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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRINCIPE VAMPIRO / Darren Shan
O PRINCIPE VAMPIRO / Darren Shan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Preste atenção às pessoas em quem você confia. Mesmo um suposto amigo íntimo pode ser capaz de traí-lo. Aprendi isso da pior maneira possível.
Meu nome é Darren Shan. Sou meio-vampiro. Fui vampirizado quando era muito jovem e durante oito anos viajei pelo mundo com o Circo dos Horrores — um circo ambulante de artistas com dons mágicos. Um dia meu mentor — Larten Crepsley — disse que eu ia ser apresentado aos Príncipes Vampiros. A maior parte dos Príncipes Vampiros e dos Generais Vampiros se reunia na distante Montanha do Vampiro, de doze em doze anos, para o Conselho dos Vampiros. Depois de uma longa e cansativa viagem até a montanha, com o Sr. Crepsley, Harkat Mulds (um Pequenino trazido de volta do mundo dos mortos por um homem poderoso chamado Sr. Tino), Torvelinho (um General) e quatro lobos (incluindo um macho que chamei de Pintado e um filhote que apelidei de Rudi), enfrentei os Príncipes, que disseram que eu teria de provar que era digno de me juntar às fileiras dos mortos-vivos. Determinaram um conjunto de provas difíceis conhecidas como Provas de Iniciação. Se eu passasse em todos os cinco testes, seria aceito como um deles. Se falhasse, seria morto. Passei nas três primeiras provas, mas a quarta terminou desastrosamente — enfrentei um feroz javali e teria sido morto se não fosse por Harkat, que saltou na arena e matou o animal. O problema foi que sua intervenção quebrou todas as regras. Enquanto os vampiros resolviam o meu destino, um deles foi às escondidas à minha cela e me levou embora, para minha salvação. Ele era um vampiro louro, esbelto, pacífico, extremamente inteligente chamado Kurda Smahlt e estava prestes a se tornar um Príncipe. Acreditei que ele era meu amigo. Quando estávamos fugindo, Torvelinho nos alcançou e tentou me convencer a voltar para enfrentar o veredicto dos Príncipes. Kurda o persuadiu a me deixar ir. Mas, quando estávamos perto da liberdade, encontramos um bando de vampixiitas — adversários dos vampiros, de pele roxa, que matam seres humanos quando sugam seu sangue — escondidos numa caverna. Foi quando Kurda mostrou quem realmente era. Apunhalou e matou Torvelinho, e eu me dei conta de que ele estava mancomunado com os vampixiitas. Ele tentou me pegar vivo, mas fugi e caí num regato da montanha. Kurda teria me salvado, mas ignorei sua ajuda e me entreguei à corrente traiçoeira que me levou rapidamente para o subterrâneo, para as entranhas da montanha e para a morte certa...

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CAPÍTULO UM

Escuridão — frio — águas revoltas — rugindo como mil leões — redemoinhando — batendo nas rochas, braços protegendo o rosto — encolhendo as pernas para fazer de mim um alvo menor. Lançado contra um emaranhado de raízes — seguro com força —
escorregadias — as raízes como dedos mortos me agarrando — um espaço entre a água e o teto do túnel — aspiro o ar rapidamente — a corrente me envolve outra vez — tento lutar contra ela — as raízes se quebram nas minhas mãos — a água me leva. Carregado aos solavancos — bato com força a cabeça numa rocha — vejo estrelas — quase desmaio — luto para manter a cabeça levantada — cuspo, mas a água continua a entrar na minha boca — como se eu estivesse engolindo metade do regato. A corrente me atira outra vez contra uma parede — rochas escarpadas cortam minhas coxas e meus quadris — água gelada amortece a dor — impede o fluxo do sangue — uma queda brusca num pequeno lago profundo — descendo, descendo, descendo — mantido no fundo pela força da água — entro em pânico — não posso encontrar o caminho para cima — vou me afogar — se não conseguir subir logo, vou... Meus pés batem numa parede e me impulsionam para a frente — subo devagar para longe do lago — a corrente é mansa aqui — muito espaço entre a água e o teto do túnel — consigo subir e respirar — o ar está frio e meus pulmões ardem, mas eu o respiro ávida e agradecidamente. O regato se lança no que parece ser uma grande caverna. Rugidos na outra extremidade. A água deve cair com força lá adiante. Deixo-me levar para um lado antes de enfrentar a queda. Preciso descansar e encher meus pulmões de ar. Quando começo a nadar perto da parede, no escuro, alguma coisa se prende na minha cabeça calva. Parecem gravetos. Seguro neles para me firmar, então vejo que não são gravetos — são ossos! Exausto demais para me assustar, seguro os ossos como se fossem parte de uma bóia salva-vidas. Respirando longa e profundamente, examino os ossos com os dedos. Estão ligados a um pulso, um braço, um corpo e uma cabeça, um esqueleto completo. Antigamente este regato era usado para dar fim aos corpos dos vampiros mortos. Este deve ter sido trazido pela água e se decompôs durante décadas. Procuro às cegas outros esqueletos mas não encontro nenhum. Imagino quem seria o vampiro, quando vivo, e há quanto tempo está aqui. Deve ser horrível, preso numa caverna como esta, sem sepultamento adequado, sem um lugar para o descanso final. Dou uma sacudida no esqueleto, esperando libertá-lo do que o prende. A caverna explode com gritos estridentes e sons de asas tatalando. Asas! Centenas de asas! Alguma coisa se choca contra meu rosto e se prende na minha orelha esquerda. Arranha e pica. Grito e o arranco da minha orelha, jogando-o para longe. Não posso ver nada, mas sinto uma agitação de objetos voando à minha volta e acima de mim. Outro colide comigo. Dessa vez eu o seguro e o examino com os dedos — um morcego! A caverna está cheia de morcegos. O barulho que
fiz quando sacudi o esqueleto os perturbou, e eles começaram a voar. Não entro em pânico. Não me atacarão. Estão apenas assustados e logo vão se acomodar. Solto o morcego e deixo que se junte ao movimento acima de mim. O barulho cessa depois de alguns minutos e os morcegos voltam aos seus poleiros. Silêncio. Tento imaginar como eles entram na caverna e como saem dela. Deve haver uma rachadura no teto. Durante alguns segundos imaginei que pudesse achar a abertura e subir para a salvação, mas os dedos amortecidos das minhas mãos e dos pés logo puseram fim a esses pensamentos. Eu não podia subir mesmo que achasse a abertura e ela fosse larga o suficiente para passar meu corpo. Começo a pensar outra vez no esqueleto. Não quero deixá-lo aqui. Procuro livrá-lo do que o prende, cautelosamente para não fazer barulho. A princípio ele não se move — está firmemente preso. Seguro com mais força e puxo outra vez. O esqueleto se solta de repente e cai em cima de mim, levando-me para baixo. A água entra na minha garganta. Agora fico apavorado! O esqueleto pesa em cima de mim, levando-me para o fundo. Vou me afogar! Vou me afogar! Vou me... Não! Pare com esse pânico. Use o cérebro. Passo os braços em volta do esqueleto e lentamente giro o corpo. Funciona! Agora o esqueleto está debaixo de mim. O ar é saboroso. Meu coração se acalma. Alguns morcegos voam outra vez, mas a maior parte deles está imóvel. Soltando o esqueleto, empurro-o com os pés para o meio da caverna. Seguro na parede, mantendo-me à tona com o movimento dos pés, dando tempo para que ele seja levado para longe de mim. Enquanto espero, penso. Será que foi uma boa idéia libertar o esqueleto? Um gesto louvável, mas se os ossos se engancharem numa rocha mais adiante e bloquearem meu caminho... Tarde demais para me preocupar agora. Devia ter pensado nisso antes. Minha situação é mais desesperadora do que nunca. É loucura pensar que vou escapar disto com vida. Mas me obrigo a pensar positivamente. Cheguei até aqui e o regato deve sair da montanha mais cedo ou mais tarde. Quem pode dizer que não posso ir até o fim? Acredite, Darren, acredite. Gostaria de ficar ali para sempre — mais fácil segurar na parede e morrer de frio —, mas tenho de tentar a liberdade. No fim, com esforço desdobro os dedos e largo da margem. Sou levado para o meio do regato. A corrente me ataca e me prende. Agora mais rápida, correndo — para a saída — rugindo furiosamente — rápida — virando para baixo — desaparecendo.
 
CAPÍTULO DOIS
 
 
Pior do que na caverna — faz com que a primeira metade da viagem pareça remar numa piscina — a água despenca e gira — as paredes de repente estão cheias de pedras aguçadas — a água jorra furiosamente — jogado de um lado para outro como se fosse feito de massa — impossível manter o controle — sem
tempo para parar e respirar — pulmões prestes a estourar — cubro a cabeça com os braços — encolho as pernas o mais possível — conservo o oxigênio — bato com a cabeça nas rochas — as costas — as pernas, a barriga — as costas — a cabeça — os ombros, a cabeça... Perco o controle das batidas — não posso mais sentir dor — meus olhos me enganam — olho para cima e as rochas parecem invisíveis — penso que estou vendo o céu, as estrelas, a lua — é o começo do fim — sentidos descontrolados, o cérebro se fechando — sem sorte — sem esperança, sem vida. Abro a boca para um longo e último gole de água — bato na parede — o ar explode para fora do meu corpo — a força da batida me joga para cima — saio num bolsão de ar entre a água e o teto — respiro longa, ávida e automaticamente. Fico boiando ali por alguns segundos, encostado na parede, respirando — a corrente me apanha outra vez e me leva para baixo — por um túnel estreito — velocidade incrível — como uma bala — o túnel ficando mais estreito — a velocidade aumenta — minhas costas raspam na parede — as rochas são lisas, do contrário eu seria feito em pedaços — parece um escorrega de piscina — quase gosto dessa parte da viagem de pesadelo. A descida acaba — outra vez o oxigênio começa a faltar — tento levantar a cabeça à procura de ar — não posso — não tenho energia para lutar. A água entra no meu nariz — tusso — água desce por minha garganta — estou perdendo a batalha — giro o corpo, fico de bruços — este é o fim — os pulmões se enchem de água — não posso fechar a boca — esperando a morte — de repente não há mais água — voando — (voando?) — o ar passa assobiando por mim — olho e vejo terra — o regato atravessa um trecho de terra — flutuando, como se eu fosse um pássaro ou um morcego — mais perto do regato — mais perto — meus olhos estão me enganando outra vez? Viro-me no meio do vôo — olho para cima — céu, céu de verdade, aberto e cintilante de estrelas — belo — estou fora! — estou fora de verdade! — eu consegui! — posso respirar! Estou vivo! Estou... Termina o vôo — caio na água com força — o impacto chacoalha minhas entranhas e desregula meu cérebro — escuridão outra vez, só que agora é dentro da minha cabeça.
 
CAPÍTULO TRÊS
 
 
A consciência volta aos poucos. Os sons me alcançam primeiro: o rugido da água, muito mais fraco do que na montanha, quase lírico. Lentamente abro os olhos. Estou olhando para estrelas, boiando de costas. Sorte ou as defesas naturais do meu corpo? Eu não sei. Não me importo. Estou vivo!
A corrente não é forte aqui. Poderia nadar facilmente até a margem, sair da água e começar a viagem de volta para a Montanha do Vampiro, que posso avistar a distância. Mas não tenho força para isso. Tento virar-me de bruços para nadar — não consigo. Minhas pernas e meus braços são como blocos de madeira sem vida. Sobrevivi à viagem através da montanha, mas por um alto preço. Estou completamente fraco e indefeso. Olho para a paisagem enquanto o regato me leva para longe da Montanha do Vampiro. Ela é escarpada e nada espetacular, mas bela depois do escuro da noite. Qualquer coisa pareceria bela depois de tanta escuridão. Nunca mais vou deixar de apreciar o campo. Estou morrendo? Pode ser — sem sensação, sem controle, à mercê do regato. Talvez já esteja morto e ainda não me dei conta. Não! Morto não estou. A água espirra no meu nariz e eu engasgo, prova de que estou vivo. Não vou desistir, não depois de tudo por que passei. Tenho de encontrar forças para ir até a margem. Posso flutuar assim para sempre. Quanto mais tempo durar, mais difícil fica. Tento insuflar energia nos meus membros exaustos. Penso no desperdício que seria morrer jovem, mas isso não me dá forças. Penso nos vampiros e na ameaça que Kurda e os vampixiitas representam, mas isso também não adianta. Finalmente, um velho mito de que o vampiro que morre na água corrente está condenado a ficar por aqui para sempre como um fantasma — os que morrem em rios ou regatos não vão para o Paraíso. Estranhamente (pois nunca acreditei nesse mito), a idéia me incita à ação. Levanto um braço fraco e começo a nadar vagarosamente para a margem. Não consigo muita coisa, a não ser girar um pouco na água, mas o fato de que sou capaz de me mover me enche de esperança. Rilhando os dentes, viro-me para a margem e obrigo minhas pernas a se levantarem atrás de mim. Elas respondem preguiçosamente, mas respondem. Tento o nado livre — não posso. Viro-me de costas, batendo debilmente com os pés na água e ajudando com pequenos movimentos das mãos. Lentamente começo a me aproximar da margem. Depois de um longo tempo, sou levado para muito mais longe da Montanha do Vampiro, mas finalmente, na água rasa, saio da corrente. Tento me levantar apoiado nos joelhos mas caio de bruços no chão. Viro a cabeça para um lado, vomito água e então volto a me ajoelhar. Arrasto-me para fora da água, para a margem coberta de neve, onde despenco outra vez. Meus olhos se fecham. Choro silenciosamente na neve. Quero ficar ali deitado e congelar, é mais simples do que me mover. Mas meus pés ainda estão na água e não gosto de senti-los balançando atrás de mim, e então os puxo para cima. O esforço me leva a mais ação. Gemendo, endireito o corpo, depois me levanto devagar e dolorosamente.
De pé, olho em volta como se estivesse num outro planeta. Tudo parece diferente. O dia está nascendo, mas as estrelas e a lua brilham no céu. Depois de tanto tempo dentro da montanha, tinha esquecido como é a luz do dia. É maravilhosa. Eu podia ficar ali o dia inteiro, só olhando, mas isso não me levaria a lugar algum e logo eu ia cair, no regato ou na neve, e congelar. Suspirando, obedecendo a algum instinto, arrasto os pés para a frente, dou alguns passos, paro, balanço a cabeça, me empertigo e me afasto do regato, que espuma e assobia zangado, atrás de mim — enganado por sua vítima.
 
CAPÍTULO QUATRO
 
 
Não precisei de muito tempo para me convencer de que não poderia ir longe se continuasse naquele estado. Estava encharcado até os ossos. Minha roupa pesava e o ar estava gelado. O Sr. Crepsley tinha me ensinado o que devia fazer se aquilo alguma vez acontecesse. Livrar-me rapidamente da roupa, do contrário morreria
congelado. Com esforço tirei a roupa. Meus dedos estavam amortecidos e tive de usar os dentes para me livrar de tudo. Mas me senti melhor quando me despi. Um grande peso fora tirado do meu corpo e, embora a força total do vento frio me castigasse, comecei a andar a passos acelerados. Não me importava o fato de estar andando nu como os animais selvagens. Não havia ninguém para ver. Mesmo que houvesse, não teria me importado — depois de ter estado tão perto da morte, o pudor era a última coisa em que pensaria. Meu passo acelerado não durou muito tempo. Logo comecei a compreender como era grave minha situação. Estava no meio do nada, sem roupa para me proteger do frio, exausto, física e mentalmente vazio, sem nada para comer. O movimento era uma luta para mim. Em poucos minutos ficaria sem nenhuma energia e ia desmoronar. O frio se instalaria então. Queimaduras de frio e hipotermia dariam cabo de mim. Tentei correr para me esquentar, mas não consegui. Minhas pernas simplesmente não funcionavam. Só por milagre conseguiam me manter de pé. Qualquer coisa mais rápida do que um arrastar dos pés estava além da sua capacidade. Parei e girei o corpo numa volta completa, esperando ver alguma coisa familiar. Se eu estivesse perto de um dos postos de descanso, usados pelos vampiros quando iam para o Conselho, poderia haver esperança. Podia dormir um ou dois dias e recuperar minhas forças. Um bom plano, com uma única grande falha — não tinha idéia de onde estava nem se havia algum posto de descanso. Pesei minhas opções. Se ficasse parado, não chegaria a lugar nenhum. E procurar um posto de descanso estava fora de cogitação — não tinha forças nem tempo. A primeira ordem do dia era encontrar algum lugar abrigado para me recuperar. Comida, calor e voltar para a Montanha do Vampiro podiam vir depois — se eu sobrevivesse. Havia uma floresta cerca de um quilômetro à minha esquerda. Era o melhor lugar. Eu podia me enrodilhar na base de uma árvore e me cobrir com folhas. Talvez encontrasse alguns insetos ou pequenos animais para comer. Não era ideal, mas parecia mais lógico do que ficar ali parado, num lugar aberto, ou subir em rochas escorregadias à procura de cavernas. Caí muitas vezes a caminho da floresta. Não era de admirar — o que me admirava era ter chegado até ali. Cada vez que caía ficava deitado na neve por alguns minutos, reunindo meus parcos recursos, depois, com esforço, me levantava e continuava a andar, cambaleando. A floresta assumira propriedades mágicas. Eu estava convencido de que, se conseguisse chegar até as árvores, tudo estaria bem.
Bem no fundo sabia que isso era bobagem, mas essa crença me ajudava a continuar. Sem ela não teria saído do lugar. Finalmente as forças me abandonaram quando faltavam uns cem metros, ou menos, para chegar às árvores. Meu coração sabia, enquanto ofegava deitado na neve, que tinha chegado ao fim da minha resistência. Mesmo assim, descansei por alguns minutos, como antes; depois, com um esforço corajoso, tentei me levantar — não consegui. Consegui erguer o corpo até os joelhos, e caí. Outro longo descanso. Outra vez tentei me levantar. Outra vez caí, agora com o rosto na neve, onde fiquei, tremendo de frio, incapaz de virar-me de costas. O frio era insuportável. Um ser humano teria morrido há muito tempo. Só o sangue de vampiro nas minhas veias tinha me mantido vivo. Mas mesmo o poderoso sangue dos vampiros tinha limites. Quase ultrapassei esses limites. Não tinha mais força nenhuma. Eu estava acabado. Chorei miseravelmente ali deitado, as lágrimas se transformando em gelo no meu rosto. Flocos de neve enchiam minhas pestanas. Tentei erguer a mão para retirá-los, mas não consegui. Até aquele pequeno gesto estava além das minhas forças. “Que modo horrível de morrer”, gemi. Mais cem metros e estaria salvo. Desmoronar e morrer tão perto do fim era uma pena. Se eu tivesse descansado mais na caverna da montanha talvez tivesse energia para continuar. Ou se eu... Um uivo agudo me tirou do devaneio. Tinha fechado os olhos e estava quase dormindo/morrendo. Com o som, eu os abri. Não podia mover a cabeça e os flocos de neve prejudicavam minha visão, mas olhei na direção geral da floresta e vi um vulto vago caminhando em minha direção, saltando na neve. Ah, era o que faltava, pensei. Como se as coisas já não estivessem péssimas — agora alguma coisa vai chegar e me comer vivo! Será que as coisas podiam ficar piores? A julgar pelo que tinha acontecido recentemente — sim! Fechei os olhos quando a criatura se aproximou e desejei estar congelado o bastante para não sentir seus dentes e suas garras enquanto me devorava. Lutar com ela estava fora de questão — um esquilo podia me vencer na condição em que eu estava. O hálito do animal cobriu meu rosto. Uma língua comprida lambeu em volta do meu nariz. Estremeci. Ele lambeu outra vez, agora meu rosto e minhas orelhas. Então lambeu os flocos de neve das minhas pestanas. Abri os olhos e pisquei. O que estava acontecendo? O animal estava me limpando antes de me matar? Parecia pouco provável. Mas que outra explicação podia haver? Quando acomodei minha visão, o animal recuou um pouco e entrou em foco. Abri a boca atônito. Meus lábios tremeram. E com a voz trêmula e dolorosa murmurei incrédulo: — Rudi?
 
CAPÍTULO CINCO
 
 
Rudi era o filhote de lobo que acompanhara o Sr. Crepsley, Harkat, Torvelinho e a mim numa parte do caminho para a Montanha do Vampiro. Pertencia a uma pequena alcatéia, que incluía duas lobas e um macho grande que batizei de Pintado. Eles nos deixaram, perto da Montanha do Vampiro, para se unir a outras
alcateias. Rudi pulava em volta de mim, latindo entusiasmado. Tinha crescido um pouco desde que nos separamos, suas presas estavam mais longas e o pêlo mais espesso do que nunca. Consegui erguer a cabeça e sorri fracamente. — Estou numa grande enrascada, Rudi — murmurei, e o filhote lambeu meus dedos. Ele empinou as orelhas e olhou para mim muito sério, como se tivesse compreendido. — Uma grande enrascada — repeti em voz baixa e desmoronei outra vez. Rudi esfregou o nariz no lado direito do meu rosto. Um nariz úmido e quente. Lambeu em volta dos meus olhos e das minhas orelhas, depois apertou o corpo contra o meu, tentando me aquecer. Quando viu o quanto eu estava sem forças, recuou alguns passos e uivou. Logo depois, um segundo lobo saiu da floresta, maior, mais peludo, tão familiar quanto Rudi. — Pintado — murmurei quando o lobo avançou cautelosamente para mim. Ele empinou as orelhas quando ouviu minha voz, depois avançou para a frente. Rudi continuou a uivar até Pintado zangar com ele. O lobo adulto me farejou da cabeça aos pés, depois latiu para Rudi. Deitaram ao meu lado, Pintado atrás, Rudi na frente, cobrindo a maior parte do meu corpo com os deles, transmitindo seu calor. Depois de alguns minutos, o calor começou a percorrer meu corpo. Eu abria e fechava os dedos das mãos e dos pés, eliminando o pior do frio. Enrodilhei-me como uma bola para que os lobos pudessem me cobrir melhor e enfiei o rosto entre os ombros peludos de Rudi. Ficamos assim por uma eternidade, os lobos mudando de posição uma vez ou outra para manter o calor. Finalmente Pintado se levantou e latiu. Tentei me levantar. Não consegui. Balancei a cabeça e gemi. — Não adianta, não posso continuar. O lobo olhou demoradamente para mim em silêncio, depois inclinou a cabeça e mordeu meu traseiro! Gritei e instintivamente rolei para longe dele. Pintado foi atrás de mim e saltou para meus pés. — Fique longe de mim, seu malvado... — gritei, depois parei quando vi a expressão no rosto dele. Olhei para meu corpo, depois para Pintado e sorri encabulado. — Estou de pé — murmurei redundantemente. Pintado uivou baixinho, depois mordiscou minha perna direita e olhou para as árvores. Assentindo com um movimento da cabeça, cansado, comecei a andar para a floresta com os lobos ao meu lado. Não foi fácil. Eu estava gelado e exausto e tropecei nem sei quantas vezes. Pintado e Rudi continuaram. Sempre que eu parava, eles se encostavam em mim, ou bafejavam seu hálito quente em mim ou rosnavam para que eu me levantasse. Em determinado momento, Pintado me deixou segurar no pêlo longo
e espesso do seu pescoço e me arrastou pela neve. Não sei ao certo por que eles me ajudaram — normalmente animais selvagens abandonam os companheiros feridos que não podem se levantar. Talvez quisessem agradar aos vampiros que davam restos de comida para eles durante o Conselho. Ou talvez sentissem recursos secretos em mim e soubessem que meu caso não era sem esperança. Depois de uma longa e difícil caminhada, entramos numa clareira onde uma grande alcatéia estava reunida. Devia haver uns vinte ou trinta predadores, deitados, comendo, brincando e se limpando, todos de cores, formas e raças diferentes. Os lobos olharam para mim com desconfiança. Um macho escuro e grande aproximou-se e me farejou, depois rosnou ameaçadoramente, arreganhando os dentes. Pintado aceitou o desafio e rosnou também. Os dois rosnaram um para o outro por alguns segundos, até o lobo escuro dar meia-volta e ir embora. Rudi correu atrás dele, latindo, mas Pintado latiu zangado e ele voltou com o rabo entre as pernas. Enquanto eu olhava desconfiado para os lobos, Pintado me empurrou com o focinho na direção de uma loba que amamentava três filhotes. Ela estendeu a pata protetoramente sobre os filhotes e rosnou para nós quando nos aproximamos, mas Pintado gemeu baixinho e se deitou no chão para mostrar que não pretendia fazer nenhum mal. Quando a loba relaxou, Pintado se levantou e olhou nos olhos dela. A loba rosnou, raspando o chão com a pata, e retribuiu o olhar. Dessa vez ela abaixou a cabeça e não rosnou de volta. Pintado empurrou minhas pernas com o focinho e eu me deitei. Ele continuou a me empurrar e então compreendi o que ele queria que eu fizesse. — Não! — resisti com o estômago revirado. — Não posso! Pintado rosnou e me empurrou para a frente. Estava fraco demais para discutir. Além disso, fazia sentido — eu estava gelado e com fome, mas fraco demais para comer. Precisava de alguma coisa quente e nutritiva, alguma coisa que não precisasse ser mastigada. Deitei e me arrastei para a frente, empurrando delicadamente os três filhotes para um lado, abrindo espaço. Os filhotes latiram para mim, desconfiados, se juntaram, me farejaram e me aceitaram como um deles. Quando meu rosto estava levantado para a barriga da loba, respirei profundamente, parei por um momento, depois encontrei uma teta cheia de leite, fechei os lábios em volta dela e bebi.
 
CAPÍTULO SEIS
 
 
A loba me tratou como os filhotes, certificando-se de que eu tomava leite suficiente, cobrindo-me com as patas para me manter aquecido, lambendo atrás das minhas orelhas e em volta do meu rosto para me limpar (eu me afastei quando senti vontade de ir ao banheiro!). Fiquei com ela por alguns dias, aos
poucos recuperando as forças, encostando-me nela e nos filhotes para me aquecer, sobrevivendo graças ao seu leite quente. O gosto não era bom, mas não estava em posição de reclamar. Comecei a me recuperar, mas muito dolorosamente. Equimoses cobriam cada centímetro do meu corpo. Os cortes não eram muito graves — o frio limitou o fluxo do sangue —, mas ardiam loucamente. Desejei ter um pouco da teia curativa de Sebá para aplicar neles. Quanto mais pensava na minha descida no regato da montanha, mais incrível me parecia. Teria mesmo feito aquilo ou tinha sido um sonho louco? Se não fosse pela dor, talvez acreditasse na segunda hipótese, mas sonhos são indolores, portanto tinha de ser real. Mais incrível ainda era o fato de não ter quebrado nenhum osso importante. Três dedos da minha mão esquerda estavam quebrados, meu polegar direito se projetava num ângulo alarmante e meu tornozelo esquerdo estava inchado como uma bola de ar roxa, mas fora isso eu parecia estar bem. Podia mover os braços e as pernas, minha cabeça não estava quebrada, minha coluna não fora partida em duas. No fim das contas, estava em surpreendente bom estado. Com o passar dos dias, fazia alongamento e testava minhas forças. Ainda dormia ao lado da loba e mamava nela, mas comecei a fazer caminhadas curtas pela clareira, exercitando-me de leve. Meu tornozelo esquerdo doía terrivelmente, mas o inchaço diminuiu aos poucos e finalmente voltou ao normal. Com a volta de minhas forças, Pintado começou a me levar carne e frutas silvestres. No começo não podia comer muito, mas sugava bastante sangue dos animais pequenos que ele levava e meu apetite logo aumentou. Rudi passava muito tempo comigo, fascinado com a minha cabeça calva — tive de raspar a cabeça depois que meus cabelos se incendiaram durante uma das Provas de Iniciação —, e não parava de lamber e esfregar o queixo e o focinho nela. Depois de quatro dias (talvez cinco ou seis — não tinha calculado bem o tempo), os lobos foram para outro trecho da floresta. Foi uma marcha longa — sete ou oito quilômetros —, e fiquei muito atrás a maior parte do tempo, ajudado por Pintado, Rudi e pela loba que me amamentara (ela agora me considerava um filhote e me tratava como os outros). Embora difícil, a caminhada foi benéfica e, quando acordei naquela noite depois de um sono longo e sem sonhos, senti-me quase tão bem quanto antes da minha descida pelo regato. O pior das equimoses tinha passado, os cortes cicatrizaram, o tornozelo pouco me incomodava e podia comer normalmente. Naquela noite, saí para caçar com os lobos. Não podia me mover rapidamente, mas consegui acompanhá-los e ajudei a trazer uma velha rena que vários lobos estavam perseguindo. Era bom poder contribuir para a alcateia, depois de terem feito tanto por mim, e dei uma grande porção da minha parte da
carne para a loba e para os filhotes. No dia seguinte houve uma cena desagradável. O lobo escuro que tinha reclamado da minha presença quando Pintado me levou para a alcatéia nunca me aceitou. Ele rosnava e latia sempre que me aproximava e muitas vezes roubava a comida das minhas mãos. Eu o evitava tanto quanto possível, mas naquele dia, quando me viu brincando com os filhotes e dando carne para eles, descontrolou-se. Avançou para mim, latindo ferozmente, procurando afastar-me dos filhotes. Recuei devagar, sem demonstrar medo, mas não deixei a alcatéia — se deixasse que me perseguisse uma vez, nunca ia parar. Fiquei circundando os lobos, esperando que ele perdesse interesse em mim, mas ele me seguiu, determinado, rosnando ameaçadoramente. Quando me preparava para lutar, Pintado se pôs entre nós dois, enfrentando o lobo escuro. Eriçou os pêlos do pescoço para parecer maior e rosnou. Parecia que o lobo escuro ia recuar, mas então abaixou a cabeça, arreganhou os dentes e avançou para Pintado com as garras estendidas. Pintado enfrentou o desafio e os dois rolaram no chão, mordendo e arranhando. Os outros lobos apressaram-se a deixar espaço livre para eles. Alguns mais novos latiam excitados, mas a maior parte dos mais velhos ignorou a luta ou olhava com pouco interesse. Estavam acostumados a brigas como aquela. Para mim parecia que os lobos iam se fazer em pedaços e eu corria em volta deles, preocupado, esperando poder separá-los. Mas, à medida que a luta progredia, me dei conta de que, com todos aqueles latidos, todas aquelas mordidas e arranhões, eles não estavam causando grande dano um ao outro. O focinho de Pintado estava arranhado e o lobo escuro sangrava de algumas mordidas, mas na verdade não queriam machucar um ao outro. Era mais como uma luta romana do que qualquer outra coisa. A luta continuou e era óbvio que Pintado tinha derrotado o outro lobo. Ele não era muito pesado, mas era mais rápido e ágil, e cada ataque que recebia respondia com dois ou três. De repente o lobo escuro parou, deitou e rolou, expondo o pescoço e a barriga. Pintado abriu a boca e abocanhou com os dentes o pescoço do adversário, depois soltou sem ferir a pele e se afastou. O lobo escuro se levantou e foi embora com o rabo entre as pernas. Pensei que o lobo teria de deixar a alcatéia, mas ele não deixou. Embora tivesse dormido sozinho naquela noite, nenhum dos lobos tentou expulsá-lo e ele retomou seu lugar nas expedições de caça na primeira vez que saíram. Pensei muito nisso por um ou dois dias, comparando o modo como os lobos tratavam seus perdedores com o modo como os vampiros tratavam os deles. No mundo dos vampiros a derrota era uma vergonha, e na maioria das vezes acabava com a morte do derrotado. Lobos eram mais compreensivos. A honra
tinha significado para eles, mas não matavam ou isolavam um membro da alcatéia só por ter sido derrotado. Os filhotes tinham de passar por testes de maturidade, como eu passara pelas Provas de Iniciação, mas não eram mortos quando falhavam. Eu não era entendido no assunto, mas me parecia que os vampiros podiam aprender uma ou duas coisas com os lobos, se resolvessem estudar seus costumes. Era possível ser respeitável e prático ao mesmo tempo. Kurda Smahlt, com toda sua traição, estava certo quanto a isso.
 
CAPÍTULO SETE
 
 
Mais alguns dias se passaram. Sentia-me feliz por estar vivo e saboreava cada momento. Meu corpo estava quase completamente recuperado, embora com algumas leves equimoses em algumas partes. Minhas forças voltaram. Estava cheio de vigor e vinagre (uma das expressões do meu pai. Jamais cheguei a saber
o que queria dizer), ansioso para ir em frente. Eu mal sentia o frio. Tinha me acostumado com o rigor do vento e com o frio da neve. Uma ou outra rajada mais violenta me fazia tremer, mas, na maior parte do tempo, parecia-me natural andar nu como os lobos. Agora eu era aceito como um membro da alcatéia. Estava de novo de pé, e constantemente saía para caçar — como podia correr mais depressa que os lobos, meus serviços eram muito requisitados. Aos poucos me acostumava com o modo de pensar e de se comunicar deles. Não podia ler os pensamentos, mas quase sempre tinha uma boa idéia do que estavam pensando — eu sabia pelo modo como erguiam os ombros, arregalavam ou entrecerravam os olhos, empinavam ou abaixavam as orelhas e a cauda, rosnavam, latiam ou uivavam. Na caça, se Pintado ou outro lobo queria que eu fosse para a esquerda ou para a direita, bastava olhar para mim e virar a cabeça. Se uma loba queria que eu brincasse com seus filhotes, ela uivava de um modo especial e eu sabia que estava me chamando. Os lobos, por seu lado, pareciam entender tudo o que eu dizia. Eu raramente falava — não havia muita necessidade de palavras —, mas, sempre que o fazia, eles inclinavam a cabeça para o lado e ouviam atentamente, depois respondiam com um latido ou um gesto. Estávamos sempre mudando de lugar, como é costume dos lobos. Eu esperava encontrar a Montanha do Vampiro, mas não conseguia. Isso me intrigava — os lobos se reuniam naqueles lugares para convergir à montanha e comer os restos que os vampiros jogavam para eles. Resolvi perguntar para Pintado, mas sem esperança de que ele compreendesse a pergunta para dar uma resposta. Para minha surpresa, quando mencionei a Montanha do Vampiro, ele eriçou os pêlos do pescoço e rosnou. — Você não quer ir lá? — perguntei, intrigado. — Por que não? — A única resposta de Pintado foi outro rosnado. Pensando no assunto, adivinhei que devia ser por causa dos vampixiitas. Os lobos deviam saber dos invasores de pele roxa ou então simplesmente sentiam que havia um problema e procuravam ficar longe da montanha. Eu tinha de fazer alguma coisa a respeito dos vampixiitas, mas a idéia de voltar para a Montanha do Vampiro me assustava. Tinha medo de que os vampiros me matassem antes que eu tivesse uma chance de explicar sobre os vampixiitas. Ou podiam pensar que eu estava mentindo e acreditar na palavra de Kurda e não na minha. Eu precisava voltar, mas adiava tanto quanto possível, fingindo para mim mesmo que ainda não estava perfeitamente bem para fazer a viagem. Meus três dedos quebrados estavam consolidados. Imobilizei os ossos da melhor maneira possível — muito dolorosa! — e enrolei os três juntos com juncos e folhas. O polegar direito ainda estava num ângulo maluco e doía quando
o movia, mas era uma pequena irritação. Quando não estava caçando ou brincando com os filhotes, pensava muito em Torvelinho, com o coração apertado cada vez que me lembrava da sua morte, mas não podia deixar de pensar nele. A perda de um amigo é uma tragédia terrível, especialmente quando acontece de forma tão rápida e inesperada. O que realmente me angustiava sobre a morte de Torvelinho era que podia ter sido evitada. Se eu não tivesse fugido, ou se não tivesse confiado em Kurda ou, ainda, se tivesse ficado e lutado com Torvelinho — ele ainda estaria vivo. Não era justo. Ele não merecia morrer. Era um vampiro bravo, leal, de bom coração, amigo de todos. Às vezes, quando pensava nele, sentia ódio e desejava ter esfaqueado Kurda até a morte, mesmo que isso significasse minha morte nas mãos dos vampixiitas. Outras vezes uma tristeza imensa me dominava e eu cobria o rosto com as mãos e chorava, imaginando o que levara Kurda a fazer uma coisa tão horrível. Meu comportamento intrigava os lobos. Eles não passavam muito tempo lamentando seus mortos. Se perdiam um companheiro ou um filhote, uivavam muito por algum tempo, depois continuavam com sua vida. Não podiam compreender os altos e baixos do meu temperamento. Para me animar, certa vez, tarde da noite, Pintado me levou para caçar. Normalmente nunca caçávamos sozinhos, mas a alcatéia estava se acomodando para a noite, por isso fomos só os dois. Era bom estarmos só nós dois. Um dos inconvenientes de caçar com uma alcatéia é que você tem de ser muito organizado — se você comete um erro e prejudica a caçada, é tratado com desprezo. Agora sozinhos, Pintado e eu éramos livres para fazer o que queríamos e seguir os caminhos mais estranhos. Não importava se íamos pegar alguma coisa ou não — queríamos esporte, não uma presa. Seguimos duas renas jovens e ágeis. Não esperávamos apanhá-las, mas era divertido ir atrás delas. Acho que elas pressentiram nossa intenção porque viravam e corriam para nós, depois balançavam a cabeça e fugiam. Estávamos atrás delas havia mais de um quarto de hora quando as duas renas chegaram ao topo de uma pequena elevação e pararam para farejar o ar. Comecei a correr para elas, mas Pintado rosnou e parou. Parei também, sem saber qual era o problema. Pintado estava imóvel como as renas. Então, quando as renas viraram e correram para nós, ele encostou o focinho na minha perna e correu para uma moita ao lado. Fui atrás depressa, confiando nos seus sentidos muito mais desenvolvidos. Encontramos uma moita cerrada que nos permitia ver a elevação e deitamos atrás dela. Um minuto se passou. Dois. Então um vulto apareceu na colina. Meus olhos estavam mais aguçados do que nunca e reconheci imediatamente o vampiro de
longe — Sr . Crepsley! Comecei a me levantar, cheio de alegria, e abri a boca para gritar as boasvindas. Um rosnado baixo de Pintado me fez calar. A cauda do lobo estava muito junto ao corpo, como quando ele ficava ansioso. Queria correr e me encontrar com meu velho amigo, mas sabia que Pintado não estaria agindo daquele modo sem motivo. Deitado atrás do lobo, olhei para a colina e logo fiquei sabendo a causa de toda aquela preocupação. Atrás do Sr. Crepsley marchavam cinco vampiros e na frente de todos, com uma espada afiada e brilhante, estava o futuro príncipe e traidor — Kurda Smahlt!
 
CAPÍTULO OITO
 
 
Fiquei bem junto ao solo quando os vampiros passaram, escondido atrás da moita, contra o vento, para que não me farejassem. Assim que saíram do raio imediato da visão, olhei para Pintado. — Temos de segui-los — murmurei. Pintado olhou atentamente para mim
em silencio com seus olhos grandes e amarelos, depois se levantou. Recuou para dentro da moita. Fui atrás dele, confiando em que ele não deixaria de atender meu pedido. Alguns minutos depois demos uma volta e vimos os vampiros. Começamos a segui-los, acompanhando seus passos, com cuidado para não chegar muito perto. Examinei os quatro vampiros que acompanhavam o Sr. Crepsley e Kurda. Três eu não conhecia, mas o quarto era Arra Barbatanas. A ultima vez que a tinha visto seu braço direito estava numa tipóia, mas agora o vi estendido ao lado do corpo. Depois de algum tempo, notei que os dois vampiros que não conhecia tinham espadas como a de Kurda e andavam um pouco atrás de Arra e dos outros vampiros desarmados. Compreendi imediatamente o que estava acontecendo. O Sr. Crepsley resolvera sair para me procurar. Arra e os outros vampiros concordaram em ir com ele. Kurda, preocupado com a possibilidade de eu ter sobrevivido, devia ter se oferecido para ajudar e levou os vampiros armados com ele. Se me descobrissem vivo, as espadas iam ser usadas e seria o meu fim, do Sr. Crepsley, de Arra e do outro vampiro. Kurda estava garantindo que a notícia da sua traição jamais chegasse aos ouvidos dos Generais e dos Príncipes. O plano malvado de Kurda não me surpreendeu, mas fiquei furioso ao ver que ele não era o único traidor. Os dois vampiros com espadas deviam saber que ele estava aliado aos vampixiitas, do contrário Kurda não poderia confiar neles. Eu suspeitava que os Guardiões do Sangue (seres humanos estranhos que viviam dentro da Montanha do Vampiro e doavam seu sangue em troca dos órgãos internos dos vampiros mortos) faziam parte da conspiração, mas tinha pensado que Kurda era o único vampiro traidor — ao que parecia eu estava errado. Se o Sr. Crepsley e Arra não estivessem concentrados na minha procura, teriam percebido que alguma coisa estava errada — os vampiros com as espadas estavam irritados, com olhares nervosos e dedos inquietos. Gostaria de ter saltado na frente deles e dado um murro em Kurda — ele era o mais inquieto de todos —, mas o bom senso venceu. Se eu fosse visto vivo, ele e seus homens me matariam e também os três outros vampiros. Enquanto acreditassem que eu estava morto, não fariam nada para se trair. Passei um longo tempo olhando para os companheiros de Kurda, gravando na memória seus traços, imaginando quantos mais faziam parte da conspiração para destruir o clã. Não muitos, podia apostar. Os vampiros que estavam com ele eram muito jovens. Provavelmente Kurda os tinha recrutado pessoalmente e os fez adotar seu modo de pensar antes que tivessem tempo de conhecer os costumes dos vampiros. Vampiros mais experientes, que davam valor à honra e à lealdade, jamais sonhariam em se aliar a um traidor. Depois de algum tempo, o grupo parou numa pequena clareira e todos se sentaram para descansar, exceto o Sr. Crepsley, que ficou todo o tempo andando
de um lado para outro, ansiosamente. Bati no ombro de Pintado e apontei para a clareira — queria chegar mais perto. O lobo hesitou, farejou o ar e começou a andar na minha frente. Arrastamo-nos cautelosamente até sete ou oito metros da clareira e paramos, escondidos atrás do tronco de uma árvore morta. Com meu desenvolvido sentido da audição, podia ouvir o que diziam perfeitamente. Nada foi dito por alguns minutos. Os vampiros assopravam as mãos em concha e fechavam melhor os casacos, tremendo de frio. Sorri pensando no desconforto que sentiriam se estivessem na minha situação. Então Kurda se levantou e se aproximou do Sr. Crepsley. — Acha que vamos encontrá-lo? — perguntou o traidor, fingindo preocupação. O Sr. Crepsley suspirou. — Provavelmente não. Mas gostaria de continuar procurando. Quero achar seu corpo e cremar adequadamente. — Ele ainda pode estar vivo — disse Kurda. O Sr. Crepsley riu com tristeza. — Seguimos seu caminho nos túneis. Sabemos que caiu no regato e não emergiu. Pensa mesmo que ele pode ter sobrevivido? Kurda balançou a cabeça como se estivesse profundamente deprimido. O porco imundo! Talvez não acreditasse que eu estava vivo, mas não queria correr nenhum risco. Se não fosse por aquela espada eu teria... Acalmei-me e continuei a ouvir a conversa. Arra agora tinha se juntado aos dois e estava falando. —... vi pegadas de lobo lá atrás. Eles podem ter descoberto e devorado seu corpo. Devemos verificar. — Duvido que o tenham devorado — disse o Sr. Crepsley. — Os lobos respeitam os vampiros como nós os respeitamos. Além disso, o sangue dele os teria envenenado e ouviríamos seus uivos ensandecidos. Depois de um breve silêncio, Arra murmurou: — Gostaria de saber o que aconteceu naqueles túneis. Se Darren estivesse sozinho e caísse no regato eu compreenderia, mas Torvelinho desapareceu. Senti o sangue gelar à menção de Torvelinho. — Ou ele caiu no regato tentando salvar Darren — disse Kurda casualmente — ou Darren caiu tentando salvá-lo. Só posso pensar nessa resposta. — Mas como eles caíram? — perguntou Arra. — O regato não é muito largo no local onde caíram. Certamente teriam conseguido se salvar. Mesmo que fosse muito largo para eles, por que não saltaram onde era mais estreito? Não faz sentido. Kurda deu de ombros e fingiu estar tão intrigado quanto os outros dois. — Pelo menos sabemos que Torvelinho está morto — observou o Sr. Crepsley. — Embora não tenhamos encontrado o corpo, a ausência do seu sinal
mental significa que ele não respira mais. Sua morte me entristece, mas a incerteza sobre Darren me preocupa muito mais. Tudo leva a crer que ele não está vivo, mas, até termos prova de sua morte, não poderei aceitar. Era estranhamente reconfortante saber que, mesmo em meio a tanta preocupação, o Sr. Crepsley não havia perdido nada do seu modo esmerado de falar. — Continuaremos a procurar — disse Kurda. — Se ele puder ser encontrado, nós o acharemos. O Sr. Crepsley balançou a cabeça e suspirou outra vez. — Não — disse ele. — Se não encontrarmos o corpo esta noite, devemos abandonar a busca. Precisamos nos preparar para sua investidura. — Esqueça a investidura — disse Kurda. — Não — respondeu o Sr. Crepsley. — Depois de amanhã à noite você será Príncipe. Isso tem precedência sobre tudo o mais. — Mas... — começou Kurda. — Não — rosnou o Sr. Crepsley. — Sua investidura como Príncipe é mais importante do que a perda de Torvelinho e de Darren. Você já quebrou a tradição saindo da montanha tão perto da cerimônia. Deve parar de pensar em Darren. Como Príncipe é seu dever pôr a vontade e os desejos dos outros antes dos seus. Seu povo espera que você passe o dia de amanhã jejuando e preparando-se para a investidura. Não deve desapontá-lo. — Muito bem — gemeu Kurda. — Mas isto não é o fim. Estou tão preocupado quanto você com o que aconteceu. Só descansarei quando tiver certeza de que Darren está vivo ou morto. Mas que hipócrita! Agindo como se fosse inocente, fingindo estar preocupado. Se tivesse uma pistola ou uma besta, eu o mataria ali mesmo. As leis dos vampiros — que proíbem o uso de armas como pistolas e bestas — que se danem! Quando os vampiros recomeçaram a marcha, fiquei onde estava, pensando intensamente. A lembrança da investidura de Kurda me abalou. Tinha esquecido que ele seria investido no cargo de Príncipe Vampiro. Mas agora, pensando nisso, as coisas tomavam uma forma sinistra. Tinha pensado que os vampixiitas só pretendiam matar tantos vampiros quantos pudessem e tomar a montanha, porém, quanto mais pensava, menos isso fazia sentido. Por que correr todo esse risco só para tomar uma porção de cavernas às quais não davam a menor importância? E, mesmo que matassem todos os vampiros presentes, havia muitos mais que podiam correr para a montanha e reclamar sua posse. Devia haver um motivo lógico para estarem aqui, e pensei que sabia qual era — a Pedra de Sangue. A Pedra de Sangue era uma pedra mágica com a qual vampiros e vampixiitas podiam localizar praticamente qualquer vampiro da face
da terra. Com a pedra, os vampixiitas podiam localizar e matar vampiros à vontade. A pedra, diziam também, era o único objeto que podia salvar os vampiros de serem dizimados pelo lendário Senhor dos Vampixiitas, que supostamente apareceria numa noite e conduziria os vampixiitas a uma luta vitoriosa contra os vampiros. Se o temido Senhor estivesse para chegar — como disse o Sr. Tino —, os vampixiitas naturalmente estariam ansiosos para pôr as mãos na única coisa que estava entre eles e a vitória total. Mas a Pedra de Sangue era protegida por magia no Salão dos Príncipes. Não importa quantos vampiros os vampixiitas matassem, ou a extensão da montanha que eles tomassem, jamais poderiam entrar no Salão dos Príncipes, porque somente um Príncipe Vampiro era capaz de abrir as portas do salão. Somente. Um. Príncipe. Vampiro. Como Paz Celestial, Mika Ver Leth, Arqueiro ou Vancha March. Ou — depois de amanhã, à noite — Kurda Smahlt. Esse era o plano! Uma vez investido, Kurda poderia abrir as portas do Salão dos Príncipes quando quisesse. Quando estivesse pronto, tiraria os vampixiitas das cavernas e dos túneis — ele conhecia caminhos no salão que ninguém mais conhecia — e os levaria ao Salão dos Príncipes, mataria todos que estivessem lá e tomaria o controle da Pedra de Sangue. Quando Kurda a tivesse nas mãos, os vampiros, em todas as partes do mundo, teriam de fazer o que ele mandasse — ou morreriam por desobedecer-lhe. Em menos de quarenta e oito horas, Kurda seria investido e o salão seria dele. Ninguém sabia da sua traição, portanto ninguém poderia detê-lo — exceto eu. Por mais que relutasse em enfrentar os vampiros que haviam me condenado à morte, estava na hora de voltar à Montanha do Vampiro. Precisava avisar os Generais e os Príncipes antes que Kurda tivesse tempo de traí-los. Nem que me matassem por isso...
 
CAPÍTULO NOVE
 
 
Voltamos à alcatéia e eu disse para Pintado que precisava partir para a Montanha do Vampiro. O lobo rosnou e mordeu de leve meu tornozelo direito, tentando me fazer ficar com ele. — Preciso ir! — disse eu impaciente. — Tenho de deter os vampixiitas.
Pintado me soltou quando mencionei os vampixiitas e rosnou baixinho. — Eles planejam atacar os vampiros — disse eu calmamente. — Eles vão matar todos se eu não os impedir. Pintado olhou para mim, respirando pesadamente, depois escavou a neve, farejou as marcas que havia feito e latiu. Era evidente que tentava me comunicar alguma coisa importante, mas eu não conseguia descobrir o que era. — Não compreendo — disse eu. Pintado rosnou, farejou outra vez as marcas na neve, virou-se e começou a andar. Segui-o intrigado. Ele me levou a uma velha loba que descansava afastada da alcatéia. Eu a tinha visto antes, mas não prestei atenção — ela era velha, não muito longe da porta da morte, e não se misturava muito com os outros, sobrevivendo dos restos que eles deixavam para trás. A loba olhou desconfiada para nos quando nos aproximamos. Levantando com dificuldade, recuou cautelosamente, mas Pintado deitou-se de bruços e rolou no chão, demonstrando que não queríamos fazer nenhum mal. Fiz a mesma coisa e a loba relaxou. Quando Pintado se sentou, chegou muito perto dela, que já não enxergava muito bem, e olhou atenta e longamente para ela, rosnando baixinho, significativamente. Ele fez marcas na neve, como as que fizera para mim, depois latiu para a velha loba. Ela olhou para as marcas, depois para mim e uivou. Pintado latiu outra vez, e ela respondeu com um uivo longo e agudo. Olhando para os dois, tentando entender o que estava acontecendo, de repente percebi que Pintado estava tentando convencer a loba — que num impulso resolvi chamar de Magda, o nome de minha avó — a me levar à Montanha do Vampiro. Mas todos os lobos sabiam onde ficava a Montanha do Vampiro. Por que Pintado estava pedindo àquela loba anciã digna de pena para me levar? Não fazia sentido. A não ser... Arregalei os olhos. A não ser que Magda conhecesse um caminho não só para a montanha, mas para dentro dela! — Você sabe como entrar na montanha! — murmurei, inclinando-me para a frente, entusiasmado. Magda olhou inexpressivamente para mim, mas eu sabia que estava certo. Podia encontrar o caminho para a montanha sozinho, usando passagens comuns e marcadas, mas desse modo seria muito difícil evitar que me vissem. Mas se Magda conhecia passagens mais antigas, eu poderia entrar às escondidas! Olhei para Pintado, implorando. — Ela pode me levar? Ela vai me levar? Pintado me ignorou e bateu de leve com a cabeça em Magda, passando as patas nas marcas que fizera na neve. A loba uivou uma última vez, depois abaixou a cabeça obedientemente. Não gostei do fato de o Pintado ter usado ameaça para conseguir que ela me levasse, mas a necessidade de chegar aos Príncipes no topo da Montanha do Vampiro era mais importante — se é
necessário um pouco de coerção para me ajudar a passar despercebido pelos vampixiitas, que seja. — Até onde ela pode me levar? — perguntei. — Ao topo, ao Salão dos Príncipes? — Mas isso era demais para os lobos. Teria de deixar que ela me conduzisse até onde fosse possível e continuar sozinho então. — Podemos ir agora? — perguntei, ansioso para partir. Não sabia de quanto tempo seria a viagem, e o tempo era precioso. Magda levantou outra vez com dificuldade, pronta para me seguir, mas Pintado olhou para mim, depois indicou Magda com a cabeça e a levou à alcatéia para comer carne fresca — ele queria alimentá-la antes de começarmos a viagem, o que era sensato, considerando o estado lastimável da loba. Enquanto Magda comia, eu esperava impaciente, saltando de um pé para outro, pensando na jornada e se chegaria a tempo. Se Magda conhecia realmente o caminho para o topo da montanha e mesmo que eu chegasse lá, passando pelos vampixiitas, como poderia entrar em contato com os Príncipes antes que algum guarda excessivamente diligente ou um conspirador aliado de Kurda me visse e me matasse? Quando Magda acabou de comer, nós partimos. Pintado nos acompanhou com dois outros jovens machos — eles pareciam entusiasmados com a aventura! Rudi nos seguiu para fora da clareira, latindo excitado, até Pintado dar uma mordida nele e o mandar voltar. Ia sentir falta do filhote, mas não havia lugar para ele aonde estávamos indo, por isso, com um adeus silencioso, o deixei para trás com o resto da alcatéia. A caminhada começou muito bem. Os lobos não são velozes, mas são muito resistentes, capazes de manter um ritmo regular durante horas. Atravessamos a floresta, a neve e as rochas em ótimo tempo. Então Magda se cansou. A loba não estava acostumada a acompanhar o passo dos jovens e incansáveis machos e começou a andar mais devagar. Os lobos teriam corrido na frente, deixando que ela os alcançasse depois, mas eu não queria abandonar Magda. Quando eles me viram diminuir o passo e caminhar ao lado dela, pararam e voltaram para nós. Descansávamos por alguns minutos mais ou menos de hora em hora. Com o nascer do dia, comecei a reconhecer a paisagem. Segundo meus cálculos, naquele passo e com as paradas, deveríamos chegar aos túneis umas duas horas antes do pôr-do-sol. Na verdade levou mais do que isso. Quando começamos a subir, o passo de Magda ficou mais lento ainda. Chegamos aos túneis antes de o sol se pôr, mas eu estava pessimista — Magda estava péssima. Se o caminho para os túneis a deixara ofegante e trêmula de exaustão, como ia enfrentar a longa e difícil subida da montanha?
Disse para Magda que ela podia ficar ali e me deixar sozinho, mas ela rosnou obstinadamente. Tive a impressão de que queria prosseguir, não por mim — mas por ela mesma. Lobos velhos raramente perdem a oportunidade de aparecer. Magda estava encantada com seu papel e preferia morrer na subida a desistir. Como meio-vampiro, resolvi que, embora não estivesse satisfeito em deixar uma loba chegar à exaustão por minha causa, não tentaria mais deter Magda. Passamos a noite esperando no túnel perto da base da montanha. Os lobos jovens estavam impacientes e ansiosos para prosseguir, mas eu sabia que os vampiros e os vampixiitas eram mais ativos à noite, por isso fiquei firme e os lobos não tiveram outro remédio senão ficar comigo. Finalmente, quando o sol apareceu sobre a terra outra vez, levantei-me, fiz um sinal e começamos a subir. Os túneis aos quais Magda nos levou eram quase todos estreitos e não usados. Muitos eram naturais, ao contrário dos feitos pelos vampiros, que levavam aos salões. Houve muito arrastar e escorregar de bruços. Era incômodo (e doloroso em alguns lugares para alguém completamente nu!), mas não me importei — uma vez que os vampiros e os vampixiitas não usavam aqueles túneis, ninguém podia me pegar! Parávamos regularmente para descansar. A subida estava tendo um efeito terrível em Magda — ela parecia prestes a desmoronar e morrer —, mas não era a única que achava o caminho difícil. Todos nós suávamos e resfolegávamos, gemendo de dores nos músculos e nos ossos. Enquanto descansávamos numa caverna fracamente iluminada por liquens, comecei a imaginar como Magda conhecia aqueles túneis. Achei que ela devia ter andado por ali quando era jovem — talvez perdida, faminta, separada da alcatéia — e, por meio de tentativa e erro, descobrira o caminho para a segurança, o calor e o alimento. Se eu estivesse certo, ela devia ter uma memória realmente incrível. Pensava nisso e na memória dos animais em geral quando Pintado ergueu o nariz bruscamente. Farejou o ar, depois se levantou e foi até a entrada do túnel que levava para fora da caverna. Os lobos mais jovens foram com ele, e os três arreganharam os dentes e rosnaram baixinho. Fiquei imediatamente alerta. Apanhando uma pedra aguçada, levantei-me para investigar a causa da preocupação dos lobos. Mas quando atravessava a caverna, atento aos lobos, um vulto magro despencou das sombras do teto e caiu em cima de mim, derrubando-me, e enfiou um grande osso entre meus lábios, sufocando-me e abafando meu grito de pânico!
 
CAPÍTULO DEZ
 
 
Quando ergui a mão para lutar, os três lobos começaram a latir — mas não para mim ou para meu agressor. Olhavam para outro perigo, mais adiante, no túnel, e não se importaram com meu problema. Nem Magda, que, deitada pacificamente, olhava para mim com curiosidade mas nem um pouco alarmada.
Antes que eu tivesse tempo de atacar, a pessoa que me segurava disse alguma coisa parecida com “Gurlabashta!”. Tentei gritar uma resposta, mas só consegui um gorgolejo abafado por causa do osso enfiado entre meus dentes. “Gurlabashta!”, meu agressor repetiu irritado, depois tirou o osso e enfiou dois dedos secos na minha boca. Percebendo que minha vida não estava em perigo, relaxei e, desconfiado, examinei a pessoa que tinha me derrubado. Com espanto vi que era um dos Guardiões do Sangue, com sua pele pálida e olhos vermelhos. Era um homem magro e ansioso. Levando um dedo aos lábios, apontou para os lobos — que latiam mais alto do que nunca —, depois para o teto da caverna de onde tinha pulado. Empurrando-me para a parede, apontou para o teto e desapareceu na escuridão. Hesitei por um momento, então olhei para os lobos agitados e fui atrás dele. Havia uma rachadura no alto da parede para a qual o Guardião me levou. Ele entrou num pequeno buraco perto da rachadura. Esperei em silêncio com o coração disparado. Então ouvi uma voz falando com os irritados lobos. — Quietos! — alguém sibilou. — Calem a boca, ninhada de vira-latas! Os lobos pararam de uivar, mas continuaram a rosnar ameaçadoramente. Recuaram para longe da entrada do túnel e logo depois vi um rosto arroxeado sair das sombras — um vampixiita! — Lobos! — rosnou o vampixiita, cuspindo no chão. — Amaldiçoados sejam seus olhos! — Deixe os lobos em paz — disse um segundo vampixiita atrás dele. — Não vão nos atrapalhar se ficarmos longe deles. Estão só procurando comida. — Se continuarem a latir, podem trazer os vampiros para cá — murmurou o primeiro vampixiita, e vi a lâmina de uma faca afiada brilhar ao lado do corpo dele. — Só estão latindo por nossa causa — disse seu companheiro, arrastando-o para longe. — Vão parar assim que nós... As vozes sumiram na distância e não ouvi mais os vampixiitas depois disso. Quando tive certeza de que a barra estava limpa, olhei para onde o Guardião do Sangue estava escondido para agradecer sua ajuda inesperada — mas ele não estava mais lá. Devia ter fugido enquanto eu não estava olhando. Balancei a cabeça, confuso. Pensava que os Guardiões eram aliados dos vampixiitas, uma vez que um deles ignorou meus gritos de ajuda quando fugia de Kurda e de seus aliados e me deixou à mercê deles. Por que me ajudar agora quando tinham me abandonado antes? Pensando nisso, desci e voltei para a companhia dos lobos. Eles farejavam o ar cautelosamente, mas tinham parado de rosnar. Depois de algum tempo, seguimos Magda para fora da caverna e ela continuou sua caminhada e nos levou mais acima na montanha. Ela ia na frente, mais devagar do que nunca,
mas eu não sabia se era por causa do cansaço ou da ameaça dos vampixiitas.
 Algumas horas mais tarde, chegamos aos salões inferiores no topo da montanha e demos uma volta para evitá-los. Em determinado momento, passamos perigosamente próximo das salas de suprimentos. Ouvi os vampiros trabalhando no outro lado da parede, preparando-se para a grande festa que seria realizada depois da investidura de Kurda. Prendi a respiração e ouvi por alguns minutos, mas as palavras eram abafadas e logo continuei meu caminho, temendo ser descoberto. Estava sempre esperando que Magda parasse, mas ela nos levava cada vez mais para cima, muito mais do que jamais julguei ser possível. Começava a pensar que devíamos estar quase no topo quando chegamos a um túnel com uma subida íngreme. Magda olhou longamente para o túnel, depois se virou e olhou para mim — entendi, pela expressão dos seus olhos, que tinha me levado até onde podia. Quando me adiantei, ansioso para ver onde dava o túnel, Magda fez meia-volta e foi embora claudicando. — Aonde você vai? — perguntei. A loba parou e olhou para trás, com resignação e cansaço, ela não podia subir mais. — Espere aqui que pegamos você depois — eu disse. Magda rosnou, escavou o solo e eriçou o pêlo do pescoço, e entendi que ela ia embora para morrer . — Não — eu disse suavemente. — Se você deitar e descansar, tenho certeza de que... Magda me interrompeu balançando a cabeça de leve. Olhando naqueles olhos tristes, comecei a compreender que era o que ela queria. Quando começamos nossa jornada, sabia que seria demais para ela. Preferiu fazer a viagem assim mesmo e morrer sendo útil em vez de continuar a seguir a alcatéia por mais uma ou duas temporadas, morrendo devagar e tristemente. Estava preparada para receber a morte. Inclinei-me e passei a mão na cabeça da loba cansada, acariciando os pêlos finos da sua orelha. — Obrigado — eu disse simplesmente. Magda lambeu minha mão, esfregou o nariz no meu rosto, depois saiu para a escuridão para encontrar um lugar isolado onde pudesse deitar e silenciosamente deixar este mundo. Fiquei onde estava por algum tempo, pensando na morte e em como a loba a aceitava com tanta calma, lembrando a minha fuga quando chegara a hora de enfrentá-la. Então, afastando esses pensamentos mórbidos, entrei no túnel e comecei a subir. Os lobos tiveram mais dificuldade do que eu naquela última etapa da jornada. Embora fossem bons alpinistas, a rocha era fina, imprópria para suas garras aguçadas, e eles estavam sempre escorregando até o fundo. Finalmente, cansado de esperar por eles, deslizei e deixei que os lobos fossem na minha frente, usando a cabeça e os ombros para apará-los quando escorregavam.
Vários minutos depois estávamos em solo plano numa pequena caverna escura. O cheiro de mofo no ar era acentuado pelo forte odor dos lobos peludos. — Vocês três esperem aqui — eu disse num murmúrio, temendo que o cheiro chegasse até algum vampiro que estivesse por perto. Continuei a caminhada e cheguei a uma parede de rocha fina e frágil. Uma luz fraca penetrava através de vários pequenos orifícios e rachaduras. Encostei os olhos num deles, mas era pequeno demais para ver alguma coisa. Inserindo a unha do meu dedo mínimo direito em uma das rachaduras mais largas, consegui fazer com que a pedra se esfarelasse, aumentando a fenda. Inclinando-me para a frente, podia ver até o outro lado, e atônito descobri que estava na parte de trás do Salão dos Príncipes! Quando me refiz do choque — supostamente havia apenas um caminho para o Salão dos Príncipes! —, comecei a pensar no meu plano de ação. Tudo saíra muito melhor do que tinha imaginado e agora dependia de mim tirar todo o proveito daquela sorte incrível. Meu primeiro instinto foi passar pela parede fina e chamar os Príncipes, mas os guardas do salão ou um dos traidores podiam me surpreender, matando minha mensagem comigo. Afastei-me da parede, voltei para os lobos e os levei de volta pelo túnel íngreme, onde havia mais espaço e ar. Uma vez bem acomodado, deitei, fechei os olhos e comecei a pensar em como ia fazer contato com os Príncipes — ao mesmo tempo evitando as lanças e as espadas dos malévolos traidores e dos guardas bem-intencionados.
 
CAPÍTULO ONZE
 
 
Eu queria falar imediatamente com os Príncipes — mas não podia chegar nas portas do salão e pedir aos guardas para me deixar entrar! Podia esperar que um dos Príncipes aparecesse e chamá-lo, mas eles raramente deixavam a sala do trono. E se Kurda executasse seu plano antes que eu tivesse tempo de agir?
Pensei em chegar até as portas sem ser visto e entrar assim que fossem abertas, mas era pouco provável que escapasse da atenção dos guardas. Além disso, se Kurda estivesse lá dentro e me visse, podia acabar comigo antes que eu pudesse dizer uma palavra. Esse era meu maior medo — ser morto antes de avisar os Príncipes do perigo que corriam. Pensando nisso, resolvi que era essencial entrar em contato com alguém antes de me aproximar dos Príncipes; assim, se eu morresse, minha mensagem não morreria comigo. Mas em quem podia confiar? O Sr. Crepsley ou Harkat eram as escolhas ideais, mas de modo algum poderia chegar até suas celas sem ser visto. Arra Barbatanas e Vanez Blane também moravam no interior da montanha e não era fácil chegar até eles. Assim, só restava Sebá Nilo, o velho intendente da Montanha do Vampiro. Sua cela ficava perto dos armazéns. Seria arriscado, mas eu achava que podia chegar até lá sem ser visto. Mas será que podia confiar nele? Ele e Kurda eram grandes amigos. Sebá ajudara o traidor a fazer mapas dos túneis pouco usados, mapas que os vampixiitas deviam estar usando neste exato minuto para chegar ao Salão dos Príncipes. Será que Sebá era um dos aliados de Kurda? Quase no mesmo momento em que fiz a pergunta, tive certeza de que era absurdo. Sebá era um vampiro à moda antiga, que acreditava em lealdade e nos costumes dos vampiros acima de tudo. E tinha sido o mentor do Sr. Crepsley. Se eu não pudesse confiar em Sebá, não poderia confiar em mais ninguém. Levantei-me e saí à procura de Sebá, e os lobos se levantaram comigo. Agachando, mandei-os ficar onde estavam. Pintado balançou a cabeça, rosnando, mas fui firme com ele. — Fique! — comandei. — Espere por mim. Se eu não voltar, voltem para a alcatéia. Esta luta não é sua. Você não pode fazer nada. Não tinha certeza de que Pintado tinha compreendido, mas ele se sentou nas patas traseiras e ficou com os outros lobos, resfolegando, vendo-me partir, os olhos escuros fixos em mim até eu desaparecer numa curva. Voltando pelo caminho pelo qual tinha vindo, subi outra vez a montanha. Não demorei a chegar aos armazéns. Estava tudo quieto mas entrei cautelosamente, sem me arriscar, por uma abertura que Kurda havia me mostrado durante a minha fuga. Não havia ninguém lá dentro e fui direto à porta que dava para os túneis, mas parei e olhei para meu corpo. Estava tão acostumado a andar sem roupa que esqueci o que devia parecer aos olhos humanos. Se eu aparecesse no alojamento de Sebá daquele jeito, nu, sujo, parecendo um selvagem, podia pensar que eu era um fantasma! Não havia roupas naquele quarto, por isso rasguei um velho saco e amarrei um pedaço em volta da cintura. Não melhorava muito minha aparência, mas
tinha de servir. Amarrei algumas outras tiras nos pés para poder andar mais silenciosamente, depois abri um saco de farinha e passei um pouco do pó branco em todo o corpo, esperando disfarçar meu cheiro de lobo. Quando estava pronto, abri a porta e entrei no túnel. Embora normalmente não levasse mais de dois ou três minutos para chegar aos aposentos de Sebá, levei quase quatro vezes mais tempo para chegar lá, verificando cada trecho do túnel várias vezes, antes de me certificar de que tinha algum lugar para me esconder se inesperadamente aparecesse um vampiro. Quando finalmente cheguei à porta do velho intendente, tremia de ansiedade e fiquei parado em silêncio por alguns segundos. Quando me controlei, bati de leve. — Entre — disse Sebá. Entrei. O intendente estava de pé ao lado de uma arca, de costas para mim. — Aqui, Thomas — murmurou, examinando o interior da arca. — Eu disse para não me perturbar batendo na porta. Faltam apenas duas horas para a investidura. Não temos tempo para... Virando-se, ele me viu e seu queixo literalmente caiu. — Olá, Sebá — sorri nervosamente. Sebá piscou os olhos, balançou a cabeça, piscou outra vez. — Darren? — disse ele, atônito. — Ele mesmo, o único — sorri. Sebá fechou a tampa da arca e sentou-se pesadamente em cima dela. — Você é uma visão? — murmurou. — Pareço uma visão? — Parece — disse ele. Ri e dei alguns passos para ele. — Não sou uma visão, Sebá. Sou eu. Sou real. — Parei na frente dele. — Pode me tocar se não acredita. Ele estendeu um dedo trêmulo e tocou meu braço esquerdo. Quando verificou que era sólido, levantou-se com um largo sorriso. Então seu rosto se anuviou e sentou-se outra vez. — Você foi sentenciado à morte — disse ele, tristemente. — Foi o que pensei — inclinei a cabeça, afirmativamente. — Você fugiu. — Foi um erro. Peço desculpas. — Pensamos que tivesse se afogado. A pista levava ao regato e terminava bruscamente. Como conseguiu sair? — Nadei — eu disse calmamente. — Nadou para onde? — perguntou ele. — Nadei regato abaixo. — Está dizendo... o caminho todo... atravessando a montanha? Isso é impossível!
— Improvável — corrigi. — Não impossível. Não estaria aqui se fosse impossível. — E Torvelinho? — perguntou ele esperançoso. — Ele está vivo também? Sacudi tristemente a cabeça. — Torvelinho está morto. Foi assassinado. — Foi o que pensei — suspirou Sebá. — Mas quando vi você, eu... — parou de falar e franziu a testa. — Assassinado? — rugiu. — Acho melhor você ficar sentado — eu disse, e comecei a contar meu encontro com os vampixiitas, a traição de Kurda e o que aconteceu depois. Sebá tremia de raiva quando terminei. — Nunca pensei que um vampiro se voltaria contra seus irmãos — rosnou. — E um vampiro tão respeitado! Isso me enoja e me envergonha. Pensar que bebi sangue brindando à saúde daquela imitação de vampiro e rezei aos deuses para lhe dar sorte! Pelas entranhas de Charna! — Você acredita em mim? — perguntei, aliviado. — Posso não reconhecer a traição quando é habilmente escondida — disse ele —, mas reconheço a verdade quando é revelada. Acredito em você. Os Príncipes também acreditarão. — Levantou-se e caminhou para a porta. — Devemos avisá-los logo. Quanto antes nós... — parou e depois continuou: — Não. Os Príncipes não recebem ninguém até a hora da investidura. Eles residem dentro do seu salão e não abrirão as portas até o pôr-do-sol, quando Kurda se apresentar. Sempre foi assim. Eu seria mandado embora se aparecesse agora. — Mas vai poder falar com eles a tempo? — perguntei ansioso. Inclinou a cabeça, assentindo. — Há uma longa cerimônia antes da investidura. Terei muito tempo para interromper e apresentar nossas graves acusações contra nosso suposto aliado, Kurda Smahlt. — O vampiro fervia de raiva. — Pensando bem — disse ele, entrecerrando os olhos —, ele está sozinho nos seus aposentos. Eu podia ir até lá e cortar a garganta do vilão antes... — Não — eu disse rapidamente. — Os Príncipes vão querer interrogar Kurda. Não sabemos quem mais está trabalhando com ele ou por que ele fez isso. — Tem razão — suspirou Sebá, curvando os ombros. — Além disso, matá-lo seria misericordioso para ele. Merece sofrer pelo que fez a Torvelinho. — Não é só por isso que não quero que você o mate — eu disse hesitante. Sebá olhou para mim, esperando que eu continuasse. — Quero denunciá-lo. Eu estava com Torvelinho quando ele morreu. Ele estava nos túneis por minha causa. Quero olhar nos olhos de Kurda quando o denunciar. — Para mostrar o quanto você o odeia? — perguntou Sebá. — Não — eu disse. — Para mostrar quanta dor ele causou. — Meus olhos estavam cheios de lágrimas. — Eu o odeio, Sebá, mas ainda penso nele como um
amigo. Ele salvou a minha vida. Eu estaria morto se ele não tivesse interferido. Quero que ele saiba o quanto me magoou. Talvez não faça sentido, mas quero que ele veja que não tenho nenhum prazer em denunciá-lo como traidor. Sebá balançou a cabeça lentamente. — Faz sentido — disse ele, passando a mão no queixo e considerando minha proposta. — Mas é perigoso. Não acredito que os guardas matem você, mas um dos aliados de Kurda pode fazer isso. — Vou arriscar — eu disse. — O que tenho a perder? De qualquer modo vou ser morto depois, porque fracassei nas provas. Prefiro morrer de pé, denunciando Kurda, do que no Salão da Morte. Então Sebá disse com um sorriso afetuoso: — Você é um vampiro leal e corajoso, Darren Shan. — Não — respondi mansamente. — Só estou tentando fazer a coisa certa para compensar minha fuga. — Larten se orgulhará de você — observou Sebá. Não podia pensar em nada para dizer, por isso apenas corei e dei de ombros. Então nos sentamos juntos e discutimos os vários planos para a noite definitiva que nos esperava.
 
CAPÍTULO DOZE
 
 
Na verdade, não queria envolver mais ainda os lobos nos meus problemas — eles podiam ser mortos —, mas ficaram sentados resfolegando pacientemente quando os mandei embora. — Vão! — sibilei, batendo nos flancos deles. — Para casa! — Mas eles não
eram cães e não obedeceram. Vi que pretendiam ficar ao meu lado, os lobos jovens até pareciam ter prazer na idéia de uma luta! Por isso desisti de tentar mandar que fossem para casa, para a segurança, e me acomodei para esperar a chegada da noite, segundo os cálculos do meu relógio interno. Quando o dia estava quase no fim, voltamos para o túnel íngreme e chegamos à parede atrás do Salão dos Príncipes. Comecei a trabalhar na camada de pedra macia e cuidadosamente abri um buraco com tamanho suficiente para dar passagem a nós todos. Para mim era surpresa que ninguém tivesse encontrado aquele ponto fraco antes, mas ficava bem no alto e do outro lado a parede devia parecer sólida. Parei por um instante para pensar na minha extraordinária maré de sorte. Sobreviver ao ímpeto louco do regato, ser encontrado por Rudi e Pintado quando estava perdendo as forças, Magda me levar pelos túneis até o Salão dos Príncipes. Até fracassar nas provas fora, de certo modo, uma sorte — jamais teria descoberto os vampixiitas se não tivesse caído debaixo do javali enlouquecido. Seria a sorte dos vampiros ou alguma coisa mais — como destino? Jamais acreditara no destino, mas começava a ter dúvidas. Os sons do cortejo que se aproximava me distraíram desses pensamentos. O momento da investidura de Kurda havia chegado. Estava na hora de agir. Passando pela abertura, desci para o chão, virei-me e aparei os lobos na queda. Quando estávamos todos prontos, encostamo-nos na parede do salão e seguimos em frente. Quando dobramos a curva do domo, vi os Generais alinhados para dar as boas-vindas a Kurda Smahlt. Eles formavam a guarda de honra, que se estendia do túnel até as portas do salão. Quase todos estavam armados, bem como o resto dos vampiros — a cerimônia de investidura era a única vez em que os vampiros entravam no salão armados. Qualquer um deles podia ser um traidor, com ordens para me matar sumariamente. Tentei afastar esse pensamento horrível, temendo que ele pudesse me deter. Os três Príncipes estavam ao lado das portas abertas do domo, ricamente trajados, esperando para brindar Kurda com sangue e fazer dele um dos seus iguais. Vi o Sr. Crepsley e Sebá perto dos Príncipes. O Sr. Crepsley olhava para o túnel — como todos no salão —, mas Sebá olhava em volta à minha procura. Quando me viu, inclinou de leve a cabeça. Isso significava que ele tinha falado com alguns vampiros da sua equipe e os havia posicionado ali perto com ordens para deter qualquer vampiro que empunhasse uma arma durante a cerimônia — tínhamos concordado que seria melhor manter minha presença em segredo —, e eu esperava que eles não hesitassem quando chegasse minha hora de agir, dando a um dos homens de Kurda a chance de me matar. O cortejo começou a entrar na caverna. Seis vampiros vinham na frente de
Kurda, em pares, andando devagar, carregando os trajes que Kurda vestiria quando fosse investido. Vinham em seguida dois vampiros de vozes profundas, cantando poemas e histórias, louvando os Príncipes e Kurda. Outros vampiros cantores vinham atrás, e seus cantos em forma de hinos entravam nos túneis e ecoavam por toda a caverna. Atrás dos oito primeiros vampiros vinha o vampiro do momento, Kurda Smahlt, em cima de uma pequena plataforma carregada por quatro Generais, com uma túnica branca longa e folgada, a cabeça loura abaixada, os olhos fechados. Esperei até ele chegar ao meio do caminho entre o túnel e os Príncipes e então saí da parede, me adiantei — os lobos atrás de mim — e gritei o mais alto possível:
 — PAREM!
 Todas as cabeças se voltaram e o canto cessou imediatamente. Nenhum dos vampiros me reconheceu a princípio — tudo que viam era um garoto sujo, seminu, coberto de farinha —, mas, quando cheguei mais perto, viram quem eu era e exclamaram surpresos: — Darren! O Sr. Crepsley rugiu feliz e começou a se aproximar de mim com os braços estendidos. Ignorei meu mentor e fiquei atento ao resto dos vampiros, alerta para qualquer sinal de retaliação. Os traidores não esperaram muito. Dois vampiros de uniformes verdes ergueram as lanças quando me viram, enquanto outro, empunhando duas facas, adiantou-se para mim. Os homens de Sebá reagiram esplendidamente, ignorando a confusão, e avançaram rapidamente para deter os vampiros com as lanças. Eles os derrubaram antes que tivessem tempo de usar suas armas, os desarmaram e os imobilizaram no chão. Mas ninguém conseguia chegar até o vampiro com as facas — ele estava muito longe dos assistentes de Sebá. Passou pela fileira de guardas, empurrou o Sr. Crepsley e correu para mim. Atirou uma das facas, mas me esquivei com facilidade. Antes que ele tivesse tempo de atirar a segunda ou de chegar perto o bastante para me apunhalar, os dois lobos jovens atiraram-se contra ele e o derrubaram. Eles mordiam e unhavam, uivando excitados e furiosos. O vampiro gritou e tentou se livrar deles, mas os lobos eram fortes demais. Um dos lobos enfiou os dentes na garganta do vampiro e acabou com ele brutalmente. Não me importei — só estava preocupado em não ferir vampiros inocentes e, pela velocidade da reação do vampiro das facas e a determinação com que avançou para mim, ele era sem dúvida um dos cúmplices de Kurda. Os outros vampiros na caverna ficaram chocados, paralisados. Até o Sr. Crepsley parou onde estava, olhos arregalados, ofegante, inseguro. — Darren? — perguntou ele com voz trêmula. — O que está acontecendo?
Como você... — Agora não! — eu disse autoritariamente, atento à procura dos traidores. Aparentemente não havia mais nenhum, mas não queria me descuidar antes de dizer o que tinha para dizer. — Eu conto mais tarde — prometi ao Sr. Crepsley e passei por ele calmamente para enfrentar Kurda e os Príncipes. Pintado andou ao meu lado, tomando conta de mim, rosnando ameaças. Kurda tinha aberto os olhos e levantado a cabeça no começo do tumulto, mas não tentou fugir da plataforma ou da caverna. Olhou para mim com uma expressão difícil de interpretar quando avancei, mais de expectativa que de pânico, depois passou a mão nas três pequenas cicatrizes do rosto (feitas pelos vampixiitas quando discutia os termos de paz com eles, alguns anos atrás) e suspirou. — O que está acontecendo? — rugiu Mika Ver Leth, o rosto contraído de raiva, mais escuro que seus trajes. — Por que esses vampiros estão lutando? Separe-os imediatamente! — Senhor! — disse Sebá rapidamente, antes que a ordem pudesse ser obedecida. — Os que ergueram suas armas contra Darren não são nossos aliados. Os que os estão imobilizando fizeram isso a meu comando. Aconselho a não libertá-los até os senhores ouvirem o que Darren tem a dizer. Mika olhou para o velho e calmo intendente. — Você é parte do caos, Sebá? — perguntou ele. — Sou, senhor — disse Sebá —, e com muito orgulho. — Este menino fugiu do julgamento dos Príncipes — rosnou Arqueiro, as veias na sua cabeça calva regurgitadas latejando. — Ele não é bem-vindo aqui. — Ele será, senhor, quando souberem por que ele veio — insistiu Sebá. — Isso é extremamente irregular — disse Paz Celestial. — Nunca antes a investidura de um Príncipe foi interrompida. Não sei por que você está do lado do menino, mas acho que vocês dois devem ser retirados do salão até mais tarde, quando então poderemos... — Não! — gritei, passando pelas fileiras de guardas para ficar diretamente na frente dos Príncipes. Olhando nos olhos deles, rosnei em voz alta para que todos ouvissem: — O senhor diz que ninguém nunca interrompeu a investidura de um Príncipe, e isso pode ser verdade. Mas digo que nunca ninguém procurou investir um traidor antes, portanto está na hora de... A caverna explodiu com rugidos furiosos. Os vampiros estavam enraivecidos por eu ter chamado Kurda de traidor (mesmo os que não haviam votado a favor da sua investidura) e, antes que eu pudesse me proteger, uma horda me rodeou e começou a me atacar com pontapés, socos e empurrões. Os três lobos tentaram correr em meu socorro, mas foram facilmente repelidos pela massa de vampiros.
— Parem com isso! — rugiram os Príncipes. — Parem! Parem! Parem! Finalmente as ordens dos Príncipes foram ouvidas e os que me rodeavam me libertaram e recuaram, com os olhos inflamados de raiva, resmungando ameaçadoramente. Não tinham me machucado — era muita gente para que alguém conseguisse acertar um golpe decente. — Esta é uma noite terrível — murmurou Mika Ver Leth. — Não bastou o menino violar nossas leis e costumes, mas quando vampiros que devem saber o que fazem se comportam como um bando de bárbaros na presença dos seus Príncipes... — Balançou a cabeça, tristemente. — Mas ele chamou Kurda de traidor! — gritou alguém e todos se agitaram outra vez, lançando imprecações contra mim. — Chega! — gritou Mika. Quando se fez silêncio, ele olhou para mim. Parecia apenas um pouco menos raivoso do que aqueles que tinham me atacado. — Se dependesse de mim — rosnou —, teria amarrado e amordaçado você antes que tivesse tempo de dizer mais uma palavra. Depois o mandaria para o Salão da Morte, onde teria o destino que merece. Fez uma pausa e olhou em volta para os vampiros, que assentiam com a cabeça e com murmúrios de aprovação. Então olhou para Sebá e franziu a testa. — Mas uma pessoa que todos conhecemos, admiramos e em quem confiamos falou a seu favor. Não tenho respeito por meios-vampiros que fogem em vez de enfrentar sua punição, mas Sebá Nilo diz que devemos dar atenção ao que você tem para dizer e me desagradaria não atendê-lo. — Concordo com isso — resmungou Paz Celestial. Arqueiro parecia preocupado. — Eu também respeito Sebá — disse ele —, mas uma quebra do decoro como essa é deplorável. Acho... — Olhando fixamente para Sebá, mudou de idéia e balançou a cabeça mal-humorado. — Muito bem. Concordo com Paz Celestial e com Mika. Mas só por causa de Sebá. Virando-se para mim, com a expressão mais bondosa que conseguiu, dadas as circunstâncias, Paz Celestial disse: — Fale então, Darren, mas seja breve. — Tudo bem — concordei, olhando para Kurda, que olhava para mim em silêncio. — Vejamos se isto é suficientemente breve para vocês: Kurda Smahlt matou Torvelinho. — Com exclamações abafadas, os vampiros substituíram os olhares de ódio por expressões de insegurança. — Neste exato momento, dezenas de vampixiitas se escondem nos túneis debaixo de nós esperando para nos atacar — continuei. Um silêncio de espanto recebeu minhas palavras. — Eles foram convidados por ele! — Apontei para Kurda e dessa vez nenhuma voz se ergueu raivosa. — Ele é um traidor — murmurei, e todos os olhos se voltaram para Kurda. Dos meus olhos, duas lágrimas rolaram por meu rosto e caíram no chão empoeirado da caverna.
 
CAPÍTULO TREZE
 
 
Um longo silêncio acompanhou minhas acusações. Ninguém sabia o que dizer ou pensar. Se Kurda tivesse negado veementemente as acusações, talvez os Generais ficassem do lado dele. Mas Kurda ficou imóvel, tristonho, suportando os olhares interrogativos sem responder.
Finalmente Paz Celestial tossiu discretamente. — Essas são acusações graves contra um vampiro — disse ele. — Quando feitas a um futuro Príncipe, no momento da sua investidura... — Balançou a cabeça. — Você sabe quais as conseqüências se estiver mentindo? — Por que eu iria mentir? — respondi. Virei-me para as fileiras dos vampiros. — Todos sabem que fracassei nas minhas Provas de Iniciação e fugi antes de ser morto. Voltando, me condenei à execução. Acham que faria isso se não tivesse uma boa razão? — Ninguém respondeu. — Kurda traiu vocês! Ele se aliou aos vampixiitas. Pelos meus cálculos, pretende fazer com que eles entrem no Salão dos Príncipes depois que for investido, para controlar a Pedra de Sangue. Exclamações de espanto acompanharam minhas palavras. — Como você sabe disso? — gritou Arqueiro, procurando suplantar o barulho no salão. O Príncipe calvo detestava os vampixiitas mais do que todos porque há alguns anos sua mulher fora morta por um deles. — É só um palpite sobre a Pedra de Sangue — respondi —, mas eu vi os vampixiitas. Torvelinho também os viu. Por isso Kurda o assassinou. Ele teria poupado minha vida, mas me atirei no regato no Salão da Viagem Final. Estava certo de que ia morrer, mas sobrevivi. Uma vez refeito, voltei para avisar vocês. — Quantos vampixiitas estão lá embaixo? — perguntou Arqueiro, com os olhos ardentes de ódio. — Pelo menos trinta, possivelmente mais. Os três Príncipes se entreolharam inquietos. — Isso não faz sentido — resmungou Mika. — Concordo — disse Arqueiro. — Mas é fácil descobrir uma mentira tão absurda quanto essa. Se ele quisesse nos enganar, teria pensado em uma história menos fantasiosa. — Além disso — suspirou Paz Celestial —, vejam os olhos do menino: não há nada além da verdade neles. Um rugido interrompeu a conversa. Um dos cúmplices de Kurda conseguira se livrar e estava tentando fugir para o túnel. Antes que ele tivesse tempo de chegar lá, os guardas cerraram as fileiras e o rodearam. Ele empunhou uma faca e se preparou para lutar até a morte. — Não, Cyrus! — gritou Kurda, suas primeiras palavras desde que interrompi o cortejo. O vampiro abaixou a mão e olhou para Kurda, esperando uma ordem. — Terminou — disse Kurda em voz baixa. — Não derrame sangue desnecessariamente. Essa nunca foi nossa intenção. O vampiro chamado Cyrus inclinou a cabeça obedientemente. Então, antes que o círculo de guardas se fechasse sobre ele, levou a faca ao próprio peito e desfechou um golpe mortal. Quando o traidor caiu no chão, morto, todos os olhos se voltaram outra vez para Kurda e, agora, todos carrancudos.
— O que você tem a dizer para refutar a acusação de Darren? — perguntou Mika, a voz carregada de emoção. — Neste momento, nada — respondeu Kurda friamente. — Você não nega a acusação? — gritou Arqueiro. — Não, não nego — disse Kurda. Um gemido de horror soou na caverna quando Kurda admitiu sua culpa. — Vamos matá-lo agora! — rosnou Arqueiro, e suas palavras foram recebidas com um imenso grito de aprovação. — Com todo respeito, senhores — intercedeu Sebá. — Não seria mais sensato nos concentrarmos agora nos vampixiitas antes de executar um dos nossos? Kurda pode esperar, devemos tratar dos intrusos em primeiro lugar. — Sebá tem razão — disse Paz Celestial. — Os vampixiitas devem ser mortos. Teremos muito tempo para os traidores mais tarde. Voltando-se para alguns guardas, ele os mandou levar embora Kurda e o outro traidor e mantê-los cativos. — E em nenhuma circunstância os deixe tirar as próprias vidas — avisou. — Seria o caminho mais fácil. Mantenha-os vivos até termos tempo de interrogálos. Fazendo sinal para eu me adiantar, ele se dirigiu aos vampiros. — Nós nos retiraremos para o Salão dos Príncipes com Darren. Peço que todos vocês fiquem aqui enquanto discutimos as ramificações desse horroroso acontecimento. Quando decidirmos nosso curso de ação, os informaremos. Mais tarde haverá uma conversa geral quando o perigo presente estiver eliminado. — E que ninguém saia da caverna — disse Mika autoritariamente. — Não sabemos até onde vai essa conspiração. Não quero que aqueles que se opõem ao bem-estar do nosso clã saibam o que está acontecendo. Com isso nós quatro entramos no Salão dos Príncipes acompanhados por vários dos Generais mais antigos, bem como por Sebá, Arra Barbatanas e o Sr. Crepsley. Um pouco da tensão desapareceu do ar quando as portas se fecharam atrás de nós. Paz Celestial correu para a Pedra de Sangue, enquanto Mika e Arqueiro caminhavam desconsolados para seus tronos. Sebá me entregou algumas peças de roupa e mandou que eu as vestisse. Fiz isso rapidamente, depois o intendente me levou para conversar com os Príncipes. Não tivera ainda oportunidade de falar com o Sr. Crepsley, mas sorri para ele, para mostrar que não o tinha esquecido. Comecei contando para os Príncipes minha fuga pelos túneis com Kurda, Torvelinho nos alcançando, mudando de direção, encontrando os vampixiitas, Torvelinho enfrentando-os e a traição de Kurda. Quando cheguei à parte do regato, Paz Celestial bateu palmas e sorriu. — Eu nunca acreditaria nisso — o Príncipe com uma só orelha riu baixinho
com admiração. — Cem anos atrás, jovens vampiros, mais do que ansiosos para provar o próprio valor, costumavam descer o regato dentro de barris, mas ninguém jamais tentou... — Por favor, Paz — reclamou Mika. — Vamos deixar as recordações para depois. — É claro — Paz Celestial tossiu discretamente. — Continue. Contei como a água me levou para uma margem distante da Montanha do Vampiro, como fui encontrado pelos lobos e como recobrei a saúde graças aos cuidados deles. — Isso não é tão extraordinário — interrompeu o Sr. Crepsley. — Os lobos muitas vezes têm socorrido crianças abandonadas. Contei que vi o Sr. Crepsley e Arra quando saíram à minha procura e expliquei que continuei escondido por causa de Kurda e dos seus vampiros com espadas. — Esses dois traidores — disse Mika soturnamente. — Você os viu na caverna? — Sim — eu disse. — Eram dois dos três que tentaram me matar. O vampiro atacado pelos lobos era um. O outro foi capturado e levado embora com Kurda. — Gostaria de saber quantos mais estão envolvidos nisso — disse Mika. — Pelos meus cálculos, mais nenhum — disse Paz Celestial. — Você acha que eram só quatro? — perguntou Mika. Paz Celestial assentiu. — Os vampiros não são facilmente convencidos a se voltarem contra os seus. Os três com Kurda eram jovens e, se bem me lembro, todos vampirizados por ele, os únicos três que ele vampirizou. Além disso, é lógico supor que qualquer um que estivesse aliado a ele estaria na caverna para testemunhar sua investidura. Certamente teriam agido com os outros para silenciar Darren antes que ele pudesse falar. “Não estou sugerindo que descartemos a possibilidade de haver mais um ou dois”, concluiu Paz, “mas não nos ajudaria pensar que a podridão tenha se espalhado mais do que isso. Este é o momento de nos unirmos, e não de começar uma série de inquietadoras caçadas às bruxas.” — Concordo com Paz Celestial — disse Arqueiro. — A suspeita deve ser eliminada antes de se estabelecer definitivamente. Se não restabelecermos a confiança rapidamente, nenhum vampiro poderá confiar em outro e teremos a anarquia. Terminei minha história rapidamente, falando sobre Magda, minha subida pelos túneis, como entrei em contato com Sebá para que o conhecimento da traição de Kurda não morresse comigo se eu fosse assassinado. Mencionei também os Guardiões do Sangue, como um deles não me ajudou quando o
chamei no Salão da Viagem Final e como outro me socorreu quando eu subia a montanha. — Os Guardiões do Sangue procuram agir independentemente — disse Sebá. Ele sabia mais sobre os Guardiões do que qualquer outra pessoa. — Não gostam de interferir diretamente na nossa vida, por isso não nos teriam avisado quando descobriram a presença dos vampixiitas. Mas interferência indireta, como esconder você quando estava em perigo, é permitida. A neutralidade deles é exasperadora, mas faz parte dos seus costumes. Não devemos culpá-los por isso. Fez-se um longo e reflexivo silêncio quando terminei, que foi finalmente quebrado por Mika Ver Leth quando disse com um sorriso contrafeito: — Você pôs o interesse do clã na frente do seu próprio interesse. Não podemos ignorar seu fracasso nas Provas de Iniciação, nem o fato da sua fuga, mas qualquer desonra em que tenha incorrido foi cancelada por essa dedicação generosa. Você é um verdadeiro vampiro, Darren Shan, tão digno de caminhar na noite quanto qualquer outro. Abaixei a cabeça para esconder meu sorriso. — Chega de elogios — resmungou Arqueiro. — Temos de matar vampixiitas. Não descansarei enquanto o último deles não estiver no Salão da Morte, abaixado sobre as estacas uma dezena de vezes. Vamos atacá-los e... — Calma, meu amigo — disse Paz Celestial, pondo a mão de leve no braço do Príncipe. — Não devemos nos precipitar. Nossos melhores rastreadores seguiram a trilha de Darren nos túneis, passando perto das cavernas onde os vampixiitas estavam acampados. Kurda deve ter pensado nisso e certamente os fez ir a outro lugar para não serem descobertos. Nossa prioridade deve ser encontrá-los. Mesmo depois disso, devemos agir com cuidado para que não nos ouçam e possam fugir. — Muito bem — rosnou Arqueiro. — Mas eu vou comandar a primeira onda de ataque contra eles! — Não tenho nenhuma objeção quanto a isso — disse Paz Celestial. — Mika? — Arqueiro pode comandar a primeira onda — concordou Mika —, desde que eu comande a segunda e ele deixe o suficiente para eu molhar a lâmina da minha espada. — Combinado — riu Arqueiro, o brilho ávido de batalha nos seus olhos. — Tão jovem e tão sedento de sangue — suspirou Paz Celestial. — Suponho que isso significa que devo ficar para trás e guardar o salão. — Um de nós o substituirá antes do fim — prometeu Mika. — Deixaremos que faça a limpeza dos que sobrarem. — Muita bondade sua — sorriu Paz, depois ficou sério. — Mas isso vem depois. Primeiro, vamos chamar os melhores rastreadores. Darren irá com eles
para mostrar as cavernas desabitadas. Quando... — Senhores — interrompeu Sebá. — Darren não come desde que deixou a alcatéia dos lobos e não bebe sangue humano desde que partiu da Montanha do Vampiro. Posso alimentá-lo antes de ser enviado nessa missão tão importante? — É claro — disse Paz. — Leve Darren ao Salão de Khledon Lurt e dê a ele o que ele quiser. Nós o chamaremos quando chegar a hora. Embora preferisse ficar e discutir a situação com os Príncipes, estava faminto e não protestei quando Sebá me levou para fora do salão, e passamos pela caverna dos vampiros namoradores, para o Salão de Khledon Lurt. Devorei uma das refeições mais satisfatórias da minha vida, sem esquecer de agradecer, numa prece silenciosa, aos deuses dos vampiros a ajuda em toda a minha provação — ao mesmo tempo pedindo a eles para nos guiar com segurança nas dificuldades que ainda nos esperavam.
 
CAPÍTULO QUATORZE
 
 
O Sr. Crepsley levou Harkat para me ver enquanto eu comia. O Pequenino não teve permissão para assistir à investidura — só vampiros podem comparecer a um evento tão prestigioso — e não sabia nada sobre a minha volta, até entrar no salão e me ver devorando a comida.
— Darren! — disse ele com a voz embargada, correndo para mim. — Olá, Harkat — murmurei, com a boca cheia de rato frito. — O que você... está fazendo... aqui? Eles... o apanharam? — Não exatamente. Eu me entreguei. — Por quê? — Não me peça para explicar agora — implorei. — Acabo de contar a história toda para os Príncipes. Você logo vai saber. Diga-me, o que aconteceu enquanto estive ausente? — Não muitas coisas — disse Harkat. — Os vampiros ficaram... furiosos quando... descobriram que você tinha fugido. Eu disse a eles... que não sabia... nada sobre sua fuga. Eles não... acreditaram em mim, mas eu... fiquei firme com minha... história, por isso... eles não podiam... fazer nada. — Ele não contou a verdade nem para mim — disse o Sr. Crepsley. Olhei envergonhado para o vampiro. — Peço desculpas por ter fugido — murmurei. — Deve mesmo se desculpar — rosnou ele. — Não parece coisa de você, Darren. — Eu sei. Eu podia culpar Kurda, não teria fugido se ele não tivesse me convencido, mas a verdade é que estava com medo e agarrei a oportunidade quando ela apareceu. Não era só a morte que me preocupava, havia também a caminhada para aquele horrível Salão da Morte, depois ser dependurado sobre as estacas e... — estremeci só de pensar. — Não se mortifique muito — disse o Sr. Crepsley, suavemente. — Para começo de conversa, sou o culpado por deixar que o sujeitassem às provas. Devia ter insistido em um período adequado de preparo para as provas e para as conseqüências do fracasso. A culpa é nossa, não sua. Você reagiu como qualquer pessoa não completamente informada sobre os costumes dos vampiros. — Digo que foi o destino — murmurou Sebá. — Se ele não tivesse fugido, nunca saberíamos da traição de Kurda nem da presença dos vampixiitas. — Os ponteiros do... destino marcam o tempo... em um relógio... em forma de coração — disse Harkat e nós todos olhamos intrigados para ele. — O que significa isso? — perguntei. Ele deu de ombros. — Não tenho certeza. Apenas... surgiu em minha... cabeça. É uma coisa que o Sr... Tino costumava dizer. Entreolhamo-nos inquietos pensando no Sr. Tino e no relógio em forma de coração que estava sempre entre seus dedos. — Você acha que Desmond Tino pode ter alguma coisa a ver com isto? — perguntou Sebá. — Não sei como — disse o Sr. Crepsley. — Acredito que Darren teve a sorte natural dos vampiros. Por outro lado, quando se trata daquele cavalo negro
chamado Tino, quem sabe? Enquanto pensávamos nisso — a intervenção do destino ou a pura sorte —, chegou um mensageiro dos Príncipes e fui escoltado pelos salões inferiores e pelos túneis com os rastreadores e começamos a procurar os vampixiitas.
 Vanez Blane — com quem treinei para as provas — era um dos cinco rastreadores escolhidos. O mestre dos jogos de um olho só me cumprimentou segurando minhas mãos com força. — Eu sabia que você não ia nos abandonar — disse ele. — Outros o amaldiçoavam, mas tinha certeza de que você voltaria quando tivesse tempo de pensar. Disse a eles que foi uma decisão errada tomada às pressas, que você logo corrigiria. — Aposto que não apostou na minha volta — eu disse sorrindo. — Já que falou nisso, não, não apostei — riu. Vanez examinou meus pés para se certificar de que eu estava adequadamente calçado. Todos os rastreadores usavam sapatos macios. Ele se ofereceu para arranjar um par para mim, mas eu disse que continuaria com as tiras de saco. “Devemos proceder com a maior cautela”, avisou. “Nada de movimentos bruscos, nada de luzes e nada de conversa. Comuniquem-se por meio de sinais. E fique com isto”, Vanez me deu uma faca longa e afiada. “Se tiver de usar, não hesite.” — Não hesitarei — jurei, pensando na faca que havia tirado tão cruelmente a vida do meu amigo Torvelinho. Começamos a descer no maior silêncio possível. Não sei se teria encontrado o caminho de volta para a caverna se estivesse sozinho — não estava prestando muita atenção naquela noite —, mas os rastreadores haviam seguido minhas marcas quando foram me procurar e sabiam para onde deviam ir. Rastejamos pelo túnel até o regato. Não parecia tão assustador agora, não depois de tudo que passei desde que saí dele. Paramos e apontei silenciosamente para o túnel que ligava a pequena caverna à maior. Dois dos rastreadores avançaram e revistaram a caverna adiante. Eu escutava atentamente, procurando ouvir sons de movimento, mas não ouvi nada. Um pouco depois, um dos homens voltou e balançou a cabeça. Nós o seguimos para a caverna maior. Senti um aperto do estômago quando vi que a caverna estava vazia. Parecia estar vazia desde o começo dos tempos. Uma premonição sinistra me dizia que não encontraríamos os vampixiitas e eu seria chamado de mentiroso. Vanez, adivinhando meu pensamento, me empurrou de leve com o cotovelo e piscou o olho. — Tudo vai dar certo — disse ele, apenas movendo os lábios, depois se juntou aos outros que exploravam a caverna cautelosamente. Não demorou para que os rastreadores encontrassem as provas da presença
dos vampixiitas e apaziguassem meus temores. Um deles encontrou um pedaço de pano, outro uma lata de feijões pela metade, outro um pequeno monte de cuspe. Quando recolheram provas suficientes, voltamos para a caverna menor onde conversamos baixinho, certos de que o rugido do regato abafaria nossas vozes. — Foi ocupada pelos vampixiitas a noite toda — disse um dos homens. — Umas duas dúzias deles mais ou menos. — Eles cobriram seus rastros admiravelmente — resmungou outro. — Só os encontramos porque sabíamos o que estávamos procurando. Jamais teríamos notado se tivéssemos examinado a caverna superficialmente. — Onde acha que estão agora? — perguntei. — É difícil dizer — disse Vanez, pensativo, coçando a pálpebra vazia. — Não há muitas cavernas por perto que possam acomodar tantos vampixiitas. Mas eles podem ter se separado em grupos menores. — Duvido — observou um dos homens. — Se eu estivesse encarregado deles, ia querer que todos ficassem juntos para o caso de serem descobertos. Acho que nós os encontraremos todos juntos, possivelmente perto de uma saída, prontos para fugir em massa. — Esperemos que sim — disse Vanez. — Podemos levar séculos para encontrá-los se estiverem separados. Você pode encontrar o caminho de volta aos salões? — perguntou-me ele. — Posso — eu disse —, mas quero ir com vocês. Ele balançou a cabeça. — Nós o trouxemos para nos mostrar a caverna. Agora que fez isso, não tem mais nada a fazer aqui. Podemos nos mover mais rapidamente sem você. Volte aos salões e conte aos outros o que encontramos. Voltaremos quando tivermos encontrado os vampixiitas. Sebá encontrou-se comigo no portão de entrada e me levou para o Salão dos Príncipes. Muitos Generais tinham chegado para discutir a emergência, mas, a não ser aqueles com permissão especial para prestar pequenos serviços, ninguém podia sair da caverna em volta do salão, por isso muitos estavam do lado de fora, esperando para saber as novidades. O Sr. Crepsley e Harkat estavam no salão. O vampiro falava com os Príncipes. Harkat estava parado num canto, segurando a gaiola de Madame Octa, que me deu dizendo: — Achei que... você gostaria... de vê-la. Na verdade, não gostei, mas fingi que sim. — Ótimo, Harkat — sorri. — Obrigado por ter pensado nisso. Senti falta dela. — Harkat tem tomado conta da sua aranha — disse Sebá. — Ele a ofereceu para mim quando você estava desaparecido, mas eu mandei que continuasse
com ela. Disse que nunca sabemos o que pode acontecer. Sentia que você ia voltar. — Você ainda pode acabar ficando com ela — eu disse, tristemente. — Ao que parece, recuperei minha honra, mas meu fracasso nas provas ainda é uma questão a ser resolvida. — Certamente eles não... vão punir você... por isso, vão? — perguntou Harkat. Olhei para Sebá. Parecia carrancudo, mas não disse nada. Vanez Blane voltou algumas horas depois com boas notícias. Tinham descoberto os vampixiitas. — Estão em uma caverna longa e estreita, perto da parte externa da montanha — Vanez explicou para os Príncipes, sem perder tempo com rituais ou amabilidades. — Tem só uma entrada e uma saída. O túnel de saída dá diretamente para fora, assim podem fugir depressa se for preciso. — Posicionaremos homens no lado de fora para apanhar os que tentarem fugir — disse Mika. — Isso será difícil — suspirou Vanez. — O solo é íngreme no lugar da saída do túnel e estou certo de que devem ter sentinelas. Duvido que sejamos capazes de enganar os homens lá em cima. Será melhor apanhá-los dentro da caverna, se for possível. — Acha que não vai ser possível? — perguntou Paz Celestial ansiosamente, alertado pelo ar preocupado de Vanez. — De um modo ou de outro não vai ser fácil — disse Vanez. — Por mais cuidadosa que seja nossa aproximação, não poderemos surpreendê-los. Quando perceberem que estamos chegando perto, lançarão uma falange para nos deter enquanto a maior parte deles escapa. — E se bloquearmos o túnel por fora? — perguntou Arqueiro. — Provocar uma avalanche ou coisa parecida. Então eles terão de ficar e lutar. — É uma possibilidade — concordou Vanez. — Mas pode ser difícil bloquear o túnel. Além disso, podem perceber nossa presença e nossas intenções, poderão nos atacar. Prefiro armar uma emboscada. — Você acha que eles podem nos derrotar em luta aberta? — duvidou Arqueiro. Vanez balançou a cabeça. — Não. Não pudemos contar, mas não creio que haja mais de quarenta vampixiitas lá embaixo, provavelmente menos. Não tenho dúvida de que os derrotaremos. — Os vampiros aplaudiram essas palavras. — O que me preocupa não é vencer a luta — gritou ele para ser ouvido acima do clamor entusiasmado —, mas as perdas que sofreremos. — Para o diabo com as perdas! — rosnou Arqueiro. — Já derramamos sangue antes lutando contra vampixiitas. Quem aqui hesitaria em derramar outra
vez? — Pelos gritos ficou claro que ninguém hesitaria. — Falar é fácil — suspirou Vanez quando os gritos cessaram. — Mas, se atacarmos sem nenhum tipo de ação para desviar a atenção deles, estaremos nos arriscando a uma perda possível de trinta ou quarenta vampiros, talvez mais. Os vampixiitas não têm nada a perder e lutarão até o amargo e sangrento fim. Você quer assumir a responsabilidade dessas perdas, Arqueiro? A alegria dos vampiros arrefeceu ao ouvirem essas palavras. Até Arqueiro, o que odiava os vampixiitas com todas as suas forças, hesitou. — Você acha que perderíamos tanta gente assim? — perguntou ele em voz baixa. — Será uma sorte se perdermos somente trinta ou quarenta — respondeu Vanez. — Eles escolheram muito bem seu esconderijo. Não nos será possível um ataque em massa. Temos de avançar aos poucos. Nossa superioridade numérica facilitará a vitória, mas ela não vai ser rápida ou fácil. Eles nos farão muito mal — muito mesmo. Os Príncipes se entreolharam preocupados. — Esses números são inconcebíveis — disse Paz secamente. — Não são nem um pouco otimistas — concordou Mika com relutância. — É possível criar uma ação que desvie a atenção deles? — perguntou o Sr. Crepsley, entrando na discussão. — Não podemos obrigá-los a sair da caverna enchendo-a de fumaça ou de água? — Pensei nisso — disse Vanez. — Não vejo nenhum modo de bombear água para dentro da caverna a ponto de incomodá-los. Fogo seria o ideal, mas a caverna é bem ventilada. O teto é alto e cheio de pequenas rachaduras e buracos. Teríamos de entrar na caverna e acender uma enorme fogueira para que a fumaça os expulsasse lá de dentro. — Então terá de ser um ataque frontal — declarou Paz Celestial. — Mandaremos primeiro nossos melhores lanceiros, que deverão eliminar muitos deles antes de entrarmos em combate homem a homem. Nossas perdas não serão tão grandes desse modo. — Mesmo assim serão substanciais — objetou Vanez. — Os lanceiros não terão muito espaço para agir. Podem eliminar as sentinelas da entrada, mas depois disso... — Quais as nossas opções? — perguntou Arqueiro, irritado. — Você prefere se aproximar com uma bandeira branca para discutir os termos da paz? — Não fale comigo nesses termos! — berrou Vanez. — Estou tão ansioso para atacá-los quanto qualquer outro vampiro aqui. Mas será uma vitória de Pirro se tivermos de lutar um a um. Paz Celestial suspirou. — Se essa é a única vitória que nos é oferecida, devemos aceitá-la. No curto silêncio que se seguiu, perguntei para Sebá o que era uma vitória de Pirro.
— É quando o preço da vitória é alto demais — murmurou. — Se derrotarmos os vampixiitas mas perdermos sessenta ou setenta dos nossos, será uma vitória sem valor. A primeira regra da guerra é nunca se enfraquecer irreparavelmente no processo de destruir o inimigo. — Há uma alternativa — disse Paz Celestial, hesitante. — Podemos fazer com que eles fujam. Se fizermos bastante barulho, tenho certeza de que vão sair correndo para não nos enfrentar. Os vampixiitas não são covardes, mas também não são tolos. Não vão ficar e enfrentar uma luta se tiverem certeza de que vão perder. Resmungos irritados receberam essa sugestão. Muitos vampiros achavam o plano desonroso. O consenso era de que eles preferiam enfrentar os vampixiitas. — Não é a mais honrosa das táticas — gritou Paz Celestial para abafar os murmúrios exaltados. — Mas podemos persegui-los e lutar no lado de fora. Muitos escaparão, mas poderemos capturar e matar o bastante para dar a eles uma dura lição. — Paz Celestial tem razão — disse Mika, e os murmúrios cessaram. — Não me agrada, mas se temos de escolher entre deixar que a maior parte deles fuja e sacrificar quarenta ou cinqüenta dos nossos... Os vampiros começaram a sacudir as cabeças, assentindo desanimados. Paz Celestial perguntou para Arqueiro o que ele achava da sugestão. — Acho péssima — rosnou. — Os vampixiitas não são regidos por nossas leis, eles podem deslizar assim que estiverem fora da caverna. Não apanharemos praticamente nenhum deles. — Deslizar significa usar a supervelocidade com que os vampiros e os vampixiitas podiam se mover. Por tradição, aos vampiros não era permitido deslizar para dentro ou para fora da Montanha do Vampiro. “Se eu fosse General”, continuou Arqueiro, “seria contra qualquer modo que permita a fuga deles. Prefiro lutar e morrer a conceder terreno ao inimigo de modo tão fácil.” Ele suspirou tristonho. “Mas, como Príncipe, devo pôr o bemestar do nosso povo à frente do desejo do meu coração. A não ser que alguém pense em um plano para distrair os vampixiitas e abrir caminho para o ataque, concordarei em deixar que eles tenham oportunidade de fugir.” Não houve manifestações e os Príncipes chamaram os Generais e começaram a discutir o melhor modo de expulsar os vampixiitas e onde seus homens deviam ser posicionados no lado de fora da caverna. Um ar de desapontamento pairava pesado sobre o salão e quase todos os vampiros ficaram parados, de pé ou sentados, com a cabeça baixa, desapontados. — Eles não gostaram — murmurei para Sebá. — Eu também não — respondeu —, mas o orgulho deve ser refreado quando as probabilidades são tão agressivas. Não podemos permitir a morte de um enorme número de nossos homens só para satisfazer nossa honra. A razão deve ser obedecida, por mais amarga que seja.
Eu estava descontente como o resto dos vampiros. Queria vingança pela morte de Torvelinho. Não havia satisfação em deixar que os vampixiitas escapassem do anzol. Eu tinha inutilizado seus planos para invadir o Salão dos Príncipes, mas isso não bastava. Podia imaginar o desdém no rosto de Kurda quando soubesse da nossa decisão diplomática. Enquanto pensava nisso, um pequenino inseto entrou na gaiola de Madame Octa e ficou preso na teia, num canto. A aranha reagiu rapidamente, avançou para o cativo que se debatia e acabou com ele. Eu olhava pouco interessado, mas então foi como se acordasse quando um pensamento doido passou por minha cabeça. Olhando para a aranha, deixei meu cérebro funcionar solto e o plano se formou numa questão de segundos. Era simples, mas eficiente — no melhor sentido. Ficando nas pontas dos pés, pigarreei três vezes antes de conseguir atrair a atenção do Sr. Crepsley. — O que é, Darren? — perguntou ele com voz cansada. — Com licença — eu disse —, mas acho que sei como distrair os vampixiitas. Todos pararam de falar e cada par de olhos se fixou em mim. Adiantei-me e falei nervosamente. Quando comecei a apresentar minha proposta, os vampiros começaram a sorrir. Quando terminei, estavam rindo e aplaudindo alegremente o plano astuto e perverso. A votação foi breve e unânime. Meu plano foi exposto aos vampiros e eles, como um só homem, rugiram sua aprovação. Sem demora, os Príncipes e os Generais começaram a organizar suas forças de ataque, enquanto Sebá, o Sr. Crepsley e eu saímos para reunir nossas tropas e nos preparar para o primeiro estágio do que, num filme de guerra, provavelmente seria chamado Operação Aracnídea!
 
CAPÍTULO QUINZE
 
 
Nossa primeira parada foi na caverna das aranhas de Ba’Halen, onde Sebá tinha me levado quando eu sofria com as queimaduras depois da minha prova no Caminho das Agulhas. O intendente entrou sozinho, levando Madame Octa na palma da mão esquerda. Quando saiu, ele estava sério e de mãos vazias, os olhos
semicerrados. — Deu certo? — perguntei. — Você conseguiu... Ele me fez calar com um aceno. Fechando os olhos completamente, concentrou-se furiosamente. Alguns momentos depois, Madame Octa saiu da caverna acompanhada por uma aranha com pontos cinza-claros nas costas. Reconheci aquela aranha. Eu a tinha visto antes seguindo Madame Octa de um lado para outro. Atrás da aranha com pintas cinzentas vinham várias outras aranhas de veneno fraco da Montanha do Vampiro. Outras mais vinham atrás delas e logo um verdadeiro regato de aranhas fluía para fora da caverna e se reunia em volta de nós. Sebá as dirigia, comunicando-se mentalmente com as predadoras selvagens de oito pernas. — Agora vou transferir o controle — disse ele para o Sr. Crepsley e para mim quando todas as aranhas estavam ali. — Larten, fique com as aranhas à minha direita. Darren, com as da esquerda. Ficamos de frente para as aranhas. O Sr. Crepsley podia se comunicar sem ajuda, bem como Sebá, mas eu precisava da minha flauta para focalizar e transmitir meus pensamentos. Levando a flauta aos lábios, toquei algumas notas experimentais. Foi difícil por causa do meu polegar deslocado — que ainda não tinha ido para o lugar —, mas logo aprendi a compensar a falta do maldito dedo. Então fiquei esperando a ordem de Sebá. — Agora — disse ele suavemente. Comecei a tocar baixinho repetindo a mensagem mental para as aranhas: “Fiquem onde estão”, eu disse para elas. “Esperem, minhas beldades, esperem.” O conjunto de aranhas balançou inseguro quando Sebá parou de transmitir seus pensamentos, antes de se fixar nos meus e nos do Sr. Crepsley. Depois de alguns poucos segundos de confusão, elas entraram em sintonia com nossas ondas cerebrais e voltaram à sólida formação anterior. — Excelente — disse Sebá, com um sorriso satisfeito, adiantando-se com cuidado para não amassar as aranhas. — Deixo vocês com elas e vou procurar outras. Levem estas ao local do encontro e esperem por mim. Se alguma começar a se afastar do grupo, mandem Madame Octa trazê-la de volta. Elas lhe obedecerão. Esperamos Sebá sair e então viramos um para o outro. — Você não precisa tocar a flauta continuamente — disse o Sr. Crepsley. — Alguns assobios e comandos quando começarmos a andar devem ser suficientes. Elas ficarão atrás de nós e avançarão naturalmente. Deixe a flauta para as que se afastam do grupo ou para as rebeldes. — Vou na frente ou atrás? — perguntei, abaixando a flauta para molhar os lábios. — Vá na frente — disse o Sr. Crepsley. — Mas fique de olho nelas e esteja
preparado para recuar se for preciso, procurando não interromper a marcha das outras. — Vou tentar — eu disse, virei-me para a frente e toquei minha flauta. Começamos a caminhar, o Sr. Crepsley ao meu lado, as aranhas atrás. Quando chegamos aos túneis maiores, formamos duas filas separadas. Não era tão difícil comandar as aranhas quanto eu tinha pensado. Algumas criaram problemas — elas brigavam com as outras ou tentavam sair do grupo —, mas uma rápida intervenção da parte de Madame Octa era suficiente para resolver o caso. Madame Octa estava entusiasmada com seu papel e até começou a patrulhar as fileiras por conta própria, sem precisar ser orientada. Ela seria um grande General se fosse um vampiro! Finalmente, paramos na caverna grande onde tínhamos estabelecido nossa base. Dispusemos as aranhas em círculo à nossa volta, depois sentamos no meio delas e esperamos por Sebá. Ele chegou conduzindo um exército de aranhas com quase a metade das nossas. — Onde arranjou tudo isso? — perguntei, quando elas circundaram as que já estavam na caverna. — A montanha está cheia de aranhas — disse ele. — É só saber onde procurar. — Sentou-se ao nosso lado e sorriu. — Nunca em minha vida vi tamanha concentração em um só lugar ao mesmo tempo. Isso consegue amedrontar até mesmo um treinador calejado como eu! — Eu também sinto isso — concordou o Sr. Crepsley, depois riu. — Se elas têm esse efeito sobre nós, que espécie de terror provocarão nos vampixiitas, que nem desconfiam? — É o que logo vamos descobrir — riu Sebá, divertido. Enquanto esperávamos notícia dos Príncipes, o Sr. Crepsley apanhou minha flauta e fez alguma coisa com ela. Quando me devolveu, a flauta não funcionava mais. Assim não tinha perigo de alertar os vampixiitas. O fato de a flauta estar muda não importava — a música em si mesma não fazia diferença para as aranhas. Eu só a usava por hábito, depois de anos me apresentando com Madame Octa no Circo dos Horrores. Depois de uma longa e desconfortável espera, vimos uma patrulha de vampiros. Arqueiro logo apareceu e avançou para a beira do mar de oito pernas. Olhou inquieto para as aranhas e não chegou perto. Ele segurava dois pesados bumerangues com pontas afiadas, e tinha mais na cintura. O bumerangue era sua arma preferida. — Estamos prontos — sussurrou. — Os vampixiitas não saíram da caverna. Nossas tropas estão em posição. O sol brilha claro lá fora. Está na hora. Assentimos obedientemente e nos levantamos. — Você sabe o que deve fazer? — perguntou-me o Sr. Crepsley.
— Levo minhas aranhas para fora — respondi. — Chego perto da entrada do túnel, com cuidado para não ser visto. Você e Sebá guiarão suas aranhas usando as pequenas rachaduras e os buracos das paredes e do teto da caverna. Ficam com elas lá até a hora do meu primeiro movimento. Mando minhas aranhas atacar os guardas na entrada do túnel. Quando vocês ouvirem o barulho, mandam as suas para dentro da caverna, e começa a festa! — Procure nos dar um bom tempo para posicionarmos nossas aranhas — disse Sebá. — Vai ser difícil manobrá-las porque não podemos ver para onde estão indo. Vai ser um processo lento e exaustivo. — Não tenho pressa — eu disse. — Três horas serão suficientes. — Deve dar de sobra — disse Sebá, e o Sr. Crepsley concordou. Desejamos boa sorte uns para os outros, trocamos apertos de mão e então reuni minhas tropas — o menor dos grupos de aranhas, uma vez que sua tarefa era a menor de todas — e partimos para fora da montanha. O sol brilhava num céu sem nuvens, o que era bom — os guardas vampixiitas estariam bem afastados da entrada do túnel para evitar os raios mortais de luz. Saí até ficar a uns quarenta metros do túnel. Mantive minha posição até todas as minhas aranhas estarem fora da montanha, em volta de mim, e então as mandei seguir em frente, lenta e cautelosamente. Descemos a montanha até ficarmos a cem metros do túnel, abrigados sob uma grande rocha que se projetava do lado da montanha e nos escondia completamente. Era o mais próximo do túnel a que eu ousava chegar. Uma vez no lugar, deitei e vi o sol atravessar o céu. Eu fora escolhido para a parte externa da operação até certo ponto porque era menos problemática do que a que devia funcionar dentro da montanha, mas também porque era imune ao sol. Era vital que atacássemos durante o dia — os vampixiitas detestariam ter de deixar seu santuário e enfrentar o sol —, mas os vampiros seriam detidos pelo gigante solar tanto quanto por seus inimigos. Só eu podia me mover fora livremente. Depois de pouco mais de três horas, toquei a flauta baixinho e mandei as aranhas se espalharem antes de avançar. Só as aranhas se adiantaram — fiquei onde estava, escondido pela rocha. As aranhas formaram um anel em volta da entrada do túnel. Vistas do lado de fora pareciam inofensivas, mas quando entravam na caverna assumiam outra dimensão — pareciam mais numerosas e muito mais ameaçadoras. Espaços pequenos amplificam nossos temores. Os vampixiitas lá dentro, nós esperávamos, iam se sentir sitiados e entrariam em pânico. Mais alguns minutos para pôr ordem nas fileiras. Então dei o sinal para entrar. Elas seguiram silenciosamente, cobrindo não apenas o chão do túnel mas também as paredes e o teto. Se tudo corresse como planejado, os vampixiitas
pensariam que o túnel estava criando vida, cheio de aranhas. Eu devia ficar onde estava, fora do caminho, mas não resisti à tentação de sair do abrigo e observar o resultado do meu plano. Deitado de bruços no chão áspero da montanha, deslizei para a parte de cima do túnel e me preparei para ouvir os sons do caos lá dentro. Ouvi a respiração pesada dos vampixiitas, mais distanciados da entrada do que eu esperava. Por um tempo foi tudo que ouvi, calma e regularmente. Começava a imaginar se as aranhas tinham entrado nas rachaduras e desertado para seu habitat natural. Então um dos vampixiitas rosnou: — Ei, é minha imaginação ou as paredes estão se mexendo? Os companheiros riram. — Não seja bur... — um começou a dizer e parou. — Meu Deus, o que é isso? — Eu o ouvi exclamar. — O que está acontecendo? — gritou alguém, alarmado. — O que é isso? — Parecem aranhas — um dos menos agitados respondeu. — Milhões delas! — gritou um vampixiita. — São venenosas? — perguntou outro. — Claro que não — zombou o vampixiita, sem medo. — São só aranhas comuns da montanha. Não podem fazer nenhum... Tocando minha flauta, enviei a ordem para as aranhas: “Agora!” Dentro do túnel explodiram os gritos. — Elas estão despencando! — berrou alguém. — Estão em cima de mim! Tirem essas aranhas daqui! Tirem daqui! Tirem... — Acalme-se! — gritou o vampixiita menos apavorado. — É só tirá-las com as mãos e... ahhh! — gritou quando as aranhas começaram a enfiar as presas nele. Individualmente, as aranhas eram inofensivas — suas picadas apenas irritavam a pele. Mas várias picadas de centenas delas... Era um negócio completamente diferente. Enquanto os vampixiitas se agitavam no túnel, batendo com as mãos e com os pés nas aranhas, gritando de dor e de medo, ouvi os outros vindo de dentro da caverna para ver o que estava acontecendo. Correndo para o túnel, abaixei-me e mandei as aranhas seguir com o ataque. Elas obedeceram, apavorando os recém-chegados e obrigando-os a recuar, a caverna ecoando com os gritos e as contorções dos vampixiitas, quando as aranhas do Sr. Crepsley e de Sebá desceram das paredes e do teto e começaram a aplicar seus pavorosos encantos. A batalha tinha realmente começado.
 
CAPÍTULO DEZESSEIS
 
 
Eu não devia entrar na luta, mas o furor dos vampixiitas apavorados me excitou e, antes de pensar no que fazia, adiantei-me para observar o que acontecia dentro da caverna. Era um espetáculo incrível. Aranhas cobriam o chão e as paredes e —
especialmente — os vampixiitas em completa desordem. Os infelizes de rostos arroxeados pulavam como figuras de desenho animado, gritando e berrando, tentando desesperadamente repelir o ataque. Alguns usavam espadas e lanças sem nenhum efeito contra as invasoras, que se desviavam com facilidade dos golpes selvagens e continuavam avançando, enfiando suas presas nas partes expostas dos corpos deles. Os vampixiitas com espadas e lanças provocavam quase tanta destruição quanto as aranhas. Golpeando cegamente, atingiam seus companheiros, ferindo vários deles, até matando alguns. Os vampixiitas mais sensatos tentavam controlar a situação, gritando para que os outros cerrassem fileiras contra as aranhas. Mas o pandemônio anulava seus esforços. Eram ignorados, às vezes empurrados quando tentavam intervir. N o meio do pânico, Pintado e os dois lobos mais jovens entraram na caverna, latindo, uivando e rosnando, fazendo o maior barulho possível. Não acredito que alguém os tivesse convidado — eles simplesmente apareceram por conta própria, ávidos para tomar parte na desordem! Quando os vampixiitas viram os lobos, vários deles correram para a saída. Para eles foi demais — até a letal luz do sol parecia bem-vinda comparada àquilo! Pensei em me afastar para o lado e deixar que eles passassem, mas o desejo de lutar era intenso e a adrenalina inundava cada célula do meu corpo. Queria mantê-los ali se fosse possível para que sofressem com o resto da sua tribo desprezível. Naquele momento, tudo que eu via era vingança. Era tudo o que parecia importar. Olhando em volta, vi uma lança que um dos guardas do túnel deixara cair durante a tentativa de fuga. Eu a apanhei, prendi o cabo numa rachadura do chão e apontei a arma para os vampixiitas que corriam para a saída. O que ia na frente me viu e tentou desviar da lança, mas os que vinham atrás o empurraram no impulso da corrida. Correndo para a lança, ele se empalou sem precisar de minha ajuda. De pé, empurrei os vampixiitas para longe da lança, depois gritei para os que vinham atrás. Eles devem ter pensado que o caminho estava bloqueado por uma horda de vampiros selvagens, porque imediatamente deram meia-volta e correram para dentro. Rindo triunfante, corri atrás deles, pretendendo acrescentar alguns outros escalpos à minha coleção. Então, olhei para o vampixiita empalado pela lança e parei atônito. Ele era jovem, seu rosto apenas levemente arroxeado. Ele chorava e se lamentava baixinho. Num impulso, ajoelhei ao lado dele. — Dói... muito! — disse ele arquejante, com a mão no ferimento profundo da barriga. As mãos dele estavam vermelhas e eu sabia que não havia nenhuma esperança para ele. — Está tudo bem — menti. — É só um ferimento superficial. Você logo estará... — Antes que eu pudesse dizer mais, ele tossiu. O sangue jorrou da sua
boca, numa torrente. Arregalou os olhos, depois os fechou. Gemeu baixinho, caiu para trás, estremeceu e morreu. Eu o matei. Esse pensamento abalou até o âmago do meu ser. Nunca havia matado antes. Embora quisesse punir os vampixiitas pelo que tinham feito a Torvelinho, só então considerei as conseqüências das minhas ações. Aquele vampixiita — aquela pessoa — estava morto. Eu havia tirado sua vida e jamais poderia devolvê-la. Talvez ele merecesse a morte. Talvez fosse podre até a alma e precisasse mesmo morrer. Por outro lado, talvez fosse um cara comum como eu ou qualquer vampiro, e só estava ali obedecendo a ordens. De qualquer modo, merecendo ou não, quem podia decidir? Eu não tinha o direito de julgar e de matar os outros. Mas estava feito. Excitado pelo medo dos vampixiitas, pensando em vingança, deixando meu coração governar a cabeça, ergui uma arma contra aquele homem e o matei. Eu me detestei pelo que tinha feito. Queria dar meia-volta e fugir para longe, fingir que aquilo jamais acontecera. Sentia-me inferior, sujo, cruel. Tentei me consolar pensando que tinha feito a coisa certa, mas como separar o certo do errado quando se trata de matar? Tenho certeza de que Kurda pensou que estava fazendo a coisa certa quando apunhalou Torvelinho. Os vampixiitas pensavam que faziam a coisa certa quando tiravam todo o sangue das pessoas. De qualquer modo, sentia que não era melhor do que qualquer outro assassino, de uma raça cruel, terrível e desumana. Só meu senso do dever me fez voltar à realidade. Sabia que os vampiros atacariam a qualquer momento. Minha tarefa era manter as aranhas ativas até o ataque para evitar que os vampixiitas reorganizassem suas fileiras e enfrentassem o assalto eficazmente. Se eu desertasse do meu posto, os vampiros morreriam em grande número, bem como os vampixiitas. Precisava me concentrar no quadro maior, independente do que sentia naquele momento. Levando a flauta aos lábios, toquei, incitando as aranhas a atacar os vampixiitas. A cena parecia tão diferente vista à luz da vida que havia tirado! Eu já não sentia prazer vendo os vampixiitas gritando e desferindo golpes às cegas, nem os via como os vilões cruéis recebendo o que mereciam. O que via eram guerreiros, apavorados e humilhados, longe de seus lares e dos seus aliados, prestes a ser desnecessariamente dizimados. No auge da histeria, os vampiros atacaram, liderados pelo tonitruante Arqueiro, que lançava seus bumerangues com pontas afiadas nos vampixiitas, um depois do outro, derramando sangue a cada golpe. Os lanceiros estavam ao seu lado e atrás dele, e as lanças que brandiam causavam grandes danos e tiravam muitas vidas. Quando os vampiros invadiram a caverna, as aranhas se recolheram,
obedecendo à ordem dos invisíveis Sr. Crepsley e Sebá. Mantive minhas aranhas onde estavam por mais algum tempo para que o pânico continuasse naquele lado da caverna. Em menos de um minuto, os vampiros invadiram toda a caverna, os lanceiros sendo substituídos por uma onda de facas e espadas. Não eram em grande número — se muitos entrassem no pequeno espaço, teriam dificuldade para se movimentar —, mas os trinta vampiros que entraram pareciam muito mais, comparados aos vampixiitas apavorados. A impressão era de cinco vampiros para cada inimigo. Arqueiro estava no auge da ação, liderando com seu exemplo, tão impiedoso e eficiente com as espadas quanto fora com os bumerangues. Vanez Blane estava perto do Príncipe, as facas cintilando, dando cobertura. Alarmados com as aranhas e os lobos, os vampixiitas logo se deram conta de onde estava a verdadeira ameaça e rapidamente se afastaram da fúria assassina dos dois. Arra Barbatanas também fazia parte do assalto inicial. Estava no seu elemento, atacando os vampixiitas com uma espada curta em uma das mãos e uma corrente com pontas aguçadas na outra, rindo brutalmente quando eles caíam sob seu ataque. Alguns minutos antes eu teria aplaudido seu desempenho, mas agora tudo que sentia era consternação pelo puro prazer que ela e os outros vampiros sentiam com a destruição. “Isto não está certo”, murmurei para mim mesmo. Matar os vampixiitas era uma coisa — tinha de ser feita —, mas sentir prazer com sua derrota era errado. Era perturbador ver a satisfação sinistra dos vampiros com o massacre. Confuso como estava, resolvi que o melhor era entrar e ajudar. Quanto antes acabássemos com os vampixiitas, mais depressa eu poderia dar as costas àquele horror. Tirando uma adaga afiada das mãos do homem que eu havia matado, chamei minhas aranhas, joguei fora a flauta e me adiantei para entrar na luta dos vampiros contra os vampixiitas. Fiquei na margem da luta, atacando pés e pernas dos vampixiitas, distraindoos, facilitando o trabalho dos vampiros de desarmá-los e matá-los. Não sentia prazer com o sucesso da minha ação, apenas continuava atacando, resolvido a contribuir para o rápido fim da luta. Vi o Sr. Crepsley e Sebá Nilo entrarem na caverna, os mantos enfunados atrás deles, ávidos para tomar parte na carnificina. Não os culpei por essa avidez para matar. Eu não culpava nenhum dos vampiros. Apenas achava que esse entusiasmo era exagerado e indecoroso. A luta se intensificou logo depois que o Sr. Crepsley e Sebá chegaram. Só os mais resistentes e mais calmos vampixiitas tinham sobrevivido àquela primeira fase da loucura e agora eles combateriam implacavelmente até o fim, firmes nos seus postos, alguns sozinhos, alguns em pares, levando o maior número possível de vampiros para o túmulo.
Eu vi as primeiras vítimas entre os vampiros caírem no chão, as barrigas abertas ou as cabeças esfaceladas, sangrando e soluçando, gritando de dor. No chão, morrendo, cobertos de sangue, não pareciam diferentes dos vampixiitas. Quando a linha de frente da segunda onda de vampiros entrou aos poucos na caverna, Vanez bateu nas costas de Arqueiro e o mandou ir embora. — Ir embora? — zombou o Príncipe. — Agora que está começando a ficar interessante! — Você tem de ir — rugiu Vanez, arrastando Arqueiro para fora da luta. — É a vez de Mika manchar de sangue sua espada. Volte para o Salão dos Príncipes e substitua Paz Celestial, como prometeu. Você já teve sua cota da matança. Não seja ganancioso. Relutante, Arqueiro saiu. No caminho passou por Mika, e os dois trocaram pancadinhas nas costas como se um estivesse substituindo o outro numa partida de futebol. — Nada agradável, certo? — rosnou Vanez, aproximando-se de mim. Encharcado de suor, parou para enxugar as mãos na túnica, enquanto a luta prosseguia feroz à nossa volta. — É horrível — murmurei, segurando a faca na minha frente como se fosse uma cruz. — Você não devia estar aqui — disse Vanez. — Larten não aprovaria se soubesse. — Não estou fazendo isso para me divertir — eu disse. Olhando nos meus olhos, Vanez suspirou. — É o que estou vendo. Você aprende depressa, Darren. — Como assim? — perguntei. Ele indicou com um gesto os vampiros que lutavam entusiasmados. — Para eles, isso é um esporte de primeira — riu ele, tristonho. — Esquecem que os vampixiitas foram nossos irmãos no passado, e que, destruindoos, estamos destruindo uma parte de nós mesmos. A maior parte dos vampiros nunca se dá conta de como a guerra é selvagem e inútil. Você foi bastante inteligente para ver a verdade. Nunca esqueça isso. Um vampixiita agonizante cambaleou em nossa direção. Seus olhos tinham sido arrancados e ele gemia de dor. Vanez o segurou, deitou-o no chão e pôs fim rápida e misericordiosamente ao seu sofrimento. Quando terminou, parecia abalado. — Porém, por mais dolorosa que seja a guerra, às vezes não pode ser evitada. Não provocamos este confronto. Lembre-se disso mais tarde e não dirija sua agressão contra nós. Fomos obrigados a isto. — Eu sei — suspirei. — Só queria que houvesse outro meio de punir os vampixiitas, sem precisar fazê-los em pedaços. — Você deve sair daqui — sugeriu Vanez. — É agora que começa o
verdadeiro trabalho sujo. Volte para os salões e tome uma bebedeira. — Talvez eu faça isso — concordei e virei-me para sair, deixando Vanez e os outros acabarem com os últimos e obstinados vampixiitas. Quando estava saindo, vi um rosto familiar no meio da multidão, um vampixiita com uma marca de nascença vermelha no lado esquerdo do rosto. Levei um segundo para lembrar seu nome, Glalda, o que havia falado com Kurda no túnel quando Torvelinho foi morto. Ele queria me matar também. O ódio explodiu no meu peito e tive de resistir ao impulso de voltar para a luta. Na margem da luta, eu teria saído facilmente se uma multidão de vampiros não estivesse bloqueando meu caminho. Em volta de um vampixiita ferido, eles o torturavam antes do golpe mortal. Desgostoso com aquela brincadeira cruel, procurei outra saída. Nesse momento, Arra Barbatanas adiantou-se para enfrentar o desafio do vampixiita chamado Glalda. Dois vampiros jaziam mortos aos pés dele, mas mesmo assim Arra foi ao encontro de Glalda. — Prepare-se para morrer, verme! — gritou ela, brandindo sua corrente. Glalda afastou a corrente para o lado e riu. — Então agora os vampiros mandam mulheres para lutar por eles! — zombou. — É só o que os vampixiitas podem enfrentar, mulheres — respondeu Arra. — Vocês não são dignos de enfrentar homens e de morrer com honra. Imagine a vergonha quando souberem que você morreu pelas mãos de uma mulher! — Seria uma vergonha — concordou Glalda, atacando com a espada. — Mas não vai acontecer! Os dois pararam de trocar palavras e começaram a trocar golpes. Fiquei surpreso ouvindo toda aquela zombaria — a maior parte dos combatentes estava muito preocupada em tentar permanecer vivo para agir como estrelas de cinema e trocar insultos verbais. Arra e o vampixiita moviam-se em círculos, cautelosamente, atacando com suas armas, à procura de pontos fracos. Glalda podia ter ficado surpreso por se encontrar face a face com uma mulher, mas ele a tratou com respeito, atento. Arra, por sua vez, era mais arrojada. Ela já havia derrotado vários vampixiitas em pânico no começo da luta e acreditava que todos cairiam facilmente. Abria a guarda e se expunha a riscos desnecessários. Eu queria sair da caverna e deixar a luta para trás, mas não podia sair sem ver o fim da luta de Arra. Ela fora uma boa amiga e foi me procurar quando desapareci. Não queria ir embora enquanto não tivesse certeza de que ela estava a salvo. O Sr. Crepsley também parou para observar Arra. Ele estava longe, separado dela por um monte de vampiros e vampixiitas. — Arra! — gritou ele. — Precisa de ajuda? — Não eu! — riu ela, atirando a ponta da corrente no rosto do vampixiita. —
Vou acabar com este tolo antes que você tenha tempo de dizer... Fosse qual fosse o tipo de gabolice que ela pretendia fazer, parou de repente. Esquivando-se da corrente, Glalda empurrou para o lado o golpe defensivo, enfiou a espada profundamente na barriga dela e girou a lâmina cruelmente. Arra gritou angustiada e caiu. — Agora, mulher — zombou o vampixiita, montando nela e levantando a espada. — Olhe bem, vou mostrar como nos livramos dos da sua espécie! — Apontando a espada para os olhos dela, ele a abaixou lentamente. Arra não podia fazer nada a não ser olhar para ele cheia de ódio e esperar a morte.
 
CAPÍTULO DEZESSETE
 
 
Eu não podia ficar parado e deixar que Glalda matasse Arra. Avancei, atirei-me contra o vampixiita e o desequilibrei. Ele praguejou, caiu pesadamente e virou-se para se defender de mim. Mas eu era mais rápido com minha adaga leve do que ele com a espada pesada. Atirei-me em cima dele, enfiei a adaga no seu peito e
por sorte atingi de leve o coração. Esse vampixiita não morreu silenciosamente como o primeiro que matei. Ele se contorceu e resmungou incoerentemente, depois girou o corpo, me arrastando junto. Tentou se levantar. Era inútil — ele devia saber que estava morrendo —, mas mesmo assim tentou. Quando suas pernas cederam, desmoronou em cima de mim, quase me acertando com o cabo da minha adaga. Esforçando-me para respirar debaixo dele enquanto o vampixiita entrava em convulsão e gemia, consegui erguê-lo um pouco e me livrar. Quando me ajoelhei, vi o rosto dele relaxar e a vida deixar seu corpo. Parei e olhei para ele. Sua expressão parecia muito com a de Torvelinho — surpresa... aborrecimento... medo. Gentilmente fechei os olhos do guerreiro, depois fiz o sinal do toque da morte, pressionando meus dedos médios contra minha testa e meus olhos e estendendo o polegar e o dedo mínimo. “Mesmo na morte, que você possa ser triunfante”, murmurei. Então fui ver como estava Arra. Não estava nada bem. Tentou se levantar, mas a fiz ficar deitada e apertar a mão sobre o ferimento na barriga para deter o fluxo do sangue. — Eu vou... morrer? — murmurou Arra, com os lábios contraídos pela dor. — É claro que não — eu disse, mas Arra segurou minha mão e olhou para mim. — Vou morrer? — esbravejou. — Eu não sei — respondi sinceramente dessa vez. — Talvez. Ela suspirou e deitou outra vez. — Pelo menos não morro sem me vingar. Você luta bem, Darren Shan. Você é um verdadeiro vampiro. — Obrigado — eu disse inexpressivamente. O Sr. Crepsley se aproximou e, preocupado, examinou Arra. Passou saliva em volta do ferimento para estancar a hemorragia, mas seus esforços não fizeram muita diferença. — Está doendo? — perguntou ele. — Por falar em perguntas cretinas... — gorgolejou ela. — Você sempre diz que tenho a tendência de trocar os pés pelas mãos — sorriu ele com ternura, limpando o sangue dos cantos da boca de Arra. — Eu pediria para você me beijar — disse ela —, mas não estou... em forma... para isso. — Teremos muito tempo para beijar mais tarde — prometeu ele. — Talvez — suspirou Arra. — Talvez. Enquanto o Sr. Crepsley cuidava de Arra, afastei-me e vi a batalha chegar ao fim. Não mais de seis ou sete vampixiitas ainda estavam de pé e cada um cercado por vários vampiros. Eles deviam ter se entregado, mas eu sabia que não
fariam isso. Vampiros e vampixiitas só sabiam como ganhar e como morrer. Para a legião orgulhosa dos mortos-vivos, não havia meio-termo. Enquanto eu olhava, dois vampixiitas que lutavam costas com costas tentaram correr para a saída do túnel. Um bando de vampiros se moveu para interceptá-los, Vanez entre eles. Impediram a fuga, mas um dos vampixiitas atirou a adaga com rancoroso desespero antes de ser capturado e morto pelos vampiros. A arma voou como um míssil teleguiado na direção do alvo — Vanez! O mestre dos jogos lançou a cabeça para trás e quase evitou o impacto, mas a adaga foi mais rápida e a ponta da lâmina se enfiou no seu único olho. O sangue jorrou, Vanez gritou, cobriu o rosto com as mãos e Sebá Nilo correu para levá-lo a um lugar seguro. Mas, pelo grito que soltou, tive certeza de que, se Vanez sobrevivesse, jamais veria outra vez a luz da lua ou o tremeluzir das estrelas. O vampixiita tinha terminado o trabalho começado por um leão. Agora Vanez estava completamente cego. Olhando em volta tristemente, vi Pintado mastigando a cabeça de um vampixiita ainda vivo, ajudado por um dos lobos jovens. Procurei o outro lobo impetuoso e o encontrei morto ao lado de uma parede, a barriga aberta, os dentes arreganhados num cruel rosnado de morte. Paz Celestial chegou e tomou o lugar de Arqueiro. O velho Príncipe brandia um cajado grosso com as duas pontas afiadas. Ele mostrava menos entusiasmo pela luta do que seus irmãos mais jovens, mas entrou na carnificina e enfiou a ponta do cajado em um dos últimos vampixiitas. Ele não fez nenhum apelo pela paz, nem disse aos seus homens para apanhar vivos os que ainda restavam. Talvez fosse melhor assim. Os vampixiitas apanhados ilesos — eram vários — só podiam esperar o Salão da Morte, onde seriam empalados em estacas na frente de uma multidão de vampiros que zombariam deles. Se pudessem escolher, tenho certeza de que prefeririam morrer de pé e com honra. A dolorosa luta chegava ao fim. O último vampixiita foi despachado — ele rugiu quando morreu: “Que os demônios levem vocês todos!” — e começou a retirada dos corpos. Os vampiros agiam com eficiência mecânica. Generais, que até há pouco brandiam machadinhas, apanhavam os vampiros feridos e os levavam embora para serem tratados, rindo enquanto faziam isso, discutindo a batalha, sem dar importância aos ferimentos dos companheiros. Outros cuidavam dos mortos, primeiro dos vampiros, depois dos vampixiitas. Fizeram pilhas de corpos, que eram apanhados pelos sinistros Guardiões do Sangue (eles deviam estar esperando no lado de fora da caverna) e preparados para a cremação. Tudo era feito de bom humor. Não incomodava os Generais o fato de termos perdido nove ou dez dos nossos (o total verdadeiro de baixas, quando por fim os feridos com gravidade morreram, foi de doze). A batalha estava ganha, os
vampixiitas destruídos e a montanha segura. Eles achavam que tinham se saído muito bem. Foi preciso uma maca para Arra — ela não podia andar de modo algum. Agora estava quieta e olhava para o teto da caverna como se estivesse estudando um quadro. — Darren — murmurou. — Sim? — Você se lembra... de quando eu o derrotei... nas barras? — É claro — sorri. — Você lutou... muito bem. — Não o bastante — ri baixinho. Tossindo, ela se virou para o Sr. Crepsley. — Não deixe que eles o matem, Larten! — sibilou Arra. — Eu fui um dos... que insistiram na sua... morte quando ele fracassou... na prova. Mas diga a eles que eu disse que ele deve... ser poupado. Ele é... um vampiro de valor. Ele merece... uma nova prova. Diga para eles! — Você mesma pode dizer — disse o Sr. Crepsley, com as lágrimas descendo por seu rosto, uma demonstração de emoção que nunca imaginei que veria. — Você vai ficar boa. Vou levá-la ao Salão dos Príncipes. Você pode pedir por ele. — Talvez — suspirou Arra. — Mas se eu não conseguir... você faz isso por mim? Dirá a eles... o que eu disse? Você o protegerá? O Sr. Crepsley inclinou a cabeça, assentindo em silêncio. A maca chegou e Arra foi levada por dois vampiros. O Sr. Crepsley a acompanhou, segurando a mão dela, tentando confortá-la. Ela fez o sinal do toque da morte para mim com a mão livre antes de ir e depois riu — o sangue espirrou nos seus lábios — e piscou um olho. Mais tarde, naquele mesmo dia, antes que o sol mergulhasse no céu de inverno, apesar dos esforços dos médicos, Arra Barbatanas fechou os olhos, reconciliou-se com os deuses dos vampiros, deu seu último suspiro... e morreu.
 
CAPÍTULO DEZOITO
 
 
Horas mais tarde, quando fiquei sabendo da morte de Arra, voltei à caverna para tentar entender tudo o que tinha na cabeça. Os vampiros haviam partido. Os corpos tinham sido retirados pelos mórbidos Guardiões do Sangue. Até as muitas aranhas amassadas tinham sido removidas. Só o sangue permanecia, em grandes
e feias poças, entrando nas rachaduras do chão, secando nas paredes, pingando do teto. Passei as unhas no rosto — coberto de pó, sangue seco e lágrimas — e examinei os desenhos do sangue no chão e nas redes à medida que era congelado, pensando na luta e nas vidas perdidas. Enquanto ouvia os ecos do sangue derramado, comecei a me lembrar dos gritos dos vampiros e dos vampixiitas, os gemidos dos agonizantes, Sebá levando Vanez cego para fora da caverna, o prazer com que a batalha fora enfrentada, a expressão de Glalda quando o matei, Arra e o modo como piscou para mim. — Você se importa se eu lhe fizer companhia? — perguntou alguém. Erguendo os olhos, vi que era o velho intendente da Montanha do Vampiro, Sebá Nilo, mancando por causa de um ferimento. — Considere-se meu convidado — eu disse, inexpressivamente, e ele se sentou ao meu lado. Durante alguns minutos olhamos para a caverna cheia de sangue em silêncio. Finalmente, perguntei para Sebá se ele sabia da morte de Arra. — Sim — disse ele em voz baixa. Pôs a mão no meu joelho. — Não deve lamentar demais a morte dela, Darren. Ela morreu com orgulho, como certamente desejava. — Ela morreu estupidamente! — eu disse, irritado. — Não deve dizer isso — censurou-me Sebá delicadamente. — Por que não? — exclamei. — É a verdade! Foi uma luta estúpida entre pessoas estúpidas. — Arra não pensava assim — disse Sebá. — Ela deu a vida por essa “luta estúpida”. Outros também deram. — É isso que a torna estúpida — gemi. — Podíamos ter feito com que eles fossem embora. Não precisávamos vir aqui e fazê-los em pedaços. — Se estou bem lembrado — disse Sebá foi sua a idéia de usar as aranhas que preparou o caminho para o ataque. — Obrigado por me lembrar — eu disse com amargura, e voltei ao silêncio. — Você não deve dar tanta importância a isso — disse Sebá. — Lutar é o nosso modo de ser. É como nos julgamos. Para o iniciante pode parecer um banho de sangue bárbaro, mas nossa causa era justa. Os vampixiitas planejavam nosso extermínio. Éramos nós ou eles. Você sabe disso melhor do que ninguém, você estava lá quando eles mataram Torvelinho. — Eu sei — suspirei. — Não estou dizendo que eles não mereciam. Mas por que estavam aqui? Por que eles invadiram a montanha? Sebá deu de ombros. — Sem dúvida descobriremos a verdade quando tivermos oportunidade de interrogar os sobreviventes. — Quer dizer torturar — eu disse, irritado.
— Se é assim que você quer chamar — respondeu Sebá calmamente. — Tudo bem. Vamos torturá-los e talvez ficar sabendo que eles atacaram só por atacar para nos derrotar e para tomar a montanha. Então tudo estará bem. Podemos seguir em frente orgulhosos e bater nas costas uns dos outros. “Mas e se não foi por isso que atacaram?”, continuei. “E se fosse por outra razão?” — Como o quê? — perguntou Sebá. — Eu não sei. Não tenho idéia de como os vampixiitas pensam ou por que fazem as coisas. O caso é que nem você e os outros vampiros sabem também. Esse ataque foi uma surpresa para todos, não foi? — Foi inesperado — concordou Sebá. — Os vampixiitas nunca nos atacaram com tanta agressividade antes. Mesmo quando se separaram de nós, só queriam estabelecer uma sociedade própria, não solapar a nossa. — Então por que eles fizeram isso? — perguntei outra vez. — Você sabe? — Não — disse Sebá. — Aí está! — exclamei. — Você não sabe, eu não sei, os Príncipes não sabem. — Ajoelhei-me na frente de Sebá e olhei nos olhos dele. — Você não acha que alguém devia ter perguntado! Nós descemos para cá e os dizimamos e nem uma vez sequer algum de nós parou para questionar seus motivos. Reagimos como animais. — Não havia tempo para questionamentos — insistiu Sebá, mas vi que minhas palavras o tinham abalado. — Talvez não — eu disse. — Não agora. Mas o que me diz de seis meses atrás? Um ano? Dez anos? Cem? Kurda era o único que estava em contato com os vampixiitas e que tentava compreendê-los. Por que outros não o ajudaram? Por que não se tentou conquistar a amizade deles para evitar uma coisa como esta? — Você está dando razão a Kurda Smahlt? — perguntou Sebá, desgostoso. — Não. Kurda nos traiu. Não há defesa para o que ele fez. O que estou dizendo é que, se tivéssemos nos esforçado mais para conhecer os vampixiitas, talvez ele não precisasse nos trair. Talvez, de certa forma, nós o tenhamos forçado a isso. — Seu modo de pensar me intriga — disse Sebá. — Você é mais humano do que vampiro, suponho. Com o tempo vai aprender a ver as coisas ao nosso modo e... — Não! — gritei, levantando-me de um salto. — Eu não quero ver as coisas ao seu modo. Seu modo é o modo errado. Admiro a força, a honestidade e a lealdade dos vampiros, e quero fazer parte do clã. Mas não se isso significa me abandonar à estupidez, não se isso significa suportar derramamento de sangue como este só porque meus líderes são orgulhosos demais para se sentar com os vampixiitas e resolver suas divergências.
— Seria impossível resolver nossas divergências — observou Sebá. — Mas o esforço teria sido feito. Os Príncipes deviam ter tentado. Sebá balançou a cabeça com ar cansado. — Talvez você tenha razão. Estou velho e preso ao passado. Lembro-me de quando os vampiros não tinham escolha a não ser matar ou ser morto, lutar ou perecer. Do modo como vejo as coisas, a batalha de hoje foi selvagem, mas não pior do que centenas de outras que testemunhei durante meus séculos de vida. “Dito isso, devo admitir que o mundo mudou. Talvez seja o momento de mudarmos também”, sorriu. “Mas quem nos conduzirá para fora da escuridão do passado? Kurda era o rosto do nosso futuro. Ele talvez fosse capaz de alterar nosso modo de pensar e de viver. Agora que caiu em desgraça, quem vai falar em nome do novo mundo e do seu modo de vida?” — Não sei — eu disse. — Mas alguém devia. Se isso não for feito, nada mudará e o desastre de hoje se repetirá muitas e muitas vezes até que os vampiros eliminem por completo os vampixiitas ou vice-versa. — Pensamentos desoladores — suspirou Sebá, então se levantou e massageou a coxa esquerda ferida. — Entretanto não vim aqui para discutir o futuro. Temos de tomar uma decisão mais imediata e menos perturbadora. — Como assim? — perguntei. Ele apontou para o chão e vi que Madame Octa e a aranha com as pequenas pintas cinzentas estavam atrás de nós. — Muitas das nossas amigas de oito pernas foram amassadas durante a luta — disse Sebá. — Essas estavam entre as sobreviventes. Podiam ter fugido como as outras, mas ficaram, como à espera de novas ordens. — Você acha que esse cara está apaixonado por Madame Octa? — perguntei apontando para a aranha pintada, esquecendo por alguns momentos minha preocupação. — Com certeza — sorriu Sebá. — Não acho que as aranhas conheçam o amor como nós. Mas ele ficou ao lado dela durante toda a luta e não foi embora quando ela resolveu ficar. Acho que querem acasalar. Sorri à idéia absurda de Madame Octa entrando na igreja com um vestido branco, o Sr. Crepsley esperando perto do altar para entregá-la. — Acha que devo pôr Madame Octa na gaiola? — perguntei. — Para falar a verdade, estava pensando em libertá-la para que ela possa construir seu lar com ele. Sou contrário ao cativeiro de criaturas selvagens, exceto quando é estritamente necessário. — Quer que eu a deixe ir? — Mordi o lábio inferior e pensei no assunto. — E se ela picar alguém? — Não acredito que faça isso — disse ele. — Com todos os túneis da montanha para escolher, é pouco provável que ela escolha fazer seu lar onde as pessoas possam chegar.
— E os filhos? Se ela tiver filhos, pode dar origem a um exército de aranhas venenosas. — Eu duvido — sorriu Sebá. — Mesmo que ela possa procriar com aranhas de Ba’Halen, os filhos provavelmente não serão mais venenosos que os pais. Pensei mais um pouco. Sebá já havia sugerido isso antes e eu discordei. Mas, depois de tudo por que ela passou, parecia certo libertá-la agora. — Tudo bem. Você me convenceu. — Você não quer falar antes com Larten? — perguntou Sebá. — Acho que ele tem coisas mais importantes com que se preocupar — eu disse, referindo-me a Arra. — Muito bem — concordou Sebá. — Você quer dar a boa notícia a Madame Octa ou quer que eu o faça? — Eu faço isso. Espere um minuto, vou pegar minha flauta. Encontrei a flauta onde a deixara, voltei correndo, levei a flauta aos lábios, toquei silenciosamente e mandei o pensamento para Madame Octa: “Vá. Você está livre. Vá embora.” A aranha hesitou, depois foi embora, a aranha pintada da montanha atrás. Sebá e eu olhamos para elas até desaparecerem de vista numa rachadura da parede. Eu não teria caído nas mãos do Sr. Crepsley se não fosse por Madame Octa. Ela desempenhou a parte principal na decisão do meu destino. Embora nunca tivesse gostado da aranha desde que ela picou meu melhor amigo, Lucas Leopardo, agora que ela estava saindo para sempre da minha vida, senti-me estranhamente sozinho, como se tivesse perdido uma companheira querida. Procurando me livrar daquele estranho estado de espírito, larguei a flauta — não ia mais precisar dela — e disse para Sebá que gostaria de voltar aos salões. Lado a lado, silenciosos como um par de fantasmas, demos as costas para a cena da batalha e partimos, deixando as poças de sangue para secar e enrijecer à vontade.
 
CAPÍTULO DEZENOVE
 
 
Quando cheguei à minha cela, caí pesadamente na rede, completamente vestido, ainda sujo com o sangue da caverna. Depois de dormir mal por tanto tempo, era delicioso e adormeci quase imediatamente. Dormi a noite toda e, quando acordei, o dia estava começando. Os túneis fora da minha cela estavam
silenciosos. Harkat estava acordado e esperando que eu acordasse para se levantar. — Ouvi dizer... que você matou... dois vampixiitas — disse ele, dando-me um balde com água fria, uma toalha áspera e roupas limpas. Rosnei uma resposta e lavei o sangue seco e solto. “Os vampiros... não me deixaram... entrar na luta. Fiquei contente... de certo modo. Não... me agrada a idéia... de matar.” — Há muito pouca alegria em matar — concordei. — Foi... horrível? — perguntou. — Não quero falar nisso — eu disse. — Muito bem. Não... perguntarei outra vez. Sorri agradecido, mergulhei a cabeça calva no balde, sacudi para tirar a água, esfreguei atrás das orelhas, depois perguntei sobre o Sr. Crepsley. A luz verde nos olhos de Harkat esmaeceu um pouco. — Ele ainda está... com Arra. Ele se recusa... a sair do lado dela. Sebá está com... ele, tentando... consolá-lo. — Você acha que devo falar com ele? Harkat balançou a cabeça. — Não... no momento. Mais tarde ele vai... precisar de você. Por enquanto deixe que... ele lamente sozinho. Enxuguei-me e perguntei sobre Vanez e os outros vampiros, mas Harkat não pôde me dizer muita coisa. Ele sabia que pelo menos dez vampiros tinham morrido e outros estavam gravemente feridos, mas não sabia quem eram. Depois de me vestir, acompanhei Harkat ao Salão de Khledon Lurt para uma refeição rápida, depois voltamos para nossa cela, onde ficamos pelo resto do dia. Podíamos ter ficado com os vampiros no salão — eles aplaudiram barulhentamente quando entrei —, mas não queria ouvir as histórias compridas da batalha e de como vencemos os vampixiitas. Finalmente, quase no começo da noite, o Sr. Crepsley entrou na nossa cela. Estava mais pálido que de costume quando se sentou pesadamente na minha rede, abaixou a cabeça nas mãos e gemeu. — Você soube? — murmurou. — Sim — eu disse. Então, depois de uma breve pausa, acrescentei em voz baixa: — Sinto muito. — Pensei que ela ia conseguir — suspirou. — Eu sabia que o ferimento era fatal, mas ela durou tanto tempo, desafiando as previsões, que comecei a acreditar que ia viver. — Ela... — pigarreei. — Ela já foi cremada? Ele balançou a cabeça. — Ninguém foi cremado ainda. Os Guardiões do Sangue conservam os corpos pelo menos por dois dias e duas noites, como é nosso costume. Os
vampixiitas, por outro lado... — Tirou as mãos do rosto e continuou, com uma expressão realmente assustadora: — Eles estão sendo lançados às chamas neste momento. Nós os tiramos dos Guardiões e os cortamos em pedaços pequenos para que suas almas não possam escapar da força de gravidade da Terra — eles jamais chegarão ao Paraíso. Espero que apodreçam aqui embaixo por toda a eternidade. Senti que não era o momento de falar na repulsa que senti na caverna, ou da minha crença de que os vampiros precisavam aprender a ter compaixão, por isso fiquei calado e inclinei a cabeça assentindo. — E... Kurda e os... outros sobreviventes? — perguntou Harkat. — Trataremos deles mais tarde — disse o Sr. Crepsley, entrecerrando os olhos. — Serão interrogados primeiro, depois executados. Estarei lá quando isso acontecer. Vocês querem assistir? — Ao interrogatório, sim. Não tenho certeza quanto à execução — eu disse. — Eu prefiro... faltar aos dois — disse Harkat. — Não acho... que me diga respeito. Isso é... assunto para os vampiros. — Como queiram — disse o Sr. Crepsley. — E os funerais? Querem se despedir de Arra? — É claro — respondi em voz baixa. — Eu gostaria... disso — concordou Harkat. A expressão do Sr. Crepsley se abrandou quando ele mencionou o nome de Arra. — Ela não disse muita coisa quando foi levada da caverna — murmurou, mais para si mesmo do que para Harkat e para mim. — Falar era doloroso. Ela conservou suas energias. Lutou bravamente. Agarrou-se à vida o maior tempo possível. “Os médicos achavam que ela ia morrer. Cada vez que a respiração se prendia na sua garganta, eles corriam para ela, ansiosos para desocupar o espaço para outros vampiros feridos. Mas ela resistia. Eles ficaram tão acostumados aos falsos alarmes que, quando finalmente ela morreu, não perceberam e ela ficou vinte minutos serena nos meus braços, sorrindo perturbadoramente para mim.” Seus olhos se encheram de lágrimas. Dei a ele um pedaço de pano quando as lágrimas começaram a descer, mas o Sr. Crepsley não o usou. — Não consegui ouvir suas últimas palavras — disse ele com a voz embargada. — Ela falou muito baixo. Acho que estava se referindo às barras. — Você dormiu? — perguntei, começando a chorar também. — Como posso dormir? — suspirou. — Preciso preparar os interrogatórios. Não perderei a condenação de Kurda nem que tenha que ficar sem dormir para sempre. — Não seja tolo — censurei-o gentilmente. — Quando começa o interrogatório?
— À meia-noite — fungou. — Então tem muito tempo. Procure dormir um pouco. Eu o acordo antes do começo e iremos juntos. — Promete? — Eu não mentiria para você sobre uma coisa tão importante — respondi. Ele se levantou e caminhou para a porta. Parou então e olhou para trás. — Você se saiu muito bem na caverna, Darren. Lutou bravamente. Estou orgulhoso de você. — Obrigado — eu disse, com as lágrimas agora correndo livremente pelo meu rosto. — Orgulhoso — murmurou outra vez, depois saiu para o corredor e foi para sua cela, andando como um homem velho, cansado e alquebrado.
 Mais tarde, naquela noite, começou o julgamento de Kurda Smahlt. O Salão dos Príncipes estava repleto de vampiros furiosos e amargurados, bem como a caverna no lado de fora. Praticamente todos os vampiros da montanha queriam estar presentes para vaiar o traidor, cuspir nele e aplaudir a sentença quando fosse anunciada. Fui com o Sr. Crepsley e Sebá Nilo. Sentamos na primeira fila. Não tínhamos imaginado ficar tão perto — chegamos tarde —, mas logo descobri que eu era a figura do momento. Os vampiros atribuíam a mim grande parte da sua vitória sobre os vampixiitas. Eles rugiram de prazer, barulhentamente, quando me viram, e me conduziram para a primeira fila, levando o Sr. Crepsley e Sebá comigo, insistindo que eu ocupasse o lugar de honra. Preferia ter ficado atrás, mas o Sr. Crepsley estava ansioso para ficar o mais perto possível da plataforma e não tive coragem de desapontá-lo, não depois do que ele tinha passado com a morte de Arra. Os conspiradores deviam ser trazidos um a um para o interrogatório e para a sentença. Se eles falassem abertamente e os Príncipes ficassem satisfeitos com suas respostas, seriam levados diretamente para o Salão da Morte e executados. Caso se recusassem a cooperar, seriam torturados, na esperança de que revelassem seus segredos (mas os vampixiitas, como os vampiros, podiam suportar muito bem a dor e era quase impossível fazê-los falar). O primeiro a enfrentar o julgamento foi Kurda. O General caído em desgraça foi arrastado para a frente, passando pelas fileiras dos vampiros que assobiavam, apupavam e o atingiam com socos e pontapés. Alguns puxavam e arrancavam pela raiz mechas do seu cabelo louro. Ele chegou à plataforma em péssimo estado, os trajes brancos rasgados, o corpo ferido e sangrando. Mas ainda conservava a cabeça erguida, sem reagir aos maus-tratos. Os Príncipes esperavam por ele na plataforma, flanqueados por quatro
guardas com lanças longas e aguçadas. Kurda foi conduzido até o trio, e cada um deles cuspiu desdenhosamente nele. Então foi levado para um lado e virado de frente para a assembléia dos vampiros. A princípio eu não podia olhar para os olhos de Kurda, mas, quando finalmente tive coragem, vi que ele olhava para mim sorrindo tristemente. — Ordem! — gritou Mika Ver Leth, silenciando os apupos. — Temos uma longa noite à nossa frente. Queremos resolver cada caso o mais depressa e com o menor esforço possível. Sei que estão todos exaltados, mas quem interromper o interrogatório de Kurda Smahlt, ou dos outros, será expulso do salão imediatamente. Fui bem claro? Os vampiros resmungaram emburrados e voltaram a se sentar. Quando a paz foi restaurada, Paz Celestial se levantou e dirigiu-se aos assistentes. — Sabemos por que estamos aqui — falou suavemente. — Fomos traídos e atacados. Estou tão ansioso quanto qualquer um de vocês para ver os vis traidores sofrerem por seus crimes, mas primeiro devemos saber por que eles nos atacaram e se podemos aguardar outros ataques. — Voltando-se para Kurda, sua expressão ficou severa. — Você estava aliado aos vampixiitas que matamos ontem? — perguntou. Depois de uma longa pausa, Kurda inclinou a cabeça, assentindo, e disse: — Sim, eu estava. Vários vampiros gritaram ofensas e foram rapidamente levados para fora do salão. Os outros permaneceram sentados, pálidos e tremendo, com olhares repletos de ódio para Kurda. — Sob ordens de quem você agia? — perguntou Paz Celestial. — As minhas — disse Kurda. — Mentiroso! — gritou Arqueiro. — Diga quem o fez fazer isso ou, pelos deuses, eu... — Eu sei o que você fará — interrompeu Kurda. — Não se preocupe. Não pretendo me sujeitar ao interrogatório mais severo dos seus torturadores profissionais. Direi a verdade aqui. — Acho melhor mesmo — resmungou Arqueiro, afundando mais no trono. — Sob ordens de quem você agia? — Paz repetiu a pergunta. — As minhas — Kurda repetiu também. — O plano foi meu. Os vampixiitas estavam aqui porque eu os chamei. Podem me torturar quanto quiserem, minha resposta não vai mudar porque não pode mudar. É a verdade. — Foi você quem imaginou esse ultraje? — perguntou Mika, incrédulo. — Fui eu — assentiu Kurda. — Providenciei a vinda dos vampixiitas. Dei a eles cópias dos meus mapas para que pudessem entrar sem serem vistos. Eu... — Traidor! — um vampiro gritou e tentou subir na plataforma. Foi interceptado pelos guardas e levado embora, esperneando e berrando a plenos pulmões.
— Eu posso alcançá-lo — sibilou o Sr. Crepsley no meio da breve desordem, com os olhos fixos em Kurda. — Podia saltar agora e acabar com ele antes que pudessem me deter. — Fique tranqüilo, Larten — murmurou Sebá, pondo a mão no ombro trêmulo do vampiro. — Kurda não vai a lugar algum. Sua morte virá logo. Vamos ouvi-lo. Assim que os gritos de protesto do vampiro não foram mais ouvidos, Paz recomeçou o interrogatório. — É verdade que você planejou a entrada dos vampixiitas no Salão dos Príncipes depois da sua investidura, para tomar posse da Pedra de Sangue? — Sim, é — respondeu Kurda imediatamente. — Esperaríamos pela Cerimônia de Conclusão. Então, enquanto vocês estivessem se embriagando, lembrando os fatos deste Conselho e esperando ansiosamente pelo próximo, eu os faria subir pelos túneis secretos, eliminaríamos os guardas e tomaríamos o salão. — Mas não podiam mantê-lo em seu poder — disse Paz. — Sem dúvida você sabia que Mika, Arqueiro e eu os obrigaríamos a abrir as portas e os dominaríamos. — Isso não aconteceria — discordou Kurda. — Vocês não estariam vivos para nos obrigar a abrir as portas. Ia envenenar os três. Tinha seis garrafas de um vinho raro reservadas especialmente para a ocasião, cada uma com um veneno extremamente letal. Eu as daria de presente a vocês três antes da cerimônia. Vocês beberiam à minha saúde, morreriam uma ou duas horas depois e o salão seria meu. — E então você começaria a liquidar o resto dos nossos — rosnou Arqueiro. — Não — disse Kurda. — Eu começaria a salvá-los. — Como assim? — perguntou Paz, surpreso. — Ninguém pensou no motivo por que escolhi um momento tão inoportuno para instigar um ataque? — perguntou Kurda para todo o salão. — Não parece estranho a vocês que eu tenha resolvido fazer entrar às escondidas uma horda de vampixiitas durante o Conselho, quando esses salões e túneis estão repletos de vampiros, quando a chance de serem descobertos era muito maior do que se viessem alguns meses atrás ou alguns meses depois? Paz parecia confuso. — Suponho que você queria atacar quando estivéssemos todos juntos — murmurou. — Por quê? — desafiou-o Kurda. — O plano era entrar no salão e apanhar a Pedra de Sangue, não enfrentar as forças dos vampiros. Quanto maior o número de vampiros na montanha, mais difícil seria nossa tarefa. — Você queria nos provocar — disse Arqueiro com desprezo. — Você queria se mostrar e poder dizer que se apossou dos salões no meio de um Conselho.
— Pensam que sou vaidoso? — riu Kurda. — Pensam que eu teria arriscado minha vida só para me mostrar? Esquecem que não sou como a maioria dos vampiros. Ajo para ter resultados, não por aparências. Não sou um conspirador, nem um fanfarrão de cabeça quente. Só estava interessado no sucesso, não no espetáculo. — Então por que nos atacou agora? — perguntou Mika, exasperado. — Porque não tínhamos mais tempo — suspirou Kurda. — Era agora ou nunca. Como eu disse, minha intenção era salvar nossa raça, não eliminá-la. Nossa única esperança era um ataque imediato e preventivo. Agora que falhei, temo que estejamos condenados. — Que bobagem é essa sobre ataques preventivos? — perguntou irritado Arqueiro. — Não tínhamos intenção de atacar os vampixiitas. — Não era para prevenir um ataque dos vampiros — explicou Kurda. — Mas sim para prevenir um ataque dos vampixiitas aos vampiros. — Ele fala com charadas! — explodiu Arqueiro, irritado. — Ele atacou com os vampixiitas para evitar um ataque dos vampixiitas? Besteira! — Talvez ele esteja louco — murmurou Mika muito sério. — Quem dera eu estivesse — riu Kurda sinistramente. — Não estamos chegando a lugar algum — rosnou Arqueiro. — Acho que devemos levá-lo para baixo e arrancar a verdade dele, gota a gota. Ele está nos fazendo de bobos. Devíamos... — O Sr. Tino visitou os vampixiitas — disse Kurda e, embora não tivesse elevado a voz, foi como se tivesse rugido. Arqueiro e o resto dos vampiros, num silêncio súbito e nervoso, esperaram que ele continuasse. — Isso foi há três anos — disse Kurda no mesmo tom baixo e agourento. — Ele disse que o Senhor dos Vampixiitas caminhava pela terra e que eles deviam procurá-lo. Quando fiquei sabendo disso, resolvi conversar com os vampixiitas. Eu imaginava que, se nos uníssemos antes que eles descobrissem seu líder mítico, poderíamos evitar as terríveis conseqüências da profecia do Sr. Tino. — Pensei que você não acreditasse no mito do Senhor dos Vampixiitas — observou Paz Celestial. — Eu não acreditava — concordou Kurda — até ver o quanto os vampixiitas estavam levando aquilo a sério. Eles nunca se interessaram em fazer guerra contra nós, mas, desde a visita do Sr. Tino, começaram a reforçar seus arsenais e a recrutar em massa, preparando-se para o advento do seu mítico líder. “E agora ele chegou”, prosseguiu Kurda. Uma onda física de choque percorreu o salão. Os vampiros se encolheram nas cadeiras como se tivessem levado um golpe e ficaram pálidos. “Há seis meses, o Senhor dos Vampixiitas foi descoberto”, disse Kurda, abaixando os olhos. “Ele não foi ainda vampirizado, mas tomou seu lugar entre eles e está aprendendo seus costumes. Meu ato de traição foi a última e desesperada jogada. Se eu tivesse o controle da Pedra de
Sangue, podia atrair os vampixiitas para nosso lado — nem todos os nossos primos de sangue estão ansiosos por uma guerra contra nós. Agora que falhei, o caminho está aberto para ele. Ele será vampirizado, tomará o controle dos vampixiitas e os conduzirá contra nós. E nos vencerá.” Abaixando a voz, Kurda murmurou ironicamente: — Meus parabéns, cavalheiros. Depois da grande vitória de hoje, nada mais se interpõe entre vocês e uma guerra fútil contra os vampixiitas. Vocês prepararam o caminho para que se realize a profecia do Sr. Tino. Alegrem-se com suas comemorações. Pode ser sua última chance de fazer soar seus tambores e de se gabar do seu valor. A partir desta noite o relógio está funcionando. Quando parar, nosso tempo estará terminado. Cada vampiro neste salão — neste mundo — está condenado. Sorrindo amargamente, Kurda segurou as correntes que prendiam seus pulsos, ergueu a mão e fez o sinal do toque da morte para os Príncipes. Então olhou para mim e repetiu o gesto. — Mesmo na morte, que você possa ser triunfante — disse ele com voz rouca, sarcástica e furiosa, com lágrimas brilhando nos cantos dos tristes olhos azuis.
 
CAPÍTULO VINTE
 
 
O terrível silêncio que acompanhou as palavras de Kurda pareceu durar uma eternidade. Finalmente Sebá Nilo levantou-se lentamente, apontou um dedo trêmulo para Kurda e sibilou: — Você está mentindo!
Kurda balançou a cabeça obstinadamente. — Não, não estou. — Você viu esse Senhor dos Vampixiitas? — perguntou Sebá. — Eu não o vi. Se o tivesse visto, ele estaria morto. — Então como sabe que ele existe? Kurda deu de ombros. — Responda! — trovejou Paz Celestial. — Os vampixiitas têm um caixão diferente de todos os outros — disse Kurda. — Eles o chamam de Caixão de Fogo. O Sr. Tino o deu a eles há séculos, mais ou menos na mesma época em que nos deu este domo mágico sob o qual estamos. O caixão desde então é guardado por um grupo de soldados vampixiitas que chamam a si mesmos de Portadores do Destino. “O caixão é como outro qualquer — até que alguém se deite dentro dele e a tampa seja fechada. Então o caixão se enche de um fogo terrível. A pessoa destinada a liderar os vampixiitas sairá ilesa do caixão. Do contrário perecerá nas chamas.” “Durante décadas muitos vampixiitas experimentaram o Caixão de Fogo — e morreram. Porém, há seis meses um ser humano se deitou dentro dele, enfrentou as chamas e saiu ileso. Ele é o Senhor dos Vampixiitas e, quando for vampirizado, todos os membros do clã lhe obedecerão e seguirão até a morte, se for preciso.” Os Príncipes olharam para Kurda inseguros, temerosos, até Paz Celestial perguntar num murmúrio: — Você estava lá quando esse homem fez a prova? — Não — respondeu Kurda. — Só os Portadores do Destino estavam presentes. — Então pode ser apenas um boato — disse Paz, esperançoso. — Uma mentira, uma fantasia. — Os vampixiitas nunca mentem — lembrou Kurda. — Talvez tenham mudado — disse Mika, pensativo. — A Pedra de Sangue valeria algumas mentiras. Eles podem ter enganado você, Kurda. Outra vez Kurda balançou a cabeça. — Muitos vampixiitas estão tão preocupados quanto nós com o advento do Senhor dos Vampixiitas. Eles não querem a guerra. Temem as perdas que sofrerão. Por isso, trinta e oito concordaram em me acompanhar nesta missão. Esperavam evitar um conflito total, poupando assim seus companheiros e amigos. — Você fala em evitar uma guerra e em nos salvar — observou Paz. — Não vejo como pode ter pensado que traindo a nossa causa nos ajudaria. — Eu pretendia forçar uma união — explicou Kurda. — Quando fiquei sabendo que o Senhor dos Vampixiitas fora encontrado,
tive certeza de que era tarde demais para tentar um acordo de paz. Pesando minhas opções, que eram poucas, resolvi arriscar um golpe. Se tivesse tido sucesso, os vampiros em todo o mundo estariam à mercê dos vampixiitas. Os do Salão dos Príncipes se comunicariam com seus iguais e, por meio da Pedra de Sangue, dariam a eles a localização exata da maioria dos vampiros vivos. Nosso povo não teria escolha senão concordar com meus termos. — E quais seriam esses termos? — perguntou Paz Celestial com desprezo. — Que ingressássemos nas fileiras dos vampixiitas — respondeu Kurda. — Eu esperava uma união igual em que vampiros e vampixiitas fizessem concessões. Dada a mudança das circunstâncias, isso era impossível. Teríamos de adotar os modos e costumes dos vampixiitas. Mas seria preferível ao aniquilamento. — Não para mim — rosnou Arqueiro. — Eu prefiro morrer. — Tenho certeza de que outros também preferem — concordou Kurda. — Mas acredito que a maioria compreenderia o bom senso dessa medida. Mesmo que não compreendessem e vocês todos preferissem lutar até a morte, pelo menos eu teria tentado. — O que você ganharia com isso, Kurda? — perguntou Mika. — Os vampixiitas prometeram um título a você? Haveria Príncipes no novo regime? — Os vampixiitas não fizeram nenhuma oferta — respondeu Kurda, brevemente. — Muitos querem evitar uma guerra, por isso algumas dezenas deles, homens valorosos que vocês mataram como pragas, se ofereceram como voluntários, concordando em me ajudar. Não tínhamos nenhum outro motivo. Fizemos por vocês, não por nós mesmos. — Muito nobre da sua parte — zombou Mika. — Muito mais nobre do que imagina! — disse Kurda irritado, perdendo a calma. — Você não tem cérebro? Não vê o sacrifício que eu fiz? — Que sacrifício? — perguntou Mika, surpreso. — Ganhando ou perdendo, minha recompensa seria a morte. Os vampixiitas desprezam traidores mais do que nós. Se tudo tivesse dado certo, teria ficado dentro do Salão dos Príncipes para supervisionar o aparecimento dos clãs. Então, quando o futuro do nosso povo estivesse garantido, eu me ofereceria para ser julgado e sofreria o mesmo destino que me espera agora. — Espera que acreditemos que os vampixiitas matariam o homem que os presenteou com seus arquiinimigos? — riu Mika. — Acreditarão porque é verdade — disse Kurda. — Nem os vampiros nem os vampixiitas permitiriam que um traidor ficasse vivo. Essa lei está escrita nos corações de todos os membros dos clãs. Os vampixiitas que vieram comigo seriam os heróis. Não tinham desrespeitado nenhuma das suas leis, a não ser invadir o território dos vampiros. Mas eu, um homem que traiu os seus? — Kurda balançou a cabeça. — Isso não tem nada a ver comigo, Mika, e você será um
tolo se pensar diferente. As palavras de Kurda perturbaram os vampiros. Eu os vi entreolhando-se, com perguntas sinistras no olhar e nas línguas. — Talvez ele queira que nós o recompensemos em vez de jogá-lo nas estacas — disse alguém, mas ninguém riu. — Não espero e não peço misericórdia. Meu único desejo é que não esqueçam o que tentei fazer, nos anos difíceis que os esperam. Estava apenas cuidando do melhor interesse do clã. Espero que uma noite você veja e admita isso. — Se tudo que você disse for verdade — observou Paz Celestial —, por que não veio a nós? Se soubéssemos do aparecimento do Senhor dos Vampixiitas, teríamos tomado providências para detê-lo. — Matando todos os vampixiitas? — perguntou Kurda amargamente. — Se fosse necessário — assentiu Paz. — Não era o que eu queria — suspirou Kurda. — Queria salvar vidas, não tirá-las. Lutar não salvará os vampiros, não se a profecia do Sr. Tino for válida. Mas uma união, antes que a ameaça se realize, podia ser a salvação de todos nós. “Não posso dizer que estava certo. Pelo que sei, minhas ações podem ser a centelha que levará à guerra e à destruição. Mas tinha de tentar. Acreditava que estava nas minhas mãos modificar o curso do destino. Certo ou errado, não podia conscientemente entregar meu povo à profecia sinistra do Sr. Tino.” Kurda olhou para mim. — Tenho poucos remorsos — disse ele. — Arrisquei e não consegui. É a vida. Meu único verdadeiro sentimento de pesar é por ter sido preciso matar Torvelinho. Não era meu desejo derramar sangue. Mas o plano vinha em primeiro lugar. O futuro do nosso povo como um todo era mais importante que o do indivíduo. Teria matado mais uma dezena como Torvelinho se fosse necessário, até uma centena, se significasse salvaguardar as vidas dos outros. Com isso, Kurda encerrou seu caso e recusou-se a falar mais sobre sua traição. Os Príncipes perguntaram se ele sabia onde estava o Senhor dos Vampixiitas, ou o que os vampixiitas planejavam, mas ele apenas balançou a cabeça. Os Príncipes permitiram então as perguntas dos vampiros presentes no salão, mas nenhum aceitou o convite para questionar o General caído. Pareciam abatidos e envergonhados agora. Nenhum deles gostava de Kurda ou aprovava o que ele havia feito, mas agora o respeitavam e se arrependiam do modo como o tinham tratado antes. Depois de um período conveniente de silêncio, Paz Celestial fez sinal aos guardas da plataforma para levar Kurda perante os Príncipes. Quando ele ficou de pé na frente deles, Paz permaneceu em silêncio por alguns minutos para pôr em ordem seus pensamentos. Então disse:
— O que você disse me preocupa. Preferia que você tivesse sido um reles traidor à procura de alguma vantagem e ganho pessoal. Desse modo eu poderia sentenciá-lo à morte com a consciência limpa e sem hesitação. “Acredito que tenha agido de boa-fé. Pode até ser, como você diz, que impedindo a realização do seu plano tenhamos nos condenado à derrota pelas mãos dos vampixiitas. Talvez tivesse sido melhor se Darren não tivesse encontrado por acaso seus companheiros na caverna ou sobrevivido para nos avisar sobre a presença deles.” “Mas você foi descoberto, seu plano foi revelado e os vampixiitas foram dizimados por todos os meios sangrentos possíveis. Não poderíamos mudar essas coisas, mesmo que quiséssemos. O futuro talvez seja triste, mas devemos enfrentá-lo de pé, como vampiros, com o coração e a vontade firmes, como sempre.” “Sinto piedade por você, Kurda. Você agiu do modo que julgou certo, sem consideração por você mesmo, e por isso merece respeito. Entretanto, agiu também sem consideração por nossas leis e nossos costumes, e por isso deve ser punido. Há somente uma punição apropriada para o crime que você cometeu e é absoluta: execução.” Um suspiro coletivo, pesado, percorreu o salão. — Se eu tivesse escolha — continuou Paz Celestial —, concederia a você o direito de morrer de pé, como um vampiro, com orgulho. Você não merece morrer de modo ignóbil, amarrado e com os olhos vendados, empalado nas estacas. Eu o deixaria submeter-se a uma série de provas difíceis, uma depois da outra, até você morrer honradamente. E faria um brinde ao seu nome quando você estivesse sendo cremado intacto. “Mas, como Príncipe, não tenho escolha. Fossem quais fossem suas razões, você nos traiu e esse fato material da vida tem precedência sobre meus desejos.” Levantando-se, Paz Celestial apontou para Kurda e disse: “Meu voto é para que ele seja levado ao Salão da Morte e sumariamente executado. Depois disso, deve ser desmembrado antes de ser cremado para que sua alma jamais conheça o Paraíso.” Depois de uma breve pausa, Mika Ver Leth se levantou e apontou para Kurda. — Eu não sei se é justo ou não — suspirou —, mas devemos obedecer aos costumes que nos guiam e nos mantêm. Voto também pelo Salão da Morte e pela cremação vergonhosa. Arqueiro se levantou e apontou. — O Salão da Morte — disse ele, simplesmente. — Alguém quer falar a favor do traidor? — perguntou Paz Celestial. Silêncio completo, — Podemos ser persuadidos a modificar o julgamento se houver oposição — disse ele. Ninguém falou.
Olhei para a figura lastimável à minha frente e pensei em como ele me fizera sentir à vontade quando cheguei à Montanha do Vampiro, como me tratou como amigo, brincou comigo e compartilhou seu conhecimento e seus anos de experiência. Lembrei-me de quando ele derrubou Arra Barbatanas nas barras e de quando ofereceu a mão para ela, o olhar de mágoa quando Arra recusou-se a aceitar sua mão. Lembrei-me de quando salvou minha vida e se expôs por minha causa, arriscando até o sucesso da sua missão para me ajudar. Eu não estaria ali naquele momento se não fosse por Kurda Smahlt. Comecei a me levantar para falar em defesa dele e pedir uma forma menos horrível de punição. Então o rosto de Torvelinho surgiu na minha mente, e o de Arra, e parei para pensar o que ele teria feito se o Sr. Crepsley, Sebá e outros tivessem ficado no seu caminho. Ele os teria matado se fosse preciso. Sem nenhum prazer, mas não teria hesitado. Kurda teria feito o que julgava necessário, como qualquer outro vampiro leal. Sentei outra vez, balancei a cabeça tristemente e não disse nada. Aquilo era grande demais. Não cabia a mim decidir. Kurda tinha criado a própria queda. Devia enfrentar sozinho a punição. Senti-me péssimo não falando em sua defesa, mas me sentiria igualmente péssimo se tivesse falado. Quando ficou evidente que o julgamento dos Príncipes não ia ser questionado, Paz Celestial fez sinal para que os guardas da plataforma, que estavam em volta de Kurda, o despissem. Kurda não disse nada quando eles tiraram sua roupa e seu orgulho, apenas olhou para o teto do salão. Quando ele ficou nu, Paz Celestial uniu com força os dedos da mão e os mergulhou numa vasilha com sangue de cobra que estava escondida atrás do seu trono, e passou a mão no peito de Kurda. Mika e Arqueiro fizeram o mesmo, deixando três feias marcas vermelhas — o sinal que entre os vampiros indicava um traidor ou alguém de má reputação. Depois de ser marcado, Kurda foi levado pelos guardas para fora do salão. Ninguém falou ou fez outro som qualquer. Ele saiu com a cabeça abaixada, mas vi lágrimas descendo no seu rosto quando passou por mim. Ele estava sozinho e assustado. Queria confortá-lo, mas era tarde demais para isso. O melhor era deixar que ele fosse executado sem demora. Dessa vez, quando passou pela assembléia de vampiros, ninguém o vaiou ou tentou feri-lo. Houve uma breve pausa quando ele estendeu a mão para abrir as portas para achar caminho entre os vampiros amontoados no lado de fora. Então foi escoltado para fora do salão e para os túneis que levavam ao Salão da Morte, onde foi posto numa gaiola, teve os olhos vendados, erguido acima do poço das estacas, depois brutal e dolorosamente executado. E esse foi o fim do traidor... meu amigo... Kurda Smahlt.
 
CAPÍTULO VINTE E UM
 
 
Não fui assistir à execução de Kurda. Nem continuei no salão para ouvir os julgamentos dos vampixiitas. Voltei para minha cela, onde fiquei até a hora, tarde na noite seguinte, dos funerais de Arra Barbatanas, Torvelinho e os outros que morreram lutando para proteger a Montanha do Vampiro. O corpo de Torvelinho
fora recuperado depois da batalha. Kurda disse aos seus guardas onde ele estava e uma equipe de busca logo o localizou, enfiado numa profunda rachadura da rocha na montanha. Pintado e companheiros voltaram para a alcatéia. Foram embora silenciosamente, logo depois do fim da luta, deixando o companheiro morto para trás. Não tive oportunidade de me despedir nem de agradecer. Imaginei se eu me encontraria com eles outra vez. Parecia pouco provável, mesmo que minha vida fosse poupada pelos Príncipes. Agora que o Conselho chegava ao fim, os lobos se dispersaram para voltar aos seus territórios de caça. Provavelmente aquela tenha sido a última vez que vi Pintado, Rudi e os outros. Passei o tempo entre os julgamentos e os funerais trabalhando no meu diário. Desde a minha chegada à Montanha do Vampiro não escrevia nele. Li o que tinha escrito antes, depois descrevi tudo o que tinha acontecido desde que deixei o Circo dos Horrores e parti para a montanha com o Sr. Crepsley. Consegui me absorver completamente no diário e o tempo voou. Normalmente não gostava de escrever — parecia muito com dever de casa —, mas quando comecei a contar a história, as palavras saíam quase sem nenhum esforço. Minha caneta só parou uma ou duas vezes, quando saí para comer e depois dormi uma ou duas horas. Eu esperava que escrever ajudasse a pôr em ordem as coisas na minha cabeça, especialmente no que se referia a Kurda, mas no fim estava tão confuso quanto no começo. De qualquer lado que olhasse, não podia evitar a sensação de que Kurda fora herói e vilão ao mesmo tempo. As coisas seriam simples se ele fosse um ou outro, mas eu não conseguia defini-lo. Era complicado demais. Kurda quis evitar a destruição dos vampiros. Para isso ele os traiu. Teria feito mal? Ou seria pior agir nobremente e deixar seu povo ser aniquilado? Era sempre certo ser leal aos amigos, fossem quais fossem as conseqüências? Eu não conseguia decidir. Uma parte de mim detestava Kurda e acreditava que ele merecia ser morto. Outra parte lembrava as suas boas intenções e sua amabilidade e desejava que houvesse outro modo de puni-lo que não a execução. O Sr. Crepsley veio chamar Harkat e eu antes que eu acabasse de escrever. A história estava quase toda contada, mas faltava um pouco, por isso deixei a caneta entre as páginas para marcar o lugar, guardei o diário e acompanhei o tristonho vampiro ao Salão de Cremação para me despedir dos nossos queridos amigos e aliados. Torvelinho foi o primeiro a ser cremado, uma vez que foi o primeiro a cair. Estava vestido com um manto branco simples, deitado em uma maca no poço da cremação. Parecia em paz ali deitado, os olhos fechados, o cabelo castanho curto cuidadosamente penteado, os lábios erguidos num sorriso pelos Guardiões do Sangue, que tinham preparado o corpo. Mesmo sabendo que os Guardiões haviam removido todo o sangue e a maior parte dos seus órgãos internos e o
cérebro, não havia sinais visíveis desse trabalho macabro. Comecei a repetir para o Sr. Crepsley as últimas palavras de Torvelinho, mas de repente tive um acesso de choro. O Sr. Crepsley me abraçou e me deixou soluçar com a cabeça encostada no seu peito, batendo de leve nas minhas costas. — Você quer ir embora? — perguntou. — Não — gemi. — Quero ficar. Só que... é difícil, sabe? — Eu sei — disse o Sr. Crepsley, e vendo as lágrimas nos olhos dele senti que ele estava sendo sincero. Uma verdadeira multidão fora se despedir de Torvelinho. Geralmente só os amigos chegados ou colegas compareciam aos funerais. Os vampiros eram diferentes dos seres humanos — não tinham por princípio comparecer em grandes grupos para dar os pêsames. Mas Torvelinho era popular e morreu para salvar outros, por isso a caverna estava cheia. Até Paz Celestial e Arqueiro estavam presentes. Mika também estaria se não tivesse de ficar de guarda no Salão dos Príncipes. Não existia essa coisa de padre vampiro. Embora os vampiros tivessem seus deuses e suas crenças, não tinham uma religião organizada. Paz Celestial, como o vampiro mais velho no local, conduziu a cerimônia breve e simples. — Seu nome era Torvelinho — entoou e todos repetiram as palavras do Príncipe. — Ele morreu com honra. — Outra vez nós todos repetimos. — Que seu espírito encontre o Paraíso — concluiu, e, depois de reiterarmos seus votos, os gravetos e as folhas secas debaixo de Torvelinho foram acesos por dois Guardiões, que fizeram estranhos sinais sobre o corpo e depois se afastaram. Não demorou para que as chamas consumissem o General. Os Guardiões conheciam seu trabalho e prepararam tudo para que o fogo crescesse rapidamente e dispusesse de Torvelinho. Nunca tinha assistido a uma cremação. Para minha surpresa, vi que não era tão impressionante quanto eu pensava. Havia algo estranhamente reconfortante em ver as chamas envolvendo Torvelinho, a fumaça subindo e passando pelas rachaduras no teto, quase como se fosse o espírito de Torvelinho partindo. Fiquei satisfeito por ter ido, mas fiquei também agradecido quando nos fizeram sair do salão, quando chegou a hora de retirar os ossos de Torvelinho do meio das cinzas e moer até virar pó nas vasilhas em volta do poço. Acho que não poderia ter ficado e visto os Guardiões fazerem esse trabalho. Três outros vampiros seriam cremados antes que chegasse a vez de Arra Barbatanas. Enquanto o Sr. Crepsley, Harkat e eu esperávamos do lado de fora, Sebá Nilo e Vanez Blane apareceram, o intendente claudicante conduzindo o mestre dos jogos cego. Os dois nos cumprimentaram e pararam para conversar. Pediram desculpas por ter perdido a cremação de Torvelinho, mas Vanez estava fazendo tratamento e só saiu depois de ter sido mudado o curativo do seu olho ferido.
— Como vai o olho? — perguntou o Sr. Crepsley. — Acabado — disse Vanez animadamente, como se não fosse grande coisa. — Agora estou cego como um morcego. — Pensei que, como você está sob tratamento... — O tratamento é para evitar a infecção que pode atingir meu cérebro — explicou Vanez. — Você não parece se importar muito — eu disse, olhando para o curativo no seu olho direito e pensando em como deve ser terrível perder a visão. Vanez deu de ombros. — Eu preferia ter ficado com ele. Mas não é o fim do mundo. Ainda posso ouvir, sentir cheiro e me orientar. Vou levar algum tempo para me acostumar, mas aprendi a me adaptar quando perdi o olho esquerdo. Tenho certeza de que vou me arranjar sem o outro agora. — Vai deixar a Montanha do Vampiro? — perguntou o Sr. Crepsley diplomaticamente. — Não — disse Vanez. — Em outra ocasião eu sairia para o mundo e, aos tropeços, iria vivendo até encontrar um fim honroso, como deve fazer um vampiro cego. Mas a chegada do Senhor dos Vampixiitas mudou tudo. Paz Celestial me pediu para ficar. Posso ser útil, mesmo que seja só ajudando nos depósitos ou nas cozinhas. No momento, precisamos de todos os vampiros. A habilidade que me resta permitirá que algum vampiro mais jovem e em melhor forma física concentre suas energias em outras tarefas e continue a luta contra os vampixiitas. — Eu também vou ficar — anunciou Sebá. — Minha aposentadoria fica em compasso de espera. O mundo e suas aventuras terão de esperar. Os velhos e enfermos devem fazer sua parte agora, desinteressadamente. Não é o momento de pôr os interesses individuais na frente dos interesses do clã. Essa frase me deixou chocado. Kurda tinha expressado esse mesmo sentimento. Para ele era errado descartar os vampiros deficientes ou velhos. Era terrivelmente irônico pensar que sua traição e sua morte contribuíssem para que outros vampiros pensassem do mesmo modo. — Isso quer dizer que a oferta de um emprego não continua válida? — perguntou o Sr. Crepsley para Sebá. Ele fora recomendado para ocupar o posto de intendente quando Sebá se aposentasse. — Exatamente — disse Sebá —, mas tenho certeza de que os Príncipes descobrirão alguma função para você. — Sorriu. — Quem sabe você possa esfregar o chão? — Talvez. — O Sr. Crepsley também sorriu brevemente. — Mika já me perguntou se vou ficar e talvez retomar meus deveres oficiais de General, mas eu disse que não queria pensar nisso no momento. Decidirei mais tarde, quando tiver tempo para pensar no assunto.
— E Darren? — perguntou Vanez. — Os Príncipes já resolveram seu destino? — Não — disse o Sr. Crepsley. — Mika prometeu reabrir o debate logo depois das cerimônias dos funerais. Tenho certeza de que ele será perdoado. — Espero que sim — disse Vanez, mas parecia inseguro. — Você sabe que a pena de morte nunca foi revogada? Os Príncipes teriam de alterar as leis para poupar Darren da morte. — Pois então devem alterar! — rosnou o Sr. Crepsley, dando um passo à frente, furioso. — Fique tranqüilo, Larten — intercedeu Sebá. — Vanez não quer fazer nenhum mal. É um caso incomum e precisa ser muito estudado para que se chegue a uma decisão final, de um modo ou de outro. — Não existe “de um modo ou de outro” — insistiu o Sr. Crepsley. — Prometi a Arra que não deixaria que Darren fosse morto. Ela disse que ele ganhou o direito à vida e quem quiser se opor ao seu último desejo terá de se haver comigo. Já suportamos mortes demais. Não estou disposto a aceitar outra. — Esperemos que não haja mais nenhuma — suspirou Sebá. — Acredito que os Príncipes serão compreensivos. Eles podem não querer alterar as leis, mas neste caso acho que farão uma exceção. — Acho melhor que façam — disse o Sr. Crepsley, e teria dito mais se naquele momento não tivessem levado o corpo de Arra, numa maca, para o Salão de Cremação. Tenso, o Sr. Crepsley olhou para ela saudosamente. Passei o braço pelos ombros dele e Sebá fez o mesmo. — Coragem, Larten — disse Sebá. — Ela não ia querer nenhuma demonstração emocional. — Eu me comportarei com o maior decoro — disse o Sr. Crepsley pomposamente, depois acrescentou em voz baixa: — mas sinto falta dela. Com todo o meu coração e toda a minha alma, sinto falta dela. Quando o corpo de Arra foi posto no lugar, as portas se abriram e nós entramos, o Sr. Crepsley na frente, Sebá, Vanez, Harkat e eu atrás para o nosso adeus. O Sr. Crepsley estava perfeitamente sereno como tinha prometido. Não derramou uma lágrima quando a pira foi acesa. Só mais tarde, sozinho na sua cela, ele chorou, e seu choro ecoou pelos corredores e pelos túneis da Montanha do Vampiro e para fora, na madrugada fria e solitária.
 
CAPÍTULO VINTE E DOIS
 
 
A longa espera entre a cremação e o meu julgamento foi angustiosa. Embora o Sr. Crepsley garantisse que eu seria perdoado da pena de ter fracassado nas Provas de Iniciação, e perdoado da minha fuga, eu não tinha tanta certeza. Trabalhar no meu diário me ajudava a não pensar no julgamento, mas depois de
pôr em dia o diário e verificar se não tinha esquecido nada, não tinha mais nada a fazer a não ser sentar e esperar. Finalmente, dois guardas apareceram e disseram que os Príncipes estavam prontos para me receber. Pedi alguns minutos para me compor. Eles esperaram no lado de fora da porta da minha cela e eu me voltei para Harkat. — Fique com isto — eu disse, entregando para ele uma sacola (que pertencera ao meu amigo Sam Crespo) com meu diário e alguns objetos de uso pessoal. — Se eles resolverem me executar, quero que fique com você. Harkat assentiu solenemente, depois me acompanhou para fora da cela e os guardas me levaram ao Salão dos Príncipes. O Sr. Crepsley também me acompanhou, tendo sido notificado por um guarda da montanha. Paramos fora das portas do salão. Meu estômago roncava de medo e eu tremia. — Coragem — murmurou o Sr. Crepsley. — Os Príncipes o tratarão com justiça. Se não fizerem isso, irei em seu auxílio. — Eu também — disse Harkat. — Não vou deixar... que eles façam... alguma loucura com você. — Obrigado — sorri —, mas não quero que nenhum dos dois se envolva. As coisas já estão péssimas sem nenhuma interferência. Não adianta nós três acabarmos no Salão da Morte! As portas se abriram e nós entramos. Os vampiros no salão estavam solenes e seus rostos não ajudavam em nada a aliviar meu desconforto. Ninguém falou quando nos aproximamos da plataforma onde os Príncipes sentavam com ar severo, os braços cruzados. O ar parecia rarefeito e eu respirava com esforço. O Sr. Crepsley e Harkat sentaram-se na base da plataforma ao lado de Sebá Nilo e Vanez Blane. Fui levado para a frente dos Príncipes Vampiros. Depois de um curto silêncio, Paz Celestial falou: — Estes são tempos estranhos — suspirou. — Durante séculos nós, vampiros, conservamos nossos antigos costumes e tradições nos divertindo com as mudanças e a evolução que cada vez mais destruíam a humanidade. Enquanto os seres humanos deste planeta perdiam seu senso de direção e de propósito, nossa crença em nós mesmos jamais foi abalada, até recentemente. “E um sinal dos tempos o fato de um vampiro ter erguido a mão contra seus irmãos, independente de suas boas intenções. Traição não é novidade para a humanidade, mas esta é a primeira vez que entramos em contato com ela, e isso deixou um gosto amargo nas nossas bocas. Seria fácil ignorar os traidores e esquecê-los. Mas estaríamos ignorando a raiz do nosso problema e deixando o caminho aberto para outros atos de traição. A verdade é que as mudanças no mundo finalmente deixaram sua marca em nós e devemos mudar se quisermos sobreviver dentro dele.”
“Embora não tenhamos nenhum plano de abandonar completamente nossos costumes, devemos enfrentar o futuro e nos adaptar como for preciso. Até aqui vivemos num mundo de absolutos, mas esse já não é mais o caso. Devemos abrir os olhos, os ouvidos e os corações para as novas formas de pensamento e de vida.” “Por isso estamos aqui reunidos esta noite. Na ordem normal das coisas, não haveria necessidade de uma reunião para decidir o destino de Darren Shan. Ele fracassou nas Provas de Iniciação — e a pena é a morte. Então ele fugiu para não cumprir a sentença, um crime cuja única punição é a morte. No passado, ele seria levado para as estacas e ninguém interviria a seu favor.” “Mas os tempos mudaram e Darren desempenhou uma parte instrumental para abrir nossos olhos à necessidade de mudança. Ele suportou grandes dores e sacrificou sua liberdade pelo bem do clã. Antes, sua recompensa seria uma morte nobre. Agora, porém, apelos foram feitos, argumentando a favor do seu direito de viver.” Paz tossiu discretamente e tomou um gole de sangue de um copo. O ar no salão vibrava de tensão. Eu não podia ver os rostos dos vampiros atrás de mim, mas sentia seus olhos nas minhas costas. — Discutimos seu caso longamente — recomeçou Paz Celestial. — No mundo dos seres humanos, imagino que seria fácil chegar a uma conclusão e você seria completamente perdoado. Mas nós vemos a justiça de modo diferente. Para limpar seu nome e libertá-lo, teríamos de alterar a estrutura básica das nossas leis. “Alguns afirmaram que está na hora de ajustar o teor dessas leis. Apresentaram um caso convincente a seu favor. Disseram que as leis foram feitas para serem desobedecidas, um sentimento que não compartilho, mas que começo a compreender. Outros queriam que as leis das Provas de Iniciação fossem temporariamente postas de lado. Nesse caso você seria inocentado e então as leis entrariam em vigor outra vez. Alguns foram a favor de mudanças completas e permanentes. Acham que as leis são injustas e — considerando a ameaça representada pela chegada do Senhor dos Vampixiitas — inúteis, no sentido de que podem nos privar de novos recrutas e nos enfraquecer.” Paz hesitou e passou os dedos na barba longa e grisalha. — Depois de longo debate, bastante caloroso, decidimos contra alterar nossas leis. Chegará o momento em que teremos de fazer isso, mas... — Pelas entranhas de Charna! — rugiu o Sr. Crepsley, saltou para a plataforma e ficou na minha frente com o punho erguido. Logo depois Harkat estava ao lado dele e os dois enfrentaram os Príncipes furiosamente. — Não vou aceitar isso! — gritou o Sr. Crepsley. — Darren arriscou sua vida por vocês e agora vocês o sentenciam à morte? Nunca! Não vou tolerar tamanha ingratidão. Quem quiser pôr as mãos no meu assistente terá de pôr as mãos em mim e, juro
por tudo que é sagrado, lutarei contra eles até meu último e selvagem suspiro! — Eu digo... o mesmo — rosnou Harkat, tirando a máscara da boca com o rosto cinzento mais amedrontador do que nunca. — Eu esperava maior controle de sua parte, Larten — censurou Paz, nem um pouco abalado. — Isso não é próprio de você. — Tempos desesperados exigem medidas desesperadas — respondeu o Sr. Crepsley. — Há um tempo para tradição e um tempo para usar o bom senso. Não deixarei que vocês... — Larten — chamou Sebá do meio dos outros vampiros. O Sr. Crepsley virou-se para trás ao ouvir a voz do seu mentor. — Você deve ouvir o que Paz tem a dizer — sugeriu Sebá. — Você concorda com eles? — gritou o Sr. Crepsley. — Na verdade — respondeu Sebá —, fui a favor da mudança. Mas quando a moção foi derrotada aceitei o resultado como qualquer vampiro leal aceitaria. — Para o diabo com a lealdade! — gritou o Sr. Crepsley. — Se este é o preço da lealdade, talvez Kurda tivesse razão. Talvez fosse melhor entregar este lugar aos vampixiitas! — Você não fala sério — sorriu Sebá. — Desça daí, sente-se e deixe Paz terminar. Você está fazendo papel de tolo. — Mas... — começou o Sr. Crepsley. — Larten! — disse Sebá impaciente. — Para baixo! O Sr. Crepsley abaixou a cabeça. — Muito bem — suspirou ele. — Eu me curvarei à sua vontade e ouvirei Paz. Mas não vou sair do lado de Darren e quem tentar me obrigar a descer desta plataforma se arrependerá pelo resto da vida. — Tudo bem, Sebá — disse Paz quando o intendente abriu a boca para discutir —, Larten e o Pequenino podem ficar. — Isso resolvido, Paz continuou seu discurso: — Como eu disse, resolvemos não alterar nossas leis. Chegará o momento em que teremos de fazer isso. A mudança será gradual. Devemos evitar pânico e anarquia. “Tendo concordado com a necessidade de seguir nossas leis, procuramos uma brecha que fosse vantajosa para Darren. Ninguém neste salão deseja sua morte. Mesmo os que mais se opõem às mudanças trabalharam arduamente à procura de uma cláusula que permitisse outra interpretação.” “Pensamos na possibilidade de deixar Darren fugir pela segunda vez, relaxando a guarda e permitindo que ele saísse com a nossa bênção não oficial. Mas não haveria honra nessa estratégia. Darren ficaria envergonhado, você, Larten, ficaria envergonhado e nós, que concordamos com essa solução, ficaríamos envergonhados.” “Resolvemos não fazer isso.” O Sr. Crepsley ficou furioso e se dirigiu aos Príncipes num murmúrio feroz:
— Arra me fez prometer, antes de morrer, não permitir que Darren seja morto. Eu peço, não me obriguem a escolher entre a lealdade a vocês e a promessa que fiz a ela. — Não haverá necessidade de escolher — disse Paz. — Não há conflito de interesses, como ficará evidente logo que você calar a boca e me deixar terminar. — Disse isso com um sorriso. Então, erguendo a voz, dirigiu-se outra vez a todo o salão: — Como sabem os que estiveram presentes ao debate, Arqueiro foi o primeiro a sugerir uma solução honrada para nosso dilema. — Não sei como pensei nisso — resmungou Arqueiro, passando a mão na cabeça calva e sorrindo. — Nunca fui um grande pensador. Normalmente ajo primeiro e penso depois, quando penso, mas um pensamento nadava como um peixe nas profundezas do oceano do meu cérebro e finalmente subiu à superfície. — A solução — disse Paz — é a própria simplicidade. Não precisamos dobrar ou mudar as leis para ir ao encontro dos propósitos de Darren. Tudo que temos a fazer é pôr Darren acima delas. — Eu não compreendo — disse o Sr. Crepsley, intrigado. — Pense, Larten — disse Paz. — Quem entre nós é imune à punição? Quem pode fracassar nas Provas de Iniciação dezenas de vezes e continuar intocado? O Sr. Crepsley arregalou os olhos. — Não podem estar dizendo... — ele disse, assombrado. — Sim, estamos — sorriu Paz. — Mas... é incompreensível! Ele é jovem demais! Não é um General! Nem mesmo é um vampiro! — O que importa? — disse Mika Ver Leth com ar malicioso. — Não estamos interessados nas letras miúdas. Ele conquistou o direito ao título. Talvez mereça mais do que qualquer um de nós. — Isso é insano — disse o Sr. Crepsley, mas começava a sorrir. — Possivelmente — concordou Paz. — Mas foi posto em votação e todos votaram a favor. — Todos? — o Sr. Crepsley piscou os olhos, espantado. — Todos os vampiros no salão — confirmou Mika. — Com licença — murmurei para o Sr. Crepsley —, mas o que está acontecendo? Do que vocês estão falando? — Fique quieto — disse ele. — Logo eu explico. — Ele pensou na proposta dos Príncipes, fosse ela qual fosse, e seu sorriso se alargou. — Faz sentido, de um modo meio maluco — resmungou. — Mas certamente o título será honorário? Ele conhece tão pouco os nossos costumes e é tão jovem e inexperiente. — Não imaginamos que ele execute os deveres normais do cargo — disse Paz. — Darren tem muito que aprender e não apressaremos seu desenvolvimento. Nem faremos dele um vampiro completo, embora tenhamos de compartilhar o nosso sangue, limitaremos a quantidade, assim ele continua um
meio-vampiro. Mas o cargo será válido. Ele não será uma figura decorativa. Assumirá todas as responsabilidades e os poderes do posto. — Escutem — murmurei —, me digam o que está acontecendo ou... — o Sr. Crepsley inclinou-se e disse alguma coisa no meu ouvido. — O quê? — eu quase gritei e ele continuou a murmurar. — Não pode estar falando sério! — gritei, sentindo o sangue sumir do meu rosto. — Está brincando comigo! — É a única saída honrosa — disse ele. — Mas... não posso... não sou... eu nunca... — Balancei a cabeça e olhei para os vampiros que enchiam o Salão dos Príncipes. Todos sorriam agora e pareciam especialmente satisfeitos. — Eles todos concordaram com isso? — perguntei com voz fraca. — Todos — disse Paz. — Eles o respeitam, Darren. E também o admiram. O que você fez por nós jamais será esquecido enquanto houver vampiros na terra. Queremos mostrar o nosso reconhecimento e esse é o único meio que conhecemos. — Estou atônito — murmurei. — Não sei o que dizer. — Diga sim — riu Arqueiro — ou teremos de levá-lo para o Salão da Morte e fazer alguns buracos em você! Ergui para o Sr. Crepsley os olhos entrecerrados e sorri. — Você vai ter de me obedecer se eu aceitar, não é mesmo? — perguntei. — É claro — o Sr. Crepsley sorriu também. — Bem como todos os outros. — Você vai ter de fazer o que eu mandar. — Sim — ele abaixou a voz. — Mas não pense que pode abusar do seu poder. Respeitarei seu posto, mas não deixarei que fique de cabeça inchada. Ainda será meu assistente e eu o manterei no seu lugar! — Aposto que sim — ri, depois olhei para Paz e empertiguei o corpo. Estava prestes a tomar uma decisão monumental que mudaria minha vida para sempre. Gostaria de ter algumas noites para pensar e estudar as conseqüências, mas não havia tempo. Era isso ou o Salão da Morte e qualquer coisa era preferível a ser jogado nas estacas! — O que tenho de fazer? — perguntei. — Haverá uma cerimônia longa e complicada — disse Paz —, mas pode ser adiada até mais tarde. No momento, você tem de aceitar nosso sangue e oferecer um pouco do seu para a Pedra de Sangue. Uma vez reconhecido pela pedra, está feito e nunca poderá ser desfeito. — Tudo bem — eu disse, nervoso. — Então, adiante-se — disse Paz Celestial — e deixe que o pacto seja selado. Enquanto eu me adiantava, o Sr. Crepsley contou para Harkat o que estava acontecendo e eu o ouvi exclamar “Não pode ser!” e não consegui esconder um sorriso durante a cerimônia, embora todos os rostos no salão estivessem solenes. Primeiro, tirei minha camisa. Então Arqueiro, Mika e eu ficamos em volta
da Pedra de Sangue (só dois Príncipes eram necessários para a cerimônia). Usando minhas unhas afiadas, fiz cortes nas pontas dos meus dedos e o sangue apareceu. Arqueiro e Mika fizeram o mesmo. Quando estávamos prontos, Arqueiro apertou as pontas dos dedos de uma das mãos na minha e Mika fez o mesmo no outro lado. Então os dois puseram as mãos livres na Pedra de Sangue, que pareceu acender com uma luz vermelha e emitiu um ruído trovejante. Sentia o sangue dos Príncipes fluindo em mim e o meu neles. Era uma sensação desagradável mas não dolorosa como quando o Sr. Crepsley fizera isso pela primeira vez em mim havia muitos anos. A cor e o brilho da Pedra de Sangue se intensificavam enquanto estávamos unidos a ela, e a margem externa ficou transparente, de modo que era possível ver dentro dela, e vi o meu sangue ser acrescentado ao de milhares de outras criaturas da noite. Pensamentos soltos passavam rápido por minha mente. Lembrei-me da noite em que o Sr. Crepsley me vampirizou. Da primeira vez que bebi sangue de verdade quando Sam Crespo agonizava nos meus braços. Do vampixiita que matei na caverna. Do vampixiita louco — Vampirado. De Lucas Leopardo — meu melhor amigo quando eu era humano, que jurou me encontrar e me matar quando crescesse. De Débora Cicuta e da maciez dos seus lábios quando nos beijamos. De Torvelinho — rindo do Sr. Altão dirigindo os artistas do Circo dos Horrores. De Harkat me dizendo seu nome depois que matamos o urso raivoso. De Truska (a mulher barbada) fazendo a fantasia de pirata para mim. De Arra piscando o olho. Do Sr. Tino com seu relógio em forma de coração e olhos frios. De Kurda enfrentando o salão dos vampiros. De Joana e como ela me provocava. Colando selos em um álbum com mamãe. Arrancando mato do jardim com papai. Torvelinho, Arra. Sam Crespo — morrendo. Fiquei tonto e teria caído se Paz não corresse para mim e me segurasse. O sangue fluía rapidamente agora e as imagens também. Rostos do passado, amigos e inimigos, movendo-se como cenas num filme, depois mais depressa. Quando pensei que não fosse mais agüentar, Arqueiro e Mika tiraram as mãos da Pedra de Sangue e das minhas, indicando o fim da cerimônia. Quando cambaleei para trás, Paz rapidamente passou saliva nas pontas dos meus dedos para estancar o sangue. — Como está se sentindo? — perguntou ele, examinando meus olhos. — Fraco — murmurei. — Espere algumas horas — disse ele. — Quando o sangue começar a correr, vai se sentir como uma pantera! O som dos aplausos chegou aos meus ouvidos e só então percebi que os vampiros no salão berravam a plenos pulmões. — Por que eles estão gritando? — perguntei. — Eles querem ver você — disse Paz, sorrindo. — Querem selar sua
aprovação. — Não podem esperar? — perguntei. — Estou exausto. — Nós o carregaremos — disse Paz. — Não vale a pena fazer seus súditos esperarem... Senhor . — Senhor — repeti, e sorri, gostando do som da palavra. Os três Príncipes me levantaram do chão e me puseram horizontalmente nos ombros. Ri, olhando para o teto enquanto eles me carregavam, maravilhado com aquela bizarra reviravolta do destino, imaginando o que o futuro me traria e se alguma coisa poderia se comparar a isto. Quando me puseram no chão, para receber de pé os aplausos dos vampiros, olhei em volta e vi os rostos sorridentes do Sr. Crepsley, de Harkat, de Sebá Nilo, de Vanez Blane e de outros. No fundo do salão tive a impressão de ver os vultos de Torvelinho e Arra, e — bem atrás deles — Kurda, aplaudindo silenciosamente. Mas deve ter sido efeito do atordoamento provocado pelo sangue dos Príncipes. Então os rostos desapareceram e eu estava olhando para um mar de vampiros que gritavam, todos iguais. Fechei os olhos e fiquei ali, com as pernas fracas, balançando de um lado para outro, acompanhando a vibração dos gritos, orgulhoso como um pavão, ouvindo vagamente meu nome e os gritos de alegria por mim — por mim... Darren Shan... o Príncipe Vampiro!

 

 

                                                                                                    Darren Shan

 

 

 

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