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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRISIONEIRO DA MÁSCARA DE VELUDO / J. Benzoni
O PRISIONEIRO DA MÁSCARA DE VELUDO / J. Benzoni

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Segredos de Estado

Volume III

O PRISIONEIRO DA MÁSCARA DE VELUDO

 

                                                                                     A INFANTA

 

                     AS VIUVAS

É nosso prazer e desejo que a nossa amiga, a senhora duquesa de Fontsomme, passe a integrar o grupo de damas do Palácio ao serviço da nossa futura esposa, a Infanta Maria Teresa, substituindo eventualmente a senhora duquesa de Béthune, atual açafata. A senhora duquesa de Fontsomme reintegrará a Corte em Saint-Jean-de-Luz nos últimos dias do mês de Maio, a fim de assistir às festas do nosso casamento.

LUÍS, pela graça de Deus...”

Sylvie de Fontsomme deixou que o espesso papel com as insígnias reais se enrolasse, enquanto o mensageiro procurava algum restauro e descanso depois de tão longo trajeto. Efetivamente, o jovem Rei Luís XIV, a Rainha-Mãe Ana de Áustria e a Corte encontravam-se desde há alguns meses em Aix-en-Provence[1]. A surpresa foi enorme e a emoção também. O facto do enviado ser um mosqueteiro portanto, um gentil-homem e não um mero correio, dava ainda mais peso àquelas duas palavrinhas, “nossa amiga”, escritas pela pluma real. A atenção dispensada pelo jovem soberano, que ela tão pouco vira nos últimos anos, compensava a secura da ordem pois, mais do que um convite, era disso que se tratava. A única resposta que se esperava era a obediência.

Cismando, Sylvie dispôs-se a voltar para junto dos seus hóspedes reunidos num dos novos salões do castelo ancestral, cuja reconstrução acabara há dezoito meses. Sabendo quão querida fora a seu esposo aquela tarefa, logo que tomara consciência do pesado encargo que herdara dedicara-se por completo à obra. Graças a Deus, agora tudo terminara e ela admitia, de bom grado, ter sentido grande prazer ao ver erguer-se, na margem um tanto melancólica de um lago, a elegante residência de tijolos cor-de-rosa e de pedras de suave tom cremoso, desenhada pelo lápis mágico dos irmãos Lê Vau e que tão bem se harmonizava com o verde profundo dos campos e com os cambiantes celestes do velho Vermandois. Um pouco mais longe, conservados e arranjados, repousavam os vestígios da antiga fortaleza, próximo da capela onde se encontravam os Fontsomme de outrora e onde Jean, o esposo de Sylvie, dormia o seu derradeiro sono.

Aqui nada havia de suntuosamente excessivo, nada ao estilo do extraordinário palácio do domínio campestre de Nicolas Fouquet, um dos melhores amigos da família; reinavam as linhas puras, as matérias nobres e, sobretudo, havia muita, muita luz, que escoava pelas grandes salas de sóbrios tons dourados, decoradas com pinturas delicadas e tapeçarias sedosas. O conjunto fora executado a preceito, segundo o melhor gosto e revelava-se digno, em todos os aspectos, quer dos senhores do passado, quer dos senhores futuros.

E, precisamente, a personagem que encarnava esse futuro caminhava ao encontro de Sylvie, em camisa e pés descalços, para se lançar de encontro às suas saias com tanto ímpeto que, para não cair, teve de se agarrar a elas com os braços.

- Mãe! Mãe!... Não foi um mosqueteiro que acabou agora de chegar? Que veio ele fazer aqui?

- Philippe! - ralhou esta. - Que estais aqui a fazer, vestido dessa maneira? Há muito que devíeis estar a dormir!...

- Bem sei, bem sei! E, nesse intuito, o abade fez tudo o que estava ao seu alcance, dando-me a ler aquele enorme volume de Quinto Cúrcio[2], tão enfadonho! Contudo, não conseguia pegar no sono e ouvi o ruído do galope do cavalo...

- Então levantastes-vos e haveis visto um mosqueteiro? Isso só prova que tendes boa vista, pois ele está um tanto coberto de lama! Pois bem, agora ide-vos deitar!

Sem largar a mãe, olhou-a com estudado enlevo:

- Mãezinha, bem sabeis que eu nunca consigo dormir, se não me disserdes nada... Não tenho culpa de ser tão curioso!

- Não, não tendes; a haver um culpado seria eu - suspirou Sylvie, que não esquecera o interesse apaixonado que revelara na sua infância por tudo o que a rodeava. - Pois bem, aqui está! - acrescentou, entregando-lhe a missiva. - Lede e regressai ao vosso leito!

Mas enganava-se se julgava que iria assim acalmar o rapazinho. Este deu imediatamente largas a um entusiasmo transbordante, improvisando um passo de dança, que rematou com uma grande reverência:

- Magnífico! o Rei! a Corte! As festas!... Senhora duquesa, aceitai as minhas humildes felicitações! Vamos, pois, viajar!

- Não ides viajar para lado algum, caro jovem! Apenas vereis o cenário a que estais habituado... e o colégio de Clermont, onde sereis admitido no início do ano letivo.

Vendo todo o seu ardor soprado como uma vela ao vento, Philippe acalmou-se logo. Com cara amuada, de olhar cabisbaixo e sobrolho franzido, perguntou:

- Não vos acompanharemos?

Tinha um ar tão querido que Sylvie se pôs a rir:

- Claro que não! São muito poucos aqueles que têm a honra de ser convidados para o casamento do Rei e trata-se de um grande privilégio poder estar presente. Está fora de questão levar qualquer parente.

- Mas eu não sou um parente qualquer, sou vosso filho, tal como Marie é vossa filha. Parece-me que há uma diferença, não?

Sylvie ajoelhou-se para puxar de encontro a si o pequenino corpo recalcitrante:

- Tendes inteira razão, meu coração! Sois as minhas crianças queridas e bem o sabeis... mas Marie permanecerá no convento da Visitação e vós ireis esperar-me em Conflans, com o abade de Résigny.

- ... E M. de Raguenel?

- Ele não; conto levá-lo comigo. Acaso desejaríeis ver vossa mãe percorrendo sozinha a França, por assim dizer?... Mas se vos comportardes bem, podereis vir assistir às festas dadas por ocasião da entrada do Rei e da nova Rainha em Paris. Isso convém-vos?

Convinha, mas por nada deste mundo se resignaria tão depressa e deixou que ela o beijasse sem lhe devolver logo o beijo, antes de declarar com voz aguda:

- Sim... penso que isso me convirá.

E, bruscamente, pôs os braços em volta do pescoço da mãe e deu-lhe um grande beijo na face, antes de se escapulir, a correr.

Sem mudar de posição, Sylvie ficou a olhar para a pequena silhueta branca que desaparecia por detrás da porta do vestíbulo. Adorava aquele seu filho do remorso e do pecado, tanto quanto a linda Marie, desde há um ano confiada aos cuidados das Damas da Visitação a fim de perfazer uma educação que já desgastara três governantas durante doze anos, depois de Jeannette ter declarado que não poderia mais dar conta do recado sozinha. Contudo, só Deus sabe o que sofrera a jovem duquesa de Fontsomme quando se apercebera que o curto momento de loucura e, também, de felicidade divina que vivera nos braços de François, iria ter o seu fruto. Fruto de François, que acabara, de matar em duelo Jean de Fontsomme, o esposo que Sylvie amava com tanta ternura...

Ainda lhe acontecia estremecer de horror à lembrança dos meses que se seguiram à morte de Jean. Primeiro, a tristeza; depois, um sentimento terrível de culpabilidade, tinham-na deitado completamente abaixo. Por fim, quando se descobrira grávida, viera a vergonha. Nessa altura julgou verdadeiramente que iria enlouquecer. Não tivesse sido a vigilância atenta exercida pelo seu padrinho, que não mais a abandonara desde que fora posto ao corrente do drama em Conflans, talvez ela tivesse atentado contra a sua própria vida ou contra a de uma criança que não desejava. Mas, com a ajuda da marechal de Schomberg, chamada à pressa, Perceval de Raguenel conseguiu dar a volta à crise e pôr algum juízo na cabeça da jovem. Foram ambos que a mantiveram de pé, mas coube à antiga Marie de Hautefort encontrar as palavras mais persuasivas, por que as mais rudes:

- Se não quiserdes essa criança, então entregai-mo-la a mim, que nunca poderei ter filhos! Mas nunca a mateis! Não tendes esse direito!

- E terei o de educá-la a coberto de um nome de prestígio, ao qual o filho do meu amante não tem qualquer direito?

- Do vosso amante? Lá por terdes cedido alguns minutos, quando desde a vossa infância amais esse homem? Essa palavra dá pano para mangas. Abordai a questão por um outro ângulo e admitamos por um momento que esse infeliz duelo mais uma palavra inadequada, dado que a vossa casa se encontrava cercada! nunca tivesse ocorrido. Não estaríeis grávida na mesma? E que encontraríeis para dizer ao vosso esposo que estivestes meses sem ver?

- Julgais que não penso nisso? - perguntou Sylvie, desviando os olhos.

- Teríeis confessado, ou teríeis... eliminado esse fruto incômodo?

- Não, teria antes confessado, arriscando-me a perder tudo, pois penso que esse pequeno bastardo me seria muito querido. Vá-se lá entender algo no meio de todas as minhas contradições!

- Teríeis incorrido no castigo que estimais merecer? Deixai as modas jansenistas[3] para esses senhores de Port-Royal e assentai bem os pés na terra! Já vos esquecestes das últimas palavras que Jean proferiu?

- Esquecê-las? Oh, mas não! Ele disse... que continuaria a amar-me no além!

- Portanto, ele já vos tinha perdoado. Mais ainda o fará onde está agora e creio que a sua alma sofreria ao ver-vos perpetrar um crime. Podeis ter a certeza que ele prefere, de longe, que a criança nasça e que possa viver com o seu nome.

- Mesmo que seja um rapaz?

- Ainda mais nesse caso! Esse nome será perpetuado e, quem sabe? Talvez venha mesmo a crescer com o sangue de São Luís correndo-lhe nas veias...! Não tenhais mais escrúpulos que a Rainha!

Era preciso que Marie se sentisse muito comovida para chegar ao ponto de evocar o temível segredo que já há tantos anos partilhava com Sylvie. Aliás não se alongaram sobre o tema. Sylvie pensava.

- Então? - impacientou-se Marie. - Ides ou não dar-me essa criança?

- Há pouco, faláveis a sério?

- Muito a sério. Não é um assunto com o qual goste de me divertir. Comprometo-me a convencer o meu esposo...

- Nesse caso, perdoai-me! - concluiu Sylvie, indo beijar a amiga, - mas creio que vou ficar com ele.

- E fareis muito bem.

Perceval concordou calorosamente. Afinal de contas, poucos seriam aqueles que poderiam emitir dúvidas quanto à paternidade de Fontsomme. Exceto ele próprio e Marie, aos quais Sylvie se confiara, exceto Pierre de Ganseville, o escudeiro de François de Beaufort e o velho casal Martin, guardiães inteiramente dedicados do domínio de Conflans, só o príncipe de Conde e a sua língua, de bom grado desabrida, poderiam causar motivos de inquietude, mas o Senhor Príncipe partira para Chantilly quando Corentin Bellec se dirigira ao acampamento de Saint-Maur à procura de Fontsomme, para trazê-lo em socorro do seu domínio e da sua própria mulher, em perigo. Quanto aos que testemunharam o duelo, eram na sua maioria mercenários croatas que ignoravam a língua francesa, o que, durante um momento, permitira a Perceval supor que se poderia dar a entender que Jean de Fontsomme se batera contra um ladrão qualquer que viera pilhar-lhe a casa; no entanto, também tinham estado presentes dois ou três oficiais que conheciam muito bem Beaufort e que, aliás, nada tinham achado de extraordinário no fato de dois gentis-homens, de campos diferentes, terem empunhado a espada um contra o outro. Portanto fora necessário assacar a responsabilidade ao “Rei do Mercado”, se bem que ninguém pudesse imaginar os reais motivos do duelo. Nove meses mais tarde, a jovem viúva dera à luz um rapazinho que amara logo de todo o coração, assim que o puseram nos seus braços. E se bem que tivesse optado por passar o seu luto afastada da Corte o que era inteiramente compreensível dado que se tratara de um casal tão unido o Rei deu a entender que desejava ser o padrinho, e a sua mãe, a Rainha Ana de Áustria, sua madrinha. Nesse dia, para lá do nome real, obrigatório nesses casos, o bebê foi também chamado Philippe, nome do seu avô, o marechal de Fontsomme. Sylvie não ousara batizá-lo Jean, explicando que o seu esposo teria seguramente feito a mesma opção.

O batismo que ocorreu em Palais-Royal foi a última manifestação da Corte na qual Sylvie participou. Decidida a viver doravante retirada a fim de melhor se dedicar aos seus filhos e aos vassalos do ducado, ela mandou fechar o hotel na rue Quincampoix e dividiu o tempo disponível entre o castelo situado próximo das fontes do Somme e o seu domínio em Conflans. Foi lá que viveu as convulsões delirantes de uma Revolta que endoidecera. O inimigo de ontem tornara-se o amigo de amanhã, os príncipes massacravam-se entre eles, arrastando atrás de si esta ou aquela facção de um povo desorientado, onde se tornava cada vez mais difícil identificar-se com quem quer que fosse.

O único acontecimento de grande relevo em que compareceu foi por ocasião da consagração do jovem Rei. Nessa data dia 7 de Junho de 1654 ela empreendeu a viagem até Reims, para prestar uma homenagem solene na catedral iluminada, em nome de um pequeno duque de Fontsomme, que mal tinha cinco anos... O acolhimento de Luís XIV comoveu-a profundamente:

- Senhora duquesa, não será um pouco cruel abandonar dessa maneira aqueles que vos amam?

- Senhor, apenas fujo ao bulício. E agora que os desacatos pararam, o barulho e a alegria convêm perfeitamente para a alvorada de um grande reino, para uma corte plena de juventude...

- A quem quereis fazer crer que estais velha? Penso que não será ao vosso espelho... Terei, pois, de renunciar a ter-vos a meu lado?

- Não, meu Senhor. No dia em que Vossa Majestade precisar de mim, estarei sempre disposta a responder ao vosso apelo. Mas penso - acrescentou, inclinando-se na grande reverência da corte - que esses tempos ainda não chegaram...

- É possível que tenhais razão pois eu ainda não sou, verdadeiramente, o mestre do reino. Mas podeis estar segura que esses tempos acabarão por vir...

“Dir-se-ia que chegou a altura”, pensou Sylvie, ao apanhar a ordem real que Philippe deixara cair.

Na realidade, não sabia lá muito bem a quantas andava. É certo que se sentia lisonjeada, contente mesmo, com aquela fidelidade manifestada por um jovem príncipe adulado, mas que, todavia, não se esquecia dos seus afetos da infância; no entanto, a par disso, surgia um receio: o de se encontrar frente a François de Beaufort, a causa inicial da sua busca apaixonada pelo afastamento...

Quando ela se debruçara sobre o corpo mortalmente ferido do marido, não lhe gritara que nunca mais o queria ver? Não sentira esse receio na altura da consagração; Beaufort estava a pagar o preço das loucuras que cometera durante a Revolta com um exílio forçado nas suas terras de Vendôme, e ela não corria o risco de encontrá-lo. Já não acontecia o mesmo quanto ao casamento, pois o rebelde pagara a sua submissão e obtivera o seu perdão, embora este tivesse sido concedido com um nada de má vontade. Será que ele estaria em Saint-Jean-de-Luz, tal como o autorizava o seu estatuto de príncipe de sangue, mesmo de linhagem bastarda? Ousaria enfrentar o desagravo de um franzir de sobrolho real? Era impossível responder a esta pergunta. Quem poderia afirmar ser impossível que o charme daquele diabo de homem não tivesse já conseguido dissipar o antigo preconceito?

Fosse de que modo fosse, isso nada mudava a ocorrência que temia: o momento em que os seus olhos o voltassem a ver! Não era nada fácil navegar pela Corte de olhos fechados. Cedo ou tarde os amantes de uma hora encontrar-se-iam um diante do outro mas, graças a Deus, Sylvie dispunha de tempo para se preparar, de molde a não ter de sucumbir novamente ao poder do antigo amor, cujas brasas sabia pertinentemente que só estavam adormecidas sob as cinzas do luto.

Ela atravessava lentamente o maior dos salões, quando ouviu uma voz inquieta:

- Espero que não seja alguma má notícia... estávamos em cuidados por vós.

Fino, castiço, elegante no seu fato de veludo preto realçado por uma grande gola e por punhos de Veneza pespontados, Nicolas Fouquet enquadrava-se na ombreira da porta guarnecida de filamentos dourados, tal como uma figura de Van Dyck no seu quadro. De mãos estendidas, avançou decidido na direção da amiga, que lhe ofereceu as suas:

- Tranquilizai-vos! Trata-se afinal de uma boa notícia, se bem que contrarie os meus planos: o Rei deseja que eu faça parte das damas da Infanta, quando esta for consagrada rainha. Devo reunir-me à Corte em Saint-Jean-de-Luz...

Com uma exclamação de alegria, o superintendente das Finanças levou aos lábios as mãos que segurava:

- Minha cara Sylvie, é uma excelente notícia! Voltais enfim a ocupar o lugar que vos é devido! Na verdade, já chega de enclausurar tanta graciosidade na solidão campestre! E poderei ver-vos mais frequentemente...

- ...sem serdes obrigado a perder o vosso tempo precioso, vós que tendes tanto que fazer, a percorrer todas essas estradas pelos campos fora? Se pudésseis saber quanto essas provas de estima me são preciosas...

- Em compensação, eu ver-vos-ei menos vezes! - disse Marie de Schomberg, que ouvira tudo, enroscada frente à grande chaminé de mármore turqui[4].

- E por que motivo, por favor? Tenho demasiada estima por vós para sacrificar a alegria que sinto ao estar na vossa companhia trocando-a por não sei que vida de corte; aliás, só cabe a vós...

- Não pronuncieis nem mais uma palavra, minha querida! Sabeis muito bem que, à parte Nanteuil ou as vossas residências, só me sinto bem em Paris, no meu querido convento da Madeleine. Já não gosto da Rainha Ana, mal conheço o jovem Rei e sempre detestei Mazarin...

- Ele está muito doente e, ao que se diz, já não lhe resta muito tempo de vida - observou Perceval de Raguenel que jogava distraidamente com uma das peças do jogo de xadrez que Fouquet abandonara...

- Isso não muda em nada o horror que ele me inspira... sobretudo se é realmente o esposo daquela a quem tanto me dediquei. Quanto à que reinará a seguir, já não me sensibilizará. O meu esposo levou consigo grande parte do meu coração, deixando-me apenas um pedacinho para os meus raros amigos. Além disso... o casamento real está previsto para 6 ou 7 de Junho. Nessa data, fará precisamente quatro anos que o meu Charles me faleceu nos braços...

A voz quebrou-se. Comovida até às lágrimas, Sylvie chamou-se a si própria de idiota, mas não cometeu o erro de correr para Marie para abraçá-la com força nem o de lhe dirigir algumas palavras de consolo que de nada serviriam: Marie não gostava que se interpusessem entre ela e a sua dor. Talvez só Sylvie tivesse sabido avaliar a extensão da dor que afligia a marechal de Schomberg desde que o esposo, um dos grandes soldados do reinado de Luís XIII, que ela amara tão apaixonadamente, viera a falecer aos cinquenta e cinco anos, devido aos seus numerosos ferimentos. Meio louca de desespero - se fosse hindu, ter-se-ia lançado alegremente nas chamas do braseiro fúnebre! Logo que o corpo foi confiado à igreja de Nanteuil-le-Haudouin, a viúva correu a fechar-se no convento da Madeleine, próximo da aldeia de Charonne, de onde só saiu ao fim de vários meses, para regressar ao seu magnífico castelo que Henri de Lenoncourt erguera outrora sobre as ruínas feudais e onde Francisco I gostava de ficar quando se deslocava a Villers-Cotterêts. Era aí que residiam o esplendor e a glória dos Schomberg, dos quais Marie se pretendia a guardiã; era aí que desfrutara as mais belas horas de uma felicidade sem histórias, num céu cujas únicas nuvens eram aquelas que provocava a paixão sombria que o vencedor de Leucate e de Tortosa dedicava à sua radiosa esposa. Quanto ao hotel parisiense, onde Charles tão pouco vivera, ela vendeu-o ao presidente d’Aligre sem qualquer hesitação..

Esse período de pesar foi depressa dominado por aquela altiva mulher que, ao aproximar-se dos quarenta e quatro anos, exibia ainda uma beleza deslumbrante, cuja cor loura era ainda mais realçada pelos véus de um luto rigoroso. Ela levantou-se a fim de abraçar a amiga e felicitá-la:

- Estou muito feliz por ver que ireis participar na alvorada de um novo reinado. Sois ainda demasiado jovem para pertencerdes inteiramente ao antigo.

- Jovem? Mas vou fazer trinta e oito anos, Marie!

- Eu sei o que digo! Tendes uma tez perfeita, nem uma só ruga e o perfil de uma jovem...

- Tendes de pensar imediatamente nas vossas novas roupas! - interrompeu Fouquet. - Conheço alguém que vos fará umas estupendas!

- Eis o rei do bom gosto que vem meter o seu nariz no assunto! - riu-se Sylvie. - Caro amigo, sabeis muito bem que jurei não mais vestir roupas coloridas e continuar a andar de luto até ao fim da vida...

- Tal como Diana de Poitiers o fez para com o seu velho esposo, o grande senescal da Normandia? O que não a impediu de ser a amante declarada de Henrique III até à morte deste... Não foi em vão que fostes educada no castelo de Anet! Também direi que não se trata de uma má escolha: operam-se maravilhas com o preto, o branco, o cinzento e o violeta. Deixai tudo comigo e prometo-vos o maior dos sucessos!

- Não é isso que procuro. Só quero... estar apresentável! O Rei aprecia a elegância, mas também o comedimento.

- Ficareis encantadora... e sem dar nas vistas! Mas tenho de regressar imediatamente a Paris! Vou mandar que o meu pessoal me prepare as equipagens.

- O quê? Tão depressa?

- Não há tempo a perder. Todos os alfaiates de Paris já não têm mãos a medir. Voltaremos a ver-nos em Conflans!

- Mas...

- Não o impeçais! - interrompeu Perceval, que se mantivera calado. - Ele está tão feliz por se ocupar da vossa pessoa! Admito que leva um pouco longe demais o seu gosto pelo fausto, mas é um amigo tão fiel!

O castelo, que dormitava calmamente sob a frescura úmida e suave de uma noite de Abril, viu-se de súbito a braços com uma autêntica revolução, pois Nicolas Fouquet tornara-se um grande senhor e as suas deslocações eram qualquer coisa! A sua inteligência brilhante e a sua generosidade, a fortuna assente em bens de família, um rico casamento aliás, um novo casamento... uma espécie de genialidade, graças à qual conseguia frutificar tudo o que lhe vinha parar às mãos e, também, a fidelidade que demonstrara à causa real durante o período da Revolta, aliada ao fato de ter sabido salvar a fortuna de Mazarin, granjearam-lhe as portas para se tornar o superintendente das Finanças em França, procurador-geral do Parlamento de Paris, senhor de Belle-Isle que comprara dois anos antes aos Gondi, que se encontravam agora reduzidos a extremos e, ainda, detentor de vários outros domínios. O seu castelo de Saint-Mandé, onde gostava de reunir artistas e poetas, para os quais havia sempre mesa posta, era talvez o mais aprazível nas imediações da capital mas, um pouco por todo o lado, dizia-se que esse pequeno paraíso seria brevemente eclipsado por um outro, que Fouquet fazia construir no viscondado de Vaux, próximo de Melun: um verdadeiro palácio, no qual concentrava tudo o que pudera descobrir em França de jovens gênios em matéria de arquitetura, decoração, pintura, escultura, jardinagem e todas as artes possíveis e imagináveis. Um edifício de sonho que já começara a suscitar ciúmes em algumas pessoas, a começar por um certo Colbert, o outro homem de confiança de Mazarin, descendente de uma família de mercadores e de banqueiros de Reims e o qual, tanto no plano físico como moral, contrastava integralmente com o Superintendente: tratava-se de uma personagem tão rígida, rude, severa, pesada e sombria quanto Fouquet era flexível, diplomata, elegante, requintado e sedutor. Só se igualavam em dois planos: na inteligência e no fato de serem ambos escravos do trabalho. Tinham iniciado um verdadeiro duelo entre eles, mas de armas ainda delicadas, que a malícia do cardeal atiçava discretamente para melhor conservar o seu poder sobre ambos. O lema “dividir para melhor reinar” teria assentado às mil maravilhas no manhoso ministro que, tendo ele próprio acumulado bens excessivos, era com desagrado que via agora brilhar o astral do Superintendente naquelas alturas. Perceval de Raguenel que, tal como Sylvie, estava muito ligado à família Fouquet, não deixava de se sentir inquieto ao ver o fausto sempre maior que o seu jovem amigo ostentava, mas evitava partilhar os seus receios com a afilhada. Se bem que estivesse menos inteirado dos acontecimentos quotidianos da capital e da Corte depois da morte do seu amigo Théophraste Renaudot há sete anos atrás, fora-lhe dado presenciar o comportamento de Mazarin no meio da tempestade desencadeada pela Revolta. Além disso, para satisfazer uma curiosidade sempre alerta, tinha conservado um grupo de amigos escolhidos a dedo. Descobrira até uma paixão pela botânica e pela medicina. Ao aproximar-se dos sessenta, adquirira uma sabedoria e um conhecimento dos homens assaz excepcionais e pensava que um dia Mazarin haveria de trair Fouquet.

Manhoso, hábil, fino diplomata e grande político, o ministro não deixava de ser ávido, cúpido, de certa futilidade, e tanto mais invejoso porquanto o seu envelhecimento e, sobretudo, a sua doença, arruinavam-lhe lentamente uma sedução que passaria brevemente ao estado de mera recordação, deixando-o vislumbrar que não lhe sobrava muito tempo para desfrutar da enorme fortuna que acumulara. Jovem, belo, adorado pelas mulheres, apreciado pelos homens e, para além disso, bastante rico, Fouquet começava a relegar na sombra um homem que era geralmente detestado, mas que nem por isso deixava de conservar o verdadeiro poder nas mãos. Só o modo como Mazarin promovia esse Colbert, que fora buscar aos Lê Tellier, era já de si bastante significativo... mas Fouquet, seguro de si, de nada queria saber. Os seus brasões, de esquilo erguido e de lema ambicioso: “Quo non ascendem”, brilhavam no zênite das suas vitórias. E Perceval acabara por se calar, sabendo quão vão é lutar contra a força do destino.

Depois da morte de Jean, ele tomara conta de Sylvie, junto à qual vivia a maior parte do tempo, regressando apenas por curtos períodos à sua casa na rue dês Tournelles, guardada ciosamente por Nicole e assistida por Pierrot, que se tornara um moço grande e robusto. A rica biblioteca dos duques de Fontsomme consolava-o do fato de se encontrar frequentemente afastado da sua. Dava muito maior apreço à afilhada e aos filhos desta, em relação aos quais se sentia como um avô e que eles tratavam como tal. Além disso, a sua mudança para junto de Sylvie possibilitara finalmente a união entre Jeannette e Corentin, que era agora titular da intendência dos domínios da família. Não tinham filhos, para infelicidade do casal, o que os levara a estreitar os laços de afeto que os ligavam à jovem Marie e ao pequeno Philippe. Todos eles compreendendo Marie de Schomberg e os Fouquet formavam em redor de Sylvie um anel de afeto protetor, que a preservava de novas partidas que a vida lhe pudesse pregar. Foi neste refúgio que a ordem real veio abrir uma brecha. Restava saber que ventos entrariam por ela dentro...

Os hóspedes de Fontsomme dispersaram-se na manhã seguinte. O mosqueteiro do Rei, que se chamava Benigne Dauvergne, senhor de Saint-Mars, retomava a estrada de Aix; o marechal de Schomberg, em vez de partir para Nanteuil, foi para La Flotte visitar a sua avó adoentada, enquanto Sylvie e Perceval se dirigiam cada um para seu lado, deixando para trás um Philippe amuado e ocupado em descobrir os prazeres campestres na companhia do abade de Résigny e de Corentin Bellec. Ela ia para a sua residência em Conflans, próximo do bosque de Vincennes, enquanto que o cavaleiro regressava à sua casa na rue dês Tournelles, a fim de preparar o necessário para a viagem. Jeannette acompanhava a duquesa:

- Recuso-me - confiou a seu esposo - a deixá-la regressar sem qualquer proteção para junto de uma corte que não deve valer muito mais que a precedente.

- Não venhas com motivos desses! Estás mas é contentíssima por ires assistir de perto às festas do casamento real e isso é muito natural - acrescentou Corentin, com um sorriso bondoso.

- É verdade... e, depois, não gosto de vê-la longe de mim. Já éramos irmãs de leite mas, depois daquele dia abominável em que as nossas mães foram assassinadas pelo horrível Laffemas (que arda eternamente no Inferno!) há algo mais que nos liga uma à outra...

- O afeto, não? Bem sei - suspirou Corentin - que não se deve dizer mal dos mortos, mas respiro melhor desde que esse fulano desapareceu!

- Tanto mais que teve o destino que merecia, depois de todos aqueles tormentos que tanto gostava de infligir às pobres pessoas.

Efetivamente, certa noite de Inverno, quando decorriam os últimos meses da Revolta, os criados daquele que fora outrora chamado “O Carrasco do Cardeal Richelieu” tinham-se refugiado, espavoridos, na igreja de Saint-Julien-le-Pauvre, dizendo que o Diabo viera buscar-lhes o amo e que, depois de se ter fechado com ele no quarto, infligia-lhe agora todos os tormentos de uma terrível agonia. Alguns vizinhos vieram ter com eles e passaram a noite a rezar em conjunto, sem que ninguém ousasse ir ver o que se passava realmente. Quando, de manhã, formando já um grupo considerável, se arriscaram finalmente a entrar, depararam com um espetáculo abominável: deitado numa cama manchada de sangue e de pus, o cadáver nu e quase enegrecido estava todo retorcido pelos derradeiros espasmos provocados por uma aterradora agonia. O rosto deformado, os olhos exorbitados, refletiam um terror inomável. Além disso, tinha estampada no meio da testa a letra grega omega, impressa por um sinete de cera vermelha e as queimaduras provocadas pela cera ardente que se derramara ao longo do seu corpo completavam o quadro daquela morte horrorosa. Ninguém se dispôs a mexer nele e foi preciso mandar chamar os Irmãos da Misericórdia, com baldes de água benta, para sepultarem o antigo tenente civil que tanto aterrorizara Paris e a província durante anos a fio. Apenas se ouviu uma voz no meio do povo para proclamar que Laffemas já fora danado enquanto vivo, se bem que nesse mesmo dia, à hora de maior afluência no Pont-Neuf, tivesse aí aparecido um homem vestido de preto, mas com uma máscara grotesca, que saltou para o pedestal da estátua de Henrique IV, a fim de proclamar que ele, capitão Coragem, fizera justiça pelas suas próprias mãos, àquele infame carrasco de mulheres. Dito isto pulou para o parapeito da ponte, disparou uma bala na cabeça e deixou-se cair no Sena. Tendo presenciado a cena, Perceval de Raguenel e o seu amigo gazeteiro, Théophraste Renaudot, esforçaram-se na noite seguinte por encontrar o corpo daquele estranho jovem que fora um fiel amigo, mas os seus esforços não foram coroados de êxito, contentando-se finalmente em encomendar algumas missas em seu nome.

Antes de deixar Paris, Sylvie fez duas visitas: a primeira ao convento da rue de Saint-Antoine, onde a sua filha ainda se mostrou mais excitada que o irmão com a convocatória que ordenava a sua mãe que se juntasse ao grupo de damas da nova Rainha. Já quase com catorze anos, Marie só sonhava em ver o mundo, a Corte e, sobretudo, o Rei, pelo qual estavam apaixonadas uma grande parte das suas companheiras de pensionato. Há mais de um ano que essas meninas seguiam apaixonadamente o romance que desabrochara entre o jovem monarca e Marie Mancini, uma das sobrinhas de Mazarin, que passara dois anos com uma das suas irmãs no convento da Visitação, onde deixaram ambas uma lembrança indelével devido à matreirice de que se mostravam capazes e ao hábito que tinham de esvaziar os tinteiros nas pias de água benta da capela. Esse comportamento fez imediatamente da jovem italiana a heroína do convento e todas se disputavam as novidades acerca dos desenvolvimentos daquela aventura amorosa. Sabia-se que o cardeal decidira exilar as sobrinhas para Brouage. Foi ver quem conseguia explicar mais detalhadamente a cena das despedidas, em que Marie, furiosa e desesperada, dissera a Luís XIV: “Vós sois Rei, vós chorais e eu parto!”. A partir dessa altura, até se faziam apostas: Luís XIV seria ou não capaz de superar o seu calvário até à altura do casamento com a Infanta ou, então, incapaz de resistir à sua paixão, conseguiria afirmar finalmente o seu desejo em desposar aquela que verdadeiramente amava?...

- Que a mãe tivesse sido convidada a Saint-Jean-de-Luz, foi, pois, motivo de grande regozijo para a adolescente.

- Oh, mãe, promete-me que me escreverás todos os dias! Quero absolutamente ficar a par de tudo o que vier a acontecer!

- Que queres que suceda de extraordinário? - perguntou Sylvie, rindo-se. - O nosso Rei vai dar ao país uma Rainha, e ponto final!

- Sim, mas qual delas? A Infanta ou Marie de Mancini? Muitas das minhas companheiras juram que ele está demasiadamente apaixonado para se deixar casar e que também já está farto de satisfazer todas as vontades do velho Mazarin! Ele adora positivamente a Marie.

- Sois loucas e sonhais demasiado! O velho Mazarin, como lhe chamais, jurou que ele próprio levaria a sobrinha de volta a Roma, caso esta se obstinasse nesse casamento. É preciso entender que ele pôs todas as suas últimas forças no tratado, cuja coroa de glória é a Infanta e o qual põe termo a mais de trinta anos de guerra. Se Luís XIV quiser permanecer Rei, terá de desposar Maria Teresa... ou então deverá renunciar ao trono em favor de seu irmão.

- Meu Deus, como sois severa, mãe! O amor não deve ter a primazia sobre todas as considerações de natureza política?

- Não, quando se é Rei de França!... Contudo, prometo-te que te escreverei frequentemente...

- Todos os dias?

- Farei o que puder...

- Obrigada! Sois um anjo! E, a propósito... quando contais tirar-me daqui? Tenho catorze anos e a minha madrinha era dama de honor aos doze! Além disso...

- ...além disso estás com pressa para te exibires noutros locais? A vaidade é um grande pecado!

- Não sou vaidosa... e também não sou hipócrita. Sei apenas que não sou feia!

Sylvie soltou um grande suspiro. Feia? A sua pequena Marie era simplesmente encantadora, com aqueles grandes olhos azuis e magnificentes cabelos de um louro de linho. Tendo acabado por reunir elementos tanto do pai como da mãe, a sua beleza formava o conjunto mais provocante e encantador que pudesse haver. O que não deixava de inquietar Sylvie, persuadida que estava em como a filha não deixaria de espicaçar as cobiças logo que fosse introduzida no meio da Corte. Por isso marcara os quinze anos como data para a entrada de Marie nos meios mundanos. De qualquer modo, com o seu caráter impetuoso, frequentemente imprevisível, revelava-se tarefa impossível guardá-la ainda mais tempo sob aquela proteção.

A sua segunda visita foi ao hotel de Vendôme. Como conservara uma profunda ternura pela duquesa e pela filha, Elisabeth de Nemours, quando a Revolta fora finalmente vencida ela não deixara de frequentar, com toda a tranquilidade de espírito, a grande residência situada no faubourg de Saint-Honoré. Havia um motivo de peso para tal: estava segura de que lá nunca encontraria François.

Após os desvarios que cometera durante uma autêntica guerra civil da qual era em grande parte responsável, aquele que fora cognominado “o Rei do Mercado” teve logicamente de se exilar para os castelos da família, em Anet ou Chenonceau. Um exílio afinal agradável e que foi passado, em grande parte, em companhia de Monsieur Gaston d’Orleans, o perigoso irmão do defunto rei Luís XIII e, sobretudo, de sua filha, a impetuosa Mademoiselle que, no derradeiro combate livrado pela Revolta, mandara corajosamente que apontassem canhões da Bastilha sobre as tropas reais. Esses dois entendiam-se às mil maravilhas. Além disso, o belo acordo que existira desde sempre entre Beaufort e o pai, o duque César de Vendôme, e entre ele e o irmão, Louis de Mercosur, rompera-se num belo dia de 1651 quando, com a benção do duque, este último desposara Laura Mancini, a sobrinha mais velha de Mazarin. Se bem que se tivesse tratado de um casamento de amor, ele não deixava de representar uma traição e uma aliança inaceitável aos olhos do rebelde.

Posteriormente, um verdadeiro drama veio arredá-lo ainda um pouco mais da família: no dia 30 de Julho de 1652, Beaufort matava em duelo o marido de Elisabeth, Charles-Amédée de Sabóia, duque de Nemours. O motivo fora miserável e a culpa fora inteiramente deste, que não suportara que o seu cunhado se tivesse tornado governador de Paris durante os últimos sobressaltos da Revolta. O jovem estouvado recorrera a todos os meios ao seu alcance para provocar Beaufort, indo ao ponto de chamá-lo bastardo e cobarde, exigindo que o duelo só terminasse com a morte de um dos contendores e que as armas utilizadas fossem pistolas o que era bem mais perigoso que a espada dado que uma recente ferida na mão o impedia de manejar devidamente uma lâmina. No encontro marcado para as sete da tarde no mercado de cavalos situado nas traseiras do hotel de Vendôme, cada adversário apresentou-se secundado por oito acompanhantes.[5] A bala desferida por Nemours apenas roçou por Beaufort que, em vez de disparar, pediu ao seu ”irmão” que as coisas se quedassem por ali, mas o outro, louco de raiva, exigiu que o combate prosseguisse à espada. Alguns momentos mais tarde falecia, atingido no peito por aquele temível golpe de espada que já liquidara Jean de Fontsomme.

O desespero de Elisabeth foi enorme: ela adorava aquele homem que, no entanto, tantas vezes a enganara. Quase tão desolado quanto ela, François fechou-se durante algum tempo em Chartreux mas, através da ferida de Nemours escoou-se uma parte do amor que tanto tempo unira irmão e irmã. E o hotel de Vendôme, onde Elisabeth se refugiara com as filhas, foi encerrado para o involuntário assassino, apesar da tristeza de Françoise de Vendôme mãe de Elisabeth, de François e de Louis que contava que um dia o tempo se encarregaria de arranjar as coisas entre eles...

O tempo nada arranjou. François permaneceu voluntariamente arredado, apesar do luto que veio atingir o irmão mais velho. Em 1657, a encantadora Laura, que fora o primeiro pomo de discórdia no seio da família, morria em apenas alguns dias, deixando dois filhos a um esposo desesperado que se fechou nos Capuchinhos com a intenção de abraçar o hábito religioso. Se Beaufort sentiu ou não um arroubo de pena pelo irmão, em todo o caso nada deixou transparecer. Algum tempo depois, Mercoeur tornava-se governador de Provence, onde defendeu briosamente os interesses do Rei, ao reprimir uma revolta em Marselha.

Progressivamente, a família readquiria o seu prestígio. O casamento com a sobrinha de Mazarin, que tanto enraivecera François, contara para alguma coisa nesse capítulo. Foi assim que o duque César recebeu o Almirantado que o seu filho mais novo tanto almejava e se a partir dessa altura deixou de ser visto em Paris, não era, como outrora, devido a um exílio forçado, mas porque se encontrava em serviço nos mares, efetuando um excelente trabalho. Claro que o posto estava destinado a Beaufort mas, para este, isto era apenas uma magra consolação.

Sempre fiel a si mesma, a duquesa Françoise velava de longe por François e por aquele seu pequeno mundo. Era junto a ela, no regaço da sua ternura e da sua fé profunda, que a pobre Elisabeth encontrava o maior consolo. Ambas consagravam grande parte do seu tempo à caridade, se bem que Mme. de Nemours não tivesse coragem para seguir a mãe aos lugares de perdição onde, apesar da sua idade, ela continuava a esforçar-se por levar algum auxílio às raparigas de má vida.

Quando Sylvie chegou ao hotel, a duquesa ausentara-se. Desta vez não fora visitar nenhum “bordel”, nem nenhuma barraca miserável. Por intermédio de uma Elisabeth visivelmente preocupadíssima, a visitante ficou a saber que a duquesa fora a Saint-Lazare visitar o senhor Vincent, cujo estado de saúde era motivo para graves inquietações. Meio paralisado, o apóstolo de tanta miséria encaminhava-se para o seu fim mas, mesmo assim, não perdia a alegre serenidade que punha em todas as coisas.

As palavras de tristeza de Mme. de Nemours contrastavam grandemente com o bulício que reinava em toda a casa, onde se poderia jurar que tinham largado um bando de gatos assanhados.

- Não presteis atenção! - sorriu Elisabeth, com um ar atrapalhado. - São as minhas filhas... Desde há oito dias que não param de discutir.

E, dado que Sylvie, sem ousar fazer perguntas, não conseguiu mesmo assim evitar um franzir de testa interrogativo, ela explicou:

- Enamoraram-se ambas pelo sobrinho do marechal de Gramont, o jovem Antoine Nompar de Caumont[6], e confesso que não entendo nada pois ele é pequeno e feio, se bem que mostre grandes ares e possua um espírito levado da breca!

Sylvie pensou que o mau gosto daquela família podia ser um dado hereditário, tendo a própria Elisabeth chegado a manifestar um certo fraco pronunciado pelo abade de Gondi, na altura em que este ainda não era cardeal de Retz; no entanto, limitou-se a observar:

- Gostos e cores não se discutem. Sobretudo em matéria de amores; mas porquê tanta disputa? Esse jovem arbitra os combates?

- Ele está a mil léguas de desconfiar do que se passa, mas estas meninas decidiram que ele pertenceria ora a uma, ora à outra. Então não param de jogá-lo aos dados, devendo a perdedora retirar-se para um convento. Como a sorte varia, elas acabam por se disputar. Isto é tanto mais aborrecido porquanto existe agora um pretendente para a mais velha, Marie-Jeanne-Baptiste...

- Já?

- Ela já fez dezesseis anos e o partido não é de desprezar, pois trata-se do nosso jovem primo Charles-Leopold, o herdeiro da Lorraine.

- Que diz a vossa mãe?

- Já a conheceis. Diz que, desde que não se firam, mais vale deixá-las agarrar os cabelos uma da outra enquanto assim o entenderem, e que não há qualquer problema enquanto o jovem Caumont não se apresentar para escolher a mão de uma delas, o que não deverá acontecer. Isso não impede que esteja atormentada e que me sinto envelhecer de dia para dia...

O pior é que ela envelhecia de fato. Aos quarenta e seis anos, a pobre mulher parecia ter mais quinze que a sua idade e já não subsistia grande coisa daquela bela rapariga loura, tão alegre, tão feliz da vida e que, para Sylvie, fora uma companheira de infância muito afetuosa. É verdade que sofrera bastante desde que desposara Nemours: primeiro, devido à quase indiferença de um esposo que tanto amava, depois, por causa da morte sucessiva dos seus três filhos e, por fim, dado o falecimento do esposo às mãos do irmão que adorava. Restavam aquelas duas jovens que pareciam vivamente empenhadas em aumentar o rol das suas tristezas.

- Minha amiga, tendes de recobrar ânimo e pensar um pouco em vós própria. Tal como Mme. de Vendôme, eu penso que para as vossas filhas o casamento acabará por arranjar tudo. Por ora, o que deveis é tentar reencontrar a vossa serenidade de outrora.

- Talvez tenhais razão... Então, ides regressar à Corte? Isso é do vosso agrado?

- Fiquei sensibilizada pela atenção particular que o Rei me dispensou. Quanto ao resto...

- Já pensastes que, mais cedo ou mais tarde, acabareis por encontrar François...?

Sylvie não estava à espera de ouvir aquele nome, sobretudo na sua forma mais familiar. Empalideceu ligeiramente, mas esforçou-se por sorrir:

- Tentarei fechar os olhos...

- Não o conseguireis...

Instalou-se um silêncio, até que Mme. de Nemours murmurou:

- Eu já perdoei, Sylvie. Deveríeis fazer o mesmo...

- É isso que pensais?... Talvez seja mais fácil para vós: ele é vosso irmão e gostais tanto dele!

A resposta chegou, de forma tão brutal que, apesar da brandura da voz, Sylvie teve de fechar os olhos:

- E vós amai-lo ainda mais!... Sede honesta para convosco, minha amiga: mesmo quando desposastes Fontsomme o que foi natural continuáveis a amá-lo, não é verdade?

Ao reabrirem-se, as pálpebras de Sylvie deixaram escapar uma lágrima. Nunca imaginara que Elisabeth pudesse ser capaz de uma leitura tão profunda. Como não encontrava nenhuma resposta, esta prosseguiu:

- Além disso, tanto num caso como no outro, ele não quis matar: sei que o meu esposo tudo fez para o provocar em duelo, que ele tentou evitar. Quanto ao vosso, foram os azares de uma horrível guerra civil que os colocou frente a frente, de espada na mão... e espero que o vosso filho não venha um dia a querer vingar-se do defensor de uma causa diferente da do pai.

- Em minha casa nunca ninguém fará o que quer que seja para que essa ideia lhe possa algum dia ocorrer. Aliás, nunca pronunciamos o nome do vosso irmão e, para Philippe, o pai foi morto durante a Revolta; ponto final.

- Qual é a idade dele?

- Tem dez anos.

- Já?! Aproxima-se da idade em que se quer saber todas as verdades.

- Bem sei. Mais cedo ou mais tarde acabará por saber qual a mão que desferiu o golpe fatal. Pois bem, veremos o que fazer nessa altura...

A gritaria, que acalmara durante uns momentos, recomeçou novamente, desta vez com muito maior intensidade, bem como o nervosismo de Mme. de Nemours:

- Já chega! - gritou esta. - Vou mandar imediatamente estas duas fúrias para o convento dos Capuchinhos até amanhã: assim ver-se-ão obrigadas a calar-se!

Corria pela ampla sala, indo e vindo como um pássaro assustado, rasgando o lenço, mas sem ousar tomar qualquer partido. Sylvie perguntou a si mêsma se ela não teria medo das filhas. Por isso, disse numa voz tão suave quanto possível:

- Quereis que seja eu a falar-lhes?

- Seríeis capaz? - perguntou-lhe Elisabeth, com uma centelha de esperança no olhar.

- Por que não? Mas, em primeiro lugar, gostaria de saber onde está esse jovem Caumont... Elas vão vê-lo proximamente?

- Ele é o marquês de Puy... nunca consigo pronunciar o nome. Aliás chamam-no Péguilin. Quanto a encontrá-lo, isso está fora de questão. Ele chefia a primeira companhia de gentis-homens de bico-de-corvo[7], que nunca larga o Rei. Vê-lo-eis em Saint-Jean-de-Luz...

- Nesse caso, isto é tudo ridículo... Bem, vou ter com elas!

- É fácil dar com elas. Estão no aposento que ocupávamos em pequenas.

Sylvie não teve qualquer dificuldade, tanto mais que um batalhão de camareiras e de governantas se aglomerara diante de uma porta fechada, detrás da qual chegava um barulho verdadeiramente demoníaco. Aquelas meninas deviam estar ocupadas a partir tudo lá dentro.

À sua chegada os criados apartaram-se, com vagas reverências e, com um gesto resoluto, ela abriu a porta de rompante, o que deu passagem a uma chávena vigorosamente projetada, que veio quebrar-se de encontro à parede do corredor. O espetáculo era dantesco: por entre uma quantidade de objetos partidos, que iam de um vaso de louça italiana antiga até um bacio, passando por móveis voltados de pernas para o ar e por almofadas esventradas, as duas raparigas, deitadas uma em cima da outra, esforçavam-se por se estrangular mutuamente. Com os rostos vermelhos, desgrenhadas, de roupas rasgadas, metiam medo. A voz glacial de Sylvie provocou-lhes o efeito de um duche frio.

- Mas que lindo espectáculo! É pena que esse caro... Péguilin esteja tão longe! Talvez ficasse lisonjeado, mas pergunto-me o que irá pensar quando eu lhe contar tudo isto!

Elas puseram-se imediatamente de pé; era a mais alta que estava em desvantagem! E colocaram-se diante da intrusa com o mesmo ar aterrorizado e descomposto. A mais velha, Marie-Jeanne-Baptiste, a quem chamavam Mlle. de Nemours (à irmã, Marie-Jeanne-Elisabeth, chamavam-na Mlle. d’Aumale), esboçou uma reverência e disse, ainda sem fôlego:

- Senhora duquesa de Fontsomme!... Vê-lo-eis?

- Sem dúvida: o Rei nomeou-me dama da nova Rainha e parto amanhã de manhã para Saint-Jean-de-Luz. A narrativa dos vossos feitos encantará a Corte... e aquele por quem tanto vos interessais...

Sem ouvir os protestos delas, foi até ao quarto de vestir contíguo e trouxe dois espelhos de mão, que estendeu a ambas:

- Olhai-vos e digam-me que suplemento de beleza esperais obter com este tratamento mútuo?

Tanto mais que, excetuando os magníficos cabelos ruivos da mais velha e os cabelos louros da mais nova, os olhos azuis e a pele de ambas, que normalmente era esplendorosa mas que, no estado atual, sofrera muitos agravos, elas não eram propriamente um modelo de beleza. Um só relance de olhos pelo espelho disse-lhes mais que quaisquer discursos e, num belo conjunto, desataram a soluçar, suplicando a Sylvie que nada contasse... sobretudo, que nada dissesse!

- Aceito, por amizade para com a vossa mãe - disse Sylvie, indo apanhar os dados, que confiscou - mas só se me prometerdes que nunca mais recomeçareis. Não se obtém o amor de um homem jogando-o aos dados, mesmo quando se é uma princesa. É preferível tentar seduzi-lo.

Deixando as duas raparigas entregues às suas reflexões e ocupadas a refazer uma beleza, Sylvie foi ter com Elisabeth, que a esperava ansiosamente.

- Já não se ouve barulho! - disse esta, maravilhada. - Dir-se-ia que haveis conseguido.

- E espero que ireis desfrutar de um pouco de calma. Pegai, tirei-lhes isto - acrescentou Mme. de Fontsomme, devolvendo os dados à sua amiga. - Fazei com que elas não arranjem outros!

Mme. de Nemours agradeceu-lhe efusivamente e acompanhou-a até ao grande vestíbulo. Na altura em que se iam deixar, ela reteve-a:

- Só mais um momento, por favor! Suponho que ireis reabrir o hotel de Fontsomme...

- É o que pergunto a mim mesma. Penso que será preciso, para maior comodidade.

- Além disso, não tendes que recear mais a presença de uma vizinhança incômoda. O meu irmão trocou a rue Quincampoix por um pequeno hotel próximo da porta Richelieu e do palácio Real...

- Ah!... Nesse caso, vou dar ordens para que a casa esteja pronta a receber-me, logo que regressar dos Pirenéus. Obrigada por me terdes prevenido...

Era, incontestavelmente, uma boa notícia. Mesmo que lhe preferisse Conflans, Sylvie achava que a sua residência parisiense era muito mais prática, sobretudo no Inverno, devido ao seu serviço junto à Rainha. Decidiu também falar nessa mesma noite, com o seu despenseiro e com o chefe dos jardineiros, para que se restaurasse o muro desfeito no fundo do canteiro, reforçando-o não só com uma fileira de árvores, como também com uma sebe alta e espessa, que impedisse qualquer vista para a casa do lado. Desse modo, talvez ela pudesse desfrutar novamente do charme daquele recinto requintado, sem ser assolada peIas recordações de um tempo revoluto, que se tornara inoportuno. E, sem dúvida que, no fundo de si mesma, Sylvie temia menos a imagem de François rogando-lhe amor de joelhos no seu próprio jardim, do que a da sombra ligeira e errante de Mme. de Montbazon, com que deparara numa noite de Verão, no antigo hotel de Beaufort, nessa altura vazio e abandonado.

Como qualquer pessoa dotada de uma extrema sensibilidade, Sylvie acreditava em fantasmas. O da bela duquesa, desde há tanto tempo a amante preferida de Beaufort, assombrava-lhe frequentemente a memória desde que tivera conhecimento da sua morte, três anos antes, em Abril de 1657. E em que condições!

Nessa época, Marie de Montbazon, viúva desde há alguns meses do duque Hercule, que chegara aos oitenta e quatro anos e que nada contara na sua vida, partilhava as suas preferências entre Beaufort, cujo exílio alegrava intermitentemente, e um jovem abade da corte, Jean-Armand Lê Bouthillier de Rance[8]. Era um desses abades “para não ser levado a sério”, como floresciam tantos no seio das grandes famílias, onde havia menos preocupações em servir Deus do que em recolher alguns ricos benefícios eclesiásticos. O abade de Rance, jogador, brigão, bebedor, corredor de saias e, aliás, lindo mancebo, enamorara-se da bela Marie, apesar da diferença de idades, e ela parecia ter conseguido aprisionar o seu coração... Aliás, tanto para ela como para Beaufort, com o qual caçava por vezes, ele era uma espécie de vizinho do campo, dado que o seu castelo de Veretz não estava muito afastado nem de Montbazon nem de Chenonceau.

No mês de Março desse ano, Mme. de Montbazon regressava a Paris para tratar de um certo assunto quando, ao atravessar uma ponte muito velha e desgastada por grandes cheias, esta desabou. Retiraram-na dos destroços mais morta do que viva. Transportada para Paris, teve um ataque de sarampo que, muito rapidamente, se veio a revelar gravíssimo. Sentiu a necessidade de fazer as pazes com o Senhor. Alguns pretendem que ela nem teve tempo para isso e que a morte a veio buscar quando ainda estava desesperada por ter de abandonar a vida.

O jovem Rance, posto entretanto ao corrente do acidente e da doença veio de Touraine, trazendo-lhe o aconchego do seu amor. Esgotado pelo longo trajeto a cavalo, chegou ao cair da noite à rue de Bethisy, onde se situava o hotel de Montbazon, local de que não gostava pois era ali que o almirante de Coligny tinha sido assassinado na famosa noite de S. Bartolomeu. A rua ainda lhe pareceu mais sinistra que de costume.

No entanto, as portas estão abertas. No calor da febre engendrada pelo cansaço, Range vislumbra algumas formas imprecisas de criados.

- Onde está a duquesa?

No seu quarto, nesse quarto que lhe fora tão querido algumas vezes. Corre, empurra a porta e cai imediatamente de joelhos, com o coração paralisado perante o horror do espetáculo: depara com um caixão aberto, iluminado por grandes velas de cera amarela! Um caixão que contém um corpo sem cabeça: o corpo de Marie! A cabeça, de olhos fechados, descansa ao lado, em cima de uma almofada. Alguma vez houve pesadelo mais horrível? Durante um momento, um longo momento, o infeliz julgou que enlouquecia.

Mas ele não está doido, e também não está a delirar, e existe uma explicação atroz, mas quão simples!, para aquele horror: quando o marceneiro entregou o caixão de madeira preciosa, descobriu-se que este era demasiado curto. O artista não levara em linha de conta o gracioso comprimento do pescoço. Portanto, para não ter de voltar a fazer um móvel tão dispendioso, o cirurgião-barbeiro da casa resolveu simplesmente cortar a cabeça!

Nessa noite, foi um outro homem que saiu do hotel de Montbazon. O abade da corte morrera, para dar lugar a um padre perseguido pelo remorso e pela vergonha da sua vida passada. Regressou a Touraine, vendeu os seus bens, conservando apenas a mais pobre das suas abadias e alguns edifícios em ruínas, construídos sobre fundos lodosos dos quais, com o decorrer dos tempos, faria o mais severo, o mais rude de todos os mosteiros franceses: o de Nossa Senhora de la Trappe...

Foi a duquesa de Vendôme que narrou esta horrível história a Sylvie. Soubera-a por intermédio de seu filho, François, que Rance fora visitar a Chenonceau na senda do seu arrependimento. A família estava nessa altura de luto devido à morte da jovem duquesa de Mercceur, mas o de Beaufort foi duas vezes mais severo e, no fundo do seu coração, Sylvie pôs-se a amá-lo ainda mais, sem se aperceber disso. Com todo o ciúme de que era capaz, detestara Marie de Montbazon pois tinha podido avaliar a extensão e a sinceridade do amor dela por François, mas ter-lhe-ia desagradado que ele não tivesse sido marcado por aquela ligação de quinze anos...

Contudo, ela própria desejava esquecê-lo o mais depressa possível.

 

                         O CHOCOLATE DO MARECHAL DE GRAMONT

Quando todo o pessoal das casas do Rei, de sua mãe, do cardeal Mazarin e de uma parte da Corte, desembarcou em força em Saint-Jean-de-Luz, era uma espécie de proeza conseguir, mesmo assim, um alojamento naquela pequena e enérgica cidade marítima. Contudo, sempre graças a Nicolas Fouquet, Sylvie e Perceval não depararam com a menor dificuldade. Logo que soube que os seus amigos deviam assistir ao casamento real, o todo poderoso Superintendente enviou um correio ao seu amigo Etcheverry, um dos armadores dos baleeiros do porto[9]. Tinham travado relações no Outono passado quando Fouquet se lançara à estrada, avisado que Colbert contava enviar a Mazarin um relatório esmagador que tramava contra a sua gestão e de cujo conteúdo o seu amigo Gourville o informara, galopando então ao encontro do Cardeal no outro extremo da França, numa tentativa de obter vantagem sobre o famoso relatório ao revelar-se mais rápido que Colbert. Mazarin estava efetivamente em Saint-Jean-de-Luz desde o princípio do Verão, a fim de discutir com don Luis de Haro, o enviado espanhol, as cláusulas do tratado dos Pirenéus e para preparar o casamento real que constituiria a sua coroação. Fouquet acabara de se restabelecer de uma doença, pelo que Mazarin, cuja saúde piorava de dia para dia, apreciou a coragem do Superintendente enquanto homem que sabe o que significa forçar um corpo esgotado, e o dito memorando foi lançado à água. Mas, durante a estadia, enquanto a sua vida estava em jogo, Fouquet pôde dar o devido valor à hospitalidade da casa Etcheverry e ao caráter a um tempo orgulhoso e alegre dos seus habitantes.

Ao deixarem Paris, Sylvie e Perceval estavam certos que os esperava um alojamento e que nenhum príncipe ou qualquer cortesão, por mais rico que fosse, poderia ocupá-lo.

- Isto parece demonstrar uma grande força de caráter da parte do nosso futuro hospedeiro - observou o cavaleiro de Raguenel. - A cidade deve ter sido praticamente tomada de assalto por todos aqueles que não se sentem tentados a ter de acampar na praia. Também é verdade que a generosidade de Fouquet é proverbial!

A viagem, que decorrera sob um tempo radioso, encantou Sylvie, que só percorrera as estradas que levavam até às terras de Vendôme, da Picardia e o caminho até Belle-Isle. Para mais, não havia que temer a solidão: dir-se-ia que tudo o que o reino contava como personagem um pouco ilustre ou afortunada se dirigia infalivelmente na direção da costa basca. A tal ponto, que até as terras mais inóspitas, como os campos arenosos e lodosos a sul de Bordéus, já não constituíam qualquer perigo: era com naturalidade que se juntavam verdadeiras caravanas formadas por coches e cavaleiros..? Num dia até chegaram a acompanhar um bando de peregrinos que se dirigiam para Compostela, na Galiza, onde iam rezar junto ao túmulo de S. Tiago. Isso ocorreu antes de terem de atravessar uma espessa floresta e aquele punhado de boa gente a época das grandes peregrinações pertencia ao passado pediu que os deixassem aproveitar a proteção que representavam vários coches acompanhados por criados bem armados.

Para o seu regresso à nova Corte, sem dúvida jovem e alegre, Mme. de Fontsomme não podia ter sonhado com sítio melhor do que Saint-Jean-de-Luz. Em primeiro lugar, o local era deslumbrante, com a sua baía cheia de luz e encostada aos contrafortes tão verdes dos Pirenéus. Depois, voltava a encontrar o oceano que tanto amava. Não era o mesmíssimo que banhava Belle-Isle? Para Sylvie, ele dançou, à luz do sol, o seu mais lindo bailado, com a ajuda de grandes vagas nobres e majestosas, soprando-lhe no rosto o ar carregado de iodo, que ela redescobria, deleitada. E como era alegre aquela pequena cidade, agora promovida a capital do reino! À volta de algumas belas residências em pedra e tijolo, com pequenas torres quadradas de telhados cor-de-rosa, quase sem inclinação, as casas ostentavam armações de madeiras de cores garridas e varandas onde banhava a luz do sol e que contrastavam com a brilhante cor branca das alvenarias; todo este conjunto formava uma corte reverenciosa para com a velha igreja de São João Batista que, com os seus muros elevados e quase sem aberturas e a sua imponente torre, tinha um aspecto deveras severo. No meio disto tudo, começara um verdadeiro carnaval desde o dia 8 de Maio, data em que o coche dourado do Rei fizera a sua entrada na cidade, ao som dos sinos e do canhão, saudado pelo bailio, pelos magistrados municipais, de carapuças e togas vermelhas, e pelas danças saltitantes dos foliões vestidos com trajes brancos cobertos por guizos e fitas garridas.

O branco, o vermelho e o preto eram as cores locais. A elas misturavam-se agora as túnicas azuis e douradas dos mosqueteiros, as casacas vermelhas douradas da cavalaria ligeira, as plumas de todas as cores que enfeitavam o chapéu de qualquer senhor e, mesmo, os das damas menos afortunadas; seguiam-se os vestidos de cetim, veludo, tecido, tafetá, todos eles debruados, bordados a sutache, ornados de pérolas e finas pedras preciosas, que se deslocavam no meio de uma atmosfera de festa incessante, acompanhados pelos acordes de guitarra ou de violino que vibravam no ar ensolarado. O cardeal Mazarin cumprira a preceito os preparativos e Saint-Jean-de-Luz resplandecia de graça, de alegria e de juventude, dado que um rei de vinte anos, o mais sedutor de todos, deslocava-se ali para desposar a Infanta...

Quando o coche e o “carroção” de Mme. de Fontsomme pararam diante da casa Etcheveny, depois de terem passado através de uma multidão que se precipitava para a praia para admirar os torneios náuticos que se disputavam na baía em redor da galé dourada do Rei, o ambiente que foram encontrar estava relativamente calmo. Recebidos com perfeita cortesia pelo armador, Sylvie e Perceval entraram numa grande sala de paredes caiadas a cal e móveis reluzentes, onde lhes ofereceram vinho e pastéis para se restaurarem da viagem, enquanto esperavam pelo jantar e trocavam amabilidades um pouco banais, como é costume entre pessoas que não se conhecem.

No entanto, enquanto provava um maçapão, o nariz sensível de Sylvie tremia ligeiramente, procurando identificar um cheiro agradável e que lhe era completamente desconhecido. A sua curiosidade venceu o código de boas maneiras:

- Desculpai-me senhor - disse ao seu hospedeiro - mas sinto o cheiro de um perfume que...

Manech Etcheveny sorriu, divertido:

- ...que não conheceis ainda e que eu próprio descobri há bem pouco tempo. Trata-se do chocolate do senhor marechal de Gramont, que também fica alojado nesta casa nos dias em que acha que lhe é mais cômodo não ter de regressar ao seu governo em Bayonne. É uma bebida que experimentou quando foi como embaixador a Espanha, pedir a mão da Infanta...

- O choco...

- Chocolate, senhora duquesa. O senhor marechal começou a gostar tanto dele que trouxe consigo uma provisão... e a maneira de prepará-lo...

- Já o provastes?

- Já. O marechal concedeu-me essa honra, mas confesso que não sou tão fervoroso adepto quanto ele. É demasiado açucarado; enfim, diz-se que faz muito bem à saúde, que fortifica...

- Ah, - exclamou Raguenel - penso que sei do que se trata. Os aztecas chamavam-lhe o “néctar dos deuses” e foi o conquistador Hernán Cortês que o trouxe do México... Segundo consta esses... grãos até chegaram a servir de moeda de troca. É um produto raro e... muito caro!

- A Espanha faz crescer algumas plantações do outro lado do Atlântico mas, pelo momento, o chocolate é uma bebida praticamente reservada à família real e aos grandes senhores. São sobretudo as damas...

- O que significa - interrompeu Sylvie, rindo - que o pobre marechal não terá a oportunidade de prová-lo muitas vezes, nem por muito tempo...

- Não será esse o caso porque como a nossa futura rainha é doida por esta bebida, terá consigo uma enorme provisão. Além disso, M. de Gramont está decidido a procurar uma quantidade tal que lhe permita abrir em Bayonne aquilo a que chama uma “chocolataria”. Dado que o cheiro se faz sentir muito frequentemente, espero que ele não vos incomode, senhora duquesa, caso contrário...

- Então abrirei as janelas e será tudo. Não incomodeis o marechal! Senhor Etcheveny, queria agora aproveitar para vos agradecer o vosso acolhimento e gostaria de mudar de roupa para me apresentar junto a Suas Majestades.

- Nada mais natural! Logo que estiverdes pronta, tereis um criado à vossa disposição para vos conduzir. O Rei está na casa Lobobiague e a Rainha-Mãe na casa Haraneder, que são, é claro, as mais lindas da cidade...

Uma hora depois, vestida com um fato espesso de tafetá branco com grandes ramagens pretas, desenho assaz audacioso, mas que lhe era permitido pela sua silhueta sem defeitos e com a cabeça coberta por grande chapéu de veludo preto enfeitado com plumas brancas, Sylvie preparava-se para deixar a casa Etcheveny numa dessas “cadeiras” de transporte, quando a sua atenção foi atraída pelas manobras de um mosqueteiro de belo aspecto, que ela julgou reconhecer. Este parecia estar realmente interessado pela residência do armador, mas a sua falta de jeito denunciava-o: com idas e vindas nervosas, paragens bruscas, olhares furtivos e suspiros, mostrava-se tão pouco discreto quanto possível. No entanto, esse senhor de Saint-Mars, que fora até Fontsomme entregar a ordem do Rei, já não era nenhum mancebo. Devia ter os seus trinta anos e Sylvie sentiu-se tentada a perguntar-lhe o que podia fazer por ele, mas receou ser indiscreta e prosseguiu o seu caminho.

Um pouco mais tarde entrava na bela sala de estar, toda inundada de Sol, onde a Rainha Ana mantinha a sua corte, por ora reduzida a duas pessoas: à inevitável Mme. de Motteville, que era sua confidente e a sua mais querida companheira e à sua sobrinha Marie-Louise D’Orléans-Montpensier, aquela que era chamada a Grande Mademoiselle desde que, durante a Revolta, tivera a estranha ideia de voltar os canhões da Bastilha na direção das tropas reais que vinham reapossar-se da cidade. Tinha conservado uma espécie de auréola de guerreira, não abandonando nunca o seu vestido de caça que, não fosse a saia, se assemelhava de resto ao de um homem, conferindo-lhe aquele aspecto de alguém que está sempre pronto a saltar para um cavalo e a escapulir-se. O que não a impedia de trazer uma data de jóias de sonho por cima...

Fisicamente, era uma rapariga alta de trinta e três anos, que parecia irradiar saúde por todos os poros, de porte majestoso, mas cuja beleza era... mediana. Como era a mulher mais rica de toda a França - entre outros, faziam parte dos seus imensos bens: os principados de Dombes e de La Roche-sur-Yon, os ducados de Montpensier e de Châtellerault, o condado d’Eu, etc. - ela recebera grande quantidade de pedidos de casamento que, contudo, nunca tinham conhecido qualquer desfecho. Virtuosa como uma amazona, pretendia que o amor “não era digno de uma alma bem formada” e que, no que lhe dizia respeito, pretendia desposar um rei; mas, muito pouco dotada para ver através das brumas do futuro, deixara escapar a coroa inglesa ao recusar o jovem Carlos II, ainda no exílio. Na realidade, quem ela desejava era o próprio Luís XIV em pessoa, sem imaginar, nem sequer por um momento, que poderia não lhe agradar. Mazarin pusera termo às suas esperanças e, daí, a sua fúria, a sua assiduidade com os príncipes rebeldes... e o episódio dos canhões da Bastilha, que lhe tinha custado o exílio. Tendo sido perdoada três anos antes, nem por isso deixou de regressar ao seu castelo em Saint-Fargeau, depois de ter recusado o rei de Portugal porque, mesmo para ser uma rainha, ela recusava-se a unir a sua vida à de um ser incapacitado tanto física como mentalmente[10]. O casamento real vinha agora pôr termo a esse novo exílio e Mademoiselle retomava o seu querido lugar no seio da família.

Quando Sylvie entrou, ela estava a falar animadamente com a Rainha mas, ao ouvir que anunciavam a duquesa de Fontsomme, voltou-se para esta com um rosto pleno de afabilidade:

- Mme. de Fontsomme!... Ora aqui está uma surpresa! Dizia-se que estáveis definitivamente confinada às vossas terras na Picardia.

Como se se tratassem das duas mais velhas amigas do mundo, ela foi ao encontro de Sylvie de mãos estendidas, pelo que esta apenas pôde chegar a meio da sua reverência. Entretanto, Ana de Áustria encarregava-se da resposta:

- Querida sobrinha, não se resiste ao Rei. A duquesa foi nomeada dama de companhia junto à vossa prima, a Infanta. Vinde aqui, cara Sylvie, para que vos beije! Na verdade, temos sentido a vossa falta e eu aplaudi a decisão do meu filho. Mais de dez anos de luto, é demasiado!

- É preciso confessar - reatou Mademoiselle, que olhava de soslaio para o vestido de Sylvie - que, por vezes, o luto assenta favoravelmente a certas pessoas. Se é que ainda o carregais...?

- Que Vossa Alteza não tenha quaisquer dúvidas - respondeu Sylvie - Jurei nunca mais trazer vestidos coloridos...

- Como Diana de Poitiers, que era uma mulher de bom gosto! É verdade que fostes educada nos seus castelos. Pergunto-me se não seguirei o vosso exemplo.

Ela própria trajava a mais severa das indumentárias fúnebres, em memória de seu pai, falecido no passado dia 2 de Fevereiro, e como naquela altura fazia frio, não fora sem suspirar que Mademoiselle retirara as suas luxuosas roupas para passar a envergar coifas e véus de crepe. Tentava consolar-se, exibindo o maior número possível de pérolas.

- Vossa Alteza ainda é muito jovem para optar por essa via. Além disso - atalhou Sylvie que, mesmo tendo estado ausente, conhecia os hábitos daquela gente - isso poderia desagradar ao príncipe soberano que ela venha, um dia, a escolher.

Percebeu que graças àquelas palavras de simpatia, atraíra a si a cordialidade da princesa. Efetivamente, esta voltou-se vivamente para a Rainha-Mãe.

- Gostaria - disse - que Mme. de Fontsomme me acompanhasse amanhã a Fuenterrabia, onde tenciono assistir incognitamente ao casamento, por procuração, da Infanta. Estou curiosa por presenciar essa cerimônia.

- Incognitamente? Isso não faz sentido. Se não fordes reconhecida, não vos deixarão entrar na igreja...

- Seremos duas damas francesas que vêm prestar... essa discreta homenagem à sua nova soberana. Creio que é uma boa ideia.

- Até é excelente, mas Motteville acompanhar-vos-á. É como se fosse os meus olhos e ouvidos e, sobretudo, sabe contar melhor que ninguém aquilo que presenciou....

- Com todo o prazer. Assim, seremos três! [11]

A chegada de Mazarin interrompeu a conversa e o bailado das reverências recomeçou. O Cardeal entrou como se residisse no mesmo aposento que a Rainha sem se fazer anunciar e calçando pantufas. Contudo, aos olhos de Sylvie, que já não o via há pelo menos dois anos, esse detalhe justificava-se mais pelos estragos provocados pela enfermidade que pelo rumor persistente de um casamento secreto entre ele e a Rainha. Pela primeira vez na vida, a duquesa admirou a coragem daquele homem, torturado pela gravela e por cruéis crises de reumatismo que lhe deformavam o corpo e que, longe das comodidades do seu palácio, ousava enfrentar desde há meses os diplomatas espanhóis, para pôr definitivamente cobro à eterna guerra com a Espanha, selando a paz com a união dos dois jovens. Elegante como de costume, sempre bem cuidado e exalando suaves odores que tentava sobrepor aos da doença, era contudo possível detectar os estigmas, doravante irremissíveis, que transpareciam no seu rosto e no andar ligeiramente curvado. Só as mãos, de que muito se orgulhava, tinham guardado a sua beleza e alvura; quanto às suas boas maneiras continuavam fiéis a si próprias: da maneira como a acolheu, se Sylvie o conhecesse menos teria podido depreender que o seu regresso vinha pôr finalmente cobro a uma ausência que causara grande pena ao pobre do Cardeal.

- Um italiano será sempre um italiano - sussurrou-lhe Mademoiselle.

- Este, sobretudo, nunca há-de mudar...

Entretanto, o grande gabinete, tão calmo há momentos atrás, começava a encher-se. As princesas de Conde e de Conti chegavam, acompanhadas pelas damas que tinham assistido aos torneios náuticos. O som dos pífaros e dos tambores, juntamente com os “vivas” e os cantos, provocavam uma alegre cacofonia e anunciavam a chegada do Rei.

Este surgiu pouco depois, enquadrado pela porta, numa sinfonia de azul e ouro, que se destacava nitidamente da vaga multicolor dos seus gentis-homens. Sylvie pensou que a Infanta tinha muita sorte e que se ele não fosse Rei de França, haveria de ser notado como um jovem muito belo, apesar da sua baixa estatura. Mas era ele o dono do reino e isso lia-se em toda a sua pessoa, no brilho imperioso do olhar azul, na maneira como meneava a cabeça, na descontração soberana do gesto e da atitude. Luís XIV possuía a graça de um dançarino, sem o mínimo rasto de lamechice. E quão sedutor era o seu sorriso! Não existia mulher que não lhe fosse sensível...

O irmão, que caminhava um passo atrás, formava um contraste gritante com ele. Empoleirado em cima de enormes tacões, o jovem Monsieur era francamente pequeno, mas muito belo. Com espessos cabelos pretos encaracolados e de rosto fino e atento, parecia ter recuperado toda a herança italiana da família. Com isto tudo, fardado, perfumado, enfitado, arranjado a preceito e resplandecendo sob todos aqueles adornos, passava por ser “a mais bela criatura do reino”, se bem que fosse tão bravo quanto podia ser o irmão. Na realidade, Filipe era aquilo que Mazarin tinha desejado que fosse: um ser um pouco híbrido, demasiadamente dedicado aos ornamentos, à arte, às doçuras da vida, ao prazer e à beleza das suas decorações, para que pudesse um dia chegar a representar o equivalente ao perigo incessante que fora o falecido Gaston d’Orleans para com o rei Luís XIII. Parecia ter atingido plenamente o objetivo...

Luís XIV estava de ótima disposição. Os torneios tinham-no divertido afastando (mas por quanto tempo?) a melancolia amorosa que se apoderara dele depois de se ter separado de Marie Mancini. O acolhimento que dispensou a Sylvie ainda beneficiou desta feliz disposição. O seu olhar atento não tardou a reconhecê-la no meio das damas amontoadas em redor da mãe e foi diretamente ao seu encontro:

- Mas que alegria vê-la novamente, duquesa! E sempre tão encantadora!

Estendeu-lhe uma mão para ajudá-la a completar a reverência e, pegando na dela, tocou-lhe ao de leve com lábios enfeitados por um bigode fino, sob os olhares surpreendidos e já invejosos da sua corte:

- Senhor - respondeu Sylvie - o Rei é demasiado indulgente! Ser-me-á permitido agradecer-lhe por ter pensado em mim?

- Nada mais natural, senhora. Faço grande questão de rodear aquela que será minha esposa de damas de quem gosto e que aprecio muito particularmente e vós sois, creio eu, a minha mais antiga amiga. Péguilin, vinde aqui!

O nome fez estremecer Sylvie, que olhou de olhos bem abertos para aquele que povoava os sonhos das pequenas Nemours; à primeira vista perguntou a si mesma o que é que podiam ter visto nele: era um homem baixo, de um louro muito apagado, não era bonito, mas era bem constituído e tinha uma figura ao mesmo tempo insolente e espiritual. Aliás, não hesitou em queixar-se:

- Senhor! Chamo-me Puyguilhem! Será assim tão difícil de pronunciar?!

- Acho Péguilin menos bárbaro! Além disso tal fato não deverá arrastar-se por muito tempo. Apenas durará até que vosso pai, o conde de Lauzun, venha a falecer. Entretanto, desejo apresentar-vos à senhora duquesa de Fontsomme, que me é tão cara. Se obtiverdes a sua amizade, a estima que tenho por vós só poderá aumentar.

- Isso regozijar-me-ia imensamente, Senhor - respondeu o jovem, ao conceder a Sylvie a mais cortês e elegante das reverências - mas basta olhar para a senhora duquesa para arder de desejo em agradar-lhe...

Enquanto falava fixava-a frontalmente nos olhos, com um sorriso tão franco que ela sentiu que os seus receios se desvaneciam.

- Não vos queimeis, cavalheiro! Demasiado ardor não convém à amizade, que é a doçura da existência - respondeu, rindo. - Mas se depender só de mim, então seremos amigos...

Enquanto o Rei se afastava, trocaram ainda algumas amabilidades e, em seguida, o jovem capitão encaminhou-se, com uma pressa reveladora, ao encontro de uma mulher muito bela, que falava com Mme. de Conti. Esta afastou-se de imediato e o par ficou a sós.

- Quem é? - perguntou Sylvie a Mme. de Motteville, indicando o par com a ponta do leque. Quero dizer: quem é ela?

- É Catherine-Charlotte, a filha do marechal de Gramont. Ela e M. de Puyguilhem são primos e passaram a infância juntos[12].

- E amam-se?

- Parece-me evidente. Infelizmente Catherine é princesa do Mônaco desde há algumas semanas. Apesar do seu bom nome, o pobre Puyguilhem possui poucos bens para aspirar a obter a sua mão. Isso não o impede de aspirar ao resto da sua pessoa!

Ao recordar os rostos intumescidos das pequenas Nemours, Sylvie pensou que elas não tinham qualquer hipótese quando comparadas àquela mulher, e que a pobre mãe das miúdas ainda não tinha chegado ao fim das suas penas. Também é verdade que naquela idade um amor substitui logo outro e que as penas não duram eternamente. Pelo menos para a maioria das raparigas.

Cansada da viagem e pouco desejosa de passar a noite em divertimentos variados - haveria danças locais na praça, uma comédia dada pelo pessoal do hotel de Borgonha e, depois, um baile nos aposentos da Rainha - Sylvie obteve facilmente a autorização para ir descansar, tanto mais que era preciso levantar-se cedo para a expedição prevista a Fuenterrabia. Mas ao regressar à casa Etcheverry, foi com espanto que constatou que M. de Saint-Mars ainda não abandonara o local. Parecia até ter criado raízes pois, encostado de braços cruzados à varanda da casa em frente, tinha os olhos fixos numa certa janela como se, contando apenas com a força do olhar, tentasse obrigar alguém a sair.

Quando o transporte parou diante da porta, ele sobressaltou-se e esgueirou-se precipitadamente pela espécie de passagem estreita que passava entre dois edifícios.

- Aqui há história de coração - disse Mme. de Fontsomme para com os seus botões...

E, realmente, descobriu o mote da história quando, ao ser convidada para jantar pelo seu hospedeiro, viu que ele estava acompanhado por uma lindíssima rapariga, que devia ter à volta de dezessete anos, e que ele apresentou rapidamente como “a minha filha Maitena”, a qual saudou a locatária de seu pai com uma bela reverência. Puro produto de terra basca, Maitena - tez de marfim, cabelos cor de ébano e olhar incendiário - tinha tudo o que era preciso para fazer perder a cabeça mesmo ao mais nobre dos senhores, quanto mais a um modesto mosqueteiro!...

Depois do jantar, Sylvie falou do assunto a Perceval, que ainda não saíra da casa desde que tinham chegado.

- Oh, já me tinha apercebido! - disse. - Quando a vi compreendi logo mas esse desmiolado, que não se mexeu durante toda a tarde, porta-se como um imbecil. O nosso hospedeiro não tem a cara de alguém que deixe que façam galanteios à filha sem franzir o sobrolho...

- Contudo, quando veio a nossa casa, esse Saint-Mars parecia ser alguém para ser levado a sério!...

- Como se não soubésseis que o amor enlouquece os mais sábios... Acaso sabeis também que ele ainda ali está? - perguntou Raguenel que se tinha aproximado da janela aberta que dava para uma noite deliciosamente doce, azul e cheia de música. - Ah! Temos novidades! Vinde ver!

Um oficial de porte orgulhoso, figura fina e olhar brilhante, coberto por um chapéu de feltro cinzento com um penacho vermelho, acabara de saltar para o solo e admoestava o seu subalterno com uma pronúncia gascã, que os anos ao serviço do Rei não tinham conseguido atenuar, o que pouco importava a M. d’Artagnan, tenente dos mosqueteiros que muito se orgulhava dela e que oficiava como capitão; no entanto, o conteúdo do seu discurso foi perfeitamente inteligível para os dois observadores: tendo negligenciado a guarda do Rei como era seu dever, o pobre apaixonado recebeu ordem de integrar o acantonamento e aí cumprir a detenção de rigor, até novas diretivas. Com um suspiro capaz de despedaçar a alma e um olhar desesperado para a querida casa que tinha de abandonar, Saint-Mars pôs-se a caminho, arrastando os pés, mas sem provocar a mínima discussão. Isso só teria agravado o seu caso.

D’Artagnan preparava-se para saltar para a sela do seu cavalo a fim de escoltá-lo, quando chegou um outro cavaleiro. O mosqueteiro suspendeu o seu gesto para saudar o marechal de Gramont que, pelo seu lado, o chamou efusivamente.

- Então, meu amigo, entrastes na polícia ou estais aqui a desempenhar o papel do bom pastor?

- Escolhei a segunda hipótese, senhor marechal. Vim buscar uma ovelha que se perde frequentemente para estes lados.

- Se conhecêsseis a menina da casa, haveríeis de compreender melhor. Ela é linda de fazer pecar um santo.

- Os meus mosqueteiros não são santos e têm a honra de servir o Rei. São-lhes proibidas as tentações. Pelo menos quando estão de serviço de guarda...

- Ora, bem sabeis como é o amor nas nossas terras. E não contais vós próprio casar?

- Estou a pensar nisso porque quero ter filhos. É um assunto muito sério. Permiti agora que me despeça, senhor marechal...

- Não quereis fazer-me companhia durante um bocado? Acabo de chegar da ilha dos Faisões, onde tive de consertar um detalhe no pavilhão das Conferências e estou esgotado. Conto com um bom chocolate para recobrar forças... Vinde partilhá-lo comigo.

- Um ch...

A boa educação do oficial permitiu-lhe evitar uma careta, mas o seu sorriso, que se desfazia em desculpas, valia todo um poema. Despachou-se a apresentar as devidas desculpas, pois o Rei esperava-o, saudou, saltou para a sela do cavalo e espevitou-o com ambas as esporas. O marechal encolheu os ombros e entrou dentro de casa. Quando Sylvie se foi deitar, o aroma da misteriosa bebida reinava soberanamente por toda a casa.

- Acho este aroma muito agradável, mas acaba por ser um pouco enjoativo - confessou no dia seguinte a Mademoiselle e a Mme. de Motteville, enquanto se dirigiam para Fuenterrabia no coche da primeira.

- Tereis de vos habituar a cheirá-lo dia após dia - observou a princesa. - Parece que a nossa futura rainha é uma consumidora inveterada. O melhor seria que o provásseis: tem um ótimo sabor.

- Vossa Alteza já o provou?

- Já, graças ao marechal de Gramont! Ele oferece-o a todos quantos passem ao seu alcance. De qualquer modo não escapareis, pois partilhais a mesma casa.

- Não tenho outro remédio. Mas, agora penso: para quê este casamento por procuração, quando aqui está tudo a postos para a cerimônia definitiva?

- Porque uma Infanta de Espanha só pode deixar o reino de seus pais depois de estar casada. É a lei... Estamos a chegar.

Estendendo-se por uma colina de jardins floridos, rodeada por muralhas medievais, não faltava imponência e graça a Fuenterrabia. Subiram pela rua principal, por entre duas filas de casas com varandas e miradouros, no meio de uma densa multidão que, na praça principal, se dividia entre a igreja de Santa Maria e o velho palácio de Carlos V, onde a noiva devia estar alojada. Os ares da princesa cuja ilusória ideia em passar despercebida foi logo por água abaixo permitiram-lhes arranjar um bom lugar numa igreja com os alteres sobrecarregados de douraduras. Como se isso não bastasse, o aposentador da Corte, o pintor Diego Velasquez, decidira acrescentar algumas tapeçarias e grandes quadros representando cenas piedosas. Os odores a incenso eram tão fortes que Mme de Motteville espirrou por várias vezes, atraindo sobre si os olhares escandalizados de uma nobreza que não deixou de causar alguma surpresa a Sylvie, habituada que estava às cores alegres com que se vestia a corte francesa. Ali, quase todos trajavam de preto os homens com gibões de outra época[13] alguns apresentavam ainda a gargantilha do colarinho de pregas engomada e as mulheres com fatos pesados de mangas pendentes. Algumas pareciam trazer por baixo das saias uma espécie de grandes tonéis achatados dos dois lados a que se chamava gardifanta revelando poucas outras peças de roupa. Em compensação, exibiam todos enormes jóias em ouro com grandes pedras incrustadas esse ouro que enchia caravelas inteiras que o transportavam da América. Pelo seu lado, os espanhóis olhavam para as francesas com curiosidade, mas sem animosidade o luto carregado de Mademoiselle, o de Sylvie e o negro pudico que trazia a confidente da Rainha, jogavam a seu favor. De pé, no coro, don Luís de Haro, que negociava há meses com Mazarin, preparava-se para desempenhar o papel de Rei de França

Finalmente, levada pela mão esquerda do pai, apareceu a Infanta e todos os pescoços se estenderam.

Ao lado do rei Filipe IV todo em cinzento e prata, trazendo no chapéu um enorme diamante chamado “O Espelho de Portugal”, para além da maior pérola conhecida, “A Peregrina” Maria Teresa parecia singularmente apagada. O seu fato era feito de simples lã branca bordado em vários tons mate e os seus deslumbrantes cabelos louros estavam enrolados em trança de cada lado das orelhas, quase não se distinguindo sob uma espécie de boina branca que a tornava mais feia. No entanto, ela era encantadora, de tez esplendorosa, com uma linda boca redonda e magníficos olhos azuis, suaves e brilhantes. Infelizmente, era pequena e tinha uns dentes feios.

- Que pena ela não ser um pouco mais alta, - sussurrou Mme de Motteville. - Ainda assim creio que o Rei ficará contente.

- Terá de andar de saltos altos - respondeu Mademoiselle, no mesmo tom. - Além disso, o próprio rei não é assim tão alto quanto isso. Seria engraçado vê-lo a fazer-se rogado.

Logo a seguir deixaram de ver o que quer que fosse, depois do rei e da filha terem passado por baixo de uma espécie de cortina de veludo, apenas aberta do lado do altar em que oficiava o bispo de Pamplona.

Acabada a cerimônia, as três francesas retiraram-se para se dirigir para a ilha dos Faisões, onde juntar-se-iam àquela que doravante seria a Rainha-Mãe e que ia encontrar-se finalmente com o seu irmão, pela primeira vez ao fim de quarenta e cinco anos...

- Será que nos vão confiar a nossa nova soberana? - perguntou Sylvie que, enquanto substituta da açafata contava poder desenxabir a pobre pequena Rainha, para apresentá-la ao esposo com um aspecto mais lisonjeiro.

- Vê-se mesmo que não conheceis nada da etiqueta espanhola! - suspirou Mademoiselle. - Hoje é dia de reencontros familiares aos quais, de toda a Corte, só o meu primo é que não estará presente.

Efetivamente, na pequena ilha no meio de Bidassoa, quase inteiramente ocupada pelo pavilhão das Conferências, com duas galerias opostas que desembocavam numa grande sala, desenrolara-se um tapete vermelho cortado ao meio, de forma a marcar a fronteira entre os dois reinos. No interior, Velasquez não olhara mais uma vez a despesa e a sala assemelhava-se muito a uma exposição de pintura. As personagens das duas Cortes reuniram-se silenciosamente, cada uma de seu lado. Seguidamente, o rei de Espanha e a Rainha-Mãe foram até à ponta cortada do tapete e abraçaram-se friamente... e quando Ana de Áustria, levada pela emoção, quis realmente beijar o irmão, este endireitou vivamente a cabeça para trás. Depois cada um foi sentar-se na sua poltrona para entabular conversa, enquanto a Infanta se sentava sobre uma almofada onde quase desapareceu debaixo do seu gardifanta.

Entretanto, Luís XIV, que já há algum tempo galopava pela ilha do lado francês, sentia-se nervoso. Não aguentando mais, dirigiu-se até à porta da sala para perguntar se não podiam admitir “um estrangeiro”.

Depois de ter sorrido para o seu interlocutor, a Rainha-Mãe rogou imediatamente a Mazarin que autorizasse aquele estrangeiro a olhar para a assistência. Escoltado por don Luis de Haro, este abriu-lhe suficientemente a porta para que os jovens esposos se pudessem olhar, não sendo permitido a Luís ir para além da entrada. Filipe IV tossicou para aclarar a voz:

- Aqui está um belo genro - proferiu simplesmente. - Em breve teremos netos.

Mas como Ana sorria perguntando à Infanta o que ela pensava, ele apressou-se a acrescentar num tom arrogante:

- Ainda não é esta a altura!

O jovem Monsieur desatou a rir:

- Cara irmã, que tal achais esta porta? - perguntou à jovem que, apesar de estar toda corada, também se riu.

- A porta parece-me muito bela e bastante boa - respondeu.

Foi tudo por esse dia. Trocaram os cumprimentos gélidos da praxe e separaram-se, o rei de Espanha levando a filha consigo.

- Pergunto-me se ele se resolverá um dia a entregá-la a nós! - resmungou Mademoiselle.

- Depois de amanhã - respondeu Mme. de Motteville, que tomara conhecimento dos detalhes da cerimônia.

- Tudo isto é de um ridículo! O meu primo Beaufort bem tinha razão em não vir assistir ao casamento. Já detesta os espanhóis quanto baste: teria acabado por provocar algum escândalo.

- O que teria sido mais uma parvoíce a juntar à sua conta - interveio Mazarin, arreganhando os dentes: ouvira tudo. - Aliás tomei disposições para que ele não fosse convidado.

- E o Rei deu-vos ouvidos?

- Sem qualquer dificuldade. Vossa Alteza devia saber que ele não morre de amores por essa turbulenta personagem.

Enquanto Mademoiselle ripostava com a crueza de linguagem que lhe era conhecida, Sylvie afastou-se, dividida entre a indignação que lhe causara ouvir aquele Mazarin referir-se ao primo do Rei com tão insolente desprezo e o alívio que sentia ao saber que não se arriscaria a encontrá-lo em Saint-Jean-de-Luz ao virar de uma esquina. Sentia ainda necessidade de dispor de algum tempo antes de voltar a ter a coragem necessária para olhar aquele que jurara nunca mais rever. Já fora suficientemente inquietante aperceber-se que o seu coração se pusera a bater mais depressa quando a princesa pronunciara o nome dele...

Refletiu sobre isto tudo no seu regresso a casa do armador, onde foi encontrar matéria para lhe mudar o curso das ideias. Depois de ter deixado Mademoiselle no seu domicílio e entrado numa igreja para rezar, ia de volta, a pé, no meio da alegre agitação da rua, quando foi abordada por um homem que não reconheceu logo, por estar à civil.

- Rogo-vos que me perdoeis, senhora duquesa, por ousar abordar-vos com tal atrevimento, mas só vós podeis devolver-me a vida.

Com um sorriso divertido, ela mediu aqueles seis pés de desconforto ruborizado que tinha diante de si:

- Não vos pareceis nada com um moribundo, senhor de Saint-Mars. Até acho que tendes ótimo aspecto!

- Por favor, não troceis de mim! Já sou suficientemente infeliz assim!

- E arriscais-vos a sê-lo ainda mais caso vos vejam a calcorrear a cidade. Não devíeis estar devidamente detido ou será que vos libertaram?

- Não, não me libertaram e eu sei que corro grandes riscos, mas precisava absolutamente de vir até cá para encontrar alguém que se compadecesse de mim. Eu queria... queria que entregassem um bilhete à donzela que mora na vossa casa...

- Sou antes eu que moro em casa dela, aliás, em casa do pai, e prestar-lhe-ia certamente um muito mau serviço ao aceitar ser a vossa mensageira. Por que não vos endereçais a um criado? É muito raro que não se obtenha alguma condescendência com um pouco de ouro.

Os olhos cinzentos do mosqueteiro refletiram subitamente uma verdadeira dor:

- Senhora, sou um homem pobre e apenas disponho da minha solda. Se assim não fosse, não precisaria de ajuda: teria entrado atrevidamente na casa de Manech Etcheverry, pedindo-lhe a mão da filha mas, no estado atual das coisas, ele punha-me logo na rua mal eu pronunciasse a primeira palavra. Ora eu estou louco de amor por Maitena... e creio também que não lhe sou indiferente.

- Meu amigo, bem quero acreditar-vos - disse Sylvie, num tom mais brando - mas, nesse caso, devo perguntar-vos o que esperais dela, dado que vos é impossível pedi-la em casamento.

- Nada que infrinja o código da honra! Neste bilhete - acrescentou, tirando do lado avesso da luva um papelinho cuidadosamente dobrado - declaro-lhe todo o meu amor e suplico-lhe para não se comprometer com nenhum outro, e que espere que eu faça fortuna. Pois estou certo de que um dia serei muito rico...

- Isso pode demorar algum tempo. Estais seguro que ela saberá esperar?

- Isso pode acontecer depressa, pois tenho projetos. Quando se está ao serviço de um rei jovem e fogoso, basta um golpe de sorte! Oh, senhora, suplico-vos, aceitai entregar-lhe esta nota e abençoar-vos-ei toda a minha vida!

Parecia tão infeliz e também tão sincero, que Sylvie deixou um pouco de estar de pé atrás. Mas, mesmo assim, objetou:

- É assim tão urgente? Não podereis esperar por um encontro com ela... noutra ocasião?

- Nunca terei uma melhor. Além disso, é de fato urgente, pois o pai tem projetos para o seu casamento. E tenho de regressar à prisão no acantonamento, onde deverei permanecer até depois de amanhã, quando chegar o Rei...

- Pois bem! Entregai-me isso. Arranjarei uma maneira de o entregar sem me comprometer. Bastará fazê-lo deslizar por debaixo da porta do seu quarto quando eu tiver a certeza que ela se encontra lá dentro.

- Oh, senhora duquesa! Quanta gratidão mostrais!...

- Não é nada. Mas não regresseis aqui!

Ao entrar, Sylvie deparou com Perceval, que a esperava acompanhado pelo marechal de Gramont... e bebendo chocolate. O velho soldado-diplomata apesar de ter só cinquenta e seis anos aparentava muito mais, fazia questão de prestar as suas homenagens à viúva de um dos seus mais brilhantes pares do exército e, sobretudo, à enteada de um velho amigo, pois combatera muitas vezes ao lado do marechal-duque de Fontsomme, que lhe ensinara a dar os primeiros passos no exército.

- Senhora, quando o vosso filho estiver em idade de pegar nas armas, gostaria que mo confiásseis e que, entretanto, me concedêsseis o favor de me considerar como um dos vossos amigos. Gostaria que tivesse sido mais cedo, mas haveis escolhido viver afastada da Corte e eu próprio estive muitas vezes ausente, requisitado pelo exército ou pelo meu governo em Bayonne. Agora ausento-me menos do meu castelo em Bidache, que fica muito próximo e onde tanto gostaria de vos receber um destes dias.

Com o andar do tempo, Sylvie não tardou a descobrir que quando Gramont começava a falar nunca mais parava. Era decerto a proverbial verborréia meridional! Bearnense de cepa pura, era seco e grisalho, tinha um rosto grosseiro, de nariz proeminente, olhar vivo e trocista e bigode altivo e ereto, que conferia à sua fisionomia um ar de gato furioso. Aliás, tinha modos distintos e era boa pessoa, gostando de se mostrar generoso para com os amigos. Além disso, tinha muito orgulho nas suas origens, só descansando quando todos ficavam a saber que seu pai fora o último vice-rei de Navarra e que sua avó era, nem mais nem menos, a famosa Corisande d’Andois, que fora o primeiro grande amor de Henrique IV.

Nesse dia, no entanto, não fez nenhuma alusão ao assunto e não demorou a dar um tom galante ao seu discurso, deixando que Mme. de Fontsomme se apercebesse quanto ela lhe agradava, o que aborreceu ligeiramente Sylvie, mas divertiu imenso Perceval. Contudo, foi este que interrompeu a torrente de palavras ao perguntar à afilhada se ela não desejava provar também a “bebida dos deuses”. O que ela aceitou de bom grado.

O marechal apressou-se a servi-la, e então Sylvie teve direito a uma minuciosa descrição do modo de preparação da bebida, bem como à do momento mágico em que Gramont a provara pela primeira vez, momento que lhe “abrira as portas do paraíso”. Isso não lhe aconteceu a ela: admitiu que aquela espécie de puré líquido aromatizado com canela não era nada desagradável, mas era muito doce e sentiu-se ligeiramente enjoada. Deu o seu parecer, com uma franqueza que se justificava pelo receio de ficar assoberbada de chocolate cada vez que encontrasse o marechal-duque.

- Parece-me – criticou - que nos devemos fartar depressa!

- Nem pensar! Admito que o primeiro contato não seja muito concludente, mas é preciso insistir. De qualquer modo, cara duquesa, estais condenada a habituar-vos depressa: a vossa nova Rainha bebe-o durante todo o dia e vós fareis parte das suas damas...

- A partir do momento em que não seja obrigada a absorvê-lo, já só será meio mal.

Ao regressar ao quarto, apenas pensou na maneira como devia entregar a mensagem que o pobre Saint-Mars lhe confiara e que lamentava ter aceito. A jovem da casa era efetivamente de uma abordagem reservada, até um nada altiva, e Sylvie via-se mal a passar-lhe um bilhete sorrateiramente. E por que não com um sorriso cúmplice?... Sentia-se tão pouco à vontade que nem sequer ousou falar do assunto a Jeannette, que subia com um vestido que acabara de passar a ferro. Depois do jantar, declarou que se sentia cansada e deitou-se, autorizando Jeannette a que fosse dar um passeio na companhia da velha governanta da casa Etcheverry. Levantou-se logo a seguir, para ver se ouvia o ranger da porta da jovem. Quando teve a certeza que ela já estava no quarto, correu descalça até à porta dela, deslizou a carta por debaixo desta e voltou para trás no mesmo andamento, com o coração aos pulos, como se tivesse acabado de passar por um grande perigo. Regressada ao abrigo das paredes do seu próprio quarto, pôs-se a rir silenciosamente:

”Devo ter dado em velha maluquinha” pensou. ”Com a minha idade e metida nestas brincadeiras! Se Marie me visse...”

E acendeu uma vela, à espera de pegar num sono que não sentia chegar, instalando-se à mesa para escrever à filha uma longa carta.

Se contava ter posto um termo à história dos amores do mosqueteiro, enganava-se redondamente. Nessa manhã, tentada por um tempo ideal, enquanto Perceval partia para Bayonne com Gramont, ela decidiu caminhar um pouco à beira daquele oceano que lhe recordava tantas coisas. Ora, na altura em que saía, foi ligeiramente empurrada por Maitena que, de véu e com um missal na mão, ia de certeza à missa. A jovem pediu desculpas, afastando-se para lhe dar a vez, mas aproveitou para introduzir-lhe na mão um pequeno bilhete que Sylvie desdobrou, depois de ter saído. Continha apenas algumas palavras: “Senhora, por favor, rogo-vos para irdes ter comigo à capela dos Hospitalares...”

Sylvie, que já reparara que ao pé da maior igreja se situava a antiga comandadoria dos cavaleiros da ordem Hospitalar, agora convertida em hospício para acolher os peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela pelo litoral, renunciou ao passeio que projetara para seguir nessa direção, perguntando-se se aquele trajeto era uma boa escolha. Na realidade, o hospício estava repleto de gente, peregrinos ou não, que esperavam pelo casamento real, na esperança de receber avultadas esmolas. Quando entrou, a capela -, cintilava à luz das velas e nela ecoavam os murmúrios das preces. Maitena ajoelhara-se num lugar afastado, junto ao batistério. Foi ao seu encontro, colocando-se ombro a ombro e murmurando:

- Então? Que posso fazer por vós?

Maitena ergueu uns olhos belos e sombrios, inundados de lágrimas:

- Senhora duquesa, estou consciente da minha audácia e peço-vos mil vezes desculpas por ousar dirigir-me a vós desta maneira mas, ontem à noite, ao receber a carta, pensei que poderíeis talvez ajudar-nos outra vez. Haveis sido tão boa...

- Como sabeis que se trata de mim?

- Avistei-vos quando estáveis ocupada a falar com ele ao pé da igreja. Oh, senhora duquesa, por favor, dizei-lhe que não lhe posso conceder tudo o que me pede. Claro que estou disposta a esperar por ele. Caso seja preciso, até no convento de Hasparren para onde o meu pai ameaça enviar-me caso eu me recuse a desposar o primo que ele me destina mas ele terá de ser paciente. De qualquer modo não poderei encontrar-me com ele na tarde do casamento no local onde nos costumamos ver.

- Por que vos quer ele lá?

- Para que possamos selar a nossa fé pelo sangue. Pretende que, depois, terá coragem para enfrentar tudo, para desafiar todos os obstáculos que se interponham na conquista da sua felicidade, mas primeiro quer estar seguro de mim! Oh, eu bem desejaria lá ir, mas sei que não o poderei fazer, pois o meu pai vigia-me de muito perto.

Sylvie conhecia o velho costume medieval, segundo o qual dois seres ficam para sempre ligados um ao outro depois de terem trocado algumas gotas de sangue mas, naquela idade, já sabia sopesar as exuberâncias dos primeiros momentos de paixão...

- Isto é uma verdadeira loucura! - murmurou com um semi sorriso. - Caso o vosso amor seja forte e sincero, correr este risco nada vai mudar...

- Claro, mas é preciso dizer-lhe isso, a ele. Quereis tomar conta do recado?

- Ele continua detido até amanhã à noite, altura em que chega a Infanta e em que M. d’Artagnan precisará de todos os seus mosqueteiros. Não posso vê-lo antes disso.

- Sem dúvida, mas o encontro está marcado para depois de amanhã. Isso dá-vos tempo...

- É isso que julgais? Pois ficai sabendo que logo que a Infanta tiver chegado, não mais poderei abandonar a sua companhia.

Realmente, não se imaginava a ter de largar o serviço para se pôr à procura de um mosqueteiro qualquer para falar-lhe em privado, mas sentiu que Maitena estremecia, encostada ao seu braço, e compreendeu que ela estava a chorar. Ouviu-a murmurar:

- Senhora, suplico-vos, ajudai-me! Tentai, pelo menos, com que ele receba este bilhete. Pus ainda aqui um lenço que está manchado com o meu sangue. Ele terá de contentar-se com isso.

Aquela rapariga era comovente. Sylvie agarrou na mão que lhe era oferecida, pegando também no pequenino pacote que ela continha:

- Prometo-vos que descobrirei um meio! E quanto a vós, tratai de vos acalmardes. Bem precisais de calma, caso contais empenhar-vos num longo combate...

- Vou ficar ainda aqui, a rezar mais um pouco. Por nós, certamente, mas também por vós! Senhora duquesa, agradeço-vos de todo o coração...

Estava na altura de se separarem. Depois de ter feito um grande sinal de cruz, Sylvie levantou-se e dirigiu-se para a saída, não sem ter primeiro parado para dar uma esmola aos monges agostinianos encarregues do hospício. Caso não conseguisse encontrar Saint-Mars na noite seguinte, trataria de encarregar Perceval de procurá-lo. O que importava era que o pobre apaixonado pudesse receber a prova de amor antes da hora marcada para o encontro.

Chegou o momento tão ansiado, em que a Infanta foi entregue à França. Os dois reis tinham-se finalmente encontrado na véspera, para jurar amizade, fidelidade, e para assinarem o tratado que encerrava as portas, há muito abertas, da guerra. Nesse dia, no Pavilhão das Conferências, as Cortes parisiense e madrilena encontraram-se frente a frente pela última vez. A espanhola, austera, envolta nos seus veludos pretos, petrificada num desprezo mudo perante a francesa, resplandecente sob o colorido das plumas, dos bordados e dos diamantes. E, depois, entre elas, esmorecendo a alegria de uma paz enfim reencontrada, desenrolava-se o drama da separação, protagonizado por dois seres que sabem que se amam, mas que sabem que nunca mais se voltarão a ver. A Infanta estava desfeita em lágrimas e a aparente impassibilidade de seu pai desmoronava-se sob o peso da amargura.

Sylvie não assistiu a esta cena profundamente comovente, à qual Ana de Áustria[14] se esforçou por contribuir com os seus dotes de ternura compreensiva. Tal como as outras damas que iriam passar a fazer parte da casa de Maria Teresa, ela esperava, na residência da Rainha-Mãe, pelo momento em que devia ser apresentada. Na ausência da duquesa de Béthune, retida em Paris por um ataque de febre, ia assumir pela primeira vez o papel de açafata, que Marie de Hautefort tão bem desempenhara outrora e não se podia dizer que se sentisse muito à vontade. Na realidade, sentia o pânico das estreantes que entram em palco pela primeira vez. Acompanhada pela duquesa de Navailles[15], dama de honor, e por duas das suas “jovens”, Miles, de la Mothe-Houdancourt e du Fouilloux, tratou de tornar o mais acolhedor possível o quarto em que a Infanta passaria a sua primeira noite francesa e a sua última enquanto virgem. Um consolo: entre ela e a dama de honor o entendimento foi imediato. Suzanne de Baudéan, sua contemporânea pois tinha trinta e cinco anos, nove dos quais como esposa de Philippe de Navailles, de quem tivera um filho, era uma jovem enérgica e íntegra, amável quando lhe agradavam (o que nem sempre era o caso), e que se mostrava sempre afável nas questões de moral, sendo contudo muito rígida nesse capítulo. Seu esposo, coronel num regimento da marinha, primo chegado do duque de Gramont, encontrava-se frequentemente de serviço no mar, às ordens do duque de Vendôme, e ela julgava-se inatacável no plano da sua vida privada, observando, com olhar crítico, o relaxamento dos costumes dos seus contemporâneos. Era severa nas suas críticas e, nessa mesma manhã, reunira o batalhão das damas de honor para lhes fazer um pequeno discurso, nos termos dos quais as meninas ficaram a saber que ao estarem ao serviço de uma jovem princesa, tão virtuosa quanto bem comportada, para mais tendo sido educada à sombra do Escorial[16], caso viessem a faltar aos seus deveres e, pior ainda, caso atentassem ao código de honra, não deviam contar nem com piedade, nem com sinais de fraqueza da parte dela. Seriam imediatamente despedidas, sem qualquer consideração pela família ou pelas suas relações. O ar contrito que se lia naqueles rostos jovens ilustrava na perfeição o que pensavam daquele programa e Sylvie, divertida, mas com um pouco de pena, quando se encontrou a sós com a dama de honor não conseguiu impedir-se de perguntar-lhe se era certo e seguro que a superintendente da casa da Rainha estivesse efetivamente determinada a ratificar sempre as suas condenações:

- Ela não me causará grande transtorno. O que interessa a esta princesa Palatina é o título, e não o desempenho do cargo que obteve graças a Mazarin e após grandes esforços, pois o Rei não lhe perdoa lá muito bem o seu papel de agitadora durante a Revolta. Espantar-me-ia que ela conservasse o lugar por muito tempo. E, em vez de zelar por tudo, tal como lhe exigem as suas funções, que faz ela neste momento? Olha para tudo com ar embasbacado, estendida nas almofadas do gabinete da Rainha-Mãe, dizendo que tem demasiado calor! É verdade que se trata de uma grande dama! - acrescentou Mme. de Navailles com um sorriso feroz.

- E também é muito bela! - disse Sylvie com voz de sonho.

- Dizei antes que ainda o é! Concedo que ela foi sublime. Nem se contam as suas aventuras! A que teve com o arcebispo de Reims, desafiou as crônicas de outrora. Curioso modelo para damas de honor!

Ao cair da noite a cidade iluminou-se. Havia velas em todas as janelas, lanternas em todas as portas, braços empunhando centenas de tochas, e iam-se acendendo festivamente fogueiras ao saber que o cortejo se aproximava. Finalmente, por volta das dez horas da noite, o coche real surgiu, escoltado por toda a Corte a cavalo, com Monsieur cavalgando ao lado da portinhola da direita e Mademoiselle no lado da esquerda. No fundo da viatura, plena de “bordados dourados e prateados”, a Infanta mantinha-se sentada, muito direita, hirta como uma madona de catedral. As aclamações redobravam ao som das patas dos cavalos e ela respondia-lhes com um gesto tímido e com “um sorriso um pouco tremido” que contrastava lindamente com o indescritível entusiasmo que suscitava.

Como que movidas pelo mesmo impulso, as damas que iam fazer parte do seu grupo íntimo acorreram todas à janela agitando lenços, enquanto a carruagem se aproximava da casa da Rainha-Mãe, na qual Maria Teresa passaria a sua primeira noite em França. Por entre os mosqueteiros da escolta, Sylvie reconheceu Saint-Mars. Vislumbrou também Perceval, por entre a multidão, no papel de um mirone a quem tudo deslumbrava... Chegou por fim a altura das reverências quando, de mão dada com Ana de Áustria, a Infanta entrou, rodeada de profundo silêncio, no aposento que seria seu por tão pouco tempo. Perto dela era possível ver que chorara muito e que se esforçava também por manter boa compostura.

Ao ver aproximar-se aquela criança desolada, empertigada no meio de um enorme vestido de cetim da cor de carne e bordado a ouro, que ela mais parecia carregar que usufruir, Sylvie sentiu um assomo de pena e de simpatia. Naquele rosto jovem estavam estampadas a doçura e, também, a resignação.

A Rainha-Mãe procedia às apresentações; primeiro foi a vez da superintendente, depois a da primeira dama de honra e em seguida Sylvie ouviu os lábios reais pronunciarem o seu nome:

- Filha, a senhora duquesa de Fontsomme agradar-te-á! - disse-lhe em espanhol. - Foi ela que ensinou o Rei a tocar guitarra, coisa que ele faz muito bem. Está ao serviço da nossa coroa desde os quinze anos. É íntegra e segura. Além disso, fala lindamente a nossa língua...

Um raio de luz atravessou aqueles olhos azuis, tão melancólicos, e, depois de Sylvie lhe ter desejado as boas-vindas protocolares no mais puro idioma castelão, a jovem disse que se sentia muito feliz à ideia das suas futuras relações. Enquanto ela era apresentada às outras damas, Sylvie descobriu o impensável: aquela filha de uma princesa francesa não conhecia a língua materna! Ora, à exceção da Rainha-Mãe, de Mme. de Motteville, de si mesma e, felizmente, do próprio Rei, não era de uso praticar a língua do Cid na Corte.

- Ora bem! - pensou, sem se sentir minimamente desencorajada tentaremos que ela a aprenda!

Entretanto, Maria Teresa era levada para o seu quarto, do qual já tinham tomado posse a sua camareira espanhola, a negra e ressequida Molina, a filha desta, e uma horrível anã, vestida de modo extravagante, que se chamava Chica, e que mexia em tudo quanto via ao alcance das mãos. Foi com dificuldade que se obteve alguma calmaria e enquanto Molina se encarregava de recepcionar os cofres vindos de Espanha, as damas francesas puderam finalmente desembaraçar a jovem senhora do incômodo gardifanta e da esmagadora cabeleira emplumada. Por baixo disso tudo, tiveram então a surpresa de descobrir o corpo de uma linda rapariga, plena de graciosidade, deslumbrantemente bela e ostentando os mais lindos cabelos naturalmente encaracolados que pudessem existir.

- O nosso rei tem muita sorte, Senhora! - disse suavemente Sylvie, o que lhe valeu um belo sorriso enquanto, no aposento da mãe, o dito Rei era devidamente admoestado, pois não tivera ele a inconveniência de manifestar o desejo de consumar o casamento naquela mesma noite? Recordaram-lhe severamente o código de boas maneiras e, depois todos, isto é, as duas rainhas, o Rei e Monsieur reuniram-se para um jantar em grupo. Maria Teresa apareceu com um trajo caseiro em cambraia de linho profusamente orlado com tiras e rendas e de cabelos soltos, espetáculo que teve o condão de trazer um sorriso aos lábios de seu esposo.

Deixando a família real a conviver na intimidade, Sylvie regressou ao quarto com Mme. de Navailles, para arrumar as coisas e principiar os preparativos para a hora do recolher. Foram dar com Molina completamente fora de si: faltava uma caixinha de jóias ao inventário.

- Tendes a certeza? - perguntou Sylvie.

- Absolutamente! Quando carregamos a carroça que está lá em baixo, eu própria pus nela três cofrezinhos de jóias... E só subiram dois!

- Vão seguramente trazer o terceiro...

- Não. Já fui inspecionar. A carruagem está vazia.

- Quem a descarregou?

- Os grandes cofres foram os criados que os transportaram e as caixinhas foram os soldados.

- Isto diz respeito à senhora superintendente - disse Mme. de Navailles. - Mas como ela foi jantar com o Cardeal, eu própria vou ocupar-me do assunto e mandar chamar os criados. Mme. de Fontsomme, não vos importais de dar uma olhadela lá em baixo?

- Com certeza.

Frente à casa Haraneder, reinava uma certa desordem em redor da carruagem vazia que os dois gentis-homens da Rainha-Mãe vasculhavam a fundo, sob o olhar impávido do cocheiro. A multidão, que fora atraída pelo descarregamento das bagagens, ia agora embora. Entretanto, dois mosqueteiros discutiam acaloradamente a alguns passos da porta. Um deles era M. d’Artagnan. Sylvie aproximou-se:

- É verdade que sois o capitão d’Artagnan?

- Apenas tenente, minha senhora - respondeu, com uma saudação...

- Podeis explicar-me o que se passa? Sou a duquesa de Fontsomme, substituta da açafata da nova rainha.

- Senhora duquesa, temo que seja um assunto de natureza grave. Para apresentar as devidas honras à Infanta, o Rei decidiu que esta noite os meus mosqueteiros ficassem de guarda às portas de sua casa. Quando as carruagens chegaram, havia dois de serviço: M. de Laissac, aqui presente, e M. de Saint-Mars.

- Monsieur de S...

- Conhecei-lo?

- Muito mal, mas peço-vos para prosseguirdes.

Então d’Artagnan explicou que na altura em que as carruagens tinham parado a escolta espanhola não fora para além das portas da cidade os criados tinham-se encarregue das pesadas malas de cabedal, mas o intendente da Rainha-Mãe pedira aos guardas para se encarregarem dos pequenos cofres selados com as armas de Espanha. Laissac e Saint-Mars tinham-nos levado, um a seguir ao outro, ficando um à espera, até que o outro tivesse descido. Ora, ao descer pela segunda vez, M. de Laissac não vira nem rasto do último cofrezinho nem de Saint-Mars...

- Não julgais que ele possa ter...?...Oh, mas trata-se de um soldado e de um gentil-homem... - protestou Sylvie.

- Bem sei e não julgueis que esta perspectiva me encanta...

- Não há qualquer razão para que ele tenha desaparecido com o cofre! Se M. de Saint-Mars abandonou o seu posto foi porque houve de certeza um motivo... grave! Uma razão importante. Conheceis tão bem quanto eu o tipo de... atração que exerce nele a casa Etcheverry, onde estou alojada.

- Com certeza. Mas, infelizmente, há alguém que o viu!

- Pegar no cofre e escapulir-se?

- Exato.

- E quem profere tal afirmação?

- O indivíduo que vedes acolá, guardado por dois dos meus homens. É um dos peregrinos do hospício e viu Saint-Mars a fugir na direção do mar...

Estarrecida, Sylvie tentava alinhar as ideias. O encontro com Maitena fora marcado para o dia seguinte e Saint-Mars não tinha qualquer motivo para... a menos que?

Julgou ouvir a voz tão triste do jovem murmurando: “sou pobre... Se não fosse o caso, teria entrado atrevidamente na casa de Etcheverry, pedindo-lhe a mão da filha...” e então sentiu que o seu coração lhe pesava. Será que ele não conseguira resistir à tentação da fortuna que representavam as jóias de uma infanta? Afinal de contas, não o conhecia e não podia saber até onde a paixão poderia levá-lo. Contudo, algo lhe murmurava que era impossível: Saint-Mars tinha um olhar demasiado franco e direto! Além disso, Maitena, orgulhosa como era, nunca aceitaria ficar a dever a sua felicidade a um miserável roubo... sobretudo, executado de modo tão estúpido! É certo que já escurecera, mas daí a fugir com um cofre debaixo do braço, imaginando passar despercebido, isso era ridículo! Apercebeu-se de que estava a pensar em voz alta, pois ouviu d’Artagnan opinar:

- Também partilho a vossa opinião e penso conhecer os homens, mas nunca se sabe o que pode passar pela cabeça de um jovem apaixonado. Se não houvesse esta testemunha...

- Posso falar-lhe?

- Certamente. Vinde comigo!

O peregrino, que exibia com ostentação um grande chapéu amarrotado com a tradicional insígnia de São Tiago na aba revirada, não agradou a Sylvie. Apesar do seu traje piedoso, da cara de devoto e das suas falinhas mansas, emanava dele algo de perturbante. Com uma espécie de complacência, repetiu a sua acusação: vira o mosqueteiro descendo da carruagem com um cofre e depois, em vez de entrar de novo pela casa dentro, olhara em redor para ver se ninguém o via, desatando em seguida a correr na direção da praia aproveitando a obscuridade que esta lhe proporcionava.

- E não deu por vós? - perguntou Sylvie.

- Não, eu estava à sombra daquela pequena capela que vedes além e, na altura, nem quis acreditar no que vira. Mas... tive de me render à evidência. Apesar do seu belo uniforme, esse homem não passa de um ladrão!...

- Isto chega-vos, capitão, quero dizer, tenente?

Sylvie afastara-se um pouco para fazer a pergunta ao mosqueteiro. Este encolheu os ombros:

- Não me satisfaz verdadeiramente, senhora duquesa! Mas onde está o meio para afirmar o contrário? Tanto mais que não descortino por que razão um peregrino desconhecido nos havia de mentir. E, na verdade, não conheço bem Saint-Mars.

- Ides libertar o peregrino?

- Como poderia agir de outra maneira? Um viajante de Deus! A Infanta ficaria horrorizada se incomodássemos essa gente...

Pegando no braço do oficial, levou-o para um pouco mais longe.

- Não poderíeis ao menos...

Ela estancou subitamente. Um pouco adiante, Perceval de Raguenel e o duque de Gramont atravessavam tranquilamente a praça onde os dançarinos espanhóis se preparavam para um espetáculo. Abandonando imediatamente o mosqueteiro sem qualquer justificação, agarrou nas saias com ambas as mãos e desatou a correr ao encontro deles:

- Senhor marechal, aceitai todas as minhas desculpas, mas tenho de falar urgentemente com o vosso companheiro. Permiti que o leve comigo!

A expressão de alegre surpresa desapareceu do nobre rosto:

- Esperava que viésseis ter conosco - suspirou. - Vamos jantar a casa de Mademoiselle.

- Acreditai-me que estou desolada, mas trata-se de um assunto da maior importância.

Perceval conhecia sobejamente Sylvie para não acorrer em seu auxílio. Depois de algumas desculpas de cortesia, deixou-se levar. Com poucas palavras, ela pô-lo ao corrente do assunto e, em seguida, designando o peregrino que os guardas se prontificavam a libertar, exclamou:

- É preciso segui-lo! Algo me diz que ele está a mentir.

- Contai comigo!

Perceval seguiu atrás do homem, enquanto Sylvie regressava precipitadamente a casa da Rainha-Mãe. Tinha absolutamente de lá estar por altura dos preparativos para a noite e chegou mesmo a tempo de ver Luís XIV beijar cerimoniosamente a mão de Maria Teresa soltando, mesmo assim, um suspiro de tristeza! antes de regressar ao seu próprio quarto. Durante a sua ausência, Mme. de Navailles conseguira acalmar Molina por intermédio da Motteville: não se devia perturbar a primeira noite passada em França por causa de um vil caso de roubo. Mas mal a rapariga pousou a cabeça no travesseiro abreviou as reverências, dirigindo-se, tão depressa quanto possível, para a casa Etcheverry, sem se deixar distrair pela festa colorida que se celebrava na praça: tinha de ver Maitena a todo o custo!

Apesar da hora avançada, estava tudo iluminado e infestado pelo aroma a chocolate, que devia ter sido preparado com vista ao regresso do marechal. Quando entrou na grande sala, reinava uma enorme desordem: cadeiras voltadas de pernas para o ar e frascos quebrados, aos quais, aliás, Manech Etcheverry parecia não ligar muita importância. Sentado numa cadeira frente à chaminé, com os cotovelos apoiados nos joelhos e as costas curvadas, fumava o cachimbo com uma espécie de raiva, enquanto contemplava as chamas... Nem sequer se levantou quando Sylvie entrou, prova cabal que devia estar muito mal-disposto.

- Ainda não fostes dormir? - perguntou Sylvie, com muita brandura.

- Como dormir numa cidade enlouquecida? A Infanta terá muita sorte se conseguir fechar os olhos.

- Mesmo assim é preciso tentar. Eu... queria falar com a vossa filha. Talvez ela ainda esteja acordada, não?

- Ela não está cá!

O coração de Sylvie deixou de bater um momento e ela pôs-se logo a pensar no pior: que os dois apaixonados se tinham escapulido com o cofre de jóias. Contudo, esforçou-se por manter um tom de voz calmo para perguntar:

- Sem dúvida que foi juntar-se à festa, não? Deve ter ido ver os dançarinos... nada mais natural...

Mas subitamente Etcheverry levantou-se e fez-lhe frente. Teve a sensação que ele fervia de cólera e que se esforçava tremendamente para não mandá-la dar uma volta, a ela e às suas perguntas.

- Não. Esta noite foi enviada para um convento no interior...

A julgar pelo estado que aqui reina, foi decerto uma partida movimentada...

- Poderei saber, senhora duquesa, por que motivo vos interessais tanto por minha filha?

- Porque simpatizei com ela, por ser tão altiva quanto bela mas, se assim o desejardes, coloquemos as cartas na mesa: ela foi realmente para um convento, ou...?

- Quereis saber se ela fugiu com esse louco que há pouco me caiu em cima, reclamando-a aos gritos e acusando-me de a ter levado para um retiro escondido a fim de casá-la imediatamente com o seu primo? Isto é pura e simplesmente delirante!

- Quando se está apaixonado é muito fácil começar a delirar. Então M. de Saint-Mars esteve aqui?

- Sim estava desvairado. Berrava que o tinham prevenido tarde demais e vasculhou por todo o lado, até nos vossos aposentos e nos do senhor marechal, onde chegou quase a atear fogo ao deitar abaixo o fogão no qual o criado espanhol estava a preparar essa bebida infernal. Finalmente desatou a correr não sei para onde... O Céu concedeu-me uma boa inspiração ao aconselhar-me a colocar a minha filha, logo a partir desta noite, ao abrigo desse louco furioso... Que o diabo o leve!

- Há muito que se foi embora?

- Alguns minutos antes da vossa chegada.

Portanto eu tinha razão exclamou Sylvie triunfalmente. Ele caiu numa armadilha, pois não podia estar ocupado a partir tudo aqui e, ao mesmo tempo, a fugir com as jóias da Infanta. O que é preciso saber agora é o seu paradeiro e tenho uma ideia onde poderei encontrá-lo.

- Se me explicásseis...?

- É uma longa história, mas podeis acompanhar-me se assim o desejardes... ou antes, esperai um pouco - acrescentou, ao olhar para os seus sapatinhos de cetim que já pediam misericórdia. - O tempo de mudar de calçado.

Jeannette encarregou-se depressa da tarefa. Queria acompanhar a sua senhora, mas esta opôs-se achando que era preferível que ela permanecesse ali. Momentos mais tarde, caminhava ao lado do armador na direção do hospício. Pelo caminho fez um relato abreviado das ocorrências e colocou uma questão: Saint-Mars, na altura em que provocou todo aquele escândalo, trazia ou não a sua capa de mosqueteiro? A resposta foi negativa e como o seu companheiro lhe fazia observar, com azedume, que não via qualquer motivo para ajudar um homem que detestava, ela encolheu os ombros:

- Tendes os melhores motivos: em primeiro lugar, um homem do vosso nível deve respeitar o direito de qualquer um a que lhe seja feita justiça. Em segundo lugar, é só do vosso interesse que esse pobre rapaz, cujo único erro é o de amar alguém mais rico do que ele, possa prosseguir com a sua carreira. Dentro de alguns dias ela afastá-lo-á de vós e certamente que não voltareis a vê-lo. Há muitos soldados a morrer ao serviço do Rei.

- Também os nossos marinheiros. A pesca à baleia é a profissão mais perigosa do mundo e eu quero um genro que a conheça!

Tal como Sylvie esperava, Perceval ainda lá estava. Quando o chamou a meia voz, ele saiu da sombra da torre quadrada.

- Ainda bem que chegastes - suspirou. - Estava a perguntar-me o que devia fazer...

- Passou-se alguma coisa?

- E de que maneira! Tal como supusemos, o vosso peregrino regressou tranquilamente ao seu pouso, mas havia algo que me impelia a esperar mais um pouco e aparentemente tinha razão: quando um rei se vai casar há sempre muita agitação no meio dos monges agostinianos. Há aproximadamente um quarto de hora chegaram três homens que sustinham um quarto. Ou antes, que o transportavam. Entraram pelo hospício dentro, enfrentando mesmo assim algumas dificuldades: o irmão que faz de porteiro começava a achar que esta noite havia muitos peregrinos no exterior. Responderam-lhe que tinham conseguido encontrar um irmão. Infelizmente, deram com ele num riacho, onde estava a digerir o vinho que emborcara... mas eu juraria que o pretenso bêbado é Saint-Mars.

- Bem. Nesse caso, caro padrinho, prossegui ainda um momento com a vossa vigilância, para o caso em que...

- Que contais fazer?

- Vou buscar M. d’Artagnan! Ele terá de pedir uma autorização ao Rei para poder efetuar uma busca ao hospício.

- Numa terra de asilo? O Rei nunca aceitará!

- Se esse asilo é também o das jóias de sua mulher, espantar-me-ia muito que ele não aceitasse. De qualquer modo vamos ver o que diz M. d’Artagnan. Não foi difícil encontrá-lo. Continuava ao pé da casa da Rainha, como se não conseguisse desgrudar-se dali. Escutou Sylvíe e o seu companheiro sem nada dizer, com um ar visivelmente preocupado. Depois chamou quatro dos seus mosqueteiros. Senhores, vinde comigo! Vamos ao hospício.

- Não ides solicitar um mandato ao Rei? - inquiriu Sylvie.!

O tenente olhou-a de frente, com um sorriso feroz:

- Quando se trata dos meus homens, até iria encontrar-me em pessoa com o diabo, sem pedir autorização a quem quer que fosse! Eu próprio darei satisfações a Sua Majestade... caso seja necessário!

- Arriscais a vossa carreira!

- Talvez, mas se tendes razão e se não agirmos depressa, arriscamo-nos a que esses pretensos peregrinos, que devem ser autênticos ladrões, consigam escapar para Espanha ao nascer do dia! Tendes algo mais a objetar?

- Não, meu Deus! Apenas quero salientar um ponto: se tiverdes de responder perante o Rei, estarei a vosso lado!

- Por que não? Já se assistiu a coisas mais estranhas...

Pouco depois, o tinir do sino do convento dos Hospitalares chamava novamente o porteiro ao postigo, onde “em nome de Sua Majestade” lhe reclamaram uma entrevista urgente com o Irmão Superior. Não se fez muito rogado para abrir a porta mas, mesmo assim, teve um estremecimento ao ver entrar, atrás do oficial, uma dama e quatro mosqueteiros bem armados. O armador, perturbado com a sua própria piedade, preferira bater em retirada.

Foi menos fácil convencer o Superior a deixar que os soldados do Rei vasculhassem a sua casa.

- Eu sei que entre aqueles que erram em nome de Deus, nem todos são santos, mas só pelo fato de terem escolhido o penoso caminho que conduz a São Tiago, são merecedores de paz e proteção. Recuso. Ou então trazei-me uma ordem assinada por Monsenhor, o bispo...

- Não tenho tempo. E, aliás, não tenho qualquer intenção de molestar seja quem for. Pautamo-nos pela delicadeza... suponho que ninguém dorme na capela...?

- Efetivamente, mas durante os ofícios os peregrinos são convidados a juntar-se a nós... e não falta muito para começar o das matinas..

- Após o que nascerá o dia e os nossos homens poderão escapar com o seu saque. Pensai bem, padre: trata-se das jóias da Infanta que hoje se tornará rainha! Isto é quase um crime de lesa-majestade. Se me concederdes o que vos peço, despiremos as nossas casacas e chapéus e separar-nos-emos. Todos nós conhecemos o nosso companheiro, mesmo Mme. de Fontsomme, que representa a Infanta. Despachemo-nos, Vossa Reverência! Temos ou não a vossa permissão?

- Quem vos disse que o vosso homem não será cúmplice dos pretensos ladrões? Foi ele quem foi visto a levar o cofre...

- Não. Foi um dos outros homens, que vestira o seu uniforme, depois de o ter suficientemente aterrorizado para que ele aceitasse tão estranha troca... Então, podemos ou não entrar? Se recusais, pedirei a Sua Majestade que mande fechar o hospício!

- Pois bem... agi como entenderdes, mas se nada vierdes a encontrar...

- Sou homem para responder por todos os meus atos!

E encontraram. Encontraram mesmo tudo: Saint-Mars, que continuava sob o efeito da droga que o tinham forçado a ingurgitar à força, os quatro ladrões que dormiam descansadamente à espera da hora em que se poderiam misturar aos outros para se lançarem a caminho, e as jóias da Infanta repartidas pelos “cestinhos” destes peregrinos de um gênero bem particular. E até a casaca do mosqueteiro! Os meliantes procuraram defender-se atirando as culpas para cima de Saint-Mars. Fora ele quem se encarregara de tudo, e eles só ali estavam para transportarem as jóias para Espanha, onde as venderiam sem qualquer problema a um judeu de Burgos.

- Foi essa sem dúvida a razão pela qual o drogastes quando ele saía da casa Etcheverry? - insinuou d’Artagnan.

O gordo que desempenhara o papel de denunciador protestou:

- A casa... Etcheverry? Não tínhamos nada a ver com ela. Esperáva-mo-lo na praia. Ele veio diretamente ao nosso encontro...

- Depois de lhe terem tirado a casaca? Está-se mesmo a ver! Com que então ele contava desertar, partir convosco, abandonar tudo, a honra e o resto...

- Ele queria desposar uma rapariga rica. Precisava de dinheiro. Estava tudo combinado com ela, que devia mais tarde vir ter com ele. Não era preciso ir buscá-la.

- No entanto ele foi até lá - afirmou Sylvie. - Manech Etcheverry poderá testemunhar que ele lhe pôs a casa em pantanas...

O outro armou-se em esperto.

- Talvez ele também estivesse de conluio. De qualquer modo, nós não nos mexemos da praia...

- E ele não foi até à casa Etcheverry?

- Não... não foi! Não tinha tempo e arriscava-se a ser apanhado.

- E isto, o que é?

Com um dedo, Sylvie apontava para a enorme mancha acastanhada e gordurenta que se estendia pelo gilete de camurça do mosqueteiro.

- Isto - respondeu ela própria - é uma marca de chocolate: aquele que ele entornou no aposento do marechal de Gramont. Etcheverry testemunhará...

- Não é preciso dar-vos a tanto trabalho, senhora duquesa. Este chocolate constitui uma excelente prova, bem como o sono ferrado do infeliz, que teria certamente sido abandonado à sua vergonha e à justiça do Rei antes dos outros escaparem para Espanha. De qualquer modo conheceremos os detalhes de toda esta operação quando o carrasco se entretiver a arrancar a verdade a estes senhores... Que sejam levados e que levem também este imbecil de volta ao acantonamento...

- Ele será gravemente castigado?

- Ele abandonou o seu posto, não? É um posto de confiança. Além disso, emprestou a sua casaca para que não dessem logo pela sua ausência. Irá para a prisão militar mas, depois, tratarei de reintegrá-lo nos mosqueteiros. É um bom soldado, muito corajoso. Conto guardá-lo... mas ele ficará a dever-vos um grande favor!

Foi o que o pobre Saint-Mars escreveu a Sylvie no dia seguinte:

“Senhora duquesa, sei o que haveis feito por mim. Sei que me haveis salvo a vida e a honra. Doravante, elas pertencem-vos e podereis vir reclamá-las quando o desejardes...”

- Pobre rapaz! - murmurou Sylvie ao aproximar a carta da chama de uma vela. Que poderia fazer com a sua vida e, sobretudo, com a sua honra? Deixemo-lo esquecer-se!

Mas Perceval apanhou o papel que começava a arder e apagou-o com o tacão da bota:

- Este tipo de carta não se destrói, Sylvie! Até se guarda preciosamente. Não sabeis as partidas que vos podem pregar tanto o vosso destino como o dele...

- Pois bem, guardai-la, se isso vos apraz! - suspirou. - Está na hora de ir vestir a Infanta para a missa do casamento...

Algumas horas mais tarde, Maria Teresa, encantadora na sua primeira toilette francesa - um vestido de cetim branco repleto de flores-de-lis, tal como o seu enorme manto de veludo púrpura, que levava preso aos ombros - encaminhava-se para a igreja. As jovens irmãs de Mademoiselle seguravam o meio do manto enquanto a princesa de Carignan pegava na cauda, mas fora preciso nem mais nem menos que duas damas e um cabeleireiro para conseguir que a coroa real ficasse presa ao cimo da deslumbrante e profusa cabeleira loura, acabada de lavar.

Sob o clamor dos “vivas” e do carrilhão frenético dos sinos, foram todos a pé para a igreja, debaixo de um calor tropical e com uma chusma de sombrinhas que procuravam proteger o belo cortejo dos ardentes raios solares. O príncipe de Conde abria a marcha, seguido por Mazarin, encafuado numa quantidade impressionante de tecido púrpura de reflexos ondulantes, com todos os dedos cobertos de diamantes. Depois vinha o Rei, vestido com um tecido dourado coberto por fina renda preta, sem uma única jóia, precedendo a noiva, que era conduzida por Monsieur do lado direito e, pelo outro lado, por M. de Bernaville, seu cavaleiro de honra. Por fim era a vez da Rainha-Mãe, radiosa de felicidade, e de Mademoiselle, que cobrira os seus véus pretos com todas as pérolas que possuía. Traziam todas vestidos com caudas que, sem terem o comprimento do da nova rainha, dificultaram mesmo assim os movimentos no interior da bela igreja, dotada de um suntuoso retábulo dourado e esculpido, onde os homens da região entoaram os mais belos cantos do mundo, dispostos nos três andares das galerias que se erguiam até à abóbada com a forma semicircular de um navio.

Sylvie, que se recordava do que fora a vida de casal de Luís XIII e de Ana de Áustria, rezou de todo o coração para que aquele novo casal, que parecia condizer tão bem, pudesse encontrar a felicidade que raramente é a sina das personagens reais, mas o sorriso de Luís quando olhava para a sua jovem mulher e, sobretudo, o olhar desta, brilhando já com um amor que nunca se apagaria, auguravam as melhores esperanças.

Ana de Áustria também não se esquecera. Agarrava-se com todas as suas forças ao que esperava vir a ser uma fonte de felicidade e, quando a noite chegou, esmerou-se para que ao menos o pudor de Maria Teresa não fosse submetido a rude prova: não hesitou em infringir as tradições, fechando ela própria os cortinados do leito em redor do jovem casal mal este acabara de se deitar e expulsando toda aquela gente do quarto.

- Pensais que poderão ser felizes? - perguntou Sylvie a Mme. de Navailles, enquanto deixavam a casa do Rei.

- Duvido um pouco. Corre o rumor de que, ao regressar a Paris, a pretexto de ter de visitar o porto de La Rochelle, o Rei tenciona efetuar um desvio, sozinho, para passar por Brouage, onde Mazarin exilou a sua sobrinha Marie. Por outro lado, não me escapou a maneira como ele olhou para uma das damas de honor. Teremos de dar conta do recado...

- Ou deveremos atuar de modo a que a Rainha continue a agradar ao seu esposo?

- Algo me diz que isso será mais difícil...

O vento marítimo refrescava a noite estrelada. Aproveitando o fato, as duas mulheres prolongaram o passeio.

 

                                 UMA PRENDA PARA A RAINHA

Foi em Fontainebleau e, claro, na altura em que menos o esperava, que Sylvie reviu François.

Antes de apresentar a Rainha à cidade de Paris e de acompanhá-la na sua “alegre entrada festiva”, Luís XIV decidiu passar alguns dias num palácio que estimava particularmente. Havia mais de um ano que a Corte se deslocara da capital para a Provence e para o País Basco, e é sempre agradável regressar a casa. Além disso, a longa viagem de regresso, que durara várias semanas e que fora pontuada por festas, discursos, banquetes, bailes e por toda a espécie de distrações o que tinha implicado alojamentos improvisados e até miseráveis só aumentara o desejo de voltar a encontrar o espaço e o charme daquela que era a mais aprazível de todas as residências reais.

Sylvie também gostava de Fontainebleau, onde permanecera várias vezes no reinado anterior. Apreciava a beleza da grande floresta e o prazer que lhe davam os edifícios menos elevados que os de Saint-Germain e menos austeros que os do Louvre, onde a realeza se reinstalara depois dos tumultos da Revolta, juntamente com o Cardeal, que ocupava grande espaço, quando se tornara notória a dificuldade que havia em defender o amável Palácio Real. Sylvie ainda guardava a lembrança do seu primeiro encontro com Richelieu, que se tornara um pormenor divertido com o passar do tempo. E foi cismando nisso que desceu de manhãzinha cedo na direção dos jardins, com a intenção de desfrutar a frescura do orvalho e de voltar a encontrar o trajeto daquele primeiro passeio que tanta influência acabara por ter na sua vida de dama de honor de quinze anos, pois não só lhe permitira encontrar o temível Cardeal, mas também aquele que se tornaria mais tarde o seu esposo e que, nesse mesmo dia, acompanhava o tão belo e tão imprudente Cinq-Mars. Em suma, tratava-se de uma espécie de peregrinação afetiva![17]...

Era mesmo muito cedo: a aurora incendiava o firmamento e Sylvie julgava dispor de uma pequena hora, dado que o casal real ainda se encontrava deitado. Ora, ao chegar ao pavilhão Sully, apercebeu-se que a imensa carreira de jardins que iam do lago das carpas até ao Grande Canal fora invadida por uma multidão de pessoas atarefadas, criados, operários, jardineiros e artilheiros de fogos-de-artifício, que se atarefavam naquilo que só podiam ser os preparativos para uma grande festa, da qual ninguém falara, pois o parque estivera rigorosamente vazio e deserto na noite da véspera. Desiludida, um pouco aborrecida, Sylvie preparava-se para regressar ao castelo, quando ouviu atrás de si uma voz masculina:

- Por favor, senhora, guardai o segredo por mais duas ou três horas!

O som grave e quente da voz atingiu-a como uma flecha. Voltou-se e viu que ele estava ali, que fora ele que acabara de falar. Ele ainda não a reconhecera, devido ao grande manto de seda ligeira com que ela se resguardara contra a humidade da alvorada. E agora estavam um na frente do outro, petrificados pela surpresa e olhando-se reciprocamente sem dizer palavra, sem ousar fazer um gesto. Os únicos sinais de vida eram dados pelos seus corações, que batiam desordenadamente, e pelos seus olhares, que se penetravam mais profundamente que um beijo o teria provavelmente feito, ambos possuídos por um contentamento do qual nenhum deles era dono e que depressa assustou Sylvie. Ao reagir finalmente, ela quis escapar-se, mas ele reteve-a segurando-lhe numa dobra do manto:

- Sylvie, concedei-me ao menos este momento, em nome do passado, dado que Deus nos permitiu vivermos afastados dos olhares indiscretos da Corte.

- Deus? Não será um nome forte demais e muito cômodo para designar um mero acaso?

- Que lastimais, é claro!...

- Acabo de quebrar o juramento que fiz à vossa vítima ao dizer-lhe que nunca mais voltaria a ver-vos. Isso não vos chega?

- Não, porque sois injusta. Quando dois homens se defrontam frente a frente, de espada na mão, lutam com armas iguais. É corpo contra corpo, sangue por sangue, vida por vida, e quando um dos dois cai, não é mais vítima que o outro é carrasco.

- Contudo, havei-lo morto!

- Mas eu não o queria e é aí que residia a diferença entre nós: ele lutava para matar e eu não.

- Tendes a certeza?

- Digo-o de plena consciência! No jogo da esgrima éramos de força sensivelmente igual e eu não queria morrer. Talvez me tenha defendido demasiado bem. Já há muito que estou consciente de que mais valia para mim que tivesse sido eu a morrer. Para mim e, sobretudo, para vós... A sombra da minha pessoa teria sido mais feliz que eu, pois teria vivido ao vosso lado por todos estes anos intermináveis, durante os quais permanecestes quase reclusa nas vossas terras, e que tanto mal me fizeram!

- Não tendes nada que falar disso - disse Sylvie, com uma ponta de melancolia que não escapou a François.

- Ora, ora! Não me ides dizer que não mudei?

Isso era indesmentível mas, se bem que agora fosse uma pessoa diferente, no entanto estava talvez ainda mais sedutor. Os seus cabelos, outrora tão louros e compridos, tinham adquirido uma tonalidade mais escura e começavam a ficar grisalhos nas têmporas. Cortados à altura dos ombros e puxados para trás, faziam sobressair o rosto enérgico cujas faces iam ficando macilentas, traindo cada vez mais a semelhança com seu pai, César de Vendôme. Se o jovem deus nórdico de antanho se apagava, era incontestável que a maturidade lhe assentava bem: sem ter engordado minimamente, o seu corpo parecia mais pujante sob o gilete de camurça parda-escura que trazia, calçando botas de cavaleiro.

- Efetivamente - admitiu Sylvie - haveis mudado...

Mas ele não a deixou prosseguir:

- Só na aparência, Sylvie. O coração continua sempre o mesmo... pertence-vos por inteiro!

- Só mais uma palavra sobre o assunto e vou-me embora! - advertiu seriamente, esboçando um movimento de retirada que ele parou com a mão.

- Depois de tantos anos de penitência, pensava ter adquirido o direito de vos dizer o que é feito de mim.

- Aquele que se interpõe entre nós não vos concede qualquer direito. Aliás, não vos creio. Por muito afastada que estivesse da Corte, nem por isso deixei de ouvir os seus rumores. Falava-se, a vosso respeito, de uma tal Mlle. de Guerchy; agora é a vez de ouvir o nome de Mme. d’Olonne...

Pelo sorriso ligeiro que amenizou a dureza dos lábios dele, ela compreendeu que acabara de cometer uma asneira ao deixar entender que continuava a interessar-se por ele e chamou-se a si mesma de idiota. Desta vez tinha mesmo de se ir embora caso não quisesse prosseguir aquele diálogo num registo diferente. Girando sobre os calcanhares, com uma destreza que fez rodopiar o manto, deu de caras com Nicolas Fouquet, que chegava encabeçando um bando de músicos, e que perguntou:

- Como vão os preparativos, monsenhor? Estará tudo a postos para grande deleite de Suas Majestades, logo que saiam da missa?... Mas eis a senhora duquesa de Fontsomme! Aparentemente este é o dia das surpresas, mas a minha é a mais feliz de todas, pois acabo de vos encontrar. Sois muito madrugadora.

- Sempre gostei deste parque e vim até cá para devanear um pouco quando dei com... os preparativos da festa que o senhor duque de Beaufort quer oferecer ao Rei e que tanto trabalho lhe deu.

- Não o teria conseguido sem a vossa colaboração, meu caro Fouquet! Sois, na verdade, um grande mágico...

- É inútil começar a enaltecer os seus dons! - interrompeu Sylvie, estendendo a mão para o superintendente das Finanças. - Há muito tempo que M. Fouquet é um dos meus mais fiéis amigos. Mas ignorava que vos conhecíeis...? - acrescentou, num tom mais seco.

- Espero que agora não ireis zangar-vos com ele por causa disso! Foi a paixão pelo mar que nos reuniu. Não ignorais que me está destinado o posto de almirante que pertence ainda a meu pai. Fouquet é o novo senhor de Belle-Isle e acalentamos ambos grandes projetos em comum para melhor fortificar as costas bretãs e para mandar construir um porto, em águas profundas, capaz de aparelhar os navios de guerra entre Brest e Dunquerque. Também pensamos no meu principado de Martigues, do qual se poderia fazer um grande porto comercial mediterrânico...

- Por piedade, monsenhor! - riu-se Fouquet. - Não quereis decerto afogar Mme. de Fontsomme sob a nossa chuva de projetos. Talvez acabasse por nos julgar doidos... Oh, meu Deus! Eis que vem aí M. Colbert, com a sua cara patibular e olhar inquisidor. Não me larga desde que me pus a frequentar o Rei.

- O mel atrai as abelhas e, além disso, meu amigo, o rasto que deixais é tão brilhante que se torna muito fácil identificá-lo. Quanto a mim, não gosto nada dessa cobiçosa cara feia e deixo-vos em sua companhia. Eu vou acompanhar Mme. de Fontsomme até à Grande Escadaria...

Sylvie bem queria ter recusado, mas receou parecer descortês aos olhos de Fouquet. Caminhou pois silenciosamente ao lado de François durante um momento e depois perguntou:

- Por que perdeis o vosso precioso tempo a fazer de meu acompanhante? Acabareis por vos atrasar.

- Só estou atrasado em relação a vós e é um atraso de dez anos! Sylvie... Deixai que nos possamos voltar a encontrar... pelo menos de tempos a tempos. Estes anos custaram-me tanto a passar...

De olhos fixos na biqueira dos sapatos, que iam e vinham ao ritmo do seu andamento, Sylvie teve muito cuidado em evitar voltar o rosto para ele. Pelo som da sua voz adivinhava que devia estar com aquela cara apaixonada, à qual ela não soubera outrora resistir.

- A mim, esses anos não me pareceram tão longos!

- Meu Deus, como podeis ser tão cruel! Só que não vos acredito. Esse louco do Bussy-Rabutin pretende que a ausência está para o amor como o fogo está para o vento... ambos apagam o pequeno e atiçam o grande. O meu está mais forte que nunca, Sylvie. E o vosso?

- Fiquemos por aqui, por favor! É uma pergunta que não vos autorizo a fazer-me, porque desde há muito deixei de colocá-la a mim própria. Isto dito, é certo que a vida da corte nos vai obrigar a encontrarmo-nos várias vezes. Tereis de vos contentar com isso.

- No entanto gostaria de ver os vossos filhos. A vossa pequena Marie era tão querida... e - acrescentou num tom mais grave - ficaria muito feliz em conhecer o vosso filho.

- Porquê? - perguntou Sylvie, sentindo subitamente a garganta seca.

- Parece-me... natural, não?

Desta vez ela olhou-o com uma espécie de terror, mas ele acabara de parar frente a um pórtico de rosas e jasmins e estava a cheirar uma flor com ar inocente. Que sabia ele realmente acerca do nascimento de Philippe? Conheceria a data exata, a ponto de poder deduzir a verdade? Contudo, na altura a guerra lavrava e ele estava esmagado sob o peso de tantas responsabilidades...

- Que vedes nisso de tão natural? - perguntou-lhe, decidida a encurralá-lo nas suas defesas.

Ele sorriu, arrancou a rosa para lha oferecer, pegou-lhe na outra mão para levá-la para longe dos jardineiros que trabalhavam, e, depois, beijando-lhe muito suavemente os dedos, murmurou-lhe:

- Nunca me deixareis ninguém para amar?

Sem acrescentar mais nada, largou-lhe a mão e regressou ao palco de verdura improvisada onde dali a pouco ocorreria um daqueles bailados que o Rei tanto apreciava. Sylvie regressou, cismando, para junto da Rainha...

A festa de M. de Beaufort foi um êxito e o Rei dignou-se participar no divertimento. Já Sylvie se divertiu muito menos, pois desde a altura em que apareceu na comitiva da Rainha, o marechal de Gramont, que a perseguia assiduamente desde Saint-Jean-de-Luz (e isso apesar da presença da esposa), colou-se-lhe aos calcanhares com uma insistência que a jovem achou sufocante.

O ponto alto do dia ocorreu quando Beaufort, magnífico num fato de tafetá preto bordado a fios de prata - mais tarde Sylvie haveria de descobrir que, tal como ela, ele só trajava de preto - veio ajoelhar-se perante a jovem Rainha, oferecendo-lhe o pretínho mais encantador que se podia imaginar. Devia ter entre os dez e os doze anos e, para realçar ainda mais a sua beleza, tinham-no vestido de cetim dourado, com um turbante a condizer, onde se agitavam as penas brancas. Completamente descontraído, este começou por cruzar as mãos no peito, inclinando-se com uma solenidade engraçada e, depois, contente com os murmúrios de admiração dos cortesãos, sorriu de modo deslumbrante.

- Vem do reino do Sudão, Senhora - explicou Beaufort em espanhol - com o propósito de vos servir. - É hábil em todas as coisas, toca flauta e sabe dançar. Chama-se Nabo... e é cristão.

Enquanto Maria Teresa ria, vermelha de contentamento, batendo as palmas das mãos, num gesto que se lhe tornara familiar, a sua anã, que a seguia por todo o lado como um cachorrinho, veio pegar na mão do rapazinho para levá-lo para um caramanchão, a fim de partilhar com ele a pequena refeição de bolos e guloseimas que preparara para si. Ambos tinham mais ou menos o mesmo tamanho, mas formavam um contraste gritante ela tão feia, apesar das suas lindíssimas roupas e ele, tão belo! e, claro está, foram ditas algumas piadas ousadas sobre o que um casal daqueles poderia engendrar mais tarde. Calaram-se a um olhar severo do Rei, enquanto Maria Teresa recomendava:

- Chica, podes brincar com ele, mas não o magoes!

No rosto grosseiro, onde as componentes faciais pareciam ter dificuldade em harmonizar-se para constituir um quadro fisionômico, despontou subitamente um sorriso radiante e surpreendente:

- Oh não!... Ele é bonito demais! Chica cuidará bem dele!...

Durante o faustoso jantar em que Beaufort fez questão de ser ele próprio a servir o jovem soberano, Mademoiselle, que desta vez não tinha fome, aproximou-se de Sylvie, que se fora sentar num banco de pedra ligeiramente afastado, junto a um toldo de rosas. As duas mulheres tinham travado amizade durante a longa viagem de regresso.

- Que estais aí a fazer tão sozinha? Não me digais que o vosso enamorado já vos abandonou? Ou sois vós que o haveis afastado?

- O meu enamorado? Ah... M. de Gramont? Acaba de regressar a Paris, convocado não sei para que assunto.

Falou num tom tão indiferente que a princesa se pôs a rir.

- Então é com alegria que constato que ele não vos comove nem um nadinha e nem imaginais como fico satisfeita!

- Porquê?

- Porque receio que ele enviuve um destes dias e que venha a pedir a vossa mão...

- E por que deveria ele enviuvar? A duquesa está doente?

- A sua saúde não é das melhores. Aliás não é nenhuma sinecura ter desposado um Gramont e a pobre Françoise de Chivré, que é a detentora do título, detesta o seu castelo em Bidache, onde se encontra geralmente confinada, e passa a maior parte do tempo que arranja na companhia da filha, a princesa do Mônaco. Aí deve sentir-se segura!

- Segura? Então não o estaria também ao lado do esposo?

- Oh, mas apesar do seu caráter intempestivo e, sobretudo, interesseiro, o esposo até é boa pessoa, mas o pior é o seu irmão, o cavaleiro, que é um verdadeiro demônio e ao qual, infelizmente, o nosso marechal presta demasiados ouvidos. Se este vier um dia a achar que uma nova aliança com uma mulher rica e bem colocada na corte poderia ser útil à família, a duquesa bem poderia correr o risco de ter de passar uma derradeira estadia... muito desagradável... em Bidache.

- Alteza, não me estais decerto a querer dizer que essa pobre mulher poderia...

O olhar abismado da sua nova amiga fez sorrir a princesa.

- Oh, sim! Creio que eles são bem capazes disso e a pobre Françoise também não o ignora. Quando lá reside é assolada por horríveis pesadelos. Disse-me que viu um dia o fantasma da sogra...

- Da mãe do marechal? Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça?

- É o mínimo que se possa dizer. Ora escutai...

E Mademoiselle contou como num certo dia do mês de Março de 1610, ao regressar inopinadamente a casa, o pai do marechal surpreendeu a mulher, a bela Louise de Roquelaure, em terno enredo com um primo seu, Marsilien de Gramont, do qual, infelizmente, ele também gostava. A sua reação foi instantânea: trespassou o sedutor, enquanto Louise conseguia fugir, refugiando-se num convento vizinho. O marido tratou de tirá-la depressa de lá, para obrigá-la a comparecer perante uma espécie de tribunal composto pelos notáveis da região e onde ela teve a surpresa de deparar com o cadáver do seu amante, que ainda não fora enterrado. Foram ambos condenados à decapitação, o que foi imediatamente executado na pessoa de Marsilien mas, quanto à mulher, Antoine de Gramont preferiu esperar, receando um pouco as represálias de um sogro, que não só era o governador da Gasconha como também estava muito bem visto na corte. Efetivamente, Roquelaure interferiu junto à Rainha, Maria de Médicis, e Gramont recebeu ordem “de nada intentar contra a vida de sua esposa”.

Esta ordem, que lhe é entregue pelo conselheiro de Gourges, Gramont recebe-a, encolerizado. Parte para Paris, deixando a culpada à guarda de sua mãe que era, nada mais, nada menos, a famosa Diane d’Andoins, a quem chamavam Corisande, a primeira paixão do jovem Henrique IV, nessa altura rei de Navarra. É uma mulher dura, orgulhosa, que suporta mal o correr dos anos. Detesta a nora. O marido terá ou não dado instruções à mãe? A verdade é que a jovem foi enterrada no dia 9 de Novembro, tendo-lhe Corisande recusado a sepultura dos Gramont...

- Diz-se - concluiu Mademoiselle - que a infeliz foi lançada no fundo de uma vala perdida, onde Corisande a deixou a morrer com os ossos quebrados. Quanto a mim, nunca quis ir a Bidache e aconselho-vos a fazer o mesmo...

- Mas que história tão horrível! - exclamou Sylvie, gelada até à alma. - E o filho nada tentou fazer pela mãe?

- Mal a conhecia. Desde o nascimento vivera em Hagetmau, no domínio de Corisande. Portanto, se vierdes a ser informada da morte da duquesa, dai às “vilas de diogo!”...

Sylvie já não ouvia. Olhava para a mesa real, onde François enchia a taça de Luís XIV com gestos quase ternurentos. Mademoiselle surpreendeu-lhe o olhar e suspirou:

- Esse também vos ama... e, no fundo, não vejo por que motivo não o desposais...

A observação não surpreendeu Sylvie. Desde há muito que a princesa era a melhor amiga de François e, durante a Revolta, ela fora sua cúmplice e fora, também, sem dúvida, a sua confidente. Sem sequer voltar a cabeça, respondeu-lhe:

- Isso foi o sonho impossível que acalentei anos a fio e agora ainda o é mais...

- Por causa daquela infeliz estocada mortal? Mas, nessa altura tínhamos todos mais ou menos enlouquecido e era ver quem estripava mais alegremente os membros da própria família, consoante fossem pró ou contra Mazarin; mas se Beaufort se bateu muitas vezes em duelo, nunca foi ele o agressor. Creio que é por isso que a sua irmã lhe perdoou a morte de Nemours. Também vós devíeis perdoar-lhe...

- O perdão pertence a meu filho. Quando ele chegar à idade adulta e o tempo passa tão depressa! saberá o que fazer e, se lhe perdoar, não terei qualquer motivo para me mostrar mais intransigente que ele.

- E se ele não perdoar e desafiar Beaufort para um duelo?

- Claro, encontraria um meio para o impedir... nem que isso me custasse a vida... mas espero não ter de chegar a esse ponto!

- Também assim o espero mas, entretanto, segui o meu conselho. Fazei as pazes com Beaufort! Até Chimena acabou por desposar Rodrigo[18]!

Desta vez Sylvie contentou-se em sorrir. Não podia adivinhar que dentro em breve iria surgir um perigo maior e, sobretudo, mais imediato.

Na frescura da madrugada de quinta-feira, dia 26 de Agosto, o Rei e a Rainha tinham deixado Fontainebleau num duplo trono coberto por seda com flores-de-lis de galões dourados franjados, que fora montado num vasto espaço de relvado, um pouco elevado, situado aproximadamente a meio caminho entre o castelo de Vincennes e a porta de Saint-Antoine[19]. Claro que estavam ambos vestidos com a suntuosidade que um povo espera da parte de soberanos em parada mas, para esse dia em que Paris ia conhecer a sua Rainha, Luís XIV atenuara propositadamente o seu esplendor, a fim de realçar ainda mais o de Maria Teresa. Efetivamente, esta trazia um vestido de cetim preto bordado a ouro e prata, tão enriquecido por pérolas e pedras preciosas que já nem se discernia a cor original. Os diamantes brilhavam no pescoço, nas orelhas, nos braços, nas pequeninas mãos e, no alto dos seus cabelos penteados num grande tufo, de modo a que se pudesse admirá-la, a coroa real brilhava com todo o seu fulgor sob os raios de sol daquela manhã. Luís contentava-se com um fato inteiramente bordado a prata e com um único diamante incrustado na fivela do penacho e das plumas brancas.

Foi aí que o jovem casal recebeu a homenagem dos corpos empossados e aguentou, pacientemente, o interminável discurso do chanceler Séguier, coberto de ouro dos pés à cabeça, portando-se como se aquele fosse também o dia do seu triunfo: já não era segredo para ninguém que Mazarin estava para morrer e a imponente personagem julgava que o lugar de Primeiro-Ministro o esperava... Finalmente o imenso cortejo, que devia levar a Rainha até ao Louvre, pôde começar a deslocar-se. Com um alívio evidente, Luís XIV saltou para cima de um belo cavalo acastanhado, enquanto Maria Teresa se instalava numa “carruagem ainda de maior beleza que o carro de fogo, e cujos cavalos teriam arrebatado o prêmio de beleza aos deuses da fábula”, desencadeando um entusiasmo delirante a que ela respondia, primeiro com sorrisos tímidos e, depois, mais seguros, passando a sublinhá-los com um lindo gesto da mão, à medida que os aplausos redobravam à sua passagem. Gostava de ver à sua frente aquele homem a cavalo que agora amava mais do que tudo no mundo: dele, nesse dia de glória, só podia esperar felicidades. Estava-se muito longe da pompa espanhola, onde o povo saudava cabisbaixo, contemplando num silêncio religioso a passagem dos ídolos hieráticos enfeitados como molduras de santos. Também se saudava em Paris, mas as pessoas erguiam-se logo entusiásticas, para lançar o chapéu para o ar, para cantar e declamar versos:

Vinde ó Rainha triunfante,

E não lamenteis perder o título de Infanta

Nos braços do mais belo dos reis.

Já eram seis da tarde quando, de concertos em cumprimentos e de hinos em arcos triunfais, se chegou finalmente ao Louvre que fora finalmente arranjado para a ocasião a longa ausência da Corte assim o permitira e que mostrava agora os seus belos aposentos renovados, os tecidos novos, flores por todo o lado... mesmo que o Pátio Quadrado ainda não estivesse acabado...

Na companhia de Mme. de Navailles e de Motteville, Sylvie assistira ao desfile de uma das varandas do hotel de Beauvais, que pertencia à camareira de Ana de Áustria, a quem chamavam Cateau, “A Zarolha”, e cuja fortuna crescera consideravelmente desde que, durante o período da Revolta, ela se encarregara da tarefa de desflorar o jovem Rei, proeza que muito alegrara a mãe. A partir dessa altura, o esposo da dama, antigo comerciante de fitas na galeria do Palácio, foi promovido a conselheiro e a barão de Beauvais e um verdadeiro maná celeste parecia ter-lhes vindo bater à porta, o que lhes permitira comprar a Madeleine de Castille, esposa de Fouquet, um terreno que ladeava a rue Saint-Antoine, no qual tinham mandado construir um magnífico hotel, cuja principal novidade residia na ampla sala principal que dava diretamente para a rua e que possuía várias varandas. As duas mais belas, sob um toldo de veludo púrpura, tinham abrigado, uma, Ana de Áustria e a sua cunhada, rainha-mãe de Inglaterra com a filha, a jovem Henrieta; a outra, Mazarín e Turenne. Os membros principais da Corte, que não estavam presentes no cortejo, dividiram entre si as outras varandas. Pelo seu lado, Mme. de Fontsomme e as suas duas amigas tinham aceite o convite constrangidas e forçadas: elas detestavam unanimemente aquela baronesa de Beauvais, de insígnias ainda frescas, na qual não viam grande diferença, no plano da respeitabilidade, com uma patroa de bordel. Mas a possibilidade de recusar o convite foi-lhes retirada pela Rainha-Mãe em pessoa: elas eram as “suas” convidadas, partindo do princípio que a casa que ela honrava com sua presença era casa sua. As renitentes tiveram pois de se inclinar, o que valera a Sylvie receber a saudação enamorada de M. de Gramont, que desfilava à frente do Rei com os outros marechais de França; mas, mal o cortejo se afastou e pouco desejosas de partilhar pão e manteiga com Cateau, “A Zarolha”, fizeram todas a reverência da praxe a fim de poderem dirigir-se, em seguida, para o Louvre, aproveitando um desvio e o ensejo para se recomporem, enquanto esperavam pela chegada da Rainha.

Ao descer do coche frente à entrada principal que era ainda a porta de Bourbon, mas que não o seria por muito mais tempo, pois Luís XIV decidira mandar deitar abaixo tudo o que sobrava do velho Louvre. Sylvie foi abordada por um gentil-homem de uns quarenta anos, de boa apresentação, se bem que trajando um fato que estivera na moda há uma dezena de anos e cujo perfil e tez morena denunciavam um aventureiro vindo de longe. O seu rosto, de feições irregulares, não deixava de possuir um certo encanto, e demonstrou uma cortesia perfeita ao saudar Sylvie:

- Senhora, rogo-vos que me perdoeis por ser tão inoportuno, mas há pouco encontrava-me no meio da multidão, quando alguém me assinalou a presença de vossa senhoria dizendo-me que se tratava da senhora duquesa de Fontsomme. Espero não me ter enganado, pois então não teria desculpa nenhuma...

- Não vos enganaram, cavalheiro. Trata-se efetivamente da pessoa que vos indicaram mas... poderei saber que interesse represento para vós?

- Gostaria que me concedêsseis uma curta entrevista em privado. Tinha pensado em apresentar-me à porta do vosso hotel, mas não estais lá frequentemente e espero que me perdoeis o fato de ter aproveitado e agarrado esta oportunidade.

- Que tendes de tão importante para me dizer, cavalheiro? Decerto compreendeis que não posso ficar aqui parada por muito mais tempo, nem reter as damas que estão à entrada do palácio à minha espera...

- Este não é decerto o local indicado mas, senhora duquesa, tive a honra de vos solicitar uma entrevista...

- Muito bem. Dado que conheceis o meu hotel, espero-vos lá às seis da tarde de amanhã. Nessa altura não estarei de serviço. Mas antes... podeis dizer-me como vos chamais?

O desconhecido varreu o solo com as plumas murchas do seu chapéu:

- Aceitai as minhas desculpas! Devia ter começado por me apresentar! Chamo-me Saint-Rémy, Fulgent de Saint-Rémy e venho das Ilhas. Direi ainda que somos um nada aparentados...

Estas últimas palavras pairaram ainda muito tempo na cabeça de Sylvie, enquanto se dirigia para o aposento da Rainha com as suas companheiras. Os seus pensamentos mudaram instantaneamente de rumo com o que lhes foi dado encontrar:

Aparentando provisoriamente uma excelente saúde os boticários parisienses não tinham melhor cliente! a duquesa de Béthune acabara de chegar disposta a pegar no serviço que Mme. de Fontsomme assumira desde o casamento. Começara por querer inspecionar o guarda-roupa de Maria Teresa, bem como as suas jóias, mas não contara com Maria Molina que, flanqueada por outras mulheres espanholas e por Nabo e Chica, não estava de acordo e pretendia pô-la simplesmente no olho da rua. Enquanto açafata, Molina apenas conhecia “Mme. de Fontsomme” e não compreendia o que aquela intrusa viera ali fazer, nem por que motivo ela mexia daquela maneira em jóias cuja manutenção cabia, aliás, ao guarda do gabinete e não à açafata. Como falavam as duas numa língua diferente, a compreensão não se instalara e a disputa parecia intensificar-se.

Mme. de Motteville e Sylvie lançaram-se numa peleja oral que, sem elas, teria provavelmente descambado ainda mais, dado que Molina se revelava facilmente agressiva quando se tratava da “sua Infanta” e que Mme. de Béthune era de difícil caráter. Nascera Charlotte Séguier e filha do Chanceler o potentado dourado de há pouco! herdara a sua arrogância e, segundo a expressão utilizada por Mme. de Motteville, que não gostava nada dela, “julgava-se mais duquesa que as outras”.

Quando regressou a calma, Mme. de Béthune ainda dava mostras de estar muito ressentida. Com profunda injustiça culpou “Mme. de Fontsomme, que mal a Infanta chegara a França devia ter dado imediatamente a conhecer aos seus criados qual o nome da verdadeira açafata e não ter-se instalado, como fizera, sem revelar que era apenas a sua substituta”; tudo isto pronunciado num tom ríspido que exasperou Sylvie.

- E por que não tê-las também levado a incluir-vos nas suas preces de todas as noites? - retorquiu. - Se tivésseis vindo a Saint-Jean-de-Luz, como era vosso dever, eu não teria precisado de vos substituir...

- Sabendo que eu estava doente, antes de partir devíeis ter vindo pedir-me a devida autorização!

- Pedir-vos autorização, quando recebi uma convocatória assinada pela mão do próprio Rei!? Mas, senhora, estais a sonhar!

- Entre pessoas de boas relações é assim que as coisas se passam, ou deveriam passar-se.

- Podereis pedir explicações a Suas Majestades.

- Podeis ter a certeza que não deixarei de o fazer. As regras da etiqueta...

- ...nada têm a ver com os vossos estados de alma interrompeu Suzanne de Navailles, já impaciente. De qualquer modo, deveríeis pensar duas vezes antes de vos decidirdes a ir incomodar Suas Majestades. A Rainha gosta muito de Mme. de Fontsomme, com a qual pode conversar na sua língua natal, o que não é o vosso caso. Quanto ao Rei, ao qual ela ensinou os primeiros acordes de guitarra, ele sente por ela mais do que mero respeito...

Quando Maria Teresa chegou, esfalfada, depois daquela longa jornada de representações sob um sol abrasador, as suas damas apressaram-se em seu redor, para lhe retirarem as pesadas roupas da parada, mas quando Molina quis desfazer o penteado, Mme. de Béthune intrometeu-se:

- Essa função cabe à açafata.

E empurrou Molina, para tomar conta da Rainha, sobre a qual tinham vestido um roupão de fina cambraia de linho. Mas nem toda a gente é uma verdadeira cabeleireira só porque quer e ao retirar os fios de pérolas e as pedras preciosas, foi evidente que ela puxava com força os cabelos da sua paciente que, contudo, nada dizia, aguentando o suplício com uma candura exemplar. Foi Mme. de Navailles quem não suportou aquilo por muito mais tempo:

- Por Deus, senhora, como sois desajeitada! Deixai esse serviço para mãos mais capazes.

- Ao que eu saiba, a Rainha não se queixa!

- Não - interrompeu uma voz autoritária - pois ela é a bondade em pessoa e deve estar a sentir isto como uma penitência que deve oferecer ao Senhor! Mme. de Béthune, retirai-vos e deixai Molina encarregar-se da tarefa!

Majestosa e imponente como de costume, acompanhada pela indispensável Motteville, a Rainha-Mãe acabara de entrar no aposento da sua nora, e todas as damas se ajoelharam à sua frente. Ela sorriu-lhes, mas ainda não acabara com Mme. de Béthune, a quem não lhe desagradava admoestar, pois não era ela a filha desse Séguier que, na época em que passara pelas maiores atribulações, chegara ao atrevimento de lhe pôr as mãos em cima para lhe tirar uma carta?[20] Ofensa que a altiva espanhola nunca havia perdoado. Ora, Mme. de Béthune parecia-se muito com o pai.

- Aparentemente, gostais de retomar o vosso serviço quando vos dá na gana! Não fostes vista durante semanas e agora surgis de rompante, na altura em que sois menos esperada, para perturbar a harmonia que reina no serviço da Rainha. Não achais que é muito pouco cortês da vossa parte?

Estremecendo de cólera, mas submissa, a duquesa desculpou-se com a sua péssima saúde e com as dores que não lhe tinham permitido juntar-se às outras damas para estar presente na altura do casamento. Estava desolada por ter feito tanta falta...

- Mas ninguém sentiu a vossa falta! Bem sabeis que ocupais o vosso posto por insistência do senhor Cardeal, que se sentia em dívida para com o senhor Chanceler... Dou o assunto por encerrado. Minhas caras damas - acrescentou, elevando o tom da voz - tenho uma grande notícia para vos dar: Sua Majestade, a rainha-mãe de Inglaterra, que é minha irmã, concedeu-nos a graça de oferecer a mão de sua filha Henrieta ao meu filho Filipe. Ambos irão deslocar-se proximamente a Londres, para obter o consentimento do rei Carlos II, que não oferece qualquer dúvida. Entretanto vamos ocupar-nos do recheio da casa da futura duquesa de Orleans!... Vamos, calma! - disse, rindo-se. A novidade não é tão fresca quanto isso e aposto que já adivinháveis o desfecho, não?

Efetivamente, desde que a Corte regressara, o rumor difundira-se pelos salões. Mazarin apoiava o projeto com tanto mais entusiasmo porquanto aquele casamento seria para ele um meio excelente para fazer as pazes com o jovem Carlos II, ao qual recusara tantas vezes a ajuda para não comprometer o seu acordo com Cromwell e cujo súbito regresso ao trono não deixava de lhe causar certos problemas.

Ana de Áustria deixou que o burburinho se acalmasse e aproximando-se então de Sylvie, mas sem deixar de olhar para a açafata, disse:

- Mme. de Fontsomme, que idade tem Marie, vossa filha?

- Catorze anos, Vossa Majestade.

- No próximo ano, quando forem celebradas núpcias, ela terá portanto quinze anos. Exatamente a vossa idade, Sylvie, quando haveis entrado ao meu serviço... com tanta dedicação! Um posto de dama de honor da nova Madame, parece-me pois o lugar indicado para ela. Da última vez que a vi, ela parecia que se ia tornar numa bela rapariga e Monsieur faz muito questão que a sua corte seja unicamente composta por pessoas jovens e belas.

Esta nomeação, antes de qualquer outra, era uma prova de extremo favor e Sylvie sentiu-a como tal, ao inclinar-se numa rasgada reverência destinada a agradecer, sem contudo se sentir extremamente contente. Sentia, antes, receio: ignorava quais os membros que fariam parte dessa nova corte, que seria sem dúvida brilhante, a julgar pelos gostos suntuosos e requintados do jovem Monsieur, mas que seria talvez ainda menos ajuizada que fora a do Louvre quando ela própria Já entrara. Marie não era fraca nem choramingas. Ela tinha caráter, como se dizia, e apenas sonhava em brilhar no mundo. Ficaria certamente radiante com a notícia, mas a sua mãe sabia que, ao mesmo tempo, isso poria termo ao seu próprio descanso. Tanto mais que aquele dia tão glorioso acabara de lhe valer uma inimiga. Não havia que enganar-se quanto ao alvo daquele olhar venenoso que escoava dos olhos da açafata titular.

Deste modo, acabou por sentir as maiores dificuldades em adormecer nessa noite, apesar das palavras de calma prodigalizadas por Perceval quando a vira regressar tão visivelmente perturbada.

- Não vos atormenteis com um acontecimento que só ocorrerá daqui a um ano. A cada dia dá Deus a dor e a alegria...

- Precisamente! Além de Marie, há ainda essa personagem, M. de Saint-Rémy: gostaria de saber o que ele quer de mim.

- O que quer de “nós”! É óbvio que estarei a vosso lado. Entretanto tratai de descansar. Eu vou sair!

- Onde ides?

- A Saint-Mandé, pedir ao nosso amigo Fouquet que me ofereça o jantar. Sabeis que ele tem interesses nas Ilhas. Talvez me saiba dizer de onde vem essa vossa personagem.

Como era seu hábito, Perceval, que detestava as carruagens, partiu a cavalo - dizia que com um cavalo se passava por todo o lado e muito mais depressa! - mas regressou mais cedo do que seria de esperar; nessa noite, o encantador castelo de Saint-Mandé onde Fouquet gostava tanto de trabalhar e de reunir o seu pequeno grupo de artistas e de escritores que eram, não obstante, seus fiéis amigos estava praticamente deserto. Perceval apenas encontrou o poeta Jean de La Fontaine[21], que sonhava bebendo a sua cidra favorita, o vinho de Joigny, que Vatel, o cozinheiro chefe do Superintendente, lhe trazia pessoalmente. Sempre amável, ofereceu um copo ao visitante, mas foi incapaz de lhe dizer onde estava Fouquet. Só tinha a certeza de uma coisa: nessa noite jantariam sem ele. O cavaleiro de Raguenel declinou o convite. Preparava-se para se ir embora, depois de ter pedido a La Fontaine que anunciasse a sua visita para o dia seguinte, quando chegou o abade Basile, o que era quase tão bom como a presença do senhor do local pois aquela ovelha negra da família era ao mesmo tempo o jovem irmão e o pau para toda a obra de Fouquet.

Era um homem curioso, aquele abade comandatário de Saint-Martin de Tours, que nunca fora ordenado, o que era melhor para a Igreja! Intriguista, folgazão, destemido como a espada que nunca o abandonava e quase tão inteligente quanto o irmão mais velho, matreiro como uma raposa e propositadamente trapalhão, desabrochara como uma flor ao Sol durante os dias tumultuosos da Revolta, dando sempre provas de um certo seguimento nas ideias ao servir fielmente Mazarin desde há onze anos e o seu irmão tambem, é claro! Sendo aliás um homem que saboreava a vida e que se metia de bom grado em todos os assuntos, ouviu o que Perceval tinha para lhe dizer, com a atenção que merece um homem que pertence a uma família rica e que está bem vista na corte.

- Dizeis que ele se chama Saint-Rémy? Deve ser fácil descobrir de quem se trata. Os franceses não abundam por aí além nas ilhas das Américas. É possível que ele venha de lá: sei que há um navio que acostou nestes últimos dias em Nantes. É preciso saber se ele estava a bordo e não deixarei de me informar.

E como Perceval lhe agradecia, já um pouco mais animado, aproveitou para acrescentar:

- Um sorriso de Mme. de Fontsomme será a minha melhor recompensa. Há anos que rastejo a seus pés, mas ela não tem ar de se aperceber disso. É verdade que andando atrás de alguém como Nicolas, não é possível que dêem por mim!

- A propósito, sabeis onde ele está?

- Em Charenton, em casa de Mme. du Plessis-Bellière, onde se refugiou há pouco em busca de um pouco de ar fresco. Estava a ferver de raiva ao sair da residência do senhor Cardeal que, por muito mal que esteja, não pára de assediá-lo para obter juros das somas que lhe foram confiscadas durante a Revolta.

- Um homem que se encontra naquele estado não devia preocupar-se mais com a salvação da sua alma do que com o recheio da sua bolsa?

- Um homem normal, como eu e vós, com certeza; mas o senhor Cardeal está mais agarrado que nunca à sua fortuna. É preciso vê-lo a deambular pelas salas do palácio ou nos seus aposentos no Louvre, de pantufas, apoiando-se numa bengala e de lágrimas nos olhos! Quando não está ocupado a maltratar o meu irmão, não pára de se despedir de todos os belos objetos que reuniu e que deverá, coitado, abandonar num dia não muito distante. E chora! É de morrer... a rir!

- Não vejo nisso nada que possa enfurecer o senhor Superintendente. Há muito que ele conhece a avidez do Cardeal e isso não constitui novidade nenhuma para ele.

- Certamente, mas a novidade é que mal está em presença de Sua Eminência, vê logo surgir M. Colbert de algum buraco, de memorando na mão... O que contraria tremendamente o seu estado de espírito! Creio que já é altura de Sua Majestade se apressar um pouco em pôr o Cardeal na ordem: esse Colbert invade-o cada vez mais...

- Então depositais as vossas esperanças no momento em que o nosso jovem Rei vier a ocupar-se dos negócios do reino?

- É claro. Precisamente, ele é jovem e adora a mãe que é muito amiga de meu irmão e este sabe mostrar-se tão sedutor! Será Primeiro-Ministro!

Perceval admirou toda aquela segurança do abade Basile, sem todavia a partilhar. Sentia estima e afeto por Nicolas Fouquet, mas receava que as suas brilhantes qualidades só representassem afinal outros tantos defeitos aos olhos do sombrio Colbert, e que as lutas vindouras acabassem por reeditar a da bilha de terra contra a bilha de ferro. Entretanto, não ficara descontente por ter encontrado Basile: o abade era o homem de quem precisava para efetuar um inquérito que teria sobrecarregado inutilmente as tarefas do Superintendente.

No dia seguinte, à hora combinada, M. de Saint-Rémy apresentou-se no hotel de Fontsomme. Ao seguir, através dos salões, o criado de libré verde, preto e prateado, os seus olhos corriam de um lado para outro como se quisesse avaliar as riquezas daquela rica e nobre residência, com uma expressão que não teria certamente agradado aos seus moradores caso estes a tivessem podido surpreender. Assim se dirigiram até à “livraria”, onde o defunto marechal acumulara um certo número de raridades literárias que deleitavam Perceval. Aliás, na altura em que o visitante foi introduzido, este estava ocupado em examinar um documento que retirara do arquivo. Logo à entrada, saudou como um homem que sabe com quem está a lidar e aceitou o assento que Sylvie lhe indicou, depois de ter apresentado os nomes e os títulos do padrinho.

Ao encará-lo pela segunda vez, Saint-Rémy não lhe agradou muito mais do que na primeira, apesar de uma certa graça e de um certo magnetismo, que não lhe escaparam. Não foi isso que a impediu de mostrar uma certa cortesia:

- Pois bem, cavalheiro, que tendes de tão importante a dizer-me, a ponto de me haverdes seguido até às portas do Louvre?

O gentil-homem das Ilhas pareceu incomodado. Levou algum tempo a responder mas, finalmente, concedeu um sorriso que revelava uns belos dentes e decidiu-se:

- Trata-se de uma velha história, senhora duquesa, e que talvez possais julgar banal mas, para mim, ela reveste-se de uma importância extraordinária, pois é de vós que depende inteiramente a natureza do seu desfecho, consoante o estado de espírito com que a recebereis. Numa palavra, tenho a honra de ser vosso cunhado...

A surpresa era de todo o tamanho. Instintivamente, Sylvie desviou o olhar para Perceval que, por um momento, suspendeu o gesto com que ia desenrolar um pergaminho, mas quando voltou a fitar o visitante o seu olhar estava outra vez calmo:

- Deveis ter cometido um engano, cavalheiro - disse com frieza - ou talvez sejais vítima de um nome que se aparenta ao meu mas, que eu saiba, o meu falecido esposo nunca me disse que tinha um irmão...

- E até mais velho que ele. No entanto, apresso-me sempre a assinalar que não era do seu conhecimento. Como já vos disse, trata-se de uma velha história, dessas velhas histórias demasiado frequentes de amores de juventude que dão para o torto... mas que deixam os seus frutos.

Perceval achou que estava na altura de se meter no meio da conversa:

- Se bem entendo, senhor, sois um bastardo?

O outro soltou um suspiro capaz de deitar paredes abaixo.

- As coisas podem ser vistas dessa maneira, mas eu não devia sê-lo. Quando o falecido marechal ainda conservava o seu poder paterno e se fazia chamar marquês d’Autancourt, nome que o filho depois herdou, ele estava muito apaixonado pela minha mãe, que era muito bela, mas originária da pequena nobreza bolonhesa. Ela engravidou e, tal como fizera outrora o rei Henrique IV com Mlle d’Entragues, antes de partir para a guerra, ele assinou uma promessa de casamento, caso a criança fosse um rapaz. Infelizmente, o pai de minha mãe, que não saberia de modo algum chamar de avô, apercebeu-se do estado da filha e como era uma pessoa muito severa, colocou-a num convento até que ela desse à luz a criança que, fosse de quem ela fosse, teria então de desaparecer, após o que ela deveria desposar o homem rico que lhe estava destinado. A minha mãe não soube suportar esse destino: conseguiu escapar do convento com a ajuda de um rapaz que a amava e que queria ir para a América. Eu nasci na viagem de navio. Depois, foram ter com M. Belain d’Esnambuc, na ilha de São Cristóvão e, claro, casaram-se... mas a minha mãe conservou sempre consigo a promessa de casamento que teria feito de mim um duque de Fontsomme... e o senhor de tudo isto...

Este discurso foi pronunciado num tom desprovido de cólera e até mesmo com certa amenidade, que Sylvie achou muito mais desagradável do que se tivesse sido proferido arrebatadamente. Perceval também não gostou:

- Como dizeis, cavalheiro, a vossa história é interessante... ainda que banal, e não vejo lá muito bem o que pretendeis de nós. Penso que não imaginais decerto pôr em causa o casamento do defunto marechal de Fontsomme com Mlle. de Nesles, nem o do falecido duque Jean com Mlle. de Valaines, aqui presente...

- De modo nenhum, de modo nenhum, mas... uma promessa de casamento devidamente assinada é algo de muito grave e o Parlamento poderia levá-la em consideração caso a senhora duquesa não tivesse um herdeiro masculino.

- Nota-se que vindes de longe, cavalheiro - interrompeu Sylvie. - Tenho um filho...

- Póstumo! Bem vedes que estou mais ao corrente dos assuntos do que o pensais, senhora. Ora como o pai dele deixou este mundo antes que ele tivesse nascido, isso impediu-o de reconhecê-lo... Portanto, ele só é duque de Fontsomme porque vós sois sua mãe...

Sylvie sentiu que empalidecia, mas Perceval achava que já tinha ouvido coisas demais. Sem se mexer do lugar que viera ocupar ao pé da poltrona da afilhada, indicou a porta:

- Saí! Não sei o que esperáveis ao vir contar-nos os vossos disparates, mas eu acho que já perdemos tempo de sobra! Portanto, rua!

Enquanto falava, pegara na campainha colocada em cima da mesa para chamar o criado, quando Sylvie lhe parou o gesto: estava espantada por ver Perceval, sempre muito senhor de si, perder subitamente as estribeiras.

- Um momento! Desejo saber um pouco mais sobre esta personagem. Em primeiro lugar eu diria que é muito fácil dizer-se detentor de um documento; outra coisa é mostrá-lo...

- Se é esse o problema, posso mostrá-lo... pelo menos uma cópia exata, pois não se deve andar por aí transportando algo de tão importante. Respeitei escrupulosamente a integralidade do documento, até mesmo o desenho do sinete que é de cera verde.

Sylvie lançou uma vista de olhos pela cópia, passando-o depois a Perceval.

- Uma cópia fiel, é isso? - grunhiu este. - E quem nos diz que possuís mais do que isto?

- O fato muito simples de a poderdes guardar convosco, a fim de vos inteirardes devidamente do seu teor; suficientemente, em todo o caso, para entenderdes que não se trata de uma brincadeira. Vereis o original quando ele estiver nas mãos de um juiz. Contava não me ver forçado a chegar a tais extremos...

- Precisamente - reatou Sylvie - o que esperáveis ao aproximar-vos desta casa? Que eu iria dizer-vos: “senhor duque, estamos verdadeiramente desolados por ocupar assim o vosso lugar e vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que tudo regresse ao seu devido lugar, para vossa grande satisfação”?... E isso, não obstante eu ter casado no Palácio Real, na presença do Rei, da Rainha e do cardeal Mazarin...

Fulgent de Saint-Rémy teve um sorriso indulgente que pretendia ser apaziguador:

- Acalmai-vos, senhora duquesa. Nunca imaginei tal coisa. Só que... sou pobre e já não tenho família... e esperava vir aqui encontrar uma.

- Aqui? Nesta casa? - exclamou Sylvie, embasbacada pela audácia da personagem.

- E por que não? Eu e o vosso falecido esposo éramos meio-irmãos... e podeis acreditar-me que eu daria um ótimo tio para os vossos filhos.

- As vossas gracinhas não têm piada nenhuma, rapaz! - ralhou Perceval. - Podeis sair e bem depressinha!

- Para ir para onde? Vede: não possuo nem mais um cêntimo...

E, para bem mostrar que não mentia, levantou-se e voltou os bolsos do avesso, acrescentando:

- A miséria é má conselheira. A minha viagem até aqui custou-me tudo o que possuía...

- E haveis pensado que uma chantagenzinha poderia equilibrar as vossas finanças? - troçou Perceval. - Só que não funciona. Podeis apresentar o vosso... pedaço de papel em qualquer Parlamento que ninguém lhe prestará a menor atenção e, se intentardes um processo, isso poderá durar anos...

- É verdade que no estado atual das coisas não tenho meios para o fazer. Mas se por casualidade - que Deus nos livre! - o jovem duque vier a falecer... acrescentarei ainda que sou protegido de M. Colbert.

Ao grito de horror de Sylvie, respondeu a exclamação furiosa do cavaleiro de Raguenel e a campainha foi agitada tão freneticamente que acorreram quatro criados:

- Correi com este homem daqui para fora e que ele não me volte a aparecer nesta casa! - exclamou Perceval, enquanto Sylvie fora pegar numa bolsa de dentro do armário, entregando-a depois ao homem que ia ser posto na rua.

- Nunca deixei de prestar auxílio a qualquer miséria que me viesse bater à porta. Aqui estão cinquenta escudos: aproveitai-os bem e não regresseis mais aqui!

Os olhos de Saint-Rémy puseram-se a brilhar. Teve um largo sorriso e depois desembaraçou-se do aperto dos criados com uma violenta sacudidela:

- Sairei daqui por mim próprio!... Muito obrigada, senhora duquesa! Sois boa pessoa. Saberei lembrar-me disso...

E, seguido pela escolta de libré, abandonou a sala com ares de imperador, enquanto a cólera de Perceval se volvia para Sylvie:

- Não enlouquecestes ao dar-lhe esse dinheiro? Haveis escutado o que ele disse! Saberá “lembrar-se da vossa generosidade”; isso significa que o tereis sempre na vossa ilharga! Nunca mais, mas nunca mais conseguireis desembaraçar-vos dele, haveis-me compreendido?

O terror que se apoderara da jovem quando Saint-Rémy evocara a possível morte do seu filho encontrou uma escapatória numa violenta diatribe:

- Pois bem, ele fará parte da minha lista de pobres e é tudo! Sou suficientemente rica para isso! Não haveis compreendido o que ele disse? Se não o ajudarmos, vingar-se-á em Philippe... e eu não quero que suceda seja o que for ao meu querido filho!

- Sylvie, Sylvie! Acabásteis de pôr o dedo no meio de uma engrenagem sem fim. Ele compreendeu que estais com medo e isso dar-lhe-á vantagem sobre vós. Hoje contentou-se com aquilo que lhe destes... e que foi muito generoso, mas amanhã pedirá o dobro e, em seguida, visto que está tão desejoso de ingressar na família, será ainda capaz e por que não?... Vá-se lá saber com gente desta impudicícia... de pedir a mão de vossa filha... Que faríeis então?

- Dizei-me qual a vossa proposta.

- Trazer Philippe para aqui, para o pé de nós, e renunciar ao colégio enquanto não estivermos livres deste homem.

- Estava a pensar nisso. Tanto mais que entre vós e o abade de Résigny, Philippe não ficará certamente a saber menos. E depois?

- Depois, fazer todos os possíveis para eliminar este perigo, pois não tenhais a mínima dúvida de que ele é muito sério. E em primeiro lugar tirar todas as informações que pudermos a respeito dele, pois achei a sua história um pouco sumária. Nesse capítulo conto com o abade Fouquet.

A cólera de Sylvie amainava para dar lugar à reflexão.

- Há uma coisa que me espanta: como é que, ao desembarcar das Ilhas, ele podia saber que o meu filho nasceu precisamente nove meses após a morte do pai? Só faltava que também estivesse ao corrente do que se passou nessa noite em Conflans...

- Se ele o sabe, deve tê-lo sabido durante a sua estadia aqui, mas, nesse caso, de que maneira? Não vejo como é que esse tal Colbert, de quem ele tanto fala, poderia ter desvendado os nossos segredos. Além disso, se este é o inimigo jurado do nosso amigo Fouquet, ainda se encontra numa posição muito frágil para se lançar em intrigas desta espécie. Espero que nunca lhe tenhais feito nada...

- Mal nos conhecemos. Quando nos cruzamos, é sempre muito bem educado, muito cortês até, e eu tento ser simpática para com ele, se bem que não goste nem da maneira como olha, nem do modo como se comporta com o Superintendente...

- Estou a dizer-vos que, seja qual for o preço a pagar, primeiro é preciso saber! E a este propósito... peço-vos que me desculpeis pelo meu arrebatamento de há pouco. Sois vós que tendes razão, pois graças às moedas de ouro acabamos por ganhar algum tempo. O homem vai adormecer sobre elas fazendo sonhos dourados, mas nós não temos qualquer motivo para fazer o mesmo. Que pena que o nosso caro Théophraste Renaudot nos tenha deixado por um mundo melhor. Ninguém sabia, como ele, descobrir o porquê das coisas e abrir a caixa de Pandora...

Apesar desta póstuma saudade, o abade Fouquet não tardou porém a revelar-se muito útil. Uma semana depois, Perceval ficou a saber por seu intermédio que, se no dia 10 do mês precedente o navio de comércio Anjo Gabriel, pertencente ao armador Lê Bouteiller de Nantes, acostara efetivamente neste porto, com um carregamento de madeiras exóticas provenientes da ilha de São Cristóvão e com alguns passageiros a bordo, o nome de Saint-Rémy não constava, porém, da lista, e nenhum deles se assemelhava à sua descrição.

 

                             A AMEAÇA

Mazarin dava a sua última festa. Nos salões do Louvre, iluminados a giorno para essa noite, os comediantes de Monsieur, sob a direção de Molière, que era também autor, encenador e intérprete principal do grupo, iam representar duas peças: O Pasmado e As Preciosas Ridículas. Não era apenas para comodidade do ilustre doente que se atuava na sua residência, mas porque o teatro do Petit-Bourbon, contíguo ao Louvre, onde atuava normalmente o novo grupo de teatro na moda, estava em demolição devido à renovação do velho palácio e porque o Palácio Real, que Monsieur pretendia magnífico para as suas futuras festas de homem casado, não estava ainda terminado. No fundo, ninguém se queixava porque a decoração da galeria, onde se exibia uma parte das coleções do Cardeal, era de grande magnificência. Marie de Fontsomme, para quem esta era a primeira festa e que seria mais tarde apresentada ao Rei, às duas Rainhas e, sobretudo, a Monsieur, esbugalhou os olhos de espanto e mal podia conter-se de contentamento. Ia finalmente viver naquele mundo deslumbrante com o qual tanto sonhara no fundo do seu convento!

Trajando um vestido de cetim azulado, com rendas que pareciam pequenas nuvens deslizando pelo céu matinal, com fitas a condizer na sua cabeleira loura cuidadosamente penteada e com um fio de pérolas que realçava o colo do seu gracioso pescoço, a adolescente formava com a mãe (de veludo e renda pretos, enquadrando um extraordinário conjunto de diamantes ligeiramente rosáceos, cujas pedras o marechal-duque adquirira outrora a um comerciante de Burgos) um par que atraía, demoradamente, os mais diversos olhares. Mademoiselle, que encontraram em primeiro lugar, foi francamente uma manifesta admiradora:

- Não se pode realmente dizer qual das duas está mais bonita mas, cara duquesa, ireis conhecer as maiores dificuldades em conservar essa encantadora donzela...

- Oh, mas eu não me quero casar tão depressa! - protestou Marie. - Quero ser dama de honor da nova Madame e diz-se que logo que ela estiver presente, Monsieur organizará festas todos os dias!

- É verdade - suspirou a princesa. - Na vossa idade as festas são o que mais conta...

- Vossa Alteza já não gosta de festas? - perguntou Sylvie, sorrindo. - Contudo, revelais um grande talento para organizá-las...

- Talvez, mas não tenho vontade nenhuma de assistir a elas. Aliás, já não sou verdadeira dona em minha própria casa. Ao voltar de Saint-Jean-de-Luz tive a surpresa de encontrar a minha sogra[22] instalada no meu hotel do Luxemburgo. Não pára de chorar, de fungar, vasculhando por todo o lado e incomodando todos os meus criados. Há alturas em que me pergunto se não faria melhor em estar num convento!

Na realidade, a melancolia de Mademoiselle devia-se menos à coabitação forçada com uma princesa que se revelava grandemente invasora, do que ao seu próximo casamento com Monsieur. Atendendo ao seu estatuto, durante muito tempo pensara que só o Rei ou o irmão poderiam ser dignos dela. O primeiro acabara de dar o nó e eis que o segundo se aprestava a fazer o mesmo! Decididamente, naqueles últimos tempos a vida mostrava-se com muita falta de charme. Sylvie, que estava muito bem ao corrente disto tudo, ousou sorrir:

- Isso seria lastimável! Sempre pensei que Vossa Alteza daria uma grande soberana e não faltam reis com quem casar por essa Europa fora. A começar pelo rei de Inglaterra...

Foi interrompida por uma exclamação de Marie:

- Oh! olhai mãe, o senhor duque de Beaufort! Como é belo! E que porte real! Na verdade, é um magnífico gentil-homem!

- Mas de onde o conheces? - perguntou Sylvie espantadíssima.

- Como assim? Mas Mãe, recordai-vos, fostes vós própria quem me apresentou certa manhã em Conflans. Nunca mais me esqueci dele... Tanto mais que avistei-o umas duas ou três vezes na sala de visitas da Visitação.

Se o tecto de Primatice[23] lhe tivesse desabado na cabeça, Sylvie teria ficado menos perturbada do que ficou ao descobrir a nova perspectiva que se abria perante si. Seria possível que Marie, a sua pequena Marie, tivesse também sucumbido ao charme do qual ela própria se encontrava desde há tantos anos cativa? O riso de Mademoiselle, que felicitava Marie pelo seu bom gosto, salvou-a da vontade que começava a sentir de pegar na filha pela mão e sair com ela dali para fora. De qualquer modo, se o mal já estivesse feito, de nada serviria fugir. A sua própria experiência era disso testemunho...

Aliás, François aproximava-se, depois de Nicolas Fouquet se ter juntado a ele. Vinha acompanhado por duas donzelas, cuja aparição provocou uma exclamação de cólera da parte da jovem Marie:

- Oh, meu Deus! Ele vem aí acompanhado por aquelas horríveis jovens Nemours, que não posso suportar!

- Nesse capítulo - disse Mademoiselle - só vos posso dar razão. Não só não são bonitas, como também se mostram insuportavelmente convencidas desde que não sei quem lhes predisse que uma seria rainha e, a outra, soberana...

Os dois grupos encontraram-se. Trocaram-se reverências, saudações e cumprimentos com a graça exigida pelo código de boas maneiras da época e, em seguida, enquanto Mademoiselle gracejava com Beaufort pelo papel de acompanhante das suas sobrinhas, Fouquet chamou Sylvie à parte:

- Senhora, o abade meu irmão informou-me que haveis sido importunada. Não posso de modo algum suportar semelhante coisa. É verdade que se trata de um homem que pretende ser filho bastardo de vosso sogro, o falecido marechal?

- Com efeito. Pretende estar na posse de uma promessa de casamento assinada pelo marechal... Oh, tudo isto é terrivelmente complicado, meu amigo, e vós já vos encontrais assoberbado de trabalho...

- Pouco importa! Não há nada que não esteja disposto a fazer por vós. Amanhã irei ver o cavaleiro de Raguenel e tomaremos juntos as medidas apropriadas; como será possivelmente necessário termos de procurar uma personagem nos locais mal afamados de Paris, levarei comigo um dos meus empregados, um jovem absolutamente extraordinário, que é um excelente batedor de pistas e que já me prestou grandes serviços: chama-se François Desgrez.

- Não estou minimamente convencida que ele esteja a viver nos lugares mal afamados. Dá-se ares de nobre e como lhe dei algum dinheiro...

- Daremos uma vista de olhos pelas tabernas. Mas o que quero - acrescentou, pegando na mão de Sylvie, meio coberta de renda, para beijá-la - é que fiqueis tranquila e que deixeis os vossos amigos ocuparem-se de uma personagem que nunca devia ter tido o direito de vos abordar...

Lançou um olhar rápido ao pequeno cortejo de criados que transportavam Mazarin num cadeirão para instalá-lo perto do palco e sorriu:

- Dentro em pouco disporei de um poder quase ilimitado. Ele estará inteiramente ao vosso dispor...

Depois deixou-a, para se dirigir para o Rei, que chegava, seguido por um grupo resplandecente de jovens gentis-homens. Mal acabou a sua reverência, Sylvie aproximou-se do grupo formado por Mademoiselle, Beaufort e pelas três jovens, constatando que reinava uma grande agitação entre as duas Nemours: tinham acabado de reconhecer o seu ídolo, o caro “Péguilin”, e queriam dirigir-se imediatamente ao seu encontro, sem se preocupar em observar as regras protocolares, o que irritou Beaufort:

- Ou ficais quietas ameaçou ou eu não me ocuparei mais de vós! Não me obrigueis a arrepender-me de vos ter trazido aqui para assistirdes à comédia, em vez de vos ter deixado à cabeceira de vossa mãe...

- Mme. de Nemours está doente? - perguntou Mademoiselle.

- Está com uma das suas habituais enxaquecas. De qualquer modo não se teria deslocado até junto do Cardeal... O que não impede que estas duas meninas sejam insuportáveis! Quando penso que esta tem de desposar o herdeiro da Lorraine! - acrescentou, designando a mais velha. - Esse “Péguilin” não lhes sai da cabeça...

- Tenho de olhar mais atentamente para ele - riu-se Mademoiselle... - Ah, eis as Rainhas!.

E depois, voltando-se para Sylvie, disse-lhe:

- Minha cara, vamos ocupar os nossos lugares.

Foi nessa altura que Sylvie ouviu a pequena voz clara da sua filha, perguntando:

- Senhor duque, por que não vindes visitar-nos mais? Sabeis que as rosas de Conflans continuam sendo tão belas como dantes?

Sylvie pensou, então, que às vezes os filhos queridos bem podiam constituir uma pesada cruz a acarretar. Sem dar tempo a François de responder, disse, um nada nervosa:

- Marie, já é altura de aprenderdes os costumes da Corte! Diz-se Monsenhor e não se fazem perguntas tão pouco cavalheirescas a um príncipe de sangue...

- Oh, mas tenho a certeza que... monsenhor não ficou aborrecido comigo.

- Nem por sombras! Pelo contrário - respondeu Beaufort, procurando o olhar de Sylvie que se lhe escapava. - Mas cabe à dona da casa fazer os convites...

- Mas enfim, a Mãe ficaria satisfeitíssima...

- Marie, basta de conversa! - interrompeu Sylvie. - O espetáculo vai começar logo que Suas Majestades se sentem...

Efetivamente, as Rainhas sentavam-se nas poltronas a elas destinadas. Pelo seu lado, Luís XIV permaneceu de pé, contentando-se em apoiar-se descontraidamente na do Cardeal, o que lhe dava maior liberdade de movimentos, permitindo-lhe ir trocando toda uma série de sorrisos e de piscar de olhos coniventes com a bela condessa de Soissons, Olympe Mancini, que fora sua amante antes do casamento e em relação à qual manifestava um crescente favoritismo. Era certamente, de novo, seu amante. Para obter confirmação bastava olhar para as feições inquietas e para os olhos avermelhados da jovem Rainha, que não deixou de observar o esposo enquanto duraram as duas comédias. Pelo menos esta preocupação tinha o mérito de ocupá-la, pois era completamente incapaz de compreender o que quer que fosse das peças, apesar das explicações que a sogra lhe dispensava.

Ambas as representações foram calorosamente ovacionadas. Ao descer da cortina, o autor veio receber os cumprimentos do Rei e do Cardeal, que lhe outorgaram, cada um, uma pensão de três mil libras, após o que o Rei felicitou o irmão, dizendo-lhe que lhe invejava os seus comediantes[24].

- É uma honra ser invejado pelo Rei - respondeu Monsieur, contentíssimo - mas poderei perguntar a meu irmão se tem notícias de Londres? Já se sabe quando é que Mme. Henriette nos trará finalmente a princesa, minha noiva? Parece-me que as coisas se arrastam!

- Mas, palavra, pareceis cheio de pressa, meu irmão... - riu-se Luís XIV.

- Na verdade, estou.

- Será pressa em tomardes posse dos vossos títulos de duque d’Orleans, de Chartres e de outros locais, ou estais verdadeiramente apressado em desposar os ossinhos das Santas Inocentes?

- A nossa prima Henrieta agrada-me tal como é! - retorquiu Monsieur vexado - e não há razão alguma, meu irmão, para que eu e ela não formemos um casal tão feliz quanto o vosso!

Durante esse tempo Sylvie apresentara a filha às duas Rainhas que a receberam muito graciosamente. Ao voltar-se para elas, Monsieur examinou Marie, teve um amplo sorriso e acrescentou:

- Além disso, também tenho pressa de ver rostos tão encantadores quanto este a florescerem nos meus castelos e a ajudarem-me a fazer da minha corte um local de grande prazer...

- Quereis dizer que a nossa não vos convém?

O tom do diálogo endurecia de momento a momento. Mazarin tratou de pôr-lhe cobro, pedindo autorização para se retirar. Parecia efetivamente prestes a desmaiar e logo se atarefaram à sua volta, enquanto Luís XIV dava a mão à esposa para levá-la de volta aos seus aposentos. Sylvie não os acompanhou.

Mme. de Béthune estava no seu posto, como cada vez que havia uma festa ou uma cerimônia. Mas, ao voltar à rue Quincampoix, teve de enfrentar a filha. Marie, que não tugira nem mugira durante todo o trajeto, explodiu antes mesmo de despir a sua grande capa forrada.

- Na verdade não vos entendo, Mãe! Mostrai-vos tremendamente desagradável para com M. de Beaufort! Julgava-o um dos vossos amigos. Já não o é?

A voz era cortante e o tom acerbo, e Sylvie sentiu que o seu coração se punha a tremer. Depois de tê-la assombrado toda a sua vida, François iria tornar-se agora um tema de discórdia entre ela e a filha? A fim de evitar o confronto que sentia que estava para vir, optou por um pequeno desvio:

- Lembrai-vos de vosso pai, Marie?

- Claro que me lembro! Como esquecer a sua bondade, a sua ternura... e também o seu charme... por muito pequena que eu fosse na altura guardo dele uma imagem muito nítida: a de um belo e altivo gentil-homem...

- Então, não sois capaz de entender o que devemos à sua memória? Acaso ignoreis quem o matou?

- Não, eu sei que foi a espada de M. de Beaufort mas, nessa época, estávamos em guerra, e eles pertenciam a partidos diferentes. A paz e a reconciliação chegaram desde então. Mme. de Nemours, a quem ele também matou o esposo, já lhe perdoou...

- Mme. de Nemours é irmã dele e uma coisa explica a outra. Além disso, nesse caso foi Nemours que obrigou praticamente o cunhado a vir a terreno. Mas onde aprendestes isso? No convento?

- Claro! As raparigas do pensionato não prestam votos de silêncio. Aliás, as freiras também não... De qualquer modo a vossa explicação não é nada satisfatória, mãe: é verdade que Mme. de Nemours é irmã dele mas vós também quase o sois. Não foram ambos educados juntos?

- Sem dúvida, e gostava muito dele... tal como se pode gostar de um irmão, mas...

- Como haveis procedido para não ficardes apaixonada? É o mais sedutor dos homens!... Não teríeis podido desposá-lo?

- Deixai de proferir disparates! Ele pertence à casa dos Bourbon e eu era de nobreza bem mais modesta...

Marie rejeitou a objeção com um gesto desenvolto:

- Isso ainda conta para alguma coisa quando se ama?... Talvez fosse o caso outrora, mas eu, que sou filha de um duque, poderia desposá-lo! E, por Deus, é isso que desejo: tornar-me sua mulher!.

- Para além de estardes a jurar, também haveis enlouquecido! Ele tem mais de cinquenta anos e...

- Então, e depois? Parece ter vinte anos a menos! Além disso, amo-o! Estou certa de que nunca amarei outra pessoa! Quanto ao meu pai, ele dar-me-ia o seu consentimento! Tinha uma alma demasiado elevada para guardar rancor a quem o tivesse vencido ao nobre jogo de esgrima. Já disse: desposá-lo-ei!

Nesse momento uma corrente de ar introduziu Jeannette, que chegava de Fontsornme, de nariz avermelhado e com as mãos geladas, apesar das luvas grossas que vestia. Num relance examinou aquele quadro, com Marie toda empertigada nos seus trajes de festa, arvorando um sorriso já triunfante e Sylvie, sentada numa poltrona, de cara desfeita:

- Dir-se-ia que cheguei numa altura interessante disse. Quem é que vamos desposar?

- Ela quer desposar M. de Beaufort! - suspirou Sylvie. - Parece que nunca mais amará outra pessoa.

Compreendendo até que ponto a sua senhora precisava dela, Jeannette optou por rir:

- Misericórdia! Um velhote que poderia ser pelo menos pai dela!

O grito furioso de Marie cortou-lhe a palavra:

- Um velhote? Ele é muito mais jovem que qualquer desses janotas da corte! E eu amo-o!

- E, claro está, ele também vos ama?

- N... ão! Ainda não! Pelo menos, assim o creio... mas acabará por fazê-lo! Saberei tão bem aliciá-lo, que irá adorar-me!

Jeannette foi pegar na mão da jovem e levou-a até à escadaria:

- Pelo menos não será a modéstia que vos sufocará! Ide pois deitar-vos, minha querida gatinha! Com essas ideias na cabeça ireis decerto ter sonhos lindíssimos! E eu tenho de falar com a senhora duquesa!

Marie desapareceu, cantarolando a melodia com que Molière acompanhara as suas Preciosas e Jeannette voltou para o pé de Sylvie que já erguia, na sua direção, um olhar inquieto:

- Que tens a dizer-me? É um assunto grave? Para chegares a esta hora...

- De modo algum! Tive apenas vontade de ir respirar um pouco o ar da cidade. Corentin aborrece-me com as suas contas, as rendas das quintas e as grandes cavalgadas através do domínio. Deixei-o entregue aos seus prazeres e eis-me aqui!

- Zangaram-se?

- Nem isso! Só que, de tempos a tempos, ele sente a necessidade de se lembrar do que era a sua vida sem mim. Mas, dizei-me, senhora: o que acabo de ouvir... não é a sério, pois não?

- Que Marie se tenha enamorado de M. de Beaufort? Receio bem que sim...

- E isso entristece-vos, mas tendes de pensar que, aos quinze anos, o coração ainda está muito longe de se ter fixado...

- O meu já o estava bem antes. Tinha quatro anos, Jeannette, quando encontrei o meu mágico na floresta de Anet...

- É verdade, mas depois não o haveis mais abandonado e os dias fizeram a sua obra cimentando o que era ainda frágil. Marie irá viver para a Corte, no ambiente de uma princesa de dezesseis anos. Haverá festas e muitos belos gentis-homens à sua volta. Isso vai passar-lhe depressa...

- Que Deus te ouça, minha Jeannette...

No dia 6 de Fevereiro desencadeou-se um violento incêndio no Louvre, no local chamado a Pequena Galeria e que era contíguo aos aposentos de Mazarin. Aterrorizado, e apesar do seu estado de saúde cada vez mais crítico, o Cardeal mandou que o transportassem a Vincennes, para o rés-do-chão do Pavilhão do Rei, grande parte do qual fora ele que mandara construir. Quanto ao Rei, mudou-se para Saint-Germain mas, pelo número dos que seguiram um e outro, era fácil depreender quem detinha as rédeas de todo o reino. Como era seu dever, Sylvie seguiu a Rainha, deixando os filhos à guarda vigilante de Perceval, do abade e da sua fiel criadagem.

Porém, enquanto em Vincennes Mazarin procurava recuperar do seu tremendo susto e se esforçava por fazer boa figura, só aparecendo perante os cortesãos “de barba feita, muito asseado e de ótimo aspecto, com o seu manto da cor do fogo e a boina de cardeal na cabeça”, enquanto se apoiava no criado Bernouin, demorando cada vez mais ao visitar, a passinhos lentos, as coleções que mandara trazer para o castelo, agarrando-se a elas com todas as forças, como se quadros, esculturas, jóias e móveis preciosos possuíssem o poder de conservá-lo nesta terra, ocorria entretanto o grande acontecimento que Monsieur esperara tão impacientemente: acompanhadas por uma soberba comitiva inglesa, a princesa Henrieta e sua mãe desembarcaram no Havre, depois de terem enfrentado o mau tempo invernal na Mancha e depois da jovem ter estado quase a morrer, pois adoecera gravemente antes do embarque, tendo chegado a recear-se pela sua vida.

No entanto, logo que a futura Madame apareceu em Saint-Denis, onde era esperada pelo Rei, pelas Rainhas e por toda a Corte, pouco faltou para que fosse saudada por uma exclamação de surpresa unânime: em poucos meses, a borboleta rompera a sua crisálida e a pequena rapariga triste e magra, elevada por caridade e com a qual o Luís adolescente se recusara a dançar porque a achava muito feia, cedera lugar a uma jovem radiante, talvez um nada magra, mas que o porte elegante, o delicado rosto de tez brilhante, os belos olhos sombrios e os magníficos cabelos castanhos atravessados por reflexos ruivos, bem como toda a sua pessoa, que irradiava uma requintada graciosidade, acabavam por formar um conjunto de um charme deveras cativante... e no qual Luís XIV ficou enredado ao olhá-la pela primeira vez. Quanto a Monsieur, transbordando de alegria, declarou-se apaixonado como nunca o estivera, apesar da cara amuada do seu amigo de peito, o belo e perigoso cavaleiro de Lorraine.

- Então, irmão? - exclamou, sem qualquer amenidade que tendes a dizer dos ossinhos das Santas Inocentes?

- Que nunca se deve abrir a boca sem se saber do que se está a falar e que, com as mulheres, é preciso contar com tudo. Tendes muita sorte, irmão. Tratai de não vos esquecerdes disso demasiadamente depressa...

- Não há qualquer hipótese de me vir a esquecer! - respondeu o príncipe, com súbita rispidez. - Os amigos que enviei ao Havre para receber a minha mulher, olham para ela com olhinhos de carneiro mal morto... e que dizer desse Buckingham que nos chegou na sua companhia?

Com efeito, para grande comoção de Ana de Áustria, para quem esta chegada vinha agitar tão doces e cruéis recordações, Henrieta e a mãe faziam-se acompanhar pelo favorito do rei Carlos II, o magnífico George Villiers, filho do homem que fora talvez a sua grande paixão, paixão à qual só não sucumbiu por um triz nos jardins de Amiens. E a Rainha-Mãe, ao estender a sua mão para os lábios daquele belo jovem, tão semelhante àquele outro cuja imagem ela guardava no fundo do coração, teve um sorriso e um olhar, que aqueles que frequentavam a Corte há mais tempo não tiveram qualquer dificuldade em traduzir: o jovem duque teria direito a todas as suas indulgências... A partir daí, todos retiveram a respiração, com a deleitável sensação de que se estavam a reunir todos os elementos para um pequeno drama.

O Rei quisera que tudo fosse magnificente para o casamento do irmão. À noiva e à mãe foi mais uma vez oferecida a hospitalidade do Louvre, mas quão diferente era agora daquela que tinham conhecido na época do exílio! Em vez das salas mais ou menos desertas do rés-do-chão, desprovidas do mínimo conforto e frequentemente sem aquecimento, foram instaladas num vasto aposento, forrado de tecido e de tapetes espessos, com pinturas frescas profusamente ornadas com douraduras, móveis preciosos, altos espelhos que multiplicavam até ao infinito aquela decoração de sonho, candelabros cheios de velas cor-de-rosa e uma multidão de criados atentos e de guardas de soberba aparência. Dado que a época da Quaresma estava prestes a chegar, também se multiplicaram as festas: particularmente no dia 25 de Fevereiro, houve um bailado interpretado pelo Rei e pelos mais novos e mais belos membros da sua corte. Uma grande soirée que fez Marie chorar de raiva pois só na noite do casamento é que ela seria apresentada com as outras damas de honor e o resto do pessoal da casa de Madame. Desta vez estava fora de questão acompanhar a mãe! Teve de ficar em casa na companhia de Perceval que, gozando, propôs-lhe iniciá-la ao jogo de xadrez, o que ela considerou como uma alusão de muito mau gosto. Furiosa, correu a fechar-se no quarto para amuar à vontade...

Na verdade foi uma linda festa. Alguns estranharam que o bailado do Rei se intitulasse O Bailado da Impaciência quando, em Vincennes, todas as manhãs Mazarin via minguar o número de dias que lhe restavam de vida. Na realidade, tratara-se de uma galantaria destinada a representar a impaciência que o jovem esposo manifestava em ver os seus votos coroados de sucesso. Os dois noivos, sentados lado a lado, resplandecendo sob o fogo de mil raios, aplaudiram clamorosamente mas, curiosamente, o interesse da Corte dirigiu-se mais para a Rainha-Mãe que para eles. Vestida de preto suntuoso, como era seu hábito, nessa noite ela trazia consigo uma jóia curiosa: por cima de um grosso nó de veludo fixado no ombro, brilhava um pregador de doze diamantes, soberbos e um pouco provocantes.

O marechal de Gramont, que só muito a custo conseguira autorização para escoltar Mme. de Fontsomme, deixou escapar um grito de estupefação.

- Com que então, ela ainda os tem! - murmurou por entre o seu bigode. - Nunca teria acreditado...

- De que falais? - perguntou Sylvie.

- Da jóia que a Rainha-Mãe traz esta noite no ombro...

- Pois é, até que enfim que ela a pôs! Via-a frequentemente, dentro dos seus cofres de jóias. Também é verdade que já passou um pouco de moda, a não ser, talvez, para os homens.

- Perguntai-me antes por que o traz ela nesta noite e responder-vos-ei: em honra do jovem duque de Buckingham...

- Mas... porquê?

- Ah, sois ainda muito nova para terdes conhecido essa história espantosa! Mas... vamos antes apresentar os nossos cumprimentos a M. d’Artagnan, que hoje inaugura o seu traje de capitão dos mosqueteiros!

O oficial, soberbo no seu traje vermelho bordado a ouro, que arvorava com perfeita desenvoltura em nada deixando adivinhar que sonhara com ele durante trinta anos e, de braços cruzados, encostado a uma das portas da ampla sala, parecia contemplar aquele espetáculo cintilante, mas um observador atento ter-se-ia apercebido que na realidade ele olhava para Ana de Áustria e que uma lágrima brilhava no canto dos seus olhos escuros.

Tal observador fora aparentemente Gramont, pois parou a alguns passos do capitão.

- Saudá-lo-emos daqui a pouco. Por ora deixemo-lo a sós com a sua emoção!

Esta prova de delicadeza sensibilizou muito mais Sylvie do que o poderiam ter feito as declarações incessantes do seu apaixonado. Para grande regozijo dele, ofereceu-lhe espontaneamente um dos seus braços.

- Caro duque, e se me contásseis essa história?

Abrigaram-se sob o vão de uma janela esse refúgio para as conversas mais íntimas da corte e Gramont começou a contar a Sylvie o que era uma lenda para uns e que, para alguns raros conhecedores, era um fato inteiramente verídico: por ocasião da última embaixada, Carlos I vira-se obrigado a conceder esta a Buckingham, pai, que estava perdidamente apaixonado pela Rainha de França. Esta dera-lhe como lembrança um pregador com doze diamantes que lhe fora oferecido pelo esposo. Ao ser posto ao corrente da história pelos seus espiões, Richelieu encarregara lady Carlisle, uma das mulheres inglesas ao seu serviço, de roubar um dos diamantes do pregador e de lhe enviar depois. Em seguida, foi queixar-se com toda a amabilidade ao sombrio Luís XIII, perguntando-lhe por que motivo a Rainha nunca trazia um presente que lhe assentava tão bem. Não foi preciso mais para que o Rei exigisse à sua mulher que ela exibisse numa próxima festa a jóia que, na realidade, já não possuía. Foi então que um homem dedicado, apoiado por alguns amigos, arriscara a vida ao ir pedir ao duque que lhe devolvesse a malfadada jóia e tivera a felicidade de regressar com ela a tempo, depois de Buckingham ter mandado fazer uma cópia do diamante original que lhe haviam roubado...

- Esse homem providencial foi d’Artagnan. - concluiu Gramont. - Também é meu amigo de longa data. Não me espanta que ele se sinta comovido ao rever essa jóia que lhe deve recordar tantas coisas...

- A Rainha deve ter-lhe agradecido soberanamente, não?

- Ofereceu-lhe o quadro dela, que ele considera como o seu bem mais precioso depois da espada, o que lhe traz grandes sarilhos com a mulher.

- Ele é casado?

- Desposou há uns meses uma viúva bem bonita e afortunada, mas que já está a transformar-lhe a vida num inferno. Em primeiro lugar, porque é uma beata que após cada momento de maior efusão salta imediatamente da cama conjugal para ir pedir perdão a Deus por aquilo que ela considera como um pecado horrível; depois, é ciumenta ao ponto de não poder tolerar a presença do quadro da Rainha no quarto do esposo...

E, em seguida, dado que Sylvie não parecia conter-se de riso:

- Desgraçada, não vos ríeis! Trata-se de uma grave desavença! E esta noite deve estar louca ao sabê-lo aqui.

- Por que não veio com ele?

- Ela está grávida mas, de qualquer modo, detesta a Corte, que considera como o mais perverso de todos os locais perversos...

Entretanto d’Artagnan reconhecera-os e adivinhara que falavam dele. Aproximou-se e saudou Sylvie, como homem contente em encontrá-la:

- Senhora duquesa, é uma alegria voltar a ver-vos. Estou longe de me esquecer da aventura que passamos juntos... e da gratidão que vos devo...

- Uma aventura? Gratidão? E eu não estou inteirado de nada? - indignou-se o marechal, já picado por uma ponta de ciúme.

- Depois contar-vos-ei tudo, meu caro amigo. A senhora duquesa é uma mulher espantosa...

- Que aconteceu ao nosso... protegido?

- A Saint-Mars? Agora é brigadeiro e passa uma vida de grande rigor. Dá-se na perfeição com M. Colbert e está tudo dito!

- A propósito de amizade - sorriu Sylvie - senhor d’Artagnan, não quereis por acaso oferecer-me a vossa? O hotel de Fontsomme não fica muito longe daqui e sereis sempre bem-vindo...

Com uma chama alegre a brilhar-lhe no olhar, o mosqueteiro inclinou-se para a mão que lhe era estendida:

- É um convite que tratarei particularmente de não esquecer. Muito obrigado, senhora duquesa! Quanto ao meu respeito e amizade há muito que eles vos pertencem... Ohh. Querei desculpar-me: o Rei reclama a minha presença.

Acostumado a decifrar depressa as expressões do rosto, o olho de águia do oficial captara à passagem o olhar de Luís XIV. Despachou-se a ir ao seu encontro.

- Pergunto-me - resmungou o marechal - se fiz bem em querer falar-lhe. Este homem é capaz de assediar-vos e...

- Se eu não o permitir, ninguém me pode assediar, como dizeis! Já o deveríeis saber melhor que ninguém, meu caro marechal!

Nessa noite a festa acabou mais cedo do que o previsto. Em Vincennes, o Cardeal sentira-se suficientemente mal para chegar a rogar ao Rei que viesse ter com ele. Este decidiu imediatamente que a Corte deslocar-se-ia até ao Pavilhão do Rei logo na manhã seguinte, a fim de prestar assistência ao Cardeal até à sua derradeira hora. Para Sylvie isso significava que a sua casa teria de partir para Conflans, a fim de estar mais perto para assegurar o serviço. O jovem Philippe mostrou-se encantado: adorava Conflans quase tanto como Fontsomme e Sylvie regozijou-se por ir reencontrar as suas amigas, Mme. de Senecey e Mme. du Plessis-Bellière. Só Marie desatou aos gritos:

- E então o casamento? É para quando?

- Se o Cardeal agoniza é impossível prever uma data. A rainha Henrieta vai permanecer no Louvre com a filha e Monsieur ficará nos seus aposentos nas tuilleries, para se encontrar mais próximo delas. Toda a restante Corte acompanhará o Rei. Sê paciente - acrescentou, com mais doçura, ao ver a desilusão que se desenhava no lindo rosto. - Talvez não demore muito.

- Sim, mas se ele falecer amanhã, a corte ficará certamente de luto, não?

- Sim, penso que sim, mas como não se trata de um membro da família, o luto será de curta duração. Monsieur não esperará durante meses a fio.

De manhã, enquanto colocavam nas viaturas as poucas bagagens pessoais julgadas indispensáveis como Mme. de Fontsomme detestava as mudanças contínuas, as suas diferentes residências estavam sempre prontas a recebê-la chegou um mensageiro enviado por Nicolas Fouquet, trazendo um bilhete que continha apenas três frases, mas quão reconfortantes! “O homem que vos atormenta está atualmente na Bastilha. Tratarei que fique por lá. Beijo os vossos lindos dedos...”

Apesar de estar um tempo horrível nessa manhã chuva e vento à mistura Sylvie sentiu-se subitamente tão ligeira como se se encontrasse sob um alegre sol primaveril.

- Louvado seja Deus! Finalmente, vamos poder respirar! - exclamou, ao entregar a missiva a Perceval, que a leu num só relance.

- Não sei como procedeu o nosso amigo, mas não há dúvida que dá jeito ser-se procurador-geral do Parlamento...

- ...enquanto espera por ser Primeiro-Ministro, não vos esqueçais! Ah, caro padrinho, nem imaginais a que ponto me sinto aliviada. O pesadelo dissipa-se.

E como Philippe saía de casa acompanhado pelo abade de Résigny, para montar a cavalo, pois achava que já era demasiado crescido para viajar de coche como um pequerrucho, ela correu para ele, abraçou-o e apertou-o de encontro a si, sem se preocupar com o lindo chapéu enfeitado com plumas de que ele tanto se orgulhava.

- Mãe! - protestou o rapaz, conseguindo ainda agarrar no chapéu a tempo - que fazeis da minha dignidade? - E, depois, subitamente inquieto: - Já não vos acompanharei? Estais a despedir-vos de mim?

- Não, filho. Tive apenas uma vontade súbita de vos abraçar. Sois o mais lindo cavaleiro que me foi dado ver!

- Ah! Prefiro antes isso!

Esta pequena cena que fez sorrir Perceval, só provocou em Marie um enfastiado encolher de ombros. Já instalada no interior do coche, aconchegada num manto forrado que só deixava aparecer a ponta do nariz, toda ela era uma bola de reprovação, detestando tudo e todos com idêntica determinação: aquela manhã chuvosa, Conflans, onde nem sequer se procurara saber se o Sena teria inundado os jardins, todo o pessoal da casa, incluindo a mãe, o palácio de Vincennes onde M. de Beaufort nunca punha os pés, porque ficava muito perto do torreão onde agonizara cinco longos anos e, sobretudo, o cardeal Mazarin, que nunca mais se decidia a deixar este mundo!...

O ministro todo poderoso ainda não entrara em agonia, como deixara supor o seu apelo ao Rei. Só que, como os médicos lhe tinham dito que já não devia ter muito mais tempo de vida, ele quisera certificar-se de ainda dispor do suficiente para prodigalizar ao jovem soberano todos os conselhos que lhe tinham ditado uma longa experiência dos assuntos de Estado... Durante quinze dias, no meio do silêncio do seu quarto, guardado pelo fiel Barnouin e por dois guardas Suíços que proibiam a entrada a toda a gente, até ao médico, esse homem de cinquenta e oito anos, que parecia ter mais uns quinze, devorado quer pela doença, quer pelo trabalho esmagador que assumia desde há tantos anos, ditou detalhadamente, aos ouvidos ansiosos, o que se poderia chamar o seu testamento político, entremeado de conselhos mais secretos, cujas consequências não tardariam a fazer-se sentir. Por entre a sombra das cortinas púrpuras, com o rosto maquilado para tentar colmatar os estragos provocados pela doença, o moribundo proferiu palavras de terríveis consequências, que pesariam para alguns como uma pedra tumular. Palavras que não tinham grande coisa a ver com a caridade cristã que se espera encontrar da parte de um homem prestes a comparecer perante o seu Criador, mas que Luís XIV escutou com muito interesse. Finalmente, Mazarin disse ao seu monarca que lhe legava toda a sua imensa fortuna, palavras que foram acompanhadas por uma expressão que fustigou o orgulho do jovem soberano: este recusou-se a despojar a família do seu ministro, mesmo que a tentação fosse grande para um rapaz frequentemente reduzido às somas que lhe outorgavam. Finalmente aliviado, Mazarin deu-lhe um último conselho...

Em redor daquele quarto tão bem guardado, desabrochavam esperanças e despertavam ambições por todo o castelo. Fouquet passava horas na companhia da Rainha-Mãe, que sabia muito bem ser o seu principal trunfo; Colbert patrulhava incessantemente as antecâmaras do moribundo, armado de dossiers que esperava poder chegar ainda a entregar; o chanceler Séguier escondia muito mal a sua esperança de ascender ao posto supremo; enquanto favorita declarada, a bela Olympe de Soissons já se via a reinar, como amante sobre o Rei e sobre os afazeres do reino; só a Rainha rezava... mas as suas damas depressa descobriram que, de qualquer modo, ela estava sempre ocupada a fazê-lo e que, à parte a paixão que dedicava a seu esposo, ela só se ocupava com duas atividades: o serviço de Deus e o jogo. Ou antes, os jogos, de preferência os que eram a dinheiro. Nunca os tendo praticado nos palácios do pai, agora entregava-se a eles com um entusiasmo que lhe custava muito caro...

Finalmente ocorreu o tão esperado, o tão ansiado acontecimento. Na noite de 8 a 9 de Março, pelas quatro da manhã, o Rei, que dormia ao pé da Rainha, foi acordado por Pierrette Dufour, uma criada de quarto de Maria Teresa, que ele encarregara de preveni-lo caso a morte chegasse: o cardeal exalara o seu derradeiro suspiro entre as duas e as três da manhã. Ele levantou-se, sem acordar a mulher, vestiu-se rapidamente e foi até ao quarto mortuário onde encontrou o marechal de Gramont, que abraçou chorando:

- Perdemos - disse-lhe - um bom amigo.

Mandou instaurar o luto de imediato, como se se tratasse de um membro da família, chorou copiosamente, ao contrário de sua mãe que não derramou uma lágrima e, depois, algumas horas mais tarde, regressou a Paris, onde o Conselho fora convocado para o dia seguinte. Atrás dele, o castelo de Vincennes esvaziou-se como por encanto, deixando o defunto com a grande solidão da qual mais nada há a esperar.

Às sete horas da manhã seguinte, o Conselho reunia-se no Louvre, na sala habitual. Eram sete ministros e secretários de Estado à volta do chanceler Séguier, imponente como nunca e que, do alto da sua majestosidade lançava olhares irônicos ao superintendente das Finanças, que os desdenhava francamente. Elegante como de costume, vestido com todo o rigor apesar da hora matinal, Fouquet parecia contudo mais distante do que era seu costume e, através de uma janela, olhava para o Sena, tão coberto de nevoeiro que não se via a outra margem.

Chegou o Rei, vestido de preto, e todos eles, depois de o saudarem, dirigiram-se para os assentos respectivos, mas Luís XIV permaneceu de pé, o que os obrigou a fazer o mesmo. Voltou-se imediatamente para o Chanceler, desferindo-lhe um olhar sob o qual este foi perdendo toda a sua soberba. Um olhar de mestre e quando a voz se ouviu, também a tonalidade era nova:

- Cavalheiro - proclamou - mandei-vos comparecer com os meus ministros e secretários de Estado para vos dizer que até esta altura não me importei que os meus assuntos fossem tratados pelo falecido senhor Cardeal. Já é tempo de passar a ser eu a tomar conta deles. Ajudar-me-eis com os vossos conselhos, quando eu os solicitar. Senhor Conselheiro: à parte a corrente do selo à qual nada desejo alterar, peço-vos e ordeno-vos de só selardes ordens de comando quando eu assim o autorizar e de nunca o fazerdes sem primeiro falar comigo, a não ser que um secretário de Estado vo-las entregue da minha parte. E vós, secretários de Estado, ordeno-vos de nada assinardes sem a minha prévia autorização, nem sequer um salvo-conduto ou um passaporte... Vós, superintendente, peço-vos que sirvais M. Colbert, que me foi recomendado pelo falecido senhor Cardeal... Quanto a Lionne, pode estar seguro do meu afeto. Estou contente com os seus serviços...

Este pequeno discurso produziu o efeito de uma bomba. Os sete homens reunidos à volta da mesa nem queriam acreditar no que tinham ouvido. Deixava de haver Primeiro-Ministro! Um Conselho reduzido a dar o seu parecer apenas “quando fosse solicitado para isso”? Quanto às duas pequenas frases sobre Hugues de Lionne, encarregue dos Negócios Estrangeiros, elas davam claramente a entender que, se ele obtivera satisfação, era porque tal não acontecia com os outros. O chanceler Séguier sentiu-se um pouco mal-disposto e regressou depressa para o aconchego dos seus livros e das suas riquezas. Quanto a Fouquet foi a correr ter com a Rainha-Mãe, cujo despertar esperou pacientemente, para lhe contar o que acabara de se passar. Mas ela limitou-se a rir:

- Ele quer armar-se em rapaz - disse, encolhendo os ombros - mas gosta demasiado dos prazeres. Agora que o Cardeal já não está presente para apertar os cordões à bolsa, esse belo ardor no trabalho não resistirá muito mais tempo...

Era mais que evidente! E Fouquet regressou a Saint-Mandé, já inteiramente seguro de si.

 

                                         A FESTA MORTAL

O casamento de Filipe d’Orleans com Henrieta de Inglaterra ocorreu finalmente a 30 de Março, na capela do Palácio Real, então residência da viúva de Carlos I, mãe da noiva. Monsenhor de Cosnac presidiu à celebração da cerimônia, frente a um altar decorado com rosas de tons brancos e prateados, como as escamas gordurosas de um peixe, arranjadas pelas Visitandinas de Chaillot, especialistas na matéria. Apesar de Mazarin ter falecido havia apenas três semanas, mesmo assim assistiu-se ao casamento mais alegre e esplendoroso que era dado ver. Madame estava encantadora, Monsieur brilhava como um sol, rodeado pelos mais belos gentis-homens da Corte, transformados para o efeito em satélites, mas um pouco eclipsados pelo deslumbrante duque de Buckingham. As duas rainhas-mãe vinham de rosto radiante. Só Maria Teresa se esforçava por esconder os olhos cheios de lágrimas, porque o seu esposo não parava de olhar para a noiva. Entretanto, reunidas num salão do palácio, as novas damas de honor esperavam impacientemente a altura de serem apresentadas, Marie mais impaciente ainda que as outras.

Não tinham lugar disponível na capela para poderem assistir todas à cerimônia, mas ela suportara o revés bastante bem. Bastava-lhe estar ali presente; a cortina levantar-se-ia brevemente para lhe revelar a vida com que sonhava. Isso é que era o importante.

A jovem nem por isso deixava de olhar com curiosidade para aquelas com quem iria doravante partilhar a sua vida quotidiana ao serviço da princesa, perguntando-se se lhe agradaria travar amizade com uma ou outra de entre elas, tal como acontecera outrora à sua mãe com Mlle. de Hautefort. Era difícil decidir porque depois da severa Mme. de La Fayette amiga pessoal da rainha Maria Henrieta as ter reunido, contentando-se em chamá-las pelos nomes, não lhes fora concedida autorização para falarem umas com as outras.

Das dez, Marie apenas fixou quatro; as outras pareciam-lhe desprovidas de interesse, pertencendo àquela categoria da sociedade que se chama “a carneirada”, por se deslocar sempre num grupo compacto, não sendo possível diferenciar nenhuma delas das outras. Claro que eram todas muito belas mas, além disso, aquelas quatro pareciam também inteligentes, nomeadamente a que tinha o nome mais comprido: Athénais de Rochechouart-Mortemart, também chamada Mlle. de Tonnay-Charente: alta, de um louro deslumbrante, com olhos magníficos que cintilavam como diamantes azuis, ostentava um porte principesco, requintadas maneiras e era dotada de um espírito vivo, para o qual bastava uma só réplica. Louise de La Baume Leblanc de La Vallière também era loura, mas quanto ao resto era exatamente o oposto: com a luminosidade transparente da sua tez, com a sua fragilidade, os olhos de um profundo azul claro e os cabelos de reflexos prateados, evocava de preferência a suavidade do luar. Era doce e tímida. As duas outras eram morenas: Aure de Montalais possuía uma pele de marfim escuro e os olhos pretos mais vivos e alegres que se podiam imaginar; quanto a Elisabeth de Fiennes, era de tez castanho escura, faces rosáceas e pupilas de castanho aveludado. Pensando bem, Marie concluiu que se sentia mais atraída, por Tonney-Charente e Montalais: a primeira porque lhe lembrava a sua madrinha, a soberba e altiva Hautefort, e a segunda porque, ao vê-la, adivinhava-se que não devia ser nada aborrecido desfrutar da sua companhia. La Vallière tinha demasiado ar de vítima para todo o sacrifício e Fiennes não parecia nada interessada pelo que se passava à sua volta. A sua escolha pessoal foi de certo modo ratificada pelas raparigas, pois uma dirigiu-lhe um sorriso e a outra um piscar de olhos. Depois da apresentação, reuniram-se naturalmente:

- Meninas - disse Athénais de Tonnay-Charente, que também era a mais velha - não sei o que pensais acerca do nosso futuro, mas creio que podemos dar-nos por muito felizes por estar ao serviço de Madame, e não da Rainha...

- Seguramente que nos divertiremos muito mais! - apoiou Aure de Montalais, contemplando com prazer o círculo dos jovens gentis-homens que ansiavam por travar conhecimento com elas...

- Sois vós, Fontsomme, quem deveis saber! A senhora duquesa, vossa mãe, chamada mais vezes que o necessário a substituir Mme. de Béthune no seu papel de açafata, não achará o seu cargo muito pesado? Anãs, velhas aias que maceraram na água benta e, sobretudo, nas orações, quando a Corte toda só pensa é em cantar e dançar?!

- Vou confiar-vos um segredo - riu-se Marie. - A minha mãe é capaz de se adaptar a qualquer tipo de corte, mas é o chocolate que lhe estraga a vida! Detesta-o: fica sempre enjoada. Infelizmente, a Rainha bebe umas tantas chávenas por dia...

- Cá por mim gosto muito e adaptar-me-ia melhor a ele que às orações...

- Meninas, meninas! Deixemos por ora essas frivolidades, ocupemo-nos é de escolher aqueles que deveremos frequentar todos os dias, e ponhamo-nos de acordo para prestarmos sempre assistência e ajuda recíproca. E, sobretudo, tratemos de evitar meter o nariz na vida umas das outras - disse Athénais. - Quanto a mim acho o marquês de Noirmoutiers a meu gosto.

- Que lindo milagre! - riu a Montalais. - Diz-se que ele está apaixonado por vós e pronto a pedir a vossa mão. Pelo meu lado, tenho desígnios mais elevados. Dado que não poderei contar com o duque de Buckingham, que nos vai deixar porque Monsieur está com ciúmes dele, confesso que o conde de Guiche...

- Má escolha, minha cara! O herdeiro do marechal de Gramont é o favorito de Monsieur!

- Verdade?

- Estou certa. Contudo, pode ser que as coisas mudem se continuar a olhar para a Madame da maneira como o faz desde há dois dias. Que me enforquem, se ele não está a ficar apaixonado!

- Nesse caso - considerou filosoficamente Montalais - é melhor que olhe para outro lado... E vós - acrescentou, sorrindo para Marie - para que lado pende o vosso coração?

A pequena era a mais jovem das três ficou toda corada.

- Oh, eu... eu não me interesso pelos jovens. Gosto que um homem seja verdadeiramente homem, e não apenas um esboço.

- Com que então inclinai-vos para o lado de um velho jarreta! - comentou ironicamente Athénais. - Que pena! Vamos, contai-nos tudo, visto que doravante viveremos umas ao pé das outras...

Mostravam-se ambas charmosas, amigáveis, e não pensavam certamente em troçar dela mas, mesmo assim, Marie sentia-se relutante em revelar o nome que lhe invadia a cabeça e o coração. Deixou pairar o olhar à sua volta e parou...

- É... é M. d’Artagnan!

- O capitão dos mosqueteiros?

Mostravam-se as duas muito espantadas, mas Marie ergueu direitinho o pequeno nariz, agitando nervosamente o leque.

- E por que não? Diz-se dele que é a mais bela espada do reino e, além disso, tem... dentes soberbos!

Percebendo que ela encontrara ali uma escapatória, as suas companheiras puseram-se francamente a rir. Athénais, num gesto quase terno, acariciou ligeiramente a face com a ponta do dedo.

- Tendes razão: somos demasiado curiosas! Guardai o vosso segredo, pequena máscara!... Em todo o caso, creio que não nos iremos aborrecer juntas...

Excepto pela ocasião das cerimônias religiosas, às quais assistia toda a Corte, ou melhor, todas as cortes, pois foi depressa evidente que a de Madame ultrapassava todas as outras, Sylvie quase deixou de ver a filha. Tudo o que a França contava como nobreza jovem, rica, alegre, viva e ansiosa por divertir-se, marcou encontro no palácio das tuileries ou no castelo de Saint-Cloud, que Monsieur transformara numa maravilha... O pequeno senhor tinha gosto e se a sua “paixão” pela mulher durou apenas quinze dias, mostrou-se felicíssimo por estar no centro do que a vida parisiense contava de mais elegante: numa palavra, de estar na ponta da moda! E Madame encantava todos os corações: descobriam-na! Revelava-se viva, inteligente, imediatista, gostando acima de tudo de seduzir e de se divertir. A partida de Buckingam, que Monsieur exigira a sua mãe porque o achava petulante, Filipe pertencia a essa espécie de ciumentos, a pior de todas, que é a dos ciumentos incapazes de amar, em nada comovera Madame. O belo duque já passara à história no seu papel de adorador e, agora, devia ceder o lugar a um outro alvo, muito mais apaixonante aos belos olhos da princesa: o Rei, que se deslocava pelo menos uma vez por dia até aos seus aposentos. O próprio Luís XIV, que acabara de assinar o contrato de casamento de Marie Mancini, a sua grande paixão de juventude, com o riquíssimo príncipe Colonna, acabando por vê-la partir para Itália sem sequer pestanejar, libertou-se de Olympe de Soissons nomeando-a superintendente da casa da Rainha, em substituição da princesa Palatina. Isto não agradou nada a sua mulher: para além do fato do esposo se deslocar pontualmente todas as noites até à sua cama, era evidente que Madame o ocupava durante todo o resto do tempo.

Em compensação, Fouquet foi muitas vezes visto em Conflans, onde Sylvie decidira ficar à espera dos belos dias que se aproximavam e, sobretudo, sabendo que corria o rumor em como o Rei não tardaria a deslocar a Corte para Fontainebleau. Próximo de Saint-Mandé e vizinho do domínio de Mme. du Plessis-Bellière, esse lindo solar representava para ele um abrigo amigo, onde podia estar certo de ser sempre compreendido, de ser sempre encorajado, pois as duas mulheres viam-se frequentemente e não era raro que, ao visitar uma, acabasse por encontrar a outra.

Depois do famoso Conselho em que Luís XIV afirmara o seu desejo de reinar sozinho, o Superintendente não conseguira dissipar uma vaga inquietação, apesar das palavras de segurança da Rainha Mãe. Inquietação que era compensada pelo rosto acabrunhado do chanceler Séguier que se vira calçando já as pantufas de Mazarin. É sempre algo reconfortante assistir à decepção de alguém de quem nada gostamos. Para ele, Fouquet, a sua posição mantinha-se inalterável: continuava estupenda como dantes, mesmo havendo agora um senão chamado Jean-Baptiste Colbert; Colbert, que fora a sua nuvem negra e que agora se tornara o seu braço direito, podendo até oficiar no Conselho... Entre os dois fora acordada uma espécie de reconciliação formal mas o soberbo, o magnífico Fouquet, estava bem determinado a ignorar tanto quanto pudesse aquele filho de vendedor de tecidos que, na sua opinião, estava fadado para empregos subalternos...

- Não o ignoreis demasiado! - aconselhou-lhe brandamente Perceval de Raguenel. - Não só esse homem nunca gostará de vós como também tem ciúmes.

- E se ele é vosso braço direito - apoiou Mme. du Plessis-Bellière, que ali estava presente - e caso não desejardes que ele vos roa o dito braço, nunca seria demais aconselhar-vos em tornar-vos maneta. Creio que ele está obcecado pela vossa perda.

- Pela minha perda?! Que palavras tão violentas, marquesa! - Em seguida e renovando um gesto de grande desprendimento do duque de Guise, disse: - Como se ele ousasse!

Os dias seguintes pareceram dar-lhe razão: aparentemente o Rei adorava um Superintendente que parecia apenas ocupado em distraí-lo. Foi assim que certa noite, ao ir ter com os seus amigos, Fouquet anunciou triunfalmente:

- Tanto eu como a Rainha-Mãe acertamos: o Rei só pretende divertir-se. Está farto de ver que tanto Monsieur como Madame atraem toda a alegria do reino: vai deslocar a Corte até Fontainebleau, onde quer dar grandes festas.

- Que tereis de pagar, caro amigo - disse Perceval.

- Claro. Deseja quatro milhões!

O montante caiu como um tijolo no meio do pequeno grupo reunido no salão de Sylvie, cujas janelas, dado o tempo ameno, haviam sido entreabertas, deixando filtrar o aroma florido dos lilases. Mme. de Plessis-Bellière pousou a chávena de chá[25] ainda meio cheia.

- E... tende-los?

- Se não os tiver hoje na íntegra, acreditai-me que conseguirei obtê-los. Quero ver o Rei contente! E ainda não é tudo: enquanto a Corte estiver instalada em Fontainebleau, estou convidado para organizar outra recepção em Vaux!

Aquela que, por entre as Preciosas, Mlle. de Scudély batizara com o lindo nome de Artémise, levantou-se tão bruscamente que as suas volumosas saias fizeram cair a poltrona.

- O quê, ele pede-vos quatro milhões e, ainda por cima, que organizeis uma festa em Vaux? Pois imagino que não tendes ilusões: não podereis sair a contento com uma caneca de leite das vossas vacas...

- Não. Eu sei que me irá custar muito mais que isso ter de receber a Corte em Vaux, mas penso que o Rei quer auscultar a minha obediência e saber até que ponto lhe sou dedicado. Mesmo que tenha de largar os três quartos da minha fortuna, sei que ele me reembolsará tudo...

Os três entreolharam-se inquietos. Ao trazer esta dupla novidade que tanto o devia ter aterrorizado, Fouquet parecia, antes pelo contrário, muito contente, quase radiante:

- Reembolsar-vos-á? - disse Raguenel. - Como podeis estar tão certo? Meu amigo, estou mais tentado a acreditar que Luís XIV deseja arruinar-vos, porque Colbert está por detrás, movendo a engrenagem...

- Deixem-no mover! Depois de me ter inteirado das suas disposições, Sua Majestade deu-me a entender que pensa em mim para ocupar um cargo elevado.

- Meu Deus, mas qual?

Fouquet apenas hesitou um momento, sorrindo logo a seguir:

- Sei que devia guardar isto para mim, mas perturbei-vos tanto que não resisto à felicidade de vos tranquilizar. O chanceler Séguier já é um homem de idade. Está a aproximar-se a altura em que terá de repousar, desfrutando, quer da sua fortuna, quer do ducado que possui em Villemor, longe dos negócios. Prometeram-me o seu posto... sob o selo do segredo! Aí está! Já vos disse tudo, agora permiti que regresse ao trabalho em Saint-Mandé, onde sou esperado. Tenho muito, mas mesmo muito que fazer!

Quando o galope veloz dos seus magníficos cavalos o levou de volta ao castelo, instalou-se um profundo silêncio entre as três personagens, cada qual procurando analisar pelo seu lado aquela avalancha de notícias. A marquesa foi a primeira a emitir a sua opinião.

- Caso não existisse Colbert, diria que tudo funciona às mil maravilhas...

- Mas ele existe - prosseguiu Sylvie - e eu sei que todas as noites o Rei se fecha com ele, para trabalharem juntos no Louvre. Isso não é lá muito normal, pois ele é apenas intendente das Finanças. Parece-me que logicamente ele deveria era reunir-se com o nosso amigo, não?

- Se quereis saber o que penso no fundo, não é isso que me atormenta. Para se tornar Chanceler de França, Fouquet terá de vender o seu título de Procurador-Geral...

- Efectivamente, há incompatibilidade entre os dois...

- Nesse caso, suplico-vos, senhora marquesa, vós que sois a conselheira a quem ele mais presta ouvidos, tentai que só venda o lugar quando já estiver nomeado para o novo cargo. Um procurador-geral é inatacável, intocável. Seja o que for que faça, nunca poderá ser traduzido em justiça, nem se lhe poderá intentar qualquer processo. Caso vendesse o título antes de ser nomeado chanceler, ficaria como um soldado que tivesse retirado a couraça no meio de uma batalha...

Mme. du Plessis-Bellière levantou-se de imediato:

- Tende a bondade de fazer avançar os meus cavalos! - exclamou. - Peço que me desculpeis pelo jantar desta noite mas penso que será melhor ir pedi-lo a M. Fouquet. É preciso solicitar a adesão de Pellisson, Gourville e La Fontaine... Cara Sylvie, ides partir para Fontainebleau e não voltarei a ver-vos proximamente, mas não vos esqueçais que sou vossa amiga... e não deixai de me prevenir caso vos chegue aos ouvidos algo de inquietante para o Superintendente...

- Podeis contar inteiramente comigo.

Mas Sylvie ia depressa inteirar-se que o fato de pertencer ao meio da Rainha não era um lugar ideal para observar o que se passava do lado do Rei. Na realidade, em Fontainebleau, a pobre Maria Teresa fora relegada um pouco, refugiando-se mais que nunca por entre as saias de sua mãe. Foi Madame a verdadeira rainha daquela linda Primavera, que explodia sob um céu delicadamente ameno. O Rei consagrava-lhe todo o tempo de que dispunha fora das horas dedicadas aos assuntos de Estado e às poucas que passava à noite ao pé de sua mulher. Ela tornara-se o centro de todas as festas, passeios na floresta, caçadas, banhos no Sena, concertos e comédias ao ar livre e, na verdade, o casal real já não era Luís e Maria Teresa, mas sim Luís e Henrieta... Eles constituíam o irradiante pólo de atração, em direção ao qual acorria uma juventude turbulenta, debochada, cruel, libertina e de bom grado rabelaisiana[26], mas soberba e plena de ardor e a Corte, que só contava então com cem a duzentas pessoas, parecia existir apenas para e por si própria... Os ecos dos violinos e os foguetes dos fogos de artifício encantavam e iluminavam quase todas as noites de Fontainebleau, onde quase já nem se dormia.

Contudo, ninguém chegara ainda ao ponto de imaginar o esboço de um romance: se era evidente que o Rei se aborrecia de morte com a esposa, tendo decidido chamar a si todos aqueles que constituíam a outrora alegre corte das Tuilleries, era normal que privilegiasse a sua sedutora animadora. Além disso, não era o alvo único (pelo menos aparentemente!) da sábia coquetteríe de Madame. Uma coquetterie suficientemente sutil para não se dirigir a ele diretamente. Tornava-se evidente para todos que lhe agradava a corte cada vez menos discreta que lhe fazia o belo conde de Guiche, favorito de seu esposo, como era óbvio que este ardia por ela com uma daquelas paixões que não olham nem ao estatuto, nem às circunstâncias.

Cansado de tentar trazer de volta a si aquele espírito tão volúvel, sem o menor sucesso, Monsieur explodiu em críticas indignadas, que recaíram sobre aqueles que já considerava como culpados. Henrieta, com uma fleuma toda britânica, contentou-se em rir-lhe na cara, encolhendo os ombros, mas Guiche deixou-se perturbar ao ponto de tratar o príncipe como qualquer marido que estivesse mal da cabeça. Louco de raiva, Monsieur recorreu ao Rei, para obter uma ordem de encarceramento que relegasse o insolente para a Bastilha por muito tempo, mas Luís XIV não tinha qualquer vontade em dar esse desgosto ao marechal de Gramont, de quem gostava. Tentou deitar um pouco de água na fervura:

- Irmão, irmão, receio bem que estejais a levar este assunto demasiado a peito! Se Madame é coquette, o que vos concedo, pensai que antes de mais ela deseja apenas divertir-se. Quanto a Guiche, há muito que o conheceis! Um bearnense que perde facilmente a cabeça e com o qual vos haveis disputado e reconciliado vezes sem conta...

- Isso foram só pecadilhos e nessa altura estava seguro da sua amizade, mas o que acaba de se passar não pode mais ser tolerado. Senhor, ele insultou-me e peço a Vossa Alteza que o expulseis...

- Como me haveis pedido ainda há pouco tempo para correr com o duque de Buckingham, arriscando-me a criar um grave incidente diplomático com a Inglaterra e a fomentar a discórdia entre mim e o meu irmão, Carlos II? Graças a Deus, temos uma mãe, e foi ela quem obteve essa partida... sem dramas!

- Estou-lhe muito grato, mas não se trata do mesmo caso. Buckingham não era um dos vossos súditos, e Guiche é! Quero que o prendam!

- Acusando-o de que crime? Pelas palavras que proferiu quando estava sob o domínio da cólera e que agora deve lamentar de todo o coração? Isso não merece o cadafalso... nem sequer a Bastilha! Vamos lá, irmão, acalmai-vos! Prometo-vos que direi uma palavra a Madame. Quanto a Guiche...

- Ides deixá-lo continuar com o seu joguinho de bilhetinhos, serenatas e outras galanterias, que levam os outros a troçar de mim?

- Nunca permitirei que trocem de vós, irmão - disse o Rei com gravidade. - Ele irá de volta para as suas terras até que tenha compreendido o respeito que vos é devido.

Nessa mesma noite o conde de Guiche deixava Fontainebleau com a morte na alma e Luís XIV esforçava-se por consolar o pai, assegurando-lhe a sua amizade pela família Gramont. No dia seguinte, durante um passeio na floresta, repreendeu suavemente Madame que, depois de se ter mostrado furiosa com as “injustas e injuriosas desconfianças de Monsieur”, agradeceu ao cunhado por ter sabido entender que lhe era aprazível ter sido desembaraçada de uma paixão incômoda, mas que não encontrava eco num coração feliz em desabrochar sob os raios de um amável nascer do Sol... E os dois jovens, felizes por se compreenderem tão bem, passaram ainda mais tempo juntos do que lhes era possível...

Ao entrar ao serviço da Rainha nessa manhã, Sylvie sentiu logo que a atmosfera estava tensa. Sentada na borda da cama e enquanto Maria Molina a calçava, Maria Teresa estava com um ar amuado e de olhos avermelhados. Exceto as primeiras preces, que murmurava sempre antes de se levantar, ainda não dissera palavra.

- O Rei não veio ter com a Rainha - cochichou Mme. de Navailles. - Passou parte da noite a dançar e a restante no Grande Canal, passeando numa gôndola na companhia de Madame e de músicos italianos.

Sem responder, Sylvie tirou das mãos de um pagem as jarreteiras de fitas enfeitadas com jóias e veio ajoelhar-se frente à Rainha, para apertá-las em volta das suas pernas, tal como o exigia o seu posto, o que lhe valeu um olhar desconsolado.

- Vossa Majestade dormiu mal? - perguntou, suavemente.

- Não preguei olho toda a noite! - foi a resposta lacônica.

Depois voltou a cair o silêncio pesado, enquanto Sua Majestade se sentava na cadeira como se fosse para o cadafalso. Em seguida, começou o ritual da toilette, com o bailado dos pagens e das criadas de quarto encarregues de trazer a água, a tina, o sabão de Veneza e os perfumes. Nem sequer a aparição da primeira chávena de chocolate conseguiu trazer um sorriso àquele rosto jovem. Era completamente fora do comum. Habitualmente, sobretudo quando o seu esposo cumprira bem os deveres conjugais, Maria Teresa estava alegre, ria-se a propósito de tudo e de nada e, se acaso lhe dissessem alguma gracinha sobre a noite precedente, ela ainda ria mais alto e esfregava as mãos uma na outra com ar imensamente feliz. Nada disso ocorria nessa manhã, cujo Sol radioso fazia contudo brilhar o ouro engastado nas madeiras, o cristal dos vasos cheios de flores, as taças de ágata, os candelabros em prata e os miúdos objetos de toilette em ouro puro! Até Chica, a anã, fingia dormir enrolada com uma bola, no espaço entre a cama e a parede, enquanto Nabo o pequeno negro de quem a Rainha tanto gostava, contentava-se em olhá-la de longe, com um ar completamente desconsolado.

A Rainha vestiu a camisa e, em seguida, colocaram-lhe uma saia de seda branca, tão estreita que aderia às suas formas, que se tinham arredondado. Depois, foi a vez de um ligeiro espartilho de fino tecido, mas de fortes reforços, que foi atado a fim de aprumar o porte. Ela protestava, dizendo que estava muito apertado. Sylvie aproveitou o ensejo para tentar desanuviar a atmosfera:

- A juventude e a habitual graciosidade da Rainha, têm tendência a fazer esquecer que ela traz consigo uma criança e que, doravante, necessita dos mais extremosos cuidados. Cruzei com M. de Vivonne no Pátio de Honra, que me declarou que esta manhã o Rei lhe teria dito que dado a festa de ontem se ter prolongado até mais tarde que o previsto, ele não quis vir ter com Sua Majestade para não perturbar o seu sono...

Maria Teresa pareceu ressuscitar de imediato.

- Verdad?... Que el Rey...

- ...se inquieta muito com uma saúde que se tornou duplamente preciosa. Assim é costume quando se ama, Madame... - disse Mme. de Fontsomme, com uma bela reverência, recompensada por um sorriso ainda tremido.

Enquanto Pierrete Dufour, a criada de quarto francesa, lhe penteava os magníficos cabelos, os pagens trouxeram todas as outras peças de roupa, de espessa seda em tons azuis e dourados, tendo Sylvie fixado seguidamente as jóias na cabeça e no corpo do vestido. Uma última nuvem de perfume e Maria Teresa levantou-se, dedicando uma bela reverência a todos quantos tinham estado a assistir à sua toilette, pegou nas luvas e, seguida por Nabo, que levava o seu missal, foi ter com a Rainha-Mãe, como costumava fazer todas as manhãs. À entrada dos aposentos de Ana de Áustria quase esbarrou com Monsieur, de saída, ainda vermelho de cólera e todo descomposto.

- Senhora - disse - acabo de me queixar junto à nossa mãe em como somos ambos muito mal tratados e espero que venhais dizer-lhe a mesma coisa! Na verdade isto não pode continuar! Estou decidido a regressar para o meu castelo real de Saint-Cloud caso persistam em desprestigiar-me, como tem acontecido nestes dias!

E sem ter pensado sequer em saudar, Monsieur disparou como uma bola de canhão capaz de fazer esvoaçar um lenço de renda, encontrando até maneira de dar um encontrão num guarda Suíço ali de serviço.

Ninguém soube do que falaram Ana de Áustria e a nora, mas quando as duas mulheres se dirigiram juntas para a capela, seguidas desta vez pelas suas damas e gentis-homens, pois era domingo, todos puderam aperceber-se que Maria Teresa tinha os olhos novamente inchados e que a Rainha-Mãe mostrava um ar severo que não lhe era nada habitual, sobretudo a hora tão matinal. Quanto a Madame, não compareceu. A princesa do Mônaco veio prevenir que ela tinha febre, tossia e devia ficar de cama:

- Mais tarde iremos consolá-la - disse a Rainha-Mãe, num tom de voz que deixava antever que o dito consolo bem podia vir a ser acompanhado por uma descompostura monumental. Após o que enviou Mme. de Motteville para rogar ao Rei que viesse vê-la logo que dispusesse de um momento livre.

No fundo, Ana de Áustria não estava nada descontente por poder dispor finalmente de uma oportunidade para educar um pouco aquela juventude tão estouvada e fervente de vida, que mostrava tanta tendência a deixá-la de lado com Maria Teresa. Não duvidava minimamente da ternura de seus filhos mas, sabendo que tinha envelhecido e que caía frequentemente doente, estava consciente de que lhe faltavam uns quantos atributos atrativos aos olhos de uma corte sequiosa de gozos e prazeres... O Rei chegou, ouviu o que tinha para ouvir e depois foi em busca de novas de Madame, com a qual se entreteve um bocado, a sós. Ao sair, avisou que regressaria no dia seguinte, e foi pegar no braço do irmão, com encantadoras manifestações de apreço “destinadas a consolá-lo”, decidindo levá-lo consigo à caça, dado que não ocorreriam as festas previstas para aquele dia. Monsieur detestava a caça, que considerava como um exercício demasiado brutal para a compostura das suas roupas, sempre admiráveis, e também para a delicadeza de suas mãos, mas ainda assim deixou-se levar sem opor resistência. Quanto à Rainha Maria Teresa, se bem que desolada por o seu estado a impedir de seguir o marido na caça (era uma excelente cavaleira!) acabou o dia por entre os odores mesclados do chocolate e do incenso, que ardia em grande quantidade no seu oratório, e desfrutando a suave calma que se segue às tempestades. Nesse dia todo o castelo ficou imerso num mar de tranquilidade.

Quando os caçadores regressaram, o Superintendente, que acabara de chegar das suas terras no Vaux na companhia do duque de Beaufort, veio segurar o estribo do cavalo do Rei, frente à bela escadaria em ferro forjado que Luís XIII mandara outrora construir, com modos requintados que pareceram pôr Luís XIV de excelente humor:

- Senhor Fouquet, trazeis-nos alguma boa notícia?

- Nenhuma em particular, Senhor. Desejava apenas saber em que dia estará Vossa Majestade livre a fim de me conceder a grande honra de visitar a minha residência em Vaux...

- O quê? Já? Não tínhamos falado no mês de Agosto e não nos encontramos ainda no fim de Junho? São precisos assim tantos preparativos?

- Senhor, quando se trata de receber o maior de todos os reis, à sua volta tudo deve tender para a perfeição e eu quero que o meu Rei fique satisfeito.

Luís XIV teve um sorriso, que um observador atento teria considerado ambíguo:

- Recebei-nos de acordo com os vossos meios, cavalheiro, e ficaremos satisfeitos! Ah, primo Beaufort, também estais por cá! Julgava-vos em Saint-Fargeau, em casa de Mademoiselle, que ultimamente desdenha a nossa companhia...

- Não, Senhor! Estive no campo, com M. Fouquet. Estamos a tecer grandes planos para que o Rei disponha de uma frota marítima condigna e trabalhamos...

- Mas que bem! Mas já que aqui estais, ide saudar Madame, que se sente mal-disposta e que bem sabeis como vos estima. Isso dar-lhe-á grande satisfação...

- A mim também, Senhor, mas... esse mal-estar... será promissor de algum feliz acontecimento?

- Isso espantar-me-ia muito! - troçou o Rei. - E tende cuidado em não vos fazerdes demasiado galante ao pé dela. Monsieur desata a guinchar como uma águia-marinha logo que Madame olha com doçura para qualquer gentil-homem.

Nessa tarde, a chegada inesperada da duquesa de Béthune permitiu a Sylvie escapar à atmosfera opressiva do aposento real. Sentia-se atacada por uma grande dor de cabeça que era não só devida aos vapores conjugados do incenso e do chocolate, como também à disputa incessante que travavam, dia após dia, e assim que as suas obrigações as levavam a encontrarem-se, a superintendente da casa da Rainha, Olympe Mancini, condessa de Soissons, e a dama de honor Suzanne de Navailles. A voz gritante da italiana, demasiado vaidosa para poder ser inteligente e, além do mais, perversa e cruel, esbarrava sempre contra a ironia mordaz e o desdém quase declarado da duquesa de Navailles, para quem, segundo os critérios vigentes da nobreza francesa, a outra possuía uma origem duvidosa, ocupando apenas aquele cargo de regente da casa da Rainha porque o Rei, para se desembaraçar de uma amante que se lhe tornara demasiado incômoda, não encontrara nada melhor para lhe oferecer. Pouco tentada por um regresso a casa onde o intenso calor do dia ainda se devia fazer sentir, Sylvie pensou que a frescura do parque só lhe faria bem. Era a hora do jantar do Rei e ali saborearia certamente um pouco de tranquilidade. Como de costume, atravessou todo o Canteiro para descer na direção da Cascata e do Canal que atravessava, de lés a lés, as sombras espessas do parque... Ela caminhava a passos lentos, abanando maquinalmente um precioso leque de lâminas douradas e atenta ao decrescendo dos ruídos do castelo. Procurava o silêncio, a calma da água adormecida sob um céu azul escuro, cravejado de estrelas e iluminado pela luz do luar. Parou um momento para poder contemplar tanta beleza e para deixar até de ouvir o som do roçagar do seu vestido pela areia. Foi então que distinguiu um ranger de passos que se aproximavam: tratava-se de um par que a fez parar de encontro à balaustrada, ocultando-se na sombra de uma estátua, subitamente incomodada pela sua posição involuntária de testemunha. Inimiga declarada das coscuvilhices da corte e daqueles que delas se alimentavam, quis retirar-se, mas foi travada por uma gargalhada seguida da pergunta:

- Com todos os demônios, cara pequena, sabeis que isto se parece com um sequestro?

- De que outro meio dispunha eu para poder finalmente falar convosco? Há semanas que não sois visto e, de repente, surgis em casa de Madame quando todos menos o esperavam: aproveitei a ocasião para me escapar quando havíeis saído, a fim de vos solicitar um breve encontro. Estais zangado... monsenhor?

Sylvie não tivera qualquer dificuldade em reconhecer as vozes de sua filha e de Beaufort. Quedou-se no mesmo sítio, tratando de anichar-se ainda mais por detrás da estátua. Aliás, a luz do luar era suficientemente clara para que pudesse distinguir facilmente os dois caminhantes, que pareciam dirigir-se para as cascatas.

- De modo algum, jovem senhora. Sentir-me-ia até lisonjeado... não fosse o receio de me irdes contar algum aborrecimento que tenha acontecido à duquesa, vossa mãe...

- À minha mãe? Mas para que foi ela aqui chamada e que vos faz supor que eu queira falar dela?

- Porque fomos educados juntos, ou quase, e porque não podeis ignorar a que ponto a estimo...

A repentina doçura do tom de voz de François só realçou mais a cólera que vibrava na voz de Marie:

- Ora aí está um afeto que não serve de nada! Senhor duque, a minha mãe detesta-vos. Já vos esquecestes que haveis morto meu pai? Isso não lhe deixa qualquer chance de vos amar...

- Ai de mim, bem o sei! E acreditai que me sinto mais desolado do que algum dia poderei expressar. Tal como com a brutalidade da vossa acusação. Se matei o duque de Fontsomme, não o queria fazer e isso faz com que o caso mude inteiramente de figura. Ainda sois demasiado jovem para poderdes apreciar verdadeiramente o que foi a Revolta, para aqueles que não se situavam do mesmo lado. E um duelo, quando as armas e o valor estão em pé de igualdade, isso nunca é um assassinato.

Apesar da gravidade soturna das palavras do companheiro, Marie pôs-se a rir:

- Dais-vos a muito trabalho para defenderdes uma causa que já há muito haveis ganho! Pelo menos, no que me diz respeito...

- Essa absolvição dá-me grande prazer - disse Beaufort, muito sério. - Era disso que se tratava?

Instalou-se um silêncio, como se Marie hesitasse à beira de algo desconhecido, mas ela era demasiado corajosa para ficar ali indecisa durante muito tempo. Além disso, há dias a fio que preparava o que tinha para lhe dizer. Por detrás da estátua, Sylvie ouviu:

- Quero declarar-vos que vos amo e que desejo ser vossa mulher.

Foi dito com toda a simplicidade, mas com uma nobreza tal que Sylvie estremeceu, porque detectara nela uma verdadeira determinação. A sua pequena Marie, em quem despertava a mulher que tinha dentro de si, acreditava profundamente nas palavras que acabara de pronunciar! François também deve tê-lo sentido, pois absteve-se de rir e deixou até passar algum tempo, antes de dizer:

- Quem sou eu para merecer ser alvo da escolha de um ser tão encantador quanto vós? E tão jovem!... Demasiado jovem, certamente, para saber realmente o que é amar.

- Tende dó de mim, guardai para vós as vossas banalidades! Não há idades certas para amar e não ignoro que a minha mãe vos amou quando ainda era pequena...

- Até que encontrou o vosso pai! O coração muda, Marie... Ao vosso acontecerá o mesmo que ao da duquesa...

De lágrimas nos olhos, Sylvie endereçou-lhe um pensamento pleno de gratidão. François sabia muito bem que ela sempre o amara e que o casamento nada viera alterar, mas era bom que Marie acreditasse nisso. Como reagiria caso viesse a ver na mãe uma rival?

Contudo, Marie voltava ao ataque:

- E quanto ao vosso, monsenhor? Como se porta? - perguntou num tom mordaz, que assustou a mãe que nele detectou o gosto pela luta e a capacidade de encaixe da mulher vindoura. - Será que as vossas numerosas amantes vos ocupam de tal modo que não sobra nele nenhum espaço para um... verdadeiro amor?

- Quantas mais são as amantes, menos nos invadem o coração. Tanto mais que nunca couberam lá.

- O quê, não amais essas mulheres que exibis?

- Não penso estar a exibir quem quer que seja.

- Ah, sim? E Mme. d’Olonne?

Beaufort encolheu os ombros:

- Menina, escolhei melhor os vossos exemplos! Mme. d’Olonne não o é... sobretudo para uma donzela! Não é daquelas mulheres que se amam.

- E Mlle. de Guerchy?

- Também não!

- Então, falemos de Mme. de Montbazon! Essa pelo menos havei-la amado, não?

Uma súbita cólera relampejou nos olhos de Beaufort.

- Proíbo-vos de dizer seja o que for a seu respeito! Respeitai a morte, Marie de Fontsomme! Sobretudo num caso destes! Creio que vou deixar-vos prosseguir sozinha o vosso passeio...

Já se afastava. Ela reteve-o com um grito:

- Não!... Suplico-vos, ficai ainda um pouco! E perdoai-me se vos magoei, mas é a primeira vez que estou apaixonada... e, certamente, a última, independentemente do que pensais!, e ainda não tenho muito jeito para estas coisas.

- O verdadeiro amor não precisa de ajeitar-se! Agora, minha querida menina, ouvi o que tenho a dizer-vos...

- Não sou a sua menina, nem quero sê-lo!

- Meu Deus, como sois cansativa! Parai de jogar com essas interrupções contínuas! O que vos tenho a dizer é muito sério. Em primeiro lugar, ficai sabendo que nunca me casarei. Quando era ainda criança, estava destinado a ir para Malta e a ideia agradava-me porque sempre sonhei correr os mares. Mas não fiz profissão de fé e nem sequer cheguei a ver os sinos da santa ilha guerreira...

- Portanto, nada vos impede de casar!

- Sim: eu próprio! Porque a mulher que amo desculpai-me se vos irrito, mas tinha que acabar por dizê-lo! nunca me aceitará como esposo...

Marie recuou como se tivesse sido atingida por uma bala:

- Nesse caso, amais alguém? - proferiu numa voz que causou dó a Sylvie. - Quem é?

- Só o disse a Deus e a ela. E mesmo assim nem sei se ela me acreditou...

- Então porque não renunciais a ela e não ficais com aquela que talvez vos pudesse ajudar a esquecer?

- Na minha idade já não se esquece e seria fazer-vos correr um grande risco. Mereceis melhor! Olhai em frente e não para trás! Eu pertenço ao passado!

- Talvez ao passado da Corte, mas não ao da glória! Sois um homem de armas e depois da morte do duque, vosso pai, sereis almirante, e ireis enfrentar o inimigo por todos os mares do mundo. Portanto, sereis um herói! E eu quero ser a mulher de um herói... e não de um janota da corte que passa o tempo à cata de um franzir de sobrolho do soberano.

François desatou tão francamente a rir que desanuviou a atmosfera:

- Já começo a compreender por que desejais tanto agarrar-vos a um velhote. Um marinheiro está muitas vezes ausente, o que deixa todas as oportunidades para que a esposa possa levar a vida que deseja, enquanto continua a desfrutar orgulhosamente da sua auréola de glória.

O grito de raiva de Marie incomodou um mocho que inspirava calmamente o ar noturno:

- Oh! Como isso é tudo tão indigno!... Mas podeis dizer o que quiserdes, que nunca havereis de conseguir desencorajar-me. Estou firmemente decidida a só vos desposar a vós... ou a Deus!

Voltou-lhe as costas e depois de ter agarrado na saia de cetim cor-de-rosa, encaminhou-se para o castelo iluminado sem imaginar sequer um instante que deixava a mãe mergulhada num abismo de reflexão... e que o seu bem-amado, ao vê-la partir, não soubera conter um suspiro de alívio.

Aquele amor era mais que intempestivo e até o assustava a ele, que nunca tivera medo de nada. Então não era que, depois de dez longos anos de penitência sem um só sorriso de Sylvie, sem poder sequer roçar-lhe os lábios pelos dedos, esta pequena estouvada lembrara-se agora de se apaixonar por ele? Que pensaria a sua doce e digna Sylvie, caso viesse a saber que ele conquistara o coração da filha? Que buscava uma feia vingança por dez anos de desdém ou que, apesar de ela não o desejar, procurava um meio, ainda mais vil, de dela se aproximar?

Reencontrando um gesto de antanho que lhe era familiar quando, ainda miúdo, se encontrava embaraçado em Anet ou em Chenonceau, apanhou algumas pedras e pôs-se a fazê-las ressaltar na superfície da água do Grande Lago, e foi essa mesma água que lhe sugeriu uma solução: largar para o mar, pedir ao todo poderoso Fouquet que lhe obtivesse um posto de comando, realizar enfim esse sonho, o mais puro e verdadeiro que há! Voltar as costas à Corte, às suas armadilhas e à sua perfídia e navegar com um punhado de homens, como simples marinheiro, sem esperar que a morte de um pai que amava lhe concedesse o Almirantado...

A última pedra que lançou selou a sua decisão e foi à procura do seu amigo Fouquet. Quando se afastou, Sylvie abandonou finalmente a sua estátua e prosseguiu o passeio que fora interrompido. A sua cabeça já não lhe doía, mas precisava mais que nunca de refletir no silêncio e na solidão. Desceu na direção dos reflexos da água do canal...

Entretanto, ao regressar ao castelo, Marie encontrou Tonnay-Charente e Montalais, que andavam à sua procura:

- Onde diabo estáveis? - exclamou a primeira. - Como vos podeis escapar dessa maneira, quando se passam coisas tão emocionantes?

Marie bem lhe teria retorquido que Beaufort lhe parecia o tema mais apaixonante que existia mas, para além do fato de não ter a intenção de partilhar o seu segredo com ninguém, teria sem dúvida perdido o seu tempo, pois as duas outras pareciam excitadas ao mais alto grau.

- É verdade? - perguntou num tom casual. - Monsieur terá feito alguma declaração pública de amor a sua esposa?

- Nem sequer teria gasto a sola dando um único passo para vos contar um acontecimento desses - respondeu Montalais. - Trata-se do Rei.

- Que novidade! Toda a gente sabe que o Rei está perdidamente apaixonado pela sua cunhada, a ponto de fazer chorar a Rainha.

- Se nos deixásseis falar - disse severamente Athénais - evitaríeis estar para aí proferindo disparates. Mas caso não estejais interessada no que vos temos a dizer...

Com um gesto Marie parou o movimento de recuo da sua interlocutora e, gentilmente, desculpou-se:

- Não vos zangueis: tenho andado um pouco nervosa nestes últimos tempos...

- Mas não vedes M. d’Artagnan todos os dias? - perguntou Montalais, num tom áspero.

- Claro que sim, mas tenho outros motivos de inquietude. Vamos lá, contai-me o que se passa!

- Pois bem...

Indiscutivelmente dotada para a narrativa, Athénais contou com loquacidade, e grande fidelidade, a pequena cena que acabara de se desenrolar no quarto de Madame, depois do senhor duque de Beaufort se ter ido embora. O Rei entrara por sua vez em busca de notícias da bela doente, mas um pouco à pressa. Estava a chegar a hora do jantar e Sua Majestade, que era de grande apetite, não escondeu que estava esfomeado. Mas ocorreu um detalhe que tornou este acontecimento extraordinário: ao deixar o quarto de Madame, e em vez de se dirigir para a porta, Luís aproximou-se do grupo das damas de honor e dirigiu-se diretamente a Mlle. de La Vallière, para lhe perguntar se estava a gostar da sua estadia em Fontainebleau. Passado naturalmente o primeiro momento de pasmo, o respeito obrigara a que as companheiras da jovem se afastassem, deixando o Rei num isolamento ideal.

- Muito incômodo, aliás! - grunhiu Aure de Montalais. - Não entendíamos mesmo nada do que se passava, tanto mais que a pobre Louise, inteiramente surpreendida e corada como uma cereja, balbuciava respostas praticamente inaudíveis, enquanto mostrava os olhos mais mortiços deste mundo...

- E isso passou-se no quarto de Madame? Na sua presença? E ela não disse nada?

- Absolutamente nada. Ela observava a cena do fundo da cama, enquanto bebia sumo de laranja com um ar perfeitamente inocente. Mas acabarei por descobrir o que disse o Rei a Louise. Somos colegas desde que servimos ambas a velha Madame, em Blois. Ela não me pode esconder nada.

Contudo, a curiosa Montalais ficou a ver navios: Louise recusou-se a revelar-lhe o que quer que fosse das palavras proferidas pelo Rei. Apertara o coração com as mãos enquanto falava, como se temesse deixar escapar a mínima réstia desse precioso tesouro. Atitude que levou as três companheiras a uma conclusão espantosa: com os seus arzinhos de virgem bem-comportada, frágil, e pouco ligando aos afazeres terrestres, La Vallière estava afinal apaixonada pelo seu soberano...

- Louca e perdidamente apaixonada! Depois disto vá-se lá confiar em águas estagnadas... - concluiu Montalais.

Mas ela e as companheiras ainda não tinham chegado ao fim das suas surpresas. Os dias seguintes alimentaram generosamente as suas conversas, bem como as de toda a Corte. Luís XIV pôs-se a cortejar La Vallière com toda a desfaçatez! Logo que entrava no aposento de Madame era a ela que procurava, antes mesmo de saudar a princesa. Se houvesse passeio, lá estava ele à portinhola do coche para lhe dar a mão!... Houve sobretudo o episódio da trovoada que rebentou quando todos se separavam floresta dentro e durante a qual se pôde ver que Luís permanecia de pé sob uma árvore, encharcando a cabeça desprotegida, enquanto se esforçava por resguardar da chuva a sua bela companheira com a ajuda do chapéu e, até, do seu próprio corpo. Quando regressaram para junto dos outros e enquanto não deixava de se olhar, o par parecia emitir uma espécie de aura radiosa, mais reveladora que um longo discurso. Madame, que até essa altura seguira aqueles diversos jogos com um ar divertido, deixou subitamente de sorrir...

Na realidade, passara-se o seguinte: perante o erguer de barreiras que desencadeara o amor que exibiam tão insolentemente, Luís e Henrieta tinham decidido responder à parada decidindo esconder-se à luz de um “chamariz”. Por outras palavras, o Rei fingia que se estava a apaixonar por uma das damas de honor da sua amante, tendo tido o cuidado de escolher a mais discreta e vulnerável de todas. A escolha recaiu sobre La Vallière, depois de Madame que não pensava minimamente em criar uma rival ter recusado Tonnay-Charente por ser demasiado bela e altaneira, Fontsomme por ser demasiado jovem e bonita e por ser evidente não poder desempenhar o papel por não se interessar pelo Rei e, por fim, Montalais, por ser demasiado esperta e seguramente muito difícil de manejar.

Ora, durante as conversas em privado que tivera com a jovem, Luís XIV descobriu algo de incrível, de inacreditável: desde que o vira outrora em Blois, na residência da sua tia de Orleans, a pequena Tourangelle amava-o, e até apaixonadamente! E era o homem que ela amava e não o Rei, tendo preferido cem vezes que ele fosse um simples mosqueteiro ou um fidalgote provinciano e não um indivíduo que era casado ao mesmo tempo com a França e com uma Infanta.

O amor atrai o amor e este era bem poderoso: Luís incendiou-se como uma tocha de pinho e esqueceu-se completamente de Madame, cujo único recurso foi fazer uma tentativa de aproximação às duas Rainhas, a fim de constituir uma frente comum contra a nova favorita. A pobre estava destinada a ter de aparar todos os golpes mas, entretanto, a multidão de cortesãos voltava-se num movimento uníssono, regulado desde há séculos, na direção do astro que despontava.

Nicolas de Fouquet fez-se anunciar em casa da sua amiga Sylvie de Fontsomme.

- Minha amiga, venho em busca de novidades. Acabo de chegar de Vaux e ouvi coisas tão espantosas, que tenho de procurar confirmação. Fala-se muito agora do Rei e de uma certa dama de honor, enquanto que quando lá estive pela última vez as atenções dele eram todas para Madame...

- Pois bem, entretanto tudo mudou. Pelo menos, assim o penso mas, meu caro Fouquet, é Marie que deveis interrogar, pois trata-se de uma das suas amigas.

- Assim que está em jogo o Rei, uma dama de honor da Rainha tem a obrigação de saber o mesmo. Sua Majestade não vai encontrar maior satisfação nesta nova aventura do que na precedente.

Sylvie desatou a rir:

- É o menos que se pode dizer! Pobrezinha!... Pensai só que desde que se casou há pouco mais de um ano, essa pobre pequena Infanta, apaixonada como não é possível, já viu o esposo comprazer-se primeiro com a Soissons, depois com Madame e agora é esta infeliz da La Vallière que ele exibe em plena luz do dia. De repente, as duas Rainhas e Madame estão continuamente juntas, visivelmente coligadas contra a nova favorita...

- Falai-me dela! De quem se trata, afinal?

- É uma encantadora donzela! Tímida, terna, apagada, uma verdadeira violeta dos bosques. Só tem dezessete anos. Pertence à alta nobreza de Touranges...

- Com fortuna?

- Oh, não o creio! É ela quem se veste mais modestamente entre as damas de honor de Madame. O marquês de La Vallière, seu falecido pai, possuía alguns bens, mas a viúva já os desfalcara um pouco antes de se voltar a casar com o mordomo da casa da antiga Madame. Claro que a Rainha está ao corrente disto tudo e à esposa achincalhada junta-se, nela, a espanhola ofendida. Talvez tivesse acabado por admitir uma amante de alto nível, mas o seu orgulho sofre terrivelmente, pois considera La Vallière como uma rapariguinha de nada.

- Vós que conheceis o Rei desde a sua infância, julgais que ele está verdadeiramente apaixonado?

Sylvie afastou as mãos num gesto que exprimia a impotência.

- Quem pode vangloriar-se de conhecer muito bem um homem como ele? Tudo o que posso dizer é que ele tem ar disso.

- Era tudo quanto queria saber! Despeço-me, cara duquesa, e beijo as vossas mãos!

Girando numa saudação plena de elegância, Fouquet desapareceu nas profundezas do palácio, proclamando que sabia o que lhe restava fazer. Quando Sylvie, inquieta, abriu a boca para lhe perguntar em que pensava, já ele havia desaparecido...

Na realidade, a ideia do superintendente das Finanças era enviar Mme. du Plessis-Bellière até junto de Louise de La Vallière, a fim de lhe prestar as suas homenagens e de lhe entregar duzentas mil libras “para que a sua apresentação fosse digna de uma augusta atenção”. Infelizmente, era a última das bordoadas a fazer, visto que Louise não era talhada do mesmo molde da maioria das damas da Corte. Não só recusou a oferta como, também, fervendo de indignação, foi contar tudo ao Rei...

Deste modo, Luís XIV está mais que prevenido a respeito do seu ministro quando, no fim da tarde de 17 de Agosto, o seu coche, enquadrado de mosqueteiros e de guardas franceses, transpõe os elevados gradeamentos dourados do castelo de Vaux-le-Vicomte e avança pelo meio de uma álea coberta de areia, da qual um exército de criados atenciosos retirara até o último calhau... O efeito de surpresa é total: perante a magnificência do castelo e dos seus jardins, surgidos dos bosques que até então o haviam dissimulado, Luís XIV fica de respiração cortada e à medida que a longa fila de viaturas progride, é quase com incredulidade que contempla os canteiros ornados, floridos, os repuxos de água está-se em plena canícula as estátuas e toda aquela arquitetura audaciosa, majestosa e tão nova.

E eis agora Fouquet em pessoa, que espera pelo Rei junto à escadaria, enquanto a sua mulher se vai colocar ao lado da portinhola da Rainha-Mãe. Maria Teresa, que sofre de uma gravidez que o calor ainda torna mais penosa, não pôde vir, mas Sylvie, enquanto convidada particular dos Fouquet, juntou-se à sua amiga Motteville. O que vê, aterroriza-a: o Superintendente havia despendido ouro a rodos para que a festa e o esplendor do castelo ficassem inesquecíveis e isso é muito, excessivamente muito, para um jovem Rei que se encontrava frequentemente sem dinheiro e cujo olhar nada tem de afável.

Depois de tomarem os refrescos, Fouquet faz as honras do parque, que dispõe de mil e cem jatos de água e, seguidamente, de um jardim hortícola sem igual no mundo. Muito mais tarde, Luís XIV fará ainda melhor em Versailles; contudo, agora podem ouvi-lo dizer aos seus cortesãos: “Ainda sois demasiado jovens para já ter provado os pêssegos de M. Fouquet”.

Regressa-se em seguida ao castelo para passar à mesa. Enquanto Fouquet e a mulher servem o Rei e Ana de Áustria num serviço em ouro, com os pratos mais requintados que Vatel confeccionara, os convidados têm à sua disposição trinta bufetes a transbordar de comida e dos vinhos mais finos. O Rei começa por devorar literalmente, para em seguida refrear o seu apetite, adquirindo uma expressão sonhadora enquanto a mãe finge desdenhar o que lhe oferecem.

Acabada a refeição, encaminham-se para o palco de verdura erguido à altura de um abeto próximo. Como se teme uma trovoada, os espectadores abrigam-se numa vasta tenda em damasco branco. Do programa consta uma comédia de Molière, Les Fâcbeux, a respeito da qual alguns se perguntam se não haverá nela uma discreta intenção. Por fim, um extraordinário fogo-de-artifício, obra-prima de Torelli, encadeia o céu estival. Dele brotam flores-de-lis, que acompanham os monogramas do Rei e da Rainha-Mãe que, em seguida, se fundem em milhares de estrelas. Seria completamente impossível imaginar algo mais esplêndido e galante mas, apesar disso, Luís XIV assiste a tudo com um olhar frio. Ao comparar todos aqueles esplendores com o que ele próprio possui, sente-se humilhado e esquece-se de que, antes de fazer a sua própria fortuna, Fouquet ajudara muito Mazarin a fazer a sua, Mazarin que, ao falecer, lhe dera, na pessoa de Colbert, o meio para demolir Fouquet.

- Senhora - sussurrou à sua mãe - não deveríamos dar o troco a esta gente?

Às duas da manhã, pensando que o Rei deseja descansar, Fouquet pede-lhe humildemente se ele não se importa de permanecer nessa noite no fabuloso quarto que lhe prepararam. Mas não, o Rei quer voltar a Fontainebleau. De imediato soam os clarins e, enquanto os coches começam a andar, o castelo inteiro parece incendiar-se sob o efeito da magia dos artilheiros de fogos-de-artifício e Fouquet vem segurar a portinhola do coche do seu convidado real. Nessa altura, perfaz um último ato, (quão generoso!): oferece Vaux ao Rei, com todas as suas maravilhas e os seus criadores, a esse mesmo Rei que nem sequer lhe endereça um sorriso, que nem sequer agradece essa festa que arruinou o Superintendente. Recusa o domínio, mas guarda na memória os nomes dos artistas que o criaram: Lê Vau, Lebrun, Lê Nôtre, sem contar com Molière, que ainda pertence a seu irmão e sem incluir também La Fontaine, que declamou tão lindos versos...

Vai-se embora, ruminando a sua cólera e um ciúme indigno de um Rei, quando este se pretende grande...

Sylvie reparou nisso tudo. Viu também o sorriso satisfeito de gato lambareiro que exibe a carantonha de Colbert. Esse sente o cheiro da carne fresca... Decidindo então deixar Mme. de Motteville regressar a sós, optou por demorar-se mais um tempo. Fouquet acabará por lhe encontrar uma viatura que a leve de volta a Fontainebleau, antes da hora a que a Rainha se costuma levantar. O que ela deseja é falar com o seu amigo: encaminha-se na direção do casal que, de pé junto à escadaria, contempla o comboio de coches reais que se embrenham noite dentro.

Mme. de Fouquet viu-a chegar e tem um sorriso cansado.

- Minha cara, já lhe disse tudo o que podia, mas ele não quis prestar ouvidos a nada. Permiti que agora me retire: sinto-me muito cansada...

- Isso seria de esperar por muito menos do que isto... Descansai bem! Quanto a vós, caro Nicolas, creio que endoidecestes. Acaso tendes consciência do que acabais de fazer? Para o Rei, esta festa demonstra de modo notório que sois mais rico e poderoso do que ele...

- Foi ele que se fez convidado. Como poderia recebê-lo como a um vizinho do campo? Fi-lo como devia, e o que lhe quis demonstrar foi que era capaz de ajudá-lo a tornar-se o maior de todos os reis!

- Haveis agido como ele desejava, ou antes, como desejava Colbert... Receio muito que vos retirem o vosso posto de superintendência e que nunca mais possais chegar a Primeiro-Ministro. Graças a Deus continuais a ser procurador-geral, o que vos salva do pior!... Ainda desempenhais essa função, não é verdade? - acrescentou, inquieta pelo rosto subitamente ensombrado do amigo.

- Não, já não o sou. Vendi o meu cargo a M. de Harlay, em troca de um milhão e quatrocentas mil libras... das quais vistes grande parte esfumar-se no ar com as iluminações, o espetáculo e o fogo-de-artifício.

- Meu Deus! Foi isso que fizestes? Mas...

- Ora, ora - interrompeu num tom casual, que pretendia reconfortante - mesmo que me façam abandonar a senda pública, saberei lá voltar com os anos. Entretanto partilharei o meu tempo entre aqui, onde me sinto bem, Saint-Mandé, onde estou ainda melhor e Belle-Isle. Como podeis ver, tenho matéria com que me ocupar.

- E se vos retirassem isso tudo, e se decidissem ir... mais longe?

- Não dramatizei as coisas! Já não estamos na Idade Média ou no tempo dos Valois e eu nem me chamo Enguerrand de Marigny, nem Beaune de Semblançay[27]. Dito isto... estou feliz por terdes ficado; entrai pois e descansai um pouco! Ao nascer do dia, o meu coche levar-vos-á de volta a Fontainebleau...

Ao regressar ao seu posto, envolta na frescura de uma aurora gloriosa, tornada ainda mais alegre pelo canto de uma cotovia matinal, Sylvie não encontrava maneira de dissipar negros pressentimentos que não amainaram nos dias seguintes. Aliás a Corte mostrou-se menos alegre. O Rei entregava-se inteiramente ao seu novo amor que encontrava secretamente (segredo que não durou muito!) no quarto do seu fiel Saint-Aignan. A Rainha prosseguia com uma gravidez que a atormentava e agora era a vez de Madame se lhe juntar, partilhando, com ela, as indisposições de uma futura maternidade que não a encantava, pois privava-a frequentemente dos prazeres de que tanto gostava.

Certa manhã, pouco tempo depois, o Rei anunciou que contava partir em breve para Nantes, onde se reuniam os Estados da Bretanha. Só se faria acompanhar pelos seus gentis-homens e as Rainhas ficariam em Fontainebleau.

Nessa mesma noite o capitão d’Artagnan encontrava-se com Sylvie à beira do Grande Canal, onde ela se habituara a deambular um pouco a horas tão regulares quanto possível.

- Senhora, vim dar-vos um bom conselho. Não vos escondo que hesitei muito tempo antes de tomar esta decisão... embora tenha grande prazer em encontrar-vos... mas, ainda não há muito, haveis-me salvo um amigo e vou tentar fazer o mesmo por vós.

- Ora aí está um preâmbulo aterrador...

- E o que se segue não o é menos. Dizei a M. Fouquet que não vá aos Estados da Bretanha... ou, caso assim o decidir, que apenas atravesse a cidade para refugiar-se em Belle-Isle...

- Mas... porquê?

- Porque o Rei mandará alguém prendê-lo... e quase juraria que esse alguém serei eu, como já estive prestes a ter de fazê-lo na outra noite, em Vaux.

Sylvie olhou apavorada para a alta silhueta do mosqueteiro:

- Mandar prender M. Fouquet no seu próprio domínio, quando este acabara de quase se arruinar só para lhe agradar?

- Foi por isso que tive a honra de dizer a Nossa Majestade que iria desonrar-se ao proceder desse modo e que, quanto a mim, não me sentia disposto a executar tão vil tarefa...

- E não vos encontrais na Bastilha? - murmurou Sylvie, espantadíssima com tal ousadia.

- Pois não! Há muito que o Rei me conhece. É jovem, impulsivo, e quando está encolerizado é difícil fazê-lo escutar a voz da razão; desta vez sempre acabou por admitir que era eu quem tinha razão e que uma ordem de prisão em Vaux teria sido deplorável, mas aposto tudo o que possuo em como se M. Fouquet for a Nantes, não sairá de lá na companhia dos seus cavalos. Cavalos que, verdade seja dita, galopam bem depressa e que são os mais belos que conheço. Portanto que faça bom proveito deles enquanto ainda é tempo!

Sylvie pôs o braço por baixo do de d’Artagnan e deu alguns passos na sua companhia, em silêncio.

- Ao virdes aqui dar-me esse aviso, não estais a faltar ao vosso dever para com o Rei?

- Nada me obrigará a faltar ao meu dever para com o Rei. Se, nos dias que se seguem, ele me mandar prender o Superintendente, fá-lo-ei sem hesitar, mas a ordem ainda não me foi dada e estou apenas a confiar-vos o que penso...

- Não sei se serei ouvida, mas fico a dever-vos um grande, um enorme obrigado...

- Não o creio. É que... fico logo arrepiado só à ideia que possam subir-vos as lágrimas aos olhos...

Nesse dia Sylvie compreendeu que d’Artagnan se apaixonara por ela.

Tal como esperava, Fouquet de nada quis saber. Se bem que sofrendo de uma febre tenaz, quis ir a Nantes, onde fora convocado pelo Rei, mas percorreu grande parte do trajeto numa confortável gabarra que desceu pelo rio Loire, simultaneamente com uma outra que transportava Colbert, e com a qual disputou a velocidade com a maior das delicadezas. Esta atmosfera quase afável reforçava-lhe a ideia em como os seus amigos se haviam redondamente enganado. Não tinha o Rei, que viajava a cavalo, solicitado a Lê Tellier que se inteirasse do seu estado de saúde?

Em Nantes, o Superintendente e a esposa, que desde a festa de Vaux não o largava um palmo, instalaram-se no hotel de Rougé, que pertencia à família de Mme. du Plessis-Bellière. Fouquet foi deitar-se, mas ainda assim recebeu uma alegre delegação de mulheres de Belle-Isle que vieram dançar para ele nos seus belos trajes de festa encarnados. O Rei enviou Colbert em busca de notícias e este aproveitou para sacar ao Superintendente cuja perda preparava desde há muito 90.000 libras “para a Marinha”. Anunciou-lhe também que, tendo o Rei decidido ir caçar no dia seguinte, 5 de Setembro, o Conselho reunir-se-ia logo de manhãzinha no castelo.

Fouquet para lá se arrastou o melhor que pôde, saindo rodeado pela chusma habitual de solicitadores que impediram que se empreendesse qualquer ação contra ele. Foi apenas na Praça da Catedral que d’Artagnan, acompanhado por quinze mosqueteiros, alcançou a sua liteira, dando-lhe ordem de prisão. O prisioneiro levantou uns olhos espantadíssimos:

- Preso? Eu, que pensava que na mente do Rei eu era a pessoa deste Reino que desfrutava da melhor posição?... Nesse caso, atuai com a maior discrição possível...

- Isso dependerá um pouco de vós, cavalheiro - disse o oficial com uma tristeza que não escapou a Fouquet. - Quanto a mim, ficai sabendo que teria de longe preferido nunca me ver encarregue desta tarefa...

- E para onde me levais?

- Para o castelo d’Angers.

- E os meus?...

- Não tenho ordens para eles...

Enquanto d’Artagnan se afastava alguns passos para transmitir uma ordem, Fouquet murmurou a La Forêt, seu criado:

- Vai a Saint-Mandé e a casa de Mme. du Plessis-Bellière.

Na sua mente, isso significava que o pessoal da sua casa e a sua amiga deviam procurar retirar alguns documentos pessoais. Inteligente e vivaço, La Forêt escapuliu-se de Nantes a pé, seguindo até ao próximo serviço de muda dos correios, a partir do qual galopou à rédea solta. Quando chegou ao seu destino já era tarde: Colbert tomara as suas precauções...

Graças a um correio que foi enviado no dia 7 de Setembro ao chanceler Séguier e um outro à Rainha-Mãe, as pessoas de Fontainebleau ficaram a saber o que se passara em Nantes. Aterrorizada, Sylvie pegou no primeiro pretexto que arranjou nesse dia para largar o serviço, deixando uma Maria Teresa estendida na sua chaise longue, na companhia de Chica, que cantava para ela, e de Nabo, que a abanava com um enorme leque de plumas azuis de avestruz. Ela correu até junto da Rainha-Mãe, que julgava vir a encontrar tão desolada quanto ela. Desde que tivera algum poder, Fouquet servira-a dedicada e fielmente até, e sobretudo, durante os tempos tão duros da Revolta. Fora também o homem de confiança de Mazarin, que ela tanto amara a ponto de desposá-lo em segredo. Certamente que ela iria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance, nem que tivesse de recorrer à sua própria bolsa, para acudir a tão nobre e generoso servidor, que nunca lhe recusara o que quer que fosse.

Ora, quando Sylvie entrou nos aposentos, ouviu o eco de dois risos e ao encontrar Motteville à entrada do Grande Gabinete, perguntou-lhe o que se passava.

- É a velha duquesa de Chevreuse - respondeu esta. - Talvez não estejais inteirada mas, ultimamente, ela vem cá muitas vezes.

- Para chorar da sua miséria como é costume, ou para pedinchar para o seu jovem amante, o pequeno Laigue?

- Não. Para se regozijar... ora escutai!

Com um semi sorriso, Françoise de Motteville entreabriu a porta do Gabinete, deixando que chegasse aos ouvidos de ambas a voz estridente e exultante da antiga beleza do tempo de Luís XIII:

- Senhora, vereis que M. Colbert será melhor servidor que esse Fouquet, acerca do qual acabásteis finalmente por perceber que nunca pensou noutra coisa senão na sua fortuna. Já era tempo de abandonardes este homem que afinal não é mais que um ladrão desonesto...

- Ah, confesso que a festa insensata que ele nos ofereceu em Vaux me fez ver o quanto tínheis razão ao prevenir-me. Aliás, o defunto Cardeal recomendou vivamente M. Colbert ao Rei e ele sabia o que fazia...

- Devo anunciar-vos? - propôs Motteville, com a mão na maçaneta da porta.

- Não... Não, minha cara amiga, é inútil. Não preciso de saber mais e estaria a perder o meu tempo. A propósito: sabeis quanto ficou a ganhar esta mulher pela sua bela obra?

- Uma pensão, creio... e, sobretudo, um posto de comando para o jovem Laigue. Este tinha muitas razões de queixa do Superintendente que o tratara de acordo com os seus méritos.

Enojada, Sylvie regressou aos seus aposentos. O que acabara de ouvir só a surpreendera parcialmente. Desde que conhecia Ana de Áustria pudera vê-la largar, um após outro, amante e fiéis servidores: François de Beaufort, La Porte, Marie de Hautefort, e Cinq-Mars, com François de Thou, que ela abandonara às mãos do carrasco e, até, essa mesma Chevreuse que, ao ser chamada de volta após um longo exílio, se vira relegada da Corte como um móvel inútil. Mas esta soubera ressurgir à superfície, mais venenosa que nunca. Colbert, ferozmente obstinado em provocar a perda do seu inimigo, compreendera depressa o benefício que dela podia retirar, mediante algumas finanças, é claro... Tudo isto era na verdade muito infame e o serviço real comportava por vezes lados bem sórdidos. No fundo, era sem dúvida uma pena que Ana de Áustria não tivesse desposado o seu cunhado, o homem de todas as demissões, de todos os abandonos. Esses dois tinham sido feitos para se entenderem.

Quando os seus pés calçados de cetim acinzentado pisaram a relva, estes incomodaram uma cobra que se escapou para a água; ficou quedada ali, a vê-la desaparecer, atraída pelo símbolo. As armas de Colbert continham uma cobra (ainda que a víbora fosse mais indicada!) e as de Fouquet um esquilo: o belo réptil capturara na sua armadilha o pequeno corredor saltitante e inchava para estrangulá-lo, antes de tragá-lo...

Sentindo que lhe vinham as lágrimas aos olhos, Sylvie regressou a casa o mais depressa que pôde e depois decidiu que ia pedir para ser dispensada. Precisava de saber o que acontecera à mulher e aos filhos do prisioneiro, aos seus amigos mais chegados, alguns dos quais também eram os seus, e isso Perceval saberia certamente dizer-lhe. Nessa altura logo veria como poderia ajudá-los...

Sempre muito boa pessoa, Maria Teresa concedeu-lhe todas as permissões que desejasse, pedindo-lhe apenas que não se afastasse por muito tempo. Suzanne de Navailles apertou-lhe a mão sem lhe dizer nada. Esta sabia quanto ela era sensível ao destino daqueles que amava e, pelo seu lado, tê-la-ia acompanhado de bom grado, mas não era possível deixar a Rainha nas garras de Mme. de Béthune ou de Olympe de Soissons. Era preciso assegurar-lhe, tanto quanto possível, uma gravidez tranquila.

Sylvie regressou a casa com o coração um pouco mais leve por ficar a saber que tinham exilado Mme. Fouquet no sentido figurado do termo pois, sabe Deus porquê, tinham-na enviado para Limogemen[28], Mme. du Plessis-Bellière, enviada para Montbrison, o arcebispo de Narbonne e o abade Basile, enviados não se sabia para onde, enquanto, por sua vez, o bispo de Agde fora remitido à sua diocese. As casas eram vasculhadas de alto a baixo, sobretudo a de Saint-Mandé, da qual Colbert se encarregou pessoalmente, menosprezando qualquer lei; depois foram todas seladas e Vaux em primeiro lugar. Quanto ao hotel da rue Neuve-des-Petits-Champs, expulsaram de lá as crianças, sem quaisquer contemplações, a mais nova tendo só dois meses. Elas teriam sido mesmo postas na rua, se não fosse um dedicado amigo que as levou para casa da avó... Entretanto, libertavam-se todos aqueles que o Superintendente mandara prender por uma ou outra razão, mas geralmente por pequenos delitos. Mas isso Sylvie e os seus só ficariam a sabê-lo quinze dias após o drama, quando o abade de Résigny veio de Fontsomme num estado de meter dó: o seu aluno, Philippe, fora raptado, quando se encontrava na companhia de uns amigos a colher nozes no fundo do parque...

Um dos cavaleiros, que eram cinco, gritara na direção do abade, desarrazoado e impotente:

- Vai dizer à tua senhora que é uma grave imprudência pôr os amigos de M. Colbert na prisão... sobretudo quando se pertence ao partido de M. Fouquet!

A mãe só dispensou um tempo mínimo à dor que a assolou. A leoa despertou dentro dela. Mandou chamar os cavalos.

- Que ides fazer? - perguntou Perceval inquieto. - Contais enfrentar esse Colbert?

A duquesa de Fontsomme não se rebaixa a esse nível!

- Vou ter com o Rei!

- Quer dizer, ides a Fontainebleau? Nesse caso, acompanhar-vos-ei... nem que seja para vigiar a vossa saída, não vá ela decorrer na companhia de dois guardas... Vós, abade, vinde conosco, pois sois testemunha!

E Perceval de Raguenel foi buscar a maleta que, como homem previdente que era, conservava sempre pronta para qualquer eventualidade...

 

                                   FRANÇOIS

Depois do casal ter assistido à missa, o Rei saiu da capela dando a mão à Rainha e atravessava a dupla fileira de cortesãos inclinados quando, à sua frente, se ergueu subitamente, antes de se ajoelhar quase até ao solo, uma mulher pálida e bela, envergando adereços de luto, mas sem uma única jóia. Depois, ela levantou a voz para que todos a pudessem ouvir.

- Apelo à justiça do Rei, na altura em que ele acaba de se encontrar com Deus, pois só o Rei pode obrigar o sequestrador do meu filho a restituí-lo!

Luís XIV teve um estremecimento, franziu o sobrolho, mas um segundo depois largou a mão da Rainha para ajudar Sylvie a levantar-se com uma solicitude que provocou um murmúrio de admiração.

- Que me estais dizendo, duquesa? Que o vosso filho foi raptado?

- Ontem, Senhor, nos nossos domínios de Fontsomme e sob os olhos do seu preceptor, o abade de Résigny aqui presente...

- Como podeis saber quem cometeu esse crime? Em geral, a gente dessa laia não faz alarde disso.

- Estes pensam poder agir a rosto descoberto. O chefe deles declarou-se amigo de M. Colbert, atuando contra uma amiga de M. Fouquet...

O rosto do Rei petrificou-se, o seu olhar endureceu e na sua boca surgiu um trejeito desagradável.

- Ah! - contentou-se em dizer.

E, em seguida, enquanto todos retinham a respiração:

- Vou acompanhar a Rainha aos seus aposentos. Acompanhai-me, depois, até ao meu gabinete. E vós também, senhor abade!

- E caso o Rei assim o permitir, eu também vou!

Apartando a multidão com uns ombros poderosos, François de Beaufort viera colocar-se ao lado de Sylvie:

- Vós, M. de Beaufort? E a que título, posso saber? Se é em nome da infância passada, isso é insuficiente...

- Mme. de Fontsomme detesta-me e o Rei bem o sabe, mas fui eu que matei em duelo o pai deste rapaz e dado que o privei do seu defensor natural reclamo o direito de... me pôr à sua disposição.

- É justo... na condição da duquesa vos aceitar.

Sylvie nem sequer hesitou, sentindo-se feliz, apesar de tudo, em receber aquele inesperado apoio do verdadeiro pai. Apoio que não estava desprovido de perigo: amigo de Fouquet, Beaufort podia ser suspeito aos olhos de Luís XIV. Ao juntar-se a ela para combater Colbert, estava talvez a arriscar a sua liberdade.

- Aceito, Senhor.

- Nesse caso, vinde todos! A vossa mão, Senhora - acrescentou ao voltar para a esposa, que nada compreendera, mas que ficara inquieta com os hábitos pretos de Sylvie.

Por seu lado, François não ousou oferecer o seu apoio físico àquela que doravante amava sem qualquer esperança, mas o olhar que lhe lançou reconfortou-a, e caminharam silenciosamente, lado a lado, seguindo a cauda do vestido azul e dourado de Maria Teresa.

Enquanto atravessavam a ampla e magnífica sala de baile de Henrique II, para chegarem aos aposentos da Rainha e, depois, aos do Rei, esteve prestes a desenrolar-se um incidente: avisada por aquelas misteriosas correias de transmissão que na Corte propagam as novidades à velocidade de um raio, Marie, acompanhada por Athénáis, que se esforçava por apanhá-la, quis precipitar-se ao encontro da mãe. Foi apanhada em plena corrida por Perceval, que espreitara a sua aparição e que tinha o direito de assim proceder enquanto gentil-homem no meio dos cortesãos.

- Devagarinho, minha jovem! Ninguém precisa aqui de ti e a tua mãe menos que ninguém.

- Mas que faz ela na companhia de M. de Beaufort?

- Ele colocou-se à sua disposição para encontrar o teu irmão que ontem foi raptado por... desconhecidos. A tua mãe acaba de apelar à justiça do Rei. O sequestrador parece ser uma importante personagem. Agora já sabes tanto quanto eu. Menina - acrescentou, voltando-se para Tonnay-Charente - sede boa pessoa e levai-a de volta a Madame! E tu, Marie, fica quieta! Prometo-te que terás notícias...

- Não receeis nada! - assegurou Athénais. - Eu encarrego-me dela. Será vigiada de perto... mas enviarei Montalais em busca de notícias! É a nossa espia mais hábil! - concluiu, rindo com toda a alvura dos seus dentes.

Pegara no braço de uma Marie renitente quando, sem qualquer aviso prévio, uma nova personagem intrometeu-se na conversa:

- Por muito forte que seja, a vossa Montalais nunca valerá um homem hábil, sobretudo quando se trata de saber o que se passa em casa do Rei. Mlle. de Fontsomme, já sou vosso servidor, aceitai-me agora como cavaleiro ao vosso dispor. Direi ainda que também sou vosso admirador...

- Mas que descaramento, Péguilin! - protestou Athénais. - Estais ao serviço de tantas damas que deveis encontrar-vos muito sobrecarregado. Deixai a minha amiga Marie em paz e regressai aos vossos afazeres! Tenho a certeza que Mme. de Valentinois anda à vossa procura...

- Ora, ela está com Madame e nós vamos para lá. Vinde, menina - acrescentou, estendendo o seu punho fechado a Marie, com um olhar sedutor.

- Um momento - interrompeu Perceval, um tanto severamente. - Eu sou o tutor de Mlle. de Fontsomme... e não tenho a honra de vos conhecer.

- Eu também não vos conheço - respondeu o jovem, com impertinência - mas isso não importa: chamo-me Antonin Nompar de Caumont, marquês de Puyguilhem e sou...

- ...sobrinho do marechal de Gramont, - recitou Tonnay-Charente levantando os olhos ao céu. - e comando a primeira Companhia de cem gentis-homens de espada em bico-de-corvo... e o meu bico ainda é mais afiado que o signo da minha função! Ide-vos, marquês! A esta hora já devíeis estar à porta do Rei a ouvir o que se passa!

- Mlle. não é meu costume ouvir às portas e as informações que recolho são de ordem mais sutil. Além disso... desejava que a vossa companheira me conhecesse melhor...

- Ela terá oportunidade de vos conhecer dentro em breve! Vamo-nos, Marie...

- Mas que peste! Senhor tutor, no dia em que vier pedir a mão da vossa pupila ela deverá baixar de tom.

- Quereis desposar Marie?... A propósito, sou o cavaleiro de Raguenel. É melhor que ficais a conhecer o meu nome!

- Tendes razão, isso poderá revelar-se útil. Mas, dizei-me: porque não a desposaria? Ela não é encantadora e um magnífico partido?

- E vós, sois também um magnífico partido?

O jovem teve aquele curioso sorriso que lhe enrugava a cara toda mas que lhe dava contudo muito charme.

- Não diria tal. Meu pai, o conde de Lauzun é mais rico em antepassados que em ducais... mas podeis estar certo que farei o meu caminho. O Rei gosta de mim porque o divirto.

- Julgava que se falava de casamento com uma das filhas de Mme. de Nemours.

- Caro amigo, existe uma impossibilidade de monta. Caso desposasse uma delas, a outra arrancar-me-ia os olhos, como o faria decerto também à própria irmã. Não, graças a Deus, essas duas loucas foram com a mãe provocar os seus estragos para os lados da Sabóia... e espero não ter de ouvir falar mais nelas. Até breve, senhor cavaleiro... eu vou às notícias!

No gabinete do Rei a conversa não decorria com tanta trivialidade. Ao entrar, Luís XIV fora sentar-se na sua poltrona por detrás da pesada mesa, sobre a qual a quantidade de pastas abertas, de classificadores e de resmas de papéis, atestavam que não se tratavam de um mero ornamento e, depois, indicara um assento a Sylvie, ficando esta ladeada pelo abade e por Beaufort, que permaneceram de pé.

- Contai-me o que se passou - ordenou, recostando-se na sua alta poltrona de carvalho, cravada a cabedal.

Com mais clareza que era de esperar devido à sua emoção, M. de Résigny contou a cena que testemunhara: as crianças ocupadas na sua colheita, os cavaleiros tão seguros de si que nenhum pensara sequer em mascarar-se, o rapto do pequeno duque e, finalmente, a frase desdenhosa que fora lançada ao preceptor aflito. Quando acabou, o Rei permaneceu um momento silencioso e, depois, disse:

- Esse homem disse bem: “os amigos de M. Colbert”? Que sugeria ele? Tendes alguma ideia, duquesa?

- Sim, Senhor. Tratar-se-á de um certo Fulgent de Saint-Rémy, que desembarcou há algum tempo, vindo da ilha de São Cristóvão e que, pretendendo-se irmão mais velho do meu falecido esposo, vem agora reclamar a sua parte na herança... aliás, sem avançar com prova alguma.

- Um irmão mais velho? O marechal de Fontsomme ter-se-ia então casado duas vezes?

- Não propriamente, mas teria assinado uma promessa de casamento a uma jovem, caso ela ficasse grávida antes de ele ter de ir para a guerra. Foi o que lhe aconteceu e o pai, que a destinava a um outro, apercebeu-se disso e fechou-a num convento, do qual ela se escapou para tentar salvar a criança e, ao mesmo tempo, para seguir o único amigo que lhe restava. Embarcaram rumo às ilhas e a criança esse Saint-Rémy teria nascido a bordo. Pretende que pode mostrar a promessa de casamento e disse que estava mais ou menos protegido por Colbert...

- Como haveis procedido para com as suas pretensões?

- Pareceu-me um ser miserável e dei-lhe algum dinheiro...

- Fizestes mal. Esse tipo de pessoa põe-se na rua sem mais explicações...

- Eu sei, Senhor, mas confesso que ele também me meteu medo, sobretudo quando disse que caso viesse a acontecer algo a meu filho (o último duque!) ele faria valer as suas prerrogativas perante o Parlamento e o juiz das Forças Armadas do Rei. E o meu filho acaba de ser raptado...

- Senhora, devíeis ter chamado a guarda!... Ou será que esse homem tem algum meio para vos pressionar? Não vejo bem o que poderia ser, pois a vossa vida é límpida, mas os chantagistas são seres muito imaginativos...

Sylvie reprimiu um estremecimento: a mão de Beaufort acabara de se pousar no seu ombro, primeiro ligeiramente, depois com mais firmeza, como que a convidá-la à prudência. Ela sentiu um estranho conforto sob o calor daquela pressão, porque isso significava que ele estava disposto a tudo para salvar a criança que ele sabia, melhor que ninguém, de quem era realmente filho, mesmo que para isso tivesse de enfrentar aquele jovem coroado, que tinha exatamente as mesmas razões para amar...

- Nada que eu saiba, Senhor, mas talvez devêssemos começar por perguntar a M. Colbert o que é que lhe fiz para que ele me queira mal com tanta crueldade?

- Não penso que ele tenha o mínimo motivo para vos querer algum mal em particular, duquesa, ou para vos criticar seja no que for... a não ser, talvez, o fato de terdes tão grande estima para com esse Fouquet que acabamos de prender. Mas, daí a atos deste tipo...

- Ultimamente os amigos de M. Fouquet são muito maltratados: exílio, prisão, para não dizer mais. M. Colbert dá livre curso ao seu ódio, ao ponto de, manifestando um total menosprezo pelas leis, ter ele próprio organizado as buscas nos papéis mais íntimos do antigo Superintendente... chegando até a mexer nas cartas escritas por mulheres. Ora, nunca tendo escrito a M. Fouquet, não penso que tenha encontrado alguma que eu tivesse escrito...

- Um momento, senhora! Dír-se-ia que encontrastes uma bela oportunidade de fazer o processo a um servidor que me é precioso. É possível que ele ultrapasse os seus direitos, mas é por zelo para com a coroa e não devido a não sei que ódio!

- Senhor - interrompeu Beaufort - quem quer Vossa Majestade convencer disso? Toda a gente sabe que Colbert execra Fouquet, mas o Rei não nos concedeu a honra de nos receber para discutir esse assunto, mas apenas para procurar saber o que é feito de uma criança inocente, filho de um servidor ainda mais fiel que M. Colbert alguma vez o será...

O olhar real pejou-se de raios:

- Senhor duque, no vosso lugar não insistiria muito em recordar que também éreis muito amigo do prisioneiro...

- Trabalhávamos conjuntamente na defesa das costas francesas, no melhoramento da Marinha, portanto, ao serviço de Vossa Majestade mas, à parte isso, Senhor, o Rei, que desde sempre conheceu a senhora duquesa de Fontsomme e que me conhece a mim desde há tanto tempo, sabe que possuímos ambos o mesmo defeito: quando damos a nossa amizade, é para os bons e os maus momentos, sem que no entanto isso faça de nós conspiradores. A justiça do Rei é-nos tão sagrada quanto a sua própria pessoa.

Os olhos de Luís XIV saltaram de um para o outro: daquela mulher tão charmosa e digna até àquela espécie de herói de romance que amaldiçoara vezes sem conta durante a Revolta, sem se coibir de admirá-lo.

- Senhor de Gesvres! - chamou.

O capitão das guardas surgiu imediatamente:

- M. Colbert está no castelo?

- Sim, Senhor... pelo menos, assim o julgo!

- Que venha cá imediatamente!

O Rei levantou-se e dirigiu-se para uma das janelas do seu gabinete que dava para o jardim de Diana. O princípio do Outono dourava as folhas e parecia dar ainda mais brilho às flores que fanavam do que o fazia o coração do Verão sob céu ameno. O silêncio instalou-se na ampla sala. Silêncio que pouco durou. Posto seguramente ao corrente do que se passara ao sair da missa, Colbert aproximara-se dos aposentos reais e o marquês de Gesvres não teve de ir muito longe à sua procura. Poucos minutos se escoaram até que ele aparecesse, com uma pasta debaixo do braço, como era seu hábito: efetivamente parecia não poder deslocar-se sem se fazer acompanhar daquele acessório que acentuava a sua paixão pelo trabalho e que, ao mesmo tempo, lhe dava uma certa pose. É preciso acrescentar que a dita pasta estava frequentemente repleta de papéis...

Aquele que dentro em breve Mme. de Sévigné chamaria “o Nortenho”, era nessa altura um homem de quarenta e dois anos, grande e assaz corpulento. O rosto, de formas cheias, os olhos, o bigode e os cabelos pretos cortados muito curtos não inspiravam simpatia, antes uma espécie de temor premonitório, de tal modo se pressentia na sua pessoa um homem que seria tão temível e impiedoso quanto o fora Richelieu. Contudo, convinha que ninguém se enganasse com esta aparência monolítica: no seu interior residia uma vasta inteligência, que teria sido genial se dotada de mais sensibilidade e fineza, mas Jean-Baptiste Colbert, extremamente ambicioso e tão ávido de poder quanto de riqueza, deixava transparecer na sua fisionomia uma determinação selvagem, capaz de varrer sem quaisquer contemplações os obstáculos que se erguessem no seu caminho, e a satisfação íntima que retirara da sua cruel vitória contra Fouquet.

Ao entrar, saudou o Rei segundo todos os ditames e, depois, a duquesa e as duas outras personagens ali presentes, não sem deixar transparecer um breve fulgor nos olhos sombrios quando avistou Beaufort.

- M. Colbert - disse Luís XIV - chamei-vos a fim de escutardes a estranha história que acaba de me narrar o senhor abade de Résigny, aqui presente. Para ser ainda mais claro, acrescentarei que o abade é o preceptor do jovem duque de Fontsomme.

O infeliz teve de se resignar a repetir pela enésima vez aquilo que vira e ouvira. Sylvie estava à espera que ele se fosse totalmente abaixo sob o olhar carregado do intendente das Finanças, mas se bem que só frequentasse os grandes capitães nas leituras de Tito Lívio e que preferisse a companhia das estrelas à dos ministros, o pequeno abade era de boa cepa, e foi muito dignamente que repetiu a frase denunciadora dos malfeitores.

- Que explicação tendes para isto? - perguntou o Rei num tom despreocupado.

- Nenhuma, Senhor. A senhora duquesa de Fontsomme, que não me conhece, nunca me fez qualquer mal, e não é meu hábito atacar crianças...

- Então trata-se de um fenômeno recente? - interrompeu Beaufort, escondendo mal o seu desprezo. - Se não fosse M. de Brancas recuperar as crianças do vosso antigo patrão, em nome de Sua Majestade a Rainha-Mãe, para levá-las até junto da avó, vós tê-las-íeis lançado ao rio!...

- Mais uma vez, deixai M. Fouquet fora desta história! - resmoneou o Rei, batendo com o punho na mesa.

E depois de consultar uma anotação que registrara um pouco antes, disse:

- Colbert, consta que entre os vossos amigos figura um certo... Saint-Rémy, que pretende usufruir de direitos relativamente à herança do falecido marechal-duque de Fontsomme...

- Efetivamente, recebi esse homem há algum tempo atrás. Foi pouco depois do casamento de Vossa Majestade. Ele chegara das Ilhas, de São Cristóvão se bem me lembro, mas no breve encontro que lhe concedi não falamos de qualquer assunto relativo a heranças.

- Então, qual o motivo por que o haveis recebido?

- O Rei não ignora a que ponto me interesso por terras longínquas, com intuitos comerciais, nomeadamente pelas ilhas das Caraíbas. Dado que ele tinha vindo de São Cristóvão, era normal que o quisesse ouvir.

- Que é que ele queria?

- Não dispondo de mais recursos, procurava um emprego... talvez a bordo de um navio. Além disso, vinha da parte de uma dama que me concede a honra da sua amizade.

- Quem?

- Mme. de La Bazinière...

Sylvie não conseguiu reprimir uma exclamação abafada que atraiu todos os olhares.

- Conheceis esta dama? - perguntou o Rei.

- Oh sim, Senhor, conheço-a desde o tempo em que éramos ambas damas de honor da Rainha, mãe de Vossa Majestade... que poderia seguramente falar melhor sobre o assunto do que eu desejo fazê-lo. Nessa altura, ela chamava-se Mlle. de Chémerault e esse nome traz-me de volta... recordações muito más, com as quais não quero aborrecer o Rei.

- Curioso!... E então essa mulher seria capaz de mandar raptar o vosso filho?

- Ela é capaz de tudo! - interveio Beaufort. - Quanto a mim já tomei a minha resolução e resta-nos apresentar as nossas desculpas a M. Colbert, em nome do qual se escondem pessoas desprezíveis. Se o Rei o permitir, ocupar-me-ei deste assunto.

O rosto do Rei, até então muito sombrio, iluminou-se subitamente. Estava encantado que o seu caro Colbert ficasse tão facilmente fora de causa. François dera provas de grande habilidade ao renunciar a desempenhar o papel de inimigo jurado do intendente. Quanto a este, caso estivesse a dar cobertura às ações da dita dama, deveria então abandonar essa posição, pois agora o Rei estava ao corrente de tudo. Se persistisse nessa via, acabaria talvez por pôr em risco um futuro que desejava brilhante. Efetivamente, Luís XIV disse:

- Este assunto é, em primeiro lugar, da competência do nosso tenente civil. Darei as ordens necessárias a M. Dreux d’Aubray...

- Suplico ao Rei para nada fazer! - rogou Sylvie, com um novo ataque de angústia. - Se o meu filho estiver retido em casa dela... do que duvido, Mme. de La Bazinière disporá de todo o tempo para fazê-lo desaparecer. Não quero que se arrisque a vida dele... admitindo que ainda esteja vivo - acrescentou, com um soluço entremeado na garganta.

O Rei levantou-se e caminhou na sua direção, chegando até a debruçar-se para lhe pegar nas mãos:

- Tendes assim tanto medo dela? Minha pobre amiga, deveis pô-la no seu devido lugar...

- Mas ela não pode saber que foi desmascarada - exclamou Beaufort, de olhos postos em Colbert. - Senhor, em nome dos laços de parentesco que nos unem, deixai-me atuar!

- Laços que haveis, por vezes, esquecido.

- Não paro de me criticar por isso. Mas o Rei sabe perfeitamente que doravante apenas desejo servi-lo com todas as minhas forças.

- Senhor duque, o Rei sabe-o perfeitamente - interveio Colbert, com uma tonalidade de voz cuja brandura surpreendeu todos os presentes. - Sabe-o tão bem, que lhe ia pedir para que assinasse hoje o reconhecimento do vosso novo posto de comando, a fim de colocardes os navios de Brest em estado de se poderem juntar aos de La Rochelle, para estarmos prontos a empreender a campanha da próxima Primavera[29].

Já abrira a pasta e retirava do seu interior um grande papel na direção do qual o Rei estendeu a mão, sem deixar de olhar para o seu primo.

- Meu caro duque, espero que estejais contente. Sei que sempre haveis sonhado com uma marinha poderosa, dispondo de muitos mais navios o que ainda está longe de estar realizado, mas passareis a contar com toda a ajuda necessária.

Beaufort corou e empalideceu, com os olhos azuis subitamente encadeados de estrelas. Inclinou-se muito, murmurando um comovido agradecimento mas, ao soerguer-se, perguntou:

- Quando devo partir para Brest?

- Quanto mais cedo melhor - respondeu Colbert. - Oito dos nossos navios têm a mais urgente necessidade do saber e dos cuidados dos mestres carpinteiros e das velas. M Duquesne está à vossa espera.

- Senhor - disse Beaufort - acabásteis de tornar possível o meu sonho mais querido. Contudo...

- Contudo? - perguntou Luís XIV, de modo altivo.

- Não poderei partir em paz enquanto Mme de Fontsomme não encontrar o filho.

- E isso poderá demorar ainda muito tempo - resmungou Colbert, paralisado sob o olhar assassino que Beaufort lhe desferiu.

- Cavalheiro, comigo não. Comigo, não!

- Nesse caso, dou-vos oito dias - disse o Rei. - Depois ireis para Brest. Mme de Fontsomme, a Rainha dispensará os vossos serviços o tempo necessário para que possais recuperar a vossa serenidade, mas não deixai de me manter informado sobre um assunto que levo muito a peito, dada a amizade que tenho por vós.

E prosseguiu, num tom menos grave:

- Já ensinastes o vosso filho a tocar guitarra.

- Ensinei-o à minha filha, Senhor. O Philippe só sonha com feridas e nódoas negras. Seguirá os passos do pai e do avô...

- Fico imensamente feliz por sabê-lo! Encontrai-o depressa! Os meus futuros soldados são-me preciosos!

- A Chémerault! Outra vez ela!... - barafustou Sylvie no coche que a trazia de volta a Paris com Perceval. - Será que nunca me vai deixar em paz?

- Ela “esqueceu-se” de vós durante dez anos. Deve estar a pensar que já é tempo que baste - suspirou Perceval. - Não, agora mais a sério, eu penso que com Saint-Rémy saído não se sabe de onde, ela deve ter vislumbrado uma oportunidade inesperada. Pensai só no que se poderia passar caso o seu protegido viesse a obter o desejado? Dado que é viúva, até se poderia tornar duquesa de Fontsomme!

- Estais louco? Esse aventureiro tornar-se duque de Fontsomme, depois de ter feito desaparecer o meu filho? O Rei nunca o aceitaria!

- Também o penso, e procedestes bem ao formular-lhe a vossa queixa. Mesmo que esse Saint-Rémy decida avançar com a sua famosa promessa de casamento, as cortes soberanas não ousariam ratificá-la sem o consentimento real. E, desde que o Superintendente foi preso, acreditai-me que são muitos os que agora tremem perante o jovem autocrata que está em vias de se afirmar.

- Sem dúvida, mas isso não traz o meu filho de volta. Oh, padrinho, estou com medo!... Se soubésseis...

Ele envolveu-a com um abraço afetuoso, encostando-a de encontro a si:

- Bem sei, pequena! Chorai se assim o desejardes, isso aliviar-vos-á... Chorai, mas não deixai morrer a esperança... Tenho a certeza que Philippe está vivo e que vamos receber um pedido de resgate...

Era precisamente isso que pensava Beaufort na mesma altura, enquanto galopava pela estrada de Paris na companhia do seu fiel escudeiro Pierre de Ganseville, levando algumas léguas de avanço sobre a carruagem. Com a diferença de que estava talvez ainda com mais pressa! Oito dias! Só dispunha de oito dias para encontrar o filho e dar a devida resposta aos malandrins! Não era muito, mas tinha que ser o necessário, pois nunca perdoaria a si mesmo aprestar-se a ir viver a vida com que sempre sonhara deixando Sylvie infeliz. O amor que lhe tinha crescera a partir do momento em que ela se afastara dele. Era o amor de Rodrigo por Chimena, a paixão desesperada de Jauffre Rudel pela sua longínqua princesa. Adorava-a como a um ídolo inacessível e desejava-a enquanto mulher, com fúrias dolorosas que se esforçava por acalmar com alguma das suas amantes. E apesar da angústia que sentia quanto ao destino daquele rapazinho que tanto estimava, animava-o uma secreta alegria em poder ser finalmente o seu cavaleiro, em poder lutar por ela, em poder, enfim, aproximar-se dela.

Ao chegar à sua residência um pequeno hotel aprazível situado próximo da porta Richelieu saltou do cavalo, lançou a rédea a um criado que entretanto acorrera, e levou Ganseville atrás de si até ao quarto, a passos de corrida. Com o decorrer dos anos uma profunda amizade selara-se entre aqueles dois homens, que ultrapassava em muito as relações formais entre amo e escudeiro e, quando Jacques de Brillet, o outro escudeiro de Beaufort, expressara o desejo de abraçar a religião, como há muito o desejava, o duque assistira à sua ordenação nos Capuchinhos, doara uma importante soma, mas nunca o substituíra. No fundo, talvez fosse melhor assim, pois isso reforçara ainda mais os laços que existiam entre ele e Ganseville... Para o normando resmungão, bem vivido, alegre companheiro, direito como a lâmina de uma espada, apreciador de mulheres, as aventuras perigosas e as batalhas convinham-lhe mais agora, que já não precisava de fazer mais comparações.

Em poucas palavras François pô-lo ao corrente da situação e quando lhe anunciou a próxima partida para Brest não deixou de reparar no brilho de alegria que se pôs a cintilar naqueles olhos, tão parecidos com os seus: Ganseville também adorava o mar.

Depois discutiu-se em volta de um patê, de um pedaço de pão com alho e de duas garrafas de vinho do Beaune, que Beaufort mandou que lhe servissem no quarto, para estar mais tranquilo. Ganseville propôs que dessem uma volta pelos cabarés, casas de jogo e outros locais mais ou menos mal-afamados, à procura de Saint-Rémy. Perceval fornecera uma boa descrição dele com a ajuda de um esboço, mas Beaufort pensava que isso seria uma pura perda de tempo, achando melhor ir direito ao assunto, atacando logo a cabeça da trama. Por outras palavras, indo ter diretamente com Mme. de La Bazínière.

- Vou ao seu encontro – assegurou - e conto assustá-la suficientemente para que largue pelo menos a sua presa, caso não consiga, mesmo assim, fazê-la desistir dos seus projetos.

- Isso não é lá muito boa ideia. Esse estilo de mulher não é do gênero a deixar-se impressionar com facilidade, pois é capaz de tudo. Lembrai-vos que há quinze anos atrás ela era já uma espia a soldo de Richelieu...

- É por isso mesmo que não tenciono tratá-la como a uma dama, mas como aquilo que ela é na realidade, o que não é lá grande coisa.

- Isso poderá dar alguns resultados se decidirdes desferir um bom golpe pois, se bem que já não seja nenhuma donzela, a antiga Mlle. de Chémerault dá muito valor à sua aparência, que ainda é bem bonita. Via-a há pouco tempo atrás na Marcha da Rainha...

- Não me digas que te interessas por ela, mas se é esse o caso, então deves saber onde reside atualmente...

- Tudo o que sei é que ela abandonou o belo hotel do cais da Rainha Margarida[30], que o seu velho esposo mandara construir quando se seguiu a sua morte, tão perto do casamento. Creio que ela não se entendia com o enteado, pois não?

- Oh, esse não pedia melhor. Diz-se que estava doido varrido por ela a ponto de querer desposá-la, mas o velho La Bazinière deixara-lhe um belo dote de viuvez que a levou a optar pela liberdade... e pelas liberalidades de Particelli d’Emery. Creio que lhe ofereceu um hotel, não sei bem onde...

- Malvada perda de memória! E já não podemos contar com o abade Fouquet. Esse sabia sempre tudo acerca de toda a gente!

- Não, mas temos Mme. d’Olonne... ou já vos esquecestes que ela conhece toda a gente... e que vos tem em grande estima?

- Mais do que aquela que tenho por ela. Mas tens razão: essas mulheres galantes conhecem-se todas, porque se detestam e têm ciúmes umas das outras. Vou a casa dela.

Era uma boa ideia. Se bem que usasse o nome do marido, La Trémoille, ela era conhecida pela Cortesã do Século e, tal como as suas parceiras, estava magistralmente informada acerca de todas aquelas que lhe podiam fazer sombra. Muito bem introduzida nos meios literários, nem por isso deixava de colecionar os amantes, mas Beaufort, que era o último, parecia ocupar um lugar muito particular no seu coração. Resolveu portanto criar-lhe algumas dificuldades para lhe facultar a informação que lhe era pedida. Foi preciso que François jurasse pela sua honra que só desejava o pior possível a Mme. de la Bazinière.

- Julgo-a culpada do rapto de uma criança e é essa criança que quero encontrar - disse, com tal gravidade que a bela ficou sem vontade alguma de se zangar ou, até, de se rir. O seu rosto encantador ela era muito bonita, mas de formas um pouco amplas para quem fosse apreciador da magreza encheu-se de tristeza:

- Se bem que não tenha qualquer estima por ela, nunca pensei que pudesse ser tão má. Mora na rue Neuve-Saint-Paul, num hotel com ferro forjado e carrancas de chafarizes, que mandou construir para si quando o esposo faleceu. Fica quase em frente do do tenente civil, M. Dreux d’Aubray...

Este detalhe provocou uma breve gargalhada a Beaufort:

- O tenente civil que o Rei encarregará do inquérito, caso a criança não seja rapidamente encontrada? Pois bem, ao menos não terá de ir longe para interrogá-la! Obrigado de todo o coração, minha bela amiga! Sei que sois daquelas com quem se pode contar. Dai-me um beijo que me vou embora...

- Já?

- Não há tempo a perder, mas manter-vos-ei informada...

Foi um beijo rápido e, depois, François desapareceu, deixando a jovem a ouvir não sem certa melancolia o som do galope que ia diminuindo de intensidade ao embrenhar-se nas profundezas da rue Coq-Héron. O fato de ele se ter deslocado a cavalo, testemunhava a sua pressa, pois as duas residências não distavam muito uma da outra. Na realidade, ao chegar à sua, François apenas saltou a terra o tempo suficiente para ir buscar Ganseville e, ao cair da noite, entraram ambos pela rue Neuve-Saint-Paul, ladeada por lindas casas, cujos jardins, que o Outono chamuscava, conservavam ainda a memória do que haviam sido outrora os jardins do Hotel Real de São Paulo e que estas propriedades vinham agora emparcelar. A iluminação, apenas constituída pelas luzes que filtravam das janelas e por um candeeiro de fraca intensidade, situado frente à estátua de um santo, não era melhor do que a anterior. Contudo, os dois homens não tiveram quaisquer dificuldades em encontrar a casa que Mme. d’Olonne descrevera. Quando Ganseville anunciou os nomes e os respectivos títulos do seu amo a um mordomo que acorrera à chamada do porteiro, uma espécie de estupefação pareceu tomar conta do homem, sem dúvida pouco habituado a receber príncipes, desatando logo a correr, para anunciá-lo. Beaufort foi imediatamente no seu encalço, para não deixar esfriar o efeito que causaria a surpresa. Quanto a Ganseville, instalou-se no vestíbulo com cara de alguém que não deve ser importunado.

Atrás do mordomo que mal teve tempo para anunciá-lo, Beaufort atravessou um grande salão onde não se havia regateado em matéria de dourados, para depois entrar numa divisão mais pequena, e também mais íntima, um gabinete destinado a conversas amigas, enfeitado de damasco amarelo e assentos a condizer, e onde se encontravam duas mulheres falando entre si de um e outro lado de uma mesa com livros; uma escrivaninha e um vaso de margaridas outonais nos tons da decoração completavam o quadro. Levantaram-se num ápice e, sempre juntas, concederam uma graciosa reverência ao recém-chegado, que a devolveu roçando o tapete com as plumas do seu chapéu, deferência que teria evitado caso a sua hospedeira estivesse a sós. Até apresentou desculpas por tão imprevista chegada e por incomodar tão cavalheirescamente as damas, mas desejava falar com Mme. de La Bazinière sobre um assunto que não podia sofrer qualquer demora.

- Monsenhor, não vos desculpeis, eu estava de saída disse a dama desconhecida, com um sorriso capaz de fazer perder a cabeça a um santo; era muito bela, pequena, mas de formas harmoniosas, com lindos cabelos castanhos e uns olhos grandes, muito impudicos, apesar da sua cor azul celeste. Da boca contrafeita da sua hospedeira, Beaufort ficou a saber que se tratava de uma vizinha, filha do tenente civil Dreux d’Aubray, casada com um certo Brinvilliers, que acabara, de receber o título de marquês. Era visível que a pequena marquesa ardia de curiosidade e só se retirava contrariada. Gostaria tanto de saber o que o famoso duque de Beaufort, o Rei do Mercado, viera fazer a casa de uma bela que já passara um pouco de moda!

- Se não estiver ocupada com o seu amante, não vai conseguir pregar olho a noite toda - disse a antiga Mlle. de Chémerault, com um risinho maldoso.

- Julgava que fosse uma das vossas amigas... Dir-se-ía que não é o caso...

- Desenganai-vos, monsenhor, somos efetivamente amigas... pelo menos tanto quanto se pode ser deste gênero de mulher...

- Deste gênero de mulher? Mas, se bem compreendi, ela é marquesa e vós não o sois! Aliás, agora sois apenas a viúva de um cobrador de impostos e nada mais...

A insolência do tom fustigou o orgulho daquela que fora Françoise de Barbezière de Chémerault. Não gostava que lhe recordassem aquilo a que só se podia chamar de degradação e que, aliás, a sua família não lhe perdoara. Empertigou todo o seu corpo, ainda belo, e os magníficos olhos escuros tentaram fulminar o príncipe que a tratava tão insolentemente.

- Monsenhor, acaso vos destes ao incômodo de vir a minha casa no intuito de vos mostrardes desagradável? Outrora, éreis mais cortês...

- Quando éreis dama de honor da Rainha, que já atraiçoáveis tão alegremente? Oh, era-o muito pouco! De qualquer modo sejamos claros: não estou aqui para ser agradável para convosco. Antes pelo contrário!

- Nesse caso fazei o favor de sair, se não quiserdes que mande chamar os meus criados para vos expulsar, por muito príncipe que sejais!

Em vez de se encaminhar para a porta, François foi sentar-se no lugar desocupado por Mme. de Brinvilliers:

- Não vos aconselho a tal pois, uma vez transposta essa porta, só terei de atravessar a rua para ir ter com o tenente civil o pai da vossa “amiga” de há pouco a fim de lhe solicitar a ajuda que ontem à noite o Rei me autorizou a pedir...

- Ajuda? Contra mim? E por ordem do Rei? Mas que imbróglio vem a ser este?

- Chamai-lhe o que quiserdes, mas caso não me ouvirdes, arriscai-vos a ir ao encontro de graves problemas. M. Colbert, que o Rei interrogou ontem em Fontainebleau, não levantou qualquer obstáculo para admitir que lhe haveis enviado um dos vossos amigos, um certo Fulgent de Saint-Rémmy, a fim de que ele pudesse dispor dos seus serviços...

O olhar arguto de François não teve dificuldade em aperceber-se que a dama empalidecia sob as cores do seu rosto saudável. No entanto, ela pareceu descontrair-se, sentou-se de modo a continuar a exibir um perfil ainda perfeito e pegou num leque como se uma repentina subida de temperatura justificasse o seu uso. Ela sorriu:

- Era mesmo preciso incomodar Sua Majestade com uma ninharia dessas? Que mal há em recomendar a um futuro ministro um pobre diabo pleno de talento e que a vida tão maltratou?

- Nenhum - respondeu Beaufort, com um sorriso gentil. - Tudo depende de quais eram as vossas verdadeiras intenções. A propósito como haveis travado conhecimento com o vosso protegido?

- À minha porta. Acabara de chegar das Ilhas, onde um primo do meu falecido marido lhe dera uma palavrinha de recomendação. Estava todo desejoso de encontrar finalmente um emprego digno de um homem inteligente...

- Há tantas coisas a fazer nas Ilhas, sobretudo fortuna, que não vejo muito bem o que poderá tê-lo incitado a efetuar a travessia. Caso, evidentemente, a tenha realmente feito!

- Que quereis dizer?

- Que na altura em que ele pretende ter cá chegado, não havia rasto de nenhum Saint-Rémy a bordo dos navios provenientes das Ilhas, quer fosse de São Cristóvão, da Martinica ou de Guadalupe. Ou então viajou sob um nome de empréstimo, retomando à chegada aquele de que agora se reclama... e num propósito demasiado evidente.

- Proferis um discurso que me é completamente obscuro. Disse-vos o que sabia sobre esse infeliz... ou julgava saber. Nesse caso, não podeis duvidar da minha boa fé.

O sorriso de Beaufort passou de benigno a mordaz, mostrando dentes perfeitos que só pareciam pedir para morder:

- Que cordeirinho tão querido! Que santa inocente! Então apenas haveis agido por pura caridade?... Porque é óbvio que não sabíeis que esse aventureiro ousava pretender-se o filho mais velho do falecido marechal de Fontsomme... os Fontsomme cuja coroa ducal haveis desde sempre sonhado arrebatar...

- Na verdade, ignoro do que faleis.

- ...a ponto - prosseguiu Beaufort - de não terdes hesitado em ajudar o vosso protegido a sequestrar o jovem duque. Infelizmente os sequestradores cometeram o erro de proclamar que pertenciam a M. Colbert, pretensão que este nega, peremptoriamente!

Desta vez Mme. de La Bazinière explodiu numa gargalhada, na qual só um ouvido exercitado teria podido detetar uma falsa nota:

- Claro que ele o nega pois, tal como eu, o pobre homem nada tem a ver com esse assunto! Aliás a farsa é um pouco grosseira e decifra-se rapidamente: foram os amigos de M. Fouquet que raptaram a criança, dizendo-se do partido de M. Colbert a fim de o desacreditarem.

- Os amigos de Fouquet raptarem o filho de um dos seus? Está-se mesmo a ver!

- Seria precisamente uma grande astúcia para quem desejasse implicar Colbert num assunto de grande gravidade.

- Admito que seríeis capaz disso. Contudo M. Colbert não tem quaisquer dúvidas a esse respeito: assegura que fostes vós que lhe haveis recomendado Saint-Rémy e que foi este e, portanto, vós, que mandou raptar o jovem duque de Fontsomme. Deste modo, senhora, aconselho-vos a devolvê-lo aos seus nas horas que se seguem... e em bom estado, se quiserdes evitar graves aborrecimentos. Criado!

Beaufort girou os calcanhares para sair, mas ela parou-o com um grito:

- Alto aí!

Ele considerou-a com desprezo:

- Tendes ainda algo a dizer?

- Tenho. Pergunto-me o que haveria de pensar o Rei, que está tão ao lado da cara duquesa, se viesse a saber que esse jovem duque, como dizeis, não tem qualquer direito ao nome que usa e ainda menos ao seu título!

- Continuai!

- Compreenderia imediatamente qual o motivo por que vos armais em campeão do vosso protegido...

- Matei em duelo o pai dessa criança: estou em dívida para com ela!

- Não haveis nada morto o pai dele, visto que o pai sois vós...

- Mais uma dessas coscuvilhices com as quais tanto gostais de vos comprazer! Na verdade sois uma criatura infame...

- Talvez, mas se não quiserdes que o Rei saiba a verdade, aconselho-vos em deixar-me fora deste caso e a irdes procurar o vosso Saint-Rémy para outras bandas...

Foi então que Beaufort perdeu o sangue-frio. Desembainhando a espada num gesto fulgurante, colocou a ponta contra o pomo da garganta da La Bazinière:

- Dizei-me onde está a criança ou então mato-vos!

Subitamente pálida, com as narinas contraídas e os lábios esbranquiçados, ela tentou ainda empertigar-se:

- Seríeis capaz de matar uma mulher?

- Não sois uma mulher, mas sim um monstro. Portanto, estou à espera... mas não mais do que cinco segundos. Um... dois...

Nessa altura a mão de um criado, que “arranhara” talvez a porta, mas que nenhum dos dois contendores ouvira, acabou por abri-la. Era portador de um bilhete. François baixou a espada, tão depressa quanto a desembainhara, enquanto a mulher caía numa poltrona, soltando um enorme suspiro. O homem saudou Beaufort como se não tivesse dado por nada:

- O escudeiro de monsenhor pediu-me que vos entregasse este bilhete o mais depressa possível.

Beaufort desdobrou o papel e franziu o sobrolho ao descobrir uma só palavra: “Vinde!” mas não teve tempo para se perguntar o que aquilo poderia significar. Atrás do primeiro criado tinham acabado de entrar outros três, armados de cacetes. Percebeu que aquela gente, que devia ter estado à escuta atrás da porta, acorria em auxílio da sua senhora que, aliás, recobrara a presença de espírito.

- Deixai, meus bravos! - disse, com um sorriso que ainda tremia. - Monsenhor teve um acesso de febre, mas já lhe passou, e agora vai retirar-se...

François voltou a pegar no chapéu que enfiou na cabeça e depois arremeteu contra os criados, que afastou da porta com um molinete mortífero. Ao chegar ao patamar, voltou-se:

- Veremos o que pensará o Rei - desferiu. - Entretanto ficai sabendo o seguinte: a criança tem de ser devolvida a sua mãe ou a mim até amanhã de manhã, caso contrário o pessoal ao serviço do Rei entrará por esta casa dentro...

Mme. de La Bazinière encolheu os seus lindos ombros, devolvendo-lhe, taco a taco, o desprezo:

- Se isso os diverte...

Ele deixou que fosse ela a ter a última palavra. Ao chegar ao fundo da escadaria, encontrou Ganseville que, de nariz no ar, olhava para o andar, parecendo preparar-se a subir.

- Dir-se-ia que ocorrem aqui coisas muito estranhas! - resmungou, voltando a embainhar a espada que já havia tirado até metade. Acabo de ver um grupo suspeito de criados.

- E era, mas, por ora, vamo-nos embora...

Enquanto voltavam a tomar posse dos cavalos sob o olhar impávido de um porteiro que parecia ter-se transformado numa estátua, Ganseville cochichou ao ouvido do seu amo:

- Vamos dar a volta ao quarteirão e depois regressamos...

Foi na rue Beautreillis que consentiu explicar-se:

- Pouco após a vossa chegada, uma jovem dama, na verdade muito bela, desceu a escadaria junto à qual eu me encontrava. Fingiu que falhara um degrau e agarrou-se a mim para não cair...

- Momento bem agradável! - proferiu Beaufort, entredentes. - Tens razão, ela é encantadora...

- Oh, ela parece mais interessada na vossa pessoa. Enquanto a sustinha, cochichou-me: “Dizei ao vosso amo que me venha ver. É a casa em frente. É importante...”

- Ora bem! Efetivamente, pode ser bem esse o caso: a dama é filha do tenente civil. Chama-se... espera!... A marquesa de... de...

- De Brinvilliers - completou Ganseville, impávido. - Interroguei um dos cães de guarda da Chémerault. Coisa muito natural, dada a beleza da dama. Não levantou qualquer objeção para me informar, premiando-me ainda com uma enorme gargalhada...

Para não despertar a atenção do pessoal de Mme. de La Bazinière, Beaufort decidiu regressar sozinho e a pé à rue Neuve-Saint-Paul. Deixaram os cavalos num albergue vizinho ao convento da Visitação de Santa Maria e, depois, o duque encaminhou-se na direção do hotel Dreux d’Aubray, enquanto o seu escudeiro se emboscava na reentrância de um portão, de modo a ficar de olho sobre o da La Bazinière.

Beaufort não precisou de indicar a sua identidade ao porteiro que acorreu à sua chamada. Aparentemente, a encantadora marquesa não duvidara um só instante que ele responderia ao seu convite e descrevera-o com precisão suficiente para que o homenzinho o conduzisse em silêncio até ao vestíbulo onde o esperava um criado.

Curiosamente, a casa estava pouco iluminada e parecia deserta ou quase. Não se ouvia qualquer ruído e o visitante imprevisto sentiu-se seguro: durante um momento perguntara a si mesmo o que diria caso desse subitamente de caras com o tenente civil ainda que este em nada se assemelhasse ao falecido predecessor Laffemas, do qual não possuía nem a inteligência danada, nem a crueldade, nem a astúcia: era apenas um magistrado que cumpria a sua função, sem a mínima originalidade e sem qualquer eficiência. Mas ninguém apareceu: nem ela, nem o marido, que devia encontrar-se na companhia dos homens de armas. Depois de ter atravessado uma galeria envidraçada, Beaufort entrou num pequeno gabinete, muito feminino, com sedas azuis e candelabros de cristal, onde o esperava a sua hospedeira, com um roupão interior, abundantemente guarnecido de rendas e tão decotado, que ele se perguntou se não se tratava afinal de uma vulgar armadilha galante, tanto mais que, pensando bem, não vislumbrava o que aquela mulher lhe teria para dizer. Esta vaga decepção não durou muito. Depois de lhe ter concedido uma bela reverência, a dama convidou-o a sentar-se:

- Monsenhor, deveis decerto estar tão surpreendido com o meu convite como o ficou há pouco essa cara Mme. de La Bazinière ao receber a vossa visita. Aliás, julguei depreender pelo vosso olhar que esta nada tinha de amigável...

- Marquesa, pareceis ser tão boa de vista quanto lindos são os vossos olhos, mas como foi que vos apercebestes?

- Porque tínheis mais o aspecto de quem vem pedir contas do que de alguém que está de passagem para ter uma ligeira conversa. Devo confessar-vos que, na verdade, não gosto muito da minha vizinha.

- Nesse caso, que estáveis a fazer em casa dela?

- Vigilância! É que o meu pai é viúvo e muito rico. Esta Mme. de La Bazinière meteu na sua cabeça que havia de seduzi-lo e de desposá-lo. Como o meu pai é, além do mais, um homem muito obstinado se bem que não possa estar certa que partilha os pontos de vista da dama evito ao máximo tomar qualquer atitude hostil. Pelo contrário, ao cultivar a boa vizinhança, posso vigiá-la de perto...

- É muito sábio da vossa parte, mas não vejo como eu possa ser-vos de alguma utilidade para vos ajudar a evitar esse casamento.

Mme. de Brinvilliers pegou numa caixa de frutos doces que estava em cima de uma mesinha, ofereceu-o ao seu visitante e, como este esboçasse um gesto de recusa, disse:

- Deveríeis provar. Estes frutos são deliciosos: sou eu mesma que os preparo...

Para não contrariá-la, pegou numa ameixa que achou efetivamente muito boa, ainda que colasse ligeiramente aos dedos. Ela serviu-se a si própria, saboreou e, depois, retomou o fio à conversa:

- Monsenhor, não vos enganeis! Eu não peço a vossa ajuda, pelo menos diretamente, mas é possível que vos possa ser útil nalguma coisa. Para isso tendes de me dizer qual o motivo da vossa visita a casa da La Bazinière... Entretanto, não respondeis antes de ouvirdes primeiro o seguinte: dado aquilo que vos contei sobre as intenções dessa mulher, eu e mais dois criados meus, muito dedicados, vigiamo-la de perto, noite dia, a ela e à sua casa.

François, subitamente atento, apurou o ouvido.

- Acaso haveis registado algo fora do habitual?

- Julgareis por vós próprio. Creio que faz agora... quatro noites, quando regressava de festejar a meia-noite numa residência próxima da Praça Real; ia na companhia de um amigo que me levava de volta a casa, quando fomos ultrapassados nesta rua por uma carruagem fechada e escoltada por dois cavaleiros. Essa carruagem entrou no pátio da casa da La Bazinière e eu nada teria achado de extraordinário no fato se, quando passou ao pé de nós pois teve de refrear o andamento, porque a rua não é larga eu não tivesse ouvido gritos e protestos, aliás depressa abafados, mas que eu juraria serem os de uma criança.

Beaufort pulou a pés juntos, sacudido por uma alegria selvagem:

- É essa a criança que eu vim reclamar. É filho de uma amiga muito querida e foi efetivamente sequestrada há quatro dias atrás..

- Ireis dizer-me quem é?

- Trata-se do jovem duque de Fontsomme. A sua mãe pertence às damas da jovem Rainha...

Os belos olhos despejaram chamas, que as pálpebras esconderam depressa:

- Um rapto! E de um duque! Monsenhor, estou encantada! Se ela vier a ser reconhecida como culpada, desaparecerá definitivamente da circulação!

- Mais devagar! Nada me diz que a criança ainda lá esteja...

- Juraria que é o caso. Em primeiro lugar, a carruagem em questão nunca de lá saiu. Como vos disse, a casa está vigiada durante toda a noite e eu vou lá todos os dias. O meu instinto segredara-me que chegara a altura de me fingir muito deleitada com a companhia daquela mulher. Utilizo os mais diversos pretextos para ir a sua casa. Faço de maluquinha; declaro que me anunciarei a mim mesma; trago-lhe pequenos presentes. Anteontem fui dar com ela no quarto a conversar com um homem que trazia a libré da casa, mas que eu nunca vira antes. Um homem nos seus quarenta anos, com uma cara alongada...

Beaufort retirou o desenho de Perceval do bolso e mostrou-lho:

- Era parecido com isto?

- Mas... mas, era sim! Completamente!

- O vosso pai está em casa?

- Esta noite, não. Está no nosso castelo d’Offemont...

- Que maçada! Eu ameacei essa mulher que, caso a criança não fosse entregue à mãe até amanhã de manhã, então daria ordens para que o pessoal do Rei lhe ocupasse o hotel.

Foi a vez da bela Marie-Madeleine levantar-se, abandonando as almofadas em que tão linda e languidamente se espreguiçava:

- É sempre possível, mesmo sem ele, mas então ela só tem uma solução: enviar o pequeno duque, ainda esta noite, para um outro esconderijo...

- Ainda tem outra solução: matá-lo! - disse Beaufort, num tom sinistro.

- Não creio. É uma mulher que sabe medir os riscos e esse seria demasiado grande: um assassínio deixa sempre algum rasto, o culpado seria morto na tortura da roda e ela acabaria sob a espada de um carrasco. Onde está o vosso escudeiro?

- Lá fora. Está de vigia à casa...

- O meu criado La Chaussée faz a mesma coisa. Sem estar a querer orientar-vos, monsenhor, ide ter com o vosso servidor, aprontai os vossos cavalos e conservai-vos a certa distância. Algo me diz que a criança vai ser transferida esta noite. Vou mandar despejar uma carroça de madeira na outra extremidade da rua...

“Mas que mulher! - pensou Beaufort. - Daria um melhor tenente civil que o pai!”

E, depois, em voz alta:

- Se obtivermos êxito será graças a vós, marquesa! Como poderei agradecer-vos?

Mme. de Brinvilliers teve um pequeno sorriso:

- Caso a duquesa volte a encontrar o filho, gostaria que ela se dispusesse a apresentar-me à Rainha. Somos nobres de fresca data, dado que o nome do meu esposo é Antoine Gobelin, da família dos grandes mestres de liços de tear, mas ainda assim um verdadeiro Gobelin. Se bem quê não seja propriamente uma má situação, o nosso marquesado ainda está muito verde.

- Mas ligado às forças armadas, senhora, o que lhe confere muitas prerrogativas.

- Decerto, decerto... mas gostaria de ver a Corte de mais perto.

- Encarregar-me-ei disso, marquesa, e a duquesa ficará feliz em ajudar-vos.

De volta à rua sombria, Beaufort mandou Ganseville buscar os cavalos e instalou-se com ele na estreita passagem imunda situada entre os dois edifícios. Era para lá que se deitavam os detritos e aparentemente era uma terra de eleição para os ratos. Uns tantos pontapés puseram-nos a andar dali para fora. Entretanto, das dependências do hotel d’Aubray chegara uma carroça sobrecarregada, que desatou aos solavancos pelas pedras irregulares da rua, à saída da qual se voltou, depois de ter soltado rangidos apocalípticos. Tudo estava portanto a postos, e a espera começou.

Iria ser longa. Principiada por volta das nove horas, prolongou-se muito depois do sino da igreja de São Paulo ter badalado a meia-noite. Os vigilantes começavam a achar a espera demorada quando, por fim, as portas do hotel La Bazinière foram silenciosamente abertas: uma liteira, escoltada por dois homens armados com espadas, mas desprovidos de qualquer meio de iluminação, dirigiu-se para a rue Saint-Paul.

- Onde é que ela irá assim a meio da noite? - cochichou Beaufort, persuadido que era a sua inimiga que estava sentada na liteira. - Vamos segui-la!

- Talvez seja apenas um isco, de modo a que, depois, saia aquilo que verdadeiramente nos interessa.

- Nesse caso, não poderia o pessoal de Mme. de Brinvilliers encarregar-se do assunto? Mas pode ser que tenhas razão. Vamos separar-nos: eu vou atrás dela e tu ficas aqui.

Ocasional caçador solitário gostava de percorrer as suas terras com uma espingarda sob o braço e um cão atrás de si. Beaufort sabia movimentar-se sem provocar o mínimo ruído. Foi atrás do pequeno cortejo, seguindo-o durante uma parte da rue Saint-Paul para vê-lo desviar-se depois na direção da ábside da igreja que os Jesuítas tinham construído alguns anos antes e que era contígua à sua própria casa. Existia ali um cemitério, ao qual o interior da igreja facultava o acesso, bem como uma pequena porta aberta na passagem de Saint-Louis, do lado esquerdo do santuário. Foi por aqui que a liteira enveredou, para logo parar, se bem que ninguém dela descesse. Um dos “guardas” aproximou-se então da porta, parecendo dispor da chave, pois abriu-a logo sem qualquer dificuldade, para regressar depois à liteira, da qual retirou um pacote oblongo que colocou ao ombro, enquanto o companheiro, ajudado pelos carregadores, retirava por sua vez diversos utensílios do interior do veículo. Uma súbita cortina vermelha desceu pelos olhos de Beaufort, enquanto o coração lhe parava: aquela gente preparava-se para proceder a um enterro clandestino e o corpo em questão só podia ser o de Philippe. Desembainhou a espada e já se aprontava a correr quando foi retido por mão sólida:

- Monsenhor, eles são quatro! Não ides agir sozinho...

- Quem és tu?

- La Chaussée, o criado grave da marquesa. Esperai um instante, vou buscar o vosso escudeiro...

- Começa por ajudar-me a transpor este muro!

Efetivamente, enquanto a liteira permanecia abandonada no mesmo lugar da estreita passagem, a porta fora fechada atrás dos quatro homens. La Chaussée curvou-se, sem responder nada, oferecendo as mãos cruzadas ao pé de Beaufort, que se elevou como um pluma, alcançando o cimo do muro, do qual deslizou destramente, sem o mínimo ruído. Entretanto os quatro homens e o seu fardo chegavam ao fundo do cemitério e, em vez de começarem a cavar, trataram de levantar e fazer deslizar uma laje que devia dar acesso a um jazigo. Beaufort ouviu o rangido provocado pela pedra e, sem esperar pelo auxílio prometido, desatou a correr pelo meio das sepulturas, de espada em riste. Concentrados no seu trabalho, os homens não o viram chegar e um deles caiu imediatamente de cara no chão, soltando um soluço, trespassado de lado a lado, sem sequer saber o que lhe acontecia. Mas o efeito de surpresa não durou: enquanto Beaufort retirava a espada do cadáver, já outro malandrim desembainhara a sua e passara ao ataque. Ferido no braço, François pulou para trás, sentiu nas costas o muro do cemitério e encostou-se a ele, não só para enfrentar o homem armado, como também os dois carregadores que empunhavam uma alavanca e uma pesada barra de ferro. Demasiado enraivecido para poder sentir a dor, desferiu molinetes tão terríveis com a lâmina da espada que os outros recuaram surpreendidos, à procura da brecha que lhes permitisse atingi-lo. Assustou os dois carregadores sem dificuldade, mas era evidente que o terceiro sabia manejar uma espada. Beaufort gritou subitamente:

- Saint-Rémy, ou seja lá qual for o teu nome, não me escaparás! Vou matar-te como malfadado animal que és!

- Seria preciso que me atingisses. Nós somos três e tu estás sozinho...

Então era mesmo ele! Beaufort sentiu que lhe cresciam asas e arremeteu com louca impetuosidade. Nessa altura foi só por um cabelo que não foi atingido por um violento golpe desferido pelo atacante com a sua alavanca mas, no segundo imediato, este estatelava-se, soltando um horrível gorgolejo, com a garganta atravessada pela espada de Ganseville que entretanto chegara, rápido como um raio. O mesmo aconteceu ao homem da barra de ferro; então, vendo-se no meio de fogos cruzados, Saint-Rémy parou subitamente o combate e disparou como uma flecha pela tapada, desaparecendo tão repentinamente que a terra parecia tê-lo tragado. Ganseville foi-lhe no encalço, enquanto François corria a ajoelhar-se ao pé do corpo envolto num manto e que fora depositado junto ao jazigo aberto. Estava tão comovido ao afastar o tecido com a mão trêmula que as lágrimas inundaram-lhe os olhos: na frente dele jazia a criança de Sylvie, vítima de um aventureiro e de uma mulher miserável. E ele, Beaufort, teria de ir dizê-lo a uma mãe cujo desespero antevia aterrorizado.

De repente, ao inclinar-se para abraçar o rapazinho, sentiu-lhe a pele quente e a respiração... Sentiu-se inundado por uma onda de alegria:

- Ganseville! - chamou, sem se preocupar com o barulho que fazia Ganseville, - vem cá depressa! Ele está vivo! Vivo!

Sem auscultar sequer a ferida, pegou na criança ao colo e ergueu o rosto na direção das estrelas, parecendo oferecê-la ao céu. O escudeiro acorreu e examinou o jovem:

- Está vivo, mas encontra-se inconsciente... Deve ter sido drogado, mas com quê?

- E se fosse um veneno que começou agora a atuar? - alarmou-se o duque.

- Não tem cara de quem está a sofrer...

- E estes miseráveis iam enterrá-lo vivo! Como se pode ser tão ignóbil?!

Sem nada dizer, Ganseville aproximou-se do jazigo aberto e apercebeu-se que havia uma escada que mergulhava na escuridão das trevas profundas. Desceu alguns degraus e voltou atrás...

- Não julgo que tencionassem matá-lo; iam antes escondê-lo, enquanto os delegados do Rei procedessem à sua busca no hotel de La Bazinière, tal como ameaçastes há pouco que o mandaríeis fazer. Saint-Rémy não está interessado em que a criança desapareça para sempre, sem que se fique a saber o que lhe aconteceu. Quer sem dúvida utilizá-la para sacar dinheiro à mãe...

- Mas, enfim, imaginas este pobre menino a acordar nesta sepultura? É caso para morrer de medo...

- Também é possível! Nesse caso, o cadáver que seria aqui descoberto não trairia quaisquer vestígios de sevícias nem de envenenamento...

- Ainda não estou certo que não o tenham feito. É preciso tentar acordá-lo... tratá-lo!

Não tiveram de procurar auxílio muito longe. A agitação inabitual do cemitério e o grito de François deviam ter acordado alguém na residência dos Jesuítas. Subitamente apareceu um homem de sotaina preta e boina quadrada, trazendo uma lanterna. Sem qualquer hesitação, Beaufort apresentou-se e contou o que acabara de se passar. O recém-chegado deu um relance de olhos pela criança inconsciente.

- Um dos nossos irmãos é um médico excelente. Ele examiná-lo-á... Quanto a isto - acrescentou, apontando para o jazigo aberto - não é um túmulo, mas sim um antigo celeiro do hotel de Saint-Paul... que vedamos com um muro quando construímos a igreja. Penso que até já nos tínhamos esquecido dele... Vinde comigo!

Ganseville sorria interiormente, ao seguir o religioso e Beaufort, com a criança. Não parecia nada de Jesuíta, esquecer-se de um detalhe tão importante quanto uma saída secreta... Restava saber como descobrira Saint-Rémy a sua existência...

O pequeno grupo foi acolhido numa sala baixa e fria, mobilada austeramente com um crucifixo na parede e com alguns bancos. O jesuíta acendeu com a sua lanterna as poucas velas dispostas em redor da imagem sagrada, para logo sair, enquanto Beaufort e Ganseville estendiam Philippe em cima de um banco. A criança estava tão inerte como uma boneca de feira mas, apesar de fraca, a sua respiração permanecia regular. O velho religioso examinou-o com mais cuidado que o faziam habitualmente os médicos. Por fim inclinou-se sobre a boca, que cheirou repetidas vezes, após o que se endireitou, revelando a Beaufort um olhar vivo e um comprido nariz, na ponta do qual pendiam umas lunetas:

- É uma dose muito forte de ópio - diagnosticou. - Teria sido capaz de matar um rapaz menos robusto que este, mas penso que não nos devemos preocupar. Levai-o de volta a casa e esperai que ele acorde. Disseram-me que os malandrins se preparavam para enterrá-lo no nosso cemitério...

- É verdade, padre... Estou feliz por Deus me ter permitido chegar a tempo. Direi ainda que, para tal, tivemos de matar três homens. Infelizmente, o quarto elemento escapuliu-se...

- Deus saberá como encontrá-lo. Não vos preocupeis com os vossos cadáveres, nós enterrá-los-emos. Tendes alguma carruagem disponível para transportar a criança?

- Temos cavalos. O meu escudeiro vai buscá-los... e eu regressarei amanhã para vos oferecer, em mão própria, a vós e à vossa Santa Casa, o agradecimento que a minha gratidão me ditar.

Um pouco mais tarde, François, feliz como já não se sentia há tanto tempo, devolveu a Sylvie o filho sempre adormecido, mas já são e salvo. Não tivera qualquer dificuldade em que lhe abrissem as portas do hotel de Fontsomme, onde ninguém conseguia dormir. Ao regressar de Fontainebleau, a jovem dama deparara com um pedido de resgate: à meia-noite do dia seguinte, devia depositar cinquenta mil libras ao pé da estátua de Henrique IV, situada no Pont Neuf, devendo em seguida regressar a casa, onde lhe seria entregue o filho uma hora depois de concluído o depósito. A partir dessa altura, ocupara-se em reunir a soma com Perceval, mas sem grande esperança de rever Philippe. Como confiar em pessoas daquela espécie? No entanto, era preciso jogar o jogo até ao fim...

Ao ver chegar François com a criança nos braços, julgou que o céu se abrira. Ele nunca haveria de esquecer a maneira como ela o olhou, nem o que lhe sussurrou por entre lágrimas de alegria:

- Outrora, quando me encontrastes na floresta, chamava-vos “Senhor Anjo” e, durante muito tempo, pensei que o éreis realmente. Esta noite estou certa e segura disso...

Também comovido, ele não quis contudo permanecer nem mais um instante em casa de Jean de Fontsomme. Queria retomar a sua perseguição, encurralar o sequestrador, obrigando-o a esconder-se atrás das suas últimas defesas e, ao mesmo tempo, desembaraçar o mundo da antiga Mlle. de Chémerault.

Na sua sede de vingança sonhava em deitar fogo ao seu hotel, como destruíra outrora o castelo de La Femère. Mas quando chegou, acompanhado por Ganseville e pelo pessoal da sua casa que este fora buscar, o hotel da rue Neuve-Saint-Paul estava vazio. Nem sequer ficara o porteiro... E ninguém, nem mesmo até a sua aliada por uma noite, cujos olhos azuis viam tão bem, lhe soube dizer por onde tinham desaparecido a dama e o seu pessoal...

Ficou tanto mais furioso porquanto estava a chegar ao fim o prazo que o Rei lhe concedera; aprontava-se a regressar a Fontainebleau para solicitar um pouco mais de tempo e obter ordens de prisão em boa e devida forma quando, depois de ter esgotado toda a sua calma, Ganseville veio anunciar-lhe:

- Ela está aqui!

- Quem?

- Mme. de Fontsomme. Deseja falar-vos.

François ficou deslumbrado: Sylvie em sua casa, no local onde ele pedira, debalde, a tantas mulheres que o esquecessem! Isto pareceu-lhe maravilhoso e, ao mesmo tempo, vagamente escandaloso. Apressou-se a ir ao seu encontro, depois de ter dado um relance de olhos às janelas por detrás das quais brilhava o Sol: o tempo permitia que a recebesse no jardim. Encontrou-a a meio caminho das escadas, pegou-lhe na mão e levou-a consigo:

- Vinde! - disse. - Vamos lá para fora! Esta casa não é digna de vós.

O jardim era pequeno mas, naquela manhã, ainda brilhava sob o efeito dos raios de sol ainda mornos. As árvores pranteavam suavemente as suas folhas douradas em redor de uma fonte que representava uma ninfa vertendo a água de um jarro. François fê-la sentar-se num banco de pedra que por ali havia, mas ficou de pé diante dela:

- Vós, em minha casa? - começou, suavemente. - Não tenho palavras para expressar a minha alegria...

Sem responder, ela mostrou-lhe uma carta desdobrada que acabara de retirar dos bolsos da sua ampla capa de veludo negro. A leitura foi rápida. Dela constavam poucas palavras, mas quão ameaçadoras sob a sua forma abstrata: “O que não se faz ao meio-dia, pode ser feito à noite...”. Algures, Saint-Rémy devia ter lido Maquiavel... As mãos nervosas do duque amarfanharam o papel:

- Quando haveis recebido isto?

- Há uma hora, por intermédio de um garoto que a entregou ao porteiro antes de se escapar a correr.

- Deste modo esse miserável não só não foi para o diabo, como ainda por cima zomba de nós! Como pude deixá-lo escapar-se? É absolutamente imprescindível encontrar um meio de proteção para o no... vosso filho. Preparava-me para ir ter com o Rei e talvez...

Sylvie parou-o com um gesto:

- Não! Desde que recebemos isto, tanto eu como o cavaleiro de Raguenel meditamos sobre o assunto. Onde quer que Philippe esteja pelo reino fora, correrá sempre perigo enquanto não tivermos deitado a mão a esse bandido. Até no fundo de um convento o perigo espreitá-lo-á. A não ser...

- A não ser...

- Que esteja ao pé de vós! François vim pedir-vos que o leveis convosco. Primeiro até Brest e, depois, pelos mares...

- Ides confiá-lo a mim?

Deslumbrado pela felicidade que ela lhe oferecia e que teria de pagar com lágrimas amargas, ele dobrou o joelho à sua frente, de mãos abertas, como para melhor receber esse belo presente, mas sem ousar tocar na sua dadora. Foi Sylvie que se inclinou e que depositou um beijo nas grandes palmas das suas mãos.

- Quem melhor que o pai tomaria conta dele? - murmurou. - Além disso, sei que fareis dele um homem digno do seu nome.

- Juro-vos pela minha vida! Mas ele, que pensa? Haveis-lhe falado desta ideia?

O esboço de um sorriso veio amenizar a expressão do lindo rosto crispado, onde a preocupação imprimira a sua marca:

- Ele?... Está louco de alegria! Em vez de ir para o colégio, vai ser pagem de um príncipe e, sobretudo, vai poder ver o mar, os navios...

- Gosta deles?

- Tanto quanto vós. Quando devia ser alguém fincado à terra, apenas sonha com o mar. Quando partis?

- Dada a situação, conto partir já amanhã. Mandai que lhe preparem as malas. Eu próprio irei buscá-lo numa carruagem. Logo que chegue a Brest, escreverei ao Rei para lhe dizer que as suas ordens foram cumpridas...

Sem largar as mãos de François, que agora segurava nas suas, Sylvie levantou-se:

- Vê-lo-ei antes de vós. Tenho de voltar a Fontainebleau assim que Philippe tiver partido.

Caminhavam lado a lado, com passinhos lentos. Num gesto natural, que fez estremecer François, Sylvie enfiou a mão por debaixo do seu braço, que ele envolveu de imediato com a sua. Durante alguns escassos minutos, ficaram ali a desfrutar aquele momento infinitamente doce que os unia num amor maior que eles, que era como que a expansão daquele que nunca tinham vivido, dado que eram pais sem nunca terem formado um casal.

- Tomareis bem conta dele, não é verdade? - perguntou Sylvie, num tom de voz sumido e tão triste que François teve de lutar para não abraçá-la. Sentindo que podia estragar tudo, contentou-se em exercer uma ligeira pressão nos seus dedos delicados:

- Ficará sempre a meu lado...

- Ah, já me ia esquecendo! Há ainda o abade de Résigny, seu preceptor. Morre de medo à ideia de ter de navegar, mas recusa-se a abandonar o seu aluno. Quando foi levantada a questão do colégio, já acalentava a ideia de acompanhá-lo para preservá-lo das amizades perigosas. Imagine-se então na companhia de marujos!

Beaufort não conseguiu impedir-se de rir, o que lhes fez grande bem.

- Já disponho de um capelão mas, se souber jogar ao xadrez, o vosso abade será bem-vindo. Caso contrário ensiná-lo-emos.

Pararam à entrada da casa. Com um gesto pleno de ternura, François ajustou a carapuça de veludo em volta do rosto de Sylvie.

- Ide descansada, meu coração! Bem sabeis que, mesmo sem o conhecer, sempre amei o nosso pequeno Philippe. Prometo-vos que ele será feliz. Irei buscá-lo amanhã...

Ela pôs-se em bicos dos pés para depositar, naquela face bem escanhoada, um beijo ligeiro e perfumado como a pétala de uma flor.

- Que Deus vos guarde e vos abençoe!

Uma hora depois da partida do filho, Sylvie regressava a Fontainebleau onde, nessa mesma noite, conseguiria ser recebida pelo Rei, logo que este tivesse voltado do seu passeio. Efetivamente, Luís XIV tinha pressa em conhecer os últimos desenvolvimentos do caso que principiara no seu gabinete. Concordou com a atuação de Beaufort e também com as medidas efetuadas para preservar a segurança do jovem Fontsomme, se bem que elas tivessem sido tomadas sem a sua autorização. Contentou-se em observar:

- Ao confiardes o vosso filho ao duque de Beaufort, não receeis... suscitar alguns rumores?

Impassível, Sylvie olhou-o bem nos olhos:

- Senhor, seja qual for o nosso modo de agir, isso dá sempre azo a falatórios e, a esse propósito, ouso pedir ao Rei que guarde segredo sobre esta partida... por causa disto.

Estendeu o bilhete ameaçador que recebera no dia seguinte ao do salvamento de Philippe. Luís XIV pegou nele, leu-o, franziu o sobrolho e, depois, estendendo o papel em cima da secretária, apoiou a mão nele, significando com esse gesto que tencionava guardá-lo para si.

- Tendes a minha palavra, duquesa! Tudo decorrerá segundo o vosso desejo, aliás bem legítimo. Mas nem por isso abrandaremos a busca ao nosso homem. Quanto ao meu primo Beaufort, espero que saiba mostrar-se digno da vossa confiança. Agora, podeis ir ter com a vossa Rainha. A sua gravidez incomoda-a e ela reclama a vossa presença...

A reverência espraiou amplamente pelo tapete real o vestido de cetim acinzentado. Apesar da bondade que o Rei testemunhara, Mme. de Fontsomme levava consigo uma sensação peculiar, quando pronunciava o nome de Beaufort, os lábios do Rei contraíam-se num esgar curioso. Devia concluir-se que este em nada se esquecera da Revolta, que, apesar das aparências, nada havia perdoado, e que, afinal de contas, o posto de comando marítimo, que tanta felicidade dera a François, era apenas um meio para afastá-lo da Corte e da sua real pessoa?

Entretanto, na casa da rue dês Petits-Champs, que era o domicílio parisiense de Colbert, desenrolava-se uma cena que Sylvie teria achado extremamente interessante: o ministro, muito encolerizado, descompunha asperamente um Fulgent Saint-Rémy, visivelmente incomodado:

- Haveis acumulado disparate atrás de disparate! O rapto do jovem duque foi um ato prematuro e só serviu para atrair a cólera do Rei...

- Preciso de dinheiro e vós não me dais nenhum... aventurou penosamente o culpado. Desta vez teria devolvido a criança... e enriquecido cinquenta mil libras...

- Que teríeis de partilhar com o vosso cúmplice! Vou dar-vos um pouco de dinheiro, mas tereis de desaparecer da circulação durante todo o tempo que for preciso.

- Devo seguir M. de Beaufort até à Bretanha?

- Certamente que não! Agora ele conhece-vos e tem uma vista apurada. Além disso, esse fruto ainda não amadureceu e eu ainda não sou suficientemente poderoso para poder urdir o grande esquema que o fará desaparecer. Veremos o que fazer depois da condenação e da execução de Fouquet. Nessa altura, terei de me desembaraçar de todos os seus bons amigos, que não me perdoarão o fato de ter causado a sua perda. Entretanto, é preciso ficar caladinho... e deixar a duquesa desfrutar em paz aquilo que julga ser uma vitória. Aliás ela está muito bem cotada nos últimos tempos...

- Tratais-me muito mal, senhor ministro - resmungou Saint-Rémy. - Como se eu não tivesse quaisquer direitos. No entanto, a promessa de casamento que tenho em meu poder é bem real...

- E continuará a sê-lo quando chegar a altura de atestá-la. Por ora desejo que imiteis Mme. de La Bazinière, abandonando Paris.

- Para ir para onde?

- E por que não... para Provence? - sugeriu Colbert, pegando numa bolsa bem recheada de dentro do armário e lançando-a ao seu visitante. Lá, podereis ser-me útil. O governador é o duque de Mercceur, irmão mais velho de Beaufort, viúvo de uma sobrinha de Mazarin. Posso recomendar-vos a ele. É um simplório e podereis tentar obter a sua confiança. Os Vendôme formam uma família muito unida e talvez possais aprender coisas interessantes. Mas não façais nada haveis-me ouvido? sem o meu parecer! Senão, abandono-vos!

- Obedecerei, mas... ainda será preciso esperar muito? Já não sou nenhum jovem!

- Esperareis o tempo que for necessário. O tempo trabalha a meu favor. Logo que me tornar todo poderoso empreenderei grandes coisas pelo reino mas, um após outro, eliminarei todos os meus inimigos. Sede paciente, caso queirais tornar-vos um dia duque de Fontsomme! Até podereis desposar a viúva do vosso meio-irmão!

E Colbert desatou às gargalhadas.

 

                                                                                       O Ódio de um Rei - 1664

 

                     UM ESTRANHO NASCIMENTO

Sylvie de Fontsomme suspirou de alívio quando a Corte deixou Fontainebleau nos últimos dias de Outubro, regressando ao Louvre, onde passaria o Inverno. Desde a Primavera anterior que tinham transitado do Louvre a Vincennes, depois a Saint-Germain, a Compiègne e, finalmente, a Fontainebleau, com um breve interlúdio em Versailles, durante o mês de Maio, onde Luís XIV se decidira mandar construir o mais belo palácio que havia na terra e onde entretanto ia dando festas no parque do pequeno castelo que outrora o seu pai mandara construir. A mais bela foi sem dúvida a dos Prazeres da Ilha Encantada, que durou seis dias e na qual o monarca afirmou esplendorosamente o seu gosto pelo fausto. E durante a qual também se afirmou infelizmente a sua paixão por Louise de La Vallière, de quem tivera um filho.

É certo que a jovem, tímida, sempre perdidamente apaixonada, tinha dado à luz muito discretamente, numa casa próxima do Louvre, e a criança, declarada sob falso nome, vivia longe da Corte. Também é certo que somente algumas horas após o nascimento, La Vallière compareceu heroicamente ao pé de Madame, da qual era sempre dama de honor e que a detestava! mas o Rei não dissimulou a sua alegria. Alegria quase tão grande como aquela que sentira após o nascimento do Grande Delfim, no Outono de 1661. Acrescentemos ainda que, cinco meses depois da Rainha e nove meses depois do famoso Verão em Fontainebleau, durante o qual o Rei e a sua cunhada tinham ostentado a sua mútua atração ao separarem-se o menos possível, Madame deu à luz uma menina o que em nada a regozijou, pois, na sua decepção, gritara que a deitassem ao rio! Depois disso não houve a menor sombra de dúvida: Luís XIV contribuíra muito mais para aquele nascimento que Monsieur, seu irmão e, doravante, era preciso contar com um temível genitor...

Desde então Maria Teresa dera à luz uma menina que infelizmente não sobreviveu, e esperava uma nova criança para o Natal. Quanto a La Vallière, aguardava uma para o início do próximo ano e os cortesãos, um pouco desorientados com esta avalancha de bebês, já não sabiam a quantas andavam em matéria de reverências; mas, no cômputo geral, todos se divertiam...

Não era o caso de Maria Teresa. A infeliz não demorou a ficar ao corrente dos devaneios conjugais do marido, o que a acabrunhava[31]. Isso fazia-a sofrer de modo tão evidente que a Rainha-Mãe já não sabia mais o que fazer para consolá-la. Como também não o sabia Mme. de Fontsomme, a quem ela se confessava de bom grado, e a quem murmurou certa noite, ao atravessar os aposentos para ir jantar a casa da condessa de Soissons:

- Aquela jovem que traz brincos ornados de diamantes é a dama bem-amada do Rei...

Sylvie ficava desolada com tanta dor. Nunca imaginara que Sua Majestade, o seu encantador aluno de antanho, se tivesse transformado, com o exercício do poder, numa espécie de sultão vivo no meio de um harém, lançando o lenço a uma ou a outra das suas mulheres, segundo os caprichos da sua fantasia. E aquela Corte agradava-lhe cada vez menos porque sentia falta de ar, dado que nela encontrava cada vez menos a amizade que sempre lhe fora tão preciosa.

Primeiramente, ocorreu o interminável processo de Fouquet, iníquo e parcial ao ponto de o povo, que no início fora naturalmente hostil para com o superintendente das Finanças, operara desde há algum tempo uma viragem total que o levava agora a considerar Fouquet como um mártir e Colbert como um carrasco impiedoso, insultado pelos panfletos ao longo do dia. Além de Nicolas, este caso arredara muitas pessoas de quem Sylvie gostava: a mulher do prisioneiro, a sua amiga Mme. du Plessis-Bellière e os seus irmãos e filhos, agora dispersos. Só ficara a mãe daquele, senhora de grande austeridade, que Sylvie pouco frequentava. Havia também aquele a quem ela chamava o “caro d’Artagnan” e que a esposa e os seus mosqueteiros tinham deixado de ver desde há três anos porque o Rei o encarregara da vigilância ao acusado, numa torre da Bastilha...

Finalmente (mas isso era tão pouco relevante!) havia o marechal de Gramont, homem que fora tão assíduo até à prisão de Fouquet e que agora fingia a maior parte do tempo que não via Mme. de Fontsomme quando ambos se encontravam na Corte. Promovido a coronel-general da cavalaria ligeira, preocupava-se em não comprometer em nada o favor com que fora privilegiado e Sylvie não conseguia esconder, como seria desejável, o quanto lamentava infinitamente a sorte do prisioneiro.

A morte também implantava os seus vazios. Levara consigo Elisabeth de Vendôme, duquesa de Nemours, amiga de infância, a sua quase irmã, que as bexigas ceifaram na altura em que a Corte se comprazia em Versailles com as delícias da Ilha Encantada. Por receio de contágio, Sylvie recebera ordens para não se deslocar a casa dela reconfortá-la. Só a mãe, a duquesa de Vendôme, que nada temia, sobretudo a morte, é que se ocupou dela, assistida por uma dedicada servente. Por entre os amigos da família, também só o jovem “Péguilin”, que devido ao falecimento do pai se tornara entretanto conde de Lauzun, é que ousou desafiar todas as proibições para ir saudar aquela que pensara durante algum tempo que haveria de ser sua sogra. Safou-se com um regime de quarentena na sua residência, mas nem por isso deixou de se declarar satisfeito por ter prestado homenagem a uma dama de quem gostava muito, tanto mais que já não se fazia questão de qualquer casamento com uma das “pequenas Nemours”, que tinham estado tão loucas por ele: a mais velha desposara o duque de Sabóia e dizia-se que a segunda desposaria brevemente esse rei de Portugal que Mademoiselle recusara tão energicamente, sendo mais uma vez exilada para Saint-Fargeau. Mais uma longínqua amizade para Sylvie! Em compensação, se Lauzun teve também de abandonar as suas pretensões acerca de Marie de Fontsomme, o modo cavalheiresco como a jovem afastara o pretendente contribuíra para fomentar uma amizade entre este e aquela que ele desejava como sogra, amizade que era decerto episódica mas, não obstante, sólida e, até, divertida.

Por fim, na Primavera anterior, fora necessário renunciar à companhia de Suzanne de Navailles, exilada após uma peripécia semiburlesca, pouco abonatória para com o Rei e que, sobretudo, lançava uma luz inquietante sobre o lado rancoroso do seu caráter.

O caso tivera por quadro o castelo de Saint-Germain, onde, apesar da sua paixão pela La Vallière e da sua assiduidade noturna com a esposa, o Rei engraçara com Mlle. de La Mothe-Houdancourt, uma das mais belas damas de honor de Maria Teresa. Cortejou-a tão descaradamente que Mme. de Navailles, responsável enquanto dama de honor pelo alegre esquadrão a que presidia, julgou que o seu posto a autorizava a fazer uma ligeira mas muito ligeira! crítica ao jovem potentado, sugerindo-lhe que este escolhesse as suas amantes noutro sítio que não a residência de sua mulher. Luís XIV encaixara a descompostura sem grandes resmungos mas, na noite seguinte, em vez de enveredar pelo caminho habitual para ir ter com a sua bela, foi armar-se em gato selvagem para os telhados do castelo, cujo acesso era facultado por cômodas janelinhas envidraçadas. Ao saber disto durante o dia, a duquesa de Navailles mandou colocar umas grelhas no interior e quando chegou a noite seguinte o Rei teve de voltar para trás, insatisfeito e, até, muito enfurecido. Não ousando dar livre curso à sua cólera com medo de ofender a esposa, Luís XIV engoliu o seu rancor e esperou por uma ocasião. Ou melhor, agarrou-a.

Tratava-se de uma falsa carta do rei de Espanha, destinada a esclarecer Maria Teresa acerca dos amores de seu esposo com a La Vallière. Esta epístola era da autoria da condessa de Soissons, do seu amante, o conde de Vardes, e do conde de Guiche, que era o de Madame; mas estava tão mal apresentada que em vez de chegar à Rainha foi parar às mãos de Molina que, sem nada contar à sua senhora, foi entregá-la diretamente ao Rei. Este ficou furioso, pois era impossível encontrar um culpado decorria nessa altura o episódio das grelhas. Foi então que deu entrada Mme. de Soissons, venenosa como de costume, e muito senhora de si, para sugerir ao seu antigo amante que era bem possível que a dama de honor se encontrasse na origem de toda aquela história. Muito feliz por poder desfrutar de uma oportunidade, Luís XIV pouco se preocupou em aprofundar o caso. Já tinha a sua vingança e, nessa mesma noite, os Navailles, marido e mulher, recebiam ordem para se exilarem para as suas terras no Béarn, sem grande esperança de poderem regressar nos próximos tempos, o que desencadeou a cólera da Rainha-Mãe:

- Agora deu-vos para castigardes a virtude?

Foi o início de uma desavença entre mãe e filho, desavença que pouco durou: Luís veio pedir desculpas, até chorou, mas não escondeu que lhe era impossível “controlar as suas paixões” e que, dada essa impossibilidade, era preferível que todos, tanto a sua mãe como as outras pessoas, se acostumassem a lidar com o fato.

Sylvie viu a sua amiga ir-se embora com uma tristeza tanto maior porquanto teve de suportar em seguida a nova dama de honor, a antiga marquesa de Montausier, de quem nada gostava e que fora nomeada duquesa para a circunstância, graças aos eminentes serviços que o seu esposo prestara durante as guerras. A nova duquesa era, nem mais, nem menos, a famosa Julie d’Angennes filha da não menos famosa marquesa de Rambouillet, que fora durante tanto tempo a rainha das Preciosas aquela que Montausier só conquistara ao fim de muitos anos, ao mandar compor uma espantosa coletânea de versos ilustrados que lhe dedicara, A Grinalda de Julie. O casamento ocorrera quando a bela ia chegar aos trinta e oito anos, o que era um recorde de virgindade. Era uma mente culta, à qual o Rei começou por confiar o governo dos Filhos da França, quando estes se encontravam ainda reduzidos à pessoa do Delfim. Atualmente, e por assim dizer, pediam-lhe que governasse a própria Rainha e ela depressa mostrou do que era capaz ao tentar fazer com que a pobre esposa revoltada aceitasse o caso de La Vallière, enquanto esta, ao ouvir todas as suas reprimendas, lhe respondia incansavelmente: “eu amo-o, eu amo-o, eu amo-o...”.

- Se o amais, deveis agir de modo a agradar-lhe... e deveis aceitar as suas amigas. Os amores dos homens nunca duram muito tempo...

- Agrada-vos dizer isso, senhora, mas essa jovem é mais rainha do que eu. Vede só as festas que por aí se dão...

- Em honra de Vossa Majestade e da Rainha-Mãe!

- A quem quereis fazer acreditar nisso? - exclamou Maria Teresa, que era muito menos tola do que geralmente se julgava. - Os versos dos poetas, as alusões veladas, todas as homenagens lhe são destinadas, e nós, as Rainhas, nada podemos fazer a não ser olhar... e aceitar.

- Vossa Majestade procede erradamente ao pôr-se nesse estado. O Rei não gosta que se choramingue. Regressaria muito mais facilmente para junto de Vossa Majestade, caso fosse encontrar um rosto sorridente, arranjos galantes e um convívio agradável com aquelas que lhe apraz escolher. Tendes de adquirir a experiência das coisas da vida.

Foi então que Sylvie decidiu intervir, já agastada com o papel que a dama desempenhava:

- Se a Rainha sofre, não é por sua culpa! Não há argumentos que valham perante esta verdade...

Como o Rei estava a entrar, foi posto termo àquilo que ameaçava tornar-se uma disputa, mas a emoção provocada pela sua chegada inesperada foi tão forte para Maria Teresa que esta começou a sangrar abundantemente do nariz. Isso foi motivo de desagrado.

- Agora sangrais? Até hoje, minha cara, apenas tinha direito às lágrimas... Pensai um pouco na criança que trazeis convosco!

E foi-se embora, seguido por Mme. de Montausier, que lhe cochichava qualquer coisa ao ouvido. Assistida por Molina e pelo jovem Nabo, Sylvie precisou de longos minutos para que a Rainha se acalmasse finalmente um pouco, mas foi o jovem preto quem melhor desempenhou a tarefa, graças às suas canções, aos risinhos e às espécies de sortilégios que lhe murmurava ao ouvido numa linguagem incompreensível. Nabo mudara muito em três anos. Tinha agora quinze anos, e era belo como uma estátua de bronze. A Rainha, no seu capricho de mulher grávida, reclamava constantemente a sua presença ao pé dela: ele tornara-se-lhe tão imprescindível quanto o chocolate que absorvia em quantidades tais que lhe estragavam os dentes. Claro está que esta presença incessante, bem como, aliás, a da anã, incomodavam a nova dama de honor.

- Um destes dias a Rainha acabará por parir algum monstrozinho - dizia a quem a quisesse escutar. - Deviam afastá-la da presença de objetos tão insólitos, que tão gravemente a podem influenciar.

Mas Maria Teresa não queria separar-se daqueles que tanto lhe recordavam o silêncio saturado de incenso dos palácios castelhanos, apoiada da melhor forma por Ana de Áustria, decidida a ajudá-la com todo o peso da influência que lhe restava.

A velha Rainha de sessenta e três anos, sofrendo cada vez mais do cancro que lhe minava o seio, não ignorava que a esperava um fim doloroso e preparava-se para enfrentá-lo multiplicando as estadias no seu querido Val-de-Grâce, ou ainda nas Carmelitas da rue du Bouloi, aonde a sua nora se deslocava tão frequentemente. A sua estimada Motteville nunca a deixava e também recebia quotidianamente a visita do seu confessor, o padre Montagu, outrora lorde Montagu, amante da duquesa de Chevreuse e confidente dos belos amores da época. Mme. de Fontsomme, que sentia agora muita pena dela, vinha tão frequentemente quanto podia; os seus laços de amizade com Mme. de Motteville fortaleciam-se tanto mais porquanto a doente manifestava sempre um vivo prazer em receber aquela que lhe acontecia ainda chamar, sorrindo-lhe, de “minha gatinha!”...

Dispondo de algum tempo livre na noite do regresso a Fontainebleau depois de Maria Teresa ter sido instalada no seu grande aposento do Louvre, Sylvie fez-se conduzir até casa de Perceval de Raguenel, como o fazia sempre que a Corte, entre duas deslocações, se quedava em Paris. Isso permitia-lhe reencontrar o seu caro padrinho, a atmosfera tão aprazível da rue dês Tournelles, e fechar durante metade do ano o seu hotel da rue Quincampoix, deslocando a maioria do pessoal para Fontsomme ou para o solar de Conflans, que era a residência que Sylvie preferia. Finalmente era lá que tinha mais oportunidades de ver a filha, cujo afeto por Perceval crescia de dia para dia, enquanto que aquele que sentia pela mãe parecia ir minguando.

Não que tivesse ocorrido algum incidente, mas a jovem mudara muito depois da noite de Fontainebleau em que declarara o seu amor a François e, sobretudo, após a partida do irmão com o homem que ela se obstinava em amar. Exceto os encontros na Corte, só ia a casa da mãe de passagem, na esperança frequentemente desiludida de obter “notícias de Philippe”, se bem que tivesse outro nome em mente. O seu afeto já não tinha o calor de outrora: era... superficial, distraído e parecia mais consequência de velhos hábitos do que resultado de um verdadeiro sentimento interior. Em compensação, professava uma espécie de devoção por Madame, só achando suportável viver quando estava ao pé dela, nunca parando de declarar o prazer que tinha em viver nas Tuileries ou em Saint-Cloud e recusando, com grande regularidade, os partidos que se apresentavam. Por isso, de entre os seus pretendentes, Lauzun fizera apenas figura de meteoro: depressa ela lhe fez compreender que, nada ignorando da sua paixão pela encantadora princesa do Mônaco, não discernia qualquer motivo para desempenhar a seu lado o papel inglório de esposa perpetuamente enganada, a quem só se pedem três coisas: que contribua para engordar as finanças em bem mau estado, que faça crianças e, sobretudo, que se cale. Ora, bem ao invés do que esperava, esta linguagem direta valeu-lhe um amigo.

- Por Deus, jovem menina, ainda me agradais mais do que esperava! E fazeis-me também muita pena: teria sido tão agradável passar a vida na companhia de uma esposa tão inteligente quanto bela... Então, não desejais realmente tornar-vos condessa de Lauzun?

- Nada de cerimônias! Não nego que embora não sejais belo, charme é coisa que não vos falta; infelizmente não sou sensível a ele! Isto não devia ser de índole a causar-vos pena: há tantas mulheres que vos acham irresistível!...

- Nem sequer vos sentis tentada por uma boa e franca associação? Tratarei de respeitar as aparências, dar-me-eis um ou dois herdeiros e, como eu sou muito ambicioso, tornar-vos-eis uma grande dama...

- Mas conto vir a sê-lo sem a vossa ajuda! Ficai sabendo que decidi desposar um príncipe. Nada menos!

- Pois bem, ora aí está algo de claro! Nesse caso, se assim o desejardes - acrescentou, com aquele sorriso de fera selvagem que só a ele pertencia - esqueçamo-nos disto tudo e tornemo-nos amigos! Mas amigos verdadeiros, tal como o podem ser dois rapazes! Com os lugares que ambos ocupamos, eu ao pé do Rei e vós ao pé da Rainha, podemos tornar-nos muito úteis um ao outro!

- Isso não me importo - disse Marie com um grande sorriso. - Sede leal, e eu também o serei!

Foi assim que foi firmada uma amizade cujos desenvolvimentos Marie ignorava ainda até que ponto iriam afetá-la...

Ao encontrar-se na “livraria” de Perceval, sentada diante dele, frente à chaminé onde crepitavam as achas e as pinhas que exalavam um odor delicioso, Sylvie desfrutou muito tempo, em silêncio, de um daqueles momentos de paz e descontração que tão difíceis são de saborear nos castelos reais, sempre assombrados por olhares indiscretos, ouvidos à escuta, malevolências e correntes de ar...

De olhos fechados, com a cabeça recostada no alto da poltrona cravada a couro, Sylvie deixava transcorrer o cansaço da viagem e o nervosismo causado pelos últimos momentos passados nos aposentos desertos de Fontainebleau e pelos pequenos incidentes de percurso, durante o qual todos queriam passar à frente uns dos outros, para chegarem mais depressa ao pé do Rei. As cortes reais sempre enxamearam de toda a espécie de cortesãos, mas aqueles que eram atraídos pelo caráter abrupto e pelo orgulho insuportável do jovem Luís XIV desagradavam-lhe muito mais que os de outrora que, no seu entender, ainda conservavam uma amostra de dignidade. Em resumo, o Rei estava ocupado a domesticar a sua nobreza e isso contrariava-a a tal ponto que se perguntava se ainda seria capaz de suportar por muito mais tempo uma atmosfera que se lhe tornara cada vez mais irrespirável. Se não fosse a pobre pequena Rainha, tão facilmente posta de lado, e à qual se sentia ligada pela pena que esta lhe causava, teria certamente pedido a sua exoneração.

- Talvez o faça - disse em voz alta - quando a Rainha tiver dado à luz a sua criança.

Debruçado sobre um livro, Perceval ergueu a cabeça e viu que ela estava de olhos muito abertos.

- O que me espanta - disse suavemente - é que tenhais aguentado tanto tempo. Não nascestes para a vida da Corte: está atulhada de demasiadas armadilhas, intrigas, falsas aparências...

- Quanto a intrigas já tive o meu quinhão, mas confesso que gosto muito da nossa pequena Rainha. Além disso queria zelar pelo futuro dos meus filhos no fundo não sou lá muito diferente das outras! e vede qual a minha posição: nunca vejo a minha filha, e há três anos que não vejo o meu filho. Algumas cartas apenas, quando a frota acosta, e metade são obra do abade de Résigny...

- Não as desdenheis. Elas informam-vos acerca da vida e dos atos de Philippe, bem melhor que o fariam se fosse ele própria a escrevê-las. Quando diz que se porta lindamente, que adora M. de Beaufort e que sente saudades vossas, acha que já cumpriu largamente o seu dever. Nunca será um homem de grandes escritas. E depois... há aquelas, raras, bem o admito, que o próprio duque vos escreve.

Esta ideia fez sorrir Sylvie.

- Ele também nunca será um homem de escritos. Como quando me escreve não recorre ao secretário, maltrata tanto a ortografia como outrora.

- Nunca tendo feito parte das Preciosas, isso não vos deve importunar por aí além. E os sentimentos é que contam...

Ele sorriu com ternura para o lindo rosto que fizera corar. Não parava de agradecer ao Céu uma aproximação que desejava há tanto tempo, chegando até a esperar que um casamento acabasse por unir aqueles dois seres tão feitos um para o outro e que tão bem se conheciam. Nada podia ser melhor para ambos e também para Philippe, que um dia regressaria das suas viagens e a quem seria bom poder assegurar, nessa altura, uma proteção oficial. Efetivamente, se bem que Saint-Rémy não tivesse dado mais sinais de vida desde há três anos e se bem que a sua cúmplice vivesse retirada num castelo da província, o cavaleiro de Raguenel não considerava como definitivo o desaparecimento do aventureiro. Devia estar escondido nalgum lado, para se fazer esquecer e para que a pesada mão real, que o falhara por tão pouco, se voltasse noutras direções; mas, a menos que fosse morto numa disputa qualquer, mais dia, menos dia, acabariam por vê-lo aparecer... Aliás, este era um assunto do qual nunca falava a Sylvie, preferindo que ela expulsasse da mente um dos períodos mais penosos da sua vida. Da mesma maneira, evitava pôr a afilhada ao corrente do que sabia por outras fontes: que Beaufort e os seus estavam entrincheirados em Djigelli, numa fortaleza da costa argelina, para a conquista da qual se entoara um belo Te Deum em Notre-Dame, mas desde então deixara-se de receber notícias, dado que os Bárbaros tinham montado uma guarda demasiado eficiente para que o correio pudesse passar...

No entanto, estava escrito no livro da vida que essa noite, que Sylvie esperava tão apaziguadora, ainda estava longe de acabar para ela. Primeiro, na altura em que iam para a mesa, deu-se a entrada de rompante de Marie. As suas entradas eram sempre assim e, no rasto azulado deixado pelas suas roupas de cetim branco, de arminho e de veludo azul, o Outono pareceu recuar para dar lugar à Primavera. Ao entrar, não viu a mãe, e correu a lançar-se nos braços de Perceval:

- Há tanto tempo que não vos vejo e tive tantas saudades vossas! Não vos perguntarei como estais: pareceis mais jovem do que nunca!

Sem lhe dar tempo para respirar, distribuiu-lhe uma série de beijos na cara e, depois, girou nos calcanhares, para se encontrar diante de Sylvie. Pareceu que se apagava, como um foguete-de-artifício durante a queda:

- Mãe?... Estáveis aqui? Não sabia que havíeis regressado a Paris...

- No entanto a Corte provoca grande barulho quando está de regresso - disse Perceval, descontente com o novo tom de voz da jovem e do efeito que provocava em Sylvie. - E as Tuileries ficam mesmo ao lado. Sois todos surdos a esse ponto?

- Oh, nós, as da casa de Madame, tornamo-nos indesejáveis, umas párias. Desde que a nossa princesa engravidou de novo, já não nos convidam. Os Prazeres da Ilha Encantada não foram para nós e ainda não visitamos Versailles.

Falava, falava, continuando diante de Sylvie, sem tentar aproximar-se dela.

- Não me dás um beijo? - murmurou esta, com uma nota de dor na voz que não passou despercebida ao ouvido apurado do seu padrinho.

Ele franziu o sobrolho, mas Marie já respondia:

- Claro... naturalmente.

A sua boca plena de frescura aflorou a cara de Sylvie, mas esquivou-se aos braços maternos, constatando:

- Os meus cumprimentos; estais soberba, como é vosso hábito. Vim em busca de notícias. - Padrinho os filhos de Sylvie haviam simplesmente adotado esta apelação afetuosa da mãe, que nunca tinham oportunidade de utilizar, pois eram ambos afilhados do Rei. - Haveis recebido cartas?

- Nenhuma desde a nossa última despedida, mas...

- E vós, Mãe?

Esta aproximara-se de uma prateleira da biblioteca para esconder as lágrimas que lhe vinham aos olhos. Sem se voltar, respondeu:

- Como se não soubesses que, como medida de precaução, todas as cartas provenientes do mar são endereçadas ao cavaleiro de Raguenel...

- Sem dúvida. O que nada significa: se ele tiver recebido uma em vosso nome, talvez não deseje falar nisso.

- Mas que ideia!

- Por que o faria? Quando um homem escreve à sua aman...

A bofetada cortou a palavra ao meio. Não fora Sylvie quem a dera, pois estava demasiado ferida por aquilo que acabara de ouvir, mas sim Perceval, que não esteve com meias medidas: a delicada bochecha de Marie ficou púrpura.

- Quem julgas que sou? - admoestou. - Um intermediário? Eu sou o cavaleiro de Raguenel, faça o obséquio, minha filha! Quanto ao insulto que acabas de infligir à tua mãe, vais pedir-lhe desculpas e já! De joelhos!

Os seus dedos magros, duros como aço, tinham agarrado no pulso franzino de Marie, para forçá-la a vergar-se. Sylvie intrometeu-se:

- Não, peço-vos! Deixai-a. Que significado teria um perdão obtido pela força? Antes prefiro ficar a saber onde foi buscar essa nova informação acerca daquilo que ela julga ser a minha vida íntima.

- Ouviste? Responde à tua mãe! - ordenou Raguenel, que apesar de ter afrouxado a pressão, não lhe largara o pulso.

Marie encolheu uns ombros resignados:

- Não digo que a minha mãe ainda esteja chegada a M. de Beaufort mas não há dúvida de que já o esteve... há muito tempo atrás, e o amor entre eles ainda não morreu!

- Isso não responde à minha pergunta. A quem deste ouvidos?

Marie fez um gesto vago:

- Familiares das Tuileries e de Saint-Cloud, que estão ao corrente de muitas coisas... Não vêem qualquer mal nisso. Pelo contrário, admiram...

- Quem?

- Ai, estais a magoar-me!

- Se não falares, ainda te magoarei mais, independentemente do que disser a tua mãe. Pela última vez: quem?

- O conde de Guiche... o cavaleiro de Lorraine... o marquês de Vardes...

Perceval estoirou numa gargalhada que nada augurava de bom:

- O amante de Madame, o queridinho de Monsieur e o cúmplice de Mme. de Soissons, comprometidos no torpe caso da falsa carta espanhola! Escolhes bem os teus amigos! Parabéns! Preferes prestar ouvidos a essas línguas de víbora, a esses fedelhos malfazejos que nunca fizeram nada da sua nobreza, a não ser arrastá-la pelas alcovas?... E eu que julgava que gostavas de nós!

Soltou-a tão bruscamente, que ela foi cair na poltrona que a sua mãe abandonara, desatando a soluçar.

Sylvie pôs-lhe então uma mão por cima, fitando os olhos de Perceval, a fim de impedi-lo de continuar. Ficou a vê-la chorar durante uns momentos. Só quando Marie se acalmou de novo um pouco é que a mãe falou:

- Não há a mínima dúvida de que de vós ainda ela gosta, pois não tem qualquer motivo para vos querer mal. Comigo já não sucede a mesma coisa. Bem sabeis que ela ama M. de Beaufort e julga-me sua rival!

- E não o sois? - soluçou Marie.

- Nunca o fui e nunca o serei, Marie! Sei que o amas, sem dúvida mais do que aquilo que eu havia pensado. Quando o proclamavas alto e de bom tom, eu julgava tratar-se de um desses arroubos tão frequentes aos quinze anos...

- Uma vez que se entrega um coração como o meu, não há meio de obtê-lo de volta.

- Terei bem de acabar por admiti-lo. Nesse caso ouve o que tenho para te dizer: caso M. de Beaufort viesse um dia pedir-me a tua mão, não hesitaria em concedê-la de bom grado.

- Porque sabeis que ele nunca o fará! - exclamou Marie, que mergulhou de novo num abismo de lágrimas. Mas Sylvie não teve tempo para acrescentar o que quer que fosse: no pátio, soara o trote de um cavalo e Pierrot veio anunciar um mensageiro da Rainha.

Para grande surpresa de Sylvie foi Nabo que se ajoelhou diante dela. Para não atrair a curiosidade à sua passagem, pusera uma grande capa de cavaleiro por cima da sua túnica garrida e substituíra o turbante por um chapéu preto de largas abas que tirou ao entrar, revelando uma cabeleira curta e encaracolada como a lã de um carneiro Karacul[32].

- A Rainha está infeliz e adoentada. Precisa da sua amiga - disse. Como de costume, falava com Sylvie em espanhol. Antes de oferecê-lo a Maria Teresa, Beaufort tratara que ele aprendesse esse idioma, que passou a falar naturalmente, o que não o impedia de ter mais do que meras noções da língua francesa.

- Quem te enviou?

- A dama Moteville. Chegou nesta noite..

- Onde estão as outras? Mme. de Béthune? Mme. de Montausier?

- Béthune cansada. Ir deitar-se. A grande dama ir jantar casa da favorita...

- Quem te deu o meu endereço?

- Motteville.

- Claro! - Restava-lhe apenas regressar ao Louvre, para lá permanecer por tempo indeterminado! Com um suspiro de fadiga, Sylvie mandou embora o jovem negro, dizendo-lhe que o seguiria, chamou Pierrot para que ele lhe fosse preparar a carruagem e, finalmente, voltou-se na direção da filha.

- Se não fores obrigada a regressar muito cedo, fica por cá, tal como eu tanto o desejava. Só te fará grande bem...

- Oh, não há pressa alguma! Madame está com os seus afrontamentos e fechou-se no quarto com a sua cara Mme. de La Fayette[33] e com a princesa do Mônaco. Quanto às damas de honor que restam, tendem preferencialmente a aborrecer-me...

Ao referir-se às que “restavam”, Marie aludia ao fato que perdera as amigas: Montalais, exilada depois do caso da carta espanhola, partira para ver passar o rio Loire; quanto a Tonnay-Charente, depois da morte do noivo, o marquês de Noirmoutiers, morto ao lado do duque d’Antin num daqueles estúpidos duelos que mais se pareciam com batalhas campais, acabara por desposar, por amor, o irmão do defunto duque, o marquês de Montespan, bravo soldado, mais rico em antepassados do que em escudos e com o qual levava uma vida apaixonante, mas difícil.

- Padrinho, cuidai que ela fique por cá esta noite - murmurou Sylvie ao beijá-lo. - Não gosto muito que ande por aí à solta depois do entardecer, mesmo de coche...

Ele tranquilizou-a com um ligeiro aperto na mão e ela foi-se embora, sem parecer desejar ocupar-se ainda da filha. Sabia agora que devia passar a ter de lidar com aquele estranho comportamento e, no estado de crise em que Marie se encontrava, qualquer tentativa de aproximação só iria agravar ainda mais as coisas. Tinha de contentar-se em depositar as esperanças na eloquência e na sabedoria de Perceval.

No Louvre a situação era pior do que imaginara. Pensara que iria encontrar Maria Teresa debatendo-se com uma das múltiplas indigestões provocadas pelo seu abuso de chocolate e o gosto pronunciado que revelava por pratos com muito alho, e fora isso que efetivamente sucedera. Testemunhavam-no o forte odor que pairava por todo o quarto e as criadas ocupadas a limpar os tapetes mas, para além disso, a Rainha, afogada no meio dos seus cabelos, das suas lágrimas e dos lençóis amarfanhados, estava com uma crise nervosa que Molina e a sua filha pareciam incapazes de controlar. O corpo da infeliz, com aquele seu enorme ventre que por vezes levantava, retesando-se com os calcanhares, debatia-se no meio de abalos convulsivos que as mulheres, reunidas no quarto, olhavam espavoridas, benzendo-se e murmurando preces aterrorizadas. Que diria o Rei se se viesse a descobrir que a Rainha de França estava possuída pelo demônio? Nem sequer se ousava chamar os médicos!

Ora Sylvie lembrou-se de um caso semelhante, de uma mulher próxima do termo da sua gravidez, e que uma espécie de endireita das imediações de Fontsomme conseguira acalmar. Mandou a Molina que preparasse um banho morno e que mandasse alguém buscar um pouco de artemísia ao boticário de forma a poder preparar uma tisana; depois pediu a Mme. de Moteville, que ali permanecera e que a acolhera com evidente alívio, para expulsar do quarto todos os que não tinham lá nada que fazer e colocar guardas à porta.

Durante a noite a crise acalmou e a Rainha pôde descansar em paz, tal como Sylvie, em cuja intenção se instalara uma cama num dos quartos dos aposentos reais, e onde, aliás, ela deveria permanecer até à hora do parto, dado que a Rainha soltava gemidos de partir o coração logo que deixava de vê-la. A verdade é que teria de suportar muitas dores nos próximos dias.

Logo no dia seguinte, os médicos reunidos pelo Rei em redor do leito da sua mulher diagnosticaram doutamente uma “febre colateral”, o que qualquer pessoa podia dizer visto que a Rainha estava visivelmente com uma elevada temperatura; além disso, queixava-se de violentas dores nas pernas. Aplicaram-lhe, portanto, o remédio usual, isto é, a sangria, com a liberalidade do costume. Em poucos dias, Maria Teresa viu esvair-se uma quantidade apreciável do seu sangue espanhol. Em breve sentiu enormes dores nas pernas e o parteiro François Boucher mostrou-se preocupado:

- Receio que a Rainha não chegue à data prevista para o Natal - confiou ao Rei. - Mais vale prepararmo-nos para um parto prematuro...

Tomaram-se imediatamente as disposições necessárias. Como era costume, desceu-se a cama operatória que desde o princípio da gravidez ficava pendurada no teto do quarto principal, tiraram-lhe as proteções que bem eram precisas, sobretudo na altura das mudanças! e instalaram-na sob uma espécie de tenda, em volta da qual se podia circular para o serviço necessário, sem incomodar demasiado a parturiente. Depois dispuseram-se os instrumentos cirúrgicos noutro pavilhão, mais pequeno. Quando a criança nascia, afastavam-se as cortinas para que os príncipes, as princesas e outras altas personalidades, reunidas na ampla sala, nada perdessem do espetáculo e para que pudessem testemunhar, em última instância, que a criança não fora substituída.

Estas precauções eram sábias: na alvorada de domingo, dia 16 de Novembro, a Rainha que se debatia há dias com episódicas contrações, começou a sentir grandes dores. Transportaram-na para o quarto principal, onde o Rei veio ter com a Rainha-Mãe que, desde há vários dias, passava a maioria do tempo à cabeceira da nora, esquecendo as suas próprias dores e tentando consolá-la. Um a um, os outros membros da família e os grandes senhores do reino colocaram-se em redor deles. Finalmente, meia-hora antes do meio-dia, após um recrudescimento de sofrimento e de cansaço, Maria Teresa soltou um longo gemido e deu à luz uma menina cujo aspecto surpreendeu toda a gente: mais pequena que a média dos bebés, o que nada tinha de surpreendente dado que chegara com um bom mês de avanço, não apresentava a habitual tonalidade rosácea, mas sim um violeta quase escuro que impressionou tremendamente os assistentes, e ao Rei ainda mais que aos outros.

- Esta criança não respira! - declarou d’Aquin, o médico do Rei, que pegou nela, levando-a para uma sala vizinha onde se instalara uma almofada frente à lareira para se poder dispensar os primeiros cuidados. Com um dedo experimentado, retirou da boca e do nariz os “humores viscosos e peganhentos” que os obstruíam e pegando depois na criança pelos pés, deu-lhe umas palmadinhas no rabo até que ela soltasse o seu primeiro grito. Mas, uma vez endireitada, continuou a exibir uma cor tão pouco ortodoxa quanto possível.

- Não é nada - assegurou o médico ao Rei, que o seguira - É um efeito da asfixia. Privado de ar, o sangue estancou e escureceu. Dentro de uns dias já não se verá nada...

- Se o dizeis...

Apesar do grande crédito que dava à medicina, o tom do Rei não era nada agradável e d’Aquin desviou os olhos para evitar o relampejar sombrio dos do Rei. No entanto, persistiu na sua interpretação e Luís XIV não insistiu. Aliás, nem um nem outro pensavam que uma criança daquelas pudesse ter muito tempo de vida e, nesse mesmo dia, ladeada pelo padrinho e pela madrinha o príncipe de Conde e Madame a sua ama levou-a até à igreja de Saint-Germain-l’Auxerrois, a paróquia real, para que ela recebesse dois nomes de batismo: Maria e Ana. Nunca se vira um bebê tão prodigiosamente coberto para receber as águas batismais: a touquinha de renda que escondia metade da sua pequenina cara escura e a penumbra da igreja dissimularam suficientemente a sua estranha cor, acerca da qual já glosavam os mais faladores daqueles que tinham presenciado o acontecimento. Chegou-se até a falar de um “pequeno monstro preto e felpudo”!

Não houve muito tempo para se perder em conjecturas pois, pouco após o parto, o estado de saúde da Rainha provocou as maiores inquietações. As convulsões tinham recomeçado a tal ponto que o Rei instalou-se no próprio quarto daquela que foi logo considerada como moribunda. Ele mandou distribuir dinheiro aos pobres e fez votos para o restabelecimento de sua esposa, tão terna e tão dedicada. Ao ver que ela continuava a enfraquecer, mandou que lhe dessem a extrema unção...

- Senhor, não é ainda um pouco cedo? - ousou perguntar Sylvie, que já não sabia que pensar de tudo o que presenciara.

- Não. É de temer que Deus nos tenha enviado este rude teste para libertar rapidamente a Rainha.

- É verdade - disse Ana de Áustria, que também não saía mais de junto da nora - que é preciso desejar mais ardentemente ver a Rainha viver no Céu do que na terra...

- Ora, Maria Teresa sofria indubitavelmente, mas não estava minimamente inconsciente.

- Quero comungar, mas não desejo morrer... gemeu.

Convenceram-na de que era a melhor coisa a fazer com uma pressa que alguns acharam de muito mau gosto, fazendo-lhe também crer que havia uma certa urgência. Por seu lado, Sylvie achava um pouco suspeita esta grande pressa em administrar à jovem a extrema unção. Era como se se tentasse forçar a mão de Deus, solicitando-lhe que chamasse a si, o mais depressa possível, alguém que acabara de causar tão estranha decepção. Desta vez, evitou cuidadosamente emitir a sua opinião e juntou-se à cerimônia que entretanto fora decidida: no meio de grande pompa, empunhando centenas de velas e de tochas, o Rei, a sua mãe e toda a Corte, foram receber o Santo Sacramento que Maria Teresa, que se esforçou por levantar-se, acolheu com a sua doçura e piedade habituais. Parecia resignada com aquele destino que não desejava e que já desencadeava orações em todas as igrejas de Paris.

- Estou muito consolada por ter recebido Nosso Senhor - suspirou. - Só lamento a vida por causa do Rei e desta dama - acrescentou, designando a sua sogra.

Depois esperou pela morte, que não parecia nada apressada em vir buscá-la... Entretanto, enquanto estava uma vez mais de vigília à sua jovem Rainha na companhia de Molina, vieram avisar Mme. de Fontsomme que havia uma dama que lhe desejava falar à porta do Louvre. Ela cobriu-se com um manto o tempo estava horroroso, fazia frio e chovia como se o Inverno já tivesse chegado desceu e, ao sair do palácio, avistou uma carruagem parada de onde saiu imediatamente uma mulher de já certa idade e toda vestida de preto. Reconheceu Mme. Fouquet, a mãe do seu infeliz amigo e a única que fora poupada pelas ordens de exílio, devido à natureza da sua piedade que quase a elevava ao estatuto de santa. Esta entregou-lhe um pacote, depois de lhe ter agradecido a sua vinda:

- Sabeis - disse - que tenho grande conhecimento de plantas, de elixires e de todas as coisas que servem para amenizar o destino dos cristãos. Descreveram-me os sofrimentos da vossa Rainha e preparei-lhe um emplastro que deve ser aplicado da maneira que descrevi nesse papel. Tenho a certeza de que, com a ajuda de Deus, ela sentir-se-á muito melhor.

- De qualquer modo - disse Sylvie - não arriscamos nada em experimentar, dado que os médicos já a dão como morta...

- Eu sei. Até se diz - acrescentou, com uma nota de amargura na voz, que não conseguiu disfarçar - que o Rei já mandou que lhe preparassem os trajes de luto. Na verdade, creio que nada sabe sobre a piedade...

Acabado o seu discurso, regressou prontamente à carruagem e foi-se embora. Sylvie ficou a ver a viatura afastar-se sob uma rajada de chuva e, em seguida, apressou-se a voltar aos aposentos reais, dirigindo-se diretamente ao da Rainha-Mãe. Efetivamente, não podia arcar sozinha com a responsabilidade de dar fosse que remédio fosse a Maria Teresa.

Ana de Áustria mostrou-se comovida com o gesto de Mme. Fouquet, por quem tivera sempre grande amizade:

- Pobre mulher! - suspirou. - Na véspera de vir talvez a perder o filho, pensa primeiro na sua Rainha! Agradecer-lhe-ei, mas convém experimentar já esse emplastro: no ponto em que se encontra a minha filha, não arriscamos nada...

E o milagre ocorreu. No dia 19 de Novembro, Maria Teresa estava completamente fora de perigo e voltara até a recuperar as suas forças com espantosa rapidez.

- Meu filho - disse então a Rainha-Mãe - não seria conveniente demonstrar alguma gratidão para com Mme. Fouquet?

A resposta chegou, fulgurante, horrorizando Sylvie:

- Dado que conhecia o meio para salvar a Rainha, teria sido criminoso que essa mulher não o desse a conhecer. Agora está muito enganada se julga que por esse meio adquiriu direitos relativos à minha indulgência para com o seu filho. Se os juizes o condenarem à morte, deixarei que o executem!... Que foi, Mme. de Fontsomme? Pareceis perturbada.

Ela inclinou-se numa rasgada reverência que lhe permitiu esconder o rosto.

- Confesso que sim, Senhor! Pensava que a alegria por ver a salvo Sua Majestade, a Rainha, não deixaria lugar para outros sentimentos...

Instalou-se um silêncio tão pesado que ela nem sequer ousou erguer a cabeça, esperando que a tempestade lhe desabasse em cima.

- Pois bem, estáveis enganada - disse o Rei secamente, e continuou o seu caminho para ir em busca de notícias da La Vallière, cuja gravidez seguia todos os ditames previstos.

A satisfação que sentia não o fazia contudo esquecer a estranha pequena princesa que o Céu acabara de lhe enviar... depressa se tornou evidente que ela era de boa constituição, que só pedia era para viver e que a sua cor de pele nunca seria branca. Exceto as mulheres que dela se ocupavam e que deviam ficar caladas por ordem do Rei, ninguém estava autorizado a aproximar-se, nem mesmo a mãe, a pretexto de uma doença que evoluía. Até àquele dia de Dezembro em que Luís XIV convocou a duquesa de Fontsomme, recebendo-a muito tarde, não no seu gabinete mas no quarto, com todas as portas fechadas:

- Duquesa, temos uma missão delicada a confiar-vos, uma missão que requer o mais absoluto sigilo, porque diz respeito a um segredo de Estado, mas sabemo-la pessoa discreta e tão dedicada à vossa Rainha quanto, assim o esperamos, ao vosso Rei.

- Sou a serva de Suas Majestades.

- Muito bem. Hoje, entrareis à meia-noite no quarto dessa... dessa criança que acabou de nascer aqui há pouco tempo. Lá encontrareis Molina que vo-la entregará. Depois, saireis do palácio e entrareis numa carruagem que estará à vossa espera. Agiremos de modo a que não possais deparar com ninguém. O cocheiro já recebeu as suas ordens. Ele também é pessoa de toda a confiança...

Se Sylvie ficou surpreendida com o que estava a ouvir, evitou cuidadosamente revelá-lo. Começava a saber que mesmo que o Rei chorasse de bom grado em consequência de uma sensibilidade à flor da pele, pouco apreciava a emoção dos outros e, nessa noite, o seu rosto parecia de mármore.

- Para onde devo levar... a princesa?

- Esquecei-vos desse título! Quanto ao vosso destino ele é conhecido do cocheiro e isso basta. Ele conduzir-vos-á até uma casa, onde entregareis a criança à mulher que lá vos espera, assim como o cofre que viajará convosco. Em seguida, voltareis a vossa casa. A Rainha não precisará de vós antes de amanhã de manhã... altura em que a notícia da morte da nossa filha Ana Maria será do conhecimento geral. Ela abafou um grito.

- Senhor, a morte?!

- Morte aparente, senhora! Senão, seria inútil privar-vos de uma noite de sono! Não tendes nada a recear, a filha da Rainha viverá escondida e será bem tratada até que seja possível confiá-la a um convento. Como podeis ver, não desejamos que, nem a sua alma nem a nossa, corram qualquer perigo.

- Senhor, posso fazer ainda uma pergunta?

A sombra de um sorriso perpassou sob o fino bigode de Luís XIV.

- Para uma grande dama que sabe contudo que não se deve questionar o Rei, parece-nos que desde há pouco que não vos privais de o fazer. Dito isto, formulai a vossa questão.

- Porque fui eu a escolhida?

- Porque, à parte a Raínha-Mãe... e uma outra, que nunca me mentiu, sois a única mulher da minha corte em quem confio plenamente - declarou, abandonando por fim o uso da primeira pessoa do plural. - Aliás, a Rainha também, e a fim de antecipar a pergunta que não deixareis de fazer, isto efetuar-se-á com o seu pleno consentimento. Ela compreendeu muito bem que esta criança não pode viver nos palácios reais, em plena luz do dia, sem causar escândalo. Caso o deseje, mais tarde poderá visitá-la secretamente. E só na vossa companhia, é claro. Obedecer-nos-eis?

- Penso que o Rei nunca teve dúvidas a esse respeito...

- Efetivamente! Ide pois, senhora, mas antes de nos deixar, ficai ao corrente de uma boa notícia: ides rever o vosso filho! Por causa de um dos seus tenentes, M. de Gadagne, o duque de Beaufort perdeu Djigelli que tão valentemente conquistara e está de regresso para nos prestar contas do ocorrido. Talvez não volte mais a partir... - acrescentou num tom tão duro que a repentina alegria de Sylvie se desvaneceu como a luz de uma vela soprada pelo vento.

- Se foi um outro que perdeu Djigelli, não é culpa dele...

- Um chefe é responsável por todos os seus homens, dos capitães ao último soldado. Além disso, talvez tenhamos perdoado demasiado depressa a um homem que foi nosso inimigo durante tanto tempo...

- Ele nunca foi inimigo do seu Rei! - exclamou Sylvie, incapaz de calar o seu protesto. - Foi apenas inimigo do cardeal Mazarin... como tantos outros o foram.

- Talvez, mas... conheceis o axioma latim que diz: “TimeoDanaoset don naferentes”?

- Não, Senhor.

- Significa: “Temo os Gregos e os presentes que eles me oferecem”. Devia ter desconfiado de um que me foi oferecido por um antigo rebelde!

- Ele lamenta sinceramente os seus erros passados e só deseja dedicar-se por inteiro ao reino...

- Nesse caso, que cuide da sua glória... ou então, que morra! Acabemos aqui a conversa, senhora! Ao tomar a sua defesa, estais a irritar-me! Pensai apenas em preparar-vos para levar a bom termo a missão que vos confiei.

Nada havia a acrescentar. Ao deixar o quarto real, Sylvie sentia que o coração lhe pesava. Mais uma vez pressentia que se encontrava em pleno centro de um enigma cuja palavra chave lhe escapava ou, antes, cuja senha temia descobrir. Logo após o nascimento de Ana Maria, e por ordens da Rainha-Mãe, Molina e a filha tinham retirado Nabo, o jovem escravo negro, dos aposentos de Maria Teresa; ele passara tanto tempo ao pé dela, que receavam que a estranha pigmentação da recém-nascida pudesse ser devida ao fato da Rainha de tanto o ver acabasse, de certo modo, por ficar impregnada do seu ser.. Até se dizia que por causa da Chica já era uma sorte que a bebê não tivesse nascido anã... Sylvie estava tão impregnada do espírito da sua época que não podia deixar de dar certo crédito a estas superstições. Ouvira sempre dizer que quando uma mulher está grávida é preciso retirar do seu campo visual qualquer forma que seja anormal ou mesmo monstruosa. Porém, a cólera que captara no olhar de Luís XIV situava-se para além deste tipo de crenças e, agora, tinha medo daquilo que pudesse ter acontecido àquele infeliz rapaz...

Os seus receios eram de tal ordem que ao ir ter com Molina ao quarto de Ana Maria, não conseguiu resistir a perguntar-lhe o que era feito do jovem escravo. O rosto emaciado e amarelecido da espanhola refletiu então uma expressão de verdadeiro medo, enquanto os seus lábios finos se apertavam como se tentassem conter palavras prestes a escapar-se. Sylvie pôs-lhe a mão no ombro, de modo a acalmá-la:

- Maria Molina, levai em consideração aquilo que vim aqui fazer esta noite, e logo vereis se podeis ou não confiar em mim. Receio o que possa suceder a esse rapaz...

Então a espanhola decidiu-se:

- Eu também fiquei cheia de medo logo que vi a bebê. Então a minha filha levou-o para a parte do palácio que deve ser demolida e onde ninguém vai, com o intuito de fazê-lo sair dali mais tarde, de modo a que ele pudesse abandonar a cidade escolhendo a direção que bem lhe aprouvesse, mas quando regressou para ir buscá-lo, ele já lá não estava... tudo o que havia eram manchas de sangue no solo... Não posso dizer mais nada, porque mais nada sei... Agora, está na hora!

Sylvíe pôs no seu regaço a menina confortavelmente aconchegada em finos tecidos, de seda e de blanchet, esse tecido de lã branca e fina que as mulheres de Valenciennes teciam desde a Idade Média. Agasalhou-a ainda com um pequeno manto de veludo preto, forrado com peles e fê-la desaparecer sob as dobras do seu amplo manto encarapuçado e igualmente forrado. A mensageira aprestava-se a sair quando a Rainha entrou:

- Um momento, por favor...

Chegou-se ao pé de Sylvie, afastou os tecidos que escondiam aquela pequena figura sombria e inclinou-se para dar um longo beijo de lábios trêmulos...

- Velai bem por ela, minha amiga - murmurou-lhe. - Nem sabeis quanto me custa ter de me separar dela...

Disso não tinha Sylvie a menor dúvida. Maria Teresa era uma mãe excelente, bem melhor que o fora alguma vez Ana de Áustria. Tomava cuidadosamente conta do Delfim, vigiava a sua alimentação e obrigava-o frequentemente a comer. Também gostava de passear com ele, brincando juntos, sem dar importância aos sorrisos complacentes que provocava um comportamento tão pouco real, mas as verdadeiras mães compreendiam-na e fora eleita pelos seus corações. O mesmo acontecera com Sylvie que sabia quanto fora doloroso para a jovem Rainha a perda da sua segunda criança, também uma filha. Apesar da cor que tornava impossível a sua presença por entre os cortesãos, ter de separar-se também desta outra filha, devia ser uma prova muito cruel para ela.

- Senhora, iremos visitá-la - cochichou-lhe. - O Rei prometeu-o...

Ao deixar o rosto da pequena, os lábios da Rainha afloraram a face da sua acompanhante:

- Que Deus vos abençoe às duas!

Um pouco mais tarde, depois de ter atravessado o Louvre sem deparar com ninguém, Sylvie viajava para um destino desconhecido, escoltada à distância, sem o saber, por mosqueteiros encarregues de evitar quaisquer más surpresas. Só ficou a saber que tinham deixado Paris pela porta de Saint-Denis...

Durante o trajeto que durou um pouco menos de duas horas, ela embalou suavemente a bebê que não se parecia com as outras e que repousava confiante contra o seu peito. Na realidade, era de fato uma linda menina, roliça, de formas rechonchudas, em que a forma africana do rosto era corrigida pelos traços finos herdados da mãe. Uma massa de pequeninos cabelos pretos aureolavam a sua querida carinha. Efetivamente, assemelhava-se muito a Nabo e Sylvie não conseguia compreender como se havia chegado àquele ponto. Iria encontrar a resposta antes do nascer do dia.

Eram aproximadamente cinco da manhã quando a carruagem a trouxe de volta a casa de Perceval, depois de ter entregue Ana Maria aos cuidados de uma mulher afável e sorridente, que a acolhera à entrada de uma pequena mansão, situada entre um lago e uma floresta. Sentia-se muito cansada e só tinha pressa numa coisa: deitar-se na cama, esperando que Nicole Hardouin, a governanta de Perceval, tivesse tido a feliz ideia de instalar um “monge”[34] por baixo, pois havia muito que esfriara a escalfeta que fora inicialmente colocada na carruagem, e ela sentia-se gelada até aos ossos.

Mesmo assim ficou surpreendida ao ver a casa iluminada e ao deparar com Nicole, de pé, estendendo-lhe uma caneca de leite quente.

- Tinha dito que não me esperassem.

- Senhora, ninguém o ia fazer, só que, entretanto, aconteceu uma coisa.

- O quê?

- Já o vereis. O senhor cavaleiro espera-vos nos aposentos comuns... Na realidade, Perceval ouvira o ruído da chegada da carruagem e estava a atravessar o pátio às escuras para ir ao seu encontro. Conduziu-a em silêncio até um dos quartos da criadagem, que estavam sempre desocupados, por cima da selaria e da arrecadação do jardineiro. À luz de uma lamparina viu uma cabeça preta no travesseiro, meio envolta em ligaduras: Nabo.

Depois de ter ido deitar as imundícies no esgoto, ao regressar, Pierrot foi dar com ele anichado contra a porta, meio morto de fome e frio e, ainda por cima, ferido...

- Como é que ele aqui chegou?

- A filha da Molina escondera-o numa das velhas salas do Louvre. Trazia-lhe comer e devia fazê-lo sair dali, mas deve ter sido seguida. Foi descoberto por dois homens mascarados e armados, que tentaram matá-lo, mas sem o conseguir. Apesar do sangue que perdia, conseguiu escapar-se-lhes pois, à força de tanto ter frequentado o Louvre, conhecia-lhe melhor os cantos do que eles. Pôde deixar o palácio e esconder-se no entreposto de um barqueiro mas, como sentia que o seu estado se deteriorava, arrastou-se até aqui, a única casa que conhecera um pouco... e onde tinha a certeza de que não o entregariam...

- Teve razão. Mas esses homens que tentaram matá-lo, foram enviados por quem?

- Quem queirais que seja? Quem é que, neste reino, poderia ter pensado que ele teve algo a ver com uma descendência um tanto estranha?

- O Rei?

- Talvez não diretamente, mas Colbert decerto, pois parece desejar ardentemente tornar-se a sua alma danada... Esse ainda é mais impiedoso que o amo, o que não é coisa fácil! - resmungou Perceval, que não perdoara a Luís XIV a prisão do seu amigo Fouquet.

- Mas, enfim, a Rainha não pode... oh, padrinho, juraria o meu quinhão de eternidade pela sua inocência!

- E teríeis razão. Ela nem sequer sabe que Nabo a violou e a surpresa causada pelo nascimento deve ter sido tão terrível para ele quanto o foi para os outros.

- Mas como foi possível?

- Oh, mas é muito simples: a partir da altura em que Beaufort o ofertou à Rainha, o rapaz apaixonou-se logo por ela e sabeis tão bem quanto eu como esta gostava de brincar com ele, de ouvi-lo cantar. Para ela, ele pouco mais era que um objeto. À noite, escondia-se frequentemente debaixo da sua cama para poder vê-la a dormir...

- Mas o Rei não vai ter com a esposa todas as noites... ou quase?

- Quase... e a maioria das vezes muito tardiamente, desde que os charmes da La Vallière o mantêm cativo. Certa noite, quando Nabo saía do seu esconderijo para se dedicar ao seu prazer favorito, a Rainha acordou subitamente e viu-o debruçado sobre a cama. Teve tanto medo que nem sequer gritou, desmaiando logo a seguir. Então ele tirou proveito da situação. É tão estúpido quanto isso!

- Meu Deus! Como imaginar que um rapaz tão novo fosse capaz de uma coisa destas? Ele ainda é quase uma criança...

- Não exageremos! Na sua idade os apetites dos homens já despertaram, sobretudo junto à população negra. E depois, estava apaixonado... Agora, deixemo-lo dormir!

- Também gostaria de poder fazê-lo - suspirou Sylvie - mas pergunto-me se o conseguirei.

- Tentai esquecer-vos de Nabo durante algumas horas. Ele está em minha casa e é mais “problema” meu que vosso. Amanhã logo veremos o que mais convirá fazer.

- O mais simples seria devolvê-lo a François de Beaufort pois, segundo o Rei, ele chegará brevemente, mas julgo que isso ainda poderia agravar mais o seu caso. O Rei está furioso com ele, por ter oferecido Nabo à Rainha...

O rosto cansado de Perceval resplandeceu subitamente:

- Mas que boa notícia deixastes escapar! Vamos voltar a ver o nosso Philippe? Deus seja louvado!

- Sabia que ficaríeis tão feliz quanto eu e só quero pensar neste regresso tão esperado. Quanto a este pobre rapaz, penso que o melhor seria dissimulá-lo numa carruagem que o levaria até Fontsomme, onde seria entregue aos cuidados de Corentin. Ele saberá certamente o que melhor a fazer quando o rapaz estiver restabelecido. Até lá é preciso manter esta porta fechada à chave.

- Ficai tranquila! Além de mim, só cá entra a Nicole.

Um dia após a expedição de Sylvie, a Corte entrou de luto pela morte da princesa Ana Maria, vítima de um “sangue viciado” e enterrada cerimoniosamente depois de ter sido muito discretamente colocada no respectivo caixão. No dia 20 de Dezembro acabou finalmente o interminável processo de Nicolas Fouquet, com nova manifestação de ódio por parte do Rei. Enquanto que a corte soberana o condenou ao exílio, Luís XIV, furioso por se ver assim privado do prazer de mandar cortar-lhe a cabeça, não hesitou em agravar a sentença condenando-o a prisão perpétua. Era preciso oferecer a Colbert e aos seus dois apoiantes, Lê Tellier e o seu filho Louvois, um prêmio de consolação por ter deixado escapar a pena capital!

Efetivamente, dos vinte e dois juizes que compunham a corte judicial, só nove haviam votado pela pena capital, tendo os restantes optado, ou pelo exílio temporal, ou pelo exílio permanente. A consciência dos magistrados e a força da opinião pública que se voltara inteiramente a favor de Fouquet tinham sido mais fortes que o ódio do Rei. Este traduziu-se por uma raiva feroz para com os juizes que se tinham recusado a segui-lo. De uma maneira ou de outra, todos acabaram por pagá-lo, mas o mais atingido foi o íntegro Olivier d’Ormesson, juiz e relator do processo, que salvou a vida ao acusado ao descobrir falsas autenticações na acta de acusação. Foi condenado a uma reforma antecipada, que o exonerava de todos os cargos e até ao da posse sucessória do de Conselheiro de Estado, que o pai ocupava e que lhe era destinado. O seu posto foi entregue ao obediente Poncet, que votara a pena de morte.

Era assim que se exercia a justiça daquele que se queria o maior de todos os reis, mas que era demasiado orgulhoso para que pudesse chegar um dia a aprender a virtude da clemência. Foi em vão que a velha Mme. Fouquet, que salvara a vida da Rainha, veio rogar-lhe de joelhos que se respeitasse pelo menos o julgamento da Câmara. Tudo o que obteve se bem que não o tivesse pedido foi o direito a residir onde bem lhe aprouvesse. O resto da família, que já fora afastada, espalhou-se pelo país fora, e a esposa de Nicolas Fouquet não foi autorizada a reunir-se ao esposo na prisão que seria escolhida para que ele pudesse passar o resto dos seus dias na sua companhia. Assim se esvaíram as últimas ilusões que a duquesa de Fontsomme ainda conservava acerca da grandeza da alma do seu antigo aluno.

Às onze horas da manhã do dia 27 de Dezembro, sempre acompanhado por d’Artagnan, Fouquet deixava a Bastilha no interior de uma carruagem fechada, escoltada por cem mosqueteiros, com destino à fortaleza de Pignerol, nos Alpes.

 

                                   MARIE

Depois das festas do Ano Novo, Sylvie teve de resignar-se a abrir de novo o hotel da rue Quincampoix, o que era perfeitamente natural pois esperava a chegada do filho, que era o seu legítimo proprietário. Sabia que ele preferia Fontsomme ou Conflans, mas o castelo do domínio ducal, situado nas planícies da Picardie, estava cercado pelas neves, pelo gelo e por outros obstáculos afins durante o Inverno, enquanto o Sena gelara em Conflans, depois de ter transbordado nos finais do ano, o que tornava a estadia pouco agradável. Consequentemente, optou-se por Paris, para grande alegria do mordomo Berquin e da sua mulher Javotte, que não compreendiam bem os gostos simples da duquesa e, ainda menos, por que razão uma casa de tão grande prestígio tinha de se contentar com um nível de vida de um simples procurador. O restauro da grande residência, que eles guardavam para quando o final do Outono os trouxesse de volta de Fontsomme, alcançou proporções faraônicas, permitindo a Sylvie permanecer mais alguns dias na casa aconchegada de Perceval, na rue dês Tournelles, a fim de não apanhar alguma pneumonia com as correntes de ar. Chegados os primeiros dias de Fevereiro, mudou-se com Jeannette para a rue Quincampoix... e sentiu-se confortavelmente instalada. As altas labaredas das lareiras acesas nas chaminés aqueciam confortavelmente todo aquele ambiente, reluzente de limpeza. Além disso, Berquin fora desencantar um jovem cozinheiro chamado Lamy, filho do hospedeiro das Três Colheres na rua dos Ursos e que fora bicho de cozinha de M. Vatel[35] quando era ainda menino, na época esplendorosa de Fouquet. Em Saint-Mandé, em Vaux ou em casa do pai, o jovem aprendera o suficiente para se tornar um digno chefe-cozinheiro, o que encantava Perceval, convidado permanente da casa e que desconsolava Nicole, a sua fiel governanta.

Ao jantar nessa noite com o editor de Sercy, que era um dos seus amigos, não partilharia o patê de lúcio, as perdizes à espanhola, os cogumelos salteados e outras especialidades, tudo regado com vinho de Campagne e de Beaune, que Sylvie oferecia, ao jantar, a d’Artagnan, que regressara de Pignerol e, ao mesmo tempo, à sua vida normal de capitão-tenente dos mosqueteiros. Na realidade ela ficara sensibilizada por ele ter ido tão depressa visitá-la, para lhe transmitir os pensamentos afetuosos de um prisioneiro a que acabara por afeiçoar-se após três anos de vida passados em comum.

Durante toda a refeição, servida apenas por Berquin, o oficial evocou, em sua intenção, a longa viagem de três semanas que, passando por Lyon, o conduzira até à fortaleza do Piemonte, onde desembocava o vale de Chisone, situada a meio caminho entre Briançon e Turim. Fortaleza que se tornara uma prisão no fim do mundo e da qual não era possível escapar, guardada que estava, tanto pelas suas torres e muralhas, como por uma natureza que era tão bela quanto agreste. Contou a brandura, a resignação daquele homem, cuja saúde, que sempre fora frágil, estava já meio abatida pelo duro calvário que suportara e como o cobrira de peles, apiedado pela sua tosse persistente, para que ele pudesse penetrar no coração das montanhas.

- Todos os amigos dele sobretudo Mme. de Sévigné, que encontrei muitas vezes em sua casa ou em casa de Mme. du Plessis-Bellière são unânimes em elogiar o modo excelente como sempre o haveis tratado... - observou Sylvie.

- As ordens já de si eram severas. Teria sido indigno da minha parte agravá-las mais ainda, sobretudo em relação a um homem que sempre se mostrou tão generoso. Sabei que... eu nunca apreciei esta profissão de carcereiro que me impuseram, e teria preferido pôr-lhe termo levando M. Fouquet exilado para uma terra qualquer, que sempre teria sido menos cruel do que aquele torreão de Pignerol. Ao menos os seus teriam podido estar com ele...

- E a vossa família, meu caro amigo? Como se porta? Mme. d’Artagnan deve estar feliz por ter-vos de volta. Aliás, esperava que vos acompanhasse...

O capitão esvaziou lentamente o copo enquanto olhava meditativamente para a sua hospedeira:

- Mme. d’Artagnan deixou o nosso hotel do cais Malaquais e abandonou este vosso servidor sem qualquer esperança de retorno. - declarou num tom breve. - Está farta de um marido que não pode mais vigiar.

Sylvie não conseguiu impedir-se de rir, tanto mais que o ar desolado do mosqueteiro não era propriamente de natureza a inspirar dó, mas desculpou-se:

- Desculpai-me!... Mas que podia ela desejar de melhor em matéria de vigia? Estáveis tão prisioneiro quanto o próprio Fouquet.

Um fino sorriso perpassou sob o bigode do oficial:

- Ainda assim tinha direito a algumas comodidades... Em todo o caso a verdade é que a minha mulher não me quer ver mais e deixou-me uma carta de despedida antes de partir para o seu castelo de la Clayette com os meus dois pequenos. Por ora eles não conseguem passar sem ela, mas espero que virá o dia em que ela mos devolverá: os rapazes não nasceram para passar a vida no meio das saias das mulheres...

Na verdade, era precisamente isso que o incomodava mais. Quanto ao resto, Sylvie estava persuadida que d’Artagnan já não amava a sua mulher beata pois, para além do fato de, desde há muito, ele lhe vir dedicando uma admiração que ela não sabia se era inteiramente platônica ou não, agora também se cochichava o nome de uma tal Mme. de Virteville, muito acolhedora dos tormentos que uma privação forçada causara ao sedutor capitão. Ia abrir a boca para revelar o que sentia quando ele, com o olhar vogando por cima do ombro da hospedeira, como se estivesse lendo na parede, murmurou:

- Graças a Deus, que lhe inspirou uma tal honestidade, que não levou consigo o retrato que me valeu tantas cenas lamentáveis...

- Um retrato?

- O da Rainha. Não a atual... mas a dos diamantes. Ela dera-mo como presente como forma de agradecimento e Mme. d’Artagnan mostrava-se ridiculamente ciumenta! Não compreendeu que, para mim, aquela imagem alourada era tão sagrada quanto a da Virgem Maria. Retirara-a do meu quarto para a pôr no dela e muito tive de lutar para conseguir que fosse ao menos pendurado no gabinete de visitas... Finalmente, volta agora ao seu lugar inicial.

Desta vez, Sylvie não riu e deixou até que o silêncio se reinstalasse. Em poucas palavras, adivinhara o segredo daquele homem tão apaixonadamente devotado aos seus Reis: como muitos outros, o jovem d’Artagnan, quando era ainda cadete de M. dês Essarts, fora mais uma vítima da radiante beleza da sua soberana e o homem maduro ainda o era agora. Que ele se tivesse casado, que lhe fizesse a corte a ela própria, Sylvie, que tivesse uma amante, isso nada significava. Trazia no coração uma cicatriz comparável àquela que atingira outrora o jovem duque de Beaufort...

- Deveis saber que a julgo gravemente doente - murmurou Sylvie. - Os médicos dizem que não tem cura.

A fugitiva crispação do rosto do seu convidado foi a confirmação daquilo que ela acabara de entender, tal como o assomo de cólera que se seguiu:

- Os médicos são todos uns asnos! O falecido rei Luís XIII bem o sabia. De que sofre ela?

- Tem uma gangrena no seio e aguenta mil mortes com uma coragem admirável. O Rei e Monsieur revezam-se à sua cabeceira. O Rei chega até a dormir em cima do tapete do seu quarto. Ela está tão desolada por vê-los neste estado que conta retirar-se nos próximos dias para o Val-de-Grâce. Apenas se fará acompanhar por Mme. de Motteville, por Mme. de Beauvais, sua criada de quarto, e pelo abade de Montagu, seu confessor...

- A Beauvais ainda por lá continua?

- Ainda!... Oh, eu sou como vós: não gosto nada dela, mas a justiça obriga-me a reconhecer a sua dedicação. Os cuidados que tem de dispensar às chagas que se formam, teriam afastado uma quantidade de gente mas, se por um lado a Rainha lhe inspira tantos, por outro ela também lhe sabe agradecer.

Os dois amigos conversaram ainda um bocado, evocando singelamente o próximo regresso do duque de Beaufort, mas foi só na altura da despedida que d’Artagnan declarou:

- Apercebo-me agora que ao falar-vos de M. Fouquet me esqueci de vos dizer o nome do governador de Pignerol.

- Efetivamente. Porquê, eu conheço-o?

- Na altura do casamento real, até lhe salvastes a honra e, portanto, a vida...

As sobrancelhas de Sylvie ergueram-se até meio da testa num gesto de surpresa.

- Estais a referir-vos a M. de Saint-Mars?

- Ora bem! Ei-lo carcereiro...

- Como foi possível?

- Foi um pouco graças a mim. Depois da aventura de Saint-Jean-de-Luz ele mostrou-se tão preciso nas suas funções, e até tão brilhante, que foi nomeado brigadeiro. Estava à cabeça do pelotão com o qual fui a Nantes prender M. Fouquet. Mas depois casou-se e desejava trocar o serviço por uma função mais estável.

- Casou? Com a bela Maitena Etcheverry?

- Oh não, meu Deus! Ainda não arrecadara fortuna e foi por isso que o recomendei para o cargo de governador de Pignerol. É uma boa colocação do ponto de vista financeiro...

- Mesmo assim! Uma fortaleza situada no meio das montanhas não é local para uma mulher... Suponho que ela vive sozinha nalgum outro lugar?

- Nem por sombras! Faz-lhe companhia e está muito contente com a sua situação. O casal é muito unido e, aliás, está muito bem alojado.

- E ela acomoda-se com essa vida?

- Claro que sim. Direi ainda que é uma mulher muito bonita, que só se interessa pelo marido e pelos bens materiais. Evidentemente... não é lá muito inteligente, mas também não se pode ter tudo.

Ambos riram francamente e, em seguida, Sylvie ficou um tanto cismática, murmurando:

- Que pena que Fouquet esteja em regime de isolamento! A visão de uma linda mulher talvez pudesse consolá-lo um pouco.

- Julgo que já não se mostraria tão sensível quanto outrora. O infortúnio mudou-o bastante. Só aspira regressar para junto dos seus e volta-se constantemente para Deus. Só tem fé n’Ele... e na clemência do Rei!

- Nesse caso seria preciso que o Rei também mudasse muito...

Tinham chegado ao vestíbulo, cujas lajes refletiam as mil luzes dos candelabros e d’Artagnan levava aos lábios a mão que a hospedeira lhe estendia quando o silêncio da rua foi quebrado pelo ruído das rodas ferradas de uma carruagem, fazendo acorrer porteiro e criado. O grande portão foi aberto diante de um veículo coberto de lama e cujos cavalos, imediatamente rodeados pelos moços de estrebaria, ainda espumavam.

- Basta enxugá-los, eu só estou de passagem! - gritou uma voz bem conhecida.

E empurrando à sua frente um jovem escuro como uma castanha, que Sylvie hesitou em reconhecer, François de Beaufort surgiu do veículo e galgou em três saltos o patamar onde Mme. de Fontsomme e o seu convidado tinham acabado de chegar.

- Deixo-o dois dias convosco e depois venho buscá-lo! - bradou, como se tivesse a intenção de acordar todo o quarteirão. - Ah! Senhor d’Artagnan! Um vosso criado! É um bom augúrio e também um prazer serdes vós a facultar-me o meu primeiro encontro parisiense. Espero que ao menos a vossa presença não signifique que viestes também prender Mme. de Fontsomme...!

E soltou uma sonora gargalhada enquanto apertava vigorosamente a mão do capitão.

- Diacho, monsenhor! Que força!... e que voz! Estais a pensar nalgum motim?

- Não, desculpai-me!... É o hábito de passar o tempo a gritar ordens na ponte de um navio.

Voltava-se na direção de Sylvie, mas ela não o via nem o ouvia. A mãe e o filho conservavam-se muito estreitamente abraçados, demasiadamente comovidos para falar. A alegria de Sylvie era tão forte que teria podido morrer, mas morrer de felicidade; deixava deslizar lágrimas silenciosas pelo rosto abaixo, molhando o ombro do fato azul que o rapaz trazia. Os dois homens olharam para eles durante um momento sem nada dizer e, depois, Beaufort observou amenamente:

- Agora já está mais crescido que vós...

Era pura verdade. Em três anos, Philippe crescera de forma impressionante, quando ainda tinha acabado de fazer dezesseis anos. Sempre mostrara inclinação para crescer muito, e fora isso que efetivamente sucedera mas, à exceção da altura e Jean de Fontsomme também fora de elevada estatura! e do fulminante olhar azul, nada podia fazer lembrar o seu pai natural. Os cabelos castanhos, atravessados por madeixas quase brancas, o corte triangular do rosto e o sorriso pertenciam inequivocamente à mãe.

- Que belo rapaz me devolvestes, François! - exclamou, afastando-o com os braços para contemplá-lo melhor...

- Mas, minha cara, eu não o devolvo! Só vo-lo empresto, pois temos de partir depois de amanhã para Toulon onde tenho alguns navios a consertar em vista da próxima campanha.

- Tanto caminho para passar tão pouco tempo?

Ele olhou-a no fundo dos olhos e colocou todo o seu amor nesse olhar:

- Um instante de felicidade pode ajudar a viver a eternidade - disse. - E eu vou ver esse malandro do Colbert, que pretende retirar-me o cargo da Marinha, por causa do desastre de Djigelli, no qual me desobedeceram, sem dúvida devido ao espião que ele mandou embarcar no meu navio. Quer fazer de mim um... governador da Guiana, um homem ligado à terra! - cuspiu Beaufort, traduzindo assim o desprezo do marinheiro por esse tipo de função sedentária. - Mas quem eu quero ver é o Rei. Foi ele que assinou a minha ordem de comando e não o seu Colbert, que o Diabo o dane! E vou tratar de fazer com que ele me devolva! Capitão, até à próxima! Minha cara Sylvie...

Antes que esta pudesse pronunciar uma palavra que o retivesse, ele já tinha aflorado a sua face com o bigode e saltado para a carruagem, gritando um embora ao cocheiro. O pátio ficou subitamente vazio, pois entretanto d’Artagnan saltara para o seu cavalo para seguir atrás de Beaufort. Sylvie quis então levar o filho consigo para dentro, mas ele já se encontrava nos braços de Jeannette, dos quais só saiu para encarar todos os criados da casa, reunidos à pressa por um Berquín que fungava demasiado para que a sua majestade habitual não se ressentisse. Avançou então ao encontro do jovem amo:

- O pessoal do senhor duque tem a honra de saudá-lo com grande alegria. Grande dia... ou, antes, bela noite a que nos traz de volta a vossa pessoa!

Quase tão comovido quanto ele, Philippe apertou-lhe as mãos, abraçou Javotte e teve uma palavra gentil para todas aquelas pessoas, cuja maioria sempre o tinham conhecido.

- Agora - disse com um grande sorriso - gostaria de comer qualquer coisa e, sobretudo, de beber um pouco de bom vinho. Fizemos a última muda em Melun e estou gelado!

Despacharam-se a servi-lo. Sylvie não conseguiu adormecer nessa noite. Muito depois de ter convencido Philippe a ir descansar no quarto que desde há semanas lhe fora preparado e onde bastara acender as velas e a lareira, permaneceu enroscada com Jeannette no canto da chaminé do seu quarto, trocando com a sua amiga de sempre as impressões causadas pelo regresso do filho, que ambas amavam. Estavam as duas igualmente espantadas com as mudanças ocorridas no rapaz porque, no coração delas, Philippe continuara sempre a ser aquele rapazinho que fora um dia confiado à guarda do único homem que podia protegê-lo eficazmente do perigo mortal que Saint-Rémy representava. E davam com um rapaz cuja voz se alterara e onde já se distinguia um tênue traço escuro prenunciando o bigode, por cima do lábio superior.

- Dentro em pouco será um homem e nós não o veremos crescer... - suspirou Jeannette...

- É verdade. Nas suas cartas, o abade de Résigny que sofreu uma dupla entorse ao descer do navio de Beaufort, tendo ficado retido em Toulon referia-se à sua inteligência, aos seus grandes progressos, sem contar com todos aqueles elogios ao duque François “que era como um pai para ele”, mas nunca mencionava a mudança de tamanho, a não ser quando dizia prosaicamente que ele crescia...

- Não é assim tanto de espantar! Ao vê-lo todos os dias que Deus fez, não podia aperceber-se da sua transformação. Dentro em breve alguma menina virá tirar-nos o nosso pequeno duque.!

- Uma mulher? Sim, sem dúvida, algum dia será... mas ele já nos foi arrebatado por algo muito mais forte que um lindo rosto, da mesma forma que arrebatará aquele que o escolher: o mar... Sem contar com o gosto pelo combate!

Ia dizer “tal qual o pai”, mas calou-se a tempo como se Jeannette de nada soubesse; contudo, o silêncio é sempre a melhor sepultura para um segredo. No entanto, ao juntá-los, ela nunca imaginara que se iam dar tão bem um com o outro, entendendo-se daquela maneira. Para Philippe, Beaufort encarnava o pai que nunca conhecera e, ao mesmo tempo, o herói que cada criança traz dentro de si. Enquanto há pouco devorara a refeição improvisada que lhe tinham servido, sem dúvida que respondia às perguntas da mãe, mas a sombra de François pairava em quase todas as respostas, a tal ponto que Sylvie não conseguira impedir-se de perguntar:

- Gostas muito dele, não é verdade? E não me perguntes de quem. Estou a falar de Monsenhor François.

Que sorriso radiante! Constituía a melhor das respostas e Philippe ainda era demasiado novo para já ter aprendido a arte da dissimulação:

- Vê-se assim tanto? É verdade que gosto muito dele. E admiro-o imensamente, pois é um homem excepcional, tanto pela bravura como pela generosidade do seu coração. E com ele, ao menos, podia falar de vós. Contou-me muitas coisas dos tempos em que ainda éreis ambos crianças. Mas, a propósito, porque nunca o haveis desposado?

- Se ele te contou tantas coisas, devias saber que eu era de nobreza muito pequena para um príncipe de sangue, mesmo de linhagem bastarda. Os Vendôme só casam com princesas...

- Parece-me que não era o caso da falecida duquesa de Mercceur, vossa defunta cunhada...

- Ela era sobrinha de Mazarin e este era um ministro todo poderoso. Um fato compensava o outro. Além disso... apenas estávamos ligados por uma amizade fraterna! E, depois, encontrei o teu pai!

- Ele também me falou dele... mas menos vezes que de vós. Chego a pensar que ele vos deseja mais do que a uma irmã...

- Ainda és muito novo para saberes seja o que for a esse respeito! Vai dormir que bem precisas. Falaremos amanhã de manhã.

Apesar da alegria que sentia, ela prometeu a si mesma evitar cuidadosamente abordar um tema tão escaldante durante as horas que ele iria passar ao pé de si. Ia selar as suas palavras dentro do coração e sabia que poderia evocá-las nas horas de solidão, de preocupação ou de inquietude...

Apercebendo-se que Jeannette, entorpecida pelo calor e pelo cansaço já caía com o nariz em cima da grande gola branca, abanou-a suavemente:

- Vai descansar! Eu não tenho sono. Logo de manhã enviarei alguém a casa de M. de Raguenel e ao Palácio Real[36], para prevenir Marie.

Jeannette obedeceu e, uma vez só, Sylvie permitiu que a sua mente analisasse a pequena frase de Beaufort que captara a sua atenção na conversa de há pouco: “... sem dúvida devido ao espião que mandou embarcar no meu navio”, frase que agora, em plena escuridão da noite, adquiria todos os seus contornos ameaçadores... Quem era aquele homem? Como sabia Beaufort que ele estava a soldo de Colbert? Será que poderia ser Saint-Rémy disfarçado? Quando os dois homens haviam combatido no cemitério de São Paulo, afinal de contas estava muito escuro para que os seus traços se pudessem ter gravado na memôria do duque. Portanto, havia poucas hipóteses de que ele o reconhecesse... Mas, por outro lado, Philippe também viajava no mesmo navio, Philippe que tinha tão boa vista, que era dotado de uma inteligência viva e de uma excelente memória, Philippe que devia conhecer muito bem o rosto do seu sequestrador. Além disso, o jovem regressara são e salvo, enquanto que no decurso das últimas campanhas o que não devia ter faltado eram oportunidades para um homem tão friamente determinado.

A pouco e pouco acalmou-se, sem renunciar todavia, por completo, a pedir algumas explicações suplementares a Beaufort. Era tão estranho que um inimigo que surgira tão repentinamente não desse mais notícias de si durante há três anos!... Perceval punha isso por conta do receio salutar provocado pela atitude de um Rei, acerca do qual se tornava de dia para dia mais evidente que tencionava ser senhor de todas as coisas. Até mesmo um Colbert supondo que ele não tivesse renunciado a proteger a dita personagem! devia levar isso em consideração, caso desejasse fortalecer uma situação ainda muito frágil para as suas imensas ambições.

Nesse dia, no hotel de Fontsomme, tudo foi alegria. Perceval acorreu, ladeado por Nicole Hardouin e por Pierrot, que faziam questão em ir saudar o jovem viajante e, a meio da manhã, a carruagem de Sylvie trouxe uma Marie excitada ao mais alto grau. Caiu nos braços do irmão, rindo e chorando ao mesmo tempo, mal abraçando a mãe e Perceval, e tentando logo requisitá-lo só para si:

- Vamos até ao meu quarto! Temos tantas coisas a contar um ao outro!

- Alto lá! Mais devagar! - protestou Perceval. - Já no-lo querias privar da nossa companhia? Já sabes que amanhã está de novo de partida?

- Já?

- Pois já - suspirou - o cavaleiro. M. de Beaufort parte amanhã de manhã para Toulon. Passará por cá a buscá-lo.

- Ah!... Nesse caso ficarei cá até que parta de novo. Se é que... posso cá passar a noite - acrescentou, olhando de viés para Sylvie, que lhe sorria.

- Naturalmente. Sabes que o teu quarto está sempre pronto para te receber. Até podes levar o teu irmão para lá. Pelo menos, durante uns momentos! Deveis sentir necessidade de vos conhecerdes de novo...

- Obrigada. É verdade que ele mudou tanto...

Desaparecidos os dois jovens, Perceval recostou-se na sua poltrona, colocando os pés em cima de um dos cães da chaminé. Lá fora o tempo continuava horrível; uma espessa bruma encobria o Sena, até aos ramos mais baixos das árvores que o bordejavam. Com um ar pensativo, o cavaleiro esfregou as suas finas mãos uma na outra e perguntou depois:

- Este desejo de permanecer aqui até à hora da partida é devido ao fato de querer passar o mais tempo possível na companhia do irmão ou ao de querer reencontrar Beaufort?

- Penso que deve haver um pouco dos dois. - respondeu Sylvie. - Padrinho, não sejais muito severo para com ela. Sempre teve um temperamento vivo, que se deixa facilmente embalar... tal como eu o era outrora!

- Gostaria mais que ela se parecesse convosco noutro domínio... e não gosto nada da maneira como ela vos trata. Contudo, expliquei-lhe muito bem que não havia qualquer motivo para que ela visse em vós uma rival... e que, de qualquer modo, a sua paixão por um homem que não se interessa por ela é coisa completamente estúpida.

- A desgraça é que ela nada pode fazer contra isso, o que me entristece tremendamente!

- Será preciso casá-la. Que diabo! É uma das mais belas donzelas da Corte e não lhe faltam pretendentes...

Sylvie encolheu uns ombros conformados:

- Nunca a forçarei! Ela até recusou esse encantador Lauzun...

- ...que está na Bastilha por ter, durante uma crise de ciúmes, esmagado a mão da princesa do Mônaco, que ele acusa de se deitar com o Rei. Não me digais que lastimais a perda de um genro que só queria conquistar uma fortuna, tanto mais desejável porquanto era acompanhada por uma encantadora esposa. Direi ainda que não entendo de forma alguma o que é que as mulheres podem achar nele. É baixo, mais feio que belo, e mau como as cobras!

Sylvie não conseguiu suster o riso.

- Caro padrinho, sempre haveis alimentado um conceito das mulheres demasiado idealista. Acontece que temos por vezes estranhas preferências. Lauzun é muito espirituoso e irradia um estranho charme. Confesso que até gosto dele e julgo que o Rei também sente a sua falta. Sem ele, a sua corte diverte-se menos...

Perceval ergueu os braços ao céu:

- Também vós? Decididamente, as mulheres são loucas!

- É possível, mas se não o fossemos um bocadinho, vós, os homens tão ajuizados, morreríeis de tédio!

O resto do dia foi passado muito aprazivelmente. Philippe falou das suas viagens, das campanhas, do caso de Djigelli, que lhe permitira travar uma breve amizade com dois jovens marinheiros de Malta: o cavaleiro d’Hocquincourt e, sobretudo, o cavaleiro de Tourville, que muito parecia tê-lo fascinado.

- Nunca vi homem mais belo demasiado até! tão elegante, tão valente! Ele agradar-vos-á, irmã!

- Não gosto dos homens bonitos demais! Possuem frequentemente maus hábitos. Vede Monsieur! Ele é encantador, mas...

- M. de Tourville nada tem em comum com o vosso príncipe, cuja reputação chegou até aos nossos ouvidos. Acreditai-me que tem muito bons hábitos! E é sensível à beleza das mulheres... Um dia espero poder apresentá-lo a vós.

- Se desejais agradar-me, não fareis tal coisa. Falai antes do mar, sobre o qual sabeis dizer coisas tão belas. Mãe, sabeis que o vosso filho só sonha em poder comandar um navio do Rei?...

- Não o nego - prosseguiu Philippe - mas sou bem preciso: quero o comando de um navio que pertença, de preferência, à frota do Poente. Sou como M. de Beaufort: não gosto lá muito das galés que arrastam demasiada miséria sob a púrpura e o ouro. E prefiro o Grande Oceano ao Mediterrâneo, que acho um mar demasiado... sedoso, e pérfido também. A propósito, Mãe, que sucedeu à vossa casa de Belle-Isle, de que nos faláveis outrora?

Foi Perceval quem se encarregou da resposta:

- Na verdade, ela não sabe mais do que aquilo que lhe disse M. Fouquet, cuja amabilidade o levou a ocupar-se da manutenção daquele pequeno bem quando adquiriu a ilha e o marquisado, fará em breve sete anos. Falou-me muitas vezes das grandes obras que empreendia para proteger Belle-Isle: a construção de um dique, as fortificações, um hospital. Ao que julgo só lá foi uma vez, mas ficara seduzido pela ilha e queria fazer muito por ela. Desde que foi preso e, sobretudo, condenado, parece que já não há mais ninguém que se interesse por aquela pobre terra, na qual, contudo, se acusava o nosso amigo de pretender instaurar não sei que antro de rebeldes e de inimigos do Rei!

Seguiu-se um silêncio após aquele assomo de cólera a que se arrogara o leal cavaleiro de Raguenel, cuja calorosa amizade por Nicolas Fouquet era bem conhecida de Sylvie. Sorriu-lhe por sobre a mesa, de todo o coração, e para atenuar uma tensão que podia ser nefasta para o seu filho, suspirou:

- Suponho que os juncos tomaram conta da horta de Corentin. Um dia teremos de acabar por ir ver o que se passa...

- Nesse caso, esperai por um dos meus regressos! - exclamou o jovem. - Tenho grande vontade de ver essa ilha da qual Monsenhor, o duque, fala com todo o calor da amizade!

Beaufort voltara a ocupar a frente do palco; o incidente tinha terminado e Fouquet fora abandonado ao seu destino. Sylvie pensou que era natural que os jovens olhassem em frente, sem se preocupar com o passado.

O duque reapareceu em pessoa no dia seguinte, por volta das dez da manhã, com cavalos frescos, uma carruagem limpa e areada, e com a cabeça plena de projetos. Era óbvio que as suas pretensões haviam sido coroadas de êxito.

- Ficou completamente fora de questão ir governar a Guiana! - exclamou, logo à entrada. - O Rei vai entregar-me uma esquadra móbil no Mediterrâneo, para desembaraçar os mares dos piratas bárbaros. Rapaz, temos um lindo trabalho à nossa frente! - acrescentou, dando uma palmada nas costas de Philippe, que o fez soltar um soluço, mas que aumentou a sua alegria ao pensar nos grandes feitos que iria empreender na companhia do seu herói.

Conhecendo o proverbial apetite de François, Sylvie pedira a Lamy que preparasse uma sólida refeição e, para levar para o caminho, cestos de mantimentos para alimentar os viajantes até à noite, para que não tivessem de parar nalgum albergue mais ou menos bom. François aceitara de bom grado passar à mesa, “desde que isso não durasse muito tempo”. E juntamente com Philippe atacaram um soberbo patê de pato com pistachos, esculpido como o coro de uma igreja.

Entretanto, enquanto os dois marinheiros, já separados do mundo exterior, se restauravam discutindo os novos projetos de Beaufort, Sylvie perguntava-se por que motivo Marie ainda não descera do seu quarto. Dado que Beaufort ignorava a arte de se movimentar sem provocar grande ruído, ela não podia estar a dormir. Além de ter vindo ver o irmão, afinal ela não se deslocara também para encontrar Beaufort? Nesse caso, por que não descia?

Não aguentando mais a espera, murmurou uma desculpa apressada, que ninguém ouviu, e lançou-se escada acima, no meio da qual encontrou Jeannette com os braços carregados com os lençóis de Philippe, com que descia para serem lavados.

- Não viste Marie? - perguntou Sylvie.

- Palavra que não. Acabo de passar frente ao quarto dela: não se houve som algum e se ela ainda está a dormir, tanto melhor! Desde ontem que me atormento a perguntar-me que gênero de cena de adeus é que ela nos está a preparar!

- Não sejas tão dura para com ela! Vou acordá-la: ela não nos perdoaria se não a avisássemos a tempo de despedir-se do irmão...

Acabando de subir as escadas, Sylvie chegou à porta do quarto da filha, que abriu sem hesitar. A sala em que pairava o perfume da elegante dama de honor de Madame estava imersa na obscuridade, pois ninguém abrira os espessos cortinados de veludo azul. Foi na direção deles, sem olhar para a cama e puxou-os, para deixar entrar a luz do triste dia invernal. Ao mesmo tempo, exclamou:

- Vamos, de pé! Já são horas de levantar, caso queiras saudar o teu irmão e Monsenhor François antes que...

As palavras morreram-lhe nos lábios. Voltada para a cama, viu que ninguém lá se deitara e viu também um papel dobrado em cima do travesseiro, por meio de um alfinete encabeçado de pérolas: era uma carta, destinada a ela mesma e a Perceval.

“Está na altura de tentar a minha sorte - escrevia Marie. - Já é tempo que ele deixe de ver refletida em mim a sombra da minha mãe. Já não sou uma menina. Ele tem de sabê-lo. Regressarei enquanto duquesa de Beaufort, ou então nunca voltarei. Desculpai-me. Marie.”

O choque foi tão grande que Sylvie julgou que ia desmaiar e amparou-se a uma das colunas da cama mas, durante a vida já encaixara tanta coisa grave que não podia deixar de reagir depressa. Ao lado da cabeceira da cama, havia uma garrafa com água junto a um copo, que ela encheu e esvaziou de um só trago. Já um pouco recuperada do choque, colocou a carta sob o colete de veludo, saiu do quarto e começou a descer as escadas com um passo hesitante. Na verdade, não sabia o que fazer. As perguntas engalfinhavam-se na sua cabeça, sem que lhes conseguisse encontrar a mínima resposta. O seu primeiro impulso foi o de enfiar o bilhete sob o nariz de François, cuja voz ribombava até ao vestíbulo; não era difícil imaginar como ele reagiria: ou rir-se-ia ou teria um ataque de fúria. De qualquer modo, juraria que logo que Marie se apresentasse diante dele, haveria de enviá-la de volta e bem guardada... e haviam aquelas últimas palavras que a jovem sublinhara antes daquelas destinadas a manifestar um arrependimento que decerto não sentiria: ”... ou nunca voltarei”. E era aí que o seu coração de mãe lhe doía. Marie ia fazer dezenove anos. Na mesma idade, Sylvie quisera morrer. Recordou com grande nitidez o caminho que serpenteava através da charneca, em direção ao bordo da falésia para onde corria para se lançar no abismo. Marie trazia dentro dela o mesmo sangue, impulsivo, que se juntava à tenacidade dos Fontsomme. Além disso... quem poderia dizer que ela nunca chegaria a fazer-se amar? Outrora, Sylvie teria apostado a sua vida pelo amor de François pela Rainha Ana. E depois ele conhecera ainda outras mulheres, antes de começar a amá-la, a ela. Ao recordar o rosto radiante de Marie, a sua juventude, a sua beleza deslumbrante, enquanto ela própria estava a atingir a idade madura, a mãe pensou que não tinha o direito de se opor ao que seria talvez um decreto do destino.

Parou um criado que se apressava na direção das cozinhas:

- Ide dizer ao senhor cavaleiro de Raguenel que o espero aqui. Depressa!

Alguns segundos mais tarde, Perceval estava junto a ela.

- Então, que estais fazendo? Eles vão-se embora. Onde está Marie?

Ela estendeu-lhe a carta, sobre a qual ele deu um relance de olhos, antes de resmungar:

- Pequena idiota! Quando é que decidirá largar a sua quimera? Beaufort nunca...

- Que sabeis?... Mas, sobretudo, que devo fazer? Preveni-lo? Prevenir Philippe? Pensai, mas depressa!

- Se vos colocastes a questão, é porque estamos a pensar na mesma coisa. É melhor evitar a Philippe este gênero de preocupação. Saberá certamente como reagir quando a vir aparecer ao pé do duque. Quanto a este, avisado, ficará furioso com ela por vossa causa, e a sua primeira atitude poderia revelar-se... cruel para a nossa Marie.

- Ele nada ignora dos sentimentos que ela tem por ele e julgo que saberá falar-lhe brandamente mas, à parte os perigos inerentes à viagem até Toulon, sinto-me muito inclinada a deixá-la tentar a sua sorte. Afinal de contas, quem sabe se ela não acabará por seduzi-lo? Ela é tão linda!

- Estais a divagar?

- Não... mas prefiro-a duquesa de Beaufort a morta!

Os olhos cinzentos de Perceval mergulharam nos de Sylvie com uma indizível expressão de tristeza que traduzia o que pensava.

- Entretanto, desculpai-a por qualquer motivo e deixemo-los partir! Segui-los-ei de perto.

- Quereis...

- Seguir o rasto dela para tentar limitar os estragos. Tranquilizai-vos: não tenciono trazê-la manu militari de volta; só quero cuidar dela sem me mostrar muito. Beaufort vai ficar em Toulon durante algumas semanas, para armar os seus navios. É com isso que ela conta e eu também. Quero estar presente... a fim de evitar o irreparável!

O aparecimento de Philippe no vestíbulo pôs termo à conversa:

- Então, que estais a fazer? Temos de ir embora. Onde está Marie?

- Foi chamada de volta ao Palácio Real de manhã cedo, pois Madame tem grande dificuldade em passar sem ela. Dá-te mil abraços afetuosos e prometeu que te escreveria...

Ela própria ficou espantada com a facilidade com que debitara aquela mentira que lhe ocorrera com toda a naturalidade. Philippe desatou a rir ao constatar que os príncipes pouco se importavam com os afetos familiares.

Quanto a Beaufort, pareceu não dar qualquer importância ao incidente: estava cheio de pressa de regressar às terras de Provence, onde Martigues pelo menos ainda lhe pertencia e da qual o irmão era governador, mas tinha sobretudo pressa em ver os navios que teria de armar, cuidar, polir e acarinhar, antes de levá-los ao encontro dos Bárbaros e para aquele mar que não lhe ofereceria as longas ondulações esverdeadas do seu querido oceano.

A apressada partida não foi nada propícia a longas efusões, apesar dos lábios de François se terem demorado um pouco no pulso de Sylvie, com um tal olhar que lhe derreteu o coração enquanto sentia, ao mesmo tempo, que ele se apertava. Aquela paixão que sonhara desde a infância metia-lhe agora medo, caso para que sobrevivesse isso significasse ter de se alimentar do coração e da vida daquela que sempre seria sua filha.

Uma hora mais tarde, Perceval viajava para Villeneuve-Saint-Georges numa dessas viaturas de correio que se começavam a chamar de “cadeirinhas”, à qual se atrelava uma parelha ou uma quadriga de cavalos e que tinham a vantagem de ser perfeitamente anônimas. Recusara efetivamente a carruagem de viagem dos Fontsomme, cujas portinholas ostentavam as insígnias que Marie tão bem conhecia. Levava consigo o bilhete dela e uma carta de Sylvie rogando a Beaufort, em nome do amor que lhe tinha, que não reduzisse a filha ao desespero e, caso não houvesse outro meio, que pedisse a mão da irmã a Philippe:

- “Se graças a vós, que me sois tão querido, eu recuperar a ternura da minha filha, abençoar-vos-ei para sempre. Já há muito tempo que tem ciúmes de mim... e receio que agora me deteste...”, concluía Sylvie, esperando que François a soubesse compreender.

Deste modo, tendo entregue as suas esperanças às mãos de Perceval, decidiu ir avistar-se com aquela que desde que se efetuara a entrada conjunta das damas de honor de Madame, se tornara e permanecera a amiga de coração de Marie: a jovem Tonnay-Charente, que entretanto se tornara marquesa de Montespan, ao desposar dois anos antes Louis-Armand de Pardaillan de Gondrin, marquês de Montespan e d’Antin, filho do governador do Rei em Bigorre, do qual ela se enamorara tanto quanto ele se apaixonara por ela. Casamento que constituía pois uma raridade na Corte, tanto mais que nem o Rei, nem a Rainha, ou Madame ou ainda Monsieur, tinham assinado o contrato como era devido quando se tratava do casamento da filha de um duque... se o Rei nada tinha contra o duque de Mortemart, pai da jovem e de alta nobreza, já não acontecia o mesmo com os Pardaillan de uma prestigiosa casa que contava também um duque que tinham outrora cometido o erro de participar no movimento da Revolta, sem contar ainda com Monsenhor de Gondrin, arcebispo de Sens e primaz das Gáulias, que tinha o defeito de ser um pouco jansenista.

Tendo-se portanto casado com uma autorização renitente de Suas Majestades, a jovem marquesa também se zangara com Madame, mais ou menos por altura em que a segunda das três amigas, Aure de Montalais, ia a caminho do exílio. Athénais provinha de casa muito prestigiada para que a deixassem de lado e agora fazia parte das damas da Rainha Maria Teresa, que muito apreciava a sua alegria, piedade e motivação, o que não impedia que a encantadora jovem sentisse as maiores dificuldades em manter o seu nível de vida. Efetivamente, não obstante os acordos matrimoniais que tinham parecido prometedores, o casal comia o pão que o diabo amassou e se ainda não ficara reduzido aos expedientes, não estava longe disso. O jovem marquês estava coberto de dívidas, e ambos apreciavam o fausto. Viviam sobretudo de empréstimos.

Há vários dias que Mme. de Montespan não vinha ao Louvre. Debatendo-se com o início de uma segunda gravidez, sofria de náuseas e de ligeiras vertigens que não eram insistentes devido à sua boa saúde, mas que a tornavam pouco desejável ao pé de uma Rainha que ainda mal recuperara do último parto. Portanto, Mme. de Fontsomme estava certa de a encontrar em casa e fez-se conduzir até ao faubourg Saint-Germain, ao velho hotel da rue Taranne[37], onde os Montespan ocupavam um aposento tão vetusto quanto inconfortável.

Foi encontrar a bela Athénais estendida no meio de uma espécie de ninho de peles, sentada numa grande poltrona ao canto da chaminé de uma ampla sala, na qual alguns cortinados novos e alguns móveis bonitos tentavam encobrir um início de decrepitude. Estava um pouco pálida, claro, mas de uma palidez que nada retirava a uma beleza que espantava Sylvie cada vez que a encontrava. Aquela jovem era uma das mais belas da sua época...

A marquesa teve um sorriso amável para com a sua visita e quis levantar-se para saudá-la. Esta rogou-lhe que não se mexesse:

- Tendes que pensar primeiro no vosso estado e temperar os vossos esforços. Por favor, deixemos hoje as cortesias da praxe... lá fora.

- Senhora duquesa, a vossa bondade comove-me, tanto mais que não vos esperava. Marie foi-se embora, não é verdade?

- Bem, pensei que devíeis saber alguma coisa. Sois a sua única amiga...

- Ignoro se sou a única, mas gosto muito dela e desejava vê-la feliz. Foi por isso que a ajudei a sair de Paris.

Sylvie estremeceu:

- Havei-la ajudado... e vindes dizer isso a mim, que sou mãe dela?

Os esplêndidos olhos azuis acenderam-se com chamas de orgulho.

- Por que me rebaixaria a mentir? Sou de sangue muito nobre para isso. Já há muito que Marie desejava reunir-se ao senhor duque de Beaufort, lá onde ele decidisse passar os meses de Inverno. Mas como receava que ele só demoraria um breve instante em Paris, preparou tudo de antemão...

- O quê, por exemplo?

- Um cavalo que comprei para ela, um traje completo de cavaleiro, uma espada, pistolas, uma mala ligeira mas suficiente para um longo trajeto...

Sylvie escutava um pouco atarantada a calma enumeração daquilo que aquela mulher adquirira para a sua filha, para que esta se pudesse lançar numa aventura insensata.

- E quando é que ela pôde arranjar isso tudo?

- Na noite passada. Durante o dia fizera-me chegar um bilhete, no qual me anunciava que a data prevista seria na madrugada seguinte. Tudo o que eu tinha a fazer era, por volta das quatro horas, enviar-lhe a minha carruagem à rue Quincampoix, com dois criados encarregues de trazê-la até aqui, onde mudou de roupa antes de prosseguir caminho... com uma alegria que nem imaginais.

Oh, mas sim, Mme. de Fontsomme recordava-se muito bem de como ela própria fora, para não conseguir imaginar agora, com grande precisão, a sua filha perseguindo o seu sonho por caminhos repletos de neve. Graças a Perceval, que também lhe ensinara a servir-se de uma arma de fogo, ela era excelente cavaleira. Havia algo da amazona em Marie, e Sylvie via-a galopando através do campo, inebriada pela esperança e pela liberdade. A sua esperança residia no caro padrinho, que ele pudesse alcançá-la assaz rapidamente, a fim de poder vigiá-la discretamente, tal como era sua intenção... e, sobretudo, antes que ela tivesse algum mau encontro.

Regressando ao momento presente, Sylvie contemplou Mme. de Montespan:

- Ao possibilitar-lhe esta loucura, pensastes estar realmente a contribuir para a felicidade dela?

- Pensei, sim, porque Marie é uma daquelas pessoas que, tal como eu, vai até ao fim com os seus projetos. Ao menos, as pessoas como nós, mesmo que um dia venham a arrepender-se, só se poderão culpar a si mesmas! - acrescentou, com uma réstia de amargura que não escapou ao ouvido apurado da sua visita.

- Arrependei-vos então de algo, senhora?

- Por me ter casado contra a vontade do Rei e até dos meus, porque, depois do meu noivo, o marquês de Noirmoutiers, ter sido morto em duelo, deixei-me levar pelo amor, como é o caso agora com Marie? Ainda não sei... aliás, é possível que Marie encontre o meu esposo.

- Ele partiu?...

- ...também foi ter com M. de Beaufort - informou a marquesa com um risinho nervoso. - Conta com os combates vindouros para refazer um pouco da nossa fortuna. A este propósito, senhora duquesa, vós também sois responsável pelo modo de agir de vossa filha.

- Então porquê?

- Sois uma mãe muito generosa. Sabeis muito bem, sem dúvida por experiência própria, quão dispendioso é sustentar um estatuto no meio da Corte e vós nunca haveis deixado que lhe faltasse dinheiro. Isso permite muitas loucuras... como, por exemplo, a de ajudar por vezes uma amiga... com menos sorte... - concluiu, sem que a sua pose altiva se mostrasse minimamente incomodada.

Sylvie também não lhe pedia tanto. Contentou-se em observar:

- Talvez tenhais razão, mas sempre gostei de vê-la bonita e bem posta, e por isso não lamento nada. Além disso, ela tem liberdade para dispor do dinheiro como muito bem entender, por qualquer causa que lhe seja querida. Sei que ela gosta de vós.

- E eu pago-lhe com a mesma moeda, tal como lhe devolverei cada soldo que me emprestou, pois sei que um dia serei rica... muito rica até. E também poderosa, se der crédito à predição que me fizeram.

- Não duvido... Pois bem - acrescentou Sylvie ao levantar-se - resta-me despedir-me e agradecer-vos pela vossa franqueza.

Afastando as peles que a cobriam, Athénais foi ao encontro da sua visitante, cobrindo-lhe as mãos com as suas:

- Vós, os Fontsomme, sois na realidade pessoas muito raras e há que merecer a honra de contar entre os vossos amigos. Nada tendes a recear quanto a Marie! Primeiro, porque se trata de uma rapariga forte; depois, porque roguei ao meu irmão Vivonne, que a conhece e a admira, que tentasse socorrê-la, caso viesse a ser necessário. Claro que sob o maior sigilo, e como somos muito chegados, eu sei que ele me obedecerá. Como não deveis ignorar, ele ocupa interinamente o posto de general das galés.

Desta vez Mme. de Fontsomme dissimulou uma careta. Esta proteção suplementar não lhe dizia nada que valesse. Em primeiro lugar, porque o demasiado é inimigo do suficiente; em segundo, porque conhecia o jovem Vivonne, desde o tempo heróico em que ele fora educado junto ao jovem monarca enquanto criança do grupo das damas de honor. Tal como Beaufort, era loucamente destemido, mas também se tratava de um trampolineiro chanado que mais tarde revelaria certas inclinações para a libertinagem. Mas qual a irmã que não vê todas as qualidades inscritas na figura do irmão? Logo que recebesse notícias de Perceval, Sylvie prometeu a si mesma que avisá-lo-ia acerca da eventual proteção do mais velho dos Mortemart.

Mas, mesmo assim, agradeceu a Mme. de Montespan que, dando-lhe o braço, a acompanhou até à escada. Antes de Sylvie sair, ainda lhe disse:

- Não vos criticais muito por causa do dinheiro. De qualquer modo teria ajudado Marie e caso tivesse sido necessário ela teria tomado um coche e, se não dispusesse de outros meios, ter-se-ia disfarçada de burguesa. Nem sei se não seria capaz de ir a pé. Ela ama-o verdadeiramente.

Era mesmo isso que afligia mais Sylvie e, desse modo, foi partilhar a sua preocupação com Jeannette, que a esperava impacientemente.

- Não é a ti que vou ensinar que as raparigas dão em doidas quando se apaixonam, e posso julgar por mim própria da gravidade do caso de Marie. Tal como me aconteceu a mim, julgo que se apaixonou por ele logo que o viu pela primeira vez. E tinha apenas dois anos! Dois a menos que eu, que tinha quatro quando aconteceu essa desgraça...

- Não sejais hipócrita! - disse Jeannette com uma franqueza brutal. - Falais em desgraça, quando é na felicidade que pensais... A propósito de hipócrita, a senhora marquesa de Brinvilliers veio há pouco perguntar se por acaso desejáveis fazer-lhe companhia durante as suas visitas caritativas à Misericórdia para levar guloseimas aos doentes. Disse-lhe que estáveis no Louvre.

- Dir-se-ia que não gostas lá muito dela...

- Não gosto mesmo nada e não me cantais cantilenas, pois ela desagrada-vos tanto quanto a mim.

- É verdade. No entanto, ela é charmosa! Linda, graciosa e prestável. Sempre disposta a ajudar...

- Demais, até demais! Se quiserdes seguir o meu conselho, quanto menos a virdes melhor vos portareis.

Sylvie não respondeu. Depois daquele dia em que, a caminho da igreja, a apresentara à Rainha para retribuir a ajuda que a jovem prestara a Beaufort, esforçara-se por não aprofundar mais as suas relações com a marquesa, pois não conseguia sentir qualquer simpatia por ela. Talvez devido àquela avidez à flor da pele que nela detectara. Além disso, a reputação da marquesa, que ainda se encontrava intacta quando as duas travaram conhecimento, degradava-se a um ritmo curioso. Mme. de Brinvilliers ostentava a sua relação com um certo cavaleiro da Ordem da Santa Cruz, que se pretendia alquimista. Quanto ao marido, também não se preocupava em esconder as suas relações com certa personagem, e os ecos das cóleras do tenente civil Dreux d’Aubray pai da marquesa, chegavam muito além dos limites da rue Neuve-Saint-Paul.

Perceval, que mantinha sempre excelentes relações com o pessoal da Gazette o filho de Théophraste Renaudot e o seu neto, o abade que muito se interessava por novidades pretendia que ela até frequentava as tabernas acontecendo-lhe beber imoderadamente. Por isso aconselhava Sylvie a que não reatasse relações que nada lhe trariam de bom.

Esta ainda resistira durante os primeiros tempos, pois sentia-se devedora para com a marquesa pela ajuda que esta prestara a François a fim de salvar Philippe.

- A vossa dívida está paga - retorquiu o cavaleiro. - Além disso essa mulher agia sobretudo por conta própria: lembrai-vos que estava disposta a afastar a qualquer preço a muito bela Mme. de La Bazinière de caminho trilhado pelo seu pai. Quando o destino se encarregou de lhe trazer Beaufort, ela saltou logo sobre a oportunidade: prestar um favor a um príncipe de sangue, mesmo bastardo, é uma sorte inesperada que não se encontra ao virar da esquina...

Com o passar do tempo, Sylvie acabou por admitir que ele tinha razão e esforçara-se por conservar a irrequieta marquesa à distância, depois de tê-la acompanhado por duas vezes nas suas visitas aos doentes da Misericórdia. Porém, ficara sensibilizada pela doçura, gentileza e generosidade que a jovem manifestava ao debruçar-se sobre os casos mais miseráveis. Esta era demasiado arguta para não dar por isso e quando vinha buscá-la, era frequentemente no intuito de dispor da sua companhia nessas ocasiões.

- Espero - concluiu Jeannette - que ela acabe por compreender. No que me diz respeito, quando vier, vós nunca cá estareis...

Sylvie contentou-se em sorrir-lhe à laia de consolo e depois subiu para o quarto. Queria escrever à madrinha de Marie, a cara Hautefort (nunca conseguira verdadeiramente familiarizar-se com aquele apelido germânico de Schomberg), para inteirá-la do que se passava. Com o passar dos anos, a amizade das duas mulheres mantinha toda a sua força e todo o seu calor e, tal como outrora, Sylvie gostava imenso de confiar as suas preocupações a essa outra Marie. Ela era tão boa conselheira!

Uma hora mais tarde partia um correio a cavalo para Nanteuil, enquanto Mme. de Fontsomme se dirigia para o Louvre ao encontro de Maria Teresa, cuja atitude a comovia nestas horas difíceis: a Rainha consagrava à sua sogra todo o tempo que não passava a rezar no seu oratório ou na igreja. Sentia-se que desejava rodeá-la da maior ternura possível e desfrutar da sua presença enquanto Deus o autorizasse. Era muito comovente...

 

                                             A DESGRAÇA

Esperada com extrema impaciência, a primeira carta de Perceval demorou imenso tempo a chegar, a ponto de Sylvie se perguntar se não lhe teria acontecido alguma desgraça, acidente ou mau encontro. O conteúdo acalmou-a, fornecendo-lhe a explicação daquele longo silêncio: o querido amigo não queria escrever enquanto ignorasse onde a fugitiva realmente se encontrava.

A princípio, esperando que Marie, para melhor baralhar as pistas, se tivesse simplesmente disfarçado ao tomar um coche para Lyon, trocando-o depois pelos de Marselha, de Aix, etc., depressa tivera de abandonar essa esperança, depois de ter apanhado a carruagem na sua segunda muda. E durante todo o trajeto afligira-se com o que se poderia passar com aquela jovem dama, quer viajasse de “cadeirinha”, de coche, ou até por via fluvial, pois Marie não estava minimamente apressada, sabendo muito bem que encontraria Beaufort em Toulon. Nem um só instante imaginou que galopava à sua frente um jovem e audacioso cavaleiro, levando dez horas de avanço.

- Estes homens são mesmo incríveis! - observou Mme. de Schomberg, que se reunira à amiga logo que a carta chegara e que se instalara na rue Quincampoix para lhe fazer companhia. - Nunca lhes passaria pela cabeça que uma rapariga ávida de glória e de brio como a minha afilhada, com a mente repleta de romances de cavalaria, pudesse desejar comportar-se como uma das suas heroínas! E este é, talvez, o homem mais inteligente que conheço! Que diz ainda? Deve haver mil coisas interessantes nessa comprida carta.

E havia. Em primeiro lugar, a narração dos infortúnios do viajante, cuja cadeirinha - decididamente este veículo ainda não se encontrava afinado! - quebrara o eixo da roda num profundo carreiro das proximidades de Mâcon, obrigando-o a encontrar um veículo menos rápido, mas mais sólido. Estava fora de questão continuar a cavalo, devido ao jeito nos rins que contraíra no acidente. Quando, ainda dorido, Perceval chegou finalmente a Toulon, Marie já lá tinha chegado há dois ou três dias e, aparentemente, não perdera o seu tempo. Assim que chegou, mandou que o transportassem até ao Arsenal, de onde Beaufort nunca saía; este estava ainda a remoer uma violenta cólera de vinte e quatro horas. O acolhimento que dispensou a Perceval de Raguenel, refletiu esta disposição:

- Ah, vós também, por aqui? Isto é uma espécie de reunião de família? - rosnou. - Suponho que em seguida é a vez de Mme. de Fontsomme.

Mas Perceval não era homem para se deixar impressionar por aquela voz tonitruante que conhecia desde a infância.

- Monsenhor, Mme. de Fontsomme está em Paris, muito aflita e inquieta. Confiou-me uma carta que...

- Entregai-ma!

O mensageiro obedeceu sem proferir qualquer comentário, mas seguiu interessado o decurso da mudança de sentimentos que transparecia no rosto do duque enquanto ele a lia. Beaufort passou da cólera ao sorriso e, depois, à tristeza para, finalmente, ficar de novo enraivecido:

- A sua benção! - grunhiu, amarfanhando o papel nas suas grandes mãos nervosas. - Ela envia-me a sua benção! Também ela quer que eu case com esta doida! Quando sabe muito bem quanto a amo, a ela!..

- E não tendes o direito de duvidar do amor dela. Só que... é uma mãe, e está disposta a todos os sacrifícios para que a sua filha seja feliz...

- Eu não! Contudo, vou ter que me inclinar.

- Ides... desposar Marie? - perguntou Raguenel, num tom prudente, um pouco surpreendido pela rapidez com a qual a jovem parecia ter obtido ganho de causa.

- Oh, não é para já!... Mas tive de dar a minha palavra de gentil-homem. Certamente que não imaginais a cena que ontem vivi aqui mesmo!

Quando Beaufort regressava dos estaleiros, onde vigiava a construção de um navio e a reparação de seis outros, ao entardecer da véspera recebera a visita do “cavaleiro de Fontsomme”. Era bem preciso dar um nome do gênero para conseguir passar pelos diversos quartos de sentinela encarregues de guardar o velho arsenal outrora construído por Henrique IV e onde Beaufort, por isso mesmo, se sentia como em sua casa. Fora uma autêntica surpresa para o duque descobrir Marie sob aquele disfarce masculino, mas mais ainda fora verificar a estranha luz interior que dela emanava.

- Vim para vos reafirmar o meu amor - declarou logo de chofre e, como ele tivesse começado a protestar energicamente assim que recuperou do efeito do choque, ela reatou: - “e aqui não se trata de esgrimir raciocínios e razões ou de esboçar falsas escapatórias; volto a dizer-vos que estou determinada em tornar-me vossa esposa...”

- Nessa altura - recomeçou François - quis levar a coisa pela brincadeira, mas ela não estava a brincar. Pusera um ar tão grave que fiquei impressionado. Desembainhou um estilete, cuja ponta colocou contra a garganta, dizendo que se matava ali mesmo diante de mim, caso eu não prometesse imediatamente desposá-la. Encontrávamo-nos sozinhos, pois ela pedira um encontro comigo em privado, pretextando um “caso importante”. Ninguém me podia socorrer. Já não tinha nenhuma vontade de rir, pois lia nos seus olhos uma horrível determinação: “Tendes apenas dez segundos - acrescentou ela. - Jurai, senão...”. Para melhor me convencer, pressionou ligeiramente a ponta da lâmina deixando formar uma gota de sangue. Ao perceber que ela iria até ao fim, fiquei aterrorizado. Ela começou a contagem: um... dois... três... quatro... cinco... seis. Quando chegou a sete, rendi-me. Então pôs-se a sorrir, voltou a embainhar o punhal dizendo que confiava em mim e que eu nunca haveria de arrepender-me de ter aceito, porque ela faria tudo o que fosse possível para me fazer feliz, “começando por vos dar filhos, o que a minha mãe já não sabe fazer.” Esta frase foi demais: ao aceitar, fora em Sylvie que pensara, Sylvie que odiar-me-ia eternamente se a filha se matasse à minha frente. Fiz-lhe compreender que o casamento não seria para amanhã, que estava fora de questão realizá-lo antes de terminar a campanha que vou empreender contra o rei Barbier Hassan, esse renegado português que é almirante de Alger e que, consequentemente, ela podia voltar para casa, o que recusou, dizendo que só regressaria casada, nem que ali tivesse de permanecer por mais um ou dois anos. Também lhe fiz notar que era preciso que obtivesse a permissão do Rei e dos parentes: da mãe, do irmão, que é agora chefe de família, mas ela sorriu, sabendo bem como Philippe ficaria feliz em ser meu cunhado. Aliás não seria preciso muito tempo para o verificar: bastava esperar pelo seu regresso de Saint-Mandrier, onde o enviara inspecionar uma fortificação. É este o ponto da situação, meu caro Raguenel. Confessai que fui apanhado na armadilha como um passarinho!

- Teria sido difícil agir de outro modo. Já sabia que Marie era capaz de grande determinação, mas até esse ponto!... Julgo que a sua desculpa é o fato de vos ter amado desde sempre. Talvez tanto quanto Sylvie...

- Sylvie! - exclamou Beaufort, num tom dorido. - Julgais que me regozija o fato de ela se tornar minha sogra, quando a queria para minha duquesa?

- Penso que é preciso dar tempo ao tempo... que tendes razão em colocar em primeiro lugar os prazos que as circunstâncias impõem. Mas... sabeis dizer-me onde é que ela está neste momento?

- Em casa da marquesa de Forbin, em Sollies, aproximadamente a três léguas daqui. Talvez saibais que ela é mãe de Mme. de Rascas, a bela Lucrèce, amante de meu irmão Mercoeur, que mandou construir em Aix um pavilhão em sua honra, a que chamará Vendôme. Também é minha amiga e confiei-lhe Marie, sem lhe dizer que ela é a minha... noiva, pois assim o parece. Exigi que, até ordens em contrário, tudo isto permanecesse secreto...

- Sábia precaução! Quem sabe se não chegaremos um dia a fazer com que Marie vos devolva a palavra que vos arrancou...

- Não sonheis... Não a haveis visto tal como eu a vi...

A carta acabava com o relato sucinto da conversa que o cavaleiro de Raguenel tivera com Marie no castelo de Sollies e pelo anúncio do seu próximo regresso. Era evidente que o encontro não decorrera bem e que Perceval preferia esperar para estar em frente de Sylvie quando tivesse de lhe fornecer os detalhes. A menos que optasse por nada dizer. Pelo menos, era assim que pensava Mme. de Schomberg:

- Para quem sabe ler entrelinhas, ele parece estar muito descontente. Confesso que eu também o estou. Nunca pensei que a minha afilhada, que amo com tanta ternura, fosse capaz de cometer tais ações. Sylvie, não vos escondo que a sua fuga até me divertia, mas esta cena grandíloquente, esta maneira de obrigar um homem a dar-lhe a palavra ameaçando suicidar-se, tudo isto choca-me profundamente. É de uma... vulgaridade!

- Oh, em parte é culpa minha! - suspirou Sylvie. - Não me preocupei suficientemente com o ardor e a solidez do seu amor por François, porque nunca imaginei que pudesse conduzi-la a tais excessos...

- A infelicidade é que nunca podemos conhecer verdadeiramente os nossos filhos. Lá porque lhes demos a vida, pensamos que eles se assemelharão em tudo a nós, mas atrás de nós, atrás deles, existem séculos de antepassados que têm a sua palavra a dizer. Exceto no capítulo do amor pois o amor é cego os filhos permanecem uns perfeitos desconhecidos para os pais... Aquilo por que estais agora a passar, consola-me pelo fato de não ter nenhum...

Sylvie deu duas ou três voltas pela sala, endireitando uma flor aqui, manejando um livro acolá, que logo voltava a pousar, procurando manter as mãos ocupadas para dissimular o seu nervosismo. Finalmente, disse:

- Pergunto a mim mesma o que Philippe pensará de tudo isto. O meu padrinho não diz nada sobre isso.

- Talvez porque não haja nada a dizer...

Philippe sentia-se na realidade muito desorientado para ter uma opinião precisa. O peso das novidades que lhe caíram em cima, mal voltou da sua inspeção, deixou-o um pouco atordoado. A chegada da irmã, a sua instalação em casa de Mme. de Forbin-Solliès e o encontro a sós em que Beaufort lhe veio pedir a mão de Marie, insistindo em especificar que era totalmente proibido espalhar a notícia, o passeio que teve em seguida com Perceval ao longo do porto e, finalmente, a visita que efetuou ao castelo de Sollies de que era frequentador habitual, acabaram por emergi-lo num abismo de reflexões onde se entrechocavam perguntas sem respostas do gênero: “porque deve ser mantido secreto um acontecimento tão feliz como um casamento entre pessoas que se amam?” ou ainda: “porque se tornara execrável o alegre estado de espírito que sempre animara o seu chefe bem-amado desde o regresso a Toulon?” e, finalmente, “porque é que Marie, cuja maneira de agir lhe era quase incompreensível, parecia querer chegar ao ponto de desejar apagar até a própria memória da mãe?” e “porque se recusava ela a regressar para o pé de Madame, que tanto amava?”

O abade de Résigny, que continuara sendo o seu confessor mais íntimo, aconselhou-o vivamente a permanecer arredado do assunto e a não tentar penetrar nos complicados arcanos do coração de uma jovem. A carta quinzenal que enviava com toda a regularidade a Mme. de Fontsomme refletia o estado de espírito do jovem e, ao mesmo tempo, referia-lhe os conselhos que ele lhe dava conjuntamente com Perceval.

A esquadra deixou finalmente Toulon, para ir em perseguição dos Bárbaros e, depois de se ter avistado uma última vez com Marie, Perceval de Raguenel retomou o caminho de volta a Paris. Ia de coração pesado. Esperara, até ao derradeiro momento, levar consigo uma palavra de ternura para Sylvie mas, fortalecida doravante pela palavra que extorquira a Beaufort, ainda mais segura de si, da sua juventude e beleza e de uma vitória final que expulsaria finalmente a mãe da cabeça do seu “noivo”, Marie contentara-se em declarar-lhe:

- Dizei-lhe que estou feliz e que espero vir a sê-lo ainda mais. Estou-lhe reconhecida por ter escrito a sua aprovação a este casamento que tanto almejo. Talvez ela possa chegar a obter a do Rei?

- Não o aconselharia. Ninguém se pode permitir influenciar uma decisão do Rei. Sobretudo quando se trata de um caso em que está envolvido o duque de Beaufort, de quem ele não gosta nada. Que faríeis se ele recusasse?

- Podemos sempre casar secretamente. Tendes de acabar por entender que o que eu quero é pertencer-lhe e que nem que fosse preciso viver exilada, isso não me meteria medo, porque estaria na sua companhia...

Que se podia acrescentar a isto? Perceval foi ter com Sylvie, procurando relatar-lhe tudo quanto sucedera. Ela ouviu-o sem dizer nada e quando ele acabou, apenas perguntou:

- Ao menos, dizei-me como achastes essa dama de Forbin? Julgais Maríe bem acomodada em sua casa?

- Oh, às mil maravilhas! - riu Perceval. - A marquesa possui todas as qualidades próprias de uma grande dama, a que junta a graciosidade de uma mulher amável, culta e cheia de generosidade, e podemos agradecer a Deus que esta louca lhe tenha sido confiada. Não podíamos contar com melhor e julgo-a muito compreensiva quanto à situação, pois na altura em que fui saudá-la, depois de ter dito adeus a Marie, ela murmurou-me: “Dizei à senhora duquesa de Fontsomme que tudo farei para que ela nada tenha a dizer-me no dia em que tiver a honra de estar na sua companhia...”

Sylvie fechou os olhos para melhor desfrutar o peso angustiante de que se libertara. Sabendo que esta dama era amiga de François e recordando-se muito bem da sua experiência de Belle-Isle em casa de Catherine de Gondi, ela receara que Mme. de Forbin-Solliès fosse alguma antiga amante ou uma apaixonada desiludida. Ele dava-se tão mal a julgar as mulheres! O que não era o caso de Perceval. Por isso deixou escapar um longo suspiro, reabriu os olhos e sorriu para a cara cansada do seu velho amigo:

- Devíeis ter começado por aí. Não tenho confiança alguma nas “amigas” de Monsenhor! Então, nesse caso, apenas nos resta esperar pelas novidades...

- Já vos posso dar algumas bem frescas - disse Perceval, abrindo o gilete para tirar uma carta. - Antes de embarcar, o duque deu-me esta carta para vós...

- Já esperava que haveria de responder à minha carta. Vejamos o que diz - acrescentou, rasgando a marca de cera vermelha e desdobrando a folha de papel ao longo da qual corria a escrita pitoresca de François, feita de poucas palavras, mas que bastaram para lhe provocar frio na espinha aquecendo-lhe, ao mesmo tempo, o coração.

- “Casar-me-ei, pois a isso fui obrigado - escrevia François - mas só me forçarão a fazer um casamento secreto e... em branco. Nunca tocarei na vossa filha, porque sois a única pessoa que sempre haverei de amar...”

Quis entregar o bilhete a Perceval, para que ele se inteirasse do conteúdo, mas este recusou dizendo-lhe que já sabia de tudo.

- Pois bem - perguntou Sylvie - como julgais que Marie irá receber estas últimas declarações? Estamos a correr para outro drama...

- Não creio. O que lhe interessa a ela é que ele lhe ponha o anel no dedo. Não imaginais como está segura de si mesma. Está convencida que, mais noite menos noite, saberá levá-lo até onde quiser. Não sem razão, talvez, pensa que tem toda a vida à frente dela...

- Não se engana... e, depois, ela é tão bela! Afinal de contas ele é apenas um homem...

Dividida entre a lenta agonia da Rainha-Mãe e a maneira como Luís XIV ostentava a sua paixão pela La Vallière, os meses que se seguiram foram, sem dúvida, os mais tristes que a Corte viveu. Sentia-se que apesar das demonstrações de amor que não parava de manifestar àquela que ia partir, não obstante as suas frequentes lágrimas, o jovem Rei morria de impaciência por não poder rodear a sua favorita - termo que havia muito não se empregava! - com o esplendor das festas e a carícia dos violinos. Aliás, no mês de Maio ocorreu um episódio lamentável. Quando Ana de Áustria redigiu o testamento, mencionando como se efetuaria a partilha das suas jóias pelos filhos, Luís XIV insistiu de modo indecente para que a mãe lhe legasse as grossas pérolas que tanto admirava desde a infância. A paixão do Rei pelas pedras preciosas e pelas jóias magníficas começava a ser bem conhecida e ele não suportava a ideia de que aquelas pérolas excepcionais fossem parar à pequena Marie-Louise, filha de Monsieur. Acabou por obtê-las, pagando-as. Desse modo, Ana de Áustria ofereceu ao filho mais novo os famosos diamantes que eram talvez a sua mais querida lembrança. Ele chorou ao recebê-los.

Durante todo este tempo, Filipe de Orleães mostrou-se um filho perfeito, simultaneamente repleto de dor, ternura e compaixão. Quando trouxeram a mãe de Val-de-Grâce de volta ao Louvre, quase mais não a deixou, tornando-se o seu companheiro de todos os dias, o seu enfermeiro e quase o seu diretor de consciência. Um dia, ao ver a terrível dor que crispava o rosto emaciado, mas ainda tão belo, exclamou:

- Que Deus me conceda capacidade para suportar metade dos vossos sofrimentos!

Então, ela respondeu:

- Não seria justo. É Sua Vontade que eu faça penitência...

Também Maria Teresa se dedicava por completo ao serviço daquela em quem descobrira uma segunda mãe. Era acompanhada por Sylvie e Molina, pois a Rainha-Mãe gostava novamente de ouvir falar a língua da sua infância, e a primeira passava longas horas com a sua amiga Motteville. Por vezes a enferma pedia à sua antiga dama de honor para que cantasse como outrora, naqueles tempos tão árduos que agora punha na conta dos dias felizes. Mme. de Fontsomme pegava então na guitarra e, enquanto durava a canção, tornava-se a “gatinha” de antanho. Entretanto, o ventre de La Vallière engrossava pela terceira vez...

Durante esses dias dolorosos, as únicas boas notícias vinham do Mediterrâneo, onde Beaufort operava maravilhas. Por duas vezes conseguira infligir rudes golpes aos piratas infiéis. Primeiro, acossando o velho Barbier Hassan até ao porto de La Goulette, onde este foi morto no começo da batalha, perdendo quinhentos dos seus homens, enquanto os canhões dos navios do Rei bombardeavam Tunis. Três navios caíram às mãos dos franceses. Da segunda vez, após uma breve passagem por Toulon para consertar o que podia e retomar as suas unidades intactas, Beaufort e os seus homens puseram o porto bárbaro de Cherchell a ferro e fogo, incendiaram dois navios e capturaram três. Enviados a Paris, os estandartes dos vencidos foram levados até Notre-Dame, onde foram pendurados sob as abóbadas seculares, para um triunfal Te Deum no dia 21 de Outubro. E, entusiasmada, a capital celebrou a glória daquele que para ela seria sempre o Rei do Mercado. No dia seguinte, o pai do herói, César de Bourbon, duque de Vendôme e almirante em título do mesmo nome, falecia no seu hotel ao faubourg de Saint-Honoré.

Tinha setenta e um anos e as doenças, fruto de uma vida de deboche, minavam aquele grande corpo talhado para viver cem. Consumiam-no grandes dores, provocadas pela gota, pela gravela e, também, pela sífilis, que tentava acalmar recorrendo a todos os remédios ao seu alcance, não junto aos médicos, que considerava como uns asnos, mas junto aos apanhadores de ervas medicinais e aos endireitas do campo. Passou os seus últimos meses na companhia da sua mulher, nos castelos que tanto amava: Anet, Chenonceau e, sobretudo, Vendôme, o ducado que tanto acarinhava e que tanto se esforçava por embelezar e arranjar. Viram-nos por vezes em Montoire, onde possuía uma pequena casinha onde se sentia bem e que o repousava dos faustos das outras residências. O grande pecador penitenciava-se e encontrava um pouco de calma ao pé da sua fiel esposa que nunca cessara de amá-lo e que, a pouco e pouco, o trazia para junto de Deus.

Ao sentir uma súbita melhoria nos finais de Setembro, que se devia ao remédio de um empírico de Montoire, fez-se conduzir a Paris, para ficar mais próximo daquelas grandes novidades que anunciavam a glória do seu filho mais novo, mas foi depressa apanhado pelas dores, tendo a sua agonia durado três semanas. Contudo, alguns dias antes de deixar este mundo, pediu a Sylvie que viesse visitá-lo. Ela acorreu sem qualquer hesitação.

Ao entrar no quarto suntuoso que vira tantas vezes durante a infância, ela sentiu-se sufocada pelo terrível cheiro da doença, mal combatido pelo do incenso que se queimava, na esperança que esse bálsamo das almas o fosse também para o corpo. Estava presente a duquesa Françoise, acompanhada por um capuchinho que rezava aos pés da cama. As duas mulheres abraçaram-se com o calor de toda a ternura que os antigos laços consolidam e depois Mme. de Vendôme murmurou:

- Eu e o nosso querido padre vamos deixar-vos a sós. Ele deseja falar-vos...

E Sylvie ficou a sós com aquele homem que lhe permitira uma infância feliz mas que, depois, lhe fizera tanto mal... Aproximou-se da cama que devia ter sido acabada de fazer pois estava tão lisa e aprumada quanto um leito cerimonial e olhou para aquela forma macilenta, amarelada e quase careca, que fora um dos mais belos homens do seu tempo. Parecia estar a dormir e ela hesitou quanto ao que devia fazer. Subitamente os terríveis olhos azuis abriram-se num ápice e voltaram-se para ela:

- Afinal, sempre viestes...

- Parece-me evidente...

- Porquê? Para verdes, ao chegar a hora da morte, a que estado fica reduzido o vosso mais antigo inimigo?

- Não sois o meu mais velho inimigo. Esse é o homem que assassinou minha mãe. Lembrai-vos que fostes vós quem nessa altura, ao abrigo dos vossos castelos, me concedeu os meios para poder continuar a viver.

- Não fui eu, foi a duquesa...

- Mas aceitastes as decisões dela.

O esboço de um sorriso pairou nos seus lábios ressequidos.

- No fim de contas, talvez tenha tido algum mérito... Embora inicialmente não vos tivesse detestado, desconfiava de vós... sobretudo por causa desse amor obstinado que persistíeis em dedicar ao meu filho...

- Eu sei, já me dissestes... noutras circunstâncias.

- Não me esqueci. Estava convencido que o que desejáveis era, sobretudo, tornar-vos duquesa...

- A vida é estranha, não é verdade? Agora sou-o, sem nunca o ter querido ser.

- Julgo que foi o vosso casamento com um homem tão distinto que me abriu os olhos a vosso respeito. Sobretudo, depois de ele ter morrido às mãos do meu filho, tão pouco tempo depois que ele matasse também o cunhado. Receio que sejamos todos uns homens terríveis nesta família. Fiz-vos... muito mal...

- Não tanto quanto o teríeis desejado, pois nunca me haveis destruído... nem tão-pouco o amor que eu nunca deixei de ter por ele.

- Continuais a amá-lo?

- Sim... amá-lo-ei até ao fim... e, se Deus quiser, até no além!

O silêncio que se instalou foi logo quebrado pelo sopro ofegante do moribundo, à procura do seu ritmo respiratório.

- Acreditais-me se vos disser que fico muito... feliz... por isso? Agora tenho de vos dizer porque vos mandei chamar. Primeiro... foi para vos pedir que me perdoásseis... um perdão do tamanho dos meus remorsos, que são grandes. Depois... gostaria que zelásseis por François... Ele vai tornar-se almirante da França e conta com muitos inimigos que este alto cargo não irá acalmar, longe disso.

- Como seria possível? Ele percorre os oceanos a centenas de léguas de mim, exposto a todos os perigos representados pelos mares e pelos homens...

- Quando se está a morrer, o futuro revela-se-nos por vezes um pouco. Um grande amor possui um poder infinito... e sinto que um dia ele irá precisar do vosso... Prometeis-me?

Vencida pela emoção, Sylvie deixou-se cair de joelhos ao pé da cama.

- Juro-vos, monsenhor! Por ele, farei tudo o que puder...

- Perdoais-me?

- De todo o coração...

Depois, através dos soluços que a sacudiam, sentiu a mão de César que se pousava na sua testa, traçando lentamente o sinal da Cruz.

- Que Deus vos abençoe... como eu vos abençoo! Se ele quiser dar ouvidos ao pecador que sou, então rezarei por vós dois...

Ao contrário do que se poderia pensar, Luís XIV mostrou-se sinceramente entristecido pela morte daquele tio todo cheio de contrastes, por um lado loucamente destemido e calculista debochado e, contudo, profundamente cristão, com espetaculares provas de arrependimento mas, por outro lado, mostrando-se também generoso e compadecido com os revezes da fortuna dos pobres, tal como o era François, esse tio a quem chamava de “meu primo”. E, afinal, tratava-se também do último dos filhos de Henrique IV que ia regressar para junto do Pai. Por isso, e para surpresa geral, ordenou que as suas exéquias fossem as de um príncipe de sangue. Enquanto o corpo permaneceu no seu hotel de Vendôme, quatro arautos armados velaram aos quatro cantos do caixão, que o primeiro gentil-homem da Câmara aspergia regularmente de água benta. Dividida entre o orgulho e a dor, a duquesa rezava ao pé deste; Sylvie veio ajoelhar-se e recitar uma prece, não só na companhia de Perceval mas, também, de Jeannette e, até, de Corentin, que acorrera de Fontsomme para saudar, pela última vez, o príncipe que ambos tinham servido. Foi então que Sylvie ficou a saber que, no seu castelo da Picardie, o jovem Nabo retomava gosto pela vida, iniciando-se na arte e na cultura da jardinagem, o que, para Corentin, era uma ajuda considerável e sempre aprazível... Depois, juntamente com Jeannette e Perceval, os três partiram para Vendôme, onde iam ser celebrados os serviços fúnebres. Apenas se encontravam de luto o filho mais velho, Louis de Mercosur, que se tornava duque de Vendôme, e os seus dois filhos, Louis-Joseph e Philippe, de onze e dez anos, respectivamente. A esquadra de Beaufort continuava guerreando algures, ao largo das costas africanas...

Depois de César ter sido enclausurado, em grande pompa, no jazigo do colégio de S. Jorge, foi profundamente comovida que Sylvie teve de se despedir daquela que lhe servira de mãe: Françoise de Vendôme queria ficar, para sempre, ao pé daquele que amara, esse homem que lhe dera filhos tão belos e que, apesar da sua vida de dissipação, conservara sempre uma terna admiração por ela. Iria morar no Convento do Calvário onde, desde já há algum tempo mandara que lhe construíssem uma habitação particular: era lá que tencionava passar o resto dos seus dias, envergando o traje religioso...

Finalmente, antes de voltar a Paris, Sylvie quis fazer uma última peregrinação: subir sozinha até ao alto daquela torre de Poitiers, para onde tanto olhara outrora, chorando de raiva quando as suas pequeninas pernas de quatro anos lhe recusavam a ascensão. Nessa altura jurara que um dia haveria de lá subir...

Agora era coisa feita e permaneceu ali contemplando, por entre o vento agreste de Novembro, a cidade e o campo que se estendiam a seus pés, sabendo que não voltaria a vê-los. Sentia no seu íntimo que ali não tinha mais nada a fazer: agora era duquesa, com o mesmo título que François, e a torre fora vencida para sempre, mas isso não a tornara mais feliz... Hoje enterrava a sua infância com o duque César; amanhã, com a Rainha-Mãe, despedir-se-ia de uma adolescência muito curta, que agora lastimava que não tivesse durado mais tempo.

Pois Ana de Áustria também se encaminhava para uma morte que lhe parecia cada vez mais desejável. Deitada no seu leito de seda e veludo azul bordados a ouro, com o cimo de cada coluna coroado por um ramo de plumas azuis, “cor de aurora” e por penachos brancos, ela suportava um martírio, cujas dores o ópio com que os médicos a tratavam se revelava cada vez menos capaz de eliminar. Decadência suprema para esta bela mulher, cuidadosa com a sua aparência, e sempre de gostos muito requintados: o seio gangrenado exalava um cheiro horrível que as suas damas se esforçavam por afastar, abanando leques em pele espanhola e carregados de perfume.

Esta longa tortura durou até Janeiro. Certa manhã, ao levantar uma das suas lindas mãos para poder vê-la, murmurou:

- A minha mão está inchada... Já é tempo de partir...

Efetivamente, já não era sem tempo. Desenrolou-se então o longo cerimonial que acompanha os reis até à última hora e que começava por uma confissão longa e minuciosa...

Nessa manhã, na altura em que a sua carruagem a deixava à porta do Louvre, Mme. de Fontsomme viu a marechal de Schomberg descendo de um coche demasiado sujo de lama e de neve para não ter vindo diretamente do campo. Ela correu ao seu encontro com uma exclamação de alegria...

- Marie, como fizestes para chegar tão depressa? - perguntou ao beijá-la. - Hoje, logo de manhã cedo, despachei um correio até Nanteuil para vos pedir que vos apressásseis caso quisésseis encontrar a nossa Rainha ainda com vida...

- Mlle. de Scudéry, que me escreve frequentemente aliás, nem só a mim: ela deve escrever um volume por dia... fez saber ontem que Sua Majestade ia morrer. Ela tem muitas vezes tendência para exagerar as coisas mas, desta vez, a sua carta soava a verdadeira e eu parti logo na noite passada...

- Como estou feliz, minha amiga! É claro que ireis ficar em minha casa. Dado que a minha equipagem está aqui, podeis dizer à vossa para fechar tudo e retirar-se daqui...

Atravessaram de braço dado o grande pátio que uma rajada de neve esbranquiçara durante a noite e quando chegaram à Grande Escadaria avistaram um homem já de certa idade, que caminhava à frente delas, subindo as escadas muito devagar, apoiado numa cana, e que era saudado à passagem por alguns daqueles que ali tinham acorrido visitar a Rainha-Mãe. A antiga Marie de Hautefort depressa o reconheceu e fê-lo parar:

- La Porte? Mas que prazer inesperado! Dizia-se que havíeis jurado não mais deixar Saumur...

Subitamente, fez-se luz naquela cara envelhecida, onde se vincara o cansaço de longos anos de serviço, primeiro ao pé de Ana de Áustria, de quem fora o “ponto de apoio” e o confidente e, depois, do jovem Luís XIV, de quem ficara encarregue como criado de quarto:

- Senhora marechal de Schomberg! Senhora duquesa de Fontsomme! Que feliz me sinto... Contava encontrar-vos por cá! Nem vos vou perguntar como vai a vossa saúde: estais tão parecidas com a imagem que guardei de vós!...

- Mesmo assim envelhecemos um pouco - disse Sylvie. - Mas não é difícil adivinhar o motivo da vossa presença: quereis vê-la uma última vez.

- Sim, quero. Como provavelmente sabeis, assim que me afastaram da Corte por ter ousado dizer o que pensava ao cardeal Mazarin, vendi o meu posto de criado de quarto e afastei-me para ir viver num pequeno domínio que possuo no Loire. Chegaram-me aos ouvidos os ruídos da morte próxima daquela que foi sempre a minha verdadeira senhora. E quis vir pela última vez homenageá-la com toda a minha dedicação e fidelidade... Depois regressarei à minha terra, para não mais de lá sair.

- Pois bem, então vamos todos saudá-la - disse Mme. de Schomberg, com voz comovida. - Unidos uns aos outros como o éramos na época em que só vivíamos para ela e para a sua felicidade...

Obviamente havia muita gente nos aposentos em que desta vez se falava excepcionalmente em voz baixa. O trio encontrou d’Artagnan no Grande Gabinete.

- O Rei está cá? - perguntou-lhe Sylvie.

- Ainda não, mas não deve tardar. Vim por iniciativa própria, para prestar uma última homenagem enquanto é tempo. Quereis ter a amabilidade de entrar comigo? A Rainha está aqui e Monsieur também. Madame acaba de ter um ligeiro desfalecimento.

Após a saída do confessor, no grande quarto guarnecido de móveis dourados, de madeiras preciosas e generosamente perfumado, Ana de Áustria descansava quase serenamente, no meio da brancura dos lençóis de cambraia e linho que haviam sido mudados logo de manhã cedo e em cima dos quais se colocara saquinhos aromáticos. Filipe estava ao lado dela, apertando uma das suas mãos de encontro ao coração, o rosto banhado em lágrimas. Do outro lado da cama, a sua nora rezava.

Por detrás do capitão dos mosqueteiros, cujos ombros largos abriam facilmente uma passagem, os três visitantes chegaram ao pé da balaustrada que impedia o acesso imediato ao leito real. Aí os dois homens inclinaram-se num conjunto perfeito com as mulheres que se dobravam em rasgadas reverências. A moribunda, que acabara de abrir os olhos, apercebeu-se da presença deles. Ao ver assim reunidos os rostos das testemunhas dos seus anos de juventude e dos seus belos amores, o seu rosto adquiriu uma expressão de surpresa feliz. Sorriu-lhes, esboçando o gesto de estender a mão na direção deles, soerguendo-se ligeiramente nos travesseiros, como que para chamá-los a ela... mas após o sorriso, soltou um suspiro de dor. Os olhos fecharam-se e ela deixou deslizar suavemente a mão e as costas.

Uma voz anunciou: “O Rei!” e o grupo retirou-se. Os outros presentes foram até ao Grande Gabinete: antes de receber a comunhão, a Rainha-Mãe desejava falar em privado com os filhos, um de cada vez. O quarto esvaziou-se. O Rei ficou a sós com a mãe...

A conversa durou tanto tempo que, se não chegou a provocar inquietação chegou, pelo menos, a despertar a curiosidade. O marechal de Gramont, que Sylvie deixara de ver depois do caso Fouquet e que parecia desunhar-se para evitar encontrá-la, aproximou-se com um ar tão à vontade como se tivesse estado com ela ainda na véspera.

- Duquesa, vós que estais nos segredos dos deuses, por acaso sabeis o que a Rainha-Mãe terá para dizer ao filho para demorar tanto tempo?

- Senhor, sou dama da jovem Rainha e não da Rainha-Mãe. Para mais... tudo o que tendes a fazer... é colocar a pergunta ao Rei! Haveis-vos dado a tanto trabalho para vos tornar um dos seus íntimos, que ele vos deve bem esse serviço.

Ele olhou-a com um ar tosco e o seu grande nariz tornou-se de um tom arroxeado:

- Senhora, tratais-me muito mal. Esperava que o tempo...

- O tempo nada pode contra as amizades, senhor marechal. Proscrito, prisioneiro ou tudo o que quiserdes, M. Fouquet continuará a ser um dos meus amigos.

- E eu? Também não era vosso amigo?

- Já lá vai muito tempo e espanta-me que ainda vos recordeis... Que eu saiba não fui eu que pedi que vos afastásseis; não terá sido antes obra de dama “Prudência”, vossa fiel conselheira, e do seu primo, um tal “Mestre da Perfeita Cortesia”?...

- Irra! Quem poderia julgar-vos tão cruel? Haveis esquecido...

Sylvie pegou no seu leque e começou a abaná-lo como se se sentisse incomodada por um mau cheiro.

- Se bem que por vezes perdoe, nunca me esqueço de nada: nem do bem, nem do mal. Desejáveis que eu me tivesse tornado vossa amante e agora que a marechal vos deixou, imaginais talvez desposar-me, não?

- Mas, eu...

- Por favor, fiquemos por aqui! Permiti que vos transmita os meus pêsames e que cada qual prossiga o seu caminho que, espero, seja o mais afastado possível um do outro!

Sufocado por esta filípica que trouxera um sorriso aos lábios de Mme. de Schomberg, o marechal talvez tivesse ainda encontrado algo para dizer se o Rei não tivesse aparecido subitamente à entrada do quarto. Além das lágrimas que lhe deslizavam pelo rosto, estava mortalmente pálido. Parecia-se tanto com um fantasma, que caiu um profundo silêncio. Deu dois passos, apoiado na bengala onde os nós dos dedos se tinham esbranquiçado, voltou-se como um autômato na direção de Monsieur que o olhava sem ousar abrir a boca, pareceu fazer um grande esforço para se controlar e, depois, articulou:

- Meu irmão... ide ver a nossa mãe! Agora é de vós que ela se quer despedir...

Depois, prosseguiu o caminho, de regresso aos seus aposentos, enquanto esperava que fossem dados os últimos sacramentos à moribunda.

Enquanto caminhava lentamente por entre a dupla fileira das reverências e das saudações da corte, os seus olhos detiveram-se no pequeno grupo formado por La Porte e pelas duas mulheres. Parou diante deles. Os seus olhos tornaram-se então incrivelmente duros:

- Senhora marechal de Schomberg? - perguntou altivamente. - Não vos temos visto muito nestes últimos tempos. O que vos levou a vir cá hoje?

Um relâmpago de cólera passou pelos olhos azuis daquela que chamavam outrora a “Aurora” e que ainda era merecedora dessa alcunha.

- O amor e a fidelidade que sempre dediquei a Sua Majestade, a Rainha-Mãe. Desejo vê-la...

- Ela chamou-vos?

- Não, Senhor!

- Nesse caso, ficareis, decerto, muito melhor no vosso belo domínio em Nanteuil-le-Hardouin...

Antes que Marie, estarrecida, encontrasse algo a responder, Luís XIV atacou Sylvie.

- Temos que falar convosco, senhora duquesa de Fontsomme. Logo que a nossa augusta mãe, a Rainha, tiver recebido Nosso Senhor e os seus consolos, apresentai-vos nos meus aposentos! Quanto a vós, senhor de La Porte, na vossa idade não é nada conveniente percorrer uma estrada tão longa em pleno Inverno. Julgo que estejais com pressa de regressar a Saumur...

- Senhor!

- Já disse: Saumur!

E continuou, direito como um autômato no seu fato de tecido brocado e com os seus saltos altos destinados a aumentar-lhe a altura, sem se preocupar mais com aqueles que acabara de esmagar nalguns escassos segundos. À volta deles cresceu um burburinho, enquanto as pessoas já se afastavam daquela gente caída em desgraça como se agora eles fossem alguns doentes contagiosos.

Do alto de toda a sua estatura, Marie de Schomberg sorriu com desprezo para os cortesãos e depois deu o braço a Sylvie:

- Minha cara, vamo-nos! Não temos mais nada a fazer aqui. La Porte, vinde também conosco!

- Marie, ide ambos esperar-me em minha casa! - pediu Sylvie. - Tenho de ficar, pois o Rei concedeu-me a graça de me receber daqui a pouco. Tomai a minha carruagem e enviai-mo-la de volta.

- Não vos deixarei sozinha neste palácio.

Ouviu-se então uma voz grave:

- Ela não ficará sozinha - disse d’Artagnan, que reaparecera e que nada perdera da cena. - Ficarei aqui a acompanhar a duquesa e, na devida altura, escoltá-la-ei até junto do Rei.

De olhar brilhante e bigode altaneiro, estendeu-lhe a mão para que ela a tomasse e assim saíram ambos do Grande Gabinete; no entanto, foi-lhes vedado o caminho nas antecâmaras: a Rainha Maria Teresa estava a atravessar os aposentos para ir receber, à porta do palácio, o Santo Sacramento que tinham trazido de Saint-Germain-l’Auxerrois. Todo o Louvre parou, mantendo-se suspenso num digno respeito, até que Deus chegasse à cabeceira da moribunda. O Rei regressara para junto de sua mãe. Esperou-se muito tempo.

Finalmente, das profundezas dos aposentos, retiniu o triste som do pequeno sino que era agitado perante a custódia dourada, seguido pelo bater dos tacões dos guardas que apresentavam armas. A procissão da Rainha, que a seguia rezando, transpôs as antecâmaras, chegou à Grande Escadaria e desapareceu, mergulhando nas suas profundezas. Depois, o Rei regressou aos seus aposentos. D’Artagnan voltou a oferecer a mão.

- Vinde, senhora!

Ela resistiu-lhe:

- Por favor, meu amigo! Não tenho a mínima dúvida que me espera uma desgraça. Não ireis comprometer-vos, vós também, ao decidir acompanhar-me! O Rei poderá não vos perdoar.

- Senhora, ele conhece-me e sabe que a minha fidelidade começa nele, mas estende-se até àqueles que am... que são meus amigos. Além disso, se ele não compreendesse, seria eu quem ficaria desiludido.

O olhar que ela lhe lançou estava pleno de admiração mas, também, de gratidão! Meu Deus, quão bom era encontrar aquele homem naquele momento difícil, aquele bravo por entre todos os bravos, oferecendo tão generosamente um abrigo contra a tempestade que acabara de desabar sobre Marie e La Porte, e que não deixaria também de se abater sobre ela, caso a causa fosse a que tanto receava adivinhar.

Ao acercar-se do Rei, d’Artagnan, que não largara a mão de Sylvie, confiou-a ao camareiro de serviço, fazendo-lhe bem entender que ficaria ali o tempo que fosse necessário para levá-la ele próprio de volta até à sua carruagem, ou até junto à Rainha, consoante o desfecho da audiência.

- E não me venhais dizer que devo agir de outro modo! - acrescentou, voltando-se para Sylvie. - Ignoro o que Sua Majestade pretende de vós, mas se imagina que tem algo a criticar-vos, então está enganado!

Na altura em que iam introduzir Sylvie no gabinete real, Colbert aprestava-se a sair. Saudou-a com a boa educação exigível, mas ela não gostou do brilho sardônico que cintilava nos seus olhos pretos, tal como lhe desagradou o esgar de contentamento que o seu bigode mal dissimulava, e sentiu que o coração se lhe apertava ainda mais. Para que ele estivesse tão contente, ela devia esperar por muito más novidades.

- A senhora duquesa de Fontsomme! - anunciou o camareiro. Porém, Luís XIV não se voltou. Estava de pé diante do grande retrato de seu pai, pintado por Philippe de Champaigne, enquadrado por dois monumentais candelabros providos de grandes velas, cujas chamas, ao movimentarem-se, pareciam animar a efígie de Luís XIII e ele contemplava-a como se o fizesse pela primeira vez. Só o ruído do fogo que ardia na chaminé de pórfiro parecia animar um silêncio que Sylvie, do fundo da sua reverência, da qual não ousava soerguer-se, e que depressa achou insuportável; contudo, era-lhe proibido ser a primeira a falar.

Começavam a doer-lhe os joelhos, quando o Rei resolveu dar um giro completo, enquanto que, com uma das mãos atrás das costas e com a outra retorcendo as rendas do seu lenço de pintas de Malines, olhava para a mulher que quase se prostrara diante dele.

- De pé, senhora!

A voz soou seca, de tom cortante. Não a convidou a sentar-se mas, mesmo assim, foi um alívio poder regressar à posição vertical. Ela inspirou profunda e discretamente à espera que ele se dignasse a falar, o que não se fez esperar.

Lentamente, Luís XIV regressou ao seu lugar atrás da grande mesa onde reinava uma impressionante desordem para um homem que todos sabiam trabalhar que nem um carrasco. Subitamente, atacou:

- Senhora, tomamos a resolução de vos afastar do círculo de convivência da Rainha, onde parece ter havido engano ao solicitar a vossa presença... O convívio com uma jovem soberana deve ser prioritariamente concedido a mulheres de alto sentido moral...

Ao ouvir aquele discurso ofensivo, um fluxo de sangue afluiu ao rosto da jovem, dentro da qual despertou subitamente a Sylvie de outrora, impulsiva e irritável. Contudo, conseguiu dominar-se:

- Posso perguntar ao Rei que mal encontra na minha... moralidade?

- Enquanto o vosso esposo foi vivo haveis sido a amante do meu primo Beaufort e sem dúvida que ainda o sois. Ficamos há pouco a saber, para nossa grande consternação, que, para vos desembaraçardes dele, haveis levado o vosso amante a matá-lo em duelo, a fim de que o infeliz não pudesse descobrir que havíeis engravidado de um outro...

- É falso!

Levada pela indignação, ela gritara o seu protesto. As sobrancelhas franzidas de Luís XIV franziram-se mais ainda:

- Não vos esqueçais de quem tendes diante de vós e abandonai esses modos de regateira que até assentam muito bem na concubina do Rei do Mercado[38]...

De corada, Sylvie passou a extremamente pálida. Olhou para aquele jovem coroado que amara, a quem atribuíra todas as qualidades e no qual ia descobrindo dia a dia um coração cada vez mais ressequido. Naquela altura recordava-lhe estranhamente César de Vendôme quando este, animado por uma violência e uma crueldade incríveis, tentara convencer a criança, que ela ainda era, a praticar um crime. Que a enforcassem se o sangue dos d’Estree, vingativo e impiedoso, não corria naquelas veias! Ela não ignorava quem poderia ser o autor daquele relatório venenoso e sujo mas, subitamente, desdenhou defender-se:

- Dizer que houve um tempo em que o Rei dizia que me amava e acrescentava que esperava que essa afeição, de que tanto me orgulhava, durasse para sempre...

Encolhendo os ombros, recuou dois passos e inclinou-se numa rasgada mas breve reverência e, depois, voltou-se decididamente para a saída. Ele paralisou-a ao clamar:

- Alto! Partireis quando eu assim o entender! Ainda não acabei de falar convosco!

Enquanto falava, ela reparou que ele abandonara o uso da primeira pessoa do plural, mas não conseguiu tirar qualquer conclusão a esse respeito. Talvez fosse afinal de bom augúrio, pois Luís XIV foi sentar-se na sua alta poltrona coberta por uma tapeçaria preciosa e ergueu o cotovelo na dobra do assento, assentando o rosto no punho fechado:

- Pegai no banco que aí vedes e sentai-vos! Não sois duquesa? Tendes todo o direito!

Sem lhe obedecer, ela permitiu-se um sorriso desdenhoso:

- O Rei pensa que quando se está sentado no banco, essa é uma melhor posição para se ser insultado? Prefiro ficar de pé! Este assento assemelha-se muito àquele a que têm direito os nobres quando são julgados.

- Mas, senhora duquesa de Fontsomme, estais a ser julgada, com a diferença de que eu sou o vosso único juiz. E ordeno-vos que vos senteis!

Ela obedeceu, para não o irritar ainda mais, pensando sobretudo nos filhos, cujo futuro devia esforçar-se por não comprometer.

- Agora contai-me tudo! - ordenou.

- Mas contar-vos o quê, Senhor?

- Os vossos amores com M. de Beaufort. Quero saber tudo! E não alegueis não sei que segredo! A partir do momento em que se fala de segredos, eles deixam de sê-lo. Mas, antes de mais, uma pergunta: o vosso filho é dele?

- É.

Ele fungou ligeiramente e exibiu um sorriso fino que significava “eu bem tinha a certeza”. Contudo, Sylvie voltou à carga com uma dignidade que impôs respeito ao jovem autocrata:

- Ele é fruto de um amor de infância... e de uma hora de abandono. Uma só! É a isso que se reduz os meus “loucos” amores com François de Beaufort, que depois deixei de ver durante dez anos...

- Continuai! - repetiu o soberano, desta vez com mais brandura. E Sylvie contou...

Ele escutou-a sem interrompê-la e ela julgou discernir uma maior doçura na expressão do seu rosto. Quando estava prestes a findar a sua narrativa, bateram ao de leve na pequena porta contígua ao quarto real e Colbert entrou, saudou e, de espinha reclinada, veio depositar um papel à frente do Rei antes de se retirar. Luís XIV deu-lhe um relance de olhos e depois afastou-o, levantando-se e readquirindo subitamente a sua ameaçadora impassibilidade:

- Admito que haveis sido vítima de certas circunstâncias das quais não gosto ter de me recordar. É em memôria dessas circunstâncias... e em nome do afeto que me ligava outrora a vós, que os vossos filhos não serão obrigados a acarretar com o peso do vosso erro. O vosso filho conservará o nome, o título e as prerrogativas que lhe são conhecidas. Quanto a vossa filha, visto que essa é mesmo filha do duque, nada se opõe a que faça um bom casamento... até trataremos disso. No que vos diz respeito, desejo que vos afasteis da Corte e que regresseis às vossas terras da Picardie. Estou muito preocupado em rodear a Rainha apenas de mulheres de virtude inatacável...

Apesar da solenidade do momento, ela esteve prestes a desatar a rir, não conseguindo deixar escapar:

- Certamente, e nunca seria demais elogiar a da senhora condessa de Soissons.

Sentiu uma alegria maligna ao ver que ele acusava o golpe: as asas do nariz tinham empalidecido e os dedos deixaram escapar a pena de ganso com a qual brincavam desde há minutos.

- Não vos sabia tão mexeriqueira - resmungou.

- Eu também não, Senhor, e lamento-o profundamente mas, às vezes, há certas comparações que se impõem. Peço as devidas desculpas ao Rei. Posso retirar-me?

- Não, senhora! - respondeu, com impaciência. Ainda não terminei convosco e poderia até, em último caso, esquecer-me de tudo aquilo que acabásteis de me contar se não tivesse ainda de vos acusar daquilo que considero como um verdadeiro ato de rebelião.

- Um ato de rebelião? Eu?

- Sim, vós! No decurso de uma circunstância recente e penosa, tinha depositado em vós toda a minha confiança e creio ter-vos facultado uma prova tangível disso ao confiar-vos uma certa missão...

- Não me recordo de ter sido encarregue de qualquer missão - respondeu Sylvie, com os olhos pregados nos de Luís XIV.

Eis uma atitude que eu elogiaria sem reservas, caso não tivésseis tirado das mãos da minha justiça esse miserável escravo preto, num propósito cujos contornos me parecem perigosos...

- Justiça, Senhor? Esse infeliz, refugiado numa das salas desertas do Velho Louvre, escapou milagrosamente a espadachins encarregues de matá-lo. Procurou refúgio em minha casa...

- E porquê, logo aí?

- Talvez porque sempre o tratei como a um ser humano e não como a um brinquedo desprovido de alma. A minha porta nunca ficou fechada para quem vem pedir auxílio. Foi Mme. de Vendôme que me educou. Foi graças a ela e ao senhor Vincent que aprendi a caridade...

Ao ouvir evocar o nome do velho padre que regressara para junto de Deus e cuja aura caritativa impressionara outrora a sua juventude, Luís XIV estremeceu e, como se obedecesse a um mandamento superior, o tom da sua voz suavizou-se:

- Prouvera a Deus, senhora, que eu nunca venha a criticar alguém que se tenha mostrado compadecido do infortúnio de outrem, mas este rapaz cometeu um crime de uma extrema gravidade. Não pode ficar vivo para disso se vir a gabar um belo dia.

- Senhor, ele ainda é uma criança...

- Uma criança que comete um crime de adulto deixa de ser criança... Ele tem de desaparecer, bem como qualquer vestígio daquilo que sabeis.

- Senhor! - exclamou Sylvie, toda angustiada - O Rei não vai...

- Voltar-se contra a pequena filha? Senhora, não sou um monstro, mas acaso haveis guardado alguma lembrança da vossa viagem para fora de Paris, ficai apenas a saber que a criança já não se encontra onde a haveis deixado. Agora retirai-vos, senhora, e tratai de regressar o mais depressa possível às vossas belas terras de Fontsomme. Muito lindas, ao que me disseram...

- O Rei expulsa-me a mim - disse Sylvie com amargura tal - como expulsa Marie de Hautefort e Pierre de La Porte, precisamente aqueles que dedicaram todas as suas vidas, por amor e fidelidade, a sua mãe...

- Não estou a expulsar ninguém. Quero apenas, no alvorecer de um novo reino, varrer os vestígios do antigo. Agora podeis ir-vos, senhora duquesa! Darei os vossos adeuses à Rainha... ah, só mais uma palavra: a menos que ouça de novo dizer algo de desagradável a vosso respeito, ninguém poderá incomodar a vossa pessoa ou tocar nos vossos bens. Pensai nos vossos filhos!

Apesar da cólera e da indignação que lhe despedaçavam o coração, a reverência “de retirada” foi um modelo de graça e de grande dignidade.

- Não tenho dúvidas de que, doravante, o Rei saberá rodear-se dos servidores que aprazem ao seu coração... ou antes, que se coadunam com os seus gostos.

- Quereis dizer com isso que sou desprovido de coração? - barafustou o monarca. - Acedendo ao pedido de minha mãe vou chamar de volta os Navailles...

- O defunto cardeal de Richelieu pensava que esse órgão nunca devia interferir na governação de um Estado. Pelos vistos, Vossa Majestade tem todas as chances de poder tornar-se um grande Rei...

Furioso, Luís XIV esqueceu a majestosidade que se impunha e correu para a porta, que ele próprio abriu, a fim de intimar a insolente a sair, mas, à entrada, deparou com d’Artagnan, e foi nele que descarregou a sua ira:

- Que estais aqui a fazer? Não vos chamei.

- É verdade, Senhor, mas trouxe cá a senhora duquesa de Fontsomme e estou à sua espera para levá-la onde ela bem desejar.

- O Rei é quem decide para onde devem ir os seus servidores. E se vos ordenássemos que a levásseis à Bastilha?

- Nesse caso teria a honra de pedir ao Rei que confiasse essa vilã missão a outra pessoa e eu faria tudo para que isso não pudesse acontecer - respondeu o mosqueteiro, sem se descompor. - A Bastilha não é o local apropriado para uma dama desta classe e, até agora, o Rei nunca enviou qualquer inocente para lá...

- Ignorais o que é um ato de rebelião?

- Não, Senhor... Trata-se de simples cortesia da minha parte, a que se acresce aquilo que era outrora o dever de um cavaleiro: proteger os fracos dos caminhos traiçoeiros e dos animais nocivos. As ruas de Paris não são seguras e o Louvre está cheio de feras sempre dispostas a esquartejar a presa que se lhes abandona. Diria, por fim, que se trata também de uma respeitosa amizade!

Os dois olhares, o azul e o escuro, tão cintilantes um quanto o outro, cruzaram-se como duas lâminas de espada. Foi o Rei que desviou o seu.

- Malvada cabeça casmurra! Agi como vos aprouver! Senhora, adeus...!

A porta real bateu o mais democraticamente possível, como se se tratasse da de um simples particular furioso. Com um sorriso gentil, o capitão dos mosqueteiros estendeu logo a mão à sua companheira:

- Não me ofereceis um copo de vinho quente com canela? Nestes tempos gelados é o melhor remédio que conheço contra os resfriados do coração.

- Ofereço-vos tudo quanto quiserdes! Nunca agradecerei quanto baste ao Céu, por me ter enviado um tal amigo.

E foi deste modo que Sylvie deixou o Louvre, acompanhada por d’Artagnan e saudada, graças a ele, por todos os soldados da guarda, vinte e nove anos, dia por dia, depois de lá ter entrado no coche da duquesa de Vendôme. Desta vez era para não mais regressar.

Chegados ao pátio, o capitão pediu o seu cavalo, conduziu Sylvie até à carruagem e escoltou-a de volta a casa, pelas ruas sombrias da noite. Ao chegar e ao avistar as duas viaturas que esperavam paradas, preferiu retirar-se:

- O vinho quente ficará para outra ocasião. Tendes visitas e é melhor que eu regresse ao Louvre.

- Sinto-me triste ao pensar que não vos voltarei a ver - suspirou Sylvie.

- E porquê, por favor?

- Amanhã parto para Fontsomme, para de lá não mais sair, e não vos quero colocar numa situação embaraçosa em relação ao Rei.

D’Artagnan sorriu ferozmente, o que realçou o brilho dos dentes:

- Este novato terá de acabar por perceber que, se quiser ter bons servidores, terá de deixá-los livres de escolherem os seus próprios afetos. Irei ver-vos e dar-vos-ei todas as novidades. E será um prazer que farei a mim próprio porque... não consigo imaginar existência da qual estaríeis permanentemente ausente.

Comovida, ela estendeu-lhe uma mão na qual ele pousou longamente os lábios e, depois, pulando para a sela com a mesma destreza de há vinte anos, o mosqueteiro partiu sem olhar para trás...

A um canto da chaminé da biblioteca, Sylvie encontrou Marie de Schomberg, Perceval e La Porte, que a esperavam bebendo daquele vinho quente com canela ao qual d’Artagnan renunciara. Quando chegou ao pé deles, os três rostos voltaram-se para ela:

- Então? - perguntou a Marechal.

- Exilada para as minhas terras. Tal como vós... e vós também - acrescentou olhando respectivamente para a antiga açafata e para o mais fiel servidor de Ana de Áustria.

Este último levantou-se e deu duas ou três voltas pelo quarto:

- Apostava a minha cabeça em como tenho razão. Para lhe dar a absolvição e antes que ela recebesse o corpo do Cristo, o confessor deve ter exigido à Rainha-Mãe que ela contasse a verdade ao filho mais velho.

- E eu pretendo que isso é impossível! - exclamou Marie. - Mesmo que seja proferido em confissão, um segredo de Estado não é feito para ser confiado aos ouvidos do primeiro padre que apareça!

- Monsenhor d’Auch não é propriamente o primeiro padre que por aí apareceu e, mesmo que o fosse, a violação do segredo da confissão acarreta a danação - disse Perceval. - Isto dito, nada impede que o adultério seja considerado um grave pecado: a Rainha tinha de aliviar a sua própria consciência. Eu sou da mesma opinião da de La Porte: julgo que, agora, o Rei sabe tudo. E vós correis perigo... Não fostes cúmplices dos amores da Rainha com Beaufort?

- Ela nunca teria citado os nossos nomes! - exclamou veementemente Marie...

- Não por sua própria iniciativa - reatou La Porte - mas ele deve ter exigido que ela lhe revelasse os daqueles que estão ao corrente. Suponho, no entanto, que antes de revelar os nossos nomes ao Rei, ela deve tê-lo obrigado a jurar que não nos faria qualquer mal. Senão já estaríamos a esta hora na Bastilha. Ele contenta-se em exilar-nos.

- La Porte tem razão - aprovou Perceval. - Quis o acaso que, quando estáveis os três reunidos, fostes logo os primeiros que o Rei viu ao sair do quarto, depois de ter ficado a saber que se lhe corre nas veias o sangue de Henrique IV, isso já não acontece quanto ao de Luís XIII. É uma revelação terrível para um jovem daqueles, tão orgulhoso, mesmo que a mãe lhe tenha assegurado que o seu irmão Filipe nunca haveria de saber nada. Aquela velha raposa do Mazarin sabia o que estava a fazer quando ele e a Rainha faziam todos os possíveis para estimular os gostos femininos do pequeno príncipe a fim que ele nunca pudesse tornar-se um outro Gaston d’Orleans. Luís é o Rei e pretende continuar a sê-lo. É perfeitamente normal que se queira livrar dos rostos que só lhe recordarão a terrível verdade.

- E julgais que Mazarin estava ao corrente? - perguntou Mme. de Schornberg.

- Ela nunca lhe escondeu nada - disse La Porte com amargura - não fosse ele o seu esposo secreto...

Ouviu-se então a voz de Sylvie, que se calara desde há um tempo:

- E Beaufort? Que lhe irá acontecer no meio disto tudo?

A evocação do nome engendrou um silêncio em que o receio se misturava à ansiedade. Todos sabiam que Luís XIV nunca gostara do mais turbulento dos Vendôme e nem ousavam sequer imaginar quais seriam os seus atuais sentimentos agora que estava ao corrente de tudo... Novamente, foi Perceval quem cortou o silêncio:

- Sua Alteza Real não poderia cometer um parricídio que o danaria... Mas tendes razão, Sylvie, ao pensar nele. Vou esperá-lo a Toulon: ele tem de ser avisado de viva voz. Seria muito perigoso enviar uma simples carta, pois poderia cair em quaisquer mãos. Irei ter convosco a Fontsomme... pois ireis decerto partir, não?

- Já amanhã. Esta residência e a de Conflans vão ficar adormecidas até que o meu filho as acorde...

Na manhã seguinte, dia 26 de janeiro de 1666, Ana de Áustria faleceu alguns minutos antes das cinco da manhã, premindo contra os lábios o crucifixo que sempre conservara no alto da cama. Tal como pedira, vestiram-na com o fato de burel dos Terciários de S. Francisco, antes de conduzir o corpo até à necrópole real de Saint-Denis, onde ficaria junto ao esposo...

Todos os sinos de Paris tocavam a finados quando três carruagens deixaram a rue Quincampoix levando, respectivamente, Mme. de Schomberg, La Porte e Sylvie. Quanto a Perceval optara corajosamente pela “cadeirinha” dos correios, apesar da lastimável recordação que esta lhe deixara na memória.

Antes de abandonar o seu hotel, Mme. de Fontsomme reuniu todo o pessoal para pô-lo ao corrente da sua nova situação e para deixar partir aqueles que o desejassem. Mas não houve nenhum abandono. Berquin e Javotte permaneceriam em Paris juntamente com alguns criados, de forma a assegurarem a manutenção da casa. Todos os outros, inclusive o novo cozinheiro, optaram pelo castelo ducal:

- Lá por que vai residir doravante no campo, não há qualquer motivo para que a senhora duquesa tenha de se alimentar mal - disse Lamy. - Além disso, lá estarei à-vontade para redigir o tratado sobre a preparação de pequenas peças de caça, que há tanto tempo me gira na cabeça...

Ao deixar Paris, a única coisa que Sylvie lastimava ter de deixar para trás era a sua linda residência em Conflans, que ela sempre amara tanto, e onde se sentia mais em sua casa do que em qualquer outro lado. Quanto ao resto, não se sentia particularmente ligada ao hotel parisiense e, ainda menos, àquela Corte polvilhada de obstáculos e de ambições sórdidas, apesar da piedosa afeição que lhe inspirava a pequena Rainha, mergulhada em profunda tristeza e que agora ver-se-ia bem sozinha, privada de um apoio moral que mais ninguém lhe poderia oferecer.

Sylvie tinha razão ao recear que Maria Teresa viesse a ter um acréscimo de desgostos e, talvez, até, de isolamento. Mal a mãe acabara de fechar os olhos e já Luís XIV, com um cinismo perturbante, integrava a sua amante no número das damas de sua esposa: La Vallière deixava o Palácio Real e o meio de Madame, para se juntar ao das damas da Rainha. Assim o Rei poderia encontrá-la mais frequentemente.

Sylvie ficaria ao corrente desta notícia algumas semanas depois de incorrer em desgraça, através de uma carta escrita por Mme. de Montespan que, com digna coragem, testemunhava-lhe toda a sua amizade que era, de algum modo, inesperada e que se devia sem dúvida ao fato de ela ser a mãe de Marie, mas que deixava transparecer muito o tom altaneiro de Athénáis, que tinha uma certa tendência para considerar os Bourbons como gente de origem mais recente e, consequentemente, menos respeitável que os Mortemart: “Seria um prazer ensinar a certos homens e às suas concubinas o respeito que é devido às grandes damas e, mais particularmente, a uma Infanta.

Sylvie sorriu ao ler o dito espirituoso, mas ficou desolada com a história, pois ela revelava uma faceta ainda escondida daquele Rei de quem tanto gostara: o seu desprezo absoluto por tudo o que não lhe desse prazer e uma indiferença total, tanto para com o sofrimento dos outros, como para com o respeito pelo valor da vida humana.

Recebeu uma outra prova disso no dia seguinte ao da chegada da carta: Corentin, simultaneamente desolado e indignado, veio anunciar-lhe que o moleiro de Fontsomme acabara de descobrir Nabo, morto, estendido na rega do moinho, com o corpo preso nas ervas geladas. Não se afogara e ainda trazia ao pescoço a corda com a qual o enforcaram. Num detalhe sórdido, a sua cara fora marcada por um ferro em brasa que deixara estampada uma flor-de-lis, tal como se teria procedido para com um ladrão ou um escravo evadido e, depois, recapturado.

- Ontem não o vi - explicou Corentin - mas não fiquei lá muito preocupado por isso. Desde que chegou, ele gostava de passear pelos campos, fazia caminhadas solitárias pelos bosques...

- Com um tempo gélido como este e quando era oriundo de um país quente?

- Sim, é estranho, não é? Ficava fascinado por qualquer brancura e julgo que a neve e a geada ainda o fascinavam mais que o resto. Quem poderá ter feito uma coisa destas?

- Pensai, Corentin! A flor-de-lis chega como resposta: o Rei enviou alguns carrascos para cumprirem a sua vingança... Tenho de ir ver o nosso cura, para que se trate o mais depressa possível das exéquias, pois ele era batizado..

- E ele tem muito a fazer neste momento, cercado que está por toda a aldeia. Gritam todos a propósito de não sei que maldição e querem obrigá-lo a recusar a igreja e o cemitério.

- Vou para lá!

Depois de calçar umas botas forradas e de ter vestido uma grande capa que a encobria, Sylvie desceu até à aldeia, escoltada por Corentin e Jeannette; aí, na praça da igreja, havia um grande ajuntamento à volta do cura, o abade Fortier, e de uma escada na qual repousava o corpo do jovem negro, sob um saco de grãos. A chegada deles gerou um silêncio pleno de respeito: Sylvie sabia que todas aquelas pessoas gostavam dela mas, no entanto, temia um pouco o medo que lhes via refletido nos olhos. Aliás, nem lhe deram tempo para falar. Um certo Langlois, personagem que era considerada a mais importante da aldeia, avançou ao seu encontro, saudou e declarou:

- Senhora duquesa, salvo o devido respeito, tenho de vos informar, em nome de todos, que não queremos que esse negro seja enterrado entre os nossos mortos. Eles não mais poderiam descansar em paz.

- E por que não? Por causa da cor da sua pele?

- Há um pouco disso... mas também devido ao modo como morreu. Foi assassinado e não queremos que a sua alma errante nos venha atormentar.

- Ela só poderia atormentar o seu assassino e eu sei que não é nenhum de vós. Além disso, não vos esqueçais que Nabo era cristão, batizado com o nome de Vincent na capela do castelo de Saint-Germain e que não cometeu, nenhum crime.

- Isso, senhora duquesa, nem nós nem vós o podemos saber. Sobretudo vós, que nunca vedes mal em lado algum...

- Talvez, mas agora estou a vê-lo aqui, ao recusar-se a um cristão orações e sepultura cristãs...

- Era o que estava a tentar explicar-lhes, senhora duquesa - suspirou o abade Fortier - mas eles não queriam ouvir nada...

- Não podeis pedir-nos tal coisa! - insistiu Langlois, secundado, aliás, por um coro de vozes.

Ela reflectiu e, depois, ordenou:

- Nesse caso levai-o até ao castelo.

- Não podeis fazer uma coisa dessas, pois não? - protestou Langlois imediatamente. - Ides enterrá-lo na vossa capela, no meio dos nossos duques?

- Não, vou enterrá-lo na pequena ilha que fica no meio do lago. O abade Fortier deslocar-se-á amanhã até lá, para benzer um pedaço de terra. Entretanto, levem-no para o quarto que ocupava nos aposentos da criadagem.

Obedeceram-lhe em silêncio: o cadáver foi colocado em cima da respectiva cama, em volta da qual se acenderam velas e se colocou uma caneca com água benta, contendo um rebento de buxo proveniente da última Páscoa florida e no qual só tocaram Sylvie e os seus. Mas quando o abade Fortier chegou no dia seguinte para benzer a campa que não fora difícil escavar numa terra em que o degelo já principiara, o corpo de Nabo tinha desaparecido, levado, como por encanto, por pessoas que teriam passado pelos aposentos em questão sem deixar qualquer rasto e sem que ninguém as tivesse visto. Como não foi possível encontrá-lo, toda a aldeia clamou, em uníssono, que o Diabo viera buscá-lo e que agora era preciso entoar as rezas de purificação.

Sentindo-se aliviada, apesar de tudo, por aquela solução inesperada, pois os aldeões teriam muito bem podido reclamar que se ateasse fogo a tudo o que pertencera ao infeliz rapaz, a começar logo pelo quarto, Sylvie concedeu-lhes o que lhe pediam, mas mandou rezar as missas na sua capela privada, esforçando-se por esquecer aquele penoso acontecimento que lhe parecia carregado de ameaças e que dava uma ideia da amplitude da vindita real...

O futuro que Sylvie sempre almejara simples e transparente, carregava-se de nuvens sombrias, que eram ainda mais opressoras naquele grande castelo no qual se sentia tão só, apesar da presença da fiel Jeannette e da criadagem necessária...

Restava-lhe ir até ao fundo daquele sentimento de abandono que a assolava frequentemente às horas mais sombrias da noite, durante as quais, apesar das tisanas calmantes de Jeannette, era em vão que se esforçava por encontrar o sono. Ao sair da grande missa do segundo domingo de Fevereiro, realizada na igreja da aldeia depois do abade de Résigny se ter ido embora, era muito raro vê-la na capela do castelo e ao regressar a pé com Corentin, Jeannette e a maioria do seu pessoal, o grupo foi ultrapassado por uma “cadeirinha” dos correios, que lhe pôs o coração a bater e lhe apressou o passo. Finalmente, ia receber notícias! Só podia ser Perceval de Raguenel!

- Ficaria muito surpreendido - disse Corentin, que franzira o sobrolho - se fosse o senhor cavaleiro lá dentro. Teria mandado parar quando chegou ao pé de nós...

- Então, quem poderá ser?

Era Marie.

Uma Marie que, depois de ter deixado cair as peles com que se aconchegara, encontrava-se de pé, junto à chaminé do grande salão onde ardia um grande galho de árvore, chegando as suas mãos desprotegidas para junto daquela fonte de calor. Nem sequer se voltou quando a mãe entrou na sala tão vasta que quase a reduzia ao tamanho que tinha quando era pequena, como também não se mexeu quando esta exclamou, com uma alegria que dificilmente controlava:

- A minha pequena Marie! Regressastes...

Foi apenas quando Sylvie se chegou junto a ela, já pronta para abraçá-la, que ela se voltou, revelando-lhe um rosto mais frio que o mármore branco da chaminé:

- Vim dizer-vos adeus... e também que vos odeio! A partir de hoje não tendes mais filha nenhuma...

- Marie? O que significa isto?

- Significa que me haveis estragado a vida e que nunca vos perdoarei, haveis-me entendido? Nunca!

A última palavra foi cortada por um soluço.

Apesar da cólera que sentia ferver dentro dela devido a tanta injustiça, Sylvie esforçou-se por manter-se calma: os traços de tristeza que se viam refletidos naquele lindo rosto levavam-na mais a abrir os braços do que a brandir a fúria. Sem dúvida que François devia tê-la rejeitado e... meu Deus, já era tão bom que ela não tivesse executado a sua ameaça e que estivesse ali presente, bem viva...

- E se tentasses contar-me o que se passou? Porque deixastes o castelo de Sollies, onde tão bem te sentias, para percorrer todo este longo caminho em pleno Inverno? E sozinha, ainda por cima... Então não encontraste Perceval?

Desta vez Marie fez-lhe frente e cruzou os braços no peito, como para lhe barrar o acesso ao seu coração:

- Não, não o vi, tal como não vi o homem que queria desposar e que me havia dado a sua palavra...

Já não conseguia reter as lágrimas e Sylvie começou a sentir-se apavorada. Apesar dos laços de sangue que tinham sido revelados, seria possível que Luís XIV tivesse mandado assassinar Beaufort, tal como o fizera com o pobre Nabo?

- Por que não o viste? Que... que lhe aconteceu?

No meio do seu pranto, Marie exibiu um sorriso desdenhoso.

- Tranquilizai-vos! O vosso amante porta-se bem; pelo menos assim o suponho, pois quando me fui embora a frota ainda vogava pelo mar.

- Meu amante? Mas M. de Beaufort não o é!

- Talvez já não o seja, mas foi-lo certamente no passado, senão não vejo como teria podido tornar-se pai do meu irmão!

Depois de ter acalmado um momento, o pânico voltou a apoderar-se de Sylvie, que soltou um grito:

- Quem te disse uma coisa dessas?

- Um amigo de Mme. de Forbin, que se tornou também amigo meu. Um gentil-homem que parece saber tudo sobre vós, minha mãe!

As duas últimas palavras foram proferidas com um nojo que acabou por transtornar Sylvie. Foi com uma terrível força de vontade que conseguiu permanecer de pé, à beira do precipício que ameaçava tragá-la.

- Dir-se-ia que escolhes mal os teus amigos. Poderei saber como se chama este?

Se pensava que Marie iria revelá-lo, enganava-se. A jovem ficou sem voz durante um momento, contemplando-a com uma espécie de nojo.

- E nem sequer o negais? Tudo o que vos interessa é saber quem impediu que eu ficasse coberta de vergonha e de ridículo?

- Mas vergonha de quê? E que ridículo? Que eu saiba M. de Beaufort não é teu pai...

- Se ele for o do meu irmão, a meu ver isso vem dar no mesmo. Ao desposá-lo, tornar-me-ia sogra de Philippe e isso horroriza-me! Não quero ficar com os vossos restos! Nem sequer consigo suportar a ideia que haveis aceito tal coisa! M. de Saint-Rémy é que tinha razão...

Sylvie estremeceu:

- Que nome é que disseste? Saint-Rémy? Será que ouvi bem?

Marie pareceu subitamente incomodada e, sobretudo, descontente consigo própria:

- Escapou-se-me, mas... haveis ouvido bem. Dir-se-ia que não gostais nada dele... - acrescentou com um risinho que soava falso.

- Se for aquele que penso, um homem que regressou há poucos anos das Ilhas.

- É dele que se trata, o que prova que o conheceis tão bem quanto ele vos conhece.

Sylvie não respondeu logo. O inesperado regresso daquele inimigo jurado abatia-a. Não sabia por que tortuosa via ele se conseguira introduzir no seio daquela nobre família de Provence, onde a sua filha encontrara refúgio, mas não estava longe de ver nisso a mão do destino, persistindo em causar a ruína da sua casa e dos seus. Foi sentar-se numa poltrona, ou antes, deixou-se lá cair.

- Devias era ter falado do assunto a M. de Beaufort. Uma dada noite, no cemitério de Saint-Paul, ele quase o matou, na altura em que aquele se preparava para assassinar de forma horrível o teu irmão mais novo, a fim de poder reivindicar o título de duque de Fontsomme, ao qual se acha com direitos. Esse demônio conseguiu escapar-se-lhe e desaparecer de circulação, suponho que graças à proteção de Colbert, que não nos perdoa o fato de sermos amigos de Nicolas Fouquet e dos seus.

- Mas que fábula estais aí a inventar?

- Infelizmente, não é uma fábula. Tens a liberdade de acreditar ou não no que te estou a dizer, mas lastimo imensamente que M. de Raguenel não esteja presente, para que fosse ele a contá-la a ti.

- A propósito... onde é que ele está? Dissestes há pouco que...

- Foi para Toulon, esperar por M. de Beaufort, a quem um grave perigo ameaça. Se bem compreendi, isso já não te diz respeito. Posso perguntar o que contas agora fazer? Ficas aqui?

- Estais a troçar ou não haveis mesmo visto a carruagem que me espera lá fora? Vim apenas dizer-vos o que pensava de vós e da vossa conduta.

- Tens razão, é melhor que entre nós as coisas fiquem bem claras. A propósito, e sempre no intuito da maior clareza possível, podes ir instalar-te na rue Quincampoix ou em Conflans. Podes ter a certeza que não me encontrarás: o rei exilou-me para aqui, tal como exilou a tua madrinha para Nanteuil... e mais umas tantas outras pessoas.

Marie esperava tudo menos aquilo. Ficou de olhos exorbitados.

- Vós? Exilada? Mas, porquê?

- Isso não te diz respeito. Ah, mais uma pergunta: o teu irmão está ao corrente da história que te contou esse bom Saint-Rémy?

- Como poderia, se ainda está no mar com... devo dizer, com o seu pai?

Sylvie deixou recostar a cabeça de encontro ao alto encosto de veludo e fechou os olhos, extremamente cansada:

- Se quiseres, podes fazê-lo mas, por amor de Deus e caso ainda te reste um pedacinho de amor por ele, nunca digas nada a Philippe, a não ser que deverá evitar aproximar-se, nem que seja um pouco, de um monstro chamado Saint-Rémy, o qual só deseja a sua morte.

- Nunca lhe direi nada. Podeis dormir descansada com o vosso segredo.

Sylvie não a viu pegar nas peles e caminhar para a porta arrastando-as atrás de si. Não a ouviu sair. Só quando ouviu a “cadeirinha” pôr-se em movimento, rangendo no cascalho do pátio principal, é que soube que deixara de ter uma filha.

Quando Jeannette acorreu para junto dela, depois de ter avistado Marie que deixava o castelo dos pais sem olhar para ninguém, a duquesa caíra do seu assento e jazia no soalho, agitada por uma violenta crise de nervos que aterrorizou a sua companheira. Levantaram-na, levando-a até ao quarto, quase inconsciente.

Ao cair da noite, quando Perceval de Raguenel chegou ao castelo, completamente extenuado mas muito satisfeito por ter cumprido bem a sua missão os navios de Beaufort tinham acostado no porto uma hora depois de Marie ter deixado Sollies foi encontrar Sylvie acometida por um violento acesso de febre que o assustou. Efetivamente, ela delirava e o delírio era tal que o cavaleiro decidiu que a doente devia ser vigiada por Jeannette, por Corentin, ou por ele próprio e por mais ninguém. Revezar-se-iam à sua cabeceira e, até nova ordem, seria proibida qualquer visita, mesmo a do médico de Bohain, que se mandara chamar sem que o tivessem encontrado e que ele sentia ser perfeitamente capaz de substituir.

Quanto a Marie, trataria dela assim que a sua mãe estivesse fora de perigo...

 

                                 A GRANDE EXPEDIÇÃO

O tempo e a doença tinham estreitado mais a esperança de vida de Sylvie que as paredes do seu quarto. Há muito sujeita a grande tensão, os seus nervos foram-se repentinamente abaixo quando, ao mesmo tempo, se declarou uma pneumonia que apanhou ao sair pouco agasalhada sob o frio invernal. Apesar dos cuidados dispensados por Perceval de Raguenel que, para além do seu perfeito conhecimento em matéria de plantas, aprendera outrora a apreciar a medicina com o seu defunto amigo Théophraste Renaudot, o estado de Sylvie agravou-se de tal modo que se chegou a recear pela sua vida. Ela delirou noites e dias a fio, guardada por Jeannette e Perceval, desolados e praticamente impotentes. O seu estado de saúde era tal que Perceval não ousava abandoná-la, para se pôr à procura de Marie, que considerava em grande parte responsável pelo ocorrido. Contudo, a jovem tinha de ficar a saber o que fizera. Seria tudo demasiado triste, demasiado injusto, sobretudo se Sylvie morresse sem poder voltar a ver nenhum dos seus filhos!

Logo que se apercebera da gravidade da situação, Perceval escrevera a Beaufort, para que este informasse Philippe que não deveria, portanto, tardar. Também prevenira Marie de Hautefort, mas esta não podia deslocar-se, vitimada por uma queda de cavalo. Faltava Marie. Mas onde encontrá-la? Teria retomado o serviço em casa de Madame ou ter-se-ia escondido?

- A melhor maneira de ficar a sabê-lo é ir a casa da senhora marquesa de Montespan, que é sua amiga - aconselhou Jeannette. - Mora na rue Taranne, no faubourg Saint-Germain. Ela deve saber qualquer coisa.

O conselho era bom. Perceval enviou logo Corentin com duas cartas, uma destinada à jovem marquesa e a outra à própria Marie. Depois, esperou. Mas, trinta e seis horas mais tarde, ficou baralhado com aquilo que lhe foi dado avistar ao fundo da comprida álea de olmeiros que assinalava a entrada de Fontsomme. Estava à espera de dois cavaleiros ou, talvez, de uma carruagem dos correios escoltada por Corentin a cavalo. Ora o que irrompeu no cenário foi um enorme coche de viagem, ostentando as insígnias reais e ladeado por um pelotão de guardas da companhia de Orleans. Com ar resignado, Corentin trotava ao lado da portinhola daquele imponente veículo, que descreveu uma curva graciosa antes de parar frente ao patamar de entrada. Dela saiu uma mulher imponente, de tal modo carregada de peles que tinha o aspecto de um urso envergando um chapéu de plumas brancas e azuis e arrastando atrás de si um homem louro, pequeno e espadaúdo; mas Perceval já descobrira a sua identidade e dirigia-se ao encontro de Mademoiselle, enquanto perguntava a si próprio o que teria ela vindo ali fazer. Foi o que esta se encarregou logo de lhe explicar:

- M. de Raguenel, folgo muito em ver-vos! Encontrava-me ontem em casa de Mme. de Montespan quando chegou o vosso intendente à procura de Marie, e ele pôs-nos ao corrente do estado de saúde deplorável de Mme. de Fontsomme, aqui perdida no meio das neves da Picardie, sem qualquer hipótese de receber uma devida assistência médica! Por isso trouxe-vos um homem genial, que eu própria descobri pelo mais extraordinário dos acasos e que escondo em minha casa... Onde está a nossa doente?

Perceval esforçou-se por seguir, ao mesmo tempo, tanto o fluxo de palavras como o andar tumultuoso da princesa através do castelo, sob o olhar abismado dos criados. Com o andamento que levava, imaginou-a irrompendo como um raio pelo quarto de Sylvie adentro. Apressou-se de modo a passar-lhe à frente, parando-a depois:

- Por favor, Madame! Suplico a Vossa Alteza que perdoe a minha ousadia mas terá de me conceder uma breve entrevista...

- Sobre que assunto? Temos mais que fazer...

- Talvez, mas é a respeito do Rei que vos desejo falar! Vossa Alteza está ao corrente que Mme. de Fontsomme foi exilada?

- Claro que estou! Soube dessa... iniquidade, quando me encontrava no meu castelo d’Eu, a vigiar o andamento de algumas obras importantes. Voltei imediatamente a Paris para inteirar-me mais detalhadamente do assunto.

- Tudo o que posso dizer é que, ao deslocar-se aqui, Vossa Alteza arrisca-se a causar grande desagravo a Sua Majestade e que...

- E que, o quê? - troou Mademoiselle, aproximando o seu grande nariz do rosto de Perceval, fitando-o no fundo dos olhos. - Há muito que o meu primo me conhece e sabe muito bem que é uma enorme trabalheira tentar impedir-me de fazer o que quero! Que arrisco? Que ele me exile definitivamente para as minhas terras? Que faça bom proveito! Tenho muito que fazer gostaria de ir a Saint-Fargeau para ver como vão as grandes tapeçarias que mandei fazer.

- Oh, bem sei que Vossa Alteza não tem medo de nada...

- Sim, tenho! - Pegando bruscamente no braço de Perceval, levou-o até ao andar de cima fazendo um sinal para que o seu pessoal os deixasse a sós.

- Sim repetiu em voz mais baixa. Tenho muito medo das críticas que me poderia dirigir o meu primo Beaufort se um dia deixasse finar a dama dos seus pensamentos. Gosto muito de meu primo, cavaleiro. É o meu velho companheiro de combate, antigo cúmplice, e quando o Rei lhe confiou os seus navios, ele foi até ao Luxemburgo para se despedir de mim. Foi nessa altura que me confiou a sua preocupação pela nossa amiga, que não desconfiava o suficiente desse malandro do Colbert e ostentava, talvez demais, a sua amizade pelo pobre Fouquet. Prometi-lhe que faria tudo o que pudesse para velar por ela, tendo em conta os meios de que disponho e fazendo-o, também, da maneira mais discreta possível. Hoje cumpro a minha promessa, mas teria vindo de qualquer forma, pois gosto muito da pequena duquesa; então, ides ou não mostrar-me onde fica o quarto dela?

Perceval inclinou-se com um respeito muito marcado pela emoção e precedeu a princesa na galeria que dava acesso aos quartos. Tinha-se-lhes juntado o médico, que fora chamado com um sinal de urgência. Ao chegar à porta do quarto, Mademoiselle apercebeu-se que estava com muito calor, livrou-se das peles de raposa que dobravam o seu tamanho, abandonou-as ali mesmo, atirando com o chapéu para cima delas, para depois pegar no braço do médico, puxando-o até ao quarto:

- Deixai-nos a sós! - ordenou. - Vinde, mestre Ragnard.

Resignado, Perceval ficou a ver passar aquele pequeno homem com o mesmo nome que um temível chefe viking e que Mademoiselle quase levantou do solo, ao obrigá-lo a entrar. Jeannette, que estava ao pé de Sylvie, devia decerto bastar para executar as ordens do médico. Quanto a ele, tinha de tratar do alojamento do pessoal civil e militar que acompanhava a princesa. Conhecendo o proverbial apetite desta, desceu às cozinhas para dar algumas recomendações a Lamy, mas o mestre cozinheiro já tinha sido posto ao corrente e, nas amplas cozinhas parecia que tinha sido dada ordem de reunião às tropas; os fogos crepitavam e Lamy transmitia ordens para todos os lados:

- Bendita seja esta boa princesa que nos veio fazer uma visita, apesar do próprio Rei - disse, entusiasmado, a Perceval. - É preciso que ela guarde uma lembrança inolvidável desta sua estadia!

Raguenel esteve quase para objetar que o estado de saúde da duquesa talvez não fosse o mais propício a uma refeição festiva, mas o pobre rapaz estava tão contente por ter de trabalhar para a cozinha do Rei, que teria sido uma pena deitar água na fervura. Deixou-o trabalhar e subiu novamente para esperar pelo diagnóstico do pequeno médico. Demorou muito: já tinha passado uma hora quando Mademoiselle voltou a reaparecer. Só.

- Então? - sussurrou Perceval, que temia o pior.

- Diz que há uma possibilidade para que ela se salve se fizermos o que ele pedir...

- Claro que faremos o que ele quiser!

- Não deis já uma resposta, antes de saber verdadeiramente o que ele pretende - disse a princesa de forma ambígua. - Ele quer instalar-se no quarto e não deseja lá mais ninguém, a não ser a “servente”, como lhe chama, para se ocupar da roupa, da limpeza e da alimentação. E, mesmo assim, só quando ele a chamar!

- Isso significa que já não teremos o direito de ver Sylvie? Mas este homem é doido varrido, não?

- Não, mas tem os seus próprios métodos e não quer que ninguém interfira neles. Caso não estejais de acordo, ele ir-se-á embora comigo amanhã de manhã!

- Mas, enfim, e se os filhos chegarem?

- Terão também de esperar, e é tudo. A propósito, não sei se o vosso intendente já vos informou a esse respeito, mas ninguém sabe onde se esconde a jovem Marie.

- Nem sequer Mme. de Montespan?

- Nem ela! E também não se sabe de nada para os lados de Madame, onde todos estão persuadidos que ela ingressou nalgum convento. Mas para voltar a mestre Ragnard, trata-se de um homem calado, ou que quase nem fala, que detesta que lhe façam perguntas, às quais não dará nenhuma resposta. Vive sozinho em minha casa, numa grande sala sob as águas-furtadas, na qual acumula uma quantidade impressionante de livros e de objetos. Levam-lhe as refeições e só sai quando preciso dele ou quando mudamos de residência...

- E isso satisfaz Vossa Alteza?

- Absolutamente, mesmo que o meu Ragnard se pareça mais com um feiticeiro normando do que com um médico tradicional. Dito isto, a minha boa saúde, que tanta inveja provoca na Corte, devia servir-vos de garantia...

- Decerto! Mas Vossa Alteza não disse que tinha de se ir embora amanhã?

- Tenho, mas posso deixá-lo convosco. Quando ele achar que terminou a sua tarefa, fá-lo-á saber e, nessa altura, enviá-lo-eis de volta. Acrescento que não aceitará nenhuma retribuição... Hmm! - exclamou, deixando palpitar as narinas - como cheira bem! Mostrai-me onde fica o meu quarto para que eu possa lavar as mãos e passar à mesa! Estou a morrer de fome.

Deu provas disso ao honrar a cozinha de Lamy com um ardor comunicativo. Como Perceval não tinha fome, surpreendeu-se a fazer-lhe amavelmente companhia. Ela fez até questão de felicitar o jovem mestre cozinheiro em termos tais que, durante um momento, Perceval chegou a pensar que ela lhe ia fazer uma oferta para ele passar ao seu serviço, mas Mademoiselle fazia parte das pessoas cujo coração não fica à espera de ser retribuído pela ajuda que possa dar. Tal como dissera, foi-se embora no dia seguinte e não dissimulou o seu prazer ao deparar na sua carruagem com um cabaz-cheio de patês, de tortas, de pastelaria diversa e de compotas, para ajudá-la a suportar o longo trajeto. Ao estender a mão pela última vez a Perceval, murmurou-lhe:

- Cavaleiro, prometo-vos que farei tudo o que estiver ao meu alcance para reconciliar Sylvie com o Rei. Ele continua a sentir um grande afeto por ela e não consigo entender o que se poderá ter passado para provocar uma mudança destas!

- Mas, Senhora, não é o momento conveniente! Suplico a Vossa Alteza para nada fazer antes... de ter passado um certo tempo. As ordens de exílio foram ditadas sob o impulso da cólera real. É melhor esperar que esta se acalme. Tanto mais que por ora a minha pobre afilhada teria enorme dificuldade em deslocar-se à Corte.

- Seja! Esperaremos um pouco... mas não muito tempo. Também não é bom deixar que nos esqueçam.

Raguenel pensava, pelo contrário, que o esquecimento era o que melhor convinha a Sylvie e aos antigos frequentadores do Val-de-Grâce, mas também não queria desencorajar Mademoiselle. Manteve-se calado, saudou uma última vez, e ficou a ver desaparecer a toda a velocidade, rente às áleas, o conjunto dos cavalos que enquadravam a carruagem que descia alameda abaixo.

Para os habitantes do castelo começou então um período estranho: por um lado, havia Sylvie, fechada sozinha no seu quarto, na companhia daquele médico desconhecido, sem que ninguém pudesse saber a que tratamento ele a submetia e, por outro, em redor do quarto havia o castelo inteiro cujos olhares pareciam suspensos naquele quarto tão bem fechado. Nem Jeannette podia dizer o que lá se passava. Seguida por um criado sempre sobrecarregado, que deixava à porta, ela trazia água, alimentos, que eram sobretudo compostos por sopas de legumes, leite e compotas, mudava os lençóis da cama e a roupa da doente, cuja magreza a amedrontava ou, então, tinha de ir à procura de coisas tão estranhas como gelo e sanguessugas mas, cada vez que entrava, encontrava o médico de pé à janela, de costas voltadas para ela e com as mãos apoiadas no fecho; só se mexia para ajudar na muda dos lençóis, pois não permitia a entrada a mais nenhuma servente. Não dizia nada, nem sequer olhava para Jeannette, o que acabava por agastá-la. Quanto a Sylvie, encontrava-a sempre a dormir.

- É de crer que lhe dá alguma droga para que ela adormeça antes de eu chegar - confiou a Perceval e Corentin. - Mas dir-se-ia que ela está melhor. Já não tem aquela cor avermelhada e parece até pálida. Só que às vezes, durante o sono, dá a impressão que sofre muito. Oh! Tenho tanta pressa que no-la devolvam - concluiu, enxugando os olhos ao canto do avental. - Além disso, não é nada conveniente, este homem a viver dia e noite fechado com ela!

- Isso pouco importa, se for esse o preço a pagar para que ela se cure - suspirou o cavaleiro. - A relação que se estabelece entre uma doente grave e o seu médico deixa de ficar restringida aos respectivos papéis de homem e de mulher...

Toda esta bela confiança não o impedia de passar noites em branco diante daquela porta tão bem fechada, instalado numa poltrona que trazia consigo todas as noites, auscultando os ruídos, por vezes estranhos, provenientes do quarto: pareciam-se com preces, umas espécies de liturgias proferidas numa língua desconhecida. Chegava a pensar que Jeannette não se enganara muito quando lhe dissera que havia algo de mago naquele Ragnard. Isso explicava as precauções que Mademoiselle tomava ao esconder aquele médico: a temível Ordem do Santo Ofício dispunha de orelhas bem compridas e até uma princesa devia temê-la.

Entretanto, Perceval começava a achar que o tempo se arrastava, sobretudo porque sofria também com a falta de notícias do exterior. Continuava a desconhecer-se o paradeiro de Marie. Ele empreendera até uma viagem de ida e volta ao Convento da Visitação da rue Saint-Antoine, na esperança de que ela talvez tivesse lá regressado, mas ninguém a vira. Além disso, o que era muito mais inquietante, ainda não recebera nenhuma resposta de Toulon. Ninguém respondera à sua última carta. Nem sequer o abade de Résigny, esse escritor incansável. Teria a frota mudado de rumo? Como vir a sabê-lo naquele Fontsomme, fechando ao mesmo tempo pelas neves e pelo exílio da sua senhora?

Finalmente o Inverno esmoreceu. Ressurgiu a lama, juntamente com os atoleiros e os primeiros rebentos das árvores. Depois, certa manhã, quando Perceval levava a poltrona de volta ao seu aposento, a porta do quarto de Sylvie abriu-se e surgiu mestre Ragnard, aprumado e de maleta na mão. Olhou com grande calma para o cavaleiro e pronunciou as primeiras palavras que este ouviu vindas de sua boca...

- Tendes a amabilidade de me mandar preparar um cavalo?

- Partis?

- Com certeza. O meu trabalho já acabou. A doente entrou em convalescença e eu mais nada tenho a fazer aqui...

Dirigia-se para a escadaria, mas mudou de ideia para dizer ainda:

- Deixei em cima da mesa as minhas instruções quanto aos cuidados que convém prestar ainda nos próximos dias. Cavalheiro, ao vosso serviço! Ah! Tende cuidado: ela precisa de ser poupada.

Louco de contentamento, Perceval acompanhou-o até às cavalariças, procurando uma maneira qualquer de lhe agradecer e, também, de saber algo mais sobre o mal de que Sylvie padecera; o outro obstinou-se numa mudez total, contentando-se em levantar o chapéu da cabeça quando, uma vez a cavalo, já se dirigia na direção da grande alameda do castelo. Perceval não se quedou à espera que ele desaparecesse à distância, e desatou a correr até ao quarto da afilhada, onde uma Jeannette entusiasta o havia precedido. Sylvie estava estendida no leito, de olhos bem despertos, claros e olhando bem direito. Era visível que ainda estava muito fraca, mas voltara-lhe um pouco de cor aos lábios e ela sorriu ao estender os braços na direção dele:

- Quão bom é voltar a ver-vos! Parece-me que há anos que não vos vejo...

- Podeis dizer um século, meu coração. Que vos aconteceu durante todo esse tempo?

- Não sei... Tudo o que me recordo é de ter tido dores pelo corpo todo mas lembro-me, sobretudo, de ter dormido... e sonhado. Primeiro foram pesadelos horríveis; depois, a pouco e pouco, os sonhos tornaram-se mais leves... Pareceu-me ter regressado a Belle-Isle... e sentia-me muito feliz...

- Agora sou eu quem se vai ocupar de tudo e tudo decorrerá convenientemente - declarou Jeannette, com um ar de desafio que muito testemunhava quanto ao que havia sofrido durante todos aqueles dias de espera. Começou por dar sumiço aos vestígios da passagem do médico e, depois, instalou uma cama para si no quarto da sua própria senhora.

A pouco e pouco, Sylvie regressou a uma vida normal e readquiriu o aspecto de outrora. Contudo a sua disposição parecia ter mudado, como se se tivesse distendido alguma mola dentro dela, retirando-lhe um pouco daquele gosto pela vida que a animava desde a primeira infância. No decorrer dos passeios, cada vez mais compridos, que dava todos os dias pelos campos, agarrada ao braço de Perceval, acabou por deixar transparecer a tristeza que lhe causava o silêncio daqueles a quem chamava “os nossos marinheiros”, mas não fez nenhuma pergunta acerca de Marie. Não que tivesse expulso a filha do coração - isso era coisa impossível, pois gostava demasiado dela! - mas, todavia, recusava-se a evocar a sua memória, até a sua imagem, como alguém que já sofreu demasiado e rejeita a visão de um instrumento de tortura.

Perceval compreendia-o e, no fundo, isso dava-lhe jeito, pois não ousava revelar-lhe que Marie tinha desaparecido. Tanto mais que, certa manhã, ao ir a Saint-Quentin restituir ao cirurgião Meurisse uma obra que este lhe emprestara, fazendo-se acompanhar pelo jovem Lamy, que devia ir buscar a sua provisão de alho à abadia, ficara ao corrente de algo nada tranquilizador. Quando estava na taberna da Cruz Dourada, a beber algumas canecas de uma excelente cerveja na companhia de Meurisse, mestre Lubin, o patrão, viera entregar-lhe um par de luvas que Mlle. de Fontsomme se esquecera de levar da última vez que lá estivera. Ao questionar o homem com sutileza, Perceval soube que Marie passara por ali algumas semanas antes, para lá deixar o amigo com o qual viajava, juntando-se a ele mais tarde, nessa noite, antes de retomar a estrada de Paris na manhã seguinte. Estranho comportamento, que não deixara de suscitar algumas questões a um homem habituado, no entanto, aos desvarios dos seus hóspedes. Mlle. Marie era conhecida e não se percebia bem que podia estar ela a fazer na companhia de um homem que tinha idade para ser seu pai, mas a jovem pertencia a uma classe demasiado distinta para que se fosse além das conjecturas. Aliás, tratava-se de simples curiosidade pois as relações deles não pareciam ultrapassar o quadro de uma amizade. Tinham alugado dois quartos e Marie tratara o seu companheiro com certa desenvoltura... Chegado aí, e pressionado por Perceval que o crivou de perguntas, o dono do albergue forneceu uma descrição tão minuciosa do viajante que Raguenel ficou sem qualquer dúvida: o companheiro de Marie era Saint-Rémy e isso era matéria com que se inquietar sobejamente. Qual o porquê daquela viagem em conjunto e, sobretudo, que lugar é que esse miserável, esse assassino, esse delator, ocupava no espírito de Marie? Não se podia tratar de amor: quando se ama um Beaufort, não se transferem as afeições desiludidas para um homem como Saint-Rémy! Isso não impediu que ao regressar a Fontsomme, Perceval procurasse denodadamente um pretexto válido para se ausentar até Paris, a fim de proceder a um inquérito rigoroso...

Foi o correio que veio em seu auxílio.

Logo que mestre Ragnard regressou ao palácio do Luxemburgo e se soube no seio da sociedade parisiense, onde ainda contava com muitos amigos, que Mme. de Fontsomme já não corria perigo, aqueles que não regulavam as suas vidas pelo franzir de sobrolho do Rei, apressaram-se a escrever-lhe: primeiro foi Mademoiselle, depois Mme. de Montespan, Mme. de Navailles e d’Artagnan, se bem que este não fosse propriamente um homem de escrita e, sobretudo, foi a vez de Mme. de Motteville.

Tendo a morte de Ana de Áustria desmantelado a sua casa, a sua fiel acompanhante abandonou uma corte onde não tinha mais a fazer e instalou-se no Convento da Visitação de Chaillot, onde a irmã, Madeleine Bertaut, sucedera, como Superiora, à Madre Louise-Angélique, conhecida naquele século por Louise de La Fayette. Foi por ela que se soube da chegada de Marie àquele convento onde não conhecia praticamente ninguém:

- “Deu-me a entender que não pretendia abraçar o hábito, mas que procurava apenas dispor de algum tempo para poder refletir e esperar pelos conselhos que a sua consciência e Deus lhe ditassem...”

Estas últimas palavras tiveram o condão de aborrecer Perceval. Procurar conselhos junto de Deus? Já não era sem tempo, quando esta pequena idiota acabara de atravessar a França na companhia de um patife e de deixar a mãe a dois dedos da morte! Contudo, conteve a sua irritação, para não magoar Sylvie, que parecia tão aliviada.

- Graças a Deus, está em segurança! - suspirou, ao dobrar a carta que acabara de ler em voz alta. Temos apenas de rezar para que um dia ela regresse para nós! Tudo o que espero agora é receber brevemente notícias de Philippe. Este longo silêncio é tão cruel!

O Céu decidiu certamente mostrar-se clemente, pois foi logo no dia seguinte que chegou uma carta do abade de Résigny. Carimbada em la Rochelle e plena de entusiasmo, não fazia qualquer alusão ao drama do castelo familiar... os navios de Beaufort tinham apenas acostado em Toulon para se reabastecer, antes de rumarem para o Atlântico, onde os esperava duas tarefas. Em primeiro lugar, escoltar até Lisboa a noiva do rei de Portugal, que era, nem mais nem menos, a nossa bem conhecida Marie-Jeanne-Elisabeth, sobrinha de Beaufort e, depois, - ou simultaneamente! - opor-se aos ataques de Inglaterra à Holanda, com a qual a França firmara um tratado. O irmão bem-amado de Madame, Carlos II, mandara destruir as feitorias da Guiné e, na América, apoderara-se de Nova Amsterdan[39]. Deste modo, após longas negociações, Luís XIV decidiu apoiar o seu aliado com as armas. Sob o alto comando de Beaufort, os seus dois mais valorosos homens do mar, Abraham Duquesne e o cavaleiro Paul tomaram, respectivamente, a chefia das frotas do Poente e do Levante.

- “Temos a guerra pela frente”, - escrevia o abade, num tom em que se adivinhavam os suspiros. – “Ela será dura, pois a Inglaterra possui muito mais navios do que nós, mas todos estes doidos que estão à minha volta mostram-se muito entusiasmados, a começar pelo nosso jovem herói que me encarregou de enviar uma mão cheia de beijos à senhora duquesa e a Marie. Ele está ótimo... melhor que este vosso servo, que não se dá lá muito bem com as grandes vagas verdes do Atlântico, nem tão-pouco com as últimas unções que tem de dar aos mortos na ponte ensanguentada de um navio, crivada de metralha... Talvez me deixem ficar em Lisboa ou, então, talvez me enviem para Brest, esperar pela frota até ao Inverno, altura em que esta deve regressar...”

- O abade está a ficar velho - observou Perceval. - Bem merece vir descansar um pouco para aqui. Tanto mais que Philippe não precisa mais dele...

- Há já um tempo que não precisa, mas eles estão ligados por um afeto tal que eu hesito em convidá-lo a regressar. E quem nos escreveria depois?

Curiosamente, a guerra que se reacendera com a Inglaterra, iria influenciar as hesitações de Marie...

Para Madame, os tempos festivos do começo do seu casamento tinham-se dissipado. Apesar da presença dos dois filhos, as relações com o seu esposo iam-se progressivamente deteriorando. Isso era devido aos amigos de Monsieur, uns, como o cavaleiro de Lorraine, ou como Vardes, que ela mandara para o exílio, porque a odiavam; outros, como Guiche, porque a amavam demasiado. Além disso, mesmo que as suas relações com o Rei continuassem a decorrer numa atmosfera de confiança e, até, de certa ternura, pois Luís XIV via nela o seu melhor laço com a Inglaterra, a que se acrescia uma conselheira inteligente e fina, a ruptura com Maria Teresa era quase total, e esta já não escondia um ciúme pelo menos tão forte quanto o que lhe inspirara La Vallière. Em seguida, o que se passava em Londres inquietava-a e até a afligia. A sua mãe, a rainha Henrieta, regressara a França, expulsa por uma terrível epidemia de peste que se espalhara pela capital inglesa e que matara numerosos dos seus amigos, mas a sua presença não era de grande auxílio para a filha, pois ela passava o tempo entre o seu castelo em Colombes e as águas do Bourbon. Um ano depois, em consequência da epidemia e dos numerosos fogos que tinham sido ateados para destruir os cadáveres, Londres fora quase integralmente assolada por um terrível incêndio que destruiu todos os velhos quarteirões e que marcaria uma data histórica. Finalmente, adoeceu o pequeno duque de Valois, que tinha então dois anos, na mesma altura em que se deterioravam as relações entre os dois homens que mais estimava no mundo: o seu irmão Carlos II e o seu cunhado Luís XIV. Então, ao saber que a jovem Marie de Fontsomme, que sempre amara com ternura, se havia retirado para o convento de Chaillot, enviou-lhe Mme. de La Fayette para que esta lhe pedisse para vir para junto dela. E Marie retomou o caminho para o Palácio Real e, ao mesmo tempo, reconquistou um lugar privilegiado ao pé da princesa. Sob ordem desta, Mme. de La Fayette escreveu à mãe exilada, mas quanto a Marie, continuou calada... Finalmente resignada, a partir dessa altura Sylvie contentou-se em esperar pelo desenrolar dos acontecimentos.

O desenrolar regular e, por vezes, um nada monótono, dos dias, das semanas e dos meses, deslizou por Fontsomme e pelos seus habitantes. Sylvie, que recomeçara a montar a cavalo, ocupava-se muito com os seus camponeses. Estes pagavam a sua solicitude com respeito e amizade, mesmo que lhe continuasse a parecer impossível desvendar o mistério que rodeava o desaparecimento do corpo de Nabo. Aliás, acabou por desistir. Era o segredo deles e ela não queria forçar as consciências.

Contrariamente ao que acontecera nos dez anos que vivera em Fontsomme, depois de ter enviuvado, já não mantinha qualquer relação com os castelões das proximidades. Estes, que outrora se tinham mostrado tão solícitos, já não se preocupavam mais com uma mulher que incorrera na cólera do Rei. Isso não lhe causava qualquer problema e a Perceval também não, que se dedicava apaixonadamente à botânica, à leitura, à arte da jardinagem e a empedernidos jogos de xadrez com o abade Fortier ou com o seu amigo Meurisse, que vinha por vezes visitá-lo durante uns dias. Além disso, mantinha uma volumosa correspondência com os seus amigos parisienses Sylvie não gostava muito de escrever e era ele quem estava encarregue de despachar o correio da casa graças aos quais os ecos do mundo continuavam a chegar ao seu retiro. Mademoiselle era quem se mostrava mais assídua, e através dela não se ignorava nada do que se passava na Corte. Foi deste modo que ficaram a saber que apesar dos filhos que La Vallière continuava a dar ao rei, ela já tinha entrado em declínio, arrastada a pouco e pouco para a sombra da sua desgraça por um astro ascendente de brilho irresistível: a esplendorosa Athénais de Montespan estava a prender Luís XIV nas suas malhas. Quando La Vallière, grávida outra vez, recebeu o título de duquesa, ninguém teve dúvidas que se tratava de uma prenda de ruptura, pois já havia algum tempo que a mais tímida das favoritas começara o seu calvário. Este acontecimento foi seguido de perto pela queda de Mme. de Montespan nos braços do Rei e, desta vez, foi um rumor proveniente da província que trouxe a novidade aos habitantes de Fontsomme. Foi efetivamente em La Fere, distante algumas léguas, e onde Luís XIV levara as damas para lhes fazer admirar o seu exército, que caiu por terra uma virtude que se dizia tão forte. La Vallière, que fora propositadamente deixada em Paris, não o suportou e, apesar da sua gravidez e do mau estado das estradas, meteu-se na sua carruagem para ir ao encontro de um amante que adorava, mas apenas pôde constatar o seu infortúnio: a sua antiga companheira das damas de honor de Madame estava a ocupar o seu lugar, expulsando-a... Mais uns meses e deixaria a Corte para ingressar no convento de Chaillot. Quanto a Mme. de Montespan, deixou de escrever.

Sylvie perguntou então a si mesma se a sua bela amizade pela filha ainda duraria, agora que a favorita podia deixar para trás de si as testemunhas dos tempos difíceis. A começar pelo seu marido, com o qual casara contudo por amor e que, agora, enchia a cidade e a Corte com os excessos da sua fúria: dera uma tareia nos Montausier, que acusara de ter entregue a sua mulher às mãos do Rei, trazia cornos no chapéu e queria provocar Luís XIV para um duelo. Apenas conseguiu que o levassem para a Bastilha. As suas excentricidades adquiriam contornos irresistíveis sob a pluma de Mademoiselle, mesmo que a boa princesa soubesse detectar neles uma dor sincera. Infelizmente nunca se referia a Marie, a não ser muito indiretamente: como Madame, toda entregue à sua dor, motivada pelo falecimento do filho, o pequeno Valois, se mantinha afastada da Corte, Sylvie pensou que também seria o caso de Marie... Na realidade o que estava sempre à espera de encontrar nas cartas que lhe enviava Mademoiselle, eram notícias de François, de quem ela dizia que continuava a ser a sua mais fiel amiga. Só se referia a ele ao deplorar a rápida deterioração das relações do duque com Colbert, apesar dos combates livrados e ganhos! e apesar do enorme trabalho de reconstrução da frota que, no entanto, era tão estimada pelo ministro ao qual Beaufort dedicava todo o tempo de que dispunha em terra. Deixara de ser visto em Paris, tal como Philippe, agarrado a ele como uma sombra.

Finalmente caiu uma noite invernal...

Os criados começavam a fechar as janelinhas de madeira do interior, Corentin efetuava com os cães o giro do costume e nas cozinhas tapavam-se os lumes para a noite, quando a grande alameda de olmeiros se encheu com os ruídos característicos de uma cavalgada: batimento vivo dos cascos, tinido de correntes, rangido das rodas de uma carruagem... Num ápice, todo o pessoal do castelo sacudiu o seu torpor e pôs-se de pé. Correu-se a buscar as lanternas e as tochas, Corentin apressou-se a regressar, enquanto que Sylvie, que estava bordando uma casula para o abade Fortier e Perceval, que bebia um caldo de galinha no canto da chaminé da biblioteca, apressaram-se a correr até às janelas. Lá fora estava uma carruagem de viagem, precedida por três cavaleiros e seguida por meia dúzia de homens armados:

- Será Mademoiselle que veio fazer-nos outra visita? - perguntou Raguenel.

Com um grito abafado, Sylvie agarrou nas saias e desatou a correr na direção do grande vestíbulo: antes mesmo das luzes terem iluminado os rostos e antes que os chapéus começassem a ser alegremente lançados, o seu coração já os reconhecera: os recém-chegados eram François e Philippe, acompanhados por Pierre de Ganseville. Ouviu-se a voz retumbante de Beaufort reclamando “uma cadeira para transportar o senhor Abade!”! O passageiro que vinha na carruagem era efetivamente o abade de Résigny, mas quanto mudara! Tendo permanecido em terra por ocasião da última campanha, tendo sido confiado, após um pequeno acidente, a um confortável convento da região de Nantes, tinha prosperado fisicamente ao ponto de ter dobrado de volume, o que lhe provocara a dolorosa crise de gota de que padecia.

- As suas queridas freiras queriam guardá-lo - explicou Beaufort a rir - mas, para se penitenciar, aqui o abade fez questão de nos acompanhar.

- Tinha de regressar a qualquer preço - explicou o doente, transportado com uma sábia lentidão por dois sólidos criados. - Preciso de uma dieta mais frugal e preciso de emagrecer...

- Espantar-me-ia muito que o conseguísseis aqui - exclamou François, sempre a rir. - Temos talvez o melhor cozinheiro de França! Aliás vós próprio podereis constatá-lo em breve...

Logo que se fizera ouvir o ruído dos cascos dos cavalos a cozinha despertara e Lamy já tinha posto mãos à obra.

- Eis uma boa notícia! - disse Beaufort. - Estamos todos a morrer de fome.

Sylvie nem sequer o ouvia: chorava de felicidade nos braços daquele filho que receara não mais ver. Só parava de abraçá-lo para olhar melhor para ele e contemplá-lo admirativamente: tinha-se tornado um magnífico mancebo, do qual qualquer mãe se orgulharia. O duque reatou a conversa, folgazão:

- Haveis-me confiado um jovem, mas parece-me que vos devolvo um rematado duque de Fontsomme.

- Ireis devolver-mo? - sussurrou Sylvie, incrédula.

- É essa a minha intenção, mas...

- Mas eu não estou de acordo, mãe - emendou Philippe. - Para onde for o senhor almirante, também quero ir...

- Voltaremos a falar sobre isso daqui a um bocado - cortou este. - Faz um frio de rachar neste vestíbulo. Vamos aquecer-nos!

Depois de terem transportado o abade de Résigny para o seu antigo quarto, com todos os cuidados necessários, jurando-lhe que viriam servi-lo, o resto dos viajantes instalou-se diante de uma mesa posta num tempo recorde e já repleta de pratos. Antes de sentar-se, a duquesa regressou à realidade e achou por bem prevenir:

- Monsenhor, antes de vos sentar-vos a esta mesa, deveis ser posto ao corrente do que me aconteceu. Fui...

- Exilada? Eu sei; Mademoiselle informou-me a esse respeito, indignando-se muito com o fato e eu compartilho o seu sentimento. Ao atacar os seus mais fiéis amigos, este calouro de coroa começa muito mal o seu reino, mas falaremos mais tarde a esse propósito. Direi apenas que, para mim, é mais uma razão para vos entregar Philippe. Ele é o chefe da família e precisareis dele.

A alegria de Sylvie diminuiu uns tantos graus.

- Meu amigo, nesse caso estais enganado. O Rei só me deu a entender que a ordem de exílio apenas dizia respeito a mim mesma e que pretende continuar a conceder os seus favores aos meus filhos, caso estes o sirvam bem.

- Ora aí está! - triunfou Philippe. - Que é que vos dizia, monsenhor? A minha mãe tem uma alma muito elevada para querer conservar-me aqui debaixo das suas saias, quando sabe quanto adoro o serviço marítimo! Em compensação, era Marie quem esperava encontrar aqui. Onde é que ela está?

- Reintegrou o serviço de Madame.

- Ela não estará um pouco louca? Depois de ter caído como um raio sobre Toulon, pedindo, por assim dizer, o senhor almirante em casamento, o qual teve a bondade incrível de aceitar, desapareceu repentinamente deixando apenas uma carta nos termos da qual essa jovem tola lhe devolvia a liberdade. E agora, regressou para junto de Madame? Espero que vos encontreis frequentemente com ela...

- Nunca - disse Perceval, correndo em auxílio de Sylvie, cujos olhos via encherem-se de lágrimas. - Deixa a tua mãe sossegada, explicar-te-ei o que se passa, mas não estás enganado ao pensar que a tua irmã deve estar um pouco louca.

- Pois bem, trazê-la-ei de volta a casa! Agora é o meu papel e terá de me prestar contas da sua conduta. Na verdade...

- Esquecei-la por ora, senhor meu filho - interrompeu Sylvie, que não queria que se alongassem muito sobre um assunto que preferia de longe entregar à diplomacia do seu padrinho. - E vós, monsenhor, faláveis há pouco de “mais uma razão” para vos separar de Philippe. Isso quer dizer que existem outras?

- Claro que existem outras - cortou o jovem. - O senhor almirante pretende partir numa cruzada e pensa que há poucas possibilidades de regressar vivo...

- Numa cruzada?

Beaufort bateu violentamente com o punho em cima da mesa, o que fez saltar a louça de prata dourada:

- E se me deixasses falar? - zangou-se. - Isto é assunto meu e, se me permites, vais deixar que seja eu a expô-lo à tua mãe e ao cavaleiro de Raguenel.

Afastando o prato, esvaziou o copo que o criado colocado atrás dele se apressou a encher, pelo que atraiu a atenção do duque:

- Gostaria que ficássemos a sós nesta sala - disse.

Um gesto de Perceval fez sair os criados. De cotovelo apoiado na mesa, Beaufort retomou a palavra num tom em que transparecia a cólera:

- As minhas relações com Colbert tornaram-se detestáveis. Não sei porquê, mas aquele homem odeia-me...

- Todos nós aqui presentes sabemos porquê - disse Perceval com gravidade. - Porque éreis amigo de Fouquet e porque haveis trabalhado juntos em grandes projetos...

- Projetos que fez seus e eu não o criticaria por isso caso não estivesse a desbaratar todo o capital a cargo do almirante de França. Desde que o ano passado o Rei o encarregou dos assuntos referentes às frotas do Levante e do Poente, não há mais nada que não lhe passe pelas mãos, que não dependa dele. Deste modo, mandou que se construíssem numerosos navios, a fim de dotar o reino de frotas capazes de enfrentar qualquer inimigo, mas eu não tenho direito de sair com qualquer deles para o alto mar. Na realidade, apenas comando um punhado de velhos navios. Isto chegou ao ponto de que, se eu quiser um navio novo e marinheiros para tripulá-lo, terei de ser eu a pagar do meu próprio bolso. E o Rei dá-lhe razão...

Sylvie sentiu-se estremecer. O olhar que trocou com o cavaleiro de Raguenel estava repleto de angústia. Adivinhava muito bem o que se escondia por detrás daquela espécie de impotência a que, pouco a pouco, Luís XIV e o seu ministro condenavam este homem pois, entretanto, o Rei descobrira o seu verdadeiro parentesco. Sylvie e o cavaleiro sabiam que ele não iria suportar aquilo por muito mais tempo. Devia esperar com certa confiança que talvez os velhos demônios da Revolta despertassem em Beaufort, levando-o a cometer um deslize. Ela mal o escutava, enquanto ele acabava de desenredar a espessa embrulhada do seu azedume: não paravam de criticá-lo pelas suas melhores iniciativas, como no caso daquele tratado que conseguira que o rei de Marrocos assinasse e graças ao qual podiam estar seguros de ficarem a dispor de portos de abrigo, quer no Mediterrâneo, quer no Atlântico.

- Criticam-me por me meter em assuntos para os quais não sou chamado e Colbert ousa exigir de mim que eu, príncipe francês, só me dirija a ele por intermédio de um secretário. Pretende que a minha ortografia é ilegível! Levou muito tempo a aperceber-se disso!

Se aquele pormenor não tivesse sido utilizado com o intuito de ofender o Almirante, talvez Sylvie tivesse sorrido. Com o decorrer dos anos, a ortografia de François e as suas peculiaridades estilísticas não deviam ter registrado grande melhoria. Mas era uma visão cruel a de ter de presenciar aquele príncipe, tão nobre e generoso, ser humilhado sistematicamente por um ministro que, embora seguramente dotado de grande poder visionário, não hesitava em empregar todos os meios de que dispunha quando alguém ousava incomodá-lo ou fazer-lhe sombra. Num tom em que transparecia o cansaço, François concluiu:

- Já sabia que não haveria lugar para nós os dois na Marinha, mas é ele o vencedor pois o Rei acaba de nomeá-lo secretário de Estado da dita Marinha...

- Ides regressar às vossas terras? - murmurou Perceval, incrédulo.

- Conheceis-me o suficiente para saber que isso não me é possível. O papa Clemente IX lançou um apelo aos soberanos da Europa para que empreendam uma cruzada para libertar a ilha de Cândia[40], possessão de Veneza, que o inimigo Turco cerca desde há vinte anos! Vinte anos! Um cerco de tal modo gigantesco que o batizaram de “Gigantomia”! Está lá um homem espantoso, que se chama Francesco Morosini, capitão-general das tropas de Sua Sereníssima República e dos seus raros aliados, como o meu sobrinho, o duque de Sabóia. Aguenta o cerco com uma espécie de truque genial. Quando os Turcos começam a escavar por debaixo das suas fortalezas, lança-lhes enormes bidões de vidro repletos de uma mistura sulfurosa que, ao explodir, mata trezentos homens de uma só vez! Um soldado desta valia merece ser ajudado e o Sultão sabe-o muito bem, pois enviou-lhe em combate o seu próprio grào-vizir Kõpriilu Fazil Ahmed Pacha. Dado que nada mais tenho a fazer em França, decidi dedicar-me a esta tarefa. Deste modo, mandei construir um grande navio, digno desse belo título de Almirante, que um certo Colbert está a reduzir a cacos...

Foi a vez de Perceval se apoiar com o cotovelo na mesa para olhar Beaufort de mais perto. As suas pálpebras semicerraram-se progressivamente, até se tornarem apenas duas fendas brilhantes:

- Um momento, Monsenhor! Não tendes o direito de partir dessa maneira, sem o parecer do Rei. Ora, será que este está assim de tão boas relações com a Sublime Porta, que estas possam contrabalançar o poder dos Habsburgos? Por assim dizer, ele é... aliado do sultão otomano.

- Sem dúvida, mas é também o Rei de França e não pode permitir-se rejeitar o apelo do papa.

- Por outras palavras: está entre dois fogos!... Por acaso, não conheceis o parecer de Colbert sobre o assunto?

Beaufort mostrou um sorriso em que a ironia se misturava à amargura:

- Que julgais? - disse, com súbita suavidade. Concorda com o envio de uma frota com um corpo expedicionário a bordo... e até concorda que seja eu o comandante.

- Vejam só!...

- Claro! Confesso que esta repentina generosidade deu-me que pensar. Agora, julgo ter percebido: Colbert antevê uma excelente possibilidade para se livrar de mim. Ainda não sei como conta fazer, mas sinto que medita nisso - acrescentou, um nada melancólico.

- E tencionais deixá-lo agir? - revoltou-se Sylvie.

- Não... claro que não. Podeis ter a certeza que cuidarei o melhor possível de mim mesmo, pois o perigo estará presente em todo o lado. É por isso que vos devolvo Philippe.

- E é por esse motivo que eu recuso! - exclamou o jovem. - Monsenhor, falais de perigo e recusais-me o direito a participar? Onde quer que fordes, eu irei também!

- Tu agora és chefe de família, o último membro portador de um grande nome. Tens de prosseguir a tua vida: deves isso aos teus antepassados. Aliás, também não levo Ganseville comigo...

Sorriu para o seu escudeiro, que corara, e dedicou o fim do sorriso a Sylvie.

- Ele também é o último da sua linhagem. E vai casar-se!

- É verdade? Como estou feliz! - disse Sylvie, estendendo uma mão na direção daquele amigo de sempre. - Dizer que havíeis jurado morrer solteiro!

- É verdade, senhora duquesa. Estava mesmo convencido disso até ao dia em que, em Brest, tive a honra de ser apresentado à jovem mais linda que jamais havia visto. O pai dela deu-me a sua autorização e Monsenhor, o duque, fez o mesmo. Portanto, vou desposar Mlle. Enora de Kermorvan - acrescentou comovido - mas nem por isso deixo de estar muito envergonhado. Faltar assim ao meu dever para com o meu príncipe!

- Deves fundar uma família... e poderás servir às ordens de Abraham Duquesne, que é mesmo o melhor marinheiro que conheço e meu amigo também! De qualquer modo - concluiu Beaufort, com uma súbita explosão de alegria - o mar nunca te devolveu o teu amor. Pelo menos o teu estômago ficará no mesmo lugar!

- Isso é tudo muito bom e muito bonito - recomeçou Philippe, com repentina violência - mas eu não me vou casar e quer queirais quer não, seguirei na vossa companhia, Monsenhor. Além disso, não correrei assim tantos riscos. Aliás, não levais o vosso sobrinho convosco, o cavaleiro de Vendôme, que tem apenas catorze anos e que tanto estimais?

- Ele não é o filho mais velho do meu irmão e, além disso, está destinado a Malta. Se Deus quiser, um dia poderá ser Grande Prior de França. Já é tempo de acostumá-lo ao mar... Quanto a ti...

- Levai-o convosco! - rogou Sylvie. - Não quero vê-lo infeliz e, tal como o conheço, acabaria por levar a sua avante. Prefiro sabê-lo a vosso lado.

Deixando o lugar, Philippe correu para a mãe e abraçou-a, apertando-a de encontro a si e dando-lhe um beijo com uma ternura tal que lhe fez subir as lágrimas aos olhos.

- Então sempre acabas por vir! - resmungou Beaufort, que assistia à cena. - Ainda não encontrei maneira de resistir a vós ambos...

Felicíssimo por ter obtido o que queria, Philippe correu até junto ao seu preceptor para lhe anunciar a boa nova. Entretanto, Sylvie, que partira o coração em dois ao tomar o partido do filho, sentiu necessidade de ficar um pouco sozinha. Pretextando uma vaga desculpa, abandonou a mesa. Os três homens iriam certamente demorar-se um bocado à volta dos cachimbos e dos licores a fim de saborearem um daqueles momentos de intimidade entre homens amigos e onde as mulheres não têm qualquer lugar. Foi buscar um grande manto com capuz, forrado a pele, e saiu por uma das portas envidraçadas do grande salão que dava para um comprido degrau, por onde se descia para os jardins e se chegava, mais longe, a um lago que uma lua fria se encarregava de fazer brilhar como mercúrio.

Lentamente, passou pelos canteiros cercados por pequenos buxos sempre esverdeados, cuja terra refloresceria em breve. A noite estava quase amena graças a um ligeiro vento que soprava do Sul e que se levantara após a chegada dos viajantes. Já transportava consigo um cheiro a Primavera, mas a caminhante não se alegrou tanto com isso como era seu costume. Adorava a estação do renascer, o progressivo desabrochar das árvores e das plantas, mas esta Primavera seria a de uma angústia contínua e amaldiçoou-se por ter agido, há pouco, em defesa de Philippe. Aquela guerra, aquela... cruzada, como eles diziam, causava-lhe um medo terrível, pois detectara em François a necessidade em afirmar o seu valor por meio de ações grandiosas, talvez até pela busca de uma sangrenta apoteose que gravaria o seu nome para a posteridade no grande livro de ouro dos heróis. Como interpretar de outro modo a relutância que mostrava em levar consigo o filho que tanto estimava? Pensar no outro Philippe, o pequeno cavaleiro de Vendôme, não a consolava: não era o seu filho, o único que ainda tinha, pois Marie rejeitara-a.

Sentou-se num banco de pedra que ficava por baixo de um salgueiro de magros ramos desnudos, a fim de olhar para a água em repouso e ali se quedou um bom momento, até que o seu ouvido apurado detectou um passo solitário que se aproximava, mas que era contudo um passo de caçador extremamente ligeiro. Reconheceu-o entre mil. Nem sequer se voltou e disse:

- Mme. de Schomberg e Pierre de La Porte foram exilados ao mesmo tempo que eu. Sabeis o que isso quer dizer?

- Mademoiselle só me falou de vós, sabendo que sois a única que me importa...

- É surpreendente, pois o acontecimento teve foros de sensação. Pois bem, ficai sabendo que o Rei já nada ignora das circunstâncias... particulares que rodearam o seu nascimento. Antes de receber a hóstia pela última vez, a Rainha Ana confessou-se a ele. Continuais a querer partir na vossa cruzada?

Houve um súbito silêncio, que um suspiro veio perturbar e, depois, uma respiração que se tornava ofegante:

- Mais do que nunca... talvez para evitar que esse jovem sucumba à tentação de me mandar matar.

- Que disparate! Ele nunca o faria. Apesar dos arrebatamentos próprios da sua juventude e apesar de um temperamento... demasiado exigente, ele guarda, no fundo, um verdadeiro temor a Deus e nunca se disporia, ao perpetrar o pior dos crimes, a ter de viver cheio de remorsos nos seus velhos dias. Mas não deve certamente ver nenhum inconveniente a que os acasos de uma guerra longínqua vos afastem dele para sempre. Ele sabe que Colbert vos odeia.

- Sede lógica! Vede-lo, realmente, a confiar um tal segredo a um simples servidor, ele que se pretende o maior rei do mundo?

- Claro que não, mas deve ter confiança nesse ódio e deixá-lo-á atuar.

- Seria o mesmo crime aos olhos de Deus. Agora que haveis falado, compreendo melhor certas coisas. Nestes últimos dias fiquei com a sensação de que lhe custava ver-me. E já não gostava de mim antes! Devo horrorizá-lo...

- Ignoro quais são precisamente os sentimentos que ele tem por vós mas, a meu ver, a complacência de Colbert quanto à vossa expedição, torna-a muito suspeita. Rogo-vos que não partais, François!

Perturbado pelas lágrimas que entaramelavam a voz de Sylvie, colocou-se atrás dela e pousou suavemente as mãos em cima dos seus ombros trementes.

- Há tanto que não me havíeis tratado pelo meu primeiro nome, Sylvie! Será que o fazeis para me retirardes a coragem?

- Não... é porque queria tanto... queria desesperadamente convencer-vos a ficar...

- Por causa de Philippe? Prometo-vos que farei todos os possíveis para o manter afastado de qualquer perigo.

- Claro que é por causa dele mas é, também e sobretudo, por vossa causa! Oh, François, tenho tanto medo do que vos espera por lá! Receio... receio não mais voltar a ver-vos! Algo me diz que não só não vos ireis poupar mas que, ainda por cima, ireis correr na direção da morte!

- É verdade que pensei nisso. Nesta guerra que é comandada por Deus, confesso pensar muitas vezes em aproveitar a ocasião para me reunir a Ele. Morrer em plena batalha, em plena glória! Que final feliz para uma vida falhada!

- Falhada? Oh, François! Como vos atreveis a dizer uma coisa semelhante? Quando afinal...

- Chiu! Sylvie, eu sei o que valho e creio que estou tão farto de mim mesmo como dos outros...

Num gesto vivo, deslizou pelo banco, até ficar a seu lado e agarrou-lhe nas duas mãos para obrigá-la a olhá-lo de frente.

- Só há um único ser neste mundo que me pode dar vontade de prosseguir uma existência que é tão pesada para tantos, e esse ser sois vós! Se eu regressar vivo, prometeis desposar-me?

Ela sobressaltou-se, quis levantar-se, escapar-se-lhe, mas ele tinha-a bem presa.

- É impossível! Bem sabeis que é impossível!

- E porquê? Porque matei...

- Não, por causa de Marie, que me rejeitou, tal como rejeitou o amor que tinha por vós ao ficar a saber que éreis o pai de Philippe.

- Como é que ela o soube?

- Não haveis recebido a carta de Perceval? Ela soube-o através desse maldito Saint-Rémy, que conseguiu infiltrar-se nos meios do vosso irmão Mercceur, e que ela conheceu em casa de Mme. de Forbin.

- O quê, o miserável estava lá? Em Provence? E eu nunca o vi, nunca o soube, nem nunca o encontrei?

- Sem dúvida que vos evitou. Ou então mudou de aspecto. O caso é que, por ora, a situação é esta: Marie lançou-me à cara todo o seu despeito. Se vos desposasse poria termo à fraca esperança que ainda acalento de um dia poder voltar a vê-la. Estou persuadida que ela ainda vos ama!

- Mas eu não a amo da maneira que ela deseja! Só aceitei casar com ela porque ela ameaçou matar-se diante de mim e, também, porque me havíeis pedido, mas estava a contar em ir protelando esse casamento para as calendas gregas, até que ela compreendesse... ou até que encontrasse um outro homem. Há meses que rezo para que isso aconteça.

- Receio que ela se pareça comigo - disse Sylvie, com um triste sorriso. - E que até tenha tomado a dianteira: quando nos encontramos eu tinha quatro anos, mas ela só tinha dois quando vos encontrou. Amar-vos-á para sempre.

- Então, sempre me amais? Quão doce é ouvi-lo, meu coração! Quanto ao nosso casamento, tive algumas ideias a esse respeito quando, ao ir de Brest a LaRochelle, atracámos em Belle-Isle... Oh, Sylvie, amo-vos mais que nunca! É o único local do mundo em que possa ser verdadeiramente feliz.

- Não tenho qualquer dificuldade em acreditar nisso.

- Nesse caso, não me deixai ir já para o Céu! Aceitai desposar-me quando eu regressar e, juro por Deus, abandonaremos tudo para irmos viver juntos para lá. Nós... desapareceremos e, dessa forma, esquecer-se-ão de nós, pois já não ofuscaremos ninguém com a nossa presença.

- Verdade? Faríamos isso?

Na sua necessidade em convencê-la, François deslizava as mãos pelos braços da amiga. A cada instante, receava que ela o rejeitasse, mas Sylvie já não estava com disposição para lutar. Já passara tanto tempo! Deixou o corpo recostar-se de encontro ao peito dele.

- Palavra de gentil-homem que é o que faremos - declarou, com gravidade. - Dizei que me desposareis!

- Regressai... e eu serei vossa...

Ele abraçou-a com mais força e ali permaneceram, à beira do lago, olhando para a água calma que era por vezes atravessada pelo voo de um pássaro à pesca e escutando o palpitar harmonioso dos seus corações. E foi apenas na altura de regressar ao castelo que os seus lábios se uniram.

Ao nascer do dia, Beaufort voltou a Paris, onde lhe restavam “alguns detalhes a regular”, levando consigo Ganseville, do qual só se separaria na altura de tomar a estrada para o sul, e de Philippe, que teria deixado, de bom grado, entregue a Sylvie por mais alguns dias. Mas o jovem, desconfiado, persistia em segui-lo...

Quanto aos habitantes de Fontsomme, passaram muito tempo a consolar o abade de Résigny, envergonhadíssimo por se ter deixado invadir pela gordura, a ponto de se tornar inoperacional e, por isso, muito mais desesperado.

- Eh, se for só isso, abade, trataremos de emagrecê-lo! Lamy apenas vos dará umas sopas ligeiras, pão torrado e água! Desse modo ficareis em forma para a próxima campanha...

O doente ergueu na direção de Perceval uns olhos de rapazinho privado de sobremesa:

- Isso seria muito cruel! O Senhor e os bons pratos são tudo o que me resta, dado que agora Philippe já está muito crescido para precisar ainda de um preceptor. Já não me levarão a bordo...

- E isso faz-vos tanta pena? Não vos sabia tão entusiástico marinheiro...

- Não, não, é verdade que não é esse o caso, mas... quem vos escreverá as notícias de ora em diante?

Ele não era o único a pensar nisso. Sylvie pressentia o silêncio que iria instalar-se e que lhe daria a impressão que Philippe e François teriam entrado num outro mundo, inacessível...

Os “detalhes” que Beaufort contava regular em Paris pertenciam à categoria dos eufemismos ligeiros pela simples razão que, nem Colbert nem o Rei, desejavam que a expedição a que o Papa os obrigava tivesse qualquer êxito. Não se podia indispor indefinidamente o aliado turco. Começou por se especificar que Beaufort deveria contentar-se em comandar os “veleiros” enquanto que Vivonne se encarregaria das galés; depois, atribuiu-se o lugar de chefe de expedição ao duque Navailles que, se bem que fosse um bravo homem, nunca dera provas de grande inteligência. Entre o casal, o papel do homem cabia à duquesa Suzanne. Chegou-se até ao ponto de recusar o Grande Turenne, para se ficar mais seguro que as coisas não haveriam de correr bem. Quanto a Vivonne, foi-lhe solicitado que não se mostrasse zeloso, que arrastasse as suas galés ao longo das costas italianas o mais tempo possível e que só chegasse a Cândia quando já não pudesse evitá-lo sem cair no ridículo.

Outro vexame para Beaufort era o fato de não poder deixar o seu navio. Foi-lhe dada ordem para ficar de braços cruzados, na altura em que se atacariam os Turcos. Desta vez o duque zangou-se e apelou ao Papa, que enviou imediatamente um correio a Luís XIV: no espírito de Sua Santidade, os verdadeiros chefes da expedição seriam o seu sobrinho, o príncipe Rospigliosi, e o duque de Beaufort; era importante que este, cuja bravura era célebre, pudesse conduzir as tropas ao combate. Com uma admoestação destas, o Rei e o seu ministro capitularam, mas deram a entender nitidamente que, se permitiam a realização da expedição, estava completamente fora de questão a sua respectiva participação financeira. Isto era condenar Beaufort a arruinar-se pois era óbvio que ele vendera tudo o que possuía para fazer face à enorme despesa acarretada pelo início da construção do Monarque[41], o magnífico navio-almirante que se construía em Toulon:

- Para aqueles que gostavam dele e logo, em primeiro lugar, Duquesne que se indignava tremendamente com o fato, esta exigência insensata, que teria feito recuar qualquer chefe no qual não corresse nas veias o sangue de Godefroi de Bouillon[42], escondia uma segunda intenção. Beaufort não “devia” regressar de Cândia e, portanto, de qualquer forma, os seus bens já não lhe seriam de qualquer utilidade.

Será que se apercebeu disso. Ele arredava as objeções com um enfastiado encolher de ombros, então, não ia combater pela fé cristã, tal como o teria feito se tivesse seguido as pisadas de Malta. Todas aquelas miseráveis contingências não o perturbavam. Até aceitou que os italianos de Rospigliosi[43] lhe recusassem o título de Alteza, porque o príncipe deles não tinha direito a ele.

- Não quero saber do título de Alteza nem do resto. Desdenharei tudo, exceto as oportunidades para brilhar.

No entanto, no dia 2 de Junho, antes de deixar Marselha, escreveu uma longa carta ao Rei, que acabava do seguinte modo “Creio que nos entendemos todos muito bem e que reina aqui, entre gentes da terra e gentes do mar, uma união e uma amizade completas. Tudo decorre animado pelo mesmo espírito. Seríamos muito infelizes, caso pensássemos de outro modo. Parece-me que isto poderá dar grande prazer e respeito a Vossa Majestade, ao qual rogo de me conceder a graça de me considerar como seu fiel servidor. Toda a espécie de razões me impelem a fazê-lo, e mais do que a do dever, está aquela que não ousarei citar, para não faltar ao devido respeito. É nisto que vos suplico que acrediteis e de que serei até ao fim, o mui humilde, obediente e fiel servidor de Vossa Majestade.

O duque de Beaufort”.

Talvez agitado por um vago remorso, Luís XIV mandou que se lhe concedesse uma certa soma de dinheiro a qual, Beaufort distribuiu imediatamente pelos pobres de Marselha.

Na manhã do dia 4 de junho de 1699 a frota deixava o porto de Lacydon, em Marselha, sob um Sol radioso que fazia cintilar o ouro e o azul que cobriam o Monarque. O esplêndido navio de oitenta canhões enfunava as suas velas novas fazendo trepidar, no vento da manhã, a seda escarlate dos quatro grandes estandartes do Almirante, ostentando as armas dos Vendôme, apoiadas nas efígies de S. Pedro e de S. Paulo e na imensa chama azul e dourada da flor-de-lis francesa. Ele parecia tomar conta do Sol, habitar sozinho os mares atrás, os treze outros navios, que eram tão belos, pareciam, contudo, sacrificados. De pé na ponte, ao lado do cavaleiro de La Fayette que era seu amigo e ajudante de capitão e enquanto troavam os canhões do forte de São João, Beaufort não se voltou uma só vez para olhar a terra que deixava atrás de si. Nem sequer deu pelas aclamações da multidão que se amontoara à beira do mar. Olhava para o Mediterrâneo, imenso e belo, que a sua roda de proa rasgava como a um corpo de mulher ofertada. Enchia a vista e os sonhos. Além, numa ilha perdida da Grécia antiga, esperava-o a glória...

Um mês e meio depois, foi com consternação que se veio a saber do fracasso da expedição e, sobretudo, da morte do duque de Beaufort, cujo corpo não havia sido encontrado. O seu jovem ajudante-de-campo, Philippe de Fontsomme, conhecera o mesmo destino...

 

                                                                               Uma Máscara de Veludo - 1670

 

                         UM VERDADEIRO AMIGO.

Sylvie despedia-se de Fontsomme.

Apoiada no braço de Perceval, dava um último passeio pelo jardim antes de passar revista a todas as divisões do castelo e de despedir-se dos seus servidores. O mês de Abril, excepcionalmente ameno e ensolarado, fazia explodir a natureza: o cheiro dos liláses perfumava a atmosfera, as macieiras e as cerejeiras cobriam-se de um branco delicado e cada bocado de erva nova parecia proclamar a sua alegria por ter abandonado as profundezas da terra para ressurgir à luz do dia. O lago, ondulando ao sabor de uma brisa ligeira, dardejava raios como se fosse um fogo-de-artifício, mas toda esta alegria só tornava ainda mais trágica a dupla silhueta enlutada que nela caminhava. Perceval viu deslizar uma lágrima pelo rosto da sua companheira. Apertou ligeiramente a mão que repousava no seu braço:

- Deveríeis ser mais expedita, minha querida. Assim, estais a magoar-vos a vós própria...

- Talvez, mas passei tantos anos aqui que devo uma grande saudação, um enorme obrigada, a toda esta beleza, se bem que me seja tão cruel pensar que ela nunca pertencerá ao meu Philippe. Ele gostava tanto de Fontsomme! O mais duro é ter de me dizer a mim própria que ele nunca repousará aqui e que a sua sombra em nada incomodará aquele que vier a seguir... Como teríamos podido imaginar, há apenas dez meses, que esse miserável do Saint-Rémy alcançaria um dia os seus propósitos e que Colbert, e até o Rei, apoiaria a sua reclamação junto às cortes soberanas...?!

- É tanto mais espantoso porquanto só foram declarados ambos como oficialmente mortos com base na declaração exclusiva deste homem, que ninguém teria podido imaginar que teria utilizado um falso nome para partir na frota, como simples voluntário.

Nos primeiros dias de Fevereiro, e depois de ter sido ferido e feito prisioneiro em Cândia, Saint-Rémy regressara efetivamente de Constantinopla onde teria sido tratado e, em seguida, enviado pelo próprio sultão Mehmed IV portador de uma carta dirigida ao Rei de França, em que lhe era certificado que o duque de Beaufort fora aprisionado durante a batalha, sendo depois decapitado. O dito Saint-Rémy teria identificado a sua cabeça, por entre outras de cabelos claros que lhe haviam mostrado... A notícia desta morte, na qual os franceses e, - sobretudo, os parisienses não chegavam a acreditar circulavam os mais estranhos rumores! - foi acolhida pela Corte como seria de esperar: trajou-se de luto e foi dada uma cerimônia em Notre-Dame, em redor de um caixão vazio. Tudo isto aumentou a dor de Sylvie, pois se ela conservara a esperança que o seu filho e o seu amigo, dados como desaparecidos, fossem encontrados vivos algures, essa esperança desabava agora; se Beaufort tivesse realmente sido morto, Philippe, que nunca saía do pé dele, não podia ter escapado à cimitarra do carrasco otomano. Porém, ainda lhe cabia descer mais um degrau do abismo de tristeza em que mergulhara: não havendo herdeiro para o título de duque de Fontsomme, depois de consultar o Parlamento e de se ter debruçado sobre o pedido apresentado, a Chancelaria Real projetava doá-lo ao senhor de Saint-Rémy, para indenizá-lo pelos danos causados e para recompensá-lo pelos serviços que prestara à Coroa.

Este novo golpe assestado à duquesa acabou por indignar d’Artagnan. Sabendo por ela, e desde há muito, quem era realmente esse Saint-Rémy que, aliás, vira chegar ao pé do Rei, não conseguiu conter-se e expressou a sua opinião a Luís XIV, com a brutal franqueza que o caracterizava:

- Senhor, não sei o que Mme. de Fontsomme possa ter feito a Vossa Majestade, mas é preciso que seja algo de muito grave, para que o exílio e a morte do filho não vos pareçam punição que baste: também é preciso despojá-la?

- Onde vindes meter o nariz, d’Artagnan? - exclamou o Rei, imediatamente furioso, o que não pareceu perturbar o mosqueteiro.

- Naquilo que dirão as pessoas de bem. É verdade que são bem pouco numerosas neste palácio. Quanto aos cortesãos, contentar-se-ão em aplaudir e despachar-se-ão em insinuar-se junto ao novo duque... Mas eu sei muito bem o que teria dito a augusta mãe de Vossa Majestade.

- Deixai a minha mãe descansar em paz! Evocar a sua lembrança, não é lá grande defesa... - e depois, apercebendo-se subitamente da estranheza da frase, acrescentou: - A duquesa não será despojada como o pensais: guardará a sua pensão e o solar em Conflans, que aliás lhe pertence genuinamente. O que alivia o seu exílio, pois permitir-lhe-á residir nas imediações de Paris...

- É. Eis, pois, o falecido marechal e o seu filho muito mal recompensados pelo sangue que verteram. Temos este miserável como sucessor, quando Vossa Majestade não ignora que ele tentou assassinar o jovem Philippe!

- Ele fez tudo para se reabilitar desde então! Agora, capitão, já chega. Dai-vos por feliz com a minha benignidade. A vossa insolência só irá custar-vos um mês de prisão. Isso permitirá acalmar o vosso temperamento, demasiado fogoso para o meu gosto!

D’Artagnan não insistiu. Ele conhecia bem aquele tom que pressagiava um assomo de cólera e teve receio, não por ele, mas por Sylvie, que poderia ter de acarretar com as consequências. Antes de regressar, para dar uma “ordem de prisão” a si próprio, passou o comando ao seu tenente e decidiu empreender uma rápida visita ao Palácio Real, onde não conseguiu encontrar Marie, que fora rezar às Carmelitas da rue de Bouloi, mas onde Madame lhe dispensou o melhor acolhimento.

- Direi a Marie que viestes cá. Ela sofre muito com a morte do irmão e ficar-vos-á agradecida pelo que haveis tentado. Há dias em que a crueldade do Rei é demais. Sobretudo quando se sabe que ele pode ser tão bom!

D’Artagnan já não acreditava na bondade de Luís XIV. Regressando por fim a casa, pegou numa pena e escreveu a Sylvie uma extensa carta onde deu largas ao que lhe ia no coração a fim de que ela ficasse certa de que poderia sempre contar com a sua dedicação...

Os dois caminhantes regressavam agora ao castelo, onde os criados ocupados a carregar duas carruagens com bagagens e objetos pessoais tinham acabado de parar, para se apressarem à volta de um coche de viagem, baixando o seu estribo e soltando exclamações de alegria ao abrirem a portinhola a uma jovem loura, alta e magra, vestida também de luto e que era bem conhecida de todos.

- Meu Deus! - exclamou Sylvie. - É a Marie!

Esta tocava nas mãos que lhe eram estendidas com a esperança das pessoas acabrunhadas pela tristeza e, depois, alguém lhe indicou os jardins e aqueles que lá passeavam. Ela agarrou nas saias e desatou a correr na sua direção. Estacou a aproximadamente três passos:

- Mãe! - disse com uma voz embargada pela emoção - vim pedir-vos desculpas...

Ia dobrar os joelhos até ao solo arenoso quando Sylvie se lhe antecipou. Acometida por uma alegria que já não esperava sentir, abriu os braços para neles receber a filha, enfim regressada... A palidez que se discernia no lindo rosto de Marie, bem como a marca que a dor nele vingara, atestavam um grau de sofrimento muito parecido com o seu.

Quedaram-se assim durante um longo momento, abraçadas uma à outra misturando lágrimas e beijos.

- Há muito que te perdoei - murmurou finalmente Sylvie. - Tudo o que esperava era poder um dia voltar a ver a minha filhinha. Oh Marie!, nem sabes a alegria que me dás ao regressar a nossa casa!

- Que tu nos dás - emendou Perceval. - Mas eu tinha a certeza que não conseguirias deixar de vir partilhar estas horas terríveis com a tua mãe.

Perceval beijou por seu turno a jovem, com uma renitência que não lhe escapou.

- Não me perdoais? - perguntou-lhe, com tristeza.

- Não serei mais intransigente que a tua mãe, mas estou mais magoado que ela, se bem que continue a gostar de ti da mesma maneira. Ela esteve a morrer, enquanto ignorávamos o que te acontecia e quando o soubemos, foi ela quem me impediu de ir dizer-te o que pensava de ti, mesmo que fosse diante de Madame. No fundo ela tinha razão e eu só teria envenenado as coisas. Agora dou-me por feliz e vamos todos esquecer-nos do resto. Mas sabes que nos vamos embora dentro de uma hora?

- Efetivamente, avistei os vossos preparativos, mas porquê tão cedo? E para onde?

- Não queremos ficar à espera de sermos expulsos pelo novo senhor - disse Perceval, com amargura. - E vamos para Conflans, pois é tudo o que a generosidade do Rei deixa à tua mãe e, mesmo assim, porque o solar pertence a ela própria, tal como os bens que na sua infância lhe foram dados pela falecida duquesa de Vendôme, que Deus guarde a sua alma - acrescentou, tirando respeitosamente o chapéu.

Sylvie não conseguiu deixar escapar um soluço. A duquesa Françoise morrera efetivamente em Setembro último, no velho hotel ao faubourg Saint-Honoré, onde regressara após a partida da grande expedição, para poder ficar mais perto das notícias. É verdade que tinha setenta e sete anos, mas a sua antiga vitalidade não conseguira resistir à dor que a esmagou, tal como acabou por vitimar o seu filho mais velho; ao que se dizia, Louis de Mercceur, cardeal-duque de Vendôme, ficara completamente prostrado pelo desaparecimento do irmão. E Sylvie sofrera tanto mais com a sua morte, porquanto o exílio a que estava forçada proibia-a de efetuar uma derradeira visita àquela que para ela fora uma segunda mãe e de ir rezar junto ao seu leito de morte.

Marie deslizou lentamente o braço sob o da mãe e, com passos pequenos, caminhou com ela de volta a casa.

- Pobre duquesa! - murmurou. - Dir-se-ia que a casa Vendôme foi vítima de um feitiço.

- Sim suspirou Perceval. Ela acabou por sobreviver aos seus três filhos, o que é a coisa mais cruel deste mundo. Deus proteja os dois rapazes sobre os quais, doravante, recai a responsabilidade do prestígio desta casa: o jovem duque Louis-Joseph, que tem apenas dezesseis anos e o pequeno Philippe que teve a sorte de regressar inteiro de Cândia... mas que, ainda assim, ficou inconsolável por não poder reencontrar o tio...

- Há muita gente que se sente inconsolável - murmurou Marie. - O mais difícil é ficarmos intimamente persuadidos que não voltaremos a vê-lo... que será preciso continuar a viver sem a sua presença.

- Continuas apaixonada por ele - cochichou Sylvie, colocando a mão sobre a da filha. - Não devias ter-lhe devolvido a palavra que deu...

- Mas sim, eu agi corretamente! Admitindo que ele tivesse ido até ao desfecho desse casamento, acabaria por detestar-me...

Para desanuviar a atmosfera, Perceval mudou de assunto perguntando:

- A nossa partida estorva certamente os teus planos. Estavas a contar ficar aqui alguns dias?

- Não, não estava. Passei a correr... para fazer as pazes convosco, antes de largar para o alto mar, pois nunca sabemos o que este nos reserva. Madame vai para Inglaterra. O Rei envia-a ao encontro do seu irmão, o rei Carlos II, para estabelecer um tratado entre os dois reinos. De certo modo trata-se de uma espécie de embaixada extraordinária. Claro que faço parte dela, mas a viagem será breve: Monsieur, que está furioso desde que o cavaleiro de Lorraine foi exilado, não autoriza a mulher a ir mais longe que Douvres, onde permaneceremos apenas três dias.

- Isso é tão estúpido quanto cruel! - observou Perceval. - Quando o Rei decide...

- Monsieur nem sempre se verga. Está morbidamente ciumento dos sucessos de uma mulher que detesta desde a morte do filho. A vida nem sempre é divertida nesses castelos, quer se trate do Palácio Real, de Saint-Cloud ou de Villers-Cotterêts. Foi preciso acabar por aceitar certas restrições... Mas tenho ainda algo a dizer-vos... uma decisão que tive de tomar e que espero que me perdoeis...

- Mais um perdão? - perguntou Sylvie, surpreendida.

- Sim... pedido de avanço. O perdão antes do pecado ser cometido... Este homem que vem para aqui apossar-se do vosso lugar, esse tal Saint-Rémy... parece estar apaixonado por mim há muito tempo. Resolvi desposá-lo.

- O quê?!

- Ainda hoje, parto de passagem para Inglaterra.

A mesma exclamação incrédula foi proferida a duas vozes. Enquanto a duquesa empalidecia, Perceval ficava todo vermelho:

- Estás doida? - increpou.

- Não. Tentai compreender! O Rei deseja este casamento porque vê nele um meio para voltar a inserir um ramo perdido no tronco principal.

- O Rei! - cuspiu Perceval. - Outra vez ele!

- E sempre ele! Julga que teremos filhos. Se eu não aceitar, casá-lo-á com outra pessoa. Estou portanto decidida a aceitá-lo e assim poderei assegurar-vos que nunca haverá filhos...

- Não, rogo-te que não faças isso! - implorou Sylvie. - E não te fies no fato desse homem ser mais velho do que tu. Se lhe recusares o que o casamento lhe dá direito a exigir, ele pode forçar-te a fazê-lo. Felizmente ainda ignoras a que extremos de violência pode chegar um homem que deseja uma mulher - acrescentou, sentindo um arrepio de horror retrospectivo. - Isso deixa sequelas incuráveis...

Mas Marie não queria ouvir mais nada. Num movimento precipitado abraçou a mãe, beijou-a prolongadamente na cara e depois libertou-se, para correr de volta à sua carruagem:

- Para isso é preciso que ele tenha tempo! - gritou no meio do vento que se levantava. - Não vos atormenteis por minha causa! Conto sempre com uma amiga segura, Mme. de Montespan, e Madame também gosta muito de mim. Elas saberão ajudar-me...

- Meu Deus! - exclamou Sylvie levando as mãos à cara. - Mas o que pretende ela fazer? Desposar esse assassino? Partilhar a sua casa e a sua cama? Mas isto é inimaginável!

Perceval encolheu os ombros e voltou a pegar-lhe no braço:

- Nada é inimaginável na corte de Luís XIV, mas confio em Marie. Ela tem caráter e bem sabeis que os seus propósitos são inflexíveis. E ficará protegida, caso a bela Athénais lhe tenha guardado alguma amizade. Diz-se que o Rei está louco por ela!

Parou de falar: o abade de Résigny descia ao seu encontro, de breviário na mão, como se se tratasse de um dia como todos os outros e na sua atitude nada havia que indicasse uma próxima partida.

- Para onde ides, abade? - perguntou Raguenel, com alguma rispidez. - Já não está na altura de ir rezar para o parque. Não vindes conosco?

O preceptor de Philippe, que desde que regressara não diminuíra muito de volume, sorriu tristemente:

- Não, não vos acompanharei, porque refleti e porque também rezei muito em todos estes últimos dias e, senhora duquesa, se me permitis, ficarei por cá...

- O quê, ides abandonar-nos? Quereis experimentar como é com o novo senhor? - trovejou Perceval, vermelho de cólera. - As coisas não continuarão na mesma! Por exemplo, Lamy, de quem tanto gostais, passará a servir no palácio do Luxemburgo. A senhora duquesa envia-o de volta a Mademoiselle para lhe agradecer a sua amabilidade. De qualquer modo ela não poderá continuar a manter o mesmo nível de vida. Ireis emagrecer, meu amigo!

O pequeno abade ficou subitamente de lágrimas nos olhos:

- Sei disso tudo e conheceis-me muito mal, cavaleiro! Aliás, se a Jeannette vai atrás da sua senhora, o Corentin não fica por cá como intendente do domínio?

- Com certeza! Não se pode deixar abandalhar o ducado, votando-o a um completo abandono. O... novo dono - as palavras custaram-lhe tanto a sair como se tivessem de ser cuspidas - poderia pedir contas da ocorrência. É um homem que se interessa muito pelo assunto e Corentin não fica cá por prazer...

- E eu também não! Ele cuidará dos bens terrestres e eu cuidarei da alma de Fontsomme! Gostei demasiadamente do meu jovem duque para não tentar todos os possíveis para fazer compreender a esse homem que ele está a cometer um crime e que...

- É ao Rei que é preciso fazer compreender isso!

Nessa altura Sylvie interpôs-se entre os dois homens, um que se lamentava e o outro que se enfurecia:

- Por favor, Padrinho! Não deveis tratar o abade dessa maneira. Ele está a dar-nos uma grande prova de amizade e não está a trair-nos, como pareceis acreditar. Contudo, recuso-a: esse Saint-Rémy é perigoso...

- É possível que assim seja mas, mesmo assim, ficarei aqui. Reparai: estou inteiramente disposto a tornar-me o vosso espião e talvez me seja dado desempenhar um bom trabalho...

- E por que não, afinal de contas? Já vos esquecestes, caro padrinho, daquilo que Marie nos acabou de dizer?

- Não... não me esqueci de nada! Peço-vos muitas desculpas, senhor abade! Tenho tendência para levar a mal tudo o que me dizem desde há algum tempo... devo estar a tornar-me um velho rezingão... Obrigado pela vossa dedicação! Devia ter-me apercebido que essa era a vossa única intenção.

Chegou-se ao abade para lhe dar um abraço fraterno e depois largou-o tão bruscamente que o desgraçado teria caído se não fosse Mme. de Fontsomme segurá-lo. Ela inclinou-se, por sua vez, para depositar um beijo naquela face:

- Talvez venhais a ser mais útil do que julgais. Até à próxima, caro abade! Tereis sempre um lugar reservado em minha casa... Ah! Eis as pessoas da aldeia que estão a chegar! Penso que já é tempo de nos despedirmos delas...

Enquanto o pátio principal de Fontsomme era palco de uma cena comovente durante a qual a duquesa e o cavaleiro de Raguenel puderam ver até que ponto eram estimados, Marie dirigia-se para Saint-Germain, onde devia juntar-se ao enorme cortejo que, partindo dali, iria acompanhar Madame até Dunquerque. A jovem sentia-se aliviada, feliz até, por ter posto termo a uma separação tão cruel para todos; também se encontrava animada por uma coragem que fora buscar no renovar da ternura que sentia pelos seus. Já tinham sofrido quanto bastasse e Marie achava que agora devia ser ela a apoiá-los, dado que Philippe, o querido irmãozinho, já não voltaria. Philippe, que ela tanto amava, e que Saint-Rémy quisera matar! Tinha a obrigação de fazer aquele homem pagar toda a sua malvadez e tudo o que fizera durante todo aquele tempo ao aproveitar-se dela. E isso no preciso momento em que ele julgava ter triunfado!...

Com um gesto mecânico, procurou um pequeno pacote de veludo escondido no peito e segurou-o durante um momento, enquanto o acariciava com a ponta dos dedos com um sentimento semelhante à ternura. Dispunha ali de material que chegasse para libertar a família do seu pesadelo.

Dezoito meses antes, quando Marie lutava contra o desespero em que caíra após as revelações de Saint-Rémy e após ter renunciado ao seu sonho, Athénais, que estava então quase em guerra declarada contra La Vallière, aconselhara-a a procurar uma vidente:

- Ela revela coisas surpreendentes e pode ajudar-vos a realizá-las. Mlle. Dês Oeillets conduzir-vos-á a casa dela...

E foi deste modo que, certa noite, seguindo a acompanhante da bela marquesa, Marie deu por si no fundo de um jardim de uma pequena casa situada na rue Beauregard, no faubourg de Villeneuve-sur-Gravois, que crescera no início do século à volta da igreja de Notre-Dame-de-Bonne-Nouvelle. Fora aí, numa espécie de gabinete mobilado com uma mesa, duas cadeiras e uma tapeçaria, que encontrara uma certa Catherine Monvoisin, chamada simplesmente Voisin, uma ruiva assaz bela, mulher dos seus trinta e sete ou trinta e oito anos, vestida com uma capa de veludo púrpura bordada a ouro e com uma saia de um verde mar debruada a “ponto francês” e que quase fizeram rir Marie, muito mais do que transmitir-lhe confiança. Porém, o que ela lhe disse despertou-lhe a atenção, pois descreveu muito bem a situação em que a jovem se encontrava pelo menos nos seus traços gerais! Onde deixou de segui-la foi quando ela chegou àquela parte em que lhe predizia um novo amor, um amor que viria de longe.

Nessa altura disse-lhe esquecereis esta paixão que vos contraria; mas antes ireis passar por uma prova... difícil. Ainda não sei o que será, mas não vos esqueçais que há remédios para todos os males, e que sou uma conhecedora em matéria de remédios. Voltaremos a ver-nos na altura devida...

Ao sair da vidente, Marie só estava meio convencida. Mas que ideia mais esquisita a de imaginar sequer que um dia ela poderia deixar de amar François, o único homem que lhe conseguira fazer palpitar o coração desde os primórdios da infância! Porém, quando a terrível notícia, duplamente dolorosa para ela, percorrera a cidade e a Corte e, sobretudo, quando foi questão de dar o título de duque de seu irmão a Saint-Rémy, a esse homem a quem permitira tornar-se seu amigo e enamorar-se dela mas que, agora, desprezava de corpo e alma, Marie lembrara-se da Voisin. Voltara a vê-la, só mais uma vez, e a vidente entregara-lhe aquele saquinho de pó branco que guardava na palma da mão.

- Ninguém se espantará que um homem já idoso adoeça, sobretudo depois de desposar uma donzela muito nova para ele... Tudo ficará resolvido em poucos dias e depois podereis sonhar com um novo futuro.

- Veneno! O que a Voisin lhe vendera fora veneno e de início Marie ficou horrorizada com o que lhe tinham oferecido, mas como nos seus frequentes pesadelos julgava ouvir ainda a voz desesperada da mãe que lhe gritava: “esse homem queria matar de forma horrível o teu irmão”, acabou por habituar-se à ideia de vingar de uma só assentada tudo aquilo que aquele homem, que ousava amá-la, acabara por infligir aos seus. Até a sua ida para Cândia com a frota, “a fim de vir coberto de suficiente glória para ser digno de vós!” acabara por adquirir uns sinistros contornos. E se fosse ele que tivesse desferido o golpe mortal a Philippe? No meio da confusão, devia ser fácil... A partir daí, a simpatia e a amizade que nascera à sombra dos plátanos do castelo de Sollies foi substituída por uma sensação de verdadeiro horror. A determinação em transformar-se em justiceira e em acabar com ele ocorreu-lhe com toda a naturalidade. Bastava ter a coragem para levar até ao fim uma tarefa que lhe repugnava, mas que era necessária. Depois, poderia expiar o resto dos seus dias num convento. Ao menos aqueles que amava poderiam envelhecer em paz...

Estava tão absorta nos seus pensamentos que não deu pela mudança do tempo. Chovia a cântaros ao chegar a Saint-Quentin e a velha e orgulhosa cidade da Picardie, que tantas vezes tivera de enfrentar as guerras com Espanha, parecia debater-se com um outro tipo de invasão. Marie teve de renunciar à ideia de ir até ao magnífico hotel dos Paços do Conselho, onde sabia que o Rei, as Rainhas e as princesas passariam a noite. Saiu da carruagem que lhe emprestara Mademoiselle deixando-a desenvencilhar-se sozinha e abriu caminho através do pavimento enlameado, no meio de uma confusão de cavalos, viaturas, cavalheiros, damas e criados, todos mais ou menos molhados ou salpicados de sujidade. Imperando neste caos como uma espécie de farol condutor, Lauzun, montado num cavalo fogoso, que possuía pelo menos a vantagem de lhe conceder uma certa liberdade de ação, distribuía diretivas esforçando-se por pôr um pouco de ordem no meio daquele caos. Aliás, estava a desempenhar o seu papel pois, tendo sido nomeado alguns meses antes capitão da primeira companhia dos soldados da guarda real, foi a ele que o Rei confiou o comando da sua fabulosa escolta, constituída aproximadamente por trinta mil pessoas, que se dirigia rumo a Calais. O mais incrível é que, a pouco e pouco, a calma regressava e com ela, também, uma certa ordem, mesmo que Lauzun ainda não tivesse chegado ao fim dos seus trabalhos... Subitamente o seu olhar de águia descobriu Marie, que se esforçava corajosamente para chegar ao edifício comunal; voltou o cavalo na sua direção, chegou ao pé dela, debruçou-se estendendo-lhe uma mão e levantou-a para instalá-la na garupa do animal:

- Meu Deus! Que fazeis aqui? Julgava que Mademoiselle vos tivesse dado um coche para irdes até Fontsomme.

- É de lá que venho, mas o meu cocheiro já não podia avançar mais e preferi descer para não ficar bloqueada durante horas...

- Mademoiselle encontra-se no patamar de entrada dos Paços do Conselho. Vou levar-vos até ela...

Efetivamente, a princesa estava ali. Com um sorriso extasiado e sem se preocupar com a chuva, ela contemplava as peripécias de Lauzun, do qual isso já não era segredo para ninguém, ela se apaixonara perdidamente durante a parada em que o Rei entregara ao jovem o seu bastão de comando. Todos riam à socapa, mas com menos vigor desde que começara a circular um rumor inquietante, segundo o qual ela teria a intenção de desposá-lo, fazendo consequentemente daquele cadete da Gasconha um duque de Montpensier, primo do Rei e detentor da maior fortuna do reino. Ao vê-lo içar uma mulher para cima do cavalo ela franziu o sobrolho, mas descontraiu-se ao reconhecer Marie, que acolheu calorosamente:

- Eis-vos chegada, pequena! Passou-se tudo bem? Como vai vossa mãe?

- Receio que vá mal e quase não a encontrava: estava tudo a postos para a sua partida. Pouco depois de eu partir, teve de abandonar o castelo na companhia do cavaleiro de Raguenel, para se dirigir até ao solar de Conflans.

- O quê? Já? Mas o novo duque ainda não recebeu o seu título, pois não?

- Ela decidiu ir-se embora assim que recebeu a ordem de intimação do Rei. Não quer ficar à espera que a expulsem...

- Que abominação! - disse Lauzun, que se demorava fazendo olhinhos para a sua princesa. - Pobre duquesa encantadora, que destino mais cruel o seu! Ver este jarreta suceder ao filho que lhe morreu... a propósito, ouvi dizer que o Rei pensa levar-vos a desposá-lo?

- Sim. Desse modo, por perrogação especial, o título ser-lhe-á transmitido pelo ramo feminino...

- E ireis aceitar?

- Que remédio...

- Lauzun, regressai ao vosso trabalho! - cortou Mademoiselle. - Sois preciso. Vou levar Marie até junto de Madame. Ver-nos-emos mais tarde!

Quando as duas mulheres chegaram ao aposento que era destinado ao duque e à duquesa de Orleans, a voz furiosa e áspera de Monsieur ecoava até às vigas do teto. Mais uma vez, o príncipe entregava-se à sua ocupação preferida desde que tinham preso o seu favorito bem-amado: a de fazer uma cena de ciúmes à sua mulher. O tema teria sido de uma monotonia aflitiva se Madame não tivesse que sofrer cruelmente: “Não ireis ver o vosso irmão a Inglaterra se o Rei não me devolver o cavaleiro de Lorraine!”. Era um beco sem saída...

Quando Mademoiselle e a sua jovem companheira entraram, Madame, pálida, de traços vincados e de olhos fechados, estava estirada numa chaise longue, esforçando-se para não mais ouvir os berros do esposo que ia e vinha através do aposento como um urso enjaulado, só parando para mostrar um punho ameaçador à esposa. Marie foi logo ter com a sua senhora, enquanto Mademoiselle se esforçava, sem grande sucesso, por acalmar o príncipe enfurecido, que lhe disse.

- Na verdade, não sei por que motivo Madame se obstina tanto em querer atravessar a Mancha. Olhai para ela! Está meio morta e decerto não lhe resta muito tempo de vida. Aliás deram-me a conhecer uma predição segundo a qual eu haveria de casar-me várias vezes...

- Oh, primo! - protestou a princesa. - Não se dizem coisas dessas! Só podem trazer desgraça!

- É precisamente isso que espero! - retorquiu ferozmente Monsieur.

- Não fosse o Rei aparecer bruscamente e a cena ter-se-ia prolongado provavelmente pela noite dentro, tal como o príncipe se acostumara a fazer. Abarcou com um olhar o que se passava e ignorando as reverências que o saudavam, caminhou até à chaise longue, da qual Madame se esforçava por levantar-se.

- Não vos incomodeis, irmã!... Monsieur, vim pedir-vos um pouco de silêncio. Só se houve a vossa voz!

- Senhor, com ou sem a vossa autorização, continuarei a berrar até obter justiça e, aqui, estou em minha casa!

- Fazer justiça significa para vós a devolução de um amigo muito querido e que vos conduz à rebelião? Então vim dizer-vos o seguinte, irmão: não só deixareis Madame reunir-se ao rei Carlos II em Douvres, como tereis de autorizá-la a lá permanecer por mais de três dias, pois a missão que lhe confiei é deveras importante e não se coadunaria com tão curta estadia. Parece-me que serão necessários pelo menos quinze dias e, diria mesmo... dezessete, não? Que pensais?

- Nunca! Se me fizerem perder a cabeça, ela nem sequer sairá daqui.

- Muito bem. Então escutai ainda: o cavaleiro de Lorraine, encarcerado até agora na fortaleza de Pierre-Encize em Lyon, acaba de ser transferido para Marselha, para o castelo Dif, cujo clima é francamente mau. Além disso mandei que lhe retirassem o seu criado e que lhe proibissem toda a correspondência...

Sob o efeito do terror, a cólera de Monsieur baixou imediatamente e ele desatou a chorar...

- Senhor, não haveis feito isso..

- E ainda farei pior se me forçardes a tal! Meu irmão, ficai sabendo que nunca deixarei que ninguém se coloque entre mim e a minha política. Preciso que a França e a Inglaterra se aproximem. Por isso não terei piedade de ninguém e sobretudo de vós, que sois um príncipe francês. E se o cavaleiro de Lorraine me incomodar muito...

- Não, Senhor, meu irmão! Suplico-vos: deixai de fazê-lo sofrer! Não consigo suportar tal ideia. Meu Deus, o castelo Dif!

- A saída dele só depende de vós, ele será livre de ir para Itália... e a partir de lá, poderá reatar a sua correspondência.

Monsieur teve de render-se ao terrível olhar do seu irmão, aterrorizado com a ideia de não mais rever aquele que tanto amava...

- Sou um humilde servidor de Vossa Majestade - pronunciou, ao inclinar-se, antes de abandonar apressadamente a sala, como se o diabo corresse atrás dele.

Luís XIV ficou a vê-lo sair com um sorriso indefinível a bailar-lhe ao canto dos lábios e depois regressou para junto da sua cunhada, cuja mão beijou.

- Agora tudo decorrerá bem. Retomai a coragem e pensai apenas na alegria que vos espera!... Ah, mademoiselle de Fontsomme, estais por cá?

- Às ordens de Vossa Majestade - disse a rapariga, inclinando-se numa reverência.

- Folgamos muito por isso! Claro que fareis parte integrante das cinco damas que acompanharão Madame a Douvres. Na altura do regresso, M. de Saint-Rémy será apresentado à Corte e anunciaremos o vosso noivado. Só então é que ele receberá a investidura dos seus novos títulos e nomes.

- Como aprouver ao Rei!

- Gosto da vossa obediência. É verdade que fostes bem educada... Como recompensa, vossa mãe, a duquesa viúva pensionada, será autorizada a ficar em Paris onde bem entender, em vossa casa ou na do cavaleiro de Raguenel.

O emprego do termo “viúva pensionada” pareceu tremendamente cômico a Marie, dado que se ajustava tão mal a uma mulher sempre encantadora e que parecia desfrutar de uma eterna juventude. Mas mesmo assim não deixou de agradecer, pensando que Sylvie ficaria certamente feliz por poder regressar à rue dês Tournelles, à exceção de qualquer outro lado e, sobretudo, do hotel da rue Quincampoix, a partir do momento em que Saint-Rémy o tivesse ocupado nem que fosse uma hora... e ainda menos, naturalmente, quando ele tivesse morrido... Aliás, isso só a ela dizia respeito e era com um absoluto sangue frio, acrescido de um sentimento de resignação, que Marie encarava o futuro. Não imaginava ainda que a sua viagem a Inglaterra, fá-la-ia encontrar o impensável num caminho que lhe parecia já todo traçado...

Quando o Mary-Rose, o navio inglês que fora a Dunquerque buscar Madame e o grupo que a acompanhava e que os deixou no cais pavimentado de Douvres, onde Carlos II os esperava no meio de uma esplendorosa corte, o olhar de Marie cruzou-se com o de um gentil-homem que, logo que ela apareceu, ficou instantaneamente preso nela. Ele tem vinte e oito anos, chama-se Anthony, é lorde Selton[44] e uma das personagens chegadas ao rei; muito rico, é a própria sedução em pessoa. Tão moreno quanto Beaufort era louro, mas com os mesmos olhos azuis cintilantes, arrasta pela asa muitos corações aos quais não liga nenhuma, porque sente a necessidade do absoluto que animava os cavaleiros de antanho. Quando avista Marie, sabe imediatamente que encontrou aquela que sempre procurou e, pelo seu lado, Marie sente que o seu coração se comove como nunca lhe havia acontecido: um verdadeiro amor à primeira vista que petrifica os dois jovens a ponto de despertar a curiosidade divertida dos que os rodeiam, sobretudo de Madame, que ficaria feliz se pudesse deixar Marie em Inglaterra, libertando-a de um casamento odioso. E durante todo o tempo que vai durar a presença da princesa no espaço forçosamente reduzido de Douvres onde as pessoas se encontram um pouco apertadas Monsieur acabou por aceitar o prazo da estadia, mas fez questão que ele se desenrolasse naquele local, não fosse a sua mulher conhecer a glória de uma recepção faustosa em Londres. Anthony Selton e Marie de Fontsomme só se separariam para as horas consagradas ao sono.

Perante esta nova paixão que a deslumbra ao ponto de varrer tudo da sua memória, Marie começa por viver dias de encanto no meio de festas, de passeios de barco, de pequenos-almoços sobre a relva, tão ao gosto de Carlos II, o final de Maio e o princípio de Junho são soberbos! mas, à medida que o tempo passa e que as horas escoam, a recordação de quem ela é e daquilo que a espera em França regressam-lhe a pouco e pouco à memória e a sua alegria apaga-se lentamente como uma lâmpada com falta de óleo. Apercebendo-se que se metera num beco sem saída, tenta então evitar o jovem; intuito difícil no recinto do velho castelo, dominado por um enorme torreão que fora construído pelos Plantagenetas. E, numa noite em que foi rezar para a igreja de Saint-Mary-in-Castro que oficiava como capela, ele veio ter com ela, pedindo-lhe ali mesmo para desposá-lo, com uma solenidade que testemunhava a seriedade do seu compromisso.

- É impossível - respondeu ela, com os olhos repletos de lágrimas. - Estou noiva e tenho de me casar quando regressarmos a França...

- Eu sei, e também sei que tereis de desposar um homem quase velho e que não vos poderá agradar...

- Mas... como o sabeis?

- Por intermédio de Madame, a quem fui pedir a vossa mão antes de a pedir a vós própria...

- E que vos disse ela?

- Que desejava de todo o coração que vos tornásseis condessa de Selton, mas que não podia dispor da vossa mão e que só o Rei de França...

- Infelizmente é ele quem deseja este casamento. Não há meio de lhe escapar...

- Há sim. Ficai por cá! Madame confiar-vos-á à rainha Catherine, enquanto se espera que chegue a duquesa vossa mãe. Ela vive exilada, ao que me disseram. Terá, pois, facilidade em deixar a França e aqui, em Inglaterra, será acolhida com grande alegria por todos os meus...

- Bem sabeis que isso também é impossível. Oh, não tenho dúvidas que a minha mãe aceitaria de bom grado que vos desposasse, pois ela sempre quis apenas a minha felicidade, mas o Rei Luís poderia fazer recair todo o seu descontentamento sobre Madame...

- Ora, ora! Então ela não acaba de firmar com o irmão o tratado que Luís XIV tanto desejava e que nos torna inimigos da Holanda, deixando-lhe assim o caminho aberto? Só poderá é agradecer-lhe.

- Certamente, e sei que o fará, pois ele tem uma afeição particular por ela mas, mesmo assim, poderia ficar zangado, afastando-se dela, privando-a dessa forma de um apoio de que ela tanto precisa. Monsieur é um temível esposo que torna a vida infernal à mulher, a ponto de afetar o seu estado de saúde. Não sabeis que quando foi questão de empreender esta viagem que ele não desejava, não deixou de persegui-la com toda a assiduidade para que ela engravidasse e não pudesse partir?

Anthony não conseguiu controlar o riso:

- Quem prefere os homens? Mas que estranho príncipe me saiu! Custa a acreditar que descenda de Henrique IV, tal como acontece a seu irmão, o Rei, e ao nosso Carlos II, que adoram, ambos, as damas! Seja como for, abandonemos este assunto! Estou a ver que a única coisa que me resta a fazer é ir eu próprio pedir a vossa mão ao vosso Rei. Portanto irei convosco para França, na companhia das pessoas que constituirão a escolta de honra da princesa.

- Não, rogo-vos que não o façais! - exclamou Marie, dividida entre a inquietude e a alegria de se saber tão firmemente amada. - Ele recusar-se-á e vós ficareis numa má situação.

- Minha cara, podeis dizer o que bem vos passar pela cabeça... exceto que não me amais, o que seria falso. É melhor que fiqueis a saber: dentro de mim corre sangue normando, bretão e escocês, que são os mais obstinados deste mundo e eu desejo-vos! Que Deus disso seja testemunha!

Tendo acabado de falar pegou-lhe na mão, que estava gelada, depositou nela um grande beijo e, em seguida, girando os calcanhares, afastou-se da igreja a correr, deixando Marie muito desamparada e não sabendo mais em que ponto se encontrava. Por sua vez decidiu ir ter com a sua senhora.

Calhou num mau momento. Madame estava muito cansada com toda aquela agitação, sentia-se indisposta e acabara de recusar ao irmão que este lhe deixasse a mais nova das suas damas de honor, uma encantadora bretã, chamada Louise-Renée de Kéroualle e pela qual ele se apaixonara.

- Minha cara, não dispondo do poder de quebrar a vontade de Luís XIV nada posso fazer por vós... tal como não poderei mudar a determinação d’Anthony Selton. Ele ama-vos para toda a vida e é preciso deixá-lo agir à sua maneira.

- Mas ele poderá ter de pagar por isso...

A princesa fez um gesto que varria para longe essa questão:

- Ele já é suficientemente crescido para saber no que se vai meter. Os homens têm uma acentuada tendência para se servirem de nós. Deixá-los resolver os seus assuntos quando combatem em nosso nome.

No entanto, um pouco mais tarde, prometeu a Marie que falaria com o rei Carlos II para que ele retivesse Anthony em Inglaterra tanto tempo quanto possível... Obediente, o jovem inclinou-se e partiu para Edimburgo, para se encarregar da missão que lhe fora confiada. Mais segura, mas simultaneamente compungida, Marie nem sequer teve a dolorosa felicidade de voltar a vê-lo uma última vez. Deste modo, tanto quanto fora feliz a chegada da princesa à sua terra natal, a sua partida revestiu-se de grande tristeza. Como se adivinhasse que não voltaria a vê-la, Carlos II não conseguia libertar-se daquela que, com tanta ternura, continuava a chamar de “queridinha”. Acompanhou-a até ao mar e por três vezes voltou atrás para abraçá-la.

Encostada à balaustrada do navio, Marie contemplava com olhos embaciados pelas lágrimas as altas falésias inglesas que desapareciam na bruma da manhã azulada. O seu coração pesava-lhe contudo menos do que receara, porque apertava de encontro a si dois pequenos cães “King Charles”, que um criado lhe remetera pouco antes de embarcar, juntamente com uma carta. Ou antes, um curto bilhete, mas que dizia tantas coisas: “Nunca renunciarei a vós, porque vos amo mais que a tudo no mundo”.

Era reconfortante sentir-se amada daquela maneira, mas ela sabia que estava irremediavelmente acorrentada pela vontade de Luís XIV e pela sua própria decisão, pois era a única maneira de arredar definitivamente Saint-Rémy do caminho de sua mãe, apesar do fato de Madame, apiedada por aquela tristeza silenciosa que sentia ao pé de si e que se juntava à sua, e munida de uma nova confiança que lhe garantia o êxito da sua missão, lhe ter prometido, espontaneamente, que haveria de falar ao Rei para afastá-lo do que ela chamava “uma má ação”.

- Minha pequena, enquanto não estiverdes casada com esse homem, deveis continuar a ter esperança - repetia-lhe, e Marie, a pouco e pouco, agarrava-se a essa convicção, àquelas palavras tão aliciantes...

Infelizmente, dezoito dias depois, a jovem princesa que tão bem soubera seduzir Luís XIV morria no meio de atrozes sofrimentos, no castelo de Saint-Cloud, depois de ter bebido um copo de água de chicória... Uma morte tão repentina, tão terrível, que a palavra “veneno” passa de boca em boca até se cochicha o nome do culpado, um tal marquês d’Effiat, pago em Roma pelo cavaleiro de Lorraine! e Luís XIV, aterrorizado, acaba por mandar proceder imediatamente a uma autópsia[45], na presença de lorde Montagu, embaixador de Inglaterra.

Alguns dias mais tarde, numa basílica de Saint-Denis coberta por longas cortinas pretas que lhe emprestam uma atmosfera opressora, Marie, esmagada simultaneamente pelo luto rigoroso ordenado pelo Rei e pela sua própria tristeza por ter perdido a princesa que amava, ouvia troar a voz de bronze daquele Bossuet que Henneta[46] revelara à Corte por ocasião das recentes exéquias de sua mãe, “Madame está a morrer, Madame morreu. Quem teria podido acreditar que, enquanto vertia tantas lágrimas neste local, ela acabasse por vos reunir a todos aqui, para que vertêsseis as vossas lágrimas por ela”.

Não, ninguém o teria acreditado Nem sequer Monsieur, que aliás nem está presente e Marie sabe muito bem que sob aquele caixão dourado descansa agora a fraca esperança que ela ainda conservara para impedir que Samt-Rémy sucedesse ao seu irmão Philippe. O seu destino está marcado. Já o estava quando o Rei se aproximara dela dois dias antes.

- Eis-vos desempregada, menina. Mas podeis desde já unir-vos às damas de honor da Rainha e, mais tarde, depois do vosso casamento, passareis a fazer parte das suas damas de honor

Fora preciso agradecer. Agora Marie estava com pressa que tudo acabasse rapidamente, pois até temia a altura em que tivesse de se encontrar com Fulgent de Saint-Rémy.

Na realidade, deixara de vê-lo desde que ambos haviam chegado a Paris. Durante a noite que se seguira ao seu regresso de Fontsomme, passara todo o percurso a repetir irritadamente a si mesma as palavras terríveis que a sua mãe pronunciara, sem contudo duvidar delas, aquele Fulgent tão delicado e afetuoso, que acabara por se tornar um amigo com o qual podia contar, só almejava apossar-se do título e da fortuna dos seus a ponto de ter tentado assassinar uma criança, o seu irmão mais novo. Lançara-lhe a acusação à cara, explodindo como a tampa de uma panela fervente muito bem tapada, dizendo-lhe ainda, no final da viagem, que esperava nunca mais voltar a vê-lo. Ele nem sequer se defendera, contentando-se em dizer-lhe que a sua causa era justa, que se sentia fortalecido pelo seu direito e que estava tanto mais decidido a obter ganho de uma causa que há tanto defendia porquanto se apaixonara por ela e que só desejava readquirir os seus bens para depositá-los a seus pés. Ela rira-se dele:

- E haveis acreditado que eu aceitaria tal coisa? Na verdade sois louco.

- Talvez o seja, mas só descansarei quando fordes minha e, para isso, estou disposto a recorrer a todos os meios.

A última imagem que guardara dele fora apenas a da sua silhueta que se recortava contra o pôr do Sol, de pé no pátio dos Correios Apoiado numa bengala, ele parecia ter ficado ali petrificado para toda a eternidade, enquanto ela mandava que dois carregadores lhe transportassem os seus cofres, deixando o local para se dirigir para o asilo que escolhera, o Convento da Madalena, na rue des Fontaines...

O castelo de Saint-Germain apresentava uma arquitetura interior que muito convinha à vida íntima de Luís XIV. Os seus aposentos eram contíguos aos da Rainha e ficavam mesmo por cima dos da duquesa de La Vallière e dos de Mme. de Montespan, pois ainda não tinha optado por qualquer das duas, mesmo aumentando, de dia para dia, a sua paixão pela deslumbrante Athénais. Não conseguia afastar por completo uma mulher que lhe dera seis filhos embora só dois estivessem ainda vivos e cuja fidelidade amorosa ele bem conhecia. Em Saint-Germain podia quase viver “em família” com as suas três mulheres, ficando por lá o mais que podia.

Esta também era uma ótima resolução para Marie pois, não sendo o serviço junto a Maria Teresa dos mais absorventes, isso permitia-lhe ver a sua amiga Athénais tantas vezes quantas lhe apetecia. Nesse dia, ao descer aos aposentos de Mme. de Montespan, enquanto fazia tempo para se juntar ao jogo da Rainha, encontrara Lauzun, ali instalado como se estivesse em sua casa e falando com a marquesa num tom despreocupado e alegre que lhes era tão familiar, enquanto Mlle. des Oeillets acabava de compor as pérolas e os diamantes que enfeitavam a cabeleira da sua senhora. Estendido numa poltrona, ele pôs-se de pé quando a jovem entrou e apoderou-se da mão dela que se apressou em beijar com uma gentileza que não se lhe via frequentemente. Desde que ela recusara o seu pedido de casamento, a amizade entre eles não sofrera ainda nenhum abalo.

- Mas que ar tão triste, minha filha! - exclamou. - Graças a Deus, isso não afeta a vossa beleza, pois pareceis-me mais encantadora que nunca! Estávamos precisamente a falar de vós...

- De mim? Mas eu não sou um tema de grande interesse.

- O que é que eu vos dizia? - exclamou a marquesa, ao introduzir um dedo hesitante num cofrezito bem recheado, para de lá tirar uns brincos. - A nossa Marie padece de um amor contrariado: a esta hora devíamos estar a celebrar as suas núpcias com o belo lorde Shelton e em vez disso vamos casá-la com um jarreta a quem se ofertou o seu título de família...

- Por favor, Athénais - suspirou Marie - já discutimos esse assunto e bem sabeis qual o nó da questão: eu “tenho” de desposar M. de Saint-Rémy, que esta noite será senhor de Fontsomme. Caso contrário a minha mãe poderia sofrer ainda mais.

- Porque julgais que ela está feliz com este casamento? - disse Lauzun, com um ar subitamente grave. - Um genro que é uns dez anos mais velho que ela e que não se sabe de onde veio?

- É óbvio que ela teria preferido qualquer outra pessoa, mas M. de Saint-Rémy é protegido de M. Colbert, e ela já enfrentou demais a cólera do Rei. Além disso, ficou num estado de grande fragilidade desde aquela doença da qual esteve prestes a morrer.

- Um duque de Fontsomme que é tirado da manga de um filho de mercador de tecidos? - troçou Lauzun. - É o mundo ao contrário. E vós, marquesa? Vós, que sois idolatrada pelo Rei, nada haveis podido fazer para evitar esta... mascarada?

- Nada. Não é que não tenha tentado, mas... o nosso senhor parece alimentar uma raiva particular contra a duquesa, cujas raízes procuro debalde encontrar. No entanto, pretende-se que outrora ele lhe tinha um verdadeiro afeto. Tudo mudou a partir da morte da Rainha-Mãe...

- Penso que se trata da necessidade de varrer os derradeiros vestígios de uma antiga corte que conheceu o reinado de Mazarin e a triste posição a que ele ousava submeter o Rei! Mme. de Schomberg foi afastada ao mesmo tempo. Não sendo lá muito humano, no fundo não deixa de ser muito normal...

- Precisamente! É perfeitamente humano! - cortou, célere, Athénáis. - Mas o capitão dos soldados da guarda real não deveria estar a esta hora na antecâmara do Rei? Está quase na hora.

Lauzun girou nos seus tacões vermelhos e ofereceu um sorriso deslumbrante à sua amiga (dizia-se até que esta fora uns tempos sua amante!):

- Eis que me pedem, educadamente, para sair! Tenho de ir onde o dever me chama! Até logo, belas damas!

E desapareceu, depois de uma saudação que teria feito inveja a um dançarino.

Mme. de Montespan levantou-se, sem deixar de olhar a sua bela imagem refletida no espelho, fez voltejar o seu vestido de cetim do mesmo azul que o dos seus olhos e veio pegar no braço da amiga:

- Marie, tendes razão em querer obedecer ao Rei. É a sabedoria que fala. Compete a vós verdes o que devereis fazer depois para que o vosso suplício não dure demasiado!

Momentos mais tarde encontravam-se ambas no Grande Gabinete da Rainha, onde se tinham disposto as mesas de jogo. Aqueles que eram admitidos a participar, formavam um conjunto colorido, no qual os homens e as mulheres, conhecendo perfeitamente o gosto do seu senhor pelas pedras preciosas, rivalizavam entre si para deslumbrá-lo com os seus reflexos à luz terna dos candelabros de numerosas velas.

Trajando um vestido de veludo preto generosamente bordado a prata, realçado pelo vermelho claro de que tanto gostava, ostentando enormes pérolas e diamantes em forma de pêra colocados alternadamente de forma a melhor realçar o seu rasgado decote, e com outras belas pérolas junto ao pescoço, a Rainha estava imponente e, ao mesmo tempo, magnífica; no entanto, no meio de todos aqueles reflexos, Marie depressa deu pela presença de Saint-Rémy que, de pé, junto a Colbert, olhava para todos os lados: nessa noite dava os seus primeiros passos no meio da Corte e estava visivelmente impressionado. Apesar do seu fato de cetim de malva profusamente bordado a prata, ela achou-o horrível, o que era exagerado, pois o homem continuava magro apesar da sua idade e, ao esconder uma calvície avançada, a peruca que trazia acabava por favorecê-lo. Além disso, o seu rosto, de feições muito irregulares, não era assim tão feio, mas o coração da jovem conservava a imagem de Anthony Selton, o que impossibilitava qualquer termo de comparação.

O Rei surgiu, esplendoroso, como de costume. A sua paixão pelas pedras preciosas transparecia na magnificência quase oriental das suas roupas, nos laços dos sapatos, no cinturão cosido a diamantes e na bainha da sua espada. Brilhava como o Sol e gostava cada vez mais que o comparassem ao astro do dia. Saudou à sua volta, dirigiu uma palavrinha ao irmão que, num fato de lilás bordado de pérolas, reencontrava com prazer evidente uma cor que lhe convinha mais do que o preto, e quedou-se um instante para falar com a sua prima. Também Mademoiselle parecia transformada: penteada com grande requinte, trajando colorações outonais que condiziam às maravilhas com o seu ar fresco e com os seus magníficos cabelos quase ruivos, era evidente que a princesa vivia as horas de encanto que são as dos amores felizes. Na altura de se sentar à mesa que lhe tinham preparado, o Rei veio até junto de Maria Teresa beijando-lhe a mão e aproveitando a ocasião para apresentar Saint-Rémy por intermédio de Colbert, antes de anunciar que, dada a sua filiação, ele estava autorizado a entrar na posse do nome e do título de duque de Fontsomme no dia em que desposasse a sua última herdeira. Marie teve de avançar e pôr a mão na do homem que jurara matar e até esse contato, se bem que atenuado pelas luvas, fê-la estremecer:

- Esperamos que este casamento ocorra o mais cedo possível - acrescentou Luís XIV. - Eu e a Rainha estaremos presentes e é com prazer que assinaremos o contrato que permitirá a uma nobre família prosseguir com a sua progenitura... Agora, vamos ao jogo!

Enquanto que, de acordo com o estatuto de cada um, as pessoas se dispunham à volta de uma mesa ou ficavam a olhar de pé, Marie, de lágrimas nos olhos, recuou para o meio das damas de honor como se quisesse desaparecer. Foi em vão que o seu olhar carregado de dor procurou o conforto de outro que se mostrasse um tanto compreensivo, mas não encontrou nenhum. Nem o do capitão d’Artagnan que, ao vê-la, se mostrava sempre tão amistoso, pois ele estava ausente naquela noite. Quanto aos outros, Athénáis e Lauzun tinham sido possuídos pelo demônio do jogo. Ela viu Lauzun e isso fez-lhe pena sentado diante de Saint-Rémy, à mesa do jogo do trinta-e-um, presidida por Monsieur. Uma grande honra para aquele fidalgote arruinado pensou raivosamente e que podia tomar ainda maiores proporções se ele chegasse à mesa do Rei, caso ela não pusesse um termo àquilo tudo.

Pouco interessada pelo jogo, recuou por detrás da poltrona da Rainha que, por seu turno, já se encontrava completamente absorvida pelo jogo, até chegar ao pé do vão de uma janela, no qual se apoiou: ia ser preciso ficar de pé horas a fio, a ouvir apenas as rápidas palavras que os jogadores trocavam entre si e o tinir das moedas de ouro.

Aguentou este suplício durante aproximadamente uma hora quando, subitamente, explodiu um grito incrível, impensável em presença do Rei:

- Batoteiro!... Não sois mais que um miserável batoteiro!

O insulto partira, proferido distintamente, carregado de desprezo e logo acompanhado de um coro de “Ohs!” indignados. Lauzun levantara-se de repente e, inclinado na mesa do jogo, acusava Saint-Rémy, que entretanto empalidecera. E a voz mordaz prosseguia:

- Vi que haveis tirado essa carta da vossa manga! Com que então julgais que ainda estais a frequentar as tabernas de que sois assíduo frequentador? Cavalheiros, olhai: aqui está outra... e mais outra ainda!

Para rematar, esbofeteou o rosto do recém-chegado que se levantava lentamente com um olhar assassino nos olhos, procurando convulsivamente a bainha da espada.

- Haveis mentido - rosnou. - Se alguém está aqui a fazer batota, sois vós!

À volta deles os jogos tinham parado. O próprio Rei largou as suas cartas, levantou-se e aproximou-se da mesa:

- Senhor! - exclamou Lauzun com a sua costumada audácia - Vossa Majestade devia escolher melhor aqueles que honra com as vossas gentilezas. Este homem não tem lugar aqui... nem, aliás, em qualquer sociedade decente.

- Senhor - interveio Colbert, que acorria em socorro do seu protegido - só pode ser um equívoco! M. Lauzun deve ter-se enganado...

De modo totalmente inesperado, Monsieur imiscuiu-se no assunto:

- Enganado? Seria preciso que fosse cego, como todos nós aliás! Foi diante dos nossos próprios olhos que M. de Lauzun tirou da manga deste homem as cartas que ele lá tinha escondidas. Que ideia esta de o terem colocado à minha mesa! Se gostais tanto dele, meu irmão, por que não o guardastes na vossa?

- Senhor - tentou defender-se Saint-Rémy - estou a ser vítima de uma conspiração fomentada por aquela que sempre foi a minha inimiga, a duquesa de...

Uma mão pesada abateu-se em cima do seu ombro, cortando-lhe a palavra:

- Se pronunciardes esse nome, juro que vos corto a cabeça! - resmungou d’Artagnan, que entrara durante o jogo, e que tomara posição atrás da poltrona do Rei. - Não é muito elegante desculpar-se culpando outrem, sobretudo uma nobre dama que acaba de passar pela dor de ter perdido o filho ao serviço do Rei!

- Basta! - explodiu Luís XIV.

Os seus olhos, frios como gelo, fixaram os dois adversários e, depois, passaram ao capitão dos mosqueteiros. Como todos os presentes, sabia pertinentemente qual o desfecho inevitável de uma querela daquele tipo. Claro que teria podido mandar prender o batoteiro, mas recuou perante a angústia que se desenhava no rosto habitualmente impassível de Colbert. Se enviassem o seu protegido para a prisão, era a honra do intendente que iria sofrer e o Rei dava demasiado valor aos talentos do seu grande servidor. Voltou-se para d’Artagnan:

- Cavalheiro, fareis com que este triste caso seja resolvido como se deve entre gentis-homens, mas fora daqui. Ficai apenas a saber que preferimos ignorar tudo o que decidirdes.

Aterrorizada com a ideia do perigo que ia correr o seu bem-amado, Mademoiselle tentou intervir:

- Senhor! Isso é impossível! O Rei não pode...

Ele endereçou-lhe um sorriso trocista:

- De que falais, prima? Será que ocorreu algo que vos perturbou? Eu não dei por nada... continuemos pois o nosso jogo!

E foi pegar nas cartas que largara, enquanto d’Artagnan levava Saint-Rémy e Lauzun. Antes de abandonar a sala, este último, arvorando um largo sorriso, piscou o olho a Mme. de Montespan que, deixando Mme. de Gesvres sentar-se no seu lugar, foi buscar Marie, afastando-a para lhe dizer:

- Pedi autorização para sairdes, minha cara! É a única atitude que podeis tomar... pois estais prestes a perder o vosso noivo.

- Julgais que M. de Lauzun poderá?...

- Espetá-lo ou furá-lo com uma bala? Disso não tenho a menor dúvida, pois ele é uma das melhores espadas do reino e um atirador fora de série. O vosso Saint-Rémy não tem qualquer hipótese, mesmo que seja hábil no manuseamento da pistola que certamente escolherá, pois o uso da espada já não é para a sua idade... de qualquer modo é normal que abandoneis a Corte para vos refugiardes junto a vossa mãe. Todos compreenderão que quereis esconder... a vossa tristeza.

Marie passou uma mão trêmula pela testa:

- Athénais, não consigo acreditar no que me está a acontecer! Que sorte que o caro Lauzun se tenha apercebido de uma batota...

Mme. de Montespan inclinou-se por detrás do leque, que utilizou como um escudo protetor.

- Batota? Ela só existiu na imaginação fértil de Lauzun... e na incrível destreza dos seus dedos! Seria capaz de tirar uma carta do nariz de Sua Majestade! Agora apressai-vos! Irei visitar-vos a casa de vossa mãe. O pesadelo acabou!

- Então ele teria feito isso por mim? - sussurrou Marie, estarrecida.

- Por vós e pela vossa mãe. Tendes nele um verdadeiro amigo.

Uma hora mais tarde, numa clareira da floresta de Saint-Germain e na presença de d’Artagnan e de dois dos seus mosqueteiros, Lauzun matava efetivamente Saint-Rémy com uma bala entre os olhos. Marie, finalmente livre, foi saudada de manhã por uma aurora rosa e dourada que lhe pareceu a mais bela de sempre, deixando Saint-Germain numa carruagem da Corte. Sentia o coração aligeirado, a alma em paz e, sobretudo, imaginava a alegria da mãe e também a de Perceval quando dali a pouco lhes dissesse o que Lauzun acabara de fazer por eles os três. Ficou ansiosa por se despachar e debruçou-se à portinhola:

- Não podeis ir mais depressa? Queria chegar o mais rapidamente possível...

 

                        O QUE SE PASSOU EM CÂNDIA.

Depois do regresso triunfal de Marie à rue dês Tournelles, Sylvie deslocara-se todas as manhãs à capela do Convento da Visitação de Santa Maria para assistir à missa matinal. Ia sozinha, não aceitando que Marie ou Jeannette a acompanhassem.

- Tenho muitos agradecimentos a formular a Nosso Senhor por me ter devolvido a filha e por ter, finalmente, abatido o nosso inimigo! Quero estar só para dirigir a minha prece ao Senhor...

- Só? - protestou Jeannette. - Então, e as freiras?

- É diferente. As suas preces juntar-se-ão à minha sem desviar a atenção de Deus ou de Nossa Senhora e se vós também quereis ir à missa, há outras que se celebram por aí...

Como era seu hábito saiu portanto de missal na mão e, como uma simples burguesa, envolta numa grande capa preta encarapuçada que muito lhe agradava, pois desse modo sentia-se protegida. Desde que deixara Fontsomme, ela banira o aparato ducal ao qual se conformara para satisfazer as pessoas da aldeia: a carruagem e os seus criados de libré, o jovem servente que transportava a almofada de veludo e Jeannette que trazia o missal. Isso já não se ajustava a uma mãe cujo sofrimento nunca sararia e a uma mulher ainda sob efeito da cólera real. Contudo, nessa manhã ela sentia-se quase feliz: na véspera, Marie recebera uma carta de Mme. de Montespan, que a tranquilizava acerca do destino de Lauzun, que não deixara de atormentá-la. Uma vez concluído o assunto, qual seria o acolhimento que Luís XIV iria reservar àquele audacioso que não receara provocar um tremendo escândalo na sua presença, obrigando-o a fechar os olhos sobre um duelo que ele condenava firmemente? Mas, a esse propósito, a bela marquesa não deixava pairar nenhuma dúvida: “O Rei ralhou muito com M. de Lauzun pela sua louca temeridade, dizendo-lhe que merecia que lhe retirassem o seu posto que o enviassem para a Bastilha mas, finalmente, perdoou-lhe e fala-se novamente de um casamento entre ele e Mademoiselle. Nunca duvidei que fosse esse o desfecho, querida amiga: o Rei gosta muito do seu capitão da guarda que tanto o diverte - e isto aqui é uma confidência! - não estou muito longe de pensar que ele não está nada descontente de se libertar de um assunto para o qual M. Colbert o arrastara não sei por que obscuro motivo, e que ele sabia pertinentemente que desagradava a todas as pessoas de bom coração...”

Dada a hora tão matinal, poucas pessoas assistiam à pequena missa na capela que, através de um patamar e de umas escadinhas, dava diretamente para a rue de Saint-Antoine. Ainda assim, Sylvie escolhia ficar ao fundo, só se decidindo a avançar na direção do coro, iluminado por algumas velas, quando chegava a altura da comunhão. Deste modo, ao regressar da sagrada mesa, ficou ligeiramente aborrecida por constatar que, próximo do local onde deixara o seu missal, havia agora uma mulher ajoelhada, com o rosto coberto por um véu escuro e que, ainda por cima, estava escondido pelas suas mãos. Foi ajoelhar-se ao lado dela como se de nada se tratasse pois, quando se acaba de receber a hóstia, não é propriamente altura de dar livre curso às emoções. Mas, mal chegou ao pé desta vizinha imprevista, quase recuou instintivamente: a desconhecida exalava um cheiro a âmbar que ela não esquecera através dos anos, pois ele encontrava-se ligado a uma das suas piores recordações. A sensação foi tão forte que pegou no missal para mudar de lugar: nessa altura sentiu, ao lado, algo de duro que lhe era encostado às costas. Ao mesmo tempo, uma voz baixa mas autoritária, intimava-a:

- Não te mexas, senão mato-te imediatamente! Sem mais dúvidas.

Sylvie articulou:

- Chémerault! Vós, de novo!

- La Bazinière, se faz favor! Dir-se-ia que o tempo não contou para ti. Quanto a mim, achei-o horrivelmente longo.

O espesso véu que encobria a antiga dama de honor dissimulava-a bem, mas a sua voz não se alterara. Aliás, o ódio também não.

- Agradecia-vos que não me tratásseis por tu. Tenho horror a esses hábitos de peixeira.

- A minha linguagem é a que convém a uma mulher da tua espécie... duquesa de nada!

- No fim de contas isso não tem qualquer importância! Que me quereis?

- Vou levar-te a dar um passeiozinho. A minha carruagem está diante da porta... Temos tanto para contar!

Apesar de cochichadas, as palavras das duas mulheres não deixavam de transparecer a cólera, por um lado, e o calmo desdém, pelo outro.

- Dizei o que tendes a dizer, pois eu não me vou mexer. Não ousareis disparar numa igreja...

- Vou provar-te que isso não me estorva. E juro-te que vais sair daqui pois tenho de falar-te do homem que fizestes assassinar há quinze dias em Saint-Germain: Fulgent de Saint-Rémy... o meu amante!

A surpresa fez sobressaltar Sylvie, que quase gritou:

- Vosso amante? Mas esse homem estava sem dinheiro e vós sempre haveis sido uma mulher cara...

- Ele conseguiu ganhar muito e eu ajudei-o pois, fica sabendo, acompanhei-o por toda a parte... exceto a Cândia, é claro. Desde há alguns anos que me estabeleci em Marselha, íamos finalmente obter o que pretendíamos, quando tu e a tua filha vieram dar cabo de tudo. Nunca serei duquesa de Fontsomme, tal como sonhei desde a época do Grande Cardeal.

- A minha filha? Mas ela é que devia tornar-se duquesa ao casar com esse miserável...

- Chama-lhe miserável se quiseres mas, precisamente, ele não iria continuar a sê-lo por muito mais tempo. Depois, tudo viria parar às minhas mãos... Então, saís ou não?

O canto das religiosas encobrira o ligeiro ruído da disputa. O ofício terminava. As pessoas ajoelhavam-se para receberem a última benção.

- Disparai! - cochichou Sylvie. - Não me porei de pé...

- Julgas que não?

O cano da pistola deixou as suas costas para surgir sob o véu de uma das pessoas presentes:

- Se não vieres comigo, começo por matar esta...

Ouviu-se o ruído provocado pela lingueta da pistola. Sylvie levantou-se, compreendendo que aquela mulher, certamente meio enlouquecida, era capaz de tudo para chegar aos seus fins.

- Sigo-vos.

- Não, nada disso! Vais pegar no meu braço e vamos sair daqui muito tranquilamente como boas amigas que somos...

Se bem que aquele contato físico a horrorizasse, Sylvie deixou que Mme. de La Bazinière lhe pegasse no braço e, depois, sentiu novamente a pressão da arma, desta vez contra o seu flanco.

- Uma bala na barriga dói muito - sussurrou a mulher - e leva-se muito tempo a morrer, portanto, fica tranquila!

- E para onde vamos?

- Para o sítio em que decidi abater-te... de uma maneira que me dará o tempo todo para saborear a tua morte.

Chegaram à entrada da igreja. Ao fundo da escadaria uma carruagem esperava efetivamente por elas. Sylvie percebeu que se subisse estaria perdida e então decidiu arriscar tudo por tudo. Ao menos talvez alguém acorresse, conseguindo parar a assassina. Reuniu mentalmente as suas forças, pediu desculpa a Deus e empurrou a sua companheira tão bruscamente que esta escorregou, quase caindo escada abaixo, mas conseguindo mesmo assim segurar-se ao corrimão de ferro. Soltando um grito de raiva, esta puxou da pistola e disparou. Sylvie caiu com um grito de dor.

Não ouviu o disparo que a vingou imediatamente, proveniente da rua.

Não ficou muito tempo inconsciente. Quando abriu os olhos, acordada pela dor e por uma pungente sensação de desconforto, estava nos braços de um homem barbudo que a transportava correndo. Um pouco atrás, Perceval de Raguenel esforçava-se por segui-los. Ela murmurou:

- Cavalheiro, pousai-me no chão, devo conseguir andar...

- Estamos a chegar. Não vos mexais!

- Aquela voz! Tentou olhar melhor para o rosto, coberto por uma abundante vegetação loura e escondido sob um grande chapéu preto.

- Podereis dizer-me...

- Chiu! Calai-vos!

As portas do hotel de Raguenel abriram-se para lhes dar passagem. O homem que a transportava subia escada acima, seguido por Jeannette que guinchava como um animal aterrorizado e, finalmente, estendeu Sylvie sobre a sua cama, sentando-se ele na beira, enquanto Marie e Jeannette o faziam do outro lado, falando ambas ao mesmo tempo. Sylvie nem sequer as ouvia, tal como não sentia a sua dor: acabara de reconhecer Philippe naquele homem tão profusamente barbudo e cabeludo que lhe pegava nas mãos, contemplando-a cheio de ternura.

- Meu Deus!... Mas és mesmo tu? Não estou a sonhar? Tu estás... vivo?

- Pelos vistos!

Ela não desmaiou, mas estendeu os braços para apertá-lo de encontro a si. Ficaram muito tempo assim abraçados, chorando e rindo, sem encontrar nada para dizer, de tal modo estavam emocionados. Entretanto Perceval contava a Marie o que ocorrera frente à capela e como tinham assistido à cena, ao chegar ao local para irem buscar a duquesa, que Philippe pretendia sentir que estava em perigo. Cena à qual um jovem de excelente aspecto, mas de ar taciturno, pusera termo, abatendo a assassina com uma bala. Depois, os ocupantes da carruagem tinham levado a sua senhora e desandado dali, sem pedir contas a ninguém.

- Quem era esse homem? - perguntou Marie. - E como pôde ele encontrar-se precisamente no local certo, para disparar na altura exata sobre essa louca?

- Não é uma louca, é a viúva do financeiro La Bazinière e inimiga jurada de tua mãe desde que estiveram ambas ao serviço da Rainha Ana. O homem da pistola é um antigo empregado de Fouquet que passou ao serviço de M. de La Reynie, o magistrado para o qual o Rei criou o cargo de tenente da polícia. Há algum tempo que vigiava a antiga Mlle. de Chémerault, pois ela frequentava as tabernas e as pessoas de má vida... Bom, já basta de conversa, é preciso ver essa ferida.

- Ela não tem o aspecto de ter sido gravemente atingida - sorriu Marie, contemplando o par formado pela mãe e pelo filho, que parecia surdo e cego a tudo o que os rodeava.

- Perdeu bastante sangue... Vamos lá, Philippe, larga-a! Marie e Jeannette vão despi-la, para eu poder examiná-la.

- É preciso ir buscar um médico - protestou Marie. - M. d’Aquin, o médico da Rainha...

- Esse é que não. Se isto ultrapassar as minhas competências, apelaremos a Mademoiselle.

- Mas que raio de ideia! Seguramente que Mademoiselle...

- Sei o que estou a dizer! Vamos! Toca ao trabalho! Tu, Philippe, devias já arranjar-te um pouco e deixar que o Pierrot te faça essa barba. Estás com um aspecto de homem dos bosques.

- Talvez! Lavar-me-ei com grande prazer, mas recuso-me a mudar seja o que for ao meu rosto. Já vos disse há pouco: ninguém pode ficar a saber do meu regresso, exceto as pessoas desta casa que eu sei que guardarão segredo.

Tal como esperavam Perceval e Marie, o ferimento de Sylvie era doloroso mas não muito inquietante: ao passar sob o braço esquerdo a bala arrancara-lhe a carne, mas sem atingir as costelas. O cavaleiro limpou com vinho a comprida ferida que parecia mais uma queimadura do que um corte, besuntou-a com óleo de hipericão antes de colocar um penso de tecido fino à volta do tórax da paciente e, em seguida, esforçando-se denodadamente por acalmar a sobreexcitação provocada pelo aparecimento quase milagroso do filho, quase teve de forçá-la a beber uma tisana de tília com mel e um pouco de ópio. Depois, dirigiu-se para uma pequena sala contígua à sua “livraria”, onde instalara um laboratório assaz rudimentar, mas suficiente para extrair o suco das plantas e preparar os xaropes, as tisanas e os unguentos. Desta vez preparou uma caneca de cerato de Galeno à base de cera branca, de óleo de amêndoa e de água de rosas que, segundo ele, alternando com o hioericão, devia operar maravilhas... Por fim desceu à cozinha para assinalar a Nicole Hardouin, a sua governanta de sempre, os pratos mais indicados para compensar a perda de sangue de Sylvie e para lhe devolver rapidamente as forças...

Na realidade a alegria era, sem dúvida, o melhor remédio possível, pois ao acordar no dia seguinte Sylvie quase se sentia bem. Não completamente, devido à angústia que acompanhara o seu despertar, pois receava ter sonhado aquela felicidade incrível. Mas o seu filho acorreu de imediato e ela pôde beijá-lo, não sem se queixar gentilmente daquele rosto peludo que lhe dava a sensação de estar a beijar um urso:

- Não tens decerto a intenção de continuar com esse aspecto? Vais ter de ir a Saint-Germain, para dar a saber que estás bem vivo, a fim de retomares o teu lugar, a tua posição... tudo aquilo que te quiseram tirar.

- Eu sei. Enquanto dormíeis, o cavaleiro e Marie contaram-me os acontecimentos dos últimos meses. Mas, minha mãe, é melhor que fiqueis desde já a sabê-lo, tenho de continuar a passar por morto. Talvez deva até encarar esta situação de maneira definitiva, se não quiser que me matem...

- Querem matar-te? Mas, por que motivo?

- Por causa daquele que desapareceu comigo... ou antes, de nós os dois, pois eu seguia as suas pisadas.

- E ele está bem morto! - murmurou Sylvie dolorosamente.

Philippe sorriu e depois inclinou-se para falar mais de perto à mãe:

- Não, está tão vivo quanto eu, mas se o Rei, Colbert ou o seu compadre Louvois, que estiveram na origem da diabólica engrenagem em que ele caiu, viessem a saber-me em Paris, não daria nada pela minha pele. Talvez mais tarde possa brincar ao regresso das almas do outro mundo, mas será preciso deixar passar um certo tempo...

- Dizes que ele não está morto? - murmurou Sylvie, dividida entre a alegria e a inquietude que lhe provocava o ar grave do filho. - Mas então onde é que ele está? Continua em Cândia... ou está em Constantinopla? Correram certos rumores em como teria sido feito prisioneiro dos Turcos...

- Esteve prisioneiro deles, tal como eu, mas já não o está, pelo menos dos Turcos. Mais tarde dir-vos-ei onde se encontra...

O sino do portão acabara de tocar, o que era surpreendente. Desde que a casa da rue dês Tournelles albergava uma exilada, as visitas tinham-se tornado raras. Apenas se arriscavam ainda a vir os amigos “literatos” de Perceval, a cara Motteville e Mademoiselle, mas o homem que desceu de uma sóbria carruagem verde-escura, nunca ali viera. Perceval, que olhava por uma das janelas, conseguiu contudo identificá-lo, não sem se sentir naturalmente inquieto:

- É M. de La Reynie, o tenente da polícia...

- Que vem cá fazer? - perguntou Sylvie.

- Já vamos ficar a saber. Vou recebê-lo. Tu, Philippe, farias melhor em ires esconder-te no teu quarto...

O jovem assentiu com a cabeça e saiu ao mesmo tempo que Perceval e Marie. A curiosidade sempre desperta da jovem levara-a a querer ir, ela também, receber a importante personagem:

- A minha mãe está acamada. É normal que a substitua - declarou num tom tão peremptório que Perceval não julgou oportuno contrariá-la. Entraram juntos na sala de recepção, decorada à moda antiga, onde os esperava o tenente da polícia.

Aos quarenta e cinco anos, Nicolas de La Reynie era um homem alto, de olhos e cabelos castanhos, com um rosto simpático, apesar de um grande nariz, ostentando uma covinha no queixo por baixo de uns lábios firmes bem delineados e que sabiam sorrir. Nascido em Limoges, pertencia àquela grande burguesia de toga que acaba sempre por se juntar à nobreza. Rico, competente e culto, era também um homem de grande inteligência e de raro valor, cuja incorruptibilidade atraíra naturalmente a atenção do Rei, que confiava plenamente nele. Não sem motivo: desde que fora nomeado para aquele posto que tinham criado expressamente para ele, La Reynie começara por atacar a insegurança ao empreender a limpeza dos Pátios dos Milagres, enquanto fundava uma polícia digna desse nome e que controlava por completo.

Ele fez as suas saudações como homem que sabe com quem está a lidar e desculpando-se por uma visita quiçá um pouco matinal.

- Fazia questão - disse - de vir saber notícias da senhora duquesa de Fontsomme, que foi vergonhosamente atacada ontem à saída da missa. Como é que ela vai?

- Muito melhor do que se teria podido temer. A bala só rasgou a carne, sem atingir nenhum dos órgãos. Uma vez a ferida cicatrizada, ela já não sofrerá mais...

- Fico muito feliz ao sabê-lo! E, penso, o mesmo acontecerá com o Rei...

Perceval estremeceu:

- O Rei? - perguntou rispidamente. Ora aí está algo de novo! Ainda há pouco Sua Majestade não se preocupava minimamente com o que pudesse ou não acontecer a Mme. de Fontsomme.

- É algo difícil - disse La Reynie, com um semi sorriso - saber o que lhe passa realmente pela cabeça. No que diz respeito a Mme. de Fontsomme, dir-se-ia que os seus pensamentos... oscilam entre uma severidade ditada por uma espécie de rancor, cuja raiz ignoro... e uma espécie de ternura vinda de muito longe, da qual não se consegue livrar. De qualquer modo, é por ordem dele que aqui estou. E muito feliz por ouvir tais notícias...

- Vós encontrai-lo todos os dias? - perguntou Marie, que não gostava nada de ficar calada.

- Quase. O Rei trabalha muito mais do que se imagina. Mantém-se ao corrente de tudo o que se passa no reino, é claro, mas inteira-se mais particularmente do que se passa em Paris.

- Contudo, parece não gostar nada da cidade e, ao que se diz, pretende instalar-se nesse novo Versailles, que mandou construir à custa de grandes somas...

- Nunca disse que ele ficava cá por amor. Talvez por desconfiança. Creio que nunca se esquecerá da Revolta... pois bem, vou-me embora - acrescentou ao levantar-se.

- Mais um momento, por favor! - interrompeu Perceval. - Podemos saber o que aconteceu à assassina? Morreu?

- Se não está morta, não falta muito. Desgrez, que é meu delegado e um dos meus melhores colaboradores e que disparou sobre ela, ao ver o seu estado e sabendo de quem se tratava, preferiu deixá-la morrer em casa, sem divulgar o seu nome. Trata-se de poupar uma família que é respeitável sob todos os aspectos. Ficará registrado que Mme. de La Bazinière terá sucumbido de uma breve doença... Claro que dei a minha aprovação e o Rei também.

La Reynie reatou o seu caminho para a saída e os seus dois hospedeiros dispunham-se a acompanhá-lo, quando se lembrou de outra coisa:

- Ah, já me ia esquecendo!... Quem era esse jovem que ontem parecia tão comovido e que transportou Mme. de Fontsomme até casa?

Com uma assinalável presença de espírito que confundiu Raguenel, Marie forneceu imediatamente uma resposta tranquilizadora:

- Era Gilles de Pérussac, um amigo de infância de meu irmão. Viam-se frequentemente quando Gilles estava no Vermandois, em casa de sua avó, Mme. de Montgobert. Ele gosta muito de nós e ao ficar a saber do... desaparecimento de meu irmão Philippe, passou ontem por cá. Como dispunha de pouco tempo, quis ir ao encontro de minha mãe...

O tenente da polícia olhou para aquela bela jovem, tão orgulhosa num luto pesado que realçava a sua cor alourada e não conseguiu suster um sorriso, perguntando contudo:

- E já se foi embora?

- Já vos disse que ele estava só de passagem, antes de reintegrar o serviço de M. Duquesne em Brest, às ordens de quem trabalha...

- Ah! É um marinheiro! Isso explica o seu aspecto... um tanto desmazelado.

Depois de La Reynie se ter ido embora, Perceval, que estava de novo inquieto como no início do encontro, cumprimentou Marie pelo seu sangue frio

- Foi magnífico! Que atrevimento! Mas não foste um pouco longe demais? Este homem dispõe de meios para ficar a saber de tudo o que se passa pelo país e se se decide a procurar em Brest...

- Ou na frota de M. Duquesne? Descobriria então que Perussac se encontra efetivamente por lá. Como este é realmente um amigo de infância e a sua prima faz parte das damas de honor da Rainha, eu podia citá-lo sem qualquer receio.

- Bravo!... Mas para o caso de M. de La Reynie vir a ter novas dúvidas é melhor que o teu irmão continue a esconder-se aqui, ou que vá para um local tranquilo no campo...

- Certamente, mas antes de tomar uma decisão, seria melhor que em primeiro lugar escutássemos a sua história...

No entanto, esperaram pela noite, para terem a certeza que mais ninguém viria incomodá-los. Depois do jantar que tomou no quarto e enquanto Jeannette lhe fazia a cama de novo, Sylvie pediu à sua fiel acompanhante que a deixasse a sós depois de tê-la ajudado a deitar-se. Era a primeira vez que a excluía do círculo familiar e Jeannette não conseguiu evitar um olhar de surpresa. Então, ela explicou-lhe:

Estamos tão próximas uma da outra, e isso desde há tanto tempo, que nunca te escondi nada. Partilhaste toda a minha vida. Porém, não deves ficar a saber nada daquilo que daqui a pouco se vai dizer aqui. Não vejas nisso qualquer desconfiança, mas antes uma preocupação profunda em manter-te afastada de um caso que é muito grave para não ser perigoso. Quando se trata de algo que só pode ser um segredo de Estado, é preciso afastar todos aqueles que nada têm a ver com o caso e que nós amamos. E eu gosto muito de ti...

De lágrimas nos olhos, Jeannette veio ajoelhar-se ao pé da poltrona da sua senhora, encostando no joelho de Sylvie uma cabeça em que se viam cada vez mais cabelos brancos:

- Não tendes de me dar qualquer explicação e farei o que desejardes. Os segredos do reino só me interessam na medida em que possam causar-vos mal e, desde a vossa infância, já encaixastes mais do que a vossa conta. Prometei-me apenas uma coisa: se vós, ou as crianças, ou mesmo os três, vindes ainda a correr perigo, não nos deixai de lado, a mim e ao meu Corentin!

- Prometo-te! - afirmou Sylvie, levantando Jeannette para abraçá-la.

- Continuaremos juntas o tempo que Deus quiser...

Mais tranquilizada, Jeannette acabou o seu trabalho, acomodou outra vez Sylvie na cama, deitou mais algumas achas na fogueira da chaminé e saiu sem apagar as velas, tal como fazia todas as noites, deixando apenas uma lamparina. Um momento mais tarde, o cavaleiro de Raguenel, Philippe e Marie vieram instalar-se ao pé da grande cama, coberta por seda amarela debruada de branco e chegando as cadeiras o mais próximo possível do leito, de modo a que o narrador não tivesse de elevar a voz.

- Ora cá estamos! - disse Perceval, acendendo o cachimbo. - Penso que agora estamos prontos a ouvir-te, rapaz! Espero que o fumo do tabaco não te incomode... não faz efeito na tua mãe...

- Eu também fumo - disse o jovem, sorrindo. - Além disso, Marie trouxe uma bandeja com copos e vinho de Espanha que depositou em cima dessa secretária de mármore lascado... Portanto, temos tudo o que precisamos.

Inclinou-se para diante, colocando os cotovelos nas dobras dos joelhos afastados e, apoiando a cabeça nas mãos, pareceu meditar no meio do silêncio que se instalara.

- Se não tivesse realmente vivido o que vos tenho a contar, penso que se este relato fosse feito por outra pessoa, ela teria tido todas as dificuldades para que eu acreditasse nela. Mesmo agora, pergunto a mim mesmo se não terei tido um pesadelo, de tal modo isto dá cabo das ideias que eu tinha sobre a grandeza dos reis e a nobreza dos homens. Pelo menos, de alguns...

- Podes ter a certeza - resmungou Perceval - que nenhum de nós duvidará de ti...

- Eu sei... Quando deixamos Marselha, julguei que tínhamos partido verdadeiramente para uma cruzada, como os meus antepassados, íamos combater o Infiel! Éramos os soldados de Cristo, tal como o testemunhava o Estandarte do Cristo na Cruz, que Sua Santidade o Papa mandara enviar ao senhor almirante algumas semanas antes. Aliás, depois de tantos vexames infligidos pelos homens do Rei, este já só se reclamava “capitão-general dos navios de guerra da Igreja” e estava animado por uma fé profunda na sua missão. Os ventos favoráveis que nos levaram até à vista da ilha de Cândia confirmaram-lhe certezas que recrudesceram ainda mais o seu ardor pelo combate por uma causa tão santa quando chegamos diante da capital da ilha, que também se chama Cândia. Aquilo com que deparamos era de grande beleza e, ao mesmo tempo, de uma profunda tristeza. Era quase um cenário de fim de mundo...

Era bem cedo nessa manhã, e a luz dos primeiros raios de sol parecia encrespar um cume montanhoso cinzento-arroxeado, aclarando as planícies cobertas por uma erva áspera e odorífera, com alguns espaços ocupados por carvalhos verdes e oliveiras selvagens. Em baixo, e deslizando até ao mar de um azul quase violeta, ficava uma enseada de porto, protegida por um dique, no qual se erguiam uma velha torre de combate, uma cidade de muralhas imponentes e bastiões gravados com a imagem do leão de São Marcos, mas desgastados pelos canhões, esburacados, esventrados e invadidos por barrancos. Era uma cidade incandescente, com os seus palácios venezianos encarnados, com casas brancas, algumas meio desfeitas e apresentando, nas imediações, galerias esventradas pela estranha arma que empregava Morosini, constituída por aquelas garrafas de vidro com quatro lados e outros tantos rastilhos que, ao quebrarem-se, espalhavam uma fumarada infecta e mortífera. Por todo lado podiam ver-se os rastos deixados pelos incêndios, pelos estigmas da morte e, sobrepondo-se a tudo isto, ostentando uma furiosa vontade de aguentar, imperava a bandeira vermelha e dourada de Veneza, esvoaçando levemente sob o ligeiro vento matinal. Os únicos Turcos que se avistavam eram aqueles que se encontravam assinalados pelos fogos das cozinhas nas posições elevadas que ocupavam. Porém, tudo ficou subitamente animado quando os primeiros raios de sol fizeram resplandecer os brilhos dourados do Monarque e dos outros navios. Do porto onde as pessoas se amontoavam, saudou-os uma enorme ovação.

- Somos os primeiros a chegar - observou Beaufort, que observava a ilha com um óculo. - Isto não é normal. Vivonne já devia ter chegado, pois partiu de Marselha antes de nós e dispunha de galés mais rápidas, aliás tal como esse Rospigliosi que me recusa o título de Alteza. Esse vem de Civitavecchia! Isto dá que pensar...

“No entanto era preciso muito mais que isso para desencorajar o Almirante. Este embarcou a bordo de uma lancha, na companhia de M. de Navailles, de M. Colbert de Maulévrier[47], do seu sobrinho e de mim, afim de parlamentar com o capitão-general de Veneza. Por sua vez, este dirigiu-se ao cais, acompanhado por M. de Saint-André-Montbrun, capitão francês ao serviço de Sua Sereníssima Santidade, para nos receber depois da passagem do gargalo formada pelo dique do farol. Isto tudo ocorreu sob o fogo dos Turcos. Felizmente que essa gente tinha má pontaria...

“Não vos mentirei sobre a forte impressão que me causou Morosini[48], verdadeira encarnação dos mais altos valores de Veneza. Era um homem alto e magro de cinquenta e dois anos que, na sua couraça amolgada, se parecia com a lâmina de uma espada. O seu rosto enérgico, de pele cozida pelo sol, revelava uns traços finos debaixo de uma cabeleira onde surgiam mechas brancas, uma boca sensível entre o sedoso bigode e a pêra e, sobretudo, profundos olhos pretos, seguros e dominadores, sob umas sobrancelhas arrogantes que a impaciência fazia estremecer. Contudo, este homem, este marinheiro e soldado, este estratega sabia fazer uso de uma paciência infinita, que era uma das facetas do seu gênio... Entre ele e o nosso Almirante o entendimento foi total pois os dois homens estavam fadados para se entenderem. Infelizmente não era o caso com M. de Navailles, que tinha prerrogativas sobre Monsenhor nas operações em terra...

Philippe interrompeu a sua narrativa para sorrir para a mãe, cujo olhar enlevado o devorava:

- Mãe, fico verdadeiramente desolado se vos causo algum desgosto pois eu sei que Mme de Navailles é vossa amiga desde há muito, mas isso não impede que o seu esposo seja um rematado imbecil que, neste assunto, foi o causador da catástrofe, devido à sua estúpida vaidade...

- Sobretudo, não te preocupes! Sempre soube que, neste casal, ela era, de longe, a mais inteligente. Oh, se ao menos depois de serem ambos exilados, o Rei não se tivesse lembrado de chamá-la apenas a ela! Mas rogo-te que prossigas com a tua narrativa...

- Às vossas ordens!... Navailles começou pois por recusar a oferta de Morosini que lhe propunha, para o ataque, uma vanguarda de soldados habituados há muito a esta guerra e conhecendo perfeitamente o terreno. Também se recusou a falar com M. de Saint-André-Montbrun com quem Monsenhor, indignado, se foi imediatamente reunir no bastião de São Salvador, onde permaneceu toda a noite a traçar planos com Morosini e o capitão francês. Chegaram todos a um acordo: era preciso esperar por Vivonne, Raspigliosi e pelas tropas que viajavam nas suas galés e às quais se tinham acrescentado três mil alemães alistados por Veneza. Tudo isto para assegurar um considerável esforço, a fim de atacar o inimigo por terra e mar e capturar os canhões com que montavam o cerco, para com eles se fortificar.

“Infelizmente, logo que regressámos a bordo, M. de Navailles acabara de tomar sozinho a mais funesta das decisões: a de atacar os Turcos por terra, sem esperar pelo resto do exército. O pior foi que não julgou necessário avisar o senhor almirante, tendo mesmo o desplante, quando este foi informado da sua decisão, de aconselhá-lo “a não pôr os pés em terra, pois já desfrutava de uma reputação que não o obrigava a arriscar-se onde não era preciso..”Já imaginaram o efeito desta declaração?!...

- Meu Deus - resmungou Perceval - é preciso que Colbert e Louvois tenham ensandecido a valer para ter dado um tal poder a esse cretino!

- Meu caro cavaleiro, não percais de vista que, no entender dos ministros como, aliás, no do Rei, estava fora de questão arranjar problemas com a Sublime Porta e que a bela expedição estava destinada a falhar desde o início! Pensai só que tinham recusado o comando desta frota ao marechal de Turenne!

- ...ao qual Beaufort se teria submetido sem discussões. Continua, rapaz! Se bem que pressinta que o seguimento não seja lá muito glorioso...

- Não o foi seguramente para as armas de França, mas para Monsenhor... foi extraordinário!... Dado que se devia atacar na manhã seguinte, ele declarou que seria o primeiro, seguindo o exemplo do seu antepassado Henrique IV. Foi então que os oficiais dos navios se reuniram à sua volta para tentar impedi-lo, repetindo-lhe que não se devia submeter a uma decisão tão louca e que se M. de Navailles queria perder Cândia ou vencer os Turcos isso era problema dele, mas que para que o ataque obtivesse êxito era preciso uma preparação mais longa. Ele deu-lhes razão, mas recusou ouvi-los mais tempo. Disse que era preciso que tomasse o comando das tropas de assalto para lhes fazer subir a moral que não estava no melhor: muitos tinham enjoado com o mar e assim continuavam. Mais uma razão, clamaram Mme. de La Fayette, de Kéroualle e de Maulévrier, para lhes dar tempo para se restabelecerem. Mas Navailles obstinava-se; Navailles teve a última palavra... Só tinha que responder ao Rei pelas suas decisões.

“É óbvio que entretanto os Turcos não tinham permanecido inativos. Tinham observado muita coisa desde que a frota aparecera, tinham disparado um pouco sobre a lancha do Almirante mas, sobretudo, tinham reunido a sua rápida cavalaria nas alturas. Kõprulii Ahmed Pacha, o grão-vizir do Sultão, que tinha vindo comandar em pessoa o cerco a Cândia, era um homem refletido, tão prudente e sagaz quanto Navailles era impaciente e cego. Disso ir-nos-íamos aperceber dentro em breve...

“Monsenhor passou a sua última noite a bordo, a rezar no seu belo quarto coberto de seda da cor da aurora. Compreendera o que significavam os entraves aos seus desígnios e a incrível obstinação de Navailles: em França, ninguém desejava vê-lo regressar aureolado de uma vitória. Em compensação, o anúncio da sua morte infligida pelos golpes dos Turcos iria contentar mais que um... Vimo-lo aparecer por volta das três horas da manhã, sem couraça, protegido apenas por um simples gilete de pele de búfalo, no qual pendia uma cruz de cobre, preta como o seu chapéu e as suas plumas. Para proteger aqueles de quem gostava, o cavaleiro de Vendôme e eu próprio, quis que permanecêssemos a bordo, mas nós recusamos com determinação. Nessa altura mandou a Vendôme que fosse combater longe dele e confiou-o ao que se poderiam chamar dois guardas, mas não conseguiu dar-me a volta a mim. Reiterei a minha intenção em segui-lo para onde quer que ele fosse, tal como o fazia há anos. Então respondeu-me que o perigo seria grande, que eu devia pensar em vós, minha mãe, e no meu nome...

- Que respondeste? - perguntou Sylvie.

- Que me havíeis confiado a ele quando era criança para que nunca o abandonasse, que vós não ignoráveis os perigos que isso comportava e que, precisamente, o nome dos meus pais me obrigava a honrá-lo por qualquer meio, nem que fosse pela morte... Enfim, que vós haveríeis de compreender...

- Sim - disse tristemente a duquesa - é o que dizem os homens! As mulheres, sobretudo as mães, pensam de outra maneira.

- Não digais isso! - protestou Philippe. - Pensai antes que se eu não tivesse teimado tanto, se não o tivesse seguido contra ventos e marés, hoje em dia nunca saberíamos que ele está vivo...

- Tens razão, e eu sou uma ingrata para com Deus. Conta-nos o resto, meu filho!

- A noite estava clara, amena, cheia de estrelas... Uma daquelas belas noites orientais que nos são desconhecidas e que fazem esquecer o peso esmagador do Sol. Um momento de magia antes do pesadelo! Uma vez desembarcados em terra, pela qual avançávamos devagar receando as minas turcas, descobrimos que, para podermos passar, em formação de combate, da posição que Navailles escolhera para aquela em que ficaríamos realmente em posição de atacar, era preciso descer por uma contra-escarpa até um barranco e subir pelo outro lado através de um caminho de cabras, onde os atiradores turcos podiam alvejar-nos a seu bel-prazer. Monsenhor mandou que nos deitássemos enquanto esperávamos pelo nascer do dia, altura em que o Sol estaria a nosso favor, pois daria em cheio nos olhos dos nossos inimigos. Mas Navailles tinha que fazer mais um disparate quase se poderia dizer um crime! Subitamente, ouvimos o rufar dos tambores que anunciavam o assalto, despertando desse modo a atenção do inimigo: era preciso atacar durante aquela mesma noite que ainda escurecera mais com a aproximação da alvorada... e então foi o drama! Vindos de todos os lados, os Turcos caíram sobre nós, provocando um verdadeiro pânico entre as fileiras de soldados cujas pernas ainda estavam indecisas. Foi uma debandada geral que Monsenhor não pôde suportar. Uma mina explodiu algures na noite, levando-o a crer que daquele lado os Turcos tinham de se haver com as tropas de Morosini e que seria possível surpreendê-los pela retaguarda. Mas ele fora ferido na perna e já não lhe era possível correr. Foi nessa altura que, saído não se sabe de onde vimos um cavalo. Ele saltou para a sela e eu subi para a garupa do animal.

- Vamos, rapazes! gritou. Retomai a coragem! Segui-me! Por S. Luís! Por S. Luís!

“De espada na mão, arremetemos a direito contra os soldados otomanos que atacavam sem sequer os vermos. Alguns minutos mais tarde, depois de uma defesa vigorosa mas derrisória, eu e ele fomos feitos prisioneiros...

“Enquanto dávamos por nós, desarmados, no meio das cimitarras ameaçadoras às quais os raios de sol arrancavam reflexos de luz, vimo-nos mortos, com as nossas cabeças cortadas expostas na ponta de estacas, mas o grão-vizir prometera um prêmio de quinze piastras por prisioneiro e de setenta pelos chefes. Portanto, ataram-nos com uma data de nós e levaram-nos até um campo assaz afastado da cidade, de onde se podia finalmente avistar as galés turcas fundeadas nas enseadas. Para mim, que me encontrava indemne, foi um espetáculo penoso, mas para Monsenhor, cujo ferimento não parava de sangrar, foi um calvário que suportou sem soltar qualquer queixume. Até chegou a reunir forças para conseguir levantar-se e manter-se direito quando nos atiraram para dentro de uma tenda de um homem gordo, vestido de seda, sentado numas almofadas, ao pé das quais estava uma espécie de secretário, de pé, com um rolo de papel, um cálamo e um tinteiro preso à cintura. Era um cristão renegado chamado Zani e que servia de intérprete. Admoestou Monsenhor:

- “Porque te mostras tão arrogante? Não trazes um vestido bordado nem uma bela couraça, como esse aí...

- Reconhece-se um príncipe por outras coisas que a sua indumentária.

- Um príncipe? Só havia um entre os que nos atacaram...

- Sou eu! François de Bourbon-Vendôme, duque de Beaufort, Almirante de França.

- E quem é aquele que jaz a teus pés?

- É meu ajudante-de-campo e meu filho... espiritual. Chama-se Philippe, duque de Fontsomme.

“Enquanto o secretário traduzia estas palavras, o homem de turbante rebolava os seus olhos atônitos. Era evidente que se sentia ultrapassado pela envergadura da captura. A seguir, pronunciou algumas palavras precipitadamente e o renegado explicou.

“É possível que estejas a mentir mas, entretanto, o meu senhor prefere confiar-te a uma pessoa de cargo mais elevado. Terás a honra de comparecer perante Sua Alteza, o grão-vizir, que saberá descobrir se estás a falar verdade ou não.

“Entretanto disse eu bem poderíeis cuidar do seu ferimento, senão o senhor Almirante poderá não desfrutar dessa ”honra”...

“Um pontapé nas costelas mostrou-me a importância que concediam à minha pessoa e a partir daí separaram-nos, apesar dos nossos protestos. Dois guardas vieram buscar Monsenhor, levando-o com certa solicitude. Quanto a mim, pegaram-me, como se fosse um pacote, e levaram-me para dentro de uma tenda, onde ficava todo o dia sem uma única gota de água e sem alimentos. Um pouco abafados pela distância, ouvia os gritos atrozes, os queixumes e, também, os ruídos dos disparos das armas e do canhão, da batalha, em suma! Depois, seguiu-se uma espécie de silêncio, o mais pesado que tive de suportar... aquele que vem depois das grandes catástrofes. Quando decidiram que era finalmente tempo de me trazer um pouco de água e de comida, a cara satisfeita do guarda foi suficiente para me dar a entender que tínhamos perdido. Desatei a chorar, mas o pior foi que não podia saber notícias de Monsenhor, pois não falava o idioma daquela gente. Bem tentei falar em grego, língua de que possuía uns bons rudimentos graças ao meu caro abade de Résigny, mas sem obter qualquer resultado. Tudo o que consegui foi que me levassem da tenda para me acorrentarem numa gruta fechada por uma paliçada de tábuas e confesso que apreciei o fato. Pelo menos encontrava-me resguardado do calor abrasador do dia. Devo ter ficado ali uns quinze dias, até que uma noite Zani, o intérprete, veio ver-me. Se bem que ele me desagradasse muito, ainda assim era uma alegria poder falar com alguém. Disse-me que, nessa mesma noite, ia ser transferido da ilha para Constantinopla, que por lá ficaria prisioneiro até que se soubesse se a minha família estava ou não disposta a pagar um resgate que pudesse conservar a minha cabeça em cima dos ombros...”

- Mas nós não recebemos nenhum pedido de resgate! - exclamou Sylvie. - Tudo o que soubemos foi que tinhas desaparecido juntamente com o duque de Beaufort e, depois, vocês foram declarados como mortos...

- Daqui a pouco falar-vos-ei dessa história de resgate - disse Philippe, com um sorriso desdenhoso - pois, na verdade, não dá para acreditar nela! Mas regressemos à minha partida da ilha de Cândia, que abandonei efetivamente uma hora depois, a bordo de uma galé onde me fecharam num pequenino espaço situado à proa, no mesmo sítio onde guardavam as balas para canhão do rapaz da frente. Ali fiquei acorrentado, mas era um local assaz limpo e até me deram um balde para a higiene. Para minha surpresa Zani acompanhou-me durante a viagem, que durou um pouco mais de oito dias, vindo visitar-me frequentemente, não parando de fazer perguntas sobre quem eu era, sobre a minha família e a minha vida na Europa, sobre o Rei e, claro, sobre Monsenhor, sobretudo sobre Monsenhor! Mas quando lhe pedia para me dar notícias dele, repetia sempre a mesma frase: ”O teu Almirante é prisioneiro de Sua Alteza, o grão-vizir Fazil Ahmed Kõpriilu Pacha, que Alá - que o Seu Nome seja bendito três vezes! - o guarde para sempre!”. Nunca modificava uma só palavra ao seu discurso e acabei por me fartar de todas aquelas bênçãos. No fundo, bastava-me saber que ele ainda estava vivo.

“Confesso que fiquei maravilhado com a visão de Constantinopla, quando lá chegamos ao pôr do Sol. A cidade assenta sobre três braços de mar mas, ao desembarcar da minha galé, só avistei um único: o do Bósforo, estreitado entre a margem asiática e a extensa ponta de Istambul, carregada com zimbórios dourados, com cúpulas verdes ou azuis, com longos minaretes brancos que se elevam no meio de uma infinidade de jardins, que se prolongam pelo palácio e pelos jardins do Sultão, até ao azul do mar. Os últimos raios solares conferiam a isto tudo uma auréola dourada e púrpura, realçada pelos grandes ciprestes escuros que se elevavam aqui e acolá e que sublinhavam a beleza das construções. Mas não tive direito a entrar no que, de longe, se assemelhava ao paraíso. A galé acostou sob as muralhas de uma poderosa fortaleza que marcava a junção das gigantescas muralhas que rodeavam Istambul com a orla marítima. Zani teve grande prazer em informar-me: tratava-se de Yedi-Koulé, o castelo das Sete Torres, cuja sinistra reputação alastrara há muito pelo Mediterrâneo. As cabeças cortadas que se podiam ver no alto das ameias provavam que essa reputação não fora usurpada. Até se dizia que um sultão fora ali massacrado cinquenta anos antes pelos seus próprios janízaros. Além disso o cheiro era insuportável porque nas imediações daquele inferno e próximo de um dos matadouros, encontravam-se as oficinas de curtume, de cola forte e de cordas de tripas. Primeiro julguei que não conseguiria viver no meio daquela pestilência mas, finalmente, acabei por habituar-me. Além disso, tive sorte, pois a cela onde me fecharam possuía uma abertura estreita, com uma grelha, mas dando para o mar.

“Foi aí que permaneci meses a fio, gelando no Inverno e abafando no Verão, sem nada ver, sem nada ouvir, a não ser os apelos para as orações, os gritos das gaivotas ou dos supliciados. Os dos condenados a ser empalados eram atrozes, insuportáveis. O pior era não ter quaisquer notícias. Por vezes chegava a esquecer-me de quem era, porque as imagens do passado me eram muito dolorosas de relembrar. Além disso, a inquietude que sentia quanto ao destino de Monsenhor minava-me como sarna. Porque me deixavam ali a atormentar-me, tendo por única presença a do carcereiro mudo que me trazia todos os dias o suficiente para não morrer à fome?

“Já tinha acabado por admitir que teria de passar o resto dos meus dias naquele túmulo quando, uma noite, os soldados vieram buscar-me. Persuadido que chegara a minha última hora, apressei-me a rezar uma oração, mas vendaram-me os olhos no pátio do castelo, mandaram-me subir para uma liteira fechada com cortinas de cabedal e então partimos. Não vi nada do percurso. O cheiro nauseabundo ao qual me acostumara cedeu o lugar a odores mais agradáveis e, depois, a outros, que me pareceram verdadeiramente divinos, quando me forçaram a descer. Devia estar num jardim, pois tinha a impressão de estar rodeado por flores. Em seguida os meus pés descalços pousaram-se em lajes lisas e escorregadias até à altura em que me tiraram finalmente a venda, no meio de uma atmosfera úmida e quente. Compreendi que me encontrava num local reservado aos banhos, a que os turcos chamam um hammam. Dois escravos pretos retiraram-me os andrajos fedorentos que ainda trazia comigo, mergulhando-me num tanque cheio de água quente, onde me lavaram como se fosse um cavalo, à custa de muito sabão e de uma escova dura. Os dois banhos sucessivos, um quente e o outro frio, a massagem com óleo perfumado, pareceram-me o cúmulo das delícias e quase reencontrei a disposição anterior ao meu cativeiro. Depois vestiram-me uma camisa, uma longa túnica azul apertada na cintura, calçaram-me umas pantufas vermelhas e, após me terem oferecido uma refeição de carne grelhada com arroz, voltaram a tapar-me os olhos para me entregarem a uma personagem da qual só pude distinguir, através da venda, a parte de baixo de uma túnica branca e os pés cobertos por pantufas amarelas.

“Sem me dirigir qualquer palavra, conduziu-me através do que me pareceu serem uma infinidade de pátios e de jardins. Por fim cheguei junto a um tapete de um belo vermelho profundo e de fios dourados, à beira do qual me mandaram descalçar. Dei mais alguns passos e retiraram-me a venda. Estava diante de um homem que adivinhei ser um alto dignitário, devido às suas ricas roupagens e ao aspecto importante do turbante branco que tinha enrolado em volta de um cone de feltro vermelho e enfeitado com plumas. Provavam-no o sabre colocado diante dele, cujo forro e proteção em ouro estavam engastados de rubis.

“Conservava-se sentado, de pernas cruzadas, sobre uma espécie de banco coberto de tecido vermelho e por almofadas, que assentava num estrado guarnecido por um tapete de seda. Este estrado ocupava o fundo de uma sala envolta por pequenos vidros de cores brilhantes, situados por baixo de altas janelas com vitrais, e através das quais entrava a música de um fontanário. O homem que me acompanhava obrigou-me a baixar a cabeça até ao chão. Este tratamento revoltou-me. Quis soerguer-me imediatamente e, para minha surpresa, ele não reagiu. Vi então que a importante personagem o mandava embora com um simples sinal de cabeça, voltando-se, de seguida, para mim:

- Disseram-me que falavas o grego... - disse, nesse idioma.

- Falo, mas é o grego de Demóstenes, que já não é de uso, mas graças ao qual consigo fazer-me entender...

- Efetivamente... então falaremos na língua do teu país - acrescentou num francês um pouco arrevesado, mas que se compreendia muito bem, o que me encheu de alegria. - Primeiramente fica sabendo diante de quem compareces esta noite: chamo-me Fazil Ahmed Kõpriilú Pacha e sucedi ao cargo de meu pai, o grande Mehmed Kópriilú, grão-vizir da Sublime Porta. Fui eu quem derrotou as forças do teu país em Cândia. A bandeira do profeta flutua doravante por toda a ilha, mas Morosini obteve as honras devidas à guerra, em homenagem à sua bravura. Regressou com os seus a Veneza...

- Francesco Morosini tem direito a toda a minha admiração e estou muito feliz por ele, mas ele não me interessa. O que suplico que Vossa Excelência me diga é o que aconteceu a Monsenhor, duque de Beaufort, o nosso Almirante...

- Chega-te aqui! - ordenou, indicando-me um lugar a seu lado.

Obedeci-lhe, sem lhe mostrar a que ponto aquele convite me surpreendia. Isso permitiu-me vê-lo melhor. Era um homem jovem, de tez clara, traços enérgicos e olhos cinzentos dominadores. Um farto bigode escuro pendia de cada lado da sua boca firme e bem desenhada. Como vim a saber mais tarde, não era turco, mas sim albanês e o Estado otomano, que tinha sob seu governo e o de seu pai, voltara a encontrar força e estabilidade, depois de ter sido enfraquecido por sultões que, quando não eram indignos do seu nome, se mostravam ineptos o atual, Mehmed IV era cognominado o Caçador, porque todo o tempo que não despendia no harém passava-o a ir à caça.

- Quero que me fales dele - disse-me. - Pretendes ser seu filho?

- Filho espiritual, Senhor! Ele e a minha mãe cresceram juntos. Para mim é como um tio venerável.

- Gostas dele?

- Essa palavra não basta. Eu admiro-o e não hesitaria um segundo em dar a minha vida pela sua...

- Explica! Conta-me tudo!

Falei pois com um entusiasmo que ia crescendo à medida que, ao retratar a sua vida, eu próprio a ia redescobrindo. Fazil Ahmed Pacha escutou-me muito atentamente, interrompendo-me apenas uma vez para bater com as mãos, o que fez surgir imediatamente um servidor com uma bandeja de café. Confesso que foi com verdadeiro prazer que o bebi, retomando depois a minha narrativa, que ele interrompeu desta vez com algumas perguntas.

- Se bem compreendi, apesar de ser um bom servidor, o teu Rei não gosta dele, pois não?

- E apesar de ser também seu primo em primeiro grau!

Viu-o sorrir pela primeira vez:

- Quando se ocupa um trono, os laços de família não contam para nada. Aqui, ainda menos. Nós dispomos daquilo a que chamamos “a lei do fratricídio”, segundo a qual nada impede um soberano, ao chegar ao poder, de desembaraçar-se dos irmãos que eventualmente poderiam incomodá-lo. Mas tu, em relação a este homem que veneras, estarias disposto a... contrariar e, até mesmo, a opor-te à vontade do teu Rei?

- Se a vida dele estivesse em jogo? Sem hesitar, mesmo que para isso tivesse de dar a minha.

- Era o que pensava. Nesse caso, ouve!

“Foi então que soube o inimaginável. Mesmo antes de zarparmos de Marselha, a Sublime Porta recebera secretamente, da parte do Rei de França, a garantia de que, ao autorizar a expedição, o reino não desejava atentar contra as boas relações vigentes, sobretudo as comerciais. Só estavam a satisfazer o pedido do Papa e iam fazer as coisas de modo a confiar o comando a chefes divididos entre si e que, por esse motivo, não representariam qualquer perigo grave, um por não ser muito esperto nos seus julgamentos e o outro, por ser exageradamente destemido. Aliás, davam a entender que caso o segundo que era, claro, o duque de Beaufort não fosse morto em combate, seria desejável que fosse feito prisioneiro... muito discretamente, de modo a permitir que se divulgasse a pouco e pouco o rumor da sua morte.

- E foi o que se passou - acrescentou Fazil Ahmed Pacha. - A bordo do navio almirante havia um homem que nos informava sobre as intenções do teu chefe, por intermédio de um pescador que vinha oferecer peixe e que passava completamente despercebido, sobretudo à noite. Ficamos a saber de que lado ele iria atacar e, se bem que se tivesse desencadeado uma enorme confusão durante a batalha, a explosão que provocamos nas nossas próprias linhas produziram o efeito esperado: o Almirante pensou que tinha aberto uma brecha nas linhas inimigas e avançou por ali dentro, caindo na armadilha. Não prevíramos que estivesses com ele, mas as minhas ordens eram severas: ele não devia de forma alguma ser morto. Beneficiaste da mesma clemência. Aliás, depressa percebemos que lhe eras precioso...

- Quem é que o traiu de forma tão vil?

O grão-vizir abanou a cabeça com um fino sorriso:

- Isso não te revelarei. Dado que a amizade entre os povos é um tema de difícil abordagem, pode ser que um dia ou outro tenhamos ainda de recorrer aos seus serviços. Foi ele quem ficou encarregue de levar até França a confirmação da morte do Almirante... e a tua própria.

- Revelar-me-eis o que se passou em seguida?

- Enviamos uma mensagem ao ministro francês para pô-lo ao corrente de que tu próprio e o primo do Rei estavam em nosso poder e reclamando, evidentemente, um resgate. Esta mensagem foi levada por um mensageiro discreto e a resposta chegou-nos pela mesma via, sem passar evidentemente pelo novo embaixador que nos enviaram, um tal M. de Nointel, que bem precisa que lhe ensinem as boas maneiras...

- E qual foi o teor da resposta?

- Muito curioso. O Rei aceitava pagar metade do resgate pedido, preço bastante para um homem morto. A soma deveria ser-nos enviada por dois homens que chegariam a bordo de um navio para levarem com eles o prisioneiro rumo a um destino só deles conhecido. A troca dever-se-ia efetuar de noite e nas condições que seriam estipuladas. Quanto a ti, preferiam, de longe, que puséssemos termo aos teus dias...

- Então por que não o fizestes? Mas talvez eu não saia daqui vivo...

- As lajes deste palácio não se alimentam de sangue. E se te poupei, depois de receber a carta, foi porque, entretanto, o teu Almirante se tornou um amigo meu. Durante todo este tempo - um ano e meio! - desde que o levaram até à minha tenda em Cândia, tive a oportunidade de aprender a conhecê-lo e não estou atualmente muito longe de partilhar os teus sentimentos por ele...

- Onde é que ele está? Na prisão das Sete Torres?

- Não, ele nunca lá esteve. Primeiro escondi-o neste palácio e, depois, numa residência bem recatada. Acrescento ainda que ele sempre insistiu que te levassem para junto dele, mas eu recusei. Conservar-te afastado dele, em Yedi-Koulé, era o melhor meio de que eu dispunha para me assegurar que ele não se escaparia.

- Não vos bastava a sua palavra de príncipe francês?

- Não sou latino como tu e, quanto a mim, a prudência é uma virtude indispensável para quem quiser conservar-se no poder. E eu sou grão-vizir desse país, isto é, sou um alvo potencial.

- Então por que me haveis tirado esta noite da minha masmorra?

- Porque já era tempo de te conhecer pessoalmente... e porque chegaram as pessoas que o vêm buscar...

- Ah!

“Só com algumas palavras ele acabara de despertar a angústia que me fazia companhia há tanto tempo. Perguntei-lhe se lhes ia entregar o Almirante. Ele respondeu que sim, era isso que o Sultão desejava.

- Então deixai-me acompanhá-lo!

- Não, os homens do teu rei julgam-te morto. O que te tenho a propor é uma oportunidade para que, mesmo que não possas salvá-lo, fiques ao menos a saber o que o espera. Estás a ver, estou atormentado pela ideia de que, se calhar, o vão levar para um destino pior que a morte e coro ao pensar que sou forçado a entregar um amigo. Portanto, agora ouve-me bem: a embarcação francesa um “navio mercante” pouco rápido, mas bem armado deixará o porto amanhã à noite. Pelo teu lado, e antes que o dia se levante, terás embarcado na melhor falua, cujo patrão e equipagem me pertencem. Stavros já recebeu ordens para se conservar a postos para seguir François até onde quer que ele vá. A Marselha, sem dúvida...

- Vamos seguir um navio em alto mar durante uma tão longa distância, sem nunca perdê-lo de vista e arriscando-nos a confundi-lo com outro?

- Stavros[49] já o fez. O seu navio está devidamente aparelhado para isso e ele é o melhor marinheiro que conheço. Além disso, ao sair dos estreitos, o navio francês arvorará o pavilhão vermelho dos meus navios a fim de afastar aqueles a quem vós chamais os Bárbaros. Portanto, ele será facilmente identificável e não será atacado. Mas, uma vez chegado ao seu destino, caberá a ti continuares a perseguição. Dar-te-ei algumas peças de ouro que retirarei do dinheiro do resgate, bem como roupas apropriadas a um marinheiro grego...

“Que alegria a minha! É claro que estava envergonhado com o comportamento dos meus compatriotas, mas transbordava de reconhecimento por este inimigo de tão nobre coração. Recusou os meus agradecimentos por meio de um gesto e quando lhe roguei o favor de poder ver o meu príncipe, nem que fosse por um instante, ele recusou:

- É muito perigoso. Ele nada deve saber das medidas que tomei. Quanto a ti o melhor é que te esqueças que me vistes!

“Uma hora depois, de boina vermelha na cabeça e com um colete de pele de carneiro em cima do corpo, era conduzido por um dos servidores mudos do vizir até ao porto, onde fui entregue, sem uma palavra, ao patrão da falua Thyra, um grego tão alto quanto corpulento, com um perfil como numa medalha, de riso tonitruante, com temíveis músculos escondidos sob uma camada de gordura e que, sob uma inalterável boa-disposição, revelava uma extrema fineza e capacidade de compreensão. Ulteriormente pude verificar o bem fundado das asserções de Fazil Ahmed Pacha: era de fato um grande marinheiro e foi sem qualquer dificuldade que me integrei numa equipagem constituída por quatro homens que lhe eram inteiramente dedicados.

“Quando o dia nasceu pude aperceber-me melhor qual era a nossa posição no meio das outras embarcações, cujas proas estavam todas voltadas para o cais, até mesmo as que se encontravam à nossa frente. Isto era possível devido à largura do Corno de Ouro do porto de Constantinopla. Havia um só navio fundeado paralelamente à terra, no meio de uma ligeira corrente oriunda de um pequeno rio: era uma traineira daquelas que efetuam transportes, tal como os holandeses as constróem, mas que era de fraca tonelagem e apenas permitia uma equipagem reduzida. O aspecto tranquilo da embarcação, de pança redonda, era o de um honesto comerciante.

- Ainda assim dispõe de quatro canhões - comentou Stavros, que acrescentou, rindo-se: - Bem precisa de proteger os fardos de peles e tapetes vindos da Rússia, que carregará amanhã. Mas só às duas da manhã é que içara as velas. Nós, partiremos logo a seguir...

- E vamos segui-la durante toda a viagem? É impossível! Irá mais depressa que nós!...

- Nós é que poderíamos ir mais depressa que ela. Se não estivesses cá dentro, poderias ver que esta falua foi concebida para navegar a toda a velocidade, tal como uma galé, que os seus mastros podem aguentar com mais pano do que é costume e que se o vento não soprar, nem por isso será uma desgraça: remaremos! O que aquele navio pesadão não pode fazer! Verás! - acrescentou, dando-me uma palmadinha no ombro. - Vais ver os músculos que faz!

- E o que se julga que irás fazer a Marselha?

- Comércio, como toda a gente! Em princípio trabalho para os irmãos Barthélemy e Giulio Greasque de Marselha, que têm feitorias por estas bandas. Transportamos café e canela, pimenta e opópanax. Se nos afundarmos, cheiraremos bem!

“E desatou a rir com aquelas gargalhadas que tão bem lhe assentavam. Chegada a noite, instalamo-nos na ponte para observar o Vaillante. Por volta da meia-noite, quando o frio começava a apertar, Stavros estendeu-me um óculo, sem dizer nada: uma lancha deslizava pela água calma na direção da traineira. Havia bastante luz. A Lua, que desenhava no firmamento o crescente islâmico, delineava as silhuetas escuras dos homens que iam a bordo. Subitamente um deles tirou o chapéu para deixar os cabelos ao vento, num gesto que eu bem conhecia. Obrigaram-no a repor o chapéu, mas eu tivera tempo para notar a cor clara daquela cabeleira. Momentos depois, o Vaillante zarpava, começando a sua descida para o alto mar. Nós atarefamo-nos nas manobras de aparelhamento...

- Não vos irei infligir os detalhes da viagem - continuou Philippe, olhando para a mãe que lhe parecia muito pálida, mas que o tranquilizou com um sorriso. - Correu o melhor possível, devido à habilidade de Stavros e às qualidades intrínsecas da sua embarcação. O navio francês desempenhava aliás o seu papel de navio de transporte comercial, não se apressando, parando nas escalas obrigatórias onde, por vezes, o antecedíamos. Alcançamos o canal da Sicília e, em seguida, o da Sardenha, depois de termos passado por Ténédos, Tinos, Citera e Zante sem deparar com maus encontros e, sobretudo, sem ter perdido a nossa presa de vista. Por fim, uma tarde, ao pôr do Sol, chegamos às margens do Lacydon. Depois de ter visto que o Vaillante não ia acostar, Stavros dirigiu o seu navio (estávamos a remar depois de termos franqueado a entrada do porto) para um local vizinho dos novos Paços do Conselho que estavam então a ser erigidos. Deste modo reencontramos aproximadamente a mesma posição de vigia que tínhamos no cais de Phanar, na Corna de Ouro. Isso permitiu-nos avistar, logo à chegada, um homem vestido de preto que entrou para a lancha e que se fez conduzir até ao outro lado do porto, na direção de um local que se situava entre o arsenal das galés, ainda por acabar, e as torres da abadia de São Victor:

- Ele vai prevenir alguém - comentou Stravos, que se afeiçoara a mim e que queria prestar-me a maior ajuda possível. - Talvez o nosso misterioso viajante não vá ficar por cá muito tempo. Agora cabe a ti atuar de modo a poderes segui-lo...

“Tendo permanecido muito tempo naquela cidade antes de partir para Cândia, eu conhecia-a bem e sabia onde dirigir-me para procurar os meios de prosseguir a minha viagem: roupas ocidentais, diverso material com que encher uma mala e, sobretudo, um cavalo. Deambulei pelas ruas barulhentas que partiam da igreja de São Lourenço, nas quais se misturavam praticamente todas as raças que cruzavam o Mediterrâneo, e sentia-me cheio de vigor mas, também, de inquietude: seria eu capaz, sozinho, de seguir a pista de Monsenhor sem dar nas vistas? Foi nessa altura que a Providência me enviou uma inesperada dádiva: um encontro com Pierre de Ganseville!

- Ganseville?! - exclamou um coro de três vozes. - Mas que estava ele ali a fazer?

Andava à procura de um navio que fosse para Cândia. Mas, em primeiro lugar, quase não o reconhecia, de tal modo as marcas do seu infortúnio o haviam mudado. Efetivamente, caíra do alto do céu nos tormentos do inferno: a sua jovem esposa, da qual estava perdidamente apaixonado, morrera ao dar à luz um filho que, uma semana depois, seguia o mesmo destino que a mãe. Imaginais o quanto sofreu!

- Pobre, pobre homem! - murmurou Sylvie comovida. - Mas estavas a falar da tua sorte...

- E de que maneira! Já vos falei da sua grande desgraça; após esta, nasceu-lhe uma ideia fixa: a de partir em busca de Beaufort, na morte do qual não queria acreditar e que ele se culpava por ter abandonado tão cedo para desfrutar uma felicidade brevíssima e que lhe parecia agora muito egoísta. Encontramo-nos no meio da alegria que podeis imaginar, se bem que ele tivesse também tido algumas dificuldades em reconhecer-me com esta barba tão abundante. Quando lhe expliquei o que estava a fazer ali em Marselha, viu-o renascer para a vida, transformando-se completamente sob o meu olhar e, se o alegre companheiro de outrora continuava ausente, o homem que me estendeu a mão reencontrara toda a sua energia. A perspectiva de salvar o nosso chefe galvanizou-o e estabelecemos um plano. Iríamos alojar-nos num albergue vizinho à abadia de São Victor onde estavam alojados os fiéis que vinham cumprir as suas devoções junto àquele lugar santo, sem desconfiarem da má reputação que os seus padres tinham desde há alguns anos. A sua vantagem residia no fato de podermos vigiar dali o Vaillante, que se encontrava atracado a pouca distância. Em seguida Ganseville esperou por mim, guardando o cavalo que eu acabara de comprar, enquanto eu ia apresentar as minhas despedidas a Stravos e trocar as roupas gregas com que viajara por aquelas que acabara de arranjar. Satisfeito por algumas peças de ouro que lhe ofereci em sinal de recompensa, aquele bravo homem prometeu-me que não se iria embora enquanto a traineira continuasse no porto, não se desse o caso de zarpar de Marselha sem ter primeiro desembarcado o seu passageiro...

- Caso isso acontecesse - disse-me - tu aperceber-te-ias e bastaria regressares aqui a todo o galope, para que recomeçássemos a perseguição... Quando me confiam uma missão gosto sempre de levá-la até ao fim.

“Graças a Deus que existem pessoas desta têmpera! No entanto, durante alguns dias, não se passou nada. Eu e Ganseville revezávamo-nos dia e noite à janela do nosso quarto e já começávamos a ficar inquietos quando, certa noite, chegou finalmente uma carruagem fechada e rodeada por vários cavaleiros, que estacionou na pequena praça deserta que formava a margem do sítio próximo de onde estávamos. Do navio foi imediatamente lançada uma lancha e a mesma cena que ocorrera em Constantinopla, observou-se ali, mas em sentido inverso...

- Asseguro-vos que os nossos corações batiam alvoroçadamente enquanto nos dirigíamos silenciosamente para a cavalariça, onde os nossos cavalos estavam prontos a partir a qualquer momento da noite. Um pouco mais tarde a viatura e a sua escolta puseram-se novamente a caminho, em lento andamento.

“Nessa altura, começou para nós a perseguição mais cruel, porque depressa nos apercebemos que era impossível qualquer esperança de libertação. Éramos só dois, quando aquilo que seria preciso era, se não um exército, pelo menos uma companhia. A escolta já era numerosa mas, logo antes de chegar a Aix, ela foi acrescida por cavaleiros da jurisdição dos marechais de França, que também tomaram posições em volta da viatura, que já não se procurava dissimular que transportava um prisioneiro de Estado. Entretanto o andamento tivera de abrandar e foi assim que conseguimos, apesar de tudo, chegar ao fim daquele calvário...

- Onde está o duque? - perguntou Perceval, num tom de voz em que a secura tentava disfarçar a emoção.

- Em Pignerol, uma fortaleza situada na fronteira da Sabóia...

- Sabemos onde é - suspirou Sylvie. - Foi para lá que levaram o pobre Fouquet... Que haveis feito depois?

- Descansamos um pouco na aldeia vizinha, procurando refletir, mas sem chegar a encontrar qualquer solução. Ganseville aconselhou-me então a vir tranquilizar-vos a meu respeito. Ele optou por ficar por lá, para se encontrar o mais próximo possível do seu príncipe. Mas eu vou regressar. Quem sabe, talvez um dia a sorte nos sorria e encontremos então um meio para...

- Durante todo o vosso percurso - interrompeu Perceval - chegastes a vê-lo?

- Ganseville, que subornou um criado do albergue encarregue de nos trazer comida e vinho, acabou por avistá-lo. É preciso dizer-vos que entre Marselha e Pignerol nem uma só vez o deixaram sair da sua prisão rolante. Quando Pierre regressou até junto de mim, abraçou-me a chorar. Não só Monsenhor está sequestrado da forma mais desumana como, além disso, o seu rosto está escondido por detrás de uma máscara... Uma máscara de veludo negro.

 

                             UMA FORTALEZA NOS ALPES

Nessa noite, muito depois de os outros se terem retirado, Sylvie ficou de olhos bem abertos, pensando em tudo o que acabara de ouvir, juntando lembranças antigas a mais recentes, como peças soltas de uma paciência. O silêncio da casa, que a envolvia como um casulo protetor, propiciava este exercício, pois o seu espírito nunca estivera tão claro. Tudo se ajustava segundo uma lógica implacável, desde as noites do Val-de-Grâce até à recente aventura de Philippe, tão incompreensível para quem nada soubesse do segredo que mais pesava sobre a casa dos Bourbons. Se o Rei de França podia esperar que os avatares de uma batalha o livrassem de um laço que devia transformar-se em pesadelo, por outro lado, a lei de Deus impedia-o, sob pena de danação, de ordenar de modo direto, ou indireto, a morte de seu pai[50]. Mesmo um “acidente” de percurso tê-lo-ia manchado de infâmia: não se faz batota com o Todo-Poderoso! Restava dá-lo como morto, assenhorear-se da sua pessoa e relegá-lo para um local tão secreto, tão retirado do mundo, que ninguém pensasse em ir lá buscá-lo! Em França, nenhum rosto era mais conhecido e mais popular que o do duque de Beaufort, príncipe de Martigues, Rei do Mercado, Almirante de França... A escolha recaíra sobre Pignerol, torreão do fim do mundo onde vegetava Fouquet, que Luís XIV considerava como seu pior inimigo. Como isso era revelador dos sentimentos profundos que animavam o jovem! Era para lá que enviava aqueles que incorriam no seu ódio!

Mas aquela prisão no meio da neve, que teria acabado por lançar qualquer um no desespero, para Sylvie representava, pelo contrário, uma oportunidade excepcional. Ela dispunha de um trunfo capital a que decidiu recorrer.

Quando cantou o primeiro galo da aldeia de Charonne, logo seguido pelos que pertenciam aos monges de Saint-Antoine, Sylvie apalpou o lado do corpo ainda dorido, sentou-se na cama, levantando-se depois com vagar. Foi mais fácil do que julgara. Apesar da noite passada em branco, não tinha febre e quase se sentia bem. O suficiente, pelo menos, para ir até à sua secretária em marfim e prata, lascada de mármore, antiga oferta da duquesa de Vendome pelo seu casamento e da qual nunca se separava, levando-a sempre consigo para qualquer das suas residências. Abriu-a, pondo a descoberto uma coleção de pequenas gavetas que enquadravam um nicho abrigando uma estatueta da Virgem em marfim. Ela benzeu-se, retirou a estatueta e manipulou a abertura de um pequeno esconderijo. Chegara a altura de utilizar certo documento que ali guardava desde há dez anos, sem imaginar que um dia ele lhe pudesse ser de qualquer utilidade. Leu-o atentamente e, depois, acendendo um candelabro com a chama da lamparina, foi bater de mansinho à porta do seu padrinho, que veio logo abri-la... Perceval estava em roupão, mas o fumo que enchia o quarto mostrava cabalmente que ele também não tinha dormido. A visita de Sylvie não lhe causou qualquer surpresa. O seu olhar passou do rosto ainda pálido, mas decidido, ao documento que ela tinha na mão. Depois, sorriu:

- Perguntava-me se acabaríeis por pensar nisso disse, enquanto a fazia entrar.

Na manhã do dia seguinte, Philippe regressava a Pignerol com instruções bem precisas.

- Voltarei a encontrar-me contigo daqui a dois meses - disse-lhe a mãe. Perceval corrigiu-a imediatamente.

- “Voltaremos” a encontrar-te! Minha cara, não imaginais decerto que vos vou deixar percorrer sozinha essas estradas quando começar, precisamente, a má estação. Talvez esteja velho, mas ainda me aguento bem de pé.

- Preferia que ficásseis ao pé de Marie, dado que Corentin continua de guarda a Fontsomme que, graças a Deus, ainda não tem novo titular nomeado pelo Rei...

- Marie passa o tempo à espreita das cartas que chegam de Inglaterra. Poderá fazer o mesmo em casa da sua madrinha que se sente um pouco só em Nanteuil-le-Haudouin. Eu vou convosco!

Estavam os dois tão determinados que quando a interessada foi posta ao corrente não levantou qualquer objeção. Sabia que a mãe se ia lançar numa aventura perigosa e recusava-se a estorvá-la fosse de que maneira fosse. Além disso, ela gostava muito de Mme. de Schomberg. Era ao pé da antiga Marie de Hautefort, de tão firme caráter, que ela estaria melhor para esperar pelo regresso dos seus queridos aventureiros e pelo resultado da sua expedição. Ao partilhar as angústias, achamo-las menos pesadas...

Durante o mês que se seguiu, Sylvie tratou-se o melhor que soube, pôs ordem nos seus afazeres para o caso de lhe acontecer alguma desgraça e escreveu algumas cartas, entre as quais uma, que endereçou ao Rei, e outra, aos seus filhos, confiando-as a Corentin, que Perceval mandara entretanto chamar. Finalmente tudo ficou a postos e na manhãzinha de sábado, dia 14 de Novembro, os dois viajantes, deixando para trás uma Jeannette que Sylvie se recusara a permitir que os acompanhasse, deixavam a rue dês Tournelles para enveredarem por um trajeto que iria durar três longas semanas...

Situada nos confins do reino, no flanco dos Alpes italianos, a gigantesca cidadela de Pignerol, cuja massa imponente esmagava a pequena cidade triste e a entrada do vale do Chisone, parecia-se efetivamente com aquilo que era: o sobrolho franzido da França olhando para o ducado da Sabóia Piemontesa, cuja capital era então Turim. Em 1631, por ocasião da assinatura do Tratado de Cherasco, Richelieu obtivera aquela fortaleza que controlava a estrada de acesso a Turim, aquela espécie de balcão de vigilância encastoado no flanco do reino e mandara fortificá-lo nesse intuito.

À medida que dela se aproximavam, os viajantes iam descobrindo, com certo temor, os formidáveis bastiões de pedra avermelhada que perfilavam as suas linhas quebradas. Era aí que se erguia o “castelo” ao estilo da Bastilha: um retângulo ameado, flanqueado por volumosas torres redondas, dominadas pelo torreão propriamente dito que, comparativamente ao resto dos edifícios, era estreito, mas cuja altura o assemelhava a um dedo ameaçador procurando perfurar a abóbada celeste. A primeira impressão foi sinistra: ao pé daquela prisão do fim do mundo, Vincennes ou a Bastilha pareciam uma brincadeira de crianças! As placas de neve que se amontoavam nos rochedos e o céu baixo, de um feio cinzento amarelecido que anunciava mais nevões, o frio que imperava, tudo isso contribuía a aumentar ainda mais aquela impressão de desolação. Sylvie estremeceu sob o monte de peles com que Perceval a agasalhara. O seu pensamento oscilava entre o homem que amava e que tinham transportado de tão longe para colocá-lo naquela terra de desespero e o encantador, o delicado Fouquet, sem dúvida o ser mais requintado do mundo que apodrecia ali, tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe. A sensação foi tão forte que abalou a ardente convicção em que se apoiava desde a partida: seria realmente possível tirar um ser humano daquela armadilha de pedra?

- Não é o momento para perder a coragem - disse Perceval, que não tinha dificuldade em seguir-lhe o curso dos pensamentos. - A cada dia a sua dor e alegria, e algo me diz que vamos em breve deparar com um primeiro problema...

Os dois cavalos atrelados à viatura tinham acabado de escalar a rampa que dava acesso à entrada da pequena cidade montanhosa, fechada pelas recentes muralhas. Deslizaram pelo dédalo de ruas estreitas e escuras, autênticas brechas por entre altas casas de telhados vermelhos, desembarcando por fim numa praça, cuja superfície era em grande parte ocupada por uma bela igreja em forma de ogiva, flanqueada de um campanário: a Cúpula. Em frente encontrava-se o albergue que Philippe descrevera tão cuidadosamente e onde tinham combinado encontrar-se com ele e com Pierre de Ganseville... E Sylvie descobriu logo o problema que Perceval parecia ter adivinhado: diante do albergue estavam alguns cavalos pretos, um enxame de selas vermelhas, de túnicas azuis ostentando as cruzes em flor-de-lis branca e dourada.

- Mosqueteiros! - sussurrou, aterrada.

- Bem me parecia ter avistado um numa rua transversal - suspirou Perceval - mas esperava ter-me enganado.

- O que é que isto significa? Não pode ser, o Rei não pode estar cá...

- Certamente que não! Estou mais disposto a acreditar que eles escoltaram algum ilustre prisioneiro. Sabeis que foram eles que trouxeram Fouquet...

- A menos que tenham vindo buscar outra pessoa para a levarem para outro castelo - murmurou Sylvie, numa voz apagada. Meu Deus, que fazemos?

Num gesto instintivo, já se debruçava para dizer a Grégoire que voltasse para trás. Perceval impediu-a:

- Seria a melhor forma de atrair as atenções sobre nós e não há qualquer motivo para entrar em pânico. Lembrai-vos: somos honestos viajantes, peregrinos, e é tudo. A noite cai, está frio, e nós vamos fazer uma paragem...

Os soldados, que entretanto tinham descido dos seus respectivos cavalos, afastavam-se efetivamente com toda a naturalidade, ao ouvir os gritos imperiosos de Grégoire, que reclamava: “Deixai passar, senhores mosqueteiros! Deixai passar!”

- Misericórdia! - gemeu Sylvie. - Ele julga que ainda está em Saint-Germain ou em Fontainebleau!

Realmente dava a impressão de ser esse o caso. Não só os interpelados obedeceram como, um deles, ao ver por detrás da vidraça a silhueta de uma mulher, levou a sua galantaria ao extremo de ir abrir a portinhola e de oferecer-lhe a sua mão enluvada. Foi preciso aceitar, agradecer com um sorriso e deixar-se levar até à porta da entrada diante da qual surgira o dono do albergue, que saudou com o respeito devido a quem vem numa confortável carruagem de viagem, mesmo quando coberta de lama. Foi então que Sylvie julgou que o céu lhe ia desabar em cima, se bem que tivesse vagamente adivinhado qual a identidade da personagem que surgia agora atrás do homem de avental branco: efetivamente, tratava-se de d’Artagnan em pessoa, que ocupava toda a entrada, obstruindo a porta. Impossível escapar-se-lhe. Aliás, ele já a tinha reconhecido e o seu rosto resplandeceu; empurrou o dono do albergue para ir ao seu encontro:

- Minha bela duquesa! - exclamou, utilizando, no meio de toda a sua alegria, o termo com que pensava nela (até a chegava a tratá-la intimamente por Sylvie!). - Mas que maravilha poder encontrar-vos no meio desta terra perdida. Entrai! Vinde depressa aquecer-vos! Estais gelada!

Pegou na mão dela, cuja luva retirou a fim de lhe beijar os dedos, guardando-a nas suas. Como lhe explicar que o seu aparecimento ainda gelara mais Sylvie que a temperatura exterior? Levada por ele, esta encontrou-se diante de uma grande chaminé na qual assavam um carneiro inteiro e quatro frangos:

- Por piedade! - murmurou, na altura em que ele abria a boca para dar ordens ao dono do albergue. - Esquecei-vos da duquesa, mas lembrai-vos que sou uma exilada. Viajo sob outro nome.

- Meu Deus, como sou parvo! Mas estou tão contente! Desculpai-me pela exuberância da minha loquacidade gascã! Mas, afinal, onde ides com um tempo destes?

Foi Perceval quem se encarregou de responder:

- Para Turim!

- Fugis do país?

- Não. Somos apenas peregrinos que vão rezar ao pé do Mui Sagrado Santuário de Nosso Senhor. A minha afilhada ainda espera ver regressar o filho, cuja morte se recusa a aceitar. E vós: como é possível que vos encontremos aqui?

Antes de responder, d’Artagnan ajudou Sylvie a sentar-se ao pé do fogo e reclamou vinho quente para os viajantes; finalmente, com um encolher de ombros, disse:

- Mais um desses trabalhos da breca que tanto detesto: acabo de entregar um novo pensionista à guarda de M. de Saint-Mars. É um dos vossos amigos.

- Quem?

- O jovem Lauzun!... Não - acrescentou logo ao ver o movimento brusco de Sylvie que quase entornou o seu copo - não foi por ter morto o triste cavalheiro com quem queriam que vossa filha desposasse à viva força mas, mesmo assim, é por causa de uma história de casamento. Nos últimos tempos só se ouvia na Corte o rumor da sua próxima união com Mademoiselle...

- Efetivamente, isso deu muito pano para mangas segundo Mme. de Motteville, a quem o fato divertia muito, embora a escandalizasse um pouco...

Outros ficaram ainda mais escandalizados e, entre essa gente, encontrava-se a própria Rainha e Mme. de Montespan que, por uma vez, estava de acordo. De qualquer maneira, o caso é que, na antevéspera do casamento e enquanto estava tudo a postos para a entrada triunfal do “senhor duque de Montpensier” no palácio do Luxemburgo, o Rei, que tinha dado o seu consentimento, resolveu retirá-lo. Mademoiselle está desesperada mas Lauzun, sempre tremendamente suscetível, acatou muito mal a queda do seu belo sonho. Teve uma cena violenta com o Rei, no seguimento da qual quebrou a sua espada e quase a lançou à cara de Sua Majestade. Foi preso imediatamente. Agora está ali - acrescentou com um movimento de cabeça na direção da fortaleza - um pouco arrependido do seu gesto, é verdade, mas creio que por lá ficará por uns tempos! E eu, por muita pena que isto me cause, tenho de lá voltar para jantar com M. de Saint-Mars, enquanto os meus homens vão festejar aqui na companhia dos oficiais de M. de Rissan[51].

- Pobre Lauzun! - suspirou Sylvie, com uma amargura que nem procurou dissimular. - Contudo, já devia saber que nunca se deve enfrentar o Rei, sobretudo quando este não tem razão. A palavra do Rei nunca volta atrás!

- Pobre amiga, falais por experiência própria! Mas ficai sabendo que não descansarei até que vos revoguem essa ordem de exílio que é tão incompreensível. Desejo tanto ver-vos de volta à Corte!

- Não tenho vontade nenhuma de lá voltar. Por favor, deixai-me no meio da minha obscuridade! Talvez venha até a ser possível que a deseje ainda mais cerrada e que procure um refúgio final dentro de um convento...

- Oh não, vós não! Morreríeis de tédio! Além disso ainda sois muito nova...

- Muito nova quando me aproximo dos cinquenta? Decididamente, sereis sempre muito galante, meu amigo.

- E por que não lisonjeador? Ora eu sou tudo o que quiserdes menos isso. Se digo que sois jovem, é porque assim o penso. Olhai-vos ao espelho!

Dois homens entravam na sala: Philippe e Pierre de Ganseville. Num relance aperceberam-se da situação. Deste modo dirigiram-se para uma mesa um pouco afastada, sem parecerem ocupar-se com aquilo que se passava à volta.

- Voltando a Lauzun - disse Perceval, que acabara de ter uma ideia - não seria possível visitá-lo para lhe dar algum apoio? Devemos-lhe tanto, eu e Mme. de Raguenel (no passaporte que obtivera, Perceval mencionava Sylvie como sendo sua sobrinha!). Ao menos, espero que ele não esteja no isolamento.

- Penso que não. Julgo que até é muito bem tratado... daqui a pouco direi uma palavrinha a Saint-Mars, mas... com uma condição.

- Qual?

- A de, uma vez autorizados a entrar, não aproveiteis a oportunidade para pedir o mesmo favor em relação a Fouquet. Sei quanto o estimais, mas ele continua em regime de isolamento.

- Dou-vos a minha palavra - disse Sylvie. - Seria tão amável da vossa parte que nos conseguísseis obter esse favor! Marie, que em breve desposará aquele que ama, deve-lhe a felicidade...

- Farei o melhor que puder!

Pegou na mão de Sylvie, beijando-a talvez durante mais tempo que a cortesia o exigiria e dizendo, ao despedir-se, que passaria ali antes de regressar de manhã para Paris, quer para escoltar os seus amigos até junto de Saint-Mars, quer para acompanhá-los simplesmente até à carruagem antes de eles partirem para Turim. Estes seguiram-no com o olhar, viram-no dirigir algumas palavras ao seu brigadeiro e abandonar finalmente a sala.

- Amanhã de manhã, minha cara, estareis doente! - resmungou Perceval entredentes. - O vosso apaixonado não terá o prazer nem de vos escoltar até ao governador, nem de vos acompanhar um pouco até ao centro da cidade.

- E se ele decidir esperar que eu me recomponha?

- Isso seria de recear se ele estivesse sozinho, mas é um soldado. É muito rígido no plano disciplinar e não pode imobilizar aqui uma quarentena de mosqueteiros para satisfazer um desejo meramente pessoal. Agora é tempo de pedir os nossos quartos e que nos levem o jantar.

Escoltados pela mulher do patrão, subiram a íngreme escadaria que conduzia ao primeiro andar, evitando olhar para os dois fregueses que bebiam na mesa ao lado. Ao passar mesmo junto a eles, o cavaleiro de Raguenel perguntou despreocupadamente quais os quartos que lhes estavam destinados.

- Primeiro e segundo à direita - respondeu a mulher.

Philippe sorriu por entre as barbas. Um pouco mais tarde, durante a noite, depois dos comensais terem partido para os seus respectivos alojamentos na cidadela, ele foi bater ao de leve na primeira das portas mais chegada à escada, a do quarto de Perceval.

- Há dois dias que vivemos angustiados - cochichou. - Já imaginastes o que nos passou pela cabeça quando vimos chegar os mosqueteiros e, pior ainda, ao vermos d’Artagnan a conversar com a minha mãe esta noite?

- Tranquiliza-te! Até agora corre tudo bem...

Em poucas palavras pô-lo ao corrente da conversa com o capitão, acrescentando que até podiam estar felizes por tê-lo encontrado, pois isso iria permitir-lhes obter uma visita a Saint-Mars, sem terem de ser eles a pedi-lo diretamente. Philippe fez uma careta:

- É precisamente esse encontro que me atormenta. Tendes ideia do perigo que ireis correr?

- Quem não arrisca não petisca, e a tua mãe está muito decidida em utilizar a arma de que dispõe. Lembra-te do que te dissemos em Paris: há dez anos, em Saint-Jean-de-Luz ela evitou que um mosqueteiro chamado Saint-Mars fosse enforcado como ladrão. Como prova de agradecimento, ele escreveu-lhe uma carta segundo a qual, em caso de necessidade, estaria disposto a conceder-lhe a honra e a vida. É esta dívida que ela lhe vai pedir que seja paga.

- Em dez anos um homem muda muito. Pode acontecer que o nosso carcereiro não julgue esta dívida suficiente para resgatá-la com a entrega de um prisioneiro desta importância. Desde que aqui chegou, Ganseville achou mais prudente não ficar no albergue. Alugou uma casinha, entre o velho palácio dos príncipes de Acaia[52] e a igreja de Saint-Maurice, situada na parte alta da cidade. Faz-se passar por um descendente de Villehardouin que deseja escrever a história do antigo principado, tendo-se aqui deslocado em busca de vestígios...

Perceval franziu as sobrancelhas até meio da testa.

- Onde é que diabo foi ele desencantar essa ideia?

- É muito simples. Ele descende de fato dos Villehardouin através do lado feminino. Lembrou-se desse pormenor quando nos mostravam o palácio. A ideia de utilizá-lo só lhe ocorreu depois. Ao fim de algum tempo, a sua presença contínua no albergue teria podido acabar por atrair as atenções. Tem mais liberdade na casinha que alugou e as pessoas olham-no com mais simpatia, o que não impede que desça todos os dias ao albergue para beber um copo de vinho e, por vezes, para comer. Fala pouco mas ouve tudo e, como paga de bom grado um pichei de vinho, as pessoas soltam a língua. Desde há algumas semanas que corre o rumor que está por cá um prisioneiro de tal modo importante que tem de andar de máscara. Não tem o direito de tirá-la sob pena de morte, nem o de falar, a não ser ao governador e é este quem lhe leva a comida e tudo o que ele precisa: roupa da mais fina e comida da melhor...

- Ninguém emite uma hipótese sobre o nome, sobre a pessoa de quem se trata?

- Ainda não, mas as perguntas fazem-se longe dos ouvidos dos soldados. Eis o ponto da situação, caro “padrinho”. O que não me impediu de fazer os preparativos de que falamos em Paris: temos cavalos aparelhados na residência de Ganseville e comprei uma tartana que nos espera no porto de Menton.

- Por que o fizeste, se julgas que não há qualquer hipótese de sucesso?

- Nunca disse isso. O que disse foi que, possivelmente, Saint-Mars preferirá morrer a soltar um prisioneiro destes, cujo desaparecimento não saberia explicar. Só que temos uma solução que nos é dada pelo uso da máscara. Ganseville decidiu ficar no lugar dele...

- No lugar dele?

- Se alguém o pode fazer, é ele. São ambos da mesma idade, tamanho, quase com a mesma cor de cabelo, sem contar com os olhos azuis e como só o governador do castelo é que pode visitá-lo... Penso que é o nosso melhor trunfo para levar a bom porto o projeto da Mãe...

A ideia era tão generosa quanto genial. Perceval admirou-a sem quaisquer reservas, mas pouco depois o entusiasmo esmorecia-lhe:

- Vós que tão bem conheceis Beaufort, como podeis acreditar que ele aceitará uma coisa dessas?

- Teremos de convencê-lo. Pierre diz que tem força para isso. E, além disso... a Mãe estará presente. A esse propósito é indispensável que seja Ganseville a acompanhá-la e não vós.

- Queres que a deixe enfrentar sozinha uma armadilha destas?

Philippe pôs as suas duas mãos em cima dos ombros do velho amigo, cuja súbita tristeza o comovera:

- Ela não estará sozinha e Ganseville daria a vida por ela. Além disso desculpai-me por dizê-lo! ele é mais jovem... e tem muito mais experiência em matéria de armas.

- Não se podia dizer mais educadamente que eu já me tornei apenas num velho teimoso! - resmungou Raguenel, sacudindo os ombros para evitar o abraço de consolo. - Mas no fundo tens razão. A propósito, onde estás alojado?

- Estou alojado aqui, é claro, mas não a tempo inteiro. Mexo-me muito e em princípio conheci Ganseville aqui mesmo... Agora tratai de dormir! Eu vou fazer o mesmo...

No dia seguinte, como combinado, Sylvie estava adoentada. Deitada no fundo da cama, no meio de um montão de cobertores e de edredões, quando d’Artagnan se apresentou no albergue ela tossia de modo a meter dó:

- A pobre dama apanhou um resfriado, isso é certo - disse-lhe a hospedeira que se preparava precisamente para levar um copo de leite quente à doente. - O senhor seu tio está ao pé dela.

A ruga de preocupação que surgira entre as sobrancelhas do capitão acentuou-se ainda mais.

- Sigo-vos. Pelo menos, tenho de falar com ele...

Deixando a pretensa sobrinha entregue aos cuidados daquela mulher, Perceval saiu do quarto e levou d’Artagnan até ao seu.

- Ela é muito insensata - confiou-lhe. - Não cuida suficientemente de si própria: esta viagem, logo no começo do Inverno, era pura loucura, mas não me quis ouvir e, desde que esteve tão doente, não ouso mais contrariá-la...

- Se contais levá-la de volta, estais enganado. Tal como a conheço, se decidiu ir rezar ao Santo Santuário é isso que fará...

- Oh, mas não o ignoro!... Já agora pergunto-vos: sempre podemos ir visitar M. de Lauzun?

- Sim. Vinha dizer-vos que Saint-Mars vos receberá hoje à noite pelas nove horas. Não vos escondo que não foi coisa fácil. Nunca o tinha visto tão pusilânime, tão inquieto. Dá a impressão de se encontrar sentado em cima de um barril de pólvora. Não sei ao que se deve. É perfeitamente ridículo. Seja como for, sempre consegui a visita, mas tive de revelar a verdadeira identidade da duquesa. Ele admitiu que lhe devia algo...

- Algo? - repetiu o cavaleiro de Raguenel com desdém. - Isso é dar bem pouco valor à sua vida e à sua honra...

- Foi o que lhe disse, mas que quereis?, agora ele já não é mosqueteiro. Apenas um carcereiro e um carcereiro muito bem pago. Isso dá para transformar um homem... Bom, vou anunciar-lhe a doença da nossa duquesa e adiar o encontro. De qualquer modo vou ficar por cá até que tenhais visto Saint-Mars...

Subitamente, Perceval teve tanto calor quanto Sylvie na sua cama.

- Mas... e os vossos homens, e as vossas ordens?...

- O meu brigadeiro Cahuzac poderá pôr-se a caminho com eles que eu apanhá-los-ei mais tarde...

Era a última das coisas a fazer e por pouco que Perceval não gritava ”Socorro!”. Contudo, soube controlar-se o suficiente para reagir como convinha. O seu rosto tornou-se num poema de serenidade e de caridade cristãs, enquanto colocava uma mão compadecida no ombro do mosqueteiro:

- Não, meu amigo, não. Não podemos aceitar que vos coloqueis numa má situação por nossa causa. Já fizestes muito ao conseguir que M. de Saint-Mars nos autorize a abraçar esse caro Lauzun. A minha afilhada recusar-se-á a que continuais a ajudar-nos...

- Mas eu faria muito mais por Mme. de Fontsomme. Compreendei que me custa muito abandoná-la assim, doente, no meio destas montanhas hostis...

- E se confiásseis um pouco em mim? - perguntou Perceval, com um ar ofendido. - Tenho conhecimentos de medicina e posso assegurar-vos que dentro em pouco ela estará curada. A peregrinação encarregar-se-á do resto e depois regressaremos tranquilamente a Paris.

- Longe de mim a ideia de vos ofender, cavaleiro! Bem sei que velais por ela como um pai. Pois bem, voltarei daqui a pouco para me despedir... Ah, não nos esqueçamos disto: aqui está o vosso salvo-conduto para entrar no castelo. Sem ele nem sequer poderíeis transpor a primeira muralha. Vou até lá prevenir Saint-Mars e já volto...

O susto fora de tal ordem que Perceval teve de se sentar antes de ir contar a Sylvie o que sucedera. Esta animou-o:

- Que amigo tão querido! - acrescentou, soltando um suspiro de ternura. - Se nos pregou um enorme susto ao darmos com ele, é preciso confessar que muito nos ajudou sem o querer. O seu salvo-conduto é de inestimável preço. Vale bem a angústia por que passamos e soubestes encontrar as palavras apropriadas...

Quando, antes de partir, o capitão veio saudá-lo, o seu reconhecimento e, também, a profunda amizade que sentia por ele ditaram-lhe palavras encantadoras. Prometeu-lhe que havia de rezar por ele em Turim mas, mesmo assim, foi com profundo alívio que ouviu o ruído dos cascos dos cavalos a diminuir de intensidade, para desaparecer depois pela estrada de montanha. O tempo, sempre frio, mas não excessivamente, desanuviara o céu durante a noite. Podia antever-se que a viagem dos mosqueteiros não encontraria qualquer percalço. Agora, tudo o que restava a fazer era esperar, naquele quarto de albergue, durante os três dias que se tinham estabelecido como prazo para pôr termo à doença fictícia.

Na tarde do quarto dia, Sylvie e Perceval deixaram ostensivamente Pignerol, em direção a Turim. Ao fim de um quarto de légua, desviaram-se da estrada para abordar um caminho que entrava por duas colinas dentro, dando para uma quinta em ruínas, que Philippe já localizara há muito tempo e cujo acesso mostrara a Grégoire durante a “doença” de sua mãe. Foi aí que se reuniram a Ganseville e a Philippe, esperando depois pela hora que fora marcada para o encontro com Saint-Mars, a quem, de manhã, Sylvie enviara um bilhetinho pelo seu cocheiro, anunciando a chegada deles para essa mesma noite.

Certamente que o tempo nunca lhes custara tanto a passar. As cinco pessoas ali reunidas estavam ao mesmo tempo apressadas para começar a sua aventura e conscientes dos perigos que ela acarretava. Tudo dependeria das reações de Saint-Mars. Se ele considerasse que teria pago a sua dívida para com Sylvie ao proporcionar-lhe um encontro com um prisioneiro afinal de contas muito anódino havia tudo a temer quando soubesse qual era o propósito real da visita e o cavaleiro de Raguenel esforçava-se por dissimular o medo crescente que o invadia. Era tanto mais difícil para ele, porquanto não os acompanharia. Só Pierre de Ganseville, desempenhando o seu papel, é que teria esse direito. Ele e Philippe teriam de esperar pelo regresso da carruagem escondidos no meio das ruínas. Se ela regressasse! E não era possível expressar a sua angústia, sabendo muito bem que os seus companheiros sentiam o mesmo.

Contudo, dois deles ostentavam grande otimismo: Sylvie, em primeiro lugar, galvanizada com a ideia do seu desempenho por aquele que nunca deixara de amar. Depois, Pierre de Ganseville: nada restava nele do homem esmagado pelo desespero e atormentado por ideias suicidas que um dia Philippe encontrara em Lacydon. A aproximação do momento da ação, a excitação daquilo que seria provavelmente o derradeiro combate, restituíam-lhe, não uma coragem que era inerente à sua natureza, mas sim uma nova vitalidade. Quando há pouco Sylvie, ao reencontrá-lo frontalmente pela primeira vez, o abraçara espontaneamente sem nada dizer, mas de lágrimas nos olhos, ele reencontrara para ela o seu sorriso de antes:

- Não deveis chorar, senhora duquesa! Nada me poderá fazer mais feliz que aquilo que vamos conseguir se Deus quiser, e tanto Lhe rezei que tenho toda a confiança.

- Caso consigamos vê-lo, credes sinceramente que ele aceitará esta troca de lugares?

- Não terá outro remédio, pois essa vida de recluso que me espera, eu tê-la-ia escolhido de qualquer modo, mesmo que o caso não se tivesse apresentado. Teria ido chorar a minha querida esposa no mais austero dos claustros, esperando pela hora de reunir-me a ela. Na prisão de Pignerol, sei que ficarei feliz, porque saberei que ele estará livre na ilha para onde contais levá-lo. Ficará lá prisioneiro, mas essa prisão será à sua medida e nela poderá finalmente reencontrar o mar...

Nada mais havia a acrescentar.

A noite chegou finalmente e, com ela, o momento de se porem a caminho. Enquanto Ganseville verificava uma última vez as armas que levava além da espada trazia duas pistolas e um punhal, tudo escondido debaixo da sua grande capa preta. Sylvie abraçou o filho e o padrinho, tensos por uma angústia inconfessável, obrigando-se a si mesma a dar aquela separação o tom de uma breve despedida e não o de um irremediável adeus. Depois, subiu calmamente para a carruagem onde Ganseville se reuniu a ela.

O caminho foi percorrido em silêncio. Como o tempo continuara frio e seco, a obscuridade não era total. Os olhos acostumavam-se depressa. De vez em quando, Sylvie voltava a cabeça na direção do companheiro que permanecia imóvel. Só um ligeiro movimento na sua boca dava para perceber que estava a rezar. Não quis incomodá-lo. À medida que se aproximavam, o coração pusera-se a bater mais depressa e as suas mãos esfriavam dentro das luvas. Depois de terem subido a rampa de acesso e parado no primeiro posto da guarda, ela não conseguiu evitar de procurar a mão do seu companheiro e de apertá-la, enquanto Grégoire apresentava o salvo-conduto que a sentinela examinou à luz de uma lanterna. Nessa altura Ganseville olhou para ela e sorriu-lhe com um tal ar de encorajamento que se sentiu melhor.

O soldado devolveu o documento, saudou e recuou. Grégoire voltou a pôr a carruagem em andamento. Mais duas paragens e entraram finalmente no centro do castelo, no pátio que era dominado pela silhueta vertiginosa do torreão, muito para além das três torres do recinto. Um guarda veio buscá-los e levá-los até aos aposentos do governador, que ocupavam um amplo espaço entre a capela do castelo e a grande torre do sudeste. Sylvie, em quem os austeros edifícios medievais[53] tinham causado uma má impressão, ficou muito surpreendida ao deparar com verdadeiras janelas que tinham uma linda vista para o vale, com móveis de muito boa qualidade, arranjados com um gosto que revelava uma mão feminina. Lembrou-se então que Saint-Mars casara, que a sua esposa, irmã da amante de Louvoís, era considerada como extremamente bela e muito parva mas que não se tratava da Maitena Etcheverry, pela qual o antigo mosqueteiro se dispusera outrora a cometer tantas loucuras. O guia abandonou os recém-chegados numa sala assaz exígua e repleta de armários e de livros, em redor de uma mesa de trabalho a abarrotar de papéis. Diante dela havia dois assentos. Sylvie escolheu um e Ganseville optou por ficar de pé. Não tiveram de esperar, abriu-se uma porta e Saint-Mars entrou.

Em dez anos, o seu aspecto mudara consideravelmente. Mais gordo, mais avantajado não é impunemente que se transforma um cavaleiro em funcionário sedentário! O seu rosto bem escanhoado estava mais rechonchudo sob a peruca que não permitia ver se os seus cabelos tinham ou não embranquecido, e os seus olhos cinzentos, que Sylvie vira cheios de lágrimas, apresentavam-se agora bem secos e duros como as pedras da sua fortaleza. No entanto, dispensou à sua visitante um acolhimento cortês, jovial e tão caloroso quanto possível, contentando-se em saudar o falso Perceval segundo os ditames protocolares. Pela cabeça de Sylvie perpassou-lhe a ideia que ele devia estar contente por poder pagar, daquela maneira, a sua velha dívida.

- Quem diria que voltaríamos a encontrar um dia a senhora duquesa em locais tão tristes e depois de decorridos tantos anos!

- Dez, exatamente. Não é assim tão longo! Mas estou muito contente por ver que não vos haveis esquecido das nossas... boas relações de outrora.

- Como o poderia, quando vos devo tanto?

- Oh, de modo muito simples, vós...

- Já sei! Vou mandar chamar M. de Lauzun, um dos vossos amigos... é óbvio que não vos posso conceder uma longa visita, pelos motivos que havereis de compreender.

Visivelmente apressado para acabar com aquilo tudo, já se dirigia na direção da porta por onde entrara, quando Ganseville lhe barrou a passagem:

- Devagar, cavalheiro! Nada de pressas! Mme. de Fontsomme ainda não vos disse o que pretende realmente.

- Mas... M. d’Artagnan já me tinha informado...

- M d’Artagnan não estava ao corrente desta questão. É verdade que gostamos muito de M. de Lauzun...

- Mas é o prisioneiro da máscara de veludo preta quem queremos! Não para vê-lo durante uns momentos, mas para levá-lo daqui para fora! - desferiu Sylvie

Saint-Mars voltou-se para ela como se tivesse sido mordido por uma serpente, enquanto ela já se levantara e acabara de desdobrar a carta que ele outrora redigira.

- Não sei... do que estais a falar.

- Oh sim, sabei-lo, e muito bem! Trata-se desse homem... ou antes, devia dizer, desse príncipe que há pouco vos trouxeram de Constantinopla e que tendes de manter em regime de isolamento. Trata-se, também, desta carta onde me haveis dito que a vossa vida e a vossa honra me pertenciam e que poderia vir reclamá-las quando assim o desejasse...

- E é isso que viestes fazer? Mas é um erro! Não está cá nenhum príncepe. Confesso que é verdade que existe... um prisioneiro que mantenho no isolamento, do qual só eu me ocupo e que ninguém pode ver; trata-se de um certo Eustache Dauger... e ignoro de que é acusado. Tudo o que sei é que foi aprisionado em Dunquerque e trazido para aqui há dois anos atrás...

Nessa altura bateram ao de leve à porta e um carcereiro entrou, visivelmente incomodado e torcendo nervosamente o boné:

- Que quereis? - berrou Saint-Mars.

- É... é por causa do criado de M. Fouquet... esse Dauger! Está doente e não há meio de encontrarmos o médico. Deve ter comido algo estragado. Rebola-se no chão. Que devo fazer?

- Sei lá! Dai-lhe algo para que vomite e tratai de encontrar o médico! Agora, ide-vos!

O homem desapareceu como um rato aterrorizado. Ganseville aproximou-se do governador com um sorriso ameaçador nos lábios.

- Com que então, Dauger, hein?... Criado de M. Fouquet! E que chegou há dois anos... Isso não nos diz respeito.. A pessoa de que falamos chegou aqui há quatro meses. Quereis que vos diga como se chama?

- Não! Se quiserdes ficar vivos!... Está certo, é verdade que tenho aqui um prisioneiro excepcional que ninguém, mas ninguém haveis-me compreendido bem? pode saber de quem se trata. As ordens são para matá-lo se retirar a máscara ou caso tente comunicar com qualquer outra pessoa, para além de mim.

Protegido pelo dever impiedoso que lhe tinham imposto, Saint-Mars sentia-se agora mais seguro. Tivera muito medo, mas este dissípara-se sob o efeito da cólera:

- E vós vociferou vós vindes aqui reclamá-lo em troca desse pedaço de papel que só a mim diz respeito? É verdade que nele escrevi que a minha vida vos pertencia, senhora, mas desde que tenho aqui este prisioneiro a única pessoa que pode reclamá-la é o Rei. E dado que estais ao corrente deste terrível segredo, tenho de aplicar as minhas ordens: já não podereis sair daqui. Pelo menos, vivos!

Ia agarrar numa corda para fazer retinir a campainha, mas Ganseville antecipou-se e apertou-lhe o braço com tanta força que ele gemeu de dor. Ao mesmo tempo, retirou o punhal da sua cintura e encostou-lhe à barriga.

- Devagarinho, meu amigo! Ficamos a saber o que vale a vossa palavra, mas vós não estais ao corrente de tudo: temos companheiros nossos que também conhecem o vosso segredo e se não sairmos daqui, o rumor espalhar-se-á através da França. Sobretudo em Paris, que não esquece o seu Rei do Mercado...

- Não vos creio. Estais a tentar influenciar-me...

- Ah sim? Acaso vos haveis esquecido que em Turim, a dez léguas daqui, reina a duquesa Marie-Jeanne-Baptiste, filha de sua irmã, a duquesa de Nemours, nascida Vendôme, e que esta gosta muito do seu tio?

- Não quero ouvir mais nada..

- Ai sim, tereis de nos ouvir! É claro que podemos ser mortos, mas uma vez o segredo divulgado ele acabará também por matar-vos e o Rei terá de enfrentar uma nova Revolta.

- De qualquer modo estou condenado. Que julgais que me aconteceria se eu vos entregasse o meu prisioneiro? - disse, tentando novamente agarrar na corda da campainha, mas sem o conseguir. Ganseville sorriu ferozmente:

- Vou dizer-vos o que vos aconteceria: nada!

- Ora vamos! Estais a ver-me escrevendo a M. de Louvois para informá-lo que o seu prisioneiro se evadiu? Fazemos tudo o que podemos para evitar esse gênero de desgraça. Se isso vos pode tranquilizar o prisioneiro é bem tratado, mas só uma pessoa pode visitá-lo: eu, que sou ao mesmo tempo seu carcereiro e seu criado.

- Mas quem vos falou de evasão? Não poderíamos deixar a sua masmorra vazia. Se entregardes o duque à senhora aqui presente, outra pessoa irá substitui-lo.

- E posso saber quem? Vós, se calhar...

- Eu, precisamente! Olhai bem para mim, Cinq-Mars! Sou da mesma altura. Tenho os cabelos louros e os olhos azuis das mesmas cores que os dele e sei tudo a seu respeito, porque desde a infância que o acompanhei enquanto seu escudeiro. Conheço-lhe os hábitos, a maneira de viver. Quase a sua maneira de pensar. Estou aqui para ocupar o lugar dele...

- Ora vamos! Iríeis condenar-vos à prisão perpétua? Pois é isso que o espera. Nenhum homem é capaz de uma dedicação dessas!

- Eu sou. Porque só me resta a sua amizade, porque perdi tudo e todos... Abrandou a sua pressão e Saint-Mars aproveitou para se soltar e, massajeando o braço, regressou à sua mesa de trabalho.

- Admitamos! - proferiu. - Admitamos que eu faça o que me pedis! Que aconteceria? Agora sou eu a responder: logo que ele se encontrasse lá fora, amotinaria os seus partidários, tornar-se-ia o seu líder. Há pouco fizestes mal ao evocar a Revolta!

Sylvie decidiu então intervir:

- Em nome da minha vida e da minha salvação eterna, nada disso acontecerá. Vou levá-lo comigo até ao fim do mundo, para um local que só nós dois conhecemos. Ele não representará mais nada e a sua vida será tão escondida como o é na vossa prisão, com a diferença que os seus guardas serão o céu, o mar... e o amor que lhe tenho.

Os olhos cinzentos do governador não paravam de ir de um para o outro daqueles dois seres, ambos vestidos de preto, como se fossem estátuas fúnebres: a mulher transfigurada pelo seu amor, cuja mente já vogava longe da fortaleza e o homem sombriamente determinado, que só voltara a colocar ao punhal na bainha para trocá-lo por uma pistola. Saint-Mars sentia-se apanhado na armadilha, mas não conseguia resignar-se.

- Não! - gemeu. - Não, não quero! Ide-vos embora! Esquecerei que vos vi.

- Mas nós não - disse Sylvie com suavidade. - Se eu me for embora sem ele, isso equivalerá a tirar-nos a vida: a França inteira ficará sabendo que ele está vivo e onde se encontra cativo. Sublevaremos o país inteiro.

- Não o conseguirão. A Revolta já vai longe...

- Certamente, mas são muitos aqueles que amam o duque e que se recusam a acreditar na sua morte. E o seu rosto é conhecido em toda a parte, desde as costas de Provence até às fronteiras do Norte. Ele combateu em todo o reino, e deixou sempre marcas por onde passou. É Almirante de França, duque de...

Num impulso, Saint-Mars lançou-se sobre ela para lhe pôr uma mão na boca no fito de impedi-la de pronunciar a palavra tão temida. Sylvie afastou muito calmamente a mão e concluiu com ainda mais brandura:

- É por isso que ele tem de continuar a usar a máscara até morrer? Pois bem... haverá um outro rosto escondido por debaixo dela e ninguém saberá de nada! Só eu e vós...

- E se M. de Louvois vier fazer uma visita de inspecção? Se quiser vê-lo?

- É muito simples - reatou Ganseville. - Quando o prisioneiro aqui chegou, estava mascarado...

- Efetivamente.

- E nunca o haveis visto sem a máscara?

- Nunca. Foi assim que ele me foi entregue e já recebera ordens no sentido de nunca poder ver o seu rosto...

- Então não tendes meio algum de saber se ele não foi substituído por outra pessoa durante a longa viagem desde Constantinopla. Tomastes conta daquele que vos entregaram e ponto final! Quanto a Louvois, que quereis qual ele venha fazer ao vosso castelo perdido no meio da neve? Uma inspecção seria indigna do posto que ocupa. O mesmo se aplica a Colbert... As pessoas não deixariam de interrogar-se.

- E não poderiam querer visitar M. Fouquet? Ou M. de Lauzun... o vosso amigo - acrescentou com amargura, ao voltar-se para Sylvie.

- Ele é realmente um amigo meu - respondeu esta com um pequeno sorriso triste - tal como o era M. Fouquet. Ao menos podereis dizer-me como é que ele vai ao fim deste tempo todo?

- Não diria que se porta muito bem, pois a sua saúde nunca foi lá grande coisa, mas está calmo, muito resignado, resignação que vai buscar à sua fé cristã. Está... inteiramente submetido à vontade de Deus. O que não é o caso de M. de Lauzun...

- De qualquer modo, ninguém virá “inspeccionar” seja quem for. - impacientou-se Ganseville. - O Rei só vai querer recordar-se do seu antigo superintendente das Finanças no dia em que este tiver morrido. Quanto a Lauzun, está de penitência e todos farão o possível para evitar que ele pense que ainda se possam interessar pela sua pessoa. Afinal, que ides decidir? O tempo está a passar!

Instalou-se um silêncio. Abatido na poltrona, Saint-Mars avaliava na sua mente todos os dados do problema. Deram-lhe tempo para que pensasse. O coração de Sylvie batia tão desordenadamente durante esses minutos de extrema tensão que parecia-lhe que ia sufocá-la. Por fim Saint-Mars levantou-se e dirigiu-se a Ganseville:

- Cobri-vos com a vossa capa, baixai o chapéu até aos olhos... e vinde comigo! Vós, senhora, esperai aqui!

Os dois homens iam a sair quando Sylvie caminhou na direção do amigo tão fiel que não mais voltaria a ver, agarrou-o, pôs-se nos bicos dos pés e beijou-o:

- Que Deus vos guarde e abençoe o vosso generoso coração!

- Que Ele vos guarde a vocês dois e eu serei feliz! - respondeu Ganseville, devolvendo-lhe o beijo.

Depois, seguiu aquele que iria tornar-se o seu carcereiro e que já era seu cúmplice...

Bem mais tarde, depois de um guarda a ter vindo buscar para convidá-la a esperar pelo companheiro dentro da sua carruagem, Sylvie, de coração apertado e de olhos bem abertos, espreitava a porta enquadrada por duas lanternas de onde viu sair Saint-Mars, acompanhado por um homem agasalhado, que se parecia de tal modo com Ganseville que a sua garganta se contraiu. Sem pronunciar uma palavra o governador fê-lo subir para a viatura, saudou Mme. de Fontsomme, bateu com a portinhola e deu o sinal de partida ao cocheiro, juntando-se depois a dois oficiais que tinham acabado de sair de um edifício anexo.

Dominada pela angústia, Sylvie mal ousava respirar. Dentro da carruagem estava escuro e do seu companheiro apenas distinguia uma sombra um pouco mais espessa, mas não queria correr o risco de quebrar o silêncio enquanto ainda estivessem no interior da fortaleza. Contudo, a pouco e pouco, a esperança renascia dentro dela: se fosse Ganseville, não havia qualquer razão para que ele se mantivesse tão obstinadamente calado.

A passagem pelos postos da guarda desenrolou-se mais depressa do que à chegada. Tendo controlado a carruagem à vinda, não havia qualquer motivo para que as sentinelas impedissem a sua saída. Finalmente transpuseram a última barreira entre a prisão e a liberdade. Grégoire disparou os cavalos. A sombra negra mexeu-se, desapertou as pregas da capa, levantou a aba do chapéu e, finalmente, ouviu-se uma voz abafada, tão diferente da voz clamorosa de outrora!

- Se não tivesses vindo, eu nunca teria aceite que ele ficasse no meu lugar - disse Beaufort. - Não é justo que um outro tenha de pagar pelos erros que pude cometer.

- O único erro de que sois culpado foi de ter caído no ódio de um rei que sonháveis apenas servir até à morte...

- Se assim é, por que não me mandou ele matar?

- Contava com os acasos da guerra. Como Deus nada quis saber, ele nunca ousará atentar contra a vossa vida: seria condenar-se à danação. Ora, vós passais por morto. Era importante saber da vossa pessoa e fazer-vos desaparecer do mundo dos vivos sem vos matar.

Ela falava maquinalmente, desiludida até ao fundo da alma com aquela atitude longínqua e entristecida. Ela bem desconfiara que ele não aceitaria facilmente que Ganseville ocupasse o seu lugar mas, mesmo assim, esperara pelo menos um sinal, uma palavra que testemunhassem um pouco a alegria de voltar a vê-la. Aquilo por que tivera de passar às mãos dos Turcos, durante a viagem interminável e, por fim, em Pignerol, teriam acabado com a sua força e coragem, com aquela incrível vitalidade que o caracterizava? Subitamente sentia-se terrivelmente desgastada... E um silêncio pesado caiu novamente sobre eles...

A carruagem rodava agora na escuridão campestre. Sylvie ouviu subitamente:

- Para onde me levais?

- Para aqui perto, para uma quinta em ruínas. É lá que nos esperam Philippe e o cavaleiro de Raguenel...

Então, aconteceu aquilo que ela já não esperava: ele reagiu com uma espécie de violência:

- Philippe?... Quereis dizer... o vosso filho?

- O nosso filho! - corrigiu ela, secamente. - Como julgais que pudemos seguir o vosso rasto até aqui? Do Bósforo a Marselha, ele foi no vosso encalço a bordo de uma falua grega às ordens do grão-vizir e, depois, seguiu-vos de Marselha a Pignerol, desta vez ajudado por Ganseville que encontrou casualmente no porto, quando este procurava como embarcar para Cândia a fim de tentar pelo menos encontrar os vossos despojos ou, então, deixar-se morrer. O grão-vizir não vos disse nada na noite da vossa partida?

- Fazil Ahmed Pacha? Não... Não que não lhe tivesse suplicado que vos enviassem Philippe, mas ele respondia sempre que preferia guardá-lo e que, aliás, ele nada tinha a recear. A única coisa que fez antes de me entregar àqueles que me vieram buscar, foi um pedido de desculpas. Desagradava-lhe sobejamente ter de entregar um homem que considerava como um amigo, mas a política assim o exigia. Não podia agir de outro modo.

- Só que estava inquieto com o que vos poderia acontecer e lançou no vosso rasto aquele que sabia que iria fazer todo o impossível. Ao chegar aqui, o vosso escudeiro ficou na região para vigiar as idas e vindas ao pé da fortaleza enquanto Philippe que eu também pensava que estava morto galopou até Paris para nos avisar. Foi ele quem nos trouxe aqui e o resto já conheceis. De qualquer modo, tereis todo o tempo para trocar as vossas lembranças durante a viagem que os dois ireis fazer... Os cavalos estão à vossa espera nas ruínas bem como uma tartana no porto de Menton...

- Para ir para onde?

- Oh, para onde quiserdes! - respondeu Sylvie, com um suspiro de cansaço. - Parece que os nossos planos só vos satisfazem parcialmente, ou mesmo nada. Então, cabe a vós decidir!

Desejava agora que aquilo tudo acabasse depressa; estava ansiosa para se encontrar na carruagem a sós na companhia de Perceval, enquanto ele galoparia rumo à liberdade. Esperara tanto por aquele momento que o idealizara à luz terna do amor! Mas que restava do amor depois de todo aquele tempo? Uma pergunta que, agora, lastimava não ter feito a si mesma.

- Mas... vindes comigo, não?

- Não - respondeu Sylvie, desviando a cabeça - não seria prudente. Enquanto seguis com Philippe até Menton, eu e Perceval prosseguiremos o nosso trajeto até Turim, onde devíamos ir em peregrinação. Tenho de ir até lá... para agradecer a Deus de ter-nos permitido conseguir a vossa evasão.

Subitamente ele precipitou-se para a portinhola e disse:

- Parai, cocheiro!

- Enlouquecestes? Que quereis fazer? - disse Sylvie, interpelando-o. - Não temos tempo a perder...

- Eu tenho todo o tempo e quero ficar a saber. Que planos havíeis preparado para mim? Vamos lá, falai, ou então volto para trás, para continuar prisioneiro...

- Mas que boa ideia! E que aconteceria então a Ganseville? Se quiserdes tanto ficar a sabê-lo, eis o que tínhamos previsto: fazer-vos atravessar o mar até próximo de Narbonne onde não teríeis quaisquer dificuldades em encontrar cavalos e, depois, seguindo os vales dos rios, alcançar um porto que desse para o oceano e, por fim...

- Por fim... que diabo, falai! É preciso arrancar-vos as palavras!

- Por fim, Belle-Isle, onde guardei a minha casa que dá para o mar...

A imagem deve tê-lo sensibilizado, pois acalmou-se logo. Falou com uma voz alterada, na qual despontava finalmente uma nota de alegria, murmurando:

- Belle-Isle! Desde sempre que sonho com ela... e, em seguida, voltando à sua raiva: Mas que iria para lá fazer sem a vossa companhia? Ganseville disse-me que estáveis à minha espera, que iríeis levar-me...

- E foi isso que vos decidiu a partir?

- Sim, foi... - mas como nunca soubera mentir lá muito bem, acrescentou, numa voz mais sumida: -mas também o medo que ele se matasse caso eu não aceitasse a proposta. Terá existido alguma vez homem com coração mais generoso?...

- Nem mais desesperado, também! Ao menos, haveis olhado para ele? A morte da sua jovem esposa quase o enlouqueceu. Só a ideia de poder fazer algo por vós é que pôde ajudá-lo... Então, que fazemos?

Como ele não respondia, Sylvie pediu a Grégoire que prosseguisse o seu caminho. Beaufort recostara-se no seu canto, mas ela ouviu-o fungar e compreendeu que ele estava a chorar.

- Tendes assim tantas saudades da vossa prisão? - perguntou-lhe dolorosamente.

- Ainda não sei... Ofereceis-me ir viver para Belle-Isle e não contava com tanto, mas Ganseville deu-me a entender que me acompanharíeis e que conheceríamos finalmente essa felicidade que perseguimos todas as nossas vidas sem nunca a termos alcançado... Se é para ir viver lá sozinho, que encanto conservará esse paraíso para mim?

- Isso quer dizer que sempre me amais?

- Nunca vos permiti que duvidásseis disso - assegurou-lhe com uma arrogância bem masculina, sem dúvida inconsciente, mas tão flagrante que Sylvie não conseguiu impedir-se de rir.

- Mas desde que haveis subido para esta carruagem que não haveis feito outra coisa, a não ser amuar... A dada altura, até cheguei a crer que estáveis furioso com o que fiz.

- Mas estou mesmo! Não podeis entender a dor, a vergonha que sinto ao condenar a tão cruel destino um homem que amo mais que a um irmão?

- Há pouco encontrei-me junto a vós estarrecido, esmagado pelo que me acontecia. Só pensava naquela porta que se fechara atrás dele, no ruído sinistro das suas trancas e finalmente... naquela máscara que ele traz agora por mim. A alegria em voltar a ver-vos passara para segundo plano, mas se também tiver de renunciar a vós...

Sylvie estendeu a mão, encontrou um punho crispado que envolveu nos seus dedos.

- Disse que não ia convosco, mas nunca que não me reuniria a vós. Não vos jurei um dia que seria vossa, caso regressásseis?

Um momento depois estava nos braços dele, sentindo contra a cara um rosto úmido e barbudo cujos lábios procuravam os seus.

- Jurai-lo ainda! - exigiu Beaufort, entre dois beijos tão ardentes que, apesar da felicidade que sentia, Sylvie teve de desviar a cabeça à custa de grande esforço.

- Estamos a chegar. Não vos esqueçais que Philippe continua a ignorar o que somos um para o outro! Não gostaria que uma revelação inesperada...

A carruagem entrou no caminho feito de terra provocando solavancos que os interromperam.

- Ainda não jurastes.

- Será mesmo preciso?

Foi ela quem se encostou então a ele para lhe dar um último beijo, antes de se apartar com a consciência cruel de que teriam sem dúvida de passar ainda alguns meses antes que ambos pudessem desfrutar novamente daquela felicidade. Ele também o deve ter sentido, porque disse:

- Será que chegará finalmente o dia em que não mais teremos de separar-nos?

- Não duvideis que esse dia está próximo, meu coração - afirmou Sylvie, repentinamente muito segura do que dizia. - Dentro em breve juntar-nos-emos num local onde toda a gente se esquecerá de nós...

Mais tarde, dois cavaleiros deixaram a quinta em ruínas para seguir por um caminho que, através de Saluzzo e de Cunco, os haveria de levar até Menton e ao mar livre. Depois foi a vez da carruagem que transportava Sylvie e Perceval até Turim, onde os pobres iriam receber uma generosa dádiva. Sylvie tinha muito que agradecer a Deus...

 

                           OS AMANTES DO FIM DO MUNDO

O casamento de Marie de Fontsomme com Anthony Selton teve lugar na capela do castelo de Saint-Germain, nos primeiros dias de Abril de 1672, na presença do Rei, da Rainha, de toda a Corte e do duque de Buckingham, que veio representar o rei Carlos II e combater ao lado da França na guerra que ia começar na Holanda. Um esplendoroso casamento que simbolizava, de certa forma, o tratado de Douvres, última obra da autoria da encantadora Madame, duquesa de Orleans, tão cedo e tão cruelmente desaparecida! Mesmo assim, a atmosfera não deixava de ser estranha, na capela inundada de flores e de luz onde Marie, encantadora num vestido branco acetinado, engalanado com pérolas e bordado com fios de ouro e prata, foi conduzida ao altar pelo seu irmão, o jovem duque de Fontsomme, milagrosamente fugido das prisões otomanas e cujas aventuras animavam os salões desde que regressara. Aventuras cuidadosamente elaboradas e retocadas na “livraria” de Raguenel, cuja vasta cultura e imaginação, também se revelara de grande auxílio nas entrevistas que o jovem teve de conceder nos gabinetes ministeriais. Decorreu tudo muito bem e o Rei até lhe devolvera, sem qualquer dificuldade e talvez mesmo com certo alívio os títulos e os bens tão badalados no caso Saint-Rémy.

A felicidade dos noivos, o esplendor do cenário real eram o lado positivo do acontecimento. O negativo era: a ausência da duquesa de Fontsomme a quem o Rei persistia em não admitir ao pé de si e que, nessa mesma hora, rezava pela felicidade da filha no meio das freiras do convento da Madalena, tão da estima da sua amiga a marechal de Schomberg, que veio discretamente juntar-se a ela. Era a cara atroz da Rainha, de luto pela sua última filha uma pequena Maria Teresa de cinco anos que falecera um mês antes e que, sem qualquer alegria, estava de novo grávida; eram as lágrimas de Mademoiselle, inconsolável com o destino do seu bem-amado e, também, as lágrimas de cólera de Buckingham quando olhava para a princesa alemã, opulenta e um pouco vulgar, que o duque de Orleans desposara no último Outono: agora chamavam-na Madame e o jovem duque sentia esta designação como uma bofetada, dado que era incapaz de esquecer aquela que detivera o título com tanta graciosidade... e, finalmente, era a iminência de uma ida para a guerra. O Rei preparava-se para partir, a fim de se juntar a Turenne e Conde, que já estavam em campanha e, se todos aqueles que o seguiam se regozijavam pela perspectiva de irem cobrir-se de glória, as mulheres, essas, perguntavam-se quantos iriam regressar e em que estado! Apenas uma resplandecia de orgulho: a marquesa de Montespan, cujo domínio sobre o Rei era agora absoluto. Dentro de dois meses daria à luz, discretamente, no solar de Génitoy, próximo de Lagny. De momento os seus vestidos suntuosos nada escondiam do seu estado de gravidez. Aquele casamento ou, pelo menos, o brilho que lhe conferiam era obra sua. Se, para sua surpresa, não obtivera a presença de Mme. de Fontsomme, comportava-se no entanto como uma irmã mais velha e fazia questão que todos se apercebessem. Na recepção noturna que se seguiu o casamento era abençoado à meia-noite segundo os costumes da época ela protegeu ostensivamente o jovem casal, o que valeu a Marie uma conversa com Luís XIV. Este disse-lhe:

- Lady Shelton, ides deixar-nos para partirdes para Inglaterra e isso entristece-nos muito. O meu irmão Carlos vai ganhar aquilo que nós vamos perder e só podemos invejá-lo. Tendes a intenção de saudar a duquesa vossa mãe antes da vossa ida?

- Sim, Senhor. Amanhã.

- Corre um rumor a seu respeito segundo o qual ela teria renunciado ao mundo e que, para se afastar ainda mais, teria escolhido um convento perdido na Bretanha. É verdade?

- Senhor, trata-se das Beneditinas de Locmaria, outrora sob a generosa proteção da falecida senhora duquesa de Vendôme...

- A duquesa protegia muitos conventos. Porquê aquele e porquê tão longe?

- O Rei quererá dizer: tão longe da Corte? Senhor, essa é precisamente uma das razões. As outras são que, em primeiro lugar, sentir-se-á mais perto do meu irmão que, por graça de Vossa Majestade, irá servir como ajudante de M. Duquesne no comando do Terrible; depois, de certo modo também estará mais perto de mim, dado que irei atravessar o mar junto ao qual se encontra. Finalmente, ela deseja sobretudo que... o Rei, e todos os outros se esqueçam dela - acrescentou a jovem, com súbita audácia.

No entanto, Luís XIV não se zangou. Até sorriu, um pouco melancolicamente:

- Como não lhe dar razão? - suspirou. - A vida não a poupou e a nós também não, mas o trono traz obrigações e isolamento. Mesmo assim, dizei-lhe... que, apesar de tudo o que possa pensar, acontece que nestes nossos palácios, vislumbramos por vezes a sombra de um rapazinho que trazia uma guitarra demasiado grande para o seu tamanho, um rapazinho que gostava muito dela...

Estendeu a sua mão pejada de diamantes até aos lábios de Marie, saudou o seu esposo com graciosidade e, seguidamente, foi ter com Mme. de Montespan que o observava discretamente por detrás do seu leque.

- Mais uma história que acaba - disse-lhe, ao designar o jovem casal que recebia os cumprimentos de Monsieur.

Sorriu e, depois, servindo-se do frágil leque em ouro e madrepérola indicou Philippe, que falava com Buckingham e d’Artagnan:

- E outra que começa. Este jovem Fontsomme é do tipo de engendrar dinastias, se Deus quiser que ele viva.

- Gostaria que assim fosse. Não sei porquê, mas este jovem marinheiro inspira-me uma certa ternura como se visse nele... um irmão mais novo. Não achais que se parece comigo?

Athénaís soltou aquelas gargalhadas que só ela sabia soltar e que a tornavam tão sedutora e depois disse, em voz mais baixa:

- Ninguém se parece convosco, Senhor... Deus seja louvado!

Ainda riam os dois ao sair da galeria, e o riso do Rei parecia ter uma nota de alívio... Agradar-lhe-ia certamente proteger a carreira de Philippe.

Três dias mais tarde, Sylvie abandonava Paris para não mais voltar. Só Perceval a acompanhava: sabia qual o seu verdadeiro destino e, doravante, ele seria o seu único elo de ligação com o mundo exterior. Deste modo era a ele que o carcereiro de Pignerol deveria comunicar qualquer novidade que dissesse respeito ao seu prisioneiro. Na véspera, Marie e o esposo tinham partido para Inglaterra, enquanto Philippe fora para Brest...

O mais duro foram as despedidas a todos os fiéis companheiros da sua vida passada, sobretudo a Jeannette, de quem gostava como de uma irmã, mas o segredo que ela partilhava com o filho, com Perceval e, naturalmente, com Ganseville, não podia espalhar-se para além deste círculo, qualquer que fosse a confiança que depositasse numa fidelidade ímpar. Daí a decisão de se retirar, aparentemente, para um convento perdido no fundo da Bretanha, cuja Superiora, em memória de Mme. de Vendôme, aceitara ser um pouco sua cúmplice. Era impossível levar quem quer que fosse para lá!

- Então não desejais conhecer os vossos netos? - soluçava Jeannette.

- Tu conhecê-los-ás e amá-los-ás por mim. Além disso, minha Jeannette, mesmo que eu aceitasse que te fechasses comigo, não teria qualquer direito para agir desse modo. Tens um esposo, o nosso caro Corentin. Tens deveres para com ele tal como ele os tem para com o ducado de que está encarregue. Juntos, sabereis ajudar os Fontsomme a crescer...

- Eu sei, eu sei isso tudo e tanto eu como Corentin sentimo-nos orgulhosos pela vossa confiança e pela dos vossos filhos, mas... não mais voltar a ver-vos...

- Ora, ora! Já me habituaste a mais coragem do que essa. Também estou a precisar dela. Mas tenho de ir. Sinto-o dentro de mim. Lá, perto do mar que François tanto amava, creio que encontrarei finalmente a paz.

- A vida num convento não será demasiado dura? A vossa saúde já não é o que era. Ela continua sendo muito frágil, desde a vossa última doença grave...

- Tranquiliza-te, serei bem tratada. E, depois, será o que Deus quiser... Mais fácil, apesar do que receava, foi dizer adeus à antiga Marie de Hautefort. Por cima dos seus olhos azuis sempre belíssimos, as sobrancelhas desta ergueram-se numa expressão de surpresa. Depois, após ter contemplado a amiga de um lado e de outro, ela teve um daqueles sorrisos em que transparecia a malícia de outrora:

- Vós, num convento bretão?... A quem o quereis fazer acreditar, minha cara? Não a mim, de certeza.

- E por que não?

- Porque isso não se coaduna convosco. Sempre haveis detestado os conventos... Ou, então, temos de acreditar numa conversão obtida à custa do Mui Sagrado Santuário de Nosso Senhor?

- Vedes algum inconveniente? A sério, Marie, para onde julgais que vou?

- Ao certo, ao certo, não sei... vejo-vos capaz de vos dirigirdes para... as ilhas gregas? Tal como eu, vós também não acreditais na morte de Beaufort e ides ver, por vós própria, se é possível saber algo mais, uma vez próxima do local do acontecimento. É o que eu teria feito no vosso lugar.

Sylvie não conseguiu suster o riso e foi com profunda ternura que abraçou aquela que partilhara com ela o mais mortífero dos segredos de Estado:

- Sois louca, Marie! Mas é também por isso que vos amo...

- E eu, então! - suspirou a marechal. - Irei ter saudades vossas, mas espero que, se souberdes algo de novo, enviar-me-eis imediatamente as novidades. Para mim seria motivo de grande alegria saber que o filho indigno não conseguiu riscar o pai do número dos vivos...

Quando Sylvie deixou Nanteuil, onde se deslocara para este último adeus a mão de Marie agitava alegremente um lenço. Quando a poeira assentou depois da passagem das rodas da carruagem, aquela que chamavam outrora a Aurora, desatou a soluçar e correu a fechar-se no seu oratório de onde não mais saiu durante o dia...

Por último, foi a vez de d’Artagnan. Na altura em que os viajantes se aprontavam para subir para a carruagem, ele surgiu de rompante, como uma bomba, na rue dês Tournelles, saltou do cavalo sem se preocupar com a perturbação que poderia causar aos outros quadrúpedes, correu para Sylvie, pegou-a nos braços e deu-lhe o beijo mais doce e mais terno que ela jamais recebera.

- Há anos que andava com vontade de fazer isto! - explicou, sem se incomodar com desculpas que, de resto, ninguém lhe exigiu. - É o meu adeus, pois já não voltarei a ver-vos. Pelo menos neste mundo, onde não ficarei muito tempo, graças a Deus!

- Como podeis dizer uma coisa dessas? Estais mais jovem que nunca e penso que sempre o sereis! Também ides partir? - acrescentou Sylvie, ao olhar para a farda de oficial de campanha.

- Também. Ao princípio da tarde, os mosqueteiros deixam Saint-Germain na companhia do Rei. Algo me diz que podeis rezar por mim no vosso convento, pois já não regressarei[54]. Oh, não fiqueis tão triste! Morrer em combate é o desejo de qualquer soldado e a minha alma poderá ir ter convosco quando assim o entender...

Deu-lhe a mão para ajudá-la a reunir-se a Perceval que já se instalara, aproveitando a ocasião para saudá-lo. Fechou a portinhola. Depois da imagem de Jeannette soluçando nos braços de Corentin e da de Nicole nos de Pierrot, a última que fixou foi a daquela silhueta delgada e marcial que, no meio da rue dês Tournelles, fazia uma rasgada saudação, fazendo esvoaçar o pó com as plumas vermelhas do feltro enquanto a carruagem se afastava, tal como se estivesse a saudar a Rainha em pessoa...

- Minha amiga, ireis deixar muita tristeza atrás de vós - murmurou Perceval, ele próprio com dificuldade em reter as lágrimas. - Estais certa que não ireis um dia lamentá-lo?

- Lamentá-lo-ei todos os dias, caro Padrinho, mas... compreendei: vou finalmente viver o sonho de toda a minha vida!..

- Ninguém mais do que eu sonhou tanto com a vossa felicidade. Espero que ela esteja à altura desse sonho...

Ainda pensava nisso alguns dias mais tarde quando, numa manhã de sol radiante e de mar azul, de pé no pequeno cais do porto de Piriac, via afastar-se o barco de vela encarnada que levava Sylvie ao encontro do seu amor. Com menos pesar do que imaginara, porque não era minimamente egoísta e porque, para além de Philippe, só ele detinha o privilégio de poder penetrar no círculo mágico em que François e Sylvie iriam fechar-se. Não antes de um ano, é claro, e aí colocava-se a grande questão: quanto tempo daria ainda Deus a um homem que nascera com o século, mas que, na verdade, não sentia o peso da idade?

- Pelo menos enquanto puder ser-lhe útil nalguma coisa! - rezou mentalmente, com os olhos fixos na minúscula mancha vermelha que dançava na crista das ondas.

Em seguida, sem se voltar desta vez, subiu na direção do monte de pinheiros sob o qual Grégoire abrigara a viatura que o esperava. Ao erguer os olhos na direção do velho cocheiro que continuava no seu assento, viu que ele fitava o horizonte e que lhe corriam lágrimas enormes pelo rosto abaixo. Ficou comovido com a dor muda daquele velho criado dos Fontsomme, solteiro empedernido e que diziam taciturno e mal-humorado porque nunca proferia mais de três palavras por dia, mas cuja fidelidade Sylvie acabara por recompensar ao revelar-lhe o seu verdadeiro destino. Em vez de instalar-se no interior da carruagem, o cavaleiro de Raguenel subiu para o assento ao lado de Grégoire e sorriu-lhe com um olhar cúmplice.

- Agora vamos até ao convento de Locmaria. Tenho de falar com a Superiora e devemos tomar certas disposições...

Grégoire devolveu-lhe o sorriso, primeiramente de forma tímida e, depois, com grande ardor. Entre aqueles dois homens de idade havia agora mais um laço, um daqueles laços que ajudam a viver. Aprovando vigorosamente com a cabeça, fez os cavalos darem meia volta para se encaminharem para a grande estrada de Vannes...

Entretanto, sentada contra o mastro, Sylvie via aproximarem-se as falésias de granito cor-de-rosa de Belle-Isle, as enseadas revestidas de uma vegetação de um verde intenso, que contrastava com a cor clara do amarelo dourado das giestas, a cor malva das suas planícies e a brancura das raras casas. No alto mar, a ilha assemelhava-se a uma cidadela cercando um jardim cujas folhagens transbordavam das muralhas. Como se se tratasse de uma bebida mágica, a viajante sorvia grandes golfadas daquele vento que transportava o cheiro a algas e a sal, pensando que Avalon, a ilha feliz das lendas celtas, devia parecer-se com aquilo...

Depois de tantos anos, regressava com a esperança de reencontrar o coração dos seus vinte anos, como se o tivesse deixado guardado na anfractuosidade de uma rocha, antes de ter de partir para moldar outra personagem capaz de enfrentar os combates vindouros. Seria ainda possível encontrar, à sua espera, à entrada de casa, a pequena Sylvie de outrora, que corria descalça na areia e que pescava lagostins nas poças depositadas pela maré?

Era delicioso acreditar nisso. Contudo, à medida que se aproximava, uma inquietação que fora, primeiro, muito tênue, parecia tornar-se cada vez mais nítida: com que François iria ali deparar? O homem ferido e cheio de remorsos que arrancara quase à força de Pignerol ou, então, um outro que não conseguia imaginar como seria, depois de tantos meses de solidão marítima? De qualquer modo, o antigo Beaufort, flamejante de audácia, de vitalidade e de alegria devia ter desaparecido para sempre. Aquele com quem ia encontrar-se era “oficialmente” um certo barão d’Areines, que a amizade que mostrara por Fouquet forçara ao exílio e que encontrara refúgio na casa que Mlle. de Valaines comprara outrora. Um refúgio verdadeiramente seguro. Tendo esmagado o seu inimigo, o Rei pouco se preocupava com a ilha a propósito da qual Colbert se esforçara, outrora, por lhe provocar pesadelos. Não conservara nenhuma guarnição e até a devolvera à corajosa Madeleine Fouquet, cuja luta incessante pela boa memória do esposo e pela recuperação dos seus bens acabara por forçar a sua admiração. Os habitantes da ilha dispunham de todo o tempo para começar a ter saudades do seu antigo dono.

À medida que os rochedos selvagens se interpunham entre o horizonte e o barco, Sylvie sentia-se cada vez mais nervosa. Poderia o amor que lhe transbordava do coração resistir ao que a esperava?

O barco ultrapassou o porto do Palácio e prosseguiu caminho. Quando dobrou o cabo no qual se abrigava o porto do Bom Socorro e entrou na pequena enseada onde a sua casa se erguia numa das extremidades, enquanto a outra era ocupada pelo moinho de Tanguy Dru, junto ao qual Sylvie pedira que a deixassem, ela viu imediatamente um homem que consertava um barco que arrastara para a areia e que fixara com a ajuda de grossos tacos de madeira. Se olvidasse o capacete e as armas, ele parecia-se com um viking, de barba e longos cabelos grisalhos. Vestido apenas com uns calções que iam dos joelhos à cintura, continuava a “assar” ao Sol uns músculos sólidos cobertos por uma pele tisnada digna de um selvagem da América.

Quando o patrão do Gaud o chamou para que viesse auxiliar a passageira a desembarcar, ele soergueu-se para fitar a recém-chegada, abrigando os olhos por causa da reverberação do sol. Nessa altura, Sylvie apercebeu-se que o François de outrora nunca deixara de existir... a menos que a ilha o tivesse feito renascer... Enquanto entrava sorridente na água transparente para se aproximar do barco, o Sol acendia-lhe reflexos na barba... Com o coração apertado, Sylvie pensou que ele estava mais belo que nunca e que muitos seriam os jovens gentis-homens da Corte que poderiam invejar naquele homem, de cinquenta e seis anos, aquele corpo de marinheiro tão duramente cuidado. A sua voz, a de antigamente, dirigiu-se ao patrão que já parecia conhecer:

- Obrigado a ti, que me trazes finalmente a minha esposa. Já começava a perguntar-me se ela viria um dia.

- Se ela se atrasou sem motivo, terá de desculpar-se - disse o Bretão, muito sério. - A mulher deve seguir o seu esposo para onde quer que este vá. Assim está escrito!

Com um riso rápido, os braços de François pegaram em Sylvie para trazê-la até à praia, enquanto dois marinheiros desembarcavam uma pequena mala de cabedal e um grande saco que deixaram na areia antes de reembarcar. O par agradeceu e deixou o barco regressar ao mar alto. Só nessa altura é que François se debruçou, agarrou em Sylvie e, sem dizer uma palavra, subiu a correr pela praia e pelo caminho que terminava por alguns degraus grosseiros, alcançou a casa, entrou nela como vento de tempestade e fechou a porta com um pontapé. Aí depôs Sylvie no chão e afastou-se dois passos para contemplá-la com um olhar subitamente severo:

- Eis-te finalmente em casa! - declarou. - Demoraste a chegar!

Nem sequer a tinha beijado. Furiosa, Sylvie sentia que a mostarda lhe subia ao nariz e, ao mesmo tempo, detectou um cheiro agradável a sopa de peixe. Um rápido relance de olhos circular fez-lhe ver que o antigo priorado estava imaculadamente limpo, que o fogo ardia na velha chaminé e que havia um ramalhete de giestas dentro de um vaso de cobre. Tudo isto evocava uma mão feminina e espevitou-lhe o orgulho:

- Sabíeis que eu precisava de alguns meses para pôr ordem nos meus afazeres, mas parece que o tempo não vos deve ter custado a passar! Não estais aqui sozinho. Isso vê-se!

Ele desatou a rir, chegou-se a ela e aprisionou-a nos braços, apertando-a com tanta força que deixou-a sem respiração.

- Tens razão: nunca estive sozinho porque estiveste sempre na minha companhia...

- E era eu quem arrumava a casa e cozinhava...?

- Mais tarde esclareceremos esse mistério... Então julgas que há algures uma mulher e que ela correu a esconder-se ao ver a tua chegada?

- Por... porque não?... Largai-me! Estais a... sufocar-me!

- É essa a minha intenção. Vou sufocar-te de beijos... fazer-te morrer de amor...

Ele afrouxou um pouco o seu enlace para que ela pudesse respirar e apoderou-se da sua boca que violou com um ardor de esfomeado, contra o qual Sylvie se esforçou por lutar, furiosa por se sentir o joguete daquela vontade torrencial e que, rapidamente, despertou nela sensações de que já se esquecera. Não tinha envergadura para lutar contra aquela torrente de paixão, que derretia a sua cólera e lhe retirava todas as forças. Abandonou-se, apenas entregue ao desejo que se apossava dela.

Quando sentiu que a sua resistência diminuíra, François pôs-se a despi-la com pequenos gestos carinhosos mas rápidos, apoderando-se gradualmente de tudo o que a punha nua, sem interromper o beijo. E, basicamente, quando ela ficou só com as suas meias de seda branca retidas pelas fitas azuis, ele afastou-a e segurou-a na extremidade do braço estendido, para melhor contemplá-la. Um raio de sol entrou pela pequena janela e cobriu-a inteiramente com o seu calor luminoso sob o qual ela fechou os olhos, procurando instintivamente esconder os seios com as mãos cruzadas. Ele afastou-as devagar.

- Como és bela! - murmurou. - O teu corpo conservou a pureza da juventude. Não mudaste nada. Como fizeste?

Desta vez ela abriu bem os olhos e sorriu-lhe maliciosamente:

- Cuidei dele... talvez porque, sem ousar confessar a mim mesma, esperava um dia poder oferecê-lo a ti...

- Pois bem, dá-me então, meu amor... Chegou o dia pelo qual tanto esperei...

Quando, muito mais tarde, com um apetite de adolescentes, estavam ambos a devorar a sopa de peixe que entretanto se transformara numa massa espessa e que fora preparada pela mulher do moleiro, também encarregue da limpeza, François parou de comer para contemplar Sylvie através das suas pálpebras semicerradas. O dia acabava, projetando uma tênue luminosidade rosácea que lhe acariciava a pele e os cabelos soltos pelos ombros.

- Minha querida, sabes que acabamos de pecar e que vamos continuar a fazê-lo?

Ela olhou-o apavorada. O que tinham acabado de viver fora tão belo, tão intenso, que a noção humilhante de pecado fazia-lhe o efeito de um insulto.

- É assim que o vês? - perguntou-lhe com uma voz onde transparecia uma crítica velada, um sinal de tristeza.

Ele pôs-se a rir, saiu do seu lugar e veio pegar-lhe nos ombros, obrigando-a a levantar-se e a encostar-se de encontro ao seu peito:

- É claro que não, mas sabes muito bem que sempre tive a mania de pregar más partidas. Isso não impede que se nada fizermos, as nossas almas andem por aí ao Deus dará - disse com um ar meio sério, meio brincalhão. - Veste-te depressa! Temos de sair...

- A esta hora? Mas para ir aonde?

- Dar um passeio. A noite está amena...

Saíram ambos como duas crianças de mãos dadas pela planície fora. Em vez de seguirem a linha do litoral, como Sylvie esperava, voltaram as costas ao mar e dirigiram-se para a pequena igreja que ela tão bem conhecia por lá ter ido frequentemente rezar na época em que fugia do carrasco de Richelieu.

- Que pretendes fazer? - perguntou-lhe sem abrandar contudo o ritmo dos seus passos. - Fazer-nos confessar, a meio da noite?

- E porque não? Bem sabes que Deus nunca dorme!

Ela achou a ideia estranha, mas não quis contrariá-lo. No fundo, estava feliz por voltar a ver o pequeno santuário cujo sino mais baixo resistia tão braviamente aos ventos violentos das tempestades. Ele erguia-se junto às ruínas de um velho castelo e às escassas cabanas de uma terreola. François dirigiu-se para aquela que ficava mais perto, aliás a única onde ainda brilhava alguma luz: a de uma vela que iluminava um homem já idoso, um padre sentado frente a uma modesta refeição. Depois de ter dado três suaves pancadinhas na porta baixa, François entrou, puxando Sylvie à sua frente. O padre ergueu os olhos e sorriu ao reconhecer o visitante, levantando-se para recebê-lo:

- Ah! - disse. - Ela já chegou! Então é para esta noite...

- Se isso não vos incomodar muito, senhor prior. Há muito que conheceis a razão da minha pressa...

- Nesse caso, vinde comigo - disse o padre, depois de ter pressionado a mão de Sylvie num gesto terno e de conforto.

Apesar da estranha emoção que se apoderava dela, Sylvie quis falar, mas François pôs-lhe um dedo sobre os seus lábios:

- Chiu!... Por ora tens de ficar calada.

Encaminharam-se para a igreja atrás do velho homem, que abriu a porta que estava simplesmente segura por uma tranca. Fê-los entrar e, depois, fechou-a cuidadosamente atrás de si, servindo-se desta vez de uma pesada chave. Encontraram-se os três imersos numa escuridão que mal era rompida pela luz irradiada pela lamparina vermelha acesa diante do tabernáculo.

- Não vos mexais! Vou acender as velas.

Acendeu duas no altar e depois fez um sinal aos seus visitantes para que se chegassem ao pé dele, após ter posto a sua estola ritual em volta do pescoço:

- Agora vou ouvir a vossa confissão, senhora. Depois ouvirei a... do vosso companheiro.

Apercebendo-se que aquela história de confissão que há pouco evocara por brincadeira era, afinal, coisa séria, Sylvie perguntou:

- Mas... porquê?

- Mas, minha filha, porque não vos posso casar sem estardes primeiro em paz com o Senhor. Espero que não vejais qualquer inconveniente...

- Casar-nos?... Mas, François...

- Chiu! Não é comigo que deves falar. Vá, meu coração... E não te esqueças que, para um padre, o segredo da confissão é algo de inviolável e eu conheço este...

Depois da confissão mais incoerente da sua vida, Sylvie encontrou-se diante do altar, ao lado de François, que sorria ao olhá-la...

- Vamos mesmo levar isto por diante? - sussurrou Sylvie. - Bem sabes que é impossível... o barão d’Areines não existe...

- Mas quem está a falar nele? Fica a saber que durante a longa viagem que efetuamos até aqui, prometi ao teu filho que te desposaria.

- O quê, ele sabe? - perguntou Sylvie, aterrorizada.

- Não, apenas sabe que desde há muito que amo a sua mãe. E também sabe que nunca se envergonhará da nossa estranha situação.

O padre regressou com uma pequena bandeja na qual repousavam dois modestos anéis de prata. Pediu aos futuros esposos que se ajoelhassem diante dele e juntou-lhes as mãos enquanto, de olhar no céu, invocava o Senhor. Depois foi a altura do compromisso e, com uma espécie de terror sagrado, Sylvie ouviu pronunciar aquilo que julgava que nunca mais iria ouvir.

- François de Bourbon-Vendôme, duque de Beaufort, príncipe de Martigues, Almirante de França, aceitais como esposa a muito digna e nobre dama Sylvie de Valaines de L’Isle, duquesa e viúva aposentada de Fontsomme, e jurais amá-la, guardá-la junto a vós, defendê-la e protegê-la durante o tempo que Deus vos dispensar nesta terra?

- ...e no além! - acrescentou François, antes de articular distintamente: - ”Juro!”

Como se estivesse a viver um sonho, sufocada pela emoção, Sylvie ouviu pronunciar o mesmo voto. O padre abençoou os anéis antes de entregá-los; cobriu-lhes as mãos reunidas com uma parte da estola e pronunciou finalmente as palavras que os uniam perante Deus e os homens. Então François saudou rasgadamente aquela que se tornara sua mulher.

- Sou o humilde servidor de Vossa Alteza Real - disse, com gravidade. - E também o mais feliz dos homens!

Apoiados um contra o outro, o duque e a duquesa de Beaufort saíram da igreja e a noite agradável envolveu-os com o manto do esplendor do seu céu estrelado que, à medida que regressavam lentamente através da planície solitária, lhes oferecia uma corte mais brilhante e majestosa que jamais o foram a de Saint-Germain, de Fontainebleau ou mesmo de Versailles, ainda por acabar, e cuja magnificência haveria de espantar o mundo. Belle-Isle oferecia-lhes os seus aromas a pinho, a giestas e a menta selvagem, enquanto a voz poderosa do oceano louvava, melhor que os órgãos, a glória de Deus e a união de dois seres que tanto se tinham procurado...

Esquecidos do mundo e fadados para uma eterna clandestinidade, François e Sylvie iriam viver o seu amor intensamente, modestamente integrados na pequena povoação de pescadores e de camponeses que nunca procuraria desvendar um mistério cuja existência pressentia, no entanto, confusamente. Esse povo amou-os sobretudo quando, em 1674, tiveram de suportar um mortífero ataque holandês, levado a cabo pelo almirante Tromp, cujos navios apareceram certa manhã diante da praia das Grandes Areias, como outrora o haviam feito os Normandos. Os seus homens atravessaram a ilha como um vento devastador, pilhando e queimando tudo à sua passagem, sem que a cidadela dos Gondi quase deserta pudesse fazer o que quer que fosse para assegurar a defesa. François e Sylvie, cuja casa fora poupada porque estava situada num dos extremos da enseada, cometeram autênticos prodígios para ajudar, aliviar e apoiar aqueles que tinham sido atingidos pela desgraça. A partir dessa data, Belle-Isle cicatrizou as suas feridas sobre eles, contribuindo para a exaltação do seu amor.

Esta felicidade, tão bem escondida, iria durar quinze anos...

 

Sylvie morreu a 22 de Junho de 1687. Melhor: deixou de viver, pois a morte veio buscá-la suavemente, sem que qualquer indício percursor tivesse deixado pressagiar a sua chegada. Foi ao fim de um belo dia. Sentada ao pé de François, no banco de pedra encostado à casa, ela contemplava na sua companhia o mar iluminado pelo mais glorioso pôr do Sol quando, como tantas vezes acontecia, pousou a cabeça no ombro do esposo, soltando um suspiro de felicidade... que foi o derradeiro.

Sepultaram-na na planície, à sombra de uma cruz de granito colocada ao pé da igreja onde se casara. Esmagado pela dor, François remeteu-se então para um silêncio que mal conseguiu perturbar a chegada de uma carta do continente, como por vezes acontecia. Depois de a ter lido, preparou uma maleta, entrou para a sua embarcação à hora da maré da noite, como se fosse pescar e, por fim, chegou a terra firme onde a abandonou. Não foi mais visto em Belle-Isle...

A carta era de Philippe de Fontsomme, agora casado e pai de dois rapazes. Quando o cavaleiro de Raguenel falecera três anos antes, na sua casa da rue dês Tournelles, ao regressar da sua última visita aos exilados o que acontecia uma vez em cada dois anos Philippe mandara dizer a Saint-Mars que, doravante, era a ele que devia comunicar as notícias. Deste modo soube-se que depois de Fouquet ter falecido em 1680 e de Lauzun ter sido indultado no ano seguinte, o carcereiro e o seu prisioneiro tinham sido transferidos de Pignerol para outro castelo-prisão. Desta vez a mensagem de Philippe anunciava que Saint-Mars acabara de ser nomeado governador da ilha de Sainte-Marguerite, uma das ilhas Lérins[55], situadas no Mediterrâneo, frente a uma aldeia de pescadores chamada Cannes. O prisioneiro de máscara seguira com ele numa “cadeira” fechada, coberta por um oleado e acompanhado por forte escolta.

François conhecia bem essas ilhas, que constituíam fortalezas ao largo das costas de Provence. Sabia que em Saint-Honorat, a menor e a mais afastada, subsistia um punhado de monges teimosos que, mais ou menos protegidos por uma série de escolhos e de antigas fortificações aparavam, desde há séculos, os golpes desferidos pelos mais variados inimigos vindos do mar.

Algumas semanas depois da partida de Belle-Isle, o abade de Saint-Honorat sentava-se a bordo de uma embarcação a remos conduzida por um dos seus padres cujo capuz só deixava ver a barba cinzenta, e chegava a Sainte-Marguerite para solicitar um encontro com o governador, através de uma carta que foi levada por uma sentinela. Estava um dia esplêndido: o azul do Mediterrâneo era tão intenso que empalidecia o do céu, mas o Sol estival fazia brilhar os canos das baionetas dos guardas e reluzir as aberturas maciças dos canhões nos caminhos percorridos pelas sentinelas. Nunca prisioneiro algum fora tão bem guardado.

Contudo, quando os dois religiosos deixaram a ilha-prisão, um observador escrupuloso teria podido observar que a barba do padre remador era agora um pouco menos clara e menos abundante. Nessa noite, M. de Saint-Mars dormiu melhor do que nunca o fizera desde há anos: o rosto escondido pela máscara era de novo aquele a quem ela fora destinada. Pierre de Ganseville, feliz por respirar o mesmo ar que o seu príncipe, não saiu mais de Saint-Honorat.

Ainda lá vivia, quando, em 1698, Saint-Mars recebeu a recompensa pelos seus longos e leais serviços: foi nomeado governador da Bastilha, a rainha de todas as prisões do Estado, aquela que mais lucros proporcionava. Mas, mesmo tendo acumulado uma enorme fortuna, o eterno carcereiro do homem da máscara não tirava dela qualquer proveito. Nem sequer conhecia as terras do Bourguignon que entravam para sua posse e só passou uma noite no seu castelo de Palteau, na altura em que subiu a Paris para onde levava, claro, um prisioneiro ao qual estava acorrentado como um condenado às suas grilhetas. Aqueles que puderam nessa altura observar o misterioso preso admiraram a sua elevada estatura, a elegância do seu porte numa indumentária de veludo preto e a sua barba branca, longa e sedosa que parecia descer pela máscara abaixo.

Cinco anos mais tarde, na segunda-feira do dia 19 de Novembro de 1703, morria na Bastilha o homem a quem até tinham retirado o rosto. No dia seguinte transportaram o corpo até ao cemitério de S. Paulo como era costume para todos aqueles que morriam na velha prisão. Eram quatro da tarde e no registro dos Jesuítas encarregues do local, escreveu-se um nome (pois era necessário escrever algo) e esse nome era Marchiali...[56]

Algumas noites mais tarde, alguns desconhecidos vieram abrir a campa, mas só depararam com um corpo sem cabeça: esta fora cortada e substituída por uma grande pedra, redonda como uma bala de canhão...

 

 

[1] Dizia-se que o Cardeal mandara construir alguns calabouços e até algumas masmorras, bem escondidas, nos subterrâneos do castelo de Rueil.

[2] Historiador latino do séc. I, D.C, autor de uma Vida de Alexandre Magno.

[3] Jansenismo - Muito sucintamente, doutrina de Cornelius Jansen, aliás Jansenius (1585-1638), bispo de Ypres, que remonta aos debates teológicos do séc XVI, nomeadamente a respeito da graça divina. Encontra ferventes defensores em França, principalmente nos senhores e nas religiosas de Port-Royal, na abadia de Saint-Cyran e na família Arnauld.

[4] Mármore azul baço e carregado, de origem italiana.

[5] Nos duelos que acatavam as regras, era habitual que os acompanhantes também se defrontassem mas, nesse dia, Nemours e Beaufort recorreram às pistolas.

[6] Mais conhecido por Lauzun, nome que utilizará posteriormente.

[7] Esta tropa de elite tinha como arma um machado rematado por uma ponta recurvada. Os seus membros conservavam-se junto ao Rei durante os combates e durante as grandes cerimónias marchavam, aos pares, a seu lado.

[8] Armand Jean Le Bouthillier de Rance, ordenado padre em 1654, levou uma vida dissoluta até se converter (1660), retirando-se para a abadia da Grande-Trappe na Normandia em 1664, da qual foi o prior principal. Introduziu uma vigorosa reforma que daria nascimento à ordem dos Trapistas, ou Cistercienses, de estrita observância.

[9] Estes baleeiros, forneceriam ulteriormente uma das mais belas linhagens de corsários.

[10] Referência ao estado de saúde de D. Afonso VI, pelo que D. Luisa de Gusmão assumiu a regência.

[11] Maria Teresa era neta de Henrique IV por intermédio de sua mãe Elisabeth, esposa de Filipe IV de Espanha e Mademoiselle também o era, por intermédio de seu pai, Gaston d’Orleans, irmão de Luís XIII.

[12] Eram ambos da região de Béarn, sendo até primos afastados.

[13] Ao longo do reinado de Luís XIV o gibão utilizado em França tornar-se-á muito mais curto assemelhando se ao formato do nosso colete sob o qual se vestia então uma camisa ampla e enfunada

[14] Não confundi-la com a segunda esposa de Monsieur. Ana Gonzaga de Nevers era irmã desta Maria Gonzaga que, antes de se tornar rainha da Polônia, tanto fizera perder a cabeça em todos os sentidos do termo ao jovem Cinq-Mars. Sempre por causa do título, Ana desposara o Eleitor do Palatino da Baviera, de quem enviuvara.

[15] Mme. de Navailles era prima da futura Mme. de Mamtenon, cuja ação educativa sobre as raparigas ficou sobejamente conhecida Aliás, partilhara com ela longos anos de infância.

[16] Eleitor príncipe ou bispo que, durante o Santo Império romano-germânico, participava na eleição do Imperador.

[17] Ver o Vol. I, O Quarto da Rainha.

[18] Alusão às personagens principais do Cid, célebre peça de Corneille que o bando do Marais levou à cena no Palácio de Luís XIII, aliás, conforme o relato que consta do Vol. 1, O Quarto da Rainha

[19] Este local chamar-se-á primeiramente “Praça do Trono” e, depois, sob a revolução, passará a “Praça do Trono Destituído” sendo hoje a “Praça da Nação”.

[20] Ver o Vol. I, O Quarto da Rainha.

[21] Poeta francês (1621-1695), autor das célebres Fábulas, inspiradas na obra do mesmo título, de Ésopo. Recebeu uma pensão de Fouquet, tornou-se protegido da viúva de Gaston d’Orléans e, depois, de Mme de La Sablière. Ingressou com dificuldade na Academia Francesa (1684), devido à oposição de Luís XIV.

[22] Marguerite de Lorraine, segunda esposa do pai, o falecido Gaston d’Orlenas.

[23] Francesco Primaticcio, pintor, estucador e arquiteto italiano (1504-1570). Dirigiu as obras de restauro em Fontainebleau e o museu do Louvre ainda conserva um conjunto dos seus desenhos, estudos de elegância preciosa e requintada, para cenários com motivos mitológicos.

[24] Os do Rei eram os comediantes do Hotel de Bourgogne.

[25] Chá, que já contava com os seus adeptos, fora introduzido em França desde 1648.

[26] Que evoca o estilo de Rabelais, notório escritor francês do séc. XVI, autor do famoso Pantagruel, que concilia cultura popular e erudita. Sob os seus ditos jocosos e hilariantes, desponta um desejo de renovação do ideal filosófico e moral, com base no pensamento da Antiguidade Clássica e uma crença profunda na natureza humana e na ciência.

[27] Referência a um dos ramos dos Capetos, terceira geração dos reis de França, que reinam de 1328 a 1589. Os outros dois são os Capetos por via direta e os Capetos Bourbons.

[28] Trocadilho da autora pois a tradução literal do nome desta cidade francesa, famosa pelos seus serviços em cristal, é demitido, destituído.

[29] Nessa altura, tudo o que a marinha francesa possuía era uma dezena de galés e dezenove navios, dos quais só onze estavam em estado de navegar (J. P. Desprats, Les Bâtards d’Henn IV).

[30] Actualmente chama-se Malaquais.

[31] Habituada à penumbra dos palácios espanhóis, em que as personagens reais eram objeto de uma espécie de culto, Maria Teresa sofria ao ter de viver nas perpétuas correntes de ar dos aposentos franceses, que cada qual atravessava quando muito bem lhe apetecia.

[32] Karacul variedade de carneiro da Ásia Central.

[33] Trata-se da autora de A Princesa de Clèves, que era também amiga e confidente de Madame.

[34] Construção em madeira, no centro da qual se colocava um fogareiro para aquecer a cama.

[35] Depois da prisão de Fouquet, Vatel optara por ir viver para Inglaterra.

[36] Depois da partida da rainha Henrieta de Inglaterra, que ali residira até essa altura, Monsieur e Madame tinham ocupado o antigo Palácio do Cardeal

[37] A rue Taranne foi absorvida pelo boulevard Saint-Germain. A casa onde os Montespan residiam situava-se aproximadamente no local onde está agora a cervejaria Lipp.

[38] Ver oVol I, O Quarto da Rainha.

[39] Que, assim, se tornará Nova Iorque.

[40] Antigo nome da ilha de Creta.

[41] Durante o séc. XVII só dois outros navios igualaram o seu esplendor o Soleil Royal e a prestigiada galé Reale.

[42] Godefroi de Bouillon (1061 – 1100), duque da Baixa Lorraine (1089 - 1095). Foi o chefe principal da primeira cruzada e após se ter apossado da cidade, fundou o reino de Jerusalém (1099), governando-o até a sua morte.

[43] Era o irmão da Irmã Louise-Angélique, a amiga de Luís XIII e o cunhado de Marie-Madeleine, amiga de Madame e autora de A Princesa de Clèves.

[44] Cognome de Godofredo V, conde de Anjou, frequentemente usado para designar os seus descendentes, que foram reis de Inglaterra de 1154 a 1485.

[45] Autópsia efetuada, evidentemente, com os meios e os conhecimentos da época.

[46] Célebre prelado predicador e escritor francês (1627-1704). Famoso pelas suas homilias, foi escolhido para preceptor do Delfim, para quem redigiu o seu conhecido Discurso sobre a História Universal Os seus Sermões foram muito apreciados pela sua musicalidade e riqueza imagética.

[47] Curiosamente, o conde de Maulévrier, que era o irmão mais novo do ministro tinha catorze anos menos que ele era amigo de Beaufort, que admirava.

[48] Francesco Morosini 1619-1694 será o último dos doges de Veneza, depois de ter reconquistado Patras, Lepante, Coríntia, Atenas e Esparta aos Turcos. Depois de ter gravado uma das mais belas páginas da História de Sua Sereníssima Santidade, morrerá em Náuplia, onde a sua esquadra acostara para o Inverno.

[49] Francesco Morosini 1619-1694 será o último dos doges de Veneza, depois de ter reconquistado Patras, Lepante, Coríntia, Atenas e Esparta aos Turcos. Depois de ter gravado uma das mais belas páginas da História de Sua Sereníssima Santidade, morrerá em Náuplia, onde a sua esquadra acostara para o Inverno.

[50] Ver Vol I, O Quarto da Rainha.

[51] Em Pignerol, M de Saint-Mars apenas governava o castelo propriamente dito, que fazia de prisão. A cidadela e a fortaleza eram governadas por um tenente do Rei, na ocorrência, M de Rissan.

[52] O principado de Acaia ou de Moréia, conquistado no séc. XIII por Guilherme de Champlitte e Geoffroy de Villehardouin, fizera parte do Império Romano do Oriente. O nome refere-se a uma região da antiga Grécia, no norte do Peloponeso. No séc. XV o principado foi anexado ao império Bizantino. Moréia é o nome dado ao Peloponeso após a conquista latina (1205). O principado de Moréia manteve-se até 1430.

[53] Era lá que Fouquet e Lauzun estavam encarcerados M de Rissan, governador militar, ocupava a torre sul e a terceira estava reservada aos prisioneiros de somenos importância.

[54] Será morto um ano depois no cerco a Maastricht, quando se ia tornar marechal de França.

[55] Ilhas do Mediterrâneo (Alpes Marítimos). As duas principais são Sainte-Marguente e Saint-Honorat Centro monástico e teológico importante nos sécs. V e VI, conservam ainda hoje um mosteiro cisterciense em atividade.

[56] Alguns investigadores descobriram um anagrama num nome vindo de nenhures: bic amt-rai. este (famoso) almirante!...

 

                                                                                Juliette Benzoni  

 

                      

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