. Agora.

— Bennett, não tenho direito a isso. — Ela esfregou a face no pescoço forte, desejando desfrutar um pouco mais daquele homem. — Estou aqui apenas para...

Com as mãos nos ombros de Hannah, o príncipe a afastou antes que ela pudesse completar a recusa.

— Apenas por hoje, por um dia, coloquemos nossos deveres de lado.

— E amanhã?

— Existirá apenas se quisermos. Dê-me algumas horas, Hannah.

Ela teria lhe dado a vida, e de alguma forma sabia que seria mais fácil do que entregar o que o príncipe lhe pedia naquele momento. Ainda assim, Hannah pôs a mão na dele.

Eles foram montados em lombos de cavalos. Enquanto ca­valgava a meio galope ao lado dele, Hannah percebeu que o príncipe estava bem familiarizado com o caminho que per­corria. Viraram, embrenhando-se na floresta, onde já haviam cavalgado, e Bennett tomou a liderança. Cada vez que as dú­vidas emergiam para assombrá-la, ela as afastava para o fundo da mente. Aproveitaria as poucas horas que lhe estavam sendo oferecidas.

Ouviu o som do riacho, antes de visualizá-lo. Era um som puro e musical, em harmonia com a sombra projetada pelos galhos das árvores altas. Quando Bennett o alcançou, girou o cavalo para o sul. Por um quarto de milha galoparam em silêncio ao longo da margem.

O riacho formava uma curva e seguia uma rota tortuosa para em seguida se alargar, em um ponto onde três salgueiros se curvavam sobre ele. Bennett estacou e apeou.

— Que lindo lugar! — Hannah também parou, porém não teve coragem para desmontar. — Cada vez que penso ter visto o mais belo lugar de Cordina, encontro outro ainda mais boni­to. Você vem sempre aqui?

— Não o suficiente. — Bennett amarrara o cavalo e naque­le momento se encaminhava para ela. Sem nada dizer, esten­deu-lhe a mão.

Aquela era a escolha que ele não lhe dera na noite anterior.

Talvez a estivesse concedendo agora, por saber que a decisão já fora tomada. Hannah entrelaçou os dedos nos dele, esperou um instante e desmontou. O silêncio se prolongou en­quanto ela amarrava o cavalo ao lado do de Bennett.

— Vim para cá quando minha mãe morreu. — Ele não sabia por que parecia importante dizer aquilo. — Não para me lamentar, mas por que ela sempre amou lugares como este. Está vendo as pequenas flores ao longo da margem? — A mão do príncipe segurava a dela outra vez, enquanto se aproxima­vam do riacho. — Minha mãe as chamava de asas de anjo. Elas têm um nome complicado em latim, mas asas de anjo lhes cai bem. — Inclinando-se, Bennett arrancou uma. Não era maior do que seu polegar, com as pétalas formando ura copo em tomo de um diminuto centro azul. — Todo verão, antes de voltar a Oxford, eu vinha até aqui. Por alguma razão, tomava a partida mais suportável. — O príncipe prendeu a flor nos cabelos de Hannah. — Quando era criança, pensava que as fadas viviam aqui. Costumava procurar por elas entre os trevos e sob os fungos.

Ela sorriu e lhe tocou a face.

— E encontrou alguma?

— Não. — Cobrindo o punho de Hannah com a mão, girou a cabeça para lhe depositar um beijo na palma. — Mas acho que ainda estão por aqui. Por isso este lugar é mágico. É por esse motivo que quero fazer amor com você aqui.

Os lábios de ambos ainda estavam a milímetros de distân­cia quando eles se inclinaram em direção à grama. E permane­ceram assim, enquanto se despiam. Ajoelhados com os olhos fixos um no outro, desabotoaram as roupas. A luz do sol refle­tia nas peles à medida que se livravam das roupas. Os lábios se tocaram e em seguida se fundiram.

Bennett não conseguia conter o ímpeto do poder e a tor­rente de desejo. Em segundos, ambos rolavam na grama. Ele a acariciava por inteiro, procurando, encontrando, explorando até que os gemidos de Hannah vibraram contra seus lábios. A ânsia de possuí-la de forma rápida e completamente não conseguia ser contida, especialmente quando os dedos delicados lhe abriram o fecho do jeans.

Esperaram apenas até que todas as barreiras fossem removidas e, então, se juntaram em uma jornada veloz e furiosa que os deixou completamente saciados.

Nua e deitada na grama de costas, Hannah ergueu o olhar para os raios de sol que se infiltravam por entre galhos e folhas acima. Antes fizera o mesmo ao luar, experimentando raiva, vergonha, êxtase e vergonha outra vez. Naquele dia, à luz do sol, não mais se sentia embaraçada.

O que havia entre eles podia, por aquele curto espaço de tempo, ser apenas entre o homem e a mulher. No dia seguinte, seriam o príncipe e a agente outra vez.

— Em que está pensando?

Hannah conseguiu sorrir e virou o rosto na direção dele.

— Que este é um lindo lugar.

Ele quis levá-la ali antes. Imaginou fazê-lo. A forma pa­ciente e lenta com que lhe mostraria os prazeres do amor! Afastando aquele pensamento, puxou-a para si. Aquele era um dia diferente, e ela, uma outra mulher.

— Está aquecida?

— Hmmm. Mas eu... — Hannah se deteve, sabendo que soaria tola.

— Mas?

— Bem, eu nunca... — Como se expressaria? — Nunca deitei nua na grama sob o sol antes.

Bennett riu, sem perceber que o tom e o sentimento por trás daquela afirmação eram da mulher que conhecera a princípio.

— A vida deve sempre incluir experiências novas.

— Estou certa de que já esteve nu nos lugares mais inusi­tados.

O tom seco da voz de Hannah o deleitou. Rolando sobre ela, Bennett lhe depositou um beijo nos lábios e em seguida afastou a cabeça para fitá-la. Os cabelos estavam espalhados pela grama escura. As pequenas flores brancas misturadas a eles como se tivessem crescido ali. As sombras sob os olhos a faziam parecer tanto lasciva quanto delicada, como se fosse uma virgem que passara a noite sendo iniciada nos mistérios do amor.

Aquela fora a forma como a imaginara um dia, como a desejara e amara. —_Você e tão linda!

Ela sorriu, relaxada o suficiente para achar engraçado o comentário.

— Isso, eu nunca fui.

Bennett deslizou a ponta de um dedo pelo contorno da face pálida.

— Quanta autocrítica! Ou como é tola. Fazer-se menos atraente não altera a realidade. Tem uma pele perfeita. — Ro­çou os lábios pela sedosidade como para provar. — Esses os­sos elegantes que fazem um homem imaginar se é feita de carne e osso, ou de vidro. Os olhos calmos e inteligentes, que me deixam louco, fantasiando o quanto escureceriam e se tur­variam se eu descobrisse a maneira certa de tocá-la. E isso... — O príncipe roçou o dedo sobre os lábios quentes. — Tão macios e carnudos! — Bennett baixou a cabeça, porém apenas roçou com a língua o contorno deles. — Lembra-se da primei­ra vez que a beijei?

A respiração de Hannah já estava entrecortada e os olhos azuis, semicerrados.

— Sim, eu me lembro.

— Imaginei como uma mulher tão reservada conseguia fa­zer meus joelhos enfraquecerem apenas por prová-la.

— Beije-me agora — ordenou Hannah, puxando-o em sua direção.

Porém, não foi como esperava. Havia ternura em vez de an­siedade. Calma substituindo a urgência. Ela murmurou contra os lábios que a acariciavam, confusa. Bennett limitou-se a roçar os dedos sobre a face delicada e esperar que ela relaxasse. Mais que isso, aguardou até que Hannah aceitasse aquilo.

Mesmo quando aprofundou o beijo, manteve-o terno. O fogo estava presente, porém mais latente do que abrasador.

Ele estava fazendo amor com a Hannah que passara a entender, concluiu ela, emocionada. Sentia luxúria por uma e afeição pela outra. Como podia lutar contra a outra se ela fazia de sua personalidade?

Com um suspiro trêmulo, esvaziou a mente. Naquele momento, daria a Ben o que ele precisava.

Bennett percebeu a mudança — a lenta e quase fluída entrega. Com um murmúrio de aprovação, pressionou os lábios sobre o pescoço delicado. Desejava mostrar a ela mais do que pressa e ansiedade. Se dispunham apenas de algumas horas, iria utilizá-las para ofertar a Hannah toda a ternura que ela aceitasse.

Com a leveza de uma pluma, acariciou a maciez do corpo esguio. O que exigira dela na noite anterior, agora pedia, persuadia e oferecia.

Sem pressa, esperou até a excitação de Hannah crescer, en­quanto o sol se refletia na face pálida e o riacho ciciava ao lado. Houve promessas, elogios, carinhos. Hannah respondia, de modo tão frágil que as palavras quase se dissolviam no ar.

Nunca fora amada daquela forma antes — como se fosse algo precioso e especial. Mesmo através da mente enevoada podia ouvir o murmúrio das águas contra as rochas. Sentir a fragrância da grama e das doces flores do campo espalhadas sobre ela. Com os olhos semicerrados, os reflexos do sol ti­nham a aparência de ouro e se derramavam em abundância sobre a pele de seu amante. Deslizou a mão sobre ela, descobrindo-a macia, tensa e quente.

Seu amante! Hannah tomou-lhe os lábios, entregando tudo que possuía no coração. Se aquele lugar era mágico, também era o momento que estavam vivendo. Desde que podia se lem­brar, os sonhos nunca fizeram parte de sua vida, mas Hannah abriu-se para recebê-los naquele instante. Encontrava-se en­tregue e maleável! Bennett desejara muito sentir aquele tipo de emoção que ela esboçava. Aquilo ia além do calor e ultra­passava as barreiras do desejo.

Ela o tocava como se tivesse esperado por aquele homem durante toda sua vida. Beijava-o como seu primeiro e único amante.

Quanto mais Hannah se entregava, mais ele descobria ter para corresponder.

As sombras mudavam de lugar e se estendiam sobre eles, enquanto se acariciavam, ofereciam e descobriam.

E quando ele a possuiu, foi de modo lento e temo. O de­sejo crescente ainda controlado por profundos sentimentos. Moveram-se em harmonia, quase dolorosa em sua perfeição, enquanto Hannah lhe segurava a face nas mãos e os lábios do príncipe encontravam os dela. Daquela forma atingiram o ápice e desceram suavemente.

— Desejava me ver, monsieur Deboque?

— Sim, Ricardo. — Deboque ergueu o bule de chá e se serviu. Admirava o hábito britânico do chá da tarde. Parecia-lhe tão civilizado!

— Tenho uma pequena lista de compras para você. — Com uma das mãos, gesticulou em direção à mesa sob a janela. — Gostaria que supervisionasse a aquisição pessoalmente.

— Claro. — Sempre satisfeito por desfrutar da confiança do patrão, Ricardo pegou a lista detalhada em um grosso papel creme. Ergueu a sobrancelha apenas um segundo. — Posso requisitá-las do suprimento interno da companhia?

— Por favor. — Deboque adicionou creme ao chá. — Pre­firo limitar isso à casa, por assim dizer. A entrega deve ser destinada a lady Hannah na... eu diria quinta-feira. Não há ne­cessidade de enviar-lhe a mercadoria antes.

— Ela está correndo um grande risco, contrabandeando um pacote tão volátil para dentro do palácio.

— Tenho uma confiança implícita em sua amiga inglesa, Ricardo. — Deboque recordou o modo como ela se sentara à frente naquela manhã. Composta, impecável e culta. Dava um toque agradável a seus planos, o fato de serem executados por tão delicadas mãos. — Aquela mulher tem certo estilo, não acha?

— Classe, mesmo quando tão discretamente disfarçada, é sempre classe, monsieur.

— Exatamente! — Deboque sorriu e sorveu um gole do chá. — Não tenho dúvida de que ela atingirá seu objetivo classe. — Tomou outro gole da bebida quente e suspirou. — De fato, admiro os britânicos, Ricardo. Tão tradicionais e flexíveis! Não tão vivazes quanto os franceses, mas tão mara­vilhosamente pragmáticos. Em todo caso, certifique-se de que a mercadoria seja despachada para o endereço que consta na lista. Não quero que chegue através de minhas mãos.

— Claro.

— Estou preparando um itinerário. Estarei velejando no próximo final de semana. Verei lady Hannah uma vez mais Pode se ocupar dos detalhes?

— Como quiser.

— Obrigado, Ricardo. Oh, por falar nisso, providenciou para que aquela coroa de flores fosse enviada ao funeral de Bouffe?

— De rosas como pediu, monsieur.

— Excelente. — Deboque escolheu um dos pequenos bis­coitos doces do prato Wedgwood. — Você é muito eficiente.

— Tento ser, monsieur

— Tenha uma boa tarde, então, Ricardo. Avise-me se obti­ver mais alguma informação sobre o problema no teatro. Es­tou muito incomodado com as notícias atuais.

— Assim o farei. Boa tarde, monsieur Deboque recostou-se no espaldar da cadeira, mordiscando o biscoito. Ricardo o agradava muito. Um homem inteligen­te com tendências sofisticadas fora uma excelente aquisição para sua equipe. Estava certo de que Ricardo ficaria muito agradecido com a missão de se encarregar de Hannah depois que ela completasse o trabalho. Era tentador, porém Deboque descartou tal possibilidade. Lidaria com aquela mulher pes­soalmente. Afinal, o mínimo que poderia fazer depois que ela tomasse real seu maior desejo era lhe proporcionar uma morte o menos dolorosa possível.

 

Hannah aparentava calma, enquanto bebia chá na biblioteca. Ouvia Reeve, enquanto ele atualizava Malori com as últimas novidades, intercedendo quando requisitada e voltando a fi­car em silêncio.

Bennett começara a lhe mostrar a biblioteca uma vez. E, então, retomaram à sala de musica e ele a beijara. Fora na­quele instante que sua vida de fato começara?, imaginou. Fora naquela ocasião ou naquele dia na praia, quando o príncipe lhe entregara uma concha? Talvez fosse aquela primeira noite no jardim.

— Concorda, Hannah?

Ela volveu o olhar rapidamente a Reeve, amaldiçoando-se por deixar a mente vagar em uma hora crucial. Tinham apenas trinta minutos para reportarem, dos quais já se passara me­tade. Mesmo dentro das paredes do palácio era perigoso se reunirem.

— Desculpe-me. Poderia repetir?

Armand a estivera observando, imaginando se os ombros daquela jovem eram fortes o suficiente para carregar tamanha responsabilidade e risco.

— Os últimos dias foram tensos. — Não havia tom de crí­tica na voz de Armand e sim preocupação. Hannah teria pre­ferido a primeira.

— Os últimos dois anos foram tensos, Alteza. — E então ergueu os ombros em um gesto mais de aceitação do que contrariedade.

— Se estiver começando a se sentir desgastada — come­çou Malori em seu tom conciso e sensato. — É melhor que saibamos agora.

— Não estou desgastada. — Os olhos de Hannah encon­traram os dele sem hesitação. — Acredito que minha atuação demonstra isso.

Antes que Malori pudesse responder, Reeve o cortou. Sabia que ela estava esgotada, mas tinha de apostar que Hannah agüentaria por mais alguns dias.

— Como se pudéssemos voltar atrás. Podemos presumir que Deboque encomendou o material que pediu. Alguma idéia de onde ele os procurou?

— Atenas — retrucou Hannah de imediato. — Tenho quase certeza de que ele os retirou da própria organização. Podemos dizer que ele se sente totalmente seguro, invulnerável. Não ar­riscaria requisitá-las de fontes externas. De acordo com meus outros relatórios, sabemos que Deboque mantém um depósito em Atenas. Possui outros, claro, mas acho que o escolheria por sua proximidade de Cordina.

— Verificaremos com nosso contato de lá e veremos se há notícias de algum explosivo sendo retirado. — Malori fez a anotação no papel. — Se tivermos sorte, fecharemos um de seus braços em Atenas quando o prendermos aqui.

— O SSI não agirá em Atenas, Paris, Londres ou Bonn até termos uma acusação incontestável contra Deboque aqui. — Hannah pousou a xícara de chá. — Esse é um botão que acionarei, monsieur.

— Bien. — Malori, obviamente, não estava satisfeito com aquilo, porém anuiu.

— A acusação será bastante forte quando Hannah receber o material? — indagou Armand, alternando o olhar entre ela e Reeve. — Hannah pegou o contrato, requisitou o material. Quando ele for entregue, não podemos dar por finalizado o caso?

Hannah fez menção de falar, porém desistiu. Deixaria que Reeve explicasse. Ele era da família.

— Teríamos subsídios suficientes para uma prisão, possi­velmente para uma acusação. Mesmo com o material sendo enviado de Atenas ou de outras firmas de Deboque, não seria suficiente para condená-lo por conspiração. Ele é cuidadoso o suficiente para se manter à margem desses tipos de acordos comerciais.

Acordos comerciais, pensou Armand, enquanto batucava com os dedos no braço da cadeira.

E quanto ao pedido que fez a Hannah para exterminar minha família?

— A hipótese teórica que Deboque fez caso isso aconte­cesse — corrigiu Reeve. — Alteza, estou ciente, e muito, de como é frustrante não sermos capazes de fechar o caso com as evidências que possuímos no momento. Tivemos Deboque preso por mais de uma década e mesmo isso não o impediu de continuar Se quisermos nocauteá-lo de uma vez por todas, desatar todos esses nós e destruir o controle dele na Europa, temos de estar de posse de evidências consistentes e indiscutí­veis de assassinato e conspiração. Hannah nos proporcionará isso em questão de dias.

Armand pegou um cigarro do bolso e volveu o olhar à agente.

— Como?

— O suborno. — Ela se sentia em terreno sólido outra vez. Ajudou-a o fato de Malori estar ali, com seu olhar aguçado e um tanto descontente. — Quando Deboque estiver convenci­do de que finalizei o trabalho, fará o pagamento. Tão logo o dinheiro mude de mãos, nós o teremos.

— Ele não é tolo, concorda?

— Não, Alteza, Deboque não é tolo.

— Mas você o convencerá de que matou minha família.

— Sim. Poderia analisar este diagrama, senhor? — Han­nah se ergueu e esperou que ele a acompanhasse até a mesa. Com a ajuda de Reeve, ela desenrolou um longo rolo de papel.

— O projeto que contrabandeei para Deboque mostra esta ala ocupada pelo príncipe Alexander e pela família. Informei-o de que a princesa Gabriella e sua família também estariam aqui durante os dias que antecederem o baile de Natal.

— Entendo. Na verdade, a ala que a família do meu fi­lho ocupa é esta. — Armand apontou com o dedo para o lado oposto no desenho.

— Na noite anterior ao baile, colocarei algumas cargas aqui e outras aqui. — Hannah apontava para as áreas mencionadas.

— Serão bem inferiores às que Deboque supõe, porém, com os efeitos especiais que Reeve adicionou, será quase um espe­táculo. Envolverá algum perigo, senhor, mas aparentará bem mais do que a realidade, particularmente pelo lado de fora. Terá de fazer alguns reparos e pintura.

Armand ergueu o sobrolho, porém Hannah não sabia preci­sar se por divertimento.

— Há algumas áreas no palácio que necessitam ser redecoradas.

— Será imperativo, sem dúvida, desocupar esta ala de ma­neira discreta.

— Claro.

— Dez minutos após a explosão partirei para me encontrar com Deboque ou seu agente. O pagamento será feito após ele constatar que cumpri minha parte no acordo.

— Considerou a possibilidade de ele querer se certificar das mortes antes de lhe pagar pelo serviço?

— Sim — Hannah se empertigou e se afastou do diagrama. — Em parte, utilizaremos a imprensa. Além disso, estou dei­xando claro que o pagamento deve ser feito na mesma noite, bem como as providências para minha saída do país. Deboque me convidou para velejar com ele. Devo aceitar — Ela pres­sionou os lábios ante o resmungo de Malori. — O dinheiro passará para minhas mãos porque ele acredita que serei o alvo mais acessível se algo der errado.

— E você será?

— Estarei com ele.

— O SSI cobrirá a chácara de Deboque e seu iate — inter­veio Reeve. — No momento que recebermos o sinal de Han­nah, entraremos em ação.

— Não há outra forma?

Mais uma vez Armand demonstrava preocupação. Dessa vez, Hannah instintivamente pôs a mão no braço do príncipe. No braço do pai de Bennett!

— Poderíamos talvez ligá-lo a outros crimes. Com as in­formações que colhi nos últimos dois anos, teríamos algum subsídio, mas talvez levasse meses e até anos, e não teríamos nenhuma garantia. Esse é o único caminho, Alteza, para liqui­dá-lo de uma vez por todas.

Armand anuiu com um gesto de cabeça e volveu o olhar a Reeve.

— Concorda com isso?

— Sim.

— Malori?

— É um método mais dramático e certamente mais arris­cado do que desejaríamos, mas, sim, Alteza.

— Então devo presumir que ambos supervisionarão todos os detalhes dessa operação. Quero relatórios da situação a cada quatro horas.

Reconhecendo a dispensa, Malori se curvou em uma reve­rência. Até mesmo Reeve enrolou o diagrama e Hannah pre­parou uma cortesia.

— Hannah, por favor, gostaria que ficasse mais um pouco.

— Sim, Alteza. — Ela esperou ao lado da mesa, empertiga­da e tensa, enquanto os dois homens se retiravam. O príncipe devia estar sabendo de seus sentimentos por Bennett, pensou. Mesmo durante o breve tempo em que estivera em Cordina, percebeu que Armand era astuto e observador O tipo de nobre que não governa do trono, porém atrás de uma mesa e em reu­niões. Se aquele país estava em paz e próspero, se devia em grande parte ao fato de ele saber comandá-lo, fazer escolhas e manter a objetividade.

Sim, ele sabia, pensou Hannah outra vez. E por certo não aprovava. Era européia e aristocrata, mas uma espiã por esco­lha e profissão.

— Está pouco à vontade — começou ele. — Por favor, sen­te-se.

Em silêncio, Hannah se acomodou na cadeira e esperou.

Parecia uma pomba, pensou o príncipe. Uma pequena pom­ba cinza que esperava e aceitava o fato de que estaria prestes a ser abatida por uma raposa. Estudando-a, o príncipe achava difícil acreditar que seria ela a dar um fim ao turbilhão de ter­ror que atormentava sua família por mais de uma década.

— Reeve confia em você.

— Posso garantir-lhe que não está iludido, Alteza. — Ela quase relaxou. Não se tratava de Bennett.

— Por que concordou em aceitar esta missão?

 

As sobrancelhas de Hannah se ergueram, pois lhe parecia uma resposta simples que requeria uma resposta igualmente simples.

— Fui escalada.

— E quanto ao direito de recusar?

— Sim, senhor. Nesse tipo de trabalho o agente sempre tem escolha.

Um príncipe, não. Armand compreendia a diferença e, ain­da assim, não conseguia invejá-la.

— Aceitou a missão por que seus superiores a requisitaram?

— Sim, e porque o que Deboque fez aqui afetou e poderia continuar afetando meu país, assim como o restante da Euro­pa. Um terrorista, não obstante o ramo que escolha, continua sendo um terrorista. A Inglaterra quer as mãos de Deboque amarradas, e bem apertado.

— Sua primeira consideração é o país.

— Sempre foi.

Ele meneou a cabeça, sabendo que aquilo podia trazer tanta alegria quanto sofrimento.

— Escolheu sua profissão porque gosta de aventura? Hannah relaxou completamente e sorriu. Quando o fez, Ar­mand compreendeu o que cativara o filho.

— Desculpe-me, senhor, mas compreendo que a palavra "espiã" conjura toda a sorte de imagens glamourosas: docas nebulosas, vielas parisienses, pistolas revestidas de níquel e carros velozes. Na verdade, é bastante entediante. Nos últimos dois anos, trabalhei mais ao telefone e nos computadores do que a mais simples das secretárias.

— Não quer negar o perigo que envolve.

— Não — Hannah deixou escapar um breve suspiro. — Mas, para cada hora de perigo, corresponde um ano de traba­lho de coleta de dados e preparação. Com relação a Deboque, Reeve, Malori e o SSI conceberam esse plano passo a passo.

— Ainda assim, no final, estará sozinha.

— E o meu trabalho. Sou boa nisso.

— Quanto a isso não tenho dúvidas. Em circunstâncias nor­mais, eu me preocuparia menos.

— Alteza, garanto que tomamos todas as providências ca­bíveis.

Armand tinha certeza da veracidade daquela informação. Por hora, se encontrava de mãos atadas.

— Se algo der errado, como confortarei meu filho?

Hannah entrelaçou os dedos.

— Eu sei, prometo-lhe que, independentemente do desfe­cho, Deboque será punido. Se o senhor...

— Não estou me referindo a Deboque no momento, mas a você e a Bennett. — O príncipe ergueu a mão antes que ela ti­vesse tempo de responder — É rara a oportunidade que tenho para falar apenas como pai. Peço-lhe para que me conceda o direito de me dar a esse luxo agora, aqui neste escritório.

Hannah deixou escapar um suspiro e tentou soar clara.

— Compreendo que Bennett esteja zangado e aborrecido porque não foi informado dos motivos de minha estada aqui. Acho que, de certa forma, sente-se responsável por mim, pelo fato de eu estar aqui para proteger a família dele.

— Ele a ama.

— Não. — O pânico a surpreendeu outra vez, assim como a vergonha e o desejo desesperado de que aquilo fosse verdade. — O fato é que ele pensava assim antes, quando acreditava que eu era...

Em determinado momento, Bennett desenvolveu uma afei­ção, mas quando soube quem... o que eu era, tudo mudou.

Armand pousou as mãos nos braços da cadeira. O anel de sua função, brilhando à luz da lâmpada.

— Minha querida, pode ser mais clara em seus sentimentos por ele?

Hannah o fitou. Os olhos negros que a observavam estavam mais temos. Olhos austeros. Aquele homem podia ser severo quando necessário, mas, naquele momento, podia ver porque a família e o país o amavam e depositavam toda sua confiança nele.

— Posso confiar no senhor?

— Sabe que sim.

— Eu o amo mais do que jamais amei nada ou ninguém. Se pudesse mudar os fatos, voltar e ser o que ele pensou que eu fosse, apenas isso, juro-lhe que o faria. — Não havia lágri­mas. Derramara-as um dia e prometera a si mesma não voltar a fazê-lo. Em vez disso, fitou as próprias mãos. — Mas é claro que não posso.

— Não. Não podemos mudar o que somos. Quando ama­mos profundamente, suportamos muita coisa. O coração de Bennett é muito generoso.

— Eu sei. Prometo-lhe que não voltarei a feri-lo.

Os lábios de Armand se curvaram. Ela era tão jovem e tão corajosa!

— Não temo que o faça. Quando tudo isso acabar, peço-lhe que permaneça em Cordina por mais alguns dias.

— Alteza, acho que seria melhor se retomasse à Inglaterra imediatamente.

— Queremos que fique — repetiu o príncipe, e o tom não era mais paterno. — Acho que deve querer descansar antes de jantar.

Sem outra opção, Hannah se ergueu e se curvou em uma reverência.

— Obrigada, Alteza.

O jantar foi longo e formal. Hannah foi apresentada ao mi­nistro de Estado e sua esposa, bem como a um empresário ale­mão do ramo da navegação e uma francesa idosa que possuía uma vaga ligação com os Bisset e estava em visita a Cordina nos feriados. Ela falava em um tom rouco e baixo que fazia Hannah esforçar-se para escutá-la e lhe dar respostas polidas. O alemão deixava escapar palavras grosseiras em voz alta e parecia deleitado por ter sido convidado a jantar no palácio. Hannah agradecia o fato de o homem estar sentado do outro lado da mesa, de modo que podia evitar um diálogo direto com ele.

Bennett não estava presente. Uma reunião de diretoria no museu foi seguida de um jantar da Sociedade Eqüestre. Han­nah lembrou a si mesma que Claude e mais dois seguranças deixariam o jovem príncipe aborrecido, porém protegido durante toda a noite.

Enquanto a francesa idosa lhe chiava ao ouvido outra vez, tudo em que podia pensar era que Bennett tivera sorte em não estar ali.

Do outro lado da mesa, Eve sorvia goles de água gasosa e ou­via, com aparente fascinação, o alemão que a regalava com his­tórias de seus negócios. Quando se voltou para pegar a colher de sobremesa, os olhos da princesa encontraram os de Hannah por tempo suficiente para transmitir o que na verdade estava sentindo. Respondendo a uma pergunta em tom baixo e polido, Eve revirou os olhos, rapidamente em um gesto que dispensava palavras. E, então, estava sorrindo para o alemão outra vez e o fazendo se sentir fascinado. Hannah teve de erguer a taça para disfarçar o sorriso. Os nobres eram humanos, afinal. A criança que a cunhada de Bennett gerava em seu ventre, um dia gover­naria, mas também sorriria, choraria, sentiria e sonharia.

Ela mesma amava um príncipe. Hannah pegou a própria colher e começou a remexer a elegante mistura de chocolate e creme à sua frente. Entregara o coração a um homem que era o segundo na linha de sucessão a um dos poucos tronos da Euro­pa. Dentro de alguns dias, poderia estar dando a vida por ele.

Por que aquela era a pura verdade, pensou, enquanto a mu­lher chiava a seu lado. Podia ter começado como dever a seu país e à organização em que escolhera trabalhar, mas, quando terminasse, o que fizera seria por Bennett.

Nunca seria possível lhe dizer aquilo, assim como não re­velara tudo ao pai dele aquela tarde. Se admitisse seus senti­mentos a um superior, mesmo com todo o planejamento e o tempo perdido, seria imediatamente afastada do caso.

Portanto, nada diria, porém sentiria. E, mesmo com seus sentimentos, veria a derrocada de Deboque, se sobrevivesse... e, então, admitiu Hannah, teria de escolher entre a promoção e a aposentadoria. O trabalho de campo estaria fora de ques­tão. Não acreditava que pudesse manter a pose da reservada e despretensiosa lady Hannah outra vez. Não depois de ter sido amada por um príncipe!

Era quase meia-noite quando conseguiu se retirar de forma polida.

Hannah escolhia entre uma ducha quente ou o rápido es­quecimento do sono, quando chegou a seus aposentos. Eve insistira em retomar no dia seguinte às suas atividades no Cen­tro de Belas Artes, portanto não teria escolha a não ser acom­panhá-la. Chegaria a mensagem no dia seguinte ou Deboque a deixaria na expectativa até o último instante?

Encontrava-se no meio do quarto quando os sinais come­çaram a incomodá-la na base do pescoço. Não havia ninguém ali. Uma rápida investigação revelou que nada estava fora do lugar.

Mas...

Hannah deu alguns passos cautelosos para trás e abriu a gaveta do criado-mudo. Retirou de lá a arma. A luz era fraca às suas costas, enquanto se movia em direção à sala contígua. A porta estava entreaberta, mas aquilo poderia ser obra de uma das criadas. Os pés de Hannah pisavam silenciosos o carpete, enquanto o cruzava. Com uma das mãos, pressionou a madei­ra de modo que a porta se abrisse sem emitir som.

Nada havia à frente... a não ser a impecavelmente arrumada sala de estar envolta na fragrância das gardênias que enfeita­vam, úmidas e graciosas, um vaso.

Devia ter sido uma criada, pensou Hannah, voltando a rela­xar gradualmente. Uma delas colocara flores na sala de estar e... Foi então que escutou o som, metálico, e a tensão voltou a atingi-la. Empunhando a arma com firmeza, deslizou ao longo da parede e entrou no aposento.

O pequeno sofá estava distante da porta, portanto não foi capaz de avistá-lo até que entrasse totalmente na sala de estar. Bennett se encontrava esparramado sobre ele. A gravata afrou­xada e pendendo do pescoço, os sapatos deixados ao lado dos pés e o rosto enterrado em uma almofada azul.

Hannah deixou escapar um xingamento, mas com delicade­za abaixou a arma. O jovem príncipe parecia exausto e muito à vontade, pensou enquanto erguia uma das sobrancelhas. A pri­meira reação era cobri-lo com uma manta, mas ainda lhe res­tava muito da reservada lady Hannah para saber que não seria adequado para Bennett de Cordina ser encontrado cochilando na sala de estar dos aposentos de uma hóspede. Começou a se inclinar na direção dele e, então, se lembrou do revólver que empunhava.

Quase curiosa, girou-o nas mãos. Parecia um brinquedo, porém já provara ser letal. Parte de seu trabalho, pensou. E da vida que escolhera! Mas sabia que seria uma parte pouco agradável para Bennett. Voltando ao quarto, guardou a arma. Tinha de acordá-lo e mandá-lo para o próprio quarto, mas não era necessário manter a prova física das diferenças entre eles em mãos.

Voltou à sala de estar e ajoelhou-se ao lado do sofá, colo­cando uma das mãos no ombro do príncipe.

— Bennett! — Sacudiu-o com delicadeza e recebeu um gemido em resposta. Os lábios de Hannah se curvaram em um sorriso. Durante o sono, a energia, a alegria e a têmpera sempre eram postas de lado. Parecia perfeitamente satisfeito em permanecer ali, meio para fora, meio para dentro do pe­queno sofá, por dias. Hannah inclinou-se sobre ele e erguendo o tom de voz deu-lhe uma rápida e brusca sacudida. — Ben­nett, acorde.

O jovem príncipe entreabriu os olhos, porém Hannah per­cebeu que ele a viu. Esticando uma das mãos, Bennett apertou o lóbulo da orelha ela.

— Não tem respeito por um homem morto?

— Oh! — Ela segurou o punho dele em um gesto defensivo, mas já se encontrava vários centímetros mais próxima. — Se é respeito que deseja, chamarei alguns criados e mandarei que eles o carreguem com a devida consideração. Enquanto isso, solte-me, ou terei de lhe mostrar como é fácil fazer alguém perder os sentidos apenas pressionando algumas terminações nervosas.

— Hannah, tem de aprender a não ser tão briguenta.

— Está no sangue. — Hannah sentou-se sobre os calca­nhares para massagear a orelha. — Por que está dormindo em meu sofá em vez de em sua cama?

— Não sei quem desenhou esta coisa. Mais meio metro e um homem poderia se acomodar facilmente nele. — Bennett se moveu de forma que a perna descansasse sobre o braço do sofá. — Queria conversar com você. — Esfregou ambas as mãos sobre a face. — Quando entrei, percebi que ainda tínha­mos convidados. Optei pela covardia e subi pela escada dos fundos.

— Entendo. E madame Beaulieu lhe fez tantos elogios.

— Madame Beaulieu não fala, penas chia.

— Eu sei. Sentei-me ao lado dela no jantar.

— Antes você do que eu.

— Que gentil!

— Quer gentileza? — Com um giro, ele a ergueu do chão e a deitou sobre o próprio corpo. Em seguida, deslizou uma das mãos pela nuca delicada, pressionando-a, enquanto os lábios tomavam os dela.

— O que isso tem a ver com gentileza? — ela conseguiu dizer após alguns instantes.

O príncipe sorriu e deslizou a ponta de um dedo pelo nariz de Hannah.

— Todas as mulheres que conheci ficaram impressionadas com ela.

Hannah afastou a cabeça um centímetro para trás. Sorrindo, deslizou a ponta de um dedo pelo pescoço forte, imitando-lhe o gesto.

— Voltando às terminações nervosas às quais me referi. Ele lhe segurou um dos pulsos, depois o outro.

— Está bem, amanhã procurarei uma poça d'água para co­bri-la com uma capa para você passar.

— Uma promessa segura, já que não chove há dias. — Han­nah fez menção de se mover, apenas para ser puxada contra o corpo dele.

— Fique. Não a vi durante todo o dia. — Os lábios eram insinuantes sobre a face pálida. — Sabe, Hannah, um homem tem de tê-la nos braços, roçar os lábios sobre essa pele macia antes de capturar sua essência. Faz isso de propósito?

Hannah não estava usando perfume. Fazia parte da necessi­dade de não deixar rastros.

— Disse que... — começou ela, enquanto Bennett movia os lábios pela orelha delicada — que queria conversar comigo.

— Menti... — Os dentes se fecharam suaves sobre o ló­bulo. — Queria fazer amor com você. Na verdade, tive uma noite infernal, tentando varrer esse pensamento da minha mente durante uma reunião frustrante e um jantar barulhento.

— Bennett abaixou o zíper na parte de trás do vestido. — Tive de fazer um discurso. — Encontrou a sedosidade frágil e fina sob o linho. — Foi difícil não gaguejar, quando me imaginava aqui com você.

— Não quero interferir em seus deveres oficiais. — Com os olhos fechados, Hannah pressionou os lábios no pescoço dele e se permitiu usufruir das suaves carícias que executavam as mãos do príncipe.

— Já está interferindo, ma mie. Permaneci lá, ouvindo a conversa monótona de dez homens mais interessados em pin­turas do que em gente, e a imaginei sentada lá com as mãos harmoniosamente cruzadas e os olhos solenes. Você estava com os seus cabelos soltos.

Hannah retirara a gravata de Ben, mas estacou antes de abrir o terceiro botão da camisa.

— Na reunião de diretoria?

Algum dia, deixaria de se sentir fascinado por aquele tom sério e seco e aqueles olhos verdes?

— Pode ver por que tive problemas para me concentrar.

— Bennett não lhe disse que tivera de lidar com inesperadas pontadas de medo ao imaginá-la com Deboque, à mercê da­quele homem, desamparada e só. Aquela era uma imagem que não conseguira tirar da mente, mesmo após incontáveis xíca­ras de café ou taças de vinho. — Sendo assim, resolvi vir até aqui e esperá-la.

— E caiu no sono!

— Esperava que percebesse a ironia e revertesse o conto de fadas. Acordasse o príncipe adormecido com um beijo. Em vez disso, recebi um safanão.

Com ambas as mãos lhe emoldurando a face, Hannah pu­xou-o em sua direção.

— Deixe-me compensá-lo por isso, então.

Roçou os lábios nos dele, provocante, e os retraiu para voltar a tocá-los outra vez. Sentiu os dedos de Bennett pressionando sua nuca, enquanto brincava com a boca quente e macia.

A língua deslizava, os dentes mordiscavam, enquanto o calor se elevava. Hannah não ofereceu resistência quando ele apertou seu corpo contra o dela, quando a boca que até então provocava, se moveu, faminta, sobre seus lábios. Se Bennett ansiara por aquilo o dia inteiro, o desejo do príncipe não era mais intenso que o dela. Iriam desfrutar de algumas horas juntos.

Hannah havia lhe desabotoado e aberto a camisa. O vestido que trajava fora abaixado, revelando o brilho cor de mel da roupa íntima. Bennett deixou que as pontas dos dedos brincas­sem sobre o tecido, enquanto absorvia o contraste e a delícia que compunham sua Hannah. Retirou-lhe os prendedores dos cabelos. A fragrância deles era tão suave e envolvente quan­to a da pele macia. Qualquer que fosse o encanto que aquela mulher possuía, era parte inata dela e não oriundo de potes e frascos.

Fresco, real e dele. Delirante, Bennett deslizou o vestido pelo resto do corpo e o deixou cair no tapete.

Os dedos calejados deslizaram desde o sapato de salto fino de tiras até as coxas firmes.

Hannah se contraiu, lembrando da arma, no mesmo instan­te em que ele a encontrou. O calor que dele emanava esfriou tão rapidamente que a fez estremecer Quando ela se afastou, Bennett não a impediu.

— Desculpe-me — disse ela, esquecendo-se que ali não cabia escusas ou arrependimento. Os olhos negros a fitavam, impassíveis e vazios, enquanto o príncipe se sentava. Por não lhe restar nada a dizer ou alguma forma de remover aquela barreira, Hannah se manteve em silêncio.

Os cabelos eram uma massa confusa de ondas que lhe caíam sobre os ombros, cobrindo a pele sedosa que combinava com a cor dos fios brilhantes. Os olhos, profundamente verdes, esta­vam solenes, enquanto esperavam que ele se pronunciasse. Ou partisse.

Lutando contra a onda inicial de raiva, ele deixou o olhar deslizar sobre Hannah. A pele alva como leite, as curvas su­aves do corpo, a delicadeza da seda. Aquela mulher era o que se convencera não ser — linda, estonteante e desejável.

Em uma das coxas delgadas, presa por finas fitas de couro, havia uma faca, o que o fazia lembrar becos escuros e bares enfumaçados.

Sem nada dizer, Bennett esticou a mão para o objeto. Em um gesto automático, ela lhe segurou o punho.

— Bennett...

_Fique quieta. — A voz era impassível e fria como os

olhos. Hannah soltou o punho dele. Em um movimento lento, o príncipe retirou a arma da bainha. Estava quente pelo con­tato da pele e era bem pequena para caber na palma da mão. Até que acionasse o botão e a lâmina fina deslizasse para fora, silenciosa e letal! Ao captar a luz da lâmpada, a prata brilhou.

Ela a usava na intimidade, pensou. Queria perguntar se algum dia a utilizara, mas parte dele sabia que seria melhor guardar tal questionamento para si mesmo. Era muito leve, porém pesava como chumbo nas mãos.

— Por que necessita disso no palácio?

Hannah puxou uma das alças da lingerie sobre o ombro e esfregou a pele no local, que se tomava mais frio a cada segundo.

— Estou esperando notícias de Deboque. Não sei quando ou de onde virá. Talvez seja necessária uma reação imediata, portanto, é melhor estar preparada.

— Que tipo de notícia?

— Acho que deveria perguntar...

— Estou perguntando agora. — A voz do príncipe tinha um tom que raramente usava, porém efetivo. — Que tipo de notícia, Hannah?

Ela encolheu os joelhos, encostando-os ao peito, e fechou os braços em tomo deles antes de lhe relatar tudo. Àquela altu­ra, de nada valiam as objeções. Bennett sabia demais.

— Então sacrificaremos parte da ala este! Camuflagem. — Ele girou a lâmina contra a luz. Sabia, sem sombra de dúvida, que seria capaz de enterrá-la no coração de Deboque.

— Quanto mais factuais forem os acontecimentos, mais fá­cil será convencer Deboque. Não partirá com cinco milhões de dólares sem se certificar de que Cordina se encontra sem um herdeiro.

— Ele mataria as crianças — murmurou Bennett. — Até mesmo o filho de Alexander que ainda não nasceu! E tudo por quê? Vingança, poder, dinheiro?

— Pelos três. Ele se vingaria do príncipe Armand, seu po­der se fortaleceria com o caos e sua riqueza aumentaria, como conseqüência. É a ambição que o destruirá desta vez. Eu pro­meto.

Foi a paixão contida na voz de Hannah que o fez olhá-la outra vez.

Os olhos verdes estavam dilatados e secos, mas a emoção saltava deles. Para proteger a própria família, pensou Bennett ao mesmo tempo em que apertava a mão em tomo do estilete. Para si mesma. Com a mesma rapidez com que se apaixonara, percebeu a verdade. O que quer que Hannah fizesse, que mé­todos utilizasse, não importava, desde que se mantivesse em segurança.

Apertou o botão outra vez e recolheu a lâmina. Iria se in­cumbir daquela tarefa pessoalmente. Após colocar a faca de lado, esticou o braço e desatou a fita de couro da coxa de Han­nah. A pele macia esfriara, embora a temperatura do aposento estivesse amena. Aquilo despertou algo que Bennett reconhe­ceu como instinto protetor. Ela não se moveu ou falou, e hesi­tou quando o príncipe se levantou. Estava esperando que Ben­nett a rejeitasse, dispensasse ou deixasse. Ele percebeu tanto a surpresa quanto a dúvida estampadas na face dela, quando a puxou, tomando-a nos braços.

— Deveria confiar mais em mim, Hannah — afirmou em tom suave.

Quando a sentiu relaxar contra ele, com a cabeça pousada em seu ombro, carregou-a para cama.

 

O pacote foi entregue na mais elementar das formas. Foi dei­xado por uma transportadora de Dartmouth, um dos menos lucrativos e mais úteis tentáculos de Deboque. O remetente continha o endereço de uma tia de Hannah da Inglaterra e tinha o carimbo FRÁGIL.

A única dificuldade era o fato de Eve estar presente quando foi entregue.

— Oh, que divertido! — A princesa rodeava o pacote. — E um presente de Natal, não? Por que não o abre?

— Não é dia de Natal — redargüiu Hannah em tom suave, pousando o pacote em uma das prateleiras de seu closet. Iria entregá-lo a Reeve tão logo fosse possível.

— Oh, como pode ser tão indiferente em relação a isso?

— Com os nervos à flor da pele, Eve caminhava pelo quarto.

— Nunca procurou embaixo das camas ou nos armários por pacotes nessa época do ano?

— Não — Hannah sorriu e voltou ao aposento para arranjar as flores que Eve lhe trouxera. — Nunca tive vontade de estra­gar a surpresa da manhã de Natal.

— Não a estraga, apenas aumenta a excitação. — A prince­sa volveu o olhar ao closet. — Não podíamos dar apenas uma espiada?

— Claro que não, embora eu possa lhe adiantar que aquele pacote, provavelmente, contenha cinco dúzias de biscoitos tão duros quanto pedra. Minha tia Honoria é bastante previsível.

— Nem parece que estamos no Natal. — Tristonha, Eve caminhou até a janela. Colocou uma das mãos, em um gesto protetor, sobre o ventre ligeiramente abaulado e com a outra apertou com nervosismo a cortina. — O salão de baile foi la­vado e polido para o feriado, as árvores estão todas armadas. Se caminhar pela cozinha, sentirei os mais apetitosos aromas, mas não parece Natal.

— Está com saudades de seu país, Eve?

— Saudades do meu país? — Exibindo surpresa por alguns instantes, a princesa se voltou, sorrindo. — Oh, não. Alexander e Marissa estão aqui. Esperava que minha irmã conse­guisse se afastar da galeria de arte por uma semana ou duas, mas não estou com saudade dos Estados Unidos. É que todos tentam me paparicar, proteger-me, escondendo-me as coisas.

— Deixando escapar um suspiro, caminhou até o armário de Hannah e começou a brincar com a caixa esmaltada que Ben­nett admirara.

— Sei o quanto Alex está tenso e preocupado, por mais que se esforce para aparentar normalidade. Mesmo quando conver­so com Bennett, percebo que meu cunhado não está prestando atenção em mim. Isso tem de ter um fim, Hannah. Não suporto ver as pessoas que amo se desgastarem dessa maneira.

Ela também a mimaria e protegeria, escondendo-lhe a ver­dade, mas era o único conforto que podia dar à amiga.

— É sobre Deboque, não?

Eve devolveu a caixa ao seu lugar.

— Como um homem pode cultivar tanto ódio e causar tanta dor? Sei, embora mesmo após anos não consiga compreender, que não ficará satisfeito se não nos destruir.

— Não é possível para a maioria de nós entender a genuína maldade — começou Hannah, embora pudesse compreendê-la. — Mas acho que pioramos as coisas quando deixamos que nossas vidas sejam demasiado afetadas por esse sentimento.

— Tem razão, claro. — Eve lhe estendeu ambas as mãos.

— Tem noção de quanto me sinto agradecida por você estar aqui? Sem sua companhia acho que me sentiria deprimida a maior parte do tempo. Brie chegará mais tarde, com todas as crianças. Ainda temos de entrar em contato com os músicos e com os floristas. — E apertando de leve as mãos de Hannah, enquanto deixava escapar um suspiro, comentou: — Odeio me sentir impotente. Gostaria de cuspir nos olhos de Deboque, mas se tudo que me resta é facilitar as coisas por aqui, terei de me contentar com isso.

Hannah jurou a si mesma que na primeira oportunidade cuspiria nos olhos de Deboque, por ela.

— Por que não me leva até o salão de baile e me diz o que tem a fazer? Gostaria de ajudá-la. — E, além disso, queria Eve longe do pacote que aguardava por Reeve em uma das prateleiras de seu closet.

— Está bem, mas quero que venha até meu quarto primei­ro. Tenho um presente para você.

— Presentes são para o dia de Natal — lembrou Hannah, enquanto iam ao quarto de Eve.

— Esse não pode esperar — Precisava afastar a mente dos acontecimentos que assombravam todos eles. O Dr. Franco ha­via lhe avisado que a tensão poderia afetar a criança. — Prin­cesas grávidas têm essa prerrogativa.

— Que esperto de sua parte usar a gravidez como desculpa quando lhe convém. — Ambas subiram o pequeno lance de escada e cruzaram a ala contígua. — Disse que Gabriella esta­rá aqui em breve. Toda família chegará hoje?

— Em peso, esta tarde.

Hannah relaxou um pouco. Seria fácil transferir o pacote para Reeve e levar o plano adiante.

— Bennett já guardou seu tesouro no cofre?

— Tesouro? Oh, o ioiô. — Com a primeira risada espontâ­nea do dia, Eve entrou no próprio quarto. — Ele adora aque­le garoto. Nunca conheci ninguém que tenha tanto jeito com crianças como meu cunhado. Dedica um tempo enorme à Or­ganização de Ajuda a Crianças Deficientes, mesmo que isso o afaste de seus dias de folga, com os cavalos. — A princesa se encaminhava ao closet, enquanto falava. — Outro motivo que tem me deixado deprimida é saber que Bennett podia estar no topo do mundo agora e em vez disso está com uma aparência bastante desgastada.

— No topo do mundo?

— Custou-lhe seis meses e muitas decepções para conse­guir uma ala especial para crianças no museu. Finalmente con­seguiu, na outra noite, durante o jantar da diretoria. Não sem muito esforço e lábia. Não lhe contou?

— Não — retrucou Hannah, lentamente. — Não mencio­nou o assunto.

— Tem sido seu principal projeto, por dois anos. Levou meses para encontrar o arquiteto adequado. Um que captasse a essência do que Bennett tinha em mente. E já que a diretoria não dava prioridade ao assunto, pagou do próprio bolso o de­senho do projeto. É maravilhoso. — Eve retomou do closet, carregando uma grande caixa. — Deveria pedir que ele lhe mostrasse qualquer dia desses. Bennett o quer bem arejado, cheio de janelas, de forma que as crianças não se sintam en­clausuradas. A diretoria fez algumas objeções quando Bennett mencionou as esculturas com as quais as crianças poderiam ter contato e as ilustrações de livros infantis em vez de Ru­bens, Renoir e Rodin sob os vidros.

— Não tinha idéia de que ele fosse tão... engajado.

— Meu cunhado se entrega por inteiro a tudo que faz. A intenção dele é introduzir as crianças no mundo da arte, atra­vés de meios que possam entender e apreciar. Há ainda uma seção reservada à pintura e modelagem criadas pelas próprias crianças.

Eve pôs a caixa na cama e sorriu.

— Estou surpresa que ele não tenha lhe contado nada. Fala nisso o tempo todo. Levou dois anos de planejamento e seis meses de luta para que o projeto saísse do papel.

— Que amável da parte dele! — Hannah sentiu o coração contrair, expandir e em seguida se encher de amor. — É fácil pensar que ele é um homem cujos únicos interesses são os cavalos e a próxima festa.

— Ele se diverte com essa imagem, mas Bennett é muito mais do que isso. Acho que vocês se tomaram bastante pró­ximos.

— Bennett é muito gentil.

— Hannah, não me desaponte. — Um tanto cansada, Eve sentou-se na beirada da cama. — Ele a segue com o olhar por todos os lugares.

— Ele faz isso?

— Sim — a princesa sorriu. — Faz. Mesmo diante de toda a ansiedade e tensão da última semana, tive o prazer de ver Bennett se apaixonar. Você corresponde, não?

— Sim — estava quase no fim. Algumas mentiras não eram necessárias. — Jamais conheci alguém como ele.

— Não há alguém como ele.

— Eve, não quero que pense ou espere por algo que não acontecerá.

— Tenho o direito de esperar e pensar o que quiser — A princesa colocou uma das mãos sobre a caixa que colocara a seu lado, dando palmadinhas na tampa.

— Por hora, abra seu presente.

— Isso é uma ordem ou um pedido?

— O que for necessário para abrir Por favor, estou morren­do de curiosidade para saber se vai gostar

— Bem, é contra meus princípios abrir um presente antes do Natal, mas... — Cedendo, Hannah ergueu a tampa. Afastou para os lados as camadas de papel vegetal e se surpreendeu, fitando deslumbrada.

Brilhava como uma jóia e cintilava como fogo. O vestido tinha a cor verde intensa e sedutora das esmeraldas com várias centenas de pequenas contas que captavam a luz da tarde.

— Tire-o da caixa. — Insistiu Eve, para em seguida, dema­siado impaciente, retirar o traje com as próprias mãos.

A seda ondulou, sussurrou e se imobilizou. Era de corte estreito, com uma gola alta que brilhava por causa da faixa de contas na altura do pescoço. Os braços ficariam desnudos até os ombros, assim como as costas, até o tecido drapejar outra vez, seguindo uma linha longa até o chão. Era um vestido feito para brilhar sob candelabros e cintilar sob o luar

— Diga-me que gostou. Levei a costureira à loucura por um mês.

— É lindo. — Tímida, Hannah estendeu a mão. O traje parecia tremular com vida ao mínimo toque. — É a coisa mais linda que já vi. Não sei o que dizer

— Diga que o usará no baile de Natal. — Satisfeita consigo mesma, Eve girou a amiga até que ficasse de frente para o espelho, e segurou o vestido na frente do corpo dela. — Veja como combina com seus olhos. Eu sabia! — Rindo, colocou o traje nas mãos de Hannah de forma que pudesse dar um passo atrás e observar. — Sim, tinha certeza disso. Com sua pele... Oh, sim! — exclamou, batendo com um dedo nos lá­bios. — Bennett pousará os olhos em você e babará feito um idiota. Mal posso esperar para ver.

— Acho que eu não deveria...

— Claro que deveria, e o fará, porque me recuso a receber um não como resposta. — Estreitando o olhar, deu um passo à frente para retirar uma mecha de cabelos solta da face da amiga. — Minha cabeleireira terá de fazer uma revolução em você.

— Isso soa um tanto sinistro. — Por mais que ansiasse por aquilo, não se permitia ousar. A reservada e modesta lady Hannah Rothchild não teria coragem de usar um vestido como aquele. — Eve, é maravilhoso. Você é extraordinária, mas acho que não combino com um traje como este.

— Nunca me engano. — Eve afastou a recusa com um ges­to de mão. Podia ser uma princesa apenas há dois anos, mas sempre fora determinada. — Passo tempo demais no teatro para não saber o que combina ou não. Confie em mim, e se isso é lhe pedir demais, ao menos faça-me este favor como amiga.

Elas haviam se tomado amigas, não obstante as razões ini­ciais ou o objetivo final. Que mal faria aceitar? Seria bem pos­sível que não estivesse em Cordina para o baile.

— Sinto-me como uma Cinderela — murmurou Hannah, desejando de fato sê-la.

— Ótimo. E lembre-se que nem sempre o conto de fadas se desfaz nas 12 badaladas.

Mas Hannah sabia que sim. Recordou as palavras de Eve quan­do ela e Reeve se moviam em silêncio pelo palácio. O jogo es­tava quase no fim, assim como o tempo de que dispunha.

O pacote continha os explosivos que solicitara e uma men­sagem codificada. Teria de entrar em ação naquela noite e en­contrar o agente de Deboque nas docas à 1h. O pagamento viria em seguida.

— Isso tem de funcionar — resmungou Hannah, enquanto pousava a primeira carga com cuidado. O equipamento que utilizava naquele momento era aprovado pelo SSI. O pacote que recebera já estava sendo rastreado. Dentro em pouco, Deboque perderia seu braço em Atenas, e muito mais.

— Do lado de fora do palácio, parecerá que o fogo está fora de controle — informou Reeve, trabalhando tão rápida e eficientemente quanto ela. — Os explosivos fazem mais ba­rulho do que têm potência. Explodiremos algumas janelas e produziremos um espetáculo infernal, enquanto Malori e seus homens permanecerão aqui para conter a explosão se neces­sário.

— O príncipe está com eles agora?

— Sim, Armand está colocando o restante da família a par dos acontecimentos. Malori objetou, mas acho que ele tem ra­zão. Não lhes fará mal algum saber a verdade a essa altura, e podemos evitar muita ansiedade.

Pensou em Gabriella. Após aquela noite, talvez os pesade­los a abandonassem.

— Não suporto a idéia de Eve acordando com a explosão e pensando ser obra de Deboque. E Bennett? Ele está seguro na ala da família?

— Sim — retrucou Reeve, sucinto. — Vou lhe dar dez mi­nutos. É o suficiente para abandonar o local.

"As docas estão seguras, de modo que se alguma coisa sair errado, estaremos com você em um instante. Estarei no barco que mantém o iate de Deboque sob vigilância. Entrarei no mo­mento que me der o sinal. Hannah, conheço o risco que corre com o dispositivo. Se for revistada..."

— Lidarei com isso. — O microfone era uma obra-pri­ma do SSI. Tinha a aparência de um intrincado medalhão que pendia milímetros abaixo da pulsação no pescoço de Hannah.

— Se ele o perceber, agirá rapidamente.

— Serei mais rápida. — Hannah pousou uma das mãos na dele quando Reeve fez menção de falar. — Tenho interesse nisso também. Não quero morrer

Ele a fitou por alguns instantes.

— Tenho reputação de manter meus parceiros vivos. Hannah agradeceu o fato de o agente conseguir fazê-la sorrir

— Estou contando com isso. Mas se algo sair errado, pode­ria transmitir uma mensagem a Bennett para mim?

— Claro.

— Diga-lhe que... — Hannah hesitou. Não costumava con­fiar seus sentimentos a ninguém. O relógio marcou meia-noite e Hannah rezou para que a magia não se dissolvesse. — Diga que o amo. As duas partes de mim o amam. E que não me arrependo de nada.

Hannah partiu pela porta principal e dirigiu vagarosamente na direção dos portões. Em minutos, os seguranças que não haviam sido informados da camuflagem reagiriam da exata maneira que esperavam. Qualquer pessoa que estivesse ob­servando o palácio veria a surpresa e a ação. Por hora, apenas partiu pelos portões após breve registro. Consultava constan­temente o relógio de pulso enquanto dirigia, ouvindo os minu­tos escoarem e pensando em Bennett. Estaria seguro naquele momento? Não obstante o que acontecesse naquela noite, ele e a Família Real estariam a salvo. Se Deboque fizesse o paga­mento, seria preso por conspiração. Se a matasse, seria preso pelo assassinato de um agente do SSI. O fim justificava os meios.

Hannah estacionou o carro e esperou. E, então, ouviu a ex­plosão. Malori prometera barulho e cumprira. Abriu a porta do veículo e se postou ao lado do carro por um momento. O palácio era uma névoa branca no céu noturno, porém a ala leste estava iluminada como o dia. O fogo era impressionante daquele ponto, e sabendo que um dos homens de Deboque podia estar próximo, ficou satisfeita. Dentro de vinte minutos um dos homens de Malori anunciaria que a Família Real, com exceção de Armand, morrera na explosão.

Porém, no momento em que chegou, as docas estavam de­sertas. As notícias alarmantes já haviam se espalhado. Hannah estacionou o carro nas sombras e se afastou para esperar sob a luz. Constituía um excelente alvo.

O barco ancorado fora do cais aparentava ser um pequeno, caro e prazeroso iate. Várias vezes durante o dia uma mulher de cabelos escuros aparecera no convés para se bronzear e ler.

De vez em quando, um homem jovem, bronzeado e com o peito desnudo vinha lhe fazer companhia. Beberam vinho, acariciaram-se e dormiram. Os vigilantes do Invencível fizeram apostas sobre a hora em que o casal faria sexo sob o sol, mas ficaram desapontados.

Na cabine inferior, o aparato do SSI ia desde monitores de televisão a lançadores de mísseis. Oito homens e três mulheres ocupavam a cabine e esperavam.

Bennett estava confinado à cabine há horas, não engolira nada exceto café e a própria impaciência. Observava o moni­tor que captava a imagem de uma câmera de longo alcance. Queria vê-lo. Por Deus! Ansiava por fitá-lo nos olhos quando a armadilha se fechasse. Mais do que isso, deseja ouvir através do transmissor que estava acabado e Hannah, a salvo.

— MacGee está chegando. — O homem com os fones de ouvido anunciou e continuou a fumar

Segundos depois, Reeve entrou na superlotada cabine. Re­tirou o quepe de marinheiro e o jogou para o lado.

— O primeiro estágio foi finalizado — declarou, anuindo com um gesto de cabeça para Bennett. — Além dos portões, parece que a ala leste foi devastada. O SSI é teatral.

— E minha família? — indagou o jovem príncipe, voltando a atenção ao monitor

— Segura.

Ele esticou a mão para pegar o café frio e amargo.

— Hannah?

— Esperamos um comunicado dentro de alguns minutos. Alguns de nossos melhores homens estão nas docas, como reserva.

Bennett o fitou por um longo instante. Desejara estar nas docas, o mais próximo possível. Fora de encontro à barreira intransponível que se revelaram o pai, Reeve e Malori, e teve de ceder Se fosse reconhecido, toda o operação seria posta em risco.

Naquele momento, havia apenas Hannah a se arriscar

— Deboque não foi visto o dia todo.

— Ele está lá. — Reeve acendeu um cigarro e se preparou para esperar — Ele não gostaria de estar longe esta noite.

— Contato. — Um agente a bombordo ergueu as mãos para tocar os fones de ouvido. — Ela está fazendo contato.

A brisa do mar era fria e a noite, clara.

Hannah reconheceu o homem que se aproximava como sendo o mesmo que entrara no pequeno e enfumaçado bar. Chegou sozinho e de mãos vazias.

— Mademoiselle.

— Minha parte da barganha foi concluída, monsieur. Está com o pagamento?

— E uma bela noite para um passeio de barco.

O iate. Hannah sentiu um arrepio tanto de desconforto quanto de excitação.

— Compreende que não posso retomar a Cordina?

— Isso está entendido. — Ele gesticulou em direção a um pequeno barco a motor.

— Suas necessidades serão atendidas.

Como antes, não lhe restava escolha. Podia puxar a arma e rendê-lo. Se tivessem sorte, o homem trocaria a própria liber­dade pela de Deboque. Porém, não poderia arriscar a seguran­ça de Bennett.

Sem dizer uma palavra, entrou no barco e se sentou.

Tinha a vida nas próprias mãos, pensou Hannah, e as cru­zou. Não obstante o desfecho daquela noite, Deboque estaria arruinado.

Seu contato não voltou a falar, mas o olhar se movia para a frente e para trás em meio à escuridão da noite. Naquele mo­mento, todos esperavam e observavam. O iate de Deboque se destacava, branco e imponente, no mar. Hannah podia avistar três homens no convés: Ricardo e outros dois. Foi o homem de confiança de Deboque que a ajudou a embarcar.

— Lady Hannah, é um prazer revê-la.

Havia algo de malícia e satisfação em seu olhar.

E então Hannah soube, tão certo quanto se ele tivesse lhe encostado uma faca ao pescoço, que não pretendiam deixá-la partir do Invencível. A voz era fria e calma quando ela falou e, esperava, claramente recebida através da amplidão da água.

Obrigada, Ricardo. Espero que isso não demore muito. Sou forçada a admitir que me sinto desconfortável nas águas de Cordina;

— Partiremos em uma hora.

— Para?

— Um clima mais confortável. O rádio anunciou as trá­gicas mortes de vários membros da Família Real. O príncipe Armand está isolado, amargando sua tristeza.

— Claro. Cordina perdeu seu coração e herdeiro. Monsieur Deboque já foi informado?

— Ele a espera na cabine. — Ricardo esticou a mão para a bolsa de Hannah.

— Os empregados são sempre revistados?

— Podemos dispensar isso, lady Hannah, se me permitir ficar com suas armas. — Ele pegou a arma dela e a colocou no bolso. — E a faca?

Dando de ombros, Hannah ergueu a saia até a coxa. Obser­vou o olhar de Ricardo se fixar lá, enquanto retirava a lâmina. Acionou o botão. A seu redor, o som de pistolas sendo engatilhadas se fez ouvir

— Uma arma admirável — elogiou Hannah, em tom suave, enquanto segurava a faca contra a luz. — Silenciosa, com es­tilo e útil. — Sorriu e acionou o botão outra vez, recolhendo a lâmina. — E dificilmente eu a usaria em um homem que está prestes a me entregar cinco milhões de dólares americanos. — Ela colocou a faca na palma da mão de Ricardo, saben­do que, a partir daquele momento, só lhe restavam os punhos para se defender — Podemos ir? Gosto do cheiro do dinheiro quando ainda está quente.

Ele lhe tomou o braço com suas mãos de cirurgião e com considerável segurança guiou-a à cabine de Deboque.

— Lady Hannah. — A cabine estava iluminada por uma dúzia de velas. Uma sonata de Beethoven podia ser ouvida, suavemente, através dos alto-falantes. Ele trajava uma jaqueta vinho e usava rubis. Cores de sangue. Uma garrafa de cham­panhe estava imersa em um balde de prata. — Como é ligeira. Pode nos deixar, Ricardo.

Hannah ouviu a porta se fechar atrás dela. Sabia que o ho­mem de confiança de Deboque estaria do lado de fora.

— Um ambiente prazeroso — comentou ela. — A maioria dos negócios não são concluídos à luz de velas.

— Deixemos as formalidades de lado, Hannah. — Debo­que sorria, enquanto caminhava para o balde com champanhe.

— As notícias de Cordina são um tanto histéricas e trágicas.

— A rolha explodiu.

O champanhe borbulhou pelo gargalo.

— Acho adequada uma pequena e saborosa celebração.

— Raramente recuso champanhe, monsieur, mas o sabor dele fica ainda mais agradável quando tenho dinheiro em mi­nhas mãos.

— Seja paciente, minha cara. — Ele ergueu duas taças e lhe ofereceu uma delas. A face de Deboque tinha uma palidez marmórea sob a luz tênue e os olhos quase negros, cheios de prazer — A um trabalho bem feito e a um futuro deveras opulento.

Hannah tocou a taça na dele e sorveu um gole da bebida espumante.

— Uma safra excelente.

— Acabei por entender que aprecia o excelente e o caro.

— Precisamente, monsieur, espero que não se sinta ofendi­do se disser que, embora aprecie o champanhe e a luz bruxuleante, ambos ficariam ainda mais agradáveis se nosso negócio fosse fechado.

— Muito mercenária. — Deboque deslizou os dedos pela face alva e delicada. A luz tênue a valorizava. Dentro em pou­co floresceria sob suas mãos. Era uma pena que não pudesse se arriscar a mantê-la com ele alguns meses. Dispunha apenas de uma hora para desfrutá-la. Porém, muito podia ser conseguido naquele tempo. — Peço-lhe desculpas, mas estou de muito bom humor Desejo celebrar seu sucesso. Nosso sucesso.

A mão dele escorregou pelo pescoço de Hannah, a milíme­tros do microfone. Ela segurou o punho dele e sorriu.

— Você determinou o humor, monsieur, confiscando mi­nhas armas. Prefere mulheres indefesas?  

— Prefiro as obedientes. — Deboque ergueu a mão para lhe tocar os cabelos, enterrando os dedos na maciez dos fios louro-escuros. Hannah ficou tensa ao ser beijada. Podia mos­trar resistência, mas não repulsa. — Você é forte — murmurou ele, trazendo os lábios aos dela mais uma vez. — Prefiro essa qualidade também. Quando a levar para a cama, terá de lutar comigo.

— Eu lhe darei mais que isso, após ver o dinheiro. — A pressão dos dedos de Deboque aumentou, machucando-a a ponto de ela ofegar E então relaxaram, enquanto a risada sar­cástica ecoava no aposento. — Muito bem, mon amie cupide. Verá seu dinheiro, porém depois me dará algo em troca.

Quando Deboque virou de costas para revelar o cofre es­condido, Hannah esfregou os lábios com o dorso da mão.

— Já lhe dei o pagamento.

— A vida da Família Real. — Enquanto ele girava o disco do cofre, o coração de Hannah disparou. — Cinco milhões de dólares para assassinar os Bisset e me proporcionar um prato cheio de vingança e a doce sobremesa do poder Acha que é muito? — Os olhos de Deboque brilhavam quando ele se vol­tou e caminhou para ela com uma caixa grande. — Minha querida criança, poderia ter pedido dez vezes mais. Há mais de dez anos tramei tal vingança e por duas vezes estive mui­to próximo de conseguir matar um membro da Família Real. Agora, pela ínfima quantia de cinco milhões de dólares, elimi­nou todos eles para mim.

— E isso — anunciou Reeve, quando a voz de Deboque ecoou nos receptores. — Movam-se. Devagar

A mão de Bennett se fechou em tomo do braço do cunhado.

— Vou embarcar com você.

— Isso está fora de questão.

— Vou embarcar com você — repetiu o jovem príncipe em tom áspero e gélido. Escutara todos os detalhes da conversa e suou frio quando Hannah ficou a sós com Deboque. Quan­do aquele canalha a tocou e se preparou para pagar-lhe pelo assassinato de tudo e todos que amava. — Dê-me uma arma, Reeve, ou irei desarmado.

— A ordem que tenho é para mantê-lo aqui.

— E se fosse Brie? — Os olhos de Bennett estavam infla­mados e impulsivos. — Se fosse ela, ficaria para trás e deixaria que outros a protegessem?

Reeve baixou o olhar à mão que o segurava. Era forte, ca­paz e jovem. E, então, fitou os olhos que eram mais escuros que os de sua esposa, mas que continham a mesma paixão. Erguendo-se, pegou uma pistola calibre 45 automática do ar­senal.

Agiriam naquele momento, pensou Hannah, lutando para manter o tom de voz impassível.

— Diz isso agora para que me arrependa? — Ela soltou uma gargalhada e caminhou até a mesa. — Cinco milhões se­rão muito úteis. Planejo investir e viver uma vida tranqüila no Rio pelos próximos anos.

Deboque mantinha os olhos fitos nos dela, enquanto abria a caixa. O dinheiro estava lá, mas seria para seu próprio uso.

— Não tem interesse em continuar a fazer parte de minha equipe?

— Infelizmente isso seria arriscado para ambos depois dos eventos desta noite.

— Sim. — Ele pensava exatamente daquela forma. Ainda assim, abriu a tampa para que Hannah tivesse ao menos o pra­zer de ver o dinheiro antes que a matasse.

— Adorável. — Dando continuidade a seu papel, Hannah deu uma passo à frente e ergueu um grosso maço de notas de cem. — Tem noção da fragrância sensual que notas novinhas em folha possuem? — indagou, deslizando os dedos por elas.

— É verdade. — Deboque deslizou a gaveta superior da mesa, deixando-a aberta. Dentro dela havia um elegante re­vólver com cabo perolado. Pensou em matá-la com estilo. Fe­chou os dedos sobre a arma, quando os primeiros tiros foram ouvidos acima deles.

Hannah virou a cabeça em direção à porta, esperando que ele confundisse excitação com sobressalto.

— Que tipo de jogo é esse? — indagou ela, batendo a tam­pa da caixa com força e a carregando consigo em direção à saída. Fechou a mão em tomo da maçaneta.

— Parada! — ordenou Deboque, apontando a arma para o coração de Hannah. Gotículas de suor lhe assomaram à fronte, enquanto o som de passos apressados ecoava sobre suas cabe­ças. Mantinha o dedo encostado ao gatilho, mas não o pressio­nou. Não sabia que tipo de problema estava acontecendo no convés, mas não queria atraí-lo para si.

— A caixa, Hannah.

— Uma traição? — Os olhos verdes se estreitaram, enquan­to ela calculava por quanto tempo poderia detê-lo. — Sim, você me pagaria facilmente dez vezes mais que isso, já que não pretendia me recompensar com nada.

— A caixa. — Deboque começou a se mover na direção dela, vagarosamente. O medo começava a florescer dentro dele, não da morte ou da derrota, mas de ser preso. Não seria capaz de sobreviver atrás das grades outra vez.

Hannah esperou até que ele estivesse a meio metro. Então, retirou a mão da maçaneta e atirou a pesada caixa contra a arma.

Os homens de Deboque, tanto por medo como por lealdade, lutavam bravamente. Tiros de revólver explodiam em todas as direções dos dois barcos. Uma chuva de balas de uma me­tralhadora ecoava atrás das costas de Deboque. Observou seus homens caindo sobre as grades do iate e deslizando para a água.

Àquela altura, os tiros disparados do lado do luxuoso iate se tomavam mais esporádicos, mas o tempo passava rapida­mente. E Hannah ainda estava com ele. Viva, disse Bennett a si mesmo, enquanto mirava e atirava. Estava viva. Saberia dizer se estivesse enganado, pois seu coração teria parado. Po­rém, havia uma urgência crescendo dentro dele, mais intensa do que a noite selvagem e o cheiro de sangue. Movendo-se imbuído dela, o jovem príncipe caminhou até a popa do barco e mergulhou na água.

A noite era rasgada por tiros e gritos de homens. Avistou um deles se atirar do iate e nadar, frenético, em direção à costa, a dez milhas. Sentiu a mão tocar em um corpo que flutuava de bruços. Se pertencia ao ISS ou era um inimigo, Bennett não poderia dizer. Enquanto a luta continuava, nadou silenciosa­mente em direção ao iate.

Por saber que estava quase concluído, Reeve sinalizou para que seus homens se recolhessem. Foi então que percebeu que Bennett não estava mais a seu lado.

— O príncipe — Sentiu a garganta ressequida pelo pânico. — Onde está o príncipe Bennett?

— Lá. — Um dos homens o localizou antes de ele desapa­recer na curva da popa do iate de Deboque.

— Em nome de Deus! — Reeve ofegou. — Ajam depressa. Preparem-se para embarcar.

Não havia ninguém a estibordo quando Bennett se alçou para o convés. Estampidos de balas ocasionais ecoavam, mas os gritos haviam cessado. Passara uma hora durante aquele longo e interminável dia confinado em uma exígua cabine, estudando o diagrama do iate de Deboque feito por Hannah. Sendo assim, foi à procura dela.

Hannah conseguira derrubar o revólver no chão, mas De­boque era mais rápido e forte do que aparentava. Apesar de ela mergulhar para apanhá-lo, Deboque pulou em cima dela. Uma das mãos lhe apertava a garganta, sufocando-a. Hannah conseguiu livrar um dos braços e apertou o pulso contra a traquéia do oponente. E, então, ambos ofegavam. Ela esticou a mão para a frente e resvalou os dedos no cabo do revólver. Deixou escapar um xingamento tanto de dor como de fúria quando Deboque a puxou para trás pelos cabelos. Por trinta amargos e exaustivos segundos lutaram no chão da cabine. A blusa de Hannah rasgou na costura. Sob ela, escoriações se formavam. Conseguiu fazer a boca de Deboque sangrar, mas se frustrava com a incapacidade de lhe aplicar um golpe que o nocauteasse.

Entrelaçados como dois amantes, rolaram na direção do re­vólver mais uma vez. Hannah o alcançou primeiro, quase o segurando. Porém, pela visão periférica, avistou o punho dele quase a atingindo, e se esquivou. O impacto, embora previsível, foi forte o suficiente para fazê-la vacilar E, então, se descobriu fitando o cano do revólver de Deboque. Preparou-se para mor­rer Lutando por ar, retesou o corpo. Se nada lhe restava fazer, cumpriria a promessa de lhe cuspir nos olhos.

— Sou uma agente do SSI. Os Bisset estão seguros e você não tem saída agora.

Hannah percebeu a fúria estampada nos olhos assassinos. Sorriu para ele e esperou pelo disparo.

Quando Bennett entrou o escritório, viu Deboque agachado sobre Hannah, apontando a arma para sua cabeça. Tudo acon­teceu em um lampejo, tão rápido que, segundos depois, não saberia dizer quem atirou primeiro.

A cabeça de Deboque girou. Os olhos de ambos se encon­traram. Quando a arma se moveu da cabeça de Hannah na di­reção do príncipe. Ela gritou, e se desvencilhou. Dois gatilhos foram pressionados. Duas balas foram disparadas.

Bennett sentiu apenas um sibilo tão próximo que sua pele estremeceu e esquentou. Viu o sangue explodir do peito de Deboque um instante depois, antes que ele tombasse sobre Hannah.

E, então, ela começou a tremer Todos os anos de treina­mento se dissolveram, enquanto permanecia, trêmula, sob o homem morto. Preparara-se para a própria morte. Aquele era seu dever Em vez disso, vira a bala se cravar na madeira a menos de um milímetro de distância da face de Bennett.

Mesmo quando ele se aproximou, empurrando o que antes fora Deboque para o lado e puxando-a para si, o tremor não cessou.

— Acabou, Hannah. — O jovem príncipe a aninhou e ba­lançou nos braços, depositando beijos sobre os cabelos ma­cios. — Está tudo acabado agora. — Em vez de satisfação, até mesmo da glória que esperara sentir, havia apenas alívio. Hannah estava a salvo, e ele providenciaria para que continuas­se assim.

— Podia ter sido morto. Diabos, Bennett! Era para estar em casa.

— Sim. — Ele ergueu o olhar a Reeve. que irrompeu no escritório. — Ambos estaremos lá em breve.

Havia lágrimas na face pálida. Limpando-as, Hannah se es­forçou para levantar Encarou Reeve, ofegante.

— Estou pronta para fazer meu relatório.

— Para o diabo com isso! — Bennett a ergueu nos braços — Vou levá-la para casa.

 

Hannah dormira por muito tempo. Haviam se passado 24 horas quando percebeu que o Dr. Franco, o médico particular dos Bisset, lhe dera um sedativo.

Acordou descansada e ressentida. E, embora detestasse ad­mitir, dolorida.

O médico passou mais um dia inteiro murmurando sobre seus cortes e escoriações no tom gentil mas implacável de sempre. O fato de ter recebido ordens de Sua Alteza Real para mantê-la em repouso, não deixou outra alternativa ao médico e à paciente se não obedecer

Hannah reclamou. Embora recebesse visitas com freqüên­cia, a ociosidade a irritava. Recebera notícias do quartel-ge­neral do SSI através de Reeve, que deveriam tê-la animado. A operação de Deboque fora destruída. Recebera a esperada promoção. Porém, tudo que conseguia era sentir-se aborrecida e ansiar por escapar.

Foi Eve que lhe proporcionou uma oportunidade na noite do baile de Natal.

— Está acordada. Ótimo.

— Claro que estou acordada. — Irritada por passar dois dias na cama, Hannah mudou de posição. O fato de suas coste­las ainda doerem ao mínimo toque tomava a estada ainda pior — Vou enlouquecer

— Estou certa que sim. — Sorrindo, Eve sentou-se na bei­rada da cama. — Não vou constrangê-la, dizendo-lhe o quanto todos nós nos sentimos agradecidos por tudo que fez. O que vou fazer é lhe transmitir as últimas ordens do Dr. Franco.

— Oh, poupe-me!

— Que são para se levantar, vestir-se e dançar até de ma­drugada.

— O quê? — Hannah se sentou na cama, exibindo uma dis­creta careta de dor — Posso me levantar? Está falando sério?

— Claro. Agora, aqui está. — Erguendo-se, a princesa pe­gou o robe de Hannah. — Coloque isso. Minha cabeleireira está sendo esperada a qualquer minuto e fará sua mágica em você primeiro.

— Mágica! — Com um suspiro resignado, Hannah levou a mão aos cabelos. — Terá de ser mesmo uma mágica. Eve, por mais que eu queira levantar e ser tratada, acho que não é uma boa idéia ir ao baile.

— É uma idéia perfeita. — Após ajudar Hannah a vestir o robe, a princesa se inclinou para inspirar o aroma da gardênias que adornavam os lados da cama.

— De Bennett?

— Sim. — Hannah se permitiu tocar as pétalas macias com as pontas dos dedos. — Trouxe-as esta manhã. Não o tenho visto com muita freqüência. — Afastando o desânimo, apertou o cinto do roupão. — Sei o quanto todos têm estado ocupados com as coletivas de imprensa e os pronunciamentos públicos para esclarecer toda essa confusão.

Eve ergueu o sobrolho. Decidiu não contar à amiga que o cunhado não a deixou sequer um segundo durante a primeira noite. Era romântica o suficiente para desejar que descobris­sem um ao outro sozinhos.

— Por falar em confusão, deveria ver a ala leste. Tem vi­dro espalhado por todos os lados. As criadas levarão semanas para limpar tudo. — E deixando escapar um longo suspiro, pousou as mãos no ombro de Hannah. — Vou constrangê-la. Sei que era uma missão, mas quaisquer que tenham sido as razões que a trouxeram até nós, transmitiu-nos paz. Nada que possa dizer ou fazer pagará isso. Meu filho... — Um leve sorriso curvou os lábios da princesa. — Marissa e este estão seguros. Sei o que Deboque tinha em mente.

— Está tudo acabado, Eve.

— Sim. — Solene, a princesa beijou a face da amiga. — Devo-lhe minha vida e a de todos os meus entes queridos. Se houver algo que possa fazer por você, e estou falando como amiga e esposa do herdeiro do trono de Cordina, terá apenas de pedir

— Esqueça isso. Nunca fui capaz de manter amizades du­radouras. Quero crer que isso acabou.

Eve estudou a mulher que estava apenas começando a co­nhecer

— Tenho duas irmãs, a de sangue e a que Alexander me deu.

— A princesa lhe estendeu a mão. — Gostaria de ter três.

— Alteza. — Uma das jovens criadas assomou à porta. — Desculpe interromper, mas madame Frissoutte está aqui.

— Maravilhoso! — Eve deslizou o braço pelo da amiga.

— Prepare-se para a transformação.

De fato, foi uma transformação, pensou Hannah, enquanto es­tudava o próprio reflexo no espelho. Seus cabelos caíam em uma cascata de cachos, como os de uma cigana, pelos ombros, e estavam afastados da face por dois pentes cintilantes. O ves­tido brilhava e faiscava, caindo da altura dos ombros até os tornozelos. Foi esperta o suficiente para cobrir com maquia­gem as escoriações nos braços e na face.

Precisava apenas de sapatos de cristal, pensou com um meio sorriso. Mais ilusões. Mas se aquela tinha de ser a última que desfrutaria com Bennett, a aceitaria de bom grado. Não se arrependeria quando o relógio soasse as 12 badaladas.

A música já enchia o salão de baile. Hannah entrou, discre­ta, como de costume, e absorveu o brilho do local. Espelhos impecavelmente polidos refletiam o cintilar e o glamour dos vestidos e das jóias. Candelabros emitiam reflexos semelhan­tes aos das estrelas. Tudo em prata brilhante e azul glacial dos buquês e globos resplandecentes. Em uma árvore de Natal de seis metros, brilhavam cem anjos de cristal que captavam as luzes.

Ele a estivera observando. Esperando. Quando a viu, o ar sumiu de seus pulmões. O casal com quem estivera conver­sando se deteve, em silêncio, com as sobrancelhas erguidas, quando o jovem príncipe se afastou sem dizer uma palavra.

Bennett lhe pegou ambas as mãos, mesmo enquanto ela se curvava em uma reverência.

— Meu Deus, Hannah! — Pela primeira vez em sua vida ficou sem palavras. — Está esplêndida!

— Uma produção de Eve. — Ele trajava indumentária bran­ca com a insígnia de sua patente e uma espada pendendo da cintura. Apesar das muitas formas que recordava de Bennett, jamais esqueceria a aparência dele naquela noite. — Tudo está tão lindo!

— Agora está. — A mão do príncipe deslizou em sua cintu­ra, quando ele a girou para os primeiros passos da valsa.

Era como mágica, pensou Hannah. A música, as luzes, os es­pelhos...

Por quatro horas dançaram juntos, girando ao redor do sa­lão, deixando a comida e o vinho para os demais. Quando ele a guiou, dançando, até o terraço, Hannah não objetou. Ainda lhe restavam alguns minutos antes da meia-noite.

Afastando-se, ela se encaminhou para a grade para apreciar a paisagem de Cordina.

Luzes brilhavam em cores festivas por causa do feriado. A brisa tinha a tepidez e o aroma da primavera.

— Algum dia se cansou de apreciar esta vista?

— Não — Bennett se postou ao lado dela. — Acho que significa ainda mais agora.

Hannah compreendia o que ele queria dizer, e pretendia manter o fantasma de Deboque afastado.

— Na Inglaterra, estaria frio, com chuva de granizo. Talvez nevasse pela manhã, ou o céu em tom cinza e nublado. Todas as lareiras estariam acesas e o rum, aquecido. Os cozinheiros teriam preparado todos os perus e iguarias de modo que senti­ríamos os odores do Natal por todos os lados.

— Não podemos lhe proporcionar neve. — Bennett ergueu a mão dela e a beijou. — Mas podemos oferecer lareiras e conhaque aquecido.

— Não tem importância. — Hannah deixou escapar um suspiro. — Quando chegar em casa, vou me recordar de estar aqui neste local com o Natal quase sobre nós. Lembrarei da fragrância de rosas e jasmins.

— Pode esperar um momento?

— Está bem.

— Fique onde está — ordenou o príncipe, e lhe beijou a mão outra vez. — Será apenas um minuto.

Quando ele saiu, Hannah voltou a apreciar as luzes e o mar Dentro de poucos dias estaria em casa e, então, talvez Cordina lhe parecesse um sonho. Cordina, pensou, mas nunca Bennett. Ergueu a face e olhou uma estrela, mas não se atreveu a fazer um pedido.

— Tenho algo para você.

Com um meio sorriso lhe curvando os lábios, Hannah se voltou, e sentiu a fragrância.

— Oh, castanhas! — Com uma risada, pegou o saco que Bennett estendia em sua direção. — E estão quentes!

— Queria lhe dar algo de seu país.

Hannah ergueu o olhar para fitá-lo. Havia tanto o que dizer e nada que pudesse ser dito. Em vez disso, ergueu-se na ponta dos pés e o beijou.

— Obrigada.

Bennett roçou os dedos na face pálida.

— Pensei que dividiria comigo.

Hannah abriu o pequeno saco e com os olhos fechados ins­pirou o aroma.

— Não é maravilhoso? Agora parece Natal.

— Se Cordina pode se parecer com seu lar, talvez possa ficar. Hannah descerrou as pálpebras e baixou o olhar rapidamen­te para o saco de castanhas.

— Tenho ordem de retomar até o final da semana.

— Ordem! — Bennett fez menção de a tocar, mas se dete­ve. — Sua posição no SSI é de grande importância para você

— afirmou, sem conseguir disfarçar o tom de ressentimento.

— Fui informado de que recebeu uma promoção.

— Um cargo na diretoria. — Hannah mordiscou o lábio in­ferior — Trabalharei atrás da mesa por um bom tempo. Dan­do ordens — explicou, forçando um sorriso.

— Alguma vez considerou desistir?

— Desistir?

Foi o olhar vazio e surpreso que o preocupou. Seria pos­sível que Hannah não pensasse em mais nada além do dever para com a organização?

— Sim. Se tivesse algo com que substituí-lo. É a excitação que a estimula? — Ele tomou a face delicada nas mãos em concha, girando-a em direção à luz, de modo que visse a som­bra do ferimento provocado por Deboque.

— É simplesmente o que faço. — Hannah deixou escapar um suspiro. — Bennett, nunca falamos sobre o que aconteceu no iate. Não lhe agradeci por me salvar a vida. Acho que é porque estou acostumada a tomar conta de mim mesma.

— Eu o mataria apenas por isso — murmurou o jovem príncipe, traçando com a ponta do dedo o contorno do feri­mento na face de Hannah.

Ela fez menção de recuar, mas a visão daquele homem a impediu de fazê-lo.

— Não se afaste de mim. Não conversei com você sobre isso porque o Dr. Franco estava preocupado em mantê-la calma e despreocupada. Mas, danação!, falarei agora. — Bennett deu um passo, permitindo que ela sentisse a ansiedade e a malcontida fúria. — Tive de permanecer sentado, escutando-a lidar com aquele homem. Tive de ficar onde estava, impotente, en­quanto estava a sós com ele. Quando irrompi naquela cabine e o vi segurando um revólver contra sua cabeça, tive um lampejo do que seria a vida sem você. Portanto, não se afaste de mim agora, Hannah.

— Não me afastarei. — Tentando controlar a respiração, pousou vagarosamente a mão sobre a dele. — Está tudo aca­bado, Bennett. A melhor coisa a fazermos é tirar isso tudo de nossas mentes. Cordina está segura. Sua família está a salvo. E eu também.

— Não aceitarei que arrisque sua vida outra vez por nin­guém.

— Bennett...

— Não permitirei. — O jovem príncipe tomou um punhado dos cachos macios nas mãos e beijou Hannah, mas daquela vez com uma intensidade e poder que a deixou sem fôlego. Em seguida, recuou, lembrando a si mesmo que tinha um pla­no e o levaria até o final.

— Vai experimentar estas castanhas ou passará a noite toda sentindo apenas seu aroma?

— O quê? — Hannah mantinha o pacote fechado com a mão que o apertava pela abertura. Engolindo em seco, abriu-o outra vez. — Estou certa de que estão deliciosas — começou ela, sabendo que iria gaguejar — Foi tão atencioso de sua par­te... — Calou-se quando tocou uma pequena caixa. Surpresa, retirou-a do saco.

— É uma tradição norte-americana. Uma caixa de doces com um prêmio dentro. Tive ímpetos de lhe dar seu presente de Natal mais cedo.

— Sempre fui muito disciplinada em não distribuí-los antes da manhã de Natal.

— Poderia ter lhe dado ordem de recebê-lo, Hannah. — O príncipe lhe tocou a face. — Mas preferi não fazê-lo.

— Bem, já que estamos no baile de Natal. — Hannah abriu a tampa e pela primeira vez em sua vida sentiu que iria des­maiar.

— Pertenceu a minha avó. Tive de restaurá-lo, mas signifi­ca mais para mim dá-lo a você do que escolher outro em uma joalheria. — Bennett lhe tocou as pontas dos cabelos com os dedos. — Ela era inglesa como você.

Era uma esmeralda, brilhante, estonteante, e se tomava ain­da mais cintilante com a sinfonia de diamantes que a circun­dava. Apenas vislumbrá-la a fazia sentir-se tonta.

— Bennett, não posso aceitar isso. Pertence à sua família.

— Não seja cabeça-dura. — O jovem príncipe retirou o saco de castanhas das mãos dela e o colocou no peitoril da grade. A fragrância das castanhas se misturara à das rosas.

— Sabe muito bem que a estou pedindo em casamento.

— Você... está sendo influenciado... — começou ela, dando um passo atrás —... pelos acontecimentos. Não está pensando de maneira clara e objetiva.

— Minha mente nunca esteve tão clara. — Bennett pegou a pequena caixa das mãos dela, retirou o anel e jogou a caixa para o lado. — Faremos isso do meu jeito, então. — Tomando-lhe a mão, forçou o anel pelo dedo anular direito de Hannah.

— Agora a arrastarei até o salão e anunciarei nosso noivado... ou podemos discuti-lo de maneira racional.

— De maneira racional. — Como podia ter vontade de cho­rar e rir ao mesmo tempo?

— Eu a amo... discutamos de forma irracional então. — O jovem príncipe a puxou para si e tomou-lhe os lábios. Podia sentir o coração de Hannah batendo descompassado e a respi­ração alterada dividida entre o desejo e o medo. — Não vou deixá-la partir, nem agora, nem amanhã, nem nunca. Terá de trocar o cargo de diretoria pelo de princesa. Acredite-me, isso pode ser tão exaustivo quanto sua profissão.

Seria magia ou um sonho se tomando realidade? A cabeça de Hannah ainda rodava, enquanto tentava se agarrar ao bom senso.

— Sabe que não sou seu tipo. Por favor, Bennett, escute-me.

— Julga-me um tolo? — A voz do príncipe soava tão suave que dava a falsa impressão de calma.

— Claro que não. Quero apenas dizer que...

— Cale-se. — Bennett tomou-lhe a face nas mãos e ela percebeu que não havia calma nos olhos negros. — Pensei que a mulher pela qual me apaixonei a princípio era uma ilu­são — ele começou, roçando os lábios pela face delicada de maneira suave. — Estava errado, porque ela está exatamente aqui. Houve outra mulher, que fez minha boca secar toda vez que a via. — Os beijos se tomaram mais urgentes e opressi­vos. — Ela também está aqui. Não é todo homem que pode amar duas mulheres e ter ambas. E eu a terei, Hannah.

— Você já me tem. — Estava quase convencida de que po­dia ser real, verdadeiro e duradouro. — Mas nem mesmo você pode ordenar um casamento.

Bennett ergueu o sobrolho, arrogante e confiante. - Não esteja tão certa disso. Uma vez você disse que me queria. Estava mentindo?

— Não — Hannah se equilibrou, pousando ambas as mãos sobre o peito musculoso. Estava cruzando uma linha em sua vida, na qual não era permitido farsas.

Bennett lhe oferecia a chance de ser ela mesma, amar aber­ta e honestamente.

— Não. Não estava mentindo.

— Estou perguntando agora se me ama.

Hannah não pôde responder. Dentro do palácio o relógio soou 12 badaladas. Meia-noite! Em silêncio, contou-as, e es­perou que a magia se desfizesse. E, então, houve um silêncio profundo, mas ela ainda continuava nos braços de Bennett. Baixando o olhar, avistou o anel brilhando no próprio dedo. Uma promessa. Uma vida.

— Eu o amo, e nada poderia ser mais verdadeiro.

— Divida comigo meu lar. — Bennett tomou-lhe a mão ornada com o anel e pressionou os lábios na palma.

— Sim.

— E minha família.

Hannah entrelaçou os dedos nos dele.

— Sim.

— E meu dever.

— A partir deste instante.

Ela deslizou os braços em tomo do pescoço de Bennett e ergueu o rosto para desfrutar do beijo. Abaixo, até onde os olhos podiam alcançar, Cordina se espraiava à frente deles, e se preparava para dormir.

 

                                                                                Nora Roberts  

 

                      

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