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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PROPIETÁRIO / John Galsworthy
O PROPIETÁRIO / John Galsworthy

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

 

"The Forsyte Saga" (A Família Forsyte) era o título originalmente destinado a esta parte, a que depois chamei "The Man of Property" (O Proprietário). E se o adoptei para toda a crónica da família Forsyte, foi cedendo àquela tenacidade forsytiana que existe em todos nós. A palavra "saga" pode suscitar objecções, sob a alegação de que sugere coisas heróicas, e que há muito pouco heroísmo nestas páginas. Mas é empregada apenas com a ironia compatível com a história; e, afinal de contas, esta longa narrativa, refira-se embora a gente de sobrecasaca e trajos de seda e a um período dourado, não é despida do conteúdo essencial de um conflito. Fazendo o desconto das proporções gigantescas e da sede de sangue dos velhos tempos - tais como chegaram até nós através das histórias de fadas e das lendas-, as personagens das antigas sagas também eram Forsyte, arraigados ao seu instinto de propriedade e pouco resistentes contra os assaltos da beleza e da paixão, tais como Swithin, Soames, e mesmo jolyon filho. E se as heróicas figuras de tempos legendários ressaltavam do seu ambiente de uma forma que seria considerada indecente para um Forsyte da era vitoriana, nós poderemos estar certos, entretanto, de que o instinto tribal era, então como agora, a força primeira, e que esta família, com o seu instinto de propriedade e de lar, espalhado numa lenda, «levaria longe a sua fama».

Tanta gente escreveu e proclamou que as suas famílias eram os ancestrais dos Forsyte que quase fomos obrigados a acreditar na realidade dessas figuras imaginárias. As maneiras mudam, as

modas evoluem, e a «casa de Timothy, em Bayswater Road», transformou-se num ninho de coisas inacreditáveis, excepto no essencial; não encontraremos agora nada que se lhe assemelhe, nem talvez nada que se assemelhe a James ou ao velho Jolyon. E embora os algarismos das companhias de seguros e as sentenças dos juízes nos garantam diariamente que o nosso paraíso terrestre ainda é um local de riqueza e segurança, quando os selvagens bandoleiros chamados Beleza e paixão se introduzem nele, sentimos que a segurança nos foge sob o nariz. E, igual a um cão que não pode deixar de ladrar à passagem de uma charanga, aquela essência de Soames que há na natureza humana sempre se alerta contra esses inimigos que rondam em torno dos seus redis de proprietário.

«Deixai mortas as coisas mortas do passado» - isso significaria muito se o passado realmente morresse. A persistência do passado é uma dessas tragicómicas bênçãos que cada nova Idade renega, certa de estar a afirmar uma perfeita novidade. Porém não existe nenhuma Era tão nova assim! A natureza humana, sob as suas mutáveis pretensões e roupas, foi e será sempre grandemente Forsyte, e poderia, afinal de contas, ser um animal muito pior.

Olhando para trás, para a era vitoriana, cujo dilaceramento, declínio e queda é de certo modo descrito em «A Família Forsyte», vemos agora que saltamos de uma frigideira para o fogo. Seria difícil demonstrar que o caso da Inglaterra era melhor em 1913 do que o era em 1886, quando os Forsyte se reuniram em casa do velho Jolyon, para comemorarem o noivado de June com Philip Bosinney. E ainda em 1920, quando o clã se reuniu todo para celebrar o casamento de Fleur com Michael Mont, o estado da Inglaterra estava decerto tão debilitado e falido quanto nos anos 80 estava congelado e com as rendas em baixo nível.

Se esta crónica fosse realmente um estudo científico daquela transição, naturalmente teriam sido levados em conta os factores representados pela bicicleta, o carro a motor e a máquina voadora; o aparecimento da imprensa popular; o declínio da vida do campo e o aumento das cidades; o nascimento do cinema. Os homens são, na verdade, realmente inábeis para controlar as suas próprias invenções; o que mais facilmente desenvolvem é a adaptabilidade às novas condições que essas invenções criam.

Porém esta longa história não é o estudo científico de um período, é antes a encarnação dos distúrbios que a Beleza produz na vida dos homens. A figura de Irene, que, segundo o leitor possivelmente observou, nunca se apresenta senão através dos sentidos das outras personagens, é a concretização da perturbadora Beleza imiscuindo-se num mundo que só cuida da propriedade.

Alguém há-de perceber que os leitores, quando se adiantam através das águas da saga, sentem-se cada vez mais inclinados a apiedar-se por Soames, e pensam que, procedendo assim, estão em desacordo com as disposições do seu criador. Longe disso! Ele também se apieda de Soames - cuja tragédia é muito simples, a incontrolável tragédia de não se fazer amar sem possuir uma pele bastante grossa que o torne inconsciente disso. Nem mesmo Fleur ama Soames como ele sente que deveria ser amado. Porém, ao apiedarem-se de Soames, os leitores inclinam-se talvez a ficar contra Irene. Afinal de contas, pensam eles, Soames não era mau, nada foi culpa dele; ela deveria ter-lhe perdoado e agido em consequência. Porém, tomando partido, os leitores perdem a noção da simples verdade que faz o entrelaçamento de toda a história - isto é, quando a atracção dos sexos falta definitivamente a uma união, não há piedade, nem razão, nem dever, ou o quer que seja capaz de vencer a repulsa implícita da Natureza. Não adianta discutir se aqueles factores deveriam vencer ou não; porque isso nunca acontece. E quando Irene parece dura e cruel - como no Bois de Boulogne, na Groupenor Galery -, ela é apenas completamente realista, sabendo que a menor concessão é a polegada que precede o impossível, o repulsivo limite.

Há uma crítica que pode também ser feita, na última fase da saga, contra Jolyon e Irene - dois rebeldes à propriedade que alegam propriedade espiritual sobre o filho, Jon. Porém, do modo como é contada a história, dizer isso seria hipercriticismo. Nenhum pai, nenhuma mãe, consentiria que o filho se casasse com Fleur sem prévio conhecimento dos factos, e são os factos que determinam Jon, não a persuasão tentada pelos pais. E, além disso, a persuasão tentada por Jolyon não é por sua causa, mas sim pela de Irene, e Irene apenas repete: «Não pense em mim, pense em si!» E o tacto de Jon, sabedor de tudo, compreender os sentimentos

da mãe - isso dificilmente pode ser alegado como prova de que ela, afinal, também era uma Forsyte.

Porém, além de contar a interferência da Beleza e dos protestos da Liberdade num mundo de proprietários - que são os principais objectivos de «A Família Forsyte» -, ela não pode ser absolvida da acusação de ter pretendido embalsamar a "upper-middle class". Tal como os antigos egípcios, que punham ao lado das suas múmias as coisas necessárias para uma existência futura, assim eu tentei pôr ao lado das figuras das tias Ann, Juley e Hester, de Timothy e Swithin, do velho jolyon e de James e dos seus filhos algo que lhes pudesse garantir uma pequena vida, mais tarde - um pouco de bálsamo que os protegesse na desenfreada corrida de um "progresso" dissolvente.

Se a "upper-middle class" está destinada a desaparecer no amorfismo junto a outras classes, aqui, picada nestas páginas, ficará como numa vitrina, à disposição dos pesquisadores do amplo e mal arranjado Museu das Letras. Aqui ela descansa, conservada no seu próprio caldo: o senso da propriedade.

 

 

 

 

A RECEPÇÃO EM CASA DO VELHO JOLYON.

Todas as pessoas privilegiadas que assistiram a uma das festas de família realizadas em casa dos Forsyte gozaram de um espectáculo ao mesmo tempo encantador e instrutivo: o de uma família da alta burguesia em grande gala. Mas, se algum desses eleitos fosse dotado de agudeza psicológica - qualidade sem nenhum valor monetário e devidamente ignorada pelos Forsyte-, seria testemunha de uma cena que, embora sem nada de especialmente agradável, ilustraria um obscuro problema humano.

Noutros termos: da reunião dessa família - da qual entretanto não se poderiam designar três membros ligados por um sentimento que merecesse ao menos o nome de simpatia - o nosso observador concluiria pela evidência da misteriosa e concreta coesão que faz da família uma tão formidável unidade social, uma tão exacta miniatura da sociedade. Sentir-se-ia admitido aos confusos caminhos trilhados pelo progresso social, compreenderia alguma coisa da vida patriarcal, desde o enxamear das hordas selvagens ao alvorecer e à queda das nações. Seria como alguém que, tendo assistido à plantação e ao crescimento de uma árvore - modelo de tenacidade, de isolamento e de êxito -, no meio de centenas de outras plantas, que, mais pobres de fibra, de seiva e de resistência, houvessem sucumbido, visse essa árvore frondejar um dia, em toda a sua folhagem espessa e pacífica, numa prosperidade quase repulsiva, no ponto máximo da sua vitalidade.

Pois, no dia 18 de Junho de 1886, pelas quatro horas da tarde, um observador que se encontrasse na residência do velho Jolyon Forsyte, em Stanhope Gate, teria podido contemplar a suprema florescência dos Forsyte.

Celebrava-se o noivado de Miss June Forsyte, neta do velho Jolyon, com Mr. Philip Bosinney. Com os seus trajos de luxo, luvas claras, coletes de pêlo de camelo, emplumada e encasacada, toda a família estava presente.

Até a tia Ann comparecera, ela que raramente abandonava o canto da sala do seu irmão Timothy, onde, sob um penacho colorido de pampas grass que emergia de um vaso azul-claro, passava os dias a ler ou a tricotar, cercada pelas efígies de três gerações de Forsyte. Até a tia Ann estava pois ali: e o seu torso inflexível, a calma dignidade da sua face, personificavam aquele rígido espírito de posse que era a alma da família.

Quando um Forsyte nascia, ficava noivo ou casava, todos os Forsyte estavam presentes; quando um Forsyte morria... mas a verdade é que nenhum Forsyte morrera ainda. Eles nunca morriam, a morte era contrária aos seus princípios, e tomavam precauções contra ela, as precauções instintivas de uma vitalidade poderosa contra qualquer atentado à sua propriedade.

Os Forsyte que naquele dia se misturavam à turba dos convidados pareciam mais bem tratados e vivazes que de ordinário. Tinham uma segurança alerta, um ar de brilhante respeitabilidade. Dir-se-ia que se haviam preparado para desafiar qualquer coisa. O ar de desdém, característico de Soames Forsyte, atingira a família inteira: parecia que todos estavam em guarda. E essa atitude inconscientemente agressiva da família, por ocasião da festa em casa do velho Jolyon, assinalla um momento psicológico da sua história e é o prelúdio do seu drama.

Sentia-se que estavam hostis a qualquer coisa, não individualmente, mas em grupo, e esse ressentimento exprimia-se pela perfeição requintada dos trajos, por uma exuberância da cordialidade familiar, por um exagero da importância da família e por uma imperceptível expressão de desconfiança e desdém.

O perigo - factor indispensável ao aparecimento da qualidade fundamental de qualquer sociedade, grupo ou indivíduo - era o que os forsyte sentiam no ar. E era a premonição do perigo que os punha em guarda. Pela primeira vez, a família parecia ter a intuição de que entrava em contacto com algo de estranho e inquietante.

Encostado ao piano, via-se a possante figura de um homem. ostentando um colete duplo sobre o seu vasto peito - colete duplo e um alfinete de rubi na gravata, em vez do simples colete de cetim e do alfinete de brilhantes que usava habitualmente.

O rosto barbeado, quadrado, envelhecido, cor de couro, pálido, com olhos pálidos, exibia, sobre a gola de cetim, a sua expressão mais digna. Era Swithin Forsyte. Junto à janela, onde poderia absorver mais que o seu quinhão de ar puro, via-se o seu irmão gémeo, James. Tinha também mais de um metro e oitenta de altura, sendo porém magríssimo, como se desde o nascimento fosse destinado a restabelecer o equilíbrio da balança numa boa média; o velho Jolyon chamava aos gémeos «o gordo e o magro».

James, sempre curvo, meditava no que via; os seus olhos cinzentos, que pareciam fixamente absorvidos em qualquer terror secreto, faziam de vez em quando um exame rápido e furtivo ao que se passava em torno. A face, cortada por duas rugas paralelas, e o lábio superior, longo e raspado, emolduravam-se em suíças. Na mão, James virava e revirava um bibelot de porcelana.

Perto dali, ouvindo o que lhe dizia uma senhora de vestido castanho, seu filho Soames, pálido e inteiramente barbeado, moreno, um pouco calvo, erguia obliquamente o queixo e o nariz, com aquele ar de desdém desconfiado já aludido acima, como se escarnecesse de um ovo que sabia bem não poder digerir.

Atrás dele, o primo, o grande George, filho de Roger, o quinto Forsyte, preparava, com um ar sonso no rosto gordo, um dos seus sardónicos gracejos.

Algo de inerente à circunstância os afectava a todos.

Sentadas em fila, muito próximas umas das outras, viam-se três senhoras idosas: tia Ann, tia Hester - as duas solteironas da família Forsyte - e Juley - diminutivo de Júlia -, que tempos atrás, vendo que já não estava na primeira juventude, cometera a leviandade de casar com Septimus Small - um homem de constituição débil. Há longos anos que lhe sobrevivia. Junto com a irmã mais velha e a irmã mais nova, vivia em Bayswater Road, na casa do mano Timothy, o sexto e o mais novo dos seus irmãos.

Cada uma das senhoras trazia um Jeque na mão, uma nota colorida no trajo, um broche ou uma pluma evidentes, atestando a solenidade do momento.

No centro da sala, debaixo do lustre, como convinha ao dono da casa, estava o chefe da família, o velho Jolyon em pessoa. Com os seus oitenta anos, os belos cabelos brancos, a testa alta, os olhos pequenos, cinzento-escuros, e o enorme bigode branco caído que ultrapassava a forte maxila, tinha um ar de patriarca; e, apesar das faces magras e das têmporas encovadas, parecia gozar da eterna juventude. Mantinha-se extremamente erecto e o seu olhar sagaz e firme nada perdera do brilho antigo. Dava a impressão de estar acima das dúvidas e das aversões que agitam os homens de menor tamanho; tendo, desde anos cuja memória já se perdera, executado sempre as suas vontades, conquistara como que um direito imprescritível ao mando. Nunca ocorreria ao espírito do velho Jolyon a necessidade de assumir uma atitude de inquietação ou desafio.

Entre ele e os seus quatro irmãos presentes - James, Swithin, Nicholas e Roger - havia muitas diferenças e muitas analogias. E, por sua vez, cada um dos quatro irmãos, entre si, eram profundamente diferentes, embora assemelhando-se muito.

Através dos traços e das expressões diversas daqueles cinco rostos, poder-se-ia notar uma certa força particular na maxila; e esse traço, apesar das dissemelhanças superficiais, era uma característica de raça por de mais remota para que se lhe pudesse pesquisar a origem e muito persistente para que se pudesse discuti-la- era como a marca registada da família e a garantia dos seus êxitos. Na jovem geração - no grande George, com o seu aspecto taurino, no pálido e voluntarioso Anchibald, em Nicholas filho, suave e prudentemente obstinado, no grave Eustace, resoluto e fátuo - sempre se encontrava o mesmo traço, menos acentuado talvez; entretanto, não seria possível um engano: aquilo era a marca de qualquer coisa indestrutível na alma familiar.

Num ou noutro momento daquela tarde, todas essas caras, tão semelhantes e tão diversas, haviam exibido a mesma expressão de desconfiança - cujo objectivo era, sem qualquer dúvida, o homem para cuja apresentação se tinham reunido ali.

Sabia-se a respeito de Philip Bosinney que não era rico; mas já antes disso raparigas da família Forsyte se haviam comprometido com rapazes pobres e chegaram a casar com eles. Não era portanto essa a razão da inquietude que se insinuava pelo espírito dos Forsyte. E eles não teriam podido mesmo explicar a origem de um pressentimento que as tagarelices da família só haviam obscurecido mais. Contava-se, é verdade, que o rapaz fizera a primeira visita às tias Ann, Hester e Juley com um chapéu mole de feltro cinzento - um feltro mole, nem ao menos novo -, poeirento e informe. «Tão extraordinário, minha querida, tão esquisito.» A tia Hester, que era míope, ao atravessar o pequeno hall, tomara-o por um gato estranho e mal tratado e tentara enxotá-lo. «Tommy tinha amigos inconfessáveis!» E ficara desconfiada, porque a coisa não se movia.

Como um artista que procura sempre descobrir os pequenos nadas significativos que resumem o carácter de uma cena, de um lugar, de uma pessoa, os Forsyte, artistas inconscientes, fixaram a atenção, instintivamente, no tal chapéu.

Aquilo foi para eles um índice ínfimo, por onde penetra entretanto todo o sentido real de uma situação. Porque cada um deles perguntara a si próprio: «Vejamos, por exemplo: seria eu capaz de fazer uma visita com tal chapéu?» E todos haviam respondido: "Não!» Os mais imaginativos acrescentavam ainda: «Nunca me ocorreria tal ideia!»

George, ao ouvir a história, fez uma careta: aquele chapéu era decerto uma boa pilhéria! Ele entendia do assunto.

- Muito altivo, o «Pirata Selvagem»! - comentou ele. E a palavra «Pirata» circulou de boca em boca, acabando todos por adoptá-la para designar Bosinney.

As tias fizeram a June algumas censuras a propósito do chapéu.

«Na nossa opinião, não devia perdoar-lhe isso, querida!» Mas June respondera-lhes com o seu modo imperioso e vivo, tal como a pequena encarnação da vontade que representava. «Que mal pode fazer isso? Phil nunca sabe o que veste!)

Ninguém respondera a réplica tão chocante. Um homem que não sabe o que veste? Não, não!

Quem era pois esse rapaz que, tornando-se noivo de June, a herdeira reconhecida do velho Jolyon, arranjara tão bem a sua vida? Arquitecto? Isso não bastava para lhe desculpar o chapéu. Nenhum dos Forsyte era arquitecto, mas nenhum deles conhecia arquitecto algum capaz de fazer uma visita de cerimónia de chapéu mole. em plena season, em Londres. Era um perigo! Ah, um perigo!

June, naturalmente, não via esse perigo, mas, além de ainda não ter completado dezanove anos, era uma original. Não dissera ela um dia a Mrs. Soames - sempre tão bem vestida - que era vulgar usar plumas? E Mrs. Soames desde então renunciara às plumas. A boa June era tão peremptória!

Tais dúvidas, tais censuras, tal desconfiança, perfeitamente sinceras, não haviam impedido entretanto os Forsyte de se reunirem, atendendo ao convite do velho Jolyon. Era coisa rara uma recepção em Stanhope Gate; já há doze anos não havia lá nenhuma, desde a morte de Mrs. Jolyon.

Nunca os Forsyte se tinham concentrado em tão grande número, porque, misteriosamente unidos a despeito de todas as suas divergências, tomavam armas contra um perigo comum. Como um rebanho que vê um cão estranho entrar no redil, mantinham-se cabeça com cabeça, ombro contra ombro, prontos a investir contra o intruso e a pisá-lo até à morte. Tinham acorrido também, decerto, para fazerem uma avaliação do presente de núpcias que se esperava deles. E, embora a escolha de um presente de noivado fosse em geral preparada por perguntas deste género: «Que é que você vai dar? Nicholas deu um faqueiro», a escolha dependia muito do noivo. Se ele tinha boa cara, cabelos penteados, ar próspero, impunha-se um presente bonito; decerto o noivo contaria com isso. E no fim, por uma espécie de acordo de família a que se chegava por um processo idêntico à fixação dos preços num mercado, cada um dava exactamente o que era justo e conveniente. As últimas avaliações operavam-se na casa de tijolos vermelhos onde morava Timothy, confortável habitação com vista para o parque, onde viviam as tias Ann, Juley e Hester.

Bastava o incidente do chapéu para justificar a inquietação da família Forsyte. E seria muito difícil, seria talvez impossível a qualquer outra família em cujo seio vive esse respeito das aparências que deve caracterizar a alta burguesia, não se ressentir de tal inquietação!

O autor do incidente conversava com June, em pé, junto á porta do fundo. Dentro da desordem dos seus cabelos crespos, parecia sentir-se num meio insólito. E parecia também divertir-se, mau grado seu.

George disse baixinho a seu irmão Eustace:

- O Pirata Selvagem está com cara de quem quer fugir! Aquele «homem de aparência singular», como lhe chamaria

depois Mrs. Small, era de estatura mediana e fortemente constituído; tinha o rosto moreno e pálido, bigodes de um castanho claro, maçãs salientes e faces fundas. A testa inclinava-se para o alto da cabeça, formando porém bossas acima dos olhos, como as frontes de leão que se vêem nas jaulas do jardim zoológico. Tinha as pupilas de um pardo líquido e dourado e o seu olhar era por vezes tão desatento que desconcertava. O cocheiro do velho Jolyon, depois de conduzir June e Bosinney ao teatro, dissera ao mordomo: .

- Não se sabe o que pensar dele: deu-me a impressão de um leopardo meio selvagem.

De tempos a tempos chegava um Forsyte até à porta onde conversavam os noivos, rodava em torno, olhando Bosinney. June mantinha-se à frente, como para repelir aquela ociosa curiosidade. Era frágil, «uma centelha de cabelos e de energia», dissera alguém - com olhos azuis intrépidos, o queixo firmemente desenhado, a pele brilhante; o corpo e o rosto pareciam pequenos de mais para a coroa que lhe formavam os bastos cabelos de ouro avermelhado.

Uma mulher alta, de corpo admirável, que um membro da família comparara certa vez a uma deusa pagã, mantinha-se em pé, contemplando os noivos com um sorriso sombreado de tristeza. As mãos, calçadas em luvas cinzentas, cruzavam-se uma

sobre a outra, e o rosto, grave e encantador, inclinava-se um pouco de lado, prendendo os olhares de todos os homens. Tinha o talhe tão móvel, de um equilíbrio tão exacto e tão leve, que o próprio ar parecia pô-lo em movimento. As faces eram quentes, embora pálidas, e tinha uma doçura aveludada nos grandes olhos sombrios; mas eram os lábios - fazendo uma pergunta, dando uma resposta, com aquele sorriso velado por uma sombra - que prendiam os olhares dos homens: lábios sensíveis, ternos, suaves, por entre os quais, como de uma flor, parecia evolar-se calor e perfume.

Os noivos que ela observava não sentiam a presença daquela deusa passiva. Foi Bosinney que a notou primeiro e perguntou o nome. June encaminhou o noivo à presença da linda rapariga.

- Irene é minha amiga inseparável - disse ela. - Peço que sejam bons amigos, vocês dois!

Diante da ordem da pequena, os três sorriram, e, enquanto sorriam, Soames Forsyte apareceu silenciosamente ao lado da deusa, de quem era o marido, e disse:

- Ah! Apresente-me também!

Raramente o viam longe de Irene, durante uma reunião, e mesmo quando as exigências da conversa o afastavam dela, seguia-a sempre com a vista, e os seus olhos tinham uma estranha expressão de vigilância e desejo.

Na janela, James, pai de Soames, não cessava de examinar a marca do bibelot de porcelana.

- Admira-me que Jolyon tenha aprovado esse noivado - disse ele à tia Ann. - Disseram-me que eles não têm nenhuma probabilidade de se casarem antes de vários anos. Esse rapaz Bosinney - e pronunciava o o de Bosinney de uma maneira peculiar-, esse rapaz Bosinney não possui nada. Quando Dartie casou com Winifred, eu fiz que ele colocasse tudo em nome da mulher, e foi uma sorte! Actualmente, já não teriam um vintém!

Sentada na sua poltrona de veludo, a tia Ann ergueu a cabeça, Caracóis grisalhos rodeavam-lhe a testa, caracóis que, não tendo mudado de cor há dezenas de anos, haviam abolido todo o sentido do tempo na família. Ela não respondeu, porque raramente falava, poupando a sua velha voz. Mas para James, cuja consciência não estava tranquila, aquele olhar equivalia a uma resposta.

- Bem sei - disse ele - que Irene não tinha um real, mas que poderia eu fazer? Soames estava tão apaixonado! Emagreceu enquanto a namorava. - Depondo, irritado, o vaso de porcelana sobre o piano, deixou errar o olhar pelo grupo que se formara junto à porta: - E, na minha opinião - acrescentou inesperadamente-, tudo está muito bem.

A tia Ann não lhe pediu explicações por essa frase singular. Ela conhecia-lhe o pensamento. Irene, já que não tinha fortuna, não cometeria a tolice de faltar aos seus deveres. Porque dizia-se - dizia-se! - que ela pedira para ter quarto separado. Mas, naturalmente, Soames não tinha...

James interrompeu-lhe a cisma.

- Mas onde está Timothy? Não veio com vocês?

Um sorriso terno distendeu os lábios cerrados da tia Ann.

- Não, pensou que seria imprudente, em vista dessa difteria que grassa por aí. Ele contamina-se tão facilmente!

- Pois é, ele cuida bem de si - respondeu James. - Eu é que não posso proporcionar a mim mesmo tais cuidados.

E seria difícil escolher o elemento dominante dessa observação: se a admiração, a inveja ou o desdém.

Raramente se avistava Timothy. O benjamim da família, editor de profissão, há alguns anos atrás, em pleno apogeu dos negócios, pressentira a crise que, na verdade, não se revelara ainda, mas que, na opinião de todos, seria inevitável.

Vendendo a sua parte na editora, que publicava principalmente livros de moral, aplicara em valores consolidados o considerável produto dessa venda. E com isso constituíra para si um lugar especial dentro da família, porque qualquer outro Forsyte exigiria do seu dinheiro um rendimento de quatro por cento. Esse isolamento atrofiara lenta e seguramente a energia de uma alma prudente de mais. Timothy tornara-se quase um mito, uma espécie de encarnação do espírito da Segurança, sempre no último plano do universo dos Forsyte. Nunca cometera a imprudência de casar e de se sobrecarregar com filhos.

James voltou a agarrar o vaso de porcelana.

- Isto não é Worcester antigo, legítimo, segundo penso, Jolyon disse-lhe alguma coisa a respeito do rapaz?

Tudo que consegui saber foi que ele não tem trabalho, não tem fortuna, não tem família que valha a pena nomear... mas, além disso, não sei mais nada.., Nunca ninguém me diz nada.

A tia Ann abanou a cabeça. Passou um tremor pelo seu velho rosto de traços aquilinos e queixo quadrado; os dedos, como patas de aranha, apertavam-se e entrelaçavam-se; dir-se-ia que por tal sistema ela misteriosamente fortificava a própria vontade.

Sendo a mais velha de todos os Forsyte, muitos anos mais velha, gozava entre eles de uma situação especial. Oportunistas e individualistas - sem aliás o serem mais que os seus vizinhos -, eles tremiam todos diante daquele rosto incorruptível, e, quando as boas ocasiões de pecar contra a alma da família se tornavam por de mais tentadoras, escondiam-se da velha.

E retorcendo sempre as longas pernas magras, James continuou:

- Jolyon não ouve ninguém. Não tem filhos...-James estacou de súbito, lembrando-se de que o pai de June vivia ainda, Jolyon filho, e arruinara a sua vida abandonando mulher e filha para fugir com uma governanta estrangeira. - Pois é - continuou rapidamente -. se ele sente prazer em fazer as coisas desse modo, creio que tem meios para isso. Qual é o dote que vai dar à pequena? Creio bem que uma renda de mil libras esterlinas, já que não tem ninguém a quem deixar o dinheiro.

E estendeu a mão para apertar a de um homem baixo, bem barbeado, quase inteiramente calvo, com um longo nariz quebrado, lábios cheios, olhos cinzentos e frios sob sobrancelhas rectangulares.

- Então, Nick - murmurou -, como vai?

Nicholas Forsyte, com uma rapidez de pássaro e um ar de colegial bem comportado - fizera uma grande fortuna por meios absolutamente legítimos, em várias companhias das quais era director -, colocou na mão fria de James a ponta dos seus dedos mais frios ainda e retirou-os logo.

- Não vou bem - disse com uma careta. - Passei mal toda a semana: não consigo dormir, e o meu médico não sabe dizer-me porquê. É um rapaz inteligente... de outro modo não o teria consultado... mas não pude obter dele senão a conta.

- Médicos! - exclamou James, tomando o assunto com vivacidade.- Eu já vi todos os médicos de Londres chamados para uma ou outra pessoa da casa. Nunca servem para nada, dizem sempre qualquer coisa. Olhe Swithin, por exemplo. Que bem lhe fizeram eles? Está ali, mais gordo que nunca, enorme. Os médicos não conseguiram fazê-lo perder um quilo! Olhe para ele!

Swithin Forsyte, alto, largo, quadrado de ombros, o peito inchado como o de um grande pombo dentro da plumagem do seu colete reluzente, aproximou-se, pavoneando-se.

- Eh, como vai isso? - disse no seu tom mais dandy. - Como vai isso?

Cada um dos irmãos olhava vexado para os dois outros, sabendo, por experiência, que não lhe seria permitido ser o mais doente de todos.

- Nós estávamos justamente a dizer - respondeu James - que você não emagrece.

Os pálidos olhos redondos de Swithin ressaltaram, no esforço que fez para compreender.

- Não emagreço? Mas sinto-me muito bem - disse ele, avançando a cabeça. - Não sou uma vara como você. - No entanto, receando diminuir a bela expansão do peito, imobilizou-se, porque apreciava acima de tudo as atitudes distintas.

A tia Ann mudava de um para outro o seu velho olhar, com uma expressão austera e entretanto indulgente. Por seu lado, os três irmãos contemplavam Ann. Ela começava a parecer abatida. Que mulher espantosa! Oitenta e seis anos bem contados; poderia viver ainda dez anos, e nunca tivera muita saúde. Swithin e James, os gémeos, tinham apenas setenta e cinco anos. Nicholas setenta - uma criança! Todos tinham boa constituição, e o aspecto da tia Ann era animador. De todas as formas de propriedade, eram as suas saúdes respectivas o que eles, naturalmente, mais prezavam.

- Eu passo sempre muito bem, fisicamente - começou James. - Os nervos é que andam mal. Qualquer aborrecimento abate-me horrivelmente. Preciso de uma cura em Bath.

- Bath! - exclamou Nicholas. - Eu tentei Harrogate. Aquilo é que não vale nada. Eu, por mim, preciso é do ar do mar. Para

mim não há nada como Yarmouth. Pelo menos quando estou lá durmo bem.

- O meu fígado anda péssimo - interrompeu Swithin, com voz lenta. - Dói-me horrivelmente aqui. - E pôs a mão no lado direito.

- Falta de exercício - resmungou James, com os olhos fixos no vaso de porcelana. E acrescentou rapidamente: - Eu também tenho uma dor aí.

Swithin corou e pelo seu velho rosto passou uma vaga semelhança com um peru.

- Exercício! - exclamou ele. - Mas faço muito exercício! No clube, nunca subi de elevador.

- Não sabia - disse James rapidamente. - Nunca sei nada sobre ninguém. Ninguém me diz nada, nunca.

Swithin encarou-o, esgazeando os olhos, e perguntou:

- Que é que você faz quando tem uma dor de lado? O rosto de James clareou:

- Tomo uma poção...

- Como vai, tio? - June estava diante dele, com a mão estendida, e levantava para a alta estatura do velho a sua cabecinha, resoluta.

O clarão de alegria extinguiu-se na face de James.

- Como está? - perguntou o tio, inclinando-se sobre a rapariga com ar absorto.- Então embarca amanhã para o País de Gales? Vai visitar as tias do rapaz? Há-de chover muito lá. Isto não é Worcester antigo, legítimo - continuou, batendo no vaso de porcelana. - O serviço que eu dei à sua mãe, quando ela casou, era legítimo.

June apertou a mão a cada um dos seus tios-avós e voltou-se para a tia Ann. Uma expressão muito suave aparecera no rosto da velha senhora, que beijou o rosto da pequena com um fervor trémulo.

- E então, pequerrucha, vai passar fora um mês inteiro?

A rapariga afastou-se e a tia Ann acompanhou-a com o olhar. Os seus olhos redondos, olhos cinzentos de aço, sobre os quais uma escama semelhante a uma pálpebra de pássaro começava a estender-se, seguiam pensativamente, através dos grupos em movimento, a silhueta esbelta da rapariga; e ao mesmo tempo apertava mais as mãos, comprimindo uma contra a outra as extremidades dos dedos, parecendo assim procurar reaver forças para resistir à grande partida inevitável.

«Sim»', pensava a tia, «toda a gente foi muito amável. Tanta gente que veio felicitá-la! Ela deve estar contente.»

Na onda de gente que se apertava contra a porta - multidão bem vestida extraída das famílias de advogados, de médicos, de financeiros, de tudo o que brilhava nas inúmeras carreiras da grande burguesia - não havia senão vinte por cento de Forsyte; porém à tia Ann todos pareciam Forsyte, e aliás não havia grande diferença entre uns e outros: e a velha apenas via os da sua carne e do seu sangue. A família era o seu universo, o único, talvez, que conhecera. Todos os segredos, as doenças, os noivados, os casamentos, as promoções, os lucros - tudo aquilo era propriedade da tia Ann. a sua alegria, a sua vida. Afora isso, não existia senão um vago nevoeiro de factos e criaturas sem existência real. Seria isso que teria de abandonar quando chegasse a sua vez de morrer; era aquilo que lhe dava importância - importância secreta contraposta a si mesma, sem a qual nenhum de nós pode suportar viver. Era àquilo que a velha se agarrava pensativamente, com uma avidez que diariamente crescia: e, se a vida se lhe escapava imperceptivelmente. aquilo, ao menos, ela guardaria até ao fim.

Pensava no pai de June, Jolyon filho, que fugira com uma rapariga estrangeira. Ah! Um golpe duro para Jolyon e para todos. Um rapaz de tanto futuro! Que golpe, embora não se houvesse dado escândalo, pois felizmente a mulher de Jo não requereu o divórcio. Havia já tanto tempo. E quando a mãe de June morrera, oito anos atrás, Jo casara com aquela mulher; dizia-se que tinham dois filhos. E afinal ele perdera o seu direito de estar ali; por sua causa, a tia Ann não podia repousar na plenitude do orgulho familiar; privara-a da alegria legítima de o ver e de o abraçar, alegria de que se envaidecia muito, pois o rapaz tinha tanto futuro! E esse pensamento envenenava-se com todo o amargor de uma afronta durante muito tempo sofrida no seu velho coração tenaz. Algumas lágrimas marejaram-lhe os olhos, que a tia Ann enxugou furtivamente, com um lenço de cambraia finíssima.

- Então, tia Ann?-disse alguém por trás dela.

Soames Forsyte, com o rosto escanhoado, as faces achatadas, os ombros achatados, o talhe achatado, tendo entretanto em roda da sua pessoa algo de fugitivo e secreto, baixava sobre a velha um olhar oblíquo, como se procurasse ver através do seu próprio nariz. - E que pensa a senhora deste casamento? - perguntou ele.

Os olhos da tia Anm pousaram em Soames com altivez.

Era o mais velho dos seus sobrinhos, uma vez que Jolyon abandonara o círculo da família, e era actualmente o seu predilecto, porque a velha adivinhava nele um seguro depositário da alma familiar, cuja tutela ela em breve abandonaria.

- O rapaz tem sorte - disse ela. - Aliás, é simpático. Mas pergunto a mim mesma se é realmente o noivo ideal para a nossa June.

Soames tacteava o alto de um lustre dourado. - Ela o domesticará - disse ele, humedecendo furtivamente o dedo para o passar sobre os dourados do lustre. - Dourado antigo, legítimo. Hoje já não se encontra disto. Num leilão, na casa do Jobson, daria dinheiro. - Punha um certo calor nessas palavras, como se as destinasse a reconfortar a velha tia; ele também raramente se mostrava assim tão inclinado às confidências, - Palavra que eu gostaria de possuir este lustre; o dourado antigo vende-se pelo preço que se quer.

- Entende tanto dessas coisas - disse a tia Ann. - E como vai a nossa querida Irene?

O sorriso de Soames apagou-se.

- Vai indo. Queixa-se de insónias; e, em todo o caso, dorme muito melhor que eu.

Olhou para a mulher, que conversava com Bosinney, junto à porta. A tia Ann suspirou e disse:

- Talvez não fosse mau para ela conviver menos com June. A nossa querida June tem um carácter tão decidido!

Soames corou. Nesses momentos o sangue atravessava-lhe rapidamente as faces murchas, fixando-se entre as sobrancelhas, e ali ficava, atestando pensamentos perturbadores.

- Não sei o que lhe agrada naquela maluquinha - explodiu

ele. Mas notou que já não estava só com a tia e, voltando-se, pôs-se de novo a examinar o lustre.

- Dizem que Jolyon comprou uma casa nova - dizia a voz do pai. - É preciso que tenha muito dinheiro e não saiba o que fazer dele! Uma casa em Montpellier Square, parece, perto da de Soames! Não me tinham dito. Irene nunca me diz nada!

- Óptima localização, a oito minutos de minha casa - replicava a voz de Swithin. - E de minha casa, em carruagem, chego ao clube em oito minutos.

A localização das suas residências era de importância vital para os Forsyte, coisa que não é para admirar: toda a filosofia do seu êxito resumia-se nisso.

Oriundos de camponeses, o pai deles viera do Dorsetshire nos começos do século. Superior Dosset Forsyte, como lhe chamavam os íntimos. Pedreiro de ofício, elevara-se à posição de empreiteiro. No fim da vida estabelecera-se em Londres, onde, depois de ter construído até ao último dia de vida, foi enterrado no cemitério de Highgate. Deixara mais de trinta mil libras esterlinas a serem repartidas entre os seus dez filhos. Dizia o velho Jolyon, falando do pai: «Um homem rude, de pele grossa. Naquele não havia nenhum requinte.» A segunda geração dos Forsyte sentia, na verdade, que aquele ascendente não a honrava excessivamente. O único traço aristocrático que lhe encontravam era o hábito de beber vinho da Madeira.

A tia Hester, que era autoridade em assuntos de história da família, descrevia-o assim: «Não me lembro que ele fizesse mais nada, pelo menos no meu tempo. Era, bem, era... proprietário de casas. Tinha os cabelos mais ou menos da cor dos do seu tio Swithin e os ombros mais quadrados. Se era alto? Eh! Não muito alto. (Tinha um metro e setenta e a cara congestionada.) Era bem rosado; lembro-me que estava sempre a beber vinho da Madeira; mas pergunte à tia Ann. Que é que fazia o pai dele?. Cultivava a terra no Dorsetshire, no litoral.»

Certo dia, James quisera saber por si próprio que lugar era aquele donde eles provinham. Encontrara duas velhas granjas, um caminho de carroça aberto na terra rósea que levava a um moinho próximo à praia; uma igrejinha cinzenta, cujas paredes externas se aguentavam em escoras, e uma capelinha menor e mais cinzenta ainda.

O riacho que movia o moinho dispersava-se numa dúzia de riachinhos brancos de espuma e em torno desse estuário em miniatura foçavam porcos, em procura de alimento. Um pouco de névoa flutuava sobre a paisagem. Provavelmente, naquele buraco, de domingo a domingo, durante centenas de anos, os Forsyte primitivos nada tinham de melhor a fazer senão passear, com os pés mergulhados na alma e o rosto voltado para o mar.

E tivesse ou não acariciado a esperança de descobrir ali alguma herança apreciável, James voltou à cidade decepcionado, fazendo entretanto o possível por tirar o melhor partido do empreendimento. «É pequeno de mais para se fazer qualquer coisa ali», disse ele. «Aquilo é velho como o chão!» E aquela velhice parecia-lhe um consolo. O velho Jolyon, no qual uma invencível sinceridade irrompia às vezes, falava assim dos seus antepassados:

- Eram yeomen(1), cerveja ordinária, creio eu. - E entretanto repetia a palavra yeomen como se nela encontrasse um

reconforto.

Tinham governado tão bem a vida, todos os Forsyte, que hoje gozavam do que se costuma chamar «uma certa posição». Possuíam acções em toda a espécie de negócios, embora nenhuma - salvo Timothy - em consolidados, porque tinham todos horror a empregos de capital a três por cento. Além disso, coleccionavam quadros e subsidiavam algumas instituições filantrópicas de que os criados pudessem beneficiar, em caso de doença. Do pai, o mestre-de-obras, haviam herdado um talento especial para o manejo do tijolo e da argamassa. Talvez, de início, houvessem pertencido a alguma seita de doutrina singela: agora, porém, seguindo o curso natural das coisas, eram membros da Igreja da Inglaterra e faziam que as mulheres e os filhos frequentassem regularmente os templos elegantes da metrópole. Se algum mostrasse dúvidas a respeito da sinceridade da sua fé, decerto os haveria de surpreender e magoar.

 

*1. Yeoman - pequeno proprietário de terra na Inglaterra, lavrador. (N. da T.)

 

Alguns pagavam o aluguel de bancos reservados, exprimindo assim de modo prático a sua simpatia pela doutrina cristã. As suas residências alternavam-se em volta do parque, a intervalos regulares, como sentinelas. Em Stanhope Place morava o velho Jolyon; em Park Lane, os James; Swithin em Hyde Park Mansions, no esplendor solitário de um apartamento decorado de azul e alaranjado. - esse nunca casara, ah, não! - Os Soames tinham o seu ninho próximo a Knightsbridge, os Rogers haviam-se fixado em Princes Gardens. (Roger era aquele Forsyte excepcional que concebera e realizara o projecto de encaminhar os seus quatro filhos numa profissão nova.)

- Comprem e dirijam casas, não há negócio melhor - dizia sempre ele. - Eu nunca fiz senão isso!

Havia ainda os Haymann - Mrs. Haymann era a única mãe de família entre as irmãs Forsyte -. numa casa situada no alto de Campden Hill, casa desmesurada como uma girafa, tão alta que era preciso torcer o pescoço para lhe avistar o telhado. Os Nicholas moravam em Ladbroke Grove, numa grande casa, e por fim o último, mas não o menor deles - Timothy-, residia em Bayswater Road, onde Ann, Hester e Juley viviam sob a sua protecção.

James, entretanto, depois de mergulhar em cisma algum tempo, perguntara ao seu irmão e hospedeiro quanto pagara pela casa nova de Montpellier Square. Ele próprio havia muitos anos que estava interessado numa casa por aqueles lados, mas pediam-lhe um preço tão absurdo! O velho Jolyon deu-lhe os pormenores da compra.

- Vinte e dois anos de arrendamento! - repetiu James. - Era justamente a casa que eu pretendia. Pagou caro de mais! - O velho Jolyon franziu o cenho. - Não é que eu a queira - continuou James rapidamente. - Por esse preço, ela não me convinha. Soames conhece bem essa casa e vai dizer-lhe se é cara ou não. A opinião dele tem o seu valor.

- Pouco me importo com a opinião dele - disse o velho Jolyon.

- Como queira - resmungou James. - Mas pode ficar certo de que é uma opinião séria. Até logo. Vamos tomar o carro para

Hurlingham. Disseram-me que June está de viagem para o País de Gales, e nesse caso você amanhã deve estar muito só. Que é que vai fazer? Devia ir jantar connosco.

O velho Jolyon recusou; depois dirigiu-se até à porta de entrada para acompanhar os James e vê-los subir ao carro. Já esquecera o seu spleen e os olhos sorriam maliciosamente fitando Mrs. James, sentada ao fundo da carruagem, alta e majestosa, com os seus cabelos castanhos: à esquerda, Irene, e diante deles os dois maridos - pai e filho -, inclinados para a frente, como se esperassem alguma coisa. Balouçados nos coxins de molas, soerguidos a cada movimento do veículo, o velho Jolyon viu-os afastarem-se dentro de um raio de sol.

Durante o percurso, o silêncio foi quebrado por Mrs. James:

- Vocês já viram maior colecção de gente provinciana? Soames olhou-a sob as pálpebras, fez um gesto de aprovação com a cabeça e viu que Irene lhe lançava um dos seus olhares insondáveis. E é muitíssimo provável que cada um dos ramos da família Forsyte tenha feito idêntica observação ao voltar para casa, depois da recepção do velho Jolyon.

Os últimos convidados que se retiraram foram o quarto e o quinto irmãos. Nicholas e Rogers; atravessaram juntos Hyde Park, até chegarem a Praed Street Station, onde apanhariam o metropolitano. Como todos os outros Forsyte, depois de uma certa idade, cada um tinha o seu carro e só apanhavam um cab quando não podiam evitá-lo.

O dia estava lindo e as árvores do parque exibiam a sua soberba folhagem de Junho; os dois irmãos não pareciam atentar nesses fenómenos de ordem exterior, que contribuíam entretanto para lhes alegrar o passeio e a conversa.

- É bonita, realmente, a mulher de Soames - dizia Roger. - Segundo soube, o casal não vive bem.

Roger tinha a testa alta e a pele mais clara que qualquer outro dos Forsyte. Os seus olhos cinzentos mediam, ao passar, a fachada das casas, e de tempos a tempos tirava uma medida com o guarda-chuva, para lhes calcular a altura.

- Ela não tem dinheiro - replicou Nicholas.

Nicholas casara com uma grande herdeira, na idade de ouro

que precedeu o Married Woman's Property Act - lei de defesa dos bens das mulheres casadas -e fizera do dote da mulher um emprego dos mais rendosos.

- Quem era o pai dela?

- Chamava-se Heron; era professor, segundo me disseram. Roger abanou a cabeça.

- Não é coisa que dê dinheiro - disse.

- Diz-se que o avô materno negociava em cimento. - O rosto de Roger iluminou-se. - Mas faliu - continuou Nicholas.

- Ah! - exclamou Roger. - Soames vai ter desgostos com ela. Escute o que lhe digo: há-de ter desgostos. Ela tem um ar de estrangeira.

Nicholas lambeu os lábios.

- É uma mulher linda - disse, afastando com a mão um varredor de rua.

- Como foi que ele a arranjou? - perguntou Roger, depois de um instante. - Deve sair-lhe por uma fortuna em toilettes.

- Ann disse-me que ele é louco pela mulher - retorquiu Nicholas. - Ela recusou-o cinco vezes. Vê-se que James está nervoso a esse respeito.

- Ah! - exclamou ainda Roger. - Sinto muito por James. Ele já teve bastantes desgostos com Dartie.

A sua cor natural rosara-se mais com a caminhada e cada vez com mais frequência ele balançava o guarda-chuva diante do olho. No rosto de Nicholas também se expandia uma expressão agradável.

- Pálida de mais para o meu gosto. Mas o corpo é soberbo. Roger não respondeu.

- Acho que ela tem um aspecto distinto - disse por fim. Aquilo representava, no vocabulário dos Forsyte, o elogio máximo.- Aquele rapaz Bosinney nunca há-de ter juízo. Diz-se em casa de Burkitt que ele é um desses tipos sonhadores do género artista. Pensa em modificar a arquitectura da Inglaterra. Não há-de ganhar dinheiro com isso! Gostaria de saber o que Timothy pensa a esse respeito.

Chegaram à estação.

- Em que classe vai? Eu vou em segunda.

- Eu não ando em segunda - disse Nicholas. - Nunca se sabe o que se pode apanhar por aí. - E comprou uma passagem de primeira para Notting Hill Gate e Roger uma para South Kensington. E como o comboio chegasse um minuto depois, os dois irmãos separaram-se, dirigindo-se aos respectivos compartimentos. Ambos se sentiam magoados por o outro não ter alterado os seus hábitos a fim de ficarem mais tempo juntos. E Roger pensava: «Sempre cabeçudo, o Nick», enquanto Nicholas dizia de si para si: «Aquele Roger é sempre desagradável!»

Não havia muito sentimentalismo entre os Forsyte. Naquela vasta Londres que eles haviam conquistado e que os absorvera, disporiam de tempo, por acaso, para se tornarem sentimentais?

 

O VELHO JOLYON VAI À ÓPERA.

No dia seguinte, por volta das cinco horas, o velho Jolyon sentou-se só, com um charuto entre os lábios, junto a uma mesinha onde fumegava uma xícara de chá.

Sentia-se cansado, e antes de findar o charuto adormeceu. Uma mosca pousou-lhe nos cabelos. A sua respiração, no silêncio sonolento, fazia um ruído pesado, e a cada sopro o lábio superior erguia-se sob o bigode branco. A mão enrugada e encordoada de veias largara o charuto, que ficou a arder sozinho na lareira vazia.

O pequeno gabinete sombrio, de janelas de vidro fosco que impediam a vista, era guarnecido de veludo verde-escuro e móveis de mogno, pesadamente esculpidos, a respeito dos quais o velho Jolyon dizia habitualmente: «Não me admirara se qualquer dia isto der bom dinheiro.»

Era-lhe agradável pensar que, de futuro, poderia revender ainda com lucro as coisas que comprara antes.

Na rica e velada atmosfera peculiar aos compartimentos internos das residências de um Forsyte, o efeito à Rembrandt da sua grande cabeça encanecida, contra o estofo do alto espaldar da caldeira, era comprometido pelos bigodes, que lhe davam à fisionomia qualquer coisa de militar. Um relógio antigo, comprado antes do seu casamento, há mais de cinquenta anos, e que nunca mais o deixara, contava zelosamente, com o seu tiquetaque, os segundos que fugiam para sempre ao seu velho dono.

Jolyon nunca estimara aquela sala, onde só entrava uma vez ou outra, salvo para procurar charutos no móvel japonês do canto. E o gabinete agora desforrava-se.

As têmporas do velho Jolyon, curvas como um tecto sobre as faces cavadas, as maçãs do rosto, o queixo, todos os seus traços se aguçavam no sono, como uma confissão de velhice que lhe subisse à face.

Acordou. June partira! James bem lhe predissera que se sentiria só. Lembrou-se com satisfação que "sobrara" uma casa a James. Bem feito. Para que se obstinava no preço que fixara? Só pensava em dinheiro! Mas, realmente, não a pagara ele próprio caro de mais? Precisava de muitos consertos... Sabia que iria precisar de todo o seu dinheiro, antes de liquidar o assunto de June. Não devia ter consentido naquele noivado. June encontrara esse tal Bosinney na casa de Baynes, Baynes e Billdeboy, arquitectos. Baynes, que ele conhecia bem - um velho mexeriqueiro-, devia ser tio afim do rapaz. Desde esse dia, ela não deixara de andar atrás do seu Bosinney; e guando metia uma coisa na cabeça, nada mais a detinha. Passava a vida a interessar-se por qualquer estropeado que encontrasse. O rapaz não tinha um vintém, logo ela haveria de casar com ele; um sujeito do mundo da Lua, sem espírito prático, capaz de se meter em complicações infindáveis.

June viera procurá-lo certo dia, repentinamente, para lhe dar a notícia, e, como se aquilo fosse uma consolação, acrescentara:

- Ele é admirável! já passou uma semana inteira a comer apenas chocolate!

- E quer também que você vá viver de chocolate?

- Oh, não. Agora já encontrou a boa veia.

O velho Jolyon retirara o charuto de sob o bigode branco, de pontas cor de café, e pôs-se a olhá-la - aquela garotinha que lhe tomara conta do coração. Sabia mais do que ela a respeito da «boa veia». Mas a pequena, juntando as mãos sobre os joelhos do avô, esfregava o queixo contra ele, com o leve ruído de um gatinho que ronrona. E, sacudindo a cinza do charuto, o velho terminara nervosamente:

- Vocês são todas iguais. Querem fazer sempre como entendem. Se for para sua infelicidade, tanto pior! Eu lavo as mãos.

E realmente lavara as mãos do caso, exigindo apenas que o casamento não se realizasse antes que Bosinney ganhasse pelo menos quatrocentas libras por ano.

- Eu não posso dar-lhe muita coisa -dissera ele, fórmula essa que não era novidade para June. - Será que o cavalheiro entrará com o chocolate?

Mal avistava a neta depois que aquela história começara. Péssimo negócio! Não tinha a mínima intenção de lhe dar um grande dote, que pelo menos permitisse àquele rapaz desconhecido viver de braços cruzados. Já vira dessas coisas, e sabia que não davam em nada de bom. O pior é que não esperava mudar as ideias de June, teimosa como um burro desde pequenina! Ninguém sabia como aquilo acabaria. E eles que se arranjassem como pudessem.

Não cederia antes de ver o jovem Bosinney de posse de um rendimento próprio. Era claro como água que June iria ter aborrecimentos com aquele rapaz, pois ele percebia tanto de dinheiro como uma vaca. E aquela ideia da pequena de correr ao País de Gales, para visitar as tias do noivo... Ora, estava bem certo de que essas tais tias não passavam de umas gatas velhas...

Sem se mexer, o velho Jolyon olhava fixamente a parede. Pareceria adormecido, se não fossem os olhos bem abertos... Imagine-se aquele Soames, aquela cria de urso, dar-lhe conselhos! Sempre fora um urso, com o seu focinho para cima. E agora ia fazer-se proprietário, com a sua casa de campo! Proprietário! Bolas! Igual ao pai, vivia a farejar bons negócios. Um calculista, um espertalhão!

O velho Jolyon ergueu-se, e, abrindo o armário japonês, tirou uma nova provisão de charutos, com que guarneceu metodicamente a charuteira Não eram maus, para o que custavam, mas a verdade é que já não havia; bons charutos, nada que se comparasse aos velhos Superfinos de Hanson and Bridger"s. Aquilo era um charuto!

Essa ideia, como um perfume respirado de súbito, trouxe-lhe à memória as maravilhosas noites de Richmond, quando, depois do jantar, fumava no terraço do Crown and Sceptre, com Nicholas Treffry, Tracquair, Jack Herring, Anthony Thornworthy. Como eram bons os charutos naquele tempo! Pobre Nick! Morrera.

E Jack Herring morrera. E Tracquair e a mulher morreram. E Thornworthy vivia por aí terrivelmente trémulo: também não era de admirar, um glutão daquela marca!

De todos os amigos de outrora apenas ele ficara; ele e Swithin, naturalmente Mas Swithin tornara-se tão monstruosamente gordo que não prestava para nada.

Era difícil conceber que tudo aquilo já estivesse tão longe! Ainda se sentia tão joVem! De todos os pensamentos que lhe ocorriam enquanto tirava os charutos, o mais pungente, o mais amargo, era justamente este: apesar dos cabelos brancos e da solidão em que vivia, sentia-se ainda jovem, de corpo e de coração. E naquelas tardes de domingo, em Hampested Heath, quando ele e o seu pequeno Jolyon caminhavam por Spaniand Road até Highgate e Childs Hill, jantando depois em Jack Straw's Castle... Como os charutos eram deliciosos então! E que dias lindos! Hoje já não havia dias assim.

Quando June era uma garotinha de cinco anos, saltando-lhe na mão, e ele a levava de dois em dois domingos ao jardim zoológico, longe da mãe e da avó, e do alto do fosso dos ursos pendurava no guarda-chuva guloseimas para os favoritos da garota... Como os charutos eram bons então!

Charutos! Pois até o seu refinamento de conhecedor resistira à idade, aquele refinamento de paladar proverbial em 1850, do qual se dizia: «Forsyte: o primeiro provador de Londres.» O paladar que, de certo modo, fizera a sua fortuna, a fortuna dos célebres importadores de chá Forsyte e Treffry, cujos produtos eram superiores a todas as outras marcas por não se saber que romântico aroma, não se sabe que encanto de fina e misteriosa origem. Corriam boatos acerca dos seus escritórios na City, falava-se em empresas secretas, em transacções especiais, navios especiais, de portos especiais, com chineses especiais. Como ele trabalhara naquele negócio! Os homens sabiam trabalhar, naquele tempo! Não eram como esses rapazes de agora, que não sabem o que quer dizer essa palavra. Entrara nos mínimos pormenores do negócio, mantendo-se ao corrente de tudo, muitas vezes dedicando-lhe as noites. E sempre escolhera ele próprio os seus agentes: tinha a glória disso. O golpe de vista, dizia sempre, era o segredo do seu triunfo, e o exercício dessa autoritária faculdade de selecção fora o único bálsamo do trabalho: um ofício abaixo das suas capacidades. Agora mesmo, que o negócio fora tomado pela Limited Liability Company e declinava, o velho Jolyon sentia uma amarga tristeza ao recordar esse passado. Quantas coisas poderia ter feito! Como teria brilhado esplendidamente na advocacia! Chegara mesmo a pensar em candidatar-se ao Parlamento.

Quantas vezes lhe dissera Nicholas Treffry: «Você poderia fazer o que quisesse, Jo, se não fosse o diabo dessa sua prudência!» Querido Nick, amigo velho, tão bom rapaz e tão maluco! O maluco Treffry! Aquele, realmente, não tinha a mínima dose de prudência! Agora estava morto. O velho Jolyon contava os charutos com mão firme, quando lhe ocorreu perguntar a si próprio se realmente não levara a vida com excessiva prudência.

Pôs a charuteira no bolso, reabotoou o casaco e subiu as compridas escadas que levavam ao seu quarto, pisando fortemente em cada degrau e agarrando-se ao corrimão. A casa era grande de mais. Depois do casamento de June, se ela casasse realmente com aquele rapaz - o que parecia provável -, alugaria o solar e iria instalar-se num apartamento. Para que conservar uma meia dúzia de criados que custam os olhos da cara e não se ocupam em nada?

O mordomo atendeu a campainha: um enorme homem barbado e de passos macios, que possuía uma singular faculdade de silêncio. O velho Jolyon ordenou-lhe que preparasse a casaca: iria jantar no clube.

- A que horas voltou o carro, depois de ter levado Miss June à estação? Duas horas? Muito bem: mande que esteja pronto às seis e meia.

O clube em que, às sete em ponto, o velho Jolyon entrou, era uma daquelas instituições políticas da alta burguesia que já conheceram dias melhores. Mas a despeito desses comentários públicos, ou talvez por causa deles, manifestava uma vitalidade desconcertante. Já toda a gente se cansara de dizer que aquela «União» a que já chamavam «Desunião» estava moribunda. O velho Jolyon também dizia o mesmo, mas negligenciava o facto de maneira irritante para qualquer legítimo clubman.

- Porque consente ainda que eles usem o seu nome? - perguntava-lhe frequentemente Swithin, profundamente vexado. - Porque não entra para o Poliglota? Em toda a Londres não é possível encontrar vinho nenhum que se compare ao nosso Heilsieck a vinte shillings a garrafa. - E, baixando a voz, acrescentava: - Restam apenas cinco mil dúzias e eu bebo todas as noites uma garrafa, a vida inteira.

- Vou pensar nisso - respondia o velho Jolyon. E quando pensava naquilo, havia sempre o problema dos cinquenta guinéus de jóia e dos quatro ou cinco anos de espera provável. Continuava pois a pensar.

Velho de mais para ser liberal, abandonara as opiniões do seu clube; já ouvira mesmo chamar-lhes pilhérias, mas comprazia-se em continuar como sócio de um clube cujos princípios eram diametralmente opostos aos seus. Aliás, sempre tivera um certo desdém por aquela instituição, onde entrara há muitos anos, depois de lhe ter sido negada admissão no Hotch Potch sob a alegação de que era «do comércio». Como se ele não os valesse todos! E naturalmente experimentava um certo desprezo pelo clube que o recebera. Era gente sem importância, a maioria trabalhando na City - corretores de câmbios, advogados, leiloeiros que sei mais! Como a maioria dos homens de carácter forte, mas de precária originalidade, o velho Jolyon fazia pouco caso da classe a que pertencia. Seguia-lhe fielmente os costumes, tanto os sociais como os outros, mas no seu foro íntimo julgava-a de espécie muito comum. Os anos - segundo uma certa filosofia de que não era carecido- haviam-lhe atenuado a lembrança da desfeita sofrida no Hotch Potch. que ficara sagrado, no seu íntimo, como o rei dos clubes. Havia muito tempo que poderia ser membro dele. mas o seu padrinho, Jack Herring, apresentara-o de maneira tão negligente que haviam-no recusado sem perfeita noção do que faziam. Seu filho Jo entrara lá imediatamente, e sem dúvida lá permanecia ainda. Não havia ainda oito anos que lhe escrevera uma carta com cabeçalho do clube.

Já há muitos meses que o velho Jolyon não punha os pés no Desunião, e a casa fora vítima de uma dessas decorações de superfície que se infligem aos velhos prédios e aos velhos navios quando se quer vendê-los.

«Que cor horrenda a do hall», pensou o velho. -A sala de refeições está bem.» A pintura era de um tom esbatido de chocolate. com toques de verde, que lhe agradou.

Pediu o jantar e sentou-se no mesmo recanto, talvez até na mesma mesa - eram todos conservadores, naquele clube radical - onde se instalava uns vinte anos atrás, com o filho, quando o levava à Ópera, nos dias feriados.

O pequeno adorava o teatro, e o velho Jolyon recordava-se bem dele. Sentado à sua frente, escondendo a excitação sob uma negligência cuidadosamente afectada, mas que não enganava ninguém.

E o velho escolheu a ementa que o pequeno pedia sempre: sopa, peixe frito, costeletas de carneiro e uma torta. Ah, se ao menos Jo estivesse à sua frente! Já havia quinze anos que não se viam, e não era aquela a primeira vez, depois de quinze anos, que o velho Jolyon perguntava a si mesmo se procedera bem em relação ao filho. Uma história de amor infeliz com aquela incrível namoradeira Danae Thornworthy - hoje Danae Bellevy, filha de Anthony Thornworthy - levara-o ao casamento com a rapariga que foi a mãe de June. Talvez o pai devesse ter-se oposto a tal casamento: eram jovens de mais. Mas, verificada que fora a fraqueza sentimental de Jo, a sua maior pressa fora casá-lo Passados quatro anos, acontecera o desastre. Fora-lhe impossível então aprovar a conduta do filho; o bom senso e a disciplina em que se formara, esses poderosos factores cuja combinação nele exercia as funções de princípios, proibiam-lho, mas o seu coração sangrava. O assunto todo desenrolara-se como impelido por uma fatalidade inexorável. Havia June, pequenina criatura de cabelos cor de chama, apegada, incrustada às suas fibras mais íntimas, agarrada ao seu coração, feito para ser o joguete e o refúgio querido dos entesinhos indefesos. Com uma clarividência característica, compreendera que era mister separar-se de uma ou de outro, e que não havia meia medida possível. Nisso residia a tragédia. E a coisinha indefesa venceu. O velho não quis ficar entre os dois, e foi ao filho que disse adeus.

Esse adeus durava até agora. Propusera ao filho dar-lhe uma pequena mesada, mas o rapaz recusara, e essa recusa ferira-o mais que todo o resto, porque fechara a última saída que lhe restava a um sentimento que se reprimia e fornecia-lhe uma prova tangível e sólida da ruptura - prova que apenas poderia ser dada por um acto relativo a dinheiro, uma oferta e uma recusa.

O jantar não tinha sabor, o champanhe estava amargo e seco, já não era o Veuve Clicquot dos velhos tempos.

Ao tomar o café, ocorreu-lhe que poderia passar a noite na Ópera. E por isso foi procurar no Times - qualquer outro jornal lhe parecia suspeito - os anúncios da noite. Levavam Fidelio.

Graças a Deus, não eram aquelas novidades alemãs, como as tais pantomimas de Wagner!

Pondo na cabeça a sua velha cartola de cerimónia, que, com a aba achatada pelo uso e o seu amplo volume, parecia o emblema da grandeza passada, tirando do bolso um velho par de luvas de cabrito, finíssimas, cheirando fortemente a couro da Rússia, devido ao contacto constante com a charuteira no bolso do sobretudo, subiu a um cab.

O carro rodou alegremente ao longo das ruas. onde o velho Jolyon notou uma animação pouco habitual. «Esse negócio de hotéis vai transformar-se numa coisa extraordinária», pensava ele. Há poucos anos atrás eram raros os grandes hotéis. E recordou com satisfação um prédio que possuía nas vizinhanças. «Deve estar a valorizar aos pulos! Que circulação!»

Foi esse o ponto de partida de uma das suas cismas singulares e impessoais, tão pouco compatíveis com a natureza dos Forsyte, e que faziam do velho Jolyon uma criatura à parte entre os seus. Que formigas são os homens e em que multidões se juntam! Que será feito deles todos?

Tropeçou ao descer do carro, pagou a corrida, dirigiu-se à bilheteira a fim de comprar a entrada e parou ali. com a bolsinha na mão. (Usava o dinheiro numa bolsa, porque sempre desaprovara o costume da gente jovem de deixar o dinheiro a rolar pelos bolsos.) O empregado inclinou-se como um cão velho que avança a cabeça fora do canil.

- Ora vejam! - exclamou, surpreso. - Pois não é Mr. Jolyon Forsyte! Ora sim senhor! Há anos que não é visto por aqui! Os

tempos já não são os mesmos, Mr. Forsyte! O senhor e seu irmão, e Mr. Tracquair, e Mr. Nicholas Treffry, reservavam sempre seis ou sete cadeiras para cada temporada. E como tem passado o senhor? Parece que não estamos a ficar mais jovens!

Os olhos do velho Jolyon brilharam com uma luz mais intensa e pagou o seu guinéu. Não o haviam esquecido. Fez a sua entrada ao som da ouverture, como um velho cavalo de guerra que entra em campo. Dobrando a claque, sentou-se, descalçou as luvas cor de pérola, levantou o binóculo e passeou um longo olhar em torno da sala. Depois fixou os olhos no palco. Sentia,, com mais acuidade que nunca, que estava acabado. Onde estavam as mulheres, as lindas mulheres que outrora enchiam a plateia? E aquela emoção da espera, antes da entrada dos grandes cantores? E aquela embriaguez de viver e a força que lhe dava gozar essa embriaguez? Ele, outrora o assinante mais assíduo da Ópera! O tal Wagner destruíra tudo. Já não havia melodias... nem vozes para as cantar! Ah, as maravilhosas vozes! Destruídas! E olhava no palco as cenas que lhe eram tão familiares, sentindo o coração adormecido.

Desde a madeixa prateada que lhe ondulava sobre a orelha esquerda até ao movimento do pé, calçado em botina envernizada, de elástico, nada havia, no velho Jolyon, de pesado ou de fraco. Era tão rijo, ou quase tão rijo, como nos tempos longínquos em que vinha à Ópera todas as noites. A sua vista era tão boa como então. No entanto, que sensação de desilusão e fadiga!

Durante toda a sua vida soubera gozar as coisas, mesmo as imperfeitas, porque muitas coisas imperfeitas encontrara. Gozara mesmo com moderação, a fim de se conservar jovem. Mas actualmente essa faculdade de gozar de tudo, e até mesmo a sua filosofia, haviam desaparecido: restava-lhe apenas o terrível sentimento de que tudo para ele acabara. Nem o «Coro dos Prisioneiros«, nem a «Canção de Florian» tiveram o poder de dissipar a sua melancolia e a sua solidão.

Se ao menos Jo lhe fizesse companhia! Devia ter agora os seus quarenta anos, o rapaz. E perdera quinze anos da vida do seu filho único! E Jo não era um pária da sociedade, casara-se. O velho Jolyon, que não pudera deixar de se sentir feliz com o acontecimento, celebrara-o mandando ao filho um cheque de quinhentas libras. Mas o cheque foi-lhe devolvido, numa carta em papel do Hotch Potch. nestes termos:

 

           Meu caro pai:

O seu generoso presente foi bem-vindo, pois deu-me a entender que o senhor poderia ter uma pior opinião de mim. Devolvo-o; porém, se lhe parecer oportuno colocar esse dinheiro em nome do garoto (nós chamamos-lhe Jolly) que usa o seu nome e, por cortesia, o nosso nome de família, ficar-lhe-ei muito grato.

Desejo de todo o coração que a sua saúde vá melhor que nunca.

           Seu filho afeiçoado, Jo

 

A carta era característica do rapaz, pois ele sempre fora amável. E o velho Jolyon respondera assim:

 

         Meu caro Jo:

A soma de quinhentas libras foi inscrita nos meus livros em benefício do seu rapazinho, sob o nome de Jolyon Forsyte. Figura a crédito dele, com juros de cinco por cento. Espero que goze de boa saúde. Eu passo bem, actualmente.

Do coração, sou seu pai afectuoso,

           Jolyon Forsyte

 

E todos os anos, no dia 1 de Janeiro, o velho acrescentava aos juros a soma de cem libras. E o depósito crescia. No próximo dia de Ano Bom já haveria umas mil quinhentas e tantas libras. Seria difícil dizer a satisfação que proporcionava ao velho Jolyon aquela operação anual. Mas a correspondência terminara.

Apesar da sua ternura pelo filho, apesar do instinto - em

parte natural e em parte cultivado por ele, como por tantos outros da sua classe, graças ao manejo e à observação constante dos negócios-, instinto que o levava a julgar as coisas mais pelos seus resultados do que de acordo com um princípio, havia algo que o desconcertava. Naquele caso, o filho deveria cair na miséria. Essa lei era observada em todos os romances, sermões e peças teatrais que lera ou ouvira.

Quando o seu cheque foi devolvido, pareceu-lhe que qualquer coisa não estava em ordem. Porque não caíra o filho na miséria? E, afinal, quem sabia?

Ouvira dizer - na verdade fora ele próprio que se encarregara de descobrir - que Jo vivia em Saimt-John's Wood; que possuía uma casinha com jardim na Wistaria Avenue; que frequentava a sociedade com a mulher--uma sociedade curiosa, na verdade - e que eles tinham dois filhos: o garoto, chamado Jolly filho(1) - ele via uma espécie de desafio cínico na escolha desse nome, dadas as circunstâncias, e o velho Jolyon odiava o cinismo e temia-o - e uma menina chamada Holly, nascida depois do casamemto. Qual poderia ser a situação real do seu filho? Jo capitalizara o rendimento que herdara do avô materno; entrara na firma Lloyds como subescriturário; pintava também um pouco, fazia aguarelas. O velho Jolyon sabia disso, porque sub- repticiamente comprara algumas, de longe em longe, quando por acaso via na vitrina de um vendedor de quadros a assinatura do filho sobre uma paisagem do Tamisa. Julgava-as más e não as punha na parede por causa da assinatura: guardava-as fechadas numa gaveta.

Na imensa sala da Ópera, foi assaltado por uma necessidade intensa e dolorosa de rever o filho. Vinha-lhe a lembrança do tempo em que o garotinho se lhe sentava nas pernas, vestido na roupinha de fustão: do tempo em que lhe ensinava a montar a cavalo e corria ao lado do pónei; do dia em que o levara à escola pela primeira vez. Era um rapazinho tão meigo, tão carinhoso! Quando voltara de Eton, trazia, talvez um pouco em excesso, aquelas maneiras invejáveis

 

*(1) Jolly, empregado aqui como diminutivo de Jolyon, significa alegre, vivaz, contente. (N. da T.)

 

que - o velho Jolyon sabia-o bem - só se adquirem lá, e muito caro. Porém, o rapaz continuara a ser sempre óptimo companheiro, mesmo depois de ter vindo de Cambridge, embora se mantivesse um pouco distante, em razão mesmo das vantagens que lá recebera. O sentimento do velho Jolyon em relação às escolas universitárias e às Varsities (1) nunca variara: conservava, com uma comovedora fidelidade, a sua atitude de admiração e desconfiança em relação ao sistema apropriado às altas classes do país e cujos benefícios não lhe fora dado desfrutar.

Agora, que June se ia embora, que quase o abandonava já, haveria de lhe fazer bem rever o filho. Sentindo-se culpado por aquela traição contra a família, os seus princípios e a sua classe, o velho Jolyon fixou o olhar na cantora. Era péssima, na verdade! Detestável! E quanto a Florian, um canastrão!

O pano caiu. Actualmente, aquela gente contentava-se com pouca coisa!

Na rua atravancada, apoderou-se de um cab mesmo no nariz de um senhor gordo, muito mais novo que ele, que se dirigia para o carro. No canto de PaM Mall, o cocheiro, em vez de atravessar Green Park, deu a volta para subir Saint James Street. O velho Jolyon pôs a mão na portinhola - não podia suportar que não se tomasse o caminho mais curto-, mas, voltando-se, viu defronte o Hotch Potch, e a saudade que latejara nele durante toda a noite dominou-o de súbito. Fez o carro parar. Entraria e perguntaria se Jo ainda era membro do clube.

Entrou. O hall ainda era o mesmo dos tempos em que vinha jantar ali, em companhia de Jack Herring - o tempo em que o clube possuía o melhor cozinheiro de Londres. Olhou em torno de si com aquele olhar experimentado e firme graças ao qual, durante a vida inteira, fora mais bem servido do que a maioria dos homens.

- Mr. Jolyon Forsyte ainda é membro do clube?

- Sim senhor. Está aqui, no momento. Que nome devo anunciar?

O velho Jolyon hesitou.

- O pai dele.

 

*1. Universidades.

 

E, depois de falar, esperou, de pé, apoiado à lareira.

Jolyon filho saía do clube e já atravessava o hall, de chapéu na cabeça, quando o porteiro o encontrou. Já não era o mesmo jovem, o cabelo encanecia-lhe; o rosto, réplica menor do do pai, tinha os mesmos grandes bigodes caídos, parecia realmente bem marcado. Empalideceu. Aquele encontro era terrível, depois de tantos anos. pois nada no mundo era mais terrível do que uma cena.

Defrontaram-se e apertaram as mãos sem uma palavra. Depois, com um tremor na voz, o pai disse:

- Como vai, meu filho? E o filho respondeu:

- E o pai como está?

A mão do velho Jolyon tremia na sua luva fina.

- Se segue o meu caminho, poderemos andar juntos um pedaço.

E, como se tivessem o hábito de acompanhar um ao outro todas as noites, saíram e subiram ao cab.

O velho Jolyon tinha a impressão de que o filho crescera.

«Está mais homem», dizia de si para si.

A amabilidade natural à fisionomia de Jo cobrira-se com uma máscara levemente sardónica, como se as circunstâncias da vida o houvessem posto na necessidade de se armar. Os seus traços eram os dos Forsyte, mas tinha um olhar meio perdido, como o de um filósofo ou um Homem de estudos. Decerto fora obrigado a olhar para si mesmo muitas vezes, durante esses quinze anos.

Ao primeiro olhar que lançara ao pai, sentira um golpe no coração: estava tão velho, tão gasto! Mas, no fiacre, o velho pareceu-lhe quase o mesmo, porque tinha aquele antigo ar calmo que Jo recordava tão bem, a mesma postura firme, o mesmo olhar preciso.

- O pai está bem disposto.

- Vou indo - respondeu o velho Jolyon.

Sentia-se presa de uma inquietação que lhe era indispensável formular. Tendo reencontrado o filho, carecia saber como iam as suas finanças.

- Jo, gostaria que me dissesse como vão os seus negócios. Decerto tem dívidas, não?

Fez a pergunta assim para que o outro respondesse com mais facilidade. Jolyon filho informou com a sua voz irónica:

- Não, não tenho dívidas!

O velho Jolyon compreendeu que o filho estava magoado e tocou-lhe a mão. Correra um risco; mas valera a pena, e Jo nunca lhe guardaria rancor. Sem dizerem uma palavra mais, chegaram a Stanhope Gate. O velho Jolyon convidou o filho a entrar, mas Jo abanou a cabeça.

- June não está em casa-disse rapidamente o velho Jolyon. - Foi fazer uma visita no campo. Creio que soube do noivado dela?

- Já? - murmurou o rapaz.

O velho Jolyon desceu do carro, e, pela primeira vez na vida, deu por engano ao cocheiro um soberano em vez de um shilling. O cocheiro meteu a moeda no canto da boca, chicoteou suavemente o cavalo e desapareceu.

O velho Jolyon rodou 'lentamente a chave na fechadura, abriu a porta e fez sinal a Jo para que entrasse. Jo viu-o pendurar gravemente o capote, tendo no rosto a expressão de um garoto que vai roubar cerejas.

A porta da sala de jantar estava aberta, a luz do gás baixa. A chaleira assobiava numa bandeja de chá e, ao lado, um gato de focinho cínico adormecera sobre a mesa. O velho Jolyon enxotou-o imediatamente. O incidente aliviava-o e ele perseguia o animal batendo com a claque na mão.

- Tem pulgas - disse, acompanhando o gato até fora da sala. E, diante da escada que do vestíbulo descia para o subsolo,

fez várias vezes «Hsst!», como para ajudar a fuga do gato, até que finalmente, como por uma coincidência, o mordomo apareceu nos primeiros degraus.

- Pode ir deitar-se, Parfitt - disse o velho Jolyon. - Eu fecho a porta e apago as luzes.

Quando voltou à sala de jantar, o gato, desgraçadamente, precedia-o com a cauda erguida, proclamando que compreendera desde o primeiro momento a manobra do seu dono para suprimir o mordomo.

Uma fatalidade encarniçava-se sempre contra todos os estratagemas domésticos do velho Jolyon.

Jolyon filho não pôde deixar de sorrir. Era muito versado em matéria de ironia, e tudo, naquela noite, lhe parecia irónico: o episódio do gato, a notícia do noivado da sua própria filha. Tinha pois sobre ela tantos direitos como sobre aquele gato. Havia naquilo uma justiça que ele compreendia bem.

- Com quem se parece June actualmente? - perguntou.

- Dizem que se parece comigo, mas é uma tolice; parece-se antes com a avó: tem os mesmos olhos, os mesmos cabelos.

- Ah, e é bonita?

O velho Jolyon tinha muito do carácter Forsyte para se permitir um elogio directo, sobretudo quando se tratava de algo que lhe inspirava uma admiração real.

- Não é feia: tem um queixo de Forsyte. Isto aqui vai ficar muito vazio, Jo, quando ela se for embora.

A expressão que lhe passou no rosto fez que Jolyon filho sentisse novamente o mesmo choque que o ferira por ocasião do encontro.

- Que será de si, pai? Naturalmente ela só vê o rapaz.

- Que será de mim? - repetiu o velho Jolyon com um tom irritado na sua voz.-Não será divertido viver aqui sozinho. Não sei o que farei... - Calou-se, e depois acrescentou: - A questão é saber o que farei a esta casa.

Jolyon filho correu o olhar pela sala. Era singularmente vasta e triste, decorada com imensas naturezas-mortas que recordava ter visto em pequenino, cães adormecidos que apoiavam o focinho em montes de cenouras, de cebolas e cachos de uvas. Aquela casa era um «elefante branco», mas ele não podia imaginar o pai instalado com menos largueza; e isso também parecia cheio de ironia.

Na sua grande poltrona, estava agora sentado o velho Jolyon, perfeito representante da sua família, da sua classe, dos seus dogmas, personificando a ordem, a moderação e o espírito da propriedade: um velho tão solitário como não haveria outro mais solitário em Londres.

Sentava-se ali, na sombra rica da sala, fantoche nas mãos das forças imensas que não cuidam nem em famílias, nem em classes, nem em crenças, que avançam como máquinas, levadas por um movimento fatal para fins incompreensíveis,

Tal era, naquele momento, a impressão do Jolyon jovem, que sabia olhar para as coisas do lado de fora delas.

Pobre pai velho! Tal seria pois o seu fim, o alvo que ele visara ao conduzir a sua vida com tão magnífica moderação: ficar só, envelhecer cada dia mais, sem ter um cristão com quem falar!

Por sua vez, o velho Jolyon olhou o filho. Tinha tantas coisas para lhe dizer, coisas que não pudera dizer durante anos. Ser-lhe-ia impossível confiar a June que os terrenos do Soho iam subir de valor; a sua inquietação a respeito do extraordinário silêncio de Pippin, o superintendente da New ColiMery Company, cujo conselho ele próprio presidia havia tantos anos; ou mesmo examinar em companhia dela um arranjo que evitasse aos seus herdeiros o pagamento do imposto de sucessão. Sob a influência de uma xícara de chá, que remexia com a colher, indefinidamente, pôs-se enfim a falar. Abria-se diante dele um novo horizonte. Esperanças de conversa, um refúgio onde, nas suas horas de pânico ou de tristeza, encontraria o ópio das longas palestras sobre o meio de aumentar a sua fortuna, de tornar eterna a única parte de si mesmo que subsistiria neste mundo.

Jolyon filho sabia escutar: era a sua grande qualidade. Mantinha os olhos fixos no rosto do pai, fazendo de longe em longe uma pergunta.

O velho Jolyon não acabara de falar quando o relógio de parede, batendo uma hora, lhe lembrou os seus princípios. Puxou o seu relógio de bolso com ar espantado:

- Preciso ir-me deitar, Jo.

Jolyon filho ergueu-se, estendeu a mão ao pai para o ajudar. De novo o velho rosto lhe parecia gasto, sulcado de rugas, os olhos desviados.

- Adeus, meu filho, tenha cuidado consigo.

Passou um instante, e Jo, girando sobre os calcanhares, dirigiu-se para a porta. Mal podia ver e o seu sorriso tremia. Desde quando, há vinte anos, descobrira que a vida não é simples, nunca ela lhe tinha parecido tão estranhamente complicada.

 

O JANTAR EM CASA DE SWITHIN.

Na sala de jantar, em casa de Swithin, pintada de azul-pálido e laranja, com janelas para o parque, a mesa estava posta com doze talheres.

Um lustre de cristal, cheio de velas acesas, pendia por sobre a mesa como uma estalactite gigantesca e iluminava os grandes espelhos de moldura dourada, as consoles de mármore, as pesadas cadeiras, também douradas e estofadas com tapeçaria. Tudo na sala atestava o amor pelas coisas belas, tão profundamente enraizado naquela família que precisara abrir o seu próprio caminho dentro da sociedade, fora do vulgar coração da Natureza.

Swithin não tolerava a simplicidade; amara sempre o dourado, qualidade que o tornara conhecido entre os amigos como homem de extraordinário bom gosto, embora às vezes luxuoso de mais. E o seu maior e o mais duradouro prazer era a certeza em que vivia de que ninguém lhe poderia entrar em casa sem se aperceber logo quão rico ele era.

Fora agente de propriedades imobiliárias, profissão deplorável, a seu ver, principalmente no tocante aos leilões. Desde que se retirara dos negócios, abandonara-se às suas tendências naturalmente aristocráticas. E enterrava-se no luxo perfeito com que soubera cercar a sua velhice, como uma mosca se enterra no açúcar. O seu espírito, onde, de manhã à noite, poucas coisas passavam, era uma confluência de duas emoções singularmente contraditórias: uma permanente e vigorosa satisfação por ter sabido abrir caminho na vida e constituir a sua fortuna e a íntima convicção de que um homem tão refinado como ele nunca deveria ter sido constrangido a macular o espírito trabalhando.

Estava em pé, junto ao aparador, de colete branco com grandes botões de ónix e ouro. e vigiava o criado, que enterrava mais profundamente nos baldes de gelo três garrafas de champanhe Por entre as duas altas pontas do seu colarinho engomado, cujo formato ele não alteraria por nada no mundo, embora lhe tornasse penoso qualquer movimento, o seu queixo gordo mantinha-se imutável. Os olhos passeavam de garrafa em garrafa. E Swithin deliberava: «Jolyon bebe um copo, talvez dois, não mais. Poupa-se tanto! James, esse não bebe, Nícholas e Fanny, esses dois vão encher-se de água, como sempre. Soames também não conta. Essa rapaziada (Soames tinha trinta e oito anos) não sabe beber. Mas Bosinney?» Encontrando no nome desse estranho algo que saía dos quadros da sua filosofia, Swithin parou. Elevava-se nele uma dúvida: «Não se pode saber o que é que Bosinney beberá! June não passa de uma menina apaixonada! Emily (Mrs. James) aprecia a sua taça de champanhe. Mas para Juley, champanhe é seco de mais; coitada, não tem paladar! Quanto a Hatty Chessmann...-A lembrança dessa velha amiga veio obscurecer com uma nuvem de pensamentos o vidro transparente dos seus olhos: «Ela é bem capaz de beber a sua meia garrafa.)-

Quando pensou, porém, na última convidada, uma expressão semelhante à de um gato que ronrona passou-lhe pelo velho rosto: «Mrs. Soames! Talvez não beba muito, mas saberá apreciar o que bebe. É um prazer oferecer um vinho fino àquela rapariga. Rapariga linda e simpática! Basta evocá-la para se sentir a sensação de beber um bom champanhe. Realmente, é um prazer oferecer bons vinhos a uma mulher tão agradável de se ver, que veste tão bem, que tem maneiras tão encantadoras, tão distintas. É um prazer recebê-la!

Entre as pontas do colarinho, que o incomodavam, fez pela primeira vez, com a cabeça, um leve movimento: - Adolf, ponha mais uma garrafa no gelo. - Ele próprio também poderia beber um pouco, porque, graças àquela receita de Blight, sentia-se muito bem e tomara o cuidado de não almoçar. Havia semanas que não se sentia tão bem. E, erguendo o lábio inferior, deu as suas últimas instruções: - Adolf, traga um pouco de vinho das Antilhas quando se estiver a servir o presunto.

Passando pela antecâmara, sentou-se na beira de uma cadeira com os joelhos afastados; e a sua estatura enorme e maciça imobilizou-se imediatamente numa atitude de espera estranha e primitiva. Estava pronto para se erguer a qualquer momento. Havia já muitos meses que não dava um jantar. E aquele jantar, em comemoração do noivado de June, parecera-lhe a princípio uma maçada. (O costume de comemorar os noivados com jantares de cerimónia era religiosamente observado pelos Forsyte.) Mas depois de findo o aborrecimento de fazer os convites e encomendar o cardápio, sentia-se agradavelmente estimulado.

E sentado, tendo na mão o relógio, gordo, liso e dourado como uma bola de manteiga, ficou ali, sem pensar em nada.

Um homem alto, de suíças, que estivera outrora ao serviço de Swithin e era agora verdureiro, entrou e anunciou:

- Mrs. Chessmann, Mrs. Septimus Small!

Duas senhoras adiantaram-se. A da frente, toda vestida de vermelho, tinha nas faces duas placas fixas da mesma cor e um olhar duro e audacioso. Dirigiu-se para Swithin, estendendo-lhe a mão apertada numa luva cor de junquilho.

- Então, Swithin, há séculos que ninguém o vê. Como vai? Mas como tem engordado, rapaz!

Apenas a fixidez do olhar de Swithin lhe traía a emoção. Uma cólera muda rugia-lhe por dentro. Era vulgar estar gordo, falar em gordura. Ele era forte, mais nada. Voltando-se para a irmã, apertou-lhe a mão e disse num tom de autoridade:

- E então, Juley?

Mrs. Septimus Small era a mais alta das três irmãs: a sua velha face amável tornara-se um pouco dura e um emaranhado de rugas cortava-lhe o rosto, como se ela o tivesse encerrado até àquela noite numa máscara de arame, e, tirando-a subitamente, ficasse assim toda marcada de vergões de carne indócil. Os próprios olhos pregueavam-se nas dobras das pálpebras franzidas.

Era aquela a sua maneira de mostrar tristeza pela morte de Septimus Small.

Era célebre pelas suas gafes e tenaz como todos do seu sangue; sempre que dizia uma inconveniência agarrava-se a ela, e muitas vezes acrescentava-lhe outra. Depois da morte do marido, a obstinação da família, o senso prático tinham sido nela feridos de esterilidade. Generosamente tagarela, era capaz, se a deixassem, de falar durante horas seguidas, sem a menor animação, relatando com uma monotonia épica os inumeráveis malefícios que lhe fizera a Fortuna, sem se aperceber de que os seus auditores simpatizavam com a Fortuna porque ela tinha bom coração.

A pobre de Cristo, depois de velar durante anos à cabeceira de Small (homem de saúde precária), tomara o costume desse devotamento, e depois disso, em várias ocasiões, durante períodos intermináveis, fizera companhia a doentes, a crianças e a outros incapazes. Nunca pudera desfazer-se do sentimento de que o mundo era o lugar mais infestado de ingratidão que seria possível encontrar. Domingo após domingo sentava-se aos pés do engenhoso pregador reverendo Thomas Scoles, que exercia uma grande influência sobre a sua alma; e conseguiu convencer toda a gente de que aquilo era também um novo infortúnio. Tornara-se proverbial na família, onde, para se definir alguém que estivesse particularmente deprimido, dizia-se: «Uma Juley perfeita.» A qualquer pessoa que não pertencesse à raça dos Forsyte tais tendências seriam fatais logo aos quarenta anos. Ela entretanto tinha setenta e quatro e passava optimamente de saúde. E sentia-se que alimentava ainda apetites de prazer bastante sólidos. Possuía três canários, o gato Tommy e metade de um papagaio cuja propriedade partilhava com a irmã Hester; e os pobres bichos (cuidadosamente mantidos longe de Timothy, a quem os animais irritavam), mais equitativos que os seres humanos, sabendo embora que Juley não podia deixar de ser triste e apagada, eram-lhe apaixonadamente apegados.

Naquela noite, ela estava de uma sombria magnificência, vestida de bombazina preta, com uma frente lilás timidamente decotada em triângulo. Uma fita de veludo preto apertava-lhe o pescoço franzino. A combinação de preto e lilás, para os vestidos

de noite, era considerada quase unanimemente pelos Forsyte como uma prova de sóbria distinção.

E ela disse a Swithin,, com um trejeito na face:

- Ann perguntou por si. Há séculos que não vai visitar-nos. Swithin enfiou os polegares na cava do colete e respondeu:

- Ann está a ficar meio trémula; devia procurar um médico.

- Mr. e Mrs. Nicholas Forsyte!

Nicholas Forsyte, erguendo as sobrancelhas rectangulares, exibia um sorriso. Conseguira durante o dia fazer vigorar um projecto destinado a empregar uma tribo do Norte da índia nas minas de ouro de Ceilão. Um projecto favorito, levado a bom termo, contrariando grandes dificuldades, valia um sorriso. Tal operação duplicaria a produção das suas minas, e já que, como ele francamente o demonstrava, a experiência universal tende a provar que todos os homens devem morrer, tanto faz morrer de velhice miserável, na sua terra, ou prematuramente, levado pela humidade no fundo de uma mina em país estranho; isso pouco importa, uma vez que essa mudança de condição resulte em benefício do Império Britânico.

As suas capacidades eram notórias. Erguendo o nariz quebrado para o auditor, gostava de dizer:

- Por falta de algumas centenas desses pobres diabos é que não pagamos os dividendos há muitos anos; olhe agora o valor das acções. Não dão mais dez shillings.

Além disso, estivera em Yarmouth e voltara de lá com o sentimento de que acrescentara pelo menos uns dez anos à sua vida. Agarrou a mão de Swithin e exclamou em voz jovial:

- Então, então! Cá estamos de novo!

Mrs. Nicholas, uma senhora abatida, sorria por trás do marido. com uma alegria falsa e assustadiça.

- Mr. e Mrs. James Forsyte.

- Mr. e Mrs. Soames Forsyte.

Swithin juntou os calcanhares, sempre admirável de porte:

- E então, James? E então, Emily? Como vai isso, Soames? Como vai? - A sua mão fechou-se sobre a mão de Irene e os seus olhos arredondaram-se.

Linda mulher! Talvez um pouco pálida, mas que corpo, que olhos, que dentes! Realmente, era boa de mais para esse garoto do Soames!

Os deuses haviam dado a Irene sombrias pupilas castanhas e cabelos dourados, combinação singular que atrai o olhar dos homens e passa por sinal certo de fraqueza de carácter. A palidez ampla e suave do pescoço e dos ombros, sobre o vestido cor de ouro, davam-lhe uma atraente estranheza.

Soames estava de pé, por trás dela, com os olhos postos na nuca da mulher. Swithin segurava sempre o relógio, que marcava mais de oito horas. Tinha o hábito de jantar meia hora antes, não almoçara, e uma estranha e violenta impaciência subia do seu fundo primitivo.

- Não é coisa própria de Jolyon atrasar-se assim - disse ele a Irene, sem poder dominar o mau humor. - Creio que é June que o retém.

- Os namorados andam sempre atrasados - respondeu a rapariga.

Swithin encarou-a e uma onda de sangue veio aquecer-lhe o amarelo bilioso da face.

- Não sei porquê. É uma elegância de mau gosto.

E, sob aquela explosão, a violência inarticulada das gerações primitivas parecia murmurar e rugir.

- Dê a sua opinião sobre a minha nova estrela de brilhantes, tio Swithin - disse docemente Irene.

No seu colo, entre as rendas, brilhava uma estrela de cinco pontas feita de onze diamantes. Swithin olhou a estrela. Era entendido em pedras preciosas, e nenhum outro assunto poderia servir melhor para lhe distrair a atenção.

- Quem lhe deu isso? - perguntou ele.

- Soames.

A moça pronunciou esse nome sem alterar as feições: entretanto os olhos pálidos de Swithin arregalaram-se, como se uma intuição súbita acabasse de o ferir.

- Você decerto aborrece-se em casa - disse ele. - Se lhe der na vontade de vir um dia jantar comigo, sirvo-lhe uma garrafa de vinho como há poucas em Londres.

- Miss June Forsyte, Mr. Jolyon Forsyte, Mr. Bosinney. Swithin avançou o braço e disse em voz estentórica:

- Para a mesa, agora! Para a mesa!

E Swithin tomou o braço de Irene, pretextando que ela, desde que se casara, ainda não jantara em sua casa. June coube a Bosinney, que tomou lugar à mesa entre Irene e a noiva. Do outro lado de June, James, Mrs. Nicholas, depois o velho Jolyon com Mrs. James, Nicholas com Hatty Chessmann, Soames com Mrs. Small, que fechava o círculo à esquerda de Swithin.

Os jantares de família em casa dos Forsyte obedeciam a certas tradições. Por exemplo, não se serviam hors d'oeuvres. A razão de tal costume era ignorada. Os jovens da família atribuíam-no ao preço exorbitante das ostras; porém é mais provável que tal abstenção fosse devida à impaciência de chegar ao essencial, a um excelente senso prático que teria decidido logo que os hors d'oeuvres carecem de substância.

Apenas os James, incapazes de resistir a um costume quase geral em Park Lane, faziam excepção à regra da família.

Nesses jantares, uma indiferença muda e quase sombria de cada conviva para com o seu vizinho seguia-se ao movimento de sentar à mesa; e esse silêncio durava até à primeira entrada. Era cortado aqui e ali por algumas observações: «Tom está doente de novo; não consigo descobrir o que ele tem.» «Creio que Ann já não sai de manhã?» «Como se chama o seu médico, Fanny?» «Stubbs?» «É um charlatão!» «Winifred? Tem filhos de mais.» «Quatro, não é?» «E está magra como uma ripa!» «Quanto paga você por este sherry. Swithin? Seco de mais para mim.»

Com o segundo copo de champanhe, elevava-se uma espécie de ruído cujo elemento fundamental parecia ser a voz de James a contar uma anedota. E a anedota arrastava-se até ao momento em que aparecia o prato culminante de um jantar Forsyte: um lombo de carneiro.

Nunca um Forsyte deu um jantar sem fazer figurar nele um assado de carneiro. Há qualquer coisa na suculenta solidez dessa carne que a designa às pessoas «de uma certa posição». É um prato nutritivo e saboroso, e que a gente não esquece quando o come. Tem um passado e um futuro, tal como um depósito num banco. E, além disso, dá pretexto a discussões.

Cada ramo da família louvava obstinadamente o local de proveniência do «seu» carneiro. O velho Jolyon fazia questão de Dartmoor, James, do País de Gales, Swithin não acreditava senão no South Down, Nicholas sustentava que, «digam o que disserem, nada equivale ao carneiro da Nova Zelândia». Quanto a Roger, o «original)' entre os irmãos, fazia questão de descobrir uma procedência especial para si: com o engenho digno do homem que inventou uma profissão nova para os filhos, descobriu um açougue onde se vende carne originária da Alemanha. E como estranhassem o facto, naquele dia, ele confirmou o que afirmara exibindo uma factura do açougue, provando que pagava o seu lombo de carneiro, mais caro do que os outros. Foi nessa ocasião que o velho Jolyon, voltando-se para June, lhe disse num dos seus acessos de filosofia:

- Pode acreditar, minha querida, quando lhe digo que os Forsyte têm um parafuso errado. Com os anos, acabará por aperceber-se disso.

Apenas Timothy se mantinha à parte. Porque, embora gostasse de lombo de carneiro, dizia que tinha medo dele.

Para todas as pessoas curiosas da psicologia dos Forsyte, esse traço do assado de carneiro é de capital importância: não só lhes manifesta a tenacidade, como grupo de indivíduos, como os caracteriza como pertencentes, em fibra e em instinto, àquela classe de homens que prezam, antes de tudo, o que é substancial e saboroso, e se defendem contra qualquer sedução frívola.

Na verdade, decerto alguns membros jovens da família dispensariam de bom grado a carne, preferindo uma galinha-d'angola ou uma salada de lagosta, qualquer coisa de menos nutritivo e que falasse mais à imaginação. Mas eram mulheres, ou então rapazes corrompidos pelas mulheres ou pelas mães, que, sendo obrigadas a comer lombo de carneiro durante toda a sua vida matrimonial, tinham transmitido ao sangue dos filhos a sua hostilidade secreta contra tal iguaria.

Finda a grande controvérsia do assado de carneiro, passou-se ao presunto de Tewkersbury, acompanhado de uma gota de vinho das Antilhas: Swithin demorou-se tanto tempo nesse prato que atrasou a marcha do jantar, e para se entregar mais inteiramente a ele, fez parar a conversa.

Do seu lugar, ao lado de Mrs. Septimus Small, Soames vigiava. Tinha uma razão pessoal para observar Bosinney. O jovem arquitecto talvez lhe servisse para um projecto que acariciava há muito: o de construir uma casa. Tinha o ar inteligente e, inclinado para trás, na cadeira, construía sonhadoramente uma muralha de migalhas de pão. Soames notou que o seu fato era de bom talhe, mas um pouco apertado, como se datasse de alguns anos. Viu-o voltar-se para Irene e dizer-lhe qualquer coisa. Viu o rosto de Irene iluminar-se, como frequentemente se iluminava para outros, nunca para ele. Tentou apanhar o que diziam, mas a tia Juley dizia-lhe: «Soames não achava também extraordinário? Ainda no último domingo o prezado Mr. Scoles parecera tão espirituoso no seu sermão, tão sarcástico!» «Para que serve», dizia ele, «para que serve a um homem ganhar a sua alma se lhe sucede perder todos os seus bens?» Era essa, na opinião de Mr. Scoles, a divisa da burguesia. E que quereria ele realmente dizer com isso?

Soames respondeu distraído:

- Como é que a senhora quer que eu saiba? Scoles não será um mistificador?

Porque Bosinney circulava a mesa com o olhar, como se fizesse comentários a respeito de cada conviva, e Soames perguntava a si mesmo o que estaria ele a dizer. O sorriso de Irene aprovava-lhe evidentemente as observações. Ela tinha sempre o ar de aprovar os outros, volveu o olhar para Soames, que imediatamente baixou o seu: a rapariga perdera o seu sorriso.

- Um mistificador?

Afinal, que queria dizer Soames? Se Mr. Scoles, um pastor, um sacerdote, era um mistificador, quem não o seria, então? Era horrível.

- Pois bem, toda a gente o é! - disse Soames.

Durante o silêncio horrorizado da tia Juley, apanhou algumas palavras de Irene e supôs perceber: «Perdei toda a esperança, ó vós que entrais.»

Swithin, afinal, acabara o presunto.

- Onde é que você costuma comprar cogumelos? - perguntou ele a Irene, com um tom galante na voz. - Procure Snileybob: lá vendem-lhe cogumelos frescos. Esses pequenos vendedores não vão dar-se ao trabalho...

Irene voltou-se para responder e Soames viu que Bosinney a olhava sorrindo para si mesmo. Singular sorriso tinha aquele rapaz: um sorriso simples, como o de um menino que sorri porque está contente. Quanto ao apelido inventado por George, o pirata, não lhe achava nenhuma graça. Vendo Bosinney voltar-se para June. Soames por sua vez sorriu, sardónico: não gostava de June e ela não parecia contente.

Coisa aliás natural, pois a pequena acabava de ter com James a seguinte conversa:

- Estive algum tempo na margem do Tamisa, tio James, quando voltei do País de Gales. E vi lá um local esplêndido para fazer uma casa.

James, gastrónomo lento e convicto, parou de mastigar.

- Ah - disse ele. - E onde?

- Perto de Pangbourne.

James pôs na boca um naco de presunto e June esperou.

- Você não sabe, talvez, se esse terreno está à venda? - disse o tio afinal. - Não sabe nada sobre o preço desses terrenos?

- Sei. Informei-me.

O seu rostinho resoluto, sob a chama dos cabelos, brilhava com um ardor que fez que James desconfiasse. E o velho encarou-a com um olhar inquisidor.

- O quê? Será que você pensa em comprar esses terrenos?- exclamou, deixando cair o garfo.

june tomou coragem, vendo-o tão interessado. Há muito tempo alimentava a esperança de que os tios servissem aos seus interesses e aos de Bosinney mandando construir casas de campo.

- Naturalmente não - falou ele. - Mas achei o lugar maravilhoso para o senhor ou qualquer outra pessoa construir uma casa de campo!

James olhou-a de viés e levou à boca um segundo pedaço de presunto.

- Os terrenos devem ser muito caros por ali - disse ele.

O que June tomara por interesse pessoal não era senão a excitação que qualquer Forsyte sentia ante a ideia de um objecto desejável que corre o risco de ir para outras mãos. Porém a pequena não quis admitir que a ocasião estava perdida e insistiu:

- O senhor devia instalar-se no campo, tio James. Ah, como eu queria ter muito dinheiro! Não viveria nem mais um dia em Londres!

James sentiu-se abalado até ao mais íntimo da sua longa e magra pessoa. Não desconfiava que a sobrinha tivesse ideias tão positivas.

- Porque o senhor não se fixa no campo? - insistia ela. - Havia de lhe fazer tanto bem!

- Porquê? - perguntou James, agitado. - Comprar um terreno? E que interesse teria eu em construir uma casa? Só obteria quatro por cento do capital!

- E que mal faz isso? Mas gozaria do ar puro!

- Ora, ar puro! - exclamou James. - Não tenho necessidade

de ar puro!

- Pensei que toda a gente gostasse de ar puro - disse a moça com desprezo.

James passou o guardanapo na boca.

- Você não sabe o valor do dinheiro - disse, evitando o olhar da rapariga.

- Não. e espero não o saber nunca.

E mordendo os lábios, mortificada, a pobre June calou-se.

Porque eram os seus parentes tão ricos, enquanto o pobre Phil nunca sabia onde arranjaria o tabaco para o cachimbo, no dia seguinte? Seria que o não poderiam ajudar? Mas eram tão egoístas! Porque não mandavam construir casas de campo? Ela tinha aquele dogmatismo ingénuo e patético que às vezes realiza tantas coisas grandes.

Bosinney, para quem se voltava no seu desapontamento, conversava com Irene, e qualquer coisa lhe paralisou o impulso do coração. Os seus olhos imobilizaram-se de cólera, como os do velho Jolyon quando o contrariavam.

James também estava profundamente perturbado. Parecia-lhe que lhe haviam ameaçado o direito de colocar o seu dinheiro a cinco por cento.

Jolyon estragara de mimos aquela garota. Não seria uma das suas filhas que diria semelhantes palavras! James sempre fora muito generoso com os filhos, e a consciência desse facto ainda o tornava mais sensível à inconveniência de June. Com um ar absorto, o velho remexia os seus morangos, depois, inundando-os de creme, comeu-os rapidamente: aquilo pelo menos não lhe escaparia.

E tinha motivo para se escandalizar. Há cinquenta e quatro anos - começara a vida como solicitador (1) na idade legal -, ocupava-se em combinar hipotecas, em manter capitais numa taxa de juros alta e segura, em negociar conforme o grande princípio de tirar dos outros o máximo possível, sem comprometer a segurança dos seus clientes nem a sua, em calcular com exactidão as repercussões financeiras prováveis de todos os acontecimentos da vida, e já não sabia pensar senão em termos de finança. O dinheiro era como a sua luz. o seu meio de visão, uma coisa fora da qual era incapaz de perceber fosse o que fosse. E ouvir dizer, nas suas barbas: «Espero não saber nunca o que vale o dinheiro!», havia-o horripilado. Sabia bem que fora uma inconsequência, de contrário teria medo. Para onde ia o mundo? De súbito, lembrando-se da história de Jolyon filho, sentiu-se um pouco reconfortado. Que esperar da filha de tal pai? Porém essa lembrança arrastou-lhe os pensamentos por um caminho ainda mais penoso. Que significavam os boatos que corriam a propósito de Soames e de Irene? Como em toda a família que se respeita, havia, entre os Forsyte, uma espécie de Bolsa onde circulavam os segredos e onde se cotavam as situações respectivas dos diferentes membros da família. E era corrente na praça dos Forsyte que Irene lamentava o seu casamento. Censurava-se esse sentimento. Irene devia ter sabido o que queria, uma mulher séria não comete tais enganos. James, aborrecido, reflectia que eles tinham uma linda instalação, talvez um pouco pequena, mas bem situada, sem filhos, sem problemas económicos. A este último respeito, Soames sempre fora muito reservado,

 

*1. Solicitador profissional legalmente qualificado para agir por outra pessoa perante as autoridades judiciárias, espécie de personagem intermediária entre o procurador e o advogado. (N. da T.)

 

mas devia estar bem encaminhado no arranjo do seu pé-de-meia. Recebia um bom rendimento da firma, pois Soames, como o pai, pertencia ao famoso escritório de advogados-solicitadores Forsyte-Bustaford-Forsyte, onde sempre se mostrara muito cauteloso. Tirara bom partido de várias hipotecas resgatadas no momento oportuno, golpes na verdade muitíssimo bem dados.

Não se via nenhuma razão para que Irene não se sentisse feliz, e no entanto contava-se que pedira para ter quarto separado. E James sabia em que dava isso.

Se ela ao menos se pudesse queixar de que Soames bebia!

James volveu os olhos para a nora. Aquele olhar despercebido era frio e cheio de dúvidas. Interrogava, exprimia receio e um sentimento de ofensa pessoal. Porque o atormentavam assim? Coisa insensata, coisa de mulher. São tão loucas as mulheres, exageram tudo. A gente nunca sabe em que deve pensar, e depois nunca lhe diziam nada, a ele. Tinha de descobrir tudo sozinho. De novo lançou para Irene um olhar furtivo, depois espiou Soames, no outro lado da mesa. Este último, enquanto escutava a tia Juley, olhava, de cabeça baixa, na direcção de Bosinney. «Ele é louco por ela, tenho a certeza», pensava James. «Basta ver os presentes que lhe dá.»

E a loucura de Irene, desligando-se de Soames, apareceu-lhe com uma nova força. E era pena, também, porque a moça tinha um encanto especial, e ele, James, ter-lhe-ia amizade se ela o quisesse. Irene ligara-se muito a June, ultimamente, e isso não lhe fazia bem, não lhe fazia bem absolutamente! Por isso é que andava a querer mostrar espírito independente. De que carecia? Tinha uma casa linda e tudo que lhe fosse possível desejar. O que era mister é que o marido soubesse escolher melhor os amigos. Irene estava num caminho perigoso.

O facto é que June, campeã dos desventurados, arrancara de Irene uma confissão e, em pagamento, pregara-lhe um sermão sobre a necessidade de enfrentar o mal, ainda que devesse chegar à separação. E Irene respondera a essas exortações com um silêncio absorto, como se a esmagasse a perspectiva dessa luta a sangue-frio. «Nunca Soames a largaria», disse ela a June.

- Não importa - gritara a pequena. - Faça o que quiser. Você precisa de se manter firme.

E June não hesitara em falar da mesma maneira na casa de Timothy. James, informado disso, horrorizou-se.

Se Irene metesse na cabeça... mal ele ousava dizer a palavra... deixar Soames? O pensamento foi-lhe tão intolerável que o afastou imediatamente. Quantas imagens sórdidas lhe sugeria! Ouviu em torno de si o zumbido de todas as línguas da família. e, depois, o horror de um tal acontecimento, sucedendo tão próximo a ele. James, na casa de um dos seus próprios filhos! Feliz mente Irene não tinha dinheiro: apenas uma miserável renda de cinquenta libras. E pensou com desprezo no defunto Heron, que nada tivera para deixar à filha. Assim ruminando, o nariz no copo, as longas pernas retorcidas sob a mesa, descuidou-se de se erguer quando as senhoras deixaram a sala de jantar. Precisava falar a Soames, preveni-lo, aquilo não podia continuar assim, agora que entrevira tais possibilidades. E notou, com acre malevolência, que June deixara os seus copos cheios de vinho.

«Essa pequena está no fundo disso tudo», pensava ele. «Irene nunca teria tais ideias sozinha.»

James era, a seu modo, um homem de imaginação. A voz de Swithin tirou-o da sua cisma.

- Dei por ele quatrocentas libras - dizia Swithin. - Note-se que é uma verdadeira obra de arte.

- Quatrocentas! Hum! É muito dinheiro! - exclamava Nicholas.

O objecto em questão era um grupo de mármore italiano, posto sobre um soco elevado, igualmente de mármore, destinado a realçar a sala e dar-lhe um toque artístico. Seis figuras nuas de mulher, de um estilo sobrecarregado, apontavam todas com o dedo a figura central, feminina e nua também, que se designava a si própria com o mesmo gesto: o espectador ficava possuído pelo sentimento agradável do extremo valor daquela figura. A tia Juley, sentada quase defronte do grupo, sofrera os maiores incómodos para não o olhar durante o jantar inteiro.

O velho Jolyon falou. Fora ele que lançara a discussão.

- Quatrocentas libras? Você não vai dizer-me que deu quatrocemtas libras por isso?

Entre as pontas duras do colarinho, o queixo de Swithin fez a sua segunda penosa oscilação da noite.

- Quatrocentas libras de bom dinheiro britânico, nem um vintém menos. E não o lamento, não é um trabalho inglês qualquer. É legítimo italiano moderno!

Soames teve um sorriso que lhe ergueu o canto do lábio e procurou o olhar de Bosinney. O arquitecto contraía o rosto sob o fumo do cigarro. Agora, mais que nunca, tinha a sua cara de pirata.

- Há realmente muito trabalho aí - notou James, que estava sinceramente impressionado pelas proporções do grupo. - Daria um bom dinheiro no Jobson.

- O coitado do italiano que o fez - continuou Swithin - pediu-me quinhentas libras. Dei-lhe quatrocentas. Vale oitocentas. O pobre diabo parecia estar a morrer de fome.

Nicholas disse a sua palavra:

- Ah. são uma gente sempre esfarrapada, esses artistas! Tinha vontade de saber como é que eles fazem para viver. Por exemplo aquele rapaz Flageoletti que Fanny e minhas filhas costumam chamar para tocar violino, quando apura cem libras por ano, é um fim de mundo!

James abanou a cabeça:

- Ah, como é que eles fazem para viver, é que eu não sei! O velho Jolyon erguera-se, de charuto na boca, e examinava

o grupo de perto.

- Eu não daria duas libras por isso - disse enfim. Soames viu que o pai e Nicholas trocavam um olhar inquieto.

do outro lado de Swithin, Bosinney continuava envolto em fumo.

«Gostaria de saber o que ele pensa disto», cogitava Soames, que sabia muito bem que o grupo de mármore era desesperadamente vieux jeu. Já não se vendiam no Jobson objectos daquele estilo.

A resposta de Swithin veio afinal.

- Você nunca percebeu de escultura. Comprou os seus quadros, e pronto!

O velho Jolyon voltou para o seu lugar, soprando o fumo do charuto. Era pouco provável que entrasse em discussão com aquele teimoso do Swithin, obstinado como uma mula, e que nunca fora capaz de distinguir entre uma estátua... e um chapéu de palha.

- Estuque! - disse ele apenas.

Já há muito tempo era fisicamente impossível a Swithin fazer qualquer gesto de emoção, mas daquela vez o seu punho abateu-se sobre a mesa.

- Estuque! Eu queria saber se na sua casa você tem qualquer coisa que valha a metade deste grupo!

E sob as suas palavras sentia-se novamente rugir a violência das gerações primitivas.

Foi James quem salvou a situação.

- Muito bem, mas que diz disto o senhor, Mr. Bosinney? O senhor é arquitecto, deve ser muito entendido em estátuas e em todas essas coisas!

Todos os olhos se volveram para Bosinney, todos lhe esperaram a resposta com um estranho olhar suspeitoso.

E Soames, tomando pela primeira vez a palavra, perguntou:

- Sim, Bosinney, que é que você diz disto? Bosinney respondeu friamente:

- A obra é notável.

Falava a Swithin, porém os seus olhos sorriam imperceptivelmente ao velho Jolyon. Soames não se sentiu satisfeito:

- Notável porquê?

- Pela sua subtileza.

A resposta foi seguida de um silêncio impressionante, e só Swithin não soube ao certo se deveria tomá-la como um cumprimento.

 

PROJECTO DE CONSTRUÇÃO.

Três dias depois do jantar de Swithin, Soames Forsyte saía de casa, pela porta verde da fachada, depois de atravessar a praça, voltou-se para olhar a casa, e confirmou a sua impressão de que precisava de pintura nova. Deixara a mulher sentada no sofá do salão, com as mãos unidas sobre os joelhos, esperando evidentemente que ele saísse. Essa atitude não era rara em Irene, diariamente a tomava.

Soames não compreendia o que descobria ela para o censurar. Imaginem se ele bebesse! Por acaso fazia dívidas? Jogava? Praguejava? Era violento? Tinha amigos desregrados? Passava as noites fora? Não! Era exactamente o contrário disso tudo.

A profunda e muda aversão que sentia na mulher, contra si, era um motivo de constante irritação. Que ela se tivesse enganado, que não o amasse, que houvesse tentado amá-lo sem o conseguir, evidentemente isso não eram razões. Um marido capaz de pensar em tais motivos para um desentendimento instalado no seu lar não seria um Forsyte.

Soames via-se pois forçado a lançar toda a culpa sobre Irene. Nunca encontrara outra mulher tão capaz de inspirar amor. Não podiam ir a lugar nenhum sem que visse os homens sofrendo-lhe o encanto: isso traía-se nos olhares deles, nos gestos, na voz. E ela sempre guardara, diante de tantas homenagens, uma linha irrepreensível.

O que nunca ocorreria a Soames era que ela fosse uma dessas mulheres, tão raras na raça anglo-saxónia, nascidas para amar e serem amadas. O poder de atracção que emanava de Irene era encarado pelo marido como um elementto a mais num valor - o valor que ela tinha a seus olhos como uma das suas propriedades. Mas, por causa mesmo desse poder, ele suspeitava que Irene tanto saberia dar como receber, e entretanto não lhe dava nada! «Então porque casou comigo?», perguntava a si próprio continuamente. Esquecia a corte que lhe fizera, os dezoito meses de cerco com que a assediara, não cessando de inventar novos divertimentos para Irene, de lhe fazer presentes, renovando periodicamente o seu pedido, afastando os outros admiradores pela sua própria presença. Esquecera o dia em que, aproveitando um período de aversão aguda que ela sentia pelos que a rodeavam, ele vira enfim os seus esforços coroados de êxito.

Se recordava alguma coisa, era a maneira como o tratara a rapariga de cabelos de ouro e olhos escuros. Decerto já não recordava a expressão estranha, passiva e suplicante com que um dia, subitamente, a moça cedera e concordara em casar com ele.

O assédio que Soames fez a Irene foi desses que toda a gente, na vida real e nos romances, está acorde em louvar: uma corte de todos os momentos, ao fim da qual o apaixonado recebe a recompensa por ter malhado o ferro até torná-lo maleável, e que deve preparar para todo o futuro dias tão alegres como os sinos de noivado.

Soames trotava alegremente em direcção à City, caminhando do lado sombreado da rua. Precisava reformar a casa, a menos que resolvesse emigrar para o campo e construir lá uma moradia. Pela centésima vez, nesse mês, revolvia o problema. Não se ganha nada em fazer precipitadamente as coisas! Tinha uma situação confortável: os seus rendimentos aumentavam e em breve atingiriam as três mil libras, porém o seu capital não era tão grande quanto o supunha o pai. James acreditava serem os filhos mais ricos do que na realidade o eram.

«Posso dispor muito facilmente de oito mil libras», pensava Soames, «e isto sem pensar no dinheiro que emprestei sobre a hipoteca a Robertson e Nicholl.»

Parara diante da vitrina de um vendedor de quadros, porque era amante de pintura e tinha, no número 62 de Montpellier Square, uma salinha cheia de quadros, que encostava à parede, à falta de lugar para os pendurar. Trazia-os quando voltava da City, em geral já noite escura. E nos domingos à tarde gostava de se instalar na salinha e passava horas a voltar um após outro os quadros contra a luz, examinava as marcas que eles traziam no verso da tela e tomava notas. Eram quase sempre paisagens, com figuras no primeiro plano, que ele escolhia num obscuro sentimento de revolta contra Londres, as casas altas, as ruas intermináveis, onde a sua vida decorria, onde decorriam as vidas de todos os da sua espécie e da sua classe. De tempos a tempos carregava no cab uma ou duas dessas telas e parava na loja do Jobson, de caminho para a City.

Irene, cuja opinião Soames respeitava em segredo, e que, talvez por esse motivo, nunca solicitava, só raramente entrava na tal sala quando carecia absolutamente de falar, ao marido. Ninguém lhe pedia que olhasse os quadros, e ela não o fazia,. Para Soames, isso representava nova ofensa. Ele odiava aquele orgulho e, no fundo, temia-o.

No espelho da vitrina a sua imagem estava de pé e encarava-o. Os cabelos lisos, sob a borda do chapéu alto, tinha o mesmo lustro da seda da cartola, as faces pálidas e chatas, a linha dos lábios bem barbeados, o queixo firme e de um cinzento glabro, a gravidade abotoada da sua sobrecasaca negra, compunham-lhe uma aparência de reserva, de discrição, de calma voluntária e imperturbável, mas os olhos frios, cinzentos, de olhar tenso, separados por uma ruga vertical, examinavam-no longamente, como se lhe conhecessem uma secreta fraqueza.

Ele anotou o assunto dos quadros expostos, o nome dos pintores, calculou o preço possível de cada tela, porém sem sentir a satisfação que de ordinário gozava com essa avaliação interior, e continuou o caminho.

A casa de Montpellier Square ainda aguentaria um ano, se se resolvesse construir a casa nova. Os tempos eram favoráveis para isso. Há muito que a moeda não andava tão alta, e o local que ele vira, em Robin Hill, quando lá fora durante a Primavera para examinar a hipoteca de Nicholl, não era uma perfeição? A doze milhas de Hyde Park Corner, o valor do terreno subiria infalivelmente. Podia-se ter a certeza de revender com lucro, de maneira que uma casa construída lá, se fosse realmente bem feita, constituiria uma colocação de capital de primeira ordem.

A ideia de ser o único da família a possuir uma casa de campo não pesava muito nos cálculos de Soames. Todo o Forsyte legítimo considera qualquer sentimento, mesmo o de uma superioridade social, um luxo que não se pode permitir senão depois de ter satisfeito o apetite em vantagens mais tangíveis.

Mas tirar Irene de Londres, arrancá-la às possibilidades de sair e de ver estranhos, afastá-la de toda a gente que lhe metia coisas na cabeça! Era isso o que precisava de fazer! Ela estava ligada de mais a June. E June tinha antipatia por Soames, antipatia que ele lhe retribuía. Ambos eram do mesmo sangue.

Tudo ficaria resolvido com a saída de Irene da cidade. Ela apreciaria a casa, e, com o seu gosto ipelas coisas de arte, haveria de se divertir em decorá-la.

A casa tinha de ser de bom estilo, que lhe garantisse valor económico real numa possível venda. Algo de excepcional, como a casa nova de Parkes, que tinha uma torre. Porém o próprio Parkes queixara-se do arquitecto carneiro. A gente nunca sabe onde vai, com tais homens. Se são conhecidos, arrastam o pobre proprietário a despesas infinitas, e ainda se fazem importantes. E contratar um arquitecto de segunda ordem é mau negócio! A lembrança da torre de Parkes excluía a possibilidade de escolha de um arquitecto de segunda classe.

Eis porque Soames pensava em Bosinney. Depois do jantar na casa de Swithin tomara informações, o resultado fora pequeno, mas animador: «Um adepto da escola nova.»

- Bom?

- De primeira força. Mas um pouco... um pouco aéreo! Não pôde descobrir as casas que Bosinney já construíra, nem

quais eram os seus preços. Porém tinha a impressão de que poderia impor as suas condições. Quanto mais cogitava nela, mais a ideia lhe agradava. O negócio ficava assim em família - o que é quase um instinto nos Forsyte, beneficiaria de uma tarifa preferencial, se, de qualquer modo, não obtivesse preços inteiramente pró-forma, coisa justa, afinal de contas, pois dava a Bosinney uma oportunidade de mostrar as suas possibilidades, uma vez que a casa não seria uma construção vulgar.

Soames pensava satisfeito em todas as encomendas que ele necessariamente faria afluírem para o rapaz, como todos os Forsyte, sabia ser profundamente optimista, quando as vantagens estavam do seu lado.

O escritório de Bosinney era em Sloane Street, pertinho da casa dele, Soames, o que lhe permitia estar sempre com os planos de construção debaixo da vista.

Outra consideração: Irene aceitaria mais facilmente sair de Londres se a construção da casa de campo fosse confiada ao noivo da sua melhor amiga. O casamento de June dependeria disso, talvez. E Irene não poderia, decentemente, opor obstáculos ao casamento de June, jamais faria tal coisa. Ele conhecia-a. E June ficaria contente: nisso também Soames via uma vantagem.

Bosinney parecia inteligente, porém tinha - e esse era um dos seus encantos - o ar do homem que não sabe bem o que vale. Deveria ser fácil de levar em questões de dinheiro. Soames fez esta reflexão sem intenção de explorar o arquitecto, apenas tal reflexão estava de acordo com a sua atitude de espírito mais natural - a de todo o legítimo homem de negócios entre os quais ele ia abrindo o seu caminho na City. Era a lei mais secreta da sua classe e da própria natureza à qual obedecia quando pensava com uma impressão de conforto que «Bosinney deveria ser fácil de levar em questões de dinheiro».

Enquanto prosseguia caminho, abrindo passagem com os cotovelos, o olhar que de hábito trazia fixado ao solo, adiante dos pés, levantou-se para a torre de Saint Paul. Aquela velha torre exercia em Soames uma fascinação singular. Não era uma vez, mas duas ou três vezes por semana que interrompia o seu trajecto quotidiano para entrar sob a cúpula e durante cinco ou dez minutos sob as alas laterais decifrar os nomes e os epitáfios das lápides funerárias. Inexplicável a atracção da grande igreja sobre Soames. salvo se ela lhe ajudava a concentrar os pensamentos na tarefa diária. Se qualquer negócio importante, que lhe exigisse atenção ou habilidade particular, lhe pesava no espírito, invariavelmente entrava sob a abóbada e errava de epitáfio em epitáfio, com uma atenção de rato. Depois, saindo no mesmo passo silencioso, continuava o seu caminho directo para Cheapside, com um pouco mais de decisão no andar, como se houvesse visto algum objecto que decidisse adquirir.

Nessa manhã, pois, entrou em Saint Paul. Mas, em vez de andar entre um túmulo e outro, ergueu os olhos para as colunas, para os grandes espaços de muralha, e ficou imóvel. O seu rosto voltado para cima, com a expressão solenemente respeitosa e compenetrada que o rosto de toda a gente toma espontaneamente numa igreja, tornara-se, na imensidade da nave, de um branco de giz. As mãos juntas estavam unidas à frente no castão do guarda-chuva. Soames elevou-as. Que inspiração religiosa lhe viera de repente?

«Sim», pensou, «tenho necessidade de espaço para pendurar os meus quadros.»

Na mesma noite, quando voltou da City, foi bater no escritório de Bosinney. Encontrou o arquitecto em mangas de camisa, fumando cachimbo e traçando, com uma régua, linhas rectas sobre uma planta. Soames recusou um whisky e foi direito ao assunto.

- Se não tem coisa melhor a fazer no próximo domingo, venha comigo a Robin Hill, para me dar o seu juízo sobre um terreno para construção.

- E vai construir?

- Talvez - disse Soames-, mas não fale nisso a ninguém. Quero apenas a sua opinião sobre o terreno.

- Perfeitamente - falou o arquitecto. Soames correu a sala com os olhos.

- Está bem alto aqui - observou ele. Qualquer informação que pudesse recolher relativa à extensão e à natureza dos negócios de Bosinney ser-lhe-ia útil.

- Isto basta-me, por enquanto - respondeu o arquitecto. - Você está habituado a grandezas.

Bateu a cinza do cachimbo e recolocou-o rápido entre os dentes, talvez lhe ajudasse a manter a conversa. Soames viu que o moço tinha uma cova em cada face, como se as chupasse por dentro.

- Qual é o aluguel de um escritório como este? - perguntou.

- O dobro daquilo que ele vale - respondeu Bosinney.

E essa resposta produziu uma impressão favorável em Soames

- Suponho que é caro, com efeito. Virei buscá-lo no domingo às onze horas.

No domingo seguinte, veio num cab buscar Bosinney e levou-o à estação. Em Robin Hill não encontraram carro, e o local que iam visitar distava uma milha e meia da estação: foram a pé.

Era o primeiro de Agosto e o dia estava lindo: o sol ardia, e não se via nem uma nuvem no céu, ao longo do caminho estreito e rectilíneo que subia a colina, os pés dos visitantes levantavam pequenas nuvens de poeira amarela.

- Terreno arenoso! - notou Soames. E lançou um olhar de viés ao sobretudo de Bosinney. O moço enfiara maços de papéis nos bolsos e levava sob o braço uma bengala de aspecto bizarro. Soames notou essas singularidades e mais algumas outras.

Só um homem inteligente, ou na verdade um pirata como lhe chamavam os outros, poderia cuidar tão pouco da sua aparência, e embora fossem profundamente chocantes para Soames, tais excentricidades davam-lhe certa satisfação, porque via nelas a marca de qualidade que deveria inevitavelmente resultar em seu proveito. Se o rapaz sabia construir uma casa, que importava a sua roupa?

- Já lhe disse que a casa deve ser uma surpresa. Por isso, não conte nada a ninguém. Nunca falo dos meus negócios antes de os concluir.

Bosinney fez um sinal afirmativo com a cabeça.

- Ponha mulheres a par dos seus projectos - continuou Soames - e nunca há-de saber onde isso o levará.

- Ah - disse Bosinney -, as mulheres são o diabo!

Era esse um sentimento que Soames há muito tempo trazia no fundo do coração sem nunca o ter formulado.

- Oh - murmurou ele -, você já começa a... - Parou de súbito, porém, acrescentou num movimento irresistível de antipatia:- June tem um carácter especial: sempre o teve assim.

Num anjo, um carácter especial não é coisa má. Soames nunca falara de Irene como de um anjo. Não poderia

violar até esse ponto os seus instintos mais caros, confiar a outrem o valor que atribuía a sua mulher e, desse modo, desvendar-se a si mesmo. Não respondeu nada.

Chegaram a uma estrada ainda por acabar, que atravessava um campo. Cortando-a em ângulo recto, um caminho de carros levava a uma álea ensaibrada, atrás da qual se elevavam as chaminés de uma casa pequena no meio de um tufo de arvoredo e à margem de um bosque espesso. Moitas de erva veludosa cobriam o chão rude, viam-se cotovias que levantavam voo, e subiam, planando numa bruma de luz. No horizonte longínquo, para além da infinita sucessão de campos e de sebes, aparecia uma linha de colinas.

Soames caminhava à frente. No outro extremo do terreno, parou. Era ali o sítio escolhido. Porém, tendo de o revelar a alguém, sentia-se pouco à vontade.

- O agente mora nesta casinha - disse ele. - Vai oferecer-nos o almoço, e é melhor que almocemos antes de albardar o negócio.

Pôs-se de novo a caminhar à frente, até à casa onde os acolheu o agente, que se chamava Olivier - um homenzarrão de grande estatura, de rosto pesado e barba grisalha. Durante o almoço, Soames, que mal comia, não deixou de olhar para Bosinney, e, uma ou duas vezes, passou furtivamente o seu lenço de seda pela testa. Terminada enfim a refeição. Bosinney ergueu-se:

- Tenho a certeza de que os senhores pretendem conversar a respeito de negócios. Vou dar uma volta e ver um pouco o terreno.

E, sem esperar resposta, saiu.

Soames, de quem os proprietários do terreno eram clientes, passou uma hora com o agente, examinando planos, discutindo a hipoteca Nicholl e outras. Afinal, quando abordou o assunto da compra, foi como se a ideia lhe houvesse ocorrido ocasionalmente.

- Os seus patrões deveriam baixar o preço para mim. já que serei o primeiro a construir aqui.

Olivier abanou a cabeça.

- O local que o senhor escolheu é o mais barato que nós temos. Já faz grande diferença dos preços dos terrenos lá do alto.

- Note bem - disse Soames - que ainda não estou resolvido. E é bem possível que desista da construção. O terreno é muito caro.

- Pois, Mr. Forsyte, se o senhor desistir eu lamentá-lo-ei e creio que cometerá um erro. Não há nenhum terreno próximo de Londres que tenha uma vista como esta, nem que seja, afinal de contas, tão barato. Basta que nós façamos um pouco de publicidade, e ver-nos-emos cheios de pedidos de compra.

Olharam-se. Os seus rostos diziam claramente: «Respeito-o como homem de negócios, e o senhor decerto não pensa que acredito numa única palavra do que diz.»

- Pois é - repetiu Soames -, ainda não me decidi, é muito provável que o negócio não se faça.

Dizendo estas palavras, ergueu-se, apanhou o guarda-chuva, pôs a mão fria na mão do agente, retirou-a sem lhe haver imprimido a menor pressão e saiu para o sol.

Mergulhado nos seus pensamentos, dirigiu-se lentamente para o local escolhido. O seu instinto dizia-lhe que o agente falara verdade: o terreno não era caro. E o melhor da história é que ele sabia muito bem que o agente o julgava caro, de maneira que a sua intuição levava de vencida a sapiência do agente.

«Caro ou barato, preciso dele», pensou Soames.

As cotovias erguiam voo à sua frente, o ar estava cheio de borboletas e um perfume suave exalava-se das ervas selvagens. Do fundo do bosque, onde os pombos bravos arrulhavam, escondidos nas sombras, subia o cheiro dos fetos, e a brisa tépida trazia de longe o badalar ritmado dos sinos.

Soames caminhava com os olhos fixos no chão, como se saboreasse em pensamento qualquer coisa deliciosa. Porém, quando chegou ao local que escolhera, não encontrou Bosinney. Depois de esperar algum tempo, atravessou o campo cercado e subiu a colina. Teria gritado, se não tivesse medo de ouvir o som da sua voz. O campo estava solitário como uma estepe, o silêncio era quebrado apenas pelo rumor de algum coelho fugitivo, correndo para a toca, ou pelo canto das cotovias.

Soames, pioneiro do grande exército dos Forsyte que avançava para civilizar aquele deserto, sentiu que o seu génio se intimidava ante aquela solidão, aqueles cantos invisíveis, a suavidade do ar ardente. Já voltava sobre os seus passos quando afinal percebeu Bosinney.

O arquitecto estava deitado ao comprido sob um grande carvalho que estendia amplamente a ramagem poderosa e cujo tronco, devastado pelos anos, se elevava à margem da encosta.

Soames teve de lhe tocar no ombro para o fazer erguer a cabeça.

- Ah, Forsyte, encontrei o verdadeiro lugar para a sua casa! Veja isto!

Soames, imóvel, olhou, depois respondeu friamente:

- Talvez você tenha bom gosto, mas este terreno custar-me-á o dobro do outro.

- Não pense no preço, homem! Olhe esta vista!

O trigo maduro ondulava-lhes aos pés até um bosquezinho sombrio, a cuja orla se encostava. Os campos, riscados de sebes, estendiam-se até às colinas azuladas. O riacho desenhava-se à direita, num risco de prata.

O céu era tão azul, o sol tão claro, que se poderia supor eterno o Verão que reinava naquela paisagem. O calor dançava sobre os trigais, e, penetrando em todas as coisas, um leve e imperceptível zumbido flutuava como o murmúrio de minutos luminosos em festa, entre o céu e a terra.

Soames olhava. A despeito de si mesmo, qualquer coisa se lhe dilatava no peito. Viver ali, diante daquele horizonte, mostrá-lo aos amigos, falar dele, possuí-lo! O sangue avermelhava-lhe a face. O calor, o radioso brilho da paisagem, penetrava-lhe os sentidos, tal como a beleza de Irene quatro anos atrás, excitando-lhe o desejo. Lançou um olhar enviesado a Bosinney, cujos olhos - aquele olhar de leopardo meio domesticado, na frase do cocheiro - pareciam percorrer o campo com uma espécie de liberdade selvagem. O Pirata! O sol marcava-lhe as saliências da face, as maçãs ossudas, o queixo proeminente, as bossas verticais que lhe encimavam as órbitas, e Soames, olhando aquela cara poderosa, descuidada e entusiástica, sentia uma impressão desagradável.

O vento passou sobre o trigo, numa ondulação longa e suave, extraindo-lhe um bafo tépido.

- Eu poderia construir-lhe aqui uma casa extraordinária - disse Bosinney, quebrando afinal o silêncio.

- Não duvido - replicou secamente Soames -, mas não seria você quem deveria pagá-la.

- Com mais ou menos oito mil libras, faço-lhe um palácio. Soames tornara-se muito pálido. Travava-se nele um combate. Baixou os olhos e disse rapidamente:

- Não está nas minhas posses.

Lentamente, no seu passo absorto, conduziu Bosinney até ao local primitivo. Lá passaram algum tempo a precisar os pormenores da futura casa, depois Soames voltou até ao cottage do agente.

Saiu de lá uma meia hora depois, e, reunindo-se a Bosinney, puseram-se a caminho para a estação.

- Pois é - disse ele, mal descerrando os lábios -, afinal, o que eu comprei foi o terreno escolhido por si.

E recaiu no seu silêncio, perguntando confusamente a si mesmo como fora que aquele indivíduo, que por instinto ele desprezava, pudera dominar a sua própria decisão.

 

O LAR DE UM FORSYTE.

Como milhares de londrinos, representantes preclaros da sua classe e da sua geração, que já não acreditam nas cadeiras de veludo vermelho e sabem que os grupos modernos de mármore italiano são vieux jeu, Soames morava numa casa onde se afirmava uma pretensão de arte.

A porta era decorada com uma aldraba de cobre de forma original, as janelas, expressamente modificadas, abriam-se à francesa, tinha jardineiras suspensas, cheias de fucsias, e atrás da casa (pormenor importante) abria-se um pequeno pátio, coberto com telhas verde-jade e circulado de hortênsias cor- de-rosa, em caixas pintadas de azul-pavão.

Lá, sob um toldo japonês cor de pergaminho, que cobria todo o fundo do átrio, os moradores da casa ou as visitas podiam, ao abrigo de olhares curiosos, tomar chá ou examinar à vontade as últimas caixinhas de prata que Soames coleccionava.

A decoração interior misturava ao estilo Império a influência de William Morris. Graças a isto, as dimensões da casa eram agradáveis. Viam-se por toda a parte pequenos recantos, espécies de ninhos, onde bibelots de prata eram depositados, como ovos. Nessa perfeição de conjunto, duas espécies de requinte estavam em luta. Havia ali uma dona de casa que poderia sobreviver refinadamente numa ilha deserta, e um dono de casa cujo requinte era de certa maneira um valor, que ele utilizava para o seu progresso social, de acordo com as leis da concorrência. Esse desejo de elegância mostrara-se precocemente em Soames. Ainda colegial, em Marborough, já exibia colete branco no Verão e colete de veludo no Inverno. Nunca seria capaz de aparecer em público com uma gravata subindo para o colarinho e havia quem se recordasse de o ter visto, num dia de distribuição de prémios, diante de uma grande assembleia reunida para o ouvir recitar Malière, bater com o lenço, já sobre o estrado, a poeira das suas botinas de verniz.

Como vários londrinos, Soames tinha o aspecto de quem acabava de sair de uma caixa. Seria impossível concebê-lo com um cabelo fora do lugar, a gravata afastada da perpendicular, ainda que fosse um quanto de centímetro, e um colarinho mal engomado! Por nada no mundo dispensaria o seu banho diário, os banhos estavam então em moda. E com que desprezo esmagava as pessoas que o omitiam! Mas poder-se-ia imaginar Irene banhando-se como uma ninfa num regato à beira de um caminho, para gozar a frescura da água e a alegria de mirar o seu lindo corpo.

O conflito travado naquele interior terminara com a derrota da mulher. Como a luta do saxão e do celta, que ainda hoje perdura no coração da nação, o temperamento mais impressionável, mais sensível, tivera de receber o peso de uma montanha de convenções.

E, desse modo, a casa chegara a assemelhar-se a centenas de outras casas onde reinam as mesmas aspirações superiores e tornara-se «a deliciosa casinha de Soames Forsyte, absolutamente original, minha querida, realmente elegante»!

No lugar de Soames Forsyte, pode-se ler James Peabedy, ou Thomas Atkins, ou Emmanuel Spagnoletti, o nome não importa, a frase aplica-se bem a qualquer inglês da alta burguesia londrina que tenha pretensões artísticas, seja qual for o estilo do mobiliário.

Na noite de 8 de Agosto, uma semana depois da expedição a Robin Hill, na sala de jantar daquela casa «absolutamente original, minha querida, realmente elegante» Soames e Irene jantavam. Um jantar quente, aos domingos, era um traço distinto de elegância,, comum àquela casa e a muitas outras. Muito pouco tempo depois do casamento, Soames estabelecera esta regra:

«É preciso que os criados nos sirvam um jantar quente aos domingos. Eles não têm nada a fazer, além de tocar concertina.»

O hábito fora tomado sem revolução. Porque - sinal lamentável, aos olhos de Soames - os criados gostavam de Irene, que, desafiando toda a salutar tradição, parecia reconhecer-lhes o direito a uma parte das fraquezas da natureza humana.

Estavam sentados não defronte um do outro, mas em ângulo recto, na bela mesa de pau-rosa, jantavam sem toalha, outra elegância distinta, e não tinham ainda dito uma palavra.

Soames gostava, durante o jantar, de falar dos seus negócios e das suas compras e, enquanto discorria, o silêncio de Irene não o tornava infeliz. Mas naquela noite era-lhe impossível falar. A decisão de construir a casa pesara-lhe no espírito durante a semana inteira: decidira agora participá-la a Irene.

Irritava-o profundamente aquele nervosismo que o tomava ante a ideia de falar à mulher. Porque lhe fazia ela sentir tal constrangimento, já que marido e mulher são uma única e a mesma pessoa? Não o olhara nem uma vez, depois que estavam sentados, e ele perguntava a si próprio em que coisas pensaria Irene. Era duro para um marido que trabalhava para lhe ganhar dinheiro (pensava, com uma tristeza no coração), era duro encontrá-la muda, com aquele olhar, um olhar que parecia ver as paredes da sala dobrarem-se sobre si para a aprisionarem.

A claridade que caía do quebra-luz banhava-lhe o pescoço e os 'braços. Soames fazia questão de que ela jantasse decotada, isso dava-lhe uma inexplicável impressão de superioridade sobre os amigos, cujas esposas se contentavam em jantar em casa com um vestido de dia ou com um teagown. Sob a luz rosada, os cabelos de âmbar e a pele branca de Irene faziam um estranho contraste com os sombrios olhos castanhos. Que poderia ele desejar de mais encantador do que aquela mesa, em tons ricos e fundidos, com as rosas de pétalas de seda, os copos cor de rubi, o tom argênteo da prataria, mais requintado do que a mulher que lá estava sentada? Mas a gratidão não era uma virtude dos Forsyte, que, positivos e arrivistas, nunca tinham oportunidade de a exercerem.

Soames sentia apenas uma exasperação que ia até ao sofrimento por não possuir aquela mulher com toda a força do seu direito, por não poder fazer, como o faria com aquela rosa, se o quisesse, estender apenas a mão, colhê-la e respirar os seus perfumes mais íntimos.

Todas as suas outras propriedades, todos os objectos que adquirira, os bibelots de prata, os quadros, as casas, as acções davam-lhe uma íntima e secreta volúpia. Ela não lhe dava nada.

E sobre aquela casa pesava algo semelhante a uma obscura ameaça de infelicidade.

O seu temperamento de homem de negócios protestava contra o sentimento secreto de que aquela mulher não fora feita para ele. Desposara-a, conquistara-a, fizera-a sua, e parecia-lhe contrário à mais fundamental de todas as leis, ao direito de propriedade, não poder possuir dela senão o corpo, a supor que o possuísse, porque até disso começava a duvidar. Se alguém lhe perguntasse se também lhe quereria possuir a alma, ele teria considerado a pergunta ridícula e sentimental. E, no entanto, era realmente a alma de Irene que Soames queria, e sentia que nunca a possuiria.

Ela era sempre silenciosa, passiva e, apesar de toda a sua graça, hostil, como se receasse por uma palavra, por um gesto, por um sinal qualquer, deixá-lo crer que o amava. E ele perguntava a si próprio: «Será que esta vida vai durar para sempre?»

Como quase todos os leitores de romances da sua geração (e Soames era grande ledor de romances) via a vida através dos livros, e persuadira-se de que tudo era apenas uma questão de tempo. O marido acaba sempre por conquistar o coração da esposa. E mesmo nesses livros que terminam em tragédia - livros que ele não apreciava - a mulher morria sempre com um pungente arrependimento nos lábios, ou, se era o marido que morria - essa ideia era-lhe desagradável - ela atirava-se sobre o corpo dele numa agonia de remorsos.

Levava frequentemente Irene ao teatro, escolhendo instintivamente as peças modernas e elegantes onde se debate o actual problema conjugal, felizmente tão diverso do problema conjugal da vida quotidiana. Via que essas peças terminavam como os romances, mesmo quando no drama havia um amante. Enquanto se representava a peça, Soames frequentemente interessava-se pelo amante, mas, ao voltar para casa, sentado no carro, junto de Irene, voltava a si e rejubilava-se por a peça ter findado bem. Havia um novo género de marido que acabava de ser posto em moda: o homem forte, às vezes rude, muito sólido, em favor de quem se resolvia sempre o desenlace da peça. Soames não sentia senão antipatia por tal personagem, e tê-la-ia exprimido se não fosse a sua situação pessoal. Mas tinha tão perfeita consciência da necessidade vital que se lhe impunha de triunfar como marido, e mesmo de ser marido «forte», que jamais confessaria aquela aversão que talvez - a natureza tem dessas reviravoltas perversas - nascesse nele de um fundo secreto de brutalidade.

Mas o silêncio de Irene, naquela noite, era mais obstinado que de ordinário. Nunca ele lhe vira antes tal expressão no rosto. E, já que é sempre o desconhecido que alarma, Soames sentiu-se alarmado. Acabou o prato, e, como a criada tirasse as migalhas com uma escova de prata, ele disse-lhe que se apressasse. Quando a criada saiu da sala, Soames encheu um copo de vinho e perguntou:

- Não veio ninguém hoje à tarde?

- June.

- Que é que ela veio fazer? - Era axiomático, entre os Forsyte, que não se fazia uma visita sem fim determinado. - Falar do noivo, suponho?

Irene não respondeu.

- Tenho a impressão - continuou o marido - de que ela gosta muito mais dele do que ele dela. Anda sempre atrás do rapaz.

Os olhos de Irene faziam-no sentir-se mal.

- Você não tem o direito de dizer uma coisa dessas! - exclamou ela.

- Porque não? Toda a gente pode ver isso.

- Não é verdade. E, se o fosse, seria uma vergonha dizê-lo. Soames perdeu o controle.

- É um encanto ser seu marido!-disse ele. Mas ao mesmo tempo espantava-se da vivacidade de Irene, aquilo não parecia dela. - Você anda louca por June. Pois digo-lhe uma coisa: agora que ela anda com o pirata a reboque, liga tanto a você como à primeira camisa que vestiu, e você sente isso. De futuro, porém, não a verá tanto como agora: vamos morar no campo.

Ele gostara de atirar a sua novidade no meio de um rompante.

Esperava um grito de espanto, e inquietou-se com o silêncio que lhe acolheu as palavras.

- Isso não lhe interessa? - teve de acrescentar.

- Eu já o sabia.

- Quem lhe disse?

- June.

- Como o soube ela?

Irene não respondeu. Frustrado, descontente, Soames disse:

- É um óptimo negócio para Bosinney. Vai ser lançado com essa construção. Ela disse-lhe tudo?

- Sim.

Houve um novo silêncio, depois Soames falou:

- Será que você não deseja ir para o campo? Irene não respondeu.

- Bem, não sei o que você quer. Aqui nunca parece estar satisfeita:.

- Os meus desejos valem para alguma coisa?

Ela apanhou o vaso de rosas e saiu. Soames não se mexeu. Fora então para aquilo que assinara a compra? Era para aquilo que iria despender dez mil libras? A frase de Bosinney voltou-lhe à memória: «As mulheres são o diabo!»

Em seguida acalmou-se. A coisa poderia ter decorrido pior. Ela poderia ter-se revoltado. Ele esperara algo mais. Em suma, era melhor por June houvesse quebrado o gelo. Naturalmente a pequena arrancara a notícia de Bosinney, era coisa de prever.

Acendeu um cigarro. Afinal de contas Irene não fizera nenhuma cena! Era o que havia de bom nela: era fria, mas não geniosa. E, soprando o fumo do cigarro sobre um insecto que caminhava através da mesa lustrosa, pôs-se a sonhar com a casa nova.

Não valia a pena aborrecer-se. Daí a pouco iria procurar a mulher e fariam as pazes. Encontrá-la-ia lá fora, no escuro, tricotando sob o toldo japonês. A noite estava bela e quente...

" Na verdade, June chegara à tarde, com os olhos brilhantes, gritando:

- Soames é formidável! É uma maravilha para Phil! Exactamente o que ele precisava!

Como o rosto de Irene continuasse sombrio e espantado, ela explicara:

- A sua casa nova em Robin Hill, naturalmente! Como? Você não sabia?

Irene não sabia.

- Oh, então creio que não deveria ter dito nada! - E, olhando impaciente a amiga, gritou: - Parece até que você não se incomoda! É que eu desejei-o tanto, compreende? É a oportunidade que ele há tanto tempo esperava. Agora vocês vão ver do que Phil é capaz!

E, após dizer isto, June contara a história toda.

Depois do seu noivado, a pequena parecera não se interessar muito pela situação da amiga, as horas que passava com Irene eram consagradas apenas às suas próprias confidências, e durante momentos, apesar de toda a sua afectuosa piedade, era- lhe impossível impedir que lhe transparecesse no sorriso uma espécie de desdém compassivo pela mulher que cometera tal erro na vida - um tão vasto e ridículo erro.

- Ele vai ficar encarregado também da decoração. Carta branca! Foi perfeito... - E June pôs-se de súbito a rir, o seu rostinho fremia de alegria, erguendo a mão, dera uma pancada na cortina de musselina: - Imagine você que cheguei quase a pedir ao tio James...

Mas de súbito foi-lhe desagradável mencionar esse incidente e ela parou, e depois, encontrando tão pouco aplauso da parte da amiga, foi-se embora. Da rua voltou-se, Irene ainda estava em pé, à porta. Em resposta ao gesto de adeus de June, levou a mão à fronte. e lentamente fechou a porta.

Soames entrou no salão e olhou-a curiosamente através da vidraça. Sob a sombra do toldo japonês, ela estava sentada, imóvel, e sobre os seus ombros brancos a renda da écharpe erguia-se e caía ao ritmo do seio.

Porém da criatura silenciosa que estava sentada ali, tão tranquila na escuridão, emanava um calor, um secreto fervor de sentimento, como se todo o seu ser acabasse de ser revolvido, como se uma transformação se produzisse nas suas profundezas mais íntimas.

 

ONDE SE VÊ JAMES POR INTEIRO.

Não demorou muito tempo para que a resolução de Soames desse a volta na família, excitando a emoção que toda a decisão referente às questões de propriedade desperta entre os Forsyte.

Não foi por culpa dele, estava sinceramente resolvido a que ninguém soubesse de nada. June, na plenitude do seu coração, é que confiara o segredo a Mrs. Small, permitindo-lhe que o repetisse à sua tia Ann- apenas - para alegrar a pobre e querida velhinha! - porque a tia Ann estava de cama havia vários dias.

Mrs. Small imediatamente contara o caso à tia Ann, que, com a cabeça nos travesseiros, sorrira, murmurando com a sua velha voz, clara e trémula:

- É uma sorte para a querida June. Porém espero que eles sejam prudentes: talvez seja perigoso!

E quando se viu de novo só, uma sombra severa passou-lhe pelo rosto como uma nuvem que anuncia um dia de chuva.

Durante os longos dias em que esteve na cama, a tia Ann repetia sem cessar o gesto de apertar os dedos, com o que procurava recarregar a vontade, o esforço traduzia-se-lhe no rosto, cerrando-lhe a cada momento os cantos dos lábios.

A criada de quarto, Smither, que estava ao seu serviço havia quase trinta anos e de quem se dizia: "Smither, boa rapariga, mas tão vagarosa!»

- Smither realizava todas as manhãs, com um cuidado religioso, a cerimónia culminante daquela toilette antiquada: tirando das profundidades imaculadas de uma caixa de papelão umas madeixas chatas, cinzentas, insignes de dignidade, punha-as entre as mãos da patroa e respeitosamente virava as costas.

E diariamente a tia Juley e a tia Hester eram convocadas para informarem a irmã mais velha sobre a saúde de Timothy, para lhe darem notícias de Nicholas, dizerem-llhe se a querida June obtivera de Jolyon a antecipação da data do casamento, agora que Bosinney estava a construir a casa de Soames, se reallmente a mulher de Roger estava à espera... se a operação do pequeno Archie fora bem sucedida, qual a resolução de Swithin a respeito daquela casa desocupada de Wigmore Street, cujo locatário se arruinara e fora tão incorrecto, e sobretudo queria saber a respeito de Soames: seria que Irene... insistiria sempre... em dormir em quarto separado? E todas as manhãs Smither ouvia: «Hoje à tarde, pelas duas horas, irei até lá baixo, Smither. E vou precisar que você me dê o braço, depois de tantos dias de cama!»

Depois de ter comunicado a notícia à tia Ann, Mrs. Small, sob garantia do mais absoluto sigilo, transmitira-a também a Mrs. Nicholas, que, por sua vez, pedira confirmação do facto a Winifred Dartie, certa de que esta, naturalmente, irmã que era de Soames, estaria ao corrente de tudo. Através de Winifred, o boato chegara até aos ouvidos de James: e isso agitara-o muito.

- Ninguém - dizia ele -, ninguém me conta nada, - E em vez de se dirigir directamente a Soames, cujo génio taciturno lhe fazia medo, agarrou o guarda-chuva e foi até à casa de Timothy.

Lá encontrou Mrs. Septimus Small e Hester, que também já tinha entrado no segredo (ela é calada, tem medo de se cansar a falar: «loucas para comentar a novidade». «O nosso querido Soames mostra com isso uma grande bondade, mas», notavam elas, referindo-se a Mr. Bosinney, «não será um pouco arriscado?» Como era que George o alcunhara? Pirata! Alcunha engraçada! É verdade que George era sempre engraçado! O caso é que, assim, o negócio ficaria em família... porque, realmente, eram obrigados a considerar Mr. Bosinney como membro da família, embora a coisa ainda parecesse estranha.

Aí, James interrompeu:

- Ninguém sabe nada dele. E não sei porque Soames vai servir-se de um estreante. Não me admiro se Irene houver contribuído um pouco para isso... Vou falar a...

A tia Juley interrompeu-o:

- Soames disse a Mr. Bosinney que a coisa não deveria transpirar. Com certeza não quer que ninguém saiba, e se Timothy souber, Soames decerto ficará contrariado, e eu...

James pôs a mão atrás da orelha.

- O quê?:- disse ele. - Estou a ficar meio surdo. Creio que não ouço bem, quando me falam. Emily está com um pé doente, acho que não poderemos ir para o País de Gales no fim do mês. Sempre aparece uma atrapalhação.

E, satisfeito com o que ouvira, agarrou o chapéu e saiu. Fazia uma linda tarde, e ele atravessou o parque em direcção a Mont-pellier Square, com a intenção de jantar em casa de Soames, porque Emily estava de cama, devido ao pé doente, e Rachel e Cecily andavam no campo, a passeio. Tomou um caminho de viés que levava a Knightsbridge através de um prado de erva curta e queimada, semeada de ovelhas pretas, onde se viam, aqui e ali, pares sentados e estranhos mendigos deitados no chão, de face contra a terra, como cadáveres sobre um campo por onde passou a onda de uma batalha.

Caminhava depressa, com a cabeça baixa, não olhando nem à direita nem à esquerda. A visão daquele parque, centro do seu próprio campo de batalha, onde combatera a vida inteira, não lhe excitava nem o pensamento nem a especulação. Aqueles corpos estirados, fora do tumulto e do burburinho da luta, aqueles namorados sentados face contra face, fugitivos por uma hora paradisíaca da monotonia do trabalho diário, não lhe despertavam nenhuma cisma. Ele já ultrapassara a idade desse género de evocações, e o seu nariz, como o focinho de um carneiro, nunca abandonava a pastagem onde comia.

Já há algum tempo que um dos seus locatários mostrava disposição de esquecer a data dos alugueres, e para James tornara-se um problema resolver se o despejaria imediatamente, apesar da dificuldade que há em arranjar inquilino antes do Natal. Aliás, o culpado era ele próprio, que tivera paciência de mais.

Ruminava a questão, enquanto continuava o seu caminho, segurando cuidadosamente o guarda-chuva um pouco abaixo do castão, de modo a não bater com a ponteira no chão, nem amarrotar a seda. Com os seus ombros magros, altos e curvos, as pernas longas de movimentos rápidos e de precisão mecânica, James atravessava o parque, onde o sol brilhava com uma chama clara sobre tanta ociosidade - sobre tantos seres, testemunhas vivas da luta impiedosa pela posse do dinheiro, a batalha que se encarniça lá fora do recinto daqueles relvados - e a passagem dele por ali semelhava o voo de um pássaro terrestre perdido sobre o mar.

Ao sair de Albert Gate, sentiu a mão de alguém no braço.

Era Soames, que, voltando do escritório, ao longo de Piccadily, do lado da sombra, atravessara subitamente a rua para vir ao encontro do pai.

- A sua mãe está de cama - disse James - e eu ia para a vossa casa. Não sei se vou atrapalhá-los.

As relações exteriores de James e do filho distinguiam-se por uma ausência de sentimento particularmente forsytiana, embora eles fossem, no fundo, muito ligados um ao outro. Talvez se considerassem reciprocamente como um capital, e, sem nenhuma dúvida, ambos eram muito solícitos pela prosperidade respectiva e apreciavam estar juntos. Nunca haviam trocado duas palavras sobre os seus problemas íntimos, nem nunca houvera entre pai e filho a menor demonstração de um sentimento mais profundo.

Eram unidos por laços fora do alcance de qualquer análise verbal, por uma determinada fibra que faz parte da substância íntima das nações e das famílias. Pelo sangue, diziam eles, que é mais denso que a água, e nenhum dos dois era homem de sangue gelado e insensível. Até mesmo, em James, o pensamento nos filhos tornara-se o móbil constante da sua vida, a ideia desses seres, prolongamentos dele próprio, a quem ia deixar todo o dinheiro que punha de parte, era o imperativo real da sua necessidade de economia. Com setenta e cinco anos, que prazer lhe restava mais no mundo senão economizar? A sua vida já não tinha outra razão de ser.

Se o instinto de conservação é, como o pretendem, o primeiro traço de saúde moral (embora sem dúvida nenhuma Timothy o levasse longe de mais) não se poderia encontrar um homem mais são do que James Forsyte, apesar de todas as suas jeremiadas, nenhum outro o venceria em toda aquela vasta Londres, que ele amava com tão profundo amor, como o centro que era de todas as suas actividades. Tinha aquele maravilhoso instinto da saúde que caracteriza a classe média inglesa. Nele, mais do que em Jolyon, com a sua vontade dominadora, os seus momentos de ternura e de filosofia, mais do que em Swithin, mártir do seu amor pela distinção, mais do que em Nicholas, por de mais activo, mais do que em Roger, excessivamente atirado, encarnava-se o espírito do oportunismo.

De entre todos os irmãos, ele era o menos notável pelo espírito e pela personalidade, e por tal razão parecia destinado a viver indefinidamente.

Mais do que para nenhum outro, a família era, para James, uma poderosa realidade. E a ela se entregava com uma espécie de ingenuidade, de bonomia primitiva. Amava-a - era a família, o «lar» -, amava-lhe até os mexericos e as queixas. Todas as suas decisões lhe nasciam do senso colectivo da família, e, através desse sentimento, do senso de milhares de outras famílias da mesma substância. Ano após ano, semana após semana, ia regularmente à casa de Timothy. e lá, na sala do irmão, de pernas cruzadas, as longas suíças brancas emoldurando-lhe a boca raspada, assistia ao que se poderia chamar «a fervura da panela familiar», assistia ao cozimento daquela sopa de que o seu espírito vivia, e saía dali dessalterado, consolado, com um sentimento indefinível de bem-estar e de segurança.

Sob o aço do seu instinto de conservação, James não era entretanto desprovido de fraqueza humana, uma visita a Timothy representava para ele uma hora passada no regaço materno. E era essa profunda necessidade do conchego familiar que inspirava o seu modo de sentir em relação aos filhos, era-lhe um pesadelo imaginá-los expostos aos infortúnios da vida, a riscos de dinheiro, de saúde e de reputação. Quando o filho do seu velho amigo John Street se engajou para combater a revolta armada de uma das colónias inglesas, James sacudiu tristemente a cabeça, perguntando a si mesmo onde andaria o juízo de John Street: e quando o rapaz morreu, de um golpe de azagaia, a coisa impressionou-o tanto que se sentiu obrigado a bater à porta de todos os amigos para lhes dizer: «Eu sabia muito bem o que ia acontecer, essa gente tira-me a paciência!..

Quando o seu genro Dartie, vítima de uma especulação infeliz com óleos, atravessou a sua crise financeira, James adoeceu de pesar, parecia-lhe que soava o fim de toda a prosperidade. Foram-lhe precisos três meses e uma estação de cura em Baden-Baden para sarar. Havia qualquer coisa, de terrífico na ideia de que, sem o auxílio do seu dinheiro - dele, James -, o nome de Dartie teria aparecido na lista dos falidos.

Tão naturalmente sadio que se julgava moribundo quando tinha dor de ouvidos, James considerava as doenças ocasionais da mulher e dos filhos como ofensas pessoais, como intervenções particulares da Providência destinadas a destruir-lhe a tranquilidade de espírito. Porém não acreditava absolutamente nos males das criaturas que não pertenciam à sua família e atribuía-os invariavelmente a um fígado mal tratado. Para quallquer caso, tinha apenas um comentário: «Era de esperar, isso. Acontece até a mim, quando não me cuido!»

Caminhando para a casa de Soames, naquela tarde, sentia-se maltratado pela vida: Emily com o pé doente e Rachel viajando pelo campo. Ninguém reservava para ele uma única palavra de simpatia, e, ainda mais, Ann estava doente, receava que ela não atravessasse o Verão, já três vezes que ia à casa de Timothy, sem a poder ver! E essa ideia de Soames, ele construía uma casa: mais uma coisa a exigir-lhe vigilância. Quanto aos receios relativos a Irene, sabia-se lá em que poderiam resultar? Tudo era possível!

E entrou no número 62 de MontpelHer Square absolutamente decidido a sentir-se desgraçado.

Acabavam de soar sete horas e meia. Irene, pronta para o jantar, estava sentada no salão. Trajava um vestido cor de ouro, que, já tendo aparecido num jantar de cerimónia e num baile, deveria agora servir para casa. A moça enfeitara o corpete com uma cascata de rendas, sobre a qual os olhos de James se fixaram logo.

- Onde é que faz as suas compras? - perguntou, em voz descontente. - Nunca vejo Rachel nem Cecily tão bem vestidas como você!

Essa renda cor-de-rosa, por exemplo, será legítima? Não é possível!

Irene aproximou-se para lhe rectificar o engano.

E, a despeito de si próprio, James foi sensível à deferência que a moça lhe mostrava, ao leve perfume que se exalava dela. Porém um Forsyte que se respeita não se rende à primeira investida, e ele disse simplesmente:

- Não sei, mas creio que as suas toilettes não lhe saem por dois vinténs.

O gongo soou. e Irene, enfiando o seu alvo braço por sob o do sogro, levou-o até à sala de jantar. Lá, instalou-o no lugar habitualmente ocupado por Soames. A luz caía docemente sobre eles e o sol que se punha não o incomodaria. E Irene pôs-se a falar-lhe dele próprio.

Pouco a pouco operou-se uma mudança em James, algo semelhante a um fruto que amadurece e doura sob as influências do Verão. Sentia-se acarinhado, lisonjeado, mimado, e isso tudo sem ter recebido nenhuma carícia, nem uma palavra especial de louvor. Tinha a impressão de que as coisas que comia eram exactamente as que estavam a apetecer-lhe. Nunca conseguira obter essa sensação na sua próxima casa! Já não se lembrava desde quando uma taça de champanhe lhe dera tanto prazer, e quando indagou a marca e o preço, espantou-se por saber que se tratava de um vinho do qual ele próprio tinha em casa um grande sortimento, e que nunca suportara beber. E tomou imediatamente a resolução de comunicar ao seu fornecedor de vinhos que se considerava roubado.

Levantando os olhos do prato, notou:

- Você tem aqui uma porção de lindas coisas, Quanto é que deu por esta concha para açúcar? Não me admiro que tenha custado caro!

Apreciou especialmente um quadro pendente da parede, à sua frente, e que ele próprio lhes havia dado.

- Nunca pensei que fosse tão bom - notou.

Quando se levantaram para irem ao salão, James acompanhou Irene de perto.

- É isto que eu chamo um óptimo jantarzinho! - -murmurou, respirando-lhe agradavelmente no ombro. - Nada de pesado, nada dessas complicações à francesa. Mas lá em casa, não há maneira de se obter isto. Pago sessenta libras por ano à minha cozinheira, porém ela é incapaz de me fazer um jantar como o de hoje!

Ele ainda não dissera uma palavra a respeito do projecto de construção, quando Soames, sob pretexto de trabalho, se retirou para a sala do andar de cima onde guardava os quadros.

James ficou só com a nora. Animava-o ainda o calor do vinho e de um licor excelente. Sentia um impulso de afeição pela moça. Na verdade, ela era muito gentil.

Tinha um modo todo seu de escutar, um ar de compreensão e, enquanto falava, James não parava de a examinar, desde os sapatos cor de bronze até às ondas douradas da cabeleira. Recortava-se numa poltrona Império, tocando levemente os ombros no espaldar, a cada um dos seus movimentos o corpo flexível parecia dobrar-se nos braços de um amante. Tinha os lábios sorridentes e os olhos semicerrados.

Seria por ter farejado um perigo no encanto daquela atitude, ou devido a qualquer perturbação digestiva, que James tombou num súbito mutismo? Não se recordava de ter estado jamais a sós com Irene. E, ao olhá-la, sentiu-se invadido por uma sensação bizarra, como se acabasse de chocar com algo de estranho e desconhecido.

Em que pensaria ela, sentada daquele modo?

E quando ele lhe falou, fê-lo numa voz um pouco brusca, como se o houvessem arrancado a alguma cisma agradável.

- Que é que você faz durante o dia inteiro? Nunca ninguém a vê em Park Lane!

Pareceu-lhe que ela dava desculpas mal arranjadas, e não a olhou. Queria acreditar realmente que Irene não evitava a família. Seria significativo de mais.

- Creio, na verdade, que você não tem tempo: está sempre com June. E suponho que lhe é muito útil, acompanhando-?, e ao noivo: um dia uma coisa, outro dia outra. Segundo soube, ela já não pára em casa actualmente: e não deve ser agradável para o seu tio Jolyon viver sempre abandonado, sozinho: dá a impressão de que June corre atrás desse moço Bosinney. Provavelmente ele vem aqui diariamente? E. aí está. gostava de saber: que é que você pensa dele? Acha que é um homem que sabe o que quer? A mim não me parece que seja grande coisa. Creio que June é que vai ser a cabeça-de-casal.

Irene corou. James observava-a suspeitoso.

- Talvez o senhor não compreenda bem Mr. Bosinney - disse ela.

- Não o compreendo? - exclamou James. - E porquê? Vê-se muito bem que é um desses camaradas metidos a artistas. Dizem que é inteligente, essa gente sempre se supõe inteligente. Mas você conhece-o melhor do que eu. - E o olhar suspeitoso do sogro demorou-se de novo sobre a moça.

- Ele está a desenhar a planta de uma casa para Soames - disse Irene tranquilamente, com um evidente desejo de evitar uma discussão,

--Era justamente nisso que eu queria falar - continuou James. - Não sei onde Soames estava com a cabeça quando foi procurar um homem desses. Porque não procurou um arquitecto de valor?

- Talvez Mr. Bosinney seja um arquitecto de valor.

James ergueu-se e deu uma volta pela sala, de cabeça baixa.

- A verdade é esta: vocês, moços, apoiam-se sempre uns aos outros- pensam todos que entendem melhor de tudo!

Parando o grande corpo magro em frente da nora, ergueu um dedo e apontou-o para o colo dela, como se levantasse uma acusação contra a sua beleza:

- Tudo o que posso dizer-lhe é que esses chamados artistas - ou chame-lhes o que quiser - são a coisa menos segura deste mundo, e quanto a você, tenho um conselho a dar-lhe: evite aproximar-se muito dele!

Irene sorriu, e havia na curva dos seus lábios uma singular provocação. Pareceu a James que ela abandonara a sua deferência. O seu colo subia e descia como agitado por uma cólera secreta. Retirou as mãos que apoiava no braço da poltrona e juntou as pontas dos dedos: fixou em James o olhar escuro e insondável.

O velho, sombrio, parecia perscrutar o soalho.

- - Vou dizer-lhe o que penso - continuou. - É pena que você não tenha um filho para lhe encher o tempo.

O rosto de Irene tomou imediatamente uma expressão profunda, e James teve consciência da rigidez que a possuía, sob o leve vestido de seda e renda.

Assustou-se com o efeito que produzira, e como quase todos os homens de precária coragem procurou imediatamente justificar-se, acusando-a.

- Você nunca dá sinal de querer sair de casa. Porque não vem dar connosco um passeio de carro em Hurlingham? E porque não vai ao teatro, uma vez ou outra? Na sua idade, devia interessar-se por tudo isso: você é uma moça!

O rosto de Irene, cada vez mais absorto, ia-se ensombrecendo, e ele começou a ficar nervoso:

- Bem, nunca sei de nada, ninguém me diz nada. Soames pode muito bem cuidar sozinho dos seus negócios, e se não for capaz disso, não conte comigo, aí está...

Mordendo um canto do indicador, James lançou um olhar frio e descontente à nora. Encontrou os olhos de Irene fixos nos seus, tão sombrios e profundos que parou a meio. Um pouco de suor porejou-lhe na fronte.

- Está bem, tenho de ir-me embora-disse depois de um rápido silêncio.

Ao cabo de um instante ergueu-se, com um ar levemente surpreso, como se houvesse esperado que o retivessem. Estendendo a mão a Irene, deixou que ela o conduzisse até à porta da rua, que a moça abriu. Recusou um carro - preferia caminhar. Irene que desse as boas-noites a Soames, da sua parte, e, se queria divertir-se um pouco, levá-la-ia a Richmond no dia que marcasse.

Voltou para casa a pé, subiu a escada, despertou Emily do primeiro sono que ela conseguira conciliar havia vinte e quatro horas, para lhe dizer que tivera má impressão da vida íntima de Soames e Irene. Durante uma meia hora discorreu sobre esse tema, e, declarando enfim que não fecharia os olhos, virou-se para o lado e pôs-se imediatamente a roncar.

No número 62 de Montpellier Square, Soames saíra da sala dos quadros e ficara invisível no alto da escada, observando Irene que escolhia a correspondência trazida pelo último correio. A moça voltou ao salão, porém ao cabo de um instante saiu e ficou imóvel.

como se escutasse. Depois subiu sem ruído a escada, levando no colo um gatinho. Soames via-lhe a cabeça inclinada para o animalzinho que lhe ronronava junto ao pescoço. Porque nunca lhe mostrava ela aquele rosto meigo?

De súbito Irene apercebeu-se dele e a sua expressão mudou.

- Nenhuma carta para mim? - perguntou o marido.

- Três.

Ele deixou-a passar, sem mais uma palavra, e ela entrou no quarto de dormir.

 

O PECADILHO DO VELHO JOLYON.

O velho Jolyon deixara o campo de Cricket, naquela mesma tarde, com a intenção de voltar para casa. Antes de chegar ao Hamilton Terrace, mudara porém de ideia, chamando um cab, deu ao cocheiro um endereço da Wistaria Avenue. Tomara uma resolução.

Durante a semana inteira mal avistara June em casa, ela abandonava-o havia algum tempo, e na verdade, depois do noivado com Bosinney, nunca mais o avô lhe pedira que ficasse ao seu lado. Ele não estava habituado a pedir! A pequena só tinha uma coisa na cabeça: Bosinney e os seus negócios. E deixava o velho só, perdido na grande casa, com alguns criados apenas, sem uma criatura a quem falar, desde manhã até à noite.

O seu clube estava fechado por causa da reforma, o seu escritório vazio, e nada o atraía na City. June quisera que o avô fosse para o campo, porém ela própria recusara-se a acompanhá-lo, porque Bosinney estava em Londres.

Para onde iria sozinho? Para o estrangeiro, não. O mar rebentava-lhe o fígado. E ele detestava a vida do hotel. Roger ia sempre para um estabelecimento hidroterápico, porém o velho Jolyon não iria começar tais experiências na sua idade! Essas estações da moda são armadilhas para tolos!

Disfarçava perante si próprio, com tais fórmulas, a desolação do seu espírito. As rugas do rosto afundavam-se-lhe mais, nos olhos, dia após dia, a mesma melancolia mostrava-se estranha no rosto que sempre exprimira a força e a tranquilidade.

Naquele dia, pois, ele iniciou a viagem por Saint John's Wood, através da claridade dourada que banhava os ramos de acácia redondos e verdes, à porta das casinhas modestas, num irradiar estival que parecia celebrar uma festa por sobre os pequenos jardins, olhava com interesse em torno de si, porque atravessava uma zona de boémia na qual nenhum Forsyte jamais penetraria sem uma manifesta hostilidade e uma curiosidade secreta.

O cab parou diante de uma casinha cuja fachada desbotada atestava uma longa abstenção de pintura, era de aspecto rústico e tinha uma grade exterior.

O velho Jolyon desceu do carro, inteiramente senhor de si, a cabeça maciça, os bigodes caídos, as madeixas brancas emoldurando a testa, mantinham-se muito rijos sob a cartola, o olhar firme, um pouco irritado. Haviam-no levado até ali!

- Mrs. Jolyon Forsyte está em casa?

- Oh, está, sir! Quer dizer por obséquio o nome que devo anunciar?

O velho Jolyon não pôde impedir que os seus olhos sorrissem à criadinha, enquanto lhe dava o seu nome. Parecia uma rãzinha engraçada! Seguiu-a através do hall escuro, até um pequeno salão dividido em dois compartimentos, cujos móveis estavam recobertos de cretone. A criadinha indicou-lhe uma poltrona.

- Estão todos no jardim, sir. Se quiser ter a bondade de esperar um pouco, irei prevenir.

O velho Jolyon sentou-se na poltrona de cretone e olhou em torno de si. O arranjo da sala. diria ele, era mesquinho. Em tudo - sem que o pudesse definir - sentia uma impressão de pobreza - tudo indicava que o orçamento do casal mal dava para cobrir as despesas. Tanto quanto poderia julgar, nem um único daqueles móveis valeria uma nota de cinco libras. A velha pintura das paredes estava coberta de aguarelas, uma grande rachadura serpeava no tecto.

Aquelas casinholas eram todas velhas e ordinárias, segundo a sua estimativa, o aluguel não passaria de cem libras, e o velho sentia-Se ferido - muito mais do que o poderia exprimir - ao verificar que um Forsyte - e seu próprio filho - habitava tal pardieiro.

A criadinha voltou: «Queria ter a bondade de ir até ao jardim?»

O velho Jolyon transpôs a porta envidraçada. Ao descer os degraus, notou que eles careciam de pintura.

Jolyon filho, a mulher, os dois garotos e o cão Baltasar reuniam-se todos no jardim, sob uma pereira.

Aquela caminhada em direcção ao grupo foi o acto mais corajoso que o velho Jolyon realizou em toda a sua vida. Porém nenhum músculo se lhe moveu no rosto, nem um único gesto de nervosismo o traiu. Os seus olhos profundos fixavam resolutamente o inimigo.

E nesses dois minutos demonstrou quão perfeita é a saúde inconsciente, a rija vitalidade que fazia dele e de muitos outros da sua classe o próprio cerne da nação. Na discreta conduta dos seus negócios, sem nada negligenciar, ele simbolizava o individualismo essencial, nativo em todo o inglês, que decorre do isoladonismo natural da sua vida como nação.

O cão Balthazar cheirou-lhe as dobras das calças. Era um mestiço, amigável e cínico fruto dos amores de uma cadela russa e de um fox-terrier, que sabia muito bem farejar as coisas extraordinárias.

Feitas as constrangidas apresentações, o velho Jolyon sentou-se numa poltrona de vime, e os dois netos, um de cada lado dos seus joelhos, olhavam-no em silêncio, pois nunca tinham visto um homem assim tão velho.

Os pequenos não se assemelhavam um ao outro, como para marcar a diferença que o nascimento estabelecera entre ambos. Jolyon, o filho do pecado, com a carinha redonda, os cabelos cor de estopa escovados para trás, uma covinha no queixo, tinha um ar de amabilidade obstinada e os olhos dos Forsyte, Holly, filha do casamento, era morena, tinha os olhos cinzentos e pensativos da mãe e uma alminha solene.

O cão Balthasar, depois de ter dado a volta aos três pequenos canteiros, a fim de testemunhar o seu absoluto desdém por todas as coisas em geral, também tomara assento junto à cadeira do velho Jolyon, e, balançando uma cauda que a Natureza lhe enrolara por sobre as costas, olhava para o ar, com os olhos que não piscavam.

Até mesmo no jardim, uma impressão de pobreza obcecava o velho Jolyon. A cadeira de palha gemia sob o seu peso, os canteiros eram ralos. No fim do jardim, junto ao muro manchado, via-se um trilho feito pelos gatos.

Enquanto o avô e os netos se examinavam com essa atenção particular, curiosa, e no entanto confiante, que trocam entre si as criaturas muito velhas e muito moças, Jolyon filho observava a mulher.

O seu fino rosto oval corara fortemente, ela tinha sobrancelhas rectas e grandes olhos cinzentos, os cabelos, erguidos para a testa em altas curvas delicadas, iam-se tornando grisalhos como os do marido, e por causa mesmo desses cabelos grisalhos, o rubor vivo e súbito das faces era penosamente comovedor. O marido nunca lhe vira a expressão que ela mostrava agora, cheia de ressentimentos secretos, de desejos e receios, ela sempre os escondera. Sob as sobrancelhas frementes, os olhos muito abertos tinham uma fixidez dolorosa. Mantinham-se em silêncio.

Jolly, sozinho, sustentava a conversa, possuía muitas coisas, e gostava de comunicar isso ao amigo desconhecido, dono de tão grandes bigodes, de mãos cobertas de veias azuis, que cruzava as pernas exactamente como o fazia seu pai, e como ele próprio tentava fazer, mas, como legítimo Forsyte, embora não houvesse ainda feito oito anos, não mencionou a coisa que era então a mais querida ao seu coração: um batalhão de soldados de chumbo visto na montra de uma loja e que o pai lhe prometera comprar. Sem dúvida, aquilo parecia-lhe por de mais precioso, e seria tentar a Providência falar nisso desde logo.

O sol brincava através das folhas sobre o grupo tranquilo que, debaixo da pereira há muito tempo estéril, reunia três gerações.

O rosto enrugado do velho Jolyon corava em placas irregulares, tal como coram ao sol os rostos de todos os velhos, ele segurou nas suas as mãos de Jolly, o rapazinho trepou-lhe ao joelho, e Holly, fascinada por esse espectáculo, deslizou para junto deles. Ouvia-se o barulho ritmado que Balthasar fazia ao coçar-se.

De súbito Mrs. Jolyon ergueu-se e entrou precipitadamente em casa. Um minuto depois o marido balbuciou uma desculpa e acompanhou-a. O velho Jolyon ficou só com os netos.

E a Natureza, com a sua ironia subtil, prosseguiu o acabamento do seu ciclo no coração do velho e pôs-se a operar nele uma estranha revolução. Aquela ternura pelos pequeninos, aquela paixão pelos começos da vida que outrora lhe fizera abandonar o filho para se dedicar a June, levava-o agora a abandonar June para se ligar àqueles pequerruchos. A juventude vibrava ainda nele. Voltava-se para as crianças, para os bracinhos roliços tão descuidosos, que tinham necessidade de cuidados, para as carinhas redondas tão desarrazoadamente solenes ou excitadas, para as vozes agudas, o riso penetrante que se abafa ou estala, as mãozinhas que insistem ou que tombam. Sentindo os corpinhos das crianças junto às pernas, reanimava-se. E os seus olhos adoçavam-se, adoçavam-se a sua voz e as suas magras mãos riscadas de veias, adoçava-se o coração, lá dentro. E imediatamente o velho se tornou um abrigo cheio de segurança para aqueles pequeninos. um lugar de felicidade, um sítio onde eles sentiam que podiam falar, rir, brincar. E logo, na poltrona de vime onde se sentara o velho Jolyon, a alegria perfeita de três corações irradiava como o sol.

Não acontecia o mesmo com Jolyon filho, que acompanhara a mulher até ao quarto. Encontrou-a sentada numa cadeira, diante do toucador, com as mãos no rosto. Os soluços sacudiam-lhe os ombros. A paixão de que ela sofria era misteriosa para ele, já vira cem crises idênticas. Como sobrevivera a elas, ele ignorava-o, porque nunca se habituara a torná-las como meras crises, nunca deixara de supor que soara a hora derradeira da sua vida comum.

Decerto, logo à noite, ela lançar-lhe-ia os braços ao pescoço e diria: «Ah, Jo, como eu te faço sofrer!»

Estendeu a mão, e, sem que ela o visse, escondeu a sua navalha no bolso.

«Não posso ficar com ela» -, pensava Jolyon. «Tenho de ir para o jardim!» E, sem uma palavra, saiu e voltou ao relvado.

O velho Jolyon estava com Holly sobre o joelho: a pequena apoderara-se-lhe do relógio, Jolly, com a cara rubra, procurava demonstrar que sabia ficar de pernas para o ar. O cão Balthasar, tão próximo quanto o ousava estar da mesa de chá, olhava cobiçoso os doces.

Jolyon filho sentiu o desejo maligno de interromper aquela felicidade. Que necessidade tinha o pai de chegar e perturbar sua mulher de tal maneira? Depois de tantos anos, era realmente um golpe. Deveria ter pensado nisso, preveni-los. Mas alguma vez um Forsyte imagina que a sua conduta possa perturbar alguém? E, nos seus pensamentos, o filho era injusto para com o velho Jolyon.

Dirigiu-se rudemente às crianças e ordenou-lhes que voltassem para tomar o chá. Espantados, pois o pai não os habituara àquele tom, os pequenos foram-se embora de mãos dadas, enquanto a pequena Holly virava a cabeça, para olhar para trás.

Jolyon filho serviu o chá.

- Minha mulher não está bem hoje - disse ele. Mas sabia bem que o pai compreendera o motivo daquela retirada brusca, e no fundo de si mesmo quase detestava o velho, vendo a calma com que ele se mantinha sentado.

- É bonitinha a vossa casa - disse o velho Jolyon com um olhar agudo. - Segundo creio, é de aluguel?

Jolyon filho fez sinal que sim.

- Não gosto da vizinhança. Uma gentinha bem esquisita! Jolyon filho respondeu:

- É verdade, nós somos uma gentinha esquisita.

O silêncio não era interrompido senão por Balthazar, que se coçava.

O velho Jolyon disse simplesmente:

- Talvez eu não devesse vir, Jo, mas estou tão só, agora! A estas palavras, Jolyon filho ergueu-se e pôs a mão no

ombro do pai.

Na casa vizinha alguém tocava e retocava La Donna è mobile num piano desconjuntado. O jardinzinho estava mergulhado na sombra, o sol não aflorava senão o muro do fundo, sobre o qual um gato se agachara, virando languidamente os olhos amarelos para o cão Balthasar. Ouvia-se o surdo murmúrio que vinha das ruas longínquas, o muro de trepadeiras que cercava o jardim isolava-o de tudo, afora o céu, a casa e a pereira, cujos ramos mais altos ainda se douravam ao sol.

Os dois ficaram assim, algum tempo, falando pouco.

Depois o velho Jolyon ergueu-se para partir e não se aludiu à sua volta.

E foi-se embora tristemente. Que casinha pobre! Pensava na grande casa vazia de Stanhope Gate, legítima residência de Forsyte, com a sua vasta sala de bilhar e o salão onde ninguém entrava durante semanas inteiras.

Aquela mulher, cujo rosto lhe agradara muito, tinha os nervos à flor da pele, Jo devia passar maus bocados com ela! E os garotos eram deliciosos! Ah, que louca e deplorável aventura!

Caminhava para Edgware Road, entre filas de casinholas que lhe sugeriam (erradamente, sem dúvida, mas os preconceitos de um Forsyte são sagrados) toda a sorte de histórias suspeitas.

A sociedade - um bando de megeras e macaquinhos falantes - erguera-se para condenar a sua carne e o seu sangue! Bando de fúrias velhas! Batia no chão com o guardachuva. Dir-se-ia que o queria enterrar até ao coração daquele desgraçado corpo social que lançara ao ostracismo o seu filho e o filho do seu filho, em quem ele poderia reviver.

Batia impetuosamente no chão com o guarda-chuva. E entretanto ele próprio, durante quinze anos, obedecera ao julgamento da sociedade, e pela primeira vez lhe fazia uma infidelidade.

Pensou em June e em sua mãe morta, em toda a velha história, com o seu velho amargor. Um assunto lamentável!

Gastou muito tempo para atingir Stanhope Gate, porque, com o espírito de contradição que lhe era natural, fizera a pé todo o trajecto.

Depois de ter lavado as mãos em baixo, no lavatório, passou para a sala de refeições, à espera do jantar. Era a única sala que habitava quando June não estava em casa, sentia-se ali menos solitário. O jornal da noite não chegara ainda, acabara de ler o Times e não tinha nada a fazer.

A sala tinha janelas para uma rua retirada, afastada da onda de circulação, extremamente silenciosa. Ele não gostava de cães, mas até mesmo um cão lhe teria feito companhia. O seu olhar, explorando a parede, parou num quadro intitulado Barcos de pesca Holandeses ao pôr-do-Sol, a obra-prima da sua colecção. Mas não sentiu prazer em olhá-lo. Fechou os olhos. Estava só! Não deveria queixar-se, sabia-o bem. Mas não se podia dominar, era uma pobre criatura, sempre fora uma pobre criatura. Pouca fibra! Assim pensava o velho.

O mordomo entrou para preparar a mesa. e, vendo que o patrão parecia adormecido, vigiava prudentemente os próprios movimentos. Esse criado, além da barba, ainda usava bigodes que haviam suscitado graves críticas da parte de vários membros da família, sobretudo os que, como Soames, havia passado por uma public school (1) e eram meticulosos em tais assuntos. Poder-se-ia na verdade considerá-lo como um mordomo? George, o engraçado da família, apelidara-o: O Não Conformista do Tio Jolyon.

Ele ia e vinha em passos macios, num silêncio inimitável, da mesa lisa e brilhante até ao grande aparador envernizado.

O velho Jolyon observava-o, fingindo dormir.

Aquele sujeito - ele sempre o pensara - era um camarada hipócrita, que não se importava com coisa alguma, senão em acabar ligeiro o serviço, e ir passear, correr para o jogo ou para a casa da sua pequena, ou Deus sabe para onde! Um malandro! E estava a engordar bem! Ligava tanto ao patrão como à primeira camisa que vestiu!

Porém ocorreu ao velho Jolyon, mau grado seu, um daqueles acessos de filosofia que o distinguiam entre os Forsyte: afinal de contas, porque se preocuparia o homem com o patrão? Não era pago para isso: como o esperar, pois? Neste mundo ninguém deve contar com uma afeição se ela não é paga. No outro mundo talvez seja diferente, ninguém sabe, ninguém o pode dizer! E tornou a fechar os olhos.

Inflexível e silencioso, o mordomo continuava o seu trabalho.

 

*1. Escola aristocrática, onde estudam os filhos da gentry britânica. (N. da T.)

 

tirando os objectos dos diversos compartimentos do aparador. Arranjava-se de modo a voltar as costas ao velho Jolyon e assim encobrir a impropriedade daquelas operações realizadas em presença do patrão. De tempos a tempos, soprava furtivamente sobre uma peça de prata e limpava-a com uma flanela. Depois considerou atentamente as quantidades de vinho que havia nas garrafas, que ele transportava com cuidado, bem alto, deixando a barba pender por sobre elas, num ar protector. Quando acabou, parou um instante para contemplar o patrão que dormia, e nos seus olhos esverdeados luziu um clarão de desprezo: «Afinal de contas, o patrão não passava de um velhote, já nas últimas.»

Silencioso como um gato, atravessou a sala para tocar a campainha. Recebera esta ordem: «Jantar às sete horas.» Que importa se o patrão dormitava! Depressa acordaria. Quem quer dormir tem a noite para isso! E ele tinha os seus negócios a cuidar: às oito e meia esperavam-no no clube.

Em resposta à campainha apareceu um jovem copeiro, com uma sopeira de prata. O mordomo tomou-a e pô-la sobre a mesa, depois, endireitando-se junto à porta, como se fosse introduzir convidados, disse em voz solene:

- O jantar está servido!

Lentamente, o velho Jolyon ergueu-se da poltrona e pôs-se à mesa para comer o seu jantar.

 

A PLANTA DA CASA.

Todos os Forsyte, segundo convenção universalmente admitida, têm, como o caracol, a sua casca, por outras palavras, não poderiam ser reconhecidos sem o seu habitat composto de negócios, de propriedades, de relações e esposas, e esse habitat parece mover-se com eles através de um mundo composto de milhares de outros Forsyte, cada um munido do seu habitat idêntico. Sem a sua casca, um Forsyte é inconcebível, seria como um romance sem enredo, o que é reconhecido como anomalia. Aos olhos dos Forsyte, Bosinney aparecia como despido de tal habitat, parecia um desses raros indivíduos, dignos de lástima, que atravessam a vida rodeados por negócios, propriedades, relações e mulheres que não lhes pertencem.

A sua instalação em Sloane Street, no último andar de um edifício onde a placa «Philip Bosinney, arquitecto» aparecia: sobre a porta, não era a instalação de um Forsyte. O escritório servia-lhe de quarto e de sala, ao fundo, atrás de um biombo, dissimulavam-se os objectos indispensáveis à vida: uma cama articulada, uma preguiceira, cachimbos, uma licoreira. alguns romances e chinelas. A parte da sala que servia de gabinete de trabalho tinha o mobiliário clássico: um grande classificador, uma mesa redonda de carvalho, um pequeno toucador portátil, algumas cadeiras sem estofo, uma vasta mesa de desenho coberta de riscos e plantas.

Acompanhada pela tia de Bosinney, June fora lá duas vezes tomar chá.

Supunha-se que havia um quarto de dormir por trás.

Segundo as informações colhidas pela família, os rendimentos de Bosinney consistiam em dois ordenados de conselheiro arquitecto, de vinte libras cada, aos quais a sorte podia acrescentar, uma vez ou outra, algumas comissões, e, pormenor menos desprezível, uma renda pessoal de cento e cinquenta libras que o pai lhe deixara em testamento.

O que se pudera descobrir sobre esse pai não era porém tão tranquilizador. Sabia-se que era originário de Cornwall, que fora médico de aldeia no Lincolnshire, que era homem de rosto impressionante e tendências byronianas, e, na realidade, uma figura conhecidíssima no condado inteiro. O tio afim de Bosinney. Baynes, da casa Baynes &. Bildeboi - um Forsyte de instinto, se não de nome - tinha pouco a dizer a respeito do seu finado cunhado.

- Um camarada esquisito! - contava ele.-Tratava os três filhos mais velhos de «bons sujeitos, mas burros». e entretanto os três venceram na vida, no serviço colonial na Índia. Philip era o único que lhe agradava. Dizia coisas estranhas, uma vez aconselhou-me: «Meu caro, nunca deixe a sua pobre mulher saber o que você pensa!» Eu é que não era homem para lhe seguir os conselhos. Um original! E dizia a Phil: «Meu filho, viva como quiser, mas arranje-se para morrer como um gentleman.» E ele próprio fez-se embalsamar de sobrecasaca, plastrão de cetim preto, alfinete de gravata de brilhantes. Ah, sim, era um excêntrico, podem crer!

Sobre o próprio Bosinney, Baynes exprimia-se calorosamente, com uma nuance de compaixão.

- Herdou um pouquinho do byronismo do pai. Vejam como deu um pontapé na sorte quando deixou o meu escritório, e partiu por seis meses, levando um saco de viagem. Para quê? Para estudar arquitectura estrangeira... estrangeira! É por isso que está aí - um rapaz inteligente - e não faz cem libras por ano. Não lhe podia acontecer nada melhor que esse noivado. Vai assentar. É um desses camaradas capazes de passar o dia inteiro na cama e ficar acordado toda a noite, só por falta de método, simplesmente.

Mas não tem nenhum vício, nem a sombra de um vício. E o velho Forsyte é rico!

Mr. Baynes procurava ser muito agradável a June, que nessa ocasião aparecia frequentemente na sua casa de Lowndes Square.

- Essa casa de seu primo Soames - que homem de negócios que ele é! - era justamente o que Phil precisava - dizia-lhe o tio. - E você não deve esperar vê-lo muito, actualmente, minha flor. É preciso juízo, juízo! É preciso que todo o rapaz faça o seu caminho. Quando eu tinha a idade dele, trabalhava dia e noite. Minha mulher dizia-me sempre: «Bobby, não trabalhe de mais! Pense na sua saúde!» Mas eu nunca me poupei.

June queixara-se de que o noivo não arranjava tempo para a visitar.

Na primeira vez em que ele apareceu, os noivos não conversavam ainda há um quarto de hora quando, por uma dessas coincidências de que parecia ter o segredo, Mrs. Septimus Small chegou. E Bosinney, segundo combinara com a noiva, foi esconder-se num pequeno gabinete ao lado, para esperar o fim da visita.

- Minha querida - disse a tia Juley -, como ele é magro! Já notei isso muitas vezes, em noivos, mas você não deve deixá-lo continuar assim. Aconselhe-o a tomar extracto de carne de Barlow, deu óptimo resultado com o seu tio Swithin.

June, erecta diante da lareira, o rostinho trémulo de irritação contida - porque tomava a visita intempestiva da tia Juley como uma injustiça que lhe era feita -, replicou com desdém:

- É porque ele trabalha! Quem é capaz de fazer alguma coisa não engorda nunca!

A tia Juley amuou. Sempre fora magra, mas o seu único prazer derivava das queixas que fazia por não engordar.

- Na minha opinião - continuou ela -. você não deveria consentir que lhe chamassem pirata. Talvez não fique bem, agora que ele vai construir a casa de Soames. Espero que o seu noivo trabalhe nela o melhor que possa: é tão importante para ele. e Soames tem tão bom gosto!

- Bom gosto! - explodiu subitamente June. - Não dou um vintém pelo bom gosto dele, nem pelo de toda a família!

Mrs. Small ficou interdita.

- O seu tio Swithin - disse ela - sempre teve um bom gosto admirável. E a casa de Soames é um amor: você não pode negar isso.

- Hum - fez June. - Graças a Irene!

A tia Juley procurou dizer qualquer coisa amável:

- E a nossa querida Irene gostará de viver no campo?

June fitou intensamente a tia, como se a consciência lhe saltasse de repente nos olhos, essa expressão passou, depois deu lugar a um olhar ainda mais intenso, como se a sua própria consciência se houvesse assustado com o que vira. E respondeu imperiosamente:

- Naturalmente que vai gostar. Porque não gostaria? Mrs. Small começou a ficar nervosa.

- Não sabia... Pensei que fosse ter saudade dos amigos. O seu tio James diz que ela não toma interesse bastante pela vida. E nós achamos - isto é, Timothy acha - que ela devia sair mais. Creio que você vai sentir muito a falta de Irene!

June cruzou as mãos sob a nuca.

- Como eu gostaria que o tio Timothy só tratasse do que é da conta dele!

A tia Juley ergueu-se em toda a sua altura.

- Timothy nunca cuida, senão do que é da conta dele.

June arrependeu-se logo: chegou-se para junto da tia e beijou-a.

- Desculpe, tia, mas eu tinha tanta vontade que deixassem Irene em paz!

A tia Juley, que procurava em vão descobrir o que seria conveniente dizer, guardou silêncio e dispôs-se a partir. Abotoou a capinha de seda preta e apanhou a bolsa verde.

- Como vai o seu avozinho? - perguntou, no hall. - Creio que ele agora vive muito só, depois que você dedica todo o seu Tempo a Mr. Bosinney.

Curvou-se para beijar avidamente a sobrinha e foi-se embora, no seu passinho miúdo.

Os olhos de June encheram-se de água: correndo para o pequeno gabinete onde Bosinney esperava, desenhando pássaros nas costas de um envelope, a pequena deixou-se cair perto dele, exclamando:

- Oh, Phill, como isto tudo é horroroso!

Tinha o coração tão ardente quanto a cor dos seus cabelos.

Na manhã do domingo seguinte, enquanto Soames fazia a barba, vieram-lhe anunciar que Mr. Bosinney esperava lá em baixo. Abrindo a porta que dava para o quarto da mulher, Soames falou:

- Bosinney está lá em baixo. Quer fazer-lhe um pouco de companhia enquanto eu me barbeio? É só um minuto. Na certa veio por causa da planta.

Irene encarou-o sem responder, e depois, dando o último retoque no trajo, desceu.

Soames não conseguira decifrar-lhe os sentimentos a respeito daquela casa. Irene não dissera uma palavra de oposição, e, no que se referia a Bosinney, mostrava-se sempre muito amigável.

Pela janela do seu quarto de vestir, Soames via-os a conversar lá em baixo, no hall. Barbeou-se à pressa, cortando-se duas vezes no queixo. Ouviu-os rir e pensou: «Em todo o caso dão-se bem.»

Como pensara, Bosinney viera procurá-lo para lhe mostrar a planta. E Soames tomou o chapéu e partiu com ele.

As plantas estavam espalhadas sobre a mesa de carvalho, no escritório do arquitecto, pálido, imperturbável, perscrutando, Soames ficou longo tempo inclinado sobre os desenhos, sem dizer nada.

Enfim, num tom perplexo, notou:

- É esquisita esta casa!

As plantas mostravam-lhe uma casa quadrangular, de dois andares, que cercavam um pátio quadrado. Esse pátio, rodeado por uma galeria ao nível do primeiro andar, era coberto por um telhado de vidro, mantido por oito grandes colunas.

Para os olhos de um Forsyte, a casa era realmente esquisita.

- Há muito espaço perdido - continuou Soames. Bosinney pôs-se a passear pela sala, e Soames não gostou da

expressão do seu rosto.

- O fim desta casa - disse o arquitecto - é dar-lhe espaço para respirar, como um gentleman!

Soames estendeu o polegar e o indicador, como medindo a extensão da distinção que ia adquirir e respondeu:

- Oh, sim, estou vendo.

O rosto de Bosinney tomou a expressão peculiar que era característica de todos os seus entusiasmos.

- Procurei planear-lhe uma casa que tivesse uma dignidade própria. Se não lhe agrada, é melhor que o diga. A última coisa em que em geral se pensa é na dignidade. Que importância tem, quando se pode meter mais uma casa de banho?

E pôs subitamente o dedo sobre a metade esquerda do quadrado central:

- Aqui, você tem espaço. Esta é uma sala especial para os seus quadros, separada do pátio por cortinas, abra as cortinas e terá diante de si um espaço de quinze metros e meio por sete. Esta lareira de duas faces, aqui no meio, dá metade para o pátio, metade para a sala dos quadros. Esta parede do fundo é toda de vidro, e dar-lhe-á luz pelo sudeste. o pátio dá-lhe claridade do lado norte. O resto dos seus quadros poderá ser colocado no primeiro andar, em torno da galeria, ou nas outras salas. Em arquitectura - prosseguiu ele, e embora olhasse para Soames não parecia vê-lo, o que dava ao outro uma impressão desagradável-, em arquitectura, como na vida, não há dignidade sem simetria. Podem dizer-lhe que isto é uma ideia antiquada. Em todo o caso, consideram-na singular. Não nos ocorre ao espírito encarnar nas nossas casas o princípio primeiro da vida. Sobrecarregamo-las de decorações, de floreios e saliências: e tudo isso só serve para distrair os olhos. E, ao contrário, os olhos deveriam repousar. Bastam algumas linhas fortes para produzir um efeito seguro. Tudo está na simetria e não há dignidade sem isso.

Soames, inconscientemente irónico, fixou com o olhar a gravata de Bosinney, que se perdia muito longe da perpendicular, o arquitecto não fizera a barba e a boa ordem do seu trajo deixava muito a desejar. A arquitectura parecia ter esgotado todo o seu poder de simetria.

- Será que não vai ter o aspecto de uma caserna? - perguntou Soames.

A resposta demorou um instante.

- Pelo que vejo - disse afinal Bosinney-, você quer uma casa no género das de Littlemaster, uma dessas casinhas cómodas e interessantes, onde os criados moram na água-furtada e a porta de entrada fica lá em baixo, para que se tenha o prazer de subir os degraus do vestíbulo. Seriamente, experimente Littlemaster. Vai achá-lo da maior importância. Conheço-o desde que me entendo!

Soames alarmou-se. A planta impressionara-o realmente, e só o seu instinto de reserva lhe fizera dissimular a satisfação, era-lhe penoso formular um cumprimento. E desprezava as pessoas que prodigalizam os seus louvores.

Encontrava-se agora na posição embaraçosa da pessoa que tem de escolher entre fazer um cumprimento ou perder uma boa coisa. Bosinney era muito capaz de rasgar as plantas e recusar-se a trabalhar para ele, uma espécie de criança grande.

E essa infantilidade, a que se sentia superior, exercia sobre Soames um efeito singular e quase magnético, porque ele nunca descobrira em si nada de análogo.

- Bem... - balbuciou por fim. - É realmente original.

Ele tinha uma íntima desconfiança e, se não gostava da palavra «original», sentia que nunca fizera algo que merecesse esse qualificativo.

Bosinney pareceu satisfeito. Era a espécie de comentário que devia agradar a um sujeito como ele. Soames sentiu-se estimulado pelo seu êxito.

- É... um casarão... - disse ele.

- Espaço, ar, luz - ouviu Bosinney murmurar. - Ninguém pode viver como gentleman nos cochichos de Littlemaster: ele faz construções para industriais.

Soames teve um gesto de protesto suplicante. Haviam-no classificado entre os gentlemen e ele não queria, nem por muito dinheiro, ser posto entre os industriais. Agitava-o porém a sua desconfiança inata pelos princípios geniais. Para quê aquele palavreado sobre simetria e dignidade? E parecia-lhe que a casa ia ser muito fria.

- Irene não pode suportar o frio - disse ele.

- Ah! - disse sarcasticamente Bosinney. - Sua mulher? Não suporta frio? Eu cuido disso. Olhe aqui. - E apontou para quatro marcas traçadas regularmente nas paredes do pátio. - Porei aí irradiadores, em tubos de alumínio. Há alguns que são de um desenho excelente.

Soames considerou aquelas marcas com um ar suspeitoso.

- Tudo isto está muito bem: mas quanto vai custar-me? O arquitecto tirou do bolso uma folha de papel.

- A casa, bem entendido, deveria ser construída toda de pedra. Pensando porém que o senhor não admitia isso, fiz um arranjo e poremos de pedra apenas um revestimento. Deveria ter um telhado de cobre, mas faço-lhe um de ardósia verde. Assim como está, inclusive o trabalho de metalurgia, vai custar-lhe oito mil e quinhentas libras.

- Oito mil e quinhentas libras? - exclamou Soames. - Mas eu fixei-lhe um máximo de oito mil libras!

- É impossível cortar um penny - respondeu friamente Bosinney. - É pegar ou largar.

Era aquela, provavelmente, a única maneira de fazer tal proposta a Soames: ele sentia-se acuado. A sua consciência dizia-lhe que largasse tudo: mas a planta era boa.. Tinha, como Soames bem o percebera, qualquer coisa de nobre e bem acabado. O alojamento dos criados também era excelente. E dar-lhe-ia muito prestígio viver em tal casa, de traços tão originais e entretanto tão perfeitamente organizados. E absorveu-se na planta, enquanto Bosinney passava para o quarto de dormir para se barbear e vestir-se.

Voltaram juntos para Montpellier Square; iam em silêncio, Soames observando Bosinney com o rabo do olho.

«O Pirata, quando se arranja, fica com muito boa cara», dizia ele de si para si.

Os dois homens encontraram Irene inclinada sobre as flores. Ela propôs que fossem buscar June, lá no outro lado do parque.

- Não, não - atalhou Soames. - Ainda temos de conversar sobre negócios.

Durante o almoço mostrou-se quase cordial, insistindo com Bosinney para que comesse. Sentia-se contente por ver o arquitecto de bom humor, deixou-o a tarde inteira na companhia de Irene, e foi, segundo o seu hábito dos domingos, fechar-se com os seus quadros. Desceu à hora do chá, e encontrou-os a conversar, segundo a sua expressão, a «dezanove a dúzia».

Sem ser visto, parou um instante junto à porta, congratulando-se pelo caminho que as coisas iam tomando. Fora uma sorte Irene ter-se entendido bem com Bosinney. Ela parecia agora estar de acordo com a ideia da casa nova.

Uma tranquila meditação à sombra dos seus quadros decidira Soames a concordar com as quinhentas libras suplementares, se fosse necessário; porém ele esperava que a tarde houvesse abrandado um pouco os cálculos de Bosinney. Era claro que Bosinney poderia modificar o seu orçamento tanto quanto o quisesse. Não havia vinte maneiras de diminuir o custo de uma casa, sem lhe estragar o efeito?

Esperou a ocasião de falar, até ao momento em que Irene estendeu ao arquitecto a sua primeira xícara de chá. Um fino raio de sol que passava por entre as frestas da renda dos estores aquecia a face da moça, brilhava sobre o ouro dos seus cabelos e nos seus olhos meigos. TalLvez fosse o mesmo raio que dava uma cor mais profunda ao rosto de Bosinney e lhe transmitia aquela expressão singular de sobressalto.

Soames tinha horror a sol e levantou-se imediatamente para abaixar o estore. Depois, tomando das mãos da mulher a sua xícara de chá, disse mais friamente do que tencionava:

- Afinal, não haveria maneira de você me fazer a coisa por oito mil libras? Há-de haver uma quantidade de pequenos pormenores que poderiam ser alterados.

Bosininey esvaziou de um só gole a xícara e respondeu:

- Nenhum.

Soames viu que a sua sugestão lhe tocara em algum incompreensível ponto de honra.

- Está bem - concordou com uma resignação melancólica. - Creio que tenho de me conformar com a sua opinião.

Alguns minutos mais tarde Bosinney ergueu-se para se despedir e Soames levantou-se também para o acompanhar até á porta. O arquitecto pareceu-lhe estar num estado de exaltação absurdo. Depois que o viu afastar-se no seu passo oscilante, Soames, um pouco amuado, voltou ao salão, onde Irene ordenava as suas músicas; e num acesso irreprimível de curiosidade perguntou-lhe:

- Que é que você pensa do Pirata?

- Não sei - disse enfim Irene.

- Acha-o bem-parecido?

Irene sorriu. Soames teve a impressão de que a mulher zombava dele.

- Acho - respondeu ela. - Muito.

 

MORTE DA TIA ANN.

Pelos fins de Setembro, houve uma manhã em que foi impossível a tia Ann receber das mãos de Smither as insígnias da sua dignidade. E ao primeiro olhar lançado sobre o seu velho rosto, o médico, precipitadamente chamado, declarou que Miss Forsyte expirara durante o sono.

A tia Juley e a tia Hester sentiram-se esmagadas pelo choque. Nunca haviam imaginado antes que a irmã pudesse ir-se embora assim. Talvez nem mesmo houvessem concebido que o fim pudesse chegar. Sentiam obscuramente que não era razoável, da parte de Ann, deixá-las assim, sem uma palavra, sem mesmo uma luta. Não parecia coisa dela.

Talvez o que na realidade as afectasse tão profundamente fosse a ideia de que uma Forsyte houvesse aberto mão da vida. Se um deles cedia, porque não todos?

Decorreu uma hora inteira antes que elas conseguissem tomar a resolução de comunicar a desgraça a Timothy. Se ao menos pudessem escondê-la! Se ao menos pudessem prepará-lo pouco a pouco!

Ficaram muito tempo cochichando junto à porta. E mesmo depois da coisa feita, cochichavam ainda.

Com o tempo, receavam elas, ele sentiria ainda mais o golpe. Entretanto, recebera-o melhor do que elas poderiam esperar. Ficaria de cama, naturalmente!

As duas separaram-se, chorando docemente. A tia Juley foi para o seu quarto, prostrada pelo evento. O seu rosto, descolorido pelas lágrimas, estava quadriculado por pequenas bossas de carne mole que a emoção inchara. Era-lhe impossível conceber a vida sem Ann, junto de quem vivera setenta e três anos, afora o curto interregno de Septimus Small, que, hoje, lhe parecia quase irreal. Em intervalos regulares, a tia Juley caminhava até à cómoda e apanhava um lenço limpo sob um sachet de lavanda. O seu cálido coração não podia suportar a ideia de que Ann estava deitada, fria.

A tia Hester, a silenciosa, a paciente, aquela onde dormia, como numa represa, a corrente da energia familiar, estava sentada no salão, à sombra dos estores corridos. Ela também chorara, de início, porém as suas lágrimas serenas não deixavam marcas. O profundo instinto de economia e preservação de si mesma não a abandonava ao sofrimento. Frágil, imóvel, a tia Hester parecia perscrutar as brasas da lareira, com as mãos ociosas depostas sobre a saia de seda preta. Decerto em breve viriam incomodá-la, obrigá-la a fazer qualquer coisa. Para que fazer qualquer coisa? Isso não tiraria Ann de volta! Porquê atormentada?

Às cinco horas chegaram três irmãos: Jolyon, James e Swithin. Nicholas estava em Yarmouth, e Roger de cama, com um forte ataque de gota. Mrs. Hayman viera só, mais cedo, e, depois de ter visto Ann, deixara um recado para Timothy - o recado aliás não foi dado - e dissera que ela deveria ter sido prevenida antes.

De facto, essa era uma impressão que eles sentiam todos: que deveriam ter sido prevenidos antes. Parecia-lhes que estavam em falta em qualquer coisa; e James falou:

- Eu sabia bem que isto ia acontecer; tinha-lhes dito que ela não atravessaria o Verão.

A tia Hester não respondeu nada; já se estava quase em Outubro, mas não adiantava discutir; há pessoas que nunca estão satisfeitas com coisa alguma. Mandou prevenir a irmã da presença dos irmãos.

Mrs. Small desceu imediatamente. Banhara o rosto inflamado, e, apesar do olhar severo que lançou às calças azul-claras de Swithin - Swithin viera directamente do clube, onde recebera a notícia -, estava com os olhos mais alegres do que de costume, pois o instinto da impropriedade era mais forte do que ela.

Os cinco subiram então para ver o corpo. Sob o lençol branco imaculado, haviam posto uma cobertura acolchoada, porque agora, mais do que nunca, a tia Ann carecia de calor. E, removidos os travesseiros, as costas e a cabeça da morta repousavam em linha recta, com uma inflexibilidade idêntica à que as mantivera assim em vida. A touca que lhe apertava as têmporas fora puxada para os lados, até ao nível das orelhas. E, entre a touca e o lençol, o rosto, quase tão branco como eles, estava voltado, de olhos fechados, para as figuras dos irmãos e irmãs.

Na sua paz extraordinária, aquela face morta dava mais do que nunca uma impressão de força, feita quase toda de ossos, sob o pergaminho mal enrugado da pele, as faces e o queixo quadrados, a fronte cavada nas têmporas, o nariz fortemente esculpido: representava a fortaleza de um génio indomável.

Swithin lançou apenas um olhar sobre o rosto da irmã, e deixou o quarto; disse depois que sentira «uma coisa esquisita». Desceu a escada fazendo a casa toda tremer, e, tomando o chapéu, subiu ao seu coupé sem dar ordens; o cocheiro levou-o para casa; e ele passou a noite numa poltrona, sem se mexer. Foi-lhe impossível jantar: comeu apenas uma perdiz, regada com duas taças de champanhe.

O velho Jolyon mantinha-se em pé, junto à cama, com as mãos juntas. Entre todos os que estavam ali, era o único que recordava a morte da mãe, e era isso o que evocava enquanto olhava Ann. Ann era velha, mas a morte arrebatara-a afinal. A morte chega para todos. O rosto de Jolyon não se movia, e o olhar parecia vir de muito longe.

A tia Hester estava também de pé, ao lado dele; já não chorava, esgotara as lágrimas, e a sua natureza recusava-se a um novo dispêndio de forças; torcia os dedos e evitava olhar para Ann, porém deixava que os olhos errassem aqui e ali, procurando algum meio de se esquivar ao esforço de compreender.

Entre todos os irmãos e irmãs, era James quem manifestava mais emoção. As lágrimas rolavam-lhe pelas rugas paralelas do rosto magro; a quem iria ele agora contar os seus desgostos? Já não sabia. Juley não servia para nada! Hester, para menos do que nada! A morte de Ann afectava-o mais do que ele o esperaria; e iria ficar transtornado durante várias semanas.

Enquanto ele cismava, a tia Hester eclipsou-se; a tia Juley pôs-se a ir e vir através do quarto, para fazer «o que era preciso», e duas vezes bateu de encontro a um móvel. O velho Jolyon, arrancado à sua cisma - cisma que o fazia rever um longínquo passado-, atirou um olhar severo à irmã e saiu. James ficou só junto do leito; certificou-se com uim olhar furtivo de que ninguém o via e, curvando o longo corpo, depôs um beijo sobre a fronte da morta; depois, por sua vez, deixou rapidamente o quarto. Encontrou Smither no hall e interpelou-a a respeito do funeral; descobrindo que a criada não estava ao corrente de nada, queixou-se amargamente de que, se ele não interferisse, nada se faria direito. Ela deveria mandar chamar Mr. Soames, porque ele cuidaria de tudo melhor do que ninguém. O patrão estava transtornado de mais. Decerto precisaria de que o cuidassem; quanto às patroas, não havia nada a fazer. Não tinham cabeça: não era de admirar que caíssem doentes também. Aconselhava que chamassem um médico: seria melhor providenciar a tempo. Não sabia ao certo se sua irmã Ann teria consultado o melhor médico; se houvesse procurado o doutor Blank, ainda estaria viva. Smither poderia mandar um recado a Park Lane todas as vezes que precisasse de um conselho. E, naturalmente, poderiam usar o seu carro para o enterro. Seria que ela não tinha à mão um biscoito e um copo de clarete? Ele não almoçara.

Os dias que precederam o funeral passaram tranquilamente. Já há muito tempo se sabia que a tia Ann deixava a Timothy a sua pequena fortuna; não havia pois motivo para nenhuma agitação. Soames, executor testamentário, encarregou-se de tudo, e em tempo oportuno enviou este convite a todos os homens da família:

 

     A...

Solicita-se a sua presença para o funeral de Miss Ann Forsyte, que se realizará no cemitério de Highgate, no dia primeiro de Outubro, ao meio-dia.

As carruagens encontrar-se-ão em The Bower, Bayswater Road, às 10 horas 45. Por obséquio, pede-se que não tragam flores.

 

A manhã da cerimónia apareceu muito fria sob o céu de Londres, cinzento e alto; às dez horas e meia chegou diante da porta o primeiro carro, o de James. James estava dentro, em companhia do genro, Dartie, um homem baixo, de peito quadrado, apertado na sobrecasaca, o rosto amarelo e gordo ornado de um bigode escuro de pontas levantadas e desses incorrigíveis começos de suíças que se notam sobretudo nos especuladores, e que, desafiando os esforços da navalha, parecem ser o sinal de algum traço inveterado do carácter.

Soames, na sua qualidade de executor testamentário, recebeu os convidados, porque Timothy ainda estava de cama; só se levantaria depois do enterro; a tia Juley e a tia Hester também não desceriam antes que tudo estivesse terminado; deu-se a entender que haveria um almoço para todos os convidados que quisessem voltar depois da cerimónia.

O primeiro a chegar, depois de James, foi Roger, que ainda claudicava, devido ao seu ataque de gota. Cercavam-no os três filhos: Roger filho, Eustace e Thomas. George, o quarto filho, chegou momentos depois, num fiacre; parou um instante no hall para perguntar a Soames como se ia saindo do seu novo ofício de empresário de pompas fúnebres. Os dois primos detestavam-se.

Chegaram depois os dois Hayman, Gil e Jess, absolutamente mudos e cuidadosamente vestidos, com vincos especiais nas calças de cerimónia. Após eles, entrou sozinho o velho Jolyon. Depois Nicholas, com as cores da saúde no rosto, esforçando-se por dissimular a petulância de todos os seus movimentos. Dois filhos o acompanhavam, mansos e átonos. Swithin Forsyte e Bosinney chegaram ao mesmo tempo e inclinaram-se diante da porta, cada um convidando o outro a entrar primeiro. No hall, renovaram as cerimónias, e Swithin, levantando a gravata que o esforço desarranjara, subiu lentamente as escadas. Vieram ainda dois Hayman e dois filhos casados de Nicholas, acompanhados de Tweetyman, Spender e Warry, maridos de senhoras Forsyte e Hayman. O grupo estava então completo: vinte e cinco pessoas ao todo; não faltava nem um homem da família, a não ser Timothy e Jolyon filho. Entraram todos no salão vermelho e verde, cuja pintura fazia uma moldura brilhante aos seus trajos desabituais, e cada um procurou nervosamente encontrar uma cadeira, desejoso de esconder a negrura enfática das calças. Aquele negrume de calças e de luvas parecia incomodá-los como uma espécie de inconveniência, um excesso de manifestação; muitos lançavam um olhar de censura e de secreta inveja ao pirata, que não calçava luvas e usava calças cinzentas. Elevou-se um zumbido de vozes em tom baixo; ninguém falava da defunta, mas cada um pedia notícias do outro, espécie de rito pelo qual se mostravam sensibilizados pelo acontecimento que vinham celebrar. Depois James disse:

- Está bem, creio que chegou a hora.

Desceram a escada e, dois a dois, seguindo a ordem exacta de precedência que lhes haviam indicado, subiram para as carruagens.

O carro onde ia o féretro pôs-se em marcha e os outros carros seguiram-no lentamente. No primeiro estavam o velho Jolyon e Nicholas; no segundo os gémeos, Swithin e James; no terceiro Roger e Roger filho; Soames, Nicholas filho, George e Bosinney seguiam no quarto.

Cada um dos outros carros de luto (havia oito ao todo) continham ainda três ou quatro membros da família; após eles vinha o coupé do médico; depois, a distância conveniente, os fiacres ocupados por diversos empregados e criados da família. E, no fim de tudo, um carro vazio, que elevava a treze o número total de veículos do enterro.

Enquanto acompanhou Bayswater Road, o cortejo fúnebre caminhou a passo; nas ruas menos importantes, porém, marchou a trote, e conservou esse andamento, salvo quando atravessavam alguma artéria elegante, até à grade do cemitério.

No primeiro carro, o velho Jolyon e Nicholas falavam dos seus respectivos testamentos.

No segundo, os gémeos, depois de uma única tentativa de conversa, tinham caído em profundo silêncio. Eram os dois um pouco surdos, de forma que, para ambos, tornava-se muito penoso o esforço de se fazerem entender reciprocamente. Uma única vez James rompeu o silêncio.

- Vou precisar de arranjar um jazigo em algum lugar. Que foi que você arranjou para si, Swithin?

E Swithin, fixando-o com um olhar assustado, respondeu:

- Não me fale nessas coisas!

No terceiro carro, uma conversa desarticulada enchia os momentos em que os rapazes não olhavam pela janela para ver se o enterro andava. George observava que, afinal, já era tempo de a pobre senhora ir-se embora. Para ele nada mais havia de bom depois de passados os setenta anos. O jovem Nicholas, plácido, lembrou que essa regra não parecia aplicar-se bem aos Forsyte. George anunciou então que pretendia suicidar-se quando chegasse aos sessenta anos. Nicholas filho, sorrindo e cofiando a sua barbicha, pensava que o pai dele não apreciaria essa teoria: ganhara bastante dinheiro depois dos sessenta anos.

- Pois então, setenta anos é o limite extremo, é o tempo devido - continuava George - de se ir para o outro mundo e transmitir o dinheiro aos herdeiros.

Soames, até então silencioso, meteu-se na conversa; não esquecera a observação a propósito das «pompas fúnebres», e, erguendo quase imperceptivelmente as pálpebras, observou que só podiam falar assim as pessoas que não ganham dinheiro. Quanto a ele, tinha a intenção de durar o máximo que lhe fosse possível. Era uma indirecta a George, cuja pobreza era notória.

Bosinney murmurou distraidamente: «Muito bem. muito bem.» George bocejou e a conversa estacou.

No cemitério, o caixão foi levado a uma capela onde, a dois e dois, os membros da família foram entrando; e aquela guarda de homens, ligados todos à morta pelos laços do parentesco, constituía um espectáculo impressionante e singular na imensa cidade de Londres, com a sua assustadora variedade de vidas, as suas inumeráveis vocações, os seus prazeres e os seus deveres, o seu áspero e terrível apelo ao individualismo.

A família reunira-se ali para triunfar contra isso, para manifestar a sua tenaz unidade, para ilustrar gloriosamente a lei da propriedade, graças à qual crescera e prosperara, como uma árvore, enchendo-se de seiva no tronco e nos ramos, e atingindo, no tempo devido, o seu máximo desenvolvimento. O espírito da velha que ali jazia morta convocara-os para aquela demonstração. Seria o seu último apelo à unidade que fora a de todos, como era a sua última vitória ter morrido enquanto a árvore da vida estava inteira.

Foi-lhe poupado assistir ao impulso dos ramos jovens, quebrando o equilíbrio do conjunto. E ela não poderia ler nos corações dos que lhe formavam o último cortejo. A mesma lei que a dominara e que transformara a grande moça esbelta numa vigorosa mulher madura; que transformara depois essa mulher madura numa anciã angulosa, débil, mostrando quase um rosto de feiticeira, cuja individualidade se ia aguçando à medida que recebia menos o contacto do mundo, essa mesma lei trabalharia, trabalhava desde já no seio da família que Ann velara como uma mãe. Ann vira-a jovem e em crescimento; vira-a poderosa e completa; os seus velhos olhos haviam-se fechado antes de ver o resto. Teria tentado - e quem sabe se o conseguiria? - com os seus cansados dedos, os seus beijos trémulos, mantê-la mais algum tempo na juventude e no vigor. Mas, infelizmente, nem a própria tia Ann poderia lutar contra a Natureza.

«O orgulho precede a queda!» Obedecendo a esse princípio, no qual a Natureza pôs a sua maior ironia, a família Forsyte reunira-se para uma orgulhosa e derradeira parada, antes de cair. à direita e à esquerda as caras de todos, formados em linha recta, voltavam-se na maioria para a terra, guardiãs impassíveis dos seus pensamentos. Mas, aqui e além, um rosto erguido, com uma ruga gravada entre as sobrancelhas, parecia contemplar na parede da capela alguma visão esmagadora ou escutar algum som terrífico. E os responsos murmurados baixinho - por vozes através das quais se elevava, numa tonalidade idêntica, o inatingível timbre da família - ressoavam estranhamente, como pronunciados à pressa por uma única boca.

Quando a cerimónia terminou, o cortejo formou-se novamente

para escoltar o corpo até ao sepulcro. Junto da cova aberta, homens vestidos de preto esperavam.

Naquele campo sagrado, naquela colina onde milhares de membros das upper-middle classes inglesas dormem o derradeiro sono, os olhos dos Forsyte percorriam as filas de túmulos. Através deles, Londres estendia-se até ao horizonte sem sol e parecia-lhes estar a chorar a perda da filha, chorando com aquela família a morta que lhe servira de mãe e guardiã. Mais longe, aos pés deles, cem mil telhados confundidos numa espécie de massa acinzentada, onde tudo falava de riqueza e de propriedades, cercavam-nos como um povo de luto, diante do túmulo daquela morta. a mais velha de todos os Forsyte.

Algumas palavras, uma pouca de terra, um impulso no caixão para a cova: a tia Ann ingressara no repouso eterno. Junto à sepultura, testemunhas desse ingresso, estavam de pé os cinco irmãos, de cabeça baixa: queriam cuidar de que Ann ficasse bem instalada lá onde estava agora. Era justo que a sua pequena fortuna ficasse para os vivos; mas quanto ao resto, tudo o que se pudesse fazer seria feito.

Depois, cada um de per si, voltando-se e enfiando o chapéu, foi inspeccionar a nova inscrição aposta sobre o mármore do jazigo da família:

 

       À MEMÓRIA DE ANN FORSYTE

Filha destes mesmos Jolyon e Ann Forsyte aqui enterrados. Deixou esta vida aos vinte e sete dias do mês de Setembro do ano mil oitocentos e oitenta e seis, com a idade de oitenta e sete anos e quatro dias.

 

Talvez, em breve, algum outro de entre eles também fosse precisar de uma inscrição. Pensamento estranho e intolerável, porque eles, de certo modo, haviam suposto que os Forsyte não poderiam morrer. Todos, do primeiro ao último, estavam ansiosos por fugir daquela tristeza, daquela cerimónia que recordava coisas cuja evocação lhes era insuportável; estavam ansiosos por ir embora depressa, regressar aos negócios e esquecer.

Fazia frio, também; o vento, como uma força lenta de decomposição, varrendo a colina cheia de inumeráveis sepulturas, feria-os com o seu hálito arrepiante; começaram a dividir-se em pequenos grupos e a encher o mais depressa possível os carros que os esperavam.

Swithin declarou que voltava para almoçar em casa de Timothy e ofereceu lugar no coupé para quem o quisesse acompanhar. Mas subir com Swithin naquele coupé tão pequeno parecia um duvidoso privilégio, pelo que ninguém aceitou e ele partiu sozinho.

James e Roger seguiram-no imediatamente; também iriam almoçar com Timothy. Os outros dispersaram-se pouco a pouco. o velho Jolyon levou três sobrinhos que lhe encheram o carro: tinha necessidade daqueles rostos jovens em torno de si. Soames, que deveria regularizar alguns pormenores na agência do cemitério, afastou-se em companhia de Bosinney. Tinha de conversar com o moço. Depois de uma demora na agência, os dois homens caminharam juntos até Hampstead; almoçaram na Spaniard's Inn e gastaram muito tempo no exame de coisas relativas à construção da casa; depois apanharam um carro eléctrico e voltaram juntos até Marble Arch, donde Bosinney se dirigiu para Stanhope Gate, a fim de visitar June.

Soames sentia-se de excelente humor ao chegar a casa. Ao jantar, confiou a Irene que tivera uma boa conversa com Bosinney, que na verdade parecia um rapaz inteligente; ambos haviam dado um óptimo passeio, que lhe fizera bem ao fígado - ele há muito tempo precisava de exercício - e que, enfim, fora um dia excelente. Se não fora o luto pela pobre tia Ann, levá-la-ia ao teatro; e, já que isso não seria possível, deveriam tirar o melhor partido do serão em casa.

- O Pirata perguntou por você mais de uma vez - disse ele subitamente. E, movido por algum inexplicável desejo de afirmar os seus direitos de proprietário, ergueu-se da cadeira e depôs um beijo no ombro da mulher.

 

PROGRESSO DA CONSTRUÇÃO.

O Inverno era suave. Os negócios haviam diminuído, e, de acordo com o que Soames pensara antes de se resolver, a época estava excelente para os trabalhos da construção. E todas as paredes externas da casa de Robin Hill ficaram prontas antes de Maio.

Agora que já lhe podiam mostrar alguma coisa em troca do seu dinheiro, Soames ia visitar a construção uma, duas e mesmo três vezes por semana; durante horas inteiras vasculhava pela caliça, cuidando sempre em não sujar a roupa; circulava silenciosamente através da alvenaria das portas inacabadas ou rondava em torno das colunas do pátio central. E ficava junto delas, em pé, imóvel, durante vários minutos seguidos, como para perscrutar a verdadeira qualidade da sua substância.

A 30 de Abril marcara uma entrevista com Bosinney, para examinarem as contas; e, cinco minutos antes da hora marcada, entrou na tenda que o arquitecto fizera erguer sob o velho carvalho.

As contas já estavam prontas sobre uma mesa dobradiça: depois de um rápido cumprimento, Soames sentou-se para as estudar. Passou algum tempo antes de levantar a cabeça.

- Não entendo isso - disse afinal. - Quase setecentas libras a mais! -Lançou um olhar ao rosto de Bosinney e continuou

rapidamente: - Se você não aguentar a mão com esses empreiteiros, eles embrulham-no. É uma gente que mete a unha em tudo, se não estamos de olhos abertos. Desconte-lhes dez por cento sobre o total: o aumento não será nem de cem libras. Bosinney abanou a cabeça:

- Rebaixei tudo o que era possível até ao último vintém. Soames empurrou a mesa com um movimento de cólera que

fez voar as folhas das contas.

- Então, o que lhe posso dizer é que você fez uma boa embrulhada! - exclamou ele.

- Eu disse-lhe vinte vezes - replicou violentamente Bosinney - que o primeiro orçamento seria ultrapassado. E mostrei-lhe muito bem as razões disso.

- Eu sei, eu sei - rosnou Soames -, e eu não iria regatear uma nota de dez libras aqui ou ali. Mas como iria adivinhar que os seus extras atingiriam setecentas libras?

As qualidades dos dois homens haviam preparado aquela grave discrepância. De um lado estava a paixão do arquitecto pela sua ideia, por um projecto que era criação sua, na qual tinha fé, e que por isso o impedia de aceitar os obstáculos ou resolver-se a um expediente. Do outro lado, a paixão não menos profunda e integral de Soames pelo melhor objecto representado por um certo preço tornava-lhe difícil acreditar que não se pudesse comprar por doze shillings uma coisa que valia treze.

- Lamento ter-me encarregado da sua casa - disse subitamente Bosinney. - Você veio trazer-me os maiores aborrecimentos. Quer que a gente lhe dê, pelo seu dinheiro, duas vezes o que ele vale; e agora que tem uma casa que é talvez a maior do condado, não quer fazer face às despesas. Se quer ficar no que estamos, assumirei a responsabilidade do que ultrapassa o orçamento. Mas dou-lhe a minha palavra de que não lhe faço mais nada.

Soames recuperou a calma. Sabendo que Bosinney não tinha capital, tal proposta pareceu-lhe louca. Viu também que precisaria esperar indefinidamente para se instalar naquela casa que concentrava os seus desejos, que iria perder o seu arquitecto justamente no momento crítico em que a sua colaboração pessoal se tornava da máxima importância. Devia também pensar em Irene.

Andava esquisita de alguns tempos para cá. E Soames acreditava que fora a simpatia dela por Bosinney que lhe fizera aceitar a ideia da casa. Não seria pois aquele o momento de entrar em conflito com a mulher.

- Não precisa de se exaltar - disse ele. - Se eu me conformo em pagar, que lhe resta, dizer? Mas, na minha opinião, se você me diz que uma coisa vai custar tanto, eu gosto... bem, de facto... eu gosto de saber a quantas estou.

- Ouça - disse Bosinney, e Soames ficou ao mesmo tempo surpreso e contrariado com a perspicácia do olhar do outro-, escute, eu prestei-lhe os meus serviços a preço muito baixo. Com o trabalho que dediquei a esta casa e o tempo que gastei, você só teria tido os serviços de Littlemaster ou de qualquer outra nulidade por quatro vezes mais. O que você queria, na verdade, era um homem de primeira classe por um salário de quarta classe, e foi exactamente o que conseguiu!

Soames viu que o arquitecto falava com convicção, e, por mais irritado que estivesse, impressionou-se com as possíveis consequências de uma briga entre os dois. Viu a casa inacabada, a mulher revoltada, e ele, Soames, servindo de risota a todos.

- Verifiquemos as contas - disse num tom aborrecido - e vejamos por onde saiu o dinheiro.

- Muito bem - condescendeu Bosinney -, mas andemos depressa, por favor. Devo voltar cedo para levar June ao teatro.

Soames lançou-lhe um olhar furtivo e disse:

- Vai buscá-la lá a casa, creio eu? June vivia em casa deles.

Chovera na noite da véspera, uma chuva de Primavera, e subia da terra um cheiro de seiva e de ervas bravas. A tépida e suave brisa balançava as folhas e os rebentos dourados do velho carvalho e os melros cantavam à solta, à luz do sol.

Era um daqueles dias de Primavera cujo sopro enche o coração da gente de um langor inefável, de uma dolorosa ternura, desse desejo que faz que um homem fique imóvel a olhar a relva ou as folhas e abra os braços para envolver... não sabe o quê.

Exalava-se da terra uma tepidez evanescente, através das vestes geladas com que o Inverno a envolvera; aquilo era a sua carícia de oferta para atrair os homens, convidando-os a deitarem-se entre os seus braços, a rolarem-lhe os corpos sobre o seu, a encostarem-lhe os lábios ao peito.

Fora num dia semelhante que Soames obtivera de Irene o «sim» tantas vezes implorado. Sentado num tronco de árvore derrubado, ele prometera, pela vigésima vez, que, se o casamento de ambos não fosse feliz, ela seria tão livre como se nunca houvesse casado.

- Você jura? - perguntou a moça.

E no outro dia ela lembrara-lhe esse juramento. Soames respondera:

- Que tolice! Como pude eu jurar tal coisa?

Uma desastrada fatalidade recordava-lhe agora a lembrança renegada. Que loucos juramentos os homens são capazes de fazer por amor das mulheres! Para a obter, não haveria um dia em que ele não houvesse feito tal promessa; e renová-la-ia hoje, se a conseguisse comover com isso; porém ninguém conseguia comovê-la: Irene tinha o coração gelado.

O sabor doce e fresco do vento da Primavera trazia-lhe uma multidão de lembranças, as lembranças do tempo em que a namorava.

Na Primavera de 1881, estava de visita a casa do seu cliente e antigo camarada de classe George Liversedge, que, tendo a intenção de desenvolver as suas plantações de pinheiros nas cercanias de Bournemouth, o encarregara de formar a sociedade indispensável à organização do projecto. Mrs. Liversedge, que tinha a situação da polidez útil, oferecera um chá musical em sua honra. No fim da festa, que, em vista de não ser músico, ele aturara como uma maçada, Soames notara o rosto de uma moça de luto, que se mantinha isolada. Sob a fazenda leve e franzida do vestido, desenhavam-se as linhas longas do seu corpo; apertava diante de si as mãos enluvadas de negro, entreabria um pouco os lábios, e os seus grandes olhos escuros vagueavam de rosto em rosto. Os cabelos enrolados baixo brilhavam-lhe sobre a nuca, como uma trança de metal refulgente. E, enquanto a olhava, Soames sentiu que o possuía essa impressão que a maioria dos homens conhece num momento dado da vida: uma singular satisfação dos sentidos, uma espécie de certeza que constitui o que os romancistas e as senhoras, de idade chamam «amor à primeira vista». E, continuando a observá-la dissimuladamente, ele procurou a dona da casa e esperou resoluto que a música parasse.

- Quem é aquela moça de cabelos louros e olhos castanhos? - perguntou.

- Aquela? Oh, é Irene Heron. Perdeu este ano o pai, o professor Heron. Vive com a madrasta. É uma moça muito amável e linda, mas não tem um vintém!

- Quer fazer o favor de me apresentar? - pediu Soames.

Não encontrou muito que lhe dizer, e ela quase não respondeu. Mas saiu dali decidido a voltar a vê-la. E conseguiu-o por acaso, encontrando-a a passear em companhia da madrasta, que gostava de andar assim, entre o meio-dia e a uma hora, antes do almoço. Soames apressou-se a travar conhecimento com essa senhora, e não demorou em descobrir nela a aliada de que precisava. Com o seu senso prático, que sabia ver imediatamente todos os pormenores materiais de uma vida de família, ele compreendeu que Irene custava à madrasta mais do que as cinquenta libras que lhe trazia anualmente; e compreendeu além disso que Mrs. Heron, ainda na flor dos anos, tinha desejos de casar de novo. A beleza estranha e mal desabrochada da enteada constituía entretanto um obstáculo a esse desejo. E Soames, com a sua tenacidade furtiva, combinou os planos.

Deixou Bournemouth sem descobrir nada do que se passava nele, mas um mês depois tornou a ir lá. Dessa vez falou, mas apenas à madrasta. Estava decidido, declarou ele então, e disposto a esperar o tempo que fosse preciso. Foi-lhe preciso esperar muito tempo, assistindo ao florescimento de Irene, vendo como as linhas do seu corpo jovem se tornavam mais suaves, como um sangue mais forte lhe escurecia os olhos sombrios, pondo-lhe na palidez da pele uma luz mais quente. Em cada visita que fazia, renovava o pedido, e, finda a visita, voltava a Londres com uma nova recusa, de coração magoado, mas silencioso e imperturbável como sempre. Procurou atingir as causas secretas da resistência dela: e apenas uma vez pôde perceber qualquer coisa. Era num desses bailes de caridade, onde as paixões de uma colónia de banhistas se pode expandir. Soames estava sentado junto a Irene, numa sacada, com os sentidos comovidos ainda pela valsa que acabavam de dançar. Ela olhara-o sobre o leque, que agitava lentamente; ele perdeu a cabeça. Segurando aquele pulso em movimento, apertou contra os lábios o braço nu da moça. E ela estremecera... E até hoje, ainda, Soames não esquecera aquele estremecimento nem o olhar apaixonadamente hostil que ela lhe lançara.

Um ano depois ela cedeu. Porquê? Soames nunca o pudera descobrir, e Mrs. Heron, que era uma diplomata muito hábil, nunca lhe deu a menor explicação. Depois do casamento, ele perguntou um dia a Irene: «Porque me recusou tantas vezes?» A moça respondeu apenas por um silêncio estranho. Ela fora um enigma no dia do primeiro encontro, e enigma continuava a ser...

Bosinney esperava-a à porta, e no seu belo rosto de traços rudes havia uma expressão singular de sonho e de felicidade, como se também visse no céu de Primavera uma esperança de felicidade, como se aspirasse no ar tépido as alegrias que estavam por vir. Soames olhou-o. Que teria acontecido àquele rapaz para que mostrasse um ar tão feliz? Que esperava ele com aquele sorriso nos olhos e nos lábios? Soames não podia ver o que Bosinney esperava enquanto se mantinha ali, em pé, sorvendo a brisa, onde passavam perfumes de flores. E, mais uma vez, sentiu-se derrotado diante daquele homem que instintivamente desprezava. Apressou-se a voltar para casa.

- A cor que se impõe para essas telhas - disse Bosinney - é o rubi, com um tom cinzento no interior, para dar a impressão de transparência. Gostaria de ouvir a opinião de Irene. Pretendo encomendar umas cortinas de couro vermelho para a porta deste pátio; e no salão, com um tom de marfim claro, sobre fundo de papel, vocês conseguirão um efeito de cambiante... Nessa decoração toda o que é preciso obter é o que eu chamo encanto.

- Você refere-se ao encanto de Irene? - perguntou Soames. Bosinney desviou a questão:

- É preciso uma touceira de íris no meio do pátio. Soames sorriu com um ar superior.

- Passarei pela casa Beech, um dia destes, e verei o que é preciso.

Não encontraram mais quase nada que dizer, mas, a caminho da estação, Soames perguntou:

- Segundo imagino, você considera Irene um temperamento de artista?

- Sim.

A abrupta resposta era tão mortificante quanto o seria um conselho mais ou menos como este: «Se está com vontade de discutir, procure outro.»

E a lenta cólera que Soames sentira durante toda a tarde acendeu-se nele mais viva.

Não disseram mais uma palavra até chegarem à estação; então Soames perguntou:

- Quando pensa acabar?

- Lá para o fim de Junho, se quer realmente que eu me encarregue da decoração.

Soames fez um gesto afirmativo:

- Mas compreende bem que esta casa me tem custado muito mais do que eu o imaginara antes. E posso dizer-lhe também que teria mandado tudo à fava se não fosse o meu hábito de não me afastar de uma decisão tomada.

Bosinney não respondeu nada. E Soames lançou-lhe de viés um olhar de resoluta antipatia: a despeito do seu ar superior, altivo, e da sua distinção lacónica, Soames, com os lábios cerrados e o queixo quadrado, tinha qualquer coisa de um bulldog.

Quando, às sete horas dessa noite, June chegou à casa n.o 62 de Montpellier Square, a criada de quarto, Bilson, preveniu-a de que Mr. Bosinney estava no salão. A senhora estava a vestir-se e estaria em baixo dentro de alguns minutos.

- Vou preveni-la de que Miss June chegou. June fê-la estacar:

- Está bem, Bilson, eu vou para o salão. Você não precisa apressar Mrs. Soames.

A rapariga tirou a capa, e Bilson, com um olhar compreensivo, não lhe abriu nem mesmo a porta do salão, e subiu a escada a correr.

June parou um instante para se olhar num espelho de prata antiga que pendia por sobre um cofre de carvalho: jovem silhueta imperiosa e esbelta, com um rostinho resoluto, num vestido branco cujo decote redondo deixava ver a base de um pescoço muito frágil para sustentar a massa de cabelos, o tosão de ouro avermelhado que lhe coroava a cabeça. Abriu suavemente a porta da sala para apanhar o noivo de surpresa. A sala estava cheia de um doce e quente perfume de azáleas em flor. Ela aspirou esse perfume longamente, e ouviu a voz de Bosinney, não no salão, mas na estufa vizinha, a dizer:

- Ah, eu queria dizer-lhe tantas coisas, mas agora já não teremos tempo!

A voz de Irene respondeu:

- E porque não ao jantar?

- Como é que poderemos falar...

O primeiro pensamento de June foi retirar-se, mas, em vez disso, dirigiu-se para a vidraça que dava para o jardim de Inverno. Era de lá que vinha o cheiro de azáleas, e em pé, de costas, com os rostos mergulhados nas flores de ouro róseo, estavam seu noivo e Irene.

Em silêncio, mas não envergonhada, com as faces em fogo, os olhos irritados, a moça ficou a olhá-los.

- Venha domingo, sozinha, e veremos a casa juntos.

June viu Irene erguer a cabeça e olhá-lo através da cortina de flores. Não era um olhar provocante, mas mil vezes pior para a moça que espiava: era o olhar de uma mulher que tem medo de falar de mais embora só com os olhos.

- Prometi dar um passeio de carro com o tio Swithin.

- O gigante? Faça-o levá-la lá. São apenas dez milhas, justamente o que os cavalos dele precisam!

- Pobre tio Swithin!

Uma golfada de perfume chegou até ao rosto de June; ela sentiu-se mal, embriagada.

- Vá, por favor, vá!

- Mas porquê?

- Quero vê-la lá. Creio que você gostará de me ajudar.

A moça sentiu a resposta tremer docemente, no meio das flores:

- Sim, eu gostaria...

E June atravessou a porta:

- Abafa-se aqui - disse ela. - Já não posso suportar este cheiro!

O seu olhar, directo e irritado, parou sobre o rosto dos dois outros:

- Vocês estavam a falar da casa? Eu ainda não a vi, será que poderemos ir todos lá no domingo?

A cor fugira do rosto de Irene.

- Prometi sair de carro com o tio Swithin-disse ela.

- Tio Swithin! Que importância tem? Mande-o passear.

- Não tenho costume de mandar ninguém passear!

Houve um rumor de passos, e June viu Soames em pé, por trás de si.

- Muito bem, se todos vocês estão prontos - disse Irene, cujo olhar ia de um para outro com um sorriso estranho - o jantar também o está!

 

A TENTATIVA DE JUNE.

O jantar iniciou-se em silêncio; as duas mulheres estavam sentadas uma em face da outra e os homens em posição idêntica.

Em silêncio acabaram a sopa, excelente, embora um pouco espessa; depois trouxeram o peixe, que foi servido em silêncio. Bosinney arriscou:

- Hoje é o primeiro dia de Primavera. Irene repetiu docemente:

- Sim, o primeiro dia de Primavera.

- Primavera! - disse June. - Ainda não se sente um sopro de ar.

Ninguém respondeu. Levaram o peixe, um fresco e delicado linguado de Dover. E Bilson trouxe o champanhe numa garrafa de gargalo enrolado num guardanapo branco.

Soames disse:

- Vocês irão achá-lo seco.

Serviram as costeletas; em cada uma havia um pequeno laço róseo. June não se serviu, e o silêncio voltou. Soames falou:

- Você deveria comer uma costeleta, June; é só o que temos para jantar.

Porém June insistiu na recusa, e levaram as costeletas. Então Irene perguntou:

- Phil, você ouviu o meu melro cantar? Bosinney respondeu:

- Creio que sim; ele assobia uma ária de caça. Ouvi-o da praça, quando ia a chegar aqui.

- É um encanto!

- O senhor quer salada?

Levaram o frango à jardineira. Porém Soames falava:

- Os espargos não estão grande coisa. Bosinney, quer un cálice de sherry com a sobremesa? June. você não bebe nada?

June disse:

- Você sabe que eu nunca bebo vinho: tenho horror. Apareceu numa salva de prata uma torta de maçã. E Irene

disse, sorrindo:

- As azáleas estão maravilhosas, este ano! Bosinney respondeu com um murmúrio:

- Maravilhosas! O cheiro é extraordinário! June observou:

- Como é que você pode gostar desse cheiro? Açúcar, Bilson. por favor.

Trouxeram-lhe açúcar, e Soames comentou:

- Esta torta está óptima!

Levaram a torta. Seguiu-se um longo silêncio. Irene fez um sinal com o dedo e disse:

- Tire a azálea. Bilson. O cheiro está a incomodar Miss June.

- Não, deixe! - disse June.

Foram trazidos em pratinhos azeitonas da França e caviar da Rússia. E Soames disse:

- Porque não produzimos azeitonas grandes?

Porém ninguém respondeu. Levaram as azeitonas. Erguendo o copo, June pediu:

- Água, por favor.

Deram-lhe água. Chegou uma salva de prata com ameixas da Alemanha. Houve um longo silêncio. Todos comeram as ameixas numa perfeita harmonia.

Bosinney contou os caroços:

- Este ano, no ano que vem, daqui a um tempo... E Irene acabou docemente:

- ... nunca. Houve um pôr-de-sol magnífico! O horizonte está ainda vermelho, e tão bonito!

Ele respondeu:

- Sim, é estranho, porque a linha do céu já está escura.

Os olhos dos dois encontraram-se. E June exclamou com desprezo:

- Pôr-de-sol em Londres!

Ofereceram cigarros egípcios numa caixa de prata. Soames tirou um e perguntou:

- A que horas começa a peça a que vocês vão? Ninguém respondeu, e trouxeram café turco, em xícaras esmaltadas.

Irene, sorrindo tranquilamente, disse:

- Se ao menos...

- Se ao menos o quê? - interrompeu June.

- Se ao menos a gente pudesse parar o ano e a Primavera não acabasse mais!

Trouxeram brandy, pálido e velho. Soames disse:

- Bosinney, você devia beber um pouco de brandy. Bosinney tomou um cálice, depois todos se ergueram.

- Quer um carro? - perguntou Soames. June respondeu:

- Não. A minha capa, por favor, Bilson. Trouxeram-lhe a capa. Irene, da janela, murmurou:

- Que noite linda! As estrelas já apareceram! Soames acrescentou:

- Bem, espero que vocês dois se divirtam. Da porta, June respondeu:

- Obrigada. Venha, Phil. Bosinney gritou:

- Vou já!

Soames sorriu zombeteiro e disse:

- Desejo-lhe sorte!

Da porta, Irene via-os partir. Bosinney ainda disse:

- Boa noite!

- Boa noite - respondeu Irene docemente.

June fez que o noivo a levasse no segundo andar de um ónibus, alegando que sentia necessidade de ar, e ficou silenciosa, com o rosto voltado para a brisa da noite. O cocheiro virou-se uma ou duas vezes, com a intenção de arriscar uma observação, mas desistiu. Aqueles dois não eram um par animado. A Primavera também lhe entrara no sangue; ele sentia necessidade de lhe deixar evolar-se o vapor e batia com a língua, riscava o ar com o chicote e fazia que os cavalos caracolassem; e os próprios cavalos, coitados, também sentiam o cheiro da Primavera, e durante uma rápida meia hora martelaram a rua com os cascos alegres.

A cidade toda trepidava de vida; os ramos, erectos, com a sua cobertura de folhas jovens, esperavam algum dom que a brisa lhes traria; os postes de iluminação, que acabavam de acender, brilhavam cada vez mais forte na noite que caía; os rostos da multidão mostravam-se pálidos àquela luz crua, enquanto lá no alto as grandes nuvens brancas deslizavam suaves e rápidas sobre o céu violeta.

Os homens de casaca haviam tirado os sobretudos e subiam vivamente a escadaria dos clubes: os operários passeavam e as mulheres - aquelas que passeiam sós, nas horas nocturnas-, dirigindo-se numa onda interminável para o oeste, caminhavam num andar arrastado e balanceante, que traía a espera, sonhando com bom vinho, uma boa ceia, ou, durante um minuto insólito, com beijos por amor.

Aqueles vultos inumeráveis, tomando cada um o seu caminho sob as luzes e sob o céu, tinham todos recebido a inquieta bênção da Primavera em fermentação: e todos aqueles seres, exactamente como os elegantes dos clubes com os seus sobretudos abertos, tinham abandonado algo da sua casta, dos seus dogmas, dos seus costumes, e pelo ângulo em que haviam colocado os chapéus, o ritmo dos passos, os silêncios ou os risos, confessavam as suas humanas semelhanças sob o céu apaixonado.

June e Bosinney atravessaram em silêncio a porta do teatro e procuraram os seus lugares, num camarote superior. A peça ia começar e a sala meio obscura, com as filas de cabeças humanas olhando para o mesmo lado. parecia um vasto canteiro de flores com as corolas voltadas para o Sol.

June nunca entrara num camarote superior.

Desde a idade de quinze anos acompanhava habitualmente o avô às poltronas de orquestra. E não eram quaisquer das poltronas de orquestra que lhes serviam, mas poltronas escolhidas, as melhores da plateia, mais ou menos no centro da terceira fila. Com muitos dias de antecedência eram encomendadas pelo velho Jolyon no escritório de Grogan e Boynos, à sua volta da City. Os bilhetes ficavam guardados no bolso do sobretudo do avô, junto da carteira de charutos e das suas velhas luvas de cabrito, e eram depois confiados a June para que os guardasse até ao dia marcado. E Já nas cadeiras da frente, ele, velho e espigado, com a sua austera cabeça branca, ela, ardente e enérgica, sob a coroa de ouro avermelhado, assistiam a todas as peças de todos os géneros; e no caminho de volta, o velho Jolyon dizia a respeito do actor principal: «Oh, é um pobre coitado! Você devia ver o Bobson!»

June esperara aquela noite com uma alegria aguda. Ninguém para os acompanhar. Era uma noitada roubada, de que ninguém suspeitava em Stanhope Gate, onde a imaginavam em casa de Soames. Esperara muito dessa astúcia inventada por amor do noivo; esperara assim dissipar a espessa e fria nuvem e trazer as relações de ambos - tão enigmáticas e torturantes nestes últimos tempos - à simplicidade ensolarada que eles haviam experimentado antes do Inverno. Viera com a intenção de dizer qualquer coisa de preciso; e olhava para o palco com uma ruga entre as sobrancelhas, sem ver nada, as mãos juntas e crispadas sobre os joelhos. Um enxame de suspeitas ciumentas picava-a toda.

Se Bosinney tinha consciência da perturbação em que estava a noiva, não o demonstrava.

O pano caiu. Acabara o primeiro acto.

- Faz um calor horrível aqui - disse a moça. - Gostaria de sair.

Estava muito pálida, e sabia, porque os seus nervos aguçados percebiam tudo, que ele se sentia ao mesmo tempo desajeitado e agitado de remorsos.

Nos fundos do teatro uma sacada descoberta dominava a rua; June apossou-se dela. e ficou apoiada ao rebordo, sem dizer nada. esperando que o noivo começasse. Mas por fim não pôde mais suportar o silêncio.

- Quero dizer-lhe uma coisa, Phil.

- Sim?

O tom defensivo daquela voz fê-la corar, e as palavras subiram-lhe rápidas aos lábios:

- Você não me dá nenhuma oportunidade de ser gentil, já há séculos!

Bosinney mergulhou o olhar na rua; não respondeu. June exclamou, apaixonadamente:

- Você sabe, Phil, que eu queria fazer tudo pelo seu amor. ser tudo para você.

Vinha um zumbido da rua, e, atravessando este zumbido com um «ding» agudo, a sineta anunciou que iam levantar o pano. June não se moveu. Travava-se nela um combate desesperado. Deveria pô-lo à prova? Lançaria um desafio directo àquela influência, àquela atracção que lho roubava? Fazia parte da sua natureza, o desafio. E ela disse:

- Phil, leve-me no domingo para ver a casa!

Com um sorriso que tremia e se lhe quebrava nos lábios, e tentando - com que esforço! - não mostrar ao rapaz que o espiava, ela perscrutou-lhe o rosto: e viu-o vacilar, viu uma ruga preocupada cavar-se-lhe entre os olhos, viu-lhe o sangue afluir à testa. E Phil respondeu:

- Domingo, não, querida; outro dia!

- Porque não domingo? No domingo eu não incomodaria ninguém.

Ele fez um esforço evidente e disse:

- Tenho um compromisso.

- Você vai levar...

Ele ergueu os ombros, com um clarão de cólera nos olhos e replicou:

- Tenho um compromisso que me impedirá de levá-la a ver a casa!

June mordeu o lábio até fazer sangue e voltou ao seu lugar sem dizer uma palavra, mas não pôde impedir que as lágrimas de cólera lhe corressem ao longo da face. Graças a Deus, a sala fora mergulhada na escuridão por uma crise do drama, e ninguém poderia ver o seu desgosto.

Mas, mesmo no mundo dos Forsyte, nunca ninguém deve supor-se a salvo de outros olhares!

Na terceira fila, atrás de June, Euphemia, a filha mais nova de Nicholas, que acompanhava a irmã casada, Mrs. Tweetyman, espreitava.

E contaram em casa de Timothy como haviam visto June e o noivo no teatro.

- Nas poltronas de orquestra?

- Não...

- Nos balcões, então! Parece que isso agora está na moda para a gente moça!

- Não, não era também nos balcões.. Num... De qualquer modo, aquele noivado não vai durar muito. Não é possível imaginar-se uma cara mais catastrófica do que a de June. - E, com lágrimas de prazer nos olhos, contaram que June dera um pontapé no chapéu de um cavalheiro ao voltar para o seu lugar no fim de um entreacto, e descreveram a cara que o cavalheiro fizera. Euphemia tinha um riso célebre, que se desfiava em silêncio e terminava, da maneira mais desapontante, em gritinhos agudos; e quando Mrs. Small, erguendo as duas mãos, repetiu: «Oh, querida! Um pontapé num cha-a-péu!», ela deu tantos gritos que foi preciso acudir-lhe com sais voláteis. E, ao partir, repetiu a Mrs. Tweetyman: - Um pontapé num cha-a-péu! Não, é de morrer!

Para a pobrezinha de June, a noite de que ela esperara tanta felicidade foi a mais infeliz que conhecera. Deus sabe como procurou abafar o orgulho, as suspeitas, o ciúme!

Separou-se de Bosinney à porta de Stanhope Gate, sem deixar de se controlar. O sentimento de que precisava reconquistar o noivo era bastante forte para a sustentar até que o som dos passos que se afastavam a fez compreender toda a extensão da sua miséria.

O silencioso Não Conformista fê-la entrar. June desejaria deslizar directamente para o quarto, mas o velho Jolyon ouvira-a entrar e esperava-a à porta da sala de jantar.

- Venha tomar o seu leite - disse ele. - Está ainda morno. Você está a chegar muito tarde. Onde esteve?

June pusera-se diante do fogo, com um pé no guarda-fogo e um braço sobre a lareira, na mesma atitude tomada pelo avô na noite em que viera da Ópera. Estava muito próxima a explodir para dar importância ao que respondia.

- Jantámos em casa de Soames.

- Hum! O proprietário! A mulher dele estava... e Bosinney?

- Sim.

O olhar do velho estava fixo na neta com uma penetração a que lhe seria difícil furtar-se; porém June não o olhava, e quando voltou o rosto para o avô ele instantaneamente deixou de observar. Vira bastante, vira de mais. Curvou-se para apanhar a xícara de leite deposta sobre a lareira, e, voltando-se, murmurou:

- Você não deveria ficar fora até tão tarde. Não lhe faz bem. Estava agora invisível por trás do seu jornal, cujas páginas

amarrotava nervosamente; mas quando June veio beijá-lo, o avô disse: «Boa noite, minha filhinha», com uma voz tão trémula e tão inesperada que a moça precisou empregar todas as suas forças para sair da sala antes de se entregar àquela crise de soluços que iria durar muito, pela noite adentro.

Quando se fechou a porta, o velho Jolyon deixou cair o jornal e pôs-se a olhar diante de si, longamente, ansiosamente.

«Ah, miserável», pensava o velho. «Eu bem sabia que ela iria sofrer por causa dele.»

E dúvidas inquietas, suspeitas mais ferinas ainda porque não podia fazer nada para combater ou parar a marcha dos acontecimentos, assaltavam-no em massa.

«Seria que o sujeito iria abandoná-la?» E o velho ardia por lhe dizer: «Por favor, cavalheiro? Está com vontade de abandonar a minha netinha?» Seria possível? O velho Jolyon não sabia de nada, ou quase nada, mas, com a sua perspicácia infalível, estava certo de que algo se passava. Suspeitava de que Bosinney ia com excessiva frequência a Montpellier Square.

«O rapaz», pensava o velho, «não é talvez um malandro; não tem má cara, mas é esquisito; não o entendo bem. Dizem que ele trabalha como um negro, mas não vejo o resultado. Não è prático, não tem método. Quando vem aqui, senta-se, triste como um macaco.

Se lhe pergunto qual o vinho que toma, responde: - Qualquer um, obrigado! - Quando lhe ofereço um charuto, fuma-o como se fosse uma porcaria alemã de dois pence. Nunca o vi olhar para June como deveria olhá-la; e entretanto não é atrás do dinheiro dela que anda: Se ela lhe der o menor sinal, ele quebra o compromisso amanhã. Mas não será ela que fará isso. Não, ela não. Agarrar-se-á a ele. É teimosa como o destino; nunca soltará a presa!»

Com um profundo suspiro, o velho Jolyon voltou ao jornal; talvez encontrasse nele alguma consolação.

E lá em cima, no seu quarto, June, sentada junto à janela aberta, respirava o vento primaveril que, depois de passar sobre as folhas novas do parque, vinha refrescar-lhe as faces ardentes e queimar-lhe o coração.

 

PASSEIO COM SWITHIN.

Uma certa canção, que consta de um velho e famoso livro escolar, diz estes dois versos:

How the buttons on his blue frock shone, tra-la-la! How he carolled and he samg, like a bird... (1)

Não se poderia dizer que Swithin gorjeasse como um pássaro, mas estava tão bem-humorado que quase tentava cantarolar quando saiu de Hyde Park Mansions e contemplou os seus cavalos atrelados em frente à porta.

A tarde tinha a suavidade de um dia de Junho. E para completar a semelhança com a personagem da velha cantiga, Swithin vestira uma sobrecasaca azul, e, depois de ter obrigado Adolf a descer três vezes para se certificar de que não havia a menor suspeita de vento leste, desistira de vestir o sobretudo. A sobrecasaca era tão apertada em torno da sua figura imponente que, na verdade, os botões brilhantes da cantiga teriam feito nela um lindo efeito. Majestoso, em pé na calçada, ele enfiou as luvas de pele de cão. Com a imensa cartola que parecia um sino, a sua alta estatura

 

*1. Como brilhavam os botões da sua casaca azul, trá-lá-lá! E como ele gorjeava e cantava como um pássaro...

 

e o seu vasto peito, tinha o ar primitivo de mais para um Forsyte. Os espessos cabelos brancos, que Adolf escovara com um pouco de cosmético, exalavam um perfume de opopanace e de charutos, o cheiro dos famosos charutos de Swithin, que lhe custavam quarenta shillings o cento, e dos quais o velho Jolyon dizia que mesmo de graça não os fumaria e que eram charutos para um estômago de cavalo!

- Adolf!

- Senhor?

- Traga o xale novo!

Aquele rapaz não aprenderia nunca o que é elegante; e entretanto Mrs. Soames - Swithin estava certo - via logo essas coisas.

- Baixe a capota. Vou... conduzir... uma... senhora!

Uma linda mulher gostaria de mostrar o vestido; e ele ia... sim, ia conduzir uma senhora. Era como um retorno aos bons tempos antigos.

Fazia séculos que não levava uma senhora a passear de carro! A última vez, lembrava-se bem, fora Juley; mas a pobre velha ficara mais nervosa do que uma gata, durante todo o caminho, e impacientara-o tanto que, ao deixá-la à porta de casa, ele dissera: «Levem-me os diabos se alguma vez mais eu a levar num passeio!)) E, com efeito, nunca mais a levara. Aquela não!

Dirigindo-se aos cavalos, examinou-lhes os freios - não que ele entendesse de freios; não pagava um ordenado anual de sessenta libras ao cocheiro para lhe fazer o serviço? Não estaria de acordo com os seus princípios. Na verdade, a sua reputação de sportman decorrera do facto de ter sido ele uma vez, num dia de Derby, embrulhado por um grupo de jogadores profissionais. Mas um colega do clube, vendo-o chegar de carro, dirigindo ele próprio os seus cavalos tordilhos (ele sempre tinha cavalos tordilhos; na opinião de muita gente, davam mais elegância, embora custassem o mesmo preço que outros), o colega, pois, apelidara-o de «Forsyte Quatro Cavalos». O apelido fora-lhe transmitido por Nicholas Treffry, o defunto sócio de Jolyon, apaixonado por carros e célebre por ter tido mais acidentes de veículo do que qualquer outro homem vivo do Reino. Swithin, desde então, levara a peito corresponder ao apelido. Sentia-se encantado, embora não houvesse jamais guiado quatro cavalos, ou ao menos sonhasse fazê-lo, mas porque esse título lhe ressoava aos ouvidos como um diploma de elegância. «Forsyte Quatro Cavalos!» Fis uma coisa que não parecia mal.

Trepado no assento, as rédeas na mão, os olhos piscando à luz forte do sol por sobre as suas velhas faces pálidas, Swithin passeou um lento olhar em torno de si. Adolf já subira para o assento de trás; tudo esperava o sinal, e Swithin deu-o. A parelha atirou-se de um salto, e em menos tempo do que seria preciso para o contar, com um estrondo triunfal, chegou à porta da casa de Soames.

Irene saiu logo e subiu para o carro; Swithin descreveu-a mais tarde, em casa de Timothy: «Tão leve... como... bem... como a Taglioni; e sem reclamar nada, nem isto nem aquilo...-' E Swithin insistia sobre esse ponto, encarando Mrs. Septimus Small até torná-la nervosa: «Sem nervosismo tolo!» E descreveu à tia Hester o chapéu de Irene: «Não era uma dessas coisas imensas que vocês usam, que se espalham para todos os lados, colhendo a poeira; era um chapeuzinho...», e ele desenhou um círculo com o dedo, «pequenino, com um véu branco. De um bom gosto perfeito, »

- De que era feito? - perguntou a tia Hester, que manifestava um interesse lânguido mas inesgotável todas as vezes que se tratava de vestuário.

- Feito de quê? - retorquiu Swithin. - Como é que você quer que eu saiba? - E mergulhou num silêncio tão profundo que a tia Hester receou uma síncope. Mas não tentou fazê-lo voltar a si, porque aquilo não estava nos seus hábitos.

«Estimaria bastante que chegasse alguém», pensava ela. «Não ficou a gostar das maneiras dele!»

Mas de súbito Swithin voltou à vida.

- Feito de quê? - rosnou lentamente. - De que queria você que fosse feito?

Ainda não tinham andado quatro milhas, e Swithin sentia já a impressão de que Irene estava a gostar de passear com ele. O seu rosto estava tão meigo sob o véu branco, os olhos escuros brilhavam com tal fulgor na claridade primaveril, e todas as vezes que ele falava, ela erguia-os para o tio, sorrindo.

Na véspera, de manhã, Soames encontrara-a sentada à mesa; acabara de escrever a Swithin, adiando o passeio para outro dia qualquer. «Porquê adiar?», perguntara o marido. Ela tinha liberdade de fazer o que quisesse com a sua própria família; mas com a família dele, não o admitiria!

Irene fixara-o com um olhar profundo, depois rasgara o bilhete, dizendo:

- Muito bem. - E pôs-se a escrever outro bilhete. Um momento depois Soames olhou para o papel, e viu que era destinado a Bosinney.

- Que é que você tem de escrever a ele? - perguntou. Irene, com o mesmo olhar profundo, respondeu tranquilamente:

- Foi uma coisa que ele me pediu para fazer.

- Hum, recados! - disse Soames. - Você nunca mais acaba, se se meteu nesse ofício. - E não disse mais nada.

Swithin arregalou os olhos ante a proposta de irem a Robin Hill; era uma corrida bem grande para os cavalos, e ele jantava sempre às sete e meia, antes que houvesse gente de mais no clube; o novo chefe só cuidava bem dos primeiros jantares. Era um malandro!

No entanto, também tinha vontade de dar uma olhadela à casa. Uma casa é coisa que fala sempre ao coração de qualquer Forsyte, principalmente se ele é um incorporador. E declarou que, afinal de contas, dez milhas não são nada. Quando moço, tivera uma casa em Richmond, durante anos; tinha lá um carro e dois cavalos, que ele próprio guiava entre Richmond e o escritório, diariamente.

Chamavam-lhe então «Forsyte Quatro Cavalos». A sua charrette e os seus cavalos eram conhecidos desde Hyde Park Corner até ao Star and Garter. O duque de Z. gostaria bem de os comprar e dar-lhe-ia duas vezes o preço. Mas Swithin não os vendera. Quando a gente tem uma coisa boa, conserva-a. Um ar de orgulho solene espalhava-se sobre o seu rosto glabro e quadrado; e ele agitava a cabeça entre as pontas do colarinho alto, como um peru que alisa a plumagem.

Ela era realmente uma mulher encantadora! E mais tarde descreveu-lhe o vestido à tia Juley, em termos que a fizeram erguer os braços ao céu.

Ia-lhe bem como uma luva, esticado como a pele de um tambor; era o que lhe agradava, uma silhueta inteiriça; não lhe falassem nessas mulheres espalhafatosas, que parecem espantalhos. E olhava para Mrs. Septimus Small, que era comprida, magra e começava a tornar-se parecida com James

- Tem estilo - continuava Swithin. - É mulher para um rei! E tão serena, tão calma!

- A você, pelo menos, parece que ela conquistou - disse do seu canto a tia Hester, com voz arrastada.

Swithin ouvia muito bem, quando o atacavam.

- O quê? Sei reconhecer muito bem uma linda mulher quando a encontro, e tudo o que posso dizer é que não vejo rapaz nenhum à altura dela. Mas quem sabe se você não vê algum? Talvez veja!

- Oh - murmurou a tia Hester. - Pergunte a Juley. Entretanto, muito antes de chegarem a Robin Hill, o ar livre,

de que ele estava desacostumado, deu-lhe uma terrível sonolência. Guiava de olhos fechados, e só a força adquirida numa vida inteira de bom-tom lhe mantinha erecta a volumosa estatura.

Bosinney, que esperava a chegada deles, veio-lhes ao encontro, e entraram juntos na casa. À frente, Swithin brincava com um forte junco de Malaca com castão de ouro, que Adolf lhe pusera na mão, porque os joelhos doíam-lhe em virtude de terem demorado tanto na mesma posição. Vestira também a pelica para se garantir contra as correntes de ar de uma casa inacabada.

A escada, na sua opinião, era bonita. O estilo, senhorial. Seriam precisas estátuas! Parou entre as colunas do pórtico que davam para o pátio interno e apontou a bengala com um gesto interrogador:

- E isto, que é que vocês vão fazer com este vestíbulo, ou como é que lhe chamam? - Mas, vendo que a iluminação caía de cima, veio-lhe a inspiração: - Ah, o bilhar!

Quando lhe disseram que seria um pátio mosaicado, com plantas no meio, Swithin voltou-se para Irene:

- Estragar esse espaço com plantas? Siga a minha opinião: ponha aí um bilhar!

Irene sorriu. Ela erguera o véu, que lhe vendava agora a fronte como um véu de freira, e por baixo dele o sorriso dos olhos escuros pareceu a Swithin mais encantador do que nunca. Balançou a cabeça: sabia bem que ela lhe seguiria o conselho.

Achou pouco que dizer do salão e da sala de jantar, que qualificou de «espaçosa»; mas caiu em êxtase, tanto quanto poderia ser permitido a um homem da sua dignidade, quando entrou na adega, depois de ter descido alguns degraus, precedido por Bosinney, que segurava uma vela.

- Vocês aqui vão ter espaço para seiscentas ou setecentas dúzias! Uma adegazinha linda!

Mas como Bosinney manifestava o desejo de lhes mostrar o efeito que fazia a casa vista da encosta sob a colina, Swithin interrompeu-o:

- Aqui já temos uma linda vista. Você não terá qualquer coisa parecida com uma cadeira?

Foram procurar-lhe uma cadeira na tenda de Bosinney. Ele sentou-se ao sol, próximo do carvalho, com uma das mãos estendida e apoiada no castão da bengala, a outra estirada sobre o joelho; tinha a pelica aberta, a cartola encimava o pálido quadrado da face e o olhar, muito vazio, fixava a paisagem.

Abanava levemente a cabeça para os jovens que se afastavam através do campo. Ah, na verdade gostava bem que lhe dessem um minuto para reflectir. O ar tinha um cheiro bom, o sol não estava muito quente, a vista, belíssima, indiscutivelmente uma vista notáv... A cabeça caiu-lhe um pouco de lado. Ergueu-a sobressaltado, e pensou: «É engraçado!» Ele... ah! Irene e Bosinney faziam-lhe sinais de baixo da encosta; ele ergueu a mão e agitou-a uma ou duas vezes. Os dois pareciam conversar animadamente. Sim, a vista era notáv... A cabeça pendeu-lhe para a esquerda, ele levantou-a imediatamente. Pendeu à direita, e lá ficou. Swithin dormia.

E, no seu sono, parecia-lhe que dominava, sentinela imóvel

no alto da colina, toda aquela paisagem «notável», tal como uma estátua talhada em pedra pelos retratistas dos primitivos Forsyte, nos tempos pagãos, para ilustrar o domínio do espírito sobre a matéria.

E todas as gerações dos seus antepassados yeomen que, aos domingos, de braços cruzados, tinham velado o campo com os seus olhos cinzentos e imóveis, sem revelar nada dos seus instintos - instintos violentos, instintos secretos de posse à revelia do resto do mundo-, todas essas gerações pareciam estar ao lado de Swithin, no alto da colina.

Mas fora dele que dormitava assim, o seu espírito ciumento de Forsyte andava por longe, através sabe Deus de que floresta de sonhos; seguia os dois jovens para ver o que eles faziam juntos no bosque, onde a Primavera louca espalhara o seu cheiro de seiva, os rebentos apojados, os múltiplos gorjeios de pássaros, os tapetes de campânulas azuis e de tenras ervas, e o ouro do sol preso nos ramos altos. Acompanhava-os, para ver o que os dois faziam caminhando ao longo do atalho estreito de mais, tão perto um do outro, tão próximos que a cada instante se tocavam; para espiar os olhos de Irene, cujas pupilas, como ladrões escuros, pareciam roubar o próprio coração da Primavera. Parou com eles para olhar o cadàverzinho aveludado de uma toupeira, morta há menos de uma hora, e cujo pêlo cor de prata, cor de cogumelo, não fora ainda tocado nem pela chuva nem pelo orvalho. Espiava a cabeça inclinada de Irene, o doce olhar dos seus olhos cheios de piedade, o rosto do rapaz que a fitava de modo tão estranho, tão intenso. Depois caminhava com eles, atravessava a clareira onde o carvoeiro trabalhara, onde as campânulas estavam esmagadas, onde um tronco oscilara e caíra, e jazia tombado ao pé da raiz quebrada. Com eles escalou o tronco e aventurou-se até ao fim do bosque para olhar uma terra inexplorada, por onde perpassava um chamado vindo de longe: «Cu-co! Cu-co!»

Estava silencioso, aquele espírito ao lado deles, e perturbado pelo seu silêncio. «Muito esquisito, muito estranho!»

Depois pôs-se a voltar, como um culpado, através do bosque, até à clareira, sempre mudo por entre os cânticos infindáveis dos pássaros e por entre o cheiro selvagem. «Hum, com que se pareceria?

Ah, com as ervas que se põem na...» Voltou até ao tronco que jazia através do caminho.

Então, invisível, inquieto, batendo as asas por sobre os dois, tentando fazer barulho, o seu espírito de Forsyte olhou para a moça, em pé junto ao tronco abatido. Viu que o seu lindo talhe ondulava, viu-lhe a boca sorrindo para o rapaz que a olhava de baixo, com olhos estranhos, tão brilhantes - ei-la que desliza - a-ah! cai! o-oh! deixa-se cair sobre o peito do rapaz, ele abraça aquele corpo flexível e quente, ela afasta o rosto dos lábios dele, ele beija-a, ela recua, ele grita: «Você tem de saber que a amo! Tem de saber... na verdade... lindo! O amor! Ah!»

Swithin acordou. A sua energia abandonara-o. Tinha uma sensação de mau gosto na boca. Onde estava? Bolas! Dormira! E sonhara qualquer coisa a respeito de uma sopa nova, que tinha gosto de hortelã. Para onde teriam ido aqueles dois? Sentia a perna esquerda dormente.

- Adolf!

O malandro não estava ali, o malandro decerto dormia em algum lugar. Ergueu-se, grande, quadrado, maciço na sua pelica, percorreu os campos com o olhar, inquieto, procurando Irene e Bosinney, e depois viu-os voltando.

Irene caminhava à frente, e aquele rapaz - como é que o tinham apelidado? o pirata - parecia andar como um cão, atrás dela. Estava envergonhado, Swithin não tinha dúvida nenhuma, e era o que merecia, depois de a ter obrigado a andar tanto, para olhar a casa. Para se julgar uma casa, o melhor ponto de observação é o relvado.

Os jovens viram-no, ele estendeu o braço e agitou-o espasmodicamente para os animar. Porém, os dois pararam, porque diabo ficavam ainda parados, a conversar?

Avançavam de novo, ela dissera-lhe boas, com certeza, e ele merecia-o, por ter construído uma casa como aquela - um casarão horroroso-, absolutamente o contrário das casas a que Swithin estava habituado.

E o velho fitava atentamente o rosto de ambos, com os seus olhos pálidos e fixos. O rapaz estava com um jeito esquisito!

- Você não conseguirá fazer nada com isto - disse-lhe cruamente, apontando a casa. - É moderna de mais!

Bosinney encarouo com um olhar vago, como se o não tivesse ouvido. Swithin descreveu-o mais tarde à tia Hester: «É um rapaz extravagante, tem um modo estapafúrdio de olhar para a gente, com aquela cara toda cheia de bossas!» A testa proeminente de Bosinney, as maçãs salientes, o queixo, qualquer coisa de faminto que havia no seu rosto, contrastavam evidentemente com aquela saciedade tranquila que, para Swithin, representava a característica de um gentleman perfeito.

À ideia de tomar chá, animou-se. Desprezava o chá - o seu irmão Jolyon negociara em chá e ganhara muito dinheiro-, mas sentia tanta sede e um tal mau gosto na boca que beberia qualquer coisa. Morria de vontade de falar a Irene daquele sabor que sentia na boca, pois ela compreendia sempre as pessoas tão bem! Mas não seria um assunto distinto, agitava a língua e fazia-a estalar de leve contra o palato.

Num canto, ao fundo da tenda, Adolf inclinava os seus bigodes de gato sobre uma chaleira. Ergueu-se imediatamente e foi desarrolhar uma meia garrafa de champanhe. Swithin sorriu e, balançando a cabeça, disse a Bosinney:

- Você é um legítimo Monte Cristo!

Aquele romance célebre, um dos cinco ou seis que lera em toda a vida, produzira-lhe no espírito uma impressão extraordinária. Apanhando o copo sobre a mesa, afastou-o da vista, para lhe ver bem a cor. Por mais sedento que estivesse, não se arriscaria a beber uma droga! Depois, levando o vinho aos lábios, provou-o.

- É um vinho muito agradável-disse, passando o copo sob o nariz. - Mas não vale o meu Heidsieck!

Foi nesse momento que lhe surgiu no espírito a ideia que mais tarde exprimiu em casa de Timothy: «Eu não me admiraria se aquele arquitecto estivesse apaixonado por Mrs. Soames!» E a partir desse momento os seus pálidos olhos redondos mantiveram-se sempre arregalados, tanto interesse sentia pela descoberta.

- O sujeito - contou ele a Mrs. Septimus Small - acompanha-a com os olhos como um cãozinho, com aquela cara cheia de bossas.

Não me admiro: é uma mulher encantadora, uma flor de distinção.

O vago sentimento de um perfume a flutuar em torno de Irene - igual ao aroma apaixonado que sai de uma flor entreaberta- inspirara-lhe aquela imagem.

- Mas eu não fiquei certo - continuou Swithin - senão depois que o vi apanhar o lenço que ela deixara cair.

- E devolveu-o?-perguntou Mrs. Septimus.

- Devolver? - retorquiu Swithin. - Vi-o babar-se no lenço, quando pensava que eu não estava a olhar!

Mrs. Small sufocava, interessada de mais para falar.

- Ela, porém, não o estimulava - continuou Swithin. E parou, durante um minuto ou dois, com aquele olhar fixo que tanto alarmava a tia Hester, lembrara-se de súbito que, ao subir na sua companhia para a charrette, Irene estendera a mão uma segunda vez para Bosinney e deixara-a na dele um bom momento. Ele estimulara vivamente os cavalos com o chicote, ansioso por tê-la só para si. Ela porém voltara-se para olhar para trás, e não respondera à sua primeira pergunta. Swithin não pudera ver-lhe o rosto, que ela mantinha abaixado.

Existe num certo lugar um quadro, que Swithin nunca vira, que representa um homem junto a um rochedo, e perto dele, imersa na água verde e plácida, está deitada de costas uma ninfa do mar, com a mão pousada no peito nu. A ninfa tem na face um meio sorriso - um sorriso de secreta alegria, que é uma promessa de rendição.

Sentada ao lado de Swithin, Irene deveria ter nos lábios um sorriso idêntico.

Quando, reaquecido pelo champanhe, ele a teve só para si, abriu-lhe o coração e confiou-lhe as suas misérias, o seu ressentimento recalcado contra o novo cozinheiro do clube, os seus receios a respeito da casa de Wigmore Street - o canalha do inquilino falira, sob pretexto de auxiliar um cunhado, como se a caridade bem regulada não começasse em nós próprios! - e depois a surdez, e aquela dor que aparecia às vezes do lado direito. Ela escutava. Os seus lindos olhos flutuavam sob as pálpebras. Ele supunha-a absorta na evocação dos desgostos que lhe contava e sentia-se cheio de piedade por si mesmo.

E no entanto, abotoado na pelica, com os alamares cruzados no peito, a cartola posta de lado, passeando de carro com aquela linda mulher, nunca se sentira mais distinto.

E aconteceu que um vendedor de legumes, que fazia na sua charrette, em companhia da namorada, um passeio domingueiro, parecia sentir de si próprio uma impressão idêntica. À força de chicotear o burro, fê-lo galopar, e, na carriola que adernava, mantinha-se erecto como uma estátua de cera, o queixo pomposamente apoiado sobre um lenço vermelho, tal como o de Swithin sobre a sua ampla gravata, enquanto a namorada, com as duas pontas do xaile voando após ela, imitava uma mulher elegante. O casquilho agitava no ar uma vareta da qual pendia um cordel desfiado, reproduzindo com absoluta exactidão o molinete que Swithin executava com o seu chicote e rolava a cabeça para a pequena com olhadelas que lembravam, de uma maneira bizarra, o olhar de Swithin.

Swithin demorou um pouco a aperceber-se da presença do rústico, depois convenceu-se de que o arremedavam. Chicoteou o flanco da égua, porém uma desgraçada fatalidade quis que os dois veículos ficassem emparelhados. O rosto amarelo e inchado de Swithin tornou-se rubro, ergueu o chicote para atingir o verdureiro, mas uma intervenção da Providência impediu-o de esquecer a tal ponto a sua dignidade. Uma carruagem que saía de um jardim lançou um contra o outro o faetonte e a carriola de burro, as rodas agarraram-se, e o mais leve dos veículos derrapou e virou-se.

Swithin não voltou a cabeça. Ninguém no mundo o faria parar o seu carro para auxiliar aquele labrego. Era bem feito se tivesse quebrado o pescoço!

Porém, mesmo se ele quisesse parar, não poderia fazê-lo. Os tordilhos haviam-se assustado. O faetonte era sacudido à direita e à esquerda e os passantes erguiam as cabeças, assustados, vendo-o desfilar a toda a velocidade.

Os braços poderosos de Swithin, estendidos a todo o comprimento, agarravam-se às rédeas. Tinha as faces intumescidas, os lábios cerrados, todo o seu rosto inflamava-se de um vermelho ardente de cólera.

Irene pusera a mão no rebordo do carro, e a cada solavanco apertava-o com força. Swithin ouvia-a perguntar:

- Será que sofreremos um acidente, tio Swithin? Ele arquejou:

- Não é nada! Os cavalos estão um pouco fogosos!

- Nunca sofri um acidente.

- Atenção! Não se mova! - Swithin olhou-a. Ela estava sorridente, perfeitamente calma.

- Fique tranquila, não tenha medo - continuou ele. - Hei-de levá-la a casa!

E, a meio dos seus violentos esforços, admirou-se de ouvi-la responder com uma Voz que não era a sua:

- Não me importo absolutamente se não voltar mais para casa!

O carro deu um salto terrível, e a exclamação de Swithin voltou-lhe à garganta... Depois os cavalos, sem fôlego, numa subida da colina, acalmaram-se, puseram-se a trote, e afinal pararam por iniciativa própria.

- Quando dominei os cavalos - contou Swithin em casa de Timothy -, olhei-a. Não se movera. Estava ali, tão calma como eu, benza-a Deus! Quem a visse diria que lhe era indiferente quebrar ou não o pescoço! Que foi mesmo que ela disse? «Não me importo absolutamente se não voltar mais para casa!»

E, inclinando-se sobre o castão da bengala, ele rouquejou, com grande susto de Mrs. Small:

- E quer saber? Isso não me admira, com um palerma de um marido como Soames!

Swithin não teve a ideia de perguntar a si mesmo o que teria feito Bosinney depois que o deixara só, se fora errar, como um cão a que Swithin o comparara, naquele bosque onde a Primavera enlouquecera, onde se ouvia ainda o apelo longínquo do cuco, se descera até lá, apertando contra os lábios um lenço cujo perfume se misturava ao cheiro da hortelã e do tomilho, se descera até lá com uma tal dor no coração, tão selvagem e tão deliciosa que lhe dava vontade de gritar, por entre as árvores. Mas, na verdade, que é que aquele rapaz poderia ter feito? Porque, antes de chegar à casa de Timothy, Swithin esquecera-o completamente.

 

JAMES VAI VERIFICAR PESSOALMENTE.

Aqueles que não conheciam a Bolsa dos Forsyte não poderiam compreender o rebuliço causado pela visita de Irene a Robin Hill.

Depois de Swithin ter contado em casa de Timothy a história completa do memorável passeio, essa mesma história, com um traço de curiosidade, uma imperceptívell nuance de malícia e um desejo real de fazer bem, foi transmitida a June.

- E como é terrível isso que ela disse, meu bem!-terminou a tia Juley. - Não voltar para casa! Que quereria ela dizer?

Estranha história para ser contada à moça. Ela ouviu-a corando penosamente, e de súbito, com um breve aperto de mão, despediu-se.

- June foi quase rude!-disse Mrs. Small à tia Hester, depois que a pequena se foi embora.

Segundo a maneira pela qual ela recebeu a notícia, tiraram-se as conclusões adequadas. Aquilo perturbara-a. Portanto, havia algo. Esquisito! Ela e Irene tinham sido tão íntimas! E tudo isso concordava perfeitamente com as alusões e murmúrios que circulavam havia algum tempo. Recordava-se a história que Euphemia contara de uma certa noite de teatro. Mr. Bosinney estava sempre em casa de Soames? Oh! Na verdade? Mas decerto.. naturalmente.. estava a construir a casa. Nada se dizia claramente.

Só eram necessárias palavras claras, na Bolsa dos Forsyte, nas ocasiões mais graves e mais importantes. Aquele mecanismo era de ajuste delicadíssimo. Uma alusão, por mais rápida, ou uma fugitiva expressão de dúvida ou de pena bastavam para fazer vibrar a alma sensibilíssima da família. Ninguém desejava que tais vibrações pudessem repercutir de modo prejudicial sobre quem quer que fosse. Longe disso: provocavam-nas com as melhores intenções e de acordo com o sentimento de que o interesse de cada um dos membros se confundia com o da família.

Muitos jovens Forsyte pensavam naturalmente, e declaravam-no sem cerimónias, que não queriam que ninguém se metesse com os seus negócios, porém as notícias da família eram conduzidas por uma corrente magnética impossível de desviar. Ninguém podia evitar ficar a saber de tudo..Sentia-se que nada se poderia fazer contra isso.

Um de entre os moços (Roger filho) tentara um esforço heróico para libertar a jovem geração, dizendo que Timothy era um «gato velho». O seu esforço recaíra com justiça sobre ele próprio, porque tais palavras, tendo sido insidiosamente repetidas à tia Juley, foram transmitidas pela voz escandalizada desta última a Mrs. Roger, donde voltaram a Roger filho. E, afinal de contas, só os culpados eram atingidos. Assim aconteceu quando George perdeu tanto dinheiro no jogo de bilhar, ou o próprio Roger filho, quando andou tão terrivelmente perto de se casar com uma mulher de quem (dizia-se) ele já era marido segundo as leis da Natureza, ou ainda Irene, que, sem muitos comentários, se supunha em perigo.

Tudo isso era, não só agradável, mas salutar. Matavam-se assim muitas horas, em casa de Timothy, no salão de Bayswater Road, tantas horas que, sem isso, passariam estéreis e pesadas para as três pessoas idosas que lá viviam, e a casa de Timothy era apenas um exemplo entre centenas de casas semelhantes da cidade de Londres, casas de gente neutra, instalada na sua segurança, e que, já estando fora da batalha, precisava pedir a sua razão de existir às batalhas alheias.

Sem a doçura do mexerico familiar, a vida seria bem monótona em casa de Timothy. Boatos e histórias, informações e conjecturas - não eram eles os filhos da casa, tão queridos, tão preciosos, quanto esses garotos de adorável balbucio que haviam faltado aos irmãos e irmãs durante a sua própria jornada? Falar desses netos dos irmãos, que despertavam nostalgia nos seus corações afectivos, não era, tanto quanto possível, apropriar-se deles? Se era talvez duvidoso que houvesse qualquer nostalgia no coração de Timothy, é incontestável que, todas as vezes que nascia uma criança em casa de algum Forsyte, isso o perturbava inteiramente. Era pois inútil e pouco amável Roger filho chamar-lhe «gato velho», ou Euphemia erguer os braços para o céu, gritando: «Oh. aqueles três!», acabando por soltar o seu riso silencioso que terminava por um grito agudo.

A situação que poderia, no ponto a que chegámos, parecer estranha, para não dizer impossível - sobretudo a olhos de Forsyte - era, se nela atentarmos, muito natural, afinal de contas. Certas coisas haviam sido perdidas de vista. E além disso, na segurança produzida por um grande número de casamentos pacíficos, havia-se esquecido que o amor não é uma flor de estufa, mas uma planta selvagem, nascida de uma noite de chuva, de uma hora de sol, germinada de uma semente absurda que um vento de loucura atirou para a estrada - uma planta selvagem a que chamamos flor se por acaso ela rebenta por entre a sebe do jardim, erva daninha quando cresce do lado de fora, mas que, flor ou erva daninha, guarda sempre a cor e o perfume selvagem que tinha nos bosques. Depois disso, como os factos e os algarismos da vida deles se opunham à percepção dessa verdade, os Forsyte praticamente não admitiam que onde cresça essa planta selvagem os homens e as mulheres sejam apenas falenas em torno da pálida flor-chama.

Longos anos se haviam passado depois da fuga de Jolyon filho, e já se podia recear, entre os Forsyte, a volta de uma tradição segundo a qual gente da sua posição não atravessa jamais a sebe do jardim para colher aquela flor, uma tradição que exige que passemos pelo amor como passamos pelo sarampo, no tempo devido, saindo depois confortavelmente, de uma vez por todas, para os braços de Himeneu, como se sai do sarampo absorvendo uma mistura de manteiga e mel.

Entre todas as pessoas atingidas pelo estranho rumor que misturava os nomes de Bosinney e de Mrs. Soames, foi James a mais afectada por ele. Já há muito ele esquecera como voltara, lânguido e pálido, com as suas suíças castanhas, em torno de Emily, no tempo em que a namorava. Esquecera a casinha dos arredores de Mayfair onde passara os primeiros dias do casamento, ou antes, esquecera esses primeiros dias, não a casinha: um Forsyte não esquece nunca uma casa, e ele vendera aquela com um lucro líquido de quatrocentas libras.

Esquecera aqueles dias, com as suas esperanças e receios, as suas dúvidas quanto à prudência daquela união (porque Emily, embora bonita, não possuía nada, e ele, naquele tempo, não fazia senão cerca de mil libras por ano). Esquecera a estranha, irresistível atracção que lhe fizera sentir que morreria se não casasse com aquela moça de cabelos louros tão lindamente trançados sobre a nuca, de lindos braços emergindo do colete apertado, de cintura encantadora protegida benevolamente por uma anquinha de circunferência prodigiosa.

James passara pelo fogo, mas havia passado também pela correnteza dos anos, que extinguem o fogo, fizera a mais triste de todas as experiências: a de esquecer o que significa amar. Esquecera, esquecera há tanto tempo que chegara a esquecer até o seu esquecimento.

E agora vinha aquele boato ameaçá-lo, aquele boato a respeito da mulher do seu filho, coisa vaga, sombra fugidia entre as palpáveis e claras realidades, ininteligível como um fantasma trazendo consigo, como um fantasma, um inexplicável terror.

Tentou afrontá-lo em espírito, mas era-lhe tão impossível quanto aplicar a si mesmo uma daquelas histórias trágicas que lia todas as noites no seu jornal. Não o podia. Aqueles boatos, decerto, não significariam nada. Seria tudo disparate. Ela talvez não se entendesse muito bem com Soames, mas era uma boa menina... uma boa menina!

Como a maioria dos homens, James apreciava o saber de uma pontinha de escândalo, dizia, por exemplo, lambendo os lábios: «Sim, sim, dizem que ela e o jovem Dyson vivem juntos em Monte Carlo!»

Mas que uma questão desse género aparecesse, implicando nela o seu passado, o seu presente e o seu futuro, nunca o pensara. Nunca perguntara a si próprio de que torturas e de que êxtases tal questão seria o fruto, que lento e invencível destino se emboscaria nos factos muito crus, às vezes sórdidos, mas em geral saborosos, que lhe eram apresentados. Ele não tinha o hábito de censurar ou de louvar, de deduzir ou de generalizar a propósito dessas coisas, contentava-se em escutar, não sem gulodice, e de o repetir depois, tal prática parecendo-lhe tão agradável quanto provar uma mistura de sherry e bitter antes do jantar.

Mas agora que uma coisa idêntica, ou que pelo menos o ar de uma tal coisa o ameaçava pessoalmente, parecia-lhe que caminhava dentro de um nevoeiro, o que lhe dava à boca um gosto espesso e amargo e o impedia de respirar.

Um escândalo! Haveria talvez um escândalo!

Era repetindo essas palavras que ele conseguia concentrar os seus receios e tornar o perigo tangível. Esquecera as sensações sem as quais é impossível compreender a marcha, a fatalidade, o próprio sentido de uma história. Apenas não concebia que ninguém pudesse correr um risco por causa de uma paixão.

Pensando em todos os seus conhecidos, que diariamente acorriam à City para tratar de negócios e que nos momentos de lazer compravam acções ou casas, saboreavam bons jantares ou jogavam- parecer-lhe-ia ridículo supor que poderia existir entre eles alguém capaz de correr riscos, por amor de coisa tão recôndita e tão abstracta como uma paixão.

Paixão! Parecia-lhe com efeito que já ouvira falar disso, e no seu espírito, como os meridianos num mapa-múndi, tinha impressas certas regras mais ou menos assim: «Não se deve jamais deixar a sós uma moça e um rapaz.» (Todos os Forsyte, quando se trata dos alicerces da vida, sabem mostrar-se muito precisos no seu realismo.) Fora disso, não podia imaginar nada a tal respeito, senão sob o aguilhão desta palavra gritante: escândalo!

Ah, mas não era verdade! Não poderia ser verdade. Ele não tinha medo, ela era realmente uma excelente mulherzinha. Mas eis o que acontece quando uma tal ideia nos entra na cabeça? E James era um temperamento nervoso: um desses homens que os acontecimentos esgotam e que se torturam a prever e a hesitar.

Com medo de deixar escapar algum lucro, sofria uma impossibilidade física de se resolver, até ao momento em que ficava claro que a sua própria indecisão iria prejudicá-lo.

Entretanto, muitas vezes na vida encontrara circunstâncias em que o encargo da decisão a tomar não lhe pesava sobre os ombros: e, naquele caso, acontecia assim.

Que poderia fazer? Falar a Soames? Só conseguiria piorar as coisas. E, além do mais, não havia nada, estava certo.

Aquela casa nova era a causa de tudo. O projecto nunca lhe inspirara confiança. Porque quereria Soames instalar-se no campo? E, se decidira gastar tanto dinheiro para construir a tal casa, porque não procurara um arquitecto de classe, em vez desse jovem Bosinney de quem ninguém ainda ouvira falar? Ele bem dissera como aquilo acabaria, pois já lhe tinha chegado a notícia de que a casa nova estava a custar a Soames uma bonita soma acima do seu orçamento.

Melhor do que qualquer outro, esse facto fez que James apreendesse o perigo da situação. Esses demónios de artistas são sempre assim, e um homem sensato não se deve meter com eles. Também prevenira Irene, estava aí o resultado.

E subitamente James teve a inspiração de que faria bem se fosse ao local da história para ver tudo com os seus olhos. Naquela névoa de inquietação onde o seu espírito se debatia, dava-lhe uma inexplicável satisfação a ideia de que poderia ver a casa. Talvez fosse apenas graças à circunstância de se decidir a fazer alguma coisa ou talvez o aliviasse o pensamento de que ia visitar uma casa.

Sentia que ao sair para ver um edifício feito de tijolos e alvenaria, de pedras, de madeira, construído pelo próprio homem que o inquietava, aproximar-se-ia da coisa que dera origem àquele boato a respeito de Irene.

E por isso, sem dizer nada a ninguém, apanhou um carro, que o levou à estação, e depois o comboio para Robin Hill, chegando lá, como não havia carros, viu-se obrigado a caminhar.

Pôs-se lentamente a subir a colina, curvava lamentosamente os joelhos angulosos e os ombros aflitos, com os olhos fixos nos pés. O seu trajo, no entanto, era bem tratado, trazia cartola, e a

sobrecasaca tinha aquele lustro sem manchas que só pode ser mantido por um incansável cuidado. Emily tratava disso, não directamente, é natural - as pessoas de uma certa sociedade não se preocupam com os botões de outras pessoas-, mas cuidava em que o criado de quarto cuidasse disso.

James teve de perguntar o caminho três vezes, de cada vez repetia as indicações que lhe davam, pedia aos homens que as repetissem, repetia-as de novo, porque ele era naturalmente loquaz, e num lugar desconhecido não é preciso empregar demasiada prudência.

Afirmava aos interlocutores que era uma casa nova o que procurava, e no entanto foi apenas quando lhe mostraram o telhado através das árvores que ele se sentiu tranquilo e deixou de recear que lhe houvessem ensinado o caminho errado.

O céu pesado cobria uma atmosfera de uma brancura acinzentada, como um telhado caiado, o ar não tinha frescura nem perfume. Num dia assim, os operários, mesmo os ingleses, não cuidam em fazer senão a sua tarefa, e trabalham sem aquele zumbido de conversa que alivia o peso do labor.

Entre os espaços da casa inacabada, homens em mangas de camisa trabalhavam lentamente, rumores erguiam-se, pancadas espasmódicas, rangidos de metal que se arranha, de madeira que se serra, rodar de carrinhos de mão sobre as tábuas. De tempos a tempos o cachorro do contramestre, amarrado por uma corda a uma trave de carvalho, gemia fracamente, com um som idêntico à água a ferver numa chaleira.

Os vidros recém-postos, borrados de tinta branca no meio, olhavam fixamente para James, como um cão cego.

E a sinfonia dos pedreiros e carpinteiros prolongava-se, estridente e sem alegria, sob o céu esbranquiçado, e os tordos, que caçavam minhocas na terra revolvida, calaram-se.

James encaminhou-se por entre os montes de garranchos (estavam a abrir as áleas) e chegou em frente do pórtico. Lá, parou e ergueu os olhos. Só tinha pouco a ver naquele lugar, e esse pouco James apanhou-o imediatamente, mas ficou sem se mover durante longos minutos, e quem poderia dizer no que pensava?

Os olhos de um azul de porcelana, sob as sobrancelhas brancas, que se projectavam como pequenos chifres, não se moviam, o longo lábio superior da sua boca, entre as finas suíças brancas, estremeceu uma vez ou duas, e diante daquela expressão ansiosa e absorta, poder-se-ia facilmente adivinhar de quem herdara Soames o ar vencido que às vezes lhe passava pelo rosto. Talvez James estivesse a dizer para si próprio: «Não sei.. a vida não é um negócio fácil...»

Foi nessa atitude que Bosinney o surpreendeu. James, abandonando sabe Deus que nuvens, baixou os olhos sobre o rosto de Bosinney, que tinha uma expressão de sarcasmo e divertimento:

- Como vai, Mr. Forsyte? Veio verificar?

Era exactamente aquilo, bem o sabemos, que James viera fazer. E ele sentiu um mal-estar proporcional à exactidão da suposição. Estendeu a mão e respondeu: «Como vai?», sem olhar para Bosinney.

O rapaz, com um sorriso irónico, fê-lo passar diante de si.

James farejou algo de suspeito naquela cortesia.

- Gostaria mais de dar a volta à casa - disse ele - e ver em que pé vocês estão.

Um terraço, pavimentado de pedras arredondadas e inclinado duas ou três polegadas para a esquerda, seguia ao longo da face sudeste e sudoeste da casa, elevando-se num talude oblíquo que ia ser arrelvado. James avançou primeiro para esse terraço.

- Quanto teria custado isso? - perguntou ele quando, depois de feita a curva, viu a segunda parte do terraço.

- Em quanto avalia? - perguntou Bosinney.

- Como poderei sabê-lo? - perguntou James mais ou menos desconcertado. - Duzentas ou trezentas libras, talvez?

- A soma exacta!

James lançou-lhe um olhar rápido, mas o arquitecto tinha o ar mais natural deste mundo, e James teve de supor que o rapaz não o escutara bem.

Chegando à entrada do jardim, parou para olhar a paisagem.

- Aquilo deve ser derrubado - disse ele, apontando o carvalho.

- O senhor acha? Acha que, conservando-se essa árvore, a vista não pagará o dinheiro gasto?

James encarou-o de novo com o olhar suspeitoso, aquele rapaz tinha um modo singular de apresentar as coisas.

- Pois é - disse ele com ênfase perplexa e nervosa -, não vejo para que serve essa árvore.

- Será derrubada amanhã. James alarmou-se,

- Não vá dizer a ninguém que eu disse que deveriam derrubá-la. Não entendo nada disso.

- Não?

James continuou, agitado:

- Como é que você quer que eu entenda? Não tenho nada com isso. Faça-o sob a sua responsabilidade.

- O senhor permite que eu mencione o seu nome? James sentia-se cada vez mais alarmado:

- Não sei por que diabo quer você mencionar o meu nome - murmurou. - É melhor que deixe essa árvore em paz. Não é sua. - Puxou o lenço de seda e enxugou a testa.

Entraram ambos na casa. E, tal como Swithin, James sentiu-se impressionado pelo pátio interior.

- Você deve ter gasto um dinheiro doido aqui - disse ele depois de contemplar durante algum tempo as colunas e a galeria. - Vamos lá, por quanto lhe saiu o levantamento dessas colunas?

- Não poderei dizer-lhe assim, do pé para a mão - respondeu pensativamente Bosinney -, mas o que sei é que custou realmente um dinheiro doido!

- Bem o creio - disse James. - E eu pensava...

O seu olhar encontrou o do arquitecto, e ele parou de súbito. E desde esse momento, quando desejava saber o preço de qualquer coisa, abafava a curiosidade.

Bosinney mostrou-se determinado a fazer que James visse tudo que havia para ver, e, se tivesse um espírito mais atento, James ter-se-ia surpreendido de estar, pela segunda vez, a dar a volta à casa. Bosinney parecia também tão desejoso de ser interrogado que James percebeu a necessidade de tomar cuidado. Começava a sentir-se fatigado, pois, embora tivesse amplos recursos físicos para um homem de tão grande estatura, já fizera setenta e cinco anos.

Veio-lhe o desânimo, sentia que não ganhara nada, que a sua inspecção não lhe trouxera nenhuma das certezas que vagamente esperara. Viera apenas para aumentar a sua aversão e a sua desconfiança para com o rapaz, que o esgotara com a sua polidez, e na atitude do qual ele descobria agora a zombaria, com absoluta certeza.

Não o supusera tão esperto e esperara encontrar-lhe uma pior aparência. E, além disso, o moço tinha um ar desabusado que James, para quem um risco era a coisa mais intolerável do mundo, não apreciava, e um sorriso singular, também, que aparecia no momento em que menos era esperado, e olhos esquisitos. Segundo James o disse depois, fazia pensar num gato esfomeado. Na sua conversa com Emily, foi a expressão melhor que encontrou para descrever a singular mistura de exasperação, de doçura aveludada e de zombaria que sentira nos modos de Bosinney.

Por fim, tendo visto tudo que havia para ver, transpôs a porta pela qual entrara, e então, sentindo que perdia tempo, força e dinheiro a troco de nada, segurou com as duas mãos toda a sua coragem de Forsyte, e, olhando de súbito para Bosinney, disse:

- Segundo penso, você avista-se sempre com a minha nora: diga-me agora: que pensa ela da casa? É verdade que ainda não a viu?

Disse isso, embora estivesse perfeitamente a par da visita de Irene. E, aliás, nada havia de insólito em tal visita, salvo a exclamação extraordinária: «Não me importa absolutamente se não voltar para casa!», além do modo como June acolhera a notícia do passeio.

Mas com esse modo de articular a pergunta, decidira-se a dar a Bosinney uma ocasião de se explicar.

O rapaz demorou bastante a responder., mas manteve os olhos fixos em James, com uma persistência incómoda.

- Ela viu a casa, mas não poderei dizer-lhe o que pensa. Embora nervoso e desconcertado, James era feito de tal maneira

que não poderia abandonar o assunto.

- Oh, ela viu-a? Foi Soames que a trouxe decerto? Bosinney respondeu sorrindo:

- Oh, não!

- Como então? Veio só?

- Oh, não!

- Então... quem a trouxe?

- Na verdade, não sei se posso dizer-lhe com quem ela veio. Para James, que sabia que fora com Swithin, essa resposta

parecia ininteligível.

- Mas como - balbuciou ele-, você bem sabe...

Mas parou, percebendo subitamente o perigo onde se metia.

- Muito bem, se não o quer dizer, suponho que não o dirá! Nunca ninguém me diz nada.

E ficou muito surpreso porque Bosinney, por sua vez, também lhe fez uma pergunta:

- A propósito, o senhor poderá dizer-me se ainda haverá outros, na família, que queiram vir aqui? Gostarei de estar presente.

- Se ainda vêm outros? - falou James, assombrado. - Quem é que você quer que ainda venha? Não sei se há quem queira. Até à vista.

Olhando para o chão, estendeu a mão, cuja palma passou sobre a de Bosinney, depois, segurando o guarda-chuva bem por cima da seda, afastou-se pelo terraço. Antes de dobrar o ângulo, lançou um olhar para trás, e viu Bosinney que o acompanhava lentamente, «deslizando ao longo da parede», segundo disse de si para si, «como um gatarrão». E não deu atenção quando o rapaz ergueu o chapéu.

Quando atravessou a avenida principal e se sentiu fora do alcance de vista, diminuiu o passo. Lentamente, mais curvo do que na vinda, magro, oco, abatido, tornou a percorrer o caminho para a estação.

E o Pirata, vendo-o afastar-se tão triste, talvez tenha lamentado um pouco a sua atitude para com o velho.

 

CORRESPONDÊNCIA ENTRE SOAMES E BOSINNEY.

James nada contou ao filho a respeito da sua visita a Robin HiLl, porém, tendo de ir, certa manhã, à casa de Timothy para conversar sobre um projecto de drenagem que as autoridades sanitárias impunham ao irmão, foi lá que aludiu ao assunto.

Não era propriamente uma casa mal feita, declarou ele. Via bem que se poderia tirar um bom partido dela. A seu modo, aquele Bosinney era competente. Mas quanto dinheiro aquele negócio devoraria a Soames, antes de ficar pronto, era coisa que ninguém sabia.

O acaso permitiu que Euphemia Forsyte se encontrasse lá, viera pedir emprestado o último romance do reverendo Mr. Scoles, Paixão e Paregórico, que estava tão em moda. E disse:

- Vi Irene ontem, na Stores. Estava na confeitaria, conversando com Mr. Bosinney.

Foi nesses termos simples que Euphemia mencionou uma cena que lhe produzira uma impressão profunda e complicada. Na véspera atravessara à pressa a secção de sedas da Church and Commercial Stores (instituição que, com o seu admirável sistema admitindo apenas pessoas idóneas e fazendo as vendas na base do pagamento no acto da entrega, tornava-se o empório ideal para os Forsyte) à procura de um retalho de cetineta para a mãe, que a esperava no carro. Ao atravessar a confeitaria, os seus olhos foram desagradàvelmente atraídos para uma silhueta de rara beleza, que se mantinha de costas. Era uma mulher de tão lindas proporções, o equilíbrio do seu porte era tão perfeito e estava tão bem vestida, que Euphemia, com o seu sentido instintivo das conveniências, levou-a imediatamente a mal. Sabia, mais por intuição do que por experiência, que a virtude nunca se dá bem num corpo daqueles: o seu próprio corpo era às vezes um pouco difícil de acomodar.

E sentiu prazer em ver confirmadas as suas suspeitas: um rapaz que saía da farmácia tirou vivamente o chapéu e abordou a senhora de costas desconhecidas.

Foi então que Euphemia compreendeu de quem se tratava: a senhora era com toda a certeza Mrs. Soames, e o rapaz Mr. Bosinney. Dissimulou-se rapidamente, absorvendo-se na compra de uma caixa de tâmaras da Tunísia, porque não apreciava os encontros esquivos, feitos durante as horas ocupadas da manhã, com as mãos cheias de embrulhos. E foi assim, absolutamente involuntária, a testemunha interessadíssima da rápida entrevista.

Mrs. Soames, que é habitualmente um pouco pálida, tinha as faces deliciosamente coradas, e as maneiras de Mr. Bosinney eram estranhas, embora muito atraentes (ela atribuía ao jovem arquitecto um ar de distinção, e o romântico apelido de Pirata que George lhe dera parecia-lhe encantador). Tinha o ar de quem suplica. Conversavam com tanta convicção, ou antes, ele falava com tanta convicção porque Mrs. Soames não dizia quase nada. que, sem o sentirem produziram um atropelo na circulação. Um velho e simpático general, que se dirigia à charcutaria, foi obrigado a dar uma volta, e, olhando para o rosto de Mrs. Soames, tirou amavelmente o chapéu. Velho tolo! Eis como são os homens!

Mas eram sobretudo os olhos de Mrs. Soames que perturbavam Euphemia. Ela nem uma vez os levantou para Mr. Bosinney até que ele a deixou, mas quando o rapaz se afastava, olhou-o - e com que olhar!

Euphemia consagrara muito de ansiosa reflexão àquele olhar. Talvez não fosse excessivo dizer que ele lhe fizera mal, pela sua doçura sombria e lenta, como se na verdade a moça desejasse chamar de volta o rapaz e desdizer alguma palavra dita.

Ah! E Euphemia não tinha mais tempo de aprofundar aquela história, com a sua cetineta na mão, mas estava intrigada, muito intrigada! Fizera apenas um rápido cumprimento de cabeça a Mrs. Soames, para lhe mostrar que a vira, e segundo contou depois à sua melhor amiga, Francas, filha de Roger, «ela parecia ter sido apanhada com a boca na botija».

James, cujo primeiro impulso era repelir qualquer informação que lhe viesse confirmar as suas pungentes suspeitas, replicou logo:

- Oh! Na certa eles estavam a escolher os papéis para a parede! Euphemia sorriu.

- Na confeitaria? - disse docemente. E, apanhando sobre a mesa o Paixão e Paregórico, acrescentou: - Então empresta-me isto, tia? Até logo! - E saiu.

James saiu quase imediatamente depois: já estava atrasado. Quando chegou ao escritório Forsyte, Bustard & Forsyte, encontrou Soames sentado na sua poltrona giratória, preparando as peças para uma defesa.

O filho acolheu-o com um «bom dia» rápido e, tirando um envelope do bolso, disse:

- Veja isso, é curioso. James leu o seguinte:

 

           Meu caro Forsyte:

Como a construção da sua casa está terminada, o meu papel de arquitecto acabou. Se tenho de ultimar o trabalho de decoração que iniciei a seu pedido, é preciso que fique convencionado que terei carta branca.

Você nunca vem a Robin Hiil sem sugerir qualquer coisa que vá de encontro aos meus planos. Tenho aqui três cartas suas, em cada uma das quais me faz recomendações a respeito de coisas que eu nunca pensara admitir. Seu pai veio aqui ontem à tarde e deu-me outros valiosos conselhos.

Peço-lhe pois que decida: ou que eu lhe faça a decoração, ou que me retire. Aliás, preferia esta última solução.

Mas compreenda bem, por favor, que, se eu fizer a decoração, quero fazê-la só, sem nenhuma espécie de interferência. Se me encarregar da coisa, fá-la-ei completa, mas quero ter as mãos livres.

       Seu, sinceramente, Philip Bosinney.

 

Ninguém poderia indicar a causa exacta e imediata daquela carta, mas não é improvável que Bosinney fosse movido por qualquer revolta súbita contra a sua atitude em relação a Soames - aquela eterna situação da Arte em relação à Propriedade, que é maravilhosamente resumida num dos mais indispensáveis aparelhos da vida moderna, numa fórmula comparável aos mais belos resumos de Tácito:

 

       THOS T. SORROW Inventor

       BERT M. PADLAND Proprietário

 

- Que é que você vai responder? - perguntou James.

.Soames nem sequer virou a cabeça. - Ainda não decidi.- E voltou ao trabalho. Um dos seus clientes fizera algumas construções sobre um terreno que não lhe pertencia e fora de súbito, do modo mais irritante, intimado a demoli-las. E entretanto, depois de um exame cuidadoso dos factos, Soames encontrara um meio de opinar que o seu cliente tinha o que se chama um direito de ocupação, e que, embora decerto o terreno não fosse seu, tinha direito de se manter lá. Soames tratava agora de concluir o parecer e tomava medidas para o fazer prevalecer.

Tinha uma boa reputação, feita graças à solidez dos seus pareceres, e dizia-se: «Procure o jovem Forsyte: é um rapaz que vê longe.» E ele dava uma grande importância a essa reputação.

O seu génio taciturno depunha a favor dele. Nada poderia ser melhor calculado para dar à clientela, sobretudo à clientela capitalista - Soames não tinha outra impressão de um homem de confiança. Tradição, hábitos, educação, aptidão hereditária, prudência nata, todos esses elementos reuniam-se para compor uma sólida honestidade profissional, inacessível à tentação em virtude de se fundamentar sobre o horror instintivo do risco. Como poderia ele cair, se a sua alma abominava as circunstâncias que tornam possível uma queda? Ninguém cai do chão!

E havia ainda todos os Forsyte que, no decorrer de inúmeras transacções, a respeito de toda a espécie de propriedades - desde as suas mulheres até aos seus direitos de pesca -, tinham necessidade dos serviços de um homem de confiança, e viam ao mesmo tempo segurança e proventos em confiar em Soames. Aquela atitude levemente desdenhosa que lhe era peculiar, junta ainda a um ar pesquisador, também falavam a seu favor: ninguém é desdenhoso quando não tem nada por dentro!

Era ele quem realmente dirigia o escritório, pois, embora estivesse lá quase diariamente, para ficar a par de tudo, James já quase não fazia mais, actualmente, senão sentar-se na sua poltrona, enrolar as pernas, lançar um pouco de confusão nos negócios já resolvidos, e depois ir-se embora: o outro sócio, Bustard não passava de um pobre diabo que dava conta de muito trabalho, mas cuja opinião ninguém jamais pedia.

Assim Soames continuava a redigir imperturbavelmente o seu memorial. E entretanto não se poderia dizer que o seu espírito estivesse à vontade. Pressentia uma desgraça. Essa impressão perseguia-o havia algum tempo. Tentava atribuí-la a causas físicas, ao estado do fígado, mas não conseguia vencê-la.

Olhou o relógio: dentro de um quarto de hora deveria estar na assembleia geral da New Colliery Company - um dos negócios do tio Jolyon - e o tio Jolyon deveria estar lá: Soames falar-lhe-ia de Bosinney. Não sabia ainda ao certo o que lhe diria, mas estava resolvido a falar-lhe, de qualquer modo, não responderia à carta antes de falar ao tio Jolyon. Ergueu-se e arrumou metodicamente as folhas soltas do seu rascunho do memorial. Entrou depois num gabinete escuro, acendeu a luz eléctrica, lavou as mãos com um pedaço de sabão pardo de Windsor e enxugou-as numa toalha presa a uma travessa. Escovou depois os cabelos, estreitamente atento à risca, apagou a luz, tomou o chapéu, e, prevenindo que voltaria às duas e meia, saiu.

O caminho não era comprido de lá aos escritórios da New Colliery Company, em Ironmonger Lane, onde se realizava sempre a assembleia geral, em vez do hábito mais decorativo de outras sociedades, que se reuniam no Cannon Street Hotel.

Desde o início, o velho Jolyon mostrara-se refractário às intrusões da imprensa. Que tinha o público a ver, dizia ele, com os seus negócios?

Soames chegou à hora devida, e tomou o seu lugar ao lado do conselho, cujos membros, sentados em fila, cada director com o seu tinteiro diante de si, faziam face aos accionistas. Nessa fila, no centro, o velho Jolyon, com os seus bigodes brancos e a sobrecasaca preta toda abotoada., apoiava-se ao encosto da cadeira e cruzava as pontas dos dedos sobre um exemplar do relatório dos directores.

À sua direita sentava-se o secretário Hemimings, uma tristeza triste de mais, irradiava dos seus belos olhos, a barba, de um cinzento de aço, parecia de luto, como todo o resto da pessoa, e dava a impressão de que, por baixo dela, ele tinha uma gravata negríssima.

Na verdade, a circunstância era melancólica. Havia apenas seis semanas que Scorrier, o perito enviado em missão especial às minas da Companhia, telegrafara aos directores informando que Pippin, o administrador geral, se suicidara no momento em que escrevia, depois de um extraordinário silêncio de dois anos, uma carta ao conselho. Aquela carta estava agora ali, na mesa: a sua leitura seria feita aos accionistas, que, naturalmente, deveriam ser postos ao corrente de todos os factos.

Hemmings já o dissera muitas vezes a Soames, conversando em pé junto à lareira, com as mãos mergulhadas nas abas do paletó: «Nos nossos negócios, os accionistas não ignoram senão o que não vale a pena saber-se. Pode crer, Mr. Soames.» Soames recordara um pequeno incidente desagradável que ocorrera uma vez em que o tio Jolyon estava presente e escutara a frase do outro. O velho erguera a cabeça vivamente:

- Não diga tolices, Hemmings! Você o que quer dizer é que o que eles sabem não vale a pena ninguém saber!

O velho Jolyon detestava fingimentos.

Hemmings, com os olhos coléricos e um sorriso semelhante ao de um cãozinho surrado, respondera por um borbotão de aprovações fingidas:

- Essa é boa, Mr. Forsyte! É excelente! Seu tio tem sempre uma boa pilhéria a dizer!

E na primeira vez que encontrara Soames, achara oportunidade de lhe explicar:

- O presidente está a envelhecer muito, já não posso fazê-lo compreender certas coisas. E ele é teimoso. Também, com aquele queixo, que é que o senhor quer que se faça?

Soames aprovara com uma inclinação de cabeça. Toda a gente conhecia aquele queixo.

Naquele dia, o tio Jolyon parecia atormentado, embora o seu ar fosse o que mostrava sempre nos dias de assembleia geral. Soames esperava poder falar-lhe a respeito de Bosinney.

À esquerda do velho Jolyon estava o minúsculo Mr. Booker, que assumira também o seu ar de assembleia geral e olhava como se vasculhasse a sala para encontrar um accionista particularmente susceptível. Ao lado dele estava o director surdo, de testa enrugada, e mais longe o velho Mr. Bleedham, pacífico, com um ar de virtude consciente, muito natural, porque sabia que o embrulho de papel cinzento que trazia sempre à assembleia estava escondido por trás do seu chapéu (uma daquelas cartolas à moda antiga, de aba chata, que acompanhava volumosas gravatas, rosto bem barbeado, faces rosadas e pequenas suíças brancas e asseadas).

Soames assistia sempre à assembleia geral. Estava entendido que era melhor assim, «para um caso de dificuldade imprevista». Com o seu ar meticuloso e superior, olhava em torno para as paredes da sala, donde pendiam plantas da mina e do porto e uma grande fotografia de um certo poço da mina que levava às galerias que, exploradas, se tinham mostrado bastante improdutivas. Aquela fotografia - testemunha da eterna ironia que se esconde sob as empresas industriais - conservara o seu lugar na parede, efígie do nado-morto que fora o benjamim dos directores.

O velho Jolyon ergueu-se para fazer a leitura do relatório e das contas.

Escondendo sob um ar olímpico de Júpiter o profundo antagonismo que separa um director dos seus accionistas, olhava-os de frente, calmo. Soames também os olhava. Conhecia- os quase todos de vista. Lá estava o velho Serubddle, que negociava em alcatrões, vinha sempre, como dizia Hemmings, «para travar a roda», um velhote de cara rixenta, rosto vermelho, maxila forte, cartola larga e baixa pousada sobre os joelhos. Lá estava o reverendo Mr. Booms, que propunha sempre um voto de agradecimento ao presidente, no qual exprimia invariavelmente o seu desejo de que o conselho não esquecesse de trabalhar pela elevação dos operários, e usava a expressão com sentido duplo, pois tinha as fortes tendências imperialistas da sua casta. Tinha também o salutar costume de prender um dos directores à saída e perguntar-lhe se achava que o ano próximo seria bom ou mau, e, segundo a resposta recebida, comprava ou vendia três acções durante a quinzena seguinte. Lá estava aquele oficial, o major O'BaMy, que não podia deixar de falar, nem que fosse para apoiar a reeleição do auditor, e que às vezes provocava verdadeira consternação ao tirar das mãos a que elas haviam sido confiadas as folhas de caderno onde estavam inscritas as propostas que deveriam ser feitas à assembleia.

Quatro ou cinco accionistas, fortes e silenciosos, completavam a reunião. Soames simpatizava com eles, eram homens de negócios que gostavam de abrir os olhos a respeito dos seus interesses, cada um cuidando de si. sem atrapalhar, homens bons e sólidos que iam diariamente à City e que, à noite, encontravam em casa as suas boas e sólidas esposas.

«Esposas boas e sólidas.» Havia nesse pensamento qualquer coisa que despertou em Soames o seu obscuro mal-estar.

Que diria ele ao tio. Que resposta daria à carta?

- Se algum dos accionistas tem alguma pergunta a fazer, terei prazer em responder.

Um pequeno rumor surdo: o velho Jolyon deixara cair sobre a mesa o relatório e as contas, e continuava em pé, virando entre o indicador e o polegar os seus óculos de aros de ouro.

Apareceu sobre o rosto de Soames o fantasma de um sorriso! Eles que se apressassem a fazer as suas perguntas! Soames conhecia o método do tio - método ideal -, que consistia em dizer imediatamente: «Proponho então que o relatório e as contas sejam aprovados.» Não lhes dar tempo de respirar! Toda a gente sabe como os accionistas gostam de dissipar o tempo.

Um homem alto, de barba branca, com o rosto magro e descontente, ergueu-se:

- Creio que tenho direito, senhor presidente, de fazer uma pergunta a respeito dessa parcela de cinco mil libras que aparece nas contas sob a rubrica: «Viúva e família» -e passeou em torno de si um olhar ácido-do nosso gerente principal, morto, que nem... tão inconsideradamente se matou, num momento em que os seus serviços eram da máxima importância para a nossa companhia. O senhor declarou que o contrato que ele desgraçadamente quebrou por suas próprias mãos tinha sido renovado por um período de cinco anos, dos quais só decorrera o primeiro. Eu.

O velho Jolyon fez um gesto de impaciência.

- Creio que estou no meu direito, senhor presidente. Pergunto se a importância que o conselho pagou, ou pelo menos se propõe pagar, hem... ao defunto... é destinada a pagar os serviços que o defunto teria prestado à companhia se não se houvesse suicidado?

- Essa quantia é concedida em reconhecimento dos serviços passados, que, todos nós o sabemos - e o senhor tanto quanto nós - foram de importância capital.

- Nesse caso, senhor presidente, tudo o que tenho a dizer é que, para serviços passados, considero a quantia elevada demais.

E o accionista sentou-se.

O velho Jolyon esperou um segundo, e disse:

- Proponho agora que o relatório seja. O accionista ergueu-se novamente:

- Posso perguntar aos membros do conselho se estão bem compenetrados de que não é o seu dinheiro que Não hesite em dizer que, se fosse com o seu próprio dinheiro.

Um segundo accionista, de cara redonda e resoluta, em que Soames reconheceu o cunhado do defunto administrador, ergueu-se e disse com calor:

 

- Na minha opinião, senhor presidente, a quantia dada nem sequer é suficiente!

O reverendo Mr. Booms ergueu-se por sua vez.

- Se ouso exprimir o meu pensamento, direi que o facto do suicídio deve pesar fortemente, muito fortemente, sobre a opinião do nosso digno presidente. Não duvido que assim tenha sido, porque, creio poder dizê-lo em nome de todas as pessoas presentes, muito bem, apoiado-, ele goza da nossa absoluta confiança. Nós todos desejamos, eu o espero, agir com caridade. Mas estou certo (e olhou severamente o cunhado do defunto administrador) que ele assinalará de qualquer forma, seja por uma expressão escrita, ou melhor ainda, seja diminuindo a soma, a nossa grave desaprovação ao facto de uma vida preciosa e tão cheia de promessas ter sido, de modo tão ímpio,.roubada à esfera em que os seus interesses e ao mesmo tempo - posso dizê-lo - os nossos interesses, exigiam tão imperiosamente a sua continuação. Nós não podemos - não temos esse direito - admitir um tão grave abandono de todos os deveres para com os homens e para com Deus.

O reverendo gemteman voltou a sentar-se. O cunhado do gerente morto tornou a erguer-se:

- Mantenho o que disse: a quantia não é suficiente. O primeiro accionista interveio:

- Contesto a legalidade do pagamento. Na minha opinião, esse pagamento não é legal. O advogado consultor da companhia está presente, e creio que tenho o direito de lhe fazer uma pergunta.

Nesse momento todos os olhares se volveram para Soames. Acabava de aparecer a «dificuldade imprevista-). Ble ergueu-se, frio, os lábios cerrados, no íntimo, tinha os nervos agitados e a sua atenção mal havia sido arrancada àquela nuvem que lhe obscurecia o pensamento.

- O caso - disse ele em voz baixa e fina - não está bastante claro. Como se trata de um pagamento em saldo de uma conta inteira, não posso afirmar que seja legal. Conforme o desejo desses senhores, pode-se pedir a opinião de um árbitro.

O cunhado do morto teve um gesto descontente e disse, num tom cheio de subentendidos:

- Não duvido de que possamos pedir a opinião de um árbitro. Posso perguntar como se chama o cavalheiro que acaba de nos dar tão interessante informação? Mr. Soames Forsyte? Ah, na verdade?

O seu olhar ia de Soames para o velho Jolyon com uma intenção sublinhada.

As faces pálidas de Soames coraram, mas o seu ar de superioridade não mudou. O velho Jolyon fixou os olhos no interruptor.

- Se - disse ele - o cunhado do falecido gerente não tem mais nada a dizer, proponho que o relatório e as contas...

Nesse momento ergueu-se um dos cinco accionistas maciços e silenciosos que gozavam da simpatia de Soames. E disse:

- Desaprovo a proposta em conjunto. Pedem-nos um acto de caridade para a mulher e os filhos desse homem, que, dizem os senhores, dependiam dele para viver. É possível que dependessem dele. Não cuido em saber se é verdade ou não. Faço uma objecção de princípio. Já é tempo de pôr cobro a este humani-tarismo sentimental. O país está a ser devorado por ele. Oponho-me a que se pague, com o meu dinheiro, a essa gente de quem não sei nada e que nada fez para o ganhar. Oponho-me a qualquer ideia desse género. Negócios são negócios. Proponho pois que se aprove o relatório e as contas e se cancele pura e simplesmente essa doação.

O velho Jolyon estava em pé enquanto falava aquele representante da Inglaterra forte e silenciosa. O seu discurso despertou eco em todos os corações, traduzindo tão bem o culto da energia e a reacção contra o sentimentalismo que começava a produzir-se na parte sã do país.

A fórmula «negócios são negócios» abalara até o conselho. No seu foro interior, cada um dava razão ao accionista. Mas conhecia-se também o carácter dominador e a tenacidade do presidente. Como os outros, no fundo, ele também deveria sentir que a sua proposta não pertencia ao domínio dos negócios, mas estava comprometido naquilo pela sua própria moção. Recuaria? O caso parecia pouco provável.

Todos esperavam com interesse. O velho Jolyon ergueu a mão. e os óculos de ouro que ele continuava a segurar entre o polegar e o índex tinham um tremor de ameaça. Dirigiu-se ao accionista silencioso e forte:

- Sabendo, como o senhor sabe, tudo o que o nosso falecido gerente fez por ocasião da explosão da mina, deseja realmente que eu proponha a emenda, cavalheiro?

- Desejo.

O velho Jolyon formulou a emenda.

- Há alguém que secunde isso? -perguntou ele, olhando calmamente em torno.

Foi então que Soames, de olhos fixos no tio, sentiu o poder de vontade que havia naquele velho. Ninguém se moveu. E olhando directamente para os olhos do accionista silencioso e forte, o velho Jolyon disse:

- Proponho agora que o relatório e as contas para o ano de 1887 sejam aprovados. Apoiam esta proposta? Os que a apoiam, levantem a mão, como de costume. Contra? Ninguém.'Aprovado. Passemos ao ponto seguinte, cavalheiros.

Soames sorriu. Na verdade, o tio Jolyon tinha um método todo seu.

Mas imediatamente pôs-se de novo a pensar em Bosinney. Era estranho como aquele indivíduo o obcecava, até nas horas de trabalho!

A respeito da visita de Irene a Robin Hill, não havia nada de mal naquilo, senão que ela poderia ter-lhe falado no projecto, mas, por outra parte, ela nunca lhe dizia nada. Cada dia se tornava mais silenciosa, mais susceptível. Prouvesse a Deus que a casa estivesse logo pronta e que já estivessem instalados li, longe de Londres. A cidade não servia para ela... não tinha os nervos bastante sólidos. Já lhe voltara aquela ideia absurda de terem quartos separados.

A sessão fora levantada. Sob a fotografia do poço abandonado, o reverendo Booms agarrara-se à botoeira de Hemmings. O pequeno Mr. Booker, com as sobrancelhas ramalhudas agitadas por sorrisos de cólera irónica, querelava com o velho Scrubddle, à guisa de despedida. Detestavam-se os dois.

Havia entre ambos um negócio de fornecimento de alcatrão que o pequeno Mr. Booker fizera adjudicar pelo conselho a um dos seus sobrinhos, passando por cima das pretensões do velho Scrubddle.

Soames esperava um momento propício. E o último dos accionistas desaparecera na porta quando ele se aproximou do tio, que punha o chapéu.

- Posso falar-lhe um momento, tio Jolyon?

Ainda hoje é incerto o resultado que Soames esperava daquela entrevista.

O velho jolyon produzia nos Forsyte em geral uma impressão algo misteriosa, feita de respeito e medo. Isso provinha do lado filosófico do espírito do velho, ou talvez, como o dissera Hemmings, do seu queixo. Mas houvera sempre um subtil antagonismo entre o tio e o sobrinho, antagonismo latente sob a secura dos seus cumprimentos e dos modos cheios de reserva que eles tinham um para o outro. Decerto isso originava-se na consciência que o velho tinha da tranquila tenacidade de Soames (teimosia, diria antes ele) e duvidava que, entre ambos, lhe pudesse caber sempre a última palavra.

Aqueles dois Forsyte, a muitos respeitos tão opostos um ao outro quanto o são entre si os dois pólos, (possuíasm, cada um ao seu modo, porém num grau mais alto do que todo o resto da família, esse tenaz e prudente instinto de negócios que é a virtude suprema da sua classe social. Um e outro, com um pouco de sorte e algumas oportunidades, teriam atingido as alturas de uma grande carreira, ambos teriam dado um bom financeiro, um grande homem de negócios, um estadista. E entretanto o velho Jolyon, por certos traços do seu temperamento, sob a influência de um charuto ou da Natureza, seria capaz não talvez de desprezar, mas certamente de duvidar do interesse de uma tal situação. A Soames, que não fumava charutos, tal pensamento nunca ocorreria.

E depois, havia sempre na alma do velho um sofrimento secreto: o filho de James - de James, que ele considerara sempre um tolo - palmilhava os caminhos do êxito, enquanto o seu próprio filho...

E agora, para cúmulo - pois, como todo o Forsyte, ele não vivia fora do raio de acção dos mexericos da família -, ouvira um boato sinistro, vago mas não menos perturbador, a respeito de Bosinney, e o seu orgulho fora profundamente ferido.

É bom notar que a sua irritação dirigiu-se não contra Irene, mas contra Soames. A ideia de que a mulher do sobrinho conquistara o noivo da sua neta humilhava-o intoleravelmente. Seria que aquele rapaz não poderia tomar conta da mulher?

Oh, que requintada injustiça! Como seria possívell Soames tomar melhor conta? E, vendo o perigo, o velho Jolyon não procurava escondê-lo de si, como James, por simples medo, reconhecia, com a imparcialidade do seu olhar mais amplo, que a coisa não era improvável: Irene tinha muita sedução.

Pressentia vagamente o assunto sobre o qual Soames lhe queria falar, no momento em que deixavam a sala do conselho, para entrarem no barulho e na confusão de Cheapside. Caminharam juntos um bom minuto, sem trocarem uma palavra, Soames no seu passo meticuloso, o velho Jolyon muito erecto, servindo-se estudadamente do guarda-chuva como de uma bengala.

Entraram por uma rua relativamente calma, o velho ia para um outro conselho de administração.

Então Soames começou, sem erguer os olhos:

- Recebi esta carta de Bosinney. Veja o que diz. Achei que devia falar-lhe sobre ela. Já gastei muito com essa casa, muito mais do que tencionava, e estimaria que a situação ficasse clara.

A contragosto, o velho Jolyon percorreu a carta com os olhos.

- É muito claro o que ele diz - observou.

- Ele fala em ter carta branca - replicou Soames.

O velho Jolyon encarou-o. A sua irritação, há muito contida, o seu antagonismo contra aquele moço cujos negócios começavam a envolver de mais com os seus, explodiram.

- E então, se você não tem confiança nele, para que lhe dá trabalho?

Soames olhou-o de través.

- É tarde de mais para discutir isso - disse ele. - Quero apenas que fique bem claro que, se eu lhe der carta branca, ele não me envolverá em nada. Pensei que, se o senhor também lhe falasse, daria mais peso à minha resposta.

- Não - disse o velho Jolyon abruptamente -, não me envolverei nesse negócio.

Aquelas palavras, tanto de uma parte como de outra, traíam intenções inexprimidas que as ultrapassavam muito. E o olhar que tio e sobrinho trocaram mostrou a cada um que aquilo que um calava o outro percebia-o.

- Está bem - disse Soames. - Procurei preveni-lo por causa de June. Quis que o senhor estivesse avisado, antes de acontecer qualquer disparate.

O tio Jolyon apanhou a bola no ar:

- E em que é que isso me concerne?

- Oh, não sei - respondeu Soames.

E, perturbado por aquele olhar directo, não pôde dizer mais nada.

- O senhor não dirá depois que eu não o preveni - acrescentou ele de mau humor, contendo-se.

- Preveniu? - replicou o velho Jolyon. - Não sei do que você pretende falar. Vem aborrecer-me com essa história, eu recuso-me a envolver-me nos seus negócios, arranje-se sozinho.

- Muito bem - disse Soames imperturbável. - É o que farei.

- Então, até logo - disse o velho Jolyon. E separaram-se.

Soames desandou o caminho andado, e, entrando num restaurante famoso, pediu um naco de salmão defumado e um copo de Chablis, tinha o hábito de comer pouco durante o dia, e em geral comia em pé. Esse hábito parecia-lhe bom para o seu fígado, que estava em muito bom estado, mas por conta do qual ele quereria pôr fim a todas as suas atribulações.

Quando acabou, voltou lentamente ao escritório, de cabeça baixa, sem prestar nenhuma atenção aos milhares de seres que formigavam nos passeios, e que também não reparavam nele.

O correio da noite levou a Bosinney a seguinte resposta:

 

FORSYTE, BUSTARD and FORSYTe, ADVOGADOS

     Meu caro Bosinney:

     7 de Maio de 1887

Acuso a sua carta, cujos termos me surpreenderam um pouco. Eu estava sob a impressão de que você já tinha recebido acarta branca», porque não posso lembrar-me se alguma das sugestões que tive o mau gosto de lhe fazer tenha obtido a sua aprovação. Dando-lhe carta branca, conforme a sua solicitação, desejo que fique estabelecido que o preço total da casa, tal como me será entregue completamente decorada, incluindo os seus honorários (conforme combinámos os dois) não ultrapasse doze mil libras (£ 12.000). Essa soma dá-lhe uma margem suficiente, e, como você o sabe muito bem, ultrapassa em muito a quantia em que eu de início cogitara.

Creia-me sempre, seu sinceramente

     Soames Forsyte

 

No dia seguinte recebeu um bilhete de Bosinney:

 

PHILIP BAYNES BOSINNEY ARQUITECTO

309, D. Sloane Street, S. W.

       18 de Maio

       Meu caro Forsyte:

Se você pensa que em assunto tão delicado quanto decoração eu posso comprometer-me a um orçamento de uma libra a mais ou a menos, receio que se engane. Vejo que está fatigado do nosso arranjo e de mim próprio, por conseguinte, o melhor que tenho a fazer é retirar-me.

     Atenciosamente, Vhilip Baynes Bosinney

 

Soames meditou longa e penosamente os termos dessa carta, e a uma hora avançada da noite, depois que Irene subira para se deitar, compôs na sala de jantar a seguinte resposta:

 

62, Montpellier Square, S. W.

       Meu caro Bosinney:

       19 de Maio 1887

Creio que, no nosso comum interesse, será lamentável que o negócio fique como está. Não lhe quis dizer que, se você ultrapassar dez, vinte, ou mesmo cinquenta libras da soma marcada por mim, vá haver alguma dificuldade entre nós. Desse modo, desejo que reconsidere a sua resposta. Você terá carta branca, nos termos desta correspondência, e espero que descubra um meio de acabar as decorações, a respeito das quais sei bem que é difícil fazer adiantadamente uma avaliação absolutamente exacta.

   Seu sinceramente, Soames Forsyte

 

19 de Maio 1887

A resposta de Bosinney chegou no dia seguinte:

 

Meu caro Forsyte: Muito bem.

20 de Maio, Th. Bosinney.

 

O VELHO JOLYON NO JARDIM ZOOLÓGICO.

O velho Jolyon despachou sumariamente o seu segundo conselho, uma sessão ordinária daquela vez. Foi tão ditatorial que os seus colegas directores reuniram-se num conciliábulo para se queixarem do espírito de domínio sempre crescente no velho Forsyte. Já não tinham mais paciência, diziam eles, para suportar aquilo por muito tempo.

O velho Jolyon apanhou o metropolitano até Pantland Road Station, apanhou depois um cab e fez-se conduzir ao Jardim Zoológico.

Tinha um encontro lá, um desses encontros que se renovavam mais frequentemente, de há uns tempos paira cá, e para onde o levavam a sua inquietação crescente a respeito de June, provocada pela mudança que se operara na neta.

Ela escondia-se e emagrecia, quando lhe falava, não obtinha resposta, ou o iludia, ou então parecia prestes a rebentar em soluços. Estava mudada até ao limite do possível, e tudo isso por causa de Bosinney. Mas quanto a falar com o avô, isso nunca!

E ele perdia-se em longas cismas tristes, segurando diante de si o jornal que não lia, com um charuto apagado entre os lábios. Ela fazia-lhe companhia tão amoravelmemte, desde que fizera três anos, e ele amava-a tanto!

Mas certos poderes que não se preocupam nem com as famílias, nem com as classes, nem com os costumes, mostravam-se mais fortes do que ele, acontecimentos futuros, sobre os quais não tinha nenhum poder, projectavam-lhe a sombra sobre a cabeça. E elevava-se no velho a irritação de um homem dominador, acostumado a agir sempre de acordo com a sua vontade, irritação dirigida não sabia ele contra quem.

Enervado com a lentidão do cab, chegou à porta do jardim, mas o seu sempre jovem e vivaz instinto de tomar a cada momento o que ele tinha de bom fê-lo esquecer a irritação enquanto se dirigia para o encontro.

Do terraço de pedra que encima a fossa dos ursos, o filho e os dois netinhos correram para ele logo que o viram aproximar-se. Levaram-no até à jaula dos leões. Os pequenos tinham-lhe tomado cada um uma mão, e Jolly, travesso como o pai, apoderara-se do guarda-chuva do avô, para agarrar as pernas dos transeuntes com o cabo curvo.

Jolyon filho caminhava atrás.

Parecia realmente um conto de fadas, ver o pai junto aos seus filhos, um desses contos que, depois de um sorriso, trazem lágrimas aos olhos. Um velho e dois netinhos passeando juntos é uma coisa que se vê todos os dias, porém ver o velho Jolyon com Jolly e Holly era como penetrar bruscamente até às coisas que escondemos no fundo do coração. Naquele abandono do grande velho alto, que se entregava todo aos dois pequeninos que lhe seguravam as mãos, havia um excesso de ternura pungente. Jolyon filho, que tinha o hábito desse reflexo, praguejou baixo, dentro do bigode. Estava mais comovido do que convém a um Forsyte, gente por essência pouco expansiva.

Chegaram assim à galeria dos leões. Houvera, pela manhã, uma festa no Jardim Botânico, de modo que grande número de Forsyte, isto é, de gente bem vestida e com bons carros, tinha aproveitado a oportunidade para dar um passeio também até ao Jardim Zoológico, gozando um pouco mais o dinheiro dispendido antes de voltarem para casa.

«Vamos então ao Zoo», tinham dito uns aos outros. «Vai ser divertido. É dia de entrada a um shilling. Não haverá gentinha.»

Alinhados ao longo das jaulas, olhavam as feras vorazes que esperavam por trás das grades o único prazer do seu dia. Quanto mais a fera estava esfomeada, mais os fascinava. «Seria que lhe invejavam o apetite?», perguntava a si mesmo Jolyon filho. E ouvia comentários: «Bicho malvado, esse tigre!» «Oh, que amor! Olhe a boquinha dele! Ah, é uma beleza! Não chegue tão perto, mamã!»

E de vez em quando, com uma pancadinha rápida, cada um tacteava o bolso e olhava em torno de si, como se receasse que Jolyon filho, ou qualquer outra daquelas pessoas de fisionomia desinteressada, o aliviasse do porta-moedas.

Um homem bem nutrido, de colete branco, disse lentamente, entre dentes:

- É esgamação pura: eles não podem ter fome: não fazem exercício.

Nessa altura, um tigre abocanhou um pedaço sangrento de fígado, e o homem gordo pôs-se a rir. A mulher, que trazia um vestido de seda, de Paris, e luneta de ouro, censurou-o:

- Como é que você pode rir, Henry? É horrível ver isso! Jolyon filho franziu o cenho. As circunstâncias da sua vida,

embora ele já houvesse deixado de ter um ponto de vista muito pessoal a respeito delas, tinham-no deixado sujeito a certos movimentos de desprezo, e a classe a que havia pertencido - a casta das carruagens - excitava-lhe particularmente os sarcasmos. Manter numa jaula um leão ou um tigre é indiscutivelmente uma barbárie horrível, mas nenhum homem cultivado admite isso. Nunca ocorreria a seu pai, por exemplo, a ideia de que é uma crueldade aprisionar animais selvagens. Ele pertencia à escola antiga, que considerava humano e moral enjaular panteras e macacos, convencida, sem dúvida, de que com o tempo poder-se-ia persuadir os bichos a não morrerem tão desarrazoadamente de tristeza ou nostalgia encostados às barras da jaula, impondo assim à sociedade as despesas de uma substituição. Aos olhos de seu pai, como aos olhos de qualquer Forsyte, o prazer de contemplar aquelas lindas criaturas em estado de cativeiro compensava amplamente o inconveniente de prender os bichos que Deus, tão imprudentemente, criara livres. E, ademais, também era para o bem do animal, tiravam-no dos perigos sem conta da vida errante e da caça, persuadiam-no a exercer as suas funções na tranquila garantia de um compartimento particular! E, de facto, dava vontade de perguntar se os animais selvagens teriam sido feitos para outro destino, e não para as jaulas!

Porém, Jolyon filho, que tinha na sua natureza elementos de imparcialidade, reflectiu que não era justo estigmatizar como barbárie o que não passava de uma falta de imaginação, nenhum dos que assim pensavam jamais fora posto na situação dos animais enjaulados. Assim, como poderiam eles penetrar as suas sensações?

Só quase no momento de deixar o jardim - Jolly e Holly deliravam de felicidade - foi que o velho Jolyon teve ocasião de falar com o filho a respeito do assunto que mais o interessava.

- Não sei o que pense - disse ele. - Se o estado em que ela está se prolonga, não sei em que darão as coisas. Queria que consultasse um médico, porém ela não o quer. Não se parece nada comigo, é igual à sua mãe. Teimosa como uma mula. Se não quer fazer uma coisa, não a fará, e pronto!

Jolyon filho sorriu. O seu olhar pousara sobre o queixo do velho. «É sua parceira», teve vontade de dizer.

- E depois - continuava o velho Jolyon -, ainda existe esse Bosinney. Bem gostaria de lhe dar uns socos, creio que não posso. Mas não vejo por que razão você não se encarregaria disso - disse ele com um leve tom de dúvida.

- Que foi que ele fez? É melhor que acabem com isso, se as coisas não marcham bem.

O velho Jolyon olhou para o filho. Agora, quando abordavam francamente um assunto referente às relações entre os sexos, sentia-se desconfiado. Jo não poderia deixar de ter a tal respeito ideias mais relaxadas.

- Bem. não sei o que você pensará - disse ele. - Calculo que as suas simpatias serão por ele, isso não me admirará. Mas, quanto a mim, acho que se porta pessimamente e pretendo dizer-lhe isso, se o encontrar no meu caminho.

Deixou o assunto. Era impossível discutir com Jo o verdadeiro carácter e o verdadeiro sentido daquela defecção de Bosinney. Não praticara o filho a mesma coisa (até pior) quinze anos atrás?

E parecia que nunca acabariam as consequências daquela loucura.

Jolyon filho também ficou silencioso. Compreendera rapidamente o pensamento do pai, porque, destronado do assento elevado donde os Forsyte mantêm sobre a vida uma visão límpida e certeira, tornara-se penetrante e subtil.

Entretanto, a atitude que adoptara quinze anos atrás a respeito de moral sexual era muito diferente da atitude do pai. Impossível preencher esse vácuo.

Ele disse tranquilamente:

- Será que o rapaz se apaixonou por outra mulher? O velho Jolyon lançou-lhe um olhar de dúvida.

- Não o posso dizer. Eles falam.

- Então, provavelmente, é verdade.- O velho Jolyon não esperava aquela resposta. - E, segundo creio, disseram-lhe quem é?

- Sim. É a mulher de Soames.

Jolyon filho não estremeceu. A sua própria história obrigava-o a manter-se imperturbável. Porém olhou o pai com o fantasma de um sorriso a errar-lhe pelo rosto.

Se o velho Jolyon o percebeu, não o deu a entender.

- Ela e June eram amigas íntimas - murmurou.

- Pobre garota - falou docemente Jolyon filho, que ainda pensava na filha como uma pequenina de três anos.

O velho Jolyon parou de súbito.

- Não acredito numa palavra disso - disse ele. - São mexericos de solteironas. Procure-me um cab, Jo. Estou a morrer de cansaço.

Ficaram em pé, a um canto da rua, esperando o primeiro cab que passasse, enquanto desfilavam diante deles os inúmeros veículos que traziam ao Jardim Zoológico os Forsyte de inúmeras variedades. Os arreios, as librés, o pêlo liso dos cavalos reluziam ao sol de Maio. E cada carro, landau, vitória, faetonte ou charrette parecia dizer orgulhosamente, ao compasso das rodas:

 

I and my horses and my men you know, Indeed the whole turn out nave cost a pot.

mit we were worth it every penny. Look At Master and at Missis now, the dawgs! Ease with security. Thats the ticket! (1)

 

E essa canção, como todos sabem, é o acompanhamento por excelência para um Forsyte que se diverte.

Entre as carruagens havia uma vitória que avançava mais depressa do que as outras, puxada por dois cavalos de um baio brilhante. Oscilava sobre o eixo elevado, e as quatro pessoas que a ocupavam pareciam balançar-se num berço.

O veículo atraiu a atenção de Jolyon filho, que reconheceu imediatamente, sentado à frente, o seu tio James. Impossível um engano, apesar de as suíças se terem tornado brancas. Em frente dele, com as costas protegidas pelas sombrinhas, Rachel Forsyte e a irmã mais nova, porém casada, Winifred Dartie, em trajos irrepreensíveis, com um porte de cabeça altivo como o de certos pássaros que elas acabavam de ver no Zoo, depois, muito enterrado ao lado de James, Dartie, numa flamejante sobrecasaca nova que lhe apertava o busto quadrado, com os largos punhos engomados aparecendo-lhe sob as mangas.

Um brilho especial, embora discreto, uma camada suplementar de verniz melhor, luzindo mais ricamente, caracterizava aquele veículo e parecia distingui-lo dos outros. Dir-se-ia que o efeito de certo impulso feliz de génio, idêntico ao que distingue a verdadeira obra de arte do «quadro» ordinário, designava-o como o carro típico, o próprio trono do forsytismo.

O velho Jolyon não os viu passar, acarinhava a pobrezinha da Holly, que estava cansada. Mas do carro haviam percebido o pequeno grupo, e as cabeças das senhoras voltaram-se subitamente, num movimento espasmódico, enquanto as sombrinhas se dispunham em forma de cortina. O rosto de James avançou, ingènuamente,

 

*1 Veja-me a mim, os meus cavalos e os meus criados.

Realmente tudo isto custou um bom dinheiro!

Porém bem valemos cada penny gasto.

Olhe a patroa e o patrão!

Bem-estar e segurança! Eis o nosso lema!

 

como a cabeça de um grande pássaro, e a sua boca abriu-se devagar. Os escudos redondos das sombrinhas diminuíram, depois desapareceram.

Jolyom filho viu que fora reconhecido, até mesmo por Winifred, que não poderia ter mais de quinze anos quando ele perdera o direito de ser considerado um Forsyte.

Não haviam mudado quase nada. Jolyon filho recordava exactamente o aspecto da carruagem de James outrora: cavalos, criados, carros, deveriam decerto ter sido substituídos, mas guardavam identicamente o mesmo carimbo de quinze anos atrás. Era o mesmo desenrolar de luxo sóbrio, a mesma arrogância delicadamente doseada - bem-estar e segurança! O balanço do carro era exacto, exacta era a posição das sombrinhas, exacto o espírito que reinava sobre todo o conjunto.

E na avenida ensolarada, defendidos pelos altivos escudos das sombrinhas, os carros sucediam-se.

- Acabou de passar o tio James com as filhas - disse Jolyon filho.

A fisionomia do pai escureceu.

- Será que o seu tio nos viu? Sim? Hem? Que é que ele vem fazer por aqui?

Vinha afinal um cab vazio e o velho Jolyon fê-lo parar.

- Vou vê-los qualquer dia, meu rapaz! Não dê importância ao que lhe disse a respeito daquele moço Bosinney. Eu, por mim, não creio numa palavra!

Beijando as crianças, que procuravam retê-lo, subiu para o carro e partiu.

Jolyon filho, que tomara Holly nos braços, ficou imóvel na esquina, com os olhos fixos no cab que se afastava.

 

UMA TARDE EM CASA DE TIMOTHY.

SE o velho Jolyon, ao subir para o cab, dissesse: «Não quero crer numa palavra daquilo», teria exprimido o seu pensamento com mais veracidade.

E a ideia de que James e o seu mulherio o haviam visto em companhia do filho despertava no coração do velho Jolyon não só a impaciência decorrente da contrariedade, como também aquela secreta hostilidade natural entre irmãos. O germe dela já está nas rivalidades da meninice, mas, à medida que a vida passa, as raízes escondidas tornam-se mais duras e mais profundas e alimentam uma planta capaz de produzir a seu tempo os frutos mais amargos.

Até então não houvera, entre aqueles seis irmãos, senão a prevenção decorrente do receio de serem menos ricos uns que os outros. Para o fim da vida, à aproximação do momento em que cada um descobre o seu jogo, esse sentimentto precisava-se numa curiosidade excitada ainda pela extrema discrição do seu comum homem de negócios. Este, muito sagaz, quando estava junto de Nicholas, ignorava os rendimenttos de James, junto de James, ignorava os do velho Jolyon, junto de Jolyon, os de Roger, a Roger, afirmava não saber nada sobre a situação de Swithin, e a Swithin dizia, do modo mais irritante, que Nicholas deveria ser riquíssimo. Apenas Timothy ficara fora de questão, pois toda a sua fortuna estava empregada em valores consolidados.

Entretanto, agora, entre aqueles dois irmãos, surgira um ressentimento de espécie muito diversa. Desde o dia em que James tinha tido a impertinência de meter o nariz nos seus negócios - assim falava o velho Jolyon - este último não quis mais acreditar na história que contavam a respeito de Bosinney. A sua netinha humilhada pela nora daquele sujeito! E decidiu que andavam a caluniar Bosinney. A sua defecção deveria explicar-se de outra forma. June deveria ter-lhe feito uma das suas - ela era susceptível como o Diabo!

De qualquer modo, iria dizer em casa de Timothy o seu modo de pensar, e ver-se-ia se depois disso continuariam a fazer alusões. E não deixaria as coisas arrastarem-se, iria lá imediatamente, e arranjaria tudo de modo a não ter de o fazer outra vez.

Ao chegar ao Bower, viu o carro de James à porta, impedindo a passagem. Tinham-no pois precedido, decerto já estavam a mexericar, lá em cima, a respeito do encontro. Um pouco além, os cavalos tordilhos de Swithin, venta a venta com a parelha baia de James, pareciam discutir sobre a família, e os cocheiros, por cima deles, confabulavam sobre o mesmo assunto.

O velho Jolyon depôs o chapéu no pequeno vestíbulo, sobre a mesma cadeira onde, tempos atrás, o chapéu de Bosinney fora tomado por um gato, passou severamente a mão magra sobre o rosto de longos e brancos bigodes caídos, como para tirar dele qualquer expressão, depois subiu a escada.

Encontrou cheia a primeira sala, essa sala já era suficientemente cheia quando não tinha ninguém lá, porque Timothy e as irmãs, fiéis às preferências da sua geração, achavam que um compartimento deve sempre ser «mobilado convenientemente». Aquele continha onze cadeiras, um sofá, três mesas, dois armários, inúmeros bibelots e a cauda de um grande piano. E agora, ocupado por Mrs. Small e pela tia Hester, pois Swithin, James, Rachel, Winifred, Euphemia (que viera restituir Paixão e Paregórico, já lido durante o almoço) e a sua amiga Frances, filha de Roger (a muskãsta da família, compositora de canções), o salão não oferecia mais, além de um par de poltronas onde ninguém se sentava, que uma cadeira disponível. O único espaço onde se poderia ainda ficar de pé estava ocupado pelo gato, cuja cauda o velho Jolyon pisou.

Naquela época essa grande quantidade de visitas em casa de Timothy não tinha nada de insólito. Toda a família sempre sentira um respeito verdadeiro pela tia Ann. Agora, que ela já não estava lá, vinha-se mais ao Bower e demorava-se lá mais tempo.

Swithin chegara primeiro e, dormitando na sua poltrona de cetim vermelho e espaldar dourado, parecia que seria o último a sair. Ilustrando o apelido de «gigante» que Bosinney lhe dera, com a sua grande e maciça estatura, os espessos cabelos brancos, a imutável face fofa e raspada, parecia mais primitivo ainda na decoração estofada de mais da sala.

Como lhe era habitual, depois de um certo tempo, pôs-se imediatamente a falar de Irene e não demorou a dar a sua opinião à tia Hester e à tia Juley sobre os boatos que, segundo soubera, começavam a correr mundo.

Não, opinava Swithin, ela poderia ter vontade de flirtar um pouco, é natural que uma mulher se divirta, porém não acreditava em nada mais. De qualquer modo, em nada de tangível, Irene tinha muito bom senso, sabia muito bem o que devia à sua situação, à família. Nada de esc... Ele ia dizer «escândalo», mas essa ideia pareceu-lhe 'tão absurda que Swithin ergueu apenas a mão, como para dizer: «Não falemos mais nisso!»

Admitamos que Swithin julgava a situação do seu ponto de vista de celibatário. E, no entanto, quanto realmente não era devido a essa família que tão bem governara os seus negócios e da qual tantos membros haviam atingido tão belas posições? Se, em momentos sombrios e pessimistas, ele havia escutado as palavras «yeomen» e «cerveja grossa», aplicadas aos seus antepassados, teria acreditado nelas?

Não! Alimentava e acarinhava no coração a teoria secreta de que haveria um elemento distinto em alguma parte da sua linhagem.

- É evidente - dizia ele um dia a Jolyon filho. - Olhe para nós, como triunfámos! O nosso sangue deve ter influído alguma coisa nisso.

Tivera muita amizade por Jolyon filho. O pequeno crescera num bom grupo, no colégio, conhecera os filhos daquele velho bandido Sir Charles Fin (um dos quais se tornara um grande patife), era elegante, o garoto. Fazia realmente dó que tivesse fugido com aquela moça estrangeira, e ainda por cima professora! Se tinha que cometer aquela tolice, porque não escolhera alguém que os lisonjeasse? E em que se tornara? Empregado nos Lloyds, dizia-se até que pintava - pintava! Coa breca! E teria podido acabar como Sir Jolyon Forsyte baronete, com um assento no Parlamento e um lugar no país!

Swithin, obedecendo ao impulso que cedo ou tarde leva até lá os membros de qualquer família importante, fora um dia ao Herald Office. Lá lhe tinham garantido que ele pertenceria, sem dúvida nenhuma, à família dos Forsite com i, cujas armas eram «três escudos dextros, sobre duas espadas em fundo de saibro». E esperavam, evidentemente, persuadi-lo a usá-las.

Swithin, entretanto, não as usou, mas, tendo-se certificado de que o escudo era encimado por um faisão e pela divisa «For Forsyte», fez gravar um faisão no seu carro e nos botões do seu cocheiro, guardou a divisa para o papel de cartas, quanto ao brasão, contentava-se em trazê-lo no coração, em parte porque, não tendo pago o direito legal de o usar, dizia de si para si que seria ostentação fazê-lo figurar na carruagem, em parte também porque, como todo o homem prático do seu país, sentia uma aversão e um desdém ocultos pelas coisas que não compreendia. E, como tantas outras pessoas, considerava a fórmula «três escudos dextros, sobre duas espadas em fundo de saibro» difícil de compreender.

E entretanto haviam-lhe dito no escritório que lhe bastaria pagar os direitos para poder usar o brasão. Swithin nunca esquecera isso, e fortificara-se na sua convicção de que nascera gentleman. Insensivelmente, o resto da família adoptou o faisão e alguns, mais sérios que outros, adoptaram também a divisa.

O velho Jolyon, entretanto, recusou-se a usar esta última, declarando que era uma pilhéria e não queria dizer nada.

Na geração dos seis irmãos sabia-se talvez a fundo a que grande acontecimento histórico se ligavam aquelas armas. E quando os interrogavam, em vez de mentir - coisa boa para franceses e russos, a mentira - confessavam rapidamente que Swithin fizera um dia aquela descoberta, ninguém sabia como.

Na geração seguinte, evitava-se o assunto com toda a discrição conveniente. Ninguém queria ferir os sentimentos dos mais velhos nem atrair o ridículo sobre si mesmo. Usavam-se as armas, simplesmente...

Não, dizia Swithin, ele estava em condições de julgar os factos e nada havia nas maneiras de Irene para com aquele jovem Pirata, ou Bosinney, como quer que lhe chamassem, diferentes dos seus modos para com ele próprio, Swithin. Até, poder-se-ia dizer... Mas aí, infelizmente, a entrada de Frances e Euphemia interrompeu a conversa, porque não se poderia discutir tal assunto diante das moças.

E embora Swithin se sentisse um pouco atrapalhado por lhe cortarem a palavra no momento em que ia dizer algo importante, em breve tornou-se afável. Gostava muito de Frances - Francie, como lhe chamavam em família. Era muito elegante e toda a gente dizia que enchia bem o seu mealheiro com o dinheiro ganho nas canções que compunha.

Swithin envaidecia-se por ter uma atitude muito liberal em relação às mulheres, não via razão nenhuma que as impedisse de pintar quadros, escrever romances ou mesmo livros, se o quisessem, principalmente se isso lhes rendesse algum dinheiro. Razão nenhuma! Isso até as impedia de fazer tolices. Para os homens, é diferente.

A «Pequena», como ele chamava a Francie com um pouco de 'benévolo desdém, era uma personagem importante, se não por outra coisa, pelo menos por ilustrar a atitude dos Forsyte em relação à arte. Ela não era «pequena», antes alta, tinha os cabelos escuros para uma Forsyte, o que, com os olhos pardos, dava-lhe, dizia-se, um «tipo celta». Compunha romanças que se chamavam, por exemplo, Suspiros Profundos, ou então Beija-me, Mamã, Antes Que Eu Morra, com um estribilho em estilo de hino:

 

     Kiss me, Mother, ere I die,

     Kiss me, kiss me, Mother, ah!

     Kiss, ah, kiss me - e - ere I -

     Kiss me, Mother, ere I d-d-die! (1)

 

Ela própria inventava as letras, e escrevia também outros poemas. Em fases de inspiração mais leve, compunha valsas: uma delas, a Farândola de Kensington, tornara-se popularíssima lá em Kensington. Logo ao segundo compasso tinha uma «queda» encantadora:

Era muito original. E depois, tinha ainda as Canções para os Pequeninos, ao mesmo tempo pedagógicas e espirituosas, onde se notava sobretudo O Netinho do Avô, e esse outro canto, impregnado quase profeticamente do espírito imperialista que iria em breve surgir: Faz-lhe Uma Mancha no Olho! As suas obras eram aceites por qualquer editor, e revistas tais como a High Living ou a Ladie's Genteel Guide, extasiavam-se assim sobre as composições de Francie: «Mais uma das espirituosas canções de Miss Francie Forsyte. Esta última, cintilante e patética, comoveu-nos a todos, desde o riso até às lágrimas. Miss Forsyte irá longe.»

 

*1. Beija-me, mamã, antes que eu morra! Beja-me, beija-me, mamã, ah! Beija-me, ah, beija-me antes, Beija-me, mamã, antes que eu m-m-morra!

 

Com o autêntico instinto da sua raça. Francie empreendera a tarefa de conhecer pessoas cujo convívio valia a pena frequentar, os que escreveriam a seu respeito, falariam nela, e ainda havia as pessoas da sociedade. Tinha um registo mental que lhe dizia com exactidão onde deveria exercer os seus encantos, e guardava o olho interior posto sobre aquela escala regular e sólida de lucros sempre em aumento, que, para ela, representavam o futuro. E desse modo fazia-se respeitar universalmente.

Uma única vez, em que as suas emoções haviam sido estimuladas por uma afeição (pois a vida de Roger, inteiramente consagrada à colecção de casas, desenvolvera na filha mais velha uma tendência para a paixão), Francie volvera-se para o grande trabalho sincero, e escolhera uma sonata para violino. Foi essa a única das suas produções que inquietou os Forsyte. Sentiram imediatamente que aquilo não se venderia.

Roger, que gostava de ter uma filha inteligente, e que falava sempre no dinheiro ganho por ela, sentiu-se desconcertado por aquela sonata. «Não significa nada!», dizia ele. Francie pedira emprestado a Euphemia o jovem Flageoletti para tocar a sonata no salão do pai.

De facto, Roger tinha razão, aquilo era nulo, e além disso aborrecido e do género invendável. Porque, como o sabe todo o Forsyte, uma nulidade que se vende não é uma nulidade, longe disso!

E entretanto, apesar desse sólido bom senso que fixa o valor de uma obra de arte pelo que ela rende, alguns dos Forsyte - a tia Hester, por exemplo-, que sempre gostara de música, não podia deixar de lamentar que as músicas de Francie ou os seus poemas não fossem «clássicos». É verdade, como o dizia a tia Hester, que nos tempos de hoje já não se vê poesia, os poemas são apenas «coisinhas leves». Não há mais ninguém que possa escrever um poema como o Paraíso Perdido ou o Child Harold, obras que nos fazem sentir que realmente lemos alguma coisa. Pelo menos, era muito agradável para Francie ter em que se ocupar. Enquanto as outras moças gastavam dinheiro pelas lojas, ela ganhava-o! A tia Hester e a tia Juley estavam sempre prontas para ouvir as explicações do sistema pelo qual Francie esperava elevar os seus preços.

Era justamente o que ela estava a dizer às tias e a Swithin, que entretanto pretendia não compreender nada, essas moças falam tão depressa e engolem tantas palavras que ele não podia apanhar nada do que elas diziam!

- Não posso imaginar - dizia Mrs. Septimus Small - como é que você faz isso. Eu nunca teria essa audácia!

Francie sorriu de leve:

- Gosto mais de ter negócios com um homem do que com uma mulher. As mulheres são espertas de mais!

- Minha querida - exclamou Swithin -, garanto-lhe que você está a caluniar-me!

Euphemia soltou o seu riso silencioso, que terminava por um ganido, e gritou como se a estrangulassem:

-Oh, a senhora mata-me, tia!

Swithin não via naquilo razão para risadas, detestava que rissem por coisas em que nada vira de engraçado. E, ademais, detestava Euphemia. Só falava dela dizendo: «A filha de Nick, como é mesmo o nome dela, a pálida?» Por um triz fora o seu padrinho, tê-lo-ia sido se não houvesse protestado energicamente contra esse nome absurdo. Tinha horror a ser padrinho. Swithin olhou para Francie e disse-lhe com dignidade:

- O dia está bonito... hum... para a estação...

Mas Euphemia, que sabia perfeitamente da recusa dele em ser seu padrinho, virou-se para a tia Hester e pôs-se a contar que encontrara Irene - Mrs. Soames - na Church amd Commercial Stores.

- E Soames estava com ela? - perguntou a tia Hester, a quem Mrs. Small não tivera ainda tempo de relatar o incidente.

- Soames com ela? Naturalmente que não!

- Então ela anda sozinha em Londres?

- Não, não, Mr. Bosinney acompanhava-a. Ela estava muitíssimo bem vestida.

Swithin, ouvindo o nome de Irene, olhou severamente para Euphemia, que, era preciso confessar, nunca estava bem vestida em trajos de rua, qualquer que fosse o aspecto que apresentasse noutras ocasiões.

- Vestida como uma lady, estou certo. É um prazer olhá-la.

Nesse momento, anunciaram James e as filhas. Dartie, que morria de vontade de tomar um copo de qualquer coisa, invocara um compromisso com o dentista, e, fazendo que o deixassem em Marble Arch, saltara para um tilbury, no momento, estava numa das janelas do seu clube, em Piccadily.

A sua mulher, disse ele aos amigos, quisera levá-lo a fazer visitas. Mas ele não estava para isso, ah, não! Chamando um criado, mandou-o ao vestíbulo, para ver quem ganhara a corrida das quatro e meia. Estava esgotado, dizia ele, e era verdade. Passara toda a tarde em companhia da mulher, a correr de uma exposição para outra. Acabara por mostrar que estava farto. Cada um deve viver a sua própria vida.

Nesse instante, enquanto ele olhava da sacada - gostava daquele lugar, donde podia ver toda a gente passar -, teve a pouca sorte, ou antes, a sorte de avistar o vulto de Soames, que, vindo de Green Park, atravessava a rua no seu passo cauteloso, com a evidente intenção de entrar. Ele também pertencia ao Iseum.

Dartie deu um salto, agarrando o copo, murmurou qualquer coisa a respeito da corrida das quatro e meia e fugiu rápido para a sala de jogo, onde Soames nunca punha os pés. Lá, completamente isolado, num lugar meio escuro, «viveu a sua vida» até às sete e meia, hora em que com toda a certeza Soames deixaria o clube.

Todas as vezes que lhe dava a tentação de ir conversar com os outros homens que mexericavam na sacada, continha-se pensando que seria péssimo para ele, com as suas finanças no estado deplorável em que estavam, arriscar-se a uma briga com Winifred. Principalmente agora, que o velho James apertara os cordões da bolsa, depois de uma certa história de emprego de capital num negócio de óleos.

Se Soames o visse no clube, poderia ficar certo de que apareceria alguém para contar a Winifred que ele não estivera absolutamente no dentista. Nunca Dartie vira uma família onde as coisas «dessem a volta» com tanta rapidez.

Pouco à vontade, por entre as mesas de jogo cobertas de drap verde, uma ruga na face azeitonada, as pernas vestidas com calças de xadrez, as botinas de verniz luzindo à meia luz, Dartie mordia o indicador, perguntando a si mesmo onde arranjaria dinheiro se Erotic não ganhasse a taça de Lancashire.

Os seus pensamentos arrastavam-se, melancólicos, sobre os Forsyte. Que colecção que eles formavam! Nada se tirava daquela gente, ou, pelo menos, nada se tirava senão com uma extrema dificuldade. Eram diabólicos em matéria de dinheiro, não havia um único sportman no meio deles, a não ser talvez George. Aquele Soames, por exemplo, teria um ataque se alguém tentasse pedir-lhe emprestada uma nota de dez libras, e, na falta de ataque, tinha sempre de reserva aquele sorriso superior, como se alguém fosse um homem perdido apenas porque carecia de dinheiro.

E a mulher de Soames! Só de pensar nela, vinha-lhe água à boca. Dartie tentara dar-se bem com ela, como é costume fazer-se com qualquer cunhada bonita, mas diabos o levassem se ela (e Dartie empregou uma palavra feia) o consentira. Olhava-o como se ele fosse a lama do chão, e entretanto seria capaz de apostar que ela poderia ir longe. Conhecia as mulheres. Não era à toa que ela tinha uma cintura como aquela, e Soames faria bem se procurasse saber logo se havia qualquer coisa de verdadeiro no que se contava do pirata.

Erguendo-se da cadeira, Dartie deu uma volta pela sala e parou diante do espelho que encimava a lareira de mármore. Ficou muito tempo a contemplar o rosto. Tinha aquele ar característico de algumas caras de homem que parecem ter sido mergulhadas em óleo de linhaça, com os seus bigodes negros e encerados e a sombra distinta das suíças nascentes. Notou com contrariedade que se anunciava uma espinha num dos lados do seu nariz gordo e ligeiramente curvo.

Durante esse tempo, o velho Jolyon atingira a única cadeira ainda livre na confortável sala de Timothy. A sua chegada fizera evidentemente que a conversa parasse e trouxera o peso de uma sensação incómoda sobre todos. A tia Juley, com a sua bondade de alma habitual, tratou de pôr toda a gente à vontade:

- Sim, Jolyon. nós estávamos justamente a dizer que havia muito tempo que você não aparece aqui, mas não é de admirar. Naturalmente anda ocupado, não é? James estava justamente a dizer que estamos num período do ano tão ocupado!

- Na verdade? - disse o velho Jolyon, fitando os olhos em James. - Mas o ano não seria ocupado nem a metade do que o é se cada um só cuidasse do que é da sua conta.

James, que cismava numa cadeira baixa, donde os seus joelhos subiam em ângulo recto, mexeu nervosamente os pés e pô-los sobre o gato, que, enxotado pelo velho Jolyon, procurara imprudentemente um refúgio junto dele.

- Vocês têm um gato aqui! - disse em voz ofendida, retirando sobressaltado o pé que se enterrara no pêlo veludoso do bicho.

- Têm vários - disse o velho Jolyon, passeando o seu olhar de um rosto a outro. - Há outro em que eu tropecei ainda agora.

Seguiu-se um silêncio.

Então Mrs. Small, torcendo os dedos e olhando em torno de si com uma inocência apavorante, perguntou:

- E como vai a nossa querida June?

Um clarão de divertimento atravessou os olhos severos do velho Jolyon. Que mulher extraordinária, aquela Juley! Não havia outra igual a ela para dizer sempre o que não convinha!

- Vai mal-respondeu ele. - Londres não serve para ela: há muita gente em redor, muitos mexericos, muitas línguas a falar.

Acentuou as últimas palavras e novamente olhou para James.

Ninguém respondeu nada.

Sentiam-se todos dominados pela sensação de que seria perigoso de mais tomar alguma iniciativa, arriscar alguma observação. Algo de análogo àquele sentimento de ameaça suspensa que invade o espectador de uma tragédia grega entrara naquela sala mobilada de mais. cheia de velhos de sobrecasaca, de cabelos brancos, e de mulheres bem vestidas, todos do mesmo sangue, ligados todos por um laço de inexcedível semelhança.

Então Swithin ergueu-se. Não. não ficaria mais tempo ali! Não se deixaria intimidar por ninguém! E, manobrando através da sala com um andar mais majestoso que de costume, apertou sucessivamente as mãos de todos.

- Pois digam por mim a Timothy que o mal dele é abusar de cautelas! - Depois, voltando-se para Francie, a quem considerava «elegante», acrescentou: - Venha um dia destes dar um passeio de carro comigo. - Porém, essas palavras evocaram imediatamente a visão de outro memorável passeio, do qual se falara tanto, e Swithin ficou absolutamente imóvel durante um segundo, com os seus olhos de vidro fixos, como se esperasse apanhar o sentido das palavras que acabava de pronunciar. Depois, recordando-se subitamente que pouco se importava com aquela história, voltou-se para o velho Jolyon: - Bem, boa noite, Jolyon! Você não devia andar sem sobretudo, acaba por apanhar uma ciática ou qualquer coisa semelhante.

Empurrou o gato com o bico da botina envernizada e a porta fechou-se sobre a sua vasta pessoa.

Depois que ele saiu, cada um olhou furtivamente para todos os outros, para ver como havia sido recebida a menção da palavra «passeio», a palavra que se tornara famosa, que adquirira uma importância enorme, pois ligava-se às únicas notícias por assim dizer oficiais concernentes ao vago e sinistro rumor que assombrava as conversas da família.

Euphemia, cedendo a um impulso, disse com um riso rápido":

- Felizmente o tio Swithin não me convida para passeios! Mrs. Small, para a tranquilizar e para afastar o que aquele

assunto tinha de desconfortável, respondeu:

- Minha querida, é o gosto dele, levar uma senhora bem vestida que lhe dê importância. Nunca mais esquecerei o passeio que demos juntos. Que experiência!

O seu velho rosto redondo e bochechudo iluminou-se um momento numa singular satisfação, depois distendeu-se numa contracção penosa e lágrimas molharam-lhe os olhos. Ela recordava uma pequena viagem de carro que fizera há muitos anos em companhia de Septimus Small.

James, que, lá na cadeirinha baixa, retornara às suas preocupadas cismas, sacudiu-as de súbito:

- Sujeito engraçado, Swithin.

Mas a sua voz tinha um timbre apenas meio convencido.

O silêncio do velho Jolyon, os seus olhos severos, mantinham-nos todos numa espécie de paralisia. Ele mesmo estava desconcertado pelo efeito das suas próprias palavras, efeito que parecia aumentar ainda mais aquele rumor a que viera cortar a língua Mas ainda estava encolerizado.

Ainda não acabara o seu negócio com eles: não, ainda tinha de lhes dar uma ensinadela! Não tinha vontade de ser desagradável com as sobrinhas, não tinha queixa delas - o velho Jolyon sempre se sentia clemente com uma mulher jovem e passável -, mas aquele James, e em menor grau, talvez, os outros irmãos e irmãs, mereciam bem o castigo que lhes daria. E, por sua vez, perguntou por Timothy.

Como se pressentisse que algum perigo ameaçava o irmão mais velho, a tia Juley ofereceu subitamente ao velho Jolyon uma xícara de chá:

- O chá está à espera na outra sala, está frio e ruim. mas Smither fará um novo para si.

O velho Jolyon ergueu-se.

- Obrigado - disse, fitando os olhos de James-, não tenho tempo para chá... nem para escândalos... nem para o mais! Está na hora de ir para casa. Até à vista, Juley, até à vista. Hester: até à vista, Winifred.

E sem adeuses mais cerimoniosos, saiu com um passo forte Quando subiu ao carro, a sua cólera evaporou-se, porque ele era sempre assim, nas suas irritações: depois que feria, tudo se acabava. Uma tristeza caiu-lhe sobre o espírito. Fechara-lhes talvez a boca, mas a que preço! Agora já não duvidava que fosse verdadeiro o rumor no qual se recusava acreditar: June fora abandonada, e pela nora daquele sujeito! Sentia a certeza da coisa e retesava-se ainda para a repelir. Porém o sofrimento que ele escondia sob esse esforço começava, surdamente, lentamente, a transformar-se num cego ressentimento contra James e o filho. As seis mulheres e o único homem que ficaram na sala puseram-se a conversar com quanta liberdade era possível depois do que acabava de se passar. Cada um sabia de si que não comentava nunca escândalo nenhum, mas não ignorava que os seis outros o faziam, todos estavam pois irritados e desconcertados.

James foi o único que se manteve em silêncio, perturbado até ao mais profundo da sua alma.

Ao cabo de um momento, Francie observou:

- Sabem, estou a achar que o tio Jolyon está a mudar terrivelmente de um ano para cá. Que é que a senhora acha, tia Hester?

A tia Hester teve um pequeno movimento de recuo:

- Oh, pergunte à sua tia Juley, eu não entendo disso. Ninguém entre os outros teve medo de concordar, e James,

de cabeça baixa, murmurou lugubremente:

- Ele está muito abatido.

- Há muito tempo que o noto- disse Francie.- Ele está a envelhecer extraordinariamente.

A tia Juley abanou a cabeça, e subitamente o seu rosto cobriu-se de covinhas:

- Coitadinho do Jolyon! Alguém deveria cuidar dele.

Houve um novo silêncio, depois, como se cada um se sentisse movido pelo terror de ficar sozinho para trás, as cinco visitas ergueram-se ao mesmo tempo e despediram-se.

Mrs. Small, a tia Hester e o gato viram-se a sós, e o som de uma porta que se fechava, no fim da casa, anunciou a aproximação de Timothy.

Nessa mesma noite, a tia Hester acabava de adormecer no quarto que fora outrora o da tia Juley, antes que a tia Juley se passasse para o que fora da tia Ann: a porta abriu-se e Mrs. Smal! entrou, com uma touca na cabeça, uma vela na mão.

- Hester! - disse ela. - Hester!

A tia Hester fez remexer levemente os lençóis

- Hester! - repetiu a tia Juley, para estar bem certa de a haver acordado. - Estou aflita por causa do pobrezinho do Jolyon. O que é - e a tia Juley acentuava a interrogação - que você acha que a gente deve fazer?

A tia Hester fez novamente farfalhar os lençóis, e murmurou numa voz fraca e queixosa:

- O que é que a gente deve fazer? Como é que você quer que eu saiba?

A tia Juley voltou para o seu quarto, satisfeita. Quis fechar a porta com uma leveza excepcional para não incomodar a querida Hester, mas a mão escorregou e a porta bateu com estrépito. Voltando ao quarto, pôs-se em pé junto à janela, olhando, por entre as duas cortinas de cambraia que ela puxava, com medo de que a vissem de fora, o lugar sobre as árvores do parque. E ali, de olhos húmidos, o rosto redondo e mole dentro da touca cor-de-rosa, pôs-se a pensar no querido Jolyon, tão velho, tão só, pôs-se a imaginar como o auxiliaria, e como ele ficaria a gostar dela, a gostar «como nunca mais ninguém gostara desde... desde que o pobre Septimus se finara.»

 

O BAILE EM CASA DE ROGER.

A casa de Roger, em Princes Gardens, estava brilhantemente iluminada, inúmeras velas de cera em candelabros de cristal lavrado reflectiam as suas constelações sobre o soalho de dois salões contíguos. Dera-se um aspecto de amplidão às salas levando-se o mobiliário para o andar superior e rodeando-as com esses singulares acessórios da civilização a que chamam cadeiras douradas.

Num canto afastado, um piano estava escondido entre palmas verdes, com um exemplar da Farândola de Kensington aberto sobre a estante.

Roger não quisera orquestra. Não compreendia a sua utilidade, nem faria tal despesa: não valia a pena nem mesmo discutir o assunto. Francie (a mãe dela, que Roger reduzira a um estado de dispepsia crónica, ficava de cama nessas ocasiões) teve pois de se contentar em reforçar o pianista com um rapaz que tocava cornetim: e dispôs de tal modo as palmeiras que quem não gostasse de aprofundar muito as coisas poderia imaginar estarem ali vários músicos. Resolveu ordenar aos músicos que tocassem com força. Poder-se-ia tirar muita música de um cornetim, se se tocasse com toda a alma.

Enfim, conseguiu chegar ao termo desse tortuoso labirinto de expedientes que é preciso atravessar antes de conseguir combinar uma apresentação elegante com a sólida economia dos Forsyte. Esguia, mas elegante no seu vestido cor de milho, com uma nuvem de tule nos ombros, ia de lugar em lugar, ajustando as luvas, lançando um derradeiro golpe de vista ao conjunto.

Ao criado, alugado para a ocasião (todo o pessoal doméstico de Roger era feminino) ela falou a respeito do vinho. Compreendera bem que Mr. Forsyte desejava que se trouxesse para cima uma dúzia de garrafas de champanhe de Whiteley? Se as acabassem (coisa em que ela não acreditava, porque a maioria das senhoras bebia apenas água), mas enfim, se as acabassem, restava apenas o cup de champanhe, e tinham de se arranjar com isso.

Francie detestava ter de dizer essas coisas a um criado. Era tão vulgar! Mas como poderia proceder, com um pai como o que tinha? Quanto a Roger, depois de se ter mostrado sistematicamente desagradável a respeito do baile, iria descer dali a pouco, com a sua cor rosada e a testa protuberante, e tomaria ares de organizador da festa. Sorriria, conduziria provavelmente à ceia a mulher mais bonita, e às duas horas, quando a festa estivesse no auge, iria sub-repticiamente dizer aos músicos que tocassem o God Save The Queen e desaparecessem.

Francie esperava do fundo do coração que ele se sentisse logo cansado e se eclipsasse para a cama.

As três ou quatro amigas íntimas que tinham vindo ficar em casa dela, por causa do baile, haviam partilhado em companhia de Francie, lá em cima, num quartinho abandonado, o chá e as coxas de galinha fria, servidos de qualquer modo. Quanto aos homens, tinham sido mandados jantar no Eustace's Club. Sentia-se que eles deveriam estar bem alimentados para a circunstância. Quando batiam as nove horas, Mrs. Small chegou só, pontualmente. Desculpou laboriosamente Timothy, mas silenciou a respeito da tia Hester, que à última hora declarara não estar disposta a sair dos seus cómodos. Francie recebeu efusivamente a tia. fê-la sentar numa cadeirinha de espaldar dourado, onde a deixou a fazer os seus trejeitos habituais, solitária, num vestido de cetim cor de alfazema. Era a primeira vez que a tia Juley vestia um trajo de cor depois da morte da tia Ann.

As amigas íntimas desciam agora dos seus quartos. Como por acaso, usavam vestidos de cores diferentes, mas traziam a mesma profusão de gaze nos ombros e no peito, porque uma fatalidade quisera que fossem todas magras. Foram apresentadas a Mrs. Small. Nenhuma ficou junto da tia Juley mais de alguns segundos, e, agrupadas, pairavam, retorcendo nas mãos os carnets e espiando furtivamente na porta a primeira aparição de uma casaca.

Depois chegaram em grupo um certo número de componentes da família de Nicholas - sempre pontuais, pois essa era a moda nos lados de Landbroke Grove - e nos seus calcanhares vieram Eustace e os seus amigos, melancólicos e cheirando um pouco a fumo.

Três ou quatro dos apaixonados de Francie apareceram então, um após o outro, ela fizera que cada um lhe prometesse chegar cedo. Vinham todos completamente barbeados, com esse jeito especialmente vivo nos modos e no andar que, havia algum tempo, estava na moda em Kensington. Nenhum deles parecia absolutamente incomodado pela presença dos outros, usavam gravatas de grandes laços, coletes brancos, meias de baguette. Escondiam todos um lenço no punho da camisa. Circulavam em passos elásticos, cada um dentro da sua armadura de alegria profissional, como se tivessem vindo ali para realizar grandes feitos. Durante a valsa, os rostos deles, longe de reflectirem a tradicional solenidade do inglês que dança, eram de expressão abandonada, encantadora, suave. Saltavam, faziam que os seus pares girassem a grande velocidade, sem nenhuma atenção afectada ao ritmo da música. Olhavam para os outros dançarinos com uma espécie de desprezo alegre, eles, os da «Brigada Ligeira» (1), os heróis de cem hops de Kensington, únicos modelos infalíveis da legítima maneira de sorrir e caminhar.

Depois a onda de convidados engrossou rapidamente, depondo os chaperons ao longo da parede que fazia face à entrada

 

*1. The Light Brigade: alusão a um corpo de cavalaria que se ilustrou na Crimeia e foi glorificado por uma poesia célebre de Tennyson.

 

e arrastando o elemento mais jovem para aumentar o redemoinho no salão maior.

Os homens eram poucos, e as moças, habituadas a «fazer renda», tinham a sua expressão habitual, o seu sorriso patético e pouco seguro, que parecia dizer: «Oh, não, não se engane! Eu sei que não é na minha direcção que o senhor vem! Na verdade, não posso esperar por isso!» E Francie pleiteava junto de um dos seus namorados ou de qualquer mocinho: «Por favor, para me ser agradável, deixe-me apresentá-lo a Miss Pink. Ela é tão amável!» E arrastava-o, dizendo: «Miss Pink, Mr. Gathercole. Poderia reservar-lhe uma dança?» Então Miss Pink, sorrindo o seu sorriso forçado e corando um pouco, respondia: «Oh, creio que sim!» E, escondendo o carnet vazio, escrevia apaixonadamente nele o nome de Gathercole, no lugar que ele propusera, o segundo extra.

Mas quando o rapaz balbuciava que fazia calor, e partia, ela recaía na atitude de espera sem esperança e retomava o seu sorriso paciente e pouco seguro.

As mães, que abanavam lentamente o rosto, observavam as filhas, e poder-se-ia acompanhar nos seus olhos a fortuna destas últimas. Ficarem sentadas, horas e horas, mortas de cansaço, silenciosas ou falando uma vez ou outra, pouco importava às mães, conquanto as filhas se divertissem. Mas vê-las abandonadas! Ah, sorriam, mas havia punhais nos seus olhos, como nos de um cisne ofendido, cada uma delas desejaria agarrar um Gathercole pelo cinturão das calças de dandy e arrastá-lo até à filha. O impertinente!

E todo o bem e o mal da vida - crueldade patética, injustiça, abnegação, paciência - figuravam no campo de batalha desse baile de Kensington.

Aqui e ali havia namorados - não namorados como os de Francie, que eram de uma espécie particular-, mas namorados comuns, trémulos, enrubescidos, silenciosos, que se chamavam entre si por olhares fugitivos, procuravam encontrar-se, tocar-se nos meandros da dança, e às vezes, se dançavam juntos, espantavam o espectador com a luz que lhes brilhava nos olhos.

Os James chegaram quando batiam as dez horas, nem um minuto mais cedo: Emily, Rachel, Winifred (haviam deixado Dartie em casa, uma vez, e numa ocasião idêntica, em casa de Roger, ele bebera champanhe de mais) e Cicely, a mais jovem, que vinha estrear-se. Atrás deles, vindos de cab da casa paterna, onde haviam jantado, Soames e Irene.

Todas aquelas senhoras usavam simples alças nos ombros, sem nuvem de tule, mostrando assim à primeira vista, por uma exibição mais ousada dos seus encantos, que vinham do lado mais elegante do parque.

Soames, fugindo ao turbilhão de dançarinos, colocou-se de encontro à parede. Em pé, armado com o seu sorriso pálido, olhava. Valsa desenrolava-se sobre valsa, um par roçava-o no voo, via passar rostos sorridentes, ouvia um riso, uma ponta de conversa, uns dançavam de lábios fechados, com os olhos a revistar a multidão, outros, de lábios silenciosamente entreabertos, olhos nos olhos. E o cheiro da festa, o perfume das flores, dos cabelos, das essências que as mulheres preferem, elevavam-se, sufocantes, no calor da noite de Verão.

Mudo, com o sorriso mesclado de algum desdém, Soames parecia não ver nada, mas, de tempos a tempos, os seus olhos, encontrando o que procuravam, prendiam-se a um ponto movediço da multidão e o seu sorriso desaparecia.

Não dançava. Alguns bons rapazes dançavam com as suas esposas, porém o seu senso do decoro nunca lhe permitira dançar com a mulher depois do casamento. E só o Deus dos Forsyte poderá saber se seria ou não um alívio para Soames não poder convidar Irene.

Ela passava, dançando com outros homens, o seu vestido cor de íris voava-lhe aos pés. Dançava bem, e ele já se sentia cansado de ouvir as mulheres dizerem-lhe: «Como a sua senhora dança bem, Mr. Forsyte! É realmente um prazer olhá-la!» E, além disso, começava também a ficar cansado de lhes responder, com o seu olhar de viés: «A senhora acha?»

Pertinho dele, um rapaz e uma moça abanavam-se cada um por sua vez com o mesmo leque, provocando um movimento de ar que o irritava. Francie, dois passos além, conversava com um dos namorados: falavam de amor.

Ouviu atrás de si a voz de Roger fazendo uma recomendação a um criado a respeito da ceia. Era tudo de segunda ordem! Soames lamentava ter vindo. Perguntara a Irene se precisava que a acompanhasse, e ela respondera com o seu sorriso de enlouquecer: «Oh, não!»

Porque viera então? Há mais de um quarto de hora que já não a via. E vinha agora George, com a sua cara de palhaço, era tarde de mais para o evitar.

- Você viu o pirata? - perguntou aquele engraçado oficial. - Está de armas embaladas, cabelos cortados, equipamento completo.

Soames respondeu que não o vira, e, atravessando a sala, meio vazia, entre duas contradanças, foi à sacada e pôs-se a olhar para a rua. Acabava de chegar um carro, trazendo retardatários, e em torno da porta estacionavam vários daqueles pacientes noctâmbulos de Londres que surgem das luzes ou da música. Os seus rostos erguidos, pálidos, encimando os vultos escuros e rudes, tinham uma expressão de curiosidade tenaz que irritou Soames. Porque se consentia qUe aquela gente se arrastasse ali? Porque o polícia não os mandava circular?

Mas o policeman não cuidava nisso, mantinha-se firme, com os pés afastados plantados sobre o tapete vermelho que atravessava a calçada. O seu rosto, o seu capacete, tinham também a mesma expressão de paciência, simultaneamente curiosa e pesada.

Do outro lado da rua, através das grades do parque, Soames via os ramos das árvores, iluminados pelos postes de luz, erguerem-se fracamente à brisa que soprava, mais além, via as luzes altas das casas fronteiras, como inúmeros olhos que mergulhassem nas trevas tranquilas do jardim, e acima de tudo, o céu, aquele admirável céu de Londres, polvilhado com o reflexo de inumeráveis luzes, cúpula onde flutua, entre as estrelas, essa luz turva, que se diria feita de tantas necessidades e de tantos sonhos humanos - imenso espelho de luxo e de miséria, que noite após noite estende a sua ironia indulgente sobre várias léguas de casas e jardins, de palácios e barracas, sobre os Forsyte, policemen e noctâmbulos pacientes das ruas.

Soames voltou-se, e, escondido na obscuridade da sacada, olhou para a sala iluminada. Fazia mais fresco ali fora. Viu entrar os recém-chegados:

June e o avô. O que os teria atrasado? Estavam em pé, junto à porta. Como tinham o ar fatigado! Quem poderia imaginar o tio Jolyon chegando a uma hora daquelas? Porque não viera June em companhia de Irene, como de costume? E ocorreu-lhe subitamente que havia muito tempo que não via June.

E, observando-a com tranquila malevolência, viu o rosto da moça mudar, empalidecer - tanto que ela parecia prestes a cair -, depois tornar-se rubro. Voltou-se para o lado onde June olhava e viu a mulher pelo braço de Bosinney, saindo da estufa que se abria no fundo do salão. Irene erguia os olhos para os do arquitecto, como se respondesse a uma pergunta que ele lhe houvesse feito, e ele envolvia-a num olhar intenso.

Soames novamente olhou para June. A mão dela estava apoiada no braço do velho Jolyon, tinha o ar de lhe fazer um pedido. Soames viu uma expressão de surpresa no rosto do tio, viu ambos voltarem-se e desaparecerem por trás da porta.

A música recomeçou - uma valsa - e, imóvel como uma estátua, por trás da janela, o rosto impassível, mas com os lábios sem um sorriso, Soames esperou. Um instante depois, a menos de um metro de distância da sacada, a mulher passou dançando com Bosinney. Ele sentiu o perfume das gardénias que ela usava, viu-lhe o subir e descer dos seios, o langor dos olhos, os lábios entreabertos e todo o rosto impregnado de uma expressão que não lhe conhecia. Dançavam a um compasso lento e embalador, e parecia-lhe que eles se abraçavam, se agarravam um ao outro, ele viu-a erguer os olhos veludosos e escuros para os de Businney, e baixá-los depois.

Pálido, voltou-se para a sacada, inclinou-se sobre a praça: os vultos imóveis estavam sempre lá, erguendo a cabeça para a luz numa melancólica persistência. O policeman também erguia a cabeça, fixando as janelas, porém Soames não o viu. Diante da porta uma carruaigem encostou, duas pessoas subiram para ela e partiram...

Naquela noite, June e o velho Jolyon tinham-se sentado à mesa à hora habitual. O velho Jolyon não estava vestido, a moça trazia o seu vestido afogado de costume. Ao almoço, pela manhã, ela falara daquele baile em casa do tio Roger, e dissera não querer ir, alegando ter-se esquecido de pedir a uma amiga que a acompanhasse. Agora era tarde de mais.

O velho Jolyon ergueu os olhos penetrantes. Normalmente, estava entendido que June sairia com Irene. E, mantendo-a deliberadamente sob o seu olhar, o avô perguntara: «Porque não avisa Irene?»

Não, June não queria avisar Irene, só iria se o avô quisesse acompanhá-la por uma vez, uma só vez!

Vendo-lhe o ar ardente e esgotado, o velho Jolyon concordou resmungando. Ele não compreendia a necessidade que ela tinha de ir àquele baile, que, apostava, haveria de ser medíocre. E ela não estava em melhor estado do que o gato para ir a tal festa. Do que ela precisava era do ar do mar, depois da assembleia anual da Globular Gold Concession, estava pronto para levá-la numas férias. June não queria partir? Ah, iria extenuar-se? E o avô deslizou um olhar de tristeza sobre a pequena e voltou ao almoço.

June saiu cedo e errou nervosamente pelas ruas quentes. O seu corpinho leve, que havia algum tempo não se prestava senão languidamente às ocupações diárias, estava, naquela manhã, todo em fogo. Comprou flores. Queria estar bonita logo à noite, consegui-lo-ia. Ele estaria lá. June sabia bem que o haviam convidado. Mostrar-lhe-ia que não se importava com ele. Mas no mais íntimo do coração resolvera reconquistá-lo naquela noite. Voltou com o rosto em brasa, e falou com animação durante todo o almoço. O velho Jolyon enganou-se com aquilo.

Durante a tarde sentiu-se atacada por desesperados soluços. Abafava-os contra os travesseiros da cama, mas, quando o acesso passou, a moça viu no espelho um rosto intumescido e olhos vermelhos orlados de roxo. Ficou no quarto, de cortinas baixas, até ao jantar.

Durante a refeição, que decorreu em silêncio, prolongava-se dentro dela uma luta íntima. Estava tão pálida, tão extenuada, que o velho Jolyon ordenou ao seu «não conformista» que despachasse o carro, pois não deixaria a neta sair. Ela devia deitar-se.

June não resistiu. Subiu para o quarto e sentou-se no escuro. Às dez horas chamou a criada.

- Traga-me água morna e vá dizer a Mr. Forsyte que me sinto perfeitamente repousada. Diga que, se ele está muito cansado, eu posso ir sozinha ao baile!

A criada olhou-a de viés. June voltou-se imperiosamente:

- Vá depressa, traga já a água morna.

O seu vestido de baile ainda estava estirado sobre o sofá. Com uma espécie de atenção febril, ela vestiu-o, depois segurou as flores na mão e desceu levantando altivamente a cabeça sob o peso dos cabelos. Ao passar, ouviu o velho Jolyon mexer-se no seu quarto.

Estupefacto, descontente, ele vestia-se. Já passava das dez, e eles não chegariam antes das onze, a pequena estava maluca. Mas o avô não ousou contrariá-la, pois a expressão que lhe vira ao jantar apavorava-o.

Com as suas grandes escovas de ébano alisou os cabelos até que ficassem brilhantes como prata à luz, e depois, por sua vez, desceu a escada escura.

June esperava-o em baixo, e, sem uma palavra, os dois subiram para o carro.

Depois do trajecto, que lhe pareceu durar uma eternidade, quando ela entrou no salão de Roger, dissimulava, sob uma máscara de resolução, uma verdadeira tortura de emoção e nervosismo. A vergonha de correr atrás dele era abafada pelo receio de não o encontrar, talvez de não o ver, e também pela vontade obstinada de o reconquistar de qualquer modo, não sabia bem como.

O aspecto da sala de baile, com o seu soalho lustroso, deu-lhe uma sensação de alegria, de triunfo, porque gostava de dançar, e quando dançava flutuava leve como um pequeno elfo ardente.

Com toda a certeza convidá-la-ía para dançar, e, depois de terem dançado juntos, tudo seria novamente como dantes. E June olhou em torno de si com animação.

Mas ver Bosinney a sair da estufa em companhia de Irene, com o rosto tão estranhamente, tão totalmente absorvido, foi para ela um golpe repentino. Eles não haviam visto, ninguém veria, nem mesmo o avô, o seu desespero.

Pousou a mão no braço de Jolyon e disse baixinho:

- Preciso de voltar, avô, sinto-me mal.

O velho levou-a à pressa, murmurando intimamente que bem previra aquilo. A ela não disse nada. Só depois de estarem dentro do carro, que, por um acaso, se atrasara à porta, ele perguntou:

- Que foi, minha querida?

Sentiu o frágil corpo da moça sacudido de soluços, e ficou tomado de inquietação. Ela precisava de consultar Blank no dia seguinte. Ele exigia-o. Não poderia deixá-la naquele estado...

June abafou os soluços, e, apertando febrilmente a mão do avô, apoiou-se a um canto do assento, com o rosto envolvido na écharpe.

O velho não podia ver-lhe senão os olhos, que estavam imóveis e fixavam a escuridão em frente, mas não deixou de lhe acariciar a mão com os seus dedos magros.

 

UMA NOITE EM RICHMOND.

Outros olhos, além dos de June e Soames, haviam visto «aqueles dois» (como já lhes chamava Euphemia) quando saíam da estufa: outros olhos haviam notado a expressão do rosto de Bosinney.

Há momentos em que a Natureza revela a paixão que se esconde sob a calma indiferente dos aspectos habituais, um relâmpago violento que, rebentando através de nuvens purpúreas, lança um clarão branco sobre flores de amendoeira, um pico nevado, cor de luar, com a sua única estrela, recortando-se no azul apaixonado da noite, ou, contra o fogo do poente, o vulto de um velho teixo erguido como sombrio guardião de algum ardente segredo.

Porém, Deus guarde um Forsyte de nada compreender das forças da Natureza. Deus o defenda de admitir um único instante que elas existem. Se ele o admitir, até onde irá?

O olhar que June surpreendera, que outros Forsyte surpreenderam, foi como um buraco através de um estore - o clarão de luz que passa, chama súbita jorrando através do que não era senão uma claridade errante, vaga, obscura, atraente. Os que o viram compreenderam que forças perigosas estavam a agir. Durante um momento, notaram-no com prazer, com interesse, depois sentiram que não deveriam notá-lo absolutamente.

Esse olhar forneceu-lhes entretanto a explicação da tardia chegada de June, do seu rápido desaparecimento, sem que ela houvesse dançado, sem que houvesse, ao menos, apertado a mão ao noivo. Estava doente, e tinha razões para isso, diziam.

Mas nesse ponto os Forsyte olhavam-se entre si com ares culpados. Não desejavam espalhar um escândalo, executar uma obra maléfica. Quem o desejaria? Ninguém diria uma palavra a respeito do sucedido às pessoas de fora, porque a lei não escrita impunha o silêncio.

Foi então que até eles chegou a notícia de que June partira para a praia com o velho Jolyon. Este levara-a para Broadstairs, um aprazível local não longe de Yarmouth, onde talvez se demorassem mais de uma semana, ali se instalando ambos com toda aquela dignidade que mais se assemelharia a uma fatalidade inerente a todos os Forsyte.

Assim, tendo June partido para a praia, à família apenas restava aguardar notícias mais pormenorizadas. E entretanto nada mais poderiam fazer.

Mas até onde, até onde teriam ido «aqueles dois»? Até onde iriam? Haveria realmente alguma coisa? Aquilo não os levaria a nada, com toda a certeza, porque nenhum dos dois tinha dinheiro. No máximo, um flirt, que terminaria na ocasião devida.

A irmã de Soames, Winifred Dartie, que se impregnara, graças às brisas de Mayfair (morava em Green Street), de ideias mais modernas a respeito dos assuntos dos casais jovens - o que não ocorria em Landbroke Grove, por exemplo-, achava engraçado que se receasse qualquer coisa de sério. A sua cunhadinha (Irene era a mais alta das duas e era um belo testemunho prestado ao sólido valor dos Forsyte só a tratarem no diminutivo), a sua cunhadinha aborrecia-se. Porque não procuraria uma distracção? Soames era cansativo, e, quanto a Mr. Bosinney (só aquele palhaço do George inventaria chamar-lhe Pirata), Winifred afirmava que o considerava muito chique.

Aquela opinião - que Bosinney era chique - fez sensação. Não conseguiu convencer ninguém. Poder-se-ia dizer que Bosinney tinha, de certo modo, uma figura elegante, porém chamar chique a um homem com aquelas maçãs do rosto salientes, com aqueles olhos curiosos e aqueles chapéus moles, não passava de mais uma prova da extravagante mania de Winifred de andar a correr atrás de novidades.

Aliás, naquele Verão, estava em moda a extravagância, a própria terra estava extravagante, os castanheiros mais floridos do que nunca, as flores mais afogadas em perfume: as rosas desabrochavam em todos os jardins, e as noites mal tinham espaço bastante para os enxames de estrelas, cada dia, e durante todo o dia, o sol em grande armadura balançava por sobre o parque o seu escudo de bronze, e as pessoas faziam coisas estranhas, almoçavam e deitavam-se ao ar livre. Nunca se vira uma tão grande onda de carruagens escoar-se sobre as pontes do Tamisa, que luzia lá em baixo, transportando aos milhares todas as upper classes londrinas para os esplendores verdejantes de Bushey, Richmond, Kew ou Hampton Court.

E naquele Verão todas as famílias que se contavam entre a casta possuidora de carruagens sentiram a obrigação de fazer uma visita aos bosques de Busey ou dar um passeio por entre os castanheiros de Richmond Park. Rodando sem solavancos, entre as nuvens de poeira que as rodas das carruagens levantavam, aquela gente maravilhava-se correctamente com as cabeças enfeitadas de ervas que grandes e lentos caprinos faziam surgir de uma floresta de fetos, floresta que prometia aos amantes do Outono um abrigo como eles jamais haviam visto antes. E de tempos a tempos, quando o apaixonado perfume dos castanheiros em flor ou dos fetos passava numa rajada mais forte, dizia-se: «Minha querida! Que perfume!»

As flores das tílias, naquele ano, tinham quase a cor do mel, nos ângulos das praças de Londres espalhava-se, ao fim do dia, um perfume mais doce que o suco aspirado pelas abelhas, perfume que disseminava desejos sem nome nos corações dos Forsyte e dos seus companheiros, quando, depois do jantar, vinham gozar o fresco dentro daqueles jardins de que só eles tinham a chave (1).

Essa mesma nostalgia fazia-os demorar junto às formas empalidecidas dos canteiros,

 

*1. Jardins de Londres reservados aos moradores de uma mesma praça. (N. da T.)

 

junto à luz enfraquecida, fazia-os girar em torno dos relvados e girar ainda, como se o amor os esperasse, até que a última luz se apagasse sobre os ramos.

Talvez uma vaga simpatia provocada pelo perfume das tílias, talvez um desejo fraternal de examinar a situação com os seus próprios olhos, ou a ideia de demonstrar a solidez do seu diagnóstico, isto é, que «não havia nada», ou simplesmente o desejo, irresistível naquele Verão, de ir de carro a Richmond, tenham feito que a mãe dos pequenos Dartie (PubLius. Imogen, Maud e Benedict), escrevesse à cunhada a carta seguinte:

 

       30 de Junho, Minha cara Irene:

Soube que Soames deve ir amanhã a Hendey e lá passará a noite. Pensei que seria agradável organizarmos um passeio, e irmos de carro até Richmond. Se você quiser convidar Mr. Bosinney. eu levarei o jovem Flippard.

Emily (chamavam à mãe «Emily», era tão chique!) emprestar-nos-á o carro. Irei buscá-la às sete horas com o seu cavalheiro.

   Sua irmã amiga, Winifred Dartie.

  1. S. - Montague é de opinião que poderemos arranjar no Crown and Sceptre um jantar bem razoável.

 

Dartie fazia que o chamassem pelo seu segundo nome, Montague, pois o primeiro era Moses. Dartie era, antes de tudo, um homem mundano.

O projecto de Winifred encontrou, por parte da Providência mais oposição do que merecia, inspirado que fora em tão boas intenções. Em primeiro lugar, o jovem Flippard escreveu-lhe o seguinte:

 

   Minha cara Mrs. Dartie:

Desolado: estou comprometido. E é impossível libertar-me.

   Sempre seu, Augustus Flippard.

 

E era muito tarde para sair à procura de um outro parceiro.

Com a presteza e a prudência de uma mulher prática, Winifred recorreu ao marido. Ela tinha aquele carácter decidido, mas conciliante, que está de acordo com um perfil agudo, cabelos louros e olhos esverdeados. Nunca se dava por vencida, e, se se via num embaraço, arranjava-se por transformá-lo numa vantagem.

Dartie também estava com boa disposição. Erotic perdera a taça do Lancashire. Quem o acreditaria? Aquele animal célebre, pertencendo a um dos reis das coudelarias, que tinha apostado em segredo contra ele milhares de libras, nem sequer correra. As quarenta e oito horas que se seguiram à corrida foram das mais sombrias da vida de Dartie. Dia e noite, sentia-se obcecado pelas visões de James. Negras suspeitas a propósito de Soames mesclaram-se a ínfimos clarões de esperança. Na sexta-feira à noite estava tão impressionado que se embebedou. Mas no sábado pela manhã o legítimo instinto da Bolsa triunfou nele. Com dívidas que subiam a várias centenas de libras, cujo pagamento estava fora do seu alcance, jogou tudo o que lhe restava em Concertino. para o handicap de Saltovy Borough.

E, segundo contou ao major Schotton, com quem almoçava no clube: «Aquele judeuzinho - Nathan - dera-lhe esse palpite. Imagine se fracassasse! O velho ficaria uma fera, ao saber! O seu desprezo por James tinha crescido com uma garrafa de foi Roger que ele oferecera a si mesmo. A sorte virara. Concertino vencera por um pescoço! Livra! Pouco faltara! Mas, como dizia Dartie, não há nada como ter coragem!

Assim, não se mostrou contrário à expedição a Richmond. Até a pagaria! Tinha admiração por Irene e desejava relacionar-se mais intimamente com ela. Às cinco e meia, um dos criados de Park Lane chegou com um recado:

«Mrs. Forsyte sentia muito, mas um dos cavalos estava com tosse.»

Winifred, a quem este novo golpe não abateu, despachou imediatamente para Montpellier Square o pequeno Publius (actualmente com sete anos) sob a égide da governanta: levavam este recado: «Iriam em dois cabs e encontrar-se-iam no Crown and Sceptre às sete e três quartos.»

Dartie não se aborreceu com essa notícia.. Era melhor do que fazer o trajecto inteiro no banco da frente do carro. E não lhe seria desagradável acompanhar Irene. Primeiro iriam buscar os outros e tomariam os cabs em Montpellier Square.

Mas, sabendo que o encontro era no Crown and Sceptre e que devia fazer o trajecto em companhia da mulher, ficou aborrecido e declarou que o passeio seria maçador. Partiram às sete horas, Dartie apostou três shillings com o cocheiro em como não fariam o trajecto em três quartos de hora. Só duas vezes, durante a caminhada, marido e mulher falaram.

Dartie disse:

- Master Soames vai fazer uma cara quando souber que a mulher andou a passear de cab com Master Bosinney!

Winifred protestou:

- Não diga disparates, Monty!

- Disparates? Você não conhece as mulheres, minha senhora!

Uma outra vez ele perguntou simplesmente:

- Como é que estou? Estou com a cara muito vermelha? Esse champanhe que George me fez beber é um vinho muito forte.

Ele almoçara num restaurante em companhia de George Forsyte.

Bosinney e Irene tinham chegado primeiro, estavam em pé, junto a uma das altas janelas francesas que davam para o rio.

Naquele Verão, as janelas mantinham-se abertas durante todo o dia e também durante a noite: e noite e dia entravam por elas os perfumes das flores e das árvores, o quente odor da erva ressequida, o fresco aroma dos orvalhos pesados.

Aos olhos do observador Dartie, os seus dois convivas não se mostraram muito entusiasmados, em pé, assim, um ao lado do outro, sem dizerem palavra.

De qualquer modo, abandonou-os aos cuidados de Winifred e tratou de encomendar o jantar.

Um Forsyte exigiria uma boa, talvez delicada refeição, mas um Dartie punha à prova todos os recursos do Crown and Sceptre. Vivendo como vivia, ou jour le jour, não achava que prato nenhum fosse bom de mais para si, e queria comê-lo. Era preciso também que a bebida fosse escolhida, há neste país muitos vinhos que não são bastante bons para Dartie: ele quer sempre melhor. Já que não é ele próprio quem paga, não há razão para se privar. Privar-se é próprio de um tolo, não de um Dartie.

Tirar de cada coisa o que ela tem de melhor! Não há nenhum princípio mais sólido sobre o qual um homem possa estabelecer a sua vida quando o sogro tem um grande rendimento e um fraco pelos netos.

Dartie (que tinha bom golpe de vista) descobrira em James essa fraqueza desde o primeiro ano que se seguiu ao nascimento do pequeno Publius [um engano) e tirara proveito da sua perspicácia. E quatro pequenos Dartie constituíam agora para ele uma espécie de seguro perpétuo.

O traço principal do jantar foi indiscutivelmente o peixe. Era um peixe delicioso, importado de longe, num estado de conservação quase perfeito, e fora de início frito e depois desossado. Foi servido no gelo. com um punch de Madeira em vez de molho, segundo uma receita conhecida apenas de um pequeno número de homens do mundo.

E nada mais merecia um comentário senão o facto de ter sido Dartie quem pagou a conta. Ele tornara-se extremamente agradável durante todo o jantar, o seu olhar ousado e admirativo quase não se despregava do rosto de Irene ou da sua cintura. Como se sentiu obrigado a confessar a si mesmo, ela não lhe retribuiu o interesse, era fria, tão fria quanto o pareciam ser os seus ombros sob o véu de renda creme que os cobria. Dartie pensou surpreendê-la nalguma intriga amorosa com Bosinney. mas também desse lado não havia nada, ela portava-se admiravelmente.

Quanto ao pobre diabo do arquitecto, estava tão melancólico como um urso com dor de cabeça, e Winifred dificilmente lhe arrancava uma palavra, não comia nada, mas não deixava de beber o seu vinho, e o rosto tornava-se-lhe cada vez mais pálido, os olhos cada vez mais estranhos.

Tudo isso era muito divertido. Porque Dartie sentia-se em excelentes condições e falava com facilidade e um certo tom picante, pois não era nenhum tolo. Contou duas ou três histórias que roçavam pela inconveniência. Era uma concessão ao grupo, pois habitualmente não se contentava em apenas roçar essa inconveniência. Fez, de brincadeira, um brinde a Irene. Ninguém bebeu, e Winifred disse:

- Não se faça palhaço, Monty!

Por proposta de Winifred, foram depois do jantar para o terraço público que domina o rio.

- Eu gostaria de ver a gente da plebe a amar - disse ela. - É tão engraçado!

Havia muitos namorados que caminhavam na sombra fresca, depois do calor do dia. e o ar estava fremente do som das suas vozes, grosseiras e pesadas, ou então macias como que murmurando segredos.

Não demorou muito para que o senso prático de Winifred - ela era a única Forsyte do bando - descobrisse um banco vazio. Uma pesada árvore estendia-se por sobre as cabeças deles, formando um baldaquino espesso, e a névoa ia lentamente escurecendo o rio.

Dartie sentara-se numa ponta do banco, ao seu lado, Irene, depois Bosinney, depois Winifred. Mal havia lugar para quatro, e o homem mundano sentia o contacto do braço de Irene contra o seu. Sabia que ela praticamente não podia mover-se sem ser indelicada, e divertia-se com aquilo. De tempos a tempos, combinava um movimento para se aproximar ainda mais: dizia de si para si: «Esse Pirata não sabe defender-se, mas. na verdade, estamos apertados!»

Da profundidade, onde corria o rio escuro, subia um som de bandolim, e vozes cantavam uma velha ronda:

 

   A boat, a boat unto the ferry,

   For we go over and be merry,

   And laugh, and quaff, and drink brown sherry! (1)

 

E de súbito a Lua apareceu, jovem e terna, emergindo de uma árvore, e, como se ela o houvesse respirado, o ar tornou-se mais fresco, porém, dentro daquele sopro mais fresco flutuava sempre o perfume das tílias.

Por cima do charuto, Dartie examinava curiosamente Bosinney, que se sentara de braços cruzados, com os olhos fixos, fitando o vazio em frente: tinha a expressão de um homem torturado.

E Dartie lançou um olhar para o rosto que estava entre eles, de tal modo velado pelas sombras que não parecia ser senão um pouco de obscuridade mais escura, que tomara forma e respirava, doce, misteriosa, atraente.

Descera um silêncio sobre o ruidoso terraço, como se os passeantes pensassem em segredos preciosos de mais para serem ditos.

E Dartie pensava: «Ah, as mulheres!»

O reflexo desapareceu no rio, a cantiga parou, a jovem Lua escondeu-se por trás de uma árvore e tudo se tornou escuro. Dartie apertou-se mais de encontro a Irene. Não se sentiu alarmado pelo estremecimento que percorreu os membros que ele tocava, nem pelo olhar que ela lhe lançou, olhar de perturbação e desprezo. Sentiu que ela tentava afastar-se e sorriu.

É preciso confessar que aquele homem mundano bebera a quantidade máxima de vinho que poderia suportar. Com os seus grossos lábios entreabertos e os olhos que a fixavam obliquamente, tinha a expressão maldosa de um sátiro.

Ao longo de um trilho no céu vogavam enxames de estrelas, e como os mortais, cá em baixo, elas pareciam cruzar-se, apertar-se, trocar segredos. O zumbido das vozes recomeçou no terraço, e Dartie pensava.- «É um pobre diabo, este Bosinney! Que cara de faminto!» E mais uma vez se apertou contra Irene.

O homem mundano estava mais resolvido do que nunca

 

*1. Um bote, um bote, na passagem do rio, para que o atravessemos, vamos divertir-nos, rindo e bebendo grandes tragos de sherry escuro!

 

a ver até onde poderia ir. Enquanto passeavam pelo terraço, acompanhou-a passo a passo: havia muito vinho bom dentro dele, haveria o longo trajecto de volta, o longo trajecto, a escuridão tépida e a agradável proximidade do cab, retiro inventado por qualquer génio amável e bom. Quanto àquele arquitecto esfomeado, poderia trazer Winifred de volta. Dartie desejava-lhe prazer! E, compreendendo que a sua voz não estava muito segura, tinha cuidado em não dizer nada. mas um sorriso imobilizara-se nos seus lábios grossos.

Caminharam para os carros que os esperavam na extremidade do terraço. O seu plano tinha o mérito das grandes concepções - uma simplicidade quase brutal: ele ficaria junto dos calcanhares de Irene até que ela subisse, e subiria imediatamente depois.

Porém, quando Irene chegou diante do carro, em vez de entrar, deslizou para perto da cabeça do cavalo. E nesse momento Dartie não conseguiu forças bastantes nas pernas para a seguir Com despeito, enquanto ela acariciava o focinho do cavalo, viu Bosinney chegar primeiro junto dela. Irene voltou-se e falou-lhe rapidamente, em voz baixa, e chegaram a Dartie as palavras «aquele homem». Mas Dartie ficou obstinadamente ao pé do estribo, esperando que ela viesse. Tinha apostado naquilo. E na luz da lanterna o seu vulto (que não ultrapassava a estatura média) bem recortado no colete branco do trajo de noite, o sobretudo leve atirado no braço, um cravo na lapela, e na face escura aquele ar confiante de bom humor e de insolência - tinha tudo a seu favor -, era um homem mundano integral.

Winifred já subira para o seu cab. E Dartie monologava que, para Bosinney, se ele não se esforçasse, a viagem não seria alegre. Porém de súbito recebeu um empurrão que quase o fez cair e a voz de Bosinney sibilou-lhe ao ouvido: «Sou eu que levo Irene, ouviu?» E Dartie viu um rosto decomposto de paixão e uns olhos que lançavam chispas como os de um gato selvagem.

- Hem? - gaguejou ele. - O quê? Absolutamente! Você leva a minha mulher!

- Saia daí - silvou Bosinney -, senão derrubo-o!

Dartie recuou, vendo tão claramente quanto era possível que o animal cumpriria o prometido.

N'o espaço que deixou livre, Irene insinuou-se. Sentiu o vestido dela roçar-lhe as pernas. Bosinney subiu depois da moça.

Ele ouviu o Pirata dizer: «Siga!» O cocheiro chicoteou o cavalo que pulou para a frente. Dartie ficou imóvel um momento, tomado de estupor, depois precipitou-se para o carro onde a mulher estava sentada, e subiu tumultuosamente.

Mal se sentou ao lado da mulher, rebentou em imprecações. Acalmando-se depois, com um esforço supremo, acrescentou:

- Bom arranjo você fez deixando-a voltar com aquele Pirata, Porque não a levou consigo? Ele está louco, louco de paixão. Qualquer idiota pode ver isso! - E abafou a resposta de Winifred em novas pragas contra o Todo-Poderoso. e só ao chegar a Barnes acabou uma jeremiada durante a qual injuriara a mulher, o sogro. Irene, Bosinney, o nome dos Forsyte, os seus próprios filhos, além de ter amaldiçoado o dia em que se casara.

Winifred, mulher de carácter forte, deixou-o falar. Quando ele acabou, caiu num silêncio furioso. Os seus olhos enfurecidos não deixavam a traseira daquele cab que, diante dele, assombrava a obscuridade como o fantasma de uma oportunidade perdida.

Felizmente não podia ouvir o apelo apaixonado de Bosinney, aquele apelo que o procedimento do homem mundano havia desencadeado como uma onda: não podia ver Irene estremecer como se lhe houvessem arrancado o vestido, nem espiar-lhe os olhos escuros e dolorosos como os de uma criança açoitada. Ele não podia ouvir Bosinney suplicar, suplicar, suplicar mais ainda, nem Irene chorar de súbito, nem ver aquele pobre diabo de rosto faminto, repentinamente trémulo e aterrorizado, tocar-lhe humildemente a mão.

Em Montpellier Square, o cocheiro, seguindo a ordem ao pé da letra, parou conscienciosamente o cavalo atrás do primeiro cab. Os Dartie viram Bosinney saltar sobre o passeio, Irene descer depois, e subir os degraus da casa, rapidamente, de cabeça baixa. Trazia evidentemente a sua chave na mão, porque desapareceu imediatamente. Seria impossível dizer se ela voltara para falar a Bosinney.

Este último passou a pé ao lado do carro dos Dartie, à luz de um dos postes da rua, marido e mulher puderam perfeitamente ver-lhe o rosto: estava agitado por uma emoção violenta.

- Boa noite, Mr. Bosinney! - exclamou Winifred. Bosinney estremeceu, tirou o chapéu e desapareceu à pressa. Evidentemente esquecera a existência deles.

- E então? - disse Dartie. - Você viu a cara daquele animal? Que foi que eu disse? Bonito, hem? Ele aproveitou a ocasião.

Era tão claro que sobreviera uma crise durante a volta que Winifred não pôde defender a sua teoria. E ela disse:

- Não direi mais nada a respeito disso. Não sei que é que adianta andar-se com histórias!

Dartie concordou. Considerava James como uma reserva pessoal e não aprovava que o incomodassem com os aborrecimentos dos outros.

- Você tem razão - disse ele. - Soames que se arranje sozinho. Está perfeitamente em condições de se arranjar.

Proferindo tais palavras, os Dartie entraram na sua casa de Green Street (cujo aluguel era pago por james) e foram gozar de um merecido repouso. Era já meia-noite, e não havia mais nenhum Forsyte na rua para vigiar a corrida sem destino de Bosinney, para vê-lo desandar o caminho e voltar a apoiar-se sobre a grade da praça, dando as costas à luz do poste de iluminação, para o ver ali, em pé, na sombra das árvores, espiando a casa onde ela estava escondida na escuridão, aquela por quem ele daria o mundo inteiro só para a ver um único minuto, aquela que representava agora para ele o perfume das tílias, a própria alma da luz e da sombra, o bater do seu próprio coração.

 

DEFINIÇÃO DE UM FORSYTE.

Faz parte da natureza de um Forsyte ignorar que pertence à espécie dos Forsyte, Jolyon filho não o ignorava. Porém só o sentira depois de dar o passo decisivo que o expulsara da casta. Mas desde então essa certeza nunca mais o abandonara. Sentia-a em todos os momentos da sua união, em todas as suas relações com a sua segunda mulher, que não era Forsyte em grau nenhum.

Ele sabia muito bem que, se não possuísse amplamente o dom de reconhecer aquilo de que precisava, a tenacidade de querer para se agarrar ao que queria, o sentimemto da loucura' que seria estragar o que comprara por preço tão elevado - por outras palavras, não tivesse ele o «senso da propriedade» -, nunca teria podido conservar a sua mulher (nem talvez houvesse desejado conservá-la) junto a si, através de todas as dificuldades pecuniárias, as mortificações e os mal-entendidos daqueles quinze anos: nunca a teria convencido a casar com ele, depois da morte da primeira mulher, nunca teria podido atravessar tudo aquilo, e reaparecer de qualquer modo à superfície, abatido mas sorridente.

Ele era daqueles homens que, sentados de pernas cruzadas como minúsculos ídolos chineses, na gaiola do próprio coração, sorriem eternamente para si próprios um sorriso de dúvida.

Não que esse sorriso, tão íntimo e tão permanente, lhe modificasse a actividade, a sua actividade, como o seu queixo, e o seu temperamento inteiro, apresentavam uma mistura particular de doçura e decisão. "

Ele tinha também consciência de ser um Forsyte no seu trabalho- aquela pintura a aguarela à qual consagrava tanta energia -, mas mantendo-se sempre de olhos abertos em relação a si mesmo, como se não pudesse levar inteiramente a sério um ofício tão pouco prático. E, além disso, sentia um singular mal-estar à ideia de fazer com ele tão pouco dinheiro.

E essa consciência íntima de tudo que comporta a qualidade de Forsyte traduziu-se, em face da seguinte carta do pai, por uma simpatia que não excluía um certo temor.

 

Sheldrake House, Broadstairs - x de Julho,

   Meu caro Jo:

(A letra do pai mudara muito pouco, de há trinta anos para cá - desde que a conhecia.)

Há quinze dias que estamos aqui, e há quinze dias que temos bom tempo. O ar é bom, mas sofro do fígado, e não me desagradaria voltar para a cidade. Não tenho muito de bom para lhe contar a respeito de June, a sua saúde não é boa, e o moral vai na mesma, e não sei mesmo como isto acabará. Ela não diz nada, mas é claro que definha por causa desse noivado - se é noivado ou o que quer que seja - e que... Deus sabe o resto. Receio muito que não convenha levá-la de volta a Londres, no presente estado de coisas, porém ela é tão voluntariosa que pode resolver voltar de um momento para outro. Alguém deveria falar com Bosinney e indagar as suas intenções. Hesito em fazê-lo eu próprio, porque certamente lhe diria o que ele merece. Mas pensei em você, que pode encontrá-lo no clube. Poderia sondá-lo, e ver a quantas anda ele. Bem entendido, de modo nenhum você deve trair June.

Ficarei satisfeito se em breve receber carta sua, caso obtenha alguma informação. Esta situação dá-me grandes cuidados e apoquenta-me as noites inteiras.

   Com beijos para Jolly e Holly,

   abraços do pai amigo Jolyon Forsyte.

 

Jolyon filho meditou a respeito daquela carta tão longa e seriamente que a mulher, notando-lhe a preocupação, perguntou-lhe o que tinha. Ele respondeu: «Nada!»

Ele fixara o princípio de nunca fazer diante dela nenhuma alusão a June. Ela alarmar-se-ia e ele não sabia absolutamente em que coisas ela iria pensar. Por isso procurou afastar da sua atitude qualquer aparência de preocupação, mas não o conseguiu muito melhor do que o pai, porque herdara toda a transparência do velho Jolyon em matéria de diplomacia caseira, de forma que Mrs. Jolyon filho, desempenhando os seus deveres domésticos naquela manhã, ia e vinha pela casa de lábios cerrados e lançava ao marido olhares inconsoláveis.

À tarde ele partiu para o clube com a carta no bolso, mas sem se ter decidido a nada.

Era-lhe particularmente desagradável ter de sondar o estado moral de um homem, a sua própria situação, anormal como o era, não diminuía essa repugnância. Aquilo parecia, tanto como as coisas da sua família - como todos que ele conhecia e frequentara -, pretender fazer valer assim o que chamavam os seus direitos sobre um homem e encostá-lo à parede. Era tão deles aplicar nas suas relações particulares as suas regras de negócios!

E como aquela frasezinha da carta «Fica entendido que de modo nenhum você deve trair June» anulava a operação!

Entretanto aquela carta, com tudo o que ela continha de ofensa pessoal, de inquietação por June, e com a ideia de dizer a Bosinney o que ele merecia, era toda tão natural! Nada de admirar se o pai queria saber as intenções de Bosinney, nada de admirar que estivesse tão irritado.

Parecia-lhe difícil recusar. Mas porque o encarregara daquela providência? Decerto não era conveniente, mas um Forsyte, para atingir o seu fim, não é escrupuloso na escolha dos meios (uma vez salvas as aparências).

Como desempenhar-se do encargo ou como recusá-lo? Ambas as coisas pareciam impossíveis. Assim pensava Jolyon filho.

Chegou ao clube às três horas, e a primeira pessoa que viu foi o próprio Bosinney, sentado a um canto, olhando fixamente para a janela. Jolyon filho instalou-se não longe dele e recomeçou, nervosamente, a examinar a situação. De viés, olhava para Bosinney, que não o percebera ainda. Não o conhecia muito, e talvez pela primeira vez o observava atentamente: um homem singular, cujos traços, roupa e atitudes o separavam de todos os outros membros do clube. O próprio Jolyon filho, embora se houvesse tornado tão diferente dos seus pelo génio e pelo carácter, conservara sempre, na exterioridade, toda a correcta reserva de um Forsyte.

Era o único entre os Forsyte que ignorava o apelido posto a Bosinney. O homem era esquisito - não excêntrico, mas esquisito - e parecia cansado, extenuado, com as faces cavadas sob as maçãs salientes, e entretanto o seu aspecto não tinha nada de doentio, era fortemente constituído, e o cabelo ondulado parecia manifestar toda a vitalidade de uma bela constituição.

Qualquer coisa naquele rosto e naquela atitude comoveram Jolyon filho. Ele conhecia o sofrimento e aquele homem parecia sofrer. Ergueu-se e tocou-lhe no braço.

Bosinney teve um sobressalto, mas não deu nenhuma mostra de embaraço ao reconhecer aquele que o abordava.

Jolyon filho sentou-se.

- Há muito tempo que não o vejo - disse. - Como vai com a casa de meu primo?

- Deve estar acabada dentro de uma semana.

- As minhas felicitações!

- Obrigado, mas não sei por quê?

- Não?-perguntou Jolyon filho. - Eu supunha que o senhor ficaria satisfeito por chegar ao fim de um longo trabalho como aquele. Mas talvez sinta o mesmo que eu sinto quando me separo de uma aguarela, é um sentimento parecido com o da paternidade.

E olhava com bondade para Bosinney.

- Sim - respondeu este mais cordialmente. - Aquilo deixa-nos e está tudo dito. Não sabia que o senhor pintava.

- Só aguarelas, e não posso dizer que acredito no meu trabalho.

- Não acredita no seu trabalho? Então porque o faz? De que serve trabalhar quando não se acredita no trabalho?

- É verdade - disse Jolyon filho. - É sempre o que digo. Entre parêntesis, já notou que todas as vezes que a gente diz «é verdade», acrescenta «é sempre o que digo»? Mas se o senhor me perguntar como é que eu consigo trabalhar, eu dir-lhe-ei que é porque sou um Forsyte.

- Um Forsyte! Nunca o considerei um deles!

- Um Forsyte-continuou Jolyon filho - não é um animal raro. Há centenas deles entre os membros deste clube. Centenas lá fora, na rua. Encontram-se centenas deles em qualquer parte onde se vá!

- E posso pergumtar-lhe por que é que eles se dão a conhecer? - indagou Bosinney.

- Pelo seu instinto de propriedade. Um Forsyte tem um ponto de vista prático sobre as coisas - um ponto de vista de bom senso, poder-se-ia dizer - e todo o ponto de vista prático sobre as coisas tem como base um instinto da propriedade. Um Forsyte. o senhor o notará, nunca se entrega.

- Está a brincar?

Um clarão de divertimento atravessou os olhos de Jolyon filho.

- Absolutamente! Como eu próprio sou um Forsyte, não tenho nada a dizer contra isso, mas eu sou uma espécie de mestiço, pois bem: não é possível erro nenhum a seu respeito: o senhor é tão diferente de mim quanto eu sou do meu tio James, que é o espécime perfeito do Forsyte. O seu instinto de propriedade é extremo, enquanto o senhor, o senhor, não tem praticamente nenhum. Se eu não estivesse entre os dois, ambos pareceriam pertencer a duas espécies diferentes. Eu sou o elo intermediário. Bem entendido, nós somos todos escravos da propriedade, e admito que não se trata senão de uma questão de mais ou de menos, porém, aquilo a que chamo um Forsyte é um homem que, decididamente, é muito mais que menos. Ele sabe o que é bom, sabe o que é seguro, e o modo como se agarra a tudo o que possui - mulher, casa, dinheiro, reputação, pouco importa-, veja bem, é o que o distingue.

- Ah - disse Bosinney -, o senhor deveria tirar uma patente para essas palavras.

- Eu gostaria - disse Jolyon filho - de fazer uma conferência: natureza e propriedade de um Forsyte. Esse pequeno animal, sensibilíssimo ao ridículo que lhe possam infligir os da sua espécie, não se deixa absolutamente perturbar nos seus movimentos pelo riso dos estranhos (o senhor ou eu), Hereditariamente predisposto à miopia, apenas vê os indivíduos da sua espécie e os seus habitats, entre os quais leva uma vida baseada em dois princípios: conforto e concorrência.

- O senhor fala deles - disse Bosinney - como se constituíssem metade da Inglaterra.

- E eles são-no! - repetiu Jolyon filho. - Metade da Inglaterra, e a melhor metade, a metade segura, a metade a três por cento, a metade que vale. É a sua riqueza, a sua segurança, que tornam possíveis a literatura, a ciência, a própria religião. Sem os Forsyte, que não acreditam em nenhuma dessas coisas, mas que as aproveitam todas, que seria de nós? Meu caro amigo, os Forsyte são os intermediários no mercado social, os vendedores, os pilares da sociedade, as pedras angulares da convenção, tudo isso é admirável!

- Não sei se o compreendi bem - disse Bosinney -, mas creio que há centenas de Forsyte, como o senhor lhes chama, na minha profissão.

- Decerto - respondeu Jolyon filho. - A grande maioria dos arquitectos, dos pintores ou escritores, como a de quaisquer outros Forsyte, não tem princípios. A arte, a literatura, a religião, subsistem graças à força de alguns cérebros candentes, que acreditam realmente nelas, e de muitos Forsyte que as exploram comercialmente. Calculando modestamente, três quartos dos membros da nossa Real Academia são Forsyte, sete oitavos dos nossos romancistas e uma forte proporção de jornalistas são Forsyte. O mundo científico, esse eu ignoro-o. Mas na religião eles estão magnificamente representados, na Câmara dos Comuns são mais numerosos do que em outra qualquer parte. Na aristocracia não há outra coisa. Mas não rio deles. É perigoso ir contra a maioria, e que maioria! - Jolyon fixou os olhos em Bosinney. - É perigoso deixar-se arrastar por qualquer coisa, seja uma casa, uma mulher ou um quadro!

Olharam-se, e, depois de ter feito o que nenhum Forsyte faria, mostrar o fundo do seu pensamento, Jolyon filho tornou a entrar na sua casca. Foi Bosinney que rompeu o silêncio.

- Porque toma o senhor a sua família como padrão? - perguntou ele.

- A minha família -respondeu Jolyon filho - não tem nada de excessivo, e, como qualquer outra família, tem as suas particularidades. Porém possui, num grau notável, essas duas qualidades que são a legítima característica do Forsyte, o poder de nunca se entregar de corpo e alma a coisa alguma e o instinto da propriedade.

Bosinney sorriu:

- E o Gigante, por exemplo, como o interpreta o senhor?

- Alude a Swithin? - perguntou Jolyon filho. - Ah, em Swithin ainda resta alguma coisa de primitivo. A cidade e a burguesia ainda não o digeriram. Todos os velhos séculos de trabalho no campo e de força bruta deixaram nele o seu depósito, por mais «distinto» que queira parecer.

Bosinney parecia meditar.

- Bem, o senhor atingiu o seu primo Soames no ponto nevrálgico - disse de súbito. - Aquele é um que nunca rebentará os miolos.

Jolyon filho lançou-lhe um olhar penetrante.

- Não, nunca! E eis porque é preciso contar com ele: cuidado com as garras! É fácil rir, mas não se Muda. Não dá bom resultado desprezar um Forsyte, não dá bom resultado considerá-lo uma quantidade a desprezar!

- Mas, no entanto, foi o que o senhor fez!

Jolyon filho admitiu a exactidão do golpe, perdendo o sorriso.

- O senhor esquece - disse ele com um traço singular de orgulho - que eu também sei aguentar, que eu próprio sou um Forsyte. Nós todos estamos colocados na passagem de grandes forças. Aquele que abandonar o abrigo da parede... o senhor sabe o que lhe acontecerá. Não recomendo a muita gente - concluiu ele baixinho - que siga o meu caminho.

O sangue subiu ao rosto de Bosinney, porém o rubor depressa desapareceu, e logo a face do rapaz voltou à palidez morena. Teve um riso breve, que lhe afastou os lábios num esgar estranho e selvagem, os seus olhos pareciam rir de Jolyon filho.

- Obrigado - disse ele. - É muito gentil da sua parte. Mas os senhores não são os únicos que sabem aguentar. - E ergueu-se.

Jolyon filho viu-o afastar-se, e, apoiando a cabeça sobre a mão, suspirou.

Na sala sonolenta e quase vazia não se ouvia senão o ruído dos jornais dobrados e desdobrados e o estalar de fósforos. Jolyon ficou muito tempo sem se mover, revivendo em espírito aqueles dias em que também ele passara longas horas a espiar o pêndulo, contando os minutos de espera - longas horas cheias dos tormentos da incerteza e de um sofrimento ardente e doce, e sentiu de novo aquela agonia, lenta e deliciosa, e tão pungente quanto outrora.

O rosto de Bosinney, com a sua face extenuada e os seus olhos inquietos, que sem cessar se volviam para o relógio, suscitara nele uma piedade que se misturava, a uma estranha, a uma irresistível inveja.

Conhecia muito bem aqueles sintomas. Para onde ia aquele homem? Para que espécie de destino? Que mulher era essa que irradiava aquela força magnética à qual nenhuma consideração de honra, nenhum princípio, nenhum interesse resiste, à qual não se escapa senão pela fuga?

A fuga! Mas porque fugiria Bosinney? Um homem foge quando se arrisca a destruir um lar, quando tem filhos, quando sente que pisa aos pés um ideal, que quebra qualquer coisa. Mas ali tudo lhe parecia quebrado de antemão.

Ele próprio não fugira, e não fugiria se devesse recomeçar.

E entretanto fora mais longe que Bosinney: destruíra o seu próprio lar infeliz, e não o de um outro.

Voltou-lhe à lembrança o velho dito: «A sorte de um homem repousa no seu próprio coração!»

«No seu próprio coração!» A prova de uma iguaria está no seu gosto - e Bosinney não comera ainda daquela iguaria.

Os seus pensamentos voltaram à mulher, àquela mulher que ele não conhecia, mas cuja história lhe fora contada em grandes linhas.

Um casamento infeliz, não que houvesse maus tratos, nada além daquele indefinível mal-estar, aquela terrível rachadura por onde se escoa toda a bondade que a vida possa ter sob o céu, e aquilo de dia a dia, de noite a noite, de semana em semana, de ano em ano, até à morte.

Porém, Jolyon filho, cuja amargura fora atenuada pelo tempo, via também o outro lado da questão: o lado de Soames. Onde um homem tal como o seu primo, saturado de todos os preconceitos e convicções da sua classe, encontraria a clarividência? Era assunto para indignação, seria preciso projectar-se no futuro, para além dos penosos mexericos, das censuras e das risotas que tais separações suscitam, para além da mágoa passageira que sentiria por não mais a ver, para além da grave crítica dos homens virtuosos. Mas pouca gente, sobretudo na classe de Soames, tem imaginação bastante para isso.

Muita gente neste mundo e pouca imaginação! E, Deus do Céu!, que diferença entre a teoria e a prática! Há pessoas que - e Soames também, talvez -professam ideias cavalheirescas a esse respeito, mas, quando o golpe as fere, descobrem no seu próprio caso qualquer particularidade que as transforma numa excepção. E, ademais, Jolyon filho desconfiava do seu julgamento. Ele próprio atravessara aquela experiência, tivera de provar até ao fim o amargor de um casamento infeliz, como poderia pois entrar nos caminhos largos e tranquilos dos que nunca sofreram os assaltos da paixão? O seu testemunho era directo de mais, como o é a respeito de assuntos militares o testemunho de um soldado que esteve muito tempo na caserna, contra o testemunho de civis que não tiveram a desvantagem de ver as coisas muito de perto. A maioria das pessoas consideraria o casamento de Soames e Irene como um êxito suficiente: ele tinha dinheiro, ela, beleza, e era mister basear nisso um arranjo, e seguirem puxando pelas mesmas rédeas, embora se detestassem. Cada um poderia desviar-se um pouco para o seu lado, mas isso não teria inconvenientes, conquanto as conveniências fossem observadas e a santidade do vínculo conjugal, do lar comum, fosse respeitada. A maioria dos casamentos, na burguesia rica, eram governados por esse princípio. Não irritem as susceptibilidades da sociedade, como, também, as da Igreja. E para evitar ofendê-las não é excessivo o sacrifício de qualquer sentimento pessoal. As vantagens de um lar estável.são visíveis, tangíveis, são como quaisquer outros objectos de propriedade, num statu quo não se correm riscos. Destruir um lar é pelo menos uma experiência perigosa, e, acima de tudo, egoísta.

Era essa a tese da defesa, e Jolyon filho suspirou.

«O núcleo disso tudo», pensava ele, «é a propriedade, mas há muita gente que não gostaria de resumir assim a questão. Para elas, é a santidade do casamento, porém a santidade do casamento repousa sobre a santidade da família, que repousa sobre a santidade da propriedade. E dizer que essa gente toda é feita de discípulos d'Aquele que nunca possuiu nada! É curioso!»

E de novo Jolyon filho suspirou.

«Irei eu, na volta para casa, convidar todos os miseráveis que encontrar para me partilharem o jantar, que, nesse caso, será então pequeno de mais para mim, ou pelo menos para minha mulher, que é necessária à minha saúde e à minha felicidade? Talvez, no fim de tudo, Soames tenha razão em exercer os seus direitos e sustentar para sua conduta esse sagrado princípio da propriedade - que nós todos aproveitamos, à excepção dos que por causa dele sofrem.»

Chegando a esse ponto, ergueu-se, abriu caminho por entre o labirinto de cadeiras, agarrou o chapéu e, através das ruas mornas, atulhadas de veículos, com um cheiro poeirento no ar espesso, voltou para casa.

Antes de chegar à Wistaria Avenue tirou do bolso a carta do velho Jolyon e rasgou-a cuidadosamente em pedaços pequenos, que dispersou depois na poeira do caminho.

Abriu a porta com a sua chave, chamou a mulher pelo nome: ela saíra com Jolly e Holly, e a casa estava vazia. Sozinho no jardim, o cão Balthasar, deitado na sombra, caçava moscas.

Jolyon filho sentou-se então sob a pereira que não dava frutos.

 

BOSINNEY SOB PALAVRA.

No dia seguinte ao passeio de Richmond, Soames voltou de Henley num comboio da manhã. Como não apreciava os desportos aquáticos, fora lá por negócios, apenas, a convite de um cliente de importância.

Foi imediatamente para a City, mas, não encontrando lá nenhum assunto premente, voltou às três horas, satisfeito por ter aquela oportunidade de voltar directamente para casa. Irene não o esperava. Ele não tinha, decerto, desejo nenhum de a espiar, mas enfim não seria mau dar uma olhadela inesperada à cena. Depois de mudar de roupa, entrou na sala. Irene estava sentada, sem fazer nada, a um canto do sofá, que era o seu lugar predilecto, tinha olheiras, como se houvesse passado a noite em claro. Ele perguntou-lhe:

- Porque está em casa? Espera alguém?

- Sim, isto é. não espero especialmente.

- Quem?

- Mr. Bosinney disse que talvez aparecesse.

- Bosinney? Ele deveria estar a trabalhar. Ela não respondeu nada àquela observação.

- Pois bem - disse Soames -. tenho uma compra a fazer. Quero que você venha comigo: depois daremos uma volta pelo parque.

- Não quero sair, estou com dores de cabeça.

Soames replicou:

- Todas as vezes que lhe peço para fazer qualquer coisa, você tem dores de cabeça. Há-de fazer-lhe bem sentar-se um pouco debaixo das árvores.

Irene não respondeu.

Soames ficou calado durante alguns minutos, disse depois:

- Não sei qual é a sua concepção a respeito dos deveres de uma mulher casada, nunca o soube.

Ele não esperava que ela respondesse, porém Irene disse:

- Tentei fazer a sua vontade. E não é culpa minha se não consegui interessar nisso o meu coração.

- De quem é a culpa, então? - E ele olhava-a de viés.

- Antes de casarmos, você prometeu que me deixaria ir embora se o nosso casamento não fosse feliz. Será que ele é feliz?

- Se é feliz? Sê-lo-ia se você se portasse convenientemente.

- Fiz o que pude - disse Irene. - Quer deixar-me ir embora? Soames voltou-se, secretamente alarmado, tentou refugiar-se

numa brutalidade:

- Deixá-la partir? Você não sabe o que diz. Deixá-la ir embora? Porque a deixaria eu ir embora? Somos casados, não somos? Então, de que é que você está a falar? Pelo amor de Deus, deixemos de dizer disparates! Vá pôr o chapéu e vamos sentar-nos no parque.

- Então você recusa-se a deixar-me ir embora?

Soames sentiu que os olhos de Irene pousavam sobre ele com um olhar estranho, tocante.

- Deixá-la ir embora? Mas que iria fazer de si, se eu o consentisse? Você não tem dinheiro.

- Hei-de arranjar-me.

Ele percorreu duas vezes a sala, com um passo rápido, depois parou à frente dela.

- Compreenda de uma vez por todas que não a quero ouvir falar nessas coisas. Vá pôr o chapéu.

A moça não se moveu.

- Quero crer - disse Soames - que você não deseja perder a visita de Bosinney, caso ele venha!

Irene ergueu-se lentamente e deixou a sala. Voltou com o chapéu na cabeça.

Quando eles chegaram ao parque, já não era o meio da tarde, o momento do grande público enfeitado, colorido, o momento em que se vê passar dentro dos carros estrangeiros e pobres diabos de ar perdido, que supõem acompanhar a moda. A hora elegante, a hora da alta sociedade já viera e estava quase passada quando Soames e Irene se sentaram juntos sob a estátua de Aquiles.

Havia já muito tempo que ele não gozava o prazer da companhia dela no parque. Era um dos encantos perdidos das duas primeiras estações do seu casamento, na época em que o seu maior orgulho consistia em ser, diante de toda a Londres, o possuidor daquela graciosa criatura. Quantas vezes se sentara assim, durante a tarde, ao lado dela, bem vestido, com luvas cinzento-pérola, o seu sorriso superior, fazendo uma inclinação de cabeça aos conhecidos e de tempos a tempos erguendo um pouco o chapéu!

As suas mãos ainda estavam enluvadas em cinzento-pérola e o sorriso mantinha-se-lhe sempre sardónico nos lábios. Mas quando recuperaria a antiga sensação no coração?

Os bancos esvaziavam-se rapidamente, e entretanto ele retinha-a ali, silenciosa e pálida, como para a levar até ao fim de uma secreta punição. Uma vez ou duas fez uma observação, e ela inclinava a cabeça ou respondia «sim», com um sorriso fatigado.

Ao longo das grades um homem caminhava tão rapidamente que as pessoas arregalavam os olhos para o ver passar.

- Olhe para aquele idiota - disse Soames. - é preciso que esteja louco para correr assim, com este calor!

Mas voltou-se: Irene fizera um movimento rápido.

- Oh - disse Soames -, mas é o nosso amigo Pirata! Ficou imóvel, com o seu sorriso sarcástico, sentindo ao seu

lado Irene imóvel e sorrindo também. «Será que ela o vai cumprimentar?» (1)

 

*1. É costume na Inglaterra que uma senhora cumprimente em primeiro lugar o homem que encontra na rua, dando-lhe assim permissão para a reconhecer e a cumprimentar. (N. da T.)

 

Porém Irene não fez nenhum movimento. Bosinney atingiu a extremidade da grade e voltou em sentido contrário, por entre as cadeiras, como um cão que revista um terreno. Quando os viu, parou de súbito e ergueu o chapéu.

O sorriso não se alterou no rosto de Soames, que, por sua vez, ergueu o chapéu.

Bosinney aproximou-se, tinha o ar esgotado de um homem que acaba de exigir de mais de si, o suor porejava-lhe as frontes e o sorriso de Soames parecia dizer: «Teve de roer um pedaço duro, meu amigo!»

- Que é que faz no parque? - perguntou ele. - Nós supúnhamos que você desprezava estes lugares frívolos.

Bosinney não deu mostras de ter ouvido, falou a Irene:

- Passei por sua casa. Esperava encontrá-la lá.

Alguém tocou nas costas de Soames e falou-lhe. Durante a troca de banalidades que se fez por cima do seu ombro, ele perdeu a resposta de Irene e tomou uma resolução.

- Estamos de volta - disse a Bosinney. - Você devia vir jantar connosco. - E pôs naquele convite uma estranha bravata, que tinha em si qualquer coisa de patético. O seu olhar e a sua voz pareciam dizer: «Você não pode enganar-me, e, veja, tenho confiança em si. Não o receio.»

Voltaram juntos para Montpellier Square. Irene caminhava entre os dois. Nas ruas mais cheias, Soames tomava a frente. Não escutava a conversa deles, a singular resolução que acabava de tomar - a resolução de confiar neles - parecia governar-lhe até a conduta íntima. Como um jogador, dizia a si mesmo: «É uma carta que eu não posso largar, portanto jogo-a pelo que ela vale. Só tenho essa.»

Vestiu-se lentamente. Ouviu Irene sair do quarto e descer, e durante mais uns cinco longos minutos ele andou pelo seu quarto de vestir. Depois desceu, batendo de propósito a porta para anunciar a sua chegada. Encontrou-os de pé em frente da lareira. Conversariam ou não? Soames não poderia dizê-lo.

Durante todo o serão representou o seu papel na comédia, as suas maneiras para com a visita foram mais amigáveis do que nunca o tinham sido antes, e quando Bosinney saía ele disse:

- Precisa de cá voltar depressa. Irene gosta muito de o ouvir falar na casa.

A sua voz recuperara a expressão de estranho desafio, de emoção mais estranha ainda, porém tinha a mão fria como gelo.

Fiel à sua resolução, voltou-se quando eles se separaram: afastou-se de Irene enquanto ela, de pé sob a lâmpada suspensa, se despedia da visita, não quis ver a sua cabeça dourada, tão brilhante sob a luz, nem os lábios de sorriso dolente, nem os olhos de Bosinney, que se prendiam a ela com um olhar tão idêntico ao que o cão tem para o dono.

E foi deitar-se com a certeza de que Bosinney estava apaixonado pela sua mulher.

Fazia um tal calor, tão pesado, que pelas janelas abertas só entrava um ar ainda mais quente. Durante longas horas ele manteve-se imóvel, escutando a respiração de Irene.

Ela podia dormir, ele devia suportar a insónia. E estirado, desperto, Soames reafirmava-se na resolução de desempenhar o papel de um marido confiante e calmo.

De manhãzinha saiu da cama, foi para o quarto de vestir e apoiou-se à janela. Mal podia respirar.

Veio-lhe uma lembrança ao espírito: a de uma noite, quatro anos atrás, na antevéspera do seu casamento, tão quente e tão abafada quanto aquela de agora.

Lembrou-se de que estava estendido sobre uma cadeira de vime. na janela do seu salãozinho, perto de Victoria Street. Em baixo, numa rua lateral, um homem batera com a porta, uma mulher gritara. Ele recordava, como se ainda estivesse presente, o barulho da briga, o bater da porta, o silêncio mortal que se seguira. Então o primeiro dos carros da rega que lava o suor das ruas aparecera na luz insólita, inútil, dos candeeiros. E parecia-lhe ouvir o seu rodar aproximar-se, passar, e lentamente desaparecer.

Inclinara-se mais na janelinha do quarto, acima do pátio, e vira crescer a luz da aurora. O contorno das paredes escuras e dos telhados confundira-se um instante, depois reaparecera mais duro.

E lembrava-se como, naquela noite, vira os candeeiros empalidecerem ao longo da ampla avenida, e como depois se vestira à pressa, passara casas, casas, até à rua onde ela morava, e lá parara para olhar a pequena fachada, silenciosa e cinzenta como a face de um morto.

E subitamente, como a alucinação de um doente, uma ideia ocorreu-lhe: «E o outro, o outro, que estará a fazer esse indivíduo que me obceca, que estava aqui esta noite, que está apaixonado por minha mulher? Está lá fora, sem dúvida, rondando, procurando-a como vi muito bem que a procurava esta tarde. Está, quem sabe?, a espiar-me a casa, talvez neste mesmo momento.»

Deslizou para uma das salas da frente, furtivamente, ergueu um estore e abriu uma das janelas.

A luz cinzenta tocava as árvores da praça, como se a noite, igual a uma grande falena veludosa, lá tivesse deixado a poeira das asas. Os candeeiros ainda estavam acesos, muito pálidos, nada se mexia, não se via nenhuma criatura viva na rua.

Mas de súbito, muito fraco, muito longínquo naquela imobilidade mortal, ele ouviu um grito ecoar como a voz de um homem errante, banido do céu, lamentando a ventura perdida. Ainda uma vez o grito! E mais ainda!

Soames fechou a janela, com um arrepio. E então pensou: «Ah, são os pavões, do outro lado do rio!»

 

JUNE FAZ ALGUMAS VISITAS.

O velho Jolyon, de pé no vestíbulo estreito, respirava aquele cheiro de arenque e de oleado que impregna o ar em qualquer respeitabilíssima pensão à beira-mar. Numa cadeira de couro brilhante, na qual um buraco no canto esquerdo deixava escapar uma mecha de crina, estava aberta uma pasta preta.

O velho Jolyon arrumava naquela pasta os seus papéis, o Times, uma garrafa de água-de-colónia. Ia a Londres naquele dia para assistir ao conselho da Globular Gold Concessions e da New Colliery Co., Ltd., com a sua pontualidade habitual. Se faltasse a um conselho, provaria a si mesmo que envelhecia, coisa que o seu cioso espírito de Forsyte não poderia tolerar.

Enquanto enchia aquela pasta de couro preto, os seus olhos pareciam prestes, de um momento para outro, a inflamar-se de cólera. É assim que brilha o olhar de um colegial acusado pelos colegas, porém ele contém-se, paralisado pela visão do inelutável. E do mesmo modo o velho Jolyon continha-se, abafando com aquela impetuosa energia, que se gastava lentamente, a irritação desenvolvida nele pelas actuais circunstâncias da sua vida.

Recebera do filho uma carta absurda, na qual, através de generalidades mal alinhavadas, o rapaz parecia querer evitar a questão precisa. «Vi Bosinney», dizia. «Não é um criminoso.

Quanto mais vejo os homens, mais me convenço de que eles não são bons nem maus, mas simplesmente cómicos ou patéticos. O senhor é provavelmente da minha opinião.»

Não, decerto! E o velho Jolyon julgava-o cínico por se exprimir assim. Não atingira ainda aquele estágio da velhice em que os próprios Forsyte, despidos das ilusões e dos princípios que cultivaram cuidadosamente com um fim prático, mas nos quais não acreditaram, despidos de qualquer alegria física, feridos no coração pela tristeza de não terem mais nada que esperar, quebram os liames e dizem coisas que jamais se teriam suposto capazes de dizer.

Talvez não acreditasse mais do que o filho na distinção entre bons e maus. Mas diria decerto: «Eu é que não posso resolver a questão, e isso talvez represente qualquer coisa, e porque, por uma inútil expressão de dúvida, abrir mão de uma vantagem possível?»

Outrora habituara-se a passar as férias nas montanhas, e embora, como um verdadeiro Forsyte, nunca tentasse nada muito difícil, amara-as apaixonadamente. E quando uma paisagem magnífica (o Baedeker dizia fatigante mas compensadora) se desenrolava à sua frente, depois do esforço da ascensão, ele sentia realmente a existência de um grande princípio que paira acima das lutas desordenadas, dos precipícios mesquinhos, das pequenas grotas irónicas e sombrias da vida humana. A sua oração prática talvez nunca houvesse estado mais próxima de um pensamento religioso. Havia porém muitos anos que ele não voltara às montanhas. Levara consigo June, dois Verões seguidos, depois da morte da mulher, e sentira amargamente que a idade das longas caminhadas estava passada para ele.

De forma que há muito tempo já lhe era alheia essa confiança que a montanha lhe despertava, numa ordem suprema das coisas.

Sabia-se velho, e entretanto sentia-se jovem, aquilo admirava-o, perturbava-o. Perturbava-se também ao saber que ele, tão avisado, era o pai e o avô de entes que pareciam destinados à perda. Não tinha nada a dizer contra Jo - quem poderia ter qualquer coisa a dizer contra Jo, um rapaz tão estimável? - mas a sua posição era deplorável e o problema de June era-o quase igualmente. Aquilo parecia uma fatalidade, uma dessas espécies de coisas que nenhum homem do seu carácter pode compreender ou suportar.

Quando escrevera ao filho, não esperava nenhum resultado especial. Depois do baile em casa de Roger, compreendera bem de mais o que se passava. Ele via claro mais depressa do que muitos homens, e, tendo o exemplo do seu próprio filho sob os olhos, sabia melhor do que nenhum outro Forsyte como os homens, sem o quererem, vão queimar-se na pálida chama.

Antes do noivado de June, quando a neta e Mrs. Soames estavam sempre juntas, vira Irene com frequência bastante para compreender o magnetismo que ela exercia sobre os homens. Ela não era namoradeira, nem mesmo coquette - palavras queridas à sua geração, que gostava de definir as coisas por um bom termo largo e inexacto-, mas era perigosa. Não saberia dizer porquê. Se lhe falassem de uma qualidade inata em algumas mulheres, um poder de sedução que ultrapassasse a vontade delas, responderia: «Conversas!» Irene era perigosa, e eis tudo. Ele queria fechar os olhos àquele assunto. Se aquilo existia, existia, não tinha necessidade de ouvir mais - queria apenas salvaguardar a situação moral e a paz de espírito da neta. E o velho esperava ainda que, um dia ou outro, ela voltasse a ser para ele a companheira que já fora.

Então escrevera. A resposta nada lhe disse. A respeito do que se passara durante a entrevista, Jolyon filho não escrevia senão esta frase bizarra: «Segundo creio, ele deu o mergulho.» O mergulho! Que mergulho? Que significava esse novo modo de falar?

Suspirou e enfiou os últimos papéis num bolso da pasta. Sabia muito bem o que Jo queria dizer.

June saiu da sala de jantar e veio ajudá-lo a vestir o sobretudo de Verão. Vendo a roupa que ela trajava e a expressão do seu rosto resoluto, compreendeu imediatamente o que iria acontecer.

- Vou com o senhor - disse a pequena.

- Nem pense nisso, minha querida! Vou directo para a City! E não vou deixar você andar por aí sozinha toda a tarde.

- Eu preciso visitar Mrs. Smeech.

- Ah, a sua preciosa «desvalida»! - ralhou o velho Jolyon. Não acreditava no pretexto, mas parou com a oposição. Não tinha nada a fazer contra a teimosia de June.

Ao sair da estação, instalou-a na sege que encomendara para si.

- Agora, minha flor, não vá fatigar-se - disse o avô, que tomou depois um cab e se dirigiu à City.

June foi primeiro a uma ruela de Paddington, onde morava a sua «desvalida», a velha Mrs. Smeech, mas, depois de passar uma meia hora ouvindo-lhe as histórias, lamentáveis como de costume, e a reanimá-la, à força de a sacudir, June partiu para Stanhope Gate. O casarão estava fechado e sombrio.

Custasse o que custasse, June estava resolvida a saber alguma coisa. Seria melhor olhar de frente o pior e acabar com aquilo. E era este o seu plano: ir primeiro à casa da tia de Phil, Mrs. Baynes, e depois, se não obtivesse nenhum esclarecimento, à casa da própria Irene.

O que lhe adiantariam essas visitas, ela não o via claramente,

Às três horas chegou a casa de Mrs. Baynes. Com o instinto que tem a mulher quando precisa afrontar o sofrimento, usava o seu mais bonito vestido e dirigira-se para a batalha com um olhar tão corajoso quanto o do próprio velho Jolyon. A sua angústia mudara-se em energia.

Mrs. Baynes, tia de Bosinney (tia Louise) estava na cozinha, dando instruções à cozinheira, quando anunciaram June. Era uma excelente dona de casa, e Mr. Baynes sempre dissera: «Há muita coisa boa num bom jantar.» Baynes executava depois do jantar os seus melhores trabalhos. Fora ele que construíra, em Kensington, aquela notável fila de altas casas vermelhas, que rivalizavam com tantas outras de Londres, e por um preço ínfimo.

Quando ouviu o nome de June, Mrs. Baynes correu precipitadamente para o seu quarto e, tirando de uma caixa de marroquim vermelho, metida numa gaveta fechada à chave, duas grandes pulseiras, pô-las nos braços brancos, porque ela possuía em raro grau esse instinto da propriedade que, como o sabemos, é a pedra de toque do forsytismo e o fundamento da boa moralidade.

O seu vulto reflectia-se no espelho do armário de pau-cetim: forte, de altura mediana, com uma certa tendência à obesidade, o vestido, cuja confecção ela própria dirigira, era de um desses meios-tons que lembram os corredores pintados dos grandes hotéis. Levou as mãos ao cabelo, que penteava à princesa de Gales, retocou-os e consolidou-os na cabeça, os seus olhos estavam cheios de um realismo inconsciente, como se estivesse prestes a encarar algum dos factos sórdidos da vida a fim de tirar dele o melhor partido possível. Na juventude, as suas faces haviam sido de lírio e rosas, mas a idade madura avermelhara-as agora, de novo lhe atravessou os olhos aquela feia e dura expressão de vontade precisa, enquanto passava pelo rosto o arminho de pó de arroz. Depondo o arminho, ficou inteiramente imóvel diante do espelho, arranjando um sorriso que lhe interessava o nariz, alto e importante, o queixo, que nunca fora grande (e que diminuía agora na amplidão crescente do pescoço), e os lábios estreitos, de cantos caídos. Depressa, para não perder o seu efeito, apanhou fortemente as saias com as duas mãos e desceu as escadas.

Havia algum tempo que já esperava essa visita. Tinham chegado até ela alguns murmúrios, segundo os quais nem tudo ia no melhor dos mundos entre o sobrinho e Miss Forsyte. Nem úm nem outra tinham vindo visitá-la havia semanas. Muitas vezes convidara Phil para jantar, e invariavelmente ele respondia: «Muito ocupado.»

O seu instinto alarmava-se, e nesses assuntos o instinto daquela excelente mulher era interessante.

Ela deveria ter nascido uma Forsyte, e, no sentido que Jolyon filho emprestava a esse nome, ela certamente estava à altura desse privilégio, pois dispunha de todos os méritos que ele descrevera.

Casara as suas três filhas, simples e ingénuas, de um modo que se poderia dizer superior aos merecimentos delas. O seu nome aparecia à frente de inúmeras comissões de caridade relacionadas com a sua igreja - bailes, representações ou quermesses - e nunca deixara que lhe utilizassem o nome antes de se ter assegurado que tudo fora perfeitamente organizado.

Acreditava, como frequentemente o dizia, que as coisas deviam ser sempre colocadas numa base comercial. A natural função da Igreja, e consequentemente a da caridade e de tudo o mais, era fortalecer a organização da sociedade. E considerava portanto imoral a acção individual.

A organização é que se pode estar certo de obter o rendimento justo do nosso dinheiro. Organização e sempre organização! E o velho Jolyon, que um dia lhe chamara "espertalhona", chamara-lhe posteriormente "farsante".

As empresas a que ela emprestava o seu nome eram tão admiravelmente organizadas que acabavam despidas de qualquer traço mínimo de bondade humana, porém Mrs. Baynes fizera notar precisamente que o sentimento deveria ser inteiramente banido delas. Ela era, de facto, e a seu modo, uma académica.

Aquela grande e boa mulher, tão altamente colocada nos círculos eclesiásticos, era uma das sacerdotisas do templo do forsytismo, ajudando a alimentar, dia e noite, a flama sagrada em honra do Deus da Propriedade, sob cujo altar estão inscritas estas palavras inspiradas: «Nada por nada, e muitíssimo pouco por seis vinténs.»

Quando ela entrava numa sala, sentia-se que lá entrara algo de substancial, e era essa talvez a razão da sua popularidade como patronesse de festas. O povo, quando gasta o seu dinheiro, gosta de ver algo de substancial em troca dele, e olhava-a como olharia para um general quando ela aparecia nos bailes de caridade, cercada pelo seu estado-maior de senhoras, com o seu grande nariz, o rosto vermelho e quadrado, metida num uniforme coberto de sequins.

A única coisa existente contra ela era o facto de não possuir um nome "duplo". Ela era pobre dentro da sociedade da upper-middle-class, cujas centenas de círculos e divisões interferem no campo de batalha comum das funções de caridade, dessa sociedade que se compraz tanto em roçar as suas saias pelas saias aristocráticas da Sociedade com "S" maiúsculo. Era pobre, na sociedade que se escreve com "s" pequeno, mas que representava uma corporação maior e mais significativa do que a aristocracia na sociedade cujas instituições cristãs, comercialmente organizadas, máximas e princípios - tão bem encarnados em Mrs. Baynes - representam um sangue realmente vivo, circulando livremente, e não aquela esterilizada imitação que corre nas veias da Sociedade com "S" maiúsculo.

As pessoas que a conheciam sabiam que ela era sólida - uma mulher sólida que nunca se desviava, nem deixava que coisa alguma se desviasse, se a pudesse agarrar.

Vivera sempre nas piores relações com o pai de Bosinney. que frequentemente a tornava alvo de um imperdoável ridículo. E agora, que ele já a deixara em paz, aludia a Mr. Bosinney como «a meu pobre, querido e irreverente irmão».

Acolheu June com as efusões medidas em que era mestra, um pouco intimidada - tanto quanto poderia ser uma mulher da sua importância no mundo religioso e industrial - porque, para uma mocinha tão frágil, June tinha uma grande dignidade. Dignidade que lhe emanava dos olhos desassombrados.

E Mrs. Baynes reconhecia, com uma certa acuidade, sob aquela absoluta franqueza denotada pelas maneiras de June, muito do carácter dos Forsyte. Se a moça fosse apenas franca e corajosa, Mrs. Baynes pensaria «é uma exaltada» e tê-la-ia desprezado, se ela fosse apenas Forsyte, como por exemplo Francie, Mrs. Baynes tê-la-ia dominado pela simples força do seu temperamento, mas June, por mais pequenina que fosse - e Mrs. Baynes admirava a quantidade -, não a deixava à vontade, de modo que a fez sentar-se numa poltrona contra a luz.

O respeito que a moça lhe inspirava era acrescido por um outro motivo - que ela, piedosíssima filha da Igreja da Inglaterra, incapaz de alimentar ideias mundanas, seria a última a admitir. Ouvia sempre o marido dizer que o velho Jolyon era riquíssimo e estava prevenida a favor da neta pelas mais sólidas razões. Hoje, sentia aquela emoção com que lemos um romance onde se trata de um herói e de uma herança e aquele nervosismo ante a ideia de que talvez, por uma sinistra distracção do romancista, a herança acabe por escapar ao herói.

Foi cordialíssima, nunca compreendera tão claramente quanto aquela moça era distinta e desejável. Perguntou pela saúde do velho Jolyon. Um homem admirável para a idade que tinha! Um ar tão moço ainda e tão bem-posto! Que idade tinha ele exactamente? Oitenta e um anos? Nunca o acreditaria! Estavam juntas numa praia? Como era agradável! Segundo supunha, June deveria receber diariamente notícias de Phil!

Os seus olhos cinzento-claros ficaram mais salientes enquanto fazia esta pergunta, mas a moça sustentou o seu olhar sem estremecer.

- Não - respondeu ela -, ele nunca escreve!

Mrs. Baynes baixou os olhos, não tinha a intenção desse gesto, mas fê-lo. Porém recobrou-se logo.

- Naturalmente, isso é muito de Phil. Ele sempre foi assim!

- Realmente? - perguntou June.

A brevidade da resposta fez hesitar um instante o brilhante sorriso de Mrs. Baynes. Ela escondeu o embaraço com um movimento rápido, e, abrindo de novo os folhos da saia, disse:

- Mas, minha querida, Phil é um maluco, nunca ninguém se incomoda com o que ele faz!

June teve de súbito a convicção de que perdia o seu tempo. Nunca tiraria nada daquela mulher, mesmo por uma pergunta à queima-roupa.

- A senhora tem-no visto? - perguntou ela, corando até à raiz dos cabelos.

Na testa de Mrs. Baynes a transpiração porejava sob o pó de arroz.

- Oh, sim! Já não me lembro de quando veio aqui pela última vez - a verdade é que não o temos visto muito nestes últimos tempos. Ele está tão absorvido pela casa do seu primo! Dizem que ficará pronta um dia destes. E precisamos organizar um jantarzinho para celebrar o acontecimento. Venha, por favor. Reservaremos um quarto para si.

- Obrigada - disse June. E mais uma vez pensou: «Perco o meu tempo, esta mulher não me dirá nada.»

Ergueu-se para sair. A fisionomia de Mrs. Baynes alterou-se. Ergueu-se também, os seus lábios tiveram um movimento nervoso, os dedos agitaram-se-lhe. Havia evidentemente alguma coisa que ia mal e ela não ousava perguntar nada àquela moça que se mantinha em pé, frágil, firme, pequenina, com o seu rosto resoluto, os lábios cerrados, os olhos cheios de ressentimento. E no entanto, habitualmente, Mrs. Baynes não tinha receio de fazer perguntas.

Porém os interesses em jogo eram tão graves que os seus nervos, em geral sólidos, foram abalados.

Naquela mesma manhã o marido dissera-lhe: «O velho Jolyon Forsyte deve possuir mais de cem mil libras.»

E a moça estava ali, em pé, de mão estendida, prestes a partir!

Era talvez aquele o momento em que a ocasião escapava - a ocasião de a conservar na família -, e entretanto ela não ousava falar. Os seus olhos acompanharam June até à porta. E a porta fechou-se.

Então, com uma exclamação, Mrs. Baynes correu para a frente, sacolejando o seu volumoso corpo, e reabriu a porta. Tarde de mais! Ouviu bater a porta de entrada e ficou imóvel, tendo no rosto uma expressão de verdadeira cólera e de mistificação.

June atravessou a praça com a sua rapidez de pássaro. Detestava agora aquela mulher, que, em tempos mais felizes, considerara tão boa. Seria que toda a gente iria escapar-lhe assim? Iria ela ser forçada a suportar sempre aquela tortura da incerteza?

Procuraria o próprio Phil - iria perguntar-lhe quais eram as suas intenções. Tinha o direito de o saber. Apressadamente, desceu Sloame Street, até ao número de Bosinney. Passou pela porta automática e subiu a escada a correr. O coração batia-lhe tão forte que chegava a doer. No terceiro andar, parou, sem fôlego, e, segurando o corrimão, escutou. Nenhum rumor vinha lá de cima.

Com o rosto muito branco, subiu ao último andar. Viu a porta, o nome sobre a placa. E a vontade que a levara até lá evaporou-se.

Impôs ao seu espírito a total significação do seu acto. Ela sentia-se arder toda. As palmas das mãos estavam húmidas sob as delicadas luvas de seda.

Recuou até à escada, mas não desceu. Apoiada no corrimão, tentava libertar-se de uma sensação de sufocamento, olhou para a porta com uma espécie de terrível coragem. Não! Não queria descer. Que importava o que pensassem dela? Nunca o saberiam! Ninguém a ajudava, ela ajudar-se-ia a si própria. Iria até ao fim.

Conseguiu deixar o apoio e tocou a campainha. A porta não se abriu e então toda a sua vergonha e o seu receio a abandonaram. Tocou de novo, como se, apesar de o quarto estar vazio, ela pudesse extorquir uma resposta, o preço das angústias que lhe custara aquela visita.

Nada se moveu, parou de tocar, e, sentada no alto da escada, cobriu o rosto com as mãos.

Depois de um momento desceu, depressa, na ponta dos pés, procurando o ar livre. Sentia-se como se tivesse atravessado uma grave doença, e não tinha outro desejo senão voltar para casa o mais depressa possível. As pessoas que a encontravam tinham maneira de saber donde ela vinha, o que fizera. E de súbito - na outra calçada, voltando para casa pelo caminho de Montpellier Square - ela viu o próprio Bosinney.

Fez um movimento para atravessar a rua. Os olhares dos dois encontraram-se, ele levantou o chapéu. Um ónibus passou, escondendo-o, depois, da margem do passeio, num espaço livre entre os veículos, ela viu-o continuar o seu caminho.

E, parando, imóvel, June acompanhou-o com o olhar.

 

CONCLUSÃO DA CASA.

Sopa de tartaruga, carne assada, dois copos de Porto - No primeiro andar do restaurante de French, onde um Forsyte pode ainda encontrar uma sólida refeição inglesa, James e o filho almoçavam.

James preferia aquele lugar a qualquer outro onde se come. Gostava da comida, que considerava, sem pretensão, saborosa e substancial, e, embora tivesse sido até certo ponto corrompido pela necessidade de acompanhar a moda e pela formação de novos hábitos que decorriam de um rendimento que teimava sempre em aumentar, suspirava ainda, durante os momentos mais tranquilos da City, pelos bons bocados dos seus tempos de moço.

Ali, as mesas eram servidas por criados ingleses, barbudos, de avental. Havia serradura no chão, e três espelhos redondos, em molduras douradas, estavam pendurados alto de mais para que alguém pudesse mirar-se neles. Havia pouco tempo apenas que se tinham suprimido aquelas espécies de jaulas dentro das quais a gente podia comer a sua costeleta inglesa e uma batata farinosa sem ver os vizinhos, como um gentleman.

James enfiou uma ponta do guardanapo na terceira casa do colete, gesto que fora obrigado a abamdonar há anos no West End.

Sentia que ia saborear a sopa, passara toda a manhã a fazer o balanço dos haveres deixados por um cliente, um velho amigo.

Depois de encher a boca de pão preto, começou imediatamente:

- Como vai você com Robin Hill? Vai levar Irene? Faz bem. Deve haver uma porção de coisas que têm necessidade de ser revistas.

Sem levantar a cabeça, Soames respondeu:

- Ela não quer ir.

- Não quer ir? Que é que isso significa? No entanto, vai viver lá, não vai?

Soames não respondeu.

- Não sei o que têm as mulheres de hoje em dia - resmungou James. - A mim, nunca me deram aborrecimentos. Você deu-lhe muita liberdade, mimou-a de mais...

Soames ergueu os olhos.

- Não quero que se diga nada contra ela - disse num tom imprevisto.

O silêncio não foi mais interrompido senão pelo rumor que James fazia ao tomar a sopa.

O criado trouxe dois copos de Porto, mas Soames atalhou-o:

- Não é assim que se serve Porto. Leve esses copos e traga a garrafa.

Saindo da cisma a que se abandonava, inclinado sobre a sopa, James encarava, à sua maneira apressada, o conjunto da situação.

- A sua mãe está de cama - disse ele. - Você pode servir-se do carro. Penso que o passeio agradará a Irene e o jovem Bosinney há-de estar lá, creio eu, para mostrar a casa.

Soames fez que sim com a cabeça.

- Gostarei bem de ver pessoalmente como é que ele deu a última demão - continuou James. - Passarei pela vossa e levo os dois comigo.

- Eu vou de comboio - respondeu Soames. - Se o senhor quiser passar lá por casa, talvez Irene o acompanhe, mas não garanto.

Fez um gesto ao criado, pedindo a conta, que James pagou. Separaram-se em Saint Paul, Soames dirigindo-se para a estação, enquanto James tomava o ónibus na direcção de West End. Sentou-se num canto da entrada, onde as suas longas pernas atrapalhavam a passagem, olhando com rancor as pessoas que entravam, como se elas o prejudicassem vindo respirar o seu oxigénio. Queria, naquela tarde, provocar uma ocasião de falar a Irene. Uma palavra dita a tempo economiza muitas outras, e agora, que ela ia viver no campo, podia aproveitar a mudança para virar uma nova página. Vira bem que Soames não suportaria os modos dela por muito mais tempo.

Não lhe ocorreu precisar o que ele queria dizer com a expressão «os modos dela»'. A expressão era larga, vaga, e muito própria para um Forsyte. E James tinha mais que a dose normal de coragem que acompanha em geral um almoço.

Voltando a sua casa, deu ordem para aprontarem o carro e especificou que o groom deveria ir também. Queria ser gentil com a nora e dar-lhe todas as oportunidades.

Quando lhe abriram a porta no n.o 62, em Montpellier Square, ele ouviu distintamente que ela cantava, e apressou-se em verificá-lo em voz alta, para evitar qualquer pretexto de lhe fecharem a porta.

Sim, Mrs. Soames estava em casa, mas a criada ignorava se ela recebia.

James, movendo-se com a rapidez que espantava sempre os observadores da sua longa silhueta e da sua fisionomia absorta, entrou no salão sem consentir que fossem verificar aquela última condição. Encontrou Irene sentada ao piano, com os dedos nas teclas, evidentemente parara para escutar as vozes que vinham do hall. Recebeu o sogro sem sorrir.

- A sua sogra está de cama - começou ele, procurando provocar a simpatia da moça. - Estou com o carro à porta. Vamos, seja boazinha, ponha o chapéu e venha dar um passeio comigo. Há-de-lhe fazer bem!

Irene olhou-o, como se estivesse prestes a recusar, depois pareceu mudar de ideia, subiu ao quarto e voltou com o chapéu na cabeça,

- Onde me leva o senhor? - perguntou ela.

- Iremos até Robin Hill - disse James muito depressa. - Os cavalos precisam de fazer exercício, e eu gostaria de ver o que estão a fazer por lá.

Irene hesitou, mas mudou de novo de ideia, e dirigiu-se para o carro, James inclinava-se sobre ela, como para estar mais certo de que a levaria.

Só a meio do caminho ele começou:

- Soames adora-a, não permite que digam nada contra si: porque não lhe mostra mais carinho?

Irene corou e disse em voz baixa:

- Não posso mostrar o que não tenho.

James lançou-lhe um olhar severo, sentia que, agora que a tinha no seu próprio carro, com os seus cavalos e os seus criados, era verdadeiramente senhor da situação. Ela não poderia mandá-lo passear, e não faria igualmente uma cena em público.

- Não sei onde é que você tem a cabeça - disse ele. - É um excelente marido.

Irene respondeu tão baixo que a voz quase se perdeu no barulho da rua. Ele apanhou estas palavras:

- Não é o senhor que é casado com ele.

- Que tem uma coisa com outra? Ele deu-lhe tudo que você poderia desejar. Está sempre pronto a levá-la onde você quer ir, e agora fez-lhe esta casa no campo, que é como se você tivesse qualquer coisa de só seu.

- Não.

James olhou-a de novo, não podia compreender a expressão do seu rosto. Ela parecia estar prestes a chorar e entretanto...

- Tenho a certeza - murmurou ele rapidamente - de que todos nós procuramos ser gentis para si.

Os lábios de Irene tremeram, James viu, com mágoa, uma lágrima deslizar-lhe ao longo da face, e sentiu que a sua própria garganta se apertava.

- Nós todos estimamo-la muito. Se ao menos você quisesse... - ele ia dizer «proceder melhor», mas modificou a frase - se você quisesse ser um pouco mais mulher dele...

Irene não respondeu e James parou de falar. Havia qualquer coisa que o desconcertava no mutismo da nora, não traduzia uma resistência interior, significava antes uma aquiescência a tudo que ele pudesse dizer. E no entanto sentia a impressão de não ter dito a última palavra. Aquilo deixava-o perplexo.

De qualquer modo, ele não era capaz de ficar calado muito tempo.

- Segundo penso, esse jovem Bosinney vai em breve casar com June?

Irene mudou de expresão.

- Não sei de nada, deve perguntar isso a ela.

- Ela tem-lhe escrito?

- Não.

- Como não? - perguntou James. - Eu supunha-as muito amigas.

Irene voltou-se para ele:

- Ainda uma vez, é a ela que deve perguntar isso.

- Bem - disse James, assustado com a expressão da moça -, é esquisito que eu não consiga obter uma resposta clara para uma pergunta clara, mas é assim. - Ficou algum tempo a ruminar o revés, depois explodiu: - Bom, eu preveni-a. Você não quer encarar as consequências. Soames não diz grande coisa, mas Vejo que ele já está farto disso tudo. Você só poderá queixar-se de si mesma, e, o que é mais, não conte com a simpatia de ninguém.

Irene inclinou a cabeça com um sorriso:

- Fico-lhe muito obrigada.

James não tinha a menor ideia do que deveria responder-lhe.

A quente e luminosa manhã transformara-se lentamente numa tarde abafada e cinzenta. Um pesado grupo de nuvens, coloridas daquele tom açafroado que anuncia a trovoada próxima, erguera-se no sul, e ia-se estendendo mais e mais. Os ramos de árvores pendiam imóveis sobre a estrada, sem que o menor tremor percorresse a folhagem. Um cheiro viscoso, proveniente dos cavalos suados, flutuava no ar espesso. Erectos e rígidos, o cocheiro e o groom, na boleia, trocavam murmúrios furtivos, sem nunca voltarem a cabeça.

Para grande alívio de James, chegaram afinal a Robin Hill. O silêncio e a impenetrabilidade daquela mulher sentada ao seu lado, e que ele Sempre imaginara tão meiga, tão maleável, desarmava-o.

O carro deixou-os em frente à porta e eles entraram.

O hall estava tão fresco e tão tranquilo que era como a entrada de um sepulcro, James sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Rapidamente soergueu os pesados reposteiros de couro que pendiam entre as colunas, escondendo o pátio interior.

Não pôde reter uma exclamação aprovativa. A decoração era realmente de um bom gosto perfeito. Os azulejos, de um vermelho claro e lilás, que se estendiam desde a base das paredes até uma touceira de íris brancos, que rodeavam um tanque de mármore branco cheio de água, eram, evidentemente, da melhor qualidade. Admirou imensamente as cortinas de couro purpúreo, estendidas por todo um lado do pátio e enquadrando uma vasta chaminé de louça branca. Na parte envidraçada do tecto, estava aberta uma das clarabóias, e o ar quente de fora penetrava no próprio coração da casa.

James mantinha-se em pé, com as mãos cruzadas atrás das costas, a cabeça inclinada para trás, observando a ornamentação das colunas e o desenho do friso que corria sob a galeria, ao longo das paredes cor de marfim. Evidentemente, não se economizara trabalho. Tratava-se realmente da casa de um gentleman. Caminhou até às cortinas, e, depois de descobrir como eram manobradas, abriu-as e viu aparecer a galeria dos quadros, terminando por uma grande janela que ocupava toda a parede do fundo. A sala tinha um forro de carvalho negro e as paredes eram de um branco de marfim. James avançou, abrindo as portas e lançando um olhar a cada compartimento. Tudo estava perfeitamente em ordem, pronto para ser ocupado.

Ele voltou atrás para falar a Irene e viu-a parada à entrada do jardim, com o marido e Bosinney.

Embora a sua sensibilidade não tivesse nada de notável, James teve a intuição de que algo não caminhava bem. Dirigiu-se para o grupo e, vagamente alarmado, ignorando a natureza do incidente, tentou introduzir uma palavra amigável.

- Como vai, Mr. Bosinney? - perguntou, estendendo a mão. - O senhor fez o dinheiro correr a rodos aqui!

Soames voltou-lhe as costas e afastou-se. James correu o olhar da cara aborrecida de Bosinney para a de Irene, e na sua agitação exprimiu em voz alta o que pensava:

- Bem, não sei do que se trata. Nunca ninguém me diz nada!

- Partiu atrás do filho e ouviu o riso curto de Bosinney: «Afinal! Graças a Deus! Você está com um ar tão..."-O fim, infelizmente, perdeu-se.

Que acontecera? Lançou um olhar para trás: Irene estava junto do arquitecto e o rosto dela não se parecia com o que ele conhecia. Apressou-se em procurar o filho.

Soames passeava através da galeria dos quadros.

- Que é que há? - perguntou James.-Que significa isto? Soames olhou-o sem sair da sua calma superior, mas James

viu que ele estava exasperado.

- O nosso amigo ultrapassou novamente os créditos. Desta vez, pior para ele.

Voltou-se e caminhou em direcção à porta. James seguiu-o apressadamente e deslizou para fora antes de Soames. Viu Irene retirar o dedo dos lábios, ouviu-a pronunciar algumas palavras com a sua voz habitual e ele próprio pôs-se a falar antes de chegar junto deles:

- Aproxima-se uma tempestade. Seria melhor que voltássemos para casa. Não quer que o leve, Mr. Bosinney? Não, creio que não. Então, até logo!

Estendeu a mão. Bosinney não a tomou, mas, voltando-se com uma risada, disse:

- Até à vista, Mr. Forsyte. Não deixe que o temporal o apanhe! - E afastou-se.

- Bolas - começou James -, não sei se...

Mas o rosto de Irene fê-lo calar-se. Segurando a nora pelo cotovelo, escoltou-a até ao carro. Estava certo, absolutamente certo, de que eles acabaram de combinar um encontro.

Nada é mais próprio para lançar a desordem no espírito de um Forsyte do que descobrir que o custo de uma coisa ultrapassa o preço que ele estipulou pagar, isso compreende-se facilmente porque toda a ordem da vida deles está estabelecida sobre a exactidão das avaliações. Se não pode basear-se sobre valores definidos de propriedade, a sua bússola está defeituosa, e ele flutua sem leme sobre águas amargas.

Depois de ter escrito a Bosinney nos termos que reproduzimos, Soames afastara do espírito a ideia do que lhe custaria a casa.

Pensava ter indicado tão claramente o limite máximo do seu orçamento que nunca lhe ocorrera realmente que ele pudesse ser ultrapassado. Quando soube por Bosinney que o máximo de doze mil libras por ele fixado seria ultrapassado em cerca de quatrocentas libras, empalideceu de cólera. A sua primeira avaliação total do custo da casa fora dez mil libras, várias vezes se censurara intimamente por se ter deixado arrastar a aumentos sucessivos. Mas, de qualquer forma, no que se referia àquela última despesa, Bosinney excedera-se absolutamente.

Soames não podia conceber como é que um indivíduo poderia agir de maneira tão idiota, mas era. e todo o rancor e o ciúme secreto que há tanto tempo ardiam nele contra Bosinney concentravam-se agora naquele cúmulo de extravagância. Desaparecia a atitude do marido amigável e confiante. Para conservar uma das suas propriedades - a mulher -, Soames assumira-a: e, para defender uma propriedade de outra espécie, abandonava-a agora.

- Ah, suponho que você está encantado com o que fez - disse ele a Bosinney. logo que conseguiu dominar-se e falar. - Pois eu digo-lhe que se enganou comigo!

Ele não sabia inteiramente, no momento em que as proferiu, o que significavam aquelas palavras, mas depois do jantar examinou a correspondência que trocara com Bosinney. Não havia dois modos de a entender. Bosinney tornara-se responsável por aquelas quatrocentas libras a mais, ou pelo menos por trezentas e cinquenta, e teria de as pagar. Olhou para o rosto de Irene quando chegou a essa conclusão. Sentada no seu lugar de costume, no sofá, ela segurava uma gola, da qual mudava a renda. Durante todo o serão não dissera uma palavra.

Soames caminhou até à lareira, e, contemplando no espelho o seu próprio rosto, disse:

- O seu amigo Pirata portou-se como um imbecil! Pior para ele.

Ela olhou-o com um ar de desprezo e disse:

- Não sei de que está a falar.

- Vai saber. É uma ninharia, muito abaixo do seu desdém: quatrocentas libras.

Quer dizer que vai obrigá-lo a pagar isso por aquela casa odiosa?

- Perfeitamente.

- Não sabe que ele não possui nada?

- Sim.

- Então você é mais sórdido do que eu pensava.

Soames afastou-se do espelho e inconscientemente tirou da lareira um vaso de porcelana, em torno do qual juntou as mãos, como se rezasse. Via o colo de Irene erguer-se e baixar, os seus olhos sombrearam-se de cólera, e, sem dar atenção ao insulto, perguntou:

- Você mantém um flirt com Bosinney?

- Não, não mantenho flirt nenhum.

Os olhos de ambos encontraram-se, e ele afastou os seus. Não poderia dizer se a acreditava ou não, mas sabia que cometera um erro ao fazer aquela pergunta. Nunca soubera, nem nunca o saberia, o que ela pensava. E exasperava-o terrivelmente, ao olhar para aquele rosto indecifrável, a lembrança de tantas centenas de noites em que a vira sentada ali, como hoje, meiga e passiva, mas tão incompreensível, tão desconhecida.

- Você parece feita de pedra-disse ele, crispando tão fortemente os dedos que quebrou o frágil vaso. Os pedaços caíram sobre o guarda-fogo. E Irene sorriu:

- E você parece esquecer que esse vaso não o é. Soames agarrou-lhe o braço.

- Se eu lhe batesse, como devia, você tomava juízo. Mas, rodando nos calcanhares, deixou a sala.

 

SOAMES SENTA-SE NOS DEGRAUS DA ESCADA.

Soames subiu para o quarto, naquela noite, com a sensação de que fora longe de mais. Estava pronto para pedir desculpas.

Apagou o gás que ainda ardia no corredor em frente ao quarto de dormir. Parou, com a mão no trinco da porta, procurando uma fórmula de desculpas, porque não tinha intenção de mostrar o seu nervosismo.

Mas a porta não se abriu, mesmo quando a puxou dando toda a volta ao trinco. Irene deveria ter tido alguma razão para fechar aquela porta à chave e esquecera-se de a abrir.

Soames entrou no seu quarto de vestir, onde a chama do gás estava baixa, e caminhou rapidamente para a outra porta. Aquela tambem estava fechada. Notou então que o leito de campo que era utilizado em caso de emergência estava preparado e viu nele desdobrada a sua roupa de noite. Passou a mão na testa e retirou-a húmida. Um pensamento brotou nele: expulsavam-no.

Voltou à porta e, sacudindo o trinco, falou:

- Abra. está a ouvir? Abra! - Houve um ligeiro ruído, mas nenhuma resposta. - Está a ouvir? Abra imediatamente! Exijo que me deixe entrar!

Ele pôde ouvir o som da respiração de Irene, pertinho da porta como o arfar de um ente em perigo. Havia qualquer coisa de terrífico naquele silêncio inexorável, na impossibilidade de chegar até à mulher. Voltou à primeira porta, apoiou-se nela com todo o seu peso, tentou forçá-la. A porta era nova - ele próprio a mudara quando voltara da viagem de núpcias. Na sua fúria, ergueu a perna para a arrombar a pontapés, mas a lembrança dos criados conteve-o, e ele sentiu de súbito que fora vencido.

Atirando-se numa poltrona do quarto de vestir, apanhou um livro, mas, em vez das linhas impressas, supunha ver a mulher com os cabelos dourados flutuando sobre os ombros nus, com os seus grandes olhos escuros, em pé, na atitude de um animal acuado. Viu então a significação inteira do acto de revolta de Irene. Ela pretendia que aquilo fosse definitivo.

Não podia ficar imóvel, e voltou à porta. Ouviu-a ainda mover-se e chamou: «Irene!» Sem que ele o quisesse, a sua voz era patética. Como única resposta, o fraco rumor cessou. Ele ficou ali, de punhos crispados, reflectindo.

Depois de um instante saiu do quarto, nas pontas dos pés, e, atirando-se de encontro à porta do patamar, fez um esforço supremo para a obrigar a ceder. A porta apenas estalou. Soames sentou-se nos degraus da escada e enterrou o rosto nas mãos.

Muito tempo ficou ali, no escuro, o luar, através da clarabóia, deixava cair uma esteira pálida de luz que descia lentamente em direcção a ele, ao longo da escada. E ele tentou encarar a coisa com filosofia.

Já que ela lhe fechara a porta, não tinha mais direitos de esposa! Ele se consolaria com outra.

Soames não fizera senão rápidas incursões no mundo do prazer venal, e não sentia nenhum apetite por ele. Nunca o tivera muito, e agora tinha perdido o hábito, sentia que não o recuperaria mais. A sua fome não poderia ser satisfeita senão pela sua própria mulher, que se escondia, inexorável e apavorada, por trás das portas fechadas. Nenhuma outra mulher lhe serviria.

E ali fora, no escuro, essa convicção apoderou-se dele com uma força terrível.

A sua filosofia abandonou-o e deu lugar a uma cólera sinistra. A conduta de Irene era imoral, imperdoável, digna de qualquer castigo que estivesse em seu poder. Ele não queria senão a ela, e ela recusava-se!

Era preciso pois que o detestasse! Até então, Soames nunca acreditara nisso. Ainda não o acreditava agora. Aquilo parecia-lhe inconcebível. Sentia-se como se houvesse perdido para sempre qualquer faculdade de raciocínio. Se ela, que ele sempre considerara meiga e dócil, era capaz daquilo, que é que não poderia acontecer? Então perguntou de novo a si mesmo se ela não seria amante de Bosinney. Não o acreditava, não podia correr o risco que havia em acreditar e interpretar assim o procedimento da mulher: era uma coisa que não se podia encarar de frente.

Não podia suportar a ideia de fazer das suas relações conjugais um assunto de discussão pública. Enquanto não tivesse em mãos as provas mais convincentes, tinha de se recusar a crer, porque não queria punir-se a si próprio. E ao mesmo tempo, no fundo do coração, acreditava.

O luar despejava uma luz acinzentada sobre o vulto encostado à parede da escada. Bosinney estava apaixonado por ela. Odiava-o e não o pouparia agora. Recusar-se-ia - e estava no seu direito - a pagar um penny a mais, afora as doze mil e cinquenta libras assinaladas como limite máximo na correspondência com o arquitecto. Ou talvez pagasse e o accionasse para o reembolso. Iria procurar Jobling e Boulter para lhes entregar a questão. Arruinaria o miserável!

E de súbito - por qualquer associação de ideias - lembrou-se de que Irene também não tinha dinheiro: nenhum dos dois tinha um vintém. E isso deu-lhe uma estranha satisfação.

O silêncio foi quebrado por um leve estalar através da parede. Ela ia para a cama, afinal. Ah, boa noite. Agora, mesmo que ela escancarasse a porta, não entraria!

Porém os seus lábios, torcidos por um sorriso amargo, tremeram e ele cobriu os olhos com a mão...

No fim do dia seguinte, Soames, em pé junto à janela da sala de jantar, olhava para a praça com os olhos melancólicos.

Os raios de sol caíam ainda sobre os plátanos, e na brisa as suas largas folhas brilhavam e balançavam-se alegremente à música de um realejo que tocara no canto do largo. Era uma valsa, uma velha valsa fora de moda, no ritmo monótono que continuava e nunca se cansava, embora só houvesse ali folhas para dançar.

A mulher que tocava o realejo não tinha o ar alegre, parecia cansada, e das casas altas ninguém lhe atirava uma moeda. Ela apanhou o realejo e, três portas além, recomeçou.

Era a valsa que tocavam em casa de Roger, quando Irene dançava com Bosinney: e o perfume das gardénias que ela trazia naquela noite voltou aos sentidos de Soames. flutuando sobre a irónica música, como flutuava no baile quando Irene passou diante dele. com os seus cabelos ondulados, os seus olhos tão suaves, arrastando Bosinney para mais longe, sempre para mais longe, num salão de baile que não acabava mais.

A mulher girava lentamente a manivela, deveria passar o dia inteiro a moer aquela ária. deveria moê-la perto dali, em Sloane Street, sob as janelas do próprio Bosinney.

Soames voltou-se, foi apanhar um cigarro numa caixa cinzelada e voltou à janela. Aquela valsa magnetizara-o, e de repente ele viu Irene, que, com a sombrinha fechada, caminhava rapidamente para casa. Vestia uma blusa que ele não conhecia, cor-de-rosa, macia, com as mangas flutuantes. Parou diante do realejo, puxou a bolsa e deu uma moeda à mulher.

Soames recuou, e ficou num lugar donde pudesse espiar para o hall. Irene abriu a porta com a sua chave, depôs a sombrinha e parou diante do grande espelho para se mirar. Tinha as faces vermelhas, como se o sol as houvesse queimado, os lábios entreabriam-se num sorriso, e ela estendeu as mãos como para se abraçar a si própria, com um sorriso que não se parecia com outra coisa neste mundo a não ser com um soluço. Soames deu um passo à frente.

- Linda! - disse ele.

Como se atingida por uma bala. Irene voltou-se. Quis passar diante do marido para subir a escada, porém Soames impediu-lhe o caminho.

- Porquê tanta pressa? - perguntou ele. E os seus olhos fixaram-se num cacho de cabelos que escapara sobre a orelha da moça.

Mal a reconhecia. Ela parecia arder, tão rica e profunda era a cor das suas faces, dos olhos, dos lábios, da blusa insólita que vestia. Irene ergueu a mão e consertou o cacho rebelde. Respirava depressa e com força, como após uma corrida, e a cada fôlego que tomava parecia que se exalava um perfume dos seus cabelos e do seu corpo, como de uma flor que se abre.

- Não gosto dessa blusa - disse o marido lentamente. - É mole. não tem forma.

Ergueu o dedo até ao peito de Irene, porém ela fez-lhe cair a mão com uma pancada seca.

- Não me toque! - gritou.

Ele segurou-lhe o pulso, e ela arrancou-o.

- Onde esteve? - perguntou Soames.

- No Céu... fora desta casa! - E fugiu pela escada acima. Na rua, mesmo junto à porta, em agradecimento, o realejo

tocava a valsa.

E Soames ficou imóvel. Que é que o impedia de segui-la?

Talvez, com os olhos da intuição, visse Bosinney debruçado à janela de Sloane Street, os olhos tensos, como para vislumbrar mais uma vez o vulto desaparecido de Irene, procurando refrescar o louco calor em que o seu rosto abrasava, sonhando com o momento em que ela se lançara sobre o seu peito, enquanto, em torno dele, com o perfume da amada, flutuava ainda o som do seu riso, semelhante a um soluço.

 

O TESTEMUNHO DE MRS. MAC ANDER.

Muita gente, inclusive o redactor do Ultra Vivisseccionist, então no ardor da primeira juventude, nos dirá que Soames é um pobre coitado, que deveria ter impedido a mulher de trancar-se mandando retirar o ferrolho da porta e, depois de a surrar devidamente, obrigar a rebelde a reingressar na serenidade da ventura conjugal.

Hoje em dia, o instinto da brutalidade já não é obrigado a lutar, como outrora, com a mania humanitária dominante, mesmo assim, entretanto, devem existir muitas pessoas sentimentais que verificarão com alívio que Soames não teve a ideia de agir assim. Uma brutalidade activa não é popular entre os Forsyte: eles são muito circunspectos e muito tímidos para isso. E, ademais, havia em Soames uma certa quantidade de orgulho, insuficiente para o incitar a um gesto verdadeiramente generoso, mas que conseguia impedi-lo de cometer alguma acção inteiramente baixa, salvo talvez num arrebatamento de cólera. Antes de tudo, esse legítimo Forsyte fazia questão de não se tornar ridículo, e como, afora espancar a mulher, ele não via realmente outra solução, aceitava a situação sem dizer uma palavra.

Durante todo o Verão e todo o Outono continuou a ir ao seu escritório, a arrumar os quadros, a convidar os amigos para jantar.

Ficou na cidade. Irene recusava-se a partir, e a casa de Robin Hill, já pronta, continuou vazia e sem dono. Soames iniciara um processo contra o Pirata, reclamando-lhe a importância de trezentos e cinquenta libras.

O escritório de Messrs. Freak and Able, advogados, encarregara-se da defesa de Bosinney. Admitindo os factos, deduziam da correspondência um argumento que, livre da fraseologia técnica pode ser enunciado assim: «Dizer a um homem dou-lhe carta branca, dentro dos dados desta correspondência, é uma Contradição de má fé.»

Por um desses acasos ás vezes possíveis no mundo, Soames soube dessa táctica: o seu associado, Bustard, sentara-se por acaso, durante um jantar em casa de Walmislev. o taxing mester, ao lado do jovem Chankety, que trabalhava no foro cível.

Aquela necessidade de falar de negócios, comum a todos os homens de leis, que lhes aparece quando a's senhoras deixam a mesa fizera que Chankery, jovem advogado cheio de promessas citasse um caso ao seu vizinho, ignorava o nome deste, principalmente porque Bustard, posto sempre na retaguarda dos negócios, era uma personagem anónima. «Nós estamos a tratar», disse Chankery. «de uma questão muito delicada.» Com toda a discrição profissional, apresentou o ponto litigioso do caso de Soames. Todas as pessoas a quem ele tinha falado, dizia, consideravam a questão delicada. Infelizmente, a causa era de pequena importância económica, embora - e isso era o diabo - muito séria para o seu cliente, supunha ele. O champanhe de Walnisley era mau. mas abundante. O juiz haveria de querer alinhavar esse caso, porém ele, Chankery iria fazer um grande esforço. O ponto de direito era delicado. Que achava disso o vizinho."

Bustard, modelo de reserva, não disse nada. E aquele homem silencioso, mas igual a todos os homens, sentiu um maligno prazer em contar a coisa a Soames. E terminou exprimindo a sua opinião pessoal: o ponto de direito era verdadeiramente delicado.

O nosso Forsyte, segundo tinha resolvido, depusera os seus interesses nas mãos de Joblirg & Bouker. Mas depressa lamentou não ter dirigido sozinho a questão. E, ao receber a comunicação da defesa de Bosinney, foi ao escritório dos seus advogados.

Boulter, que estudava a questão, pois Jobling já morrera há vários anos, disse que, na sua opinião, também o ponto era delicado. Gostaria de tomar o parecer de alguma autoridade.

Soames disse:

- Então procuremos uma pessoa de confiança.

E dirigiram-se a Waterbuck, Q. C. (1)

O mestre olhou os papéis, depois escreveu o parecer seguinte:

 

«Na minha opinião, a verdadeira interpretação desta correspondência depende principalmente da intenção de ambas as partes. Os testemunhos apresentados ao processo é que decidirão. O meu conselho é que devem esforçar-se por conseguir que o arquitecto admita que as suas despesas não deveriam ultrapassar doze mil e cinquenta libras. Quanto à expressão sobre a qual chamam a minha atenção, carta branca dentro dos dados desta correspondência, o ponto é realmente delicado. Mas, em suma, opino que se pode aplicar a esta causa a jurisprudência criada pelo caso Boileau versus The Bastled Cement Company, Limited.»

 

Eles seguiram o parecer, e fizeram um questionário, mas, para grande aborrecimento de Soames e dos seus patronos, a resposta de Messrs. Freak and Able foi tão magistral que o arquitecto não foi obrigado a admitir nada, e isso sem prejuízo para a sua causa.

Foi no dia primeiro de Outubro, na sala de refeições, depois do jantar, que Soames leu o parecer de Waterbuck. Aquela leitura ínquietou-o. Não que lhe parecesse decisivo o precedente do caso Boileau versus The Bastled Cement Company, Limited, mas porque ele próprio começava a considerar o caso «delicado». Evolava-se dali aquele aroma subtil que desperta o apetite dos homens de leis, prometendo-lhes chicana.

E quem, pensando assim, não se perturbaria vendo a sua opinião confirmada por um Waterbuck, Q. C?

Soames ruminava isso, com o olhar perdido na lareira vazia, porque, embora já estivessem no Outono, o tempo continuava o mesmo de Agosto. Aquela sensação de inquietação era desagradável: ele tinha um desejo louco de fazer que Bosinney mordesse a poeira do chão.

 

*1. Q. C. - Queen's Counsel, hoje King's Counsel. Título que distingue uma categoria superior de advogados. O King's Counsel pleiteia vestido com uma toga de seda. (N. da T.)

 

Embora não houvesse visto mais o arquitecto desde a famosa tarde em Robin Hill, nunca se sentia inteiramente liberto da sua presença, nem da lembrança do seu rosto magro de maçãs salientes e dos seus olhos iluminados. E não é mentira afirmar que nunca se libertara da estranha impressão que sentira numa noite de insónia, ao amanhecer, ouvindo o grito dos pavões: a sensação de que Bosinney não tirava os olhos da casa. E cada vulto entrevisto na sombra da noite parecia-lhe o do homem que George apelidara com tanta propriedade o Pirata.

Tinha a certeza de que Irene ainda o via. Onde? Quando' Não sabia, não o perguntava, retido pelo medo secreto e vago de saber de mais. Parecia-lhe que por todos os lados havia mistérios em seu redor de há uns tempos para cá. Às vezes, quando perguntava à mulher o que fizera durante o dia - e fazia-o ainda, por princípio, como todo o bom Forsyte - ela tomava um aspecto singular. Irene dominava-se perfeitamente, mas através da 'máscara do rosto, sempre impenetrável, filtrava-se uma expressão que era nova nela.

Irene agora estava também a acostumar-se a almoçar fora. Quando ele perguntava a Bilson se a patroa almoçara em casa, a criada, uma vez em duas, respondia: «Não, senhor.» Soames desaprovava fortemente essas escapadas. Disse-o a Irene, e ela fez como se não o ouvisse. Não dava nenhuma importância aos desejos do marido, e havia na calma da sua resistência qualquer coisa que o irritava, espantava, e entretanto quase o divertia. Na verdade, era como se ela cultivasse o pensamento de uma vitória sua sobre ele.

Deixando o parecer de Waterbuck, subiu até ao quarto da mulher, que não o fechava senão no momento de se deitar. Ela ainda tinha o pudor, pensava ele, de poupar a opinião dos criados. Irene escovava os cabelos desatados.

- Que é que você quer? - perguntou ela. - Peço-lhe que saia do meu quarto.

Ele respondeu:

- Quero saber até quando vai durar esta situação entre nós. Já a suportei de mais.

- Peço-lhe que saia do meu quarto.

- Quer fazer o favor de se lembrar de que sou seu marido?

- Não.

- Então tomarei as minhas medidas para a obrigar a Isso.

- Tome-as.

Soames teve um olhar estupefacto. Não compreendia a calma daquela resposta. Os lábios apertados de Irene eram apenas uma linha estreita. Os cabelos cor de ouro, espalhados pelos ombros nus, faziam um contraste estranho com as pupilas escuras, pupilas animadas por todas as emoções do medo, do ódio. do desprezo e daquele misterioso triunfo que o surpreendia sempre.

- E agora, por favor, peço-lhe que saia do meu quarto.

Ele voltou as costas e saiu furioso. Sabia perfeitamente que não tomaria medida nenhuma, e via que ela o sabia também: ela sabia que ele não ousaria.

Ele tinha o hábito de lhe contar o que fizera durante o dia: que tal ou qual cliente viera consultá-lo, como tinha tomado uma hipoteca por conta de Park, em que pé estava o interminável processo de Fryer contra Forsyte. (Era um processo originado pela prudência sobre-humana com que o seu tio-avô Nicholas dispusera dos seus bens de modo que ninguém os pudesse receber. Parecia provável que aqueles bens continuariam a ser uma fonte de rendimentos para os advogados até ao dia do Juízo Final.) Dizia-lhe ainda que passara pela loja de Jobson ou que vira vender um Boucher que lhe escapara de TaMeyrand & Sons, em Pa 11 Malil.

Admirava Boucher, Watteau e toda a sua escola. Era hábito seu falar em tudo aquilo a Irene, e continuava a proceder assim, fazendo, à mesa, longos monólogos, como se pudesse, pela sua aparente despreocupação, dissimular que sofria.

Muitas vezes, quando estavam sós, ele fazia o gesto de a beijar quando diziam «boa noite». Talvez dissesse vagamente a si mesmo que um dia ainda ela lhe permitiria aquele beijo, ou pensava simplesmemte que o marido deve beijar a mulher.

E, embora ela o odiasse, ele nunca deveria tirar a razão do seu lado pelo esquecimento daquele rito consagrado.

E porque o odiaria ela? Mesmo agora, não o conseguia acreditar. Era tão extraordinário ser odiado! O ódio é um sentimento excessivo de mais. E, entretanto, ele próprio odiava Bosinney, aquele Pirata de má sorte, aquele sujeito sem vintém, aquele noctâmbulo errante. Porque, nos seus pensamentos, Soames via-o sempre errante, espionando.

Ah, mas ele devia estar na miséria! O jovem Burkett vira-o a sair de um restaurante de terceira classe, parecendo terrivelmente decaído.

Durante as horas de insónia, Soames ruminava os pensamentos inspirados por uma situação inextricável. Mas não voltaria Irene ao bom senso? Nem uma vez pensou seriamente que poderia ter de se separar da mulher.

E os Forsyte? Que papel representavam nessa fase da tragédia subterrânea que agitava a alma de Soames?

Papel nenhum, a falar verdade, tinham ido todos para a beira-mar.

Eram vistos diariamente a sair dos seus hotéis, dos seus sanatórios, das suas pensões familiares, fazendo provisão de ozone para todo o Inverno. Cada família da tribo, no lugar da sua escolha, cultivava, colhia e engarrafava o ar do mar que lhe era mais propício.

O fim de Setembro viu-os regressar. De boa saúde, com belas cores nas faces, vieram uns depois dos outros, nos seus pequenos ónibus, e logo no dia seguinte voltaram aos seus negócios.

No domingo seguinte o salão de Timothy foi invadido desde depois do almoço até ao jantar.

Entre várias histórias, diversas e sensacionais, Mrs. Septimus Small fez notar que Soames e Irene não se tinham ausentado de Londres. Mas não era do círculo da família que deveria partir, logo depois, o primeiro testemunho interessante.

Numa tarde dos últimos dias de Setembro, Mrs. Mac Ander, a melhor amiga de Winifred Dartie, dava o seu passeio higiénico de bicicleta, na companhia do jovem Augustus Flippard, quando encontrou Irene e Bosinney. Saíam os dois de um recanto copado do parque e dirigiam-se para Sheen Gate. Talvez a pobre mulherzinha estivesse de língua seca, porque há muito tempo rodava sobre uma estrada poeirenta e dura, e ninguém ignora que andar de bicicleta conversando com um jovem Flippard é um exercício pesado para qualquer constituição robusta. Talvez o espectáculo dos fetos frescos, donde saíam «aqueles dois», lhe desse invejar a suave encosta, no cimo da colina, sob a abóbada dos ramos de carvalho onde os pombos arrulhavam infindavelmente os seus hinos nupciais, onde o Outono murmurava aos ouvidos dos namorados à sombra dos fetos, enquanto cabritos tímidos passavam em silêncio - um bosque de delícias infinitas, de horas douradas na longa união do céu e da terra, um bosque verde, consagrado aos faunos com que se assemelhavam os estranhos troncos de carvalho, na noite de Estio, e às brancas dríades disfarçadas nas bétulas.

Aquela senhora conhecia bem todos os Forsyte, fora à recepção de noivado de June, e compreendeu imediatamente, ao ver Irene, de quem se tratava. O seu próprio casamento, coitada, não fora feliz, porém ela tivera o bom senso e a habilidade de pôr o marido numa situação evidente de culpabilidade. Passara através de todas as formalidades do divórcio sem incorrer em nenhuma censura.

De forma que era bom juiz para tais questões. Morava num desses hotéis em que, em inúmeros pequenos apartamentos, vivem, ao lado uns dos outros, inumeráveis Forsyte. O principal passatempo deles, fora as horas de escritório, é dar à língua sobre os negócios dos outros.

Pobre mulherzinha! Talvez estivesse com a língua seca. Decerto, naquele momento exacto, ela aborrecia-se mortalmente, porque Flippard era grande conversador. E encontrar «aqueles dois» em lugar tão insólito era uma diversão que lhe fazia bem.

Diante de Mrs. Mac Ander, como toda a Londres, o tempo também pára.

É que essa mulher pequenina, mas notável, merece atenção. O seu olhar, a que nada escapava, e a sua língua aguçada, serviam misteriosamente aos desígnios da Providência. Com uns ares de estouvada, tinha entretanto uma espantosa faculdade de prudência, de atenção aos seus interesses. A seu modo, ninguém fizera nunca mais do que ela para destruir no seu meio aquele sentimento cavalheiresco que entravava ainda a roda da civilização. Ela tinha qualquer coisa de vivo, de tão desembaraçado! Chamavam-lhe carinhosamente «a pequena Mac Ander». Sempre muito bem vestida, correcta, fazia parte de um clube feminino, mas estava a mil léguas do tipo que reina nesses clubes, neurasténico e aborrecido, que só pensa nos seus direitos. Os seus direitos - esses ela assumia-os sem pensar neles, sabia exercê-los até ao máximo, sem suscitar outra coisa afora admiração naquela classe superior à qual pertencia - se não pelo seu modo de viver, pelo menos pelo seu nascimento e educação e por aquela característica verdadeiramente específica: o sentimento da propriedade.

Filha de um advogado do Bedfordshire e neta, por parte da mãe, de um pastor, casara com um pacífico pintor, que gostava da Natureza com um certo toque de excentricidade, e que, um belo dia, abandonara a mulher por uma actriz. Foi uma triste experiência, mas que não a desligou em nada das exigências, das convicções e dos sentimentos do seu meio. De tal forma que, mal recuperou a liberdade, ela soube colocar-se no próprio coração do forsytismo.

Sempre de bom humor, sempre a par de tudo, era bem-vinda onde quer que fosse. Ninguém mostrava surpresa ou desaprovação se a encontrava em Zermatt ou no Reno, às vezes só, às vezes com outra senhora e dois cavalheiros. Sentia-se que ela era perfeitamente capaz de se cuidar, e os corações dos Forsyte enterneciam-se diante daquele instinto maravilhoso que lhe permitia gozar de tudo que a vida oferecia, sem jamais dar pasto às críticas. Segundo o sentimento geral, uma mulher como Mrs. Mac Ander era o modelo sob o qual se devia esperar a perpetuação do tipo feminino que entre nós passa por ser o melhor. Infelizmente não tivera filhos.

Se havia mulheres que ela não podia suportar, eram as daquela frágil espécie das quais os homens dizem que têm encanto. E contra Mrs. Soames ela tivera sempre uma antipatia particular.

Obscuramente, sem dúvida, sentia que, uma vez que se admitisse o encanto pessoal como critério de julgamento, a vivacidade, o jeito, o brilho, não valeriam mais nada - e, com um modo tanto mais profundo porque esse pretenso encanto parecia às vezes vencer qualquer cálculo, ela odiava o poder subtil de sedução que não podia deixar de reconhecer em Irene.

Nem por isso parava de repetir sempre que não via o que se poderia julgar interessante naquela mulher. Não tinha mobilidade, era incapaz de se afirmar, não fazia realçar nada. Em suma, não percebia o que nela poderia atrair os homens.

No fundo, a pequena Mac Ander não era má, mas para sustentar a sua situação mundana, depois de todas as dificuldades da vida de casada, ela sentia tão bem a utilidade de estar informada de tudo que não lhe ocorreu nem um instante ao espírito a ideia de guardar para si o encontro que tivera com «aqueles dois» no parque.

Justamente nesse dia deveria jantar em casa de Timothy. Ela ia lá de tempos a tempos, para desenrugar um pouco aquelas velhas, como dizia. Sempre encontrava os mesmos convivas: Winifred Dartie e o marido, Francie, porque pertencia ao clã literário, e sabia-se que Mrs. Mac Ander escrevia artigos de modas para o Ladies Kingdom Come. Para o flirt, quando era possível obter a presença deles, convidavam-se os dois moços Haymain, que, embora mudos como peixes, passavam por muito elegantes e profundamente informados sobre as últimas novidades da sociedade elegante. Às sete horas e vinte e cinco ela acendeu a luz do seu pequeno vestíbulo, lá parou um momento para ver se tinha a chave consigo. Aqueles pequenos apartamentos de hotel eram bem cómodos - é verdade que lhes faltava um pouco de ar e sol -, mas só lhe era preciso meter a chave na fechadura quando lhe dava na vontade passear. Nenhum aborrecimento com criadas, nem se sentia cansada como nos tempos daquele pobre e caro Fred, que vivia quase sempre sem dinheiro. Ela não tinha rancor contra o pobre Fred: era um coitado! Mas, mesmo assim, quando o recordava, a lembrança da actriz ainda lhe apertava os lábios num rápido e amargo sorriso de irrisão.

Fechou a porta com um puxão seco, rápido, seguiu a longa perspectiva das portas cinzentas, numeradas, no corredor de paredes amarelas, donde porejava tristeza. O ascensor descia. Metida até às orelhas no seu grande agasalho de pele de chinchila, cada um dos seus cabelos dourados no lugar devido, ela esperou imóvel que o elevador parasse no seu andar. A grade abriu-se com um estalo, e ela entrou. Já havia lá três passageiros: um senhor de colete branco, de rosto largo e liso como o de um boneco, e duas senhoras de idade, vestidas de preto, enluvadas de mitenes.

Mrs. Mac Ander enviou-lhes um sorriso, conhecia todos os hóspedes. E imediatamente aquelas três pessoas que se tinham mantido em completo silêncio começaram a falar. Era aquele o feliz segredo de Mrs. Mac Ander: incitava as pessoas a falar.

E a conversa não parou durante toda a descida dos cinco andares. O pequeno do elevador escutava, de costas, voltando para a grade a sua cara cínica.

Ao chegarem a baixo, separaram-se: o cavalheiro de colete branco para se dirigir languidamente ao bilhar, as senhoras idosas para jantarem e dizerem entre si: «Que senhora amável! Que graça!» Mrs. Mac Ander apanhou um carro.

Quando Mrs. Mac Ander jantava em casa de Timothy, a conversa, embora ninguém conseguisse decidir Timothy a fazer acto de presença, tomava um aspecto mais amplo, mais fácil, o tom da gente informada, ar habitual aos Forsyte quando se sentem à vontade. E era isso, sem dúvida, que fazia o êxito da sua presença. Mrs. Smaill e a tia Hester encontravam nela um estimulante que as reanimava. Se ao menos, diziam elas, Timothy quisesse aparecer! Sentia-se que aquilo lhe faria bem. E ela contava a última aventura do filho de Sir Charles Fiste em Monte Carlo, revelava o verdadeiro nome da heroína do último romance de Tynemouth Eddy, que estava na boca de todo o mundo elegante, relatava o ponto de vista dos costureiros de Paris a respeito dos calções de ciclismo para senhoras. E, com tudo isso, era tão inteligente! Via o pró e o contra dessa questão tão discutida, o filho mais velho de Nicholas deveria entrar na marinha, como a mãe o desejava, ou tornar-se-ia tabelião, como era desejo do pai, que considerava a profissão mais segura? Ela desaconselhava vivamente a marinha. Salvo a hipótese de o rapaz ser um caso excepcional ou dispor de relações brilhantíssimas, corria o perigo de ser vergonhosamente esquecido. E, afinal de contas, a que levava a marinha? Mesmo quando se consegue chegar a almirante? Não passa de um título. Há muito melhores oportunidades no comércio. Mas é preciso um bom começo numa casa séria, onde não haja nenhum risco a correr.

Havia dias em que ela lhes dava um palpite para a Bolsa. Na verdade, nem Mrs. Smalll, nem a tia Hester o aproveitavam nunca: não tinham fundos a colocar. Mas isso punha-as em contacto com as realidades apaixonantes da vida. Era um acontecimento. «Falaremos a Timothy», diziam elas. Mas estavam longe de o fazer, sabendo que aquilo o perturbaria, porém, durante semanas, depois daquela conversa, procuravam sub-repticiamente no jornal do qual eram assinantes - porque lhe respeitavam as tendências mundanas - as últimas cotações da Brighth Rubies ou da Woolen Mckintosh Company. Acontecia que não apareciam os nomes dessas sociedades nas cotações.

Elas esperavam então a visita de James, de Roger ou mesmo de Swithin, perguntavam-lhes com voz trémula de curiosidade o que estava a fazer a Bolívia Lime and Speltrate. Era impossível encontrá-la no jornal!

Roger respondia:

- Que é que isso adianta a vocês? Tolice. Vão arrepender-se de meterem dinheiro em acções de cal, que é assunto de que não entendem.. Quem lhes falou nisso?

E, informado sobre o que elas haviam sabido, ia fazer um pequeno inquérito na City e não hesitava em empregar algum dinheiro no negócio.

Estava-se a meio do jantar, justamente por ocasião do assado de carneiro, quando Mrs. Mac Ander, com um ar displicente, comentou: «Ah, quero ver se vocês adivinham quem foi que eu encontrei em Richmond Park? Aposto o que quiserem! Mrs. Soames e Mr. Bosinney! Naturalmente tinham ido dar uma olhadela à construção.»

Winifred Dartie tossiu. Ninguém disse uma palavra. Era o testemunho que inconscientemente cada um havia esperado.

Para se ser justo, é preciso dizer que Mrs. Mac Ander, que chegara há pouco da Suíça e dos lagos italianos, ignorava o rompimento de Soames com o arquitecto. Não poderia imaginar a impressão que iria causar.

Erecta, um pouco corada, passeou em redor os olhinhos perspicazes, procurando 'medir o efeito das suas palavras. Viu de cada lado um dos moços Hayman inclinando sobre o prato um rosto magro, faminto, e comendo a sua fatia de carneiro.

Aqueles dois, Giles e Jesse, pareciam-se tanto e eram tão inseparáveis que lhes chamavam os Siameses. Nunca falavam e estavam sempre muito absorvidos em não fazer nada. Supunha-se que se entregavam decerto a algum exame importante. Eram vistos passeando na praça próxima à casa deles durante horas com a cabeça descoberta, um livro na mão, um fox-terrier nos calcanhares, sempre mudos, de cachimbo na boca. Todas as manhãs, a cinquenta metros um do outro, cavalgando descarnados rocins, com as pernas pendentes e tão magras como as dos cavalos, desciam a trote Campden Hill. Uma hora depois, sempre a cinquenta metros um do outro, subiam, em galope baixo. E todas as noites, fosse qual fosse o lugar onde houvessem jantado, apareciam às dez e meia, apoiados à balaustrada da promenade do Alhambra. Só eram vistos juntos passando o tempo com o ar perfeitamente feliz.

Movidos por qualquer movimento secreto que se originava no instinto do gentleman, ambos se voltaram naquele momento terrível para Mrs. Mac Ander, e disseram exactamente com a mesma voz:

- A senhora viu-o...

Ela ficou tão interdita com aquela pergunta que depôs o garfo. Smither, que passava, levou-lhe rapidamente o prato. Mrs. Mac Ander, com presença de espírito, disse rapidamente:

- Faço questão de me servir novamente deste delicioso carneiro.

Mas, mais tarde, no salão, sentou-se junto de Mrs. Small e, decidida a levar avante o assunto, começou:

- Que mulher encantadora é Mrs. Soames! Que natureza simpática! Soames realmente tem sorte!

Na sua sede de informações, não contara suficientemente com aquela íntima susceptibilidade dos Forsyte que não admite a partilha de uma preocupação com estranhos. Mrs. Septimus Small endireitou-se, com um ranger e um tremor em toda a sua pessoa fremente e na sua dignidade, e disse:

- Minha amiguinha, isso é um assunto que nós nunca abordamos!

 

A NOITE NO PARQUE.

Embora, sempre com o seu infalível instinto, Mrs. Small houvesse dito exactamente o que mais poderia intrigar a sua convidada, não poderemos descobrir outra maneira pela qual ela pudesse exprimir-se com sinceridade.

Aquele não era um assunto que os Forsyte pudessem abordar, nem mesmo entre si. Para utilizar a expressão empregada por Soames quando definia a si mesmo a situação, tratava-se de uma história «subterrânea».

Entretanto não se tinha passado ainda uma semana depois do encontro de Richmond Park, e todos os Forsyte, excepto Timothy, a quem poupavam, sabiam que «aqueles dois» já tinham ido muito longe.

George - inventor de muitas dessas expressões pitorescas que ainda têm voga nos círculos mundanos - exprimiu, mais exactamente do que qualquer outra pessoa, o sentimento geral, dizendo ao seu irmão Eustace que o pirata «entrou a fundo», e Soames «engoliu-o».

Sentia-se bem que era verdade, mas, entretanto, que fazer? Soames deveria tomar medidas, mas isso mesmo seria deplorável.

Sem um escândalo público, que na verdade lhes era difícil de aconselhar, ninguém via bem que medidas poderiam ser tomadas.

Nesse impasse, só era possível o silêncio, nada dizer a Soames, nada dizer entre eles próprios, em suma, ignorar.

Testemunhando-se a Irene uma frieza digna, talvez fosse possível fazê-la meditar no que fazia, mas viam-na tão pouco! E realmente era difícil procurar expressamente para lhe mostrar frieza. Algumas vezes, na intimidade da alcova conjugal, acontecia a James desabafar com Emily sobre o grande sofrimento que lhe causava o infortúnio do filho.

- Não sei - disse ele-, mas sinto que isso me gasta... Haverá escândalo, o que o prejudicará. Não falarei a ele, afinal de contas, quem sabe se no fundo não há nada? Que acha você? Dizem que ela é muito artista... E então? Você está igual a Juley! Bem, não sei, espero o pior. Veja em que dá não se ter filhos. Eu compreendi sempre que aquilo ia acabar assim. Aliás nunca eles me disseram que não queriam ter filhos. Nunca ninguém me diz nada..

De joelhos ao pé da cama, com os olhos muito abertos e esgazeados pela ansiedade, ele respirava no edredon. Vestido com o camisão de noite, o pescoço para a frente, as costas dobradas, parecia um grande pássaro branco.

- Padre nosso - repetia, virando e revirando a ideia de um escândalo.

Ele também, no fundo do coração, tal como o velho Jolyon, lançava para uma parte da família a responsabilidade do drama. Com que direito aquela gente - referia-se a todo o ramo de Stanhope Gate, inclusive Jolyon filho e a filha- com que direito aquela gente introduzira na família um indivíduo como o tal Bosinney? Ouvira o apelido posto por George. Mas não enxergava a relação: o rapaz era arquitecto.

Começava a achar que o seu irmão Jolyon, que ele sempre colocara tão alto, cuja opinião sempre tivera em tão grande conceito, não era o que havia pensado.

Não tendo a mesma energia de temperamento que o irmão mais velho, sentia-se menos irritado do que triste. O seu grande consolo era ir à casa de Winifred e levar no carro os pequenos Dartie até aos jardins de Kensington. Lá viam-no frequentemente caminhando à beira de água, junto ao tanque, com os olhos ansiosamente fixos no barco do pequeno Publius Dartie. Ele próprio lastreara-o com um penny, e fingia-se convencido de que o barco não voltaria à margem. O pequeno Publius - James deleitava-se em repetir que ele não se parecia nada com o pai - saltava ao seu lado e entretinha-o nessa convicção, convencendo-o a apostar outro penny, pois descobrira que o barco voltava sempre. E James apostava. Nunca deixava de pagar depois - às vezes perdia três a quatro pence por tarde, porque o pequeno Publius não se cansava desse jogo -, e o avô dizia sempre ao pagar: «Tome para o seu mealheiro. Eh, você está a ficar rico!» Era um prazer real para James pensar na fortuna crescente do neto. Mas o pequeno Publius conhecia uma confeitaria excelente e não se deixava iludir.

Voltaram a pé através do parque, James com os altos ombros, a cara cuidadosa e absorvida, longo e magro guardião, exercendo pouco prestígio sobre os seus robustos netos, Imogen e Publius. O jardim e o parque não eram reservados unicamente a James. Forsytes e vagabundos, crianças e namorados vinham instalar-se definitivamente ali, passear, dia após dia, noite após noite, procurando a libertação do trabalho, do tumulto e do relento das ruas. As folhas amareleciam lentamente, demorando-se sob o sol e sob a tepidez das noites que ainda pareciam de Estio.

No sábado, 6 de Outubro, o céu, que estivera azul durante o dia inteiro, escureceu depois do pôr-do-sol até tomar o tom de uvas escuras.

A obscuridade azul envolvia numa suavidade de veludo as árvores, cujos ramos longos pareciam plumas na noite imóvel e tépida. Londres inteira despejara-se dentro do parque para beber a taça do Verão até à derradeira gota.

Pares e mais pares afluíam por todas as portas, passeavam pelas áleas e pelos relvados ressequidos, e depois, silenciosamente, uns depois dos outros, fugindo dos espaços iluminados, escondiam-se na sombra do arvoredo. Lá dentro, confundidos com algum tronco de árvore, perdidos na escuridão das moitas, não existiam mais senão para eles próprios, no doce coração da noite.

E para aqueles que chegavam ao longo dos caminhos, os primeiros pares pareciam fazer parte da sombra apaixonada, donde apenas saía um estranho murmúrio, como a palpitação confusa de inumeráveis corações.

E, à medida que esse rumor atingia os recém-vindos das áleas iluminadas, as suas vozes baixavam de tom, os braços enlaçavam-se, os olhos começavam a perscrutar, a sondar as trevas. De súbito, como atraídos por mãos invisíveis, franqueavam por sua vez a barreira de luz, e desapareciam, silenciosos como fantasmas.

E o silêncio que envolvia o inexorável e longínquo murmúrio da cidade vivia a existência de uma multidão de átomos humanos que ali repousavam do esforço feito, vivia das suas paixões, das suas esperanças, dos seus amores. Porque, apesar da censura votada por aquela grande corporação de Forsytes, o Conselho Municipal (que considerava o amor, depois de uma má rede de esgotos, o maior perigo para uma comunidade), uma força estava em acção naquela noite do parque, uma força sem a qual os milhares de oficinas, de igrejas, de armazéns, de escritórios, tudo que o poder social administra, não seriam senão artérias vazias de sangue.

A paixão, o amor escondido sob aquelas árvores, abandonavam-se à sua furtiva ventura, longe do inimigo sem mercê: a convenção social. E enquanto isso, Soames, que jantara, sem Irene, em casa de Timothy, voltava através do parque acompanhando a margem do rio, absorvido nas preocupações com o seu processo. Teve uma angústia no coração ao ouvir um riso em voz baixa e um rumor de beijos. Ocorreu-lhe a ideia de escrever ao Times na manhã seguinte, para chamar a atenção do director sobre os atentados à moral registados nos parques londrinos. Mas não o fez, porque tinha horror a ver o seu nome nos jornais. Porém o seu desejo faminto irritava-se ante aqueles cochichos no silêncio, àquela semivisão de pares na sombra, como em virtude de um estímulante malsão. Ele deixou a margem da água e deslizou sob as árvores de um pequeno bosque onde a escuridão era mais densa, onde os castanheiros deixavam pender até ao chão os seus grandes ramos copados, e pôs-se a rodear as cadeiras, apoiadas de duas em duas aos troncos de árvore, inspeccionando furtivamente os namorados que se mexiam à sua aproximação.

De súbito parou na encosta que domina o Serpentine: à claridade dos bicos de gás, destacando-se em preto sobre o prateado do rio, estava um par imóvel, o rosto da mulher escondido no ombro do homem, formando um grupo unido, como esculpido num único bloco de pedra, imagem da paixão muda e sem pejo.

Mordido no coração, Soames mergulhou rapidamente na sombra das árvores. Naquela busca, quem poderia dizer o que ele pensava, o que esperava encontrar? Um alimento para a sua fome? Uma claridade nas trevas? Quem diria o que ele procurava? Algum conhecimento desinteressado do coração humano, ou o fim da sua própria tragédia «subterrânea»? Porque, ainda uma vez, quem poderia dizer que cada um daqueles pares sem nome não seria formado por ela e ele?

Mas não, não poderia ser aquilo o que ele procurava: a mulher de Soames Forsyte sentada, durante a noite, no parque, como uma rapariga do povo? Impossível! E ele continuava de árvore em árvore, no seu passo abafado.

Uma vez, uma praga fê-lo recuar, outra vez um murmúrio «Ah, se isto não acabasse nunca mais!» apertou-lhe de novo o coração, e Soames parou, paciente, obstinado, até que o par novamente se pôs a andar. Era apenas uma pequena caixeira de loja, de vestido amarrotado, segura ao braço do namorado.

Centenas de outros namorados murmuravam a mesma esperança no silêncio das árvores, centenas de outros namorados mantínham-se assim enlaçados.

Endireitando-se com uma súbita repulsa, Soames voltou à álea do parque, abandonando uma procura que ele não ousava confessar a si mesmo.

 

ENCONTRO NO JARDIM BOTÂNICO.

Jolyon filho, cuja situação económica não era propriamente a que convinha a um Forsyte, encontrava às vezes dificuldade em economizar o dinheiro necessário para esses passeios rústicos, essas procuras no coração da Natureza, à míngua dos quais um aguarelista não pode pintar.

De facto, ele era muitas vezes obrigado a levar a sua caixa de tintas até ao Jardim Botânico, e lá, num banquinho dobradiço, à sombra de uma araucária ou de uma seringueira, passava longas horas de trabalho.

Um crítico de arte, que recentemente lhe examinara as aguarelas, fizera-lhe a seguinte apreciação: «Num certo sentido, as suas aguarelas são muito boas. Têm cor, têm um lindo tom, e nalgumas delas há realmente um verdadeiro sentido da Natureza. Mas o caso é que isso forma um conjunto precário: o público nunca as olhará! Porém, se o senhor escolher um motivo ilimitado, por exemplo, Londres à Noite ou o Palácio de Cristal na Primavera e se fizer legítimas séries, o público compreenderá imediatamente o que está a ver. Nunca insistirei de mais a esse respeito. Todos os que fazem nome artístico, como Crum, Stone ou Bleeder, conseguem isso evitando o inesperado, especializando-se definitivamente, instalando-se em determinado sector, de maneira que, quando se trata deles, o público saiba sempre onde está. E isso compreende-se: um coleccionador não gosta de ver ninguém enfiar o nariz sob os seus quadros para procurar a assinatura. Quer que se possa dizer imediatamente: Um Forsyte de primeira ordem! Será importantíssimo, pois, para o senhor, escolher um tema que impressione o público logo à primeira vista, já que não há no seu estilo uma originalidade muito acentuada.)»

Jolyon filho, em pé junto ao pequeno piano, onde um ramo de rosas murchas estava pousado sobre um retalho de damasco desbotado, escutava com o seu sorriso vago.

Voltando-se para a mulher, que ouvia o crítico com uma expressão irritada - no seu rosto frágil., ele disse:

- Está a ver, querida?

- Não estou a ver nada - respondeu ela com a sua voz escondida, onde permanecia ainda um pouco de sotaque estrangeiro.- Há muita originalidade no seu estilo.

O crítico olhou-a, sorriu com deferência, e não disse mais nada. Como toda a gente, conhecia a história deles.

Mas aquelas palavras não foram perdidas para Jolyon filho. Elas iam de encontro a todas as suas convicções, a tudo que, teoricamente, ele estimava na sua arte. Porém um estranho e profundo instinto impelia-o, contra a sua própria vontade, a utilizar o conselho em seu benefício.

Descobriu pois, certa manhã, que estava com desejos de fazer uma série de vistas de Londres. Não poderia dizer donde vinha a ideia, e só um ano depois, após ter terminado e vendido a bom preço a sua série de aguarelas, é que ele recordou o crítico de arte, num dos seus acessos de filosofia, e encontrou no seu recente êxito a prova de que era um Forsyte.

Resolveu começar pelo Jardim Botânico, donde já tirara alguns esboços, e escolheu para assunto o pequeno lago onde o Outono espalhava folhas vermelhas e amarelas. Os jardineiros sonhavam em carregar aquelas folhas, mas as suas vassouras não eram bastante longas para as atingir.

Quanto ao resto do jardim, eles varriam-no sempre, apanhavam todas as manhãs as folhas caídas durante as ventanias da noite e reuniam-nas em grandes montes, donde se elevava, à medida que um fogo lento as consumia, um fumo doce e acre, símbolo do Outono, como o cuco é o símbolo da Primavera e o cheiro das tílias é o símbolo do Verão. A alma meticulosa dos jardineiros não podia suportar os grandes desenhos de ouro e ferrugem sobre o verde dos relvados. Os caminhos ensaibrados deviam alongar-se impolutos, ordenados, metódicos, sem traço de realidades vivas, nem daquela lenta e bela morte que lança por terra a beleza do Verão, a glória fanada donde o desenrolar do eterno ciclo fará rebentar a louca Primavera.

E vigiavam cada folha, desde o momento em que, após um frémito de adeus, ela caía do ramo e lentamente volteava no ar. Mas no lago as folhas flutuavam em paz, cheias de sol, e as suas cores louvavam o céu.

Assim as via Jolyon filho. Chegando lá numa manhã, nos meados de Outubro, ficou contrariado por ver um banco ocupado a vinte passos do seu lugar, porque tinha, tanto quanto é possível, o horror de ser observado enquanto trabalhava.

Estava sentada ali uma moça de casaco de veludo, com os olhos postos no chão. Porém um loureiro estendia as suas flores entre ele e ela, Jolyon filho abrigou-se por trás do arbusto e pôs-se a armar o cavalete.

Os seus preparativos eram lentos, aproveitava, como o deve fazer todo o verdadeiro artista, qualquer pretexto para retardar por um momento mais o esforço do trabalho, e surpreendeu-se a tentar olear furtivamente a dama desconhecida.

Como seu pai, antes dele, Jolyon filho sabia reconhecer uma linda cara. Aquela era encantadora.

Viu um queixo redondo, mergulhado numa ruche creme, um rosto delicado, com grandes olhos escuros e lábios suaves. Um chapéu preto, género Gainsborough, escondia-lhe os cabelos, ela apoiava-se levemente ao encosto do banco, com os joelhos cruzados, uma ponta da botina envernizada aparecendo sob a saia. Havia em toda a sua pessoa algo de naturalidade requintada, mas a atenção do pintor foi atraída sobretudo por uma determinada expressão daquela fisionomia que lhe lembrava a de sua esposa. Dir-se-ia que aquela mulher sofria a acção de forças que a arrastavam invencivelmente. Aquilo perturbou-o, despertou-lhe um

vago nascimento de instintos cavalheirescos. Quem seria? E que faria ali, sozinha?

Dois rapazes daquela espécie particular dos frequentadores de Regent's Park, ao mesmo tempo atrevidos e tímidos, passaram diante dela, com uma raqueta de ténis na mão. Os seus olhares furtivos de admiração desagradaram a Jolyon. Um jardineiro que andava por ali parou para fazer qualquer trabalho inútil sobre uma touceira de ervas das pampas: também queria um pretexto para a olhar. Um cavalheiro idoso, professor de horticultura, a julgar pelo chapéu, passou três vezes para examinar disfarçadamente a desconhecida, porém longamente, com uma expressão singular nos lábios.

Todos aqueles homens excitavam em Jolyon filho a mesma vaga irritação. Ela não levantou os olhos para nenhum, e entretanto ele sentia que cada homem que passasse a olharia da mesma forma.

Aquele rosto não era o da feiticeira que estende a cada homem a oferta do prazer, não era aquela beleza pecadora, tão grandemente apreciada pelos Forsyte de categoria social superior, nem também a beleza menos prestigiosa cuja ideia se associa à de uma caixa de bombons, não era do género misticamente apaixonado ou apaixonadamente místico que a arte decorativa e a poesia modernas celebram, não teria também inspirado a um escritor teatral a ideia de um drama cuja interessante e neurasténica heroína se suicida no último acto.

Pelas suas linhas, pelo tom da sua carne atraente e passiva, a suavidade deliciosa do olhar, aquele rosto de mulher recordava-lhe o Amor Sagrado de Ticiano, do qual tinha uma reprodução a enfeitar a parede da sala de jantar. E a sua sedução parecia emanar de uma doce passividade, daquela impressão que se sentia ao olhá-la: que ela fora feita para ceder.

Porque então e para que ficava a moça naquele silêncio das coisas, naquele parque onde as árvores deixavam cair as suas folhas uma a uma, onde os melros passeavam tão próximos dela, sobre a erva brilhante do primeiro orvalho do Outono?

De súbito o seu lindo rosto tremeu, e Jolyon filho, passeando o olhar em torno, quase com um ciúme de namorado, viu Bosinney atravessando o relvado em grandes passadas.

Curiosamente, observou o encontro deles, o olhar com que se fitaram, o demorado aperto das mãos. Sentaram-se um ao lado do outro, um entregue ao outro, apesar da reserva que aparentavam. Jolyon ouviu o murmúrio rápido das palavras, mas não pôde apanhar o que diziam.

Ele também remara naquela galera! Sabia o que eram as longas horas de espera, os magros encontros semipúblicos, a angústia da impaciência que nunca abandona o amor proibido.

E entretanto bastava um olhar ao rosto daqueles dois para compreender que aquilo não era uma aventura de estação com as quais se distraem os homens e mulheres das cidades, que aquilo não era um daqueles apetites repentinos que despertam insaciáveis e recaem no seu sono ao cabo de seis semanas. Não, era a mesma verdadeira coisa que ele conhecera anos atrás e da qual não podia sair.

Bosinney parecia implorar, e ela, tão tranquila e imutável na sua meiguice, mantinha os olhos baixos, fitos na relva.

Seria ele o homem capaz de arrastar aquela criatura terna e dobrável, incapaz de dar um passo por si mesma, que morreria por ele, mas que não tinha talvez a força necessária para fugir com ele?

Jolyon filho supôs ouvi-la dizer: «Mas, querido, isso iria arruiná-lo!» Porque ele tinha ampla experiência desse receio que atormenta um coração de mulher, o receio de ser um fardo, um obstáculo para aquele a quem ama.

E os seus olhos deixaram de se volver para eles, mas as vozes baixas, rápidas, chegavam-lhe aos ouvidos junto ao canto sincopado de um pássaro que parecia querer reencontrar as melodias da Primavera.

E pouco a pouco o murmúrio das palavras dos amantes desapareceu, e um longo silêncio sobreveio.

«E Soames, que fará ele em tudo isto?», pensava Jolyon filho, «Há quem pense que uma mulher que tem um amante cuida no pecado de enganar o marido. Isso é conhecer muito pouco a mulher! Ela sente apenas que se alimenta, depois de ter sentido que morria de fome.

Tira a sua desforra! E Deus a proteja, porque Soames tirará também a sua!»

Ouviu um ranger de seda e, inclinando-se atrás do loureiro, viu-os afastarem-se, com as mãos secretamente unidas.

No fim de julho, o velho Jolyon levou a neta aos Alpes, e no decorrer dessa viagem à Suíça, a última que fizeram, June recuperou amplamente a saúde e o equilíbrio. Nos hotéis cheios de Forsytes ingleses - porque o velho Jolyon não podia suportar aqueles «bandos de alemães», como chamava a qualquer espécie de estrangeiros - todos consideravam com respeito a neta única daquele velho Mr. Forsyte, evidentemente rico e de tão bela figura. Ela não se misturava ao acaso com as pessoas que encontrava - não era hábito seu -, mas fez algumas amizades e, no vale do Reno, aproximou-se especialmente de uma jovem francesa que morria tuberculosa.

Decidindo imediatamente que a sua amiga não deveria morrer, June esqueceu, batalhando contra a morte, muito do seu próprio desgosto.

O velho Jolyon olhava aquela intimidade recente com uma mistura de alívio e censura, porque essa nova prova de que a vida da neta se passaria no meio de "desvalidos" atormentava-o. Não poderia ela gostar de alguém ou interessar-se por qualquer coisa que lhe fosse mais útil?

- Agora só quer saber de estrangeiros - dizia ele.

No entanto, trazia frequentemente ao hotel cachos de uvas ou ramos de rosas que oferecia à Mademoiselle com um sorriso cativante.

A despeito dos esforços de June, Mademoiselle Vigor morreu nos fins de Setembro, naquele pequeno hotel de St. Luc para onde a tinham levado. June sentiu tão profundamente a derrota que o avô levou-a imediatamente para Paris. Lá, olhando para a Vénus de Milo e para a Madeleine, ela venceu a depressão, e quando, no meio de Outubro, voltaram os dois a Londres, o velho Jolyon supunha haver operado uma cura.

Mas, mal entraram em Stanhope Gate, o avô viu com mágoa que June retomava os seus ares da Primavera passada. Muitas vezes ficava sentada, com o olhar fixo diante de si, o queixo apoiado na mão, os lábios cerrados, como um pequeno génio das lendas escandinavas, em torno dela, à luz das lâmpadas eléctricas recentemente instaladas, o vasto salão brilhava, tapetado de damasco até ao friso do tecto, cheio de móveis de Baple e de Pullbred. No imenso espelho dourado reflectiam-se os grupos de porcelana de Dresden, representando rapazes de calções atados nos joelhos e damas de busto opulento que acariciavam cordeiros no regaço. O velho Jolyon comprara-os na sua juventude e estimava-os altamente, neste tempo em que o bom gosto lhe parecia estar a degenerar.

Homem de espírito largamente aberto, mais do que nenhum outro Forsyte, acompanhara a marcha do seu tempo, mas era-lhe impossível esquecer que aqueles grupos vinham-lhe da casa Jobson e que os pagara caríssimo. Dizia muitas vezes a June, com uma espécie de desdém desiludido: «Você não gosta disso! Não são bibelots de pexisbeque como os que agradam a vocês, mas custaram-me setenta libras.» Não era homem para deixar que duvidassem do seu bom gosto, quando por sólidas razões o sabia excelente.

Uma das primeiras coisas que June fez ao voltar foi ir até à casa de Timothy. Convenceu-se de que era seu dever visitar o tio, animando-o com a narração das suas viagens, mas, na realidade, ia lá porque não conhecia nenhuma outra casa onde, graças a qualquer acaso de conversa ou qualquer pergunta disfarçada, pudesse colher alguma notícia de Bosinney.

Receberam-na com grande cordialidade. «E como ia o caro avô? Já não vinha vê-los desde Maio. O tio Timothy passava assim, assim. Aborrecera-se muito com um limpador de chaminés: o imbecil deixara cair um embrulho de sebo na lareira do seu quarto de dormir! O pobre tio ficara abaladíssimo.»

June demorou-se muito tempo junto das tias, possuída pelo receio e ao mesmo tempo pela apaixonada esperança de as ouvir falar de Bosinney.

Mas, paralisada por uma inexplicável discrição, Mrs. Septimus Small não disse uma palavra a respeito do moço e não fez nenhuma pergunta a June.

Em desespero de causa, a pequena perguntou afinal se Soames e Irene estavam em Londres, pois ainda não vira ninguém.

Foi a tia Hester que respondeu: «Sim, eles estavam na cidade, não se tinham ausentado durante todo o Verão. Falavam, segundo ela supunha, em qualquer pequeno embaraço em relação à casa. June decerto ouvira qualquer coisa! Perguntasse à tia Juley!»

June voltou-se para Mrs. Small, que se mantinha muito erecta na sua poltrona, as mãos juntas, o rosto marcado pelas inúmeras covinhas. Em resposta ao olhar da moça, conservou um silêncio singular, e quando falou foi para perguntar a June se usava calções de lã para dormir naqueles hotéis de altitude onde as noites deveriam ser tão frias.

June respondeu que não, tinha horror de se abafar em tricots de lã. E ergueu-se para ir embora.

O silêncio que Mrs. Small observara, guiada pelo instinto infalível de uma gaffe, pareceu de pior augúrio a June do que tudo o mais que lhe pudessem dizer.

Antes de decorrida meia hora, ela extorquira a verdade de Mrs. Baynes e soubera que Soames processara Bosinney por causa da decoração da casa.

Em vez de a perturbar, essa notícia trouxe-lhe uma curiosa calma, como se na perspectiva daquela luta visse despontar uma oportunidade feliz. Soube que o caso seria julgado dentro de um mês, mais ou menos, e que as possibilidades de Bosinney pareciam fracas ou nulas.

- O que ele fará, não sei - disse Mrs. Baynes. - É terrível para Phil, você bem sabe, não tem um vintém, anda apertadíssimo. E não seremos nós que o poderemos ajudar, não acha? Dizem que ele não poderá fazer um empréstimo sem garantias e não tem garantia nenhuma.

A sua obesidade aumentara de algum tempo para cá. Estava no auge das organizações de Outono e a sua mesa de escrever estava sempre cheia de programas de reuniões de caridade..

Olhou para June com uma expressão significativa nos olhos redondos, de um cinzento de papagaio.

O súbito rubor que subiu ao rosto ardente da visitante - ela deveria ter visto surgir diante de si uma grande esperança -, a súbita doçura do seu sorriso, voltaram muitas vezes à memória de Lady Baynes durante os anos seguintes. (Baynes foi enobrecido depois de ter construído aquele museu que dera tantos empregos aos funcionários e tão pouco prazer às classes operárias às quais se destinava.) A lembrança daquela transformação tocante e rápida, como a de uma flor que abrisse bruscamente as pétalas, ou como o primeiro raio de sol ao fim de um longo Inverno, a lembrança de tudo o que se seguiu impunha-se também de uma maneira importuna, inexplicável, ao espírito de Lady Baynes, até mesmo quando ela estava ocupada em negócios mais importantes.

Aquilo passava-se na tarde do dia em que Jolyon filho fora testemunha do encontro no Jardim Botânico. No mesmo dia o velho Jolyon fez uma visita ao escritório dos seus advogados, Forsyte, Bustard and Forsyte. Soames não estava, tinha ido a Somerset House.

Bustard, ao fundo do canto retirado em que o tinham judiciosamente posto para dar conta da maior quantidade de trabalho possível, estava enterrado em papéis até ao pescoço: porém James, na primeira banca, mordiscava o dedo mínimo, virando lugubremente as páginas do dossier do caso Forsyte versus Bosinney.

O excelente homem de leis atormentava-se por causa do «ponto delicado», aquilo dava apenas pretexto para um pouco de agitação, por prazer, mas o seu bom senso prático dizia-lhe que se fosse ele, James, o juiz, não daria grande importância ao tal ponto. Receava apenas que Bosinney falisse e que Soames tivesse de arcar definitivamente com as custas. E atrás desse receio preciso rondava a ideia de uma vaga desgraça, apenas pressentida, mas complicada, obscura, escandalosa como um sonho mau e da qual aquele processo era apenas o sinal externo.

James ergueu a cabeça quando o velho Jolyon entrou.

- Como vai, Jolyon? - murmurou ele. - Há um século que não o vejo! Você esteve na Suíça, segundo me disseram. Esse moço Bosinney meteu-se num péssimo negócio. Eu sabia muito bem em que isso iria dar!

Estendendo o dossier ao irmão, ergueu sobre ele um olhar

sombrio e nervoso.

O velho Jolyon leu em silêncio e, durante esse tempo, James ficou de olhos fixos no tecto, mordiscando as unhas.

O velho Jolyon jogou enfim o maço de papéis sobre a mesa, onde ele caiu com rumor no meio de um monte de atestados relativos ao inventário do falecido Buncombe - um dos inúmeros ramos daquele negócio tão proveitoso: «Fryer versus Forsyte

- Não sei o que pensa Soames - disse o velho Jolyon - para fazer uma história destas em torno de algumas centenas de libras. Eu pensava que ele era rico.

O lábio superior de James teve um tremor irritado, ele não podia suportar que atacassem o filho naquele ponto.

--Não é pelo dinheiro - começou. Mas, encontrando o olhar do irmão, directo, penetrante, judiciário, parou.

Houve um silêncio.

- Vim aqui por causa do meu testamento - disse enfim o velho Jolyon, puxando pelo bigode.

A curiosidade de James despertou imediatamente. Talvez não houvesse nada neste mundo que o excitasse tanto como um testamento, esse acto supremo da propriedade, esse inventário final de uma fortuna, essa avaliação definitiva de um homem. Tocou a campainha.

- Traga o testamento de Mr. Jolyon - disse ele ao escrevente que aparecera à porta, um homem de ar inquieto e cabelos escuros. - Você vai fazer alguma modificação?

E através do seu espírito passou este pensamento: «Vejamos quanto pode ele valer! Mais do que eu?"

O velho Jolyon enfiou o testamento no bolso interior da sobrecasaca e James, cheio de mágoa, enrodilhou as longas pernas.

- É verdade o que me disseram, que você tem feito boas

aquisições ultimamente?

- Ignoro onde você toma as suas informações - respondeu o velho Jolyon num tom breve. - Quando será julgado esse processo? No mês que vem? Não sei em que vocês andam a pensar. É questão sua. Mas, se querem seguir o meu conselho, arranjem-se sem recorrer à justiça. Até à vista.

Com um frio aperto de mão, deixou o escritório. James, preocupado, o olhar de um cinzento azulado verrumando qualquer secreta e inquietante imagem, voltou a mordiscar o dedo.

O velho Jolyon levou o testamento ao escritório da New Colliery Company e sentou-se na sala vazia do conselho, para o reler. Respondeu tão bruscamente a Hemmings quando este, vendo o seu presidente instalado ali, lhe trouxe o primeiro relatório do novo director, que o secretário retirou-se com um gesto de pesar cheio de dignidade, e, mandando chamar o contínuo, ralhou-lhe de tal forma que o rapazinho ficou assombrado: «Há quanto tempo andava aquele malandro a contar moscas pelo escritório? Pensava que era o patrão ali? E, se supunha que poderia ficar de perna cruzada, depois de acabar o trabalho, era prova de que não o conhecia, a ele, Hemmings...», e assim por diante.

Do outro lado da porta giratória, o velho Jolyon estava sentado na longa mesa de mogno que o conselho ocupava nos dias de assembleia geral, com os grossos óculos de aros de ouro, leves, inclinados no nariz, o lápis de ouro deslizando ao longo das cláusulas do seu testamento.

Era um testamento muito simples, ele não admitia nenhum desses aborrecidos pequenos legados, essas doações caridosas que dividem uma fortuna e estragam o efeito majestoso do pequeno parágrafo concedido pelos jornais da manhã aos Forsyte que morrem possuidores de cem mil libras.

Um testamento simplíssimo. Primeiro um legado de vinte mil libras a Jo. «Quanto ao resto dos meus haveres, de qualquer natureza que sejam, imobiliários ou mobiliários, ou participando da natureza de ambos, deixo ao dito Jolyon Forsyte, para pagamento dos rendimentos, alugueres, produtos anuais, dividendos ou juros à minha neta June Forsyte ou a um representante por ela designado, durante toda a duração da sua vida, para seu único usufruto e benefício, etc. E a partir da sua morte, e depois com a obrigação de transmitir, assinar ou transferir os referidos terrenos, patrimónios, propriedades, quantias, acções, fundos, títulos ou tudo o mais que possam representar os citados haveres, a tais ou tais pessoas, uma ou várias, para ditos objectivos e usos e de modo geral de tal maneira que a dita June Forsyte... Por suas últimas disposições, seu último testamento ou qualquer escritura ou dispositivo de natureza testamentária, devidamente assinados por ela e a respeito dos quais tenham sido feitas publicações de acordo com a lei, ordenará, nomeará... E na falta de, etc. E sempre sob condição de que...»

E assim em seguida, em sete grandes folhas de breve e simples fraseologia.

O documento fora redigido por James nos seus belos dias. Ele previra quase todas as hipóteses.

O velho Jolyon ficou muito tempo absorvido na leitura, ao cabo, apanhou uma meia folha de papel, escreveu a lápis uma longa nota, depois, fechando o testamento, mandou chamar um cab e dirigiu-se aos escritórios de Paramor & Herring, em Lincoln Inn Fields. Jack Herring já era falecido, mas o seu sobrinho pertencia sempre ao escritório, e o velho Jolyon fechou-se com ele durante uma meia hora.

Mandara o carro esperar, e ao sair deu este endereço ao cocheiro: 3, Wistaria Avenue.

Sentia uma estranha e surda satisfação, como se acabasse de registar uma vitória contra James e contra o "Proprietário". Aqueles dois não meteriam mais os narizes na sua vida, tomava-lhes a guarda do seu testamento, queria tirar das mãos deles todos os seus negócios, e confiá-los ao jovem Herring - e o mesmo faria com os negócios dos conselhos a que presidia. Se o jovem Soames era assim tão rico, não se aperceberia da baixa de um milhar de libras nos rendimentos da casa. E, sob os seus grandes bigodes brancos, o velho Jolyon sorria duramente. Sentia que, do ponto de vista de uma justiça retributiva, o que ele fazia era muitíssimo bem merecido.

Lentamente, seguramente, como uma praga secreta que acaba afinal por matar uma árvore velha, as feridas envenenadas que tinham atingido a sua felicidade, a sua vontade, o seu orgulho, minavam agora a sua filosofia. A vida roera-o de um lado apenas, e, como a própria família de que era o chefe, ele perdera o seu belo equilíbrio.

Enquanto o cabo levava a casa do filho, pensava nas novas disposições que acabava de tomar e encarava-as de certo modo como uma punição infligida àquela família e àquele corpo sócia, do qual James e o filho lhe pareciam os representantes. Ele indemnizara Jo. Esse acto satisfizera a sua secreta necessidade de desforra, desforra sobre o tempo, os desgostos, os intrusos sobre aqueles que durante quinze anos lhe haviam esmagado o filho com a sua condenação. Via apenas um único meio possível de afirmar uma vez mais a supremacia da sua vontade: forçar James e Soames, e a família inteira, e toda a massa obscura dos Forsyte - um grande rio chocando-se com a barragem formada unicamente pela sua obstinação-, forçá-los a reconhecer, uma vez por todas, que ele pretendia ser o senhor. Era-lhe doce pensar que iria fazer de Jo um homem mais rico, muitíssimo mais rico do que aquele filho de James, o «Proprietário. Aliás, era doce só o gesto de dar a Jo. O velho Jolyon amava o filho.

Nem Jo nem a mulher estavam em casa. Jolyon filho não voltara ainda do Jardim Botânico.

- O patrão saiu - respondeu a criadinha ao velho Jolyon-. mas não deve demorar. Ele vem sempre tomar chá com as crianças.

O velho Jolyon disse que esperaria, e sentou-se pacientemente na sala modesta e fanada, onde, agora que tinham sido retiradas as cobertas dos móveis, as velhas poltronas e sofás já não dissimulavam mais o estrago e a pobreza. Ele tinha vontade de ir procurar as crianças, de trazê-las para perto de si, os corpinhos leves contra os seus joelhos: de ouvir o grito de Jolly: «Oh, avô!», e ver o seu pulo: de sentir a meiga mãozinha de Holly deslizar-lhe pela face. Mas não as queria chamar. Havia solenidade no acto que viera realizar, e até que isso fosse feito não brincaria com os meninos. Divertia-se em pensar que, com dois riscos de pena, ia dar à casa do filho essa aparência de casta da qual tudo, naquela habitação, lhe parecia desprovido, que Jo poderia encher aquelas salas - ou outras, numa casa maior - de obras-primas de Baple e Pullbred: que ele poderia mandar Jolly estudar em Harrow ou em Oxford (o velho Jolyon já não acreditava em Eton nem em Cambridge porque o filho lá estivera), que a pequena Holly poderia fazer o mais caro curso musical que quisesse: ela era uma musicista nata.

Enquanto essas visões lhe ocorriam em massa compacta e a emoção lhe intumescia o coração, ele ergueu-se e pôs-se a olhar, da janela, o minúsculo jardim rodeado de muros, onde a pereira, despojada antes de tempo de todas as suas folhas, erguia o seu esqueleto de ramos na bruma que ia aumentando, na tarde de Outono.

O cão Balthasar, com a cauda enrolada às costas, os longos pêlos salpicados de preto e branco, passeava pelo fundo do jardim, farejava as plantas e, de tempos a tempos, encostava a pata no muro.

E o velho Jolyon cismava.

Que prazer lhe restava senão dar? Era bom dar quando se encontrava alguém que nos seria reconhecido, alguém da nossa carne e do nosso sangue! Não seria a mesma satisfação para o velho Jolyon dar àqueles que não lhe pertenciam, àqueles que não tinham nenhum direito sobre ele, Ele acreditaria assim renegar as suas convicções individualistas, toda a sua conduta, os seus esforços, o seu labor, as suas regras de moderação, teria desmentido esse grande facto do qual se orgulhava, como tantos milhares de Forsyte antes e depois dele, que toda a sua vida não fora senão uma luta para conquistar um lugar no mundo e guardá-lo. E enquanto ficava ali, olhando a folhagem coberta de limo dos loureiros, a relva manchada de nódoas pretas, as idas e vindas do cão Balthasar, todo o sofrimento dos quinze anos durante os quais fora frustrado de uma felicidade legítima, misturava o seu fel à doçura do momento que se aproximava.

Jolyon filho chegou enfim, satisfeito com o seu trabalho. refrescado pelas longas horas passadas ao ar livre. Sabendo que o pai esperava na sala, perguntou depressa se Mrs. Forsyte estava em casa, e quando lhe responderam que não soltou um suspiro de alívio. Então, depois de esconder cuidadosamente os utensílios de pintor no pequeno cabide de capas, entrou.

Com a decisão que lhe era característica, o velho Jolyon foi

logo direito ao fim:

- Mudei as minhas disposições, Jo, você agora vai poder aumentar o seu orçamento.

Desde logo terá um rendimento de mil libras. June terá cinquenta mil libras quando eu morrer, e você o resto... Esse seu cachorro acaba por lhe estragar o jardim todo. Se eu fosse você, não tinha cachorro nenhum!

O cão Balthasar, sentado no meio do relvado, examinava a sua cauda.

Jolyon filho olhou o animal, mas só o viu vagamente, porque tinha os olhos turvos.

- A sua parte não será menos de cem mil libras, meu filho - disse o velho Jolyon. - Pensei que seria melhor que você o soubesse. Na minha idade, já não tenho muito tempo diante de mim. Não falaremos mais nisso. Como vai sua mulher? Dê-lhe saudades minhas.

Jolyon filho pôs a mão no ombro do pai e, como eles não falaram mais, nem um nem outro, foi esse o fim do episódio.

Depois de acompanhar o pai ao carro, Jolyon filho voltou ao salão e ficou no mesmo lugar em que o velho Jolyon estivera, com o olhar descido sobre o jardinzinho. Tentava imaginar tudo o que aquela mudança representava para ele, e, Forsyte que era, viu abrir-se ante a sua imaginação as perspectivas que o dinheiro abre. Tantos anos magros não lhe haviam extinguido a seiva dos instintos naturais. Muito praticamente, pensou em viagens, em toilettes para a mulher, na educação dos filhos, num pónei para Jolly, em mil coisas ainda, mas, através de tudo isso, pensava também em Bosinney e na sua amante.

O velho passado, pungente, cruel, apaixonado, maravilhoso passado, que nenhuma fortuna lhe poderia devolver, que nada poderia ressuscitar na sua ardente doçura, aparecera diante dele. Quando a mulher entrou, ele caminhou para ela e tomou-a nos braços, e ficou longamente sem falar, de olhos fechados, apertando-a contra si, enquanto ela o olhava com os olhos cheios de espanto, de dúvida e de adoração.

 

VIAGEM AOS INFERNOS.

Na manhã seguinte a uma certa noite em que, afirmando enfim os seus direitos, ele se portara como um homem, Soames sentava-se diante da sua solitária mesa de almoço.

O gás estava aceso, a cidade desaparecia dentro das brumas de Novembro, como em pedaços de algodão. Mal distinguia ele as árvores da praça através da janela da sala de jantar.

Comia com calma, mas em certos momentos tinha a sensação brusca de que não poderia engolir. Fizera bem em ceder ao seu irresistível e faminto desejo, na noite precedente, e quebrar a resistência há tanto suportada que lhe opunha aquela mulher, sua pela lei e pela religião?

Estranhamente, o rosto dela obcecava-o, aquele rosto que ela escondera nas mãos e que ele tentara descobrir para lhe falar, consolar. E a lembrança dos terríveis soluços abafados perseguia-o. Ele nunca escutara soluços assim e acreditava ouvi-los ainda. E o que o obcecava mais era a estranha, a intolerável sensação de remorso e de vergonha que o possuía enquanto de pé, junto dela, ele a olhava à luz da única vela, antes de deslizar silenciosamente para fora do quarto.

E sem saber porquê, agora que agira assim, admirava-se de si mesmo. Dois dias antes, em casa de Winifred Dartie, fora vizinho de mesa de Mrs. Mac Ander. Ela dissera-lhe, olhando-o de frente, com os seus ásperos olhos verdes:

- Então a sua mulher é muito amiga daquele Mr. Bosinney.' Sem se rebaixar a perguntar o que ela queria dizer, ele ruminara aquelas palavras, que acabaram por despertar-lhe um ciúme feroz, um desses ciúmes que, graças à perversão própria a esse sentimento, se transformam em desejo mais feroz ainda. Sem o aguilhão representado por essa frase de Mrs. Mac Ander, talvez não houvesse agido nunca como agira. Fora preciso aquele aguilhão, e também o acaso, porque, por uma vez, Irene esquecera-se de fechar o ferrolho da porta e ele pudera surpreendê-la adormecida. Depois da coisa feita, o sono viera expulsar-lhe as dúvidas, mas tinham voltado todas por ocasião do despertar. Um único pensamento o tranquilizava: ninguém saberia de nada, Irene não era mulher capaz de falar numa coisa daquelas. Para falar verdade, quando ele começou a abrir a correspondência, e sentiu que se punha em movimento essa mecânica da sua vida que lhe exigia a todos os momentos a atenção de um pensamento claro e prático, as dúvidas angustiantes da noite dissolveram-se como um sonho mau. Afinal de contas, o incidente não era assim tão grave, só nos romances as mulheres fazem tantas histórias com isso! Para um espírito são, para um homem que conhece a vida, para um homem mundano, segundo ele muitas vezes ouvira no Juízo de Divórcios, ele apenas afirmara o carácter sagrado do casamento, impedira a mulher de se afastar dos seus deveres, talvez mesmo, se ela continuava a avistar-se com Bosinney. a impedira de... não, não lamentava nada.

E agora, uma vez dado esse primeiro passo para uma aproximação, o resto seria relativamente... relativamente...

Levantou-se, aproximou-se da janela. Perdera o domínio de si. Ouvia ainda os soluços sufocados. Era uma obsessão.

Vestiu a pelica e saiu para o nevoeiro. Para ir à City, apanhou o metropolitano em Sloane Square, Num canto do seu compartimento de primeira classe, cheio de homens de negócios a caminho dos escritórios, os soluços abafados perseguiam-no ainda. Ele então desdobrou o Times, cujas folhas se abriram com aquele estalar de papel de boa qualidade que cobre outros rumores mínimos., e, barricado por trás do jornal, pôs-se resolutamente a ler as notícias do dia.

Soube assim que o júri deveria pronunciar-se sobre uma série de atentados: oito assassínios, sete incêndios voluntários e onze estupros qualificados, sem contar outros crimes menos sensacionais. Leu o noticiário um após outro, cuidadoso em manter o jornal bem aberto diante de si.

E sempre presente, sem que a leitura o pudesse afastar dele, via o rosto de Irene banhado de lágrimas e ouvia os seus gemidos. O seu dia estava muito sobrecarregado, além das ocupações profissionais, deveria ter uma entrevista com os seus agentes de câmbio, Mrs. Grin and Grinning, dar-lhes ordem de vender as suas acções da New Colliery Co. Soubera, ou antes, suspeitara que os negócios daquela companhia andavam precários (na verdade ela periclitou rapidamente e foi vendida por uma bagatela a um sindicato americano). Devia ter ainda uma longa conferência com Waterbruck, Q. C, à qual assistiriam também Bouller & Fiske.

O processo Forsyte versus Bosinney deveria ser julgado no dia seguinte, pelo juiz Bentham. O que constituía a reputação do juiz Bentham era menos a sua erudição em matéria de jurisprudência do que a clareza do seu julgamento. Os advogados de Soames consideravam-no como o mais favorável ao seu cliente.

Waterbruck exibiu uma certa indiferença em relação a Bouller & Fiske e mostrou-se gentilíssimo com Soames. Sentia instintivamente, ou, mais certamente ainda, fora prevenido pelo rumor público, que tinha diante de si um homem rico e bem situado, um proprietário. Manteve-se com muita firmeza no seu parecer já expresso por escrito. O desenlace do processo dependeria em grande parte dos testemunhos apresentados, ele procurou convencer Soames de que o seu depoimento não deveria ser muito minucioso: «Um pouco de bluff, Mr. Forsyte, um pouco de bluff!» E ria com riso seguro, apertava os lábios e coçava a cabeça por baixo da peruca, exactamente ao modo de um fidalgo camponês, como gostava que o tomassem. Passava por ser o mais notável especialista em casos de quebra de promessa de casamento.

Soames voltou a apanhar o metropolitano para regressar a casa. Na estação de Sloane Square o nevoeiro estava mais espesso do que nunca. Naquela bruma pesada, os passantes iam e vinham tacteando, as mulheres, muito poucas, caminhavam com os xailes cruzados no peito, o lenço colado à boca. Surgiam cabs, como sombras enormes, com a protuberância fantástica dos cocheiros naquele halo esbranquiçado que se afogava em vapor, sob o poste de luz, antes de tocar o chão. Os cabs paravam, e os seus passageiros mergulhavam na escada do subterrâneo como coelhos nos buracos.

E todas aquelas silhuetas espectrais, cada uma delas isolada no seu envoltório de névoa, ignoravam-se umas às outras. Naquela grande coelheira, cada um que se defendesse, sobretudo os que, vestidos de belas pelicas e receando os acidentes, caminham em tempo de nevoeiro.

Não longe de Soames, à saída, via-se uma silhueta imóvel. Era sem dúvida um desses namorados, um desses homens do género do pirata do qual cada Forsyte dizia: «Pobre diabo, tem ar de ter passado bem baixo!» E os seus corações sensíveis comovem-se um momento diante do pobre apaixonado ansioso e paciente no nevoeiro. Mas passam depressa, sabendo muito bem que não têm tempo nem dinheiro a perder com um sofrimento que lhes não pertence.

Apenas um policeman que fazia a ronda em passos lentos notou aquele homem parado, cujo rosto enrubescido pelo frio, magro, esgazeado,, se escondia a meio sob a aba de um feltro mole. O homem passava às vezes a mão na testa, como para enxotar um pensamento importuno ou para se firmar na resolução que o prendia ali. Mas aquele namorado paciente - se realmente era um namorado - devia estar afeito à curiosidade dos policemen, ou então estar muito absorvido, porque não se alterou. Já se habituara, e a longa espera, a ansiedade, o nevoeiro e o frio não lhe significavam nada, se a sua amada acabasse por vir. Pobre namorado! Os nevoeiros duram até à Primavera: e há ainda a neve e a chuva, não faz bom tempo em parte nenhuma. Mostrarem-se os dois em público é uma angústia contínua, mas se ela não sair de casa, a angústia é pior.

«Pior para ele, arranjasse melhor a vida», é o pensamento de todo o Forsyte respeitável. E entretanto, se aquele excelente cidadão pudesse escutar as pancadas do coração do pobre apaixonado que tirita no nevoeiro e no frio, decerto repetiria: «Sim. pobre diabo, tem passado muito baixo!»

Soames subiu a um cab, baixou o vidro e foi transportado por ele a passo, por Sloane Street e Bropton Road. Eram cinco horas quando chegou diante da porta.

A mulher não estava em casa. Saíra há um quarto de hora. Fora de casa, a tal hora e com um tal nevoeiro! Que quereria

isso dizer?

Deixou a porta aberta e sentou-se junto do fogo, na sala de jantar, perturbado até ao fundo da alma, e fazendo esforços para ler o jornal da noite. Um livro seria inútil. Só os jornais poderiam agir como narcótico, num tormento como o seu. O noticiário do dia trouxe-lhe algum alívio. «Suicídio de uma actriz, doença grave de um homem público, divórcio de um oficial. incêndio numa mina.)- Leu até ao fim, era um pequeno recurso. o remédio oferecido pelo melhor dos médicos, o nosso gosto natural pelas desgraças dos outros. Eram quase sete horas quando ouviu os passos de Irene.

A estranha ausência dela naquele nevoeiro tinha posto Soames numa tal ansiedade que a cena da noite precedente já passara para um segundo plano no seu espírito. Mas agora que a mulher estava ali, a lembrança dos soluços desesperados possuiu-o de novo. E sentia-se nervoso à ideia de se avistar com Irene. Ela já subia a escada. A capa de pele cinzenta envolvia-a até aos joelhos. A gola fora erguida contra o rosto, coberto por um véu espesso.

Não se voltou, passou sem um olhar, sem uma palavra. Um

fantasma não seria tão mudo.

Bilson veio pôr a mesa do jantar e preveniu o patrão de que Mrs. Forsyte não desceria: tomaria uma sopa no quarto.

Por essa vez Soames não se vestiu para o jantar. Era talvez a primeira vez na vida que se punha à mesa com os punhos enxovalhados. E ficou ali, depois de terminar a refeição, diante do copo de vidro, perdido nas suas reflexões. Disse a Bilson que acendesse o fogo na sala dos quadros e logo subiu para lá.

Acendendo o gás, respirou profundamente, como se entre aqueles tesouros, cujos dorsos via alinhados contra a parede da sala, pudesse encontrar alguma tranquilidade de alma. Foi direito à sua tela mais preciosa, um Turner autêntico, e, colocando-a no cavalete, voltou-a contra a luz. Os Turner estavam a valer muito agora, mas Soames não se decidia a separar-se do seu. Ficou assim muito tempo, o rosto pálido, barbeado, inclinado para a frente, sobre o colarinho duro. Perscrutava o quadro como se lhe calculasse o valor, veio-lhe aos olhos uma expressão pensativa. Cogitaria ele que aquele Turner talvez não subisse muito mais? Tirou-o do cavalete para o pôr de novo de face contra a parede, mas, atravessando a sala, parou: parecia-lhe ter ouvido um soluço...

Não era nada... nada... sempre a mesma coisa que o atormentara toda a manhã. E um pouco mais tarde, depois de colocar o guarda-fogo em frente da lareira, desceu sem barulho.

Precisava estar bem disposto no dia seguinte, pensava ele. Mas custou-lhe muito a adormecer...

E agora é para George Forsyte que nos devemos voltar, seguindo-o, obteremos alguma luz sobre os acontecimentos daquele dia de fog.

O homem de espírito e o maior sportman de entre os Forsyte passara o dia na casa paterna., em Prince's Gardens, lendo um romance. Depois de uma recente crise financeira, mantinha-se prisioneiro sob palavra em casa do pai.

Lá pelas cinco horas, saiu. Apanhou o comboio em South Kensington, (porque toda a gente, naquele dia, resolvera viajar no metropolitano. Propunha-se jantar e jogar uma partida de bilhar no Red Potle, estabelecimento único, ao mesmo tempo clube, hotel e restaurante. Desceu não em St. James, como de hábito, mas em Charing Cross, a fim de alcançar Jermin Street por ruas mais iluminadas. Junto a um exterior correcto de homem da moda, George tinha um olhar penetrante sempre à procura de alimento para o seu espírito cáustico. Na estação, os seus olhos foram atraídos por

um homem que viu saltar de uma carruagem de primeira classe e que parecia cambalear ao dirigir-se para a saída.

«Ora, ora!», para si mesmo George. «É o Pirata.» E seguiu-lhe as pegadas. Pouca coisa o divertia mais do que o aspecto de um homem excessivamente embriagado.

Bosinney, que usava um feltro mole, parou bruscamente e precipitou-se para a carruagem que acabava de abandonar. Tarde de mais! Um empregado segurou-o pelo casaco, o comboio partira. O olhar vivo de George reconheceu na janela da carruagem uma senhora vestida de cinzento. Era Mrs. Soames. E George teve a intuição de que aquilo se tornara interessante.

Passou a seguir Bosinmey mais de perto, subiram ambos a escada, ultrapassaram as bilheteiras, atravessaram a rua. Agora o interesse excitado de George mudara de natureza. Já não era a curiosidade que o impelia: tinha piedade do pobre diabo cujos passos seguia. O Pirata não bebera,, mas parecia encontrar-se sob a acção de uma emoção violenta. Falava sozinho. George pôde apanhar apenas: «Oh, meu Deus!» O homem parecia não saber o que fazia, nem para onde ia. Caminhava hesitante, o olhar fixo, como alguém fora de si. E George, aquele pândego, que ainda há pouco não procurava senão um divertimento, começava a dizer para si mesmo: «É preciso vigiar esse pobre diabo!»

Tinha o ar de um ferido, de um homem que recebera uma martelada. E George indagava intimamente que poderia ter-lhe dito Mrs. Soames, que diabo lhe teria ela contado naquela carruagem? Ela também estava com uma cara péssima. E dava piedade, afinal de contas, pensar que se ia embora sozinha através da bruma, com um rosto tão triste.

Seguia Bosinney de perto, grande vulto maciço, mudo. Regulava os passos pelos do homem em cuja sombra se tornara, no fog espesso. Decerto se passava alguma coisa de grave. George mantinha-se perfeitamente lúcido, a despeito de uma certa excitação, porque despertara nele um instinto de caçador e o interesse da perseguição juntava-se à piedade.

Bosinney lançou-se sobre a calçada, vasta escuridão onde ninguém via dez passos diante de si, onde os gritos e assobios se mesclavam confusamente, onde formas súbitas irrompiam daqui e dali, e a luz dos candeeiros parecia uma ilhota de claridade no infinito de um mar obscuro.

A grandes passos, naquele abismo perigoso da noite, caminhava Bosinney, arrastando George atrás de si. Se o camarada projectava atirar a carcaça para debaixo de um ónibus, estava ele ali para o segurar. O homem, com o seu andar de animal perseguido, atravessou a rua, depois tornou a atravessá-la. Não tacteava como os outros que procuravam caminho na escuridão. Tinha o ar de fugir, como se George, atrás dele, o fustigasse com um chicote, e aquela perseguição a um possesso exercia sobre George a mais estranha fascinação.

Sucedeu então um incidente que deveria imprimir para sempre no espírito de George a lembrança daquela hora. No mais espesso do fog, quando um engarrafamento de veículos impediu a corrida, ele ouviu algumas palavras que lançaram claridade sobre o mistério. Adivinhava agora o que Mrs. Soames dissera a Bosinney no comboio. Pelas palavras entrecortadas, percebeu que Soames exercera os seus direitos sobre uma esposa que se lhe recusava - afirmara-se num acto supremo de proprietário.

E a sua imaginação atirou-se sobre todas as perspectivas que se abriam. O que ele entrevia na situação impressionava-o. Adivinhou algo torvo, a angústia, o horror sexual que revoltavam o coração de Bosinney.

«Afinal, a coisa é dura, não admira que o desgraçado esteja meio louco!!»

A sua caça forçada abateu-se num banco de Trafalgar Square, sob um dos leões, silhueta monstruosa de esfinge, perdida como eles nos abismos da escuridão.

Lá, rígido e mudo, Bosinney imobilizou-se, e George, cuja paciência era feita de uma solicitude súbita e quase fraternal, postou-se por trás do outro. Tinha uma certa delicadeza, um certo sentido das conveniências que o impediam de se envolver naquele drama íntimo. E esperava, tão imóvel como o grande leão por cima dele, com a gola da pelica erguida até às orelhas, cobrindo-lhe as faces espessas, escondendo-lhe o rosto todo, salvo os olhos atentos, simultaneamente sardónicos e compassivos.

E as criaturas passavam, homens que voltavam dos escritórios, ou iam a caminho dos clubes, homens cujas silhuetas mergulhavam no nevoeiro algodoado. Surgiam e evaporavam-se como fantasmas.

E mesmo naquele acesso de piedade, o espírito absurdo de George dava-lhe vontade de puxar aqueles fantasmas pela aba do sobretudo e dizer: «Ei, seus joões-ninguéns! Não é todos os dias que um espectáculo como este se oferece diante dos vossos olhos! Olhai aqui este pobre diabo a quem a amante acaba de contar uma linda história a respeito do marido! Aproximai-vos, aproximai-vos, vede que ele está por terra!»

E imaginava-os arregalando os olhos diante do amante torturado, ria, escarninho, ao pensar nalgum daqueles respeitáveis fantasmas, num recém-casado ao qual o estado do seu próprio coração permitisse compreender algo do que se passava em Bosinney, imaginava vê-lo, a esse fantasma, abrir a boca cada vez maior e o fog entrar lentamente por aquela boca. Porque George sentia pela classe média, sobretudo pela burguesia bem casada, esse desprezo particular, característico dos jovens espíritos indisciplinados que apareceram aqui e além entre ela própria.

Mas começava a achar grande a demora, pois não contara ficar parado, de plantão.

«No fim», pensava ele, «o pobre diabo há-de acalmar-se. Não é a primeira vez que uma história dessas se produz na nossa cidadezinha de Londres.» Mas o homem que ele espiava de tão perto soltou de novo algumas palavras surdas, de ódio e furor. Cedendo a um impulso súbito, George tocou-lhe no ombro. Bosinney voltou-se bruscamente.

- Quem é você? Que é que quer?

Se George houvesse visto aquele rosto à claridade plena de um bico de gás, à claridade da vida real e quotidiana, da qual era um conhecedor calejado, não se teria perturbado. Mas naquele nevoeiro onde tudo se tornava irreal, tenebroso, onde nada tinha o aspecto sólido e positivo sob o qual o mundo se apresenta aos Forsyte - sentia uma inquietação insólita. E, como tentasse fitar nos olhos aquele maníaco que o encarava, pensava: «Se eu visse um polícia, pedia-lhe que agarrasse este camarada. Não está em condições de andar em liberdade.»

Mas, sem esperar resposta, em grandes passadas, Bosinney mergulhou no nevoeiro. George acompanhou-o como pôde, mais resolvido que nunca a não lhe abandonar a pista.

«Não pode mais ir muito longe. Já é um milagre que ainda não tenha sido esmagado.» E não pensava mais no polícia, pois o fogo sagrado do caçador reacendera nele.

Nas trevas cada vez mais densas, Bosinney caminhava sempre num passo de louco. Mas aquele que o perseguia percebeu afinal algum método na sua loucura. Era claro que Bosinney caminhava em direcção do oeste.

«Está à procura de Soames!», pensou George. A ideia era interessante. Seria curioso ver aquela caçada terminar assim. Sempre detestara o primo.

Mas o tirante de um cab roçou-lhe o ombro e fê-lo dar um pulo de lado. Não iria deixar-se matar por amor do Pirata, nem de ninguém. E entretanto, com a tenacidade hereditária, procurou conservar a pista através do nevoeiro que embrulhava tudo, tudo excepto aquela sombra de homem perseguido e a luz turva do bico de gás mais próximo.

De súbito o seu instinto de londrino fez-lhe sentir que estava em Piccadilly. Ali, onde poderia caminhar de olhos fechados e livre de qualquer preocupação geográfica, o seu espírito voltou de novo à aventura de Bosinney. Na longa perspectiva da sua vida de clubman e na confusão dos seus amores duvidosos, via subir uma lembrança da juventude, uma lembrança ainda perturbadora, que lhe trazia o cheiro dos fenos, a luz do luar, qualquer coisa da magia do Verão, no relento e no negrume do fog londrino, a lembrança de uma noite em que, à sombra das árvores, deitado sobre a relva, ele ouvira os lábios de uma mulher confessar-lhe em voz baixa... a partilha. Durante um momento George esqueceu por onde andava, sentia-se de novo estirado na relva fresca, docemente cheirosa, sob a folhagem dos choupos que velavam a Lua.

Veio-lhe um impulso de segurar o Pirata pelos braços e dizer-lhe:

«Escute, meu velho, o tempo cura tudo, venha tomar qualquer coisa e esquecer isso.»

Mas uma voz furiosa fê-lo pular para trás, um cab surgiu da obscuridade, e desapareceu imediatamente. E George percebeu de súbito que já não via Bosinney. Correu, depois voltou sobre os seus passos. Uma angústia apertava-lhe o coração, o medo que sai das asas do fog, O suor porejava-lhe na testa. Ficou imóvel, de ouvido à escuta.

- E então - confiava ele a Dartie, naquela mesma noite, junto ao bilhar do Red Pottle -, então perdi-o.

Dartie cofiou vaidosamente o bigode, acabava de fazer uma série de vinte e três carambolas.

- E quem é a mulher? - perguntou ele.

George olhou um momento o rosto flácido e amarelado do "homem mundano". Um pequeno sorriso significativo passava sobre as suas faces redondas e nos seus olhos de pálpebras pesadas.

«Não, não, meu caro, não será a você que eu o diga», pensava ele. Embora se desse com Dartie. considerava-o um pouco canalha.

- Oh, uma mulherzinha qualquer-disse ele, passando o giz no taco.

- Uma mulherzinha! - exclamou Dartie, servindo-se de uma expressão mais viva. - Pois eu juraria que era a mulher do nosso amigo Soames..

- Na verdade? - disse George num tom rápido. - Pois você engana-se.

Errou a carambola. Evitou qualquer outra alusão à aventura. Às onze horas, quando já tinham visto o fundo da garrafa de whisky, ele afastou a cortina e olhou a rua. A treva do fog era apenas fracamente perfurada pelas luzes do Red Pottle. Lá fora o vulto de um passante, quase invisível.

- Não posso deixar de pensar no pobre Pirata - disse ele. - Talvez ainda esteja a vaguear pelo nevoeiro dentro. Se não está morto a estas horas...-acrescentou com um traço insólito de tristeza.

- Morto? - disse Dartie, a quem voltara bruscamente a lembrança da sua derrota em Richmond.

- Não se inquiete. Aposto dez contra um em que ele estava bêbado.

George voltou-se. Tinha o ar realmente temível, com qualquer coisa de sombrio e selvagem no rosto largo.

- Cale-se! - disse. - Não lhe expliquei já que era um homem acabado?

 

O PROCESSO.

Na manhã em que deveria ser julgado o seu processo, que era o segundo na lista, Soames teve de sair sem ver Irene, e talvez fosse melhor assim, porque ainda não estava decidido quanto à atitude que adoptaria em relação a ela. Haviam-lhe dito que estivesse no tribunal às dez e meia, para o caso de desistência de uma das partes do caso que deveria ser julgado antes do seu (um caso de quebra de promessa de casamento), coisa que, aliás, não se deu, e as duas partes exibiram uma coragem igual. Waterbruck, Q. C. teve oportunidade de aumentar ainda mais a reputação que adquirira nessa espécie de processos. Tinha na parte adversária Ram, outro especialista famoso no mesmo género de causas. Foi um combate de gigantes.

O tribunal deu o seu veredicto justamente antes da hora reservada ao almoço. O júri deixou a sala e Soames saiu para tomar qualquer coisa. Encontrou James. O velho estava em pé junto ao bufete do restaurante. Parecia um pelicano, perdido no deserto daquelas longas galerias. Inclinava-se sobre uma sanduíche e tinha diante de si um copo de sherry. O silêncio amplo, no hall, onde o pai e o filho ruminavam os seus pensamentos, era interrompido às vezes pela passagem precipitada de advogados de toga e peruca, às vezes pela aparição de alguma senhora idosa, de um cavalheiro de casaca mais ou menos usada que erguia os olhos com um ar assustado, e pela presença de duas pessoas mais ousadas do que o comum dos mortais e que discutiam num vão de janela.

O som das vozes subia ao mesmo tempo que um vago relento de poço abandonado, e este último combinava-se com a atmosfera abafada daquelas galerias para formar um cheiro único - parecido com o cheiro de um queijo de luxo - cheiro que se associa indissoluvelmente à administração da justiça britânica.

- Quando é o seu caso? Agora mesmo, decerto? Não me admiro se aquele Bosinney disser o que quiser para sua defesa. Creio que será forçado a isso. Se perder, abre falência. - Mordeu largamente a sanduíche e engoliu um trago de sherry. - A sua mãe manda dizer que vá jantar lá em casa hoje, e leve Irene.

Um sorriso pálido errou pelos lábios de Soames. O seu olhar cruzou-se com o do pai. E o estranho que surpreendesse aquele olhar frio e constrangido seria desculpado por não perceber o que subentendia ele para ambos. James acabou o sherry de um trago.

- Quanto? - perguntou à caixeira.

No tribunal, Soames ocupou imediatamente o lugar a que tinha direito, no primeiro banco, perto do advogado. E, com um olhar de lado que não podia trair nada, observou o lugar que o pai ocupava.

James ruminava, com o busto descaído, as mãos juntas sobre o castão do guarda-chuva, na extremidade do banco que ficava imediatamente atrás do advogado, de modo a poder sair dali logo após a leitura da sentença. Condenava inteiramente o procedimento de Bosinney, mas não desejava encontrar-se cara a cara com ele, sentindo bem que o encontro seria desagradável.

Depois da Vara de Divórcios, aquela era a mais frequentada. Difamações, rupturas, quebras de promessas de casamento, negócios de dinheiro, eram julgados ali. Um pequeno público curioso enchia inteiramente os bancos do fundo. Um ou dois chapéus femininos balouçavam as plumas nas galerias.

As duas filas de cadeiras logo à frente de James foram pouco a pouco ocupadas por advogados de peruca, que se encontravam tomando notas, palestrando ou palitando os dentes. Mas a atenção que ele concedia àqueles luminares secundários do foro volveu-se em breve para o célebre Waterbruck, Q. C, que entrava rangendo a toga de seda, com a face vermelha, magistral, enquadrada por suíças grisalhas. James concordava em que ele tinha o ar do homem que vai aterrorizar uma testemunha.

Apesar de toda a sua longa experiência, James nunca se encontrara pessoalmente com Waterbruck, Q. C. e, como muitos Forsyte que ocupam um degrau inferior na profissão, tinha uma admiração sem limites pelo advogado que sabe levar à frente um contra-interrogatório. As longas pregas lúgubres da sua face distenderam-se quando contemplou o advogado, e sobretudo quando compreendeu que Soames fora o único a fazer-se representar por uma toga de seda.

Waterbruck. Q. C, mal tinha tido tempo de se apoiar sobre o cotovelo e iniciar uma conversa com um dos seus jovens colegas, quando o juiz Bentham fez a sua entrada. Era um homenzinho do género galináceo, um pouco curvo, de rosto glabro sob uma peruca cor de neve. Waterbruck ergueu-se, e com ele a sala inteira, que ficou de pé, até que o juiz se sentasse. James esboçou apenas o gesto de se erguer. Estava muito bem instalado no seu banco e não dava muita importância ao juiz Bentham, que já fora por duas vezes seu vizinho de mesa em casa de Bumley Tomm. E Bunley Tomm não era grande coisa, embora bem sucedido. Fora James quem lhe preparara o seu primeiro dossier. Mas o velho Forsyte estava nervoso, pois acabara de descobrir que Bosinney não se encontrava na sala. «Que é que andará escondido nisso?», pensava ele.

Foi feita a chamada. Waterbruck, Q. C, afastando os seus papéis, reajustou a toga nos ombros, e, passeando em torno de si o olhar de um professor de esgrima que assume posição, ergueu-se e dirigiu-se ao tribunal.

Os factos, dizia ele, não estavam em discussão. Tudo o que se pedia a Sua Senhoria era que interpretasse a correspondência trocada entre o seu cliente e o demandante, um arquitecto, a respeito de trabalhos decorativos executados por este último. Quanto a ele, exporia que a citada correspondência não tinha senão um único sentido, perfeitamente preciso. E contando sumariamente a história da casa de Robin Hill, que descreveu como um castelo.

depois de dar um apanhado das despesas contratadas, continuou assim:

- O meu cliente, Mr. Soames Forsyte, é um gentleman, um homem de fortuna sólida que seria o último a discutir uma pretensão legítima. Mas na questão dessa casa, que já lhe custou, como Vossa Senhoria sabe, cerca de doze mil libras - soma que ultrapassa em muito o orçamento por ele determinado antes - nesse negócio, dizia eu, o seu arquitecto comportou-se de tal modo que Mr. Forsyte, colocando-se no ponto de vista do princípio - nunca insistirei demasiado sobre essa palavra - sim, do princípio, o interesse geral, viu-se levado pela obrigação de intentar este processo. Quanto à defesa invocada pelo arquitecto, permitir-me-ei dizer a Vossa Senhoria que ela não resiste a um momento de exame. - E leu a correspondência.

O seu cliente, «um homem de posição considerável», estava pronto para comparecer perante o tribunal e prestar juramento de que nunca autorizara nem nunca intentara autorizar uma despesa que excedesse esse limite máximo de doze mil e cinquenta libras que ele claramente fixara, e, para não reter por mais tempo a atenção do tribunal, pedia permissão para chamar Mr. Forsyte.

Soames compareceu, admiravelmente senhor de si. Sobre o rosto pálido e completamente barbeado, havia apenas o leve traço de altivez que convinha, uma pequena ruga entre os dois olhos, os lábios cerrados, o trajo correcto, sem ostentação, uma mão enluvada, outra nua. Respondeu às perguntas que lhe foram feitas com voz um pouco baixa, mas distinta. A sua atitude no momento do contra-interrogatório foi quase reticente.

- Não se serviu da expressão "carta branca"?

- Não.

- Então, então!

- A expressão de que me servi foi esta: «Carta branca dentro dos dados desta correspondência.»

- Sustentará o demandante, perante o tribunal, que essa expressão tem um sentido em língua inglesa?

- Sim.

- Que quer dizer essa expressão?

- O que exprime.

- Poderá negar que a expressão seja contraditória nos seus termos?

- Perfeitamente.

- O senhor não é irlandês?

- Não.

- É um homem bem-educado?

- Sim.

- E persiste no seu depoimento?

- Sim.

De um extremo ao outro desse contra-interrogatório, que parecia não acabar mais, em torno do «ponto delicado», James mantinha a mão em corneta em torno da orelha, com os olhos fixos

no filho.

Estava orgulhoso dele! Sentia que, no seu lugar, ele próprio tentaria entrar em explicações, porém o seu instinto dizia-lhe que aquela reticência era exactamente o necessário. Deu um profundo suspiro de alívio quando Soames, voltando-se lentamente sobre os calcanhares, sem nenhuma mudança de expressão no rosto, deixou a barra das testemunhas.

Quando chegou a vez de o advogado de Bosinney se dirigir ao juiz, James redobrou de atenção e muitas vezes percorreu a sala toda com os olhos para ver se Bosinney não estava escondido em

alguma parte.

O jovem Chankery começou nervosamente. A ausência de Bosinney embaraçava-o. Fez o mais que pôde para paliar a inconveniência daquela ausência.

Não podia evitar o receio de que algum acidente houvesse acontecido ao seu cliente. Contava absolutamente com que este viesse fazer o seu depoimento. Mandara naquela mesma manhã um portador ao escritório de Mr. Bosinney e à sua residência - sabia perfeitamente que escritório e residência eram um só, mas supunha preferível não o dizer em público -, e ninguém pudera dizer-lhe onde estava Mr. Bosinney. Estava pois muito inquieto, sabendo quanto o seu cliente fazia questão de prestar o seu depoimento. Mas, como não recebera instruções para pedir o adiamento da causa, supunha seu dever prosseguir. O argumento que ele invocava com a confiança, e que o seu cliente, se não houvesse sido inopinadamente impedido de comparecer perante o tribunal, reforçaria com o seu testemunho, era o seguinte: a expressão «dou-lhe carta branca» não pode ser limitada, restringida, afastada do seu sentido natural por qualquer verbagem que se lhe acrescente. Ele iria mais longe, diria que a correspondência o atestava, e que Mr. Forsyte, dissesse o que dissesse no seu depoimento, nunca pensara em declinar a responsabilidade dos serviços encomendados ou efectuados pelo seu arquitecto. Decerto o demandado jamais entrevira uma tal eventualidade e - as cartas mais uma vez o provavam - e se a entrevisse nunca teria prosseguido na obra extremamente delicada, executada com um cuidado minucioso e competente, a fim de satisfazer o gosto exigente de um connoisseur, um homem rico, um homem considerável. Ele tinha a esse respeito uma convicção profunda que o levava talvez a exprimir-se vivamente quando afirmava que aquele processo era na verdade de carácter injustificável, inesperado, sem precedentes. Se Sua Senhoria houvesse tido oportunidade de percorrer, como ele próprio considerara um dever fazê-lo, aquela bela residência, e, dadas a finura e a beleza dos trabalhos executados pelo seu cliente - um artista dos mais distintos na sua honrosa profissão -, certamente Sua Senhoria não toleraria por mais um instante aquela tentativa audaciosa - ele procurava evitar uma palavra mais forte - para escapar a uma responsabilidade indiscutível.

Tomou o texto das cartas e disse algumas palavras a respeito da questão Boileau versus The Blasted Co., Ltd.

- Não sei certamente o partido que se pode tirar desse precedente. Creio poder dizer que ele me é favorável quanto ao meu confrade.

Começou então uma discussão cerrada em torno do «ponto delicado:». Ele podia afirmar, com toda a deferência à autoridade do juiz, que a expressão empregada por Mr. Forsyte se anulava a si mesma. Como o seu cliente não era rico, o negócio era sério para ele. Mr. Bosinney era um arquitecto de grande talento, cuja reputação profissional estava em jogo. E concluiu por um apelo, talvez pessoal de mais, ao juiz, decerto um amigo das artes. Conjurava-o a constituir-se no protector dos artistas contra o que podia às vezes chamar - insistia que apenas às vezes - a mão de ferro do capital.

- Que será da carreira dos artistas - dizia o moço advogado - se os capitalistas como Mr. Forsyte se recusarem - e se tolerarmos que eles se recusem - a reconhecer as obrigações contraídas em seu nome e por sua ordem?

Ia agora chamar o seu cliente para o caso em que, no último momento, lhe houvesse sido possível comparecer ao tribunal.

Três vezes os oficiais de justiça chamaram o nome de Philip Baynes Bosinney, e aquele apelo ressoava com uma melancolia singular através da sala silenciosa e nas galerias.

O grito daquele nome, que não obtinha nenhuma resposta, produziu um curioso efeito em James. Era como se se chamasse nas ruas um cão perdido. Era como se alguém houvesse desaparecido. A impressão de inquietação que teve abalou o seu habitual sentimento de conforto e segurança. Não poderia dizer porquê, mas sentia-se incomodado.

Olhou o relógio. Três horas menos um quarto! Dentro de um quarto de hora, tudo estaria terminado. Onde poderia estar aquele rapaz? Foi preciso que o juiz Bentham desse a sua sentença para que vencesse a perturbação que o tomara.

Da tribuna que o separava do comum dos mortais, o sábio juiz inclinava-se para a frente. A luz da lâmpada, eléctrica, suspensa bem por cima da sua cabeça, clareava-lhe o rosto e punha nele um reflexo amarelado, sob a brancura da peruca. Os panos da toga pareciam enfunar-se e toda a silhueta, vista da zona de sombra onde estava o tribunal, irradiava luz como um corpo sagrado. Ele tossiu, tomou um gole de água, fez saltar contra a mesa o bico de uma pena e, reunindo sobre o peito as mãos ossudas, começou a falar.

E de súbito o juiz pareceu imenso a James, muito maior do que jamais o imaginara. Era a majestade da lei. Talvez uma natureza menos ingenuamente terra-a-terra do que a de James não fosse também capaz de dissipar essa auréola e de lá extrair o Forsyte, muito insignificante na vida quotidiana, que andava e falava sob o nome de Sir Walter Bentham.

O juiz pronunciou a sentença nos seguintes termos:

«Na causa que nos ocupa, os factos não são contestados. A 15 de Maio último, o demandado escrevia ao demandante propondo-lhe a sua renúncia na prossecução dos trabalhos profissionais empreendidos para a decoração da casa do demandante, a menos que ele lhe desse carta branca. A 17 de Maio o demandante respondeu: "Dando-lhe, como pede, carta branca, desejo que fique bem estabelecido que o preço da casa pronta, com as suas decorações, não deve exceder a importância de doze mil libras. Incluo os seus honorários nessa quantia, da forma que convencionámos." A 18 de Maio o demandado replicou: "Se o senhor pensa que, nesses trabalhos delicados, eu posso prender-me à questão de uma libra a mais ou a menos, receio que se engane." A 19 de Maio o demandante escreveu: "Creio que não haverá mais discussão entre nós se o senhor ultrapassar de dez, vinte ou mesmo cinquenta libras a importância que fixei na minha carta. Você tem carta branca dentro dos dados da nossa correspondência e espero que se arranjará para completar os trabalhos." A 20 de Maio, o demandado respondeu por estas simples palavras: "Muito bem".

«Terminando a parte decorativa do seu trabalho, o demandado tomou compromissos que fizeram subir as despesas à quantia de doze mil e quatrocentas libras, e esses compromissos o demandante cobriu-os.

«Intentando este processo, o demandante procura recuperar do demandado a quantia de trezentas e cinquenta libras despendidas além do orçamento de doze mil e cinquenta libras que o dito demandante sustenta haver fixado como o máximo que ele autorizava o demandado a despender.

«A questão que eu devo decidir é se devemos considerar o demandado responsável por essa quantia perante o demandante.

«Segundo o meu juízo, ele é realmente responsável. O que lhe disse o demandante resume-se nisto: Dou-lhe carta branca para acabar esta decoração, com a condição de que a despesa total não ultrapasse doze mil libras. Se você ultrapassar essa quantia até cinquenta libras, não o responsabilizarei. Além desse limite, você não é meu mandatário e eu declino qualquer responsabilidade." Se o demandante se houvesse recusado a pagar os compromissos que o seu mandatário assumiu, não seria evidente para mim que ele estivesse fundamentado. Mas não foi esse o partido que tomou. Reconheceu esses contratos e volta-se contra o demandado, invocando as condições que lhe impusera.

«Em minha alma e consciência, o queixoso tem direito a reclamar esta soma ao demandado.

«Tentou-se, em favor do arquitecto, demonstrar que nenhum limite fora fixado de facto nem de intenção no decorrer desta correspondência. Se fosse assim, eu não compreenderia a menção da quantia de doze mil libras no começo desta correspondência, e mais ainda as cinquenta libras suplementares. A tese do demandado tiraria toda a significação a esses algarismos. Para mim, é facto incontestável que na sua carta de 20 de Maio ele aceitou uma proposta perfeitamente clara, aos termos da qual se deve considerá-lo ligado.

«Em consequência, o demandado é condenado a reembolsar a quantia reclamada e mais as custas.»

James soltou um suspiro e apanhou o guarda-chúva, que caíra com estrépito no momento em que eram ditas as palavras «introdução na dita correspondência».

E, descruzando as pernas, deixou rapidamente o tribunal. Sem esperar o filho, chamou um cab, a tarde estava clara e cinzenta, e ele dirigiu-se directamente para a casa de Timothy. Lá encontrou Swithin. E foi a Swithin, a Mrs. Septimus Small e à tia Hester que contou tudo o que se passara. Comeu duas filhós sem interromper a história.

- Soames portou-se muito bem - explicou. - Aquele tem chumbo no miolo. Sei que este negócio não vai dar muito gosto a Jolyon. É bem ruim para o jovem Bosinney. Vai falir, e eu não me admiraria... - Depois de um longo silêncio, durante o qual os seus olhos se fixaram no fogo com uma expressão meio inquieta, acrescentou: - Ele não apareceu. Porquê?

Ouviu-se um rumor de passos. Um homem forte, de rosto vermelho, com um ar sólido de saúde, apareceu no salão do fundo. O seu dedo indicador destacava no negrume da sobrecasaca.

- Bem, James - disse ele. - Eu não posso... não posso ficar - E, girando nos calcanhares, desapareceu.

Era Timothy. James ergueu-se.

- Aí está! Eu tinha a certeza. Aconteceu alguma coisa. Conteve-se, calou-se com o olhar fixo diante de si, como se

houvesse visto alguma aparição de mau augúrio.

 

SOAMES DÁ A NOTÍCIA.

Deixando o tribunal, Soames não se encaminhou directamente para casa. Não sentia também nenhum desejo de voltar à City, pois tinha necessidade de alguma manifestação de simpatia perante o seu triunfo, pelo que, lentamente e a pé, se dirigiu à casa de Timothy.

O pai acabava de sair. Mrs. Small e a tia Hester, já a par de tudo, fizeram-lhe uma recepção calorosa. Certamente ele deveria ter fome depois de uma sessão tão longa. Smither fritar-lhe-ia mais algumas filhós: o pai dele não deixara nenhuma. Devia estirar as pernas no sofá e elas dar-lhe-iam um cálice de aguardente de ameixa, para levantar as forças.

Swithin ainda estava presente, tendo-se demorado mais do que desejaria, pois tinha necessidade de fazer exercício. E, vendo as tias amimando Soames, rosnou: «Como são maricas estes jovens de hoje!» Estava com dores no fígado e não podia suportar o espectáculo de ver alguém junto dele a beber aguardente de ameixa.

Partiu quase imediatamente dizendo a Soames: «Como vai sua mulher? Diga-lhe que quando estiver aborrecida em casa venha jantar comigo, que eu lhe darei uma garrafa de champanhe difícil de encontrar igual.» E, considerando Soames de toda a sua alta estatura, com o olhar vazio, apertou-lhe fortemente a mão, como se na sua palma flácida, espessa e amarelada ele quisesse esmagar toda a moleza da nova geração. Depois, enchendo o peito de ar, saiu no seu passo sumptuoso de peru.

Mrs. Small e a tia Hester ficaram horrorizadas. Elas também estavam loucas para perguntar a Soames como Irene receberia a derrota do Bosinney, mas sabiam que tal indagação era proibida. Talvez que ele próprio, Soames, dissesse qualquer coisa, lançasse qualquer claridade sobre esse problema apaixonante que lhes perturbava a vida e que, por obrigação do silêncio e do mistério, lhes era quase uma tortura. Até mesmo a Timothy todo o caso fora narrado, e a sua saúde fora afectada por isso num grau impressionante. E June, que faria ela? Mais outro tema apaixonante e perigoso!

Lembravam-se ainda da visita do velho Jolyon, em Maio passado. Nunca mais ele voltara. Sim, recordavam o sentimento que os havia angustiado a todos: que a família já não era o que fora, que a família estava prestes a desfazer-se.

Porém Soames não lhes disse nada. Sentado, de pernas cruzadas", falava da escola de pintores de Barbizon, que acabava de descobrir. Era gente que iria vencer, opinava ele. Supunha que haveria muito dinheiro a ganhar com tais quadros, estava interessado em duas telas de um deles, chamado Corot, lindíssimas. Se as pudesse obter a preço razoável, havia de as comprar, um dia desses, e faria bom negócio revendendo-as. Apesar do interesse de um tal assunto, Mrs. Septimus Small e a tia Hester não podiam resolver-se a ver assim afastada a questão que lhes queimava a língua. Sim, era interessante, muito interessante, depois Soames entendia tanto do negócio que na certa tiraria o maior partido possível dos quadros. Mas, agora que ele ganhara o processo, quais eram os seus projectos? Iria deixar Londres imediatamente e instalar-se no campo? Enfim, que contava fazer? Soames respondeu que ainda não resolvera nada. Era provável que em breve se mudasse. Ergueu-se e beijou a testa de cada uma das tias.

Ante esse gesto de adeus, uma mudança súbita operou-se na tia Juley: cada preguinha de carne do seu rosto tinha o ar de querer escapar-se de uma máscara invisível e apertada. Ela ergueu-se em toda a sua estatura e disse:

- Meu filho, há muito tempo que quero contar-lhe... e, se ninguém quer falar, eu decidi-me a...

A tia Hester interrompeu-a:

- Cuidado, Juley! - E sufocada: - Você faz isso sob sua responsabilidade!

Mrs. Small continuou, como se não tivesse ouvido a irmã:

- Meu filho, é preciso que você saiba que Mrs. Mac Ander viu Irene a passear em Richmond Park na companhia de Mr. Bosinney.

A tia Hester, que também se erguera, afundou-se na poltrona e desviou a cabeça. Não, na verdade aquela Juley era de mais... Não deveria fazer daquelas coisas quando ela, Hester, estava na sala! Mas, contendo a respiração, esperou a resposta de Soames.

Ele corara, com aquele rubor singular que se concentrava sempre entre os dois olhos. Erguendo a mão e escolhendo uma unha, mordeu-a delicadamente, e depois, retirando o dedo de entre os lábios cerrados, disse:

- Mrs. Mac Ander é uma gata!

E, sem esperar resposta, saiu da sala.

Quando fora a casa de Timothy, tomara uma resolução: ao chegar a casa, subiria até ao quarto de Irene e dir-lhe-ia: «Bem, ganhei o processo. É um negócio liquidado. Não quero ser rigoroso com Bosinney e verei se há um arranjo possível. Não o apertarei. E agora voltemos uma página nova. Vamos alugar esta casa, sair do nevoeiro de Londres e instalamo-nos imediatamente em Robin Hill. Além disso, não tenho mais intenção de lhe ser... desagradável. Dê-me a sua mão...» E talvez depois ela se deixasse beijar, e em seguida esquecesse...

Mas quando saiu da casa de Timothy, as suas intenções já não eram tão simples. O ciúme e as suspeitas que cresciam dentro dele desde há meses surgiram com toda a força.

Iria pôr fim àquelas coisas, de uma vez por todas. Não permitiria mais que o seu nome fosse arrastado na lama. Se ela não podia e não queria mais dar-lhe o que um marido tem o direito de exigir da mulher, pelo menos não iria zombar dele em companhia de outro. Falaria claro, ameaçá-la-ia com o divórcio. Isso acalmá-la-ia. Irene teria medo do divórcio.

E entretanto, se não tivesse medo? Essa ideia desamparou-o, nunca lhe ocorrera ao espírito.

Se Irene não tivesse medo? Se lhe fizesse confissões? Qual seria então a sua atitude? Teria de chegar ao divórcio!

Divórcio! Vista assim, a palavra tinha qualquer coisa de paralisante. Era a negação de todos os princípios que até então tinham guiado a vida de Soames Forsyte. Aterrava-o o que o termo tinha de intransigente, sentia-se como o comandante de um navio que lançou pela borda fora a carga mais preciosa dos seus porões. Abandonar voluntariamente o que lhe pertencia ia de encontro a todos os seus princípios íntimos. Aquilo prejudicá-lo-ia na sua profissão. Precisaria de se desfazer da casa de Robin Hill, que lhe custara tão caro, na qual pensara tanto. E não a venderia senão com prejuízo. E ela! Ela não lhe pertenceria mais, nem mesmo de nome! Desapareceria da sua vida... não a veria mais...

Afinal, talvez não houvesse nada a confessar. Naquele momento mesmo, era ainda muito provável que não houvesse. Seria prudente para ele procurar ir até ao fundo das coisas? Seria prudente arriscar-se a voltar a trás no que dissera antes? O resultado daquele processo seria a ruína de Bosinney. Um homem arruinado é capaz de tudo. Mas que poderia ele fazer?

Iria decerto para o estrangeiro. É a solução clássica para os casos de ruína. Mas, sem dinheiro, que poderiam eles fazer, se realmente se deveria dizer eles? O melhor seria esperar e ver em que dariam as coisas. Se fosse preciso, poderia até expulsá-la. A tortura do ciúme - o acesso vinha exactamente igual ao de uma dor de dentes - retomou-o de súbito. Quase soltou um grito. E entretanto era preciso decidir-se, traçar uma linha de conduta antes de entrar em casa. Quando o carro parou em frente à porta ainda não resolvera nada.

Entrou, pálido, as mãos húmidas de suor, receando vê-la, ardendo por voltar a vê-la, incerto sobre o que deveria fazer e dizer.

A criada Bilson estava no hall e quando ele perguntou: «Onde está a patroa?», ela respondeu que Mrs. Forsyte deixara a casa ao meio-dia, levando uma mala e um saco de viagem.

Arrancando-lhe das mãos a manga da pelica, que ela se preparava para lhe tirar, ele voltou-se:

- O quê? Que é que você está a dizer? - Mas, lembrando-se de súbito que não deveria trair nenhuma emoção, acrescentou: - Mrs. Forsyte deixou-lhe algum recado para mim?

Notou, com um terror secreto, o olhar constrangido da criada.

- Mrs. Forsyte não deixou nenhum recado para o senhor.

- Nada? Muito bem. Obrigado. Irei jantar fora.

A criada desceu. Ele vestia a pelica e maquinalmente mexia os cartões de visita na taça de porcelana que ficava sobre a grande arca de carvalho esculpido do hall:

Mr. and Mrs. Bareham Culcher, Mrs. Septimus Small, Mrs. Baynes,

Mr. Solomon Thornworthy, Lady Bellis, Miss Hermione Bellis,

Miss Winifred Bellis, Miss Ella Bellis.

Quem diabo era toda aquela gente? Parecia ter esquecido todas aquelas coisas familiares. E as palavras «Mrs. Forsyte não disse nada - uma mala, um saco de viagem» brincavam às escondidas na sua cabeça. Era incrível que ela não houvesse dito nada! E, sempre com a pelica vestida, subiu os degraus da escada a quatro e quatro, como um recém-casado que, voltando para casa, corre ao quarto da mulher.

Tudo ali era delicado, puro e numa ordem perfeita. Tudo cheirava ao seu leve perfume. Sobre a cama grande, coberta com o edredon lilás, estava o envelope que ela bordara com as suas mãos para a roupa de noite. As chinelas estavam colocadas aos pés da cama, já aberta, como se a esperasse para dormir.

No toucador brilhavam as escovas de dorso de prata, os frascos de um estojo que ele lhe dera. Que saco de viagem levara ela? Deu um passo para a campainha, para chamar Bilson, mas lembrou-se de que deveria fingir saber para onde ela fora, que não poderia admirar-se de nada e que precisava de se libertar sozinho, tacteando, daquelas trevas.

Fechou a porta à chave e tentou pensar, mas a cabeça girava-lhe e de súbito as lágrimas subiram-lhe irresistivelmente aos olhos.

Precipitadamente, tirou a pelica. Foi olhar-se no espelho.

Estava muito pálido: tinha um tom de chumbo no rosto. Encheu a bacia e começou a banhar febrilmente o rosto.

As escovas de dorso de prata estavam ainda impregnadas do perfume da loção que ela usava à noite nos cabelos, e esse cheiro renovou nele o horrível espasmo do ciúme.

Febrilmente, vestindo a pelica, desceu a correr a escada e saiu para a rua. Entretanto, não perdera de todo o domínio de si mesmo e, enquanto caminhava por Sloane Street, pensava na história que contaria se não a encontrasse em casa de Bosinney. Mas... se a encontrasse? O seu poder de decisão faltou-lhe de novo e ele já estava em pé diante da casa, sem saber ainda o que faria no caso em que ela estivesse lá.

As horas de trabalho no escritório já haviam passado. A grande porta estava fechada, e a mulher que abriu não sabia se Mr. Bosinney estava. Não o vira todo o dia, nem havia dois ou três dias, já não fazia o serviço dele, ele...

Soames interrompeu: subiria e veria pessoalmente. Subiu, com o rosto lívido, os dentes cerrados.

Nenhuma luz no último andar. A porta estava fechada e ninguém respondeu à campainha. Ele não ouviu nenhum ruído. E teve de descer, tiritando sob a pelica, com um frio no coração. Chamando um cab, mandou o cocheiro conduzi-lo a Park Lane.

Pelo caminho, tentou recordar a última vez que dera um cheque a Irene. Ela não deveria ter mais de três ou quatro libras. Mas tinha as jóias! E foi uma tortura requintada para ele lembrar todo o dinheiro que ela poderia apurar nas jóias, daria para levar os dois para o estrangeiro, daria para os manter durante meses. Tentou calcular. O carro parou e ele desceu antes de ter conseguido fazer o cálculo.

O criado perguntou-lhe se Mrs. Soames estava no carro. O patrão dissera que Mr. Soames e a senhora viriam jantar.

Soames respondeu:

- Não, Mrs. Forsyte está constipada.

O criado exprimiu o seu pesar e Soames teve a impressão de que ele o olhava com curiosidade. Lembrou-se então de que não estava em trajo de noite. Perguntou-lhe:

- Há alguém para jantar, Warmson?

- Ninguém, Mr. Soames, além de Mr. Dartie e a senhora. E Soames supôs sentir ainda sobre si o olhar curioso do

criado. Não pôde conter-se:

- Que é que está a olhar? Tenho alguma coisa de extraordinário?

O criado corou, levantou a pelica e murmurou qualquer coisa como:

- Absolutamente nada, Mr. Soames. Peço perdão. E eclipsou-se.

Soames subiu a escada. Atravessou o salão sem olhar para nada e dirigiu-se ao quarto dos pais.

James estava de pé, de perfil, em mangas de camisa e de colete branco, o que revelava melhor as linhas fundas da sua longa e magra silhueta. Com a cabeça inclinada, uma ponta da gravata branca passando-lhe ao lado das suíças brancas, os olhos pregueados pelo esforço, os lábios apertados, abotoava o alto do vestido da mulher. Soames parou. Sentia-se abafar, talvez por ter subido a escada depressa de mais, talvez por outra razão... A ele, nunca lhe haviam pedido que...

Ouviu a voz do pai, que falava como se tivesse um alfinete entre os dentes:

- Quem está aí? Que é que há? Que é que quer? - E a voz da mãe: - Venha, Felice, venha abotoar isto, o seu patrão nunca acabará.

Soames levou a mão à garganta e disse, com um esforço na voz:

- Sou eu, Soames.

Notou com gratidão o tom de carinhosa surpresa na voz da mãe:

- E então, meu filho? - E o pai, largando os colchetes: - Que é que há, Soames, para você subir? Não está a sentir-se bem?

Soames respondeu maquinalmente:

- Estou bem.

E olhou-os. Parecia-lhe impossível articular o que tinha a dizer.

James, facilmente assustadiço, disse:

- Você não está com boa cara, será que se constipou? Ou então é o fígado, não me admiraria. A sua mãe vai dar-lhe...

Mas Emily interrompeu-o com voz tranquila:

- Você trouxe Irene? Soames abanou a cabeça.

- Não - balbuciou -, ela deixou-me.

Emily abandonou o espelho diante do qual se mirava. A sua grande e forte pessoa perdeu a aparência majestosa, tornou-se subitamente muito maternal e correu para Soames.

- Meu filho! Meu filhinho! Beijava-lhe a testa, acarinhava-o.

James também se voltara de súbito para o filho: as suas feições pareciam ter envelhecido.

- Deixou? - disse ele. - Que é que você quer dizer? Deixou? Você nunca me tinha dito que ela ia deixá-lo.

Soames (respondeu num tom desolado:

- Como é que eu poderia saber? E que devo fazer agora? James pôs-se a percorrer o quarto. Estava estranho, de casaca - tinha o ar de uma velha cegonha.

- Que é que é preciso fazer?-resmungava. - Será que eu sei o que é preciso fazer? Que é que você quer que eu saiba.? Ninguém nunca me diz nada, e depois vêm perguntar-me o que é preciso fazer. Eu queria saber o que é que querem que eu responda. Olhe a sua mãe ali, em pé, ela não diz nada. Eu, se tenho opinião a dar, é que você deve trazer a sua mulher de volta a casa.

Soames teve aquele seu sorriso particular, um pouco desdenhoso, que nunca, antes, parecera tão lamentável.

- Não sei para onde ela foi - disse ele.

- Você não sabe para onde ela foi? - exclamou James. - Que é que você quer dizer com isso: não sei para onde ela foi? Para onde supõe você que ela foi? Acompanhou esse rapaz Bosinney, eis para onde foi! Eu sabia bem como isso tudo acabaria!

Soames, durante o longo silêncio que se seguiu, sentiu a mãe apertar-lhe a mão. E tudo o que se passava em torno dele parecia-lhe como se o seu próprio poder de pensar e agir estivesse atacado de paralisia. Via o rosto do pai, coberto de um tom vermelho-ocre, atravessado de estremecimentos, como se fosse chorar, e as palavras que lhe saíam da boca eram como se fossem arrancadas à sua alma em espasmo.

- Eu sempre disse que isso daria num escândalo! - E vendo que os outros se calavam: - E vocês dois ficam aí sem se mexer, você e sua mãe!

Ouvia também a voz de Emily, calma, um pouco desdenhosa:

- Ora, James! Soames vai fazer o que for possível!

E James, de olhos fixos no soalho, continuando numa voz um pouco infeliz:

- Bem vê, eu não posso ajudá-lo. Estou a ficar velho. Procure não se apressar muito, meu filho.

E depois a voz da mãe:

- Soames fará o que for possível para a trazer. Não falemos mais nisso. Tenho a certeza de que tudo se arranjará.

E James:

- Bem, eu não sei como é que isso irá arranjar-se. E se ela já não foi para longe com esse Bosinney, a minha opinião é que se deve impedi-la de o fazer, encontrá-la e trazê-la para casa.

Ainda uma vez Soames sentiu a mãe acariciar-lhe a mão em sinal de aprovação, e, como se pronunciasse um juramento sagrado, ele murmurou entre dentes:

- Hei-de trazê-la.

Juntos, os três desceram ao salão. As três filhas e Dartie estavam reunidos lá. Se Irene estivesse presente, o círculo da família ficaria completo.

James deixou-se cair numa poltrona e, afora um frio «boa tarde» a Dartie, que ele desprezava e temia como a um homem de quem se deve sempre esperar um pedido de dinheiro, ficou calado até à hora do jantar. Soames também ficou mudo. Apenas Emily, mulher de fria coragem, mantinha uma conversa com Winifred sobre assuntos indiferentes. Nunca dominara mais os seus modos e as suas palavras do que naquela noite.

Como fora combinado não aludir à fuga de Irene, ninguém pôde dizer nada a respeito da linha que deveria ser mantida. Mas, segundo a atitude adoptada por uns e outros, depois que os acontecimentos falaram por si. pode-se ficar mais ou menos certo de que a opinião de James, «encontrá-la e trazê-la para casa», seria aprovada salvo poucas excepções, não só ali em Park Lane, como também em casa de Nicholas, de Roger, de Timothy. O mesmo responderiam todos os Forsyte, cuja espécie se encontra em toda a Londres e que só estavam impedidos de julgar a questão porque a ignoravam.

A despeito porém dos esforços de Emily, o jantar, servido por Warmson e outro criado, passou-se quase em silêncio. Dartie, de mau humor, bebia tudo que lhe serviam, as moças, essas em geral nunca falavam muito. James perguntou uma vez onde estava June e o que fazia ela. Ninguém sabia: E ele caiu no seu silêncio melancólico. Foi preciso que Winifred contasse que o pequeno Publius dera o seu penny falso a um mendigo para que o rosto do velho clareasse.

- Ah - disse ele -, aquele é um camarada esperto! Não sei até onde irá, se continuar assim. É um rapazinho muito inteligente?

Mas aquilo foi apenas um relâmpago.

Os pratos sucediam-se solenemente, sob as lâmpadas eléctricas que inundavam a mesa de luz mas clareavam mal o principal ornato da parede, um quadro cujo nome era Marinha, de Turner, e que não representava nada, além de umas cordoagens e de uns homens que se afogavam. Serviram o champanhe. Veio depois uma garrafa de vinho do Porto, pré-histórica, tirada à adega de James, mas que não alegrou ninguém.

Às dez horas Soames foi-se embora, duas vezes, respondendo a perguntas, dissera que Irene não se sentía bem. Mas já não se sentia senhor de si, a mãe deu-lhe um grande beijo, muito meigo, quando o filho lhe apertou a mão, e ele sentiu uma onda de calor subir-lhe às faces. Partiu através da forte ventania que espalhava o seu queixume lamentoso pelas esquinas, sob um céu azul de aço, todo vívido de estrelas. Não lhes notou nem a cintilação gelada, nem o estalar das folhas crispadas dos plátanos, nem as mulheres noctâmbulas apressando-se dentro das pelicas ralas, nem as caras esquálidas dos vagabundos, aos cantos das ruas. O Inverno chegara. Mas Soames, inconsciente de tudo, apressava-se para chegar a casa. As suas mãos tremiam quando apanhou, na caixinha dourada atrás da porta, as cartas da noite. Nenhuma carta de Irene.

Entrou na sala de jantar. Um fogo ardia na lareira, a sua poltrona fora puxada para perto, as chinelas estavam prontas, as garrafas de whisky e brandy junto à caixa, cinzelada, que continha cigarros. Ele olhou aquilo tudo, depois apagou o gás e subiu. Havia fogo também no seu quarto de vestir, mas o quarto dela estava frio e escuro. Foi lá que Soames entrou.

Acendeu todas as velas e pôs-se a passear entre a cama e a porta. Não podia habituar-se à ideia de que ela realmente o deixara. E como se procurasse uma última mensagem ou a causa daquele drama, como se quisesse decifrar o mistério da sua vida conjugal, pôs-se a abrir todos os móveis, todas as gavetas.

Os vestidos de Irene estavam lá. Ele sempre gostara, sempre fizera questão de que a mulher andasse bem vestida. Ela só levara poucos vestidos, dois ou três, e, puxando uma após outra as gavetas cheias de roupa branca e de leves coisas de seda, Soames viu que tudo estava intacto.

Afinal de contas, talvez fosse apenas um capricho. Talvez ela tivesse ido apenas para a praia, mudar de ar! Ah, se fosse assim, se ela devesse voltar, nunca mais ele faria como fizera naquela fatal noite da antevéspera, jamais se arriscaria àquilo - embora não se tratasse senão dos seus deveres, do seu dever de esposa - e embora ela fosse propriedade sua - nunca mais se arriscaria àquilo. Decerto ela estava com a cabeça um pouco perturbada.

Inclinou-se para a gaveta onde Irene guardava as jóias, não estava fechada à chave e ele precisou apenas puxá-la para a abrir. A chave estava sobre o cofrezinho. Soames ficou surpreso, mas lembrou-se de que, decerto, o cofre estava vazio, e abriu-o.

Não tinha nada de vazio. Arrumados em pequenos compartimentos de veludo, estavam todos os presentes que ele lhe dera, até mesmo o relógio, e na caixinha do relógio encontrou um bilhete dobrado em triângulo, com um endereço escrito pela mão de Irene:

 

     Soames Forsyte,

Creio não levar nada que me tenha sido dado por você ou pelos seus.

 

Era tudo.

Soames olhou os colares, as pulseiras de brilhantes e pérolas, o pequeno relógio chato, com o seu grande diamante incrustado, rodeado de safiras, as correntes de ouro, os anéis, cada um no seu ninho de veludo. As lágrimas subiram-lhe irresistivelmente aos olhos e caíram sobre as jóias, no escrínio.

Nada do que ela pudesse fazer, nada do que fizera, poderia mostrar-lhe ao espírito, de um só golpe, todo o pleno significado da sua fuga. Nesse momento, talvez, ele compreendeu tudo que deveria compreender, compreendeu que ela lhe tinha horror - que lhe tinha horror há anos, que, sob todos os pontos de vista, eles dois eram como habitantes de mundos diferentes, que não haveria mais nenhuma esperança para ele, que jamais a houvera. Chegou até a compreender que ela sofrera, que merecia ser lamentada.

E nesse instante de emoção, traiu em si mesmo o Forsyte: esqueceu a sua própria pessoa, os seus interesses: tudo o que era e possuía. Tornou-se capaz de tudo. Subiu ao puro éter do não ser e do inútil.

Tais momentos passam depressa.

E como se as lágrimas o houvessem lavado da sua fraqueza, Soames ergueu-se, fechou o escrínio à chave e lentamente, quase trémulo, levou-o para o quarto do lado.

 

June havia esperado o seu dia, perscrutando, dia e noite, as colunas mais aborrecidas do jornal com uma assiduidade que espantara o avô, e quando a oportunidade se ofereceu apanhou-a na passagem, com toda a rapidez e a resolução tenaz do seu carácter. A manhã que, entre todas as da sua vida inteira, ela deveria recordar melhor, foi aquela em que viu nas listas dos processos do Times esta nota: «Câmara XIII, Juiz Bentham - caso Forsyte versus Bosinney».

Como um jogador que arrisca tudo num lance, June sentia-se pronta para arriscar tudo naquela carta. Não estava na sua natureza aceitar a derrota. Como, senão graças à intuição da mulher que ama, saberia ela que a perda daquele processo era certa para Bosinney? Não se poderia dizer a razão, mas estabeleceu todo o seu plano sobre essa suposição como sobre uma certeza.

Às onze horas, estava de vigia no hall na Câmara XIII, e lá ficou até que levantaram a sessão. A ausência de Bosinney não a inquietou. Sentira, por instinto, que ele não se defenderia. Lida a sentença, a moça desceu rapidamente para a rua, subiu a um carro e dirigiu-se para a casa de Bosinney.

A porta de entrada estava aberta, atravessou-a, passou diante dos escritórios dos três primeiros andares, sem chamar a atenção. Só quando chegou lá a cima começaram as suas dificuldades.

Não lhe respondiam ao toque de campainha, tinha de se decidir: ou descer e pedir licença à porteira, lá em baixo, para esperar no seu cubículo a chegada de Mr. Bosinney, ou então ficar pacientemente em frente da porta, com a esperança de que ninguém passasse por ali. Tomou essa última resolução.

Estava já há um quarto de hora nessa gélida espera, sentada no último degrau, quando lhe ocorreu de súbito a lembrança de que Bosinney tinha por hábito deixar a chave do apartamento sob o capacho de entrada. Olhou: lá estava a chave. A moça hesitou um pouco antes de se resolver a utilizá-la, mas enfim, abriu e entrou, deixando a porta aberta, a fim de que, se viesse alguém, compreendesse que ela fora ali para um negócio.

Já não era a mesma June, que cinco meses atrás tocara, trémula, àquela porta. Os meses de sofrimento recalcado tinham-na tornado menos sensitiva, e ela já tantas vezes imaginara antes aquela visita,, em todos os seus mais pequenos pormenores, que isso destruíra-lhe o terror. Não viera desta vez para se ir embora sem nada ter feito, e, se não conseguisse o que queria, ninguém no mundo poderia fazer nada por ela.

Estava ali como um animal inquieto pela cria, a sua frágil e enérgica pessoa não podia manter-se imóvel naquela sala, que percorria de uma parede à outra e da porta à janela, mexendo aqui e ali num objecto. Tudo estava coberto de poeira, o quarto não devia ter sido arrumado já há semanas, e june, pronta a apanhar tudo o que pudesse alimentar a sua esperança, via naquela negligência um sinal de tal dificuldade financeira que obrigara o noivo a dispensar a mulher da limpeza.

Deu uma olhadela ao quarto de dormir. A cama estava arranjada à pressa, como por mão de homem. Prestando atenção ao menor rumor, entrou no quarto, examinou os armários: alguns colarinhos e algumas camisas, um par de sapatos sujos, o quarto estava despido de tudo, até de roupas.

Voltou sem ruído ao escritório, e foi então que percebeu a ausência de todos os pequenos objectos de estimação de Phil. O relógio de parede que herdara da mãe, o binóculo, habitualmente suspenso sobre o sofá, duas boas gravuras antigas do colégio de Harrow, onde o pai fizera os estudos, e enfim, pormenor que não era menos significativo, uma peça de cerâmica japonesa que ela própria lhe havia dado - tudo desaparecera, Mas, apesar da cólera que subia na sua alma ardente contra o mundo que o tratara assim, esses vazios pareciam-lhe um feliz augúrio para o êxito do seu plano.

Olhando para o lugar ocupado antes pela cerâmica japonesa, ela sentiu, com estranha certeza, que alguém a observava, voltando-se, viu Irene no umbral da porta aberta.

As duas mulheres olharam-se em silêncio durante um minuto, depois June avançou e estendeu a mão. Irene não correspondeu. June pôs então atrás das costas aquela mão que a outra recusara. Os seus olhos endureceram, de raiva. Esperou que Irene falasse, e, durante a espera, ela embebia-se - sabe Deus com que furor de ciúme, de suspeitas, de curiosidade - da imagem da amiga, do mínimo pormenor do seu rosto e do seu trajo.

Irene trazia uma grande capa de peles cinzenta e um chapéu de viagem que lhe deixava passar sobre a fronte uma onda de cabelos dourados. E na doce espessura da capa, o seu rosto parecia pequenino como o de uma criança,. Muito diferentes das de June, as suas faces não tinham cor, eram de uma brancura de marfim, como que possuídas pelo frio. Em torno das pálpebras, olheiras escuras. Trazia na mão um raminho de violetas.

Ela também olhava para June, sem um sorriso. E nos grandes olhos fixos sobre si a moça encontrava, apesar de um sobressalto de cólera, muito do antigo encanto. E afinal foi ela que falou primeiro:

- Que é que você veio fazer aqui?

- Mas sentiu a pergunta voltar-se contra si mesma e acrescentou: - Esse processo horroroso... vim dizer-lhe... que perdeu!

Irene não falava, os seus olhos não deixavam o rosto de June. A moça exclamou:

- Não fique aí assim,, como se fosse de pedra! Irene disse com um sorriso amargo:

- Sabe Deus se eu o queria ser! Mas June voltou-se:

- Cale-se! Não me diga nada! Não quero ouvir nada. Não quero ouvir nada. Não quero saber porque você veio, não o quero! - E, como uma alma penada, pôs-se a caminhar rapidamente através da sala. De súbito, disse: - Eu cheguei primeiro, nós duas não podemos ficar juntas aqui!

Um sorriso errou pelos lábios de Irene e extinguiu-se como uma chama que vacila. Ela não se movia. Foi então que June percebeu na doçura e na imobilidade da sua atitude qualquer coisa de desesperado e de resoluto, qualquer coisa que não se deixaria disfarçar, qualquer coisa de perigoso.

Arrancou o chapéu, e, levando as duas mãos à fronte, repeliu a massa acobreada dos cabelos.

- Você não tem nenhum direito de ficar aqui! - exclamou ela em tom de desafio.

Irene respondeu:

- Não tenho direito aqui nem em parte nenhuma.

- Que é que está a dizer?

- Deixei Soames. Você sempre me aconselhou a que o fizesse. June cobriu os ouvidos com as mãos.

- Basta! Não quero ouvir, não quero saber nada. Não se pode lutar contra você. Porque fica aí, sem se mexer? Porque não se vai embora?

Os lábios de Irene moveram-se, como se ella dissesse: «Para onde irei?»

June voltou-se para a janela, donde se via um mostrador de relógio na rua. Quase quatro horas. Ele podia chegar de um momento para o outro. Lançou um olhar para trás, por cima do ombro, o seu rosto estava convulsionado pela cólera.

Irene não se movera, mas as suas mãos enluvadas davam voltas inconscientes ao raminho de violetas.

Lágrimas de raiva e decepção correram pelas faces de June.

- Como pôde vir até aqui? Você foi uma amiga desleal para mim!

Irene riu ainda uma vez. June viu que tomara um caminho errado. Abandonou-o.

- Porque veio? - soluçou. - Arruinou a minha vida, e agora quer arruinar a dele.

A boca de Irene tremeu, os seus olhos encontraram os de June.

e aquele olhar era tão triste que a moça exclamou no meio dos soluços:

- Não, não! - Porém a cabeça de Irene baixou até tocar o peito. Depois ela voltou-se e saiu rapidamente, escondendo os lábios sob o ramo de violetas.

June correu à porta. Ouviu os passos que desciam e chamou:

- Volte, Irene, volte!

O rumor dos passos desapareceu.

Sufocada, com o coração dilacerado, a moça ficou no alto da escada. Porque partira Irene, deixando-a senhora do terreno? Que queria dizer aquilo? Seria que realmente ela lho devolvia? Ou então, seria... E a incerteza devorava-a. Bosinney não chegava...

Ás seis horas daquela mesma tarde, o velho Jolyon voltava da Wistaria Avenue, onde ia quase diariamente passar algumas horas, e perguntara se a neta já chegara. Ao saber que ela subira para o quarto, mandou-lhe perguntar se queria descer para vê-lo. Estava decidido a contar a June que se reconciliara com Jo. Doravante, o passado seria passado. Não queria mais viver só, ou pelo menos abandonado. Deixaria aquela grande casa e alugaria outra, no campo. Iriam viver lá todos juntos. E se isso não agradasse a June, ele dar-lhe-ia uma pensão e ela viveria como quisesse. Não significaria uma grande mudança para a moça, havia já muito tempo que a neta não lhe dava a menor demonstração de carinho.

Mas quando June desceu, ele viu-lhe um triste rosto extenuado, e nos olhos qualquer coisa de tenso, de desolado. Ela abraçou-o, e ficou na sua atitude habitual, sentada no braço da poltrona dele, e o que o avô lhe disse afinal foi bem fraco, sem nada da declaração grave, precisa, com uma ponta de queixa, que meditara com tanto cuidado. O seu coração sofria, como sofre o grande coração materno quando vê o filho magoado vir esconder-se sob a sua asa. As suas palavras hesitavam, como se ele pedisse desculpa por abandonar tão tarde o caminho da virtude e ceder, a despeito dos seus sólidos princípios, ao que a Natureza lhe reclamava.

Sentia-se nervoso, como se, comunicando as suas intenções, ele pudesse dar um mau exemplo à neta, e agora, que chegara à conclusão prática, a maneira de lhe dizer que, se o arranjo não lhe agradasse, ela poderia viver só - e pior para ela - era diabolicamente difícil de encontrar.

- E se chegar a sentir, querida, que não se dá bem com eles. bem, eu darei um jeito. Fará como quiser. Nós podemos alugar um apartamento em Londres, onde você se instale, e eu virei visitá-la a toda a hora. Mas as crianças - acrescentou o velho - são tão engraçadinhas!

E de súbito, no meio dessa exposição grave, um pouco cândida, de projectos novos, um clarão passou pelos olhos do avô: «Eis uma coisa que vai abalar os frágeis nervos de Timothy», pensou ele. «O precioso mais velho terá a sua palavra a dizer, ou então já não é o mesmo.»

June ainda não dissera nada. Instalada no braço da poltrona, tinha a cabeça acima do avô, e ele não podia ver-lhe o rosto. Mas de súbito o velho sentiu uma face quente contra a sua, e compreendeu que, pelo menos, não havia nada de alarmante no modo pelo qual ela recebia as notícias.

Começou a tomar coragem:

- Você vai gostar do seu pai, é um rapaz encantador. Nunca foi capaz de vencer na vida, mas é agradável conviver com ele. Você sabe, ele é um artista, e, etc.

E o velho Jolyon pensava na dúzia ou mais de aguarelas que conservava cuidadosamente debaixo de chave, no seu quarto. Agora, que o filho ia ter dinheiro, aquelas produções já não lhe pareciam tão medíocres.

- Quanto à sua... madrasta - continuou ele, pronunciando essa palavra com hesitação - é realmente uma mulher muito fina: espécie de Mrs. Gummidge, creio eu, e louca por Jo. E as crianças- repetiu o velho - e aquelas palavras passaram como uma música no meio de toda a justificação solene - são tão engraçadinhas!

Aquelas palavras - June ignorava-o - eram apenas a expressão renascente da mesma ternura pelos pequeninos, pelos moços, pelos fracos que, no passado, o tinha feito afastar-se do filho por amor da pequenina que ela era então, e que agora, com o desenrolar completo do ciclo, o afastava dela, por sua vez.

Porém o mutismo da moça começava a alarmar o avô, e ele perguntou, impaciente:

- E então? Que é que você me diz?

June deixou-se deslizar para o tapete e ela também começou a sua história. Pensava que tudo se arranjaria facilmente, não via a menor objecção e pouco ligava ao que os outros pensassem.

O velho Jolyon ergueu-se.

- Hem? Outros iriam falar? - Ele pensara que, depois de tantos anos...-Bem, tanto pior! - E entretanto não aprovava o modo pelo qual a neta lhe apresentava as coisas: ela devia ligar importância ao que os outros pensavam.

Mas calou-se. Os seus sentimentos eram muito complexos e muito incertos para se exprimirem em palavras. Sim, ela pouco ligava, e repetia-o. Só queria pedir uma coisa... E o avô, sentindo contra o joelho a face da rapariga, compreendeu que não se tratava de uma bagatela. «Seria que ele não concordava, para a satisfazer, em comprar aquela linda casa de Soames, em Robin Hill? Estava pronta, era uma beleza, e ninguém se dispunha a morar lá. Ficariam todos tão felizes, no campo!»

O velho Jolyon apurou o ouvido.

- Então o «Proprietário» não iria morar na casa que mandara

construir?

Ele já não aludia a Soames senão por esse epíteto.

Não, June sabia que não.

Como o sabia ela?

June não o podia dizer, mas sabia, tinha praticamente a certeza disso. Era absolutamente improvável, tudo estava mudado. Ela ouvia ainda as palavras de Irene a zumbir-lhe na cabeça: «Deixei Soames, e para onde poderia ir?» Mas ficou silenciosa a

esse respeito.

Se ao menos o avô consentisse em comprar a casa, e regularizar assim aquele miserável caso de reembolso, com o qual nunca se deveria ter atormentado Phil... Seria o melhor a fazer pelo bem de todos, e tudo se poderia arranjar ainda...

E June, encostando os lábios à testa do velho, beijou-o.

Mas o velho Jolyon afastou-se.

Tinha no rosto aquela expressão judiciária que lhe aparecia quando examinava um negócio. Perguntou à neta:

- Que é que você quer dizer? Há alguma coisa por trás de tudo isso. Você viu Bosinney?

- Não, mas estive em casa dele.

- Em casa dele? Com quem? June não afastou o olhar:

- Fui só. Ele perdeu o processo. Não quero saber se fiz bem ou mal, não me importo. Quero ajudá-lo e hei-de ajudá-lo.

O velho Jolyon perguntou ainda:

- Você viu-o? - Através dos olhos da moça, o seu olhar parecia perfurá-la até à alma.

June disse ainda, uma vez:

- Não, ele não estava lá, eu esperei, porém ele não veio. Na sua poltrona, o velho Jolyon teve um gesto de alívio. Ela

erguera-se e ele olhava-a bem de frente, tão frágil, tão jovem,, mas tão precisa e tão resoluta que, apesar de perturbado e contrariado como estava, toda a severidade do seu rosto não vencia a firmeza daquele olhar de criança.

Apoderou-se do avô o sentimento de que era agora o menos forte, que as rédeas lhe fugiam das mãos, que estava velho e cansado.

- Ah - disse ele por fim. - Você ainda se dá mal com isso. Só vê aquilo que quer. - E, tomado de um dos seus singulares acessos de filosofia, acrescentou, - Mas nasceu assim, e assim ficará até à morte!

E ele, que durante a vida inteira, com os homens de negócios, com os comités, com os Forsyte de toda a espécie, e mesmo com aqueles que não eram Forsyte, só vira sempre o que queria, lançou um olhar melancólico sobre a sua indomável neta. Sentia nela a qualidade que inconscientemente admirava por sobre tudo.

- Será que você sabe... as histórias que andam a contar? - perguntou suavemente.

June ficou rubra.

- Sim... não! Sei e não sei. São-me indiferentes. E bateu com o pé no chão.

- Creio - disse o velho Jolyon, baixando os olhos -, creio que mesmo morto você o quereria. - Houve um grande silêncio antes que ele falasse de novo: - Quanto a comprar aquela casa, você não sabe no que está a falar.

Sim, June sabia que ele a teria, se o quisesse. Bastava pagar o que custara.

- O que ela custou! Você não entende disso, e, ademais, eu não quero ir procurar Soames. Não quero negócios com aquele rapaz.

- Mas não é preciso, basta o senhor ir a casa do tio James. Se o senhor não quer comprar a casa, pelo menos assuma a responsabilidade da quantia que deve ser reembolsada. Sei que ele está numa miséria horrível, vi com os meus olhos. O senhor pode descontar tudo isso do meu dinheiro.

Um clarão divertido passou nos olhos do velho Jolyon :

- Descontar no seu dinheiro! Que bom remédio! E diga, por favor, que fará você sem o seu dinheiro?

Porém já, lá no íntimo, começava a trabalhar-lhe no espírito a ideia de arrebatar a casa a Soames e a James. No salão de Timothy, ouvira falar muito da casa de Robin Hill. Faziam-se elogios muito dúbios: «Muito metida a artística, mas, afinal de contas, uma bela casa.» E tomar ao «Proprietário» o que ele fazia tanto empenho em possuir seria uma suprema vitória sobre James, a prova tangível de que iria fazer de Jo um homem abastado, um proprietário também, devolver-lhe a sua legítima situação na vida e mantê-lo nela. Justiça enfim contra todos aqueles que se tinham comprazido em encarar o seu filho como um desgraçado sem casta e sem vintém!

Veria, veria. A coisa era talvez impossível. Não estava disposto a pagar um preço absurdo. Se fosse viável, bem... talvez!

E entretanto, no fundo de si mesmo, o velho Jolyon sabia que não o recusaria.

Mas evitava comprometer-se. Reflectiria, segundo disse a June.

 

A PARTIDA DE BOSINNEY.

O velho Jolyon não era dado a decisões precipitadas. Ficaria bastante tempo a ruminar a compra de Robin Hill, se não houvesse lido no rosto de June que ele não teria repouso antes de se pôr a agir.

No dia seguinte, durante o pequeno-almoço, ela perguntou-lhe para que horas queria o carro.

- O carro? - disse o velho com ar inocente. - Mas não vou sair.

June respondeu:

- Se o senhor não sair cedo, não encontra o tio James antes de ir para a City.

- James? Que é que tem o tio James?

- A casa - disse ela com uma voz que não lhe permitia mais fingir ignorância.

- Ainda não me resolvi - disse o velho.

- Oh, é preciso, avô! Pense em mim! O avô ralhou:

- Pensar em você! Mas não deixo de pensar em você. Você é que não pensa em si! Não, não sabe em que está a atirar-se. Enfim, mande preparar o carro para as dez horas.

Às dez e um quarto ele estava em Park Lane, depôs o guarda-chuva no hall, porém ficou com o chapéu e o sobretudo, e, dizendo a Warmson que desejava ver Mr. James, entrou sem se fazer anunciar no gabinete de trabalho e sentou-se.

James ainda estava na sala de jantar. Conversava com Soames, que chegara cedinho. Sabendo que o irmão estava lá, murmurou com certo nervosismo:

- Ora bolas, que será que ele quer? Ergueu-se.

- Escute - disse ele a Soames-, procure não se apressar. A primeira coisa a fazer é saber onde ela está. Se eu fosse você, procuraria os Stainer, são os melhores, e, se não a encontrarem, ninguém mais o conseguirá. - E de súbito, presa de um estranho sentimento de piedade, murmurou: - Pobrezinha, que é que lhe terá passado pela cabeça? - E deixou a sala, assoando-se fortemente.

O velho Jolyon não se levantou ao avistar o irmão, mas estendeu-lhe a mão e eles trocaram um desses frios «bom dia» à moda Forsyte.

James ocupou uma cadeira próxima à mesa, e disse, apoiando a cabeça na mão:

- Bem, como vai? Não o temos visto muito ultimamente. O velho Jolyon não respondeu à observação.

- Como vai Emily? - perguntou ele. E, sem esperar resposta, continuou: - Vim aqui por causa do negócio do jovem Bosinney. Disseram-me que aquela casa que ele construiu é um elefante branco.

- Não sei se é um elefante branco - disse James. - Sei que ele perdeu o processo, o que, na minha opinião, representa a sua falência.

O velho Jolyon apanhou a oportunidade que lhe ofereciam:

- Não me admirarei se ele falir, e o «Proprietário» é que irá pagar as custas. Veja então o que pensei: «Se Soames não vai instalar-se em Robin Hill...» - E, vendo a surpresa, a suspeita, no olhar de James, prosseguiu rapidamente: - Não estou a perguntar nada, suponho apenas que Irene se recusa a ir morar lá, aliás pouco me importo! Mas penso em instalar-me no campo, não muito longe de Londres, e se a casa me agradar não digo que não pensarei nela. É questão de preço!»

James escutou essa declaração com uma singular mistura de inquietação, de alívio, de dúvida, fundindo-se tudo no receio de qualquer coisa escondida - tudo isso misturado entretanto à velha confiança que sempre tivera na boa fé e no julgamento do irmão mais velho. Sentia-se inquieto pelo que o velho Jolyon poderia ter sabido, e do modo como o soubera, sentia-se aliviado, por outro lado, reflectindo em que, se tudo estivesse rompido entre June e Bosinney, seria pouco provável que o avô procurasse meios de auxiliar o rapaz. Em suma, estava perplexo, e, como não o queria mostrar nem comprometer-se, disse:

- É verdade que você mudou o seu testamento a favor do seu filho?

Ninguém lhe dissera isso, mas, tendo encontrado o velho Jolyon com o filho e os netos, e sabendo, por outro lado, que ele retirara o testamento do escritório, James simplesmente aproximara os factos.

O golpe acertou.

- Quem lhe disse isso? - perguntou o velho Jolyon.

- Já não sei bem - respondeu James -, não guardo o nome de ninguém. Lembro-me apenas de que alguém me falou. Soames gastou muito com aquela casa, não é provável que a ceda com prejuízo.

- Bem - disse o velho Jolyon -, se ele pensa que eu vou pagar-lhe um preço absurdo, engana-se. Eu não tenho o dinheiro que seu filho parece ter. Ele que tente desembaraçar-se da casa em leilão e verá o que obtém. Segundo me disseram, não é uma casa que convenha a toda a gente.

James, que, secretamente, também era dessa opinião, replicou:

- É casa para um gentleman. Mas Soames está aí, se você quer falar com ele.

- Não - disse o velho Jolyon -, não me interesso pelo negócio, e custarei a interessar-me, se é assim que me respondem.

James intimidou-se. Quando se discutiam quantias de transacções comerciais, sentia-se no seu elemento, tendo diante de si factos, e não homens. Mas aquelas negociações preliminares tornavam-no nervoso, não sabia até onde poderia ir.

- Bem - disse ele. - Eu não estou a par de nada.

Soames nunca me diz nada.. Creio que ele examinará o negócio, tudo será questão de preço.

- Oh - disse o velho Jolyon -, não estou a pedir-lhe nenhum favor!

E pôs o chapéu na cabeça, com um gesto de cólera A porta abriu-se e Soames entrou.

- Está aí um policeman a perguntar pelo tio Jolyon - disse ele com um meio sorriso.

O velho Jolyon lançou-lhe um olhar irritado. James disse:

- Um polícia? Creio que você sabe do que se trata? - perguntou, olhando para Jolyon com um ar suspeitoso. - Acho que será melhor você falar-lhe.

Em pé, no hall, estava um inspector de polícia, que detinha os seus olhos claros, de pálpebras pesadas, nos belos móveis antigos que James comprara no famoso leilão Mavrojana, em Portland Square.

- Entre, meu irmão está aqui - disse James. O inspector levou respeitosamente a mão à viseira do capacete e penetrou no escritório. James teve uma sensação estranha ao vê-lo entrar. - Bem - disse ele a Soames -, creio que devemos esperar para saber o que ele quer. O seu tio veio aqui para falar a respeito da sua casa.

Foi com Soames para a sala de jantar, mas não podia ficar quieto.

- Que pode ele querer? - murmurava ainda.

- Quem? - respondeu Soames. - O inspector? Mandaram-no aqui de Stanhope Gate. foi tudo o que eu pude saber. Foi provavelmente o «não conformista» do tio Jolyon que roubou alguma coisa.

Apesar da calma que aparentava, também se sentia pouco à vontade.

Ao cabo de dez minutos o velho Jolyon entrou. Aproximou-se da mesa, e ficou sem dizer uma palavra, repuxando os longos bigodes brancos. James olhava-o e a sua boca abriu-se: nunca vira o irmão com aquele ar.

O velho Jolyon ergueu a mão e disse lentamente:

- O jovem Bosinney foi esmagado por um carro, no nevoeiro.

Morreu. - E em pé, dominando o irmão e o sobrinho, fixando-os com os seus olhos profundos, acrescentou: - Fala-se em suicídio. O queixo de James caiu.

- Um suicídio! Que razão teria ele para isso? O velho Jolyon replicou num tom duro:

- Deus o sabe, se você e o seu filho não o sabem! Mas James não replicou nada.

Os homens de idade, mesmo que sejam Forsyte, conhecem na vida duras experiências. O transeunte que vê aqueles velhos, protegidos pela vestimenta de tradição, de riqueza, de conforto que os cerca, nunca pensaria que eles encontraram sombras tenebrosas no seu caminho. Não existe ninguém, nem mesmo um Sir Walter Bentham, a que a ideia do suicídio não tenha visitado um dia. Ela ficou à porta da alma, prestes a entrar, afastada por alguma realidade fortuita, qualquer vago receio ou triste esperança. Para um Forsyte, é difícil a renúncia suprema a todas as formas de propriedade. Oh, sim, difícil! Só se resolvem a isso raramente, talvez nunca. E entretanto, em certas horas, consideraram-na de perto.

Assim, o próprio James, outrora... Então, na confusão dos seus pensamentos, ele exclamou:

- Ah, mas eu vi isso no jornal de ontem: «Esmagado no meio do nevoeiro.» Não sabiam o nome. - Movia a cabeça, agitado, olhando ora um, ora outro, mas instintivamente não deixava de repelir a hipótese de suicídio. Não ousava encará-la de frente. Era tão contrária aos seus interesses, aos interesses do filho, aos interesses de todos os Forsyte! Lutava por afastá-la, e como inconscientemente a sua natureza negava crédito a tudo que não podia admitir com inteira segurança, ele acabou por dominar esse medo. Fora um acidente, não poderia ser senão um acidente.

O velho Jolyon interrompeu essa meditação:

- A morte foi instantânea. O corpo passou ontem o dia inteiro no hospital. Não trazia nenhuma prova de identidade. Eu vou lá, agora. Você e o seu filho farão bem se me acompanharem.

Nenhum dos dois se opôs a essa injunção. e ele saiu, passando à frente.

O tempo, naquele dia, estava puro, calmo e luminoso, e o velho Jolyon, entre Stanhope Gate e Park Lane, fizera arriar a

capota do carro. Sentado sobre o assento estofado, acabando o charuto, ele apreciara a secura tónica do ar, os movimentos de veículos e da massa, aquela vivacidade singular e quase parisiense que o primeiro dia bonito desperta na grande cidade, depois de uma série de chuvas e nevoeiros.

Sentia-se tão feliz, mais feliz do que há muitos meses! A sua confissão a June libertara-o de um peso, via-se no futuro vivendo com o filho, ou melhor, com os netos (tinha marcado um encontro com Jo no Hotch Potch, para resolver os pormenores do projecto). Enfim, sentira uma excitação agradável à ideia do encontro- um encontro vitorioso com James e o Proprietário a respeito da casa.

Agora mandou subir a capota. Não estava mais disposto a ver a alegria das coisas. E, além disso, não era conveniente que se vissem três Forsyte em companhia de um inspector de polícia.

Durante o trajecto, o inspector voltou ao acidente. «O nevoeiro não estava assim tão espesso no local. O cocheiro disse que o cavalheiro deve ter tido muito tempo para ver o carro que vinha à frente dele, e pareceu que se atirara para debaixo. Devia estar apertado de dinheiro: encontrámos na casa dele várias cautelas de penhor, e ultrapassou o crédito que tinha no banco, além disso, há um processo do qual os jornais de hoje falam...)

E os seus olhos, de um azul frio, iam de um a um dos três Forsyte sentados dentro do carro.

O velho Jolyon, que, do seu canto, observava o irmão e o sobrinho, viu o rosto do primeiro alterar-se, obscurecer-se ainda mais a sua fisionomia inquieta e ruminante. Com efeito, as palavras do inspector tinham revivido em James todos os receios e todas as dúvidas. «Apertado... cautelas... ultrapassado o crédito...» Essas palavras, que nunca tinham representado para ele senão pesadelos longínquos, emprestavam uma realidade perturbadora àquela hipótese de suicídio que era absolutamente preciso afastar.

Procurou o olhar do filho, mas, taciturno, impassível, os olhos na defensiva, Soames não lhe respondeu. E o velho Jolyon, que observava tudo, e adivinhava aquela liga de defesa mútua estabelecida entre pai e filho, foi tomado pelo desejo imperioso de ter ao seu lado o seu próprio filho. Era como se, caminhando ao

encontro do morto, ele marchasse para uma batalha onde não devesse estar só contra aqueles dois.

E ao mesmo tempo zumbia-lhe nos ouvidos o cuidado de que o nome de June não fosse atingido... James tinha o seu filho atrás de si, porque não mandaria ele chamar Jo?

Tirando uma carteira, escreveu rapidamente: «Venha imediatamente, mando-lhe o carro.)- Diante da porta do hospital, entregou o cartão ao cocheiro, dizendo-lhe que fosse depressa ao Hotch Potch, perguntasse por Mr. Jolyon Forsyte e trouxesse-o imediatamente. Se ele não estivesse lá, esperasse com o carro.

Subiu lentamente os degraus, atrás do irmão e do sobrinho, apoiando-se ao guarda-chuva. Parou um momento para tomar fôlego. O inspector disse:

- O necrotério é aqui, cavalheiros. Mas descansem.

Na sala nua, de paredes brancas, vazia de tudo, salvo de um raio de sol que se arrastava sobre o chão sem poeira, jazia uma forma sob um lençol. Com a sua mão larga e firme, o inspector segurou a ponta do pano e levantou-o. Os três Forsyte contemplaram o rosto sem olhar, erguido para eles, e que parecia desafiá-los. Em cada um deles as emoções secretas, o medo, a piedade de que a sua natureza era capaz, ondeavam como ondeiam essas vagas da vida que as quatro paredes brancas afastavam para sempre de Bosinney. Em cada um deles a tendência nata, a mola singular, essencial, que determina imperceptivelmente a acção, de modo absolutamente diverso de qualquer outro ser, governava uma atitude própria de pensamento. Cada um deles, longe dos outros e entretanto misteriosamente próximo, cada um deles via-se só com o morto, mudo, de olhos baixos.

O inspector disse docemente:

- O senhor identifica o gentleman?

O velho Jolyon ergueu a cabeça e fez sinal que sim. Olhou o irmão à sua frente, o longo corpo magro inclinado sobre o morto, o rosto vermelho, sombrio, de olhar cinzento e tenso:

olhou Soames, lívido, imóvel junto do pai. E toda a hostilidade que se acumulara nele contra aqueles dois entes desapareceu de súbito como fumo diante da grande presença pálida da morte.

Donde vem ela? Como é que vem a morte?

Reviravolta brusca de tudo que era antes, partida cega para o caminho que leva aonde? Trevas onde a flama desaparece. Esmagamento brutal que é mister que todos os homens suportem de olhos claros e bravos até ao fim, eles que entretanto são tão pequenos, tão insignificantes, uns insectos! E sobre o rosto do velho Jolyon passou um movimento de ironia, porque Soames, murmurando duas palavras ao inspector, desaparecia num passo furtivo.

De súbito, James ergueu os olhos. Tinha uma expressão estranha, uma vaga súplica no olhar suspeitoso e perturbado. «Sei que não tenho força para lutar contra você», parecia dizer. Procurando o lenço, enxugou a testa, inclinou-se, doloroso e magro, sobre o morto, depois voltou-se também e saiu à pressa.

O velho Jolyon ficou só, imóvel como o morto, e com os olhos fixos no morto. Quem poderia dizer em que ele pensava? Em si mesmo, no tempo em que os seus cabelos eram escuros como os desse rapaz que jazia inerte à sua frente? Em si mesmo quando iniciava a sua batalha, essa longa batalha que ele amara, a batalha já finda para aquele rapaz, quase antes de a ter começado? Nas esperanças despedaçadas da sua neta, ou naquela outra mulher? Na estranheza, na tristeza disso tudo? E na ironia incompreensível, amarga, daquele fim? Justiça? Não há justiça para os homens! Eles estão sempre nas trevas. Ou talvez, na sua filosofia, pensava: «O melhor é sair desta vida, o melhor é acabar assim, como este pobre rapaz...»

Alguém tocou-lhe no braço.

Uma lágrima subiu e molhou-lhe os cílios.

- Bem - disse ele -, não estou a fazer nada aqui. É melhor ir-me embora. Você virá encontrar-se comigo o mais depressa possível, Jo.

Foi a vez de Jolyon filho ficar junto ao morto. Em torno daquele corpo inerte, parecia-lhe ver todos os Forsyte dispersos, derrubados. O golpe fora muito brusco.

As forças que estão em jogo no fundo de todo o drama, as forças que vencem toda a resistência e que tendem, por tantas direcções contrárias, ao mesmo fim irónico, aquelas forças tinham-se encontrado e mesclado num ribombo de trovão, haviam fulminado a vítima e precipitado ao chão todos os que a cercavam.

Pelo menos, era assim que Jolyon filho os via, abatidos em torno do corpo de Bosinney.

Pediu ao inspector que lhe contasse como sucedera o acidente, e o policeman, que não tinha todos os dias uma sorte como aquela, voltou complacen temente a todos os factos conhecidos.

- Veja, meu caro senhor, por trás de tudo isso há alguma coisa. Eu não creio em suicídio, nem num acidente puro e simples. Creio antes que era um homem atormentado por qualquer ideia e que já não sabia o que se passava em redor de si. Talvez estes objectos signifiquem qualquer coisa para o senhor?

Tirou do bolso um pequeno pacote e pô-lo sobre a mesa. Abrindo-o cuidadosamente, descobriu um lenço de senhora onde estava enfiado um alfinete de ouro veneziano, cuja pedra caíra. Jolyon filho sentiu um cheiro de violetas secas.

- Encontrámos isto no bolso interior do casaco do rapaz - disse o inspector. - Veja, o monograma foi cortado.

Jolyon filho ficou um momento sem responder,

- Receio não poder auxiliá-lo - disse ele. Mas teve a visão clara do rosto que vira iluminar-se, tão sensível e tão feliz, à aproximação de Bosinney. Pensava nela mais do que na sua própria filha, mais do que em ninguém... nela, no seu olhar escuro e meigo, naquele rosto delicado e passivo. Via-a esperando o morto, esperando-o talvez naquele mesmo instante, calma e paciente, numa álea ensolarada.

Saiu tristemente do hospital, em direcção à casa do pai, dizendo a si mesmo que aquela morte iria romper a família dos Forsyte. Na verdade, o golpe atingira até ao íntimo da família. Aos olhos de todos, eles poderiam parecer prósperos como antes, mostrando a toda a Londres lindas fachadas, mas o tronco fora atingido mortalmente, abatido pelo mesmo golpe que abatera Bosinney.

E no seu lugar outras vidas jovens subiriam, encarnando por sua vez o senso hereditário da propriedade.

«Boa floresta dos Forsyte», pensava Jolyon filho, «que nos fornece o próprio arcabouço da nação.»

Quanto à causa da morte, a família repeliria energicamente a versão do suicídio, tão comprometedora. Todos se agarrariam à versão do acidente: um golpe do destino. No fundo dos seus corações, enxergariam mesmo uma intervenção da Providência, um acto de justiça. Bosinney não pusera em perigo as suas propriedades mais preciosas: bolsa e lar? Falariam naquele «desgraçado acidente» sucedido ao jovem Bosinney. Talvez também não falassem. Era melhor o silêncio!

Ele próprio não dava muita importância à versão do cocheiro do ónibus. Um homem tão loucamente apaixonado não se mataria por uma questão de dinheiro, e Bosinney não era homem para levar ao trágico uma crise de negócios. Jolyon repelia também, pois, a ideia do suicídio, recordava-se muito bem do rosto do morto! Desaparecido na flor do seu Verão... E o que mais penalizava Jolyon filho era que um acidente esmagasse assim Bosinney, em pleno impulso da sua paixão.

Evocava também a casa de Soames, tal como ela estava agora e para sempre. O relâmpago luzira, descobrindo com a sua luz implacável a caveira vazia e nua e os ossos que a carne já não escondia...

Na sala de jantar de Stanhope Gate, o velho Jolyon estava só quando o filho entrou. Estava muito abatido na sua poltrona, com os olhos girando pelas paredes, enfeitadas de naturezas-mortas e pela obra-prima da colecção: Barcos de Pesca Holandeses ao pôr-do-Sol. Os seus olhos pareciam deslizar ao longo de toda a sua vida, revendo-lhe as esperanças, os lucros, os êxitos.

- Ah, Jo - disse ele -, é você? Contei à pobrezinha da June. Mas ainda há outra coisa. Você quereria ir à casa de Soames? Ela desgraçou-se com as próprias mãos, creio eu, mas, mesmo assim, não posso suportar o pensamento de que a pobre moça está fechada lá, sozinha! - E, erguendo a mão magra e cheia de veias, apertou o punho.

 

A VOLTA DE IRENE.

Depois de deixar o pai e o tio no necrotério do hospital, Soames pôs-se a caminhar sem rumo através das ruas. Aquele trágico acontecimento, a morte de Bosinney, mudava o aspecto das coisas. Já passara o momento em que a perda de um minuto poderia ser fatal, e ele estava resolvido a não revelar a ninguém a fuga da mulher antes do fim do inquérito sobre a morte do arquitecto.

Naquela manhã, levantara-se cedinho, antes da chegada do carteiro, ele próprio recebera as cartas na caixa da correspondência e, embora nada houvesse recebido de Irene, arranjara as coisas de modo a poder dizer a Bilson que Mrs. Forsyte tinha ido passar uns dias na praia, e que ele próprio iria buscá-la, sábado ou segunda-feira.

Isso dar-lhe-ia tempo para respirar e revirar pedra sobre pedra, se fosse preciso, até encontrar Irene.

Mas agora, que a morte de Bosinney tornava inútil qualquer providência - aquela morte enigmática, cuja evocação lhe punha um ferro em brasa sobre o coração, ao mesmo tempo que o aliviava de um grande peso -, Soames não sabia o que fazer do seu dia, e caminhava ao acaso, olhando para cada cara de transeunte, devorado por toda a espécie de inquietações.

E, vagueando assim, pensava naquele que, certa noite, ele adivinhara errando, rondando, aquele que nunca mais viria assombrar-lhe a casa.

À tarde, leu os títulos dos jornais anunciando que se havia identificado o homem encontrado morto. Comprou os jornais para ver o que diziam. Se pudesse, impedi-los-ia de falar. Foi até à City e ficou muito tempo fechado com Boulter.

Voltando para casa, encontrou, em frente à casa Jobson's, George Forsyte, que lhe estendeu um jornal, dizendo:

- Olhe, você soube o que aconteceu ao Pirata? Soames respondeu numa voz que não descobria nada:

- Sim.

George fitou-o de frente, nunca gostara de Soames, e agora acusava-o da morte de Bosinney: fora ele que o reduzira ao desespero, fora o seu acto de «proprietário» que, naquela fatal tarde de nevoeiro, lançara o outro, enlouquecido, pelas ruas de Londres.

«Pobre diabo», pensava George. «Estava tão furioso de ciúme, de desejo de vingança, que não se apercebeu da aproximação do ónibus naquele fog infernal. Soames deu-lhe uma martelada na cabeça.» E esse julgamento lia-se claramente nos olhos de George.

- Fala-se aqui de um suicídio por questões de dinheiro - disse ele -, mas isso não convence ninguém.

- Apenas um acidente - murmurou Soames entre dentes, George fechou o punho sobre o jornal e enfiou-o no bolso.

Não pôde deixar de soltar uma derradeira farpa:

- Tudo florescente em casa? E quando teremos um pequeno Soames para herdeiro?

Com as faces brancas como os degraus de mármore da casa Jobson's, o lábio arregaçado como se fosse morder, Soames passou bruscamente diante do primo e desapareceu.

Ao chegar a casa, abriu a porta com a sua chave, e a primeira coisa que viu no hall iluminado foi o guarda-chuva de castão de ouro de Irene, deposto sobre a arca.

Atirando a pelica, dirigiu-se à pressa para a sala.

Os estores já estavam descidos para a noite. Um lindo fogo de lenha de cedro ardia na lareira, e, à luz das chamas, ele viu Irene sentada no canto do sofá, no seu lugar habitual. Fechou a porta sem rumor e dirigiu-se para ela. A moça não se moveu, parecia não o ver.

- Você voltou? Porque está sentada na escuridão?

Viu-lhe então o rosto, tão pálido e imóvel que se diria que o sangue já não lhe corria nas veias, os olhos pareciam dilatados, como as grandes pupilas de uma ave nocturna apanhada de surpresa. Envolta na capa de pele cinzenta, encolhida contra as almofadas do divã, ela estava estranha, e parecia na verdade um pobre mocho cativo, cuja plumagem macia se arrepelava contra as grades da gaiola. Já não tinha o seu porte leve e erecto, dir-se-ia que uma cruel fadiga física a dobrara, e que já não tinha razões para ser esbelta e firme, nem bonita.

- Então voltou - repetiu ele.

Ela não teve um olhar, uma palavra. Os reflexos das chamas brincavam-lhe sobre o rosto imóvel.

De súbito Irene tentou erguer-se, porém o marido impediu-a. Foi então que ele compreendeu. Ela voltara como um animal ferido de morte, sem saber mais onde ir, sem saber mais o que fazer. Bastava vê-la ali, enrolada e encolhida dentro da capa, para o compreender. Ele soube então, com certeza plena, que Bosinney fora seu amante, compreendeu que ela soubera da morte dele, que, como ele próprio, talvez houvesse comprado um jornal numa esquina ventosa de rua, e lido... De forma que voltara livremente para a jaula onde enlanguescera à espera de libertação. Compreendeu a espantosa significação daquela volta, tinha vontade de gritar: «Tire da minha casa esse corpo que eu odeio e que adoro! Vá-se embora, com o seu rosto branco que faz sofrer, tão cruel e tão meigo, antes que eu o esmague. Tire-se de diante dos meus olhos, faça que eu não volte a vê- la...»

E como essas palavras eram pronunciadas interiormente, na sua alma, Soames supôs vê-la erguer-se e afastar-se, como uma mulher que tenta fugir de um sonho terrível, erguer-se e ir-se embora, por entre a noite e o frio, sem reparar nele, sem mesmo saber que ele estava ali.

Então Soames gritou, contradizendo o que não chegara a dizer: «Não, fique!» E, voltando-se, sentou-se na sua poltrona, do outro lado da lareira.

Ele olhava-a ainda, dobrada sobre si mesma como um pássaro que morre de um tiro, e cujo peito a gente vê arquejar, à medida que o ar lhe foge: os pobres olhos fitam-nos, a nós que lhe demos o tiro, com aquele olhar lento e doce que não enxerga mais e que diz adeus a tudo que é bom: o sol, o céu e o amor.

E assim ficaram Irene e Soames, ao clarão do fogo, em silêncio, sentados ambos aos lados da lareira.

O fumo das achas de cedro, de que Soames gostava tanto, parecia agora sufocá-lo. E como se não pudesse suportá-lo mais, saiu e escancarou a porta da casa para respirar o ar frio da rua, depois, sem chapéu nem sobretudo, saiu para a praça.

Ao longo do jardim, um gato magro, roçando-se pela grade, aproximou-se dele. Soames pensou: «Sofrer, quando deixarei eu de sofrer?»

Do outro lado da rua, na entrada de uma casa, um homem que ele conhecia, chamado Rutter, limpava os pés ao capacho de arame da porta, num movimento que parecia dizer: «Sou o dono daqui.» E Soames continuou a andar. Ao longe, no ar Límpido, soavam os sinos da igreja onde ele e Irene se tinham casado. Ensaiavam para os toques de Natal e os seus carrilhões cantavam por sobre os rumores da rua. Ele sentiu necessidade de algum álcool, para o mergulhar na indiferença, ou excitá-lo até ao furor. Se ao menos pudesse sair violentamente de si mesmo, quebrar a rede, onde, pela primeira vez na vida, se sentia preso! Se ao menos pudesse ceder a este pensamento: «Divorcia-te... expulsa-a... ela esqueceu-te... esquece-a.» Se ao menos pudesse ceder a este outro pensamento: «Deixa-a partir... ela já sofreu bastante!» Se ao menos pudesse abandonar-se a este desejo: «Faz dela tua escrava! Está em teu poder!» Se ao menos pudesse obedecer à intuição súbita: «Que é que isso adianta?» Esquecer por um minuto, esquecer que tal acto teria importância, esquecer que, fizesse o que fizesse, era-lhe preciso sacrificar qualquer coisa! Se ao menos pudesse seguir os seus impulsos!

Impossível esquecer nada, entregar-se a um pensamento, a uma visão, a um desejo - tudo era por de mais.trágico, por de mais imediato em torno dele: uma jaula impossível de arrombar.

No outro lado da praça, os garotos apregoavam os jornais da noite, os seus gritos de demónios ressoavam, misturados ao som dos sinos das igrejas. Soames tapou os ouvidos. Um pensamento atravessou-lhe o espírito como um relâmpago: bastaria um acaso: se ele, e não Bosinney, estivesse estendido, morto, naquele momento, ela então, em vez de estar dobrada sobre si mesma como um passarinho agonizante, ela, então...

Sentiu uma coisa macia de encontro às pernas. Era o gato que se roçava nele. Um soluço subiu então à garganta de Soames, sacudiu-o da cabeça aos pés. E depois tudo recaiu no silêncio, no escuro. As casas pareciam olhá-lo, em cada uma delas havia um casal, com a sua história secreta de felicidade ou desgraça.

De súbito, deparou-se-lhe a sua própria porta aberta, e no rectângulo iluminado da entrada viu o vullto negro de um homem que lhe voltava as costas. Qualquer coisa lhe apertou o coração e, sem ruído, aproximou-se, viu a sua pelica atirada sobre a poltrona de carvalho esculpido, os tapetes persas, as taças de prata, as filas de porcelanas antigas arrumadas ao longo das paredes, aquele desconhecido que estava ali, de pé. Interpelou-o:

- Que deseja, cavalheiro?

O visitante voltou-se: era Jolyon filho.

- A porta estava aberta - disse ele. - Eu poderia falar um momento com a sua senhora? Tenho um recado para ela.

Soames observou-o com um estranho olhar oblíquo.

- Minha mulher não pode ver ninguém - disse em tom baixo, mas decisivo.

- Só a prenderei um minuto - murmurou Jolyon filho. Soames, bruscamente, deu um passo à frente e barrou-lhe a

entrada.

- Ela não pode ver ninguém-repetiu. Viu o olhar de Jolyon filho fixar-se atrás de si, no hall, voltou-se. À entrada da sala, Irene estava em pé, de olhos brilhantes, ávidos, a boca entreaberta, as mãos estendidas. Vendo os dois homens, o estranho clarão do seu rosto apagou-se, as suas duas mãos caíram, e ela ficou ali, como uma estátua.

Soames girou sobre os calcanhares, os seus olhos encontraram os da visita, e ante o olhar que surpreendeu neles soltou um rosnido. Ergueu entretanto os lábios num fantasma de sorriso.

- Estou em minha casa, e não preciso de ninguém para dirigir os meus negócios. Já lhe disse e repito que não estamos em casa para ninguém. - E bateu a porta no rosto de Jolyon filho.

 

HISTÓRIA DE VERÃO(1)

 

«And Summer's lease hath all too short a date.»

     Shakespeare.

 

Para ANDRÉ CHEVRiLOS.

 

*1. O título do original inglês deste episódio de forsyte Saga é «Indian Summer of a Forsyte». «Indian Summer» é o veranico de Novembro, e tem em Portugal a designação de Verão de São Martinho. Como, entretanto, existindo embora em Portugal, a expressão não tem uso no Brasil, resolvemos servir-nos de Galsworthy, que chama «Indian Summer» à última e tardia aventura sentimental do velho Jolyon. (N. da T.)

 

No último dia de Maio, nos começos da década de noventa, cerca das seis horas da tarde, o velho Jolyon Forsyte estava sentado debaixo do grande carvalho que sombreava o terraço da sua casa em Robin Hill. Esperava que os mosquitos o mordessem, antes de abandonar a glória do poente. A magra mão queimada de sol, desenhada de veias azuis, pendia, segurando com os dedos compridos e afilados um charuto quase no fim, ainda lhe restavam, como sobrevivência dos tempos vitorianos, em que a suprema distinção consistia em não tocar em nada, nem mesmo com a ponta dos dedos, longas unhas tratadas nos dedos bem feitos. Um velho chapéu panamá protegia contra o sol poente a fronte ampla, os grandes bigodes brancos, a cara magra, o forte queixo ossudo. Tinha as pernas cruzadas, em toda a sua atitude liam-se a serenidade e o requinte de elegância do senhor idoso que todas as manhãs salpica com água-de-colónia o lenço de seda. Aos seus pés dormia um cão de pêlo castanho e branco, com pretensões a pomeraniano - e que não era senão o velho cão Balthasar, por quem a antiga prevenção do velho Jolyon se transformara em amizade no decorrer dos anos. Pertinho da cadeira pendurava-se um balouço e no balouço estava uma das bonecas de Holly, chamada Alice Tonta, com o corpo caído sobre as pernas e o triste nariz enfiado num saiote preto. Nunca a pobre Alice gozava do favor da dona, por isso pouco lhe importava a forma de estar sentada. De sob o carvalho descortinava-se o relvado estirando-se para a ternery (1) e para além desse requinte de civilização viam-se os campos descendo para o lago, o bosquezinho e a paisagem «linda, notável» ante a qual, cinco anos atrás, Swithin Forsyte se detivera, da vez em que, acompanhado de Irene, viera visitar a casa. O velho Jolyon ouvira falar nessa aventura do irmão, oportuna e amplamente celebrada na Bolsa dos Forsyte. Swithin! Coitado, já se acabara, nos fins de Novembro último, com apenas setenta e nove anos de idade, renovando as dúvidas relativas à vitalidade eterna dos Forsyte - dúvida que pela primeira vez se erguera por ocasião do passamento da tia Ann. Morrera! E deixara apenas Jolyon e James, Roger, Nicholas e Timothy, e Julie, Hester e Susan! E o velho Jolyon pensava: «Oitenta e cinco! Não os sinto, excepto quando me dá aquela dor.»

E a memória do velho Jolyon investigava: não sentia a idade desde que comprara ao seu sobrinho Soames aquela casa, que para o outro fora de má sorte: e instalara-se ali em Robin Hil! havia já três anos. Era como se ele remoçasse em cada Primavera, vivendo no campo, com os filhos e os netos - June e os outros garotos do segundo casamento, Jolly e Holly. Morando longe do barulho de Londres, dos mexericos da Bolsa dos Forsyte, dos seus conselhos comerciais, numa deliciosa atmosfera de nenhum trabalho e muita diversão, ocupando-se alegremente em melhorar sempre a casa e os seus vinte acres de terra e presidindo às brincadeiras de Holly e Jolly. Todas as complicações e abalos que se lhe tinham acumulado no coração durante o trágico caso de June, Soames, Irene e o pobre moço Bosinney já se haviam apagado. Até June saíra afinal da sua melancolia, como o testemunhava a viagem através da Espanha que ela andava agora a fazer em companhia do pai e da madrasta. Uma paz, curiosamente perfeita, tomara conta do velho depois da partida dos seus. Sentia-se venturoso, embora saudoso, porque o filho havia partido. Jo nunca lhe representava senão consolo e alegria, actualmente - um esplêndido camarada, porém as mulheres, em geral, incluindo as melhores, afectam um pouco os nervos dos outros, mesmo quando a gente as admira.

 

*1. Local apropriado ao cultivo de fetos.

 

Lá longe um cuco piou. Um pombo bravo arrulhava no álamo da encosta, e as margaridas e os ranúnculos já iam brotando de novo, depois da última poda. O vento soprava para sudoeste, trazendo um ar delicioso, carregado de cheiro de seiva.

O velho empurrou para trás o chapéu e deixou o sol banhar-lhe o queixo e as faces. Sentia, naquela tarde, uma certa necessidade de companhia - vontade de ver um rosto bonito junto de si, para olhar. As criaturas costumam pensar que os velhos jamais querem nada. E com a antiforsytica filosofia que se lhe insinuara na alma, ele pensou: «Nunca ninguém tem o bastante! Não me admiro que mesmo com o pé na cova a gente ainda queira alguma coisa.» Ali, fora das exigências dos negócios, os seus netos, as árvores, flores e pássaros do pequeno domínio - para não falar no Sol, na Lua e nas estrelas no céu - diziam-llhe «Abre-te, Sésamo», dia e noite. E Sésamo tinha-se aberto quantas vezes talvez ele não sabia. O velho Jolyon sempre vibrara ante isso que hoje em dia se começou a designar, quase religiosamente, «Natureza», embora nunca houvesse perdido o seu hábito de chamar a um crepúsculo um crepúsculo e a uma paisagem uma paisagem, por mais profundamente que aquilo o emocionasse. Mas actualmente a Natureza quase o fazia sofrer, e ele apreciava isso. Em cada um desses calmos, brilhantes e compridos dias de sol, com a mão de Holly na sua e o cão Balthasar à frente, procurando aplicadamente nunca se sabia o quê, o velho Jolyon tinha desejos de vaguear olhando as rosas que desabrochavam, as fruteiras que cresciam junto dos muros, a luz do Sol brilhando nas folhas do carvalho, os rebentos novos das árvores do bosque, as folhas dos lírios-d'água emergindo, lustrosas, e as folhinhas tenras do milho que nascia no único campo semeado, ouvindo os estorninhos e as cotovias, ou assistindo ao ruminar das vacas Alderney, que abanavam lentamente as caudas. E em cada um desses lindos dias doía-lhe um pouco o amor profundo que sentia por aquilo tudo, sentindo talvez, lá no íntimo, que já não teria muito tempo para lhe gozar o encanto. O pensamento de que qualquer dia - talvez não se passassem dez anos, talvez não se passassem mais nem cinco - todo aquele mundo lhe seria roubado, antes que houvesse exaurido a capacidade de o amar, parecia-lhe uma injustiça aterradora.

Se nada há depois desta vida, não seria ele que o fosse desejar: porque lá, de qualquer modo, não teria Robin Hill, nem as flores, nem as lindas caras - poucas, na verdade - que o cercavam agora! Com os anos, crescera o seu desagrado por beatices, a ortodoxia que arvorara pelos sessenta anos, como usara suíças, já de há muito a abandonara, deixando-lhe apenas três cultos: o da beleza, o da correcção pessoal e o sentimento da propriedade. E hoje, o maior desses cultos era o da beleza. Ele tinha, como sempre, amplos interesses, e podia ainda ler o Times, porém punha-o de lado todas as vezes em que ouvia o assobio de um melro. A correcção e a propriedade muitas vezes eram fatigantes. Os melros e os crepúsculos é que nunca o fatigavam - ao contrário, davam-lhe o desagradável sentimento de que os não poderia gozar bastante. Em pé, na calma radiação da tarde, fitando as florinhas douradas e brancas da relva, um pensamento ocorrera-lhe: «Este campo parece-se com a música de Orfeu que ouvi há poucos dias no Covent Garden. Uma bela ópera, embora não se pareça com Meyerbeer, nem mesmo com Mozart, porém quase tão bonita, à sua maneira: algo clássica, com reminiscências da Idade de Ouro, casta e suave». A Ravogli era «quase tão boa quanto as dos bons tempos passados», e isso era o maior elogio que ele podia fazer. A saudade de Orfeu pela beleza que perdera, por aquele amor que devia levar para o Hades - para onde todo o amor e toda a beleza têm de ir na vida -, a saudade que cantava e pulsava em toda a dourada música agitava-se também na luminosa beleza do mundo naquela tarde.

Com a ponta da bota solada de cortiça, o velho tocou involuntariamente nas costelas do cão Balthasar, era como se ordenasse ao animal que despertasse e catasse as suas pulgas, porque, embora ele as não tivesse, de espécie alguma, ninguém o conseguia persuadir desse facto. Quando acabou, o cão esfregou o lugar que andara a catar de encontro às pernas do dono e tornou a deitar-se, repousando o focinho naquela mesma bota que o incomodara. E ocorreu uma súbita lembrança ao espírito do velho Jolyon - um rosto que vira na ópera há três semanas atrás, Irene, a mulher do seu precioso sobrinho Soames, o Proprietário. É verdade que nunca mais a encontrara depois do dia da recepção que oferecera na velha casa de Stanhope Gate, para comemorar o infeliz noivado de sua neta June com o jovem Bosinney, porém reconhecera-a imediatamente, porque sempre a admirara - uma moça realmente linda. Logo depois da morte do moço Bosinney, de quem ela criminosamente se tornara amante, ouvira dizer que Irene abandonara Soames. Só Deus poderia saber o que tinha ela feito desde então. E aquela visão do rosto da moça - de perfil, na fila da frente - fora, literalmente, a única coisa que lhe demonstrara que ela continuara viva naqueles três anos. Nunca ninguém falara nela. E Jo dissera-lhe uma certa coisa que o transtornara completamente. George Forsyte contara a Jo que vira Bosinney perdido no fog, no dia do desastre, e percebera que havia algo que explicava o desespero do rapaz - um acto de Soames em relação à mulher, um acto vergonhoso. Jo vira-a também, naquela tarde, depois que as notícias já eram conhecidas - vira-a por um momento, e a descrição que fizera ainda estava presente no espírito do velho Jolyon. Jo dissera que ela parecia «selvagem e perdida». No dia seguinte, June, abafando os seus sentimentos, fora procurar a outra - e a criada informara-a, chorando, que a patroa desaparecera durante a noite. De qualquer modo, fora um assunto trágico. Uma única coisa era certa: Soames nunca mais conseguira pôr as mãos na mulher. E ele estava a viver em Brighton, viajava para cá e para lá - bom destino para o Proprietário, Porque, quando se desagradava de alguém - como se desagradara do sobrinho -, o velho Jolyon nunca mais vencia essa aversão. Lembrava-se bem do seu sentimento de alívio quando soubera do desaparecimento de Irene. Afligira-se quando imaginava Irene prisioneira daquela casa - como Jo a vira por um momento-, daquela casa para a qual voltara, como um animal volta para a furna, depois de ouvir, nos pregões da rua, o sinistro cabeçalho dos jornais: «A morte trágica de um arquitecto.» O rosto dela impressionara-o muito, quando a vira na ópera estava mais bonita do que a recordava, porém semelhante a uma máscara, escondendo qualquer coisa sob aquele lindo exterior. Era ainda uma jovem - tinha vinte e oito anos. Ah, provavelmente já tinha agora outro amante. Porém a esse subversivo pensamento - porque mulheres casadas não devem ter amantes, e um amante, portanto, já era de mais - o seu busto ergueu-se, e com ele a cabeça do cão Balthasar. O sagaz animal ficou de pé e encarou o velho Jolyon. «Quer passear?», parecia dizer. E o velho Jolyon respondeu:

- Vamos, ande, companheiro!

Lentamente, como o faziam sempre, os dois caminharam por entre as constelações de ranúnculos e margaridas e penetraram na ternery. Aquela plantação, embora ainda muito pouco crescida, fora feita judiciosamente muito abaixo do nível do campo, a fim de dar a impressão de irregularidade, tão importante em horticultura. As suas pedras e a sua terra eram a paixão do cão Balthasar, que muitas vezes encontrava por lá alguma toupeira. O velho Jolyon fazia questão de passar por ali, porque, embora aquilo ainda não fosse bonito, sê-lo-ia algum dia, e ele gostava de pensar: «Preciso trazer Varr para cá e mostrar-lhe isso, é melhor do que Beech.» Pois as plantas, tal como as casas e os homens, necessitavam dos melhores cuidados de um especialista. O local era habitado por caracóis, e quando andava acompanhado pelos netos o velho Jolyon gostava de apontar para um dos bichos e contar-lhes uma certa história absurda, que falava num rapazinho, a sua mãe e uns caracóis. E quando os pequenos saltavam e lhe agarravam as mãos, pensando nos caracóis, os olhos do velho piscavam, contentes. Emergindo da ternery, o velho Jolyon abriu a cancela que dava para o primeiro campo - uma área ampla, com ares de parque, onde, entre muros de tijolo, a horta fora plantada. O velho Jolyon evitou-a e subiu a encosta que levava ao lago. Balthasar, que já vira por ali ratos-d'água, pulou à frente, com o andar característico de um cão já velho que toma todos os dias o mesmo caminho. Ao chegar à margem, o velho Jolyon parou, reparando que mais um lírio-d'água abrira desde a véspera: queria mostrá-lo no dia seguinte a Holly, quando a sua pequerrucha se houvesse restabelecido das cólicas provocadas por um tomate que comera ao almoço-ela era muito delicada de estômago. Agora que Jolly já fora para a escola, Holly passava com o avô quase todo o dia, e ele sentia-lhe terrivelmente a falta. Sentia também aquela dorzinha impertinente, que frequentemente o incomodava, nestes últimos tempos, uma picada profunda no lado esquerdo. O velho olhou para baixo da encosta.

Realmente, o pobre moço Bosinney realizara um magnífico trabalho quando construíra aquela casa! Ter-lhe-ia servido muito, se ele houvesse vivido! E onde estaria agora, o pobre? Talvez vagueando ainda por ali, pelo local do seu último trabalho, o local dos seus trágicos amores. Ou ter-se-ia o espírito de Philip Bosinney dissolvido pelas coisas? Quem o poderia dizer? O cachorro enfiara as pernas na lama! E o velho caminhou em direcção ao bosque. Lá, havia deliciosas moitas de campânulas azuis, e ele sabia de algumas que pareciam pequenos retalhos de céu caídos entre as árvores, fugidos do sol. Passou pelo estábulo, pela capoeira, tomou um caminho que serpeava por entre os renovos densos, nos quais já se enredavam as campânulas. Balthasar, de novo tomando-lhe a frente, estacou e soltou um uivo baixo. O velho Jolyon empurrou-o com o pé, porém o cão manteve-se imóvel, como se não visse mais espaço à frente para andar, e os pêlos arrepiavam-se-lhe no dorso. Talvez por causa do uivo, ou dos pêlos arrepiados do cão, ou devido à sensação que em geral os homens sentem nos bosques, o velho Jolyon também sentiu qualquer coisa percorrer-lhe a espinha. Depois viu que na volta do caminho, onde havia um velho tronco derrubado, estava sentada uma mulher. Tinha o rosto voltado para o outro lado, e o velho teve exactamente o tempo de pensar: «É uma intrusa. Preciso mandar fazer uma cerca aqui», antes que ela se voltasse. Deus do Céu! Era o rosto que ele vira na ópera - a mesma mulher em que estivera a pensar! Na confusão do momento, o velho Jolyon enxergara as coisas confusas como se a moça fosse um fantasma - graças talvez ao estranho efeito de luz que o sol provocava no seu vestido de seda de um lilás acinzentado. Ela então ergueu-se e ficou de pé, sorrindo, com a cabeça ligeiramente inclinada.

O velho Jolyon pensou: «Como é bonita!» A moça não falou, nem ele. E ele descobria o porquê desse silêncio, com uma vaga admiração. Ela estava ali, indubitavelmente, por amor de uma certa memória, e não procurava negar o facto ou disfarçá-lo através de qualquer explicação vulgar.

- Não deixe esse cachorro tocar no seu vestido - disse ele afinal. - Está todo enlameado. Venha cá, Balthasar!

Mas Balthasar caminhou em direcção à visita, que estendeu a mão e lhe acariciou a cabeça. O velho Jolyon falou rapidamente:

- Vi-a na ópera, outro dia, mas você não me notou.

- Oh, sim, bem o vi!

Ele sentiu uma lisonja subtil naquilo, como se ela houvesse acrescentado: «Pode alguém deixar de o ver?»

- Eles estão na Espanha - continuou abruptamente o velho. - Estou só, por isso fui à ópera,. A Ravogli é boa. Você já viu o estábulo?

Numa situação tão carregada de mistério e de algo muito parecido com emoção, ele dirigia-se instintivamente para aquele refúgio da propriedade, e ela caminhou ao seu lado. O vulto da moça ondulava ligeiramente, como as mais requintadas silhuetas francesas, o seu vestido também era de uma espécie de cinzento francês. O velho notou dois ou três fios prateados por entre aqueles cabelos cor de âmbar - cabelos estranhos junto aos olhos escuros e àquele rosto leitoso e pálido. Um súbito olhar de lado que ela lhe atirou com os seus olhos de veludo perturbou-o intensamente. Aquele olhar parecia vir de longínquas profundezas, talvez de um outro mundo, ou, em todo o caso, de alguém que não vivesse muito na Terra. E ele disse, mecanicamente:

- Onde mora agora?

- Tenho um pequeno apartamento em Chelsea.

Ele não queria saber o que ela fazia., não queria ouvir nada, porém a palavra perversa veio-lhe aos lábios:

- Só?

Ela acenou que sim. E aliviava-o saber disso. E ocorreu-lhe que, se não fora os acasos do destino, seria ela a dona daquele bosque e estaria a mostrar o estábulo a ele, que seria o visitante.

- São todas Alderneys - murmurou o velho. - Dão um leite excelente. Olhe como esta é bonita! Anda, Myrtle!

A vaca cor de corça, com os olhos tão escuros e suaves quanto os de Irene, mantinha-se em pé, pois fora havia pouco ordenhada. Olhava para eles directamente, com os seus olhos lustrosos, meigos, cínicos, e dos beiços cinzentos escorria-lhe um fio de saliva que caía sobre a palha. Um cheiro de feno, baunilha e amónia subia do chão do estábulo, agora quase escuro e frio, e o velho Jolyon disse:

- Você deve subir e jantar comigo. Depois levo-a a casa no carro.

Percebeu que uma 'luta se travava nela, 'luta natural, decerto, em vista das recordações que a possuíam. Porém desejava-lhe a companhia, um lindo rosto, um corpo encantador - beleza! Passara a tarde só. E talvez os olhos dela estivessem um pouco ansiosos quando respondeu:

- Obrigada, tio jolyon. Vou gostar de ficar. Ele segurou-lhe as mãos e disse:

- Óptimo! Então vamos para casa!

E, precedidos pelo cão Balthasar, subiram a encosta. O Sol estava-lhes quase ao nível do rosto, e ele conseguia ver não só os fios prateados, como pequeninos traços, profundos bastante para marcarem a beleza dela com certo risco de finura - e o olhar especial daqueles cuja vida não é partilhada com outros. «Vou levá-la pelo terraço», pensava o velho. «Não a tratarei como uma visita comum.»

- Em que é que você se ocupa? - perguntou ele.

- Ensino música. Tenho também um outro trabalho.

- Trabalho! - exclamou o velho Jolyon, apanhando a boneca do balouço e alisando-lhe a sainha preta. - Não como este, creio eu, pois eu não faço nada agora. Em que outro trabalho falou você?

- Procuro ajudar as mulheres que andam por aí a penar. O velho Jolyon não compreendeu bem. E repetiu:

- A penar?

Depois compreendeu, com um choque, que ela dava à expressão o significado que ele próprio daria, se a empregasse. Ajudando as Madalenas de Londres! Que cansativo e terrífico interesse! E a curiosidade, vencendo a sua reserva natural, fê-lo perguntar:

- Porquê? Que é que você faz por elas?

- Não faço muito. Não tenho dinheiro para gastar. Em geral, só posso dar-lhes compaixão e, algumas vezes, comida.

Involuntariamente, a mão do velho Jolyon segurou a bolsa. E ele disse rapidamente:

- Onde é que você as descobre?

- Frequento um hospital.

- Um hospital! Irra!

- O que mais me comove é que, mesmo lá, quase todas mantêm ainda uma espécie de beleza.

O velho Jolyon apertou a boneca.

- Beleza! - exclamou. - Ah, sim! Assunto triste! - E caminhou em direcção à casa.

Através da ampla sacada, cujos estores ainda não haviam sido erguidos, ele precedeu a moça na sala onde antes estivera, tentando ler as notícias do Times e percorrendo uma revista de agricultura, ilustrada com gravuras de flores, donde Holly tirava modelos para as suas tentativas de pintura.

- O jantar será servido dentro de meia hora. Você há-de querer lavar as mãos. Vou levá-la ao quarto de June.

Ele viu-a olhando intensamente em torno. Que mudanças deveria haver ali depois que ela visitara a casa, em companhia do marido ou do amante, ou talvez de ambos! Quem o saberia? Tudo isso era escuro, e estimava deixá-lo assim. Porém quanta mudança! E, ainda no hall, o velho disse:

- Meu filho Jo é pintor, você deve saber. E tem um gosto excelente. Não o herdou de mim, naturalmente, mas deixei-o seguir o seu caminho.

Ela deixara-se estar de pé, imóvel, os olhos percorrendo o hall e a sala de música, tal como eram agora, mergulhados na luz do crepúsculo. O velho Jolyon teve uma engraçada impressão. Estaria a moça tentando conjurar alguém de entre as sombras daquelas salas, cujas paredes eram pintadas de cor de pérola e prata? Ele teria preferido ouro. Era mais sólido e vivo. Porém Jo tinha um gosto francês, de modo que as paredes tinham ficado daquela cor sombria, que dava um efeito semelhante ao fumo dos cigarros que o rapaz estava sempre a fumar - efeito quebrado aqui e ali por uma nota azul ou carmesim. Não, aquilo não era o seu sonho! Mentalmente, via as paredes da casa cobertas com todas aquelas obras-primas. em naturezas-mortas, emolduradas de ouro, que ele comprara nos dias em que a quantidade ainda era preciosa. E agora onde estavam elas? Vendidas por uma ninharia! E isso porque aquele factor íntimo que o fizera, sozinho entre os Forsyte, acompanhar a marcha do tempo, demovera-o de travar uma luta para as defender.

No seu escritório, porém, ainda estava o quadro Barcos de Pesca Holandeses ao pôr-do-Sol.

- São aqui as casas de banho - disse ele. - E outras comodidades. Mandei pôr azulejos em tudo. As salas das crianças vêm depois. E também os quartos de Jo e da mulher. Comunicam-se entre si. Porém creio que você se lembra de tudo.

Irene fez sinal que sim. Eles atravessaram a galeria e entraram numa ampla sala com uma pequena cama e muitas janelas.

- Este é o meu quarto. - As paredes estavam cobertas com retratos dos garotos e quadros de aguarela, e o velho disse, em ar de dúvida: - São de Jo. A vista é de primeira ordem. Pode-se ver até o Grand Stand de Epson quando o tempo está bom.

O Sol já se pusera, por trás da casa, mas uma espécie de nevoeiro luminoso cobria tudo, como uma emanação do grande e glorioso dia. Viam-se algumas casas, para além dos campos e das árvores que ainda se recortavam fracamente no vale, que parecia mais distante.

- O campo está sempre a mudar - disse ele abruptamente-, mas ainda ficará aqui quando nós todos formos embora. Olhe para aqueles tordos. Os pássaros são maravilhosos aqui, pelas manhãs. Sinto-me satisfeito por ter lavado as mãos de Londres e das suas pompas.

O rosto dela estava encostado à folha da janela, e ele sentiu-se abalado pelo seu ar tristonho. «Se eu pudesse fazer que ela parecesse contente! Um rosto lindo, mas triste.» E, apanhando o seu jarro de água quente, caminhou através da galeria.

- Este é o quarto de June - disse ele, abrindo a primeira porta e depondo o jarro. - Espero que você encontre tudo de que precisar.

E, fechando a porta por trás de Irene, voltou para o seu quarto. Escovando os cabelos com as grandes escovas de ébano e molhando a fronte em água-de-colónia, ele meditava. Ela viera tão estranhamente, numa espécie de visita misteriosa, até mesmo romântica, como se o seu desejo por beleza, por companhia, fosse satisfeito por quem quer que se ocupe em satisfazer essa espécie de coisas. E, mirando-se no espelho, endireitou o corpo ainda firme, alisou com a escova os grandes bigodes brancos, molhou as sobrancelhas com água-de-colónia e tocou a campainha.

- Esqueci-me de avisar que tenho uma senhora para jantar comigo. Mande preparar qualquer coisa extra e diga a Beacon que prepare o carro às dez e meia para a levar de volta à cidade. Miss Holly está a dormir?

A criada achava que não. E o velho Jolyon, atravessando a galeria, penetrou na ponta dos pés na nursery, cujos trincos mandava que estivessem bem oleados, a fim de poder entrar lá à noite sem fazer barulho.

Porém Holly realmente dormia, deitada na cama, como uma Madona em miniatura, pois pertencia àquele tipo que os velhos pintores nunca puderam dar a Vénus.

Os longos cílios escuros sombreavam-lhe as faces e tinha no rosto um ar de paz perfeita - evidentemente a sua doença já estava inteiramente debelada. E o velho Jolyon, na meia luz do quarto, deixava-se estar de pé, adorando a neta. Era tão encantadora, tão solene e adorável aquela carinha! Ele tirava da vida mais que o seu quinhão, graças àquela sua bendita capacidade de viver novamente nos jovens. Representavam para ele a sua vida futura. Talvez a única vida futura que o seu sadio paganismo fundamental admitisse. Ali estava ela, com tudo que vivera antes dela e o sangue do avô - parte dele, pelo menos - nas suas veias franzinas. Lá estava a sua pequenina companheira, destinada a ser tão feliz quanto o velho pudesse contribuir para isso - a sua pequerrucha que não conhecia nada mais além do amor. O seu coração intumesceu, e ele saiu do quarto pisando novamente nas pontinhas de cortiça das botas. No corredor, um pensamento extravagante assaltou-o: «E pensar que esta criança pode vir a ser uma das criaturas que Irene diz estar a ajudar. Porque tais mulheres foram todas iguais a essa coisinha que está a dormir ali. Tenho de dar um cheque a Irene» continuou ele. Não suportava pensar nessas mulheres! Nunca lhe haviam merecido uma meditação mais detida, pobres rebotalhos humanos, feriam profundamente de mais o verdadeiro refinamento do velho, escondido sob as camadas de conformismo ao sentimento de propriedade, feriam dolorosamente o que havia de mais profundo nele - aquele amor da beleza que, ainda hoje, lhe fazia palpitar o coração ante a perspectiva do serão passado em companhia de uma linda mulher. E ele desceu a escada, atravessou as portas de molas, até chegar às regiões de baixo. Lá, na adega, havia um vinho de pelo menos duas libras a garrafa, um Steinberg Cabinet. melhor do que qualquer Johannsberg, um vinho de bouquet perfeito, doce como néctar, e realmente um néctar! Apanhou uma garrafa, segurando-a como a um recém-nascido, e ergueu-a até à luz, para lhe ver a transparência. Coberta da sua veste de poeira, a garrafa de gargalo longo e cor de mel deu-lhe uma profunda sensação de prazer. Três anos de repouso, desde que fora trazida da cidade - devia estar em excelentes condições! Comprara-a trinta e cinco anos atrás - graças a Deus conservava o seu paladar, e tinha portanto o direito de beber daquilo.

Irene apreciaria aquele vinho, nunca se apercebera o menor travo ácido em toda a dúzia, limpou a garrafa, desarrolhou-a com as suas próprias mãos. cheirou-a, aspirou-lhe o perfume e subiu para a sala de música.

Irene estava em pé junto ao piano, tirara o chapéu e o véu de rendas com que viera, de forma que os seus cabelos dourados estavam visíveis, assim como a palidez da nuca. E, vestida no seu vestido cinzento, encostada ao piano de pau-rosa, realizava um lindo quadro aos olhos do velho Jolyon.

Ele ofereceu-lhe o braço e ambos caminharam solenemente para a sala de jantar - sala que, projectada para abrigar sem incómodo vinte e quatro convivas, não apresentava preparada senão uma pequena mesa redonda. Na sua presente solidão, a grande mesa de jantar oprimia o velho Jolyon, mandara, pois, removê-la até que o filho voltasse. E ali, em companhia de duas excelentes cópias de Madonas de Rafael, costumava jantar sozinho. E era a única hora triste do seu dia, durante aquele Verão. Ele nunca fora um grande comedor, tal como o gigantesco Swithin, ou Sylvanus Heythorp, ou Anthony Tornworthy, que haviam tido a sua crónica, em tempos passados, e jantar sozinho, acompanhado pelas Madonas, constituía para o velho uma penosa ocupação, de que procurava desobrigar-se rapidamente, a fim de se entregar ao entretenimento mais espiritual do café e dos charutos. Porém naquela noite tudo era diferente! Os seus olhos piscaram para a moça, através da pequena mesa, e ele falou da Itália e da Suíça, contando-lhe as histórias das suas viagens por lá e outras experiências que já não podia repetir ao filho e à neta, porque já as conheciam. Aquela audiência nova era-lhe preciosa, é que ele nunca chegara a ser um desses velhos que vivem a rondar e a escavar eternamente os campos das reminiscências. Ele próprio rapidamente se fatigava, e instintivamente evitava fatigar os outros, e, além disso, a sua natural atitude de galanteio para com qualquer bonita mulher protegia-o especialmente nas suas relações com senhoras. Gostaria de se aproximar mais dela, porém, enquanto ela sorria e parecia divertir-se com o que ele lhe contava, o velho Jolyon não perdia a impressão de misteriosa distância que constituía metade da fascinação de Irene. Ele não suportava as mulheres que se atiram para os homens e põem-se a tagarelar à toa, ou mulheres bem-falantes, que querem entender de tudo melhor do que os homens. Havia uma única qualidade que o atraía nas mulheres: o encanto. Quanto mais silenciosa fosse a mulher, mais a apreciava. E Irene tinha encanto, um encanto sombreado de tristeza, como aquelas colinas e vales da Itália que ele tanto amara, mal clareados pela luz da tarde. O pensamento de que ela vivia isolada, enclausurada, fazia-a mais próxima, uma companhia estranhamente desejável. Quando um homem está muito velho, afastado de qualquer competição, gosta de sentir que o que ele ama está a coberto das rivalidades dos jovens, porque ainda quer ser o primeiro no coração da beleza. Ele bebeu pois o seu vinho, enxugou os lábios, e sentiu-se quase moço. E o cão Balthasar, deitado aos seus pés, também enxugava os beiços, desprezando no fundo do coração as interrupções da conversa e o tilintar daqueles copos esverdeados cheios de um líquido dourado cujo sabor lhe era desagradável.

A luz estava quase consumida quando voltaram à sala de música. Com o charuto na boca, o velho Jolyon disse:

- Toque um pouco de Chopin.

Pelos charutos que fumam e pelos compositores que amam, vós podeis compreender a contextura da alma dos homens. O velho Jolyon não podia suportar um charuto forte nem a música de Wagner. Ele amava Beethoven e Mozart, Haendel e Gluck, Schumann, e, por qualquer obscura razão, as óperas de Meyerbeer, nos últimos anos deixara-se seduzir por Chopin, tal como em pintura sucumbira por Boticelli. E, condescendendo com esses gostos, compenetrara-se das suas divergências para com o padrão criado pela Idade de Ouro. A poesia dessa idade não era a de Milton, de Byron ou de Tennyson, de Rafael ou Ticiano, Mozart e Beethoven. Escondia-se por trás de um véu. A poesia dela não atingia ninguém na face, mas deslizava os dedos pelas costelas e virara-se, torcia-se, derretia o coração. E o velho Jolyon, sempre incerto quanto à integridade daquilo, nunca lhe deu importância enquanto pôde contemplar as pinturas de um e ouvir a música de outro.

Irene sentou-se ao piano, sob a lâmpada eléctrica coberta por um quebra-luz de um cinzento pérola, e o velho Jolyon, numa cadeira de braços donde podia vê-la, cruzou as pernas e acendeu lentamente o charuto. Irene ficou um momento imóvel com as mãos nas teclas, evidentemente procurando o que iria tocar. Depois começou, e dentro do velho Jolyon cresceu uma dolorosa sensação de prazer, que realmente não se assemelhava a nada mais no mundo. E ele caiu suavemente num transe, interrompido apenas pelo movimento de tirar e levar o charuto à boca, em longos intervalos. Irene estava ali. e dentro dele agiam o vinho generoso e o perfume do fumo, mas estava ali também um mundo de luz do sol que aos poucos se transformava em luar, e um lago povoado de cegonhas, e árvores azuladas rodeando-o, manchadas de rosas vermelhas, e campos de alfazema onde vacas cor de leite pastavam. E uma mulher toda em sombras, com os olhos escuros e o pescoço branco, sorria, estendendo os braços. Através do ar, que era como música, uma estrela caía e era apanhada nos chifres de uma das vacas. O velho abriu os olhos. Linda peça. Ela tocava bem - tinha dedos de anjo. Fechou novamente os olhos. Sentia-se agora miraculosamente triste e feliz, de pé sob uma limeira coberta de flores cheirando a mel. Não desejava mais viver a sua própria vida, porém continuar apenas ali, apanhar o sorriso de uma mulher e gozar-lhe a fragrância. Sacudiu as mãos, o cão Balthasar alcançara-as e lambia-as.

- Lindo! - exclamou o velho. - Por favor, mais Chopin. Irene tornou a tocar mais. Dessa vez a semelhança que havia entre ela e Chopin impressionou-o.

A ondulação que lhe notara no andar também se via no seu modo de tocar, no Nocturno que ela escolhera, no castanho macio dos seus olhos, na luz que lhe irradiava dos cabelos, como o luar de uma Lua de ouro, sim, sedutora. Porém não havia nada de Dalila nela nem na sua música. Uma longa espiral azul, saída do charuto, ergueu-se no ar e perdeu-se. «Agora chega!)' pensou ele. «Basta da beleza!» Irene parou novamente.

- O senhor quer ouvir um pouco de Gluck? Ele gostava de compor num jardim banhado de sol, com uma garrafa de vinho do Reno ao lado.

- Ah, sim. Toque o Orfeu.

Em torno dele, agora, agitavam-se campos de flores de ouro e prata, brancas formas inclinando-se ao sol, pássaros brilhantes voando em todos os sentidos. Era pleno Verão. Ondas luminosas de doçura e saudade banharam-lhe a alma. Caiu do charuto um pouco de cinza, e, apanhando o lenço de seda para a sacudir, ele inalou um cheiro de água-de-colónia e rapé. «Ah», pensou. «A força do Verão-é o que é!» E disse:

- Você tocou o Che faro.

Ela não respondeu, nem se moveu. Ele estava consciente de qualquer coisa - de algum estranho derramamento. De súbito viu-a erguer-se e voltar-se, e uma angústia de remorso feriu-o. Que estúpido fora! Naturalmente ela, igual a Orfeu, estava também à procura do seu amor mórbido. E, perturbado no íntimo do coração, o velho levantou-se da poltrona. Ela caminhara para a grande sacada do fundo. Cautelosamente, seguiu-a. Irene apertava as mãos sobre o peito. Ele apenas podia ver-lhe as faces, muito brancas. E, profundamente emocionado, falou:

- Então, então, minha querida!

As palavras tinham-lhe escapado mecanicamente, porque eram as que usava com Holly quando ela se magoava. Porém, o efeito, desta vez, foi instantaneamente aflitivo: ela levantou os braços, escondeu neles o rosto e pôs-se a chorar.

O velho Jolyon ficou ali, a fitá-la com os olhos que os anos haviam tornado mais profundos. Ela parecia sentir uma vergonha apaixonada pelo seu abandono, tão diferente do seu autodomínio e da sua calma habituais: era como se nunca se houvesse descoberto diante de um outro ser humano.

- Então, então, então! - murmurava o velho. E, erguendo reverentemente a mão, tocou-a. Ela voltou-se e encostou nele os braços onde escondia o rosto. O velho Jolyon continuou, muito direito, a segurar-lhe uma das mãos que se lhe pousara no ombro. Deixá-la chorar à vontade! Haveria de lhe fazer bem. E o cão Balthasar, intrigado, sentou-se sobre as patas traseiras para o examinar.

A janela ainda estava aberta, as cortinas não haviam sido descidas e o resto de luz do dia misturava-se ainda à luz de dentro da sala. Havia no ar um cheiro de relva nova. Com a sabedoria de uma longa vida, o velho Jolyon não falava. A própria dor consome-se a si mesma com o tempo, e só o tempo é bom para as Tristezas, o tempo que assiste à passagem de todo o sentimento, de toda a emoção, cada um por sua vez, o tempo, o leito do repouso. E vinham-lhe ao espírito estas palavras: "Como arqueja o cervo sob a linfa refrescante."

Porém elas não lhe serviam ali. Depois, sentindo um perfume de violetas, compreendeu que Irene estava a enxugar os olhos. Levantou-lhe o queixo, encostou-lhe o bigode à testa, e sentiu que ela estremecia, num arrepio de todo o corpo, como uma árvore que se sacode das gotas de chuva. E ela levou a mão dele aos lábios, como se dissesse: «Agora acabou! Desculpe!»

O beijo encheu-o de uma estranha consolação. Levou-a para onde ela estava antes. O cão Balthasar, seguindo-os, abandonou nos pés da moça um osso de uma das costeletas que eles haviam comido.

Ansioso por apagar a lembrança daquela comoção, a melhor distracção que o velho achou, no momento, foi mostrar-lhe os seus bibelots, e, caminhando com ela lentamente, de armário em armário, tirava peças de Dresden, Lowestoft e Chelsea, volteando-as nas suas mãos magras, riscadas de veias, cuja pele polvilhada de sardas tinha também um ar de velhice.

- Comprei isso no Jobson's, Custou trinta libras. É muito antigo. Este cachorro leva os ossos que rói para toda a parte. Este vaso antigo, adquiri-o no leilão do marquês, quando se deu o desastre dele.

Mas você não pode lembrar-se. É uma linda peça de Chelsea. E agora, que é que diz que isto é? - E sentia-se consolado pensando que, graças ao seu bom gosto, ela deveria estar a tomar um interesse real naquelas coisas. Porque, afinal de contas, não há nada que acalme melhor os nervos do que uma bela porcelana.

Quando se ouviu o ruído das rodas do carro, ele disse:

- Deve voltar outras vezes. Deve vir almoçar, porque quero mostrar-lhe tudo à luz do dia, e quero que veja a minha pequerrucha. É um amor. Este cachorro parece que se apaixonou por si.

Porque Balthasar, sentindo que ela se preparava para partir, estava a esfregar-se contra as pernas da moça. E caminhando até à porta, a acompanhá-la, o velho Jolyon disse ainda:

- O carro vai pô-la em casa dentro de uma hora e um quarto. Tome isso para as suas protegidas. - Meteu-lhe na mão um cheque de cinquenta libras. Viu os olhos dela brilharem, e ouviu-a murmurar: «Oh, tio Jolyon!» E uma onda autêntica de prazer possuiu-a. Aquilo significava um pouco de auxílio para umas duas ou três pobres criaturas, e significava que ela voltaria ainda. Ele estendeu a mão para a janela do carro e segurou outra vez as mãos de Irene. O carro partiu. O velho ficou em pé, ao luar. entre as sombras das árvores, e pensava: «Que noite agradável! Ela...»

 

Depois de dois dias de chuva, o Verão voltou, suave e ensolarado. O velho Jolyon passeava e conversava com Holly. A princípio sentira-se mais forte, cheio de um novo vigor: mas depois já se sentia cansado. Quase todas as tardes os dois entravam pelo bosque e caminhavam até ao tronco. «Bem, ela não está aqui», devia pensar o velho. «Naturalmente não está!. E sentia-se um pouco diminuído. Arrastava os pés até à colina onde se erguia a casa, com a mão pousada no lado esquerdo. E mais uma vez assaltava-o este pensamento: «Será que ela veio realmente? Ou foi sonho meu?» E parava de vez em quando, e o cão Balthasar parava junto dele. Naturalmente ela não voltaria! Abria com menos excitação as cartas vindas da Espanha. Eles não voltariam antes de Julho, e o velho sentia a singular sensação de que poderia muito bem suportar isso. Todos os dias, ao jantar, levantava os olhos e fitava longamente o lugar que Irene ocupara. Ela não estava ali. e ele acabava por afastar os olhos.

Na sétima tarde, pensou: «Preciso de sair para comprar umas botinas.» Deu ordens a Beacon e saiu. Passando por Putney, em direcção a Hyde Park, o velho reflectiu: «Eu poderia ir a Chelsea. e vê-la.» E disse ao cocheiro:

- Leve-me até à casa daquela senhora que você trouxe no outro dia.

O cocheiro virou o rosto vermelho e os seus grossos lábios perguntaram:

- A senhora de cinzento, Mr. Forsyte?

- Sim, a senhora de cinzento.

Que outras senhoras tinham estado lá? Sujeito idiota!

O carro parou diante de um pequeno bloco de apartamentos de três andares, a pequena distância do rio. Com o seu olhar entendido, o velho Jolyon viu logo que eram apartamentos baratos. Devem custar umas sessenta libras por ano», cogitou. E, entrando, olhou para o quadro de inquilinos, junto ao cubículo da porteira. Não se via o nome « Forsyte w, mas junto ao primeiro andar, apartamento C, lia-se: «Mrs. Irene Heron.» Ah! Ela voltara a usar o nome de solteira! E, de algum modo, aquilo agradou-lhe. Subiu lentamente a escada, sentindo a sua dor de lado voltar um pouco. Parou um momento, antes de tocar, para se restabelecer do resfolgar da subida. Ela não devia estar! E então - as botinas. O pensamento era sombrio, para que queria ele botinas, na sua idade? Não poderia sequer usar todas as que já possuía.

- A sua patroa está em casa?

- Está, sim senhor.

- Diga-lhe que está aqui Mr. Jolyon Forsyte.

- Sim senhor. Quer acompanhar-me?

O velho Jolyon acompanhou a criadinha - que não teria mais de dezasseis anos - e entrou numa salinha de estar, cujas cortinas estavam ainda descidas. Havia lá um piano, e, mesmo pequena, a sala cheirava bem e tinha um ar de bom gosto. Ele ficou em pé no meio da salinha, com a cartola na mão, e pensava: «Quero crer que ela não está em muito boas condições.»

Havia um espelho por sobre a lareira, e o visitante viu nele o seu próprio reflexo. Um pobre sujeito idoso. Ouviu um sussurro e voltou-se, ela estava tão próxima que os seus bigodes quase lhe tocavam a fronte, bem sob os cabelos.

- Saí um pouco - disse ele. - Pensei em vir vê-la e perguntar-lhe quando é que repete aquela noite de outro dia.

E, vendo-a sorrir, sentiu-se subitamente aliviado. Ela talvez sentisse prazer real em vê-lo.

- Você quer pôr o chapéu e ir comigo dar uma volta pelo parque?

Mas quando ela saiu para pôr o chapéu, ele franziu o cenho.

O parque. James e Emily! Mrs. Nicholas ou qualquer outro membro da família provavelmente estariam lá, rodando acima e abaixo. E naturalmente ficariam todos a dar à língua, dizendo que os haviam visto, a ele e Irene. Seria melhor não ir! O velho Jolyon não queria reviver os ecos do passado na Bolsa dos Forsyte. Tirou um fio de cabelo branco da lapela da sua sobrecasaca abotoada alto, passou a mão pelo rosto, pelos bigodes, pelo queixo quadrado. Sentiu as faces encovadas. Não estava a comer muito bem, ultimamente, seria talvez melhor procurar o médico que tratara de Holly e pedir-lhe um tónico. Porém ela já voltara, e, depois de se sentarem no carro, ele disse:

- Que é que você diz de irmos antes a Kensington Gardens e sentarmo-nos lá? - E acrescentou, com um piscar de olhos, como se a moça estivesse no segredo dos seus pensamentos: - Não andará ninguém a passear para lá e para cá.

Deixando o carro, atravessaram as zonas selectas e caminharam directamente para a água.

- Você voltou a usar o seu nome de solteira - comentou o velho. - Não me desagradou isso.

Ela enfiou-lhe a mão no braço.

- June perdoou-me, tio Jolyon? E ele respondeu gentilmente:

- Sim... sim, naturalmente, porque não?

- E o senhor?

- Eu? Eu perdoei-lhe imediatamente assim que soube de tudo. E talvez realmente isso fosse verdade. O seu instinto levava-o

sempre a perdoar a beleza.

Ela suspirou profundamente:

- Eu nunca me arrependi... Não poderia. O senhor alguma vez amou profundamente, tio Jolyon?

Ante a estranha pergunta, o velho Jolyon fixou os olhos diante de si. Teria amado? Não podia recordar se alguma vez isso lhe sucedera. Porém não gostaria de dizer aquilo à moça cuja mão tocava o seu braço e cuja vida estava suspensa da memória de um trágico amor. E pensava: «Se eu houvesse encontrado você quando era jovem. eu... talvez também eu houvesse ficado louco...» E apoderou-se dele um ardente desejo de fugir para generalidades.

- O amor é uma coisa singular--disse ele. - Muitas vezes uma coisa fatal. Foram os deuses, não foram?, que fizeram do amor uma deusa, tinham razão, mas eles viviam na Idade de Ouro.

- Phil adorava os Gregos.

Phil. A palavra abalou-o, tão súbita irrompera. E, com a sua rápida percepção, o velho compreendeu depressa porque Irene lançara tal nome entre eles. Queria conversar a respeito do amante! Muito bem! Se isso lhe dava algum prazer! E disse:

- Ah! Suponho que havia nele um pouco de escultor.

- Sim. Ele gostava de equilíbrio e simetria. Gostava da plenitude com que os Gregos se entregavam à arte.

Equilíbrio! O rapaz nunca tivera nenhum equilíbrio, se o recordava bem. E quanto a simetria... bom construtor, na verdade, fora ele, porém aqueles seus olhos singulares e as maçãs do rosto... Simetria?

- O senhor também é da Idade de Ouro, tio Jolyon.

O velho Jolyon encarou-a. Estaria a troçar dele? Não, os olhos dela estavam macios como veludo. Estaria a lisonjeá-lo? Mas porque o estaria? Não havia nada a tirar de um velho diabo como ele.

- Phil também o pensava. Ele costumava dizer: «Mas nunca poderei dizer-lhe quanto o admiro.»

Ah! E essa, agora. O amante morto. O desejo dela de falar nele! E o velho apertou-lhe o braço, meio ressentido por aquelas lembranças, meio grato, como se reconhecesse que havia um vínculo entre ela e ele. E o desejo de fortificar aquele laço. se o pudesse, fê-lo dizer:

--Suponho que ele se mostrou a você sob um aspecto que eu nunca vi. Você deve tê-lo conhecido pelo seu lado melhor. As ideias dele a respeito de arte eram um pouco novas... para mim. - Engolira a palavra «burlescas».

- Sim. Porém ele costumava dizer que o senhor tinha um senso real da beleza.

O velho Jolyon pensou: «Para o diabo o que ele disse!» Mas respondeu com um piscar de olhos:

- Devo ter, senão não estaria aqui ao seu lado.

Ela era fascinante quando sorria com os olhos, como agora!

- Ele dizia que o senhor tem um desses corações que nunca ficam velhos. Phil era realmente muito perspicaz.

Ele não se deixava apanhar por aquelas lisonjas tiradas do passado, tiradas talvez do desejo de falar no morto amado, não, nem um pouco. Mas, mesmo assim, era uma preciosa sensação ouvi-la, porque ela agradava-lhe aos olhos e ao coração, que, realmente, nunca ficara velho. E era por causa disso que, ao contrário dela e do seu amante morto, ele nunca fora capaz de amar desesperadamente, sempre conservara o seu equilíbrio, o seu senso de simetria. E ainda bem! Porque, graças a isso, aos oitenta e quatro anos ainda era capaz de admirar a beleza! E pensava: «Se eu fosse um pintor ou um escultor... Mas sou apenas um velho. Corta o feno enquanto o sol brilha!»

Um par de braços enlaçados passou por eles, no relvado defronte, à margem de uma sombra que uma árvore lançava no chão. A luz do sol banhou cruelmente as pálidas e magras faces

dos jovens.

- Casal feio! - disse subitamente o velho Jolyon. - Sempre me surpreendeu ver como o amor triunfa sobre isso!

- O amor triunfa sobre tudo!

- Os jovens assim o pensam - murmurou ele.

- O amor não tem idade, nem limite, nem morte.

Com o sangue que lhe subira à face pálida, a respiração forte, os olhos grandes, escuros e meigos, ela parecia Vénus nascendo para a vida. Porém aquela extravagância trouxe uma reacção instantânea, e, piscando novamente os olhos, o velho disse:

- Bem, se o amor tivesse limites, nós não teríamos nascido, porque, coa breca, há muito sofrimento que suportar!

E então, tirando a cartola, escovou-a com a manga do casaco. Aquela torre de seda aquecia-lhe a testa, e ele ultimamente andava a sentir um afluxo de sangue maior à cabeça: a sua circulação já não era o que fora antes.

Irene ficara de pé, olhando fixamente à sua frente, e subitamente murmurou:

- É realmente estranho que eu ainda esteja viva.

As palavras que Jo dissera a respeito dela, «selvagem perdida», ocorreram ao velho Jolyon.

- Ah - falou ele. - Meu filho viu-a por um momento., naquele dia.

- Era o seu filho? Ouvi realmente uma voz no hall. E durante um segundo pensei que fosse... Phil.

O velho Jolyon viu que os lábios da moça tremiam. Ela cobriu-os com a mão, voltou a caminhar e continuou calmamente:

- Naquela noite eu fui ao Embankement, uma mulher agarrou-me pela saia e falou-me sobre a sua vida. Quando a gente vê quanto os outros também sofrem, fica envergonhada.

- Uma daquelas mulheres?

Ela fez sinal que sim e um sentimento de horror agitou-se dentro do velho Jolyon, o horror de alguém que nunca conheceu a luta contra o desespero. E, quase contra vontade, murmurou:

- Conte tudo, sim?

- Eu não me importava de morrer nem de viver. Mas quando a gente está nesse estado, o Destino resolve não nos matar. Aquela mulher tomou conta de mim durante três dias - nem um momento me abandonou. Eu não tinha dinheiro. É por isso que, agora, faço tudo o que posso por elas.

Mas o velho Jolyon ainda estava a pensar. «Sem dinheiro! Que desgraça pode comparar-se a isso? Todas as outras desgraças estão incluídas nesta.»

- Gostaria que me houvesse procurado - disse ele. - Porque não o fez?

Porém Irene não respondeu.

- Porque o meu nome é Forsyte, talvez? Ou foi June que a expulsou? E porque apareceu agora?

E involuntariamente percorreu-lhe o corpo com os olhos. Talvez mesmo agora ela estivesse... E na verdade ela estava magra... não, com efeito!

- Oh, com as minhas cinquenta libras por ano, eu tenho o bastante para viver.

A resposta não o tranquilizou: ele perdera a confiança. Que sujeito, aquele Soames! Porém o seu sentimento de justiça deteve-lhe nos lábios a condenação. Não, ela decerto preferiria morrer a receber um penny «dele». Por mais meiga que se mostrasse, deveria haver energia escondida nela - energia e fidelidade Também, para que diabo aquele moço Bosinney desaparecera assim, deixando-a tão desamparada?

- Bem, agora deve recorrer a mim, para tudo o que precisar, ou eu ficarei desesperado - falou o velho. E, pondo o chapéu, ergueu-se. - Venha comigo, vamos tomar um pouco de chá. Eu disse ao preguiçoso do meu cocheiro que fizesse os cavalos andarem uma hora e ir depois esperar-me à sua porta. Vamos tomar um cab. Já não posso andar como andava.

Saboreava aquele passeio até ao fim do jardim - gozava o som da voz dela, o brilho dos seus olhos, a subtil beleza daquela silhueta encantadora que caminhava a seu lado. Apreciou extremamente também aquele chá tomado no Ruffel's, em High Street, e voltou de lá com uma grande caixa de chocolates pendendo do dedo mínimo. Saboreou a volta de carro até Chelsea, enquanto fumava o seu charuto. Ela prometera tornar a aparecer no próximo domingo e tocar de novo para ele, e em pensamento ele já estava a colher braçadas de cravos e rosas vermelhas para ela trazer de volta. Era um prazer proporcionar algum pequeno prazer a Irene - se ainda havia prazeres para um homem tão velho como ele! A sua carruagem já estava lá quando eles chegaram. Era mesmo coisa daquele sujeito, que, quando era preciso, chegava sempre atrasado! O velho Jolyon entrou um instante para se despedir. O pequeno hall do apartamento estava impregnado de um cheiro desagradável de patchuli, e num banco encostado à parede - a sua única mobília - ele viu um vulto. Ouviu Irene dizer baixinho: «Espere um momento.» Na pequena sala de estar, depois que a porta se fechou, ele perguntou gravemente:

- É uma das suas protegidas?

- É. Agora, graças ao senhor, posso fazer qualquer coisa em benefício delas.

Ele ficou imóvel, de pé, passando a mão pelo queixo, que já perdera muito do seu aspecto enérgico. O pensamento de que ela, ainda agora, vivia em contacto com aquele rebotalho humano, magoava-o, assustava-o. Que podia Irene fazer por elas? Nada. Só dar que falar, e atormentar-se, talvez. E o velho disse:

- Tome cuidado, minha querida! O mundo tira de tudo as piores conclusões.

- Eu sei isso.

Ele sentiu-se confundido pelo seu calmo sorriso.

- Então... até domingo - murmurou. - Adeus. Ela estendeu-lhe a face para que ele a beijasse.

- Adeus - repetiu o velho Jolyon. - Tome cuidado.

E saiu, sem olhar para o vulto que esperava no banco. Voltou para casa pelo caminho de Hammersmith, porque queria parar em certo lugar para encomendar dúzias do melhor Borgonha. Ela gostaria de provar qualquer coisa de vez em quando!

Só em Richmond Park se lembrou de que viera à cidade para encomendar umas botinas, e surpreendeu-se por ter alimentado tão mesquinha preocupação.

 

Os pequenos espíritos do passado, que povoam os dias dos velhos, nunca tinham aparecido tão raramente quanto apareceram ao velho Jolyon nas setenta horas que precederam o domingo. O espírito do futuro, com o encanto do desconhecido, apareceu em lugar dos outros. O velho Jolyon já não estava inquieto, nem fazia visitas ao tronco, porque ela deveria vir almoçar. Era uma maravilhosa finalidade para uma refeição, removia um mundo de dúvidas, porque ninguém perde refeições senão por razões de força maior.

E jogou várias partidas de bola com Holly, no jardim, obrigando-a a arremetidas fortes, treinando-a para jogar com Jolly durante as férias. Porque ela não era uma Forsyte, e Jolly era-o, e os Forsyte nunca são batidos, nem mesmo quando já se aposentaram e atingem a idade de oitenta e cinco anos. O cão Balthasar, enquanto isso, deitava-se sobre a bola todas as vezes que podia.

E, como o tempo ia encurtando, cada dia era mais comprido e mais ensolarado do que o anterior. Na sexta-feira à noite, o velho Jolyon tomou uma pílula para o fígado, porque sentia maior a sua dor de lado, e, embora esse lado não fosse o do fígado, não conhecia remédio melhor que aquele. Quem quer que se atrevesse a dizer-lhe que ele encontrara um novo excitante na vida, e que tal excitante não lhe devia ser saudável, poderia contar com um dos duros olhares de desafio dos seus profundos olhos cor de aço, que pareciam dizer: «Eu sei melhor da minha vida que você.» Sempre o soubera e sempre o haveria de saber.

No domingo pela manhã, depois de Holly ter saído para a igreja acompanhada da governanta, ele encaminhou-se para os canteiros de morangos. Lá, acompanhado pelo cão Balthasar, examinou minuciosamente as plantas e conseguiu descobrir duas dúzias de morangos que na verdade estavam bem maduros. Mas não se sentia bem quando ficava parado muito tempo, e o sangue começou a subir-lhe à cabeça e a entontecê-lo. Depois de pôr os morangos num prato, na mesa de jantar, lavou as mãos e banhou a testa com águ'a-de colónia. Lá, diante do espelho, verificou que estava a emagrecer. Que magricela fora quando rapaz! Era agradável ser delgado - ele não podia suportar um camarada obeso: contudo, o seu rosto estava magro de mais!

Ela deveria vir pelo comboio das doze e meia, e subiria pela estrada que passava atrás do sítio de Drage, entrando pelo fundo do bosque. E, depois de dar uma olhadela ao quarto de June, para ver se havia água quente pronta, saiu ao encontro da amiga, vagarosamente, pois o seu coração estava a bater forte de mais. O ar era cheiroso e doce, as cotovias cantavam, e o Grand Stand de Epson estava visível. Um dia maravilhoso! Num dia igual àquele, seis anos atrás, Soames trouxera o jovem Bosinney para ver o local, antes de começarem a construção. E fora Bosinney quem fixara o lugar exacto da casa - como June muitas vezes lhe contara. O velho Jolyon andava a pensar muito, ultimamente, no rapaz morto, como se o espírito dele estivesse a penar realmente pelo campo do seu último trabalho, na esperança de a ver. Bosinney, o único homem que possuíra o coração dela, aquele a quem ela se dera toda, num único impulso! Na sua idade, um homem já não pode, naturalmente, imaginar tais coisas, mas um vago sofrimento pungia-o, como se fosse o fantasma de um ciúme impessoal, e vinha-lhe também um outro sentimento mais generoso - dó - por aquele amor que se perderia tão depressa. Tudo acabado dentro de uns escassos meses! Bem, bem. Olhou o relógio antes de entrar no bosque - ainda tinha vinte e cinco minutos de espera! E então, dando a volta ao caminho, o velho Jolyon viu-a sentada exactamente no mesmo local onde a descobrira da outra vez - no velho tronco. E compreendeu que ela deveria ter vindo no comboio anterior e já deveria estar sentada ali, sozinha, há umas duas horas. Duas horas da companhia de Irene perdidas! Que lembrança lhe tornaria tão querido aquele tronco? O rosto dele traía-lhe os pensamentos, porque ela disse-lhe de repente:

- Perdoe, tio Jolyon, foi aqui que eu compreendi pela primeira vez.

- Sim, sim, e está à sua disposição todas as vezes que quiser. Você está a parecer uma pequena londrina, creio que anda a dar lições de mais.

Espantava-o o facto de Irene ter a obrigação de dar lições. Lições a dinheiro a algumas pequenas que batucavam o piano com os seus dedos grossos!

- Onde é que dá as suas lições? - perguntou ele.

- Na maioria, a famílias judias, felizmente.

O velho Jolyon estacou, para todos os Forsyte, os judeus sempre tinham parecido gente estranha e duvidosa.

- Eles gostam de música e são muito amáveis..

- É o melhor que fazem, por São Jorge! - A sua dor de lado feria-o fundamente de vez em quando.

- O senhor já viu coisa igual a estes ranúnculos? Parecem os mesmos que vi aqui numa outra noite.

Os olhos dela pareciam realmente voar sobre o campo, como abelhas à procura de flores e de mel.

- Eu fiz questão de que você visse essas flores. Por isso não consenti que trouxessem para aqui as vacas, até agora,

E então, lembrando-se de que ela viera para falar sobre Bosinney, apontou para a torre do relógio que se via sobre o estábulo:

- Creio que ele não me deixaria pôr aquilo ali, se bem me lembro, não tinha noção do tempo.

Porém, Irene, apertando o braço do velho contra si, falou das flores, e ele compreendeu que ela se esforçava por lhe demonstrar que não viera apenas com o fim de conversar a respeito do seu amante morto.

- A melhor flor que eu posso mostrar-lhe - disse ele, com uma espécie de triunfo - é a minha pequerrucha. Deve estar a chegar da igreja. Há nela qualquer coisa que me lembra um pouco você.

- E não lhe pareceu singular falar assim, em vez de dizer: «Há em você qualquer coisa que me recorda ela.» Ah, lá vinha a pequerrucha!

Holly, seguida de perto pela sua idosa governanta francesa, cuja digestão fora arruinada para sempre, vinte e dois anos atrás, no cerco de Estrasburgo, caminhava em direcção a eles, saindo de baixo do carvalho. Parou a uns doze metros de distância, e pôs-se a acariciar Balthasar, como se quisesse dar a entender que era aquele o seu único intento. O velho Jolyon, que a conhecia muito bem, disse:

- Veja, querida, esta é a moça de cinzento que eu lhe prometi. Holly ergueu-se e olhou. Ele espiava as duas, piscando um

pouco: Irene sorria, Holly iniciava um grave inquérito, passando primeiro por um sorriso tímido, depois para outro mais profundo. A garota tinha uma grande noção da beleza - sabia muito bem o que era bonito. E o velho deliciou-se ao assistir à troca de beijos entre as duas.

- Mrs. Heron, Mam'selle Beauce. Então, ManVselle, o sermão foi bom?

Porque agora, que ele já não tinha muito tempo diante de si, a única parte do serviço divino que lhe despertava interesse era a que se relacionava com as coisas deste mundo.

Mam'selle Beauce estendeu a mão semelhante a uma aranha calçada numa luva de pele preta - ela já vivera no seio das melhores famílias - e os seus olhos doentios na face amarelada pareciam perguntar: «A senhora é de boa família?» Sempre que Holly ou Jolly faziam algo que lhe desagradava - coisa que não era rara - ela dizia-lhes: «Os pequenos Tayleurs nunca fazem isso. São umas crianças muito bem-educadas!» Jolly odiava os pequenos Tayleurs: Holly cismava, desolada, porque seria tão diferente deles.

«É uma pobre alminha cómica, Mam'selle Beauce», pensava o velho Jolyon.

O almoço foi um sucesso, com os cogumelos que ele mesmo apanhara na estufa, os morangos que ele escolhera, e uma outra garrafa de Steinberg encheu-o de uma espécie de aromática espiritualidade e da convicção de que no dia seguinte iria ter um novo ataque de eczema. Depois do almoço, sentaram-se sob o carvalho, tomando café turco. Ele não poderia ofender-se com a retirada de Mademoiselle Beauce, que foi escrever a sua carta dominical à irmã, cujo futuro, no passado, fora ameaçado por um alfinete que ela engolira - acontecimento diariamente recordado para estimular as crianças a comer devagar e a digerir o que tinham comido. Nos pés do banco, numa almofada de carruagem, Holly e o cão Balthasar brigavam e faziam as pazes, e, na sombra, o velho Jolyon, de pernas cruzadas, saboreando magnificamente o charuto, fitava Irene, que se sentara no balouço. Luminosa figura, ligeiramente curvada, com o vestido cinzento pintalgado de sol aqui e ali, lábios entreabertos, os olhos escuros e mansos sob os cílios um pouco descidos. Ela parecia satisfeita. Decerto agradava-lhe ter vindo e estar ali ao seu lado! O egoísmo da idade não lhe aferrara a sua garra, porque ele ainda podia sentir prazer no prazer dos outros, compreendendo que tudo o que ele queria, embora fosse muito, não era inteiramente o que importava.

- Está calmo aqui - falou. - Você pode entrar, se está a achar monótono. Porém é um prazer olhá-la. A minha pequerrucha é a única cara que me dá prazer, além da sua.

Pelo sorriso da moça, compreendeu que ela ainda não estava na fase da indiferença por lisonjas, e aquilo tranquilisou-o.

- Não é fingimento - insistiu o velho. - Eu nunca disse a mulher nenhuma que a admirava quando isso não acontecia. Na verdade, não sei se jamais eu disse a alguma mulher que a admirava, excepto à minha mulher, em tempos muito remotos, e as esposas são sempre engraçadas. - Ele ficou silencioso, depois concluiu abruptamente: - Ela costumava esperar ouvir-me dizer isso mais vezes do que eu as sentia.- O rosto de Irene parecia misteriosamente perturbado, e, receoso de ter dito qualquer coisa penosa, o velho Jolyon mudou de tema: - Quando a minha pequerrucha casar, espero que ela encontre alguém que compreenda o que sentem as mulheres. Não estarei aqui para assistir a isso, porém há excessivas complicações e mal-entendidos nos casamentos, e não quero que ela lute contra essas coisas. - E, com medo de ter entrado em assunto pior, acrescentou: - Esse cachorro vive a coçar-se.

Seguiu-se um silêncio. Em que estaria a pensar aquela linda

criatura cuja vida fora frustrada?

Que se realizara no amor e que ainda estava pronta para o amor? Algum dia, quando já houvesse ido embora, talvez, ela encontraria outro companheiro - -não tão desordenadamente como encontrara aquele louco que se atirara à morte. Ah! E o marido?

- Soames nunca a incomoda? - perguntou ele.

Ela sacudiu a cabeça. O seu rosto erguera-se subitamente. Apesar de toda a sua meiguice, havia nele algo de inconciliável. E um raio de luz, clareando a inexorável natureza das antipatias do sexo, brilhou naquele cérebro, que, pertencendo à mais remota civilização vitoriana - tão mais velha que a sua própria velhice - nunca pensara em coisas assim primitivas.

- é uma consolação - disse ele. - Você, se quiser, pode ver hoje, daqui, o Grand Stand. Quer que demos uma volta?

Através do jardim e do pomar, em cujos muros altos se apoiavam pereiras e ameixeiras à procura do sol, através dos estábulos, do vinhedo, da estufa de cogumelos, dos canteiros de espargos, do roseiral, por toda a parte ele a conduzia, até mesmo à horta, para ver as esbeltas ervilhas verdes cujos rebentos Holly gostava de enrolar nos dedos e devorá-los depois nas palmas das mãozinhas.

Muitas outras coisas deliciosas ele lhe mostrou, com Holly e o cão Balthasar a dançarem à frente, ou voltando-se para trás em intervalos de atenção. Aquela era uma das tardes mais felizes que jamais gozara, porém cansara-o, e ele ficou contente quando se sentou na sala de música e deixou que Irene lhe servisse o chá. Uma amiguinha de Holly chegara de visita, uma pequena loura de cabelos curtos como um menino. E as duas brincavam um pouco mais longe, subindo e descendo a escada e correndo pela galeria. O velho Jolyon pediu um pouco de Chopin. Ela tocou uns estudos, mazurcas, valsas, até que as duas crianças, que já brincavam ali perto, puseram-se em pé, junto do piano - a cabeça morena junto da cabeça loura - a escutarem. O velho Jolyon olhava-as.

- Dancem um pouco, vocês duas!

Timidamente, com alguns passos em falso, as garotas começaram. Volteando com força, sem grande prática, elas passavam junto à cadeira do avô nos giros da valsa. O velho vigiava-as e à moça que tocava, cujo rosto sorridente se voltava para as dançarinas, fazendo-o pensar: «Há muitos anos que não vejo quadro tão encantador!» De repente uma voz exclamou:

- Oli! Mais enfin-qu'est-ce que tu fais là - danser, le dimanche! Viens donc!

As crianças chegaram-se ao velho Jolyon, pois sabiam que ele as protegeria, e fitavam a cara de «flagrante» de Mademoiselle Beauce.

- Melhor o dia, melhor a acção, Mam'selle. O culpado fui eu. Andem, garotas, vão tomar chá.

E quando elas saíram, seguidas pelo cão Balthasar, que tomava parte em todas as refeições, ele olhou para Irene, piscou o olho e disse:

- E então? Não são engraçadinhas? Você tem algumas alunas assim pequeninas?

- Tenho três. Duas delas são uns amores.

- Bonitas?

- Lindas!

O velho Jolyon aprovou com a cabeça, ele tinha um insaciável interesse pelos pequeninos.

- A minha pequerrucha - disse ele - adora música. Há-de ser uma musicista, mais tarde. Será que você poderá dar-me a sua opinião sobre as aptidões dela?

- Naturalmente posso.

- Será que você quereria... - Porém ele abafou o resto da frase: «dar-lhe lições?» Era-lhe desagradável a ideia de que ela vivia a dar lições, mesmo quando isso significava que poderia vê-la regularmente. Irene deixou o piano e caminhou até à cadeira dele.

- Quero muito. Porém há... June. Quando é que eles voltam.'' O velho Jolyon franziu o cenho.

- Não antes do meado do mês que vem. Mas que significa isso?

- O senhor disse que June me perdoou, porém ela nunca pode esquecer, tio Jolyon.

Esquecer! Ela teria de esquecer, se ele o queria.

Mas, como se lhe respondesse, Irene sacudiu a cabeça.

- O senhor sabe muito bem que ela não o pode, ninguém esquece.

Sempre aquele desgraçado passado! E ele disse, numa espécie de vexada conclusão:

- Bem, veremos isso.

Conversou com ela durante uma hora ou mais, acerca das crianças, de uma centena de pequenas coisas, até que o carro chegou para a levar a casa. E depois que a moça partiu, ele voltou à sua cadeira, sentou-se, amassando com a mão longa a face e o queixo, cismando no dia que acabara.

Naquela noite, depois do jantar, o velho Jolyon foi até ao seu escritório e apanhou uma folha de papel. Ficou um instante a olhá-la, sem escrever, depois ergueu-se e parou junto à obra-prima Barcos de pesca Holandeses ao pôr-do-Sol. Não estava a pensar no quadro, mas na sua vida. Cogitava em deixar qualquer coisa para Irene no seu testamento, e ideia nenhuma poderia agitar-lhe mais as profundezas do pensamento e da memória. Pensava em deixar a Irene uma parte da sua fortuna, das suas aspirações, das suas acções, das suas qualidades, do seu trabalho - porque fora isso tudo que lhe produzira a fortuna, pensava em deixar-lhe também uma parte do que perdera na vida, por culpa da sua sadia e rápida procura da fortuna. Ah! Que perdera ele? «Os barcos holandeses» não lhe respondiam nada. Chegou até à sacada, e, puxando a cortina para um lado, abriu-a. Soprava um vento forte, e uma das últimas folhas do ano que haviam escapado à vassoura do jardineiro ia rolando com um chiado seco, ao longo do terraço de pedra, na meia luz. Era o único rumor que se ouvia lá fora, aquele leve chiado da folha volante de encontro à pedra, o perfume dos heliotrópios, regados de pouco, chegava-lhe do jardim. Um morcego voejou junto à porta. Um pássaro murmurou num gorjeio sonolento. E exactamente por cima do carvalho luzia a primeira estrela. Fausto, na ópera, trocara a sua alma imortal por alguns anos de juventude. Que mórbida imaginação! Tal troca não é possível, essa é que é a tragédia! Ninguém pode rejuvenescer, nem para a vida nem para o amor. Nada nos resta senão gozar a beleza à distância e deixar-lhe alguma coisa em testamento. Porém quanto? E, como se não lhe fosse possível fazer

tal cálculo dentro da suave liberdade da noite campestre, o velho Jolyon voltou-se e caminhou em direcção à lareira. Lá guardava os seus bronzes de estimação: uma Cleópatra com a víbora no seio, um Sócrates, uma cadela brincando com o filho, um atleta segurando pelas rédeas alguns cavalos. «Esses hão-de durar muito!», pensou ele, sentindo um choque no coração. Ainda teriam mil anos de vida diante de si!

«Quanto?» Bem, o suficiente, em todo o caso, para a proteger da velhice precoce, para afastar o mais possível o aparecimento de rugas naquele lindo rosto, a chegada das cãs naqueles cabelos luminosos. Ele ainda poderia viver uns cinco anos, ela teria então já mais de trinta. «Quanto?» Não corria nela uma gota do seu sangue! E, fiel ao teor de toda a sua vida - desde há mais de quarenta anos, desde realmente que se casara e fundara essa misteriosa coisa, uma família -, um pensamento preveniu-o: «Não tem nada do teu sangue, não tem pois direito a nada!» Era um luxo, então, o seu projecto. Uma extravagância, um capricho de velho, uma dessas coisas absurdamente decididas. O seu real futuro estava entregue àqueles que tinham o seu sangue, àqueles em quem viveria, mesmo depois de se ter ido embora. Voltou as costas aos bronzes e virou-se para a velha poltrona de couro na qual se sentara sempre e onde fumara tantas centenas de charutos. E subitamente pareceu-lhe vê-la sentada ali, no seu vestido cinzento, perfumada, macia, fitando graciosamente nele os seus olhos escuros. Porquê? Ela decerto pouco pensava nele. Só pensava no seu amante morto. Porém sentar-se ali, quer o quisesse ou não, dando-lhe prazer com a sua beleza e a sua graça. Ninguém tem direito de infligir a uma mulher a companhia de um velho, de lhe pedir que toque para ele, que o deixe contemplá-la. E tudo isso por nada! Todo o prazer deve ser pago neste mundo. «Quanto?» Afinal de contas, havia dinheiro de sobra. O filho e os três netos nunca sentiriam falta daquela migalha. Ele próprio o ganhara, praticamente cada penny, poderia deixá-lo para quem o quisesse, conceder a si mesmo esse pequeno prazer. Voltou à secretária. «Bem. vou deixá-los pensar o que quiserem.»

E sentou-se.

Quanto? Dez mil, vinte mil - quanto? Se ao menos, com esse dinheiro, ele pudesse comprar um ano, um mês de mocidade! E, agitado por esse pensamento, escreveu rapidamente:

 

     Meu caro Herring:

Acrescente-me um codicilo nestes termos: «Deixo à minha sobrinha Irene Forsyte, cujo nome de solteira, que igualmente usa, é Irene Heron, a quantia de quinze mil libras, livre de todos os impostos de herança.»

           Seu afeiçoado, Jolyon Forsyte.

 

Depois de selar e lacrar o envelope, o velho Jolyon voltou à sacada e aspirou fortemente o ar. Estava escuro, porém muitas estrelas já estavam a luzir.

 

Acordou às duas e meia - hora que, segundo lhe ensinara uma longa experiência, dava uma intensidade de pânico a todos os pensamentos recalcados. A experiência também lhe ensinara que o ulterior e normal despertar, às oito horas da manhã, mostrar-lhe-ia toda a loucura desse pânico. Naquela madrugada, o pensamento que instantaneamente lhe ocorreu foi que, se ficasse doente, o que na sua idade não era impossível, não poderia vê-la. Daí ia apenas um passo para a ideia de que também se veria afastado dela quando o filho e June voltassem da Espanha. Como poderia justificar o seu desejo pela companhia de alguém que roubara - e a luz da manhã atenuou a palavra - que roubara o noivo de June? Esse noivo estava morto, porém June era uma coisinha extremamente teimosa, com o coração ardente. mas obstinado como aço, e, na verdade, não era dessas que esquecem. Nos meados do mês seguinte deveriam estar de volta. Tinha pois escassamente cinco semanas para gozar aquele novo interesse do seu final de vida. A escuridão tornava-lhe absolutamente clara a natureza do seu sentimento. Admiração pela beleza - um desejo veemente de ver aquilo que lhe deliciava os olhos. Absurdo, na sua idade! E que outra razão usaria para exigir de June que recalcasse as suas penosas reminiscências e como evitar que o filho e a nora lhe estranhassem aquela excentricidade?

Ver-se-ia reduzido a viajar constantemente para Londres, o que o extenuaria, e a menor indisposição impedi-lo-ia de a ver. Jazia deitado, de olhos abertos, cerrando os dentes ante essa perspectiva, chamando-se a si mesmo velho louco, enquanto o coração lhe batia ruidosamente e de repente parecia parar de todo. Viu a alvorada iluminar a janela, ouviu o gorjear dos pássaros madrugadores,, escutou o canto dos galos, antes de adormecer novamente, acordou fatigado, mas recomposto. Cinco semanas antes de ter de se atormentar representavam uma eternidade, na sua idade! Porém o pânico nocturno deixara nele a sua marca, tornara ligeiramente febril a vontade daquele homem que sempre agira ao seu falante. Haveria de vê-la tantas vezes quantas quisesse! Porque não ir pessoalmente à cidade e entregar o codicilo ao tabelião, em vez de escrever um bilhete? Talvez Irene quisesse ir à Ópera? Mas viajaria de comboio, porque não queria ter aquele gordo e abelhudo Beacon a espiá-lo. Os criados são uns idiotas, e, bem ou mal, deveriam estar a par de toda a história de Irene e do jovem Bosinney - os criados sabem de tudo e suspeitam do resto. E o velho Jolyon escreveu então um bilhete para Irene:

 

   Minha querida Irene:

Tenho de ir à cidade amanhã. Se você quiser ir à Ópera, venha jantar sossegadamente comigo...

Mas onde? Havia décadas que ele não jantava em Londres, a não ser no seu clube ou em casas particulares. Ah, aquele lugar novo, junto ao Covent Garden...

.. mande-me uma palavra, amanhã de manhã, ao Tiedmont Hotel, onde a esperarei, às sete horas.

       Afectuosamente, Jolyon Forsyte.

 

Irene compreenderia que ele apenas queria proporcionar-lhe um pequeno prazer, porque instintivamente lhe era desagradável a ideia de que ela talvez adivinhasse a necessidade que sentia de a ver. Não era comum ver-se um homem tão idoso incomodar-se para olhar uma manifestação da beleza, especialmente se a beleza era mulher.

A viagem, no dia seguinte, embora curta, e a visita ao advogado, fatigaram-no. Estava também muito quente, e depois de se vestir para o jantar deitou-se no sofá do quarto para descansar um pouco. Deveria ter tido uma espécie de desmaio, porque voltou a si sentindo-se muito esquisito, e com certa dificuldade ergueu-se e tocou a campainha. Quê! Já passava das sete! E ele ali, e ela decerto à espera! Porém de súbito as tonturas voltaram, e ele viu-se obrigado a voltar ao sofá. Ouviu a voz da criada perguntar:

- O senhor tocou?

- Sim, venha cá. - Não podia vê-la claramente, passava-lhe uma nuvem em frente dos olhos. - Não estou a sentir-me bem, preciso de uns sais voláteis.

- Sim senhor. - A voz da mulher parecia assustada. O velho Jolyon fez um esforço.

- Espere aí. Dê este recado à «minha sobrinha... uma senhora que deve estar à espera no hall, uma senhora vestida de cinzento. Diga-lhe que Mr. Forsyte não está a sentir-se bem... que tem qualquer coisa na cabeça. Que sente muito, e, se ele não aparecer logo, ela não o espere para jantar.

Quando a rapariga saiu, ele pensou febrilmente. «Porque disse eu que era uma senhora de cinzento? Ela pode estar vestida de outra cor. Sais voláteis.» Não pôde levantar-se de novo, nem teve consciência de como Irene chegara, estava de pé ao seu lado, fazia-o cheirar um frasco de sais voláteis, erguia-lhe o travesseiro sob a cabeça. E ouviu-a perguntar ansiosamente:

- Querido tio Jolyon, que foi?

Tinha a obscura consciência do suave roçar dos lábios da moça na sua mão, então aspirou longamente os sais, descobriu subitamente novas energias em si e espirrou.

- Ah! - exclamou. - Não é nada. Como é que você veio até aqui? Vá jantar. Os bilhetes estão na mesa de toilette. Estarei bem dentro de um minuto.

Sentiu na testa a mão fresca da moça, cheirando a violetas, e sentou-se, dividido entre uma espécie de prazer e a determinação de melhorar.

- Ah! Você está de cinzento! Ajude-me. - E, uma vez em pé, sacudiu-se um pouco. - Como é que vou sair assim! - E caminhou lentamente para o espelho. - Que cara cadavérica! A voz de Irene, por trás dele, murmurou:

- O senhor não deve sair, tio Jolyon. Deve repousar.

- Qual nada! Uma taça de champanhe pôr-me-á bom de todo. Não posso fazer que você perca a ópera.

Porém a caminhada através do corredor foi assustadora. Que tapetes tinham posto com aquelas instalações novas, tão grossos que faziam a gente tropeçar a cada passo! No ascensor, ele percebeu quão preocupada ela estava, e com um fantasma de sorriso disse:

- Estou um lindo hospedeiro!

Quando o elevador parou, ele agarrou-se fortemente, para evitar cair, porém depois da sopa e de uma taça de champanhe sentiu-se muito melhor e pôs-se a troçar da doença que provocara tal solicitude nos modos dela para com ele.

- Gostaria que você fosse minha filha - disse-lhe subitamente ele. E, vendo o sorriso nos lábios dela, continuou: - Você não deve viver enterrada no passado, na sua idade, deixe isso para quando estiver velha como eu. É bonito o seu vestido, gosto do estilo dele.

- Fui eu mesma que o fiz.

Ah! Uma mulher que conseguia fazer para si um lindo vestido não perdera decerto o seu interesse pela vida.

- Malhe o ferro enquanto está quente - disse ele, estendendo-lhe a taça. - E toque aqui. Gostaria de ver alguma cor no seu rosto. Não devemos estragar a vida, não se pode fazer isso. Vamos ver hoje uma nova Margarida, esperemos que não seja gorda. E o Mefistófeles.. não creio que seja muito assustador: algum gorducho fingindo de Diabo.

Porém acabaram por não ir mesmo à Ópera, porque, quando se ergueram da mesa, as tonturas dele voltaram e Irene insistiu para que o tio repousasse e fosse deitar-se cedo. Quando ele se separou dela, à porta do hotel, depois de pagar ao cocheiro que a levaria até Chelsea, sentou-se durante um instante, para gozar de novo as palavras que Irene dissera: «Quero-lhe tanto, tio Jolyon!» Porquê? Não podia ser! Ele gostaria de se levantar no dia seguinte, para a levar ao jardim zoológico, porém dois dias da sua companhia poderiam enjoá-la mortalmente. Não, tinha de esperar até ao próximo domingo. Ela prometera aparecer então. Combinariam as lições de Holly, pelo menos por um mês. Já era alguma coisa, Mam'selle Beauce não gostaria muito, porém pouco importava. E, apertando contra o peito o seu velho chapéu de ópera, ele entrou no elevador.

No dia Seguinte, apanhou um carro para a estação de Waterloo, abafando o desejo de dizer: «Passe por Chelsea.» Porém o seu senso de proporção era muito forte. Além disso, ainda se sentia abalado, e não queria arriscar-se a outra aberração como a da véspera, fora de casa, Holly também o esperava, e esperava o que ele lhe traria na maleta. Não que o amor da sua pequerrucha fosse interesseiro - ela era toda amor. Então, com aquele cinismo amargo dos velhos, perguntou a si próprio, durante um segundo, se não era o interesse que aproximava Irene de si. Não, ela não era uma mulher dessa espécie. Não tinha, coitadinha, a menor noção de como obter a manteiga para o pão, nenhum senso de propriedade! Além disso, não lhe dissera uma única palavra a respeito do codicilo, nem a diria - bastaria que ela o conhecesse depois que ele se fosse.

Na estação, dentro da vitória, Holly esperava-o, segurando o cão Balthasar, e as carícias dos dois alegraram-lhe a volta para casa. Durante todo o resto daquele dia lindo e quente, e na maior parte do dia seguinte, ele sentiu-se alegre e calmo, repousando na sombra, enquanto o sol luminoso banhava de ouro os campos e as flores. Porém, na quinta-feira à noite, no seu jantar solitário, o velho começou a contar as horas, faltavam sessenta e cinco horas até que ele pudesse ir ao seu encontro no bosque e caminhar ao lado dela através do campo. Pretendera consultar o médico a respeito da sua dor do lado, mas decerto insistiria para mantê-lo em repouso, e não pretendia deixar-se amarrar pela perna, não queria que lhe falassem em doenças - se lhe chegara a moléstia, não tomaria conhecimento dela - agora que este novo interesse lhe surgira. E evitou cuidadosamente fazer qualquer referência à doença na carta que escreveu ao filho. Só conseguiria, se o fizesse, que eles voltassem imediatamente. E nunca cogitou em descobrir se o seu silêncio visava poupar o prazer deles ou se visava antes proteger o seu próprio prazer.

Naquela noite, no escritório, o velho Jolyon acabara o charuto e estava a dormitar quando ouviu o roçagar de um vestido e pareceu-lhe sentir o cheiro de violetas. E, abrindo os olhos, viu-a, em pé junto à lareira, de braços erguidos. O engraçado é que os braços da moça não pareciam segurar nada, estavam curvados como se rodeassem o pescoço de alguém, e o pescoço dela estava deitado para trás, os lábios entreabertos, os olhos fechados. Desapareceu de súbito e ficaram visíveis apenas a lareira e os bronzes. Mas quando ela estava ali não havia nem lareira nem bronzes, apenas o fogo e a parede! Abalado, perturbado, ergueu-se. «Tenho de tomar um remédio», pensou. «Não estou a sentir-me bem.» O coração batia-lhe depressa de mais e sentia uma sufocação no peito. Caminhando para a janela, escancarou-a. Um cão uivava lá longe, decerto um dos cães da granja de Gage, para além do bosque. Uma noite linda, mas escura. «Estive a sonhar», murmurou ele. «Mas juraria que os meus olhos estavam abertos.» Um som, semelhante a um soluço, pareceu chegar em resposta.

-- Que é isto? - perguntou o velho asperamente. - Quem é?

Levando a mão ao peito, para deter as pancadas do coração, caminhou até ao terraço. Uma coisa macia correu na escuridão. Era o grande gato cinzento. «O moço Bosinney parecia um gato», pensou o velho. E era ele que estava ali... quando ela estava... Ele ainda a dominava! Andou até ao fim do terraço e olhou através da escuridão, mas via apenas a sombra clara das boninas no campo, sem luar que o clareasse. Estar aqui hoje, e ir embora amanhã! E lá vinha a Lua, que os via com tristezas! Breve chegaria a sua vez. Por um único dia de mocidade daria tudo o que lhe restava. E caminhou novamente para casa. Dali podia ver as janelas do quarto de dormir das crianças. A sua pequerrucha deveria estar a dormir. «Espero que aquele cachorro não a acorde», pensou o avô. «Que é que nos faz amar e nos faz morrer? Devo ir para a cama.»

E tornou a atravessar o terraço, cujas pedras a luz acinzentava.

 

Como poderia um velho passar os seus dias, se não sonhasse com as coisas boas do passado? Nessas lembranças não há nenhuma agitação, nenhum calor, apenas a pálida irradiação de um sol de Inverno. O frágil envoltório do velho pode muito bem suportar a suave trepidação dos dínamos da memória. O presente não lhe merece confiança, o futuro escapa-lhe. De sob a sombra espessa fica a vigiar o brilho do sol que lhe toca os pés. E se há sol de Verão em Novembro, não o deixeis aventurar-se sob os seus raios, supondo que é apenas um sol de Outono! Isso fá-lo desaparecer, lenta, suave, imperceptivelmente, até que a impaciente Natureza, agarrando-o pela garganta, o arrastasse para a morte, em plena madrugada, antes que o mundo começasse a despertar. E gravariam na lousa da sepultura: «Na força da idade.» Sim! Um Forsyte, se consegue preservar os seus princípios em perfeita ordem, pode viver depois de morto.

O velho Jolyon tinha consciência de tudo isso, e havia a mais, dentro dele,, algo que transcendia o forsytismo. Porque está escrito que um Forsyte não pode amar a beleza mais que a razão, nem os seus caprichos mais que a sua saúde. E pulsava dentro dele, naqueles dias, qualquer coisa que lhe abalava o frágil envoltório. A sua sagacidade bem o percebia, porém ela percebia também que não lhe estava nas forças parar aquele pulsar, nem o queria, se o pudesse. E mais ainda: se alguém lhe dissesse que ele estava a viver do seu capital, encararia espantado esse alguém.

Não, não, um homem não pode viver do seu capital. Isso não se faz!

As alusões do passado eram sempre mais reais do que as actualidades do presente. E ele, para quem a sugestão de viver do capital seria um anátema, não suportaria a ideia de ter incorrido em anátema no seu próprio caso. O prazer é sadio, a beleza é boa de olhar, e viver com a juventude dos moços - não era senão isso o que estava a fazer!

Metodicamente, como sempre procedera em toda a vida, arranjou agora o seu tempo. Nas terças-feiras ia até à cidade, de comboio, Irene vinha jantar com ele. Depois iam à Ópera. Nas quintas-feiras ia à cidade de carro, largava por lá o gordo espião e os seus cavalos, ia encontrar a moça em Kensington Gardens. apanhando a carruagem depois que a deixava e voltando para casa ainda a tempo de jantar. E explicava negligentemente que tinha negócios em Londres nesses dois dias. Nas quartas e domingos ela vinha para dar lições de música a Holly. E quanto maior era o prazer que ele tinha na companhia dela, tanto maior o escrupuloso cuidado que empregava em manter-se apenas na sua amigável posição de velho tio. Não, nem mesmo intimamente, na verdade, se imaginara mais que isso, porque, afinal de contas, lá estava a sua idade a detê-lo. E entretanto, quando a moça se atrasava, afligia-se mortalmente. Se ela deixava de vir, o que aconteceu duas vezes, os seus olhos ficavam tristes e mortiços como os de um cão velho, e punha-se a dormitar.

E assim se passou um mês, um mês de Verão nos campos e no seu coração, com o calor do Verão e a fadiga decorrente. Quem poderia acreditar algumas semanas atrás que ele pudesse encarar a volta do filho e da neta com tanto pavor? Era tão deliciosa a liberdade, a recuperação da independência de que um um homem goza antes de fundar uma família, naquelas semanas de temperatura adorável e de novel companheirismo, no qual um dos companheiros não pedia nada e permanecia sempre um pouco desconhecido, retendo em si toda a fascinação do mistério! Era como um trago de vinho, para ele que vinha a beber água há tanto tempo, e já quase esquecera o estímulo para o sangue e o narcótico para o cérebro que o vinho lhe trazia. As flores tinham um colorido mais brilhante, os perfumes, a música e a luz do sol tinham um valor vivo - já não eram simples recordações de prazeres remotos. Havia agora alguma coisa a viver, cuja previsão o agitava continuamente. E o velho Jolyon vivia daquilo, não da saudade, e a diferença é considerável para alguém tão velho como ele. Os prazeres da mesa, nunca muito importantes para quem já era naturalmente abstémio, perderam de todo o valor. Comia pouco, sem reparar no que comia, e cada dia parecia mais magro e mais abatido. Tornara-se de novo o «magricela», e a fronte maciça, com as têmporas fundas, dava mais dignidade ainda àquela delgada silhueta. Ele sabia muitíssimo bem que lhe era indispensável consultar um médico, porém a liberdade era tão doce! E não suportava a ideia de cuidar da sua dor de lado e da dispneia em troca da sua liberdade. Voltar à existência vegetativa que levara, entre os jornais de agricultura, de gravuras coloridas, tal como vivia antes que esta nova atracção lhe penetrasse na vida - não! Excedeu a sua dose de charutos, sempre se limitara a dois por dia. Agora fumava três, e às vezes quatro--é o que um homem faz quando está cheio do espírito criador. Porém muitas vezes pensava: «Devo deixar de fumar e de tomar café, devo acabar com essas viagens à cidade.» Mas não o fazia. Não havia pessoa alguma que pudesse ter alguma autoridade sobre ele, e isso era uma dádiva inapreciável. As criadas talvez se espantassem, porém eram naturalmente mudas. Man'selle Beauce vivia muito preocupada com a sua própria digestão e era «muito bem-educada» para fazer alusões pessoais. Holly ainda não tinha olhos para distinguir as mudanças de fisionomia daquele que era o seu brinquedo e o seu deus. Restava pois Irene, Irene, para lhe pedir que comesse um pouco mais, que repousasse nas horas quentes do dia, que tomasse um tónico, etc. Mas a moça não lhe disse que era ela própria a causa daquela magreza, pois ninguém pode enxergar os estragos que causa. Um homem de oitenta e cinco anos já não tem paixões, porém a Beleza que produz as paixões age à maneira de sempre, até que a morte feche os olhos que imploraram o direito de a contemplar.

No primeiro dia da segunda semana de Julho o velho Jolyon recebeu uma carta do filho, vinda de Paris, informando-o de que estariam todos de volta na sexta-feira. Aquilo sempre fora mais certo que o Destino, mas, com a patética imprevidência dos velhos, imprevidência que devem suportar até ao fim, ele nunca admitira inteiramente essa eventualidade. Agora tinha de a admitir, e alguma coisa deveria ser feita. Já não era capaz de imaginar a vida sem aquele novo interesse, mas aquilo que não é imaginado às vezes existe, como perpetuamente e à sua própria custa os Forsyte estavam sempre a descobrir.

Sentou-se na sua velha cadeira de couro, dobrando a carta nas mãos e apertando nos lábios o resto de um charuto apagado. Depois de amanhã tinham de ser abandonadas as suas expedições de quarta-feira à cidade. Poderia talvez ir ainda uma vez por semana, a pretexto de ver o procurador. Mas tudo dependeria da sua saúde, porque agora iriam todos fazer barulho ao seu redor. E as aulas de música? As aulas teriam de acabar? Ela poderia abrir mão dos seus escrúpulos, e June podia muito bem pôr os seus sentimentos no bolso. Fizera-o uma vez, no dia da morte de Bosinney, e o que ela fizera então poderia certamente repetir agora. Já se haviam passado quatro anos depois que aquele insulto lhe fora infligido - e não é próprio de um cristão alimentar velhos rancores. A vontade de June era forte, porém a dele era mais forte ainda, porque a areia da sua ampulheta já estava quase escoada.

Irene era dócil, e decerto concordaria em fazer isso por ele, preferindo dominar os seus receios a fazê-lo sofrer! As aulas deveriam continuar. Enquanto continuassem, ele estava seguro. E, acendendo afinal o charuto, o velho Jolyon começou a procurar maneiras de informar os seus da estranha intimidade que se desenvolvera entre si e Irene. Como velar e encobrir a nua verdade - que ele não podia ser privado do espectáculo da beleza? Ah! Holly! Holly ficara, louca por ela, Holly gostava muito das aulas. Ela é que iria salvá-lo, a sua pequerrucha! E com aquele pensamento feliz acalmou-se e admirou-se de se ter assustado tanto. Não devia assustar-se, porque depois sentia-se curiosamente fraco, como se só estivesse presente pela metade no seu corpo.

Naquela noite, depois do jantar, teve uma volta das tonturas, embora não desmaiasse. Não tocou a campainha, porque sabia que isso provocaria um alarme e tornaria mais escandalosa a sua ida a Londres no dia seguinte. Quando a gente envelhece, o mundo inteiro conspira para nos limitar a liberdade, e por que razão? Para nos manter o fôlego no peito durante um pouquinho mais de tempo. Pois ele não queria viver por tal preço. Só o cão Balthasar testemunhou a sua lenta melhora desse ataque, vigiou ansiosamente o dono, que foi até ao armário e tomou um trago de brandy, em vez de lhe dar um biscoito. Quando afinal se sentiu capaz de subir as escadas, o velho Jolyon foi para a cama. E, embora ainda um pouco abalado, na manhã seguinte o pensamento na tarde sustinha-o e dava-lhe energia. Era sempre uma alegria oferecer um bom jantar a Irene - ele desconfiava que ela se alimentava mall quando estava só-, e na Ópera era um prazer ver os olhos dela animarem-se e brilhar, ver-lhe o inconsciente sorriso nos lábios. Ela não tinha muitos divertimentos, e era aquela a última vez que a poderia convidar. Porém, quando estava a preparar a maleta, surpreendeu-se ao descobrir que preferiria não ter de enfrentar o trabalho de se vestir para o jantar e o esforço de falar a Irene acerca da chegada de June.

Naquela noite a ópera era Carmen e ele escolheu o último entreacto para lhe dar as notícias, deixando-as instintivamente para o derradeiro momento. Irene ouviu-as serenamente, silenciosamente. E ele não pôde saber como ela recebera a comunicação, pois a orquestra começou a tocar e o silêncio impôs-se. A máscara de sempre cobria-lhe a face, aquela máscara por trás da qual se escondia tanta coisa que ele não podia ver. Sem dúvida, ela precisava de tempo para pensar! Não queria apressá-la, porque Irene deveria vir dar a sua aula no dia seguinte à tarde, quando já estivesse habituada à ideia. No carro, falou apenas na Carmen: já vira melhores, noutro tempo, porém aquela não era má de todo. Quando lhe segurou a mão para dizer-lhe «boa noite», ela avançou silenciosamente o rosto e beijou-lhe a fronte.

- Adeus, tio Jolyon. o senhor foi tão bom para mim!

- Então até amanhã - disse ele. - Boa noite. Durma bem. Ela repetiu docemente:

- Durma bem!

E através da janela do cab, que já rodava, ele viu o rosto da moça, acompanhando-o com o olhar, e a mão agitando-se num adeus demorado.

Subiu lentamente ao quarto do hotel. Nunca lhe davam o mesmo, de maneira que ele jamais se podia habituar àqueles quartos de dormir novos em folha, com os móveis novíssimos e tapetes de um verde cinzento, semeados de rosas vermelhas. Sentia-se insone e a Habanera ressoava-lhe na cabeça. O seu francês nunca lhe chegara para apanhar todas as palavras, porém conhecia o sentido da letra - se é que tem algum sentido essa coisa de ciganos, selvagem e inexplicável. Mas o facto é que existe na vida algo que derruba todos os nossos planos e cuidados - algo que faz que homens e mulheres dancem ao som da sua gaita. E ele continuava deitado, com os olhos fundos abertos para a escuridão, donde estava suspenso o inescrutável, aquilo. A gente pensa que deteve a vida entre as mãos, no entanto, aquilo desliza-nos para as costas, segura-nos pela nuca, sacode-nos para lá e para cá, e depois, sem se saber como, espreme a vida de dentro de nós! Ele não se admiraria se aquilo ousasse estender a mão às próprias estrelas, esfregar-lhes o nariz, uma contra a outra, e arrojá-las aos pares pelo espaço! Aquilo nunca se cansava de fazer das suas. Cinco milhões de pessoas vivem nesta babélica cidade, e todas elas à mercê dessa Força de Vida, como um alqueire de ervilhas secas que esperam ser debulhadas. Ah, ora pois! Ele é que não teria de esperar muito. E um bom sono haveria de fazer-lhe bem.

Como fazia calor ali! Como fazia barulho! A fronte do velho Jolyon ardia, ela beijara-lhe a fronte exactamente onde ele sempre o desejara, era como se ela soubesse do lugar exacto e quisesse beijá-lo ali, para varrer os maus cuidados. Mas os lábios dela haviam deixado como uma queimadura dolorosa. Ela nunca falara com aquela voz, nunca lhe fizera aquele gesto demorado, nem olhara para trás, para ele, quando se ia embora. Ergueu-se da cama e afastou as cortinas, o quarto dava para o rio. Havia pouco ar, porém a visão daquele lençol, fluente, calmo, eterno, pacificou-o. «O principal», pensou ele, «é não me tornar um mal para mim mesmo. Vou tratar de pensar na minha pequerrucha e dormir.» Mas ainda demoraria muito para que o calor e a trepidação nocturna de Londres morressem no curto repouso da madrugada de Verão. E o velho Jolyon mal conseguiu dormitar.

Quando chegou a casa, no dia seguinte, encaminhou-se para o jardim, e, auxiliado por Holly, que era extremamente jeitosa no trato das flores, apanhou um grande ramo de cravos. Destinavam-se, informou ele à pequenina, «à moça de cinzento», nome que os dois davam a Irene. E ele pô-los num vaso, no seu escritório, onde esperava reter Irene no momento da chegada, para lhe falar a respeito de June e das futuras lições. O cheiro e a cor das flores ajudariam a conversa penosa. Depois do almoço, deitou-se um pouco, porque se sentia muito cansado, e a carruagem não a traria da estação antes das quatro horas. Mas começou a ficar inquieto quando a hora se aproximou, e subiu à sala de aula, donde se avistava a estrada. As cortinas estavam descidas, Holly e Mademoiselle Beauce, protegidas do calor abafante daquele dia de Julho, cuidavam dos bichos-de-seda. O velho Jolyon tinha uma antipatia especial por aqueles bichos metódicos, cuja cabeça e cuja cor lhe lembravam minúsculos elefantes, que esburacavam impiedosamente as lindas folhas verdes e desprendiam um cheiro insuportável. Sentou-se num banco forrado de cretone, junto à janela, donde podia avistar a estrada e gozar a frescura. O cão Balthasar, que gostava daquele banco, nos dias quentes, pulou-lhe ao lado. Sobre o pequeno piano, coberto com um pano violeta, que de tão desbotado já parecia cinzento, espalhavam-se as primeiras flores de alfazema, cujo cheiro enchia a sala toda.

E apesar do fresco, ou talvez por causa dele. a pulsação da vida impressionava-lhe veementemente os sentidos abatidos. Cada raio de sol que penetrava até ali tinha um brilho incómodo, o próprio cachorro tinha um cheiro forte, o perfume da alfazema era insuportável, os bichos-de-seda, coreoveando o dorso esverdeado, pareciam terrivelmente vivos, e a cabeça escura de Holly, curvada sobre eles, tinha um admirável brilho sedoso. Coisa maravilhosamente forte e cruel é a vida, quando se é velho e fraco, parece troçar de nós, com a sua multiplicidade de formas, a sua vitalidade palpitante. Nunca lhe ocorrera, até àquelas últimas semanas, essa curiosa sensação de estar com metade de si mesmo arrastada na correnteza da vida, e a outra metade, na margem, assistindo àquela corrida desenfreada.

E só quando Irene estava presente perdia essa impressão de desdobramento.

Holly volveu a cabeça, apontou o dedinho moreno para o piano - embora apontar com o dedo não fosse próprio de meninas «bem-educadas» -e disse timidamente:

- Olhe a «moça de cinzento)), avô, não está bonita hoje? O coração do velho Jolyon deu um salto, e durante um segundo

a sala pareceu-lhe enevoada, depois clareou, e ele disse, com um piscar de olhos, à pequenina:

- Quem a enfeitou?

- Mam'selle.

- Oh! Não diga tolices!

Aquela francesa, que mulherzinha tola! Ela ainda não se conformara com a ideia de lhe terem tirado as aulas de música. Ela que não o ajudaria. A pequerrucha era a única amiga que eles tinham. Mas, afinal, as aulas eram para ela. E ele é que não iria ter cerimónias- cerimónias por coisa alguma. Fez festas no pêlo quente de Balthasar e ouviu Holly dizer:

- Quando a mamã chegar, não vai haver mudanças, pois não? O avô sabe que ela não gosta de gente estranha.

As palavras da criança pareceram renovar a fria atmosfera de oposição em torno do velho Jolyon e revelar as ameaças existentes à sua recente liberdade. Ah, só lhe restava resignar-se a ser um velho, à mercê da tirania do amor e do cuidado dos seus. ou então lutar pela sua nova e preciosa camaradagem. E a luta cansava-o mortalmente. Porém aquele rosto magro e gasto endurecia-se na sua determinação, parecendo transformar-se todo na obstinada maxila. Estava na sua casa, tratava dos seus assuntos. Não faria cerimónias! Olhou para o relógio, magro e velho como ele próprio: possuía-o há cinquenta anos. Já passava das quatro! E, beijando de passagem o altto da cabeça de Holly, caminhou para a entrada. Queria apanhá-la antes que ela subisse para a lição. Ao primeiro som das rodas, parou, e viu imediatamente que a vitória estava vazia.

- O comboio passou, sir. Mas a senhora não veio nele.

O velho Jolyon ergueu para o gordo cocheiro um olhar acerado, como se quisesse enxotar-lhe a curiosidade e desafiá-lo a descobrir o amargo desapontamento que sentia.

Dirigiu-se ao escritório e sentou-se, trémulo como uma folha. Que significaria aquilo? Ela poderia ter perdido o comboio, porém ele sabia muito bem que isso não acontecera. «Adeus, querido tio Jolyon.» Porquê «adeus , e não «boa noite..? E aquele adeus dela, demorando-lhe a mão no ar. E o beijo. Que significaria tudo aquilo? Apoderou-se dele um alarme veemente e irritante. Ergueu-se e pôs-se a andar sobre o tapete turco, entre a janela e a parede. Ela tratava de afastá-lo - ele sentia-o - e via-se indefeso. Um velho a querer gozar da contemplação de uma beleza! Era ridículo! A idade fechava-lhe a boca, paralisava-lhe a faculdade de lutar. Não tinha direito a nada que significasse calor e vida. Não tinha direito a nada, senão a saudade e tristeza. Não poderia fazer súplicas a Irene, pois até um velho tem a sua dignidade. Indefeso! Durante uma hora, esquecido da fadiga física, passeou de lá para cá. em torno do vaso de cravos que colhera e cujo perfume parecia um escárnio. Entre todas as coisas difíceis de suportar, o abatimento da força de vontade é uma das mais difíceis, para alguém que sempre agiu como entendia. A Natureza prendera-o na sua rede, e, como um peixe apanhado, ele debatia-se entre as malhas, aqui e ali, sem encontrar uma saída, um ponto fraco. Às cinco horas trouxeram-lhe o chá e uma carta. Durante um momento a esperança possuiu-o: cortou o envelope com a faca da manteiga e leu:

 

     Querido tio Jolyon,

É-me insuportável a ideia de que estou a escrever qualquer coisa que o vai desapontar, mas ontem à noite não tive coragem para lhe falar francamente. Sinto que não posso mais ir aí, e dar aulas a Holly, agora que June está de volta. Certas coisas são profundas de mais para ser possível esquecê-las. Era-me uma alegria tão grande vê-lo e à Holly. Talvez eu ainda possa vê-la, algumas vezes, quando o senhor vier até aqui. embora tenha a certeza de que as viagens lhe fazem mal, tenho verificado que o fatigam muito. Creio que o senhor deve manter-se no maior repouso possível, durante este tempo de Verão, e agora, que tem de volta o seu filho e June, há-de sentir-se feliz. Obrigada um milhão de vezes por todo o afecto que me tem proporcionado.

         Carinhosamente, Irene.

 

Então era isso! Não fazia bem, a ele, sentir-se feliz e gozar daquilo a que dava o maior valor, não lhe fazia bem a tentativa de afastar o pensamento do inevitável fim de todas as coisas, da aproximação da morte nos seus furtivos e silenciosos passos. Não lhe fazia bem! Nunca ela compreendera, então, que era o seu último interesse na vida, a encarnação de toda a beleza, que sentia fugir de si!

O chá esfriou, o charuto ficou apagado, e ele continuava a passear, acima e abaixo, girando em torno da sua dignidade e do seu agarramento à vida. Era intolerável sentir-se lentamente abafado, sem poder dizer uma palavra, continuar a viver quando a nossa vontade está nas mãos dos outros, dobrando-nos ao peso de cuidados e de amor. Intolerável! Ele queria ver o que aconteceria se dissesse a verdade a Irene - a verdade: que preferia continuar a vê-la do que continuar a viver. Sentou-se à sua velha secretária e agarrou a caneta. Porém não podia escrever. Havia algo de revoltante em ter de suplicar tal coisa, suplicar que ela continuasse a aquecer-lhe o olhar com o espectáculo da sua beleza. Seria o mesmo que confessar uma demência. Não podia realmente fazer isso. E escreveu pois:

 

Eu esperava que a lembrança de velhos desgostos não viesse antepor-se ao que representava uma alegria e um benefício para mim e para a minha netinha. Mas os velhos devem aprender a recalcar a sua vontade, são obrigados a isso, e até mesmo a vontade de viver tem de ser recalcada, cedo ou tarde. E, talvez, quanto mais cedo, melhor.

     Com grande carinho, Jolyon Forsyte.

 

«Muito amargo», pensou. «Mas não posso evitá-lo. Estou cansado.» Selou um envelope e pô-lo na caixa, para apanhar o correio da tarde, e, ouvindo a carta cair, pensou: «Lá vai tudo o que eu mais queria!)

Nessa noite, depois do jantar, em que mal tocou, e do charuto, que deixou meio queimado, porque lhe provocava tonturas, subiu vagarosamente a escada e entrou como um ladrão na nursery. Sentou-se junto à janela. Uma lamparina estava acesa, e ele mal podia ver o rostinho de Holly, com uma das mãos sob a face Um bezouro zumbia no papel japonês com que tinham coberto a gelosia e um dos cavalos na cocheira pateava inquieto. Ah, dormir como aquela criança! Afastou um pouco duas pregas da cortina e olhou para fora. A Lua ia subindo, cor de sangue. Jamais vira uma Lua tão rubra. Os bosques e os campos também estavam a dormir, nos últimos e apagados clarões de Verão. E a beleza povoava-os, tal como um espírito. «Tive uma longa vida», pensou ele. «Tive o melhor de quase tudo. Sou um ingrato, vi muita beleza enquanto vivi. O pobre Bosinney disse que eu tinha o sentimento da beleza. Lá está um homem na Lua!» Veio uma mariposa, outra, mais outra. «Moças de cinzento!» Fechou os olhos. Acometeu-o o sentimento de que nunca mais os abriria: e deixou-se ir, deixou-se afundar, então, com um arrepio, ergueu as pálpebras. Qualquer coisa devia estar a funcionar mal dentro dele. decerto, profundamente mal: devia ter consultado o médico, afinal de contas. Já agora, não importava muito! Lá no bosque, o luar já se devia ter insinuado, haveria sombras, e essas sombras seriam as únicas coisas despertas. Nem pássaros, nem animais, nem flores, nem insectos: só as sombras se moveriam. «Moças de cinzento!» Deslizariam por sobre o tronco caído, e, juntas, trocariam murmúrios. Ela e Bosinney! Pensamento cómico! E os sapos haveriam de sussurrar também, tal como o relógio sussurrava ali dentro.

Era tudo fantástico - lá fora, à luz daquela Lua vermelha: e aqui dentro, com a pequena luz firme da lamparina, o tiquetaque do relógio, o avental da ama, pendente do ângulo do biombo, alto, igual a um vulto de mulher. «Moças de cinzento!» E um singularíssimo pensamento apossou-se dele: «Será que ela existe? Será que ela realmente apareceu?» Ou seria apenas uma emanação de toda

a beleza que ele amara e que deveria abandonar tão depressa? Um espírito vestido de lilás e cinzento, de olhos escuros e coroado de cabelos cor de âmbar, que vagueava por ali, pela madrugada e nas noites de luar, no tempo das campânulas? Que era ela, quem era ela, se realmente existia? O velho ergueu-se e ficou de pé um momento, agarrando-se à umbreira da janela, para manter ainda um certo sentido da realidade, depois caminhou na ponta dos pés em direcção à porta. Parou junto à cabeceira da cama, e Holly, como se tivesse consciência dos olhares do avó fixos em si, mexeu-se, suspirou e enroscou-se mais, como defendendo-se. Ele continuou na ponta dos pés, e atravessou a entrada escura, atingiu o seu quarto, despiu-se logo, e parou, defronte a um espelho, vestido na camisa de dormir. Que espantalho - que têmporas fundas, que pernas finas! Mas os olhos resistiram-lhe à própria imagem, e um olhar de orgulho iluminou-lhe o rosto. Tudo estava coligado para o abater, até mesmo o seu próprio reflexo no espelho, porém ele ainda não estava caído, ainda não! Dirigiu-se à cama, e ficou deitado um tempo enorme, sem dormir, procurando encontrar resignação. Mas apenas sentia a consciência de que aquela aflição, aquele desapontamento, lhe faziam muito mal.

Levantou-se no dia seguinte tão descorado e sem forças que mandou chamar o médico. Depois de o auscultar, de cara sombria, o doutor ordenou-lhe que ficasse de cama e suspendesse o fumo Aquilo não era difícil. Já não tinha nada a deixar, e, quando se sentia doente, o charuto perdia o sabor. Passou languidamente a manhã, com os estores descidos, revirando nas mãos o Times, sem ler quase nada,, com o cão Balthasar deitado aos pés da cama. Junto à bandeja do almoço trouxeram-lhe um telegrama com estes dizeres:

 

Recebi a sua carta, espere-me hoje à tarde às quatro e meia.

   Irene.

 

Esperá-la! Depois de tudo! Então ela existia -e ele não fora abandonado? Ela vinha! Um novo ardor animou-lhe o corpo, as faces e a testa aqueceram-se-lhe. Comeu a sopa. empurrou a mesinha, e ficou deitado, silencioso, até que removeram o almoço e o deixaram só: mas os seus olhos já piscavam animadamente de novo. Ela vinha! O coração batia-lhe mais depressa, e às vezes parecia não bater de todo. Às três e meia levantou-se e vestiu-se decidida e silenciosamente. Holly e Mam'seille deviam estar na sala de aula, e as criadas deveriam na certa estar a dormitar a sua sesta. Abriu cuidadosamente a porta e desceu para o andar térreo. No hall, o cão Balthasar estirava-se ao chão, solitário, e, acompanhado por ele, o velho Jolyon atravessou o seu escritório e saiu para a tarde ensolarada. Tencionava ir até lá fora e encontrá-la no bosque, mas sentiu logo que não lhe seria possível tal esforço com o calor que fazia. Sentou-se sob o carvalho, junto ao balouço, e o cão Balthasar, que também sentia calor, deitou-se-lhe aos pés. O velho Jolyon ficou sentado, sorridente. Que minutos resplandecentes! Quantos zumbidos de insectos e arrulhos de pombos! Era como a quinta-essência de um dia de Verão. Adorável! E ele sentia-se feliz. Feliz como um menino.

Ela vinha, não o abandonara! Ele tinha tudo o que quisera na vida, excepto um pouco mais de fôlego, um pouco menos de peso no peito - só um pouco! Queria vê-la quando ela emergisse da ternery, caminhando um pouquinho inclinada - um vulto de cinzento-lilás, passando por entre as margaridas e os dentes-de-leão do campo, entre as plantas com as suas corolas floridas. Ele não se moveria, porém ela chegaria até ele e diria: «Querido tio Jolyon, sinto muito!» E sentar-se-ia no balouço e deixá-lo-ia ajudhá-la e dizer-lhe que não passara muito bem, mas que agora se sentia esplêndido, e que o cachorro queria lamber-lhe a mão. O cachorro sabia que o dono a adorava, era um bom cachorro.

Já estava inteiramente sombrio sob a árvore, o sol não podia chegar até ele, podia apenas fazer que o resto do mundo ficasse tão brilhante a ponto de deixá-lo enxergar o Grand Stand de Epson lá além, muito longe, e as vacas pastando e tangendo as moscas com a cauda. Aspirou o cheiro dos limoeiros e da alfazema. Ah, era por isso que havia ali uma tal quantidade de abelhas. Estavam excitadas, ocupadas, tal como o seu coração estava ocupado e excitado. Sonolentas também,, sonolentas e embriagadas de mel e de felicidade, também o seu coração estava embriagado e sonolento.

 

«Verão, Verão», pareciam dizer as grandes abelhas, as abelhas pequeninas, até as moscas!

O relógio do estábulo bateu quatro horas, dentro de meia hora ela estaria ali. Ele iria dormitar só um pouquinho, já que dormira tão pouco durante a noite, e depois ficaria repousado para vê-la, repousado para a juventude e para a beleza que o vinha procurar através do campo ensolarado - a moça de cinzento! Encostando-se à cadeira, fechou os olhos. Um floco de paina veio voando e pousou-lhe nos bigodes, mais brancos do que ele próprio. O velho Jolyon não o notou, mas o seu sopro aspirou-o e deteve-o ali. Um raio de sol atingiu-lhe os pés. Uma vespa pôs-se a percorrer a copa do seu chapéu panamá. E uma deliciosa onda de sono atingiu o cérebro que estava sob o chapéu, a cabeça inclinou-se para a frente e pousou sobre o peito. «Verão, Verão.», parecia dizer o zumbido.

O relógio do estábulo bateu quatro e um quarto. O cão Balthasar estirou-se e olhou para o dono. O floco de paina não se movia mais. O cão depôs o focinho sobre a botina banhada de sol. O pé não se moveu. O cão recolheu o focinho rapidamente, saltou para o colo do velho Jolyon, fitou-lhe o rosto, ganiu, saltou depois para o chão, sentou-se sobre as patas traseiras, ficou a olhá-lo. E de súbito soltou um longo e desolado uivo.

Mas o floco de paina continuava como morto, tão morto quanto o rosto do seu velho dono.

Verão, Verão, Verão! Passos silenciosos sobre a relva!

 

                                                                                John Galsworthy 

 

 

                      

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