No comboio que a levava para o Sul, Rosalinda Powell principiava a achar demorado o tempo. Tinha pressa de chegar à pequena estação de Paint Rock, sítio onde findava a sua viagem.
Dum lado e doutro da via, a planície verdejante descia para o vale do Colorado. A região era fértil, os ranchos alinhavam-se em grande número. Do seu lugar, a rapariga podia avistar as manadas de gado que vagueavam sob a vigilância de alguns "cowpunchers" a cavalo.
Rosalinda abaixara a vidraça e gozava o prazer de receber no rosto jovem a carícia do vento tépido que lhe trazia um cheiro forte que ela conhecia muito bem desde a sua mais tenra infância. Este cheiro a gado recordava-lhe a terra para onde ia e todos os seus que ia voltar a ver e que deviam estar à sua espera, presos duma legítima impaciência.
Seis meses haviam passado, de facto, depois que a viajante não voltara ao Bar 35! Seis meses que lhe tinham parecido intermináveis se bem que fossem os últimos do seu pensionato em Abilene... É verdade que ela fora feliz junto das boas Irmãzinhas, tinha pena sobretudo da Irmã Santa Angela, a superiora, que lhe votara uma afeição muito especial, e sentia o coração apertado por se separar para sempre de certas das suas camaradas. Oh, a delicadeza e o encanto da Mariana Sanders! A condescendência inesgotável da Peggy Scott! As confidências da Suzy Perkins! Foranecessário deixar tudo isso. Todavia, Rosalinda, sacudia de si sem grande dificuldade a pena e a melancolia que sentia ao deixar as suas amigas. Não era essa a sorte reservada a todas? Cada uma seguia o seu destino, confiante no futuro, alimentando apenas esperanças... Não estavam todas elas no amanhecer da vida? Mais um pouco de tempo, e casar-se-iam umas e outras.
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Casar-se! Como todas as suas companheiras, Rosalinda cultivava também esse sentimentalismo. Aos dezanove anos, sonhava por vezes com o príncipe encantado, e gostava
de o imaginar conforme ao seu ideal... Pouco lhe importava a fortuna, o que ela queria antes de tudo era um marido honesto e corajoso, capaz de ganhar a vida e de
sustentá-la no melhor como no pior.
A dizer a verdade, nunca o seu coração de rapariga batera, não encontrara o príncipe encantado senão em sonhos, um príncipe ao mesmo tempo perfeito e irreal... O
primo Ike da sua amiga Barton, por exemplo, mas Ike era um pouco "snob" demais, na sua opinião... Mas afinal de contas, para que dar cabo da cabeça? Não era melhor
confiar-se à Providência, como lhe aconselhara a Irmã Santa Angela, quando se separaram, pouco tempo antes, na plataforma da estação de Abilene?
A sineta da locomotiva que badalava avisando da chegada a uma estação, arrancou Rosalinda aos seus pensamentos... Já se alinhavam de cada lado da via algumas barracas,
casas de madeira, hangares. A voz fanhosa do empregado negro que surgia no corredor central da carruagem, anunciava repetidamente:
- Tuscota! Passageiros para Tuscota! Preparem-se para se apearem!
Duas senhoras de idade, encapotadas, trazendo cada uma um cesto de respeitáveis dimensões, levantaram-se do banco que ocupavam e dirigiram-se para o fundo da carruagem.
Um mocetão "cowpuncher", que não parara de mascar "chewing-gum" desde que partiram de Abijen,
levantou-se com custo e, num passo indolente, dispôs-se também a apear-se.
- Tuscota!
À locomotiva parou no meio duma nuvem de fumo, enquanto a sineta continuava a badalar como uma louca... O negro tinha colocado um banquinho para facilitar aos passageiros
a subida e a descida. Um vago sorriso aflorou aos lábios de Rosalinda quando viu as duas velhotas que se precipitavam para a saída, seguidas imediatamente pelo "cowpuncher"
grandalhão que gingava enquanto caminhava, de mãos nas algibeiras do seu "chaps" de cor fulva... Outros acorriam, davam encontrões.
A paragem não se prolongou durante muito tempo, ao apito estridente seguiu-se uma série de arquejos da locomotiva que retomou o andamento, enquanto um grupo agitava
os braços na via, lançando, muitos "Bye-Bye" dirigidos a uma mamã e seus dois filhos subidos para
3 carruagem do lado.
E, de novo, a marcha através da planície, sob um céu ardente... Se bem que tivesse posto os óculos escuros para se proteger contra a reverberação dos raios do astro
diurno, Rosalinda principiou a estar cansada com estas grandes extensões que se sucediam até perder de vista, a linha do horizonte onde a ondulação azulada das colinas
quase se confundia com o céu...
O barulho regular da máquina, o ribombo das rodagens, o balanço que lhe era imprimido sem cessar, incitavam a viajante a adormecer. Fechou os olhos, mas o sono não
se apossou dela... Mais uma vez deixou vaguear a sua imaginação até àqueles de quem se aproximava cada vez mais e que ela daí a pouco poderia apertar nos seus braços!
Havia primeiro do que tudo o "boss" do Bar 35, seu pai, Elias Powell... Grande, forte, mas com um carácter um pouco tímido. Elias Powell tinha deixado muitas vezes
escapar-se a ocasião favorável, mas a sua perseverança, o seu trabalho pertinaz, tinham-lhe permitido
chegar a ser um dos lavradores mais abastados da região do Concho River... Junto dele, Jane, sua mulher, tinha-o sempre ajudado, tanto nas boas como nas más
horas.
Como ela era boazinha, Mammy Jane! Ao lembrar a sua imagem querida, Rosalinda não podia deixar de esboçar um sorriso. "Mammy" não tinha mais do que quarenta anos,
mas apesar disso, grande número de fios de prata sobressaíam já por entre os seus cabelos castanhos... Os "cowpunchers" do rancho adoravam-na a tal ponto que se
fariam matar por ela!
Havia depois o Tio Ray... Este tinha um tipo bastante especial. Consideravam-no, não sem razão, como um fantasista, gostava de brincar, contavam-se muitas vezes
as suas respostas prontas tão divertidas, mas o seu carácter contrastava terrivelmente com o do seu irmão Elias. Tanto quanto este último se mostrava poupado e prudente,
o Tio Ray era pródigo. Solteirão impenitente, dez anos mais velho, não tinha pejo algum em dizer que era preciso aproveitar a vida tanto quanto se pudesse... Infelizmente,
este epicurista era ao mesmo tempo um beberrão. O Tio Ray bebia e deixava-se levar a beber, e era essa a principal ralação dos pais de Rosalinda!
Quantas vezes não tinha a rapariga ouvido a "Mammy" acusar: "com os seus excessos, o Ray pôr-nos-á na miséria! "Mas o Tio Ray ripostava com bom humor. Encontrava
sempre o dito engraçado que desarmava os mais obstinados! Apesar das suas manias, Rosalinda gostava muito daquele a quem ela chamava o seu velho Tio Ray. E estava
encantada com a ideia de o tornar a ver.
Outros rostos apresentavam-se também ao espírito da rapariga: o fiel contramestre do Bar 35, tom Crane, que a fazia saltar sobre os joelhos quando ela ainda era
muito pequena, Salomão, o cozinheiro, sempre resmungão mas de tão boa vontade, Sam Downing e Olivero Macosa, os "cowpunchers" que lhe tinham
ensinado, respectivamente, a montar a cavalo e a atirar o laço!
Todos estes amigos ia ela voltar a ver, tornaria a encontrar a vida movimentada do rancho, as "round-up", os rodeios... Como tudo isto lhe variava a existência de
reclusa de que ela sofria depois que estivera como aluna interna do convento de Abilene!
-? Olá, miss... O fumo não a incomoda?
Rosalinda teve um sobressalto, arrancada aos seus pensamentos, pois estava tão absorvida que não tinha dado pela chegada de um passageiro que subira há pouco na
estação de Tuscota... Surpreendida, voltou-se e deu de cara com um rapagão de rosto trigueiro enquadrado por uma barbicha curta e bem cuidada, que olhava para ela
sorrindo e apontando com o dedo o charuto já meio consumido e que conservava no canto dos lábios espessos.
- De modo algum!
A rapariga esforçou-se por sorrir, mas sentiu-se contrafeita pelos olhares que este vizinho imprevisto demorava sobre ela com certa insistência. com efeito, o homem
tinha muitos outros lugares. Vestido de preto, mas com certa afectação, por debaixo das calças apareciam as botas de couro negro, um acentuado cheiro de couro e
de tabaco emanava de toda a sua pessoa.
Voltando-se propositadamente de costas, Rosalinda fingia interessar-se pela paisagem que nesse momento se abria diante dos seus olhos, mas tinha a impressão de que
os olhos do importuno ficavam sempre dirigidos sobre ela. No espelho que lhe fazia face surpreendeu os seus olhos globosos e a expressão admirativa que se alastrava
por toda a sua máscara pouco convidativa.
- com que então viaja-se sozinha... É bem maçador viajar só!
O passageiro esboçou novamente um sorriso aliciante, a mão direita com dedos cobertos de anéis cofiava a corrente do relógio que pendia do colete. Sem se voltar,
Rosalinda contentou-se em encolher os ombros lentamente.
Pensava que o impertinente se desanimaria... Nada disso.
Vai para Paint Rock, sem dúvida, insistiu mais
solícito do que nunca.
Nada de resposta, o que não impediu que continuasse:
- Eu também vou para Paint Rock! Se é de lá, certamente já ouviu falar de mim...
A rapariga delineou um gesto evasivo, a insistência que este companheiro imprevisto mostrava em a abordar, começou a irritá-la francamente. Sentia que se aproximava
dela e que a empurrava pouco a pouco para o canto.
- Sou Lewis Navarro! declarou. Lewis Navarro! Este nome certamente lhe dirá alguma coisa!
A mesma atitude evasiva de parte de Rosalinda, mas o nome que o seu vizinho acabava de pronunciar era-lhe há muito tempo familiar! Quem não conhecia Lewis Navarro?
... Não era sem razão que o tinham cognominado na região de Paint Rock, de o dono do Concho River! Ambicioso e sem escrúpulos, Lewis Navarro tinha conseguido adquirir,
de maneira mais ou menos lícita, a maior parte das terras que marginavam o Concho... E repetidas vezes já, Elias Powell tinha tido que se queixar de manobras bastante
equívocas do aventureiro.
- Sabe, insistiu mais presumido do que nunca, sou eu quem manda tudo em Paint Rock...
Tão pressuroso como se tivesse encontrado uma ouvinte complacente, os polegares enfiados nas cavas do colete, Lewis Navarro prosseguiu pormenorizadamente no seu
panegírico:
-- Sou amigo do senador Corney... Sou recebido pelo governador Carson... E se, por acaso, procurar um emprego e tiver necessidade de um empurrãozinho, eu ando precisamente
à procura duma secretária!
- Muito obrigada. Não tenho precisão de emprego, decidiu-se enfim a rapariga a responder, cada vez mais
irritada com a verbosidade insuportável do seu incómodo vizinho.
- By Jove! que sorte que tem! Aproximando-se ainda com mais insistência, Lewis
Navarro olhou a passageira dos pés à cabeça... Uma claridade fez-lhe piscar os olhos quando reparou no rosto de traços regulares que não via senão de três quartos.
- É pena... lamentou-se. Desempenharia admiravelmente o lugar. É bonita, nova, veste-se muitíssimo bem! E quanto a ordenados, não costumo fazer questão, sobretudo
quando se é amável!
- Uma vez mais, fiquemos por aqui, Sr. Navarro! exclamou Rosalinda, incapaz de se conter por mais tempo.
- Pois seja, fiquemos por aqui! vociferou o aventureiro. Mas, acredite, arrepender-se-á mais tarde! Despreza a melhor ocasião de vencer na vida! Ofereço-lhe um trampolim...
- Brasdshaw! avisou a voz fanhosa do empregado negro.
Rosalinda abençoou esta intervenção; estava só com Navarro na carruagem, e a atitude do importuno parecia-lhe cada mais inquietante.
Fizeram-se ouvir de novo os repiques da sineta... O comboio chegava a outra paragem, uma estaçãozinha semelhante a tantas outras de Far-"West... Uma dezena de passageiros
esperava que o comboio parasse.
- Brasdshaw! Partida para Paint Rock, San Angelo, Sonora e Del Rio!
Outra vez o comboio descarregou alguns passageiros e outros subiram... O negro aparecia sempre, munido do seu banquinho... A locomotiva arfava, mais ofegante do
que nunca.
- Ali aboard! Ali aboard...
Na plataforma, havia uma corrida precipitada dos retardatários... Rosalinda que, para disfarçar, continuava a olhar pela janela, avistou um grande mocetão que
chegava a correr. Coberto com um excelente chapéu de aba larga, calçado com grandes botas, saltou por cima duma carripana carregada de bagagens, e no próprio momento
em que soava o apito estridente que dava o sinal da partida, içou-se na porta da carruagem.
- Upa lá! gritou ao negro que lhe estendia a mão de ajuda e que o auxiliava a subir para ao pé dele.
Dois minutos mais tarde, entrava por sua vez na carruagem, e Rosalinda notou no espelho que ele se sentava na outra bancada e sentiu com isso um vivo prazer... Tinha
na realidade pressa em acabar com esse malfadado diálogo de até aí.
Lewis Navarro parara de falar a credito, mas os olhares que ele deitava furtivamente para os lados do recém-chegado, provavam claramente que não apreciava em absoluto
a sua presença... A rapariga, testemunha do seu fracasso, não pôde reter um sorriso dissimulado.
O comboio lançava-se de novo através dos prados, uma nuvem de fumo algodoado escapava-se pela chaminé da locomotiva e ao baixar impedia às vezes a passageira de
observar o cenário à volta, mas importava-se pouco com isso e olhava agora o homem do chapéu de aba larga que, tranquilamente, cruzava as pernas e acendia o cigarro
com o isqueiro.
O passageiro era jovem, apenas uns vinte e cinco anos, todavia, à primeira vista, a sua máscara bronzeada exprimia um sangue-frio e uma energia a toda a prova, um
lenço de seda de xadrez branco e verde sobressaía na camisa de flanela caqui. Durante um momento, sempre a fumar, parecia não prestar atenção senão às botas cuidadosamente
engraxadas e na extremidade das quais por vezes sacudia a cinza do cigarro.
- Já vi este homem, dizia consigo a rapariga... Mas onde? Em que circunstâncias? ... A sua cara não me é estranha!
- Então! Reflectiu na minha proposta de há pouco?
Lewis Navarro tinha hesitado um momento antes de
retomar a conversa interrompida. Pouco desejoso de ficar no insucesso, decidiu-se a insistir. Uma olhadela rápida fez-lhe compreender que o recém-chegado não se
importava nem com a sua presença nem com a da sua bonita vizinha.
- Peço-lhe, fiquemos por aqui!
Rosalinda esboçou com a mão um gesto enfadado. Lewis Navarro mordeu os lábios, com certa dificuldade em disfarçar uma careta de despeito.
- Se tivesse ao menos um "cent" de bom senso, comentou ele com azedume, compreenderia de que lado está o seu interesse.
Desta vez, a rapariga não pôde conter-se mais, apertou os lábios, levantou-se, e antes mesmo que o importuno pudesse arriscar uma só palavra, dirigiu-se para o corredor
central e atingiu a plataforma de trás do vagão que era precisamente o último do comboio.
Havia aí algumas cadeiras de braços, desocupadas. Rosalinda deixou-se cair sobre uma delas e depois, satisfeita por se encontrar finalmente só, deixou escapar um
suspiro de alívio... Não poderia tolerar por mais tempo a insistência daquele impertinente!
Pouco a pouco a passageira refez-se da sua perturbação, o seu olhar perdia-se na dupla linha paralela dos trilhos que desfilavam rapidamente para trás dela, faiscando
sobre os raios rebrilhantes do sol... Dentro de pouco tempo o comboio chegaria à ponte sobre o Colorado e seguir-se-ia então a região familiar do Concho River...
Um rangido fez estremecer a rapariga... Debaixo dos óculos escuros, os seus olhos tornaram-se sombrios quando viu a silhueta vigorosa de Lewis Navarro que surgia
no limiar da porta de comunicação com a plataforma...
- Tem razão! É mais agradável aqui!
com o mesmo à-vontade q-aí tinha exasperado a sua vizinha, o aventureiro ajeitou a cadeira que estava à direita da que Rosalinda ocupava, esboçou um sorriso
dos mais afáveis, sentou-se e cruzou as pernas, puxando algumas fumaças do seu charuto. Houve uns segundos de silêncio entrecortado pelo barulho do rodado e o rangido
dos eixos. De novo os polegares de Lewis Navarro se engancharam nas cavas do colete e voltando-se uma vez mais para Rosalinda, com um olhar cheio de malícia:
- A perseverança tudo consegue, miss cujo nome não sei, sentenciou.
Depois, como a rapariga se fechou de novo num silêncio de desagrado, acrescentou:
- Se me conhecesse, saberia que eu consigo sempre o fim que me proponho... E tenho a intenção de não ficar por aqui... Não é todos os dias que se encontra uma rapariga
tão simpática...
- Ordeno-lhe que me deixe em paz, Sr. Navarro! respondeu imediatamente. Fiquemos por aqui, senão chamo alguém!
Uma gargalhada acolheu esta ameaça.
- Quem é que quer chamar? Dei há pouco um dólar àquele moreno! Ele evitará certamente perturbar o nosso colóquio!
Até agora Rosalinda não tinha chegado senão à cólera e à indignação, mas a atitude do seu interlocutor, o sorriso intencional que acompanhou as suas palavras fizeram-lhe
medo. Levantou-se bruscamente.
- Onde é que vai agora? perguntou-lhe, compondo-se sobre a cadeira.
- Que lhe importa? A sua presença é para mim odiosa!
Ia a chegar à porta, quando ele estendeu maliciosamente a perna, barrando-lhe a passagem:
- Aqui não se passa! - retorquiu com um sorriso maldoso.
- Peço-lhe...
Rosalinda ia insistir, com todas as suas forças empurrava a perna do aventureiro, mas este continuava impassível, rindo-se dos seus esforços baldados.
- Ele disse que se não pode passar! repetiu
atrevidamente. Nestas condições, já vê...
Lewis Navarro não terminou a sua frase, sentiu uma sacudidela brusca, e antes que pudesse perceber o que lhe acontecia, dois punhos vigorosos surgiam na frincha
da porta vizinha levantando-lhe tão alto a perna que ele não se pôde equilibrar e caiu da cadeira proferindo uma praga.
- Damn...
Ainda sob a acção da sacudidela, o aventureiro ia levantar-se e Rosalinda, junto dele, corada de emoção, comprimia-se contra a plataforma. com os olhos dilatados
pela surpresa, viu aparecer aquele que vinha tão oportunamente em seu auxílio: o homem do chapéu de aba larga!
- Vamos, Navarro, em pé e depressa!
com os punhos avançados, o recém-vindo preparava um gesto de ameaça, e como o aventureiro estivesse imóvel, enroscado sobre si próprio, de punhos também cerrados,
como uma fera pronta a dar o salto, ordenou com uma voz clara que dominava o ruído do comboio:
- Fora daqui, e que eu não torne a vê-lo junto de Miss Powell!
- By Jove, resmungou Lewis Navarro, esta menina é então Miss Powell?
- Proíbo-lhe de tocar nela com as suas patas sujas, ouviu!...
Durante alguns instantes ainda, ficaram assim, cara a cara. Aflita, Rosalinda esperava a todos os momentos vê-los precipitarem-se um contra o outro.
Subitamente, a voz surda do aventureiro fez-se ouvir:
- Tome cuidado Bug Dauntless! Sai sempre muito caro meter-se com Lewis Navarro. Não tardará muito que se arrependa.
- Nem palavra... Obedeça imediatamente, ou então...
Navarro pareceu resignar-se, esboçou dois passos, mas no próprio momento em que se aproximava da porta, Rosalinda que não o perdia de vista, gritou ao
seu defensor:
- Tome cuidado! Olhe que ele vai...
Antes que a rapariga acabasse a frase, Navarro atirou-se contra o seu antagonista, com uma faca de caça na mão e que tirara da algibeira. Ia vibrar o golpe, mas
o outro, mais rápido, conseguiu esquivar-se à facada. E poucos segundos depois, o aventureiro sentiu que o seu punho estava preso como num torno. Muito perto, Rosalinda,
sem nada poder fazer, teve que se resignar a ver os dois homens lutarem.
II
O TIO RAY
Lewis Navarro era dotado de força pouco vulgar, com um soco podia matar um boi, mas Bug Dauntless não parecia ser para ele um adversário desprezível. Mais baixo
em altura, excedia-o todavia em agilidade e em desembaraço. Por três vezes fez frustrar os ataques de Navarro, cujo punho continuava a apertar como se quisesse esmigalhá-lo.
Uma careta terrível contraiu a máscara dolorida do aventureiro, na qual brilhavam já grandes gotas de suor. Por três vezes quis libertar-se da prisão, mas o seu
antagonista pesava sobre ele com todas as suas forças e dentro de pouco, vencido pela dor, abriu os dedos e a faca foi cair no chão da plataforma. com um pontapé,
a rapariga apressou-se a lançá-la para a linha.
- Damn! repetiu a fera. Hás-de pagar-mas.
Levantou de novo o braço, virando as costas à plataforma. Rosalinda teve um arrepio, parecia desta vez que o seu protector estava perdido, mas a resposta veio logo,
fulminante. Atingido na boca do estômago por um valente soco, Lewis Navarro cambaleou, emitindo um urro de raiva, e ia recuar quando o punho de aço de Bug Dauntless
o atingiu no queixo. Então, incapaz de reagir, desequilibrou-se, E antes que a rapariga tivesse tempo de dar por isso, passou por cima da plataforma e caiu pesadamente
na via férrea.
- Bye Bye! gritou-lhe ironicamente o vencedor.
- Meu Deus! exclamou a rapariga. Matou-o!
Esteja descansada, Miss Powell! Os valentões
desta categoria têm infelizmente a carcaça um pouco sólida de mais!
Depois, tornando a revirar as mangas que antes tinha arregaçado, o rapaz prosseguiu, designando a silhueta de Navarro que se fazia cada vez mais pequena:
Veja, já se está a levantar! Está em condições de
fazer a pé o caminho até Paint Rock! Oxalá que esta aventurazinha o ensine a mostrar-se daqui por diante delicado e atencioso com as senhoras!
Bug Dauntless falava com desenvoltura, e quem o visse não teria certamente suposto que acabava de sustentar um combate tão áspero.
?-- Foi pena que esta fera se tenha saído como saiu, acrescentou. É preciso que desconfie dele daqui por diante como da peste!..
Rosalinda não tinha ainda voltado a si da sua emoção. Agora já não via Navarro, o comboio prosseguia rapidamente no seu caminho. E enquanto se voltava a sentar na
cadeira de braços em que estava há pouco:
- Espero que agora poderá chegar a Paint Rock sem estorvo, Miss Powell!
- Conhece-me, então!...
- Tinha reparado muitas vezes em si quando vinha de férias a Paint Rock...
E a seguir, antes que ela pudesse fazer nova pergunta:
- Sou filho do antigo proprietário do Armazém Geral. Vinha às vezes fazer compras à nossa casa...
- É verdade, recordou-se Rosalinda. Já tinha perguntado a mim própria donde era que eu o conhecia...
- Gostava mais dos rebuçados de hortelã-pimenta, não é assim?
- Os rebuçados de hortelã! Agora já me lembro... Você brincava aos bandidos e aos índios com os outros!
- É verdade! E desde então não mudei nada! Ainda se brinca aos bandidos, mas agora é mais a sério!
A rapariga abriu uns grandes olhos de espanto, e
ele explicou:
gou "deputy" do xenie Burgess, de Pamt Kock...
Ah! você é "deputy" do xerife?
Acredite, não é um emprego ameno, tanto mais que os piores malfeitores estão reunidos sob as ordens do mais completo canalha que a região do Concho River tem conhecido!
, Quem é ele?, arriscou Rosalinda, curiosa:
Esse miserável é nem mais nem menos que o
patife que vinha há pouco a importuná-la!
-O quê! Lewis Navarro?
- Navarro é quem manda na terra... Por várias vezes já, o xerife e eu ficámos com a convicção de que ele era o chefe de todo o "gang" que há alguns meses faz impunemente
falar dele... Desgraçadamente, Navarro tem protectores poderosos no mundo político! Cada vez que temos prendido qualquer dos seus acólitos, têm sido imediatamente
postos em liberdade por sua intervenção. E é por sorte que Burgess e eu não tenhamos ainda por cima sido repreendidos pelas autoridades!
Durante um bom bocado continuou a falar... As estações sucederam-se sem que eles lhes prestassem a menor atenção... Rosalinda sentia-se atraída por uma simpatia
instintiva para este inesperado protector que lhe recordava os anos da sua mais tenra infância... Estava também com medo de que alguém desse pela desaparição do
aventureiro... Por duas vezes, o negro tinha vindo dar uma olhadela pela plataforma, parecendo admirar-se de não ter tornado a ver Lewis Navarro...
Enfim, o comboio chegou à grande ponte sobre o Colorado, e durante alguns instantes os dois jovens pararam de falar para contemplarem o rio que corria largamente
entre duas margens verdejantes... Depois, quando a conversação continuou, Bug Dauntless abordou um assunto que o preocupava já há bocado...
Desculpe-me, Miss Powell, começou ele, se pareço um pouco indiscreto, mas a cena que há pouco se passou
leva-me a pô-la de sobreaviso... Conta-se cá na terra que o seu pai estaria ameaçado pelas manobras do Navarro...
-? O Dad é prudente, respondeu logo Rosalinda, a sua situação é sólida...
- Seria, sem dúvida, se não existisse o maluco do seu velho tio!
- O Tio Ray?
- Esse mesmo! Sabe muito bem que ele tem o desgraçado costume de beber a sua pinga! Pois há um tempo para cá, frequenta o Navarro e os seus apaniguados... E como
ele é sócio do seu pai...
Passou uma sombra pelo olhar da rapariga, sentia-se penosamente afectada por este aviso... O seu interlocutor surpreendeu a expressão consternada que contraiu o
seu rosto...
- Perdoe-me, Miss Powell... Eu realmente não devia...
- Pelo contrário, fez até muito bem! Tratarei de prevenir Dad e o Tio Ray!
- Se esse velho tão original estiver pelos ajustes de a ouvir! Mas acredite-me, após o incidente que se passou, Navarro poderá provocar uma questão consigo! Se alguma
vez se sentir atrapalhada, não hesite em me procurar no gabinete do xerife!
-? Meu Deus, espero que não tenhamos que chegar a esse ponto!
Começaram a falar de outra coisa, e estavam ainda na plataforma da carruagem quando a sineta anunciou a chegada a Paint Rock...
- Depressa! Temos que nos apear! exclamou a passageira, levantando-se subitamente.
- Paint Rock! pronunciou a voz fanhosa e dolente do negro.
Quando o comboio parou, estavam juntos na porta da carruagem, ao lado do negro que continuava espantado por não tornar a ver Lewis Navarro...
- Tio Ray! gritou Rosalinda. Olha o Tio Ray!
Um grande trangalhadanças com um chapéu de palha de abas largas muito caricato, esbracejou no cais entre os grupos de passageiros que se apressavam. Quem o visse,
à primeira vista, parecer-lhe-ia um enorme passarão... Um nariz que não ficaria mal ao Cyrano de Bergerac, servia de apoio a uns óculos encavalitados de forma ridícula,
e uns bigodes compridos caíam de cada lado da boca, de lábios finos... Por detrás dos vidros, dois olhitos piscos de malícia e de bom humor...
- Tio Ray!...
Ray Powel tinha avistado a sobrinha e aproximava-se em grandes passadas no meio da confusão...
--A tua mala, honey! Dá cá a mala!
Ao dizer estas palavras, o Tio Ray vacilava, tinha dificuldade em conservar o equilíbrio, e Rosalinda pensou logo que ele devia ter feito uma escala demorada pelo
"saloon" antes da chegada do comboio de Abilene...
Chegava agora, o rosto, contente, deitando para trás o chapelório de abas desfiadas, a correr, e não viu uma carripana de bagagens que estava diante dos pés...
- Cuidado, Tio Ray!
Tarde demais! Ray Powell estatelou-se ao comprido, e enquanto se debatia no cais sob o olhar divertido dos passageiros, o chapelão rolava uns passos mais adiante
pondo a descoberto um crânio completamente calvo...
O negro e um outro empregado apressaram-se para levantarem o pobre homem, e uns instantes mais tarde Rosalinda saltou lestamente para ao pé dele; este assentou-lhe
dois beijos nas faces ligeiramente húmidas... Um bafo de "whisky" chegou às narinas da viajante que, dominando o seu desagrado, beijou por sua vez o tio.
-? Mas afinal onde está a tua mala?
O Tio Ray esforçava-se por encontrar a bagagem da sua sobrinha, e percebeu então que Bug Dauntlessse tinha encarregado disso... O rapaz esperava, impassível, parecendo
muito mais desgostoso do que divertido com o seguimento um tanto incerto do infeliz...
- Esteja descansado, Sr. Powell, declarou Bug, levo-a até ao carro.
-.Até ao carro! O. K.!
E a seguir, com a expressão aliviada, o Tio Ray apressou-se a propor:
-? Primeiramente, você deve estar um tanto fatigado! E se fôssemos ao "Sunlight"?
O "Sunlight" era o principal "saloon" de Paint Rock, e o Tio Ray era um dos frequentadores mais fiéis do estabelecimento... Todavia, o rapaz não esteve pelos ajustes:
- Muito obrigado, Sr. Powell! Não tenho sede! Além disso, estou com pressa!
- Nesse caso...
O Tio Ray, voltando-se então para a sobrinha:
- Mas tu, sim, honey?
O que valeu logo esta observação de Bug Dauntless:
- Mas, Sr. Powell, o "Sunlight" não é sítio onde se levem meninas... E em especial a sua sobrinha!
- Tem razão! aprovou o Tio Ray. Onde tenho eu a cabeça? Era pelo hábito... Enquanto diziam isto, aproximava-se do carro, e Rosalinda, que entregara o bilhete ao
empregado da estação e esperava ao pé da saída, deu com os olhos num velho cavalo atrelado ao "break" que esperava, preso a uma argola...
- Meu velhinho Jicky! exclamou ela ao chegar ao pé do animal a que ela fez festas com insistência.
Bug Dauntless colocou a mala no carro e depois de ter dito adeus a Ray Powell, estendeu a mão à rapariga:
- Até à vista, Miss Powell... Espero que mais cedo ou mais tarde nos voltemos a encontrar.
Apertaram a mão.
--Agradeço-lhe tudo quanto fez por mim! disse então Rosalinda, esforçando-se por disfarçar a sua emoção.
- Isso é o que menos importância tem! Sobretudo, não esqueça as minhas recomendações e tome cuidado!
O pensamento de ambos foi nesse momento para o
aventureiro que tinham deixado na linha do comboio. A rapariga não pôde dissimular um estremecimento ao pensar que Lewis Navarro certamente não se resignaria a ficar-se
num tal desaire, mas leu logo no olhar de Bug Dauntless uma tal expressão de energia que se sentiu repentinamente sossegada...
- Se for preciso, insistiu ele, chame-me para o gabinete do xerife...
Ela contentou-se em acenar com a cabeça. Separaram-se, enquanto o Tio Ray tinha certa dificuldade em desfazer o nó da arreata que prendia o Jicky à argola...
- Queres que te ajude, Tio Ray? As tuas mãos estão a tremer...
- God Almighty, concordou o alcoólico, não quero dizer que não! Estou tão velho...
Conseguiram então ambos desatar o nó, depois, com presteza, Rosalinda subiu para a boleia.
- Podias sentar-te lá dentro, honey, lembrou Ray Powell.
- Pelo contrário! Bem sabes que o meu lugar preferido é sempre ao lado de quem guia!
?-É verdade é! E assim também podemos conversar melhor!
Ao dizer estas palavras, tentou subir, mas não teria conseguido se a sobrinha não lhe tivesse dado a mão. com certo custo, içou-o para ao pé dela:
- Life! suspirou. Cá estamos! AH aboardl... Depois, pegando no chicote e fazendo-o estalar:
- Go, Jicky!
com um gesto majestoso, compôs o chapelão enquanto o cavalo arrancava, e à medida que enfiavam pela rua principal de Paint Rock, perto da estação, a rapariga pôde
reparar em que muitos transeuntes paravam, divertidos, a verem passar o "break" que a devia levar ao Bar 35.
De um lado e do outro, Rosalinda viu algumas pessoas que lhe diziam adeus, mas a maior parte parecia
profundamente divertida com o Tio Ray que fazia todos os milagres possíveis para aguentar o equilíbrio na boleia.
- Olá, velho Ray! gritou-lhe um engraçado do "saloon" do "Sunlight", toma mais um whiskyzinho para te manteres direito!
O condutor riu amarelo. Tinha grande dificuldade em segurar as rédeas, e Rosalinda ter-se-ia sentido muito mais inquieta se não soubesse há muito que o Jicky era
um velho cavalo manso que podia regressar ao rancho de olhos vendados!
A trote, o "break" afastou-se da pequena cidade da qual rapidamente passou as últimas casas. O calor era insuportável, as moscas e os moscardos atacavam sem descanso
o cavalo que tinha muita dificuldade em os enxotar. E a todos os momentos a voz rouca do condutor dominava o rodar do carro e o chiar dos eixos mal lubrificados:
- Go, Jicky, go, my boy!...
A rapariga evitava falar, mas o seu olhar espiava frequentemente, de fugida, o seu vizinho. Via-lhe a cabeça pender a pouco e pouco, enquanto os olhos se lhe fechavam,
e ela, aproximando-se, dava-lhe uma cotovelada esforçando-se por o tirar daquele torpor.
- Hélio, honey...
- Olá, Tio Ray!
Durante um grande bocado foram estas, repetidas vezes, as meias palavras que pronunciaram... Rosalinda deteve o seu olhar pela paisagem circundante, o Concho River
serpenteava, à direita, através de vastos prados cuidadosamente irrigados. Para lá dos fios de arame farpado que delimitavam as terras, as manadas agrupavam-se à
volta dos pontos onde havia água. A viajante sentia-se em casa... O Bar 35 não estava a mais de umas vinte milhas de Paint Rock, o cenário que se lhe abria de um
lado e do outro da estrada era-lhe familiar desde há muito tempo. Todavia, Rosalinda sentia-se distraída, por várias vezes surpreendeu-se a caminho de
pensar no incidente que se desenrolara durante o trajecto e que tinha posto um contra o outro Lewis Navarro e Bug Dauntless. Apodera-se dela uma perturbação profunda
quando evocava tudo quanto lhe tinha dito o seu protector imprevisto...
A rapariga estava satisfeita por tornar para ao pé dos pais, mas não podia conseguir livrar-se de um sentimento de receio. Os minutos passados na companhia do aventureiro
levavam-na, de facto, a acreditar que Navarro não era daqueles que se deixavam ficar por debaixo... Segundo toda a verosimilhança, procuraria vingar-se.
Além disso, Rosalinda sabia agora que o seu pai corria perigo por causa das manobras de Lewis Navarro. O estado lamentável em que se encontrava o Tio Ray, provava-lhe
que Bug Dauntless não exagerara quando lhe dissera que o mais velho dos Powell portava-se como um fantoche perigoso cujos cordelinhos podiam ser puxados por Navarro!
Tinham bastado dois encontros para ensombrar a tão profunda alegria que a rapariga sentira ao deixar Abilene e ao vir morar definitivamente em casa dos seus pais.
Agora, esta felicidade e esta calma pelas quais ela esperava, pareciam-lhe gravemente ameaçadas. Um instinto secreto advertia-a de um perigo e de complicações que
em breve prazo não poderiam deixar de sobrevir.
Por várias vezes, Rosalinda se recordou da silhueta vigorosa de Bug Dauntless. A atitude corajosa do seu inesperado defensor impressionava-a. Mas sentia como que
um remorso por não ter reagido após a queda de Navarro para a linha férrea... Porque não accionara ela o sinal de alarme? É verdade que o aventureiro parecia indemne
e que se levantara quando o comboio prosseguia no seu curso para o Colorado.
- Home! Stveet Home!
A rapariga teve um sobressalto, o Tio Ray começou de repente a cantarolar, e o Jicky, depois de ter
tido as suas dificuldades na subida de uma rampa, voltou a trotar,
- Hélio, honey! A vida é bela!.. E tudo ficará melhor no Bar 35 quando chegares de volta!
Fugindo ao seu torpor, o Tio Ray esforçava-se de sua parte por encadear as suas recordações.
- É que o teu Dad não é prático! É um empata, um dragão de virtudes. Se não fosse a tua esplêndida
mãe...
Assobiou baixinho e continuou a cantar ao acaso. E assim foi até ao momento em que, do seu lugar, numa volta da estrada que se prolongava entre duas barragens de
arame farpado, Rosalinda avistou a casa paterna, construída na margem do Concho River. Aos seus olhos voltou o cenário que a encantou em criança.! O Bar 35 lá estava!
Em menos de cinco minutos, o carro chegaria lá!
Então, afastando voluntariamente de si as ideias negras que se acumulavam no seu espírito de há um tempo para cá, a rapariga esforçou-se por reagir...
- Home! Sweet Home! tornou o Tio Ray entre
dois assobios.
E a seguir, inclinando-se para a sua sobrinha e acompanhando as palavras com um gesto largo:
- Bar 35! avisou alegre. Toda a gente se apeia!
III
BAR 35
Já tinham avistado o "break" e várias pessoas apareciam então no grande pátio.
Rosalinda reconheceu logo uma delas:
- Mammy!
- Honey!... Querida honey!
Jane Powell, adiante do marido, precipitou-se para o carro que o Tio Ray tinha nesse momento parado. Ágil, a viajante saltou rapidamente do assento e atirou-se para
os braços de sua mãe. Durante alguns instantes ficaram assim abraçadas, trocando beijos, encantadas por estarem de novo juntas após uma tão longa separação.
- Então! E a mim, não se diz nada? Eu já não sou ninguém!
Elias Powell fazia agora o possível por separar as duas. Muito alto, o rosto cuidadosamente barbeado, o proprietário do Bar 35 não podia esconder a alegria que lhe
trazia a volta da sua filha única.
- Mas não, não me esqueço de ti, querido Dad! protestou logo Rosalinda.
Juntando o gesto à palavra, assentou uns beijos muito rechonchudos nas bochechas bem tostadas do "ranchman", enquanto à sua volta se repercutiam várias exclamações.
tom Grane, o contramestre, Sam Downing, Oliveiro Macosa e os outros "cowpunchers" acorriam a desejar boas-vindas à viajante. A rapariga teve que apertar as
mãos, rudes e calosas, a um por um que se estendiam
para ela.
Enfim Jane Powell decidiu-se a livrar a recém-vinda das manifestações entusiastas de amizade de todos os homens que trabalhavam na casa.
Vem, honey, deves estar cansada de tão longa
viagem!
- Good gracious, é tão bom sentirmo-nos outra vez em casa!
Enquadrada pelos seus pais, Rosalinda dirigiu-se então para a habitação. Era uma casa branca, de estilo colonial, cuja fachada desaparecia em parte sob uma avalanche
púrpura de vinha-virgem. E logo que a rapariga passou o limiar da entrada, voltou a sentir a atmosfera de frescura e de serenidade de que tivera tantas saudades
quando estava no colégio. O Tio Ray tinha ido logo desatrelar o Jicky, ajudado por tom Grane. Ouvia-se a sua voz grossa dominando o tagarelar dos "cowpunchers".
Rosalinda trepou a velha escada até ao seu quarto, um sorriso satisfeito apaziguava o seu rosto ligeiramente humedecido, uma exclamação alegre escapou-lhe ainda
quando se encontrou entre as quatro paredes, só com as suas fotografias, os seus móveis, as suas queridas recordações...
Elias Powell e sua mulher olhavam para ela, enternecidos, a filha finalmente recuperada. Repararam que tirava o chapéu olhando-se no espelho colocado por trás da
chaminé.
- E que tal, contem-me como têm passado! Mais à vontade, a rapariga sentou-se, observando
a seu turno os pais.
- A Mammy está tal e qual na mesma, declarou ao fim de uns instantes. Mas o Dad parece mais velho! Que se passa? Não estiveste doente, pois não?
Inclinando-se para o "ranchman" que se sentara ao lado dela, Rosalinda mirava-o inquieta. Mas ele protestou logo:
- A saúde é magnífica! Sinto-me cada vez melhor!
- Tudo iria bem no Bar 35, acrescentou então Jane Powell, se não tivéssemos outras preocupações!
Uma ruga atravessou-se na testa da rapariga...
- Outras preocupações?! repetiu. Os negócios do rancho...
- No que me diz respeito, não tenho de que me queixar dos negócios do rancho, afirmou Elias Powell... À exploração segue bem, estou satisfeitíssimo com tom Crane
e com o resto da rapaziada! Tudo correria às mil maravilhas se não fosse o Tio Ray!
- O Tio Ray?
Rosalinda teve um sobressalto, não pôde deixar de se recordar das coisas que Bug Dauntless lhe tinha contado a respeito do seu tio. Viu a Mammy encolher tristemente
os ombros. E por outro lado o "ranchman" apertou os lábios com amargura.
- Contem-me então, pediu ela. Que é que fez o Tio Ray?
- O meu irmão é nosso sócio, respondeu Elias Powell. Até agora deu provas duma certa fantasia desconcertante. Tinha todavia o costume de frequentar com demasiada
insistência os "saloons".
- Dei por isso, concordou a rapariga...
- Isso não seria nada, continuou o "ranchman", se Ray se não tivesse deixado tentar pelo diabo do jogo!
- Pelo diabo do jogo? O Tio Ray...
- O teu tio perdeu já quantias loucas para satisfazer à sua paixão favorita! Teve de contrair empréstimos. A nossa situação financeira era sólida... Mas de um dia
para o outro podemos ficar arruinados porque esse desgraçado não se apercebe das consequências deste estado de coisas!
E a Mammy acrescentou:
- Ele não é um homem mau, chora, pede perdão quando o queremos fazer raciocinar, jura que não voltará a repetir, mas tudo o vento leva! Quando se
encontra diante de um baralho de cartas e de um parceiro que o incite, esquece tudo!
Elias Powell abanou a cabeça com desânimo:
Ray é mais velho do que eu dez anos! Devia
dar o exemplo, mas infelizmente é incorrigível... Não pensa que poderá arruinar o Bar 35 onde trabalhamos há tanto tempo. Esquece os esforços e o trabalho aturado
do nosso pai que fez do rancho isto que ele é hoje!
- É uma crise, objectou Rosalinda indulgente, isso passa...
- Quando tiver passado já nós estaremos há muito sem termos onde cair mortos! Seja lá quem for pode apresentar-nos uma letra no momento em que menos a espero! Que
é que hei-de então fazer se o dinheiro em caixa não chegar para a pagar? Será a ruína, o descalabro certo! O teu futuro...
- Não se preocupem comigo, defendeu-se a rapariga, peço-lhes...
- Pois sim, protestou Jane Powell, mas seria escandaloso que para satisfazer ao vício do jogo desse insensato, todo o nosso trabalho ficasse irremediavelmente comprometido!
- O Tio Ray tem bom coração, insistiu Rosalinda, ele compreenderá... Eu própria me encarregarei de o fazer pensar, e como ele gosta muito de mim...
- Ele gosta de ti, concordo, interrompeu o "ranchman", mas desgraçadamente tem um espírito mau que o encoraja e que ele ouve com muita complacência!
- Um espírito mau?
A rapariga ficou suspensa, visivelmente intrigada, o seu olhar ganhou uma sombra quando ouviu o pai pormenorizar:
- O Ray caiu nas garras de um indivíduo sem escrúpulos, do pior facínora da região! Refiro-me ao Lewis Navarro!
- Lewis Navarro?
Ao repetir este nome, Rosalinda sentiu-se apoderada
de um súbito temor, evocando a expressão inquietante do seu perigoso companheiro de viagem, mas Elias Powell continuava num tom muito irritado:
- O Navarro é com certeza o mais completo canalha de todo o Texas! Tem homens por conta que o ajudam em todas as suas manobras e que fazem tudo com ele para realizar
o seu mais caro desígnio que é ser o senhor de toda a região do Concho River! Como uma aranha que tece a sua teia, o Navarro faz o possível por espoliar todos os
pequenos proprietários destes sítios. Não se passa um mês sem que se saiba que ele adquiriu uma nova porção de terras mais ou menos importante! "Attorneys", juristas,
políticos, estão sempre prontos para favorecerem o menor dos seus desejos!
O "ranchman" apertou raivosamente as mãos, pronunciando estas palavras:
-? Se todos soubessem a verdade! disse ele. Se lhe arrancassem a máscara, estou certo de que se saberia que o Navarro é o maior responsável por todos os crimes e
por todos os atentados que foram feitos em Paint Rock e nas cidades vizinhas! Dirige um "gang" que executa sem hesitar todas as suas ordens! Pilhagens nos bancos,
atentados à mão armada...
- Talvez exageres, não pôde deixar de dizer Jane, tu abandonas-te ao teu mau humor!
- By Jove, não exagero nada, ripostou imediatamente Elias Powell. Quando se rasgar o véu que oculta a verdade, o Navarro tem grandes contas a ajustar! Infelizmente
não creio que esse momento esteja próximo! Não vejo ninguém que se atreva a enfrentar o tigre no seu antro e que o obrigue a arrepender-se! Rosalinda estava atónita,
sem se mexer... Evocava o incidente que se desenrolara na plataforma da carruagem do comboio e que tinha posto em luta este mesmo Lewis Navarro e Bug Dauntless.
Ainda há pouco, ela teria feito alusão a este episódio, mas agora preferia não dizer nada, para não alarmar os seus pais...
Mas o "ranchman" continuava, sempre exasperado:
- Burgess, o nosso xerife, é um excelente homem, e estou certo de que não está metido dentro do jogo do Navarro, apesar das propostas convidativas que este certamente
não deve ter deixado de lhe fazer, mas Burgess não dispõe dos meios necessários para se opor às tentativas criminosas desse miserável aventureiro! Os "deputies"
que compõem o seu "posse" são sérios e corajosos... Um deles, sobretudo, e várias vezes tenho perguntado a mim próprio se não correria tudo melhor se o nomeassem
para o lugar de Burgess... Esse valente rapaz é Bug Dauntless. Tu deves lembrar-te, honey, o filho do dono do Armazém Geral! Vocês antigamente brincavam juntos!
A rapariga disse com a cabeça que sim, mas teve todavia o cuidado de não contar que se tinha encontrado, umas horas antes, na presença desse mesmo Dauntless, e que
lhe devia a ele ter-se visto livre de um colóquio a dois verdadeiramente embaraçoso...
- Seja como for, concluiu Elias Powell, o problema fica de pé! Parece que os "rangers" foram solicitados para fazerem na região do Concho a indispensável limpeza
que se impõe, mas eles são tão poucos e estão sempre tão ocupados no vale do Rio Grande, que é melhor não pensar nisso! E cá ficamos condenados a resignar-nos durante
meses e anos a este estado de coisas!
O barulho de uns passos pesados repercutiu-se no corredor próximo e fez o "ranchman" endireitar-se e o seu rosto franzir-se quando ouviu duas pancadas curtas na
porta.
- Quem é, interrogou o "ranchman", de sobrolho carregado.
- É o Tio Ray!
- Entra!
Alguns segundos depois, Ray Powell perfilava-se no limiar da porta, pousava o chapelão e a sua calva
aparecia, como uma grande bola de bilhar, os olhinhos piscavam e ao avistar o trio não pôde deixar de dizer:
- Olá! Estão todos três com um ar muito sério... Parece que se reuniram em conselho de guerra!
A resposta não se fez esperar:
- Até que enfim que mostras esperteza, disse Elias. Estávamos precisamente a falar de ti! À tua sobrinha tem agora que ser suficientemente esclarecida sobre o que
se passa contigo!
O Tio Ray encolheu filosoficamente os ombros:
- A Rosalinda é mais esperta do que vocês todos! Ela bem sabe que é preciso viver a mocidade...
- Parece-me que tu prolongas um pouco demais os limites da mocidade! Esqueces-te de que estás agora muito perto dos sessenta!
- Olha a grande coisa! Não se tem nunca mais do que a idade que se aparenta!
A rapariga pôde verificar que o seu tio recebia com uma desconcertante serenidade as queixas amargas que lhe dirigia o irmão mais novo. Tinha resposta para tudo,
e quem o via, notava imediatamente que esta criança grande não tomaria nunca mais a existência a sério.
- Minha pobre Rosalinda, declarou com um suspiro, não vais divertir-te nada no Bar 35! Os teus pais fabricam a tristeza. E afinal seria bem preferível tomar a existência
pelo lado melhor!
O Tio Ray empertigou-se, e afectando um ar superior, dispunha-se a cantar um estribilho de "saloon", quando o irmão o deteve com um gesto:
- Antes de manifestares uma tão boa disposição, será melhor que me dês as indispensáveis explicações a respeito de um certo papelinho que me trouxeram esta tarde.
Elias Powell levou a mão à algibeira de dentro e tirou da carteira um pedaço de papel cuidadosamente dobrado em quatro partes que estendeu ao seu interlocutor.
-By Jove! defendeu-se o Tio Ray, sabes muito bem que confio absolutamente em ti para tudo o que respeita à exploração do Bar 35!
-- Não se trata aqui da exploração do rancho, acentuou o pai de Rosalinda, mas duma declaração de dívida de dez mil dólares que tu assinaste com o teu punho anteontem
e cujo vencimento é amanhã!
- Vencimento? É curioso!
Um sorriso tranquilo animou o rosto de Ray Powell, mas gelou-se repentinamente sobre os lábios. Elias precipitara-se sobre o seu irmão, apertando-lhe a garganta
e estendendo-lhe o papel sob os olhos:
- Não estou agora disposto para brincadeiras... Estes dez mil dólares, tens com que os pagar?
- com que os pagar! repetiu o bêbedo, irónico. Há meses já que me não deixas dinheiro algum na algibeira! Eu não posso fabricar notas falsas! Gostavas, não? Mas
isso custar-te-ia muito mais caro!
- Miserável! Não consegues compreender que nos levas a todos à ruína!
- Por favor, não com tanta força! Queres esganar-me?
O "ranchman" sacudiu o seu interlocutor com tanta raiva que as duas mulheres tiveram que intervir para o chamarem à razão...
- Vês, honey... O teu Dad tem crises, resmungou o Tio Ray, endireitando o melhor que podia as suas roupas em desordem. Ele devia consultar um médico. Começa a ser
inquietante!
Elias Powell deixou-se cair sobre uma cadeira, esteve quieto durante uns instantes, passando a mão pela testa, e enrugando entre os dedos o papel que acabava de
provocar esta cena.
- By Jove, exclamou enfim, recompondo-se e virando-se para o irmão mais velho, se não te importas nada connosco os dois, pensa ao menos um pouco na Rosalinda! Estás
a caminho de a arruinar com a tua paixão fatal pelo jogo e pela bebida!
O Tio Ray levantou os olhos para o tecto, e depois deitando à sua sobrinha um olhar pleno de afectuosa comiseração:
- As coisas que a gente ouve! comentou...
- O Dad tem razão, Tio Ray! Devias pensar um pouco!
Rosalinda demorou agora o seu olhar reprovador sobre o culpado, pronunciando estas palavras. Durante alguns instantes, ele fixou-a, atónito, os seus olhinhos piscaram
mais uma vez. Depois, de repente, carregaram-se:
- Tens razão, honey! concordou. Sou um miserável!
Bruscamente, caiu sobre uma cadeira e ali, com a cabeça escondida nas mãos, chorou, o corpo sacudido pelos soluços.
- Está bem, Tio Ray! Coragem! Faze um gesto bonito. Prometes que é a última vez?
Jane Powell dirigiu à filha um olhar cheio de pena. Era sempre a mesma história. Ray ficava desolado, jurava por todos os seus deuses que não voltaria a fazer o
mesmo, que nunca mais tocaria numa carta de jogar. Juramento de bêbedo, logo que se encontrava ao pé dos seus parceiros habituais, esquecia tudo, ajudado pelos vapores
do "Whisky", e lá deslizava na voragem.
O "ranchman" teve um gesto de fadiga. Pagaria mais uma vez, mas sentia o coração despedaçado por ver desagregar-se assim o produto do seu trabalho!
- Vamos, declarou levantando-se, vamos já almoçar. Deixemos à Rosalinda uns minutos para se preparar! Ela deve ter muita fome depois duma tão longa viagem!
A rapariga teve um gesto vago. Certamente que há pouco quando chegou ao Bar 35 tinha fome, mas a cena que acabava de se passar tinha-lhe tirado todo o apetite. Ela
não ousava adoptar uma atitude absolutamente reprovadora contra o seu tio, de tal modo ele manifestava desgosto e arrependimento.
- Então, Tio Ray, insistiu ela, prometes-me?
- Está prometido! assegurou o outro com uma voz lamentosa.
Grandes lágrimas brilhavam entre as pálpebras avermelhadas, e vinham correr ao longo das faces com rugas.
?- Terei o cuidado de te lembrar a promessa! acrescentou ela estendendo-lhe uma das mãos para o ajudar a levantar-se.
De cabeça baixa, o Tio Ray foi o primeiro a sair do quarto imediatamente seguido pelo irmão e pela cunhada. E Rosalinda ficou só, entregue em absoluto aos seus pensamentos.
De facto, quando tinha deixado Abilene, a rapariga não pensava vir encontrar uma tal atmosfera... O Bar 35 era para ela o lar da felicidade, o bendito porto de abrigo
onde poderia viver feliz ao pé dos seus pais!
Rosalinda encarou a situação. Elias Powell tinha razão em se alarmar. Mas sentia uma certa indulgência para com o Tio Ray que ela considerava uma criança grande.
Fez a si própria a promessa de intervir, de obrigar o culpado a raciocinar e de o levar a melhores sentimentos!
Todavia, ao compor a desordem da sua roupa diante do espelho, reparou na ruga de preocupação que lhe atravessava a fronte! Quanto mais reflectia, mais nítidas lhe
apareciam as dificuldades que poderiam levantar-se no seu caminho! Só com o pensamento em que Lewis Navarro desempenhava um papel principal em toda esta questão,
sentiu um arrepio desagradável que não pôde reprimir.
Sim, Elias Powell não se enganava, Lewis Navarro não se deteria com qualquer escrúpulo, e se tinha decidido arruinar os Powell para deitar a mão ao Bar 35, iria
até ao fim. Por isso, o futuro não lhe parecia de favoráveis auspícios...
A sineta do rancho que chamava para o almoço, veio arrancar a rapariga às suas reflexões, esforçou-se então por reagir e por afectar a mais completa serenidade.
- Seja como Deus quiser! murmurou simplesmente.
IV
O GANG
Lewis Navarro não perdeu a cólera, um grande alto na fronte direita, a perna esquerda fazendo-o sofrer de uma dor lancinante, pôde regressar ao "Três de Espadas",
o rancho em que habitava, a pouca distância de Paint Rock e que, como o Bar 35, era situado nas margens do Concho River.
O aventureiro devia ter feito em pleno sol uma caminhada dificultosa ao longo da via férrea, até encontrar ajuda. A sua primeira ideia foi a de apresentar queixa
contra a agressão de que tinha sido vítima, mas não podia esquecer-se de que Bug Dauntless era o auxiliar preferido do xerife Burgess! Decidiu-se a contemporizar,
pronto a vingar-se por si próprio contra o rapaz, e justamente no momento em que ele menos o esperasse...
- Não perdes por esperar, Dauntless! Veremos qual de nós dirá a última palavra! À todos os franganitos da tua casta que têm tentado impressionar-me, nós temo-los
suprimido calmamente, uns atrás dos outros... A tua vez há-de chegar... Dentro de poucos dias, terás pago a tua conta...
Andando em longas passadas no seu escritório, Lewis Navarro recordava a aventura desagradável que lhe tinha acontecido durante a viagem e a imagem de Rosalinda acudira
muitas vezes ao seu espírito.
- Era engraçada a garota! murmurou, esboçando um sorriso e parando para sacudir a cinza do charuto
com a ponta do dedo indicador. Um tanto ou quanto novinha demais, mas apesar disso...
Monologando assim, carregou o sobrolho. Era-lhe soberanamente desagradável ter recebido uma lição mestra em presença da linda passageira, mas Navarro não era homem
para se impressionar com tão pouco! Se tinha um desforro a tirar, tirá-lo-ia!
- O maldito animalzinho, murmurou entre dentes, fá-lo-ei padecer mil mortes! Quanto à outra...
A máscara rude do aventureiro descontraiu-se, um sorriso mais bem disposto aflorou aos seus lábios espessos. De facto, Rosalinda era bonita! Muito mais bonita, na
verdade, do que todas as outras a quem, uma por uma, tinha caído nas boas graças... Evidentemente que ele se aproximava dos quarenta anos, mas era rico, tinha com
que pudesse cobrir de dólares e satisfazer todos os caprichos daquela que consentisse em ser a Senhora Navarro... Tinha, portanto, com que anular todas as reticências...
- Por intermédio desse velho imbecil do Ray, vou tê-la, meditou ele, retomando o seu vaivém. com o "whisky" e o baralho de cartas não levará muito tempo a arruinar
o irmão! Uma vez deitado este abaixo, a sobrinha será para mim, sem grande dificuldade. Tão certo como dois e dois serem quatro, ela não se esquivará a agarrar-se
à bóia de salvação que eu lhe estenderei em plena tempestade, e tudo ficará feito! Lewis Navarro será considerado um salvador!
O aventureiro arquitectava o seu plano e quanto mais pensava melhor compreendia que tinha todos os trunfos na mão. Até agora, tinha manobrado para deitar a mão ao
Bar 35, mas daqui por diante o desejo de conquistar Rosalinda por todos os meios passava para o primeiro plano.
O martelamento de uma galopada precipitada veio acordar Lewis Navarro repentinamente das suas absorventes reflexões. com um passo rápido, aproximou-se da janela
que ficara completamente aberta. Escapou-lhe
uma exclamação quando deu com os olhos num cavaleiro com o fato branco de pó e que parara saltando em terra direito ao curral.
- Tip Giggler! disse consigo, reconhecendo o recém-vindo.
Uma expressão inquieta invadiu por instantes a máscara do aventureiro. Tip Giggler era um dos seus "gunmen" mais ajeitados, e não o utilizava senão nas grandes eventualidades.
Era o melhor atirador do Concho, a par de um lutador áspero de desconcertante habilidade, que tinha conseguido por várias vezes escapar às buscas do xerife Burgess
e do seu "poss".
Tip Giggler vinha agora a passos rápidos para a habitação. Lewis Navarro percebeu que se tinha passado qualquer coisa de anormal, ficou repentinamente inquieto e
foi ao encontro do seu acólito, abrindo-lhe a porta do escritório e logo que ele parou no patamar, perguntou-lhe:
?- Então, Tip! Que há?
- À miséria, "boss"! À desolação!
O visitante afundou-se, mais do que se sentou, numa cadeira que o seu vizinho lhe indicou. O Navarro notou então que ele tinha o braço direito escondido num pedaço
de pano todo ensanguentado.
- Fala depressa! disse ansioso. Complicações? com o dorso da mão esquerda, Tip Giggler limpou
o rosto, a luzir de suor. Tinha dificuldade em retomar o fôlego e parecia ter feito uma grande tirada até chegar ao "Três de Espadas".
- Dê-me de beber, "boss"! arquejou. Seja o que for! Estou a morrer de sede!
Lewis Navarro viu uma garrafa meia de água e um copo que estavam ali ao pé numa prateleira, encheu o copo e estendeu-o ao seu visitante que o engoliu de um trago
e depois, com um suspiro de satisfação, endireitou-se e declarou, de rosto sombrio:
-O Matthewson foi-se!
- Pode lá ser!
O aventureiro não pôde reprimir um estremecimento. Matthewson era de facto o seu braço direito, um mocetão em quem tinha a mais absoluta confiança e que muitas vezes
lhe permitiu ter êxito nas operações mais delicadas e mais perigosas.
Mas Tip Giggler começou a dar alguns pormenores:
- Foi no Green Canon! disse a custo. Estávamos à espera da passagem do camião do National Bank que ia para San Angelo e a propósito do qual Den nos tinha dado todas
as explicações necessárias...
- Por amor de Deus, vamos aos factos! ansiou Navarro cujo rosto se tinha ensombrado.
- Cuidávamos que o carro não tivesse dentro mais do que três homens, mas eram sete! E armados até aos dentes!
- Damn, bramiu surdamente o Navarro. Fomos traídos!
- Lá isso não posso dizer, "boss"! O que eu posso contar-lhe é que fomos surpreendidos no momento próprio em que cuidávamos ter esses vermes à nossa disposição!
Matthewson caiu junto de mim, com uma bala no meio da testa.
Depois, mostrando a mão direita em estado lastimoso:
- Pela minha parte, terminou Giggler, apanhei três ameixas. E aqui estou fora de uso durante um certo tempo!
-? Mas, e os outros?
Tip Giggler encolheu os ombros com desprezo:
- Os outros! Fugiram como reles "buzzards" quando viram o Matthewson cair! Dois deles não foram longe, abatidos em plena fuga. Os seus corpos ficaram lá no chão.
Então, a toda a brida, vim para o "Três de Espadas"...
Durante alguns instantes os dois homens ficaram cara a cara; uma expressão de raiva profunda contraía a fisionomia do aventureiro.
- É incrível! murmurou num fôlego.
- Mais um copo, "boss"! Parece que tenho na garganta um braseiro a arder!
com a mão válida, Tip Giggler serviu-se desta vez. Navarro tinha retomado o seu vaivém. As notícias que o seu acólito acabava de lhe trazer eram de tão excepcional
gravidade que não conseguia conter-se.
- Matthewson era o melhor do "gang"! disse, parando finalmente a dois passos do ferido que tinha esvaziado pela segunda vez o copo. Tu, tu és o meu melhor atirador!
Mas agora estás impossibilitado durante muito tempo de te meter em desordens! E isto justamente no momento em que eu tinha assuntos importantes a confiar-lhes!
Lewis Navarro fechou raivosamente a mão num gesto de impotência. O desaire que o seu rosto tinha agora sofrido equivalia para ele a uma verdadeira catástrofe.
- Vá lá a gente fiar-se em alguém! vociferou. São todos muito assustadiços!
Tip Giggler abaixou lentamente a cabeça:
- Os outros, quando a coisa anda, estão todos de acordo, mas se há empeno, viste-los... Desaparecem todos!
- com quem vamos contar agora?
O aventureiro assentou desde então o insucesso de Green Canon na coluna dos ganhos e perdas. À operação tinha falhado, lá nisso era ele bom jogador, mas o que o
desesperava era sentir-se privado do seu cúmplice mais precioso e do seu mais temido guarda-costas.
- Hélio, boss,! pediu Tip Giggler, espero que me não deixem ficar assim! Esta porcaria começa outra vez a sangrar!
O visitante mostrava a mão direita, as balas não tinham poupado os dedos que pendiam inertes.
- vou chamar o António, disse o Navarro. Ele tratará de ti.
Depois de tocar num botão de campainha, acrescentou :
- Depois de teres o penso feito, não deves demorar-te aqui, o Burgess é muito capaz de vir inquirir, com o seu "poss"! Não te esqueças de que os corpos de Matthewson
e dos outros dois foram abandonados e que o xerife terá que proceder às investigações do costume!
- Esteja descansado, "boss", nenhum dos três tinha qualquer papel comprometedor nas algibeiras!
- É possível, mas os teus ferimentos vêem-se! Não podes ficar no "Três de Espadas" com o teu braço ao peito. Bastava isso para atrair sobre nós as suspeitas e de
tomarem nota de nós!
Tip Giggler saiu. Dez minutos mais tarde, Lewis Navarro estava só no seu escritório e posto que a sua agitação tivesse acalmado um pouco, não podia deixar de medir
toda a gravidade da situação.
- Preciso de alguém, seja como for! disse consigo mesmo, alguém que seja capaz de substituir Matthewson!
Até ao fim da tarde, o aventureiro passou horas de receio e de angústia! Até agora a sorte tinha-o favorecido e ninguém conseguira arrancar-lhe a máscara, mas o
caso desastroso do Green Canon parecia de muito mau augúrio.
Antes da noite, cinco dos foragidos do "gang" foram por sua vez ter ao "Três de Espadas". Calados e abatidos, pediram logo para falar com o "boss".
A recepção que o Navarro fez aos malfeitores não foi bem o que se chama agradável. Tinha ao pé dele Tip Giggler que trazia o braço ao peito. António conseguira extrair
duas das balas que tinham ficado alojadas na carne, mas durante algumas semanas ainda, o "gunman" ver-se-ia reduzido à mais completa inactividade.
- Que vamos nós fazer agora, admitindo que tudo se passe pelo melhor e que o xerife não venha de um momento para o outro fazer-nos perguntas embaraçosas... observou,
no cúmulo da inquietação.
Os bandidos também se mostraram tão enfadados uns como os outros. Durante mais de uma hora, estiveram a discutir a propósito das graves consequências que poderiam
advir para eles da desastrosa aventura do Green Canon. E Lewis Navarro, que conhecia muito bem os homens, via bem que nenhum dos que ali estavam poderia pretender
a sucessão de Matthewson!
Eram perto de dez horas quando se deu um alerta. António, que estava à espreita junto do curral, preveniu da chegada de um homem a cavalo.
A inquietação do aventureiro e dos homens do seu "gang" apaziguou-se quando verificaram que se tratava de Den Cammage que desempenhava no "Três de Espadas" as funções
de contramestre, e que às vezes sabia aconselhar utilmente o seu "boss".
- Depressa, tragam cá o Cammage! berrou Lewis Navarro, quando soube do regresso do seu sequaz.
O contramestre não esperou pela repetição do convite. Chegou em grandes passadas, e quando se juntou aos outros no escritório do Navarro, apressou-se a manifestar-lhes
a sua surpresa:
-By Jove! exclamou. Estão com umas caras! Que é que lhes aconteceu?
- O quê, admirou-se Lewis Navarro, ainda se não sabe de nada em Paint Rock?
- Venho em linha recta do "Sunlight", esclareceu logo Den Cammage, um outro acontecimento é o assunto de todas as conversas.
- Então de que se trata? perguntou o "boss", incapaz de reprimir um gesto de impaciência.
- O Catamount está em Paint Rock!
Um raio que caísse na sala não teria certamente surpreendido tanto o grupo como esta notícia inesperada do contramestre.
- Hélio, boy, foste com certeza vítima de uma parecença! O Catamount foi para a Argentina, ouvi até dizer que...
- Talvez tenha ouvido dizer, insistiu Den Cammage
com força, o Catamount voltou para o Texas! Vi-o como eu estou a vê-lo a si agora! Tip Giggler fez um trejeito:
- Se desta vez puseram o ranger no nosso encalço, peço a minha demissão e trato de passar para o outro lado da fronteira! Será mais prudente!
Discutiu-se com animação de um e do outro lado da sala. Lewis Navarro reflectia sobre o caso de Green Canon e começava a pensar que a vinda do Catamount tinha estreita
relação com o seu recente insucesso, mas o contramestre tratou de o desenganar:
- Estejam todos descansados, declarou. O ranger não está senão de passagem em Paint Rock! Traz com ele um tipo que prendeu há pouco na Argentina.
O "boss" encolheu incrèdulamente os ombros:
- Enganas-te, Den, assegurou terminantemente. Se o ranger tivesse apanhado o seu homem na Argentina, não o viria trazer para as margens do Concho River, isso é tão
claro como água da fonte...
- Perdão, respondeu o contramestre. Trata-se de um tipo que em tempos andava cá pela região e com quem chegámos a ter certas relações.
E como Navarro esboçasse um gesto vago, Den Cammage acrescentou:
- Lembra-se de Joé Channel?
- Joê Channel?
Durante alguns instantes o "boss" franziu as sobrancelhas como se procurasse recordar-se:
- Joè Channel? repetiu... De facto é um nome que me não é estranho!
- Lembra-se. É o tipo que ficou comprometido no caso do Banco Farmer e Bresson!
- Farmer e Bresson! Agora já me recordo, exclamou o aventureiro cujo rosto se iluminou repentinamente...
E Tip Giggler, que desde há bocado se mantinha num prudente silêncio, opinou por sua vez:
- Hélio, boss! Há pouco estava à procura de um
homem para substituir Matthewson! Tenho a impressão de que Channel poderia ser the righí man in the right place!
- Não estás a falar a sério, comentou logo Lewis Navarro. Agora que Channel caiu nas mãos do Catamount...
- Podíamos dar-lhe ocasião a que fugisse!
Um murmúrio de aprovação acolheu esta proposta de Den Cammage, mas o "boss", um tanto ou quanto embaraçado, coçou a cabeça:
- Hélio, vocês não acham que estamos ainda numa situação bastante crítica para ficarmos também com o Catamount às costas? Quero estar bem seguro de mim, e ele é
um tipo que eu não quereria ter na minha peugada!
- Que importa, é preciso ter audácia, insistiu Tip Giggler... Ter Channel connosco é a única maneira de nos pormos de novo a navegar...
- Tanto mais que, objectou o contramestre, se deixar partir o Catamount e o seu prisioneiro para El Paso, perderá uma ocasião única.
- É preciso ser-se atrevido, apoiou Tip Giggler com convicção. Mais tarde teríamos pena!
Depois, debruçando-se sobre Lewis Navarro, que continuava a parecer hesitante, o ferido disse mais:
-- O caso não parece ser mais do que uma brincadeira para o "gang"! O Catamount tornará a partir só com o seu prisioneiro. Basta-nos segui-lo e escolhermos o momento
favorável para lhe preparar uma emboscada! Tão boa quanto possa parecer a fama do homem com os olhos abertos, já não valerá grande coisa quando lhe metermos uma
bala na nuca!
- Se admitirmos que o caso se não passa como o de Green Canon, não se pôde conter sem retorquir Lewis Navarro com um sorriso cheio de amargura. Se vocês todos se
mostrarem igualmente tão jeitosos...
Discutiram ainda durante mais de meia hora. Pouco a pouco os argumentos de Giggler e de Cammage
conseguiram desbastar as reticências do "boss". A passagem do Joê Channel era evidentemente uma ocasião que seria insensato desprezar.
- Descansem, afirmou o contramestre, eu tratarei do caso! O "boss" vai para Paint Rock a fim de desviar todas as suspeitas. Giggler tomará a precaução de se esconder,
o seu braço ao peito poderia fazê-lo ser muito facilmente notado. Nós vigiaremos o ranger e o seu prisioneiro e saberemos escolher o momento oportuno para agir e
libertar Channel depois que partirem de Paint Rock.
- Não temos um instante a perder, declarou então Lewis Navarro. vou à cidade!
- Tudo quanto pude saber, explicou então Den Cammage, é que eles passam ambos a noite em Paint Rock e que tornam a partir amanhã às primeiras horas!
- O. K.!
Tanto quanto o aventureiro se mostrava reservado um bocado antes, estava agora cheio de pressa. A impressão deplorável que nele provocara o cheque desastroso de
Green Canon, parecia ter-se dissipado, e passado o primeiro instante de surpresa quis ver qual seria a reacção de Burgess logo que lhe dessem a notícia.
Foi por isso que após ter ainda trocado algumas impressões com os seus prosélitos, Lewis Navarro montou a cavalo e, através da noite clara, correu a toda a brida
ao longo do Concho River.
Enquanto cavalgava, o aventureiro não esquecia as dificuldades que encontraria no seu caminho, mas recobrava a pouco e pouco toda a sua firmeza, muito seguro de
exercer a sua vingança e de voltar a conseguir a sorte que o abandonara por um momento.
v
CATAMOUNT TORNA A LEVAR O SEU HOMEM
Quando Lewis Navarro chegou a Paint Rock, reinava viva efervescência na cidade apesar da hora avançada da noite. O "Sunlighí" continuava brilhantemente iluminado,
uma vasta assistência agrupava-se na grande sala e à volta do balcão onde dominava um majestoso "bartender".
Navarro saltou rapidamente do cavalo que prendeu na argola, ao pé dos outros que já de há muito ali esperavam. Barulho de vozes e de pragas abafavam quase todos
os sons de um piano mecânico.
Ao primeiro golpe de vista, o aventureiro notou que ninguém se dedicava à dança nessa noite! Às "dancing-girls" do estabelecimento esperavam lá ao fundo que qualquer
cavalheiro tivesse a bondade de se apresentar, outras fumavam para matar o tempo, e outras ainda compunham a falta de ordem dos seus vestidos lantejoulados.
Logo que Navarro subiu os poucos degraus que permitiam transpor a entrada principal do "Sunlight", ouviu chamar daqui e de acolá:
- Olá, Navarro!
-Já sabes da novidade?
- É inconcebível! É escandaloso!
- Já não temos defensores!
Primeiro, o aventureiro supôs que fosse a passagem de Catamount e do seu prisioneiro que provocasse tal agitação, mas em breve teve a certeza quando um
dos seus vizinhos mais próximos, o "ranchman" Brunnel, agarrando-o pela manga lhe disse:
- Atacaram outra vez o carro do National Bank... Mas desta vez levaram uma boa resposta no Green Canon! Foram forçados a safar-se, de mãos vazias e deixando três
dos seus no local!
- Puderam identificar esses miseráveis? apressou-se Navarro a perguntar.
- Os corpos estão em casa do Burgess, respondeu logo Brunnel. O xerife está a caminho de proceder às investigações necessárias...
Lewis Navarro esboçou um sorriso irónico:
- Ficarei muito admirado se ele chegar a qualquer resultado! Há um certo tempo que o Burgess não é muito favorecido pela sorte! Duvido que ele possa conseguir um
êxito nas próximas eleições!
Murmúrios de aprovação acolheram estas palavras, pois desde que o misterioso "gang" prosseguia na série criminosa dos seus feitos na região do Concho River, o xerife
continuava impotente para aniquilar a ameaça que pesava sobre toda a região, e por esse facto não lhe poupavam as censuras.
À volta do balcão, do qual agora Lewis Navarro se aproximava, todos faziam o possível por emitirem a sua opinião.
- Quanto mais penso nisto, dizia um, mais me convenço de que o chefe do bando deve ser de cá do sítio!
- É preciso fazer o possível por o desmascarar!
- Burgess não tem a envergadura necessária para resolver este caso, é um homem valente, muito bom para enfrentar "outlaws" e "rustlers", mas desta vez estamos na
presença de malfeitores de uma outra espécie!
E alguém opinou logo a seguir:
- By Jove! Se o Catamount quisesse encarregar-se de tomar este assunto em mãos!
- Ah! O Catamount?
- Está neste momento em casa do Burgess, com o prisioneiro que vai levar para El Paso...
- Sim, mas amanhã, logo de manhãzinha, deixa-nos!
- Era preciso convencê-lo, fazê-lo compreender...
Lewis Navarro não dizia nada nesse momento, contentando-se em ouvir as opiniões que se trocavam à sua volta, mas endireitou-se quando Brunnel, poisando-lhe a mão
no ombro, lhe disse bruscamente:
- Hélio, Navarro, está em boas relações com o Burgess?
- Meu Deus, vemo-nos bastantes vezes, afirmou o aventureiro.
- Então, porque não vai já perguntar ao xerife se não seria possível que o Catamount se ocupasse do caso?
De começo, Navarro tentou esquivar-se:
- Perdão, objectou, você esquece-se de que o Catamount não recebe ordens senão dos seus superiores, nestas circunstâncias, do coronel Morley! E, portanto, tudo quanto
eu diga, ou nada...
- Que importa! É preciso tentar!
- Quem não arrisca não petisca!
- O Navarro está absolutamente indicado para apresentar por si próprio esse pedido verbal!
- Que vá a casa do Burgess em nome de todos! E depois veremos!
Agora, todos os olhares convergiam sobre o aventureiro. Durante alguns segundos ainda, teve as suas hesitações, mas não lhe desagradava sentir-se deste modo apreciado
por todos os seus vizinhos, e além disso compreendia muito bem que fazendo assim, poderia mais facilmente afastar as suspeitas e despistar as investigações da polícia.
- Pois bem, seja! concordou finalmente. vou a casa do Burgess. Falarei com o ranger e tentarei convencê-lo!
- Ora até que enfim!
- Todavia, preveniu o aventureiro, não lhes prometo que consiga! A aceitação de parte do Catamount é completamente independente da minha vontade!
Lewis Navarro saiu do "Sunlight" acompanhado pelos bons votos de todos os presentes. com um passo rápido, atravessou a praça e foi a casa do Burgess, diante da qual
estacionava um certo número de curiosos. Três "deputies", postados diante da porta, esforçavam-se por afastar os importunos.
- Hélio, deixem-me passar! gritou o Navarro. Alguns desviaram-se, mas logo que o aventureiro
chegou ao pé da porta, uma voz brusca intimou-lhe:
- Aqui não se passa!
A máscara de Navarro congestionou-se e contraiu-se quando reconheceu aquele que acabava de lhe dar essa ordem expressa. Era precisamente o Bug Dauntless!
Desde o incidente que se dera no comboio de Abilene, na presença de Rosalinda Powell, os dois homens não tinham voltado a encontrar-se. Durante alguns instantes
o aventureiro empertigou-se, com os punhos cerrados, ameaçador.
- As instruções são formais! repetiu Bug Dauntless. Aqui não se passa!
- Quero falar ao xerife! insistiu o Navarro com uma voz que a cólera fazia rouca.
- Falará mais tarde ao xerife! Neste momento ele tem outras coisas em que pensar!..
- Diga-lhe que é urgente que eu lhe fale!
E como o "deputy" continuava sempre na negativa, o recém-chegado teimou:
- É a propósito do caso de Green Canon!
Bug Dauntless hesitou ainda durante alguns instantes, mas depois, fazendo sinal a um dos seus colegas para tomar o seu lugar, entrou na casa do Burgess. Dois minutos
mais tarde voltou a aparecer.
- O xerife está de acordo em o receber, declarou, não sem reticências. Mas não pode conceder-lhe mais do que cinco minutos!
- O. K.! Isso basta perfeitamente!
Lewis Navarro fazia grande esforço para se dominar, sentia um desejo feroz de se precipitar contra o "deputy" e de lhe fazer pagar a humilhação que ele lhe tinha
imposto recentemente, mas compreendeu que seria perigoso envenenar as coisas, justamente no momento em que se preparava para desempenhar um papel delicado junto
do representante da autoridade.
Quando o aventureiro penetrou no gabinete, deu logo com o Burgess. Sentado numa cadeira de braços, o xerife falava com um mocetão espadaúdo que, instalado em frente
dele, fumava tranquilamente um cigarro. Os seus olhos claros fixaram-se logo sobre o visitante e o Navarro percebeu que estava na presença do Catamount.
Desde há mais de meia hora, o ranger, chegado a Paint Rock à boquinha da noite, conversava com o Burgess. Tinha fechado o seu prisioneiro na cela vizinha e, depois
de ter comido uma refeição rápida, estudava a situação.
- Que é que tem a dizer-me, Navarro? interrogou o representante da autoridade. Acredita bem que não tenho um único instante para perder!
- Sei que o seu tempo é precioso, xerife, respondeu logo o visitante, mas insistiram de tal modo para que viesse ter consigo que tive de me decidir ao risco de o
importunar.
- Estou a ouvi-lo! Burgess evitava indicar uma cadeira ao aventureiro, fazendo-lhe compreender desse modo que desejava que a entrevista fosse muito curta. Sem parecer
de modo algum melindrado, Lewis Navarro não esperou mais tempo para expor os motivos da sua presença:
- À maior parte da população, sabendo da passagem de Catamount, manifesta o premente desejo de que se encarregue o famoso ranger do trabalho de desmascarar o "gang"
que ensanguenta a nossa região. com ele, o êxito não merece dúvida! Dentro de alguns dias,
porá a situação a claro e dará aos cidadãos de Paint Rock e das redondezas, uma sensação de segurança à qual têm todo o direito!
Enquanto pronunciava estas palavras, o aventureiro observava disfarçadamente o ranger, mas não parecia que o seu pedido tivesse despertado nele o menor interesse.
com a cabeça ligeiramente flectida para trás, Catamount olhava o tecto para o qual soprava, através dos seus lábios delgados, uma espiral de fumo.
Burgess esperou alguns instantes antes de responder. Depois, após ter tossido um pouco, declarou:
- Acredite, Navarro, não estive à espera da sua visita para fazer ao Catamount o pedido que o interessa! Apesar de todos os meus esforços, não consegui convencê-lo!
Ele próprio apontar-lhe-á os motivos da sua recusa! Se bem que eles sejam perfeitamente aceitáveis, continuo a declarar-lhe a nossa decepção!
O homem dos olhos claros decidiu-se enfim a tomar a palavra, e o seu olhar baixou-se para o visitante:
-- Recebi a incumbência de levar um perigoso cadastrado a El Paso. Enquanto Channel não for entregue às autoridades competentes, não posso admitir ocupar-me de outra
coisa! Tanto mais ainda que a autorização do meu chefe se torna absolutamente indispensável! E temos tanto que fazer nas margens do Rio Grande!
- Todavia, insistiu o Lewis Navarro, se soubesse a popularidade de que goza em toda a região!
- Na verdade, semelhante benevolência lisonjeia-me, tanto mais que não mereço tais elogios... Creia que não tenho mérito algum em cumprir com o meu dever...
O aventureiro dirigiu a Burgess um olhar no qual se lia uma profunda decepção. O xerife encolheu os ombros.
- Eu bem o tinha prevenido de que não havia nada a fazer, Navarro! disse.
- Amanhã, às primeiras horas, indicou com precisão e simplicidade o Catamount, tomo o caminho do Concho River com o meu prisioneiro...
- Que pena!
Lewis Navarro ia de novo desfazer-se em mágoas, quando Burgess o deteve com um gesto:
- Hélio, Navarro, disse ele. vou aproveitar da sua presença aqui em casa para lhe pedir um serviço!
- Um serviço? repetiu intrigado o aventureiro.
- Talvez me possa dizer a identidade dos três malfeitores de quem acabam de trazer de Green Canon as carcaças!
Ao pronunciar estas palavras, o xerife levantou-se. Impassível, o Catamount continuava a fumar Junto da secretária cheia de papelada.
- Venha comigo, indicou Burgess.
- Deus queira que lhe possa ser útil, murmurou o visitante.
Arrastando os pés, acertou o passo pelo do representante da autoridade. Juntos, seguiram pelo corredor ao lado. Passaram diante da cela barrada por sólidas trancas,
quando o aventureiro avistou uma figura imóvel. Um homem estava ali encolhido, na cama dobradiça.
- Channel? perguntou então Navarro, inclinando-se para o ouvido do xerife.
- O prisioneiro do Catamount! contentou-se Burgess em responder.
Lewis Navarro deteve-se durante alguns instantes, e foi sem resultado que tentou descobrir as feições do preso. Este estava imóvel na cama, a cara escondida entre
as mãos.
Mas o xerife levou o visitante para o quarto próximo, e que era uma espécie de cela que servia ao mesmo tempo de arrecadação e de casa mortuária. Três figuras imóveis
estavam estendidas debaixo de um cobertor, um cheiro enjoativo a cadáver começava a flutuar na atmosfera.
- Aproxime-se, disse então o xerife. Estendendo a mão, levantou o cobertor, descobrindo
os bustos dos mortos que tinham sido trazidos de Green Canon. E logo a seguir, Navarro reconheceu as
máscaras crispadas do Matthewson e dos seus dois cúmplices. Os três bandidos tinham sido completamente despojados da sua roupa.
- Encontrou já alguma vez estes homens? interrogou Burgess detendo o olhar sobre o seu vizinho.
O interpelado esboçou um gesto vago.
- Nunca vi estes malandrins, afirmou com acentuação.
Depois, inclinando-se para o seu interlocutor:
- Admira-me que não tenha encontrado neles qualquer papel que permita estabelecer a sua identidade!
- Não tinham nada nas algibeiras, retorquiu o representante da autoridade, apenas notas muito engorduradas, cachimbos e bolsas de tabaco. O primeiro tinha além disso
um baralho de cartas!
- E ninguém em Paint Rock lhe pôde dar informações?
- Absolutamente ninguém! E no fim de contas muita gente desfilou junto dos cadáveres! O que levaria a crer que estes tipos deviam ser estranhos a estes sítios.
Lewis Navarro teve muita dificuldade em disfarçar a íntima satisfação que sentia. Cuidadoso em evitar complicações, sabia escolher os indivíduos do seu "gang", tomando
muito cuidado em que não fossem a Paint Rock. Matthewson e os seus adeptos esperavam sempre entre bastidores que o "boss" lhes desse ordens em conformidade. Neste
momento, o aventureiro felicitava-se por ter tomado tais precauções, e pela expressão atónita do xerife, compreendeu que tinha conseguido o seu fim.
- Perguntarei aos meus homens, declarou, mas duvido que eles possam dar respostas satisfatórias!
Alteando então o tom de voz, e afectando a mais completa segurança:
- Estou espantado, observa, de que se não tenha podido descobrir a menor pista.
- By Jove, replicou logo Burgess, conhece tão bem como eu a região de Green Canon! Mesmo olhando
com uma lupa, não se poderia descobrir um vestígio no terreno rochoso! Os melhores investigadores de pistas perder-se-iam ali! Tudo quanto podemos dizer é que os
bandidos se dispersaram como um bando de pardais, logo que viram que a partida estava perdida... É claro que se devem ter reunido depois, em qualquer sítio das colinas!
Em todo o caso, a lição severa que lhes foi infligida pela primeira vez permite pensar que não voltarão a repetir tão cedo!
Falando assim, tinham chegado de novo ao corredor e tornado a passar diante da cela onde estava Joê Channel fechado. Lewis Navarro, deitando ainda um olhar disfarçadamente,
verificou que o prisioneiro continuava ainda na mesma posição, parecendo absolutamente insensível a tudo quanto se passava na sua vizinhança mais próxima.
No escritório, também Catamount continuava no mesmo lugar quando os dois homens ali entraram. Fora, uma voz brusca incitava os curiosos a afastarem-se. Navarro reconheceu
que se tratava de Bug Dauntless. Nos seus olhos passou uma sombra. Durante alguns instantes, esteve quase a queixar-se ao xerife da atitude brutal e insolente do
seu assistente. Todavia, desejoso de evitar complicações, preferiu ainda contemporizar. A conta que o "deputy" tinha a pagar-lhe, ajustá-la-iam entre eles!
O aventureiro fez a si próprio a promessa de que Bug Dauntless não perderia nada pela espera!
- Quer dormir aqui mesmo? perguntou o xerife, dirigindo-se ao ranger. Armarei uma cama de campanha no escritório.
- com todo o prazer, concordou logo o homem dos olhos claros. Prefiro ficar na proximidade imediata do meu prisioneiro!
- É um tipo perigoso?, decidiu-se o aventureiro a perguntar.
Catamount hesitou durante alguns instantes antes
de responder. Depois, após ter soprado uma nova espiral de fumo para o tecto:
- É um tipo perigosíssimo! assegurou. Tive de facto grande dificuldade em chegar até junto dele.
- Ouvi dizer que foi até aos Patagónios! insistiu Navarro, até mesmo ao fim das pampas!
- Apanhei-o na Argentina! contentou-se o ranger em dizer.
- Houve outra vez um curto silêncio, e o aventureiro voltou à carga:
- Admira-me que não o tenha logo levado para El Paso!
O ranger teve um gesto vago.
- Basta-lhe que saiba que era indispensável que passássemos pelo Concho River! Depois de atingir El Paso tinha de proceder a uma acareação!
Lewis Navarro percebeu que era inútil insistir. com um olhar rápido, o xerife fez-lhe entender que começava a ser importuno.
- com grande pena minha, Navarro, sou forçado a despedir-me de si... Os meus minutos são preciosos...
com a mão, o representante da autoridade designou a porta, o seu visitante inclinou ligeiramente a cabeça na direcção de Catamount que lhe respondeu com frieza,
e chegou de novo ao limiar da porta.
Bug Dauntless continuava ali com os seus camaradas, e quando o Navarro voltou a aparecer, trocaram outra vez um olhar.
Então o aventureiro não se pôde conter, e debruçando-se para o "deputy":
- Não me esqueci daquele caso do comboio! disse entre dentes.
A resposta não se fez esperar:
- Nem eu! replicou Bug em voz clara. Quando quiser, estou às suas ordens!
Em seguida, afagando com a mão a coronha do Cout que emergia do estojo de couro fulvo:
- E tenho aqui, acrescentou, argumentos pesados
que muitas vezes me permitiram convencer os interlocutores mais refilões.
A discussão ficou por ali, separaram-se bruscamente, não sem que o aventureiro tivesse dirigido previamente ao seu adversário um olhar cheio de ameaças, mas o rapaz
não pareceu ter ficado amedrontado, continuou a afastar os grupos de curiosos que se comprimiam, cada vez em maior número, apesar da hora tardia, diante da residência
do xerife.
Logo que Lewis Navarro se desembaraçou dos grupos, ouviu chamar. Esperavam com impaciência o resultado da sua entrevista com o xerife.
- Então, gritou-lhe Brunnel. Esteve com o Catamount?
Mais perguntas vieram de um lado e do outro. Encolhendo os ombros, o interpelado contentou-se com abanar negativamente a cabeça.
--Não há nada feito! resmungou com raiva.
- Ora essa, porquê?
- Porque este maldito ranger não quer ouvir nada! Não pensa senão em levar o seu prisioneiro! Daqui até lá os bandidos terão todos tempo bastante para se porem em
lugar seguro!
Eram agora mais de cinquenta à volta do aventureiro, fazendo o possível por obterem pormenores da sua entrevista com o ranger.
- Temos que nos contentar com o Burgess até nova ordem! sentenciou. É pena, o Catamount tinha uma boa ocasião para se salientar!
Brunnel e alguns dos seus amigos queriam detê-lo e levá-lo para o "Sunlight", mas esquivou-se rapidamente :
- É impossível, tenho que voltar para o "Três de Espadas"! Já é tão tarde!
Lewis Navarro dirigiu-se para o sítio onde tinha amarrado o cavalo, depois de ter apertado algumas das mãos que lhe estendiam, enfiou rapidamente os estribos, e
esporeando o cavalo foi a toda a brida através
da Rua Grande, onde continuava a reinar viva efervescência.
Durante mais de dez minutos, o aventureiro fez andar o cavalo a todo o galope. Recordava as coisas que tinha conseguido saber durante a sua passagem em Paint Rock.
Os ligeiros receios que podia ter por causa do caso do Green Canon dissipavam-se rapidamente. O ataque falhara, mas o insucesso não arrastava consigo as consequências
que era lógico temer! O mistério subsistia inteiramente sobre a personalidade do chefe do "gang".
Agora que um tão grande resultado tinha sido conseguido, era preciso ligar-lhe a acção, que consistiria em libertar Channel e pôr Catamount em estado de nunca mais
poder prejudicar!
A recusa do ranger favorecia os projectos do aventureiro. Este teria ficado certamente embaraçado se o homem dos olhos claros tivesse aceitado a proposta que lhe
tinha feito! Mas doravante podia contar no seu activo com um excelente álibi. E sabia que o Catamount seguiria o curso do Concho River no começo da madrugada! Portanto,
Lewis Navarro não tinha um instante a perder, ia regressar ao "Três de Espadas", combinar tudo com Den Cammage e os outros, e tratar-se-ia de armar uma ratoeira
ao ranger. Uma bala bem dirigida permitiria então acabar de vez com este perigoso adversário e pôr Joê Channel em liberdade, o qual substituiria Matthewson com vantagem.
- Desta vez temos todos os trunfos na mão, disse consigo o aventureiro, certo do êxito da sua tentativa audaciosa.
VI
A PISTA DO CONCHO RIVER
- Atenção! Espalhem-se... Deixem os cavalos escondidos por detrás desse bosque de salgueiros!
Den Cammage tinha-se apeado. À sua roda, António e os outros cavaleiros do "gang", esperavam debruçados sobre os selins.
Um nevoeiro bastante denso subia do rio, do qual se ouvia o murmúrio regular. A noite estava escura, mas o contramestre do "Três de Espadas" e os seus apaniguados
conheciam bastante bem a região para poderem deslocar-se nela quase de olhos fechados.
Todos sabiam que iam jogar uma partida séria. Desde o seu regresso ao rancho, Lewis Navarro tinha-os logo posto ao corrente das suas intenções.
No final de contas a operação apresentava todas as probabilidades de êxito; tratava-se simplesmente de fazer o ranger cair numa armadilha. Escondidos por entre os
juncos ou por detrás dos salgueiros mais novos que bordavam em grande número o Concho River, poderiam emboscar-se, tomar o Catamount como alvo e abatê-lo antes mesmo
que ele pudesse dar pela presença deles.
Já no horizonte os primeiros alvores da madrugada faziam empalidecer o céu, uma frescura penetrante contrastava com o calor que não tinha deixado de dominar durante
todo o dia anterior.
- Apear! ordenou Cammage.
Obedeceram mas chocaram uns com os outros, pois distinguiam-se com dificuldade e escaparam-lhes algumas
pragas, rapidamente reprimidas quando a voz do contramestre se fez de novo ouvir.
- Silêncio!
António, que viera colocar-se à direita de Den Cammage, não pôde deixar de comentar:
- Porquê, a estas horas ainda ele não saiu de Paint Rock! Temos muito tempo diante de nós!
- Não faz mal! O "boss" recomendou a maior prudência!
Depois, alteando a voz, o contramestre acrescentou:
- Sabem que receberão cada um de vocês boa massa se a coisa der resultado, portanto têm toda a vantagem em se mostrarem prudentes e em terem cautela...
Tal conselho parecia supérfluo. Todos sabiam que o "boss" pagava bem quando a tarefa resultava!
- Filippi ficará ao pé dos cavalos, assentou Den Cammage... Quanto aos outros, colocar-se-ão em semicírculo à volta do ranger. Se por pouca sorte o primeiro ataque
falhar, poderemos desse modo metê-lo num beco sem saída, obrigando-o a aproximar-se do rio, cortando-lhe toda e qualquer retirada!
- Mas se ele se escapar? objectou uma voz recalcitrante.
- Não se pode escapar, afiançou o contramestre do "Três de Espadas", nós seremos mais rápidos! Não se esqueçam, além disso, de que nós poderemos beneficiar da surpresa!
E como alguns dos que se comprimiam à volta dele pareciam manifestar ainda certa hesitação, Den Cammage assegurou:
- É claro, não escondo que o Catamount é um adversário de envergadura e um atirador de primeira categoria, mas não lhe daremos tempo sequer para tocar que seja no
seu Colt... Logo que fique em estado de já não fazer mal, trataremos então do prisioneiro e levá-lo-emos ao "boss"!
Cortando com qualquer outra objecção, o contramestre terminou:
- E agora, vamos ao trabalho! Que cada um vá ocupar o posto que o "boss" lhe destinou antes da nossa partida do rancho. Evite-se, é claro, passar no caminho por
onde ele deve vir, para que não desconfie.
Depois da sua saída do "Três de Espadas", tinham tomado por um atalho, evitando meter-se pela mesma via por onde seguiria o ranger.
Den Cammage e António esconderam-se por trás da fila dos salgueiros novos, a trezentos passos do sítio em que Filippi esperava com os cavalos. Agachados lado a lado,
tagarelavam em voz baixa, praguejando contra o nevoeiro que demorava em desaparecer.
- Maldita névoa! amaldiçoou o contramestre. Não se vê nada a quinze passos!
- Carai... objectou António. Teremos mais probabilidades de o apanhar de surpresa! A toda a volta a erva está saturada de água!
- Mas os outros? Não se vêem os outros! insistiu Den Cammage.
- Está mesmo certo... Isso prova que estão bem escondidos!
Amanhecia o dia lentamente, os dois malandrins não avistavam o rio de que ouviam o marulhar. A sua roupa estava toda encharcada pelo orvalho da manhã.
Meia hora passou e pareceu interminável a todo o grupo. Um tímido raio de sol começou a infiltrar-se através do nevoeiro.
- E nem vivalma! resmungou o contramestre. Oxalá que não tenha mudado de ideias! Estávamos bem arranjados!
- Não há esse perigo! Se ele toma o caminho do Concho River, passa aqui a poucos passos de nós! Esteja sossegado, o "boss" calculou bem a coisa!
- Atenção! murmurou António com uma voz que mal se percebia. Aí estão!
Ansiosos, imobilizaram-se, retendo a respiração, comprimindo as pancadas precipitadas dos seus corações.
Sem se preocupar com a erva que o molhava, Den Cammage ajoelhou-se e pôs o ouvido no chão. Escutou o martelamento regular dos cascos de dois cavalos.
- São eles! contentou-se em declarar baixinho.
- Todos, ao mesmo tempo, levaram as mãos às coronhas dos seus Colt, olhando com insistência na direcção de Paint Rock, donde devia vir o homem dos olhos claros.
Tudo à volta era silêncio, a bruma continuava a dissipar-se lentamente. O murmúrio da água prosseguia, regular, monótono.
E enquanto todo o grupo esperava à espreita, Catamount continuava a avançar pelo caminho fora.
Como tinha avisado, o ranger saíra de Paint Rock ao amanhecer, tinha-se despedido de Burgess e dos seus ajudantes, e montado o seu fiel Mezquita, seguido pelo prisioneiro,
enfiou pelo caminho do regresso.
Apesar da hora matinal, uma cinquentena de curiosos estacionava ainda diante da casa do xerife. Estavam todos impacientes por verem o Catamount e o seu prisioneiro.
Viram o xerife despedir-se do homem dos olhos claros e depois, resolutamente, o ranger encaminhar-se para os dois cavalos que um "deputy" tinha há pouco arreado
e selado.
- Traga o Channel! mandou então o Catamount. Os curiosos puseram-se em bicos de pés para verem
de mais perto o perigoso cadastrado que o homem dos olhos claros ia levar com ele. Viram-no avançar com passo incerto, desembaraçando-se com dificuldade do torpor
que uma imobilização demasiado prolongada lhe tinha trazido.
Joê Channel parecia completamente indiferente, o rosto bronzeado enquadrado por uma curta barba castanha, tinha algemas nos pulsos e um chapéu de feltro de abas
largas pendia, ligeiramente caído sobre os olhos. Deixava-se levar sem resistência e não hesitou ao enfiar os estribos e ao montar a cavalo.
O Catamount estava já montado no selim e estendendo o braço, trocou com o Burgess um rápido aperto de mão, fazendo aos que estavam à volta um sinal amigo. Deu um
pequeno estalido com a língua, logo a seguir o cavalo montado pelo prisioneiro foi pôr-se diante do Mezquita. Um atrás do outro, os dois cavaleiros abalaram, dirigindo-se
depressa para o caminho do Concho River que começava mesmo ao sair-se da localidade e que seguia paralelamente ao rio, na maior parte do seu curso.
- Felicidades! gritou-lhe Burgess.
O ranger fez um último gesto de mão a dizer adeus. Imóvel ao pé do xerife, Bug Dauntless via-o afastar-se.
- É, na verdade, lamentável que ele não queira ocupar-se dos nossos casos, opinou o "deputy" voltando-se para o seu chefe.
Burgess sacudiu lentamente a cabeça:
- Os rangers têm bastante em que se ocupar no seu sector, "my boy"! objectou o xerife. Se tivessem que se juntar a nós, não chegariam para as suas obrigações!
- Que pena! concluiu Bug.
Mas como os curiosos eram cada vez mais e alguns deles arriscavam perguntas indiscretas, os dois homens apressaram-se a entrar em casa.
Durante este tempo, o ranger e o seu prisioneiro prosseguiam na sua cavalgada. Não trocavam palavra, mas ao fim de um momento, o Catamount fez parar os dois cavalos,
puxou de um cigarro da cigarreira, pô-lo ele próprio na boca do prisioneiro que lhe agradeceu com um rápido piscar de olhos.
Quando o homem dos olhos claros se serviu por sua vez e acendeu os dois cigarros, a cavalgada retomou o mesmo passo. Joê Channel continuava adiante do seu guarda
e seguia tranquilamente sem que nada na sua atitude revelasse a menor intenção de tentar fugir. Por vezes endireitava-se um pouco no selim, passeava um olhar circulatório
sobre o cenário enevoado
e logo a seguir inclinava de novo a cabeça, acabando de fumar o seu cigarro.
O Sol subia lentamente no horizonte, aparecia agora, coado pelo nevoeiro, como uma grande bola branca, o calor dos seus raios começava a fazer desfiar-se o véu de
bruma persistente. Às vezes, os ramos dos arbustos e dos pequenos salgueiros batiam nos dois cavaleiros e borrifavam-nos à sua passagem. Impassíveis, continuavam
a avançar.
De repente, o ranger empinou-se, um clarão fez-lhe piscar os olhos. O Mezquita passou a andar mais devagar, arrebitando as orelhas.
- Hélio! Que é isso, meu velho camarada?
O prisioneiro voltou-se em cima do selim. Pela primeira vez desde que partira de Paint Rock saía da sua apatia.
- Atenção! murmurou simplesmente o Catamount.
Estendendo a mão, o ranger pegou no seu Coí. O alazão mostrou-se ainda hesitante, e essa atitude inquieta revelava sempre a iminência de um perigo.
- Go... teimou, no entanto,o homem dos olhos claros.
Joê Channel bateu com os calcanhares nos flancos do seu corcel, durante alguns instantes os dois cavalos aceleraram o andamento, e só com dificuldade se avistava
agora o curso do Concho River que corria para lá da linha dos salgueiros.
O Catamount continuava ainda alarmado. Parecia aspirar o ar húmido com insistência. Na frescura da manhã, um cheiro conhecido chegava-lhe agora às narinas, o cheiro
a cavalos! com toda a evidência, havia cavalos parados na proximidade da pista de trânsito.
Passaram ainda alguns segundos, os dois cavaleiros continuaram a avançar um atrás do outro. Joé Channel, por sua vez, apurava ansiosamente o ouvido. Tinha percebido
quando se voltou, na atitude do seu guarda, que se passava alguma coisa de anormal.
Mas o silêncio continuava e apenas se ouvia o murmúrio regular do Concho River dominado pelo martelamento surdo dos cascos dos cavalos sobre a erva molhada.
Repentinamente, perturbando a quietação matinal, dois tiros soaram, e o tronco de um pequeno salgueiro, cortado por uma bala, caiu junto do Catamount.
Espantado pelas duas detonações, o Mezquita empinou-se. O seu cavaleiro nada fez para o deter. Em poucos segundos largou as rédeas e caiu pesadamente no solo, o
corpo ligeiramente dobrado sobre si mesmo!..
Logo a seguir ouviram-se berros, e surgiram sombras a pouca distância da pista. Den Cammage e os seus homens tinham visto cair o homem dos olhos claros e correram
para junto dele. António andou directamente para o prisioneiro fazendo grandes gestos. Joê Channel tinha parado o seu cavalo. Parecia querer voltar para trás, quando
o António lhe gritou:
- Vimos pôr-te em liberdade, amigo!
- Somos amigos! insistiu Cammage parando a dois passos do sítio onde o Catamount tinha caído.
Então o prisioneiro deixou-se da hesitação que manifestava desde que se produziu este ataque tão repentino quanto inesperado. Saltando desembaraçadamente abaixo
do selim, sem parecer de modo algum incomodado com as pulseiras de aço que lhe prendiam os punhos, foi direito ao ranger, repelindo o contramestre do "Três de Espadas"
que se dispunha a apanhar o Colt que estava sobre a erva e que Catamount tinha deixado escapar durante a queda:
- Depressa! gritou. Acabemos primeiro com este
Den Cammage ia apontar o seu revólver contra o ranger, o prisioneiro adiantou-se, e por três vezes, apontando a arma contra o desgraçado caído inerte, disparou.
- Carai... escarneceu o António, se não tem agora a sua conta!
- Esteja descansado, respondeu logo Joè Channel, daqui em diante já não há que recear!
Ajoelhando-se rapidamente, colou o seu ouvido contra o corpo sempre inerte:
- O coração já não bate! certificou. Está morto!
Depois, buscando na algibeira da sua vítima, procurou um molho de chaves. Logo que o encontrou, voltou-se para Den Cammage que esperava, espantado de que a coisa
se tivesse passado tão depressa.
- Tira-me estas malditas pulseiras! pediu o prisioneiro. Há semanas que as trago.
O contramestre do "Três de Espadas" satisfez logo o desejo do seu interlocutor, ao fim de pouco tempo ouviu-se um estalido seco, as algemas abriram-se e caíram em
cima da erva.
- Enfim, livre!
Joê Channel não se dava ao trabalho de dominar a sua alegria; Cammage e o António que tinha vindo juntar-se aos outros sequazes de Lewis Navarro, dispunham-se a
ajudá-lo, mas ele repeliu-os com um gesto:
- Deixem-me isso para mim! É a mim que cabe acabar uma vez por todas com este canalha!
Dizendo estas palavras, o prisioneiro mimoseou com um pontapé o corpo inerte da sua vítima. Enfim, baixando-se, pegou-lhe pelas axilas e levou-o para o rio ali ao
pé.
Atónitos, Den Cammage e os seus companheiros esperavam, viram a silhueta de Channel que se curvava, carregando o corpo do Catamount às costas, depois ouviram o barulho
de um mergulho. Instantes mais tarde, o prisioneiro voltou a aparecer:
-- Agora, declarou com um sorriso, a corrente que o leve para o Diabo.
- Podíamos ter-lhe dado uma ajuda, protestou o António.
Mas Joê Channel replicou, sarcástico:
- Tínhamos umas velhas contas a saldar, o ranger
e eu! Queria ter bem a certeza de que doravante não teria mais nada a recear deste animal!
--By Jove! exclamou o contramestre do "Três de Espadas", você é decididamente expedito!
- É que tenho muito tempo a recuperar. Enxugando com a dobra da manga o rosto a escorrer
de suor, Joé Channel mudou de assunto e perguntou:
- Não... Não contava com esta ajuda! Até agora ninguém se importou comigo! Porque é que atacaram Catamount?
- Foi o "boss" que mandou, redarguiu em poucas palavras Den Cammage.
- O "boss"? Quem é? Deve ter um nome, penso eu!
- Ele próprio dir-lhe-á, se achar que deve, respondeu o contramestre do "Três de Espadas". Basta-lhe que saiba que nós tínhamos por missão libertá-lo a si, e pô-lo
livre do ranger!
- Vejo que cumpriram muito bem a sua missão, my boys, reconheceu o antigo prisioneiro do ranger.
- Digamos francamente que você facilitou muito o nosso ataque! E dizermos nós que isto seria o diabo! É que o Catamount não nos parecia um adversário vulgar! A sua
fama...
- A fama não o impediu de poder morrer como os outros, troçou Joê Channel. Agora, aí está ele a caminho dos anjinhos. E já não temos que recear dele!
Todo o grupo rodeava o fugitivo a quem olhavam furtivamente, como a um animal curioso. O drama da desaparição do Catamount tinha-se representado tão depressa que
todos os prosélitos de Lewis Navarro estavam na ideia de que tudo isto pertencia ao reino dos sonhos.
António veio finalmente romper o silêncio que ameaçava prolongar-se:
- Pronto, propôs. Vamos ter com o Filippi e com os cavalos! O "boss" deve estar inquieto!
- Vão levar-me ao vosso "boss"? perguntou Joê Channel.
- O. K.! Devo-lhe uma visitinha de agradecimento, visto que tomou a iniciativa da minha libertação!
O antigo prisioneiro tomou pelas rédeas o cavalo em que montava pouco antes, e como Den Cammage fizesse menção de ir apanhar o Mezquita que tinha ido parar uns trinta
passos mais longe:
- É inútil incomodarmo-nos com o alazão! aconselhou Joê Channel, ele denunciar-nos-ia! Mais vale abandoná-lo!
- É sem dúvida o melhor que temos a fazer, aprovou o contramestre do "Três de Espadas".
Agora, o sol tinha dissipado por completo os últimos restos de neblina, e sem esperar mais, o prisioneiro libertado acertou o passo com Den Cammage e os seus homens,
e três minutos mais tarde encontraram Filippi que começava a achar o tempo muito demorado ao pé dos animais.
- Montar! comandou o contramestre.
Em alguns instantes puseram-se em andamento e não tardaram a desaparecer. Agora só ficava, na margem, o Mezquita que relinchava queixosamente, chamando pelo seu
patrão desaparecido.
VII
A PESCAR TRUTAS
Já há uns momentos que o Catamount se deixava levar pela corrente do Concho River. Por várias vezes, o corpo voltou-se sobre si próprio, mas logo que passou uma
curva do rio, sabendo que já não podia ser visto por Den Cammage e seus adeptos, o ranger pôs-se em posição e começou a nadar vigorosamente.
- Excelente ideia a que tive de carregar os cartuchos do Colt com pólvora seca! disse consigo. Agora, e durante um tempo ainda impossível de determinar, eis-me morto,
e bem morto! Trata-se de empregar bem esse tempo!
O homem dos olhos claros parecia estar famoso, dominava sem grande dificuldade os redemoinhos, e depois procurou encontrar um lugar onde pudesse refugiar-se sem
despertar as suspeitas de um adversário eventual.
De um lado e do outro do Concho River, uma verdadeira floresta de juncos estendia-se agora, e foi por isso que, obliquando deliberadamente para a direita, Catamount
decidiu-se a retomar contacto com terra firme.
Ouviram-se então um bater de asas e pios desencontrados, emanados dos patos, de galinhas-dágua e de aves de vária espécie que estavam abrigadas na vegetação disseminada,
fugindo, assustadas, quando o nadador apareceu.
Durante um momento, o ranger teve que procurar uma passagem, o que foi difícil, porque os pés tocavam
no fundo lodoso, mas as ervas enrolavam-se-lhe perfidamente nos tornozelos, demorando também perfidamente o seu avanço até que teve que pegar na faca que ainda trazia
na cintura e cortar resolutamente as hastes verdes.
Enfim, após dez minutos de firmes esforços, Catamount chegou a uma enseadazita rodeada por pequenos salgueiros. A vegetação muito espessa podia permitir-lhe esconder-se
facilmente, e por isso não hesitou, agarrou-se a um caule que pendia ao alcance da mão, deu um pulo com o corpo e içou-se sobre o talude coberto de musgo.
- Ufe! suspirou. Já não é sem tempo! Primeiro estendeu-se, tinha pressa de se descontrair
um pouco, a roupa a escorrer água colava-se-lhe ao corpo, os cabelos compridos empapavam-se-lhe na testa. Sentia-se completamente impregnado de um cheiro enjoativo
a lodo e a chiqueiro.
Todavia, longe de parecer desconcertado pelo desaire que recebera e pelo ataque de que fora vítima, o homem dos olhos claros parecia completamente seguro de si e
durante uns instantes sorriu.
- Não podia pedir mais nem menos. Estes malandrins caíram na esparrela! Esperemos agora que o caso seja conduzido rapidamente!
Instintivamente, levou a mão à algibeira para pegar nos cigarros, mas escapou-lhe uma exclamação de irritação, os poucos cigarros que ainda tinha na cigarreira estavam
reduzidos a uma papa informe por causa da sua permanência prolongada na água.
Catamount gostava de fumar, por isso praguejou contra as circunstâncias que iam privá-lo, até nova ordem, do seu querido tabaco. Mas não deixou de tirar logo partido
da aventura e depois de ter sacudido o pêlo como um cão molhado, estendeu-se ao sol de chapa e durante um longo momento, ficou imóvel, mãos debaixo da nuca, deixando
a sua imaginação vagabundear à vontade por onde quisesse.
À volta, a calma continuava, a agitação que a aparição do nadador tinha um pouco antes provocado por entre a população aquática, apaziguou-se. Perto dali um maçarico
levantava voo e rasava o mar dos juncos, uns passos mais longe avistou uma galinha-dágua que nadava lentamente, levando atrás de si toda a ninhada.
Sob a persistente carícia dos raios do sol que subia no céu de mais em mais. Catamount deixou-se pouco a pouco invadir por uma indolência benéfica. Estava ali há
mais de uma hora. Olhos fechados, dormitava, quando, de repente, se sentou. Pareceu-lhe ter ouvido um barulho suspeito.
O ranger apurou o ouvido. Viu passar outra vez a galinha-dágua com a filharada que, espantadas, se apressavam a voltar para o ninho. Mais longe, um bando de patos
partiu dos juncos com pios assustados.
- Atenção! Alguém! disse consigo o homem dos olhos claros.
Uma sombra passou nos olhos do ranger, a mão nervosa encaminhou-se para o saco impermeável que pendia da anca e que abrigava um Colt.
Passaram alguns segundos, o dedo no gatilho da arma, Catamount estava quietíssimo, à espreita, retendo a respiração. Parecia-lhe ouvir agora um gorgolejo prolongado,
como se alguém se viesse aproximando, a caminhar na água.
Cada vez mais intrigado, o ranger decidiu levantar-se e arriscar uma olhadela para lá da espessa barreira dos juncos que lhe escondia neste momento o curso de água
do Concho River.
Elevando-se nas pontas dos pés, olhou. De princípio não notou nada de anormal. O rio continuava a correr e as águas a engolfarem-se entre os poucos rochedos que
emergiam à superfície. Sossegado, ia voltar a sentar-se no musgo, quando estremeceu. Apercebeu-se então de que uma silhueta se erguia mesmo no meio da corrente.
- Um pescador! disse consigo o homem dos olhos claros.
O recém-aparecido dava a ideia de ter qualquer dificuldade para lutar contra a violência da corrente através da qual se tinha metido, por três vezes tropeçou e esteve
quase a cair. Não se aguentou senão à custa de prodígios de equilíbrio, e estava a endireitar-se quando um passo em falso mais violento do que os outros, lhe destapou
a cabeça. O chapéu de feltro que trazia e cujas abas abaixadas lhe escondiam em parte o rosto, caiu na água.
- Uma mulher! murmurou então Catamount. Uma rapariga!
Não havia engano possível, não restava dúvida de que era uma rapariga... Os compridos cabelos castanhos tinham-se desprendido e vinham em ondas cobrir os ombros.
- Good graciousí...
A desconhecida deixou escapar um gritinho assustado. Na ânsia de recuperar o chapéu que seguia ao sabor da corrente com uma velocidade cada vez mais acelerada, tentou
um salto para a frente.
- Que imprudente! exclamou para si próprio o ranger. Ela vai cair. Parece que não conhece a velocidade da corrente naquele sítio.
Embaraçada pela linha com que pescava trutas, a rapariga tentou novamente alguns saltos. Mas de cada vez que se inclinava com o braço estendido, o chapéu fugia-lhe
e continuava a boiar, levado através dos redemoinhos.
Catamount deixou então de se preocupar com esconder-se, tinha a impressão de que um perigo cada vez maior ameaçava a desconhecida. Durante alguns instantes viu-a
ainda na mesma obstinação, quis gritar-lhe algumas palavras, dizer-lhe que tivesse cuidado, mas... tarde demais! Embaraçada com as pesadas botas de borracha que
lhe chegavam acima dos joelhos, a pobrezita
tinha tropeçado e, dando um grito aflitivo, desapareceu, levada a seu turno pela corrente.
- Coragem! vou aí ter consigo!
Desta vez o homem dos olhos claros não hesitou mais um único instante, deixou o seu refúgio, e meteu-se outra vez pela floresta de juncos. Rompendo pela vegetação
chegou ao fim desta e rapidamente mergulhou ao encontro da desconhecida.
A rapariga debatia-se em vão, levada pelos remoinhos, esforçava-se por se manter à superfície, rodopiando, como se a corrente brincasse com ela e se preparasse para
dentro de pouco tempo triunfar da sua resistência.
Agora, com os olhos fixos naquela que se propunha socorrer, o ranger rompia a torrente com os seus braços nervosos, e viu-a agarrar-se a uma rocha que emergia no
meio das águas cheias de espuma, mas, esgotada pelos esforços vãos que não cessava de despender, teve que abandonar a partida.
- Coragem! bradou-lhe Catamount. Aguente-se. O murmúrio da água abafou a voz do intrépido
nadador que por sua vez teve que recomeçar a sua luta contra a corrente que às vezes o arrastava. De maxilas cerradas, teimava sempre, meio atordoado pela água que
lhe entrava pela boca, pelas narinas e pelos olhos.
Três vezes o ranger esteve a ponto de agarrar a rapariga, e três vezes os pérfidos remoinhos o afastavam da pobre que já dava mostras de esgotamento cada vez mais
nítidas. Apesar de tudo, a despeito das piores dificuldades, Catamount estava cada vez mais do que nunca resolvido a salvá-la.
Uma dezena de braças separavam ainda o nadador da desconhecida, quando ela desapareceu na água, depois de ter girado em volta de si própria mais uma vez. Então,
juntando todas as suas forças num esforço supremo, o homem dos olhos claros mergulhou. Instantes depois conseguiu deitar a mão à afogada, pela gola!
Desde então Catamount fixou-se com toda a energia do desespero, manobrando com vigor, e conseguiu trazer a sua protegida à superfície. Lutando ferozmente contra
os redemoinhos que pareciam fazer o possível por lhe arrancar a sua presa, tentou chegar ao talude.
Dez minutos pelo menos foram necessários ao corajoso salvador para conseguir o seu intento. Uma exclamação de satisfação foi o seu desabafo quando sentiu de novo
terra firme debaixo dos pés. Levantou então nos seus braços robustos o corpo inerte da rapariga, de olhos fechados, a cabeça caída para trás, os cabelos muito compridos
e a pingarem água, varriam por vezes o chão.
- Já era tempo! murmurou para si o ranger. com precaução, estendeu a recém-salvada sobre a
erva e a seguir, esgotado, deteve-se sem puder desviar os seus olhos dela.
A rapariga parecia dormir sossegadamente, grandes gotas de água brilhavam no seu rosto queimado do sol. Uma ligeira crispação contraía-lhe os lábios, e as sobrancelhas
ainda ligeiramente enrugadas davam-lhe uma expressão de terror e de angústia.
- Deve ser da região, disse consigo Catamount. Apesar disso é bastante imprudente!
O ranger distendeu os braços e pernas enrijecidos pelo esforço excessivo que fizera. Teve uma exclamação surda quando viu que, com a precipitação, tinha deixado
o seu Colt sobre o musgo, no mesmo sítio onde viera abordar há pouco.
- vou buscá-lo!.. disse consigo.
Um exame rápido permitiu-lhe certificar-se de que a sua protegida respirava normalmente. A emoção tinha sido demasiado forte e perdera os sentidos.
Catamount sentia-se profundamente hesitante. Perguntou a si próprio se, dada a situação e as circunstâncias particulares que o tinham levado às margens do Concho
River, não valeria mais eclipsar-se agora que a rapariga já estava fora de perigo... Este salvamento
imprevisto ameaçava complicar as coisas, e ele tinha tantas outras preocupações. Joê Channel, por exemplo, e o desejo de se vingar dos bandidos que o tinham assaltado
traiçoeiramente?
O homem dos olhos claros ia resignar-se a afastar-se para recuperar a sua arma cuja falta podia fazer-se sentir cruelmente de um instante para o outro, quando reparou
que a rapariga esboçou um ligeiro movimento, ao mesmo tempo que as pálpebras se entreabriam, deixando passar um olhar.
Durante instantes a rapariga fitou o seu vizinho estranho, e sem dúvida pensou estar sendo presa de um sonho, porque arregalou os olhos por várias vezes.
De facto, Catamount nesse momento não apresentava um aspecto muito tranquilizador! Os cabelos completamente encharcados pegados à testa, a roupa molhada pingava
água, as botas, que não tinha tirado desde que Joè Channel o lançara ao Concho River, pareciam-lhe pesadas como chumbo.
- Meu Deus! disse a desconhecida com voz fraca. Já me lembro. Há pouco...
- É perigoso arriscar-se na corrente a pescar trutas, sentenciou com simplicidade o ranger.
A expressão de desconfiança que se estendera pouco antes na máscara contraída da afogada dissipava-se rapidamente. Agora voltou a recordar-se, cada vez com maior
nitidez. Revia o rosto enérgico do nadador emergindo junto dela à superfície, enquanto se esforçava por a aguentar e por a arrancar à morte.
- Salvou-me! foram as palavras seguintes, esboçando um pálido sorriso. Muito obrigada!
Catamount encolheu lentamente os ombros.
- É muito amável da sua parte, mas acredite, qualquer outro teria feito o mesmo no meu lugar!
- O Dad recompensá-lo-á, insistiu a rapariga.
- Muito obrigado! Não aceitarei qualquer recompensa, protestou o homem dos olhos claros.
Depois, pegando num cantil que tinha preso à cintura,
destapou-o e inclinando-se para a sua protegida, estendeu-lho:
- Beba, disse. Não há nada como isto para a restabelecer depois de um banho tão prolongado!
A recém-salvada procurou subtrair-se ao entorpecimento que lhe paralisava os membros, mas sentia-se muito pouco à vontade dentro da roupa encharcadíssima. De começo
hesitou, depois, o ranger passou-lhe o cantil com insistência, pegou nele e levou o gargalo à boca. Mas logo que bebeu um trago, tornou a entregá-lo fazendo uma
careta:
- Good gracious. É muito forte!
- Não há dúvida de que é forte, mas por isso mesmo é eficaz!
Surpreendida, tossiu, as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Levou uns segundos a recompor-se. Depois, olhando para o seu salvador com insistência:
- Não o conheço, não é daqui da região? perguntou.
- De facto venho de bastante longe, respondeu o ranger, e é absolutamente por acaso que me encontro nas margens do Concho River.
- Um acaso que eu ouso qualificar de providencial, insistiu a rapariga, pois se não estivesse aqui, apostava pela certa que a pobre Rosalinda...
- Rosalinda! Que nome encantador que tem, interrompeu o Catamount, desejoso de se escapar a perguntas embaraçantes.
- Chamo-me, de facto, Rosalinda Powell, disse a rapariga. O meu pai é Elias Powell, dono do Bar 35, o rancho da propriedade em que nos encontramos neste momento!
- Ah! Eu estou nas terras do Bar 35? Desculpe-me, não tinha reparado para o marco indicador... É verdade que cheguei até aqui seguindo o curso do Concho River!
Catamount preferiu não dizer exactamente à sua vizinha em que condições tinha vindo parar a estes
sítios. Nesta ocasião, queria passar por morto. Os pormenores recentes que Burgess lhe tinha dado quando estivera em Paint Rock, o ataque pérfido de que tinha sido
vítima, o desejo de voltar a encontrar o seu prisioneiro, tudo isto levava-o a manter a mais extrema discrição. Mas já Rosalinda teimava:
- É preciso, seja lá como for, que venha conhecer o Dad! Siga-me até ao Bar 35. O meu cavalo ficou um bocado mais longe.
- Agradeço-lhe infinitamente, Miss Powell, retorquiu logo o ranger; sinto muito, mas em virtude de circunstâncias absolutamente independentes da minha vontade não
posso acompanhá-la até lá!
Rosalinda teve uma exclamação de espanto:
- Veja em que estado está! protestou. Tem absoluta necessidade de mudar de roupa. O Dad põe um fato à sua disposição e se quer que se lhe empreste um cavalo...
- É na verdade muito amável, Miss Powell, mas o meu cavalo espera-me aqui perto. Estou com pressa.
- Tanta pressa como isso?
- Muitíssima pressa!
- Nesse caso, não devo insistir!
Catamount pôde ler nos olhos da sua interlocutora o verdadeiro desapontamento que ela sentia por não poder convencê-lo. E o primeiro pensamento que lhe veio ao espírito
foi o de que ela estava na presença de um homem que não tinha tranquila a consciência!
- Que pena! O Dad, quando souber...
- Oiça, Miss Powell. Quer fazer-me um favor?
- Um favor? Quem me dera poder fazê-lo! Contraí consigo uma grande dívida de gratidão!
- Pois bem, Miss Powell, é preciso que não diga a ninguém que me encontrou. Faça de conta que eu não existo! É preciso que faça tal e qual como se o incidente do
nosso duplo banho nunca se tivesse passado!
Rosalinda ficou atónita e imóvel, de olhos postos no seu interlocutor. com o tom de gravidade que ele assumia, sentia-se confusa.
- Mas... objectou. Se me perguntarem porque é que venho molhada até aos ossos?
- Conte aquilo que quiser! Diga que se salvou a si própria! Não é complicado!
E como ela parecia ainda hesitante, acrescentou:
- Não me viu, eu não existo!.. Fique sabendo que a sua discrição me prestará um serviço enorme!
- Um serviço enorme?
A rapariga não havia meio de compreender, e ia perguntar-lhe mais coisas, mas o homem dos olhos claros deteve-a com um gesto:
- É possível que venha a saber mais tarde. Por agora, a menor inconveniência poderá comprometer tudo!
- Conte então comigo. Prometo-lhe!
Estendeu francamente a mão e já se tinha levantado. Catamount correspondeu imediatamente ao seu gesto e depois deixou-a, afastando-se com grandes passadas e sem
se voltar, até ao sítio onde, pouco antes, com a pressa de socorrer a rapariga em perigo, tinha deixado o seu Colt.
VIII
ALERTA NO RANCHO
Rosalinda procurou em vão compreender. A aventura singular de que acabava de ser a protagonista parecia-lhe um sonho. Enquanto seguia a cavalo, de regresso, parecia-lhe
ainda ouvir as palavras estranhas que o Catamount lhe dissera, e sempre a mesma pergunta lhe acudia à ideia, cruciante:
- Quem será ele, e porque é que me pediu silêncio?
O Sol estava quase no zénite, o calor terrível quase tinha secado por completo a roupa toda encharcada da rapariga; no entanto, sentia-se pouco à vontade, e tinha
pressa de tirar as botas ainda cheias de água e de pôr um pouco de ordem no vestuário e no cabelo.
Seguindo o curso do Concho River, Rosalinda não tardou em chegar à vista do rancho. Mas logo que chegou à entrada do grande pátio do Bar 35 viu que havia lá uma
desusada animação!
Elias Powell e o seu contramestre tom Grane bracejavam no centro do pátio onde dois homens a cavalo tinham parado. Ao primeiro golpe de vista, a rapariga viu que
se tratava do xerife Burgess e do seu primeiro "deputy" Bug Dauntless.
Ao reconhecer Bug, Rosalinda sentiu-se corar. Não voltara a ver o "deputy" depois da movimentada viagem que tinham feito juntos no comboio de Abilene. Recordou-se
então do episódio no decurso do qual o rapaz a livrara do importuno Lewis Navarro!
A rapariga veio parar o cavalo junto da barra do curral, depois, intrigada, dirigiu-se para o grupo. Burgess e o seu ajudante traziam com eles um soberbo alazão
que tinham descoberto há pouco, vadiando na margem do Concho River.
- Não há qualquer dúvida possível, afirmava o xerife ao "ranchman", é o cavalo do Catamount!
E enquanto os seus interlocutores ouviam, profundamente intrigados, o representante da autoridade prosseguia:
- O Catamount dormiu precisamente esta noite em minha casa em Paint Rock, e levava com ele um tal Joê Channel, um condenado dos mais perigosos... O simples facto
de termos encontrado o alazão sem ninguém leva-nos a pensar que se passou alguma coisa de anormal!
Elias Powell conhecia já há muito tempo a reputação do "ranger", e portanto não se pôde conter que não dissesse:
- O Catamount não é um novato! Se deixou o seu cavalo nestas paragens, é que sem dúvida teve uma razão para tal...
- De princípio pensei dessa maneira, Powell, redarguiu Burgess, mas verificámos certas coisas, Dauntless e eu, que provam que o "ranger" foi vítima duma agressão!
- Duma agressão?
- Não é nada de admirar, Powell, insistiu o xerife. Depois do que se passou no Green Canon, depois de todos os ataques destes bandidos que continuam em liberdade...
Uma ruga de preocupação cavou-se na fronte do pai de Rosalinda:
- Crê que se trata do "gang"? perguntou, baixando a voz.
- De que é que quer que se trate, se não for do "gang"!, ripostou Burgess.
- Não vejo que interesse poderiam ter esses bandidos em apanhar o "ranger" que é um adversário de respeito!
Burgess respondeu com um gesto vago:
- Podemos, disse, entregar-nos a todas as suposições, mas um facto é certo: o Catamount foi vítima de uma cobarde agressão!
- Não encontraram o corpo? perguntou tom Crane.
- Às pistas que conseguimos descobrir, informou então Bug Dauntless, indicam de maneira certa que o "ranger" foi assaltado por trás, abatido sem dúvida alguma, e
o rasto que se continuava até ao talude levava a crer que foi atirado para o Concho River... A corrente levou-o... Deus sabe onde ele estará a estas horas!
A medida que a discussão se prolongava os "cowpunchers" do rancho, intrigados, aproximavam-se, cada vez em maior número. E o xerife continuou, levantando
a voz:
- Em qualquer caso, os bandidos alcançaram já um resultado bastante apreciável! Puseram em liberdade Joê Channel! O malandrim apressou-se a fugir, com o cavalo em
que ia quando passou em Paint Rock com o "ranger"! Neste momento já deve andar a vadiar...
Tirando então da algibeira o par de algemas que tinha descoberto pouco tempo antes, o Burgess continuou :
- Já o facto de ele ter podido pegar na chave e tirar as pulseiras de aço, prova plenamente que não tinha nada a recear de parte do seu guarda!
Um silêncio de terror dominou o grupo. E o xerife prosseguiu ao fim de um momento:
- E o caso passou-se dentro da área do seu rancho! Foi por isso que Dauntless e eu quisemos vir logo pô-lo ao facto disso!
- Acredite, xerife, que eu ficaria encantado se pudesse indicar-lhe uma pista a sério! declarou Elias Powell. E no que me diz respeito, não notei absolutamente nada
de anormal!
- E eu também não, assegurou tom Grane.
Os "cowpunchers" que se agrupavam à volta, principiavam a fazer coro. Não tinham dado por nada. Além disso nenhum deles tinha trabalho a fazer nas margens do Concho
River!
- Se aquele pudesse falar! arriscou Bug Dauntless, apontando para o alazão que pateava impacientemente no chão com a borda do casco.
- Soberbo animal! exclamou o "ranchman". Que vai fazer dele enquanto espera?
- Confiá-lo a si, simplesmente, para o abrigar no curral com os outros!
Elias Powell aproximou-se do animal. O Mezquita estremeceu só com o contacto da mão e esboçou uma brusca fuga.
- Hélio! não te quero comer, velho camarada! protestou o "ranchman".
Depois, dirigindo-se ao xerife o ao seu "deputy", declarou:
-? Dentro de pouco é a hora do almoço. Querem almoçar connosco?
- Impossível! interrompeu Burgess. Estamos com muita pressa. É preciso que voltemos a Paint Rock para tomarmos as providências que temos a tomar! É necessário acabar
com isto, custe o que custar!
- Em todo o caso, se tiver precisão de uma ajuda, propôs o "ranchman", já sabem que podem contar com ela!
- Esperamos que fiquem todos, uns e outros, à disposição da justiça!
- Esteja seguro disso, xerife! Se dermos por alguma coisa de anormal, avisá-lo-emos imediatamente!
Elias Powell continuava, falando sempre, a fazer festas com a mão ao longo da pelagem do Mezquita. A alguns passos mais longe, Rosalinda esperava sem perceber nada.
- Hello, honey! já voltaste? Pescaste alguma coisa, ao menos? A Mammy e eu procurávamos...
O "ranchman" não terminou a sua frase, uma exclamação saiu-lhe da boca:
- God Almightyl... Que é que te aconteceu, rapariga? Estás em bonito estado!
Elias Powell tinha estado até agora tão preocupado na discussão com o xerife e o seu "deputy", que não tinha dado pela pequena, perdida no meio do grupo dos "cowpunchers".
Novas exclamações soaram: o contramestre e os outros olhavam para a Rosalinda e admiravam-se de a verem voltar assim, sem chapéu.
- Oh, não é nada, Dad! Um acidente sem consequências! Quando estava a pescar caí no Concho River!
- Imprudente! A corrente é fortíssima em alguns sítios...
- Perdi a minha linha e o chapéu, acrescentou bastante agastada a náufraga, por isso não continuei!
- É melhor que vás ter com a Mammy e mudes depressa de roupa, para te aprontares para o almoço!
Burgess, que se dispunha a partir com o seu companheiro, deteve-se intrigado pelas palavras que pai e filha acabavam de trocar.
- Hélio! Miss Powell, gritou inclinando-se ligeiramente, esteve nas margens do Concho River?
- Estive, respondeu ela.
- De que sítio vem, exactamente?
Rosalinda hesitou um pouco, antes de responder. Sobrancelhas carregadas, parecia procurar encadear as suas recordações.
?-Estive em Yellow Grass!
- Imprudente! interrompeu Elias Powell. Yellow Grass é precisamente o sítio onde a corrente é mais perigosa!
- O Catamount foi assaltado a pouca distância de Yellow Grass! interveio por sua vez Bug Dauntless,
segurando com mão nervosa o cavalo demasiado inquieto.
- É verdade, concordou Burgess... Talvez Miss Powell tenha notado qualquer coisa!
Os olhares investigadores dos dois cavaleiros detinham-se nesse momento sobre a rapariga. Parecia que eles pretendiam desvendar os seus pensamentos mais secretos.
- Não viu nada, Miss Powell?
Rosalinda hesitou ainda durante alguns segundos antes de responder. A pobre rapariga sentiu-se fortemente embaraçada. Mas parecia-lhe ainda ouvir a voz enérgica
do seu salvador que a forçava a manter a seu respeito o silêncio mais absoluto.
- Não notei nada, afirmou enfim, dissimulando o melhor que podia a perturbação que esta mentira lhe causava.
- É que, insistiu então o "ranchman", o caso é grave! O mais simples pormenor poderia encaminhar o xerife para a boa pista! Talvez pudéssemos então dar cabo deste
maldito "gang"!
A rapariga teve então a impressão desagradável de que todos quantos a rodeavam, desde o seu pai até tom Crane, Burgess e Bug Dauntless, adivinharam que ela escondia
a verdade.
- Não vi nada, insistiu. Já me bastava o que eu tinha a fazer debatendo-me por entre os redemoinhos...
- Nesse caso, seria de muito mau gosto maçá-los durante mais tempo, tanto mais que nos esperam em Paint Rock!..
Os dois cavaleiros não insistiram; agitando as mãos em sinal de adeus, despediram-se do "ranchman" e da sua gente.
Imóvel, Rosalinda viu-os afastarem-se a trote na direcção da saída do pátio. Antes de desaparecer, Bug Dauntless voltou-se para dizer mais um adeus. Ela respondeu-lhe
com um gesto maquinal.
- Depressa! Levem o alazão e o cavalo da Rosalinda para o curral!
A voz rígida do "ranchman" veio tirar a rapariga das suas reflexões absorventes. O pai, notando as rugas de preocupação que lhe atravessavam a fronte nesse momento,
perguntou-lhe:
- Que tens tu, "honey"? Qualquer coisa que te aflige?
- Nada, palavra! São as recordações do meu mergulho...
- Tens que ser mais prudente na próxima vez que vás pescar trutas; o melhor ainda é deixares-te disso durante um tempo! Arriscas-te a ter um mau encontro, com esse
maldito Channel, por exemplo, que soube tão bem pôr-se em fuga!
Rosalinda esquivou-se rapidamente para dentro de casa, evitando responder, sobretudo desejosa de se escapar a perguntas indiscretas que podiam metê-la em embaraços!
Por isso apressou-se a despir-se e a pôr-se apresentável, sempre obcecada pelos seus pensamentos desconcertantes, deixando a sua imaginação vagabundear à vontade.
Agora, quanto mais Rosalinda pensava, mais estava convencida de que tinha estado diante de Joê Channel, o prisioneiro evadido!
Enquanto se penteava diante do espelho, reproduzia na sua imaginação o estranho encontro que fizera com o homem dos olhos claros e as condições perturbantes em que
ele lhe tinha salvo a vida!
A rapariga ajustava agora as palavras misteriosas do seu salvador com as que tinham dito Burgess e Bug Dauntless. E quanto mais ela reflectia, mais pensava estar
dentro da certeza: Channel e o intrépido nadador não eram mais do que uma mesma e única personagem!
Todavia, pensava ela, aquele homem não tinha nada a aparência de um bandido! com que coragem desinteressada se deitou à água para lhe prestar socorro!
Rosalinda conservava gravada na sua memória a
imagem do homem dos olhos claros. Parecia ouvir ainda a sua voz grave e áspera, cuidava rever a sua expressão de sinceridade e de sangue-frio que parecia cinzelada
no seu rosto moreno...
Entretanto, se o seu salvador não tivesse nada a exprobrar-se, se sentisse a consciência tranquila, porque é que lhe tinha determinado que mantivesse sobre ele o
silêncio mais absoluto? Há pouco, quando o xerife a tinha interrogado, sentira-se a ponto de ceder, de responder, de contar a sua história, mas uma força misteriosa
forçara-a ao silêncio. E tinha mentido conscientemente!
Ainda sob a influência da emoção, Rosalinda sentia como que um remorso. Também não podia esquecer o serviço que Bug Dauntless lhe prestara uma vez! Sempre que pensava
no corajoso "deputy", sentia-se invadida por uma perturbação indefinível! Bug interessava-a muito mais do que todos os outros, e afinal de contas ela tinha mentido
tanto a Bug como ao xerife!
A promessa feita ao homem dos olhos claros punha agora à pobre rapariga um verdadeiro caso de consciência! Perguntava a si mesma, com ansiedade, se o seu silêncio
não permitiria ao criminoso prosseguir na série das suas façanhas! Quem saberia se a sua abstenção não favoreceria o "gang"! Ficando assim de boca calada, não se
tornaria cúmplice dos miseráveis?
Deixando assim vagabundear a sua imaginação febril, Rosalinda tinha terminada a sua mudança de roupa. Agora, nada mais lhe recordava o malfadado acidente de que
tinha sido vítima duas horas antes!
Uma leve pancada na porta, arrancou-a oportunamente aos seus pensamentos, ao mesmo tempo que uma voz familiar lhe dizia alto:
- Sou eu, "honey"!
- Entre, Mammy!
Jane Powell aceitou logo a indicação, e pondo-se a dois passos da filha:
- O Dad contou-me que tinhas sido imprudente!
- O Dad perde a cabeça por qualquer coisa! protestou Rosalinda a sorrir.
- Mas que é que fizeste? Conta-me! Quando penso que terias podido...
- Paguei tudo com um banho forçado, interrompeu a rapariga. Na verdade, não teve importância alguma...
--Esta filha far-nos-á morrer de inquietação!
À excelente senhora teria prosseguido na série das suas exclamações, das suas recriminações e dos seus conselhos de prudência, se a sineta se não tivesse feito ouvir,
no pátio grande, avisando de que o almoço estava pronto.
-Está descansada, Mammy... Agora podemos descer! Estou pronta. Não te podes queixar de que me atrasei!
com vivacidade, Rosalinda pôs-se de pé e envolvendo a sua visitante com o braço à volta da cintura, obrigou-a a andar em roda-viva.
- "Honey"! Vê lá "honey"! Tem juízo! Jane protestava emitindo ligeiros gritinhos abafados,
mas, implacável, a rapariga continuou a andar com ela à roda. E quando a Mammy ficou literalmente esgotada, deixou-a cair numa cadeira de braços.
- Que filha tão má! gemeu a pobre senhora.
- Isto ensinar-te-á a ralhares comigo, Mammy! E agora dá cá o braço! Vamos para baixo!
Elias Powell, tom Crane e a maior parte dos "cowpunchers" estavam já reunidos na grande sala quando as duas senhoras apareceram. Ao primeiro golpe de vista, Rosalinda
compreendeu, pelas caras preocupadas de todos, que a visita do xerife e a desaparição do Catamount eram o objecto de todas as conversas.
- Para a mesa! disse o "ranchman".
- O Tio Ray ainda não veio? perguntou a rapariga apontando para o lugar em frente dela que ainda estava vazio.
- Tio Ray! Presente!
Logo que a rapariga acabara de dizer aquelas palavras, o ausente apareceu no limiar da porta, mais vivo e mais sorridente do que nunca. com passo ligeiramente titubeante,
foi logo ocupar o seu lugar, e desdobrando o guardanapo, declarou, na sua vozinha trémula:
- Linda manhã! Talvez um pouco quente! Ninguém mais falou. Passavam de um a outro um
apetitoso prato de batatas com toucinho. Mas o Tio Ray parecia não se preocupar com coisa alguma, e debruçando-se para a sua sobrinha que estava em frente, e piscando-lhe
o olho com um ar trocista:
- He! He! Rapariga! Passeou-se muito esta manhã!
- Meu Deus, Tio Ray...
Os olhinhos piscos do simplório demoravam-se com insistência na rapariga, que tinha certa dificuldade em disfarçar o seu constrangimento.
- Deixa lá a pequena, Tio Ray! protestou a Mammy.
Mas Ray Powell insistia, meneando a cabeça:
- Apostamos que ela foi encontrar-se com um lindo namorado nas margens do Concho River! By Jove, não digamos que não! É tão natural! Eu quando tinha a sua idade...
O Tio Ray sabia realmente ter graça!
IX
UM RECRUTA
- Porque será que se demoram tanto?
Lewis Navarro começava a impacientar-se seriamente no seu escritório do "Três de Espadas", o olhar não parava de consultar o mostrador do relógio, em cima da chaminé.
- Então, "boss" deve compreender que eles não chegarão antes da noite! É o natural. Cammage e todos não querem fazer-se notar, sobretudo se trazem o outro com eles!
Sabes bem que não tardará a ser dado o alerta nas margens do Concho... É natural que o xerife e o seu "poss" venham fazer-nos uma visita. A mais elementar prudência
exige que tomemos precauções...
Apoiado no canto da secretária, Tip Giggler esforçava-se por fazer o aventureiro raciocinar, mas a paciência não era a virtude dominante de Lewis Navarro. Puxando
rápidas fumaças do charuto que roía morosamente, não parava de pensar na gravidade do empreendimento.
Até então, o "boss" e o seu "gang" tinham podido gozar duma certa impunidade e escapar a todas as pesquisas. Se bem que Lewis Navarro fosse bastante mal visto na
região, ninguém tinha podido firmar contra ele qualquer queixa; as suas relações, a habilidade infernal de que dava provas, tinham-lhe permitido sempre atingir os
seus objectivos correndo o mínimo de riscos. Uma sorte insolente tinha-o favorecido até aqui.
Entretanto, há um certo tempo, o aventureiro já não manifestava a mesma firmeza. À lição severa que Bug Dauntless lhe tinha infligido atingia um pouco fundo o seu
optimismo habitual. Além disso, a manobra projectada podia falhar com um adversário da força do Catamount, e ao Liwis agradava-lhe pouco entrar em luta com o homem
dos olhos claros cuja reputação conhecia de longa data.
- Acredite, insistia o Tip Giggler, é disparate enervar-se até esse ponto "boss"! Tudo se deve ter passado magnificamente... A única coisa que me aborrece é que
eu esteja condenado à inacção. Preferiria estar lá em baixo com os outros, e pode estar certo de que desempenharia bem o papel!
Falando assim, Tip Giggler apontava para o braço ao peito. O seu interlocutor sacudiu lentamente a cabeça:
- Enquanto não estiverem de volta, não ficarei tranquilo, repetiu. Este Catamount tem sempre surpresas dentro do saco!
- Pshawl... É inútil arreliar-se assim! O Catamount não é imortal! Uma emboscada bem preparada, e cairá sem mesmo ter tempo de se aperceber do perigo que o ameaça!
Além disso, conheço Cammage, sei que é hábil e fará o melhor que puder!
Lewis Navarro não respondeu, tamborilava com os dedos na secretária, as sobrancelhas franzidas, olhava pela janela. O céu arroxava-se com os últimos raios do poente.
No pátio junto, havia a animação habitual de todas as tardes, os "cowpunchers" regressavam tranquilamente, ouviam-se marteladas regulares batidas na bigorna, na
forja ali próximo.
Tip Giggler fez todo o possível por o sossegar, mas o aventureiro sentia-se sempre obcecado por aflitivas apreensões. Até agora, com o Burgess e os seus "deputys",
levava sempre a melhor, mas quando pensava que se decidira a afrontar o melhor auxiliar do coronel Morley, não podia libertar-se de um mau estar
desagradável. Tinha a impressão de que o Catamount o venceria facilmente e que a sua decisão de tomar à sua conta o "ranger" iria definitivamente precipitar a sua
perda!
Apesar de tudo, teve que esperar ainda mais uma hora antes de se sentir sossegado.
À noite já caíra completamente quando Giggler, que se tinha posto à janela encostado aos cotovelos, exclamou:
- Aí estão eles!
O aventureiro foi para o pátio deixando o seu apaniguado ainda no escritório, e seguiu para o curral onde acabava de parar um grupo de cavaleiros. Havia grande barulho
de vozes.
- Então, Cammage! gritou, mais impaciente do que nunca.
- Olá, "boss"!
O contramestre saltara do selim e entregando a montada a um dos seus acólitos, encaminhou-se rapidamente para Lewis Navarro.
- E então! bradou este.
- Tudo o melhor possível, "boss"! respondeu logo o interpelado.
- Channel?
- Solto! Trouxemo-lo. E o Catamount?
- O "ranger"? Esteja descansado a seu respeito, já o riscamos do número dos vivos!
- Morto?
- É melhor perguntar ao Channel, ele próprio se encarregou da execução. E é bom acentuar que foi ele quem lhe deu o golpe de misericórdia! Eu já tinha atingido esse
malandro!
-Que é que fizeram do corpo? Não o trouxeram, espero!
- Não somos tão tolos como isso! Neste momento, o cadáver do Catamount anda a boiar na corrente do Concho!
- E ninguém desconfiou?
- Acho que não! O caso foi despachado rapidamente! É melhor perguntar ao amigo Channel...
Ao pronunciar estas palavras, o contramestre do "Três de Espadas" designava o bandido que vinha direito a ele. Depois, apresentando-o com um gesto:
- Este é o Channel!
E designando Navarro ao seu vizinho, Cammage nomeou:
- O "boss"!
- É inútil fazer com que se demore no pátio! Prefiro que não dêem por si com demasiada insistência, my boy! Venha comigo!
Sem esperar mais nada, o libertado acertou o passo com o do aventureiro, e três minutos mais tarde, seguidos por Den Gammage, desapareceram pela porta principal
da habitação.
Lewis Navarro levou os recém-chegados para o seu escritório. Tip Giggler esperava ao pé da porta, a expressão do rosto sossegada.
- Então, como vê, "boss", era inútil inquietar-se! com Cammage, o caso estava no papo!
Joê Channel e o contramestre sentaram-se em cadeiras designadas pelo aventureiro e a seguir, este, depois de ter fechado a porta, fez sinal ao Giggler para encostar
a janela, o que ele fez com a mão válida, e depois, encostando-se à parede, esperou.
-? Acho que um pouco de "whisky" viria a propósito! propôs Lewis Navarro.
- Está bem, não digo que não! respondeu Channel, que até aqui tinha mantido um silêncio prudente. Todas estas emoções indispuseram-me um pouco!
- Um charuto, também? insistiu o aventureiro, estendendo uma caixa ao libertado.
- com todo o gosto!
Dois minutos mais tarde, estavam sentados com todos os outros à volta da mesa, tendo cada um ao seu alcance um copo bem cheio. Lewis Navarro, que tinha
ido buscar um frasco do velho "whisky" a um armário próximo, instalou-se de novo na sua cadeira e depois, cruzando as pernas e voltando-se para Cammage, perguntou:
- Então como é que se passou tudo?
- Muitíssimo bem! O "ranger" nem mesmo procurou defender-se!
O contramestre engoliu dois goles de "whisky" e depois de ter enxugado os lábios na manga do casaco, começou a contar ao seu "boss" em que condições o seu grupo
tinha atacado o homem dos olhos claros no momento em que seguia pela pista de cavaleiros do Concho River com o seu prisioneiro.
Enquanto ele falava assim, Joè Channel continuava impassível, limitando-se a baixar aprovativamente a cabeça de vez em quando. Tip Giggler também não dizia nada,
mas podia reparar na transformação pela qual tinha passado o aventureiro desde que o grupo regressara! A máscara de Lewis Navarro descontraía-se agora numa expressão
de satisfação beatífica. com a notícia de que Catamount estava doravante fora de estado de fazer mal, o miserável sentia-se aliviado de um grande peso!
Logo que Cammage acabou de contar, o aventureiro encheu de novo os copos que os seus visitantes já tinham esvaziado, e voltando-se para Channel:
--Então, boy! disse. Acho que já deve ter pensado que eu não o mandei soltar por mera filantropia!
- Tenho evidentemente excelentes razões para o acreditar, respondeu o condenado da justiça. Mas confesso que não atinjo muito bem o móbil que o fez resolver isso!
Creio que nunca nos encontrámos! Já estive a olhar bem para si, e não o reconheço, e eu tenho bem a memória das fisionomias! Em Cammage encontrei um velho conhecimento...
- Eu conheço-o de fama, respondeu o aventureiro, e isso bastava... Sei que você não é desses que se dão
ao luxo de ter escrúpulos... Segui nos jornais o caso do ataque ao Banco Farmer e Bresson!
- Foi justamente por causa desse pecadilho que a justiça se encarniçou contra mim, esclareceu Joé Channel. Catamount foi buscar-me até mesmo ao campo argentino...
Um relâmpago fez piscar as pálpebras do evadido, o seu punho contraiu-se com raiva:
- God Almighty, o tipo não deixava de ser valente! Merecia bem a sua reputação de trazer sempre o homem que ia procurar! Tive que me defender bem, mas deitou-me
a mão à gola!
- Há um pormenor que me admira, objectou Lewis Navarro. O caminho mais directo para voltar da Argentina para El Paso não passa precisamente pelo vale do Concho River!
-? Nós vínhamos para El Paso, explicou então Joè Channel. Mas era preciso confrontarem-me com o Bresson, que ficou realmente ferido durante o ataque ao Banco. O
Catamount tinha sido encarregado de me escoltar. Agora o maldito abutre não procurará mais incomodar-me! Fui eu mesmo que o matei e verifiquei bem se estava morto!
De futuro, posso dormir tranquilo...
Lewis Navarro sentia-se cada vez mais sossegado pelos pormenores que o evadido lhe dava. Todavia, tentou fazer obliquar a conversa para outro caminho:
- Ela por ela, boy!... disse-lhe. Eu arrisco muitíssimo pondo-o em liberdade e acolhendo-o assim cá em casa... Em contrapartida, exijo da sua parte uma obediência
total...
- By Jove, isso subentende-se! concordou o fugitivo. Business is Business!
com a ponta da unha, Joê Channel fez cair a cinza do charuto, depois, olhando fixamente o seu interlocutor, acrescentou simplesmente:
- Estou a ouvi-lo!
O aventureiro concentrou-se durante alguns instantes,
pesando bem os termos de que iria servir-se. Imóveis ali ao pé, Den Cammage e Tip Giggler não tinham perdido uma única palavra. Observavam disfarçadamente Channel,
mas o libertado não manifestava a menor emoção, procurar-se-ia em vão na sua máscara impassível, o menor vestígio de interesse...
Parecia absolutamente insensível ao que se desenrolava à sua volta, e com os dedos acariciava os punhos a toda a volta, que conservavam ainda os vestígios das algemas
que teve de trazer durante tanto tempo.
- Conheceu Matthewson ? perguntou por fim Lewis Navarro.
Joé Channel franziu os sobrolhos, como se procurasse recordar-se:
- Matthewson? Este nome diz-me qualquer coisa... Mas há tantos Matthewson no Texas!
- O Matthewson de que aqui se trata era um rapaz também muito valente! Durante muitos anos, recorri aos seus bons trabalhos e devo confessar que ele não se saía
nada mal! Rapidez e discrição, podia ser a sua divisa... A par disto, atirador de primeira categoria. Um pouco exigente, apesar de tudo...
- Então! exclamou Channel, as boas contas fazem sempre os bons amigos...
- Absolutamente de acordo, mas a desgraça quis que Matthewson se tivesse feito matar estupidamente no decorrer de certa operação... O Giggler, que aqui está ao pé
de nós, tem ainda uma bem dolorosa recordação dessa jornada!
O bandido fez uma careta e mostrou com um abaixamento de cabeça o braço ligado que trazia ao peito. Lewis Navarro ia continuar ainda, quando o seu interlocutor o
deteve:
- Então, perguntou simplesmente, queria que eu substituísse o seu Matthewson?
- Adivinhou, old boy!... aprovou logo o aventureiro. Tenho razões excelentes para pensar que você possui todas as qualidades requeridas!
Joe Channel encolheu ironicamente os ombros: -. É pena que me não tenham dado um certificado. Mas eu parti de lá sem deixar o endereço, estive na estância de San
Marco, em casa de Pedro Armendez, e desempenhava desde há um certo tempo as funções de "rastreador" com o nome de Torríbio Mendez, quando o Catamount me foi lá buscar.
Mas apesar de todas estas peripécias, sinto-me em plena forma!
Falando assim, o libertado bombeava o dorso, espetando o peito. Lewis Navarro e os seus dois acólitos, olhavam-no com insistência. Sentiam-se cada vez mais seguros
com o aspecto avantajado do seu vizinho.
- Bem lhe tinha dito, "boss"! aprovou Tip Giggler. Temos aqui "the right man in the right place"!
Den Cammage ia a seu turno falar, quando Channel se adiantou, e virando-se para Lewis Navarro:
- Que é preciso fazer, exactamente? perguntou.
- Muito simplesmente, executar as minhas ordens...
- E que mais?
- Está aqui Den Cammage, meu contramestre, e Tip Giggler o meu homem de acção. Por um tempo, acho que Giggler fará bem em evitar permanecer no "Três de Espadas"
e manter-se-á prudentemente entre bastidores. Burgess e os seus "deputys" podem ser tentados a perguntar-lhe certos pormenores quanto às feridas com que ficou na
mão direita. Cammage, esse não tem que recear sob esse ponto de vista. Você pode, portanto, operar em completo acordo com ele e com os meus homens!
Porém, apontando para o colar de barba que rodeava a cara mal barbeada do condenado da justiça, o aventureiro recomendou:
- É evidente que é preciso fazer a barba e tomar outro aspecto! Não se esqueça de que a desaparição do Catamount e do seu prisioneiro, poderão ser conhecidas de
um instante para o outro. Burgess encetará buscas em toda a região. É preciso que ele o não encontre a si!
- O. K.! aprovou Channel. Saberei mostrar-me ao mesmo tempo prudente e discreto!
-=- No quarto aqui ao lado terá o que precisa para se arranjar. Depois, não se demore no "Três de Espadas". O dia de amanhã não passa sem que, de certeza, o xerife
e o seu "poss" venham fazer-nos uma visita! Depois de ter mudado de fato, vá-se embora com o Tip Giggler que lhe dará todas as explicações necessárias a propósito
daquilo que lhe vamos confiar.
Tirando então a sua carteira da algibeira de dentro, o aventureiro pegou numas "banknotes" que estendeu ao seu novo recruta:
- Aqui estão já quinhentos dólares para atender às primeiras despesas. Fique bem entendido que não se trata de mais do que de um pequeno adiantamento! Cammage e
Giggler podem informá-lo de que todos quantos trabalham para mim nunca tiveram de que se queixar!
- Isso é verdade, certificou o contramestre. O "boss" é generoso para quantos o servem!
-? Mas em contrapartida, acrescentou Lewis Navarro, sou implacável para os traidores! Se um dia se decidem a passar para o inimigo, não continuarão durante muito
tempo a saltitar de um lado para o outro! Tenho antenas, sei tudo, e então...
com a mão, deu uma palmada no coldre do revólver, ajuntando:
- Conto também consigo para me desembaraçar de um tal Bug Dauntless. Cammage dar-lhe-á pormenores sobre este malandrinzito que se mostrou suficientemente imprudente
para caminhar sobre os meus pés...
Joè Channel tinha pegado devagar nas "banknotes" e meteu-as na algibeira:
- Eu conheço a profissão, "boss"! contentou-se com declarar, e estou convencido de que ficará encantado com os meus serviços!
- Ainda bem! Não esperava outra coisa de Joê Channel!
Lewis Navarro decidiu levantar-se da sua cadeira:
- Basta de conversa. Agora, mude de fato e durante a noite saia do rancho. Cammage levá-lo-á ao local retirado daqui onde esperará as minhas ordens!
- Qual é a primeira coisa que devo fazer? perguntou o evadido que parecia um pouco curioso.
- Sabê-lo-á no momento oportuno. Talvez já amanhã tenha precisão de si! Em todo o caso e aconteça o que acontecer, exijo de si uma obediência absoluta! Está compreendido?
- Não se pode falar com mais clareza!
- vou levá-lo ao quarto.
Durante alguns instantes, Lewis Navarro ausentou-se, deixando o contramestre e Tip Giggler em colóquio:
- Acho que o "boss" fez uma boa aquisição com este recruta, opinou Den Cammage..
O ferido sacudiu a cabeça em aprovação:
- Channel é um tipo duro, no género do Matthewson! Não poderíamos arranjar melhor!
Quando o aventureiro voltou, os dois homens calaram-se, Lewis Navarro esfregou as mãos:
- Tinham razão, opinou, é tal e qual o tipo de que necessitávamos!
Depois, sentando-se outra vez e dirigindo-se aos dois sequazes:
- Enquanto ele faz os seus arranjos indispensáveis, tenho a dizer-lhes umas palavras. Até nova ordem, acho prudente não tratarmos de Bancos! Sobretudo deixemos que
se esmoreça a emoção provocada pelo caso de Green Canon!
- E então? interrogou o contramestre, qual será o próximo objectivo?
- O Bar 35!
- O Bar 35?
Den Cammage e Tip Giggler pareciam admirar-se desta decisão do seu interlocutor, mas Lewis Navarro
quis pormenorizar, adiantando-se a qualquer nova pergunta:
- Há muito tempo que preparo este negócio... O fruto parece maduro, não temos mais a fazer do que sacudir a árvore para que ele caia!
- Atenção "boss"! objectou Den Cammage. Elias Powell é um velho duro de roer! Será perigoso atacá-lo de frente!
Um sorriso malicioso aflorou aos lábios do aventureiro:
- Já tomei todas as precauções, assegurou. Não atacarei Powell de frente, saberei tomá-lo por onde deve ser! Não me esqueço de que ele é sócio do irmão. Por esse
velho bêbedo do Ray, abordarei de tal modo o proprietário do Bar 35, que ele será constrangido a fazer as coisas em condições excelentes para nós!
Tip Giggler abanou lentamente a cabeça e modulou um leve assobio:
- Hum! objectou. O Bar 35 é um bocado duro de roer!
- Hélio, old boy, já digerimos outros assim! com os polegares nas cavas do colete, Lewis
Navarro esboçou uma mímica suficientemente expressiva para provar aos seus dois prosélitos que conservava todas as esperanças de atingir o seu novo objectivo.
- E depois, acrescentou com ar entendido, há a garota! É um amor essa Rosalinda!
- Um pouco novinha ainda para si, "boss"! não pôde deixar de comentar Giggler.
O contramestre riu crassamente:
- Para burro velho, erva tenra! Além disso, o "boss" tem o seu pé-de-meia, e isso é um argumento que pesa muito ao lado da diferença de idade!
- Aconteça o que acontecer, interrompeu o aventureiro, tenho argumentos que poderão convencê-la! E ao mesmo tempo ajustaremos as contas com Dauntless... Este galinho
tem que ser afastado de uma vez para sempre do nosso caminho!
- Channel encarregar-se-á do pior, disse o contramestre. E tenho a impressão de que o caso não será mal sucedido!
Durante um momento ainda, continuaram a discussão, até ao momento em que o condenado da justiça voltou.
Logo que o tornaram a ver, os três malfeitores não puderam conter a sua surpresa:
- By Jove! exclamou Lewis Navarro, está irreconhecível!
O rosto cuidadosamente barbeado, a roupa asseada, Joê Channel tinha de facto procedido a uma transformação completa, a cabeça coberta com um chapéu de abas largas
absolutamente novo, um lenço de cores à volta do pescoço, as pernas das calças protegidas por "chaparejos" de couro, estava parado, os punhos nas ancas, um cinturão
copiosamente guarnecido à volta do corpo. Durante alguns instantes teve um prazer maligno em fazer malabarismos com os dois Colts que os seus coldres de cor fulva
continham.
- Vá comer agora, indicou o aventureiro.
- com todo o prazer, tenho o estômago pegado às costas, depois de tantas emoções.
- A seguir, recomendou Lewis Navarro, não fique a criar bolor no "Três de Espadas".
E dirigindo-se a Cammage e a Giggler:
--Acompanhem-no onde sabem!
Os dois companheiros aquiesceram com um sinal de cabeça. Meia hora mais tarde, da janela do seu escritório, Lewis Navarro pôde vê-los dirigirem-se rapidamente ao
curral, seguidos pelo novo recruta. Escolheram depressa os cavalos e montaram depois de os terem arreado devidamente. Enfim, sem esperarem por mais nada, desapareceram
na escuridão da noite...
x
A TEIA DA ARANHA
Rosalinda dormiu pouco nessa noite. Fechava inutilmente os olhos, virava-se e revirava-se na cama, o sono e o esquecimento não havia maneira de virem. Na sua imaginação
febril, surgiam-lhe sempre à ideia as aventuras de que tinha sido a heroína. A rapariga também se sentia atormentada pelo seu cruciante caso de consciência. Mais
do que até aí estava persuadida de que o desconhecido que a tinha socorrido quando era levada pelos redemoinhos do Concho River, não era outro senão o prisioneiro
do Catamount! Recordava-se da insistência com que lhe tinha recomendado que não dissesse nada a seu respeito. E prometera. Tão desconcertantes quanto parecessem
as circunstâncias, estava resolvida a manter a sua promessa!
Apesar disso a prova parecia superior às forças de Rosalinda! Como se tinha sentido tentada a denunciar o misterioso desconhecido ao Burgess e ao Bug Dauntless!
Bug Dauntless! Cada vez que pensava no seu companheiro do encontro de uns dias antes, ou que se surpreendia a murmurar o seu nome, a rapariga sentia-se presa duma
perturbação inexplicável. Procurava em vão dominar-se, a recordação do filho do antigo proprietário do Armazém Geral apresentava-se sem cessar ao seu espírito. Quanto
mais reflectia, mais repetia a si própria que ele personificava exactamente o seu ideal! E acabava por acreditar que gostaria de ter
como apoio na vida aquele que tão corajosamente a tinha livrado dos atrevimentos de Lewis Navarro!
Lewis Navarro! Deste, Rosalinda, não podia recordar-se sem tremer! Revia a expressão inquietante que iluminava os seus olhares cobiçosos, ouvia a sua voz ora adocicada,
ora ameaçadora! Desde que se tinha encontrado diante dele no comboio de Abilene, o aventureiro fazia-lhe medo, um secreto pressentimento prevenia-a de que tinha
nele mais do que um inimigo! E não eram os elogios do Tio Ray que podiam afastar estas apreensões!
Quando de manhã a rapariga desceu do quarto para a sala grande, a efervescência provocada pela passagem do xerife e do seu "deputy", não tinha acalmado. Não se falava
senão da dupla desaparição do Catamount e do seu prisioneiro! O facto único de o "ranger" não ter reaparecido para buscar o seu alazão, era do pior augúrio.
- É preciso tomar cuidado, "honey"! não pôde deixar de prevenir Jane Powell durante a refeição. Esse Channel pode andar a rondar na vizinhança!
- Será melhor que não saias do rancho, recomendou Elias Powell.
- Mas eu tinha de ir a Paint Rock!
- Não vais sozinha a Paint Rock, insistiu a Mammy com energia.
Rosalinda parecia muito arreliada com esta contrariedade, quando ouviu uma voz que declarava:
- A pequena vai a Paint Rock. Eu também vou, faremos juntos o caminho!
O Tio Ray interveio; parecia rejuvenescido; uma boa noite de repouso tinha-lhe permitido recuperar a sua lucidez, mas a sua proposta não pareceu seduzir nem o seu
irmão nem a sua cunhada.
?-A Rosalinda fará melhor esperar mais! objectou Jane Powell.
Todavia, Rosalinda tanto fez que os pais consentiram que fosse na companhia do Tio Ray.
- São disparatados os teus pais! resmungava o velhote enquanto cavalgavam lado a lado ao longo do caminho que ia ter a Paint Rock. O pobre do Elias não pensa senão
nos bandidos! Quanto à Mammy, desde há tempo para cá que me dá cabo dos nervos!
A rapariga não respondeu, mas no seu íntimo concordou que de facto a Mammy e o Tio Ray muitas vezes não estavam de acordo! À boa senhora não cessava de mimosear
o cunhado com censuras e conselhos de temperança, donde resultavam cenas constantes no curso das quais o Tio Ray se comportava como uma criança grande, gesticulando
e brincando. Punha sempre uma nota de alegria no ambiente um pouco severo do Bar 35!
- By Jove, é preciso que se viva a velhice! protestava o Tio Ray com indignação. Acho muito natural que o meu irmão tenha satisfação no seu trabalho! Mas na maior
parte do tempo, acha que eu não sou para ele mais do que um empecilho! Ora para que é que hei-de estar a incomodar-me!
Rosalinda procurava por seu lado "limar as arestas" e fazer raciocinar este companheiro de quem ela gostava muito e que desejaria corrigir. Muitas vezes, quando
lhe falava, tinha a impressão de que ele dava mais atenção ao que ela dizia do que aos pais. Não era a sua preferida, a sua afilhada? Às vezes, surpreendia-lhe nos
seus olhos vermelhos e lacrimosos uma expressão de arrependimento, prometia emendar-se para lhe dar prazer, mas eram juras feitas ao vento... Logo que voltava a
apanhar-se diante das cartas e do "whisky", esquecia tudo!
-? Assim como o Navarro... prosseguiu o Tio Ray, continuando a série das suas recriminações. Aí está um tipo catita! Enquanto o teu pai me fecha os seus postigos,
ele abre-mos escancaradamente! "com direito à desforra", diz-me, sem mais nada! Gosto de pessoas assim, sem cerimónia! Assina-se um papel, e está tudo feito! Há
confiança!
Passou nos olhos da rapariga uma sombra, a admiração entusiasta que o seu interlocutor lhe manifestava a propósito do aventureiro, estava ela bem longe de a partilhar,
certamente... E um sentimento de apreensão invadia-a cada vez mais:
- Tio Ray, disse ela logo, interrompendo as dissertações do pobre homem. Queres fazer-me um grande favor?
- God Almighty, mas sabes bem, "honey", que por ti eu faria o impossível!
- Não te peço tanto!
E como o seu interlocutor lhe deitasse um olhar interrogativo:
- Não deves nunca mais assinar os papelinhos do Navarro! Não sabes onde isso te pode levar!
- By Jove! Somos sócios, o teu pai e eu, "honey"! É portanto equitativo que eu receba uma parte apreciável dos ganhos da exploração do Bar 35!
- O Dad entrega-te, cada trimestre, a parte que te cabe, não creio que, portanto, te cause o menor prejuízo!
- Quando me pagar, reembolso o Navarro, e tudo passa. Quando penso que o Navarro nem me exige sequer os juros!
- Resta saber se as importâncias com que te comprometes não ultrapassam as tuas possibilidades!
Rosalinda percebia as dificuldades que podia trazer uma manobra pérfida de parte de Lewis Navarro, mas o Tio Ray defendia-se com uma tal convicção que ela não insistiu
mais.
De resto, chegavam a Paint Rock. A rua principal da pequena cidade apresentava a animação ordinária, algumas carroças estavam estacionadas na praça grande, meia
dúzia de cavalos esperavam na barra destinada à sua prisão, junto do "Sunlight". A rapariga tinha passado ao pé da casa do xerife, quando sentiu um ligeiro estremecimento.
Acabava de ver Bug Dauntless que saía
da porta do Burgess, Por sua parte, reconhecendo a Rosalinda, o "deputy" dirigiu-se-lhe.
O rosto queimado do Tio Ray iluminou-se com um sorriso irónico:
- Hélio honey, sentenciou, a mocidade procura a mocidade. Entrego-te a um companheiro muito mais agradável, muito mais sedutor do que a velha carcaça do teu tio!
O ancião estava encantado com a possibilidade de aproveitar a ocasião para se safar e se encaminhar na direcção do "saloon". Virando-se rapidamente de costas, chegou
ao "Sunlight", enquanto Bug Dauntless estendia a mão à rapariga.
- E então, perguntou logo Rosalinda, encontrou o Catamount?
O "deputy" abanou negativamente a cabeça.
- E o prisioneiro? insistiu ela.
- Muito menos...
Bug Dauntless contou como, depois de terem estado no Bar 35 e em três outros ranchos da região, Burgess e os seus homens tinham ido ao "Três de Espadas". Aí, também
ninguém tinha encontrado vestígios, e Lewis Navarro garantira nessa mesma manhã não ter visto o "ranger" e Channel.
Enquanto o seu vizinho falava, Rosalinda sentiu-se outra vez dominada pela inquietação e pela indecisão. Pensava que lhe teria bastado descrever a sua aventura,
para pôr Bug na boa pista! No entanto, fiel à promessa que tinha feito ao homem dos olhos claros, mostrou-se sempre discreta.
Estavam agora a conversar a meia voz, quando a rapariga viu enrugar-se o rosto do seu interlocutor. Surpreendida, voltou-se e avistou então um cavaleiro que tinha
aparecido e que também se dirigia ao "Sunlight".
- Lewis Navarro! balbuciou como num sopro.
O recém-chegado tinha-se apercebido dos dois jovens, e quando chegou ao pé deles cumprimentou
Rosalinda com solicitude e esta respondeu-lhe sacudindo secamente a cabeça.
Segundo toda a evidência, o aventureiro teria parado e teria abordado Rosalinda se Bug Dauntless não estivesse com ela, mas à vista do seu adversário, o aventureiro
não pôde reprimir uma careta, voltou francamente as costas e dirigiu o cavalo para a barra onde o Tio Ray também já prendera a sua montada pouco tempo antes.
Durante alguns instantes os dois jovens fizeram uma interrupção na sua conversa, olharam Lewis Navarro que, sem parecer preocupar-se com ambos, subia os poucos degraus
que conduziam à entrada do "saloon", e logo a seguir a porta dupla fechou-se sobre ele.
Um sentimento de mal-estar apoderou-se de Rosalinda. Pensou no Tio Ray! Adivinhava-o sentado ao balcão, esperando uma ocasião para se entregar à sua paixão favorita.
Recordou-se da sua discussão de há pouco. Tudo o vento levou! Na presença de um copo de "whisky" e de um baralho de cartas, o pobre homem esqueceria tudo quanto
tinha prometido durante o caminho!
- Que é que tem? não pôde deixar de perguntar Bug Dauntless. Parece inquieta!
- É que, respondeu confusa a rapariga, penso no Tio Ray!
O "deputy" sacudiu a cabeça significativamente: -O seu tio entrou também no "saloon"? Rosalinda contentou-se com afirmar com a cabeça.
- O outro foi ter com ele... Está a ver agora, não é verdade?
- É claro que já percebo!
Bug Dauntless pareceu hesitar, tinha um grande desejo de ir por sua vez ao "Sunlight", a fim de evitar que o aventureiro pusesse o Tio Ray completamente à sua mercê.
Todavia deteve-se logo! Uma tal intervenção não serviria senão para envenenar as coisas!
- Onde vai? contentou-se ele em perguntar.
- Ao Armazém Geral, respondeu.
- Foi lá que a conheci quando era pequenita! Iam continuar a falar quando a aparição de Burgess
interrompeu a conversa. Avistando o seu auxiliar parado a pouca distância, o xerife fez-lhe um sinal:
- Depressa! gritou-lhe, junte-se aos outros! Vamos partir!
Bug Dauntless não se demorou mais, imóvel sobre o selim. Rosalinda viu que ele tratava de procurar os outros cavaleiros do "poss". A despeito da inutilidade das
primeiras pesquisas, iam retomar o inquérito para saberem o que teria sucedido ao Catamount e ao seu prisioneiro.
À rapariga foi prender o seu cavalo a poucos passos apenas do Armazém Geral, depois ocupou-se em fazer as suas compras e quando acabou, saiu. O cavalo do Tio Ray
continuava amarrado à trave do "Sunlight".
Durante um longo momento a rapariga resignou-se a esperar. Fazia um calor intenso e por várias vezes esteve tentada a entrar para ir buscar o velhote, mas mudou
de tenção, tinha uma profunda apreensão logo que pensava em tornar a ver Lewis Navarro.
Passou uma hora mais, o "poss" do xerife já tinha partido há muito tempo. Imóvel, Rosalinda tinha visto Bug Dauntless afastar-se com o Burgess e os seus outros "deputies".
Ao passar, a toda a brida, o rapaz tinha-a saudado com um adeus de mão.
Enfim, a rapariga estremeceu, a porta do "saloon" acabava de se abrir do lado de dentro, dando passagem a alguns homens entre os quais reconheceu logo o Tio Ray
e o Navarro.
- Good gracious! murmurou ela. Em que estado. O Tio Ray titubeava e teria caído se Lewis Navarro
não o tivesse sustido solidamente pelo braço. Os outros brincavam ruidosamente e divertiam-se a lançar invectivas ao pobre velho que tropeçava a cada passo. Os olhos
ansiosos de Rosalinda, pousavam-se no grupo.
- Já lhes disse que há algodão em Atlanta! vociferou o Tio Ray agitando a mão com um gesto largo.
- Vamos, anda, Powell! interveio o aventureiro repelindo o bêbedo que pesava sobre ele com todo o seu peso.
- Há algodão em Atlanta! insistiu o Tio Ray. E há também negros. Vi-os com os meus olhos!
Gesticulando assim, falhou num degrau e pouco faltou para se estatelar no chão, no meio dos risos e dos sarcasmos.
Então a rapariga decidiu-se a avançar. Um sentimento de profunda comiseração dominava neste momento todo o seu ser. Que era aquilo, então aquele destroço inútil
era o seu Tio Ray?
Mas Lewis Navarro tinha notado Rosalinda:
-? Aqui lhe trago o seu tio, Miss Powell, anunciou-lhe.
Sustendo o bêbedo, aproximou-se:
- Ele não coordena muito bem as ideias! acrescentou com um sorriso. Se quiser acompanho-os até ao Bar 35!
- Muito obrigada! quis ela logo livrar-se dele, pois não via com muita satisfação a companhia do aventureiro.
- Pois digo-lhe que há lá negros! retomava o Tio Ray... Se você visse essas bisarmas de bronze...
- Vamos, Powell, interrompeu Lewis Navarro. Um pouco mais de compostura. Não vê aqui a sua sobrinha?
- Ah! a minha sobrinha! Ela nunca foi à Jórgia, a minha sobrinha! Ela não conhece Atlanta! Mas asseguro-lhe que há negros lá em baixo... Negros e bolas de algodão!
Cantou o "Old Man River", gesticulava tanto que ia caindo outra vez, se os seus vizinhos não tivessem aguentado.
- Vamos, acabemos com esse velho imbecil, rabujou Lewis Navarro impacientado. Ponham-no a cavalo!
- Um "cowpuncher" que acompanhava o aventureiro levantou o Tio Ray entre os seus braços robustos, e foi pô-lo no selim. com certo custo, o bêbedo enfiou os estribos,
continuando a falar de Atlanta, do algodão e dos negros... e trauteando o "OW Man River".
- Vá buscar o seu cavalo, Míss Powell, indicou o Navarro, enquanto eu o agarro.
Rosalinda resignou-se. Dois minutos mais tarde, ela voltava, trazendo a sua montada, mas já o aventureiro tinha montado no seu cavalo:
- Acompànho-os, insistiu. Que é que vai fazer sozinha com este velho borrachão?
- Garanto-lhe, defendeu-se ela, aterrorizada com o pensamento de que seria obrigada a sofrer a companhia do aventureiro. Posso bem, sozinha.
- Não consinto, tanto mais que tenho que falar a sério com o seu pai!
- Nesse caso...
Sem ter que dizer, Rosalinda resignou-se. Lastimava imensamente que Bug Dauntless se tivesse ido embora com o "poss"!
Assim, não recusou, mas as suas preocupações aumentaram quando ouviu o Navarro proclamar:
- Este imbecil assinou tantos papéis que é preciso pôr as contas a claro, duma vez para sempre!
Uma ruga de preocupação atravessou-se na testa da rapariga, mas o seu interlocutor logo lhe declarou com um tom melífluo:
- Afinal, tudo se arranjará, MISS Powell! Estou certo de que se mostrará compreensiva!
Pronunciando estas palavras, Lewis Navarro lançou à sua vizinha um olhar de entendimento. Desvairada, não ousou mexer mais os lábios.
- Então! agarre-se, Powell! vociferou então o aventureiro, voltando-se para o Tio Ray. Ponha-se entre mim e a sua sobrinha! É a única maneira de se aguentar no selim!
O trio partiu de Paint Rock no meio de aclamações e da troça de uns vinte curiosos, que tinham vindo ver o bêbedo...
- Falaremos amanhã do algodão e de Atlanta! gritou o velhote, gesticulando montado no selim.
Um movimento brusco do cavalo quase o fez cair. E enquanto se afastavam, Rosalinda, inquieta, observava o desgraçado disfarçadamente.
Durante um certo tempo, cavalgaram todos três sem dizerem nada, no caminho do regresso. O Tio Ray continuava sempre em estado lamentável, saindo por vezes do seu
torpor para proferir palavras desconexas.
A rapariga sentia-se mais atormentada do que nunca. Esta visita do aventureiro ao Bar 35 aumentava ainda mais as suas inquietações. Sem cessar, recordava-se das
palavras que o Navarro lhe tinha dito antes da partida de Paint Rock. Que queria dizer ele com a questão dos papéis assinados pelo Tio Ray? A que catástrofe tudo
isto a levaria juntamente com todos aqueles que ela amava!
Apesar da atitude do aventureiro, que se fazia mais amável do que nunca, Rosalinda mantinha-se na reserva. E quanto mais ela se aproximava do rancho, maior era o
pressentimento de que uma desgraça ia cair sobre ela.
XI
A FACA NO PESCOÇO
Foi a Mammy quem veio abrir, quando Rosalinda e os seus dois companheiros pararam junto do curral. tom Grane veio ocupar-se dos cavalos.
- Isto vai bem! Isto vai mesmo muito bem! assegurava o Tio Ray com uma voz trémula.
Mas a rapariga e Lewis Navarro amparavam ambos o bêbedo, absolutamente incapaz de se pôr em pé.
- Oh! Ray! Em que estado vens! ralhou Jane Powell indignada e juntando as mãos. Como foi isto?
- Depois, contaremos, senhora Powell, interrompeu o aventureiro em tom breve... Por agora, tenho a impressão de que o seu cunhado tem necessidade muito urgente de
repouso!
Não sem dificuldade, fizeram-no subir os dois degraus que havia até ao portão. Rosalinda e a mãe trocaram entre si um olhar aterrado. À rapariga sentia-se terrivelmente
mortificada com este regresso e sobretudo com a atitude condescendente do Navarro! E as poucas palavras que ele lhe tinha dirigido angustiavam-na ainda mais porque
ela pressentia que de um instante para o outro se iria desenrolar no Bar 35 uma cena muito desagradável!
- E então, que é que se passou?
Elias Powell apareceu no corredor; tinha interrompido a leitura do jornal na qual estava mergulhado, intrigado pelo barulho das vozes. Logo que viu o irmão não pôde
conter-se:
- Parabéns! És realmente digno desta casa...
- Mas isto vai bem! Isto vai mesmo muito bem! não cessava de repetir o Tio Ray, cujo rosto rubicundo se inundava com um sorriso aberto.
- Ponham-no em cima do divã do quarto pequeno, ordenou o "ranchman". Quando tiver cosido o "whisky", teremos juntos uma explicação! As coisas não podem ficar para
sempre assim!
- É realmente o que eu dizia à sua filha há pouco, Powell, declarou Lewis Navarro. E é precisamente sobre esse assunto que eu queria ter consigo uma explicação confidencial!
Elias Powell franziu os sobrolhos, não estimava nada o aventureiro, de quem conhecia a reputação e cuja vinda ao Bar 35 lhe parecia de mau augúrio. Até agora, tinha
sempre evitado com cuidado dar-se com ele.
Todavia, Lewis Navarro não pareceu muito afectado pela atitude nitidamente pouco cordial do "ranchman".
- Teria preferido vê-lo noutras circunstâncias, Powell, retomou ele, mas importa, no seu próprio interesse, que seja dada uma solução no mais breve espaço de tempo...
- Uma solução? repetiu o pai da Rosalinda, sem perceber.
- Acredite-me, é absolutamente indispensável!
À rapariga ajudou os pais a levarem o bêbedo para um quarto do rés-do-chão, e quando lá ficou estendido, voltou ao corredor onde o aventureiro ainda esperava, mascando
um charuto que acendera.
Elias Powell ia fazer sinal à mulher e à filha para se irem embora e deixá-lo só com o visitante, quando Lewis Navarro interveio:
- De modo algum! É preciso que a Senhora e Miss Powell assistam à nossa conversa na qual uma e outra, de resto, são directamente interessadas!
O "ranchman" não insistiu; fez entrar o recém-vindo no seu escritório, com Jane e Rosalinda, que os tinham
seguido, e fechou a porta sobre ele, fazendo sentar o Navarro numa cadeira de braços:
- Estou a ouvi-lo, declarou simplesmente. Vamos
ao que há!
O aventureiro pôs-se à vontade no cadeirão, e levando a mão à algibeira de dentro do casaco, contentou-se em dizer:
- É isto, o que há!
Rosalinda estava sentada numa cadeira junto de sua mãe, e não tirava os olhos do visitante. Elias Powell parecia muito calmo, mas apesar de tudo tinha dificuldade
em dominar a impaciência que lhe causava a atitude ao mesmo tempo misteriosa e moderada do seu
interlocutor.
Lentamente, Lewis Navarro, pegou na carteira, tirou dela uns papéis cuidadosamente dobrados, e estendendo-os ao "ranchman", disse:
- Tome conhecimento, tenha a bondade!
com mão febril, Elias Powell desdobrou os papéis. Cada um tinha a assinatura do seu irmão, escrita com mão trémula e diferentes datas.
- Está bem, perguntou atónito, que é isto? Lewis Navarro deixou escapar uma voluta de fumo
do charuto entre os seus dentes amarelados, e depois esclareceu tranquilamente:
- São declarações de dívidas que o seu irmão Ray Powell assinou para mim. A primeira remonta há catorze meses, quanto à última, data de hoje de manhã... ,
Depois, sem esperar que o seu interlocutor lhe dirigisse nova pergunta, o aventureiro acrescentou:
- Anda à volta da bonita soma de trezentos e cinquenta mil dólares!
- Trezentos e cinquenta mil dólares! Está a brincar!
Elias Powell abriu uns grandes olhos assombrados e junto dele Jane e a sua filha interrogaram-no dolorosamente com o olhar. Mas o visitante, continuou com a mesma
calma exasperante:
- Eu esperei com paciência, Powell, mas a paciência tem limites! Tenho muita estima por si e tenho igualmente uma preocupação muito viva pelos seus interesses para
deixar prolongar-se indefinidamente este estado de coisas! Hoje de manhã, no "Sunlight", preveni caridosamente o seu irmão de que não podia conceder-lhe nem mais
um "cent"! E como, por minha parte, tenho importantes assuntos a liquidar antes do fim do mês, manifestei-lhe o desejo de que me pagasse dentro de oito dias!
- Dentro de oito dias?
O "ranchman" passou a mão pela fronte húmida. Tinha a impressão de que esta conversa não pertencia ao domínio da realidade. É claro que sabia, com certeza, que Ray
se deixava muitas vezes levar pela paixão do jogo e da bebida, mas nunca pôde supor que isso o arrastasse a tais extremos.
- Diga-me, Navarro, ousou dizer em voz sumida. Reflectiu bem? Sabe que me é impossível reunir em oito dias uma importância dessas?
- Tenho muita pena, mas os meus próprios credores recusariam certamente conceder-me a mais curta moratória! Nessas condições, não posso fazer outra coisa. Business
is Business! Acredite que me custa muito...
Durante alguns instantes um silêncio pesado oprimiu o ambiente do escritório. Rosalinda via as gotas de suor brilharem na fronte de seu pai. Entre os dedos nervosos,
o "ranchman" folheava as declarações que Ray Powell tinha assinado a seguir às partidas do jogo perdidas.
- Pode fazer a soma, disse tranquilamente Lewis Navarro; verá que está certa! Mas não quis que a quantia de trezentos e cinquenta mil fosse ultrapassada, e é por
isso que vim hoje ao Bar 35 para o informar.
A calma que o aventureiro mostrava era de singular contraste com a agitação e a emoção que manifestavam os seus três interlocutores.
- Não é possível, protestou a Mammy, a primeira a romper o silêncio. Não podemos pagar uma tal soma! Ou então ficamos arruinados...
Elias Powell aprovou com a cabeça. Uma dívida dessas num prazo tão curto, era para ele a catástrofe, a obrigação de vender os seus bens.
Um relâmpago fez piscar as pálpebras do aventureiro. Neste momento, sentia-se senhor da situação. O "ranchman" estava na sua mão. Um sorriso furtivo aflorou aos
seus lábios quando o olhar se dirigiu para Rosalinda. Disse consigo que talvez fosse possível uma transacção, à custa da rapariga. É de crer que dando provas de
diplomacia, pudesse encetar um ajuste. Rosalinda a troco da entrega dos papéis! Seria a única condição que poderia decidi-lo a rasgar as desastrosas declarações
de dívida.
Não teve tempo de planear a menor proposta. Elias Powell endireitou-se bruscamente e depois de ter amarrotado os papéis dentro da mão nervosa atirou-lhos à cara,
gritando-lhe:
- Lewis Navarro, você é um miserável!
- Elias! quis interpor-se a Mammy, aterrada. Mas o "ranchman" não parava, incapaz de dominar
a sua indignação.
- Percebo muito bem o seu jogo, Navarro! Há muito tempo que cobiça o Bar 35, como cobiçou as terras de tantos outros que arruinou com as suas manobras pérfidas!
Por três vezes quis sondar-me e de cada vez deparou com uma recusa formal!
- A cólera cega-o, Powell, quis protestar o aventureiro, que se abaixou para apanhar os papéis caídos no chão.
- Nunca me senti mais lúcido, teimou o "ranchman" com energia. Lamento que toda a gente do Bar 35 não esteja presente para ouvir todas as verdades! Convencido de
que não conseguia nada de mim, estimulou a paixão do meu irmão. Foi você quem o arrastou para o jogo! E estou certo de que ele estava em tal estado
que não podia dar pela descarada batota que você fazia...
- Powell, proíbo-lhe...
A voz exaltada de Elias abafou por completo a do seu interlocutor. Em vão a sua mulher e a sua filha o incitavam com o olhar para que se calasse, para não envenenar
a situação já tão azeda, e continuou:
- Você é o que há de mais vil nesta região, Navarro! E eu acho-o tanto mais perigoso quanto é certo que disfarça as suas manobras criminosas sob a máscara de um
homem íntegro! Mas tome cuidado, um dia virá em que todas essas torpezas virão à luz do dia! Então soará a hora da justiça implacável e todas as suas vítimas serão
vingadas!..
O aventureiro teve um sorriso de piedade, e dirigindo-se a Jane Powell:
- Eu desculpo o seu marido, Senhora Powell... Compreendo a sua surpresa e a sua perturbação, que lhe fazem pronunciar a meu respeito palavras injustas e lamentáveis!
Mas eu sei que ele reflectirá... Mostrar-se-á depois mais razoável... ,
- Mas, Sr. Navarro, protestou a excelente senhora, o Elias não poderá ser responsável pelos desvarios do desgraçado Ray!
- Os dois irmãos são sócios; ficam, portanto, solidários, interrompeu o aventureiro em tom seco. Acredite, se se tratasse de partilhar benefícios, ninguém se apressaria
a protestar. Mas como a questão é de reembolsar...
- Repito-lhe, Navarro, é-me impossível reunir trezentos e cinquenta mil dólares num prazo de tempo tão curto. Se me concedesse um ano, seis meses mesmo, garantidos...
O tom do "ranchman" tinha-se adoçado, mas o seu pedido encontrou uma decisão inabalável:
- Completamente impossível, disse o aventureiro. Os meus credores não me concedem prazo. Porque hei-de eu ser mais realista do que o rei, sobretudo
depois das palavras amáveis que há pouco disse a meu respeito?!
- Mas, Sr. Navarro...
A Mammy quis ainda intervir, suplicando, mas o aventureiro levantou-se bruscamente da cadeira:
- Não insisto, declarou com voz cortante. Fará o que quiser. Estamos hoje a 2 de Julho. Se em 10 de Julho não tiver pago, só a venda do seu rancho poderá permitir
que eu embolse o meu dinheiro!
Um sorriso mau passou pela máscara dura do aventureiro, e com um gesto enterrou o chapéu de feltro na cabeça e ia despedir-se quando, de repente, Rosalinda se levantou,
ao pé dos seus pais aniquilados:
- com licença, Sr. Navarro! interveio em voz vibrante.
Até então a rapariga não tinha dito uma única palavra. com o coração apertado, assistira à discussão que pusera em conflito os dois homens e não reprimira um estremecimento
quando viu durante alguns instantes os olhares do malfeitor dirigirem-se para ela. Num momento, teve consciência de que ia constituir o preço da transacção; a exasperação
do "ranchman" levara a discussão num outro sentido.
- Que deseja dizer, Miss Powell?
Lewis Navarro deteve-se, talvez esperasse qualquer boa nova para ele, mas a fronte enrugou-se quando a ouviu declarar com segurança:
- Descanse, Sr. Navarro, ficará paga a 10 de Julho!
- Tão grande certeza espanta-me, não pôde deixar de responder o aventureiro. O seu pai faz uma ideia mais justa da situação.
- Já lhe disse que ficará pago na data indicada! Rosalinda tomou um ar grave, o olhar altivamente
fixado no visitante, e junto dela os pais abriam grandes olhos de espanto.
- Mas como é que tu podes... ia o "ranchman" perguntar.
A rapariga não deixou acabar a frase:
- Venderemos os Herefords! declarou com convicção.
- Os Herefords! protestou logo Elias Powell. É impossível! Sabes muito bem que são para ti, que te pertencem... Nessas condições não quero comprometer o teu futuro...
- Venderemos os Herefords! E com algumas reservas de que dispomos, o resultado da venda permitir-nos-á, sem dúvida, libertarmo-nos!
Lewis Navarro mordeu os lábios.
- Na verdade, Miss Powell, objectou, creio que está a ter ilusões inúteis! Como é que poderá, daqui a oito dias, ter feita tal transacção?
- Graham, de San António, comprará a manada e pagará em vinte e quatro horas, explicou a rapariga, sempre resoluta. Há meses que anda à volta de nós e que quer os
"longhorns"! Como são de raça pura e sem contestação os mais bonitos e a maior quantidade da região, estará de acordo com todas as nossas condições. Tem tanto medo
de que os vendamos a outros! Ele procura sobretudo animais seleccionados!
- É absolutamente escandaloso que por causa do teu tio, comprometas assim o teu futuro! quis ainda dizer Elias Powell.
Mas Rosalinda voltou-se de novo para o visitante, e apontou-lhe a porta:
- Agora, Sr. Navarro, declarou, não o demoramos mais! Não tem nada que fazer aqui no Bar 35!
- Fará bem não voltando cá, acrescentou o "ranchman", que parecia sair, enfim, da sua prostração.
O aventureiro esboçou um sorriso que parecia uma careta.
- Já que é assim, murmurou entre dentes, não insisto, mas tomem cautela! Até ao lavar dos cestos é vindima!
- Nem mais uma palavra! Quer que eu própria o ponha lá fora?
Apesar da bela segurança que afectava, Lewis Navarro não se sentia muito tranquilo, olhou com desdém para o "ranchman" e para as duas mulheres, e saiu precipitadamente.
Durante alguns momentos, o trio ficou silencioso. Pela janela viram o visitante afastar-se em grandes passos até ao sítio onde tinha prendido o cavalo, e quando
estava longe, Elias Powell virou-se para a filha:
- Que fizeste tu, "honey"? exclamou em tom de censura. Eu nunca teria proposto...
com um gesto, Rosalinda impôs silêncio:
- Era a única maneira de sair dali, afirmou. Fazendo isto, tenho a consciência de cumprir o meu dever!
- Mas afinal, opinou a Mammy, nada nos obrigava a um tal sacrifício!
- Seria pior o sacrifício se o Navarro tivesse triunfado! interrompeu Rosalinda com firmeza.
Estendendo a seguir a mão ao pai, acrescentou:
- Agora é preciso trabalhar como se tudo seguisse bem. Hoje à tardinha vamos ver os Herefords com tom Grane! E telefonaremos ao Graham para nos entendermos sobre
a data da transferência da manada.
- Será uma transferência de grande envergadura, objectou Elias Powell. Graham recebe sempre em Santa Ana os animais seleccionados que ele compra nas vizinhanças
de Concho River. E os Herefords são mais de mil! É a manada de animais de raça mais importante da região!
- Que importa... Faremos a sua condução até Santa Ana!
Enquanto Rosalinda e os seus pais discutiam sobre as consequências da sua visita, Lewis Navarro batia a toda a pressa para Paint Rock. O aventureiro tinha dificuldade
em dominar o despeito e a exasperação que sentia. Quando ia para o Bar 35, pensava ter o "ranchman" à sua completa mercê e esperava até fazer alusão a um casamento
possível entre ele e Rosalinda.
A proposta imprevista da rapariga fazia aluir lamentavelmente as suas esperanças, como se fosse um castelo de cartas.
- Ela tem razão, resmungou Elias. Graham comprará e paga pronto! Não tinha pensado nos Herefords.
Mas à medida que prosseguia na sua correria a cavalo, Lewis Navarro esforçava-se por reagir:
- Os Herefords irão passar para Santa Ana, dizia consigo. É preciso que sejam interceptados antes disso! Se conseguíssemos fazer uma razia de toda a manada, adeus
dólares do Graham... E voltaríamos de novo a ser senhores da situação!
O aventureiro não deixava de ter em conta os riscos de tal aventura, mas persistia na empresa e estava decidido a jogar tudo por tudo. O caso, além disso, apresentava-se
favorável quando pensava que dispunha agora de um auxiliar de envergadura na pessoa de Joé Channel! Sem admitir dúvida, o antigo prisioneiro do Catamount poderia
ter êxito num golpe de mestre, tanto mais que o terreno entre Paint Rock e Santa Ana prestava-se às mil maravilhas para emboscadas e ataques inesperados!
Já Lewis Navarro arquitectava a operação. Não era a primeira de que o "gang" se saía bem enquanto ele procurava um álibi a jogar no "Sunlight".
- vou encontrar Cammage e Channel, murmurou. Saberemos a data da condução do gado. Depois Powell lastimará ter-me afastado de maneira tão deplorável!
E enquanto voltava assim para Paint Rock, no Bar 35, sempre estendido no divã, o Tio Ray, o responsável por esta situação, continuava a ressonar como um bem-aventurado!
XII
OS HEREFORDS
- Tudo poderá estar pronto para amanhã 5 de Julho, Miss Powell, assegurou tom Crane.
com um gesto, o contramestre designava a grande manada que se agrupava nessa ocasião à volta de um fiozito de água, vizinho do Concho River. A rapariga pôs-se de
pé sobre os estribos para contemplar os "longhorns" e teve prazer em aspirar o cheiro forte de animais, que o vento ligeiro lhe trazia.
Após alguns instantes, desenhou-se uma expressão melancólica no rosto de traços correctos de Rosalinda. À despeito das aparências e da perfeita serenidade que ela
afectava quando se encontrava diante dos pais, custava-lhe muito separar-se dos animais!
Quantas vezes já, Graham, que os admirava e os queria comprar, se tinha esbarrado com uma recusa delicada mas categórica. Na véspera, ela surpreendera a exclamação
satisfeita que ele tinha feito quando lhe telefonou para San António dizendo que seu pai consentia na venda! E logo a seguir ficara assente que o pagamento se efectuaria
logo que tivesse feito a entrega dos animais em Santa Ana, aos cavaleiros da equipa de Graham.
Por três vezes Rosalinda foi a cavalo até aos limites do Bar 35 para contar e admirar os seus Herefords. Agora não conseguia dominar a opressão que a constrangia
quando pensava que todos os seus animais se iam embora para satisfazerem ao capricho de um bêbedo!
O Tio Ray, mais indiferente do que nunca, tinha ouvido uma severa repreensão do seu irmão e da sua cunhada quando recobrou a lucidez, mas parecia, quem o ouvisse
falar, que ele achava esta venda uma coisa natural! Via o caso com a sua mentalidade de criança grande. E se Elias decidisse desfazer a sua sociedade, teria aceitado
com uma serena filosofia!
- É pena... Uns bichos tão bonitos! Podíamos conservá-los ainda um ano!
A voz rude de tom Crane tirou a rapariga das suas reflexões amargas. O contramestre admirava-se de uma decisão tão brusca, tanto mais que até agora Elias Powell
tinha sempre teimado em não vender, mas não era daqueles que discutem as ordens.
- Vem connosco, Miss Rosalinda? perguntou.
- É claro, respondeu, acompanharei os animais e o Dad também!
- Santa Ana! resmungou tom Crane, é uma tirada diabólica num tempo tão quente! E num terreno que...
- Que importa! Partiremos amanhã de manhã às seis horas!
- O. K. À equipa estará pronta!
Rosalinda fez o cavalo dar meia volta e despediu-se do contramestre depois de ter dirigido um último olhar à manada, e foi a todo o galope ao longo da margem do
Concho River. Grupos de patos esvoaçavam ruidosamente com a sua aproximação.
Durante quanto tempo cavalgou ela ao acaso? Não deu por isso. Um desvio brusco da montada subtraiu-a aos seus pensamentos absorventes, e escapou-lhe de repente uma
exclamação quando avistou um homem que surgiu do meio dos juncos.
- Olá! gritou assustada e puxando as rédeas.
O cavalo parou, resfolegando, a cavaleira recompôs-se da surpresa e reconheceu o seu salvador de dias antes. O desconhecido aproximou-se, tendo na mão um
magnífico pregado que pescara um pouco mais longe, a montante do rio.
- Ah! é o senhor! exclamou.
- Sou, respondeu o homem dos olhos claros, com um leve sorriso. Como vê, cá me vou arranjando como posso!
Acabrunhada por todas as suas preocupações, a rapariga esquecera o seu salvador; a perspectiva da venda dos Herefords e a condução dos "longhorns" para Santa Ana
tinham sobreposto na sua ideia qualquer outra preocupação. Apesar de tudo, estava convencida de que o desconhecido e o prisioneiro do Catamount eram uma única e
mesma personagem.
- Se tivesse sabido, disse ela, deixando-se escorregar do cavalo para o chão, ter-lhe-ia trazido algumas provisões!
- Provisões? Seria inútil! ripostou o homem dos olhos claros. Ontem apanhei um pato e descobri ovos... Esta região do Concho River é o verdadeiro país da abundância...
Deixando a montada pastar a erva à sombra dos salgueiros, Rosalinda aproximou-se do desconhecido que segurava na mão o pregado cujas escamas reflectiam os raios
do sol.
- Se quer dar-me o prazer de o comer comigo, Miss Powell, propôs, convido-a com o maior gosto!
- Muitíssimo obrigada! recusou logo a rapariga. Depois abordando outro assunto:
- Porque é que fica aqui? perguntou. Não sabe que andam à sua procura?
- À minha procura?
Catamount fingiu surpresa, e teve dificuldade em reprimir um sorriso quando a sua interlocutora acentuou:
- Desde que fugiu, começaram as investigações. O xerife de Paint Rock e o seu "poss"...
- Esteja descansada, interrompeu o homem dos
olhos claros, o xerife e o seu "poss" não me fazem medo!
- Então, objectou Rosalinda, presa de um sentimento de curiosidade bastante compreensível, porque é que se esconde? Porque fica nos domínios do Bar 35?
- É que tenho excelentes razões para isso, respondeu logo o "ranger". Não lhe disse há pouco que se estava bem aqui? Conhece certamente o provérbio: "Para vivermos
felizes, vivamos escondidos"?
Vendo um canto à sombra, Catamount pôs o seu prisioneiro sobre a erva, sem se preocupar com os saltos que o peixe dava ainda.
- Quer sentar-se um instante? perguntou. Rosalinda acedeu. De facto, o seu salvador não lhe
fazia de modo algum o efeito de um tenebroso bandido e não sentia na sua presença qualquer apreensão! Em todo o caso, se ele era um "bad man", ela achava-o um "bad
man" infinitamente simpático. O seu olhar claro exprimia franqueza e lealdade. Era no género de Bug Dauntless!
- Disse-lhe o meu nome, e afinal não me quis dizer o seu!
- Admitamos que sou o Sr. Ninguém! respondeu simplesmente o Catamount. Em todo o caso já lhe provei que não tem nada a recear de mim, e espero que se tenha mantido
fiel à sua promessa!
- À minha promessa?
- Sim, senhora. Não ficou combinado que não devia contar a ninguém o nosso encontro?
- Tão estranho quanto isso lhe possa parecer, fui discreta! Aliás, eu tinha outras preocupações muitíssimo mais prementes!
Agora, Rosalinda decidiu-se de boa vontade a confiar-se ao seu companheiro de acaso. Enquanto o Concho River corria rápido a alguns passos de distância, explicou
que devia acompanhar no dia seguinte uma leva de "longhorns" para Santa Ana. Teve, porém, o
cuidado de não fazer a mínima alusão à ameaçadora visita que Lewis Navarro tinha feito ao Bar 35.
O Catamount ouvia sem querer interromper a narração da sua vizinha, tinha colhido uma erva e enrolava-a maquinalmente no dedo. E quando, por sua vez, começou a falar,
foi para contar alguns episódios das levas de animais, nas quais ele próprio tinha participado.
- Tomem cuidado com os "rustlers"! decidiu-se a prevenir.
-- Estamos bem armados para nos defendermos, respondeu Rosalinda com voz firme.
Conversaram ainda dez minutos, mas como o Sol começava a cair no horizonte, a rapariga consultou o seu relógio de pulso e levantou-se bruscamente:
- Good gracious! No rancho devem estar inquietos, estou atrasada! Bye, bye!
- Bye, bye! respondeu o Catamount, e felicidades para amanhã!
Ela afastou-se rápida e ágil; o homem dos olhos claros viu-a encaminhar-se e montar no cavalo, para desaparecer em poucos instantes por detrás da linha dos salgueiros.
Então resolveu levantar-se também, pegou na sua faca de algibeira, e matou o pregado que continuava a agitar-se e dispôs-se a tirar-lhe as tripas antes de o assar
numa fogueira que acendeu depois.
O homem dos olhos claros parecia ter tirado partido desta vida escondida e solitária. Após a agressão, dias antes, acantonou-se na circunvizinhança desse mar de
juncos e de cada vez que um ou mais cavaleiros se aventuravam pela pista dos cavaleiros do Concho River, tinha o cuidado de se esconder em sítio de vegetação mais
espessa. Foi assim que o "ranger" viu por duas vezes o Burgess e o seu "poss". O xerife, que procurava Catamount e o seu prisioneiro, não tinha a mínima suspeita
de que o homem dos olhos claros estivesse também à espreita na sua vizinhança imediata.
Uma tal atitude de reserva de parte do Catamount, poderia na verdade causar surpresa, mas, depois do ataque de que tinha sido vítima, e do qual escapara graças à
sua manha, o "ranger" decidira fazer-se morto, isto é, ficar entre bastidores e esperar tranquilamente os acontecimentos. A probabilidade de recuperar o seu prisioneiro
era bastante frouxa, parecia esperar ali qualquer coisa que não podia deixar de acontecer de um dia para o outro!
Nessa mesma tarde, nada mais veio perturbar a quietude do solitário, assou o pregado e comeu uma parte dele com apetite. Só se sentia arreliado por lhe faltarem
tabaco ou cigarros.
Ao pôr do Sol, a superfície espelhenta do Concho tornou-se púrpura sob a carícia dos últimos raios do astro diurno. Resignado, Catamount tinha-se sentado na margem
e deixava pender as pernas quando, de repente, estremeceu. Ouviu-se um pio a pouca distância, à esquerda.
O "ranger" inclinou-se, apurando atentamente o ouvido. Experimentou em vão surpreender a ave nocturna nos ramos das árvores próximas. Um segundo, depois um terceiro
pio, e percebeu que se tratava de um sinal.
A erva, por trás do homem dos olhos claros era alta, e este começou a rastejar através da obscuridade que principiava. A pista estendia-se a uns vinte passos mais
longe. O tronco de um velho salgueiro permitia-lhe esconder-se mesmo à justa.
Então, o ouvido experimentado do "ranger" percebeu nitidamente a aproximação de um cavaleiro. Do seu lugar, distinguiu dentro de pouco a forma confusa de um homem
que se aproximava em passo rápido do cavalo.
O recém-chegado parecia procurar alguém. Chegado a pouca distância do esconderijo do Catamount, parou o animal e inclinou-se, parecendo inquieto.
O "ranger" levou a mão à coronha do seu Colt, os
olhos penetrantes, habituados à escuridão, diferençavam o cavaleiro cujos modos lhe pareciam agora conhecidos. Veio-lhe logo aos lábios um nome: Channel!
Não havia dúvida possível, era com certeza o antigo prisioneiro de Catamount!
Durante alguns instantes o homem dos olhos claros concentrou-se bem, e parecia que deveria passar à acção e precipitar-se sobre o recém-vindo, mas ouviu um novo
pio, em direcção oposta, desta vez. Surgiu um segundo cavaleiro, em sentido inverso, seguindo a linha dos salgueiros.
- Olá! És tu, Cammage?
- Sou eu, Channel!
Os dois cavalos deram ainda alguns passos e juntaram-se. Do seu refúgio, o Catamount via nitidamente os dois homens, pôs-se muito quieto, evitando com o maior cuidado
produzir o menor estalido que trairia a sua presença.
- Então?
O antigo prisioneiro do "ranger" perguntava a Den Cammage, que se inclinava para ele, respondendo:
- É amanhã... Ouvi a um "cowpuncher" no "Sunlight"... Partem às seis horas!
- Direcção Santa Ana!...
- Santa Ana, é claro!
- O "boss" está prevenido?
- Já sabe, vai passar todo o dia em Paint Rock, mas dará os pormenores necessários!
- Começava já a achar muita demora!
- Tu tinhas-me fixado encontro aqui... Era indispensável! Em Paint Rock ter-te-iam reconhecido. Burgess e os seus "deputies" estão cansadíssimos!
- Hum! Amanhã poderão cair-nos em cima!
- Não há perigo! O "boss" soube tomar as suas precauções para os tornar absolutamente inofensivos. Ele deve fornecer certos elementos ao xerife que pareçam capazes
de o lançar numa boa pista...
- Já estou a ver! Enquanto afasta esses "gentlemen,
arranjando para si próprio um indispensável álibi, nós actuaremos todos juntos!
O Catamount não tinha perdido uma única palavra desta conversa interessante. Os dois sequazes não suspeitavam de modo algum da sua presença na mais próxima das vizinhanças.
Joê Channel recomeçou depois de alguns instantes:
- Onde é que será o ataque?
- Em Brushwood Plain.
- Óptimo. Os Herefords assustados dispersar-se-ão por toda a selva e pelas ervas mais altas.
- Eu darei o sinal do ataque. Tu encarregas-te de conduzir o "gang"!
- Está descansado, lá disso entendo eu! Mas, e os outros?
- Os outros estão preparados e todos envaidecidos! Houve uns que temiam, ao princípio, terem a sorte do Matthewson e do Tip Giggler, mas o "boss" conseguiu rapidamente
convencê-los!
- com argumentos sonantes e chorudos?
- Pois claro. É a melhor maneira de convencer os mais hesitantes!
- Enfim, espero que saberás distinguir-te. Como é o primeiro caso em que tomas parte connosco...
- Tenho razões excelentes para pensar que o "boss" não terá saudades do Matthewson!
O Catamount continuava imobilizado no meio da noite já completamente fechada, e ter-lhe-ia sido fácil neste momento intervir e surpreender os dois apaniguados que
poderia manter a distância sob a ameaça da sua arma, mas nada fez, contentando-se em espiar e em reter cuidadosamente todos os pormenores que Den Cammage transmitia
ao seu antigo prisioneiro.
Mas o contramestre do "Três de Espadas", aconselhava ainda o seu interlocutor:
- Esperaremos em Big Point, junto dos rochedos, na proximidade de Brushwood Plain. Está lá antes da alvorada, e faze o possível por evitar Paint Rock
quando fores! Se te reconhecerem, tudo se arrisca a que fiques comprometido!
Os dois companheiros trocaram ainda algumas palavras sem grande importância e separaram-se, cada um tomando uma direcção diferente, Cammage seguindo directo para
Paint Rock, enquanto o outro galopava a toda a brida ao longo do Concho River.
O martelamento surdo dos cascos dos dois cavalos diminuiu depressa para logo se extinguir completamente, e Catamount ficou só, por trás do velho salgueiro que tão
oportunamente o tinha escondido do olhar indiscreto do seu antigo prisioneiro e do contramestre de Lewis Navarro!
- Enfim! Parece-me que desta vez vamos poder operar com grande certeza.
O "ranger" parecia sacudir bruscamente a letargia em que estivera mergulhado desde a agressão.
- Que pena que eu esteja agora separado do Mezquita! disse consigo próprio.
Mas os ranchos eram muitíssimos na região e o homem dos olhos claros pensava poder encontrar uma montada que era indispensável para a realização dos seus audaciosos
projectos. Voltando a passos lentos para a margem, caiu durante uns momentos em profundas reflexões.
- Não há dúvida possível, disse consigo, trata-se dos Herefords do Bar 35!
O Catamount recordava-se das palavras que lhe tinha dito Rosalinda antes de se despedir dele. Sabia qual era a importância e o valor da manada, mas os pormenores
que tinha conseguido surpreender iam permitir-lhe manobrar e empenhar-se numa operação que esperava que fosse decisiva.
- Eles partem às seis horas do rancho, murmurou. Os outros estarão desde as quatro horas em Big Point! É preciso que eu, seja de que maneira for, esteja lá em baixo
primeiro do que eles!
O homem dos olhos claros sentia-se neste momento animado por uma energia nova. Esquecia as horas aborrecidas que tinha sido obrigado a passar desde a agressão e
a evasão do seu prisioneiro. A ocasião de se vingar oferecia-se-lhe agora, ia segurá-la bem e sentia-se decidido a ir até ao fim!
A noite estava escuríssima quando o "ranger" abandonou a zona onde se tinha escondido e onde vivera solitário. Resolutamente, seguiu durante um momento o curso do
rio e depois obliquou através da região cultivada. Uma hora mais tarde, avistou à sua direita um grupo de cavalos que descansavam em volta de um velho carvalho.
Então, assegurando-se com um rápido golpe de vista de que não havia guarda na vizinhança, afastou os arames farpados e meteu-se para dentro dessa barragem.
Alguns minutos mais tarde, montado num cavalo de que se apossou, galopava a toda a força em direcção de Big Point.
XIII
À ESPREITA
- Olá, velho camarada, fui buscar-te dentro dos limites do Bar 35! Entregar-te-ei ao teu proprietário quando tiver recuperado o Mezquita!
Catamount afastava-se agora no meio da noite, não parecendo de modo algum embaraçado com a falta de selim e de rédeas. Sentia-se envolvido a toda a volta por uma
obscuridade propícia, os cascos da sua montada pousavam sem barulho sobre a erva densa. Desde a sua mais tenra infância, o "ranger" estava habituado a deslocar-se
no meio da noite, conhecia a distância que separava o vale do Concho River de Big Point, onde os cavaleiros do "gang" tinham marcado encontro. Este espaço de tempo
era largamente suficiente para fazer trinta milhas e meter na direcção do Colorado.
Agora, o homem dos olhos claros podia agir com precisão. As palavras trocadas entre Channel e o contramestre do "Três de Espadas", que tinha surpreendido tão oportunamente,
iam permitir-lhe organizar o seu plano de campanha.
O objectivo que o Catamount se propunha atingir era muito claro. Por todos os meios esforçar-se-ia por aniquilar o ataque que os bandidos preparavam, e sem dúvida
esperava muito dos resultados da empresa, porque murmurava enquanto seguia no cavalo:
- Tenho excelentes razões para pensar que antes do fim da manhã teremos feito uma limpeza decisiva!
O "ranger" parecia ter esquecido completamente o seu recente desaire e a desconcertante facilidade com que
o seu prisioneiro conseguira escapar-lhe. Neste momento não pensava senão em preservar os Herefords que Elias Powell e a sua filha deviam levar para Santa Ana com
a sua equipa.
Quando chegou a um sítio em que podia atravessar, Catamount deixou a margem e fez o cavalo meter-se ao Concho River. De começo, o cavalo resfolegou e quis resistir,
mas o cavaleiro soube impor-lhe a sua vontade.
- Então, velho camarada!
Uns instantes depois o animal enfiou pelo rio com água até às espáduas, por duas vezes ia perdendo o pé e seria levado pela corrente bastante violenta, mas a firmeza
do homem dos olhos claros aguentou-o e ao fim de três minutos atingia a margem oposta.
Catamount fez o seu corcel descansar durante alguns segundos. Enquanto se sacudia, enlameando a erva próxima, o "ranger" passeava um rápido olhar à sua volta.
Tudo parecia calmo, as nuvens continuavam a passar no céu, filtrando por vezes um vago raio de luz, deixando entrever um trecho estrelado, mas o cavaleiro preferia
que a escuridão propícia continuasse a ser densa e a protegê-lo com o seu manto de sombra.
--A caminho, agora!
O cavalo, vigorosamente apertado entre os calcanhares como esporas, lançou-se de novo, depois de ter contornado um pequeno maciço de algodoeiros, e o Catamount chegou
às cercanias de uma região muito mais angustiante do que a que acabava de atravessar depois que deixara os limites do Bar 35. Colinas tornavam o horizonte ondulado,
cobertas aqui e acolá por pequenos bosques. Terrenos incultos onde crescia uma selva muito emaranhada estavam lado a lado com pastagens rodeadas por arames farpados.
Animais pastavam nas proximidades, e o vento levava ao vagabundo nocturno o cheiro forte que há tanto tempo lhe era familiar. Por muitas vezes, o cavalo que galopava,
tinha que abrandar o passo, os espinhos
prendiam-se nos calções do cavaleiro, os caules dos arbustos caíam de novo e açoitavam-lhe o rosto.
A despeito das dificuldades que cresciam sem cessar, Catamount parecia conhecer admiravelmente a região, parava por vezes, estudando atentamente com o olhar o cenário
pouco visível, depois retomava a caminhada, evitando cuidadosamente aventurar-se na vizinhança dos ranchos de que ele, aqui e acolá, avistava algumas luzes disseminadas.
Uma nova linha de colinas erguia-se para o norte. Em pouco tempo o homem dos olhos claros chegou a uma espécie de desfiladeiro bastante estreito. Depois de ter esperado
um momento no seu acesso, como precaução para não ser surpreendido, fez entrar nele o corcel, mas sem dúvida temia qualquer complicação neste sector que se ia tornando
perigoso à medida que se aproximava de Big Point, pois pegou no seu Colt, o dedo no gatilho, pronto para todas as eventualidades, e pôs o animal a passo.
Havia agora uma obscuridade, a mais completa no meio da passagem estreita. Por vezes os cascos do cavalo topavam num rochedo ou num calhau, aumentando as apreensões
do Catamount que receava constantemente ser surpreendido.
Quando chegou à saída do desfiladeiro, o "ranger" sentiu-se aliviado de um grande peso. Alguns rochedos de diferentes dimensões emergiam dos silvados de um lado
e do outro da pista que começou a seguir, o céu descobria-se e o fino crescente lunar aparecia mais frequentemente entre as nuvens.
- Creio que será prudente esconder-te agora em algum sítio, velho camarada! murmurou o Catamount, apeando-se lestamente.
Procurou um sítio onde deixar a montada e descobriu uma pequena concavidade natural rodeada de silvados, levando para lá o animal, e fazendo-lhe uma festa, recomendou:
- Agora tens que esperar. Voltarei a buscar-te em momento oportuno!
Um pequeno regato serpenteava entre os silvados, a erva era bastante abundante, por isso o "ranger" não se sentia inquieto quanto ao passadio da sua montada de improvisação.
Escalando de novo a rampa, chegou ao vértice de uma pequena eminência.
Agora, a paisagem aparecia mais nítida sob os raios pálidos da Lua, as estrelas cintilavam num céu donde o vento tinha já varrido todas as nuvens. A menos de meia
milha à direita, o homem dos olhos claros avistou uma massa acinzentada.
- Big Point! disse consigo.
Era ali, com efeito, o sítio onde os cavaleiros do "gang" tinham combinado o encontro.
Um pouco mais longe, mal visível nas trevas, a pista dirigia-se através duma vasta extensão de silvados que se prolongava quase até ao vale do Colorado, direito
a Santa Ana.
Tal sítio era bem escolhido para armar uma emboscada; as moitas em grande quantidade permitiam aos assaltantes esconderem-se e manobrarem à sua vontade.
De repente, Catamount deixou de contemplar o cenário nocturno. A pouca distância, à esquerda, ouviu-se um pio, logo seguido por mais dois.
- Olá! disse consigo, estes "gentlemen" chegam já!
Preocupado com que não dessem por ele, o "ranger" deixou-se cair de ventre para baixo, apertando sempre na mão o seu Colt, pronto para toda e qualquer eventualidade.
Então, a menos de trezentos passos, viu silhuetas de cavaleiros avançando em fila.
- Um! Dois! Três! Quatro! contou ao todo Catamount.
O grupo avançava rapidamente. Chegado à vizinhança imediata de Big Point parou, parecendo esperar.
Passaram alguns minutos. Do seu lugar, o "ranger" avistava vagamente os cavaleiros que esperavam, montados. Calculou logo que se não tratava senão de um primeiro
grupo. O ataque da manada exigia um efectivo importante e a reunião do "gang" ia certamente prosseguir e intensificar-se.
Enfim, mais pios perturbaram o silêncio nocturno, e desta vez foi um grupo importante, cerca de uns quinze cavaleiros que apareceram, metendo na direcção do rochedo
grande ao pé do qual esperavam os quatro homens da guarda avançada.
Imóvel, o "ranger" contou os recém-chegados que se juntaram aos seus companheiros. Alguns começaram a discutir, mas Catamount estava ainda muito longe para poder
ouvir as suas palavras.
- Talvez já estejam todos! disse consigo o homem dos olhos claros.
Cada vez com maior curiosidade, o "ranger" decidiu aproximar-se do "gang", usando de mil precauções, deixando-se deslizar ao longo da rampa, detendo-se muitas vezes
para se assegurar de que os outros não procuravam reagir.
Neste momento os cavaleiros reuniam-se. Den Cammage estava à cabeça do grupo mais importante... E entre os quatro cavaleiros que tinham chegado primeiro a Big Point,
Catamount não teve dificuldade em reconhecer o seu antigo prisioneiro Joê Channel!
- Olá, vocês são pontuais! falou em primeiro lugar o contramestre do "Três de Espadas".
Saltando do selim, foi ao encontro de Channel que também se apeara do cavalo.
- Estão todos? perguntou o evadido, deitando um golpe de vista para o segundo grupo imóvel e silencioso.
- Giggler deve vir ter connosco, informou Den Cammage. Mas com o braço ligado, não deve ser-nos uma grande ajuda!
- Não temos precisão de aleijados! sentenciou
Joê Channel. Do que precisamos, antes de mais nada, é de homens decididos, habituados a este género de operações!
- Não tenha receio; todos os que me acompanham são escolhidos um por um! Alguns entraram na história de Green Canon, e estão com o maior empenho em tirar a desforra!
E o "boss"?
- O "boss" está onde deve estar! Actuará de tal maneira que ninguém poderá suspeitar dele!
- O xerife e o seu "poss"?
- Foram na direcção de San Angelo! O "boss" arranjou as coisas de modo a convencê-lo de que se tinha dado uma agressão ao fim da noite nesse sector. Foram para lá
acudir ao fogo!
- O. K.! Nessas condições, temos o campo livre!
- A nós os Herefords do Bar 35!
Os dois companheiros pareciam seguros do resultado da operação que preparavam. Graças às precauções e iniciativa do "boss", poderiam operar com um mínimo de riscos.
Como sempre, saberiam beneficiar da surpresa. Uma vez feita a razia na manada, levá-la-iam para lugar seguro! E graças à ausência de Burgess e dos seus "deputies",
poderiam gozar do prazer de algumas horas que lhes permitiriam porem os Herefords fora de alcance.
--Apeiem-se todos! comandou o contramestre.
Os "rustlers" obedeceram em silêncio, e só um deles perguntou:
- Quem fica de guarda aos cavalos?
A resposta do contramestre não se fez esperar:
- Sandro Filippi! São ordens!
O que lhe valeu logo um protesto violento de parte do "cowpuncher" que tinha designado:
- Perdão! Sou sempre eu! Antes preferia...
- Quem manda aqui sou eu! Não tenho o hábito de me importar com as preferências de cada um! Filippi ficará de guarda aos cavalos!
O "cowpuncher" calou-se e não refilou mais. Já os
seus camaradas tinham saltado dos cavalos, fatigados, e resignou-se a seguir o seu exemplo.
- Que horas são? perguntou Den Cammage.
- Quatro horas e cinco, respondeu Channel com exactidão.
- By Jove, temos ainda imenso tempo! Não partem senão às seis do Bar 35. Não chegarão antes das oito horas, pelo menos!
- Tanto melhor! Estaremos à vontade para nos organizarmos. Nada deve ser descuidado levianamente!
Um regato descia ao longo da rampa muito suave. Filippi levou os cavalos para aí, enquanto os seus camaradas se agrupavam à volta do contramestre e do antigo prisioneiro
do Catamount.
- Oiçam bem, anunciou então Den Cammage. Vamos operar assim... Estudámos o caso em pormenor com o "boss"!
Fez-se um silêncio total, e em voz clara, o sequaz do "boss" pormenorizou em que condições os Herefords seriam roubados. Os "rustlers" deixariam antes de tudo passar
o grosso da manada, e depois, no próprio momento em que os cavaleiros da escolta se metessem através da pista, dificultados pela selva e pelas moitas cheias de espinhos
que obrigariam os "longhorns" a espalharem-se, atacar-se-ia.
- Powell e os seus homens seriam repelidos através de Brushwood Plain e postos na impossibilidade de incomodarem! prosseguiu o contramestre de Lewis Navarro. Separados
uns dos outros, poderão ser abatidos facilmente e sem oporem resistência perigosa. E, bem entendido, nada de condescendências! Esses malandrins não podem ser poupados!
Não se esqueçam de que cada um que escapar não deixará de testemunhar contra nós! Só os mortos é que não falam!
Um murmuro de aprovação acolheu estas directrizes. Os homens do "gang" já tinham bastantes pecados na consciência e a perspectiva de mais uma malvadez
não os fazia recuar, tanto mais que sabiam que o "boss" pagava muito à larga.
Enquanto Cammage arengava assim ao "gang", a menos de trinta passos de distância o Catamount esperava, escondido por detrás de um maciço. A distância não tinha permitido
ao homem dos olhos claros ouvir todas as palavras de Den Cammage, mas calculava já em que condições se iria desenvolver o ataque! Os "rustlers" tinham na selva uma
preciosa aliada que dificultava os movimentos e a resistência dos que eles se propunham assaltar!
- Às seis horas, terminou o contramestre, todos devem ir buscar os seus cavalos e estar prontos para a acção! Cada um ocupará o seu lugar. Enquanto esperam podem
tomar fôlego!
Deixando os "rustlers" conversar uns com os outros, Den Cammage aproximou-se do regato e começou a discutir com Joê Channel.
Catamount compreendeu que seria perigoso esperar ainda ali. Os bandidos não fariam nada antes da alvorada, e arriscava-se a ser descoberto mantendo-se na sua próxima
vizinhança. Aproveitando por isso enquanto os seus vizinhos estavam absorvidos a discutir, voltou, de rastos, para a pequena eminência que há pouco lhe tinha servido
de observatório.
O homem dos olhos claros já percorrera a maior parte da distância que o separava do seu termo quando, de repente, parou.
Um martelamento regular chegava-lhe aos ouvidos.
Uma ruga de preocupação cavou-se-lhe na sua fronte. Estendeu-se ao comprido e encostou o ouvido ao chão. Não havia engano possível, vinha chegando um cavaleiro e
já se apercebia a sua silhueta que se aproximava muito depressa.
Inquieto, Catamount deitou à sua volta um olhar rápido. Não avistou a mais pequena moita, uma única elevação de terreno que pudesse permitir-lhe esconder-se junto
dela.
Era urgente! O cavaleiro solitário chegava, no trote do seu cavalo. Em menos de um minuto estaria ali, e como era de prever que pertencesse ao "gang", não deixaria
de dar alerta aos outros e de lhes apontar a presença do passeante nocturno!
Então o "ranger" não hesitou mais. Resolveu-se a usar de astúcia, e mantendo o Colt na mão ficou quieto, estendido, ao comprido, a cara encostada ao chão.
O recém-vindo chegava, enfiando resolutamente para o sítio onde o "ranger" estava escondido. Imóvel, contendo as palpitações do coração, Catamount ouvia o martelamento
que se tornava mais lento à medida que se aproximava dele.
De repente, dobrando-se sobre o selim e olhando na direcção do "ranger", cuja silhueta imóvel e deitada ele apercebia ao longo da pista:
- Hélio, boy? Que fazes aí?
Nada de resposta! Catamount continuava a manter ao mesmo tempo imobilidade e silêncio.
- By Jove... Levanta-te, ao menos! Estás com o Cammage?
Cada vez mais intrigado, o recém-chegado decidiu apear-se. Trazia um casacão largo que lhe cobria o corpo todo, mas no movimento que fez para se baixar, descobriu
o braço direito que estava ao peito, apoiado num lenço.
Tip Giggler estava espantado por encontrar alguém estendido, quieto na pista que levava a Big Point! O seu primeiro pensamento foi o de que se trataria de um dos
homens do "gang" que Den Cammage teria posto de atalaia, mas a imobilidade que o desconhecido continuava a manter parecia-lhe estranha.
- Já teria começado a coisa? resmungou ele consigo mesmo.
Abaixou-se, depois de se ter apeado, fazendo o possível por ver a cara deste estranho companheiro de encontro quando, bruscamente, sentiu um corpo duro
que se lhe encostava ao peito, ao mesmo tempo que uma voz de ameaça lhe dizia muito baixinho:
- Uma palavra só, um só gesto...
O Catamount não precisou de acabar a frase, a sua mímica mostrava-se suficientemente expressiva, o dedo no gatilho da arma, pronto a disparar à menor tentativa de
resistência.
- Mãos ao ar! ordenou o "ranger" num bafo. Lastimosamente, Tip Giggler levantou o seu único
braço válido.
- E o outro? insistiu o "ranger", mais ameaçador do que antes.
- Impossível, balbuciou o patife. Estou ferido!
- Já sabes que ao menor movimento suspeito da tua parte, disparo!
Ao pronunciar estas palavras, o homem dos olhos claros levantou-se. Ainda sob o efeito do susto, Tip Giggler não se mexera, os seus olhos aumentados de tamanho pelo
medo, fixavam-se no cano do Colt que continuava encostado ao seu peito.
- E agora, recua. Vais caminhar diante de mim até quando eu te disser que pares!
O bandido obedeceu como um autómato. Continuou de braço no ar e sentia o cano do revólver que o magoava.
- Mas, e o cavalo? perguntou.
- Não te rales com o cavalo! Ele vem atrás de nós!
Efectivamente o animal regulou o passo pelo dos dois homens. Catamount procurava afastar o seu prisioneiro para o mais longe possível de Big Point, onde se arriscava
a todos os momentos a que os homens do "gang" dessem pela sua presença.
Por sorte, o golpe de surpresa tinha sido tão habilmente executado que ninguém desconfiou do caso. Den Cammage continuou a concertar-se com Channel junto do regato.
Um pouco à parte, os outros fumavam e divertiam-se esperando a hora da acção.
Em menos de 10 minutos, o "ranger" tinha encaixado Tip Giggler por detrás de uma moita suficientemente espessa para o esconder dos olhares indiscretos. O cavalo
seguia-os sempre docilmente. O Catamount verificou com satisfação que ele tinha um laço enrolado à volta do selim.
- E agora, ordenou, voltando-se para o cativo, vais deixar-te prender.
O bandido gaguejou. Nele a surpresa dominava a irritação, e tão pouco esperava ser atacado no próprio momento em que se dispunha a juntar-se aos seus camaradas!
Mas a atitude do seu dominador continuava tão ameaçadora que se deixou docilmente amarrar.
- No final de contas, my boy, troçou o homem dos olhos claros, até talvez te sintas feliz por esta pequena contrariedade... Tenho a impressão de que dentro de pouco
será áspero nas proximidades de Big Point. Aqui, estás abrigadinho até nova ordem, é um resultado apreciável!
Desejoso de evitar qualquer complicação e qualquer chamada de socorro de parte do seu prisioneiro, o "ranger" tirou-lhe o lenço que transformou em mordaça, e em
poucos instantes Tip Giggler estava impossibilitado de emitir o mínimo som.
- Tem paciência! Virei buscar-te quando tudo estiver terminado! prometeu o Catamount.
Dobrando-se para baixo e levantando o bandido entre os braços robustos, o "ranger" avistou uma ligeira depressão em parte dissimulada pelos silvados e por uma vegetação
emaranhada, e depôs aí Giggler que se torcia inutilmente nas voltas da corda.
- Olha, murmurou, creio que os teus companheiros estarão demasiado ocupados logo, para virem procurar-te aí. Enquanto esperas, poderás reflectir bem à vontade nas
consequências dos teus actos!
O prisioneiro ficava agora invisível por detrás do cortinado de verdura que o cobria quase todo inteiro. com a mão, o homem dos olhos claros dirigiu-lhe um
adeus e começou a inspeccionar os coldres que ele trazia:
- God Almighty! Cigarros! exclamou maravilhado. Aqui está com que enganar o tempo até que chegue a hora H! Presunto fumado, "tortillas" de milho, sem esquecer um
simpático cantil com "whisky"! Eis o que variará agradavelmente o regime de peixe e de caça a que estou condenado desde que Channel tão gentilmente me expediu ad
paires!
O cavalo que Catamount tinha agora capturado ia ser-lhe mais útil do que o primeiro que ele tinha confiscado antes de se pôr a caminho nas margens do Concho River.
De mais, o cinturão e os dois Colts que o "ranger" tinha tomado a precaução de apreender a Giggler quando o amarrou e a carabina que estava no seu estojo, iam permitir-lhe
empreender a manobra nas melhores condições possíveis!
Mas já a alvorada principiava a despontar no horizonte. As estrelas apagavam-se pouco a pouco. Depois de ter fumado um cigarro, consultou o seu relógio de pulso:
- Cinco horas! Devem estar a preparar-se no Bar 35!
Cerca de Big Point, Den Cammage e os seus acólitos começavam a agitar-se, alguns iam para junto dos cavalos e afastavam-se em pequenos grupos, para os postos que
Channel e o contramestre lhes tinham designado.
Então, tranquilo, confiante no futuro, Catamount esperou.
XIV
SEIS HORAS DA MANHÃ
- Não tens realmente pena, honey?
- Nem por isso, Dad, estou tão contente por poder tirar-te de um embaraço!
- É uma loucura! Pensa uma última vez em que comprometes o teu futuro! Estes Herefords... animais seleccionados, os mais belos do Texas...
-? Estes Herefords serão certamente substituídos por outros. Confie na Providência! Além disso, o Graham compra-nos os "longhoms" em condições tais que poderemos
voltar a comprá-los nos prazos previstos para os créditos do Tio Ray!
- Esse velho imbecil! Eu fui quem teve a culpa!
Elias Powell agitava raivosamente os punhos. Tinha uma raiva tão grande a seu irmão mais velho por ele ter comprometido assim a sua situação para satisfazer à funesta
paixão! Mas Rosalinda objectou com um sorriso:
- Tu bem sabes que o Tio Ray é uma criança grande!
- As suas criancices levaram-nos agora demasiado longe. Se ele sentisse por ti ao menos um pouco de afecto, não nos teria encaminhado para esta aventura! Mas telefonei
ao "solicitor". Doravante desfaço a nossa sociedade que nos foi tão desastrosa! Os nossos interesses opor-se-ão! Ele deixará o rancho no mais breve espaço de tempo!
Recuso-me a alimentar
complacentemente um jogador e um borrachão que faz a vergonha da família!
- Vamos, Dad, são mais de cinco horas! Falaremos mais tarde do Tio Ray!..-
A rapariga apontou ao pai o grande pátio. A alvorada ia despertar e já os "cowpunchers" começavam a ir para ao pé dos Herefords que tinham sido trazidos na véspera,
contados e marcados a fim de empreenderem a viagem para Santa Ana.
Escoltados pelos cavaleiros, os "longhorns" chegavam mugindo, tinham-se dessedentado no rio próximo e avançavam, apertados uns contra os outros.
- São lindos! não pôde deixar de exclamar o "ranchman".
Uma sombra de pena velou os seus olhos, mas tom Crane acorreu:
- É preciso almoçarmos, "boss"! gritou. E depressa!
Jane Powell e o cozinheiro acabavam de pôr a mesa, e a sineta tocou. Deixando os animais à guarda de quatro dos seus camaradas que deviam ficar no Bar 35, todos
os cavaleiros que participavam da levada, sentaram-se à volta da mesa.
A refeição foi despachada em menos de um quarto de hora, todos estes rapagões estavam com pressa em terminar com esta estopada de que eles não disfarçavam as dificuldades
que iria ter. O terreno era duro, sobretudo entre os vales do Concho River e do Colorado. Além disso, o céu estava limpo de nuvens, o que levava a pensar que o calor
iria ser insuportável no curso do dia.
- Até que se esteja enfim em Santa Ana, exclamou tom Crane, vamos todos suar sangue e água!
Beberam o café. Depois Elias Powell, indo direito a sua mulher que se atarefava na cozinha:
- Está bem entendido que o Ray não deve sair do rancho até nova ordem, isto é, durante toda a nossa ausência!
Farei o melhor possível por o convencer! contentou-se em responder a Mammy.
De resto, eu vou vê-lo, resmungou o "ranchman".
Ficará sabendo como se há-de portar!
Deixando a grande sala onde a equipa terminava à pressa a refeição, Elias Powell foi ao quarto de Ray. Logo que chegou à porta ouviu assobiar alegremente no interior.
Entrou furioso e viu o irmão muito ocupado a fazer a barba diante do espelho.
- Susana! Susana! cantarolava o Tio Ray sem parecer interessar-se o mínimo pela entrada do irmão mais novo.
- Trata-se de Susana, trata! interrompeu o visitante com um tom irritado. Vamos partir para Santa Ana!
- bom, se vão partir, boa viagem! Não lhes pego! Impassível e sorridente, o Tio Ray passava cuidadosamente a lâmina pela face branca de sabão.
Desta vez Elias Powell deu livre curso à sua indignação :
- E é esse todo o efeito que isto tudo te faz, miserável! Por causa de ti somos obrigados a vender os Herefords! O futuro da Rosalinda está irremediavelmente comprometido...
- Perdão, protestou bruscamente o Tio Ray, eu gosto muito da Rosalinda!
- By Jove, tens decididamente uma bonita maneira de lhe testemunhar o teu afecto. Se tivesses dedicado à tua sobrinha o menor sinal de interesse, terias reflectido
antes de vir meter-te tão ingenuamente nas garras do Navarro.
O velhote brandiu a navalha e depois, como se ameaçasse um adversário invisível:
- Que tome cuidado, esse malandro do Navarro! Fará bem em não voltar a apresentar-se diante dos meus olhos! Tão verdade como chamar-me eu Ray Powell!
O "ranchman" encolheu ironicamente os ombros:
- Já se sabe o que valem as juras dos bêbedos! interrompeu brutalmente. Se te encontrasses na presença de Lewis Navarro e se ele te propusesse uma nova partida,
agarrarias essa ocasião com ambas as mãos! É mais forte do que tu!
- Ouve...
- É escusado explicares mais; já estamos todos suficientemente esclarecidos. E vim aqui precisamente para te dizer que te proíbo que saias dos limites do Bar 35
durante a nossa ausência...
- Protesto, isso é uma arbitrariedade...
- É pelo contrário, a única maneira de te impedir que faças de parvo! A bom entendedor meia palavra basta! Estás avisado!
- Cá fico avisado!
A conversa entre os dois irmãos parou aqui. Sem sequer estender a mão ao Tio Ray, Elias Powell sacudiu secamente a cabeça e saiu fazendo bater a porta atrás dele.
Mas, sem dúvida, esta nova descompostura não impressionara senão ligeiramente o incorrigível, porque enquanto se afastava no corredor ouvia-o retomar alegremente
a tonadilha da "Susana".
O "ranchman" não quis insistir; tinha de resto outras preocupações. Agora o Sol começava a espalhar os seus raios no pátio grande onde os Herefords se acumulavam
levantando espessas nuvens de pó.
Os mugidos dos animais vinham de todos os lados, dominados em frequentes intervalos pelo bater seco das "reatas". tom Crane e os seus "cowpunchers" já tinham montado
nos seus cavalos e começavam a canalizar os animais.
- Estás pronta, honey?
Elias Powell dirigia-se agora a Rosalinda que dava um beijo à mãe. A rapariga vestira um fato masculino de montar, "chaparejos" de couro fulvo protegiam as suas
pernas nervosas metidas até abaixo dos joelhos em botas de couro preto.
Estou pronta, Dad, respondeu sorrindo. Ainda
temos dez minutos.
E como ela se afastasse a correr para a escadaria:
- Onde vais? perguntou.
- Dizer adeus ao Tio Ray!
- Esse figurão não o merece sequer, censurou amargamente o "ranchman". Sem ele não estaríamos agora aqui, e tu própria...
- Não há pecado sem perdão, interrompeu ela. Prepara-te e eu volto num instante!
Dois minutos mais tarde entrava no quarto do seu tio, que acabava de fazer a barba e expunha o rosto ao jacto perfumado de um vaporizador.
- És tu, honey? perguntou ele, desde que viu a visitante.
- Sim, sou eu, Tio Ray!
- Naturalmente, vais fazer como o teu pai... Eu não sou mais do que um velho bêbedo, um incapaz, a causa da vossa ruína e o responsável por todas as vossas infelicidades!
-? Enganas-te, Tio Ray! Vamos partir, levar os Herefords comprados por Graham. Por isso quis vir primeiro dizer-te Bye Bye...
O sorriso estampado de amargura que o velhote mostrou, congelou-se neste instante sobre os seus lábios.
- Pois bem, Bye Bye... murmurou sem mais nada.
Tanto quanto há pouco o Tio Ray se tinha mostrado desenvolto durante a curta visita de seu irmão, tanto parecia agora profundamente comovido. Os seus olhos embaciaram-se
e foi com uma voz estrangulada pela emoção que disse, repelindo a rapariga que se debruçou sobre ele:
-? É melhor não! Esta velha carcaça do Tio Ray não o merece sequer!
Ela insistia tão gentilmente que ele deixou por um tempo de se defender, e Rosalinda assentou dois bons beijos nas faces crestadas onde as rugas cavavam sulcos profundos.
- És tão gentil quando queres, Tio Ray, disse ela. Esta manhã pareces um "gentleman"!
-Um "gentleman" com defeitos! respondeu, não sem alguma ironia.
Depois, apoiando o vaporizador contra o seu peito, murmurou:
- Em todo o caso, aconteça o que acontecer, espero que não guardarás uma muito má recordação do teu velho Tio Ray!
Rosalinda parou de sorrir; sentiu-se atingida pelo tom que o seu interlocutor tinha agora usado. Nunca o Tio Ray, a criança insuportável e o pândego do Bar 35 lhe
tinha aparecido sob um tal aspecto!
- Bye Bye, honeyl...
Os seus lábios que mantinham ainda alguns vestígios de sabão, afloraram a testa da rapariga. Surpreendida, ia insistir ainda, quando ouviu a voz do pai:
- Então, Rosalinda! Avia-te! Estamos na hora!
O ponteiro grande do relógio ali ao pé marcava seis horas menos dois minutos, e por isso a rapariga não se demorou mais tempo junto do Tio Ray.
Depois de lhe ter dirigido um último gesto com a mão, saiu fechando a porta e desceu precipitadamente os degraus.
Durante alguns instantes, o velhote apurou o ouvido, escutando a sobrinha a afastar-se. Uma expressão de profunda aflição invadia o seu rosto. Grandes lágrimas caíam-lhe
das pálpebras. Já não cantava a "Susana"!
No pátio havia agora uma barafunda ensurdecedora. Os mugidos dos "langhorns" não cessavam. tom Grane e os seus "cowpunchers" surgiam de todos os lados, enquanto
Jane Powell e alguns dos auxiliares assistiam à partida, de pé, diante da porta da habitação.
Às seis horas precisas, Rosalinda montou a cavalo. Elias Powell já estava montado, dando as últimas ordens aos seus homens. A atmosfera a toda a volta tornava-se
irrespirável. Enxotados para fora dos currais onde
tinham esperado durante a noite a reunião, os Herefords davam-se encontrões e comprimiam-se uns contra os outros antes de chegarem à entrada para a qual os cavaleiros
os faziam convergir.
O "ranchman" olhava para os animais com uma expressão de orgulho tocado por forte melancolia. Graham podia bem à vontade sentir-se satisfeito com a sua compra! Como
ele teria preferido ficar com eles por mais tempo ainda!
Os Herefords levaram dez minutos a sair do pátio, e quando os mais ronceiros, impelidos por sua vez, alcançaram os outros, com grandes estalos de "reatas", a manada
atingia já o curso do Concho River que devia atravessar a vau não longe dali.
Rosalinda foi pôr-se entre o seu pai e tom Crane que agora cavalgavam à cabeça. A rapariga tinha dificuldade em dominar a sua égua demasiado fogosa; por duas vezes
voltou-se sobre o selim para dizer adeus com a mão à Mammy que agitava os braços diante da porta.
- Vamos ter um tempo soberbo! disse por fim o contramestre.
- Um pouco quente demais, parece-me, respondeu Elias Powell.
- Mas o calor que faz é seco, o que dá esperança de que não tenhamos trovoada!
- Deus o ouça! concluiu o "ranchman". Rosalinda, como os seus dois vizinhos, não ignorava
as catástrofes provocadas pelas trovoadas durante as levadas de animais, assustados pelo rolar dos trovões e pelas deflagrações do raio, arriscando a que se produzisse
pânico, o "stampede"! Mais valia sofrer o calor que expor-se a afrontar tais dificuldades!
Meia hora mais tarde, atingiram o ponto de atravessamento do Concho River, e era preciso manobrar ainda para obrigar os Herefords a meterem-se através da corrente.
Por sorte, os "longhorns" deixaram-se convencer bastante facilmente, e a manada, flanqueada
pelos "cowpunchers", pôde seguir em direcção do vale do Colorado e de Santa Ana.
Por vezes, a rapariga deixava vagabundear a sua imaginação enquanto cavalgava. Sentia-se emocionada pelas palavras ditas pelo Tio Ray antes de partir. Parecia-lhe
ainda ouvir a voz do velho tio que lhe dizia baixinho, oprimido por uma emoção que era absolutamente incapaz de dominar:
- Em todo o caso, aconteça o que acontecer, espero que não guardarás uma muito má recordação do teu velho Tio Ray...
Este "aconteça o que acontecer" tinha sobretudo atingido a imaginação da rapariga. Perguntava a si própria que quereria dizer com isto aquela criança grande, como
ela costuma muitas vezes chamar-lhe.
Mas os Herefords, mostrando-se bastante turbulentos, fizeram arrancar Rosalinda a essas reflexões. Chegava-se de facto à região mais tormentosa, e os cavaleiros
eram forçados a evolucionar num espaço mais estreito. Os espinhos prendiam-se à passagem e laceravam constantemente o couro dos "chaparejos".
- Estamos quase ao pé de Brushwood Plain, disse tom Grane. É essa a parte pior de todo o percurso!
-? Não é a primeira vez que a atravessamos, explicou o "ranchman".
- E certamente não será a última, ripostou o contramestre. Mas tenho pressa de me sentir mais perto do Colorado!
- Não se rale, assegurou por sua vez Elias Powell, chegaremos com certeza a Santa Ana antes do pôr do Sol!
Santa Ana! Rosalinda estremeceu ao ouvir estas palavras. Santa Ana, era lá que o Graham esperava para lhe ser entregue a mercadoria, era também lá que ela receberia
o preço que permitiria ao seu pai liquidar a dívida tão imprudentemente contraída pelo Tio Ray! Depois, será preciso recomeçar quase desde o zero para conseguir
reparar o desastre!
A rapariga, todavia, não desesperava, tinha a consciência de ter cumprido o seu dever! Além disso, pouco lhe importava encontrar-se sem fortuna! Ela não tinha empenho
em casar com um rico lavrador da região, as suas ambições afirmavam-se mais modestas! Só aquele a quem amasse seria o companheiro da sua vida!
Deixando assim à vontade vagabundear os seus pensamentos, Rosalinda evocava uma imagem, a do intrépido companheiro que a tinha livrado do Lewis Navarro. Onde estaria
Bug Dauntless enquanto ela se afastava assim?
Os estalos das "reatas" vieram de novo perturbar as reflexões da cavaleira e daí a pouco ouviu a voz de tom Crane que anunciava, designando a planície de silvados
que se estendia agora diante dela até perder de vista:
- Brushwood Plain!
Enquanto os Herefords se encaminhavam para começar a parte mais delicada da viagem reinava a calma mais completa no Bar 35. Jane Powell voltou para a cozinha e entregou-se
às suas ocupações habituais, os "cowpunchers" que ficaram no rancho tinham ido ocupar os postos que lhes competiam no interior dos limites, junto das manadas.
A Mammy já tinha arrumado a loiça quando, de repente, estremeceu. Ouvia-se um passo arrastado na escada.
- Ray! reconheceu logo ela.
Era de facto o Tio Ray, e a sua cunhada foi ter ao seu encontro quando ele apareceu no limiar da porta.
- Não sabe, Ray, o que lhe recomendou o Elias? lembrou. Que não devia sair do rancho sob pretexto algum!
O velhote encolheu os ombros ironicamente.
- O Elias é um verdadeiro eremita, um dragão de virtude! comentou esboçando um sorriso malicioso.
E sem mais nada, dirigiu-se para o corredor e saiu para o pátio:
-Onde vai? perguntou a Mammy, subitamente inquieta.
- Então, Mammy, não se inquiete. Já sou suficientemente crescido para saber onde devo ir!
O Tio Ray estava completamente equipado, debaixo do casaco via-se o cinturão armado. E esse pormenor não deixou de intrigar Jane Powell, pois ordinariamente o seu
cunhado nem sequer tinha o cuidado de levar um revólver na algibeira.
- Oiça cá, Ray, é muito a sério...
Ela fazia o possível por o alcançar, apressando o passo no pátio, mas ele também activava o andar, encaminhando-se direito ao curral.
- Já lhe disse, proibição de sair do rancho! insistiu ela.
Sem se importar com esta oposição, o Tio Ray fazia ouvidos moucos, e quando chegou à barreira do curral abriu-a e foi buscar o seu cavalo. E como a cunhada esperava,
interdita, ao pé da porta:
- Esteja descansada, Mammy, afirmou. Não tocarei nem num copo nem numa carta de jogar! Dou-lhe a minha palavra de honra!
- Ray! Você não vai, de modo algum... Calou-se estupefacta. O velhote começou a assobiar
a "Susana", e levando o cavalo foi ali ao pé, onde estavam os selins, buscar o seu e arreou o cavalo.
Jane Powell olhou à sua volta, mas o pátio estava vazio; não viu ninguém que a pudesse ajudar a segurar o seu cunhado.
- O Elias proibiu formalmente, voltou a dizer. Isso está muito mal, Ray!
Mas o velhote montava já no cavalo. Sem mais se preocupar com as exortações da sua parente, como se ela nem existisse, o Tio Ray retomou, mais bem disposto do que
nunca, o caminho de Paint Rock.
XV
O ATAQUE
- Atenção! Aí estão eles!
Sandro Filippi, que Den Cammage tinha postado em observação, adiante de Big Point, voltava de lá, a toda a brida, agitando o braço com insistência.
O contramestre sorriu e voltando-se para Joè Channel que esperava à sua esquerda fumando tranquilamente um cigarro:
- Toda a gente nos seus lugares, comandou. Quando se ataca?
- Quando eu der o sinal!
- Como é?
-Três apitos... Os outros já sabem.
O antigo prisioneiro de Catamount não parecia de modo algum impressionado com a aproximação da acção, enquanto Filippi, o fato branco de poeira e a cara lustrosa
de suor, se tinha apoiado uns passos mais longe e virando-se para o contramestre do "Três de Espadas".
- Hélio, old boyl Que é que há? perguntou o Joé. Parece que não está à sua vontade?
Den Cammage tossiu e passou a mão na testa:
- É esquisito, respondeu, parece que tenho a impressão de que vai suceder uma desgraça!
- Uma desgraça? ripostou o outro. Que ideia tão parva! Tudo foi cuidadosamente organizado! O ataque faz-se com todas as garantias indispensáveis para o êxito! Temos
noventa e nove por cento das probabilidades.
- É precisamente a centésima que eu receio, interrompeu o contramestre sacudindo lentamente a cabeça. Não serve de nada raciocinar, é mais forte do que eu! E já
muitas vezes verifiquei que os meus pressentimentos nunca me enganam!
Joê Channel, olhando para o seu interlocutor disfarçadamente, não pôde deixar de comentar em ar de troça:
- Apesar disso, você não é um maricas, que diabo! Temos o campo livre! Burgess e o seu "poss" andam ao acaso a umas trinta milhas daqui, do outro lado do Concho
River! Nestas condições, não vejo, na verdade, porque é que está com essa mania!
Sandro Filippi esperava ao pé dos dois compadres, e pondo à boca o cantil que tinha à cinta, bebeu uns goles de água com "whisky".
- O "boss" não se rala nada, disse o contramestre num tom amargo. Enquanto arriscamos aqui a nossa pele, pavoneia-se no "Sunlight", contentando-se com afastar as suspeitas apenas com a sua presença.
- O "boss" paga à larga, e isso é que é o principal, ripostou Joè Channel soprando uma espiral de fumo para o ar.
- É possível... Mas tenho um grande medo de que tudo acabe muito mal!
Den Cammage acabou com as lamentações. O Sol subia lentamente no céu e o calor começava a ser insuportável, as moscas e os tavões atacavam doidamente os três cavalos
que esperavam ali ao pé, à sombra do grande rochedo de Big Point.
Durante momentos houve silêncio, o olhar dos três homens dirigia-se com efeito para lá da linha acinzentada dos rochedos e fixava-se em Brushwood Plain. Era aí que
de facto estava o campo de batalha onde iam operar. A pista seguia direita, ladeada dos dois lados por vegetação cheia de espinhos. Não há dúvida de que era o ponto
ideal para provocar a dispersão e o pânico entre os Herefords.
Não se avistava qualquer silhueta suspeita na zona coberta de silvas, e apesar disso o contramestre do "Três de Espadas" sabia bem que os seus acólitos estavam à
espreita, nos diferentes pontos onde tinham sido postados, prontos a agirem.
- Antes de um quarto de hora chegarão lá! disse Joê Channel estendendo a mão.
Den Cammage olhou na direcção que o seu vizinho lhe indicava e notou uma nuvem de pó que surgia no horizonte. Elias Powell e os seus cavaleiros aproximavam-se, entravam
resolutamente na pista onde os "rustlers" tinham armado a emboscada!
-- Agora, ordenou o antigo prisioneiro de Catamount, toca a montar! Não temos nem mais um instante a perder! Vêm a chegar!
Levando Filippi com eles, os dois homens foram até ao sítio próximo onde esperavam os três cavalos e depois, metendo-se a toda a brida, aproximaram-se de uma pequena
eminência do terreno que dominava a pista de Brushwood Plain.
Enquanto galopavam para esse efeito, os três cavaleiros não suspeitavam de modo algum de que estivessem a ser observados. Muito bem escondido por detrás de um cume
rochoso, Catamount tinha estudado atentamente os movimentos dos diferentes grupos. O "ranger" parecia satisfeito com a feição que os acontecimentos tomavam, e viu
por sua vez os "rustlers" chegarem aos sítios que lhes tinham sido indicados por Joê Channel. Os malandrins manobravam de modo a poderem executar um movimento envolvente
logo que a manada tivesse entrado em plena selva. Apertada nos seus movimentos, os condutores do gado viam-se obrigados a ficarem junto dos "longhorns" para lhes
impedirem de se dispersarem, e a manada passaria a estar à mercê dos assaltantes que poderiam desde então contar com uma fácil vitória.
- Olá, disse consigo o Catamount, tudo vai da melhor maneira!
Suspendendo o olhar em direcção de Brushwood Plain, o homem dos olhos claros voltou-se em sentido oposto. Do seu observatório podia ver uma vasta extensão de terreno,
até ao vale do Concho River, do qual ele alcançava distintamente a fita larga e sinuosa a reflectir os raios do sol.
Neste momento, os rochedos escondiam a manada ao "ranger", mas, um pouco mais longe, via uma outra nuvem de pó, muito menos extensa certamente, que anunciava a presença
de um outro grupo duma quinzena de cavaleiros.
Um sorriso satisfeito aflorou aos lábios do Catamount:
- O. K.! disse consigo. Os outros também estarão no ponto de encontro no momento oportuno! Parece-me que vamos assistir dentro de pouco a uma cena que o "boss" não
tinha previsto, apesar de todas as suas precauções...
O homem dos olhos claros não se demorou, porém. Não se esquecia de que também tinha um papel a desempenhar e que devia exercer sobre toda a acção uma influência
decisiva.
- Ao trabalho! pensou, abandonando o seu observatório.
Desceu precipitadamente ao longo da rampa. Em certos pontos o declive era tão abrupto que rolou sobre si próprio e se magoou contra as arestas lacerantes, mas levantou-se
logo e alcançou o cavalo de Tip Giggler.
- Agora, velho camarada, tens que provar que não és uma tartaruga!
Em poucos instantes, o "ranger" saltou para o selim. O animal, de começo, quis opor uma certa resistência, mas tocou nervosamente com os calcanhares e acabou-lhe
rapidamente com a teimosia.
Durante certo tempo, Catamount dirigiu a montada em sentido oposto a Bruswood Plain. Procurava, antes de mais nada, manobrar o mais rapidamente possível
sem despertar a atenção dos "rustlers". Estes últimos, na impaciência de prepararem a sua emboscada, não davam pelas manobras do cavaleiro solitário. O terreno era
cada vez mais áspero, e o "ranger" tinha frequentemente que encorajar com a voz a sua montada demasiado reticente, continuava a marginar a vasta planície cheia de
silvados sem procurar por ora meter-se por ela. Por vezes voltava-se em cima do selim, procurando avistar a nuvem de pó que marcava a aproximação dos Herefords.
A manada estava agora a menos de uma milha de Brushwood Plain, chegava à altura de Big Point onde, há pouco, Joê Channel estacionava com os seus dois companheiros.
Uns minutos mais e meter-se-ia através da zona perigosa.
Em pé nos estribos, Catamount avistou os primeiros cavaleiros que precediam os "longhorns". Pareceram-lhe minúsculos, semelhantes a formigas. Por trás deles, a manada
avançava lentamente, enorme massa cor de cinza que os "cowpunchers" iam ser obrigados a canalizar para a meterem ao longo da pista.
Agora, para qualquer lado que se voltasse e olhasse a extensão imensa, o homem dos olhos claros não via senão o tapete cinzento-esverdeado da selva. As moitas eram
tão altas que lhe escondiam a pista onde entravam dentro de pouco Elias Powell e a sua gente.
O "ranger" parou de observar os recém-vindos, o seu olhar fixava com insistência Brushwood Plain, e conjecturava como devia operar logo que o ataque fosse desencadeado
pelos "rustlers". Antes de passar à acção, mediu minuciosamente as distâncias, localizou os sítios que se esforçaria por atingir. E, posto que não visse ninguém,
imaginava em pensamento Channel e os bandidos emboscados de um lado e do outro da pista, prontos a atacarem logo que o sinal lhes fosse dado.
Enquanto Catamount e os "rustlers" assim esperavam, Elias Powell, endireitando-se no selim e voltando-se, levantou o braço, fazendo sinal aos "cowpunchers"
para pararem e deixarem os Herefords respirar durante um momento à vontade.
- Que calor! resmungou tom Crane que tinha sempre continuado a seguir junto do seu "boss" e de Rosalinda.
A rapariga parara a égua. Não lhe desagradava nada fazer uma pausa depois desta cavalgada ininterrupta. O Sol enviava os seus raios implacàvelmente, e só de longe
em longe havia uma rara zona de sombra.
- Estás cansada, honey? perguntou o "ranchman", que tinha percebido uma expressão de fadiga no rosto da sua vizinha.
- De modo algum, Dad! protestou ela. O "ranchman" abanou lentamente a cabeça:
- Vês, tenho pena de te ter trazido connosco. Teria sido melhor evitares esta estopada com um calor destes!
- Que ideia! Esqueces-te de que o negócio com o Graham foi fechado por mim! É a mim que ele tem que pagar a importância. Faço particular empenho nisso!
-. Já que é assim, respondeu Elias Powell, seria inútil insistir!
- Tanto mais que, acrescentou tom Crane, que assistira a esta curta discussão, a Miss Rosalinda é tão valente como o mais intrépido dos nossos "cowpunchers"!
E o contramestre não se pôde conter sem dizer ainda:
- E afinal é pena que se vendam tão depressa! Os Herefords eram o que nós tínhamos de melhor no Bar 35! Falava-se deles em toda a região...
- Não pode deixar de ser, Crane!
O "ranchman" pronunciara estas palavras num tom que não admitia réplica, e por isso o contramestre não insistiu, mas a expressão triste da sua máscara tão rude,
fez compreender a Rosalinda quanto ele reprovava uma transacção assim tão precipitada!
Os mugidos vindos em tão grande quantidade da massa ondulante dos Herefords, puseram termo à discussão. tom Grane separou-se rapidamente do seu "boss" para ir galopar
nos flancos da manada e dar algumas ordens aos "cowpunchers".
Os estalos das "reatas" repercutiam-se cada vez melhor, os cavaleiros do Bar 35 diligenciavam reunir os animais recalcitrantes, havia cerca de uns quarenta dispersos
que era preciso juntar outra vez ao grosso da manada e, enquanto a manobra se executava com celeridade, Rosalinda passeava o seu olhar sobre a vasta extensão selvática
que cortava a pista que era preciso seguir, para atingir o vale do Colorado na direcção de Santa Ana.
A rapariga, muito poucas vezes se tinha aventurado até àquelas paragens, e sentia-se impressionada com esta solidão bravia, quando avistou as massas acinzentadas
dos rochedos que emergiam da verdura à esquerda, em Big Point.
- É uma no maris land pouco agradável, opinou então Elias Powell que surpreendera a expressão reticente da sua filha. Ninguém procurou nunca fertilizar e cultivar
este território todo! É bem a parte mais ingrata de toda a região!
Brushwood Plain não apresentava evidentemente nada que pudesse seduzir. A maior parte do tempo os silvados enredavam-se, as moitas, os grupos de arbustos, formavam
manchas mais ou menos carregadas na imensidade cinzenta.
- Domínio de serpentes, de lagartos e de tarântulas! resmungou o "ranchman" fazendo uma careta. Outrora, os "outlaws" perseguidos tinham ali asilo! Agora só se passa
cá quando não pode deixar de ser.
A voz forte do contramestre veio então dominar os murmúrios e os mugidos:
- Está aí, "boss"? perguntou.
- O. K.! respondeu o interpelado.
Então os primeiros "longhorns" meteram-se à pista, apertados de perto por tom Grane e dois outros cavaleiros. Ouviu-se um assobio estridente, imediatamente seguido
por estalos repetidos das tiras de couro que batiam nos animais recalcitrantes.
À cabeça da fila, Elias Powell levava consigo Rosalinda, e esta seguiu logo o "ranchman". O calor continuava sufocante, nuvens de moscas vinham pousar nos animais
irritando-os sem detença, os cavalos assustados e apertados muito de perto pelos ruminantes, empinavam-se por vezes.
tom Crane e os seus companheiros rivalizavam no ardor, o rosto a escorrer de suor, a roupa colada ao corpo, não cessavam de gritar e de activar os Herefords que
chegavam até ali dando-se encontrões.
Rosalinda tinha muitas vezes assistido à condução de animais e o ajuntamento de gado ou "roundup", mas nunca a vigilância dos "longhorns" lhe tinha parecido mais
difícil do que hoje. Tinha mesmo grande dificuldade em reter a sua égua que relinchava e ameaçava às vezes atirá-la do selim abaixo. Por felicidade, a rapariga era
uma hábil amazona, e as suas mãos com luvas de couro seguravam solidamente as rédeas, obrigando a montada tão respingona a obedecer-lhe:
- Youpee! Youpee!
A atenção da escolta estava nesta ocasião unicamente ocupada na condução dos animais, mas o perigo que ia dentro de pouco cair sobre Elias Powell e o seu intrépido
pequeno grupo, aproximava-se cada vez mais.
Joè Channel e Den Cammage esperavam, de atalaia. Muito bem escondidos pelas moitas, ouviam aproximar-se a pouco e pouco os Herefords.
O contramestre do "Três de Espadas" sorriu.
- Alguns minutos mais, disse ao ouvido do seu vizinho, e ficam totalmente apanhados!
O antigo prisioneiro do Catamount abaixou aprovativamente a cabeça, agachado à direita de Cammage.
Tinha pegado no apito e preparava-se para o levar à boca e dar o sinal de ataque.
Youpee! Youpee!
Clamores e golpes de "reatas" sucediam-se sem trégua, e posto que não vissem os "cowpunchers", os dois cabecilhas calculavam onde eles estariam. Mais um curto momento
e a manada inteira encontrava-se à mercê dos "rustlers"!
- Temo-los na mão! zombou Den Cammage.
O contramestre do "Três de Espadas", que há bocado se mostrava tão cheio de dúvidas, parecia ter reconquistado toda a sua segurança, a mão morena acariciando a coronha
do Colt.
- E então? Cá estamos na hora, manifestou-se com impaciência cada vez mais febril.
- Um minuto ainda! O peixe não entrou na rede...
Joê Channel mantinha a imobilidade de uma estátua, apurando atentamente o ouvido, e três passos mais longe, os cavalos dos dois homens esperavam, dissimulados por
trás de um grupo de arbustos. Logo que o sinal fosse dado, não tinham mais que montá-los para tomarem parte na acção e levar os "rustlers" ao esperado ataque.
Enfim, o antigo prisioneiro do Catamount pôs-se de pé e levou o apito à boca. Achou que o momento propício tinha chegado. Dominando repentinamente o martelamento
dos cascos dos Herefords, cuja torrente se escoava muito próximo, através da pista de Brushwood Plain, ouviu-se o sinal estridente que foi repetido por duas vezes.
Bramidos ferozes responderam logo, acompanhados por tiros. Os grupos que esperavam afastados, surgiram imediatamente prontos a executarem a tarefa que lhes tinha
sido atribuída.
- Vamos! disse Joê Channel montando a cavalo.
Den Cammage montou por sua vez em alguns" segundos. Colt na mão, os dois camaradas meteram-se a direito para a pista onde os clamores e as detonações persistentes provocavam surpresa e embaraço em todo o comboio.
- Estão-nos na mão! berrou o contramestre do "Três de Espadas".
Joê Channel não respondeu e por várias vezes disparou o seu revólver para o ar. De comum acordo, os "rustlers" iam esforçar-se por dispersar a manada a fim de melhor
a terem à sua mercê desde que se tivessem desembaraçado dos cavaleiros da sua escolta!
A massa redemoinhante dos Herefords apareceu logo aos olhos de Den Cammage. Os "longhorns" empurravam-se uns aos outros no meio de uma espessa nuvem de pó.
Desvairados, tom Grane e os seus auxiliares empenhavam-se a deter a torrente impetuosa dos animais cheios de pânico. Apesar de todos os seus esforços loucos, em
poucos instantes, deu-se o tão temido "stampede"!
XVI
STAMPEDE
O ataque dos "rustlers" desencadeara-se com tanta rapidez que Rosalinda cuidava ser vítima de um terrível pesadelo! Avançava sempre à cabeça, quando os apitos soaram,
imediatamente seguidos pelos berros selvagens dos assaltantes!
Assustada, a égua empinou-se. De maxilas cerradas, a cavaleira ainda pôde evitar a queda. Junto dela, Elias Powell punha-se de pé sobre os estribos, agitava o braço
brandindo o Colt.
--Fogo! ordenou. Fogo sobre os malandros!
Alguns tiros responderam àqueles, muito mais numerosos disparados pelos agressores. Mas de um lado e do outro, ninguém tinha tempo de fazer pontaria, as balas não
vitimaram ninguém e foram perder-se entre as estevas.
Pelo contrário, os tiros e os berros precipitaram o pânico nos Herefords. Mugidos de medo saíam sem cessar da fila, até aqui facilmente contida, mas onde começavam
já a produzir-se remoinhos temíveis.
tom Grane e os seus "cowpunchers", voltados a si após a primeira surpresa, esforçavam-se por evitar o desastre, mas a despeito da sua boa vontade, viram-se rapidamente
isolados e separados uns dos outros. As "reatas" batiam sem efeito nos "longhorns" que agora se dispersavam, ameaçando saírem da pista e espalharem-se por toda a
selva vizinha.
Elias Powell compreendeu a manobra dos "rustlers", afastando-se de Rosalinda que tinha sempre muita dificuldade
em aguentar a sua égua desvairada, e tentou juntar-se aos seus homens.
- Então! gritou-lhes. Fogo para cima desses malandros!
A voz do "ranchman" perdeu-se no meio do tumulto ensurdecedor. Compreendeu bem depressa que se esganiçava inutilmente. Avistando vagas silhuetas de cavaleiros que
se lançavam através das nuvens espessas de poeira, descarregou o seu Colt muitas vezes, mas os balanços incessantes que a montada lhe imprimia não lhe permitiam
atingir um único dos seus adversários.
Em menos de um minuto, Elias Powell viu-se envolvido por todos os lados pela torrente mugidora dos "longhorns". À custa das esporas nos flancos do corcel, tentou
abrir uma passagem, mas em vão. A maré viva levava-o nos seus turbilhões.
- Dad! Dad!
Como num sonho, o "ranchman" reconheceu no meio da barafunda, a voz desesperada da sua filha.
- Honneyl...
Na desordem, avistou Rosalinda que se tinha esforçado por juntar-se-lhe, sem conseguir. A pobrezinha parecia numa situação tão delicada como ele.
- Dad! repetia ela, batendo com os calcanhares na montada.
Mas a égua constantemente empurrada para trás pelo gado, começava a dar sinais de fadiga e de esgotamento. Aflita, Rosalinda teve um gesto desesperado. Avaliou toda
a sua impotência. Os remoinhos da galopada atiravam-na agora para lá da pista, através da selva de Brushwood Plain onde os "rustlers" conseguiam dispersar a manada
cheia de terror.
- Unam-se! berrava tom Crane aos seus acólitos.
Em semelhante ocorrência, o contramestre esperava que reagrupando o seu contingente, conseguiria contra-atacar e rechaçar os "rustlers", mas compreendeu depressa
a inanidade de tal iniciativa. A onda dos
animais que rebentava sem cessar, paralisava completamente os seus movimentos, tornando impossível todo o retorno ofensivo. Neste momento, o que podia procurar evitar
era a morte atroz esmagado pelos cascos dos Herefords!
Por seu lado os "cowpunchers" percebiam que toda a iniciativa lhes era momentaneamente interdita. Separados na maior parte uns dos outros, tinham grande dificuldade
em aguentar os seus cavalos. Por outro lado, os assaltantes começavam a atirar sobre eles, e dois estavam já feridos.
Enquanto o grupo dava prova de angustiosa indecisão, Joê Channel e Den Cammage levavam a fundo o seu ataque. Até agora, tudo se passara tal e qual esperavam. Desorganizados
pela surpresa, os Herefords constituíam uma presa fácil de deitar-lhe a mão, e por seu lado os cavaleiros do Bar 35 não podiam ser adversários muito perigosos.
- Então! berrou Den Cammage. São nossos! Os acasos da refrega separaram o contramestre do
"Três de Espadas" do antigo prisioneiro do Catamount. Den Cammage, que tinha descarregado o seu Colt contra os "cowpunchers" que avistava vagamente, deteve o cavalo,
procurando Channel em vão com os olhos.
Mas a atenção do bandido foi rapidamente desviada. A uns vinte passos à direita, distinguiu um cavaleiro que se esforçava por se libertar de um grupo de uns quinze
Herefords que o rodeavam, transtornados.
Den Cammage não pôde reprimir uma exclamação:
- Damnl... Não há dúvida! É a filha do Powell! Era de facto Rosalinda que fazia o possível, sem
conseguir, por se juntar a seu pai.
Na sua precipitação, a rapariga tinha perdido o seu "stetson" e os cabelos compridos caíam agora sobre os ombros.
?-Dad! não cessava de repetir. Onde estás, Dad?
Elias Powell não respondia e lá sabia a razão! Levado pelo remoinho irresistível, debatia-se com raiva, depois de ter descarregado o seu Colt. O "ranchman" tinha
deixado a arma inútil e a golpes de "reata" exasperava-se, tentando ainda abrir uma passagem.
O contramestre do "Três de Espadas" deteve-se uns instantes, indeciso. Depois, bruscamente, um sorriso repugnante contraiu-lhe o rosto:
- By Jove! considerou. O "boss" ficará contente se lhe levar a pequena!
Den Cammage não ignorava o interesse que Lewis Navarro tinha pela filha do "ranchman" do Bar 35. Foi por isso que, deixando de se juntar aos outros "rustlers" e
de tomar parte na acção, se aproximou da rapariga.
-? Olá! gritou-lhe. Não tenha medo!
De começo, a interpelada parou, espantada. Não conhecia Cammage, quando muito talvez o tivesse encontrado entre tantos outros em Paint Rock.
Longe de responder à sua chamada, quis ver-se livre, percebendo bem que se tratava de um dos assaltantes.
- Não receie nada! insistiu o contramestre. Tempo perdido! Rosalinda lançava-se através da
selva. Tinha por fim, conseguido desembaraçar-se de alguns dos animais que se agrupavam à sua volta, e sem hesitar meteu direita a ela, desejosa antes de tudo de
escapar ao importuno.
A princípio a égua correu a toda a brida, mas dentro de pouco teve de diminuir-lhe a velocidade. Os espinhos espetavam-se perfidamente em volta dos seus pés, os
caules dos arbustos caíam, fustigando cruelmente o rosto da cavaleira.
- Então, Miss Powell!.. Não vá tão depressa! Sou um amigo!
Den Cammage não reflectia, não se lembrava de que a captura de Rosalinda tivesse sido prevista no decurso da operação onde apenas estava em causa a razia dos Herefords.
Mas em face da loucura da rapariga, o bandido
esquecendo toda a prudência, teimou e esforçou-se de qualquer maneira por chegar ao pé dela.
Durante alguns minutos ainda, a fugitiva pensou que conseguiria despistar o seu perseguidor, mas Den Cammage alcançava-a de perto e constantemente ela ouvia a sua
voz rude que fazia o possível por a tranquilizar.
Enfim, esgotada, o pêlo branco de espuma, estriada de raios de sangue, a égua parou. A selva alteava diante dela, impedindo qualquer avanço nesse ponto.
Rosalinda teve um gesto de desespero. À volta dela, por todos os lados, a selva era alta, seria preciso ter uma faca de mato para abrir passagem por este verdadeiro
matagal!
-? Meu Deus! suspirou, perdida...
Grandes gotas de suor brilhavam-lhe na testa, sentia a sua roupa molhada e colada ao corpo. Os rumores do ataque pareciam ter-se afastado, mas ali perto, atrás dela,
distinguia a silhueta confusa do perseguidor que seguia implacàvelmente no seu rasto.
A rapariga teve um gesto raivoso. Sentia-se agora à mercê do miserável! Estendendo a mão enluvada, pegou no revólver cuja coronha emergia do coldre de cor fulva.
Não tinha até agora feito uso da arma, mas, ameaçada, não hesitaria em defender-se.
- Não avance! gritou, senão...
Voltou-se no selim, o dedo no gatilho do Colt; Cammage surgia diante dela, a alguns passos e guiava resolutamente o seu cavalo baio na sua direcção.
- Um passo mais... quis gritar ainda. Uma risada irónica respondeu-lhe:
- Não, a Miss Powell não atirará!
- Não atiro? protestou ela, impressionada. Vamos lá ver.
Sentia que a sua mão tremia ligeiramente. O contramestre estava já ao pé dela, ao seu alcance.
- Então?
O olhar sombrio do bandido estava fixo na fugitiva é esta última hesitou durante alguns segundos; ia decidir-se quando o braço do perseguidor se estendeu com desconcertante
rapidez.
Soou um tiro, mas a bala perdeu-se nos silvados. Den Cammage tinha conseguido agarrar entre os seus dedos nervosos o punho de Rosalinda e apertava-o quase a parti-lo.
- Deixe-me! gemeu a pobrezita. Está a magoar-me!
Longe de aceder, insistiu e fez peso com todo o seu corpo:
- Largue esse brinquedo, disse em voz sibilante. Não foi feito para raparigas...
- Miserável! quis protestar.
O contramestre acentuou a torção do punho de Rosalinda. Esta ainda quis resistir mas vencida pela dor, entreabriu os dedos e deixou cair a arma.
- Enfim, agora está bem!
Den Cammage triunfava. Durante alguns instantes pareceu ter um prazer mórbido em ver Rosalinda imobilizar-se, a tremer toda... Deixara-a.
- Bruto! Você é um bruto ignóbil!
À filha do "ranchman" esfregava o seu punho magoado, onde os dedos do agressor tinham deixado marcas vermelhas.
- Eu avisei-a! objectou. Estava na sua mão... Exasperada não o deixou terminar a frase:
- Afaste-se! gritou ela. Deixe-me passar! E como ele se contentasse com sorrir:
- Deixe-me passar, repetiu. Ou eu chamo!
A calma que o bandido mostrava neste momento contrastava com a excitação da sua vítima:
--Então chame! ripostou ironicamente.
Raivosamente, fechou as mãos, medindo toda a sua impotência, e ele voltou a dizer com ironia:
- Na verdade, estou a perguntar a mim mesmo com que é que conta? Os seus companheiros têm já muito
que fazer com desenvencilhar-se da ratoeira em que vieram cair humilhantemente, para se ocuparem em lhe dar uma ajuda!
Den Cammage não se importava já neste momento com Joé Channel e os seus outros acólitos. Os ecos longínquos do combate faziam-lhe compreender que a operação continuava
com vantagem sua. O encontro imprevisto que acabava de ter, incitava-o a pensar que poderia dar, por seu lado, um golpe de mestre! Levar Rosalinda ao "boss"! Esta
ideia obcecava o espírito febril do contramestre. A ocasião faz às vezes o ladrão, e bem que se não tivesse falado nunca na rapariga nas conversas que antecederam
o ataque da manada dos Herefords, Den Cammage calculava bem que ele não favoreceria um ingrato... Para o "boss", Rosalinda seria uma presa muito mais preciosa do
que algumas centenas de "longhorns" seleccionados!
Foi por isso que, rompendo enfim o silêncio, o miserável se decidiu a impor à rapariga:
- Vai seguir-me, Miss Powell!
- Segui-lo? Nunca!
Ela revoltava-se contra tal imposição, mas Cammage deixou-se rapidamente escorregar do selim para baixo, recuperou a arma que ela tinha deixado cair, e apontando-a
contra ela:
- Custa-me muito usar consigo os grandes meios, Miss Powell, mas não consente de vontade, vejo-me obrigado a recorrer à força!
- Uma vez mais, ripostou a rapariga, ordeno-lhe que me deixe passar!
- Damnl... Não vamos recomeçar com essa pequena comédia, penso eu! Se tem tempo a perder, eu tenho pressa!
Desta vez o contramestre do "Três de Espadas" abandonou o seu tom adocicado para se fazer ameaçador. Nos seus olhos passou um relâmpago:
- Obedece ou não? perguntou.
- Não, nunca!
- Então, se assim o quer...
Sem esperar mais, pegou na rapariga à volta da cintura. Rosalinda debatia-se, arranhou e mordeu o seu agressor, mas sentiu-se rapidamente arrancada do selim e levada
nos seus braços robustos.
- Socorro! Socorro! gritou.
De novo as suas unhas ensanguentaram o rosto rude, mas ele parecia nem dar por isso. Em poucos instantes colocou a rapariga sobre o pescoço do cavalo e, enfiando
os estribos, montou no selim.
- Tanto pior para si! murmurou.
Esporeou o corcel e deixou a égua abandonada. Den Cammage meteu-se de novo através da selva. Rosalinda debatia-se com desespero, mas a mão esquerda do seu raptor
fixava-a ao cavalo. Dentro de pouco, meio sufocada, teve de resignar-se a não se mexer mais.
Ao fim de alguns minutos, Den Cammage parou o cavalo e pareceu hesitar. Agora que tinha a prisioneira à sua mercê, perguntava a si próprio se deveria ir ter com
Joê Channel e o grupo dos "rustlers" ou se não valeria mais procurar alcançar o mais depressa possível um sítio mais seguro onde deixasse a prisioneira esperando
que o "boss" fosse prevenido.
Foi para esta segunda alternativa que o contramestre se inclinou, pois receava com efeito que Joé Channel, longe de o felicitar pela iniciativa, o acusasse antes
de complicar as coisas.
- Vale mais esconder-me com a pequena, resmungou enfim. Os outros não precisam de mim!
Agora, esgotada pelos esforços que não tinha cessado de fazer desde o começo do ataque, Rosalinda já não procurava resistir. Tinha a impressão de que uma força irresistível
a levava à inacção, os seus membros e o seu corpo pareciam-lhe infinitamente pesados.
Tudo se tinha desenrolado com tal precipitação que a infeliz perguntava a si própria se não estaria a sonhar. Ao redor, avistava vagamente o cenário agressivo da
selva, mas os caules que por vezes vinham atingir-lhe o
rosto e os espinhos que se espetavam à passagem, chamavam-na bem depressa à realidade atroz.
Sentia-se assim levada para o desconhecido e a pobre rapariga deixava também vagabundear a sua imaginação desvairada. Pensava no seu pai, em tom Grane e nos seus
corajosos companheiros! Segundo toda a evidência, deviam ter caído vítimas dos "rustlers" depois de lhes terem oposto uma heróica resistência! Já não podia esperar
nada da sua parte!
E Bug Dauntless? Neste momento crítico, Rosalinda não podia deixar de se recordar do corajoso companheiro de viagem que tão rapidamente se tinha prestado a socorrê-la!
Onde estaria ele nesse momento em que ela corria o mais grave dos perigos? Sem dúvida estaria em Paint Rock. Tornaria a vê-lo?
Todavia, as detonações que prosseguiam por intermitências, provavam à pobrezinha que ainda não estava tudo terminado! Demais, ela verificava que o rosto sinistro
de Den Cammage se contraía ligeiramente. O raptor, que tinha parado bruscamente o seu cavalo, carregava os sobrolhos como se estivesse a contas com uma repentina
preocupação.
com mão firme, o contramestre do "Três de Espadas" aguentava a montada e inclinava-se levemente para a frente, aspirando o ar pelo nariz com insistência.
- Damn! vociferou enfim. Terá por acaso...
Den Cammage não terminou a frase. À pouca distância, elevando-se da selva, na própria direcção que ele pretendia tomar, avistava-se uma nuvem cada vez mais densa,
que subia do chão para o ar e se alargava a olhos vistos.
Primeiro, o bandido pensou que se tratasse de uma cavalgada, mas depressa viu que não. A aragem que soprava na direcção dele, trazia-lhe um cheiro a queimado cada
vez mais pronunciado.
Cada vez mais inquieto, Cammage voltou-se sobre o selim. A pouca distância, os "rustlers" deviam estar
a acabar a razia da manada, os tiros eram cada vez
menos numerosos.
De coração apertado, a prisioneira quis tentar libertar-se, mas sentiu de novo o punho brutal que pesava sobre ela, obrigando-a à mais completa impotência.
Mas o rosto bronzeado do miserável onde as unhas da rapariga tinham deixado traços sanguinolentos, parecia progressivamente preocupado. A algumas centenas de passos,
mais longe, acompanhando o fumo cuja muralha alastrava de momento para momento através de Brushwood Plain, emergiam chamas que subiam para o céu claro.
Então Den Cammage compreendeu a realidade terrível :
-Fogo! exclamou. Toda a selva está a arder. Que farão agora os outros?
XVII
A BARREIRA DE FOGO
Nos limites de Brushwood Plain, Catamount tinha assistido ao começo do ataque.
Tudo se desenrolara como estava previsto e tudo parecia dever favorecer os "rustlers" que beneficiaram da surpresa. A oposição do "ranchman" e seus homens não podia
ser mais que esporádica. Desvairados pelo "stampede", os animais iam tornar-se uma presa fácil para os bandidos.
Durante alguns minutos, o homem dos olhos claros encarou a situação. O caso tinha sido vivamente conduzido por aqueles malfeitores que conheciam o terreno muito
bem. Den Cammage e os seus acólitos não tinham pensado em nada levianamente, e agora que o pânico se amplificava com uma rapidez desconcertante, parecia desgraçadamente
que a partida estava perdida para Elias Powell e a sua equipa.
Os Herefords na sua maior parte tinham abandonado a pista e metido ao acaso através das moitas, separados uns dos outros, os "cowpunchers" do Bar 35 esforçavam-se
em vão por voltar a pôr um pouco de ordem no meio da barafunda, os "rustlers" estavam em condições favoráveis para sustarem os seus esforços, e já os tiros eram
mais raros.
- Agora, acho que é tempo!
Catamount arrancou-se bruscamente à sua imobilidade. Sabia o que ia apresentar-se-lhe doravante, e sozinho ia tentar uma resposta que esperava bem que fosse decisiva...
Prosseguindo a sua manobra, os assaltantes
tinham-se conduzido absolutamente como o homem dos olhos claros esperava.
A primeira partida está jogada! murmurou para si o "ranger", passemos agora à segunda!
Em poucos instantes, Catamount estava ao pé do cavalo de Tip Giggler que esperava nos limites de Brushwood Plain.
Logo que se sentou no selim, atacou nervosamente os flancos do animal que relinchou com a dor e partiu como uma flecha. Sem se preocupar mais com o combate que prosseguia
na mais completa desordem de um lado e do outro da pista, o "ranger" galopou durante um momento e depois, parando bruscamente o corcel, olhou para trás mais uma vez.
A emaranhada confusão das moitas dissimulava daí por diante a Catamount os movimentos dos cavaleiros. com dificuldade se percebia agora a espessa nuvem de poeira
que se dirigia sempre para cima da manada. Mas pouco importava, com um rápido golpe de vista o "ranger" calculou a distância que ia dali aos combatentes e assegurou-se
de que o vento tépido soprava sempre na sua direcção.
- Tudo vai o melhor possível, murmurou, enquanto um sorriso distendia a sua máscara grave.
Depois, apeando-se lestamente e fazendo uma festa na garupa suada do cavalo:
- Ao trabalho, velho camarada! Voltamos a encontrar-nos daqui a pouco!
Sem hesitar, Catamount penetrou em plena selva. De começo teve certa dificuldade em progredir, as silvas e os caules dos arbustos retardavam deploràvelmente o seu
avanço. Insensível às picadas dos espinhos que por vezes lhe laceravam as mãos e o rosto, parou a certa altura e levando a mão à algibeira tirou dela o isqueiro
e acendeu-o. À volta, secos pelo calor do Sol, moitas e mato sucediam-se umas após outros, e o "ranger" abaixando-se, dentro de pouco a pequena chama que acendera
comunicava-se às ervas em parte secas,
depois aos arbustos. Um fumo azulado subiu primeiro para o céu, levado pela brisa, e enquanto começava a crepitar, o fogo seguiu para o norte, na direcção do sítio
onde os "rustlers" se esforçavam por rechaçar os animais.
Um relâmpago de satisfação fez brilhar os olhos do Catamount, a manobra que preparava parecia ir obter um pleno êxito. Para se opor aos ataques de Den Cammage e
dos seus acólitos, ia empregar um estratagema muito utilizado outrora pelos índios quando caçavam búfalos e procuravam cortar-lhe toda a retirada. Face aos Herefords
levados no "stampede", uma muralha de chamas levantar-se-ia e alargar-se-ia cada vez mais. O fogo, devastando a zona através da qual os bandidos se propunham levar
a sua presa, ia rapidamente mudar a feição das coisas.
Mas Catamount não se demorou em reflexões. Continuou a furar através das moitas, e muitas vezes ainda baixou-se para acender novos focos de incêndio. Graças ao sopro
favorável do vento, as chamas e o fumo dirigiam-se rapidamente para o lado de Big Point.
O homem dos olhos claros não ouvia já os rumores do "stampede", os tiros tinham subitamente cessado. Sempre activado pela brisa favorável, o incêndio propagava-se
rapidamente por entre as moitas secas, alimento fácil para o fogo. E já numa largura de muitas centenas de passos, a barreira de chamas tornava-se mais ampla. Brushwood
Plain estava toda inteiramente ameaçada pelo sinistro.
Ouviam-se chamamentos, dominando o crepitar do Incêndio. Os "rustlers" surpreendidos por seu turno, esforçavam-se por deter o perigo imprevisto que se abatia sobre
eles no próprio momento em que já julgavam a partida ganha.
Den Cammage, de começo intrigado, tinha parado de galopar. De pé nos estribos, olhava com insistência na direcção do sul onde os turbilhões se intensificavam.
- Alerta! berrou. Fogo!
Já os Herefords que se tinham afastado mais, faziam rapidamente meia volta, o vento trazia-lhes um cheiro cada vez mais forte a fumo e a queimado. Batidos com os
calcanhares e perseguidos de perto pelos "rustlers", os "longhorns" interrompiam bruscamente a sua corrida à doida. O fogo era para eles um adversário ainda mais
terrível do que os homens...
- Cammage? Onde está Cammage?
Já há um grande bocado que Joè Channel não via o contramestre do "Três de Espadas". Por várias vezes chamou, mas o barulho do incêndio que se aproximava e se intensificava
cada vez mais, cobria facilmente a sua voz.
Desta vez o pânico mudava de campo! Até agora os "rustlers" tinham conduzido a acção à sua vontade. Surpreendidos, Elias Powell e os seus homens, não tinham podido
opor uma resistência senão frágil, mas agora os "longhorns" voltavam para trás como loucos, mugindo e empurrando-se uns aos outros.
Um dos cavaleiros do "gang" tentou parar os animais que acabavam de voltar para trás. Trabalho perdido! Atingido por uma cornada em pleno peito, o cavalo caiu sobre
o flanco, mas em poucos instantes desapareceu debaixo da massa dos Herefords que o fogo obrigava a baterem rapidamente em retirada.
- Concentrem-se!
O antigo prisioneiro de Catamount agitava-se sem cessar, fazendo sinal aos outros para se lhe juntarem, mas os "rustlers" procuravam o contramestre. No meio da confusão
que crescia sem parar, Den Cammage continuava impossível de ser encontrado e esta desaparição desconcertava singularmente o grupo.
- Cammage virá depois ter connosco! Voltem! Joê Channel fazia o que podia para reagrupar os
bandidos que se tinham perigosa e imprudentemente disseminado em perseguição dos "longhorns". Meia dúzia de cavaleiros juntaram-se a ele.
Que havemos de fazer? perguntou um deles, a
cara enegrecida pelo fumo.
Bater em retirada e salvar a pele o mais depressa
possível! respondeu Channel sem hesitação.
Mas, e o Cammage?
Cada um olha por si! Suponho que o Cammage
já tem idade para se desenvencilhar sozinho! Ele compreenderá bem o perigo!
- E os Herefords? insistiu um outro.
- Que vão para o diabo, os Herefords! Antes de que tenham tempo de os juntar, ficarão vocês todos assados. Nestas condições, acho que sai mais cara a mecha do que
o sebo!
- Ele tem razão!
--Salve-se quem puder!
-? Dentro de alguns minutos Brushwood Plain não será mais do que um braseiro imenso!
Desejosos antes de tudo de salvarem as suas vidas, os "rustlers" juntaram-se todos à volta do antigo prisioneiro do Catamount. Mas enquanto se decidiam assim a bater
em retirada clamores desesperados chegavam até eles. Alguns dos seus acólitos tentavam sem conseguirem, livrar-se da situação em que estavam, rodeados pelo grupo
de animais que se fechava sobre eles.
--Que se desembaracem sozinhos! gritou Joê Channel aos seus vizinhos mais próximos. Doutro modo será tarde demais para nós!
Depois, estendendo a mão na direcção da direita:
- Depressa, insistiu. Não queremos que a retirada nos fique cortada!
Os que escaparam não esperaram que lhes repetisse o convite. Esporearam ansiosamente os corcéis e lançaram-se atrás do antigo prisioneiro do Catamount. Por várias
vezes tiveram que retardar o andamento, entravados pelos espinhos e pelos aglomerados de moitas. Diante deles, a barreira de fogo ateado por Catamount alargava-se
cada vez mais.
A atmosfera tornava-se irrespirável, fazia um calor ardente, a todos os momentos chispas trazidas pelo vento vinham cair à volta dos fugitivos. Cheios de angústia,
perguntavam a si próprios como poderiam escapar-se da zona ameaçada.
- Go... insistiu Joê Channel, vamos depressa! Eram oito os que o seguiam, os outros estavam
muito longe demais para se lhes poderem juntar. Ansiosos pela sua própria salvaguarda, abandonavam-nos à triste sorte. Por vezes um brusco afrouxamento dos cavalos,
atirava-os brutalmente uns contra os outros, e expeliam então novas imprecações.
- Desastrado!
- Chega-te para o lado se não podes andar mais depressa!
- Arreda, maldito molengão!
Joê Channel tentava às vezes acalmar os seus companheiros, o seu olhar ficava postado na barreira de chamas que subia por cima dos turbilhões de fumo negro. com
os rostos enegrecidos e lustrosos de suor, meio sufocados, corriam sempre, animados por uma força sobre-humana.
Durante alguns minutos ainda foi uma corrida desesperada. Os fugitivos pensaram que chegariam antes que o fogo se propagasse até mais longe, e escaparam-se-lhe bramidos
de raiva quando viram Channel virar diante deles e levantar o braço direito, gritando com todas as forças:
- Meia volta! O fogo chega primeiro do que nós!
Nuvens de fumo acre caíam sobre os "rustlers". Meio cegos, a garganta tomada por uma tosse irresistível, não conseguiam orientar-se. Maquinalmente seguiam o antigo
prisioneiro do Catamount que obliquava fortemente para a sua direita, tentando encontrar aí uma outra saída.
Enquanto os bandidos, apanhados em plena acção, se esforçavam deste modo por escapar à morte, Elias
Powell e os seus "cowpunchers" procuravam restabelecer uma situação que chegaram a crer durante um momento irremediavelmente comprometida.
Não sem espanto, a equipa do Bar 35, que aguentava desde o começo do ataque o fogo cerrado dos "rustlers", viu o adversário interromper o combate, enquanto os Herefords
reapareciam cada vez mais numerosos, repelidos pelo incêndio.
Elias Powell avaliou imediatamente o perigo que o ameaçava, mas verificou também que o fogo providencial tinha posto bruscamente fim ao "stampede". Entregues a si
próprios, os Herefords continuavam no seu refluxo.
- Depressa, gritou o "ranchman" a tom Grane, Reagrupemo-los!
A voz forte do pai de Rosalinda dominou durante alguns instantes os clamores e o crepitar do incêndio.
- Reagrupemo-los, repetiu. Retiremo-nos para Big Point!
A zona rochosa que limitava Brushwood Plain parecia evidentemente muito menos ameaçada do que o vasto matagal que se estendia a perder de vista e onde o fogo exercia
implacàvelmente as suas devastações. Elias Powell e tom Crane compreenderam que se conseguissem reconduzir para lá a manada ameaçada, poderiam sem dúvida recuperá-la
e salvá-la duma destruição certa.
Livres da ameaça que os seus adversários faziam pesar sobre eles, sem terem que se inquietar mais com alguns "rustlers" que levados para o meio dos grupos de "longhorns"
não pareciam poder doravante ser temidos, os "cowpunchers" do Bar 35 retomaram coragem, e, "reatas" nas mãos, esforçaram-se por se restabelecerem em volta do seu
"boss" e de tom Crane.
Os Herefords reapareciam a pouco e pouco mais numerosos, expulsos pelo fumo que o vento arrastava e impelidos pelo instinto de conservação, voltavam ao ponto de
partida. Surpreendidos pelo fogo no próprio
momento em que se dispersavam através da selva, arrepiavam caminho, baixando as cabeças e fugindo ao calor cada vez mais intenso.
Elias Powell trabalhava como o último dos seus "cowpunchers", sem dar atenção ao fumo que o cegava às vezes e que fazia o cavalo empinar-se, e procurava reunir também
os animais ainda dispersos, À volta, os bandidos pareciam ter-se volatilizado. Brushwood Plain continuava a arder, moitas e arbustos torciam-se sem parar sob a mordedura
ardente do fogo que prosseguia no seu alastramento implacável.
Em menos de um quarto de hora, o "ranchman" e os seus cavaleiros conseguiam trazer para a zona rochosa a manada quase completa. Só faltava meia dúzia de Herefords
que se tinham aventurado demasiado longe e aos quais as chamas surpreenderam e envolveram.
Agora, reunida nas rampas, a manada estava imóvel. Elias Powell e os seus "cowpunchers", o rosto e as mãos negras de fuligem, as roupas chamuscadas colando-se-lhes
ao corpo, podiam enfim respirar um pouco.
- Na verdade, disse tom Grane, pode-se dizer que o incêndio nos prestou um óptimo serviço! Sem ele, os miseráveis teriam feito razia nos bichos.
- Podemos agradecer à Providência, concordou o "ranchman".
Voltando-se então para os seus homens, Elias Powell perguntou:
- E a Rosalinda? Não viram a Rosalinda?
O contramestre e os "cowpunchers" olharam-se entre si. No meio do seu ardor, tinham esquecido a filha do seu "boss".
- Pensava que ela se tivesse posto de parte, disse tom Grane.
- Também o cuidava, concordou Elias Powell. Sem dúvida está à espera aqui perto.
- Vamos chamá-la!
O contramestre e os "cowpunchers", agora todos já reunidos, chamaram muitas vezes a rapariga. Não obtiveram qualquer resposta!
Meu Deus! receou Elias Powell, oxalá que não
tenha ficado lá em baixo!
Ao pronunciar estas palavras, o "ranchman" designava toda a zona de Brushwood Plain que tinha ardido agora. Nuvens de fumo subiam do sector incendiado onde se estendia
uma larga mancha negra.
tom Grane e os "cowpunchers" olhavam-se, atónitos. Todos tinham neste momento o mesmo pensamento. Enquanto lutavam para livrar e reunir a manada, Rosalinda tinha-se perdido através do braseiro.
- Não é possível! dizia o infortunado "ranchman". É preciso procurá-la, encontrá-la!
- Não pode ter ido para muito longe, opinou o contramestre, que se esforçava por sossegar o seu interlocutor.
- Quatro de vocês vão ficar aí de guarda à manada, ordenou Elias Powell. Os outros vêm comigo!
Sem esperar mais, o pai de Rosalinda e os seus companheiros montaram de novo a cavalo e depois, resolutamente, lançaram-se a toda a brida na selva que o incêndio
devorava ainda.
O fogo diminuía de intensidade à medida que atingia os limites de Brushwood Plain. As rampas rochosas, não lhe dando alimento, o flagelo vinha morrer nas proximidades
da própria pista, mas o fumo era sempre muito espesso e o grupo teve certa dificuldade em obrigar os cavalos a avançarem através do sector devastado.
- Rosalinda! Hélio, Rosalinda!
A todo o momento Elias Powell e os seus companheiros punham-se de pé nos estribos e chamavam em voz alta pela desaparecida, mas só ouviam o crepitar das chamas agonizantes.
Tão longe quanto a sua vista podia alcançar, só havia a vasta extensão ardida, a atmosfera abafada e irrespirável.
Uma chamada de tom Grane que se tinha afastado para a esquerda reuniu os cavaleiros. Estava ali uma carcaça meio calcinada, a carcaça de um cavalo. Um pouco mais
longe, um corpo enroscado sobre si próprio, o rosto e os membros atrozmente queimados, tinha ido ter mesmo ao centro do braseiro.
De começo, o "ranchman" sentiu-se terrivelmente ansioso. Seriam os restos da sua querida filha? tom Grane apressou-se a sossegá-lo:
- É o cadáver de um homem, afirmou depois de se ter ajoelhado ao pé da descoberta macabra. Estamos diante de um dos "rustlers" que foi rodado pelas chamas. Vejam,
tem ainda à volta do corpo o seu cinturão de armas.
Elias Powell e os seus companheiros retomaram activamente as pesquisas, e por três vezes descobriram mais cadáveres de cavalos e de cavaleiros que lhes provaram
que os seus assaltantes, alcançados pela instantaneidade do incêndio, tinha sofrido severas perdas, mas não havia maneira de encontrarem Rosalinda!
À medida que o tempo passava, o "ranchman" sentia-se invadir por uma angústia cada vez maior. O prolongado silêncio da rapariga levava-o a recear que lhe tivesse
acontecido uma desgraça. Procurava com o olhar incessantemente a imensa extensão desolada donde subiam ainda nuvens de fumo acre.
- Continuemos a procurar! disse em voz surda. Durante mais de uma hora, aventuraram-se ainda
através do terreno ardente. Os cavalos recusavam-se na maior parte das vezes a romper, mas a desaparecida não dava sinais de existência.
De repente tom Grane parou o cavalo. A pouca distância à direita avistou uma silhueta, a de um cavaleiro que se aproximava cautelosamente.
- Atenção, gritou o contramestre. Deve ser um desses bandidos!
Cada um armou-se com o seu Colt, mas o recém-vindo, longe de parecer intimidado pela atitude ameaçante
do grupo, aproximava-se com decisão, levantando o braço direito, a mão aberta em sinal de paz.
Elias Powell e os seus "cowpunchers" tinham parado. O rosto e o fato enegrecidos do recém-vindo provavam que ele também devia ter estado em Brushwood Plain incendiada.
Cabeça nua, dirigia-se para os cavaleiros, e voltando-se para o "ranchman", parou a alguns passos dele:
-Hélio? perguntou. É com certeza Elias Powell?
O interpelado abaixou aprovativamente a cabeça, e ia por sua vez perguntar também, mas o outro não lhe deu ocasião:
- Sou o Catamount! disse com voz tranquila. Espero que a sua manada esteja -finalmente livre de perigo!
Elias Powell sentia diminuir a sua desconfiança e já tom Grane e os seus homens tinham desviado os revólveres que apontavam para o recém-chegado. E o "ranger" acrescentou, com um sorriso:
- Esteja descansado, o caso resolveu-se com o desbarato completo desses bandidos! Tenho fortes razões para acreditar que não tardarão a prestar contas graves à justiça!
O homem dos olhos claros, uma vez feita a sua manobra, decidira juntar-se ao grupo do Bar 35. Em poucas palavras explicou ao "ranchman" como, sabedor das intenções
dos "rustlers", tinha conseguido incendiar Brushwood Plain no próprio momento em que os bandidos provocaram o "stampede" e se esforçaram por fazer a razia nos Herefords.
- O xerife Burgess está ao corrente, continuou o Catamount, não tardará a vir ter connosco. Há bocado, eu avistei-o, a chegar com o seu "poss".
Elias Powell e os seus companheiros abriam grandes olhos de espanto, tão pouco esperavam tais revelações! Estavam pasmados, sem se mexerem, surpreendidos pela certeza
de que o "ranger" fazia prova.
Agora podiam explicar as razões que tinham feito transformar em desastre a vitória inicial dos malandrins.
- Eles safaram-se, troçou tom Grane. Não encontrámos senão os cadáveres de quatro deles.
- Estejam tranquilos, os restantes estão em boas mãos, assegurou o Catamount. Não tardarão a voltar a vê-los, já inofensivos. Quanto ao chefe deles, vai dentro de
pouco soar a hora em que lhe arrancaremos a máscara!
- Atenção! interrompeu de repente o contramestre. Vem ai alguém, da nossa esquerda!
tom Grane apontou algumas silhuetas confusas que surgiam através da zona devastada, mas o "ranger" anunciou logo:
- Burgess e o seu "poss"!
Elias Powell reconheceu imediatamente o xerife que avançava, seguido pelos seus cavaleiros, tão depressa quanto lhes permitiam as dificuldades do terreno ainda fumegante,
Em pouco tempo os dois grupos juntaram-se:
- Os meus cumprimentos, disse Burgess dirigindo-se em primeiro lugar ao "ranger". Foi um excelente trabalho!
- Ainda não acabou tudo! respondeu o homem dos olhos claros. Mas tenho óptimas razões para pensar que nos aproximamos do desenlace!
- Mas, e os "rustlers"? perguntou Burgess.
- Estão actualmente em mãos seguras! afirmou simplesmente Catamount.
Entretanto, verificando que Elias Powell olhava à sua volta com inquietação, o "ranger" não pôde deixar de perguntar:
- Que tem, Powell? Que se passa?
- Rosalinda! respondeu o "ranchman" em voz angustiada. A minha filha estava connosco! Não sabemos o que lhe teria acontecido! Desapareceu durante o ataque!
XVIII
DAUNTLESS INTERVÉM DE NOVO
-. O quê? Miss Powell estava consigo?
Ainda o "ranchman" não tinha acabado de falar, Bug Dauntless, que ouvia imóvel sobre o selim, imediatamente por detrás de Burgess, inclinou-se ansiosamente para
ele.
Então Elias Powell, com uma voz que a emoção fazia sumida, contou em que condições tinham dado pela desaparição da rapariga. À medida que falava, o rosto do rapaz
exprimia uma profunda angústia.
- É preciso procurar, insistiu ele. Enquanto estamos aqui a conversar, pode ela...
Bug Dauntless não terminou a sua frase, aproximou-se do "ranchman", perguntou outra vez:
- Onde estava Miss Powell na última vez em que a viram?
O interpelado teve um gesto vago:
- Não me lembro muito bem! Os bandidos tinham atacado. Tive que me separar de Rosalinda e esperava que ela se pusesse de parte.
- Foi antes do incêndio?
- com certeza, bem antes!
O "deputy" não se demorou a tagarelar, dirigindo-se ao seu chefe:
- vou ver, xerife! declarou. Miss Powell não deverá estar muito longe!
- Também nós vamos procurar, apoiou o Catamount.
Retomaram então as investigações através da zona incendiada. Mas as chamadas feitas pelo cavaleiro ficaram desgraçadamente sem resposta. Após meia hora de esforços
infrutíferos, os cavaleiros já estavam a pouca distância de Big Point, onde a manada continuava a esperar a sombra do grande rochedo, sob a vigilância de quatro
"cowpunchers".
Bug Dauntless não sossegava. Tinha a consciência de que aquela que ele já socorrera uma vez, corria um terrível perigo. Furioso contra a sua ineficácia, prometia
a si próprio não se dar tréguas enquanto não encontrasse a desaparecida!
Uma vez mais os cavaleiros se dispersaram levando com eles Elias Powell, e o "deputy" lançou-se através dos rochedos, a pouca distância do sítio onde estivera o
Catamount antes de passar à sua acção.
Por muitas vezes Bug Dauntless se apeou examinando o chão com insistência. Não encontrava, porém, o mínimo vestígio, a estiagem que dominara nos últimos tempos tornava
qualquer investigação difícil. Começava a desesperar quando, de repente, viu uma mancha clara entre dois rochedos.
- Um lenço de seda! exclamou saltando lestamente do selim.
Quando voltou, trazendo o seu achado, Elias Powell não pôde reprimir uma exclamação:
- É o seu lenço! O lenço de Rosalinda!
- Tem bem a certeza?
- Absolutamente!
Um clarão fez piscar os olhos do "deputy". Desta vez tinha descoberto a boa pista! A rapariga tinha passado ali!
A emoção dos dois homens aumentou ainda quando um pouco mais longe avistaram a égua da desaparecida, que pastava tranquilamente na rara erva.
- Desta vez, não deverá estar muito longe!
O "ranchman" admirou-se de que Rosalinda tivesse abandonado de vontade a sua montada. Bug Dauntless,
que examinava atentamente o animal e o selim, pôde verificar as marcas bem aparentes que no couro tinham deixado os caules e os espinhos inflamados que a égua roçara
à passagem, bem como os pêlos das pernas se mostravam em parte crestados.
Meu Deus! exclamou para si próprio Elias
Powell, oxalá que ela não tenha morrido lá em baixo nas chamas!
- A descoberta do lenço prova-nos felizmente que não houve nada disso, apressou-se a objectar o "deputy". Prova-nos ainda que Miss Powell esteve aqui, sã e salva,
há pouco tempo!
- Tem razão, admitiu o "ranchman", serenado por este raciocínio do seu companheiro. Mas porque é que a não encontramos?
-? Paciência, não tardaremos muito a saber com certeza!
Afastaram-se de novo em pesquisas através de terreno atormentado que envolvia Big Point. Paravam frequentes vezes, inspeccionando o chão com insistência. Bug Dauntless
contornava um enorme bloco quando estremeceu. Um repentino chamamento vinha de muito próximo:
- Socorro! Socorro!
- Miss Powell! exclamou logo o "deputy". Sem se inquietar se o seu companheiro o seguia,
Bug Dauntless esporeou vigorosamente o cavalo. Apenas tinha contornado o enorme rochedo, ouviu-se um tiro.
Bang!
Atravessado de lado a lado, o "stetson" de abas largas do "deputy" foi cair alguns passos mais longe; mas, sem parecer de modo algum intimidado, o arrojado cavaleiro
lançou o cavalo ao longo da rampa. A menos de cem passos, um outro cavaleiro vinha a desembocar e corria a toda a brida.
Era Den Cammage que levava, deitada ao través
do pescoço do cavalo baio, Rosalinda semi-inconsciente!
Depois de o contramestre do "Três de Espadas" ter esbarrado com a barreira de fogo, fez meia volta com a sua prisioneira. De começo, o miserável tinha esperado poder
ir ter com Joè Channel e os seus outros companheiros, mas o fogo que se propagava com desconcertante rapidez, tinha-o separado dos seus acólitos, e por isso resolveu-se
a recuar para Big Point.
Imóvel, Rosalinda não tinha procurado resistir mais. Cada uma das suas tentativas tinha-lhe provado que não possuía força para resistir. Cammage tinha-a nesse momento
à sua completa disposição. com o corpo e os seus membros alquebrados pelos choques quase incessantes que o cavalo lhe imprimia, a pobrezinha teve que se resignar.
O raptor foi obrigado por várias vezes a meter-se através da selva incendiada, um fumo acre quase cegava e asfixiava a cativa, e durante minutos que lhe pareceram
intermináveis, sentia-se sempre arrebatada a toda a velocidade. Os cabelos compridos que caíam sobre os ombros, estavam em parte crestados. O cheiro insuportável
do fumo e do queimado impregnavam-na toda,
A rapariga nem sequer tinha força para pensar, para reflectir na sua triste sorte. Muitas vezes, como movida por uma força estranha, chamava, mas o martelamento
precipitado dos cascos do cavalo cobria facilmente a sua voz.
Dentro de pouco, Cammage teve que parar a sua montada que já começava a dar sinais de fraqueza. Saltando lestamente para o chão na margem de um regato, deu de beber
ao animal e como a sua prisioneira parecia a ponto de desfalecer, reanimou-a como pôde, borrifando-a.
- Tenho sede! implorou a pobre rapariga num suspiro.
Fê-la beber no côncavo da sua mão, o que ela aceitou
sem repugnância. O contacto benéfico da mão tirou-a do seu doloroso torpor.
Mais! pediu, com voz pouco perceptível.
Den Cammage consentiu em a socorrer outra vez, e depois, olhando com insistência à sua volta, contemplou o incêndio que devastara Brushwood Plain. Em parte alguma
avistou qualquer silhueta.
- Os outros desenredar-se-ão com Channel! pensou. Cá por mim, mais vale pôr-me em lugar seguro!
O contramestre do "Três de Espadas" sabia agora que a aventura tinha acabado mal. O malfadado incêndio cujas causas ignorava, originaram o insucesso da operação.
Mas de todos seria o único que não regressaria de mãos vazias!
Se os Herefords lhe tinham escapado, trazia ao menos ao seu "boss" um refém que poderia tornar-se nesse caso precioso!
Entretanto, o miserável não pôde tornar a chegar ao ponto de partida tão depressa como tinha esperado de começo. A presença de um grupo de cavaleiros que se aproximava
de Brushwood Plain suscitou-lhe inquietações severas. Dissimulado por trás dos rochedos, observou ansiosamente, e os seus alarmes não deixaram de aumentar quando
verificou que se tratava de Burgess e do seu "poss"!
A princípio, Den Cammage chegou a pensar que se enganava. Nesse momento, Burgess devia trabalhar longe dali, na direcção onde Lewis Navarro o tinha enviado!
Afinal, o contramestre teve que se resignar. Tratava-se de facto do xerife de Paint Rock e dos seus melhores auxiliares.
- Damnl... praguejou o malvado. Tenho a impressão de que as coisas se vão estragar! Farei bem em me não demorar nestas paragens!
Todavia a mais elementar prudência aconselhava Cammage a esperar mais. Rosalinda, que aguardava deitada sobre a erva junto do regato, apercebeu-se
depressa de que o seu raptor manifestava uma inquietação e uma febrilidade cada vez maiores.
A rapariga sentia-se agora em melhor forma. Ansiosa, continuava a observar o seu guarda. É claro que ela não tinha por ora qualquer ilusão, era demasiado fraca para
poder afrontar o miserável e esboçar a menor tentativa de evasão! Todavia, a atitude preocupada do bandido não deixava de lhe sugerir uma certa esperança.
Rosalinda deixava vagabundear os seus pensamentos. Esforçava-se por comprimir o pulsar do seu coração. Segundo toda a evidência, o seu pai e os seus amigos deviam
andar à sua procura! De um momento para outro, o socorro que ela esperava com tanta impaciência, apareceria talvez.
- Meu Deus, suspirou. Salvai-me!
Passaram minutos, terrivelmente angustiosos. Enfim, Den Cammage decidiu retirar para um sítio que achasse menos exposto. Levantando de novo a sua cativa, pô-la no
pescoço do cavalo e tomando o animal pelas rédeas levou-o para lá da linha dos rochedos que sobranceavam a vasta extensão de Brushwood Plain.
Retirando-se assim, o contramestre de "Três de Espadas" tinha pegado no Colt, e tudo na sua atitude denunciava as suas constantes preocupações e os receios de ser
surpreendido.
Pararam uma vez mais. Mas se as dificuldades do terreno podiam permitir ao bandido caminhar sem ser visto, as precauções cada vez maiores que ele tomava faziam aumentar
a esperança que Rosalinda tinha gerado.
Dissimulado por detrás de um enorme bloco, Den Cammage conservava o dedo no gatilho do seu revólver. O rosto crispado, os sobrolhos carregados, acabava de avistar
um cavaleiro que parara a alguns passos do seu refúgio. Então a rapariga pôs-se de pé. Pressentindo a iminência de socorro, chamou com todas as suas forças.
Den Cammage teve um gesto de raiva. O chamamento tinha sido ouvido, o cavaleiro aproximava-se. Então, sem esperar mais nada, o raptor descarregou, e inclinando-se
rapidamente para a sua prisioneira, levantou-a de novo, deitou-a no pescoço do cavalo e saltou para o selim.
--Depressa! gritou, esporeando a montada.
O animal correu nas rampas como um sonho; Rosalinda sentiu-se de novo levada. De um lado e do outro o cenário passava numa rapidez vertiginosa. O sol que iluminava
em pleno o seu rosto, impedia-a de diferençar com nitidez. Apesar disso divisou o homem que se lançava assim corajosamente em seu socorro. E enquanto era levada
em pleno galope, veio-lhe um nome aos lábios:
- Bug Dauntless!
Rosalinda não procurava explicar-se por que circunstâncias o "deputy" se encontrava na pista do seu raptor. Aproximava-se, e isso era o essencial! E no seu atormentado
espírito, uma profunda esperança sucedia à angústia atroz!
Pelo contrário, Den Cammage sentia crescer a sua ansiedade, e era preciso descer a toda a brida a rampa porque se via perseguido de muito perto pelo seu corajoso
adversário! Lançado em pleno galope, Bug Dauntless fazia tudo para chegar ao pé do fugitivo e arrancar-lhe a sua presa!
Durante um longo momento ainda, esta caça implacável ao homem prosseguiu. Embaraçado pela sua dupla carga, o cavalo de Cammage voltou a dar sinais de fraqueza.
- Mais depressa ainda! Estamos a apanhá-lo! Bug Dauntless atingia toda a velocidade, o desejo
de prestar socorro a Rosalinda que sabia estar agora em poder do miserável, decuplicava as suas forças; sentindo-se levado ao longo da rampa, verificava com alegria
que a distância que o separava do fugitivo diminuía a pouco e pouco!
Enfim, uma dezena de passos apenas separava os dois cavaleiros.
- Alto! gritou-lhe o "deputy".
- Vai para o diabo!
Den Cammage voltou-se em plena corrida e disparou várias vezes, mas as balas assobiaram perto do seu perseguidor sem o atingirem, os constantes sacões que lhe imprimia
o cavalo lançado a todo o galope evitavam que o malvado apontasse bem.
Por várias vezes, Bug Dauntless esteve quase a disparar, tinha-lhe sido fácil abater o cavalo, mas queria evitar a Rosalinda uma queda que poderia ser mortal.
-Alto! gritou-lhe outra vez.
Ia pôr-se a par do fugitivo. Este lançou uma nova praga mas sentiu logo um corpo duro que se apoiava brutalmente contra ele, entre as espáduas. E a voz trovejante
do "deputy" ordenava-lhe:
?-Pare, ou disparo!
Desta vez, o contramestre do "Três de Espadas" compreendeu que o seu enérgico adversário ia pôr em execução a sua ameaça. Levantou uma das mãos, fazendo sinal que
se entregava.
Já Bug Dauntless se inclinava, pegando no miserável pela gola, obrigou-o a diminuir o andamento do seu corcel que parou, enfim, esgotado pelo esforço considerável
que acabava de produzir.
- Deus seja louvado!
A rapariga saía finalmente da imobilidade que guardava desde o começo desta angustiosa caça ao homem. O seu rosto descontraía-se agora.
--Você! arquejou ela. Outra vez você!
- Esteja descansada, Miss Powell, doravante não terá mais nada a recear da parte deste bandido!
Depois, baixando de tom, sem cessar de apontar o seu Colt para o contramestre derrotado:
- E agora, abaixo do selim, malandro! Levanta as patinhas!
com o rosto convulsionado, esboçando uma careta de despeito, Den Cammage viu-se obrigado a obedecer. E enquanto se imobilizava, lastimosamente, à mercê do seu intrépido
adversário, Bug Dauntless declarou à sua protegida:
- Pode apear-se agora, Miss Powell.
A pobrezita sentia-se tão fraca que esteve a ponto de se ir abaixo, e teve que se agarrar às rédeas.
- Agora, dá-me para cá os teus punhos! ordenou o "deputy" ao seu prisioneiro.
Uma vez mais o contramestre do "Três de Espadas" obedeceu de muito má vontade. E alguns segundos mais tarde as algemas fecharam-se-lhe à volta dos punhos com um
estalido metálico.
Bem certo agora de que o miserável não poderia fugir, Bug Dauntless dirigiu-se a Rosalinda.
- Como hei-de agradecer-lhe, murmurou com uma voz dificilmente perceptível. Devo-lhe a vida, e talvez mais ainda!
- Não está ferida? interrogou o rapaz ajudando a sua vizinha a pôr-se de pé.
- Esteja descansado, retorquiu ela, não tenho nada! Apenas um pouco de fadiga. Mas como...
Rosalinda não pôde acabar a sua frase, o martelamento de casco de cavalos aproximava-se cada vez mais.
Surpreendida, virou a cabeça e logo que avistou o cavaleiro que chegava a todo o galope ao longo da rampa, uma exclamação lhe escapou dos lábios:
- Dad!
Era Elias Powell que intervinha por sua vez, trazendo com ele a égua encontrada.
Desde que Bug Dauntless tinha visto Den Cammage, o "ranchman" esforçara-se sem êxito por alcançar o seu companheiro que corria à doida, e chegava agora ainda todo
ofegante, o rosto a escorrer suor.
-? Então! disse, reconhecendo a desaparecida.
Logo que saltou do cavalo, caíram nos braços um do outro.
- Pode-se dizer que nos fizeste passar um rico susto! exclamou o excelente homem. tom Grane e os outros fizeram as piores suposições a teu respeito!
- Não tem mais do que perguntar a esse miserável, respondeu então a rapariga designando Den Cammage. Se não me tivesse arrastado à força, há muito tempo que estaria
ao pé de todos!
Depois, apontando para o "deputy" que estava, sorridente, ao pé dela:
- Felizmente tudo é bom quando acaba bem! Graças à intervenção de Bug Dauntless...
- Não esquecerei o serviço que ele acaba de te prestar, honey, assegurou o "ranchman" com convicção.
Estendendo a mão, Elias Powell trocou com o "deputy" um vigoroso "shake-hands". Ia falar ainda, quando Bug Dauntless o interrompeu com um gesto:
- Não esqueçamos que o xerife e os outros nos esperam lá em baixo! A limpeza começou a sério, importa acabá-la agora e ocuparmo-nos daquele que foi o cabecilha de todo este negócio!
Dois minutos mais tarde, os dois homens enquadrando o prisioneiro e precedidos por Rosalinda, que tinha enfim recuperado a sua égua, retomavam a direcção de Big Point.
XIX
AJUSTE DE CONTAS
- Salve-se quem puder!
Joé Channel corria a toda a brida levando atrás de si os "rustlers" que procuravam reagrupar-se.
A surpresa tinha sido completa, no próprio momento em que os bandidos se julgavam senhores dos Herefords, o incêndio que tinha bruscamente devorado Broshwood Plain
viera mudar a face das coisas. Em menos de três minutos os animais, seguidos de perto pelos assaltantes, tinham necessitado de fazer meia volta diante da muralha
de chamas que se erguia sobre eles, activada pelo vento, cada vez mais ameaçante.
A maré viva refluía e aqueles mesmos que cuidavam ter a manada à sua mercê, faziam esforços desesperados para tentarem evitar por sua vez encontrarem-se presos no
meio da barafunda.
Chamamentos, pragas, gritos de horror, superavam por vezes o estrondo do incêndio e o rolamento ensurdecedor da galopada. Abandonando os Colís de que se tinham servido
antes para assustarem os "longhorns", os "rustlers" pegavam nas "reatas" e encarniçavam-se em grandes chicotadas para abrirem uma passagem, mas aterrorizados pelo
calor e pela progressão das chamas, os animais pareciam insensíveis e continuavam a apertar-se em volta dos cavaleiros, dos quais alguns, incapazes de se manterem
no selim, caíram dos cavalos.
Só Joê Channel parecia ter conservado o seu domínio; estava um pouco afastado quando se produziu o reverso repentino da situação.
Agitando os braços, tentava reunir os que tinham escapado desta carga tão irresistível quanto imprevista.
- Juntem-se todos, à minha volta, berrava ele.
A retirada não se fazia sem dificuldade, desembocando no meio das nuvens espessas de fumo que se desdobravam sobre eles, os cavaleiros apertavam furiosamente os
flancos das suas montadas. Aqueles que tinham visto Channel, fizeram o possível por se lhe juntarem. Quanto a Den Cammage continuava impossível de se encontrar;
parecia ter desaparecido desde o começo do sinistro.
Enfim, um grupo conseguiu libertar-se. Eram nove, o rosto enegrecido, os fatos crestados pelo fogo, sem chapéu na maior parte, ainda exaustos pela cavalgada louca
que tinham sido obrigados a efectuar.
- E os outros? interrogou o antigo prisioneiro do Catamount.
-Que vão para o diabo! vociferou um. Desenvencilhámo-nos sozinhos, eles que façam o mesmo!
- É preciso correr e muito depressa, precisou um outro. Burgess e os seus "deputies" estão lá! Em alguns instantes, se não conseguirmos raspar-nos bastante depressa,
podem cortar-nos a retirada!
Joè Channel não parecia muito impressionado com estas declarações e com a atitude estarrecida dos seus acólitos. Direito sobre o selim, aguentando com mão segura
o seu cavalo que se empinava, deitava um último olhar na direcção da selva em chamas. Mas não avistou nenhum cavaleiro, apenas os animais continuavam a refluir mugindo,
tentando deixar uma zona ameaçada e dirigindo-se para Big Point.
Impacientes, os "rustlers" procuravam precipitar a sua corrida.
- Damnl... rugiu um deles. Não se anda daqui? -? É preciso ir depressa!
Ouviu-se de novo a voz clara de Joé Channel:
- Um minuto!
Os bandidos olharam-se inquietos. A perfeita serenidade
de que dava provas na ocorrência o antigo prisioneiro de Catamount, não deixava de os estupidificar e de os inquietar ao mesmo tempo.
- É loucura! gritou-se. Não se pode estar à espera de Cammage!
Novos protestos se ergueram. O grupo ia seguir avante, quando Joê Channel, mais calmo do que nunca, gritou:
- É inútil descomporem-se! Mãos ao ar! Todos!
Desta vez a estupefacção sucedeu à impaciência. Dizendo estas palavras, o retomado da justiça tinha tirado os seus dois revólveres dos coldres e apontou-os para
os acólitos perplexos.
- By Jove... protestou um dos "rustlers". O momento parece mal escolhido para brincar!
A réplica não se fez esperar:
?-? Não se trata de brincar, falo o mais seriamente do mundo!
Um dos cavaleiros quis seguir além, mas antes mesmo de que tivesse tempo de pegar na arma para passar à resposta, ouviu-se uma detonação. Dando um grito de raiva,
o bandido sentiu que lhe arrancavam da mão o Colt. E o antigo prisioneiro do Catamount continuou :
- De quem é agora a vez?
Intuitivamente, os cavaleiros, com pouca vontade de sofrerem a sorte do seu companheiro, levantavam miseravelmente os braços. O lance teatral que acabava de se produzir,
fazia-lhes compreender que tinham sido manejados! Mas era demasiado tarde agora para reagir; o seu adversário imprevisto tinha-os por completo à sua discrição!
--É uma cobardia, uma traição!
Fez-se ouvir um apito, interrompendo logo os protestos tão veementes quanto indignados. Ao fim de alguns instantes, silhuetas de cavaleiros surgiram nitidamente
para lá da barreira espessa de fumo.
Desta vez os "rustlers" compreenderam que estavam perdidos sem recurso era o xerife e o seu "poss" que intervinham assim num momento em que ficavam incapazes de
opor a menor resistência. Implacável, Channel não tinha mexido mais e continuava a mantê-los sob ameaça das armas.
- Então, xerife! Que rica captura que fizemos! O antigo prisioneiro do Catamount não parecia nada
impressionado com a aparição do representante da autoridade e dos seus ajudantes, parecia mesmo que os esperava! Sorriso nos lábios, prosseguiu, dirigindo-se a Burgess:
- Os outros não devem estar muito longe! A menos que tenham sido atirados abaixo durante o pânico. São os pequenos inconvenientes da profissão!
O xerife contentou-se em responder com um gesto. Depois, designando aos seus "deputies" o grupo dos "rustlers", silencioso e aterrado:
- Ponham-me as algemas a todos esses tipos, ordenou.
com ou sem vontade, os nove bandidos tiveram que se resignar, e enquanto os homens do "poss" tratavam de os desarmar e de os pôr fora de estado de resistirem, os
apitos sucediam-se sem descanso na direcção de Big Point. tom Grane e os seus "cowpunchers" trabalhavam agora por recuperar os Herefords que, guiados pelo seu instinto
de conservação, chegavam cada vez em maior número à zona rochosa.
Desenhando uma hábil manobra, os cavaleiros do Bar 35 conseguiram reagrupar a sua manada e reunir-lhes os retardatários. Em menos de um quarto de hora, os "longhorns"
estavam amalhados numa zona onde nada teriam a recear das chamas.
Além disso, compreendendo que a manada se encontrava daí por diante em segurança, tom Crane e os seus companheiros tratavam de apagar o incêndio que começou a enfraquecer,
falto de alimento. Sem se preocuparem
com o fumo acre e espesso que os rodeava por todos os lados, esforçaram-se por afastar a ameaça. Durante este tempo, Burgess aproximou-se de Joè Channel.
- Os meus cumprimentos, declarou-lhe, o caso foi conduzido com mão de mestre!
Depois, passeando um olhar inquieto à sua volta:
- O Catamount devia estar aqui...
- O Catamount certamente que não está longe! assegurou o antigo prisioneiro do "ranger". Olhe, aí está ele!
Um cavaleiro chegava a toda a brida, contornando a zona devastada de Brushwood Plain. A primeira vista, Burgess percebeu que se tratava com efeito daquele que esperavam
e que trazia com ele um homem de braço ao peito: Tip Giggler!
O homem dos olhos claros vinha depressa com o seu prisioneiro. Avistando Burgess e os seus vizinhos, dirigiu-lhes um gesto com a mão, e depois, activando o andamento
do seu corcel, veio ter com eles.
Três minutos mais tarde, apeava-se a três passos de Burgess.
- Encantado por o tornar a ver, xerife, e a ti também, old fellow!
Ao dizer estas palavras, o "ranger" deu uma palmada amiga no ombro de Joè Channel. Não parecia nada manifestar ressentimento por aquele que lhe tinha atirado à queima-roupa
repetidamente, antes de o lançar ao Concho River!
Mas o xerife declarou sorrindo:
- Ambos vocês foram admiráveis! Graças a vocês o "gang" que aterrorizava a região, está posto definitivamente fora de condições de fazer mal!
- Fui bem inspirado quando carreguei o Colt com cartuchos de pólvora seca, comentou o Catamount. É verdade que tudo tinha sido organizado conforme as necessidades
da causa!
O homem dos olhos claros podia agora falar com toda a franqueza. A sua passagem em Paint Rock em companhia do seu prisioneiro, não era mais do que uma manha de guerra!
Joè Channel tinha sido uma isca na qual os bandidos se deixaram prender! A operação não deixava de ter os seus riscos; tinha sido preparada em El Paso, desde que
o "ranger" regressara da Argentina em companhia de Joê Channel que ele recebera por missão trazer. Um inquérito rapidamente conduzido, a boa vontade que o retomado
da justiça mostrou em se fazer a devida luz no seu caso e provar que fora condenado pelo menos em três crimes que não tinha cometido, incitaram o chefe dos "rangers"
a dar-lhe crédito.
O coronel Morley percebia muito de homens, e não ignorava que o Catamount, esse mesmo, que se tornou no seu mais célebre e mais intrépido auxiliar, tinha sido um
perigoso "fora-da-lei" antes de entrar para o número dos seus valentes cavaleiros. E foi por isso que quis recorrer ao mesmo método no que diz respeito a Joé Channel,
ao serviço da lei poderia vir a ser muito útil. Tinha-lhe proposto reabilitar-se, ajudando o homem dos olhos claros durante a nova e perigosa missão que lhe confiaria
em Paint Rock.
Há um tempo já que as autoridades do vale do Concho River deploravam as façanhas do sinistro "gang". Todas as reacções e as pesquisas se mostraram sem efeito, e
Morley preferira recorrer à astúcia. Joê Channel sob as suas aparências de prisioneiro e de retomado da justiça, deveria passar-se para o campo do inimigo a fim
de frustrar mais facilmente as manobras do adversário. A manha tinha resultado magnificamente e os seus autores podiam agora felicitar-se pelos resultados obtidos.
Todavia, Catamount não perdeu o seu tempo a discutir:
- Os malandrins do "gang" estão em nosso poder. Mas falta descobrir o "boss" e desmascará-lo.
- Há também Cammage, objectou Joè Channel. Oxalá que esse canalha não tenha conseguido escapar-se para prevenir o seu "boss".
Esteja descansado, respondeu Burgess, parece-me
que aí está Cammage!
Quatro cavaleiros aproximavam-se de Big Point a galope; e tom Crane que se tinha finalmente afastado dos seus "cowpunchers" que limpava com as costas da mão o seu
rosto todo sujo de fuligem e de suor, exclamou:
- O "boss"! Miss Rosalinda!
- Bug Dauntless acompanha-os, acrescentou então Burgess, e creio que trazem o tal Cammage algemado!
Em pouco tempo, o pequeno grupo juntou-se a Catamount e aos seus acompanhantes. Bug Dauntless expôs ao seu chefe em que condições tinha conseguido encontrar e capturar
o contramestre do "Três de Espadas" no próprio momento em que ele se dispunha a fugir levando a pequena.
- Já tens uma boa conta, troçou o xerife.
Den Cammage mostrava um aspecto lastimoso, e o seu terror aumentou ainda quando Burgess, levando-lhe a mão ao pescoço, fez um gesto significativo. Aterrorizado,
o malfeitor cuidava sentir já o contacto da corda do enforcado.
- Não sou eu! protestou com voz trémula. É o "boss".
- O "boss" ? repetiu Catamount que se aproximara do contramestre e que o olhava fixamente nos olhos. Gostaríamos muito de saber como se chama ele!
O miserável hesitou durante alguns instantes antes de responder. Via os outros "rustlers" que esperavam, as mãos presas nas pulseiras de aço, a sua atitude lastimosa
e resignada, os olhos significativos que eles lhe dirigiam e faziam-lhe compreender que estavam todos dispostos também, a entrarem no caminho das confissões.
- Está bem, seja! gritou extenuado. Não fazemos empenho algum em que sejamos os bodes expiatórios!
- Como se chama o vosso "boss"... insistiu o Catamount que parecia querer ler no mais profundo da alma do bandido.
- Lewis Navarro! atirou raivosamente o prisioneiro.
- Já todos desconfiávamos disso, opinou então Burgess. Mas até agora tínhamos as mãos atadas, não havia provas nem testemunhas sérias.
- Enquanto arriscávamos a nossa pele, acrescentou o contramestre do "Três de Espadas" com voz chorona, o "boss" espera descansadamente no "Sunlight". Tem assim a certeza de haver um álibi que lhe permitirá desviar as suspeitas!
- A comédia já durou bastante, interrompeu o Catamount. Vamos imediatamente desmascarar esse tipo infame!
Já o xerife tinha ido reunir o grupo e voltava a tomar o caminho de Paint Rock, quando tom Crane se voltou para Elias Powell:
- E os Herefords, "boss"?
O "ranchman" olhou para a sua filha, perplexo:
- O Graham está à espera, objectou.
- Não poderemos chegar a Santa Ana a horas convenientes! O ataque e o incêndio atrasaram-nos de quatro horas pelo menos! com certeza que é mais prudente regressarmos ao Bar 35.
- O. K.! Telefonarei ao Graham! Em virtude de circunstâncias independentes da nossa vontade...
Mas Rosalinda objectou por sua vez: -? A situação parece evolver. Será talvez preferível esperar e ver exactamente em que param as modas!
- Tanto mais, acrescentou o contramestre, que não vejo utilidade em nos desembaraçarmos tão depressa da nossa mais bela manada!
- Está bem, seja, comentou Elias Powell. Tornem a levar os bichos para o Bar 35. Veremos mais tarde!
Rapidamente os "cowpunchers" reagruparam os Herefords e depois, sem parecerem afectados no mínimo por esta decisão, arrepiaram caminho em direcção do vale do Concho River, Rosalinda e o pai dispunham-se a juntar-se à sua equipa, quando Burgess os chamou:
Esperem um pouco! Irão mais tarde para o
Bar 35! Por enquanto, temos necessidade de vocês, os vossos testemunhos são indispensáveis!
- O. K.! Seguimo-los! concordou logo o "ranchman".
Os dois grupos separaram-se então, enquanto tom Grane e os seus acólitos voltavam rapidamente para trás, o xerife, Catamount, Joê Channel e os seus prisioneiros
obliquaram na direcção de Paint Rock.
Os cavaleiros estavam fatigados pelos esforços que tinham acabado de fazer. Na maior parte, lembravam negros. Rosalinda também conservava vestígios muito aparentes
da luta que tinha tido que sustentar contra o seu raptor, mas agora parecia ter esquecido o perigo que acabava de correr. Cavalgava ao lado de Bug Dauntless e à
medida que avançavam os dois jovens trocavam algumas palavras.
Por seu lado, o Catamount conversava com o xerife. Sabiam tanto um como o outro, que o caso ainda não estava acabado, e que Lewis Navarro era um adversário de quem
seria imprudente desdenhar... Conforme toda a evidência, o miserável vendo-se batido e desmascarado, iria tentar por todos os meios subtrair-se aos rigores da justiça!
Enquadrados pelos "deputies", Den Cammage e os "rustlers" prisioneiros apresentavam um aspecto lastimoso; nenhum ousava arriscar uma palavra sequer. A derrota do
grupo fora tão esmagadora, a resposta e a intervenção tão fulminantes que os bandidos, aterrados, resignavam-se à sua triste sorte. Cada um deles preparava-se mesmo
para descarregar para cima do "boss", na esperança de que seriam levadas em conta
as suas revelações quando chegasse a tremenda liquidação de contas no julgamento!
Durante mais de uma hora, o numeroso grupo avançou assim. O Sol caía agora no horizonte, mas apesar de todos sentirem o estômago pegado às costas, Catamount e os
seus companheiros não pensavam senão no último episódio que da aventura se preparava e que ia pô-los em ligação com o temível aventureiro.
Chegaram enfim à vista do Concho River e de Paint Rock, atravessaram em silêncio a ponte que atravessava o rio e chegaram aos limites da pequena cidade.
À aparição do xerife e dos seus homens provocou logo viva curiosidade, e maior foi ainda quando viram as algemas que seguravam os punhos dos homens do "gang". De
um lado e do outro da rua acorriam os curiosos, interpelando Burgess e os seus "deputies" e pedindo explicações. com um gesto, o representante da autoridade incitava
os recém-chegados a manterem a maior reserva.
- Já sabem o que têm a fazer, declarou enfim, voltando-se para os seus auxiliares. Quatro de vocês levarão os prisioneiros para minha casa. Os outros irão ao "Sunlight"
e farão com que ninguém saia do "saloon". É preciso encontrar Lewis Navarro custe o que custar!
Rosalinda e seu pai acertaram o passo com os cavaleiros do "poss", Bug Dauntless queria convencer a rapariga a retirar-se, mas ela recusou. Um sentimento de curiosidade
animava-a a assistir também à cena dramática que se ia representar.
Já os cavaleiros do xerife se postavam diante de cada saída do "saloon". Catamount apeou-se e ia levar Burgess, Channel e Bug Dauntless para o interior do estabelecimento
quando se ouviram tiros, logo seguidos por gritos penetrantes.
- Que é que se passa? Estão a matar-se lá dentro? perguntou o "ranger" por entre dentes.
XX
MISSÃO BEM CUMPRIDA
Lewis Navarro não se sentia tranquilo. Tinha passado a maior parte da noite no "Sunlight", jogando o "poker" e apostando importâncias muito grandes, mas pela primeira
vez desde há muito tempo perdera! Os seus parceiros podiam ver uma ruga de preocupação que lhe atravessava a testa, e não havia dúvida de que o seu espírito estava fora dali.
O aventureiro olhava frequentemente na direcção do mostrador do relógio, achava que os ponteiros avançavam com vagar demasiado. Pensava no Bar 35, na manada que
se preparava para deixar o rancho e tomar a direcção de Santa Ana enquanto o horizonte empalidecia com os primeiros clarões da alvorada!
Não era a primeira vez, certamente, que Lewis Navarro se empenhava numa operação de tal envergadura. Até aqui, graças à sua destreza, graças à habilidade dos seus
sequazes, tinha conseguido desviar todas as suspeitas, mas desta vez a parada em jogo parecia-lhe de vulto. Fazer uma razia na manada do Bar 35, era ter Powell à
sua completa discrição, era obrigar também Rosalinda a entrar no caminho dele. Era, enfim, ter à sua mercê uma vasta extensão de terreno fértil.
Nada tinha sido deixado ao acaso. Cammage era um manobrista astuto que ele sabia pagar pelo seu justo valor. Todavia, desta vez, faltavam-lhe dois homens. Matthewson
e Tip Giggler! De Matthewson já nada
se podia esperar! Quanto a Giggler, os ferimentos recebidos no curso do recente golpe de mão falhado, punham-no durante algumas semanas ainda fora de condições para
agir!
O aventureiro tomou a sua refeição da manhã na pequena sala contígua ao "Sunlight" que às vezes lhe servia de quartel-general. Comeu à pressa, deixando sempre a
sua imaginação vagabundear.
À volta do balcão havia a costumada animação, uma dezena de "cowpunchers" dos arredores estavam firmados nos cotovelos e tagarelavam qual deles mais. Nesse momento
discutiam a propósito da condução de animais e sobre os próximos "rodeios" que se preparavam em Santa Ana e noutros sítios.
De repente Lewis Navarro teve um sobressalto. Pela porta da pequena sala que tinha ficado entreaberta, viu entrar um homem cuja silhueta lhe era há muito tempo familiar:
- Ray Powell! murmurou baixinho.
O Tio Ray acabava de facto de fazer a sua aparição no "Sunlight". Parecia lúcido nessa manhã, e depois de ter levado a montada para a barra de prender cavalos, entrava
com um passo mais seguro do que de costume. Mal tinha dado uns passos, uma voz chamou-o:
-? Olá, Ray! Um "whisky"?
O recém-chegado agradeceu com um gesto, lembrou-se de que tinha prometido à Mammy não tocar numa carta nem num copo. Pôs-se no meio da sala, as mãos na cintura,
parecendo procurar alguém.
Lewis Navarro foi logo fechar a porta. Não o fez, porém, bastante depressa. O Tio Ray viu-o. Apesar disso, não fez como de costume, e longe de procurar juntar-se
ao seu parceiro demasiado favorecido pela sorte nos dias precedentes, descobriu uma cadeira que estava na proximidade da porta e sentou-se, cruzando as pernas.
A atitude simples do bom velhote excitava ao mesmo tempo a hilaridade e a curiosidade dos outros fregueses. Dentro de pouco, era o motivo de toda a chacota.
- Então, old Ray! Não se toma nada hoje?
- Nem um whiskyzinho?
- Nem uma cervejinha?
- À tua saúde, apóstolo da temperança!
Ray Powell parecia decididamente não ter ouvido nada. Tirava muito calmo a sua bolsa de tabaco da algibeira, rolava um cigarro entre os dedos amorenados. À sua volta
a curiosidade intensificava-se, mas o pobre velho afectava sempre a indiferença mais completa. Por vezes, deitava uma olhadela furtiva para a porta da sala pequena
de que ele agora parecia vigiar o acesso.
Lewis Navarro começava a impacientar-se à medida que o tempo passava. Para lá do vidro despolido da porta avistava o busto do seu parceiro infeliz que se desenhava
vagamente.
Em tempo ordinário, o aventureiro não teria deixado de interpelar Ray Powell; mas, desde a véspera, muitas coisas se tinham passado, e em particular certo negócio
de papéis assinados pelo velhote.
Tinha havido o desastroso regresso, a discussão com Elias Powell, e Navarro era levado a pensar que o culpado devia ter sido seriamente repreendido pelo irmão. com
certeza que o Tio Ray não estaria disposto a jogar mais uma partida. A atitude anormal que ele observava desde que tinha aparecido, provava-o amplamente, E o aventureiro
não podia deixar de sentir uma inquietação cada vez maior.
Por várias vezes, Lewis Navarro tentou raciocinar. Para dizer a verdade, Ray Powell não podia ser mais do que um adversário bastante descategorizado! Não se tinha
tornado o motivo do riso dos garotos e dos gracejadores inconvenientes de Paint Rock?
Mascando o seu charuto, Lewis Navarro esperava portanto na sala, e pensava agora em Joè Channel,
perguntando a si próprio se o recruta se mostraria tão hábil como Matthewson! A rapidez com que o retomado da justiça se tinha desembaraçado do Catamount encorajava-o
a crer que encontrara nele um apaniguado de envergadura.
O relógio deu dez horas. O Tio Ray continuava sempre no mesmo lugar, a cabeça ligeiramente inclinada, as pálpebras meio fechadas, poder-se-ia acreditar que se dispunha
a dormitar, mas de quando em quando deitava uma olhadela na direcção da porta vizinha. Começava a impacientar-se pela insistência com que Lewis Navarro teimava em
ficar na sala pequena!
O aventureiro calculava agora as distâncias que separavam o Concho River de Brushwood Plain. À essa hora Joe Channel já devia ter principiado a acção. Pela sua manobra
fulminante, tinha conseguido fazer a razia nos Herefords do Bar 35!
- Dentro de uma hora Cammage deve ter vindo ter comigo, pensou o aventureiro. Mas que diabo estará a (maquinar esta velha carcaça e porque é que ele se empenha em
ficar junto da porta?
Lewis Navarro teria preferido acabar com esta exasperante expectativa, mas não esquecia que a sua presença no "Sunlight" se afirmava absolutamente indispensável
desde que queria arranjar um álibi. Fazendo das tripas coração, resignou-se a esperar ainda.
O tio Ray continuava a estar de sentinela. Os polegares no cinturão de couro, observava com ar distraído os fregueses que se alinhavam ainda à volta do balcão e
que continuavam a olhá-lo como a um autêntico animal curioso. Não chegavam a compreender porque é que o bom homem fazia ouvidos moucos a todas as suas instâncias.
Ao meio-dia, os fregueses eram em maior número. Um enorme trangalhadanças com um copo de "whisky" na mão, aproximou-se de Ray Powell:
-Então! toma um pouco old san o a gani... Não costumas fazer-te rogado!
Os olhos do pobre velhote abriram-se; durante alguns instantes parecia cuidar-se que ele iria ceder à tentação; o cheiro agradável e tão conhecido fazia-lhe cócegas
nas narinas. Apesar disso, mordeu os lábios e afastou resolutamente o tentador.
- Já sabes que hoje sou eu quem paga a rodada!
- Trabalho perdido, o Tio Ray continuava inabalável... Então, vencidos, os brincalhões afastaram-se...
E a espera continuou. Lewis Navarro mantinha-se no seu refúgio, a sua impaciência e a sua inquietação acentuavam-se à medida que o tempo passava! Às duas horas levantou-se,
e o Tio Ray, posto alerta pelo barulho da cadeira arrastada, pareceu sair do seu torpor. Deixando a cintura, a mão amorenada deu umas pancadinhas no coldre donde
emergia a coronha do seu Colt... Mas era apenas um falso alerta... Lewis Navarro tornou a sentar-se, sem esperança.
Três horas... Quatro horas... Cinco horas! Lewis Navarro tinha mandado vir outra refeição... Sempre impassível na sua cadeira, o Tio Ray começava a sentir um vazio
sério no estômago... Um belo cheiro a guisado, saía da sala vizinha e vinha acariciar-lhe as narinas... Estóico, continuava, apesar disso, a esperar, como absorvido
por uma ideia fixa...
Na rua e nas proximidades do "saloon", havia a animação de todos os dias, ninguém parecia suspeitar do drama que se representava a umas trinta milhas para lá do
Concho River...
O aventureiro tamborilava agora na mesa, observava os transeuntes, admirando-se de não ver aparecer o xerife e os seus "deputies"... Burgess e o seu "poss", segundo
as indicações que ele lhes tinha fornecido, tinham ido para Grizzly Pass, bem longe no Oeste... Já deviam estar de volta... E Lewis Navarro preparava-se para afectar
a maior estupefacção quando o xerife lhe explicasse que tinha ficado na mesma!
O Sol caía pouco a pouco no horizonte, e Cammage também não tinha voltado... A ausência prolongada do
seu contramestre que deveria participar-lhe o êxito da operação, parecia ao aventureiro de mau augúrio... Ia resignar-se a sair e a tagarelar com alguns "cowpunchers"
de cotovelos descansados no lbar, quando uma alta silhueta se mostrou no enquadramento da porta:
- Alto aí! intimou uma voz surda... Aqui não se passa!
O Tio Ray saía enfim da sua letargia, a mão ossuda apertava a coronha do Colt que há pouco acariciava tranquilamente...
Lewis Navarro teve um sobressalto... O olhar pisco do velhote fixava-se agora nele com estranha insistência...
- Vamos, deixa-me passar, velho bêbedo! vociferou...
Mas Ray Powell parecia importar-se muito pouco com a atitude ameaçante do seu vizinho, e foi com voz estranhamente calma que lhe respondeu:
- Temos certas contas a ajustar, Navarro!
- Certas contas?
Alarmado, o aventureiro levou por seu turno a mão à sua arma, mas o Tio Ray empurrou-o para o interior da sala pequena...
Em volta do balcão e junto das mesas do "Sunlight" começava-se a estar fortemente inquieto... Um "cowpuncher" quis intervir, mas a porta do refúgio fechou-se com
tanta força sobre os dois homens que o vidro voou em estilhas... E antes mesmo que os clientes do "saloon" tivessem tempo de interferir, soaram alguns tiros...
Agora, na sala grande, havia exclamações, apelos. Um tanto reticentes, tendo medo de ser atingidos por uma bala, os curiosos estavam à parte, imóveis... Mas o silêncio
parecia dominar de novo no refúgio, e pelo enquadramento viu-se uma silhueta que se dobrava encolhida...
O Tio Ray tornou a aparecer, conservava na mão o seu Colt ainda fumegante. Durante alguns instantes, empurrando a porta, apareceu no enquadramento, depois
vacilou sobre as pernas e abateu-se pesadamente no chão, a cabeça adiante...
Então, sem mais hesitações, precipitaram-se todos... Lewis Navarro estava debaixo da mesa da sala pequena, na sua queda arrastara com ele a toalha e tudo o que ela
tinha em cima... Passando por cima do corpo de Ray Powell, os fregueses inclinaram-se sobre o seu adversário...
- Nada a fazer! observou uma voz. Já tem a sua conta!
Levantaram o Tio Ray, mas o desgraçado parecia não valer mais do que o aventureiro que acabava de abater... Três manchas sombrias apareciam-lhe no peito... Apesar
disso, sob as suas sobrancelhas cabeludas, as pálpebras entreabriram-se, e enquanto diligenciava pôr-se de pé, balbuciava:
- O malandro disparou primeiro... Eu estava em legítima defesa... Ele apanhou-me... Mas estamos iguais!
Ouviram-se então chamamentos à entrada do "saloon"...
-O xerife! gritou uma voz...
Burgess, que chegara a Paint Rock com o seu grupo, entrava de facto, intrigado com a agitação que reinava no interior do "Sunlight" e por causa dos tiros que tinha
ouvido... Vinham com ele Catamount, Bug Dauntless, Joè Channel, Elias Powell e a sua filha...
No meio da confusão, Rosalinda foi a primeira a ver o ferido que tinham nesse momento estendido sobre uma mesa, ao fundo da sala...
- Tio Ray! gritou ela, desvairada...
Sem esperar os seus companheiros, avançou e pegou na mão que pendia. Ansiosa, inclinou-se, sem notar que punha uma nódoa de sangue na sua manga.
- Tio Ray! tornou a exclamar...
- Olá!.
Um clarão passou nos olhos do pobre velho... Reconheceu a sua sobrinha, e o seu rosto contraído, acalmava-se
numa expressão de alívio e de alegria... Mas bruscamente, uma ruga de sofrimento crispou-lhe os lábios:
- Tio Ray! Vamos tratar-te... Tristemente, abanou a cabeça:
-Não vale a pena! murmurou com uma voz que enfraquecia cada vez mais... Agora já ficam livres, no Bar 35!
- Proíbo-te que digas isso...
- Sim! Sim! Foi melhor... muito melhor que se tivesse passado assim... E de resto, também ficarás bem aliviada, tu também!
Elias Powell inclinou-se por sua vez para o corpo do irmão. Foi ele quem escutou as últimas palavras do moribundo:
--Os Herefords? ficarão no Bar 35! Adeus... disse já num suspiro... À pequena será feliz!
Todos à volta se mostravam solícitos, mas o "ranchman" procurou em vão reanimar o seu irmão... No mesmo momento em que lhe levava aos lábios um cantil de "whisky",
pedindo-lhe que bebesse, a cabeça de Ray Powell caiu para trás bruscamente, os olhos abriram-se enormes... Tinham deixado de ver, apesar disso...
- Acabou-se tudo! soluçou Rosalinda, incapaz de reter as lágrimas...
A cabeça entre as mãos, parou, prostrada... Sentiu um braço vigoroso que a ajudou a levantar-se:
--Coragem, Miss Powell!
Bug Dauntless estava ali também, com um ar apiedado olhava para a sua protegida...
Burgess tinha revistado o cadáver de Lewis Navarro e entre os papéis descobriu as declarações de dívidas que o imprudente Ray Powell tinha assinado...
-? Tais papéis, arrancados pela trapaça e pela mentira, não têm valor algum!
E enquanto Joé Channel continuava a procurar, Burgess estendeu esse achado a Catamount...
Durante alguns instantes o homem dos olhos claros
leu as poucas linhas que Ray Powell tinha escrito com mão trémula e, tranquilamente, depois de ter dirigido ao xerife um olhar de entendimento, rasgou-os...
Uma hora mais tarde, na cidade em efervescência, soube-se que Tip Giggler por sua vez também tinha entrado no caminho das confissões... Agora que o "boss" morrera,
não hesitou em descarregar para cima dele e em contar as condições em que o seu acólito Matthewson tinha morrido, no decurso do ataque falhado ao Green Canon...
O caso de Brushwood Plain devia ter uma enorme repercussão, graças à actividade despendida pelo homem dos olhos claros e o seu "prisioneiro". Toda a região do Concho
River estava doravante desembaraçada dessa angustiosa ameaça... Pôde-se por fim respirar livremente...
Nessa mesma noite, Graham, que tinha esperado sem resultado a manada em Santa Ana, foi avisado pelo telefone... Elias Powell, dadas as circunstâncias, preferia não
fechar o negócio...
Rosalinda podia olhar agora o futuro sem receio, sabia que tinha encontrado alguém que a protegeria tão corajosamente na vida como tinha feito no decurso desta amargurada
aventura...
E enquanto o Catamount, montado no Mezquita, enfim encontrado, seguia de novo para El Paso, a rapariga podia acariciar bem à sua vontade o seu lindo sonho... E se
bem que sentisse ainda a tristeza do sacrifício do Tio Ray, não era sem alegria que olhava os Herefords, tão corajosamente salvos!
Algumas semanas mais tarde, Bug Dauntless e ela, iriam vê-los, galopando um ao lado do outro, para um futuro, para uma felicidade que se anunciava para eles sem nuvens!
Albert Bonneau
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