Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Segredos de Estado
Volume I
O QUARTO DA RAINHA
A MENINA DE PÉS DESCALÇOS - 1626
O SINETE DE CERA VERMELHA
O céu encobria-se. Enquanto galopava, o jovem cavaleiro lançou um olhar pleno de rancor à nuvem negra que pairava sobre a sua cabeça desde que saíra do castelo de Sorel. Se por acaso fosse menos bom cristão ter-lhe-ia mostrado o punho, mas tal gesto teria sido uma ofensa a Deus, o que um miúdo de dez anos não se podia permitir, mesmo tratando-se de François de Vendôme, príncipe de Martigues e neto do rei Henrique IV que, quanto a ele, se permitira muitas outras coisas.
Isso não impedia que, caso a trovoada se desencadeasse naquela altura, ela o atrasasse e em nada contribuísse para compor as suas histórias, já então impregnadas de aventuras. Sabia, no entanto, a que se arriscava ao deixar Anet sem prevenir, ele próprio selara o seu cavalo e as consequências da sua escapadela eram fáceis de adivinhar. A única oportunidade de lhes escapar era regressar discretamente. Chegar depois do toque de trompa que anunciava a tempestade seria uma verdadeira catástrofe, pois o seu preceptor, M. d’Estrades, não brincava com a disciplina: François seria vergastado. Já se preparava para isso, mas algumas azorragadas a mais ou a menos era sempre algo a levar em consideração. Sem contar com o acolhimento que receberia da duquesa, sua mãe...
Ela perguntar-lhe-ia de onde vinha e, como ainda não sabia mentir, dir-lhe-ia a verdade. O castigo viria mais tarde mas, naquele momento preciso, teria de suportar o seu olhar severo, tanto mais penoso porquanto pesar-lhe-ia um silêncio que lhe daria plena consciência de ter decepcionado uma mãe que amava e admirava, não estando longe de ver nela uma santa. Todavia, fora com conhecimento de causa que desobedecera: por vezes, acontece termos de escolher entre o dever e os arrebatamentos do coração.
Já havia algum tempo que o de François o atraía para o castelo de Sorel mas, nesse dia, a atração tornara-se irresistível. O rapaz acabara de saber que a pequena Louise apanhara uma doença cujo nome não conseguira decorar. Apenas entendera que dela se podia morrer ou ficar desfigurado. Uma idéia que o apaixonado de dez anos não podia suportar: era preciso que fosse ver!
O seu encontro com a pequena Séguier datava de 14 de Março, alguns dias antes da Primavera. Nessa data celebrava-se, todos os anos, uma missa de ação de graças na abadia beneditina de Ivry, em memória da vitória alcançada pelo rei Henrique IV sobre as tropas do duque de Mayenne. Os Vendôme compareciam em peso à cerimônia, apesar da duquesa que recebera à nascença o nome de Françoise de Lorraine-Mercoeur contasse o vencido entre a sua parentela. Assim o desejava o duque César, filho varão do grande rei e da encantadora Gabrielle d’Estrees. É claro que para as famílias de certa importância, residentes nas proximidades, era um dever comparecer. Era o caso da de um rico conselheiro no Parlamento em Paris, Pierre Séguier[1], conde de Sorel, acompanhado de sua mulher, Marguerite de la Guesle, e de sua filha. Louise era criança única de um casal que a adorava visivelmente, e que dela muito se orgulhava.
E com devida razão: ninguém podia olhar para aquele pedacinho de mulher de seis anos sem sentir a necessidade de a abraçar ou, pelo menos, de lhe sorrir. Plena de frescura, de tez cor-de-rosa, delicada como uma rosa silvestre, ela exibia uns cabelos louros e encaracolados deslumbrantes, que a tira de veludo azul do mesmo azul que o dos seus olhos mal conseguia manter no devido lugar. Bem-comportada, sentada ao lado de sua mãe, durante todo o serviço ela conservou os olhos baixos no terço de marfim enrodilhado nos seus dedinhos, à exceção de um breve momento em que voltou a cabeça, como se sentisse que a olhavam, erguendo os olhos na direção do rapazinho, para lhe sorrir. Um belo sorriso esparso, que ele lhe devolveu como pôde, mas que não escapara a dele! A Mme. de Vendôme, de muito mau humor, nesse dia em que desempenhava o papel de chefe de família numa cerimônia que não lhe agradava. Efetivamente, o seu esposo, o duque César, encontrava-se retido no governo da Bretanha, onde se atarefava em criar dificuldades ao homem que mais detestava no mundo: o cardeal Richelieu, ministro do rei Luís XIII. Todavia, durante o regresso, ela nada disse.
Quando, após uma noite agitada, François desceu às cavalariças nas primeiras horas da alvorada, teve, no entanto, a surpresa de encontrar o escudeiro de sua mãe, o cavaleiro de Raguenel, que não parava de andar de um lado para o outro no meio das idas e voltas dos moços de estrebaria e dos aguadeiros. François fez de conta que não o vira, mas o empregado veio ter com ele na altura em que chegava aos portões.
- Ora bem, meu senhor François, onde pretendeis dirigir-vos a estas horas tão matinais?
- Dar um último passeio.
Perceval de Raguenel era um homem cortês, amável; contudo, François achou-o francamente antipático quando ele lhe perguntou:
- E para onde contais ir, por favor? Acaso ignorais que temos de regressar a Paris daqui a pouco? O que vos deixa sem tempo disponível. A não ser que tenhais apenas a intenção de dar a volta ao parque...
François ficou todo corado:
- Quer dizer, eu...
Já não conseguia encontrar as palavras. O escudeiro veio em seu auxílio:
- E se fôsseis falar à senhora duquesa? Ela espera-vos nos seus aposentos.
- A minha mãe? Mas, porquê?
- Penso que vos dirá. Despachai-vos! Dentro de dez minutos ela irá à capela ler o livro de orações.
Como não descortinava maneira de agir de outro modo, François desatou a correr e, alguns momentos mais tarde, uma camareira introduzia-o no quarto onde Françoise de Vendôme acabava de se pentear. Era o antigo quarto de Diane de Poitiers, uma divisão suntuosa, mas não muito mais do que o eram as outras vinte e duas daquele castelo quase real. As paredes e o teto estavam pintados de cores vivas, realçadas a ouro; vários tapetes cobriam o soalho precioso e tapeçarias magníficas aqueciam quase tanto a atmosfera quanto o fogo que ardia na grande chaminé de mármore multicolor. Nessa manhã de Março, o dia passava através das travessas da janela onde se encastoavam vitrais pintados em camafeu cinzento que, podendo dar a ilusão de um relevo e representando cenas do Antigo Testamento, não deixavam filtrar nenhuma luz; no entanto, o fogo e as altas velas de cera branca encarregavam-se disso.
Logo que transpôs a entrada, o jovem fez uma saudação, avançando, em seguida, para sua mãe, no meio do bailado das acompanhantes que o olhavam sorrindo. Quanto a Mme. de Vendôme, ela não sorria.
- Ah! Eis-vos aqui! Julie, parece-me que isto está bem. - acrescentou, dirigindo-se à sua cabeleireira. - Agora deixem-me e ide-vos todas embora. - Depois, quando a última aia transpôs a porta: - Pois bem, onde contáveis ir a estas horas da manhã?
- Dar um último passeio, senhora, visto que dentro em breve regressaremos a Paris.
- E para que bandas? Seria para o lado de Sorel?
O pequeno príncipe corou sem ousar responder, considerando a mãe com certa apreensão. Na realidade, apesar do cuidadoso amor que lhes dispensava, sem o mostrar excessivamente, Françoise de Lorraine-Mercceur, duquesa de Vendôme pelo seu casamento, possuía o dom de impressionar as suas três crianças bem mais que o pai delas, o duque César, cujo caráter jovial e inclinação pelas brincadeiras frequentemente jocosas e cuja despreocupação recordavam muitas vezes as suas origens da região de Béarn[2], faziam dele um interlocutor menos imponente.
Isso era devido ao fato de ela se considerar, sobretudo, como serviçal do Senhor, tendo sido educada pela mãe segundo princípios cristãos de grande rigidez que lhe permitiam ostentar uma certa simplicidade no meio do fausto em que a colocavam a sua linhagem, a grande fortuna de que dispunha fora um dos mais belos partidos da Europa e o amor que dedicava a um esposo cujos gostos eram opostos aos seus, salvo no que dizia respeito ao esplendor e ao poder da casa. César, que era antes de tudo um homem de armas, gostava de despender vastas somas e de levar uma bela vida, enquanto Françoise, afilhada do falecido bispo de Gênova, François de Sale, amiga de Jeanne de Chantal e dessa prodigiosa personagem a quem chamavam o ”senhor Vincent”, interessava-se, sobretudo, pela salvação eterna dos seus e pela prática de uma caridade que se estendia até bem longe até às prostitutas parisienses das margens do Sena e às do bordel, obrigatoriamente tolerado devido à presença de soldados em Anet. Deste modo, quando uma das crianças devia responder por algum disparate cometido, tinha sempre a vaga impressão de comparecer perante o tribunal do próprio Deus.
Era exatamente o que François sentia mas, nem por um momento, pensou em dissimular:
- É verdade, senhora. Vedes algum inconveniente?
- Talvez. Dizei-me, primeiro, por que pretendeis lá ir. Será por causa daquela rapariga? Ontem reparei que ela vos tinha sorrido e que lhe havíeis respondido. Já vos encontrastes com ela?
- Nunca. Foi por isso que tive vontade de voltar a vê-la. Não achais que ela é bem bonita?
- Decerto, decerto, mas vós sois muito novo para vos interessardes pelas raparigas. Ademais não tenho a certeza de que sereis bem acolhido por lá. Os Séguier não são nossos amigos.
- Contudo, não compareceram ontem à missa?
- Tratava-se de prestar homenagem ao defunto rei, vosso antepassado. Além disso, as terras deles dependem do nosso principado de Anet: isso acarreta obrigações, mas não significa que esses novos nobres estejam dispostos a jurar-nos fidelidade. Aliás, o vosso pai não o desejaria: como muitos desses senhores do Parlamento, os Séguier pretendem-se próximos do senhor Cardeal e proclamam bem alto quanto se sentem ligados ao rei Luís.
- E nós? Não nos encontramos ligados ao Rei?
- Trata-se do Rei. Devemos-lhe amor e obediência. O mesmo não poderá esperar o bispo de Luçon. Satisfazei-me, François, e tratai de esquecer que uma rapariguinha vos sorriu...
A criança inclinou a cabeça.
- Esforçar-me-ei pelo amor que vos dedico, senhora. - murmurou, sem conseguir suster um enorme suspiro que trouxe um sorriso ao rosto um pouco severo da duquesa.
- François, gosto da vossa franqueza e obediência. Vinde abraçar-me!
Era um raro favor, desde que o jovem tinha sido confiado às mãos dos homens. Apreciou o seu devido valor e ficou um pouco consolado pelo sacrifício que fizera, mas quando alguém se passeia pelo nosso espírito é difícil expulsá-lo de lá. Sob os tetos dourados do hotel Vendôme, em Paris, François não conseguiu esquecer-se de Louise e quando a duquesa, as suas crianças e todo o casario foram, no fim de Maio, apanhar os ares do estio nas margens do Eure, fugindo dos maus cheiros parisienses, o apaixonado de dez anos não pôde impedir-se de sentir uma alegria inabitual. Com um pouco de sorte ia poder voltar a vê-la!
Contudo, se pensava que o seu segredo estava escondido entre ele e a mãe, François enganava-se. A sua irmã Elisabeth, dois anos mais velha que ele, apercebera-se de algo. Bruscos devaneios, rubores fugazes, eram manifestações até aí desconhecidas num rapaz turbulento, irrequieto, apaixonado por cavalos, por armas, independente e dotado de uma vitalidade que as governantas e os preceptores consideravam unanimemente desgastante tudo isso dera-lhe muito que pensar durante os meses de Inverno. Porém, guardara para si as suas impressões e foi apenas ao descer da carruagem no pátio principal do castelo que, deixando o irmão mais velho, Louis de Mercceur[3], de catorze anos, acompanhar a mãe até ao interior, ela puxou François à parte, pretextando ir ao encontro dos cisnes nas pequenas lagoas do jardim. Na realidade foram dar um passeio ao longo do canal de carpas. Em silêncio, de começo, o que o rapaz não suportou muito tempo.
- Se tens algo a dizer-me, di-lo já! - resmungou, empregando a fórmula da segunda pessoa do singular, da qual se serviam quando estavam a sós. - Terei feito alguma asneira?
- Não, mas tens muita vontade de fazer uma. Senti-o há pouco, quando Mme. de Bure falou das damas de Sorel. A nossa mãe mandou-a logo calar-se, mas tu ficaste todo corado e exalaste um suspiro capaz de voltar uma carruagem. Estás a morrer para voltar a ver essa Louise, não estás?
As duas crianças, unidas por uma profunda ternura e por uma confiança total, sempre se entendiam às mil maravilhas, enquanto que tinham relações muito mais distantes, até protocolares, com o irmão mais velho, Luis XV, ele era o herdeiro, por isso respeitavam-no, mas não gostavam nada dele. François nem sequer tentou negar.
- É verdade, mas fiz uma promessa à mãe.
- E lamentas?
François desviou a cabeça, baixou-se, e pegou numa pedra que atirou, com um gesto vivo e seguro, fazendo-a ricochetear, por três vezes, na superfície lisa do canal. Por fim fungou e, sabendo que Elisabeth não se satisfaria com uma meia resposta, disse:
- Hum...sim!... Enquanto estivemos em Paris era fácil. Aqui é outra coisa.
- Já estava à espera disso. Que vais fazer?
- Fazes perguntas estúpidas, irmã: não se volta atrás com a palavra dada! Continuo de acordo. Só que... eu não prometi nada.
Depois de ficar de respiração cortada, François olhou mais atentamente para o seu rosto malicioso. Até ter encontrado Louise, considerava-a como a rapariga mais bela que conhecia: como ele próprio, ela herdara da avó deles, Gabrielle d’Estrees, um louro quase irreal e olhos de uma profunda cor de lápis-lázuli, possuindo, além disso, uma inteligência viva. Admitia, de bom grado, que nesse capítulo ela ultrapassava-o frequentemente, se bem que, com dez anos, já medisse mais três polegares que ela. Mas agora a irmã abria-lhe, para seu uso, uma inesperada janela sobre a astúcia feminina.
- O que significa...?
- Que Mme. de Sorel tem fama de ser muito piedosa, generosa também, e que se desloca aprazivelmente a casa de gente pobre, por vezes bem longe da sua. Sei que desde que a filha completou seis anos ela leva-a consigo, tal como a nossa mãe fez comigo. De ora em diante posso acompanhar Mme. de Bure, mas... também poderias fazer parte do grupo. A caridade ficava a ganhar e a nossa mãe subiria aos céus. Certamente que terias direito às bênçãos do senhor Vincent.
- Queres dizer que é possível encontrar essas damas sem ter de ir a Sorel? Mas como saber onde vão?
- Um dos nossos cocheiros corteja a ama de Louise. Podemos certamente chegar a encontrar-nos...
Como resposta François saltou ao pescoço da irmã e logo no dia seguinte obteve a autorização de sua mãe para acompanhar Elisabeth nas visitas caritativas que ela efetuava sob a vigilância da sua governanta. Mme. de Vendôme, que inscrevera, desde a mais tenra idade, o seu filho mais novo em Malta na esperança de que, um dia, ele pudesse suceder ao tio, o Grande Prior Alexandre, julgou discernir um sinal enviado pelo céu pois, nesses senhores da Ordem, cujo ensino começava pelas mais rudes tarefas hospitaleiras, não era essencial a prática da mais humilde caridade? E assim se pôde ver o jovem príncipe de Martigues carregando, várias vezes, um pesado saco com pães, entrar dignamente nalguma pobre choupanazinha, seguindo os passos das “damas” de caridade. O espetáculo era de tal forma novo que Mercceur começou a rir, mas foi tão severamente repreendido por Mme. de Vendôme, que não voltou a fazê-lo.
Para falar verdade, este exercício foi menos penoso do que François pensara: de uma generosidade natural e inteiramente desprovido de soberba, sentiu-se próximo daqueles que ia visitar e interessou-se sinceramente por eles. Ainda bem pois, durante todo um mês, o piedoso estratagema de Elisabeth só lhe permitira encontrar uma única vez a rapariga dos seus pensamentos. Ela pareceu-lhe ainda mais encantadora que na abadia de Ivry e, isso, apesar de se encontrar mais modestamente vestida, como convinha em tais circunstâncias. Não encontrou uma palavra para lhe dizer, contentando-se em corar intensamente enquanto maltratava o chapéu. Contudo, pareceu-lhe que a sua promessa ia ser mais difícil de manter do que nunca.
Na realidade não saciara o seu desejo. Assim, logo que a soube doente, não aguentou mais. Era preciso que soubesse o que acontecia, que a visse! Sem pensar mais, pegou num cavalo e partiu para Sorel. Nem sequer pôde transpor a entrada do castelo. Foi recambiado sem grandes precauções oratórias: a doença era grave e ninguém se podia aproximar da pequena enferma, a não ser a mãe e as suas serventes. Foi deste modo que François, mais inquieto que nunca, se encontrou de novo na floresta com as perspectivas de um regresso que conhecemos.
O tempo não melhorava. Subitamente fez-se tão escuro que a noite parecia ter caído. O cavalo do jovem enervava-se e quando, repentinamente, ribombou um trovão, o animal soltou um relincho que parecia uma explosão de riso, empinou-se, e enviou o seu cavaleiro para o meio dos arbustos, antes de disparar a toda a brida na direção de Anet.
Mais magoado no orgulho que no corpo, que escapara ileso, François perguntava-se como é que M. d’Estrades que se esforçava por inculcar aos jovens Vendôme os grandes princípios eqüestres editados pelo falecido M. de Pluvinel encararia o regresso ao castelo de um cavalo sem cavaleiro e, posteriormente, de um cavaleiro sem o seu cavalo.
Praguejando, vociferando, até jurando, desenvencilhou-se dos arbustos para se encaminhar para o seu destino, quando deu pela rapariguita.
Envergando apenas uma longa camisa manchada e com uma boneca que apertava contra o coração, ela estava de pé, no meio do caminho, com minúsculos pés descalços, chorando sem dizer nada, fungando de vez em quando, enquanto mantinha o polegar na boca. Não devia ter mais de três ou quatro anos, era pequenina e frágil. Apesar das poucas roupas que trazia, não era uma camponesa. A massa de cabelos castanhos, que estava posta em evidência, conservava ainda a marca de um pente cuidadoso, na forma de alguns caracóis bem redondos e de um pedaço de fita azul neles presa. Além disso, a sua única indumentária era feita de pano fino e bordado. Contudo, ao aproximar-se, François viu também que as manchas eram de sangue. Compreendendo que estava perante um problema mais grave que os seus, ajoelhou-se e envolveu a criança com as mãos, para tatear o seu corpo rechonchudo.
- Que te aconteceu? Estás ferida?
Ela não respondeu enquanto ele a inspecionava, continuando a chorar sem ruído e sem manifestar a mínima dor. Aliás, o sangue quase secara.
- Não. Não tens ar de quem está ferida, mas de onde é que vens nesse estado? Quem és?
Enquanto o fixava com os seus olhos cor de avelã, enrubescidos pelas lágrimas, a pequena retirou o dedo da boca para emitir dois sons:
- Vi... lã.
E voltou a colocar o polegar de onde o havia retirado.
- Vilã? Isso não é um nome! E, além disso, tu não o és! As vilãs não têm bonecas tão bonitas acrescentou, tentando pegar no brinquedo, que a minúscula proprietária defendeu energicamente. Era, efetivamente, um objeto bastante caro, em madeira bem esculpida, com cabelos desgrenhados e um vestido de veludo na moda, com um colarinho de pregas à volta do pescoço.
As perguntas sucediam-se no espírito do rapaz. De onde podia vir aquela criança? Devia ter acontecido uma desgraça algures, mas onde? Tentou sabê-lo, proferindo o nome de duas ou três mansões ou ricas residências dos arredores, algumas das quais pertenciam à vassalagem do principado de Anet mas, em vez de responder, a pequenita desatou a gritar, chamando pela ama.
Para cúmulo do azar, a trovoada que François acabara por esquecer manifestou-se através de um trovão mais violento que o precedente e, num ápice, o céu desabou...
- Não podemos ficar aqui. Tenho de te levar para minha casa. Talvez alguém saiba quem és...
Ela calou-se, como por encanto, e estendeu-lhe uma mãozinha suja com os dedos minúsculos apartados que, assim, se pareciam com uma estrela do mar. Ficou encharcada num instante e François quase tanto quanto ela. Com pena da miúda, despiu o gibão para a resguardar, antes de lhe pegar na mão.
- Vem! Temos de despachar-nos!
Inquietava-se: como fazê-la andar com os pés feridos e, além disso, como poderia ela seguir no seu encalço?
- Vou ter de te transportar suspirou, um pouco assustado por essa nova responsabilidade, mas ela era pouco maior que um bebê e mais leve do que imaginara quando lhe pegara. Então, sem deixar de segurar na sua preciosa boneca, ela passou o seu braço livre à volta do pescoço do salvador e encostou a cabeça ao ombro dele, com um suspiro de felicidade. Não sabia quem era aquele rapaz, mas ele era tão belo, com aqueles cabelos louros compridos, tão lisos, e com olhos tão claros! Talvez fosse um anjo... De qualquer modo, sentia-se bem com ele.
- Não adormeças e agarra-te bem aconselhou o jovem herói. Vou tentar correr...
Ainda assim, era presumir demasiadamente as suas forças e recomeçou a andar, amaldiçoando aquele danado cavalo que ali o abandonara, precisamente na altura em que mais precisava dele. Quanto ao que sucederia quando se apresentasse no castelo com a sua descoberta, nem sequer tentava imaginá-lo.
Percorreram desse modo um bom quarto de légua, parando de vez em quando para deixar respirar o carregador. Graças a Deus a chuva também parara, o que não impediu François de estar esgotado quando alcançou finalmente as imediações de Anet, perguntando-se, mesmo assim, por que razão não tinham enviado alguém à sua procura, ao verem regressar o cavalo sozinho. E, claro está, era terrivelmente tarde! O enorme veado de bronze, rodeado por quatro cães, que decorava a parte cimeira do grande pórtico e que servia de relógio, batia já as oito badaladas com o seu pé mecânico.
- Misericórdia! - gemeu François, ao depor a sua carga nas lajes do pátio principal. - Já ouço soprar as azorragadas!
Contudo, o castelo não apresentava o seu movimento habitual. Os guardas falavam entre si de modo animado, reunidos em pequenos grupos, e ninguém lhe prestou atenção. A agitação concentrava-se, sobretudo, à volta de uma grande carruagem de viagem, de tal forma coberta pela lama e pelo pó que era impossível decifrar os brasões. Corriam criados por todo o lado. Desatrelavam-se os cavalos e quando o rapaz parou alguém para saber o que se passava, o homem só teve tempo para lhe dizer: Não sei ao certo o que ocorre! Monsenhor, o bispo de Nantes, chegou há pouco menos de uma hora e estão todos reunidos no salão das Musas...
Surpreendido, François ergueu as sobrancelhas. Philippe de Cospéan, o bispo em questão, era um velho amigo da família, o mais fiel conselheiro da duquesa e seu íntimo, mas era a primeira vez que a sua chegada desencadeava uma tal algazarra. Então, François procurou pegar na mão da pequena companheira para a conduzir até à sua mãe, mas reparou que ela recomeçara a chorar, desta vez silenciosamente, e que tremia dentro da sua camisa encharcada. Ela nada lhe disse, mas os seus olhos imploravam. Ele compreendeu e voltou a pô-la ao colo:
- Vamos lá ter com a família! Logo veremos. - suspirou.
Aquele belo castelo, reconstruído no século precedente por Diane, duquesa de Valentinois, nunca lhe parecera tão vasto, nem o salão das Musas tão imponente, com os seus painéis pintados e dourados, com as suas guarnições de ombreiras em mármore e o seu suntuoso mobiliário. Estava presente muita gente, mas o olhar de François dirigiu-se diretamente para a mãe, sentada ao pé de um bispo visivelmente cansado e que lhe falava animadamente. Ela parecia sob o choque de uma grande emoção. Havia marcas de lágrimas no seu lindo rosto, quase tão pálido quanto o enorme colarinho de pregas em forma de “prato” que parecia oferecer a sua cabeça numa bandeja de musselina engomada. Com ar grave, o seu filho mais velho apoiava-se nas costas do seu sofá e a filha, sentada a seus pés numa almofada de veludo, segurava-lhe uma das mãos. Em redor, as damas e os oficiais que faziam parte da casa ducal pareciam presos de estupefação, tão pouco vivos quanto personagens de uma tapeçaria. Apesar da tensão que reinava, a entrada de François não passou desapercebida:
- Senhor Martigues! - exclamou num tom descontente o seu irmão Louis de Mercoeur. - De onde vindes num estado desses e com essa companhia? Que disparate acabastes de cometer? Quem é essa mendiga?
Como uma vela sob uma corrente de ar, a indignação apagou a legítima inquietação do rapaz:
- Não é uma mendiga! Encontrei-a na floresta tal como ela está: pés descalços, com a boneca e a camisa cobertas de sangue! Olhai melhor para ela... a menos que a vossa grandeza e o vosso egoísmo vos toldem a vista!
- Paz, meus filhos! - interrompeu Mme. de Vendôme. Não é altura para uma quezília. François vai dizer-nos onde encontrou esta criança...
O interpelado nem teve tempo de abrir a boca e já a irmã se precipitava ao seu encontro. Ajoelhou-se frente à menina que o irmão punha no chão e perscrutou o pequeno rosto sujo e molhado de lágrimas.
- Mãe! - gritou. - Deve ter acontecido alguma desgraça em La Ferrière. Esta pequena é a filha mais nova de Mme. de Valaines. Chama-se Sylvie.
- Pois é! - exclamou François, subitamente esclarecido. Há pouco, quando lhe perguntei como se chamava, só discerni dois sons: “vi” e “lã”[4]. Não sabia o que fazer, tanto mais que o meu cavalo acabara de fugir...
- Vejam só que ele julga-se um centauro! - cacarejou Mercceur.
O menino ia responder-lhe vivamente quando surgiu M. de Raguenel, que acabara de executar uma ordem da duquesa. Ao ver a criança empalideceu e veio juntar-se ao grupo dos jovens, pegando na pequena refugiada:
- Sylvie! Meu Deus!... Mas como veio ela aqui parar, e neste estado? Parecia de tal modo transtornado, que Mme. de Vendôme deixou que François recomeçasse a sua narrativa.
- ... então peguei ela ao colo e trouxe-a até aqui. - concluiu.
- E fizestes muito bem aprovou a mãe. Agora tratemos das coisas urgentes! Mme. de Bure - voltou-se para a governanta de Elisabeth - queira ter a amabilidade de levar esta pobre pequena que deve ter sido vítima de uma grande desgraça. Que lhe dêem um banho, que a alimentem e a deitem. Quando soubermos o que se passou, participaremos.
A governanta aproximou-se de Sylvie, cuja mão queria segurar, mas esta agarrou-se furiosamente aos dedos de François, determinada a não o abandonar: na altura em que estava a ter um pesadelo tão horrível, o Bom Deus enviara-lhe um anjo e ela desejava guardá-lo; por isso, soltou um verdadeiro berro quando tentaram desprendê-la. Para que se calasse, foi preciso prometerem-lhe que ele iria vê-la logo que estivesse na cama.
- Pois bem! - suspirou a duquesa. M. de Raguenel!
O escudeiro não pareceu ouvi-la. Mantinha os olhos fixos na porta pela qual Sylvie acabara de desaparecer. Mas respondeu à segunda chamada.
- Conheceis bem os Valaines?
- Sim, senhora duquesa. A baronesa concedeu-me a honra de conservar a sua amizade por mim após a morte do marido. Estou muito inquieto.
- Isso compreende-se! Pois bem, pegai numa dezena de homens e ide até La Ferrière. Vinde prestar-me contas logo que possível. Quanto a vós, François, ide mudar de roupas mais tarde. Uma grande desgraça acaba de nos acontecer e dela deveis ser informado.
Depois, sem dar mais explicações, voltou-se, de novo, para o bispo:
- Não posso entender como é que o meu cunhado, o Grande Prior de Malta, se pôde deixar iludir ao ponto de ir buscar o meu esposo para o levar até Blois, enquanto este estava ocupado a governar a Bretanha. E, antes de mais, porquê Blois?
O Rei quer aproximar-se da Bretanha, cuja agitação o inquieta. Quanto ao Grande Prior Alexandre, esse acreditou, de boa fé, que Sua Majestade desejava apenas conversar sobre os assuntos da dita Bretanha com o duque César. “M. de Vendôme pode vir a Blois”, disse-lhe o Rei, sorrindo. “Dou-vos a minha palavra que não lhe farão mais mal do que a vós.”
- Mas que duplicidade! Quem julgaria o Rei capaz de uma coisa destas? Na verdade, cheira ao Cardeal à légua. Ele odeia-nos.
- O Cardeal não está em Blois, mas em Límours. Além disso, o Rei apenas se entreteve com um mero jogo de palavras. Quando M. de Vendôme chegou, ele exclamou: “Meu irmão, estava impaciente por vos encontrar!” E, nessa mesma noite, enviou MM. Du Hallier e de Mauny prendê-los. O que se passou sem barulho. Os prisioneiros foram imediatamente conduzidos ao castelo de Amboise, passando pelo rio Loire. No que me diz respeito, vim avisar-vos, com a terrível sensação de sempre ter tido razão: o duque César nunca devia ter deixado a sua fortaleza em Blavet, a não ser que fosse pelo mar, mas o Grande Prior insistia, ignorando, sem dúvida, que o Rei já estava ao corrente de certos assuntos. Pensava, nesciamente, que o nosso Soberano estava finalmente disposto a ouvir os seus irmãos, em vez de um ministro do qual desconfiara durante tanto tempo.
- E o meu esposo acreditou nisso? E foi meter-se na boca do lobo, em vez de consolidar a sua posição na Bretanha e o seu título de Grande Almirante?
- Foi o que lhe disse, mas ele não quis ouvir-me. Como acontece com o Grande Prior, penso, senhora, que o vosso esposo também tem um fundo néscio. Ele julgava...
- Que o Cardeal renunciaria a retirar-lhe o governo, que esqueceria a desconfiança que lhe inspiram as crianças de Gabrielle d’Estrees? O Cardeal nunca se esquece de nada! - proferiu, com cólera. - Percebo pouco de política, meu amigo, mas há meses que receava este gênero de catástrofe...
- Não sem razão! Desde o princípio do ano, o nono do reinado efetivo de Luís XIII, que as paixões ferviam em redor de um casal real de vinte e cinco anos que não se entendia lá muito bem. As velhas “brasas” das guerras de religião, ainda incandescentes, apenas aguardavam para ser novamente ativadas, graças ao sopro de uma corte jovem, ambiciosa, turbulenta, ciumenta, tanto quanto à sua influência como quanto aos seus privilégios e, sobretudo, inquieta quanto à influência crescente do homem de ferro, no qual pressentia um domador susceptível de a corrigir. Em tudo isso não se vislumbrava a mínima preocupação pelos afazeres do reino! Apenas existiam interesses particulares!
As primícias de uma tempestade tinham-se levantado alguns meses antes, a propósito do casamento de Monsieur, irmão do Rei e até à altura seu herdeiro, pois, ao fim de dez anos de casamento, o par real continuava sem criança.
O soberano e a rainha-mãe, Maria de Médicis, desejavam casar aquele rapaz de dezessete anos, leviano, agitado, nervoso, vaidoso, inteiramente desprovido de coragem, mas fácil de manipular, com sua prima, Mlle. de Montpensier, que era a rapariga mais rica de França. Claro que o Cardeal aprovava esse casamento, mas o mesmo não acontecia com os príncipes de sangue Conde, Conti, Soissons e, naturalmente, Vendôme nem no meio da jovem rainha, Ana de Áustria[5]. Um meio composto por jovens mulheres um pouco estouvadas e jovens senhores travessos, sobre os quais reinava a melhor amiga da Rainha, a intrigante, doida e encantadora duquesa de Chevreuse. Toda essa gente não queria de modo algum que Gaston d’Anjou desposasse aquele grande partido que outros cobiçavam. Era-lhe reservado um outro destino.
Formou-se, portanto, uma conspiração, cuja cavilha mestra foi o preceptor do príncipe, o marechal d’Ornano, coronel dos Corsos, personagem rude, expedita e arrogante, que incitava o seu aluno a rebelar-se, chegando ao ponto de lhe propor fugir de Paris e refugiar-se em La Rochelle. Em pleno feudo protestante!...
A resposta real não se fez esperar: no dia 26 de Maio desse ano de 1626, o Rei mandava prender d’Ornano e os seus dois irmãos, encarcerando-os na Bastilha, cujo diretor foi, nessa ocasião, prudentemente substituído.
Para os conjurados, o golpe trazia a assinatura de Richelieu, o que, longe de os acalmar, só os tornou mais furiosos. Mme. de Chevreuse, sempre muito ativa, tramou, logo de seguida, uma nova conspiração destinada, desta vez, à eliminação física do Cardeal e talvez, também, do Rei, cuja viúva seria então destinada a casar-se com Monsieur, o qual faria, segundo a duquesa, um soberano ideal. Era, efetivamente, um perfeito fantoche, que seria facilmente manipulável...
Ana de Áustria, ainda mal recomposta do seu apaixonado romance com o irresistível duque de Buckingham, não via nisso qualquer inconveniente: não gostava nada do esposo e odiava Richelieu. Deixou atuar a sua querida Chevreuse. Pelo seu lado, Gaston d’Anjou[6] Monsieur mergulhou até ao pescoço na conspiração, à cabeça da qual Mme. de Chevreuse colocou o jovem príncipe de Chalais, que estava louco por ela, chegando a oferecer alguns dos seus gentis-homens para assegurar um bom desfecho. Mas Mme. de Vendôme ignorava tudo sobre estes últimos desenvolvimentos: o seu conhecimento quedara-se na prisão do marechal d’Ornano, o que já a inquietava sobremaneira.
- Sim repetiu ela. Há meses que receava o que hoje aconteceu. O Grande Prior e o meu esposo comprometeram-se com Monsieur e os príncipes de sangue ao recusarem-se a admitir que são apenas príncipes legitimados e que, por isso, seriam tratados menos escrupulosamente que os outros!
Seguidamente, pediu aos presentes que a deixassem ter uma conversa particular com o bispo de Nantes, durante um breve instante. Apenas o seu filho mais velho foi autorizado a permanecer. François estendeu a mão para a irmã, a fim de levá-la, enquanto protestava:
- Por que pode ele ficar e nós não?
- Vós sois ainda muito novo, François. Quatro anos a mais já conta e vosso irmão já é quase um homem.
Elisabeth nada disse, mas o seu pequeno ar ofendido revelava claramente que achava pertinente a pergunta do irmão:
- Vinde, François! Vamos ver o que é feito da vossa descoberta!
Quando todos acabaram de sair, a duquesa tirou um terço de um bolso, dissimulado no seu vestido de veludo cinzento, e agarrou-o com firmeza entre as mãos, como se se amparasse nele.
- Meu caro amigo, agora que estamos a sós, contai-me mais alguma coisa, pois confesso-vos não entender como se chegou ao ponto de prender o meu esposo e o irmão, por causa dessa história ridícula do casamento de Monsieur, no qual eles apenas desempenhavam o papel de espectadores.
O bispo dirigiu-lhe um olhar cheio de amizade compadecida. A coragem e a fé daquela jovem mulher sempre o tinham impressionado e lastimava que ela tivesse desposado um homem cujo orgulho e ambição o levavam a cair em todos os vespeiros:
- Ainda há pior, senhora duquesa... e vós nada sabeis... Em contrapartida, o Grande Prior, esse, esteve em primeiro plano.
E começou a contar-lhe como este havia preparado um atentado contra o Cardeal, de conluio com Monsieur e a duquesa de Chevreuse, aproveitando o fato do Rei se encontrar em Fontainebleau, pelo que o seu ministro estava alojado em Fleury, à espera que fosse concluída a casa que mandara construir na cidade. O plano do Grande Prior era simples: depois de caçarem na floresta, Monsieur e alguns amigos deviam, ao cair da noite, pedir a Richelieu que lhes oferecesse algo de comer, altura em que o Cardeal seria abatido devido a uma disputa desencadeada artificialmente. Depois, logo se veria o que fazer com o Rei, consoante a reação deste à notícia. Porém, Monsieur, fiel a si próprio, decidiu declarar-se doente à última hora e um dos seus amigos, o jovem príncipe de Chalais, proferiu confidências imprudentes e os outros conjurados foram presos. Na manhã do dia seguinte, Monsieur, que ainda estava deitado, teve a surpresa de ver o Cardeal entrar pelo seu quarto, todo sorrisos, para pôr à sua inteira disposição a casa em Fleury, “que tanto lhe parecia agradar”, findo o que foi pedir a demissão ao Rei, que não só a recusou como também lhe concedeu plenos poderes para concluir aquele assunto com “o maior dos rigores”.
- Continuo a não ver o que vem fazer o meu marido nesta história - exclamou a duquesa. - Ele já se encontrava na Bretanha quando prenderam d’Ornano...
- Sem dúvida, mas o irmão dele estava mergulhado nela até ao pescoço, pois foi ele quem teve a idéia.
- E não prenderam o Grande Prior?
- Não. Richelieu queria desembaraçar-se dos dois irmãos de uma assentada. Convocou o Grande Prior no tom mais amável e deixou supor que desejaria vê-lo aceder ao Almirantado, lugar deixado vago por M. de Montmorency, na condição, evidentemente, de que o duque César renunciasse às suas pretensões a esse posto. O nosso estimado Grande Prior ficou encantado. Daí, aquele fervor para conseguir persuadir o irmão de ir a Blois discutir o assunto com Sua Majestade. Eis como tudo se passou, senhora.
- É indigno! Como pôde o Grande Prior Alexandre revelar-se tão estúpido?
- A ambição, senhora duquesa, a ambição!
- E... que é feito de Monsieur?
- Para ter a certeza de não ser inquietado, apressou-se a denunciar todos os participantes na conspiração e até prometeu desposar Mlle. de Montpensier assim que o Rei o desejasse.
- Não se pode ser mais infame! E agora que o Rei detém o governador da Bretanha, que conta ele fazer?
- Vai a Nantes para aí reafirmar o seu poder sobre a província... e para aí exercer justiça!
- Misericórdia! Estamos metidos em maus lençóis! Qual o vosso conselho, monsenhor?
- É difícil dizer! Talvez o melhor fosse resguardar-vos com as crianças numa terra do vosso patrimônio...
- Mãe - interrompeu o jovem Louis - se fôssemos todos ajoelhar-nos perante o Rei?
- Para pedir perdão de quê? - ralhou a mãe. - O vosso pai não deixou o seu governo...
- Pode participar-se numa conspiração mesmo à distância - intrometeu-se o bispo - Preparando posições de retirada, incitando a Bretanha a sublevar-se. Reunindo lá tropas...
Françoise de Vendôme não respondeu imediatamente. No fundo da sua memória, ainda ouvia a voz de César a clamar que não esperava ter de voltar a ver o Rei nem pintado. Piada, ou então...
- Eu vou-me embora - decidiu - e vós, monsenhor, acompanhar-me-eis, dado que sois ainda o bispo de Nantes, para onde o Rei se dirige. Logo que chegar, mandarei avisar...
Irei convosco, minha mãe?
- Não. Ide buscar-me o vosso preceptor!
Um pouco mais tarde, M. d’Estrades recebia ordem de transportar os seus alunos e a respectiva irmã a Vendôme, logo de manhã, onde, sob a tripla proteção das muralhas, de uma cidade fiel e de um castelo fortificado sem contar com os seus defensores encontrar-se-iam muito mais ao abrigo das más surpresas que num aprazível palácio de verão, aberto a todos os ventos. Só permaneceria o pessoal necessário à manutenção de Anet.
Num ápice entrou tudo em ebulição. Era preciso preparar duas partidas, a segunda sendo muito mais importante que a primeira, pois tratava-se de uma verdadeira mudança de residência. Os empregados e as criadas de quarto andavam todos numa grande azáfama depois de se ter despachado um jantar para grande alívio do bispo, meio morto de fome e cansaço do qual quase se tinham esquecido...
Entretanto, Perceval de Raguenel galopava à cabeça de uma dezena de homens armados, na direção do pequeno castelo de La Ferrière, que ele tão bem conhecia. Situado na orla da grande floresta de Dreux, era um lindo domínio, que sempre prestara vassalagem ao principado de Anet. Pertencia presentemente aos barões de Valaines, após Hughes ter seguido Simon d’Aneth, impelido pela prosa ardente de Bohémond de Antioquia, que viera a Chartres para desposar Constance, filha do rei Filipe I. A partir dessa altura, os seus descendentes permaneciam fiéis à Coroa, em primeiro lugar; depois, aos seus suseranos, fossem eles quais fossem...
Henrique IV não tivera dificuldade alguma em conquistar a adesão deles e Jean, o pai de Sylvie, combateu valentemente em Ivry e noutros locais, o que lhe valeu desposar uma jovem prima de Maria de Médecis, chamada pela rainha-mãe para que esta lhe encontrasse uma situação. Chiara Albizzi tinha vinte anos; Valaines tinha vinte a mais. Ela era encantadora; ele não era muito belo, mas o casamento, abençoado no dia seguinte ao assassinato de Concini, nem por isso foi menos sereno e harmonioso. Três crianças vieram completá-lo. Primeiro uma filha, Claire, nascida em 1618; no ano seguinte, um filho, Bertrand; finalmente veio a pequena Sylvie, nascida no Outono de 1622, mas que o pai não teve praticamente tempo de conhecer: algumas semanas após o seu nascimento, uma pedra lançada por uma funda desconhecida atingiu-o em plena testa e levou-o ao túmulo. Nunca se descobriu o assassino. Chiara de Valaines ficou apenas com os seus belos olhos para chorar um esposo que tanto amava, com os seus filhos e com bens assaz substanciais e alguns amigos, no meio dos quais Perceval de Raguenel, talvez o mais discreto de todos, pois estava perdidamente apaixonado pela jovem mulher, sem nunca ter ousado dizê-lo.
Ele próprio era de origem bretã. Aos dez anos tornou-se pagem da duquesa de Mercosur, mãe de Mme. de Vendôme; depois passou a escudeiro da filha, com vivo prazer, pois adorava cavalos. Além disso, este encargo dispensava-o de se encontrar metido na confusão dos exércitos sempre ocupados a correr atrás de um inimigo que, nesses tempos conturbados, mudava frequentemente. O que não quer dizer que fosse medroso. Manejava a espada como um artista, mas preferia-lhe, de longe, a pluma gostando sobretudo do estudo, da história, da geografia, da astronomia, das belas-letras” e da música: tocava alaúde, mas também guitarra, que aprendera com um trânsfuga espanhol. Dotado de um espírito de bom grado cáustico, era um rapaz bastante alto, cujo olhar, singularmente vivo, era encoberto por um ar adormecido e por pálpebras frequentemente descaídas.
Havia oito anos que encontrara Chiara pela primeira vez. Tinha então dezenove, nunca se apaixonara, mas ficara fulminado por aquela requintada estatueta de marfim, coroada por uma massa de cabelos negros e brilhantes, com olhos sombrios tão grandes que pareciam pertencer a uma máscara que tivessem colocado sobre aquele rosto delicado. Acontecera durante uma festa em Anet e, posteriormente, foi visitar, com frequência, os Valaines sem informar a duquesa. Em La Ferrière era sempre recebido como um amigo fraterno, sobretudo depois da morte do barão. Deste modo, quando viu a pequena Sylvie num estado tão lastimável, o seu coração entrou em pânico. A ordem de Mme. de Vendôme, enviando-o em busca de novidades viera muito depressa, caso contrário ter-se-ia precipitado para casa de Chiara sem pedir permissão.
Quando, acompanhado pelo pequeno grupo e pelo seu criado, Corentin Bellec, desembarcou perante a antiga ponte levadiça, agora baixada, a noite estava bem escura e havia um silêncio absoluto. Até as rãs se calavam nas valas. Não se via nenhuma luz, nenhum fogo, nem no castelo, nem nas cozinhas, nem na graciosa residência de estilo renascentista que Perceval tão bem conhecia! No entanto, à luz das tochas que tinham trazido, Raguenel depressa avistou o corpo de uma mulher que as patas do seu cavalo quase iam espezinhando. Saltando para o solo, ajoelhou-se ao pé dela e reconheceu Richarde, a ama de Sylvie. Apresentava uma comprida ferida que se estendia pelas costas e, ao voltá-la, encontrou entre os seus dedos uma pequena fita azul semelhante àquela que vira presa nos caracóis emaranhados da rapariguita. Richarde devia ter morrido ao proteger a criança que, depois, devia ter-se escapulido furtivamente para fora dos seus braços, partindo, com a boneca, à aventura.
Entretanto, dois dos homens tinham irrompido pelo domínio. Um deles, o seu criado, regressou, gritando-lhe:
- É horrível, senhor! Não há vivalma dentro de casa. Os criados, as crianças... foram todos mortos.
- E Mme. de Valaines?
Corentin olhou para o seu amo com um olhar onde transparecia algo semelhante à piedade:
- Vinde! Mas, previno-vos: é preciso muita coragem!
Ao transpor a porta baixa da residência, tão lindamente envolta em flores, Raguenel sentiu o odor tênue e enjoativo do sangue subir-lhe à garganta e, de fato, havia sangue por todo o lado: nas diferentes salas jaziam uma dezena de corpos, apunhalados ou atravessados pelas espadas, mas o horror absoluto encontrava-se no quarto da castelã. Era tão medonho que teve, primeiro, um movimento de recuo, aterrorizado pelo espetáculo: no meio de um caos de móveis partidos, de almofadas e de colchões esventrados, jazia Chiara, quase nua e de garganta cortada. As suas roupas, puxadas para cima e rasgadas as pernas afastadas, mostravam claramente que antes de ser morta fora violada. Os olhos da jovem mulher ainda estavam arregalados pelo martírio que devia ter vivido. A expressão que levavam para a eternidade refletia o terror e o sofrimento. Para cúmulo do horror haviam imprimido na sua testa sem dúvida como signo de posse diabólica um sinete de cera vermelha, no qual não se via nenhum número; só a letra grega omega.
Raguenel riu secamente, um riso muito mais triste que um soluço:
- Olha, Corentin, não nos temos de haver com um bandido de estrada, nem com um qualquer marau habituado às matanças em massa... este carrasco é um homem culto! Lê e até escreve em grego. Omega? Porquê? Será uma inicial, apresentada de forma galante, ou o fim de qualquer coisa, na grande tradição cristã: o omega de não sei que alfa? Só que não quero que um anjo leve para a sua sepultura este signo de infâmia!
Desembainhou o seu punhal e, ajoelhado nas escadas do leito, tentou descolar o sinete, mas a cera aguentava no lugar e as mãos tremiam-lhe. Corentin interveio:
- Devíeis deixar-me fazê-lo, Senhor. Não é assim que se procede para descolar um sinete de um pergaminho: é preciso uma lâmina muito fina, a de uma lâmina de barbear aquecida. Depois, quando a cera amolece, desliza-se cuidadosamente uma crina de cavalo. Muito devagar, para não dar cabo de nada.
- Onde aprendeste isso?
- Nos Beneditinos de Jugon. Quando me tomastes ao vosso serviço, não vos escondi que me escapara. Foi lá que floresceu a amizade do padre Anselmo pela minha pessoa. Tinha a paixão dos manuscritos, dos alvarás e de todas essas coisas. Foi ele que me ensinou a ler e a escrever. Também me ensinou como proceder quando não se quer quebrar um sinete. De outro modo, partimo-lo...
- Isso equivaleria a bater-lhe - protestou Perceval, de olhos na morta. - Além disso quero conservar este pedaço de cera. É testemunho do martírio de uma inocente e talvez me conduza ao assassino. Esse vou enviá-lo para os infernos, ter com os da sua laia. Ó meu Corentin, tenta retirar-me esse horror, sem a ferir!
- Farei o melhor que puder, mas, de qualquer modo, por baixo da queimadura há cera quente...
- É evidente, temos de encontrar uma lâmina de barbear.
Ia para sair quando surgiu um dos homens que o haviam acompanhado.
- Senhor cavaleiro, que devemos fazer? Não podemos deixar estes desgraçados à mercê dos animais selvagens. Além disso já chegaram os dias quentes e...
- Procurem lençóis, cobertores, tudo o que possa servir de mortalha! Tragam para aqui as crianças, para o pé da mãe e esperem por mim! Volto ao castelo para dar o recado à senhora duquesa e acatar as suas ordens. Depois regressarei com um padre, o bailio do principado e tudo o que for preciso para que esta pobre gente possa ser enterrada cristãmente.
Antes de sair, Raguenel deixou que os seus olhos pousassem uma última vez naquela que tanto amara e que levava com ela a parte mais terna da sua juventude. Tivesse ele sido uma personagem de mais elevada estirpe e ter-se-ia oferecido, sem dúvida, para desposá-la, mas não tivera mais que um grande amor e um nome imaculado para lhe oferecer. Por muito novo que ainda fosse, já sabia que mais nenhuma mulher o faria esquecer o sorriso dela, o seu olhar aveludado, a graciosidade tanto da sua pessoa como dos seus mínimos gestos. Restava-lhe a recordação e uma sede amarga de vingança. Nada o afastaria da sua busca: nem que tivesse de ir até aos confins da terra e do mar, procuraria o assassino do omega e quando o encontrasse nenhuma potência humana poderia parar o seu braço. Depois pensaria em fazer as pazes com Deus, pois diz-se que a vingança só a Ele pertence: não faltavam mosteiros onde se pudesse enterrar... Entretanto ia ser preciso refletir, procurar, esquadrinhar o passado tão tênue da açucena florentina, esmagada nas piores condições. E, subitamente, julgou ouvir, no fundo de si mesmo, uma voz fraca e doce que implorava:
- A minha filha... a minha pequena Sylvie! Pensai nela! Tomai conta dela...
Então, aproximou-se do leito pela última vez, debruçou-se sobre uma das pequeninas mãos, agora tão brancas e frias, e beijou-a.
- Chiara, presto-vos o meu juramento, pela minha honra e pela salvação da minha alma. Descansai em paz!...
Sem mais se preocupar com os dois homens que testemunhavam aquela breve cena, desandou para fora do quarto, desceu a correr a escadaria, desprendeu o cavalo, cavalgou-o à meia volta e partiu a todo o galope através da floresta noturna que outrora percorria a trote, deixando-o à rédea solta quando regressava de La Ferrière, para se dar a si mesmo tempo para sonhar e ouvir, ainda, o eco de um alaúde dedilhado por belas mãos brancas. Mas nessa noite, Perceval de Raguenel, esse jovem sempre tão calmo, por vezes até à indolência, sentia necessidade de um exercício violento. Um mocho, pássaro da sabedoria, lançou três vezes o seu pio por entre a espessura das árvores, mas ele não o ouviu. Os seus ouvidos estavam invadidos por um vento tempestuoso...
Depois de vinte minutos de uma corrida louca, entrava a velocidade infernal por Anet adentro, saltava para terra, no pátio iluminado pelas lanternas, lançava a rédea a um moço de estrebaria que tinha surgido de nenhures e precipitava-se para os aposentos da duquesa.
No sopé da escadaria encontrou o jovem Ranay, um dos pagens da casa, que o olhou surpreendido:
- Que vos aconteceu, senhor cavaleiro? Dir-se-ia que estais a chorar?
- Eu? Nunca! Está a sonhar, meu rapaz.
Contudo, antes de bater à porta de Mme. de Vendôme, limpou os olhos no seu punho de renda...
UMA MEMÓRIA INCRÍVEL
De pé, frente a uma janela aberta para a doçura da noite, indiferente às idas e vindas das suas criadas, que arrastavam baús de cabedal ou transportavam pilhas de roupas, Françoise de Vendôme tentava dominar a angústia que dela se apossara logo que soubera que o seu esposo fora feito prisioneiro. César trancado, talvez acorrentado! Inimaginável!
A decisão de voar em seu socorro ocorreu-lhe naturalmente. No entanto, há momentos que se perguntava se a sua intervenção levaria a outra coisa senão a colocá-la, a ela, sob os fogos conjugados da cólera do Rei e dos rancores do seu ministro. Ora, ela era o único membro adulto que restava da família ainda livre de se movimentar, pois Catherine, duquesa de Elbeuf, a sua cunhada turbulenta, quase nem merecia este título. Se ela também fosse presa, os seus filhos, tão novos, apenas teriam como defesa uma muralha constituída pelos que os rodeavam: criados dedicados, sem dúvida, serviçais com honestidade comprovada, mas estranhos apesar de tudo, acerca dos quais se ignorava como reagiriam perante as ameaças que podiam surgir-lhes. Saberiam eles defender, contra inconfessáveis cobiças, o seu precioso patrimônio: o Vendômois e a forte cidade que lhe dava o nome, os castelos quase reais que se chamavam Anet, Chenonceau, Verneuil, Ancenis, La Ferté-Alais, o grande hotel Vendôme em Paris e tantos outros bens?
Deixando-se cair numa das poltronas de seda azul e galões dourados, a duquesa pousou a cabeça dolorida na almofada de apoio e contemplou o teto, cujo tema era a Noite e cuja personagem principal era a deusa Diana, que o gênio da caça e os seus galgos favoritos corriam a despertar. Aquele quarto tinha sido um local de amor, como o assinalava, através do castelo, a dupla inicial das letras H e D entrelaçadas, quase fundidas, lembrando, orgulhosamente, que reinava ali uma mulher que durante a sua vida e até ao golpe desferido em Tournelles, tinha conservado cativo um amante com mais vinte anos que ela. A verdade é que era tão bela!
Françoise sempre desejara outro quarto e não aquele templo de carícias, mas tratava-se do melhor ornamentado, aquele que a castelã elegera e que César fazia questão que fosse o de sua mulher.
- Por que não vos conviria, minha amada? - perguntava, rindo-se. - Também sois plena de charme, se bem que um pouco recatada, mas quão mais jovem!
César! Como se ele não soubesse do poder do seu charme sobre a altiva princesa de Lorraine, que tivera tanta dificuldade em desposar! O casamento, decidido na tradição mais estrita das uniões entre príncipes, revelara-se, afinal de contas, uma bem curiosa história. Logo em 1598, Henrique IV obtivera para o seu filho César, então de quatro anos, a mão de Mlle. de Mercceur-Lorraine, que tinha seis. Não sem dificuldades: o duque de Mercceur mostrava muito má vontade em oferecer a mão de sua filha, tanto mais que lhe era pedido para pagar o seu genro com o governo da Bretanha, que conservara durante tanto tempo. Mas o jovem César tinha sido considerado legítimo, reconhecido enquanto herdeiro, e já se anunciava que o rei Henrique ia desposar a sua mãe, a radiosa Gabrielle d’Estrees, que se tornara duquesa de Beaufort. Não era, portanto, um mau negócio o de casar a filha com um futuro rei... Desgraçadamente, a alguns dias do casamento e da coroação, a bela Gabrielle morria de uma crise de eclampsia, que alguns acharam providencial. E César caiu do seu estatuto de herdeiro ao de um simples bastardo.
Tendo Mercceur partido, sob a bandeira do imperador Rodolfo II, para defrontar a morte na guerra contra os Turcos, Henrique IV pensou que a viúva do herói, que viera viver em Paris, onde mandara construir um enorme hotel e, ao lado deste, um vasto convento para os Capucinhos, estaria muito ocupada com as suas orações e obras de caridade para se erguer contra ele e pôr em causa o casamento. Era conhecer muito mal a Luxemburguesa[7]. Mme. de Mercceur era uma verdadeira dama, talvez a mais devota de toda a França, mas talvez também a mais rica, e a sua filha devia levar consigo um dote considerável constituído, entre outros bens, pelo ducado de Penthièvre, isto é, aproximadamente um sexto da Bretanha, sem contar com aqueles que herdaria da mãe. Foi assim que a duquesa deu a entender que o dito casamento não lhe parecia desejável, tanto mais que a sua filha falava em retirar-se para os Capucinhos, em vez de consentir tornar-se Mme. de Vendôme, propondo, até, enviar ao Rei cem mil escudos pela retratação.
Henrique IV achou que se tratava de uma falsa desculpa mas, na realidade, esta era verídica: Françoise, que se teria visto como rainha de França com um certo prazer, não queria mais ouvir falar de César de Vendôme, um miúdo de catorze anos (quando ela tinha dezasseis) do qual se dizia que era turbulento, brutal e que, sobretudo, preferia, de longe, a companhia dos rapazes à das raparigas. Fora um período penoso para ela, pela simples razão que o seu orgulho entrara em conflito com o seu coração. César era charmoso, com os seus cabelos louros, olhos azuis e traços que já eram majestosos. Prometia tornar-se um homem soberbo e mais de uma mulher olhava-o com enlevo. Françoise sofrera a influência desse charme, mas também possuía uma clara consciência de quem era ela própria: uma princesa pertencente a uma das casas mais nobres da Europa, sobrinha de uma rainha de França e, ainda por cima, bela, muito rica e, sobretudo, educada dentro dos princípios rigorosos conhecidos e que não toleravam o vício de Sodoma...
Talvez ela se tivesse resignado, como a doce e piedosa tia Louise se resignara com os queridos do seu esposo, mas a coroa e o manto real conferindo coragem a quem se mostra digno de os envergar, tinha ficado fora de questão que o filho de Gabrielle pudesse um dia subir ao trono. E, contudo, a rebelde foi obrigada a inclinar-se. Não perante uma ordem do Rei. Henrique IV sabia que não havia maneira alguma de forçar Mlle. de Mercosur a desposar o seu filho bastardo, mas perante a vontade do duque de Lorraine, o chefe de família. Este, Henrique II, o Bom, viúvo de primeiras núpcias com Catarina de Bourbon[8], irmã de Henrique IV, pretendia manter boas relações com o seu cunhado. Deu a entender que o casamento lhe convinha e as duas rebeldes, mãe e filha, tiveram de se inclinar. E, foi um belo casamento, lá isso foi!
Ao evocá-lo, Françoise não podia impedir-se de sorrir. Revia a capela do castelo de Fontainebleau, nessa noite de 5 de Julho de 1609, toda embalsamada pelo odor das flores, brilhando à luz das velas e cintilando de adereços. Revia César, já mais alto que ela, radiante e magnífico, no seu gibão de cetim branco, quando, à meia-noite, se sentara ao pé dela para lhe jurar amor e fidelidade. Sorrira-lhe, ao pegar-lhe na mão. É verdade que era bela mas, através dela, era à Bretanha que ele sorria; Bretanha que lhe haviam apresentado no ano precedente e que se apoderara de uma parte do seu coração. César estava feliz nessa noite, bem como Françoise. Tinha havido um momento de pânico quando o jovem casal fora enviado para o leito e o Bearnense, com um largo sorriso que se estendia de uma orelha a outra, pegara numa cadeira e se instalara à cabeceira. Pensava, na realidade, permanecer ali? A jovem esposa erguera um olhar aterrorizado na direção da mãe: nada sabia do que se seguiria, pois Mme. de Mercosur contentara-se em aconselhá-la a submeter-se a tudo quanto lhe pedissem, por muito estranho que essas demandas lhe parecessem. O Rei, quanto a ele, rira francamente.
- Enxugai as vossas lágrimas, prima minha! - disse à duquesa - Mandei instruir convenientemente o meu filho e todos nós devemos obter satisfação.
Também César se pusera a rir, voltando-se para a sua jovem esposa, mais morta que viva:
- Então, senhora, é preciso dar satisfação ao Rei... e a nós próprios! - disse alegremente. E, sem mais se preocupar com o observador, tomara-a nos seus braços. Para sua grande surpresa, também Françoise se esquecera do indiscreto que, aliás, se retirara na ponta dos pés, fechando as cortinas do leito...
Fizeram amor três vezes, de maneira alegre, que lhe dava a aparência de se tratar de um jogo. Françoise, muito magra nessa altura, pouco fornecida em vantagens femininas, descobriu que o seu marido não a desejava de outro modo. Ele detestava as mulheres de formas cheias ainda mais que as outras e, para agradar-lhe, era melhor possuir um corpo ligeiramente semelhante ao dos rapazes. Dessa noite de núpcias, celebrada durante várias semanas com comemorações e festas, saiu um casal unido por uma cumplicidade, uma estima e um afeto que nunca se haviam de desmentir. Françoise, apoiada pela sua fé profunda, teve a sabedoria de saber contentar-se com o fato. Descobriu que o coração de seu marido nunca poderia bater por outra mulher: César amara demasiadamente a mãe, a esfuziante Gabrielle, e permanecera cego por ela para todo o sempre. Quanto aos jovens rapazes de cuja companhia tanto gostava, não lhe permitiu que ela tivesse, sequer, de se inquietar com isso. Amava-a à sua maneira e adorava, sobretudo, as três soberbas crianças que ela lhe havia dado e que consolidaram uma união mais firme do que se havia esperado. A jovialidade de César, o seu gosto pelo fausto, a sua bravura louca, faziam dele um companheiro tanto mais cativante porquanto era capaz de apreciar o caráter mais grave de uma mulher a quem chamava “a minha querida Sabichona”.
A idéia dele ter sido preso transtornava Françoise. Era um homem de grandes espaços, de tempestades, de corridas ao vento e também de batalhas e grandes patuscadas entre bons companheiros no regresso da caça. Se gostava tanto da Bretanha, era porque nela havia descoberto um terreno à medida do seu coração: selvagem, orgulhoso e grandioso. Como imaginar um homem daqueles entre os quatro muros de uma masmorra, esperando sabe Deus por que julgamento inspirado pelo ódio e pela parcialidade, pois César, Françoise tê-lo-ia jurado pela memória de sua mãe, nunca chegara sequer a pensar em atacar o Rei, seu irmão, fosse atentando contra a sua vida ou apenas contra a sua saúde. O homem que ele odiava era Richelieu e este retorquia-lhe da mesma moeda e com juros acrescidos. Infelizmente, o Cardeal-ministro era o mais forte.
Tenho de sair deste mau passe repetia a duquesa. Mas, como? Utilizando que meio? Ainda que não imaginasse o homem de samarra púrpura audacioso ao ponto de reclamar a cabeça de um príncipe de sangue, não estava longe de se ver, a ela e aos seus filhos, todos vestidos de preto, a ajoelharem-se no gabinete do ministro, para lhe implorar clemência. Uma imagem contra a qual se revoltavam o orgulho da sua estirpe e o seu caráter feminino. No entanto, sabia que era capaz de chegar a tais extremos para salvar o seu César.
A entrada de uma das suas criadas a anunciar-lhe o regresso do seu escudeiro, arrancou-a a um devaneio que se encaminhava para a morbidez, fazendo-a regressar a si. Também a ela lhe fazia falta a ação...
- E então? - perguntou, quando Raguenel, ainda sob o choque da emoção, se inclinou à sua frente.
- Ai, senhora! É ainda pior do que aquilo que poderíamos imaginar! Mme. de Valaines, os seus filhos e serviçais foram todos massacrados.
- Massacrados?
- É a palavra apropriada. Há cadáveres e sangue por todo o lado. E não chego a entender como é que, por milagre, a pequena Sylvie pôde escapar aos assassinos. A ama, que tentava fugir levando-a consigo, foi golpeada no meio do pátio. Deve ter caído sobre a criança que transportava e que ficou protegida pelo seu corpo. Mais tarde a pequena deve ter conseguido libertar-se...
- Mas quem pode ter feito uma coisa dessas? E porquê?...
- É aquilo que, com vossa permissão, tentarei saber, logo a partir de amanhã. Pelo momento conviria tratar de enterrar cristãmente todos esses infelizes, sem esperar que deles se encarreguem os animais ou que o calor os ataque...
- Decerto, decerto... e vou conceder-vos os meios, mas pensais que amanhã... oh! meu Deus, é verdade: vós ainda estáveis a caminho quando tomei a minha decisão. Ao nascer do dia devemos partir para Blois com Monsenhor de Cospéan, enquanto que M. d’Estrades e o padre Gilles transportarão as crianças até Vendôme, onde ficarão em segurança. Será preciso encarregar o nosso bailio de Anet de inquirir sobre esta terrível aventura...
Parou de falar; Perceval acabara de ajoelhar-se diante dela:
- Senhora duquesa, rogo-lhe a permissão para ficar aqui. Eu próprio desejaria esclarecer esta tragédia. O falecido barão de Valaines partilhava a sua amizade comigo e...
- ...e ficastes amigo da viúva dele, nada mais natural! - completou Mme. de Vendôme, com a franqueza a um tempo abrupta e inocente que fazia parte do seu charme, mesmo que fosse por vezes difícil ter de suportá-lo.
- Eu... sim, senhora!
- Pois bem, então ficai, meu amigo! - suspirou, apoiando-se, para se levantar, com ambas as mãos nos espaldares do assento. - Aliás a carruagem do caro bispo não é assim tão grande e não preciso de um escudeiro para esta expedição. Sobretudo, no caso em que também me metam a mim na prisão! Fazei o que puderdes e marquemos encontro para depois em Vendôme. Se a desgraça real sobre nós se abater, como tudo o deixa supor, os meus filhos nunca disporão de defensores em quantidade suficiente. Na pior das hipóteses, caso as coisas passassem a correr verdadeiramente mal, poderiam refugiar-se em Lorraine, mas julgo que a nossa forte cidade de Vendôme saberá cumprir o seu dever...
- E a pequena Sylvie, senhora duquesa? Que vai ser dela?
- Ignoro-o, mas é óbvio que temos de a guardar. Pobre pequena! Que faria, tão nova, se a abandonássemos? Primeiro pensei num convento, mas a minha filha Elisabeth está encantada com ela e tomou-a sob sua proteção. Tem a impressão de ter mais uma boneca e está felicíssima.
- É uma boa coisa. Ela não terá nada a temer em vossa casa. O que talvez não fosse o caso se estivesse num convento...
Mme. de Vendôme ergueu as sobrancelhas:
- Que pensais que ela possa recear? Ainda é uma bebê...
- Perdoai-me, senhora duquesa, mas penso que ela corre grande perigo. As pessoas que assassinaram todos os habitantes de La Ferrière deviam ter recebido ordem de não deixar vivalma e todos foram mortos... com exceção dela.
- Que poderia ela temer?
- São os assassinos que podem pensar em temer algo da parte dela. Ainda é muito nova, pois ainda não fez quatro anos mas, mesmo nesta idade, já se tem olhos para ver, uma memória, e Sylvie já dá provas de possuir uma inteligência desenvolta. Como sua mãe...
- É pena que não seja tão bela quanto ela! A pobre baronesa era encantadora. É de temer que a criança saia mais ao pai, que era bem menos bonito... Agora ide à casa canônica da nossa capela e rezai aos bons padres para que vos assistam na vossa triste tarefa.
Como ele se preparava para sair, ela reteve-o:
- Perceval!
- Sim, senhora duquesa respondeu, surpreendido por ser chamado pelo seu primeiro nome; pelo que concluiu que ela se encontrava muito comovida.
- Faço votos para que nos reencontremos dentro em breve. Rezai a Deus por mim e pelo duque César!
- E também pelo Senhor, o Grande Prior?
- Oh! Esse! Foram as suas idéias tresloucadas que nos conduziram a este impasse. Contudo, tendes razão: também é preciso rezar por ele. Não foi M. de Sales, o nosso caro bispo de Gênova, que escreveu: “Entre as práticas das diferentes virtudes devemos preferir a mais apropriada ao nosso dever e não aquela que melhor se adapta ao nosso gosto”? Ide, cavaleiro! Agora vou ver os meus filhos.
Enquanto Perceval se encaminhava para cumprir o seu piedoso dever, a duquesa dirigia-se ao aposento da filha, onde a esperava um curioso espetáculo: o seu filho mais novo, sentado junto à cama onde se tinha, finalmente, conseguido, a bem ou a mal, deitar a pequena foragida, segurava numa mãozinha da criança, que tinha o polegar da outra enfiado na boca. A miúda, que tinham lavado e mudado de roupa e também alimentado com uma caneca de leite e alguns biscoitos, perdera o seu aspecto de gato selvagem e dormia, com a boneca ao pé de si. A alguns passos dali, Elisabeth, sentada num banco, com os cotovelos apoiados nos joelhos e o queixo nas mãos, contemplava o quadro com um olhar perplexo. Mme. de Vendôme interveio:
- Ora bem, François, que fazeis a uma hora destas no aposento de vossa irmã? Não é o vosso lugar. Deixai essa pequena e regressai ao vosso quarto! Bem vedes que ela dorme.
Como resposta o rapaz retirou suavemente a mão e, logo a seguir, abriram-se, simultaneamente, os olhos e uma boca de onde saiu um berro tremendo.
- E pronto! - suspirou Elisabeth. - Enquanto nos ocupamos dela, Sylvie só deixou de chamar pela mãe para reclamar o meu irmão, a quem chama “senhor Anjo”. Levei um certo tempo a entender que era dele que se tratava, mas por fim lá o mandei chamar...
- De qualquer maneira, senhora, eu prometera vir vê-la antes dela adormecer.
- Isto tudo é ridículo! Regressai ao vosso quarto e deixai-a gritar. Acabará por parar.
- Sim, mas quando? - perguntou a filha. - Eu também gostaria de dormir.
- Acredito. Já dissestes as vossas orações?
- Ainda não. Que maneira há de rezar no meio deste barulho?
- Deixai-me atuar! Vamos rezar todos juntos. Vós também, François, já que aqui estais...
E, debruçando-se sobre a cama, levantou a pequena rapariga, sempre a berrar, e dirigiu-se para o oratório, colocado a um canto do quarto. Aí fê-la ajoelhar-se com ela numa almofada de veludo azul, disposta frente a uma estátua da Virgem, obrigando as suas mãozinhas a unirem-se. Por fim, surpreendida por este tratamento inesperado, Sylvie calou-se, erguendo um olhar inquieto, e até mesmo um pouco amedrontado, para aquela grande senhora, magnífica e severa no seu tafetá cor de ameixa. Ali estava, com toda a evidência, uma potência com a qual convinha contar... mas que, ainda assim, lhe sorriu, ao cobri-la com ambos os braços, para lhe manter os dedos juntos:
- Ora assim já está melhor! E agora, o sinal da cruz - acrescentou, guiando a mão da criança e começando, a seguir, a prece: - “Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum...”
Era evidente que a miúda não estava ainda habituada à prática do latim. A mãe ou a ama deviam pegar nela ao colo para fazê-la recitar uma prece fácil, destinada aos pequenos. Aquela algaraviada pareceu-lhe contudo divertida, e lançou-se numa improvisação chilreante, que pôs à prova a seriedade de Elisabeth, de François e das camareiras, ajoelhadas atrás da duquesa.
Finda a oração, a própria Mme. de Vendôme voltou a deitar a criança, pôs-lhe a boneca nos braços, e beijou-a:
- Agora, pequena, é preciso dormir! Amanhã dareis um lindo passeio de carruagem com... o senhor Anjo.
De mansinho, Sylvie tornou a pôr o polegar na boca, fechou os olhos e foi logo apanhada pelo sono. A duquesa puxou os cortinados e voltou-se para os filhos:
- Amanhã de manhã ela irá convosco para Vendôme. Esta pobre pequena não possui mais ninguém no mundo. Pelo menos que eu saiba. Só por milagre é que escapou a um massacre geral e, segundo o cavaleiro de Raguenel, pode bem ser possível que ela ainda corra perigo. Velai por ela até que eu vá ter convosco. Agora, separemo-nos! Dentro de uma hora, eu e Monsenhor de Cospéan ir-nos-emos embora. Vós ides ao nascer do dia. Só voltaremos a ver-nos... se Deus assim o quiser...
- Mãe! - exclamou François, alarmado - Se tendes de correr tão graves riscos, quero acompanhar-vos!
- Não, pois tal como estou comprometida para com o senhor vosso pai, vós tendes um dever para com o vosso nome. Esta noite acabamos de ver como se pode destruir, nalguns instantes, uma família inteira. Não se deve incorrer em perigos semelhantes. Lembrai-vos que o sangue de França corre nas vossas veias... e abraçai-me para me dar coragem! - acrescentou, subitamente desfeita em lágrimas, fugindo à personagem que desde a chegada do bispo se esforçava por assumir, para se tornar apenas numa esposa e numa mãe roída pela inquietação. Só podia dar livre curso aos seus sentimentos com aqueles dois: imbuído da sua dignidade de filho mais velho, talvez Mercosur não a tivesse compreendido... ou aceite.
Ficaram um momento agarrados um ao outro, chorando os dois e, depois, tão repentinamente quanto havia soçobrado, Françoise desprendeu-se e saiu exclamando:
- Mme. de Bure, tratai de purgar a nossa menina assim que chegarmos. Acho a tez dela um pouco macilenta. Aliás, a Primavera é a “melhor estação para clarificar...
O resto do discurso perdeu-se nas profundezas do castelo, sem que a governanta se perturbasse. Ali todos sabiam que a duquesa cultivava de bom grado a desconversa. Por vezes, voluntariamente: não era essa a melhor maneira de desviar o curso das coisas quando uma emoção ameaçava tornar-se excessiva?
Enquanto a órfã dormia a sua primeira noite longe de um domínio que não voltaria a ver tão depressa, começava o bailado das partidas sucessivas. Primeiro foi a vez de Perceval de Raguenel, escoltando a carruagem para onde tinham subido o prior do capítulo da igreja do príncipe e um acólito seu; depois, uma hora mais tarde, a equipagem de Philippe de Cospéan, levando Mme. de Vendôme e Mlle. de Lichecourt, a sua acompanhante favorita, devido ao bom senso, à calma imperturbável e à piedade profunda que revelava. Por fim, ao nascer do dia, trouxeram-se as carruagens que iam levar os filhos de César para o abrigo das muralhas da sua cidade capital, que era também o seu local de vigilância preferido.
Quando saiu do castelo à luz da alvorada, bem aconchegada no braço de Mme. de Bure, a quem a fragilidade e figura de gatinho desolado da criança tinham comovido profundamente, a pequena Sylvie, para quem uma camareira trabalhara toda a noite a fim de ajustar ao seu tamanho antigas roupas de Elisabeth, parecia ter esquecido a sua tristeza e abria muito os olhos ao ver os últimos preparativos. O dia prometia ser soberbo. O ar estava puro como cristal. A tempestade da véspera e as suas grandes chuvadas tinham lavado os belos telhados de ardósia, os mármores do castelo que a aurora tingia de cor-de-rosa, assim como toda a paisagem. A floresta vizinha cheirava bem, com as folhas acabadas de ser regadas, com o odor a erva nova e a terra molhada. Nas mãos dos cocheiros os cavalos relinchavam impacientes, apressados em galopar naquela linda manhã, rumo a um destino que não seria obviamente alcançado nesse mesmo dia, pois era preciso percorrer aproximadamente trinta e três léguas entre Anet e Vendôme.
A governanta estendeu o seu fardo a um criado, a fim de estar mais liberta de movimentos para subir para a carruagem. Sylvie começou a espernear, a retorcer-se com tanto vigor que as mãos do homem, ao deslizarem pelo vestido em tecido napolitano da cor do amor-perfeito o que se encontrara mais próximo do luto deixaram escapar a criança que, felizmente, caiu sem percalços. Mal se levantou, desatou a correr tão depressa quanto o permitiam os seus saiotes brancos e as suas pequeninas pernas, lançando gritos de alegria: acabara de ver o “senhor Anjo” que, por sua vez, saía do castelo na companhia do irmão Louis, do aio e do preceptor deles, o padre Jacques Gilles, designado para o serviço dos jovens príncipes pelo capítulo da igreja de São Jorge, encarregue do serviço do castelo de Vendôme. Era uma personagem majestosa, grande amigo de boa carne, mas receando as correntes de ar; avançava com um andar prudente, envolto por uma espécie de capa acolchoada de veludo negro. À parte o latim que praticava com virtuosismo, não sabia lá grande coisa, mas cantava no ofício com uma soberba voz de baixo. Se o ensino que ministrava não era de teor a sobrecarregar por aí além o espírito os seus alunos, tanto o duque como a duquesa pouco se preocupavam com isso: os seus filhos estavam destinados a ser, antes de tudo, soldados e verdadeiros cristãos.
O digno homem escapou por pouco à arremetida de Sylvie que, ultrapassando-o, aterrou nas pernas de François, lançando gritinhos de alegria. O rapaz inclinou-se para a apanhar e, imediatamente, ela deslizou os braços à volta do pescoço dele para lhe dar, na face, um grande beijo um pouco molhado.
- Chispe, Martigues! - troçou Louis. - Dir-se-ia que haveis feito uma conquista! Esta jovem adora-vos.
- Ele é zentil e eu zosto dele - declarou com firmeza a pequena, na qual François pegara entretanto, muito naturalmente, para lhe devolver o beijo. - Tu, tu és maucinho!...
- Ora vejam só que bons modos! Esta criança é mal educada e nem sequer é bonita...
- Um pouco de indulgência, irmão! - disse François, sorrindo. - Pensai no pesadelo de que ela acaba de sair.
- Precisamente! A nossa mãe faria melhor em enviá-la para um convento. O que se passou em La Ferrière demonstra que essa gente deve ter incorrido na cólera de alguma grande personagem. Talvez do próprio Rei...
- Saiba, senhor, que o Rei não assassina! - interrompeu severamente M. d’Estrades. - E ainda menos massacra. Tem ao seu serviço juizes e soldados em número suficiente para que possa exercer da sua justiça, sem ter de recorrer a tais meios!
Mercceur baixou logo o tom altaneiro.
- Bem sei, senhor, perdoai-me! Queria apenas dizer que, dada a perigosa situação em que se encontram o nosso pai e o nosso tio, não temos nada que nos ocupar com os assuntos dos outros. Permiti-me preferir a salvação deles a qualquer outra preocupação - acrescentou, retendo um soluço que mostrava quanto se achava inquieto.
- Pensamos todos dessa forma, mas é quando a desgraça se abate que é meritório preocupar-se com os outros...
Entretanto, já Mme. de Bure e Elisabeth acudiam em auxílio. Apesar de lhe oferecerem maçapães e ameixas em calda, Sylvie não quis saber de nada: voltara a pegar na mão de François, que não tencionava mais largar. Não compreendia, sem dúvida, por que razão os homens e as mulheres deviam viajar em carruagens diferentes. Louis resmungou, com impaciência:
- Será mesmo preciso adiar a nossa partida até logo à noite, devido ao capricho de uma menina teimosa? Estamos com pressa.
- Por isso, vamo-nos - respondeu François, rindo. - O melhor é que eu vá com as senhoras. Afinal de contas é bom que elas tenham um cavaleiro ao seu serviço.
E puxou a pequena, correndo para a primeira carruagem, onde se instalou ao pé dela. Um instante mais tarde, os largos veículos, seguidos por carruagens repletas de bagagens, transpunham o portão da entrada, enquanto o grande veado de bronze dava sete batidas e a Ave-Maria se escapava dos sinos das proximidades.
Na altura em que o cortejo se dirigia para a estrada de Dreux, escoltado pelos serviçais a cavalo, a carruagem do capelão chegava ao terreno situado frente ao edifício, com o pessoal do bailio de Anet e aqueles que Raguenel levara consigo. Pareciam todos extenuados. Os rostos traziam as marcas da tarefa horrorosa que fora preciso efetuar. Ao aperceber-se disso, M. d’Estrades mandou parar as carruagens e desceu para se juntar ao prior, que saudou respeitosamente:
- M. de Raguenel não está convosco, meu padre?
O velho homem dirigiu-lhe um olhar um pouco esgazeado:
- Não. Agora que acabamos a nossa tarefa, nós e o senhor bailio, ele aconselhou-nos a procurarmos um pouco de repouso. Asseguro-vos que é bem necessário, meu filho. Já vi muitas coisas durante a minha vida, mas poucos horrores comparáveis a este...
- Já se sabe quem o fez?
- Quem poderia dizer-nos? As pessoas da aldeia vizinha estão petrificadas de terror. Falaram apenas de um bando de homens armados, uma dúzia de cavaleiros vestidos de negro, que pareciam demônios. Aquele que os comandava trazia uma máscara. O senhor bailio nada mais pôde saber e, honestamente, não vejo que mais nos poderiam dizer, pois só têm uma idéia: esconderem-se. Quanto a nós, podeis dizer à senhora duquesa que as pobres vítimas foram piedosamente sepultadas e benzidas. Assim que regressar, talvez Monsenhor César consiga desvendar este mistério, mas não o creio.
- Porque não veio o cavaleiro convosco?
O prior ergueu os ombros e levantou as mãos ao céu:
- Porque é um homem teimoso que se recusa a aceitar a evidência. Guardou apenas o criado para o ajudar a “interrogar céu e terra”, como diz. Os jovens nunca desconfiam de nada e julgam sempre saber mais que os velhos. Enfim, disse que se encarregava de fechar o castelo, enquanto espera que Monsenhor, o duque, tome as decisões necessárias. Agora, permiti-me prosseguir caminho, meu filho. Temos grande necessidade de rezar!
O preceptor recuou dois passos e inclinou-se, varrendo a erva com as penas do seu chapéu de feltro. Os religiosos prosseguiram caminho e, momentos depois, as equipagens puseram-se de novo a caminho. Mme. de Bure, que já estava com demasiado calor formas redondas e um ligeiro acne, devidas ao seu apetite, faziam-na recear as temperaturas elevadas abanava-se com o lenço:
- Se pararmos a propósito de tudo e de nada, nunca mais chegaremos! Aliás devíamos ter partido mais cedo! Até em plena noite, para aproveitarmos a frescura. A senhora duquesa preveniu-se bem ao preceder-nos vantajosamente.
A brava senhora teria conversado de bom grado, mas os seus jovens companheiros não a ouviam. Elisabeth adormecera mal se instalara no coche e François deixava vagabundear o seu pensamento pelas bandas de Sorel. Dessa forma, não só se afastava daquela que tanto o ocupava sem ficar minimamente seguro a seu respeito, como só Deus podia saber quando voltaria a poder vê-la, se é que isso poderia vir a acontecer. Normalmente apreciava Vendôme mas, desta vez, tinha a impressão de partir para o exílio. Quanto ao pai, de quem, contudo, gostava imenso, não chegava a inquietar-se verdadeiramente: o duque César era uma tal força da natureza! Havia nele algo de indestrutível que nem todos os Richelieu da terra conseguiriam derrotar!
Bem diferentes eram os pensamentos da sua nova amiga. Sentada ao pé dele, Sylvie desfrutava um momento de felicidade pura. Era demasiado jovem para ter consciência da desgraça que se abatera sobre ela. Apenas sabia que a tinham magoado, que tinha medo e que a mãe tão terna e sempre presente quando dela necessitava não lhe respondera quando a chamara. De súbito, o seu universo aconchegado explodira. A ama levara-a da cama e desatara a correr depressa, tão depressa! Isso até fora divertido mas, depois, de repente, ela soltara um grande grito e caíra em cima dela tão pesadamente que Sylvie não se lembrava do que se passara, à parte aquele peso que a sufocava e do qual o seu instinto de pequeno animal ajudara a escapar-se. A ama não se mexia e, como nem a mãe nem ninguém respondia, Sylvie partira em busca deles, na companhia de “Cara Linda”, a boneca que, ao menos, não a abandonara. O caminho era difícil. Havia pedras que magoavam os pés, espinhos, e Sylvie chorara de medo e de dor, até soar aquele ruído horroroso; logo a seguir surgira o anjo montado no seu cavalo branco. Só Deus sabe por que desaparecera o cavalo, mas o anjo ficara e levara-a até àquela linda casa dourada, muito colorida, onde tão bem a haviam tratado... Agora iam passear juntos e estava um tempo tão bom! O ar cheirava tão bem!...
A criança soltou um expressivo suspiro de felicidade e apoiou a cabeça no braço do seu maravilhoso companheiro. Eram um pouco sacudidos mas, de repente, tivera sono. François retirou então o seu braço cuidadosamente, para aconchegá-la e instalá-la de encontro a ele. Ela nem chegou a ouvir o riso de Elisabeth, que dizia:
- François, tenho a certeza que nunca havíeis imaginado uma carreira de ama seca. Em todo o caso, dais provas de notáveis aptidões...
- Já há muito tempo que não abríeis a boca para dizer disparates! - resmungou o interpelado. - Já estáveis mortinha por...
- Ora, não vos zangueis! Ela também me encanta, é muito querida...
- Apesar do seu caráter execrável?
- Ela não tem mau caráter. Sabe o que quer, eis tudo! E, neste momento, é a vós que ela deseja!
- Esperemos que isto lhe passe! - suspirou François, que desejava sobretudo prosseguir o curso do seu devaneio.
E foi assim que Sylvie de Valaines partiu rumo a uma nova vida.
Entretanto, em La Ferrière, Perceval de Raguenel esforçava-se para reconstituir o drama que acabara de ocorrer. A tarefa anunciava-se difícil. Os assassinos eram do tipo daqueles que praticam a técnica da terra queimada, não tendo deixado, durante a passagem, qualquer rasto susceptível de os identificar a não ser, talvez, o sinete de cera vermelha, que Corentin descolara tão habilidosamente e que, dobrado no seu lenço, repousava agora contra o peito do jovem. Mas esse nada lhe poderia contar.
Sentado no quarto de Chiara, ao pé da lareira apagada, com as suas pernas compridas estendidas, calçando botas em marroquim negro, Raguenel contemplava a cama da qual haviam retirado a jovem mulher. Ele próprio se encarregara de compô-la, colocando um lenço de renda sobre a queimadura da testa e encobrindo o corpo que voltara a vestir o melhor que soubera com um cobertor em damasco púrpura agaloado em prata; depois, pegara-a nos seus braços, pela primeira e última vez, para a deitar na maca que a levara até à capela. Nas lajes desta tinham-se aberto três sepulturas. Em seguida, com a ajuda de Corentin, ocupara-se das crianças que repousavam agora ao lado da mãe, os três reencontrando Jean de Valaines para toda a eternidade. Os corpos das outras vítimas haviam sido enterrados num pomar benzido pelos padres. Agora só ali estavam Corentin, ele próprio e os respectivos cavalos, cujos cascos batiam de vez em quando nas pedras.
Perceval apreciava o silêncio. Esperava que dele brotasse uma idéia, a descoberta de um detalhe, mas nada ocorria. Lá fora tinham-se queimado os lençóis, os cobertores e o colchão, ensopados pelo sangue de Mme. de Valaines. Este último não tinha sido poupado pelos bandidos e ficara esvaziado com os vários golpes que lhe tinham desferido. A mesma busca brutal e destruidora atingira igualmente a cabeceira, o dossel que segurava as cortinas e também os suportes que, nos quatro cantos do leito, seguravam os penachos de penas vermelhas e brancas:
“Se ao menos eu pudesse saber o que estes miseráveis vieram procurar” resmungou o cavaleiro, levantando-se para dar mais uma volta pelo quarto. Mas, não podendo deitar as paredes abaixo para verificar se não havia algum esconderijo disfarçado, nada encontrou que não tivesse atentamente examinado. Contudo, ao baixar-se para olhar debaixo da cama, viu que ainda havia ali uma peça de roupa, talvez esquecida por alguma serviçal descuidada; estendeu o braço para a agarrar e, não o conseguindo, serviu-se da espada para cobrir uma maior distância; finalmente, trouxe à luz do dia uma camisa que devia ali estar desde há algum tempo, pois encontrava-se coberta de poeira.
Ajoelhado no soalho, hesitou um momento quanto ao que devia fazer. Não necessitava de uma prova suplementar. O sinete de cera vermelha bastava-lhe amplamente. Soerguendo-se, lançou uma vista de olhos ao pátio e viu que o fogo que lá tinham aceso se havia apagado.
Avistando então a chaminé, onde uma mão graciosa tinha substituído as provisões de madeira por um ramo de giestas, retirou o vaso contendo as flores, encontrou algumas achas ali dispostas à espera dos dias frios e procurou algo com que acendê-las. Num canto, tinham ficado ainda alguns livros rasgados. Reuniu um monte de folhas, descobriu sobre o pano da chaminé um vaso de faiança com pedaços de juncos secos embebidos em enxofre e a pedra destinada a acendê-los. Pouco depois o fogo estava aceso: a madeira estava bem seca, mas quando lançou a camisa soltou-se uma fumarada espessa.
Durante alguns momentos ficou ali a espevitar o lume quando, subitamente, ouviu tossir. Não era uma tossezinha vinda da garganta, mas a tosse frenética de alguém que sufoca. Procurava de onde poderia vir o som quando ouviu uma voz fraca:
- Por favor... apagai!... Eu... eu... vou ficar queimada...
Ao mesmo tempo a placa da chaminé desabou sobre as achas e Perceval, compreendendo que havia alguém ali atrás, apressou-se a espalhar o lume com as botas e, logo a seguir, a deitar-lhe por cima a água das flores. Pouco depois, uma forma indistinta rastejava para fora da chaminé, tossindo de modo a partir o coração. Ajudou-a a levantar-se distinguindo, por fim, uma miúda de treze ou catorze anos, sem dúvida uma jovem criada a julgar pela sua roupa chamuscada e coberta de fuligem. Nem sequer era possível aperceber-se da cor dos seus cabelos. Mal se encontrou de pé, ajoelhou-se suplicando que a poupassem... Raguenel soergueu-a novamente:
- Não sou um bandido, mas sim o escudeiro da senhora duquesa de Vendôme! E tu, quem és? Compreendeste o que acabei de dizer?
- Sim... sim, monsenhor.
- Não me chamam monsenhor. Senhor, chega! Então, quem és?
- Jeannette, senhor, Jeannette Dean. A minha mãe chama-se Richarde, e é a ama das meninas. Tinham-me posto como criada principal de Mlle. Claire e depois...
Desatou a chorar convulsivamente. Era, sem dúvida, devido à lembrança do que vivera à mistura com o alívio de se ver milagrosamente salva. E, na verdade, a palavra milagre era perfeitamente adequada. Fechada no seu esconderijo um daqueles que eram construídos nos castelos no século anterior quando as guerras de religião estavam no auge, esconderijos que católicos e protestantes arranjavam consoante o local em que se encontravam, para escapar aos malandrins do partido adverso Jeannette, não podendo ver o que quer que fosse devia, contudo, ter ouvido muita coisa.
Mas, antes de mais, era preciso acalmá-la, reconfortá-la...
Pacientemente, Raguenel esperou que a tempestade amainasse. Pouco a pouco os soluços espaçaram-se, a respiração acalmou. Quando chegou a altura das fungadelas, bateu delicadamente no ombro da moça:
- Deves estar cheia de fome e de sede. Vamos à cozinha! Aí encontraremos alguma coisa.
Era dar provas de grande otimismo: os assassinos também pilhavam e eram ladrões. O que não tinham consumido no local, tinham levado: já não havia pão na masseira, nem presunto nas vigas, onde apenas subsistiam algumas réstias de cebolas. Entretanto, esfomeada, Jeannette esquadrinhava tudo:
- É preciso perguntar à minha mãe - disse, finalmente. - Ela guarda sempre consigo a chave do armário dos doces...
- Qual deles é?
- Este - indicou Jeannette, designando uma espécie de armário encastoado na parede num recanto sombrio e que, provavelmente devido à sua localização, fora poupado. Mas é preciso chamar a minha mãe...
O cavaleiro pegou nos ombros da criança e obrigou-a a sentar-se num escadote:
- Minha pequena, tenho de confessar-te uma coisa horrível, tremenda: excetuando a pequena Sylvie, que conseguiu fugir, de toda a casa, tu és a única pessoa que escapou com vida. Mais tarde irás juntar-te a ela, mas pelo momento...
Calou-se, Jeannette recomeçara a chorar. Nesse instante, Corentin, que procurava desde há algum tempo um indício qualquer na livraria[9] do barão de Valaines, situada no alto de uma torre e que os invasores tinham pilhado, juntou-se ao seu amo.
- Pega na tua faca e abre isto! - ordenou este. - Talvez lá dentro haja alguma coisa para dar de comer a esta pobre rapariga!
- Senhor, onde fostes desencantá-la para que esteja tão escura? De algum país africano? -interrogou Corentin, enquanto punha mãos à obra.
- Da chaminé do quarto onde encontramos Mme. de Valaines. Existia ali um esconderijo que esta pequena espertalhona conseguiu utilizar. Fechou-se lá desde ontem, seguramente sem nada para beber e comer...
O armário continha pão de especiarias e alguns frascos de compota e variados xaropes. Com a ajuda de um pano molhado Raguenel limpou Jeannette que, um pouco acalmada com esta solicitude e, sobretudo, mais segura, devorava agora tudo numa assentada, interrompendo-se apenas para beber grandes goles de água. Saciada e suficientemente limpa para que se pudesse constatar que era loura, com uns olhos de um azul de faiança, a pequena consentiu finalmente em responder às perguntas do seu salvador e, com muita paciência, conseguiu reconstituir-se o que se passara em La Ferrière num belo dia de Verão.
Sentada no quarto, frente a uma pequena secretária, Mme. de Valaines escrevia uma carta, enquanto Jeannette acabava, de arranjar as flores no grande vaso acobreado, quando eclodiram os primeiros gritos, precedidos pelo ruído de uma furiosa cavalgada... A baronesa levantou-se imediatamente e correu à janela.
- Estão a atacar-nos! Mas quem é esta gente? Meu Deus, os meus filhos! Precipitou-se para descer, mas Jeannette, depois de também ter olhado para o exterior e visto caírem as primeiras vítimas, não seguiu no seu encalço. Conhecia muito bem o esconderijo da chaminé que os seus jovens senhores lhe tinham mostrado um dia, divertidos. Impelida por um terror louco, não hesitou, desencadeou o mecanismo e esgueirou-se no espaço estreito, respirando o ar através de uma derivação da conduta da chaminé; sentou-se, fechou tudo atrás de si e manteve-se calada. Era tempo: alguns segundos depois ouviu alguém regressar ao quarto: um ou vários homens conduziam a castelã, sem dúvida de modo muito bruto, pois ouviam-se-lhe os gemidos. Depois houve um ruído, como se a lançassem sobre a cama. E soou imediatamente uma voz dura, seca, metálica:
- É inútil defender-vos! Ninguém virá em vosso auxílio. E ficai a saber que não sairei daqui sem ter obtido o que desejo.
- E que desejais afinal? Imagino que não seja eu; já passou tanto tempo... O homem desatou a rir, mas isso não era mais agradável para os ouvidos: - “O diabo deve rir assim”, precisou Jeannette.
- Talvez para vós. Para mim não, e estais mais bela que outrora. Além disso sois viúva e, portanto, livre, tal como vos desejava. Por que não me pertenceríeis?
- Nunca! Se acaso o tempo não contou para vós, para mim ainda menos: metíeis-me medo... e horror; nada mudou...
Raguenel interrompeu momentaneamente a narrativa de Jeannette, estupefato pela sua capacidade em reconstituir um diálogo, apesar do terror que devia ter sentido:
- Dá a impressão que não te esqueceste sequer de uma palavra...
- Tenho uma ótima memória, senhor. Basta fazer-me ler qualquer coisa uma única vez para que fixe o texto e o saiba repetir sem nada alterar. Mesmo que seja difícil e que eu não o entenda lá muito bem...
É verdade que o fenômeno podia surpreender à primeira vista, ou antes, à primeira audição, tanto mais que Jeannette declamava as frases umas atrás das outras, sem entoações e quase sem respirar, tal como teria, sem dúvida, recitado uma página de latim. Para a encorajar, Perceval ofereceu-lhe outro copo de xarope misturado com muita água:
- O Céu concedeu-te um dom precioso - observou. - Espero que o mantenhas ao cresceres. Por ora, regressemos à nossa história. A senhora dissera, pois, ao tal homem, que ele a horrorizava e que nada mudara.
- Ele então respondeu-lhe que isso podia esperar e que o que ele queria eram as cartas. “Que cartas?” perguntou a senhora.
E Jeannette, com olhos fixos no teto como se lá estivessem escritas as frases que ia dizer, prosseguiu a sua história:
- Não façais de conta que não compreendeis. Quero as cartas que a rainha Maria de Médicis enviou à marquesa de Verneuil. Uma correspondência altamente perigosa para a mãe do nosso rei atual, dado que expõe toda a conspiração que levou ao assassinato de Henrique IV, conspiração à qual a Rainha deu uma ajuda. Essas cartas tinham sido compradas pelos Concini a preço de ouro, a fim de reforçar a influência que detinham sobre a Médicis, caso ela viesse a dar parte de fraca.
- Um momento! - interrompeu Perceval, assustado com o que ouvia. - Apercebes-te do que estás a dizer?
- Não. Ouvi palavras, nomes, e eles estão gravados na minha cabeça, mas tenho de repeti-los na ordem em que me foram chegando...
- Que quer dizer influência?
Tendo descido do teto, os olhos azuis contemplaram-no com um ar de queixa:
- Não sei... Disse-vos...
- Não a devíeis ter interrompido, senhor cavaleiro - interveio Corentin. - Ela arrisca-se a perder o fio à meada.
Efetivamente a pequena criada teve uma certa dificuldade para o reatar. Ainda assim Perceval acabou por perceber que no dia em que o jovem Luís XIII mandara abater Concini, a rainha Maria enviara Chiara vasculhar em casa da mulher daquele, Leonora, que devia estar na posse das cartas, no seu aposento no Louvre. A partir daí o relato de Jeannette tornou-se caótico. Mme. de Valaines jurara ao seu carrasco que não encontrara as cartas e este persistia em julgá-las na posse dela. O que se seguiu foi terrível: do fundo do esconderijo, Jeannette, meia morta de medo, ouviu os gritos da sua senhora, torturada pelo homem que desejava obter o que queria. Ele experimentou tudo, indo até ao ponto de executar as crianças diante dela. A infeliz gritara:
- Julgais que eu permitiria que fizessem o mínimo mal aos meus filhos, caso tivesse essas malditas cartas? Poupai-os, por piedade...
De nada serviu. Claire e Bertrand tinham sido mortos. A mãe acompanhou-os na morte, depois do assassino ter saciado o amor monstruoso que dizia ter por ela...
Logo que acabou, Jeannette recomeçou a chorar, tanto pela recordação do seu terror como pelo martírio de que fora a invisível testemunha. Depois, sem saber se eles ainda estavam presentes, permaneceu horas a fio no esconderijo, sem ousar mexer-se.
Os dois homens deixaram-na chorar à vontade, percebendo que era preciso deixá-la deitar cá para fora tudo aquilo por que passara. Mesmo quando Corentin quis fazer uma pergunta, Raguenel impediu-o com um gesto: ia ser necessário apagar da memória incrível da pequena camponesa aquelas imagens, aqueles sons, aquelas palavras, das quais ela não entendia a metade, mas que representavam um perigo real. Era, portanto, inútil insistir. Conversariam mais tarde...
Passado um bocado, Jeannette acalmou-se, deixando cair os braços e a cabeça em cima da mesa, no meio dos restos da sua pequena refeição; adormeceu imediatamente, vencida pela emoção e pelo cansaço daquelas últimas vinte e quatro horas. O cavaleiro contemplou-a a dormir e acariciou-lhe a cabeça loura ainda com vestígios de sujidade:
- Há um divã no grande salão - disse ao criado. - Vai lá estendê-la e regressa! Claro que a levaremos conosco quando nos formos embora mas, assim que a tiveres instalado, dá uma volta pela capoeira para ver se por acaso as galinhas não puseram alguns ovos. Confesso que tenho fome. Tu, não?
- Oh, sim! E nem um nem outro gostamos de coisas doces!
Momentos depois os dois homens atarefavam-se à mesa frente a uma grande omelete de toucinho, confeccionada pelo próprio Perceval. Descobrira uma arca de sal na qual ninguém havia mexido e, no celeiro, encontrara uma pipa de clarete contendo um vinho ainda verde, que nada tinha de um néctar, mas cuja frescura os dessedentou. Comeram durante um bocado em silêncio e depois o cavaleiro afastou a sua tigela e, extraindo do gibão um cachimbo que encheu de petun maslé[10], fez um sinal a Corentin para se servir também, passando-lhe o seu saquinho de tabaco.
Patrão e criado fumaram durante uns momentos em silêncio. Esta cena intima que teria chocado mais que um grande senhor, era natural entre o gentil-homem sem fortuna e o fiel companheiro que com ele compartilhava, desde há uma dezena de anos, os altos e baixos da vida quotidiana. Era muito freqüente acenderem os cachimbos ao fim do dia, passando em revista os acontecimentos. Raguenel apreciava o espírito vivo, a inteligência e a dedicação deste compatriota três anos mais velho que ele e, pelo seu lado, Corentin não teria trocado um patrão, que tanto estimava, contra o mais rico e faustoso dos príncipes. Como acontecia muitas vezes, foi Perceval quem disparou primeiro:
- Agora já sabemos como e por que foi morta Mme. de Valaines, mas continuamos sem saber por quem. Do fundo da chaminé, Jeannette ouviu tudo, mas nada viu.
- De qualquer modo, se o homem estava mascarado, isso de nada nos teria servido...
- Mascarado ou não, a infeliz Chiara sabia quem estava na sua frente. É pena é que ela não tenha pronunciado uma só vez o nome dele. Vai ser preciso debruçarmo-nos sobre o tempo em que ela era dama de honor de Maria de Médicis, tentar descobrir quem a frequentava na altura, quem, além de Valaines, era seu amante.
- O senhor veio aqui várias vezes e ela contava-vos entre os seus amigos: nunca vos confiou nada que pudesse pôr-nos sobre uma pista?
- Nada, a não ser que foi desposada no Louvre, sob os auspícios do capelão da rainha-mãe, dois dias depois da morte de Concini, e que o seu esposo a trouxe logo para cá. Até hoje não tinha compreendido as razões de uma tal pressa, mas esta história de cartas traz uma nova luz: Valaines quis pôr em segurança aquela que amava.
- Mas resguardá-la de quê, se ela não encontrou as cartas?
- Talvez da cólera da rainha-mãe?
- Mas foi ela quem a casou. Estou mais tentado a ver uma questão de prudência. Recapitulemos! No dia 24 de Abril de 1617, Luís XIII manda abater Concini, o favorito de sua mãe, com vários disparos, frente ao Louvre. A mulher do aventureiro, Leonora, é expulsa de casa, conduzida à Bastilha, da qual só sairá para ser levada ao cadafalso. A partir desse momento Luís XIII é verdadeiramente rei e a sua mãe, graças a quem os dois Florentinos puderam confiscar o poder, já não está em segurança. Mais ou menos prisioneira nos seus aposentos, pode temer o exílio, talvez até a prisão, se forem descobertas as famosas cartas nas quais se encontra a prova da sua cumplicidade no assassinato do falecido Rei. Entretanto, ela envia Chiara vasculhar os quartos de Leonora. Ora, Chiara não encontra nada e podemos acreditar nela: que não teria feito para salvar a vida dos seus filhos?
- Também sabemos, por intermédio de Jeannette, que o seu carrasco também tinha vasculhado em casa da Galigai. Isto não põe muita gente ao corrente de uma correspondência tão perigosa?
- Quando se sabe que corja de bandidos e de aventureiros compunha o meio dos Concini, isso não é muito surpreendente. Mas regressemos à rainha-mãe. Ela não voltou a encontrar as suas cartas mas, por muito pouco inteligente que fosse, devia conhecer suficientemente Chiara para nela depositar inteira confiança e não imaginar que ela as teria guardado consigo. Em compensação, a rapariga tem de ser afastada da Corte, pois sabe demais. Daí o casamento expedito com Valaines e a partida para a província. O seguimento, conhecemos nós.
- Maria de Médícis caiu mais ou menos em desgraça assim como Richelieu, nessa altura bispo de Luçon e seu mais íntimo conselheiro. E que o Rei detestava! Hoje as coisas mudaram: Richelieu é ministro e a rainha-mãe parece ter recuperado toda a sua influência.
- Se a situação lhes é favorável, para quê fazer ressurgir esta história de cartas, que talvez tenham sido destruídas quando foram saqueados os aposentos de Leonora Galigai?
- O imbecil mais obtuso nunca destruiria uma arma destas, caso ela lhe viesse parar às mãos. Elas ainda devem estar algures, talvez bem escondidas! Quanto àquele que aqui as veio buscar, podes ter a certeza que está ao corrente do seu valor e que gostaria de utilizá-las. Contra a rainha-mãe, sem dúvida: ela estorva muita gente desde que reconquistou a sua posição... a começar pelo Cardeal...
- O Cardeal? Estais a brincar, senhor cavaleiro - resmungou Corentin. - É completamente impossível!
- Porquê? Por ele ter sido o preferido da rainha-mãe? Já não se dão os dois lá muito bem, acredita-me! Ela até o deve estorvar, desde que lhe voltou a mania da aliança espanhola que colide com os interesses de Richelieu. Só que, por muito implacável que ele possa ser, não o creio capaz de ordenar um tal massacre e em condições semelhantes. Ainda assim trata-se de um homem ao serviço de Deus!
- Ao serviço de Deus, ao serviço de Deus! Quando se detém o poder e se quer conservá-lo...
- De qualquer forma, quaisquer que tenham sido as ordens dadas ao assassino, admitindo que as tenha recebido, ele ultrapassou-as para saciar a sua própria sede de vingança. Deve ter amado Chiara Albizzi, mas ela desdenhou-o para desposar Valaines e, como sabia da existência das cartas, tentou matar dois coelhos de uma cajadada. E o que me espanta mais neste drama é que, para o perpetrar, se esperou pela prisão dos Vendôme, suseranos e protetores dos Valaines.
- Isso é verdade! E estamos para aqui a discutir sem ter a mínima idéia de que lado procurar os criminosos... Se voltássemos a interrogar as pessoas da aldeola? É preciso encontrar alguém para limpar a casa antes de fechá-la, enquanto se espera que a senhora duquesa tome uma decisão... Vamos dar uma volta!
Os cachimbos tinham-se apagado. Saíram para o pátio onde o calor os envolveu. No seu zênite, o sol batia com toda a força, instaurando um silêncio povoado pelo zumbido das moscas e das vespas. Para que Jeannette não fosse incomodada durante o sono enquanto durasse a sua curta ausência, Perceval fechou a porta da residência e meteu a chave no bolso. A aldeia, tão pequena que mal merecia esse nome, escondida por detrás de um pedaço de terreno, devia estar a dormir àquela hora que já anunciava a canícula do Verão. Porém, ao atravessar a ponte adormecida, o cavaleiro viu três homens que erravam nas proximidades e que, quando os chamou, tentaram ocultar-se por entre as árvores.
- Vocês aí, venham cá! Estou aqui em nome de monsenhor, duque de Vendôme, e não tenho a intenção de vos comer vivos. Vá lá, aproximem-se!
Apesar daquele seguro testemunho, os dois mais jovens escapuliram-se tão depressa quanto podiam, enveredando, cada qual, pelo seu lado. Apenas o terceiro, um homem de idade com uma barba cinzenta e emaranhada é que saiu do seu refúgio e se dirigiu em direção a Perceval e ao seu escudeiro com passinhos lentos, amarfanhando o chapéu disforme que acabara de tirar da cabeça. Não estava lá muito seguro...
- Ora bem - interpelou-o o cavaleiro - porque se esconde e porque fugiram os outros dois pelos campos fora? Queriam entrar no castelo?
- Não!... oh, não, gentil-homem! Apenas queríamos ver...
- Ver o quê? Só cá está a filha da ama. Devia ser oriunda das vossas bandas e talvez ainda tenha por lá família?
- Não. Richarde era de Moussel. O seu homem morreu e a pequena já não tem mais ninguém.
- Bom. Ocupar-nos-emos dela, mas do que precisamos é de pessoal para fazer a limpeza e arrumar tudo.
O homem teve um movimento de recuo e fez um gesto de rejeição com ambas as mãos.
- No castelo? Oh, não, senhor! Salvo devido respeito, o senhor não encontrará ninguém para essa tarefa. Estamos todos demasiado amedrontados!
- Com medo de quê? Os bandidos foram-se e já não regressarão. Não têm mais nada a fazer aqui.
- Apraz dizê-lo, gentil-homem, mas não é tão certo quanto isso. Eu, que vos estou a falar, vi-os partirem: encontrava-me por detrás daquele rochedo. Houve um que disse: “Visto que não encontramos nada porque não incendiamos isto tudo?”. Outro retorquiu que não eram essas as ordens e que, de qualquer modo, sempre se podia voltar para efetuar mais uma busca...
- Disseram isso? Regressar, depois do que fizeram? Devem desconfiar que o duque César mandará, pelo menos, guardar o castelo. Além disso, regressar de onde? A menos que se trate de um bando desses maraus que assombram a floresta de Dreux...
- Maraus com boas montadas, bem equipados, todos vestidos de negro, de pena no chapéu? - ironizou Corentin. - Animais desses não vivem em cabanas feitas de ramos ou em grutas!
- Tens razão - concordou Raguenel. - Mas tudo isto não nos diz de onde vieram.
- Isso talvez vos possa dizer. Tinham bebido muito, de certeza, o que até os tinha posto de boa disposição e falavam muito alto. Ouvi um dizer que Limours não é assim tão longe.
Perceval sobressaltou-se:
- Limours? Tens a certeza?
- Mais ou menos... Sim, parece-me bem que foi isso.
- Então, caso queiras continuar vivo não o repitas a ninguém. Quanto ao castelo, não penses mais nisso!
- Oh! Não há perigo que eu vá para lá! - suspirou o homem, benzendo-se. - Há muito sangue! Isso traz desgraça.
Perceval já ouvira quanto bastasse. Deu meia-volta e regressou ao castelo, com Corentin atrás de si mas, desta vez, em lugar de entrar na residência dirigiu-se para a velha torre onde Jean de Valaines tinha o seu gabinete de trabalho, a sua “livraria”.
- Pelo menos devemos tentar descobrir os títulos dos Valaines, para estabelecer os direitos da pequena Sylvie. E, depois, arrumar um pouco os livros. O barão gostava tanto deles!
Não faltava trabalho na vasta divisão redonda. O conteúdo dos grandes armários, dos quais vários se elevavam até às vigas do teto, pintadas e ornadas de insígnias, tinha sido esvaziado no soalho. Um montão de livros cobria o solo e a grande mesa quadrada, com os pés em espiral, desaparecia sob os folhetos. Até tinham esventrado o velho cadeirão de cabedal usado e, a um canto, o arquivo dos títulos vomitava rolos de pergaminho, cujos selos pendiam em tiras descoloridas. Um cheiro concentrado a pó remexido embrenhava-se nas gargantas.
Puseram mãos à obra. Corentin empilhava volumes no chão sem a mínima triagem, enquanto o seu amo se ocupava dos papéis. Punha na tarefa uma espécie de raiva fria que o fazia tremer, tornando os seus gestos menos seguros, mais desajeitados. Corentin, que o observava pelo canto dos olhos, acabou por lhe perguntar:
- Desde que para aqui viemos, que estais muito agitado. E, antes de mais, porque dissestes ao homenzinho para se calar caso quisesse continuar vivo?
- Porque toda a gente correrá perigo, caso ele tenha entendido bem o nome do local de onde vieram esses demônios...
- O que é Limours?
- Trata-se de um castelo que pertence ao Cardeal e sei que ele se encontrava lá nestes dias! Contudo, tenho sempre dificuldade em crer que possa ter ordenado isto!
- Porém, as peças encaixavam-se umas nas outras. Nada mais normal que o ministro tivesse desejado recuperar uma correspondência que punha em causa a sua antiga senhora, que se tornara quase sua inimiga. Com efeito, a gorda Florentina criticava-o por ter retomado a política de Henrique IV bem melhor para o reino! Em vez de ajudá-la a impor a sua, ao Rei. Parva e vingativa, tornava-se cada vez mais maçadora mas, com as cartas em sua posse, o Cardeal possuiria uma arma terrível perante a qual ela teria mesmo de inclinar-se. Ao mesmo tempo, ele procedia à eliminação progressiva dos seus mais destacados inimigos. A partir daí tudo se tornava possível, até o fato de o chefe dos assassinos poder ter desviado uma missão a qual teria podido, ou devido poder, limitar-se a uma simples busca em La Ferrière, contentando-se em intimidar a baronesa e o seu pessoal para poder matar dois coelhos de uma só cajadada e saciar, assim, uma vingança recozida, sem disso informar o ministro...
- É do lado do Cardeal que é preciso procurar - concluiu, acabando o seu pensamento em voz alta. - Estou com vontade de ir ver o que se passa em Limours.
- Fica longe?
- Não. Uma dezena de léguas.
- Ótimo! Acabamos o trabalhinho, fechamos e vamos para lá!
- Devagar! Esqueceste-te daquela que ainda está a dormir no sofá. Vamos levá-la de volta a Anet para que ela passe lá uma boa noite e amanhã de manhã levá-la-ás a Vendôme para se juntar à sua pequena patroa. Só tens de a entregar a Mlle. Elisabeth, explicando-lhe onde a encontramos.
- Pois bem, eis-me ama seca! - resmungou Corentin, pouco satisfeito da missão - E depois, que faço?
- Nada. Esperas por mim. Ao voltares a Anet, preparas-me a minha maleta de viagem e mandas-me selar um cavalo fresco. Tenciono ir a Limours ver o que se passa.
- E atacar sozinho os guardas do Cardeal?
- Não digas disparates! Eu vou lá... como observador, após o que regressarei a Vendôme. Devo entregar um relatório muito completo à senhora duquesa quando ela regressar.
Se regressar...
Quando a livraria pareceu estar mais ou menos arrumada, Perceval reuniu alguns pergaminhos que lhe pareciam importantes por se referirem aos títulos de nobreza dos Valaines e aos seus direitos sobre os domínios. Depois foi recolher-se uma vez mais na pequena capela onde Chiara e os seus filhos repousavam para a eternidade. Seguidamente, ajudado por Corentin, fechou as portas da rua e das janelas, reuniu as chaves num pesado molhe que fixou no arção da sela. Por fim, depois de ter instalado Jeannette, sempre sonolenta, na garupa do cavalo de Corentin, bem presa ao seu cavaleiro por uma corda, deixaram La Ferrière para trás, em pequeno andamento. Perceval voltava constantemente a cabeça a fim de contemplar, o mais tempo possível, o castelo dizimado. Finalmente a plantação de pimenteiras desapareceu por entre as árvores. Então, quando não houve mais nada para ver, começou a galopar.
UMA TORRE TÃO ALTA!
Ao olhar para o castelo de Limours, qualquer pessoa podia perguntar-se por que motivo, três anos antes, o cardeal Richelieu comprara aquela ampla residência um pouco em ruínas, que pertencera à duquesa d’Etampes, favorita de Francisco I, quando, nessa época, a sua fortuna era medíocre e ainda não tinha vencido a aversão que o rei Luís XIII nutria por ele. Dizia-se que para adquirir Limours tivera de ceder a terra da sua família em Aussac e vender o seu posto de capelão da rainha-mãe. O Cardeal explicara que desejava poder um dia acolhê-la num quadro digno dela, mas o aspecto do castelo dava que pensar. Não era de modo algum uma residência aprazível, própria para cativar uma dama. Em compensação, podia ser um asilo seguro.
Com efeito, passada a primeira cintura da muralha e o ante-pátio, encontrávamo-nos perante um imponente edifício que ainda conservava características de uma fortaleza medieval: quatro flancos ladeados por grandes torres redondas formavam um quadrilátero à volta de um pátio quadrado; o conjunto estava isolado por fossos profundos repletos de água, por cima dos quais passava uma ligeira ponte, muito fácil de mandar pelos ares. Em resumo: um conjunto mais potente que gracioso...
... e que poderia constituir uma segurança para um futuro incerto suspirou Perceval, que pensava de bom grado em voz alta quando se encontrava sozinho. Também é verdade que, desde então, o Cardeal adquirira para si o belo castelo de Reuil e o lindo solar de Fleury!
Bem assente sobre o cavalo, parado no flanco do vale por onde se estendia Limours, contemplava o castelo do Cardeal perguntando-se o que viera ali fazer. Levado pela dor e pelo desgosto, seguira o seu instinto sem saber do que vinha à procura dado que, nunca tendo visto os assassinos, não podia reconhecê-los. Sobretudo, arriscava-se a arranjar sarilhos, que não deixariam de se repercutir nos Vendôme, os quais em nada precisavam de um acréscimo de problemas. No entanto, nada deixava transparecer na sua figura, que pertencia a tão ilustre casa: o gibão de camurça sem enfeites, as botas e o chapéu de feltro decorado com uma pena, era tudo de uma tonalidade de um cinzento neutro e prático. Passaria por um gentil-homem em viagem. Ponto final.
- Dado que aqui estamos, comecemos por procurar um alojamento para descansar um pouco e respirar o ar da região. Talvez a sorte nos sorria...
Tendo tomado esta decisão, pôs o cavalo a trotar, desceu a encosta do morro e atingiu as primeiras habitações no meio das quais brilhava, entre a igreja e o castelo, a insígnia da Salamandra de Ouro, indicando que havia ali um albergue. Entrou e pediu um quarto e uma refeição, depois de ter recomendado o cavalo a um moço de estrebaria. O primeiro foi-lhe imediatamente concedido e a outra prometeram-na para dali a uma hora. Refrescado e desembaraçado da poeira, graças a uma grande bacia de água fria, e na espera da refeição, optou por se instalar no jardim onde estavam dispostas algumas mesas sob um parreiral, pedindo um pichel de vinho de Longjumeau. Estava muito calor na sala onde um moço de cozinha, muito vermelho, assava um pedaço de vitelo.
Dado o aspecto sereno da aldeia, ficou muito surpreso com a grande agitação que reinava no albergue. Na opinião do dono da casa, isso era devido aos trabalhos importantes que o cardeal Richelieu mandava efetuar no seu domínio:
- Estão a arranjar alguns aposentos e também o sistema de irrigação dos jardins. Todas as semanas vemos chegarem carretos que transportam mármores e antiguidades para a decoração. Ah! Quando a obra estiver concluída teremos aqui um belo domínio...
- Com toda esta algazarra, Monsenhor está, sem dúvida, ausente..?
- Ele? De modo algum! Esteve doente, mas encontra-se presente e é ele próprio que controla todos estes embelezamentos. O que me vale ter como clientela os senhores da guarda que se aborrecem um pouco quando não estão de serviço.
Efetivamente, várias casacas vermelhas brilhavam sob as largas folhas da videira, mas aqueles que as envergavam tinham um ar jovial, que não fazia lembrar em nada os salteadores insensíveis de que a família Valaines havia sido vítima. Jogava-se aos dados e contavam-se algumas estroinices, rindo desabridamente. Nada de grande interesse! Outros bebedores estavam sentados às mesas, com os gibões desabotoados ou despidos, as camisas abertas para melhor aproveitar o final fresco de um dia abrasador. O local era aprazível e convidava à descontração...
De repente, o olhar vivo de Perceval, que se mantinha vigilante conquanto não estivesse adormecido, fixou-se num detalhe: instalados no fundo do terraço, próximo do tronco da videira, dois homens vestidos de preto, com as roupas empoeiradas, brindavam com um dos guardas do Cardeal. Depois de ter bebido, este retirou uma bolsa bem recheada de sob a sua casaca vermelha estampada com uma cruz grega e entregou-a a um dos seus companheiros, mas o seu gesto fez cair do bolso um objeto que se apressou em apanhar. Todavia, não o fez com rapidez suficiente para que Raguenel não dispusesse de tempo para o identificar: era uma máscara negra.
Perceval esvaziou o seu copo num ápice, encheu-o novamente e depois, assentando os cotovelos na mesa e puxando o chapéu sobre os olhos como se o pôr do Sol o incomodasse, tratou de examinar mais atentamente os três homens. O seu instinto dizia-lhe que se encontrava ali uma parte do bando que viera, sem dúvida, receber o pagamento. Observou, sobretudo, o guarda. Seria o chefe, aquele que perseguira Chiara com um amor tão feroz? Era difícil de acreditar! Tratava-se de um homem grande e forte, russo como uma cenoura, com um rosto sem detalhes relevantes, mas que poderia passar por um “lansquenet”[11] de boa apresentação, amante de cerveja e de golpes de espada e que devia ignorar tudo sobre o alfabeto grego. Além disso, não devia ter mais de vinte anos e o carrasco de Chiara criticara-a por não ter querido desposá-lo. Tratava-se, sem dúvida, do oficial encarregado de pagar a expedição na qual devia ter participado.
Por fim, o homem de casaca vermelha levantou-se, pôs o chapéu de feltro, fez um gesto de despedida negligente e deixou o albergue, dirigindo-se para o castelo. Perceval contentou-se em segui-lo com a vista. Os outros dois eram muito mais interessantes e decidiu seguir no seu encalço para onde quer que fossem. Nessa noite não teve de ir muito longe. Providos de uma bela maquia e visivelmente de muito boa disposição, os dois compadres pediram bebidas e um quarto. Antes de se entregar aos prazeres de uma noite agradável, um deles levantou-se e foi buscar os cavalos que tinham permanecido presos sob o alpendre, para os entregar ao moço de estrebaria, a quem, passado um momento, Perceval se dirigiu. Uma moeda, que fez surgir subitamente na ponta dos dedos, chamou a atenção do rapaz:
- Os proprietários destes cavalos - disse, designando os animais que tinham acabado de ser entregues. - Parece-me que os conheço...?
- Oh! É bem possível, gentil-homem! Por vezes vêm cá para se assegurarem do bom estado das suas entregas. São mercadores parisienses...
As sobrancelhas de Perceval subiram até ao meio da testa:
- Mercadores? - Não acrescentou: “Com aquelas caras?”, mas era isso que no fundo pensava. - E que vendem eles?
- Passamanaria. Nem sempre dormem no albergue, mas desta vez só partirão às primeiras horas de amanhã.
- Rumo a Paris?
- Sim... claro!
- É normal. Bem, fui enganado por uma semelhança. Não os conheço. Mas, já agora que penso nisso, eu também parto amanhã de manhã.
- Às vossas ordens, gentil-homem. O vosso cavalo estará pronto. Oh! É mesmo um belo animal!
De olhos postos nos “mercadores” enquanto voltava para a mesa onde, presentemente, uma criada punha os talheres jantar-se-ia no exterior para aproveitar a frescura da noite Perceval pensava que em matéria de passamanaria, via-os muito melhor no comércio de cordas para carrasco. Havia sobretudo os bigodes deles, erguidos em ponta de gancho pareciam-se tanto um com o outro que deviam ser irmãos! Que não se encaixavam lá muito por detrás de um balcão de comércio...
O sol acabara de se pôr quando o gradeamento do castelo se abriu perante uma numerosa cavalgada. Precedidos por um oficial, os guardas de casaca vermelha, alinhados quatro a quatro em várias fileiras, rodeavam um desses coches de viagem suficientemente amplos para que alguém neles pudesse viajar deitado. Não havia dúvidas quanto ao ocupante: pintado em escarlate com filamentos dourados, o pesado veículo exibia nas suas portas grandes brasões sobre os quais se distinguia o conhecido chapéu vermelho. Atrás dos soldados vinham as mulas e o carreto das bagagens...
O respeito impusera que todos os ocupantes da Salamandra de Ouro se inclinassem. Todavia, Raguenel teve tempo para entrever, enquanto a carruagem passava, um rosto pálido e alongado com uma curta barbicha e, diante dele, uma figura de religioso em fato de burel cinzento: Armand-Jean du Plessis, cardeal-duque de Richelieu e o seu mais fiel conselheiro, o padre Joseph du Tramblay, a quem já chamavam a Eminência parda, partiam em viagem.
Quando o cortejo se afastou na direção do sul, Perceval chamou o dono do albergue:
- O Cardeal vai-se embora a esta hora? Não é estranho?
- De modo algum, senhor! Sua Eminência, cujo estado de saúde não é dos melhores, suporta muito mal grandes calores. Desse modo, o trajeto custar-lhe-á menos!
- Trata-se, portanto, de um hábito?
- Não propriamente. Só para os longos trajetos e no Verão. Diz-se que Sua Eminência vai ter com o Rei na região do Loire. Quando este chama alguém, convém despachar-se!
O cavaleiro agradeceu com um gesto e o homem afastou-se sem imaginar que inquietação aquela brusca partida desencadeava no seu cliente, impressionado por aquele aparato guerreiro à luz dos archotes. Os uniformes vermelhos, a silhueta encarnada e até o capucho cinzento do monge, tudo isso lhe parecia ameaçador. Sabendo os Vendôme prisioneiros, apressar-se-ia Richelieu rumo a um desfecho a que o seu ódio não queria de modo algum deixar de assistir? Iria esmagá-los como o tinham sido, talvez por ordem sua, os inocentes de La Ferrière?
Apesar dos sombrios pensamentos que o atormentavam, Perceval conseguiu dormir algumas horas, mas quando o galo cantou, já estava pronto para se pôr a caminho. Acalmou, todavia, o seu ardor e, quando os “passamaneiros” deixaram o albergue, estava ocupado a absorver um pequeno-almoço de pão, manteiga e presunto, regado por um vinho branco seco que agia como uma pederneira. Já pagara a sua parte e o seu cavalo, preparado com a sela, esperava-o frente à porta.
Como bom predador deixou a sua caça tomar avanço suficiente para que não o notassem. Melhor montado, sabia poder apanhá-los sem dificuldade; bastava, para isso, segui-los ao longe até às proximidades da capital e depois, quando a estrada estivesse mais concorrida, diminuir a distância até eles permanecerem no seu ponto de mira.
Infelizmente os dois companheiros não tinham pressa. O tempo convidava-os a passear e Perceval, que esperava vê-los partir direitinho a Paris, ao chegar a Bièvres teve a desagradável surpresa de os ver sentados sob o alpendre de um albergue, saboreando um cesto de morangos a especialidade da região e bebendo um pichel de vinho. Pareciam estar muito bem-dispostos!
Raguenel, que tinha sede, tê-los-ia imitado de bom grado, mas isso teria constituído a última das imprudências. Tentou então mudar de tática: em vez de os seguir, iria à frente. E, efetuando um desvio para ultrapassar Bièvres sem ser visto, disparou na direção da porta de Saint-Jacques, em Paris, que era onde desembocava naturalmente aquela estrada. Conhecia em Paris um pequeno cabaré, próximo do convento dos Jacobinos, tão acolhedor quanto o de Bièvres, onde poderia refrescar-se enquanto esperava tranquilamente.
Havia uma coisa que o intrigava: os aldeões de La Ferrière tinham-se referido a uma dezena de homens de preto. Ora, em Limours, só vira dois; três, se contasse com aquele que viera fazer o pagamento. Com o misterioso torcionário, a soma elevava-se a quatro. Onde podiam estar os outros oito? Ocupados a galopar ao lado das portinholas da carruagem do Cardeal, espalhados na natureza, ou estariam em Paris à espera do pagamento que traziam os “passamaneiros”?
Chegado ao começo da tarde, o nosso viajante instalou-se no pequeno albergue, recuperou forças com um pedaço de ganso com molho de agraço, favos de mel estaladiços e alguns goles de um vinho branco de Aunis que tinha os seus méritos; porém, depois, teve de lutar contra a sonolência, para não se arriscar a falhar a sua presa.
Esperou muito tempo. A tal ponto que começou a perguntar-se se os dois homens não teriam ficado em Bièvres a dormir uma sesta prolongada. Finalmente, viu-os chegar. Já tinha sido dado o toque que assinalava o fecho das portas, enquanto os sinos da cidade tocavam a Ave-Maria. Raguenel apressou-se a saltar para a sela. Desta vez não devia perder o rasto, apesar da afluência que sempre se registrava à hora de fechar com as idas e vindas dos que entravam e saíam. Por sorte, os dois chapéus decorados de penas pretas idênticas eram fáceis de seguir.
Transposta a abóbada da porta com um forte cheiro a urina e a óleo rançoso, ultrapassados os dois soldados descontraídos e supostamente encarregados de controlar as idas e vindas, desceram o monte de Sainte-Geneviève “local de instrução e sapiência”, feudo de estudantes sempre mais ou menos agitado, entre uma dupla fila de colégios com ar respeitável. No entanto, em vez de se dirigirem na direção do Sena, como Raguenel supunha, os dois homens voltaram à direita. O tempo encobrira-se subitamente, depois da entrada em Paris. Pesadas nuvens sombrias, vindas do norte, estendiam-se pelo céu antecipando o cair do dia. O vento, anunciador de uma trovoada, levantava uma poeira acre, mas a chuva ainda não começara a cair.
Os dois homens passaram frente ao Colégio de França e ladearam o antigo hotel dos abades de Cluny no qual estavam alojados os núncios papais desde o princípio do século. Ao chegar ao triângulo da Maubert, Raguenel apercebeu-se que já só seguia um único homem. O outro desaparecera como se alguma borrasca o tivesse levado. Desconhecendo para onde passara, o cavaleiro decidiu-se a continuar atrás daquele que lhe restava. Assim, atravessaram, a distância respeitosa, o largo espaço patibular onde o prebostado assegurava permanentemente duas forcas prontas a servir, o que não impedia que o local fosse mal afamado.
Finalmente o último viajante desceu do cavalo à esquina de uma estreita ruela, pegou na rédea e prosseguiu a pé. Perceval sorriu: tratava-se de um impasse conhecido sob o nome de beco-sem-saída de Amboise no qual apenas existiam duas casas, excetuando um nobre hotel que dera o nome à ruela. Uma delas albergava uma taberna de mau aspecto onde se dirigiam de bom grado os “estudantes” sem dinheiro, à procura de um bom negócio ou de um golpe sujo. Foi aí, evidentemente, que entrou o desconhecido.
Seguro de que ele já não lhe escaparia, Perceval procurou vislumbrar um local para prender o cavalo e encontrou-o próximo da capela da Nossa-Senhora das Carmelitas, onde abrigou a sua montada sob uma cavidade profunda. Seguidamente, assegurando-se que a espada tinha boa folga no forro, dirigiu-se para a porta baixa sobre a qual uma insígnia, ilegível devido à sujidade e à vetustez, rangia suavemente ao sabor da brisa da noite. Não entrou, contentando-se em limpar um canto da janela mais próxima com o lenço molhado de saliva. Nessa altura viu, de um e outro lado de uma mesa, na qual ardia uma vela, o seu “passamaneiro” e um homem gordo, de cabelos cinzentos e hirsutos, que devia ser o dono do estabelecimento, envergando uma camisa de aspecto duvidoso. Não se distinguia mais ninguém, pois ainda era muito cedo para a clientela habitual daquele gênero de local.
Subitamente o coração de Perceval parou de bater durante um instante. Entre as mãos do homem de preto acabara de aparecer um colar de ouro, de pérolas e de pequenos rubis que vira frequentemente ao pescoço de Chiara de Valaines. Condizia muito bem com a sua beleza morena e, sabendo-o, ela estimava-o particularmente e usava-o com prazer. A dúvida, desta vez admitindo que ainda subsistisse alguma já não era possível...
Procurou o punho da espada, desembainhou-a e, sem mais pensar, saltou pelas duas escadas da entrada e empurrou a porta com um pontapé brutal. Caindo como uma bala sobre os dois cúmplices, começou por arrancar o colar dos dedos gordos do taberneiro.
- Onde arranjaste isto? - perguntou, apontando o espadarão à garganta do malandrim.
- Mas eu...
- Não te canses à procura de uma mentira, eu sei de tudo. És um desses miseráveis que assassinaram há dois dias Mme. de Valaines e as suas crianças, no castelo de La Ferrière. E não te aconselho a negá-lo, senão trespasso-te imediatamente! - acrescentou, metendo a jóia no bolso.
- Não matei ninguém - resmungou o outro - e essas pérolas encontrei-as...
- Não duvido e posso dizer-te onde: no gabinete florentino do quarto.
- E depois? Recebi ordens e quando me pagam bem, faço sempre o que me pedem.
Quanto ao taberneiro, não se mexera. Até retirara as mãos da mesa como se receasse tocar novamente no colar, mas devia possuir uma força pouco comum e Perceval não queria que ele se intrometesse na discussão com o bandido.
- Vamos sair daqui para falar lá fora - disse, agarrando o homem pela gola do gibão. - Quanto a ti, taberneiro, não te mexes daqui se ainda quiseres estar vivo amanhã de manhã.
- Vou chamar a guarda! - exclamou o homem, de olhos baixos. - Não se entra assim para me retirar os clientes...
- Fica-te bem tomares a defesa deles, mas isso de nada te adianta. Chama a guarda se quiseres, saberei que dizer. Vá, tu, de pé! - voltou a ordenar, obrigando a sua presa a levantar-se do banco. - E tu, taberneiro, não te mexas senão eu trespasso-o, grito por socorro e és tu quem se fará enforcar!
Depois de proferir o seu discurso, arrastou a presa para a porta, obrigando-o, rudemente, a transpô-la e, depois, puxou-o na direção dos dois patíbulos, cuja aproximação arrancou um soluço de pavor do miserável.
- Não ides...?
- Enforcar-te? Isso só de ti depende - respondeu Perceval que, encorajado por este primeiro sucesso, sentia-se com a força do gigante Atlas. - Se responderes às minhas perguntas talvez te deixe continuar o teu caminho.
Lançou-o contra o cadafalso em maçonaria que servia para amontoar as achas e os fagotes de lenha quando se queimava alguém e manteve-o encostado com a ponta da espada.
- Agora, falemos! Para começar, como te chamas?
- Não estou certo de possuir ainda algum nome. Chamam-me Mâcheferot.
Raguenel desatou a rir.
- Sempre podes dar umas dentadas nesta, mas espantar-me-ia que a conseguisses digerir. Agora diz-me quem vos recrutou, a ti e ao teu irmão... pois suponho que o teu duplo, que há pouco sumiu, é teu irmão?
- É.
- Muito bem. Então qual era o homem que vos comandava na expedição a La Ferrière?
- Isso não sei!
- Realmente...? Mastiga-ferro, literalmente...
A ponta da espada picou a garganta do homem, que gemeu:
- Juro-vos que não sei! Nenhum dos que estavam conosco o sabia. Eu e o meu irmão fomos recrutados por alguém na Truie-Qui-File e os outros não os conheço.
- E o guarda que veio pagar-vos no albergue de Lemours, também não o conheces?
Uma gota de sangue perlou.
- Conheço... Foi ele quem veio ao cabaré. Ele chama-se... chama-se La Ferrière e acompanhou-nos.
- La Ferrière? - repetiu Perceval, estupefato Mas onde é que ele foi buscar esse nome?
- Eu... eu não sei. Disse apenas que as pessoas do pequeno castelo lhe tinham roubado a sua herança e que agora, não estando mais ninguém com vida, esperava recuperá-la.
O cavaleiro deixou para mais tarde o exame desta estranha pretensão.
- E o chefe? Tens a certeza que não era ele?
- Sim, tenho! Ele só veio ter conosco na própria manhã e nenhum de nós viu o seu rosto. Tudo o que posso dizer é que La Ferrière lhe falava com respeito. Quando tudo terminou, ele desapareceu. Socor...
Raguenel não viu chegar o ataque. Teve apenas a sensação de levar com um soco nas costas e, num gesto automático, a sua espada entrou pela garganta de Mâchefer adentro. O grito de agonia dele foi a última coisa que ouviu antes de perder os sentidos.
Se nessa noite Raguenel não foi fazer companhia aos seus antepassados, deveu-o certamente ao seu anjo da guarda, mas, sobretudo, à paixão bibliófila de um marechal de França que era um dos raros homens de armas amigos da cultura, numa época em que os grandes senhores apreciavam mais a arte de manejar uma espada que a de utilizar uma pena. Essa raridade era François, barão de Bestein, Haroué, Remonville, Baudricourt e Ormes, com nome afrancesado para Bassompierre, devido a Henrique IV, quando, aos dezenove anos, fora introduzido na sua corte. Entendia o latim e o grego, falava quatro línguas com a mesma facilidade francês, alemão, italiano e espanhol e possuía uma magnífica biblioteca que tratava com todos os cuidados.
Além disso era um grande sedutor e estando sempre em busca de uma aventura feminina, nessa tarde encaminhara-se para uma livraria do Puits-Certain, frequentada por todos os espíritos requintados do monte de Sainte Geneviève, a fim de admirar e adquirir, sem dúvida, uma edição dos Comentários de César, impressa por Aide Manuce[12] em Veneza, e, também, para lá encontrar a sobrinha do dito livreiro, que cortejava assiduamente desde há algumas semanas. A bela Marguerite era a principal razão que o levara a sair de casa apesar da ameaça de trovoada, a atravessar o Sena e a subir o douto monte. Ora, se os Comentários estavam presentes ao encontro, não era o caso de Marguerite, que durante o dia partira para Suresnes.
Desiludido, o marechal não se demorou tanto quanto esperava e, já com os seus Comentários, quis regressar a casa. Foi ao aproximar-se da praça Maubert com os seus criados que transportavam as tochas nessa época, as ruas de Paris só eram iluminadas por lâmpadas a óleo que se acendiam em certos cruzamentos, face às estátuas da Virgem ou dos santos, que ouvira um grito e dirigira-se naturalmente para o local de onde ele proviera: à falta de ternos arrulhos, gostava de enfrentar uma boa zaragata.
Decididamente a noite não lhe era favorável, pois a aproximação do seu pessoal afugentara os malandrins e apenas deparou com dois corpos inanimados: um, de ar suspeito, morto; o outro, cujo porte de gentil-homem era inegável, ainda respirava. Além disso, o rosto deste dizia-lhe qualquer coisa: tinha a impressão de já o ter encontrado.
Abriram-se portas sob o punho autoritário dos seus criados. Conseguiu-se desencantar uma maca na qual se estendeu o ferido inconsciente, que foi transportado até à residência do marechal, situada não muito longe do Arsenal. Se o céu se mostrou compadecido, ao permitir que as nuvens rebentassem apenas na altura em que eles alcançavam o seu destino, chegando o pequeno cortejo ainda seco, tal não foi o caso do médico que o marechal mandou imediatamente chamar. Quanto a Perceval, que perdera muito sangue, estava inconsciente do que lhe sucedera e assim permaneceria durante vários dias, debatendo-se com uma forte febre.
Desse modo, quando recuperou outra vez a consciência, ficou surpreendido por se encontrar num quarto desconhecido. Uma bela peça, com móveis em madeira esculpida, uma tapeçaria com personagens e um teto com reentrâncias pintadas, esculpidas e douradas. Devia ser noite, pois uma lamparina ardia à cabeceira e um criado ressonava denodadamente, adormecido num sofá, de nariz caído nos botões do seu libré vermelho e prateado. Fora este ruído que acordara Perceval, mas depressa teve saudades da sua anterior inconsciência: não se sentia nada bem e tinha dificuldade em respirar. Além disso, tinha sede. Ao ver uma garrafa e um copo ao pé de si, quis servir-se, mas a dor no peito foi tão aguda que não pôde reter um gemido. O criado levantou-se imediatamente e, bem desperto, debruçou-se sobre ele:
- O senhor está acordado?
- Estou... queria beber...
- Um momento. Vou chamar o médico!
Este não devia estar longe. Apareceu quase de seguida e demonstrou grande satisfação ao encontrar o seu paciente de olhos abertos. Tomou-lhe o pulso, palpou-lhe a testa e os membros:
- Ainda tendes febre – declarou - mas, graças a Deus, ela diminuiu e já não delirais.
- Delírio?... Delirei muito tempo?
- Uma boa semana. De tal forma que julgamos em certos momentos que já não vos poderíamos salvar. O vosso ferimento é profundo, o pulmão foi atingido, mas sois jovem, bem constituído e em vós a natureza há-de retomar os seus direitos. Pelo menos assim o espero... se vos mostrardes sensato.
Nesse momento a porta do quarto reabriu-se, graças a um criado, para dar passagem ao dono da casa, envergando um roupão com ramagens castanhas e douradas.
- Acabo de saber que o nosso convidado está melhor - exclamou. - Na verdade é uma boa notícia e vamos talvez saber pela sua boca quem ele é...?
- Devagarinho, senhor marechal, devagarinho! - solicitou o médico. - É certo que ele pode falar, mas ainda está muito fraco.
O ferido tentava soerguer-se na cama, para melhor vislumbrar o magnífico senhor e reconheceu-o imediatamente. Qualquer pessoa que tivesse visto um dia o antigo coronel-general dos guardas suíços de Sua Majestade, não mais o esqueceria. Medindo cerca de 1 metro e oitenta e três, ele possuía, sem dúvida, uma compleição apropriada à sua função. Além disso, se bem que tivesse alcançado os quarenta e seis anos, Bassompierre permanecia muito cativante, com belos olhos azuis sempre sorridentes, cabelos louros, sedosos e encaracolados, onde só tinham surgido alguns tons prateados, um rosto a um tempo enérgico e afável, e uma barbicha sedosa, sempre perfumada, com uma mescla de almíscar e âmbar.
- Senhor marechal - murmurou o ferido - vedes-me atrapalhado por vos causar tanto incômodo. Dir-me-eis por que milagre vos devo a vida?
- Oh, é muito simples - contou Bassompierre, sentando-se no sofá que o vigia desocupara. - Dado que passava com o meu pessoal, ouvimos gritar, vimos o que se passava e...
- ...e vencestes! Além disso, se bem compreendo, haveis tomado conta de mim.
- É a mínima das coisas, meu amigo, a mínima das coisas! Mas se me dissésseis agora quem sois?
- Um fiel servidor da casa de Vendôme, senhor marechal - respondeu Perceval que, conhecendo os laços de amizade que uniam Bassompierre ao duque César, não se arriscava a cometer um erro. - Chamo-me Perceval de Raguenel, sou cavaleiro e escudeiro da senhora duquesa...
O resultado não se fez esperar:
- Considerai-vos em vossa casa!... Contudo, não entendo muito bem o que fazeis em Paris: a vossa senhora está de regresso?
- A esta hora a senhora duquesa deve estar em Blois, onde se dirigiu para implorar a clemência do Rei.
- A clemência do Rei? Que me dizeis?
- A verdade, infelizmente. O duque César e Monsieur, o Grande Prior de França, foram presos por ordem de Sua Majestade e conduzidos para os cárceres de Amboise. Não o sabíeis? - perguntou Perceval timidamente, visto que conhecia os laços de amizade que uniam a duquesa de Elbeuf, irmã dos dois presos, à princesa de Conti, de quem se segredava que era a secreta esposa de Bassompierre.
- Não, por Deus! - murmurou este, cuja cara se ensombrara. - Até é estranho! É preciso que seja secreto, pois o rumor ainda aqui não chegou. Mas, penso agora, não deveríeis estar em Blois na companhia da vossa senhora?
- Sem dúvida... Mas, com autorização dela, tive de ocupar-me de uma assunto grave...
- Na verdade? Contai-me!
O médico interveio:
- Desculpai-me, senhor marechal, mas este jovem acaba mesmo agora de sair de um estado de inconsciência prolongado. Não deveis cansá-lo e podeis observar que se lhe torna penoso falar...
- Tendes razão! Dormi, meu rapaz! Comei, bebei, recuperai forças. Amanhã prosseguiremos esta conversa... se acaso assim o desejardes...
- Com muito prazer, senhor marechal. Obrigado!
E Bassompierre saiu, depois de ter recomendado ao médico para não se divertir a “fazer uma sangria a esse infeliz rapaz, como é vosso costume! Ele já perdeu sangue que chegue!”
O homem de ciência bem tentou objetar que era a única forma de “expelir os humores nefastos que podem permanecer no corpo do paciente e que o fato de desembaraçá-lo de um sangue, obviamente viciado depois de tantos dias de inconsciência, só lhe poderia fazer o maior bem”, mas Bassompierre nada quis ouvir:
- Quanto a sangue, dar-lho-emos com a ajuda de boas carnes e de bons vinhos de Borgonha, aos quais a pior disposição não saberia resistir. Fazei aquilo que digo e nada mais, senão enviarei um mensageiro ao Rei para lhe pedir que me empreste o senhor Bouvard para um parente meu!
Com esta ameaça o médico resignou-se e contentou-se em aplicar métodos suaves ao seu paciente: um pouco de mel e uma tisana calmante, que lhe permitiram completar, com um bom sono, uma noite que principiara com os últimos acessos de febre. Mas antes de mergulhar completamente no sono, prometeu a si mesmo revelar tudo àquele salvador que um Deus providencial colocara no seu caminho. Que melhor confidente, que melhor conselheiro poderia encontrar, senão aquele homem corajoso, inteligente, cortesão hábil quando o era preciso, dotado para a diplomacia, que fora um próximo da bela Gabrielle enquanto sabia conservar a amizade de um rei facilmente ciumento? Fora ele quem tivera a missão de escoltar a futura rainha de Fontainebleau a Paris. Sabe-se como acabou a viagem: com uma criança morta e uma terrível crise de eclampsia, mas longe de ficar ressentido com Bassompierre, o Bearnense fechara-se com ele durante uma longa semana a fim de falar da defunta e chorar a sua morte. E quando, pouco tempo depois, Henrique IV procurou consolar-se junto à bela, mas perigosa Henriette d’Entragues, que fez marquesa de Verneuil, François de Bassompierre pensou ser seu dever interessar-se pela irmã mais nova de Henriette, a atraente Marie-Charlotte, a quem fez um filho. Desde há quinze anos que ela lhe intentava processos atrás de processos, pretendendo que ele lhe assinara uma promessa de casamento, o que o dito Bassompierre negava com todas as suas forças, mas o que, apesar disso, não deixava de envenenar-lhe a existência. Felizmente conseguira conservar apoios importantes e, depois da morte do Rei, conseguiu cair nas boas graças da regente. A gorda Maria de Médicis divertia-se com as suas réplicas jocosas. Foi assim que um dia em que ele lhe assegurava que não existiam muitas mulheres que não fossem desavergonhadas, a tola julgara dar prova de esperteza ao perguntar-lhe: “Então, e eu?”. E Bassompierre respondera-lhe com uma grande saudação e um belo sorriso: “Vós, Senhora, sois a Rainha...”. E riu... Ao mesmo tempo ele prestava-se de bom grado a ser o protetor dos jovens príncipes bastardos e, depois do casamento de César com Françoise de Mercceur foi visto, por várias vezes, à sombra dos arvoredos de Anet ou nos jardins de Chenonceau.
Sabendo aonde a sorte o levara, Perceval esperou, confiante, pelo momento das explicações, o qual chegou na tarde do dia seguinte. Logo que o marechal entrou no seu quarto, o ferido apercebeu-se imediatamente que nem tudo corria pelo melhor.
- Tínheis razão, as coisas não podiam correr pior! - suspirou aquele. - Estive há pouco em casa da senhora princesa de Conti, onde se encontrava a senhora duquesa de Elbeuf, a qual chorava como todas as fontes de Paris e confesso que com razão para isso. O Rei, a Corte e o Cardeal, claro, foram para Nantes, onde o jovem príncipe de Chalais foi preso e lançado nas masmorras do castelo. Nossa Majestade e Richelieu interrogaram Monsieur acerca da conspiração destinada a impedir o seu casamento, a assassinar o Cardeal e, caso o Rei fosse destituído, a concluir um casamento entre a jovem rainha e Monsieur. E que julgais que respondeu o nosso bom príncipe?
- Quando o conhecemos não é difícil adivinhar - respondeu Raguenel, que digeria uma excelente refeição, encostado numa pilha de almofadas. - Começou por pedir desculpas, jurando que nada tinha a ver com o assunto e traindo toda a gente!
- Acertastes! Começou, evidentemente, por aqueles aos quais o Rei já tinha deitado a mão. Culpou tanto quanto possível os senhores de Vendôme, assegurando que o duque César reunia um exército na Bretanha para invadir a França e expulsar o Rei.
- É abominável! Monsenhor o duque só desejava fortificar o seu governo para enfrentar qualquer eventualidade: ele sabe quanto o Cardeal o detesta.
- E não é tudo! O jovem Chalais, quando se viu preso, fez o mesmo, mas por uma razão completamente diferente: está perdidamente apaixonado por Mme. de Chevreuse, que teria tido certas amabilidades para com o Grande Prior Alexandre. Dessa forma, também ele tenta descarregar tudo para cima deles, aliás sem se privar de acusar aquela que tanto ama.
- Misericórdia! E que se passou?
- Retiraram o governo da Bretanha a M. de Vendôme e o Rei ordenou que fossem arrasadas as fortificações dos seus castelos: Ancenis, Lamballe, Blavet, etc.
- E Vendôme?
- Não. Só foi questão da Bretanha. E Vendôme é uma grande cidade, muito ligada ao seu duque. Enquanto este não for condenado, não lhe vão tocar e, de momento, os dois irmãos permanecem em Amboise.
- E a senhora duquesa?
- Não há notícias dela! Mme. d’Elbeuf ignora o que sucedeu à sua cunhada. Naturalmente, está inquieta. Todos se atormentam... E, já agora, contai-me a vossa história.
Raguenel contou-a, sem nada esconder, sem nada esquecer. A sua amizade pela família de Valaines, o drama que a dizimara, a tristeza que sentia, como haviam encontrado Jeannette na chaminé e o que ela tinha contado. Depois, a sua decisão em seguir a pista ainda quente deixada pelos assassinos, o albergue de Limours e, por fim, a aventura que o levara àquele leito com o pulmão perfurado. Para terminar, pediu que lhe trouxessem o gibão, de onde retirou o sinete de cera vermelha arrancado da testa de Chiara e o colar que tirara a Mâchefer...
Se bem que bom conversador, o marechal escutou a sua narrativa sem dizer palavra. Quando acabou, Bassompierre começou por pegar no colar que acariciou com a ponta dos dedos.
- Conheci a signorina degli Albizzi quando ela entrou ao serviço da rainha-mãe. Uma bela rapariga... e ajuizada! Espero que não me guardeis rancor se vos confessar que foi debalde que tentei obter os seus favores. Quando a casaram, era pura e luminosa como um belo lírio. Aliás, ninguém compreendeu por que desposou esse homem tão mais velho que ela.
- Mas que conseguiu fazê-la feliz. Agradecida, deu-lhe três filhos, dos quais só está viva a pequena Sylvie, confiada presentemente aos cuidados de Mme. de Vendôme. Mas, senhor marechal, se a conheceis, sabereis dizer-me se, à parte Jean de Valaines, havia outro homem que disputasse a mão dela?
- Este? - inquiriu Bassompierre, pegando no sinete entre os dois dedos. - Na verdade, ignoro-o. Quando uma dama me diz não, não me dou ao trabalho de insistir e levo os meus desejos para outros lados. Ainda assim, esta inscrição é esquisita! Omega!... “Eu sou o alfa e o omega, o primeiro e o último, o princípio e o fim”, diz o Apocalipse. Se escolheu este símbolo, acaso quererá este homem simbolizar o fim para outros homens?
- Isso estaria de acordo com um carrasco.
- Sim, mas a um carrasco letrado e não creio que tal coisa exista.
- Um juiz, nesse caso? Muitos deles são cultos.
- Sem dúvida. Por aquilo que sei, não são pessoas que sujem as mãos e, segundo a história da pequena criada, o homem mergulhou as dele no sangue. Aposto que não será fácil encontrá-lo e, no estado atual das coisas, não poderei incitar-vos a ir mais longe.
- Todavia, jurei que vingaria Mme. de Valaines e seus filhos. É verdade que a minha única pista se reduz atualmente a esse guarda a quem chamam La Ferrière. Esse não será muito difícil de desencantar e eu...
Debruçando-se bruscamente, Bassompierre colocou a mão na do ferido.
- Não vos aconselho a isso e, mesmo, se quiserdes acreditar-me, de ora em diante acho que deveríeis deixar qualquer busca de lado. A menos que desejeis agravar ainda mais as desgraças da casa de Vendôme... e colocar talvez em perigo a pequena que escapou à carnificina
- Eu? Que Deus me livre! Contudo, não vejo em que é que...
- Os dois casos estão relacionados. O ataque ao castelo foi feito, e como que por acaso, a partir do momento em que o Cardeal se assegurou do destino dos príncipes pois, não vos enganeis, foi ele que os mandou prender: para tal bastou-lhe murmurar a palavra “conspiração”. Meu amigo, estais de pés e mãos atadas!
- Então, não poderei fazer nada? - gemeu Raguenel, à beira das lágrimas.
- Sim: esperar!
- Esperar o quê? A morte do Cardeal?
- Um dia ela há-de chegar. A saúde dele não está florescente, longe disso e, desde que detém o poder, afiam-se mais punhais em França que no tempo da rainha Catarina e das guerras protestantes. Talvez a espera já não seja longa...
- Ele está protegido pela sorte. E depois, julgai-lo capaz de ter ordenado um tal massacre, dirigido contra uma mulher e os seus filhos? Seria preciso que fosse um monstro...
- Não o conheço o suficiente para o julgar. Não gosto dele e até me oponho a ele com todas as minhas forças, mas tenho a minha cabeça em grande estima e gostaria de desfrutar dela ainda por mais algum tempo.
- Sois um amigo do Rei, um marechal de França. Ele não ousaria.
- No entanto, ousou mandar prender os irmãos do Rei! E também o príncipe de Chalais que acusa toda a gente para obter o perdão. Diz-se que confessou ter querido matar Richelieu. Será certamente o primeiro a ser julgado e veremos o que lhe acontecerá. Que idade tem a rapariga que o jovem Martigues salvou?
- Ainda não fez quatro anos.
- Pobre criança! Seja como for, tem o direito de viver...
- Jurei pela memória de sua mãe que a protegeria. E a melhor maneira de o fazer é ainda a de abater os seus inimigos...
Bassompierre inclinou a cabeça com ar desencorajado:
- Sois bretão, não é?
- Com efeito e orgulho-me disso. Porquê?
- Cabeça teimosa! Mato-me a explicar-vos que deveis ficar a descansar. De qualquer modo, quer o próprio Richelieu tenha ordenado o massacre, o que não creio e espero que Deus não o tenha permitido, ou quer o homem encarregue de recuperar as cartas dessa estúpida rainha tenha aproveitado para ajustar as suas próprias contas, a samarra púrpura desenha-se por detrás desta história horrível. E agora aceitai um conselho: para começar, acabareis aqui a vossa convalescença. Quanto a mim, vou ter com o Rei a Nantes, mas procurarei saber o que aconteceu à duquesa Françoise e de que modo a poderei servir. Quando partir, passarei por Vendôme, onde darei recado do que vos aconteceu. Enviar-vos-ei até o vosso criado, a fim de não vos encontrardes sozinho quando decidirdes voltar a percorrer as grandes estradas. Que tal achais?
- A minha gratidão é imensa, senhor marechal! Não sei se...
- Não continueis com as vossas explicações. Contentai-vos em dar-me a vossa palavra em como agireis de acordo com o meu conselho e que nada fareis que possa atentar à salvação da casa de Vendôme! Posso contar convosco?
- Senhor marechal, espero que não duvideis!? - murmurou Raguenel, vencido. - Tendes a minha palavra: saberei esperar... tanto quanto necessário.
Bassompierre concedeu-lhe um largo sorriso de satisfação e, não podendo dar-lhe uma palmada nas costas, deu-lhe, prudentemente, umas pancadinhas na cabeça com a mão.
- Ora assim é que é! Pelo meu lado, frequento suficientemente os locais aprazíveis e as gentes de letras para chegar talvez a saber quem é a personagem que ousa julgar-se o Anjo exterminador e que semeia omegas nos seus sinetes. Até à próxima, meu rapaz!
E, pegando no chapéu de feltro com penas azuis que, ao entrar, lançara despreocupadamente para cima de um cofre, o marechal procedeu a uma das suas tumultuosas saídas, que tanto lhe agradavam, deixando ao seu hóspede forçado o cuidado de tomar, finalmente, a sábia resolução de se restabelecer o mais depressa possível, a fim de poder retomar o seu posto, logo que Corentin mostrasse a sua figura de raposa matreira sob os lambris dourados do quarto.
Entretanto, em Vendôme, a pequena Sylvie começava a esquecer-se daquilo que, para ela, se assemelhava mais a um pesadelo que à realidade. O anjo chegara para a levar para um local magnífico, repleto de belas damas e ilustres senhores. Desde então aprendera certas coisas bem agradáveis, por exemplo, que não havia nada a temer quanto à estadia terrestre do senhor Anjo: chamava-se François e era adorável para com ela, colocando-a no seu cavalo para levá-la a passear ao longo do rio, sem ligar às recriminações do seu irmão mais velho; corria com ela pelos prados, contava-lhe histórias e depois, ao desejar-lhe boa noite, dava-lhe grandes beijos nas faces dizendo-lhe que cheirava a maçã e a erva fresca. Duas coisas que, tanto um como outro, tanto apreciavam. Na verdade, gostava imenso dele e todos os dias um pouco mais ainda, pois ao pé dele sentia-se protegida.
Também gostava de Elisabeth, que brincava com ela como com uma boneca, arvorando ares de mãezinha. Ensinava-lhe a comer sem se sujar, fazia-a provar vestidos que inventava e que uma criada de quarto não parava de coser, respeitando as dimensões do pequeno corpo rechonchudo e passava longos momentos a tentar alisar-lhe, com uma escova, os caracóis morenos, espessos e facilmente rebeldes. Noutras alturas ensinava-lhe a ler num grande livro, com lindas imagens coloridas que a fascinavam e depois, como não podia deixar de ser, levava-a até à capela duas vezes ao dia, a fim de rezar por todos os ausentes, sobretudo por duas misteriosas personagens, com nomes muito complicados para a memória de Sylvie. Rezavam também pela sua mãe, a qual lhe tinham dito que partira para uma longa viagem. Também havia uma linda música e isso compensava um pouco a duração das paragens silenciosas que era preciso cumprir, de joelhos nas lajes e de mãos unidas... Por fim, uma bela noite, Jeannette chegara ao castelo e Sylvie sentira um vivo prazer porque ela era a filha da ama, que tanto brincava com ela quando o seu serviço assaz ligeiro, é preciso dizê-lo, lhe deixava tempo livre.
Esta nova chegada levou ao cúmulo as angústias de Mme. de Bure que, na ausência de Mme. de Vendôme, fazia um pouco de dona de casa. Aprovaria esta, cuja ausência se prolongava de modo inquietante, que se recolhesse, daquele modo, todos os que tinham escapado de La Ferrière? É verdade que a sua caridade era inesgotável e que, apesar de tudo, se tratava apenas de uma pequena servente, que sempre poderia ser empregue ao serviço de Elisabeth. Por seu lado, François e a irmã apegavam-se à protegida. A sua tagarelice e as reflexões infantis que proferia, o afeto que lhes demonstrava, distraíam-nos um pouco da ansiedade em que a ausência de notícias os mergulhava um pouco mais a cada dia que passava. Até a mãe deles não dava qualquer sinal de vida e, cúmulo da estranheza, o cavaleiro de Raguenel parecia ter-se dissolvido na natureza. Tudo o que poderia dizer o seu criado ao trazer Jeannette, fora que ele partira na direção de Paris, sem indicar para onde se dirigia, contentando-se em dizer que iria ter com eles a Vendôme. Ora, continuava-se à espera...
A inquietação comum aproximava os dois filhos mais novos do mais velho, o qual sabiam que, em caso de desgraça, seria o chefe de família. Um pesado encargo, quando se tem apenas catorze anos! Não era sem estremecer que Louis encarava ter de aguentar nos seus ombros uma herança tão pesada que, ainda por cima, seria necessário defender; e contra quem? Se se tratasse do Rei e do seu temível ministro, a partida estava perdida logo de início, pensava o adolescente com desespero mesmo que a cidade de Vendôme se pusesse por inteiro atrás do seu duque. O que era desejável pois, não sendo assim, o jovem Mercceur mal se imaginava entrincheirado no imenso castelo, que permanecera de tipo decididamente feudal, apesar do alojamento pouco mais aprazível que Jeanne d’Albret, sua avó paterna, construíra no século passado e daquele, nitidamente mais agradável, que o duque César mandara erguer, mas que mal saíra ainda do solo. Claro que era possível aguentar bastante tempo, pois sendo o duque uma pessoa precavida, enchera os armazéns de víveres, armas, munições, e os subterrâneos davam acesso a uma fonte abundante situada ao nível do vale. Mas caso quisesse desferir um golpe no coração do seu meio-irmão com mais força do que aquele que desferira ao retirar-lhe a Bretanha, o Rei não deixaria de atacar em Vendôme, símbolo do título ducal e aquele que César estimava acima de todos. Amava a sua cidade e Deus sabe como não lhe fora fácil fazer-se aceitar por ela!
Mesmo trinta e sete anos depois, Vendôme não esquecera o tratamento que lhe concedera, em Novembro de 1589, o herdeiro escolhido pelo rei Henrique III, que morrera assassinado no primeiro dia de Agosto precedente. Henrique IV, que ainda era protestante nessa altura, apoderara-se da cidade que lhe pertencia por direito hereditário, mas que havia sido tomada pelos membros da Liga do duque de Mayenne. E Vendôme combatera ao lado do usurpador, grave erro que o Rei lhe fizera pagar entregando-a à pilhagem, inclusive das igrejas e conventos. O governador, Maillé de Benehart, foi decapitado e, só Deus sabe porquê, o porteiro do convento dos frades franciscanos foi enforcado.
Ao cair em si a guerra é uma droga terrível! O Bearnense foi acometido por remorsos tanto mais vivos porquanto os curtidores que constituíam a riqueza de Vendôme se tinham posto em fuga para se refugiarem em Chateau-Renault, recusando-se, depois, a abandoná-lo.
Pensando que ia compor as coisas, o Rei doou o ducado ao seu primeiro filho, César, então com quatro anos. Enquanto pensaram que a criança estava destinada a tornar-se rei de França, os habitantes nada encontraram a dizer mas, quando Gabrielle morreu e, sobretudo, quando Henrique desposou Maria de Médícis, soprou um vento de revolta. Vendôme, que até essa altura era uma cidade real que pertencia aos Bourbons e onde residiam numerosos huguenotes, não apreciou ter por amo uma personagem que só era meia-Bourbon por outras palavras: por um bastardo até que o casamento do jovem duque com Mlle de Mercosur mudasse o rumo das coisas. A nobre origem da nova duquesa, a profunda piedade e a inesgotável caridade de que dava provas, reunidas ao charme e à generosidade de César, trouxe-lhes muitos corações de volta. Fundaram-se novos conventos e, sobretudo, uma espantosa Casa de auxílio aos enfermos, instalada no faubourg Chartrain, que o senhor Vincent veio inaugurar. Quanto aos protestantes que tinham estado na origem dos desacatos, foram expulsos.
Sim, agora tudo corria bem entre o castelo e a cidade mas, desconfiado por natureza, o jovem Mercceur não conseguia persuadir-se de que o povo o apoiaria caso o Rei decidisse atacar. Não teriam sobrado alguns descontentes, susceptíveis de arrastar os outros? E quando ouvia M. d’Estrades falar com M. de Preaulx, o novo governador e com o seu lugar-tenente, M. d’Argy, Louis não conseguia deixar de tremer: aqueles três não eram mesmo nada otimistas!
Quanto a François, só sonhava em apanhar galos e feridas. Com a bela inconsciência típica da sua idade, rezava todos os dias para que lhe fosse dada ocasião de combater por um pai que adorava e de dar provas da coragem que sentia ferver dentro dele. Um bom cerco, com a algazarra e a violência consequentes, teria sido muito mais do seu agrado do que a calma de um Verão abafador, passado numa velha fortaleza encastoada no flanco abrupto de um outeiro, onde não se passava nada e cujo sopé era molhado pelo rio Loire.
Os três jovens Vendôme habituaram-se a subir todas as tardes ao cimo da torre de Poitiers, tão alta e forte que lhe chamavam torreão, se bem que não fosse o caso. Aí, olhavam para o Sol que se deitava numa glória incandescente, mas alimentavam, sobretudo, a esperança, que nunca se realizava, de enxergar uma nuvem de poeira que assinalasse um coche ou, pelo menos, um cavaleiro. Não chegava nada nem ninguém. Tão preocupado quanto os seus alunos, M. d’Estrades fazia, contudo, o melhor que podia para reconfortá-los, explicando-lhes que era preciso cultivar a virtude da paciência e que, se bem que fosse muito raro prender alguém para o libertar no dia seguinte, podia confiar-se plenamente na senhora duquesa para remover céu e terra a favor de seu esposo. Se ela não regressava, se calhar era por não ter ainda conseguido que o Rei a escutasse...
Essas ascensões vespertinas desolavam Sylvie que, sempre que lhe era possível, seguia François como um cãozinho. O que era impossível sem ajuda: as escadarias do “torreão” eram muito altas e íngremes para as suas pernas pequeninas. Bem tentou escalar duas ou três, mas tudo o que conseguiu foi arranhar as mãos nas pedras irregulares. A única solução era transportá-la, mas era tudo muito elevado e ninguém se sentia com coragem para o fazer. Além disso, logo da primeira vez, Louis fizera ouvir a sua vontade:
- Temos aqui uma oportunidade para estarmos os três a sós. Não quero que outros se venham intrometer.
- Ela é tão pequena! - defendia Elisabeth.
- Precisamente, não temos de nos estorvar com uma bebê. E vós, François, deveis deixar de andar continuamente com ela à trela. Dentro em breve virá o tempo em que ireis para Malta principiar a vossa vida dissoluta. Não pensais levá-la convosco, imagino?
O interpelado desatou a rir.
- Claro que não! Em compensação, gostaria de a levar até Belle-Isle, como fizemos o ano passado, para passar férias no domínio do senhor duque de Retz. É uma bela companhia: não tem medo de nada.
- É verdade concordou Elisabeth, mas este ano não estamos de férias e tudo o que podemos fazer é rezar ao céu pelo regresso desses tempos felizes. François, desta vez Louis tem razão: é preciso que Sylvie se habitue a separar-se de nós de vez em quando.
Apesar das lágrimas e dos gritos, a rapariga teve de ficar no sopé da torre enquanto o seu “anjo” a escalava como se subisse ao céu. Quando desceu, ela ainda lá estava, deitada num degrau, chorando devagarinho. Sentou-se ao pé dela, soergueu-a e pô-la em cima dos joelhos, a fim de limpar com o lenço a carinha manchada de pó e de lágrimas.
- Quando fordes mais crescida - disse-lhe - subireis até lá acima, mas, por ora, isso é impossível.
Ela estendeu os braços:
- Levar! - proferiu apenas, mas François pôs um ar grave:
- Não. Uma dama tem de saber aprender a esperar. Nosso pai está preso numa grande torre e a nossa mãe não pode ir ter com ele, mas não é por isso que ela se instala em baixo, nas escadas, para desatar a chorar e a gritar.
Sylvie levou um dedo sujo à boca, baixou o nariz e disse apenas:
- Ah!
A partir daí, ela permaneceu sentada no último degrau, tarde após tarde, sem protestar, mas, a pouco e pouco, a torre tornou-se sua inimiga e, no seu pequeno cérebro, tornou-se um símbolo: era como se ela tivesse de ficar sempre em baixo, na sombra, enquanto ele ascendia na direção da luz. Parecia-lhe que mesmo quando fosse suficientemente crescida para escalar todos aqueles degraus, nunca haveria de conseguir juntar-se àquele que tanto amava: ele iria mais longe, mais alto, sempre mais alto, até ficar fora de alcance. Então, de momento e para tirar dele o melhor proveito, contentava-se em saltitar incansavelmente atrás dos seus calcanhares com a “Cara Linda” bem apertada contra o seu coração. E François não tinha coragem para afastar aquela a quem todos, no castelo, tinham posto a alcunha de “gatinha”.
As coisas nunca correm como se imagina; numa tarde de Agosto, os dois irmãos e o preceptor tomavam banho no rio, quando viram subitamente chegar uma grande carruagem poeirenta, rodeada de cavaleiros, que transpôs a ponte que dava para a rampa de acesso ao castelo.
Levou-lhes pouco tempo a saírem da água, a secarem-se, vestirem-se e a pularem para o cavalo a fim de regressarem. Contudo, quando chegaram ao pátio, Corentin Bellec, o criado do cavaleiro de Raguenel, preparava-se para partir. Vermelho de contentamento, disse-lhes:
- O meu amo está em Paris, em casa do senhor marechal de Bassompierre, que acaba de me dar a notícia. Foi ferido, mas já está melhor e eu vou ter com ele...
Nessa noite os jovens habitantes do castelo recuperaram um pouco de esperança. A robusta saúde moral de Bassompierre, o seu otimismo que exagerava talvez um pouco para com os seus jovens hospedeiros eram comunicativos. Prometeu fazer o impossível para defender a causa do pai deles e serenou-os, com firme convicção, acerca, do destino da mãe.
- Por muito graves que sejam as acusações que pesam sobre os senhores de Vendôme, a senhora duquesa não pode estar implicada neles. A mulher não é obrigada a seguir o esposo onde quer que este vá e o Rei herdou de seu pai o respeito pelas damas... mesmo que goste menos delas. Além disso, convém pensar duas vezes antes de indispor uma linhagem como a de Lorraine. Creiam-me, crianças - concluiu, esvaziando com evidente satisfação um grande copo de voudmy bem fresco - dentro em breve voltarão a encontrar a vossa mãe.
- E o nosso pai? - perguntou François.
Os largos ombros elevaram o grande colarinho em renda fina veneziana que se sobrepunha ao gibão em tecido de Flandres, bordado de prata, enquanto o rosto amável se ensombrava imperceptivelmente:
- Devemos rezar a Deus por ele, de modo a que não tenha de suportar uma longa detenção, pois, no que diz respeito à sua vida, recuso-me a crer que esteja em perigo: o Rei não iria carregar a sua alma com um pecado mortal ao oferecer a cabeça dele ao Cardeal.
- O Cardeal é um padre - proferiu Louis, raivosamente. - Pode absolver um pecado capital. Até do Rei!
No dia seguinte o marechal voltou a pôr-se a caminho, aproveitando a frescura da alvorada e, nessa mesma tarde, Louis, Elisabeth e François voltaram a subir à torre de Poitiers. Chegou, por fim, o momento em que a espera deles foi recompensada: viram chegar, em primeiro lugar, dois cavaleiros. Foi antes do crepúsculo, alguns dias depois daquele em que se comemorou o dia de S. Luís, e durante o qual, na presença de toda a cidade, foi cantada uma bela missa na abadia da Trindade. Ao reconhecerem M. de Raguenel, sentiram uma verdadeira alegria.
O cavaleiro ficou sensibilizado ao receber tais testemunhos, mas ainda o ficou mais quando uma bola de tafetá cor-de-rosa e de caracóis escuros desgrenhados se lançou às suas pernas chamando-o “Bom Amigo”. O fato da criança ter guardado a lembrança daquele nome que lhe dava a mãe dela, acabou com a sua placidez habitual. Levantando-a, apertou-a nos braços, escondendo algumas lágrimas naquele pequeno rosto acetinado...
Raguenel teria desejado pôr-se novamente a caminho logo no dia seguinte, em direção a Nantes, a fim de ir ao encontro de Mme. de Vendôme, mas teve de enfrentar uma verdadeira coligação constituída pelas crianças, pelo preceptor delas, pelo responsável do castelo e por Mme. de Bure: insistiram que ele ainda estava demasiado cansado para continuar a galopar ao encontro de uma dama, no meio da poeira e do calor, sem se saber se ela estaria no caminho de regresso.
- Cavaleiro, como não sabemos que estrada é que ela vai tomar, arriscai-vos a um desencontro - disse Mme. de Bure. - Por ora, o melhor que tendes a fazer é esperá-la aqui conosco.
Eram palavras sensatas e Perceval não teve de se esforçar muito para fazer algo que, na realidade, lhe agradava particularmente, feliz, no fundo, por poder descansar ainda um pouco depois de uma cavalgada que fora mais dura do que primeiro imaginara. Havia também Sylvie, que parecia querer ligar-se a ele, como se adivinhasse que ele constituía o último laço com o mundo dela, que desaparecera. Louis de Mercceur notou, satisfeito, que ela deixava um pouco François, para ir passear com o seu grande amigo, que lhe segurava firmemente a pequenina mão.
E depois, veio finalmente a tarde bendita em que o coche do bispo de Nantes - que já não o era! - trouxe este de volta, com Mme. de Vendôme e Mlle. de Lichecourt. Uma, vinha visivelmente fora de si e a outra continuava imperturbável e, ai dela, tão feia como de costume...
Quando saltou para terra e depois de se ter desembaraçado das numerosas coifas e capas destinadas a proteger as suas roupas dos salpicos de lama chovia o tempo todo desde há dois dias as primeiras palavras da duquesa, mesmo antes de abraçar os filhos, foram para mandar preparar as bagagens e para que todos se aprontassem para voltar a Paris.
- Paris, nesta altura do ano? - protestou Louis. - Por lá está mais calor que em qualquer outro lado e a cidade cheira mal!
- Não o sabia tão delicado, Louis! Pois bem, vós ficareis em Anet com os vossos irmãos, mas eu vou para onde está o vosso pai.
E, sem acrescentar mais nada, entrou pela casa dentro à procura de um banho e de roupas lavadas. Foi Philippe de Cospéan que informou as crianças. Parecia muito mais calmo que a duquesa, mas era evidente que essa calma estava manchada por grandes preocupações.
- Os príncipes já não se encontram em Ambroise - explicou. - Neste momento estão a ser levados, por via marítima, para o torreão de Vincennes. Não - disse, interrompendo François com um gesto - não ireis, meu filho, falar em evasão. É impossível. Tanto do interior como pelas margens do rio Loire, a barca à vela que os leva está guardada por mosqueteiros comandados pelo seu tenente, M. de Tréville. Caso seja atacada, têm ordem para a fazer ir pelos ares!
- E a nossa mãe acabou por ver o Rei? - perguntou Louis.
- Acabou. Ele foi muito bondoso para com ela e sossegou-a, tanto quanto à sua própria pessoa como quanto a vocês: não existe perigo algum que vos ameace ou que ameace o ducado e ainda menos os bens da duquesa!
- E quanto ao nosso pai? - inquiriu François, que tinha dificuldades em se conter. - Também deu garantias?
O bispo desviou a cabeça:
- Nenhuma. O duque e o Grande Prior devem ser julgados pelo Parlamento.
- E os outros? - perguntou Raguenel. - Os nossos amos não eram os únicos envolvidos nessa conspiração: havia também Monsieur, mesmo que tenha julgado por bem trair toda a gente, Mme. de Chevreuse, o príncipe de Chalais, que soubemos ter sido preso...
O rosto austero de Philippe de Cospéan exprimiu subitamente um horror absoluto, enquanto se punha a tremer. Benzeu-se, antes de murmurar:
- Quanto a este, é preciso rezar a Deus para que o tenha em piedade, pois sofreu um verdadeiro martírio. No dia 18 deste mês foi decapitado na praça Bouffay, em Nantes, apesar das súplicas de sua mãe. Se é que se pode chamar decapitar ao massacre que presenciamos!
E começou a contar às crianças aterrorizadas que os amigos do jovem príncipe - ele apenas tinha dezoito anos - esperando, pelo menos, atrasar a execução, tinham raptado o carrasco, mas a impiedosa justiça do Cardeal encontrara uma resposta à altura: foi prometido o perdão a um miserável condenado à forca, caso este se encarregasse da tarefa. Não tendo nunca manejado o grande espadão do carrasco, o aprendiz, aterrorizado, serviu-se de uma enxó de tanoeiro para separar a cabeça do corpo, pelo que teve de recomeçar trinta e seis vezes. O condenado gemeu até ao vigésimo golpe...
A medonha narração foi acolhida por um silêncio mortal. Mme. de Bure levara precipitadamente Elisabeth consigo, pois esta estava prestes a desmaiar. Depois, François perguntou numa voz sumida:
- E os outros?
- Mme. de Chevreuse está exilada no castelo de Dampierre, à guarda do esposo. Quanto aos conjurados, aqueles que não foram denunciados continuam calados e os outros fugiram há muito tempo. Monsieur desposou Mlle. de Montpensier na presença de uma pequena comitiva e recebeu, pela ocasião, o título de duque de Orleans. Finalmente, o Rei emitiu um decreto estipulando que quem quer que atente contra a vida de Sua Eminência será perseguido por crime de lesa-majestade.
- E arrastado por quatro cavalos, como sucedeu a Salcède ou Ravaillac? - gritou M. d’Estrade indignado. - Na verdade, Richelieu é agora mais rei que o próprio Rei!
O jantar foi triste. Estavam todos sob o choque daquela história terrível, e na imaginação deles o herói era substituído por César e Alexandre. O príncipe de Chalais era um senhor demasiado importante para que o seu fim não aterrorizasse os Vendôme. Tanto mais que, neste caso delirante de conspiração, era sobretudo culpado de ter amado até à loucura uma linda mulher, da qual apenas havia sido o seu instrumento. Ora, Mme. de Chevreuse que, contudo, o Rei detestava, saía de todo este assunto com ordem de se exilar nas terras do marido e sob sua guarda. Como sempre o manipulara com toda a facilidade, não era difícil adivinhar que os constrangimentos não lhe seriam pesados...
- O Rei quis dar um exemplo! - concluíra Philippe de Cospéan. - Esperemos apenas que seja o único.
Mme. de Vendôme, apesar do cansaço, exprimiu o desejo de se encontrar a sós, nessa mesma tarde, com o seu escudeiro. Ouviu com atenção a narração do drama de La Ferrière e de tudo o que se seguira.
- Correstes grandes riscos, meu amigo - disse-lhe, quando aquele terminou. - Agradeço-vos, mas... suponho que, sobre o vosso travesseiro, tivestes tempo para refletir sobre esta triste história. Custa-me acreditar que se tenha podido desejar a morte desta família tão honrada. No que diz respeito ao carrasco de Mme. de Valaines a vingança é óbvia, mas porquê matar as crianças?
- Para que não haja mais herdeiros, senhora. Suponho que alguém devia cobiçar o castelo e os seus bens. Talvez esse tal La Ferrière, que foi um dos assassinos e cujo nome constitui uma tão curiosa coincidência.
- Mas existe uma herdeira, pois o meu filho salvou a pequena Sylvie e vós, os títulos do castelo. E se essa gente não encontrou as famosas cartas...
- Quanto a isso nada sabemos, senhora duquesa. Em compensação é certo e seguro que a pequena Sylvie correria um verdadeiro perigo caso algum dos assassinos viesse a saber que ela ainda está viva. É preciso escondê-la.
A duquesa ergueu interrogativamente as sobrancelhas.
- Em que estais a pensar? Num convento? Deus sabe como venero as santas raparigas nele recolhidas, mas nunca se sabe quem se esconde sob o hábito monacal e, sobretudo, quem é parente de quem. Isso pode ser muito perigoso.
- E se a inscreverdes sob um falso nome?
- Não estou nada tentada a fazê-lo. Claro que o convento me parece o local apropriado para ela: está longe de ser tão bonita quanto a mãe. Porém ela é atraente, meiga... e tão pequena! Tenho de pensar neste problema com maior tranquilidade. Mas, a propósito das cartas que essas pessoas procuravam, não é possível que estivessem na posse do barão de Valaines sem que a sua mulher o soubesse?
- Pensais que ele teria podido ir vasculhar também em casa da Galigai, depois da sua prometida o ter feito? Chiara era jovem e estava um pouco amedrontada, sem dúvida, pela tralha de feiticeira que se amontoava no apartamento de Leonora. Muito mais calmo e de cabeça mais fria, Valaines teria podido encontrá-las e, compreendendo a importância que revestiam, tê-las-ia simplesmente guardado em seu poder. Que achais?
- Que, desse modo, teria adquirido uma boa segurança contra a versatilidade e a ingratidão da rainha Maria! Depois só lhe restava apressar o seu casamento.
- Efetivamente, isso tudo é possível. Entretanto posso perguntar-vos se, ao regressarmos a Paris, paramos em Anet?
- Sim, porquê?
- Se assim me autorizardes, senhora duquesa, gostaria de voltar a La Ferrière para visitar novamente a livraria.
- Fazei como bem achardes.
Ao deixar Poitiers na manhã seguinte, ninguém compreendia por que era tão difícil manter Sylvie tranquila. A pequena, com metade do corpo metido fora da carruagem[13], esforçava-se por conservar a vista, o mais tempo possível, na sua inimiga, a torre de Poitiers, uma inimiga que esperava vir um dia a vencer. Só quando tudo desapareceu por detrás do relevo de uma colina é que ela se deixou cair nas almofadas, soltando um suspiro de contentamento. Como Elisabeth tentava obter uma explicação, sorriu-lhe e, enrolada numa bola como um gato, adormeceu com toda a naturalidade deste mundo.
Ao chegar a Anet, Perceval de Raguenel decidiu demorar apenas o tempo suficiente para se dessedentar ligeiramente, procurou as chaves de La Ferrière, escolheu um cavalo fresco, assobiou para chamar Corentin, de um modo que tinham ambos há muito acordado entre eles um assobio longo, depois, um curto, e, finalmente, outro longo e encaminhou-se para o pequeno castelo. Ainda decorria o meio da tarde e pensava dispor de todo o tempo para explorar a biblioteca, mesmo que tivesse de passar lá a noite.
Os dois homens esperavam ir romper o silêncio e a solidão que se instalam depois dos grandes dramas, mas encontraram La Ferrière de portas escancaradas e em plena atividade: era evidente que se procedia à limpeza, retiravam-se as ervas daninhas do pátio, arejavam-se todas as roupas dos leitos, algumas das quais tapavam as janelas.
Visto que possuía as chaves, Raguenel aprontava-se a pedir explicações a dois homens envergando indumentárias da mesma cor cinzenta, com o gibão amplamente aberto por cima da camisa, e que passeavam lentamente à medida que conversavam, quando Corentin o reteve, segurando firmemente a rédea do cavalo: vindo do jardim, acabara de aparecer um terceiro homem. E este era, nem mais nem menos, do que o guarda do Cardeal avistado no albergue de Limours, que ele vira pagar aos irmãos Mâchefer.
- Algo me diz que ireis cometer uma imprudência - sussurrou o criado.
- Tenho, porém, de saber o que se passa - resmungou Perceval, que empalidecera.
- Vamos tentar informar-nos, mas façamos o menos barulho possível. Mais vale não chamar a atenção!
Voltaram os respectivos cavalos na direção da aldeola, mas nem chegaram a dar cinco passos: estava ali o velho homem que já os havia informado anteriormente, colocado atrás da mesma árvore. Devia ter uma boa memória pois não tentou escapulir-se, vindo, pelo contrário, ao encontro dos dois cavaleiros.
- Ainda por aqui? - perguntou Raguenel. - Não me diga que é aí que mora?
- Não, mas é um bom local para observar coisas...
- Então talvez me possa informar: quem são aquelas pessoas além no castelo?
- O novo senhor e seus amigos...
- Como assim, o novo senhor? Quem o permitiu?
- Nossa Majestade, o Rei, ao que parece. É um tal M. de La Ferrière. Disse que outrora o domínio pertencera aos seus antepassados. Então, como agora já não está cá ninguém, o Rei ofereceu-lhe. Parece que é como que primo dos infelizes que foram mortos... além disso, ao que diz, prestou um grande serviço ao senhor Cardeal. E como o senhor Cardeal e o Rei perfazem um...
Perceval não quis saber de mais nada. Compreendera:
- Anda, Corentin! Regressemos. Obrigado, amigo! - acrescentou, atirando uma moeda de prata.
- Mas enfim, o que significa tudo isto? - perguntou Corentin, quando se encontraram novamente na floresta.
- É muito simples! Isto significa que o massacre não foi inútil, que as cartas foram encontradas e que o Cardeal não é um ingrato.
Foi o que repetiu a Mme. de Vendôme, mal chegou a Anet. A duquesa teve um trejeito:
- Com que então, Richelieu instala um dos seus homens na nossa vizinhança? Esta idéia não me agrada nada. Poderá constituir uma demonstração do seu desejo em intrometer-se, a pouco e pouco, no principado.
- Teremos de estar vigilantes, mas o que me inquieta mais é Sylvie. Que lhe acontecerá caso La Ferrière venha a saber que ainda existe uma Valaines?
- Já pensei nisso. O melhor é mudar-lhe o nome. No Vendôme possuímos três feudos sem titular e quando nos forem devolvidos o meu esposo não verá certamente nenhum inconveniente em que eu lhe ofereça um deles. O nosso chanceler, com quem falarei, tratará das escrituras necessárias.
- E qual será o seu nome?
- Vamos ambos escolhê-lo, visto que existem três possibilidades. Temos primeiro Cornevache[14]...
- Oh! Senhora duquesa! Não vai certamente...?
- Na verdade, não - respondeu Mme de Vendôme, com um sorriso. - Temos também Puits-Fondu e, finalmente, L’Isle, que se encontra em Saint-Firmin.
- Penso que prefiro o terceiro.
- Também eu.
Foi assim que a menina de pés descalços, que ficara órfã e sem nada devido à barbárie dos homens, reencontrou um castelo, terras e um novo nome que, dia após dia, lhe iriam pacientemente aprender a utilizar. E foi como Mlle de L’Isle que foi educada, junto a Elisabeth, nas residências dos Vendôme. O tempo encarregou-se de apagar as recordações da primeira infância ou, pelo menos, conseguiu relegá-las nas mais secretas profundezas da memória.
O duque César foi devolvido à família quatro anos mais tarde, a 29 de Dezembro de 1630. No mês de Março seguinte, deixava a França com os seus dois filhos, para prestar serviço na Holanda. Tinham-lhe devolvido o título de governador da Bretanha, mas sem lhe outorgarem a função. Essa súbita generosidade da parte do poder, deveu-a à tragicomédia que se desenrolara no precedente dia 10 de Novembro e que ia ficar conhecida na História sob o nome do dia dos Papalvos. Nesse dia, Maria de Médicis, possuída por uma fúria homérica, expulsou Richelieu dos seus aposentos, na presença do rei e exigiu que ele fosse recambiado para o seu bispado de Luçon. Ora, não só o Cardeal não foi destituído como, quando saíra, no dia seguinte, do pavilhão de caça de Versalhes, onde se reunira com o Rei para uma entrevista secreta, era mais poderoso que nunca e pôde, desse modo, obter uma estrondosa vingança sobre os seus inimigos.
Aqueles que tinham apoiado a rainha-mãe durante o dia dos Papalvos foram presos, inclusive o chanceler de Marillac e o seu irmão marechal, que foi conduzido ao carrasco. Inclusive, também, o amável Bassompierre, que apenas cometera o erro de receber uma carta comprometedora de Maria de Médicis. Mas ele era um sábio: encarcerado na Bastilha, ainda assim com algumas regalias, decidiu redigir aí as suas memórias. A própria rainha-mãe foi exilada para Compiègne[15], de onde, temendo pela sua vida, fugiu para a Holanda. Todos estes acontecimentos deram muito que pensar a Perceval de Raguenel. Tornou-se-lhe então óbvio que, pelo menos, um dos assassinos o chefe, sem dúvida acabara realmente por encontrar o que procurava e que tendo as famosas cartas chegado à posse do Cardeal, elas foram-lhe de um auxílio poderoso na altura do seu combate sem mercê com a rainha-mãe. Tê-las-ia dado ao Rei? Era um segredo que talvez encontrasse uma resposta quando este permitisse a sua mãe de regressar à Corte.
O Grande Prior Alexandre foi menos feliz que seu irmão. Após dois anos de detenção, morreu no torreão de Vincennes, no dia 8 de Fevereiro de 1629, devido a uma doença a propósito da qual alguns pensaram que o veneno tivera algo a ver com ela. Talvez porque ocupara o quarto onde falecera o marechal d’Ornano, quarto que Mme. de Rambouillet dizia valer “o seu peso em arsênico”... Mme. de Vendôme tratou que o corpo embalsado do cunhado fosse inumado na colegiada de São Jorge ao serviço do castelo de Vendôme, com todas as honras devidas ao seu estatuto.
Assim se foi ampliando ao longo dos anos o poder do cardeal de Richelieu, apoiado por um rei consciente do seu valor. A mão pesada do ministro abatia-se impiedosamente sobre as figuras mais destacadas, cujas rebeliões e conspirações arrastavam frequentemente províncias inteiras, quando não pactuavam com o inimigo. Morreram dois Montmorency no cadafalso: o primeiro, brigão impenitente, por ter desafiado a severa lei que interditava o duelo (batera-se em plena Praça Real, ao meio-dia e frente ao édito que afixava a proibição) e o segundo, o duque Henrique, devido a uma dessas eternas tramóias em que se metia Gaston d’Orleans, sempre cobarde e escapando a todos os castigos. Mas a construção da França avançava. Os protestantes foram vencidos em La Rochelle e o duque de Buckingham que, loucamente apaixonado por Ana da Áustria, fora assassinado por Felton, um huguenote fanático, não incomodaria mais ninguém. Restava a Espanha, inimiga renhida, apesar dos laços de família, assente tanto nas fronteiras do Norte como nas do Sul, a Espanha que a rainha de França apoiava secretamente...
Entretanto François tornara-se um homem, um guerreiro, como tinham desejado os seus. Já se esquecera há muito tempo da pequena Louise Séguier, morta com varíola no castelo de Sorel. Outros rostos vieram substituir-se ao do seu primeiro arrebatamento. Loucamente corajoso e sedutor, ele acumulava façanhas de armas, conquistas femininas e, feridas também, para grande tristeza da menina dos pés descalços. Efetivamente, Sylvie também crescia e o amor que sentira logo que o vira, crescia com ela...
A TEMPESTADE - 1637
O CAMINHO DO LOUVRE
Desde o começo do ano que Paris gelava sob um frio polar. O Sena deslocava pedaços de gelo tão grandes que tinham afundado vários navios carregados de milho e de gêneros alimentícios perecíveis. Longas estalactites agarravam-se aos telhados das casas, perigosas como gládios, caso a fantasia as soltasse. A lama guarnecia as velhas pedras irregulares com pequenas vagas de gelo escuro que magoavam os pés e que eram um perigo para os ossos. Dessa forma as pessoas andavam como se pisassem ovos, com a espinha curvada e a cabeça metida entre os ombros, para ter mais calor. Só as crianças ousavam executar temerárias escorregadelas pelos rios.
Apetrechados para o gelo, os cavalos de Mme. de Vendôme ignoravam as dificuldades características da estação e trotavam de modo seguro. Tinham acabado de transpor a porta de Saint-Honoré e seguiam, a um ritmo apropriado às circunstâncias, pela rua do mesmo nome que, prolongada pela rua da Ferronnerie, dos Lombards e de Saint-Antoine, atravessava Paris de oeste a leste, para desembocar na Bastilha. No interior do coche, onde um pouco de calor era mantido por escalfetas com carvão em brasa, a duquesa viajava a sós com Sylvie, como era seu hábito. No entanto, nesse dia não se tratava de fazer visitas de caridade, de ir saudar o senhor Vincent a Saint-Lazare ou de efetuar uma peregrinação a esta ou aquela igreja: dentro em breve Mlle. de L’Isle seria admitida entre as damas de honor da rainha Ana da Áustria uma grande honra que ela não entendia lá muito bem e de que não tinha a certeza de estar verdadeiramente satisfeita. Isto significava que trocava, nesse dia, o hotel de Vendôme, magnífico e quase novo, pelas torres escuras do velho Louvre e, em dias vindouros, os encantadores castelos de Anet ou de Chenonceau pelo palácio de Saint-Germain ou de Fontainebleau, que ainda não conhecia. Uma mudança completa de vida.
A Rainha é boa pessoa assegurara-lhe Elisabeth, ao ajudá-la a acabar de arrumar as malas. Tratar-vos-á tanto melhor porquanto sabeis que foi ela que vos reclamou desde que a haveis enfeitiçado em nossa casa, quando cantastes acompanhada à guitarra. E também porque falais espanhol. Trata-se de um grande favor e não vos encontrareis perdida: eu e a minha mãe visitamo-la frequentemente. Quanto aos meus irmãos, também são assíduos...
Era isso que lhe importava: talvez assim pudesse ver François mais frequentemente. No decurso dos últimos anos ele raramente a vira, salvo quando tivera de tratar alguma ferida, perante a qual o coração de Sylvie soçobrava. Contudo, ficava feliz por voltar a vê-lo: depois do pai dele ter saído da prisão, tinham havido aqueles dois anos passados nos Países-Baixos, onde ele aprendera o manejo das armas dois anos mortíferos! Depois foi a guerra, a primeira ação estrondosa sob Casale, no Piemonte, onde o jovem Vendôme se distinguira, ao carregar sobre o inimigo a cavalo e de espada desembainhada, envergando apenas calções com meias, botas, e uma camisa branca generosamente aberta, com os seus cabelos, sempre tão lisos, flutuando ao sabor da cavalgada. A partir dessa altura já se perdera a conta dos seus feitos e, infelizmente, das suas amantes, pois ele agradava, e muito mais que o teria desejado a rapariga à qual ele prestava cada vez menos atenção...
- Tem o ar de um príncipe viking - dizia M. de Raguenel sorrindo. - Possui a mesma estatura e é divertidamente inculto! Mas que magnífico rapaz que ele é!
É verdade que ele era belo, esse François a quem, quatro anos antes, ao regressar de um périplo na Itália, o pai concedera o título de duque de Beaufort, que pertencera outrora à bela Gabrielle, sua avó: media mais de um metro e oitenta de altura, possuía ombros de lutador, um corpo que teria podido servir de modelo a uma estátua grega, coberto por uma pele tisnada pelo sol e pelas intempéries a ponto de só se tornar um pouco mais clara quando se encontrava retido na cama ou estendido num divã, um rosto sorridente que exibia o célebre nariz dos Bourbons como um troféu, mas também iluminado por olhos de um azul transparente, dessa tonalidade particular dos glaciares das altas montanhas e por dentes brancos de carniceiro que faziam estremecer. Resultado: a maioria das mulheres adoravam-no e sussurrava-se que era com agrado que a própria Rainha o recebia. Claro que nunca mais estivera em questão a sua partida para Malta, o que a sua pequena apaixonada não estava longe de lamentar: no meio de soldados e marinheiros monges, pelo menos não haveria questões casamenteiras...
Pois era isso que ela mais temia! Caso François viesse a casar agora chamava-o monsenhor ela, que era oriunda de uma nobreza demasiado pequena para ousar pretender ser digna dele, perdê-lo-ia para sempre. Já não fora nada mau que Mme. de Vendôme e sua filha tivessem acabado por sentir tanto afeto por ela que não a haviam colocado num convento para cuidar da sua instrução. Isso devia-se, sobretudo, ao soberbo desdém que os Vendôme dedicavam, geralmente, aos estudos. Tinham como princípio que um homem vivido, no mundo a que pertenciam, sempre sabia quanto bastasse. O latim, as armas, as Sagradas Escrituras, a arte de bem se comportar na Corte, que compreendia a música, a dança e, claro, a equitação, eis o que convinha. Achara-se inútil encher a cabecinha dos jovens Vendôme com história, geografia, matemáticas, filosofia e outras bagatelas. Se Mlle. de L’Isle aprendera mais que os seus companheiros, devia-o àquele que se tornara seu padrinho e tutor: Perceval de Raguenel, ele próprio bastante culto, iniciara-a nas belas-letras, no espanhol e no italiano e, descobrindo que ela possuía uma voz muito bela, doce e pura como um cristal, ensinara-lhe a arte do canto, do alaúde e da guitarra. E como, ainda por cima, ela tivera direito aos mesmos mestres que Elisabeth, aos quinze anos era uma jovem de educação completa, que dançava primorosamente, que sabia coser, bordar e cuidar de uma casa, desde que esta não fosse destinada a ser uma residência principesca. Além do mais, era charmosa. Não muito alta, mas de lindas formas, mais graciosa que bela. Também viva e provocante, possuía uma cara em forma de coração, que permanecia infantil, tal como o pequeno nariz arrebitado sempre pronto a franzir-se quando ria, a pele sardenta, as bochechas redondas e os dentes brancos, que mostrava frequentemente quando sorria maliciosamente. A sua maior beleza residia nos olhos de avelã clara, talhados em forma de amêndoa e na cabeleira castanha com reflexos loiros, quase brancos. Penteada à última moda, os seus cabelos formavam, em cada lado, um espesso cacho de caracóis brilhantes presos por uma fita de seda e enrolados na nuca. Nesse dia as fitas eram de cetim branco e o resto do vestido era muito elegante.
Jeannette, que se tornara a sua criada de quarto e que, portanto, a seguia nas suas novas funções, escolhera-lhe um vestido de veludo verde escuro com uma grande gola e punhos de renda fina veneziana, de um branco resplandecente, sob o qual Sylvie calçava botinas acolchoadas. A sua toilette era completada por luvas, um fio em ouro e uma ampla capa de capuz, forrada e debruada em marta, pois mesmo que Mme. de Vendôme, ao invés do esposo, fosse mais contida nas despesas, fizera questão que a sua protegida causasse boa figura numa Corte célebre pela sua elegância. Assim, fornecera-lhe também um enxoval com peças suficientes para que ela pudesse realçar a sua beleza em todas as circunstâncias, mesmo durante a caça. Dera-lhe um exemplar da Vida dos Santos, um desses volumosos missais que tinham surgido no princípio do século e que qualquer boa alma cristã devia possuir desde que, evidentemente, soubesse ler.
No momento, sentada no coche, frente à duquesa que murmurava as suas preces, Sylvie via desfilar as casas cinzentas, o céu cinzento, as pessoas cinzentas, e o coração batia-lhe um pouco apressadamente ao perguntar-se o que a esperava no fim do percurso.
O pesado veículo parou subitamente e o cocheiro, retirando o chapéu, veio até à portinhola:
- Senhora duquesa, por onde devemos passar? A rua d’Autriche está engarrafada devido a uma carroça de couves que se voltou...
- Bem o vejo - respondeu esta, cuja leitura do rosário não impedia que se interessasse pelo que se passava. - Tomai a direção da Croix-du-Trahoir e é tudo! Isso não nos vai atrasar muito.
- É que estou a ver aí muita gente amontoada. Talvez tenhamos dificuldades em passar...
- Alguma execução, sem dúvida! Pois bem, aguardaremos, enquanto rezamos pela alma do infeliz que se despede num dia de tempo tão triste!
Tratava-se, efetivamente, de uma execução. Estas ocorriam frequentemente naquela pequena praça, situada no cruzamento de várias ruas. Era para aí que se mandava a arraia-miúda, indigna dos faustos da praça de Greve. E, nesse dia, como puderam constatar os ocupantes da carruagem, aprestavam-se a aplicar o suplício da roda a um malandrim. Apesar do frio, uma multidão reunira-se em redor do baixo cadafalso em que estava apoiada uma grande roda na qual o carrasco estenderia o seu paciente para lhe rasgar os membros e o peito e para, depois, o deixar agonizar durante o tempo que aprouvesse a Deus... Mas se o cocheiro esperava passar no meio daquela gente, teve de renunciar: o carrasco já estava no seu lugar e uma carroça transportava o condenado, ladeada pelos arqueiros do prebostado.
Quase à esquina da rua das Poulies, onde o cocheiro conseguira parar a carruagem, as suas passageiras puderam assistir, de perto, à passagem do cortejo fúnebre. Assistido por um monge enregelado, o homem, que era jovem e vigoroso, envergando apenas uma camisa, não parecia estar com medo. Olhava impassivelmente o cadafalso de que se aproximava e, se estremecia por vezes, isso era devido ao frio. Sobretudo, nem sequer tentava voltar-se para olhar para a criança que corria, chorando e gritando, atrás da carroça. Era um miúdo de uns dez anos, vestido pobremente e que parecia ter atingido o derradeiro grau do desespero. Da multidão, uma mulher gritou:
- Pobre miúdo! Não é culpa dele se o pai é um ladrão! Já não deve ter ninguém neste mundo...
Porém, a criança acabara de avistar uma personagem vestida de negro, sentado num grande cavalo, e que observava o acontecimento. Correu para ele, arriscando-se a ser esmagada:
Perdão, senhor - implorou. - Concedei-lhe o perdão! É meu pai e é a única pessoa que me resta... Tende piedade, por todas as chagas de Cristo!
- Um ladrão é um ladrão. Tem de receber o castigo que merece.
- Mas ele não matou ninguém... enviai-o para a prisão mas não o matais!
- Basta! Põe-te a andar! Aborreces o meu cavalo.
No entanto a criança não se conformava. O condenado já estava de pé no cadafalso, olhando para a multidão. Ouviram-no gritar:
- Pierrot, estás a perder o teu tempo! Mais vale tentar enternecer as muralhas de Châtelet! Vai-te embora, filho! Isto não é um espetáculo para ti!
Todavia o pequeno insistia, segurando-se ao estribo do homem de preto. Então, erguendo a sua chibata, este bateu-lhe duas vezes, com tanta crueldade que o infeliz estatelou-se na lama. Ainda não satisfeito, o homem rodopiou o cavalo, na intenção evidente de passar por cima do corpo estendido. Era mais do que aquilo que Sylvie podia suportar. Abriu a portinhola num ápice, saltou imediatamente para terra e colocou-se frente ao miserável:
- Recuai! - gritou. - É apenas uma criança e quereis matá-la. Que espécie de monstro sois?
Sem se preocupar com as consequências que teria para a sua toilette, Sylvie baixou-se para levantar o miúdo enquanto dardejava na direção do homem um olhar pleno de indignação. O rosto que descobriu sob o chapéu de feltro de penas negras pareceu-lhe perfeitamente ajustado à personagem: largo e espesso, provido de um grande nariz e com um bigode e uma barbicha cinzentas e pouco abastados. Os olhos, sobretudo, eram assustadores: imóveis, de um cinzento amarelecido, tão frios quanto os de uma serpente, realçados pelas olheiras, piscavam tanto como se fossem feitos de pedra.
- Sai daí rapariga! - rosnou - Se não quiseres receber o mesmo tratamento e se...
Foi interrompido por um grito indignado. Mme. de Vendôme e o seu cocheiro entraram em cena. Enquanto o segundo socorria Sylvie e o seu protegido, a primeira apostrofava a vil personagem, já apoiada pela multidão que apreciava os belos gestos:
- Senhor, não sei quem sois, mas pode ver-se que não sois um gentil-homem. Isso não são modos de se dirigir a uma nobre senhora. Mlle. de L’Isle é dama de honor de Sua Majestade a Rainha e eu sou a duquesa de Vendôme.
Desta vez o homem destapou a cabeça, mas sem descer do cavalo.
- Sou o novo tenente civil de Paris, senhora duquesa. Isaac de Laffemas, para vos servir... e para vos dirigir um respeitoso conselho: tirai daí essa rapariga! Continuai o vosso caminho e deixai-me fazer o meu trabalho. Quanto a este rapaz...
Era evidente que este não sofria demasiado, pois levantara-se, não sem depositar, de passagem, um beijo furtivo na luva de Sylvie. Depois, rápido como uma enguia esgueirou-se por entre a multidão, que se fechou à sua passagem, de forma protetora. Entretanto, Mme. de Vendôme e Sylvie subiam novamente para a carruagem, seguidas pelo olhar impassível do tenente civil que abriu espaço para que o coche pudesse retomar o seu caminho. Foi apenas quando se sentou que Sylvie se apercebeu que lhe haviam roubado a bolsa. Ficou com um ar tão desconsolado que a duquesa desatou a rir:
- Eis no que dá praticar a caridade sem discernimento disse. Aquele pequeno bandido encontrou com que sobreviver e eis-nos às duas enlameadas como devassas! Que bela entrada vamos fazer ao pé da Rainha!
Sylvie levantou uns olhos que regressavam à sua habitual alegria e, depois, ergueu os ombros, tentando, com o lenço, limitar os maiores estragos provocados na sua roupa.
- Desculpai-me, senhora, mas não lamento nada. Darei graças a Deus, caso as poucas moedas que o pequeno me tirou cheguem para a sua subsistência!
- Palavra de honra, falais como o senhor Vincent caso se encontrasse nas mesmas circunstâncias - respondeu-lhe a outra, dando-lhe uma palmadinha afetuosa na face. - Estou satisfeita convosco: no meio das tentações da Corte, sabereis preservar a vossa honra e dignidade. E recordai-vos bem: só deveis obedecer cegamente a uma única pessoa, à Rainha. Haveis-me entendido? Uma cega obediência!
- Podeis estar segura, senhora duquesa, de que não me esquecerei.
O desvio não atrasara muito as duas mulheres. Ladeavam agora a rua dos Fossés-Saint-Germain e, por cima dos telhados e das pequenas torres do hotel d’Alencon já se podiam avistar as grandes torres do castelo real. Mme. de Vendôme inclinou-se, a fim de colocar uma mão confiante nas de Sylvie.
- Coragem, minha filha, estamos a chegar! Vereis que os aposentos serão menos fúnebres que os edifícios à entrada o deixam supor. Pouco após o seu casamento com o rei Henrique IV, quando chegou a Paris, a rainha Maria - que Deus tenha piedade do desenlace ao qual a abandona o filho em Colônia! - renovou os apartamentos e pôs neles muito do fausto florentino a que se habituara...
Estes esclarecimentos eram bem-vindos. Com efeito, as entradas pareciam-se mais com uma fortaleza do que com um palácio: não havia nada de acolhedor naqueles edifícios escurecidos de sujidade, nas torres maciças, nos fossos repletos de uma pasta lodosa, o que neutralizava um pouco o seu cheiro, na ponte levadiça e no primeiro recinto exterior ameiado e balizado por torrezinhas. Entre essa muralha e os fossos encontravam-se os dois campos de jogos de péla, tão ao gosto, em qualquer época, dos reis e dos seus séquitos.
Sendo livre a entrada no Louvre, desde que se tivesse vestido convenientemente e que não se mostrasse um ar demasiadamente patibular, havia multidão, um fluxo ininterrupto que transpunha a ponte levadiça nos dois sentidos. Em princípio só podiam entrar no pátio o coche da família real ou os cavalos dos príncipes de sangue, mas quando o tempo era mau, as princesas estavam autorizadas a transpor de carruagem a comprida passagem escura e abobadada que dava acesso ao vasto pátio. Tal foi o que sucedeu à carruagem de Mme. de Vendôme, princesa de sangue por casamento morganático mas, mesmo assim, princesa de sangue.
- Meu Deus, minha senhora! Há sempre tanta gente? - exclamou Sylvie, um pouco assustada ao constatar que a carruagem vogava no meio de um mar de gente.
- Sempre! Mesmo quando o Rei está ausente, como hoje...
Efetivamente, o corpo de guarda francês, vestido de azul, com ornamentos vermelhos, tinha muito que fazer para conter um mundo colorido e heteróclito, composto sobretudo por homens, em cujas cabeças se encrespavam penachos de cores variadas, cuja confecção devia ter necessitado da colaboração de um bando de avestruzes. Por entre a multidão, podiam ver-se os elegantes, envoltos em seda e fitas, financeiros arvorando ricas pelicas, novelistas à procura de mexericos, provincianos vindos na esperança de ver o descendente de S. Luís e, também, estrangeiros e, claro está, os cortesãos, que na ausência do Rei sempre se podiam ocupar da Rainha. Os guardas esforçavam-se por fazer retroceder a maioria para a porta de Bourbon, onde os arqueiros do prebostado, de farda azul, encarregues das portas, rechaçavam, sem amenidade, os visitantes menos ilustres. Os outros eram confiados aos guardas suíços e, depois, aos soldados da guarda real, colocados à entrada.
A recém-chegada ficou surpreendida ao constatar que, na realidade, o grande aparato feudal do palácio cobria, sobretudo, a fachada da entrada. Os reis Henrique II, Carlos LX, Henrique III e Henrique IV, tinham mandado construir edifícios mais modernos, em frente e ao longo do Sena. Quanto à ala norte, onde se deitara abaixo a torre da Libraria e a da Grande-Vis, era agora apenas uma vasta empreitada que, momentaneamente, a temperatura se encarregara de suspender. Estava a cargo do arquiteto Lemercier, que acabara o palácio do Cardeal, onde Richelieu residia, e que iniciara a construção da igreja da Sorbonne. Evitando a Grande-Escadaria, ou escadaria Henrique II, que levava à Grande Sala e aos aposentos do Rei, a carruagem da duquesa optou pelo acesso à Pequena-Escadaria, por onde se subia até junto da Rainha. Na altura em que descia, Sylvie ousou colocar a sua mão na da duquesa:
- Desculpai-me, senhora, mas queria saber...
- O quê?...
- Eu... estou com um bocado de medo! Não me sinto digna de tão grande honra, não sendo nem muito bela, nem muito nobre, nem muito brilhante, nem...
- Escolheis mal o momento para fazer-me repetir-vos aquilo que já vos disseram. A Rainha quer-vos devido à vossa voz e à vossa facilidade em falar a língua espanhola. Estais dando provas de demasiada modéstia: não sois nem feia, nem tola e a vossa nobreza é quanto baste! Vamos!
Não acrescentou que agradava muito a seu esposo a idéia de ver Sylvie com uma patente de dama de honor. O duque César, exilado nas suas terras depois de regressar da Holanda e, portanto, proibido de aparecer na Corte mas, também, em Paris, desejava dispor de um ouvido inocente no meio da Rainha. Claro que os seus filhos, Beaufort sobretudo, eram recebidos com entusiasmo, mas nunca aprenderiam nada desses pequenos segredos de intimidade real, tão úteis de conhecer quando se está mal visto. Não para utilizá-los contra Ana de Áustria mas, dado que conservava um ódio selvagem pelo “Manto Vermelho”, César pensava que, por vezes, era possível realizar grandes coisas partindo de pequenos detalhes aparentemente sem importância.
Apesar daquele conforto de última hora, o coração de Sylvie batia-lhe apressadamente enquanto subia a bela escadaria e entrava na antecâmara, na qual estavam de serviço guardas armados de alabardas. Aí, as duas mulheres depararam com Pierre de La Porte, camareiro-mor da Rainha e, também, um dos seus raros confidentes. Era um homem jovem talvez com trinta e quatro ou trinta e cinco anos um sólido normando de rosto afável, animado por olhos de faiança azuis. Ele sorriu para a jovem de rosto inquieto que o olhava mas, saudando a duquesa com grande respeito, não pôde evitar de notar a lama que manchava a parte de baixo dos seus vestidos:
- Terão porventura recusado a entrada do pátio Quadrado à senhora duquesa? Hoje é o Palácio Real.
- De forma alguma, de forma alguma, mas tivemos umas aventuras cuja novidade reservo para os ouvidos de Sua Majestade. M. de La Porte, tenha a amabilidade de nos anunciar. Já estamos atrasadas.
No seu amplo gabinete, aquecido por uma lareira e pelas tapeçarias bordadas a seda e ouro que cobriam as paredes, Ana de Áustria estava rodeada pelas suas damas: Mme. de Senecey, primeira dama de honor, Mlle. de Hautefort, açafata, e que, devido à sua posição, era tratada por “madame”, Mme. de Guitaut, a esposa do capitão das suas guardas, Mlle. de Pons, Mlle. de Chémerault, Mlle. de Chavigny, Mlle. de La Fayette, que se contavam entre as suas damas de honor, e uma visitante, a princesa de Guéménée, uma das piores linguareiras de Paris. Naquela altura Mlle. de La Fayette lia em voz alta um grande livro encadernado de vermelho, mas era evidente que ninguém a escutava e que a Rainha estava a sonhar. A um canto, vestida de negro, ao estilo das aias espanholas, a velha criada de quarto da Rainha, dona Estefania de Villaguiran, a quem chamavam Stéfanille, bordava sem levantar o seu comprido nariz em que pendiam uns óculos da sua obra. Era a mais idosa das acompanhantes, a única que escapara à grande limpeza que Luís XIII efetuara na altura em que enviara de volta ao seu sogro o séquito espanhol de sua esposa, que considerava, a justo título, como outros tantos espias. Mas Stéfanille tinha educado a Infanta. Ela permanecia ao pé da Rainha.
A entrada tumultuosa da duquesa e de Sylvie parou a leitura e trouxe um sorriso ao rosto gracioso da soberana. Não sem razão: a guerra alastrava sempre entre a França e a Espanha, o seu querido país. No ano anterior, todo o norte da primeira fora invadido e as tropas do Cardeal Infante, o irmão de Ana, tinham avançado até Compiègne. Paris só escapara graças a um extraordinário sobressalto nacional, que lançara a população masculina à caça dos Espanhóis. O perigo já não existia, mas todos tinham passado um mau bocado. Todos... salvo a rainha de França, que só aspirava à vitória da sua família e que se esforçava por auxiliá-la o melhor possível, graças a uma correspondência secreta que passava pela duquesa de Chevreuse, sua velha amiga, sempre exilada em Touraine, e por alguns dos seus “admiradores”. Na altura em que Sylvie ia entrar ao seu serviço, Ana começara a sentir os efeitos do medo: o seu marido deixara de a amar e desconfiava dela; quanto a Richelieu, detestava-a e por duas razões: primeiro porque sentia nela uma inimiga daquela França que ele desejava engrandecer e, depois, talvez por a ter amado demasiado alguns anos antes. E talvez ainda agora...
Era verdade que, aos trinta e cinco anos, Ana de Áustria permanecia muito bela e, sobretudo, resplandecente. Loura, de olhos verdes, de formas generosas, nada tinha de uma espanhola tradicional. A pele acetinada, a sua cor esfuziante, não eram de molde a ficar na sombra. A boca, pequena e redonda, assemelhava-se a uma cereja e o lábio inferior, ligeiramente descaído, denunciava o sangue dos Habsburgos. Sem ser grande, sabia ser majestosa. Quanto ao corpo, os braços e, sobretudo, as mãos, eram a própria perfeição. Uma lindíssima mulher que, casada há vinte anos, apenas oferecera ao seu esposo partos prematuros...
Sylvie já a vira, mas ficou, todavia, deslumbrada, e viu logo que ia gostar dela. Talvez devido àquela voz doce, ao seu riso desenvolto, um pouco trocista, mas desprovido de maldade, com o qual brindou as duas recém-chegadas:
- Eis a jovem! - exclamou. - Mas por onde a levastes, senhora duquesa? A chafurdar nas margens do Sena, para socorrer os indigentes?
- Foi quase isso, minha irmã. Ao dirigirmo-nos aqui e dado a rua d’Autriche estar impraticável, tivemos de atravessar a Croix-du-Trahoir onde ocorria uma execução. O homem que iam colocar na roda tinha um filho, uma criança de dez anos, que chorava e que suplicava ao tenente civil que perdoasse o pai. Este tratou-o com muita brutalidade e ia permitir que as patas do seu cavalo o espezinhassem quando Mlle. de L’Isle acorreu em seu auxílio e recriminou a vil personagem pela sua crueldade. Vendo que também ela se arriscava a ser maltratada, tive de me meter de permeio. Vossa Majestade está a contemplar o resultado lastimável da ocorrência.
- E a criança? - perguntou Mlle. de La Fayette, uma linda morena de olhos ternos, que sorriu para Sylvie. - Que lhe aconteceu?
- Fez a única coisa inteligente que podia fazer: esgueirou-se por entre a multidão, mas sem se esquecer de levar a bolsa da benfeitora.
O riso da Rainha repercutiu novamente, com uma alegria que perdera desde há algum tempo:
- Eis um ato de caridade bem mal retribuído, mas trataremos de remediar esse pequeno estrago causado a uma das nossas damas pois, de ora em diante, Mlle. de L’Isle é das nossas, o que me dá grande felicidade. Agrada-me que, antes de mais, se ouça o que o coração tem para dizer. Ireis ocupar-vos devidamente de mim, não é verdade?
Sylvie voltou às reverências:
- Estou inteiramente ao dispor de Vossa Majestade - murmurou, corando, num tom de sinceridade que fez sorrir a Rainha.
- Eis algo que é agradável ouvir - disse esta, oferecendo-lhe a mão, na qual a jovem depositou um beijo um pouco tremido. - Amanhã, ireis mostrar-nos como tocais guitarra. Entretanto, daqui a pouco, sereis conduzida aos aposentos das damas de honor, onde vos espera o vosso lugar, que já foi preparado.
Mas acrescentou, voltando-se para Mme. de Vendôme:
- Cara Françoise, falai-me um pouco desse novo tenente civil!
- É que nada sei, Senhora. Foi a primeira vez que o vi...
- Eu posso falar a respeito dele - disse Mme. de Senecey - mas é surpreendente que Vossa Majestade nunca tenha ouvido pronunciar o nome de M. de Laffemas, uma das piores criaturas do Cardeal. É tão feio quanto cruel.
- Então, então! Minha cara Senecey, mostrai mais caridade! Até Sua Eminência tem direito a ela - disse a Rainha, lançando um olhar na direção do grupo a que Sylvie acabara de se juntar, guiada por Mlle. de La Fayette, que fazia as apresentações. Uma das damas, Mlle. de Chémerault, conseguira o seu ingresso a pedido do Cardeal. O que equivale a dizer que fora imposta.
- Não falo mal, Senhora. É óbvio que um ministro deve ser bem servido, mas, ainda assim, existem criados e criados. Sabeis que este foi alcunhado de “Carrasco do Cardeal”?
O nome produziu o seu efeito: ao evocar aquele homem de vermelho que, nos últimos tempos, era frequentemente visto junto aos cadafalsos, com os braços de músculos espessos cruzados ao peito, um estremecimento percorreu todas aquelas mulheres. Até as mais corajosas e a Rainha era uma delas, sentiram apertar-se-lhes a garganta.
- Meu Deus, mas que horror! - exclamou Ana de Áustria - Mas de onde saiu tal personagem?
- De uma família de boa cepa, do Dauphiné, Senhora. Huguenotes que adquiriram títulos de nobreza graças ao falecido rei Henrique. O pai, que foi o seu primeiro criado grave, não era desprovido de valor. Interessava-se pela economia do reino. Favoreceu o desenvolvimento de indústrias de luxo como a do couro, a das tapeçarias e, sobretudo, a das sedas. Foi graças a ele que se plantaram grandes quantidades de amoreiras.
- Tudo isso soa muito campestre! - exclamou Mme. de Guéménée. - Como é que o filho conseguiu tornar-se um fornecedor de patíbulos?
- Talvez o gosto pelo sangue. É um finório que se diz incorruptível e frio como a morte: essas belas qualidades devem ter seduzido o Cardeal...
- Mas como sabeis isso tudo? - perguntou a Rainha. - Espero que não frequenteis essa espécie de gente?
Subitamente incomodada, Mme. de Senecey desviou a cabeça:
- Um primo meu teve contas a ajustar com ele... não para seu bem, o infeliz. É preciso dizer que este Laffemas foi intendente de Picardie e dos Três Bispados em Champagne. E, minhas senhoras, não ignorais que as revoltas são frequentes da parte dos camponeses esmagados pelos impostos. As repressões que este homem levou a cabo são impiedosas. Talvez piores que as do seu colega Laubardemont, o intendente de Poitou que, faz agora três anos, causou a morte de Urbain Grandier, o senhor cura de Loudun. E agora, este monstro, a coberto do manto vermelho do Cardeal, detém Paris sob as suas garras... Que o Céu o ajude! - acrescentou a dama de honor, benzendo-se precipitadamente.
De repente a atmosfera tornara-se irrespirável. Talvez a Rainha contasse pedir a Sylvie para fornecer uma amostra do seu talento quando, pouco depois do sino da Samaritaine, secundado pelo de Saint-Germain Auxerrois, terem dado as quatro horas, um grande ruído de cavalgada, de ordens e de choques de alabardas, ecoou pelo palácio. Quase ao mesmo tempo apareceu La Porte:
- O Rei, Senhora!
- De regresso de Saint-Germain? Já está de volta?
Aparentemente, quando o seu esposo se encontrava ausente, o tempo não custava nada a passar para a soberana. La Porte encolheu os ombros, num gesto de ignorância:
- Parece que sim, Senhora! A caça é uma desgraça por estes tempos e talvez o Rei se aborrecesse...
Ana contentou-se em sorrir, mas os seus olhos verdes deslizaram para Louise de La Fayette que, na Corte, todos sabiam que inspirava um grande amor a Luís XIII o qual, se se aborrecia em Saint-Germain, era sem dúvida porque tendo a sua mulher recusado deslocar-se devido ao tempo horrível que fazia, se vira privado, durante três dias, da presença da bem amada. Aliás, a rapariga enrubesceu intensamente e afastou-se um pouco das suas companheiras, cujos ares derretidos só lhe podiam desagradar.
Alguns momentos depois o Rei chegou, o rosto corado pelo frio, trazendo nas roupas o odor da neve e da neblina. A reverência espalhou num círculo, sobre os tapetes, os vestidos brilhantes de todas aquelas damas. Salvo, claro, o da Rainha, que permanecera sentada na sua poltrona.
Precedendo os seus gentis-homens, ele entrou com um andar vivo, veio beijar a mão da mulher e saudou as damas à sua volta.
- Aposto - disse - que estáveis todas ocupadas com a peça que os comediantes do Marais estrearam anteontem e que está a obter um franco sucesso?
- Por que deveríamos nós estar de tal modo ocupadas, Senhor?
- Mas, Senhora, porque se trata de uma peça espanhola. Escrita por um normando, sem dúvida, mas que se passa por inteiro no vosso país. O senhor Corneille intitula-a O Cia. Parece que é admirável.
- Pois bem - disse a Rainha, com um ar ambíguo o que não se aprende em Saint-Germain!
- O Senhor Cardeal, o qual não ignorais decerto o papel que desempenha em tudo o que diz respeito à arte teatral, enviou-me uma mensagem na qual, para além dos seus elogios, assinala que devereis certamente ter o maior prazer em assistir a tal espetáculo. Conto assim solicitar a M. Mondory, num dos próximos dias, para cá vir representar a comédia... Ah! Mme. de Vendôme, não vos tinha visto!
- Reconheço, Senhor, que me falta esplendor, o que não é o caso desta assembléia.
- Não sejais demasiado modesta. Agrada-me sempre ver-vos. Suponho que viestes procurar interessar a Rainha por uma das vossas ações caritativas?
- De forma alguma, Senhor. Vim trazer-lhe uma nova dama de honor. Aproximai-vos, Sylvie, e vinde saudar vosso rei, ele autoriza-vos. Tenho a honra, Senhor, de vos apresentar Mlle. de L’Isle. Ela é muito nova, tal como Vossa Majestade pode constatar, mas foi educada na minha casa, pelo que é ajuizada e piedosa...
- Esplêndido, esplêndido! Sois encantadora, menina.
- Vossa Majestade é muito bondoso - balbuciou Sylvie, com o nariz à altura dos joelhos do monarca; mas este já se afastava e, para sua surpresa, a rapariga viu-o aproximar-se de Mlle. de La Fayette e levá-la até ao vão da janela para lhe falar a sós. O olhar que dirigiu a Mme. de Vendôme formulava uma pergunta que os seus lábios não ousavam pronunciar. A duquesa franziu as sobrancelhas:
- Minha filha, aqui não deveis ver, ouvir ou contar seja o que for. E, sobretudo, nunca deveis fazer perguntas! - murmurou.
- Nesse caso, senhora duquesa, melhor teria valido colocá-la num convento. Reconheço que a Corte não tem sido nada divertida nestes dias, mas nela é possível desfrutar agradavelmente o nosso tempo.
Uma jovem de uns vinte anos, alta e muito bela, com soberbos cabelos louros, magníficos olhos azuis e uma tez resplandecente, acabara de se imiscuir na conversa. Mme. de Vendôme sorriu-lhe:
- Mlle. de Hautefort, sois mais velha que Sylvie e, também, mais esclarecida quanto aos afazeres da vida e da Corte, onde vos deslocais como peixe na água. Esta menina não tem ainda quinze anos... Tudo o que ela deseja é servir a Rainha o melhor que souber.
- Nesse caso seremos amigas. Tomá-la-ei sob minha proteção e ensinar-lhe-ei tudo o que é preciso saber. Conheceis a minha dedicação a Sua Majestade - acrescentou Maria de Hautefort, num tom mais grave. E depois, baixando a voz até ao murmúrio: - “Vinda de vossa casa espantar-me-ia que tenha aprendido o seu catecismo com o Senhor Cardeal. E a Rainha precisa de serviçais seguras. Quando o Rei se for embora, conduzi-la-ei até ao aposento das raparigas. Sabeis que desde que Mme. de Montmorency se retirou para o convento estamos sem superintendente e sou eu quem tem de zelar por este batalhão turbulento. Esta rapariga é precisamente aquela...”
Sylvie não ouviu o fim da frase. Efetivamente a açafata levara a duquesa para um local mais afastado. Não tentou ir atrás delas e aproveitou para observar o Rei.
Luís XIII não era belo, mas possuía aquele ar de majestade natural que concede o porte da coroa. Alto e magro, de porte elegante, apesar do fato de preferir sobretudo os trajes de caça e os uniformes militares, tinha um rosto comprido e franzino, enquadrado por cabelos escuros que lhe desciam até aos ombros, divididos por uma risca no meio de uma testa inteligente. A boca carnuda era enfeitada por um belo bigode e por uma pêra, enquanto que os olhos negros e o grande nariz dos Bourbon compunham uma fisionomia que El Greco teria gostado de pintar. Apesar de passar uma boa parte do tempo a cavalo, a sua saúde era má, pois sofria de uma enterite crônica. Tímido para com as mulheres, nem por isso deixava de ter um caráter independente, não tolerando nenhuma intromissão nas suas prerrogativas reais e se tinha presentemente plena confiança no cardeal Richelieu era apenas por ter reconhecido nele um homem de governo excepcional. E, tal como o seu ministro, Luís XIII sabia mostrar-se impiedoso...
No entanto, ao vê-lo inclinar-se ao pé de Louise de La Fayette para lhe murmurar algumas palavras que encantavam visivelmente a rapariga, Sylvie pressentia o charme que aquele homem podia irradiar, um pouco apagado no meio de um séquito de magníficos senhores. Quanto a Louise era certamente fina e bela, mas não tinha nada de comparável ao esplendor de uma Chémerault. Sylvie iria aprender dentro em pouco que a chamavam a “Bela Meretriz”, o que era todo um “programa”, enquanto que alcunhavam Mlle. de Hautefort de a “Aurora”, o que era inteiramente merecido...
Enquanto esta a conduzia até aos aposentos das damas de honor, situados no rés-do-chão do palácio, Sylvie, com a ingênua franqueza que a caracterizava e sem mais se preocupar com as recomendações de Mme. de Vendôme, ousou observar:
- Como é possível que o Rei se tenha ocupado de Mlle. de La Fayette quando há tantas damas tão belas à sua volta?
- Minha cara, é muito simples: ele ama-a e, sobretudo, ela ama-o. É uma aventura que ele não conheceu muitas vezes...
- Mas, e a Rainha?
- Amaram-se um tempo, quando ocorreu o casamento há uns vinte anos. Desde então têm procurado o amor noutros lados, tanto um como outro, mas não vos enganeis: Louise de La Fayette não é a amante do Rei. Não mais do que eu a fui...
- Ele também vos amou? Mas isso é menos espantoso: sois tão bela!
Um cumprimento sincero dá sempre prazer. Marie de Hautefort retribuiu-o com um radioso sorriso e, deslizando o seu braço sob o da recém-chegada, disse:
- Sim, mas tratei-o com arrogância e não estou segura que ele não me venha a detestar por isso. Sem dúvida porque gosto demasiado da Rainha! É uma mulher maravilhosa.
- E Mlle. de La Fayette também gosta dela?
- Menos do que do Rei, mas é uma alma pura, altiva e desinteressada, muito atraída por Deus. Ela pode amar o Rei, de todo o coração, tenho a certeza, mas nunca aceitará o papel de favorita real, o que a horroriza. Diz-se que poderá deixar-nos em breve, para entrar num convento. Aliás o Cardeal incentiva-a nesse sentido, por meio do seu confessor...
- O Cardeal? Mas que tem ele a ver com isso?
- Oh, muito! Pelo menos, é o que ele pensa. Louise pertence a uma grande família de Auvergne, na qual Sua Eminência não é nada apreciada. Mas nem por isso deixava de acalentar a esperança de fazer dela uma criatura ao seu dispor. Como Louise não se prestou a isso, Richelieu empurra-a para o convento porque teme demasiadamente o poder que ela tem sobre o Rei. Poder que poderia combater o dele.
Sylvie sentiu uma ligeira inquietação apertar-lhe a garganta:
- Sua Eminência também tentou o mesmo convosco?
- Na altura em que o Rei me concedia os seus favores? Claro que sim, mas eu não sou daquelas que se deixam arrastar pelo nariz e fi-lo compreender isso muito bem. Se um dia o Rei se ocupar de vós, isso também vos acontecerá - acrescentou, puxando por um dos caracóis da rapariga.
- Que Deus me livre! - exclamou esta, com um ar tão horrorizado que a sua companheira desatou a rir. - Mas estou descansada, não sou suficientemente bonita...
- Pelo momento sois um encantador fruto verde. Amadurecei e veremos o que acontece. Eis-vos nos vossos aposentos - acrescentou, abrindo a porta de um pequeno quarto no qual Jeannette, que chegara com as bagagens, já estava ocupada a desfazer os baús. - Instalai-vos para esta primeira noite e, antes de mais, desembaraçai-vos dessa lama! Ceareis conosco, mas aprontai-vos: virei buscar-vos para o deitar da Rainha.
A “Aurora” ia afastar-se e Sylvie teve a nítida impressão que ela levaria consigo toda a luz daquele dia tão triste e frio. Fez um gesto na direção dela:
- Desejava agradecer-vos. Foi tão generoso da vossa parte, ter-vos interessado por uma pequena provinciana como eu...
- Provinciana? Quando fostes educada em casa dos Vendôme? Ide pois dizer ao duque de Beaufort que ele é um provinciano; gostaria de estar presente para ver a reação dele...
A citação do nome de família de François, proferido sem que nada a tivesse preparado para isso, fez Sylvie enrubescer até ficar da cor de tijolo. Perdeu a compostura e isso não escapou ao olhar vivo da companheira, cujas belas sobrancelhas se ergueram, enquanto desatava a rir. No entanto, pegou no queixo de Sylvie com os seus finos dedos, a fim de perscrutar um olhar subitamente perdido:
- Com que então, minha pequena, amais o belo François? Não há nisso nada de estranho, pois deveis ter crescido a seu lado e ele possui tudo o que é preciso para seduzir. Já vos cortejou?
- Oh, não, senhora! A seus olhos, eu sou apenas uma menina, e desde que regressou dos Países-Baixos com o irmão e o senhor duque, não mais o vi: com viagens e campanhas, a vida de um jovem príncipe está muito afastada da de uma órfã educada por caridade. Eu tinha quatro anos quando Mme. de Vendôme se ocupou de mim, depois da morte de meus pais e do incêndio do nosso castelo. Guardou-me com ela. Qualquer outra me teria enviado para o convento... e eu teria sido extremamente infeliz.
- Podemos amar Deus sem por isso desejar aumentar o lote das que a Ele se dedicam exclusivamente. Quanto a mim sou desse parecer. Mas regressemos a M. de Beaufort: aqui tereis toda a disponibilidade para o encontrar quanto desejardes.
Os belos olhos cor de avelã brilharam:
- Ele vem muitas vezes?
- Muitas. Mais vale que fiqueis desde já a saber: ele é a coqueluche das damas e a própria Rainha tem gosto em vê-lo. Portanto, cuidado com o vosso pequenino coração! Devíeis escolher-lhe um herói menos solicitado.
- Feliz sois vós que sabeis mandar em vosso coração, pois eu não o posso. Mas, por favor, senhora, guardai o segredo...
- Ele escapou-se-vos, só o agarrei e já vo-lo devolvo. Só cabe a vós guardá-lo melhor. Sabei que posso ser odiosa a quem não me agrada, mas não é o vosso caso. Ofereço-vos uma amizade, Sylvie de L’Isle: não a atraiçoeis!
- É uma palavra que desconheço. Serei feliz e orgulhosa em ser vossa amiga!
- Ora aí está! Necessitava de alguém como vós. As duas não seremos demais para servir a Rainha e para a ajudar nestes momentos difíceis que ela agora passa.
- Duas? Mas, e as outras damas de honor...?
- Não valem grande coisa, salvo La Fayette, suficientemente corajosa para se opor abertamente ao Cardeal. As outras, sobretudo a Chémerault, estão à venda ou são demasiadamente parvas para terem sequer uma opinião. Também há Suzanne de Pons, mas essa só olha para a Lorraine e só pensa em desposar o duque de Guise, de quem é a amante...
Ao deixar Sylvie, Marie de Hautefort não estava longe de agradecer o Céu por lhe ter enviado uma ajuda, por pequena que fosse, mas que era, sem dúvida, credível. Sendo a pupila de Mme. de Vendôme, isso já era, por si, uma garantia, mas que, além disso, estivesse apaixonada por Beaufort, isso era inesperado. Havia sempre tanto correio secreto a entregar que ela e La Porte já não davam conta do serviço. Sim, a pequena de L’Isle era bem-vinda. Sem contar que era charmosa e, sobretudo, transparente!
Por seu lado, Sylvie tratou de ajudar Jeannette a arrumar as suas roupas e aproveitou para dar um aspecto mais agradável ao seu minúsculo aposento, composto por um quarto não muito grande e por um recanto onde ficaria a sua criada. A conversa que tivera com a “Aurora” reconfortara-a, pois sentira-se um nada perdida quando Mme. de Vendôme se fora embora. Logo à chegada, o Louvre antigo, solene, a um tempo luxuoso e refrescante, havia-lhe dado saudades do vasto palacete do faubourg Saint-Honoré, construído, sem dúvida, na era de Carlos IX, mas renovado ao gosto da época e que fazia parte do dote de Mme. de Vendôme quando ela desposara César. A vida no palacete não era muito alegre dado que, desde há dez anos, o duque não obtivera mais autorização para pôr lá os pés e porque se ouviam mais preces e cantos religiosos do que cantigas. A atmosfera ultra-piedosa devia-se igualmente à vizinhança imediata com o austero convento das Capuchinhas, mandado construir pela duquesa de Mercceur por volta de 1620, graças aos fundos legados pela sua cunhada, a rainha Louise de Vaudémont-Lorraine, viúva de Henrique III. Um convento que contribuía, certamente em larga parte, para a repugnância que Sylvie manifestava relativamente a esse gênero de estabelecimentos, pois era, sem dúvida, o mais severo de França e Navarra: as freiras tinham de caminhar descalças, tanto de Verão como de Inverno, nunca comiam carne nem peixe, estavam de penitência durante todo o ano e contava-se que as primeiras moças que nele ingressaram tinham chegado em procissão e coroadas de espinhos.
As estreitas relações entre o convento e o hotel de Vendôme não alegravam a atmosfera mas, para Sylvie, era, ainda assim, a “sua casa”, o local onde viviam as três mulheres de quem mais gostava no mundo: a querida Elisabeth, séria e um pouco grave, mas tão boa pessoa, a duquesa e a excelente Mme. de Bure; isto, sem contar com Jeannette que ia agora, por si só, representar toda aquela gente!
Mlle. de L’Isle devia à sua jovem idade, e ao fato de quase pertencer a uma família de príncipes, o privilégio de poder dispor de uma criada de quarto só para si..
Eis-me transformada em aia! - ria-se esta, mas nem por isso amedrontada com a idéia de doravante passar a viver em castelos reais. Aos vinte e quatro anos, Jeannette era uma rapariga alta e sólida, de rosto afável e sempre disposta a sorrir. Não perdera nada da sua memória prodigiosa, com a qual os Vendôme contavam um pouco para ficarem ao corrente dos rumores que circulavam pelos corredores, dos mexericos do palácio, cujo conhecimento podia revelar-se de grande utilidade. Uma circunstância que Jeannette ignorava. Tanto ontem como hoje, o seu dever consistia em velar pela saúde física e moral de Mlle. de L’Isle e de conservar pura e imaculada, no meio das tentações das residências reais, a palavra de honra que dera a Corentin Bellec. Por ora, envergando um belo vestido de Usseau cinzento escuro, com punhos, gola e touca em tecido branco fino, debruado com uma estreita renda, Jeannette preparava-se para fazer boa figura entre a multidão de serviçais do Louvre.
Sylvie voltou a ver François logo no dia seguinte ao da sua chegada.
Tal como na véspera, Ana de Áustria mantinha um círculo à sua volta, no grande gabinete, e o tempo continuava tão mau como antes; no entanto, tendo o Rei regressado aos seus domínios, estavam presentes mais damas do que na véspera, acompanhadas por numerosos gentis-homens.
O grande tema das conversas era O Cid, que muitos já tinham visto e que elevavam aos píncaros.
- É uma maravilha como não há igual - proclamava Mme. de Guéménée que, apesar dos seus quarenta e cinco anos, vivia uma vida amorosa intensa. - Nunca se levou ao palco uma tal nobreza de sentimentos. Julguei morrer de ternura e admiração uma centena de vezes.
- Mme. de Rambouillet foi ontem assistir à representação, acompanhada pela filha e por todo o seu séqüito - disse, exaltado, o velho duque de Bellegarde, de setenta e cinco anos e sempre apaixonado pela Rainha - e hoje, no Quarto Azul de Arthénice[16] só se fala de O Cid. À exceção de M. de Scudéry! - interrompeu a princesa de Conti. - Acha a peça mal construída, mal escrita e irregular. Ontem, ao sair do teatro do Marais, exclamava que ia enviar os seus pareceres à Academia, para surpresa indignada de Mme. de Rambouillet. Ela retorquiu-lhe que ele nada entendia do assunto e que nunca o julgara tão desprovido de gosto. O pobre homem quase que chorava, tanto mais que a sua irmã, Mlle. de Scudéry, se colocou a favor da marquesa, mas manteve a sua opinião. Para ele, a peça de nada vale!
Mme. de Guéménée desatou a rir:
- Que bela farsa! Para além do fato das suas obras nunca virem a alcançar este sucesso, o pobre Scudéry teme sobretudo as nuvens que devem amontoar-se pelos lados do Palácio do Cardeal! Sem dúvida que Sua Eminência, que também é autor, não deve apreciar nada o triunfo de um daqueles a quem deu a honra de chamar para colaborar nas suas próprias peças!
- Oh! Senhora! - protestou Mme. de Combalet, uma linda viúva, neta de Richelieu e acerca da qual se pretendia que era um pouco mais que isso. - Sua Eminência possui uma grande capacidade de apreciação e um grande respeito pelas belas-letras, para não se inclinar perante um tal talento, sancionado, aliás, pelas vozes da celebridade. Nobreza, burguesia e povo, precipitam-se todos ao teatro do Marais e saem de lá estarrecidos.
- Vê-se bem, senhora, o apreço que lhe dispensais. O afeto não sabe discernir certas fraquezas... e mesmo os maiores as têm.
A Rainha interveio:
- Minhas senhoras, minhas senhoras! Não deixeis que a paixão vos transtorne dessa forma. Tenho os meus motivos para acreditar em Mme. de Combalet. Foi o próprio Cardeal quem avisou o Rei do valor desta peça, quando este se encontrava em Saint-Germain, aconselhando-o a trazer aqui os comediantes para a representar. É pois a prova da sua satisfação - disse, numa voz cansada.
- Ou da sua inteligência - recomeçou Mme. de Guéménée. - É difícil remar contra o entusiasmo de Paris inteiro... Mesmo podendo alegar que uma peça que glorifica um herói espanhol é mal-vinda, quando nos encontramos numa guerra incessante com a Espanha...
- O meu tio nunca mistura as artes e a política. Aliás, não é verdade, desde há algum tempo, que a Espanha está na moda? Capas, cortes de cabelo, chapéus, romances, pavanas e ainda outras danças. Gostamos de nos inspirar na Espanha e isso é normal, dado que se trata do país da nossa rainha bem-amada - concluiu Mme. de Combalet, com uma reverência que não pareceu registrar mais apreço por parte de Ana de Áustria que o trecho declamado. Ela teve um imperceptível encolher de ombros e, fazendo um sinal com a mão, chamou Sylvie para o pé de si:
- Serei sensível a isso tudo quando reinar novamente a paz entre os nossos dois países. De momento a rainha de França deleita-se a ouvir canções francesas e eis aqui Mlle. de L’Isle, recentemente admitida no seio das minhas damas de honor, que nos vai cantar uma...
- Acompanhada pela guitarra, se não me engano - disse Mme. de Combalet, que parecia querer sempre ter a última palavra...
- Por que não? Mlle. de L’Isle canta como um anjo e toca lindamente o seu instrumento. Um símbolo, de certa maneira! A harmonia perfeita que desejamos, eu e o Rei! Instalai-vos, minha filha - acrescentou a Rainha, indicando-lhe uma almofada a seus pés. - Que vamos ouvir?
- O que agradar a Vossa Majestade - murmurou Sylvie, começando a afinar o instrumento. Mas estava escrito que não cantaria nessa tarde.
O meirinho encarregue das entradas quando a rainha recebia, anunciou em voz alta:
- A senhora duquesa de Montbazon... e o senhor duque de Beaufort!
A mão de Sylvie comprimiu as vibrações da guitarra como se quisesse acalmar, ao mesmo tempo, as do seu coração. Um coração que gelou subitamente, de tal modo era resplandecente o par que avançava e em que cada um combinava maravilhosamente com o outro. Como era seu costume, François mostrava grande elegância: gibão e calções de veludo negro bordado a ouro, com fendas de cetim branco debruadas de cetim escarlate, uma grande gola de renda que se estendia pelos largos ombros e, no chapéu que segurava com mão desenvolta, ondeavam penas brancas atadas por um cordão de seda vermelho. Na outra mão, erguida bem alto, segurava a de uma dama extraordinariamente bela: alta e morena, de tez muito alva e com magníficos olhos azuis, lábios redondos e carnudos, feitos para beijar. Com um vestido de brocado escarlate e cetim branco e um colar de diamantes e rubis que se espalhava num peito deslumbrante, formava, com o seu companheiro, um par de rara elegância. Foram saudar a Rainha, ele varrendo o tapete com as penas brancas do chapéu, ela estendendo o vestido como uma flor gigantesca.
A saudação foi recebida diferentemente: Beaufort teve direito a um belo sorriso, que se tornou mais tênue para a jovem.
- Onde haveis estado, meu caro duque? - perguntou-lhe a Rainha, oferecendo-lhe a sua mão. - Já decorreram alguns dias sem que vos tenham visto.
- Estive em Chenonceau, Senhora, ao pé de meu pai, cuja saúde não é das melhores.
- O duque César doente? É difícil acreditar. É difícil imaginá-lo nessa situação.
- O tédio dá cabo dele, Senhora, a ponto de, por vezes me perguntar se não o poderá matar.
- Não se morre em Chenonceau, isso seria extravagante! Conheço poucas residências tão agradáveis. Sem contar que por lá o tempo é bem melhor do que aqui.
- E, no entanto, ele preferiria cem vezes Paris, com as suas lamas, neves, maus cheiros e incômodos, pois poderia estar ao serviço de Vossa Majestade!
- Não sejais demasiado cortesão, meu amigo. Isso não vos assenta bem. - Em seguida, mudando de tom para falar a uma jovem: - E vós, duquesa, ides dar-nos notícias do senhor governador de Paris?
- Sofre de gota, Senhora! É uma excelente recomendação para M. de Vendôme, a fim de combater os pensamentos sombrios. O meu esposo pragueja, blasfema, explode durante todo o dia, bate nos criados, mas não se aborrece um único instante.
O tom desenvolto indicava que a bela dama não se preocupava minimamente com o esposo. Marie d’Avaugour de Bretagne, casada aos dezoito anos com Hercule de Rohan-Montbazon, que tinha então sessenta e já tivera dois filhos, fazia pouco caso de uma fidelidade que achava tanto mais deslocada para aqueles tempos porquanto não era respeitada por nenhuma das mulheres da família. Na verdade, um dos filhos de Hercule era nada mais nada menos que a irrequieta duquesa de Chevreuse, mais velha que a própria madrasta e que continuava a colecionar amantes, sendo o outro o príncipe de Guéménée, um dos espíritos mais vivos da época, mas cuja mulher, presente nesse dia no círculo da Rainha, fazia a mesma coisa. Alguns espíritos maliciosos perguntavam-se se não existiria uma competição entre as três mulheres dessa mesma família. De qualquer modo, desde há algum tempo que se faziam aproximações entre os nomes de Marie de Montbazon e de François de Beaufort, sem que qualquer dos dois fizesse fosse o que fosse para desmenti-lo. Isso não era do conhecimento de Sylvie. Notou, apenas, que a Rainha não tinha o ar de gostar particularmente da bela duquesa, que deixou ir ao encontro da cunhada Guéménée. Mas reteve o jovem:
- Ouvimos estranhos rumores a vosso respeito - disse, num tom de voz nem alto nem baixo. - Parece que pensais pedir a mão da filha do Senhor Príncipe.
- É preciso que um dia eu me case, Senhora. Por que não com ela? Essa jovem tem, pelo menos, a vantagem de ser bela - respondeu o jovem com um sorriso que Sylvie, paralisada na sua almofada, achou de odiosa fatuidade.
- O Senhor Príncipe nunca vos aceitará. Ele e vosso pai detestam-se. Além disso, que diria Mme. de Montbazon? - acrescentou a Rainha, com uma ponta de acrimônia, que fez cintilar os olhos de Beaufort.
- Não se deve dar crédito a todos os mexericos, Senhora. A duquesa de Montbazon só tem, a meu respeito, os mesmíssimos direitos que possui qualquer mulher bela sobre um homem de bom gosto...
- Diz-se, no entanto, que a amais...
François inclinou-se e, desta vez, a sua voz desceu até ao murmúrio.
- Senhora, o meu coração não pertence a ninguém, senão a vós. Como poderia sequer olhar para outra mulher quando a Rainha está presente? Se vim acompanhado por Mme. de Montbazon foi simplesmente por a ter encontrado na parte de baixo da Grande-Escadaria...
Inclinou-se ainda mais e, desta vez, Sylvie não ouviu mais nada, apesar do seu ouvido apurado. Já ouvira quanto bastasse. À beira das lágrimas, pousou a guitarra e, depois, deslizando da almofada, conseguiu soerguer-se sem que os dois interlocutores se apercebessem da sua partida. Aliás e era isso que precisamente a desconsolava, François nem sequer parecera dar pela sua presença. Um móvel! Sem dúvida que era no que se havia tornado para ele.!
Decidida a regressar ao quarto, dirigia-se para a porta quando esbarrou com Mlle de Chémerault:
- Ora bem - disse esta, secamente - onde pensais ir?
- Para o meu quarto, minha menina. Este barulho, toda esta gente e todos estes perfumes puseram-me um pouco a cabeça à roda.
- Pareceis-me bem delicada! É de crer que nascestes nalgum palácio, ao ver que vos fazeis tão rogada! Recordai-vos bem do seguinte: as damas de honor só podem afastar-se da Rainha quando esta o permite. Por isso, regressai de onde vindes e não vos mexeis mais!
- Certamente que não! - protestou Sylvie. - Sua Majestade está a ter uma conversa em privado com o senhor duque de Beaufort. O meu dever para com ela não me obriga a ser indiscreta. Além disso não tenho que receber ordens vossas! Deixai-me passar! Era assim que chamavam o príncipe de Conde.
- Mas vejam-me só esta insolente! Minha pequena, aprendereis que os casmurros aqui não têm lugar! Se vos obstinais, informarei quem de direito acerca da vossa conduta. Podereis não ficar por cá muito tempo...
- Julgais que isso me importa? Só tenho um desejo, é o de me ir embora... Afastai-vos daí!
Prestando apenas ouvidos à sua cólera e tristeza, Sylvie preparava-se para disparar em frente quando uma mão vigorosa se apossou do seu braço, obrigando-a a rodopiar nos calcanhares. Encontrou-se então frente a frente com François, que ria muito divertido:
- Ora bem! Dir-se-ia que conservamos os nossos bons modos de entrar em fúria de cada vez que nos contrariam? Mlle. de Chémerault: confiai-me esta jovem rebelde! Há muito que a conheço e saberei fazê-la regressar à sensatez.
- Temo que haja grande trabalho a fazer. A quem lembraria introduzir assim no Louvre uma rapariga meio selvagem?
François fez um sorriso trocista:
- Meio selvagem? Pois podeis ter a certeza que ela o é por inteiro, menina. Como o são aliás a maioria daqueles que aqui vivem, num local onde a civilização escasseia a julgar por aqueles, ou aquelas, que só pensam em torcer o pescoço dos seus semelhantes.
Em seguida, sem esperar por qualquer reação, levou Sylvie até ao vão de uma janela e, uma vez aí, tornou-se sério.
- Estais louca? Que eu saiba, já não tendes quatro anos e julgava que vos tinham ensinado a comportar-vos em público!
- Oh! Eu sei comportar-me! Não diria o mesmo a vosso respeito, senhor duque. Estive sentada há pouco aos pés da Rainha e vós não me haveis prestado mais atenção do que a um... um gato, como dizeis!
Perante a cólera da jovem, François voltou a encontrar o seu sorriso.
- Então, gatinha, não mieis tão alto! Sabeis que a Rainha já vos chama “a gatinha”?
- Ela falou-vos a meu respeito?
- Falou pois, mas é dela que eu vos quero falar. Sem dúvida que o ignorais, Sílvia, mas ela corre perigo. O Cardeal odeia-a e deseja a sua perda. Fá-la rodear de espiões...
- Eu sei. Mlle. de Hautefort, que é tão bela, já me falou nisso.
- Oh! Essa é a fidelidade em pessoa! O Rei esteve muito apaixonado por ela, sem nunca ter tentado a mínima intimidade. Devo dizer que ela fazia um jogo cruel, nunca deixando de troçar dele. Um dia em que ela recebera um bilhete que o Rei desejava ler a qualquer preço, ela meteu-o no decote, colocando-o bem em evidência e desafiando-o a ir buscá-lo...
- E ele foi?
- Foi. Com as tenazes da chaminé! A bela Marie nunca lhe perdoou. Depois, chegou Mlle. de La Fayette e ele só teve olhos para ela. A tal ponto que desconfio que a Rainha tem ciúmes. Todavia, sabe que a pobre rapariga nunca aceitará servir o Cardeal à sua custa. Como ela ama o Rei sinceramente, diz-se que pensa entrar para o convento para não ser tentada a ceder nem a um nem a outro. Ah! Eis o meu amigo Fiesque! Um rapaz encantador! Tenho de vo-lo apresentar...
As desconversas de Beaufort começavam a ficar célebres, mas Sylvie, que sabia há muito a que se ater, trouxe-o de volta à realidade:
- Ao que me parece, viestes aqui para me falardes da Rainha e não de M. de Fiesque. Que me quereis então dizer?
O tom de voz era seco. O duque pôs um ar constrangido.
- Perdoai-me! Queria pedir-vos para abrirdes bem os vossos olhos e para me enviardes uma mensagem através de Jeannette, sempre que acontecer algo de bizarro. Se, de vez em quando, ela regressar ao hotel de Vendôme, isso não surpreenderá ninguém e um dos meus dois escudeiros, Brillet ou Ganseville, estará lá sempre de guarda. Eles saberão onde me encontrar.
François e Sylvie estavam tão ocupados no canto da janela que nem sequer deram pela entrada do Rei. Meio escondidos pelas cortinas, ninguém viu que se tinham esquecido da saudação. Só quando a voz de Luís XIII subiu de tom para cobrir todo o espaço do grande salão é que se interessaram pelo que se passava.
- Minhas Senhoras - dizia o Rei - amanhã partimos para Fontainebleau. Faremos uma paragem em Villeroy!
- Misericórdia! - gemeu François. - Lá se vai o meu plano por água abaixo! Fontainebleau! Em pleno mês de Janeiro e com este frio! Nem é de acreditar!
- Vós não ides?
- Não! Só irão as pessoas que estão ao serviço das casas do Rei e da Rainha. De outro modo, é preciso ser convidado. E eu não o serei...
- Por que motivo pensais que devemos ir para lá?
- Não tenho a mínima idéia. Talvez o Rei deseje isolar-se mais com Mlle. de La Fayette e, ao mesmo tempo, impedir a Rainha de ver os seus amigos parisienses. Oh! Não gosto nada disto! Mas mesmo nada!
Parecia de tal modo desolado que Sylvie se compadeceu.
- Não podeis enviar um dos vossos escudeiros instalar-se num albergue da cidade que me indicareis?
- E por que não eu próprio?
- Sejamos sérios! Dais muito nas vistas, senhor duque. Um escudeiro servirá perfeitamente.
- De qualquer modo, não estarei longe! Obrigado, querida pequena! Sois um anjo!
- Ainda assim, o que vale crescer! Outrora, o anjo éreis vós!
E, puxando do seu lenço com um gesto gracioso, para o agitar ligeiramente em sinal de adeus, Mlle. de L’Isle afastou-se para se reunir ao batalhão das damas de honor, que o anúncio da partida transformara em aves tagarelas.
ENCONTROS NO PARQUE
Que o Rei desejasse um pouco mais de intimidade com aquela que amava, isso era óbvio, mas a política não era alheia à brusca decisão de ir gelar para um palácio de Verão, quando todos se encontravam tão bem em Saint-Germain. Sylvie teve a certeza disso quando viu juntar-se ao cortejo real, já de si bem imponente, a grande liteira vermelha que servia de abrigo às deslocações do Cardeal Richelieu, abatido pela doença. Mais espaçosa que uma carruagem, aquela grande máquina vermelha oferecia todas as comodidades de um quarto mas, rodeada daquela maneira pelos guardas de casaca púrpura, ela causou à jovem uma desagradável impressão.
- Não é espetacular? - perguntou Mlle. de Hautefort, que viajava na mesma carruagem. - Sua Eminência leva ao extremo o sentido do cenário e do drama. Utiliza a sua cor púrpura como um verdadeiro artista. Sem dúvida porque ela evoca a do carrasco e ele gosta de meter medo...
Consegue-o e de que maneira! Mas acho o desfile real magnífico. Era, com efeito, a primeira vez que presenciava o aparato, em redor das carruagens do Rei e da Rainha, dos mosqueteiros de M. de Tréville, cuja única função consistia em proteger o soberano em todas as suas deslocações, não prestando serviço no interior das residências. Eram todos cavaleiros soberbos e as casacas azuis da cor da França, estampadas com a cruz de flor-de-lis branca de raios dourados, as penas brancas dos chapéus cinzentos que combinavam com as capas dos cavalos, ofereciam um espetáculo de grande beleza. A multidão que se juntava sempre que o Rei ia viajar, dedicava-lhes os sorrisos e o calor dos aplausos, mostrando-se mais reservada para com os guardas do Cardeal. Quanto aos soldados de cavalaria ligeira e aos guardas suíços, não obtinham tanto sucesso. Encantada pelo espetáculo, Sylvie batia palmas.
- Dir-se-ia que nunca vistes soldados? - observou Mlle. de Chémerault com acidez. - Reagis como rapariga do povo.
A mostarda subiu logo ao nariz sensível da interpelada.
- Porquê? Só as mulheres do povo é que têm gosto? Já deparei com mosqueteiros isolados, mas o conjunto é deveras admirável.
- Ora! Soldados...
- Se preferis os padres, isso é convosco - interrompeu Marie de Hautefort. - Recordo-vos que os mosqueteiros são todos gentis-homens e que alguns são da minha parentela. Portanto, calai a vossa língua de víbora! E Mlle. de L’Isle tem razão. Eles são esplêndidos, como dizem os ingleses.
Preferindo não entrar em conflito com a açafata, a Bela Meretriz voltou-se para Mlle. de Pons, deixando Sylvie e Marie livres de reatar a conversa entre elas.
- Em resumo - disse a jovem que vamos fazer para Fontainebleau? Sabei-lo?
- Sei. De certo modo, vamos no encalço de Monsieur. No ano passado, enquanto o Rei combatia com grande galhardia à cabeça dos seus exércitos, para expulsar o inimigo espanhol para as terras da Flandres, Monsieur e o conde de Soissons, seu fiel acólito, meteram uma vez mais nas suas cabeças a idéia de assassinar o Cardeal. Ora, fiel aos seus velhos hábitos, quando chegou a altura, Monsieur amedrontou-se e denunciou toda a gente. Ao regressar a Paris, o Rei convocou o irmão e o primo para lhes pedir explicações, mas Monsieur preferiu escapulir-se para Orleans, para a “sua” cidade ducal, enquanto Soissons escapava fugindo para Sedan, onde o duque de Bouillon lhe ofereceu toda a desejável compreensão. Daquilo que me é dado saber, Monsieur deveria juntar-se ao primo e à senhora sua mãe, que também teria tomado o caminho para Sedan.
- Mas Fontainebleau fica longe de Orleans?
- É um avanço que pode deixar supor a Monsieur que dentro de pouco tempo poderá ver surgir o Rei, seu irmão, sob as suas muralhas.
- Nesse caso não teriam bastado soldados? Porquê trazer a Rainha e toda a Corte?
- Para que Monsieur não fique uma vez mais assustado. Antes de mais é preciso impedi-lo de ir ter com Soissons e Bouillon às Ardenas, onde terão muitas ocasiões para se entenderem com os Espanhóis.
Sylvie olhou admirada para a companheira:
- Como sabeis isto tudo?
Com ar indulgente, Mlle. de Hautefort deu umas palmadinhas na mão da rapariga.
- Explicar-vos-ei mais tarde. Além disso, se o Rei leva consigo toda a gente é também porque não se quer separar, nem mais um único dia, de La Fayette. A Rainha não se enganou ao colocá-la na sua carruagem.
- Sua Majestade não é ciumenta?
- É. Isso faz parte do caráter espanhol. Em Espanha é-se ciumento por tradição! Mas ela acha mais judicioso conservar a donzela ao pé de si do que deixá-la à rédea solta.
Dado que o mau estado dos caminhos e a brevidade dos dias não permitiam efetuar de uma assentada o trajeto até Fontainebleau, tal como fora previsto, procedeu-se nessa tarde a uma paragem em Mennecy, no castelo construído por Neuville de Villeroy, secretário de Estado, no fim do século passado. A paragem não foi agradável. Por muito amplos que fossem o castelo e as suas dependências, sempre eram um pouco exíguos para um bom milhar de pessoas. Se não faltou obviamente nem fogo nem comida, as damas de honor, amontoadas em quatro quartos, passaram uma noite pouco confortável. Mesmo assim ainda se davam por muito felizes pelo fato do Cardeal ter optado por fazer uma paragem no seu castelo de Fleury.
- ... Caso contrário - observou Ana de Áustria com uma ironia acerba - as minhas raparigas teriam, sem dúvida, sido obrigadas a dormir na palha de alguma granja. Meu Deus, mas que idéia esta de nos enviar pela estrada fora com este horrível tempo invernal!
A Rainha estava enervada. Nessa tarde Sylvie foi convidada a cantar para ela e, tendo recebido autorização para escolher o que mais lhe aprouvesse, interpretou a sua canção preferida, uma antiga romança que Perceval, que também gostava imenso dela, lhe ensinara:
- Se meu amor está preso
É neste lindo jardim
Onde cresce o lírio e a rosa
E também o malvaísco...
A voz de Sylvie era de uma limpidez cristalina. Em breve todos se renderam ao seu charme, a Rainha mais que os outros. Quando a canção acabou, pousou a mão nos cabelos acastanhados da adolescente:
- Bem me tinha parecido, gatinha, que havíeis cantado como um anjo em casa de Mme. de Vendôme. Nunca lhe agradecerei o bastante de vos ter confiado a mim...
Era o primeiro momento de fraternidade entre as duas mulheres. Sylvie sentiu um vivo prazer que se traduziu por um sorriso:
- Vossa Majestade deseja ouvir mais alguma coisa?
- Disseram-me que também cantais em espanhol?
- Sim, Senhora. Posso cantar a ”Canção da Virgem” do senhor Lope de Vega, ou ainda...
- Não interrompeu a Rainha. Hoje não haverá canções do meu país. O Rei está instalado muito perto de nós e isso poderia desagradar-lhe. É melhor que canteis novamente essa linda romança...
- Senhora, não credes que o Rei gostaria de poder ouvi-la? - propôs Marie de Hautefort. - Ele gosta de música e ainda mais de lindas vozes.
O olhar da jovem procurou Louise de La Fayette, que olhava distraidamente por uma janela. Até àquela altura, de todas as damas de honor, era ela quem melhor sabia tocar e Luís XIII gostava de a ouvir.
- Ele só quer ouvir uma voz - murmurou a Rainha, apanhada de novo pelas suas preocupações. - Seríamos mal-vindas. Talvez mais tarde...
Sylvie repetiu a sua canção, entoando ainda o “Lai do Rouxinol”, com o qual findou a sua atuação por aquela tarde. A Rainha retirou-se para o seu quarto, tratou de se deitar e, depois, cada uma procurou a respectiva cama improvisada. Contudo, antes disso, Stéfanille reteve Sylvie, o que era um gesto excepcional. A velha aia castelhana considerava as damas de honor como outros tantos demônios vivos e opunha-lhes, geralmente, um ar terrível, que as suas roupas pretas não amenizavam. Desta vez porém, os seus finos lábios esboçaram o que, com um pouco de imaginação, podia passar por um sorriso.
- Reconfortastes a Rainha - murmurou. - É bem bonito, mas não chega. Quero saber se a amais.
- A quem?
- À Rainha. Ela precisa muito que gostem dela.
- No outro dia, quando cheguei ao Louvre, jurei ser fiel e dedicada. Ainda não sei se a amo mas creio que isso virá com o tempo.
- Sois franca. Nesse caso, entender-nos-emos...
E Stéfanille regressou ao leito da sua senhora, cujas cortinas acabara de fechar, inclinando-se para o interior, a fim de dizer algo que Sylvie já não ouviu.
Na tarde seguinte, ao chegarem a Fontainebleau, encontraram o palácio pronto para receber os seus habitantes. Os precursores do Rei tinham realizado um bom trabalho. Havia lume nas chaminés e cada coisa encontrava-se no seu devido lugar. Tanto Sylvie como as outras instalaram-se com prazer. Ficou imediatamente seduzida pela enorme residência que Francisco mandara construir, rodeada por um magnífico conjunto de florestas e de lagos. Chegou a perguntar a si mesma por que razão os reis de França se obstinavam em querer passar a má estação no velho Louvre, sombrio e rezingão, quando até o Inverno era mais agradável aqui. Tudo a cativava: as árvores cobertas de geada e os grandes tapetes de neve fina que tão bem se harmonizavam com os desenhos dos jardins; contava poder voltar a desfrutar do prazer que experimentara outrora nos jardins de Anet e de Chenonceau. Assim, aproveitando o fato de não estar de serviço no dia seguinte, Sylvie pegou num espesso manto debruado de pele de esquilo, calçou umas botinas, pôs um par de luvas e decidiu-se a visitar as imediações sem avisar ninguém, com medo que a quisessem acompanhar, pois desejava muito estar só, achando que só se consegue descobrir verdadeiramente as coisas quando nos encontramos a sós com nós próprios. Pelo menos era o que pensava, ignorando, ainda, que poderia ser muito mais agradável fazê-lo a dois.
Deixou o pátio Oval pela Porta Dourada, saudada pelas sentinelas, encaminhou-se pelo terraço que dominava o Canteiro, ladeou a sala de baile, a abside da capela de Saint-Saturnin e o pavilhão do Tibre. A partir daí, podia escolher entre o Canteiro e o parque. Optou por este. O céu estava esplendoroso, de um azul muito tênue, percorrido por pequenas nuvens rechonchudas como querubins.
Ao chegar a uma encruzilhada, nas proximidades do pavilhão Sully, a passeante hesitou. Dirigir-se-ia para o Canal, que estendia a sua comprida faixa azulada ao longo do parque, ou optaria pela parte arborizada? Escolheu este caminho, atraída pelos pequenos bosques de azevinhos, cujas folhas reluzentes e cujas belas bolas vermelhas tanto apreciava, lastimando não ter pegado numa faca para levar alguns ramos para o seu quarto. Experimentando sempre grande dificuldade em renunciar a algo quando tanto o desejava, aproximara-se ainda mais, pensando que talvez conseguisse arrancar alguns deles, quando estancou subitamente: registrara uma presença no bosque. Duas vozes: a de um homem e a de uma mulher.
As duas vozes que falavam animadamente eram as do Rei e de Mlle. de La Fayette. Nesse momento era a dele que ela ouvia e nunca teria imaginado que aquele homem, tão frio e reservado, se pudesse exprimir com tanta paixão:
- Louise, não me abandoneis! - suplicava. - Sou um homem só, em luta contra todas as conspirações, ódios e até desprezos. Só a vós tenho, unicamente vós, e se fordes embora nada me restará neste triste mundo.
- Senhor, Senhor! Não vos iludais. Sabeis tudo acerca do meu coração e que ele vos pertence por inteiro, mas eu faço-vos mais mal que bem. Credes que não vejo os sorrisos quando passo, que não ouço os murmúrios, os risos de troça? Todos estão à espera do momento em que eu não mais poderei resistir, nem a vós nem a mim mesma. O Cardeal quer que eu me vá embora. A Rainha, o que é natural, detesta-me porque, por minha causa, a negligenciais.
- A negligencio! Como se eu ignorasse que dela só posso esperar fingimento e traição! Eis que faz dentro em breve vinte e dois anos que estamos casados e podereis dizer-me o que deu a rainha de França ao meu reino? Filhos? Nenhum! Uma ajuda, uma assistência, um laivo de compreensão pela minha difícil tarefa? Ainda menos. A Rainha é e morrerá espanhola. Ah, sim! Já me esquecia: há uns doze anos o seu coração batia por um inglês meio louco, cuja paixão nos valeu uma guerra. A Rainha parece ser incapaz de amar um francês, e ainda menos o Rei...
- Mas ela é vossa esposa, Senhor! Vós fostes unidos por Deus!
- É a ela que deveis dizê-lo! Não, Louise, não me faleis da Rainha. Ou então, dizei-me que não me amais...
- Oh, Majestade! Como podeis acusar-me de não vos amar quando não cesso de vos dar provas da minha ternura...?
- Então concedei-me uma ainda maior: vinde comigo para Versalhes! Aí estou em minha casa, onde ninguém ousará incomodar-me. Ficareis junto a mim, guardada e protegida, e pertenceremos um ao outro, livres, longe de todos, enfim felizes! Só existirá o Luís e a Louise...
- Não deveis dizer tais coisas! Tende piedade! Se me amais, não acrescenteis nada mais!
- Não, por favor, não choreis! Não posso mais suportar as vossas lágrimas.
Sylvie ouviu soluçar e pensou que já se mostrara suficientemente indiscreta. Aliás, a sua fina audição revelou-lhe a aproximação de passos. Saiu do abrigo da mata onde se escondera e, esforçando-se por ser o mais silenciosa possível, encaminhou-se para a aléa principal. Mas como não parava de se voltar para ver se a moita de azevinho não se mexia, não prestou cuidado ao que lhe acontecia, tropeçou contra um montículo de toupeira e caiu aos pés de duas personagens, dos quais só distinguiu, a princípio, a parte de baixo de uma comprida indumentária vermelha e um par de botas pretas sensivelmente enlameadas.
- Ora bem, que é que temos mais? - interrogou uma voz impaciente, cuja tonalidade grave provocou um arrepio no longo da espinha de Sylvie.
- Uma jovem que se perdeu, ao que parece, monsenhor!
Uma mão coberta por uma luva preta ajudou-a a ajustar as suas numerosas saias e a erguer-se. Consternada, verificou que o dono da luva era nada mais nada menos que o tenente civil, M. de Laffemas. Quanto à personagem que se mantinha atrás deste, a imprudente não teve qualquer dificuldade em identificar o Cardeal. Mas não teve tempo de disfarçar a atrapalhação. O homem de olhos amarelados já a reconhecera:
- Mas que surpresa tão agradável! Mlle. de L’Isle!
- Quem é Mlle. de L’Isle? - perguntou o Cardeal.
- A mais nova e também a mais recente das damas de honor da Rainha, Vossa Eminência. Travamos conhecimento há alguns dias em Croix-du-Trahoir. Contei a Vossa Eminência esse episódio divertido. É esta jovenzinha que não aprecia a minha maneira de aplicar a justiça real.
Não foi preciso mais para fazer explodir Sylvie. Inclinou-se numa profunda reverência mas, com a tez já toda vermelha, exclamou:
- Senhor, que eu saiba a criança que o vosso cavalo ia espezinhar não estava condenada e tão-pouco interessava à justiça do Rei! Monsenhor... - acrescentou, sempre vergada sob uma profunda reverência, da qual não a retiraram e, continuando a olhar de frente, para o alto, aquele rosto magro e altivo, - tratava-se de uma criança, o filho do homem que iam executar e que nada fazia de mal, a não ser implorar que tivessem piedade do pai.
A voz profunda e grave, proferiu:
- O pai tinha o que merecia. A criança devia sabê-lo.
- Ela só sabia uma coisa: que se tratava do pai e que o amava.
Richelieu, com um olhar, calou Laffemas, que ia protestar:
- Quero admitir que não merecia um tratamento tão brutal, mas é difícil pedir muita mansidão a quem está encarregue de mandar aplicar a lei. Vedes que vos dou razão, menina. Em troca, fazeis-me o favor de perdoar a M. de Laffemas? É um dos melhores homens ao meu serviço...
Enquanto falava, estendeu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se, o que ela aceitou de bom grado, antes de suspirar sem entusiasmo:
- Se isso der prazer a Vossa Eminência, perdôo a M. de Laffemas... mas na condição de ele não recomeçar!
Um sorriso, tanto mais encantador porquanto inesperado, relaxou o rosto severo do Cardeal.
- Fá-lo-á... em nome da amizade por vós. Sois corajosa, Mlle. de L’Isle e isso é uma qualidade que aprecio. Vejamos até onde ela vai!...
Sylvie lançou um olhar interrogador na direção do Cardeal.
- São muitos os que me temem - prosseguiu Richelieu. - Tendes medo de mim?
- Não - respondeu a rapariga sem hesitar. - Vossa Eminência é príncipe da Igreja e, portanto, um homem de Deus. Nunca se deve ter medo de um homem de Deus.
- Ora aí está um parecer que devíeis clamar pelos quatro cantos do reino. Isso prestar-me-ia um grande serviço... Mas, a propósito de voz, chegou-me o rumor que cantais maravilhosamente... Não vos surpreendeis: as notícias viajam muito depressa na Corte. Vireis cantar para mim?
- Monsenhor, eu pertenço à Rainha...
- Pedir-lhe-ei, portanto, que me conceda esse favor. Até à próxima, Mlle. de L’Isle. Vinde, Laffemas, regressemos!
Ainda Sylvie não terminara a saudação e já ele se afastava uma grande silhueta rígida, enfiada num manto de púrpura forrado de marta, e que reduzia até à mediocridade o tamanho do homem de preto que caminhava a seu lado, de costas curvadas, numa atitude obsequiosa que deu uma volta ao estômago de Sylvie. Ia ter de se confessar, pois só perdoara desdenhosamente, sem nenhum empenho do coração. Decididamente, não gostava do tenente civil.
Depois de lançar um olhar à moita de azevinho imóvel e silenciosa, retomou o caminho do castelo, tendo cuidado em ajustar o seu andamento de modo a não encontrar os dois passeantes e não susteve um suspiro de alívio quando os viu entrar no castelo pela Porta Dauphine. Tencionava entrar pelo caminho que escolhera à ida. Isso deixava-lhe tempo para pensar no que poderia fazer para evitar a temível honra que lhe reservavam. O melhor seria, sem dúvida, contar tudo à Rainha. Esta, habituada, desde há longa data, a defrontar o Eminentíssimo, talvez a ajudasse a evitar aquela obrigação.
Estava de tal modo absorta nos seus pensamentos que não viu Mlle. de Hautefort, aconchegada em magníficas peles, correr ao seu encontro.
- Onde estivestes? - exclamou a “Aurora”. - Procuram-vos por todo o lado!
- Quem poderá andar à minha procura? Não conheço ninguém, a não ser vós e o círculo de Sua Majestade...
- E por que não seria, precisamente, Sua Majestade?
- Se assim é, corramos!
Já se aprontava, mas Hautefort reteve-a:
- Um momento, por favor! Deixai-me respirar!... Ufa! Corri como uma louca quando M. de Nangis me disse ter-vos visto partir na direção do parque. Na realidade, a Rainha não vos procura. Sou eu quem queria evitar que cometêsseis uma asneira. Não é nada conveniente ir passear no parque esta manhã!
- Porquê?
Em vez de lhe responder, a jovem fez-lhe outra pergunta.
- Não encontrastes alguém? - interrogou, com um tom desconfiado.
- Não... ou melhor, sim. Estava a sair daquele bosquezinho que vedes além, quando caí precisamente aos pés do Cardeal que por lá passava com M. de Laffemas...
- Misericórdia! Ele estava ali? Mas para onde ia?
- Ignoro-o. Trocamos algumas palavras e, depois, Sua Eminência regressou com o companheiro ao palácio. Vós, que tudo sabeis, podeis-me dizer o que faz por aqui o tenente civil de Paris?
- Se imaginais que ele passa o tempo no Châtelet, estais enganada. Metei bem na vossa cabeça que, em primeiro lugar, ele está ao serviço do Manto vermelho para toda a espécie de trabalhos sujos, fora de Paris. Afinal, jovem estouvada, não tivestes uma tão má idéia ao ir passear para esse lado. O barulho da vossa conversa deve ter sido ouvido, o que permitiu aos pombinhos escaparem-se.
- De quem falais?
- Falo do Rei, que dezenas de olhos viram levar Mlle. de La Fayette para o local onde estivestes. De vez em quando, o Cardeal não desdenha ser ele próprio a efetuar o trabalho dos seus espias. Graças a vós, não deve ter ouvido nada de uma conversa que devia, no entanto, interessá-lo sobremaneira...
Desta vez, Sylvie desatou a rir:
- Asseguro-vos que os pombinhos, como dissestes, não estavam muito longe: precisamente naquela grande moita de azevinho...
- Viste-os?
- Não, mas ouvi vozes e reconheci-as. Não queria ser indiscreta... Mas, que disse de tão esquisito? - perguntou, ao ver o ar consternado da sua companheira.
- É preciso que sejais jovem... ou estouvada, como vos dizia há bocado! Tivestes a oportunidade de ouvir coisas que fizeram galopar Richelieu até ao fundo do parque, apesar dos seus males, e tapastes virtuosamente os vossos ouvidos? Minha cara, aprendei que na Corte as pessoas não param de se espiar mutuamente e dariam dez anos das suas vidas para poderem surpreender um quarto da metade de um pequenino segredo.
- Não é o meu caso - afirmou Sylvie, corando por ter proferido tão grande mentira mas, por muito simpática que achasse Marie de Hautefort, não queria transmitir-lhe as poucas frases de amor desesperado que escutara. Gostava de Louise de La Fayette. Tão doce, tão melancólica, tão dilacerada entre o seu dever, a sua consciência e o seu amor, no meio do batalhão trocista e frequentemente mal intencionado das damas de honor, com os olhares da Corte postos em cima dela! Quanto ao Rei, também ele lhe inspirava pena, porque todos pareciam recusar-lhe o direito ao amor. Para bem do Estado, aceitava a autoridade de um homem terrível, cujo gênio acontecia utilizarem esse nome a respeito dele se exprimia, a maioria das vezes, por um autoritarismo impiedoso.
Como caminhavam pelo terraço que dominava o canteiro, viram dois jovens que saíam pela Porta Dourada, um dos quais envergava as insígnias de capitão de uma companhia de guardas franceses. Falavam ambos animadamente, um deles procurando, visivelmente, acalmar o outro. O jovem capitão, belo como um deus grego, devia ter dezesseis ou dezessete anos e parecia muito zangado. O eco das últimas palavras que proferia chegou aos ouvidos das duas raparigas.
- ...e recusei. Com toda a calma e todo o respeito de que era capaz, mas recusei.
- Ousásteis?
- Sim, porque tenho muito apreço pela minha liberdade. Ainda sou muito novo para ficar já sem ela e...
Interrompeu-se ao ver as duas jovens, tirou o chapéu de feltro e saudou-as com a graciosidade de um dançarino. O seu companheiro fez o mesmo. Foi-lhes respondido da mesma maneira.
- Ora bem, senhor de Cinq-Mars - zombou Hautefort - eis-vos todo desconcertado! Alguém vos terá desagradado ou, pior ainda, desagradastes a alguém?... Ao vosso serviço, senhor d’Autancourt!
- Nem uma coisa nem outra. Se um desses casos se apresentasse, eu não estaria agora aqui mas sim no prado, de espada na mão!
- Vós, num duelo? Desde quando o Cardeal vos dá provas de tanta benevolência?
O encantador capitão, com o seu rosto fino, de olhar intenso e a boca sensual, era muito novo para desconfiar das perguntas de uma formosa jovem.
- Ainda agora acaba de dar provas disso. Sabeis o que pretende fazer de mim? O Grande Mestre do guarda-roupa do Rei!
- Diabo - extasiou-se a rapariga. - Eis uma bela promoção!
- Ah, achais?! Pois bem, tal não é a minha opinião! Esse posto obriga a permanecer continuamente ao pé do Rei, que é o homem mais triste que eu conheço. Sou muito novo para alienar a minha liberdade desta maneira. Tenho amigos com os quais me divirto, menina, e...
- ...e amantes que vos divertem...
- Precisamente. Por isso, recusei categoricamente.
- Categoricamente? Ao Cardeal? E não ides a caminho da Bastilha?
- Bem vedes que não. O Cardeal contentou-se em sorrir e não disse nada. Sabei que quando se sabe como lidar com ele, o Cardeal mostra ser uma boa pessoa.
- Deus me livre! Deixo-o para vós! Somos suas criadas, senhor Grande Mestre!
Esboçava uma reverência, mas, corando, o companheiro de Cinq-Mars pediu-lhe:
- Não me concedeis a graça, menina, de me apresentardes à vossa amiga?
Desta vez, o sorriso da bela foi franco e sincero:
- Com prazer! Sylvie, apresento-vos o marquês d’Autancourt, filho do marechal-duque de Fontsomme. Mlle. de L’Isle é dama de honor da Rainha.
Desde o princípio do encontro que o jovem marquês não parara de olhar para Sylvie com um ar de enlevo que revelava o quanto ela lhe agradava. Ele próprio não era desprovido de charme: louro, magro, muito novo, com uma silhueta elegante e ágil que denunciava o homem habituado aos exercícios físicos, era menos belo que o seu companheiro, mas Sylvie achou-o imediatamente muito mais simpático e sorriu-lhe. Em M. de Cinq-Mars havia algo de ávido, de violento e de um pouco estranho, uma graça lânguida, que lhe desagradava.
Trocaram-se algumas cortesias e, depois, separaram-se, as raparigas despachando-se para regressar ao aposento da Rainha. Ao caminhar, Sylvie informou-se:
- Quem é este M. de Cinq-Mars?
- Trata-se do pequeno protegido de Richelieu, que o conhece desde a infância. É filho do falecido marechal d’Effiat, um grande soldado que possuía terras na América e em Touraine, sem contar com o magnífico castelo de Chilly, onde o Cardeal se desloca frequentemente. Graças a ele, este fedelho é tenente-general de Touraine, do governo de Bourbonnais e capitão de uma companhia de guardas. Caso Richelieu se encarregue da fortuna dele, acabará duque e par do reino com um dos mais altos cargos.
- Não gosto lá muito dele.
- É bem compreensível: não se parece nada com M. de Beaufort! - Sylvie contentou-se em corar e não respondeu.
Nessa tarde, Sylvie voltou a ver o Cardeal na ocasião do jogo da Rainha, a que acorria toda a Corte, e sentiu uma vaga angústia, mas ele contentou-se em sorrir-lhe, sem renovar o seu pedido. Ela ficou aliviada.
A estadia em Fontainebleau não durou nada. Dois dias mais tarde, o Rei decidiu bruscamente partir para Orleans. Luís XIII conhecia bem o irmão e sabia que este entrava em pânico quando se aproximavam muito dele, sobretudo, com um acompanhamento de peso. O sucesso foi imediato: Monsieur caiu nos braços do Rei, jurou que ao voltar para a sua cidade ducal apenas desejava encontrar um pouco de descanso, longe do reboliço do Louvre e de Paris e, sobretudo, que não alimentava, a respeito do irmão, qualquer intuito contrário à boa harmonia da família. Pelo seu lado, Sylvie achou o duque de Orleans antipático. Era mais belo que o Rei e a sua presença não deixava de exercer um certo charme, mas detestou-lhe a boca mole e o olhar que errava sempre nas alturas, no chão, à esquerda e à direita, mas que nunca ou tão raramente se fixava no interlocutor. Na realidade, quando se olhava para ele ao pé do irmão, parecia-se com uma cópia de água-forte em aquarela, mais incerta e suave, e Sylvie percebeu melhor a exclamação da Rainha quando, na altura da conspiração de Chalais, lhe atribuíam a intenção de desposar o cunhado, depois da morte do esposo: “Não beneficiarei com a troca!”.
Na própria tarde o Rei enviava aos seus generais e aos governadores da província uma carta dizendo que, tendo Monsieur comprovado o seu afeto, era de bom grado que se esquecia do erro que ele cometera ao retirar-se para as suas terras “sem se ter despedido do Rei”, isto é, por outras palavras, sem ter recebido a devida autorização. Fórmula diplomática, para dar a entender que o duque de Orleans regressara à senda do dever e que o inimigo não devia mais contar com qualquer ajuda da parte dele.
Só restava cada um voltar para sua casa e, enquanto Monsieur embarcava na sua galeota para descer pelo Loire até Blois, a Corte separou-se: o Rei queria voltar o mais depressa possível ao seu pequeno castelo de Versalhes, enquanto a Rainha decidiu parar em Chartres, para comungar a Nossa-Senhora e rezar para que lhe desse o Delfim que não chegava. Mlle. de La Fayette, doente, obtivera autorização para regressar a Paris, logo à partida de Fontainebleau. Além disso desejava retirar-se brevemente para um convento. Autorização que lhe foi tanto mais facilmente concedida porquanto os seus olhos, continuamente avermelhados pelas lágrimas e pelas noites sem sono, irritavam a soberana.
Por seu lado, Sylvie estava feliz por regressar a Paris, onde as chances de voltar a encontrar François eram bem maiores do que em todos aqueles longos percursos. Esperava-a uma surpresa: uma carta do seu padrinho pedindo-lhe que o fosse visitar logo que o serviço o permitisse.
Com efeito, desde há seis meses que Perceval de Raguenel era apenas escudeiro honorário da duquesa de Vendôme e se instalara em Paris, no elegante quarteirão do Marais. A inesperada herança vinda de um primo mais velho, solteiro e sem outra família, trouxera-lhe um largo desafogo. O primo, que só gostava do mar e que sulcava o oceano ao serviço de nomes prestigiados, arrecadara uma bela fortuna e uma ferida muito feia provocada por um golpe de sabre. Conseguira regressar à sua casa em Saint-Malo para aí morrer, legando o seu navio, a equipagem e o resto dos bens a Perceval, com o qual se batera por mais de uma vez durante a infância e que não voltara a ver muitas vezes desde essa época, mas que considerava como sendo “o único homem de jeito que conhecera sobre este desgraçado planeta”.
Para Raguenel, que só possuía a sua solda de escudeiro e um solar meio em ruínas, nas proximidades de Dinan, foi um maná inesperado, que lhe trouxe uma nova liberdade. Doravante rico, inteligente e culto, nobre e de bom porte, teria podido casar-se por cinco ou seis vezes, mas permanecera fiel ao amor da sua juventude, que transferira em grande parte para Sylvie, que considerava agora como sua filha: tencionava viver para ela, pois ela era mais obra sua que dos infelizes Chiara e Jean de Valaines, cujo nome fora preciso deixar afundar-se nas trevas do esquecimento, a fim de proteger a filha. Ensinara-lhe tudo, sentindo cada vez mais prazer em modelar aquela pequena, não muito bela mas que, ao crescer, se tornara encantadora. Era inteligente, esperta e terna, mas fervia facilmente em pouca água e ele nada pudera fazer contra esse lado irascível do seu caráter. Era irritadiça e sem dúvida que o seria para o resto da vida. E não fora sem uma certa inquietação que soubera que ela se ia tornar dama de honor da Rainha.
- Ainda não tem quinze anos - tentou explicar aos Vendôme. - É muito nova para viver na Corte.
- Disparates! - replicou o duque César. (A cena ocorrera em Chenonceau, onde tinham decorrido as festas do Natal). - Há raparigas que casam com essa idade. Quando desposou o primo, em 1604, Mlle. de Guéménée só tinha doze anos. Quanto a Charlotte de Montmorency, hoje princesa de Conde, acabara de fazer catorze quando o meu pai, ao vê-la dançar num baile do Louvre, ficou perdidamente apaixonado por ela. Essa pequena é bonita e, graças a vós, tem tudo o que é preciso para fazer o seu caminho na Corte, onde tenho a certeza que não terá qualquer dificuldade em encontrar um esposo...
- Não existirão gentis-homens que cheguem em redor de vós para lhe encontrar um marido, monsenhor, sem ter de afastá-la a este ponto de uma casa e de uma família a que estão ligados os seus afetos?
- Nessa idade, o coração ainda não se decidiu. O de Mlle. de L’isle tem todo o tempo para descobrir múltiplos centros de interesse. Além disso, se, como dizeis, ela nos é tão afeiçoada, não será uma má idéia dispor, por seu intermediário, de olhos e ouvidos no meio da Rainha.
Perceval era muito delicado para insistir. Sabia que César não gostava de Sylvie, em quem criticava não só uma demasiada liberdade no uso da linguagem como também e, sobretudo, o amor evidente que ela sentia pelo seu filho François. Um filho de França, mesmo bastardo, podia aspirar a um outro tipo de aliança que não uma filha da pequena nobreza. Não obtivera ele próprio a mão de uma princesa da Lorraine, que possuía um dos maiores dotes que se podiam encontrar? No entanto, irritavam-no os incessantes atos de caridade de sua mulher, que se estendiam a todas as classes sociais e, sobretudo, também às prostitutas. Achava que ela exagerava, que devia ter-se ocupado mais dele, dado que conservava a sorte inapreciável de poder viver em Paris e de comparecer com os filhos na Corte, enquanto ele estava confinado ao campo durante todo o ano, mesmo que nos seus domínios campestres se encontrassem alguns dos mais belos castelos de França. Contara cada uma das suas pedras e adornos e, para passar o tempo, caçava, bebia, jogava e derrubava algum rapazola local, suspirando por todos aqueles janotas da corte, polidos, aperaltados, perfumados tanto ou mais que as mulheres, e que os seus filhos podiam frequentar. O que não era aliás o caso, pois tanto Mercceur como Beaufort não tinham herdado, em nada, as preferências gregas do pai, achando as mulheres infinitamente mais interessantes. Por fim, a duquesa consentira em desembaraçá-lo de uma dessas malditas fêmeas, talvez aquela que ele mais receava, pois ela não sabia dissimular e nem se dava ao trabalho de esconder a desconfiança que ele lhe inspirava!
Perceval sabia tudo isto e era essa uma das razões pelas quais decidira afastar-se logo que a fortuna lhe sorriu. O ódio que tinha por Richelieu fazia tanto companhia a César quanto os seus queridos, mas não o satisfazia o bastante. Mantinha excelentes relações de vizinhança com Monsieur, sem contar com a correspondência discreta com os inimigos obstinados do Cardeal: o conde de Soissons, refugiado em casa do temível duque de Bouillon, em Sedan, e Mme. de Chevreuse, tal como ele, exilada em Touraine, mas que nem por isso deixava de ser menos ativa. Perceval receava que os tortuosos manejos do pai provocassem dores e danos aos de sua casa. César iludia-se se pensava que o ministro todo-poderoso hesitaria um só momento em cortar-lhe a cabeça, caso esta se tornasse muito incômoda, e o Rei, que detestava o irmão bastardo, assinaria a sentença com entusiasmo. Em caso de drama, Sylvie poderia, pelo menos, encontrar um abrigo natural em casa daquele a quem, com a autorização da duquesa Françoise, chamava agora de padrinho. E fora pensando nela que ele se regozijara ao arranjar com gosto a pequena residência que comprara na rua das Tournelles, junto à Praça Real, centro mágico da elegância parisiense.
Aí vivia rodeado de livros, servido pelo seu fiel Corentin, que esperava pacientemente que Jeannette consentisse em “coroar a sua chama”, e por uma vigorosa comadre de quarenta anos, Nicole Hardouin, que possuía todas as qualidades de uma grande dona de casa e que mantinha esta com punho de ferro, tal como acontecia com o seu eterno apaixonado, um homem que fora dispensado do Châtelet e que dava pelo nome campestre de Desormeaux.
Era, portanto, na direção desta casa que Sylvie se apressava na companhia de Jeannette, numa dessas cadeiras de aluguer que se encontravam nas proximidades do Louvre e que “constituíam um magnífico resguardo contra os insultos da lama”. Esta escapadela deleitava-a. A jovem só fora duas vezes a casa de Perceval, mas guardara dela uma lembrança calorosa. Talvez porque, habituada desde a infância às amplas residências dos Vendôme o imenso hotel de Paris, Anet, Vendôme, Chenonceau ou La Ferté-Alais encontrava ali uma casa de dimensões humanas: uma pequena residência entre o pátio e o jardim, com um portão dando para a rua e tendo, no pátio, uma espécie de pavilhão construído no reinado de Henrique IV; no rés-do-chão, de ambos os lados de uma escadaria principal em madeira lindamente esculpida, havia uma grande sala, um quarto e um guarda-roupa. No primeiro andar, tinha o seu gabinete, recheado de livros, e dois quartos, um dos quais era ocupado por Nicole. Corentin instalara-se por cima da estrebaria, numa das alas da casa que dava para o pátio, estando a outra reservada à cozinha e às suas dependências. Na parte detrás, num pequeno jardim, estendia-se um canteiro em redor de uma linda fonte e, para os dias de calor, havia a sombra de uma grande tília que, quando o mês de Junho regressasse, havia de perfumar o ar e que, entretanto, fazia as delícias de Aquiles, o gato de dona Hardouin.
Foi precisamente este que Sylvie e Jeannette encontraram em primeiro lugar. Atravessava o pátio com um ar extenuado, lançou-lhes um olhar desiludido e fugiu a instalar-se frente à chaminé da cozinha, na esperança de obter antecipadamente alguma parte do seu jantar. Jeannette foi no seu encalço, para falar com Nicole, enquanto Corentin, arvorando um grande sorriso no seu rosto rechonchudo, conduzia Sylvie até ao gabinete de leitura, onde ela encontrou o padrinho na companhia de um homem de uns cinquenta anos, vestido como um burguês, com um fato cinzento de colarinho branco descaído, e que se voltou na sua direção quando ela entrou, revelando um rosto estreito, ainda mais alongado por uma barbicha que, tal como o bigode, era de cor grisalha. Tinha depositado o seu chapéu com a copa cingida por um cordão de seda preto e a grande capa num banco, estendendo os pés, calçados com grandes sapatos de fivela, na direção da chama da chaminé. Perceval e ele pareciam lançados numa conversa animada, que devia incluir a política, pois Sylvie ainda ouviu ecoar os nomes do duque de Orleans e do conde de Soissons, mas a sua entrada pôs um termo abrupto à conversa. O visitante endireitou-se de imediato, anunciando logo que tinha de se ir embora:
- Não sejais tão apressado, - meu amigo protestou Raguenel. - Ao menos, deixai-me apresentar-vos a minha afilhada, Mlle. de L’Isle. Sylvie, eis um homem que dedicou a sua vida ao bem dos outros: Théophraste Renaudot, médico, filantropo e, desde há seis anos, editor da nossa querida Gazette - acrescentou, ao retirar de cima da mesa um pequeno libreto de oito folhas, cuja publicação era aguardada todas as semanas pelos parisienses. - Só tem um defeito recomeçou Perceval, rindo - adora o Cardeal!
- Nada de exageros - sorriu o publicista, ao trocar as graciosas saudações da praxe com Sylvie. - Não o adoro, mas devo-lhe muito, pois foi o seu conselheiro íntimo, o padre Joseph, que me arrancou ao meu Loudun natal para me trazer até Paris, onde, graças a ele, realizei quase tudo o que desejava. Oh, eu sei! - acrescentou ao vestir a capa - que se se quiser fazer boa figura em sociedade, é de bom tom vituperar Sua Eminência e admito, de bom grado, que se trata de um homem de ferro, mas espero sinceramente que chegará o dia em que será prestada justiça aos seus grandes desígnios políticos. Ele só tem uma idéia na cabeça: a França, enquanto que os príncipes e, até, a própria Rainha, só desejam fazer deste reino uma colônia espanhola como Cuba, o México ou o Peru!
- Não deixais de ter razão, meu amigo, mas gostaria que ele não se intrometesse tanto nas vidas privadas dos outros... Já se faz tarde e acompanho-vos! Sylvie, aquecei-vos junto à lareira! Já volto.
A jovem despiu a sua comprida capa de capuz debruado com pele de esquilo e as luvas forradas, puxando de um banco para ficar mais perto do lindo braseiro, na direção do qual estendeu as mãos e os pés gelados, apesar de terem estado protegidos.
Ao voltar, Perceval quedou-se alguns momentos à entrada do gabinete, a fim de ter tempo para olhar para Sylvie. Ela sentiu a presença dele e voltou-se:
- Então, que fazeis aí, em vez de regressardes ao vosso sofá?
- Estou a olhar-vos. Tendes, mais que nunca, o ar de um gatinho. Sois feliz na Corte?
- Feliz é uma grande palavra, mas reconheço que é mais agradável que supunha. A Rainha é bondosa e encantadora e... creio que é muito infeliz devido a este amor do Rei por Mlle. de La Fayette, a qual, por sua vez, chora o tempo todo, não sendo mais feliz que a soberana. E, depois, se não tenho as melhores relações com as damas de honor, ao menos tenho uma amiga.
- Qual?
- Mlle de Hautefort. É bela, cheia de coragem, muito insolente e dedicada à nossa Senhora.
- Não está mal! Podíeis ter feito escolha pior! ”
- Oh! Mas foi ela quem me escolheu! Agora, padrinho, dizei-me, por favor, a que devo o prazer de voltar a ver-vos?
Perceval pôs-se a rir:
- Diacho! Como apanhastes depressa o tom da Corte! Mas não vos fiz vir aqui para que trocássemos madrigais - disse, com um ar subitamente grave, sentando-se junto à afilhada e colocando uma das mãos dela entre as suas. - Conheceis um tal M. de La Ferrière?
- Não. Quem é?
- Um oficial dos guardas do Cardeal. Solicitou a vossa mão a Mme. de Vendome, que me rogou de levar o pedido ao vosso conhecimento.
- A minha mão? Quer dizer que deseja desposar-me?
- Não há nenhuma outra tradução possível.
- E... que resposta deu a senhora duquesa?
- Que vos deixaria ser dona da vossa escolha e que nunca vos forçaria. E que, além disso, sou eu o vosso tutor.
- Ótimo, então está tudo bem! Não há mais nada a dizer.
- Oh, sim! É preciso falar, porque esse La Ferrière vai desenvolver todos os esforços que puder para vos agradar e poderá ter êxito: é uma pessoa de bem e o Cardeal conceder-lhe-á, sem dúvida, uma posição invejável...
- Quereis dizer que quando o conhecer, poderei ser impelida a julgá-lo favoravelmente?
- Exatamente. Ora, em caso nenhum, Sylvie, deveis oferecer-lhe a vossa mão. É por isso que Mme. de Vendôme quis que fosse eu a falar-vos do assunto e não ela própria.
- Isso não é um pouco estranho?
- Não, porque eu sei exatamente quem é essa personagem e a senhora duquesa só sabe aquilo que lhe contei. No estado atual das coisas, limitou-se a responder que, de qualquer modo, vos achava muito nova para o casamento.
- E é verdade?
- Não propriamente. Há muitas raparigas que se casam aos quinze anos. A Rainha fê-lo aos catorze. Aliás, o Rei também, mas regressemos ao vosso pretendente. Não deveis deixar, de modo algum, que ele vos seduza.
A jovem soltou subitamente um riso fresco e alegre.
- Seduzir-me? Mas ninguém me pode seduzir. Sabeis muito bem que é François que amo e que sempre amarei...
- São palavras que se proferem na vossa idade. Com o tempo, tudo muda.
- Eu não mudarei.
- Será contudo melhor que o façais. Além do fato de ele não vir a casar convosco, é incapaz de se manter fiel a uma só mulher. Diz-se que está apaixonado por Mme. de Montbazon, por Mlle. de Bourbon-Condé e por não sei quem mais ainda...
- Nenhuma delas conta porque, na realidade, ele só ama uma, e é a Rainha!
- Infeliz! Não digais coisas semelhantes! Mesmo aqui!
- Contudo, é a verdade - suspirou Sylvie com tristeza, mas recobrou depressa o ânimo e voltando a olhar para Perceval disse, com clareza: - Voltemos ao começo da nossa conversa: porque não devo de forma alguma dar ouvidos às preces de M. de La Ferrière? E porque sois vós quem mo deve dizer?
- Porque... gosto muito de vós e porque, pelo menos, assim o espero, vós tendes um pouco de afeição por mim.
Sylvie levantou-se do banco e veio sentar-se aos pés do padrinho para poder apoiar a cabeça nos seus joelhos.
- Muito mais do que isso e bem sabeis que sempre ouvirei os vossos conselhos!
Comovido, ele acariciou-lhe os sedosos cabelos castanhos.
- Então, fazei um esforço para me acreditardes, sem que eu tenha de entrar em mais explicações!
- Porquê?
Ele hesitou, mas não lhe respondeu à pergunta:
- Ainda vos recordais da vossa primeira infância? Quero dizer, antes que François vos tivesse levado para casa da mãe...?
A rapariga fechou os olhos a fim de se concentrar melhor.
- Sim, um pouco... recordo-me de uma linda casa com árvores, de uma bela mulher jovem que amava e que era minha mãe... e também da minha ama, a mãe de Jeannette... e, depois, de algo terrível, demasiado vago e para o qual não tenho explicação...
- Jeannette fala-vos, às vezes, dessa época? - perguntou Perceval, inquieto. Desde há muito que fizera jurar à jovem criada que nunca evocaria o castelo dos Valaines, a fim de proteger Sylvie acerca de uma verdade que talvez um dia fosse preciso contar-lhe, mas esse dia devia chegar o mais tarde possível.
- Não. Ela diz que não se lembra de nada... mas estou certa que mente!
- Pois bem, procedei como se ela falasse verdade e não a interrogueis. Mais tarde, serei eu próprio que vos falarei disso tudo, mas quando bem o entender. Ficai apenas a saber que La Ferrière está ligado a essa coisa terrível que evocastes há pouco. Isso chega-vos?
Ela levantou-se para lhe pôr os braços à volta do pescoço e para lhe dar um beijo na face:
- Que remédio!... Agora devo deixar-vos. Está na hora de voltar para o Louvre. E ficai descansado: nada farei que vos possa desagradar ou causar pena.
Depois de Sylvie se ter ido embora, Raguenel refletiu durante um momento e, sentando-se à mesa, afiou uma pena de ganso, molhou-a na tinta e escreveu algumas palavras. Depois, polvilhou-a com areia, lacrou-a e chamou Corentin:
- Toma! Encontra o duque de Beaufort e entrega-lhe isto. Tenho de vê-lo o mais depressa possível!
Em seguida voltou a sentar-se na poltrona e ficou muito tempo a cismar, de olhos fixos no centro do braseiro...
NO PALÁCIO DO CARDEAL
Sylvie não teve de esperar muito para encontrar aquele que acabara de pedir a sua mão, por qualquer obscuro motivo, só dele conhecido.
Nessa tarde havia festa no Louvre. Suas Majestades recebiam o duque de Weimar, um príncipe protestante. Na Grande Galeria que Catarina de Médícis mandara outrora construir no lugar da frontaria de Carlos V, destinada a ligar o Louvre ao seu castelo das Tulleries, os comediantes do Marais iam representar O Cid. O velho Louvre estava iluminado de cima abaixo por milhares de velas acesas nas salas. A Corte encontrava-se toda presente e, pela primeira vez, a nova dama de honor podia admirá-la em todo o seu esplendor. Para este acontecimento, os homens e as mulheres não tinham regateado o luxo e a elegância. Podia ver-se, por toda a parte, cetins, brocados, rendas e tecidos dourados e prateados, fitas, penas e bordados servindo de fundo a uma profusão de pérolas e pedras multicolores. O próprio Rei, que gostava de se vestir com simplicidade, sem chegar, contudo, a envergar o célebre trajo caseiro do pai, brilhava como um Sol, mas sem chegar a apagar os dois pólos de atração da soirée: a Rainha e o cardeal de Richelieu, duas resplandecentes silhuetas, ambas envergando a mesma cor púrpura. Não se sabia qual das duas era mais impressionante, se a samarra de reflexos escarlates na qual brilhava uma grande cruz do Espírito Santo feita de diamantes, se o vestido em brocado genovês de Ana de Áustria que, para aquela tarde, escolhera as mesmas cores que as do seu inimigo, a fim de que ele não pudesse atrair todos os olhares. E tinha-o conseguido maravilhosamente, pois ao esplendor do seu vestido juntava-se o brilho da sua beleza. O bordado de rendas com pequenos diamantes encastoados que enquadrava o seu largo decote, deixava admirar a beleza do peito, no qual estava suspenso um colar magnífico composto por grandes rubis em forma de pêra e um espantoso conjunto de diamantes quadrados, prenda de casamento de seu pai, rei de Espanha, mas cujo tamanho a impedira de o utilizar até chegar à idade adulta. Uma coifa com seis braceletes, a condizer, rematavam este adorno de um esplendor quase bárbaro, que faziam dela uma deusa frente à qual só era concebível alguém ajoelhar-se. Porém, alguns compreenderam que a Rainha, ao exibir apenas jóias espanholas e pondo de parte aquelas que o Rei lhe oferecera (que eram, no entanto, esplêndidas), e ainda por cima, ao evidenciar uma peça “espanhola” na companhia de um príncipe alemão, estava a dar-se ao luxo de lançar um desafio.
Tanto Marie de Hautefort, como aliás o próprio Beaufort, não se deixavam iludir quando este, envergando um tecido dourado e de veludo castanho, veio saudar a soberana.
- Senhora, estais bela como um milagre - disse, com uma voz comovida. - Ao ver-vos assim vestida, só se pode desejar cair a vossos pés e rezar, rezar até que vos digneis olhar ternamente para o infeliz assim prostrado.
- Tendes razão de queixa do olhar que vos dispenso? - perguntou a Rainha, com um sorriso que apertou o coração de Sylvie.
Ao mesmo tempo estendia-lhe uma mão cheia de anéis, na qual, ao ajoelhar-se, ele depositou os lábios. A cena não passou despercebida ao Rei:
- Senhora, de que recompensais tão soberanamente o meu sobrinho Beaufort? - perguntou, num tom onde vibrava a cólera. Mas a esposa não se assustou.
- De uma bela galanteria, Senhor! Não deixa de ter o seu apreço aos olhos de uma dama, nem que esta seja rainha.
- Sou bem infeliz por não ter sido capaz de encontrar, antes de M. de Beaufort, as palavras susceptíveis de me valerem um tal favor - disse o Cardeal, que se aproximara.
- Como se Sua Eminência não soubesse que são as rainhas que têm de se ajoelhar perante a Igreja! O contrário não teria sentido - respondeu a soberana, com um imperceptível encolher de ombros que não escapou, contudo, aos olhos do ministro, nos quais se acendeu um brilho. Mas a escaramuça parou ali: os comediantes, por intermédio do mestre-de-cerimônias, pediam respeitosamente para poderem começar o seu desempenho. Cada um foi ocupar o devido lugar perante um palco que ocupava toda a extensão da galeria e que estava tapado por uma grande cortina de veludo.
Apesar do pequeno aperto de coração que acabara de ter, Sylvie ficou arrebatada pela obra de M. Corneille. A beleza dos versos encantou-a tanto quanto a história dramática dos dois amantes, separados pelas leis inflexíveis do código de honra. O chefe dos comediantes, Mondory, fazia um magnífico Rodrigue e Marguerite Guérin uma Chimène sublime. A maioria dos presentes já tinham visto O Cid no teatro do Marais, mas nem por isso deixaram de aplaudir entusiasticamente os atores, logo que o Rei concedeu a devida autorização, o que, aliás, fez calorosamente: aquela peça heróica agradava-lhe e prometeu à Rainha, enlevada, que a mandaria representar em sua honra. Quanto a Richelieu anunciou também que mandaria executar algumas representações no Palácio do Cardeal e que o autor receberia uma pensão. Só os aplausos frenéticos do duque de Weimar estavam sujeitos a caução: o caro senhor, embalado pela música dos versos que nem sempre entendia lá muito bem, tinha dormido profundamente.
Junto às damas de honor, a excitação estava no auge.
- É tão belo que poderia despertar o amor à pessoa mais fria - dizia uma delas.
- Julguei desfalecer, pelo menos, umas dez vezes! Ah! “Trespassada até ao fundo do coração por uma espera tão imprevista quanto mortal...” - acrescentou a sua vizinha.
- Nunca se ouviram sentimentos tão nobres! Ah! É de morrer! - suspirou uma terceira. - Vejam como a nossa Rainha está comovida!
- M. Boileau escreveu: “Para Chimène, toda a cidade de Paris tem o olhar de Rodrigue” - disse Marie de Hautefort, mais comovida do que queria admitir e que ria, para assim esconder a sua emoção. - Mas também podemos dizer que para Rodrigue todas as mulheres têm o olhar de Chimène. E vós, pequena gatinha - acrescentou ao voltar-se para Sylvie, - qual é a vossa impressão?
- Sinto o mesmo! É tão belo, que por várias vezes me vieram as lágrimas aos olhos!.
- Pois bem, minhas meninas, pareceis ter apreciado os versos de M. Corneille proferiu uma voz profunda que as sobressaltou em conjunto, fazendo-as perder a compostura imediatamente, como era o caso de cada vez que se encontravam subitamente na presença do Cardeal.
Só Marie de Hautefort, nada impressionada, fez frente à situação:
- Espero que aconteça o mesmo com Vossa Eminência. Conhece-se a infalibilidade do vosso gosto em matéria de arte e de belas-letras! Estareis a pensar em fazer o nosso autor membro da Academia?
- Mesmo os maiores têm as suas fraquezas.
O elogio de Aurora fê-lo sorrir:
- Veremos! Não há dúvida que estamos perante uma grande obra... mesmo que se possam notar algumas ligeiras fraquezas nos versos. Mas, não vejo Mlle. de La Fayette...
- Encontra-se indisposta - acudiu Mlle. de Chémerault, a quem a presença do ministro não perturbava muito tempo. - Há pouco mostrava um ar tão debilitado que a Rainha aconselhou-a vivamente a descansar. Na realidade - acrescentou a jovem com ousadia - certamente que Sua Majestade não desejava ver o Rei e a sua dama a trocarem longínquos suspiros e olhares langorosos.
- Não creio que a Rainha apreciasse os vossos comentários, menina! - ralhou Hautefort, cujos enormes olhos azuis faiscaram.
O sorriso de Richelieu, que a olhava com visível prazer, amenizou-se.
- Quem não compreenderia a Rainha? Sobretudo em presença de um príncipe estrangeiro! Ah, Mlle. de L’Isle! Não vos tinha visto! É verdade que quando a aurora desponta, tudo esmorece um pouco. Todavia, estais encantadora! - acrescentou, lançando um olhar escrutinador e conhecedor ao amplo vestido em seda branca bordada com flores prateadas, que Sylvie envergava pela primeira vez, uma prenda de Elisabeth de Vendôme e que se lhe ajustava às mil maravilhas.
Um cumprimento dá sempre prazer, mas nem por isso ela deixou de corar até à raiz dos cabelos quando o olhar de Sua Eminência deslizou pelo comprido decote. Richelieu apreciava as mulheres, isso era sabido, e circulavam numerosas histórias a esse respeito pelas “ruelas” das tagarelas da Corte. Para fugir ao mal estar, a jovem fez simplesmente uma reverência.
- Agradeço a Vossa Eminência - murmurou.
- Do quê? É a Deus que deveis agradecer por vos ter criado como um regalo para os olhos. Consenti, aliás, que vos apresente a um dos meus homens fiéis, que me rogou este pedido por tanto vos admirar. Eis o barão de La Ferrière - acrescentou, afastando-se para ceder o lugar àquele que estava escondido pela sua longa silhueta escarlate. - É oficial dos meus guardas, mas esta tarde não está de serviço. Caro Justin, saudai Mlle. de L’Isle: tendes a sua permissão.
Sylvie esteve quase para responder que não permitira nada, mas considerou que para um assunto de tão pouca importância, era mais sensato não atrair o descontentamento do Cardeal. Respondeu à saudação do recém-chegado, pensando que Perceval não tinha razão para se atormentar: mesmo que não a tivesse prevenido acerca da personagem, esta ter-lhe-ia desagradado à primeira vista: na frente dela estava alguém que envergava metros de veludo verde bordado, ornado com pequenos nós vermelhos e prateados, de gola de renda e “canhões” da mesma cor. No alto, uma barba ruiva que não deixava de ter uma certa beleza e que até lhe teria talvez agradado se a boca fosse menos mole e o olhar verde menos dissimulado. Ao saudá-la proferiu um cumprimento de tal forma empolado que ela só ouviu metade e que o Cardeal não teve a paciência de escutar até ao fim: afastou-se, o mesmo acontecendo a todo o conjunto das damas de honor, devoradas pela curiosidade. Sylvie estava fascinada pelas mãos do barão: dos delicados punhos de renda emergiam verdadeiras tábuas de lavar roupa.
O jantar foi anunciado e o discurso de La Ferrière terminou com um pedido para que o autorizasse a acompanhá-la até à mesa e a fazer-lhe companhia. A pobrezinha, que pensava poder escapar-se com algumas banalidades, não estava à espera de tal convite. Não tinha, é claro, vontade alguma de terminar a soirée na companhia daquele praça velha e, não sabendo que responder, procurou alguém que a pudesse ajudar, mas a Rainha e as suas companheiras já se encontravam fora do salão. Tomando o seu silêncio por uma aceitação, La Ferrière aprestava-se a pegar-lhe no pulso para a levar consigo quando, por detrás dela, soou uma voz calorosa, nítida e de bela tonalidade:
- Senhor, mil desculpas, mas é a mim que cabe a honra de conduzir Mlle. de L’Isle até ao festim.
Soberbo, arrogante, com um sorriso de lobo galhofeiro arreganhando os lábios sobre os dentes brancos, François de Beaufort acabara de surgir ao lado de Sylvie, cujo pulso libertou com um gesto firme. O outro fez uma careta, escondendo mal o seu descontentamento:
- Senhor duque - resmungou - não é de espantar que tão grande príncipe se faça cavaleiro de uma simples dama de honor?
- Pois bem, então espantai-vos, meu caro! Mas também nos podemos perguntar de onde vindes para ignorardes que uma mulher bela tem direito a todas as homenagens, até mesmo às do próprio Rei! Perguntai a Mlle. de La Fayette...
- Mlle. de La Fayette vem de uma grande família...
- Mlle. de L’Isle, pupila de minha mãe, pertence à de Vendôme e tenho o maior afeto por ela. Assim não tenho nenhuma vontade de vê-la comprometida com um soldado da velha guarda do Cardeal!
La Ferrière ficou rubro, procurando automaticamente desembainhar uma espada que não existia:
- Tereis de prestar contas pelas vossas palavras - resmungou.
- Um duelo? Convosco? Fazeis-me rir! E que diria o vosso estimado senhor se os seus próprios guardas espezinhassem o seu édito favorito, que lhe permitiu, aliás, mandar cortar a cabeça de um Montmorency? Senhor, desejo-vos as boas noites.
Desatou a rir na cara do barão e, pegando na mão de Sylvie, que não largara, arrastou-a consigo, deslizando na direção da grande sala transformada para aquela noite em salão de festas. Sylvie estava nas nuvens. Também ela ria, ao seguir a corrida louca de François, enquanto o seu amplo vestido enfunava como um balão e os seus estouvados caracóis dançavam contra o rosto. Tinha a impressão de voar rumo ao Paraíso...
- Como adivinhastes que aquele homem me incomodava, monsenhor? Chegais sempre na altura certa...
- É que, querida criança, eu estava de olho nele. Quando penso que esse asno acariciava a idéia de vos desposar! É de lunáticos!
- Mas... como o sabeis? A senhora duquesa contou-vos?
- De modo algum. Foi Raguenel quem o fez. Na outra noite mandou-me um bilhete pedindo que eu passasse na rua das Tournelles. Estava inquieto e contou-me tudo.
Sylvie parou abruptamente, obrigando o seu cavaleiro a fazer o mesmo.
- E encarregou-vos de tomar conta de mim? - murmurou, descendo das nuvens. Era tão maravilhoso acreditar que ele teria voado espontaneamente em seu auxílio!
- Nada mais natural, pois eu frequento a Corte e ele não! De qualquer forma, prevenido ou não, não teria permitido a esse asno que vos pusesse as mãos em cima... da minha gatinha!
- Vós também! - gemeu Sylvie, consternada. - Dentro em breve todos me vão chamar assim!
- Em primeiro lugar, eu não sou “toda a gente”, e a Rainha também não o é. Como também não o são Mlle. de Hautefort e algumas pessoas a quem agradais neste palácio.
Olhava-a com uma pequena chama no fundo dos olhos azuis, o que animou Sylvie.
- Esta alcunha fica-vos muito bem - continuou, levando aos lábios a mão que ainda segurava. - Tendes toda a graça, toda a espontaneidade e o lado sedoso de um gatinho. Dito isto, tendes de me prometer prevenir-me caso este La Ferrière se obstine em andar atrás de vós.
- E que fareis? Provocá-lo-eis para um duelo? Seríeis sustido antes de terdes tido sequer o tempo para cruzar a espada. Richelieu ficaria muito grato por vos mandar prender. Este homem deve ser um dos seus favoritos...
- Nesse caso tem muito mau gosto! Mas não vos preocupeis com aquilo que eu possa vir a fazer. Prometei, e ponto final!
- Nunca vos quedais no mesmo sítio! Como ter a certeza de vos poder contatar? Além disso, a Primavera vai regressar, assim como os combates contra a Espanha. Ireis regressar ao exército...
Subitamente ensombrado, o rosto de Beaufort endureceu.
- Não. Sabeis como continuamos aqui a ser olhados com suspeição. O meu pai continua exilado. Só eu, a minha mãe e os meus irmãos é que somos tolerados na Corte, onde a Rainha nos acolhe amigavelmente. E recusam-nos o direito de combatermos pelo nosso país! - concluiu, com um azedume comovedor.
- O quê? Não vos é permitido regressar ao vosso posto? Depois das façanhas que cometestes em Noyon?
Efetivamente, no Outono anterior, cabeça estouvada e coração valoroso, de espada em riste, com os cabelos compridos e a camisa esvoaçando ao sabor do vento, François lançara-se sozinho, a cavalo, ao assalto das defesas espanholas dispostas frente a Noyon. Claro que os outros o seguiram, arrebatando a vitória naquele dia. Esse ato insensato valera-lhe um ferimento e a admiração do Rei.
- Até se dizia que Sua Majestade queria nomear-vos capitão-general da sua cavalaria!...
- Teria ficado tão feliz! Mas o Cardeal opôs-se, porque foi em Noyon que quase o assassinaram. Monsieur e o nosso primo, o conde de Soissons, nas tropas dos quais eu e Mercceur combatíamos, acalentavam o projeto de o apunhalar mas, quando o assassino se aproximou, Monsieur amedrontou-se e denunciou-o. Em seguida, fugiu com Soissons... e adeus certificado de capitão-general! Nem eu nem o meu irmão estávamos ao corrente do assunto, o que não impede que nos façam pagar como se fôssemos culpados. Proibiram-nos de prestar serviço em qualquer exército e o Rei, devia antes dizer, o Cardeal!, opôs-se ao casamento de Mercceur com a filha do nosso amigo, o duque de Retz.
- Por que motivo esse casamento lhe podia desagradar?
- A Bretanha, minha gatinha, a Bretanha! Retz possui Belle-Isle, um importante ponto estratégico. O Cardeal nunca permitirá que um Vendôme lá se instale!
- Era aí que costumáveis passar as férias?
Subitamente, o olhar de François evadiu-se.
- Não sabeis que lugar é Belle-Isle, Sylvie! Não conheço sítio mais lindo, mais livre... Uma terra de clima ameno, defendida por uma cintura de rochedos selvagens onde o mar vem embater sem nunca corroer o granito. As cores do oceano são ali mais ricas do que em qualquer outro lado e, no fundo dos vales, onde correm riachos prateados, as árvores são como as das terras do sul... as mesmas que no meu principado de Martigues. Se pudesse levar-vos comigo, saberíeis por que tanto adoro Belle-Isle, onde, facilmente, nos podemos imaginar senhores do mundo. E nunca mais poderei lá regressar...
Bruscamente voltou a si, sacudiu os ombros como para se libertar de um sonho para onde se deixara deslizar e voltou a pegar na mão da amiga, que havia solto.
- Vinde depressa! Morro de fome e se nos demorarmos muito só teremos direito aos restos.
- Um momento ainda, por favor! Além de ser vosso primo, sois amigo do conde de Soissons. Por que não ides ter com ele a Sedan?
- E entrar em rebelião contra o Rei? Pactuar com os Espanhóis que acabo de combater? Não me importo de colocar a minha espada ao serviço de um príncipe francês, mas não de um estrangeiro. Prefiro a inação, dado que o Rei não quer saber de mim...
- E além disso - disse Sylvie, com uma certa severidade - não tendes sobretudo nenhuma vontade de vos afastardes da Rainha, não é verdade?
Ele não respondeu, mas pelo seu ar incomodado, ela percebeu que acertara. Todavia, em vez de lhe querer mal por isso pensou antes que ele se encontrava numa posição lastimável, entalado entre as fúrias de um pai que sonhava abater não só o Rei como o Cardeal e o seu amor pela Rainha, que o obrigava a ter de lidar parcimoniosamente com ambos.
Com mais calma prosseguiram o caminho em silêncio. Sylvie não deu pelo jovem que os seguira desde a Galeria, na esperança que Beaufort encontrasse alguém conhecido e lhe deixasse o lugar livre ao pé da rapariga. Quando chegaram ao salão de festas, Jean d’Autancourt deu meia volta e afastou-se...
Alguns dias mais tarde, Sylvie cantava para a Rainha, no meio de um círculo de damas atentas, quando o Rei entrou sem se fazer anunciar. A romança parou abruptamente na garganta da jovem, enquanto se levantava prontamente para saudar o seu soberano.
- Não vos incomodeis, senhoras! - disse este. - Deixai-vos estar! E vós, Mlle. de L’Isle, continuai! Aliás é a vosso respeito que venho falar com a vossa Senhora.
- Meu Deus, mas que fez ela para que acorrais tão depressa, Senhor? - perguntou Ana.
- Nada de grave, a não ser que ainda não satisfez o desejo que tem o senhor Cardeal em ouvi-la cantar.
A Rainha franziu as sobrancelhas.
- As minhas damas de honor não se encontram à disposição do Cardeal - respondeu secamente. - Mlle. de L’Isle pôs-me ao corrente do encontro que teve com Sua Eminência e... do pedido que este formulou, pois não podia exprimir nenhuma ordem. Fui eu que não a deixei ir até ao Palácio do Cardeal. É muito nova para se aventurar dessa maneira numa casa repleta de homens!
- A casa de um criado de Deus? Correria aí mais perigo do que numa igreja? Quem reside sobretudo em casa do Cardeal são, essencialmente, padres.
- Há sobretudo guardas, espias de todo o gabarito e pessoas pouco recomendáveis. Porque não lhe enviais Mlle. de La Fayette, que tantas vezes cantou para vós e cuja voz tanto apreciais?
- Parece que desde há algum tempo gostais menos dela, não? Seja como for não é ela que o Cardeal reclama. Sabeis como ele gosta de novidades. Não podereis dar-lhe esse prazer?
- E por que deveria fazê-lo quando ele só pensa em prejudicar-me?
A cólera principiava a despontar na voz da soberana, revelando o seu acento espanhol. Ia ocorrer uma cena. Foi então que Marie de Hautefort, com a sua habitual liberdade, se lançou no meio da discussão:
- Com a permissão de Vossas Altezas, talvez eu possa encontrar uma solução?
O olhar de Luís XIII, tão duro um momento antes, suavizou-se ao contemplar aquela que outrora amara:
- Falai, senhora.
- Sua Majestade a Rainha tem razão ao dizer que Mlle. de L’Isle é demasiado jovem para ir sozinha a casa do Cardeal. Dessa forma, proponho-me acompanhá-la.
O Rei desatou a rir, o que era muito raro.
- A altiva guerreira! Não vejo, efetivamente, quem ousaria atacar Mlle. de Hautefort ou à sua companheira. Senhora, se este arranjo for do vosso agrado, subscrevo-o com prazer e até estou disposto a enviar um dos meus guardas para as acompanhar: o pequeno Cinq-Mars. O Cardeal gosta muito desse lindo janota da Corte...
A Rainha rendeu-se:
- Nesse caso, porque não? Mas só se Mlle. de L’Isle estiver de acordo. Que achais, gatinha?
- Estou às ordens de Vossa Majestade - respondeu Sylvie.
O incidente terminara. O Rei deu um sinal da sua satisfação beliscando a bochecha da jovem e depois, como era seu hábito, foi ter com Mlle. de La Fayette junto ao vão da janela.
Na tarde do dia seguinte, Sylvie e a sua companhia encaminharam-se, a pé, até ao Palácio do Cardeal.
Tratava-se de um retângulo nobre e calmo, um palácio inserido num bordado de jardins flanqueados de casas antigas, cujos proprietários Richelieu expropriava a pouco e pouco, a fim de ampliar os seus canteiros e alamedas arborizadas. Era sobretudo um palácio novo que resplandecia, cujas pedras claras e cujas grandes janelas de vidros brilhantes acentuavam o contraste com a vetustez do Louvre e a sujidade dos seus muros mesmo que tivessem deitado abaixo as torres e as frontarias da ala norte, para poder completar o projeto e os edifícios do pátio Quadrado, pelo que, nesse lado, avistavam-se sobretudo escombros, blocos de pedra e andaimes. Tanto o palácio novo, como as obras, eram da incumbência de Jacques Lemercier, arquiteto do Cardeal, que há dez anos andava assoberbado de trabalho. Principiara pelo mais urgente ao empreender, em primeiro lugar, a residência do Cardeal mas, ao mesmo tempo, reconstruía a Sorbonne, continuava o Val-de-Grâce e erguia a igreja de Saint-Roch. Presentemente era um homem extenuado, mas Richelieu podia dar-se por satisfeito: o seu palácio era um sucesso.
Marie de Hautefort, que já estava ao corrente da magnificência dos locais, estivera presente quando Richelieu dera uma festa, dois anos antes, ao inaugurar o pequeno teatro da ala oriental, um grande baile mitológico com largar de aves, em honra da pequena senhorita, filha de Gaston d’Orleans, contentou-se em observar as mudanças entretanto ocorridas, mas Sylvie arregalava os olhos. Aquela residência parecia-lhe muito mais digna de um rei que o Louvre! Para além dos vinte e cinco jardineiros ocupados a preparar a chegada da Primavera, a criadagem em libré vermelho era numerosa e o interior do palácio magnificente. Não havia nada que não fosse de grande qualidade, desde os quadros de mestres como Rubens, Pérugin, Tintoret, Durer, Poussin e alguns outros, até aos tapetes tecidos em ouro e seda, passando pelos mármores e bronzes antigos, por admiráveis tapeçarias que contavam a história de Lucrécia, sem esquecer os móveis embutidos, as estatuetas preciosas, a profusão de cristais, lápis-lazúlis, ágatas, ametistas, safiras, pérolas incrustadas no ouro e na prata para formar obeliscos, espelhos, globos, lustres e guarda-jóias. Uma caverna de Ali-Babá, mesmo para uma rapariga habituada a cenários deslumbrantes. O seu olhar extasiado encontrou o do jovem Cinq-Mars que lhe sorriu:
- O Cardeal dispõe de numerosas fontes de rendimento, como abadias e tantas outras coisas, que fizeram a sua fortuna. Tudo isto é belo, não é verdade?
- Quase demais!
- Creio ter detectado um tom crítico na vossa voz...? Quanto a mim, penso que nada será, algum dia, lindo demais para embelezar a vida... ou alguém!
Ele próprio era um modelo perfeito de elegância e se o seu fato de veludo conservava um corte vagamente militar, o seu cinturão, bordado em ouro e pérolas finas devia valer uma fortuna. Além disso, a cada gesto que fazia exalava um suave odor.
Encontraram Mme. de Combalet no primeiro salão, que, na residência do tio, fazia as vezes de dona de casa... ou, simplesmente, de amante, segundo as opiniões. Nem por isso deixava de apresentar um ar de respeitabilidade, envergando roupas que exibiam um luto faustoso o marido morrera alguns meses depois do casamento que se ajustava perfeitamente à sua beleza.
Ao ver Mlle. de Hautefort não pareceu ficar grandemente regozijada, se bem que acolhesse Cinq-Mars com um belo sorriso.
- Que eu saiba, suponho que não sois parente de Mlle. de L’Isle? Nesse caso, por que a haveis acompanhado se eu me encontro aqui para a receber?
Era preciso bem mais para desconcertar Aurora. Erguendo o seu lindo nariz, olhou para a dama, nitidamente mais pequena que ela, medindo-a dos pés à cabeça.
- Precisamente pelo fato de ela não ter nenhum parente é que a Rainha julgou por bem fazê-la acompanhar. É demasiado jovem para andar desprotegida pelas ruas.
- Poderíamos ter mandado buscá-la.
- Mas não o fizestes e tanto melhor. Agora...
- Agora tende a amabilidade de esperar neste salão em companhia de M. de Cinq-Mars! Sua Eminência não deseja partilhar com ninguém o prazer que prometeu a si mesmo... Dai-me essa guitarra!
Foi preciso passar por tudo aquilo, mas pela cólera que luzia nos seus grandes olhos percebia-se que a jovem altiva não estava nada habituada a ter de esperar numa antecâmara. Sentou-se, de mau humor, numa poltrona, enquanto Cinq-Mars, também ele agastado, se instalava numa outra e apontava para uma terceira ao pagem que trouxera a guitarra desde o Louvre.
Conduzida por Mme. de Combalet, Sylvie atravessou uma galeria repleta de estátuas de homens ilustres, sendo Jeanne d’Arc a única figura feminina, antes de chegar ao gabinete onde Richelieu a esperava, sentado ao canto da lareira, com um gato entre as mãos e um outro dormindo calmamente na almofada em que descansavam os pés do dono. Parecia cansado e a sua tez amarelada era a de um doente, mas nem por isso deixou de acolher a visitante com grande gentileza:
- Sua Majestade é infinitamente bondosa ao ter-me confiado a vossa pessoa durante um momento. Esta noite tenho grande necessidade de ouvir boa música.
- Vossa Eminência, está adoentada? - perguntou Sylvie, enquanto afinava o instrumento.
- Talvez tenha um pouco de febre... e também as preocupações de Estado. Que me ireis cantar?
- O que agradar a Vossa Eminência. Conheço muitas canções antigas mas poucas novas.
- Acaso conheceis “O Rei Renaud”? É uma canção de gesta do século passado. A minha mãe gostava muito dela...
Sylvie sorriu, tocou o prelúdio e pôs-se a cantar. Não gostava nada daquela história do rei que acorre para morrer ao pé da mulher que pariu um filho, mas que não quer que o previnam do seu estado. A mãe dela tenta iludi-la acerca dos ruídos que ela ouve, mas as suas lágrimas, que não consegue reter, traem-na.
- Minha mãe, diga ao coveiro Que abra uma fossa para nós dois E que ela seja assaz grande para lá pôr a criança também...
O Cardeal fechara os olhos e, com o gato no regaço, afagava-lhe, com os seus compridos dedos, o pêlo sedoso. Quando ela terminou, ordenou, sem abrir os olhos:
- Cantai outra vez! O que desejardes!
Ela obedeceu, interpretou uma canção de Margarida de Navarra e, depois, “Se o Rei me tivesse dado” e, para concluir, “O meu amor”, que era a sua preferida. O Cardeal parecia de tal modo descontraído que se perguntou se não estaria a dormir, mas quando quis levantar-se, ele ergueu bruscamente as pálpebras:
- Cantai ainda, por favor! A vossa voz é pura e fresca como uma fonte. Faz-me um bem infinito. A menos que estejais cansada?
- Não, mas... queria beber um pouco de água...
- Bebei antes um dedinho de malvasia! Está além sobre aquele móvel - acrescentou, estendendo a mão na direção de um canto da vasta sala.
Sylvie levantou-se e serviu-se, consciente que ele seguia cada um dos seus gestos. Após ter bebido alguns goles de vinho, Richelieu perguntou-lhe:
- Estais apaixonada por alguém?
A pergunta era tão inesperada que a jovem quase deixou cair o copo de cristal gravado. Recobrou o ânimo depressa, pousou o copo e voltando-se para o Cardeal, disse-lhe, olhando-o olhos nos olhos:
- Estou.
- Ah!...
Houve um silêncio, apenas preenchido pelo crepitar das chamas na chaminé. Sylvie preparava-se para regressar ao seu lugar, quando ele lhe pediu que o servisse.
- Eu também quero beber um pouco de vinho. Não sendo o vosso confessor, não vos perguntarei quem amais. Isso contraria-me, mas não me diz respeito.
- De qualquer modo, monsenhor, é uma pergunta à qual não responderei, mas estou contente que a tenhais feito.
- Porquê?
- Porque... ela hesitou um momento e, depois, pegando na coragem com as duas mãos, atirou: Porque assim monsenhor compreenderá melhor por que motivo não posso, de forma alguma, olhar favoravelmente para a pessoa que Vossa Eminência teve o cuidado de me apresentar.
- Esse pobre La Ferrière não vos agrada?
- Não, monsenhor. Mesmo nada! E não consigo imaginar como pôde ele rogar a Vossa Eminência que solicitasse a minha mão à senhora duquesa de Vendôme.
- Ah, sabeis disso?
- Sei, monsenhor... e suplico a Vossa Eminência que agradeça a M. de La Ferrière a honra que me concede, mas que lhe transmita, também, que lhe peço para não persistir numa tentativa que não o levará a lado nenhum.
- Mas que talvez pudesse ser da minha conveniência?
O tom de voz tornara-se mais rígido, mas Sylvie não se perturbou:
- Oh, monsenhor! Eu tenho muito pouca importância para que o meu destino preencha nem que seja um instante o de um príncipe da Igreja, de um ministro todo-poderoso.
Fez-se novamente silêncio e, depois, Richelieu estendeu a mão.
- Vinde cá, pequena! Mais perto! Sentai-vos neste lugar para que eu possa ler nos vossos olhos.
Sylvie obedeceu, indo sentar-se aos pés dele, sem procurar escapar ao olhar imperiosamente cravado no seu. E, subitamente, ele sorriu:
- Não tendes medo nenhum de mim, não é verdade?
Foi dito com tanta doçura que ela lhe retribuiu o sorriso:
- Não, monsenhor. Nenhum! - respondeu, sacudindo os brilhantes caracóis.
- Pois bem, ao menos sois franca! Só Deus sabe como é repousante para um homem como eu, que só vê fingimentos, rostos graves, aterrorizados ou depreciativos. À exceção, claro, do Rei e de algumas outras pessoas, bem raras. Então, se não me receais, vou propor-vos um negócio...
- Não tenho jeito nenhum para negócios, monsenhor, e...
- Para este caso não é preciso nenhum dom: não ouvireis mais falar do barão de La Ferrière mas, em troca, vireis algumas vezes cantar para mim!
A resposta chegou prontamente, de forma espontânea, enquanto os lindos olhos de avelã se punham a luzir:
- Oh! Com alegria! Tantas vezes quantas Vossa Eminência desejar! Claro... desde que a Rainha o autorize.
- Certamente! Podereis ter a certeza que não abusarei! Agora, cantai-me, novamente, alguma coisa!
Sylvie pegou novamente na guitarra mas, nessa altura, apareceu um homem que pareceu sair da tapeçaria, silencioso como um fantasma, um monge cuja idade lhe tinha aumentado o tamanho da coroa e desbastado a comprida barba. Richelieu fez um sinal para que Sylvie interrompesse o seu prelúdio.
- Que se passa, padre Joseph?
Sem responder, Joseph du Tremblay aproximou-se, inclinou-se ao ouvido do Cardeal e falou-lhe em voz baixa. O rosto descontraído de Richelieu endureceu imediatamente:
- Vamos providenciar!... Mlle. de L’Isle tenho de vos pedir para irdes embora, pois o meu trabalho chama-me. Mme. de Combalet, bem como a vossa “escolta”, estão na galeria à vossa espera. Estou-vos muito agradecido por estes momentos, mas quando regressardes, e espero que seja dentro em breve, enviar-vos-ei alguém para vos trazer, a fim de não desorganizar o serviço de Sua Majestade, a Rainha... que Deus vos guarde!
Sylvie concedeu-lhe uma graciosa reverência, retomou a sua guitarra e partiu ao encontro de Cinq-Mars e de Marie, que se mortificavam à espera.
- Então - disse o jovem - a julgar pelo tempo que decorreu, destes um autêntico concerto, não foi?
- Não vos lamenteis, ainda podia ter durado mais se não tivesse entrado um tal padre Joseph para reclamar a atenção do Cardeal.
- Brr! - exclamou Mlle. de Hautefort. -Só o nome desse velho provoca-me arrepios. Como achastes Sua Eminência?
- Muito amável! Até fui convidada a regressar, caso a Rainha o permita.
- Oh, permitirá! Acabastes de ver como é fácil dizer não ao Cardeal... A propósito, ele ofereceu-vos, ao menos, um presente?
- Não! exclamou Sylvie muito contente. Fez melhor que isso: prometeu-me que não se falaria mais sobre esse ridículo casamento com M de La Ferrière!
Entretanto desciam a escadaria de honra que o tenente civil de Paris vinha a subir. Saudou educadamente as duas raparigas, mas o seu olhar amarelado fixou-se em Sylvie com uma expressão de cólera que desmentia o sorriso crispado.
- Mas que homem tão vil! - comentou Cinq-Mars, quando chegaram ao pátio. - Nunca entenderei como é que o Cardeal, que demonstra tanto gosto noutras coisas, se compraz em estar rodeado por figuras tão sinistras, como esta ou a do padre Joseph!
- Então, e vós? - exclamou Aurora, rindo-se. - Sois dos seus íntimos, não? Não é a ele que deveis aquele lugar de chefe do guarda-roupa, que tivestes a ousadia de recusar?
- Aprecio que não tenhais empregue o termo loucura pois foi, no meu entender, a mais sábia resolução que já tomei! Um jovem da minha idade precisa de liberdade, de alegria e também de viver com os seus semelhantes.
- Com os alegres libertinos do Marais, por exemplo?
- E porque não? Agrada-me fazer-lhes companhia...
- E agrada-vos igualmente a de uma linda menina de quem se diz que está louca por vós...?
O rosto do jovem corou, mas foi de prazer:
- Gostaria que isso fosse verdade. É uma rainha, uma deusa...
- Diacho! Que lirismo! Mas se pretenderdes manter boas relações com o Cardeal, tende cuidado, diz-se que ela lhe agrada.
- Ele não é o único, longe disso! Minhas meninas, eis-vos de regresso ao vosso berço, beijo-vos as mãos e eis-me de volta aos meus afazeres!
Uma saudação profunda, uma pirueta, e o jovem tinha desaparecido como sol de pouca dura. As raparigas seguiram-no com o olhar e, depois, sempre escoltadas pelo pagem silencioso como uma sombra, dirigiram-se para os aposentos da Rainha, cujas janelas iluminavam o grande pátio. Já era tarde. Há muito tempo que os guardas da porta tinham sido substituídos pelos soldados da guarda real que asseguravam, à noite, a proteção dos aposentos. Era o marquês de Gesvres que se encarregava de os comandar severamente, mas as damas de honor sabiam que era possível entrar em casa da Rainha pela pequena escadaria que utilizavam todos os dias e que ligava os seus quartos e os antigos aposentos da rainha-mãe aos de Ana de Áustria. Entrava-se por uma porta pequena, guardada por um porteiro bonacheirão, que era bem benevolente para com aquelas senhoras.
Nessa noite o pátio Quadrado estava calmo e os aposentos do Rei encontravam-se imersos na obscuridade. Luís XIII partira ao fim da tarde para Saint-Germain, depois de uma desavença com Mlle. de La Fayette. Desentendimento que ameaçava durar, pois Luís XIII partia dois dias mais tarde para restabelecer a ordem na Normandia, onde o Parlamento fazia das suas. Era frequente que tal ocorresse e não havia ano nenhum em que não surgisse uma revolta nalgum lugar do seu reino, mas ter-lhe-ia sido necessário o dom de ubiquidade para acorrer a todos os lados ao mesmo tempo. Então, remediava ao mais urgente, mesmo quando a ausência lhe rasgava o coração. Naquela noite devia estar certamente a chorar no seu castelo de Saint-Germain meio vazio, enquanto que as lágrimas de Louise deviam derramar-se algures no Louvre...
Ignorantes deste novo drama, Marie e Sylvie iam bater à pequena porta, quando esta se abriu bruscamente. Surgiram dois homens que tiveram um gesto de recuo quando avistaram as duas raparigas, mas um deles colocou-se imediatamente à frente do companheiro, escondendo-o, enquanto fazia baloiçar o postigo da lanterna de furta fogo que trazia.
- Ah, eis-vos de volta, meninas! Sua Majestade começava a inquietar-se a vosso respeito. Ide depressa ter com ela, pois está nervosa. Quanto a mim, permiti que vos deixe ir sozinhas e que acompanhe o médico até lá fora!
- O médico? Quem está doente? - perguntou Mlle. de Hautefort.
- Dona Estefanille! Devorou tortas de creme até rebentar no jantar desta noite. Era preciso tratá-la imediatamente e a Rainha não quis que nos puséssemos à procura de um médico do Rei. Aliás, Bouvard está neste momento em Saint-Germain. Portanto, fui até à rua do Arbre-Sec buscar um médico de quem se diz grande bem, o doutor Dupré. Operou maravilhas e vou acompanhá-lo.
- Pobre Stéfanille! - riu Hautefort. - Sempre lhe disse que era muito gulosa!
Quanto a Sylvie, não dizia nada, contentando-se em olhar com curiosidade para o médico, coberto até aos olhos por uma espessa capa negra, enquanto a testa estava encoberta até às sobrancelhas, sob um chapéu redondo de burguês. Ele não disse nada, mas puxou impacientemente pela manga de La Porte que o levou imediatamente consigo.
- Que médico mais esquisito! - observou Sylvie. - Porque se esconde?
- Talvez tenha receio de apanhar um resfriamento. Vinde, estamos em plena corrente de ar!
Precipitou-se para a pequena antecâmara, mas Sylvie ficou ainda um momento à entrada. A silhueta do médico, que ultrapassava de uma cabeça a do companheiro e, sobretudo, a sua compleição, pareciam-lhe familiares. Apressou-se a ir ter com a companheira, que bradava contra a corrente de ar.
A Rainha estava no seu quarto, falando com Stéfanille que, para uma doente, parecia curiosamente em excelente forma. Era preciso que esse doutor Dupré fosse um grande homem! Falavam as duas em espanhol mas, graças a Perceval, Sylvie falava o castelhano e, ao passar, captou a última parte do diálogo.
- Julgais que aquilo que acabásteis de fazer seja prudente? - perguntou a aia, ocupada em retirar os diamantes em forma de meia-lua que enfeitavam a cabeça de Ana.
- Não vejo as coisas à tua maneira. O nosso amigo parte amanhã para a Touraine, à vista e com o conhecimento de todos. Pensei que seria uma boa idéia confiar-lhe uma carta para o meu cunhado. Ele tem de saber que o Cardeal acaba de enviar, mais uma vez, M. de Bautru para Sedan, com novas propostas para tentar pôr alguma sensatez na cabeça do Senhor Conde.
- Muito me espantaria que ele o conseguisse! - disse Marie de Hautefort, com a sua habitual liberdade de ação e de linguagem, e regressando à língua francesa (compreendia o espanhol, mas falava-o mal). Soissons jurou que só se submeteria quando o Cardeal estivesse morto ou caísse em desgraça! Esse também vos ama, Senhora!
- Dizeis disparates! Agora, gatinha, contai-me como decorreu a vossa visita.
- Pelo melhor, Senhora! - exclamou Marie. - A menina utilizou todo o seu charme, ficaram todos encantados e espera-se que seja possível renovar um destes dias tão grande prazer! Pelo menos é o que julgo, pois tanto eu como M. de Cinq-Mars ficamos à espera na antecâmara! Sylvie foi sozinha até ao antro do tigre, sob a égide da Combalet!
- E se a deixásseis falar?
- Não há mais nada a dizer, Senhora - confirmou Sylvie, com um sorriso tímido. - Mlle. de Hautefort traduz tão bem o que se passou como se tivesse estado presente.
- O Cardeal pediu-vos para voltardes?
- Pediu, mas respondi-lhe que só Vossa Majestade podia decidir, pois é a Vós que pertenço.
- E ele não vos propôs que passásseis a pertencer-lhe...? Em segredo, pelo menos?
- Não é tão estouvado quanto isso, Senhora - interveio novamente Aurora. - E nunca da primeira vez: contentou-se em propor-lhe um negócio.
- Um negócio? Nem é de acreditar! E de que gênero, por favor?
- Do gênero matrimonial. Caso Mlle. de L’Isle aceitar voltar de novo para encantar os seus sombrios devaneios, Sua Eminência promete que não se falará mais em oferecê-la a M. de La Ferrière.
A Rainha levantou-se tão bruscamente que vários dos seus cabelos ficaram no pente de Stéfanille. Os seus olhos verdes brilhavam com tal fúria que as suas narinas embranqueceram:
- Mas que desplante! Como se o destino desta criança só dependesse dele! Já devia saber que não se “oferece” uma das minhas damas de honor sem o meu consentimento. E ainda menos a um desses grosseirões, sem moral, nem religião. Nunca, escutai-me bem Sylvie, mas nunca, eu teria aceite esse casamento, nem que o Cardeal tivesse coberto de ouro o vosso pretendente. O que ele vos propôs é, portanto, um negócio sem qualquer conteúdo e se quiser ainda ouvir-vos, é a mim e não ao Rei que terá de o pedir.
Sylvie ajoelhou-se lentamente, pegou na mão de Ana e levou-a aos lábios. Tinha lágrimas nos olhos.
- Obrigada, Senhora! Obrigada, de todo o coração!
- Sede-me fiel, pequena, e nunca havereis de vos arrepender.
Já era uma hora mais que tardia quando Sylvie conseguiu finalmente adormecer. Seguramente devido aos nervos provocados por uma noite inabitual mas, sobretudo, porque havia a silhueta daquele médico que não conseguia erradicar do espírito. No entanto, conseguiu fazê-lo quando tomou por fim uma decisão e, logo no dia seguinte, durante um dos tempos livres que lhe conferia o seu serviço junto à Rainha, saiu com Jeannette, pretextando ir comprar umas luvas na loja de Mme. Lorrain, situada na rua Saint-Germain, uma artéria que cortava a rua do Arbre-Sec, onde trabalhava o “médico” de La Porte.
- Preciso que me descubras o endereço de um certo Dupré, que teria sido chamado ontem à noite para tratar de dona Estefanille - pediu a Jeannette. - Tudo o que sei é que ele mora na rua que passa precisamente por detrás de Saint-Germain-Auxerrois.
- Então o mais simples é entrar na igreja para rezar. Aí sempre se encontram mulheres do quarteirão e seria obra do diabo não encontrar nenhuma que me pudesse informar...
- O diabo? Numa igreja? - exclamou Sylvie, benzendo-se horrorizada. Jeannette fez o mesmo, mas desatou a rir:
- Escapou-se-me! Direi mais uma ave maria!
As vésperas estavam prestes a findar quando as duas mulheres, encobertas pelas suas capas encarapuçadas, penetraram no velho santuário, carregado de História, que era a paróquia do Louvre e cujos sinos haviam tocado a rebate na noite de São Bartolomeu[17]. Era uma magnífica igreja e quando se passava sob as suas abóbadas, que a mãe de Luís XIII mandara pintar num azul profundo, com flores de lis douradas, tinha-se verdadeiramente a impressão de estar num local mágico. Impressão tanto mais forte, porquanto, nesse dia, tendo a cerimônia acabado, a igreja se esvaziara. Só ficou o sacristão, ocupado em apagar as velas do altar. Jeannette foi ao seu encontro sem hesitar, enquanto a sua jovem senhora se ajoelhava para uma curta oração. A conversa não demorou muito. Graças a uma moeda, Jeannette não teve qualquer dificuldade em obter uma resposta que, todavia, não a satisfez, nem a ela nem, ainda menos, a Sylvie.
- Não há médico nenhum na rua Arbre-Sec. Para encontrar um é preciso ir até à rua da Ferronnerie...
- Ah!
Sylvie não ficou muito surpreendida. O aspecto do médico daquela noite cheirava a gentil-homem à distância, apesar das austeras vestimentas que convinham à suposta profissão. E a um gentil-homem que ela bem julgava ter reconhecido... Acabou a sua prece e, depois, foi comprar luvas, tal como havia dito. Não que tivesse grande necessidade, mas não gostava de mentir.
Nessa tarde, havia pouca gente no círculo da Rainha. Um rumor, vindo não se sabe de onde, mas que as tagarelas da Praça Real se deleitavam a difundir, pretendia que o Rei, seguindo os conselhos do Cardeal, pensava em repudiar uma mulher da qual não conseguia obter um filho e, seguindo os conselhos do seu próprio coração, oferecer o lugar a Mlle. de La Fayette. Não era preciso mais para que as damas e os nobres se tornassem menos assíduos. Em compensação, Mme. de Vendôme fez-se anunciar. Não aparecera nos últimos tempos, dado que se encontrava ocupada a aliviar as misérias que passavam ao alcance da sua escarcela. Sempre atarefada, mas sempre sorridente, com novas manchas de lama na parte de baixo das roupas e até um pouco ofegante por ter subido as escadarias demasiado depressa, entrou como uma bala de canhão e arremeteu direito à Rainha.
- Pois bem, duquesa, de onde vindes nesse estado? - perguntou esta.
- Do lupanar,[18] Senhora! - respondeu a visitante, ao inclinar-se numa reverência e sem se deixar perturbar pela risada geral que acolhia as suas palavras.
- Minhas senhoras, minhas senhoras! - interveio a Rainha, que não conseguira suster o riso. - Sabeis a profunda obra de caridade que Mme. de Vendôme pratica, aliás em consonância com o senhor Vincent que, quanto a ele, se ocupa dos filhos abandonados por essas infelizes. Algumas são empurradas pelo vício, mas outras suportam uma escravatura odiosa, à qual a duquesa tenta arrancá-las para as inserir numa vida honesta.
- Não é tarefa fácil! - resmungou Mme. de Guiménée. - É preciso coragem para ousar descer até esses antros...
- Ou poder estar sob a égide de uma virtude inatacável, o que não é o caso de toda a gente - lançou Mme. de Senecey, oferecendo um sorriso prazenteiro à princesa, cujas aventuras amorosas não eram segredo para ninguém.
Esta ficou imensamente ruborizada, pelo que, ao vê-lo, a Rainha se apressou a desviar a conversa, regressando a Mme. de Vendôme.
- Estais a tornar-vos uma raridade, minha irmã! E, mais ainda, a vossa filha, que nunca vem. Mesmo os vossos filhos nos deixam...
- Não o acrediteis! A pobre Elisabeth está acamada com febre e uma congestão pulmonar. Mercceur foi amuar para o pé de meu esposo em Chenonceaux. Não consegue recuperar da ruptura do seu casamento com Mlle. de Retz, pois não entende porque motivo desagradou ao Rei...
- É muito difícil saber o que agrada e o que desagrada ao Rei. Por vezes é preciso ter paciência: acontece-lhe mudar de opinião. E... M. de Beaufort?
- Foi esta manhã para Touraine... mas julgava, irmã, que o sabíeis?
- Não vejo como - respondeu Ana de Áustria com secura, agitando nervosamente o pequeno leque de seda que servia para lhe proteger o rosto dos ardores do lume.
Ocupando o seu lugar entre as damas de honor, Sylvie perdeu o fio da conversa, tanto mais que as duas mulheres baixaram o tom das vozes. Mas já percebera o suficiente. O seu instinto não a enganara: o pretenso médico era, nada mais, nada menos, que François que ao serviço da Rainha se lançara numa aventura que podia vir a revelar-se perigosa, desde que se tratasse de uma correspondência secreta entre a Rainha e o seu cunhado. Se o Cardeal o viesse a saber...
Nos dias que se seguiram voltou a encontrar-se duas vezes com Richelieu. Foi a própria Mme. de Combalet quem veio buscá-la e trazê-la de volta. As visitas desenrolaram-se, sob todos os aspectos, como a primeira: Sylvie cantou, enquanto o ministro acariciava um ou outro dos seus gatos; fez-lhe uma ou duas perguntas, aparentemente banais, sobre a infância dela em casa dos Vendôme e, depois, bebeu com ela um copo de vinho da Espanha ou de malvasia, antes de a devolver à sua guia. Da última vez ofereceu-lhe algumas moedas de ouro que ela quis recusar, de tal modo lhe parecia penoso aceitar uma gratificação. O Cardeal esteve prestes a zangar-se:
- Uma linda rapariga precisa sempre de adornos para comparecer na Corte. Além disso, não vou poder escutar-vos tão depressa. A Corte vai instalar-se em Saint-Germain, onde o Rei gosta de comungar pela Páscoa e eu próprio parto amanhã para o meu castelo em Reuil.
Esta notícia aliviou Sylvie. Na realidade, não gostava nada daquelas soirees[19] no Palácio do Cardeal. Quando não fechava os olhos, Richelieu olhava-a com uma fixidez que ela achava incômoda. Para mais, de uma das vezes, encontrara-se na presença do barão de La Ferrière e, apesar das garantias que lhe dera o Cardeal, ela não apreciara nada o modo como ele lambia os beiços, ao olhá-la sem nada dizer, como um gato que se prepara para trincar um ratinho.
Foi de coração ligeiro que ela e Jeannette se prepararam para seguir a Rainha até Saint-Germain. A jovem camareira mostrava, pelo seu lado, uma verdadeira alegria que intrigou a sua ama:
- Porque estás tão contente? Tu também não sabes se a nossa estadia em Saint-Germain nos irá agradar.
- Com certeza, mas espero que lá deixem ao menos de nos seguir.
- Seguir? Que queres dizer?
- Isso mesmo: sempre que saímos às compras ou para visitar M. de Raguenel, somos seguidas por um homem que tem o ar de criado de boa casa, de aspecto afável e que, aliás, nem sequer se esconde. Logo que damos um passo lá fora lá está ele, e quando alugamos uma liteira, ele também o faz.
- E não conseguiste descobrir quem era?
- É difícil. Afinal não faz nada de mal. Até vos segue, mesmo quando ides, à noite, ao Palácio do Cardeal. Sei-o, porque eu própria vos segui.
Sylvie desatou a rir.
- Pois bem, devemos fazer todos um lindo cortejo! Porque não me disseste nada?
- Para não vos transtornar. Afinal de contas, talvez se trate simplesmente de um apaixonado...?
- Veremos. De ora em diante, também eu ficarei de olhos bem abertos.
- Não vos preocupeis, quando regressarmos a Paris será Corentin quem se encarregará disso. Disse-lhe uma palavrinha! Não impede que esteja muito contente em ir para o campo. Lá, sinto-me melhor do que em qualquer outro lado.
E Jeannette foi dobrar as roupas de Sylvie, para as colocar numa mala.
A NOITE NO VAL-DE-GRACE
- Esta noite apareceu mais uma - anunciou Théophraste Renaudot, ao encontrar-se com Perceval de Raguenel sob a abóbada do Grande Châtelet, através da qual se chegava ao Pont-du-Change vindo da rua Saint-Denis. - É a terceira, desde há dois meses.
- E quem era?
O gazeteiro encolheu os ombros:
- Uma rapariga folgazona como das outras vezes, uma dessas que pretendem permanecer livres e que nunca compreenderão que assim se encontram muito mais expostas.
- Pode-se vê-la?
- Pode. Vinde!
Entraram na parte direita da velha fortaleza, onde a morgue se encontrava na parte de baixo das escadas que conduziam até às salas do tribunal. Tratava-se de uma sala baixa, estreita e de mau cheiro, fechada por uma porta com um postigo que permitia olhar para o interior, onde se expunham os corpos dos afogados que eram retirados do Sena e os daqueles que eram casualmente encontrados nas ruas. Ficavam ali, expostos na sua nudez trágica, até que passassem as irmãs de caridade do contíguo convento de Santa Catarina, que os cobririam com um sudário, antes de os levar para serem enterrados no cemitério dos Santos Inocentes.
Nesse dia havia dois corpos. O de um velho, que um pescador trouxera nas suas redes e o de uma jovem, cujo aspecto fez estremecer Perceval. Magra, exangue, era o cadáver de uma rapariga de cabelos escuros compridos, que lhe recordou vagamente Chiara.
- Foi degolada como as outras. - comentou Renaudot. - E, como nas outras, aparece isto.
Indicava o sinete de cera vermelha estampado na testa da infeliz.
- A letra omega!... - murmurou Perceval.
- Exato! É uma história muito estranha. Mas, vinde! Não fiquemos aqui. Se bem que já tenha o hábito, este lugar arrepia-me todo...
Voltaram ao ar livre com certo alívio, se bem que as proximidades do Grande Talho também exalassem um perfume pouco agradável, mas o Sena, cheio e alourado, propagava, naquele mês de Maio, odores de erva fresca e de maresia.
- Contáveis ir a minha casa? - perguntou Renaudot.
- Hoje é segunda. - respondeu Raguenel, esforçando-se por sorrir. - E sabeis o interesse que tenho pelas vossas palestras...
Caminharam por entre a dupla fila de casas altas que albergavam os joalheiros e os cambistas que ladeavam o Pont-au-Change, para alcançarem o Mercado Novo e a rua Calandre, na ilha da Cite. Era aí que morava Théophraste Renaudot, sob a insígnia do Grande Galo, numa casa enorme onde encontrara maneira de arranjar um alojamento para a sua família, instalar os escritórios da Gazette, um acolhimento para os miseráveis que nunca faltavam nas proximidades de Notre-Dame e do Hôtel-Dieu e uma grande sala onde, todas as segundas-feiras, desde o dia 22 de Agosto de 1633, se podia assistir ao que se chamava “A Conferência”. Esta reunião era fruto de uma idéia inteiramente nova, pois todos, independentemente da idade ou da condição, podiam expor as suas impressões e idéias sobre um tema escolhido antecipadamente. E Renaudot, depois de se dedicar a este exercício durante quatro anos, conseguira atrair muitos frequentadores habituais burgueses, na sua maioria que pensavam mais longe que o alcance das suas bolsas e que se esforçavam, conjuntamente, por encontrar respostas às questões que diziam respeito às noções do bem e do mal que se colocavam às suas consciências. Na realidade, Renaudot trazia uma contrapartida plebéia aos “gabinetes de pesquisa e de curiosidades” que se desenrolavam em casa das grandes personagens principalmente dos parlamentares como o presidente de Mesme e M. de Thou cuja fortuna permitia efetuar as pesquisas e a compra de obras de caráter científico. As mulheres não eram admitidas, mas tinham os seus próprios cenáculos onde se reuniam as preciosas e as pessoas cultas.
A idéia desta “conferência” ocorrera a Renaudot dois anos após a criação da sua Gazette, que publicava os seus trabalhos enquanto, ao mesmo tempo, lhe assegurava uma honesta publicidade, permitindo-lhe, por vezes, inserir notícias tanto mais interessantes porquanto o anonimato era preservado para aqueles que nela escrevessem. O Rei e Richelieu, colaboradores discretos, mas importantes, da Gazette, não deixavam de se interessar por essas novidades. Quanto a Perceval, desde que encontrara o publicista há um ano, tomara o hábito de assistir às reuniões todos os princípios da semana.
- Que vamos hoje debater? - perguntou, enquanto entravam no labirinto de ruelas que levavam ao Mercado Novo.
- A vida em sociedade, mas pergunto-me se não irei pedir uma exceção quanto à ordem dos trabalhos, propondo que nos interessemos pela segurança das ruas, à noite.
- Não estou certo que vos sigam. A vida das prostitutas não apresentará nenhum interesse para pessoas imbuídas de respeitabilidade. Que sejam assassinadas deve-lhes parecer a ordem natural das coisas...
- Ainda assim, existem as circunstâncias excepcionais desses crimes. Quem poderá dizer se, depois das prostitutas, o assassino não escolherá as mulheres de sociedade?
O desenrolar da jornada deu razão a Perceval. Os homens presentes, dos quais vários haviam preparado as suas intervenções, concordaram entre eles para declarar que as raparigas de má vida não podiam ser inseridas na “sociedade” e que o que lhes acontecia não interessava a ninguém.
- À exceção do senhor Vincent, da senhora duquesa de Vendôme e de outras tantas almas caridosas! - indignou-se Perceval. - Trata-se de seres humanos e o destino que colheram é medonho.
- De acordo - disse alguém - mas a sua investigação é da incumbência do tenente civil e da polícia. É a eles que diz respeito.
- Não. Tem a ver com todos nós! Vós reagistes dessa maneira porque se trata de pobres criaturas que fazem comércio dos seus corpos mas, e se o assassino atacar uma mulher da sociedade, uma das vossas, por exemplo?
A questão foi saudada por uma gargalhada geral.
- Ora vejamos, era impossível! Nenhuma mulher que se respeitasse iria aventurar-se nos antros de Paris! E, ainda por cima, à noite!
- E se vos dissesse - insistiu Raguenel - que há uma dezena de anos ocorreu na província um crime semelhante a este em todos os aspectos e que a vítima foi uma nobre senhora?
Renaudot, que seguia o debate com uma atenção apaixonada, interveio:
- O mesmo crime? As mesmas circunstâncias?
- As mesmas. Além disso, a dama foi violada, o que talvez tenha acontecido a estas infelizes mas, dada a profissão delas, o termo perde neste caso o seu significado. E nunca teríamos tido a idéia de vos falar acerca disto se a letra grega, com a qual é marcada a testa das mortas, não indicasse que se trata de um homem de uma certa cultura e que poderia, - por que não?, - pertencer a esta assembléia.
A tempestade de protestos que se seguiu era a menos propícia possível para uma discussão séria. Renaudot pôs-lhe termo com a sua habitual energia declarando que, no que lhe dizia respeito, faria todos os esforços ao seu alcance para encontrar o assassino do sinete de cera vermelha e que convidava todas as pessoas de boa vontade presentes na sala a informá-lo, caso uma delas viesse a descobrir uma pista. Dito isto, deu por finda a sessão, dizendo que os espíritos não estavam suficientemente serenos para se poder discutir com a necessária calma. Tinha visivelmente pressa para acabar e reteve Perceval, enquanto a corrente dos convidados, ainda agitados, se escoava.
- Porque não me contastes essa história da nobre dama quando vos falei da primeira vítima como uma espécie de curiosidade?
- Porque queria ter tempo para refletir e talvez para tentar eu próprio encontrar o assassino mas, aparentemente, não sou muito dotado - concluiu Raguenel, com um sorriso amargo. - De qualquer modo, caso não tivesse havido conferência, ter-vos-ia posto ao corrente.
- Vamos até minha casa! Lá estaremos em tranquilidade: a minha mulher está em casa de uma prima na rua dos Francs-Bourgeois e o meu filho Eusèbe está ocupado a montar a Gazette.
Com a sua curiosidade sempre desperta, excitada ao mais alto grau, o pai de todos os jornalistas vindouros quase batia com os pés no chão de impaciência. Só se descontraiu quando se sentou frente a Raguenel, numa mesa atulhada de copos e de um pichel de vinho fresco.
- Pronto! Agora, sou todo ouvidos.
- Há uma condição: aquilo que irei dizer-vos é só para ser escutado pelos vossos ouvidos. Está fora de questão fazer qualquer referência ao assunto na Gazette... ou em qualquer outro sítio.
- Tendes a minha palavra.
Perceval começou então a narrar a matança de La Ferrière, abstendo-se, contudo, de mencionar a existência de Sylvie. Gostava muito de Théophraste e tinha confiança nele, mas este era muito chegado ao Cardeal para lhe poder contar tudo...
Em Saint-Germain, desenrolava-se entretanto o último ato do drama que germinava desde há vários meses.
Era dia 19 de Maio, um coche esperava por Mlle. de La Fayette, no pátio do castelo. Nesse dia, a amiga do Rei despedia-se do mundo para entrar no ofício religioso das Filhas da Visitação de Santa Maria. Acabava assim a bela história de amor de Luís XIII, corroída por demasiados interesses opostos. A profunda piedade e o desespero de Louise juntavam-se à vontade do Cardeal que, não tendo conseguido que ela se tornasse uma das suas fiéis criaturas, desejava o seu afastamento apesar da família da jovem e do confessor do Rei, o padre Caussin, que reconhecera a vocação religiosa dela mas que, por detestar Richelieu, desejava que ela permanecesse ao pé do Rei tanto tempo quanto possível e, enfim, também contra a resistência desesperada de Luís XIII, atormentado até à alma com a idéia de perder aquela a quem chamava o seu “belo lírio”. A causa daquela decisão era devida a um criado, um simples e vil criado, um certo Boisenval que devia contudo a Louise o seu lugar de primeiro criado grave do Rei tratava-se do único favor que ela lhe pedira, e que, possuindo a confiança de ambos, tinha feito tudo o que pudera para que se zangassem um com o outro, na esperança de cair nas boas graças do Cardeal ministro. Fora um desses desavisados que levara Luís XIII, doido de amor, a ter a ousadia de fazer a proposta insensata que Sylvie surpreendera no parque de Fontainebleau: retirar a jovem da Corte e instalá-la em Versalhes, para lá poderem pertencer finalmente um ao outro. Nessa altura o pudor de Louise medira a profundidade do abismo que a ameaçava... e no qual ela tanto desejava fervorosamente cair. Finalmente, tomara a sua decisão, despedindo-se da Rainha e das suas companheiras.
O acaso quis que a Corte estivesse de luto. O imperador Ferdinando II, tio de Ana de Áustria, acabara de falecer e os trajes negros e os escapulários tinham substituído as cores cintilantes e os decotes sedutores. Isso ajustava-se bem ao sofrimento daquela que partia, num ato de renúncia, e foi no meio de lágrimas sinceras que Louise de La Fayette subiu para a carruagem e deixou Saint-Germain para se dirigir para o convento da rua de Saint-Antoine.
Quanto a Luís, reprimindo as lágrimas, saltara para cima do cavalo uns momentos antes, a fim de ir esconder a dor no seu querido Versalhes, arrancando da bem-amada um derradeiro grito de amor:
- Ai de mim! Não voltarei a ver-vos!
Nisso, ela enganava-se.
Mal tinham desaparecido o coche de um e os cavaleiros do outro e já a Rainha pedia as suas próprias carruagens para regressar a Paris. Na ausência do Rei, preferia pôr uma maior distância entre ela e o Cardeal, sempre instalado no seu castelo em Reuil, no meio das suas estufas e dos seus gatos. Além disso, o tempo tépido, cinzento e pluvioso, tornava infinitamente triste a paisagem da floresta vizinha. Finalmente, regressada a Primavera, e tendo em vista as próximas operações, numerosos jovens iriam incorporar os diferentes corpos do exército; no Midi, onde o Rei ordenara que se reconquistasse as ilhas Lérins aos Espanhóis; no Norte, onde o exército do Cardeal Infante, irmão da Rainha, não ia tardar a manifestar-se; a Leste, onde, em Champagne, se reuniam homens para marchar até Sedan, onde o conde de Soissons, recusando qualquer submissão, se mantinha entrincheirado. Quanto à revolta dos Camponeses no Périgord, o marechal de La Valette dispunha de homens em número suficiente para dar conta do recado.
Durante a viagem de regresso, Sylvie notou que Sua Majestade cochichava muito com Mlle. de Hautefort, que instalara a seu lado. Por um motivo que só ela conhecia, Marie parecia encantada por regressar àquele Louvre, do qual, contudo, não gostava nada.
A própria Sylvie não se sentia descontente por se aproximar do hotel de Vendôme, ao qual contava enviar Jeannette procurar notícias sobre François, de quem não sabia mais nada desde que estavam em Saint-Germain.
Tal como receava, Jeannette regressou de mãos a abanar: a família estava no campo e nada se sabia acerca do senhor duque de Beaufort. Só lhe restava olhar para a chuva que caía, enquanto dedilhava melancolicamente as cordas da guitarra.
Uma manhã, três dias após o regresso, Jeannette entregou-lhe um bilhete que acabara de trazer um dos criados que tinham ficado na rua Saint-Honoré. O seu conteúdo fez pular-lhe o coração: “Vinde gatinha! Preciso de falar-vos segredamente. Após o deitar da Rainha, uma carruagem esperar-vos-á frente à igreja”. Havia muitos erros ortográficos, redigidos com uma letra desajeitada, mas trazia a assinatura de François, que Sylvie desde sempre sabia como desprezava a arte de bem escrever. Apertou o bilhete de encontro ao coração, cobriu-o de beijos e meteu-o no corpete.
- Esta noite quero pôr-me bonita! - declarou a Jeannette, que ria ao vê-la tão feliz.
- Que contais vestir? O lindo vestido branco?
- Não exageremos. Não se trata de um baile nem de uma grande soirée. Prefiro antes o vestido em tafetá cor de limão, bordado com margaridas brancas e com uma renda à volta do decote. Ele gosta dessa cor, que diz parecer trazer o Sol. O que não é má idéia atendendo a este triste tempo!
- Tranquilizai-vos, ficareis bem bonita!
Efetivamente, pouco depois, o seu espelho confirmava-o. Em seguida, Jeannette colocou-lhe, sobre o vestido, uma grande capa com um capuz de seda preta debruado em veludo, que a dissimulava completamente, antes de se cobrir ela própria. Estava fora de questão que Sylvie saísse sozinha enquanto não fosse adulta... e mesmo então! Esperá-la-ia na carruagem.
Conhecendo os hábitos do palácio e dispondo dos meios para nele entrar e sair à vontade, as duas mulheres chegaram sem estorvo às imediações de Saint-Germain-Auxerrois, onde as esperava efetivamente uma carruagem com as insígnias dos Vendôme, conduzida por Picard, um dos cocheiros da casa.
- Estás a ver que me podias ter deixado vir sozinha - disse Sylvie ao subir para o veículo.
- E deixar-vos atravessar a rua d’Autriche às onze da noite, com a vossa idade e desprotegida? Nem pensar! Onde quer que fordes acompanhar-vos-ei!
Era bom sentir-se assim protegida e Sylvie procurou a mão da sua fiel companheira para a apertar na sua. Entretanto a carruagem começou a andar, mas voltou à direita, em vez de voltar à esquerda para desembocar na rua Saint-Honoré. Sylvie afastou as cortinas e inclinou-se para interpelar Picard:
- Onde me levais?
- Onde me ordenaram de vos levar, menina. Tende a amabilidade de fechar as cortinas, por favor!
À espera impaciente da jovem encheu-se de curiosidade-. François esperá-la-ia numa casa sua? Que poderia haver de tão secreto para que ele não tivesse podido vir dizê-lo ao Louvre? Ou então... desejaria estar um momento a sós com ela? Que maravilhoso seria! Este pensamento fê-la corar de emoção e a viagem pareceu-lhe interminável. Entretanto, Jeannette entreabria discretamente as cortinas para seguir, tanto quanto possível, o caminho que tomavam.
- Dirigimo-nos algures para o Marais - disse baixinho. - Oh, estou a ver as torres da Bastilha e os fogos que acendem lá de noite!
Pouco depois a carruagem entrava numa rua estreita, para passar depois para um pátio de uma pequena residência, mais pequena que a de Raguenel, e quase sem iluminação, cujo pórtico se abriu com a chegada do ruído dos cascos dos cavalos, para logo se fechar, de imediato. A silhueta de um criado desenhou-se como uma sombra chinesa através de uma luz fraca proveniente do vestíbulo. Sylvie desceu sozinha e encaminhou-se para ele. O local só estava mobilado com um cofre, sobre o qual se encontrava um candelabro com três braços no qual o homem um desconhecido pegou, para guiar a visitante através de uma vetusta escadaria, cujos degraus estavam, aqui e além, desconjuntados. Depois, passaram por uma estreita galeria em que as franjas das tapeçarias cheiravam a mofo. Sylvie não conseguia compreender o que poderia estar a fazer François, sempre imponente, num sítio daqueles, quando lhe abriram uma porta à sua frente.
O cenário mudou. Encontrava-se agora num grande gabinete revestido de couro de Cordova, pintado e dourado, mobilado como um salão de conversas, com poltronas confortáveis, colocadas junto a uma mesa que continha os restos de um jantar e que a jovem encarou com um olhar severo. Conhecia o proverbial apetite de François, mas dada a circunstância, ele bem a podia ter convidado. Tendo ficado sozinha, rodopiou para inspecionar cada recanto da sala e teve de se render à evidência: não estava ali ninguém. Sentou-se numa poltrona e, depois, avistando um cestinho com cerejas, pegou num punhado que começou a comer, lançando depois os caroços e os pés na chaminé onde ardia um fogo para combater a umidade fresca da noite. Demasiado enervada com o encontro, só conseguira comer, antes um pedaço de rosquilho.
As cerejas estavam deliciosas mas, à medida que as ia comendo, Sylvie sentia aumentar o seu descontentamento: porque motivo François a obrigava a esperar daquela maneira? Foi buscar mais algumas e voltava para o seu lugar quando se abriu uma porta dissimulada no forro de madeira da parede. Entrou um homem que não era François, mas sim o duque César. A surpresa e, sobretudo, o desengano, atingiram Sylvie e fizeram-lhe esquecer a sua boa educação, ao mesmo tempo que as cerejas se lhe escapavam dos dedos..
- O quê? Sois vós? - exclamou. Ele não esperava visivelmente um acolhimento daqueles. Ao atrasar a sua chegada, contara esmagar de temor e respeito a rapariga. Ora, esta fitava-o, com os olhos dardejantes de cólera e sem pensar sequer saudá-lo.
- Se não o soubesse, teria perguntado onde fostes educada, minha filha. Que é feito dos modos que a duquesa se esmerou em inculcar-vos?
Sylvie compreendeu que era preciso acalmar-se e que não lhe serviria de nada se persistisse na sua atitude. Aquele homem, de quem nunca gostara, era o pai de François e devia ser tratado com certo cuidado. Com uma graça encantadora, inclinou-se numa profunda reverência:
- Monsenhor! - murmurou. Em seguida, como ele não se apressasse em ajudá-la a erguer-se, acrescentou: - Deveis compreender a minha surpresa; recebi uma carta de F... senhor duque de Beaufort, vim imediatamente e...
- ...e destes comigo. Concedo-vos o efeito de surpresa, mas era preciso que vos falasse.
- Nesse caso, porque utilizar o nome de vosso filho? Bastava terdes-me chamado e eu teria vindo.
- Era possível, mas não certo. Por outro lado, o bilhete podia transviar-se, caindo em mãos indesejáveis, e recordo-vos que o Rei me proibiu não só de comparecer na Corte como também de viver em Paris. Erguei-vos, que diabo!
- De bom grado, monsenhor! - desabafou Sylvie, que começava a sentir que perdia o equilíbrio. Permaneceu de pé e olhou-o com alguma tristeza. Já há algum tempo que não o via, mas pensou que o exílio dele, mesmo dourado, não lhe fizera bem.
Aos quarenta e três anos, César de Vendôme parecia-se com uma cópia envelhecida e estragada de François. Se ainda não ganhara barriga, isso devia-se ao fato de ser, como todos os Bourbons, um caçador aguerrido e de efetuar longas cavalgadas e manejar as armas, exercícios que lhe conservavam a silhueta e a musculatura. Quanto ao rosto, revelava as marcas das paixões e dos vícios que devoravam aquele homem. Tal como François, era muito alto, com uma compleição atlética, possuindo, também como ele, um nariz arrogante e os olhos azuis do seu pai, mas estes estavam agora injetados de sangue, a boca amolecida, os dentes, outrora magníficos, amarelecidos, e os cabelos louros não só se tinham acinzentado como revelavam abertas, enquanto o nariz começava a mostrar borbulhas devidas às numerosas vezes que bebia. Que outra coisa se podia fazer no campo, depois da caça, senão beber? E, sobretudo, dedicar-se à viva atração que tinha pelos rapazes que recompensava copiosamente, cavando, desse modo, buracos inquietantes na sua fortuna, enquanto a saudade lancinante do seu governo da Bretanha, onde se sentia rei, o corroía desalmadamente. Tinham-lhe devolvido o título, mas não a função e até lhe era proibido lá voltar. Ora aquele homem da terra, fruto de uma bela mulher da Picardia e de um homem do Béarn que prezava cada parcela de um reino conquistado arduamente, adorava o mar. Fora a única das paixões que transmitira ao seu filho mais novo.
Pelo seu lado, César examinava a adolescente com um certo espanto. O quê, era aquela minúscula ameixa seca de tez indistinta, cuja única beleza residia nos olhos enormes cor de avelã, que François trouxera para casa como se fosse um gato perdido e que a sua mulher e filha tinham tomado sob proteção? Nunca atingiria, certamente, a beleza de madona de sua mãe mas, ainda assim, a mudança era impressionante. Com a sua boca ligeiramente grande, o nariz curto e a forma levemente alongada dos olhos, lembrava sempre um gatinho, alcunha que lhe dera Elisabeth. Só que entretanto a tez clara dourara e o monte dos caracóis castanhos, preso por fitas amarelas por cima de cada orelha, mostrava agora, na sua espessura sedosa, reflexos quase prateados de um efeito deslumbrante. Ela nada tinha de uma madona, mas a sua carinha matreira não era desprovida de charme. Em resumo, aquela rapariga, em que já se notava o efeito do tom da Corte, sem dúvida que seduziria mais do que um homem. O importante era que Beaufort não fizesse parte do número e César sentiu-se confortado com um projeto ao qual teria talvez renunciado, caso se tivesse apercebido que “Mlle. de L’Isle” era apagada e insignificante.
- Sentai-vos! - disse, finalmente, apontando a poltrona da qual ela se levantara e indo ele próprio encostar-se à mesa de jantar. - E, antes de mais, respondei-me a uma pergunta: quais os vossos sentimentos em relação ao meu filho Beaufort?
Perante a brutalidade daquelas palavras, Sylvie ficou tão vermelha quanto as cerejas de há pouco. Aquele homem, cujos olhos gelados dardejavam na sua direção, com um meio sorriso sarcástico que se desenhava no canto dos lábios, era bem a última pessoa no mundo a quem desejava abrir o seu coração. Teria preferido Richelieu que, pelo menos, lhe mostrara alguma simpatia. Contudo tentou controlar a voz para impedi-la de tremer.
- Todas as pessoas de vossa família me são queridas, monsenhor. Pelo menos aqueles que se mostraram bons para comigo.
- O que exclui Mercceur, que não gosta nada de vós e eu próprio...
- ... que gostais ainda menos de mim. No entanto, monsenhor, destes-me provas de uma grande generosidade ao conceder-me um nome, bens, enfim, uma posição...
- É à duquesa que deveis isso tudo. Ela é a mulher mais teimosa ao cimo da terra, agora que a mãe faleceu. Mas, enfim, estou satisfeito por vos ver reconhecida e espero que saibais demonstrá-lo. Mas... não respondestes à minha pergunta! Amais Beaufort, tal como estão todos persuadidos em nossa casa? Aquilo que chamo amar. Sim ou não?
Sylvie ergueu a cabeça e olhou diretamente para aquele que a examinava:
- Sim. - Sem mais, mas com tanta firmeza que não era possível duvidar. Depois, como César não dizia nada e continuava a olhar para ela, apertou uma mão na outra com muita força e acrescentou:
- Penso que sempre o amei, desde a altura em que ele me encontrou na floresta e estou certa de que nunca amarei outra pessoa.
Foi dito com simplicidade: era uma simples constatação que, por isso mesmo, ainda mais força tinha. Vendôme não duvidou da palavra dela nem por um instante. Contudo, queria saber mais.
- Mesmo assim não imaginais que um dia vos podereis tornar sua mulher? Visto que não será de Malta, Beaufort só poderá unir-se a uma princesa.
- Sei disso tudo, mas para se amar não é preciso um casamento. Também não é preciso estar sempre juntos. O verdadeiro amor aguenta tudo: o afastamento, as separações, a solidão e, até, a morte.
- Quem diabo vos pôde ensinar isso tudo? - exclamou César, surpreendido pela filosofia daquela rapariga. - O caro Raguenel, que foi vosso mestre?
- Não, ninguém. Creio, monsenhor, que sempre o soube.
- Pois bem, isso é tudo muito bonito, mas é preciso ver o que vai dar na prática e, se vos mandei buscar, foi para julgar a solidez do vosso amor. Se Beaufort corresse perigo, que faríeis?
O coração de Sylvie parou um momento, mas ela não deixou transparecer nada:
- O que estivesse em meu poder para o ajudar.
- É o que vamos ver! Ele corre perigo - disse o duque, frisando bem cada sílaba.
- Que tipo de perigo?
- Perigo de morte, caso lhe ponham a mão em cima. O que, felizmente, ainda não sucedeu.
- Meu Deus! Mas o que é que aconteceu?
- Bateu-se em duelo em Chenonceau e matou o seu adversário.
- Aterrorizada, Sylvie fechou os olhos por um momento. Sabia até que ponto os éditos de Richelieu eram implacáveis a este propósito. Fora um duelo que levara Montmorency-Bouteville até ao cadafalso. O terrível Cardeal não hesitaria nem um momento em enviar, também, um neto de Henrique IV. Quem sabe se não lhe daria até prazer?
- A que propósito ocorreu o duelo?
Vendôme hesitava em responder mas Sylvie, erguendo para ele um olhar límpido, acrescentou:
- Uma... mulher?
- Sim. Mme. de Montbazon, que talvez ignoreis que é sua amante desfechou brutalmente. M. de Thouars disse mal dela perante o meu filho, que não o suportou, pelo que cumpriu o seu dever de amante e gentil-homem. Mme. de Montbazon está louca por ele...
- Mas ele ama outra pessoa - rematou Sylvie. - O que está de acordo com a natureza das coisas...
- Outra mulher? E quem?
- Se não o sabeis, deveis supor de quem se trata. Cheguei a pensar se a bela duquesa de Montbazon não seria apenas um lindo biombo. E é precisamente essa outra mulher que agravaria o caso dele se, por infortúnio, os homens do Cardeal lhe pusessem a mão em cima. Onde é que ele está?
- Não vos direi e, de momento, o duelo ainda é secreto. Contudo sempre se podem desencadear correntes de ar. Se Richelieu vier a sabê-lo, enviará um dos seus torcionários, Laffemas ou Laubardemont, para extorquir a verdade às testemunhas ou aos criados. E esses trastes conseguiriam que S. Pedro confessasse ter querido violar a Virgem Santa, de tal modo os métodos por eles empregues são abomináveis. Se Beaufort for apanhado, nada o poderá salvar... a não ser vós... talvez?
- Eu? Mas que poderei fazer?
O duque César esperou um momento, abandonou a sua postura descontraída e foi abrir um armário, de onde tirou algo.
- Afirmaram-me que estais de excelentes relações com o Cardeal...
- Isso é um pouco exagerado. Tive a honra de ir três vezes cantar para ele, no seu palácio. Reconheço que me tratou com certa bondade...
- Portanto, não desconfia de vós! Excelente!
- Não vejo por que motivo... - disse Sylvie, em que a inquietação começava a despontar. Não gostava do sorriso cruel com o qual Vendôme contemplava tudo o que tivesse na palma da mão.
- Pois bem vou abrir-vos os olhos e, ao mesmo tempo, vou julgar a solidez desse grande amor que afirmais sentir: se François for preso, nada o poderá salvar exceto...
- Exceto?
- A morte de Richelieu. Se o perigo se tornar extremo, fareis com que o Manto Vermelho vos peça para irdes adormecer as suas dores com a vossa música... e adormecê-lo-eis definitivamente.
Desta vez a garganta de Sylvie secou abruptamente.
- O quê? Desejais que eu...
- Que o enveneneis... com isto! - disse, colocando-lhe sob o nariz um pequeno frasco de vidro muito escuro, cuidadosamente fechado com uma tampa em emeril. - Não vos deve ser difícil: soube que, a cada uma das vossas visitas, bebeis um pouco de vinho de Espanha e que preparais um outro copo para o vosso hospedeiro.
Pelos vistos ele sabia muitas coisas mas Sylvie, arrebatada de indignação, adiou para mais tarde a sua interrogação acerca daquele, daquela ou daqueles que o informavam.
- Eu? Fazer uma coisa dessas? Verter a morte discretamente e depois estendê-la, com um sorriso, imagino? A quem me recebe sem desconfiança? Por que não o pedis a qualquer criado assalariado? Há um exército deles no Palácio do Cardeal!
- Por uma razão muito simples: Richelieu manda provar tudo aquilo que bebe e come. Aliás, é um trabalho que executareis sem sequer dar por isso, pois imagino que deveis beber antes dele.
- Sim, é verdade. Ele nunca é o primeiro a beber. Será, pois, tão desconfiado?
- Mais que isso. É verdade que gosta de gatos, mas se existe uma tal quantidade deles nas suas residências, também não é sem motivo. Pegai neste frasco!
- Não. Nunca incorrerei em ato tão vil, tão cobarde. Se desejais a morte de Richelieu, atacai-lo vós mesmo, frente a frente e de cara descoberta.
Vendôme exalou um longo suspiro e encolheu os ombros:
- Pergunto-me se Raguenel não vos fez ler demasiados romances de cavalaria. Nos nossos dias, é preciso matar ou é-se morto... Agora se quiserdes que Beaufort suba ao cadafalso para que lhe cortem a cabeça...
- Não! Meu Deus, não!
Ela gritara, pois num intervalo de um segundo, a sua imaginação revelara-lhe a imagem atroz que o duque evocara.
- Então, minha querida, tereis de escolher entre esse velho precoce já roído pela doença e aquele que pretendeis amar mas, caso Beaufort seja preso, será preciso que escolheis bem depressa.
Aterrorizada por aquela horrível transação, ela tentou discutir:
- Ainda não o prenderam?
- Já vos disse que ainda não, mas isso pode acontecer de um momento para o outro e acreditai que vos porei ao corrente.
- Nada indica que o Cardeal voltará a chamar-me. Ainda não o fez desde que está no castelo em Rueil.
- Isso não quer dizer nada. O Louvre fica mais próximo da residência dele que Saint-Germain da sua propriedade de veraneio, onde dispõe aliás de outras distrações, mas ele há-de lá voltar. Se o meu filho for preso, encarcerá-lo-ão, certamente, na Bastilha e esse maldito homem de vermelho, todo contente por tê-lo finalmente à sua disposição, desejará aproximar-se, a fim de gozar mais comodamente dos suplícios que lhe preparam.
- Nesse caso, não me pediria certamente para ir cantar. Teria, como o dizeis, outras distrações...
- Ora, ora! Quererá desfrutar da vossa angústia. Vós sois um encantador bibelot: deve ser divertido ver sofrer um bibelot, não?...
- Estais na posição indicada para o saber, monsenhor - disse amargamente a jovem - e não me parece que isso vos divirta. Se receia os homens do Cardeal, por que não foge monsenhor François?
- Porque ele é doido e dá-lhe gozo brincar ao gato e ao rato, mesmo que seja ele o rato. Isto é, creio que nenhuma força do mundo poderia convencê-lo a deixar a França, onde o seu coração tem tantos pontos de interesse. Pegai nisto! E agi como vos mandei, ficando a saber o seguinte: se a cabeça de Beaufort for posta no cepo, não vivereis tempo que chegue para chorá-lo: eu mesmo vos estrangularei com as minhas próprias mãos.
- Não teríeis esse trabalho, monsenhor - retorquiu Sylvie. - Se ele morrer também eu morrerei, sem precisar do auxílio de vossas mãos. Obedecer-vos equivale a assinar a minha condenação. Julgais que o Rei me deixaria viver se eu matasse o seu ministro?
- Se fordes suficientemente lesta, ninguém desconfiará de vós. Não haveis bebido antes dele? É no copo dele, ao verter o vinho, que é preciso derramar isto. Asseguraram-me que se trata de um veneno rápido, algo como a água Tofana, tão ao gosto dos Venezianos... Além disso - acrescentou cinicamente - se fordes apanhada, pelo menos tereis a satisfação de saber que salvastes a vida daquele que amais...
Decididamente, Sylvie não podia esperar grande coisa de Vendôme. Estendeu a mão:
- Dai-me isso! - disse apenas.
Um largo sorriso espalhou-se pelo rosto sombrio de César:
- Ora bem, valeis mais do que aquilo que eu pensava! Naturalmente, isto deve ficar entre nós.
Foi então que Sylvie deu largas à cólera que fervia há um momento dentro dela.
- Não me tomeis por um patinho, senhor duque! Que julgais que vou fazer? Agitar isto sob o nariz da primeira pessoa que encontrar, para lhe dizer que tendo vós jurado a perda do Cardeal, não encontrastes nada melhor que fazer de mim uma envenenadora? Se a senhora duquesa soubesse tal coisa morreria e eu não desejo causar-lhe o mínimo desgosto.
- Então fazei que ela não tenha o de perder o filho!
- Para vós, isto é muito fácil! Em todo o caso gostaria de saber o que podereis contar a monsenhor de Cospéan da próxima vez que vos fordes confessar! Certamente nada que tenha a ver com isto - acrescentou, agitando o frasco. - Nesse caso, a vossa confissão de nada valerá e ireis diretamente para o inferno se por acaso a morte vier buscar-vos antes de vos poderdes lavar deste crime. E será bem feito!
E depois de desferir esta flecha certeira, Sylvie meteu o frasco num bolso do vestido, pegou na capa que retirara ao chegar e voltando as costas ao duque sem lhe dirigir a mínima saudação, ergueu bem alto o pequeno nariz e abandonou a sala em passos rápidos, com a majestade de uma rainha.
Todavia, ao chegar ao fundo da escadaria, parou para recobrar fôlego, como se acabasse de correr uma longa distância. O seu coração dava pulos e receou desmaiar. Para se acalmar foi sentar-se em cima do velho cofre, com a vontade súbita de beber o conteúdo do maldito frasco, acabando de uma vez por todas com uma existência que não tinha mais nada para lhe oferecer. François batera-se por uma mulher que era sua amante, mas amava outra que não era e nunca seria ela. Mas depois lembrou-se que a sua morte não ajudaria François, caso decidisse morrer naquele instante. Era verdade que ele corria grande perigo, pois não poderia contar com piedade alguma da parte do Cardeal ou do Rei. Certamente que a Rainha o defenderia, mas qual seria o peso de um discurso de defesa feito por uma mulher que o ministro odiava e cujo marido só pensava em se desembaraçar dela?
Permaneceu um momento no mesmo sítio, tentando pôr ordem nas idéias. Finalmente, ocorreu-lhe uma: se François fosse preso, agiria como o duque lhe mandara mas, em vez de verter o veneno no copo do Cardeal, deitá-lo-ia na garrafa e beberia ao mesmo tempo que a sua vítima. Pelo menos tudo acabaria e essa solução oferecia a vantagem, caso a apanhassem, de evitar-lhe o horror de uma execução na praça pública... e talvez a tortura. Sim, sem dúvida, era aquela a melhor solução. Depois, arranjar-se-ia com Deus como pudesse.
Um pouco mais calma, voltou a colocar o frasco no bolso, cobriu-se com a capa e foi até à carruagem precisamente na altura em que o criado acorria com o candelabro, mas os seus olhos jovens já se haviam habituado à escuridão.
- E então? perguntou Jeannette.
- Por favor, não me perguntes nada! Talvez te conte mais tarde...
O pórtico abriu-se novamente e, aos solavancos, a carruagem retomou o caminho do Louvre.
No dia seguinte, ainda mal recomposta da penosa noite que esperara vir a ser tão doce, Sylvie recebeu ordens de se preparar para acompanhar a Rainha, que se retirava durante um dia ou dois para Val-de-Grâce. Apenas ela, Mlle. de Hautefort e La Porte, ficariam ao serviço de Sua Majestade. Viu nesse fato uma marca de confiança que a sensibilizou e que Marie confirmou: a Rainha gostava muito da sua “gatinha” e desejava ouvi-la cantar na capela.
O convento do faubourg Saint-Jacques era muito querido de Ana de Áustria por diversas razões, sendo a primeira de entre elas devida ao fato de ter sido ela quem o mandara construir dezesseis anos antes. Lá, dispunha de um aposento que dava para o jardim e onde gostava de se recolher. Finalmente, o convento, habitado pelas Beneditinas, situava-se fora dos muros de Paris, numa estrada campestre ocupada apenas por conventos, como convinha a essa grande estrada que conduz ao remo das estrelas, aquela que era percorrida, desde há séculos, por milhares de peregrinos que se dirigiam para S. Tiago de Compostela a fim de rezar no túmulo do Apóstolo, mas que, para a Rainha, revestia um duplo significado pois esse caminho ilustre era também o que conduzia a Espanha. Aí sentia-se mais em sua própria casa do que em qualquer outro sítio e a abadessa, Louise de Milly, que se tornara madre de Saint-Étienne, era uma amiga tanto mais dedicada porquanto, tendo nascido na região de Franche-Comté[20], estava nessa altura submetida ao rei de Espanha. Fiel aos seus hábitos policiais, o Cardeal tentara encontrar uma ou duas espias entre as santas raparigas, mas parece não o ter conseguido ou então, embrenhadas numa comunidade inteiramente dedicada à sua benfeitora, elas nunca conseguiram transmitir informações válidas.
Ana de Áustria levava uma vida quase monástica no Val. Participava nos ofícios, com profunda piedade, misturando a sua voz às das religiosas, e tomando as refeições em companhia delas. A sua residência, composta por um pequeno pavilhão que avançava pelo jardim, só comportava duas divisões: um salão no rés-do-chão, que se abria graças a uma porta de sacada e, no andar de cima, um quarto que era prolongado por um pequeno terraço. Quanto a Hautefort e Sylvie, era suposto que dormissem nas duas celas por detrás do pavilhão, mas a última compreendeu depressa que, naquela estranha casa de religiosas contemplativas ou, pelo menos, na parte ocupada por Ana, a noite não era verdadeiramente feita para dormir e que, pelo contrário, era essa a altura em que se desenvolvia grande atividade. Ao chegar, Marie começou a informá-la, antes que ela desatasse a fazer perguntas:
- Lembrai-vos que em Villeroy, na estrada para Fontainebleau, vos perguntei se amáveis a Rainha?
- E eu respondi-vos que lhe tinha jurado uma dedicação total.
- É assim que ela e eu o entendemos e é por isso que vos pedimos para nos acompanhardes. Aqui, ao abrigo dos espiões do Cardeal, a nossa Rainha tem o direito de ser ela própria. Ela pode receber quem bem entender, de preferência à noite, e pode, sobretudo, pôr em dia a correspondência que...
- Mas aí é contudo possível, quando se quer, entrar e sair com grande facilidade, não?
- Quando se é dama de honor e porque, em princípio, tal não acarreta sérias consequências, mas ficai sabendo que há olhos por todo o lado e que todos eles estão postos na Rainha.
- E aqui? As freiras são cegas?
- Só vêem aquilo que se lhes quiser mostrar... isto é, nada. A vantagem da nossa posição é a de sermos autônomas e de, ao mesmo tempo, fazer parte do conjunto do convento. Só a madre de Saint-Étienne é conivente e age de modo a que as jovens ignorem tudo o que se passa aqui. Caso contrário não sei como poderíamos receber e enviar emissários...
- Emissários?
- Sim, através de uma brecha dissimulada, com hera, no muro do jardim e que permite todas as idas e vindas. Agora, ao trabalho! Vou ensinar-vos a codificar uma mensagem.
Desta vez Sylvie caiu mesmo das nuvens, mas teve de se render à evidência: não havia nada de inocente na correspondência que a Rainha mantinha com os seus amigos no exterior e os “assuntos de família” que serviam de cobertura nas cartas enviadas aos irmãos de Ana de Áustria, o rei de Espanha e o Cardeal Infante, pertenciam ao domínio da alta traição: nelas se expunha, em linguagem codificada, tudo o que Ana podia aprender acerca dos projetos, mesmo militares, do Rei e do seu ministro. Além disso, se era normal escrever aos irmãos[21], era-o menos corresponder com o embaixador de Espanha em França, o conde de Mirabel, que fora expulso por Richelieu e que agora residia em Bruxelas e o qual não tinha nenhum laço de parentesco com a Rainha. Finalmente, havia também a Inglaterra, por intermédio de um antigo criado do caro Buckingham, que se chamava Auger, e que era atualmente secretário do embaixador inglês.
Em toda esta história o papel de La Porte era primordial. Era através dele que se obtinha todo o material tintas invisíveis que eram reveladas no papel graças à ação do limão e de outros produtos, que ele não guardava evidentemente no Louvre, mas sim num pequeno alojamento que possuía no hotel de Chevreuse, na rua Saint-Thomas du-Louvre e cujo guarda era seu irmão. Além disso, era ele quem levava aos diferentes intermediários gentis-homens denodadamente hostis a Richelieu ou padres a saldo da muito católica Espanha as cartas que a Rainha redigia por sua própria mão.
Sylvie falava e escrevia em espanhol. Encarregaram-na de transcrever algumas mensagens não muito comprometedoras com a ajuda de uma grelha.
Desempenhou a tarefa, mas não sem uma certa inquietação, que confiou à Hautefort:
- Não estaremos a correr grandes riscos? Se os espiões do Cardeal souberem o mínimo detalhe do que se passa poderemos vir a encontrarmo-nos na Bastilha e a própria Rainha...
- Tereis medo?
- Eu? E de quê, meu Deus? - perguntou Sylvie tristemente, pensando no frasco de veneno que conseguira esconder no dossel da sua cama no Louvre.
- Na vossa idade e quando se é encantadora, pode esperar-se da vida outra coisa que não os muros de uma prisão, não é assim?
- Poderia dizer-vos a mesma coisa.
Aurora ergueu a cabeça coroada por um monte de cabelos louros e sorriu com grande orgulho.
- Talvez, mas eu amo a Rainha e estou disposta a servi-la até numa masmorra, onde, aliás, é um sítio para onde não a enviariam. O Rei contentar-se-ia em repudiá-la, o que é o seu sonho...
- Mas por que age ela desta forma? Perdoai-me, mas é indigno de uma rainha de França!
- Não vos iludais, gatinha! O que fazemos não é dirigido nem contra o Rei nem contra a França. Se a Espanha obtiver uma grande vitória, o Rei será obrigado a desfazer-se de Richelieu. Talvez tenha de fazer algo ainda pior, caso consigamos semear a dúvida no seu espírito.
- Uma dúvida? Contais fazer passar o Cardeal por um traidor?
- E por que não? Mme. de Chevreuse, que desempenha na sua província uma tarefa considerável, encontrou-nos um falsário admirável, quanto ao qual temos apenas de procurar obter a sua fidelidade. E, acreditai-me, quando o Manto Vermelho cair, o povo que ele esmaga com os seus impostos, dançará de alegria e ajudará os seus senhores a reconstruir os castelos fortificados, cujas torres e muralhas são arrasadas por ordem do Cardeal. Acreditai que o próprio Rei ficará mais feliz, livre de uma férula que lhe pesa. Poderíamos mandar regressar a rainha-mãe que vive da caridade do bispo de Colônia...
O discurso era bonito e Sylvie era demasiado nova nos complexos afazeres da Corte para ter vontade de entender tudo o que se tramava, ocupada que estava com os seus próprios tormentos. Afinal tinha jurado servir a Rainha e servi-la-ia até ao fim!
Tendo La Porte sido enviado a casa de um dos seus correspondentes e estando Hautefort ocupada com uma descodificação difícil, na primeira noite coube a Sylvie ficar de guarda à porta do jardim, depois de lhe terem explicado como funcionava o mecanismo. Devia abrir a um sinal combinado. A noite estava amena e a jovem guardiã não se arriscava a apanhar frio. Até sentiu um certo prazer em contemplar as estrelas, respirando os odores dos canteiros, onde as rosas e as peônias começavam a desabrochar e a madressilva e o pilriteiro a exalar os seus delicados perfumes. Um local ideal para sonhar com o amor quando se tem quinze anos, mas o homem mascarado a quem abriu a porta por volta da meia-noite nada tinha que alimentasse esse sonho: cheirava a suor, a cavalo e a couro aquecido. Nem por isso deixou de o acompanhar até ao salão, onde ele teve uma longa conversa com a Rainha em voz baixa e, depois, entregaram-lhe novamente, para o conduzir à saída.
- Amanhã à noite - disse-lhe Marie - deveis retomar o vosso posto de sentinela. Acabam de anunciar-nos a vinda de alguém muito mais importante... Espero que isso não vos aborreça?
- É um prazer com um tempo destes e o jardim é tão bonito!
Como resposta a jovem deu uma palmadinha na face da sua companheira:
- Decididamente gosto muito de vós disse.
No dia seguinte, quando soaram efetivamente as dez horas da noite na capela da abadia cuja cúpula era acariciada pela lua, um novo visitante apresentou-se. Sylvie deparou, à entrada, com uma alta silhueta masculina coberta até aos olhos por uma capa preta, com um chapéu de penas da mesma cor puxado até às sobrancelhas. Mas em vez de entrar rapidamente o homem permaneceu no mesmo lugar. Ela impacientou-se:
- Entrai, monsenhor! Sois esperado...
Desta vez entrou e enquanto ela fechava a porta, ele tirava a capa.
- Dizei-me que sonho, Sylvie! Que não sois vós! - Ela reteve um grito com o punho crispado.
- Vós? Oh, não é possível!
- Esta noite dir-se-ia que ambos experimentamos dificuldades em crer na realidade das coisas - sussurrou François. - Que diabo fazeis aqui? Agora sois porteira?
Parecia muito descontente, mas ela estava demasiado assustada para reparar nisso.
- Sou dama de honor da Rainha e faço o que ela me ordena. O que não é o vosso caso. Vós, em Paris, quando sois talvez procurado! Não sois um pouco louco?
Ele pegou-lhe no queixo entre dois dedos, para erguer o rosto dela na sua direção. À luz prateada, ela pôde ver o brilho dos dentes dele, que um sorriso silencioso revelava.
- Ficai sabendo que há sempre algures alguém que me procura. Quanto a ser louco, já sabeis há muito tempo com que contar, não é, minha gatinha? Mas... chorais?
- Ide, suplico-vos! Ide-vos e para o mais longe possível!
- É o que farei daqui a um bocado. Por ora deixai de dizer disparates, minha bela! Obedeceis às ordens da Rainha? Pois bem, eu também, com a diferença que nem sequer espero por elas! Gosto de me antecipar aos seus desejos.
Uma cortina afastada no interior do pavilhão revelou subitamente a silhueta de Mlle. de Hautefort.
- Faríamos melhor em nos pormos a caminho! - volveu Beaufort. - Nunca se deve fazer esperar as damas!
E dirigiu-se para onde vinha a luz, como pessoa conhecedora do trajeto. Sylvie apenas teve tempo para agarrar as saias e correr atrás dele. Chegou ao salão na altura em que ele saudava a açafata:
- Alistastes a gatinha? Não é uma má idéia! É uma pessoa determinada sob aquela aparência frágil...
- E segura! É isso o importante. Não temos muito por onde escolher entre as damas de honor. Além do mais ela fala e escreve em espanhol tão bem quanto o duque de Clivares e melhor, mesmo assim, que a rainha de Espanha... Vinde! Sois impacientemente esperado!
Sylvie, ainda sob o choque da emoção que tivera ao ver François, apercebeu-se com súbita dor que ela o levava para a escadaria que conduzia ao quarto real, quando o visitante da véspera fora recebido no salão. Com ambas as mãos enxugou raivosamente novas lágrimas, ao pensar que Val-de-Grâce não era só um centro de espionagem política como também o local dos mais ternos encontros. Uma idéia que lamentou imediatamente: um encontro, na presença de Mlle. de Hautefort, que possuía a língua mais solta de toda a Corte? Uns momentos depois, aquela desceu sozinha:
- Basta de trabalho por hoje à noite, minha querida! - disse, sem olhar para Sylvie que se sentara ao pé do lume aceso na chaminé, mais para queimar certos papéis do que para se aquecer. - Ide deitar-vos. Eu própria acompanharei o duque até à saída!
A jovem levantou-se, mas ficou onde estava, olhando para a companheira que acabou por se voltar na sua direção.
- Então? Não me ouvistes? Disse-vos para irdes dormir, Sylvie!
- Porquê? - perguntou esta, sem se mexer. Marie franziu as sobrancelhas:
- Que significa esse porquê?
- Sois demasiado esperta para não me terdes compreendido, mas posso acrescentar: porquê ter-me enviado a mim para abrir a porta do jardim ao visitante desta noite?
- Ontem, desempenhastes bem a vossa tarefa.
-Ontem estáveis muito ocupada e La Porte estava ausente. Esta noite... teríeis podido ocupar-vos deste... encargo. Portanto, repito: porquê eu? Eu, que sabíeis muito bem que iria sofrer com isso?
Instalou-se um silêncio. Depois, Marie dirigiu-se para Sylvie, pegando-lhe nos ombros frágeis, que sentiu tremer.
- Talvez para julgar a qualidade da vossa dedicação... Sentis-vos mal? - perguntou, com extrema doçura.
Meio sufocada pelas lágrimas que retinha, Sylvie inclinou a cabeça.
- Neste momento detestais-me - volveu Marie - mas concedei-me a justiça de reconhecerdes que vos tinha prevenido, ao dizer-vos que o vosso coração tinha avançado demais com o belo François!
- Não é só isso! Receio por ele! Não sabeis que ele arrisca a sua própria cabeça ao vir aqui?
- Arrisca-mo-la todos: eu, vós, La Porte e até a abadessa. Tinha pensado que o havíeis compreendido...
- Compreendi e aceitei... mas ele, é outra história! Corre o rumor que houve um duelo no qual teria morto o adversário pelos belos olhos de Mme. de Montbazon e em vez de fugir está aqui, às portas de Paris, ou do Cardeal, o que é a mesma coisa!
- Onde fostes buscar essa história?
Sylvie compreendeu que, levada pela sua angústia e pela dor, tinha falado demais. Teve um gesto de impotência.
- Um rumor, foi o que vos disse. Julgo que foi Jeannette, a minha camareira, que o ouviu no hotel de Vendôme.
- Muito me espantais! Recolho numerosas informações através de diversos amigos e essa ainda não me tinha chegado... Aliás, como é possível ainda não me terdes falado disso?
- Pois bem, digo-vos agora! Quanto ao que puder ser verídico neste rumor, só tendes de perguntar a M. de Beaufort, pois ele está ao vosso alcance! Dito isto, boa noite! Vou deitar-me pois assim o mandais!
- Não vos ordenei o que quer que fosse. Era um simples conselho. O tempo passa mais depressa quando se dorme e amanhã aquilo que se passou nesta noite será apenas um sonho de mau gosto...
- Agrada-vos que assim seja... Boa noite!
Mas, ao regressar à sua cela, Sylvie não se deitou. Queria esperar que François saísse para lhe falar frente a frente. O que era impossível sob o olho de gavião de Marie. Havia uma solução: sair da abadia pela porta e esperar François no exterior. Claro que era preciso pensar no regresso, mas ainda não há muito tempo Sylvie subia às árvores no parque de Anet ou nos bosques de Chenonceau: a hera do muro oferecia-lhe todos os apoios possíveis. Só faltava executar o seu projeto!
Começou por despir as saias interiores que ampliavam o seu vestido castanho simples, em tecido de Flandres, apenas com gola e punhos brancos; como a saia principal ficou sem suporte, estava-lhe um pouco comprida demais, o que podia estorvar-lhe os movimentos, pelo que a levantou o suficiente para poder libertar os pés, apertando-a com um cinto de sólido cabedal; retirou a gola e os punhos, cuja brancura se podia tornar visível e, finalmente, pegou numa capinha encarapuçada que esconderia bem o seu rosto, bem como numas luvas de cabedal necessárias para se agarrar aos ramos de hera não deviam vê-la no dia seguinte com as mãos arranhadas e as unhas partidas.
Assim equipada saiu pela janela da cela, que dava para a horta dos legumes e aterrou numa couve, esforçando-se por não pisar as grandes cabeças redondas. Em seguida correu até à porta, abriu-a, fechou-a e encontrou-se no exterior, numa praceta com um calvário diante do qual se erguia o noviciado dos Capuchinhos. O seu olhar vivo mediu tudo rapidamente: não se avistava qualquer cavalo. Desta vez, dando raras provas de prudência, François devia ter vindo a pé. Mas de onde?
Restava-lhe esperar. Se bem que declinando, a lua brincava às escondidas com pequenas nuvens, mas ainda oferecia demasiada luz. Assim, para evitar que a vissem, Sylvie decidiu agachar-se sob a hera que cobria, em espessas camadas, o muro da abadia.
No meio da noite que esfriava, a sua vigilância pareceu-lhe interminável, pois acabara de soar o toque das duas horas na capela, quando François reapareceu finalmente. Não vinha sozinho: La Porte acompanhava-o, armado até aos dentes. Os dois homens subiram juntos pelo faubourg na direção da porta de Saint-Jacques. Furiosa, mas decidida a ir até ao fim, Sylvie seguiu-os, rezando para que Beaufort não tivesse deixado o cavalo muito longe. Contudo, chegados às imediações das muralhas de Paris, mais ou menos em ruínas, prosseguiram o seu trajeto ao longo das valas, em direção ao sul. Sylvie apertou os dentes e continuou a sua perseguição, perguntando-se até onde a levariam mas, como era persistente, até teria condescendido em dar a volta a Paris para poder trocar algumas palavras com o homem que amava, que tinha a vida dela entre as mãos e que se divertia loucamente com isso tudo.
A caminhada tinha algo de irreal. Fechada nas suas torres redondas ou pontiagudas e nas suas ameias, Paris vivia a sua inquietante vida noturna, iluminada pelos raios cada vez mais oblíquos da lua. O silêncio só era perturbado pelo grito dos vigias nas muralhas, pelo eco de uma canção de copos numa casa da guarda, pelo grito dos gatos no cio e pelo latir de um cão incomodado. E Sylvie caminhava, caminhava...
Finalmente alcançaram o Sena, cujo leito brilhava com uma luz mercurial velada e, quando os dois homens desceram até à calçada junto ao rio e se separaram, Sylvie percebeu por que não tinham ido ao encontro de nenhum cavalo preso a alguma árvore ou argola: encontrava-se ali uma embarcação para a qual François saltou com um gesto de despedida. Subitamente desesperada por não lhe poder falar, abriu a boca para gritar, para chamá-lo, para lhe pedir que a esperasse e por que não? para que a levasse com ele, mas já era demasiado tarde: puxado pelas compridas varas dos dois barqueiros, o batel era arrastado pela corrente... Sylvie, esgotada, deixou-se cair de joelhos, escondeu a cara nas mãos e desatou a chorar. Nem sequer viu que, ao voltar para trás, La Porte passou a três toesas[22] dela, sem sequer a ver.
Quando regressou à realidade e olhou à sua volta, encontrava-se sozinha num sítio escuro, ladeado, de um lado pela porta de Nesle e pela silhueta sinistra da velha torre do mesmo nome e, do outro, pelos jardins e pelo magnífico palacete da rainha Marguerite. Votados ao abandono depois da morte dela, serviam de refúgio a uma estranha fauna.
Erguendo-se penosamente, Sylvie pensava com consternação que ia ser preciso percorrer outra vez aquele caminho de volta, esperando vir a encontrar, sem obstáculos, o faubourg de Saint-Jacques, quando ouviu um grito medonho o de alguém a ser degolado, logo seguido por um estertor e pelo ruído de uma pessoa a correr. Alguém foi de encontro a ela como uma bala de canhão, atirando-a ao chão enquanto blasfemava abominavelmente, levantando-se, de imediato, e desaparecendo nas trevas, levando consigo um bizarro cheiro a sujidade e a cera quente
Desta vez, já sem forças, Sylvie levou algum tempo a levantar-se. Acabara de o fazer quando surgiram dois homens, vindos das sombras espessas da torre.
Também eles corriam. Quase que a deitavam de novo ao chão, mas viram-na a tempo:
- Está aqui alguém! Uma mulher, ao que parece.
- Ou antes, uma rapariga. A esta hora as senhoras sérias já estão deitadas. Moça, viste um homem que se escapava?
- Destapai a vossa lanterna, amigo. Veremos qual o aspecto dela.
O rosto da jovem foi encadeado por uma luz amarela, mas ela já sabia com quem tinha de se haver. Só que estava tão surpreendida que a voz ficou-lhe suspensa na garganta.
- Vós, Sylvie? - exclamou Perceval de Raguenel, no cúmulo do espanto. Mas que fazeis aqui a esta hora?
AS IDÉIAS DE MLLE. DE HAUTEFORT
O companheiro de Perceval juntara-se a ele e Sylvie reconheceu o homem da Gazette, o tal Théophraste Renaudot, que encontrara em casa do primeiro. A presença dele pareceu-lhe um estorvo e preferiu técnica bem feminina, que já dominava perfeitamente responder com uma pergunta:
- Vós? Mas que vindes fazer tão longe de vossa casa?
- Andamos atrás de um criminoso. O azar quis que chegássemos precisamente depois de ele perpetrar o seu crime, e, ainda por cima, escapou-se-nos...
- Se tivesse sabido, ter-me-ia agarrado às roupas dele: deitou-me ao chão tal como vós quase o fizestes.
- Vistes o rosto dele?
- Como, nesta obscuridade, se nem se distingue sequer uma pessoa? Apenas senti o seu cheiro. Bah, era horrível! Cheirava a sujidade, a suor e, também, a cera quente, o que não compreendo lá muito bem.
- Explicar-vos-ei mais tarde. O que desejo saber é por que vos encontrais aqui. Quem vos trouxe?
- Ninguém. Ia atrás de alguém, é tudo!
- Desde o Louvre? - perguntou Perceval, apontando para a margem em frente. - Através do Sena?
- Não venho do Louvre mas não vos contarei mais nada. Pelo menos por ora - corrigiu Sylvie.
Ela olhava para Renaudot, e Raguenel compreendeu o que significava: o seu amigo, de notoriedade pública, pertencia por inteiro ao Rei e ao Cardeal, os quais, ao que constava, até escreviam nos folhetos dele. Mesmo que fosse o melhor homem deste mundo e Perceval tinha a certeza disso! Gostava demasiado da sua profissão e da busca de informações inéditas para que não se interessasse por aquilo que podia estar a fazer, às três da manhã, uma dama de honor da Rainha, nas margens do Sena, onde apenas se podiam encontrar barqueiros e algumas moças sempre ao seu serviço ou ao de uma fauna menos respeitável.
- Como viestes?
- A pé e estou muito estafada, de modo que gostaria de regressar a casa. E vós?
- Vim de batel desde a ilha da Cite. O meu amigo Théophraste dispõe sempre de um para estas ocasiões. Levar-vos-emos de volta.
- Obrigado, padrinho, mas não me convém. Ide sem mim, vou regressar só...
Com muita pena, Renaudot compreendeu que aquela estranha pequena não queria revelar de onde viera, mas que Raguenel nunca consentiria em deixá-la sozinha. Sobretudo, compreendeu que estava a mais.
- O melhor é eu deixar-vos, amigo. Ia pedir-vos o mesmo.
- Se precisardes de mim sabereis onde me encontrar. Aliás, surpreender-me-ia que o nosso homem voltasse a fazer das suas esta noite, se bem que tenha concluído à pressa o seu trabalhinho. O sinete não é legível...
Pouco depois o jornalista perdia-se nas sombras densas da torre de Nesle, regressando ao batel que devia ter amarrado a montante. Sylvie e o padrinho ficaram a sós.
- Quereis agora dizer-me de onde viestes? - murmurou o último. - Ficai desde já a saber, Sylvie, que não vos largarei enquanto não estiverdes em segurança.
- Venho de Val-de-Grâce e, se bem o deixardes, é para lá que voltarei.
- Todo esse caminho? Como o fizestes?
- É fácil. Coloca-se um pé à frente do outro e recomeça-se a operação.
- Não digais loucuras! Deveis estar morta de cansaço, não?
- Sim, na verdade. Contudo, tenho de regressar... se bem que não tenha vontade nenhuma...
Com as forças esgotadas, deixou-se deslizar até ao chão e desatou a chorar com grandes soluços de rapariguinha... ou de mulher, quando os nervos, esticados ao máximo, começam a rebentar. Perceval pôs-se imediatamente de joelhos ao lado dela.
- Só uma pergunta, minha pequena! Quem seguistes até aqui? Sabeis que a mim podeis contar tudo!
A resposta pareceu chegar das próprias profundezas da terra.
- Vim atrás de François... e de La Porte, que o acompanhou até um barco. Ele partiu pelo rio. Esperava poder falar-lhe... mas não foi possível por causa desse La Porte.
- Esperai!
À entrada da nova rua do Sena, Perceval notara o pórtico de um alugador de cavalos. Tratou de acordá-lo, o que não foi fácil pois o homem tinha um sono pesado mas, finalmente, após umas lengalengas e a passagem de numerosas moedas da sua bolsa para a mão do intermediário, obteve um cavalo por um preço honesto, levantou Sylvie sempre em lágrimas para a içar para a garupa do cavalo, instalou-se na sela e pôs-se a caminho, trotando cadenciadamente. Sylvie, de braços postos à volta do corpo do padrinho e com a cabeça repousando nas suas costas, chorou durante todo o caminho. Perceval não lhe perguntou nada. Primeiro porque era difícil falar sentado no dorso agitado de um cavalo e, depois, porque pensava.
Eram quatro horas quando avistaram o Val e, nas imediações, os galos de todos os conventos respondiam ao do abade de Saint-Jacques-du-Haut-Pas. Então, Sylvie enxugou as lágrimas e explicou como contava entrar.
- Agora temos uma escalada? - resmungou Raguenel. - Decididamente, não desconfiais de nada! Vou ajudar-vos a trepar esse muro, mas escutai-me bem! Quando regressardes ao Louvre, ireis solicitar uma folga de alguns dias, a fim de irdes tratar do vosso velho padrinho que precisa da vossa guitarra para acalmar as suas crises de gota e ireis passá-los em minha casa. Com Jeannette, evidentemente! Creio que temos muitas coisas a contar um ao outro...
Ela concordou com um vigoroso aceno de cabeça e, depois, pôs-se na ponta dos pés para beijar Perceval.
- Não sei o que teria feito sem vós, padrinho. Estava tão infeliz!...Talvez me tivesse afogado...
Pela maneira como ele lhe segurou nos ombros, Sylvie compreendeu que ele tinha medo:
- Proíbo-vos de pensar sequer numa tal abominação! Escutai-me bem: ninguém, seja quem for, merece que se morra por ele...
Momentos mais tarde, Sylvie estava de regresso ao seu quarto e despia-se depressa para se deitar. Foi então que se apercebeu que tinha o vestido manchado de sangue.
Na manhã seguinte estava tão cansada que quase nem conseguia abrir os olhos. Porém ninguém se apercebeu, como aliás tão-pouco repararam nos erros que cometeu durante o seu serviço. Marie não parava de cochichar com a Rainha e ambas pareciam no auge da excitação. Além disso, Ana de Áustria, que não tinha sido vista com tão boa disposição desde há muito tempo, resplandecia. As bochechas do seu rosto estavam coradas e os olhos cintilavam. Tinha de tal modo um ar de mulher feliz que Sylvie se perguntou quais os sentimentos que sentia em relação a ela. Até à noite anterior, amara-a e tivera pena dela, mas nessa manhã, perguntou-se se não estaria a começar a detestá-la por toda a espécie de motivos: aquela rainha traía o país cujo trono ocupava, roubava-lhe o ser que ela mais amava neste mundo...
Contudo, a boa disposição de Ana de Áustria não resistiu ao seu regresso ao Louvre. Nessa noite o Rei entrou nos seus aposentos, de ar triunfante, agitando descuidadamente um papel na ponta dos dedos.
- Grandes novidades, Senhora! - exclamou. - Fui informado da vitória das nossas tropas em Cateau-Cambrésis! As do senhor vosso irmão foram expulsas para sempre, assim o espero, e quanto a Landrecies, isso também não vai tardar!
As damas presentes aplaudiram, enquanto a rainha empalidecia e não encontrava nada para dizer.
- Então? - volveu Luís XIII. - É tudo o que tendes a dizer?
- Estais contente, Senhor, e isso chega-me para que também o esteja. Aliás, pareceis de melhor saúde, não?
De fato, depois da partida de Louise de La Fayette, o Rei ficara alguns dias em Versalhes, esmagado sob o peso de uma dor tão cruel que fora acometido por um acesso de febre. O seu rosto ainda conservava as marcas.
- Não vos preocupeis com a minha saúde, Senhora - troçou o Rei, enquanto agitava a mensagem por baixo do nariz da mulher. - Isto pôs-me logo bom. Nada melhor, reparai, que uma vitória sobre a Espanha, para me devolver as forças e fico contente por partilhardes a minha alegria. Festejaremos o acontecimento nos próximos dias... e porque não no castelo de Madrid[23]?! Parece-me apropriado às circunstâncias.
Depois disto, voltou as costas, pôs fogo ao papel com um candelabro e deitou tudo na chaminé. Em seguida, foi ter com Mlle. de Hautefort, pegou-lhe na mão e levou-a até ao vão de uma janela, como fazia outrora com a sua querida Louise.
No dia seguinte, Paris inteiro comentava o regresso de Aurora à posição de favorita do Rei e Sylvie obtinha uma folga de alguns dias para ir cuidar do seu padrinho.
- Pensais, na verdade, que esta é uma boa altura para abandonardes o vosso posto? - ralhou Marie que, encostada a uma cômoda no quarto de Sylvie, estava a vê-la fazer os preparativos da partida.
- Não abandono o meu posto, vou apenas ajudar alguém de quem gosto muito.
- Ora, ora, não brinqueis comigo! Julgo que sois vós que tendes necessidade de vos recompor. As dores do padrinho vieram na boa altura, depois da nossa estadia no Val-de-Grâce, da qual não conservais, talvez, a melhor das recordações? Não tenho razão?
Abandonando a cômoda, Marie colocou as mãos nos ombros da amiga para obrigá-la a olhá-la de frente.
- Olhai-me nos olhos, Sylvie! Quando tentais mentir, isso lê-se no vosso rosto como num livro aberto. Tenho razão, não é verdade?
- Sim... Oh! Marie, tentai compreender-me! Passei uma noite horrível. Já sei, ides repetir-me que eu já estava prevenida e que o meu coração se tinha aventurado demais...
- Não, não era o que ia dizer-vos. Aquilo por que passastes, também eu o suporto: sei o que custa ter de abrir a porta de um quarto, que não é o nosso, para alguém que se ama.
Os olhos de Sylvie, bruscamente secos, abriram-se desmedidamente.
- Terei entendido mal? Não estais a dizer-me que... também vós o ameis?
- Sim! É isso, precisamente, e não sou a única. Acrescento que ele nunca saberá de nada e que, em caso contrário, isso seria para ele completamente indiferente: só tem olhos para a Rainha e para ele nós somos apenas as encantadoras amigas que o ajudam nos seus amores.
- Que insensatez! Então, porque fazeis tudo isto?
- Seria muito longo explicar-vos. Só vos posso dizer o seguinte: não tendo o meu amor qualquer futuro, submeto-o àquele que tenho pela minha soberana. Não quero que uma Infanta de Espanha, uma Rainha de França, seja expulsa, repudiada devido aos conselhos de um Richelieu que a odeia tanto mais porquanto nunca conseguiu que ela o amasse.
- Parece-me que, pelo contrário, fazeis tudo para que isso aconteça. Que julgais que aconteceria caso se soubesse que a Rainha recebe visitas secretas no seu quarto?
- Mas não se saberá. Somos três ao corrente do segredo. Eu, vós e La Porte. Este é mais dedicado do que um cão e quanto a nós as duas, amamos demasiado M. de Beaufort para lhe desejar outra coisa que não seja o seu bem. E o bem dele faz parte de um plano que eu concebi!
- Um plano? Mas porquê?
- Porque ele agrada à Rainha e porque é o único neto de Henrique IV que ela olha com olhos de mulher apaixonada. Sempre tencionais partir?
- Sim. Dai-me estes poucos dias! Sou menos forte que vós e preciso de me recompor. Aliás, parece-me que vós, sozinha, sois capaz de defender a nossa Rainha, dado que estais em vias de reconquistar toda a vossa influência sobre o espírito do Rei.
Hautefort encolheu os ombros:
- Toda a minha influência, é exagero! Digamos que se trata de uma oportunidade, sobre cuja duração não nos devemos iludir demasiadamente. O Cardeal gostaria que o Rei passasse a olhar para Mlle. de Chémerault, que substituiria La Fayette, mas acontece que ela não lhe agrada. O Rei teria respondido que “a cara dela não me diz nada” e que, a ter de escolher, preferiria “reconciliar-se” comigo. Este retorno poderá não ser muito sólido.
- Não é de vós que isso depende, em grande parte? Haveis-me dito que tivestes prazer em maltratar o vosso amoroso de outrora, e daí a preferência dele por Mlle. de La Fayette. Sede mais doce!
Maria desatou a rir.
- Vejam só a linda pregadora! Gatinha, têm de gostar de mim por aquilo que sou, ou então deixar-me em paz. Aliás, caso eu mudasse, o Rei estranharia o fato. Está habituado à minha maneira de ser.
Sylvie não insistiu mas, ao afastar-se uma hora depois, na companhia de uma Jeannette encantada, teve uma sensação de alívio e de libertação. O velho Louvre, repleto de intrigas, onde não paravam de se cruzar ódios, amores e interesses de toda a espécie, tinha algo de opressivo. Em casa de Perceval contava poder reencontrar um pouco da alegre despreocupação da infância. Um pouco apenas, pois tivera o cuidado de levar com ela o frasco de veneno, cujo contato bastava para lhe retirar toda a alegria, mas que lhe era impossível deixar atrás de si. Por seu lado, Jeannette estava, pelo menos, tão contente quanto ela, visto o contato quotidiano com a criadagem do palácio e, sobretudo, com as criadas das damas de honor não constituir, na verdade, uma fonte de felicidade.
O quarto forrado de brocatel amarelo, no qual Nicole Hourdin introduziu Sylvie quando esta chegou à rua das Tournelles, agradou à jovem logo à primeira vista: dava para um jardim e, desde que Raguenel comprara a casa, nunca tinha sido usado. Na altura, ele mandara-o pintar e forrar de novo, na esperança que, talvez um dia, a sua filha adotiva viesse a ocupá-lo. O cuidado com que tratara dos mais ínfimos detalhes, tal como do espelho de Veneza e dos lindos objetos de toilette prateados, comoveu Sylvie: era a prova de uma verdadeira ternura e agradeceu ao padrinho por isso quando, depois do jantar, se encontraram frente a frente no gabinete de Perceval. Mas ele recusou os agradecimentos.
- Foi a mim próprio que quis agradar. Estava feliz ao imaginar que um belo dia haveríeis de ocupar esse quarto. Portanto, fiz tudo para vos convencer que nele estaríeis como em vossa casa.
- Conseguistes. Sinto-me tão bem! - suspirou Sylvie, acariciando o braço da poltrona em que se sentara.
- Melhor que no Louvre?
- Ah, o Louvre...
Fez um gesto evasivo que dizia tudo.
- Vejo que não sois feliz por lá e era isso que eu temia. Não concordei que vos tornásseis dama de honor, sendo vós ainda tão jovem, mas de que meio dispunha eu para o impedir? A Rainha solicitava a vossa presença, o duque César também o desejava intensamente, não sei por que obscuro motivo...
- Nada havia de obscuro: queria apenas ver-se livre de mim.
- É possível, mas também tive a impressão que vós própria assim o havíeis desejado...
- Nada mais verdadeiro. Presentemente pergunto a mim mesma se tinha razão ou se me enganava. À minha volta, tudo é tão complicado, tão difícil, a ponto de já não saber quem conspira com quem e porquê!
- A esse ponto? Mas, e a Rainha?
Sylvie esteve prestes a dizer que esta ainda conspirava mais do que todos os outros, mas contentou-se em suspirar:
- Oh, a Rainha é muito bondosa e tenho a sorte de a sua açafata ser uma amiga minha.
- Mlle. de Hautefort?
- Sim. Contudo, ela adora a Rainha e penso que a amizade que me demonstra depende inteiramente da qualidade da minha dedicação à nossa Senhora.
- Se não vos mostrais à altura, ela poderá tornar-se vossa inimiga. E uma temível inimiga, podeis ter a certeza. Mas não tendes nada a recear: amais Sua Majestade.
- Sim... sim, certamente.
A ligeira reticência não escapou aos ouvidos atentos de Perceval que, contudo, não a realçou. Inclinou-se, pegou na mão de sua “filha” e colocou-a um instante nas suas, o que lhe permitiu constatar que ela tremia.
- Agora contai-me como chegastes onde vos encontrei na outra noite. Se, como me dissestes, seguíeis... François, desde a abadia de Val-au-Grâce, é porque, aparentemente, ele já lá estava, como diria o senhor de La Palice. Então, se queríeis falar-lhe, por que não o fizestes lá? Para quê percorrer todo aquele caminho às escondidas? Ele tinha-vos visto no Val, suponho?
- Tinha. Ao chegar, mas quando se foi embora era suposto que eu já estivesse deitada.
- Então demorou-se tanto tempo?
Sylvie corou num instante. Julgou ouvir a voz de Marie afirmando: “Só três pessoas estão ao corrente: eu, vós e La Porte”. Devido à sua louca corrida da outra noite e às poucas palavras que pronunciara para a justificar, também Raguenel entrara no segredo... mas seria tão grave? O olhar que lhe lançou continha tanta angústia que ele se comoveu, compreendendo que acabara de tocar num ponto extremamente sensível.
- Vinde aqui! - pediu-lhe, chegando-a para junto dele. Vinde para o pé de mim, para que possais sentir melhor quanto vos amo e vos desejo ajudar! Só tendes quinze anos e não existe ninguém a quem possais pedir conselho a não ser a mim, a mim que preferiria morrer a trair-vos ou a fazer-vos mal...
Então Sylvie desatou a soluçar e, deixando-se deslizar até ao chão, foi colocar a cabeça sobre os joelhos de Perceval. Sabia que podia confiar-lhe tudo, que ele seria mais discreto que um confessor e que o peso que trazia consigo estava a tornar-se demasiado pesado para um coração de quinze anos. Então, falando baixinho, como se temesse que as próprias paredes a pudessem ouvir, largou a sua carga: a correspondência secreta com o inimigo, as visitas noturnas e, sobretudo, a de Beaufort, interminável.
- Se o tivésseis visto a caminhar pelas ruas quando partiu! Bem podia estar mascarado, dir-se-ia que se tornara rei do mundo.
- É um pouco isso. E a Rainha, que cara tinha de manhã?
- Oh! Esplendorosa! Nunca a tinha visto com um ar tão feliz. Dir-se-ia que acabara de receber notícias maravilhosas. É verdade que ignorava, nessa altura, o sucesso das nossas armas sobre os Espanhóis, sucesso que o Rei lhe anunciou ontem sem quaisquer rodeios. Depois, pegou na mão de Mlle. de Hautefort para lhe falar em privado... Mas, quanto a François, que pensais?
- Que se tornou amante da Rainha! - resmungou Perceval, sem contemplações. - O que é uma verdadeira loucura!
Era o que Sylvie precisamente imaginava; porém, fez uma última tentativa, bem feminina, para tentar salvar as suas ilusões naufragadas.
- Mas ela tem mais quinze anos do que ele!
- Isso não conta, Sylvie! Ela é muito bela, é a Rainha e já sabíeis que ele a amava. Agora sabemos que também ela o ama. Falta saber até que ponto...
- Que quereis dizer?
- Que os riscos que corre são enormes. Que acontecerá se Richelieu, sempre à espreita, descobre que ela engana o Rei?
- Suponho que um escândalo e o repúdio por adultério, não?
- Sem dúvida, e ela é suficientemente esperta para saber medir os riscos que corre. E, contudo, decide corrê-los numa altura em que a sua situação não é brilhante. É isso que é prodigioso!
- Tanto mais que Mlle. de Hautefort pretende que isto tudo faz parte de um plano que ela concebeu, à revelia do amor que também ela sente por François.
- Um plano?
- Foi essa a palavra que ela utilizou. Acrescentou que é porque François é o único neto de Henrique IV para o qual a Rainha olha com enlevo... Confesso-vos não entender mais nada e sentir-me muito, mas muito feliz por estar aqui convosco, longe de todas estas intrigas que me ultrapassam!
Perceval não respondeu, contentando-se em acariciar a cabeça sedosa pousada nos seus joelhos. Refletia tão profundamente que Sylvie, surpreendida por aquele brusco silêncio, julgou que ele adormecera. Não era de modo algum o caso, pois ele tinha os olhos muito abertos, mas fixos, e até pegou no cachimbo que se encontrava num frasco de faiança, por cima de uma mesa ao lado dele, acendendo-o. Ela não ousou perturbar a reflexão dele. Finalmente, após algum tempo, ele perguntou:
- E Mlle. de Hautefort, que possui um plano, voltou a conquistar os favores do Rei? Dizei-me, Sylvie, Luís XIII vai ter frequentemente com a Rainha à noite?
Ela inclinou a cabeça:
- Não, desde que entrei ao serviço como dama de honor.
Novo silêncio. Perceval aspirava baforada atrás de baforada tão compenetradamente que a sala ficou tão cheia de fumo que Sylvie tossiu. O que o trouxe de volta à terra.
- Insensato! - disse, por fim. - Insensato ou genial. Se é aquilo que penso, o plano da vossa amiga é o lançamento de dados mais perigoso que jamais vi ser tentado. Ela joga a sua própria cabeça, a de Beaufort, talvez a vossa e até mesmo a da Rainha.
- Como assim?
- Oh, mas é muito simples. Ela espera que o vosso François faça uma criança à sua amante real.
- O quê? E o Rei, não ficaria fulo de cólera?
- Mas ela voltou a dispor da sua influência sobre ele e conta com isso para pôr alguma sensatez num homem que necessita tanto mais de um herdeiro porquanto a sua saúde se esvai e que, se morresse agora, seria Monsieur, o Monsieur incapaz, que se tornaria rei de França. Se Beaufort engravidar a Rainha, na criança correrá, ainda assim, o sangue de S. Luís e de Henrique IV.
- Esqueceis-vos do Cardeal? A influência dele é muito maior que a de Marie.
- ... mas poderia soçobrar perante a de Mlle. de La Fayette. Acrescentai ainda que, se o Rei morrer, ele próprio estará perdido. Será escorraçado antes de chegar sequer a entrar em Saint-Denis... ou pior ainda! Acumula tantos ódios contra ele próprio! Até me pergunto se o golpe de audácia da açafata não acabaria por lhe agradar...
- Santo Jesus! - suspirou Sylvie, regressando à sua poltrona. - Tendes consciência do que acabais de dizer, padrinho? Que acontecerá a François, caso tiverdes razão?
Raguenel afastou as mãos num gesto de ignorância.
- Penso que ele necessitará de proteção divina e que o melhor seria que fosse para Inglaterra ou para os Países-Baixos o mais brevemente possível. Então, Sylvie, deixai essa cara de enterro! Tratam-se apenas de suposições.
- Mas que soam como verdades. François faria melhor em atravessar a Mancha ou outra fronteira, imediatamente. Só por ir até Paris está a cometer uma loucura, depois desse duelo em que matou o seu adversário.
- Um duelo? Onde soubestes isso?
Desta vez, comprometida pelo seu juramento, Sylvie não podia revelar a sua fonte. Fez um gesto evasivo e voltou a cara para que o padrinho não pudesse ver nos seus olhos que estava a mentir.
- Soube pelas damas de honor. Noutro dia falava-se disso. Por meio de palavras encobertas, claro, pois François é muito amado pelas damas. Teria havido uma querela com um gentil-homem da região, em Chenonceau, a propósito de Mme. de Montbazon. Parece que o Cardeal não foi informado de nada, senão ele já estaria na Bastilha, mas é insensato vir até à Paris, mesmo em segredo.
Raguenel torceu os lábios com ar dubitativo.
- Muito me surpreendeis! Um acontecimento dessa natureza não pode permanecer secreto por muito tempo. O meu amigo Renaudot, que mantém uma correspondência muito ativa com a província, já teria ouvido alguma coisa e, sabendo os laços que me ligam aos Vendôme, ter-me-ia posto ao corrente.
- Tê-lo-ia sobretudo contado ao Cardeal.
- Não creio. Não esconde que, por vezes, acha que Sua Eminência tem a mão muito pesada. Mas vou tentar saber. Entretanto, querida filha, varrei essas histórias da vossa linda cabecinha e desfrutai as vossas férias. Para começar, amanhã iremos os dois passear...
Quando se morava no Marais, e até mais longe, e quando se falava em passear isso só significava um destino: a Praça Real, lugar de todas as delícias, centro da vida elegante. Esta magnífica praça, que Henrique IV mandara construir no lugar do antigo mercado de cavalos, oferecia o conjunto arquitetônico mais perfeito. Nela a cor rosácea dos tijolos harmonizava-se graciosamente com a cor branca das pedras de apoio da construção de alvenaria e com o cinzento azulado das ardósias que revestiam os altos telhados de uma suíte de pavilhões aristocráticos, unidos entre si por uma aprazível galeria aberta, uma espécie de claustro por onde passeava toda a alta sociedade parisiense, quando o tempo não permitia o acesso às belas áleas de ulmeiros, talhados a preceito. No meio, harmoniosos buxos entrelaçados, demarcando canteiros floridos, faziam lembrar as vivendas campestres de Roma ou de Florença.
Vendia-se limonada fresca, pastéis de nata, filhós, bolos de amêndoa napolitanos. Antes dos éditos do Cardeal, também se travavam duelos, mas o hábito de marcar encontros na praça permanecera, com a diferença que agora se tratava, sobretudo, de encontros galantes. Era o local em que se exibiam as mais belas mulheres parisienses, encantadoramente vestidas e rodeadas por elegantes pretendentes. Elas tinham instalado uma espécie de código da coquetteríe, através dos nós que davam às fitas e cujo significado variava consoante o lugar em que eram colocados. O favori, no alto da cabeça, exibia as cores do pretendente favorito; o mignon, era espetado junto a um coração disponível e obadin era suspenso no leque, numa liberdade plena de desafio...
Quanto aos felizes proprietários ou, por vezes, inquilinos dos pavilhões, pertenciam à alta nobreza ou à mais elevada magistratura, pois era preciso ser-se muito rico para ter o direito de contemplar, da sua varanda, a alegre animação quotidiana ou as festas públicas dadas pelo Rei ou pela cidade, na altura de um casamento ou de uma visita real. Neles se encontravam o duque de Rohan, a princesa de Guéménée, o conde de Miossens, que se tornaria posteriormente o marechal d’Albret, a marquesa de Piennes, o marechal de Saint-Géran, o marechal de Bassompierre apesar do fato de estar a residir na Bastilha desde há uma dezena de anos o presidente Aubry, o presidente Larcher, a condessa de Saint-Paul e alguns outros, todos eles desfrutando de aposentos suntuosos onde a riqueza da decoração e da mobília correspondia à graciosidade exterior dos edifícios.
Quando Sylvie apareceu de braço dado com o padrinho, não passou despercebida, de tal modo o par que formavam era agradável de ver, se bem que não fosse, nem de longe, o mais suntuoso; porém, o vestido de cetim da jovem, daquele amarelo luminoso que tanto lhe agradava e cuja luminosidade ela ainda mais realçava com fitas brancas, conjugava-se com o gibão de Raguenel e as bragas em espessa seda, de cor das nuvens cinzentas. Em honra da sua jovem companheira, este renunciara momentaneamente às capas castanhas, cinzento escuras ou pretas, para retomar a figura de um gentil-homem elegante. Assim, a sua gola, punhos e o reverso das botas estavam enfeitados com renda fina e no seu chapéu cinzento esvoaçavam penas brancas e amarelas que combinavam com as cores das fitas que atavam a sua espada.
Logo que chegaram aos ulmeiros, tiveram de saudar e responder a numerosas saudações. Aquele belo dia do começo do Verão parecia ter esvaziado os salões das suas preciosas, à exceção da marquesa de Rambouillet, que nenhuma força humana teria podido fazer sair do seu célebre Quarto Azul. As suas duas principais rivais, a viscondessa de Auchy e Mme. dês Loges, tinham formado círculos sob as árvores, comendo pequenos bolos e bebendo limonada, enquanto os poetas ligados às suas respectivas casas declamavam poemas. Contudo, Sylvie começava a lastimar que não tivessem escolhido um destino mais tranquilo para dar aquele passeio. Desde que tinham ficado sob as árvores, Perceval não parava de saudar ou de beijar mãos, enquanto que a caminhada dela era pautada por reverências cada vez que a apresentavam a alguma dama. Aliás, todas estavam de acordo em achá-la “tão encantadora!...Tão nova e fresca!”. Quanto aos homens, frisavam os bigodes com piscares de olhos que se pretendiam mortíferos, mas que a divertiam.
Subitamente as atenções deixaram de estar concentradas neles, para se deslocarem para dois jovens que tinham acabado de aparecer. Tratava-se de Henri de Cinq-Mars e de Jean d’Autancourt. Onde quer que fosse, o jovem amigo do Cardeal atraía todos os olhares. Era tão belo que as pessoas se esqueciam quem era o seu protetor e pouco faltava para que se agradecesse a Richelieu por ter desencantado uma tal obra-prima do seu Auvergne natal... Trajando cetim azul claro e tecido prateado, um chapéu branco enfeitado com penas azuis escuras, naquela altura ele parecia-se com um anjo. E um anjo protetor, pois dava apoio ao seu amigo, cujos traços crispados e cuja palidez indicavam com clareza que padecia de uma doença ou até mesmo de um ferimento.
Foram numerosos os sinais de amizade, os gestos de chamamento que deviam ter atraído os dois jovens para um ou outro círculo; contudo, foi na direção de Sylvie e do seu padrinho que eles se dirigiram sem hesitar.
- Mlle. de L’Isle de folga ao serviço da Rainha! Mlle. de l’Isle na Praça Real! - exclamou Cinq-Mars, depois da troca de saudações protocolares. - Eis algo de novo! De agradável! Não é verdade, meu caro Jean?
O seu olhar pleno de malícia procurava o do amigo, cujas faces pálidas tinham acabado de corar, mas cujo rosto exprimia uma completa e verdadeira alegria.
- Devo dizer-vos prosseguiu o jovem que vos trago um verdadeiro herói, que todas as damas vão disputar entre si. Chega-nos direitinho das portas da morte.
- Fostes ferido, senhor? - inquietou-se Sylvie, sorrindo para aquele jovem que achava tão simpático.
- Um pecadilho, menina... mas que agradeço a Deus pois concede-me um instante de interesse da vossa parte.
- Um pecadilho? - indignou-se Cinq-Mars. - Um tiro de mosquete em pleno peito, encaixado devido às ordens de Landrecies quando arremetia sozinho contra um reduto espanhol!...
- Tendes sorte por ainda estardes vivo. - observou Perceval. - Essa carga não foi uma loucura?
- Não creio, senhor cavaleiro. Desviou a atenção dos Espanhóis, enquanto um grupo nosso ia colocar explosivos sob o dito reduto...
- Magnífico! - aplaudiu Sylvie. - Mas, senhor, podíeis ter sido morto?!
- É o que pode acontecer a todos os soldados quando vão para a guerra, menina... e acho que aqui se está a falar demais acerca de mim. Seria tão agradável falar de vós..
- Poderemos falar tanto quanto quiserdes. Ficai apenas a saber que o próprio Rei foi visitá-lo a casa do senhor seu pai, onde estava a ser tratado e abraçou-o. Um herói, estou a dizer-vos, que podeis ficar orgulhosa, menina, de ter sabido enfeitiçar...
Ao ver que Sylvie corava por sua vez, Raguenel apressou-se a dirigir a conversa para outros temas, após ter felicitado calorosamente o jovem mas, durante toda a conversa, pôs-se a observar discretamente aquele rapaz alto e louro, tão visivelmente apaixonado por Sylvie. As coisas ainda se tornaram mais interessantes quando surgiram duas novas personagens; uma, era o abade de Boisrobert e a outra, o barão de La Ferrière.
O primeiro, muito conhecido naquela Praça, conseguia a façanha de ser, a um tempo, um homem da Igreja e um famoso libertino: adorava os rapazes novos. Porém, senhor de elevado espírito e reconhecida sabedoria durante a juventude colecionara uma importante biblioteca, retirando um dízimo sobre os livros raros dos senhores da sua parentela, ou das suas relações, praticando a arte sutil da obra emprestada mas nunca devolvida e tornara-se o conselheiro literário de Richelieu. Era a ele que se devia a recente criação da Academia Francesa.
Se assim o quisesse, só dependia dele ir ao encontro deste ou daquele grupo espalhado sob as árvores, para que a sua presença fosse aí festejada; porém, ao avistar o resplandecente Cinq-Mars, cuja beleza o fascinava, caminhou na sua direção como abelha para o mel, arrastando atrás de si o velho marau, companhia que podia ser motivo de interrogação para todos. Mas era apenas o jovem capitão que o interessava e, com uma insolência bem sua, tratou de afastá-lo depois de ter feito um ligeiro sinal aos seus companheiros. La Ferrière aproveitou para se aproximar de Sylvie:
- É uma rara felicidade poder encontrar-vos, menina - disse, ignorando os dois homens que a acompanhavam. - Tão rara que ouso pedir-vos para caminhardes um pouco comigo. O ar está tão delicioso e temos tantas coisas para nos dizer.
Enquanto falava tentava segurar-lhe na mão, mas Sylvie nem tivera tempo para abrir a boca e já Jean d’Autencourt erguia a bengala para manter o inconveniente à distância:
- Alto aí, senhor! A menina não é dessas pessoas que se pode pegar pela mão e levar não sei para onde, não vendo nisso qualquer inconveniente. Começai por saudar o senhor cavaleiro de Raguenel, aqui presente, que é seu padrinho e parente!
- E quem sois vós para meterdes o nariz onde não sois chamado? Mlle de l’Isle conhece-me, pois tenho a honra de disputar a sua mão, e ela não precisa da vossa intervenção para nada. Ou então preferireis que discutamos de espada na mão, num local mais calmo? Mas não me pareceis em estado de poder defender a vossa causa... acrescentou com um sorriso maldoso.
Apesar do ferimento, o jovem já se preparava para arremeter, quando Perceval o reteve:
- Senhor marquês, por favor, isto é comigo! Senhor, ide-vos de um local onde não sois desejado. E mais vos digo: nem eu, nem ele, iremos cruzar a espada com o provocador que vós sois! Parti!
- E eu não estou na disposição de me ir embora. Aliás, a menina nada disse e...
O tom de voz subia, mas Cinq-Mars já ouvira o suficiente:
- Senhor abade, levai daqui para fora o vosso amigo! Caso contrário ver-me-ei obrigado a contar a Sua Eminência como se comportam os seus guardas quando estão em liberdade...
- E tereis todo o meu apoio! - resmungou o abade. - Não vos perguntarei, La Ferrière, se acaso perdestes o vosso espírito pois nunca o tivestes...
- Mas quantas histórias por causa de uma donzela! Como se não se soubesse o que vale a virtude das damas de honor da...
Não acabou, de respiração cortada pela bofetada que acabara de lhe assestar d’Autancourt, com toda a força da sua cólera:
- Por esse ignóbil insulto matar-vos-ei, miserável, nem que tenha depois de subir ao cadafalso!
O outro ia ripostar mas Cinq-Mars, com uma firmeza de punho que não se pensava que tivesse, dominava já um dos seus braços, enquanto o abade se ocupava do outro.
- Meus senhores! Meus senhores! - apressou-se este a dizer, num tom conciliador. - Estamos entre gente de bons costumes...
- Serei eu a matar-te, fedelho! - espumava La Ferrière. - E antes que seja tarde... Terás de me dar razão!
- Dar-vos razão? Seria um grande milagre pois pareceis ter tanta quanto de espírito requintado!
O incidente não passara despercebido. As pessoas aproximavam-se. Formando um curioso conjunto, o jovem capitão e o abade empurraram a irascível personagem para a saída do jardim. Cinq-Mars gritou alegremente por cima do ombro:
- Jean, perdoai-me por vos abandonar, mas o abade não dá conta do recado! Certamente que M. de Raguenel consentirá em acompanhar-vos até à vossa carruagem...
- Com todo o prazer, senhor!
Sylvie, que se agarrara ao seu braço, murmurou:
- Padrinho, regressemos, por favor! Que escândalo! Não quero ver mais ninguém...
- É normal. Mas depois de terem levado aquele louco, já ninguém olha para nós..
Era verdade. Todas aquelas pessoas distintas evitavam comportar-se como basbaques e as conversas, que se haviam interrompido antes, recomeçaram.
- Tendes razão, mas prefiro partir, Senhor - acrescentou, - esforçando-se por sorrir - agradeço-vos terdes querido proteger-me desse louco. Não sou uma pessoa receosa mas, no entanto, confesso que ele me faz muito medo. Digo-vos muito e muito obrigada - disse ainda, estendendo a sua pequenina mão envolta em renda, na qual ele pegou, visivelmente emocionado, sem nada encontrar para dizer.
- Onde está o vosso coche, marquês? - perguntou Perceval. -Conduzir-vos-emos até ele.
- Aqui ao pé. Mesmo no fim desta álea, mas se me permitis serei eu a ter a honra de vos conduzir a vossa casa.
- Oh, mas é tão perto...
- Talvez, mas a menina ainda não se recompôs das suas emoções... e terei tanto prazer!
Nisso Perceval acreditava. Deu o braço ao jovem, que o recusou, mostrando-lhe a bengala:
- Obrigado, mas posso andar sozinho. Não abandoneis Mlle. de L’Isle.
À saída do jardim depararam com um coche de elegância sóbria, verde escuro com riscas vermelhas, com o interior e as cortinas a condizer; como única decoração apresentava as armas dos duques de Fontsomme. Os criados trajavam as mesmas cores.
Ao chegarem, foi impossível impedir o ferido de descer da carruagem para que estendesse a mão a Sylvie para, depois, se dirigir a Raguenel:
- Posso esperar, senhor, que me autorizeis a visitar-vos num destes próximos dias? - Perceval sorriu-lhe com prazer. Decididamente aquele rapaz agradava-lhe cada vez mais.
- Sereis sempre bem-vindo! Não é, Sylvie?
- Sempre.
Quando caiu a noite, e enquanto acabavam de jantar, Perceval, que até aí permanecera calado, voltou a tocar no assunto:
- Então, Sylvie, que pensais do nosso jovem marquês?
- Que quereis que pense? - sorriu a rapariga, envolvendo um morango no açúcar esmagado. O melhor possível, evidentemente.
- Eu também. Quando... pensardes em casar-vos, gostaria que pensásseis nele. Qualquer mulher ficaria orgulhosa em fazê-lo dar o nó, como dizem os espíritos cultivados. E ele adora-vos.
Sylvie pôs os cotovelos em cima da mesa, apoiou o queixo nos dedos cruzados e dardejou um olhar malicioso na direção do padrinho.
- Já estava a perguntar-me quanto tempo levaríeis para falar do assunto! Isso não vos sai da cabeça, não é verdade? Dito isto, talvez andeis demasiadamente depressa. Não é costume uma rapariga pedir um marido e, até agora, ainda não dei pelo fato de ele ter solicitado a minha mão ou, sequer, que tenha pensado nisso. Sou de uma nobreza muito baixa para um futuro duque... e não disponho de dote nenhum.
- Espantar-me-ia que ele fosse homem para se preocupar com esses detalhes...
A entrada súbita de Jeannette, acompanhada por Corentin, interrompeu-o. A criada desculpou-se por surgir assim de rompante sem ter sido chamada, mas ela e o companheiro tinham algo a dizer e, efetivamente, mostravam-se ambos muito excitados:
- O homem que nos segue sempre que saímos em Paris - desferiu Jeannette - pois bem, vi-o há pouco. É o criado que ajudou o vosso amigo a subir para a carruagem!
- Tens a certeza? - perguntou Sylvie.
- Absolutamente! Também vós teríeis podido reconhecê-lo; sabíamos que tinha o aspecto de criado de uma casa importante, mas ignorávamos qual. Agora já sabemos...
- Mas por que motivo M. d’Autancourt me mandaria seguir? - exclamou a jovem, já prestes a zangar-se. - É um procedimento...
A mão de Perceval, firme e reconfortante, veio colocar-se sobre a dela.
- Não vos apresseis! Talvez seja um procedimento de homem apaixonado... De qualquer modo, creio que não tardaremos a esclarecer esse pequeno mistério.
O que, de fato, não tardou. No dia seguinte, enquanto Sylvie ajudava Nicole a preparar uma grande terrina de compota de morangos e enquanto Jeannette, sentada a um canto da cozinha, lhe bordava uma camisa, o portão abriu-se para dar lugar à bela carruagem da véspera: Jean d’Autancourt rogava ao cavaleiro de Raguenel que lhe dispensasse uma breve entrevista. E, para um rapaz tímido, não esteve com meias medidas:
- Vim perguntar-vos, senhor, se estais disposto a aceitar a visita de meu pai, senhor marechal-duque de Fontsomme?
Perceval riu-se enquanto apontava uma cadeira para o jovem:
- Falais em conceder um favor quando se trata de uma honra? Estais a sonhar, caro marquês! E porque viria o senhor vosso pai visitar-me?
- Para vos pedir a mão de Mlle. de L’Isle. Sois seu padrinho e, creio, também seu tutor e o único homem no mundo que detém a chave da sua felicidade...
Desta vez Perceval parou de sorrir.
- Diabo! Não perdeis tempo! Até pode ser possível que vos apresseis um pouco. Estais seguro que o marechal aceitará o passo que pretendeis impor-lhe? Os projetos dele, quanto ao vosso futuro, ultrapassam certamente a aliança com uma órfã de pequena nobreza e cujo...
- Vejo que não conheceis meu pai, senhor! Nesse caso, sabei que é o melhor homem deste mundo: dedicado ao Rei, bom cristão e pai atento, o que é raro nas nossas famílias, isso concedo-vos. Desde a morte de minha mãe que transferiu toda a sua afeição para mim. Só deseja a minha felicidade e logo que tiver visto Sylvie... quero dizer, Mlle. de L’Isle, será conquistado, tal como eu o fui ao primeiro olhar.
- Bem quero acreditar, mas enquanto não for ele mesmo a dizê-lo, não o saberei ao certo...
- Quer dizer... que recusais o meu pedido?
- De modo algum. Contudo, também não o aceito. Ficaria muito feliz por uma união entre vós e a minha pequena Sylvie, mas enquanto não me tiver sido apresentado um pedido oficial, quer dizer, vindo de vosso pai, não poderei encarar uma resposta definitiva. Além disso, não vos esqueçais que Sylvie foi educada por e em casa da senhora duquesa de Vendôme, cuja opinião também conta...
Jean fez uma careta de desagrado!
- A duquesa ou o duque? Não vos escondo que ele não é nada apreciado em nossa casa. É um perturbador, uma personagem perigosa...
- Mencionei a duquesa. Só a aprovação dela conta para mim. Enfim, se todos esses elementos forem reunidos, resta o mais importante: a própria Sylvie. É ela e só ela que aceitará ou recusará. Gosto demasiado dela para lhe impor um casamento sem amor...
- É perfeitamente natural mas, nesse caso, dai-me uma oportunidade para me fazer amar, enquanto o meu pai não regressa da guerra.
- Como assim?
- Permiti-me que venha visitá-la. Na Corte não é nada fácil e só lá vou raramente. A esse propósito... se vos parece que fui muito apressado ao apresentar-vos o meu pedido, isso é também devido ao posto de dama de honor que ela ocupa.
- Não me digais que tendes as mesmas idéias desse La Ferrière acerca das damas de honor?
- Que Deus me livre! Mas o palácio zumbe com intrigas. Ela está tão só... e é tão jovem!
Lia-se a preocupação nas feições regulares, até um nada severas do jovem, o que sensibilizou Perceval, mas este quis saber mais. Com súbita brutalidade, perguntou-lhe:
- É esse o motivo por que a mandais seguir?
Se estava à espera de desconcertar d’Autancourt, enganou-se. O jovem corou, mas não hesitou em responder:
- Sim. Não me espanta que já tenhais reparado nisso. O meu pessoal não recebeu ordens para se esconder. E o termo que utilizais não é apropriado: não mando segui-la, mas sim protegê-la. Desde que a encontrei no parque de Fontainebleau que ela se me tornou infinitamente preciosa... e parece tão frágil! Além disso não dispõe nem de carruagem nem de criados do sexo masculino ao seu serviço. Tem apenas uma jovem criada que a acompanha através de uma Paris quase tão perigosa como o próprio Louvre. Quero que esteja sempre alguém ao pé dela para a proteger. Foi por isso que aluguei uma pequena casa na rua d’Autriche e que instalei lá os meus mais fiéis serviçais: dois irmãos, Séverin e Saturnin, que se parecem um com o outro e que me são inteiramente dedicados. Revezam-se e dispõem de carta branca para assegurar a segurança de Mlle. de L’Isle, sobretudo quando estou de serviço no exército. Isto parece-vos ofensivo?
Admirador, no seu foro interior, do poder da fortuna quando posta ao serviço do amor, Raguenel pensou que devia agradecer a Deus que Ele tivesse colocado no caminho da sua pequena Sylvie este rapaz de vinte anos que dava prova de uma tal maturidade. Seria, certamente, um esposo ideal, mas aceitá-lo-ia Sylvie enquanto o seu querido François não estivesse, quanto a ele, casado? A não ser que... afinal de contas, um coração de quinze anos, mesmo apaixonado, não estaria sujeito a mudar?
- De modo algum - respondeu, finalmente, suspirando. - Antes pelo contrário, pois assim dais-me provas da profundidade do vosso amor. Em tais condições penso que será honesto confiar a esse amor, assim como à vossa honra de gentil-homem, a verdade a respeito da minha pupila, pois essa verdade consolidará certamente em vós essa necessidade em protegê-la e que é a minha.
Jean aproximou instintivamente a sua cadeira da de Perceval, que foi buscar, a um armário, um frasco de vinho de Espanha e dois copos, que encheu. Ofereceu um e veio sentar-se.
- O nome e o feudo de de L’Isle foram dados pelos Vendôme a Sylvie quando ela tinha quatro anos, após um drama do qual ela acabara de ser a vítima inconsciente. Na realidade ela chama-se Sylvie de Valaines e é a filha...
- ...do barão de Valaines, cuja família foi tão misteriosamente dizimada há... uma dezena de anos?
- Deixou-se realmente pairar o mistério para encobrir o mais medonho dos crimes. Só eu e os Vendôme conhecemos a verdade. Uma verdade que partilharei convosco assim que tiverdes dado a vossa palavra de não a revelardes a ninguém, mesmo ao duque vosso pai, até nova ordem.
- Dou-vo-la! Falai, peço-vos! Não o lamentareis.
- Pois bem: no próprio dia em que o suserano legítimo dos Valaines, o duque César, era preso em Angers, em 1626, a baronesa que era uma amiga que eu muito estimava, bem como toda a sua família, foram assassinados. Só conseguiu escapar a pequena Sylvie que foi recolhida por aquele que é hoje o duque de Beaufort...
Perceval falou durante muito tempo, seguido com atenção apaixonada por Jean d’Autancourt. Revelou-lhe tudo: o roubo das cartas de Maria de Médicis, o martírio de Chiara e a infâmia que o seu carrasco lhe impusera, a sua própria busca da verdade e, finalmente, os laços de ternura que uniam Sylvie a François desde que ele a levara para Anet.
- É perfeitamente natural! - comentou Jean, sem hesitar.
- Acrescento que ela se esqueceu desse drama da infância. Ou, pelo menos, as recordações que ainda possui são tão imprecisas quanto as de um pesadelo.
- E os assassinos? Sabeis quem são?
- Conheço um: esse La Ferrière que tanto se interessa por ela. Obrigou que lhe entregassem o castelo sob o pretexto que este estava em seu nome e que já lhe devia pertencer desde há anos. Quanto ao outro, o assassino do sinete de cera, posso dizer-vos que, se ignoro ainda quem ele é, no entanto tenho a certeza que se encontra em Paris e que continua a matar da mesma maneira. A única diferença é que, atualmente, ataca as prostitutas. Isto tudo pode explicar-vos por que não queria que Sylvie se tornasse dama de honor tão jovem. No hotel Vendôme ou nos castelos da família, onde estava muito melhor protegida porque nada a colocava em foco. Teria cem vezes preferido que ela vivesse ao pé de mim.
- Mas não éreis o seu mestre?
- Não. Sobretudo a partir do momento em que a Rainha a desejou ao pé de si.
- Temos de nos arranjar com aquilo que temos! - suspirou o jovem. - Para começar o meu pessoal não vai deixar de a seguir.
- É uma pequena muito viva e obstinada.
- Dizei antes que ela é adorável...
- E que a adoreis? Estou convencido, mas deveis saber que ela não se encontra preparada para o casamento, com quem quer que seja, e que talvez venha a ser difícil separar o seu coração do amigo de infância em quem vê todas as qualidades...
- Tentais dizer-me que eu deverei ser paciente? Sê-lo-ei, podeis ter a certeza... mas, ainda assim, deixai-me tentar a minha sorte!
- Porque não? Talvez consigais levá-la, devagarinho, a... partilhar os vossos projetos. Esta noite dir-lhe-ei apenas que vós me visitastes e que vos autorizei a vir distraí-la cada vez que assim o desejardes.
O jovem marquês corou novamente, mas os seus olhos cinzentos brilharam:
- Credes que ela aceitará a minha presença?
- O contrário surpreender-me-ia. Ela acha-vos encantador. E, agora, não sois um pouco, de certo modo, o seu herói?
Efectivamente, lisonjeada, no fundo, por inspirar um sentimento sincero, foi com prazer que Sylvie descobriu um agradável companheiro na pessoa do futuro duque de Fontsomme. Não lhe faltava fineza de espírito, cultura ou alegria. Gostava de música, todo o tipo de música, mesmo a dos versos, e revelava-se um admirador apaixonado de M. Corneille. Sylvie passou momentos encantadores na sua companhia, em casa ou no exterior. Acompanhados por Perceval de Raguenel e por Jeannette, foram vistos a assistir à comédia, nas livrarias de curiosidades do Marais, na Praça Real ou, de coche, no passeio do Cours-la-Reine... Foram um pouco a todo o lado, à exceção dos salões, apesar de alguns convites suscitados, sobretudo, pela curiosidade, a fim de não oficializarem uma relação que se desejava como sendo uma manifestação de pura amizade. Jean soube, aliás, com um discernimento invulgar para a sua idade, evitar a mínima alusão aos seus profundos sentimentos em relação à jovem companheira: estava ali apenas para distraí-la durante as férias que lhe tinham concedido...
Mas que acabaram ao fim de um mês, ao chegar um bilhete de Mlle. de Hautefort, suplicando a Sylvie para regressar o mais depressa possível. “Preciso muito de vós escrevia Aurora e Sua Majestade sente a vossa falta”.
- Que fazer, depois disto, a não ser as bagagens? - Sylvie e Jeannette deixaram a rua das Tournelles, suspirando, e regressaram ao Louvre.
XEQUE À RAINHA!
Mlle. de Hautefort tinha feito uma entorse ao descer a Grande-Escadaria sem qualquer consideração pelos seus novos borzeguins de salto alto mas, fervorosamente obstinada nos seus hábitos, nem por isso abandonara as suas funções de açafata. Por derrogação especial do Rei, sentava-se num banquinho[24], com o pé ligado em cima de uma almofada, e orquestrava, a um ritmo infernal, o bailado das camareiras que não se mostravam muito satisfeitas com a sua disposição. Recebeu Sylvie com a graça de um cão a quem haviam retirado o seu osso:
- Finalmente, sempre aqui estais? Palavra que começava a crer que nunca mais nos veríamos!
- Estáveis enganada. Regressei assim que me pedistes.
- É isso precisamente que vos critico: foi preciso chamar-vos! Aparentemente nem sequer vos passou pela cabeça a idéia de que poderíamos precisar de vós. É verdade que estáveis muito ocupada em assegurar um futuro brilhante!
- Eu? Um futuro brilhante? - exclamou Sylvie, um pouco surpreendida por aquela investida.
- E que outra coisa poderia ser? Sois vista em toda a parte na companhia do futuro duque de Fontsomme...
- O que não significa nada! M. d’Autancourt socorreu-me em penosas circunstâncias; estou-lhe imensamente agradecida e tornamo-nos amigos. Nada mais!
Uma chama de alegria brilhou, finalmente, nos olhos azuis da Aurora.
- Também sei disso... e não ficai com esse ar afetado, Sylvie, isso não vos cai bem! Para dissipar qualquer equívoco, acrescento que não vos desejo nada melhor do que poderdes tornar-vos a esposa desse gentil rapaz. Agora, falemos de outra coisa! A Rainha deseja deslocar-se amanhã até Val-de-Grâce. Irei com ela, mas compreendereis seguramente que precisaremos de alguém mais ágil.
- A Rainha tem uma trintena de damas de honor à sua disposição. Precisais assim tanto de mim para... rezar num convento? - perguntou Sylvie, com um ar ambíguo, pois a perspectiva não a seduzia. Marie mudou imediatamente de cor:
- Mas que modos de falar são esses? Tereis por acaso deixado a vossa fidelidade sob as árvores da Praça Real? Os Fontsomme são dedicados ao Rei e...
- São soldados! - interrompeu Sylvie. - Seria bonito se os seus oficiais não lhe fossem dedicados. Tanto, aliás, quanto o são à Rainha e não é ao pé deles que irei aprender lições de traição. Temos de ir para o Val? Então, vamos! Só quis brincar um pouco convosco. É o meu lado “gatinha”, sem dúvida...? Sou muito matreira! - concluiu com um sorriso irônico.
- Contudo, asseguro-vos que esta não é a altura adequada para brincadeiras. Durante a vossa ausência, quando lá estivemos da última vez, La Porte, que tinha um encontro marcado com Auger, quase se deixou apanhar por um destacamento da guarda que perseguia um ladrão que tinha transposto as muralhas de Paris através de um monte de entulho...
Sylvie ardia de desejo de saber se François já regressara mas, ao ver a cara da companheira, compreendeu que se arriscava a apanhar uma valente descompostura. Aliás, Mlle. de Pons acabara de entrar e, se bem que se tratasse de alguém muito anódino, não era realmente o momento oportuno, tanto mais que a convidavam a deslocar-se até ao quarto da Rainha que, tendo acabado de se levantar, a recebeu muito bondosamente:
- Sabeis que tive saudades vossas, minha criança? - perguntou a soberana, estendendo-lhe uma mão, perante a qual Sylvie se inclinou. - A vossa voz possui o milagroso poder de varrer as preocupações e de acalmar as tristezas. Não me abandonai mais vez nenhuma!
- Vossa Majestade sabe a que ponto vos desejo agradar. Teria regressado mais cedo caso tivesse ousado pensar que a Rainha teria precisado de mim.
- Mais do que o imaginais! Esta noite ireis cantar para mim e amanhã acompanhar-me-eis à abadia onde ireis cantar louvores à Rainha do Céu. Precisamos muito da Sua ajuda...
Ana de Áustria parecia nervosa e Sylvie constatou que a atmosfera do Louvre mudara durante aquele mês. Havia menos gente em redor da Rainha.
Tendo regressado o Verão, Paris esvaziava-se, sem dúvida em benefício dos castelos, mas era estranho que o círculo de Sua Majestade se limitasse a meia dúzia de pessoas. Sylvie não conseguiu impedir-se de fazer a observação a Marie. Esta encolheu os ombros.
- Esqueceste-vos que também nós devíamos estar em Fontainebleau ou em Chantilly, que o Rei designou como locais de estadia de Verão para este ano, e onde deseja que nos desloquemos o mais depressa possível?
- Então porque não estamos lá?
- Não façais tantas perguntas! A Rainha desculpou-se com as bagagens, que ainda não estão prontas... e com a vossa ausência, dado que eu me encontro muito incapacitada, mas devemos deixar Paris dentro em breve, tanto mais que temos imenso que fazer. - E depois, baixando a voz, acrescentou: - Estamos à espera de correios...
Efetivamente, se o Louvre parecia um pouco adormecido, o Val-de-Grâce revelou-se pleno de atividade. Mlle de Hautefort, instalada numa mesa do salão coberta de papéis, redigia compridos despachos, entre duas massagens aos pés, enquanto Ana de Áustria recebia visitantes. Os do dia vinham sobretudo por causa das ações de caridade. A Rainha ouviu as queixas, distribuiu subsídios, mas Sylvie sabia que a vida noturna era a mais interessante. Na primeira noite, a jovem introduziu um inglês de alta estirpe, lorde Montagu, que era, ao mesmo tempo, um antigo amigo de Buckingham, um antigo amante de Mme. de Chevreuse e um fiel amigo da soberana. Ela recebeu-o no seu quarto, mas a visita não foi longa: Walter Montagu viera apenas transmitir à Rainha as inquietações da sua cunhada, a rainha Henriette de Inglaterra, a propósito dos rumores que lhe haviam chegado acerca de um próximo repúdio; trazia-lhe a garantia de que, em caso de desgraça, o reino britânico estaria disposto a acolhê-la. Depois de ele se ir embora, Ana fez as suas orações, preparou-se para se deitar e apagaram-se todas as luzes para surpresa deliciada de Sylvie, que dormiu como um anjo na cama estreita que lhe fora destinada. No dia seguinte, a jornada apresentou-se com o mesmo perfil: serviços e mais serviços, em quantidade ainda maior, pois era dia de festa de Santa Ana, mãe da Virgem Maria, em honra da qual Mlle. de L’Isle foi convidada a cantar com as freiras; ocorreram também, é claro, as refeições e algumas visitas diurnas. Ao cair da noite, vendo que La Porte se preparava para sair, Sylvie julgou que ele fosse ao encontro de François mas percebeu que não era o caso quando este preveniu que só regressaria à hora normal da abertura das portas do convento. Aliás, a Rainha anunciou ter a intenção de se deitar depois do último serviço: sentia-se estafada e queria descansar quanto precisasse.
- Não esperamos ninguém, esta noite? - perguntou Sylvie, ao ajudar a sua companheira a deitar-se. Estava tão contente que Marie contentou-se em sorrir:
- Não. Ide dormir!
Nem foi preciso repetir a ordem. Sylvie estava ao mesmo tempo desiludida e aliviada por não ver François mas, dos dois sentimentos, era o alívio que prevalecia. Um alívio que não foi além do regresso da missa do dia seguinte.
- Espero que tenhais aproveitado a vossa noite - segredou-lhe Aurora. - Porque, por volta da meia-noite, devereis estar de vigia à pequena porta. Esperamos... um monge!
Ao encontrar-se no jardim à hora combinada, Sylvie teve a impressão de estar só no mundo. Ao fim da tarde, uma trovoada desanuviara a atmosfera. O ar da noite exalava um aprazível odor a terra e a erva molhadas. Devido ao calor que reinara durante vários dias, as janelas da abadia encontravam-se abertas. As da Rainha também, mas a prudência obrigara a apagar todas as luzes, como se o pavilhão estivesse mergulhado no sono. Esse silêncio, essa solidão, tinham algo de angustiante e Sylvie mal conseguia ficar quieta.
Subitamente, ao quarto toque da meia-noite, soou o sinal e ela apressou-se a abrir a porta. Deparou com uma alta silhueta encarapuçada que logo reconheceu devido ao bater acelerado do seu coração. Contudo, o monge teve um gesto de recuo:
- Não sois Marie! - sussurrou.
- Parece-me evidente, não? Entrai. Eu sou a Sylvie...
- Ah, minha gatinha! Que alegria! Tinham-me dito que havíeis abandonado o vosso lugar para irdes viver em casa do vosso padrinho e talvez para vos casardes...?
- E a mim disseram-me que vós vos haveis batido em duelo e que haveis matado o vosso adversário. Então que fazeis aqui, louco que sois?
Pronto, tinha pronunciado as palavras! Sylvie sentiu-se um pouco melhor, pois precisava de saber. Ouviu-o rir baixinho:
- Esta dupla circunstância demonstra-nos que não se deve dar muito crédito aos rumores da Corte. Geralmente basta cortá-los ao meio: não estais em casa de Raguenel e eu não matei ninguém!
- Não vos haveis batido em duelo?
- Sim, mas M. de Thouars safou-se com um rasgão, pelo que não me guarda rancor, pois espera que reatemos o nosso encontro numa próxima oportunidade. Quando eu tiver tempo!
Ele ia prosseguir caminho, mas ela reteve-o:
- Porquê, François? Porquê tantas imprudências?
Então ele pegou-lhe no queixo como costumava fazer outrora e disse-lhe, com infinita doçura:
- Porque a amo como louco que sou, gatinha. E, também, porque ela me ama. Pelo menos, assim o julgo... Compreendereis melhor quando fordes mais crescida. Por ora sois apenas uma rapariguinha.
E afastou-se com largas passadas silenciosas, sem se aperceber da tempestade de tristeza e de furor que acabara de desencadear naquela “rapariguinha”. Havia a desculpa de que ele ignorava tudo acerca dos profundos sentimentos de Sylvie, e a tempestade interior acalmou-se ao ritmo das desculpas que ela procurava encontrar para ele. Contudo, da breve conversa, algo restara que a consolava um pouco: ele não tinha morto o seu adversário e, portanto, não se arriscava a cair sob a alçada da terrível justiça do Cardeal. Mas então, se ninguém fora morto, porque viera o duque César ter com ela, abandonando o seu exílio dourado e correndo também o risco de ser apanhado? E o frasco de veneno? Tudo aquilo era incompreensível e, sobretudo, muito complicado... a menos que lhe tivessem outorgado o certificado de dama de honor a pedido da Rainha, não por causa dos seus talentos de cantora ou dos seus conhecimentos da língua espanhola, mas para que houvesse ao pé dela alguém cegamente dedicado à família dos Vendôme... e, sobretudo, a François de Beaufort...?
Sylvie quedou-se no seu lugar até ao canto do galo, sentada num banco molhado. Nessa altura reapareceu o falso monge, apressando-se na direção da saída, onde ela foi ter com ele, abrindo a porta sem dizer uma palavra. Mas, antes de a transpor, ele inclinou-se e depositou-lhe um beijo na testa, desaparecendo na densa obscuridade que precede a alvorada. Um beijo que não deu qualquer prazer à jovem. Era preciso que François estivesse feliz para ter aquele gesto espontâneo! Uma maneira como qualquer outra de partilhar a sua alegria e também de agradecer-lhe por lhe ter aberto a porta do Paraíso...
Sylvie regressou para o seu banco e chorou até que a frescura da alvorada a enviou em busca de uma cama e de roupas secas...
Cinco dias depois deixavam finalmente Paris, na direção de Chantilly. A Rainha bem tentou ganhar algum tempo pretextando que se sentia adoentada mas, ainda assim, era imprescindível ir ter com um esposo que se impacientava. Contudo, não tendo acabado de tratar todos os assuntos que contava despachar no Val, ela deixou La Porte atrás de si, encarregue de entregar várias cartas. Finalmente pôs-se a caminho, sem grande entusiasmo.
- Não gosto lá muito de Chantilly - confiou a Rainha a Sylvie, durante o caminho. - O domínio é magnífico, os lagos encantadores e a floresta soberba, mas tudo isso se esvaneceu quando o Cardeal mandou cortar a cabeça de Henri de Montmorency, e tenho sempre uma sensação de mal-estar quando lá chego...
- Acreditais em fantasmas?
- Sim, sim, acredito! E os mais novos são os mais penosos!
O belo olhar esverdeado apagou-se. Sylvie não ousou prosseguir. Pensava apenas qual dos dois assombrava Ana de Áustria: se Montmorency... se o inesquecível Buckingham...
A notícia que trouxe M. de Chamblay, primo de Mlle. de Hautefort e que lhe servia ocasionalmente de correio, caiu como uma bomba: La Porte acabara de ser preso na rua Coquillière, levando consigo uma carta importante da Rainha dirigida à duquesa de Chevreuse. Fora encarcerado na Bastilha, onde estava à espera de ser interrogado. Mas havia ainda pior: acompanhado pelo bispo de Paris, Monsenhor de Gondi, o Guarda-Selos, irrompera pelo Val-de-Grâce e submetera a madre de Saint-Étienne a um interrogatório da praxe, operação que não dera grandes resultados apenas algumas antigas cartas de Mme. de Chevreuse ou de amigos pouco apreciados pelo Rei, mas nada que dissesse respeito a Espanha. Mais tarde, veio aliás a saber-se que Monsenhor de Gondi, grande amigo dos Vendôme e pouco suspeito de amizade em relação ao Cardeal, prevenira a madre de Saint-Étienne, que tratara de “arrumar” a casa. Apesar disso foi obrigado a destituí-la e a pedir às religiosas que elegessem uma nova abadessa, após o que, a madre e três das suas freiras foram transferidas para outro convento.
Não estava no temperamento da orgulhosa Espanhola deixar que maltratassem os seus fiéis sem reagir. Sabendo que o ataque é ainda a melhor defesa, foi pedir contas ao esposo.
- Tudo isto é indigno! Só uma reles polícia como a do Cardeal é que pode comprazer-se deste modo. Que se procura, afinal?
- A prova do vosso incessante conluio com o inimigo. Um conluio que, no vosso como em qualquer outro caso, se chama traição.
- Traição? Por que escrevo aos meus irmãos? Não sabíeis que eu era Espanhola quando me havíeis desposado? Devíeis ter escolhido outra pessoa.
- Não fui eu quem vos escolheu, foi a política que o fez no meu lugar. Dito isto, trata-se menos da vossa correspondência com o Cardeal-Infante, a qual é, com efeito, assaz normal, desde que não ultrapasse a afeição familiar, do que aquela que tendes com o conde de Mirabel! Que eu saiba, esse não pertence à vossa família...?!
Apesar da angústia mortal que sentia, a Rainha manteve a sua compostura.
- Nunca mais escrevi ao conde de Mirabel desde que ele foi expulso de França, aquando do reatamento das hostilidades.
Era dar provas de ousadia pois, ao revistarem a casa de La Porte, ela ignorava se tinham ou não encontrado o local onde ele escondia a grelha de código e o sinete mas, aparentemente, a Rainha acertara. Luís XIII encolheu os ombros e voltou-lhe as costas para lhe dar a entender que o encontro acabara:
- É o que viremos a saber - disse apenas. - Desejo-vos boa noite, Senhora!
Apesar da sua coragem, a Rainha não dormiu nada nessa noite, tanto mais que com aquele sentido oportuno dos cortesãos a grande maioria das suas damas de honor pretextaram estranhas doenças, tão súbitas quanto incômodas. Só ficaram Mlle. de Hautefort, Mme. de Senecey e Sylvie. A primeira espumava de raiva:
- Covardes ou traidoras a soldo do Cardeal! - gritava. - Terão de me prestar contas logo que tivermos saído deste mau passe.
- Se chegarmos a sair dele! - suspirou Ana de Áustria.
Mas o pior ainda estava para vir. E veio no dia seguinte, na pessoa do Guarda-Selos, ladeado por um escrivão. Pierre Séguier, Chanceler de França desde há ano e meio, era o membro mais estimado de uma grande família parlamentar. Ao aproximar-se dos cinquenta, nem por isso deixava de ser um arrivista sem modos nem diplomacia, imbuído do seu poder e, pelo menos aparentemente, completamente desprovido de sentimentos. Era uma pesada máquina destinada a fazer reinar a lei literalmente, sem matizes nem preocupações quanto ao que esmagava sob os seus grandes pés. Introduzido junto da Rainha, que o recebeu sentada numa cadeira alta com aspecto de um trono e flanqueada por Marie e Sylvie, saudou-a com a cortesia devida a uma dama, mas não seguramente a uma soberana, detalhe que não escapou a Aurora, que franziu as sobrancelhas. O ataque foi imediato e fulgurante:
- Pois bem, senhor, que vindes aqui fazer com a vossa toga vermelha e os vossos papéis? Não sabeis que é preciso marcar uma audiência para ter a honra de ser recebido pela Rainha?
- A urgência, senhora, é a minha desculpa e, também, as ordens que recebi do Rei.
- Do Rei ou do Cardeal?
- Do Rei, senhora, e rogo-vos que me deixeis cumprir os deveres do meu cargo. É à Rainha que desejo falar e não a vós!
- Pois bem, falai! Que quereis? - perguntou calmamente Ana de Áustria, cuja mão apaziguadora se pousara na da sua fiel açafata.
- Como sabeis, Senhora, o vosso camareiro-mor, o senhor de La Porte, foi preso, levado para a Bastilha e submetido a vários interrogatórios, tendo sido encontrado na posse de cartas comprometedoras.
- Comprometedoras para quem? Suponho que se trata de uma carta de amizade endereçada à senhora duquesa de Chevreuse, que eu soube estar doente...
- A duquesa foi exilada, Senhora, e vós não o ignorais...
- Efetivamente, mas terá isso de prejudicar a grande amizade que sempre lhe dediquei... e que lhe dedico? E o Rei sabe disso.
- Como sabe também... o carinho que tendes pelos nossos inimigos, mas...
- O rei Filipe IV é meu irmão, assim como o Cardeal-Infante, e a sua esposa é a irmã do vosso Rei - interrompeu a Rainha, irritada. - As dissenções políticas não devem afetar os laços familiares. Mas ignorais talvez o que significam estes termos?
- De modo algum, Senhora, de modo algum. A minha própria família recebe a afeição que lhe é devida, mas o que é válido para um particular deixa de o ser quando se é detentor de uma coroa. Só o Rei vosso esposo e o reino, Senhora, devem ocupar o vosso coração. Para além disso, guardar alguma ternura pelos vossos irmãos e até demonstrá-lo não seria grande crime se não se escondessem estranhas revelações sob os impulsos do coração...
À custa de um enorme esforço a Rainha explodiu num riso que um observador atento teria julgado um pouco forçado:
- Estranhas revelações sob... desta vez, senhor Chanceler, enlouquecestes!
- Não leveis as coisas dessa maneira, Senhora. O vosso criado já foi ouvido várias vezes...
- Foi interrogado... - murmurou a Rainha, que empalideceu. - Já lhe...
- ...fizeram as devidas perguntas? Ainda não, mas isso não deve tardar caso ele continue a mostrar-se obstinado. Esta noite foi ouvido por Sua Eminência, que o mandou buscar à prisão para interrogá-lo pessoalmente.
- Sob tortura, pode confessar-se seja o que for! Que não revelaríeis, senhor, se vos aplicassem um instrumento de tortura nos pés, se vos inchassem forçando-vos a ingurgitar gotas de água, se...
- Quem nada deve, nada teme! - citou religiosamente Séguier. - Receio, contudo, que ele tenha algumas culpas no cartório... e vós também, Senhora!
Incapaz de se conter, Maria de Hautefort explodiu:
- Senhor, falais com a Rainha! Ao menos respeitai esta coroa que pretendeis tão fielmente servir!
- Tendes toda a razão, mas devo levar ao Rei toda a luz sobre este penoso assunto. Ninguém, mais do que eu, deseja que Sua majestade esteja inocente de qualquer crime, mas temos aqui uma carta...
Estendeu o braço na direção do escrivão sem sequer o olhar, e este remeteu-lhe de imediato um papel de antemão preparado, cuja trajetória a Rainha seguiu com uma angústia que dificilmente conseguia dissimular.
- Que carta é essa?
- Trata-se antes... de um bilhete escrito pela Rainha ao antigo embaixador de Espanha, o conde de Mirabel. E aquilo que contém não é... de molde a... acalmar a cólera do Rei...
Dava mostras de querer voltar a ler o documento. Subitamente aterrorizada, Ana de Áustria cometeu um grave erro. Levantando-se bruscamente, arrancou o perigoso papel das mãos de Séguier e pô-lo sob o seu decote. Surpreendido pela rapidez do ataque o chanceler ficou de mãos a abanar mas os seus olhos faiscaram imediatamente.
- Tendes de me devolver esse papel, Senhora. É de uma importância extrema.
A Rainha ergueu insolentemente o queixo.
- Papel? Mas que papel? Agora, senhor chanceler, querei, por bem, retirar-vos.
Mas Séguier nem se mexeu. Com um tom de voz que ia crescendo com a cólera, preveniu:
- Não brinqueis a esse jogo comigo, Senhora! O Rei deu-me todos os poderes para desvendar a verdade. Tenho de passar uma busca a este aposento.
- Pois então, buscai! - proferiu Ana desdenhosamente. - Não encontrareis nada.
- Sem dúvida, pois haveis confiscado a minha prova. Um gesto muito irrefletido, Senhora, que só por si constitui uma prova... Que tereis de me devolver. Senão...
- Senão, o quê? Decerto que não pensais em atentar contra a minha pessoa?
- Não me forceis a tal, Senhora! Já vos disse: disponho de todos os poderes!
De pálida a Rainha passou a branca mas, num impulso, Marie de Hautefort fez uma barreira colocando-se à frente dela.
- Insultais a vossa Rainha! É crime de lesa-majestade!
- Tirai-vos da frente se não quereis que eu chame os guardas que estão à porta!
Eles não vos obedeceriam.
- É o que vamos ver! Escrivão, chamai-os!
- Não!
Fora a Rainha que soltara aquele grito. Afastou brandamente a sua açafata, não desejando minimamente ver os guardas a interferir num assunto tão desonroso; depois fez frente a Séguier, fulminando-o com os seus olhos verdes:
- Mandei que saísseis!
- E eu pedi-vos para devolverdes essa carta!
Antes que ela pudesse fazer qualquer gesto, saltou-lhe para cima, arrancando-lhe o bilhete escondido entre os seios e, depois, com uma mão lesta, apalpou os bolsos dissimulados no vestido mas, entretanto, Marie de Hautefort já lhe caíra em cima e, desta vez, Sylvie, primeiramente paralisada pelo terror, acabou por também intervir. As duas conseguiram afastar a Rainha que estava prestes a desmaiar. Com um gesto violento, Marie repeliu o chanceler com tanta brutalidade que ele estrebuchou:
- Fora daqui, miserável! Já provocastes mal que baste... mas tereis de prestar contas!
- Apenas cumpri o meu dever - guinchou Séguier, que perdera toda a soberba e que se escapava. - Apenas obedeci ao Rei!
- O Rei é um gentil-homem e vós, vós sois um patife! Rua!
Desta vez escapuliu-se com o escrivão, que não se mexera durante toda a cena. Inclinada sobre a Rainha, estendida no solo, Sylvie esforçava-se por reanimá-la.
- É preciso chamar um médico! - exclamou. - Que insulto! Meu Deus! Ela pode morrer!
- Ide buscar Mme. de Senecey. Eu vou ter com o Rei e acreditai-me que ele vai ter de me ouvir.
- O Rei foi à caça. Não ouvistes cães e cavalos a partir?
- Pelo menos trarei comigo o doutor Bouvard. Quanto a este marau, não perde pela demora!
Mas, nem nessa noite nem tão-pouco no dia seguinte, Marie conseguiu realizar o seu desejo de vingança. Aliás, sob o peso da inquietação, já se esquecera um pouco dele. Durante os dois dias seguintes a Rainha esteve praticamente inconsciente. Prostrada no leito, com os olhos fixos, recusava todo o tipo de comida, bebendo apenas, com grande esforço, um pouco de água açucarada. Bouvard diagnosticou um violento abalo nervoso, sangrou-a por duas vezes apenas conseguindo, evidentemente, que ela ficasse ainda mais enfraquecida. Entretanto o pessoal do aparelho judiciário efetuava uma busca aos seus aposentos, exceto no quarto, onde velavam as suas fiéis amigas. E, exceto M. de Guitaut, o seu capitão das guardas e M. de Brienne, que outrora fora para ela um bom conselheiro, ninguém veio saber como ela estava.
Permaneceu fechada no quarto como se tivesse peste enquanto, mesmo ao lado, os seus antigos cortesãos se entregavam, mesmo ao pé, ao divertido jogo dos prognósticos: quando o Rei a repudiasse quem se tornaria rainha de França? Não era preciso um herdeiro para o reino? Houve até alguém que ousou sabe Deus porquê falar de Mlle. de Chémerault, pelo que recebeu uma bofetada monumental desferida pela linda mão de Aurora:
- Quando se é rei de França, não se substitui uma infanta por uma puta! - acrescentou serenamente, antes de desaparecer no meio de um grande voo de tafetás e “gola de pombo”, deixando todos inquietos e especados nos respectivos lugares.
Entretanto, no silêncio atapetado do gabinete de Richelieu, este passava uma monumental descompostura ao Guarda-Selos:
- Ousastes atacar a própria Rainha de França? Mas, estais louco! Por um insulto desses, devido ao qual a Espanha poderia pedir-nos um sangrento ajuste de contas, devia mandar que quatro cavalos vos arrastassem! Tanto mais que sabíeis perfeitamente que o vosso bilhete era falso, imitando a letra da Rainha.
- Tinha de fazê-la confessar. Eram as vossas ordens, monsenhor!
- Nunca vos dei ordens dessas. Há outros meios para obter confissões, mas esses exigem sutileza. Agora vou ter de me deslocar a Chantilly num destes próximos dias, quando esse maldito La Porte se decidir a falar, a fim de tentar apagar o efeito da vossa inqualificável atitude desastrada!
O Cardeal raramente se excedia daquela maneira, sobretudo para com um dos senhores do Parlamento, mas ele detestava a força bruta e os lapsos incontroláveis que às vezes acabava por provocar. Odiava a Rainha, mas não desejava a sua perda. O que desejava era inspirar-lhe um santo terror e incutir-lhe medo suficiente para que ela voltasse ao seu poder dando, finalmente, provas de uma disciplina no par que, de bom ou mau grado, ela devia formar com o Rei. Afinal, desejava subjugar essa orgulhosa Espanhola que o desafiava há tanto tempo e que não parava de conspirar contra ele e, portanto, contra o Rei, mas, passado o alerta, queria que ela desse um herdeiro ao trono. Ora o Rei já não se aproximava da sua esposa...
De repente Richelieu sentiu-se velho, mas não era homem para se lamentar durante muito tempo com as suas preocupações. Foi buscar umas gotas daquele vinho de Alicante que tanto apreciava, pegou no gato favorito e sentou-se perto de uma das janelas abertas sobre os belos jardins. Afinal de contas, a estupidez de Séguier ia agora permitir-lhe desempenhar o papel de pacificador junto à bela Espanhola, que sabia estar a ser abandonada por todos ou quase todos. Desta vez, acariciando o gato, o Cardeal sorria...
Entretanto, em Chantilly, a ronda dos falsos rumores continuava. Dizia-se que a Rainha não só ia ser repudiada como também ia ser presa e levada para a fortaleza do Havre, onde ficaria a aguardar um julgamento solene.
No dia em que este rumor começava a circular, Marie de Hautefort encontrou um bilhete muito pitoresco no seu livro de orações, redigido mais ou menos assim:
“Deveis tar cansada de viver fechada com um tempo deste. Vinde pois raspirar o ar puro para os lados da caisa de Sylvie, na companhia da outra Sylvie, que deve precisar de se mexer. Lá tá frasquinho, mesmo às três horas...”
Claro que não estava assinada, mas o tom da carta e a extravagante ortografia denunciavam um amigo fácil de identificar. Assim, àquela hora abrasadora da tarde e enquanto a Corte se abandonava às alegrias da sesta, as duas amigas deixaram a Rainha à guarda de Stéfanille e de Mme. de Senecey, pegaram num cestinho e, atravessando a ponte do Rei, deixaram o castelo que repousava sobre o plácido lago, dirigindo-se para a floresta, a pretexto de irem colher morangos nos bosques a fim de tentarem abrir o apetite da estimada doente.
A “casa de Sylvie[25]” tratava-se, longe do duplo castelo, de um pavilhão ao estilo italiano, rodeado por um jardim florido que dominava um pequeno vale onde corriam dois regatozinhos que se reuniam numa fonte de mármore, cuja água se perdia numa lagoa. Mandada construir no século anterior por François de Montmorency, filho varão do condestável, a casa devia o seu nome ao poeta Théophile de Viau, o qual, perseguido devido aos seus escritos e até ameaçado de ser conduzido à fogueira, fora lá escondido, catorze anos antes, pela jovem e encantadora esposa do último duque de Montmorency, decapitado fazia cinco anos por ter conspirado com Gaston d’Orleans, claro! contra o Cardeal. Chamava-se Marie Felice, princesa de Orsini, provinha de uma grande família romana e era tão graciosa que o infeliz poeta, vendo nela uma ninfa dos bosques, cognominara-a Sylvie, apaixonara-se por ela e escrevera uma pequena coletânea de odes dedicadas à sua benfeitora:
Passo lápis dourados
Pelos locais mais sonhados
Onde a virtude se vai refugiar
E cujo pórtico abriram
Para minha cabeça ocultar
Quando a minha efígie queimaram...
A voz clara de Mlle. de Hautefort declamava os versos do poema com talento. Sempre amara os poetas, talvez em memória ao seu antepassado, o visconde trovador Bertran de Born. Um trovador que nada tivera de lamechas e cujos poemas provençais destilavam a guerra ou o amor consoante o estado em que se encontravam as suas relações com o seu bem-amado suserano Ricardo, Coração de Leão... Dele, Marie herdara a chama, a insolência e o seu gosto pela rebelião.
- Que aconteceu a esse tal Théophile? - perguntou Sylvie.
- Morreu em Paris, faz em breve onze anos, no dia 25 de Setembro de 1626, na pequena residência de Montmorency, acometido por uma febre que alguns acharam muito estranha. Tinha apenas trinta e seis anos. Na véspera de falecer pedira ao seu amigo Boissat que lhe trouxesse anchovas...
- Decididamente, vós conheceste-o bem...?
-Gosto dos versos dele. Além disso era da região de Agenois, não tão afastada quanto isso das nossas terras de Hautefort...
Enquanto continuavam a cavaquear, as duas jovens aproximavam-se do seu destino. Ao descobrir a casa encantadora, Sylvie pensou que gostaria de vir a possuir uma semelhante. Achava que era o local ideal para curar as feridas, para tentar esquecer, para retomar gosto pela vida. Ali o ar parecia mais puro, mais transparente do que em qualquer outro local. Fechou os olhos para melhor o inspirar, mas uma gargalhada da sua amiga fê-la abri-los de novo: Marie apontava para um pescador, vestido como um dos guardas-campestres, com ar de estar a dormitar na margem da lagoa, o chapéu tão enterrado que nem se via a cor dos seus cabelos. E, ao mesmo tempo, recitava:
Ao olhar para Sylvie pescando
Via os peixes entre si lutando
Para saber qual o primeiro
A dar a vida em honra de tal isco.
- Dir-se-ia que a gentil duquesa mudou muito. Vejamos quem se esconderá por debaixo deste chapéu! - acrescentou, pegando na mão da amiga para correr ao encontro do homem que abordou ritualmente: - A pesca corre bem?
O homem ergueu a cabeça e o coração de Sylvie parou por um momento, se bem que ela já o esperasse: era François. Ele sorriu-lhes.
- Chegais a horas. Muito bem!
Marie já se zangava:
- Bem me parecia que se tratava de vós! Que gênero de pessoa insensata sois, meu caro duque, para vos entregardes a este tipo de brincadeira num momento como aquele que atravessamos? Acaso desconheceis a situação em que nos encontramos?
- É precisamente por isso que aqui estou. A Rainha tem de abandonar o castelo esta mesma noite. Já preparei tudo e...
- Uma fuga? Nada menos? Quereis que a Rainha de França se ponha em fuga como uma culpada cheia de medo?
- Nada de grandes discursos, minha querida! Existem precedentes e ela não precisará de descer da janela utilizando uma escada de corda como fez outrora, em Blois, a rainha-mãe, que era muito mais velha e mais pesada. Bastará que regresseis aqui esta tarde, ao lusco-fusco, para respirar o ar fresco. Nessa altura mudareis de roupas na floresta, e já não será Mlle. de Hautefort que surgirá, mas sim a Rainha envergando as roupas dela. Sois ambas louras e do mesmo tamanho. Trareis Sua Majestade até aqui, onde tudo estará a postos. - Sylvie acrescentou, voltando-se para a jovem que o olhava sem dizer nada - partireis com ela. Receio muito que uma vez descoberta a fuga, se tentem vingar na vossa pessoa!
- E não tendes a mínima preocupação a meu respeito? - observou Marie.
- Não. - respondeu François com encantadora franqueza. - E isso por vários motivos: sois a mulher mais corajosa que conheço, de boas famílias e, sobretudo, o Rei ama-vos!
- Ora essa! Nem sequer consigo encontrá-lo ao transpor uma porta. Passa todo o dia na caça, regressa quando a noite já caiu e as suas ordens são severas. Nenhum membro da casa da Rainha se pode aproximar dele. E, admitindo que aceitássemos a vossa proposta... para onde pensais levá-la?
- Não tendes por onde escolher. A menos que prefirais ver a vossa Senhora levada para a prisão a fim de esperar por um julgamento preparado de antemão?! Quanto a mim, levá-la-ei para os Países-Baixos onde o seu irmão a acolherá com grande alegria. Depois ela poderá governar a província, substituindo a falecida infanta Clara Isabel.
- E regressareis como um triunfador, à cabeça de um exército espanhol, vós, um príncipe francês, a fim de pôr o reino a ferro e fogo? É isso que pensais? Pois digo-vos já, estais a sonhar!
- O que farei não tem grande importância. Só a Rainha conta... e só ela!
- Não duvido. Sois louco, mas amai-la sinceramente!
- Dizei antes que a adoro! - proferiu François com uma voz tão apaixonada que o coração de Sylvie estremeceu.
- Então dizei-me como é possível que tendo-vos vós tornado seu amante, porque é que ainda não a engravidastes?
Brutalmente puxado das alturas dos seus sonhos, Beaufort ficou de respiração cortada. Quase se engasgou ao responder:
- Julgo que sois vós que estais louca! Acaso desejais que ela seja apontada pela Europa inteira como uma mulher adúltera? Que a levem talvez até ao cadafalso ou que a coloquem num convento até ao fim dos seus dias? Sabei, menina, que faço tudo o que posso para que os nossos amores não acarretem quaisquer consequências!
- E sois vós o neto do Verde Galã! - suspirou Marie. Permiti-me que vos diga, caro amigo, que se sois um amante perfeito e um verdadeiro paladino nem por isso deixais de ser um tolo! Porque motivo julgais que eu vos facilitei o acesso ao quarto dela? Já há várias semanas que espreito as regras da Rainha, mas infelizmente elas chegam sempre na altura prevista, ai de nós!
- Isto... isto é pura demência - gaguejou François, chocado.
- Não, monsenhor, isto é política! A minha política! Pois, ficai sabendo que estou pronta a dissimular o mínimo atraso para que o Rei possa julgar que é o pai... ou que, pelo menos, faça de conta! Mas tratai de compreender que Rainha grávida é Rainha salva! Já faz vinte anos que se espera por uma criança que nunca mais vem! Estou segura que até o Cardeal o aceitaria como um Messias, nem que tivesse de mandar calar para sempre todos aqueles que tivessem podido participar na sua concepção. Quereis apostar?
- Isto é pura demência - repetiu François.
Então ouviu-se a voz doce de Sylvie:
- Não, monsenhor, dado que, como o nosso Rei, sois descendente de S. Luís. Aquilo que não pode ser aceite da parte de um gentil-homem qualquer, caso o reino assim o exigir, podê-lo-á ser se se tratar de um príncipe de sangue...
- Vós também?
- Ora que dizia eu? Esta pequena é mesmo inteligente! - disse Marie de modo triunfante.
- Mais do que eu, sem dúvida? - suspirou François com tristeza. - De qualquer maneira é demasiadamente tarde! A menos que sigais o meu plano. Esta noite rapto a Rainha...
- E ireis engravidá-la em Bruxelas? Mas que linda idéia! De qualquer modo está fora de questão que a rapteis! Tentai perceber que, afinal de contas, isso seria a melhor maneira para que ela se confessasse culpada. Aliás, ela não aceitará...
- Não ireis tentar?
- Ela não aceitará porque eu tratarei de impedi-la caso ela o deseje. Ela tem de ficar onde está: Rainha de França, contra tudo e contra todos.
- E eu, que vai ser de mim? Nunca mais terei a possibilidade de a encontrar a sós. O Val-de-Grâce foi invadido. A pequena porta foi descoberta e tapada...
- Caso seja necessário, podereis transpor o muro! A porta era apenas uma comodidade suplementar...Conseguirei seguramente descobrir a maneira de vos arranjar alguns momentos que podereis passar a sós, pobres amantes! Mas não aqui! Na situação em que estamos isso é impossível mas, quanto ao Louvre, tenho cá uma idéia... a menos que acheis que a porta das cozinhas e um disfarce apropriado serão indignos da vossa pessoa?
- Desde que me concedeis a entrada do paraíso, podeis fazer-me passar pelo inferno se assim o desejardes mas, por piedade, não me deixai muito tempo à espera! Sem ela eu morro e não ouso ir sequer saudá-la...
- Que sensatez! Nesta altura isso só agravaria o vosso caso. Aliás tendes outras coisas a fazer.
Tirando do bolso um pequeno livro encadernado em marroquim vermelho, ela estendeu-lhe:
- Visto que tendes vontade de viajar, correi ao castelo de Couzières, em Touraine! Entregareis este livro, sem mais explicações, à senhora duquesa de Chevreuse. Ela compreenderá o que quer dizer.
- E que é...?
- Meu Deus, como sois curioso! Que ela tem de fugir, claro, e para o mais longe possível! Se La Porte falar, Richelieu será bem capaz de mandá-la prender.
- O que é de recear, caso sejam utilizados certos meios.
- Julgo que não. Seja como for, vou tratar disso. Por ora deixamo-vos com os vossos peixes e vamos à procura de morangos. Que Deus vos guarde, meu amigo!
De olhos postos em Sylvie, ele reteve-a:
- Desejo, sobretudo, que Ele vos guarde a vós e, em primeiro lugar, a esta criança...
A reacção foi imediata:
- Senhor duque, já não sou uma bebê! E sou capaz de tomar conta de mim mesma!
Sylvie voltou-lhe as costas ao dizer esta última frase mas, apesar da sua aparente cólera, sentia subitamente um calor, um sopro de ternura: ele preocupava-se com ela. Já era qualquer coisa!
O dia seguinte era o 15 de Agosto. O Rei e a Rainha deslocaram-se em cortejo até à capela, sob os olhares ávidos de uma Corte à espreita. Depois da insultante visita de Séguier, era a primeira vez que os dois esposos se encontravam. Apenas se saudaram mutuamente. Ana, envergando um antigo vestido de cetim cor-de-rosa e trazendo ao pescoço as enormes pérolas que o pai lhe oferecera na altura do casamento, estava muito bela, admiravelmente penteada e discretamente maquiada. Também parecia serena e a nobreza da sua atitude trouxe o respeito daqueles que, em grande parte, só desejavam a sua perda a fim de poderem apresentar, de entre os seus, uma candidata à sucessão. Ela comungou ao lado do esposo e, depois, acabada a missa, mandou chamar o seu secretário encarregue das leis e ditou-lhe uma carta dirigida ao Cardeal de Richelieu, na qual jurava nunca ter trocado informações com o estrangeiro...
Era uma jogada enorme, obviamente, mas estava disposta a tudo para salvar o seu fiel La Porte e a madre de Saint-Étienne.
Mlle. de Hautefort foi-se embora na mesma carruagem que o dito secretário. Disse que ia fazer uma curta deslocação a Paris para levar as esmolas que a Rainha entregava sempre a várias comunidades religiosas, pela Assunção da Virgem Maria, e que voltaria em breve. Na realidade ia tratar de um assunto muito diferente. Sabendo que, sob certas condições, era possível aos prisioneiros da Bastilha comunicarem entre si, dirigiu-se a casa de uma das suas amigas, Mme. de Villarceaux. Esta estava autorizada a visitar o cavaleiro de Jars, um dos seus amigos, há vários anos encarcerado. O que fez nessa mesma noite, acompanhada por uma das suas criadas, que era a própria Aurora, exibindo uma peruca de cor castanha e mal composta e levando alguns doces consigo. Marie entregou ao cavaleiro um bilhete destinado a La Porte que continha as instruções da Rainha sobre aquilo que os seus perseguidores sabiam ou ignoravam e sobre o que convinha ou não confessar. Após o que, de espírito aliviado, retomou o seu aspecto habitual e o caminho para Chantilly, onde a atmosfera estava sempre tão sobrecarregada, dado que a Rainha e as suas raras fiéis amigas tinham sido mantidas num ostracismo que a Espanhola não estava pronta a esquecer. Contudo, houve alguém cuja entrada foi notada: Jean d’Autancourt, que se deslocou rodeado pelo aparato de uma casa ducal, a fim de saudar a Rainha em nome de seu pai, o marechal, e em seu nome pessoal... e também para se despedir de Sylvie: já recomposto das suas feridas, regressava ao exército. Só depois se foi despedir do Rei, que acabara precisamente de regressar da sua caça quotidiana.
Um pouco confusa com o que era quase uma declaração oficial, nem por isso Sylvie deixou de se orgulhar do seu amigo e, também, de ficar triste por vê-lo partir; juntos, tinham passado momentos tão agradáveis!
- Rogo-vos que tenhais cuidado convosco! - disse-lhe, com um tom de inquietação na voz que o encantou. - Não me encontro tão segura quanto isso acerca dessa vossa recuperação...
- Oh, mas sim, já estou recomposto! Em grande parte graças a vós, mas é-me sempre tão agradável ouvir a vossa preocupação acerca da minha pessoa! Quereis dar-me uma prova de amizade para me trazer sorte?
- Uma prova?
- Sim...o vosso lenço ou uma fita.
Durante um breve instante, Sylvie contemplou perplexa o quadrado em cambraia de linho que se tornara uma bola na sua mão fechada. Era impossível dar-lhe aquilo! Então, com um gesto vivo, desatou uma das fitas em cetim amarelo que retinham o monte de caracóis de cada lado do seu rosto e ofereceu-lhe. O gesto tinha sido tão nervoso que alguns cabelos ficaram ainda agarrados ao cetim claro. Jean agarrou na fita e passou-a pelos lábios, antes de a colocar contra o peito.
- Será o meu talismã! Trar-me-á sorte e felicidade e nunca me deixará! Obrigado, oh, muito obrigado!
E correu, para não deixar transparecer a emoção que o envolvia na frente daquela que tanto amava. Depois da sua partida, Sylvie ficou a cismar durante bastante tempo, lamentando que o seu coração não estivesse livre para se entregar àquele rapaz junto ao qual a vida seria, sem dúvida, tão doce...
Quando Marie de Hautefort regressou de Paris, Sylvie sentiu um grande alívio. Sem a sua presença, a atmosfera junto à Rainha que permanecia prostrada quando não estava na capela era irrespirável. Mme. de Senecey, impressionada por esta atitude de mortificação, mal ousava empreender as cerimônias indispensáveis da vida quotidiana. E, naturalmente, o ostracismo continuava.
- Dir-se-ia que apanhamos a peste! - irritava-se a dama de honor. - Esta gente deve ter perdido a cabeça para se comportar desta forma com a Rainha!
- Oh não, não a perderam, mas creio bem que é por receio de a perder que agem desse modo. O que é perfeitamente ridículo - disse Sylvie. - Quanto a mim não tenho medo nenhum. E vós?
- Era só o que faltava! O Rei é um homem de honra, que diabo!
- Sem dúvida, mas também me pergunto se ele também não precisa de se sentir tranquilizado?
O regresso de Marie desanuviou a atmosfera. Trazia excelentes notícias. La Porte, quando não conseguia manter o silêncio, apenas revelava os fatos em sintonia com o que a sua Senhora consentia que ele confessasse. Na esperança de lhe arrancarem mais alguma coisa, tinham-lhe mostrado os instrumentos de tortura com o correspondente e detalhado modo de emprego, mas apenas obtiveram um encolher de ombros:
- Quando a dor se torna insuportável, acaba-se por confessar seja o que for. - disse. - Mas, nesse caso, onde está a verdade?
Até lhe tinham mostrado um bilhete da Rainha falso, claro! instando-o a tudo revelar, tal como ela o fizera. Desta vez ele riu-se:
- Não me tomeis por um tolo. Conheço a escrita e o estilo de Sua Majestade. Ela nunca escreveu isso...
As coisas estavam neste pé, quando o Cardeal aconselhou o Rei a interrogar ele próprio a sua esposa. Luís XIII recusou categoricamente:
- É uma tarefa muito dolorosa para mim. Sinto-me incapaz de a levar a bom termo. Encarregai-vos vós próprio disso!
Richelieu não queria melhor. Partiu para Chantilly e solicitou uma audiência junto à Rainha, seguindo todas as fórmulas respeitosas. Apresentou-se acompanhado por dois secretários de estado, Chavigny e Sublet de Noyers, pedindo que Mme. de Senecey fosse também testemunha da entrevista... para grande aborrecimento de Marie de Hautefort. Ela sabia que estando a Rainha privada da sua assistência, conseguiriam desarmá-la. Contudo, teve de o aceitar. Quanto a Sylvie, mandaram-na embora logo que o coche do Cardeal transpôs o recinto em redor da lagoa de Chantilly. Ela aproveitou a ocasião para ir rever a linda casa na margem da lagoazita, com a secreta mas improvável esperança de por lá reencontrar um certo pescador.
Não havia ninguém, à parte um bando de patos que passeava em fila pela água e um par de cercetas que desataram a voar quando a rapariga se aproximou, mas nem por isso o local deixava de emanar um dado charme e Sylvie, sentada no meio dos juncos e mastigando uma das suas compridas hastes flexíveis, pensava quanto gostaria que aquela casa fosse verdadeiramente sua, para nela poder receber quem lhe aprouvesse. O lindo pavilhão que servira outrora de refúgio a um poeta, poderia um dia acolher ternos amores e ajudar a cicatrizar feridas? Ali devia ser possível como o fizera outrora a linda duquesa de Montmorency esquecer-se do estatuto de um príncipe para se preocupar apenas em pescar, ouvindo o chilrear dos passarinhos...
Entretanto ocorria um verdadeiro drama no castelo. Ana de Áustria, confrontada pelo Cardeal, começou, muito estouvadamente por proclamar a sua perfeita inocência e, no meio da sua atrapalhação, jurou pelo santo sacramento que desconfiavam dela sem razão. Mas tinha que enfrentar um adversário muito forte para ela. Lenta e pacientemente, Richelieu foi abatendo todas as suas defesas, uma a uma, até que por fim ela pediu para ser ouvida apenas na sua presença! O que foi, claro, imediatamente autorizado. Então, sem mais conseguir reter as lágrimas de cólera e de vergonha, a Rainha acabou por confessar que escrevera efetivamente ao Cardeal-Infante e, também, uma ou duas vezes, a Mirabel que sempre lhe testemunhara uma amizade e dedicação respeitosas. Richelieu, satisfeito com o resultado e, aliás, comovido perante a perturbação de tão nobre dama, assegurou-lhe que não viera na qualidade de justiceiro, que só desejava era a felicidade dela e do Rei, junto ao qual iria intervir sem mais delongas, a fim de que aquela feia história fosse depressa esquecida e que a harmonia pudesse regressar ao seio do casal real...
Surpreendida por uma mansidão que não esperava, a Rainha exclamou:
- Que bondoso sois capaz de vos mostrar, senhor Cardeal!
E estendeu-lhe a mão, sobre a qual ele se inclinou respeitosamente sem ousar pegar-lhe. Depois, saiu para ir ter com o Rei. Na galeria, quase deserta quando chegara, viu que se tinha juntado um certo número de cortesãos. Antes de passar pelo meio daqueles peitos curvados, lançou com frio desprezo:
- Estou feliz por ver, senhores, que vindes finalmente saber como vai Sua Majestade a Rainha! Eu próprio vos digo: a Rainha ainda se encontra um pouco cansada mas talvez possa, amanhã, aceitar as vossas homenagens...
Marie de Hautefort, que se precipitara para junto da Rainha logo que o ministro saíra, chegou, no entanto, a ouvir o que este dizia, com uma voz percutante como um chicote, e sorriu: o alerta havia sido quente, mas afinal tudo acabava sem estragos de monta. O que não significava que o jogo tivesse terminado!
O Cardeal partia satisfeito. Assustara quanto bastara a Espanhola para que ela renunciasse às suas perpétuas traições e, graças à clemência que demonstrara, ela ficava em obrigação para com ele. Restava saber como reagiria Luís XIII às confissões da mulher! Na verdade, este não tinha grande escolha: tratá-la como criminosa que atentara contra o Estado era impensável e repudiá-la seria perigoso pois a Espanha clamaria bem alto que se tratava de uma tramóia. Só restava o perdão. E não foi sem dificuldades que o Cardeal o obteve. Antes de concedê-lo, o Rei exigiu confissões escritas assim como a promessa formal de que não haveria tentativas de recomeço. O que foi feito, após o que os rumores da Corte retomaram a sua habitual atividade. A tese oficial foi a de que a Rainha, apanhada no meio de sentimentos familiares muito naturais, deixara-se manipular por esses incorrigíveis Espanhóis!
A estada em Chantilly acabou em paz e no dia 4 de Setembro, Suas Majestades partiam juntos para Fontainebleau, onde o Rei esperava fazer grandes caçadas durante uma quinzena...
Por prudência, François de Beaufort desaparecera. Prudência vinda da parte de Marie de Hautefort, pois ele não tinha nenhuma. Era melhor evitar os pomos de discórdia numa época tão delicada. O Rei esforçava-se por mostrar boa cara à mulher, mas via-se que não punha o coração no seu esforço. Não era a altura apropriada para lançar Luís XIII atrás de outra pista e a jovem açafata utilizara a sua firmeza habitual para chamar à razão o frenético apaixonado.
- Ide rever o céu azul de Touraine! - aconselhou-lhe Aurora. - A região é encantadora no começo do outono! Entrementes, as coisas regressarão aos respectivos lugares...
- Quando poderei voltar a vê-la?
- Dir-vos-ei na altura apropriada mas, por amor de Deus, sede paciente!
- Julgava que me havíeis dito para me apressar!
- Cada coisa a seu tempo! Primeiro temos de ver se o Rei se decide a retomar o caminho para o quarto da Rainha...
- E se o fizer, expulsais-me a mim? - exclamou o jovem duque enfurecido. - Para vós, sou apenas algum garanhão?
Ela concedeu-lhe um dos seus mais impertinentes sorrisos:
- É um bocado isso. Convosco teríamos a certeza de obter uma magnífica criança. Mas tratai de compreender, jovem estouvado, que se o Rei se decidir a voltar a honrar a esposa, precisaremos de si mais do que nunca! Nas raras ocasiões em que se uniram só obtiveram partos prematuros. E nessa matéria sou expedita e podeis ser feliz sem perigo algum. Haveis-me compreendido?
- Penso que sim. Mas, por favor, não me façais esperar demasiadamente! Eu morro!
- Isso só tornará a ressurreição mais agradável!
E François regressou a Chenonceau onde, naquele verão, Monsieur foi visto muitas vezes na companhia da pequena senhorita, uma moça inteligente e matreira, que a todos divertia. Tendo a duquesa Françoise partido com a filha ao encontro do esposo, as relações entre as duas famílias estreitaram-se e Beaufort, de humor melancólico, pois privado do seu amigo Soissons que passara para o lado inimigo, encetou uma espécie de amizade com Monsieur, que ele sabia contudo que não valia grande coisa. Mas, quando assim o queria, Gaston d’Orleans sabia ter muito charme.
Entretanto, aquele outono reservava grandes alegrias tanto para o Rei como para o Cardeal. Sucediam-se as boas notícias oriundas da frente militar. O cunhado do Rei, o duque de Sabóia, batera os espanhóis e os Franceses conquistaram outra vitória no Norte, em La Capelle. Finalmente, no Sul, o duque de Halluin saíra vencedor da batalha de Leucate, no Roussillon.
Cheio de alegria, Luís XIII mandou cantar um Te Deum em Notre-Dame, no meio de um fausto que fez regozijar o coração do seu povo, que não lhe poupou aplausos. Infelizmente a Rainha chegou muito atrasada, alegando, como pretexto, que não sabia que devia vir...
Mlle. de Hautefort suspirou ao ouvir isto, erguendo bem alto as suas lindas sobrancelhas. Às vezes perguntava a si mesma se aquela a quem se dedicava de corpo e alma era tão inteligente como desejava acreditar... Pergunta que também se fazia Mlle. de L’Isle desde há um bom tempo...
A HORA DO DEMÓNIO
OS SEGREDOS DE MARIE DE HAUTEFORT
Em Chenonceau, até meados de Novembro, François teve de se dominar. Mlle. de Hautefort fazia orelhas moucas aos suspiros da Rainha, fazia-se cega quanto aos bilhetes delirantes que o desesperado apaixonado lhe entregava para passar, entendendo que devia deixar o lugar desocupado para o Rei, na esperança que este decidisse finalmente a passar com a mulher aquela noite que desde há três anos a Corte esperava com ávida curiosidade. Infelizmente tal não sucedia Luís XIII fazia boa figura ao pé da mulher, dando-lhe provas de todo o devido respeito, mas nunca mais se decidia a comportar-se como marido, apesar das violentas repreensões que lhe eram endereçadas por Marie, cujo renovo de favoritismo não se desmentia.
Em compensação, o Rei dirigia-se pelo menos duas vezes por semana até ao convento da Visitação, na rua de Saint-Antoine, a fim de falar com a irmã Louise Angélique, cujo nome era outrora Louise de La Fayette. Só era admitido que se aproximasse da grelha da obscura sala de visitas. Então ela chegava, uma sombra branca por detrás das grades às quais ele se agarrava por vezes, na insensata esperança de trazê-la consigo de volta.
Apesar das sucessivas vitórias, a atmosfera da Corte tornava-se irrespirável. Em primeiro lugar, estava-se novamente de luto. Desta vez tratava-se do cunhado do Rei, o duque Victor-Amédée de Sabóia, que o soberano tanto amava. Esta morte iria complicar consideravelmente os assuntos italianos, pois o duque apenas deixara como herdeiro uma criança de cinco anos, de quem era agora preciso defender os direitos.
Cansada de tanto rogar sem obter satisfação, Marie de Hautefort decidiu que já era altura de satisfazer a Rainha e mandou chamar Beaufort, que se apressou a chegar com a velocidade do seu cavalo a galope. Ao mesmo tempo dirigiu-se ao convento onde estava a antiga dama de honor, pediu para lhe falar e permaneceu com ela durante longos minutos. Voltou satisfeita da entrevista e tratou de preparar para François uma façanha perigosa: levá-lo ao encontro da Rainha durante a noite e em pleno Louvre.
Ele já lá entrara uma vez, disfarçado de médico, a propósito do pretenso mal-estar de Stéfanille, mas só se quedara um momento, o tempo de uma breve conversa e de pegar nalgumas cartas. Agora tratava-se de proporcionar aos dois amantes um pouco de verdadeira felicidade e rezar a Deus para que ela fosse frutuosa. Por sorte, o Rei continuava a galopar de castelo em castelo, nos arredores de Paris. A sua última fantasia levava-o a dirigir-se, frequentemente, para o pequeno castelo de Saint-Maur que pertencera outrora a Catarina de Médicis. Situado num meandro do Marne, era um lugar encantador onde as saudades e os sonhos desabrochavam numa doce melancolia. O Rei já lá tinha ido por duas ou três vezes, a partir de Versalhes, sem se esquecer de fazer uma paragem pela rua de Saint-Antoine.
Os receios de Marie revelaram-se infundados. Na noite em que François chegou, tudo decorreu sem o mínimo percalço. Tendo entrado no palácio pela manhã, sob a aparência estudada de um hortelão da cor da terra que vinha entregar couves à cozinha graças a um cozinheiro comprado ele conseguiu chegar a um reduto onde o esperavam um traje de criado e uma peruca castanha. Por lá ficou durante todo o dia, até que o velho Louvre, repleto de esconderijos e de passagens secretas, adormecesse por fim. Marie foi lá buscá-lo e assegurou-lhe que voltaria antes que o dia nascesse. E assim aconteceu até ao mais ínfimo detalhe.
No dia seguinte a Rainha resplandecia, esforçando-se, contudo, por não deixar transparecer demasiadamente a sua alegria interior perante aquelas centenas de olhos das damas de honor ou de outras pessoas que não paravam de espiá-la. Aquecera-se junto à chama daquele jovem, tão novo e apaixonado, de tal modo que reencontrara o ardor dos seus vinte anos e esquecera os quinze que os separavam. Marie, no entanto, não estava completamente satisfeita:
- Pergunto-me se as coisas não correram bem demais! - confessou a Sylvie que a interrogara por causa do seu ar preocupado.
- Mas que queríeis que se tivesse passado?
- Não sei mas, num local destes, à noite ocorrem sempre pequenos incidentes... encontros! Ora, tanto à ida como à volta, ele só encontrou pessoas adormecidas, guardas que se apoiavam nas alabardas, tão pouco curiosos quanto possível...
- Não exagerais por acaso? Ele estava vestido de criado e ia na vossa companhia. Quem queríeis que se interessasse por ele?
Aurora percorreu a sua testa lisa com uma mão branca que... tremia.
- É possível que tenhais razão, Sylvie, mas a aventura desta noite terá sido a única a desenrolar-se desta forma. Tive muito medo!
- Eu também - confessou a jovem - mas julgais que os dois se vão contentar com estes breves momentos? Espreitei-o, a ele... e quanto a ela via-a esta manhã, quando entrei no seu quarto à hora em que se levanta. Lia-se a mesma felicidade nos dois rostos...
Sustinha as lágrimas ao acabar a frase. Então, Marie teve um gesto inesperado, caloroso, cheio de afeto: apertou nas suas mãos as da sua jovem companheira.
- Pobre gatinha! Dedico-me de tal modo à sua glória, a desejar-lhe o maior triunfo que uma rainha possa ter, que é o de dar um herdeiro a este reino, contra todos os ventos e marés, que até me esqueço do vosso pequeno coração que, enquanto amantes egoístas, eles não cessam de espezinhar! E não vos zangais comigo? E continuais a ajudar-me?
- Se eles espezinham o meu coração, fazem o mesmo ao vosso, mas a desculpa que têm é que o ignoram. Além disso sois a minha única amiga neste palácio. Nessas condições, que não faria eu para vos ajudar?
O mesmo arrebatamento lançou uma nos braços da outra. Um enlace sem frases, sem palavras inúteis, vindo do fundo do coração e que selava uma espécie de pacto. Marie benzeu-o enquanto dizia:
- Rogo a Deus para que vos possa ajudar um dia... Entretanto o próximo encontro ocorrerá em Val-de-Grâce! Estarei mais tranquila.
- Na abadia? Mas como faremos? Mudaram a superiora, taparam a porta...
- Mas o muro não foi substituído. Com uma boa corda, um rapaz de vinte anos deve conseguir escalá-lo sem dificuldade. Sobretudo se estiver tão apaixonado como este louco!
Demasiado feliz para discutir, a Rainha deixou tudo por conta da sua fiel açafata. Também ela preferia o Val, mesmo com uma abadessa austera! Optou-se pelo próximo encontro na altura em que o Rei anunciasse a intenção de ir passar alguns dias a Versalhes. Então a Rainha recolher-se-ia para o seu convento favorito. Só lá ficaria uma noite, para não despertar novas suspeitas.
Tendo partido o Rei no dia 1 de Dezembro, foi no dia 2 que a Rainha anunciou a sua intenção de efetuar essa breve visita, de quinta-feira dia 3, a sexta dia 4, a fim de se recolher num local que lhe era tão querido, na altura em que se entrava na época do Advento. E, como de costume, levaria pouca gente consigo.
Para grande surpresa e alívio de Sylvie, ela não fazia parte da viagem. A Rainha decidira à última hora que seria acompanhada pela sua principal dama de honor e pela açafata, o que provocou o riso das outras, para quem aquelas disposições prenunciavam uma próxima desgraça. Mas Marie de Hautefort calou-as a todas ao dizer que se a Rainha só iria estar no Val durante algumas horas, uma tão breve visita não requeria a presença da sua cantora favorita, pois na capela só haveria serviços comuns. Depois, chamou Sylvie à parte.
- Dados os derradeiros acontecimentos, era preferível levar uma dama mais experiente. O que não modificará nada ao que está combinado - acrescentou, rindo-se. - Mme. de Senecey precisa de dormir muito e posso assegurar-vos que dormirá como um anjo. Encarregar-me-ei disso!
Como já tinha preparada a bagagem para aquelas ocasiões, Sylvie decidiu passar a noite em casa do padrinho. Não a encantava a idéia de ficar no Louvre, tendo apenas por companhia as suas companheiras, facilmente ciumentas e frequentemente à procura de alguma maldade. Partiu, pois, na direção da rua das Tournelles, acompanhada por Jeannette...
Dona Nicole e Corentin receberam-nas de braços abertos e tentaram compensar a decepção que a esperava: só poderia ver o senhor cavaleiro na manhã seguinte.
- O seu amigo, M. Renaudot, veio buscá-lo há pouco - explicou Corentin - como acontece frequentemente. Jantam os dois e depois não sei lá muito bem o que fazem, mas o certo é que voltam sempre muito tarde...
- E não sabe onde vão? - perguntou Sylvie.
- Palavra que não. O que me entristece um pouco, pois fico com a impressão que partem rumo a não sei que aventuras e não gosto que M. Perceval me faça mistérios...
- Mistérios? A vós, que sois o seu companheiro de sempre?
- Pois é! Ele diz que não quer que a Nicole fique sozinha à noite. Se bem que se trate de um quarteirão prestigiado, nunca está seguro. Mas talvez seja o amigo dele que não me queira ver?
- Que está para aí a dizer? - exclamou Sylvie, rindo-se. - O primeiro motivo parece-me muito mais válido. Tem de velar pela casa e, esta noite, por mim e pela Jeannette... e diga à Nicole que jantarei consigo. Espero que ela nos vá preparar algo de bom?
- Não receeis nada - disse Corentin. - Tendo regressado a sua boa disposição já se encontra mergulhada até ao pescoço nos pastéis!
A casa exalava um saboroso aroma a manteiga e a caramelo. Esperando pela hora de jantar, Sylvie foi descansar para o quarto. O tempo cinzento, triste e ventoso não convidava a estar no jardim, onde o chão se encontrava coberto de folhas.
Ainda assim a ausência de Perceval inquietava-a. Estaria sempre à procura daquele misterioso criminoso ao qual aludira quando se tinham encontrado nas margens do Sena, ao pé da porta de Nesle? Foi a pergunta que lhe colocou quando, na manhã seguinte, o encontrou sentado à mesa para tomar o pequeno-almoço.
Falaram disto e daquilo, mas foi só quando Perceval voltou para o seu gabinete, onde Corentin acabara de acender um bom fogo, que Sylvie lhe fez a pergunta que lhe queimava a língua:
- Não me esqueci do nosso encontro na porta de Nesle, padrinho. Dissestes que buscáveis um assassino. É sempre atrás dele que correis à noite com M. Renaudot, ou trata-se de outra pessoa?
Um sorriso de cansaço desenhou-se no rosto de Raguenel:
- Infelizmente trata-se sempre do mesmo. Um monstro que parece ter o poder de desaparecer nas trevas uma vez cometido o seu crime. O miserável ataca as mulheres da vida que trabalham nas ruas. Viola-as, esfola-as e com um sinete de cera vermelha imprime-lhes, na testa, uma letra grega: um ômega.
- Que horror! Mas levais a cabo uma tarefa desmedida! Paris é enorme! A ronda não vos ajuda?
- Não são em número suficiente para controlar todos os locais perigosos. Além disso, são frequentemente corruptos. Precisaríamos de uma verdadeira polícia!
- Mas, afinal de contas, por que vos interessais por essas infelizes? Será para auxiliar Mme. de Vendôme, que se dedica cada vez mais à sua redenção?
- Não. Falei-lhe no assunto mas ela nada pode fazer. Eu e Renaudot estamos a pensar em ir uma destas noites até ao quarteirão dos Innocents, ao pátio dos Milagres, para ter um encontro com o Grande Coesre, chefe dos bandidos, e tentar obter a sua ajuda...
- Sois loucos! Não saíreis de lá vivos!
Ele teve um sorriso que mais parecia uma careta.
- É o que nos faz hesitar. Se nos matarem para nos roubar, os pobres não ganharão lá grande coisa com isso. Contudo, notamos que os crimes ocorriam sobretudo nas noites de lua cheia. É espantoso, pois são as noites de maior claridade...
Sylvie deixou-se deslizar até aos pés dele e pegou-lhe nas mãos, que colocou entre as suas:
- Suplico-vos que deixeis de arriscar a vossa vida dessa maneira! Eu percebo que se trata de algo atroz, mas essas mulheres sabem os riscos que correm, pois esse é o caso até para a pessoa mais simples que se atrase, à noite, pelas ruas de Paris. E se vos acontecer alguma coisa... ficaria sem ninguém neste mundo. E... gosto muito de vós!
Comovido, sentou-a no seu colo, como quando ela era pequena e beijou-a com ternura.
- Não vos atormenteis, meu coração! Sabemos defender-nos e estamos sempre bem armados. O pior é esta lei do silêncio que vigora nos antros de perdição. Ninguém nos quer ajudar pois têm todos medo...
- Nesse caso, renunciai!
- Não! É impossível! Não posso fazê-lo: prestei um juramento e... - Calou-se, compreendendo que ia enveredar por um caminho repleto de espinhos, mas Sylvie entendera muito bem:
- Fizestes um juramento? A quem? - A voz de Corentin, que acabara de entrar sem que o ouvissem, transportando um cesto com achas, irrompeu subitamente:
- Senhor cavaleiro, deveis contar-lhe a verdade! Agora, ela já é suficientemente crescida e como vive na Corte tem de saber tudo sobre ela própria a fim de melhor se proteger.
- Achas que sim?
- Acho. Está na altura...
Perceval afastou Sylvie para que ela se sentasse na poltrona à sua frente.
- Afinal, tens razão.
E então começou a contar: a sua amizade pelos Valaines, o terno sentimento que tinha por Chiara e, depois, o drama de La Ferrière, como François salvara Sylvie e como esta ficara instalada em casa dos Vendôme, a decisão que fora tomada para lhe mudar o nome e como nada fora descurado a fim de apagar da sua memória tudo o que pudesse subsistir como recordações da primeira infância.
Ela ouviu-o com uma atenção arrebatada mas, quando ele acabou, ficou uns momentos silenciosa.
- Sylvie de Valaines! - suspirou, finalmente. É verdade que era esse o meu nome. Agora recordo-me! É como se acabásseis de rasgar um véu de névoa que se foi acumulando à minha volta... Tudo reaparece... Oh, é surpreendente! E Jeannette que não abriu a boca durante todo este tempo!
- Ela gosta de vós e jurou ficar calada, tal como me ireis jurar que guardareis tudo isto no fundo da vossa memória, sem permitirdes que volte ao de cima. Seria muito perigoso! Já basta que esse La Ferrière, saído não se sabe de onde, vos tenha pedido a mão
- Julgais que ele sabe?
Perceval sorriu com ternura para a sua afilhada:
- Não é preciso sabê-lo para desejar desposar-vos, minha gatinha! Sois tão querida! Colocai antes a pergunta ao nosso amigo d’Autancourt!
- Pensais então que o miserável que assassina pelas ruas é aquele que matou a minha mãe?
- Estou convencido disso. O método é o mesmo, bem como a assinatura...
- Mas, porquê? Quando se ama alguém...
- Num ser de má cepa o amor pode ser o pior dos males. A desgraça de vossa mãe foi a de se ter visto metida, contra sua vontade, naquilo que se pode chamar um segredo de Estado.
- Já nessa altura? - suspirou Sylvie.
- Porquê?
Ela encolheu os ombros:
- Sabeis muito bem tudo aquilo que já vos confiei, padrinho! Começo a perguntar-me se as mulheres da minha família não se dedicam a esse mister de mãe para filha! Em todo o caso, graças a vós, acabo de perceber por que motivo, quando estávamos em Anet, nos proibiam sempre de ir para os lados desse castelo que se chama La Ferrière...
Ao regressar ao Louvre, acompanhada por Perceval até à casa da guarda, Sylvie foi encontrar a Rainha e as suas damas numa grande e alegre agitação que nada tinha a ver com o que se devia ter passado na noite anterior em Val-de-Grâce: tinham chegado correios vindos de Roma, precedendo um carregamento de estátuas e de bronzes antigos, destinados ao Palácio do Cardeal. Os sacos que traziam e cuja destinatária era a Rainha, tinham revelado verdadeiros tesouros: luvas, perfumes, rendas venezianas, brocados milaneses, corais destinados a colares e ainda outros desses pequenos objetos tão ao gosto das mulheres. Nessa tarde o gabinete da Rainha mais se parecia com um ninho de pássaros... ou uma loja de moda.
- Isto vem de Roma? - perguntava Sylvie, com espanto. - Foi o Papa que o enviou?
Marie de Hautefort desatou à gargalhada:
- Claro que não, minha tola! Estes presentes foram enviados por uma personagem que encontrou maneira de estar nas melhores relações com o Cardeal e de agradar à Rainha. Trata-se de Monsenhor Mazarini...
- Nunca ouvi tal nome.
- E como o poderíeis? Richelieu reparou nele na altura do caso Casale, no qual ele desempenhou um papel diplomático. Depois, voltamos a encontrá-lo creio que... há três anos atrás, enquanto vice-núncio de Sua Santidade e, pouco depois, o Papa enviava-o como núncio extraordinário. O Cardeal aprecia-o...
- E apesar disso também agrada a Sua Majestade?
- É verdade! Ele não nasceu numa família de renome, mas tem muito charme e, caso quiserdes saber tudo - e Aurora inclinou-se para murmurar à orelha da sua jovem companheira - ele parece-se um pouco com o defunto duque de Buckingham!
- Meu Deus, mas então?...
- tst, tst, tst! Calma aí... Ninguém está ameaçado pela memória dessa personagem, ainda que Mazarini faça todos os esforços para que ele não seja esquecido. Ao que sei, arde de desejo de regressar a França... e até de obter a naturalização para poder trabalhar com o nosso ministro que ele clama por todo o lado ser o maior homem que alguma vez encontrou. Odeio-o!
Esta declaração retumbante punha fim ao diálogo. Sylvie esqueceu-a depressa. A Rainha estava a distribuir alguns dos presentes romanos que, visivelmente, a encantavam. Há muito que não a viam tão alegre. Segurando na mão um encantador espelho em marfim lavrado, ela examinava a sua imagem com um sorriso cheio de complacência. Achava-se bela e era mesmo...
- Suponho que é inútil perguntar se correu tudo bem esta noite - murmurou Sylvie, quando foi ter com Marie ao pé de uma saleta onde se guardavam as jóias.
- O melhor possível. Se bem que se tenha perdido muito tempo com uma cenazita de ciúmes da parte de Mme. de Montbazon. Desse modo, o nosso apaixonado só estava meio contente, sobretudo porque não nos voltaremos a encontrar senão daqui a bastante tempo. Entramos na época adventícia; dentro em breve chegam as festas da Natividade. Vamos poder descansar um bocado, Sylvie. Sobretudo se amanhã as coisas tomarem o rumo que espero...
- Que há previsto para amanhã?
- Logo o vereis. Enfim... assim o espero!
Sylvie não ousou insistir. Aurora tinha aquele seu ar determinado. Não diria mais nada. Deste modo a soirée arrastou-se interminavelmente para a jovem curiosa, ainda que a Rainha a tivesse convidado a cantar. Como Ana de Áustria se sentia sobreexcitada, fazia-se sentir a necessidade de ouvir uma voz doce e uma música suave. Sylvie cantava uma romança, enquanto se perguntava com quem poderia estar a sonhar aquela que a escutava, ao acariciar distraidamente as turquesas incrustadas no belo espelho que acabara de receber: naquele que lhe enviara, no amante daquela noite, ou na recordação mal apagada do formoso inglês, cuja imagem ela não conseguira ainda apagar ao fim daqueles anos?
O dia seguinte revelou-se acinzentado, sem graça, atravessado por um vento penetrante, que não dava nenhuma vontade de sair. As horas arrastaram-se entre o despertar da manhã, a missa, os diferentes serviços de devoção, as audiências, as refeições e as visitas da tarde, entre as quais as de Mme. de Vendôme e de Elisabeth que Sylvie já não via há bastante tempo e que regressavam de Saint-Lazare, onde o senhor Vincent se inquietava com o número crescente das crianças abandonadas, na intenção de apelarem à generosidade da Rainha. Tendo obtido inteira satisfação, não prolongaram a visita e contentaram-se em abraçar Sylvie antes de se irem embora. Aliás o tempo piorava, com rajadas de vento que provocavam redemoinhos que não anunciavam nada de bom.
- Vamos ter uma linda tempestade! - observou Hautefort ao olhar na direção do Sena, onde os bateleiros se apressavam a ancorar as barcas. Depois, acrescentou em voz baixa: - Começo a crer que o Céu está conosco!
A partir dessa altura ficou quieta junto ao vão profundo de uma janela, observando os progressos do mau tempo. Por volta das quatro a trovoada rebentou com tal violência que partia os ramos das árvores, arrancando os toldos dos andaimes no pátio do Louvre e atirando pelos ares as telhas de várias casas. A tempestade durou tanto tempo que o confessor da Rainha chegou ao ponto de aconselhar as damas a rezar. Só Marie de Hautefort permaneceu onde estava, mas tão rígida, tão ausente, tão absorta no céu escuro, parecendo à escuta das vozes furiosas que dele emanavam, que ninguém se atreveu a incomodá-la...
E então, subitamente, à algazarra do exterior veio acrescentar-se a do palácio: eram apelos, ordens pronunciadas depois do galope de um cavalo, tinidos de armas e o anúncio da chegada de um visitante que passava de porta em porta, até que as da Rainha se abriram perante um cavaleiro encharcado, cujas penas do chapéu, já sem forma, atiravam gotas de água em todas as direções, quando ele efetuou a sua saudação.
- Então, M. de Guitaut, que nos vindes anunciar tão à pressa? - perguntou Ana de Áustria, que reconhecera o capitão dos guardas.
- Venho anunciar o Rei, Senhora... se acaso Vossa Majestade se dignar oferecer-lhe a hospitalidade dos vossos aposentos...
- Onde está o meu esposo?
- No convento da Visitação, Senhora. O Rei deslocava-se de Versalhes a Saint-Maur, onde o seu pessoal o precedera desde esta manhã, mas a tempestade é tão terrível que as damas do convento suplicaram a Sua Majestade que não se aventurasse através da floresta de Vincennes, onde as árvores estão a cair. O caminho é muito longo e o Louvre fica muito mais perto...
O sorriso da Rainha juntou-se ao de Mlle. de Hautefort que decidira finalmente abandonar o seu posto no vão da janela e se lhe juntara com um rosto quase radiante.
- O Rei está em Sua casa em qualquer lado, M. de Guitaut. Espero que não duvide do prazer que tenho em acolhê-lo?
- Não... Na verdade, não, mas o Rei tem grande receio de transtornar os hábitos de Vossa Majestade. A Rainha janta tarde, deita-se tarde e...
- E o meu esposo não gosta nem de uma coisa nem de outra - concluiu Ana de Áustria, rindo francamente. - Ide ter com ele... ou antes, enviai alguém que esteja mais seco para o informar que vão ser dadas as devidas ordens e que ele encontrará, aqui, tudo de acordo com os seus[26] desejos.
- Irei eu próprio, pois não se pode ficar mais molhado do que já estou! E, grato a Vossa Majestade!
Logo a seguir foi lançado o alerta geral. Enviaram-se as ordens necessárias às cozinhas para apressarem os preparativos, mandou-se “colocar a almofada” no quarto da Rainha e, no palácio, todos se aprontaram em exibir os seus melhores sorrisos, esperando o soberano numa espécie de estado febril. O acontecimento que há tanto se esperava, iria finalmente acontecer? O Rei contentar-se-ia em dormir junto à sua mulher, ou então...?
Sylvie não conseguiu impedir-se de colocar esta última pergunta a si própria enquanto, na câmara da Rainha, ajudava a açafata a reunir as peças de toilette que a sua senhora reclamava. Marie riu-se perante a sua pergunta:
- Como quereis que vos responda? O importante é que ele venha e suponho que a nossa irmã Louise-Angélique fez tudo o que podia para que tal acontecesse, como lhe havia pedido. Quanto ao resto, apenas vos posso dizer que o nosso rei dormirá bem...
- Dormir? Mas...
- Ele não tem certamente outra intenção, mas ficai a saber que se pode dormir muito bem... e ter também lindos sonhos. Podeis ter a certeza que me encarregarei disso!
O ar beatífico da Corte contrastava consideravelmente com a cara carrancuda de Luís XIII, quando este entrou no Pátio Quadrado, à cabeça dos seus cavaleiros. O descendente de S. Luís não tinha o aspecto de alguém que iria ter lindos sonhos. Claro que foi de uma cortesia impecável e até encantadora quando felicitou a mulher pela sua cor e brilho e pelos arranjos que ela efetuara, mas era evidente que apenas desejava uma coisa: que aquela noite, a que fora submetido a pedido de Louise e a que fora obrigado pelos elementos atmosféricos enfurecidos, passasse o mais depressa possível!
O jantar foi reduzido a um pequeno grupo, para grande decepção da multidão dos cortesãos que contava saciar a sua curiosidade com cada palavra, com cada expressão do rosto real. Depois Suas Majestades retiraram-se a fim de passar a noite, escoltados pelas respectivas damas e gentis-homens, tal como o tinham feito na noite do casamento mas, desta vez, é certo, em menor número. De fato, era um pouco disso que se tratava: já fazia três anos completos que o Rei não fora ter com a esposa ao leito desta... Porém, a última imagem que se pôde captar do par real nada tinha de encorajante. Depois de ter lançado um olhar sombrio às saudações e reverências, Luís XIII desejou boa noite à Rainha, baixou o seu gorro até aos olhos, instalou-se no seu canto e adormeceu imediatamente como um homem que vivera uma longa jornada.
Cada um foi para seu lado, comentando o acontecimento em voz baixa a fim de não despertar o Rei e, sobretudo, os rumores do palácio. O grupo das damas de honor zumbia como um enxame de abelhas. Sylvie, ao juntar-se à amiga, contentou-se em erguer umas sobrancelhas interrogadoras. Quase tão lacônica quanto ela, Marie dirigiu-lhe um sorriso galhofeiro:
- A noite é longa! - murmurou.
Ninguém dormiu no Louvre. O Rei mandara que o acordassem cedo para que pudesse voltar aos seus aposentos e criados em Saint-Maur. Para não perderem o momento em que ele iria à missa, os cortesãos decidiram não regressar a casa e instalaram-se o melhor que puderam nas antecâmaras, nas galerias e nas salas de recepção. Arrastado por aquela febre o próprio capelão fez o mesmo.
Outros decidiram velar. Na capela da Visitação de Santa Maria, no Val-de-Grâce, bem como nas comunidades espalhadas por Paris, rezou-se à luz das velas que não chegavam para aquecer as lajes geladas. Rezou-se, hora após hora, para que o casal real, finalmente reunido, desse um herdeiro ao reino. As preces da irmã Louise, que se esforçava por calar dentro dela um ciúme bem terrestre, pediram a Deus, incansavelmente, que Ele lhes proporcionasse um filho. Que fosse sobretudo do sexo masculino, para que não tivesse de recomeçar novamente as súplicas com que havia enchido os ouvidos do seu amigo durante aquela jornada!
Toda aquela atmosfera não se limitou, contudo, às abadias e aos mosteiros; nas tabernas bebeu-se alegremente à saúde do Rei. Na verdade era uma noite diferente das outras, que desembocou numa manhã cinzenta e fria, mas calma. A violenta tempestade vinda do mar, prosseguia o seu trajeto na direção do leste: agora somente restava apagar os vestígios da sua passagem. Quando Luís XIII apareceu, calçando umas botas e cingido nas suas roupas de camurça de corte militar, impecável como era seu costume, deixou pairar durante um momento o seu olhar sombrio pela multidão amarrotada, desfeita e extenuada, vergada à sua frente pelos rituais protocolares. O espetáculo devia ser bem divertido pois a sombra de um sorriso passou-lhe pelo bigode:
- Senhores, se fosse a vós, iria dormir!
E passou, acompanhado pela sua escolta, pelos guardas suíços e pelo pessoal militar ao seu serviço que, tendo o hábito de passar noites em branco, mal escondiam a alegria. No entanto, sem se desencorajar, a Corte retomou a sua função de sentinela: nada se pudera ler no rosto indecifrável do Rei; era preciso procurar o da Rainha, mas esta dormiu até mais tarde do que era costume.
Até tão tarde que a maioria decidiu regressar a casa a tempo de se arranjar um pouco, quando se soube que a Rainha ouvia a missa no seu oratório privado. Mas, durante todo o dia, todos os parisienses que podiam entrar na Corte precipitaram-se para o Louvre, atrás do coche da princesa de Conde. As mais nobres damas, os mais prestigiados senhores os que não se encontravam no exílio, nos exércitos, junto ao Rei ou nos seus postos na província acorreram para felicitar a Rainha, como se ela tivesse cometido uma façanha. A duquesa de Vendôme estava entre as primeiras. Levada pelo seu entusiasmo, apertou Ana nos braços:
- Minha irmã! Que grande dia! Acabo de ver o senhor Vincent, que transborda de alegria. Teve a revelação, num destes dias, que engravidaríeis!
O último a chegar foi aquele por quem menos se esperava: François de Beaufort vinha, por sua vez, prestar as devidas homenagens, mas o seu aspecto ao entrar fez estremecer Sylvie e dissipou o sorriso dos lábios da Aurora. Apesar da sua altura e dos cabelos claros, parecia uma sombra. Envergando um suntuoso fato de veludo cinzento bordado em prata, mostrava uma cara crispada por cima da brancura imaculada do colarinho engomado, cuja tez se acinzentava. Com o chapéu numa mão e com a outra retorcendo o nó de cetim que envolvia a bainha da espada, avançava muito ereto, quase de modo arrogante e, à sua frente, o círculo que envolvia a Rainha quebrou-se, afastando-se.
Meu Deus rezou Sylvie silenciosamente fazei com que ele não cometa nenhum disparate! Tem a cara dos maus dias...
- Ah, M. de Beaufort! - exclamou a Rainha com um grande sorriso. - Há muito que não comparecíeis. Também vindes apresentar os vossos cumprimentos?
- Decerto, Senhora! Foi com profunda alegria que soube que o Rei se lembrou finalmente que tinha desposado a mais bela das damas. E como a felicidade está estampada no rosto da Rainha, só posso sentir-me o mais feliz dos homens!
- Que ditosa personagem sois, meu caro duque!
- Não melhor que os outros, Senhora! Estou apenas a fazer o que os outros fazem... Posso também cumprimentar Vossa Majestade pelo encantador leque que maneja com tanta graciosidade? Um belo objeto, na verdade!
- E que vem de longe. De Roma, para não vos esconder nada.
- Terá sido o meu tio, o marechal d’Estrees, quem o mandou?
- De modo algum. É um presente de monsenhor Mazarini, de quem todos aqui se recordam com prazer - acrescentou, elevando a voz. - Chegou-nos ontem, juntamente com um milhar de outros objetos... Não é verdade que é encantador?
De cinzento, Beaufort passou a vermelho da cor do tijolo. Os seus olhos azuis flamejaram de cólera.
- Que audácia da parte desse filho de um criado que nem sequer é padre, a de ousar enviar presentes à Rainha de França! Não haverá nesta terra gentis-homens que cheguem para oferecer à nossa soberana tudo o que lhe poderá agradar?
Foi a vez da Rainha corar:
- Esqueceis-vos de quem sois e, ao mesmo tempo, com quem falais! Insultais uma pessoa ausente, o que já de si é grave pois ela não vos pode responder e, ainda por cima, permiti-vos criticar a nossa amizade, o que ainda o é mais!
- Amizade? Esse Mazarini está muito ligado ao senhor Cardeal. Não sabia que Sua Majestade partilhava as preferências dele!...
- Basta, senhor! Ide-vos. A vossa presença não é mais desejada!
O aparecimento de um casal atrasado o governador de Paris[27] e a esposa, a encantadora duquesa de Montbazon veio desanuviar a atmosfera. Muito infeliz, François recuou, mais ainda do que teria desejado, pois Marie de Hautefort tinha-lhe pegado discretamente pela cintura e puxava-o com ela até que se pudessem abrigar num canto onde Sylvie veio ter com eles.
Entalado entre uma cariátide que sustinha a grande tribuna dos músicos e o ângulo da galeria, o local, um pouco afastado da algazarra, era bem escolhido. Quando Sylvie chegou, Marie acabava de passar ao ataque:
- Sois louco ao virdes aqui com uma cara descomposta do tamanho de uma vara e ao vos dirigirdes a Sua Majestade como se ela vos devesse alguma coisa! Na verdade, meu caro duque, começo a lamentar ter declarado que tomava o vosso partido. Apenas sois bom para fazer disparates!
Sylvie vestiu imediatamente a toga de advogada:
- Não sede tão dura, Marie! Não vedes que ele está num terrível suplício?
- E porquê, se faz favor? Porque conseguimos finalmente que a Rainha não corresse mais o perigo de ser repudiada? Vindes com ares de proprietário e quase fazeis uma cena de ciúme segundo as regras!
- Quando se sofre, não se raciocina verdadeiramente!... É preciso apiedar-se e consolar em vez de criticar!
François pegou lestamente na mão de Sylvie para nela depor um beijo cheio de devoção e, depois, conservou-a dentro da sua.
- Ignorais aquilo por que passei esta noite quando pensava no que se passaria aqui. Imaginava-os nos braços um do outro, eu...
- Tendes uma imaginação demasiado fértil! - cortou Aurora. - E cabecinha a menos! Quando ireis, por fim, compreender que esta noite era necessária para que não houvesse o risco de perseguição por adultério?
- Sem dúvida, mas desde que ela é minha, não suporto mais a idéia que um outro entre na sua cama.
- O Rei, um outro!? - indignou-se Marie. - Desta vez, meu amigo, estais louco!
- Talvez, mas lamento sobretudo ter-vos prestado ouvidos em Chantilly. Devia tê-la raptado e, a esta hora, ela seria governadora dos Países-Baixos e...
- Seria sobretudo uma mulher manchada, desacreditada, talvez abandonada como o está a rainha-mãe...
- Nunca! Por ela, teria conquistado um reino...
- Parvoíces! Esqueceis-vos da Inquisição! Julgais que nos Países Baixos ela teria tolerado que se mostrasse o vosso adultério? O Cardeal-Infante também não, e a esta hora, como dizeis, teríeis sido, sem dúvida, entregue aos sectários do nosso Cardeal, a menos que vos tivessem cortado a garganta num canto esconso e bem sombrio!
- Sois impiedosa! Dizei-me, ao menos... como é que as coisas se passaram, pois suponho que espiastes o casal real durante toda a noite...?
- É verdade que não dormi nada e também não vos direi nada daquilo que sei. Trata-se dos meus soberanos e sou uma fiel súdita deles!
- E vós, dir-me-eis? - rogou François, quase apertando Sylvie de encontro a ele. - Também estáveis presente, não?
- Quem julgais que sou? - interrompeu Marie. - Os segredos de alcova não convêm a ouvidos tão inocentes. Mlle. de L’Isle foi deitar-se, seguindo as minhas ordens. Suponho ter sido a única a dormir bem nesta noite!
- Quando voltarei a vê-la?
- Receio que não seja tão depressa. Ou, aliás, assim o desejo. Por um lado entramos na época adventícia e depois, se Deus quiser, a Rainha estará muito vigiada. Deveis afastar-vos!
- Não me peçais o impossível!
- Peço-vos o que é indispensável para a segurança dela... e vossa! De qualquer maneira e até nova ordem, não deveis mais contar comigo... nem com Sylvie, claro. Tratai de vos distrair, viajai, ide combater sob outro nome ou casai-vos!
Os olhos de François faiscaram de cólera:
- Senhora, obrigado pela vossa ajuda! Creio que irei seguir o vosso último conselho e pensar na minha própria descendência!
Largando a mão de Sylvie, depois de a ter levado aos lábios uma última vez, dirigiu-se para o grupo que rodeava a princesa de Conde. Elas ficaram a vê-lo afastar-se.
- Ufa! - exclamou Marie, que acrescentou com voz estranha: - Aprouve ao Céu que a criança que nos enviar se o fizer, não se pareça muito com ele!...
Como a açafata se encaminhava resolutamente para a Rainha, Sylvie apenas conseguiu segui-la, sem pedir qualquer explicação sobre aquelas palavras sibilinas. Explicação que, seguramente, não lhe forneceriam. O segredo da noite real era também um segredo de Marie e ela não o partilharia com ninguém. Sobretudo se, como Sylvie supunha, durante o jantar ou no vinho aromatizado da noite, ela tivesse feito com que o Rei engolisse uma droga qualquer...
A partir daquele dia, tanto a Corte como a Cidade retiveram a respiração. Pouco faltava para que nas residências reais não se caminhasse na ponta dos pés, receando espantar os frágeis espíritos que presidiam à gestação. A Rainha passava mais tempo a rezar do que o costume. Quanto ao Rei, mudou de confessor: no dia que se seguiu à famosa noite, o padre Caussin, que também fora o confessor de Louise e enganando-se acerca do conteúdo das recomendações da jovem noviça, julgou por bem pedir ao seu augusto penitente para trazer de volta a rainha-mãe do exílio, para romper as suas alianças com os Holandeses e com os príncipes protestantes da Alemanha, para baixar os impostos e para fazer a paz com a Espanha: em resumo, enviar Richelieu para os lados de Luçon para ver se a erva não crescia melhor! Enquanto jesuíta, o pobre homem dava provas de possuir pouco discernimento: com uma certa nota de humor, Luís XIII mandou-o discutir os seus projetos com o Cardeal, após o que uma carta selada exilava o imprudente para Rennes onde foi, aliás, tratado com muito respeito. Foi um outro jesuíta, o padre Sirmond, que ocupou o seu lugar. Este tinha uma idade canônica, era um pouco surdo, o que obrigava Luís XIII a gritar as suas confissões mas, pelo menos, não se intrometia nos assuntos do Estado.
Quanto a François, tratou de afogar as mágoas nos prazeres. Foi visto frequentemente a frequentar o hotel de Conde, perto de Luxemburgo e, ainda mais vezes, na Praça Real, na luxuosa casa de jogo da Blondeau. Jogava rijo, bebia como uma esponja mas sem nunca perder o controle, o que lhe permitia evitar, pelo menos, as disputas frequentemente fatais. Inquieto, o seu irmão mais velho tentou trazê-lo de volta a uma concepção mais sensata das coisas:
- Estais a tornar-vos um libertino, irmão! Pensais ser esta a melhor maneira de obter a mão de Mlle. de Bourbon-Condé?
- Quem vos disse que é esse o meu desejo?
- Quando não frequentais o estabelecimento da Blondeau, zumbis à volta dela como uma abelha à volta de uma flor. Imagino que ela vos agrada...
- Ela é muito bela mas o seu feitio desconcerta-me: ainda é mais fria e altiva que Mlle. de Hautefort, e transmite uma mistura infernal de coquetteríe e devoção austera...
- Por acaso, tendes algo contra a devoção? A nossa mãe ficaria muito desconsolada.
- Não tenho nada contra. Eu próprio sou um homem piedoso, mas penso que não se devem misturar os gêneros. Em resumo, irmão, não tenho lá grande vontade de me tornar o esposo da bela Anne-Geneviève. Em compensação, agrada-me que pensem o contrário...
Mercoeur não insistiu. Sabia que a lógica do irmão não era como a das outras pessoas. E François regressou aos seus prazeres.
As festas que assinalaram aquele fim de ano de 1637, tão favorável às cores dos exércitos franceses, foram brilhantes. Houve baile em Saint-Germain: Mlle. de Hautefort, que o Rei recomeçara a cortejar, brilhou com todo o seu esplendor e Mlle. de L’Isle, cuja voz foi várias vezes ouvida, dançou, pela primeira vez, com uma graça que encantou a Corte. Contudo, como François não compareceu como aliás Jean d’Autancourt, que fora ter com o pai em Provence esse pequeno triunfo não lhe deu tanto prazer quanto pensara. Efetivamente, amiga da favorita, próxima de uma rainha que agora todos adulavam, a rapariga de pés descalços de outrora tornava-se, se não uma potência, pelo menos alguém repleta de charme, que era bom cortejar... Tanto mais que o Cardeal só tinha sorrisos para ela.
Também Sua Eminência participava na euforia geral. Richelieu deu uma grande festa no seu castelo de Rueil, no qual o Rei, que gostava de se ocupar dos preparativos desses grandes espetáculos da Corte, ofereceu e dançou o seu baile das Nações, no qual atuaram todas as belas damas. Sylvie também desempenhou o seu pequeno papel, enquanto que Aurora eclipsava as outras mulheres com seu esplendor.
E depois... depois, no primeiro número da sua gazeta de Fevereiro de 1638, Théophraste Renaudot escreveu: “No dia 30, todos os príncipes, senhores e pessoas de nobre estirpe foram regozijar-se com Suas Majestades em Saint-Germain, na esperança de uma feliz notícia, a qual, com ajuda de Deus, esperamos poder dar-vos dentro de pouco tempo”.
Finalmente! A Rainha engravidara! Paris exultava de alegria. Libertas de um grande peso, Marie e Sylvie choraram nos braços uma da outra. Quanto a François, embebedou-se por toda a Polônia, a tal ponto que foi preciso que os seus escudeiros o levassem de volta, inconsciente, para o hotel de Vendôme.
Depois pretendeu que era a maneira dele festejar o acontecimento, mas a sua alegria assemelhava-se à de Monsieur. Efetivamente, no castelo de Blois, todos se esforçavam por fazer das tripas coração, perante uma notícia que deitava por terra as esperanças do duque de Orleans. Esperanças que ele se esforçava, contudo, por reanimar, ao pensar que até essa altura a Rainha só tinha tido partos prematuros e que, na pior das hipóteses, caso ela se obstinasse em guardar a criança, haveria uma possibilidade em duas de que esta fosse uma rapariga. Desse modo, as preces do herdeiro inquieto, assim como as suas confissões, enveredaram por estranhas vias.
Durante a primeira quinzena de Fevereiro, foi levada à Rainha, no meio de grande pompa, o cinto da Virgem do Puy-Notre-Dame a sul de Saumur que, trazido de Jerusalém no tempo das Cruzadas, possuía, ao que se afirmava, o poder de diminuir as dores do parto. A partir desse dia, os aposentos de Ana de Áustria sentiram de tal modo a incenso, que foi preciso abrir frequentemente as janelas.
Foi no dia seguinte a essa bela jornada que Corentin, minado de angústia, correu a Saint-Germain para anunciar a Sylvie uma terrível notícia: na noite anterior, Perceval de Raguenel fora preso pela ronda e pelo próprio tenente civil, acusado de ter assassinado uma prostituta...
UMA ARMADILHA IMUNDA.
Nessa noite de lua cheia, Perceval e o seu amigo Théophraste visitavam as imediações do Pequeno Arsenal, pelos lados da porta de Saint-Bernard onde o Rei instalara, havia pouco tempo, o fabrico de pólvora para canhão e que tinha estado até essa altura integrado no Grande Arsenal junto à Bastilha, pelo que o local, deserto e assaz inquietante, tinha sido adotado pelos marginais ávidos de tranquilidade e por alguns corajosos cabarés onde se faziam frutuosos negócios. Naturalmente que as prostitutas se tinham integrado nesta fauna.
Este novo terreno de exploração não se devia ao acaso: um curto bilhete, garatujado num papel sujo e amarrotado, tinha sido levado até à mesa do gazeteiro. A escrita, trêmula, deixava supor que o correspondente, desconhecido, morria de medo. Aliás recomendava a Renaudot a maior prudência, dado a perigosidade do assassino do sinete de cera.
- Para quê prevenir-vos, precisamente, a vós? - objetou Raguenel, que achava o procedimento bizarro. - Imagino que não ireis substituir os arqueiros da ronda?
- Não sei se haveis notado, mas esses senhores encarregues da paz noturna em Paris não são lá muito corajosos. E esta história exala um cheiro a enxofre capaz de gelar alguém da medula até aos ossos. E depois, é ainda possível que o nosso correspondente não tenha a consciência lá muito tranquila e que não deseje aproximar-se demasiado das autoridades que, por vezes, são levadas a confundir o informador e o culpado.
- Bem pensado. Portanto, iremos lá esta noite.
- O tempo, úmido e ameno para a estação, já anunciava a primavera quando a barca de Renaudot deixou os dois homens no porto de Saint-Bernard. As nuvens perseguiam-se umas às outras de uma ponta à outra do céu, escondendo, às vezes, o disco branco da lua. O Pequeno Arsenal, edifício comprido, flanqueado por casas baixas, surgia no meio de uma espécie de isolamento silencioso, mas o quarteirão vizinho oferecia uma coleção de casebres mais ou menos leprosos onde ninguém parecia estar a dormir: por detrás dos vidros sujos brilhavam algumas luzes e alguém cantava numa taberna cuja insígnia rangia...
Estavam os dois amigos a percorrer as ruelas de cujos buracos emergiam mais detritos do que pedras, sem nada encontrar de suspeito, quando se ouviu, subitamente, um grito, o terrível grito que eles já conheciam.
- Vem dali! - resfolegou Théophraste, indicando uma ruela que tinham visitado um pouco antes.
Avançavam, guiados por um gemido persistente, quando eclodiu outro grito, ainda mais medonho do que o primeiro, na direção oposta. Desta vez vinha do lado do Arsenal...
- Continuai sozinho! Eu vou para além - decidiu Perceval, que desatou a correr na direção do edifício militar. Ao dobrar a esquina, avistou uma sombra que, tal como um rato, deslizava por uma passagem estreita situada entre duas casas baixas e lançou-se, naturalmente, na sua perseguição. Mas, mal dera entrada na passagem, embateu em qualquer coisa e estendeu-se ao comprido sobre aquilo que era um cadáver ainda quente. Ao mesmo tempo desferiram-lhe, por detrás, um violento golpe na cabeça que lhe fez perder os sentidos.
Claro que Corentin nada sabia do que ocorrera na realidade e, assim, apenas pôde contar a Sylvie aquilo que lhe fora confiado pelo polícia Desormeaux, fora de serviço, e bom amigo de Nicole Hardouin que, por sorte, fora encarregue de efetuar uma busca ao domicílio do pretenso culpado. Uma sorte, efetivamente, pois, graças a ele, os estimados livros e papéis de Perceval e a sua linda casa, foram pouco danificados. Isto não significava que aquilo que ele lhe dissera não fosse grave: prevenida por um bilhete anônimo, a ronda deslocara-se ao local indicado e encontrara o cavaleiro desmaiado sobre o corpo de uma rapariga degolada e com o famoso sinete de cera estampado na testa. A faca que servira como arma do crime estava junto à sua mão, como se dela tivesse caído e, pior ainda, nos seus bolsos tinham encontrado um pedaço de cera destinada a servir de marca, um isqueiro, uma vela e um pequeno sinete cinzelado com a letra omega. Este último detalhe levou a indignação de Sylvie ao rubro:
- E ninguém se perguntou quem poderia tê-lo atacado? A menos que tenha feito tudo sozinho!?
- Concluíram que alguém o surpreendeu durante o crime mas que, aterrorizado pelo espetáculo, preferiu fugir.
- Também não pensaram que o sinete e o resto podiam ter sido introduzidos nos seus bolsos pelo assassino, que nós os dois sabemos, pertinentemente, que não pode ser ele? A propósito, e M. Renaudot, que o acompanhava? Não encontrou nada para dizer?
- É incapaz disso, pois está acamado com uma forte febre. Descobriram-no a algumas toesas do Arsenal, estendido no solo, com um ferimento na cabeça. Também deve ter levado um golpe.
- E também se encontrava sobre uma mulher decapitada?
- Não, não havia nada. O tenente civil pensa que o nosso amo teve uma altercação com o companheiro e o quis matar, antes de ir cometer o seu ato.
- Isso tudo não faz qualquer sentido! Ambos procuravam o assassino do sinete de cera e mesmo que tenha uma febre elevada M. Renaudot deve poder contar a verdade, não?
- Não, é incapaz de o fazer, pois não recobrou a consciência...
Aterrorizada, Sylvie voltou-se para Jeannette com um olhar carregado de angústia. Esta perguntou:
- Onde se encontra o senhor cavaleiro a esta hora?
- No Grande Châtelet, para onde o levaram juntamente com o corpo. Mas como se trata de um gentil-homem vão levá-lo até à Bastilha, para instruírem lá o seu processo.
- Isto é ridículo! Um homem como ele, preso por esses crimes abjetos? É preciso ser louco ou idiota para não crer no que ele diz!
- Bem sabeis que as polícias só acreditam no que vêem, sem procurar mais longe. Se Desormeaux se decidiu a ajudar-nos um bocadinho é porque gosta da Nicole e sabe muito bem o que esta lhe reservaria se assim não procedesse. Hoje de manhã ela já lhe quis bater com um alguidar!
- Mas deve haver um meio para provar a sua inocência! Só a idéia de que ele se encontra entre as mãos desse Laffemas basta para me aterrorizar. É um homem horrível!
- Sim, mas... está ao serviço do Rei.
- O Rei! - exclamou Sylvie subitamente, desperta por aquilo que Corentin acabara de dizer. - Tenho de ver o Rei!
- Não ignorais decerto, menina Sylvie, que esta manhã o Rei partiu de manhã cedo para Versalhes.
- A Rainha, então! Agora que ela está à espera de uma criança, o seu esposo não lhe pode recusar nada!
- A Rainha nada pode fazer neste caso objetou Corentin e o contrário muito me espantaria! Além disso, corre o rumor, em Paris, que o nosso Senhor não está tão contente como se poderia imaginar... Se me atrevesse a dar-vos um conselho...
- Pois bem, dai-o! Não demoreis!
- Seria o de ir ver o Cardeal. Estais de boas relações com ele. Além disso, julgo que Rueil não fica tão longe quanto Versalhes...?
Sylvie, que começara a andar de um lado para o outro, apertando com força as mãos de encontro uma à outra para impedi-las de tremer, parou de repente.
- É possível que tenhais razão. Vou para lá! Mas primeiro preciso da autorização para sair. Além disso, precisamos de uma carruagem!
- Não vim a pé, menina Sylvie. Trouxe o nosso coche. Está lá fora à vossa espera, guardado por um miúdo.
Ao ir ter com a Rainha, Sylvie pensava contar-lhe a história, na esperança que ela falaria ao esposo. O azar quis que Marie de Hautefort, o melhor advogado que se podia desejar para defender a causa do inocente Perceval, estivesse ausente por uns dias, chamada pela família à cabeceira da sua avó, Mme. de Flotte, graças à qual obtivera a posição de açafata. A influência de que ela dispunha junto do Rei era certa e pelo menos, Sylvie assim o pensava com ela as coisas ter-se-iam podido arranjar mais facilmente. Infelizmente a jovem nem sabia onde procurá-la. Além disso, quando chegou ao Grande Gabinete da Rainha, este estava cheio de pessoas e não eram das menos malévolas a seu respeito. Desde que o futuro nascimento fora anunciado, a popularidade de Ana de Áustria subira em flecha. Sylvie contentou-se, pois, em solicitar a Mme. de Senecey a permissão para se ausentar do castelo durante algumas horas.
Sylvie mantinha boas relações com a dama de honor, que lhe dava provas de grande gentileza. Esta só precisou de um relance de olhos pelo rosto encantador da “gatinha”, sempre tão sorridente, para perceber que esta devia confrontar-se com um sério problema.
- Não estais com boa cara, minha filha! Que se passa? Onde quereis ir, a esta hora tão tardia?
- Vou a Rueil, senhora!
- A casa do Cardeal? Ele mandou chamar-vos?
- Não. Contudo, tenho de o ver. O meu padrinho, o cavaleiro de Raguenel, acaba de ser preso por um crime que não cometeu. Tenho de me encontrar com o Cardeal para lhe fornecer as explicações que, espero, o possam convencer.
- Mas, minha querida, não se obtém uma audiência com essa facilidade! Primeiro deveis escrever, depois esperar uma resposta, favorável ou não. Caso o seja, indicar-vos-ão uma data, uma hora...
- Senhora, quando está em jogo a vida de um homem, isso é muito longo! Cada minuto conta...
Sylvie mostrava uma tal determinação que Mme. de Senecey ficou impressionada.
- Seja! - suspirou. - Nesse caso aceitai, ao menos, um conselho. Quando chegardes a Rueil, procurai saber se M. de Chavigny se encontra no castelo. Lembrai-vos que ele é um dos dois secretários de Estado que me ladeavam quando o Cardeal veio a Chantilly. É um homem de bem e somos amigos. Não será demais aconselhar-vos a apresentar-lhe o vosso assunto mas, caso ele não esteja presente e dado que a vossa pressa é tão grande, perguntai pelo padre Lê Masle, que é o secretário de Sua Eminência. Talvez ele consiga que sejais recebida...
Sylvie dobrou o joelho com vivacidade, para efetuar uma rápida reverência e, ao fazê-lo, pegou na mão da dama e beijou-a, agradecida.
- Obrigada! Oh, obrigada, senhora! Seguirei o vosso conselho!
E depois desapareceu, envolta num turbilhão de veludo castanho e de saias brancas. Uns instantes mais tarde, a pequena carruagem de Perceval, conduzida por Corentin, descia a galope das alturas de Saint-Germain para transpor o Sena em Pecq. No seu interior, Sylvie, coberta pela sua grande capa e sentada ao pé de uma Jeannette bem decidida a não a deixar, esforçava-se, a custo, por reencontrar a calma necessária para defrontar o homem mais poderoso do reino que ela sabia quanto podia ser temível. Nesse intuito, retirara um rosário do bolso que desfiava, dizendo as orações em voz baixa...
Por ter comparecido algumas semanas antes ao baile das Nações, Sylvie já conhecia o castelo de Rueil que o Cardeal-duque erigira como monumento à sua glória, tão esplêndido que nele ocorreram importantes acontecimentos, tais como a aprovação dos estatutos da Academia Francesa ou a assinatura do tratado que anexava Colmar à França. O domínio não era enorme, mas as suas dependências eram-no. Rodeado, como em Limours, por valas profundas, dispunha de uma capela e, também, de um recinto com pássaros, de um outro para o jogo da péla, de um laranjal, de vastas cavalariças e, sobretudo, de jardins suntuosos, ainda mais belos que os do Palácio do Cardeal, animados por grutas, efeitos de repuxos de água e de cascatas, tal como o deslumbrante fontanário em forma de rosa e o alto repuxo que brotava de um lago octogonal frente à fachada. O local era tão encantador que o Rei gostava de passar por lá ao regressar da caça, a fim de falar com o seu ministro, enquanto provava as tortas de ameixa.
Mas se também já acontecera a Sylvie ser cativada por todo aquele charme, tal não era o caso nessa noite. Algumas conversas em voz baixa, que escutara, por vezes, no quarto da Rainha, acudiam-lhe à memória. Dizia-se que, sob o lindo castelo, existiam masmorras onde o Cardeal fazia desaparecer aqueles que o estorvavam. Falava-se em execuções secretas, em enterros discretos no parque, em carrascos mascarados... Talvez fossem lendas mas, àquela hora quase noturna em que o Sol declinava, em que as sombras adquiriam espessura, essas narrativas macabras tornavam-se singularmente vivas e Sylvie arrepiou-se dentro da sua grande capa.
- Também Jeannette não se sentia lá muito segura. Com uma voz ligeiramente trêmula, murmurou:
- Meu Deus, como tenho medo! E vós, menina Sylvie?
- Também! Mas temos de lá ir. Esperar-me-ás na carruagem.
- Sua Eminência pediu-vos que viésseis distraí-la?
- Não, padre. Eu é que, servindo-me da bondade que Sua Eminência sempre me testemunhou e, confesso, armada de uma audácia que não me permitiria noutras circunstâncias, desejo obter uma entrevista.
- Agora? Mas já passa das cinco e...
- Eu sei que já é tarde, mas suplico-vos que acrediteis que se trata de um assunto de extrema gravidade! A partir do momento em que se trata da vida de um homem...
- Ah! Um homem? E que vos é chegado?
- É o meu padrinho! Gosto imenso dele e respeito-o de todo o coração; acontece que neste momento ele é vítima de um tremendo erro.
- Como se chama esse felizardo?
- Felizardo?! Mas arrisca-se a ir parar ao cadafalso! Oh, padre...
- Não vos ofendeis. Falei assim porque ele é feliz ao conseguir atrair tanto afeto da parte de uma jovem tão encantadora! Então, como se chama?
- É o cavaleiro Perceval de Raguenel. Assinalo-vos ainda que é amigo de M. Théophraste Renaudot, que o senhor Cardeal bem conhece.
- E que está muito doente, segundo sabemos? - disse o secretário, num tom mais frio. - Pois bem, esperai aqui! Vou ver se Sua Eminência consente em receber-vos...
Conduzida pelo cônego secretário, Sylvie atravessou ricos aposentos sem lhes prestar a mínima atenção: o Palácio do Cardeal e a noite de Janeiro tinham-na habituado às faustosas decorações com que o ministro gostava de se rodear. A única coisa que a surpreendeu foi a de não encontrar Mme. de Combalet em lado nenhum, o que, aliás, a aliviou consideravelmente. Se tivesse sido preciso explicar-se diante daquela linda mulher de sorriso cruel, a dificuldade teria sido ainda mais dura do que previra.
Uma outra surpresa foi a porta que abriram diante dela, e que era a da capela que estava ligada ao edifício central por uma curta galeria. Estava muito escuro, encontrando-se o local iluminado apenas por um punhado de velas que ardiam frente a um extraordinário crucifixo de ébano e ouro e por uma lâmpada que assinalava a Presença. Uma comprida forma em vermelho, que orava ajoelhada num genuflexório, levantou-se ao ouvir o ruído de passos, ficando de pé, frente a Sylvie, enquanto o cônego desaparecia. Parecia barrar o caminho para o altar; porém, a jovem decidiu ignorá-la deliberadamente para se ajoelhar um momento e endereçar ao Céu uma curta prece que era um pedido de socorro. E só quando se levantou é que se inclinou na reverência protocolar que o Cardeal esperava, o qual não se apressou a ajudá-la:
- Deus servido em primeiro lugar! - murmurou. - É inteiramente justo... e está muito bem. Erguei-vos!
- Monsenhor - expôs Sylvie - peço mil desculpas a Vossa Eminência por ter ousado vir aqui sem ter sido convidada. Suplico-vos que me acrediteis que foi preciso que existisse uma razão... terrível, para justificar semelhante audácia. E ao encontrar-vos neste local a minha angústia ainda piora, pois receio estar a ser verdadeiramente inoportuna. Vossa Eminência orava...
- Estais surpreendida por terdes sido aqui trazida?
- Efetivamente, monsenhor...
- Vós, que haveis afirmado não terdes medo de mim, penso que esta noite o tendes. Será devido à presença de Deus?
A jovem fixou o seu olhar límpido no do Cardeal.
- Confesso que estou cheia de temor, mas não de Deus que é suprema justiça, suprema misericórdia, pois sei que Ele lê dentro de mim. Gostaria que Vossa Eminência pudesse fazer o mesmo!
- Porque não? É difícil mentir numa capela, sobretudo com a vossa idade. É um local para... se confessar, como acabais de dizer. Pois bem, sou todo ouvidos - acrescentou, dirigindo-se para a alta cadeira colocada à esquerda do altar e na qual seguia os serviços. Sylvie encontrou-se assim separada dele pela mesa de comunhão em bronze dourado e pelas duas escadas que a ela acediam. Ainda se sentiu mais incomodada, não sabendo por onde começar. Talvez ele tivesse sentido alguma piedade por aquela criança frágil que colocara numa posição de acusada, pois começou de um modo um pouco impaciente:
- Disseram-me que me queríeis falar do caso grave, de um tal Raguenel, acusado de ter cometido, na cidade de Paris, vários crimes de inspiração satânica?
“Senhor!” pensou Sylvie aterrada. “Agora trata-se de satanismo? Caso o condenem, será à fogueira!”
O horror da situação em que se encontrava o padrinho devolveu-lhe toda a coragem. Começou por deixar de falar de Raguenel como de uma terceira pessoa.
- Permiti, monsenhor, que retifique as vossas palavras. O cavaleiro de Raguenel é um homem de bem. Sem dúvida, o melhor que já conheci. Teme Deus, venera o Rei, respeita Vossa Eminência e nunca teve nada a ver com... o demônio. - Benzeu-se rapidamente, antes de prosseguir: - Está tanto mais inocente das coisas horríveis de que o acusam que já faz meses que tenta apanhar o assassino conjuntamente com o seu amigo M. Renaudot...
- Digamos que fez de conta para melhor poder perpetrar os seus crimes e, para concluir, acabou por desancar o meu pobre gazeteiro que devia ter acabado por entender o que se passava realmente.
- E que mais ainda? - exclamou Sylvie, subitamente fora de si, a ponto de se esquecer onde se encontrava. - Parece-me ser fácil interrogar M. Renaudot!
- Podeis ter a certeza que o tenente civil não deixará de o fazer. Mas para isso é ainda preciso que o infeliz possa sair do estado lastimável em que se encontra, sem que seja pelas portas da morte... ou da loucura. Mas, dizei-me, qual a vossa relação com esse Raguenel?
- É meu padrinho e, também, meu tutor, por vontade da senhora duquesa de Vendôme, de quem era o escudeiro e que ela bem conhece. Talvez possais também ouvi-la?
Richelieu encolheu os ombros:
- A duquesa é, ao mesmo tempo, uma trapalhona e uma mulher santa. Quando dá a sua proteção a alguém, dirá seja o que for, de mão na Bíblia, para a salvar.
- Um falso juramento? E sobre o Livro sagrado? Oh, monsenhor! Vê-se que não a conheceis!
- Conheço-a muito bem! É tudo o que tendes a dizer-me em defesa do vosso... padrinho? Que é um homem de bem? Não imaginais as taras que se escondem, por vezes, sob as aparências mais benignas...
- Não foi apenas isso que disse. Se Vossa Eminência se quiser recordar, há pouco mencionei que já havia meses que M. de Raguenel procurava o assassino do sinete de cera vermelha. Devia ter dito anos...
- Anos? Por aquilo que sabemos, esse miserável só comete os seus atos desde a última Primavera...
- Já o fizera anteriormente, pelo menos uma vez, há onze anos, nas imediações de Anet...
- ...que é um feudo dos Vendôme, onde esse Raguenel estava de serviço. Não vejo como esse fato poderia ilibá-lo dos crimes atuais. Antes pelo contrário, isso acusa-o ainda mais.
- A vítima foi a minha mãe que M. de Raguenel amava. Ela e os filhos foram massacrados por um bando de homens mascarados, no intuito de se apoderarem de cartas de uma grande importância para uma ilustre personagem. O chefe era o homem aqui em questão! E M. de Raguenel jurou que um dia havia de matá-lo. Foi o acaso e M. Renaudot que o fizeram descobrir que o homem cometia os mesmos crimes em Paris...
- A vossa mãe e os seus filhos foram massacrados? Então, e vós?
- Desculpai-me: eu fui a única exceção, graças à minha ama, que me cobriu com o seu corpo e, depois, graças a François de Vendôme que me descobriu errando pela floresta. Tinha quatro anos e ele dez!
De repente o Cardeal deixou o seu assento, passou pela mesa da comunhão e agarrou no pulso de Sylvie:
- Vinde comigo! Este local sagrado não foi feito para que nele se ouçam tais horrores!
- Este local nunca ouviu a confissão de alguém? Eu digo a verdade e, ao fazê-lo, não temo a cólera de Deus!
- Talvez, mas prefiro que não prossigamos aqui. Compreendereis que temos de ir para o meu gabinete...
Sylvie não insistiu. O grande gabinete de trabalho seria mais confortável para aquele homem envelhecido antes da idade, cuja palidez e cujos traços crispados, visíveis apesar de uma ligeira maquilagem destinada a iludir, a tinham impressionado na altura do baile. Efetivamente, regressado ao seu gabinete com Sylvie a reboque, Richelieu tirou o seu gato favorito de cima da cadeira de trabalho, o qual, acordado, protestou. O Cardeal instalou-se no seu lugar e guardou o animal em cima dos joelhos. Algumas carícias acalmaram-no de imediato.
- Há algo de singular nessa vossa história, Mlle. de L’Isle. Julgava-vos originária do sul da região de Vendôme, onde se encontram as vossas terras. Ora, falais-me de um... castelo nas imediações de Anet?
- Efetivamente. Eu tenho um nome que me foi dado a fim de ser protegida...
- Estais a dizer-me que a Rainha vos tomou ao seu serviço desconhecendo a vossa verdadeira identidade?
- Ignoro o que foi dito entre a senhora duquesa de Vendôme e Sua Majestade. Se ela está ao corrente, nunca o demonstrou. Aliás foi desde há pouco que me revelaram tudo a meu respeito. Chamo-me Sylvie de Valaines. A minha mãe, uma florentina chamada Chiara Albizzi, era prima da rainha Maria que a tomou ao seu serviço antes de a casar com o barão de Valaines, o meu pai. Este já não era deste mundo quando eclodiu o drama. A minha mãe estava sozinha em La Ferrière, comigo e com os meus irmãos e também os nossos criados, entre os quais a minha ama. Foram todos massacrados, mas antes de falecer a minha pobre mãe foi alvo de um tratamento ignóbil: o seu assassino violou-a e estampou-lhe na testa um sinete de cera vermelha com a letra omega...
E, subitamente, antes mesmo que o Cardeal pudesse dizer fosse o que fosse, uma onda de cólera enfureceu-a:
- E não me venham dizer que esse miserável era Perceval de Raguenel, que adorava a minha mãe e que, nesse dia, não havia deixado um só instante a senhora duquesa de Vendôme! Em Anet ninguém se esqueceu desse dia horrível, e todos podem testemunhar! Ele só para lá se dirigiu quando a duquesa assim o ordenou, depois do príncipe de Martigues me ter trazido até ao castelo, de pés descalços e com uma camisa ensanguentada. O que ele viu em La Ferrière transtornou-o, roeu-o de tristeza, e fê-lo jurar que haveria de encontrar o carrasco para o obrigar a pagar o seu crime...
- E encontrou-o?
- Bem sabeis que não. Foi o outro que o encontrou e que quer que lhe sejam atribuídos os seus próprios crimes! E agora, pretendeis fazer com que seja Raguenel a pagá-los? Como é que um homem de Deus como Vossa Eminência pode condenar desta forma sem saber o que se passa? Oh, que infâmia, que infâmia!
A cólera de Sylvie parou bruscamente. A sua resistência nervosa também e ela caiu no tapete, agitada por soluços convulsivos. Richelieu levantou-se e veio até ao pé dela mas, primeiro, deixou sabiamente passar o pior da tempestade. Só quando os soluços começaram a espaçar-se é que se inclinou para lhe pegar no braço:
- Vamos, levantai-vos! Já é tempo de vos acalmardes! Ainda temos de conversar...
Ela obedeceu à ligeira pressão que ele exercia no seu braço e deixou-se levar até um assento no qual se deixou cair, sem mais forças. O Cardeal contemplou a onda de veludo castanho no meio da qual a frágil silhueta parecia perdida. Quinze anos e já uma história tão terrível atrás dela! Até um coração defendido por uma couraça, como era o seu, corria o risco de se emocionar...
Obedecendo a um impulso piedoso, ele deitou um pouco de malvasia num copo, como ela o fizera quando viera cantar para ele.
- Tomai... Bebei, minha criança, sentir-vos-eis melhor! Tendes de recobrar o ânimo.
Ela ergueu para ele os olhos inundados de lágrimas mas, ao pegar no que ele lhe oferecia, corou bruscamente. Pensou subitamente no pequeno frasco de veneno que lhe dera o duque César e do qual ela não se livrara, acalentando a idéia de que um dia essa porta de passagem para a morte a pudesse ajudar no caso de vir a sofrer demasiado. Nessa noite não pensara em trazê-lo consigo. Aliás, para fazer o quê? Ela própria tinha de se conservar bem viva para velar por Perceval e a morte do Cardeal só serviria para apressar o seu trespasse. Fá-lo-iam desaparecer sem a menor hesitação!
Expulsando esses pensamentos debilitantes, ela bebeu um pouco de vinho e, com efeito, sentiu-se melhor:
- Quanta bondade, monsenhor! Peço a Vossa Eminência que me perdoe por me ter deixado arrebatar desta maneira pela cólera! Tal arrebatamento é o fruto da ternura que tenho pelo meu padrinho...
- Foi assim que o entendi. Agora ficai sentada e falemos!... Em primeiro lugar, como se chama o castelo da vossa infância?
- La Ferrière, monsenhor! Agora pertence ao barão do mesmo nome que ainda há pouco desejava obter a minha mão. Parecia que achava que os Valaines eram uns intrusos e conseguiu que o... Rei lhe outorgasse.
Apesar do seu desconcerto, Sylvie teve suficiente presença de espírito para atribuir a Luís XIII uma dádiva que sabia muito bem que viera da parte do Cardeal. Os olhos deste pareceram semicerrar-se:
- Sabíeis isso tudo quando recusastes M. de La Ferrière?
- De modo algum, monsenhor. Só soube a verdade há algumas semanas atrás. Recusei-o porque não gostava dele e até porque me metia um certo medo. Não sem razão, pois ainda não desistiu de me perseguir. Neste Verão, na Praça Real, M. de Cinq-Mars interpôs-se entre mim e ele...
- E agiu muito bem! Não são maneiras! Agora, dizei-me outra coisa: a propósito da morte trágica de vossa mãe, mencionastes umas cartas que lhe queriam sonegar. Sabeis do que tratavam?
- Não sei grande coisa, monsenhor. Apenas que foram escritas pela rainha-mãe. É natural, parece-me, pois a minha mãe era sua prima, mas ignoro o seu conteúdo e a quem eram endereçadas. Talvez à minha mãe?
O Cardeal mostrou um ar dúbio:
- Seria preciso que elas contivessem graves confidências, o que me custa muito a acreditar. Não dissestes que elas eram importantes para uma ilustre personagem? Que sabeis acerca desta?
- Nada! Pensei apenas que poderia talvez ser Sua Majestade, o Rei, dado que se tratava da mãe dele.
- O Rei teria enviado soldados sob o comando de um dos seus grandes servidores. Ora não só os guardas do Rei não são vocacionados para massacrar mulheres e crianças, como mencionastes... desconhecidos mascarados?
- Sim, monsenhor. Falou-se de uma dúzia de cavaleiros mascarados, vestidos de preto e...
- ...e aqueles que estão ao meu serviço estão vestidos de vermelho e eu não emprego espadachins! - disse Richelieu, com secura.
- Perdoai-me, monsenhor, mas nem o Rei nem Vossa Eminência são as únicas pessoas a quem tais cartas podem interessar e são assaz numerosos os homens da alta nobreza que dispõem de tropas mais ou menos regulares - acrescentou Sylvie que, sabendo o que lhe ensinara Perceval, não tinha dúvidas que os assassinos tivessem agido por conta do ministro. No entanto admitia, de bom grado, que o respectivo chefe, ao agir ao mesmo tempo por conta própria, tivesse ultrapassado as ordens que recebera. O mal é que lhe era impossível confessar o fundo do seu pensamento e interrogar o Cardeal. Saber o nome daquele que ele encarregara de recuperar a perigosa correspondência era saber o do assassino do sinete de cera!
Aliás a sua resposta parecia ter sido do agrado do Cardeal. O duro rosto descontraiu-se um pouco. Richelieu pensava. De repente, perguntou:
- Jurais-me pelo Evangelho que haveis dito a verdade?
- Sem hesitar um só segundo, monsenhor. Colocai-me à prova!
O olhar sombrio vasculhou as pupilas claras, no fundo das quais não conseguiu detectar nenhuma sombra. Contudo, Richelieu ainda não acabara com o assunto de La Ferrière.
- Quem é que viu esses cavaleiros mascarados, para tão bem os descrever?
- A aldeia inteira, que eles aterrorizaram. Chegaram em plena luz do dia...
- Que estupidez! Não seria preferível a noite para esse gênero de expedição?
- Sem dúvida mas, durante o dia, sobretudo no Verão, as portas e as janelas estão abertas. Além disso, pelo que sei, La Ferrière conserva ainda defesas medievais, fossos, uma ponte levadiça...
- Pelo que sabeis? Nunca haveis regressado?
- Nunca. A senhora duquesa de Vendôme queria imenso que eu esquecesse tudo da minha primeira infância. Quando nos encontravamos no castelo de Anet estávamos terminantemente proibidos de passear por esses lados.
- E nas vossas lembranças, não há nada?
- É tudo muito vago. Desde que sei a verdade a meu respeito que me esforço por recordar, mas foram sobretudo os rostos que permaneceram no fundo da minha memória. Quanto ao resto, já vi, desde então, tantos jardins e aposentos que me é difícil destrinçar o que quer seja no meio disso tudo...
- Abandonai! Quando se trata de pesadelos, o melhor é deixá-los enterrados!
- Contudo, gostaria de voltar a poder utilizar o meu verdadeiro nome e contar tudo a Sua Majestade a Rainha. Tenho a sensação de trazer, também, uma máscara!
- Além do fato que Mme. de Vendôme não concordaria decerto com isso, penso que é melhor permanecerdes Mlle. de L’Isle como até agora. Colocar-se-iam muitas questões; seria preciso explicar demasiadas coisas e, embora não estejais há muito tempo na Corte, já aprendestes, decerto, como ela funciona. É muito difícil manter segredos. Excelente razão para preservá-los o melhor possível.
- Não poderei, pelo menos, confiar-me à Rainha? Custa-me ter de lhe mentir...
- Ainda assim é preferível. Mas já que o referistes, falemos dela. Sois-lhe dedicada, não é verdade?
- Inteiramente, monsenhor.
- Tanto quanto Mlle. de Hautefort, de quem sois, aliás, amiga? Pelo que vos felicito: não é fácil, mas é um verdadeiro privilégio. Isso valeu-vos poder partilhar os segredos da vossa Senhora.
O coração de Sylvie parou um momento, perante o perigoso caminho que agora o Cardeal abria à frente dela. Contudo, a atitude deste era benigna, até amável. Olhava-a com um daqueles sorrisos que, como homem habituado a medir as suas armas, sabia ser charmoso. Mas Sylvie não foi sensível a tal charme. Ao voltar a ter medo, só viu uma coisa: Sua Eminência tinha dentes amarelos!
- Para isso seria preciso que a Rainha possuísse segredos respondeu. Ou, se tal for o caso, que ache apropriado partilhá-los com uma rapariga de quinze anos. Com esta idade... talvez não se seja muito fiável, não achais?
- Dais-me vontade de ser eu próprio a julgá-lo. Falai-me um pouco das vossas estadas em Val-de-Grâce! Parece-me que haveis lá estado várias vezes?
- Sim, estive. Sua Majestade desejava ouvir-me cantar com as religiosas. Isso agradava-me muito, era muito bonito...
- E também não faltam distrações no jardim. Além disso, a pequena porta, sob a cobertura de hera, era muito cômoda, não é assim?
Sylvie sentiu que estremecia, mas tratou de conservar uma boa compostura. De qualquer modo, negar teria sido estúpido. Conseguiu arrancar um sorriso:
- Não era um grande segredo. Permitia à Rainha receber notícias da família e da sua amiga, Mme. de Chevreuse, sem que todo o convento ficasse ao corrente. Existem, por vezes, más-línguas entre as freiras. Afinal de contas a Rainha estava em sua casa, que ela própria mandou construir - acrescentou, audaciosamente. - Era normal que levasse uma vida menos espiada que no Louvre ou em Saint-Germain... e não compreendo por que motivo, como me disseram, a porta foi tapada sem que lhe perguntassem a sua opinião.
Os olhos do Cardeal semicerraram-se até se tornarem apenas duas fendas brilhantes, enquanto avaliava aquela pequena rapariga, de quem não chegava a destrinçar se era verdadeira ou falsamente néscia. Para tratar de saber mais, optou por um ataque brutal:
- Em qualquer lugar do reino, o Rei está em sua própria casa, antes da Rainha. Essa porta não servia apenas para a passagem de inocentes correios. Quantas vezes a abristes a M. de Beaufort?
O terror que se apoderou daquele rosto encantador, pouco batido nas manhas da Corte, revelou-lhe mais do que um longo discurso. E também a voz enfraquecida, quando Sylvie perguntou:
- E porquê M. de Beaufort?
- Porque é o amante da Rainha. Não me digais que não o conheceis?
- Disse há pouco que ele me tinha salvo a vida quando eu era apenas uma criança e Vossa Eminência não ignora que fui, em parte, educada ao pé dele. Mas acrescentou, obrigando-se a retomar pé só o conheço enquanto servidor dedicado de Sua Majestade. Deveria antes dizer Suas Majestades, pois quando me foi dado encontrá-lo na Corte, ele queixou-se frequentemente de não ter mais o direito de combater pela grande glória das armas do reino.
- Jurais que ignoráveis tudo acerca das suas verdadeiras relações com a vossa Senhora?
- Juraria, sem hesitar, que nunca vi nada de tal. E só acredito naquilo que vejo!
- Por outras palavras, não acreditais em Deus?
- Oh, monsenhor, essa questão é cruel pois faz-me sentir que me exprimi mal. Não, nunca vi Deus, mas não é por isso que tenho de acreditar ou deixar de acreditar. Sempre soube que Ele está presente em todas as coisas, desde o menor pedaço de erva até à estrela mais brilhante e que sou sua filha. É preciso dizer se se acredita no seu próprio pai?... A propósito, eu que nunca conheci o meu, poderei pedir humildemente a Vossa Eminência para me dar de volta aquele que o substituiu?
- Ainda não estou convencido da sua inocência. Para ficar seguro, esperarei que seja possível ouvir M. Renaudot.
- Mas... se, entretanto, ele falecer?
- Rezai a Deus, cuja presença sentis tão fortemente, para que ele recupere os sentidos o mais depressa possível! Quanto ao cavaleiro de Raguenel, permanecerá na Bastilha. Ficai descansada, não lhe farão mal nenhum... Quanto ao duque de Beaufort, que é evidente que ameis, sabei que será dentro em breve incorporado no exército do norte...
- Ele vai ficar tão contente!
- ...onde permanecerá tanto quanto for necessário. Efetivamente, não seria nada conveniente que ele fosse visto perto da Rainha durante a gravidez desta, que espero que venha a produzir os resultados esperados. À parte ações excepcionais de grande envergadura, vale mais que se faça esquecer por lá...
- Ele tem demasiada bravura para se apagar, monsenhor!
- Nunca duvidei disso. Talvez possa até encontrar por lá um final heróico, graças ao qual se tornaria um exemplo e a Rainha poderia acarinhar a sua lembrança com toda a tranquilidade!
- Um final heróico? - gemeu Sylvie, à beira das lágrimas. - Vossa Eminência deseja que ele seja... morto?
- Seria a melhor solução... Ah, já agora, enviai as minhas saudações a Mlle. de Hautefort quando a virdes. Dir-lhe-eis, ainda, que ela não é tão fina estratega quanto pensa e que, por exemplo, no caso das cozinhas do Louvre, recebeu uma ajuda da parte de alguém que nem imagina. Aconselhai-a, portanto, caso quiser evitar uma grande desgraça, a calar-se definitivamente sobre o que se desenrolou nestes últimos meses. Quanto a vós, conto com o vosso silêncio... completo! Ficai a saber que a mínima tagarelice intempestiva seria logo uma ameaça, não só para a vossa vida mas, antes de mais, para a desse vosso padrinho que tanto estimais! Haveis-me compreendido bem?
Muito pálida, Sylvie percebeu que estava tudo dito, que a audiência acabara e inclinou-se numa profunda reverência:
- Entendi muito bem, monsenhor! - murmurou, esforçando-se por engolir as lágrimas.
- Lembrai-vos sempre que não há nada mais mortífero do que um segredo de Estado! Vou mandar que vos acompanhem até à vossa carruagem.
Richelieu fez soar um pequeno sino que estava sobre a sua mesa de trabalho e cujo tinir teve o condão de fazer surgir um criado.
- Quem está de guarda à minha antecâmara?
- M. de Saint-Loup e M...
- O primeiro serve. Acompanhai Mlle. de L’Isle até à sua presença e dizei-lhe que a escolte até à sua carruagem.
Uma derradeira reverência e Sylvie, só um pouco mais segura do que quando chegara, seguiu o seu guia. Ia apenas certa de uma coisa: que Perceval só teria de suportar a prisão e que, na Bastilha, sempre era possível amenizar a sina de um cativo. E dado que essa sina dependia ainda mais dela do que de Théophraste Renaudot se bem compreendera o pensamento do Cardeal o seu caro padrinho nada tinha a temer. Já não era o mesmo caso com François. Ao enviá-lo de volta ao exército, o homem do manto vermelho só pensava em mandá-lo em busca de uma morte que talvez o ajudassem a encontrar. Que outra coisa se podia esperar de Richelieu, dado que ele nada ignorava acerca dos amores da Rainha? E Sylvie pensou, de repente, nas inquietações de Marie, no dia seguinte ao da noite do Louvre. Não tinha ela dito que as coisas lhe tinham parecido demasiado fáceis, e que por isso se decidira a regressar ao Val, para arranjar um último encontro entre os dois amantes? Era, obviamente, uma loucura esperar vir a escapar à incessante espionagem que era o próprio clima do palácio! Era caso para acreditar que as paredes, as portas, as janelas e os cortinados possuíam olhos e ouvidos e que não existia nenhuma segurança em qualquer recanto da antiga residência dos reis de França...
Sem sequer prestar atenção ao guarda de túnica vermelha que ficara encarregado dela, Sylvie percorreu, de novo, sem as ver, as suntuosas salas do castelo de Rueil. Foi apenas ao chegar à grande escadaria que saiu das suas tristes cogitações quando uma voz desagradável soou a seu lado:
- Senhor de Saint-Loup, Sua Eminência acaba de mudar de parecer. Agora é a mim que está confiada Mlle. de L’Isle! Agradeço a vossa obrigação e querei voltar ao vosso posto!
Horrorizada, Sylvie reconheceu Laffemas. Visto à luz dos candelabros que iluminavam tão nobres escadarias, ele ainda lhe pareceu mais sinistro e mais feio que em Croix-du-Trahoir ou no parque de Fontainebleau. Contudo, esforçava-se por ser amável. O guarda que estivera encarregado dela já se inclinava para obedecer à nova ordem que lhe era dada e, também, para a saudar.
- Vinde, menina! - disse o tenente civil, oferecendo-lhe uma mão que ela fingiu não ter visto.
- Como é possível - perguntou - que o Cardeal vos tenha enviado no lugar desse Saint-Loup? Tendes algo a dizer-me? - acrescentou, recordando-se que era ele quem tinha preso Perceval. Pensou logo se não devia empreender algum esforço para não lhe revelar até que ponto ele a atemorizava. Mesmo que fosse cruel, aquele a quem chamavam o “grande carrasco”, talvez não fosse desprovido de sentimentos e lhe pudesse dar notícias do cavaleiro de Raguenel.
- Na verdade disse Laffemas foi a meu pedido que Sua Eminência me quis dispensar o favor que retirei ao seu servidor. Gostaria de vos falar de... muitas coisas, que poderiam ser de extremo interesse para vós...
- Desejo acreditar-vos, mas já é tarde...
- Um momento! Só um momento!
Estavam a chegar a um grande pátio mas, em vez de deixá-la dirigir-se em direção à sua carruagem já próxima, na qual Corentin já havia aberto a portinhola, Laffemas apoderou-se do seu braço e arrastou-a para uma outra carruagem que se encontrava a alguns passos dali. Esta maneira de proceder desagradou a Sylvie:
- Que fazeis, senhor? Se tendes de me falar, fazei-lo já.
- Não no meio do pátio. Há sempre tanta gente! Vinde até à minha carruagem. Lá estaremos em tranquilidade e também posso conduzir-vos de volta a Saint-Germain! Vamos, não me obrigueis a insistir! É preciso, vede se percebeis, é preciso que conversemos! Dizei ao vosso pessoal para vos esperar além! Ou antes, vou eu próprio fazê-lo! Ó daí, cocheiro! Levo Mlle. de L’Isle de volta ao castelo. Ide aos vossos afazeres!
Um momento depois, Sylvie, metade por vontade própria, metade por obrigação, encontrava-se instalada sobre as almofadas daquela grande carruagem preta, com um criado a fechar-lhe a portinhola. O medo apoderou-se dela e quis reagir; chamou Corentin, inclinando-se para o exterior, mas já uma mão brutal a repunha nas almofadas.
- Calai-vos, pequena idiota! Não se resiste às ordens do Cardeal!
- O que é que me prova que são ordens dadas por ele? O Cardeal disse que M. de Saint-Loup escoltar-me-ia até à minha carruagem!
- E a mim ordenou-me que vos levasse de volta a casa!
- Até ao castelo? Temos tanto que conversar?
- Mais do que pensais!
Puxada por poderosos cavalos, a carruagem já ia a galope. Tudo se passara tão depressa que Corentin não tivera tempo de reagir mas Jeannette, que esperava sensatamente pela sua jovem senhora no interior do coche, saiu e lançou-se sobre o seu amigo. Empalidecera como um morto:
- Corentin! O homem que acaba de fazê-la subir para aquela carruagem preta... eu conheço-o!
- Eu também. É o tenente civil!
- Não compreendes! - exclamou. - É o assassino de Mme de Valaines. Juraria por Deus! Reconheci a voz dele! É ele, tenho a certeza que é ele... e leva-a consigo.
- Achas que a raptou?
- É preciso segui-lo... a qualquer preço! E a sua carruagem é mais rápida que a nossa. Oh! Meu Deus!
E desfazia-se em soluços enquanto Corentin compreendia que não se jogava uma partida de igual para igual.
- Trata de levar a nossa de volta ao castelo e previne a Rainha! Tenho de apanhá-lo!
Sem pronunciar mais nenhuma palavra, correu na direção de um cavalo com sela que, debaixo da árvore de um pátio, devia estar à espera de um dos guardas, pulou-lhe para cima num só movimento, juntou as rédeas e partiu a toda a pressa mas, quando transpôs as valas de Rueil, a atrelagem do tenente civil já ia longe... Não o suficiente, contudo, para que o olhar agudo do bretão não distinguisse duas circunstâncias alarmantes: primeiramente, em vez de continuar na direção de Saint-Germain, tinham desviado, à esquerda, na direção de Marly; por outro lado, dois cavaleiros, saídos não se sabia de onde, escoltavam agora o veículo. Um contra quatro, e estando alguns destes bem armados, Corentin percebeu que não estaria à altura, mas o seu destino estava traçado... Era preciso segui-los, segui-los a todo o custo, para onde quer que fossem! Por sorte roubara um bom cavalo e não estava sem dinheiro, mas o seu coração apertava-se ao pensar na pequena Sylvie, tão nova, tão frágil e que se entregara às mãos do mais terrível assassino de todo o reino...
...E ALGUMAS PERSONAGENS QUE NÃO O SÃO MENOS!
O descontentamento que Sylvie sentira quando Laffemas a forçara a acompanhá-lo, transformou-se em inquietação quando viu que este se recolhia no seu canto sem proferir palavra.
- Pois bem, por que esperais? Julgava que queríeis falar-me!
- Oh, mas dispomos de todo o tempo!
- O trajeto até Saint-Germain não é assim tão longo!
- Eu disse que vos levava até casa. Ao que me parece, Saint-Germain pertence ao Rei!
- A minha casa? Não tenho casa própria, a não ser um velho castelo em ruínas a sul de Vendôme, o qual, aliás, nunca cheguei a ver. Mas dizei-me finalmente, que significa tudo isto?
Ele encolheu os ombros com um sorriso malvado, mal arqueando as cerradas pálpebras:
- Já o vereis!... Em seguida, abandonando a sua postura descontraída, endireitou-se para levar às suas mãos uma das da sua convidada forçada: Ora, não vos assusteis! Apenas desejo o vosso bem... e até a vossa felicidade!
Aquele simples contato teve o condão de repugnar Sylvie, que retirou com fúria a sua mão, enquanto gritava:
- Mentis! Desde há pouco que não fazeis outra coisa senão mentir! Quero descer! Parai a carruagem! Parai!
Ele esbofeteou-a duas vezes, o que fez com que ela parasse de gritar e que a sua cólera aumentasse. Então lançou-se sobre a portinhola para a abrir, mas ele contentou-se em troçar:
- Quereis ser esmagada pelas patas dos cavalos?
Efetivamente um dos cavaleiros galopava quase encostado à carruagem e Laffemas aproveitou-se da hesitação dela para puxá-la para trás, obrigando-a, ao mesmo tempo, e com uma força inimaginável para um homem de tão fraca envergadura, a engolir o conteúdo de um frasquinho, que quase lhe enfiou pela garganta abaixo.
- Em memória do nosso primeiro encontro - resmungou - muito gostaria de ver o efeito que produziriam os ferros destes nobres animais sobre o vosso lindo rosto; mas acontece que acalento outros projetos a vosso respeito.
- Quaisquer que eles sejam - gritou Sylvie - tereis de renunciar a pô-los em prática pois em nada vos obedecerei! E esqueceis-vos de que não estou só no mundo. Procurar-me-ão...
- Quem? O vosso querido Raguenel? Não está em condições de se me opor!
- Sou dama de honor da Rainha. Ela enviará alguém à minha procura!
- Tendes a certeza? Sua Majestade é uma personagem que se esquece facilmente das coisas, sobretudo quando se trata de mulheres. Perguntai a Mme. de Fargis, que foi no seu tempo açafata da Rainha graças ao Cardeal e que, tendo escolhido servi-la em vez de ao seu benfeitor, está agora a definhar no exílio em Louvain! Longe da vista, longe do coração! Tal é o lema da nossa Rainha e não me atrevo a jurar que um belo dia Mme. de Chevreuse não venha também a ser paga com a mesma moeda!... Não, a Rainha está completamente ocupada na alegria que lhe provoca a sua gravidez e nada fará para procurar encontrar-vos. Saberemos, aliás, como responder...
- Como?
- Isso não é do vosso interesse! Ah! Bocejais? Estais a ficar com sono? Não tenteis lutar. O opiáceo que acabastes de ingerir é uma droga eficaz... e, quanto a mim, vou poder descansar um pouco na vossa amável companhia.
Apesar dos seus esforços, Sylvie tinha cada vez mais dificuldade em manter os olhos abertos. Uns segundos depois adormeceu. E dormiu tão bem que nem sequer se apercebeu do acidente que imobilizou, durante várias horas, num segeiro da aldeia, a carruagem que perdera uma das rodas, como também não ouviu as pragas que Laffemas soltava...
Quando acordou, não se sentiu lá muito bem. Ao dissipar-se, a poderosa droga deixara-lhe a cabeça pesada e a boca pastosa. Estava-se em pleno dia, um dia, na verdade, pouco animador. O céu, uniformemente cinzento, parecia-se com uma tampa cobrindo a terra onde a erva recomeçava a crescer, animada pelas grandes chuvas de Fevereiro. O primeiro movimento de Sylvie foi o de afastar a cortina de cabedal para espreitar para o exterior, mas a lisura da paisagem não lhe revelou nada.
- Onde estamos? - perguntou, sem olhar para o companheiro de viagem, que a horrorizava.
- Dentro em breve chegaremos ao nosso destino. Quereis um pouco de leite? Pedi um pouco para vós, na muda de cavalos. Deveis estar esfomeada.
- Mas que solicitude! Também vertestes nele outra dose da vossa droga?
- Não. Está limpinho. Aliás, espero não precisar mais de utilizar tal recurso. Deveis compreender que é do vosso interesse manter-vos tranquila...
Ela não tinha fome, apenas muita sede e o leite pareceu-lhe tanto mais delicioso porquanto lhe devolveu forças. Depois instalou-se o mais comodamente que pôde e manteve-se silenciosa. Precisava de refletir e, por sorte, o seu odioso companheiro respeitou o seu silêncio. Sem dúvida que pensava que ela começara a enveredar pela via da resignação. O que era um grave erro, Sylvie apenas pensava em descobrir, o mais depressa possível, um meio para lhe poder escapar.
As suas hipóteses eram escassas contra um homem que tinha por detrás dele o poder do Cardeal. Onde quer que fosse através do reino, bastar-lhe-ia, sem dúvida, invocar o seu terrível senhor para que as costas se curvassem e para que todos os favores lhe fossem acordados. O medo é um tão grande poder! A pobre Sylvie, presa como uma mosca naquela assustadora teia de aranha, transportada para longe de Paris, para um local que lhe era desconhecido, não encontrava, para já, a mínima porta de saída. De qualquer modo, na estrada, não havia nenhuma. Os cavaleiros estavam sempre presentes, todos vestidos de preto, tão sinistros quanto a equipagem e o seu dono! “O melhor será esperar pela chegada” pensou Sylvie. “A menos que me ponham nalguma fortaleza perdida no fundo da província, talvez consiga encontrar um buraco onde me possa esconder. E, mesmo aí, será ainda preciso procurar uma saída...” Estes eram pensamentos amargos que não ajudavam a moral. Pela cabeça desfiavam-lhe imagens: a de Marie de Hautefort, a sua querida amazona e, sobretudo, a de François! Ela teria tanto precisado da força e da coragem do senhor Anjo!... Mas não existia qualquer possibilidade que ele tivesse abandonado a casa de jogo da Blondeau e os seus companheiros de desgraça para ir brincar aos cavaleiros andantes numa província desconhecida...
De repente, algo atraiu o seu olhar ausente, perdido vagamente na paisagem recortada pelas cortinas de cabedal: telhados azuis, cata-ventos dourados, uma abundância de magníficas frondescências... Anet! Só podia ser Anet, tal como podia ser vista ao chegar de Paris! O nome cantou no seu coração mas não transpôs a sua boca. Era para lá que a levavam? Seria bom demais, pois ela conhecia imensa gente, tanto no castelo como na aldeia.
Sylvie abafou essa magnífica réstia de esperança. Que poderia fazer o sequaz do Cardeal num domínio dos Valaines, os seus piores inimigos? Aliás, a carruagem enveredava por um caminho que dava a volta em redor de Anet e Sylvie não conseguiu suster um suspiro que o medonho Laffemas não teve dificuldade em interpretar.
- Não, não vamos para casa dos vossos estimados protetores! Lembrai-vos do que vos disse ontem! Levo-vos de regresso a vossa casa... Mlle. de Valaines!
À custa de um esforço sobrehumano, Sylvie conseguiu manter a calma:
- De quem falais? Chamo-me Sylvie de L’Isle!
- Não, não é esse o vosso nome. E sabei-lo bem. Não desde há muito, concordo que é verdade, mas, ainda assim, sabei-lo agora...
- Foi o Cardeal quem vos informou? Não perdeu tempo!
Ele olhava para ela com o sorriso de um gato que se apresta a tragar um rato.
- Não foi ele. Eu já tinha as minhas dúvidas desde o dia em que vos encontrei com a senhora duquesa de Vendôme na Croix-du-Trahoir. Mesmo que a semelhança fosse longínqua, o vosso rosto, ainda assim, recordou-me outro... que eu estimava profundamente... e que nunca esquecerei. Vede bem, pequena Sylvie, amei a vossa mãe mesmo antes que a casassem com esse tolo do Valaines. A lembrança da sua beleza é daquelas que não se dissipam...
- Mas ela não vos amava. Isso teria sido surpreendente! Mesmo quando tínheis vinte anos! Há uma torpeza, a da alma, à qual nunca nos podemos acostumar. A desgraça para aqueles que dela padecem é que ela também se espalha pelos seus rostos.
Os olhos amarelos semicerraram-se e o sorriso transformou-se numa careta, mais ao gosto de Sylvie. Aquela figura não fora feita para o charme e a amabilidade.
- Num homem, a beleza será assim tão importante? Não mais do que a idade. Basta ser rico e poderoso. Nessa altura, as mais belas mulheres só podem inclinar-se. A partir do momento em que foram escolhidas, o que podem pensar não tem qualquer importância. Eu, escolhera Chiara Albizzi... E Maria de Médícis, essa puta florentina gorda, deu-a a um outro.
Aquele brusco assomo de cólera abriu perspectivas aterradoras no espírito de Sylvie. Acudiu-lhe uma idéia abominável que ela exprimiu de imediato numa voz sem timbre.
- E fostes vós que a haveis matado!
Não era uma pergunta, antes uma certeza, uma constatação carregada de tristeza e de pavor. Laffemas nem tentou negar. Sentia-se suficientemente forte para não ter de utilizar uma máscara:
- Fui. E com tanto mais prazer que antes a possuíra...
A jovem fechou os olhos. Compreendia que, doravante, se encontrava em poder de um demônio e que devia abandonar qualquer esperança. Com grande lástima, pensou no frasquinho de veneno que repousava no dossel do seu leito em Saint-Germain. Porque não o trouxera? Pelo menos, ter-lhe-ia restado um meio para escapar ao destino que lhe reservavam e que não era decerto de invejar... Nem sequer lhe ocorreu fazer uma prece. Quando as portas do inferno se vão fechar atrás de nós, será que ainda pensamos em Deus...?
Ela não precisou de perguntar qual o nome do castelo frente ao qual chegaram pouco depois. Se bem que não tivesse vindo até ali desde há tantos anos, sabia que era o de La Ferrière. As recordações da sua primeira infância despertavam e, com a ajuda do quadro adequado, restituíam-lhe as personagens. Quando transpuseram a velha ponte levadiça que já não ousavam empregar muitas vezes, reviu, num ápice, as criadas que se dirigiam para a lavagem da roupa, transportando pesados cestos, uma bela dama que era a sua mãe, lendo no jardim ou, então, dirigindo-se para a missa na pequena capela. Reviu a aia, enorme e bonacheirona, segurando-a pela mão para a levar a passear e, depois, erguendo-a subitamente para lhe cobrir o rosto de beijos antes de instalá-la confortavelmente no seu pujante braço para que ela pudesse ver as coisas e as pessoas de uma perspectiva mais elevada. Com as recordações veio também a ternura, tão profundamente enterrada no seu coração, e acabou por entregar-se a ela. Foi assim que se recordou de duas crianças maiores que ela, um irmão e uma irmã, cuja imagem devia ter-se confundido, com o tempo, com a de François e a de Elisabeth de Vendôme...
Assim, tal como o dissera, Laffemas trazia-a de volta a casa, ou àquilo que já fora a sua. Na realidade mentia-lhe, pois haviam dado o castelo a esse homem do mesmo nome, como se tivesse sido uma coisa natural e como se se tivesse tratado de reinstaurar uma ordem perdida na noite dos tempos ou uma indenização, quando não era esse o caso. Perceval fora peremptório: nunca nenhum La Ferrière possuíra ali qualquer domínio; o nome provinha de outro sítio.
E, claro, logo que desceram da carruagem, lá estava ele para lhe dar a mão, esse tal Justin de La Ferrière, que Sylvie tanto detestava. Recusou-se a dar-lhe a sua, mas ele não se zangou, contentando-se em olhá-la com um sorriso trocista. E, subitamente, ela explodiu:
- Quereis explicar-me o que estou aqui a fazer? - gritou, quase sob o nariz do tenente civil. Já não estou em minha casa e sabei-lo muito bem!
- Sem dúvida, mas em breve o estareis. Sua Eminência achou que seria perigoso para a sua pessoa deixar-vos regressar à Corte, sobretudo com um nome de empréstimo.
- Não é um nome de empréstimo. Foi-me concedido, segundo os trâmites devidos, por Monsenhor, o duque de Vendôme. Não tenho nada a fazer numa residência alheia...
- Dentro de algumas horas sereis a senhora deste castelo. Se vos mandei trazer aqui, foi para vos desposar. Esta mesma noite ireis desposar o barão de La Ferrière... Por ordem do Cardeal! - acrescentou para calar os seus protestos, mas era difícil fazer calar Sylvie quando algo lhe pesava no coração.
- Mentis! O próprio Cardeal assegurou-me que nunca mais se falaria desse casamento, o qual ele sabe que não desejo.
- Não poderíamos tratar deste assunto no interior? - interveio o barão. - Está fresco e até começa a chover.
Era verdade e, com efeito, mais valia entrar. O olhar de relance de Sylvie acabara de revelar-lhe que era impossível escapar àquela armadilha. Durante um momento, pensou na rapariguinha que partira, certa noite, rumo a um destino melhor, correndo desajeitadamente de pés descalços e disse a si mesma que fora bafejada pela sorte. Hoje não lhe restava nenhuma: além de Laffemas e do seu hospedeiro, havia os criados cujas feições não lhe diziam nada que valesse a pena, duas sólidas comadres que deviam ser camareiras e, finalmente, os cavaleiros da escolta, ainda a cavalo, imóveis e indiferentes como estátuas equestres. Com um suspiro, entrou na casa de seus pais e deixou que a levassem até uma grande sala onde estavam a pôr a mesa. Das cozinhas chegavam odores a pão quente e a carnes assadas.
- Estão a preparar o festim das nossas núpcias - troçou La Ferrière. - Como podeis ver, éreis esperada.
- Podeis guardar o vosso festim. Nunca vos desposarei. Nunca, compreendeis?
- Claro que sim, minha querida, ides desposar-me e terei a grande alegria de ser, ao mesmo tempo, vossa testemunha. O padre já chegou?
- Está a descansar um pouco enquanto se acaba de enfeitar a capela...
- Notai, jovem dama, que se trata da capela onde repousam os vossos pais. Isto deve parecer-vos um bom augúrio, não? Reparai que Sua Eminência pensa que sabeis atualmente demasiadas coisas e que convém entregar-vos às mãos de um esposo que não só saberá guardar-vos ao pé dele, como também impedir-vos de voltar a meter o nariz em assuntos que não vos dizem respeito!
A jovem encolheu os ombros com uma careta de desprezo.
- Então terá de me matar, porque eu nunca consentirei...
- Se fordes demasiado insuportável, talvez tenhamos de chegar a esse extremo mas, de momento, oferecemo-vos uma possibilidade para sobreviverdes... de forma muito agradável, ao pé de um esposo apaixonado que não mais vos abandonará.
- Porquê? Já não pertence aos guardas do Cardeal?
- Não, agora já não. Um jovem esposo deve dedicar-se por inteiro à sua mulher.
- Parai com esta comédia! Podeis arrastar-me pela capela, mas não me obrigareis a dizer sim. Quanto ao resto, podeis enclausurar-me... ou antes, matai-me e não se fala mais nisto!
- Teremos realmente de renunciar a convencer-vos? - entoou Laffemas com um sorriso dengoso.
- Terei realmente de repeti-lo? Aliás, não pronunciarei nem mais uma palavra.
- Creio que o fareis... pelo menos aquela que esperamos da vossa parte e estou certo que ireis, muito rapidamente, reconsiderar a questão...
Desta vez teve apenas direito a um encolher de ombros. Sylvie estava disposta a não abrir mais a boca, mas ele acrescentou:
- A propósito de questão, M. de Raguenel ainda não foi sujeito a ela. Ainda não. Ficai a saber que é uma coisa terrível, isto da questão. O carrasco possui um arsenal capaz de desatar as línguas mais obstinadas...
Sylvie sentiu o coração estremecer mas, fiel à sua linha de conduta, voltou as costas ao miserável para ir estender as mãos geladas ao pé do fogo da lareira. Contudo, o tenente civil foi no seu encalço:
- Existem pontas para rebentar os ossos das pernas, a água que incha o corpo até ser insuportável, as tenazes escaldantes... os mais duros acabam por ceder... ou então morrem! É possível morrer sob a tortura.
Parou um momento, enquanto Sylvie retirava as mãos que aproximara do calor reconfortante, apertando-as uma de encontro à outra, para que ele não pudesse ver quanto elas tremiam.
- Se se for além de certos limites - murmurou Laffemas - acaba-se por morrer, mas... a morte também pode levar o seu tempo a chegar, sabe fazer-se esperar... desejar. Oh, sim! Como ela é desejada quando o corpo inteiro é apenas uma enorme chaga, e as unhas foram arrancadas, e os olhos...
- Basta! - estourou Sylvie, incapaz de suportar mais pois, à medida que ele ia falando, ela via o seu padrinho suportar todos aqueles horrores. Não vos quero ouvir mais!
E, com as mãos a tapar-lhe os ouvidos, correu para a porta, onde foi esbarrar contra uma das mondongas que vira ao chegar. O tenente civil recomeçou:
- Já disse quanto baste! Segui Gudrun! Ela vai levar-vos até ao vosso quarto, onde deveis preparar-vos para a cerimônia... Ah! é inútil tentardes meter conversa, pois ela só percebe a língua alemã, tal como a sua irmã Hilda.
A mulher, cujo rosto era quase tão expressivo quanto uma gárgula de pedra, pegou rispidamente no braço de Sylvie e levou-a até à escadaria que a obrigou a subir. No andar de cima, a prisioneira reencontrou o quarto que fora o de sua mãe, aquele onde Chiara vivera o seu martírio. Olhou para a chaminé onde Jeannette se escondera. Desta vez ninguém se escondera ali, ninguém que pudesse, um dia, testemunhar o seu próprio calvário.
Um vestido estava estendido em cima da cama e Sylvie arrepiou-se ao reconhecê-lo. Era um dos seus mais bonitos, o branco bordado em prata, prenda de Elisabeth de Vendôme, aquele que ela trazia na noite do Gd. Como é que os seus raptores o haviam encontrado?
Não ficou a cismar na pergunta. Havia muitas outras que lhe passavam pela cabeça desde que fora raptada no pátio do castelo de Rueil. Aqueles demônios pareciam dispor do poder de agirem a contento, não só em casa do Cardeal, mas também no palácio dos reis. No entanto, acudiu-lhe a idéia de que, apesar do que lhe tinham dito, talvez Richelieu não estivesse na origem desta aventura. Para quê tê-la confiado à guarda de M. de Saint-Loup, para depois deixar que o seu acólito a recuperasse? Tudo aquilo não se coadunava com a personagem mas, no ponto em que se encontrava, que o Cardeal estivesse ou não de acordo, isso já não mudava nada. Ele seria posto perante os fatos consumados e o medonho Laffemas era suficientemente retorcido para lhe apresentar a sua inqualificável atuação sob um aspecto lisonjeador para a sua própria pessoa.
Num gesto de cólera, a jovem pegou no vestido, fez dele uma bola e atirou-o para um canto do quarto, sentando-se depois no lugar que ele antes ocupava, de braços cruzados, na intenção de não mais se mexer. Gudrun, que terminara os seus preparativos, voltou-se, olhou para ela e, depois, sem se emocionar minimamente, foi chamar a irmã. As duas agarraram então em Sylvie, que bem tentou defender-se, mas que teve de se considerar vencida: apesar das suas garras, a “gatinha” não tinha força que chegasse para aqueles dois colossos. Num abrir e fechar de olhos, despiram-lhe as roupas, lavaram-na e enfiaram-na no lindo vestido que deixava transparecer, de forma tão encantadora, os seus ombros frágeis e os seus pequeninos seios redondos. Depois voltaram a penteá-la e, tapando-a com a sua capa, obrigaram-na a sair e a encaminhar-se até à capela, cujos vitrais azuis e vermelhos fulgiam como olhos ao cair da noite.
O castelo não era grande e a capela também não; contudo, as poucas pessoas que lá se encontravam causaram, em Sylvie, o efeito de uma multidão aglomerada perante um patíbulo em cima do qual La Ferrière, vestido de veludo púrpura, desempenhava, de modo convincente, o seu papel de carrasco. Ademais, reinava um frio úmido que lhe provocou arrepios. A partir desse momento, a pobre jovem, vencida pelo cansaço e pelo desespero, não ouviu nem viu nada do que se desenrolava perante ela. Pensava em todos aqueles que amava e que não mais voltaria a ver. Como estavam longe! Desapareciam numa névoa cada vez mais espessa, num mar sempre mais profundo, ao cimo do qual esbracejou, finalmente, Perceval, cujo destino dependia agora dela. Era preciso salvá-lo, mais ainda do horror do que da morte, que ela sabia que ele não temia! Depois... o caminho já parecia todo traçado.
A forçada noiva interessava-se tão pouco pela cerimônia que nem ouviu o padre quando este lhe perguntou se consentia em desposar Justin de La Ferrière. Ela quedava-se ali, direita, imóvel, quase catatonizada? olhando, sem ver, aquele homem de casula bordada... então, uma mão de ferro agarrou-lhe a parte detrás da cabeça, obrigando-a a inclinar-se, segundo o método outrora empregue pelo rei Carlos IX, no adro de Notre-Dame, para extirpar o consentimento, mais que renitente, da sua irmã Margot, na altura em que ela desposara o Bearnense. Como nesse dia, o celebrante contentou-se com o ato, despachou o serviço e Sylvie encontrou-se no exterior, caminhando ao lado do esposo, na direção da casa iluminada muito modestamente para umas núpcias! onde foi obrigada a participar num festim no qual pouco ou nada comeu, contentando-se em beber um pouco daquele vinho do Loire que François tanto apreciava... Acudiu-lhe a idéia de beber desmedidamente, a fim de tentar esquecer-se da situação abominável em que se encontrava. À sua volta devorava-se e bebia-se com fartura. O homem que era agora o seu esposo até bebia mais do que os outros, mais, sobretudo, que a sua testemunha, que permanecia curiosamente sóbria. Sylvie julgava que isso era, sem dúvida, devido ao fato de ter de se ir embora depois do jantar. Ao regressar da capela, reparara na carruagem preta que ninguém resguardara. Só os cavalos tinham sido mudados. Dentro em pouco ficaria a sós com Justin, e tal idéia repugnava-lhe. Só acalentava uma esperança, causada pela quantidade de bebida que ele ingurgitava: a de que ele ficasse a cair de bêbedo e, portanto, incapaz de a importunar. Oh, se ele não conseguisse apanhá-la naquela noite, nunca o iria conseguir, pois no dia seguinte já não estaria viva!
Entretanto, Laffemas impacientava-se. Achava que as coisas demoravam e foi ele que, levantando-se, declarou que aquilo já durara tempo demais, mesmo para uma refeição nupcial, e que já era altura de conduzir a esposa até ao leito. Seguidamente, sem esperar pela resposta de La Ferrière que tentava, não sem dificuldade, pôr-se de pé, foi pegar na mão de Sylvie:
- Vinde! As vossas mulheres estão à vossa espera. E eu não disponho da noite inteira!
- Por que pretendeis impedir este digno gentil-homem de festejar a sua vilania? Deveis regressar a Paris? Pois bem: ide-vos! Já me fizestes todo o mal que era possível fazer...
Ele contentou-se em olhá-la sem responder, mordendo os lábios.
- Só me irei embora quando estiverdes deitada na vossa cama! Chamai as mulheres! Que venham buscar a senhora! - ordenou a um criado. - É que, minha pequena, seria muito fácil para vós, logo que eu me tivesse ido embora, escapar-vos à noite de núpcias, dado o estado em que se encontra o vosso esposo. Ora, quando empreendo algo, faço-o bem feito... e até ao fim.
Foi preciso resignar-se ao que ele queria. Com a morte na alma, Sylvie deixou-se levar pelas suas duas guardiãs. Que outro nome atribuir a essas duas criaturas, de cara fechada, que não se pareciam, em nada, com a sorridente Jeannette? Contudo, elas conheciam bem o seu serviço. Uma vez retiradas as roupas, perfumaram a nova esposa e enfiaram-lhe uma comprida camisa de seda enfeitada com pesadas rendas. Desfizeram os nós das fitas, o carrapito do pescoço e Sylvie foi envolta pelo monte sedoso dos seus cabelos, cuja cor castanho clara adquiria tão lindos reflexos à luz das velas. O espelho, frente ao qual a sentaram, refletia-lhe uma encantadora imagem. Nessa altura, não foi em François que Sylvie se pôs a pensar, mas sim em Jean d’Autancourt, e para lastimar-se! Porque não lhe prestara ouvidos? Àquela hora estaria, sem dúvida, casada, mas com um jovem, terno, delicado, que teria sabido lidar com a criança que ela ainda era. Nada havia de semelhante a esperar da parte do bruto prestes a chegar!
Sentada sobre a cama com colunas, com a lamparina que, acesa à cabeceira, dava vida às figuras que se encontravam tecidas nas armações das tapeçarias que faziam de cortinados, gelada até ao fundo da alma, apesar do enorme fogo aceso na chaminé, Sylvie esperava... as duas alemãs tinham-se ido embora, levando com elas as suas roupas e, até, os seus sapatos, o que lhe pareceu esquisito, mas, segundo as suas contas, já não ia na primeira má surpresa.
Com os ouvidos alertados, ela esperava pelo ruído dos cascos dos cavalos, do rodar da carruagem que levaria Laffemas, finalmente, de regresso a Paris, deixando-a à inteira mercê de um velho rude, perdido de bêbedo. Mas nada acontecia...
E o que aconteceu foi o ligeiro ranger da porta que se abria lentamente, muito lentamente. Chegara o terrível momento ao qual ela esperava ainda poder escapar essa noite graças ao vinho. Mas a silhueta que surgiu na ombreira esculpida da porta era a de Laffemas.
Uma onda de cólera abafou o medo de Sylvie:
- Que vindes aqui fazer? Como vedes, puseram-me na cama para esperar pelo meu marido. Agora, podeis ir-vos! O vosso vil trabalho está consumado.
- Ainda não...
Efetivamente, em vez de se ir embora, avançava pelo quarto dentro e aproximava-se da cama. Havia uma luz perturbadora nos seus olhos amarelos, enquanto lambia os beiços como um grande gato. Aterrorizada pelo que via inscrito naquela figura diabólica, Sylvie recuou na cama até esbarrar contra a cabeceira de carvalho, que a parou. Quis agarrar-se a ela.
- Saí!... Saí - gritou. - Vou chamar por alguém!
- Por quem, minha bela! Pelo teu esposo? Está a cair de bêbedo e, aliás, caso não o estivesse, também não acorreria. Já tínhamos combinado, e isso há muito tempo, que, caso eu conseguisse entregar-te a ele, poderia exercer o direito do senhor!... Dispor das premícias, minha linda! Que momento delicioso vamos passar juntos! Há meses que sonho com ele... vamos, sai dessa cama!
Ela ainda se agarrou com mais força ao suporte da cama. Então, inclinando-se, puxou-a com uma força que ela nunca o suporia capaz. Caiu em cima do tapete, mas ele já a levantava, aprisionando-lhe as mãos atrás das costas com o auxílio de uma só das suas, enquanto que, com a outra, lhe desapertava a fita da camisa, fazendo-a deslizar até aos punhos mortificados e começando a acariciá-la:
- Que corpinho tão formoso! Mas que linda menina!... Se queres que te diga, ainda me agradas mais do que a tua mãe! Oh, ela era bonita... muito bonita! Mas tu és uma maravilha! Uma corça assustada! E és tão novinha! Uma flor que mal desabrochou!... Um botão de rosa que eu vou abrir!
O que se seguiu foi abominável. Enquanto obrigava a infeliz a receber um beijo repugnante, arranhou-lhe o peito, mordeu-lhe os seios, desencadeando tanto mais o seu furor quanto ela gritava. Depois, atirou-a para cima da cama e penetrou-a com tanta brutalidade que ela lançou um verdadeiro uivo. A dor foi tão violenta que, por fim, Sylvie desmaiou. Ele nem sequer se apercebeu, continuando a sua dança infernal, vomitando torrentes de injúrias, nas quais misturava Sylvie à mãe e a todas as infelizes que degolara nas margens do Sena. Pelo menos, este derradeiro horror foi poupado à sua vítima...
Quando recobrou os sentidos, ele recompunha-se, de pé no meio do quarto. O regresso à consciência arrancou-lhe um gemido. Então, voltando-se para ela, ele riu-se e atirou:
- Foi bom, sabes?...Voltaremos a ver-nos, minha linda codorniz!... Está descansada! Voltarei... e mais do que uma vez! Agora pertences-me!
Foram as suas últimas palavras. No momento seguinte deixava o teatro da sua infâmia e, alguns minutos depois, Sylvie ouviu, finalmente, o rodar da carruagem e o ruído dos cascos dos cavalos por que tanto ansiara. Depois... nada. Apenas um silêncio tão pesado que se poderia imaginar que o castelo estava abandonado. Sylvie começou, então, a mexer-se. Doía-lhe o corpo inteiro. Era como se a tivessem fechado dentro de uma caixa na companhia de gatos selvagens. Manchas de sangue testemunhavam, nos lençóis, o tratamento bárbaro que lhe haviam infligido. Mas, a pouco e pouco, a sua juventude e a sua profunda vitalidade voltaram ao de cima. Vislumbrou a camisa que ficara no chão e deslizou para ela, com a impressão de que sofreria menos se cobrisse o seu corpo dolorido.
Logo que se pôs de pé e que se tapou, apercebeu-se que a cabeça não andava à roda e que podia caminhar. Nessa altura viu, em cima de um cofre, uma bandeja sobre a qual estavam dois copos e uma garrafa de vinho. Um dos copos já tinha servido. Pegou no outro, verteu algumas gotas que bebeu num trago, sentiu um certo bem-estar e verteu um pouco mais.
Em redor dela, o castelo continuava sempre envolto num completo silêncio. Pensou que devia sair dali o mais depressa possível. Não em busca de um socorro que não podia esperar da parte fosse de quem fosse, pois encontrava-se casada com o imundo La Ferrière, mas para ir ao encontro da morte. O rio não ficava longe mas, no entanto, acudiu-lhe a idéia que teria um fim mais suave se a procurasse na lagoazita de Anet, aquela onde deslizavam os lindos cisnes que tanto gostava de ver quando era ainda criança. Ao menos aí, poderiam encontrar o seu corpo e dar-lhe-iam uma sepultura conveniente. Estava num tal estado que não passaria pela cabeça de ninguém que ela se tivesse suicidado...
Sylvie sentiu-se reconfortada. A idéia do desenlace final não só não a atemorizava, como lhe era querida, pois seria o único meio de reencontrar François, ao qual, afinal de contas, ela apenas se anteciparia. Não havia dúvida alguma acerca do destino que o Cardeal reservava para o amante da Rainha. Este regressaria aos campos de batalha, cuja falta tanto sentia e, um belo dia, após o desfecho de uma batalha, descobririam o seu corpo, abatido pelo inimigo ou por uma mão invisível vinda do seu próprio lado...
Mas, para deixar a vida, era preciso, primeiro, deixar o castelo. Todos deviam estar a dormir, os bêbedos digerindo o vinho e os criados o cansaço. Começou por procurar algo para vestir, mas não encontrou nada, exceto os lençóis da cama. Tinham levado tudo. Além disso, a porta estava fechada, pelo que se dirigiu à janela, na idéia de atar aí os lençóis, seguindo a melhor tradição das grandes evasões. Como o quarto ficava no primeiro andar, o seu comprimento devia chegar. No entanto, fez ainda uma descoberta melhor: naquele local havia uma camada de hera que trepava pelas paredes da casa e desde a infância que sabia quanto era fácil escalá-la graças a essa planta tão sólida. Descer devia ser a mesma coisa. Até de pés descalços e em camisa!
Ao percorrerem-lhe o espírito, as palavras ficaram-lhe atravessadas, despertando-lhe a memória. Não estava mais vestida que quando, aos quatro anos, o seu instinto de pequeno animal a arrastara para fora de La Ferrière! Só que, agora, teria forças que chegassem? O bebê de outrora era vivaço, estava de plena saúde. Agora era apenas uma mulher demasiadamente jovem, quebrada, arrastando um corpo desfeito em pedaços...
No entanto decidiu-se, conseguiu deslizar magra que era! entre a ombreira e a travessa de pedra, procurou um ramo que fosse um pouco espesso e lenta, lentamente, deslizou para o exterior, encontrou outro ramo sob os seus pés, ainda outro e um quarto, até que, finalmente, após o que lhe parecia ter demorado um século, pisou terra firme. Então, sentou-se durante um momento, contra o tronco retorcido para que o coração reencontrasse o ritmo normal.
Nessa altura, a Lua, que se encontrava em quarto minguante, saiu por detrás das nuvens, mostrando-lhe o pátio deserto e a porta aberta numa ponte-levadiça que já não servia há muito tempo. Sylvie descortinou um convite para prosseguir com o seu lúgubre projeto. Levantou-se a custo. A vontade de se deitar ali, depois do esforço que despendera, era grande, mas a sua força de vontade zelava. Antes de mais, era preciso sair daquela residência amaldiçoada para todo o sempre! E pôs-se a caminho...
Finalmente viu diante dela o caminho da floresta, escuro, percorrido, no entanto, aqui e além, pelos pálidos raios enviados pela lua. Mas quão cruel foi para os seus pés descalços! A sua primeira fuga ocorrera em Junho, quando a erva e as pequenas plantas eram densas. O Inverno endurecera a terra, cujo esqueleto estava a nu, cheio de pedras cortantes e espinhos cruéis. E estava tanto frio! Contudo, Sylvie caminhava, caminhava gemendo e inundada de lágrimas, mas levada avante por um desespero maior que ela. Já nem conseguia raciocinar. Vislumbrava, apenas, aquele túnel de árvores mortas, que devia transpor para encontrar a frescura da água... da água... da água! Esbarrou de encontro a algo, soltou um grito e estatelou-se ao comprido, a cara contra o solo onde se agarrou com as mãos, tendo a sensação de jamais conseguir levantar-se. Os seus ouvidos estavam inundados de ruídos, por entre os quais um ruído de galope que lhe recordou, antes de desmaiar novamente, o momento maravilhoso em que, no seu desconcerto infantil, o senhor Anjo lhe aparecera!
Não viu surgir, de entre a mata, os dois cavaleiros impelidos pelo seu grito. No entanto, eles descobriram-na a tempo, François, que galopava à frente, empinou o cavalo para evitar espezinhá-la, desviando-o, ao mesmo tempo, do corpo estendido para o qual se precipitou.
- Pelo sangue do Cristo! É ela!... É Sylvie! Mas em que estado! Está gelada! Nem sequer a ouço respirar... não chegamos a tempo!
- Eu é que cheguei demasiado tarde, monsenhor! E nunca me perdoarei! Pobre, pobre pequena! - gemeu Corentin, desesperado.
- Não é da vossa culpa que o vosso cavalo tivesse encontrado a morte contra um tronco de árvore e que tenhais levado horas para desencantar outro. Além disso, tivestes de mandar abrir a porta do castelo, de me acordar...
- E pensar que fiquei tão feliz ao saber que estáveis em Anet.
Beaufort que, entretanto, se ajoelhara ao pé de Sylvie, voltava cuidadosamente o seu corpo inanimado, onde a luz pálida lhe mostrava as manchas de sangue, os ferimentos que se encontravam sob o fino tecido, rasgado em vários sítios. Enquanto a apertava de encontro a si, sentia-se invadido por uma onda de ternura e, também, de dor...
- Minha gatinha!... Minha pobre gatinha! - murmurou, com os lábios pousados na testa dela, sem conseguir reter, por mais tempo, as lágrimas... - vingar-te-ei! Juro perante Deus que te vingarei!
De repente, ouviu um murmúrio:
- François...
Surpreendido, afastou-a, precisamente a tempo de ver abrirem-se aqueles olhos que julgava para sempre fechados, e a alegria invadiu-o.
- Louvado seja Deus! Estais viva!... Vede! Corentin também aqui está! Ela está viva!
Mas Sylvie não via Corentin. Apenas entrevia o que julgava ser um sonho brotando do seu desesperado desejo que tudo recomeçasse como outrora:
- Vós... viestes!... Estais aqui... E desmaiou pela terceira vez.
[1] A não confundir com seu primo, cujo primeiro nome era também Pierre, mas que será Guarda-Selos e chanceler de França.
[2] O Béarn é uma região que corresponde à parte oriental do departamento dos Pirenéus-Atlânticos Unida ao condado de Foix (1290), no séc. XV passa com este para a casa de Navarra. O futuro rei Henrique IV, rei de Navarra em 1572, foi o último conde de Béarn. Luís XIII anexá-la à Coroa em 1620.
[3] Na alta nobreza, o filho mais velho tem sempre um nome diferente até à morte do pai: Fronsac para os Richelieu, Crussol para os Uzès, Mercoeur para os Vendôme, etc.
[4] Trocadilho, utilizado pela autora, no original, entre – vilame - (vilã) e Vallaine.
[5] Luís XIII e Ana de Áustria nasceram no mesmo ano.
[6] Com o título de duque de Anjou até se tornar duque de Orleans em 1626.
[7] Nascida Marie de Luxembourg
[8] Louise de Vaudémont, esposa de Henrique
[9] Nessa época, era o nome dado à biblioteca.
[10] As flores da petúnia eram na altura um substituto comum do tabaco
[11] Mercenário alemão ao serviço da França e do Santo Império romano-germânico (secs, XV-VIII).
[12] Aide Manuce, muito célebre, é o inventor dos caracteres itálicos.
[13] Nessa altura as carruagens não dispunham de vidros. Utilizavam-se cortinas de cabedal, mais ou menos ornamentadas.
[14] “Comevache” e “Puits-Fondu”, que poderiam traduzir-se respectivamente, na língua portuguesa, por Corno-de-Vaca e Poço Desfeito, são obviamente nomes inapropriados neste contexto.
[15] Ela nunca mais voltou.
[16] Anagrama de Catherine, primeiro nome da marquesa de Rambouillet, que era, de certo modo, a rainha das Preciosas
[17] Famosa noite de 23 a 24 de Agosto de 1572, em que foram massacrados os protestantes, em Paris e na província, por instigação de Catarina de Médícis e dos Guises, inquietos pela influência crescente do almirante Coligny sobre o rei Carlos IX e pela sua política de apoio aos Países-Baixos, em revolta contra a Espanha. Permaneceu como um símbolo da intolerância religiosa, tendo ocasionado mais de 3000 vítimas.
[18] Hoje empregaríamos o termo “bordel”.
[19] O termo emprega-se, no século XVII, para as damas das classes sociais mais abastadas, que procuravam distinguir-se pela elegância dos seus modos e dos seus costumes. Mohère fez delas o objeto de uma das suas famosas peças de teatro, “Lês Femmes Savantes”.
[20] A Franche-Conté é uma região que a partir do fim do séc XV foi disputada entre a França e o Sagrado Império. Passou para as mãos dos Habsburgos em 1556 e foi devolvida à França em 1678, graças ao tratado que Nimègue mantém com o irmão, o Cardeal Infante, com Mme. de Chevreuse, a sua amiga no exílio, e ainda com várias outras pessoas. O que, no Louvre, é impossível.
[21] Filipe IV de Espanha, irmão de Ana de Áustria, desposara Elizabete, irmã de Luís XIII, que viria a ser a mãe de Maria Teresa, futura mulher de Luís XIV.
[22] A toesa equivalia aproximadamente a dois metros
[23] O castelo de Madrid, situado no bosque de Bolonha, foi mandado construir por François I, como lembrança do seu cativeiro em Espanha.
[24] Só as duquesas e as princesas é que se podiam sentar na presença dos soberanos O banco era o símbolo da dignidade ducal.
[25] Ao lado do antigo castelo feudal, o condestável de Montmorency mandara construir um castelo do estilo Renascentista.
[26] Quando estava só e isso era frequente a Rainha vivia à hora espanhola
[27] Nessa altura, embaixador em Roma
Juliette Benzoni
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